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UMA das preocupações de frau Persenthein consistia em sentir o soalho do quarto de dormir a oscilar sob os passos; o que não admirava, visto a casa ser muito velha.
Os leitos ficavam em leve declive e, quando estava fatigada, sonhava sempre que escorregava para os pés da cama; isto tornava ainda mais penoso o sono da esposa do médico. Sonhava muitas vezes com um plano inclinado pelo qual deslizava, o que lhe causava um medo incrível. Quando a campainha nocturna se misturava ao pesadelo, acordando-a, já não sabia se realmente dormira ou se tinha sentido aquela sensação num estado de semi-inconsciência. Estendia então o braço para a cama paralela à sua e encontrava-a vazia. Acendia a luz e via as horas. Duas e meia da manhã. Ouvia a filha respirar no quarto pegado, enquanto se cobria com o grande chalé de lã e descia às apalpadelas a curiosa escada de madeira que rangia sob os seus passos, A campainha da porta tornava se impaciente e apressada. No consultório estava a luz acesa.
Elisabete Persenthein entrou nas pontas dos pés antes de ir atender o nocturno visitante.
O dr. Persenthein adormecera com os braços e a cabeça apoiados sobre o Jornal Médico, de Munique. Através dos cabelos claros e finos, a luz do candeeiro reflectia-se
na pele do crânio. O esterilizador cintilava; a superfície de níquel reflectia uma segunda imagem, minúscula,
do médico adormecido: viam-se os ombros fatigados, as grandes mãos, cuja pele, à força de ser ensaboada, se tornara rugosa e gretada, os longos dedos de unhas roídas.
- Kola! - chamou Elisabete, em voz suficientemente alta para acordar o marido mas suficientemente baixa para o não assustar. Ele reagiu logo, respondendo com nervosismo.
- Não estou a dormir. Nem é tarde. Tenho que acabar de ler este artigo.
Frau Persenthein não costumava retorquir a respostas deste género. Renunciara a suscitar discussões sobre as noites que o marido passava a trabalhar.
Quis sorrir com uma expressão reconfortante, mas como estava fatigada, a pequena ruga desenhada sobre o olho direito estremeceu, o que deu em resultado ser o conjunto
do seu sorriso e da sua expressão que desejava ser alegre, um tanto triste e forçado.
- Um doente. vou abrir. - disse apenas.
O dr. Nicolau Persenthein lavou maquinalmente as mãos. Resmungou:
- Sempre de noite! Parecem coelhas ! Onde está a minha maleta ?
Em geral, o visitante que vinha no meio da noite buscar o médico era um operário, exausto e excitado, do bairro de Obanger ou um camponês vindo duma das aldeias
do lado da floresta de Dusswald, que a mulher havia enviado a casa do médico. Desde que três pessoas tinham morrido com a gripe, chamavam o médico quando alguém
tinha febre e tossia. Procuravam-no talvez um pouco tarde, mas não deixavam de bater à porta, e qualquer hora, quer de dia quer de noite, lhes parecia adequada.
A esposa do médico ouviu o relato confuso que o homem fazia, enquanto o marido foi à loja onde estava a motocicleta. Verificou o conteúdo da maleta.
-Omnadine... seringa... fisostigmine ? - interrogou Persenthein que estava enfiando um casaco curto e se mostrava mais acordado do que, na realidade, estava.
A mulher fez estalar o fecho da maleta. Pendurou esta na moto.
Diante da casa, um fresco vento de madrugada, gelando-lhe os pés nus, fê-la estremecer. Persenthein resmungou algumas coisas desagradáveis dirigidas ao homem que
mostrava um rosto ofendido, exagerando o estado da doente para justificar a visita nocturna. Embora o dr. Persenthein se apressasse, levava tempo a sair: era muito
vagaroso. Verificou se a moto estava em ordem. Desabotoou ainda o casaco afim de procurar alguma coisa. Reabriu a maleta e examinou o conteúdo. Por fim, o relógio
da igreja deu três horas e a motocicleta, levando o médico rabugento e o homem ofendido atrás, demarrou e, fazendo enorme barulheira, atravessou a porta da cidade.
Elisabete pôde voltar para o quarto de chão inclinado e para o seu interrompido sonho.
Era por morarem numa casa muito velha, de traves à vista, que os soalhos estavam inclinados e os leitos também. Na verdade, quási não era uma casa, mas um anexo
da velha torre da cidade que se chamava o Angermann. A casa do doutor tinha o cognome de "casa do Angermann" e não pagava ao governador de Lohwinckel mais do que
oitocentos marcos de renda. O muro traseiro era ainda um bocado da antiga muralha da cidade ; era feito de pedras entre as quais os séculos haviam roído a argamassa.
O soalho, a escada e o esqueleto do prédio gemiam: era o leve queixume da madeira muito velha que sustentara pesados fardos durante centenas de anos. Nesses momentos,
frau Persenthein ficava imóvel; concentrada e hirta escutava o tremor das paredes e o estranho ruído das traves. Escorregava cal ao longo das vigas e tombava no
chão. Então ela saía da sua imobilidade, procurava o pano do pó e limpava mais uma vez.
- Vai ver, patroa ... - dizia o operário Lungaus que vivia no andar de cima, na água-furtada - um dia cai-nos a casa em cima.
Ela tinha vinte e nove anos e Lungaus cinquenta e oito. Ele detestava-a mas chamava-lhe "patroa". Quando lhe serviu o pequeno almoço, o homem anunciou-lhe, de rosto
sombrio:
- Toda a noite ouvi barulho no forro ...
Ela meditava um pouco nas terríficas previsões e acabava por dizer:
- Não, Lungaus, a casa aguenta.
- Eu que lhe digo isto, é porque cá tenho as minhas razões. - tornava o homem que era doente e teimoso.
- Deixe-se disso. Estas paredes já têm cem anos. Porque não hão-de continuar a resistir? Apenas a argamassa está deteriorada ...
E, sem empregar mais argumentos, punha a chávena do leite para o Lungaus sobre a banca, limpava pacientemente um pouco de cal que a caminheta da ligação com o comboio
da manhã fizera saltar das fendas e tornava a colocar o pano de pó no cubículo.
- É uma verdadeira porcaria, esta casa ! - afirmava Lungaus.
E seguia-a nos seus trabalhos caseiros. Nos pés, trazia uns velhos chinelos do doutor; também lhe haviam pertencido as calças que hoje tinham fundilhos e faziam
corcovas nos joelhos ponteagudos. Exalava-se do homem um cheiro amargo. Era o aroma que as folhas molhadas têm no fim de Novembro. Elisabete enervava-se ao ver o
fato do marido, no corpo de Lungaus, a deambular como um fantasma, através da casa. No entanto, disse amavelmente:
- Tem razão. Esta casa é inabitável.
Cheia de recantos e esconderijos, realmente a maldita habitação dava imenso trabalho para andar limpa, sendo difícil de arejar e de aquecer. A renda era barata,
mas, de forma insidiosa, absorvia enormes somas, visto que precisava sempre de obras. Tinham posto a luz eléctrica, depois a instalação da água, porque o médico
precisava de água corrente no consultório. E mal teve a água, não descansou, enquanto não fez no subterrâneo um pequeno balneário: banhos salgados para as crianças
raquíticas, outros com ácido carbónico e, finalmente, uma espécie de inalatório. Toda a população de Obanger apreciava estes banhos; custavam caro ao médico, que
mal era indemnizado nas contas.
Lungaus sentou-se no caixote do carvão, balouçou os
pés e os chinelos caíram como frutos maduros - apareceram os horríveis e enormes dedos. Viu frau Persenthein acender o fogão.
- Talvez fosse preciso cortar lenha ?
- Sim, realmente ... - disse ela, cheia de esperança.
- Pois é, mas não me sinto lá muito bem. Elisabete suspirou e, de súbito, ficou cheia de medo: -Lungaus! Você não... an ? Comeu alguma
coisa no "Cisne Branco"? Chouriço? Brctzels salgados? Não? Bebeu? Fumou? Tem que me dizer a verdade. Bem sabe que o doutor depois zanga se comigo. Diga, ande.
- Ora! - respondeu o homem em tom evasivo, o que não a tranquilizou.
Olhou para ele em ar de sondagem e curiosidade: não tinha mau parecer. Os lábios conservavam boa cor e o pescoço engordara um pouco.
-Onde está a Avelã? - perguntou Lungaus com ar severo, enquanto Elisabete se tornava a ajoelhar em frente do fogo recalcitrante, para o assoprar. Entrava-lhe para
a garganta o fumo azulado da madeira húmida.
- Naturalmente saiu com o doutor. Acompanha-o nas suas visitas.
-Parece impossível! Sempre com a criança, em plena epidemia de gripe e logo de manhã cedo!-censurou Lungaus, pois toda a ternura da sua ressequida vida se concentrara
na pequenita... na Avelã, como lhe chamavam ... que não tinha mais de cinco anos.
- Bem sabe que é a sua maneira de pensar ... - respondeu Elisabete que, com o nariz cheio de fumo, não sabia se havia de espirrar ou não.
- Pois é a sua maneira de pensar... - repetiu o homem, pescando um dos chinelos do médico. - E exactamente o que eu dizia: mais vale a gente vender o esqueleto à
Morgue. Nesse momento, está-se morto e já não se sente nada. Mas servir de cobaia, enquanto vivo, isso...
Pôs se a andar para a porta da cozinha. Elisabete replicou:
- Não tem razão de queixa. Então ele não o curou?
Deteve-se e perguntou em ar irritado:
- Que tenho às nove horas?
- Compota de banana. Assim que o fogão estiver aceso, arranjá-la-ei. - respondeu ela.
- A sua vida também não é fácil, não ... - concluiu Lungaus, desaparecendo.
Elisabete, ajoelhada em frente do fogão, sentiu vontade de chorar. Precisou de dez minutos para se dominar, depois conseguiu-o. E riu-se. Era realmente cómico ver
aquele fantasma de chinelos, a chaga da casa, o cálice dos sofrimentos da vida conjugal, chegar ao cúmulo de ter pena dela. Mas não foi com rancor que lhe preparou
a compota de banana.
Vigiou o lume, lavou a loiça do pequeno almoço, arranjou as cenouras para o almoço do Lungaus - porque o operário seguia um regime e vivia de extractos de todos
os produtos naturais - esfregou os dedos com pedra pomes e zangou-se com a mulher a dias que, como sempre, chegava tarde.
Tudo isto fazia parte das preocupações de Elisabete: que o Lungaus habitasse a mansarda, que não houvesse lugar onde pudesse dormir uma verdadeira criada e que,
à falta de dinheiro, aquele flutuante pessoal que tanto podia ter quinze como sessenta e oito anos, um belo dia desaparecesse deixando-lhe o serviço todo em cima.
Passou para o consultório e começou a arrumar. Contou as pontas de cigarros, suspirou e depois riu-se porque o médico era um adversário convicto da nicotina mas
um apaixonado fumador. Correu ao telefone, tomou nota da temperatura matinal do filho mais novo do industrial Profet - 38?,2 - e escreveu no livro de notas. Acendeu
a lâmpada de álcool sob o esterilizador, tirou do armário roupa e uma bata para o marido e poliu a cadeira das operações pequenas, enquanto o speculum, as pinças
e os ferros coziam na água a ferver. Percorreu as linhas do Jornal Médico, na página aberta, e folheou o artigo "Tratamento preventivo da septicemia nos operários
rurais com a expressão ávida e severa que outras mulheres empregam quando andam à busca dos defeitos das suas rivais. A "Profilaxia antisséptica"! Era
aquilo que tirava o sono ao marido, privando o de noites serenas.
A casa estremeceu, caiu cal. Era o autobus do comboio das nove que voltava da estação. Elisabete subiu cuidadosamente a escada para levar a compota de bananas à
água furtada do Lungaus.
-Essas bananas acabam por me dar vontade de vomitar!-exclamou o homem, que estava deitado na cama, tendo fechado a janela.
- Levante-se, vá passear. - disse ela - É preciso que o doutor não o surpreenda nessa atitude preguiçosa, quando chegar.
- Sair com um tempo destes ? - replicou o homem em tom carregado de censura.
Elisabete olhou para fora pela janela inclinada que dava, não para a rua mas para o bairro de Obanger. Uma sorveira que crescia por trás da muralha da cidade, fora
inclinada pelo vento. O céu estava cheio de nuvens esfarrapadas, passara uma violenta chuvada e preparava-se uma toalha de bruma que ia esconder a planície, para
lá das chaminés da fábrica. E o marido fora de casa com a pequenita!
Durante muito tempo, o telefone tocou no vestíbulo: ligação interurbana. Elisabete tomou conhecimento do que a informavam. Depois, ficou um momento em face do aparelho
e mordeu um dedo: fazia isto quando chegava qualquer má notícia. Foi para o consultório e escreveu:
"Comunicação telefónica do hospital de Schaffenburg. O dr. Schroeder diz que teve de amputar ao criado Jacó Wirz, o braço esquerdo, uma largura de mão abaixo da
articulação do ombro."
Reflectiu um instante, depois apressou-se a traçar no livro um pequeno círculo, ao lado da informação. Era um sinal secreto. Havia imenso tempo que aquilo significava
um beijo. E queria dizer: "Meu pobre Kola!" ou "Não te aflijas muito!" e ainda: "Eu estou aqui pronta a consolar-te".
"rT." De resto, o dr. Persenthein não ficava nada satisfeito quando estas provas de amor cintilavam, como raios de sol, nos livros.
Elisabete ficou algum tempo imersa num dos seus meditativos silêncios. Ouviu o barulho do esterilizador onde fervia a água, viu o velho e espesso volume de Aristóteles
ao lado da ruma de revistas médicas, na larga tábua junto à janela. Mas foi como se não ouvisse nem visse nada. Reconheceu que o pequeno círculo traçado no livro
não era sincero, não passava duma formalidade: não entrara nisso o coração nem a picada dolorosa do amor. E então, Elisabete pegou na borracha, apagou o beijo e
deixou o braço envenenado, estragado, amputado de Jacó Wirz, sozinho no livro de apontamentos, sem nenhuma atenuante.
Quando voltou ao vestíbulo, já lá estavam algumas pessoas: uma mulher de Dusswald com o filho, a Lisa do Domínio com a sua orelha doente, e um operário magro, de
mau aspecto, que dava voltas ao chapéu com ar embrutecido.
- bom dia, sr. Gingel. - saudou Elisabete - Então ainda temos mais alguma coisa ?
- É a doença do chumbo... de meses a meses volta a pesar nos ossos.- respondeu o homem, resignado.
- Bem; o doutor não deve tardar.
E subiu a escada. Mesmo sem o auxílio do marido, podia diagnosticar a intoxicação saturnina; essa especialidade de Lohwinckel que se contraia na fábrica de acumuladores
do sr. Proíet. Muitos operários eram atingidos após três meses e vinham consultar o médico, apresentando-se com os lábios sulcados de riscos negros, os olhes apagados,
o estômago torcido por dores especiais. Outros trabalhavam durante vinte e cinco anos, o seu jubileu fora celebrado na "Folha de Aviso da Cidade e do Campo" e conservavam-se
activos e de boa saúde como peixe na água.
"Predisposição" dizia o dr. Perscnthein que, na pressa profissional, tomara o hábito de resumir ao facto puro a maior parte das suas frases. De resto, o médico não
tinha um feitio resignado; era, pelo contrário, batalhador de primeira ordem e pouco depois de exercer clínica em Lohwinckel não se preocupou mais com a intoxicação
declarada mas com a predisposição. Meditava,
procurava às apalpadelas, com uma sonda imaginária, não desistiria até que encontrasse a Ideia, a sua ideia. Mas, Deus do céu, àquele jovem clínico de aldeia, de
média categoria, àquele médico dum núcleo de sete mil almas, que lhe devia interessar a Ideia? Essa Ideia que ele tinha ou que não tinha, tornava-o estranho, velho,
fazia-lhe crescer bossas na testa, cavava-lhe o rosto, colocava-o no meio dum vácuo, numa esfera de solidão desumana e vazia. Desde que ao dr. Persenthein lhe dera
para pensar, a casa do Angermann tornara-se uma espécie de purgatório.
Elisabete foi para a cozinha preparar a refeição. Isto representava um facto complicado, uma ocupação que atingia as raias de leve loucura. Havia o regime caro e
bizarro de Lungaus: legumes, frutos, ovos crus, um pão esquisito feito em casa, uma data de coisas que davam imenso trabalho e que ele engolia no meio dos maiores
protestos. Avelã, a pequenita, comia coisas parecidas mas que tinham de ser preparadas separadamente. Quanto a Kola, precisava de carne, muita carne assada, bem
temperada e, em seguida, café forte. Nos dias de grande fadiga, um copo de vinho. De tudo que considerava profundamente prejudicial para os outros, precisava ele
em quantidades consideráveis; senão enfraquecia, começava a ficar cansado e distraído logo na consulta das três. A Elisabete não seguia nenhum regime, só desejava
engolir qualquer coisa barata e que não desse muito trabalho a fazer. Ela e a criada comiam o que havia, o que ficava e, além disso, batatas cozidas. Esta cozinha,
inspirada em princípios tão severos, não admitia senão as batatas cozidas com a casca porque ela continha qualquer coisa de que a Elisabete esquecia sempre o nome
e que era necessária ao esqueleto. Estava inclinada para a banca e esfregava as batatas com uma escovinha. Tinha os dedos negros mas sentia-se demasiado fatigada
para, mais uma vez, lhes passar a pedra pomes. Doíam-lhe os calcanhares e as omoplatas.
Tornou a descer ao subterrâneo e vigiou a criada que estava a limpar as duas salas de banho. Reinava
ali um odor medicinal, um cheiro a lisofórmio, a sais iodados e a solução de sabão com creosol.
- A Catarina tornou a sujar tudo! - disse ela, sorrindo.
Era uma grande e venerável aranha que tecia as suas teias em todos os ângulos. Ao varrê-las, tinha sempre pena de assim destruir as construções da Catarina. Naquela
cave estava-se constantemente em guerra contra uma efervescência de animais ávidos de vida: ratos, baratas e uns insectos de nome desconhecido que pareciam cabeças
de pregos com vida e que desejavam, acima de tudo, permanecer nas banheiras.
Em cima, a consulta da manhã já começara; do vêstíbulo vinha um cheiro a homens e a fumo de cachimbo. No chão, havia vestígios de passos húmidos, como era costume
acontecer no verão. Encharcado, o casaco de Kola estava pendurado no bengaleiro. O marido entrara sem ela ver. Na garagem, a Avelã, curvada, limpava a moto.
A Avelã tinha um fato macaco que a mãi lhe cortara seguindo o molde duma revista de modas. Não se pode dizer que tivesse ficado uma perfeição... Em Lohwinckel, aquela
vestimenta estivera classificada entre as outras bizarrias da casa do médico que chocavam os habitantes, mas agora via-se-lhe a utilidade, ao contemplar a pequenita
no lugar traseiro da moto, com as mãozitas agarradas ao estômago do pai. Desde o momento em que ele teimava em a levar por montes e vales, na sua visita às aldeias
próximas, aquele macaco azul, era até considerado uma peça de vestuário grandemente útil, não merecendo já a hostilidade dos habitantes de Lohwinckel.
- Didia, mamã. - disse a pequenita sem levantar os olhhos, quando Elisabete encostou um momento as omoplatas levemente doridas à porta da garagem.
"Didia" era como a Avelã dava os bons-dias às pessoas quando mal sabia falar. Depois tornara-se uma pessoa extremamente independente, uma rapariga de cinco anos
demasiado alta, com grandes mãos e pés.
- Então, Avelã? - perguntou a mãi.
Tinha muitos nomes. Tudo o que designasse qualquer
coisa de escuro e liso lhe ficava bem: cabrinha, avelã, quebra-noz, spitz. Mas ela não gostava de meiguices. ,
-Que lama! Ora vê...-disse, esticando o nariz,
as mãos e os sapatos para a luz que espreitava por uma seteira da muralha.
-Tens os pés molhados?-perguntou Elisabete.
- É claro! -respondeu a pequena.
Então a mãe retirou primeiro a mão que desejaria acariciar a filha e depois retirou se ela. Os pés molhados faziam parte do regime da Avelã: não se mudava de calçado.
Era uma parte integrante dos princípios educativos de Kola, uma parte do seu sistema, um aspecto da sua luta contra a predisposição ...
Onze horas. Regresso à cozinha. O terceiro almoço para Lungaus: leite, sumo das laranjas que o merceeiro Heinrich Markus devia, naquela época, fazer vir expressamente
da capital por um preço elevadíssimo.
Arrumar a sala. No quarto, guardar os apontamentos de Kola, antes que a mulher a dias viesse e os deitasse fora.
Segundo almoço da Avelã. Levar a Kola uma chávena de chá, ao seu consultório, onde um petiz gritava desesperadamente porque lhe estavam a fazer uma zaragatoa.
Arrumar o quarto da pequena. Mas este já estava arrumado. De sua própria iniciativa, ela metera-se debaixo da cama e começara a passar o soalho a pano. As janelas
estavam abertas, havia correntes de ar, mas tinha-se uma impressão de ordem e limpeza.
As bonecas estavam cuidadosamente alinhadas mas encontravam-se todas doentes: ligaduras na cabeça, nos braços e nos pés: verdadeiros curativos eram feitos com gaze
verdadeira não se sabe se proficuamente esterilizada, Erika, a boneca preferida, tinha, além do resto, um termometro debaixo do braço, um pedacinho de madeira sobre
o qual o traço vermelho representava o mercúrio que indicava, duma vez para sempre, a temperatura de 39. A Avelã já sabia escrever algarismos mas 38 é muito difícil
e 37 não é interessante, visto que é normal. quanto a 40 é demasiado alto e perigoso.
- Logo vou ao talho buscar a carne. - anunciou Avelã lá debaixo da cama.
- Como és bem comportada! - exclamou a mãe.
- Claro que sou. - respondeu ela, cheia de importância.
Em face da criança, a mãe achava-se sempre um pouco inútil: a petiza sentia-se lindamente com os sapatos molhados, não dava ternura nem precisava de carinho.
Elisabete tornou a mergulhar nos seus afazeres e não parou até à uma menos cinco. Naquele momento, a caminheta do correio foi pela segunda vez à estação, a casa
estremeceu pontualmente, a cal caiu da parede.
Elisabete apressou se em subir às águas furtadas com o almoço de Lungaus, depois voltou ao quarto para tirar das mãos o cheiro da comida. Outrora tivera lindas mãos
e ainda sentia orgulho nisso. Outrora: para Elisabete, que tinha vinte e nove anos, esta palavra soava como se tivesse setenta. Sem pensar, olhou para o espelho,
enquanto tirava o avental da cozinha. Era um velho espelhito que girava num parafuso e se podia inclinar; não mostrava tudo duma vez mas uma coisa após outra: agora
o rosto estreito com aquela rugazita acima do olho esquerdo, os lábios grossos e pálidos, os cabelos, como os da Avelã, muito lisos e castanhos. Depois, viu o pescoço,
um tanto comprido e magro. Em seguida, os ombros e o peito... Não, a Elisabete não se achava bonita. Julgava que se parecia com Sigismunda de Raitzold no sarcófago
de pedra, na igreja de Lohwinckel a Sigismunda que tinha quatrocentos anos e que também não era nada bonita. Quanto ao marido, assemelhava-se àquele São Jorge audacioso
que se erguia na torre do Angermann.
Dirigiu se para a janela da sala e olhou para fora. com a lança erguida, o São Jorge cavalgava o dragão, resplandecente de coragem - o dragão cuspia fogo e eram
ambos de madeira. Já em pequena, Eiisabete se apaixonara por aquele São Jorge, quando passeava pela mão do pai, o sr. Burhenne, reitor do liceu. Mais tarde, descobriu
que o São Jorge se parecia com Schiller. E, passado
algum tempo, notou que o jovem dr. Persenthein era o retrato do São Jorge.
Desceu, bateu três pancadas à porta do consultório e disse em voz baixa:
- Kola, vem almoçar. Senão, faz se tarde.
- vou já. - respondeu ele, lá de dentro. Isto queria dizer: mais um quarto de hora. Elisabete subiu. A mesa estava posta. Abriu o
piano, tocou algumas notas, e de boca aberta, ficou a ouvir o som até ele desaparecer. A caminheta voltou da estação, a casa estremeceu, caiu cal. Em cima, ouvia-se
a Avelã discutindo em voz alta com o Lungaus. Em baixo, os últimos doentes da manhã arrastavam as solas até à porta. Elisabete aproximou-se outra vez da janela.
Queria ter a certeza de que o dr. Persenthein se parecia com o São Jorge.
Enquanto servia a sopa, concluiu:
- Não. Agora já não se parece nada.
O dr. Persenthein era um homem de trinta e oito anos, um homem alto e magro, de ombros largos, ossos pesados sobre os quais, em dias de grande fadiga, transpareciam
as veias azuladas, sob a pele clara. Por cima da testa viam-se duas entradas vastas onde os cabelos iam rareando. O nariz, comprido, tinha uma raiz estreita e bem
plantada; a boca, de largos dentes, ocupava muito lugar e desde os fundos cantos até às asas do nariz iam rugas vincadas a testemunhar carácter violento.
Filho dum pequeno funcionário, querendo obter uma situação superior à do pai, estudou direito e frequentou os cursos livres da Faculdade de Medicina, Apaixonou se
por esta carreira e, desafiando a maldição da família, mudou de curso e impôs a sua vontade de ser médico - vocação que o devorava. Fez os seus
estudos em duas pequenas cidades que tinham grandes Universidades. Física, exame de Estado, anatomia, fisiologia, histologia, patologia, bacteriologia. Dissertação
sobre as metástases de hipernefroma nos ossos. Guerra. Médico voluntário no novo hospital duma cidade que contava meio-milhão de habitantes. Markenheim. Os primeiros
diagnósticos falhados. As primeiras faltas técnicas. Os primeiros casos mortais. Paragem do coração durante a anestesia, Porquê? Embolia por ocasião da operação,
absolutamente banal, ao bócio. Porquê ? Hemorragia depois duma sutura na vesícula biliar. Porquê ? Estas coisas não lhe aconteciam a ele, voluntário humilde, mas
ao grande cirurgião, célebre no mundo inteiro, ao professor de grande categoria. O apagado estudante Persenthein só tinha ordem de assistir, vigiando a equipa dos
aparelhos e dando as pinças. Assim apareceram as primeiras dúvidas sobre a divindade dos médicos notáveis e o poder sobrenatural da medicina, as quais desapareceram
quando foi nomeado assistente no hospital de Schaffenburg, ao ficar sobrecarregado de trabalho. Percorreu diversos serviços desse hospital de média importância,
meteu-se nalgumas questões de ordem teórica ou experimental, passou sete meses embrenhado numa forte mania das hormonas, durante a qual desleixou a tarefa quotidiana
mas adquiriu mais firmeza de mão na dissecção dos animais. Neste intervalo passara para o serviço ginecológico-era uma espécie de tapete giratório que ia transportando
o jovem médico através das diferentes especialidades compreendidas na clínica geral. Foi na secçãoG ginecologia-que ele encontrou a Elisabete. Ela desejava ser enfermeira
de recém-nascidos e tinha a seu cargo uma sala de dezanove crianças.
Sentiu se atirado por um sentimento violento para aquela rapariga de cinta fina, alta, clara, duma esbelteza gótica - e agarrou-se a ela com a mesma teimosia que
anos antes mostrara na paixão pela medicina. De cabeça, lançou se no casamento. Depois herdou a pequena clientela dum tio da mulher. Era esposo, cidadão, locatário
da casa do Angermann, à entrada da qual
logo pôs duas tabuletas. "Dr. Nicolau Persenthein médico parteiro", lia-se numa. E na outra: "Estou aqui às... e voltarei às..." Quando era chamado para uma aldeia
dos arredores e que a segunda tabuleta tinha vários números e inscrições, aquilo dava a impressão de grande actividade e numerosa clientela.
Naquele tempo em que se parecia com o São Jorge tinha a impressão de possuir algumas noções de tudo, e de nada conhecer a fundo, de maneira que durante dois anos
amontoou uma ruma de livros de medicina e de revistas da especialidade onde se pôde instruir, foi este o seu maior incentivo.
Os doentes começaram por recorrer a ele quando não podiam proceder de outra forma: quando havia algum parto difícil, por exemplo, em que a parteira não queria tomar
a responsabilidade. Ao cabo do segundo ano, mostrava segurança ao aplicar o kristeller e a versão podálica, e já se não produziam ruturas do perineo. NO entanto,
para o nascimento da filha preferiu mandar transportar Elisabete para Schafíenburg. Ela não complicou as coisas e o dr. Schroeder também não: aquilo durou nove horas
e a criança pesava os três quilos e meio regulamentares. Quando a Avelã completou três meses, começaram as primeiras divergências sobre a educação que convinha dar
à criança bem constituída que ambos adoravam, mas cada um à sua maneira: Elisabete com uma ternura sonhadora e delicada, Nicolau com o agressivo fanatismo que lhe
caracterizava todos os sentimentos. Elisabete fizera a sua aprendizagem no curso de enfermagem, mas o médico tinha uma opinião absolutamente pessoal. O nascimento
da filha caiu precisamente na época em que a sua "Ideia" começava a desenhar-se. Ficou vencedor. "A minha filha deve crescer como um esquilo na floresta" declarou
ao sogro, aflito, ao reitor Burhenne. E assim foi criada a Avelã. "Como se não pode colocar a criatura ao abrigo dos perigos que lhe ameaçam a saúde, e preciso acostumá-la
a esses perigos e modificar-lhe a predisposição, de tal forma que ela própria triunfe dos perigos." Era assim que se exprimia o dr. Persenthein, Em conformidade
com estes princípios, a Avelã
foi criada como um ursinho ou como um filho de esquimó. O calor e o frio, a neve e o sol, a humidade e as correntes de ar, tudo foi desencadeado sobre aquela pequena
coisa que, com a idade de três meses, era deixada nua, no parque dos brinquedos, onde, sozinha e com espantosa precocidade, aprendeu as humanas artes de trepar,
sentar-se, caminhar e pôr se em pé. Aos dois anos, a Avelã estava coberta de cicatrizes, como um guerreiro, mas absolutamente familiarizada com todos os objectos
angulosos, ponteagudos, cortantes, escaldantes perigosos para a vida quotidiana e de que ela, com a maior destreza, sabia desviar a maldade. Cheirava tudo, comia
tudo e suportava tudo. Tornava-se alta e forte. Podia arriscar-se a uma comoção cerebral devido a uma queda mas nunca se constipara. Quando completou três anos,
o médico instalou-a na motocicleta que acabara de comprar e levou-a na sua visita aos doentes. Seguindo um método sabiamente calculado e minuciosamente progressivo,
expunha-a ao contacto com todos os micróbios possíveis, desde a gripe infecciosa cuja origem é desconhecida, até ao popular bacilo de Loeffler que determina a difteria.
Em certos momentos de loucura absoluta, o médico persuadia-se de que a filha poderia engulir um tubo cheio de estreptococos sem adoecer. Facto maravilhoso : a Avelã
continuava de perfeita saúde. Não era uma demonstração da teoria do dr. Persenthein mas, às vezes, estava tentado a mostrar este facto como uma prova. Para o homem
que, de corpo e alma, se dá a uma ideia, existem destes instantes de vertigem que estão à beira do abismo. Elisabete morreria de medo se não fosse crente. Mas arranjou
um pacto com Deus e a Virgem Santa: quando ia às compras, entrava na pequena e velha igreja católica, ajoelhava junto do sarcófago de Sigismunda de Raitzold e fazia-se
tranquilizar e consolar. O doutor confiava no poder da sua ideia. Elisabete confiava na eficácia da sua prece. E a Avelã continuava a gozar de esplêndida saúde.
Entretanto, os habitantes de Lohwinckel deixavam-se tratar pelo médico que não consideravam como tendo o juízo todo e de quem não faziam grande caso. À
medida que os anos foram passando, o sorridente desdém transformou se em acerada hostilidade.
Aquela população tinha uma saúde regular, registando a habitual percentagem de raquitismo, tuberculose e sífilis, passando pela epidemia anual de gripe e tendo curvas
ascendentes e descendentes para a febre convulsa, a papeira, a escarlatina e a difteria. Tentavam curar-se, sem auxílio de médico, as anginas e os princípios de
úlceras no estômago. Quanto ao reumatismo, bastava ir ao farmacêutico Behrendt. Os que tinham apendicite, se podiam, dirigiam-se à capital do distrito. Restavam
pois: ossos quebrados, doenças de crianças, partos e a clientela do montepio. E a intoxicação saturnina. Em Lohwinckel era ela contraída na fábrica de acumuladores
do sr. Profet. Era a única fábrica da terra, situada no extremo do bairro de Obanger, com muros amarelos, pouco acolhedores, e dando trabalho a muitos operários.
O médico calculava que uma média de vinte e oito por cento desses operarios sofria da doença. Mergulhou se no estudo dessa enfermidade que se manifestava sob as
aparências de muitas outras doenças: crise nervosa, tísica com convulsões, dores de estômago, intestinos e fígado. Estudou as estatísticas das grandes fábricas de
acumuladores onde se fazia tudo quanto era possível para proteger o operário. Aí tinham conseguido reduzir notavelmente a doença: a meio por cento. Mas a fábrica
Profet, com as suas insuficientes instalações, com as oficinas provindo duma antiga tinturaria e transformadas de forma primitiva, com os seus vinte e oito por cento
de intoxicados, era um verdadeiro foco de infecção. Nem sequer se podia acusar o sr-, Profet, pois nada podia fazer enquanto fosse proprietário do terreno vizinho
o fidalgo Raitzold que, teimosamente, se opunha à expansão da fábrica e a qualquer nova construção. Pelo seu lado, os operários eram duma imprudência revoltante,
manejando os venenos com tal negligência e falta de cuidado, como se soubessem que todos os habitantes de Obanger estavam condenados a, mais cedo ou mais tarde,
ficarem intoxicados. O doutor assistiu durante algum tempo a este espectáculo - depois travou a luta.
Pôs-se à procura duma terapêutica contra a intoxicação saturnina,
No decurso dos três anos que seguiram esta delibevração, encontrou seis métodos aprovados e dois novos mas nenhum deu resultado. Os habitantes de Lohwinckel tornavam-se
cépticos. Quanto ao clínico, deixava de dormir, e, com os olhos vermelhos, percorria a região, febril e mal encarado, na moto barulhenta. O seu germânico cérebro
dolicocéfalo criava bossas e cavava-Se como uma falésia sob o assalto dos pensamentos, das preocupações e das experiências infelizes. Os doentes tinham medo do seu
médico, o que os fazia piorar, e também Elisabete o receava. Tinha medo daquele desgosto teimoso que tantas vezes enchia os olhos do esposo, dos sobressaltos durante
a noite, da voz impaciente. À força de escutar, estar de atalaia, esperar que o marido se modificasse, vivia cheia de nervosismo; algumas vezes o receio fazia-a
tremer fisicamente, dando-lhe a sensação de frio na medula. E como ela teria desejado abraçá-lo, embalá-lo, apaziguá-lo! Mas isto era justamente uma coisa a que
ele declarara guerra aberta: a ternura. Assim como também declarara guerra à cidade, à doença, à própria ciência. Não podia amolecer, tinha que continuar a ser duro
e violento.
Havia, pois, três anos, que albergava em casa o operário Lungaus, o objecto recalcitrante e quezilento das suas experiências médicas, o centro em redor do qual os
seus pensamentos giravam.
Eram cinco menos vinte, estava no final da consulta. O bafo de todos os homens ansiosos e doentes que por ali haviam desfilado, nessa tarde, tornava espesso o ar
do consultório.
- Vestir! - ordenou o dr. Persenthein, e foi lavaras mãos. Lungaus tornou a meter-se no fato.
O doutor mexeu nas fichas de Lungaus, que constituíam um pequeno livro.
- Está curado, Lungaus.
- Ora! - respondeu o homem, duvidando e procurando os suspensórios.
-É verdade. Ficará aqui sob vigilância, mas vai recomeçar a trabalhar. Já falei em si ao sr. Profet.
- E ele quer-me lá?
- Pedi-lhe. Fá lo-á para me ser agradável. Talvez sinta a minha força desde que lhe enviei o inspector do trabalho e o obriguei a instalar um aspirador de pó disse
Persenthein com desusado jorro de detalhes. Era uma coisa estranha: os modos rebarbativos e descontentes de Lungaus, incitavam-no sempre a conversas prolongadas.
- Não foi por isso que houve menos doentes...
- Bem. Então fê-lo porque tem curiosidade: quere saber se você recairá. O sr. Profet tem interesse em saber se acabaremos ou não com esta maldita intoxicação saturnina.
- com certeza que não. - replicou o homem, prontamente - Da última vez, voltou passados quatro meses.
- Ver-se-á! -respondeu secamente o medico que sabia mostrar-se tão desagradável como Lungaus
- Se assim for, não quero voltar para a fábrica. Já que me declara curado, prefiro ir trabalhar no Domínio.
- e sentou-se na cadeira de operações como se previsse que uma discussão demorada e recreativa ia começar. com gesto impaciente, o médico deu um pontapé no balde
de ferro esmaltado que continha o algodão sujo.
-Ah! Ah ! -gritou - Agora apetece-lhe ir para o campo. Noutra ocasião bem os Raitzold podiam correr atrás de vocês que nenhum queria ir trabalhar para a sua propriedade.
Todos queriam ir para a fábrica. Mas depois que se esteve a ir desta para melhor durante três meses, como é apetecível a vida dos campos, an ? Não, meu rapaz. Você
vai voltar para a fábrica porque me interessa, a mim. .
- Obrigar-me, ninguém pode. O doutor deu um pulo e andou à volta da cadeira de operações sem poder parar. Depois encarou Lungaus, que teve medo e contraiu os ombros.
O médico falou:
- Você vai ouvir o que lhe digo. Volta para a fábrica e permanece de esplêndida saúde. Sou eu que
lho afirmo. Esqueceu talvez aquilo que combinámos antes de vir para cá? Esqueceu se do estado lamentável em que tomei conta de si? Tratei o, curei-o. Três anos de
trabalho, três anos de vida gastos em proveito dessa carcassa para a tirar das garras da morte. Gastei consigo tudo quanto ganhei, a minha mulher trabalhou como
uma criada; apesar da nossa vigilância fez-nos uma data de partidas e mentiu nos. Tive que recomeçar todas as minhas observações por três vezes, visto que se ia
embebedar às escondidas -por meio de partidas infames deitou abaixo um ano inteiro de sacrifícios e estudo. Antes queria vigiar uma penitenciária cheia de criminosos
do que um tipo como você que não pode fazer o mínimo desvio do regime. Agora que está curado e que eu preciso de tirar a prova, é que sua excelência deseja mudar
de rumo, não? Então quer fazer-me isso, Lungaus?
O homem fixou o médico. Ele estava de pé em frente da janela. Segurava-se à varanda com todas as forças - dir-se-ia que era para não se deitar às goelas do operário.
Lungaus sentiu uma impressão estranha a dominá-lo: não sabia o que era porque desconhecia a gratidão.
Resmungou:
-Bem sei que não me quere mal. Mas se julga que é apetitoso ingerir uma comida de animal, fazer de cobaia e deixar tirar sangue todos os meses... e o resto! Já pensei
muitas vezes: "Farias melhor em te deixares morrer do que venderes-te assim ao médico". Aqui está o que eu pensei.
Persenthein abandonou a madeira que tinha entre as mãos, dirigiu se para a mesa e folheou as observações sobre o caso Lungaus. Encontrara um meio, o dr. Persenthein,
tinha uma ideia, uma ideia fundamental e espantosa. Mas não possuía os meios de a experimentar, nem laboratório nem hospital, nem material humano. Tinha apenas aquele
único exemplar, aquele Lungaus que, no momento em que se julgara perdido, consentira em se entregar nas mãos do médico, submetendo-se à sua terapêutica severa.
Conhecia de cor as notas sobre Lungaus. Era a quinta essência do seu trabalho, a sua prova, o seu triunfo. Reconstruirá passo a passo o seu organismo, transformarão,
metamorfosearão, despertando nele todas as forças de resistência contra o veneno e a. doença. Várias descobertas cristalizaram em redor daquele caso. Não só a intoxicação
saturnina desaparecera, mas também um reumatismo apanhado nas trincheiras e uma erupção herpética no pé. Devia estar no grau de saúde absoluta, a partir do qual
a doença se tornava definitivamente impossível. O dr. Persenthein, médico praticante e parteiro em Lohwinckel, não queria mais nada senão chegar àquela conclusão...
Tinha como aliadas algumas frases de Aristóteles e certas opiniões que encontrara num livro muito discutido: A Crise da Medicina. Tudo era possível. Ali estavam
a Avelã e Lungaus, o recalcitrante.
No silêncio, ergueu-se, de novo, a cortante voz do operário. Estivera a observar o médico, pensando: "Às vezes, tem olhos de cão". Esta ideia fora provocada por
qualquer coisa transparente que cintilava no olhar do clínico enquanto relia as fichas e resumia as suas conclusões. "Mas é um bandido ", pensou ainda o operário.
E formulou a ofensa :
- De resto, corre por aí que o senhor está doido.
- Coelhos! - exclamou Persenthein com imenso desdém.
Era o apodo colectivo que dava aos habitantes de Lohwinckel e arredores.
- Mas que diabo de bruxaria pretende o senhor ter-me feito para que o chumbo já não me faça mal e para que a minha perna fique inteira e tudo?-interrogou Lungaus.
O médico regressara ao estilo lapidar. -Modificado. Disposição mudada. Compreendido?
- Não percebo nada.
- Oiça criatura, preste atenção. Nem toda a gente tinha a doença do chumbo, não é verdade? Porquê?
Devido ao seu estado geral. Nem toda a gente apanha
tuberculose, não é verdade? E, no entanto, fartam-se
de respirar os micróbios. É claro, isto ? Muitas pessoas agarram a gripe e outras não. A Avelã, por exemplo. E você também não, nunca mais. Porque? Devido ao seu
estado geral. Não posso modificar a doença, ela existe, respiram-na, engolem-na, bebem-na, ela cola se às pessoas, de mil maneiras. Mas posso modificar os indivíduos,
compreende? O homem é transformável. O importante é isto: modificar a predisposição. Ainda o não consigo completamente mas estou no bom caminho. Oiça bem : há qualquer
coisa a que Aristóteles chama a "harmonia perfeita". Um homem doente não tem harmonia; um são que fica doente não estava são. Um homem são é incapaz de ficar doente.
Isto é simples, an ?
Lungaus reflectiu.
- Já viu algum homem assim? - perguntou, puxando as calças para cima.
Persenthein reflectia. Replicou:
- Não. Os médicos nunca vêem homens sãos, nem quási sãos. Na Universidade, mostram e explicam quatro vezes cem mil oitocentas doenças diferentes. Mas queria conhecer
o professor que se dirigisse aos seus alunos, dizendo: "Aqui está um homem cheio de saúde. Queiram examinar os sintomas..." Ah, que se eu fosse professor!...
Persenthein perdeu se nos seus pensamentos. Construiu um absurdo castelinho na areia, um castelo morto à nascença. Havia muito tempo que se encontrava ocupado por
um trabalho sobre o caso Lungaus e sobre outros casos relativamente convincentes que tinham mais ou menos correlação com as suas complicadas receitas sobre regimes.
Bem. Era preciso, duma vez para sempre, acabar com esse relatório. Enviá-lo ia então às Universidades e às Associações Médicas. O trabalho ficava impresso. E fazia
barulho. Pessoas de categoria vinham a Lohwinckel para verificar os resultados obtidos. Persenthein não conseguia lá muito bem imaginar uma pessoa categorizada em
Lohwinckel, onde um rebanho de cabras todas as noites era conduzido através as ruas e que possuía, ainda, uma poça para os
patos, por trás da igreja. Mas visto que estava em pleno domínio imaginário, nada tinha de espantoso que as tais sumidades viessem ali verificar o que ele descobrira.
Em seguida, chegava a nomeação e depois...
- Declaro-lhe que não volto para a fábrica e se o senhor assegura que estou curado é uma partida que me quer pregar. - disse Lungaus, peremptório.
Num abrir e fechar de olhos, desmoronou-se o castelo feito na areia, deixando-lhe no céu da boca o gosto amargo duma ilusão vã.
E terminou, dizendo:
- Cheira mal, aqui. Pronto, Lungaus. O homem abandonou a cadeira branca.
- Então? - prcguntou já ao pé da porta.
- Então, segunda-feira de manhã, entrará na fábrica.
- respondeu o médico.
Sabia falar com força de vontade, quando era preciso. O operário bem o conhecia. Obedecendo, respondeu:
-Bem. Então na segunda-feira.
E esquivou se instantaneamente. No vestíbulo encontrou jrau Persenthein que esperava, com ar interrogativo. Perguntou:
- Como está ele ?
- Mau, muito mau, - respondeu o homem, ainda receoso.
Sem nada deixar perceber da sua inquietação, adivinhando que era um dia escuro devido à amputação do braço de Jacó Wirz, disse apenas:
- Agora vá tomar banho, Lungaus, para depois se poder limpar o balneário.
- Os coelhos já se foram embora? - perguntou o homem que, em casa do médico, aprendera a responder a hostilidade dos habitantes de Lohwinckel com um desdém furioso.
- Estão lá só dois. Mas vá indo. Depressa. O seu jantar já está pronto.
Elisabete entrou no consultório, dominando-se. Nos
ultimos tempos, habituara-se a fazer um pequeno esforço antes de aparecer diante de Kola; mas ele não
dava Por isso. Estava precisamente ocupado a
empacotar uma encomenda destinada ao Instituto Higiénico de Schaffenburg.
- Posso arrumar ? - perguntou, abrindo a janela.
- Sim, ar! -exclamou o marido, distraído.
Tinha os olhos ausentes e não dava pela presença da esposa. Levantou-se, lavou as mãos e, de rosto carregado, começou um dos seus habituais circuitos em torno da
cadeira operatória.
- Cansado ? - perguntou ela, sem obter resposta. Passados três minutos, ele disse:
- Talvez não fosse mau...
Estava tão familiarizada com os pensamentos do marido, que não precisava de indicações mais explícitas.
- Queres que ligue para o Schroedei ?
- Bem gostava de nunca mais ouvir falar nesta demoníaca história do Wirz. - respondeu. Elisabete ficou à espera. Acabou por dizer:
- Sim, pede a ligação.
Olhava-o com pena e, ao mesmo tempo não queria que ele compreendesse tal sentimento. Enquanto dava voltas à manivela antiquada do aparelho telefónico, ele procurou
a ficha de Jacó Wirz e pôs-se a estudar, expirando rápidas fumaças.
Ficaram à espera que a inter-urbana desse a comunicação com a casa de saúde de Schafíenburg. A esposa perguntou:
-Quando queres jantar?
- Não penso agora nisso.
Elisabete levou o balde cheio de algodão ensanguentado. Pô-lo à porta e depois voltou. Não era muito variado o que acontecia, não, e compreendia-se que o marido
se mostrasse impaciente. Mas de que é feita a vida conjugal senão de perguntas como estas? "Estás cansado? Quando queres comer? Porque não dormes?" Eram as eternas
perguntas que a mulher faz ao marido desde tempos imemoriais. Ela olhou o de lado, espiando-o com uma inquietação misturada de piedade e retraimento. Persenthein
sentiu aquele olhar, que o magoou como um peso. Afastou-o de si com leve estremecer de ombros. Ela voltou se logo, foi até à
mesa de trabalho e decidiu-se a fazer uma coisa bem desagradável. , ,
-Não queres agora ver o meu livro de contas?- perguntou, e a sua voz era a duma pessoa culpada
-Bem sabes que... - respondeu ele, sobressaltado. Elisabete esperou. Conhecia o tão bem que não precisava de frases claras...
-Não. É melhor hoje. Amanhã surgirá qualquer outra coisa. Ajuda-me a fazer as contas. Preciso de dinheiro...-disse com prudência.
- Se tivesse, dava-to. Dinheiro! - murmurou o médico que pegara numa seringa e a lavava no éter.
O aroma do narcótico tocou no nariz de Elisabete e impregnou lhe o cabelo. Depois ele perguntou:
- E para quê?
- É absolutamente vergonhoso ainda não ter pago ao Markus.
- Pode esperar. Também eu espero. Talvez o sr. Profet se resolva um dia a pagar a minha conta. E então chegará a vez do Markus.
- E também te lembro os Raitzold. Em Agosto, foste lá quási todos os dias...
- O Raitzold é pobríssimo.
- Tem umas relações estranhas com a rapariga. -Estranhas? Nada disso. É um tipo extraordinário, podes crer.
- com botifarras de granadeiro.
-Sim, com essas botifarras. Deixa a má língua para a gentinha de Lohwinckel.
Entristecida, Elisabete respondeu: . -Êies também falam de nós... Persenthein não exalou senão um pequeno urro. olhava para o telefone como para um inimigo, e estava
a espera. Não tens dinheiro? - tornou a mulher e que hei-de dizer ao Markus? Pois não compreendes quanto isso me custa?
o médico descobria na mulher uma fraca semelhança com o sr. reitor do liceu Burhenne, seu pai
- e ela aparecia nos momentos de preocupação ou fadiga - impacientava-se.
- Custa? -disse muito baixinho, dando assim maior prova de irritação do que se gritasse. - Custa!
- A tua situação tornar-se á ainda mais difícil se souberem que deves ao merceeiro.
- E como hão-de saber? Então o judeu anda a contar os seus negócios a toda a gente ? Julguei que nos fosse dedicado.
- Não precisa de contar. É uma coisa que se sabe. Dizem que...
- O quê? Que sou doido, não é? Dizem que não sei distinguir uma fluxão de peito da escarlatina e que foi preciso mandar vir um médico de fora porque deixei morrer
três doentes com a gripe. É isto ?
- Dizem que o Markus nos vende tudo mais barato porque está apaixonado por mim. E agora, para cúmulo, não posso pagar-lhe! E ainda não queres que isto me custe ?
- Bem! Se está apaixonado por ti, mais uma razão para que espere pela conta. -concluiu Persenthein, muito satisfeito.
Elisabete começou por engolir mais uma decepção e depois riu-se. Vindo para ele, declarou:
- Em todo o caso, não tens o rninimo senso da dignidade.
Havia ainda instantes onde ele dava pelas suas idas e vindas, pela sua aproximação, sentindo-lhe a presença, experimentando alegria, felicidade, vibração. Ela notou
que os cantos da boca perdiam rigidez.
- Não, nenhum. -respondeu o recalcitrante.
- Podias ter esperado algum tempo antes de comprar aquele pantoscópio que é tão caro!-disse, quando chegou junto dele. Sorria, parecendo não estar falando a sério.
- Sim, vai dizer isso ao teu apaixonado israelita. Gasto muito dinheiro nas minhas coisas, diz-lhe, anda.. é por isso que não posso pagar o feijão e as batatas.
E fica sabendo que, daqui a pouco, tenho que comprar um aparelho para a transfusão do sangue, isto é que tem
de ser A sr.a Melkin salvar-se-ia se o tivesse. Quando me chamaram, de Obanger, as mulheres não teriam morrido com hemorragias. Já estabeleci a minha hstazmha de
dadores de sangue, todas as variedades de sangue, em perfeita ordem, como num hospital. Só falta o aparelho. E de resto não é muito caro...
Mas antes que jrau Persenthein se tivesse pronunciado contra aquela compra, a comunicação telefónica foi estabelecida com Schaífenburg. Elisabete lançou um olhar
inquieto para o marido, cujo rosto se tinha petrificado em máscara de indiferença enquanto pegava no auscultador. Ela dirigiu-se para a porta.
- Não faças barulho, Avelã. - murmurou. Estava escuro no vestíbulo; sentia a criança quási sem a ver.
- Está a falar para fora.
Sentou-se no banco reservado aos doentes e puxou a filha para si.
- E por causa do homem que bateu com a picareta na mão ? - perguntou a pequenita, em voz baixa.
- É. Mas como sabes isso ?
- Estava no Domínio quando o trataram. Primeiro deitou muito sangue, depois já não. O homem ria-se. Kola disse: "este não é piegas como a Avelã". Mas eu não sou
piegas. Quando caí da janela, não chorei senão por causa do vidro partido; não foi porque me magoasse. É pena que aquele homem morra, an?
-Mas não há-de morrer!-exclamou a mãe, em tom suplicante, abafando a voz nos quentes cabelos da filha. Como estava às escuras, ousava apoiar a boca naquele calor.
- O Kola tem medo que ele morra; já mo contou, -exclamou a pequena em voz alta, meneando a cabeça com energia.
Sob as mãos que cruzara no peito da filha, a mãe sentiu bater-lhe o coração como um passarito que desejaria voar. E pensou: "Disse-to a ti? E não a mim?"
Calou-se. A outra conversa prolongava-se, feita de perguntas breves e de largos silêncios durante as respostas. Depois, ouviu-se o médico ir e vir, em passo violento,
através do consultório. A Avelã estava a dormir ou de ouvido à escuta ? No subterrâneo a bomba eléctrica funcionava. Pendurado no cabide, o húmido casaco de Kola cheirava a arnido e a chuva. Tudo estava
invisível.
Por fim, o doutor apareceu, Passou do cinzento para o escuro, porque detrás dele estava a penumbra do aposento e o vestíbulo encontrava-se mergulhado em escuridão.
- Devo acender a luz? - perguntou Elisabete.
- Não, obrigado, está bem. Ainda vou fazer algumas visitas. - disse em voz estranha.
Mexeu no casaco que estava pendurado.
- Kola, sucedeu alguma coisa ao... ao Wirz ? -Nada!
-Nada?
- Acabou. Morreu ás quatro horas. Três horas antes já estava moribundo, diz o Schroeder.
-Meu Deus! -exclamou Elisabete. A pequena permanecia imóvel; por uma certa rigidez do seu corpo a mãe percebeu que estava bem acordada.
Virado para a escuridão, o médico disse:
- Assim, já essa gente terá mais pasto para a sua má-língua.
- Mas não tens culpa nenhuma! - exclamou a mulher.
- Custa... custa muito! - queixou-se ele sem notar que se servia das mesmas palavras que, ainda há pouco, o haviam irritado -Às vezes, sinto-me tão farto!
Às apalpadelas, dirigiu-se com os joelhos para a frente, até ao banco dos doentes, onde se deixou cair.
- O Schroeder também diz que é pouca sorte. De resto, esperou quatro dias antes de amputar. E pronto! Para isto passa a gente uma vida de cão! Quando um imbecil
como aquele Wirz escorrega com a picareta e dá um golpe na mão, parece não haver novidade de maior. Se eu lhe tivesse cortado imediatamente o dedo, é claro que nada
disto teria acontecido. Mas não se vai logo fazer uma coisa destas, assim à primeira! Sabe Deus que data de porcaria tinha na mão! O Schroeder diz que teria feito
exactamente o mesmo que eu fiz.
Desinfecção, ligadura e mais nada. Quem é que vai logo pensar em cortar um dedo? E, no entanto, era o que devia ter feito. Maldita história!
Silenciosa, a mulher ouvia o monólogo. Não era fácil viver em Lohwinckel como esposa dum homem odiado; agora novas dificuldades surgiriam. Às vezes, parecia-lhe
que suportava um peso exagerado mas não desanimava. O pior era que, no fundo de si própria, se sentia tentada a tomar partido contra o marido. Ele estava cego pela
medicina, esfarrapando tudo que não correspondia às suas ideias. E tinha o perfil de Schiller. Talvez porque fosse um génio ... Mas aconteciam muitas desgraças na
sua vida médica... Elisabete passava por momentos de depressão em que duvidava absolutamente da vocação de Kola e não compreendia os sacrifícios que a deusa Medicina
dela exigia. Apesar da distância que os separava, estendeu as mãos para os joelhos do marido.
Ele compreendeu. Estavam tão estreitamente unidos pelo casamento que sabiam ler os mútuos pensamentos. Perguntou tristemente:
- Queria saber, o que pensas da minha pessoa ?!
- Que hei-de pensar? Bem sabes o que és para
mim!
Adivinhou a intenção de consolar por ela ter dito "o que és para mim" e não "bem sabes como te quero". Através a escuridão, estendeu uma pobre mão suplicante que
tocou no ombro da Avelã.
-Ah! Está aqui a pequena ?-exclamou. A mulher, sem o ver, adivinhou-lhe o sorriso.
- És a única pessoa a desculpar-me...-mas disse isto em voz alta e com severidade para se não enternecer. Teria ainda vontade de pronunciar alguma palavra carinhosa
mas calou-se.
Pôs-se em pé. Um instante depois, deu volta ao comutador, junto da escada, e entrou na garagem para tirar a moto.
-Onde vais ainda? - perguntou ela.
- Duas visitas em Obanger. Outra no Priel, a pneumonia. Também não escapará. Tem setenta anos.
Depois vou ao Domínio dizer o que se passa sobre o caso Wirz. E em casa do Profet, o rapaz ainda tem febre.
Empurrou a moto. Silenciosa e pensativa, a Avelã abriu a porta toda, fixando-a com um fecho; tinha uma forma pouco infantil de se tornar muda e invisível quando
havia qualquer preocupação. Trazidas pelo vento, algumas folhas secas haviam-se amontoado em frente da porta; a sombra do Angermann desaparecia no crepúsculo.
- O que tem o rapaz dos Profet ? - perguntou Elisabete, estremecendo e escondendo os braços sob o avental para se proteger do frio que vinha de fora.
- Não sei. Está com febre desde a última partida de futebol: uma temperatura espantosa, ora muito, ora pouco, ora nada. E ausência de outros sintomas. Muito desagradável.
Está deitado e tem febre. Não percebo nada daquilo.
- Não sabes? - perguntou a mulher.
- Não, não sei. Que queres? Não sei, pronto! gritou o médico, furioso, fazendo dernarrar a moto.
Elisabete, sucumbida, ficou de pé em frente da porta até que a linha arqueada das costas do marido ofendido desapareceu e que o irritado barulho do escape da velha
motocicleta se perdeu para os lados de Obanger.
Si
Lohwinckel é uma pequena e velha cidade da Hesse renania que tem cerca de sete mil habitantes, sete mil almas, como dizem certos guias fora de moda. São pois sete
mil almas que vão levando a sua vida por trás das fachadas dos prédios. Lohwinckel possui uma antiga igreja com uma torre acabada e outra incompleta, a casa da Câmara
construída em MDCXV, restaurada em MDCCCVII, onde reina o presidente progressista
dr. Ohmann, pessoa inteligente, como reconhecem os próprios adversários. O presidente da Câmara tem, pois, ideias avançadas; há outra gente que nem isso tem, por
exemplo o reitor Burhenne que dirige o liceu, tendo festejado há pouco o jubileu dos seus vinte e cinco anos de ensino. A sociedade, em Lohwinckel, como em todo
o mundo, divide-se em direita e esquerda, em pobres e ricos, em progresso e tradição. Quando um dos rebanhos vai para um lado, o outro vai para o oposto e, a par,
correm alguns isolados, como o médico Persenthein ou o merceeiro Heinrich Markus, para não citar outros. Numa terra como esta, sabem-se muitas coisas de uns e outros
e quando, por exemplo, três cães da cidade uivam e estão sentados juntos, no passeio, diante da casa do vendedor de loiça Nadler, as pessoas dizem:
- Olha, olha, a mulher do Nadler apanhou uma sova.
Se é o reitor Burhenne - os alunos chamam lhe Putex- que entra na aula, de rosto carregado à Bismarck, e dá três zeros a seguir, todo o liceu fica sabendo que se
zangou com frau Bartels. É a sua governante, pois ele é viúvo há muitos anos. Trata de dois alunos que lá estão hospedados nas águas-furtadas e também foi ela que
criou a Elisabete Burhenne, mais tarde esposa do médico.
Também sabem que a mulher do clínico tem uma vida difícil com aquele rebarbativo homem.
Enfim, julgam saber tudo - quando afinal nada sabem. Por mais chegadas que estejam as casas dentro da cidade murada, as sete mil almas, vegetando em redor da fonte
do mercado onde uma pequena Madona dá ao filho uma bola de pedra, continuam a estar perdidas como ilhas no oceano, tão afastadas umas das outras como as estrelas
no céu.
Lohwinckel, procedendo da mesma forma que muitas outras terras, colocou a fealdade a leste. Na idade-média, a porta do Angermann dava para o Anger, isto é, para
o local de execução e tortura, o cemitério dos pestíferos e o prado onde a vagabunda multidão dos feirantes tinha autorização para passar a noite junto das tendas.
Mas agora, o São Jorge do Angermann descobria primeiro uma
poeirenta e mal cuidada estrada que, entre paliçadas, conduzia às casas operárias de Obanger. Não eram nada bonitas estas casas, sumariamente construídas com tejolos
e involuntariamente viradas para a fábrica, assim como dentro da cidade tudo estava voltado para a igreja.
Por trás da fábrica, corria o caminho vicinal, entre as sorveiras e os campos da propriedade Raitzold até à estação, percorrido quatro vezes pelo auto do correio.
Lohwinckel não tinha senão meia estação, visto que esta se chamava Lohwinckel-Dusswald: chegando lá, era preciso percorrer caminhos opostos durante meia hora para
chegar a cada uma das pequenas cidades. A estrada era má, estragada pelo peso de grandes caminhões que nela produziam sulcos profundos e quando o auto do correio
encontrava o da fábrica, havia dificuldades e discussões sem fim, porque o velho caminho era muito estreito para as exigências dos transportes modernos. As tentativas
feitas pelo sr. Profet para estabelecer uma via de junção da gare a Lohwinckel, esbarraram na resistência exasperada, verdadeiramente furibunda do sr. de Raitzold
a quem pertencia o terreno situado entre a fábrica e a estação. Os dois homens sentiam um pelo outro o imenso ódio cujas fases ocupavam Lohwinckel inteiro, um ódio
estagnado que não tinha senão esta causa: os Raitzold, estabelecidos naquela terra que estimavam havia séculos, empobreciam de dia para dia duma forma inquietante,
enquanto que o Profet, estranho ao país, ganhava dinheiro metendo capitais em todas as empresas. comprava terras, subvencionava a Caixa Económica do distrito, comanditava
a hospedaria do "Cisne Branco", etc. - estendendo-se a sua influência à medida que o dinheiro circulava pela região.
Não fora sem motivo que o rico sr. Profet situara a sua habitação - construção de arquitectura um tanto confusa, com torres pequenas, terraço, court de tennis, repuxo-o
mais longe possível dos bairros pouco agradáveis de Obanger, a oeste da cidade, para lá da segunda porta, no bairro denominado Priel. Mesmo uma pequena cidade como
Lohwinckel tem as suas castas; estão delimitadas com particular precisão. As pessoas de Priel são
o que se chama pessoas distintas, o que o farmacêutico pehrendt denomina "pessoas bem"; pelo contrário, o termo obangerense significa uma coisa desdenhosa, chegando
mesmo a roçar pelo insulto. Quantas vezes, no liceu, há pancadaria por este motivo! Quando, por exemplo, o filho mais novo do sr. Profet chamou obangerense ao Kolke
que era pensionista do reitor e o Gurzle, o escanifrado quintanista, injuriou desta forma o filho da pobre viúva Psamatis, houve um grande sarilho.
Eram precisos cinco minutos para se ir da casa do Angermann até ao centro de Lohwinckel, à igreja e ao liceu que estava situado na bifurcação da Rua Direita, assim
como o domicílio oficial do reitor e o armazém do Markus, em face do "Cisne Branco". com mais cinco minutos estava-se na outra extremidade da cidade, na porta de
oeste, onde começava a bela avenida de bordos do Priel com o seu ar puro, alas de tílias em frente dos jardinzinhos das casas e as filhas dos prielenses ricos, a
passear.
Frau Persenthein nunca fazia aqueles cinco minutos de percurso sem pôr o chapéu. Era um dos esforços aos quais se submetia para sublinhar a respeitabilidade do médico.
Também não levava cesto de compras, isso era bom para a mulher do sapateiro ou a criada do notário mas ficaria mal na esposa dum clínico.
Levava apenas uma rede que, dobrada, pouco espaço ocupava. De resto, naquela tarde, a rede não passava de pretexto. Enquanto ia pela rua que conduzia ao centro da
cidade, com tal lentidão que gastou sete minutos, sentia o coração como que anguloso. Sentia-o mesmo inchar com uma leve sensação de dor, enterrando-lhe uma ponta
na clavícula. Não era a primeira vez que experimentava aquilo mas exactamente por ele ser médico é que nunca lho dissera.
Era quási noite quando o relógio da igreja deu seis horas. O Schmittbold, varredor das ruas e guarda do jardim, perseverava ainda em fazer montinhos com as folhas
secas ao longo do passeio, respirando fundo, de vez em quando, inclinado para a vassoura de ramos de bétula. Alguns habitantes de Lohwinckel tinham já largado o
trabalho e estavam sentados em bancos pintados de verde, diante das portas das casas, com as mãos descansando nos joelhos. O alfaiate Krainerz baixou as persianas
com barulho significativo. Por cima de tudo isto reinava o aroma de Lohwinckel, um aroma sempre idêntico, de pó aspergido de água, lenha a arder e água da poça dos
patos de trás da igreja.
Elisabete caminhava lentamente porque ia fazendo cálculos; trazia na cabeça todos os algarismos inquietadores do livro das contas, olhava para as pontas dos pés
e cumprimentava com o meigo olhar ausente quási todas as pessoas que encontrava, porque a todas conhecia. Só o farmacêutico Behrendt deu um passo atrás e se retirou
para dentro da loja onde também vendia artigos fotográficos, drogaria e garrafas termo. Ela compreendeu que aquilo representava uma pequena manifestação de hostilidade.
Estavam de relações definitivamente cortadas. O doutor enfurecia-se quando o boticário dava conselhos e vendia especialidades farmacêuticas absolutamente contraditórias
ao seu método reformista. Behrendt, pelo seu lado, achava que o médico, com a sua mania naturista, dava cabo do ofício, ameaçando-lhe o negócio. Chegara mesmo a
haver uma complicada troca de cartas, delicada mas plena de irritabilidade, conduzindo à ruptura de relações. Behrendt era presidente da associação "União e Fraternidade",
podia ser prejudicial e não perdia uma ocasião. Recolheu-se, portanto, à farmácia, para não ter que cumprimentar frau Persenthein. Ela hesitou na bifurcação da rua
Direita e na do Mercado, perguntando a si própria se devia entrar na caverna do leão ofendido e comprar alguma coisa - chá, macela, sabão em pó, um tubo de vaselina
- para restabelecer o contacto ou se tinha direito a fugir. Finalmente deu meia volta como se se tivesse esquecido de qualquer coisa importante, deixou a enfadonha
rua Direita e bateu em retirada para o lado do Mercado.
-Que deseja? - perguntou o sr. Markus, quando, um pouco fatigada, entrou no armazém. Ainda tinha duas mulheres para servir: a cozinheira do notário e a costureira,
fráulein Ritting, da rua das Águas. O sr. Markus
entregou ao caixeiro um cartucho meio cheio e veio servir a Elisabete. Era míope, o que lhe dava uma expressão eternamente interrogativa e admirada - mas não punha
óculos na loja. Procedia desta forma por razões análogas às que a Elisabete apresentava para não sair sem chapéu. Achava que óculos de tartaruga não estavam indicados
para uma mercearia, mas sim para permanecer lá em cima entre livros e revistas. Teriam feito com que a clientela o troçasse e desconfiasse dele.
- Que deseja? - perguntou, sem tocar na mão que ela lhe estendia. No armazém achava que estava sempre sujo.
- Meio quilo de arroz, se faz favor.
- Não decorticado, é claro?
- É claro. - respondeu ela, sorrindo.
- Mandei vir um saco inteiro em sua intenção. - respondeu o merceeiro correspondendo ao sorriso.
- E para os nossos doentes?
- Como? Ah, sim, mas os doentes não seguem o regime tanto à risca.
Apaziguada, Elisabete olhou para os grãos de arroz que escorriam da pá de madeira para o cartucho. O armazém cheirava bem, a crianças e drops.
- E que mais?
- Mais nada, obrigada.
- São trinta e oito pjennig. Inscrevo-os na conta do mês - disse o merceeiro, assim que notou a hesitação de Elisabete.
- Sim, faz favor ... - e meteu o cartucho no saco de rede.
- Boa tarde, minha senhora. -cumprimentou a costureira.
- Boa tarde menina Ritting. Parece que vai chover.
Chegava a ter gratidão por todas as pessoas que nada tinham a censurar ao médico. Esta escapara, sã e salva, a uma pleuresia.
- Desejava falar-lhe, sr. Markus. - disse, assim que a costureira saiu.
Caía uma chuva ligeira que se via atrás da porta de vidro colorido.
- Sim? Então vamos para o meu escritório.- respondeu Markus que interrogou o relógio de pulso e deu, ao caixeiro, ordem para fechar a loja.
Elisabete seguiu-o por trás do balcão até ao pequeno gabinete envidraçado cheio de sacas de café perfumado. Apertou a rede contra si e entrou logo no assunto.
- Estamos a doze de Outubro, sr. Markus.
- Como? Ah, sim. com efeito. É verdade, já estamos a doze. - concordou o homem, embaraçado. Possuía uma boca bonita que se atrapalhava, de vez em quando, não podendo
articular certas consoantes. Tinha cabelos escuros mas parecia que lhe rodeavam a testa com reflexo louro. Elisabete fixou o olhar nessa particularidade para poder
continuar a sua explicação.
- Ainda não posso pagar a nossa conta, sr. Markus. -Ah! é pena... quero dizer... não lha enviei senão
por causa da escrita... Bem sabe. A minha mãe tem destas manias... -balbuciou Markus, dando a impressão de ser antes um devedor do que um credor.
- Os outros são tão pouco exactos e devem-nos tanto! - queixou se Elisabete que, cada vez estava mais confusa.
-Sim, calculo... Cá em casa acontece o mesmo. Eu tenho de pagar nos prazos mas os clientes é só quando lhes apetece.
Chegando a esta altura da conversa, nenhum deles soube mais que dizer. Nos olhos da Elisabete apareceram precisamente naquele instante e bem fora de propósito, as
lágrimas que levara a manhã inteira a engolir, substituindo-as pelo sorriso. Decerto porque ia ter alguma tranquilidade por aquele lado e também porque tinha pena
do Markus.
- Custa-me tanto! - murmurou.
- Oh! cá em casa não faz mal. - declarou o merceeiro a quem a mãe todos os dias fazia cenas terríveis por causa daquela conta.-Lamento, minha senhora, que tenha
preocupações de dinheiro. - disse finalmente.
Era difícil formular sob uma forma mais apaixonada os sentimentos que experimentava por aquela mulher.
Elisabete compreendeu e disso resultou uma mistura de sentimentos agradáveis e desagradáveis.
- É sempre tão amável! -disse, reconhecida.
O sr. Markus, sucessor de M. S. Markus também estava isolado, como o dr. Persenthein. Primeiro porque, embora nascido em Lohwinckel, era judeu. "vou a casa do judeu"
diziam, em vez de "vou fazer compras" ou "vou à loja do Markus". Em criança, andara só, em estudante assustara os mestres, sobretudo o pedante professor Burhenne,
pela sua impaciente inteligência que ia além do programa escolar e pelas suas preferências variáveis e incertas por diversos ramos de ciência. Depois do bacharelato,
deixou Lohwinckel para estudar direito em Berlim e vir a ser alguém. Em seguida, deu se o caso do pai M. S. Markus, em que o dr. Persenthein tinha a sua parte de
responsabilidade. Como geralmente acontece, M. S. Markus fora atacado de apoplexia duma forma inesperada, enquanto comia salada de grão, apimentada e fria, acompanhada
por um copo do excelente vinho das vinhas do Domínio. A esposa mandou chamar o dr. Persenthein mas ele não estava em casa. Seguindo as indicações escritas na tabuleta
da sua porta, encontraram-no uma hora mais tarde na propriedade Raitzold onde a criada dava à luz um filho sem pai, entre grandes dores. Ficou ali até que a criança
visse a luz do dia e só depois voltou para Lohwinckel, com grande custo e a pé, porque a moto não fora comprada senão depois desta experiência e o sr. de Raitzold,
inimigo declarado dos judeus, recusara emprestar o seu carro. Foi por isso que M. S. Markus morreu sem assistência médica - como, de resto, teria igualmente morrido
com ela. Mas o ódio concentrado da viúva, desde essa noite, não largou mais o dr. Persenthein. Insinuava ser ele pouco seguro, não estar presente nos momentos precisos
e ainda qualquer coisa de mais sujo ainda: preferir ficar à cabeceira de raparigas sem vergonha em vez de vir assistir aos cidadãos que morriam correctamente na
sua cama, se bem que israelitas.
Este ataque apopléctico teve consequências graves para o jovem Markus: cand. jur. Heinrich Markus,
em Berlim. Foi obrigado a renunciar aos estudos, tomar conta do armazém, voltar para Lohwinckel onde estava a mãe e respirar o cheiro do sabão e do café da loja
da rua do Mercado. Agora estava resignado e tentava adaptar-se à nova existência. Fazia inovações. Mandou pintar a palavra "Alimentação" na tabuleta e a montra tinha
às vezes uma feição tão moderna que chegava a chocar. Na vida privada usava óculos. Comprou muitos livros, leu catálogos, assinou várias revistas. Procurou um aparelho
de rádio, de modelo especial, graças ao qual pôde ouvir não só a sua querida cidade de Berlim mas também Paris, Londres e Roma. Depois encetou uma correspondência
bizarra e longínqua. Escreveu cartas, inúmeras cartas ao mundo inteiro e, às vezes, acabava por receber uma. Agarrava-se ao universo lá de fora e introduzia-o no
seu abafado gabinete onde se guardavam os sacos de café porque o ar era aí mais seco, arriscando-se menos a perder o aroma...
- Antes de mais nada, é preciso não desanimar. E preciso conservar o seu ideal, minha senhora. - dizia ele à bulha com as consoantes.
Elisabete olhou-o atentamente; aquela grande palavra Ideal arrefecera-a. Roeu um pouco o dedo indicador. Em voz baixa, replicou:
- Ah, sr. Markus, às vezes, realmente, não sei o que hei-de fazer!
-Compreendo. A sua vida não é fácil.-respondeu o merceeiro, falando como o operário Lungaus.
De resto, cá fora dizia-se o mesmo, o que reforçava a hostilidade geral contra o marido. Ávida de consolação, ela olhou para a mão de Markus manchada como a dum
escrivão, que, maquinalmente, se aproximava da sua por cima da escrevaninha maculada de tinta.
- O meu marido... - disse em voz queixosa, mas sorrindo ao mesmo tempo.
- Eu sei. - atalhou Markus, prudente.
- ...tem tantas preocupações! Cada vez mais. Tenho pena ... Por isso é que se torna... desagradável... tenho pena. E todos os dias contrariedades e todos os dias
discussões de dinheiro. Mas ele é preciso...
-O doutor possui agora uma boa clientela, deve canhar muito... - disse o sucessor de M. S. Markus, tornando-se de súbito comerciante.
-Ganha mas gasta tudo, e isso é que é muito aborrecido. Tem sempre compras a fazer, coisas caras, aparelhos, livros, revistas e pensa ainda em novos instrumentos
que deseja inventar, melhorar... encomenda coisas tão esquisitas e nunca tem tudo o que quer! O seu desejo é aperfeiçoar-se cada vez mais. Não se conforma em ficar
sempre um apagado médico de partido como era o meu tio... e eu compreendo-o, mas custa muito...
- É ambicioso.
- Não é, não. É um insatisfeito. Possui um lugar tranquilo mas não tem sossego. De resto, não o teria em parte alguma, poderia estar na melhor situação do mundo
que ainda se mostraria impaciente.
- Agradeça a Deus. É um homem vivo. Aqui todos estão mortos, acabados, liquidados -nada se mexe, nada acontece. É este o maldito perigo que se corre: é a gente resignar-se
e acomodar-se com tudo. E a senhora? Não tem, às vezes, vontade de se ir embora para longe, para muito longe disto, seja para onde for? Aqui, tudo parece tão definitivo,
tão irrevogável! Não sente, algumas vezes, ganas de dar um encontrão nisto tudo e fugir?
Elisabete ouvia-o atentamente e parecia-se mais do que nunca com a Avelã, com os seus cinco anos de juízo. Reflectiu um instante e aprovou com a cabeça.
- Sim, mas são coisas que não se podem fazer. concluiu sensatamente.
- Pois não. - concordou Markus.
Ela prestou o ouvido à chuva. E pensou: "Ele vai chegar com as piúgas molhadas. Tenho que passajar umas para amanhã de manhã."
- E porque não?- insurgiu-se Markus, levantando-se com violência. - Porque não, afinal de contas ? porque é que a gente não há-de poder ir-se embora? Sair disto?
O horror que é uma pessoa passar a vida em Lohwinckel! Aqui há só lama, mas lá fora o
mundo tem um rosto diferente. E a gente lê que tudo é movimento, que tudo se modifica. Quanto a nós, estamos emparedados. O amor e o ódio são estéreis e, no entanto,
irrevogáveis.
A Elisabete ergueu um pouco os ombros, de maneira quási imperceptível. Não gostava daquela espécie de palavras: Amor, Ódio, Fuga. Aquilo fazia pensar nos livros
que o falhado estudante Markus lia em grande quantidade e que lhe davam a pretensiosa inteligência judia que o afastava dela.
- Não é também assim uma coisa tão horrível!... -disse ingenuamente.
Entretanto, os olhos do homem haviam-se perturbado porque pensava: "se a tivesse encontrado fora daqui, outras seriam as nossas relações, Elisabete. Estéril amor!
Aqui, é a mulher do dr. Persenthein e eu sou o merceeiro judeu, sucessor de M. S. Markus. E mais nada. Enfim! Arroz decorticado, posto aos seus pés. Contas por pagar
à laia de agradecimento. De resto, não sabe nada de mim, absolutamente nada!"
- Bem, agora tenho de me ir embora. A pequena está só em casa.
Disse isto mas deixou se ficar sentada porque estava moída e incapaz de tomar uma decisão.
À pressa, ele pediu.
- Um instante... só mais um bocadinho. Deixe-me explicar a minha maneira de pensar. Há, por exemplo, a rapariga que está no barbeiro. Veio duma grande cidade, sabe
Deus após que enigmáticas circunstâncias! Conhece os requintes dos grandes meios: manicura, ondulações, corte de cabelos. Anda bem arranjada, pinta-se e é bonita..
Não se impaciente, oiça o que lhe quero dizer. Falam mal dela desde o dia em que chegou aqui. Porquê? Porque usa bâton? Porque a viram a conversar com o filho do
carniceiro? Quem a pode impedir ou querer-lhe mal por isso? E se a virem com qualquer outro, comigo ou com um empregado do correio, pronto: está perdida. Nunca mais
conseguirá reabilitar-se. Não encontrará marido e só uma coisa lhe restará fazer: sair cada domingo com um homem diferente e, durante a
semana, ouvir as frases frescas que a sua clientela masculina lhe quiser dizer. E ter-se-á a prostituição em Lohwinckel, nem mais nem menos. Fora daqui, continuaria
a ser uma rapariga encantadora; aqui...-não se assuste, minha senhora, eu sei que não gosta de ouvir estas coisas e é o que em si existe de católico que a domina.
"E é o que há de judeu em si que o faz falar dessa maneira" - pensou Elisabete, em réplica rápida. Às vezes, tinha destes relâmpagos. Mas não o disse porque considerava
a palavra judeu como uma ofensa.
- Mais vale o domínio do que a falta de compostura.
- disse, um tanto severa.
Markus desatou a rir. Compreendera-a bem sentira uma dor aguda, uma espécie de nevralgia que já o ferira na infância quando a sua crença o isolara.
- Bem. Passemos a outro assunto: a política. Já viu alguma coisa em evolução, neste buraco? Apesar de todas as batalhas que precedem as eleições, apesar de todos
os ataques na "Folha de Aviso" e, do outro lado no "Popular de Schaííenburg", passa-se alguma coisa? Convencem alguém ? Em Obanger são socialistas, em Lohwinckel,
conservadores. O sr. de Raitzold está pronto a disparar sobre os que não têm a sua opinião e o sr. Profet mantém-se no seu meio burguês, esfolando os operários apesar
dos salários sindicais. Julga que os operários são capazes de se revoltar? Que ideia! É assim e não muda. É-se atacado pela doença do chumbo. O seu tio encobriu
sempre essa enfermidade. O seu marido descobriu-a, pôs de sobreaviso o inspector do trabalho, tocou nos estatutos da caixa dos doentes. E que resultou? Nada. Os
burgueses dizem que ele é socialista. E os operários consideram-no como um carrasco porque os obriga a tomar leite e ar puro em vez de medicamentos. Se não fosse
a inércia desta gente, há muito que teriam procurado outro médico.
Muito depressa, Elisabete concordou:
- É isso que eu receio. Precisamente isso. Se a menina Ohmann casar e o marido começar a exercer clínica, ui... Imagine: o genro do presidente da Câmara em luta
com o meu marido que tem tantas antipatias..
- É isso que receia ? - perguntou Markus, detendo-se um momento - Não. Creia que nada acontece aqui. E isso também não. Todos têm inimigos mas ninguém se mexe: respira-se
e vive-se na mesma. Inimigos! Ora veja o ódio que o Profet e o Raitzold têm um pelo outro. É imenso, de modo que devia acontecer alguma coisa: um assassinato, um
incêndio, uma explosão. É o que acontece? Nada. São inimigos e isto basta. A estrada está cheia de covas, todos os dias se parte qualquer peça nos carros. E então?
Os buracos continuam. As covas da estrada de Lohwinckel são imutáveis. A proibição de fumar que o seu pai fez aos rapazes, há vinte anos, subsiste. Já no meu tempo,
quiseram os do último ano fazer um protesto. E fizeram-no? Que ideia! O farmacêutico Behrendt tornará a . cumprimentá-la ? Duvido. A mulher do presidente, jrau Ohmann,
tornará a ir à modista que lhe estragou um vestido verde há oito anos ? Não. É o que lhe digo: aqui não acontece coisa nenhuma. Nada se mexe. Quando se olha para
a rua, à noite, fica-se surpreendido ao ver electricidade em vez de mechas de azeite...
com efeito, um candeeiro brilhava fora, à altura da janela do escritório. Estava todo riscado pela chuva. Elisabete gostou de olhar naquela direcção e de observar
a humidade cintilante que corria ao longo dos vidros. Não seguira bem a última parte do discurso irónico do Markus, começava a sentir uma certa sonolência e aquele
ronronar de sinos que anuncia a aproximação do sono nos seres delicados, fatigados e um tanto anémicos. Markus afastou-se do candeeiro e da miséria dessa gente de
Lohwinckel, para contemplar o rosto da Elisabete. Depois disse muito depressa, não sem tropeçar na primeira consoante:
-De... devíamos tornar a fazer um pouco de música, os dois.
- É verdade... - respondeu ela, ausente, sem tirar os olhos da luz.
-Hoje? A nossa sonata de Brahms? Se acabássemos de a decifrar?
-Hoje? Ah, não; é impossível,
- Porquê ?
- Porque... o doutor está enervado. Hoje não suportaria música. Houve um caso fatal...
Markus perguntou a si próprio porque motivo ela chamava sempre ao marido "o doutor, como se fosse ainda a enfermeira da creche do hospital de Schafíenburg. Ele imaginava,
às vezes, a vida conjugal dos Persenthein mas não chegava a nenhuma conclusão viável e sólida.
- Bem. Então renuncia-se à música, à sonata de Brahms e é pena. Era uma noite mesmo feita para isso. Chuvosa e um pouco melancólica. Quer algum livro? Ainda não
viu as revistas de Outubro. Começou um novo romance muito original...
- Oh, sim, ler!-exclamou Elisabete tirando, finalmente, os olhos do candeeiro e pousando-os no judeu.
- Mas não tenho tempo [-acrescentou logo-Ainda vou lavar a roupa, esta noite.
- Credo, parece de propósito. Cada vez que nos encontramos, tem roupa que precisa de lavar! Parece uma paixão...
- Não há dúvida... O doutor necessita de tanta roupa lá para a clientela e nós temos tão pouca! Por isso tenho de lavar quási todas as noites: toalhas grandes e
pequenas, batas e o resto. É assim mesmo. - E animou-se. A ideia da sonata e dos livros tornara-a lassa e nostálgica, mas agora via nitidamente a celha de madeira
com a roupa dentro; na sala de banho aspirava o aroma do sabão. Levantou-se logo.
-Tenho de me ir embora. - disse, levantando-se e pondo o chapéu que conservara na mão. Markus olhou com timidez para os cabelos castanhos que desapareceram sob o
feltro. O rosto de Elisabete possuía uma nitidez, um equilíbrio de linhas que o encantavam. E pensava que o doutor nem sequer conhecia a expressão do rosto da esposa.
"Tanto melhor" exclamou o seu ciúme enquanto ela pegava na saca das compras e lhe estendia a mão.
- Muito obrigada por tudo... e daqui a alguns dias,
quando os Raitzold pensarem na nossa conta...-balbuciou, confusa.
Markus também não estava à vontade:
- Por quem é... Então... Não se fala mais nisso. Venha por aqui, é melhor passar pelo corredor, o armazém está às escuras.
Ela passou à frente e desceu três degraus. Cheirava a cal fresca. Fora, a chuva parecia um estore japonês, de contas, fazendo barulho e saltando quando caía nas
poças.
-Meu Deus! - exclamou Elisabete, assustada, pensando no marido à chuva na motocicleta.
- Oiça... espere um instante. Quero mostrar-lhe uma coisa. - pediu Markus.
Reconhecida pelo pretexto para não partir ainda, ela deteve se.
- Sabe? Recebi uma carta magnífica. Ele respondeu me!
- Respondeu? Quem?
- Romain Rolland - replicou misteriosamente, tomando impulso para galgar o óbice das consoantes. Lembra-se ? Eu tinha lhe pedido um autógrafo. Ele mandou-mo, tenho
que lho mostrar.
- É possível? Romain Rolland ! -espantou-se ela também em voz de mistério.
Em pé, no sombrio corredor do armazém da mercearia, sentia que a chegada daquela carta ali, representava um acontecimento extraordinário, quási inacreditável. Apressada,
tornou a subir a escada, atrás de Markus, tropeçando nos degraus. O relógio da torre pteveniu-a lentamente que eram oito horas.
Quando Markus abriu a porta, ficou um instante imóvel.
- Desculpe, mãe.
Na sala de jantar cheirava a cera e a queque. Na mesa, estava uma toalha adamascada de prateados reflexos; em dois candelabros antigos ardiam velas. No centro da
mesa, numa travessa, havia um pão branco que dava a ideia duma trança grossa e entre ele e os candelabros estava aberto um livro com caracteres
hebraicos. Vestida de seda negra, a viúva Markus, sentada no lado mais estreito da mesa, murmurava cabalísticas palavras, inclinando-se ora para a direita ora para
a esquerda, estendendo as mãos por cima da chama das velas como num gesto de bênção-pareciam translúcidas com a palidez da velhice e as salientes veias azuis.
Tudo aquilo se afigurou estranho à Elisabete, mas, ao mesmo tempo, solene e íntimo. Sorriu, ignorante, através da fresta da porta entreaberta. Estava curiosa como
em face duma árvore de Natal iluminada, mas, de súbito, um olhar rápido e frio da velha que rezava, atingiu-a e, intimidada, disse a meia voz:
- Deixe lá... Mostrar-me-á a carta noutro dia. Boa noite. - Deu meia volta e desceu rapidamente.
- Tinha-me esquecido de que era sexta feira. - disse Markus, indeciso.
A velha, lá da sala de jantar, sem interromper a oração e os gestos, voltou o vivo e desconfiado olhar para o sussurro que vinha do outro lado da porta. Fez um gesto
ao filho para entrar. Caminhou para ela, beijou-lhe a mão estendida e aproximou-se do enrugado rosto. Fazendo isto, experimentava um sentimento de intimidade e desenraizamento
que nenhuma palavra poderia exprimir...
A rua estava completamente deserta, embora não tivesse chovido com abundância senão durante alguns minutos. Agora, a água espaihava-se em gotinhas pequenas.
Do outro lado, no "Cisne Branco", as salas já estavam iluminadas por trás das cortinas corridas; via-se fumo a sair do ventilador e em redor do candeeiro; ouvia-se
até a música da pequena orquestra. Elisabete, que trouxera da casa judia, a impressão duma estranha calma, teve desejo de ir à igreja. Encontrou aberta a porta lateral,
sob o claustro. A igreja encontrava se vazia; em face do altar da Virgem, as velas ardiam devagarinho. Tinha as mãos molhadas e geladas pela chuva a ponto de a água
benta da velha pia lhe parecer tépida.
Ajoelhou se, rezou o Padre-Nosso e a Avè-Maria enquanto os seus pensamentos se afastavam e se perdiam continuamente. "Contanto que o Kola..." murmurava.
Tinha medo sem saber de quê, desejava não sabia o quê, sentia a nostalgia ignorava de quê.
com dificuldade, rolava um automóvel pela estrada que vinha de Dusswald a Lohwinckel. Saíra de Berlim e dirigia-se para Baden-Baden. Mas a vinte e oito quilómetros
de Dusswald tinha topado com a tabuleta marcada com três discos que indicavam "caminho impedido e havia obedecido à flecha vermelha que mandava seguir pela estrada
de Dusswald. Depois de ter atravessado, sabe Deus como, o sonolento Dusswald, aproximava-se do não menos entorpecido Lohwinckel.
No auto, - um carro comprido, baixinho, aberto e carroçado em cinzento claro - estavam sentadas quatro pessoas. Ao volante, Peter Karbon excitado e derreado, com
as pestanas e as sobrancelhas cheias do pó claro, incolor, das estradas. Os cabelos ruivos, penteados para trás, com duas entradas grandes nas fontes, estavam polvilhados
de branco e agitavam se no ar vivo da rápida carreira. De resto, o proprietário e os pneus do carro usavam o mesmo nome. "Os pneus Karbon são os melhores" era um
reclamo muito divulgado que, em tabuletas encarnadas, aparecia em todas as passagens de nível, nos cruzamentos e nos postes indicadores. As oficinas de borracha,
de Karbon, eram uma das glórias da grande indústria alemã. Aquele Peter Karbon, de indeterminada idade mas que decerto tinha mais de quarenta anos, no seu casaco
cor de pó em pele de porco, dava uma impressão de força e parecia estar nu. Os animais no pasto têm, às vezes, esta aparência: cães sem coleira, cavalos sem arreios.
Em Peter isto provinha de o pescoço lhe sair do casaco sem colarinho, direito e vermelhusco como o dum índio e por ter levantado as mangas até aos cotovelos sem
ter medo
de expor ao frio os braços descobertos. A seu lado estava sentada Lcore Lania, a actriz, baixinha, delicada, mortalmente fatigada, tão cansada que, de momento a
momento, se tornava ainda mais pequena. Tinha um vestido que parecia ser um modelo reduzido do macaco de Peter; na cabeça uma boina feita em crochet com seda brilhante,
cor de laranja, cingindo-lhe estreitamente a cabeça e uns óculos enormes que constituíam tema de constante discussão entre ambos. Ele dizia que usar óculos, sem
precisar, era uma afectação de criança mimada ; desagradava-lhe que a Leore visse apenas bocados de paisagem e em tintas esbatidas e obscuras. E Leore replicava,
dizendo que ele era um grande comilão; dum só trago engulia tudo que via: vida, mundo, mulheres, coisas, animais, dinheiro, cores, batalhas, derrotas (sim, também
as decepções e o sofrimento lhe proporcionavam uma espécie de penetrante prazer) e sucesso. Era assim Peter Karbon. Sentia enorme rancor contra a Leore porque usava
óculos impedindo-o de lhe ver o rosto, porque os óculos lhe roubavam metade, dando lhe um aspecto de máscara.
-Estou feia? - perguntava ela, de quarto em quarto de hora.
Peter respondia, sincero:
- Horrivelmente feia, Pittyevitte.
A-propósito, é preciso dizer que Leore era considerada como uma das mais lindas mulheres do mundo, por causa da sua graciosidade de pássaro, do seu encanto real,
do fulgor da sua fisionomia em que se combinava o negro profundo e brilhante com a palidez doirada. Desde que Peter era seu amante, isto é, havia dezoito semanas
e quatro dias, brincavam chamando-se mutuamente Pitt e Pittyevitte.
Até aos vinte e quatro anos já lhe tinham dado toda a espécie de nomes pequeninos. Haviam-lhe chamado Bibi, como a uma preta, por causa do narizito de animal, de
largas narinas; Gata, devido ao génio rebelde e à sua fundamental infidelidade; Lálá, como a um bebé porque se metia, às vezes, dentro de si mesma, parecendo uma
criancita, chorando, rindo e brincando, tudo ao mesmo
tempo; Rack, nome inglês dum instrumento de tortura, o que nos dispensa de mais ampla explicação. Usava e tirava estes nomes como fazia com os vestidos e os papéis,
no teatro. Nunca se chegava a saber como ela era. Talvez lá no fundo existisse uma profunda e delicada fraqueza, coberta por furiosa ambição. Quanto aos óculos,
a Leore usava-os porque a fortíssima luz do stúdio lhe estragara os olhos; sofria disso, com frequência; as conjunti.vites irritadas queimavam-na e faziam na chorar,
chegando ao ponto de não a deixar dormir; o uso contínuo dum colírio de nitrato de prata fazia parte das angústias da sua vida privada. Mas antes morrer do que confessar
tal coisa. Todos os anos ia abaixo como um animal sob a carga, em plena tomada de vistas, com uma doença mortal de que nunca ninguém, até aí, suspeitara. Entretanto,
trabalhava uma média de quinze horas por dia, passava três a dormir e uma a chorar, entre as duas e as seis da manhã. No resto do tempo, fingia ser um brinquedo
agradável. Porque os brinquedos pagavam-se bem e, no cinema, as mulheres a valer não tinham grande cotação.
Karbon, que a conhecia melhor do que ela supunha, decidira-a a largar tudo durante dez dias para se restabelecer do último ataque: o monumental filme "Ruas Nocturnas"
e a hemorragia estomacal que se lhe seguira. E lá estava agora sentada ao lado do bem dis posto Pitt, na estrada de Dusswald, de profundos precipícios, lamentando-se
em voz baixa.
Atrás iam duas pessoas: o motorista Fobianke, um homem de cerra idade com bigode e dedicados olhos de polícia, que tinha um mapa desdobrado sobre os joelhos da sua
farda de tweed e que calculava a quantos quilómetros os forçara aquele imprevisto desvio. E também um rapaz com rosto de rapariga, espantado e gracioso. Era o boxer
Franz Albert, campeão alemão de pesos médios.
Mal atravessaram o piso mau e entraram no bom, Leore disse a Karbon :
- Anda mais depressa !
Ele, que ia devagar, obedeceu e deu mais gás. Mas só atingiu quarenta,
-Que tens tu? - perguntou ela, admirada.
- Olha para as sorveiras! - respondeu Pitt, respirando o aroma amargo e outoniço da estrada avermelhada, ao longo da qual pequenos tufos de arbustos se baloiçavam
como estandartes.
- Sorveiras ? Estou gelada. - lamentou-se Pittyevitte, esfregando o queixo na gola do pullover de lã. Karbon lançou-lhe um olhar de lado.
Inquieta, perguntou :
- Tenho o nariz vermelho ?
- Absolutamente. - confirmou ele, evitando uma vaca que se atravessara no caminho.
Do fundo do carro, Fobianke anunciou:
- Deve haver por aqui uma passagem de nível sem guarda.
Karbon piscou os olhos e aprovou com a cabeça. Custava a abranger a estrada com o olhar e tinha cuidado em não saltar muito nas covas para evitar que a Lcore ficasse
com dores de cabeça.
- Estou danada com este andamento de caracol! vociferou ela, em voz baixa.
- Então a Pitíyevitte está gelada ?
Karbon pôs o pé no acelerador e houve ainda mais frio. Agora saltava nas covas e a Leore ia ao ar, gritando constantemente.
- O Albert tem medo? - perguntou Karbon, sem virar a cabeça.
- O Albert está a dormir. - gritou Leore.
O caminho descia, iam em segunda e o motor fazia imenso barulho.
- Acorda o! - berrou Peter.
Leore voltou-se e sentiu o vento assobiando ao longo da sua face com uma resistência dura, rumorcjante e fresca. O Albert estava realmente a dormir, mas acordou
logo que ela o fixou e dedicou-lhe um sorriso absurdo. Leore também sorriu, contente como duma experiência que resulta bem. Gostava de realizar destas proezas, pelo
impulso da sua força magnética de mulher bonita. No caso de Albert havia, além disso, uma pequenina razão particular...
- Devemos estar a chegar ?
-Sim... sim... sim...-cantou Leore, como se embalasse crianças - O nosso menino pequeno quer ir para a caminha.
- Eu? Que ideia!-protestou preguiçosamente Albert enquanto os olhos se lhe fechavam. com o rosto virado para trás, a actriz observava, muito interessada, o espectáculo.
Albert tinha olhos azuis profundamente enterrados e pestanas pretas, de anormal comprimento. Era por ter as sobrancelhas tão espessas e longas mais por baixo dos
olhos do que por cima, que apresentava aquele aspecto evangélico de recém-nascido espantado. Mexia os ombros dentro do pull-over de lã cor de gato. Era duma leveza
e duma moleza inauditas em todos os gestos. A imprensa desportiva gabava sobretudo o seu directo esquerdo e o seu coração, o que é o termo profissional que serve
para indicar a resistência, a coragem e a insensibilidade à dor. Leore vira o lutar duas vezes e não podia lembrar-se da selvajaria combativa e fria, do desconhecido
rosto daquele rapazito que se transformava completamente quando estava no ring, sem sentir no fundo do coração uma vaga de calor. O facto de ele ser vigiado por
um manager tirânico que afastava todas as mulheres, decidira-a imediatamente a apoderar-se daquele ingénuo Albert que não tinha mais de vinte e um anos.
Entretanto, o automóvel saltava duma forma horrível, estremecendo nas mãos de Karbon. De repente, os travões guincharam e Leore caiu para a frente.
-É preciso eu...?-perguntou Fobianke, fazendo o involuntário gesto de pegar no volante. Mas o carro já estava parado, Karbon sorriu numa careta.
- É a passagem de nível, isto! -e designou, com o queixo, a estreita via, a meio metro do carro.
- Fizeste bem, Peter.- aprovou Pittyevitte, quando, no mesmo instante, a pequena locomotiva passou soprando muito, sob o som alarmante e atrasado duma campainha
de aviso, e com bastante velocidade.
- Tive medo.. - queixou-se baixinho, o Franz, lá de trás.
- Ês o nosso miúdo. Não é verdade que ele é o nosso miúdo, Pítt? - perguntou Leore, enquanto estendia para trás a mão.
Karbon atravessou prudentemente os rails e depois acelerou loucamente através a floresta que começava logo em seguida. Franz Albert, nesse meio tempo, observava,
com ar pensativo, a mão que se lhe oferecia, mas não sabia que havia de fazer-lhe. Depois de alguns segundos, Pittyevitte retirou o objecto supérfluo e meteu o na
quente algibeira do casaco de Karbon.
Ameaçador, ele disse:
-Se me fazes cócegas, vamos parar à valeta!
-Não estou a fazer-te cócegas; estou simplesmente a instalar-me. - replicou Leore, pacífica.
Fobianke tornou a dobrar o mapa.
- O sr. Karbon deseja que eu guie? Já fez trezentos quilómetros.
-Então? E depois?
- Julguei que podia estar cansado.
- Cansado, eu? Que ideia!
Fobianke ficou descontente. Não gostava de ouvir o patrão gabar-se da sua resistência. Ele - e era ele, Fobianke -sentia-se cansado depois de trezentos quilómetros
a fio. Quem tomasse o seu ofício a sério, evidentemente que se fatigaria neste caso. Além disso, ele percebia perfeitamente que o patrão já estava farto do volante.
Adivinhava-o no ruído do motor, nas curvas muito apertadas, em um não sei quê de inexprimível que se notava na marcha do carro. Desde que ali estavam aquela senhora
e o rapaz, Fobianke sentia certo mal-estar, como se andasse numa borga com mulheres duvidosas. Havia qualquer coisa entre os três - e Fobianke pressentia-o no andamento
nervoso do carro. Quando um homem experimentado como o sr. Karbon faz semelhante barulho ao mudar de velocidade é porque existe qualquer coisa que não corre bem.
- O que há mais? - gritou Leore, quando os travões tornaram a guinchar, o carro parou bruscamente e todos cairam para a frente.
- Olhai, meus filhos, o sol! - exclamou Karbon, sôbre-excitado, estendendo o braço para a direita.
Daquele lado, haviam cortado algumas árvores da floresta; numa largura de cerca de oito metros, a estreita estrada descia e via-se o fundo azulado que era talvez
a planície do Reno. A orla da floresta fulgia com o castanho dourado da folhagem das faias, a terra corria para o vale como cobre líquido e, para além, o sol resplandecia
com a pompa que, em geral, se vê apenas no mar. Era vermelho escuro, apresentando os raios regulares e tradicionais. Mas onde mergulhava no nevoeiro, estava deformado
em elipse mostrando todos os raios quebrados, ofuscantes, cintilantes e difusos, da luz. Karbon olhava, de boca aberta. Fez mais ainda: meteu em marcha atrás e recuou
alguns metros para ver melhor.
Leore olhou negligentemente para o espectáculo e, em seguida, observou com atenção Franz Albert que, lá atrás, tinha aberto os olhos. Os dois homens estavam iluminados
pelo esplendor do sol.
- Gosta?-perguntou ela.
- Sim, é bonito. - respondeu o rapaz.
Dispunha dum restrito vocabulário e, a falar, parecia-uma criança de dez anos - ela tinha que se contentar com isso. De repente, por qualquer razão, a actriz encolerizou
se e serviu-se da odiosa linguagem do palco:
- A gente está cheia de conhecer os teus famosos poentes. Deixa essas borracheiras e anda para a frente. Antes queria estar já em Baden-Baden do que ficar para aqui
de boca aberta...
Mas Peter parecia surdo e esperava, obstinado, a desaparição do sol - o que se deu daí a momentos - e que todo aquele vermelho subitamente se transformasse num verde
fresco e azulado. Nessa altura, demarrou bruscamente, de modo a faltar a respiração à Leore, a qual aguentou sem se queixar, embora começasse a não se sentir bem.
De esguelha, olhou para o concentrado perfil do amante, inclinado para o volante em atitude de corredor, com a testa iluminada pelo crepúsculo. Tinha uma coisa rara:
a boca duma beleza perfeita, como que composta por duas asas. "Não está mal", pensou
Leorc, mas logo franziu, com ironia, o lábio superior. Sabia muitas coisas acerca deste homem. Conhecia-o demais e havia muito tempo: dezoito semanas! com o seu
rosto de imperador romano, julgava-se importantíssimo. Resumiu as suas observações:
-Vocês fazem-me pena.-disse, na sua voz de rapariguita, onde vibravam sons roucos.
-O quê? An? Porquê? - perguntou ele.
- Vocês todos. Não prestam para nada. - concluiu Pittyevitte, englobando todos os homens nesta definitiva apreciação.
- Obrigado, muito obrigado. - murmurou ele, enquanto o carro, como doido, passava à frente da pequena estação de Lohwinckel-Dusswald.
- Havia ali um aviso ... - preveniu Fobianke.
Mas Karbon encolheu os ombros: já iam longe. A estrada tornava-se cada vez pior. Fobianke tornou a abrir o mapa e percorreu-o, acendendo a lâmpada de algibeira,
visto que uma espessa escuridão tombara sobre eles. Em seguida, começou a chover. As gotas riscavam os faróis. Franz Albert desapareceu logo por baixo do sobretudo
e Leore cobriu se também. Estava farta daquilo. Murmurou:
- Que horas são? Ainda vais andar muito tempo? Quem me dera estar em Berlim!
Estas exclamações, proferidas em ar de censura, vieram da gola de cabrito, erguida -mas mal se ouviram.
A estrada era inclinada e estavam numa subida tão grande que Karbon teve de a fazer em segunda e, por fim, praguejando baixo, em primeira. Não se tratava agora de
ir depressa.
-Deseja que suba a capota?-perguntou Fobianke, cada vez mais receoso,
- Não faltava mais nada. Isto nunca mais acaba. Eu estou abrigada.- declarou Leore.
Peter deteve-se. Quando chovia, procedia-se a determinados ritos. Fobianke vinha guiar. Pitt instalava-se no fundo do carro, a mulher deitava-se junto dele e estendia-se
a grande manta impermeável sobre o idílio,
- Olha, Pittyevitte, repara nas vinhas, -disse Karbon, que descera para trocar o lugar com Fobianke.
Também ela se descobriu. Espreguiçou-se mas não olhou. As urtigas, ao longo do caminho ridiculamente estreito, exalavam, sob a chuva, um aroma forte e amargo. Em
frente do carro, alongavam-se os raios fortes da luz crua que cegavam e mergulhavam o resto na escuridão. Leore enraiveceu-se contra aquela malvada noite e sentiu
se terrivelmente nostálgica de Berlim. E evocava: "Schwanecke... Eden-bar... o clube Vermelho e Branco... a piscina... a multidão perto do Jardim Zoológico ..."
- Queria dormir... - queixou-se, em tom de lamento, a Karbon, que desenferrujava as pernas andando dum lado para outro, tendo acabado por sentir uma certa rigidez
nas articulações dos joelhos.
- Anda, anãozinho.-disse logo. Havia ternura nestas palavras. Introduziu a mão na manga da Leore.- O rapaz vai para a frente, tem o para-brisas para o abrigar
- e ficou à espera que o lutador de soco compreendesse e se mexesse.
De repente, Leore soltou o braço e repeliu a mão de Peter.
- Não, fica tu à frente. Quero deitar-me ao lado de Franz. - declarou, resoluta.
O homem apertou os lábios. Pensou: "Não faças isso. Mas ficou mudo. Sentou-se ao lado de Fobianke que, imediatamente, pôs o carro em marcha, deixando os lá de trás
às voltas com a manta.
Não poderíamos dizer, assim sem mais nem menos, se a Leore Lania estava apaixonada pelo Franz; ela não experimentava sentimentos tão singelos, tudo se encontrava
sobreposto em camadas sucessivas, cintilando em inúmeras cores. Um único facto era certo: uma espécie de fome nervosa que dela se apoderara havia já algumas semanas
e que hoje a possuíra duma forma quási intolerável uma avidez de se aproximar de Franz, de lhe sentir o calor e o tórax a altear-se e baixar sob a disciplinada respiração,
o desejo de absorver qualquer coisa da bestialidade intacta daquele corpo e - se fosse possível - de
despertar o rosto, aquele rosto estranho, a fisionomia de combate. Deu um profundo suspiro quando, sob a manta, encostou a cara ao rugoso casaco do homem, firara
a boina e os óculos; agora estava preparada para repousar profundamente. Profundamente sim, embora tivesse a impressão de que na sua cabeleira negra e lisa iam brilhar
faíscas.
No que diz respeito ao campeão dos pesos médios, era decerto esta a situação mais delicada em que se vira desde que começara a sua carreira de box. Angustiado, pensava
no treinador, o gigantesco russo Simotzky, nas suas palavras, recomendações e pedidos; pensava em todo o mal que as mulheres fazem aos" boxers, nas grandes vedetas
que, dum momento para outro, tinham "amolecido" e que apenas podiam "encaixar", devido à existência desbragada que haviam levado. Contavam-se histórias tétricas,
a este respeito, nos centros de treino. Experimentava um medo horrível ao pensar que aquela mulherzita que ali estava em baixo ia mexer-se, arriscando-o a cometer
sabe-se lá que asneiras. Mas a Pittyevitte não se movia.
Estava sossegadamente deitada sob a manta a ouvir as gotas tombando cada vez com mais força. Na silenciosa imobilidade, espiava o que se passava no interior do rapaz.
Dir-se-ia que as suas rótulas vibravam levemente mas devia ser engano. Quando retinha a respiração, podia ouvir-lhe o coração batendo forte e regularmente. Não se
cansava de estar ali estendida, isso é que não!...
Entretanto, Fobianke atravessou prudentemente o estreito caminho entre as vinhas, depois seguiu por uma recta durante um quarto de minuto. A seguir, tudo acabou
em frente dum muro, com três metros de altura, que não tinha porta e cujo rebordo estava plantado com bocados de vidro.
Encontravam-se em face duma demonstrativa delimitação entre as propriedades do sr. Profet e as do sr- de Raitzold - os dois inimigos mortais. Mas como o chaujfeur
de Berlim ignorava esta importante circunstância da vida social de Lohwinckel, ficou bastante
perplexo perante o insensato fim de tão lamentável caminho. Só duma coisa havia a certeza: tinham-se enganado. O sr. Karbon concordou, de mau humor. Isto estava
de acordo com o resto da situação. Teve a impressão de ser ridículo ali à frente junto do motorista, enquanto os outros lá atrás se encontravam comodamente instalados.
Nem sequer podia pegar outra vez no volante porque o cedera a Fobianke e não queria dar contra-ordem. Estava, portanto, condenado a ficar ali sentado com as mãos
nas algibeiras. Os seus sentimentos mais vis obrigaram-no a prestar o ouvido ao silêncio que reinava no fundo do carro.
Quanto a Fobianke, não sentia o menor prazer em guiar. Lá ia engulindo algumas exclamações mais ou menos correctas. Dar a volta, nem pensar nisso, naquele caminho
estreito, cheio de fossos dum lado e de outro, com as urtigas e amoreiras muito compactas e pouco seguras. Era preciso descer o caminho íngreme em marcha atrás,
entre as vinhas. Até o próprio carro parecia contrariado, vibrando secretamente. Fobianke sentia-o no cotovelo. Prudentemente, lá foi até à estação. De vez em quando,
um solavanco deitava Leore para cima do rapaz que, de músculos crispados, estava imóvel, muito encolhido no seu canto. Na defensiva, esperava os acontecimentos.
Karbon tinha vontade de se voltar para ver o que se passava lá atrás mas não o fazia. Era uma coisa interdita mostrar ciúme. No entanto, dedicava-se a complicadas
reflexões afim de encontrar um meio de ridicularizar Pittyevitte e de se vingar duma forma atroz e contundente.
Por fim, atingiram o fundo do vale, a estação e o poste indicador. Fobianke tomou à esquerda entrando na estrada que levava a Lohwinckel e que só ali atravessava
a última parte do bosque de Dusswald.
-Nunca mais paramos ?-perguntou Franz Albert do fundo do carro.
O seu desespero dava a impressão de ser absolutamente sincero. Karbon riu-se. Conhecia o rapaz por se ter treinado com ele e estimava-o. Retomando confiança, pensou:
"O Franz está aflito". A chuva
diminuíra, cessara quási e apenas das árvores agitadas caíam algumas gotas.
Mais gás, Fobianke! - reclamou Karbon.
O motorista obedeceu, marcando o taquímetro oitenta, oitenta e cinco, mas o carro dir-se-ia que andava a nadar.
- Parece que caminhamos por cima de sabão preto, -rosnou Fobianke que olhava, em ar de censura, para a substância húmida do caminho onde serpenteava a marca das
rodas.
Leore mostrou a cabeça e perguntou:
- Estamos a brincar aos carroceis ?
Karbon não respondeu mas riu-se para dentro. A marcha veloz trazia-lhe tão vigorosamente o ar de encontro ao rosto que dir-se ia um tecido molhado e gelado. Karbon
lembrou-se duma circunstância da sua vida que se pôs a contar, sem mesmo ver se o ouviam.
- Isto faz-me lembrar uma história que me aconteceu em Durban, na África do Sul, no Natal. Julga-se que lá está sempre calor, naquela linda praia onde tudo é sport
e clubes e diversões. Pois bem, no ano passado, em Setembro, meti-me num táxi, um carro esquisito mais alto atrás do que à frente e que não era guiado por um preto
mas que...
De súbito, aconteceu qualquer coisa. com imensa força, o carro deitou-se para o lado. O segundo seguinte foi interminável.
- Maldição! - rugiu Fobianke.
Karbon ainda estendeu a mão para o volante afim de impedir qualquer coisa. Viu o capot gigantesco, todo preto, ir de encontro a uma árvore, tão violentamente iluminada
que até parecia branca. Teve a impressão de que aquilo durou um tempo infinito. Também Fobianke distinguiu nitidamente a casca que era a dum carvalho humedecido
pela chuva. O grito lá de trás e o choque foram simultâneos.
Depois tudo ficou silencioso. Apenas a chuva fazia ruído, filtrada pelas árvores.
A primeira pessoa que descobriu o desastre foi um rapaz pertencente ao Domínio que vinha à noite à estação, buscar as garrafas vazias, do leite. Teve um grande susto
mas portou-se com sensatez. Espicaçou o cavalo e daí a doze minutos estava no Domínio, pondo logo o sr. de Raitzold ao corrente do que vira. Não eram muito claras
as explicações que dava; na sua aflição, não ousara observar detalhadamente.
- Terá morrido alguém ? - perguntou o patrão, impaciente.
- com certeza, porque debaixo do carro saíam pernas metidas em calças.
- Então os homens estavam mortos ?
- com certeza, -gemeu o rapaz, convencido.-Com
toda a certeza.
- Mortos ? E como o constataste ?
- Estava tudo tão quieto e calado! Esta impressão amargurava-o.
- Estava tudo quieto... não se ouvia senão a
chuva...
- Tragam a carruagem, imediatamente. - ordenou o
sr. de Raitzold.
Depois dirigiu se para o salão da irmã. Não havia senão dois cavalos, na propriedade, e uma só carruagem estava transitável. Não precisava, por isso, de dar ordens
mais detalhadas.
A irmã, de pé em frente da escrevaninha alta, ao lado do armário das espingardas, estava a fazer contas. Era uma senhora de quarenta e dois anos mas que parecia
mais idosa, com um grande nariz e uma voz grave que dava certa impressão de grandeza e entusiasmo. Chamava-se Jacinta e, sob o vestido grosso, usava aquelas botas
altas que mereciam os reparos de Lohwinckel. Sobre a delicada escrevaninha de madeira embutida estavam colocados os pesados livros verdes da contabilidade
da propriedade. Tinham desaparafusado duas lâmpadas, das três que ornavam o lustre. A sala era grande, incrustara-se nela um antigo cheiro a tabaco e alguns lindos
móveis antigos encontravam-se ali entre as paredes estragadas e os objectos de uso diário, como testemunhos de decadência.
O sr. de Raitzold contou em breves palavras o que ocorria, enquanto trocava o roupão pelo casaco de caça. com gesto brusco, a irmã empurrou as folhas de contribuições,
inquietantes e emaranhadas, que estava a decifrar, e dirigiu-se para o telefone.
- O doutor foi a casa do Profet. vou chamá-lo. anunciou ela.
Imediatamente, os cantos das narinas e as fontes da calva testa do irmão estremeceram.
- Falar para casa do Profet ? Não faças isso. Da minha casa ninguém fala para essa gente!
A irmã olhou-o com ar pensativo e descontente. A vida corria cada vez pior na propriedade, por isso não era de admirar aquele grau de intolerância. No entanto, ousou
ainda dizer:
-Julguei que... havendo assim gente em perigo de vida...
- Ora, ora, ora ! Gente em perigo de vida ! Andam como doidos e depois acontecem-lhes destas. Pois então!... Já mandei vir a carruagem. Vê se falas com a mulher
do médico e ela o chamará. Eu trato do resto.
Em gesto maquinal, abriu o armário e tirou um revólver com que se armou. Desapareceu. ! Ficando só, a irmã colocou no cinzeiro o charuto de que ainda exalou alguns
fios de fumo azul e pôs-se a Indar dum lado para outro, em grandes passadas. Os pêsos do velho relógio tilintavam baixinho porque estava mal equilibrado, razão que
o impedia de regular bem. farou em frente dele e fitou-o com aquele mesmo olhar ausente e sonhador que o irmão tivera havia momentos. Tudo estava de acordo: que
o relógio não tivesse sido consertado, os impostos não pudessem pagar-se, se houvesse poucos cavalos para fazer o trabalho do campo e até as próprias vinhas se encontrassem
ameaçadas,
-tudo estava de acordo e até mesmo que o irmão ficasse cheio de raiva ao ouvir o nome de Profet. Tudo caía naquele salão tão familiar com um peso indefinível de
infelicidade e catástrofe.
Foi só um quarto de hora mais tarde que a sr.a de Raitzold se lembrou outra vez do desastre da estrada de Dusswald que esquecera no monótono turbilhão dos seus aborrecimentos.
Depois de ter dado alguns passos em redor da mesa e de ter hesitado alguns instantes, à janela, olhando para o pátio obscurecido pela chuva que, com as poças negras
apresentava deplorável aspecto, resolveu-se a telefonar para casa do Profet apesar da proibição formal do irmão. O funcionário da central telefónica, um certo sr.
Munk que estava encarregado de estabelecer as comunicações, ficou estupefacto por ter que ligar a propriedade Raitzold ao número 23.
Dez minutos antes, exalando o fumo da humidade e pleno de cansaço, aterrara lá o dr. Persenthein, raivosamente decidido a penetrar, desta vez, no mistério da doença
do rapaz mais novo da família Profet. Ainda estava nervoso, devido à penosa explicação que tivera com o sr. de Raitzold sobre o defunto Jacó Wirz e foi no auge do
mau humor que se encontrou com a sr.a Profet, compungida e ávida de palavras tranquilizadoras. Era uma senhora gorda e míope, de olhos inquietos. O seu rosto bondoso
apresentava uma expressão ansiosa - expressão que provinha unicamente dos esforços que fazia para encher com qualquer coisa a sua vida vazia. Não tinha preocupações
e gozava de esplêndida saúde, o que lhe parecia pouco distinto e até mesmo chocante. Não possuía talento nem paixão, não se podia agarrar a nenhuma aventura, tanto
exterior como interna. Tocava piano, devorava imensos romances, apoderava-se de todos os homens que encontrava nos livros. Viajava por terra e por mar; embora pequena
burguesa duma cidade de província, conhecia três continentes e quatro línguas, mas de toda a parte voltava a Lohwinckel com um vácuo interior que era mais vasto
do que o deserto de Gobi. Gostava de falar em voz baixa, lançava olhares significativos, envolvia-se na sua melancolia. Sentia-se
profundamente invejosa das pessoas infelizes, fazendo alusões a grandes provas de renúncia que efectuara no passado e ao seu desespero por estar casada com um homem
como Profet, o qual não se importava nada com tal atitude. Dava pancadinhas nas costas da mulher e considerava-a superior a si. Quanto a ele, era um homem simples
embora de fortuna, que vivia em boa harmonia com o mundo inteiro - excepto com o insuportável sr. de Ratzold, possesso de todos os demónios do orgulho - e que tentava
até dar-se bem com o dr. Persenthein, embora o não pudesse suportar.
Ninguém poderia dizer quando começara a grande hostilidade entre Profet e Raitzold, tão numerosas eram as versões que a tal respeito circulavam. Mas saltava aos
olhos que o médico já pregara algumas partidas ao importante e excelente sr. Profet: fizera-lhe cair em cima o inspector do trabalho, impusera-lhe uma dispendiosa
instalação de aspiradores de pó, diagnosticara como "intoxicação saturnina" todos os casos que até aí haviam sido considerados como gastrite e dava aos operários
períodos de convalescença duma duração realmente exagerada. Descobrira que a pressão arterial do sr. Profet não se portava bem e aconselhara-o a partir lenha e beber
menos vinho. Declarara que as alternativas de dores e acessos de melancolia da sr.a Profet eram puramente imaginários e provinham da sua idade crítica. E agora,
nem sequer chegava a saber porque motivo o rapazito, logo de manhã, aparecia com 40 de febre!
Quando o médico começou, naquela noite, a sua caminhada sobre ovos -era assim que chamava à visita a casa dos Profet- encontrou o doente na cama e ocupado a juntar
as peças dum modelo de avião. Era um bonito rapaz de doze anos, de olhos claros, nariz pequeno e arrebitado, cheio de sardas, ao qual um leve defeito de pronúncia
dava aspecto ainda mais pueril. Olhava para
o médico, de frente, com esperança e audácia. Persenthein conhecia este olhar. Era assim que os estudantes fitavam o professor quando meditavam alguma partida.
A mãe vestira uma bata branca, de enfermeira, e
andava nas pontas dos pés. Exausto, o médico ainda mais se enervava com aquelas maneiras.
- Temperatura das cinco horas ? -perguntou.
- Subiu ainda a 39,ó - cochichou a sr.a Profet.
- Hum... hum... - resmungou o médico que tinha na mão o pulso são e perfeitamente normal do pequeno.
- Bem. Deixa ver. - E começou a auscultá-lo. - O teu irmão? Foi para o futebol, an ? Julguei que o reitor tinha proibido... O quê? bom. Respira... Outra vez... Não
fales. Dói te aqui? Sim? E aqui? Não. Vê bem : não te dói aqui ? Ah, realmente...
O doutor ficou sentado em frente do corpo magro e moreno do rapaz despido, a reflectir. O ponto azul, provocado por um pontapé no futebol, começava já a mudar de
cor, estava amarelo-pálido - não significava coisa alguma. Era evidente que o rapaz estava bom. Mas como demónio provocava ele a febre ?
- vou pôr-te o termómetro. O miúdo enguliu em seco.
- Dói te, quando engoles?
- Não sei...
A mãe deu um grande suspiro. De chinelos, o sr. Profet entrou no quarto vizinho e perguntou em voz alta:
- Então, doutor, fez finalmente o seu diagnóstico ? Persenthein brincou uns instantes com o avião e
não respondeu. A sr.a Profet colocou um dedo nos lábios e disse em voz misteriosa como se se tratasse de qualquer conspiração trágica.
- Está com o termómetro.
O marido foi-se embora, arrastando os chinelos e dizendo:
- Sou melhor profeta que o senhor.
Tinha a felicidade de possuir um nome que lhe permitia repetir esta gracinha várias vezes ao dia. Era sempre grande o sucesso que lhe alcançava nas sessões do Conselho
Municipal ou nas da Caixa Económica.
Quando viu que a temperatura era 36, 6, o médico declarou:
- bom. Vejo que amanhã já podemos voltará aula.
O Paulozinho ficou logo com os olhos cheios de lágrimas. Não queria ir para a aula. Por isso se sacrificara a estar metido na cama e a comer sémola com leite três
vezes por dia. Estava ameaçado de apanhar urna sova porque se portara mal, denunciando os camaradas. Até o irmão mais velho o abandonara e também o Kolke, o seu
protector, que frequentava uma classe mais adiantada.
- Mas sinto-me tão doente! - murmurou, não precisando de mentir muito.
-Ah, rapaz, rapaz! - começou o doutor. Estava furioso mas fazia um esforço para falar no tom amigável que é habitual ao médico da casa.
- A gente vai ver o que significa essa febre tão esquisita..
Nessa altura, entrou o sr. Profet e chamou o ao telefone.
Mal o médico saiu, o rapaz, vendo-se só, pegou no termómetro e meteu o na chávena do chá quente. O mercúrio subiu por ali acima chegando a 43? o que pareceu demasiado
ao pseudo-enfermo. Apressou-se a agitá-lo, mas o mercúrio não quis descer. Por fim, tornou a pô-lo debaixo do braço e com cara dorida, esperou pelo que viria a acontecer.
Mas, desta vez, ninguém se preocupou mais com a extraordinária temperatura do Paulozinho. O dr. Persenthein, posto ao facto do que se passava pela irmã do sr. de
Raitzold, voltou ao quarto, pegou na pasta, parou, de rosto concentrado, tentando tomar as disposições necessárias. Embora tivesse feito a guerra, perdeu a cabeça
durante cinco minutos, pensando que um número desconhecido de agonizantes estava estendido não se sabia há quanto tempo, sob um carro virado. O sr. Profet que, dentro
dos seus limites, era um grande homem, voltou a si mais depressa. Já estava enfiando casaco de couro, chamando em altos gritos o chauffeiir Muller e ordenando que
tirassem o auto da garagem, e ainda Persenthein pensava em tudo que seria preciso levar para o local do desastre. Muito pálida, a Sr Profet, sentara-se a um canto
do quarto, cheia de
comoção e de reconhecimento ao pensar que, finalmente, acontecia alguma coisa extraordinária em Lohwinckel. Descobriu, de súbito, que o marido era um homem e que
o doutor tinha na testa um sulco fundo que nunca vira.
Em Lohwinckel, bastam dez minutos para que uma novidade seja conhecida. Os primeiros ciclistas já iam a caminho do local do desastre quando o motorista Muller pôs
o motor a aquecer em face da casa. Entretanto, o médico telefonou para a esposa:
- Uma seringa para injecções anti-tetânicas... eucodal. - ordenava ele, ouvindo de cada vez a resposta dela: "Já está".
- Estou disposta a receber os feridos em minha casa. - murmurou a sr.a Profet, em pé, atrás do médico, considerando-se uma heroína de romance.
- Cardiazol. Não há cardiazol em casa! - gritava o médico, ao telefone.
- Há, sim. - respondeu Elisabete - Fui ao Behrendt e comprei.
- Ah, muito bem.
- Queres que te acompanhe? - perguntou a voz do outro lado.
- Não, mas prepara tudo.
A correr, desceu atrás do sr. Profet. Nem .ele mesmo sabia o que a mulher devia preparar, sentia apenas que precisava dela e que era necessário que estivesse lá
a esperá-lo - o que, de resto, acontecia sempre.
O silêncio que assustara o criado do Domínio acolheu também o médico no local do desastre e o murmúrio da chuva na floresta de faias tornava-o ainda mais profundo.
Os faróis projectavam uma claridade angulosa na noite velada de sombra e o que mostravam tinha o seguinte aspecto:
O automóvel capotara e estava colocado metade na estrada metade na valeta. Além do vidro da frente que estava partido, não se viam mais estragos. Num tronco de árvore
aparecia, sentado, um rapaz com o rosto sujo
- era Franz Albert-que agitava muito os braços como se se defendesse de cordas invisíveis, e que gemia. O
sr_ de Raitzold, que chegara havia dez minutos, tentava socorrê-lo. A sua carruagem parara mais longe e o criado da propriedade tinha mão nos cavalos nervosos. Peter
Karbon estava sentado na erva, com as costas encostadas a uma árvore e a cabeça nos joelhos. Leore Lania encontrava-se estendida, de olhos cerrados; o sangue tornava-lhe
o rosto irreconhecível, e, de vez em quando, corria duma ferida por cima da boca. Também a boina que segurava na mão crispada estava encharcada de sangue.
-Ainda há alguém debaixo do carro ?-perguntou o médico.
Raitzold fez um sinal negativo. Ele e o sr. Profet haviam-se cumprimentado com a cortesia de dois homens que se vão bater em duelo.
-Eu não suporto isto... não posso!-gemia Franz Albert.
O médico ergueu os olhos num gesto rápido mas atento, depois abandonou-o provisoriamente ao sr. de Raitzold. Foi só nesse momento que viu o chauffeur Fobianke, estendido
no fosso, a cerca de oito metros do carro voltado, com uma perna dobrada junto ao corpo e o casaco aberto. Inclinou-se para ele e iluminou com a sua lâmpada de algibeira
um rosto absolutamente branco, mais branco do que uma folha de papel. Perguntou:
-Tem dores?
Fobianke respondeu delicadamente, em voz baixa :
- Não, obrigado. Isto agora vai melhor. -Abriu o casaco. Foi porque o incomodava? -
perguntou Persenthein, apalpando-lhe o tronco.
- Não?-respondeu o homem, mais interrogativo do que afirmativo.
"Hemorragia interna, hepatocele, provavelmente..." pensou o doutor. "Nada a fazer. A não ser que tentasse já uma transfusão de sangue. sim, mas falta-me o aparelho.
Trinta e dois marcos!" E deu ao chauffeur exangue uma injecção de cardiazol.
- Daqui a pouco sentir-se-á melhor. Vamos estendê-lo no carro. Ande, Muller, devagarinho...
No carro do Profet, o homem agradeceu, dizendo:
- Obrigado, estou melhor.
Já não respirava senáo muito superficialmente, com o diafragma contraído.
- Que fizeste? Foste parar à valeta, an? - perguntou Muller no dialecto da região. Fobianke olhou-o com surpresa e respondeu fracamente: - Não.
O sr. Profet já censurara o médico por ele ter começado pelo chauffeur e aproximara-se de Peter Karbon. -Está ferido? -perguntou estupidamente.
- Dizem que sim. - respondeu o outro, entre os dentes.
Tinha dores atrozes, estando impossibilitado de erguer o braço direito. Além disso, tudo andava à roda, parecia ir perder os sentidos.
- O carro é seu ? - perguntou ainda o Profet, mas não obteve resposta.
Karbon inclinara-se para o rosto de Leore, sem conseguir fazer parar o sangue que dele jorrava.
- É a senhora sua esposa? Eu vou já dizer ao médico ... É preciso que esta senhora... Não compreendo porque motivo foi ver o chauffeur... Depois hão-de vir comigo
no carro. - E apresentou-se: - Profet. Sou o proprietário da fábrica de Lohwinckel.
- Karbon. - murmurou o ferido, com esforço. O outro ouviu mas não ligou logo ao nome a celebridade que tinha. Voltou para o carro onde, atrás, haviam instalado Fobianke.
O médico dera-lhe uma injecção anti-tetânica. Ele estava calmamente sentado a olhar para a frente. Tudo correria às mil maravilhas, se não fossem aqueles farrapos
negros a passarem-lhe constantemente na frente dos olhos. Também lhe faltava o ar. Profet passou ao lado do sr. de Raitzold como se ele estivesse invisível e tocou
no ombro do médico, dizendo:
- Deve ocupar-se primeiro da senhora.
Um só olhar de Persenthein fez com que imediatamente se retirasse.
De súbito, Franz Albert encarrapitado na árvore, foi tomado por uma espécie de crise no momento em que o médico se dirigia para ele com a seringa. Os
seus gemidos haviam-se transformado em prolongados soluços e por fim desatou em gritos estridentes, como uma criancinha.
- Já não suporto mais isto! Não suporto mais isto! -- gritava sem parar.
Persenthein apalpou e estudou o jovem boxer que dava imenso trabalho ao sr. de Raitzold, perplexo. Era apenas um choque nervoso.
- Vamos levá-lo, os dois. - disse.
Mas Franz continuava a chorar com energia. Tinha um galo por cima do olho esquerdo, nada mais.
- Cale-se! - ordenou severamente o médico. - Vá sentar-se no carro, ande.
Embora continuasse a chorar e a lamentar-se, levantou-se e, sozinho, dirigiu-se para o carro de Profet.
Persenthein ocupou-se então de Karbon e da actriz, junto da qual se ajoelhou para ver melhor. Encheu pela terceira vez a agulha para a injecção anti-tetãnica. Karbon
disse em voz muito alta devido ao zumbido que tinha nos ouvidos:
- Está desmaiada mas respira.
De repente, Leore disse qualquer palavra que lhe saiu da boca ferida, difícil e indistintamente. Apesar de ter os olhos fechados, estava lúcida e atenta. O médico,
habituado a interpretar a linguagem intermitente dos grandes feridos e dos agonizantes, compreendeu :
- Não estou desmaiada! - sibilava ela sem pronunciar as consoantes labiais, mas em tom de teimosa negativa.
Estremeceu sob a picadela da agulha mas não se queixou. Quando sentiu perto de si o calor vivo e caritativo da cabeça do médico, confiou-lhe ao ouvido, num súbito
acesso de fraqueza:
- Estou a desfazer-me em sangue!
Era destes seres delicados e resistentes a quem toda a espécie de sofrimento parece humilhante, devendo ser escondido dos outros, dos que têm saúde. Estar deitada
numa estrada a desfazer-se em sangue representava para ela uma coisa ignominiosa. Já estava a tomar uma atitude hirta para guardar as aparências.
- Que tolice! - disse o médico. - Tem apenas um pequeno golpe que nós logo vamos coser. Pronto, acabou o sangue, viu? -e aplicou-lhe um pedaço de algodão para o
estancar.
Sentia-se seguro de si enquanto manejava os doentes, dominava tudo com o olhar, repartia as tarefas e agia. Mas faltava-lhe Elisabete, faltava-lhe de uma forma indescritível.
Quando era preciso, sabia ser uma esplêndida enfermeira. Praguejava interiormente por a não ter trazido e, ao mesmo tempo, sentia um reconforto por a saber em casa
preparando tudo para receber aquele carregamento de pessoas inválidas que lhe ia levar.
- Obrigada. - disse Leore Lania quando a boca lhe começou a arder sob a tintura de iodo; foi uma delicadeza que lhe custou muito a formular.
Ao ver que a rapariga se portava tão bem, Persenthein ficou irritado contra os ruidosos soluços do boxer. Dirigiu-se rapidamente para o carro, encheu a seringa e
administrou-lhe uma dose de eucodal no braço. ordenou :
- Silêncio!
O cbauffeur Muller acendera a luz interna do carro. Persenthein examinou rapidamente o rosto exangue do calmo Fobianke.
- Então como vai isso? - perguntou, em voz que queria tornar alegre.
- Bem, obrigado. Mas não feche a porta... ar...
- respondeu o homem com estranha violência. Logo em seguida mergulhou num espantado mutismo. Abria e fechava o casaco com os dedos cada vez mais entorpecidos e via
passar os tais farrapos negros que lhe metiam medo.
Dez minutos, apenas, tinham decorrido. De fora, parecia que tudo se desenrolava com rapidez, calma e segurança mas, na realidade, havia uma espécie de excitação
semelhante à embriaguez. Tudo estava molhado sob o ruído contínuo da chuva, fazia frio e sob a luz dos faróis pessoas e coisas escorriam água. Persenthein enchia
as seringas, lavava-as no álcool, dando injecções com um nítido sentimento de claridade nas ideias..
como se esquecidas experiências tivessem afluído por inúmeros canais, de tal maneira tudo se mostrava claro, sem dúvidas nem equívocos. Encontrava-se absolutamente
no seu elemento e talvez se parecesse outra vez com o São Jorge, embora ali não estivesse ninguém para dar por isso.
As duas outras pessoas que tinham saúde, compor tavam-se duma forma confusa e isto porque, na sua hostilidade, se preocupavam em delimitar nitidamente os seus respectivos
domínios de actividade. Depois de Franz ter adormecido, o sr. de Raitzold tratou do automóvel que estava no fosso, incitando o seu cocheiro e o rapaz a virarem-no,
o que não conseguiram. com as pernas abertas, na sua atitude de antigo oficial, dava ordens breves. Foi só quando o motorista Muller se juntou aos dois que houve
esperança de se conseguir alguma coisa.
Entretanto, o sr. Profet aproximara-se outra vez de Karbon. Era um homem prestável e bastante enérgico mas não podia ver sangue. Logo no primeiro instante se sentira
mal. Não ajudava ninguém; preferia nem ver. Tinha a impressão de, ao mesmo tempo, desempenhar um papel muito importante e assaz fictício. Espantava-se com a calma
segurança aparentada pelo médico nos cuidados distribuídos a todos, mas não podia expulsar a ideia de que talvez aquilo tudo não fosse o que deveria fazer-se.
- Ande, ajude-me a levar a mulher para a carruagem de Raitzold. - ordenou Persenthein - Doutra forma, não poderei auscultar convenientemente o homem.
Tudo naquela frase irritava o industrial: que chamasse mulher àquela senhora e homem ao cavalheiro e sobretudo que a senhora fosse para a carruagem do Raitzold.
- E porque não há-de ela ir para o meu carro ?- perguntou, recalcitrante.
- Porque já lá está o chauffeur.
E guardou para ele o argumento decisivo: Se o homem morresse pelo caminho, era melhor que a mulher lá não estivesse .
Pegou em Leore e conduziu o leve corpo até ao velho caleche do fidalgo gentil homem que já lá estava e que declarou em voz alta:
- vou levar esta senhora para minha casa.
Esta chicotada bateu em cheio no Profet, que ficara para trás, resmungando:
- Vá primeiro pela minha, preciso de lhe fazer uns pontos naturais. Vá já. O carro apanhá-lo-á.
O sr. de Raitzold instalou-se no banco de trás, o cocheiro tirou as mantas aos cavalos e levantou se um bafo húmido.
- Desejo, minha senhora, que esteja à sua vontade. - disse Raitzold, ressuscitando os desaparecidos gestos de homem de sociedade que se haviam perdido nos seus campos.
A actriz, que sentia a queimadura da carne cortada, encheu-se de coragem para fazer um gesto gentil:
- Até já. - e agitou e mão como uma estrela que era. Teria mesmo sorrido, se o rosto cortado e cheio de emplastros não lhe impedisse essa manifestação de cortesia.
A carruagem partiu aos solavancos. Aquilo doia-lhe horrivelmente.
"Um golpe em pleno rosto. Cosido por um ignorado médico de aldeia!" -pensava ela.- "Se ele me estraga a cara, se qualquer coisa importante foi cortada músculo ou
nervo - se fico feia, mato-me!" Este pensamento deu-lhe uma angústia terrível, muda e recalcada
- como invocam o suicídio aqueles que o fazem a sério.
Os primeiros ciclistas de Obanger, Lohwinckel e Dusswald tinham chegado; formavam um confuso círculo em redor do sitio do desastre, segredando e olhando. Novas luzes
avançavam sem cessar, na estrada, e cruzavam-se com a caleche que caminhava com prudência, sem deixar de ser brutalmente sacudida pela calçada rude.
- Até que finalmente me vou ocupar de si. - disse Persenthein a Karbon. Logo no primeiro golpe de vista reconhecera que o homem era sofredor e sólido e que podia
esperar. Realmente, Karbon conseguira levantar-se; tinha as pernas afastadas e cambaleava um pouco.
- Tenho tempo. - disse ele. - Trate dos outros. Algum caso desesperado ?
-Hum... E você? Deitou sangue pelo nariz? -Um pouco...-confessou Peter Karbon, como que desculpando-se.
- Ponha-se nas pontas dos pés.
Obedeceu, caiu para a frente e foi amparado pelo médico.
-Ah!-e aproximou a seringa.
- Nada de morfina, peço-lhe! Embrutecido já eu estou.
- Não é morfina. É soro. Profilaxia anti-tetânica resmungou Persenthein enquanto lhe instilava a dose no braço.
Trouxera dos lazaretos um medo exagerado do espasmo tetânico.
- Então estou ferido ? -perguntou Karbon, baixando o olhar ao longo do corpo, o que lhe provocou outra vez as vertigens. - Parece-me que o braço está partido, mas
haverá mais alguma coisa ?
O médico sentou-o na relva.
- O rosto tem umas arranhaduras e a mão também. Mas não encontrou fractura nenhuma. Karbon
assobiava enquanto as mãos do doutor procuravam e faziam doer. Tentava pensar noutra coisa, noutras pessoas. E perguntou:
-O que aconteceu à Lania?
Persenthein tranqúilizou-o. Ele tinha apenas uma escoriação na articulação do ombro. E depois deu atenção à pergunta:
- A quem?
- À Lania, a rapariga, a actriz. - explicou Karbon. Só depois pensou que Lania não teria, naquela terra afastada do mundo, o mesmo sentido que lá.
- Ah! É actriz aquela senhora? Pois tem um golpe na cara, no lábio superior. Logo vou coser-lho. E mais nada. Quanto a si, pouco temos a fazer. Tornamos a pôr-lhe
o ombro no seu lugar. Agora o seu chauffeur, coitado, é que...
O doutor encaixou o seu ombro no ombro
intacto de Peter Karbon. Eram ambos da mesma altura; Persenthein mais largo e o outro mais esguio e elegante. Mas agora cambaleava, o que o enraivecia.
O médico escorria chuva por todos os lados - e suor também. O último quarto de hora fora realmente muito sobrecarregado. O círculo obscuro dos habitantes de Lohwinckel
apertou-se mais quando Persenthein conduziu o seu último doente para o carro. Os que estavam na segunda fila punham-se nos bicos dos pés: que demónio! não se podia
gozar todos os dias um espectáculo daqueles! Muller que formara uma pequena equipa com operários da fábrica, para virar o carro, acorreu. O sr. Profet, farto de
esperar debaixo de água, danado por a senhora ter ido na carruagem de Raitzold, já se sentara no carro. Respirava-se ali mal. O boxer, no assento da frente, tombara
para diante, adormecido pelo eucodal. Fobianke, mudo e com os olhos muito abertos, estava sentado atrás e aspirava o ar com leve tremura dos lábios que, de tão exangues
que estavam, pareciam brancos sob o bigode preto.
O médico dispôs os lugares:
- O sr. Profet vai à frente com o Muller.
Em face dos habitantes de Lohwinckel, o ricaço obedeceu. Para disfarçar, deu várias ordens ao motorista, e indicou alguns operários para irem buscar um carro afim
de rebocarem o auto avariado. O círculo dos ciclistas abriu-se em silêncio quando Muller, com todas as precauções, pôs o carro em marcha.
- Já lá estão dentro dois mortos, - disse um homem de capa de borracha.
- E o mesmo acontecerá aos outros. - declarou o rapaz do talho, Seyfried.
Persenthein instalara Karbon junto do rapaz adormecido e sentara-se ao pé de Fobianke, a quem vigiava o pulso, cada vez mais fraco.
- Então não se sente bem, Fobianke ? - perguntou Karbon sem se voltar, porque não o poderia fazer sem ter vertigens.
Ouviu o homem responder baixinho:
- Estou... estou bem, se... senhor Karbon.
Depois pensou em Lania. Tem graça: pensava nela como numa mulher estranha. Não era a Pittyevitte mas uma a mulher que se via nos cartazes e cuja imagem, singularmente
aumentada e simplificada, cintilava à noite por cima das entradas dos cinemas, em Berlim.
- Cortada ? - perguntou. - Mas vale milhões !
- O quê ?
- A cara dela. Milhões. E não há-de ser fácil de consertar.
Persenthein pressentiu uma febril desconfiança nesta frase. E como um pano preto, sentiu abater-se sobre ele imensa fadiga. Momentos antes tivera a certeza triunfante
da clareza do seu espírito e do rigoroso funcionamento das suas faculdades; agora, sentia medo. Quem sabe se era falso tudo o que fizera ?! Não deveria ter logo
mandado o homem, a toda a pressa, para Schaffenburg? Verdade seja que se não enganara diagnosticando um rasgão no fígado. Schroeder nada poderia fazer, também. Mas
se fosse outra coisa ? E a mulher ? Um lábio cortado era terrivelmente difícil de coser! Evocou a página do Manual de Cirurgia de Wullstein-Wilm onde aquele caso
era tratado. Se o vermelho dos lábios não ficasse soldado sem a deslocação dum só milímetro -adeus beleza! "Isto não é comigo; eu não sou dermatólogo!" desculpou-se,
furioso. Estava cansado, oh! como se sentia fatigado! Trabalhara durante o dia inteiro e haviam-no chamado na noite anterior. A história da morte do Wirz parecia
estar longe, em sonhos, de tal modo aquele dia de trabalho fora longo! E agora, ainda tinha que operar! "Elisabete!" pensou, não evocando a mulher, mas o candeeiro,
o ar da casa, o café forte e negro que ela lhe preparava. Avidamente, pegou num charuto e mordeu a ponta.
- Mas isto que é? Abram a janela! - exclamou violentamente Fobianke, antes de o doutor ter acendido o charuto, o qual caiu no chão. Persenthein tomou-lhe outra vez
o pulso: quási que se não sentia. Colocou rapidamente o estetoscópio no coração adormecido.
O interior do carro cheirava a couro molhado, a estrada, suor, metal. Tinham apagado a luz porque era
preciso poupar a bateria. Karbon que, mesmo desmaiado era capaz de manusear fosse que carro fosse, procurou o comutador e com a mão esquerda, sã, acendeu-o. Inclinou-se
para Franz Albert que dormia, e deu volta à manivela da porta para fazer descer o vidro. Fora estava escuro, uma negrura riscada de chuva. Dentro, os homens encharcados
de água e transpiração, sujos, cheios de contusões, manchas e nódoas de sangue ofereciam um espectáculo bastante aflitivo.
- Que porcaria! - exclamou Karbon, fazendo um esforço raivoso para se rir.
Fobianke tornava a deitar o carro para cima da árvore, a mulher também ali estava e havia umas coisas negras que não deixavam de correr pela estrada, dum lado para
outro.
- Abram a janela. - pediu ele - Que diabo! Abram-me essa janela!
O médico ajudou-o duas vezes a respirar fundo, o que lhe deu a ilusão de vir a ter sempre ar. Aspirou depressa, violentamente, desesperadamente, depois expirou com
lentidão. O pulso estava imperceptível mas ele vivia ainda. Depois, a cabeça rolou mais para baixo e apoiou-se no peito do médico. Reinou silêncio, no carro.
- Mas a janela está aberta, Fobianke. - disse Peter Karbon que se sentia mal, em tom consolador, ao seu chaujjeur morto.
Chegavam a Lohwinckel. Sob o São Jorge do Angermann, cintilava uma das cento e oitenta e quatro lâmpadas eléctricas da terra. A casa do Angermann estremeceu, quando
entraram o portão. com as suas pequenas lanternas, os ciclistas rodeavam o carro que avançava lentamente, lembrando um enxame de pirilampos através da noite de Outubro,
rasgada de nuvens.
Não é pelo facto de as grandes cidades importantes, Berlim, Paris, Londres, conhecerem um nome, que é
indiscutível a sua celebridade. A glória só começa quando, em cada aldeola, se sabe de quem se trata. Os cartazes, os filmes, as conferências radiofónicas, as revistas,
são os arautos que tocam as trombetas da fama até que os seus protegidos sejam conhecidos em toda a parte.
Ora, eram celebridades desta espécie que - com ferimentos de pouca gravidade - tinham encontrado abrigo em Lohwinckel. Leore Lania era conhecida por toda a gente
que frequentava o cinema que o audacioso dono do "Cisne Branco" organizava à quarta feira e ao sábado, na sua hospedaria. Toda a gente lá ia, excepto os alunos do
liceu a quem o reitor, hostil à arte do écran, terminantemente o proibia. Quanto ao cartaz do pneu Karbon todos os dias era contemplado: lá estava, azul e amarelo,
junto da bomba de gasolina, na estação de serviço instalada pelo carroceiro Torbiss. O nome de Franz Albert andava na boca de toda a rapaziada e os velhos lembravam-se
de ter lido nos Jornais, com uma espécie de repugnância íntima, que um certo boxer saído não se sabia donde, no seu regresso da América fora ovacionado duma forma
escandalosa.
Os habitantes de Lohwinckel estremeciam com a agradável mistura de orgulho e terror que, em geral, acompanha as catástrofes, ao saber que, na sua terra, se dera
um desastre importante. Mas quando, na manhã seguinte, tiveram conhecimento de quais eram as celebridades que esta circunstância trouxera a Lohwinckel, a pequena
cidade ficou efervescente. Nos principais locais encontravam-se grupos de cidadãos excitados e curiosos: no cabeleireiro Kuhammer, no carniceiro Seyfried, no judeu
Markus. O farmacêutico Behrendt convocou no "Cisne Branco" uma assembleia extraordinária da Sociedade União e Fraternidade porque adivinhou que os seus consócios
sentiam a necessidade de se informar mutuamente acerca do ocorrido. O liceu mostrava-se febril, de alto a baixo; os rapazes não cessavam de fazer bolinhas de papel
que eram lançadas através as aulas com as fundas e eram estridentes os urros do recreio no pátio: tinham qualquer coisa de inquietante e explosivo. Toda a gente
andava na rua, falava se às esquinas e havia patrulhas em
face das casas onde se encontravam os feridos. Também havia pessoas pacientes, como a costureira Ritting, da rua das Águas, o pequeno sapateiro Haberlandt, de oitenta
e quatro anos, não falando no inválido da guerra, o cego Munter, que estacionavam durante horas em frente daquelas casas, entregues a um bizarro sentimento: à espera
que acontecesse qualquer coisa absolutamente excepcional. A sr.a Profet a quem haviam confiado o jogador de soco, mal chegava à janela, de manhã, logo via uma data
de gente sentada nos muros do seu jardim. Embora o Franz Albert não apresentasse senão uma pequena nódoa negra ao lado do nariz - o que não era decerto a primeira
na sua vida profissional - e, já calmo, desse prova dum apetite devorador, inteiramente entregue à deglutição do seu pequeno almoço, a sr.a Profet não tirava lá
por isso a sua solene bata de enfermeira, nem deixava de velar pelo seu doente, com gestos de anjo-da-guarda e palpitações de coração.
Leore Lania fora conquistada pelo sr. de Raitzold que a trouxera como um trofeu - atitude vitoriosa que tomara para desafiar o inimigo e em seguida a uma grotesca
discussão que se entabolara respeitante à distribuição dos sinistrados e que tivera lugar no vestíbulo, às escuras, enquanto o médico cosia o lábio fendido da actriz.
Esta insignificante mas delicada operação fora ocultamente tumultuosa. Depois de Elisabete ter lavado o rosto da actriz apresentou o ao marido, em toda a sua palidez
e no encanto do puro modelado. O doutor mergulhou então num abismo de angústia e incerteza. Leore não aparentava ter medo, não se queixando nem tremendo. Estava
silenciosa. Apenas participara -numa voz baixa e rouca como a da Avela - que preferia morrer a ficar desfigurada. Depois estendera se e recebera serenamente as primeiras
e dolorosas injecções de novocaina. Não se queixou, apesar de notar que o doutor não manejava, com precisão, a seringa.
Ele sentira a solenidade da frase de Lania e Elisabete, que estava ao lado do esterilizador compreendeu que a beleza do seu rosto era tudo para a actriz. com um
olhar animador e nervoso, fitou o
marido, que estava à espera de ver a ferida ser atingida pela frigidez da anestesia local. Cobrira
o rosto de Lania com toalhas brancas, deixando apenas à vista o campo operatório, depois de ter lançado um derradeiro olhar inquieto sobre o oval fino e hindu sobre
a delicadeza perfeita das feições. Queria fazer tudo o melhor possivel e pediu as agulhas rnais finas, esquecendo que a pele dos lábios é particularmente dura e
resistente. Não serviram. Foi preciso ferver outras. Para prolongar a anestesia, foi preciso dar outras injecções e a Elisabete, que enfiava as agulhas, dava as
pinças e os lápis de nitrato de prata, tremia tão violentamente que Lania deu por isso.
E pensou, trocista: "Quem devia tremer era eu." Aquilo parecia-lhe insensatamente burlesco, ver-se ali estendida, entregue a um barbeiro de aldeia, aflitíssimo,
sem saber o que fazia. Quando a operação terminou, levantou se coberta de ligaduras. Sentia por tudo aquilo um ódio profundo. A mulher do médico tinha cara de camponesa,
desprendia-se da bata dele um horrível cheiro a sabão, sentia que se aproximava mais do que era. preciso e cada ruído, cada gesto lhe dilaceravam os nervos. Quando
a senhora Persenthein a convidou a dormir na sua própria cama, ela recusou com uma denegação de cabeça, tão violenta, que equivalia a uma ofensa.
Aflita e intimidada, Elisabete retirou logo o convite e confiou a actriz a Jacirita de Raitzold que viera da quinta, com as botas e na bicicleta. Num estranho acesso
de confiança, Leore Lania entregou-se às mãos grandes, à voz baixa e ao cheiro viril a couro, tabaco e terra que da solteirona emanava.
Foi por isso que Peter Karbon, cujo ombro deslocado foi o último a ser visto, ficou na casa do Angermann. Pela uma da manhã, arrepiado e exausto, encontrou um doce
abrigo na cama de Elisabete. Com o cérebro agitado pela vertigem, olhou ainda fixamente para os desenhos estranhos do teto, sentiu os pés descerem em leve declive
e, cheio de gratidão, bebeu algumas colheritas de leite quente e açucarado, cujo gosto a infância lhe humedeceu a garganta seca e cortou uma
tremura nervosa. Viu ainda uma esguia mão tranquila escorregar por cima do seu coração, depois tombou na escuridão dum profundo sono de veronal.
O doutor, que até então se mantivera bem, graças a pastilhas de cola, de cafeína e a um tónico com base de cstriquinina e que sentia agora estalar os nervos, também
tomou um comprimido de veronal e estendeu-se no sofá de oleado do seu consultório.
Quanto a Elisabete, vagueou pela casa, com gestos de sonâmbula, até que se decidiu a ir buscar a grande poltrona da sala, colocando-a entre o seu quarto e o da Avelã.
Dormia tão superficialmente que não cessava de ouvir respirar nos dois quartos: a respiração leve e breve da filha e o prolongado e irregular sopro do doente que
fizera deitar na sua cama. Levantou-se muitas vezes de noite, e foi vê-lo. A pequena chama da lamparina vogava no azeite amarelo; era uma ilha de luz perdida na
noite inquietante e bizarra. Da primeira vez, Elisabete ficou muito tempo inclinada sobre o homem, a observá-lo. Parecia alvoroçado no sono, com rugas sob os cabelos
ruivos, que caíam sobre a testa e as fontes. Da segunda vez, subiu-lhe a roupa que ele afastara em gesto agitado, e da terceira, acariciou lhe levemente o braço
azulado e um pouco inchado que parecia fazê-lo sofrer. Murmurou qualquer coisa através dum nevoeiro de veronal, pegou na mão de Elisabete e colocou-a entre a almofada
e a sua face. A lamparina empalideceu e apagou-se. com expressão atenta, ela sorriu desse gesto inconsciente e confiante, deixou a mão naquele calor até ficar entorpecida
e depois tirou-a com precaução. Em passo leve, voltou para a sua poltrona. Adormeceu outra vez, embora a madrugada já começasse a transparecer e, desta vez, teve
um antigo sonho da sua meninice: levava um cesto de laranjas mas muito leves - aqueles frutos doirados nada tinham de comum com as laranjas da loja do Markus - e
entrava na paisagem que estava pendurada por cima da sua cama e que representava o golfo de Nápoles. O facto de estar o Markus a tocar a sonata de Brahms em lá menor
perturbava um pouco a qualidade alada do sonho. Finalmente, soaram os sinos da igreja e, então, tudo se tornou pesado. Elisabete despertou e o sábado começou.
Acordar Kola, acordar Lungaus, acender o lume, preparar o pequeno almoço: café para Kola, porrtdge para Lungaus, compota de maçãs para a Avelã. A mulher a dias estava
atrasada e Elisabete já tremia de cansaço quando começou a inquietar-se com o hóspede que acordara e fora visitado pelo médico.
O homem que estava sentado na sua cama não era o mesmo que ela ameigara de noite. Era um estranho um tanto inquietante.
- Mas que coisa tão esquisita que me vestiram ! disse ele, olhando-a severamente.
Já podia mover o braço, embora sofresse surpreendido, olhava atentamente para a bainha azul da manga que representava uma espécie de hera em miniatura. Intimidada,
Elisabete explicou:
- Ontem à noite, pus-lhe uma camisa de noite, do meu marido.
-Ah, isso sim!-disse Peter, que deitou um olhar maquinal para a outra cama vazia. Depois calou-se, quási embaraçado. Achava-se pouco à-vontade assim metido numa
camisa de noite com bainha azul. Pelo seu lado, Elisabete, que nunca ouvira falar em pijamas de seda senão nos romances, não percebia nada do que se passava. Colocou
o tabuleiro do pequeno almoço em equilíbrio sobre os joelhos de Karbon e vigiou a refeição. Tinha o avental novo, azul, estampado de joaninhas vermelhas e demorara-se
em frente do aparador para escolher, em atenção ao hóspede, uma das lindas chávenas doiradas. Karbon - os homens são assim !... - não prestou a mínima atenção à
chávena mas notou o avental e espreguiçou-se com ar satisfeito por baixo daquele lençol estranho.
-Está melhor?-perguntou Elisabete, com timidez, erguendo, num gesto maquinal, os cabelos para trás da orelha. Sem pensar, Karbon seguiu a mão e viu o reflexo dos
cabelos.
-Estou lindamente!-respondeu, estendendo-se
muito à-vontade sob a colcha. - O crânio funciona outra vez e o braço começa a reagir.
- Sim. Não foi verdadeiramente uma comoção cerebral, segundo disse o médico. E o ombro está bem encaixado, daqui a uns dias já não sentirá nada. Ontem doeu-lhe muito?
- Apre! Doeu-me a valer. O doutor parecia que estava a manusear um canibal. Palavra que vontade não me faltou de lhe dar um destes pontapés!
Elisabete conteve uma breve risada.
- Ele tem muito orgulho na maneira como trata estes casos. é um truque clássico que lhe ensinou um velho médico de aldeia.
- Ah! Ah ! - replicou Peter, com cepticismo.
Tinha a impressão de ter caído numa terra de selvagens. Ela pegou no tabuleiro e foi-se embora, o que o homem constatou com certa pena. Em compensação, apareceu
à porta uma pequenita e começou a olhá-lo atentamente, o que não estranhou, pois sabia que os filhos dos indígenas são sempre curiosos.
- bom dia. Deixas-me ver a tua ligadura ? - perguntou a Avelã, obedecendo à sua paixão por tudo que era cirúrgico. Também ela trazia uma ferida nos braços, a boneca
guarnecida de numerosos emplastros de leucoplasma.
- Acho que não tenho. - disse Peter e olhou para os cabelos da criança que brilhavam como haviam brilhado, há pouco, sob o pálido sol da manhã, os da mulher do médico.
com efeito, até os golpes das mãos estavam à vista, porque o doutor, fiel às suas manias, não gostava de esconder os ferimentos. Se o deixassem, poria os doentes
ao sol e .iconselhá-los-ia a lamber as chagas, como fazem os cães e os gatos.
- É pena. - declarou a Avelã, aproximando se. - O Kola diz que eu é que te devo tratar até que ele volte.
- Muito obrigado, minha menina. Quem é o Kola ? -É o médico, pois quem há de ser?-e apoiou os
joelhos na beira da cama, embora soubesse que não é permitido tal gesto quando se visitam doentes.
- Ah, sim. E tu quem és ?
- Sou a Avelã. Conheces a mamã, não ? Kola é o filho da mamã. - Era desta maneira que ela compreendia
o parentesco lá na casa, por isso assim o explicava.
- Então o médico é teu irmão ?
-Mas que tolo que tu és! Kola é o meu papá. Posso tratar de ti? -E pôs termo às perguntas.
Peter Karbon reflectiu um pouco sobre este último esclarecimento.
-Então têm todos a mesma... uma só mamã?
Teve, de repente, uma ideia muito nítida acerca daquela senhora doutora com avental de cozinheira, de cabelos cor de mel deitados para trás e da longa mão que lhe
afagara o coração quando ele se sentira mal.
- Sim, Lungaus também tem a minha mamã. - declarou a pequenita.
- Quem é mais esse Lungaus?
- É o velho lá de cima, das águas furtadas, - E depois, impaciente : - Mas afinal queres que trate de ti ou não?
Peter Karbon estendeu-se cordialmente.
-Bem. Podes tratar-me. - disse, curioso, a ver o que sairia dali.
A Avelã foi até ao lavatório e ensaboou as mãos com uma expressão séria e convencida; voltou para junto do leito, arranjou bem a roupa e as almofadas, pegou na grande
mão morena, de Peter, e, de sobrancelhas carregadas, ficou atenta ao pulso. Depois, sentou-se na beira do leito e, com as mãos indiscutivelmente limpas, começou
a afastar as madeixas do cabelo do doente, que lhe caíam na testa. Ele, nenhuma objecção fez ao tratamento. Também não tornara a receber carícias assim tão engraçadas,
desde que o seu pequeno Makako morrera de tísica e de tristeza europeia.
- Isto faz-me pensar numa aldeia do sertão, Beni-Sanka. - disse ele a Elisabete que aparecera à porta -Encontrei-me lá completamente em baixo, cheio de febre. Tinha
penetrado longe, no interior, onde, em geral, os europeus não chegam. Fui tratado por uma adorável mulherzinha de doze anos, que tinha dois filhos, uma criatura
deliciosa...
Esta narrativa consternou Elisabete, a ponto de a imobilizar no quadro da porta. Só lhe faltava ver isto: um cavalheiro deitado na sua cama de nogueira com bolas
de cobre, a falar livremente de coisas passadas na índia! Aproximou se timidamente da cama, reflectiu um momento e resumiu os seus pensamentos nesta pergunta:
- A sr.a D. Lania é talvez de origem hindu ? -ALania? Que ideia! Porque julga isso?
- Não sei... Mas acho que ela tem um tipo tão... exótico!
- Exótico? Sim, é possível. Tudo aquilo é comercial. Acho que nem ela própria sabe onde nasceu!...
Começou a rir sozinho, enquanto o avental das joaninhas se inclinava para ele.
- De resto, é o que lhe dá graça: mente tanto que a gente não acredita em nada do que ela diz. É tudo pântano. Tão depressa é a filha dum general de serviço em Górz,
evacuado por ocasião da guerra, tendo a mãe morrido duma crise cardíaca durante a fuga, ficando, ela sozinha na cidade, como teve doze irmãos, sendo os pais camponeses
com papoilas sob as janelas e o resto. Ou filha ilegítima, com uma infância rude em certo orfanato, donde fugiu. E ainda: adoptada por um fantástico tio banqueiro...
etc.. Uma criatura magnífica a Pittyevitte! E verdade, ela como está? -acabou por perguntar, vendo que já era tempo de se interessar pela companheira.
Sentia uma estranha impressão, desde a véspera. Lembrava-se de cem detalhes muito antigos, mas os factos mais próximos escapavam-lhe, afastavam-se e não tinham significação
alguma. E pensou: "Parece-me que apanhei uma valente machadada na cabeça. Não percebo nada! Estarei ainda carregado de veronal ?" Paralelamente, estendeu os dois
braços, na sua frente, como fazem os recém-nascidos que ainda não têm a vontade agindo sobre os membros.
- Então ? - perguntou Elisabete.
- É muito esquisito. Não posso apreciar as distâncias. Não sei se está muito longe de mim, ou se posso tocar-lhe,
-Pode tocar-me. - disse ela, sorrindo. II colocou .as mãos do doente nos seus ombros.
Havia neste gesto qualquer coisa que lhe agradou com evidência. Elisabete retirou, apressada, os ombros de sob as palmas das mãos, tão quentes, do homem. No entanto,
passada meia hora ainda tinha a sensação de calor.
- E casada? - perguntou. - Ontem não se pôde prevenir ninguém. O correio fecha às nove.
- Quem ? -interrogou Karbon que esquecera, por completo, a actriz. - A Lania? Sim, deve ser...
- Então o marido é o outro senhor? - perguntou Elisabete que desejava pôr em ordem as relações dos berlinenses.
Haviam-lhe escondido a morte do chauffeur. De resto, aquela gente tinha uma forma curiosa de não dar importância nenhuma ao desastre. Enquanto que ela, adormecera,
na véspera, com os joelhos a tremer, e acordara, de manhã, na mesma; enquanto que o doutor fazia as visitas num relâmpago, inquieto com o que se passara; enquanto
que o próprio Lungaus, muito excitado, percorria a cidade, semelhante a um orador ambulante trazendo e levando notícias, e que a Avelã organizava, na garagem, com
duas cadeiras, um cenário representando um acidente de automóvel, onde numerosas bonecas faziam o papel de feridos.
- Marido da pequena? Que ideia!-replicou Karbon, observando a Elisabete que varria o quarto com a vassoura e a pá. "Como tem as ancas altas!" pensou. "Num buraco
destes, vir encontrar uma raça tão perfeita! Os joelhos devem ser modelares e os quadris são tão longos como os idealizam em sonho os desenhadores de cartazes."
E disse em voz alta:
- A Lania é minha amante.
Elisabete deixou de varrer, ergueu-se, tornou a baixar-se muito depressa e escondeu o rosto na sombra dos braços. corara violentamente e estava deveras aflita. "Mas
que diabo lhe aconteceu? Cada vez .percebo menos... -interrogou-se A si próprio Karbon, sem nada compreender.
A senhora Persentein não podia permanecer ali
em face do descaramento indecoroso de tal afirmação, que lhe parecia ser dum incompreensível impudor.
- Ah! - murmurou dèbilmente, como um passarito. E fugiu.
No entanto, como se se encontrassem numa feira anual, muitos habitantes de Lohwinckel, bastante excitados, estavam reunidos no vestíbulo. Havia-os também fora, de
pé à entrada da casa do Angermann, sob a abóbada da porta. Outros estendiam o pescoço e, a soco, tentavam entrar. Elisabet escolheu os mais bem apresentados e instalou
os na sala. Estremecia-lhe a sobrancelha esquerda; a fadiga nervosa, desde manhã que lhe fazia tremer a pálpebra, ressentia-se da noite passada na poltrona. Ainda
não acabara de arrumar o consultório que, na véspera, fora transformado numa verdadeira ambulância. Era sábado, precisava de ir fazer as compras para domingo, ocupar-se
de Lungaus, tratar do hóspede, servir Kola. E este em primeiro lugar, é claro, pois tinha o dobro de trabalho e de esgotamento desde que aquela trapalhada se dera.
O telefone tocou tantas vezes que a Avelã, pronta para todos os serviços, instalou uma cadeira em frente do aparelho, para a qual subiu afim de fornecer lacónicos
esclarecimentos.
O sr. Markus era dos que mais chamavam, o que fazia com que a própria senhora Persenthein o viesse atender, ouvindo o tropeçar nas sílabas e dando-lhe todas as informações
pedidas. Estava febril, transtornado; aquilo era um negócio que representava quási um caso pessoal, o desastre dos berlinenses célebres; já mandara um telegrama
para certo jornal de Berlim e estava tratando de fazer uma notícia pormenorizada na hora de maior clientela, no sábado de manhã. Informava-se dos mínimos pormenores
- excepto da saúde da Elisabete.
Ela sentia-se esquisita Desde a véspera que ainda não tomara bem consciência do que se passava, os acontecimentos haviam-na assaltado com demasiada brusquidão e
as dificuldades surgiam a cada momento. E isto era difícil de explicar: por exemplo, não havia dinheiro em casa, não havia mesmo nenhum, embora fosse preciso fazer
despezas extraordinárias. Tinha a certeza de não
poder pôr aquele senhor de cabelos ruivos, chegado de Berlim, no mesmo regime da família Persenthein. Atravessou a rumorejante assembleia popular do vestíbulo e
dirigiu se para a cozinha: a louça do pequeno almoço ainda não estava lavada, encontrava-se na banca. Lungaus dispusera artisticamente os seus chinelos junto do
fogão mas o lume estava quási apagado e tudo se encontrava numa desordem desesperadora. Depois, Elisabete procurou o seu livro de cozinha, folheou-o e arquitectou
uma ementa. Em seguida, foi buscar dinheiro à gaveta da secretária onde o doutor guardava os seus mais importantes papéis.
Dinheiro ? Então havia dinheiro em casa ?
É verdade, ali estavam cinquenta marcos, a terceira prestação do custoso pantoscópio que devia ser pago no dia quinze pelo dono da casa do Angermann para quem as
despesas profissionais eram sagradas. Foi secretamente agitada por uma vertigem que a Elisabete pegou naquele dinheiro, receando o marido. Foi direita ao talho do
Seyfried, depois ao padeiro Jaennecke, ao Markus - afim de poder preparar umas refeições que fossem dignas daquele Peter Karbon.
Dinheiro já havia, mas agora faltava roupa de mesa; era uma coisa de que se estava mal servido e não se sabia se a senhora Bartels quereria ser prestável. Não existia
um único guardanapo sem passagens, visto que todos eram velhos e haviam sido herdados. Duma dúzia de pratos de doce, só restavam três e as beiras estavam esbotenadas.
"Deus do céu! E toalhas para o rosto e mãos?" pensou ela, perplexa, percorrendo as ruas com o seu chapéu e a saca das compras. "Realmente, nunca tivemos toalhas
que chegassem, nem para a consulta nem para casa! A bilha da água está partida e foi substituída por um pote de esmalte, bem feio, por sinal. É preciso forrar a
poltrona, o piano continua desafinado, as costas daquela cadeira estão todas rotas e o vidro rachado. Parou em frente da igreja, imersa nos cuidados quotidianos
que a afligiam todos ao mesmo tempo, como se tudo que havia de gasto, partido e irreparável na sua existência
viesse de repente ao seu encontro. Foi um segundo horrível, aquele que viveu ali, em frente da igreja, enquanto soprava o vento do outono e a mão direita apertava
convulsivamente o porta-moedas que continha os cinquenta marcos do pantoscópio.
"Se a gente não puder, o melhor será ele ir para casa da senhora Prófete. Depois de assim ter disposto de Peter Karbon, continuou a andar. Mas sentiu, na garganta,
um nó provocado por tal resolução. Ora essa! Ela que tinha com aquele homem de cabelos ruivos que troçara da camisa de noite do Kola, que confessava uma ligação
escandalosa com a actriz e que se mostrara bastante indiscreto na forma como lhe falara a si, a senhora doutora Persenthein, enquanto lhe servia o primeiro almoço?!
Viu-o nitidamente, àquele homem novo e espantoso que estava deitado na sua cama e queria ser tratado por ela.
Ao canto da rua dos Regatos veio ter com Elisabete um turbilhão de folhas do outono, e de súbito, mal dobrou a esquina, tudo se tornou mais fácil sem que visse claramente
a razão. "vou fazer a massa e o Jaennekc cozê-la-aá para o bolo que lhe darei amanhã." Parecia que sempre se resolvia a ficar com o hóspede. E desculpava-se desta
forma: "Quem sabe se não virá ainda .a ser útil ao Kola?" Não era absolutamente sincera dizendo isto, mas ficou mais tranquila, mesmo ao pensar nos cinquenta marcos
que tirara da gaveta e nas despesas que era forçada a fazer por causa do .doente.
Foi assim que aquilo começou. Foi assim que entrou na agradável loja do padeiro e tratou da questão referente ao bolo. No domingo faltou à igreja. Na têrça-feira,
Peter Karbon, teve, pela primeira vez, licença de se levantar.
Mas na quarta feira aconteceu uma coisa extraor dinária.
Entre os viajantes do automóvel, Fobiank era o único que possuía um nome ignorado. Não era um herói desportivo nem um rei do cautchu, nem uma estrela de cinema.
: era um irmão sem nome, um irmão silencioso e morto, que tinha um fato de tued e polainas de couro - um homem morto, de lábios exangues, nos quais o derradeiro
segundo deixara um sorriso semelhante a um reflexo do Além. com efeito, naquele último segundo, o chauffeur Fobianke atravessara uma. grande luz, uma cristalina
claridade: sentira-se mergulhar" e morrer em azul: tudo cada vez mais azul e mais leve.. E ouvira qualquer coisa - eram sinos sem o serem - eadquirira uma certeza:
que, afinal, não custava assim tanto... não tinha medo... já passara ...
As dificuldades só começaram quando Fobianke passou por aquilo e não pôde sentir mais nada. Por que, onde haviam de conduzir àquela hora tardia o homem morto? As
horas mais próximas de Persenthein deviam ser dedicadas aos sobreviventes. A sua casa era muito pequena e um cadáver lá dentro era uma nota desagradável. Pelo seu
lado, o sr. Profet não podia pensar em levar à sensível esposa, alguns minutos antes da meia-noite, um finado. Quanto ao sr. de Raitzold, que possuía no hall do
castelo um local consagrado aos catafalcos dos Raitzold, não queria convencer-se a pôr aquele lugar de honra à disposição dum motorista desconhecido. Só o teria
feito se fosse preciso disputar o corpo ao sr. Profet, como acontecera com a actriz. Mas levar para a sua propriedade o que o sr. Profet não queria ter na sua casa,
embora sentindo que se não portava lá muito correctamente para com o defunto -não, isso é que de nenhuma forma. Por fim, enviaram Muller com o mudo passageiro à
igreja onde a casa do padre ainda estava iluminada, pois ele era bibliófilo e fanático explorador de certas curiosidades botânicas. Mas o abade não estava em casa,
fora
chamado por uma velha camponesa de Bickenvies para receber a extrema-unção: por acaso, não era a cliente de persenthein mas uma das que seguiam "receitas e os remédios
do boticário Bchrendt. O sacristão examinou os papéis que Fobianke tinha em ordem, junto da carta. Constatou que era protestante e não ousou resolver a questão:
aquele Wilhelm Fobianke com a idade de 47 anos e protestante, poderia encontrar um abrigo provisório na sacristia? Muller, católico sem ser beato, compreendeu estas
objecções; conhecia a severidade do venerável cura e guardara até à medula, o respeito do estudante pela primeira comunhão. Já soava a meia-noite na torre e todos
os candeeiros estavam apagados quando voltou a casa e pediu para falar ao patrão.
O sr. Profet já enfiara as pantufas e tinha um roupão bordado a seda. Enquanto falavam, o chauffeur pôde ver pela porta entreaberta o que se passava no quarto vizinho.
Franz Albert estava deitado num sofá e parecia embriagado, graças à grande dose de eucodal que lhe tinham ministrado. À esquerda, estava sentada a sr.a Profet que
lhe segurava na mão e acariciava o cabelo. À direita, via-se um balde de prata com uma garrafa de champanhe; três taças cintilavam sobre uma mesita. "Olha, olha,
estão a beber champanhe!" De repente, subiu um calor por ele acima e tomou uma decisão:
- Faz favor de não se afligir, - disse com altivez -é um colega: Vai para minha casa! vou agora a Obanger e trato de tudo. Sempre há-de haver lugar para o meter
depois no depósito n.? 3.
Disse e deu meia volta. Saiu daquela casa com o sentimento de que já era tempo de não ofender mais a dignidade do defunto colega,
Aliviado, o Profet voltou para junto do hóspede para ver se, obedecendo à ordem do médico, conseguia que ele bebesse um pouco de champanhe, afim de lhe estimular
a actividade cardíaca.
Muller morava num pequeno anexo da fábrica e tinha à sua guarda os três caminhões que o patrão chamava
o seu "parque de automóveis". A sr.a Muller era uma mulher de juízo que tinha o sangue forte e o coração enérgico da raça de vinhateiros, da região. Já sabia tudo
que se passara e estava à espera do marido. Não gastou o tempo em longas dissertações quando viu descer do carro, primeiro a sr.a Psamatis, amortalhadora de seu
oficio que ele fora buscar, e depois o camarada falecido que deitara sobre um ombro.
Encontraram nele duas coisas esquisitas, quando o despiram: o cheiro a cigarro na farda e o facto de usar três alianças: era de certo um viúvo que tornara a casar.
Muller consultou depois os papéis do morto e até alta noite esforçou-se, com os dedos desabituados e o cérebro atormentado, em escrever uma carta concebida nestes
termos:
"Sr.a Fobianke:
"Como há pressa e o seu patrão, devido ao estado em que ficou depois do desastre, não poder ocupar-se disto, eu aceitei o penoso dever de lhe comunicar a grande
desgraça que aconteceu ao seu marido. Tendo ido parar à valeta com o carro, que capotou, foi transportado com um grande ferimento e fui eu próprio que o trouxe.
Tenho imensa pena de lhe dar este desgosto, mas o certo é que morreu no caminho. O rápido sai de Berlim às 22:13 da noite; deve mudar de comboio em Schaffenburg,
a estação chama-se Dusswald - Lohwinckel. Posso ir buscá-la no carro da fábrica, se me prevenir, e a minha mulher cá a espera. Nestes casos, a gente pensa que isto
pode acontecer-nos qualquer dia. com a mais profunda simpatia, associa-se à sua dor
Herberto Muller, motorista em casa do sr. Otto Profet Fábrica de Acumuladores."
"É uma consolação para si saber que o querido defunto teve uma morte rápida. Eu estava lá."
E, no dia seguinte, Fobianke repousava no depósito n.? 3 com aquela expressão de profunda satisfação que, em geral, têm os mortos. Todos os operários o foram visitar,
descobrindo-se comovidamente. Os católicos resavam um Padre-Nosso, os socialistas ou independentes limitavam-se a juntar as mãos, e no entanto, a sua imobilidade
, e o sentimento que experimentavam, em nada diferiam de uma oração. Às dez horas apareceu o sr. Curvier com dois ajudantes, o proprietário da carpintaria e fábrica
de caixões e sucessor da empresa de armador A. Curvier. Era o herdeiro duns antepassados franceses que qualquer longínqua guerra depusera ali, junto do Reno; era
um homem de bom gosto, conhecedor do seu ofício. Desembaraçaram o chão dos pedaços de latão que lá estavam, trouxeram ramos de pinheiro para molhar na água benta.
Os candelabros eram grandes e prateados, as velas grossas e de cera verdadeira, do melhor fabrico do cerieiro e pasteleiro Hannemann, por trás da igreja. No descanso
do meio-dia à meia-hora, quando as mulheres de Obanger iam levar aos maridos, à fábrica, os cestos com o almoço, tudo estava pronto: cheirava a pinho e a solenidade,
e a multidão engrossava em redor do depósito n.? 3. Embora fosse muita a gente que desejava ver o defunto, tudo se passava tranquilamente, .numa comum atitude de
dignidade. Pouco a pouco, Obanger inteiro foi até à fábrica, as mulheres e as crianças, os velhos e os doentes, todos os que o dr. Persenthein dispensara de trabalhar
e que ali se encontravam em pé, com os rostos pálidos e a mancha plúmbea em redor dos lábios, todos os que, obscuramente, sentiam
? que uma desgraça acontecera a um dos seus.
A amortalhadora teimou em vestir o morto de preto, de forma que estava ali estendido no fato que o Muller emprestara. (Esta expressão não é absolutamente exacta,
pois Fobianke nunca restituirá o fato preto, mas o sr. Profet declarou que faria todas as despesas até que Peter Karbon pudesse ser informado do que acontecera ao
seu empregado). De resto, o fato ficava-lhe lindamente e até havia parecenças físicas: o ofício modelara-lhes os rostos da mesma forma, as mãos tinham iguais
calosidades e as unhas do motorista morto encontravam-se tão negras como as do motorista vivo. O que os distinguia, eram as expressões diferentes: Fobianke estava
alegre e Muller triste.
E assim se passou o sábado, Obanger era um centro onde havia muita gente, a peregrinação para o depósito n.? 3 nunca mais acabava. Os curiosos que rondavam a casa
do Angermann ou que estavam sentados no muro do jardim do Profet não contavam ao pé das centenas de homens que, em silêncio, andavam à roda do caixão e dos que caminhavam
no pátio da fábrica, murmurando, dum lado para outro. Flutuava no ar a recordação de desastres antigos. Os burgueses de Lohwinckel tinham, sem dúvida, o costume
de morrer nas suas camas e de honestas doenças. Por isso se tornou tão difícil encontrar lugar para aquele pobre Fobianke, morto de hemorragia. Mas nas proximidades
da fábrica sempre tinha havido certos acidentes imprevistos: ferimentos, quedas, desgraças. Formava-se um grupo em redor da viúva Koebele, por exemplo, pois ela
estava contando em voz baixa o que sentira quando lhe haviam trazido o marido que abafara num desmoronamento de cascalho. Sem que o dissessem, germinava neles um
sentimento de injustiça e predestinação ao pensarem que os outros três que vinham no carro haviam ficado sãos e salvos ao passo que aquele morrera. Como se a morte
violenta e os sangrentos desastres os atacassem só a eles e fossem o triste privilégio dos trabalhadores de Obanger...
Foi Birkner, o presidente do conselho da fábrica que teve a ideia de organizar uma subscrição para se comprar uma coroa. Era um homem loiro, de olhos negros e alongados
e mãos pesadas - na esquerda, faltavam-lhe dois dedos. Ele próprio foi, à noite, ao Domínio, para encomendar a coroa. Em Lohwinckel, compravam-se as flores no Domínio,
onde a irmã de Raitzold criara um pequeno negócio de jardinagem e de cultura de rosas, desesperada tentativa, realmente irrisória, de aguentar as despesas cada vez
maiores. Estremeciam nos canteiros as últimas rosas de Outubro, estando as pétalas
avermelhadas pelo frio nocturno; a família da Bela Lionesa estava queimada. Os cestinhos de vime que Jacinta Raitzold guarnecia às cinco da manhã para os mandar
a Schaffenburg não estavam lá muito florescentes. Mas serviam para uma coroa daquele género.
No domingo, depois da missa e do sermão, quando um grupo de burgueses bem vestidos se dirigia para a fábrica afim de ver a coroa ser levada pelos operários de Obanger,
encontrou o portão do pátio fechado. O tempo estava fresco e tudo se mostrava calmo. Através da grade viam-se alguns pardais disputar com acrimónia os grãos de aveia,
como se tivessem encontrado ouro no excremento. Soube-se mais tarde que o sr. Profet dera a ordem de se fechar o portão. A sua fábrica não era um teatro e não estava
para ver passear no pátio todos os maltrapilhos da região. Se alguma desgraça acontecesse, o responsável seria ele. De resto, a fábrica era sua: podia abri-la e
fechá-la quando lhe apetecesse. E pronto.
Soube-se isto por Birkner que falara a este respeito com o patrão. O que ninguém podia explicar era como se havia espalhado a história do champanhe. O Lungaus foi
um dos primeiros a contá-la. E ao cair da tarde toda a gente de Obanger e muita de Lohwinckel sabia que na casa dos Profet, no Priel, haviam feito saúdes com champanhe
logo depois do desastre, enquanto que o motorista morto não tinha para onde ir. Na boca do Lungaus, esta coscuvilhice tomava um aspecto particularmente sedicioso;
emagrecido e cavado pela doença aliada ao regime ideal do dr. Persenthein, parava em todas as esquinas, agitado e rebelde, cheio de novidades que faziam escândalo
e criavam descontentamento. Era verdade: ajudara a abrir a mala amachucada do sr. Karbon e vira lá dentro frascos de cristal e roupa luxuosa, tudo tresandando a
perfume como têm as mulheres duvidosas do "Carapau Preto em Schaffenburg, escovas para o cabelo e outras minhoquices deste género, em prata, com o monograma em cima.
Quando ele se arranjava, de manhã, punha calças de seda com riscas roxas, como se fosse fazer um exercício de circo, E a mulher que haviam levado
para o Domínio, essa era uma desavergonhada. O judeu Markus tinha uma revista em que ela estava fotografada completamente nua! E que ninguém duvidasse do que dizia.
De resto, pertencia aos dois berlinenses; estas mulheres são tão caras que é preciso juntarem-se vários... O boxer, o bêbedo, esse tinha exigido trinta mil marcos,
numa só noite, só para dar alguns murros. Era por isso que os operários não tinham dinheiro, estando reduzidos aos miseráveis quarenta e três marcos por semana,
recebendo como gratificação chumbo nos ossos.
Eram estas e muitas outras coisas que o Lungaus andava a levar e a trazer dum lado para outro. Não gostavam muito dele porque, vindo do norte da Alemanha, era considerado
como estrangeiro e pessoa pouco segura; falava-se mesmo em roubos cometidos na fábrica e numa condenação. Mas agora o que ele dizia era um oráculo porque vinha favorecer
a ardente impressão de descontentamento que cada qual trazia dentro de si.
Os operários mais antigos encontraram se à tarde na hospedaria de Oertchen - como todos os domingos - e não se falou senão nos quarenta e três marcos por semana.
Haviam roubado seis pfennig aos salários sindicais e, que diabo, já era tempo de protestar contra aquele estado de coisas. Ó sr. Profet dizia: "Tanto pior para os
que não querem. Aqui não se obriga ninguém atrabalhar".
Os operários novos iam, ao domingo de tarde, para o estádio: um campo pantanoso, de erva curta, para lá de Obanger, onde os rapazes do Liceu não haviam tornado a
jogar depois da proibição do reitor. com a. equipa vestida, estavam em redor do campo, de mãos nas algibeiras, lançando estridentes gritos ao seguir o jogo dos operários.
Também os estudantes andavam desordenados. Quanto aos operários, moviam furiosamente os membros pesados na relva escorregadia; batiam-se e empurravam-se de tal forma
que um avançado recebeu um pontapé de tal natureza que não pôde levantar-se do chão, sendo preciso levá-lo a casa da mãe, a velha Psamatis da muralha do Moinho,
a qual foi, chorando e lamentando-se, a correr a casa do dr. Persenthein, a quem se sentia ligada pela profissão.
No domingo à noite, chegou a sr.a Fobianke e o Muller foi buscá-la à estação, sob a sua própria responsabilidade, numa fourgonette da fábrica. Trazia o irmão, o
tipógrafo Pank. Era uma mulherzinha mais velha do que o defunto, de lábios finos e ar modesto. Estava hirta, como que gelada de medo e desgosto. Parecia não poder
mexer nem mãos, nem boca, nem olhos e pronunciou apenas algumas palavras quando a sr.a Muller a acolheu à porta da fábrica levando-a até casa. Trazia um vestido
escuro que não era preto mas castanho, e como lhe descosera os bordados que tinha, conheciam-se ainda, na gola e nas mangas, os sítios amarrotados e picados pelos
pontos. Tinha luvas pretas, imitação de couro, em algodão, e de vez em quando, olhava fixamente para aquelas mãos esticadas e mascaradas, como para um objecto absolutamente
estranho. Sob a luz das velas e na atmosfera de enterro do depósito n.? 3 onde a deixaram só durante alguns instantes, ficou submersa pela mesma dor seca, incapaz
de rezar e de chorar -incapaz de nenhuma solução humana. Foi só quando se deitou no leito conjugal, ao lado da sr.a Muller, que disse:
- Aqui, os lençóis também são húmidos. É como lá em casa.
- Onde é? -perguntou a sr.a Muller, apagando a luz.
Na escuridão, obteve esta resposta :
- No novo Brandeburgo.
Depois, a viúva ficou tão silenciosa que até parecia conter a respiração, com medo que lhe fizesse doer - e realmente fazia. Mais tarde, a dona da casa estendeu
a mão e os dedos da mulher misturaram-se com os seus: uns dedos duros, regelados, que só aqueceram lentamente quando as duas mulheres adormeceram.
Os homens tinham ficado sentados na cozinha, diante dos copos baixos que continham o vinho leve da região. Falavam da morte de Fobianke. Muller fez o seu relatório
com as perífrases ornamentais e regionais do dialecto da Hesse renana e o tipógrafo prestava atenção e respondia com monossílabos. Pank era um homem prudente, como
demonstrara trazendo de Berlim uma
coroa durável feita de contas de vidro. Também sabia que o sr. Karbon segurara a vida do seu motorista em cinco mil marcos e ficou informado de que haviam provisoriamente
escondido do patrão o falecimento do empregado, o que classificou como demasiada precaução, para um homenzinho com fisionomia de gnomo, cuja barba grisalha lhe invadia
o rosto, a tal ponto que se não viam senão os olhos - uns grandes olhos tristes, de animal, por trás dos vidros das lunetas. A pouco e pouco, ia se notando que o
tipógrafo-paginador Pank era um homem que tinha muita leitura, e uma cabeça sólida - um pensador, numa das mais importantes peças da máquina do seu partido. Tinha
de tal modo o hábito de pensar sob o ponto de vista colectivo que, em breve, exgotou o assunto pessoal se bem que doloroso e impor tante, passando a questões de
ordem geral. Às onze da noite obtivera do motorista Muller todos os esclarecimentos importantes sobre a fabricação de acumuladores e ficou extraordinariamente agitado
quando soube que os salários estabelecidos pelo sindicato não eram observados em Obanger. Foi um ponto sobre o qual falou muitas vezes, não podendo o Muller dar
lhe esclarecimentos completos, pois, embora pertencesse à classe operária, havia muitos anos que gozava duma situação aparte.
Acabou por prometer ao paginador que, no dia seguinte, à noite, reuniria os delegados sindicais da fábrica na hospedaria de Oertchen. Pank tomou algumas notas numa
pequena agenda e exprimiu de repente o desejo de mandar um telegrama a qualquer órgão de partido que não designou de maneira explícita. É claro que às onze da noite
não se podia pensar em tal - o correio fechara há muito e o empregado Munk devia estar a dormir. Os dois homens resolveram fazer o mesmo. Pank subiu ao quarto, pensativo
e lacónico, o Muller foi para a garagem onde se estendeu no carro do sr. Profet, adormecendo com a impressão que, depois daquele desastre, qualquer coisa palpitava
no que até aí fora tão imutável como as muralhas da cidade e a torre do Angermann.
A segunda-feira é, em geral, um dia sonolento e sem nervos, em que o maquinismo do homem que trabalha náo se põe logo em movimento. Mas naquela segunda-feira não
aconteceu assim. Os habitantes de Obanger chegaram cheios de excitação, febris, vindo alguns acompanhados pelas mulheres. O portão da fábrica estava aberto. Claro
que havia de estar: então não era preciso entrar e sair ? Chegou uma coroa destinada a Fobianke. O sr. Profet mandava uma coroa que não provinha do Domínio, mas
fora encomendada ao jardineiro de Dusswald. Até ao meio-dia, o pátio ficou cheio de gente que nada tinha ali a fazer, o que prejudicava o trabalho da fábrica. O
próprio contra-mestre Birkner concordou que assim não podia ser e desceu, deixou a fundição para mandar embora aqueles papalvos que não faziam mais do que olhar
uns para os outros e esperar. E que esperavam eles? Sabiam lá! Tinham ouvido falar na chegada dum indivíduo de Berlim que declarara ir mudar tudo em Lohwinckel.
O próprio Birkner, que se entusiasmara ouvindo Pank, começou a menear a cabeça. Não tinha grande influência nas pessoas que estavam no pátio ou fora, ao longo do
muro. Na fábrica, todos os que a ela pertenciam, trabalhavam. A sala da fundição estava mergulhada numa abafante atmosfera de ácido sulfúrico, na oficina de montagem,
os untadores aplicavam o óco e na sala de expedição, empacotava-se. O que se amontoava no pátio era gente de Obanger, proletários de Lohwinckel, aprendizes, desempregados,
artifices sem trabalho, mulheres, parentes e filhos de homens que não ganhavam o suficiente. Queriam ver o chauffeur morto mas-também queriam ver o homem vivo de
Berlim que declarara ir aquilo tudo mudar, acabando-se com os salários miseráveis. Por isso ali estavam, esperando a pé firme.
Foi preciso que o próprio sr. Profet aparecesse, os
mandasse embora e desse ordem de fechar o portão. Teve que repetir três vezes a mesma ordem antes que se afastassem. Alguns protestavam em voz alta. O operário Lungaus,
que retomara o trabalho naquela manhã, e que tinha um molde ao ombro, parou no meio do pátio com rosto zombeteiro. A careta não se dirigia ao sr. Profet, mas àqueles
que se deixavam expulsar. Sentiram-no bem e ficaram vexados. Em seguida, cá da rua foram deitadas lá para dentro duas garrafas vazias, de cerveja, que não atingiram
ninguém e talvez representassem apenas uma brincadeira ...
O sr. Profet que viera de carro, do Priel, trouxera consigo Franz Albert, afim de lhe mostrar a fábrica. O rapaz estava completamente restabelecido do choque nervoso
e mostrava uma sã e agradável disposição. A sr.a Profet mandara-lhe coser o seu lumberjack roto. Percorria as salas com uma expressão angélica e confusa, sorria
tolamente e desejaria falar com os operários se lhes compreendesse o dialecto. Demorou-se na fundição, ergueu uma placa fazendo-a girar, a sorrir. Por fim, declarou
que o pai fora torneiro de metais.
Pela uma hora soube-se no liceu que o boxer estava na fábrica e à uma e meia os estudantes puseram-se a caminho em grupos, indo à frente os mais adiantados, pois
era um facto que lhes dizia particularmente respeito - era indiscutível a sua necessidade de ver o campeão alemão dos pesos médios. Os filhos do sr. Profet, Paulo
e Otto, que haviam revolucionado todo o liceu com as suas narrativas quotidianas e íntimas sobre Franz Albert, conduziam a malta, Movendo os pés de desproporcional
tamanho, lá chegaram os miúdos de doze anos com voz de soprano, os problemáticos alunos do sexto ano com rostos borbulhentos e vozes roucas, os ajuizados finalistas
de gestos comedidos. E assim, ainda mais aumentou a desordem em redor da fábrica. Aquela rua não tinha nome, chamavam-lhe simplesmente: o Muro. Foi, pois, no Muro
que, depois das duas horas houve uma grande batalha entre os garotos de Obanger e os estudantes, o que de resto era um acontecimento que estava sempre na ordem do
dia, fazendo parte das tradições
de Lohwinckel. Mas aquela foi particularmente renhida- sentia-se latejar um ódio desusado, o que fez com que também a gente crescida acabasse por se meter na dança.
De resto, nem uns nem outros conseguiram ver o boxer, porque o sr. Profet e o companheiro saíram da fábrica a pé, pela porta traseira, indo ter exactamente ao sítio
onde se dera o desastre.
Franz Albert reconheceu o local como se saísse dum sonho - as urtigas exalavam o mesmo aroma penetrante. Lembrou-se também da esquisita sensação que experimentara
ao ver-se deitado sob a manta com a Leore Lania e dos arrepios que lhe percorriam a coluna vertebral, como se estivesse cheio de bolinhas de sabão.
- São vinhas ? - perguntou, olhando para as colinas xistosas à beira do caminho, cuja folhagem se avermelhava agora à luz do dia.
- São. Estas são insignificantes. - disse o sr. Profet que parou, colheu um cacho de uvitas verdes e estendeu-o na palma da mão, ao hóspede - Mas há lá em baixo,
do lado do Reno, aí sim, há uma vinha esplêndida. Chama-se a Costa do Sol e aquilo é que é!
Pegando no cacho, o Franz perguntou:
- Isto tudo lhe pertence ?
- A mim ? Não. Isto é do Domínio. - E continuou a andar. Mais tarde, quando já o rapaz se esquecera do que se tratava, continuou: - Sim... se eu quiser tudo isto
me pertencerá. Só de mim depende que continue ou não na posse dos Raitzold, compreende?
Até à estação nada mais disse. Lá estava Muller com o automóvel.
Afinal nada aconteceu naquela segunda-feira. Apenas uma discussão entre o dr. Persenthein e a viúva de Fobianke, durante a qual ela permaneceu estúpida, glacial
e muda como estivera até aí, enquanto o médico se ia exaltando gradualmente. Tratava-se da autópsia. O doutor desejava imenso ver se fora acertado o seu diagnóstico
de uma hepatocele, vendo-o confirmado. Insistiu, teimoso, em face da formal recusa da viúva, chegando até a invocar certas prescrições em caso de
desastre. Mas a viúva apenas sabia uma coisa: que a sorte do seu marido fora bastante cruel e parecia-lhe que o morto, de satisfeita expressão, começaria a gritar
se lhe tocassem. Náo podia exprimir isto, dizia apenas: "Não" Q "não" e sempre "não". O doutor foi-se embora mal humorado, na crepitante motocicleta, levando a Avelã
atrás de si. Dirigiu-se ao Domínio. Encontrava-se excitado, descontente e sucumbido depois do desastre. E sem saber porquê. As pessoas detinham-se, seguiam-no com
os olhos, falavam dele, sem perceber o quê.
O paginador Pank presidiu a várias reuniões, naquela manhã. Primeiro, a conversa com o sr. Karbon possuidor daquelas calças de seda que tanto haviam irritado Lungaus.
O patrão empalideceu e sentiu-se mal quando soube o que acontecera ao seu chauffeur; ainda não recuperara toda a sua energia. A sr.a Persenthein, que estava presente,
friccionou-lhe a testa com água de Colónia. O doutor praguejou quando, ao chegar a casa, encontrou o ruivo doente subjugado pela comoção. Entretanto, o tipógrafo
continuava a proceder. Foi ao sr. Curvier combinar os pormenores do funeral e depois procurou o sr. Profet que incomodou à hora do café, ficando a discutir com ele
até à tarde. Dirigiu-se, em seguida, ao edifício do correio, precisamente no momento em que ia fechar, e redigiu um telegrama que participava não serem respeitados
os decretos do sindicato em Obanger. Dirigiu-se finalmente para a hospedaria de Oertchen afim de se encontrar com os operários delegados da fábrica.
Foi pelas três horas de terça-feira que se fez o enterro de Wilhelm Fobianke. Os sinos tocaram às duas horas, porque haviam começado por enterrar o Jacó Wirz. E
tocaram de novo quando, no pátio da fábrica, o cortejo se pôs em marcha, precedido pelo caixão preto incrustado a prata. Foi uma atenção do velho cura para com o
morto. y sr.a Fobianke, com o irmão e os esposos Muller estava sentada numa carruagem forrada de negro e os operários seguiam a pé. Chovia desde manhã ; no cemitério
havia muita lama e a água infiltrava-se na cova recentemente cavada. Soprava o vento
de leste e, como fios esticados, a chuva atravessava obliquamente o ar.
Era em circunstâncias extraordinárias que os operários acompanhavam o féretro, visto que aquilo se passava em pleno dia de trabalho e apesar da formal proibição
do sr. Profet, o qual depois de ter falado com Pank e Birkner acabara por se recusar a dar feriado. Fizera-o não por maldade mas por medo. Ele fora outrora um homem
pobre: adivinhava o que se passava.
- Anda qualquer coisa no ar. - disse à esposa, limpando gotas de suor no crânio redondo e barbeado. E voltando-se para Franz Albert:"-Se não me mostro enérgico,
isto dá sarilho.
Tamborilou nos vidros das janelas, vagueou pelo quarto dos filhos e acabou por tomar aquela decisão.
O que foi um erro. Os operários não fizeram caso da proibição e à uma hora largaram o trabalho, foram para casa, vestiram os fatos pretos - os que os tinham e voltaram
para a fábrica com os rostos agressivos que as circunstâncias impunham. O sr. Profet fora sempre o inimigo. Mas o motorista de Berlim que só haviam conhecido depois
de morto, era amigo e aliado. O pastor protestante de Dusswald pronunciou algumas palavras enfatuadas. O sr. Pank fez um discurso muito significativo e seis operários
levaram o caixão do depósito n.? 3 até ao carro do armador. O enterro era, de tal forma, um assunto inerente aos operários, que os burgueses mantiveram-se a distância.
Estavam na rua, penduravam se das janelas e ladeavam com os guarda-chuva as muralhas do cemitério - mas não se meteram no cortejo.
O restrito pessoal do Domínio - ao todo vinte e três pessoas, incluindo os parentes de Jacó Wirz - ficou no cemitério para observar o espectáculo dum segundo funeral.
O sr. de Raitzold, que o encontrou à entrada do campo-santo, tratou de se meter na carruagem e sair dali. Mas a irmã ficou. Sob um comprido casaco de
dali.
oleado preto e com as botas de montar enterrou-se solidamente no solo esponjoso e permaneceu ao pé da família do primeiro defunto, ao lado do dr, Persenthein.
O médico encontrava-se presente e não lhe agradava nada ter dois clientes a enterrar no mesmo dia, mas primeiro estava o dever: não era homem para lhe fugir. Em
pé, sob a chuva, observava os rostos carrancudos e secretamente agitados dos homens de Obanger e ruminava, descontente, o seu diagnóstico não confirmado duma hepatocele,
enquanto o pastor desempenhava o seu papel ao lado da cova aberta e cheia de lama. O Profet estava ausente. O Karbon também, mas sob a formal ordem do médico. Em
compensação, via se lá o liceu, nas classes mais adiantadas. Nem eles próprios sabiam porque tinham vindo, visto o reitor os ter proibido de comparecer. O espírito
de rebeldia e insubordinação passara dos operários para os estudantes. Também o sr. Markus viera, vestido de preto da cabeça aos pés, com um chapéu alto e luvas
negras. De vez em quando, mudava de lugar, mas sempre criava o vácuo à sua roda, ficando só.
E assim tudo decorreu monotonamente sob a chuva e o som dos sinos. O pastor proferiu algumas palavras demonstrando que Fobianke morrera vítima da sua profissão e,
em seguida, pegou em alguma terra húmida. O sr. Pank lançou mão da pequena pá, repetiu o gesto e as palavras mas com mais ressonância e de maneira mais comovente.
O rosto de gnomo, em geral concentrado e silencioso, abria-se mais francamente, iluminado pelos gestos do orador habituado a falar às multidões. Na sua boca, a palavra
vítima tomava outra significação. Não disse "meus caros irmãos" mas sim "camaradas", duma forma natural que dava a todos o ingresso na comunidade. O sr. Markus,
em pé por trás da multidão, sentiu de repente e sem razão, que duas lágrimas lhe picavam os olhos inteligentes, míopes e resignados. Depois o tipógrafo-paginador
passou a pá à irmã.
Havia ali gente demais e agora todos queriam ver, pondo se alguns sobre pedras tumulares. A sr.a Fobianke dirigiu-se para as três coroas, tirou algumas flores e
um pouco de terra. Murmurava palavras ininteligíveis. Demorou-se ainda um instante, olhou em redor, viu os rostos estranhos. Por fim, a sr.a Muller levou-a,
todos começaram a mexer com os pés e o Birkner, depois do pastor, apertou a mão à viúva. Ela perguntou:
- Onde está o seu marido ?
- Não pôde vir; ficou de serviço. - respondeu a sr.a Muller.
- Ah, sim, está de serviço. Está de serviço...
- Teve de levar o sr. Profet a Schaffenburg.- explicou a outra, no dialecto da terra.
A viúva olhou em redor.
- O quê? Mas o que há? Porque estou eu aqui?
- perguntou, parecendo que só nesse momento compreendia o que se passava.
Reparou que estava num cemitério desconhecido, em qualquer canto perdido da Alemanha e que o marido morrera, partira, nunca mais voltaria. Qualquer coisa se quebrou
dentro de si, obscuramente, como que uma camada de gelo sobre um lago. E então deu um grito agudo e tão estridente que todos se assustaram e correram para a tumba.
- Não! - gritou ela - Não ! Não! Não! Dispunha de poucas palavras. Gritava "não!" como
se estivesse a defender-se. E deitou-se na sepultura, quási que na cova, agarrou-se às coroas, às saias da sr.a Muller, às pernas do médico, sempre exalando no seu
"não" o desespero, o protesto contra o que acontecia. Este grito tinha qualquer coisa de louco, de bestial; era um riso e um soluço, um longo uivar que penetrava
até à alma. Inconscientemente, os homens apertavam os punhos e cerravam os maxilares. As mulheres choravam. Uma ou outra exalava o mesmo grito: a Psamatis, a Koebbele.
Também os estudantes, que ontem eram ainda crianças, choravam com os nervos excitados; por meio de vagas, a agitação espalhava-se em redor da tumba e por todo o
cemitério.
- Psicose. - murmurou Markus, que também chorava, estremecendo com os gritos.
Pank tentou erguer a irmã mas ele era baixito e ela, que tinha ossos pesados, não queria sair dali.
Já os sinos se tinham calado e os de Obanger,
em grupos tumultuosos, haviam saído do cemitério - e ainda se ouviam os horrorosos gritos.
Foi a Jacinta Raitzold que acabou por a levar para o carro do armador. Tinha muita força e sabia como lidar com os animais e as pessoas.
Acalmou a viúva exactamente como teria acalmado um cavalo com o freio nos dentes. A sr.a Muller, com o rosto sulcado de lágrimas, semelhante a uma estátua de Madona
grosseiramente esculpida em madeira, encarregou-se depois dela.
- Deixá-la gritar, deve fazer-lhe bem. - disse, enquanto caminhava na lama, ao lado do médico.
Como sempre, ele estava embrenhado nos seus pensamentos e não respondeu. Ela terminou, mais para si do que para o companheiro:
- Têm sorte, os que podem gritar...
E toda a sua vida se resumia nesta frase.
O grito da viúva, aquele insensato "não", estava suspenso sobre Lohwinckel como uma ameaça. A cidadezita transformara-se, os homens eram diferentes.
Naquela noite, houve uma reunião na hospedaria de Oertchen, na qual Pank e Birkner tomaram a palavra, sendo a greve proposta, com insistência, por todos os operários
moços. Naquela noite, o marmeleiro do jardim do reitor foi cortado ao meio, aparecendo na porta um letreiro em que se via escrita a tinta da China, vermelha, a palavra
"Vingança!". Naquela noite encontraram completamente embriagado o operário Lungaus que, durante três anos, seguira o regime do dr. Persenthein. Caíra de borco sobre
um monte de folhas molhadas, ao lado do pântano dos patos, por trás da igreja.
Peter Karbon estava sentado na grande poltrona da sala. Levantara o queixo, apoiara a nuca nas costas da cadeira e os seus lábios, excepcionalmente perfeitos, tinham
uma singular expressão de absoluta serenidade.
- Isso é muito lindo. Obrigado. - disse um bom bocado depois de Elisabete ter acabado de tocar.
Deixou repousar as mãos nos joelhos e voltou a cabeça para ele, murmurando:
- Mozart.
Fora encarregada pelo doutor de velar por Karbon enquanto o enterro durasse. Pusera-se a tocar piano para que ele não ouvisse os sinos dobrando a finados.
- Realmente é extraordinário como ainda tem tempo para tocar; é comovente, na verdade.
E olhou-lhe para o pescoço, para a linha harmoniosa a sair da gola branca indo até à orelha. Vestira, havia pouco tempo, o vestido azul-escuro, o seu lindo vestido
guarnecido a renda branca.
- É preciso. Aqui não há concertos e a gente sem música não pode viver, não é ?
- Não se pode ... - respondeu ele, distraído. - Às vezes, passam-se anos em que não oiço música e cá vou vivendo. Oiço jazz e outras coisas semelhantes, mas propriamente
aquilo a que chamamos música... Até que enfim os sinos se calaram!
A sobrancelha esquerda da Elisabete estremeceu. Sempre tinha ouvido os sinos!
- Nunca vai aos concertos? Eu seria a pessoa mais feliz deste mundo se pudesse ouvir os concertos que há em Berlim!
- Sim? É esquisito; nós vamos mais facilmente para os mares do Sul do que ouvir concertos.
- O Markus tem um bom aparelho de rádio. E, às vezes, convida-me para lá ir ouvir. Quando tenho tempo, vou. Na semana passada ouvi a Paixão segundo São Mateus. O
Markus não deixa passar nenhuma emissão de Berlim.
- Quem é esse Markus? Ah, já sei, aquele homenzito ridículo que me entrevistou para mandar notícias aos jornais...
- É ridículo?
-Se é! Que tipo! Um génio ignorado por trás da barrica dos arenques fumados.
- Ah! - disse Elisabete.
E ficou pensativa. Naqueles últimos dias deitara para o caixote do lixo várias coisas que durante muito tempo lhe haviam parecido preciosas. E agora lá ia também
ser liquidado o Markus!
- Vocês têm aqui um clima particularmente favorável aos maníacos. Ò seu marido é também, a seu modo, um maníaco.
Elisabete tocou uma tecla e deixou o som desaparecer nas traves da velha casa.
-Nunca tinha dado por isso? - perguntou ele.
Depois duma pausa breve, ela respondeu:
-Já.
Correu alguma caliça ao longo das paredes. A carruagem de luto passava sob o portão da casa do Angermann, trazendo a sr.a Fobianke para a fábrica. Elisabete aproximou-se
dos vidros maculados pela chuva. Karbon gostava de a ver andar dum lado para outro. E também gostava de a ver quando estava quieta. Onde quer que lhe ouvisse os
passos, conhecia-os logo. Sentia-se bem, encostado à sua lassidão de convalescente como sobre um almofadão. E pensava:
- Estou habituado a ela como a criança à sua criada. Vinha vê-lo, apoiava-se à sua poltrona, baixava sobre ele o olhar e perguntava, sorrindo:
- Sente-se bem?
- Nunca me senti tão bem... desde a última vez em que a minha ama me passeou no carrinho. Olhou a com um sorriso, mas baixou as pálpebras como que sob uma luz muito
viva. Inclinada para o seu rosto, Elisabete tornou-se grave, observando-o, muito séria. A casa estava tranquila, espalhava-se um aroma a fermento tépido, um odor
pacífico e dominical - embora fosse têrça-feira. Desprezando loucamente o magro orçamento, faziam-se agora bolos, todos os dias, em casa do médico. Era um dos sintomas
da acção dissolvente que se começara a exercer sobre Lohwinckel, este de a sr.a Persenthein fazer dívidas no carniceiro, no padeiro e na pastelaria.
A Avelã apareceu à porta:
- Cinquenta minutos, mamã. - anunciou e desapareceu logo. Estava a coser vestidos de luto para as
bonecas que, assim, acompanhavam as circunstâncias relatadas com muitos pormenores pelo Lungaus.
- Lá vou. - E seguiu a filha.
-Peço-lhe que fique! -pediu Peter, puerilmente.
- Não me demoro, venho já. Tenho que ir ver o bolo. - E fugiu.
Karbon teve um arrepio. Tinha-os com frequência e o médico declarou que eram causados pelos nervos. Mas, em geral, Karbon sentia subir em si uma lufada de calor
quando Elisabete estava junto dele. Também seria dos nervos? Para se disciplinar, teve um pensamento secundário que se não chegou a firmar, dissipando-se como já
acontecera várias vezes:
"Amanhã hei-de-me ocupar da Pittyevitte." Suspirando, procurou uma carta que começara e tirou da algibeira a permanente:
"Tenho que acabar de escrever ao Miguel..." "...e espero que me enviem as cartas de negócio" leu. "Antes de mais nada, peço-te para adiares a conferência com os
Russos; não posso ainda sair daqui. Estamos absolutamente de acordo nesse ponto de tentar introduzir, seja de que maneira for, os outsider russos no nosso mostruário
internacional da borracha e já convenci Kroeningk e Otávio Farin. Se o velho Farin ainda vier com dificuldades, tomarei o avião para Paris onde passarei uma tarde
para lhe falar do assunto. Em todo o caso, não fixes essa conferência para antes do dia 20. Desejaria permanecer aqui até essa data. No que me diz respeito estou
bem mas fiquei com uma espécie de receio que me assalta ao pensar que vou viajar -é uma estupidez, mas não consigo dominar-me. O médico diz que isto passará depressa.
Deves saber que o nosso pobre Fobianke morreu. O pateta do médico escondeu-mo durante três dias; nesse intervalo aconteceram várias coisas desagradáveis e agora
isto não vai melhor. Escrevo por este mesmo correio para Kellermann para que o seguro do pessoal faça tudo que seja necessário com respeito à viúva."
Teve a caneta no ar, durante algum tempo. Depois continuou a escrever:
"O sítio onde viemos parar é muito bonito: igreja antiga, velhas torres, muralhas. As pessoas são mais interessantes e caladas do que em Berlim, não sendo feitas
em série. Lêem livros sérios e fazem música. Os homens não são nada tolos e as mulheres têm qualquer coisa de singularmente intimo. Encontrei uma enfermeira que
parece uma rapariga de dezoito anos, mas deve ter mais idade porque está casada há muito. Faz tanto bem aos meus pobres nervos sobressaltados, que suporto a pobreza
da casa: má cama, horrível alimentação, aspecto de privações, marido maníaco tendo a cabeça quadrada do verdadeiro alemão. É possível que ele tenha valor; embora
o não possa suportar, às vezes sinto uma espécie de amizade pela sua cabeça de louco.
"Acho que julgamos mal a província, é muito diferente do que calculamos na praça Wittenberg. Escrevo-te isto não para me dedicar a reflexões filosóficas, mas porque
o conhecimento da província é importante para a nossa propaganda - estou abrindo os olhos e as orelhas e, no meu regresso, comunicarei as minhas impressões ao Fiemming.
Como vês, quer haja comoção nervosa, quer não, sou o mesmo preguiçoso mas o trabalho vai-se fazendo dentro de mim, embora não me mexa. Enquanto escrevo, estão precisamente
a enterrar o nosso pobre Fobianke. Dá-me vontade de chorar saber que nunca mais o verei. Quanto aos outros dois..."
- Os outros... E verdade, que será feito deles? perguntou a si próprio, sem interesse porque estava infinitamente longe.
De repente, renunciou a continuar a escrever, afastou o papel e os seus pensamentos voltaram para junto de Elisabete.
"Música... Mas como hei-de fazer? Não posso, realmente, mandar- vir o Furtvvaengler com a sua filarmónica até Lohwínckel. Poderia encomendar um aparelho de T. S.
F. em que há coisas complicadas e não sei quantas lâmpadas; assim, ela poderia ouvir Paris e Londres sempre qe lhe apetecesse. Mas não! O melhor é levá-la a Berlim
e todas as noites irá ao concerto: ouvirá música até se fartar. É comovente com o seu Mozart,
no velho piano! Seria fácil de vestir com a cinta fina e alta, talvez um pouco alta demais como as imagens nas capas dos jornais de modas. Um bocadinho de rouge
nos lábios, veludo preto e arminho em redor do pescoço..."
Peter Karbon perdeu se nos seus sonhos em redor duma Elisabete vestida de veludo preto e encantada a ouvir as sinfonias de Beethoven. "Saberá dançar?" Ele dançava
com paixão e admiravelmente. "Voo planado", era assim que a Leone chamava à sua maneira de cortar docemente em diagonal o plano da dança. Tomado por leve vertigem,
Peter deixou a sua imaginação representar-lhe a sr.a Persenthein a bailar. Daí a pouco, ela voltou, bem diferente da imagem que o seu febril cérebro arquitectara.
Vestira o grande avental de mangas e trazia um balde cheio de carvão.
- Cá estou. - e pôs-se de joelhos em frente do fogão. com o rosto sério e concentrado, começou a reanimar o lume prestes a extinguir-se.
Karbon observou-a, pensativo, enquanto ela estava curvada diante do fogão e limpava as mãos ao avental. Foi, sem dúvida, naquele momento, que adivinhou a vida que
levava.
- A sua vida não é fácil... - murmurou.
com um estremecimento de receio, Elisabete reconheceu a frase que a perseguia por todos os lados. Mas na boca de Karbon tomara um som novo e inquietante. "Fácil.
Fácil? Não." pensou. E o peso e dificuldades da sua existência caíram-lhe em cima: a roupa para passajar na cesta, as teias de aranha na dispensa, o dinheiro da
casa, a clientela pouco segura, o insuportável Lungaus, Kola sempre distraído, exausto e de mau humor. E tudo inevitável e imposto para toda a vida. Mas logo, dominando-se,
pensou:
"Ora... ora... E não é normal isto ser assim ?"
Disse:
- Não... tudo corre bem, até... - e deitou a última pàzada de carvão.
O homem juntou as mãos, colocou os cotovelos nos braços da poltrona e encolheu-se confortàvelmente.
Declarou, sonolento:
- E toda a gente já se esqueceu de como pode ser agradável um fogão destes!
- O quê? Na sua casa não tem assim aquecimento ?
- Chaufage central, é claro.
Quando fechava os olhos via outra vez aqueles raios que vislumbrava sempre que, em criança, adormecia.
- Ah, claro! - concordou Elisabete, e olhou para os dedos sujos. A ideia duma casa com chaufage central tinha para ela qualquer coisa de absolutamente paradisíaco.
A luta com os fogões que deitam fumo, o carvão que suja, as escadas que é preciso varrer, os baldes tão pesados que mal se podem arrastar, as contas do combustível
que tanto custam a pagar e o lume que, constantemente, se apaga - tudo aquilo eram coisas importantes que ocupavam enorme lugar na sua vida.
- Os Profet também têm chauffage central. - acrescentou, como se tal notícia lhe pudesse dar prestígio aos olhos de Karbon.
O fogão reanimou-se para entoar a canção do fim da tarde. A porta de ferro trabalhado com as guarnições pretas, recortava-se sobre a chama, sendo para Peter Karbon
mais uma recordação da esquecida infância. Elisabete ergueu-se e alisou o avental.
- Desculpe estar assim vestida, mas isto suja tanto!
- e aproximou se dele enquanto desatava e tirava o avental.
Como num sonho, ao vê-la atravessar o aposento, ele pensou:
e Agora vai ao aparador buscar a antiga toalha de franja."
E assim foi.
Estendeu o braço e agarrou no vestido. A sua mão fechou se sobre a fazenda azul-escura, um pouco acima do joelho. Puxou-a para si.
Quando, mais tarde, Peter Karbon pensava naquele bizarro segundo - e isso aconteceu-lhe ainda dois ou três meses depois - compreendia tudo perfeitamente e sabia
porque motivo aquele desejo, duma violência quási insensata, se apoderara dele. Era por causa do avental que ela tirara, do cheiro a goma, a fogão, a. fermento,
a limpeza e a fadiga; excitara-o o cheiro a criada com o qual o familiarizara a sua primeira aventura de estudante. Fora isso que o embriagara. Mas no segundo em
que aquilo se deu, não se lembrou disso; apenas sentiu com nítida delícia as omoplatas da Elisabete quando os seus braços lhe contornaram o delicado dorso e não
era a esquecida boca da criada Betty a que começou por se defender e depois se abriu, abandonando-lhe os lábios trémulos.
Elisabete, que se lançara desesperadamente naquele beijo, como do alto de uma ponte num rio fundo, foi a primeira a desviar o perigo de naufrágio. Já se tinha erguido,
com os joelhos ainda pesados, mas mais do que nunca parecida com uma gótica estátua de sarcófago e ainda Peter Karbon tinha os olhos fechados e erguia para ela a
sua boca de imperador romano, como se estivesse esperando a dádiva duma fonte desconhecida. Depois retomou o sangue-frio, tornou a colocar ajuizadamente as mãos
nos braços da poltrona, teve um fugaz sorriso e disse:
- Que coisa insensata! Parece que não estou bom da cabeça...
A sr.a Persenthein acendeu a luz, foi-se embora e refugiou-se nas emanações de creosol das cabines de banhos que o último cliente do monte-pio acabara de deixar.
A aranha Catarina estava sentada no seu canto e observava a mulher que esfregava a banheira com selvagem energia, chorando abundantemente como se acabasse de levar
uma sova.
Às onze e vinte da noite, Lungaus, completamente embriagado, foi posto à porta da casa do Angermann. O médico levou-o pela escada até à mansarda e a Elisabete tirou-lhe
o casaco e o calçado, estendendo-o depois na cama. Alguns minutos antes da meia-noite, tornaram a bater à porta. Eram um desempregado e um jornaleiro do Domínio
que se tinham batido violentamente depois da reunião na hospedaria de Oertchen e que se apresentavam agora ali para fazer o curativo. Peter Karbon, que já dormira,
foi acordado pelas idas e vindas no rés-do-chão: acordou com uma impressão de leveza muito agradável, de modo que já sorria e ainda não tinha aberto os olhos. Um
sonho- acontece muito isto nos sonhos - reduzira consideràvelmente a distância que existia entre ele e a Elisabete. Antes de adormecer, ela era ainda a seus olhos
uma mulher bastante estranha, mas agora parecia-lhe familiar, como se o conteúdo do sonho, já desvanecido e impalpável, estivesse carregado de calor e de particulares
promessas. E pensava: "Apaixonado ... estou profundamente apaixonado ". Muito satisfeito, acariciou, na escuridão, os desenhos em relevo gravados na colcha vermelha
do leito conjugal dos Persenthein.
No entanto, lá em baixo, o doutor andava em redor da cadeira operatória, da sala de espera ; com as mãos alisava os cabelos claros e finos e o seu comprido rosto
tomava a expressão hostil dum cavalo medroso. Os dois brigões haviam saído. A sua bata recebera alguns salpicos e estava à espera da água quente; no meio da noite
tudo funcionava mal. Aspirou até ao fundo dos pulmões o fumo dum cigarro barato.
- Não estás fatigado, Kola ? - perguntou a esposa, trazendo uma almofada debaixo do braço para lhe fazer a cama no sofá de oleado. Tinha o rosto inchado de ter chorado
e a ponta do nariz vermelha, como a da
Madona de Botticelli. Bateu cuidadosamente as almofadas, tendo a impressão de que a terra estremecia e tudoameaçava submergir-se em seu redor. Desde que Karbon lhe
dera aquele beijo, não conseguira fazer nenhum gesto sem tremer. Cada objecto em que tocava, desiquilibrava-se, soava, estremecia, corria perigo.
Kola disse que não se encontrava cansado mas ele já confessara alguma vez que o estava? Olhou, com rosto descontente, para o leito provisório - os lençóis escorregavam
constantemente no oleado - e disse :
- Achas que é cómodo uma pessoa dormir aqui ? -Mas não foste tu que te recusaste a que ele fosse
para casa dos outros ?
Até àquela tarde, Karbon era propriedade do médico; o doente que lhe dizia respeito; mas agora, de repente, ela reconheceu que também comparticipava das responsabilidades.
Sentindo-o, um duvidoso calor invadiu-a e a consciência atormentou-a.
- E, além disso, anda tudo torto. - prosseguiu o marido.
Ela era da mesma opinião assim como todos os habitantes de Lohwinckel: debandada, febre e confusão.
- Hoje não houve consulta. Vais ver o trabalhão que terei amanhã de manhã. Na fábrica, as coisas não correm bem; aparecem aí todos para não serem obrigados a ir
trabalhar. E eu fico aqui pregado e não faço o que quero... Não poderias dar-me uma chávena de café?
- com o maior prazer. - disse tolamente Elisabete. A frase surpreendeu o marido.
Mas teria feito tudo para lhe ser agradável, simplesmente porque andava consigo aquele beijo duma doçura inaudita, única e profundamente venenosa. Indo dum lado
para outro, o médico foi atraído por uma folha coberta pela sua grande letra rápida. Livros de notas, caixas de fichas, classificadores, folhas de temperatura gravitavam
em redor do trabalho que lhe devorava as noites, as forças, o pensamento, a existência. A documentação era incompleta e ele sabia o. Nas suas relações com as palavras
era empolado e embrulhava-se em
frases complicadas. "A irritação do peso da água, na perturbadora influência que exerce pela inavaliável compensação da respiração da pele, foi experimentada no
doente, de tal forma que valores susceptíveis de ser medidos foram obtidos. Leu esta sibilina frase e declarou que não era harmoniosa. Riscou-a num traço espesso
e nervoso que rasgou o papel. Elisabete voltou da cozinha com o moinho do café que, pacientemente, colocou entre os joelhos. Os ombros curvavam-se e o médico olhou
para ela. Mas não a viu. Pensava: "As experiências já feitas partindo de anteriores ensaios demonstraram que a respiração ..."
- Kola! - chamou ela em voz baixa.
Tinha, às vezes, a impressão de ser transparente como um fantasma, quando ele olhava assim para além dela. Hoje sentia-se irritada. Sob uns olhos assim, nenhum outro
recurso restava à mulher senão murchar e envelhecer - e aquilo não lhe parecia agora tão natural como julgara. Santa Maria, mãe de Deus, pois ela não se punha agora
a pensar que também podia florescer?!
Guinchou o moinho, subiu o aroma do café e o médico teve a sua escura água quente.
- Aquele maldito... aquele Lungaus! - disse ele, furioso - Os coelhos bebem, vêm para aqui com as cabeças a deitar sangue e se, em seguida, apanharem alguma septicemia
a culpa é minha.
Abriu bruscamente a janela e a noite penetrou no aposento juntamente com um frio glacial.
- Está a nevar... sempre quero ver o que acontecerá amanhã.
E continuou a andar dum lado para outro. Elisabete movia-se e a chávena do café estremecia. Era uma catástrofe o Lungaus ter-se embriagado: mas nem dera por isso.
Coisas mais importantes se haviam passado, interpondo-se entre ela e as regras da casa.
- Não te apoquentes. - disse, embora se sentisse refractária à compaixão.
E pensou: "Que tenho eu que ver com esse Lungaus? Como cheguei a afligir-me por sua causa?"
Sentira já isto como um desejo de libertação mas nunca o exprimira. Agora via claro. Olhou em redor; as beiras das pálpebras estavam ainda ardentes e sensíveis,
orlava-as uma frescura como se ainda lá houvesse lágrimas. com infinito anseio olhou para o ombro de Kola, desejaria poder lá encostar-se e encontrar repouso. Mas
o marido não lhe agradava naquele momento, não lhe agradava mesmo nada.
Pegou no balde, cheio de bocados de algodão empapados de sangue, e levou-o.
Pensou: "Nas horas mais importantes é que sentimos como estamos sós."
Assim que a mulher saiu, o doutor soçobrou. Ainda leu: "por uma inavaliável compensação da respiração, experimentou-se no doente..." Depois exclamou: O quê? Quando
o doente ia vadiar embebedando-se como um porco ? Estava farto, infinitamente farto, farto, farto. Não te apoquentes, Kola. Devias ir deitar-te, Kola. Não fumes
tanto, Kola. É claro que as mulheres não sabem dizer mais do que isto. Vão lá fazer compreender a uma mulher o que significa um homem e a sua ideia...
O médico fechou a janela. Tossiu e apressou-se em engolir a tosse e mandá-la para os pulmões com o fumo do cigarro. Elisabete voltou com o balde vazio. Milhares
de vezes tinha ido despejar o balde cheio de algodões purulentos e empapados em sangue. Hoje, dez minutos antes da meia-noite, muito excitada, teve, de súbito, como
em sonhos, a impressão de haver caminhado sempre com aquele balde de detritos; atravessou a porta como num abismo, como se atravessasse uma fenda aberta no gelo.
No entanto, florescia nas paredes um papel cheio de botões de flor em tons optimistas... mesmo em conformidade com o estado de alma dos habitantes de Lohwinckel.
- Mandaste o dinheiro?-perguntou o médico.
- Qual dinheiro ?
- Os cinquenta marcos para o pantoscópio.
- Mandei.
Desejaria dizer não mas respondeu sim. E logo em
seguida sentiu um grande terror dentro de si. Era assim no casamento: tornava-se preciso calar certas coisas, esconder, disfarçar - ser casado é sempre e em toda
a parte uma das mais delicadas formas de dissimulação entre dois seres. Mas era a sua primeira mentira directa e flagrante. Sabe Deus como aquilo ia continuar em
tais condições de complicação e confusão que tudo fazia prever. Ficou hirta de medo e olhou fixamente para a cara do médico. Estava cheia de rugas - seguia com os
olhos a voluta que descia para a sobrancelha esquerda-e rugas que ela ainda não vira. Tinha apenas trinta e dois anos. Havia de falar nisto ao Markus... ou antes
ao Karbon.
Embora ela tivesse mentido, o doutor adivinhou uma parte dos pensamentos que ela não exprimira, como frequentemente acontece entre esposos.
- Temos agora muitas dívidas, não? Faço ideia do que se terá gasto nestes últimos dias! - perguntava por cima da chávena de café, perscrutando-a com o fixo olhar
de médico.
Quando Elisabete chorara de tarde, na sala dos banhos, julgara ter exgotado os soluços até à última lágrima ; mas afinal enganara-se. De súbito, uma nova reserva
surgiu. Continuava a olhá-lo fixamente, mas as lágrimas correram primeiro como inoportunas e depois acalmando a. Ele via o fenómeno com certa impaciência. Cenas
destas depois da meia-noite afiguravam-se-lhe indesejáveis. Deitou um olhar exausto para o manuscrito e disse em voz meiga:
- Vai-te deitar, minha filha.
- vou. - murmurou ela, obediente.
O marido aproximou-se, sentou-se no braço da poltrona de consulta e acariciou-lhe os cabelos lisos da nuca.
- Tens trabalhado muito nestes últimos dias, an ?
- perguntou - com certeza que não passaste as contas a limpo ?
- Passei. - murmurou ela que tinha tudo em ordem devido aos remorsos e à consciência pesada.
- Onde dormes desde que Sua Eminência está no nosso quarto ? - interrogou, já distraído.
- No quarto da pequena. vou deitar-me. Não trabalhes muito, Kola.
Inclinado para a caixa das fichas, o médico franziu as sobrancelhas. "No quarto da pequena... Lembrava se vagamente de que não havia lá nem sofá, nem cama, nem lugar
para uma pessoa se deitar, mas não possuía uma ideia exacta da disposição da casa; era destes homens que nunca sabem o que comem, que fato trazem vestido nem em
que espécie de cadeira estão sentados.
- Amanhã pomos o sr. Karbon na rua. Isto aqui não é uma casa de saúde. - disse de repente.
Elisabete parou no limiar da porta.
- Está bem. - respondeu.
Doía-lhe horrivelmente a garganta ao pensar que o Karbon se iria embora, era uma ideia cheia de sombrio e acabrunhador desespero.
- Mandá-lo-emos para casa do Raitzold, é o melhor que temos a fazer.
- Também acho. Ele prosseguiu:
- Poderá fazer olhos doces à sua actriz. Será esplêndido para ambos.
Desta vez, Elisabete não pôde responder. Engoliu qualquer coisa ácida, escaldante, amarga. Como nunca tivera ciúme, não soube o que aquilo era. Pensou: "O frasco
de sublimado já está vazio". Pegou nele, deixou correr água para dentro e deitou-lhe seis pastilhas avermelhadas. Precisava de fazer qualquer coisa, fosse o que
fosse, para transpor aquele momento de vertigem. E pensava ao mesmo tempo: "Mas eu que tenho com isso? Que tenho eu com isso, não me dirão?"
Sem entoação desagradável mas já inclinado para as fichas, o médico perguntou:
- Poderei agora trabalhar tranquilamente?
- Se é por minha causa, o melhor é deixá-lo cá ficar. Não me dá trabalho nenhum. - conseguiu enfim dizer.
O médico voltou-se e fitou-a. Vendo-lhe o rosto febril, pensou: "Preciso de lhe auscultar os pulmões",
Ela continuava:
- Quero dizer... se os Raitzold fizerem dificuldades... Eu tenho muito prazer em tratar dele.
Olhou-a, sorrindo:
- Exactamente como a Avelã a tratar das bonecas doentes. Boa noite. - e desta vez esqueceu-se completamente dela, consagrando-se à respiração e ao peso da água que
não podiam ser avaliadas no seu doente.
No vestíbulo, a mulher beijou o corrimão da escada, como se fosse um humano. A madeira usada era macia tanto ao contacto da mão como da cara. Algumas vezes sentia-se
tão abandonada de Deus e do mundo, que procurava refúgio nos objectos.
- Tu! - murmurou.
E não sabia se se referia ao hóspede adormecido, ao marido trabalhador ou à madeira muda, talhada num carvalho muitas vezes centenário.
A quarta-feira começa, logo de manhã, por uma formidável discussão entre o médico e o operário Lungaus, entorpecido, ainda pelos proibidos vapores do álcool. Dum
e doutro lado, há pragas com ranger de dentes, numa exaltação verdadeiramente desesperada. Porque não se trata apenas duma simples noite de bebedeira. Lungaus luta
pela sua liberdade de homem e não sabe como se há-de exprimir, embora tenha o sentimento de que é ofensa à sua dignidade não passar de ser sempre um "doente". Quanto
ao médico, nada mais é preciso dizer do que isto: trata-se da sua Ideia. As traves estremecem em toda a casa, a cal escorre, toca o telefone, a doente da pneumonia
morre no Priel com setenta e oito anos, o telefone toca sem cessar, a D. Leore manda perguntar se é hoje que lhe tiram os pontos, a água nos W-C não funciona outra
vez. Lungaus invoca os seus
deuses para não ir à oficina, não parte a lenha, deita se na cama e torna a adormecer. A sr.a Persenthein lança as últimas pàzadas de carvão no fogão da cozinha.
- Jesus, Maria, contanto que os Klinker mandem mais carvão mesmo sem este ter sido pago! O cacau para o sr. Karbon. Estará a dormir ainda ? Não; já lhe ouvi os passos.
Ó Kola, não poderás ver se a bomba lá de baixo funciona ? Nem pinga de água. Ó Avelã, corre a casa da sr.a Psamatis, diz-lhe que vá à rua do Priel, 31.
- Hoje não começo a consulta antes do meio-dia. Bem, até logo, minha filha.
A Psamatis não quere ir lavar e vestir a velha que morreu. Fez isto durante quarenta anos mas agora torna-se recalcitrante e recusa. O filho está doente; ainda não
melhorou do pontapé apanhado no domingo, no futebol. Ela está farta daquele modo de vida, tem que mudar, tudo tem que mudar. Que a família trate de lavar os seus
mortos, pois então! é para ficarem sabendo como um morto é pesado e custa a levantar ou a virar.
O sr. Oertchen, o proprietário da hospedaria de Oertchen, põe na fachada um grande cartaz com letras garrafais: "Hoje à noite grande sessão de cinema. A artista
Leore Lania, célebre em todo o mundo, no seu melhor filme: Uma aventura em Monte-Carlo. Programa esplêndido. Música. Entrada proibida às pessoas que tenham menos
de dezoito anos."
Um segundo cartaz, concebido nos mesmos termos, encontra se na porta do Angermann, enviesado por baixo do São Jorge e vai outro para o armazém do judeu.
Mas o sr. Markus ausentou se. Está em frente, na loja do cabeleireiro e, é verdade! foi arranjar as unhas.
- Ponteagudas ou ovais? - pergunta a rapariga da boca pintada e má reputação.
- Talvez ovais mas levemente ponteagudas.
- Onde fomos no domingo? -pergunta a manicure. Tem bastante tacto para evitar o tu mas demasiada intimidade para o tratar por senhor.
- A parte nenhuma... Estive a trabalhar,
-Em quê? Versos?-interroga, cheia de curiosidade e suspendendo a lima.
Tem gostos muito elevados a infeliz que veio parar a Lohwinckel!
-Sim, pouco mais ou menos. - responde o judeu, cheio de orgulho.
Traz óculos, e um casaco preto apesar da hora matinal. Numa palavra, prepara-se para ir ao Domínio apresentar os seus cumprimentos a Leore Lania.
- Vai-se ao cinema ?-pergunta o escândalo vivo da terra, na sua forma indirecta de se lhe dirigir.
- Talvez... Um bocadinho mais de brilho, sim? Já vi aquele filme há um ano, em Berlim.
Fica silencioso. Não pode pensar na grande cidade sem ter vontade de chorar. Oh! as conferências de Fahrenwaldt, a galeria do Deuíches Theattr, os passeios dominicais
em barco à vela no Havei, os lugares lá em cima nas "imperiais" dos autóbus, as salas, todas as salas de concerto, os museus, as bibliotecas...
- bom dia, sr. Behrendt, bom dia. -e lá vai passando, perdido nos seus sonhos, ao lado de várias notabilidades, enquanto se dirige para a loja.
- Aqui está um fulano que cada dia se mostra mais pretencioso. - diz o farmacêutico ao presidente da câmara, que anda a passear o cão.
O dr. Ohmann, o presidente de honra da Sociedade "União e Fraternidade", é um cérebro inteligente que outrora contribuiu para que se instalasse a luz eléctrica e
se construísse o novo liceu.
- Acha? Dizem que toca bem violino. Porque motivo não o convidamos para as nossas sessões de música de câmara ?
- É impossível, bem vê, embora se trate duma pessoa muito culta... No entanto... E a sua filha como está? Bem? E o noivo, igualmente? Ficará em Darmstadt, depois
do casamento, ou virá estabelecer-se aqui? Só Deus sabe como precisamos de outro médico!
- Mas parece que, desta vez, o nosso doutor trabalhou muito bem.
- Teve sorte... O que não impede que a estatística lhe atribua 25 de falecimentos.
-Ora, ora, Bchrendt... Adeus, até à vista. vou até à grade do Burhenne.
As dez horas todos os alunos do liceu estão reuni dos na aula. Cheira a cabelo molhado com as riscas mais ou menos rectas, a sanduíches de chouriço, calçado engraixado
- um indefenido aroma a escola e idade ingrata. O reitor pronuncia um discurso que não está mal elaborado:
- Não quero condenar duma forma absoluta o facto de se recusarem a denunciar o autor do desacato. Eu próprio os eduquei num espírito colectivo e muitas vezes declarei
que os alunos do liceu formam uma comunidade. No entanto, ofende me e magoa-me que, com o vosso silêncio, isto é, com a vossa aprovação, vocês escondam um acto tão
grosseiro, tão bárbaro, como este: a destruição duma pequenina árvore de fruto. Magoa-me profundamente.
E realmente, é uma coisa que entristece o reitor Burhenne, o fanático amador de espécies raras em árvores de fruto com que ele enche grande parte do programa ministrado
aos alunos. O seu marmeleiro está perdido; rugas desoladas riscam em todos os sentidos a sua cabeça de Bismarck.
- Se o autor da malvadez não possuir a dignidade suficiente para se denunciar, tomando a responsabilidade dos seus actos, o liceu inteiro ficará de castigo esta
tarde, depois das quatro horas. Todas as classes deverão estar presentes e até às seis horas...
Detrás do órgão, dá um passo em frente o hornem de confiança do sexto ano:
- Tomo a liberdade de pedir ao sr. Reitor o favor de transferir o castigo para amanhã, visto que hoje temos a nossa reunião de jogos.
- Jogos ? Proibi os desafios de toda a espécie. E aproveito a ocasião para lembrar às classes superiores, de maneira formal, a interdição que fiz sobre o acto de
fumar, Quem não se apresentar esta tarde, às quatro horas...
De repente, o dr. Kreibisch intervém na conversa. professor de cultura física, inglês e geografia, de vinte e sete anos de idade, fora mandado vir pelo presidente
da Câmara duma escola naturista. Os rapazes são-lhe muito afeiçoados, e corre mesmo o boato inverosímil de ele ter permitido a três alunos do sétimo ano que o tratassem
por tu. De pé, destacando-se no vidro multicor da aula, intervém :
- Realmente, sr. Reitor, é o dia regulamentar previsto para os exercícios de educação física. Os nossos rapazes tinham combinado uma espécie de exibição de ginástica
: barra fixa, bassball, cem metros. Convidaram o campeão de box, é uma coisa que os entusiasma, evidentemente. Se me permite que interceda em seu favor...
- Isso está absolutamente fora de discussão. O campeão de box? O senhor está vendo onde conduz essa educação que não faz senão selvagens. Meia volta. Marche!
Os dois filhos do sr. Profet, Otto e Paulo, têm grandes orelhas encarnadas. Kolke dá uma calcadela no mais novo porque é um choramingão, um traidor e um amarelo
- não se pode confiar nele. Na escada, o aluno do sétimo ano, Gurzle, mostra-lhe o enorme punho cerrado e húmido. Passa, de mão em mão, um bilhete escrito com tinta
da China, vermelha: "Reunião secreta à uma hora, por trás do lago dos patos".
Entretanto, o boxer Albert está sentado em face do seu segundo almoço - não fazem outra coisa senão almoçar, naquela casa. Pensa melancolicamente: "Daqui a pouco
estou gordo que nem um cevado!" Mas ataca o prato cheio, sob o olhar insistente e significativo da sr.a Profet.
Franz Albert foi sempre o homem menos independente que existiu sobre a terra. Desde os dezassete anos que estava sob a guarda e a disciplina do seu treinador Simotzky;
é pesado, alimentado, obrigado a engordar ou emagrecer, treinado para os combater, lançado para o ring ou retido, segundo as conjecturas. Simotzky anda sempre atrás
dele, come e dorme a seu lado; despacha-o como uma encomenda postal, expede-o para
Espanha, Holanda ou América; arranja-lhe os músculos de que precisa, o dinheiro que ganha, os adversários, os bilhetes de comboio e mesmo, lá de longe em longe,
mulheres. Simotzky sabe do que ele carece, quando deve comer, beber, transpirar, treinar-se ou jogar as cartas para se acalmar. Simotzky é bom como uma ama e severo
como um guarda de galera.
Fora pois a este Simotzky que Franz Albert escrevera uma carta absolutamente correcta, nos seguintes termos:
"Ex.mo Sr. Alexandre Simotzky Escola de Educação Física Kaiserallée 14 a. Berlim.
"Meu caro Alex:
Informo-te que tivemos pouca sorte com o carro e que capotámos. Não te assustes, meu caro Alex, porque tudo se passou bem e estou são e salvo. O susto apenas me
destrambelhou um pouco os nervos e por estes tempos mais chegados não me sinto em estado de trabalhar. Mas o médico afirma que o moral ficará bom dentro de poucos
dias. Os outros estão pior do que eu, sobretudo a Lania que apanhou um golpe valente. Creio que está morta: tem a cara toda cheia de costuras. Eu tenho apenas uma
coisita no nariz, o polegar direito esfolado e a cicatriz da orelha que tornou a deitar sangue. De resto, sinto-me bem. Estou alojado em casa de pessoas amáveis
e ricas, num verdadeiro buraco mas extremamente simpático. Mas como demais e alimentos pesados: a senhora está sempre a insistir e, por delicadeza, tenho que lhe
obedecer. Receio que toda esta comezaina me faça perder a linha, mas não te apoquentes, o Franz é pessoa de juízo. Quando tiveres marcado o encontro com Kid Rowles
telegrafa-me e logo. Podes contar comigo. Jurei a mim próprio nunca mais viajar sem ti.
Teu fiel amigo
Franz."
Como nenhuma ordem vem em resposta a esta carta, Franz Albert conserva-se provisoriamente tranquilo em Lohwinckel, restabelecido mas desamparado e absolutamente
incapaz de ir de seu motu-próprio até à estação de Lohwinckel-Dusswald e daí até Berlim.
"Faço-me velho aqui" pensa na quarta-feira. Então dirige-se para a cozinha, corta um bocado da corda de estender roupa e começa por saltar três vezes seguidas, tão
levemente que mal se vêem os pés a tomar contacto com o chão. De olhos comovidos, a sr.a Profet assiste ao espectáculo. Em roda do homem flutua um cheiro tão forte
e são a suor que a sr.a Profet sente uma grande vergonha.
Entretanto, o marido está em comunicação com o seu amigo Kramsch, de Schaffenburg.
- Muito bem. Conta com isso. Torno a ficar com as outras hipotecas, trinta e oito mil marcos, não contando com os juros vencidos desde Maio. Corro o risco, é claro.
O quê ? As vinhas pertencem há duzentos anos aos Raitzold ? Muito bem; pois pertencerão durante os dois próximos séculos à minha família, pois então. Menina, não
desligue! Que horrível está hoje o telefone!...
É um golpe napoleónico temido pelo sr. de Raitzold há mais de quatro anos. Mas sempre faltava coragem ao Profet para o tentar. Agora tudo se move como num tremor
de terra. Primeiro são as folhas das árvores que tremem imperceptivelmente depois o solo que escorrega a uma velocidade espantosa. Lohwinckel estremeceu, agora caminha.
Onde está o Muller com o carro ? O Muller está ali mas não o carro. com os dentes cerrados declara:
-O automóvel não anda. Faltam lhe peças, é preciso esperar que venham de fora.
O sr. Profet não percebe nada e resolve ir a pé para a fábrica. Durante os quarenta e quatro minutos de caminho há muita gente que o não cumprimenta.
A fábrica está no mesmo estado que o carro: não funciona. Os operários-mais dum terço -conservam-se lá a fingir que trabalham. Na moldagem, a corrente eléctrica
foi cortada, estando imersos em profunda obscuridade o depósito n.? 3 e o da embalagem. "Um curto-circuito cuja causa permanece ignorada" dizem eles, encolhendo
os ombros.
- Nós fartámo-nos de pedir que abrissem janelas nestes depósitos, foi uma coisa que pedimos sempre. declara Birkner que relata o que se passa, com ar importante.
O sr. Profet, que sente o sarcasmo e o espírito sedicioso, bate em retirada.
- Trate de me pôr tudo pronto a funcionar para amanhã de manhã; a responsabilidade é sua.
São palavras absolutamente absurdas, tanto mais que se não dirigem ao enérgico chefe dos delegados operários, a Birkner, mas ao velho contramestre Hockling, inocente
e atrapalhado, que coça com terror o fundo das calças.
Ó tempo também anda desorientado: em Outubro faz tanto calor como se fosse o pino do verão. Espraiam-se pelo céu pequeninas nuvens, dum azul transparente, o ar está
húmido, as últimas flores de chicória, à beira do caminho, têm um aspecto fatigado, se bem
que teimoso.
Dá meio dia na igreja. Está a findar o mercado de quinta-feira; ninguém poderá dizer porque motivo os ovos aumentaram dois pennig. Ficam no chão cascas de cebolas
e folhas de alhos franceses, esmagadas, até que o Schmittbold apareça com a sua vassoura e, numa nuvem de pó, restabeleça a ordem. O velho abade sai da igreja depois
de ter ouvido em confissão a costureira Ritting que lhe confessa um pecado venial: ocupa-o muitas vezes e compreende-se visto que é aquele o único divertimento que
tem na sua vazia existência de solteirona. A sr.a Markus leva uma galinha viva, metida numa toalha, ao velho sapateiro e carniceiro judeu Popp, para que a sangre,
segundo o ritual, com um golpe no pescoço. A esposa do presidente da Câmara, com um vestido em que o tom branco está bastante alterado, segue pela rua do Priel até
ao court de ténis, por snobismo. Excitado, o sr. Profet sai da Caixa Económica, atravessa o largo amornado pelo sol e desaparece sob o
portão da Câmara construída em MDCXV e restaurada em MDCCCCVII. Precisa de falar ao presidente, com a máxima urgência.
- Parece que toda a cidade está fora dos eixos. Bem, mande-o entrar. - diz o dr. Ohmann ao seu secretário Haberlandt.
Em frente da papelaria-livraria da viúva Seeling há um magote de gente para ver os postais que mostram a Leore Lania muito meiga com olhos encantadores e ar misterioso.
Vindo de almoçar, os funcionários públicos detêem-se pensativos, apoderando-se deles o estranho sentimento de que aquela mulher, aquela estrela, aquela pessoa impalpável
está bem perto deles.
A Avelã passa na rua com um cesto onde vão ossos para o cozido. Leva o macaco azul que suscita a censura geral.
- Já sabe se o doutor operou a Leore Lania? Ela prometeu-lhe três mil marcos se ficasse sem marca nenhuma.
No "Cisne Branco" põem lençóis limpos numa cama e enceram o chão dum quarto em intenção ao sr. Karbon que o reservou pelo telefone para as duas da tarde. A mulher
do hoteleiro perdeu a cabeça: está a pôr paninhos de croché em todos os sítios possíveis e imaginários.
Uma menos um quarto: os rapazes saem do liceu ; pode começar a reunião secreta por trás do lago dos patos. com melancólica expressão, a pequena Madona que está por
cima da fonte obstruída oferece ao filho a maçã de pedra. Passa sob o pórtico o segundo carro da correspondência, vibra a casa do Angermann, dói a cabeça ao Lungaus
e, no quarto, o Peter Karbon está a arrumar a mala amachucada para se ir embora.
Naquela quarta-feira, ele acordara com a cabeça livre, como pessoa de boa saúde. Ainda lhe doía o ombro mas não lhe desagradava tal sofrimento: representava um resto
de fadiga e de aventura. Havia poucos periodos na sua vida que não tivessem impressões daquelas
- assim como as crianças que têm sempre os joelhos feridos - e achava esse facto quási natural.
- Isto agora vai. - murmurou, enquanto lavava os
dentes.
A ideia de mudar de casa já o tinha assaltado mas
tomou a firme decisão um pouco depois das nove, quando, em frente do cubículo de arrumações, viu a Elisabete ocupada a engraxar-lhe os sapatos.
Estava sentada no soalho com a semi-escuridão a comer-lhe o rosto empalidecido e o grande sapato de Peter enfiado na mão esquerda, enquanto a direita espalhava a
pomada e esfregava concentrada e gravemente.
- Que está a fazer? - perguntou ele num tom que a vergonha tornava duro. Tirou-lhe o sapato da mão e pegou no pano da terebintina. De resto, isto não adiantou muito
porque ela pegou logo no exemplar seguinte, da grande fila exposta, e começou a rapar a lama dos tacões cambados, do marido. Mas corou levemente.
- A criada não aparece há dois dias! É de Obanger e não sei que coisas lhe disseram. O Lungaus nunca mais acorda! A pequena é que me tem ajudado...
Dava estas explicações, confusa e desesperada.
- Pois eu costumo sempre limpar o meu calçado. É um hábito inglês. Na Inglaterra inteira, nenhum lord permitiria, fosse a quem fosse, que lhe engraxasse o calçado.
- afirmou Peter audaciosamente.
Acabou daí a pouco de puxar lustro ao seu sapato castanho e apoderou-se do calçado feminino que estava colocado fora da fila. Elisabete ticou exuberantemente alegre
- o que a surpreendeu. Era um dos relâmpagos que, de vez em quando, a atravessavam.
- A história dos lords é muitíssimo conhecida. Agora o que eu ignorava, era que os lords engraxavam também os sapatos das ladies nos castles em que são
convidados.
Peter assobiou. A sua mão foi até ao fundo do sapato e experimentou um sentimento de malícia atravessado por profunda ternura. O sapato era comprido e tomara a surpreendente
estreiteza do pé da sua dona. Tinha o tacão bastante gasto, estava roto na ponta mas
fora cosido com o encerado fio de sapateiro. Peter acariciou docemente aquele sítio deteriorado, lançando um rápido olhar à Elisabete. Ela notou mas ficou muito
grave. Havia entre os seus ombros meio metro de ar que estava carregado duma corrente alta, enervante e perigosa. Mais longe, via-se a Avelã a rapar conscienciosamente
a lama das suas botinhas, sempre úmidas.
- Sonhei consigo. - disse ele. Silêncio. O par seguinte.
- E verdade. - acrescentou como se ela tivesse duvidado. - Foi maravilhoso.
Silêncio.
- Milady não responde?
Elisabete ergueu os olhos e mergulhou-os verticalmente nos de Karbon. E pensou: "Isto não pode continuar!".
Disse corajosamente:
- Desorienta-me.
- É verdade ? Desoriento-a ? - e colheu avidamente o seu olhar.
Pouco a pouco, também ele ia ficando sério.
- É verdade ? - perguntou ainda.
Sentia um grande desejo de lhe apertar a mão, colocando-a sobre o seu coração, mas ambos tinham as mãos metidas nos sapatos.
- A mamã chorou muito. - anunciou a Avelã lá do fundo do cubículo.
Nessa altura, Karbon resolveu pôr a escova no chão e acariciou, por três vezes, os joelhos da Elisabete.
- A mamã não deve fazer semelhante coisa. - disse em voz baixa.
Foi imediatamente tomado por uma pressa terrível.
- Tenho que telefonar já. - declarou, dirigindo-se para o aparelho.
- Mas o que foi? Porquê? - perguntou Elisabete, aflita.
- Porque estou restabelecido. Não sabe que todos os berlinenses de saúde começam por telefonar durante uma hora todas as manhãs ?
Elisabete levantou-se e sacudiu o avental - não era o da véspera mas o das joaninhas.
-O telefone está na sala de consulta. Desculpe eu não o acompanhar... Preciso de arrumar aqui.
- Ainda não deu por isso? -O quê?
- Que eu ando a correr atrás de si como se fosse um cãozinho de regaço, que ...
Chegou à sala onde se notavam já vestígios da passagem do médico: fumo, cinzeiros cheios, chávenas de café vazias, e folhas de papel por todos os lados.
Quis telefonar mas teve que recorrer à ajuda da Avelã que deu volta à antiga manivela. Procurou na lista telefónica: Maiença e arredores, Lohwinckel, ver em Lohwinckel-Dusswald.
- Bem, agora está aqui tudo de que precisas. Eu vou-me embora porque tenho imenso que fazer.- disse a Avelã, cheia de importância.
Mas, primeiro, tinha várias missões a cumprir naquela sala: estava encarregada de esvaziar o cesto dos papéis, pôr em fila os copos vermelhos, verdes e azuis (médicos
modernos, não empreguem senão as ventosas coloridas de Kliemann!), procurar a correspondência, colocar por números, as revistas que se encontravam misturadas já lia correctamente os algarismos).
A Elisabete andava dum lado para o outro; respirava à janela a tépida manhã, ouvia os sinos que tornavam a tocar, desta vez para a falecida da rua do Priel, n.?
34.
Ao telefone, Karbon disse:
- Como dão uma impressão católica, estes sinos! Falava com a Leore Lania. A Elisabete que não
queria ouvir, ouvia tudo.
- Então como vai a Pittyevitte? É preciso ter juízo, Pittyevitte. Esta tarde irei ver a pobre Pittyevitte.
Ardeu lhe no peito a mesma queimadura intolerável e maldosa. Desta vez compreendeu: era ciúme. Sentiu rasgar-se qualquer coisa dentro de si e, enquanto estava de
pé em frente do esterilizador, pescando com a pinça os especulum fervidos na água, teve um relâmpago de lucidez. Entretanto, Karbon já mandara preparar um
quarto no "Cisne Branco", falava a Franz Albert e alcançara par meio duma chamada urgente, inter-urbana, um tal Droegemann, no seu escritório de Berlim. O rosto
de Karbon mudou de expressão, pôs a máscara que todos os homens usam no exercício das suas profissões e surgiu um turbilhão de datas, conferências, cabogramas para
Londres, discursos do Ministro dos Negócios Estrangeiros e contra seguro. Por fim, houve censuras por causa da detestável tradução dum texto de publicidade - e como
vai o negócio russo ? Obrigado. Até amanhã.
-Pronto!-e voltou o rosto anterior.- Já fiz alguma coisa. Agora posso cá ficar o tempo que for preciso.
- Então quando pensa em se ir embora?
- Isso não depende de mim. - respondeu em ar misterioso.
Estava entusiasmado ao ver a nuvem cor de rosa que subia pelo pescoço da Elisabete. E pensava: "Que diabo! Pois ainda há uma mulher que saiba corar?!Ela raciocinava:
"Claro! Tem que esperar pela sua actriz." E sem mais conversa, dirigiu-se para o vestíbulo onde os primeiros doentes vinham chegando. Ele pegou na vassoura de que
ela se esquecera.
Às dez horas, Peter Karbon pôs a funcionar a bomba eléctrica do subterrâneo, às dez e meia foi para a cozinha partir lenha e depois ocupou o lugar do Lungaus sobre
o caixote do carvão, ajudando a descascar as batatas. Preparou ainda as sandwiches para o segundo pequeno almoço do médico, enquanto a Elisabete fazia o chá e escolhia
os espinafres. Karbon estava divertidíssimo; era ridículo e estúpido querer ficar ao pé daquela mulher, mas era assim mesmo: resolvera não a largar nem um minuto,
pelo menos provisoriamente. Quanto a Elisabete, nunca na sua vida se sentira tão feliz como naquela manhã. Era uma felicidade dançante e dolorosa, uma felicidade
transparente e cheia de luz que flutuava por cima dum abismo de angústia e de pressentimentos de partida, que é afinal o início do amor -um nevoeiro dourado antes
do nascer do sol; o fruto coberto
de orvalho antes que a mão venha colhê-lo; um coração em botão.
No intervalo, como um fantasma, o médico apareceu duas vezes na cozinha, com os olhos febris, deprimido, de mau humor e com a voz cheia de censuras:
- Mas porque demónio não foram preparadas as espátulas? Onde estão elas? No armário também não há! Realmente não é exigir muito, desejar que tudo esteja em ordem
para poder trabalhar. Se realmente nem espátulas há...
Elisabete correu ao armário.
- As espátulas estão aqui. A Avelã pô-las do lado direito em vez de as pôr à esquerda. Aqui estão, pronto, não te zangues, Kola.
Mas o Kola não era mais do que uma sombra pesada e carrancuda no meio dos seus doentes de pele úmida.
Um pouco antes do meio-dia houve uma estranha conversa entre Karbon e a esposa do médico.
- Se a Elisabete pudesse formar três votos e que todos se realizassem, o que pediria?
- Oitocentos e vinte marcos. - disse ela, sem reflectir. Era a soma que calculara sempre no livro das contas: as dívidas ao Markus, o dinheiro para o carvão, a carne
e a manteiga, três prestações do pantoscópio, um aparelho de transfusão de sangue, sapatos novos para a pequena, quatro pares de lençóis, doze pratinhos de vidro,
afinar o piano e um casaco para o inverno: oitocentos e vinte marcos.
As mãos de Peter estremeceram como se se tratasse de pescar um afogado, mas pô-las logo em descanso sobre a mesa.
"Não posso, realmente, mostrar-me grosseiro e passar-lhe um cheque. - pensou - Não posso responder
nem uma palavra. Que diabo! E é superior às minhas forças vê-la, aflita por causa duma quantia insignificante. Por fim, disse:
- Mas isso não é um voto. Devo ao seu marido o quádruplo dessa importância. Ora vamos: faça três votos verdadeiros.
Elisabete olhou-o atentamente. Levou algum tempo a assimilar a resposta, pensando na soma a que ele vinha de aludir. O quádruplo! As preocupações são o mais tenaz
hábito que há no mundo. O pobre diabo a quem saiu a sorte grande, continua a acordar todas as manhãs a pensar na maneira como há-de ganhar o pão cotidiano. A Elisabete
era incapaz de imaginar dinheiro em quantidade suficiente, o que lhe dava grande amargura. O sr. Karbon era um homem rico que pagava e prosseguia no seu caminho.
E eles ficavam em Lohwinckel. A sua sorte que lhe importava?
"Como ela respira!" - pensava Peter, encantado. Dir-se-ia que não respirava como as outras pessoas. Era preciso que estivesse apaixonado e louco de alegria para
encontrar qualquer coisa extraordinária na sua maneira de respirar. O lábio superior que, em geral, estava descido, subira, o que lhe dava uma expressão de abandono
e de surpresa, a garganta movia-se lentamente, mais de quinhentas joaninhas lhe percorriam o avental azul.
- Então ? Três votos verdadeiros. - exigiu Peter.
Desta vez, pôs-se a reflectir e muitas coisas supérfluas se lhe apresentaram ao espírito, desviando-a do essencial: outra vez os lençóis, uma nova máquina de costura,
o aparelho de rádio, uma reparação a valer no aquecedor dos banhos. Por fim, chegou ao mais importante.
- Desejaria tornar a ser o que fui. - e as suas omoplatas, sempre fatigadas, inclinaram-se ainda mais.
- Então como era dantes? - perguntou ele, sorrindo.
- Não sei... alegre. Sim ... Talvez tonta e superficial mas tão alegre! Fui criada no meio de rapazes, porque o meu pai queria que eu estudasse. Não era feita para
isso, mas fartei me de pregar partidas com os rapazes. Se me tivesse pedido para subir lá acima à
torre da igreja, não hesitaria um segundo. Depois passei uns seis meses em Munique. Meu Deus, se pudesse ser outra vez a rapariga que esteve em Munique!
- Sim? E quando mudou?
- Quando casei, é claro.
Disse isto espontaneamente mas logo se arrependeu. E emendou:
- Mas sou muito feliz com o meu marido. - e teve uma expressão de teimosia. Olhou depois para as
mãos.
Também Peter fixou as palmas abertas. Havia dois dias que ela começara a cuidar das mãos com creme e verniz. No entanto, durante os dez segundos que se seguiram
e enquanto ambos olhavam para as esguias mãos gastas pelo trabalho, foi como se toda a mágoa e todas as decepções da sua vida estivessem visíveis nas
fendas da pele.
Furioso, Peter pensou: "Espinafres. Graxa, pó de
carvão. Que estupidez!"
- Bem. Agora o segundo voto.
- Tive sempre a ideia que, mais dia menos dia, havia de ir a Nápoles.
-Ah?! E porquê Nápoles?
- Não é bonito?
- É lindo. Mas não é uma viagem; está muito perto. vou dizer-lhe uma coisa, Elisabete. Todo o mundo é bonito; ainda não vi um local que me tenha desagradado. Mas
viajar é outra coisa. A inquietação, compreende? O sentimento de ser levado para longe, de se mover - à noite quando se acorda, ouvem-se as rodas, sentem-se os eixos
a girar. Está no transsiberiano, vamos, são dois dias até Omsk e depois Irkusk, ou mais para lá ainda, no Oceano Pacífico, ou num paquete... a gente a ir e vir na
ponte por exemplo, às três da manhã, a ouvir o ruído da vaga fendida pela proa, a hélice que estremece avançando sempre, a não estar mais onde se esteve - esta impressão
é tão forte que até dá vontade de gritar de prazer!... Mas Nápoles
porquê ?
- Não sei. Em casa de meu pai tínhamos um
quadro... adormeci tanta vez a olhar para Nápoles que ... Deve ser por isto.
- Não faça votos tão modestos. Diga antes: índia. -Está bem, então a índia.-concordou ela, sorrindo como uma criança. E ele pensou: "E hás-de vê-la!" Elisabete olhava
para aquele homem desconhecido com a sua madeixa de cabelos ruivos, assustada como se de repente se tivessem aberto todas as janelas do Angermann e entrasse um vendaval.
Países estranhos, o mundo e a aventura. Nenhum homem em Lohwinckel se parecia com aquele, tudo era descolorido em seu redor. Espantava-se, quando o olhava de imprevisto,
que existisse na realidade uma espécie de homem tão inacreditável.
8 - Agora o terceiro voto.
- Ainda me falta um ? - perguntou ela com uma
expressão tão grave e aflita, como se Peter Karbon fosse um feiticeiro fugido dum conto de fadas, que obrasse milagres prodigiosos - Mas que brincadeira tão tola!
-e levantou-se - vou mas é para a cozinha, tenho lá os legumes à minha espera.
Ficou com os olhos mesmo em frente da sua boca, quando se levantou. Viu-lhe os lábios desenhados com tanta perfeição e nitidez como que através do microscópio, que
sentiu o coração apertado.
Evocando uma longa estrada de mulheres diferentes, ele disse:
- É a primeira mulher que tem exactamente a minha estatura. Dançaríamos maravilhosamente, juntos. Gosta de dançar?
- Adoro.
- Dança muito?
- Nunca.
O facto de ele ter dito nós, nós dançaríamos, tornou
a fazer-lhe afluir o sangue à nuca. Havia naquela palavra qualquer coisa: ou promessa ou ameaça. Qualquer coisa que se aproximava. Quis fugir.
- Espere! - gritou Karbon, correndo atrás dela.-
Então o terceiro voto?
Parou. Deteve-se no limiar do quarto da filha. Lá dentro, um pacífico urso de peluche almoçava com duas bonecas gravemente enfermas e a Avelã traçava algarismos
num velho livro de contas.
No tom apressado que ouvira cem vezes à mãe,
disse:
-Não me incomodem. Preciso de fazer as minhas
contas.
Peter reteve a Elisabete pegando-lhe no cotovelo. Tinha uma pele macia, fresca, de pulsações multiplicadas.
- Então ? - perguntou.
- É difícil... Desejaria que tudo isto mudasse.
- Como ?
- Tudo. Diferente. Não sei como, mas diverso.
- Bem. -pronunciou Peter no tom de voz com que respondia quando lhe faziam uma encomenda. E
largou-a.
Ela desapareceu logo na escuridão da escada de madeira. E no mais íntimo de si própria, murmurou: "Mas já tudo mudou!
Karbon gritou-lhe ainda:
- vou fazer as minhas malas. -O quê?
Lá em cima, no patamar, tinha um pouco de claridade em redor da cabeça e dos ombros.
- Vou-me embora. Não quero cá continuar em
sua casa.
Elisabete ficou pregada ao quarto degrau.
- Mas porquê, meu Deus?
- Porque... Mas não posso agora berrar isto atra vês a casa toda. Dir-lho-ei esta tarde. Logo vamos dar um passeio.
- Não tenho tempo.
- Tem que o arranjar. E desapareceu.
Elisabete encontrou na cozinha os espinafres demasiado cozidos e o lume quási apagado. Lançou-se ao trabalho como se fosse salvar a sua alma náufraga e tomada de
vertigem. Desejaria passar dez minutos na
igreja mas não lhe era possível. Apressou-se a engomar umas toalhas, depois o doutor chegou e veio buscá-la. Embora fosse quási meio-dia, o vestíbulo estava cheio
de gente; a rumorosa inquietação de Lohwinckel vinha bater, com as suas indefiníveis vagas na casa do Angermann. Na sala de consulta, tratava-se de lancetar um panarício
a uma criança recalcitrante e mortalmente aterrorizada. Elisabete colocou nos joelhos o homenzito a debater-se, o pequeno embrulho de pulsações cardíacas, e prendeu-o
nos braços.
- Mais alto. - ordenou o médico. - Mais perto da janela. Agarra-o com força. Também estás a tremer? Se não consegues ficar imóvel, então ...
Elisabete dominou-se. Respirava com precaução o cheiro que subia da bata do marido: um cheiro a iodo e tabaco barato. Saltou pus do abcesso aberto, sentiu-se envolta
em nevoeiro e quási a desmaiar. Teve receio de não aguentar, lembrando-se do horror que tinha ao aroma clínico do marido. Depois, a criança começou a chorar copiosamente,
encostando o rosto molhado de lágrimas ao seu peito.
- Lá para fora. - ordenou o médico. - O seguinte. Aqueles pequenos braços estranhos em redor do seu
pescoço, deram a Elisabete um leve reconforto. A Avelã nunca chorava, nunca beijava e nunca tinha necessidade de ser consolada; o seu sólido coraçãozito parecia
estar protegido por uma concha.
"Mas que tenho eu?" - perguntava a si própria, enquanto entregava o rapazito ao pai. "Tudo está em ordem."
- Aqui tem mais roupa que lhe pertence. - disse, quando, passado um quarto de hora, entrou no quarto onde Karbon fazia a mala. - Mas que lhe deu assim, de repente,
para querer ir-se embora? Ao menos, cá em casa, sempre tem um quarto de banho, uma coisa que não encontrará em todo Lohwinckel...
Era um argumento desastrado, nada em proporção com a suplicante expressão dos seus olhos - expressão que ignorava.
Karbon deixou logo de fazer a mala e caminhou
para ela através do soalho às ondas. Visto de dia aquele quarto era horrível e cortava a respiração: lá estavam as camas herdadas do tio Burhenne, o teto sombrio
e pesado, o toucador com o oleado imitando mármore.
- Bem sabe porque me vou embora. Acha que não tenho razão?
- Não. - disse ela, enquanto pensava "sim".
- é melhor pôr os pontos nos is. Primeiro, detesto ser servido por si, acho isso vergonhoso. Não posso suportar por mais tempo essa tortura. E de resto... devido
ao que se passa entre nós, prefiro não habitar na casa do seu marido. Tenho muita estima por ele. - E inclinou levemente o corpo.
Todas estas frases vibraram aos ouvidos da Elisabete como se fossem lâminas. O seu coração parou.
-O que se passa entre nós... mas é absurdo! balbuciou.
Ele estava em pé, com a cabeça encostada à porta e desviado de Elisabete.
- Não podemos falar longamente disto. Faltam hoje, no nosso vocabulário, alguns termos apropriados. Não posso começar por dizer: "Amo-te e "Amas-me?" Mas, ambos,
sabemos muito bem o que se passa. Sabes que não te abandonarei aqui. E eu sei que partirás comigo. Queres mais explicações?
- Mas não é verdade, não é verdade!- balbuciou Elisabete - Não é verdade ...
Tremor de terra, catástrofe, explosão. Karbon avançou para ela, da porta até à beira do leito. com furiosa violência desejou beijá-la, beijá-la de tal maneira que
ela se tornasse nova: tirá-la da casca anterior para lhe dar a sua verdadeira forma. Parecia-lhe mascarada desde que a vira pela primeira vez, nobre, simples no
seu avental de Gata Borralheira. Para todos estes pensamentos não havia palavras nem imagens, enquanto a tomava nos braços com a boca suplicante sob a sua - era
uma labareda de sentimentos dirigidos para o céu. Quanto a Elisabete, parecia-lhe que levara a vida inteira a esperar aquilo, a impressão de afundamento, sentindo
espalhar-se sobre si a realização de todos os seus sonhos.
-Isto é que é verdadeiro... -disse ele, quando a libertou do beijo.
com os olhos cegos, ela dirigiu-se para a janela. No fundo do quarto, Peter Karbon estendeu o queixo, bateu nos quadris, aspirou violentamente o ar. Tinha a impressão
de que o seu futuro se lhe erguia na frente, leve e colorido como um cacho de balões. Recuperando o sangue-frio, pegou no calçado envolto em papel de seda, depois
no cabide desmontável e continuou a arrumar as suas coisas.
- E como é que isto vai continuar entre nós, Elisabete?
-Continuar? Que ideia! Vai partir e eu ficarei aqui.
- Não pense nisso. - E de novo ela sentiu a sua aproximação ardente e vibrante.
Precisamente no momento em que a sua fronte atingiu o ombro de Elisabete, bateram à porta. Apareceu o Lungaus, que tinha dores na cabeça e na consciência, mas que
continuava a arvorar o seu aspecto teimoso e mal lavado nas flutuantes calças do médico.
- Não queria incomodá-los, -disse com prudência
- vinha apenas saber o que há acerca do meu pequeno almoço.
- Tem café lá dentro. - respondeu Elisabete, sem se voltar.
- O café não está dentro do meu regime, por causa dos venenos que devo evitar.
- Então espere até ao meio dia. Não preparei nada para si.
O Lungaus, à porta, estava petrificado.
- Mas preciso de comer. Não me sinto nada bem. -gemeu.
A Elisabete esforçou se por conservar as mãos imóveis, acalmar os lábios e a voz, mas tudo tremia ainda.
- Há chouriço na sala de jantar. Vá lá e faça uma Sandwich.
-Chouriço, eu? Chouriço?-perguntou o homem, entrando no quarto com os chinelos a arrastar e cheio de espanto.
De repente, Elisabete sentiu se farta dele e de tudo, dos três anos de cuidados dispensados ao Lungaus e do seu longo martírio em holocausto à Ideia. Voltou-se bruscamente:
- Se você se pode emborrachar como um porco, também pode comer chouriço!-e, ao gritar isto, tinha os lábios pálidos, as unhas brancas e a íris dos olhos mais clara.
Karbon deu uma grande gargalhada, por trás da tampa da mala. Lungaus meneou a cabeça, em ar significativo.
- Eu só queria dizer: e o doutor, que fará quando souber? Chouriço!
- É escusado dizer ao doutor. - respondeu Elisabete, voltando-se outra vez para a janela.
Lungaus observou-a, olhou para Karbon e voltou a observar Elisabete.
- Ah, bom. É escusado dizer ao doutor? Está bem, cá por mim ... Eu não direi coisa nenhuma... - e foi-se embora.
Caiu um pouco de caliça quando ele fechou a porta. O São Jorge, a primitiva estátua em madeira, de enorme cabeça, enterrou a sua lança no focinho agolfinhado dum
tosco dragão. Começara a anarquia na casa do Angermann.
Quando Leore Lania empreendeu aquela viagem de recreio teve, entre outros, o desejo de se desabituar dos estupefacientes. Mas agora que estava estendida, doente,
no quarto de hóspedes, ora fresco, ora abafado, do Domínio, com a cabeça atordoada pelas preocupações, não pensou mais em se privar. Mandou várias mensagens através
do mundo a alguns homens dedicados; mas conhecendo bem a comunidade humana, não esperava nenhum socorro. Telegrafou, por exemplo:
"Doutora Marta Stein Neubabelsberg
Não te assustes, minha querida, ainda estou viva, stop, manda recortes jornais sobre desastre para Raitzold Lohwinckel, stop. Beijos da pobre Loleyn..
Na terça-feira chegaram realmente alguns jornais onde se falava de horríveis fendas no rosto. No intervalo, mandara uma carta ao sr. Erich von Mollzahn, Kíel-Holtenau,
aeroporto marítimo.
"Meu querido, estou deitada debaixo dum dossel de cama e peço a Deus para que a minha carta te apanhe não estando tu empoleirado com o teu pássaro em sei lá que
ponte de navio, ou então na iminência de te fazeres projectar por qualquer catapulta num oceano ignorado onde não chegariam os gritos desesperados da tua Bibi. É
claro que me sinto muito infeliz, doutro modo não recorreria a ti. Bem sabes que, quando estou infeliz, és tu o único. Viste os jornais? Devem fazer um barulho espantoso
com tudo que inventam! Agora ouve: preciso que procures um médico, o melhor especialista em cirurgia facial que possas descobrir. Caí aqui nas mãos dum homem no
qual não tenho a mínima confiança; tem umas patas enormes e faz doer imenso -dá a impressão de que onde toca nada mais renasce. As pessoas que me alojaram também
não têm consideração por ele; acaba de fazer uma operação mortal num criado. Pois bem! Provisoriamente, a Bibi ainda está viva, mas tu que a conheces, bem sabes
que ela só viverá o tempo que quiser e nunca com o rosto desfigurado. Oh, meu querido Erich, ainda se tu estivesses junto de mim, uma só hora que fosse! És tão grande
e ajuizado e tens as mãos tão quentes! O Karbon, com quem comecei a maldita excursão, é muito gentil mas também está ferido e não imaginas como as pessoas se tornam
egoístas depois de desastres assim. De repente, uma pessoa descobre que andava a viajar através do mundo com entes absolutamente
estranhos. A Bibi está neura, já percebeste? Alimentam a Bibi com um pequeno tubo de vidro e só toma coisas líquidas; cobriram-lhe de emplastros metade da cara.
Vive aqui longe de tudo, numa propriedade melancólica quási a falir. "Queda da Casa Usher", lembras-te? Em frente das janelas há nuvens e andorinhas que se juntam
para partir. A minha cama está rodeada de cortinados que têm um cheiro esquisito, a bafio. O quarto é gelado, só queimam madeira molhada, de pinho, e lamentam-se
por causa da sua floresta que não tem árvores, dos impostos e das vinhas hipotecadas. Dentro de quatro dias, o médico quer tirar os fios - depois se verá. Era engraçado
se, num buraco destes, chamado Lohwinckel, eu precisasse de me utilizar do velho revólver com o qual me ensinaste a atirar ao alvo. Não queria ficar aqui enterrada.
Trata de mim, envia-me um médico de renome e que me diga a verdade, vem já arrancar-me daqui, amigo, amigo, querido amigo. Já sabias que me tinha divorciado do Pertóffy?
Mas custou mais do que entre nós; ele ficou me com rancor.i
Calculou quando aquela carta poderia partir, chegar ao seu destino, trazer lhe socorro: o total que obtinha era uma eternidade. Esforçava-se por lutar contra as
horas, acendia a luz, apagava, lia umas revistas de 1880 em papel amarelo e cheirando a tabaco, ouviu o cão, o rumor das árvores, a chuva, o vento, a noite, o cantar
sempre igual dum pássaro desconhecido, na escuridão. Por fim abandonou a luta; às três da manhã tomou um comprimido de veronal, às quatro, outro, depois contou uns
milhares de carneiros que entravam para o redil, sentiu-se mais pesada e deixou-se esvair. Adormeceu à hora em que a casa acordava.
Dois galos começaram a cantar; um sabia e outro aprendia. Depois guinchou a porta do curral, uma lanterna atravessou o pátio levada por pessoa de tamancos, o balde
bateu no rebordo do poço; o vento virou e veio até à janela, úmido e carregado de cheiro a feno e a estrume. Em casa, o sr. de Raitzold tossiu, os rebentos
da vinha virgem, que subiam pela parede, estremeceram docemente antes do nascer do sol, alguém prendeu o cão, apaziguando o com palavras. Uma estreita barra verde
aclarava já o horizonte mas a Jacinta Raitzold levou ainda a lanterna para cortar as últimas flores dos canteiros e colocá las nos cestos de vime para os expedir.
Combatia em vão e bem o sabia. O Domínio estava sobrecarregado de dívidas, hipotecado a mais não poder ser. Havia anos que se andava a fazer um buraco para se tapar
outro. Começaram desesperadas experiências que deram mau resultado. Tinham criado porcos, mas os preços baixaram; tentaram semear trigo americano (a estação de Estudos
Agronómicos prometera um rendimento cinco vezes maior) mas o terreno não era próprio. Durante dois anos o vinhateiro teve prejuízo; noutro ano em que a vindima foi
boa, ele vendeu o vinho na terra - só de pensar nisto ficava doido. Faltava-lhe estrume para a sementeira do outono, o gado não chegava para a extensão da propriedade
e os produtos químicos eram carissimos. O seguro não estava pago. Quanto aos impostos, haviam obtido já duas esperas no pagamento; agora estavam ameaçados de penhora.
A colheita das batatas ainda durava; no sábado mal tinham tido dinheiro para pagar aos trabalhadores. Mas, naquela semana, nem isso seria possível fazer. Cheio de
pânico, o proprietário correra em todas as direcções. Tratava-se de guardar a "costa do sol, o melhor bocado de vinha de toda a região, o centro e coração do Domínio.
O sr. de Raitzold desorientara-se nas finanças. Estava sentado em frente dos livros, calculava os juros simples, os compostos, os moratórios, os suplementos de oito
por cento, pela tardia declaração ao estado, os juros das dívidas hipotecárias cuja importância estava escondida pela palavra "provisão". Calculava, perdia-se, deixava
de perceber, não ousava mostrar os livros a ninguém e errava, perdido,entre os classificadores, os recursos judiciais e as intimações amarelas, verdes, vermelhas.
Entretanto, a irmã enviava flores para Schaffenburg, trinta litros de leite para Dusswald, oitenta e cinco ovos para o mercado semanal de
Lohwinckel. As dívidas do irmão elevavam-se, em conta redonda, a 250.000 marcos e ela colhia um lucro semanal de 54 marcos. Não tinha outro remédio senão sorrir
melancolicamente, muito magra e com botas de montar.
Naquela quarta-feira que começara, logo após o nascer do sol, por um calor enevoado como se fosse Agosto em vez de Outubro, parecia que não havia mais flores. Toda
a gente tinha margaridas e gladíolos, por isso não valia a pena mandar. Quanto às rosas não havia mais de vinte a vinte e cinco que iam abrir: uma espécie amarelada,
cujas pétalas tinham um rebordo avermelhado e levemente enrolado. Ela tocou numa flor e fitou-a; era o mesmo gesto com que se ergue a fatigada cabeça duma criança
para lhe analizar o rosto. Durante momentos, perguntou a si própria se poderia subir o preço daqueles exemplares, mas depois murmurou :
- Não. Dar-lhe-ei todas. Todas! Pegou na tesoura e cortou as flores, com gestos agitados e abruptos que contrastavam com a sua habitual calma. Depois murmurou:
- Ainda está a dormir.
Passou pelo subterrâneo e respirou o ácido aroma a fermentação, como qualquer coisa que lhe pudesse trazer alívio, deixando pender a mão esquerda que tocava no fresco
orvalho da folhagem. Tinha o hábito de falar consigo própria, a meia voz, como fazem as pessoas muito solitárias.
com efeito, Leore Lania estava deitada na sua cama, com os olhos fechados, quando a idosa senhora entrou com precaução e espalhou as flores sobre ela, úmidas e abertas
como estavam. Tinha apoiado a parte intacta do rosto na curva do cotovelo e a outra, que lhe fazia doer e sentia arrepanhada, estava descoberta. A ferida fora protegida
por uma leve tira de gaze. Os cantos dos lábios, contraídos, mostravam uma expressão de sofrimento que comoveu profundamente a dona da casa. Durante algum tempo,
permaneceu imóvel a contemplar a actriz. Leore Lania sentia aquele olhar sobre si, mas
fingiu dormir, esforçando-se por ter as pálpebras imóveis, como durante uma tomada de vistas, no estúdio, por fim, ela afastou-se do leito e voltou costas. Imediatamente
a Leore a observou. Tirara as botas altas em atenção à visita matinal que desejava fazer e em meias escuras foi até à porta. Aí parou e voltou-se. Levou as duas
mãos à boca, num movimento estranhamente apaixonado e murmurou para si:
-Meu Deus! Meu Deus!
Parecia um pedido de socorro.
Leore teve vontade de se rir.
Entretanto, a senhora deitara um olhar para o fato da actriz: um pijama preto e quente no qual ela passava a convalescença. Olhou com ternura para aquele pequeno
monte de lã bordada a seda. Estava no chão porque a Lania era incapaz de pôr qualquer objecto no seu lugar. Jacinta de Raitzold apanhou-o, ficou imóvel durante um
segundo e, com uma expressão passageira embora extremamente resoluta, apoiou a testa no pedaço de tecido preto que tinha na mão. Leore Lania decidiu acordar. Fê-lo,
interiormente divertida e com alguns pequenos sons preparatórios que deram à dona da casa tempo para largar o pijama.
- bom dia, minha senhora. - disse Leore, oferecendo à luz a parte intacta do seu rosto. Desde o dia do desastre que começara a treinar-se para esconder o lado ferido.
- bom dia. Dormiu bem ?
- Obrigada. Maravilhosamente. -Sem pó soporífico?
- Sim.
Passava assim a vida rodeada por um turbilhão de pequenas mentiras. Era um silvado protector e emaranhado por trás do qual escondia a sua delicada pessoa ameaçada.
Jacinta de Raitzold, da outra extremidade do quarto, como duma ilha, não sabia mais que dizer.
- Que lindas flores! São para mim? Desastrada, respondeu-lhe:
- Vendidas, não davam nada ... Quer tomar banho?
- Se isso não lhe causa incómodo...
Dava-lhe um grande incómodo, mesmo. Naquele velho castelo decrépito não havia nada que não desse trabalho. As campainhas não funcionavam, as chaminés ameaçavam cair
ou incendiar-se; por economia, haviam cortado a corrente eléctrica da bomba, tornando a fazer-se o serviço com o velho poço do pátio. Mas a dona da casa foi-se logo
embora, em meias, calçou as botas à porta e mexeu-se com tal ardor na cozinha que a Lania teve a sua água quente e o seu pequeno almoço apenas com meia hora de atraso.
Foi ela própria que pôs a mesa no terraço, serviu o mel e a manteiga orvalhada de gotas de água, saindo do velho molde de madeira e tendo impresso o escudo dos Raitzold
na sua brancura de creme.
-Que fino! - exclamou Leore, esfregando o nariz com um rebento de vinha-virgem que lhe caía em cima. Tudo isto me faz pensar na minha infância. O meu avô também
tinha assim uma propriedade. Era um general reformado, um homem valente como as armas.
Não havia uma única palavra verdadeira em tudo isto. Lania fazia uma representação para si própria: "Manhã no Castelo." No pátio, uma gata trazia um filho na boca
e pôs-se a brincar com ele. Jacinta de Raitzold, que sorria, tirou, envergonhada, as mãos da mesa. Desagradavam-lhe subitamente, tinha a miserável certeza de ser
feia e desgraciosa; escondeu bem depressa nas algibeiras do casaco as unhas cheias de terra, disse "Vamos e ia se embora.
- Fique mais um bocadinho"comigo...-pediu Leore que ainda conseguiu agarrar-lhe um braço, apoiando nele a testa, em gesto de súplica. Aquelas pequenas carícias até
na América eram célebres...
- Infelizmente não tenho tempo. - murmurou a Jacinta, sem se ir embora.
-Bem sei. Dou lhe tanto que fazer! Como ficará contente no dia em que se vir livre de mim!
- Não diga isso, pelo contrário, que ideia!-respondeu a senhora, muito aflita. - Não diga isso ... - e decidiu sentar-se, ás cavaleiras, na balaustrada do terraço.
A menina é... representa uma felicidade que esteja aqui,
Não sei como poderíamos ter passado esta semana, se não tivéssemos tido a sua visita. E o meu irmão também...
- Ouvi-o tossir e andar dum lado para o outro durante toda a noite.
"Então não dormiu?" pensou, sorrindo à mentira.
- Sem a sua presença, o meu irmão teria ido abaixo. Mas graças a si, domina-se, conserva a disciplina. Ainda bem!
- Liga assim tanta importância à disciplina ?
- Claro! Sem ela, como se podia viver?
Leore Lania estendia os fios de mel, com a colher, e expunha-os ao sol.
- E muito boa para mim! - disse, e num gesto espontâneo estendeu a mão para Jacinta.
Mas ela estava ocupada a acender um pequeno cachimbo. Lania piscou os olhos. Tinha muita curiosidade pelo seu semelhante e queria sempre tentar várias experiências.
Como toda a gente estava sozinha por trás da sua fachada limpa e bem conservada!
- Observei várias vezes que as mulheres um tanto masculinas são excessivamente bondosas. - disse ela sem fitar a sua interlocutora, a qual respirou o fumo do cachimbo,
lançou um rápido olhar para a actriz mas não disse palavra. - Tenho muita simpatia por esse tipo.- continuou Lania, como que prosseguindo um monólogo. - A amiga
com quem eu habito, parece-se consigo; é arquitecto. Esquisita! Antes de eu a conhecer, viveu durante três anos com uma rapariga pintora, uma criatura adorável.
Quando a minha amiga se separou dela, matou se. Fim, pim! Uma bala em pleno rosto. Deve ter sido uma coisa horrível. De então para cá, a minha amiga não ficou boa
da cabeça. Tudo leva a crer que as verdadeiras paixões, o que outrora se chamava "o grande amor" não se encontram senão nestes casos especiais.
Leore Lania estava comendo a sua torrada de mel. A Jacinta olhava para o pátio, enquanto ia ouvindo o que ela dizia. Eram palavras sem peso que passavam como penas.
Em tom ligeiro mas voz grave, disse;
- Realmente, tenho ouvido afirmar que essas coisas
existem...
- Se existem? Ora essa! E eu poderia contar-lhe muitos casos... Tanto mais que as mulheres simpatizam imenso comigo. Tenho uma data de admiradoras. vou aos seus
clubes.
- Clubes ? -"perguntou a idosa senhora, enquanto ia observando a mulherzita-pássaro que falava com frivolidade sobre essa maneira de ser que encerrava tanta solidão,
tanto anseio perdido e oculto. Continuou: Disse "mulher masculina". Soa graciosa e simplesmente. Mas aqui, na nossa região, dizem: "a velha maluca, a matias..."
Dói-lhe alguma coisa ? - perguntou, inquieta, ao ver que a Leore tinha repelido o pequeno almoço com gesto resignado, crispando-se-lhe o rosto em redor da ferida,
sob a tira de gaze.
- Não, não. - respondeu, teimosa.
com as pontas dos dedos, tocou nas pálpebras, que lhe pareciam inchadas; era o gesto característico das pessoas que abusam dos estupefacientes e que têm a consciência
inquieta.
- Já estive noiva...
Leore esperou pelo resto. Possuía uma técnica especial que consistia em esquecer a presença das pessoas que desejavam fazer-lhe confidências.
Em voz rouca, continuou :
- Estive noiva dum rapaz da região. O pai era então o maior proprietário das vinhas da Hesse renana. Mas não foi por diante. Não pude ... não pude resol ver-me.
Tinha medo. Muito medo. Não pude. E agora não passo dum velho cavalo de carga. É verdade.
Silêncio. Para si própria, prosseguiu:
" Aos dezassete anos apanhei uma bofetada duma rapariguita do campo e não percebi porquê... só muito mais tarde." Não teve coragem de dizer isto em voz alta e resumiu:
- Só mais tarde se compreendem certas coisas. Leore Lania aproximou a sua face da velha mão
que lhe agarrou nos cabelos como se fosse o pêlo dum cão; estava habituada apenas ao calor dos animais.
- As pessoas andam dum lado para outro com uma parte tão natural de vida e felicidade... Cada humilde vaqueiro recebe o seu quinhão. Mas eu? nunca tive o meu!
Leore deu um beijo no sítio onde tinha a face. A tira de gaze tocou na áspera pele que cheirava a terra e a tabaco. Jacinta permaneceu algum tempo de pé, em atitude
pensativa, como se estivesse ouvindo distante música.
- E diz que há clubes? E as mulheres são felizes nesses clubes? - perguntou.
- Não sei. A mim, não me interessa.
- Não lhe interessa porque vive noutro meio. Mas a mim interessa-me.
Ficou ainda imóvel, na mesma atitude, e depois corou violentamente, o que produziu estranho efeito na sua pele morena e queimada. Disse:
- Desculpe-me este arrazoado.- e retirou-se à pressa. A Leore sorria enquanto a ferida, tumefacta, lhe ardia atrozmente.
Pouco depois das dez horas, fazendo grande ruído, com o escape aberto, entrou no pátio do Domínio a crepitante motocicleta do dr. Persenthein, que se mostrava muito
fatigado e não tinha ainda tirado do rosto a expressão dos pêsames que apresentara na rua do Priel, n.? 34. Vinha tirar os fios da ferida e havia já uma hora que
a actriz armazenava coragem para o aflitivo momento.
Odiava o médico porque se sentia nas suas mãos e era-lhe antipática porque a ferida começara a SU purar e receava que não cicatrizasse bem. Cada vez que lhe segurava
no rosto, sentia as mãos pesadas, desajeitadas, estragadas pela prática de todos os dias. Quanto à actriz, dirigia-se para o aroma de iodofórmio das suas mãos como
para o cadafalso. Quando estava bem, passava horas em frente dum espelho de três faces, agora fugia de se ver, sentindo um medo horrível a apertar-lhe o coração.
- Fiz-lhe doer? -perguntou o médico quando a pequena operação acabou.
- Bastante. - respondeu só para lhe desagradar, pois não sentira nada.
O médico examinou-a com o olhar penetrante e objectivo que um artista dedica ao seu trabalho, o marceneiro com a cadeira, o sapateiro com a bota, E disse:
- Não tem má aparência. Quer ver?
- Não! - respondeu com violência.
com a ponta da língua tateou a beira dos lábios e encontrou uma crosta rugosa. Sem dizer palavra, foi sentar se no canto mais sombrio do aposento. Descontente, o
médico despediu se e continuou a sua peregrinação através Obanger revolucionado. Faltava-lhe a presença da filha no assento traseiro; estava de mau humor porque,
havia alguns dias, a criança andava esquiva.
- É preciso acabar com esta desordem. - decidiu. Dois doentes tinham recaído. No Lungaus nem era bom pensar. "Estás enervado, Kola", dizia Elisabete, com ternura.
Estava enervado, e então? Atravessou a rua de Dusswald, com a cabeça a zumbir como se tivesse lá dentro um cortiço de abelhas.
A visita que a Lania recebeu a seguir, foi a do sr. de Raitzold. Todas as manhãs vinha cumprimentá-la, fiel àquele dever mundano, sem saber se ela estimava ou não,
tal praxe. Vestia para a cerimónia uns elegantes trajos fora de moda e travava a conversa dum oficial de há trinta anos. Lembrava-se vagamente de que maneira se
devia falar às actrizes e que espécie de anedotas elas apreciavam. Lania ouvia-o, grata pelos galanteios que lhe dirigia acerca da sua beleza, fingindo que não tinha
nenhuma cicatriz na boca. Olhava-o arqueando as sobrancelhas, como se ele fosse um fidalgo comparsa que exagerasse o papel, tanto na caracterização como no jogo
fisionómico. Havia naquilo tudo pequenos buracos, pausas durante as quais ele tornava a mergulhar nas suas preocupações, cheio de rugas e desgostos. Tinha grandes
mãos com dedos amarelados pelo fumo e salientes veias azuis. De vez em quando, puxava-lhes a pele, que não se mostrava elástica. O pequeno monte de pele ficava plissado
durante segundos e depois tinha ele mesmo que o alisar tristemente.
Suspirou. Proferiu algumas ameaças dirigidas a
profet, o proletário, ao indivíduo destituído de qualquer sentimento de responsabilidade que viera não sabia de onde para tiranizar a região. A Leore aprovou as
excitadas frases.
- É preciso proceder contra ele, sr. de Raitzold! disse com energia.
Tais palavras deram ao gentilhomem uma grande força. Como numa comporta, amontoava-se nele enorme força. Olhava fixamente para as pernas da Leore, ocultas sob as
calças do pijama. Encontrava nela um ar cigano absolutamente imoral mas o seu lado viril e fanfarrão alegrava se com essa descoberta.
-Havemos de ver! Um fidalgo é sempre um fidalgo, enquanto um novo-rico não passa dum novo-rico. - declarou.
- O patrão onde está? Diga-lhe que desça; estão a telefonar de Schaffenburg. - gritaram no pátio.
O sangue afluiu à testa do proprietário, que saiu a correr. Voavam as mãos ao longo do gasto corrimão da escada. Haviam acabado por consertar o telhado com telhas
alcatroadas - o que saía mais económico. Exalava-se o cheiro do alcatrão que amolecia ao sol.
- O quê ? - gritou ele ao telefone. - O Banco Agrícola ? Mas porquê? Como? An? Não percebo!
Zumbiam-lhe os ouvidos e a pressão arterial saíra da normalidade.
- Mas não é possível é absolutamente impossível! Quando a conversa terminou, disse a meia-voz, para
si próprio : " É absurdo!"
Deixou-se cair numa cadeira, porque os joelhos não se aguentavam.
Passado algum tempo, o telefone tocou de novo. Ele considerou-o como o canhão dum revólver. Desta vez, era Peter Karbon que desejava falar com a actriz. Não foi
preciso chamá-la, apareceu logo.
-Até que enfim, até que enfim! - cantava ela, sentindo o sangue a bater-lhe na garganta.
- Não quero incomodá-la.- disse o fidalgo, com galantaria.
Havia apenas aquele aparelho no vestíbulo que
servia também de gabinete de trabalho e de sala de armamento.
- Não me incomoda nada! Deixe-se estar.
com efeito, ele não ouviu pronunciar senão palavras banais, em tom frio.
- Então como está a Pittyevitte ?
- Menos mal, obrigada. E tu ?
- Ali right. Tiraram-te os pontos? Sim? Fêz-te
doer?
- Não falemos nisso.
-Bem. E então como vais? Estás contente?
Na outra extremidade do fio, enquanto a Elisabete limpava o pó, Karbon pensou: "Se deu cabo da cara no meu automóvel, tenho que começar por casar com ela".
Leore Lania retomou alento para tornar firme a voz e provocar o riso de que necessitava.
- Estou pouco mais ou menos como uma torta que acaba de ser espezinhada por um cavalo. Mas agora isto há-de ir melhor.
- Bem; se já estás a brincar...
- Fica sabendo que, para me empregar nos lavabos de qualquer estação, sempre servirei...
- Pobre Pittyevitte, quando chegares a isso, eu serei o mais fiel dos frequentadores. Olha, posso ir visitar-te hoje de tarde ?
- Não; isso não.
- Não sejas tonto, anãozinho. Não sejas assim tão presumida. Quero ver-te.
- Estou horrível...
- Foste sempre horrível. Isso, para mim, não tem importância. Portanto vou aí esta tarde. Então não tens alegria em me receber? Queres largar-me assim?
- Oh, pelo amor de Deus! - replicou em tom seco
e resoluto.
Estava pendurado na parede um espelho Império, composto por pedaços adicionados, num vidro antigo e esverdeado. Lania viu o seu rosto doente atravessá-lo como o
dum fantasma, quando deixou o vestíbulo,
Pouco depois do meio-dia, à hora das visitas correctas, apresentou-se o sr. Markus no Domínio. Chegou numa bicicleta que encostou à parede, no pátio. Depois, tirou
os alfinetes de ama que haviam prendido, em baixo, a calça às riscas, do fato escuro. Já sabemos que estava recentemente barbeado, penteado e manicurado. O seu fato
viera de Berlim. com ofensivo pretenciosismo não era freguês do alfaiate Krainerz, o qual, diga-se de passagem, se vingava, comprando os seus produtos coloniais
e os mantimentos de uso quotidiano no velho armazém Gustavo Keitler, sucessor.
Markus estava bem disposto. Desde o desastre e a presença dos berlinenses em Lohwinckel que se sentia entregue a grande excitação. Aquilo era com ele, tratava-se
de pessoas que lhe diziam respeito... não se considerava o merceeiro um exilado cidadão de Berlim ? No entanto, sentiu se ligeiramente acanhado quando atravessou
o pátio, porque não conseguia dominar, em absoluto, o respeito que, em criança, experimentava pelo castelo. Através dos óculos, o seu olhar observou portas e janelas.
Tudo estava calmo; voaram dois pombos e depois tornaram a pousar, garridos e airosos, todos entregues ao seu devaneio. Um gato roçou pela caleira, sentia-se o meio-dia,
vinha da cozinha barulho de pratos acompanhado pelo estribilho duma cantiga.
Markus deu o seu cartão de visita a uma criada de cabeça atada, - era Lisette, a doente do dr. Persenthein que, periodicamente, sofria dos ouvidos - perguntando
por Leore Lania.
Cana. jure. lia-se no seu cartão. O Cana. jure. Heinrich Markus, uma personagem defunta, ressuscitara durante meia hora e estava de pé no pátio do Domínio, à espera
duma actriz célebre.
Só depois de muito procurarem por toda a parte, é que Jacinta de Raitzold encontrou a Leore no fundo da cavalariça vazia. Tinha lá travado conhecimento com
uma vitelinha de nove dias e entretinha-se com ela, um pouco divertida mas sobretudo ávida de reconforto - e também para abreviar as horas que a separavam ainda
da visita de Karbon.
- Quer ver-me? Mas quem é? - perguntou, sacudindo a palha do seu pijama.
- Oh! Apenas o Judeu, o merceeiro da terra. informou a dona da casa.
- E pretende ver-me?
- Todos os dias pede noticias suas. Escreveu um grande artigo sobre o desastre na Folha de Aviso, de Dusswald. O empregado dos correios, diz que ele mandou, pelo
menos, vinte telegramas para todos os jornais da Alemanha.
- Ah! Quem mandou os artigos?
- O Judeu,
A Leore, que até então, ficara ajoelhada em frente da vitelinha no quente e maternal aroma da vaca, levantou-se. E pensou: "com a imprensa há sempre complicações."
De repente, teve vontade de se mostrar a um homem, fosse ele qual fosse, antes de se encontrar com o Karbon, para ver se metia medo. Parecia-lhe natural toda a gente
poder fazer comparações entre o seu rosto antigo e o actual.
- Bem. Eu vou.
Atravessou o sol, que sublinhava todos os contornos com estranha precisão.
"Nem mesmo pus um pouco de pó" - murmurou. E deu de cara com o sr. Markus que estava parado no meio do pátio. Arvorou o maquinal sorriso de estrela de cinema e interrogou
o com o olhar.
Markus não teve coragem para ver logo a cicatriz. Murmurou qualquer coisa, inclinou-se e desviou a vista. Quando ela sorriu, sentiu a ferida a crescer mais dois
ou três metros e avolumar-se, ficando alta como um monte. Tudo isto se passava no seu pequeno rosto.
-Vamo-nos sentar à sombra. Quer uma entrevista ? - perguntou, cheia de experiência, conduzindo-o para um banco que estava ao abrigo num armazém de madeira velha.
Depois de se terem instalado, observou-o maliciosamente. As palavras "Judeu" e "merceeiro", ditas pela Jacinta, haviam-lhe sugerido a ideia dum patriarca barbudo,
uma espécie de Shylock. Ora o que estava a seu lado, era um rapaz baixo e acanhado, bastante presumido e pomadado, de cuja testa corriam gotas de suor que nào ousava
limpar, com calças negras orladas de pó e um apertado casaco perfeitamente na moda.. havia três anos. Saltava aos olhos que tal momento era para ele duma importância
excepcional. Durante os cinco primeiros minutos balbuciou, em esforçada luta contra as consoantes, tantas frases absurdas e inacabadas, que ela precisou de toda
a sua experimentada amabilidade para manter a conversa.
Quanto ao Markus, a sua situação era a seguinte:: sob o ponto de vista intelectual não ligava importância ao cinema, quási que o desprezava, até. No entanto, frequentava
o com assiduidade e algumas atitudes de Lania, haviam-se fixado na sua memória como que impregnadas duma ternura particularmente doce e perfumada. Além disso, todo
o universo exterior se incarnava agora naquela frágil pessoa, todo o mundo superior de que se sentia saudoso. E para mais, ela estava de pijama. Nunca se sentara
ao lado duma mulher vestida de pijama: ele que julgava possuir todas as maneiras do bom tom, sentia se paralizado. E achava-a muito mais bonita na realidade do que
no filme, com as pestanas tornadas hirtas pelo kohl. Sentia-se particularmente perturbado ao ver que aquela mulher que não conhecia senão projectada numa aparência
plana, era duma realidade surpreendente, com um corpo possuidor das três dimensões - esse corpo do qual emanava um fraco cheiro a cavalariça. Falava sem saber o
que dizia, angustiado ao pensar que ela podia levantar-se e ir-se embora, ficando assim lamentavelmente perdido o momento único. Encontrava se ali sentado como se
estivesse na ilha Salas y Gomez a fazer sinais para os navios que passavam, passavam, sem nunca o levarem...
- Estou aqui, em Lohwinckel, como na ilha Salas y Gomez, lembra se ?-repetiu, pela terceira vez.
A Leore, cuja instrução em zigue-zague, nunca encontrara a poesia de Chamiço, ignorava ao que ele fazia alusão. E pensava, impaciente: "Porque te enervas dessa maneira,
homem de Deus?"
- Oiça, sr. Markus,-disse, de repente, sem transição olhe para mim. Que tal acha? - Estendeu lhe o rosto e sentiu o sangue a bater mais fortemente nas veias da ferida.
O homem obedeceu e foi então que a Lania notou ter o provinciano uns olhos humanos, olhos tristes e inteligentes.
- Está muito feio? - perguntou ela, depois de ter
respirado e ficando à espera.
Eis o que se tinha passado com a cara da actriz: depois das injecções de novocaina para a anestesia local, ficara durante três dias inchada, desequilibrada e horrível.
Na terça-feira, tudo começou a voltar aos seus lugares, a distender-se e, na quarta-feira, o nariz e a boca haviam, de novo, retomado as suas formas e proporções.
Só a boca se conservava muito vermelha e tinha uma expressão estranhamente paralizada. O lábio superior decaía um pouco, dando à fisionomia certo ar triste e desolado.
A cicatriz estendia se do lábio ao nariz e ainda alguns milímetros mais longe, seguindo a asa do nariz, estendendo-se, enquadrada de carne vermelha e irritada, muito
delicada e ardendo constantemente. Um ponto deitava pus e estava protegido com o pequeno emplastro. Do lado dos lábios, o dr. Persenthein deixara a cicatriz à vista.
Estava coberta por uma leve crosta e o lábio superior, ainda levemente inchado, caía sobre o inferior, o que lhe dava uma expressão de pueril amuo -- expressão que
decerto ela não gostava de ver no seu rosto um
tanto sarcástico.
Markus mergulhou gravemente na contemplação de tudo aquilo, analizou e declarou que o mal não era muito grande. O que mais o comovia era o atroz medo impresso nos
olhos da actriz. Possuía a maldita qualidade de ser sensível, de ter a pele muito fina, experimentando tudo o que os outros sentiam. A tal ponto que ficou aterrorizado
quando viu o pânico da rapariga. Sem convicção, disse:
- Não vale a pena falar nisso.
Para quebrar o silêncio, fez estalar as articulações. Esforçava-se por encontrar qualquer frase consoladora. E prometeu:
- vou dizer no jornal que a sua cicatriz não se vê...
- Em que jornal?
- No nosso, a Folha de Aviso, de Dusswald. - respondeu com o sorriso de forçada ironia que arvorava sempre que falava das instituições de Lohwinckel.
-Ah!
- É claro que também posso mandar artigos para Berlim. vou tentar...-apressou-se Markus a dizer. Fui eu que enviei o primeiro telegrama. A redacção agradeceu me.
Reproduziram-no em toda a parte. Quer ler?
Leore Lania teve um olhar desconfiado para o gesto com que ele foi mexer na profundidade da algibeira interior do casaco -o gesto que vira fazer a tantos que lhe
traziam os manuscritos de cenários impossíveis. Apareceu um grande maço de recortes. O sr. Markus transpirava visivelmente; a calça resolveu subir mais e descobrir
grossas peúgas de lã cinzenta sob as quais se viam as ceroulas igualmente quentes, a fazer pregas. Colocara a seu lado o chapéu e um par de luvas de pelica, como
costumam fazer os senhores elegantes nas comédias fora de moda. Delicadamente, ela pegou nos papéis e lançou um olhar para o artigo que estava farta de conhecer.
Distraída, disse:
- Foi pena ter perdido a sua vocação para escritor. Ora aqui está uma frase que é das que nunca mais
esquecem! Chegou mesmo até lá dentro, ao coração do sr. Markus. Ele acabara de fazer vinte e sete anos. Aos sessenta e oito lembrar-se-ia ainda que fora uma pena
não ter aproveitado a sua vocação de escritor!
Entretanto, a Leore já estava ocupada com outra coisa.
- Visitou o Peter Karbon ? Como está ele ? Foi gravemente ferido ?
- O sr. Karbon ? Está esplêndido. É sólido ...
- Pois é.
- De resto, foi cuidadosamente tratado pela esposa
do doutor.
- Ah! Aquele pau de virar tripas? Antipatizo
com ela.
- É uma senhora muito respeitável. - protestou
Markus na sua voz de visita de cerimónia, tão contrastante com o tom desenvolto da actriz.
Ele próprio o sentia, mas sem poder dar-lhe remédio. Reconhecia agora que o casaco estava muito apertado; em geral, as pessoas de Lohwinckel usavam fatos muito apertados
e colarinhos altíssimos - descobriu isto como num relâmpago. Os berlinenses usavam tudo largo: Vestuário, gestos, ideias.
- O que pensa, ao certo, do dr. Persenthein ? É
este o nome, não é?
- Oh, não é tão mau médico como dizem ... Proferiu aquilo à maneira de consolação e o pulso da
actriz começou a bater precipitadamente. A ferida doeu-
-lhe mais.
- Também fui ver o sr. Albert. Está completa-
mente restabelecido.
- Albert? Quem é? Ah, o pequeno. -respondeu Lania. Esquecera-o de tal forma, que não conseguia agora recordar-se das suas feições. Por fim, reapareceu-lhe o rosto
de lutador, abrigado por trás dum braço dobrado sob a crua luz dum ring enquadrado em cordas.
- Àquele senhor não lhe aconteceu nada. Teve sorte.
- Teve. Mas também era uma pena: é tão inocente ! É por isso que anda sempre escoltado pelo seu Anjo-da-Guarda. - disse ela, esfregando os olhos.
Pensou: "Devo ter uma cara! É horrível uma pessoa não poder dormir toda a sua dose de veronal. E aqui não há maneira de dormir. É calmo demais. A gente começa a
pensar e nunca mais acaba!"
Olhou em redor. Cheiro a alcatrão, sonolência, cal a cair sobre a vinha-virgem na parede da casa e, ao fundo, o cacarejar paciente e atento duma galinha.
- Parece que se está a sonhar. E a gente tem medo de voltar a si. Ficar imóvel... sempre... é preciso ter nervos para poder suportar semelhante coisa, não é ?
para nós, é tudo o mesmo: trabalhar ou tomar coca. ("Tomar coca" pensou Markus. Ela dissera aquilo com tanta naturalidade que sentiu um pequeno arrepio). Uma pessoa
está aqui sentada e pensa, mesmo que não queira, em face de toda esta serenidade. Sabe lá o que me tem passado pela cabeça! Realmente não há direito que uma vida
inteira dependa duma ferida na cara, de dois centímetros de comprimento! A gente não devia viver assim, absolutamente voltada para o exterior, para a fachada. Não
há direito...
Leore Lania dirigira-se a Markus mas sem intenção: era lhe bastante indiferente para cortar o monólogo em sua honra. Ia falando para si própria. Mas também o fazia
com certa afectação.
Ele entrou de cabeça no campo filosófico assim aberto.
-Ah, minha senhora! - suspirou.-Mas quem é que, neste mundo, vive conforme o seu desejo?
Leore Lania ergueu a linha negra das sobrancelhas, assustada com o lugar-comum mas o Markus ficou com a impressão de ter proferido um profundo conceito.
Muito agitado, prosseguiu:
- Se me é permitido falar de mim, dir-lhe-ei que me sinto absolutamente deslocado aqui. A providência enganou-se na agulha, quando trilhou o meu caminho. V. Ex.a
decerto já notou que não fui feito para a existência duma terra tão pequena, sou exactamente o antípoda dum provinciano, mas sim um cidadão do mundo, direi mesmo:
um cosmopolita.
Ao dizer estas belas frases, ficou tão nervoso que os músculos das barrigas das pernas começaram a vibrar sob as peúgas de lã cinzenta.
- Eu sinto-me sacrificado no posto que ocupo, mas não o abandono. Leio muito, mantenho relações com o universo intelectual. Como desejaria poder mostrar-lhe a minha
correspondência! Tenho cartas dos homens mais notáveis: Thomas Mann, Anatole France, Einstein...
- Ah?! - perguntou a actriz, pouco surpreendidaE isso como é ?
- Escrevo-lhes. Quando li um livro ou ouvi uma
conferência pela rádio, escrevo-lhes e respondem-me sempre... quási sempre. Tenho retratos: Bruno Walter, Chaliapine...
- Eu também lhe hei de mandar o meu retrato. disse ela, maquinalmente. Bem sabia que cartas eram aquelas,
- Sim, realmente são pessoas notáveis. Mas aqui, compreende... estou completamente isolado.
- Porquê ?
O sr. Markus recolheu-se um momento, antes de responder. E depois, disse, concentrado e sério:
- Sim, minha senhora, eu vou explicar-lhe porque motivo me sinto assim tão isolado. com certeza que não percebeu que eu sou judeu?
- Sim, e então ? - perguntou ela não compreendendo o tom solene que ele dera à frase.
-E então? Mas, minha senhora, ser judeu é um destino! E... como dizer?... a gente fica tão só!
- Só ? Que ideia ! - e a actriz deu uma gargalhada
- Venha ver o que se passa em Berlim.
- Estive em Berlim, muitos meses, a estudar. - respondeu o judeu em tom sombrio.
- Ah, bem. Então sabe como é. Ser judeu! Mas que há nisso de extraordinário ? Já casei quatro vezes: dois dos meus maridos eram judeus. O Karbon também é.
- Karbon ?
- Sim, ou o pai ou então o avô. Que importância tem ?
- O sr. Karbon ? Mas não parece. Acho-lhe até um aspecto sueco.
- Bem. Se quiser, pode chamar-lhe sueco à sua vontade. - concedeu Leore, que sentia um doce prazer em ouvir pronunciar o nome de Karbon. Via nítidamente o seu cabelo
ruivo e saboreava mesmo o gosto dos seus lábios.
- Mas em Lohwinckel custa muito ser judeu. E quási impossível viver aqui! - concluiu Markus, dando a volta, em pensamento, à sua falhada existência de exilado.
A actriz pensou: "Esta gente não regula bem." E em voz alta, lembrando-se de Jacinta Raitzold:
- Acho que vocês exageram tudo porque são poucos.
- Evidentemente que há coisas que se notam muito
aqui e passariam desapercebidas numa grande cidade. Mas sofremos. Ah, minha querida senhora, se eu soubesse exprimir-me como sinto! É tão difícil viver aqui, chega
a ser insuportável! Por exemplo, eu adoro a música e toco, menos mal, violino. Ora temos uma sociedade musical, um coro e uma pequena orquestra; o Regens Chorii,
de Schaffenburg, vem à terça-feira ensaiar. Mas não me querem lá. Imagine, minha senhora: não me querem lá! E também há música clássica: um pequeno grupo que vai
tocar a casa do presidente da Câmara e do notário: O primeiro violino é o director da Caixa Económica que toca horrivelmente e o segundo, a filha do presidente.
Quanto a mim, a torre do Angermann desmoronar-se-ia se me admitissem na orquestra. Isto é apenas um exemplo... Poderia ainda contar-lhe mais coisas, dizer-lhe...
como nos ferem ... - E tremia-lhe na voz o desejo de continuar a prender a atenção da actriz.
Mas ela já estava farta de o ouvir.
- Ah, sim, a música. Mas não tem a T. S. F.? perguntou amavelmente, com o espirito longe dali.
O judeu calou se. Pareceu-lhe que o pátio estava cheio de rochedos que para lá tinha lançado, continuando, no entanto, a oprimir-lhe o peito. Esvaziara o coração.
Mas agora o seu desgosto ainda lhe pesava mais. Tornou a pôr os recortes dos jornais no bolso do casaco.
-Não quero incomodá-la por mais tempo,
- Sim, devem ser horas de ir para a mesa. Agradeço-lhe a sua amabilidade em se ter interessado por mim. E se escrever alguma coisa...
Markus levantou-se. Ela acompanhou-o até à bicicleta, dando um pontapé numa vazia lata de conserva. Estava enervada ao lembrar-se do estado do seu rosto, tendo que
se mostrar assim ao Karbon.
- Oiça. Não haverá meio de comprar aqui uma coisa qualquer parecida com pó de arroz? O dly-bag,
no qual trazia os meus artigos de beleza, ficou absolutamente inutilizado.
City bag notou Markus, impressionado.
- É claro que há pó, alemão, francês, americano. Nesse ponto, rebaixa muito Lohwinckel, minha senhora. No meu armazém há apenas os artigos de uso corrente mas no
cabeleireiro Kuhamer encontrará tudo. Também lá tem uma excelente manicura que me trata sempre as mãos. É uma pessoa muito elegante, até.
Agora que estava no momento de partir, é que o judeu falava com o à-vontade que procurara ter durante todo o tempo da visita. Só a dez minutos do Domínio é que desceu
da bicicleta para pôr os alfinetes nas calças novas.
A Leore passeou ainda com a sua lata de conserva através do pátio, depois foi para a mesa. Na carruagem, o sr. de Raitzold acabara de sair do Domínio, pelo portão
do fundo. Ergueu-se uma nuvem de poeira por trás do maciço de rosas, destacando-se no céu com um rebordo rígido e metálico no momento em que o sol o orlou. O cheiro
activo, a amoníaco, da fossa, invadiu o pátio. Leore ainda viu as curvadas costas do fidalgo que ia a guiar. A irmã estava no portão, a dizer-lhe adeus, num gesto
inútil em que ele não reparou.
- O meu irmão pede-lhe desculpa; teve que ir à Caixa Económica, com urgência.
Até aí tinham observado, durante as refeições, uma atitude de sociedade, mas agora tudo aquilo se desmoronava. A dona da casa dirigiu-se para a leitaria. Leore,
sozinha em frente da grande mesa redonda que era de mogno e tinha pés de delfim, comeu um pouco de frango assado - sem prazer porque o havia conhecido pessoalmente.
Fora cinzento-escuro com manchas brancas e tivera uma pequena crista de galo conquistador- ainda na véspera se pavoneava no pátio. A costura fazia-lhe doer quando
mastigava; pôs sobre a mesa o garfo e a faca, sentindo-se cansada de si mesma.
- Estou farta ! - disse. E repetiu a frase que a obsecava nas horas de desalento. - Estou farta, farta, farta !
Procurou no livro dos telefones e ligou para a
empregada do cabeleireiro que, alvoroçada, tomou nota da encomenda: pós, cremes e bâton. O sr. Polzer, que alternava no serviço telefónico com o sr. Munck prestou
muita atenção à conversa. Não era costume encomendarem-se produtos de beleza por aquele meio de comunicação, o que não quer dizer que as senhoras de Lohwinckel não
cuidassem de si, havendo mesmo um curso de ginástica às segundas e quartas. A manicura, aproveitando-se da rápida intimidade que, em geral, se estabelece entre as
mulheres que trocam confidências sobre assuntos de beleza, aproveitou a ocasião para relatar a sua biografia e confiou à Leore por que imprevistas circunstâncias
se encontrava ali enterrada. Surgiu a história da criança e do cavalheiro e do amigo e do patrão - era impossível saber se se tratava de três pessoas ou duma só.
Leore desligou quando a narrativa se tornou muito triste e inextrincável. Não queria ouvir mais jeremiadas daquela gente perdida num buraco ignorado. E desejou dormir.
Mas não podia. Dormir, significava ficar estendida, e ficar estendida, significava pensar. A almofada tornava-se muito quente e as moscas, loucas e obstinadas, voavam
em círculos, do candeeiro para a cama e da cama para o candeeiro que estava suspenso do teto por correntes de bronze no qual se enrolavam visíveis fios eléctricos.
Uma hora e meia. Uma e três quartos, duas, duas e cinco. Duas e sete. Depois as horas acabaram por se imobilizar. Leore calculou o tempo que decorrera desde que
deixara de ver Karbon. Exactamente antes do desastre, ele fizera de globe-trotter, contando uma das suas histórias africanas. Depois, lembrava-se de ter encostado
a cabeça aos seus joelhos e de se escoar em sangue. Mas não podia precisar quando isto acontecera. Cento e catorze horas sem Peter Karbon. Cento e catorze horas
de angústia, sofrimento, desgosto, desespero. Durante essas cento e catorze horas atravessara uma data de regiões infernais até aí ignoradas.
Tinha vinte e quatro anos. Sorriu para o teto e o seu sorriso era velhíssimo.
- Quando a gente precisa deles é que estão ausentes. - murmurou - Quando a gente quer contar com eles, é que está só.
Eles eram os homens. Cento e catorze horas! Se o Peter viesse às quatro seriam mais duas. Se viesse às cinco ... ou às seis ... Olhou para o relógio. Duas e nove.
As moscas. O espelho. A cicatriz.
Chegou às seis menos vinte: a pedido do sr. BolImann, o hoteleiro do "Cisne Branco", foi o próprio sr. de Raitzold que o trouxe na sua carruagem. O fidalgo mostrara
se pelo caminho duma verbosidade enervada que as pessoas da sua classe não mostram senão quando estão desesperadas. Mas, no momento em que abriu o portão, foi se
abaixo de todo. Murmurou algumas palavras e desapareceu, deixando a Peter Karbon o cuidado de descobrir, ele próprio, o caminho que levava ao quarto de hóspedes.
Leore, à janela, vira aproximar se o homem alto e forte e o coração deu lhe um salto. Sentiu-o realmente agitar-se em cascata cheia de luz e ruído. Mas quando ele
entrou, teve uma impressão de serenidade e juízo. Ficara de pé à janela, e como numa tomada de vistas, virara para a porta o lado intacto do rosto. Mas quando se
abriu, mudou de ideia e mostrou lhe a cara bem de frente, interrogando-o com olhos de sombria inquietação. Mergulhou a sua mãozita na dele como se fosse uma cama
familiar e quente. A Lania tinha mãos esquisitas, pequeninas, com ossos finos e móveis, mas dotadas de tanta força que, às vezes, surpreendia os olhares admirados
dos homens, no shake hand. com familiar surpresa, também Karbon reconheceu, naquele instante, a mão cujo carácter particular esquecera durante os últimos dias. Reteve-a
algum tempo como para a examinar e depois largou a.
- Bdia Pitt. - disse ela.
- Bdia Leore. - respondeu ele.
Não disse: Pittyevitte; disse: Leore. E recuou alguns passos encostando-se à parede.
- Obrigada por teres vindo.
- Só hoje tive alta. Senão ...
- De resto, eu também não te receberia antes. Como estás? Partiste alguma coisa?
- Não. Felizmente, tudo bem. E tu ?
- Eu também.
Peter Karbon não estava vestido de sport. Tinha um fato de flanela cinzenta, maleável, nitidamente britânica. Leore respirou o aroma dos cigarros ingleses que lhe
ficara impregnado na mão desde que apertara a de Karbon. Sofria porque o olhar dele não ousava fitar-lhe o rosto. já fora mau sintoma o Markus ter feito o mesmo)...
- Queres fumar, Pitt?
- Obrigado.
- Afinal como estás tu alojado ? -Mudei hoje para o hotel; não é famoso. -Ah! E porque te mudaste?
- Não me encontrava bem na casa do médico.
- Compreendo! É uma complicação horrível, nem que seja só para tomar um banho.
Como a conversa permanecia difícil, a actriz foi até à varanda. Depois de ter experimentado alguns vestidos, salvos na mala esmagada, acabara por tornar a enfiar
o pijama. Sentiu fortemente as ancas e o baloiçar do corpo, enquanto Karbon vinha atrás dela. Em presença dele tinha sempre a feliz impressão da posse plena do seu
próprio corpo. Em presença de Karbon -e outras vezes, mas raramente durante o trabalho no estúdio quando o fonógrafo criava a atmosfera, as lâmpadas Júpiter cegavam
e era preciso fazer brotar lágrimas de paixão, quando era dada ordem e no momento indicado, enquanto se estremecia de indignação contida.
- Agora deixa ver. - disse Peter, observando-a.
Ela lambia o rebordo interno da ferida que ainda lhe fazia doer.
- Ora, nem vale a pena falar nisso, Pittyevitte! Já não tens nada. Estás linda!
Ao ouvi-lo, ficou aterrorizada. Realmente, era preciso que ele sentisse muita compaixão, para lhe fazer cumprimentos. Karbon perguntou:
- Viste-te aflita, an ?
com as faces entre as mãos dele, Leore replicou:
- Muito.
O homem esfregou o nariz nos cabelos sedosos e
disse:
- Suponho que é proibido beijar-te por causa da
antissepsia.
- Sim, o médico não deixa.
Karbon resmungou, largou-a e sentou se. A Lania sentiu que havia qualquer coisa a separá-los desesperadamente - conhecia bem os avisos anunciadores do fim
duma ligação.
- Estamos um pouco desabituados, an ? - disse ale-
gremente.
- É verdade. Depois dum desastre destes, há a impressão de que se fica a viver fora do mundo. Parece-me que já passaram muitos anos depois que saímos de Berlim.
Ou será porque tive uma comoção cerebral?
- Não. Eu sinto o mesmo.
- O responsável do que aconteceu sou eu. Não
sei como...
- Que tolice! Nem eras tu que ias ao volante,
Peter. - atalhou ela, com vivacidade.
Calaram se a recordar o pobre Fobianke. A conversa deu meia volta e voltou às apalpadelas, depois duma pausa:
- Durmo tão mal!
-Sim? Parece que a nossa cama está sempre a ir de encontro à árvore, não é? Mas depois passa. Já me aconteceu o mesmo e os teus nervos são duma grande resistência.
Leore espreguiçou-se com um coleante gesto de gata, quando o egoista do Peter invocou a força de resistência dos seus nervos. E pensou: Na verdade quando se é resistente
toda a gente nos enerva e nos faz suportar tudo quanto há, acabando por nos abandonar. E sorriu com aquele sorriso velho como o mundo que Karbon tão bem conhecia.
Ele exclamou:
- Makako!
- Que quer dizer?
- Melancolia. Sorriso da floresta virgem. Macacos a contemplar a gente.-explicou, em fórmulas abreviadas. ela mudou logo de expressão e perguntou:
-Tens tido notícias do pequeno? -Tenho. Escreveu-me uma carta perfeita, em inglês. Creio que o colégio é bom.
- Quem ? Mas não estou a falar do teu filho. Queria dizer o nosso pequeno, o Franz Albert.
-Ah, sim. Veio visitar-me duas vezes, acompanhado pela senhora. Não veio cá ?
- Todos os dias. Era mentira.
- Vês ? Ele pôde cá vir e a mim, não querias receber-me.
- Ciumento ? - interrogou a actriz, abrindo a boca com uma expressão de espectativa que, no cinema, fazia grande efeito. Mas desta vez foi lamentável com a cicatriz
por cima do lábio.
- É claro que sou ciumento. Otelo.
"Se o fosse, nunca o confessaria." pensou ela. Gemeu em voz baixa:
- Oh! Peter...
Ele tornou-se muito sério, pensando: "Tenho pena de ti."
Ter pena - é o sentimento mais mortalmente perigoso que se pode experimentar em face duma mulher.
Olhou-a com ar sonhador e triste. Ela tentou sorrir, não conseguiu e pôs se a fumar.
Leore Lania e Peter Karbon, que estavam sentados em face um do outro e através dum certo espaço, trocavam palavras pouco sinceras, haviam partido (de Berlim como
dois apaixonados. Esta é que é a verdade, embora o sentimento que os unia fosse um certo amor de hoje: sem condições estabelecidas nem perspectivas sobre o futuro.
Absolutamente sem responsabilidades, sem plena consciência do carácter problemático de todas as relações humanas. Pudicos em face dos seus próprios sentimentos,
nada dispostos a formulá-los e com um grande respeito pela liberdade do outro, o que é talvez mais precioso do que a fidelidade e os juramentos. Haviam
partido sem se preocuparem com o ontem ou com o amanhã, entregando-se intensamente ao presente; tinham sofrido um desastre em que a morte se aproximara tanto que
o seu surdo zumbido lhes aflorara as fontes, e eis que estavam ali sentados como sobre as duas margens dum rio nitidamente seco.
- É assim mesmo, Leore. - disse Peter, na conclusão duma longa cadeia de pensamentos.
Como pessoa honrada que era, perguntava a si próprio como havia de enganar a Lania acerca do que sentia, mal adivinhando que, logo no primeiro aperto de mão, ela
se pusera a caminho para uma nova solidão bem conhecida, em que, se fosse possível, desejava conservar decoro.
Aproximou-se de Karbon e colocou a mão sobre os cabelos ruivos e espessos. Perguntou em voz baixa:
- Então Pitt, o que te apoquenta?
- Nada. Mais uma vez.
- Apaixonado? - perguntou ela, retendo a respiração.
- Sim... -confessou, com um aceno de cabeça, lembrando um colegial.
Apertou se a garganta da actriz. Mas dominou-se e disse:
- Olha que esta?! Outra vez apaixonado! Mas como é possível uma coisa dessas em Lohwinckel?
- É verdade. E uma outra espécie de amor.
- Mas que espécie?
- Outro formato. Outro peso, compreendes? Outra significação: não é uma coisa no ar. Começa por ser um pecado, o que é magnífico! Alguma vez, na tua vida, pensaste
que cometias um pecado? Ora eu estou em pleno pecado, o que é delicioso. É preciso ter trabalho, vencer resistências - tudo é tão sério! É necessário lutar por uma
mulher, conquistá-la, seduzi-la... enfim, não sei que palavras empregar. É ridículo, concordo, mas ao mesmo tempo dá-nos a consciência de sermos homens. Não achas
que o amor, como nós o praticamos, é bastante baixo?
- Ignorava que fosses assim um atleta sentimental, um tal galo de combate. Isso deve ser sport... não?
E retirou definitivamente a mão da cabeça ruiva.
Karbon pôs-se a reflectir; pensou em Elisabete Persenthein, pensou e sentiu duma forma muito nítida. com uma impressão de calor que o tornava forte, feliz e cheio
de esperança, mergulhou em si mesmo.
-Sport? Não, que ideia! Assumo uma grande responsabilidade. Vejo com absoluta clareza. Aquela mulher, sabes?... é diferente de tudo. Conhece-la apenas superficialmente,
senão verias como ...
-Obrigada. Peço-te que não contes. - disse Lania, que logo se dominou - Queres fumar?
- Obrigado.
Silêncio. Ambos pensavam na Elisabete, Ele na mulher que era feita duma pura e preciosa matéria, que se podia libertar, acordar, reanimar. Ela na mulher que andava
dum lado para outro com uma cara aborrecida e um avental de mangas, espalhando um aroma de preocupações mesquinhas e sabão. Não pôde deixar de criticar :
- As enfermeiras são sempre encantadoras.
- Tenho a impressão de que a vida me oferece uma ocasião excepcional, dando-me aquela mulher. E tenho que não deixar fugir a ocasião, compreendes Pittyevitte?
- Compreendo. Mas talvez seja ainda cedo para te meteres num convento.
- És muito simpática, Leore. Como facilitas tudo! -e estendeu-lhe por sobre a mesa, a palma da mão, aberta. Ela não lhe tocou.
- É claro que não somos pessoas para andar à espreita, com uma garrafa de vitríolo debaixo do braço, no momento em que uma coisa destas acaba... - disse a actriz,
piscando os olhos por causa do fumo e das lágrimas.
Esperava que ele exclamasse :
"-Mas isto não acabou!"
Peter Karbon estava atacado pela absorta surdez de todos os homens recentemente apaixonados. Voltou a examinar o rosto da Leore que parecia ter diminuído naqueles
minutos.
- Realmente estás muito bem. Não deves
inquietar-te por causa da cicatriz. O doutor disse que essa vermelhidão vai desaparecer, Quanto ao nosso seguro... pagar-nos ão talvez dez marcos, na melhor das
hipóteses. Lania não sorriu com o dito de espírito. Tornou-se também muito delicada.
- E o teu carro, como está ?
.- Rebocaram-no até Schaffenburg. Parece que fica como"novo.
- Ainda bem.
- Não me servirei dele. Nunca mais tornarei a entrar num automóvel. Fiquei com um medo! Não me faltava mais nada ...
- E então, como tencionas ir-te embora?
- No comboio. -Ah!
E o seu coração começou a bater como se estivesse solto no peito, parecendo um animalzito atacado de convulsões. Chegara o momento em que se ia separar de Peter,
falara até aí para se treinar a chegar, com coragem, ao desfecho. Tudo se passava em silêncio, fumava-se enquanto morria um nós e surgiam um tu e um eu.
- Quando tencionas partir? - perguntou.
- Não sei ainda.
Olhou-a atentamente. Sentia também a separação decisiva que aparecia naquela simples pergunta.
- Queres que combine contigo? - perguntou por delicadeza.
- Obrigada. És muito gentil, mas estou à espera do meu marido.
- Julguei que estavam zangados... desde o divórcio ?
- Não falo do Ricardo, mas do Erich.
- O primeiro?
- O segundo.
- Ah, sim. Faço sempre confusão.
Ficaram ainda sentados, durante alguns segundos, indecisos e ocos, em frente um do outro. A pesada nuvem da tarde desdobrara se num fino nevoeiro sob o qual a paisagem
tinha tempestuoso aspecto, enquanto esperava o crepúsculo. Um bando de pegas sombrias
fazia exercício, voava, dava voltas e aterrava. O criado, de socos, ia e vinha, na faina de tirar água do poço. pouco depois, um automóvel atravessou o portão, fez
a curva no pátio e veio parar à porta do castelo.
- Vêm buscar-te. - disse Lania, levantando-se. -Não é para mim. Não subo para um carro.
vou a pé.
-Queres que te acompanhe?
- Se quiseres, és muito amável. Mas devem vir ao meu encontro, pela estrada... -explicou, tossicando.
Ela achou-o ridículo. Dava-lhe uma grande consolação poder achá-lo ridículo com a sua paixoneta pela astuciosa criatura que viera descobrir naquele provinciano buraco.
- Afinal, é melhor que eu não vá. O Franz Albert deve cá voltar outra vez.
Disse com desenvoltura a tremenda mentira.
- De resto, hoje vou tornar a ver-te. No cinema.
- O que levam?
-"Aventura em Monte-Carlo". Está toda a gente excitada com o espectáculo. Cai lá tudo.
- É fantástico! Um filme tão velho! E tu, para que vais vê-lo?
Peter Karbon encolheu os ombros. Deitou um discreto olhar enviesado para o seu relógio de pulseira que, desde o desastre, umas vezes andava e outras parava. A Elisabete
já devia vir a caminho do Domínio.
-Então o pequeno vem cá ver-te? - disse, com tingido interesse - Dá lhe saudades minhas. Amanhã voltarei cá, Lania.
A actriz tirou uma linha do ombro de Karbon. Era um dos pequenos gestos pelos quais uma mulher deixa ver que um homem lhe pertence.
- Até à vista, cidadão de Lohwinckel! - disse, a rir. Ficou de pé no alto da escada, a vê-lo afastar-se.
Apressado, nem se voltou para trás.
Enquanto Lania subia para o seu quarto, sentando-se, muito direita, na beira da cama, como se aquela atitude a impedisse de sentir a dor que de todo o seu ser se
apoderara, Karbon encontrou, ao fim da escada,
um cavalheiro muito alegre que o cumprimentou e que ele se lembrou confusamente de ter visto em qualquer parte. Era o dr. Ohmann, o presidente da Câmara de Lohwinckel
que, em seguida ao desastre, visitara atenciosamente todos os feridos. Chegara, havia alguns minutos, ao Domínio, por razões absolutamente particulares.
- Já sabia que aqui estava. Não me demoro. Se quiser, levo-o no meu carro.
Peter agradeceu. Sentia literalmente a Elisabete a vir ao seu encontro, pela estrada. Desde a sua adolescência que não experimentava igual alvoroço.
O dr. Ohmann bateu à porta do vestíbulo que, ao mesmo tempo, servia de gabinete de trabalho ao dono da casa, e entrou.
- Deixou um recado tão urgente para mim, na Câmara, que preferi vir eu cá imediatamente, -disse ao fidalgo que estava de pé em atitude cerimoniosa, com as articulações
das mãos retezadas sobre a mesa. Dava a impressão de receber, em audiência de favor, o visitante. Verdade seja que as mãos tremiam sem parar.
- É extraordinário... mas não queria que se incomodasse ... - tossicou.
- Tive a impressão de que era urgente e desejo evitar que mais uma asneira seja cometida nesta terra.
O presidente da Câmara disse isto em tom negligente, empregando algumas palavras de dialecto afim de tornar o tema abordável.
-Desculpe. Queira sentar se. Um charuto?
- Obrigado, não fumo.
Este facto aumentou a antipatia pelo visitante. Os dois homens estimavam-se reciprocamente mas eram adversários políticos. O funcionário do estado achava o fidalgo demasiado conservador e este censurava ao outro ter ideias muito avançadas.
com a delicadeza de quem está melhor colocado, o visitante declarou:
- Pois tive muita pena de me não ter encontrado na Câmara. Estava em Schaffenburg. Fui pedir alguns polícias. A nossa cidade não me está agradando nada, neste momento.
Desde que chegou o comunista, Obari
ger está de pernas para o ar. Vão mandar-me seis homens. Mas isto não o interessa. Trata-se do seu negócio ... da "Costa do Sol", não?
-Corro? Ah, sim... isto é, não. Evidentemente que da "Cesta do Sol" também... Mas isso é apenas um lado da questão. Quási que tive uma apoplexia quando soube que
as quatro hipotecas tinham passado para a mão do sr. Profet.
- E verdade. Deu-se precisamente aquilo que nós temíamos. Não é nenhuma surpresa, sr. Raitzold.
- E uma surpresa que a Caixa Económica tenha, desta forma, faltado aos seus compromissos. Foi uma condição absoluta que eu impus: que nunca se desse a passagem para
as mãos sujas do sr. Profet.
A frase "mãos sujas" fez estremecer as sobrancelhas do sr. Ohmann. Pregou o olhar numa das manchas de ferrugem existente na velha estampa de caça, ao lado do armário
das espingardas, e tornou se ainda mais oficial.
- A Caixa Económica não faltou ao estabelecido. As hipotecas foram cedidas em várias partes: uma para a fábrica de fiação de lã Baerwald, outra ao Kruger de Dusswald
a quem Kampersa comprou. E foi por Kampersa que o Profet entrou na posse de tudo.
- Aqueles cavalheiros da Caixa Económica ignoravam talvez que os Baerwald, os Kruger e os Kampers
eram cabeças de pau ? Bem sabe que não, sr. Ohmann.
-A Caixa não podia, por mais tempo, suportar o
empréstimo. Não tomou nenhum compromisso para
fazer seguir por detectives as pessoas que lhe compram
AS hipotecas, afim de saber se são, ou não, cabeças de pau. Demos lhe certos prazos para o pagamento dos
Impostos, e afinal o senhor deixa cair cada vez mais a
propriedade, corta árvores, estraga ... Compreende que
a hipoteca vai muito além do valor real.
O fidalgo deu um pulo. Tinha as mãos trémulas e
testa azul.
- Deixo cair a propriedade ? Coos demónios! Então eu ... Como se dependesse de mim obter colheitas por bruxaria ! - gritou. - Ora deixe-o vir para cá, a esse sr.
Profet, esse ferreiro que ninguém sabe donde veio,
e veremos o que ele faz. Não há maneira de continuar assim. É uma tortura! Uma tortura que parece fazer saltar o sangue por todas as pontas dos dedos! com que então
eu deixo ir abaixo o Domínio Raitzol, an ? Mas o senhor, que percebe disso, não me dirá? É talvez um excelente advogado; mas não pode compreender o que um pedaço
de vinha, aquela "Costa do Sol" representa para nós! Se eu quisesse cedê-la a um Profet..
- Ele tem decerto outros projectos. É um homem para fazer render a minima parcela de terreno.
- Fazer render! O quê? Fazer render!
- Quere aumentar a sua empresa e fazer construções. Não pode ficar eternamente com o velho depósito da antiga tinturaria. Tem um projecto de construção para o lado
de trás, até ao muro.
- Como ? Mas aí há vinha ?!
Tirou o charuto da boca, deixando tombar o lábio inferior, na atitude da mais completa incompreensão. Ohmann encolheu os ombros. Raitzold, batendo com a mão na mesa,
exclamou :
- Mas isso é impossível! Depois, em voz baixa, repetiu :
- Não é possível..
Tremeu abertamente e não escondeu a dificuldade que tinha em respirar.
O visitante disse, com prudência:
- Ao ponto a que as coisas chegaram, não vejo o que se possa fazer... não, realmente ...
- Sr. presidente. Dr. Ohmann ... o senhor ... É preciso que impeça isto. O senhor é daqui.. bem compreende que semelhante coisa não é possível.. Não se pode permitir
que um indivíduo qualquer que está possuído pela mania das grandezas, vá assim construir armazéns numa vinha-porque uma vinha é uma coisa sagrada, sr. presidente!
Se eu provar, de olhos fechados, cem qualidades de vinho, distingo logo o "Costa do Sol", é um pedaço da terra... Percebe? Se eu quisesse proceder assim, então há
muito tempo que poderia ter extraído uma fortuna do Domínio. O Profet passava a vida a fazer-me ofertas. Disse sempre que
não - e agora.. cheguei a isto? Então aquele homem ficaria assim de posse daquela abençoada terra, por dez reis de mel coado? O que ele trapaceou para conseguir
isto!
- Ele não está muito entusiasmado com a compra, pode crer. Não é nenhuma bagatela. Tem as suas preocupações também : a fábrica não caminha como desejaria ..
Deteve-se a olhar para a velha gravura de caça que tinha ao centro um veado perseguido, de músculos curiosamente retesados. Apoderou se dele um sentimento desagradável,
ao pensar que estava a defender uma causa que, intimamente, reprovava. O proprietário do Domínio respirava a custo, o que o comovia. Mas retomou a palavra, e parecia
mais calmo.
- O sr. presidente teve a amabilidade de vir a minha casa. Creio que o não fez para defender a causa do Profet..
- Vim logo, porque a sua carta tinha qualquer coisa de ... como dizer ?... de ameaçador. Queria tranquilizá-lo.
Sob o bigode de Raitzold esboçou se um sorriso desdenhoso, altivo e absurdo. Dirigiu-se para a velha mesa onde trabalhara toda a tarde e bateu com o dedo nas folhas
que lá estavam espalhadas. Disse:
- Comecei a fazer um relatório que lhe poderei entregar amanhã ou depois. Proponho à cidade tomar conta da propriedade, fazer disto uma quinta municipal, deixando-me
ficar como caseiro. Em certas condições que exporei, estou pronto a ceder a propriedade ao Estado, assegurando-lhe a exploração como feitor. Estou persuadido de
que...
Embora aquilo parecesse sensato, era um puro e irrealizável absurdo, fosse qual fosse o lado por que se encarasse a questão. Só na beira do abismo, uma pessoa se
agarra a tais divagações.
- Que quer o senhor que a municipalidade faça da sua propriedade, Deus do céu?-perguntou o dr. Ohmann, compassivo. -- Se nem sabemos como pagar as nossas dividas!
-Poder-se-ia fazer disto uma quinta modelo, com algum capital. O vinho... a leitaria... as experiências com o trigo americano... a minha irmã trata de horticultura
Vendo o gesto de recusa do visitante, Raitzold afastou-se da mesa. Sentia o vácuo lá dentro, no crânio; o que provinha do trabalho que tivera em somar, durante horas,
incompreensíveis algarismos.
Repetiu em voz mais fraca:
- A minha irmã dedica-se à horticultura.
Foi até à janela e abriu-a num gesto violento. A tarde entrou com o longínquo aroma das folhas secas e queimadas, das batatas e com o perfume, mais próximo, das
nogueiras molhadas pelo orvalho. O crepúsculo começara a tombar com nódoas cor de estanho no rebordo do ângulo formado pelo sol; todos os pássaros cantaram e se
calaram no pomar. O fidalgo tentava respirar fundo mas não podia: desde a guerra que sofria de asma e durante toda a conversa estivera a lutar contra uma crise de
que sentia a aproximação. A tampa do poço rangeu de forma determinada - era um som profundamente familiar que o acompanhava desde a infância. Nunca o ouvira com
plena consciência como naquele momento em que estava abatido.
Como que falando para a terra, disse:
- Nisto tudo há uma coisa certa: não saio vivo do Domínio.
Do fundo do aposento, o dr. Ohmann. respondeu:
- Não faça tolices, Raitzold, vamos reflectir, ver o que se poderá fazer.
Era uma frase sem verdade e que não convenceu o dono da casa.
De repente, um piano pouco sonoro e desafinado começou a deixar ouvir um fox-trott moderno, tocado de forma bizarra, e que os discos de gramofone já haviam popularizado
em Lohwinckel, de tal modo que os estudantes e os empregados do correio o assobiavam pelas ruas.
- A nova hóspede. - explicou o fidalgo, com um sorriso forçado,
-Ah!-disse o presidente da câmara, em ar respeitoso-E verdade, encontra-se tudo cheio de celebridades, como se diz em Berlim. E essa senhora, como está? ; - Obrigado,
vai indo.
- Em seguida àquele desastre, tivemos uma data de perturbações, cá na terra. - disse o visitante, dirigindo-se para a porta. - Parece que as pessoas estão embruxadas.
Até no liceu houve uma revolta, esta tarde. O reitor veio suplicar-me para eu interceder, mas não posso fazer nada. Tem que aprender a caminhar com a juventude.
Pois é verdade, o senhor fica com o prazer de falar com a sua hóspede e eu tenho que ir trabalhar. Logo à noite sou forçado a ir ao cinema.
- Isso é que é trabalho! - exclamou Riitzold no seu tom de militar.
Sabe Deus quanto lhe custava tomar aquela atitude desenvolta.
- Sim; vou lá no exercício das minhas funções. Sinto que anda por aí qualquer coisa suspeita. Já hoje, os operários mal trabalharam ...
Chegaram ao pátio. Já em frente do carro, disse:
- Hoje é quarta-feira... no sábado temos reunião municipal. Aproveitarei o momento para tratar do seu assunto.
E subiu para o carro, com o sentimento de se ter mostrado diplomata e de ter conseguido talvez desviar o proprietário das suas sombrias e incendiárias ideias de
suicídio.
O auto demarrou e os faróis construíram uns cones de luz. Lá em cima, o fox-trott continuava a insistir sempre nos mesmos compassos, como se houvesse obsecação na
pessoa que tocava. Quando o fidalgo voltou para dentro, encontrou a irmã. Tinha vestido as velhas calças do uniforme do irmão, o que demonstrava ter trabalhado no
curral.
- Mandei buscar o veterinário. Creio que a vaca de dois anos deve dar hoje à luz. O Kilker está certo disso. Não quis incomodar-te...
Não obteve resposta. O irmão abriu uma gaveta
da mesa, arrumou cuidadosamente o borrão do relatório e pegounuma caixa de remédio.
- Queres comer alguma coisa ? - perguntou ela. Recebeu um aceno negativo, em resposta.
- Ainda vais trabalhar ? Ele pensou:
"Não. Para quê?" Mas não disse palavra. A irmã fitou o. Havia puxado para si um cinzeiro, deitou dentro o pó e queimou-o, aspirando o vapor. Tinha as mãos enclavinhadas
na mesa, inclinava-se para a frente com inchadas veias azuis e olhos angustiados, lutando para obter um pouco do sopro de vida de que necessitava. A irmã aproximou-se
e deu-lhe uma pancada no ombro, como se fosse um cavalo
- Daqui a pouco estás melhor, Fichli. - disse lhe, lembrando-se do gentil nome da sua infância, naquele tempo em que ambos se sentavam sob as groselheiras. com efeito,
a crise atenuou-se, passado algum tempo. De cima, vinha a mesma música.
- Melhorzinho ?
- Sim.
- Queres vir ao curral ? -Não.
- Vais-te deitar ?
- Não.
E abotoou o casaco.
- Então que vais fazer?
- vou a Obanger, ao cinema.
Foi a resposta mais surpreendente que a irmã lhe ouviu, em toda a sua vida. Enquanto ela permanecia de pé, olhando-o surpreendida, abriu, num gesto habitual, a gaveta
do armário das espingardas, tirou o seu revólver e meteu-o na algibeira. Era uma série de movimentos acostumados que fazia sempre que saía.
Depois de ter desaparecido, o fumo do pó anti-asmático continuou a flutuar, deixando um aroma vagamente amargo.
Para chegar à sala da hospedaria de Oertchen, onde se realizava a representação cinematográfica, era preciso atravessar um estreito corredor de pedra onde se encontravam
vazios barris de cerveja, de úmido aroma e dominical aspecto. À entrada, estava sentado o jovem Oertchen, por trás duma pequena mesa, a vender os bilhetes; havia
plateia de primeira e de segunda-o dinheiro amontoava-se num prato de sopa, de grossa louça branca, de uso comum. À entrada da sala estava o hoteleiro, a fiscalizar
os bilhetes, cumprimentando as pessoas ilustres que, naquela noite, se apresentavam. Chegava a ser estranho vê-las ali, num local ordinário frequentado pelos habitantes
de Obanger. O começo do espectáculo estava marcado para as sete horas, mas às seis e meia já havia grande influência. O acesso à sala, com os homens gesticulantes,
empurrando-se e tomando a mesma direcção, parecia se com a entrada duma colmeia. Primeiro, chegaram os operários da fábrica, os quais vinham aos grupos, estando
presentes mesmo os mais velhos, que nunca haviam gasto dinheiro com filmes. Lá estava o antigo contramestre Hockling, examinando as fotografias expostas na montra,
e mostrando um sorriso estúpido e obscuro, contemplando a Leore nas suas variadas atitudes. Haviam deixado as mulheres em casa e vinham como a uma reunião - aquilo
era um negócio só para homens. Parecia estarem à espera de qualquer coisa. Talvez duma certa mensagem que havia de chegar de Berlim, da parte do paginador Pank,
com as instruções que ele prometera enviar sobre se devia ou não declarar-se a greve geral na fábrica. Era isto que lhes dava a desabrida impaciência duma véspera
de combate. Um pouco mais tarde, chegaram as operárias; davam os braços umas ás outras, rindo e cacarejando como jovens camponesas quando passeiam à tarde através
da aldeia
- costume que haviam guardado no novo modo de vida, e no bairro proletário,
Oertchcn metera-se em despesas: mandara vir de Dusswald o pianista Roggenzahn, um indivíduo mal visto e beberola que, às seis e três quartos, começou a tocar a Marcha
Nupcial do Sonho duma Noite de Verão, inclinando se para o piano com os olhos voluptuosamente fechados dum verdadeiro músico e esforçando-se por encobrir com o demasiado
uso do pedal o som das teclas gastas.
Entretanto, o criado acendera os dois candeeiros da entrada que imediatamente foram assaltados pelas últimas borboletas de cabeça grande que volitavam na tarde quente.
Gratuitamente, a sr.a Oertchen serviu, numa sala particular, cerveja aos dois polícias chegados no comboio de Schafíenburg e que estavam encarregados de vigiar o
local. Outros dois patrulhavam as ruas e o último par girava à roda da fábrica, visto pelos operários e cumprimentado sem afabilidade: a sua presença, na cidade,
contribuía para exacerbar ainda mais a tensão geral.
A primeira desordem estalou na caixa, quando terminou a marcha nupcial. com efeito, embora uma tabuleta muito visível indicasse que a entrada era "reservada aos
adultos" e o reitor tivesse proibido, duma vez para sempre, ir ao cinema, uns trinta estudantes apresentaram-se, pedindo bilhetes. Tinham mandado à frente os mais
velhos, uns cábulas repetentes cuja voz, na muda, demonstrava que tinham mais de dezoito anos. Os outros - não sem premeditação - haviam-se colocado em pequenos
grupos entre os quais os mais pequenos, evidentemente menores, se escondiam. Já estavam muito excitados quando os últimos chegaram: desde a reunião na poça dos patos
ainda não haviam recuperado a serenidade. Naquela reunião haviam decidido não se submeter às ordens recebidas; depois tinham-se dividido em duas partes: uma optava
pela ausência pura e simples, enquanto que a outra preconizava uma atitude viril e uma revolta aberta contra a tirania do reitor. Aquilo acabara por uma tremenda
batalha em que haviam vencido os mais fortes. À tarde, o primogénito dos Profet, acompanhado pelo aluno do último ano, Gurzle, (o mais valente aluno liceal) e pelo
próprio
pensionista do reitor, Kollce, dirigiram se ao liceu e anunciaram que os alunos se recusavam a ficar de castigo naquela tarde que o regulamento reservava para a
educação física. Muito solenes, saíram, em seguida, do domicílio do reitor e perto da árvore mutilada, cumprimentaram-no, deixando o mudo de surpresa e espanto.
Depois, em grupos numerosos, dirigiram-se ao Priel onde morava o sr. Profet, indo buscar Franz Albert que aos dois filhos da casa fizera a formal promessa de assistir
ao desafio de futebol. Assistiu e nele tomou parte, até com muito prazer, pois pouco mais velho era do que o alto Gurzle. Mal sentiu sob os pés a curta relva do
estádio e a camada de granulada cinza, da pista, sentiu se como que em sua casa. Foi um belo jogo, findo o qual, nenhum dos rapazes, a transpirar, nem Franz Albert
tinham vontade de ir para casa. Continuou a divertir-se com eles até ao crepúsculo, fez os cem metros que perdeu com 14,8 segundos, o que não admira, pois não estava
treinado para a velocidade mas sim para encaixar Além disso, desde que o obrigavam a comer demais, na casa Profet, parecia-lhe ter uma dilatação de estômago. Os
rapazes aclamaram a vitória do esgrouviado Gurzle (12,7) com gritos furiosos, depois houve um silencio de morte quando Franz Albert executou, na sua frente, alguns
dos seus exercícios de treino e lhes mostrou o iippercut esquerdo com o qual conseguira o seu título de campeão. Experimentaram o desejo, muito sincero, de se conduzirem
como homens e, em frente da papelaria Leelig, ao ver as fotos de Leore Lania, amadureceu neles a resolução de ir ao animatógrafo.
Iam inchados e agressivos quando apareceram na sala de Oertchen; as costelas apareciam retezadas como no corpo de animais novos e os seus dorsos de rapazotes quási
deitavam fumo. Sabe Deus onde tinham ido procurar as moedas de cinquenta pfennig que apertavam nas úmidas palmas das mãos, mas agora estavam ali e queriam entrar,
coos demónios!
Primeiro, houve risos, depois troca de ditos e, por fim, uma verdadeira discussão. Os operários excitavam-nos-os jovens a favor e os velhos contra - e, enquanto
o filho de Oertchen prcguntava a si próprio se devia chamar a polícia, os rapazes recorriam à violência. Os que estavam atrás empurravam com força, os que se encontravam
à frente mostravam os punhos cerrados e dos lados fizeram pressão, servindo-se da sua recente ciência do box. Abriram caminho, derrubaram o prato do dinheiro que
se espalhou, telintando, invadiram a sala, subiram as escadas e ocuparam as partes laterais da pequena galeria.
Foi assim que, quando os burgueses de Lohwinckel chegaram, um pouco antes das sete, e procuraram os lugares ao som da valsa As Ondas do Danúbio, encontraram os seus
rebentos, muito afogueados, debruçando-se da varanda da galeria. O carniceiro Scyfried, por exemplo, cujo filho estava destinado a ser alguém, ameaçou-o abertamente
com a mão muito espalmada. O sr. Profet chegou com a esposa e o hóspede. Ao ver, não só o seu primogénito mas também Otto, o mais novo, apesar de furioso, desatou
a rir:
- Estes mafarricos são da pele do diabo, exactamente como eu era!
A mulher lançou lhe um olhar oblíquo, um destes olhares de mulher casada que significam :
- "Ora... tu!"
Franz Albert estava sentado entre ambos com o seu meigo rosto de anjo e ria-se voltado para os rapazes que se haviam tornado seus amigos.
O piano tocava a abertura de Poeta e Camponês e o operador da casa alugadora do filme, que raramente aparecia, posse a instalar o seu aparelho de projecção ao fundo
da galeria central.
De súbito, houve um movimento de curiosidade no público porque, guiado pelo sr. Oertchen, fazia a sua entrada o dr. Ohmann com a mulher e a filha, colocando-se ao
centro da galeria, em cadeiras almofadadas cuja disposição dava ao conjunto o aspecto dum camarote. A sr.a Ohmann era uma pessoa cuidada e faladora, já de certa
idade. Coxeava levemente mas não admitia que se desse por isso. Quando havia alguma reunião (nunca superior a doze pessoas) era obrigatório pedir-lhe
para cantar. Sabia música e entoava a ária das rosas das Bodas de Fígaro, a Nogueira de Schumann e a Primavera cJe Hildach, três trechos que julgava igualmente belos.
a filha, também musicista, que fizera aplicados estudos de violino e era noiva de jovem médico cuja existência obscurecia o horizonte vital dos Persenthein, estava
sentada a seu lado, com sobrancelhas demasiado fartas, um vestido que lhe ficava mal e o ar ligeiramente ofendido que arvoram as filhas de certas mães que são muito
orgulhosas.
O presidente da Câmara deitou um rápido olhar para a galeria, a abarrotar, onde a madeira estalava e cuja aparência era difícil de conciliar com uma tabuleta suspensa
à entrada, onde se lia: "Máximo de lugares autorizados: 80". Reprimiu uma observação, iniciou o seu sorriso bem educado de funcionário superior e perguntou à esposa:
- Ele que está a tocar?
Era o Idílio de Siegfried, interpretado sem música, com expressão sonhadora e muitas variantes improvisadas.
- É ... é Beethoven. - declarou a mulher.
- Wagner. - emendou a filha.
E o dr. Ohmann ficou colocado entre dois fogos, como sempre na sua vida familiar.
Entretanto, cinco minutos tinham decorrido desde as sete horas e os operários que estavam à espera desde as seis e meia começaram primeiro a bater com as mãos e
depois com os pés. Um gritou uma palavra ininteligível, depois caiu o silêncio. Pouco depois, recomeçou a pateada, mais forte e alegre. Também os rapazes, lá em
cima, pateavam, o que levou o presidente a deitar novo olhar apreensivo à construção de madeira. Ainda se levantou um pouco, mas achou mais prudente não fazer caso,
hoje, das faltas cometidas contra o regulamento. O pianista Roggenzahn, a quem haviam trazido uma caneca de cerveja, e murmurado algumas palavras ao ouvido, começou
a tocar um trecho movimentado que parecia anunciar o princípio do espectáculo. Mas depois nada aconteceu.
Embora todos os lugares estivessem ocupados
se vissem espectadores em pé, lá fora havia cada vez mais gente a querer entrar, no desejo de assistir ao espectáculo. As filas de cadeiras, de primeira, enchiam
completamente o espaço que lhes fora destinado, mas o criado ainda arranjou maneira de meter mais algumas, de ferro, pertencentes ao jardim. Quanto à segunda plateia,
era formada por bancos compridos.
- Apertem se um pouco, vá, os outros também querem sentar-se. - aconselhou o hoteleiro.
Mas esta intervenção, embora feita em dialecto e num tom jovial, desagradou. O público que menos pagara, aproveitou esta insignificante ocasião para protestar com
desproporcionada violência. Alguns levantaram-se e gesticularam, outros resmungaram, uns gritaram e o resto recomeçou com a pateada. A revolta só amainou quando
o hoteleiro se foi embora e o pianista tocou a Barcarola dos Contos de Hojjmann, acompanhada pela voz do contramestre Birkner, que murmurava :
- Os outros ... ora ... os outros ...
- Mas eles que têm ? - perguntou a mulher do presidente, virada para o marido, que franzira as sobrancelhas.
Arvorando o seu rosto amável, explicou:
- É uma brincadeira. Ela criticou:
- Olha, olha... a mulher do médico, mesmo no meio dos operários. E sem o marido! Não é o Karbon que está com ela ? Realmente, não achas que ... ?
- Karbon ! Ó Karbon ! - gritou lá em baixo o Franz Albert fazendo-lhe sinais. Sentia-se extremamente aborrecido sempre com a sr.a Profet a seu lado, constantemente
emocionada e significativa. - Vem para aqui, Karbon!
Peter Karbon voltou-se, encolheu os ombros e riu-se alegremente virado para o boxer. Era impossível sair dali, daquela plateia de segunda onde ele e a Elisabete
se haviam sentado, ao acaso. Estava loucamente satisfeito. Havia muitos anos que não empreendera nada tão estúpido. A seu lado, a Elisabete tremia, quente e delicada
junto do seu ombro; era tão leve que
ele advinhava-a mais do que a sentia. é assim que, na primavera vibram os troncos das árvores; Karbon, que era caçador, lembrava-se como estremeciam as árvores agitadas
pela seiva quando a gente se lhes encosta, esperando o crepúsculo, afim de atirar às galinholas que passam.
Elisabete enfiara o único vestido elegante que possuía, o azul-escuro, é claro, mas alegrado por uma nova gola e enriquecido com um lindo camafeu antigo que fora
da avó Burhenne. Uma precipitada e infeliz tentativa de arranjar as unhas deixara pequenos vestígios de sangue nas beiras. Lambia as feriditas, de vez em quando.
Estava febril e docemente angustiada: o que a trouxera ao cinema, não fora senão o ciúme. Muito impaciente, queria ver a Leore Lania, observá-la durante horas, enquanto
Peter Karbon estivesse sentado a seu lado, como se pertencessem um ao outro. Uma breve conversa na estrada da floresta, quando fora buscá-lo, enchera a duma perturbação
feliz e dum frio terror. perguntara: - A sua amiga como está?
- - Bem. Decorreu lindamente.
- Já lhe tiraram os pontos?
- Os pontos ? Sim ... Separei-me dela.
- O quê? An? Porquê?
- Por causa de ti, claro.
A resposta batera, em cheio, no coração da Elisabete, com a aguda violência duma bola. Tratava-o sempre por senhor. E ele, a tratá-la assim por tu, tirava-lhe a
respiração. Levara muito tempo a habituar-se àquela resposta, enquanto ia seguindo as pedras brancas que orlavam o caminho.
- Então para vocês, é assim tão fácil separarem-se ?
- não pôde deixar de perguntar.
- Não generalisemos, Elisabete.
À beira da estrada cresciam campainhas selvagens, com os caules resistentes e as flores cor de rosa com tons de cinza. Elisabete, calada, brincava com elas, enquanto
Karbon lhe pegava no braço, como se fosse a coisa mais natural deste mundo uma mulher casada andar
a passear numa floresta, enlaçada por um estranho. E era, na verdade, natural: Elisabete achava-o com lancinante sentimento de injustiça e pecado.
Uma das campainhas conservava-se ainda na botoeira de Karbon, exalando delicado perfume a campo
e pó.
- Isto vai finalmente começar. - disse ele, colocando a palma da sua mão sob a da Elisabete, no momento em que a sala ficou às escuras.
O filme, como todos os que ali se exibiam, já não era novo, estando, mesmo, bastante riscado. A Cote dAzur que apareceu logo ao princípio, parecia bastante escura
e chuvosa, embora o sol e a sombra estivessem perfeitamente delimitados. Viu-se a Riviera, em alguns quadros: a subida perto de Monte-Carlo, o casino, uma sala de
jogo, um hiate no porto de Villefranche, tilas de automóveis lá em cima, montras de luxo em Nice -todas as coisas que estavam longe dos hábitos de Lohwinckel e que
aquela gente devorava com olhos ávidos, até mesmo os operários que pensavam no aumento de salário. A sr.a Profet, pessoa muito viajada, pronunciava, em voz alta
embora derretida, os nomes das cidades, dos hotéis e das ruas que reconhecia, ao ouvido de Franz que já lá estivera três vezes, mas que de nada se lembrava. Podiam-lhe
fazer dar a volta ao mundo: tinha tanta memória como uma encomenda postal.
- Bati me uma vez em Espanha. - contou, fora de propósito - Quási que deram cabo de mim! Livra! Nesse tempo, ainda não tinha o Simotzky.
Encostado à parede, mesmo no meio dos operários, estava o sr. Markus. Também ele conhecia bem a Riviera, quanto mais não fosse pelos livros, as descrições, os romances
e as fotografias. Á manicura viera para junto dele, o que constituía uma vizinhança incómoda e comprometedora, mas em todo o caso, antes ela do que outra pessoa.
Em voz baixa, dava-lhe explicações e esforçava-se por afastar dos seus ombros delicados a multidão dos moços operários que fumavam e transpiravam. O judeu, de manhã,
apaixonara-se violentamente pela Leore Lania. "O senhor devia ter seguido a sua vocação de escritor", dissera ela. Daí nasceu o sentimento amoroso que se tornou
mais torturante, forte e penetrante quando a imagem da actriz apareceu no écran. Por outro lado, encontrava-se em ebulição o seu amor secreto e platónico por Elisabete
Persenthein, que estava sentada na terceira fila com o rosto iluminado por uma nova expressão de vivacidade. Para acabar, tinha junto de si a manicura e seria essa
que afinal lhe pertenceria quando, no fim do espectáculo a levaria a casa - à falta de melhor, visto que era vulgar, fácil e grosseira. "À falta de melhor" - pensou
Markus, suspirando. "Toda a minha vida é feita de restos". Esta frase pareceu lhe tão feliz, que se sentiu quási reconfortado.
Mas eis o que se passava com Leore Lania, a heroína do filme que em Monte-Carlo se chamava Lorc: Extraordinariamente pequena, só e frágil, descera da estação e tirara
da algibeira uns papéis que demonstravam ir ocupar um pôsto de professora alemã. Embora fosse muito pobre, tinha um taileur de alta costura como é costume no cinema.
Tornou-se imediatamente simpática por um gesto comovedor. No bufete da gare mostrou à evidência que tinha fome, no entanto, em vez de mandar vir uma costeleta de
vitela, comprou com o último dinheiro que possuía um ramo de violetas de Parma. Depois foi acolhida por uma alentada matrona muito bem vestida e o alegre quiproquó
começou. com efeito, a pobre e ingénua professorita fora vitima duma confusão e caíra nas garras duma dama que tinha um dancing elegante onde Leore se devia exibir
como dançarina mundana. Os habitantes de Lohwinckel não perceberam logo à primeira, como os estudantes ladinos; depois a luz da compreensão entrou nos cérebros dos
operários e por fim, nos dos burgueses. Quando toda a gente percebeu do que se tratava, surgiu nos rostos um sorriso claro e satisfeito.
Fazia imenso calor na sala. O pianista limpava com o lenço a umidade que se espalhava pelas teclas. A madeira da galeria, em certo momento, estalou de tal maneira
que parecia um tiro de espingarda; toda a gente ergueu os olhos, assustada. Quanto ao resto,
tudo decorria calmamente, embora os cotovelos e os joelhos de uns estivessem enterrados nas ancas dos outros. Na segunda parte do filme, quando Leore provou o vestido
de baile, os operários começaram a rir grosseiramente e sem razão; fizeram-no porque, estavam um pouco chocados e também porque, como bons renanos que eram, adoravam
as mascaradas. Haviam escolhido para Lania um vestido assaz picante, feito de alguns quadrados pretos entre os quais a pele aparecia como uma amostra de sêda branca.
O operador soubera acentuar esta sedosa aparência da pele fazendo incidir sobre a superfície lisa pequenas projecções algo perversas. Sobretudo no arredondado do
ombro cintilava um reflexo que retinha todos os olhares.
Elisabete Persenthein, que nunca se contentara com o seu aspecto, com a sua figura de marmórea Sigismunda, jamais vira um ombro como aquele. Sem dar por isso, apertava
muito a mão de Karbon, enquanto tinha sob os olhos aquele espectáculo gracioso, tentador e vibrante constituído pela admirável linha de ombros. Compreendeu subitamente
que aquele homem estranho possuíra e abandonara uma das mais lindas mulheres do mundo, por sua causa. Tudo era tão inverosímil que, durante segundos, teve uma vertigem.
O que lhe acontecia, passava-se fora do mundo, num espaço cuja atmosfera diferia, sobre um astro onde não reinava nenhuma força de inércia. Lá em cima, a Lania dançava
sozinha sobre um estrado iluminado, cheia duma sedução fria e longínqua. Elisabete fechou os olhos, não quis continuar a ver. O seu ciúme tornara-se escaldante,
quási erótico, porque o verdadeiro ciúme contém, no fundo, um laço físico, uma ponta de inveja quási amorosa em relação à pessoa rival. Peter Karbon olhava para
o écran tranquilamente, quási que aborrecido. Conhecia o filme, que considerava medíocre, e então assim riscado, era insuportável. Elisabete olhou lhe para a boca,
notando, pela primeira vez, a forma viril dos lábios. Teve um arrepio.
- Que há? - perguntou ele.
-Não quero que olhes para lá!-respondeu com
violência e tratando-o por tu, pela primeira vez e sem dar por isso.
Nesse momento, a terceira parte acabou e a sala foi iluminada porque o hoteleiro queria vender cerveja. Instalara mesmo um balcão ao fundo da sala, sob a galeria.
Para lá se dirigiram os espectadores sequiosos. A sede crescera de tal maneira na atmosfera cheia de calor que se viu o contramestre Hockling beber a sua cerveja
lado a lado com o notário, e o director da Caixa Económica não hesitou em empurrar um moço operário, apoderando-se do seu copo. No momento em que findou o intervalo,
o sr. Roggenzahn começou a tocar uma abertura e no instante em que as luzes se apagaram, entraram mais duas pessoas na sala. A primeira tinha o ar exausto dum corredor
da Maratona e era o reitor Burhenne que, por vias indirectas, tivera conhecimento do procedimento inqualificável dos alunos, indo ao cinema. Atrás dele, caminhava
a governante, frau Bartels agitada, inquieta, tentando acalmá-lo. Logo à entrada do corredor, Burhenne teve uma altercação com o filho de Oertchen, depois com o
próprio hoteleiro. A discussão cobriu o ruído do piano, perturbando a encantadora cena em que Leore se apaixonava por um motorista. Alguns espectadores assobiaram,
outros riram-se; por fim, a porta da sala abriu-se bruscamente, o reitor quási caiu para a frente e exclamou na sua catedrática voz:
- Proíbo! Exijo que...
Não teve tempo para declarar quais eram as suas exigências, porque, embora os pais estivessem zangados com a atitude dos filhos, e mesmo prontos a dar-lhes uma sova,
encontravam-se, naquele momento, absolutamente presos ao espectáculo e não queriam ouvir mais nada. Depois de algumas exclamações veementes e vários assobios e pateada,
conseguiram fazer calar o reitor que ficara no fundo da sala. Alguns afirmaram que o carniceiro Seyfried lhe colocara mesmo a mão na boca, ameaçando-o com o punho
esquerdo. Tudo se calou mas estavam inquietos, principalmente por causa do filme.
Na realidade, Leore apaixonara-se pelo chauffeur que
estava ao serviço dum velho cavalheiro gordo e antipático que ia ao dancing onde a rapariga se exibia, começando a fazer-lhe a corte. E o pobre motorista cá fora,
na rua, à espera do velho e gordo patrão milionário!
Nesta altura, entrou um novo espectador atrazado: o sr. de Raitzold, que viera a pé não sem ter parado na floresta para tossir e tentar respirar fundo, agarrando-se
às árvores, aflito com a crise de asma. Embora a atmosfera da sala estivesse viciada, tendo absorvido todo o oxigénio, ele ficou ali por obscuras e desesperadas
razões. Talvez por inquietação e instabilidade, não podendo mais permanecer em casa; talvez na esperança de encontrar alguma pessoa influente que o pudesse auxiliar.
Exteriormente, - a sua perturbação era invisível - apenas uma leve palidez se lhe espalhava sobre a pele queimada de homem que vive no campo. Deitando um rápido
olhar para a sala, subiu ao balcão e, respirando a custo, sentou-se, com a naturalidade dum homem bem educado, ao lado da filha do presidente da Câmara.
Mal se sentou, explodiu um barulho lá em baixo. O cavalheiro de idade, que devia ser considerado apenas como uma figura cómica, foi diversamente interpretado pelos
operários. Estava sentado à mesa, comendo copiosamente. Os criados, a correr, serviam-lhe acepipe após acepipe e o próprio chefe de mesa lhe trouxe o champanhe que
espumou na taça. O velho e gordo senhor mastigava, engolia e bebia como um glutão.
- É como o velho, lá na fábrica, - disse um.
A exclamação nada tinha de provocante e limitaram-se a rir. "O velho" no calão operário era o sr. Profet. com efeito, ainda havia uma certa semelhança entre ele
e o actor: nas pregas da nuca, na redonda cabeça de foca, na expressão contente e maligna.
- Aquilo é que é chamar ao estreito! - disse outro. De trás, da plateia superior, veio um schiu enérgico.
Um operário comentou ainda:
- com o dinheiro que tem, pode comer tudo quanto quiser.
Alguém assobiou estridentemente por entre os dedos. O sr. Roggenzahn, que já estava um pouco bebido,
olhou para o público com ar cúmplice e careteou um sorriso. De repente, do lado da parede, onde os moços operários estavam em pé, ouviu-se uma canção:
Profet passa a sua vida a beber. Os operários não têm que comer,
Risos. Barulho.
- Silêncio!
- Vê se os mandas calar! - disse a esposa do presidente.
O marido fez sinal que não, como homem experimentado que era.
Raitzold procurava o Profet, com os olhos. Detestava os operários; duma vez para sempre, classificara-os como "proletários" como uma canalha que abandona a terra
para obter melhores salários na oficina, que deixa morrer a terra, morrendo também. No entanto, naquele instante estava sentimentalmente a seu lado, embora o não
quisesse confessar.
Profet não se portava mal, naquela desordem. Verdade seja que as suas orelhas se lhe aproximavam dos ombros, mas sorria, não sem malícia, num ar quási de aprovação,
como se tivesse querido dizer: "Divirtam-se, rapazes, não faz mal. Sou igual a vocês.
Franz Albert, ao braço do qual a esposa de Profet se agarrara, mostrava uma cara assarapantada, não compreendendo nada do que se passava. Ia raramente ao animatógrafo
e já que viera, achando a Lania muito mais sedutora ali do que na realidade, queria vê-la sossegadamente.
- Calem o bico! -gritou, levantando-se e fazendo o gesto de dar um murro.
Um barulho enorme foi a resposta. Reconheceram o indivíduo que o chauffeur Muller vira a beber champanhe, enquanto ele andava, de porta em porta, com o corpo do
desgraçado Fobianke. Franz Albert sentou-se. Conhecia a voz do público, mas não sabia o que lhe queriam. Sentia a nostalgia da sala de treino, de Simotzky e do seu
saco de areia. No entanto, o filme
continuara a desenrolar-se, a matrona obrigara a inocente Lore a sentar-se ao lado do cavalheiro rico e este começou o cerco com tanto realismo que a interdição
do espectáculo aos menores, se encontrou amplamente justificada. Mas como o barulho na sala, os gritos dos operários e os protestos dos burgueses não acabavam, como
se levantavam das cadeiras e atiravam um banco ao chão e que alguns se dirigiam para a porta, o sr. Oertchen, muito esperto, resolveu fazer outro intervalo. Quando
as luzes voltaram e que uma corrente de ar frio se estabeleceu entre a porta e as janelas abertas, a sala apaziguou-se um pouco e o criado serviu cerveja, com abundância.
- Quer ir-se embora ? -perguntou Karbon.
- Não. - respondeu Elisabete. E pensou confusa mente: "Para onde havíamos de ir?
A casa, o marido e até a filha lhe metiam medo, Deixara tudo naquela tarde, confiara a cozinha ao duvidoso Lungaus e saíra como quem foge. Agora não sabia como voltar.
Desejava apenas que aquilo continuasse assim indefinidamente. Sentia-se culpada, mas em revolta, ansiosa por ver a mulher do filme e febril ao sentir a muda e palpável
presença daquele homem. Peter Karbon largou a mão da Elisabete quando a sala se iluminou mas, pouco depois, pegou-lhe outra vez, julgando que ninguém repararia.
Viram o gesto a mulher e a filha do presidente, a costureira Ritting, o operário doente Lingel, a manicura, o Markus e o farmacêutico Behrendt.
O sr. de Raitzold travou uma conversa de sociedade com a sua vizinha.
- A peça... -começou, mostrando bem como ignorava os termos cinematográficos.
- Oh! Um pouco banal. Nada elevada.
- O senhor seu noivo está bem ?
- Obrigada. Está ainda em Wiesbaden. Tem lá uma boa clientela de termas.
- Ah! E teremos o prazer de o ter em Lohwinckel ?
- Bem queria. Mas não é coisa que lhe agrade muito...
- Sim, compreendo.
Raitzold enterrou-se na cadeira. Respirou, com gratidão, o ar que entrava por uma das janelas da galeria, mas os seus sensíveis órgãos respiratórios receberam, com
surpresa, um aroma estranho e amargo.
- É curioso. O ar tem um sabor especial!- disse ao presidente - Aquela fábrica envenena toda a região.
O presidente estava furioso por o fidalgo se ter sentado a seu lado. Foi em voz colérica que respondeu:
- Não é o cheiro da fábrica. É possível que seja o das raízes de batata que o senhor anda a queimar nos seus campos há mais duma semana.
- Não, isso é que não é. - replicou Raitzold, convencido. Depois ficou silencioso a analizar aquele aroma.
Enquanto esta conversa era travada nas superiores esferas sociais do balcão, produziu-se em baixo um pequeno incidente, perto do sítio onde se vendia cerveja. Ó
sr. de Oertchen, seguido pelo carteiro Ellinger, aproximara-se do contramestre Birkner, muito ocupado a beber, batera-lhe no ombro e dissera:
- Birkner, tem aqui um telegrama.
O homem, que não estava habituado a receber telegramas, limpou as gotas de suor que lhe escorriam pela testa e disse, em ar indeciso:
- Só pode ser do Pank.
Depois ficou de pé, a dar voltas ao papel, antes de se decidir a abri-lo e de encontrar a maneira regulamentar de o fazer.
O telegrama dizia assim:
"Greve não aconselhável. Recomendam-se negociações amigáveis. Apoio federação."
- Ora bolas! - exclamou Birkner em voz tão alta que o reitor, empenhado em querer fazer sair dali os estudantes, teve um sobressalto.
Não tardou a espalhar-se pela sala a notícia de que a resposta decisiva chegara de Berlim. Os operários das primeiras filas aproximaram-se do chefe dos delegados
sindicalistas, enquanto o sr. Roggenzahn voltava para o
piano, dando o sinal da continuação do espectáculo. Deixando o bufete, os burgueses esforçavam-se por se reapossar dos seus lugares, caminhando em sentido oposto.
Estes movimentos contrários foram tão nítidos que, vistos de cima, davam ideia dum conflito. Foi esta a impressão colhida pelo presidente, o que fez com que se levantasse
e abandonasse a sala nas pontas dos pés, não sem que Raitzold lhe lançasse um olhar interrogativo.
- Parece-me que isto vai acabar mal. vou mandar vir a polícia para a porta.
- Deseja que acompanhe as senhoras? - perguntou o fidalgo, cavalheiresco.
- Não; tornar-se-ia notado.
Também o Profet tivera a mesma ideia porque conhecia a sua gente, tendo visto que os delegados sindicalistas estavam muito excitados.
- É melhor ir para casa. -disse à mulher, empurrando-a um pouco. - O sr. Albert que abra caminho,
O boxer detestava a violência. Batia-se só quando lhe pagavam para o fazer. Possuía a doçura e a timidez habituais a todos os atletas. Era uma coisa que não podia
admitir: atacar alguém sem luvas de box, atacar quem o não atacava. Calmamente, ficou atrás de Profet e foi assim que passaram rente aos joelhos dos vizinhos até
aos corredores arqui-cheios.
- Ninguém sai daqui!- exclamou um moço operário. E com um simples gesto de ombros, empurrou-os para trás.
Profet sentiu a ameaça expressa naquele pequeno gesto. com a mulher e o convidado, voltou para o seu lugar.
Na sala, reinava a escuridão mas não a tranquilidade. Birkner e alguns operários tinham ficado atrás do balcão e discutiam com fanática violência, divididos em dois
grupos, falando tanto mais veementemente quanto menos eram incapazes de saber exprimir as suas opiniões. O pianista teve, de súbito, uma ideia infernal. Fora outrora
um bom músico: maestro no teatro dum pequeno reino. Vivia roído pela amargura da sua existência falhada.
Como que para apaziguar os provocadores desiludidos, abandonou-se, durante algum tempo, à Berceuse de Brahms. Mas, de repente, achou aquilo monótono e mudou para
um trecho violentamente ritmado e forte, com enorme poder de excitação. Era a marcha da Sinfonia Patética de Tchaíkowski - como amador de rádio, Markus conheceu-a
logo e como excelente musicista, a filha do presidente também. Martelava, duma forma absolutamente diabólica, a revolta na sala e não estava nada em harmonia com
as imagens do écran.
Elisabete Persenthein era, sem dúvida, a única pessoa que seguia as peripécias do filme com um interesse ardente. Bateu-lhe o coração quando Lania, maleável como
um lagarto e carregada de sedução, começou a dançar em frente do senhor gordo. Este bailado era o ponto culminante da produção. O cenarista não mostrava apenas a
dança mas também os seus efeitos. Rostos de homens, ávidos de desejo, mãos que se enclavinhavam nas mesas - como a de Elisabete na do Peter - o moço criado que ficava
petrificado com a bandeja levantada, olhando fixamente a bailarina. Um primeiro plano mostrava os olhos do senhor rico que se rebolavam a cada gesto da Leore. Depois
apareceu outro quadro: lá estava o motorista, em frente do dancing, à espera. Olhava para o relógio, bocejava, ia dum lado para outro, lia o jornal e, como era muito
tarde, tornava a ver o relógio. De novo, apareceu a rapariga a dançar e, depois, outra vez o motorista. Já alvejava a manhã, estava muito frio. O homem levantou
a gola do casaco, passou pelo sono, acordou sobressaltado... - não tinha o direito de dormir,
- Fobianke !-gritou alguém, do fundo da sala.
Era uma destas associações de ideias que não têm razão de ser mas que lançam uma luz de relâmpago, como acontece com os doidos. Um segundo antes reinava o mais profundo
silêncio e, um segundo depois, estava desencadeada a maior algazarra. Gritos, assobios, barulhos, risos, schius, exortações de calma. Um rugido: Fobianke! Fobianke!
Fobianke!
No entanto, o piano continuava com a sua marcha, cada vez com mais força, e parecia ouvir-se a guerra, a
peste e a revolução. O presidente da Câmara pronunciava palavras ininteligíveis, em pé no balcão. Os estudantes, doidos de contentamento, eram os que mais estridentemente
assobiavam. Os dois policias entraram e postaram-se no limiar da sala. Por trás do balcão, partiam os copos e já havia luta. Nas filas da frente, viraram os bancos.
Todos se precipitavam: todos haviam encontrado um inimigo. O operador deixou a máquina, apagando mesmo antes de estarem as luzes acesas. Alumiada apenas pelos candeeiros
vermelhos, a sala rodopiava como água negra e agitada.
Já antes disto acontecer, o sensível Markus tinha inclinado a cabeça, de ouvido à escuta, como se para lá do som do piano e do barulho, percebesse qualquer ruído
longínquo e indeterminado, exactamente como o asmático Raitzold que em cada inspiração do ar farejava um aroma bizarro.
- O que há ? - perguntou a manicura.
- Oiço qualquer coisa: sinais, o sino a tocar.
Era um sócio apaixonado da corporação dos bombeiros voluntários do Lohwinckel, embora aí mesmo, por questões de raça e de política, encontrasse más vontades.
- Está a sonhar. - disse a rapariga, agarrando-se a ele.
Mas continuou atento. O som aproximava-se. Estava a ouvir o badalar das campainhas enquanto, na sala escura, recebia pancadas que lhe não eram destinadas.
De súbito, voltou a luz e viu-se então o motorista Muller, desfigurado e lívido, encharcado de suor, suspenso da balaustrada da galena, ao lado do presidente, gritando
em voz rouca:
- Corram! Vão para as bombas. A fábrica está a arder!
Na cozinha da casa do Angermann havia uma banca centenária, talhada no granito pintalgado de vermelho, da região. Era ali que Elisabete amontoara toda a loiça
suja antes de deixar a casa para ir ter com Peter, à estrada de Dusswald. A torneira não estava bem fechada e as gotas de água caíam com monótono e triste som sobre
os pratos sujos. O médico, que interrompera a consulta às cinco horas, porque fora chamado para um parto, e que, exausto, chegara às sete, ficou parado, na cozinha,
com a cabeça inclinada para a frente, não percebendo nada do que se passava.
Lembrava-se confusamente de que Elisabete lhe dissera qualquer coisa acerca daquela noite mas como nunca prestava atenção, não sabia do que se tratava. Vagueou através
da casa. Também o quarto da filha estava vazio. Procurou na cave e encontrou as duas casas de banho em indescritível desordem, exactamente como os doentes as haviam
deixado. As duas banheiras ainda se encontravam cheias: numa havia turvos vestígios dum banho de sal, no outro, lama escura. O chão estava molhado, assim como os
lençóis arrastando pelo chão. O médico, que só via estes aposentos depois de Elisabete os ter arrumado, achou aquele aspecto horrível. Não percebeu, com nitidez,
que o papel da esposa consistia, duma forma cotidiana e permanente, em afastar do seu caminho aquelas repugnantes realidades, mas teve a visão do seu dorso curvado
de fadiga, da atitude em que ela caía quando se não julgava observada. Também à mesa tinha um gesto que o enervava: pegava no garfo com a mão direita e deixava tombar
a esquerda para debaixo da mesa, pousando-a entre os joelhos. Teve a impressão de que também aquele mau hábito provinha dum excesso de cansaço. Mas estes pensamentos
foram logo cobertos por outro referente à análise do sangue dum doente no qual encontrara estreptococos. Em pé, no gabinete de consulta e tamborilando no reservatório
de vidro onde se conservava o algodão hidrófilo, reflectiu que era preciso mandar pôr compressas de azeite em redor das articulações. Depois lançou os olhos para
o livro das notas. Encontrou uma informação: no filho do negociante Keiler, apesar da febre, nenhuma erupção se produzira. Por baixo leu: "vou ao cinema. A tua comida
está na casa de jantar. Não esperes por mim."
Também no consultório reinava leve desordem; impaciente, o médico, deitou algumas sondas e um especulum para o esterilizador, depois abriu a janela para que saísse
o bafo humano e entrasse o ar da noite. Realmente, sentia-se mal naquela casa abandonada; colérico, sentou-se em frente da mesa de trabalho, primeiro na escuridão,
depois sob o círculo da forte lâmpada de que se servia para as pequenas intervenções cirúrgicas. Acabou por diagnosticar que aquela impressão de mal-estar era devida
à fome. Mas não se levantou logo, como se estivesse à espera de que o seu descontentamento tivesse o poder de fazer voltar a mulher logo para casa. Por fim, decidiu-se.
Encontrou a refeição fria preparada num tabuleiro que, em equilíbrio incerto, colocou em cima da mesa sem toalha. Perguntou a si próprio onde haveria pratos e talheres.
Decerto seguira a mulher com os olhos, inúmeras vezes, enquanto ela punha a mesa, mas nunca vira nem os seus gestos nem a sua finalidade. De maneira que ficou indeciso
no meio do aposento, sentindo-se incapaz de proceder. Depois de ter aberto e fechado várias gavetas, abandonou o propósito de se servir. Por outro lado, voltaram-lhe
as ideias profissionais: esquecera-se de auscultar o operário Hahn com a sonda duodenal; começou a andar de um lado para outro, tomou uma nota acerca de certa ideia
que surgiu, abriu, sem se sentar, o manual de medicina interna, leu a passagem relativa à supuração da vesícula biliar, demorou-se a matutar e só voltou a si quando
ouviu passos na escada. Apressado e contente, embora decidido a fazer algumas censuras, dirigiu-se para lá. Mas deu de cara com o Lungaus, em fato domingueiro e
falando sozinho. Estava tão absorto no seu rouco monólogo que não ouviu o doutor chamá-lo e continuou a subir a escada até às suas águas-furtadas. Chegando lá acima,
apagou a luz da escada, de maneira que o médico ficou na escuridão não se decidindo, senão passado algum tempo, a dar volta ao comutador e ir ter com o operário.
Quando entrou no quarto, encontrou-o sem luz mas mergulhado numa claridade difusa, porque só faltavam
dois dias para a lua-cheia. Muito negra e parecida com um fantasma, a silhueta de Lungaus destacava se da janela à qual apoiava as mãos. Prosseguia no seu solilóquio.
- Temos então mais asneiras ? - interrogou o médico, que conhecia bem o seu doente.
- O que diz o senhor doutor ?-perguntou o homem, dirigindo-se lentamente para a porta.
Persenthein não insistiu, informou-se apenas:
- Onde está a Avelã ?
- Isso também eu queria saber.-respondeu Lungaus, irritado. - É a mim que o vem perguntar, não ? Desde esta manhã que estou furioso porque ela passa a vida a mandar
a Avelã aqui e acolá. Como se eu a não pudesse deitar! Ou como se ela o não fizesse sozinha. É espertalhona a pequena, mais do que muita gente crescida.
- Vamos, onde está ela ? - perguntou o médico, um tanto surpreendido pelo seu tom de queixume, embora soubesse que no ressequido organismo daquele reincidente sombrio
e recalcitrante, um único ponto terno havia: o afecto pela pequenita.
- Talvez a pobre criança tenha ido para casa do avô. Onde quer o senhor que vá quando a mãe desaparece ?
- Homessa! E então eu, não estou aqui ? Não lhe consinto que se vá embora sem dizer nada a ninguém.
Apesar da sua irritação, o dr. Persenthein bem sabia que a filha era uma pessoa a quem era preciso dar todas as explicações.
Tomando as dores da criança, o operário explicou:
- Está zangada porque o senhor não a levou consigo .
- Que diabo, não vou agora também levá-la aos partos.
Lungaus encolheu os ombros.
- Eu queria comer. Mas não sei onde estão os pratos.
O outro continuou a olhar para a janela e sentou-se na beira do leito. Sem entrar nas preocupações
domésticas do médico, prosseguiu o fio dos seus próprios pensamentos, dizendo:
- Não acho bem que ela ande a fazer teatro à filha. Foram três, as vezes que entrou no quarto da pequena, e começou a beijá-la como uma doida. E depois perguntava-lhe:
"Ouve, Avelã, se a mamã se for embora, tu que farás?" E mais: "Agarra-me bem, filha, aperta-me muito o pescoço. Sim e depois: "Gostas muito de mim?" É claro que
a pequena não é tola: percebeu tudo. Porque uma avelã daquelas é capaz de lhe quebrar os dentes todos e ficar intacta. E depois a pequena vem ter comigo e diz-me:
"se a mamã se quere ir embora, que vá... compreendes, eu tenho o Kola e tu... eu ensino-te a cozinhar e não precisaremos da mamã para nada . Aqui tem o que ela me
disse. E mais: "A Erika não me deixa". É a boneca sem cabeça, sabe? E vai eu então digo-lhe: "Tens razão, Avelã, a gente deve deixar ir aqueles que não querem ficar".
Mas não acho bem que ela fale disto com a criança. Pode andar doida à sua vontade, mas que deixe a menina em paz porque uma criança daquelas compreende muito bem
tudo o que se passa.
Embora o médico estivesse muito familiarizado com a maneira de falar, do seu protegido, desta vez não percebeu quási nada.
- Mas o que há ? - perguntou, impaciente. - A casa vai cair, lá porque a minha mulher foi ao animatógrafo?
- Vai cair, vai... - repetiu Lungaus, arranhando a colcha. - Vai cair... vai...
A frase agradava-lhe. Mas deixou-a para retomar o fio dos seus pensamentos.
- É preciso ver que uma criança como aquela é muitíssimo inteligente. Tinha eu seis anos quando encontrei um homem no quarto da minha mãe. Seis anos e voltava da
escola. Nunca mais consegui esquecer, nunca mais, garanto-lhe.
O médico não se sentia à vontade.
- Bem, Lungaus, venha ajudar-me a procurar os pratos.
- Estão na segunda gaveta do aparador. - disse o
operário, nada decidido a mexer-se - Dentro deve haver salchichas. Sim, é claro que também não trata de si, pois. Já não há bananas cá em casa nem sumo de laranjas
e o leite estragou-se. "Coma chouriço, Lungaus. teve o arrojo de me aconselhar. "Escusa de o dizer ao senhor doutor. Ah? É claro que eu farto-me de comer chouriço,
já que querem que eu coma chouriço... De resto, não preciso de o dizer ao senhor doutor, amanhã, quando fizer a análise ao sangue, vê-lo-á. E o certo é que o doutor
faz curas maravilhosas, lá isso é verdade...
- Comeu chouriço ? - perguntou Persenthein, com violência, sentindo-se empalidecer de raiva. Ficava com as orelhas frias quando se encolerizava.
Em tom de mofa ou de compaixão, Lungaus replicou:
- Se o doutor não tem mais nada que o incomode... O médico caminhou para ele e agarrou-o pelos
ombros.
- E bêbedo, também está, não ? - perguntou rudemente, sentindo, com surpresa, tremer os ossos do homem.
- Não estou. - respondeu, calmo.
O quarto estava iluminado apenas pela lua em cuja luz embaciada se desenhavam os contornos da chaminé e da fábrica. Durante toda a conversa, o operário olhara para
a janela. Agora voltou-se para o médico.
- Deixe-os andar.-disse misteriosamente-Quando se chega àquele extremo, já não se podem deter. Deixe-os andar, sr. doutor. Eu, no seu caso, dava-lhe um pontapé em
certo sítio e ala! que se faz tarde. Não é bonito para um homem ficar sentado à espera que ela fuja com outro. Também eu fui casado. É não julgue que o aliviará
bater no tipo. Ponha-os na rua e acabe com isto. Digo-lho eu !
- Mas de que diabo está você a falar ? - perguntou o médico, impressionado com a calma do homem, com a tremura do seu magro corpo de trabalhador, com uma sombria
e nova expressão de cumplicidade.
- De quem há-de ser ? Da sua mulher que nos engana com aquele indivíduo.
Largou o operário como se ele fosse uma labareda. O homem esboçou o seu sorriso omnisciente e experimentado.
- É sempre o último a saber... - chacoteou.
- Está doido! - exclamou o médico, dirigindo-se para a porta - Se amanhã sei que você hoje bebeu, ponho-o na rua.
- Hoje não bebi.
Havia um clarão em redor da fábrica, lá ao longe.
- Vá a casa do reitor e traga a menina. - disse Pcrsenthein, a quem torturava a ausência da criança.
- Infelizmente não posso.
- Porquê?
- Por causa da reputação, senhor doutor. Quando se não tem uma boa reputação, é preciso estar de sobreaviso. Sabe Deus o que acontecerá ainda esta noite aqui na
cidade e em Obanger! Há uma data de boatos e depois acabam por acusar aquele que tem má toada. Se o Lungaus for visto na rua, toda a gente dirá que o Lungaus é o
culpado, mas se tiver passado toda a noite no seu quarto, ninguém poderá dizer nada acerca da sua reputação.
O médico não ouviu esta explicação até ao fim. Bateu com a porta e voltou à sala de jantar. Coisa estranha: sentia vertigens e mal-estar.
- Que idiota!
O apetite havia-se dissipado tão totalmente que foi com verdadeira repugnância que encontrou o tabuleiro sobre a mesa. Pegou nele e levou-o para a cozinha. Na igreja,
o relógio deu as sete e três quartos, mas sendo-lhe dada corda só aos sábados, ia-se atrazando um pouco, todos os dias. No relógio de Persenthein eram oito horas.
Pouco depois soou a campainha da porta: um som estridente, outro breve, outro estridente, outro breve. Era a maneira de tocar, da Avelã. Aliviado, o pai correu para
a porta. Era ela, pequenina, cerimoniosa, com o vestido de fazer visitas.
-Cá estou eu, Kola.-anunciou, tão radiante e senhora de si que o pai não teve coragem para lhe ralhar.
- Então onde fôste?
- A casa do avô. Os rapazes deram-lhe um desgosto; eu fui lá consolá-lo. - declarou a optimista criança.
- E como o consolaste? -perguntou o doutor, que se sentia melhor tendo na sua mão a da pequenita.
Voltaram para dentro.
- Assim, com açúcar e sumo de limão.
- Ah! Ah! -exclamou o médico, sentindo que o apetite lhe voltava.
Dirigiu-se para o aparador e dispôs-se a ir, outra vez, buscar o tabuleiro.
- Que porcaria aqui vai! -disse a pequena vendo a louça suja na banca e imitando o tom "dona de casa" da mãe.
Cheio de esperança, o pai perguntou:
- Saberás tu, por acaso, onde estão os pratos?
- Claro que sei.
Gostava de ser clara nas suas frases mas ressentia-se .ainda das incorrecções da infância, o que lhe dava infinita graça. Encheu-se de grande importância na tarefa
de auxiliar o pai a pôr a mesa e acabou por se ajoelhar numa cadeira em frente dele.
Vendo o seu aspecto um tanto nervoso, notou:
- Há muito que devias estar na cama.
- Queria dormir em casa do avô mas foram ao cinema.
- Também eles ? Mas então esta gente está toda doida com o cinema ?
- É verdade.
- Ouve bem, Avelã, o que te disse a mamã antes de sair?
- Não me lembro.
- Vê se te recordas, minha ratinha.
- Ah, já sei. Foi assim. Pediu-me para eu não adoecer. Porque é que eu havia de adoecer, não me dirão? E se a mamã for viajar, que devo ter muito juízo! Claro que
tenho juízo! Não precisa de mo
dizer.
-Viajar? Mas então a mamã e as suas mãos espalmaram-se na toalha.
Viajar? Mas então a mamã quer ir viajar? -e
- Agora não estou para lavar a cara. vou só escovar os dentes. - anunciou a Avelã.
-Sim... sim.
Embora muito pequenina, a Avelã sabia quando era preciso distrair o pai com conversas profissionais.
- Então o menino já chegou?
- O quê? Ah! Já, sim.
- A mulher gritou muito?
- Não; tudo correu bem. - respondeu o médico, apoiando a sua cabeça na daquela camarada pequena.
Depois, afastando-a:
- Agora vai-te deitar. Preciso de trabalhar. Tenho que reflectir.
Mas depois de ver a pequenita ir-se embora, não conseguiu reflectir. Acendeu um cigarro e começou a andar dum lado para outro. Começou por desenvolver uma grande
actividade, fazendo muitas coisas sem importância, para fugir ao principal. Pegou nas fichas da caixa e substituiu-as, mudou a ordem dos escalpelos na fila dos instrumentos,
subiu e desceu a cadeira operatória e, desorientado, percorreu a casa, que opunha um mutismo quási malicioso às suas perguntas e à sua agitação.
"vou trabalhar até que ela volte e perguntar-lhe-ei o que aconteceu", pensou. Ao evocar a clara fisionomia da esposa sentiu-se mais calmo. Mas, ao mesmo tempo que
tirava da gaveta e sublinhava com tinta encarnada o título: "O princípio biológico da modificação da predisposição sob a influência do regime", lembrou-se nitidamente
que a Elisabete não era a mesma havia alguns dias, existindo nela qualquer coisa de febril e vacilante. Não devia ser nada nos pulmões, embora o seu corpo estreito
e alto não estivesse ao abrigo de qualquer tara hereditária.
"De resto, a temperatura anormal pode ter causas psíquicas."
Mas, ao mesmo tempo, invadiu-o um pensamento tão nu e tão brutal que ficou com os lábios, as orelhas e as mãos geladas.
"Matá-lo-ei! Se ele se atrever, matá-lo-ei!"
Nunca na sua vida experimentara um sentimento de tão grande violência como aquele desejo de assassínio que dele se apoderava. Passados momentos sorriu, exausto,
e limpou a transpiração que lhe formava pérolas por cima do nariz.
"Estou doido! - murmurou.
A casa permanecia muda, trazendo ameaças de todos os lados.
"Vamos lá trabalhar!"-ordenou a si próprio.
Ainda custou a começar mas lá foi. Mal ouviu os passos miúdos que se aproximavam. Era a Avelã, completamente nua, moreninha e de tórax bem desenvolvido.
- Está aqui a correspondência, Kola. - disse ela, pondo tudo em cima da secretária.
Era uma das suas ocupações: ir ver a caixa do correio. E levantara-se da cama para reparar o esquecimento. ; O médico agarrou-a e disse em tom suplicante:
- Ouve, filha, a mamã não vai viajar, pois não?
- Já te disse que sim. - respondeu a pequenita, categórica.
Levantou a e sentou-a nos joelhos. Não sabia que fazer, procurava consolação naquela fresca pele em botão. À criança aconchegou-se muito entre os seus braços e ficou
silenciosa - animalzinho quente a respirar e a escutar.
Quando o pai julgou que ela adormecera, exclamou:
- Os bombeiros!
O médico andava perdido nos seus pensamentos, vendo a febril Elisabete dos últimos dias e comparando-a com a calma e sorridente Elisabete de sete anos de casamento
e mais atrás ainda, com a do tempo de noivado, no hospital de Schaffenburg - ele jovem assistente e ela enfermeira toda de azul e branco, na Maternidade (recordava-se
perfeitamente daquela perigosa eclampsia à qual acabara de assistir quando, pela primeira vez, a encontrara no corredor). Voltou a si, de repente. Em baixo, soavam
passos rápidos sob a torre do Angermann, confundindo-se com outros que chegavam,
- O que há ? - perguntou ele, da janela.
- Fogo na fábrica.
Ouviu-se distintamente a bomba. O médico sentiu-se aliviado com o rumor crescente na rua, como se a sua tensão e a sua febre pessoal se encontrassem determinadas
e perdessem gravidade com aquele fenómeno de carácter geral. com a pequena nos braços subiu rapidamente a escada. Lá de cima do quarto, poderia ver Obanger. A chaminé
da fábrica destacava-se, muito negra, no fundo vermelho. O céu transformara-se numa cúpula amarelada; o fogo, àquela distância, parecia compacto e imóvel, não semelhante
a uma chama, mas antes a uma lava, o que era devido às espessas nuvens de fumo que se espalhavam pelo ar.
- Vamos lá de moto, Kola ? - perguntou a Avelã que, embora estivesse a cair com sono, desejaria empreender arriscadas aventuras.
- Não. Preciso de ficar aqui, pode haver ferimentos.
Tinha a garganta apertada, ao pensar que a Elisabete podia correr perigo no local do incêndio. Segurava na Avelã, nuazinha, que contemplava o clarão vermelho como
se fosse uma árvore do Natal que tivessem alumiado em sua intenção.
- É bonito, não achas ? E esfregou o nariz no do pai, o que na sua linguagem significava: "um beijo preto".
Ele articulou :
- E a mamã sem vir!
A pequenita não respondeu. Daí a pouco, as pálpebras tombaram e adormeceu. O pai sentiu-a tornar-se mais pesada nos braços e levou a para a cama. A Erika já estava
a dormir, rodeada de ligaduras, como se fosse uma múmia. Quando a estendeu no leito, ela ainda murmurou umas palavras em tom protector:
- Se tiveres medo de dormir sozinho, deixa a porta aberta.
- Está bem, minha ratinha. - respondeu o pai, a sorrir, e apertando-lhe a mão até a ver mergulhar profundamente no sono. E agradeceu : - Obrigado.
Já haviam soado as nove horas, o incêndio
aumentava. A multidão continuava a agitar-se. Na rua, ziguezagueavam os pirilampos dos ciclistas, como acontecera na passada semana, por ocasião do desastre de automóvel.
- A desordem prossegue... -murmurou Persenthein e esta palavra "desordem" implicava grande número de coisas. "Trabalhar" - pensou, num sentimento egoísta, possuído
pelo desejo de fugir de si, de não deixar penetrar no seu domínio pessoal, a desordem ambiente.
Sentou-se à mesa e então, vendo a quantidade de minuciosas fichas e as centenas de anotações sobre o caso Lungaus, um clarão iluminou-lhe subitamente o espírito.
Viu a perturbação que o operário, há pouco, não soubera esconder, a tremura nervosa dos seus ombros, enquanto estava junto dele, na mansarda. Viu o seu olhar que
não desfitava a janela.
- Mas foi aquele animal que provocou o incêndio! E cheio de raiva: -Vão tirar-mo! Vão levá-lo para a prisão e sujeitá-lo ao regime de lá. Nessa altura, podes fazer
as malas, Kola, podes rasgar todos os teus estudos!
Levantou-se, sobressaltado, e deu volta à cama operatória. Tinha agora assunto para ruminar, o bastante para lhe fazer esquecer o incidente relativo à esposa. Se
o Lungaus tivesse deitado fogo, ou mesmo que não tivesse e apenas suspeitassem dele, eram umas quatro a seis semanas de prisão preventiva ...
Como se encontrasse na sua frente uma espessa parede, Persenthein parou bruscamente. Fora, sob a janela, continuavam a andar e a falar e a abóbada repercutia os
passos e as vozes. Havia gente que voltava do incêndio.
"É a Elisabete..." - pensava ele, a cada passo que se aproximava.
Mas não era.
Foi à janela e abriu-a com tal violência que o velho Aristóteles que continuava no seu nicho, caiu sobre as páginas do antigo livro amarelo e de minúsculas letras.
- Harmonia! Bela harmonia! -gritou o médico, com vontade de espezinhar o livro.
Voltou à janela e fechou as persianas de madeira. Era um gesto de defesa contra o mundo perturbado. E significava: "Pois fica lá fora.
Por mais esforços que fizesse, embora tivesse voltado para junto do trabalho, não conseguia encontrar-se.
Ainda pensou em dormir, mas sacudiu a cabeça. Notou, surpreendido, que não podia pensar em dormir, enquanto a mulher não tivesse voltado e apaziguado toda aquela
escuridão com a sua claridade. Depois de ter dado numerosas vezes a volta à cama de operações e de ter fumado uma incalculável quantidade de cigarros, para acalmar,
acabou por se deter perante a correspondência que a pequenita trouxera. O retardatário relógio da igreja dera as onze, quando ele se pôs a folhear o Jornal Médico,
de Munique. Ficou extáctico perante um titulo inscrito no sumário.
Modificação experimental da contribuição pela alimentação e pela mudança na maneira de viver" era o título em questão. Procurou, com o coração a bater, e embrenhou-se
na leitura, enquanto os ombros se curvavam e os olhos se tornavam vermelhos.
Como a maior parte destes relatórios, tratava-se dum artigo feito por um médico a uma associação médica. Persenthein voltou atrás várias vezes para relembrar os
nomes: Wolland era o autor do comunicado, director-clínico do hospital municipal de Essen, no Ruhr, onde podia dispor de abundante material humano. Pretendia ter
encontrado a maneira de modificar fundamentalmente a predisposição por meio de certas regras de vida e pela aclimatação progressiva dos organismos ameaçados. Afirmava
e demonstrava isto duma forma evidente, mas sem dar grande importância, declarando que se havia baseado nos estudos bem conhecidos de Krobins, em Oslo, e do professor
Williams, do Instituto Bros-Mays, em Boston. Terminando, fazia mesmo alusão a uma escola nascida da Universidade de Friburgo que, na teoria e na prática, havia muitos
anos que se ocupava do assunto. Embora modestas, classificou de prometedoras as experiências feitas sobre cento e sessenta e sete doentes.
A catástrofe que se deu no íntimo do dr. Persenthein foi silenciosa mas duma grande violência. Releu várias vezes aquela comunicação, comparando com as
suas próprias observações e colhendo ensinamentos do artigo, embora estivesse tratando o assunto nas suas linhas gerais. Aquele Wolland, de Essen, sob um ângulo
diferente, abordara a questão cuja ideia lhe pertencia. Agora era a ideia do dr. Persenthein, de Wolland, dos doutores Krobins, de Oslo, Williams, da América e da
escola de Friburgo. Era afinal, a ideia de toda a gente. Uma destas ideias que flutuam no ar e que, na passagem, se podem agarrar aqui ou acolá!
Soou meia-noite. E depois, embora o relógio estivesse atrazado, soaram a uma e as duas. A Elisabete não voltara. O médico perdera a consciência disso mas, no abismo
sem fundo onde tinha a impressão de mergulhar, sentia um obscuro perigo. Ficou sentado, só, na silenciosa casa do Angermann durante a noite inteira. De vez em quando,
as traves estalavam e a cal escorregava das paredes.
Gozava a pobre glória de saber que estava no bom caminho e que as suas ideias se encontravam justificadas e sentia também uma longínqua impressão de calor ao reconhecer
que puxava pela mesma corda que outros, e alguns célebres. Era bem pouco para um homem devorado pela ambição, como era aquele humilde médico de aldeia, perdido no
fim do mundo. Pobre Jó, estava ali sentado em face do inútil trabalho que, durante longos anos, fizera sobre o seu Lungaus, sobre aquele caso único e isolado que
estudara e observara à custa de mil sacrifícios. O dr. Wolland, de Essen, no Ruhr, estudara cento e sessenta e sete casos e falava disso nestes termos : "um diminuto
número de observações, pouco convincentes".
Durante a guerra, conhecera ele um homem cujos cinco filhos haviam tombado, um após outro. Naquela noite, teve a impressão do que era amortalhar os filhos mortos.
E ali estava, entre o seu "Princípio biológico da modificação do temperamento por meio de regime" e a "Modificação experimental da constituição pela alimentação
e pela mudança na maneira de viver", do dr. Wolland, de Essen,
Na sua frente não via nada, como se estivesse completamente cego.
Era um teimoso, um maníaco, um original este médico; um pensador, um homem estruturalmente alemão, que só e em silêncio, era capaz de amortalhar em si toda a ansiedade
da sua vida.
Inúmeras vezes, a irmã vira o sr. de Raitzold a fazer o mesmo gesto; pôr o velho revólver no bolso, antes de sair. Naquela noite, voltou-lhe a visão desse acto depois
de ele ter saído. Assustou-se, tendo a impressão de que ia acontecer qualquer coisa extraordinária: uma sombra, um perigo pareciam ameaçá-los. Sentia isto devido
à agitação que pairava no ar e à febre que se apoderara de Lohwinckel, aumentando sempre desde o desastre que trouxera agitadores para a calma cidadesita adormecida.
No Domínio, tudo estava sereno naquela noite. A maior parte do pessoal fora para o animatógrafo e apenas o velho Kilker, que ocupava uma situação intermediária entre
primeiro criado e mordomo, estava sentado com a criada Genoveva, ainda mais idosa do que ele, no estábulo onde a vaca ia dar à luz pela primeira vez. Em cima, a
Lania continuava a tocar o seu fox-trott, recomeçando trinta ou quarenta vezes; ouvi-la, dava vontade de fugir. Jacinta subiu a escada, bateu à porta e entrou na
sala forrada dum velho damasco e com o lustre envolto em gaze. A actriz não deu pela sua presença. Estava sentada em frente do cansado piano com o queixo levantado
e ar absorto. Parecia ainda mais pequena e frágil. O vácuo onde se encontrava era tão impenetrável, que a dona da casa, muda, tornou a abrir a porta, calçou as botifarras
e foi-se embora.
Depois das oito e meia da noite, chegou o
veterinário, que se dirigiu com a fidalga para o estábulo. Nessa altura, telefonaram. Uma voz apressada anunciou o incêndio que se declarara na fábrica e pediu os
cavalos, visto que o Domínio era obrigado a fornecer os cavalos para a velha bomba de que se serviam juntamente com a bomba-automóvel. Jacinta ficou aflitíssima
porque relacionou o nervosismo do irmão com o incêndio. Correu para o pátio, à procura do moço da cavalariça, o qual escalara a grade e estava a olhar fixamente
para o céu que apresentava um tom avermelhado. Cantavam os grilos no pomar, o que dava uma estranha impressão de serenidade e isolamento. Os cavalos, que eram empregados
indistintamente em todos os serviços, lá partiram, conduzidos pelo rapaz. Passados dez minutos ela achou impossível ficar ali, imóvel. Os grilos continuavam a cantar,
a vaca já começara com as dores, a Lania persistia em repetir as mesmas notas desesperadas. Procurou a bicicleta no armazém dos utensílios velhos, enfiou as luvas
de cocheiro e partiu para Obanger.
O incêndio declarara-se nos depósitos n.? 2 e n.? 3, exactamente onde faltara a electricidade de manhã, e onde se produzira o falado curto-circuito. O guarda de
noite só se apercebera quando uma espessa nuvem de fumo se evolara do edifício, indo para o alto perseguida por aguda labareda. O motorista Muller viera ajudá-lo
para manejar os extintores, mas sem resultado. Os bombeiros de Dusswald chegaram primeiro do que os de Lohwinckel, sendo a culpa deste atrazo devida ao espectáculo
cinematográfico - no qual, diga-se de passagem, nunca se chegou a saber o que aconteceu aos três protagonistas. Foi bastante evidente a desordem que presidiu aos
primeiros vinte minutos de luta contra o fogo. Através das vigas em chamas, o incêndio dirigiu-se para o anexo habitado pelo motorista. Sob as ordens do comerciante
de loiça e capitão dos bombeiros, Voegele, dirigiram as mangueiras para aquele ponto, havendo meia dúzia de heróicos voluntários que salvaram os móveis da casa:
camas, armários de cozinha, a gaiola do pássaro, o retrato de Bebé, com moldura, a Virgem em porcelana azul decorada a estrelas doiradas.
Entretanto, no depósito em chamas, acumulavam-se compactas nuvens de fumo escuro. À falta de janelas e de bocas de arejamento, não podiam sair e os bombeiros encontravam-se
impossibilitados de entrar. O fogo ia subindo sempre, do interior para o telhado, e reanimando-se visto que em toda a parte encontrava oxigénio.
Sobre os esqueletos negros das traves, homens pretos estavam em pé, com as mangueiras atestadas. Em baixo, faziam-se buracos nas paredes. De vez em quando, uma língua
de fogo, hesitante e pesada, saltava dum ponto para outro. As pessoas de Lohwinckel estavam fora, perto do muro. Tinham os rostos alumiados pelo incêndio e experimentavam
a grande alegria que se tem sempre ao ver chamas. Era um incêndio importante e um espectáculo a que se não assiste todos os dias - só se dá, quando muito, de dez
em dez anos.
-A garagem! A gasolina! - gritou um homem. Tinha o rosto negro e o corpo muito inclinado mas reconheceram Birkner, o revolucionário chefe do conselho da fábrica
- o chefe do partido grevista. Um espírito inteligente que não tinha medo ao trabalho e deitava mão a tudo. Ordenou aos operários e convenceu os bombeiros a porem
a salvo a gasolina, antes de mais nada. O telhado da garagem estava encharcado mas muito quente, não havia maneira de se salvar. Os depósitos iam-se desmantelando
trave a trave, dir-se-ia que a negra madeira se fundia na braseira amarela sobre a qual dançavam círculos azuis e agitados. Embora o fogo estalasse, crepitasse e
caísse aqui um pedaço de parede e além uma chuva de cal, tinha-se a impressão dum estranho silêncio, devido ao assobiar ininterrupto das labaredas, ao mutismo da
equipa dos salvadores e ao laconismo dos assistentes. O que arrepiava era sentir os morcegos. Em geral, estavam pendurados, aos centos, nos tetos dos depósitos,
com as finas garras enterradas na madeira e os focinhitos de ratos adormecidos. Mas agora, o instinto expulsara-os, a tempo, dos edifícios ameaçados; na noite cheia
de luz estavam desorientados e o seu voo mole e ziguezagueante deitava-os constantemente para cima das pessoas.
Quási toda a gente achava que o sr. Profet merecia o que lhe estava acontecendo, mas também não havia motivo para demasiado regozijo. Ele tinha aquilo no seguro
e como homem de negócio, até do fogo era capaz de tirar algum lucro: novos depósitos arejados e construídos em higiénicas condições pela Companhia de Seguros. Verdade
seja que o trabalho ia ser interrompido e então quem sofreria? Os operários. Os mais velhos, os que sempre se mostravam cobardes e preocupados, falavam já de suspensão
de pessoal e de provisória interrupção de trabalho, agrupando-se com inquietação. Mas também os revolucionários esqueciam os seus projectos de greve: formando cadeia
em frente do edifício principal, molhados por um suor enegrecido de fuligem, protegiam a importante fundição onde duas equipas de vinte e cinco homens ganhavam o
seu pão a trabalhar.
O sr. Profet também se portava bem no meio de tudo isto. Primeiro, fez o seu dever como simples membro sem distinções do corpo voluntário dos bombeiros, dando à
bomba com toda a força, alternativamente com o sr. Markus, gordo e a bufar, que também fornecia todo o seu esforço à velha bomba de sistema anti-diluviano. Depois,
não perdia a cabeça nem o bom humor, chegando mesmo a gracejar no meio dos estalidos, das línguas de fogo e das nuvens de fumo; prometeu um pronto-socorro aos bombeiros,
anunciou uma distribuição gratuita de cerveja e fez com que houvesse turnos. Era um pequeno Napoleão, um homem de princípios modestos e grandes sucessos. Naquela
noite, desvendou se abertamente a larga e popular energia do seu temperamento e explicou se então o motivo por que ele prosperava enquanto Raitzold cada vez se afundava
mais.
O fidalgo estava entre o povo de Lohwinckel a olhar para o incêndio, contrariado por esta atenção que considerava demasiada para com a propriedade do inimigo. Mas
a força de atracção do fogo era tão grande, estas explosões e crepitantes quedas respondiam tão bem ao seu estado de alma que não conseguia arrancar-se dali. Como
os outros, também ele sentiu, na garganta,
o ar carregado de fuligem; os olhos lacrimejantes começaram-lhe a arder e a pele cobriu-se-lhe com uma camada fina e negra enquanto, como que fascinado, continuava
a contemplar as labaredas.
À medida que o incêndio ia diminuindo, os espectadores iam desaparecendo. O fidalgo adiantou-se, da quarta para a primeira fila. Comunicou-se-lhe a decepção dos
outros assistentes quando, ao cabo de três horas, o fogo se apagou, não restando senão algumas nuvenzitas de fumo erguendo-se dos calcinados telhados.
Rodeava as ruínas numa atmosfera arrepiante, devido ao vento que se levantara, felizmente demasiado tarde. Estava frio; chegara Outubro com uma lua que engolia as
nuvens e uma aragem de fazer bater o queixo.
O sr. de Raitzold ainda ali estava, quando as bombas já se aprontavam para partir. Como se falasse sozinho, o seu descolorido bigode de oficial de cavalaria estava
sempre em movimento. Foi nessa altura que a irmã o descobriu, aproximando-se dele. Os cavalos do Domínio, atrelados à bomba, quando ela passou, viraram as cabeças
e deteve-se um momento junto deles, examinando os arreios e fazendo-lhes uma festa. O sr. Profet, embora estivesse sem colarinho, a transpirar e todo preto, inclinou-se
profundamente em frente dela. Acompanhava precisamente o presidente da Câmara que tinha o automóvel um pouco afastado dali.
- Então? Podia ter sido pior.
- Sim ... Ao menos, não houve desastres pessoais.
- Está no seguro, an ?
- Bem sabe que sem um processo não se tira nada das Companhias.
- Como pegou o fogo? Tem alguma ideia? Isto é... não suspeita de ninguém? A sua fábrica andava um pouco agitada, ultimamente, não?...
- Suspeitar? Não. Ultimamente, andaram com efeito, a excitar-me o pessoal; mais nada. Teria que desconfiar de todos, ou de nenhum. Também nas instalações eléctricas
se produziram incidentes: já nesta manhã lá houve um acto de sabotagem. Há quem tenha visto andar por aqui um operário de má fama; um certo
Lungaus. Mas não posso provar o que não sei. E também, para que haviam eles de cortar a árvore que lhes dá pão? Vai ver o que vão protestar quando eu disser que
vou reduzir o trabalho durante um mês.
- O quê? Vai fazer isso? - perguntou o presidente, aflito.
- Vamos a ver... Se não me aguentar...
- Quer que o leve no meu carro? O seu, com certeza que está impossibilitado de andar.
- Obrigado. Desejo ficar aqui até amanhã de manhã. Mas se o sr. presidente quisesse levar a mulher do meu motorista, agradecia-lhe. A pobre criatura sempre apanhou
um susto! Dormirá na minha casa. Fizeram la mais camas.
Não, realmente, este Profet não é o pior homem da região. Há outros piores, como o da fiação, de Dusswald, ou o das máquinas, de Schaffenburg. Dizem isto os operários
que, extenuados, voltam para as suas casas. A revolta extinguiu-se como se o lume a tivesse queimado. O vento começou a soprar de outro lado: afinal o paginador
Pank, de Berlim, falou muito mas não fez nada.
- Fichli,- disse a Jacinta, aproximando-se meigamente do irmão e tocando-lhe no cotovelo - Fichli, toda a gente se foi já embora. Se queres ir, deixo-te a bicicleta
e vou buscar os cavalos que levarei com o rapaz.
O proprietário sobressaltou-se, ao ouvir a voz apaziguadora da irmã, como se um raio caísse junto dele.
- Eu? Não. Preciso ainda de dizer algumas palavras àquele Profet. - respondeu, tossicando.
- Agora? Já deu meia-noite. Ele deve estar exausto, sem cabeça para tratar seja do que for.
-Também eu.
- Mas tem que ser já?
- Se o não fizer agora, não o farei nunca!- replicou em tom violento.
com efeito, queria aproveitar aquele dia. A febre do espectáculo, o incêndio, o sonho por entre as chamas, a excitação geral haviam-lhe dado energia para combater.
Rudemente, disse à irmã:
- Vai-te embora. Deixa me.
E o seu braço desviou-se do fraternal gesto que desejava dar-lhe calma.
Tinham recuado para a sombra projectada pela fábrica, de modo que Profet só os viu quando voltou. A lua iluminava o agora e também dois candeeiros, um junto do portão
e outro no edifício central. Ele, que até aí fora tão corajoso, mostrava-se agora muito abatido, ao atravessar o pátio que cheirava a fumo arrefecido e amargo, para
se dirigir ao seu escritório.
Raitzold deixou a irmã na sombra da parede e seguiu o industrial. Alcançou-o de repente, como uma bola lançada em imprevista trajectória.
- Senhor Profet, preciso de lhe falar. - disse, abafando.
O interpelado estremeceu. Refreou um movimento mais de receio do que de surpresa e olhou para o fidalgo, dizendo:
- Pois não.
No escritório, o motorista Muller esforçara-se já por estabelecer um pouco de ordem: acendera o candeeiro da mesa ; no divã de couro estava a manta do carro. Fazia
frio porque todos os vidros haviam estalado. Profet teve um arrepio dentro do fato encharcado de suor.
- Quere um cálice de conhaque, sr. de Raitzold ?
- Não, obrigado.
- Pois eu vou beber para aquecer.
E, sem cerimónia, meteu o gargalo à boca.
- Fique lá fora, Muller.
E indicou ao visitante uma das poltronas de couro. Raitzold permaneceu de pé, no meio do compartimento, olhando sem ver as paredes que o Profet tivera orgulho em
decorar com fotografias que mostravam os seus humildes princípios: os pais dele, a sua primeira comunhão onde estava ridiculamente vestido e com a vela na mão, sentado
com os camaradas em redor dum pipo de cerveja, como membro do clube ciclistas "Alegre Passeio...
- Então que há ? - perguntou.
- Fui oficialmente informado que o senhor...- começou o fidalgo, mas percebeu logo que aquela frase
de simples formalidade não daria ideia do que viera ali fazer. Interrompeu-se. Depois de um silêncio, exclamou apressado:-Queria apenas dizer-lhe que é impossível!
Em voz não destituída de cordialidade, Profet respondeu :
-Não é desta maneira que podemos tratar de negócios, sr. de Raitzold.
Estava exausto e o seu fundo de bondade apossava-se dele, como dum homem levemente embriagado.
- Para si, trata-se dum negócio. Para mim, não. Compreende que não sou homem de negócios.
Profet examinou-o com atenção.
- E quem lhe diz que, para mim, isso representa realmente um negócio? O seu Domínio custar-me-á uma certa soma; e quanto gastarei depois? A propriedade está completamente
arruinada.
Ao ouvir a palavra "arruinada", o fidalgo sentiu outra vez a congestão gelada dos outros vasos sanguíneos que se traía pela palidez - tanto mais que as palavras
do industrial eram verdadeiras.
- Nesse caso, não sei porque motivo o senhor quer... me quer expulsar das minhas terras!
Queria acusar, mas não pôde conter o queixume.
- Há anos que me persegue! - e mordiscou o bigode que começara a tremer.
- Fiz-lhe há tempos, uma boa oferta.
-Sim. O senhor é daqueles que julgam que o dinheiro pode comprar tudo.
Profet concordou mas guardou a reflexão para si. Sentou-se pesadamente, deixando Raitzold em pé.
- Ora vamos lá a ver. Um inimigo é sempre um inimigo. O senhor fez-me sempre mal onde pôde; eu prejudico-o quando posso.
A estas palavras, o proprietário mostrou estar tocado e o industrial olhou-o com atenção.
com efeito, aquelas palavras definiam bem a situação.
O industrial, falando com a mulher e os amigos, gozara antecipadamente o instante em que se apoderasse do Domínio, fosse o senhor absoluto de Lohwinckel.
mas, infelizmente, naquela noite sentia-se mole, de forma
que não saboreava o seu triunfo da maneira profunda
que idealizara. ?;
E disse: ;:
- Estou muito fatigado agora para poder entabolar negociações.
- Não quero negociações! - respondeu Raitzold, ficando imóvel a fitar os olhos de Profet. Depois, em voz mais baixa: -Não é um negócio. Queria apenas preveni-lo
de que não sairei do Domínio, a mim ninguém me tira de lá. Antes de o abandonar... antes que o senhor tome posse... deitarei tudo abaixo. Matarei o gado, arrancarei
as árvores, inundarei os campos, incendiarei a casa... deitarei fogo ao solar... ??
- Ah, sim? Mas se nem sequer está no seguro!- atalhou Profet, estremecendo. !
- Se estivesse no seguro, não tinha o direito de lhe deitar fogo. - gritou o proprietário.
Dois mundos haviam falado. Ficaram silenciosos, arquejantes, respirando a custo, como dois animais irre conciliáveis que vão bater-se. O sr. Profet sentou-se outra
vez. Sentira bater o coração o que, em negócios era uma coisa que nunca lhe acontecia. Verdade seja que as circunstâncias eram excepcionais,
- Mas o senhor endoideceu! - exclamou, respirando", com tanta dificuldade como Raitzold torturado pela asma.:,
O fidalgo tornou a dizer:
- Antes de deixar a minha casa, demolirei tudo, arrasarei tudo. Nem um canteiro nem uma paliçada. As flores... - a minha irmã dedicava-se à horticultura arrancarei
as roseiras e atirá-las-ei para o estrume, hei-de tapar os poços, hei-de... hei-de ... Quanto à "Costa do Sol" - disse em voz ainda mais baixa e rouca - julga que
lha dou? Arrancarei as vinhas, tirarei todos os pés eu próprio, com as minhas mãos, um após outro!
Profet sorriu.
- A vinha? Mas a terra fica. E o que conta é a terra.
Raitzold ergueu os braços ao ar.
- A terra é que conta! Então o senhor sabe tam-
bem que, acima de tudo, está a terra? E um belo dia chega um indivíduo como o senhor e quer construir, nessa terra, depósitos e caminhos de ferro, an? Arremata tudo
e começa a especular, não ? Todas estas porcarias que tem ideia de pôr na minha Costa do Sol". O fidalgo chorava agora sem vergonha, sem se abandonar e desatar aos
soluços mas com uma espécie de estertor depois de cada palavra. Isto comoveu o sr. Profet que nem pensava em construir na "Costa do Sol". Pelo contrário, tivera
sempre a impressão de que a posse e a plantação da vinha naquele terreno, o colocariam numa categoria especial, mais elevada. Mas como as queixas do antagonista
lhe iam direitas ao coração, tornou-se carrancudo e declarou:
- Não sei porque motivo não havia de construir. E não era o senhor que mo ia impedir.
- Eu, sim! Eu. Cão! -berrou o sr. de Raitzold e tirou o revólver que se lhe prendeu na calça, aparecendo um segundo mais tarde do que o indicado.
Profet empalideceu mas não perdeu a cabeça. Sorriu até, pàlidamente, não de coragem mas de temor. Teve um gesto feliz na direcção do braço direito de Raitzold que
repeliu, tirando a arma da mão trémula.
- Mas está doido! Está em perigo de morte!-balbuciou.
Os joelhos tremeram-lhe e deixou se cair na poltrona.
Raitzold deixou-se cair também na outra cadeira, apoiou os cotovelos nos joelhos e mergulhou a cara nas mãos.
Silêncio.
Bastante mais tarde, pediu:
- Podia agora dar-me um pouco de conhaque?
- Pois não. - respondeu Profet, colocando a garrafa na sua frente.
O fidalgo sentia se perdido em nevoeiro, os olhos estavam injectados de veias azuis. O sangue e a consciência equilibravam-se lentamente.
- É só um instante ... vou me embora já ...
Às apalpadelas, procurou o revólver, sobre a mesa, até o ter encontrado. Depois meteu-o no bolso.
Um revólver não é um argumento, mas aquele minuto trágico deixara em Profet uma profunda lassidão misturada de arrepios. Parecia-lhe que a noite durava havia anos;
eternidades tinham decorrido desde o fogoso tumulto do cinema, o incêndio e a sua extinção. De repente, teve a sensação de que aquele negócio do Domínio lhe repugnava.
Tinha outras preocupações. Pensou: "Quero cá saber disto para nada!" Mal seguro nas pernas, levantou se. Raitzold imitou-o e esforçou-se por tomar uma atitude protocolar.
Estavam ambos extremamente pálidos, encharcados de transpiração, torcidos como roupa molhada.
- Muito boa noite. - disse o fidalgo.
- O meu carro não pode andar, senão conduzi-lo-ia
- respondeu o industrial.
Quando o proprietário já estava na escada, Profet dirigiu estas palavras ao seu inimigo mortal:
- O negócio ainda não está arrumado. Devemos chegar a um acordo.
A irmã esperava-o. Ansiosa, perguntou:
- Então ?
- Parece que ficamos, pelo menos provisoriamente.
- E agora, onde vamos ? - perguntou Karbon, depois de ter salvo Elisabete do tumultuoso animatógrafo, interpondo a sua possante estatura entre ela e a multidão.
- Não sei. - respondeu ela, febril. Mas, maquinalmente, tomou a direcção da casa do Angermann. Karbon largou a trémula mão da sua companheira e começaram a andar.
Passado um momento, passou-lhe o braço sob o seu, o que, para ele, era um gesto natural. Para ela, consistia em romper com todo o equilíbrio e todas as conveniências:
caminhar para um abismo sem
fundo. O céu estava límpido, claro, bicolor: dum vermelho ardente a leste, por cima da fábrica em chamas, dum luar azulado a oeste, por cima da cidade e na direcção
do Priel. Na estrada de Obanger encontraram grupos de pessoas agitadas ou aflitas que iam contemplar o incêndio.
- Vem. - disse Karbon, levando Elesabete para uma ruazita lateral, orlada de casas construídas em série, em tijolo vermelho, iguais umas às outras, com dois metros
quadrados de jardim e um renque de lilazes que erguiam para o ar as suas umbelas escuras e secas. Cheirava a incêndio e a cano de esgoto-pois canalização não existia.
A luz vinha de raras lanternas que espalhavam uma luz amarelada.
Atravessaram aquele bairro apertando-se muito um contra o outro, chegaram perto dum arco feito na muralha da cidade que se chamava: O Regato". Era um pequeno rio
de curso rápido que servia a serralharia do Priel e que aqui, marginava com certo ruído, as fachadas de traves à vista duma fila de casas.
Caminhavam e falavam, seguindo o rio até à serralharia. Depois, pelo Priel, vieram para o centro de Lohwinckel. Passaram em frente do liceu, olharam para a barra
fixa e a cova que os rapazes haviam feito para os seus saltos em comprimento e detíveram-se, um momento, junto ao portão.
- Foi aqui que eu nasci, - disse Elisabete, indicando , a casita e o arborizado jardim.
Karbon achou que era uma coisa comovente e incompreensível ela ter nascido em Lohwinckel e ter lá vivido sempre.
-Quando a gente atravessa uma aldeola assim, diz: "Mas como poderá esta gente viver aqui, tão longe de tudo?"
- Pois não são assim tão diferentes das outras, estas pessoas... - respondeu ela.
Contemplou o rosto erguido para ele e reconheceu o sorriso feminino, carregado de desejo e admiração que encontrara em todo o mundo. Sorriu também e mur-
murou :
- Pois não...
Atravessaram o mercado, passaram ao lado da igreja, voltaram para trás. Soava a meia das nove quando deram volta à igreja, ao longo das velhas pedras tumulares do
muro exterior. Pararam a respirar o turvo aroma da poça dos patos, viram, à vacilante luz dum candeeiro, estremecer na água suja as suas duas silhuetas, depois chegaram
à farmácia e dirigiram-se, em passo cada vez mais hesitante, para a casa do Angermann. Levaram quási meia hora a transpor esta última distância. Os candeeiros apagaram-se
às dez horas, um pouco antes de soarem na igreja, visto que o minúsculo gazómetro de Obanger observava a hora certa da Europa Central.
De braços caídos em face da casa, Elisabete não se dispunha a entrar. A sua vontade não era bastante forte para a obrigar a dar os cinco passos que faltavam. Como
o médico fechara as persianas, a casa estava toda às escuras e a sentença que se lia lá no alto tornara-se invisível, o versête que dizia assim: "Aquele que vive
sem inveja e que tem filhos, assemelha-se a um punhado de flechas na mão do Todo-Poderoso". Elisabete tentara algumas vezes estabelecer uma correlação entre aquela
divisa e a sua existência, assim como, arrancando cada folha do calendário dava. um sentido profundo e profético à legenda inscrita. Mas não encontrava nada.
Demoraram-se sob a torre. Lá em cima, São Jorge brincava com o dragão que tinha cabeça de delfim. Cada vez era mais difícil separarem-se. Karbon largara-lhe o braço
e contemplava-a, de um pouco de longe. Mas a atracção exercida pelos seus corpos era tão grande, que logo se aproximaram, encostando-se um ao outro, sentindo o bater
dos respectivos corações. Depois o homem pegou na mão da mulher e colocou-a sobre o seu peito, no calor que havia entre a camisa e o casaco; era, para ambos, um
contacto duma doçura e duma proximidade assustadoras.
- Sinto-o bater. - balbuciou ela.
Peter, como que embriagado, sorriu e respirou-lhe os cabelos. Passava gente. Elisabete sentia confusamente que estava ali de pé, junto da torre do Angermann,
com um homem, exactamente como vira algumas vezes a criada na companhia do limpa-chaminés Zuzchkan mas era uma impressão confusa e secundária.
Karbon, sentindo que ela não podia entrar em casa, levou-a para a estrada que conduzia a Obanger, para longe da cidade. Pediu :
-Mais cinco minutos.
Elisabete respondeu, como em estado de sonambulismo :
- E o incêndio ainda dura... -como se fosse desculpa suficiente.
Era tão insensata e tão moça aquela maneira de andar a passear pelas ruas, como se os ligassem cadeias delgadas e incandescentes! Peter Karbon, que tinha quarenta
e três anos, sentiu-o com força, tendo a consciência de viver uma noite de ardente intensidade. Deu parte a Elisabete:
- Há uma coisa apenas: sentir a gente que vive esta impressão que, totalmente, se apodera de nós - a única razão de viver.
Ela não compreendeu bem; permanecia por trás dum luminoso nevoeiro.
Andaram, andaram, chegaram outra vez a Obanger, Pela segunda vez, atravessaram a rua das casas de tijolo onde tinham estado uma hora antes. Chegaram ao local chamado
"Perto da parede" que limitava as propriedades do sr. Profet. Pararam então a contemplar o fogo, olharam fixamente, durante muito tempo, sem falar, esperando que
as chamas subissem sempre para mais alto. Em seguida, prosseguiram o caminho, quando a intensidade das labaredas começou a diminuir. As suas mãos continuavam enlaçadas
e, às vezes, ela sentia uma subtil dor, quando as unhas de Karbon se lhe enterravam nas palmas. Tinha nervos de que ignorava a existência, veias novas batiam-lhe
na garganta e o seu corpo parecia um país em que viajava pela primeira vez, cheio de revelações e mistérios. Deram volta à fábrica, ao longo do muro; através da
erva úmida alcançaram a estradazita que, entre vinhas, conduzia à estação. Elisabete sentia-se tão fatigada que tinha a impressão de caminhar sobre nuvens
mas estava plena de vivacidade como nunca o estivera na sua vida. O incêndio parecia estar extinto, por trás deles fechava-se o céu; com ar ofendido, a lua dirigia-se
para o campanário no qual se acendeu uma pequena cintilação. Em baixo, no vale, os bombeiros voltavam para a sede. Peter Karbon e Elisabete estavam junto das vinhas,
esperando que o silêncio chegasse.
- Tanto nevoeiro! - disse ele.
- Para ali fica o Reno... -murmurou ela. E cada palavra lhes parecia carregada de signihcação. Karbon reconheceu o mesmo aroma das urtigas que aspirara na noite
do desastre.
- Deve ter sido por aqui. E procurou.
Ao descer, abrigou a Elisabete sob o seu ombro e ela sentiu-se protegida por aquele calor. Na floresta de Dusswald brilhavam as manchas brancas dos marcos quilométricos.
Estava-se em plena noite, não havia mais ninguém na estrada. E eles falavam, falavam, balbuciavam, tinham-se, fundiam-se num beijo, tornavam a partir.
- Aqui é que o desastre se deu.
Na escuridão, reconheceu o tronco de árvore onde ficara sentado tempo indefinido com a Leore desmaiada nos seus joelhos. Tirou mesmo uma acendalha do bolso e, à
claridade da minúscula chama, examinou a estrada, a árvore, a curva. E pensou: "Que bom ter escapado e poder tirar da vida tão grande prazer!" Foi num gesto de revolta,
que se sentou no tronco da árvore e tomou Elisabete nos braços - de ouvido à escuta, parecia um violoncelista tocando numa corda e apreciando o som.
Depois começou a falar de Fobianke, cuja sombra parecia andar com eles.
- O dever... -respondeu Karbon a uma objecção que Elisabete havia formulado muito antes - Falas em dever. Mas nunca ninguém descobriu ainda qual era o dever realmente
importante: aquele que diz respeito aos outros ou a nós. Não tenho deixado de pensar no Fobianke. Morreu, não é verdade? E então?
cumpriu o seu dever. Conhecia-o bem; como sabes, andámos sempre juntos: de noite, por estradas solitárias, teve ocasião de me contar muita coisa. Há tempos, quis
emigrar para o Canadá, mas faltou-lhe a coragem. A sua primeira mulher morreu por ele andar atrás doutra qualquer: uma caixa num bar automático, uma criatura gorda
e bonita. Mas não casou com ela, apesar de viúvo. Preferiu uma viúva também, insignificante, mais velha do que ele, mas que possuia alguns patacos. Não tinha força
para lutar pela vida. Cumprir o seu dever - é bom para aqueles que o podem fazer. "Fiz o meu dever" era a frase que o Fobianke repetia sempre. Morreu de repente.
Achas que um morto poderá estar satisfeito por ter cumprido o seu dever? Não te rias, Elisabete, não sou um filósofo e exprimo-me mal. Não ligo grande importância
à vida. Mas acredita que quando aqui estava sentado, com a cabeça a zumbir, só tinha pena duma coisa: do que não fiz. Não de qualquer tolice ou pecado, não... Estive
já várias vezes a ir desta para melhor... certo dia, uma serpente mordeu-me e foi um feiticeiro preto que me curou; doutra vez estávamos vinte e quatro homens num
abrigo: pois eu fui o único que me salvei. Não; acho que se deve tirar da vida tudo o que ela possa dar -é o mais importante. Acontece o mesmo com a natação. Se
não tiveres confiança na água e te convenceres de que ela não te aguentará, é que não te aguentas mesmo. Se não tiveres confiança na vida, é mais que certo: vais
abaixo. O dever, o dever! Lavar a loiça, fazer as camas, engraxar o calçado - mas tu que és no meio disso tudo Elisabete, tu consegues viver? Elisabete, Elisabete!
Ouvindo-se chamar assim com tanta insistência, abriu os olhos que fechara enquanto ele falava com veemência. O braço direito do homem estava sob a sua nuca e o esquerdo
sobre o seu peito. A floresta erguia as paredes negras e, lá em cima, brilhavam estrelas.
- Talvez tenhas razão... - balbuciou.
Cobriu-a de beijos, enquanto ela murmurava:
- vou para casa.
Mas quando se pôs de pé, em vez de tomar a
direcção de Lowinckel, dirigiu-se para a estação, como se alguma coisa a afastasse do seu lar e do combativo São Jorge que deixara de ser um símbolo. O cansaço tornara-a
tão leve que já não sentia pernas nem braços; todos os membros estavam adormecidos ou insensíveis. Haviam perdido a noção do tempo; o relógio-pulseira de Karbon
parara e como o nevoeiro da noite lhes subia até aos joelhos, tudo se tornava irreal. Acabaram por emergir duma insondável profundidade de tempo perto da estação
de Dusswald-Lohwinckel: entre os rails, brilhava uma luzita vermelha que ali fora colocada por desconhecidas razões, visto que nenhum comboio percorria o trajecto
local durante a noite.
- Não parece que há ali anões a trabalhar ? -perguntou Elisabete numa espécie de embriaguez.
No jardinzito da gare, os girassóis erguiam os largos rostos para a lua que já vinha a descer.
- Anda, vem. - murmurou Karbon, levando a Elisabete para a pequena sala de espera que se assemelhava a um terraço e que cheirava a madeira amarga e úmida.
Como a noite refrescara, ele tirou o casaco e cobriu-a; era quente e terno, quási tinha vida aquele calor.
- Bem; aqui muito quietinhos vamos falar tranquilamente.
E ela começou a tremer, como se ele a ameaçasse.
Falaram de tudo e durante muito tempo. Era uma situação insensata: Karbon sentia-o e estava radiante ao ver que ainda tinha bastante entusiasmo para se colocar em
situações destas.
Falaram, calaram-se, balbuciaram, levantaram-se, andaram dum lado para outro, voltaram para a cidade: tinham caminhado durante toda a noite, durante anos, durante
a vida inteira. Contaram um ao outro todo o passado e todo o futuro.
Ainda não surgira a madrugada quando chegaram à casa do Angermann, mas já o orvalho matinal caía em pérolas minúsculas sobre os cabelos e os lábios frescos da Elisabete.
-Boa noite, boa noite, boa noite.-murmurou Karbon inúmeras vezes quando ela meteu a chave na
fechadura. Como era doloroso separarem-se! - Boa noite. Pensa em mim. Até amanhã.
"Amanhã!" pensou ela.
Foi com um sorriso estranhamente vago e demente que ouviu escorregar a cal ao longo da parede, quando entrou no vestíbulo.
"Vou-me deitar no sofá." resolveu com a impressão de sair dum sonho, duma longínqua viagem, como quem deu a volta ao mundo.
Ao fazer força na maçaneta da porta do consultório
- havia ali pesadas e curiosas maçanetas do século XVI quási se admirou por ver a porta responder à sua pressão com o velho som que ouvira mil vezes. Como o candeeiro
ainda estava aceso, ficou imóvel no limiar, com o orvalho nos cabelos, o sorriso pálido, os olhos muito abertos e uma ferida minúscula no lábio inferior.
O dr. Persenthein estava sentado, não à sua mesa de trabalho, mas na beira da cama de operações. Não lia mas reflectia, com a revista na mão. Ergueu a cabeça, passado
um segundo, e disse:
- Ah! És tu ?
- Sou.
Era uma troca de palavras inúteis. No aposento reinava uma opressora atmosfera de desgosto e mau humor, fumo de cigarro envolvia o candeeiro, um tubo de comprimidos
estava aberto sobre a mesa, o que demonstrava a luta do médico contra terríveis dores de cabeça. Algumas toalhas úmidas e sujas haviam sido lançadas para um canto
da sala, o balde de algodão maculado fora derrubado e sobre o homem tombara uma camada de gelo triste. A Elisabete reconheceu aquilo tudo como sendo a atmosfera
em que a sua vida conjugal decorrera até ao momento encantado.
- Então não estás a dormir, Kola ? - perguntou por compaixão.
- Já é tarde ? - e só então se lembrou que, na véspera à noite, ficara inquieto com a ausência da mulher. Interpelou-a - E tu, por onde andaste ?
- Houve um grande incêndio. - anunciou em voz baixa.
Maquinalmente, pegou nos cinzeiros cheios, abriu janelas e persianas e despejou-os. Pôs em ordem alguns papéis caídos no chão e apanhou as toalhas sujas. Persenthein
olhava para ela, intensamente.
- Mas o incêndio acabou há que tempos! Elisabete foi até junto dele e, no gesto habitual,
apoiou a cabeça do marido no seu ombro; fechou os olhos e respirou profundamente.
- Anda, Kola. Precisas de descansar.
- Onde estiveste ? - perguntou o marido, fatigado como um corredor que gastou todas as suas energias e que chegou em último lugar.
- Fui passear com o sr. Karbon.
- Durante toda a noite ?
- Sim.
E olhou de frente para o marido.
- Não compreendo. - disse ele - Há nisso qualquer coisa que não se encontra em harmonia contigo. Que sucedeu ?
Aproximou-se dela e encostou-lhe a testa à sua; era um gesto também habitual. Sentiu latejar as veias. Tão perto do seu rosto que não podia vê-lo, perguntou em voz
angustiada :
- Aconteceu alguma coisa ?
- Aconteceu.
O médico esperava um "não. Os joelhos vacilaram. Nunca, na sua vida, sentira nada semelhante.
- Mas o que há ? - e a sua voz mal se percebia.
- Agora não. Falaremos disso mais tarde. - replicou ela, cheia de pena. Retirou a testa mas colocou a mão no seu ombro. Renunciara à ideia de passar o resto da noite
no sofá.
- Ficaste levantado à minha espera ?
- Não. Tinha outra preocupação.
- Um doente que veio de noite ?
- Não. - apagou a luz e dirigiu-se para o inclinado soalho do quarto. - Outra coisa. Recebi uma pancada. A pior coisa que me podia acontecer. Amanhã lerás.
"Uma carta anónima." pensou ela.
- Qualquer coisa que diz respeito ao Karbon e a mim?
- Não. Trata-se da minha Ideia.
Mordendo os lábios, calou-se porque sentia que ia chorar. Só passado um instante, como se a voz de Elisabete o tivesse acordado, é que perguntou:
- Ah, sim, tu e o Karbon, sim ...
Estava sentado na beira do leito, que formava sob ele a depressão habitual, a tirar os sapatos. Mudo e com expressão irritada, olhou para ela. Por fim, vendo que
não falava, perguntou:
- Mas afinal o que é que se passou entre ti e o Karbon?
Ela não respondeu.
Um frio áspero entrava pelas janelas abertas. com o queixo para a frente e os braços caídos, a mulher estava no canto mais sombrio do quarto. Começou também a despir-se.
Os nós da madeira, no teto, formavam bizarros desenhos. Quando Elisabete fechava os olhos, parecia-lhe ver as chamas azuis revoluteando sobre os telhados negros.
Deu um passo para a janela e olhou para fora. A madrugada não surgira ainda. Desejaria rezar mas não podia. com a ponta da língua humedeceu o lábio inferior e sentiu
um infinito desejo de estar só para poder pensar em Peter Karbon. O dr. Persenthein que era vagaroso, levou imenso tempo a deitar-se. Por fim, Elisabete ouviu o
habitual ranger das molas do enxergão que anunciavam a chegada do marido ao leito. Voltou-se para dentro e perguntou:
- Posso apagar a luz, Kola?
Era um dos desconfortes da casa, aquilo de não haver um comutador junto da cama, de modo que era preciso atravessar o quarto para a acender e apagar. Ele não respondeu.
Ela deu volta ao comutador e deitou-se às escuras. Mais do que nunca, assemelhava-se agora à defunta Sigismunda de Raitzold que lá estava no
sarcófago de pedra, estendida na sua camisa de linho, com os pés hirtos, os braços ao longo do corpo, pronta a defender-se contra indeterminados acontecimentos.
Há certos detalhes mínimos que permitem aos casados saber se dormem ou não. À Elisabete bastava-lhe ouvir a respiração do marido para saber se estava embrenhado
no sono: respirava então mais lentamente. Quanto a ela, quando estava acordada, as pálpebras batiam na almofada, com um leve ruído que o marido muita vez ouvira
ternamente comovido e risonho sem nunca a tal se referir. O silêncio que tombou depois da última pergunta durou tanto tempo e colocou entre ambos um tal espaço,
que o médico experimentou a angustiadora sensação de que nenhum caminho o tornaria a levar para a esposa. Às apalpadelas, estendeu a mão para o rosto dela. Sim,
tinha os olhos abertos.
- Porque motivo não teve Lungaus o seu regime?
- perguntou sem brusquidão. Não queria referir-se àquilo mas era um princípio de conversa. A doçura da sua voz deu coragem à mulher.
- Oh, Kola! Já não podia mais! Garanto-te que já não posso mais.
"Tem razão." -pensou ele, movendo a cabeça, às escuras. "Não pode mais. Aquela tortura deu cabo dela, como de mim. Mas agora tudo acabou. E disse em voz alta:
- Agora tudo isto acabou.
- O quê ? - perguntou ela, fora de si, com medo e, ao mesmo tempo, na esperança de que ele soubesse tudo e a poupasse a explicar, a destruir o que tinha de ser destruído.
- O trabalho. A minha ideia e tudo. Nada mais tenho a procurar por aquele lado. Só fiz tolices. Li hoje um artigo no Jornal Médico. Há muito tempo que outros médicos
sabem tanto como eu. E passei tantas horas, neste buraco, a torturar-me com aquela ideia, como um doido!
Ergueu-se rápida e inclinou-se para ele, apoiando as duas mãos na sua cama.
- Que dizes, Kolla? - perguntou, aflita.
Era o único ser no mundo que compreendia a catástrofe encerrada naquelas palavras. O médico fechou os olhos e abandonou-se um pouco àquela proximidade, à sensação
de calor e segurança que lhe dava a presença da esposa. Depois, olhou-a por muito tempo, silencioso e atento, na manhã que começava a dealbar. Já se contornavam
as janelas e os móveis principiavam a sair da escuridão.
- Ouve... a pequena... a nossa Avelã disse que tu querias ir-te embora, mas... mas não é verdade, pois não ? - balbuciou Persenthein, de súbito, para a sombra inclinada
sobre o seu rosto. Experimentou uma sensação, absolutamente nova, de medo, a tal ponto que sentiu o peito opresso.
- É verdade... -respondeu ela em voz imperceptível e com enorme esforço.
- Então não estás satisfeita ? Então nós não somos felizes ? -perguntou um pouco mais tarde, mostrando uma ignorância tão grande que ela sorriu.
- Oh, não!
- Nunca mo disseste ..
- Não tinha dado por isso.
"E agora sabe-o. E porque o sabe agora?" murmurou para si o médico, e só nesse momento pensou no outro homem, naquele indivíduo de pijamas de seda e maneiras de
globe-trotter, naquele preguiçoso homem dum outro hemisfério que tinham apanhado do chão e cujo reconhecimento consistira em revolucionar a terra e a sua casa, tudo
dissolvendo com o feitio desleixado e gozador, pela sua extravagante maneira de ser. A garganta de Persenthein encheu-se de calor e, durante instantes, estrangulou
nos dedos enclavinhados o pescoço de Karbon. Mordeu o polegar como se fosse um tampão, mas não impediu que um uivo de assassino lhe saísse da boca. Elisabete espiou-o
na penumbra. Ele respirou fundo. E perguntou:
- Mas de que estávamos nós a falar ? Estamos cansados. Sentes-te excitada e eu também. Tudo isto não passa dum contra-senso.
Enquanto Elisabete deixava que o marido lhe pegasse na mão, pareceu-lhe que ele tinha razão.
O pequeno espelho, do outro lado do quarto, recolhia já a primeira claridade do céu. Nos inclinados leitos, sob as cobertas baratas, de cetim vermelho, toda aquela
história do Karbon, parecia nunca ter existido. Mas ainda tinha um pontinho no coração.
- Nunca soube o que era divertir-me... Também queria gozar um pouco da vida... - balbuciou ela.
Persenthein, que lhe apertara os pulsos ate fazer doer, pegou-lhe na mão e trouxe-a para a sua cama, como se fosse um objecto.
- Não és tu que estás a falar, Elisabete! - murmurou, assustado.
Ela ficou a reflectir durante bastante tempo. O marido afastara-se, voltando-se para a parede que aparecia agora, hesitante na meia-luz, com o desgracioso desenho
do papel barato.
- Parece que não me exprimi bem.-disse Elisabete. Juntou os seus intermináveis solilóquios nocturnos, a impressão de deslumbramento, o sonho. E continuou:
- Há tantas coisas novas, Kola! Eu não sabia nada disto. Julgava que te tinha amor. com o Karbon é diferente, muito diferente. Só agora sei... espera ... vou explicar-te.
Tu não me conheces... nunca olhas para mim, não precisas de mim para nada. Foste feliz comigo ? Tu nem sequer és capaz de ser feliz, Kola, por isso não precisas
de mim, bem vês... Eu saberia, sim, mas tiras-me tudo! É verdade: tiras-me tudo. - repetiu com violência. - Precisas de mim para a casa, bem sei, e deitas tudo para
as minhas costas como se eu fosse um animal de carga. E porque hei-de ser eu e não outra? Podes crer que, às vezes, chego a ter a impressão de ser o Lungaus. É quási
a mesma coisa, embora eu o não saiba exprimir. Serves-te de nós como de objectos, és desumano -o trabalho tornou-te desumano. Quando entro onde estás espero sempre
que olhes para mim, sorrindo. Quando voltas de fora, pensas, sequer, em me estender a mão? Não, nem isso, Kola, é uma coisa que tu não sabes fazer; mas não tem importância.
No entanto, para mim, podes crer, para mim era muito importante.
Ao ouvir dizer era, o médico susteve a respiração. Ela continuou:
-Tu, por exemplo, nunca me ajudas a enfiar o casaco, não apanhas aquilo que eu deixo cair, não me tiras das mãos uma coisa que é pesada, nunca me acaricias, não
és amável. Tu... espera, cala-te, já sei o que me vais dizer... Às vezes, beijas-me, sim, mas é como que uma coisa que cai do céu, como que um tiro de revólver.
E eu não quero assim, rebaixa-me, é brutal. Se não precisas de mim senão para isso, então não vale a pena que eu sacrifique a minha vida inteira. Tudo poderia ser
tão diferente, tanto! Tanto!... É uma coisa que eu hoje sei.
Persenthein estava deitado na sua cama, do outro lado, como à beira dum oceano intransponível. Em voz baixa, disse:
- Mas, Elisabete, esqueces-te que somos casados...
- É verdade, mas Deus do céu, então o casamento é só isto ? Engraxo todos os dias o teu calçado que arrebita na frente porque tens um andar especial: não imaginas
como, às vezes, detesto o teu calçado! E sempre este cheiro a cigarro, ou então, quando bebes café, ao colocares a chávena em cima da mesa, não tens cuidado, e fica
o tampo cheio de círculos. Estás sempre a sujar tudo e eu atrás de ti a limpar; então é isto o casamento e mais nada? Por isso, ao ver surgir um homem que... como
o Karbon, que me quer arrancar a toda esta miséria e que me quer dar tudo, sim, já vês, eu... Não ter mais desgostos, mas viajar, correr o mundo inteiro, ouvir música
e ter vestidos, possuir tudo quanto me apetecer e o mais que não sonho... como será bom! Enquanto que aqui havia só trabalho e aridez...
A palavra havia fez estremecer o médico. Sacudiu-a pelos ombros e disse em voz forte:
- Mas de que estás tu a falar, Elisabete? Não és cristã?
- Sou ... - replicou ela, em ar hesitante e voltando
os olhos para o marido. - Eu sei. Mas agora já não serve de nada ter fé. Isto passa por cima de tudo.
O médico largou-lhe os ombros. Permaneceu com o rosto inclinado para ela. O seu corpo, de pesados ossos, estremecia no esforço que lhe causava a incómoda posição
na qual tentava aproximar-se dela sem lhe tocar.
- Elisabete, - disse em voz terna - perguntas-me se o casamento é isto. É sim, é isto mesmo: difícil para ti e para mim. Hoje estás a ver tudo deformado mas convence-te
que a vida não é um prazer contínuo como desejas. O seu valor não reside na superfície -é uma coisa que não vês mas sentes. Somos feitos para vivermos juntos, tu
e eu, para mutuamente nos ajudarmos. A nossa filha - mas não quero falar nela, não quero servir-me da pequenita como dum argumento. Mas não é verdade que é nossa,
a Avelã? E não pensávamos mesmo em ter um filho, mais tarde, quando a vida corresse melhor? Sim, bem sei que não é já... -apressou-se a dizer, quando viu a boca
da esposa a crispar-se numa recusa.
- Mas verás como isto há-de melhorar. Pois tu não sabes que és tudo para mim, absolutamente tudo, o motor, o centro... embora eu me esqueça de te ajudar a enfiar
o casaco ? Ouves, Elisabete ?
Num gesto habitual, rodeou o pescoço do marido com o seu braço e colocou-lhe a mão no rosto. Disse em voz baixa:
- Como tudo isto é difícil, Kola!
O marido deixou-se tombar a seu lado, sobre a almofada, e declarou em tom pensativo:
- Tudo que é moral, é difícil. Lutar, dominar, renunciar, são acções que pertencem à moral. O casamento e a fidelidade também lá estão incluídos. compreendo que
o outro lado seja tentador, mas não foi feito para nós, Elisabete, não é para gente da nossa raça. Isso com que tu sonhas, não é o casamento, é uma ligação.
Afastou-se violentamente e exclamou:
- Estás enganado. Ele casará comigo. Foi a minha primeira condição. É claro que casará comigo!
Em face destas palavras que revelavam a sua ignorância,
o médico sorriu. E raramente sorria. Concentrou-se como se fosse fazer uma operação difícil.
Estava dominado por uma impressão de lucidez e claridade espiritual e pelo claro sentimento da prudência com a qual devia avançar. Sentia o grande perigo que corria,
e de que maneira o futuro dependeria da forma como se comportasse naquela hora decisiva, decorrendo entre o orvalho da manhã e o nascer do sol. Os cabelos da mulher
cheiravam a incêndio e amargura. Tornara-se transparente, repousando na almofada, com a marca do beijo proibido, no lábio inferior. Experimentou um grande turbilhão
de amor pela sua mulher, num sentimento sem fim, pleno de profundidade como um poço, insondável. Tinha um medo horrível de a perder e também uma grande alegria lhe
sacudia o coração: porque ainda estava junto dele, falando-lhe, enunciando inocentemente uns princípios tão disparatados que bem demonstravam a confiança que ainda
nele depositava, a força dos laços que os uniam, a sua falta de habilidade para mentir. Ela encostou a cabeça ao seu ombro, naquele lugar que sempre lhe pertencera
exclusivamente e esperou.
- Dizes então que casará contigo ? Mas, minha filha, também há ligações legitimadas. E julgas-te com força para isso ? Ignoras então que espécie de mulher és?
- Não percebo... - respondeu em voz baixa.
- Também sabes que é casado ?
- Sei. Mas vai divorciar-se.
- E é assim tão fácil ?
- Sim. Eles vivem como dois estranhos. Ela anda a viajar, pelo Mediterrâneo. Quando voltar...
Persenthein encolerizou-se contra aquele Peter Karbon para quem não havia complicações. Como vivia facilmente em plena decomposição!
- E, além disso, ainda tem com ele aquela actriz..- a sua voz tremia porque sentia imenso desgosto ao ver a sua Elisabete misturada com aquela porcaria toda.
- Já se separou dela.
- Tão facilmente ?
- Sim, sem a menor dificuldade.
- Tens muita coragem, Elisabete. Não sabes tirar conclusões desse procedimento ? Não te vês nas costas dos outros ?
- Eu ? Porquê ?
Na vida corrente, o médico falava pouco e fazia-se compreender, de preferência, por meio de frases breves e inacabadas. Agora, que era preciso conservar-se calmo
e exprimir-se com precisão, as suas palavras tinham um som abstracto, um tanto frio: era a linguagem dos trabalhos científicos, com os quais se impregnara durante
milhares de horas de estudo.
Tentou traduzir o que pensava àquela mulher que estava apoiada ao seu ombro.
- Julgas que um homem que muda de mulher como de camisa, ficará contigo até ao fim da vida ?
- Não. - respondeu Elisabete. E passou um segundo antes que encontrasse uma resposta. - Mas pensei esta noite: se eu pudesse viver assim durante um ano! ou menos
tempo até uns meses... umas semanas... Não me importaria do que depois pudesse acontecer. Era-me indiferente. É verdade, Kola, pensei assim, durante esta noite.
Embora Elisabete se quisesse manter meiga, esta resposta estalou de tal forma apaixonada e imprevista que o marido teve medo. Um medo cheio de cólera a queimá-lo
e a rasgar-lhe o coração. E no mais profundo da ira, o pressentimento duma nova doçura, até aí desconhecida. Como lhe era estranha aquela mulher com a sua sede de
viver, como era nova para ele, após tantos anos de casamento!
Até aí, ele esforçara-se por conservar a serenidade, ficando tão concentrado como se estivesse ocupado com uma operação de vida ou de morte, quási frio, guardando
as distâncias em face da perturbação que atacara o centro da sua vida. Mas agora, ia perdendo a calma, cerrou os punhos, via tudo vermelho, tinha um nóna garganta.
A sua voz estava rouca, ao dizer:
- Esta noite... pensaste ... mas também eu esta noite sofri por tua causa... e foi nesta noite que ficou
arruinado o meu trabalho, tudo... tudo! E agora, que vai ser de mim?
Renunciava. Tudo era bizarro. Voltou-se e deitou se com a cara para baixo. O dia levantara-se; queria tornar-se invisível desaparecendo na almofada. Elisabete fez
um gesto vago e calou-se.
"Que devo fazer?" pensou. Quis tornar a ver a cara de Karbon ou os seus olhos, apenas. Mas tudo desaparecera. Reteve a respiração.
Não percebeu logo o que se passava na outra cama. Viu as costas do marido agitadas por contracções e distensões. Os punhos cerrados, de cada lado da cabeça, agitavam-se
duma forma particular, violenta e convulsiva. Mas tudo se passava em silêncio.
- Que tens? Que tens tu? - perguntou, colocando um dedo no cabelo fino e leve do marido. Compreendeu e disse: - Estás a chorar, Kola!
Ele negou, abafando um soluço. Exactamente como a Avelã, quando tinha um desgosto.
- Estás a chorar por causa do teu trabalho ?
O marido voltou para ela o rosto cheio de lágrimas, desfigurado, cheio de angústia.
- Por causa do trabalho? Que tolice! Que me importa a mim o trabalho? É por tua causa, por ti, por ti, só por ti, por ti só!
Este grito, proferido quatro vezes, comoveu-a.
- Por causa de mim ? - repetiu, sentindo-se estranhamente leve e fraca. Quási a desmaiar, começou a sorrir, enquanto toda a excitação, a fadiga e a loucura se fundiam
em lágrimas.
Tomou o marido nos braços como faria à filha, com quem ele tanto se parecia, não querendo capacitar-se da sua tortura. Fechava já os lábios sobre a palma da mão
dela. Quente e familiar, o seu cabelo tocava no pescoço da esposa. Emanava de si, como sempre, um cheiro a iodo e tabaco.
Sentindo com uma dor horrível que, dentro de si, qualquer coisa se quebrava, Elisabete sorriu. Pensou mesmo distintamente: "Está qualquer coisa a partir-se dentro
de mim, um sonho que não mais voltará..."
Mas, ao mesmo tempo, acariciava a cabeça do marido e a nuca que aparecia, com as vértebras visíveis, por cima da gola azul da camisa de noite;
- Sossega, vá, sossega... não acontecerá nada ... sossega, anda.
Uma mulher subia uma escada na companhia de Peter Karbon, uma mulher estava em pé na ponte dum navio (era o navio que aparecia no reclame de certo café) uma mulher
dançava com ele - uma mulher que não era a Elisabete.
- Preciso de ti, não te largo, és minha, és minha e ficas comigo, ninguém virá para te levar, és minha, és minha! - murmurava Persenthein na mão da mulher.
- Sim, Kola, sim ... -respondia ela, acariciando-o. Ergueu a cabeça e mergulhou o olhar no dele.
Parecia-se outra vez com o São Jorge.
- Gosto de ti, bem sabes, gosto de ti!-exclamou com tanta violência como se proferisse uma ameaça.
Era uma palavra estranha que, naquele momento, nascia na casa do Angermann e que ficava suspensa sob o teto atravessado pelas vigas, como se tivesse asas.
- Está bem, Kola, está bem. - disse ainda Elisabete. Sentia-se fatigada e infeliz mas, ao mesmo tempo,
transfigurava-a uma estranha felicidade.
- Eu julguei que podia... mas não posso. Não sou feita para aquelas coisas... O meu lugar é aqui. murmurou, sem forças, como se tivesse tentado erguer um peso enorme
e o deixasse cair, como se tivesse nadado contra a corrente e se deixasse, de novo, ir à deriva. Como se se tivesse encontrado em plena tempestade, vindo abrigar-se
em casa.
O casamento é uma coisa esquisita, velho como é, mais velho do que a torre do Angermann. Um casamento como o do dr. Persenthein e da mulher não é decerto um mau casamento, mas não é precisamente uma festa quotidiana ou uma alegria constante. Nem feliz, nem infeliz.
Um destes cem mil consórcios médios onde o marido é rabugento e a mulher está carregada de trabalho, onde se pensa mais nos desgostos do que no amor, uma união com
muitos acontecimentos previstos e poucas surpresas. Um tanto ou quanto desconsolador, não? com horizonte limitado, sem perspectiva larga, como uma casa sem portas
nem janelas. Um casamento marcado por aquela longínqua proximidade à qual os homens e as mulheres foram condenados desde a saída do paraíso. Uma coisa curiosa, este
casamento atacado e atacável, vetusto e absurdo nos seus alicerces, ameaçado de todos os lados. Um castelo de cartas quando tudo corre bem; uma galera para voluntários
quando corre mal.
Se qualquer incidente surge - e não é preciso um milagre, o pequeno grão de areia basta, uma perturbação passageira, um clarão, a indicação de uma nova directriz,
outro homem, outra esperança, outro caminho na vida deve então desmoronar-se, não é verdade?
Mas resiste, o casamento do dr. Persenthein não se deslaça; cem mil resistem ... possuem a vontade de viver e a teimosa persistência das plantas que brotam das pedras
e gostam das dificuldades.
Deve-se, portanto, concluir que, apesar de tudo, há forças profundas que actuam no casamento, forças elevadas que tocam no que de melhor o ser humano possui: forças
que se podem denominar eternas tanto quanto a breve eternidade pode durar nesta fria e pequena estrela que se chama Terra ...
Soaram as seis no relógio da igreja. Na sua cama, a Avelã respirava com regularidade. Em cima, Lungaus
começava a mover-se. E logo em seguida, o telefone retiniu, ouvindo-se a voz do comerciante Keitler a chamar o médico.
A essa hora insólita, um automóvel passou a porta da cidade e a casa do Angermann estremeceu. Elisabete Persenthein, que estava a varrer a sala de jantar, dirigiu-se
para a janela. Deitara pelos ombros o velho chalé triamgular, de lã, e fixara as duas pontas nas costas porque o dia estava fresco e ela sentia-se gelada após a
noite passada em claro. Era um carro de Schafíenburg que entrava com três cavalheiros desconhecidos. com o espíírito ausente, Elisabete continuou a varrer. Sentia
uma impressão de vácuo completo, como a que se produz quando uma alma atinge o limite da sua vontade e que tem necessidade de readquirir as forças. Deu um passo
para a escada e chamou:
- Ó Maria, tenha cuidado, não vá o leite pegar no fundo.
Porque a pouco conscienciosa criadita, voltara naquela manhã e não fora a única em Lohwinckel que retomara o trabalho. Também Lungaus se metera ao caminho um quarto
de hora antes de se ouvir o apito da fábrica a uivar por cima do depósito incendiado. Sem se consultarem, os operários encontraram-se lá todos e aqueles cujas oficinas
estavam destruídas, esperavam no pátio, respirando o ar amargo e falando pouco. ÀS dez da manhã deviam os delegados dos trabalhadores ir falar com o sr. Profet.
Estava pálido o Birkner: trazia o braço esquerdo ao peito, visto que fora ferido nos exercícios de extinção; aquilo doía-lhe e logo de manhã passara por casa do
médico.
Também no liceu havia ordem. Os rapazes lá estavam ; gritaram menos do que habitualmente, antes de tocar a sineta, e nenhum chegou atrazado. O aluno do sétimo ano,
Gúrzle, homem de confiança da sua aula, no segundo intervalo dirigiu-se a casa do reitor e, vermelho de confusão, gaguejante, pediu desculpa do que se passara. Antes
disso, todos se haviam agrupado em redor do jovem professor Kreibisch, que, previamente, preparara o reitor para receber as desculpas dos rapazes
e mostrar-se indulgente. Verdade seja que o liceu inteiro foi condenado a não ter feriado no sábado à tarde, mas, na verdade, podia ter sido pior, e eles não deixaram
de gozar à farta: o campeão alemão dos pesos médios estivera no seu campo desportivo e até os rapazes de treze anos haviam assistido a uma proibida sessão de cinema,
sem contar com o gratuito suplemento da fábrica; impressões que se gravariam com tal força que vinte anos mais tarde ainda haviam de reaparecer, sob a forma de lembranças
da infância, nas narrativas dos burgueses de Lohwinckel.
- Vai ver como isto acalma. - disse o presidente da Ccâmara ao seu homem de confiança, Haberlandt, tirando o chapéu e o sobretudo, cortando a ponta do charuto da
manhã e abrindo a "Folha de Aviso da Cidade e do Campo."-Sinto que tudo entra na normalidade.
A costureira Ritting dizia ao caixeiro do sr. Markus:
- Chegaram três cavalheiros desconhecidos num automóvel de Schaffenburg.
O próprio Markus, em atitude pouco própria para um merceeiro, estava encostado à porta da loja, com a cabeça tocando na vidraça e a contemplar o largo. O começo
duma poesia à maneira de Klabunde nascia nele, mas não chegava a dobrar o cabo difícil.
Um dia frio corre ao longo dos vidros, O carrocel mói a mesma melodia A girândola dos foguetes é negra e triste, As estrelas estão doentes...
As estrelas estão doentes... as estrelas estão doentes... mas agora era preciso rimar com qualquer daqueles versos e isso era o mais difícil.
A mãe perguntou pela terceira vez:
- Será preciso tornar a encomendar cebolas vermelhas?
- Sim. Vermelhas. Três quintais. Adeus menina Ritting.
- O sr. Markus também não sabe quem são os senhores que vieram no automóvel de Schaffenburg?
- Infelizmente não sei, menina Ritting... muito prazer em vela... Estrelas doentes...
- Não é de admirar que V. Ex.a tenha uma crise cardíaca com todas estas comoções. - disse o farmacêutico Behrendt à sr.a Profet que, vestida de preto e branca de
pó de arroz, estava sentada na farmácia, agitando um copo de água e tomando comprimidos.
- É melhor mastigar, minha senhora, começa assim a circular mais depressa e a opressão cessa imediatamente. A nossa terra começa a estar mais calma. Mas só uma catástrofe
conseguiu fazer voltar o juízo.
- Sabe que ontem partiram os vidros na ocasião em que estávamos no cinema? - perguntou a esposa de Profet, enquanto, queixosa, torcia a boca por causa do mau gosto
dos comprimidos. - Acontece tanta coisa quando as pessoas se encontram excitadas! Naturalmente é tudo inveja. E nós então que estamos tanto em evidência! Partiram
os vidros, imagine! O sr. Alberto teve que ir dormir para um quarto mais frio, ele que se preocupa tanto com a sua preciosa saúde!
- Preocupa-se assim tanto ? A gente calcula que um atleta não é nada disso. Ele é bem simpático.
- Oh, muito, muito! Uma criança, um santo, pode crer. Havemos de ter imensa pena quando se for embora. Mas o seu treinador já chegou!
E o gordo queixo da sr.a Profet começou a tremer só com o pensamento de que ia terminar a última aventura da sua vazia existência.
- Deseja que ponha vinagre, minha senhora? - perguntou à esposa do presidente da Câmara a manicura, que era a conscienciosa empregada do cabeleireiro Kuhamer. -
A sr.a presidente já sabe que chegaram três estranhos num auto vindo de Schaffenburg? Desceram no "Cisne Branco". O criado veio aqui, há pouco, fazer a barba e contou-mo.
Um deles, é decerto um célebre professor de medicina. Vieram de Berlim por causa do sr. Karbon.
-Oh! Mas isso é muito interessante. - respondeu a presidente, erguendo a cabeça, de cabelo molhado, acima
da bacia. -Um professor? Dar-se-á o caso de o nosso médico ter feito mais alguma asneira? Para mandarem vir outro?!
A manicura encolheu os ombros.
- De resto, a mulher do médico parece ter grande intimidade com o tal sr. Karbon, pelo que se diz.
Gesto significativo da cliente.
- Pelo menos, ontem no cinema...
Peter Karbon ainda estava em pijama quando os três cavalheiros chegaram. O primeiro, de largos ombros, tinha um rosto quadrado, bronzeado pelo ar e a testa branca
do oficial aviador: Erich von Mollzahn, o segundo dos quatro maridos que Leore Lania contara até então. Um gigante moreno de mãos peludas e tendo o osso do nariz
partido, de sotaque russo: o treinador de Franz Albert-Simotzky. Um cavalheiro esbelto, de estatura média, com um imprevisto e saliente abdómen, possuidor de olhos
inteligentes por cima da barbicha cuidada e decorativa: o famoso médico dermatologista, professor Raiffeisen.
Karbon conhecia vagamente o médico e o aviador e tratava por tu o treinador.
- Alugámos em Schaffenburg este chaço porque estávamos sem paciência para esperar pelo comboio. disse o jovem Mollzahn.-A Bibi deu-me que pensar, fiquei inquieto.
Vim de Holtenau o mais depressa possível e o seu irmão teve a amabilidade de me recomendar ao professor Raiffeisen. Cá estamos e o salvamento pode começar. Como
está hoje a Bibi?
-Hoje?... A Bibi?... ainda hoje não falei à Pittyevitte. - respondeu Karbon que, tendo a consciência turva, começou a olhar atentamente para as pantufas de cabedal
vermelho.
- Ah! - limitou-se Mollzahn a dizer.
Tinha vinte e seis anos e uns olhos claros, redondos e inquietos, de pássaro. Acrescentou depois:
- Quando a Bibi dá o sinal S. O. S. é porque realmente precisa de socorro.
O professor, tamborilando na vidraça, disse:
- Estou aqui para ser agradável ao irmão de
V. Ex.a Não há nada mais penoso do que a reparação duma operação que foi mal feita. Se essa senhora é nervosa, melhor será preveni-la de que vou dar um golpe em
toda a cicatriz afim de fazer uma nova sutura. Neste caso especial, compreendo perfeitamente a importância do resultado estético da intervenção, mas ...
O treinador Simotzky que, não se sabe como, se juntara à pequena coluna salvadora, achou que se preocupavam demasiado com a Lania. com as peludas mãos apoiadas nas
coxas, informava-se, com mal-humorada inquietação, acerca do boxer, dos seus nervos, apetite, sono, hábitos, estado de músculos e peso.
- Ah, meus amigos, meus amigos! - disse ele em tom sombrio - dentro de três semanas o meu rapaz deve subir ao ring com Kid Rowles. Como há-de ele estar em forma,
se tu começas por o atirar de encontro a uma parede e se, em seguida, ele come seis vezes mais do que deve ?
Carregado de todas estas responsabilidades, Peter Karbon pediu àqueles senhores que o esperassem durante alguns minutos na sala da hospedaria, enquanto se vestia.
Sentia-se sonolento e experimentava um certo peso e também descontentamento na boca do estômago. Entre ele e a noite do incêndio, duas horas dum sonho matinal e
transparente se haviam interposto. apeteceu-lhe um pequeno almoço inglês, com uma pratada de porridge para principiar. Em vez disso, queimou-se com o café quente
mas pouco substancial do "Cisne Branco".
Conversas telefónicas. O treinador com o boxer, o qual, tomado dum frenesi de impaciência e excitação, lamuriou ao ouvi-lo como o bebé que velha ama. Erich von Mollzahn
com a irmã de Raítzold a quem, respeitosamente, pediu para prevenir com cuidado a Lania, anunciando-lhe a visita do professor. Leore precipitou-se com veemência
para o telefone e disse ao ex-marido: "Tu és o mais gentil de todos, o único, o melhor, o... e fisicamente não estás mal de todo, mas quanto ao resto, mereces um
zero... Agora vem depressa... depressa, anda!"
Peter Karbon para a Leore;
- bom dia, Pittyevitte. Não tenho a consciência tranquila. vou logo ver-te com o mestre dos cirurgiões. Posso ir ? Dormiste bem ? Posso ir ?
Do outro lado do fio, o coração bateu apressado. Mas a resposta foi fria:
- Se quiseres... Se tens algum tempo a perder... Chamada telefónica para casa do dr. Persenthein
que estava na consulta.
- Alô! Aqui é o dr, Raiffeisen, de Berlim. Meu caro colega, vim a Lohwinckel, a instâncias do meu amigo Miguel Karbon, para examinar as vítimas do desastre e quis,
antes de mais nada, pôr-me em comunicação consigo, visto ser o médico assistente ...
- Quem está ao telefone ?
-O dr. Raiffeisen, de Berlim (não disse que era professor nem mencionou o título de Conselheiro). Como disponho de pouco tempo e como não quero ir sem o colega,
peço-lhe o favor de me acompanhar, ainda antes do almoço, a casa da doente. Como lhe disse, vim apenas porque o meu amigo Miguel, o irmão do Peter Karbon mo pediu.
De resto, estou persuadido de que o caro colega fez tudo que era preciso. Não sei se o meu nome lhe é estranho. Talvez lhe tenha ido parar às mãos o meu tratado
de cirurgia dermatológica...
O médico deixou logo o seu doente: era outra vez o operário Língel que estava sentado com ar melancólico e resignado, mostrando as gengivas podres. O dr. Persenthein
sentiu o coração a bater duma forma violenta. Deitou para longe a bata, lavou as mãos, vestiu o casaco de sempre e depois tirou-o, procurando outro melhor. Chamou
a Elisabete e quando ela chegou à escada, sentiu-se impossibilitado de lhe explicar o que se passava, beijou a Avelã e magoou-se, no cotovelo, contra um armário.
Estava cheio de medo como se fosse fazer exame. Foi-se embora a correr, mas voltou para trás buscar a pasta de que se esquecera, meteu dentro alguns papéis e, antes
de desaparecer, declarou que não havia consulta nem de manhã nem de tarde. Apesar da pressa com que se moveu, levou doze minutos a encaminhar-se para o "Cisne Branco"
onde ia
cumprimentar a sumidade médica que estava em Lohwinckel, sem que nada se tivesse modificado: o pântano dos patos lá estava por trás da igreja e ao pôr-do-sol as
cabras atravessariam as ruas.
- E o senhor teve a sorte de ficar sem nenhum ferimento? - perguntava o professor a Karbon, na sala da hospedaria, enquanto esperavam o dr. Persenthein e von Mollzahn
se ocupava com o carro de aluguer.
- Umas pequenas coisas em que nem vale a pena falar. Desloquei um ombro, meti duas costelas dentro, tive uma leve perturbação cerebral mas agora já está tudo em
ordem.
- Realmente? - admirou-se o professor. Falava o dialecto bávaro mas compensava esta particularidade com frases escolhidas, como que destinadas a serem impressas
- Feche os olhos. Não se mexa. Olhe para a frente, veja os meus dedos... assim ... agora para aqui.
- Dirigiu o raio da lâmpada de algibeira sobre a vista de Karbon, que estremeceu. Os reflexos funcionavam normalmente - Muito bem. Posso dar-lhe os parabéns por
nada de pior lhe ter acontecido.
Lacònicamente, Peter Karbon disse:
- O meu motorista morreu.
- Sim, é verdade. - respondeu o médico, em tom de pêsames.
Silêncio. A sombra conscienciosa e trabalhadora de Fobianke atravessou, muda, a sala da hospedaria. Vivera tranquilamente com os dedos no volante, o boné na mão
quando abria a porta, esperando, de noite, em frente das casas onde o patrão se divertia, exacto na rapidez,dominando a situação nas multidões. Karbon via ainda
o gesto com o qual ele lhe aconchegava a manta nos joelhos. Mais tarde, Fobianke pediria um posto com bomba de gasolina, uma casita com quintal, isto entre Rheinsberg
e Globsow. Morrera discretamente, sem ruído.
- Então como vai isso, Fobianke?
- Bem, obrigado.
- Sente-se mal?
- Agora já não.
Acabara! Fobianke ficava em Lohwinckel com a sua
coroa de contas e o moço Weichert, que havia tanto tempo desejava o lugar, substitui-lo-ia. Peter Karbon suspirou. Que diabo! Sentia-se triste, naquela manhã.
- Aí vem o médico. - disse, afastando-se da janela. Baixou-se porque havia uma data de mata-moscas pendentes do teto.
O dr. Persenthein já não estava possuído por ideias de assassinato em relação a Peter Karbon e este não se sentia nada culpado em face dele. Para dizer a verdade,
no momento em que, entre dois loureiros à entrada do "Cisne Branco" se encontraram, tinham a preocupá-los coisas bem mais importantes do que a mulher que os separava.
Persenthein estava emocionado por ir ser apresentado ao célebre colega, enquanto que Karbon, ao tornar a ver um automóvel sentira uma vertigem e um zumbido nos ouvidos,
apagada repetição do seu choque nervoso. Teve que fazer um enérgico esforço sobre si mesmo para entrar no carro e tomar lugar junto do impaciente sr. de Mollzahn.
- Estamos todos? Vamos lá.
- Onde está o Simotzky ? - perguntou alguém.
- Já foi a casa do pequeno. - responderam.
- Bem; vamos então. - disse Karbon, cerrando os dentes.
O cheiro a gasolina reanimava nele um leve mal-estar e uma impressão de enjoo. Mas aquilo passou.
Depois sentiu-se empalidecer e, como explicação, disse:
- Estava convencido de que nunca mais me sentaria num auto.
- Sei o que isso é. Quando me estatelei com o meu avião, pela primeira vez, também jurei não tornar a voar. Mas não se renuncia. Não há animal mais persistente do
que o homem.
- Ainda bem. - replicou Karbon.
Os dois médicos haviam-se sentado atrás. Depois de algumas hesitações, o dr. Persenthein caíra automaticamente na linguagem dos seus anos de estudante e de assistente,
prodigalizando os: "O sr. professor não concorda?... Qual é a maneira de ver do sr. professor?"
Quanto ao cirurgião, com a natural amabilidade do homem célebre prosseguia na conversa com simplicidade. Tomava a atitude que adoptava nas conferências onde a família,
pouco afortunada, vendo o caso desesperado, empregava os últimos recursos para ouvir a opinião duma notabilidade. O médico da Lania expôs o caso. Tratava-se dum
rasgão do lábio superior, servira-se de quatro agulhas e o resultado, até agora, era satisfatório...
- Talvez seja necessário fazer uma nova plástica da mucosa. - sugeriu o especialista.
- Creio que não.
- Deu um golpe na inserção da mucosa?
- Não, isso não ... É verdade que não pensei... balbuciou o dr. Persenthein, aflito.
- Nesse caso, decerto sobrevirá uma contracção na beira do lábio. - disse o professor. O colega ficou silencioso.
- Hum! - murmurou o de Berlim.
- Olhe, lá está já o Domínio - esclareceu Karbon. Mollzahn, no último momento, perguntou:
- A Bibi... diga-me: está feia?
- Acho que não. Mas eu não reparo muito. - respondeu Karbon, contrariado.
Vexava-o que aquele rapazelho se comportasse como se a Pittyevitte fosse sua propriedade particular e como se ele, Karbon, tivesse desprezado os seus deveres e as
suas responsabilidades. Ora ele nem sabia como havia de apresentar aquele aviador, caído do céu, ao sr. de Raitzold que estava pronto a saudar os recém-chegados,
no alto da escadaria. Situação embaraçosa: "Ó sr. de Mollzahn, o marido de frau Lania"? Já o não era. "O antigo marido"? Seria uma falta de tato. "Um amigo"? Mas
o amigo da Leore sou eu, pensava Karbon. De resto, a dificuldade foi transposta sem que ele tivesse necessidade de intervir porque os Raitzold e os Mollzahn descobriram
que tinham primos comuns, uns Dohna, da Silésia, não da descendência dos condes mas dos outros que deram funcionários públicos e inspectores das florestas.
Lania hesitara entre as duas máscaras que devia
apresentar. Dum lado, estava o grande pontífice da ciência: o que ele pensasse da ferida tinha uma importância decisiva e fatal. Do outro, imaginava como seria o
encontro entre Mollzahn e Karbon Q estas situações embrulhadas constituíam o verdadeiro elemento da sua alma ávida de sensações.
Poderia mostrar-se feia, desiludida, desesperada, esforçando-se por excitar a compaixão -com a perspectiva de conseguir despertar nos homens instintos bons e protectores.
Ou poderia pintar-se, mostrar-se linda, forte, indestrutível e sendo superior aos acontecimentos. Tinha qualidades para ser uma ou outra destas personagens, pois
tudo quanto fazia era metade verdade e metade mentira, como um copo de numerosas facetas que quebra a luz em muitos raios, fazendo-a cintilar. Por fim, pusera-se
em frente do espelho e chamara para a superfície do seu ser todos os recursos da beleza que deixara afundar-se durante a sua convalescença. Era -bem conhecia os
homens - mais animal, mais primitivo, mas também mais seguro.
Portanto, mostrou primeiro o lado intacto do rosto e teve a satisfação de ver nos quatro rostos a expressão que desejava. Até aquele médico provinciano, que parecia
de pau, se animou, vendo a, pela primeira vez, assim formosa.
- Creia, minha senhora, que nunca vi doente a quem uma ferida ficasse tão bem. - disse logo o professor no tom galanteador que empregava para as operações de gente
rica.
Depois, com uma sonda, pôs-se a tocar na chaga donde a crosta já tinha caído em vários sítios. Persenthein, com o céu da boca gelado pela agitação, dava explicações.
- Sob o ponto de vista académico, talvez não seja correcto descobrir a cicatriz logo ao quarto dia. Mas sobre esse ponto tenho umas ideias especiais, fiz experiências
na cura mais rápida das pequenas feridas não tratadas que confirmam - se o sr. professor quiser ouvir-me, dar-lhe-ei alguns esclarecimentos - ... que confirmam a
minha opinião.
A pele do crânio ficou rosada sob o cabelo fino.
- Hum ! - respondeu o professor, que observava um ponto de pus através dum monóculo que, na realidade, era uma lente destinada a melhorar a miopia do seu olho esquerdo.
- Vamos ver. Sim, sim.
Depois deste "sim, sim" houve um silêncio, durante o qual foi abolida a noção do tempo. O dr. Persenthein e Leore Lania sentiam os corações a bater numa tempestade
de angústia e cheios de louca esperança. Um delicado olhar do professor mandara retirar Karbon e Mollzahn, que estavam sentados na ante-câmara com o dono da casa,
bebendo vinho do Domínio e falando do tempo, com impaciência.
Lá em cima, no quarto de hóspedes, o professor tornou a pôr o monóculo no estojo de couro e meteu-o no bolso do casaco. Disse:
- Bem. Muito bem. Perfeito. Magnífico, minha senhora. Não pode estar melhor. Daqui a quatro semanas não se conhecerá nada. Talvez junto do nariz fique uma cicatriz
minúscula, um pequenino ponto branco, como a cabeça dum alfinete, mais uma originalidade no seu rosto picante. Devo felicita la e também ao meu colega. Quer que
chamemos os nossos amigos e confessemos quanto nos afligimos para nada ?
Sentindo a mão úmida, Persenthein hesitou em a dar ao professor, que lhe estendia a sua.
- Ò sr. professor está então de acordo .. o sr. professor acha que .. ? - balbuciou, descendo ao quarto de Jacinta Raitzold onde ela tinha preparado água e toalhas
para os médicos lavarem as mãos.
Ali, naquela fresca penumbra, enquanto ambos, com as mangas levantadas, lavavam as mãos que tinham ásperas e de unhas curtas, o professor dizia:
- Aquela pequena supuração não tem importância, meu caro colega, mas sabe? eu faço de preferência aquelas suturas com crina de cavalo, e dou-me bem com isso. De
resto, não fui eu que inventei isto, foi o nosso colega Zullauíí.
Sem se dar por isso, era um conselho, uma rectificação. E nesta conversa de médico para médico. Per-
sentheín encheu-se de. coragem e começou a contar a sua vida.
Falou de tudo ao mesmo tempo; da clientela, da impressão de estar enterrado num buraco, da sua resistência, da intoxicação saturnina e finalmente da sua Ideia: o
princípio biológico da modificação da predisposição pelo regime e da adaptação do organismo ao perigo, citando o caso Lungaus, quadros, notas, observações que metera
na algibeira e que mostrava agora, com dedos trémulos. Falou da erupção que curara e do reumatismo das trincheiras que fizera desaparecer, mencionou outros casos,
senão tão decisivos, pelo menos dignos de nota. Referiu se à clientela operária de Obanger e até à Avelã, assunto adorado e florescente produto das suas ideias sobre
as melhores regras de vida, Por fim, depois do professor ter lançado um olhar para o relógio preso a uma fina corrente de ouro, tendo declarado que tudo aquilo o
interessava muito e que, de resto, não poderia partir antes das cinco horas da tarde para apanhar em Schaífenburg o comboio da noite, o dr. Persenthein, num supremo
impulso, convidou o célebre colega para vir à casa do Angermann, primeiro para almoçar e depois para tomar conhecimento do seu trabalho. O professor, não só lera
o artigo do dr. Wolland no Jornal Médico mas até tratava por tu aquele médico de Mehl que fundara a escola de Friburgo, à qual Wolland fazia numerosas alusões. Não
achou trágico nem digno de desespero que lá se tivesse experimentado em grande escala a mesma terapêutica e que se houvesse obtido os mesmos resultados que o colega
obtivera aqui com tanto esforço, modestamente, e com tanta discreção. Chegou mesmo a pronunciar palavras calorosas:
- Pelo contrário. As minhas felicitações. O meu respeito vai todo para um médico que segue o seu caminho em semelhantes condições. Bravo, Persenthein ! Nós precisamos
de pessoas como o senhor. Se os vossos resultados estiverem de acordo, veremos... Falarei ao Wolland. Temos sempre necessidade de assistentes. Se os vossos resultados
estiverem de acordo...
Em seguida, declarou se pronto a almoçar na casa
do Angermann e a travar conhecimento com o caso Lungaus. O dr. Persenthein, doido de alegria, precipitou-se para o vestíbulo e pelo telefone, preveniu a mulher que
levava uma pessoa para almoçar. Entretanto, o professor fora buscar a sua maleta e despedir-se de Lania.
Encontrou-a entre os dois homens, encostada ao enorme e bizarro fogão de faiança que aquecia o aposento. Estava frio, até as rosas da Jacinta tinham um ar gelado
nas jarras. Ela falava acerca dos seus olhos:
- Imagina tu, Peter, que o Erich nunca reparou que os meus olhos eram diferentes! Mas tu viste-o logo no primeiro dia, o que não admira, porque és um "homme à femmes".
O meu olho direito é verde e o esquerdo é castanho. Gosto mais do verde mas o outro dá melhor na fotografia. E por isso que apresento sempre o lado esquerdo à objectiva.
Graças a Deus que será esse o lado sem cicatriz, sem a tal cabeça de alfinete.
Já gracejava sobre a ferida e esquecera tudo. Os homens ouviam-na falar.
- Estão contentes? Sim ou não? - perguntou ela.
- Sim. - responderam ambos. Mollzahn com uma veemência um tanto exagerada (na verdade, não desgostaria de vir encontrar uma Bibi desmoralizada e aflita, porque a
Bibi feliz, dominando a situação, tornara-lhe a vida bastante dura, mesmo nada agradável) e Karbon em tom de voz bastante triste.
- Então, Peter ? -exclamou a rapariga, tomando, de súbito, uma decisão de combate". Não a mostrou, mas no ar pairou um subtil fluído. Pegou-lhe nas duas mãos e colocou-as
na deliciosa covasita existente entre o peito e os ombros, local em que as mãos do homem, sentindo que estavam em sua casa, foram possuídas por uma vegetativa felicidade.
- Então, Peter? - repetiu, observando-lhe o ínfimo estremecer das narinas.
Ficou sabendo o que queria. Em gesto coleante afastou-se dele.
O professor entrou
- Tenho a impressão de ter sido absolutamente ridícula. Fiz tanto barulho com isto e afinal parece que
tudo corre lindamente. Então aquele horrível médico saiu-se bem ?
- É verdade, minha senhora. Pode agradecer-lhe e ir-se embora.
Já?
- Não corre o mínimo risco. Aqui, o conforto não
deve ser excessivo. Na minha qualidade de médico, proponho que o sr. Karbon tome já conta de si, empacotando-a muito bem e expedindo-a já para Baden-Baden.
- Karbon não pode. - replicou ela em voz ligeira e apressada.
- Porque não?-respondeu Karbon, também rápido. com a ponta da língua, Leore Lania tocava pensativamente na ferida.
- Já falei a esse respeito com o Franz Albert. - declarou, simplesmente pelo prazer de mentir.
Mollzahn informou que o boxer ia ser levado dali, pelo treinador, a toda a velocidade. Despedindo-se, o professor disse:
- O essencial é que esta senhora vá para Baden-Baden, o mais depressa possível.
Guardou para si o resto da frase que devia ser mais ou menos esta: ccom qual dos seus homens irá, isso é que me é completamente indiferente..."
- Acompanhar-te-ei a Baden-Baden. Tenho três dias de licença. - disse Mollzahn em ar autoritariamente conjugal.
- Muito bem. - concordou ela, deitando um olhar enviesado a Karbon, que se sentia inútil. - Dentro de oito dias devo estar em Berlim. Terei o prazer de te ver, Peter?
Karbon encolheu os ombros, pensando: "Coos diabos, lá começam as complicações!" A recordação da Elisabete apossou-se dele com uma força cheia de doçura.
Em baixo, soava o clackson. Impaciente, Persenthein não lhe tirava o dedo de cima. Jacinta Raitzold, nas suas calças da cavalariça, estava muito direita, ao lado
do carro.
- Vamos ter outra vez a casa vazia, - disse ela, mas
como tinha o cachimbo na boca, as palavras saíram mais em tom aborrecido do que sentimental.
- O que se passa entre ti e o Karbon ? - perguntou Mollzahn à ex-mulher, quando o outro desceu. - Está tudo acabado ?
Leore, de pé, iluminada pela luz vermelha que atravessava a vinha, replicou:
- Não completamente... nada de definitivo ...
O dr. Persenthein, francamente, não tinha a menor ideia sobre as dificuldades que causava à esposa, levando-lhe uma personagem notável para almoçar, e ainda por
cima, prevenindo só à uma menos vinte. Não havia dinheiro em casa, o fogão trabalhava mal e dos quatro pratos de sobremesa, a criada partira, precisamente naquele
instante, o único que não estava esbotenado. A Elisabete, que trabalhara até ao meio-dia num estado de semi-inconsciência, esperava obscuramente que qualquer acontecimento
exterior a decidisse a partir ou a ficar.
Acordou de vez, em face do alarme telefónico do marido. Durante meia hora, a casa do Angermann pareceu-se com um quartel general durante uma ofensiva, mas tudo ficou
pronto a tempo. A sr.a Bartels emprestou a loiça, o sr. Markus, invocado pelo telefone, no cúmulo da aflição e da falta de vergonha, emprestou dinheiro, cinquenta
marcos em metal sonante, a criada engomou os guardanapos, a Avelã foi buscar conservas, salsa, nata batida, o carniceiro mandou carne e o próprio reitor fez o sacrifício
de alguns copos de compota de ameixas e de bergamota. A Elisabete cozinhava, punha a mesa, lutava com o fogão, guarnecia a saladeira, tornava a acender o lume que
se apagara. A Avelã voltava a sair para ir ao "Cisne Branco" buscar duas garrafas "Costa do Sol", dos Raitzold. A Elisabete esfregava os dedos,com
pedra pomes, enfiava o vestido azul, reacendia pela terceira vez o fogão recalcitrante, lavava outra vez as mãos, batia a nata, provava os acepipes, ralhava com
a mulher-a-dias e, para seu próprio alívio, não tinha um momento livre para pensar em Karbon e no seu caso.
Chegou o momento impressionante em que cumprimentou o célebre hóspede.
O professor, mais cordial, deitara fora as maneiras pedantes e as frases destinadas a ser impressas, descobrindo o forro bávaro da sua personalidade. Beijou a mão
da mulher do seu colega que tentara cobrir o cheiro a cozinha e sabão com um pouco de água de Colónia, observou a Avelã com surpresa e grande prazer, comeu distraída
mas abundantemente, fez honra ao "Costa do Sol s e falou de medicina com o dr. Persenthein, duma forma tão conscienciosa que o diálogo pouco tardou em não encerrar
uma única palavra alemã.
Se não se atentar em que a saladeira estava rachada, a carne rija e em que a criada entrara de súbito, com chinelas e meias rotas nos calcanhares a pedir um esclarecimento
à dona da casa, murmurando em voz alta pode dizer-se que tudo correu lindamente. Logo depois do almoço, mesmo antes de acenderem os charutos, os cavalheiros retiraram-se
para o gabinete de consulta, afim de estudarem tranquilamente o caso Lungaus e a "ideia" do dr. Persenthein.
O médico reapareceu ainda uma vez, vindo procurar a mulher que estava a lavar a loiça. Apertou-lhe a mão, com muita força, e ficou silencioso, embora a sua intenção
fosse de lhe dizer muitas coisas decisivas. Murmurou algumas palavras acerca do café e do bolo para as quatro horas e desapareceu definitivamente com aquele olhar
transparente e o tremor dos lábios que caracterisavam o seu rosto por ocasião de partos, operações ou falecimentos.
- Eu vou... eu vou buscar o bolo.- disse Elisabete que tinha a impressão de ser chamada, urgentemente chamada para fora de casa, da rua ou de mais longe ainda. O
que devia ser uma ilusão dos nervos excitados.
- Queres que vá contigo ? - perguntou a filha.
- Não. - respondeu ela, tomada por absoluto desejo de solidão.
Pegou na rede das compras e saiu de casa, em purrou a porta contra a corrente de ar que soprava na torre do Angermann e, com a cabeça inclinada, atravessou, subiu
à praça do mercado e seguiu pelo passeio fronteiro ao "Cisne Branco, que conduzia também à padaria Jaennecke.
Peter Karbon que, em vão tentara dormir um pouco antes de almoço, estava de pé, indeciso, à janela do enorme e desconfortável quarto que ocupava na hospedaria. Pensava:
"Preciso que me aconteça imediatamente qualquer coisa. Não posso ficar eternamente neste buraco . Estava inquieto e sentia a nostalgia dos negócios, do escritório,
das conferências, viagens, movimento e actividade. Sentia-se tão sonolento que se sacudiu. E pensou ainda: "Tenho que falar àquele dr. Persenthein. Não é nada do
outro mundo. Tudo quanto há de mais simples .
Mas sentia que aquilo não era assim tão simples... mesmo nada.
"Gosto da Elisabete, amo-a", confirmava a si próprio, e, no entanto, aquele patético "Amo não era um pensamento definido mas um sentimento que se não deixava limitar
nem determinar. "Este médico deve ser moderno", murmurou, sorrindo com simpatia à lembrança das excentricidades de Persenthein. Os -homens não modernos eram, na
sua opinião, aqueles que se comportavam solenemente, que respeitavam os compromissos e se mantinham fiéis às leis. Pessoas modernas eram ele, o Mollzahn, a Pittyevitte,
a sua mulher, o irmão, o filho. Homens volúveis, profundamente convencidos da sua pouca importância, pessoas que se não tomavam a sério e com as quais se podia falar.
Tratava-se de saber se aquele Persenthein era moderno e se se poderia falar com ele.
i Elisabete! esforçou-se por pensar, com a intensidade dos dias passados - mas sem o conseguir.
-Que tempo horrível! -exclamou numa voz cheia
de censuras e em tom bastante alto, como se o tempo fosse o causador do seu arrefecimento. Embrutecido e indeciso, continuou a olhar para a rua.
Preocupando-se sempre com o prestígio do marido, já sabemos que frau Persenthein nunca saía à rua sem pôr chapéu. Na véspera, haviam-lhe visto os cabelos brilhantes
e descobertos, mas isso fora sinal de grande tumulto interior. Hoje pusera o chapéu e o casaco novo, aquele que tinha três anos, e não o velho, no qual esperara
o nascimento da filha. Este era cinzento e tinha botões de madrepérola. Lutando contra o vento, atravessou a rua.
"Estou farto desta vista" pensava Karbon, de mau humor. "Sempre os mesmos cães, o mesmo velho em mangas de camisa e suspensórios, a sair da casa, a tirar o boné,
a coçar a cabeça, a tornar a pôr o boné e a entrar outra vez em casa. E que aspecto arrepiante têm as mulheres desta terra!
Nessa altura dos seus pensamentos, Peter Karbon teve um choque. Oh! nada de esmagador nem trágico, uma simples bofetada, mas qualquer coisa que, por mais fraca que
fosse, não se podia apagar. Elisabete, que lá ia com a sua rede para as compras, não podia passar por ali sem fitar a janela dele.
Reconheceu-a mas, involuntariamente, recuou um passo, ficando tão imóvel como se o mínimo gesto pudesse trair-lhe a presença.
- Então? - murmurou. - Bem sabemos que é pobre. É claro que não é uma pessoa de sociedade. Comprar-lhe-emos tudo, tem um corpo magnífico, poderemos vesti-la como
uma princesa. Uma mulher que é encantadora, mesmo com um avental de cozinha!
Como sombras chinesas, vários rostos moviam-se no seu sub consciente. Ele próprio não percebia que a Elisabete, a mulher do avental se transformava na criada Betty,
do tempo em que era estudante, a primeira mulher que conhecera. O primeiro beijo na casa de jantar do médico, era o primeiro beijo na água-furtada da criada: a cama,
o candeeiro de petróleo a deitar fumo, um pequeno leque na parede, o retrato dum marinheiro e, por
fim, a escuridão. Tudo aquilo reaparecia como sob o efeito duma fórmula mágica.
-Mas isto que é? Que tenho eu? -disse em voz alta, como para acordar.
Durante um longo momento, ficou em pé no meio do quarto, bastante tempo: quási quatro minutos. Depois, pegou no chapéu e no casaco, desceu e colocou-se entre os
dois loureiros, diante do portão da hospedaria, decidido a esperar o regresso da Elisabete.
- Oh! - disse ela, detendo-se com a rede cheia de bolos. Tinha luvas. Todas as senhoras de Lohwinckel usavam luvas - e assim ele não pôde sentir o calor da sua mão
do qual esperava nem sabia o quê.
- Como se está hoje? - perguntou, acompanhando-a em passo vagaroso. Ela também abrandou o seu.
- Obrigada. Dormiu-se?-Ambos evitavam o você e o tu. A voz da Elisabete era mais alta que de costume, o que lhe fazia perder riqueza.
- Temos lá em casa a visita duma notabilidade. disse Elisabete mostrando os doces.
- É verdade; o sumo pontífice abençoou o seu marido.
A sobrancelha esquerda da Elisabete tornara-se independente e começara a tremer nervosamente.
- Calha bem termo-nos encontrado, não é verdade?
- disse ele. ;
- Era preciso.-replicou Elisabete, muito séria.
Ele pegou-lhe no braço. Caminhavam agora mais depressa porque o vento arrastava-os com turbilhões de pó, pedaços de papel e folhas amarelas, de tília.
- Oh, não! - exclamou ela, desprendendo-se aflita.
- Vem por aqui, há menos gente.
E levou-a, dando volta à igreja, para um sítio onde estavam abrigados do vento. Silenciosos, caminharam até à pequena arcaria de esteias funerárias e depois pararam.
Elisabete ergueu os olhos para ele e sorriu. Como era suplicante a sua atitude!
- Tira o chapéu. - pediu Karbon, tirando-lho ele mesmo e acariciando-lhe o cabelo que hoje estava menos brilhante.
Sem cessar de sorrir, ela arranjou coragem para falar.
- Queria dizer-lhe que... o que ontem se passou, não conta.
-Que dizes, Elisabete?
- Não conta. O que combinámos ... eu não posso sair daqui.
- Não? - perguntou ele, perdido nos seus pensamentos e contemplando-a. Só passados segundos, se tornou violento, exclamando: - Precisas de te libertar! Mas faltava-lhe
a chama. No entanto, continuou: Virás comigo, viveremos juntos, havemos de ser felicíssimos. - Mas havia notas falsas naquela sinfonia de promessas. Calou-se.
Haviam chegado à poça dos patos, onde o vento enrugava a luzidia superfície da água. Na outra margem, o varredor Schmittbold dedicava-se a um trabalho profundamente
outonal: deitara fogo a uma data de ramos úmidos que não se resolviam a arder.
Karbon abraçou Elisabete com veemência, querendo beijá-la.
- Não! - negou ela, em voz baixa, e com um gesto aflito, apontou para o varredor.
Karbon voltou-se para todos os lados e depois levou-a para as arcarias. Por trás duma coluna baixa que parecia nascer da terra, sem pedestal, antiga e maciça, tomou-a
nos seus braços. Depois ficaram ambos silenciosos, como se estivessem à escuta, como se estivessem à espera de qualquer coisa que não vinha: nem dela, nem dele.
Ainda o homem procurava na sua boca o gosto embriagador da noite anterior e já a mulher se desprendia.
- Vês como já passou? -e sorriu puerilmente.- Como se pode ser doido, não achas? Vou-me embora, dá-me o chapéu.
- E como vai isto continuar? Que se passará agora?
- perguntou ele.
- Agora, vais fazer as tuas malas e partes. Às cinco vão os outros, de automóvel. - E começou a andar, deu volta à igreja, aparecendo na rua principal, onde toda
a gente os podia ver.
- Queres então que eu me vá embora?
- Quero.
- Bem. Irei. Mas isso não significa nada. Escrever-te-ei. Voltarei. Virei cá buscar-te, Elisabete.
Ela ouviu-o, bebendo-lhe as palavras. Agora pensava. "É agora, agora, agora! Sentiu uma dor atroz, mortal. "É como se a gente morresse!" Andando sempre, continuava
com a atenção fixa no sofrimento que a roía.
- Não venhas. Adeus. Quero ir à igreja. - disse de súbito.
Não podia mais. Deixou-o ali, no portal, com os anjos de pedra, cujas bochechas ficou, perplexo, a contemplar.
Sentindo nitidamente que era impossível seguí-la dentro da igreja, permaneceu algum tempo, com aspecto ofendido, no sítio onde ela o deixara.
Por fim, disse em voz alta, com ar rebarbativo:
- bom. Vou-me embora.
Ainda hesitou e depois tornou a lutar contra o vento cheio de pó, em direcção ao "Cisne Branco".
E pensava:
"Que maneira de dizer adeus! Mas como estava comovente a lutar com as lágrimas! No fundo, não é uma amorosa. É preciso um amor formidável para contentar mulheres
deste género. E eu não sei se.."
Havia só dois lugares onde a Elisabete podia chorar à sua vontade: o altar da Virgem, na igreja, e o cubículo, lá em casa. Ainda tinha as pestanas molhadas quando
regressou. No consultório, os dois médicos estavam sentados e haviam fabricado uma inquietante quantidade de fumo de cigarro. As pastas em que estava inscrito o
famoso caso Lungaus enchiam a mesa, os parapeitos das janelas e até o chão. Persenthein estava iluminado por
um fogo interno. A sumidade também estava entusiasmada.
- O seu marido é uma pessoa excepcional. - disse o professor a Elisabete, quando ela trouxe o tabuleiro com o café e os bolos. - É um homem extraordinário. Duvida
disso, minha senhora? Realmente, seria um crime deixá-lo apodrecer aqui! É preciso, com mil demónios, arranjar-lhe um lugar, nem que seja um posto de assistente
num hospital...-terá, ao menos, material humano, poderá trabalhar! Nem todas as horas devem ser agradáveis com um indivíduo assim, não é verdade, minha senhora?
Desconfio que não. Mas é de homens destes que nós precisamos. Lutadores, pensadores, criaturas que preferem rebentar a renunciar à sua ideia. A ideia! exclamou,
erguendo um dedo doutoral. - A ideia é um tirano impiedoso e torna os homens duros. Dos outros temos nós demais, de todos esses parlapatões e borguistas, desses
Karbon e quejandos. Pessoas simpáticas, sem dúvida. Mas não é graças a eles que se avança. São precisos homens como o senhor, meu caro colega. Mas são raros. Muito
obrigado, minha senhora, pelo seu bom acolhimento. São horas de partir.
Elisabete mal pôde responder. Nem sequer ouvira tudo. Ficou de pé no seu posto, com o delicado e corajoso sorriso de dona de casa, até que o professor partiu. O
dr. Persenthein acompanhou ainda o seu célebre hóspede sem se decidir a parar com a apaixonante conversa de que estava privado havia muitos anos. A Avelã, agarrada
à mão do professor, acompanhou-os com toda a naturalidade.
Agora, a casa estava silenciosa, ninguém respirava nela. Perguntou a si própria se o entusiasmo do professor teria brotado do estudo das fichas ou se o "Costa do
Sol" também teria contribuído. Tudo o que ele dissera, lhe parecia um tanto bizarro, mas, ainda assim, acendera uma pequena luz dentro de si. "Kola! Kola!" pensou.
Gritou mesmo o nome como à procura de alguém que tivesse perdido. Levantou-se, foi ao consultório onde o ar do marido, o seu trabalho e o seu feitio estavam prisioneiros.
Ficou em frente do esterili-
zador, viu o seu rosto desfigurado pelo metal que o reflectia e tentou pensar. Mas ainda não estava tudo ordenado, dentro de si. "Isto há-de voltar" consolou-se.
Levou o tabuleiro para a cozinha, lavou as chávenas,
inscreveu uns algarismos no seu livro de contas. Desceu
.a cave, empurrou a aranha Catarina para o seu canto,
varreu as teias e deu lustro às torneiras metálicas. O
tempo passava, ia andando, andando. Podia uma pessoa
deixar-se ir à deriva, como num rio... amanhã, dentro
duma semana, dali a um mês e a um ano, tudo estaria
melhor. Subiu e foi buscar roupa para passajar: ficara
muita da semana passada.
Bateram à porta.
Não; não havia nada que justificasse aquele alvoroço no peito e na cabeça. O Markus estava no limiar, com a caixa do violino.
- Boa tarde, minha senhora. - disse simplesmente. Tenho a impressão de que esta tarde será agradável tocar algumas músicas.
- Porquê? - perguntou ela.
- Não sei. Pensei assim: a música faz bem.
- Acha?-Nesta interrogação havia um certo reconhecimento. Subiu a escada, na sua frente, até à sala.
- Sabe, minha senhora ? Vi há pouco o carro. Foram todos juntos buscar a actriz ao Domínio; o?seu marido também ia. Pensei então que estaria só em casa e talvez
aborrecida. Eles vão-se embora e nós ficamos. Tanta agitação, tanto turbilhonar e afinal nada nos resta; é triste. Pensei que teria também esta impressão... e que
talvez o mesmo pensamento a afligisse...
- A mim, não. - declarou Elisabete, dominando-se. Mas abriu o piano.
-Tantos meios-resultados! - e Markus começou a tirar o violino para fora da caixa, extraindo-o, em seguida, duma seda cor de canela que cheirava esquisitamente a
café. - Agora que tudo passou, que nos resta em Lohwinckel ? Os operários conseguiram um pequeno aumento de salário, mas não vão para longe. E os rapazes do liceu
têm licença de fumar; é verdade, o reitor cedeu,
mas só ao domingo e não em público. Dizem que os Raitzold ficam no Domínio. Mas por quanto tempo? Até ao próximo pagamento de juros... O sr. Profet está mais humano.
Mas são meias soluções que enojam. Nem felicidade completa nem completa infelicidade. Quer dar-me o la, minha senhora?
Elisabete, primeiro deu o la sozinho, depois a consonância em ré menor. Não saiu harmoniosa e o seu tom era mais magoado que triste. Voltou-se um pouco para o Markus
e disse:
- Tenho que mandar afinar o piano.
Era uma frase que já pronunciara cem vezes: cada vez em que começava a tocar. Ele já a não ouvia. Continuou a falar:
- Por exemplo, aquela Lania. Nunca mais tornará a ser linda como foi. Mas também não será bastante feia, suficientemente desfigurada para que seja tomada ao trágico.
Estive quási apaixonado por ela, mas depois pus-me a reflectir. Quási, vê? É tudo metade. Só o pobre Fobianke morreu inteiramente, completamente e para sempre, como
escrevem aqueles imbecis da Folha de Aviso, de Dusswald. Que diz, se tocássemos a nossa sonata de Brahms, a sonata dos Mestres Cantores, em la ?
E o sr. Markus colocou o violino com o seu veludo cheirando a café e cor de canela, sob o queixo, e inclinou o rosto míope, inteligente e sensível de judeu, sobre
o murmúrio consolador das notas.
- Não tenho feito exercício. - disse Elisabete, observando as mãos sobre as teclas. Notou uma pequena ferida, proveniente da inábil tentativa de tratar as unhas.
O relógio da igreja dá cinco horas, com dez minutos de atrazo. Enquanto o Markus toca, passa em baixo
um carro, que sai pela porta do Angermann Pode ser aquele auto ou outro qualquer. A Elisabete tem vontade de ir a janela mas não vai, faz força nas teclas do piano
até já não ouvir o motor. A casa treme leve mente, cai a caliça.
Prau Persenthein acaba por se levantar. Pega no pano do pó e, conscienciosamente, limpa o montinho de cal. Sorri sem grande custo.
Volta para o piano e diz:
- Fez bem em ter cá vindo hoje, Markus.
A vida continua numa leve cadência em lá maior.
UMA das preocupações de frau Persenthein consistia em sentir o soalho do quarto de dormir a oscilar sob os passos; o que não admirava, visto a casa ser muito velha.
Os leitos ficavam em leve declive e, quando estava fatigada, sonhava sempre que escorregava para os pés da cama; isto tornava ainda mais penoso o sono da esposa do médico. Sonhava muitas vezes com um plano inclinado pelo qual deslizava, o que lhe causava um medo incrível. Quando a campainha nocturna se misturava ao pesadelo, acordando-a, já não sabia se realmente dormira ou se tinha sentido aquela sensação num estado de semi-inconsciência. Estendia então o braço para a cama paralela à sua e encontrava-a vazia. Acendia a luz e via as horas. Duas e meia da manhã. Ouvia a filha respirar no quarto pegado, enquanto se cobria com o grande chalé de lã e descia às apalpadelas a curiosa escada de madeira que rangia sob os seus passos, A campainha da porta tornava se impaciente e apressada. No consultório estava a luz acesa.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/A_LOUCURA_EM_LOHWINCKEL.jpg
Elisabete Persenthein entrou nas pontas dos pés antes de ir atender o nocturno visitante.
O dr. Persenthein adormecera com os braços e a cabeça apoiados sobre o Jornal Médico, de Munique. Através dos cabelos claros e finos, a luz do candeeiro reflectia-se
na pele do crânio. O esterilizador cintilava; a superfície de níquel reflectia uma segunda imagem, minúscula,
do médico adormecido: viam-se os ombros fatigados, as grandes mãos, cuja pele, à força de ser ensaboada, se tornara rugosa e gretada, os longos dedos de unhas roídas.
- Kola! - chamou Elisabete, em voz suficientemente alta para acordar o marido mas suficientemente baixa para o não assustar. Ele reagiu logo, respondendo com nervosismo.
- Não estou a dormir. Nem é tarde. Tenho que acabar de ler este artigo.
Frau Persenthein não costumava retorquir a respostas deste género. Renunciara a suscitar discussões sobre as noites que o marido passava a trabalhar.
Quis sorrir com uma expressão reconfortante, mas como estava fatigada, a pequena ruga desenhada sobre o olho direito estremeceu, o que deu em resultado ser o conjunto
do seu sorriso e da sua expressão que desejava ser alegre, um tanto triste e forçado.
- Um doente. vou abrir. - disse apenas.
O dr. Nicolau Persenthein lavou maquinalmente as mãos. Resmungou:
- Sempre de noite! Parecem coelhas ! Onde está a minha maleta ?
Em geral, o visitante que vinha no meio da noite buscar o médico era um operário, exausto e excitado, do bairro de Obanger ou um camponês vindo duma das aldeias
do lado da floresta de Dusswald, que a mulher havia enviado a casa do médico. Desde que três pessoas tinham morrido com a gripe, chamavam o médico quando alguém
tinha febre e tossia. Procuravam-no talvez um pouco tarde, mas não deixavam de bater à porta, e qualquer hora, quer de dia quer de noite, lhes parecia adequada.
A esposa do médico ouviu o relato confuso que o homem fazia, enquanto o marido foi à loja onde estava a motocicleta. Verificou o conteúdo da maleta.
-Omnadine... seringa... fisostigmine ? - interrogou Persenthein que estava enfiando um casaco curto e se mostrava mais acordado do que, na realidade, estava.
A mulher fez estalar o fecho da maleta. Pendurou esta na moto.
Diante da casa, um fresco vento de madrugada, gelando-lhe os pés nus, fê-la estremecer. Persenthein resmungou algumas coisas desagradáveis dirigidas ao homem que
mostrava um rosto ofendido, exagerando o estado da doente para justificar a visita nocturna. Embora o dr. Persenthein se apressasse, levava tempo a sair: era muito
vagaroso. Verificou se a moto estava em ordem. Desabotoou ainda o casaco afim de procurar alguma coisa. Reabriu a maleta e examinou o conteúdo. Por fim, o relógio
da igreja deu três horas e a motocicleta, levando o médico rabugento e o homem ofendido atrás, demarrou e, fazendo enorme barulheira, atravessou a porta da cidade.
Elisabete pôde voltar para o quarto de chão inclinado e para o seu interrompido sonho.
Era por morarem numa casa muito velha, de traves à vista, que os soalhos estavam inclinados e os leitos também. Na verdade, quási não era uma casa, mas um anexo
da velha torre da cidade que se chamava o Angermann. A casa do doutor tinha o cognome de "casa do Angermann" e não pagava ao governador de Lohwinckel mais do que
oitocentos marcos de renda. O muro traseiro era ainda um bocado da antiga muralha da cidade ; era feito de pedras entre as quais os séculos haviam roído a argamassa.
O soalho, a escada e o esqueleto do prédio gemiam: era o leve queixume da madeira muito velha que sustentara pesados fardos durante centenas de anos. Nesses momentos,
frau Persenthein ficava imóvel; concentrada e hirta escutava o tremor das paredes e o estranho ruído das traves. Escorregava cal ao longo das vigas e tombava no
chão. Então ela saía da sua imobilidade, procurava o pano do pó e limpava mais uma vez.
- Vai ver, patroa ... - dizia o operário Lungaus que vivia no andar de cima, na água-furtada - um dia cai-nos a casa em cima.
Ela tinha vinte e nove anos e Lungaus cinquenta e oito. Ele detestava-a mas chamava-lhe "patroa". Quando lhe serviu o pequeno almoço, o homem anunciou-lhe, de rosto
sombrio:
- Toda a noite ouvi barulho no forro ...
Ela meditava um pouco nas terríficas previsões e acabava por dizer:
- Não, Lungaus, a casa aguenta.
- Eu que lhe digo isto, é porque cá tenho as minhas razões. - tornava o homem que era doente e teimoso.
- Deixe-se disso. Estas paredes já têm cem anos. Porque não hão-de continuar a resistir? Apenas a argamassa está deteriorada ...
E, sem empregar mais argumentos, punha a chávena do leite para o Lungaus sobre a banca, limpava pacientemente um pouco de cal que a caminheta da ligação com o comboio
da manhã fizera saltar das fendas e tornava a colocar o pano de pó no cubículo.
- É uma verdadeira porcaria, esta casa ! - afirmava Lungaus.
E seguia-a nos seus trabalhos caseiros. Nos pés, trazia uns velhos chinelos do doutor; também lhe haviam pertencido as calças que hoje tinham fundilhos e faziam
corcovas nos joelhos ponteagudos. Exalava-se do homem um cheiro amargo. Era o aroma que as folhas molhadas têm no fim de Novembro. Elisabete enervava-se ao ver o
fato do marido, no corpo de Lungaus, a deambular como um fantasma, através da casa. No entanto, disse amavelmente:
- Tem razão. Esta casa é inabitável.
Cheia de recantos e esconderijos, realmente a maldita habitação dava imenso trabalho para andar limpa, sendo difícil de arejar e de aquecer. A renda era barata,
mas, de forma insidiosa, absorvia enormes somas, visto que precisava sempre de obras. Tinham posto a luz eléctrica, depois a instalação da água, porque o médico
precisava de água corrente no consultório. E mal teve a água, não descansou, enquanto não fez no subterrâneo um pequeno balneário: banhos salgados para as crianças
raquíticas, outros com ácido carbónico e, finalmente, uma espécie de inalatório. Toda a população de Obanger apreciava estes banhos; custavam caro ao médico, que
mal era indemnizado nas contas.
Lungaus sentou-se no caixote do carvão, balouçou os
pés e os chinelos caíram como frutos maduros - apareceram os horríveis e enormes dedos. Viu frau Persenthein acender o fogão.
- Talvez fosse preciso cortar lenha ?
- Sim, realmente ... - disse ela, cheia de esperança.
- Pois é, mas não me sinto lá muito bem. Elisabete suspirou e, de súbito, ficou cheia de medo: -Lungaus! Você não... an ? Comeu alguma
coisa no "Cisne Branco"? Chouriço? Brctzels salgados? Não? Bebeu? Fumou? Tem que me dizer a verdade. Bem sabe que o doutor depois zanga se comigo. Diga, ande.
- Ora! - respondeu o homem em tom evasivo, o que não a tranquilizou.
Olhou para ele em ar de sondagem e curiosidade: não tinha mau parecer. Os lábios conservavam boa cor e o pescoço engordara um pouco.
-Onde está a Avelã? - perguntou Lungaus com ar severo, enquanto Elisabete se tornava a ajoelhar em frente do fogo recalcitrante, para o assoprar. Entrava-lhe para
a garganta o fumo azulado da madeira húmida.
- Naturalmente saiu com o doutor. Acompanha-o nas suas visitas.
-Parece impossível! Sempre com a criança, em plena epidemia de gripe e logo de manhã cedo!-censurou Lungaus, pois toda a ternura da sua ressequida vida se concentrara
na pequenita... na Avelã, como lhe chamavam ... que não tinha mais de cinco anos.
- Bem sabe que é a sua maneira de pensar ... - respondeu Elisabete que, com o nariz cheio de fumo, não sabia se havia de espirrar ou não.
- Pois é a sua maneira de pensar... - repetiu o homem, pescando um dos chinelos do médico. - E exactamente o que eu dizia: mais vale a gente vender o esqueleto à
Morgue. Nesse momento, está-se morto e já não se sente nada. Mas servir de cobaia, enquanto vivo, isso...
Pôs se a andar para a porta da cozinha. Elisabete replicou:
- Não tem razão de queixa. Então ele não o curou?
Deteve-se e perguntou em ar irritado:
- Que tenho às nove horas?
- Compota de banana. Assim que o fogão estiver aceso, arranjá-la-ei. - respondeu ela.
- A sua vida também não é fácil, não ... - concluiu Lungaus, desaparecendo.
Elisabete, ajoelhada em frente do fogão, sentiu vontade de chorar. Precisou de dez minutos para se dominar, depois conseguiu-o. E riu-se. Era realmente cómico ver
aquele fantasma de chinelos, a chaga da casa, o cálice dos sofrimentos da vida conjugal, chegar ao cúmulo de ter pena dela. Mas não foi com rancor que lhe preparou
a compota de banana.
Vigiou o lume, lavou a loiça do pequeno almoço, arranjou as cenouras para o almoço do Lungaus - porque o operário seguia um regime e vivia de extractos de todos
os produtos naturais - esfregou os dedos com pedra pomes e zangou-se com a mulher a dias que, como sempre, chegava tarde.
Tudo isto fazia parte das preocupações de Elisabete: que o Lungaus habitasse a mansarda, que não houvesse lugar onde pudesse dormir uma verdadeira criada e que,
à falta de dinheiro, aquele flutuante pessoal que tanto podia ter quinze como sessenta e oito anos, um belo dia desaparecesse deixando-lhe o serviço todo em cima.
Passou para o consultório e começou a arrumar. Contou as pontas de cigarros, suspirou e depois riu-se porque o médico era um adversário convicto da nicotina mas
um apaixonado fumador. Correu ao telefone, tomou nota da temperatura matinal do filho mais novo do industrial Profet - 38?,2 - e escreveu no livro de notas. Acendeu
a lâmpada de álcool sob o esterilizador, tirou do armário roupa e uma bata para o marido e poliu a cadeira das operações pequenas, enquanto o speculum, as pinças
e os ferros coziam na água a ferver. Percorreu as linhas do Jornal Médico, na página aberta, e folheou o artigo "Tratamento preventivo da septicemia nos operários
rurais com a expressão ávida e severa que outras mulheres empregam quando andam à busca dos defeitos das suas rivais. A "Profilaxia antisséptica"! Era
aquilo que tirava o sono ao marido, privando o de noites serenas.
A casa estremeceu, caiu cal. Era o autobus do comboio das nove que voltava da estação. Elisabete subiu cuidadosamente a escada para levar a compota de bananas à
água furtada do Lungaus.
-Essas bananas acabam por me dar vontade de vomitar!-exclamou o homem, que estava deitado na cama, tendo fechado a janela.
- Levante-se, vá passear. - disse ela - É preciso que o doutor não o surpreenda nessa atitude preguiçosa, quando chegar.
- Sair com um tempo destes ? - replicou o homem em tom carregado de censura.
Elisabete olhou para fora pela janela inclinada que dava, não para a rua mas para o bairro de Obanger. Uma sorveira que crescia por trás da muralha da cidade, fora
inclinada pelo vento. O céu estava cheio de nuvens esfarrapadas, passara uma violenta chuvada e preparava-se uma toalha de bruma que ia esconder a planície, para
lá das chaminés da fábrica. E o marido fora de casa com a pequenita!
Durante muito tempo, o telefone tocou no vestíbulo: ligação interurbana. Elisabete tomou conhecimento do que a informavam. Depois, ficou um momento em face do aparelho
e mordeu um dedo: fazia isto quando chegava qualquer má notícia. Foi para o consultório e escreveu:
"Comunicação telefónica do hospital de Schaffenburg. O dr. Schroeder diz que teve de amputar ao criado Jacó Wirz, o braço esquerdo, uma largura de mão abaixo da
articulação do ombro."
Reflectiu um instante, depois apressou-se a traçar no livro um pequeno círculo, ao lado da informação. Era um sinal secreto. Havia imenso tempo que aquilo significava
um beijo. E queria dizer: "Meu pobre Kola!" ou "Não te aflijas muito!" e ainda: "Eu estou aqui pronta a consolar-te".
"rT." De resto, o dr. Persenthein não ficava nada satisfeito quando estas provas de amor cintilavam, como raios de sol, nos livros.
Elisabete ficou algum tempo imersa num dos seus meditativos silêncios. Ouviu o barulho do esterilizador onde fervia a água, viu o velho e espesso volume de Aristóteles
ao lado da ruma de revistas médicas, na larga tábua junto à janela. Mas foi como se não ouvisse nem visse nada. Reconheceu que o pequeno círculo traçado no livro
não era sincero, não passava duma formalidade: não entrara nisso o coração nem a picada dolorosa do amor. E então, Elisabete pegou na borracha, apagou o beijo e
deixou o braço envenenado, estragado, amputado de Jacó Wirz, sozinho no livro de apontamentos, sem nenhuma atenuante.
Quando voltou ao vestíbulo, já lá estavam algumas pessoas: uma mulher de Dusswald com o filho, a Lisa do Domínio com a sua orelha doente, e um operário magro, de
mau aspecto, que dava voltas ao chapéu com ar embrutecido.
- bom dia, sr. Gingel. - saudou Elisabete - Então ainda temos mais alguma coisa ?
- É a doença do chumbo... de meses a meses volta a pesar nos ossos.- respondeu o homem, resignado.
- Bem; o doutor não deve tardar.
E subiu a escada. Mesmo sem o auxílio do marido, podia diagnosticar a intoxicação saturnina; essa especialidade de Lohwinckel que se contraia na fábrica de acumuladores
do sr. Proíet. Muitos operários eram atingidos após três meses e vinham consultar o médico, apresentando-se com os lábios sulcados de riscos negros, os olhes apagados,
o estômago torcido por dores especiais. Outros trabalhavam durante vinte e cinco anos, o seu jubileu fora celebrado na "Folha de Aviso da Cidade e do Campo" e conservavam-se
activos e de boa saúde como peixe na água.
"Predisposição" dizia o dr. Perscnthein que, na pressa profissional, tomara o hábito de resumir ao facto puro a maior parte das suas frases. De resto, o médico não
tinha um feitio resignado; era, pelo contrário, batalhador de primeira ordem e pouco depois de exercer clínica em Lohwinckel não se preocupou mais com a intoxicação
declarada mas com a predisposição. Meditava,
procurava às apalpadelas, com uma sonda imaginária, não desistiria até que encontrasse a Ideia, a sua ideia. Mas, Deus do céu, àquele jovem clínico de aldeia, de
média categoria, àquele médico dum núcleo de sete mil almas, que lhe devia interessar a Ideia? Essa Ideia que ele tinha ou que não tinha, tornava-o estranho, velho,
fazia-lhe crescer bossas na testa, cavava-lhe o rosto, colocava-o no meio dum vácuo, numa esfera de solidão desumana e vazia. Desde que ao dr. Persenthein lhe dera
para pensar, a casa do Angermann tornara-se uma espécie de purgatório.
Elisabete foi para a cozinha preparar a refeição. Isto representava um facto complicado, uma ocupação que atingia as raias de leve loucura. Havia o regime caro e
bizarro de Lungaus: legumes, frutos, ovos crus, um pão esquisito feito em casa, uma data de coisas que davam imenso trabalho e que ele engolia no meio dos maiores
protestos. Avelã, a pequenita, comia coisas parecidas mas que tinham de ser preparadas separadamente. Quanto a Kola, precisava de carne, muita carne assada, bem
temperada e, em seguida, café forte. Nos dias de grande fadiga, um copo de vinho. De tudo que considerava profundamente prejudicial para os outros, precisava ele
em quantidades consideráveis; senão enfraquecia, começava a ficar cansado e distraído logo na consulta das três. A Elisabete não seguia nenhum regime, só desejava
engolir qualquer coisa barata e que não desse muito trabalho a fazer. Ela e a criada comiam o que havia, o que ficava e, além disso, batatas cozidas. Esta cozinha,
inspirada em princípios tão severos, não admitia senão as batatas cozidas com a casca porque ela continha qualquer coisa de que a Elisabete esquecia sempre o nome
e que era necessária ao esqueleto. Estava inclinada para a banca e esfregava as batatas com uma escovinha. Tinha os dedos negros mas sentia-se demasiado fatigada
para, mais uma vez, lhes passar a pedra pomes. Doíam-lhe os calcanhares e as omoplatas.
Tornou a descer ao subterrâneo e vigiou a criada que estava a limpar as duas salas de banho. Reinava
ali um odor medicinal, um cheiro a lisofórmio, a sais iodados e a solução de sabão com creosol.
- A Catarina tornou a sujar tudo! - disse ela, sorrindo.
Era uma grande e venerável aranha que tecia as suas teias em todos os ângulos. Ao varrê-las, tinha sempre pena de assim destruir as construções da Catarina. Naquela
cave estava-se constantemente em guerra contra uma efervescência de animais ávidos de vida: ratos, baratas e uns insectos de nome desconhecido que pareciam cabeças
de pregos com vida e que desejavam, acima de tudo, permanecer nas banheiras.
Em cima, a consulta da manhã já começara; do vêstíbulo vinha um cheiro a homens e a fumo de cachimbo. No chão, havia vestígios de passos húmidos, como era costume
acontecer no verão. Encharcado, o casaco de Kola estava pendurado no bengaleiro. O marido entrara sem ela ver. Na garagem, a Avelã, curvada, limpava a moto.
A Avelã tinha um fato macaco que a mãi lhe cortara seguindo o molde duma revista de modas. Não se pode dizer que tivesse ficado uma perfeição... Em Lohwinckel, aquela
vestimenta estivera classificada entre as outras bizarrias da casa do médico que chocavam os habitantes, mas agora via-se-lhe a utilidade, ao contemplar a pequenita
no lugar traseiro da moto, com as mãozitas agarradas ao estômago do pai. Desde o momento em que ele teimava em a levar por montes e vales, na sua visita às aldeias
próximas, aquele macaco azul, era até considerado uma peça de vestuário grandemente útil, não merecendo já a hostilidade dos habitantes de Lohwinckel.
- Didia, mamã. - disse a pequenita sem levantar os olhhos, quando Elisabete encostou um momento as omoplatas levemente doridas à porta da garagem.
"Didia" era como a Avelã dava os bons-dias às pessoas quando mal sabia falar. Depois tornara-se uma pessoa extremamente independente, uma rapariga de cinco anos
demasiado alta, com grandes mãos e pés.
- Então, Avelã? - perguntou a mãi.
Tinha muitos nomes. Tudo o que designasse qualquer
coisa de escuro e liso lhe ficava bem: cabrinha, avelã, quebra-noz, spitz. Mas ela não gostava de meiguices. ,
-Que lama! Ora vê...-disse, esticando o nariz,
as mãos e os sapatos para a luz que espreitava por uma seteira da muralha.
-Tens os pés molhados?-perguntou Elisabete.
- É claro! -respondeu a pequena.
Então a mãe retirou primeiro a mão que desejaria acariciar a filha e depois retirou se ela. Os pés molhados faziam parte do regime da Avelã: não se mudava de calçado.
Era uma parte integrante dos princípios educativos de Kola, uma parte do seu sistema, um aspecto da sua luta contra a predisposição ...
Onze horas. Regresso à cozinha. O terceiro almoço para Lungaus: leite, sumo das laranjas que o merceeiro Heinrich Markus devia, naquela época, fazer vir expressamente
da capital por um preço elevadíssimo.
Arrumar a sala. No quarto, guardar os apontamentos de Kola, antes que a mulher a dias viesse e os deitasse fora.
Segundo almoço da Avelã. Levar a Kola uma chávena de chá, ao seu consultório, onde um petiz gritava desesperadamente porque lhe estavam a fazer uma zaragatoa.
Arrumar o quarto da pequena. Mas este já estava arrumado. De sua própria iniciativa, ela metera-se debaixo da cama e começara a passar o soalho a pano. As janelas
estavam abertas, havia correntes de ar, mas tinha-se uma impressão de ordem e limpeza.
As bonecas estavam cuidadosamente alinhadas mas encontravam-se todas doentes: ligaduras na cabeça, nos braços e nos pés: verdadeiros curativos eram feitos com gaze
verdadeira não se sabe se proficuamente esterilizada, Erika, a boneca preferida, tinha, além do resto, um termometro debaixo do braço, um pedacinho de madeira sobre
o qual o traço vermelho representava o mercúrio que indicava, duma vez para sempre, a temperatura de 39. A Avelã já sabia escrever algarismos mas 38 é muito difícil
e 37 não é interessante, visto que é normal. quanto a 40 é demasiado alto e perigoso.
- Logo vou ao talho buscar a carne. - anunciou Avelã lá debaixo da cama.
- Como és bem comportada! - exclamou a mãe.
- Claro que sou. - respondeu ela, cheia de importância.
Em face da criança, a mãe achava-se sempre um pouco inútil: a petiza sentia-se lindamente com os sapatos molhados, não dava ternura nem precisava de carinho.
Elisabete tornou a mergulhar nos seus afazeres e não parou até à uma menos cinco. Naquele momento, a caminheta do correio foi pela segunda vez à estação, a casa
estremeceu pontualmente, a cal caiu da parede.
Elisabete apressou se em subir às águas furtadas com o almoço de Lungaus, depois voltou ao quarto para tirar das mãos o cheiro da comida. Outrora tivera lindas mãos
e ainda sentia orgulho nisso. Outrora: para Elisabete, que tinha vinte e nove anos, esta palavra soava como se tivesse setenta. Sem pensar, olhou para o espelho,
enquanto tirava o avental da cozinha. Era um velho espelhito que girava num parafuso e se podia inclinar; não mostrava tudo duma vez mas uma coisa após outra: agora
o rosto estreito com aquela rugazita acima do olho esquerdo, os lábios grossos e pálidos, os cabelos, como os da Avelã, muito lisos e castanhos. Depois, viu o pescoço,
um tanto comprido e magro. Em seguida, os ombros e o peito... Não, a Elisabete não se achava bonita. Julgava que se parecia com Sigismunda de Raitzold no sarcófago
de pedra, na igreja de Lohwinckel a Sigismunda que tinha quatrocentos anos e que também não era nada bonita. Quanto ao marido, assemelhava-se àquele São Jorge audacioso
que se erguia na torre do Angermann.
Dirigiu se para a janela da sala e olhou para fora. com a lança erguida, o São Jorge cavalgava o dragão, resplandecente de coragem - o dragão cuspia fogo e eram
ambos de madeira. Já em pequena, Eiisabete se apaixonara por aquele São Jorge, quando passeava pela mão do pai, o sr. Burhenne, reitor do liceu. Mais tarde, descobriu
que o São Jorge se parecia com Schiller. E, passado
algum tempo, notou que o jovem dr. Persenthein era o retrato do São Jorge.
Desceu, bateu três pancadas à porta do consultório e disse em voz baixa:
- Kola, vem almoçar. Senão, faz se tarde.
- vou já. - respondeu ele, lá de dentro. Isto queria dizer: mais um quarto de hora. Elisabete subiu. A mesa estava posta. Abriu o
piano, tocou algumas notas, e de boca aberta, ficou a ouvir o som até ele desaparecer. A caminheta voltou da estação, a casa estremeceu, caiu cal. Em cima, ouvia-se
a Avelã discutindo em voz alta com o Lungaus. Em baixo, os últimos doentes da manhã arrastavam as solas até à porta. Elisabete aproximou-se outra vez da janela.
Queria ter a certeza de que o dr. Persenthein se parecia com o São Jorge.
Enquanto servia a sopa, concluiu:
- Não. Agora já não se parece nada.
O dr. Persenthein era um homem de trinta e oito anos, um homem alto e magro, de ombros largos, ossos pesados sobre os quais, em dias de grande fadiga, transpareciam
as veias azuladas, sob a pele clara. Por cima da testa viam-se duas entradas vastas onde os cabelos iam rareando. O nariz, comprido, tinha uma raiz estreita e bem
plantada; a boca, de largos dentes, ocupava muito lugar e desde os fundos cantos até às asas do nariz iam rugas vincadas a testemunhar carácter violento.
Filho dum pequeno funcionário, querendo obter uma situação superior à do pai, estudou direito e frequentou os cursos livres da Faculdade de Medicina, Apaixonou se
por esta carreira e, desafiando a maldição da família, mudou de curso e impôs a sua vontade de ser médico - vocação que o devorava. Fez os seus
estudos em duas pequenas cidades que tinham grandes Universidades. Física, exame de Estado, anatomia, fisiologia, histologia, patologia, bacteriologia. Dissertação
sobre as metástases de hipernefroma nos ossos. Guerra. Médico voluntário no novo hospital duma cidade que contava meio-milhão de habitantes. Markenheim. Os primeiros
diagnósticos falhados. As primeiras faltas técnicas. Os primeiros casos mortais. Paragem do coração durante a anestesia, Porquê? Embolia por ocasião da operação,
absolutamente banal, ao bócio. Porquê ? Hemorragia depois duma sutura na vesícula biliar. Porquê ? Estas coisas não lhe aconteciam a ele, voluntário humilde, mas
ao grande cirurgião, célebre no mundo inteiro, ao professor de grande categoria. O apagado estudante Persenthein só tinha ordem de assistir, vigiando a equipa dos
aparelhos e dando as pinças. Assim apareceram as primeiras dúvidas sobre a divindade dos médicos notáveis e o poder sobrenatural da medicina, as quais desapareceram
quando foi nomeado assistente no hospital de Schaffenburg, ao ficar sobrecarregado de trabalho. Percorreu diversos serviços desse hospital de média importância,
meteu-se nalgumas questões de ordem teórica ou experimental, passou sete meses embrenhado numa forte mania das hormonas, durante a qual desleixou a tarefa quotidiana
mas adquiriu mais firmeza de mão na dissecção dos animais. Neste intervalo passara para o serviço ginecológico-era uma espécie de tapete giratório que ia transportando
o jovem médico através das diferentes especialidades compreendidas na clínica geral. Foi na secçãoG ginecologia-que ele encontrou a Elisabete. Ela desejava ser enfermeira
de recém-nascidos e tinha a seu cargo uma sala de dezanove crianças.
Sentiu se atirado por um sentimento violento para aquela rapariga de cinta fina, alta, clara, duma esbelteza gótica - e agarrou-se a ela com a mesma teimosia que
anos antes mostrara na paixão pela medicina. De cabeça, lançou se no casamento. Depois herdou a pequena clientela dum tio da mulher. Era esposo, cidadão, locatário
da casa do Angermann, à entrada da qual
logo pôs duas tabuletas. "Dr. Nicolau Persenthein médico parteiro", lia-se numa. E na outra: "Estou aqui às... e voltarei às..." Quando era chamado para uma aldeia
dos arredores e que a segunda tabuleta tinha vários números e inscrições, aquilo dava a impressão de grande actividade e numerosa clientela.
Naquele tempo em que se parecia com o São Jorge tinha a impressão de possuir algumas noções de tudo, e de nada conhecer a fundo, de maneira que durante dois anos
amontoou uma ruma de livros de medicina e de revistas da especialidade onde se pôde instruir, foi este o seu maior incentivo.
Os doentes começaram por recorrer a ele quando não podiam proceder de outra forma: quando havia algum parto difícil, por exemplo, em que a parteira não queria tomar
a responsabilidade. Ao cabo do segundo ano, mostrava segurança ao aplicar o kristeller e a versão podálica, e já se não produziam ruturas do perineo. NO entanto,
para o nascimento da filha preferiu mandar transportar Elisabete para Schafíenburg. Ela não complicou as coisas e o dr. Schroeder também não: aquilo durou nove horas
e a criança pesava os três quilos e meio regulamentares. Quando a Avelã completou três meses, começaram as primeiras divergências sobre a educação que convinha dar
à criança bem constituída que ambos adoravam, mas cada um à sua maneira: Elisabete com uma ternura sonhadora e delicada, Nicolau com o agressivo fanatismo que lhe
caracterizava todos os sentimentos. Elisabete fizera a sua aprendizagem no curso de enfermagem, mas o médico tinha uma opinião absolutamente pessoal. O nascimento
da filha caiu precisamente na época em que a sua "Ideia" começava a desenhar-se. Ficou vencedor. "A minha filha deve crescer como um esquilo na floresta" declarou
ao sogro, aflito, ao reitor Burhenne. E assim foi criada a Avelã. "Como se não pode colocar a criatura ao abrigo dos perigos que lhe ameaçam a saúde, e preciso acostumá-la
a esses perigos e modificar-lhe a predisposição, de tal forma que ela própria triunfe dos perigos." Era assim que se exprimia o dr. Persenthein, Em conformidade
com estes princípios, a Avelã
foi criada como um ursinho ou como um filho de esquimó. O calor e o frio, a neve e o sol, a humidade e as correntes de ar, tudo foi desencadeado sobre aquela pequena
coisa que, com a idade de três meses, era deixada nua, no parque dos brinquedos, onde, sozinha e com espantosa precocidade, aprendeu as humanas artes de trepar,
sentar-se, caminhar e pôr se em pé. Aos dois anos, a Avelã estava coberta de cicatrizes, como um guerreiro, mas absolutamente familiarizada com todos os objectos
angulosos, ponteagudos, cortantes, escaldantes perigosos para a vida quotidiana e de que ela, com a maior destreza, sabia desviar a maldade. Cheirava tudo, comia
tudo e suportava tudo. Tornava-se alta e forte. Podia arriscar-se a uma comoção cerebral devido a uma queda mas nunca se constipara. Quando completou três anos,
o médico instalou-a na motocicleta que acabara de comprar e levou-a na sua visita aos doentes. Seguindo um método sabiamente calculado e minuciosamente progressivo,
expunha-a ao contacto com todos os micróbios possíveis, desde a gripe infecciosa cuja origem é desconhecida, até ao popular bacilo de Loeffler que determina a difteria.
Em certos momentos de loucura absoluta, o médico persuadia-se de que a filha poderia engulir um tubo cheio de estreptococos sem adoecer. Facto maravilhoso : a Avelã
continuava de perfeita saúde. Não era uma demonstração da teoria do dr. Persenthein mas, às vezes, estava tentado a mostrar este facto como uma prova. Para o homem
que, de corpo e alma, se dá a uma ideia, existem destes instantes de vertigem que estão à beira do abismo. Elisabete morreria de medo se não fosse crente. Mas arranjou
um pacto com Deus e a Virgem Santa: quando ia às compras, entrava na pequena e velha igreja católica, ajoelhava junto do sarcófago de Sigismunda de Raitzold e fazia-se
tranquilizar e consolar. O doutor confiava no poder da sua ideia. Elisabete confiava na eficácia da sua prece. E a Avelã continuava a gozar de esplêndida saúde.
Entretanto, os habitantes de Lohwinckel deixavam-se tratar pelo médico que não consideravam como tendo o juízo todo e de quem não faziam grande caso. À
medida que os anos foram passando, o sorridente desdém transformou se em acerada hostilidade.
Aquela população tinha uma saúde regular, registando a habitual percentagem de raquitismo, tuberculose e sífilis, passando pela epidemia anual de gripe e tendo curvas
ascendentes e descendentes para a febre convulsa, a papeira, a escarlatina e a difteria. Tentavam curar-se, sem auxílio de médico, as anginas e os princípios de
úlceras no estômago. Quanto ao reumatismo, bastava ir ao farmacêutico Behrendt. Os que tinham apendicite, se podiam, dirigiam-se à capital do distrito. Restavam
pois: ossos quebrados, doenças de crianças, partos e a clientela do montepio. E a intoxicação saturnina. Em Lohwinckel era ela contraída na fábrica de acumuladores
do sr. Profet. Era a única fábrica da terra, situada no extremo do bairro de Obanger, com muros amarelos, pouco acolhedores, e dando trabalho a muitos operários.
O médico calculava que uma média de vinte e oito por cento desses operarios sofria da doença. Mergulhou se no estudo dessa enfermidade que se manifestava sob as
aparências de muitas outras doenças: crise nervosa, tísica com convulsões, dores de estômago, intestinos e fígado. Estudou as estatísticas das grandes fábricas de
acumuladores onde se fazia tudo quanto era possível para proteger o operário. Aí tinham conseguido reduzir notavelmente a doença: a meio por cento. Mas a fábrica
Profet, com as suas insuficientes instalações, com as oficinas provindo duma antiga tinturaria e transformadas de forma primitiva, com os seus vinte e oito por cento
de intoxicados, era um verdadeiro foco de infecção. Nem sequer se podia acusar o sr-, Profet, pois nada podia fazer enquanto fosse proprietário do terreno vizinho
o fidalgo Raitzold que, teimosamente, se opunha à expansão da fábrica e a qualquer nova construção. Pelo seu lado, os operários eram duma imprudência revoltante,
manejando os venenos com tal negligência e falta de cuidado, como se soubessem que todos os habitantes de Obanger estavam condenados a, mais cedo ou mais tarde,
ficarem intoxicados. O doutor assistiu durante algum tempo a este espectáculo - depois travou a luta.
Pôs-se à procura duma terapêutica contra a intoxicação saturnina,
No decurso dos três anos que seguiram esta delibevração, encontrou seis métodos aprovados e dois novos mas nenhum deu resultado. Os habitantes de Lohwinckel tornavam-se
cépticos. Quanto ao clínico, deixava de dormir, e, com os olhos vermelhos, percorria a região, febril e mal encarado, na moto barulhenta. O seu germânico cérebro
dolicocéfalo criava bossas e cavava-Se como uma falésia sob o assalto dos pensamentos, das preocupações e das experiências infelizes. Os doentes tinham medo do seu
médico, o que os fazia piorar, e também Elisabete o receava. Tinha medo daquele desgosto teimoso que tantas vezes enchia os olhos do esposo, dos sobressaltos durante
a noite, da voz impaciente. À força de escutar, estar de atalaia, esperar que o marido se modificasse, vivia cheia de nervosismo; algumas vezes o receio fazia-a
tremer fisicamente, dando-lhe a sensação de frio na medula. E como ela teria desejado abraçá-lo, embalá-lo, apaziguá-lo! Mas isto era justamente uma coisa a que
ele declarara guerra aberta: a ternura. Assim como também declarara guerra à cidade, à doença, à própria ciência. Não podia amolecer, tinha que continuar a ser duro
e violento.
Havia, pois, três anos, que albergava em casa o operário Lungaus, o objecto recalcitrante e quezilento das suas experiências médicas, o centro em redor do qual os
seus pensamentos giravam.
Eram cinco menos vinte, estava no final da consulta. O bafo de todos os homens ansiosos e doentes que por ali haviam desfilado, nessa tarde, tornava espesso o ar
do consultório.
- Vestir! - ordenou o dr. Persenthein, e foi lavaras mãos. Lungaus tornou a meter-se no fato.
O doutor mexeu nas fichas de Lungaus, que constituíam um pequeno livro.
- Está curado, Lungaus.
- Ora! - respondeu o homem, duvidando e procurando os suspensórios.
-É verdade. Ficará aqui sob vigilância, mas vai recomeçar a trabalhar. Já falei em si ao sr. Profet.
- E ele quer-me lá?
- Pedi-lhe. Fá lo-á para me ser agradável. Talvez sinta a minha força desde que lhe enviei o inspector do trabalho e o obriguei a instalar um aspirador de pó disse
Persenthein com desusado jorro de detalhes. Era uma coisa estranha: os modos rebarbativos e descontentes de Lungaus, incitavam-no sempre a conversas prolongadas.
- Não foi por isso que houve menos doentes...
- Bem. Então fê-lo porque tem curiosidade: quere saber se você recairá. O sr. Profet tem interesse em saber se acabaremos ou não com esta maldita intoxicação saturnina.
- com certeza que não. - replicou o homem, prontamente - Da última vez, voltou passados quatro meses.
- Ver-se-á! -respondeu secamente o medico que sabia mostrar-se tão desagradável como Lungaus
- Se assim for, não quero voltar para a fábrica. Já que me declara curado, prefiro ir trabalhar no Domínio.
- e sentou-se na cadeira de operações como se previsse que uma discussão demorada e recreativa ia começar. com gesto impaciente, o médico deu um pontapé no balde
de ferro esmaltado que continha o algodão sujo.
-Ah! Ah ! -gritou - Agora apetece-lhe ir para o campo. Noutra ocasião bem os Raitzold podiam correr atrás de vocês que nenhum queria ir trabalhar para a sua propriedade.
Todos queriam ir para a fábrica. Mas depois que se esteve a ir desta para melhor durante três meses, como é apetecível a vida dos campos, an ? Não, meu rapaz. Você
vai voltar para a fábrica porque me interessa, a mim. .
- Obrigar-me, ninguém pode. O doutor deu um pulo e andou à volta da cadeira de operações sem poder parar. Depois encarou Lungaus, que teve medo e contraiu os ombros.
O médico falou:
- Você vai ouvir o que lhe digo. Volta para a fábrica e permanece de esplêndida saúde. Sou eu que
lho afirmo. Esqueceu talvez aquilo que combinámos antes de vir para cá? Esqueceu se do estado lamentável em que tomei conta de si? Tratei o, curei-o. Três anos de
trabalho, três anos de vida gastos em proveito dessa carcassa para a tirar das garras da morte. Gastei consigo tudo quanto ganhei, a minha mulher trabalhou como
uma criada; apesar da nossa vigilância fez-nos uma data de partidas e mentiu nos. Tive que recomeçar todas as minhas observações por três vezes, visto que se ia
embebedar às escondidas -por meio de partidas infames deitou abaixo um ano inteiro de sacrifícios e estudo. Antes queria vigiar uma penitenciária cheia de criminosos
do que um tipo como você que não pode fazer o mínimo desvio do regime. Agora que está curado e que eu preciso de tirar a prova, é que sua excelência deseja mudar
de rumo, não? Então quer fazer-me isso, Lungaus?
O homem fixou o médico. Ele estava de pé em frente da janela. Segurava-se à varanda com todas as forças - dir-se-ia que era para não se deitar às goelas do operário.
Lungaus sentiu uma impressão estranha a dominá-lo: não sabia o que era porque desconhecia a gratidão.
Resmungou:
-Bem sei que não me quere mal. Mas se julga que é apetitoso ingerir uma comida de animal, fazer de cobaia e deixar tirar sangue todos os meses... e o resto! Já pensei
muitas vezes: "Farias melhor em te deixares morrer do que venderes-te assim ao médico". Aqui está o que eu pensei.
Persenthein abandonou a madeira que tinha entre as mãos, dirigiu se para a mesa e folheou as observações sobre o caso Lungaus. Encontrara um meio, o dr. Persenthein,
tinha uma ideia, uma ideia fundamental e espantosa. Mas não possuía os meios de a experimentar, nem laboratório nem hospital, nem material humano. Tinha apenas aquele
único exemplar, aquele Lungaus que, no momento em que se julgara perdido, consentira em se entregar nas mãos do médico, submetendo-se à sua terapêutica severa.
Conhecia de cor as notas sobre Lungaus. Era a quinta essência do seu trabalho, a sua prova, o seu triunfo. Reconstruirá passo a passo o seu organismo, transformarão,
metamorfosearão, despertando nele todas as forças de resistência contra o veneno e a. doença. Várias descobertas cristalizaram em redor daquele caso. Não só a intoxicação
saturnina desaparecera, mas também um reumatismo apanhado nas trincheiras e uma erupção herpética no pé. Devia estar no grau de saúde absoluta, a partir do qual
a doença se tornava definitivamente impossível. O dr. Persenthein, médico praticante e parteiro em Lohwinckel, não queria mais nada senão chegar àquela conclusão...
Tinha como aliadas algumas frases de Aristóteles e certas opiniões que encontrara num livro muito discutido: A Crise da Medicina. Tudo era possível. Ali estavam
a Avelã e Lungaus, o recalcitrante.
No silêncio, ergueu-se, de novo, a cortante voz do operário. Estivera a observar o médico, pensando: "Às vezes, tem olhos de cão". Esta ideia fora provocada por
qualquer coisa transparente que cintilava no olhar do clínico enquanto relia as fichas e resumia as suas conclusões. "Mas é um bandido ", pensou ainda o operário.
E formulou a ofensa :
- De resto, corre por aí que o senhor está doido.
- Coelhos! - exclamou Persenthein com imenso desdém.
Era o apodo colectivo que dava aos habitantes de Lohwinckel e arredores.
- Mas que diabo de bruxaria pretende o senhor ter-me feito para que o chumbo já não me faça mal e para que a minha perna fique inteira e tudo?-interrogou Lungaus.
O médico regressara ao estilo lapidar. -Modificado. Disposição mudada. Compreendido?
- Não percebo nada.
- Oiça criatura, preste atenção. Nem toda a gente tinha a doença do chumbo, não é verdade? Porquê?
Devido ao seu estado geral. Nem toda a gente apanha
tuberculose, não é verdade? E, no entanto, fartam-se
de respirar os micróbios. É claro, isto ? Muitas pessoas agarram a gripe e outras não. A Avelã, por exemplo. E você também não, nunca mais. Porque? Devido ao seu
estado geral. Não posso modificar a doença, ela existe, respiram-na, engolem-na, bebem-na, ela cola se às pessoas, de mil maneiras. Mas posso modificar os indivíduos,
compreende? O homem é transformável. O importante é isto: modificar a predisposição. Ainda o não consigo completamente mas estou no bom caminho. Oiça bem : há qualquer
coisa a que Aristóteles chama a "harmonia perfeita". Um homem doente não tem harmonia; um são que fica doente não estava são. Um homem são é incapaz de ficar doente.
Isto é simples, an ?
Lungaus reflectiu.
- Já viu algum homem assim? - perguntou, puxando as calças para cima.
Persenthein reflectia. Replicou:
- Não. Os médicos nunca vêem homens sãos, nem quási sãos. Na Universidade, mostram e explicam quatro vezes cem mil oitocentas doenças diferentes. Mas queria conhecer
o professor que se dirigisse aos seus alunos, dizendo: "Aqui está um homem cheio de saúde. Queiram examinar os sintomas..." Ah, que se eu fosse professor!...
Persenthein perdeu se nos seus pensamentos. Construiu um absurdo castelinho na areia, um castelo morto à nascença. Havia muito tempo que se encontrava ocupado por
um trabalho sobre o caso Lungaus e sobre outros casos relativamente convincentes que tinham mais ou menos correlação com as suas complicadas receitas sobre regimes.
Bem. Era preciso, duma vez para sempre, acabar com esse relatório. Enviá-lo ia então às Universidades e às Associações Médicas. O trabalho ficava impresso. E fazia
barulho. Pessoas de categoria vinham a Lohwinckel para verificar os resultados obtidos. Persenthein não conseguia lá muito bem imaginar uma pessoa categorizada em
Lohwinckel, onde um rebanho de cabras todas as noites era conduzido através as ruas e que possuía, ainda, uma poça para os
patos, por trás da igreja. Mas visto que estava em pleno domínio imaginário, nada tinha de espantoso que as tais sumidades viessem ali verificar o que ele descobrira.
Em seguida, chegava a nomeação e depois...
- Declaro-lhe que não volto para a fábrica e se o senhor assegura que estou curado é uma partida que me quer pregar. - disse Lungaus, peremptório.
Num abrir e fechar de olhos, desmoronou-se o castelo feito na areia, deixando-lhe no céu da boca o gosto amargo duma ilusão vã.
E terminou, dizendo:
- Cheira mal, aqui. Pronto, Lungaus. O homem abandonou a cadeira branca.
- Então? - prcguntou já ao pé da porta.
- Então, segunda-feira de manhã, entrará na fábrica.
- respondeu o médico.
Sabia falar com força de vontade, quando era preciso. O operário bem o conhecia. Obedecendo, respondeu:
-Bem. Então na segunda-feira.
E esquivou se instantaneamente. No vestíbulo encontrou jrau Persenthein que esperava, com ar interrogativo. Perguntou:
- Como está ele ?
- Mau, muito mau, - respondeu o homem, ainda receoso.
Sem nada deixar perceber da sua inquietação, adivinhando que era um dia escuro devido à amputação do braço de Jacó Wirz, disse apenas:
- Agora vá tomar banho, Lungaus, para depois se poder limpar o balneário.
- Os coelhos já se foram embora? - perguntou o homem que, em casa do médico, aprendera a responder a hostilidade dos habitantes de Lohwinckel com um desdém furioso.
- Estão lá só dois. Mas vá indo. Depressa. O seu jantar já está pronto.
Elisabete entrou no consultório, dominando-se. Nos
ultimos tempos, habituara-se a fazer um pequeno esforço antes de aparecer diante de Kola; mas ele não
dava Por isso. Estava precisamente ocupado a
empacotar uma encomenda destinada ao Instituto Higiénico de Schaffenburg.
- Posso arrumar ? - perguntou, abrindo a janela.
- Sim, ar! -exclamou o marido, distraído.
Tinha os olhos ausentes e não dava pela presença da esposa. Levantou-se, lavou as mãos e, de rosto carregado, começou um dos seus habituais circuitos em torno da
cadeira operatória.
- Cansado ? - perguntou ela, sem obter resposta. Passados três minutos, ele disse:
- Talvez não fosse mau...
Estava tão familiarizada com os pensamentos do marido, que não precisava de indicações mais explícitas.
- Queres que ligue para o Schroedei ?
- Bem gostava de nunca mais ouvir falar nesta demoníaca história do Wirz. - respondeu. Elisabete ficou à espera. Acabou por dizer:
- Sim, pede a ligação.
Olhava-o com pena e, ao mesmo tempo não queria que ele compreendesse tal sentimento. Enquanto dava voltas à manivela antiquada do aparelho telefónico, ele procurou
a ficha de Jacó Wirz e pôs-se a estudar, expirando rápidas fumaças.
Ficaram à espera que a inter-urbana desse a comunicação com a casa de saúde de Schafíenburg. A esposa perguntou:
-Quando queres jantar?
- Não penso agora nisso.
Elisabete levou o balde cheio de algodão ensanguentado. Pô-lo à porta e depois voltou. Não era muito variado o que acontecia, não, e compreendia-se que o marido
se mostrasse impaciente. Mas de que é feita a vida conjugal senão de perguntas como estas? "Estás cansado? Quando queres comer? Porque não dormes?" Eram as eternas
perguntas que a mulher faz ao marido desde tempos imemoriais. Ela olhou o de lado, espiando-o com uma inquietação misturada de piedade e retraimento. Persenthein
sentiu aquele olhar, que o magoou como um peso. Afastou-o de si com leve estremecer de ombros. Ela voltou se logo, foi até à
mesa de trabalho e decidiu-se a fazer uma coisa bem desagradável. , ,
-Não queres agora ver o meu livro de contas?- perguntou, e a sua voz era a duma pessoa culpada
-Bem sabes que... - respondeu ele, sobressaltado. Elisabete esperou. Conhecia o tão bem que não precisava de frases claras...
-Não. É melhor hoje. Amanhã surgirá qualquer outra coisa. Ajuda-me a fazer as contas. Preciso de dinheiro...-disse com prudência.
- Se tivesse, dava-to. Dinheiro! - murmurou o médico que pegara numa seringa e a lavava no éter.
O aroma do narcótico tocou no nariz de Elisabete e impregnou lhe o cabelo. Depois ele perguntou:
- E para quê?
- É absolutamente vergonhoso ainda não ter pago ao Markus.
- Pode esperar. Também eu espero. Talvez o sr. Profet se resolva um dia a pagar a minha conta. E então chegará a vez do Markus.
- E também te lembro os Raitzold. Em Agosto, foste lá quási todos os dias...
- O Raitzold é pobríssimo.
- Tem umas relações estranhas com a rapariga. -Estranhas? Nada disso. É um tipo extraordinário, podes crer.
- com botifarras de granadeiro.
-Sim, com essas botifarras. Deixa a má língua para a gentinha de Lohwinckel.
Entristecida, Elisabete respondeu: . -Êies também falam de nós... Persenthein não exalou senão um pequeno urro. olhava para o telefone como para um inimigo, e estava
a espera. Não tens dinheiro? - tornou a mulher e que hei-de dizer ao Markus? Pois não compreendes quanto isso me custa?
o médico descobria na mulher uma fraca semelhança com o sr. reitor do liceu Burhenne, seu pai
- e ela aparecia nos momentos de preocupação ou fadiga - impacientava-se.
- Custa? -disse muito baixinho, dando assim maior prova de irritação do que se gritasse. - Custa!
- A tua situação tornar-se á ainda mais difícil se souberem que deves ao merceeiro.
- E como hão-de saber? Então o judeu anda a contar os seus negócios a toda a gente ? Julguei que nos fosse dedicado.
- Não precisa de contar. É uma coisa que se sabe. Dizem que...
- O quê? Que sou doido, não é? Dizem que não sei distinguir uma fluxão de peito da escarlatina e que foi preciso mandar vir um médico de fora porque deixei morrer
três doentes com a gripe. É isto ?
- Dizem que o Markus nos vende tudo mais barato porque está apaixonado por mim. E agora, para cúmulo, não posso pagar-lhe! E ainda não queres que isto me custe ?
- Bem! Se está apaixonado por ti, mais uma razão para que espere pela conta. -concluiu Persenthein, muito satisfeito.
Elisabete começou por engolir mais uma decepção e depois riu-se. Vindo para ele, declarou:
- Em todo o caso, não tens o rninimo senso da dignidade.
Havia ainda instantes onde ele dava pelas suas idas e vindas, pela sua aproximação, sentindo-lhe a presença, experimentando alegria, felicidade, vibração. Ela notou
que os cantos da boca perdiam rigidez.
- Não, nenhum. -respondeu o recalcitrante.
- Podias ter esperado algum tempo antes de comprar aquele pantoscópio que é tão caro!-disse, quando chegou junto dele. Sorria, parecendo não estar falando a sério.
- Sim, vai dizer isso ao teu apaixonado israelita. Gasto muito dinheiro nas minhas coisas, diz-lhe, anda.. é por isso que não posso pagar o feijão e as batatas.
E fica sabendo que, daqui a pouco, tenho que comprar um aparelho para a transfusão do sangue, isto é que tem
de ser A sr.a Melkin salvar-se-ia se o tivesse. Quando me chamaram, de Obanger, as mulheres não teriam morrido com hemorragias. Já estabeleci a minha hstazmha de
dadores de sangue, todas as variedades de sangue, em perfeita ordem, como num hospital. Só falta o aparelho. E de resto não é muito caro...
Mas antes que jrau Persenthein se tivesse pronunciado contra aquela compra, a comunicação telefónica foi estabelecida com Schaífenburg. Elisabete lançou um olhar
inquieto para o marido, cujo rosto se tinha petrificado em máscara de indiferença enquanto pegava no auscultador. Ela dirigiu-se para a porta.
- Não faças barulho, Avelã. - murmurou. Estava escuro no vestíbulo; sentia a criança quási sem a ver.
- Está a falar para fora.
Sentou-se no banco reservado aos doentes e puxou a filha para si.
- E por causa do homem que bateu com a picareta na mão ? - perguntou a pequenita, em voz baixa.
- É. Mas como sabes isso ?
- Estava no Domínio quando o trataram. Primeiro deitou muito sangue, depois já não. O homem ria-se. Kola disse: "este não é piegas como a Avelã". Mas eu não sou
piegas. Quando caí da janela, não chorei senão por causa do vidro partido; não foi porque me magoasse. É pena que aquele homem morra, an?
-Mas não há-de morrer!-exclamou a mãe, em tom suplicante, abafando a voz nos quentes cabelos da filha. Como estava às escuras, ousava apoiar a boca naquele calor.
- O Kola tem medo que ele morra; já mo contou, -exclamou a pequena em voz alta, meneando a cabeça com energia.
Sob as mãos que cruzara no peito da filha, a mãe sentiu bater-lhe o coração como um passarito que desejaria voar. E pensou: "Disse-to a ti? E não a mim?"
Calou-se. A outra conversa prolongava-se, feita de perguntas breves e de largos silêncios durante as respostas. Depois, ouviu-se o médico ir e vir, em passo violento,
através do consultório. A Avelã estava a dormir ou de ouvido à escuta ? No subterrâneo a bomba eléctrica funcionava. Pendurado no cabide, o húmido casaco de Kola cheirava a arnido e a chuva. Tudo estava
invisível.
Por fim, o doutor apareceu, Passou do cinzento para o escuro, porque detrás dele estava a penumbra do aposento e o vestíbulo encontrava-se mergulhado em escuridão.
- Devo acender a luz? - perguntou Elisabete.
- Não, obrigado, está bem. Ainda vou fazer algumas visitas. - disse em voz estranha.
Mexeu no casaco que estava pendurado.
- Kola, sucedeu alguma coisa ao... ao Wirz ? -Nada!
-Nada?
- Acabou. Morreu ás quatro horas. Três horas antes já estava moribundo, diz o Schroeder.
-Meu Deus! -exclamou Elisabete. A pequena permanecia imóvel; por uma certa rigidez do seu corpo a mãe percebeu que estava bem acordada.
Virado para a escuridão, o médico disse:
- Assim, já essa gente terá mais pasto para a sua má-língua.
- Mas não tens culpa nenhuma! - exclamou a mulher.
- Custa... custa muito! - queixou-se ele sem notar que se servia das mesmas palavras que, ainda há pouco, o haviam irritado -Às vezes, sinto-me tão farto!
Às apalpadelas, dirigiu-se com os joelhos para a frente, até ao banco dos doentes, onde se deixou cair.
- O Schroeder também diz que é pouca sorte. De resto, esperou quatro dias antes de amputar. E pronto! Para isto passa a gente uma vida de cão! Quando um imbecil
como aquele Wirz escorrega com a picareta e dá um golpe na mão, parece não haver novidade de maior. Se eu lhe tivesse cortado imediatamente o dedo, é claro que nada
disto teria acontecido. Mas não se vai logo fazer uma coisa destas, assim à primeira! Sabe Deus que data de porcaria tinha na mão! O Schroeder diz que teria feito
exactamente o mesmo que eu fiz.
Desinfecção, ligadura e mais nada. Quem é que vai logo pensar em cortar um dedo? E, no entanto, era o que devia ter feito. Maldita história!
Silenciosa, a mulher ouvia o monólogo. Não era fácil viver em Lohwinckel como esposa dum homem odiado; agora novas dificuldades surgiriam. Às vezes, parecia-lhe
que suportava um peso exagerado mas não desanimava. O pior era que, no fundo de si própria, se sentia tentada a tomar partido contra o marido. Ele estava cego pela
medicina, esfarrapando tudo que não correspondia às suas ideias. E tinha o perfil de Schiller. Talvez porque fosse um génio ... Mas aconteciam muitas desgraças na
sua vida médica... Elisabete passava por momentos de depressão em que duvidava absolutamente da vocação de Kola e não compreendia os sacrifícios que a deusa Medicina
dela exigia. Apesar da distância que os separava, estendeu as mãos para os joelhos do marido.
Ele compreendeu. Estavam tão estreitamente unidos pelo casamento que sabiam ler os mútuos pensamentos. Perguntou tristemente:
- Queria saber, o que pensas da minha pessoa ?!
- Que hei-de pensar? Bem sabes o que és para
mim!
Adivinhou a intenção de consolar por ela ter dito "o que és para mim" e não "bem sabes como te quero". Através a escuridão, estendeu uma pobre mão suplicante que
tocou no ombro da Avelã.
-Ah! Está aqui a pequena ?-exclamou. A mulher, sem o ver, adivinhou-lhe o sorriso.
- És a única pessoa a desculpar-me...-mas disse isto em voz alta e com severidade para se não enternecer. Teria ainda vontade de pronunciar alguma palavra carinhosa
mas calou-se.
Pôs-se em pé. Um instante depois, deu volta ao comutador, junto da escada, e entrou na garagem para tirar a moto.
-Onde vais ainda? - perguntou ela.
- Duas visitas em Obanger. Outra no Priel, a pneumonia. Também não escapará. Tem setenta anos.
Depois vou ao Domínio dizer o que se passa sobre o caso Wirz. E em casa do Profet, o rapaz ainda tem febre.
Empurrou a moto. Silenciosa e pensativa, a Avelã abriu a porta toda, fixando-a com um fecho; tinha uma forma pouco infantil de se tornar muda e invisível quando
havia qualquer preocupação. Trazidas pelo vento, algumas folhas secas haviam-se amontoado em frente da porta; a sombra do Angermann desaparecia no crepúsculo.
- O que tem o rapaz dos Profet ? - perguntou Elisabete, estremecendo e escondendo os braços sob o avental para se proteger do frio que vinha de fora.
- Não sei. Está com febre desde a última partida de futebol: uma temperatura espantosa, ora muito, ora pouco, ora nada. E ausência de outros sintomas. Muito desagradável.
Está deitado e tem febre. Não percebo nada daquilo.
- Não sabes? - perguntou a mulher.
- Não, não sei. Que queres? Não sei, pronto! gritou o médico, furioso, fazendo dernarrar a moto.
Elisabete, sucumbida, ficou de pé em frente da porta até que a linha arqueada das costas do marido ofendido desapareceu e que o irritado barulho do escape da velha
motocicleta se perdeu para os lados de Obanger.
Si
Lohwinckel é uma pequena e velha cidade da Hesse renania que tem cerca de sete mil habitantes, sete mil almas, como dizem certos guias fora de moda. São pois sete
mil almas que vão levando a sua vida por trás das fachadas dos prédios. Lohwinckel possui uma antiga igreja com uma torre acabada e outra incompleta, a casa da Câmara
construída em MDCXV, restaurada em MDCCCVII, onde reina o presidente progressista
dr. Ohmann, pessoa inteligente, como reconhecem os próprios adversários. O presidente da Câmara tem, pois, ideias avançadas; há outra gente que nem isso tem, por
exemplo o reitor Burhenne que dirige o liceu, tendo festejado há pouco o jubileu dos seus vinte e cinco anos de ensino. A sociedade, em Lohwinckel, como em todo
o mundo, divide-se em direita e esquerda, em pobres e ricos, em progresso e tradição. Quando um dos rebanhos vai para um lado, o outro vai para o oposto e, a par,
correm alguns isolados, como o médico Persenthein ou o merceeiro Heinrich Markus, para não citar outros. Numa terra como esta, sabem-se muitas coisas de uns e outros
e quando, por exemplo, três cães da cidade uivam e estão sentados juntos, no passeio, diante da casa do vendedor de loiça Nadler, as pessoas dizem:
- Olha, olha, a mulher do Nadler apanhou uma sova.
Se é o reitor Burhenne - os alunos chamam lhe Putex- que entra na aula, de rosto carregado à Bismarck, e dá três zeros a seguir, todo o liceu fica sabendo que se
zangou com frau Bartels. É a sua governante, pois ele é viúvo há muitos anos. Trata de dois alunos que lá estão hospedados nas águas-furtadas e também foi ela que
criou a Elisabete Burhenne, mais tarde esposa do médico.
Também sabem que a mulher do clínico tem uma vida difícil com aquele rebarbativo homem.
Enfim, julgam saber tudo - quando afinal nada sabem. Por mais chegadas que estejam as casas dentro da cidade murada, as sete mil almas, vegetando em redor da fonte
do mercado onde uma pequena Madona dá ao filho uma bola de pedra, continuam a estar perdidas como ilhas no oceano, tão afastadas umas das outras como as estrelas
no céu.
Lohwinckel, procedendo da mesma forma que muitas outras terras, colocou a fealdade a leste. Na idade-média, a porta do Angermann dava para o Anger, isto é, para
o local de execução e tortura, o cemitério dos pestíferos e o prado onde a vagabunda multidão dos feirantes tinha autorização para passar a noite junto das tendas.
Mas agora, o São Jorge do Angermann descobria primeiro uma
poeirenta e mal cuidada estrada que, entre paliçadas, conduzia às casas operárias de Obanger. Não eram nada bonitas estas casas, sumariamente construídas com tejolos
e involuntariamente viradas para a fábrica, assim como dentro da cidade tudo estava voltado para a igreja.
Por trás da fábrica, corria o caminho vicinal, entre as sorveiras e os campos da propriedade Raitzold até à estação, percorrido quatro vezes pelo auto do correio.
Lohwinckel não tinha senão meia estação, visto que esta se chamava Lohwinckel-Dusswald: chegando lá, era preciso percorrer caminhos opostos durante meia hora para
chegar a cada uma das pequenas cidades. A estrada era má, estragada pelo peso de grandes caminhões que nela produziam sulcos profundos e quando o auto do correio
encontrava o da fábrica, havia dificuldades e discussões sem fim, porque o velho caminho era muito estreito para as exigências dos transportes modernos. As tentativas
feitas pelo sr. Profet para estabelecer uma via de junção da gare a Lohwinckel, esbarraram na resistência exasperada, verdadeiramente furibunda do sr. de Raitzold
a quem pertencia o terreno situado entre a fábrica e a estação. Os dois homens sentiam um pelo outro o imenso ódio cujas fases ocupavam Lohwinckel inteiro, um ódio
estagnado que não tinha senão esta causa: os Raitzold, estabelecidos naquela terra que estimavam havia séculos, empobreciam de dia para dia duma forma inquietante,
enquanto que o Profet, estranho ao país, ganhava dinheiro metendo capitais em todas as empresas. comprava terras, subvencionava a Caixa Económica do distrito, comanditava
a hospedaria do "Cisne Branco", etc. - estendendo-se a sua influência à medida que o dinheiro circulava pela região.
Não fora sem motivo que o rico sr. Profet situara a sua habitação - construção de arquitectura um tanto confusa, com torres pequenas, terraço, court de tennis, repuxo-o
mais longe possível dos bairros pouco agradáveis de Obanger, a oeste da cidade, para lá da segunda porta, no bairro denominado Priel. Mesmo uma pequena cidade como
Lohwinckel tem as suas castas; estão delimitadas com particular precisão. As pessoas de Priel são
o que se chama pessoas distintas, o que o farmacêutico pehrendt denomina "pessoas bem"; pelo contrário, o termo obangerense significa uma coisa desdenhosa, chegando
mesmo a roçar pelo insulto. Quantas vezes, no liceu, há pancadaria por este motivo! Quando, por exemplo, o filho mais novo do sr. Profet chamou obangerense ao Kolke
que era pensionista do reitor e o Gurzle, o escanifrado quintanista, injuriou desta forma o filho da pobre viúva Psamatis, houve um grande sarilho.
Eram precisos cinco minutos para se ir da casa do Angermann até ao centro de Lohwinckel, à igreja e ao liceu que estava situado na bifurcação da Rua Direita, assim
como o domicílio oficial do reitor e o armazém do Markus, em face do "Cisne Branco". com mais cinco minutos estava-se na outra extremidade da cidade, na porta de
oeste, onde começava a bela avenida de bordos do Priel com o seu ar puro, alas de tílias em frente dos jardinzinhos das casas e as filhas dos prielenses ricos, a
passear.
Frau Persenthein nunca fazia aqueles cinco minutos de percurso sem pôr o chapéu. Era um dos esforços aos quais se submetia para sublinhar a respeitabilidade do médico.
Também não levava cesto de compras, isso era bom para a mulher do sapateiro ou a criada do notário mas ficaria mal na esposa dum clínico.
Levava apenas uma rede que, dobrada, pouco espaço ocupava. De resto, naquela tarde, a rede não passava de pretexto. Enquanto ia pela rua que conduzia ao centro da
cidade, com tal lentidão que gastou sete minutos, sentia o coração como que anguloso. Sentia-o mesmo inchar com uma leve sensação de dor, enterrando-lhe uma ponta
na clavícula. Não era a primeira vez que experimentava aquilo mas exactamente por ele ser médico é que nunca lho dissera.
Era quási noite quando o relógio da igreja deu seis horas. O Schmittbold, varredor das ruas e guarda do jardim, perseverava ainda em fazer montinhos com as folhas
secas ao longo do passeio, respirando fundo, de vez em quando, inclinado para a vassoura de ramos de bétula. Alguns habitantes de Lohwinckel tinham já largado o
trabalho e estavam sentados em bancos pintados de verde, diante das portas das casas, com as mãos descansando nos joelhos. O alfaiate Krainerz baixou as persianas
com barulho significativo. Por cima de tudo isto reinava o aroma de Lohwinckel, um aroma sempre idêntico, de pó aspergido de água, lenha a arder e água da poça dos
patos de trás da igreja.
Elisabete caminhava lentamente porque ia fazendo cálculos; trazia na cabeça todos os algarismos inquietadores do livro das contas, olhava para as pontas dos pés
e cumprimentava com o meigo olhar ausente quási todas as pessoas que encontrava, porque a todas conhecia. Só o farmacêutico Behrendt deu um passo atrás e se retirou
para dentro da loja onde também vendia artigos fotográficos, drogaria e garrafas termo. Ela compreendeu que aquilo representava uma pequena manifestação de hostilidade.
Estavam de relações definitivamente cortadas. O doutor enfurecia-se quando o boticário dava conselhos e vendia especialidades farmacêuticas absolutamente contraditórias
ao seu método reformista. Behrendt, pelo seu lado, achava que o médico, com a sua mania naturista, dava cabo do ofício, ameaçando-lhe o negócio. Chegara mesmo a
haver uma complicada troca de cartas, delicada mas plena de irritabilidade, conduzindo à ruptura de relações. Behrendt era presidente da associação "União e Fraternidade",
podia ser prejudicial e não perdia uma ocasião. Recolheu-se, portanto, à farmácia, para não ter que cumprimentar frau Persenthein. Ela hesitou na bifurcação da rua
Direita e na do Mercado, perguntando a si própria se devia entrar na caverna do leão ofendido e comprar alguma coisa - chá, macela, sabão em pó, um tubo de vaselina
- para restabelecer o contacto ou se tinha direito a fugir. Finalmente deu meia volta como se se tivesse esquecido de qualquer coisa importante, deixou a enfadonha
rua Direita e bateu em retirada para o lado do Mercado.
-Que deseja? - perguntou o sr. Markus, quando, um pouco fatigada, entrou no armazém. Ainda tinha duas mulheres para servir: a cozinheira do notário e a costureira,
fráulein Ritting, da rua das Águas. O sr. Markus
entregou ao caixeiro um cartucho meio cheio e veio servir a Elisabete. Era míope, o que lhe dava uma expressão eternamente interrogativa e admirada - mas não punha
óculos na loja. Procedia desta forma por razões análogas às que a Elisabete apresentava para não sair sem chapéu. Achava que óculos de tartaruga não estavam indicados
para uma mercearia, mas sim para permanecer lá em cima entre livros e revistas. Teriam feito com que a clientela o troçasse e desconfiasse dele.
- Que deseja? - perguntou, sem tocar na mão que ela lhe estendia. No armazém achava que estava sempre sujo.
- Meio quilo de arroz, se faz favor.
- Não decorticado, é claro?
- É claro. - respondeu ela, sorrindo.
- Mandei vir um saco inteiro em sua intenção. - respondeu o merceeiro correspondendo ao sorriso.
- E para os nossos doentes?
- Como? Ah, sim, mas os doentes não seguem o regime tanto à risca.
Apaziguada, Elisabete olhou para os grãos de arroz que escorriam da pá de madeira para o cartucho. O armazém cheirava bem, a crianças e drops.
- E que mais?
- Mais nada, obrigada.
- São trinta e oito pjennig. Inscrevo-os na conta do mês - disse o merceeiro, assim que notou a hesitação de Elisabete.
- Sim, faz favor ... - e meteu o cartucho no saco de rede.
- Boa tarde, minha senhora. -cumprimentou a costureira.
- Boa tarde menina Ritting. Parece que vai chover.
Chegava a ter gratidão por todas as pessoas que nada tinham a censurar ao médico. Esta escapara, sã e salva, a uma pleuresia.
- Desejava falar-lhe, sr. Markus. - disse, assim que a costureira saiu.
Caía uma chuva ligeira que se via atrás da porta de vidro colorido.
- Sim? Então vamos para o meu escritório.- respondeu Markus que interrogou o relógio de pulso e deu, ao caixeiro, ordem para fechar a loja.
Elisabete seguiu-o por trás do balcão até ao pequeno gabinete envidraçado cheio de sacas de café perfumado. Apertou a rede contra si e entrou logo no assunto.
- Estamos a doze de Outubro, sr. Markus.
- Como? Ah, sim. com efeito. É verdade, já estamos a doze. - concordou o homem, embaraçado. Possuía uma boca bonita que se atrapalhava, de vez em quando, não podendo
articular certas consoantes. Tinha cabelos escuros mas parecia que lhe rodeavam a testa com reflexo louro. Elisabete fixou o olhar nessa particularidade para poder
continuar a sua explicação.
- Ainda não posso pagar a nossa conta, sr. Markus. -Ah! é pena... quero dizer... não lha enviei senão
por causa da escrita... Bem sabe. A minha mãe tem destas manias... -balbuciou Markus, dando a impressão de ser antes um devedor do que um credor.
- Os outros são tão pouco exactos e devem-nos tanto! - queixou se Elisabete que, cada vez estava mais confusa.
-Sim, calculo... Cá em casa acontece o mesmo. Eu tenho de pagar nos prazos mas os clientes é só quando lhes apetece.
Chegando a esta altura da conversa, nenhum deles soube mais que dizer. Nos olhos da Elisabete apareceram precisamente naquele instante e bem fora de propósito, as
lágrimas que levara a manhã inteira a engolir, substituindo-as pelo sorriso. Decerto porque ia ter alguma tranquilidade por aquele lado e também porque tinha pena
do Markus.
- Custa-me tanto! - murmurou.
- Oh! cá em casa não faz mal. - declarou o merceeiro a quem a mãe todos os dias fazia cenas terríveis por causa daquela conta.-Lamento, minha senhora, que tenha
preocupações de dinheiro. - disse finalmente.
Era difícil formular sob uma forma mais apaixonada os sentimentos que experimentava por aquela mulher.
Elisabete compreendeu e disso resultou uma mistura de sentimentos agradáveis e desagradáveis.
- É sempre tão amável! -disse, reconhecida.
O sr. Markus, sucessor de M. S. Markus também estava isolado, como o dr. Persenthein. Primeiro porque, embora nascido em Lohwinckel, era judeu. "vou a casa do judeu"
diziam, em vez de "vou fazer compras" ou "vou à loja do Markus". Em criança, andara só, em estudante assustara os mestres, sobretudo o pedante professor Burhenne,
pela sua impaciente inteligência que ia além do programa escolar e pelas suas preferências variáveis e incertas por diversos ramos de ciência. Depois do bacharelato,
deixou Lohwinckel para estudar direito em Berlim e vir a ser alguém. Em seguida, deu se o caso do pai M. S. Markus, em que o dr. Persenthein tinha a sua parte de
responsabilidade. Como geralmente acontece, M. S. Markus fora atacado de apoplexia duma forma inesperada, enquanto comia salada de grão, apimentada e fria, acompanhada
por um copo do excelente vinho das vinhas do Domínio. A esposa mandou chamar o dr. Persenthein mas ele não estava em casa. Seguindo as indicações escritas na tabuleta
da sua porta, encontraram-no uma hora mais tarde na propriedade Raitzold onde a criada dava à luz um filho sem pai, entre grandes dores. Ficou ali até que a criança
visse a luz do dia e só depois voltou para Lohwinckel, com grande custo e a pé, porque a moto não fora comprada senão depois desta experiência e o sr. de Raitzold,
inimigo declarado dos judeus, recusara emprestar o seu carro. Foi por isso que M. S. Markus morreu sem assistência médica - como, de resto, teria igualmente morrido
com ela. Mas o ódio concentrado da viúva, desde essa noite, não largou mais o dr. Persenthein. Insinuava ser ele pouco seguro, não estar presente nos momentos precisos
e ainda qualquer coisa de mais sujo ainda: preferir ficar à cabeceira de raparigas sem vergonha em vez de vir assistir aos cidadãos que morriam correctamente na
sua cama, se bem que israelitas.
Este ataque apopléctico teve consequências graves para o jovem Markus: cand. jur. Heinrich Markus,
em Berlim. Foi obrigado a renunciar aos estudos, tomar conta do armazém, voltar para Lohwinckel onde estava a mãe e respirar o cheiro do sabão e do café da loja
da rua do Mercado. Agora estava resignado e tentava adaptar-se à nova existência. Fazia inovações. Mandou pintar a palavra "Alimentação" na tabuleta e a montra tinha
às vezes uma feição tão moderna que chegava a chocar. Na vida privada usava óculos. Comprou muitos livros, leu catálogos, assinou várias revistas. Procurou um aparelho
de rádio, de modelo especial, graças ao qual pôde ouvir não só a sua querida cidade de Berlim mas também Paris, Londres e Roma. Depois encetou uma correspondência
bizarra e longínqua. Escreveu cartas, inúmeras cartas ao mundo inteiro e, às vezes, acabava por receber uma. Agarrava-se ao universo lá de fora e introduzia-o no
seu abafado gabinete onde se guardavam os sacos de café porque o ar era aí mais seco, arriscando-se menos a perder o aroma...
- Antes de mais nada, é preciso não desanimar. E preciso conservar o seu ideal, minha senhora. - dizia ele à bulha com as consoantes.
Elisabete olhou-o atentamente; aquela grande palavra Ideal arrefecera-a. Roeu um pouco o dedo indicador. Em voz baixa, replicou:
- Ah, sr. Markus, às vezes, realmente, não sei o que hei-de fazer!
-Compreendo. A sua vida não é fácil.-respondeu o merceeiro, falando como o operário Lungaus.
De resto, cá fora dizia-se o mesmo, o que reforçava a hostilidade geral contra o marido. Ávida de consolação, ela olhou para a mão de Markus manchada como a dum
escrivão, que, maquinalmente, se aproximava da sua por cima da escrevaninha maculada de tinta.
- O meu marido... - disse em voz queixosa, mas sorrindo ao mesmo tempo.
- Eu sei. - atalhou Markus, prudente.
- ...tem tantas preocupações! Cada vez mais. Tenho pena ... Por isso é que se torna... desagradável... tenho pena. E todos os dias contrariedades e todos os dias
discussões de dinheiro. Mas ele é preciso...
-O doutor possui agora uma boa clientela, deve canhar muito... - disse o sucessor de M. S. Markus, tornando-se de súbito comerciante.
-Ganha mas gasta tudo, e isso é que é muito aborrecido. Tem sempre compras a fazer, coisas caras, aparelhos, livros, revistas e pensa ainda em novos instrumentos
que deseja inventar, melhorar... encomenda coisas tão esquisitas e nunca tem tudo o que quer! O seu desejo é aperfeiçoar-se cada vez mais. Não se conforma em ficar
sempre um apagado médico de partido como era o meu tio... e eu compreendo-o, mas custa muito...
- É ambicioso.
- Não é, não. É um insatisfeito. Possui um lugar tranquilo mas não tem sossego. De resto, não o teria em parte alguma, poderia estar na melhor situação do mundo
que ainda se mostraria impaciente.
- Agradeça a Deus. É um homem vivo. Aqui todos estão mortos, acabados, liquidados -nada se mexe, nada acontece. É este o maldito perigo que se corre: é a gente resignar-se
e acomodar-se com tudo. E a senhora? Não tem, às vezes, vontade de se ir embora para longe, para muito longe disto, seja para onde for? Aqui, tudo parece tão definitivo,
tão irrevogável! Não sente, algumas vezes, ganas de dar um encontrão nisto tudo e fugir?
Elisabete ouvia-o atentamente e parecia-se mais do que nunca com a Avelã, com os seus cinco anos de juízo. Reflectiu um instante e aprovou com a cabeça.
- Sim, mas são coisas que não se podem fazer. concluiu sensatamente.
- Pois não. - concordou Markus.
Ela prestou o ouvido à chuva. E pensou: "Ele vai chegar com as piúgas molhadas. Tenho que passajar umas para amanhã de manhã."
- E porque não?- insurgiu-se Markus, levantando-se com violência. - Porque não, afinal de contas ? porque é que a gente não há-de poder ir-se embora? Sair disto?
O horror que é uma pessoa passar a vida em Lohwinckel! Aqui há só lama, mas lá fora o
mundo tem um rosto diferente. E a gente lê que tudo é movimento, que tudo se modifica. Quanto a nós, estamos emparedados. O amor e o ódio são estéreis e, no entanto,
irrevogáveis.
A Elisabete ergueu um pouco os ombros, de maneira quási imperceptível. Não gostava daquela espécie de palavras: Amor, Ódio, Fuga. Aquilo fazia pensar nos livros
que o falhado estudante Markus lia em grande quantidade e que lhe davam a pretensiosa inteligência judia que o afastava dela.
- Não é também assim uma coisa tão horrível!... -disse ingenuamente.
Entretanto, os olhos do homem haviam-se perturbado porque pensava: "se a tivesse encontrado fora daqui, outras seriam as nossas relações, Elisabete. Estéril amor!
Aqui, é a mulher do dr. Persenthein e eu sou o merceeiro judeu, sucessor de M. S. Markus. E mais nada. Enfim! Arroz decorticado, posto aos seus pés. Contas por pagar
à laia de agradecimento. De resto, não sabe nada de mim, absolutamente nada!"
- Bem, agora tenho de me ir embora. A pequena está só em casa.
Disse isto mas deixou se ficar sentada porque estava moída e incapaz de tomar uma decisão.
À pressa, ele pediu.
- Um instante... só mais um bocadinho. Deixe-me explicar a minha maneira de pensar. Há, por exemplo, a rapariga que está no barbeiro. Veio duma grande cidade, sabe
Deus após que enigmáticas circunstâncias! Conhece os requintes dos grandes meios: manicura, ondulações, corte de cabelos. Anda bem arranjada, pinta-se e é bonita..
Não se impaciente, oiça o que lhe quero dizer. Falam mal dela desde o dia em que chegou aqui. Porquê? Porque usa bâton? Porque a viram a conversar com o filho do
carniceiro? Quem a pode impedir ou querer-lhe mal por isso? E se a virem com qualquer outro, comigo ou com um empregado do correio, pronto: está perdida. Nunca mais
conseguirá reabilitar-se. Não encontrará marido e só uma coisa lhe restará fazer: sair cada domingo com um homem diferente e, durante a
semana, ouvir as frases frescas que a sua clientela masculina lhe quiser dizer. E ter-se-á a prostituição em Lohwinckel, nem mais nem menos. Fora daqui, continuaria
a ser uma rapariga encantadora; aqui...-não se assuste, minha senhora, eu sei que não gosta de ouvir estas coisas e é o que em si existe de católico que a domina.
"E é o que há de judeu em si que o faz falar dessa maneira" - pensou Elisabete, em réplica rápida. Às vezes, tinha destes relâmpagos. Mas não o disse porque considerava
a palavra judeu como uma ofensa.
- Mais vale o domínio do que a falta de compostura.
- disse, um tanto severa.
Markus desatou a rir. Compreendera-a bem sentira uma dor aguda, uma espécie de nevralgia que já o ferira na infância quando a sua crença o isolara.
- Bem. Passemos a outro assunto: a política. Já viu alguma coisa em evolução, neste buraco? Apesar de todas as batalhas que precedem as eleições, apesar de todos
os ataques na "Folha de Aviso" e, do outro lado no "Popular de Schaííenburg", passa-se alguma coisa? Convencem alguém ? Em Obanger são socialistas, em Lohwinckel,
conservadores. O sr. de Raitzold está pronto a disparar sobre os que não têm a sua opinião e o sr. Profet mantém-se no seu meio burguês, esfolando os operários apesar
dos salários sindicais. Julga que os operários são capazes de se revoltar? Que ideia! É assim e não muda. É-se atacado pela doença do chumbo. O seu tio encobriu
sempre essa enfermidade. O seu marido descobriu-a, pôs de sobreaviso o inspector do trabalho, tocou nos estatutos da caixa dos doentes. E que resultou? Nada. Os
burgueses dizem que ele é socialista. E os operários consideram-no como um carrasco porque os obriga a tomar leite e ar puro em vez de medicamentos. Se não fosse
a inércia desta gente, há muito que teriam procurado outro médico.
Muito depressa, Elisabete concordou:
- É isso que eu receio. Precisamente isso. Se a menina Ohmann casar e o marido começar a exercer clínica, ui... Imagine: o genro do presidente da Câmara em luta
com o meu marido que tem tantas antipatias..
- É isso que receia ? - perguntou Markus, detendo-se um momento - Não. Creia que nada acontece aqui. E isso também não. Todos têm inimigos mas ninguém se mexe: respira-se
e vive-se na mesma. Inimigos! Ora veja o ódio que o Profet e o Raitzold têm um pelo outro. É imenso, de modo que devia acontecer alguma coisa: um assassinato, um
incêndio, uma explosão. É o que acontece? Nada. São inimigos e isto basta. A estrada está cheia de covas, todos os dias se parte qualquer peça nos carros. E então?
Os buracos continuam. As covas da estrada de Lohwinckel são imutáveis. A proibição de fumar que o seu pai fez aos rapazes, há vinte anos, subsiste. Já no meu tempo,
quiseram os do último ano fazer um protesto. E fizeram-no? Que ideia! O farmacêutico Behrendt tornará a . cumprimentá-la ? Duvido. A mulher do presidente, jrau Ohmann,
tornará a ir à modista que lhe estragou um vestido verde há oito anos ? Não. É o que lhe digo: aqui não acontece coisa nenhuma. Nada se mexe. Quando se olha para
a rua, à noite, fica-se surpreendido ao ver electricidade em vez de mechas de azeite...
com efeito, um candeeiro brilhava fora, à altura da janela do escritório. Estava todo riscado pela chuva. Elisabete gostou de olhar naquela direcção e de observar
a humidade cintilante que corria ao longo dos vidros. Não seguira bem a última parte do discurso irónico do Markus, começava a sentir uma certa sonolência e aquele
ronronar de sinos que anuncia a aproximação do sono nos seres delicados, fatigados e um tanto anémicos. Markus afastou-se do candeeiro e da miséria dessa gente de
Lohwinckel, para contemplar o rosto da Elisabete. Depois disse muito depressa, não sem tropeçar na primeira consoante:
-De... devíamos tornar a fazer um pouco de música, os dois.
- É verdade... - respondeu ela, ausente, sem tirar os olhos da luz.
-Hoje? A nossa sonata de Brahms? Se acabássemos de a decifrar?
-Hoje? Ah, não; é impossível,
- Porquê ?
- Porque... o doutor está enervado. Hoje não suportaria música. Houve um caso fatal...
Markus perguntou a si próprio porque motivo ela chamava sempre ao marido "o doutor, como se fosse ainda a enfermeira da creche do hospital de Schafíenburg. Ele imaginava,
às vezes, a vida conjugal dos Persenthein mas não chegava a nenhuma conclusão viável e sólida.
- Bem. Então renuncia-se à música, à sonata de Brahms e é pena. Era uma noite mesmo feita para isso. Chuvosa e um pouco melancólica. Quer algum livro? Ainda não
viu as revistas de Outubro. Começou um novo romance muito original...
- Oh, sim, ler!-exclamou Elisabete tirando, finalmente, os olhos do candeeiro e pousando-os no judeu.
- Mas não tenho tempo [-acrescentou logo-Ainda vou lavar a roupa, esta noite.
- Credo, parece de propósito. Cada vez que nos encontramos, tem roupa que precisa de lavar! Parece uma paixão...
- Não há dúvida... O doutor necessita de tanta roupa lá para a clientela e nós temos tão pouca! Por isso tenho de lavar quási todas as noites: toalhas grandes e
pequenas, batas e o resto. É assim mesmo. - E animou-se. A ideia da sonata e dos livros tornara-a lassa e nostálgica, mas agora via nitidamente a celha de madeira
com a roupa dentro; na sala de banho aspirava o aroma do sabão. Levantou-se logo.
-Tenho de me ir embora. - disse, levantando-se e pondo o chapéu que conservara na mão. Markus olhou com timidez para os cabelos castanhos que desapareceram sob o
feltro. O rosto de Elisabete possuía uma nitidez, um equilíbrio de linhas que o encantavam. E pensava que o doutor nem sequer conhecia a expressão do rosto da esposa.
"Tanto melhor" exclamou o seu ciúme enquanto ela pegava na saca das compras e lhe estendia a mão.
- Muito obrigada por tudo... e daqui a alguns dias,
quando os Raitzold pensarem na nossa conta...-balbuciou, confusa.
Markus também não estava à vontade:
- Por quem é... Então... Não se fala mais nisso. Venha por aqui, é melhor passar pelo corredor, o armazém está às escuras.
Ela passou à frente e desceu três degraus. Cheirava a cal fresca. Fora, a chuva parecia um estore japonês, de contas, fazendo barulho e saltando quando caía nas
poças.
-Meu Deus! - exclamou Elisabete, assustada, pensando no marido à chuva na motocicleta.
- Oiça... espere um instante. Quero mostrar-lhe uma coisa. - pediu Markus.
Reconhecida pelo pretexto para não partir ainda, ela deteve se.
- Sabe? Recebi uma carta magnífica. Ele respondeu me!
- Respondeu? Quem?
- Romain Rolland - replicou misteriosamente, tomando impulso para galgar o óbice das consoantes. Lembra-se ? Eu tinha lhe pedido um autógrafo. Ele mandou-mo, tenho
que lho mostrar.
- É possível? Romain Rolland ! -espantou-se ela também em voz de mistério.
Em pé, no sombrio corredor do armazém da mercearia, sentia que a chegada daquela carta ali, representava um acontecimento extraordinário, quási inacreditável. Apressada,
tornou a subir a escada, atrás de Markus, tropeçando nos degraus. O relógio da torre pteveniu-a lentamente que eram oito horas.
Quando Markus abriu a porta, ficou um instante imóvel.
- Desculpe, mãe.
Na sala de jantar cheirava a cera e a queque. Na mesa, estava uma toalha adamascada de prateados reflexos; em dois candelabros antigos ardiam velas. No centro da
mesa, numa travessa, havia um pão branco que dava a ideia duma trança grossa e entre ele e os candelabros estava aberto um livro com caracteres
hebraicos. Vestida de seda negra, a viúva Markus, sentada no lado mais estreito da mesa, murmurava cabalísticas palavras, inclinando-se ora para a direita ora para
a esquerda, estendendo as mãos por cima da chama das velas como num gesto de bênção-pareciam translúcidas com a palidez da velhice e as salientes veias azuis.
Tudo aquilo se afigurou estranho à Elisabete, mas, ao mesmo tempo, solene e íntimo. Sorriu, ignorante, através da fresta da porta entreaberta. Estava curiosa como
em face duma árvore de Natal iluminada, mas, de súbito, um olhar rápido e frio da velha que rezava, atingiu-a e, intimidada, disse a meia voz:
- Deixe lá... Mostrar-me-á a carta noutro dia. Boa noite. - Deu meia volta e desceu rapidamente.
- Tinha-me esquecido de que era sexta feira. - disse Markus, indeciso.
A velha, lá da sala de jantar, sem interromper a oração e os gestos, voltou o vivo e desconfiado olhar para o sussurro que vinha do outro lado da porta. Fez um gesto
ao filho para entrar. Caminhou para ela, beijou-lhe a mão estendida e aproximou-se do enrugado rosto. Fazendo isto, experimentava um sentimento de intimidade e desenraizamento
que nenhuma palavra poderia exprimir...
A rua estava completamente deserta, embora não tivesse chovido com abundância senão durante alguns minutos. Agora, a água espaihava-se em gotinhas pequenas.
Do outro lado, no "Cisne Branco", as salas já estavam iluminadas por trás das cortinas corridas; via-se fumo a sair do ventilador e em redor do candeeiro; ouvia-se
até a música da pequena orquestra. Elisabete, que trouxera da casa judia, a impressão duma estranha calma, teve desejo de ir à igreja. Encontrou aberta a porta lateral,
sob o claustro. A igreja encontrava se vazia; em face do altar da Virgem, as velas ardiam devagarinho. Tinha as mãos molhadas e geladas pela chuva a ponto de a água
benta da velha pia lhe parecer tépida.
Ajoelhou se, rezou o Padre-Nosso e a Avè-Maria enquanto os seus pensamentos se afastavam e se perdiam continuamente. "Contanto que o Kola..." murmurava.
Tinha medo sem saber de quê, desejava não sabia o quê, sentia a nostalgia ignorava de quê.
com dificuldade, rolava um automóvel pela estrada que vinha de Dusswald a Lohwinckel. Saíra de Berlim e dirigia-se para Baden-Baden. Mas a vinte e oito quilómetros
de Dusswald tinha topado com a tabuleta marcada com três discos que indicavam "caminho impedido e havia obedecido à flecha vermelha que mandava seguir pela estrada
de Dusswald. Depois de ter atravessado, sabe Deus como, o sonolento Dusswald, aproximava-se do não menos entorpecido Lohwinckel.
No auto, - um carro comprido, baixinho, aberto e carroçado em cinzento claro - estavam sentadas quatro pessoas. Ao volante, Peter Karbon excitado e derreado, com
as pestanas e as sobrancelhas cheias do pó claro, incolor, das estradas. Os cabelos ruivos, penteados para trás, com duas entradas grandes nas fontes, estavam polvilhados
de branco e agitavam se no ar vivo da rápida carreira. De resto, o proprietário e os pneus do carro usavam o mesmo nome. "Os pneus Karbon são os melhores" era um
reclamo muito divulgado que, em tabuletas encarnadas, aparecia em todas as passagens de nível, nos cruzamentos e nos postes indicadores. As oficinas de borracha,
de Karbon, eram uma das glórias da grande indústria alemã. Aquele Peter Karbon, de indeterminada idade mas que decerto tinha mais de quarenta anos, no seu casaco
cor de pó em pele de porco, dava uma impressão de força e parecia estar nu. Os animais no pasto têm, às vezes, esta aparência: cães sem coleira, cavalos sem arreios.
Em Peter isto provinha de o pescoço lhe sair do casaco sem colarinho, direito e vermelhusco como o dum índio e por ter levantado as mangas até aos cotovelos sem
ter medo
de expor ao frio os braços descobertos. A seu lado estava sentada Lcore Lania, a actriz, baixinha, delicada, mortalmente fatigada, tão cansada que, de momento a
momento, se tornava ainda mais pequena. Tinha um vestido que parecia ser um modelo reduzido do macaco de Peter; na cabeça uma boina feita em crochet com seda brilhante,
cor de laranja, cingindo-lhe estreitamente a cabeça e uns óculos enormes que constituíam tema de constante discussão entre ambos. Ele dizia que usar óculos, sem
precisar, era uma afectação de criança mimada ; desagradava-lhe que a Leore visse apenas bocados de paisagem e em tintas esbatidas e obscuras. E Leore replicava,
dizendo que ele era um grande comilão; dum só trago engulia tudo que via: vida, mundo, mulheres, coisas, animais, dinheiro, cores, batalhas, derrotas (sim, também
as decepções e o sofrimento lhe proporcionavam uma espécie de penetrante prazer) e sucesso. Era assim Peter Karbon. Sentia enorme rancor contra a Leore porque usava
óculos impedindo-o de lhe ver o rosto, porque os óculos lhe roubavam metade, dando lhe um aspecto de máscara.
-Estou feia? - perguntava ela, de quarto em quarto de hora.
Peter respondia, sincero:
- Horrivelmente feia, Pittyevitte.
A-propósito, é preciso dizer que Leore era considerada como uma das mais lindas mulheres do mundo, por causa da sua graciosidade de pássaro, do seu encanto real,
do fulgor da sua fisionomia em que se combinava o negro profundo e brilhante com a palidez doirada. Desde que Peter era seu amante, isto é, havia dezoito semanas
e quatro dias, brincavam chamando-se mutuamente Pitt e Pittyevitte.
Até aos vinte e quatro anos já lhe tinham dado toda a espécie de nomes pequeninos. Haviam-lhe chamado Bibi, como a uma preta, por causa do narizito de animal, de
largas narinas; Gata, devido ao génio rebelde e à sua fundamental infidelidade; Lálá, como a um bebé porque se metia, às vezes, dentro de si mesma, parecendo uma
criancita, chorando, rindo e brincando, tudo ao mesmo
tempo; Rack, nome inglês dum instrumento de tortura, o que nos dispensa de mais ampla explicação. Usava e tirava estes nomes como fazia com os vestidos e os papéis,
no teatro. Nunca se chegava a saber como ela era. Talvez lá no fundo existisse uma profunda e delicada fraqueza, coberta por furiosa ambição. Quanto aos óculos,
a Leore usava-os porque a fortíssima luz do stúdio lhe estragara os olhos; sofria disso, com frequência; as conjunti.vites irritadas queimavam-na e faziam na chorar,
chegando ao ponto de não a deixar dormir; o uso contínuo dum colírio de nitrato de prata fazia parte das angústias da sua vida privada. Mas antes morrer do que confessar
tal coisa. Todos os anos ia abaixo como um animal sob a carga, em plena tomada de vistas, com uma doença mortal de que nunca ninguém, até aí, suspeitara. Entretanto,
trabalhava uma média de quinze horas por dia, passava três a dormir e uma a chorar, entre as duas e as seis da manhã. No resto do tempo, fingia ser um brinquedo
agradável. Porque os brinquedos pagavam-se bem e, no cinema, as mulheres a valer não tinham grande cotação.
Karbon, que a conhecia melhor do que ela supunha, decidira-a a largar tudo durante dez dias para se restabelecer do último ataque: o monumental filme "Ruas Nocturnas"
e a hemorragia estomacal que se lhe seguira. E lá estava agora sentada ao lado do bem dis posto Pitt, na estrada de Dusswald, de profundos precipícios, lamentando-se
em voz baixa.
Atrás iam duas pessoas: o motorista Fobianke, um homem de cerra idade com bigode e dedicados olhos de polícia, que tinha um mapa desdobrado sobre os joelhos da sua
farda de tweed e que calculava a quantos quilómetros os forçara aquele imprevisto desvio. E também um rapaz com rosto de rapariga, espantado e gracioso. Era o boxer
Franz Albert, campeão alemão de pesos médios.
Mal atravessaram o piso mau e entraram no bom, Leore disse a Karbon :
- Anda mais depressa !
Ele, que ia devagar, obedeceu e deu mais gás. Mas só atingiu quarenta,
-Que tens tu? - perguntou ela, admirada.
- Olha para as sorveiras! - respondeu Pitt, respirando o aroma amargo e outoniço da estrada avermelhada, ao longo da qual pequenos tufos de arbustos se baloiçavam
como estandartes.
- Sorveiras ? Estou gelada. - lamentou-se Pittyevitte, esfregando o queixo na gola do pullover de lã. Karbon lançou-lhe um olhar de lado.
Inquieta, perguntou :
- Tenho o nariz vermelho ?
- Absolutamente. - confirmou ele, evitando uma vaca que se atravessara no caminho.
Do fundo do carro, Fobianke anunciou:
- Deve haver por aqui uma passagem de nível sem guarda.
Karbon piscou os olhos e aprovou com a cabeça. Custava a abranger a estrada com o olhar e tinha cuidado em não saltar muito nas covas para evitar que a Lcore ficasse
com dores de cabeça.
- Estou danada com este andamento de caracol! vociferou ela, em voz baixa.
- Então a Pitíyevitte está gelada ?
Karbon pôs o pé no acelerador e houve ainda mais frio. Agora saltava nas covas e a Leore ia ao ar, gritando constantemente.
- O Albert tem medo? - perguntou Karbon, sem virar a cabeça.
- O Albert está a dormir. - gritou Leore.
O caminho descia, iam em segunda e o motor fazia imenso barulho.
- Acorda o! - berrou Peter.
Leore voltou-se e sentiu o vento assobiando ao longo da sua face com uma resistência dura, rumorcjante e fresca. O Albert estava realmente a dormir, mas acordou
logo que ela o fixou e dedicou-lhe um sorriso absurdo. Leore também sorriu, contente como duma experiência que resulta bem. Gostava de realizar destas proezas, pelo
impulso da sua força magnética de mulher bonita. No caso de Albert havia, além disso, uma pequenina razão particular...
- Devemos estar a chegar ?
-Sim... sim... sim...-cantou Leore, como se embalasse crianças - O nosso menino pequeno quer ir para a caminha.
- Eu? Que ideia!-protestou preguiçosamente Albert enquanto os olhos se lhe fechavam. com o rosto virado para trás, a actriz observava, muito interessada, o espectáculo.
Albert tinha olhos azuis profundamente enterrados e pestanas pretas, de anormal comprimento. Era por ter as sobrancelhas tão espessas e longas mais por baixo dos
olhos do que por cima, que apresentava aquele aspecto evangélico de recém-nascido espantado. Mexia os ombros dentro do pull-over de lã cor de gato. Era duma leveza
e duma moleza inauditas em todos os gestos. A imprensa desportiva gabava sobretudo o seu directo esquerdo e o seu coração, o que é o termo profissional que serve
para indicar a resistência, a coragem e a insensibilidade à dor. Leore vira o lutar duas vezes e não podia lembrar-se da selvajaria combativa e fria, do desconhecido
rosto daquele rapazito que se transformava completamente quando estava no ring, sem sentir no fundo do coração uma vaga de calor. O facto de ele ser vigiado por
um manager tirânico que afastava todas as mulheres, decidira-a imediatamente a apoderar-se daquele ingénuo Albert que não tinha mais de vinte e um anos.
Entretanto, o automóvel saltava duma forma horrível, estremecendo nas mãos de Karbon. De repente, os travões guincharam e Leore caiu para a frente.
-É preciso eu...?-perguntou Fobianke, fazendo o involuntário gesto de pegar no volante. Mas o carro já estava parado, Karbon sorriu numa careta.
- É a passagem de nível, isto! -e designou, com o queixo, a estreita via, a meio metro do carro.
- Fizeste bem, Peter.- aprovou Pittyevitte, quando, no mesmo instante, a pequena locomotiva passou soprando muito, sob o som alarmante e atrasado duma campainha
de aviso, e com bastante velocidade.
- Tive medo.. - queixou-se baixinho, o Franz, lá de trás.
- Ês o nosso miúdo. Não é verdade que ele é o nosso miúdo, Pítt? - perguntou Leore, enquanto estendia para trás a mão.
Karbon atravessou prudentemente os rails e depois acelerou loucamente através a floresta que começava logo em seguida. Franz Albert, nesse meio tempo, observava,
com ar pensativo, a mão que se lhe oferecia, mas não sabia que havia de fazer-lhe. Depois de alguns segundos, Pittyevitte retirou o objecto supérfluo e meteu o na
quente algibeira do casaco de Karbon.
Ameaçador, ele disse:
-Se me fazes cócegas, vamos parar à valeta!
-Não estou a fazer-te cócegas; estou simplesmente a instalar-me. - replicou Leore, pacífica.
Fobianke tornou a dobrar o mapa.
- O sr. Karbon deseja que eu guie? Já fez trezentos quilómetros.
-Então? E depois?
- Julguei que podia estar cansado.
- Cansado, eu? Que ideia!
Fobianke ficou descontente. Não gostava de ouvir o patrão gabar-se da sua resistência. Ele - e era ele, Fobianke -sentia-se cansado depois de trezentos quilómetros
a fio. Quem tomasse o seu ofício a sério, evidentemente que se fatigaria neste caso. Além disso, ele percebia perfeitamente que o patrão já estava farto do volante.
Adivinhava-o no ruído do motor, nas curvas muito apertadas, em um não sei quê de inexprimível que se notava na marcha do carro. Desde que ali estavam aquela senhora
e o rapaz, Fobianke sentia certo mal-estar, como se andasse numa borga com mulheres duvidosas. Havia qualquer coisa entre os três - e Fobianke pressentia-o no andamento
nervoso do carro. Quando um homem experimentado como o sr. Karbon faz semelhante barulho ao mudar de velocidade é porque existe qualquer coisa que não corre bem.
- O que há mais? - gritou Leore, quando os travões tornaram a guinchar, o carro parou bruscamente e todos cairam para a frente.
- Olhai, meus filhos, o sol! - exclamou Karbon, sôbre-excitado, estendendo o braço para a direita.
Daquele lado, haviam cortado algumas árvores da floresta; numa largura de cerca de oito metros, a estreita estrada descia e via-se o fundo azulado que era talvez
a planície do Reno. A orla da floresta fulgia com o castanho dourado da folhagem das faias, a terra corria para o vale como cobre líquido e, para além, o sol resplandecia
com a pompa que, em geral, se vê apenas no mar. Era vermelho escuro, apresentando os raios regulares e tradicionais. Mas onde mergulhava no nevoeiro, estava deformado
em elipse mostrando todos os raios quebrados, ofuscantes, cintilantes e difusos, da luz. Karbon olhava, de boca aberta. Fez mais ainda: meteu em marcha atrás e recuou
alguns metros para ver melhor.
Leore olhou negligentemente para o espectáculo e, em seguida, observou com atenção Franz Albert que, lá atrás, tinha aberto os olhos. Os dois homens estavam iluminados
pelo esplendor do sol.
- Gosta?-perguntou ela.
- Sim, é bonito. - respondeu o rapaz.
Dispunha dum restrito vocabulário e, a falar, parecia-uma criança de dez anos - ela tinha que se contentar com isso. De repente, por qualquer razão, a actriz encolerizou
se e serviu-se da odiosa linguagem do palco:
- A gente está cheia de conhecer os teus famosos poentes. Deixa essas borracheiras e anda para a frente. Antes queria estar já em Baden-Baden do que ficar para aqui
de boca aberta...
Mas Peter parecia surdo e esperava, obstinado, a desaparição do sol - o que se deu daí a momentos - e que todo aquele vermelho subitamente se transformasse num verde
fresco e azulado. Nessa altura, demarrou bruscamente, de modo a faltar a respiração à Leore, a qual aguentou sem se queixar, embora começasse a não se sentir bem.
De esguelha, olhou para o concentrado perfil do amante, inclinado para o volante em atitude de corredor, com a testa iluminada pelo crepúsculo. Tinha uma coisa rara:
a boca duma beleza perfeita, como que composta por duas asas. "Não está mal", pensou
Leorc, mas logo franziu, com ironia, o lábio superior. Sabia muitas coisas acerca deste homem. Conhecia-o demais e havia muito tempo: dezoito semanas! com o seu
rosto de imperador romano, julgava-se importantíssimo. Resumiu as suas observações:
-Vocês fazem-me pena.-disse, na sua voz de rapariguita, onde vibravam sons roucos.
-O quê? An? Porquê? - perguntou ele.
- Vocês todos. Não prestam para nada. - concluiu Pittyevitte, englobando todos os homens nesta definitiva apreciação.
- Obrigado, muito obrigado. - murmurou ele, enquanto o carro, como doido, passava à frente da pequena estação de Lohwinckel-Dusswald.
- Havia ali um aviso ... - preveniu Fobianke.
Mas Karbon encolheu os ombros: já iam longe. A estrada tornava-se cada vez pior. Fobianke tornou a abrir o mapa e percorreu-o, acendendo a lâmpada de algibeira,
visto que uma espessa escuridão tombara sobre eles. Em seguida, começou a chover. As gotas riscavam os faróis. Franz Albert desapareceu logo por baixo do sobretudo
e Leore cobriu se também. Estava farta daquilo. Murmurou:
- Que horas são? Ainda vais andar muito tempo? Quem me dera estar em Berlim!
Estas exclamações, proferidas em ar de censura, vieram da gola de cabrito, erguida -mas mal se ouviram.
A estrada era inclinada e estavam numa subida tão grande que Karbon teve de a fazer em segunda e, por fim, praguejando baixo, em primeira. Não se tratava agora de
ir depressa.
-Deseja que suba a capota?-perguntou Fobianke, cada vez mais receoso,
- Não faltava mais nada. Isto nunca mais acaba. Eu estou abrigada.- declarou Leore.
Peter deteve-se. Quando chovia, procedia-se a determinados ritos. Fobianke vinha guiar. Pitt instalava-se no fundo do carro, a mulher deitava-se junto dele e estendia-se
a grande manta impermeável sobre o idílio,
- Olha, Pittyevitte, repara nas vinhas, -disse Karbon, que descera para trocar o lugar com Fobianke.
Também ela se descobriu. Espreguiçou-se mas não olhou. As urtigas, ao longo do caminho ridiculamente estreito, exalavam, sob a chuva, um aroma forte e amargo. Em
frente do carro, alongavam-se os raios fortes da luz crua que cegavam e mergulhavam o resto na escuridão. Leore enraiveceu-se contra aquela malvada noite e sentiu
se terrivelmente nostálgica de Berlim. E evocava: "Schwanecke... Eden-bar... o clube Vermelho e Branco... a piscina... a multidão perto do Jardim Zoológico ..."
- Queria dormir... - queixou-se, em tom de lamento, a Karbon, que desenferrujava as pernas andando dum lado para outro, tendo acabado por sentir uma certa rigidez
nas articulações dos joelhos.
- Anda, anãozinho.-disse logo. Havia ternura nestas palavras. Introduziu a mão na manga da Leore.- O rapaz vai para a frente, tem o para-brisas para o abrigar
- e ficou à espera que o lutador de soco compreendesse e se mexesse.
De repente, Leore soltou o braço e repeliu a mão de Peter.
- Não, fica tu à frente. Quero deitar-me ao lado de Franz. - declarou, resoluta.
O homem apertou os lábios. Pensou: "Não faças isso. Mas ficou mudo. Sentou-se ao lado de Fobianke que, imediatamente, pôs o carro em marcha, deixando os lá de trás
às voltas com a manta.
Não poderíamos dizer, assim sem mais nem menos, se a Leore Lania estava apaixonada pelo Franz; ela não experimentava sentimentos tão singelos, tudo se encontrava
sobreposto em camadas sucessivas, cintilando em inúmeras cores. Um único facto era certo: uma espécie de fome nervosa que dela se apoderara havia já algumas semanas
e que hoje a possuíra duma forma quási intolerável uma avidez de se aproximar de Franz, de lhe sentir o calor e o tórax a altear-se e baixar sob a disciplinada respiração,
o desejo de absorver qualquer coisa da bestialidade intacta daquele corpo e - se fosse possível - de
despertar o rosto, aquele rosto estranho, a fisionomia de combate. Deu um profundo suspiro quando, sob a manta, encostou a cara ao rugoso casaco do homem, firara
a boina e os óculos; agora estava preparada para repousar profundamente. Profundamente sim, embora tivesse a impressão de que na sua cabeleira negra e lisa iam brilhar
faíscas.
No que diz respeito ao campeão dos pesos médios, era decerto esta a situação mais delicada em que se vira desde que começara a sua carreira de box. Angustiado, pensava
no treinador, o gigantesco russo Simotzky, nas suas palavras, recomendações e pedidos; pensava em todo o mal que as mulheres fazem aos" boxers, nas grandes vedetas
que, dum momento para outro, tinham "amolecido" e que apenas podiam "encaixar", devido à existência desbragada que haviam levado. Contavam-se histórias tétricas,
a este respeito, nos centros de treino. Experimentava um medo horrível ao pensar que aquela mulherzita que ali estava em baixo ia mexer-se, arriscando-o a cometer
sabe-se lá que asneiras. Mas a Pittyevitte não se movia.
Estava sossegadamente deitada sob a manta a ouvir as gotas tombando cada vez com mais força. Na silenciosa imobilidade, espiava o que se passava no interior do rapaz.
Dir-se-ia que as suas rótulas vibravam levemente mas devia ser engano. Quando retinha a respiração, podia ouvir-lhe o coração batendo forte e regularmente. Não se
cansava de estar ali estendida, isso é que não!...
Entretanto, Fobianke atravessou prudentemente o estreito caminho entre as vinhas, depois seguiu por uma recta durante um quarto de minuto. A seguir, tudo acabou
em frente dum muro, com três metros de altura, que não tinha porta e cujo rebordo estava plantado com bocados de vidro.
Encontravam-se em face duma demonstrativa delimitação entre as propriedades do sr. Profet e as do sr- de Raitzold - os dois inimigos mortais. Mas como o chaujfeur
de Berlim ignorava esta importante circunstância da vida social de Lohwinckel, ficou bastante
perplexo perante o insensato fim de tão lamentável caminho. Só duma coisa havia a certeza: tinham-se enganado. O sr. Karbon concordou, de mau humor. Isto estava
de acordo com o resto da situação. Teve a impressão de ser ridículo ali à frente junto do motorista, enquanto os outros lá atrás se encontravam comodamente instalados.
Nem sequer podia pegar outra vez no volante porque o cedera a Fobianke e não queria dar contra-ordem. Estava, portanto, condenado a ficar ali sentado com as mãos
nas algibeiras. Os seus sentimentos mais vis obrigaram-no a prestar o ouvido ao silêncio que reinava no fundo do carro.
Quanto a Fobianke, não sentia o menor prazer em guiar. Lá ia engulindo algumas exclamações mais ou menos correctas. Dar a volta, nem pensar nisso, naquele caminho
estreito, cheio de fossos dum lado e de outro, com as urtigas e amoreiras muito compactas e pouco seguras. Era preciso descer o caminho íngreme em marcha atrás,
entre as vinhas. Até o próprio carro parecia contrariado, vibrando secretamente. Fobianke sentia-o no cotovelo. Prudentemente, lá foi até à estação. De vez em quando,
um solavanco deitava Leore para cima do rapaz que, de músculos crispados, estava imóvel, muito encolhido no seu canto. Na defensiva, esperava os acontecimentos.
Karbon tinha vontade de se voltar para ver o que se passava lá atrás mas não o fazia. Era uma coisa interdita mostrar ciúme. No entanto, dedicava-se a complicadas
reflexões afim de encontrar um meio de ridicularizar Pittyevitte e de se vingar duma forma atroz e contundente.
Por fim, atingiram o fundo do vale, a estação e o poste indicador. Fobianke tomou à esquerda entrando na estrada que levava a Lohwinckel e que só ali atravessava
a última parte do bosque de Dusswald.
-Nunca mais paramos ?-perguntou Franz Albert do fundo do carro.
O seu desespero dava a impressão de ser absolutamente sincero. Karbon riu-se. Conhecia o rapaz por se ter treinado com ele e estimava-o. Retomando confiança, pensou:
"O Franz está aflito". A chuva
diminuíra, cessara quási e apenas das árvores agitadas caíam algumas gotas.
Mais gás, Fobianke! - reclamou Karbon.
O motorista obedeceu, marcando o taquímetro oitenta, oitenta e cinco, mas o carro dir-se-ia que andava a nadar.
- Parece que caminhamos por cima de sabão preto, -rosnou Fobianke que olhava, em ar de censura, para a substância húmida do caminho onde serpenteava a marca das
rodas.
Leore mostrou a cabeça e perguntou:
- Estamos a brincar aos carroceis ?
Karbon não respondeu mas riu-se para dentro. A marcha veloz trazia-lhe tão vigorosamente o ar de encontro ao rosto que dir-se ia um tecido molhado e gelado. Karbon
lembrou-se duma circunstância da sua vida que se pôs a contar, sem mesmo ver se o ouviam.
- Isto faz-me lembrar uma história que me aconteceu em Durban, na África do Sul, no Natal. Julga-se que lá está sempre calor, naquela linda praia onde tudo é sport
e clubes e diversões. Pois bem, no ano passado, em Setembro, meti-me num táxi, um carro esquisito mais alto atrás do que à frente e que não era guiado por um preto
mas que...
De súbito, aconteceu qualquer coisa. com imensa força, o carro deitou-se para o lado. O segundo seguinte foi interminável.
- Maldição! - rugiu Fobianke.
Karbon ainda estendeu a mão para o volante afim de impedir qualquer coisa. Viu o capot gigantesco, todo preto, ir de encontro a uma árvore, tão violentamente iluminada
que até parecia branca. Teve a impressão de que aquilo durou um tempo infinito. Também Fobianke distinguiu nitidamente a casca que era a dum carvalho humedecido
pela chuva. O grito lá de trás e o choque foram simultâneos.
Depois tudo ficou silencioso. Apenas a chuva fazia ruído, filtrada pelas árvores.
A primeira pessoa que descobriu o desastre foi um rapaz pertencente ao Domínio que vinha à noite à estação, buscar as garrafas vazias, do leite. Teve um grande susto
mas portou-se com sensatez. Espicaçou o cavalo e daí a doze minutos estava no Domínio, pondo logo o sr. de Raitzold ao corrente do que vira. Não eram muito claras
as explicações que dava; na sua aflição, não ousara observar detalhadamente.
- Terá morrido alguém ? - perguntou o patrão, impaciente.
- com certeza, porque debaixo do carro saíam pernas metidas em calças.
- Então os homens estavam mortos ?
- com certeza, -gemeu o rapaz, convencido.-Com
toda a certeza.
- Mortos ? E como o constataste ?
- Estava tudo tão quieto e calado! Esta impressão amargurava-o.
- Estava tudo quieto... não se ouvia senão a
chuva...
- Tragam a carruagem, imediatamente. - ordenou o
sr. de Raitzold.
Depois dirigiu se para o salão da irmã. Não havia senão dois cavalos, na propriedade, e uma só carruagem estava transitável. Não precisava, por isso, de dar ordens
mais detalhadas.
A irmã, de pé em frente da escrevaninha alta, ao lado do armário das espingardas, estava a fazer contas. Era uma senhora de quarenta e dois anos mas que parecia
mais idosa, com um grande nariz e uma voz grave que dava certa impressão de grandeza e entusiasmo. Chamava-se Jacinta e, sob o vestido grosso, usava aquelas botas
altas que mereciam os reparos de Lohwinckel. Sobre a delicada escrevaninha de madeira embutida estavam colocados os pesados livros verdes da contabilidade
da propriedade. Tinham desaparafusado duas lâmpadas, das três que ornavam o lustre. A sala era grande, incrustara-se nela um antigo cheiro a tabaco e alguns lindos
móveis antigos encontravam-se ali entre as paredes estragadas e os objectos de uso diário, como testemunhos de decadência.
O sr. de Raitzold contou em breves palavras o que ocorria, enquanto trocava o roupão pelo casaco de caça. com gesto brusco, a irmã empurrou as folhas de contribuições,
inquietantes e emaranhadas, que estava a decifrar, e dirigiu-se para o telefone.
- O doutor foi a casa do Profet. vou chamá-lo. anunciou ela.
Imediatamente, os cantos das narinas e as fontes da calva testa do irmão estremeceram.
- Falar para casa do Profet ? Não faças isso. Da minha casa ninguém fala para essa gente!
A irmã olhou-o com ar pensativo e descontente. A vida corria cada vez pior na propriedade, por isso não era de admirar aquele grau de intolerância. No entanto, ousou
ainda dizer:
-Julguei que... havendo assim gente em perigo de vida...
- Ora, ora, ora ! Gente em perigo de vida ! Andam como doidos e depois acontecem-lhes destas. Pois então!... Já mandei vir a carruagem. Vê se falas com a mulher
do médico e ela o chamará. Eu trato do resto.
Em gesto maquinal, abriu o armário e tirou um revólver com que se armou. Desapareceu. ! Ficando só, a irmã colocou no cinzeiro o charuto de que ainda exalou alguns
fios de fumo azul e pôs-se a Indar dum lado para outro, em grandes passadas. Os pêsos do velho relógio tilintavam baixinho porque estava mal equilibrado, razão que
o impedia de regular bem. farou em frente dele e fitou-o com aquele mesmo olhar ausente e sonhador que o irmão tivera havia momentos. Tudo estava de acordo: que
o relógio não tivesse sido consertado, os impostos não pudessem pagar-se, se houvesse poucos cavalos para fazer o trabalho do campo e até as próprias vinhas se encontrassem
ameaçadas,
-tudo estava de acordo e até mesmo que o irmão ficasse cheio de raiva ao ouvir o nome de Profet. Tudo caía naquele salão tão familiar com um peso indefinível de
infelicidade e catástrofe.
Foi só um quarto de hora mais tarde que a sr.a de Raitzold se lembrou outra vez do desastre da estrada de Dusswald que esquecera no monótono turbilhão dos seus aborrecimentos.
Depois de ter dado alguns passos em redor da mesa e de ter hesitado alguns instantes, à janela, olhando para o pátio obscurecido pela chuva que, com as poças negras
apresentava deplorável aspecto, resolveu-se a telefonar para casa do Profet apesar da proibição formal do irmão. O funcionário da central telefónica, um certo sr.
Munk que estava encarregado de estabelecer as comunicações, ficou estupefacto por ter que ligar a propriedade Raitzold ao número 23.
Dez minutos antes, exalando o fumo da humidade e pleno de cansaço, aterrara lá o dr. Persenthein, raivosamente decidido a penetrar, desta vez, no mistério da doença
do rapaz mais novo da família Profet. Ainda estava nervoso, devido à penosa explicação que tivera com o sr. de Raitzold sobre o defunto Jacó Wirz e foi no auge do
mau humor que se encontrou com a sr.a Profet, compungida e ávida de palavras tranquilizadoras. Era uma senhora gorda e míope, de olhos inquietos. O seu rosto bondoso
apresentava uma expressão ansiosa - expressão que provinha unicamente dos esforços que fazia para encher com qualquer coisa a sua vida vazia. Não tinha preocupações
e gozava de esplêndida saúde, o que lhe parecia pouco distinto e até mesmo chocante. Não possuía talento nem paixão, não se podia agarrar a nenhuma aventura, tanto
exterior como interna. Tocava piano, devorava imensos romances, apoderava-se de todos os homens que encontrava nos livros. Viajava por terra e por mar; embora pequena
burguesa duma cidade de província, conhecia três continentes e quatro línguas, mas de toda a parte voltava a Lohwinckel com um vácuo interior que era mais vasto
do que o deserto de Gobi. Gostava de falar em voz baixa, lançava olhares significativos, envolvia-se na sua melancolia. Sentia-se
profundamente invejosa das pessoas infelizes, fazendo alusões a grandes provas de renúncia que efectuara no passado e ao seu desespero por estar casada com um homem
como Profet, o qual não se importava nada com tal atitude. Dava pancadinhas nas costas da mulher e considerava-a superior a si. Quanto a ele, era um homem simples
embora de fortuna, que vivia em boa harmonia com o mundo inteiro - excepto com o insuportável sr. de Ratzold, possesso de todos os demónios do orgulho - e que tentava
até dar-se bem com o dr. Persenthein, embora o não pudesse suportar.
Ninguém poderia dizer quando começara a grande hostilidade entre Profet e Raitzold, tão numerosas eram as versões que a tal respeito circulavam. Mas saltava aos
olhos que o médico já pregara algumas partidas ao importante e excelente sr. Profet: fizera-lhe cair em cima o inspector do trabalho, impusera-lhe uma dispendiosa
instalação de aspiradores de pó, diagnosticara como "intoxicação saturnina" todos os casos que até aí haviam sido considerados como gastrite e dava aos operários
períodos de convalescença duma duração realmente exagerada. Descobrira que a pressão arterial do sr. Profet não se portava bem e aconselhara-o a partir lenha e beber
menos vinho. Declarara que as alternativas de dores e acessos de melancolia da sr.a Profet eram puramente imaginários e provinham da sua idade crítica. E agora,
nem sequer chegava a saber porque motivo o rapazito, logo de manhã, aparecia com 40 de febre!
Quando o médico começou, naquela noite, a sua caminhada sobre ovos -era assim que chamava à visita a casa dos Profet- encontrou o doente na cama e ocupado a juntar
as peças dum modelo de avião. Era um bonito rapaz de doze anos, de olhos claros, nariz pequeno e arrebitado, cheio de sardas, ao qual um leve defeito de pronúncia
dava aspecto ainda mais pueril. Olhava para
o médico, de frente, com esperança e audácia. Persenthein conhecia este olhar. Era assim que os estudantes fitavam o professor quando meditavam alguma partida.
A mãe vestira uma bata branca, de enfermeira, e
andava nas pontas dos pés. Exausto, o médico ainda mais se enervava com aquelas maneiras.
- Temperatura das cinco horas ? -perguntou.
- Subiu ainda a 39,ó - cochichou a sr.a Profet.
- Hum... hum... - resmungou o médico que tinha na mão o pulso são e perfeitamente normal do pequeno.
- Bem. Deixa ver. - E começou a auscultá-lo. - O teu irmão? Foi para o futebol, an ? Julguei que o reitor tinha proibido... O quê? bom. Respira... Outra vez... Não
fales. Dói te aqui? Sim? E aqui? Não. Vê bem : não te dói aqui ? Ah, realmente...
O doutor ficou sentado em frente do corpo magro e moreno do rapaz despido, a reflectir. O ponto azul, provocado por um pontapé no futebol, começava já a mudar de
cor, estava amarelo-pálido - não significava coisa alguma. Era evidente que o rapaz estava bom. Mas como demónio provocava ele a febre ?
- vou pôr-te o termómetro. O miúdo enguliu em seco.
- Dói te, quando engoles?
- Não sei...
A mãe deu um grande suspiro. De chinelos, o sr. Profet entrou no quarto vizinho e perguntou em voz alta:
- Então, doutor, fez finalmente o seu diagnóstico ? Persenthein brincou uns instantes com o avião e
não respondeu. A sr.a Profet colocou um dedo nos lábios e disse em voz misteriosa como se se tratasse de qualquer conspiração trágica.
- Está com o termómetro.
O marido foi-se embora, arrastando os chinelos e dizendo:
- Sou melhor profeta que o senhor.
Tinha a felicidade de possuir um nome que lhe permitia repetir esta gracinha várias vezes ao dia. Era sempre grande o sucesso que lhe alcançava nas sessões do Conselho
Municipal ou nas da Caixa Económica.
Quando viu que a temperatura era 36, 6, o médico declarou:
- bom. Vejo que amanhã já podemos voltará aula.
O Paulozinho ficou logo com os olhos cheios de lágrimas. Não queria ir para a aula. Por isso se sacrificara a estar metido na cama e a comer sémola com leite três
vezes por dia. Estava ameaçado de apanhar urna sova porque se portara mal, denunciando os camaradas. Até o irmão mais velho o abandonara e também o Kolke, o seu
protector, que frequentava uma classe mais adiantada.
- Mas sinto-me tão doente! - murmurou, não precisando de mentir muito.
-Ah, rapaz, rapaz! - começou o doutor. Estava furioso mas fazia um esforço para falar no tom amigável que é habitual ao médico da casa.
- A gente vai ver o que significa essa febre tão esquisita..
Nessa altura, entrou o sr. Profet e chamou o ao telefone.
Mal o médico saiu, o rapaz, vendo-se só, pegou no termómetro e meteu o na chávena do chá quente. O mercúrio subiu por ali acima chegando a 43? o que pareceu demasiado
ao pseudo-enfermo. Apressou-se a agitá-lo, mas o mercúrio não quis descer. Por fim, tornou a pô-lo debaixo do braço e com cara dorida, esperou pelo que viria a acontecer.
Mas, desta vez, ninguém se preocupou mais com a extraordinária temperatura do Paulozinho. O dr. Persenthein, posto ao facto do que se passava pela irmã do sr. de
Raitzold, voltou ao quarto, pegou na pasta, parou, de rosto concentrado, tentando tomar as disposições necessárias. Embora tivesse feito a guerra, perdeu a cabeça
durante cinco minutos, pensando que um número desconhecido de agonizantes estava estendido não se sabia há quanto tempo, sob um carro virado. O sr. Profet que, dentro
dos seus limites, era um grande homem, voltou a si mais depressa. Já estava enfiando casaco de couro, chamando em altos gritos o chauffeiir Muller e ordenando que
tirassem o auto da garagem, e ainda Persenthein pensava em tudo que seria preciso levar para o local do desastre. Muito pálida, a Sr Profet, sentara-se a um canto
do quarto, cheia de
comoção e de reconhecimento ao pensar que, finalmente, acontecia alguma coisa extraordinária em Lohwinckel. Descobriu, de súbito, que o marido era um homem e que
o doutor tinha na testa um sulco fundo que nunca vira.
Em Lohwinckel, bastam dez minutos para que uma novidade seja conhecida. Os primeiros ciclistas já iam a caminho do local do desastre quando o motorista Muller pôs
o motor a aquecer em face da casa. Entretanto, o médico telefonou para a esposa:
- Uma seringa para injecções anti-tetânicas... eucodal. - ordenava ele, ouvindo de cada vez a resposta dela: "Já está".
- Estou disposta a receber os feridos em minha casa. - murmurou a sr.a Profet, em pé, atrás do médico, considerando-se uma heroína de romance.
- Cardiazol. Não há cardiazol em casa! - gritava o médico, ao telefone.
- Há, sim. - respondeu Elisabete - Fui ao Behrendt e comprei.
- Ah, muito bem.
- Queres que te acompanhe? - perguntou a voz do outro lado.
- Não, mas prepara tudo.
A correr, desceu atrás do sr. Profet. Nem .ele mesmo sabia o que a mulher devia preparar, sentia apenas que precisava dela e que era necessário que estivesse lá
a esperá-lo - o que, de resto, acontecia sempre.
O silêncio que assustara o criado do Domínio acolheu também o médico no local do desastre e o murmúrio da chuva na floresta de faias tornava-o ainda mais profundo.
Os faróis projectavam uma claridade angulosa na noite velada de sombra e o que mostravam tinha o seguinte aspecto:
O automóvel capotara e estava colocado metade na estrada metade na valeta. Além do vidro da frente que estava partido, não se viam mais estragos. Num tronco de árvore
aparecia, sentado, um rapaz com o rosto sujo
- era Franz Albert-que agitava muito os braços como se se defendesse de cordas invisíveis, e que gemia. O
sr_ de Raitzold, que chegara havia dez minutos, tentava socorrê-lo. A sua carruagem parara mais longe e o criado da propriedade tinha mão nos cavalos nervosos. Peter
Karbon estava sentado na erva, com as costas encostadas a uma árvore e a cabeça nos joelhos. Leore Lania encontrava-se estendida, de olhos cerrados; o sangue tornava-lhe
o rosto irreconhecível, e, de vez em quando, corria duma ferida por cima da boca. Também a boina que segurava na mão crispada estava encharcada de sangue.
-Ainda há alguém debaixo do carro ?-perguntou o médico.
Raitzold fez um sinal negativo. Ele e o sr. Profet haviam-se cumprimentado com a cortesia de dois homens que se vão bater em duelo.
-Eu não suporto isto... não posso!-gemia Franz Albert.
O médico ergueu os olhos num gesto rápido mas atento, depois abandonou-o provisoriamente ao sr. de Raitzold. Foi só nesse momento que viu o chauffeur Fobianke, estendido
no fosso, a cerca de oito metros do carro voltado, com uma perna dobrada junto ao corpo e o casaco aberto. Inclinou-se para ele e iluminou com a sua lâmpada de algibeira
um rosto absolutamente branco, mais branco do que uma folha de papel. Perguntou:
-Tem dores?
Fobianke respondeu delicadamente, em voz baixa :
- Não, obrigado. Isto agora vai melhor. -Abriu o casaco. Foi porque o incomodava? -
perguntou Persenthein, apalpando-lhe o tronco.
- Não?-respondeu o homem, mais interrogativo do que afirmativo.
"Hemorragia interna, hepatocele, provavelmente..." pensou o doutor. "Nada a fazer. A não ser que tentasse já uma transfusão de sangue. sim, mas falta-me o aparelho.
Trinta e dois marcos!" E deu ao chauffeur exangue uma injecção de cardiazol.
- Daqui a pouco sentir-se-á melhor. Vamos estendê-lo no carro. Ande, Muller, devagarinho...
No carro do Profet, o homem agradeceu, dizendo:
- Obrigado, estou melhor.
Já não respirava senáo muito superficialmente, com o diafragma contraído.
- Que fizeste? Foste parar à valeta, an? - perguntou Muller no dialecto da região. Fobianke olhou-o com surpresa e respondeu fracamente: - Não.
O sr. Profet já censurara o médico por ele ter começado pelo chauffeur e aproximara-se de Peter Karbon. -Está ferido? -perguntou estupidamente.
- Dizem que sim. - respondeu o outro, entre os dentes.
Tinha dores atrozes, estando impossibilitado de erguer o braço direito. Além disso, tudo andava à roda, parecia ir perder os sentidos.
- O carro é seu ? - perguntou ainda o Profet, mas não obteve resposta.
Karbon inclinara-se para o rosto de Leore, sem conseguir fazer parar o sangue que dele jorrava.
- É a senhora sua esposa? Eu vou já dizer ao médico ... É preciso que esta senhora... Não compreendo porque motivo foi ver o chauffeur... Depois hão-de vir comigo
no carro. - E apresentou-se: - Profet. Sou o proprietário da fábrica de Lohwinckel.
- Karbon. - murmurou o ferido, com esforço. O outro ouviu mas não ligou logo ao nome a celebridade que tinha. Voltou para o carro onde, atrás, haviam instalado Fobianke.
O médico dera-lhe uma injecção anti-tetânica. Ele estava calmamente sentado a olhar para a frente. Tudo correria às mil maravilhas, se não fossem aqueles farrapos
negros a passarem-lhe constantemente na frente dos olhos. Também lhe faltava o ar. Profet passou ao lado do sr. de Raitzold como se ele estivesse invisível e tocou
no ombro do médico, dizendo:
- Deve ocupar-se primeiro da senhora.
Um só olhar de Persenthein fez com que imediatamente se retirasse.
De súbito, Franz Albert encarrapitado na árvore, foi tomado por uma espécie de crise no momento em que o médico se dirigia para ele com a seringa. Os
seus gemidos haviam-se transformado em prolongados soluços e por fim desatou em gritos estridentes, como uma criancinha.
- Já não suporto mais isto! Não suporto mais isto! -- gritava sem parar.
Persenthein apalpou e estudou o jovem boxer que dava imenso trabalho ao sr. de Raitzold, perplexo. Era apenas um choque nervoso.
- Vamos levá-lo, os dois. - disse.
Mas Franz continuava a chorar com energia. Tinha um galo por cima do olho esquerdo, nada mais.
- Cale-se! - ordenou severamente o médico. - Vá sentar-se no carro, ande.
Embora continuasse a chorar e a lamentar-se, levantou-se e, sozinho, dirigiu-se para o carro de Profet.
Persenthein ocupou-se então de Karbon e da actriz, junto da qual se ajoelhou para ver melhor. Encheu pela terceira vez a agulha para a injecção anti-tetãnica. Karbon
disse em voz muito alta devido ao zumbido que tinha nos ouvidos:
- Está desmaiada mas respira.
De repente, Leore disse qualquer palavra que lhe saiu da boca ferida, difícil e indistintamente. Apesar de ter os olhos fechados, estava lúcida e atenta. O médico,
habituado a interpretar a linguagem intermitente dos grandes feridos e dos agonizantes, compreendeu :
- Não estou desmaiada! - sibilava ela sem pronunciar as consoantes labiais, mas em tom de teimosa negativa.
Estremeceu sob a picadela da agulha mas não se queixou. Quando sentiu perto de si o calor vivo e caritativo da cabeça do médico, confiou-lhe ao ouvido, num súbito
acesso de fraqueza:
- Estou a desfazer-me em sangue!
Era destes seres delicados e resistentes a quem toda a espécie de sofrimento parece humilhante, devendo ser escondido dos outros, dos que têm saúde. Estar deitada
numa estrada a desfazer-se em sangue representava para ela uma coisa ignominiosa. Já estava a tomar uma atitude hirta para guardar as aparências.
- Que tolice! - disse o médico. - Tem apenas um pequeno golpe que nós logo vamos coser. Pronto, acabou o sangue, viu? -e aplicou-lhe um pedaço de algodão para o
estancar.
Sentia-se seguro de si enquanto manejava os doentes, dominava tudo com o olhar, repartia as tarefas e agia. Mas faltava-lhe Elisabete, faltava-lhe de uma forma indescritível.
Quando era preciso, sabia ser uma esplêndida enfermeira. Praguejava interiormente por a não ter trazido e, ao mesmo tempo, sentia um reconforto por a saber em casa
preparando tudo para receber aquele carregamento de pessoas inválidas que lhe ia levar.
- Obrigada. - disse Leore Lania quando a boca lhe começou a arder sob a tintura de iodo; foi uma delicadeza que lhe custou muito a formular.
Ao ver que a rapariga se portava tão bem, Persenthein ficou irritado contra os ruidosos soluços do boxer. Dirigiu-se rapidamente para o carro, encheu a seringa e
administrou-lhe uma dose de eucodal no braço. ordenou :
- Silêncio!
O cbauffeur Muller acendera a luz interna do carro. Persenthein examinou rapidamente o rosto exangue do calmo Fobianke.
- Então como vai isso? - perguntou, em voz que queria tornar alegre.
- Bem, obrigado. Mas não feche a porta... ar...
- respondeu o homem com estranha violência. Logo em seguida mergulhou num espantado mutismo. Abria e fechava o casaco com os dedos cada vez mais entorpecidos e via
passar os tais farrapos negros que lhe metiam medo.
Dez minutos, apenas, tinham decorrido. De fora, parecia que tudo se desenrolava com rapidez, calma e segurança mas, na realidade, havia uma espécie de excitação
semelhante à embriaguez. Tudo estava molhado sob o ruído contínuo da chuva, fazia frio e sob a luz dos faróis pessoas e coisas escorriam água. Persenthein enchia
as seringas, lavava-as no álcool, dando injecções com um nítido sentimento de claridade nas ideias..
como se esquecidas experiências tivessem afluído por inúmeros canais, de tal maneira tudo se mostrava claro, sem dúvidas nem equívocos. Encontrava-se absolutamente
no seu elemento e talvez se parecesse outra vez com o São Jorge, embora ali não estivesse ninguém para dar por isso.
As duas outras pessoas que tinham saúde, compor tavam-se duma forma confusa e isto porque, na sua hostilidade, se preocupavam em delimitar nitidamente os seus respectivos
domínios de actividade. Depois de Franz ter adormecido, o sr. de Raitzold tratou do automóvel que estava no fosso, incitando o seu cocheiro e o rapaz a virarem-no,
o que não conseguiram. com as pernas abertas, na sua atitude de antigo oficial, dava ordens breves. Foi só quando o motorista Muller se juntou aos dois que houve
esperança de se conseguir alguma coisa.
Entretanto, o sr. Profet aproximara-se outra vez de Karbon. Era um homem prestável e bastante enérgico mas não podia ver sangue. Logo no primeiro instante se sentira
mal. Não ajudava ninguém; preferia nem ver. Tinha a impressão de, ao mesmo tempo, desempenhar um papel muito importante e assaz fictício. Espantava-se com a calma
segurança aparentada pelo médico nos cuidados distribuídos a todos, mas não podia expulsar a ideia de que talvez aquilo tudo não fosse o que deveria fazer-se.
- Ande, ajude-me a levar a mulher para a carruagem de Raitzold. - ordenou Persenthein - Doutra forma, não poderei auscultar convenientemente o homem.
Tudo naquela frase irritava o industrial: que chamasse mulher àquela senhora e homem ao cavalheiro e sobretudo que a senhora fosse para a carruagem do Raitzold.
- E porque não há-de ela ir para o meu carro ?- perguntou, recalcitrante.
- Porque já lá está o chauffeur.
E guardou para ele o argumento decisivo: Se o homem morresse pelo caminho, era melhor que a mulher lá não estivesse .
Pegou em Leore e conduziu o leve corpo até ao velho caleche do fidalgo gentil homem que já lá estava e que declarou em voz alta:
- vou levar esta senhora para minha casa.
Esta chicotada bateu em cheio no Profet, que ficara para trás, resmungando:
- Vá primeiro pela minha, preciso de lhe fazer uns pontos naturais. Vá já. O carro apanhá-lo-á.
O sr. de Raitzold instalou-se no banco de trás, o cocheiro tirou as mantas aos cavalos e levantou se um bafo húmido.
- Desejo, minha senhora, que esteja à sua vontade. - disse Raitzold, ressuscitando os desaparecidos gestos de homem de sociedade que se haviam perdido nos seus campos.
A actriz, que sentia a queimadura da carne cortada, encheu-se de coragem para fazer um gesto gentil:
- Até já. - e agitou e mão como uma estrela que era. Teria mesmo sorrido, se o rosto cortado e cheio de emplastros não lhe impedisse essa manifestação de cortesia.
A carruagem partiu aos solavancos. Aquilo doia-lhe horrivelmente.
"Um golpe em pleno rosto. Cosido por um ignorado médico de aldeia!" -pensava ela.- "Se ele me estraga a cara, se qualquer coisa importante foi cortada músculo ou
nervo - se fico feia, mato-me!" Este pensamento deu-lhe uma angústia terrível, muda e recalcada
- como invocam o suicídio aqueles que o fazem a sério.
Os primeiros ciclistas de Obanger, Lohwinckel e Dusswald tinham chegado; formavam um confuso círculo em redor do sitio do desastre, segredando e olhando. Novas luzes
avançavam sem cessar, na estrada, e cruzavam-se com a caleche que caminhava com prudência, sem deixar de ser brutalmente sacudida pela calçada rude.
- Até que finalmente me vou ocupar de si. - disse Persenthein a Karbon. Logo no primeiro golpe de vista reconhecera que o homem era sofredor e sólido e que podia
esperar. Realmente, Karbon conseguira levantar-se; tinha as pernas afastadas e cambaleava um pouco.
- Tenho tempo. - disse ele. - Trate dos outros. Algum caso desesperado ?
-Hum... E você? Deitou sangue pelo nariz? -Um pouco...-confessou Peter Karbon, como que desculpando-se.
- Ponha-se nas pontas dos pés.
Obedeceu, caiu para a frente e foi amparado pelo médico.
-Ah!-e aproximou a seringa.
- Nada de morfina, peço-lhe! Embrutecido já eu estou.
- Não é morfina. É soro. Profilaxia anti-tetânica resmungou Persenthein enquanto lhe instilava a dose no braço.
Trouxera dos lazaretos um medo exagerado do espasmo tetânico.
- Então estou ferido ? -perguntou Karbon, baixando o olhar ao longo do corpo, o que lhe provocou outra vez as vertigens. - Parece-me que o braço está partido, mas
haverá mais alguma coisa ?
O médico sentou-o na relva.
- O rosto tem umas arranhaduras e a mão também. Mas não encontrou fractura nenhuma. Karbon
assobiava enquanto as mãos do doutor procuravam e faziam doer. Tentava pensar noutra coisa, noutras pessoas. E perguntou:
-O que aconteceu à Lania?
Persenthein tranqúilizou-o. Ele tinha apenas uma escoriação na articulação do ombro. E depois deu atenção à pergunta:
- A quem?
- À Lania, a rapariga, a actriz. - explicou Karbon. Só depois pensou que Lania não teria, naquela terra afastada do mundo, o mesmo sentido que lá.
- Ah! É actriz aquela senhora? Pois tem um golpe na cara, no lábio superior. Logo vou coser-lho. E mais nada. Quanto a si, pouco temos a fazer. Tornamos a pôr-lhe
o ombro no seu lugar. Agora o seu chauffeur, coitado, é que...
O doutor encaixou o seu ombro no ombro
intacto de Peter Karbon. Eram ambos da mesma altura; Persenthein mais largo e o outro mais esguio e elegante. Mas agora cambaleava, o que o enraivecia.
O médico escorria chuva por todos os lados - e suor também. O último quarto de hora fora realmente muito sobrecarregado. O círculo obscuro dos habitantes de Lohwinckel
apertou-se mais quando Persenthein conduziu o seu último doente para o carro. Os que estavam na segunda fila punham-se nos bicos dos pés: que demónio! não se podia
gozar todos os dias um espectáculo daqueles! Muller que formara uma pequena equipa com operários da fábrica, para virar o carro, acorreu. O sr. Profet, farto de
esperar debaixo de água, danado por a senhora ter ido na carruagem de Raitzold, já se sentara no carro. Respirava-se ali mal. O boxer, no assento da frente, tombara
para diante, adormecido pelo eucodal. Fobianke, mudo e com os olhos muito abertos, estava sentado atrás e aspirava o ar com leve tremura dos lábios que, de tão exangues
que estavam, pareciam brancos sob o bigode preto.
O médico dispôs os lugares:
- O sr. Profet vai à frente com o Muller.
Em face dos habitantes de Lohwinckel, o ricaço obedeceu. Para disfarçar, deu várias ordens ao motorista, e indicou alguns operários para irem buscar um carro afim
de rebocarem o auto avariado. O círculo dos ciclistas abriu-se em silêncio quando Muller, com todas as precauções, pôs o carro em marcha.
- Já lá estão dentro dois mortos, - disse um homem de capa de borracha.
- E o mesmo acontecerá aos outros. - declarou o rapaz do talho, Seyfried.
Persenthein instalara Karbon junto do rapaz adormecido e sentara-se ao pé de Fobianke, a quem vigiava o pulso, cada vez mais fraco.
- Então não se sente bem, Fobianke ? - perguntou Karbon sem se voltar, porque não o poderia fazer sem ter vertigens.
Ouviu o homem responder baixinho:
- Estou... estou bem, se... senhor Karbon.
Depois pensou em Lania. Tem graça: pensava nela como numa mulher estranha. Não era a Pittyevitte mas uma a mulher que se via nos cartazes e cuja imagem, singularmente
aumentada e simplificada, cintilava à noite por cima das entradas dos cinemas, em Berlim.
- Cortada ? - perguntou. - Mas vale milhões !
- O quê ?
- A cara dela. Milhões. E não há-de ser fácil de consertar.
Persenthein pressentiu uma febril desconfiança nesta frase. E como um pano preto, sentiu abater-se sobre ele imensa fadiga. Momentos antes tivera a certeza triunfante
da clareza do seu espírito e do rigoroso funcionamento das suas faculdades; agora, sentia medo. Quem sabe se era falso tudo o que fizera ?! Não deveria ter logo
mandado o homem, a toda a pressa, para Schaffenburg? Verdade seja que se não enganara diagnosticando um rasgão no fígado. Schroeder nada poderia fazer, também. Mas
se fosse outra coisa ? E a mulher ? Um lábio cortado era terrivelmente difícil de coser! Evocou a página do Manual de Cirurgia de Wullstein-Wilm onde aquele caso
era tratado. Se o vermelho dos lábios não ficasse soldado sem a deslocação dum só milímetro -adeus beleza! "Isto não é comigo; eu não sou dermatólogo!" desculpou-se,
furioso. Estava cansado, oh! como se sentia fatigado! Trabalhara durante o dia inteiro e haviam-no chamado na noite anterior. A história da morte do Wirz parecia
estar longe, em sonhos, de tal modo aquele dia de trabalho fora longo! E agora, ainda tinha que operar! "Elisabete!" pensou, não evocando a mulher, mas o candeeiro,
o ar da casa, o café forte e negro que ela lhe preparava. Avidamente, pegou num charuto e mordeu a ponta.
- Mas isto que é? Abram a janela! - exclamou violentamente Fobianke, antes de o doutor ter acendido o charuto, o qual caiu no chão. Persenthein tomou-lhe outra vez
o pulso: quási que se não sentia. Colocou rapidamente o estetoscópio no coração adormecido.
O interior do carro cheirava a couro molhado, a estrada, suor, metal. Tinham apagado a luz porque era
preciso poupar a bateria. Karbon que, mesmo desmaiado era capaz de manusear fosse que carro fosse, procurou o comutador e com a mão esquerda, sã, acendeu-o. Inclinou-se
para Franz Albert que dormia, e deu volta à manivela da porta para fazer descer o vidro. Fora estava escuro, uma negrura riscada de chuva. Dentro, os homens encharcados
de água e transpiração, sujos, cheios de contusões, manchas e nódoas de sangue ofereciam um espectáculo bastante aflitivo.
- Que porcaria! - exclamou Karbon, fazendo um esforço raivoso para se rir.
Fobianke tornava a deitar o carro para cima da árvore, a mulher também ali estava e havia umas coisas negras que não deixavam de correr pela estrada, dum lado para
outro.
- Abram a janela. - pediu ele - Que diabo! Abram-me essa janela!
O médico ajudou-o duas vezes a respirar fundo, o que lhe deu a ilusão de vir a ter sempre ar. Aspirou depressa, violentamente, desesperadamente, depois expirou com
lentidão. O pulso estava imperceptível mas ele vivia ainda. Depois, a cabeça rolou mais para baixo e apoiou-se no peito do médico. Reinou silêncio, no carro.
- Mas a janela está aberta, Fobianke. - disse Peter Karbon que se sentia mal, em tom consolador, ao seu chaujjeur morto.
Chegavam a Lohwinckel. Sob o São Jorge do Angermann, cintilava uma das cento e oitenta e quatro lâmpadas eléctricas da terra. A casa do Angermann estremeceu, quando
entraram o portão. com as suas pequenas lanternas, os ciclistas rodeavam o carro que avançava lentamente, lembrando um enxame de pirilampos através da noite de Outubro,
rasgada de nuvens.
Não é pelo facto de as grandes cidades importantes, Berlim, Paris, Londres, conhecerem um nome, que é
indiscutível a sua celebridade. A glória só começa quando, em cada aldeola, se sabe de quem se trata. Os cartazes, os filmes, as conferências radiofónicas, as revistas,
são os arautos que tocam as trombetas da fama até que os seus protegidos sejam conhecidos em toda a parte.
Ora, eram celebridades desta espécie que - com ferimentos de pouca gravidade - tinham encontrado abrigo em Lohwinckel. Leore Lania era conhecida por toda a gente
que frequentava o cinema que o audacioso dono do "Cisne Branco" organizava à quarta feira e ao sábado, na sua hospedaria. Toda a gente lá ia, excepto os alunos do
liceu a quem o reitor, hostil à arte do écran, terminantemente o proibia. Quanto ao cartaz do pneu Karbon todos os dias era contemplado: lá estava, azul e amarelo,
junto da bomba de gasolina, na estação de serviço instalada pelo carroceiro Torbiss. O nome de Franz Albert andava na boca de toda a rapaziada e os velhos lembravam-se
de ter lido nos Jornais, com uma espécie de repugnância íntima, que um certo boxer saído não se sabia donde, no seu regresso da América fora ovacionado duma forma
escandalosa.
Os habitantes de Lohwinckel estremeciam com a agradável mistura de orgulho e terror que, em geral, acompanha as catástrofes, ao saber que, na sua terra, se dera
um desastre importante. Mas quando, na manhã seguinte, tiveram conhecimento de quais eram as celebridades que esta circunstância trouxera a Lohwinckel, a pequena
cidade ficou efervescente. Nos principais locais encontravam-se grupos de cidadãos excitados e curiosos: no cabeleireiro Kuhammer, no carniceiro Seyfried, no judeu
Markus. O farmacêutico Behrendt convocou no "Cisne Branco" uma assembleia extraordinária da Sociedade União e Fraternidade porque adivinhou que os seus consócios
sentiam a necessidade de se informar mutuamente acerca do ocorrido. O liceu mostrava-se febril, de alto a baixo; os rapazes não cessavam de fazer bolinhas de papel
que eram lançadas através as aulas com as fundas e eram estridentes os urros do recreio no pátio: tinham qualquer coisa de inquietante e explosivo. Toda a gente
andava na rua, falava se às esquinas e havia patrulhas em
face das casas onde se encontravam os feridos. Também havia pessoas pacientes, como a costureira Ritting, da rua das Águas, o pequeno sapateiro Haberlandt, de oitenta
e quatro anos, não falando no inválido da guerra, o cego Munter, que estacionavam durante horas em frente daquelas casas, entregues a um bizarro sentimento: à espera
que acontecesse qualquer coisa absolutamente excepcional. A sr.a Profet a quem haviam confiado o jogador de soco, mal chegava à janela, de manhã, logo via uma data
de gente sentada nos muros do seu jardim. Embora o Franz Albert não apresentasse senão uma pequena nódoa negra ao lado do nariz - o que não era decerto a primeira
na sua vida profissional - e, já calmo, desse prova dum apetite devorador, inteiramente entregue à deglutição do seu pequeno almoço, a sr.a Profet não tirava lá
por isso a sua solene bata de enfermeira, nem deixava de velar pelo seu doente, com gestos de anjo-da-guarda e palpitações de coração.
Leore Lania fora conquistada pelo sr. de Raitzold que a trouxera como um trofeu - atitude vitoriosa que tomara para desafiar o inimigo e em seguida a uma grotesca
discussão que se entabolara respeitante à distribuição dos sinistrados e que tivera lugar no vestíbulo, às escuras, enquanto o médico cosia o lábio fendido da actriz.
Esta insignificante mas delicada operação fora ocultamente tumultuosa. Depois de Elisabete ter lavado o rosto da actriz apresentou o ao marido, em toda a sua palidez
e no encanto do puro modelado. O doutor mergulhou então num abismo de angústia e incerteza. Leore não aparentava ter medo, não se queixando nem tremendo. Estava
silenciosa. Apenas participara -numa voz baixa e rouca como a da Avela - que preferia morrer a ficar desfigurada. Depois estendera se e recebera serenamente as primeiras
e dolorosas injecções de novocaina. Não se queixou, apesar de notar que o doutor não manejava, com precisão, a seringa.
Ele sentira a solenidade da frase de Lania e Elisabete, que estava ao lado do esterilizador compreendeu que a beleza do seu rosto era tudo para a actriz. com um
olhar animador e nervoso, fitou o
marido, que estava à espera de ver a ferida ser atingida pela frigidez da anestesia local. Cobrira
o rosto de Lania com toalhas brancas, deixando apenas à vista o campo operatório, depois de ter lançado um derradeiro olhar inquieto sobre o oval fino e hindu sobre
a delicadeza perfeita das feições. Queria fazer tudo o melhor possivel e pediu as agulhas rnais finas, esquecendo que a pele dos lábios é particularmente dura e
resistente. Não serviram. Foi preciso ferver outras. Para prolongar a anestesia, foi preciso dar outras injecções e a Elisabete, que enfiava as agulhas, dava as
pinças e os lápis de nitrato de prata, tremia tão violentamente que Lania deu por isso.
E pensou, trocista: "Quem devia tremer era eu." Aquilo parecia-lhe insensatamente burlesco, ver-se ali estendida, entregue a um barbeiro de aldeia, aflitíssimo,
sem saber o que fazia. Quando a operação terminou, levantou se coberta de ligaduras. Sentia por tudo aquilo um ódio profundo. A mulher do médico tinha cara de camponesa,
desprendia-se da bata dele um horrível cheiro a sabão, sentia que se aproximava mais do que era. preciso e cada ruído, cada gesto lhe dilaceravam os nervos. Quando
a senhora Persenthein a convidou a dormir na sua própria cama, ela recusou com uma denegação de cabeça, tão violenta, que equivalia a uma ofensa.
Aflita e intimidada, Elisabete retirou logo o convite e confiou a actriz a Jacirita de Raitzold que viera da quinta, com as botas e na bicicleta. Num estranho acesso
de confiança, Leore Lania entregou-se às mãos grandes, à voz baixa e ao cheiro viril a couro, tabaco e terra que da solteirona emanava.
Foi por isso que Peter Karbon, cujo ombro deslocado foi o último a ser visto, ficou na casa do Angermann. Pela uma da manhã, arrepiado e exausto, encontrou um doce
abrigo na cama de Elisabete. Com o cérebro agitado pela vertigem, olhou ainda fixamente para os desenhos estranhos do teto, sentiu os pés descerem em leve declive
e, cheio de gratidão, bebeu algumas colheritas de leite quente e açucarado, cujo gosto a infância lhe humedeceu a garganta seca e cortou uma
tremura nervosa. Viu ainda uma esguia mão tranquila escorregar por cima do seu coração, depois tombou na escuridão dum profundo sono de veronal.
O doutor, que até então se mantivera bem, graças a pastilhas de cola, de cafeína e a um tónico com base de cstriquinina e que sentia agora estalar os nervos, também
tomou um comprimido de veronal e estendeu-se no sofá de oleado do seu consultório.
Quanto a Elisabete, vagueou pela casa, com gestos de sonâmbula, até que se decidiu a ir buscar a grande poltrona da sala, colocando-a entre o seu quarto e o da Avelã.
Dormia tão superficialmente que não cessava de ouvir respirar nos dois quartos: a respiração leve e breve da filha e o prolongado e irregular sopro do doente que
fizera deitar na sua cama. Levantou-se muitas vezes de noite, e foi vê-lo. A pequena chama da lamparina vogava no azeite amarelo; era uma ilha de luz perdida na
noite inquietante e bizarra. Da primeira vez, Elisabete ficou muito tempo inclinada sobre o homem, a observá-lo. Parecia alvoroçado no sono, com rugas sob os cabelos
ruivos, que caíam sobre a testa e as fontes. Da segunda vez, subiu-lhe a roupa que ele afastara em gesto agitado, e da terceira, acariciou lhe levemente o braço
azulado e um pouco inchado que parecia fazê-lo sofrer. Murmurou qualquer coisa através dum nevoeiro de veronal, pegou na mão de Elisabete e colocou-a entre a almofada
e a sua face. A lamparina empalideceu e apagou-se. com expressão atenta, ela sorriu desse gesto inconsciente e confiante, deixou a mão naquele calor até ficar entorpecida
e depois tirou-a com precaução. Em passo leve, voltou para a sua poltrona. Adormeceu outra vez, embora a madrugada já começasse a transparecer e, desta vez, teve
um antigo sonho da sua meninice: levava um cesto de laranjas mas muito leves - aqueles frutos doirados nada tinham de comum com as laranjas da loja do Markus - e
entrava na paisagem que estava pendurada por cima da sua cama e que representava o golfo de Nápoles. O facto de estar o Markus a tocar a sonata de Brahms em lá menor
perturbava um pouco a qualidade alada do sonho. Finalmente, soaram os sinos da igreja e, então, tudo se tornou pesado. Elisabete despertou e o sábado começou.
Acordar Kola, acordar Lungaus, acender o lume, preparar o pequeno almoço: café para Kola, porrtdge para Lungaus, compota de maçãs para a Avelã. A mulher a dias estava
atrasada e Elisabete já tremia de cansaço quando começou a inquietar-se com o hóspede que acordara e fora visitado pelo médico.
O homem que estava sentado na sua cama não era o mesmo que ela ameigara de noite. Era um estranho um tanto inquietante.
- Mas que coisa tão esquisita que me vestiram ! disse ele, olhando-a severamente.
Já podia mover o braço, embora sofresse surpreendido, olhava atentamente para a bainha azul da manga que representava uma espécie de hera em miniatura. Intimidada,
Elisabete explicou:
- Ontem à noite, pus-lhe uma camisa de noite, do meu marido.
-Ah, isso sim!-disse Peter, que deitou um olhar maquinal para a outra cama vazia. Depois calou-se, quási embaraçado. Achava-se pouco à-vontade assim metido numa
camisa de noite com bainha azul. Pelo seu lado, Elisabete, que nunca ouvira falar em pijamas de seda senão nos romances, não percebia nada do que se passava. Colocou
o tabuleiro do pequeno almoço em equilíbrio sobre os joelhos de Karbon e vigiou a refeição. Tinha o avental novo, azul, estampado de joaninhas vermelhas e demorara-se
em frente do aparador para escolher, em atenção ao hóspede, uma das lindas chávenas doiradas. Karbon - os homens são assim !... - não prestou a mínima atenção à
chávena mas notou o avental e espreguiçou-se com ar satisfeito por baixo daquele lençol estranho.
-Está melhor?-perguntou Elisabete, com timidez, erguendo, num gesto maquinal, os cabelos para trás da orelha. Sem pensar, Karbon seguiu a mão e viu o reflexo dos
cabelos.
-Estou lindamente!-respondeu, estendendo-se
muito à-vontade sob a colcha. - O crânio funciona outra vez e o braço começa a reagir.
- Sim. Não foi verdadeiramente uma comoção cerebral, segundo disse o médico. E o ombro está bem encaixado, daqui a uns dias já não sentirá nada. Ontem doeu-lhe muito?
- Apre! Doeu-me a valer. O doutor parecia que estava a manusear um canibal. Palavra que vontade não me faltou de lhe dar um destes pontapés!
Elisabete conteve uma breve risada.
- Ele tem muito orgulho na maneira como trata estes casos. é um truque clássico que lhe ensinou um velho médico de aldeia.
- Ah! Ah ! - replicou Peter, com cepticismo.
Tinha a impressão de ter caído numa terra de selvagens. Ela pegou no tabuleiro e foi-se embora, o que o homem constatou com certa pena. Em compensação, apareceu
à porta uma pequenita e começou a olhá-lo atentamente, o que não estranhou, pois sabia que os filhos dos indígenas são sempre curiosos.
- bom dia. Deixas-me ver a tua ligadura ? - perguntou a Avelã, obedecendo à sua paixão por tudo que era cirúrgico. Também ela trazia uma ferida nos braços, a boneca
guarnecida de numerosos emplastros de leucoplasma.
- Acho que não tenho. - disse Peter e olhou para os cabelos da criança que brilhavam como haviam brilhado, há pouco, sob o pálido sol da manhã, os da mulher do médico.
com efeito, até os golpes das mãos estavam à vista, porque o doutor, fiel às suas manias, não gostava de esconder os ferimentos. Se o deixassem, poria os doentes
ao sol e .iconselhá-los-ia a lamber as chagas, como fazem os cães e os gatos.
- É pena. - declarou a Avelã, aproximando se. - O Kola diz que eu é que te devo tratar até que ele volte.
- Muito obrigado, minha menina. Quem é o Kola ? -É o médico, pois quem há de ser?-e apoiou os
joelhos na beira da cama, embora soubesse que não é permitido tal gesto quando se visitam doentes.
- Ah, sim. E tu quem és ?
- Sou a Avelã. Conheces a mamã, não ? Kola é o filho da mamã. - Era desta maneira que ela compreendia
o parentesco lá na casa, por isso assim o explicava.
- Então o médico é teu irmão ?
-Mas que tolo que tu és! Kola é o meu papá. Posso tratar de ti? -E pôs termo às perguntas.
Peter Karbon reflectiu um pouco sobre este último esclarecimento.
-Então têm todos a mesma... uma só mamã?
Teve, de repente, uma ideia muito nítida acerca daquela senhora doutora com avental de cozinheira, de cabelos cor de mel deitados para trás e da longa mão que lhe
afagara o coração quando ele se sentira mal.
- Sim, Lungaus também tem a minha mamã. - declarou a pequenita.
- Quem é mais esse Lungaus?
- É o velho lá de cima, das águas furtadas, - E depois, impaciente : - Mas afinal queres que trate de ti ou não?
Peter Karbon estendeu-se cordialmente.
-Bem. Podes tratar-me. - disse, curioso, a ver o que sairia dali.
A Avelã foi até ao lavatório e ensaboou as mãos com uma expressão séria e convencida; voltou para junto do leito, arranjou bem a roupa e as almofadas, pegou na grande
mão morena, de Peter, e, de sobrancelhas carregadas, ficou atenta ao pulso. Depois, sentou-se na beira do leito e, com as mãos indiscutivelmente limpas, começou
a afastar as madeixas do cabelo do doente, que lhe caíam na testa. Ele, nenhuma objecção fez ao tratamento. Também não tornara a receber carícias assim tão engraçadas,
desde que o seu pequeno Makako morrera de tísica e de tristeza europeia.
- Isto faz-me pensar numa aldeia do sertão, Beni-Sanka. - disse ele a Elisabete que aparecera à porta -Encontrei-me lá completamente em baixo, cheio de febre. Tinha
penetrado longe, no interior, onde, em geral, os europeus não chegam. Fui tratado por uma adorável mulherzinha de doze anos, que tinha dois filhos, uma criatura
deliciosa...
Esta narrativa consternou Elisabete, a ponto de a imobilizar no quadro da porta. Só lhe faltava ver isto: um cavalheiro deitado na sua cama de nogueira com bolas
de cobre, a falar livremente de coisas passadas na índia! Aproximou se timidamente da cama, reflectiu um momento e resumiu os seus pensamentos nesta pergunta:
- A sr.a D. Lania é talvez de origem hindu ? -ALania? Que ideia! Porque julga isso?
- Não sei... Mas acho que ela tem um tipo tão... exótico!
- Exótico? Sim, é possível. Tudo aquilo é comercial. Acho que nem ela própria sabe onde nasceu!...
Começou a rir sozinho, enquanto o avental das joaninhas se inclinava para ele.
- De resto, é o que lhe dá graça: mente tanto que a gente não acredita em nada do que ela diz. É tudo pântano. Tão depressa é a filha dum general de serviço em Górz,
evacuado por ocasião da guerra, tendo a mãe morrido duma crise cardíaca durante a fuga, ficando, ela sozinha na cidade, como teve doze irmãos, sendo os pais camponeses
com papoilas sob as janelas e o resto. Ou filha ilegítima, com uma infância rude em certo orfanato, donde fugiu. E ainda: adoptada por um fantástico tio banqueiro...
etc.. Uma criatura magnífica a Pittyevitte! E verdade, ela como está? -acabou por perguntar, vendo que já era tempo de se interessar pela companheira.
Sentia uma estranha impressão, desde a véspera. Lembrava-se de cem detalhes muito antigos, mas os factos mais próximos escapavam-lhe, afastavam-se e não tinham significação
alguma. E pensou: "Parece-me que apanhei uma valente machadada na cabeça. Não percebo nada! Estarei ainda carregado de veronal ?" Paralelamente, estendeu os dois
braços, na sua frente, como fazem os recém-nascidos que ainda não têm a vontade agindo sobre os membros.
- Então ? - perguntou Elisabete.
- É muito esquisito. Não posso apreciar as distâncias. Não sei se está muito longe de mim, ou se posso tocar-lhe,
-Pode tocar-me. - disse ela, sorrindo. II colocou .as mãos do doente nos seus ombros.
Havia neste gesto qualquer coisa que lhe agradou com evidência. Elisabete retirou, apressada, os ombros de sob as palmas das mãos, tão quentes, do homem. No entanto,
passada meia hora ainda tinha a sensação de calor.
- E casada? - perguntou. - Ontem não se pôde prevenir ninguém. O correio fecha às nove.
- Quem ? -interrogou Karbon que esquecera, por completo, a actriz. - A Lania? Sim, deve ser...
- Então o marido é o outro senhor? - perguntou Elisabete que desejava pôr em ordem as relações dos berlinenses.
Haviam-lhe escondido a morte do chauffeur. De resto, aquela gente tinha uma forma curiosa de não dar importância nenhuma ao desastre. Enquanto que ela, adormecera,
na véspera, com os joelhos a tremer, e acordara, de manhã, na mesma; enquanto que o doutor fazia as visitas num relâmpago, inquieto com o que se passara; enquanto
que o próprio Lungaus, muito excitado, percorria a cidade, semelhante a um orador ambulante trazendo e levando notícias, e que a Avelã organizava, na garagem, com
duas cadeiras, um cenário representando um acidente de automóvel, onde numerosas bonecas faziam o papel de feridos.
- Marido da pequena? Que ideia!-replicou Karbon, observando a Elisabete que varria o quarto com a vassoura e a pá. "Como tem as ancas altas!" pensou. "Num buraco
destes, vir encontrar uma raça tão perfeita! Os joelhos devem ser modelares e os quadris são tão longos como os idealizam em sonho os desenhadores de cartazes."
E disse em voz alta:
- A Lania é minha amante.
Elisabete deixou de varrer, ergueu-se, tornou a baixar-se muito depressa e escondeu o rosto na sombra dos braços. corara violentamente e estava deveras aflita. "Mas
que diabo lhe aconteceu? Cada vez .percebo menos... -interrogou-se A si próprio Karbon, sem nada compreender.
A senhora Persentein não podia permanecer ali
em face do descaramento indecoroso de tal afirmação, que lhe parecia ser dum incompreensível impudor.
- Ah! - murmurou dèbilmente, como um passarito. E fugiu.
No entanto, como se se encontrassem numa feira anual, muitos habitantes de Lohwinckel, bastante excitados, estavam reunidos no vestíbulo. Havia-os também fora, de
pé à entrada da casa do Angermann, sob a abóbada da porta. Outros estendiam o pescoço e, a soco, tentavam entrar. Elisabet escolheu os mais bem apresentados e instalou
os na sala. Estremecia-lhe a sobrancelha esquerda; a fadiga nervosa, desde manhã que lhe fazia tremer a pálpebra, ressentia-se da noite passada na poltrona. Ainda
não acabara de arrumar o consultório que, na véspera, fora transformado numa verdadeira ambulância. Era sábado, precisava de ir fazer as compras para domingo, ocupar-se
de Lungaus, tratar do hóspede, servir Kola. E este em primeiro lugar, é claro, pois tinha o dobro de trabalho e de esgotamento desde que aquela trapalhada se dera.
O telefone tocou tantas vezes que a Avelã, pronta para todos os serviços, instalou uma cadeira em frente do aparelho, para a qual subiu afim de fornecer lacónicos
esclarecimentos.
O sr. Markus era dos que mais chamavam, o que fazia com que a própria senhora Persenthein o viesse atender, ouvindo o tropeçar nas sílabas e dando-lhe todas as informações
pedidas. Estava febril, transtornado; aquilo era um negócio que representava quási um caso pessoal, o desastre dos berlinenses célebres; já mandara um telegrama
para certo jornal de Berlim e estava tratando de fazer uma notícia pormenorizada na hora de maior clientela, no sábado de manhã. Informava-se dos mínimos pormenores
- excepto da saúde da Elisabete.
Ela sentia-se esquisita Desde a véspera que ainda não tomara bem consciência do que se passava, os acontecimentos haviam-na assaltado com demasiada brusquidão e
as dificuldades surgiam a cada momento. E isto era difícil de explicar: por exemplo, não havia dinheiro em casa, não havia mesmo nenhum, embora fosse preciso fazer
despezas extraordinárias. Tinha a certeza de não
poder pôr aquele senhor de cabelos ruivos, chegado de Berlim, no mesmo regime da família Persenthein. Atravessou a rumorejante assembleia popular do vestíbulo e
dirigiu se para a cozinha: a louça do pequeno almoço ainda não estava lavada, encontrava-se na banca. Lungaus dispusera artisticamente os seus chinelos junto do
fogão mas o lume estava quási apagado e tudo se encontrava numa desordem desesperadora. Depois, Elisabete procurou o seu livro de cozinha, folheou-o e arquitectou
uma ementa. Em seguida, foi buscar dinheiro à gaveta da secretária onde o doutor guardava os seus mais importantes papéis.
Dinheiro ? Então havia dinheiro em casa ?
É verdade, ali estavam cinquenta marcos, a terceira prestação do custoso pantoscópio que devia ser pago no dia quinze pelo dono da casa do Angermann para quem as
despesas profissionais eram sagradas. Foi secretamente agitada por uma vertigem que a Elisabete pegou naquele dinheiro, receando o marido. Foi direita ao talho do
Seyfried, depois ao padeiro Jaennecke, ao Markus - afim de poder preparar umas refeições que fossem dignas daquele Peter Karbon.
Dinheiro já havia, mas agora faltava roupa de mesa; era uma coisa de que se estava mal servido e não se sabia se a senhora Bartels quereria ser prestável. Não existia
um único guardanapo sem passagens, visto que todos eram velhos e haviam sido herdados. Duma dúzia de pratos de doce, só restavam três e as beiras estavam esbotenadas.
"Deus do céu! E toalhas para o rosto e mãos?" pensou ela, perplexa, percorrendo as ruas com o seu chapéu e a saca das compras. "Realmente, nunca tivemos toalhas
que chegassem, nem para a consulta nem para casa! A bilha da água está partida e foi substituída por um pote de esmalte, bem feio, por sinal. É preciso forrar a
poltrona, o piano continua desafinado, as costas daquela cadeira estão todas rotas e o vidro rachado. Parou em frente da igreja, imersa nos cuidados quotidianos
que a afligiam todos ao mesmo tempo, como se tudo que havia de gasto, partido e irreparável na sua existência
viesse de repente ao seu encontro. Foi um segundo horrível, aquele que viveu ali, em frente da igreja, enquanto soprava o vento do outono e a mão direita apertava
convulsivamente o porta-moedas que continha os cinquenta marcos do pantoscópio.
"Se a gente não puder, o melhor será ele ir para casa da senhora Prófete. Depois de assim ter disposto de Peter Karbon, continuou a andar. Mas sentiu, na garganta,
um nó provocado por tal resolução. Ora essa! Ela que tinha com aquele homem de cabelos ruivos que troçara da camisa de noite do Kola, que confessava uma ligação
escandalosa com a actriz e que se mostrara bastante indiscreto na forma como lhe falara a si, a senhora doutora Persenthein, enquanto lhe servia o primeiro almoço?!
Viu-o nitidamente, àquele homem novo e espantoso que estava deitado na sua cama e queria ser tratado por ela.
Ao canto da rua dos Regatos veio ter com Elisabete um turbilhão de folhas do outono, e de súbito, mal dobrou a esquina, tudo se tornou mais fácil sem que visse claramente
a razão. "vou fazer a massa e o Jaennekc cozê-la-aá para o bolo que lhe darei amanhã." Parecia que sempre se resolvia a ficar com o hóspede. E desculpava-se desta
forma: "Quem sabe se não virá ainda .a ser útil ao Kola?" Não era absolutamente sincera dizendo isto, mas ficou mais tranquila, mesmo ao pensar nos cinquenta marcos
que tirara da gaveta e nas despesas que era forçada a fazer por causa do .doente.
Foi assim que aquilo começou. Foi assim que entrou na agradável loja do padeiro e tratou da questão referente ao bolo. No domingo faltou à igreja. Na têrça-feira,
Peter Karbon, teve, pela primeira vez, licença de se levantar.
Mas na quarta feira aconteceu uma coisa extraor dinária.
Entre os viajantes do automóvel, Fobiank era o único que possuía um nome ignorado. Não era um herói desportivo nem um rei do cautchu, nem uma estrela de cinema.
: era um irmão sem nome, um irmão silencioso e morto, que tinha um fato de tued e polainas de couro - um homem morto, de lábios exangues, nos quais o derradeiro
segundo deixara um sorriso semelhante a um reflexo do Além. com efeito, naquele último segundo, o chauffeur Fobianke atravessara uma. grande luz, uma cristalina
claridade: sentira-se mergulhar" e morrer em azul: tudo cada vez mais azul e mais leve.. E ouvira qualquer coisa - eram sinos sem o serem - eadquirira uma certeza:
que, afinal, não custava assim tanto... não tinha medo... já passara ...
As dificuldades só começaram quando Fobianke passou por aquilo e não pôde sentir mais nada. Por que, onde haviam de conduzir àquela hora tardia o homem morto? As
horas mais próximas de Persenthein deviam ser dedicadas aos sobreviventes. A sua casa era muito pequena e um cadáver lá dentro era uma nota desagradável. Pelo seu
lado, o sr. Profet não podia pensar em levar à sensível esposa, alguns minutos antes da meia-noite, um finado. Quanto ao sr. de Raitzold, que possuía no hall do
castelo um local consagrado aos catafalcos dos Raitzold, não queria convencer-se a pôr aquele lugar de honra à disposição dum motorista desconhecido. Só o teria
feito se fosse preciso disputar o corpo ao sr. Profet, como acontecera com a actriz. Mas levar para a sua propriedade o que o sr. Profet não queria ter na sua casa,
embora sentindo que se não portava lá muito correctamente para com o defunto -não, isso é que de nenhuma forma. Por fim, enviaram Muller com o mudo passageiro à
igreja onde a casa do padre ainda estava iluminada, pois ele era bibliófilo e fanático explorador de certas curiosidades botânicas. Mas o abade não estava em casa,
fora
chamado por uma velha camponesa de Bickenvies para receber a extrema-unção: por acaso, não era a cliente de persenthein mas uma das que seguiam "receitas e os remédios
do boticário Bchrendt. O sacristão examinou os papéis que Fobianke tinha em ordem, junto da carta. Constatou que era protestante e não ousou resolver a questão:
aquele Wilhelm Fobianke com a idade de 47 anos e protestante, poderia encontrar um abrigo provisório na sacristia? Muller, católico sem ser beato, compreendeu estas
objecções; conhecia a severidade do venerável cura e guardara até à medula, o respeito do estudante pela primeira comunhão. Já soava a meia-noite na torre e todos
os candeeiros estavam apagados quando voltou a casa e pediu para falar ao patrão.
O sr. Profet já enfiara as pantufas e tinha um roupão bordado a seda. Enquanto falavam, o chauffeur pôde ver pela porta entreaberta o que se passava no quarto vizinho.
Franz Albert estava deitado num sofá e parecia embriagado, graças à grande dose de eucodal que lhe tinham ministrado. À esquerda, estava sentada a sr.a Profet que
lhe segurava na mão e acariciava o cabelo. À direita, via-se um balde de prata com uma garrafa de champanhe; três taças cintilavam sobre uma mesita. "Olha, olha,
estão a beber champanhe!" De repente, subiu um calor por ele acima e tomou uma decisão:
- Faz favor de não se afligir, - disse com altivez -é um colega: Vai para minha casa! vou agora a Obanger e trato de tudo. Sempre há-de haver lugar para o meter
depois no depósito n.? 3.
Disse e deu meia volta. Saiu daquela casa com o sentimento de que já era tempo de não ofender mais a dignidade do defunto colega,
Aliviado, o Profet voltou para junto do hóspede para ver se, obedecendo à ordem do médico, conseguia que ele bebesse um pouco de champanhe, afim de lhe estimular
a actividade cardíaca.
Muller morava num pequeno anexo da fábrica e tinha à sua guarda os três caminhões que o patrão chamava
o seu "parque de automóveis". A sr.a Muller era uma mulher de juízo que tinha o sangue forte e o coração enérgico da raça de vinhateiros, da região. Já sabia tudo
que se passara e estava à espera do marido. Não gastou o tempo em longas dissertações quando viu descer do carro, primeiro a sr.a Psamatis, amortalhadora de seu
oficio que ele fora buscar, e depois o camarada falecido que deitara sobre um ombro.
Encontraram nele duas coisas esquisitas, quando o despiram: o cheiro a cigarro na farda e o facto de usar três alianças: era de certo um viúvo que tornara a casar.
Muller consultou depois os papéis do morto e até alta noite esforçou-se, com os dedos desabituados e o cérebro atormentado, em escrever uma carta concebida nestes
termos:
"Sr.a Fobianke:
"Como há pressa e o seu patrão, devido ao estado em que ficou depois do desastre, não poder ocupar-se disto, eu aceitei o penoso dever de lhe comunicar a grande
desgraça que aconteceu ao seu marido. Tendo ido parar à valeta com o carro, que capotou, foi transportado com um grande ferimento e fui eu próprio que o trouxe.
Tenho imensa pena de lhe dar este desgosto, mas o certo é que morreu no caminho. O rápido sai de Berlim às 22:13 da noite; deve mudar de comboio em Schaffenburg,
a estação chama-se Dusswald - Lohwinckel. Posso ir buscá-la no carro da fábrica, se me prevenir, e a minha mulher cá a espera. Nestes casos, a gente pensa que isto
pode acontecer-nos qualquer dia. com a mais profunda simpatia, associa-se à sua dor
Herberto Muller, motorista em casa do sr. Otto Profet Fábrica de Acumuladores."
"É uma consolação para si saber que o querido defunto teve uma morte rápida. Eu estava lá."
E, no dia seguinte, Fobianke repousava no depósito n.? 3 com aquela expressão de profunda satisfação que, em geral, têm os mortos. Todos os operários o foram visitar,
descobrindo-se comovidamente. Os católicos resavam um Padre-Nosso, os socialistas ou independentes limitavam-se a juntar as mãos, e no entanto, a sua imobilidade
, e o sentimento que experimentavam, em nada diferiam de uma oração. Às dez horas apareceu o sr. Curvier com dois ajudantes, o proprietário da carpintaria e fábrica
de caixões e sucessor da empresa de armador A. Curvier. Era o herdeiro duns antepassados franceses que qualquer longínqua guerra depusera ali, junto do Reno; era
um homem de bom gosto, conhecedor do seu ofício. Desembaraçaram o chão dos pedaços de latão que lá estavam, trouxeram ramos de pinheiro para molhar na água benta.
Os candelabros eram grandes e prateados, as velas grossas e de cera verdadeira, do melhor fabrico do cerieiro e pasteleiro Hannemann, por trás da igreja. No descanso
do meio-dia à meia-hora, quando as mulheres de Obanger iam levar aos maridos, à fábrica, os cestos com o almoço, tudo estava pronto: cheirava a pinho e a solenidade,
e a multidão engrossava em redor do depósito n.? 3. Embora fosse muita a gente que desejava ver o defunto, tudo se passava tranquilamente, .numa comum atitude de
dignidade. Pouco a pouco, Obanger inteiro foi até à fábrica, as mulheres e as crianças, os velhos e os doentes, todos os que o dr. Persenthein dispensara de trabalhar
e que ali se encontravam em pé, com os rostos pálidos e a mancha plúmbea em redor dos lábios, todos os que, obscuramente, sentiam
? que uma desgraça acontecera a um dos seus.
A amortalhadora teimou em vestir o morto de preto, de forma que estava ali estendido no fato que o Muller emprestara. (Esta expressão não é absolutamente exacta,
pois Fobianke nunca restituirá o fato preto, mas o sr. Profet declarou que faria todas as despesas até que Peter Karbon pudesse ser informado do que acontecera ao
seu empregado). De resto, o fato ficava-lhe lindamente e até havia parecenças físicas: o ofício modelara-lhes os rostos da mesma forma, as mãos tinham iguais
calosidades e as unhas do motorista morto encontravam-se tão negras como as do motorista vivo. O que os distinguia, eram as expressões diferentes: Fobianke estava
alegre e Muller triste.
E assim se passou o sábado, Obanger era um centro onde havia muita gente, a peregrinação para o depósito n.? 3 nunca mais acabava. Os curiosos que rondavam a casa
do Angermann ou que estavam sentados no muro do jardim do Profet não contavam ao pé das centenas de homens que, em silêncio, andavam à roda do caixão e dos que caminhavam
no pátio da fábrica, murmurando, dum lado para outro. Flutuava no ar a recordação de desastres antigos. Os burgueses de Lohwinckel tinham, sem dúvida, o costume
de morrer nas suas camas e de honestas doenças. Por isso se tornou tão difícil encontrar lugar para aquele pobre Fobianke, morto de hemorragia. Mas nas proximidades
da fábrica sempre tinha havido certos acidentes imprevistos: ferimentos, quedas, desgraças. Formava-se um grupo em redor da viúva Koebele, por exemplo, pois ela
estava contando em voz baixa o que sentira quando lhe haviam trazido o marido que abafara num desmoronamento de cascalho. Sem que o dissessem, germinava neles um
sentimento de injustiça e predestinação ao pensarem que os outros três que vinham no carro haviam ficado sãos e salvos ao passo que aquele morrera. Como se a morte
violenta e os sangrentos desastres os atacassem só a eles e fossem o triste privilégio dos trabalhadores de Obanger...
Foi Birkner, o presidente do conselho da fábrica que teve a ideia de organizar uma subscrição para se comprar uma coroa. Era um homem loiro, de olhos negros e alongados
e mãos pesadas - na esquerda, faltavam-lhe dois dedos. Ele próprio foi, à noite, ao Domínio, para encomendar a coroa. Em Lohwinckel, compravam-se as flores no Domínio,
onde a irmã de Raitzold criara um pequeno negócio de jardinagem e de cultura de rosas, desesperada tentativa, realmente irrisória, de aguentar as despesas cada vez
maiores. Estremeciam nos canteiros as últimas rosas de Outubro, estando as pétalas
avermelhadas pelo frio nocturno; a família da Bela Lionesa estava queimada. Os cestinhos de vime que Jacinta Raitzold guarnecia às cinco da manhã para os mandar
a Schaffenburg não estavam lá muito florescentes. Mas serviam para uma coroa daquele género.
No domingo, depois da missa e do sermão, quando um grupo de burgueses bem vestidos se dirigia para a fábrica afim de ver a coroa ser levada pelos operários de Obanger,
encontrou o portão do pátio fechado. O tempo estava fresco e tudo se mostrava calmo. Através da grade viam-se alguns pardais disputar com acrimónia os grãos de aveia,
como se tivessem encontrado ouro no excremento. Soube-se mais tarde que o sr. Profet dera a ordem de se fechar o portão. A sua fábrica não era um teatro e não estava
para ver passear no pátio todos os maltrapilhos da região. Se alguma desgraça acontecesse, o responsável seria ele. De resto, a fábrica era sua: podia abri-la e
fechá-la quando lhe apetecesse. E pronto.
Soube-se isto por Birkner que falara a este respeito com o patrão. O que ninguém podia explicar era como se havia espalhado a história do champanhe. O Lungaus foi
um dos primeiros a contá-la. E ao cair da tarde toda a gente de Obanger e muita de Lohwinckel sabia que na casa dos Profet, no Priel, haviam feito saúdes com champanhe
logo depois do desastre, enquanto que o motorista morto não tinha para onde ir. Na boca do Lungaus, esta coscuvilhice tomava um aspecto particularmente sedicioso;
emagrecido e cavado pela doença aliada ao regime ideal do dr. Persenthein, parava em todas as esquinas, agitado e rebelde, cheio de novidades que faziam escândalo
e criavam descontentamento. Era verdade: ajudara a abrir a mala amachucada do sr. Karbon e vira lá dentro frascos de cristal e roupa luxuosa, tudo tresandando a
perfume como têm as mulheres duvidosas do "Carapau Preto em Schaffenburg, escovas para o cabelo e outras minhoquices deste género, em prata, com o monograma em cima.
Quando ele se arranjava, de manhã, punha calças de seda com riscas roxas, como se fosse fazer um exercício de circo, E a mulher que haviam levado
para o Domínio, essa era uma desavergonhada. O judeu Markus tinha uma revista em que ela estava fotografada completamente nua! E que ninguém duvidasse do que dizia.
De resto, pertencia aos dois berlinenses; estas mulheres são tão caras que é preciso juntarem-se vários... O boxer, o bêbedo, esse tinha exigido trinta mil marcos,
numa só noite, só para dar alguns murros. Era por isso que os operários não tinham dinheiro, estando reduzidos aos miseráveis quarenta e três marcos por semana,
recebendo como gratificação chumbo nos ossos.
Eram estas e muitas outras coisas que o Lungaus andava a levar e a trazer dum lado para outro. Não gostavam muito dele porque, vindo do norte da Alemanha, era considerado
como estrangeiro e pessoa pouco segura; falava-se mesmo em roubos cometidos na fábrica e numa condenação. Mas agora o que ele dizia era um oráculo porque vinha favorecer
a ardente impressão de descontentamento que cada qual trazia dentro de si.
Os operários mais antigos encontraram se à tarde na hospedaria de Oertchen - como todos os domingos - e não se falou senão nos quarenta e três marcos por semana.
Haviam roubado seis pfennig aos salários sindicais e, que diabo, já era tempo de protestar contra aquele estado de coisas. Ó sr. Profet dizia: "Tanto pior para os
que não querem. Aqui não se obriga ninguém atrabalhar".
Os operários novos iam, ao domingo de tarde, para o estádio: um campo pantanoso, de erva curta, para lá de Obanger, onde os rapazes do Liceu não haviam tornado a
jogar depois da proibição do reitor. com a. equipa vestida, estavam em redor do campo, de mãos nas algibeiras, lançando estridentes gritos ao seguir o jogo dos operários.
Também os estudantes andavam desordenados. Quanto aos operários, moviam furiosamente os membros pesados na relva escorregadia; batiam-se e empurravam-se de tal forma
que um avançado recebeu um pontapé de tal natureza que não pôde levantar-se do chão, sendo preciso levá-lo a casa da mãe, a velha Psamatis da muralha do Moinho,
a qual foi, chorando e lamentando-se, a correr a casa do dr. Persenthein, a quem se sentia ligada pela profissão.
No domingo à noite, chegou a sr.a Fobianke e o Muller foi buscá-la à estação, sob a sua própria responsabilidade, numa fourgonette da fábrica. Trazia o irmão, o
tipógrafo Pank. Era uma mulherzinha mais velha do que o defunto, de lábios finos e ar modesto. Estava hirta, como que gelada de medo e desgosto. Parecia não poder
mexer nem mãos, nem boca, nem olhos e pronunciou apenas algumas palavras quando a sr.a Muller a acolheu à porta da fábrica levando-a até casa. Trazia um vestido
escuro que não era preto mas castanho, e como lhe descosera os bordados que tinha, conheciam-se ainda, na gola e nas mangas, os sítios amarrotados e picados pelos
pontos. Tinha luvas pretas, imitação de couro, em algodão, e de vez em quando, olhava fixamente para aquelas mãos esticadas e mascaradas, como para um objecto absolutamente
estranho. Sob a luz das velas e na atmosfera de enterro do depósito n.? 3 onde a deixaram só durante alguns instantes, ficou submersa pela mesma dor seca, incapaz
de rezar e de chorar -incapaz de nenhuma solução humana. Foi só quando se deitou no leito conjugal, ao lado da sr.a Muller, que disse:
- Aqui, os lençóis também são húmidos. É como lá em casa.
- Onde é? -perguntou a sr.a Muller, apagando a luz.
Na escuridão, obteve esta resposta :
- No novo Brandeburgo.
Depois, a viúva ficou tão silenciosa que até parecia conter a respiração, com medo que lhe fizesse doer - e realmente fazia. Mais tarde, a dona da casa estendeu
a mão e os dedos da mulher misturaram-se com os seus: uns dedos duros, regelados, que só aqueceram lentamente quando as duas mulheres adormeceram.
Os homens tinham ficado sentados na cozinha, diante dos copos baixos que continham o vinho leve da região. Falavam da morte de Fobianke. Muller fez o seu relatório
com as perífrases ornamentais e regionais do dialecto da Hesse renana e o tipógrafo prestava atenção e respondia com monossílabos. Pank era um homem prudente, como
demonstrara trazendo de Berlim uma
coroa durável feita de contas de vidro. Também sabia que o sr. Karbon segurara a vida do seu motorista em cinco mil marcos e ficou informado de que haviam provisoriamente
escondido do patrão o falecimento do empregado, o que classificou como demasiada precaução, para um homenzinho com fisionomia de gnomo, cuja barba grisalha lhe invadia
o rosto, a tal ponto que se não viam senão os olhos - uns grandes olhos tristes, de animal, por trás dos vidros das lunetas. A pouco e pouco, ia se notando que o
tipógrafo-paginador Pank era um homem que tinha muita leitura, e uma cabeça sólida - um pensador, numa das mais importantes peças da máquina do seu partido. Tinha
de tal modo o hábito de pensar sob o ponto de vista colectivo que, em breve, exgotou o assunto pessoal se bem que doloroso e impor tante, passando a questões de
ordem geral. Às onze da noite obtivera do motorista Muller todos os esclarecimentos importantes sobre a fabricação de acumuladores e ficou extraordinariamente agitado
quando soube que os salários estabelecidos pelo sindicato não eram observados em Obanger. Foi um ponto sobre o qual falou muitas vezes, não podendo o Muller dar
lhe esclarecimentos completos, pois, embora pertencesse à classe operária, havia muitos anos que gozava duma situação aparte.
Acabou por prometer ao paginador que, no dia seguinte, à noite, reuniria os delegados sindicais da fábrica na hospedaria de Oertchen. Pank tomou algumas notas numa
pequena agenda e exprimiu de repente o desejo de mandar um telegrama a qualquer órgão de partido que não designou de maneira explícita. É claro que às onze da noite
não se podia pensar em tal - o correio fechara há muito e o empregado Munk devia estar a dormir. Os dois homens resolveram fazer o mesmo. Pank subiu ao quarto, pensativo
e lacónico, o Muller foi para a garagem onde se estendeu no carro do sr. Profet, adormecendo com a impressão que, depois daquele desastre, qualquer coisa palpitava
no que até aí fora tão imutável como as muralhas da cidade e a torre do Angermann.
A segunda-feira é, em geral, um dia sonolento e sem nervos, em que o maquinismo do homem que trabalha náo se põe logo em movimento. Mas naquela segunda-feira não
aconteceu assim. Os habitantes de Obanger chegaram cheios de excitação, febris, vindo alguns acompanhados pelas mulheres. O portão da fábrica estava aberto. Claro
que havia de estar: então não era preciso entrar e sair ? Chegou uma coroa destinada a Fobianke. O sr. Profet mandava uma coroa que não provinha do Domínio, mas
fora encomendada ao jardineiro de Dusswald. Até ao meio-dia, o pátio ficou cheio de gente que nada tinha ali a fazer, o que prejudicava o trabalho da fábrica. O
próprio contra-mestre Birkner concordou que assim não podia ser e desceu, deixou a fundição para mandar embora aqueles papalvos que não faziam mais do que olhar
uns para os outros e esperar. E que esperavam eles? Sabiam lá! Tinham ouvido falar na chegada dum indivíduo de Berlim que declarara ir mudar tudo em Lohwinckel.
O próprio Birkner, que se entusiasmara ouvindo Pank, começou a menear a cabeça. Não tinha grande influência nas pessoas que estavam no pátio ou fora, ao longo do
muro. Na fábrica, todos os que a ela pertenciam, trabalhavam. A sala da fundição estava mergulhada numa abafante atmosfera de ácido sulfúrico, na oficina de montagem,
os untadores aplicavam o óco e na sala de expedição, empacotava-se. O que se amontoava no pátio era gente de Obanger, proletários de Lohwinckel, aprendizes, desempregados,
artifices sem trabalho, mulheres, parentes e filhos de homens que não ganhavam o suficiente. Queriam ver o chauffeur morto mas-também queriam ver o homem vivo de
Berlim que declarara ir aquilo tudo mudar, acabando-se com os salários miseráveis. Por isso ali estavam, esperando a pé firme.
Foi preciso que o próprio sr. Profet aparecesse, os
mandasse embora e desse ordem de fechar o portão. Teve que repetir três vezes a mesma ordem antes que se afastassem. Alguns protestavam em voz alta. O operário Lungaus,
que retomara o trabalho naquela manhã, e que tinha um molde ao ombro, parou no meio do pátio com rosto zombeteiro. A careta não se dirigia ao sr. Profet, mas àqueles
que se deixavam expulsar. Sentiram-no bem e ficaram vexados. Em seguida, cá da rua foram deitadas lá para dentro duas garrafas vazias, de cerveja, que não atingiram
ninguém e talvez representassem apenas uma brincadeira ...
O sr. Profet que viera de carro, do Priel, trouxera consigo Franz Albert, afim de lhe mostrar a fábrica. O rapaz estava completamente restabelecido do choque nervoso
e mostrava uma sã e agradável disposição. A sr.a Profet mandara-lhe coser o seu lumberjack roto. Percorria as salas com uma expressão angélica e confusa, sorria
tolamente e desejaria falar com os operários se lhes compreendesse o dialecto. Demorou-se na fundição, ergueu uma placa fazendo-a girar, a sorrir. Por fim, declarou
que o pai fora torneiro de metais.
Pela uma hora soube-se no liceu que o boxer estava na fábrica e à uma e meia os estudantes puseram-se a caminho em grupos, indo à frente os mais adiantados, pois
era um facto que lhes dizia particularmente respeito - era indiscutível a sua necessidade de ver o campeão alemão dos pesos médios. Os filhos do sr. Profet, Paulo
e Otto, que haviam revolucionado todo o liceu com as suas narrativas quotidianas e íntimas sobre Franz Albert, conduziam a malta, Movendo os pés de desproporcional
tamanho, lá chegaram os miúdos de doze anos com voz de soprano, os problemáticos alunos do sexto ano com rostos borbulhentos e vozes roucas, os ajuizados finalistas
de gestos comedidos. E assim, ainda mais aumentou a desordem em redor da fábrica. Aquela rua não tinha nome, chamavam-lhe simplesmente: o Muro. Foi, pois, no Muro
que, depois das duas horas houve uma grande batalha entre os garotos de Obanger e os estudantes, o que de resto era um acontecimento que estava sempre na ordem do
dia, fazendo parte das tradições
de Lohwinckel. Mas aquela foi particularmente renhida- sentia-se latejar um ódio desusado, o que fez com que também a gente crescida acabasse por se meter na dança.
De resto, nem uns nem outros conseguiram ver o boxer, porque o sr. Profet e o companheiro saíram da fábrica a pé, pela porta traseira, indo ter exactamente ao sítio
onde se dera o desastre.
Franz Albert reconheceu o local como se saísse dum sonho - as urtigas exalavam o mesmo aroma penetrante. Lembrou-se também da esquisita sensação que experimentara
ao ver-se deitado sob a manta com a Leore Lania e dos arrepios que lhe percorriam a coluna vertebral, como se estivesse cheio de bolinhas de sabão.
- São vinhas ? - perguntou, olhando para as colinas xistosas à beira do caminho, cuja folhagem se avermelhava agora à luz do dia.
- São. Estas são insignificantes. - disse o sr. Profet que parou, colheu um cacho de uvitas verdes e estendeu-o na palma da mão, ao hóspede - Mas há lá em baixo,
do lado do Reno, aí sim, há uma vinha esplêndida. Chama-se a Costa do Sol e aquilo é que é!
Pegando no cacho, o Franz perguntou:
- Isto tudo lhe pertence ?
- A mim ? Não. Isto é do Domínio. - E continuou a andar. Mais tarde, quando já o rapaz se esquecera do que se tratava, continuou: - Sim... se eu quiser tudo isto
me pertencerá. Só de mim depende que continue ou não na posse dos Raitzold, compreende?
Até à estação nada mais disse. Lá estava Muller com o automóvel.
Afinal nada aconteceu naquela segunda-feira. Apenas uma discussão entre o dr. Persenthein e a viúva de Fobianke, durante a qual ela permaneceu estúpida, glacial
e muda como estivera até aí, enquanto o médico se ia exaltando gradualmente. Tratava-se da autópsia. O doutor desejava imenso ver se fora acertado o seu diagnóstico
de uma hepatocele, vendo-o confirmado. Insistiu, teimoso, em face da formal recusa da viúva, chegando até a invocar certas prescrições em caso de
desastre. Mas a viúva apenas sabia uma coisa: que a sorte do seu marido fora bastante cruel e parecia-lhe que o morto, de satisfeita expressão, começaria a gritar
se lhe tocassem. Náo podia exprimir isto, dizia apenas: "Não" Q "não" e sempre "não". O doutor foi-se embora mal humorado, na crepitante motocicleta, levando a Avelã
atrás de si. Dirigiu-se ao Domínio. Encontrava-se excitado, descontente e sucumbido depois do desastre. E sem saber porquê. As pessoas detinham-se, seguiam-no com
os olhos, falavam dele, sem perceber o quê.
O paginador Pank presidiu a várias reuniões, naquela manhã. Primeiro, a conversa com o sr. Karbon possuidor daquelas calças de seda que tanto haviam irritado Lungaus.
O patrão empalideceu e sentiu-se mal quando soube o que acontecera ao seu chauffeur; ainda não recuperara toda a sua energia. A sr.a Persenthein, que estava presente,
friccionou-lhe a testa com água de Colónia. O doutor praguejou quando, ao chegar a casa, encontrou o ruivo doente subjugado pela comoção. Entretanto, o tipógrafo
continuava a proceder. Foi ao sr. Curvier combinar os pormenores do funeral e depois procurou o sr. Profet que incomodou à hora do café, ficando a discutir com ele
até à tarde. Dirigiu-se, em seguida, ao edifício do correio, precisamente no momento em que ia fechar, e redigiu um telegrama que participava não serem respeitados
os decretos do sindicato em Obanger. Dirigiu-se finalmente para a hospedaria de Oertchen afim de se encontrar com os operários delegados da fábrica.
Foi pelas três horas de terça-feira que se fez o enterro de Wilhelm Fobianke. Os sinos tocaram às duas horas, porque haviam começado por enterrar o Jacó Wirz. E
tocaram de novo quando, no pátio da fábrica, o cortejo se pôs em marcha, precedido pelo caixão preto incrustado a prata. Foi uma atenção do velho cura para com o
morto. y sr.a Fobianke, com o irmão e os esposos Muller estava sentada numa carruagem forrada de negro e os operários seguiam a pé. Chovia desde manhã ; no cemitério
havia muita lama e a água infiltrava-se na cova recentemente cavada. Soprava o vento
de leste e, como fios esticados, a chuva atravessava obliquamente o ar.
Era em circunstâncias extraordinárias que os operários acompanhavam o féretro, visto que aquilo se passava em pleno dia de trabalho e apesar da formal proibição
do sr. Profet, o qual depois de ter falado com Pank e Birkner acabara por se recusar a dar feriado. Fizera-o não por maldade mas por medo. Ele fora outrora um homem
pobre: adivinhava o que se passava.
- Anda qualquer coisa no ar. - disse à esposa, limpando gotas de suor no crânio redondo e barbeado. E voltando-se para Franz Albert:"-Se não me mostro enérgico,
isto dá sarilho.
Tamborilou nos vidros das janelas, vagueou pelo quarto dos filhos e acabou por tomar aquela decisão.
O que foi um erro. Os operários não fizeram caso da proibição e à uma hora largaram o trabalho, foram para casa, vestiram os fatos pretos - os que os tinham e voltaram
para a fábrica com os rostos agressivos que as circunstâncias impunham. O sr. Profet fora sempre o inimigo. Mas o motorista de Berlim que só haviam conhecido depois
de morto, era amigo e aliado. O pastor protestante de Dusswald pronunciou algumas palavras enfatuadas. O sr. Pank fez um discurso muito significativo e seis operários
levaram o caixão do depósito n.? 3 até ao carro do armador. O enterro era, de tal forma, um assunto inerente aos operários, que os burgueses mantiveram-se a distância.
Estavam na rua, penduravam se das janelas e ladeavam com os guarda-chuva as muralhas do cemitério - mas não se meteram no cortejo.
O restrito pessoal do Domínio - ao todo vinte e três pessoas, incluindo os parentes de Jacó Wirz - ficou no cemitério para observar o espectáculo dum segundo funeral.
O sr. de Raitzold, que o encontrou à entrada do campo-santo, tratou de se meter na carruagem e sair dali. Mas a irmã ficou. Sob um comprido casaco de
dali.
oleado preto e com as botas de montar enterrou-se solidamente no solo esponjoso e permaneceu ao pé da família do primeiro defunto, ao lado do dr, Persenthein.
O médico encontrava-se presente e não lhe agradava nada ter dois clientes a enterrar no mesmo dia, mas primeiro estava o dever: não era homem para lhe fugir. Em
pé, sob a chuva, observava os rostos carrancudos e secretamente agitados dos homens de Obanger e ruminava, descontente, o seu diagnóstico não confirmado duma hepatocele,
enquanto o pastor desempenhava o seu papel ao lado da cova aberta e cheia de lama. O Profet estava ausente. O Karbon também, mas sob a formal ordem do médico. Em
compensação, via se lá o liceu, nas classes mais adiantadas. Nem eles próprios sabiam porque tinham vindo, visto o reitor os ter proibido de comparecer. O espírito
de rebeldia e insubordinação passara dos operários para os estudantes. Também o sr. Markus viera, vestido de preto da cabeça aos pés, com um chapéu alto e luvas
negras. De vez em quando, mudava de lugar, mas sempre criava o vácuo à sua roda, ficando só.
E assim tudo decorreu monotonamente sob a chuva e o som dos sinos. O pastor proferiu algumas palavras demonstrando que Fobianke morrera vítima da sua profissão e,
em seguida, pegou em alguma terra húmida. O sr. Pank lançou mão da pequena pá, repetiu o gesto e as palavras mas com mais ressonância e de maneira mais comovente.
O rosto de gnomo, em geral concentrado e silencioso, abria-se mais francamente, iluminado pelos gestos do orador habituado a falar às multidões. Na sua boca, a palavra
vítima tomava outra significação. Não disse "meus caros irmãos" mas sim "camaradas", duma forma natural que dava a todos o ingresso na comunidade. O sr. Markus,
em pé por trás da multidão, sentiu de repente e sem razão, que duas lágrimas lhe picavam os olhos inteligentes, míopes e resignados. Depois o tipógrafo-paginador
passou a pá à irmã.
Havia ali gente demais e agora todos queriam ver, pondo se alguns sobre pedras tumulares. A sr.a Fobianke dirigiu-se para as três coroas, tirou algumas flores e
um pouco de terra. Murmurava palavras ininteligíveis. Demorou-se ainda um instante, olhou em redor, viu os rostos estranhos. Por fim, a sr.a Muller levou-a,
todos começaram a mexer com os pés e o Birkner, depois do pastor, apertou a mão à viúva. Ela perguntou:
- Onde está o seu marido ?
- Não pôde vir; ficou de serviço. - respondeu a sr.a Muller.
- Ah, sim, está de serviço. Está de serviço...
- Teve de levar o sr. Profet a Schaffenburg.- explicou a outra, no dialecto da terra.
A viúva olhou em redor.
- O quê? Mas o que há? Porque estou eu aqui?
- perguntou, parecendo que só nesse momento compreendia o que se passava.
Reparou que estava num cemitério desconhecido, em qualquer canto perdido da Alemanha e que o marido morrera, partira, nunca mais voltaria. Qualquer coisa se quebrou
dentro de si, obscuramente, como que uma camada de gelo sobre um lago. E então deu um grito agudo e tão estridente que todos se assustaram e correram para a tumba.
- Não! - gritou ela - Não ! Não! Não! Dispunha de poucas palavras. Gritava "não!" como
se estivesse a defender-se. E deitou-se na sepultura, quási que na cova, agarrou-se às coroas, às saias da sr.a Muller, às pernas do médico, sempre exalando no seu
"não" o desespero, o protesto contra o que acontecia. Este grito tinha qualquer coisa de louco, de bestial; era um riso e um soluço, um longo uivar que penetrava
até à alma. Inconscientemente, os homens apertavam os punhos e cerravam os maxilares. As mulheres choravam. Uma ou outra exalava o mesmo grito: a Psamatis, a Koebbele.
Também os estudantes, que ontem eram ainda crianças, choravam com os nervos excitados; por meio de vagas, a agitação espalhava-se em redor da tumba e por todo o
cemitério.
- Psicose. - murmurou Markus, que também chorava, estremecendo com os gritos.
Pank tentou erguer a irmã mas ele era baixito e ela, que tinha ossos pesados, não queria sair dali.
Já os sinos se tinham calado e os de Obanger,
em grupos tumultuosos, haviam saído do cemitério - e ainda se ouviam os horrorosos gritos.
Foi a Jacinta Raitzold que acabou por a levar para o carro do armador. Tinha muita força e sabia como lidar com os animais e as pessoas.
Acalmou a viúva exactamente como teria acalmado um cavalo com o freio nos dentes. A sr.a Muller, com o rosto sulcado de lágrimas, semelhante a uma estátua de Madona
grosseiramente esculpida em madeira, encarregou-se depois dela.
- Deixá-la gritar, deve fazer-lhe bem. - disse, enquanto caminhava na lama, ao lado do médico.
Como sempre, ele estava embrenhado nos seus pensamentos e não respondeu. Ela terminou, mais para si do que para o companheiro:
- Têm sorte, os que podem gritar...
E toda a sua vida se resumia nesta frase.
O grito da viúva, aquele insensato "não", estava suspenso sobre Lohwinckel como uma ameaça. A cidadezita transformara-se, os homens eram diferentes.
Naquela noite, houve uma reunião na hospedaria de Oertchen, na qual Pank e Birkner tomaram a palavra, sendo a greve proposta, com insistência, por todos os operários
moços. Naquela noite, o marmeleiro do jardim do reitor foi cortado ao meio, aparecendo na porta um letreiro em que se via escrita a tinta da China, vermelha, a palavra
"Vingança!". Naquela noite encontraram completamente embriagado o operário Lungaus que, durante três anos, seguira o regime do dr. Persenthein. Caíra de borco sobre
um monte de folhas molhadas, ao lado do pântano dos patos, por trás da igreja.
Peter Karbon estava sentado na grande poltrona da sala. Levantara o queixo, apoiara a nuca nas costas da cadeira e os seus lábios, excepcionalmente perfeitos, tinham
uma singular expressão de absoluta serenidade.
- Isso é muito lindo. Obrigado. - disse um bom bocado depois de Elisabete ter acabado de tocar.
Deixou repousar as mãos nos joelhos e voltou a cabeça para ele, murmurando:
- Mozart.
Fora encarregada pelo doutor de velar por Karbon enquanto o enterro durasse. Pusera-se a tocar piano para que ele não ouvisse os sinos dobrando a finados.
- Realmente é extraordinário como ainda tem tempo para tocar; é comovente, na verdade.
E olhou-lhe para o pescoço, para a linha harmoniosa a sair da gola branca indo até à orelha. Vestira, havia pouco tempo, o vestido azul-escuro, o seu lindo vestido
guarnecido a renda branca.
- É preciso. Aqui não há concertos e a gente sem música não pode viver, não é ?
- Não se pode ... - respondeu ele, distraído. - Às vezes, passam-se anos em que não oiço música e cá vou vivendo. Oiço jazz e outras coisas semelhantes, mas propriamente
aquilo a que chamamos música... Até que enfim os sinos se calaram!
A sobrancelha esquerda da Elisabete estremeceu. Sempre tinha ouvido os sinos!
- Nunca vai aos concertos? Eu seria a pessoa mais feliz deste mundo se pudesse ouvir os concertos que há em Berlim!
- Sim? É esquisito; nós vamos mais facilmente para os mares do Sul do que ouvir concertos.
- O Markus tem um bom aparelho de rádio. E, às vezes, convida-me para lá ir ouvir. Quando tenho tempo, vou. Na semana passada ouvi a Paixão segundo São Mateus. O
Markus não deixa passar nenhuma emissão de Berlim.
- Quem é esse Markus? Ah, já sei, aquele homenzito ridículo que me entrevistou para mandar notícias aos jornais...
- É ridículo?
-Se é! Que tipo! Um génio ignorado por trás da barrica dos arenques fumados.
- Ah! - disse Elisabete.
E ficou pensativa. Naqueles últimos dias deitara para o caixote do lixo várias coisas que durante muito tempo lhe haviam parecido preciosas. E agora lá ia também
ser liquidado o Markus!
- Vocês têm aqui um clima particularmente favorável aos maníacos. Ò seu marido é também, a seu modo, um maníaco.
Elisabete tocou uma tecla e deixou o som desaparecer nas traves da velha casa.
-Nunca tinha dado por isso? - perguntou ele.
Depois duma pausa breve, ela respondeu:
-Já.
Correu alguma caliça ao longo das paredes. A carruagem de luto passava sob o portão da casa do Angermann, trazendo a sr.a Fobianke para a fábrica. Elisabete aproximou-se
dos vidros maculados pela chuva. Karbon gostava de a ver andar dum lado para outro. E também gostava de a ver quando estava quieta. Onde quer que lhe ouvisse os
passos, conhecia-os logo. Sentia-se bem, encostado à sua lassidão de convalescente como sobre um almofadão. E pensava:
- Estou habituado a ela como a criança à sua criada. Vinha vê-lo, apoiava-se à sua poltrona, baixava sobre ele o olhar e perguntava, sorrindo:
- Sente-se bem?
- Nunca me senti tão bem... desde a última vez em que a minha ama me passeou no carrinho. Olhou a com um sorriso, mas baixou as pálpebras como que sob uma luz muito
viva. Inclinada para o seu rosto, Elisabete tornou-se grave, observando-o, muito séria. A casa estava tranquila, espalhava-se um aroma a fermento tépido, um odor
pacífico e dominical - embora fosse têrça-feira. Desprezando loucamente o magro orçamento, faziam-se agora bolos, todos os dias, em casa do médico. Era um dos sintomas
da acção dissolvente que se começara a exercer sobre Lohwinckel, este de a sr.a Persenthein fazer dívidas no carniceiro, no padeiro e na pastelaria.
A Avelã apareceu à porta:
- Cinquenta minutos, mamã. - anunciou e desapareceu logo. Estava a coser vestidos de luto para as
bonecas que, assim, acompanhavam as circunstâncias relatadas com muitos pormenores pelo Lungaus.
- Lá vou. - E seguiu a filha.
-Peço-lhe que fique! -pediu Peter, puerilmente.
- Não me demoro, venho já. Tenho que ir ver o bolo. - E fugiu.
Karbon teve um arrepio. Tinha-os com frequência e o médico declarou que eram causados pelos nervos. Mas, em geral, Karbon sentia subir em si uma lufada de calor
quando Elisabete estava junto dele. Também seria dos nervos? Para se disciplinar, teve um pensamento secundário que se não chegou a firmar, dissipando-se como já
acontecera várias vezes:
"Amanhã hei-de-me ocupar da Pittyevitte." Suspirando, procurou uma carta que começara e tirou da algibeira a permanente:
"Tenho que acabar de escrever ao Miguel..." "...e espero que me enviem as cartas de negócio" leu. "Antes de mais nada, peço-te para adiares a conferência com os
Russos; não posso ainda sair daqui. Estamos absolutamente de acordo nesse ponto de tentar introduzir, seja de que maneira for, os outsider russos no nosso mostruário
internacional da borracha e já convenci Kroeningk e Otávio Farin. Se o velho Farin ainda vier com dificuldades, tomarei o avião para Paris onde passarei uma tarde
para lhe falar do assunto. Em todo o caso, não fixes essa conferência para antes do dia 20. Desejaria permanecer aqui até essa data. No que me diz respeito estou
bem mas fiquei com uma espécie de receio que me assalta ao pensar que vou viajar -é uma estupidez, mas não consigo dominar-me. O médico diz que isto passará depressa.
Deves saber que o nosso pobre Fobianke morreu. O pateta do médico escondeu-mo durante três dias; nesse intervalo aconteceram várias coisas desagradáveis e agora
isto não vai melhor. Escrevo por este mesmo correio para Kellermann para que o seguro do pessoal faça tudo que seja necessário com respeito à viúva."
Teve a caneta no ar, durante algum tempo. Depois continuou a escrever:
"O sítio onde viemos parar é muito bonito: igreja antiga, velhas torres, muralhas. As pessoas são mais interessantes e caladas do que em Berlim, não sendo feitas
em série. Lêem livros sérios e fazem música. Os homens não são nada tolos e as mulheres têm qualquer coisa de singularmente intimo. Encontrei uma enfermeira que
parece uma rapariga de dezoito anos, mas deve ter mais idade porque está casada há muito. Faz tanto bem aos meus pobres nervos sobressaltados, que suporto a pobreza
da casa: má cama, horrível alimentação, aspecto de privações, marido maníaco tendo a cabeça quadrada do verdadeiro alemão. É possível que ele tenha valor; embora
o não possa suportar, às vezes sinto uma espécie de amizade pela sua cabeça de louco.
"Acho que julgamos mal a província, é muito diferente do que calculamos na praça Wittenberg. Escrevo-te isto não para me dedicar a reflexões filosóficas, mas porque
o conhecimento da província é importante para a nossa propaganda - estou abrindo os olhos e as orelhas e, no meu regresso, comunicarei as minhas impressões ao Fiemming.
Como vês, quer haja comoção nervosa, quer não, sou o mesmo preguiçoso mas o trabalho vai-se fazendo dentro de mim, embora não me mexa. Enquanto escrevo, estão precisamente
a enterrar o nosso pobre Fobianke. Dá-me vontade de chorar saber que nunca mais o verei. Quanto aos outros dois..."
- Os outros... E verdade, que será feito deles? perguntou a si próprio, sem interesse porque estava infinitamente longe.
De repente, renunciou a continuar a escrever, afastou o papel e os seus pensamentos voltaram para junto de Elisabete.
"Música... Mas como hei-de fazer? Não posso, realmente, mandar- vir o Furtvvaengler com a sua filarmónica até Lohwínckel. Poderia encomendar um aparelho de T. S.
F. em que há coisas complicadas e não sei quantas lâmpadas; assim, ela poderia ouvir Paris e Londres sempre qe lhe apetecesse. Mas não! O melhor é levá-la a Berlim
e todas as noites irá ao concerto: ouvirá música até se fartar. É comovente com o seu Mozart,
no velho piano! Seria fácil de vestir com a cinta fina e alta, talvez um pouco alta demais como as imagens nas capas dos jornais de modas. Um bocadinho de rouge
nos lábios, veludo preto e arminho em redor do pescoço..."
Peter Karbon perdeu se nos seus sonhos em redor duma Elisabete vestida de veludo preto e encantada a ouvir as sinfonias de Beethoven. "Saberá dançar?" Ele dançava
com paixão e admiravelmente. "Voo planado", era assim que a Leone chamava à sua maneira de cortar docemente em diagonal o plano da dança. Tomado por leve vertigem,
Peter deixou a sua imaginação representar-lhe a sr.a Persenthein a bailar. Daí a pouco, ela voltou, bem diferente da imagem que o seu febril cérebro arquitectara.
Vestira o grande avental de mangas e trazia um balde cheio de carvão.
- Cá estou. - e pôs-se de joelhos em frente do fogão. com o rosto sério e concentrado, começou a reanimar o lume prestes a extinguir-se.
Karbon observou-a, pensativo, enquanto ela estava curvada diante do fogão e limpava as mãos ao avental. Foi, sem dúvida, naquele momento, que adivinhou a vida que
levava.
- A sua vida não é fácil... - murmurou.
com um estremecimento de receio, Elisabete reconheceu a frase que a perseguia por todos os lados. Mas na boca de Karbon tomara um som novo e inquietante. "Fácil.
Fácil? Não." pensou. E o peso e dificuldades da sua existência caíram-lhe em cima: a roupa para passajar na cesta, as teias de aranha na dispensa, o dinheiro da
casa, a clientela pouco segura, o insuportável Lungaus, Kola sempre distraído, exausto e de mau humor. E tudo inevitável e imposto para toda a vida. Mas logo, dominando-se,
pensou:
"Ora... ora... E não é normal isto ser assim ?"
Disse:
- Não... tudo corre bem, até... - e deitou a última pàzada de carvão.
O homem juntou as mãos, colocou os cotovelos nos braços da poltrona e encolheu-se confortàvelmente.
Declarou, sonolento:
- E toda a gente já se esqueceu de como pode ser agradável um fogão destes!
- O quê? Na sua casa não tem assim aquecimento ?
- Chaufage central, é claro.
Quando fechava os olhos via outra vez aqueles raios que vislumbrava sempre que, em criança, adormecia.
- Ah, claro! - concordou Elisabete, e olhou para os dedos sujos. A ideia duma casa com chaufage central tinha para ela qualquer coisa de absolutamente paradisíaco.
A luta com os fogões que deitam fumo, o carvão que suja, as escadas que é preciso varrer, os baldes tão pesados que mal se podem arrastar, as contas do combustível
que tanto custam a pagar e o lume que, constantemente, se apaga - tudo aquilo eram coisas importantes que ocupavam enorme lugar na sua vida.
- Os Profet também têm chauffage central. - acrescentou, como se tal notícia lhe pudesse dar prestígio aos olhos de Karbon.
O fogão reanimou-se para entoar a canção do fim da tarde. A porta de ferro trabalhado com as guarnições pretas, recortava-se sobre a chama, sendo para Peter Karbon
mais uma recordação da esquecida infância. Elisabete ergueu-se e alisou o avental.
- Desculpe estar assim vestida, mas isto suja tanto!
- e aproximou se dele enquanto desatava e tirava o avental.
Como num sonho, ao vê-la atravessar o aposento, ele pensou:
e Agora vai ao aparador buscar a antiga toalha de franja."
E assim foi.
Estendeu o braço e agarrou no vestido. A sua mão fechou se sobre a fazenda azul-escura, um pouco acima do joelho. Puxou-a para si.
Quando, mais tarde, Peter Karbon pensava naquele bizarro segundo - e isso aconteceu-lhe ainda dois ou três meses depois - compreendia tudo perfeitamente e sabia
porque motivo aquele desejo, duma violência quási insensata, se apoderara dele. Era por causa do avental que ela tirara, do cheiro a goma, a fogão, a. fermento,
a limpeza e a fadiga; excitara-o o cheiro a criada com o qual o familiarizara a sua primeira aventura de estudante. Fora isso que o embriagara. Mas no segundo em
que aquilo se deu, não se lembrou disso; apenas sentiu com nítida delícia as omoplatas da Elisabete quando os seus braços lhe contornaram o delicado dorso e não
era a esquecida boca da criada Betty a que começou por se defender e depois se abriu, abandonando-lhe os lábios trémulos.
Elisabete, que se lançara desesperadamente naquele beijo, como do alto de uma ponte num rio fundo, foi a primeira a desviar o perigo de naufrágio. Já se tinha erguido,
com os joelhos ainda pesados, mas mais do que nunca parecida com uma gótica estátua de sarcófago e ainda Peter Karbon tinha os olhos fechados e erguia para ela a
sua boca de imperador romano, como se estivesse esperando a dádiva duma fonte desconhecida. Depois retomou o sangue-frio, tornou a colocar ajuizadamente as mãos
nos braços da poltrona, teve um fugaz sorriso e disse:
- Que coisa insensata! Parece que não estou bom da cabeça...
A sr.a Persenthein acendeu a luz, foi-se embora e refugiou-se nas emanações de creosol das cabines de banhos que o último cliente do monte-pio acabara de deixar.
A aranha Catarina estava sentada no seu canto e observava a mulher que esfregava a banheira com selvagem energia, chorando abundantemente como se acabasse de levar
uma sova.
Às onze e vinte da noite, Lungaus, completamente embriagado, foi posto à porta da casa do Angermann. O médico levou-o pela escada até à mansarda e a Elisabete tirou-lhe
o casaco e o calçado, estendendo-o depois na cama. Alguns minutos antes da meia-noite, tornaram a bater à porta. Eram um desempregado e um jornaleiro do Domínio
que se tinham batido violentamente depois da reunião na hospedaria de Oertchen e que se apresentavam agora ali para fazer o curativo. Peter Karbon, que já dormira,
foi acordado pelas idas e vindas no rés-do-chão: acordou com uma impressão de leveza muito agradável, de modo que já sorria e ainda não tinha aberto os olhos. Um
sonho- acontece muito isto nos sonhos - reduzira consideràvelmente a distância que existia entre ele e a Elisabete. Antes de adormecer, ela era ainda a seus olhos
uma mulher bastante estranha, mas agora parecia-lhe familiar, como se o conteúdo do sonho, já desvanecido e impalpável, estivesse carregado de calor e de particulares
promessas. E pensava: "Apaixonado ... estou profundamente apaixonado ". Muito satisfeito, acariciou, na escuridão, os desenhos em relevo gravados na colcha vermelha
do leito conjugal dos Persenthein.
No entanto, lá em baixo, o doutor andava em redor da cadeira operatória, da sala de espera ; com as mãos alisava os cabelos claros e finos e o seu comprido rosto
tomava a expressão hostil dum cavalo medroso. Os dois brigões haviam saído. A sua bata recebera alguns salpicos e estava à espera da água quente; no meio da noite
tudo funcionava mal. Aspirou até ao fundo dos pulmões o fumo dum cigarro barato.
- Não estás fatigado, Kola ? - perguntou a esposa, trazendo uma almofada debaixo do braço para lhe fazer a cama no sofá de oleado. Tinha o rosto inchado de ter chorado
e a ponta do nariz vermelha, como a da
Madona de Botticelli. Bateu cuidadosamente as almofadas, tendo a impressão de que a terra estremecia e tudoameaçava submergir-se em seu redor. Desde que Karbon lhe
dera aquele beijo, não conseguira fazer nenhum gesto sem tremer. Cada objecto em que tocava, desiquilibrava-se, soava, estremecia, corria perigo.
Kola disse que não se encontrava cansado mas ele já confessara alguma vez que o estava? Olhou, com rosto descontente, para o leito provisório - os lençóis escorregavam
constantemente no oleado - e disse :
- Achas que é cómodo uma pessoa dormir aqui ? -Mas não foste tu que te recusaste a que ele fosse
para casa dos outros ?
Até àquela tarde, Karbon era propriedade do médico; o doente que lhe dizia respeito; mas agora, de repente, ela reconheceu que também comparticipava das responsabilidades.
Sentindo-o, um duvidoso calor invadiu-a e a consciência atormentou-a.
- E, além disso, anda tudo torto. - prosseguiu o marido.
Ela era da mesma opinião assim como todos os habitantes de Lohwinckel: debandada, febre e confusão.
- Hoje não houve consulta. Vais ver o trabalhão que terei amanhã de manhã. Na fábrica, as coisas não correm bem; aparecem aí todos para não serem obrigados a ir
trabalhar. E eu fico aqui pregado e não faço o que quero... Não poderias dar-me uma chávena de café?
- com o maior prazer. - disse tolamente Elisabete. A frase surpreendeu o marido.
Mas teria feito tudo para lhe ser agradável, simplesmente porque andava consigo aquele beijo duma doçura inaudita, única e profundamente venenosa. Indo dum lado
para outro, o médico foi atraído por uma folha coberta pela sua grande letra rápida. Livros de notas, caixas de fichas, classificadores, folhas de temperatura gravitavam
em redor do trabalho que lhe devorava as noites, as forças, o pensamento, a existência. A documentação era incompleta e ele sabia o. Nas suas relações com as palavras
era empolado e embrulhava-se em
frases complicadas. "A irritação do peso da água, na perturbadora influência que exerce pela inavaliável compensação da respiração da pele, foi experimentada no
doente, de tal forma que valores susceptíveis de ser medidos foram obtidos. Leu esta sibilina frase e declarou que não era harmoniosa. Riscou-a num traço espesso
e nervoso que rasgou o papel. Elisabete voltou da cozinha com o moinho do café que, pacientemente, colocou entre os joelhos. Os ombros curvavam-se e o médico olhou
para ela. Mas não a viu. Pensava: "As experiências já feitas partindo de anteriores ensaios demonstraram que a respiração ..."
- Kola! - chamou ela em voz baixa.
Tinha, às vezes, a impressão de ser transparente como um fantasma, quando ele olhava assim para além dela. Hoje sentia-se irritada. Sob uns olhos assim, nenhum outro
recurso restava à mulher senão murchar e envelhecer - e aquilo não lhe parecia agora tão natural como julgara. Santa Maria, mãe de Deus, pois ela não se punha agora
a pensar que também podia florescer?!
Guinchou o moinho, subiu o aroma do café e o médico teve a sua escura água quente.
- Aquele maldito... aquele Lungaus! - disse ele, furioso - Os coelhos bebem, vêm para aqui com as cabeças a deitar sangue e se, em seguida, apanharem alguma septicemia
a culpa é minha.
Abriu bruscamente a janela e a noite penetrou no aposento juntamente com um frio glacial.
- Está a nevar... sempre quero ver o que acontecerá amanhã.
E continuou a andar dum lado para outro. Elisabete movia-se e a chávena do café estremecia. Era uma catástrofe o Lungaus ter-se embriagado: mas nem dera por isso.
Coisas mais importantes se haviam passado, interpondo-se entre ela e as regras da casa.
- Não te apoquentes. - disse, embora se sentisse refractária à compaixão.
E pensou: "Que tenho eu que ver com esse Lungaus? Como cheguei a afligir-me por sua causa?"
Sentira já isto como um desejo de libertação mas nunca o exprimira. Agora via claro. Olhou em redor; as beiras das pálpebras estavam ainda ardentes e sensíveis,
orlava-as uma frescura como se ainda lá houvesse lágrimas. com infinito anseio olhou para o ombro de Kola, desejaria poder lá encostar-se e encontrar repouso. Mas
o marido não lhe agradava naquele momento, não lhe agradava mesmo nada.
Pegou no balde, cheio de bocados de algodão empapados de sangue, e levou-o.
Pensou: "Nas horas mais importantes é que sentimos como estamos sós."
Assim que a mulher saiu, o doutor soçobrou. Ainda leu: "por uma inavaliável compensação da respiração, experimentou-se no doente..." Depois exclamou: O quê? Quando
o doente ia vadiar embebedando-se como um porco ? Estava farto, infinitamente farto, farto, farto. Não te apoquentes, Kola. Devias ir deitar-te, Kola. Não fumes
tanto, Kola. É claro que as mulheres não sabem dizer mais do que isto. Vão lá fazer compreender a uma mulher o que significa um homem e a sua ideia...
O médico fechou a janela. Tossiu e apressou-se em engolir a tosse e mandá-la para os pulmões com o fumo do cigarro. Elisabete voltou com o balde vazio. Milhares
de vezes tinha ido despejar o balde cheio de algodões purulentos e empapados em sangue. Hoje, dez minutos antes da meia-noite, muito excitada, teve, de súbito, como
em sonhos, a impressão de haver caminhado sempre com aquele balde de detritos; atravessou a porta como num abismo, como se atravessasse uma fenda aberta no gelo.
No entanto, florescia nas paredes um papel cheio de botões de flor em tons optimistas... mesmo em conformidade com o estado de alma dos habitantes de Lohwinckel.
- Mandaste o dinheiro?-perguntou o médico.
- Qual dinheiro ?
- Os cinquenta marcos para o pantoscópio.
- Mandei.
Desejaria dizer não mas respondeu sim. E logo em
seguida sentiu um grande terror dentro de si. Era assim no casamento: tornava-se preciso calar certas coisas, esconder, disfarçar - ser casado é sempre e em toda
a parte uma das mais delicadas formas de dissimulação entre dois seres. Mas era a sua primeira mentira directa e flagrante. Sabe Deus como aquilo ia continuar em
tais condições de complicação e confusão que tudo fazia prever. Ficou hirta de medo e olhou fixamente para a cara do médico. Estava cheia de rugas - seguia com os
olhos a voluta que descia para a sobrancelha esquerda-e rugas que ela ainda não vira. Tinha apenas trinta e dois anos. Havia de falar nisto ao Markus... ou antes
ao Karbon.
Embora ela tivesse mentido, o doutor adivinhou uma parte dos pensamentos que ela não exprimira, como frequentemente acontece entre esposos.
- Temos agora muitas dívidas, não? Faço ideia do que se terá gasto nestes últimos dias! - perguntava por cima da chávena de café, perscrutando-a com o fixo olhar
de médico.
Quando Elisabete chorara de tarde, na sala dos banhos, julgara ter exgotado os soluços até à última lágrima ; mas afinal enganara-se. De súbito, uma nova reserva
surgiu. Continuava a olhá-lo fixamente, mas as lágrimas correram primeiro como inoportunas e depois acalmando a. Ele via o fenómeno com certa impaciência. Cenas
destas depois da meia-noite afiguravam-se-lhe indesejáveis. Deitou um olhar exausto para o manuscrito e disse em voz meiga:
- Vai-te deitar, minha filha.
- vou. - murmurou ela, obediente.
O marido aproximou-se, sentou-se no braço da poltrona de consulta e acariciou-lhe os cabelos lisos da nuca.
- Tens trabalhado muito nestes últimos dias, an ?
- perguntou - com certeza que não passaste as contas a limpo ?
- Passei. - murmurou ela que tinha tudo em ordem devido aos remorsos e à consciência pesada.
- Onde dormes desde que Sua Eminência está no nosso quarto ? - interrogou, já distraído.
- No quarto da pequena. vou deitar-me. Não trabalhes muito, Kola.
Inclinado para a caixa das fichas, o médico franziu as sobrancelhas. "No quarto da pequena... Lembrava se vagamente de que não havia lá nem sofá, nem cama, nem lugar
para uma pessoa se deitar, mas não possuía uma ideia exacta da disposição da casa; era destes homens que nunca sabem o que comem, que fato trazem vestido nem em
que espécie de cadeira estão sentados.
- Amanhã pomos o sr. Karbon na rua. Isto aqui não é uma casa de saúde. - disse de repente.
Elisabete parou no limiar da porta.
- Está bem. - respondeu.
Doía-lhe horrivelmente a garganta ao pensar que o Karbon se iria embora, era uma ideia cheia de sombrio e acabrunhador desespero.
- Mandá-lo-emos para casa do Raitzold, é o melhor que temos a fazer.
- Também acho. Ele prosseguiu:
- Poderá fazer olhos doces à sua actriz. Será esplêndido para ambos.
Desta vez, Elisabete não pôde responder. Engoliu qualquer coisa ácida, escaldante, amarga. Como nunca tivera ciúme, não soube o que aquilo era. Pensou: "O frasco
de sublimado já está vazio". Pegou nele, deixou correr água para dentro e deitou-lhe seis pastilhas avermelhadas. Precisava de fazer qualquer coisa, fosse o que
fosse, para transpor aquele momento de vertigem. E pensava ao mesmo tempo: "Mas eu que tenho com isso? Que tenho eu com isso, não me dirão?"
Sem entoação desagradável mas já inclinado para as fichas, o médico perguntou:
- Poderei agora trabalhar tranquilamente?
- Se é por minha causa, o melhor é deixá-lo cá ficar. Não me dá trabalho nenhum. - conseguiu enfim dizer.
O médico voltou-se e fitou-a. Vendo-lhe o rosto febril, pensou: "Preciso de lhe auscultar os pulmões",
Ela continuava:
- Quero dizer... se os Raitzold fizerem dificuldades... Eu tenho muito prazer em tratar dele.
Olhou-a, sorrindo:
- Exactamente como a Avelã a tratar das bonecas doentes. Boa noite. - e desta vez esqueceu-se completamente dela, consagrando-se à respiração e ao peso da água que
não podiam ser avaliadas no seu doente.
No vestíbulo, a mulher beijou o corrimão da escada, como se fosse um humano. A madeira usada era macia tanto ao contacto da mão como da cara. Algumas vezes sentia-se
tão abandonada de Deus e do mundo, que procurava refúgio nos objectos.
- Tu! - murmurou.
E não sabia se se referia ao hóspede adormecido, ao marido trabalhador ou à madeira muda, talhada num carvalho muitas vezes centenário.
A quarta-feira começa, logo de manhã, por uma formidável discussão entre o médico e o operário Lungaus, entorpecido, ainda pelos proibidos vapores do álcool. Dum
e doutro lado, há pragas com ranger de dentes, numa exaltação verdadeiramente desesperada. Porque não se trata apenas duma simples noite de bebedeira. Lungaus luta
pela sua liberdade de homem e não sabe como se há-de exprimir, embora tenha o sentimento de que é ofensa à sua dignidade não passar de ser sempre um "doente". Quanto
ao médico, nada mais é preciso dizer do que isto: trata-se da sua Ideia. As traves estremecem em toda a casa, a cal escorre, toca o telefone, a doente da pneumonia
morre no Priel com setenta e oito anos, o telefone toca sem cessar, a D. Leore manda perguntar se é hoje que lhe tiram os pontos, a água nos W-C não funciona outra
vez. Lungaus invoca os seus
deuses para não ir à oficina, não parte a lenha, deita se na cama e torna a adormecer. A sr.a Persenthein lança as últimas pàzadas de carvão no fogão da cozinha.
- Jesus, Maria, contanto que os Klinker mandem mais carvão mesmo sem este ter sido pago! O cacau para o sr. Karbon. Estará a dormir ainda ? Não; já lhe ouvi os passos.
Ó Kola, não poderás ver se a bomba lá de baixo funciona ? Nem pinga de água. Ó Avelã, corre a casa da sr.a Psamatis, diz-lhe que vá à rua do Priel, 31.
- Hoje não começo a consulta antes do meio-dia. Bem, até logo, minha filha.
A Psamatis não quere ir lavar e vestir a velha que morreu. Fez isto durante quarenta anos mas agora torna-se recalcitrante e recusa. O filho está doente; ainda não
melhorou do pontapé apanhado no domingo, no futebol. Ela está farta daquele modo de vida, tem que mudar, tudo tem que mudar. Que a família trate de lavar os seus
mortos, pois então! é para ficarem sabendo como um morto é pesado e custa a levantar ou a virar.
O sr. Oertchen, o proprietário da hospedaria de Oertchen, põe na fachada um grande cartaz com letras garrafais: "Hoje à noite grande sessão de cinema. A artista
Leore Lania, célebre em todo o mundo, no seu melhor filme: Uma aventura em Monte-Carlo. Programa esplêndido. Música. Entrada proibida às pessoas que tenham menos
de dezoito anos."
Um segundo cartaz, concebido nos mesmos termos, encontra se na porta do Angermann, enviesado por baixo do São Jorge e vai outro para o armazém do judeu.
Mas o sr. Markus ausentou se. Está em frente, na loja do cabeleireiro e, é verdade! foi arranjar as unhas.
- Ponteagudas ou ovais? - pergunta a rapariga da boca pintada e má reputação.
- Talvez ovais mas levemente ponteagudas.
- Onde fomos no domingo? -pergunta a manicure. Tem bastante tacto para evitar o tu mas demasiada intimidade para o tratar por senhor.
- A parte nenhuma... Estive a trabalhar,
-Em quê? Versos?-interroga, cheia de curiosidade e suspendendo a lima.
Tem gostos muito elevados a infeliz que veio parar a Lohwinckel!
-Sim, pouco mais ou menos. - responde o judeu, cheio de orgulho.
Traz óculos, e um casaco preto apesar da hora matinal. Numa palavra, prepara-se para ir ao Domínio apresentar os seus cumprimentos a Leore Lania.
- Vai-se ao cinema ?-pergunta o escândalo vivo da terra, na sua forma indirecta de se lhe dirigir.
- Talvez... Um bocadinho mais de brilho, sim? Já vi aquele filme há um ano, em Berlim.
Fica silencioso. Não pode pensar na grande cidade sem ter vontade de chorar. Oh! as conferências de Fahrenwaldt, a galeria do Deuíches Theattr, os passeios dominicais
em barco à vela no Havei, os lugares lá em cima nas "imperiais" dos autóbus, as salas, todas as salas de concerto, os museus, as bibliotecas...
- bom dia, sr. Behrendt, bom dia. -e lá vai passando, perdido nos seus sonhos, ao lado de várias notabilidades, enquanto se dirige para a loja.
- Aqui está um fulano que cada dia se mostra mais pretencioso. - diz o farmacêutico ao presidente da câmara, que anda a passear o cão.
O dr. Ohmann, o presidente de honra da Sociedade "União e Fraternidade", é um cérebro inteligente que outrora contribuiu para que se instalasse a luz eléctrica e
se construísse o novo liceu.
- Acha? Dizem que toca bem violino. Porque motivo não o convidamos para as nossas sessões de música de câmara ?
- É impossível, bem vê, embora se trate duma pessoa muito culta... No entanto... E a sua filha como está? Bem? E o noivo, igualmente? Ficará em Darmstadt, depois
do casamento, ou virá estabelecer-se aqui? Só Deus sabe como precisamos de outro médico!
- Mas parece que, desta vez, o nosso doutor trabalhou muito bem.
- Teve sorte... O que não impede que a estatística lhe atribua 25 de falecimentos.
-Ora, ora, Bchrendt... Adeus, até à vista. vou até à grade do Burhenne.
As dez horas todos os alunos do liceu estão reuni dos na aula. Cheira a cabelo molhado com as riscas mais ou menos rectas, a sanduíches de chouriço, calçado engraixado
- um indefenido aroma a escola e idade ingrata. O reitor pronuncia um discurso que não está mal elaborado:
- Não quero condenar duma forma absoluta o facto de se recusarem a denunciar o autor do desacato. Eu próprio os eduquei num espírito colectivo e muitas vezes declarei
que os alunos do liceu formam uma comunidade. No entanto, ofende me e magoa-me que, com o vosso silêncio, isto é, com a vossa aprovação, vocês escondam um acto tão
grosseiro, tão bárbaro, como este: a destruição duma pequenina árvore de fruto. Magoa-me profundamente.
E realmente, é uma coisa que entristece o reitor Burhenne, o fanático amador de espécies raras em árvores de fruto com que ele enche grande parte do programa ministrado
aos alunos. O seu marmeleiro está perdido; rugas desoladas riscam em todos os sentidos a sua cabeça de Bismarck.
- Se o autor da malvadez não possuir a dignidade suficiente para se denunciar, tomando a responsabilidade dos seus actos, o liceu inteiro ficará de castigo esta
tarde, depois das quatro horas. Todas as classes deverão estar presentes e até às seis horas...
Detrás do órgão, dá um passo em frente o hornem de confiança do sexto ano:
- Tomo a liberdade de pedir ao sr. Reitor o favor de transferir o castigo para amanhã, visto que hoje temos a nossa reunião de jogos.
- Jogos ? Proibi os desafios de toda a espécie. E aproveito a ocasião para lembrar às classes superiores, de maneira formal, a interdição que fiz sobre o acto de
fumar, Quem não se apresentar esta tarde, às quatro horas...
De repente, o dr. Kreibisch intervém na conversa. professor de cultura física, inglês e geografia, de vinte e sete anos de idade, fora mandado vir pelo presidente
da Câmara duma escola naturista. Os rapazes são-lhe muito afeiçoados, e corre mesmo o boato inverosímil de ele ter permitido a três alunos do sétimo ano que o tratassem
por tu. De pé, destacando-se no vidro multicor da aula, intervém :
- Realmente, sr. Reitor, é o dia regulamentar previsto para os exercícios de educação física. Os nossos rapazes tinham combinado uma espécie de exibição de ginástica
: barra fixa, bassball, cem metros. Convidaram o campeão de box, é uma coisa que os entusiasma, evidentemente. Se me permite que interceda em seu favor...
- Isso está absolutamente fora de discussão. O campeão de box? O senhor está vendo onde conduz essa educação que não faz senão selvagens. Meia volta. Marche!
Os dois filhos do sr. Profet, Otto e Paulo, têm grandes orelhas encarnadas. Kolke dá uma calcadela no mais novo porque é um choramingão, um traidor e um amarelo
- não se pode confiar nele. Na escada, o aluno do sétimo ano, Gurzle, mostra-lhe o enorme punho cerrado e húmido. Passa, de mão em mão, um bilhete escrito com tinta
da China, vermelha: "Reunião secreta à uma hora, por trás do lago dos patos".
Entretanto, o boxer Albert está sentado em face do seu segundo almoço - não fazem outra coisa senão almoçar, naquela casa. Pensa melancolicamente: "Daqui a pouco
estou gordo que nem um cevado!" Mas ataca o prato cheio, sob o olhar insistente e significativo da sr.a Profet.
Franz Albert foi sempre o homem menos independente que existiu sobre a terra. Desde os dezassete anos que estava sob a guarda e a disciplina do seu treinador Simotzky;
é pesado, alimentado, obrigado a engordar ou emagrecer, treinado para os combater, lançado para o ring ou retido, segundo as conjecturas. Simotzky anda sempre atrás
dele, come e dorme a seu lado; despacha-o como uma encomenda postal, expede-o para
Espanha, Holanda ou América; arranja-lhe os músculos de que precisa, o dinheiro que ganha, os adversários, os bilhetes de comboio e mesmo, lá de longe em longe,
mulheres. Simotzky sabe do que ele carece, quando deve comer, beber, transpirar, treinar-se ou jogar as cartas para se acalmar. Simotzky é bom como uma ama e severo
como um guarda de galera.
Fora pois a este Simotzky que Franz Albert escrevera uma carta absolutamente correcta, nos seguintes termos:
"Ex.mo Sr. Alexandre Simotzky Escola de Educação Física Kaiserallée 14 a. Berlim.
"Meu caro Alex:
Informo-te que tivemos pouca sorte com o carro e que capotámos. Não te assustes, meu caro Alex, porque tudo se passou bem e estou são e salvo. O susto apenas me
destrambelhou um pouco os nervos e por estes tempos mais chegados não me sinto em estado de trabalhar. Mas o médico afirma que o moral ficará bom dentro de poucos
dias. Os outros estão pior do que eu, sobretudo a Lania que apanhou um golpe valente. Creio que está morta: tem a cara toda cheia de costuras. Eu tenho apenas uma
coisita no nariz, o polegar direito esfolado e a cicatriz da orelha que tornou a deitar sangue. De resto, sinto-me bem. Estou alojado em casa de pessoas amáveis
e ricas, num verdadeiro buraco mas extremamente simpático. Mas como demais e alimentos pesados: a senhora está sempre a insistir e, por delicadeza, tenho que lhe
obedecer. Receio que toda esta comezaina me faça perder a linha, mas não te apoquentes, o Franz é pessoa de juízo. Quando tiveres marcado o encontro com Kid Rowles
telegrafa-me e logo. Podes contar comigo. Jurei a mim próprio nunca mais viajar sem ti.
Teu fiel amigo
Franz."
Como nenhuma ordem vem em resposta a esta carta, Franz Albert conserva-se provisoriamente tranquilo em Lohwinckel, restabelecido mas desamparado e absolutamente
incapaz de ir de seu motu-próprio até à estação de Lohwinckel-Dusswald e daí até Berlim.
"Faço-me velho aqui" pensa na quarta-feira. Então dirige-se para a cozinha, corta um bocado da corda de estender roupa e começa por saltar três vezes seguidas, tão
levemente que mal se vêem os pés a tomar contacto com o chão. De olhos comovidos, a sr.a Profet assiste ao espectáculo. Em roda do homem flutua um cheiro tão forte
e são a suor que a sr.a Profet sente uma grande vergonha.
Entretanto, o marido está em comunicação com o seu amigo Kramsch, de Schaffenburg.
- Muito bem. Conta com isso. Torno a ficar com as outras hipotecas, trinta e oito mil marcos, não contando com os juros vencidos desde Maio. Corro o risco, é claro.
O quê ? As vinhas pertencem há duzentos anos aos Raitzold ? Muito bem; pois pertencerão durante os dois próximos séculos à minha família, pois então. Menina, não
desligue! Que horrível está hoje o telefone!...
É um golpe napoleónico temido pelo sr. de Raitzold há mais de quatro anos. Mas sempre faltava coragem ao Profet para o tentar. Agora tudo se move como num tremor
de terra. Primeiro são as folhas das árvores que tremem imperceptivelmente depois o solo que escorrega a uma velocidade espantosa. Lohwinckel estremeceu, agora caminha.
Onde está o Muller com o carro ? O Muller está ali mas não o carro. com os dentes cerrados declara:
-O automóvel não anda. Faltam lhe peças, é preciso esperar que venham de fora.
O sr. Profet não percebe nada e resolve ir a pé para a fábrica. Durante os quarenta e quatro minutos de caminho há muita gente que o não cumprimenta.
A fábrica está no mesmo estado que o carro: não funciona. Os operários-mais dum terço -conservam-se lá a fingir que trabalham. Na moldagem, a corrente eléctrica
foi cortada, estando imersos em profunda obscuridade o depósito n.? 3 e o da embalagem. "Um curto-circuito cuja causa permanece ignorada" dizem eles, encolhendo
os ombros.
- Nós fartámo-nos de pedir que abrissem janelas nestes depósitos, foi uma coisa que pedimos sempre. declara Birkner que relata o que se passa, com ar importante.
O sr. Profet, que sente o sarcasmo e o espírito sedicioso, bate em retirada.
- Trate de me pôr tudo pronto a funcionar para amanhã de manhã; a responsabilidade é sua.
São palavras absolutamente absurdas, tanto mais que se não dirigem ao enérgico chefe dos delegados operários, a Birkner, mas ao velho contramestre Hockling, inocente
e atrapalhado, que coça com terror o fundo das calças.
Ó tempo também anda desorientado: em Outubro faz tanto calor como se fosse o pino do verão. Espraiam-se pelo céu pequeninas nuvens, dum azul transparente, o ar está
húmido, as últimas flores de chicória, à beira do caminho, têm um aspecto fatigado, se bem
que teimoso.
Dá meio dia na igreja. Está a findar o mercado de quinta-feira; ninguém poderá dizer porque motivo os ovos aumentaram dois pennig. Ficam no chão cascas de cebolas
e folhas de alhos franceses, esmagadas, até que o Schmittbold apareça com a sua vassoura e, numa nuvem de pó, restabeleça a ordem. O velho abade sai da igreja depois
de ter ouvido em confissão a costureira Ritting que lhe confessa um pecado venial: ocupa-o muitas vezes e compreende-se visto que é aquele o único divertimento que
tem na sua vazia existência de solteirona. A sr.a Markus leva uma galinha viva, metida numa toalha, ao velho sapateiro e carniceiro judeu Popp, para que a sangre,
segundo o ritual, com um golpe no pescoço. A esposa do presidente da Câmara, com um vestido em que o tom branco está bastante alterado, segue pela rua do Priel até
ao court de ténis, por snobismo. Excitado, o sr. Profet sai da Caixa Económica, atravessa o largo amornado pelo sol e desaparece sob o
portão da Câmara construída em MDCXV e restaurada em MDCCCCVII. Precisa de falar ao presidente, com a máxima urgência.
- Parece que toda a cidade está fora dos eixos. Bem, mande-o entrar. - diz o dr. Ohmann ao seu secretário Haberlandt.
Em frente da papelaria-livraria da viúva Seeling há um magote de gente para ver os postais que mostram a Leore Lania muito meiga com olhos encantadores e ar misterioso.
Vindo de almoçar, os funcionários públicos detêem-se pensativos, apoderando-se deles o estranho sentimento de que aquela mulher, aquela estrela, aquela pessoa impalpável
está bem perto deles.
A Avelã passa na rua com um cesto onde vão ossos para o cozido. Leva o macaco azul que suscita a censura geral.
- Já sabe se o doutor operou a Leore Lania? Ela prometeu-lhe três mil marcos se ficasse sem marca nenhuma.
No "Cisne Branco" põem lençóis limpos numa cama e enceram o chão dum quarto em intenção ao sr. Karbon que o reservou pelo telefone para as duas da tarde. A mulher
do hoteleiro perdeu a cabeça: está a pôr paninhos de croché em todos os sítios possíveis e imaginários.
Uma menos um quarto: os rapazes saem do liceu ; pode começar a reunião secreta por trás do lago dos patos. com melancólica expressão, a pequena Madona que está por
cima da fonte obstruída oferece ao filho a maçã de pedra. Passa sob o pórtico o segundo carro da correspondência, vibra a casa do Angermann, dói a cabeça ao Lungaus
e, no quarto, o Peter Karbon está a arrumar a mala amachucada para se ir embora.
Naquela quarta-feira, ele acordara com a cabeça livre, como pessoa de boa saúde. Ainda lhe doía o ombro mas não lhe desagradava tal sofrimento: representava um resto
de fadiga e de aventura. Havia poucos periodos na sua vida que não tivessem impressões daquelas
- assim como as crianças que têm sempre os joelhos feridos - e achava esse facto quási natural.
- Isto agora vai. - murmurou, enquanto lavava os
dentes.
A ideia de mudar de casa já o tinha assaltado mas
tomou a firme decisão um pouco depois das nove, quando, em frente do cubículo de arrumações, viu a Elisabete ocupada a engraxar-lhe os sapatos.
Estava sentada no soalho com a semi-escuridão a comer-lhe o rosto empalidecido e o grande sapato de Peter enfiado na mão esquerda, enquanto a direita espalhava a
pomada e esfregava concentrada e gravemente.
- Que está a fazer? - perguntou ele num tom que a vergonha tornava duro. Tirou-lhe o sapato da mão e pegou no pano da terebintina. De resto, isto não adiantou muito
porque ela pegou logo no exemplar seguinte, da grande fila exposta, e começou a rapar a lama dos tacões cambados, do marido. Mas corou levemente.
- A criada não aparece há dois dias! É de Obanger e não sei que coisas lhe disseram. O Lungaus nunca mais acorda! A pequena é que me tem ajudado...
Dava estas explicações, confusa e desesperada.
- Pois eu costumo sempre limpar o meu calçado. É um hábito inglês. Na Inglaterra inteira, nenhum lord permitiria, fosse a quem fosse, que lhe engraxasse o calçado.
- afirmou Peter audaciosamente.
Acabou daí a pouco de puxar lustro ao seu sapato castanho e apoderou-se do calçado feminino que estava colocado fora da fila. Elisabete ticou exuberantemente alegre
- o que a surpreendeu. Era um dos relâmpagos que, de vez em quando, a atravessavam.
- A história dos lords é muitíssimo conhecida. Agora o que eu ignorava, era que os lords engraxavam também os sapatos das ladies nos castles em que são
convidados.
Peter assobiou. A sua mão foi até ao fundo do sapato e experimentou um sentimento de malícia atravessado por profunda ternura. O sapato era comprido e tomara a surpreendente
estreiteza do pé da sua dona. Tinha o tacão bastante gasto, estava roto na ponta mas
fora cosido com o encerado fio de sapateiro. Peter acariciou docemente aquele sítio deteriorado, lançando um rápido olhar à Elisabete. Ela notou mas ficou muito
grave. Havia entre os seus ombros meio metro de ar que estava carregado duma corrente alta, enervante e perigosa. Mais longe, via-se a Avelã a rapar conscienciosamente
a lama das suas botinhas, sempre úmidas.
- Sonhei consigo. - disse ele. Silêncio. O par seguinte.
- E verdade. - acrescentou como se ela tivesse duvidado. - Foi maravilhoso.
Silêncio.
- Milady não responde?
Elisabete ergueu os olhos e mergulhou-os verticalmente nos de Karbon. E pensou: "Isto não pode continuar!".
Disse corajosamente:
- Desorienta-me.
- É verdade ? Desoriento-a ? - e colheu avidamente o seu olhar.
Pouco a pouco, também ele ia ficando sério.
- É verdade ? - perguntou ainda.
Sentia um grande desejo de lhe apertar a mão, colocando-a sobre o seu coração, mas ambos tinham as mãos metidas nos sapatos.
- A mamã chorou muito. - anunciou a Avelã lá do fundo do cubículo.
Nessa altura, Karbon resolveu pôr a escova no chão e acariciou, por três vezes, os joelhos da Elisabete.
- A mamã não deve fazer semelhante coisa. - disse em voz baixa.
Foi imediatamente tomado por uma pressa terrível.
- Tenho que telefonar já. - declarou, dirigindo-se para o aparelho.
- Mas o que foi? Porquê? - perguntou Elisabete, aflita.
- Porque estou restabelecido. Não sabe que todos os berlinenses de saúde começam por telefonar durante uma hora todas as manhãs ?
Elisabete levantou-se e sacudiu o avental - não era o da véspera mas o das joaninhas.
-O telefone está na sala de consulta. Desculpe eu não o acompanhar... Preciso de arrumar aqui.
- Ainda não deu por isso? -O quê?
- Que eu ando a correr atrás de si como se fosse um cãozinho de regaço, que ...
Chegou à sala onde se notavam já vestígios da passagem do médico: fumo, cinzeiros cheios, chávenas de café vazias, e folhas de papel por todos os lados.
Quis telefonar mas teve que recorrer à ajuda da Avelã que deu volta à antiga manivela. Procurou na lista telefónica: Maiença e arredores, Lohwinckel, ver em Lohwinckel-Dusswald.
- Bem, agora está aqui tudo de que precisas. Eu vou-me embora porque tenho imenso que fazer.- disse a Avelã, cheia de importância.
Mas, primeiro, tinha várias missões a cumprir naquela sala: estava encarregada de esvaziar o cesto dos papéis, pôr em fila os copos vermelhos, verdes e azuis (médicos
modernos, não empreguem senão as ventosas coloridas de Kliemann!), procurar a correspondência, colocar por números, as revistas que se encontravam misturadas já lia correctamente os algarismos).
A Elisabete andava dum lado para o outro; respirava à janela a tépida manhã, ouvia os sinos que tornavam a tocar, desta vez para a falecida da rua do Priel, n.?
34.
Ao telefone, Karbon disse:
- Como dão uma impressão católica, estes sinos! Falava com a Leore Lania. A Elisabete que não
queria ouvir, ouvia tudo.
- Então como vai a Pittyevitte? É preciso ter juízo, Pittyevitte. Esta tarde irei ver a pobre Pittyevitte.
Ardeu lhe no peito a mesma queimadura intolerável e maldosa. Desta vez compreendeu: era ciúme. Sentiu rasgar-se qualquer coisa dentro de si e, enquanto estava de
pé em frente do esterilizador, pescando com a pinça os especulum fervidos na água, teve um relâmpago de lucidez. Entretanto, Karbon já mandara preparar um
quarto no "Cisne Branco", falava a Franz Albert e alcançara par meio duma chamada urgente, inter-urbana, um tal Droegemann, no seu escritório de Berlim. O rosto
de Karbon mudou de expressão, pôs a máscara que todos os homens usam no exercício das suas profissões e surgiu um turbilhão de datas, conferências, cabogramas para
Londres, discursos do Ministro dos Negócios Estrangeiros e contra seguro. Por fim, houve censuras por causa da detestável tradução dum texto de publicidade - e como
vai o negócio russo ? Obrigado. Até amanhã.
-Pronto!-e voltou o rosto anterior.- Já fiz alguma coisa. Agora posso cá ficar o tempo que for preciso.
- Então quando pensa em se ir embora?
- Isso não depende de mim. - respondeu em ar misterioso.
Estava entusiasmado ao ver a nuvem cor de rosa que subia pelo pescoço da Elisabete. E pensava: "Que diabo! Pois ainda há uma mulher que saiba corar?!Ela raciocinava:
"Claro! Tem que esperar pela sua actriz." E sem mais conversa, dirigiu-se para o vestíbulo onde os primeiros doentes vinham chegando. Ele pegou na vassoura de que
ela se esquecera.
Às dez horas, Peter Karbon pôs a funcionar a bomba eléctrica do subterrâneo, às dez e meia foi para a cozinha partir lenha e depois ocupou o lugar do Lungaus sobre
o caixote do carvão, ajudando a descascar as batatas. Preparou ainda as sandwiches para o segundo pequeno almoço do médico, enquanto a Elisabete fazia o chá e escolhia
os espinafres. Karbon estava divertidíssimo; era ridículo e estúpido querer ficar ao pé daquela mulher, mas era assim mesmo: resolvera não a largar nem um minuto,
pelo menos provisoriamente. Quanto a Elisabete, nunca na sua vida se sentira tão feliz como naquela manhã. Era uma felicidade dançante e dolorosa, uma felicidade
transparente e cheia de luz que flutuava por cima dum abismo de angústia e de pressentimentos de partida, que é afinal o início do amor -um nevoeiro dourado antes
do nascer do sol; o fruto coberto
de orvalho antes que a mão venha colhê-lo; um coração em botão.
No intervalo, como um fantasma, o médico apareceu duas vezes na cozinha, com os olhos febris, deprimido, de mau humor e com a voz cheia de censuras:
- Mas porque demónio não foram preparadas as espátulas? Onde estão elas? No armário também não há! Realmente não é exigir muito, desejar que tudo esteja em ordem
para poder trabalhar. Se realmente nem espátulas há...
Elisabete correu ao armário.
- As espátulas estão aqui. A Avelã pô-las do lado direito em vez de as pôr à esquerda. Aqui estão, pronto, não te zangues, Kola.
Mas o Kola não era mais do que uma sombra pesada e carrancuda no meio dos seus doentes de pele úmida.
Um pouco antes do meio-dia houve uma estranha conversa entre Karbon e a esposa do médico.
- Se a Elisabete pudesse formar três votos e que todos se realizassem, o que pediria?
- Oitocentos e vinte marcos. - disse ela, sem reflectir. Era a soma que calculara sempre no livro das contas: as dívidas ao Markus, o dinheiro para o carvão, a carne
e a manteiga, três prestações do pantoscópio, um aparelho de transfusão de sangue, sapatos novos para a pequena, quatro pares de lençóis, doze pratinhos de vidro,
afinar o piano e um casaco para o inverno: oitocentos e vinte marcos.
As mãos de Peter estremeceram como se se tratasse de pescar um afogado, mas pô-las logo em descanso sobre a mesa.
"Não posso, realmente, mostrar-me grosseiro e passar-lhe um cheque. - pensou - Não posso responder
nem uma palavra. Que diabo! E é superior às minhas forças vê-la, aflita por causa duma quantia insignificante. Por fim, disse:
- Mas isso não é um voto. Devo ao seu marido o quádruplo dessa importância. Ora vamos: faça três votos verdadeiros.
Elisabete olhou-o atentamente. Levou algum tempo a assimilar a resposta, pensando na soma a que ele vinha de aludir. O quádruplo! As preocupações são o mais tenaz
hábito que há no mundo. O pobre diabo a quem saiu a sorte grande, continua a acordar todas as manhãs a pensar na maneira como há-de ganhar o pão cotidiano. A Elisabete
era incapaz de imaginar dinheiro em quantidade suficiente, o que lhe dava grande amargura. O sr. Karbon era um homem rico que pagava e prosseguia no seu caminho.
E eles ficavam em Lohwinckel. A sua sorte que lhe importava?
"Como ela respira!" - pensava Peter, encantado. Dir-se-ia que não respirava como as outras pessoas. Era preciso que estivesse apaixonado e louco de alegria para
encontrar qualquer coisa extraordinária na sua maneira de respirar. O lábio superior que, em geral, estava descido, subira, o que lhe dava uma expressão de abandono
e de surpresa, a garganta movia-se lentamente, mais de quinhentas joaninhas lhe percorriam o avental azul.
- Então ? Três votos verdadeiros. - exigiu Peter.
Desta vez, pôs-se a reflectir e muitas coisas supérfluas se lhe apresentaram ao espírito, desviando-a do essencial: outra vez os lençóis, uma nova máquina de costura,
o aparelho de rádio, uma reparação a valer no aquecedor dos banhos. Por fim, chegou ao mais importante.
- Desejaria tornar a ser o que fui. - e as suas omoplatas, sempre fatigadas, inclinaram-se ainda mais.
- Então como era dantes? - perguntou ele, sorrindo.
- Não sei... alegre. Sim ... Talvez tonta e superficial mas tão alegre! Fui criada no meio de rapazes, porque o meu pai queria que eu estudasse. Não era feita para
isso, mas fartei me de pregar partidas com os rapazes. Se me tivesse pedido para subir lá acima à
torre da igreja, não hesitaria um segundo. Depois passei uns seis meses em Munique. Meu Deus, se pudesse ser outra vez a rapariga que esteve em Munique!
- Sim? E quando mudou?
- Quando casei, é claro.
Disse isto espontaneamente mas logo se arrependeu. E emendou:
- Mas sou muito feliz com o meu marido. - e teve uma expressão de teimosia. Olhou depois para as
mãos.
Também Peter fixou as palmas abertas. Havia dois dias que ela começara a cuidar das mãos com creme e verniz. No entanto, durante os dez segundos que se seguiram
e enquanto ambos olhavam para as esguias mãos gastas pelo trabalho, foi como se toda a mágoa e todas as decepções da sua vida estivessem visíveis nas
fendas da pele.
Furioso, Peter pensou: "Espinafres. Graxa, pó de
carvão. Que estupidez!"
- Bem. Agora o segundo voto.
- Tive sempre a ideia que, mais dia menos dia, havia de ir a Nápoles.
-Ah?! E porquê Nápoles?
- Não é bonito?
- É lindo. Mas não é uma viagem; está muito perto. vou dizer-lhe uma coisa, Elisabete. Todo o mundo é bonito; ainda não vi um local que me tenha desagradado. Mas
viajar é outra coisa. A inquietação, compreende? O sentimento de ser levado para longe, de se mover - à noite quando se acorda, ouvem-se as rodas, sentem-se os eixos
a girar. Está no transsiberiano, vamos, são dois dias até Omsk e depois Irkusk, ou mais para lá ainda, no Oceano Pacífico, ou num paquete... a gente a ir e vir na
ponte por exemplo, às três da manhã, a ouvir o ruído da vaga fendida pela proa, a hélice que estremece avançando sempre, a não estar mais onde se esteve - esta impressão
é tão forte que até dá vontade de gritar de prazer!... Mas Nápoles
porquê ?
- Não sei. Em casa de meu pai tínhamos um
quadro... adormeci tanta vez a olhar para Nápoles que ... Deve ser por isto.
- Não faça votos tão modestos. Diga antes: índia. -Está bem, então a índia.-concordou ela, sorrindo como uma criança. E ele pensou: "E hás-de vê-la!" Elisabete olhava
para aquele homem desconhecido com a sua madeixa de cabelos ruivos, assustada como se de repente se tivessem aberto todas as janelas do Angermann e entrasse um vendaval.
Países estranhos, o mundo e a aventura. Nenhum homem em Lohwinckel se parecia com aquele, tudo era descolorido em seu redor. Espantava-se, quando o olhava de imprevisto,
que existisse na realidade uma espécie de homem tão inacreditável.
8 - Agora o terceiro voto.
- Ainda me falta um ? - perguntou ela com uma
expressão tão grave e aflita, como se Peter Karbon fosse um feiticeiro fugido dum conto de fadas, que obrasse milagres prodigiosos - Mas que brincadeira tão tola!
-e levantou-se - vou mas é para a cozinha, tenho lá os legumes à minha espera.
Ficou com os olhos mesmo em frente da sua boca, quando se levantou. Viu-lhe os lábios desenhados com tanta perfeição e nitidez como que através do microscópio, que
sentiu o coração apertado.
Evocando uma longa estrada de mulheres diferentes, ele disse:
- É a primeira mulher que tem exactamente a minha estatura. Dançaríamos maravilhosamente, juntos. Gosta de dançar?
- Adoro.
- Dança muito?
- Nunca.
O facto de ele ter dito nós, nós dançaríamos, tornou
a fazer-lhe afluir o sangue à nuca. Havia naquela palavra qualquer coisa: ou promessa ou ameaça. Qualquer coisa que se aproximava. Quis fugir.
- Espere! - gritou Karbon, correndo atrás dela.-
Então o terceiro voto?
Parou. Deteve-se no limiar do quarto da filha. Lá dentro, um pacífico urso de peluche almoçava com duas bonecas gravemente enfermas e a Avelã traçava algarismos
num velho livro de contas.
No tom apressado que ouvira cem vezes à mãe,
disse:
-Não me incomodem. Preciso de fazer as minhas
contas.
Peter reteve a Elisabete pegando-lhe no cotovelo. Tinha uma pele macia, fresca, de pulsações multiplicadas.
- Então ? - perguntou.
- É difícil... Desejaria que tudo isto mudasse.
- Como ?
- Tudo. Diferente. Não sei como, mas diverso.
- Bem. -pronunciou Peter no tom de voz com que respondia quando lhe faziam uma encomenda. E
largou-a.
Ela desapareceu logo na escuridão da escada de madeira. E no mais íntimo de si própria, murmurou: "Mas já tudo mudou!
Karbon gritou-lhe ainda:
- vou fazer as minhas malas. -O quê?
Lá em cima, no patamar, tinha um pouco de claridade em redor da cabeça e dos ombros.
- Vou-me embora. Não quero cá continuar em
sua casa.
Elisabete ficou pregada ao quarto degrau.
- Mas porquê, meu Deus?
- Porque... Mas não posso agora berrar isto atra vês a casa toda. Dir-lho-ei esta tarde. Logo vamos dar um passeio.
- Não tenho tempo.
- Tem que o arranjar. E desapareceu.
Elisabete encontrou na cozinha os espinafres demasiado cozidos e o lume quási apagado. Lançou-se ao trabalho como se fosse salvar a sua alma náufraga e tomada de
vertigem. Desejaria passar dez minutos na
igreja mas não lhe era possível. Apressou-se a engomar umas toalhas, depois o doutor chegou e veio buscá-la. Embora fosse quási meio-dia, o vestíbulo estava cheio
de gente; a rumorosa inquietação de Lohwinckel vinha bater, com as suas indefiníveis vagas na casa do Angermann. Na sala de consulta, tratava-se de lancetar um panarício
a uma criança recalcitrante e mortalmente aterrorizada. Elisabete colocou nos joelhos o homenzito a debater-se, o pequeno embrulho de pulsações cardíacas, e prendeu-o
nos braços.
- Mais alto. - ordenou o médico. - Mais perto da janela. Agarra-o com força. Também estás a tremer? Se não consegues ficar imóvel, então ...
Elisabete dominou-se. Respirava com precaução o cheiro que subia da bata do marido: um cheiro a iodo e tabaco barato. Saltou pus do abcesso aberto, sentiu-se envolta
em nevoeiro e quási a desmaiar. Teve receio de não aguentar, lembrando-se do horror que tinha ao aroma clínico do marido. Depois, a criança começou a chorar copiosamente,
encostando o rosto molhado de lágrimas ao seu peito.
- Lá para fora. - ordenou o médico. - O seguinte. Aqueles pequenos braços estranhos em redor do seu
pescoço, deram a Elisabete um leve reconforto. A Avelã nunca chorava, nunca beijava e nunca tinha necessidade de ser consolada; o seu sólido coraçãozito parecia
estar protegido por uma concha.
"Mas que tenho eu?" - perguntava a si própria, enquanto entregava o rapazito ao pai. "Tudo está em ordem."
- Aqui tem mais roupa que lhe pertence. - disse, quando, passado um quarto de hora, entrou no quarto onde Karbon fazia a mala. - Mas que lhe deu assim, de repente,
para querer ir-se embora? Ao menos, cá em casa, sempre tem um quarto de banho, uma coisa que não encontrará em todo Lohwinckel...
Era um argumento desastrado, nada em proporção com a suplicante expressão dos seus olhos - expressão que ignorava.
Karbon deixou logo de fazer a mala e caminhou
para ela através do soalho às ondas. Visto de dia aquele quarto era horrível e cortava a respiração: lá estavam as camas herdadas do tio Burhenne, o teto sombrio
e pesado, o toucador com o oleado imitando mármore.
- Bem sabe porque me vou embora. Acha que não tenho razão?
- Não. - disse ela, enquanto pensava "sim".
- é melhor pôr os pontos nos is. Primeiro, detesto ser servido por si, acho isso vergonhoso. Não posso suportar por mais tempo essa tortura. E de resto... devido
ao que se passa entre nós, prefiro não habitar na casa do seu marido. Tenho muita estima por ele. - E inclinou levemente o corpo.
Todas estas frases vibraram aos ouvidos da Elisabete como se fossem lâminas. O seu coração parou.
-O que se passa entre nós... mas é absurdo! balbuciou.
Ele estava em pé, com a cabeça encostada à porta e desviado de Elisabete.
- Não podemos falar longamente disto. Faltam hoje, no nosso vocabulário, alguns termos apropriados. Não posso começar por dizer: "Amo-te e "Amas-me?" Mas, ambos,
sabemos muito bem o que se passa. Sabes que não te abandonarei aqui. E eu sei que partirás comigo. Queres mais explicações?
- Mas não é verdade, não é verdade!- balbuciou Elisabete - Não é verdade ...
Tremor de terra, catástrofe, explosão. Karbon avançou para ela, da porta até à beira do leito. com furiosa violência desejou beijá-la, beijá-la de tal maneira que
ela se tornasse nova: tirá-la da casca anterior para lhe dar a sua verdadeira forma. Parecia-lhe mascarada desde que a vira pela primeira vez, nobre, simples no
seu avental de Gata Borralheira. Para todos estes pensamentos não havia palavras nem imagens, enquanto a tomava nos braços com a boca suplicante sob a sua - era
uma labareda de sentimentos dirigidos para o céu. Quanto a Elisabete, parecia-lhe que levara a vida inteira a esperar aquilo, a impressão de afundamento, sentindo
espalhar-se sobre si a realização de todos os seus sonhos.
-Isto é que é verdadeiro... -disse ele, quando a libertou do beijo.
com os olhos cegos, ela dirigiu-se para a janela. No fundo do quarto, Peter Karbon estendeu o queixo, bateu nos quadris, aspirou violentamente o ar. Tinha a impressão
de que o seu futuro se lhe erguia na frente, leve e colorido como um cacho de balões. Recuperando o sangue-frio, pegou no calçado envolto em papel de seda, depois
no cabide desmontável e continuou a arrumar as suas coisas.
- E como é que isto vai continuar entre nós, Elisabete?
-Continuar? Que ideia! Vai partir e eu ficarei aqui.
- Não pense nisso. - E de novo ela sentiu a sua aproximação ardente e vibrante.
Precisamente no momento em que a sua fronte atingiu o ombro de Elisabete, bateram à porta. Apareceu o Lungaus, que tinha dores na cabeça e na consciência, mas que
continuava a arvorar o seu aspecto teimoso e mal lavado nas flutuantes calças do médico.
- Não queria incomodá-los, -disse com prudência
- vinha apenas saber o que há acerca do meu pequeno almoço.
- Tem café lá dentro. - respondeu Elisabete, sem se voltar.
- O café não está dentro do meu regime, por causa dos venenos que devo evitar.
- Então espere até ao meio dia. Não preparei nada para si.
O Lungaus, à porta, estava petrificado.
- Mas preciso de comer. Não me sinto nada bem. -gemeu.
A Elisabete esforçou se por conservar as mãos imóveis, acalmar os lábios e a voz, mas tudo tremia ainda.
- Há chouriço na sala de jantar. Vá lá e faça uma Sandwich.
-Chouriço, eu? Chouriço?-perguntou o homem, entrando no quarto com os chinelos a arrastar e cheio de espanto.
De repente, Elisabete sentiu se farta dele e de tudo, dos três anos de cuidados dispensados ao Lungaus e do seu longo martírio em holocausto à Ideia. Voltou-se bruscamente:
- Se você se pode emborrachar como um porco, também pode comer chouriço!-e, ao gritar isto, tinha os lábios pálidos, as unhas brancas e a íris dos olhos mais clara.
Karbon deu uma grande gargalhada, por trás da tampa da mala. Lungaus meneou a cabeça, em ar significativo.
- Eu só queria dizer: e o doutor, que fará quando souber? Chouriço!
- É escusado dizer ao doutor. - respondeu Elisabete, voltando-se outra vez para a janela.
Lungaus observou-a, olhou para Karbon e voltou a observar Elisabete.
- Ah, bom. É escusado dizer ao doutor? Está bem, cá por mim ... Eu não direi coisa nenhuma... - e foi-se embora.
Caiu um pouco de caliça quando ele fechou a porta. O São Jorge, a primitiva estátua em madeira, de enorme cabeça, enterrou a sua lança no focinho agolfinhado dum
tosco dragão. Começara a anarquia na casa do Angermann.
Quando Leore Lania empreendeu aquela viagem de recreio teve, entre outros, o desejo de se desabituar dos estupefacientes. Mas agora que estava estendida, doente,
no quarto de hóspedes, ora fresco, ora abafado, do Domínio, com a cabeça atordoada pelas preocupações, não pensou mais em se privar. Mandou várias mensagens através
do mundo a alguns homens dedicados; mas conhecendo bem a comunidade humana, não esperava nenhum socorro. Telegrafou, por exemplo:
"Doutora Marta Stein Neubabelsberg
Não te assustes, minha querida, ainda estou viva, stop, manda recortes jornais sobre desastre para Raitzold Lohwinckel, stop. Beijos da pobre Loleyn..
Na terça-feira chegaram realmente alguns jornais onde se falava de horríveis fendas no rosto. No intervalo, mandara uma carta ao sr. Erich von Mollzahn, Kíel-Holtenau,
aeroporto marítimo.
"Meu querido, estou deitada debaixo dum dossel de cama e peço a Deus para que a minha carta te apanhe não estando tu empoleirado com o teu pássaro em sei lá que
ponte de navio, ou então na iminência de te fazeres projectar por qualquer catapulta num oceano ignorado onde não chegariam os gritos desesperados da tua Bibi. É
claro que me sinto muito infeliz, doutro modo não recorreria a ti. Bem sabes que, quando estou infeliz, és tu o único. Viste os jornais? Devem fazer um barulho espantoso
com tudo que inventam! Agora ouve: preciso que procures um médico, o melhor especialista em cirurgia facial que possas descobrir. Caí aqui nas mãos dum homem no
qual não tenho a mínima confiança; tem umas patas enormes e faz doer imenso -dá a impressão de que onde toca nada mais renasce. As pessoas que me alojaram também
não têm consideração por ele; acaba de fazer uma operação mortal num criado. Pois bem! Provisoriamente, a Bibi ainda está viva, mas tu que a conheces, bem sabes
que ela só viverá o tempo que quiser e nunca com o rosto desfigurado. Oh, meu querido Erich, ainda se tu estivesses junto de mim, uma só hora que fosse! És tão grande
e ajuizado e tens as mãos tão quentes! O Karbon, com quem comecei a maldita excursão, é muito gentil mas também está ferido e não imaginas como as pessoas se tornam
egoístas depois de desastres assim. De repente, uma pessoa descobre que andava a viajar através do mundo com entes absolutamente
estranhos. A Bibi está neura, já percebeste? Alimentam a Bibi com um pequeno tubo de vidro e só toma coisas líquidas; cobriram-lhe de emplastros metade da cara.
Vive aqui longe de tudo, numa propriedade melancólica quási a falir. "Queda da Casa Usher", lembras-te? Em frente das janelas há nuvens e andorinhas que se juntam
para partir. A minha cama está rodeada de cortinados que têm um cheiro esquisito, a bafio. O quarto é gelado, só queimam madeira molhada, de pinho, e lamentam-se
por causa da sua floresta que não tem árvores, dos impostos e das vinhas hipotecadas. Dentro de quatro dias, o médico quer tirar os fios - depois se verá. Era engraçado
se, num buraco destes, chamado Lohwinckel, eu precisasse de me utilizar do velho revólver com o qual me ensinaste a atirar ao alvo. Não queria ficar aqui enterrada.
Trata de mim, envia-me um médico de renome e que me diga a verdade, vem já arrancar-me daqui, amigo, amigo, querido amigo. Já sabias que me tinha divorciado do Pertóffy?
Mas custou mais do que entre nós; ele ficou me com rancor.i
Calculou quando aquela carta poderia partir, chegar ao seu destino, trazer lhe socorro: o total que obtinha era uma eternidade. Esforçava-se por lutar contra as
horas, acendia a luz, apagava, lia umas revistas de 1880 em papel amarelo e cheirando a tabaco, ouviu o cão, o rumor das árvores, a chuva, o vento, a noite, o cantar
sempre igual dum pássaro desconhecido, na escuridão. Por fim abandonou a luta; às três da manhã tomou um comprimido de veronal, às quatro, outro, depois contou uns
milhares de carneiros que entravam para o redil, sentiu-se mais pesada e deixou-se esvair. Adormeceu à hora em que a casa acordava.
Dois galos começaram a cantar; um sabia e outro aprendia. Depois guinchou a porta do curral, uma lanterna atravessou o pátio levada por pessoa de tamancos, o balde
bateu no rebordo do poço; o vento virou e veio até à janela, úmido e carregado de cheiro a feno e a estrume. Em casa, o sr. de Raitzold tossiu, os rebentos
da vinha virgem, que subiam pela parede, estremeceram docemente antes do nascer do sol, alguém prendeu o cão, apaziguando o com palavras. Uma estreita barra verde
aclarava já o horizonte mas a Jacinta Raitzold levou ainda a lanterna para cortar as últimas flores dos canteiros e colocá las nos cestos de vime para os expedir.
Combatia em vão e bem o sabia. O Domínio estava sobrecarregado de dívidas, hipotecado a mais não poder ser. Havia anos que se andava a fazer um buraco para se tapar
outro. Começaram desesperadas experiências que deram mau resultado. Tinham criado porcos, mas os preços baixaram; tentaram semear trigo americano (a estação de Estudos
Agronómicos prometera um rendimento cinco vezes maior) mas o terreno não era próprio. Durante dois anos o vinhateiro teve prejuízo; noutro ano em que a vindima foi
boa, ele vendeu o vinho na terra - só de pensar nisto ficava doido. Faltava-lhe estrume para a sementeira do outono, o gado não chegava para a extensão da propriedade
e os produtos químicos eram carissimos. O seguro não estava pago. Quanto aos impostos, haviam obtido já duas esperas no pagamento; agora estavam ameaçados de penhora.
A colheita das batatas ainda durava; no sábado mal tinham tido dinheiro para pagar aos trabalhadores. Mas, naquela semana, nem isso seria possível fazer. Cheio de
pânico, o proprietário correra em todas as direcções. Tratava-se de guardar a "costa do sol, o melhor bocado de vinha de toda a região, o centro e coração do Domínio.
O sr. de Raitzold desorientara-se nas finanças. Estava sentado em frente dos livros, calculava os juros simples, os compostos, os moratórios, os suplementos de oito
por cento, pela tardia declaração ao estado, os juros das dívidas hipotecárias cuja importância estava escondida pela palavra "provisão". Calculava, perdia-se, deixava
de perceber, não ousava mostrar os livros a ninguém e errava, perdido,entre os classificadores, os recursos judiciais e as intimações amarelas, verdes, vermelhas.
Entretanto, a irmã enviava flores para Schaffenburg, trinta litros de leite para Dusswald, oitenta e cinco ovos para o mercado semanal de
Lohwinckel. As dívidas do irmão elevavam-se, em conta redonda, a 250.000 marcos e ela colhia um lucro semanal de 54 marcos. Não tinha outro remédio senão sorrir
melancolicamente, muito magra e com botas de montar.
Naquela quarta-feira que começara, logo após o nascer do sol, por um calor enevoado como se fosse Agosto em vez de Outubro, parecia que não havia mais flores. Toda
a gente tinha margaridas e gladíolos, por isso não valia a pena mandar. Quanto às rosas não havia mais de vinte a vinte e cinco que iam abrir: uma espécie amarelada,
cujas pétalas tinham um rebordo avermelhado e levemente enrolado. Ela tocou numa flor e fitou-a; era o mesmo gesto com que se ergue a fatigada cabeça duma criança
para lhe analizar o rosto. Durante momentos, perguntou a si própria se poderia subir o preço daqueles exemplares, mas depois murmurou :
- Não. Dar-lhe-ei todas. Todas! Pegou na tesoura e cortou as flores, com gestos agitados e abruptos que contrastavam com a sua habitual calma. Depois murmurou:
- Ainda está a dormir.
Passou pelo subterrâneo e respirou o ácido aroma a fermentação, como qualquer coisa que lhe pudesse trazer alívio, deixando pender a mão esquerda que tocava no fresco
orvalho da folhagem. Tinha o hábito de falar consigo própria, a meia voz, como fazem as pessoas muito solitárias.
com efeito, Leore Lania estava deitada na sua cama, com os olhos fechados, quando a idosa senhora entrou com precaução e espalhou as flores sobre ela, úmidas e abertas
como estavam. Tinha apoiado a parte intacta do rosto na curva do cotovelo e a outra, que lhe fazia doer e sentia arrepanhada, estava descoberta. A ferida fora protegida
por uma leve tira de gaze. Os cantos dos lábios, contraídos, mostravam uma expressão de sofrimento que comoveu profundamente a dona da casa. Durante algum tempo,
permaneceu imóvel a contemplar a actriz. Leore Lania sentia aquele olhar sobre si, mas
fingiu dormir, esforçando-se por ter as pálpebras imóveis, como durante uma tomada de vistas, no estúdio, por fim, ela afastou-se do leito e voltou costas. Imediatamente
a Leore a observou. Tirara as botas altas em atenção à visita matinal que desejava fazer e em meias escuras foi até à porta. Aí parou e voltou-se. Levou as duas
mãos à boca, num movimento estranhamente apaixonado e murmurou para si:
-Meu Deus! Meu Deus!
Parecia um pedido de socorro.
Leore teve vontade de se rir.
Entretanto, a senhora deitara um olhar para o fato da actriz: um pijama preto e quente no qual ela passava a convalescença. Olhou com ternura para aquele pequeno
monte de lã bordada a seda. Estava no chão porque a Lania era incapaz de pôr qualquer objecto no seu lugar. Jacinta de Raitzold apanhou-o, ficou imóvel durante um
segundo e, com uma expressão passageira embora extremamente resoluta, apoiou a testa no pedaço de tecido preto que tinha na mão. Leore Lania decidiu acordar. Fê-lo,
interiormente divertida e com alguns pequenos sons preparatórios que deram à dona da casa tempo para largar o pijama.
- bom dia, minha senhora. - disse Leore, oferecendo à luz a parte intacta do seu rosto. Desde o dia do desastre que começara a treinar-se para esconder o lado ferido.
- bom dia. Dormiu bem ?
- Obrigada. Maravilhosamente. -Sem pó soporífico?
- Sim.
Passava assim a vida rodeada por um turbilhão de pequenas mentiras. Era um silvado protector e emaranhado por trás do qual escondia a sua delicada pessoa ameaçada.
Jacinta de Raitzold, da outra extremidade do quarto, como duma ilha, não sabia mais que dizer.
- Que lindas flores! São para mim? Desastrada, respondeu-lhe:
- Vendidas, não davam nada ... Quer tomar banho?
- Se isso não lhe causa incómodo...
Dava-lhe um grande incómodo, mesmo. Naquele velho castelo decrépito não havia nada que não desse trabalho. As campainhas não funcionavam, as chaminés ameaçavam cair
ou incendiar-se; por economia, haviam cortado a corrente eléctrica da bomba, tornando a fazer-se o serviço com o velho poço do pátio. Mas a dona da casa foi-se logo
embora, em meias, calçou as botas à porta e mexeu-se com tal ardor na cozinha que a Lania teve a sua água quente e o seu pequeno almoço apenas com meia hora de atraso.
Foi ela própria que pôs a mesa no terraço, serviu o mel e a manteiga orvalhada de gotas de água, saindo do velho molde de madeira e tendo impresso o escudo dos Raitzold
na sua brancura de creme.
-Que fino! - exclamou Leore, esfregando o nariz com um rebento de vinha-virgem que lhe caía em cima. Tudo isto me faz pensar na minha infância. O meu avô também
tinha assim uma propriedade. Era um general reformado, um homem valente como as armas.
Não havia uma única palavra verdadeira em tudo isto. Lania fazia uma representação para si própria: "Manhã no Castelo." No pátio, uma gata trazia um filho na boca
e pôs-se a brincar com ele. Jacinta de Raitzold, que sorria, tirou, envergonhada, as mãos da mesa. Desagradavam-lhe subitamente, tinha a miserável certeza de ser
feia e desgraciosa; escondeu bem depressa nas algibeiras do casaco as unhas cheias de terra, disse "Vamos e ia se embora.
- Fique mais um bocadinho"comigo...-pediu Leore que ainda conseguiu agarrar-lhe um braço, apoiando nele a testa, em gesto de súplica. Aquelas pequenas carícias até
na América eram célebres...
- Infelizmente não tenho tempo. - murmurou a Jacinta, sem se ir embora.
-Bem sei. Dou lhe tanto que fazer! Como ficará contente no dia em que se vir livre de mim!
- Não diga isso, pelo contrário, que ideia!-respondeu a senhora, muito aflita. - Não diga isso ... - e decidiu sentar-se, ás cavaleiras, na balaustrada do terraço.
A menina é... representa uma felicidade que esteja aqui,
Não sei como poderíamos ter passado esta semana, se não tivéssemos tido a sua visita. E o meu irmão também...
- Ouvi-o tossir e andar dum lado para o outro durante toda a noite.
"Então não dormiu?" pensou, sorrindo à mentira.
- Sem a sua presença, o meu irmão teria ido abaixo. Mas graças a si, domina-se, conserva a disciplina. Ainda bem!
- Liga assim tanta importância à disciplina ?
- Claro! Sem ela, como se podia viver?
Leore Lania estendia os fios de mel, com a colher, e expunha-os ao sol.
- E muito boa para mim! - disse, e num gesto espontâneo estendeu a mão para Jacinta.
Mas ela estava ocupada a acender um pequeno cachimbo. Lania piscou os olhos. Tinha muita curiosidade pelo seu semelhante e queria sempre tentar várias experiências.
Como toda a gente estava sozinha por trás da sua fachada limpa e bem conservada!
- Observei várias vezes que as mulheres um tanto masculinas são excessivamente bondosas. - disse ela sem fitar a sua interlocutora, a qual respirou o fumo do cachimbo,
lançou um rápido olhar para a actriz mas não disse palavra. - Tenho muita simpatia por esse tipo.- continuou Lania, como que prosseguindo um monólogo. - A amiga
com quem eu habito, parece-se consigo; é arquitecto. Esquisita! Antes de eu a conhecer, viveu durante três anos com uma rapariga pintora, uma criatura adorável.
Quando a minha amiga se separou dela, matou se. Fim, pim! Uma bala em pleno rosto. Deve ter sido uma coisa horrível. De então para cá, a minha amiga não ficou boa
da cabeça. Tudo leva a crer que as verdadeiras paixões, o que outrora se chamava "o grande amor" não se encontram senão nestes casos especiais.
Leore Lania estava comendo a sua torrada de mel. A Jacinta olhava para o pátio, enquanto ia ouvindo o que ela dizia. Eram palavras sem peso que passavam como penas.
Em tom ligeiro mas voz grave, disse;
- Realmente, tenho ouvido afirmar que essas coisas
existem...
- Se existem? Ora essa! E eu poderia contar-lhe muitos casos... Tanto mais que as mulheres simpatizam imenso comigo. Tenho uma data de admiradoras. vou aos seus
clubes.
- Clubes ? -"perguntou a idosa senhora, enquanto ia observando a mulherzita-pássaro que falava com frivolidade sobre essa maneira de ser que encerrava tanta solidão,
tanto anseio perdido e oculto. Continuou: Disse "mulher masculina". Soa graciosa e simplesmente. Mas aqui, na nossa região, dizem: "a velha maluca, a matias..."
Dói-lhe alguma coisa ? - perguntou, inquieta, ao ver que a Leore tinha repelido o pequeno almoço com gesto resignado, crispando-se-lhe o rosto em redor da ferida,
sob a tira de gaze.
- Não, não. - respondeu, teimosa.
com as pontas dos dedos, tocou nas pálpebras, que lhe pareciam inchadas; era o gesto característico das pessoas que abusam dos estupefacientes e que têm a consciência
inquieta.
- Já estive noiva...
Leore esperou pelo resto. Possuía uma técnica especial que consistia em esquecer a presença das pessoas que desejavam fazer-lhe confidências.
Em voz rouca, continuou :
- Estive noiva dum rapaz da região. O pai era então o maior proprietário das vinhas da Hesse renana. Mas não foi por diante. Não pude ... não pude resol ver-me.
Tinha medo. Muito medo. Não pude. E agora não passo dum velho cavalo de carga. É verdade.
Silêncio. Para si própria, prosseguiu:
" Aos dezassete anos apanhei uma bofetada duma rapariguita do campo e não percebi porquê... só muito mais tarde." Não teve coragem de dizer isto em voz alta e resumiu:
- Só mais tarde se compreendem certas coisas. Leore Lania aproximou a sua face da velha mão
que lhe agarrou nos cabelos como se fosse o pêlo dum cão; estava habituada apenas ao calor dos animais.
- As pessoas andam dum lado para outro com uma parte tão natural de vida e felicidade... Cada humilde vaqueiro recebe o seu quinhão. Mas eu? nunca tive o meu!
Leore deu um beijo no sítio onde tinha a face. A tira de gaze tocou na áspera pele que cheirava a terra e a tabaco. Jacinta permaneceu algum tempo de pé, em atitude
pensativa, como se estivesse ouvindo distante música.
- E diz que há clubes? E as mulheres são felizes nesses clubes? - perguntou.
- Não sei. A mim, não me interessa.
- Não lhe interessa porque vive noutro meio. Mas a mim interessa-me.
Ficou ainda imóvel, na mesma atitude, e depois corou violentamente, o que produziu estranho efeito na sua pele morena e queimada. Disse:
- Desculpe-me este arrazoado.- e retirou-se à pressa. A Leore sorria enquanto a ferida, tumefacta, lhe ardia atrozmente.
Pouco depois das dez horas, fazendo grande ruído, com o escape aberto, entrou no pátio do Domínio a crepitante motocicleta do dr. Persenthein, que se mostrava muito
fatigado e não tinha ainda tirado do rosto a expressão dos pêsames que apresentara na rua do Priel, n.? 34. Vinha tirar os fios da ferida e havia já uma hora que
a actriz armazenava coragem para o aflitivo momento.
Odiava o médico porque se sentia nas suas mãos e era-lhe antipática porque a ferida começara a SU purar e receava que não cicatrizasse bem. Cada vez que lhe segurava
no rosto, sentia as mãos pesadas, desajeitadas, estragadas pela prática de todos os dias. Quanto à actriz, dirigia-se para o aroma de iodofórmio das suas mãos como
para o cadafalso. Quando estava bem, passava horas em frente dum espelho de três faces, agora fugia de se ver, sentindo um medo horrível a apertar-lhe o coração.
- Fiz-lhe doer? -perguntou o médico quando a pequena operação acabou.
- Bastante. - respondeu só para lhe desagradar, pois não sentira nada.
O médico examinou-a com o olhar penetrante e objectivo que um artista dedica ao seu trabalho, o marceneiro com a cadeira, o sapateiro com a bota, E disse:
- Não tem má aparência. Quer ver?
- Não! - respondeu com violência.
com a ponta da língua tateou a beira dos lábios e encontrou uma crosta rugosa. Sem dizer palavra, foi sentar se no canto mais sombrio do aposento. Descontente, o
médico despediu se e continuou a sua peregrinação através Obanger revolucionado. Faltava-lhe a presença da filha no assento traseiro; estava de mau humor porque,
havia alguns dias, a criança andava esquiva.
- É preciso acabar com esta desordem. - decidiu. Dois doentes tinham recaído. No Lungaus nem era bom pensar. "Estás enervado, Kola", dizia Elisabete, com ternura.
Estava enervado, e então? Atravessou a rua de Dusswald, com a cabeça a zumbir como se tivesse lá dentro um cortiço de abelhas.
A visita que a Lania recebeu a seguir, foi a do sr. de Raitzold. Todas as manhãs vinha cumprimentá-la, fiel àquele dever mundano, sem saber se ela estimava ou não,
tal praxe. Vestia para a cerimónia uns elegantes trajos fora de moda e travava a conversa dum oficial de há trinta anos. Lembrava-se vagamente de que maneira se
devia falar às actrizes e que espécie de anedotas elas apreciavam. Lania ouvia-o, grata pelos galanteios que lhe dirigia acerca da sua beleza, fingindo que não tinha
nenhuma cicatriz na boca. Olhava-o arqueando as sobrancelhas, como se ele fosse um fidalgo comparsa que exagerasse o papel, tanto na caracterização como no jogo
fisionómico. Havia naquilo tudo pequenos buracos, pausas durante as quais ele tornava a mergulhar nas suas preocupações, cheio de rugas e desgostos. Tinha grandes
mãos com dedos amarelados pelo fumo e salientes veias azuis. De vez em quando, puxava-lhes a pele, que não se mostrava elástica. O pequeno monte de pele ficava plissado
durante segundos e depois tinha ele mesmo que o alisar tristemente.
Suspirou. Proferiu algumas ameaças dirigidas a
profet, o proletário, ao indivíduo destituído de qualquer sentimento de responsabilidade que viera não sabia de onde para tiranizar a região. A Leore aprovou as
excitadas frases.
- É preciso proceder contra ele, sr. de Raitzold! disse com energia.
Tais palavras deram ao gentilhomem uma grande força. Como numa comporta, amontoava-se nele enorme força. Olhava fixamente para as pernas da Leore, ocultas sob as
calças do pijama. Encontrava nela um ar cigano absolutamente imoral mas o seu lado viril e fanfarrão alegrava se com essa descoberta.
-Havemos de ver! Um fidalgo é sempre um fidalgo, enquanto um novo-rico não passa dum novo-rico. - declarou.
- O patrão onde está? Diga-lhe que desça; estão a telefonar de Schaffenburg. - gritaram no pátio.
O sangue afluiu à testa do proprietário, que saiu a correr. Voavam as mãos ao longo do gasto corrimão da escada. Haviam acabado por consertar o telhado com telhas
alcatroadas - o que saía mais económico. Exalava-se o cheiro do alcatrão que amolecia ao sol.
- O quê ? - gritou ele ao telefone. - O Banco Agrícola ? Mas porquê? Como? An? Não percebo!
Zumbiam-lhe os ouvidos e a pressão arterial saíra da normalidade.
- Mas não é possível é absolutamente impossível! Quando a conversa terminou, disse a meia-voz, para
si próprio : " É absurdo!"
Deixou-se cair numa cadeira, porque os joelhos não se aguentavam.
Passado algum tempo, o telefone tocou de novo. Ele considerou-o como o canhão dum revólver. Desta vez, era Peter Karbon que desejava falar com a actriz. Não foi
preciso chamá-la, apareceu logo.
-Até que enfim, até que enfim! - cantava ela, sentindo o sangue a bater-lhe na garganta.
- Não quero incomodá-la.- disse o fidalgo, com galantaria.
Havia apenas aquele aparelho no vestíbulo que
servia também de gabinete de trabalho e de sala de armamento.
- Não me incomoda nada! Deixe-se estar.
com efeito, ele não ouviu pronunciar senão palavras banais, em tom frio.
- Então como está a Pittyevitte ?
- Menos mal, obrigada. E tu ?
- Ali right. Tiraram-te os pontos? Sim? Fêz-te
doer?
- Não falemos nisso.
-Bem. E então como vais? Estás contente?
Na outra extremidade do fio, enquanto a Elisabete limpava o pó, Karbon pensou: "Se deu cabo da cara no meu automóvel, tenho que começar por casar com ela".
Leore Lania retomou alento para tornar firme a voz e provocar o riso de que necessitava.
- Estou pouco mais ou menos como uma torta que acaba de ser espezinhada por um cavalo. Mas agora isto há-de ir melhor.
- Bem; se já estás a brincar...
- Fica sabendo que, para me empregar nos lavabos de qualquer estação, sempre servirei...
- Pobre Pittyevitte, quando chegares a isso, eu serei o mais fiel dos frequentadores. Olha, posso ir visitar-te hoje de tarde ?
- Não; isso não.
- Não sejas tonto, anãozinho. Não sejas assim tão presumida. Quero ver-te.
- Estou horrível...
- Foste sempre horrível. Isso, para mim, não tem importância. Portanto vou aí esta tarde. Então não tens alegria em me receber? Queres largar-me assim?
- Oh, pelo amor de Deus! - replicou em tom seco
e resoluto.
Estava pendurado na parede um espelho Império, composto por pedaços adicionados, num vidro antigo e esverdeado. Lania viu o seu rosto doente atravessá-lo como o
dum fantasma, quando deixou o vestíbulo,
Pouco depois do meio-dia, à hora das visitas correctas, apresentou-se o sr. Markus no Domínio. Chegou numa bicicleta que encostou à parede, no pátio. Depois, tirou
os alfinetes de ama que haviam prendido, em baixo, a calça às riscas, do fato escuro. Já sabemos que estava recentemente barbeado, penteado e manicurado. O seu fato
viera de Berlim. com ofensivo pretenciosismo não era freguês do alfaiate Krainerz, o qual, diga-se de passagem, se vingava, comprando os seus produtos coloniais
e os mantimentos de uso quotidiano no velho armazém Gustavo Keitler, sucessor.
Markus estava bem disposto. Desde o desastre e a presença dos berlinenses em Lohwinckel que se sentia entregue a grande excitação. Aquilo era com ele, tratava-se
de pessoas que lhe diziam respeito... não se considerava o merceeiro um exilado cidadão de Berlim ? No entanto, sentiu se ligeiramente acanhado quando atravessou
o pátio, porque não conseguia dominar, em absoluto, o respeito que, em criança, experimentava pelo castelo. Através dos óculos, o seu olhar observou portas e janelas.
Tudo estava calmo; voaram dois pombos e depois tornaram a pousar, garridos e airosos, todos entregues ao seu devaneio. Um gato roçou pela caleira, sentia-se o meio-dia,
vinha da cozinha barulho de pratos acompanhado pelo estribilho duma cantiga.
Markus deu o seu cartão de visita a uma criada de cabeça atada, - era Lisette, a doente do dr. Persenthein que, periodicamente, sofria dos ouvidos - perguntando
por Leore Lania.
Cana. jure. lia-se no seu cartão. O Cana. jure. Heinrich Markus, uma personagem defunta, ressuscitara durante meia hora e estava de pé no pátio do Domínio, à espera
duma actriz célebre.
Só depois de muito procurarem por toda a parte, é que Jacinta de Raitzold encontrou a Leore no fundo da cavalariça vazia. Tinha lá travado conhecimento com
uma vitelinha de nove dias e entretinha-se com ela, um pouco divertida mas sobretudo ávida de reconforto - e também para abreviar as horas que a separavam ainda
da visita de Karbon.
- Quer ver-me? Mas quem é? - perguntou, sacudindo a palha do seu pijama.
- Oh! Apenas o Judeu, o merceeiro da terra. informou a dona da casa.
- E pretende ver-me?
- Todos os dias pede noticias suas. Escreveu um grande artigo sobre o desastre na Folha de Aviso, de Dusswald. O empregado dos correios, diz que ele mandou, pelo
menos, vinte telegramas para todos os jornais da Alemanha.
- Ah! Quem mandou os artigos?
- O Judeu,
A Leore, que até então, ficara ajoelhada em frente da vitelinha no quente e maternal aroma da vaca, levantou-se. E pensou: "com a imprensa há sempre complicações."
De repente, teve vontade de se mostrar a um homem, fosse ele qual fosse, antes de se encontrar com o Karbon, para ver se metia medo. Parecia-lhe natural toda a gente
poder fazer comparações entre o seu rosto antigo e o actual.
- Bem. Eu vou.
Atravessou o sol, que sublinhava todos os contornos com estranha precisão.
"Nem mesmo pus um pouco de pó" - murmurou. E deu de cara com o sr. Markus que estava parado no meio do pátio. Arvorou o maquinal sorriso de estrela de cinema e interrogou
o com o olhar.
Markus não teve coragem para ver logo a cicatriz. Murmurou qualquer coisa, inclinou-se e desviou a vista. Quando ela sorriu, sentiu a ferida a crescer mais dois
ou três metros e avolumar-se, ficando alta como um monte. Tudo isto se passava no seu pequeno rosto.
-Vamo-nos sentar à sombra. Quer uma entrevista ? - perguntou, cheia de experiência, conduzindo-o para um banco que estava ao abrigo num armazém de madeira velha.
Depois de se terem instalado, observou-o maliciosamente. As palavras "Judeu" e "merceeiro", ditas pela Jacinta, haviam-lhe sugerido a ideia dum patriarca barbudo,
uma espécie de Shylock. Ora o que estava a seu lado, era um rapaz baixo e acanhado, bastante presumido e pomadado, de cuja testa corriam gotas de suor que nào ousava
limpar, com calças negras orladas de pó e um apertado casaco perfeitamente na moda.. havia três anos. Saltava aos olhos que tal momento era para ele duma importância
excepcional. Durante os cinco primeiros minutos balbuciou, em esforçada luta contra as consoantes, tantas frases absurdas e inacabadas, que ela precisou de toda
a sua experimentada amabilidade para manter a conversa.
Quanto ao Markus, a sua situação era a seguinte:: sob o ponto de vista intelectual não ligava importância ao cinema, quási que o desprezava, até. No entanto, frequentava
o com assiduidade e algumas atitudes de Lania, haviam-se fixado na sua memória como que impregnadas duma ternura particularmente doce e perfumada. Além disso, todo
o universo exterior se incarnava agora naquela frágil pessoa, todo o mundo superior de que se sentia saudoso. E para mais, ela estava de pijama. Nunca se sentara
ao lado duma mulher vestida de pijama: ele que julgava possuir todas as maneiras do bom tom, sentia se paralizado. E achava-a muito mais bonita na realidade do que
no filme, com as pestanas tornadas hirtas pelo kohl. Sentia-se particularmente perturbado ao ver que aquela mulher que não conhecia senão projectada numa aparência
plana, era duma realidade surpreendente, com um corpo possuidor das três dimensões - esse corpo do qual emanava um fraco cheiro a cavalariça. Falava sem saber o
que dizia, angustiado ao pensar que ela podia levantar-se e ir-se embora, ficando assim lamentavelmente perdido o momento único. Encontrava se ali sentado como se
estivesse na ilha Salas y Gomez a fazer sinais para os navios que passavam, passavam, sem nunca o levarem...
- Estou aqui, em Lohwinckel, como na ilha Salas y Gomez, lembra se ?-repetiu, pela terceira vez.
A Leore, cuja instrução em zigue-zague, nunca encontrara a poesia de Chamiço, ignorava ao que ele fazia alusão. E pensava, impaciente: "Porque te enervas dessa maneira,
homem de Deus?"
- Oiça, sr. Markus,-disse, de repente, sem transição olhe para mim. Que tal acha? - Estendeu lhe o rosto e sentiu o sangue a bater mais fortemente nas veias da ferida.
O homem obedeceu e foi então que a Lania notou ter o provinciano uns olhos humanos, olhos tristes e inteligentes.
- Está muito feio? - perguntou ela, depois de ter
respirado e ficando à espera.
Eis o que se tinha passado com a cara da actriz: depois das injecções de novocaina para a anestesia local, ficara durante três dias inchada, desequilibrada e horrível.
Na terça-feira, tudo começou a voltar aos seus lugares, a distender-se e, na quarta-feira, o nariz e a boca haviam, de novo, retomado as suas formas e proporções.
Só a boca se conservava muito vermelha e tinha uma expressão estranhamente paralizada. O lábio superior decaía um pouco, dando à fisionomia certo ar triste e desolado.
A cicatriz estendia se do lábio ao nariz e ainda alguns milímetros mais longe, seguindo a asa do nariz, estendendo-se, enquadrada de carne vermelha e irritada, muito
delicada e ardendo constantemente. Um ponto deitava pus e estava protegido com o pequeno emplastro. Do lado dos lábios, o dr. Persenthein deixara a cicatriz à vista.
Estava coberta por uma leve crosta e o lábio superior, ainda levemente inchado, caía sobre o inferior, o que lhe dava uma expressão de pueril amuo -- expressão que
decerto ela não gostava de ver no seu rosto um
tanto sarcástico.
Markus mergulhou gravemente na contemplação de tudo aquilo, analizou e declarou que o mal não era muito grande. O que mais o comovia era o atroz medo impresso nos
olhos da actriz. Possuía a maldita qualidade de ser sensível, de ter a pele muito fina, experimentando tudo o que os outros sentiam. A tal ponto que ficou aterrorizado
quando viu o pânico da rapariga. Sem convicção, disse:
- Não vale a pena falar nisso.
Para quebrar o silêncio, fez estalar as articulações. Esforçava-se por encontrar qualquer frase consoladora. E prometeu:
- vou dizer no jornal que a sua cicatriz não se vê...
- Em que jornal?
- No nosso, a Folha de Aviso, de Dusswald. - respondeu com o sorriso de forçada ironia que arvorava sempre que falava das instituições de Lohwinckel.
-Ah!
- É claro que também posso mandar artigos para Berlim. vou tentar...-apressou-se Markus a dizer. Fui eu que enviei o primeiro telegrama. A redacção agradeceu me.
Reproduziram-no em toda a parte. Quer ler?
Leore Lania teve um olhar desconfiado para o gesto com que ele foi mexer na profundidade da algibeira interior do casaco -o gesto que vira fazer a tantos que lhe
traziam os manuscritos de cenários impossíveis. Apareceu um grande maço de recortes. O sr. Markus transpirava visivelmente; a calça resolveu subir mais e descobrir
grossas peúgas de lã cinzenta sob as quais se viam as ceroulas igualmente quentes, a fazer pregas. Colocara a seu lado o chapéu e um par de luvas de pelica, como
costumam fazer os senhores elegantes nas comédias fora de moda. Delicadamente, ela pegou nos papéis e lançou um olhar para o artigo que estava farta de conhecer.
Distraída, disse:
- Foi pena ter perdido a sua vocação para escritor. Ora aqui está uma frase que é das que nunca mais
esquecem! Chegou mesmo até lá dentro, ao coração do sr. Markus. Ele acabara de fazer vinte e sete anos. Aos sessenta e oito lembrar-se-ia ainda que fora uma pena
não ter aproveitado a sua vocação de escritor!
Entretanto, a Leore já estava ocupada com outra coisa.
- Visitou o Peter Karbon ? Como está ele ? Foi gravemente ferido ?
- O sr. Karbon ? Está esplêndido. É sólido ...
- Pois é.
- De resto, foi cuidadosamente tratado pela esposa
do doutor.
- Ah! Aquele pau de virar tripas? Antipatizo
com ela.
- É uma senhora muito respeitável. - protestou
Markus na sua voz de visita de cerimónia, tão contrastante com o tom desenvolto da actriz.
Ele próprio o sentia, mas sem poder dar-lhe remédio. Reconhecia agora que o casaco estava muito apertado; em geral, as pessoas de Lohwinckel usavam fatos muito apertados
e colarinhos altíssimos - descobriu isto como num relâmpago. Os berlinenses usavam tudo largo: Vestuário, gestos, ideias.
- O que pensa, ao certo, do dr. Persenthein ? É
este o nome, não é?
- Oh, não é tão mau médico como dizem ... Proferiu aquilo à maneira de consolação e o pulso da
actriz começou a bater precipitadamente. A ferida doeu-
-lhe mais.
- Também fui ver o sr. Albert. Está completa-
mente restabelecido.
- Albert? Quem é? Ah, o pequeno. -respondeu Lania. Esquecera-o de tal forma, que não conseguia agora recordar-se das suas feições. Por fim, reapareceu-lhe o rosto
de lutador, abrigado por trás dum braço dobrado sob a crua luz dum ring enquadrado em cordas.
- Àquele senhor não lhe aconteceu nada. Teve sorte.
- Teve. Mas também era uma pena: é tão inocente ! É por isso que anda sempre escoltado pelo seu Anjo-da-Guarda. - disse ela, esfregando os olhos.
Pensou: "Devo ter uma cara! É horrível uma pessoa não poder dormir toda a sua dose de veronal. E aqui não há maneira de dormir. É calmo demais. A gente começa a
pensar e nunca mais acaba!"
Olhou em redor. Cheiro a alcatrão, sonolência, cal a cair sobre a vinha-virgem na parede da casa e, ao fundo, o cacarejar paciente e atento duma galinha.
- Parece que se está a sonhar. E a gente tem medo de voltar a si. Ficar imóvel... sempre... é preciso ter nervos para poder suportar semelhante coisa, não é ?
para nós, é tudo o mesmo: trabalhar ou tomar coca. ("Tomar coca" pensou Markus. Ela dissera aquilo com tanta naturalidade que sentiu um pequeno arrepio). Uma pessoa
está aqui sentada e pensa, mesmo que não queira, em face de toda esta serenidade. Sabe lá o que me tem passado pela cabeça! Realmente não há direito que uma vida
inteira dependa duma ferida na cara, de dois centímetros de comprimento! A gente não devia viver assim, absolutamente voltada para o exterior, para a fachada. Não
há direito...
Leore Lania dirigira-se a Markus mas sem intenção: era lhe bastante indiferente para cortar o monólogo em sua honra. Ia falando para si própria. Mas também o fazia
com certa afectação.
Ele entrou de cabeça no campo filosófico assim aberto.
-Ah, minha senhora! - suspirou.-Mas quem é que, neste mundo, vive conforme o seu desejo?
Leore Lania ergueu a linha negra das sobrancelhas, assustada com o lugar-comum mas o Markus ficou com a impressão de ter proferido um profundo conceito.
Muito agitado, prosseguiu:
- Se me é permitido falar de mim, dir-lhe-ei que me sinto absolutamente deslocado aqui. A providência enganou-se na agulha, quando trilhou o meu caminho. V. Ex.a
decerto já notou que não fui feito para a existência duma terra tão pequena, sou exactamente o antípoda dum provinciano, mas sim um cidadão do mundo, direi mesmo:
um cosmopolita.
Ao dizer estas belas frases, ficou tão nervoso que os músculos das barrigas das pernas começaram a vibrar sob as peúgas de lã cinzenta.
- Eu sinto-me sacrificado no posto que ocupo, mas não o abandono. Leio muito, mantenho relações com o universo intelectual. Como desejaria poder mostrar-lhe a minha
correspondência! Tenho cartas dos homens mais notáveis: Thomas Mann, Anatole France, Einstein...
- Ah?! - perguntou a actriz, pouco surpreendidaE isso como é ?
- Escrevo-lhes. Quando li um livro ou ouvi uma
conferência pela rádio, escrevo-lhes e respondem-me sempre... quási sempre. Tenho retratos: Bruno Walter, Chaliapine...
- Eu também lhe hei de mandar o meu retrato. disse ela, maquinalmente. Bem sabia que cartas eram aquelas,
- Sim, realmente são pessoas notáveis. Mas aqui, compreende... estou completamente isolado.
- Porquê ?
O sr. Markus recolheu-se um momento, antes de responder. E depois, disse, concentrado e sério:
- Sim, minha senhora, eu vou explicar-lhe porque motivo me sinto assim tão isolado. com certeza que não percebeu que eu sou judeu?
- Sim, e então ? - perguntou ela não compreendendo o tom solene que ele dera à frase.
-E então? Mas, minha senhora, ser judeu é um destino! E... como dizer?... a gente fica tão só!
- Só ? Que ideia ! - e a actriz deu uma gargalhada
- Venha ver o que se passa em Berlim.
- Estive em Berlim, muitos meses, a estudar. - respondeu o judeu em tom sombrio.
- Ah, bem. Então sabe como é. Ser judeu! Mas que há nisso de extraordinário ? Já casei quatro vezes: dois dos meus maridos eram judeus. O Karbon também é.
- Karbon ?
- Sim, ou o pai ou então o avô. Que importância tem ?
- O sr. Karbon ? Mas não parece. Acho-lhe até um aspecto sueco.
- Bem. Se quiser, pode chamar-lhe sueco à sua vontade. - concedeu Leore, que sentia um doce prazer em ouvir pronunciar o nome de Karbon. Via nítidamente o seu cabelo
ruivo e saboreava mesmo o gosto dos seus lábios.
- Mas em Lohwinckel custa muito ser judeu. E quási impossível viver aqui! - concluiu Markus, dando a volta, em pensamento, à sua falhada existência de exilado.
A actriz pensou: "Esta gente não regula bem." E em voz alta, lembrando-se de Jacinta Raitzold:
- Acho que vocês exageram tudo porque são poucos.
- Evidentemente que há coisas que se notam muito
aqui e passariam desapercebidas numa grande cidade. Mas sofremos. Ah, minha querida senhora, se eu soubesse exprimir-me como sinto! É tão difícil viver aqui, chega
a ser insuportável! Por exemplo, eu adoro a música e toco, menos mal, violino. Ora temos uma sociedade musical, um coro e uma pequena orquestra; o Regens Chorii,
de Schaffenburg, vem à terça-feira ensaiar. Mas não me querem lá. Imagine, minha senhora: não me querem lá! E também há música clássica: um pequeno grupo que vai
tocar a casa do presidente da Câmara e do notário: O primeiro violino é o director da Caixa Económica que toca horrivelmente e o segundo, a filha do presidente.
Quanto a mim, a torre do Angermann desmoronar-se-ia se me admitissem na orquestra. Isto é apenas um exemplo... Poderia ainda contar-lhe mais coisas, dizer-lhe...
como nos ferem ... - E tremia-lhe na voz o desejo de continuar a prender a atenção da actriz.
Mas ela já estava farta de o ouvir.
- Ah, sim, a música. Mas não tem a T. S. F.? perguntou amavelmente, com o espirito longe dali.
O judeu calou se. Pareceu-lhe que o pátio estava cheio de rochedos que para lá tinha lançado, continuando, no entanto, a oprimir-lhe o peito. Esvaziara o coração.
Mas agora o seu desgosto ainda lhe pesava mais. Tornou a pôr os recortes dos jornais no bolso do casaco.
-Não quero incomodá-la por mais tempo,
- Sim, devem ser horas de ir para a mesa. Agradeço-lhe a sua amabilidade em se ter interessado por mim. E se escrever alguma coisa...
Markus levantou-se. Ela acompanhou-o até à bicicleta, dando um pontapé numa vazia lata de conserva. Estava enervada ao lembrar-se do estado do seu rosto, tendo que
se mostrar assim ao Karbon.
- Oiça. Não haverá meio de comprar aqui uma coisa qualquer parecida com pó de arroz? O dly-bag,
no qual trazia os meus artigos de beleza, ficou absolutamente inutilizado.
City bag notou Markus, impressionado.
- É claro que há pó, alemão, francês, americano. Nesse ponto, rebaixa muito Lohwinckel, minha senhora. No meu armazém há apenas os artigos de uso corrente mas no
cabeleireiro Kuhamer encontrará tudo. Também lá tem uma excelente manicura que me trata sempre as mãos. É uma pessoa muito elegante, até.
Agora que estava no momento de partir, é que o judeu falava com o à-vontade que procurara ter durante todo o tempo da visita. Só a dez minutos do Domínio é que desceu
da bicicleta para pôr os alfinetes nas calças novas.
A Leore passeou ainda com a sua lata de conserva através do pátio, depois foi para a mesa. Na carruagem, o sr. de Raitzold acabara de sair do Domínio, pelo portão
do fundo. Ergueu-se uma nuvem de poeira por trás do maciço de rosas, destacando-se no céu com um rebordo rígido e metálico no momento em que o sol o orlou. O cheiro
activo, a amoníaco, da fossa, invadiu o pátio. Leore ainda viu as curvadas costas do fidalgo que ia a guiar. A irmã estava no portão, a dizer-lhe adeus, num gesto
inútil em que ele não reparou.
- O meu irmão pede-lhe desculpa; teve que ir à Caixa Económica, com urgência.
Até aí tinham observado, durante as refeições, uma atitude de sociedade, mas agora tudo aquilo se desmoronava. A dona da casa dirigiu-se para a leitaria. Leore,
sozinha em frente da grande mesa redonda que era de mogno e tinha pés de delfim, comeu um pouco de frango assado - sem prazer porque o havia conhecido pessoalmente.
Fora cinzento-escuro com manchas brancas e tivera uma pequena crista de galo conquistador- ainda na véspera se pavoneava no pátio. A costura fazia-lhe doer quando
mastigava; pôs sobre a mesa o garfo e a faca, sentindo-se cansada de si mesma.
- Estou farta ! - disse. E repetiu a frase que a obsecava nas horas de desalento. - Estou farta, farta, farta !
Procurou no livro dos telefones e ligou para a
empregada do cabeleireiro que, alvoroçada, tomou nota da encomenda: pós, cremes e bâton. O sr. Polzer, que alternava no serviço telefónico com o sr. Munck prestou
muita atenção à conversa. Não era costume encomendarem-se produtos de beleza por aquele meio de comunicação, o que não quer dizer que as senhoras de Lohwinckel não
cuidassem de si, havendo mesmo um curso de ginástica às segundas e quartas. A manicura, aproveitando-se da rápida intimidade que, em geral, se estabelece entre as
mulheres que trocam confidências sobre assuntos de beleza, aproveitou a ocasião para relatar a sua biografia e confiou à Leore por que imprevistas circunstâncias
se encontrava ali enterrada. Surgiu a história da criança e do cavalheiro e do amigo e do patrão - era impossível saber se se tratava de três pessoas ou duma só.
Leore desligou quando a narrativa se tornou muito triste e inextrincável. Não queria ouvir mais jeremiadas daquela gente perdida num buraco ignorado. E desejou dormir.
Mas não podia. Dormir, significava ficar estendida, e ficar estendida, significava pensar. A almofada tornava-se muito quente e as moscas, loucas e obstinadas, voavam
em círculos, do candeeiro para a cama e da cama para o candeeiro que estava suspenso do teto por correntes de bronze no qual se enrolavam visíveis fios eléctricos.
Uma hora e meia. Uma e três quartos, duas, duas e cinco. Duas e sete. Depois as horas acabaram por se imobilizar. Leore calculou o tempo que decorrera desde que
deixara de ver Karbon. Exactamente antes do desastre, ele fizera de globe-trotter, contando uma das suas histórias africanas. Depois, lembrava-se de ter encostado
a cabeça aos seus joelhos e de se escoar em sangue. Mas não podia precisar quando isto acontecera. Cento e catorze horas sem Peter Karbon. Cento e catorze horas
de angústia, sofrimento, desgosto, desespero. Durante essas cento e catorze horas atravessara uma data de regiões infernais até aí ignoradas.
Tinha vinte e quatro anos. Sorriu para o teto e o seu sorriso era velhíssimo.
- Quando a gente precisa deles é que estão ausentes. - murmurou - Quando a gente quer contar com eles, é que está só.
Eles eram os homens. Cento e catorze horas! Se o Peter viesse às quatro seriam mais duas. Se viesse às cinco ... ou às seis ... Olhou para o relógio. Duas e nove.
As moscas. O espelho. A cicatriz.
Chegou às seis menos vinte: a pedido do sr. BolImann, o hoteleiro do "Cisne Branco", foi o próprio sr. de Raitzold que o trouxe na sua carruagem. O fidalgo mostrara
se pelo caminho duma verbosidade enervada que as pessoas da sua classe não mostram senão quando estão desesperadas. Mas, no momento em que abriu o portão, foi se
abaixo de todo. Murmurou algumas palavras e desapareceu, deixando a Peter Karbon o cuidado de descobrir, ele próprio, o caminho que levava ao quarto de hóspedes.
Leore, à janela, vira aproximar se o homem alto e forte e o coração deu lhe um salto. Sentiu-o realmente agitar-se em cascata cheia de luz e ruído. Mas quando ele
entrou, teve uma impressão de serenidade e juízo. Ficara de pé à janela, e como numa tomada de vistas, virara para a porta o lado intacto do rosto. Mas quando se
abriu, mudou de ideia e mostrou lhe a cara bem de frente, interrogando-o com olhos de sombria inquietação. Mergulhou a sua mãozita na dele como se fosse uma cama
familiar e quente. A Lania tinha mãos esquisitas, pequeninas, com ossos finos e móveis, mas dotadas de tanta força que, às vezes, surpreendia os olhares admirados
dos homens, no shake hand. com familiar surpresa, também Karbon reconheceu, naquele instante, a mão cujo carácter particular esquecera durante os últimos dias. Reteve-a
algum tempo como para a examinar e depois largou a.
- Bdia Pitt. - disse ela.
- Bdia Leore. - respondeu ele.
Não disse: Pittyevitte; disse: Leore. E recuou alguns passos encostando-se à parede.
- Obrigada por teres vindo.
- Só hoje tive alta. Senão ...
- De resto, eu também não te receberia antes. Como estás? Partiste alguma coisa?
- Não. Felizmente, tudo bem. E tu ?
- Eu também.
Peter Karbon não estava vestido de sport. Tinha um fato de flanela cinzenta, maleável, nitidamente britânica. Leore respirou o aroma dos cigarros ingleses que lhe
ficara impregnado na mão desde que apertara a de Karbon. Sofria porque o olhar dele não ousava fitar-lhe o rosto. já fora mau sintoma o Markus ter feito o mesmo)...
- Queres fumar, Pitt?
- Obrigado.
- Afinal como estás tu alojado ? -Mudei hoje para o hotel; não é famoso. -Ah! E porque te mudaste?
- Não me encontrava bem na casa do médico.
- Compreendo! É uma complicação horrível, nem que seja só para tomar um banho.
Como a conversa permanecia difícil, a actriz foi até à varanda. Depois de ter experimentado alguns vestidos, salvos na mala esmagada, acabara por tornar a enfiar
o pijama. Sentiu fortemente as ancas e o baloiçar do corpo, enquanto Karbon vinha atrás dela. Em presença dele tinha sempre a feliz impressão da posse plena do seu
próprio corpo. Em presença de Karbon -e outras vezes, mas raramente durante o trabalho no estúdio quando o fonógrafo criava a atmosfera, as lâmpadas Júpiter cegavam
e era preciso fazer brotar lágrimas de paixão, quando era dada ordem e no momento indicado, enquanto se estremecia de indignação contida.
- Agora deixa ver. - disse Peter, observando-a.
Ela lambia o rebordo interno da ferida que ainda lhe fazia doer.
- Ora, nem vale a pena falar nisso, Pittyevitte! Já não tens nada. Estás linda!
Ao ouvi-lo, ficou aterrorizada. Realmente, era preciso que ele sentisse muita compaixão, para lhe fazer cumprimentos. Karbon perguntou:
- Viste-te aflita, an ?
com as faces entre as mãos dele, Leore replicou:
- Muito.
O homem esfregou o nariz nos cabelos sedosos e
disse:
- Suponho que é proibido beijar-te por causa da
antissepsia.
- Sim, o médico não deixa.
Karbon resmungou, largou-a e sentou se. A Lania sentiu que havia qualquer coisa a separá-los desesperadamente - conhecia bem os avisos anunciadores do fim
duma ligação.
- Estamos um pouco desabituados, an ? - disse ale-
gremente.
- É verdade. Depois dum desastre destes, há a impressão de que se fica a viver fora do mundo. Parece-me que já passaram muitos anos depois que saímos de Berlim.
Ou será porque tive uma comoção cerebral?
- Não. Eu sinto o mesmo.
- O responsável do que aconteceu sou eu. Não
sei como...
- Que tolice! Nem eras tu que ias ao volante,
Peter. - atalhou ela, com vivacidade.
Calaram se a recordar o pobre Fobianke. A conversa deu meia volta e voltou às apalpadelas, depois duma pausa:
- Durmo tão mal!
-Sim? Parece que a nossa cama está sempre a ir de encontro à árvore, não é? Mas depois passa. Já me aconteceu o mesmo e os teus nervos são duma grande resistência.
Leore espreguiçou-se com um coleante gesto de gata, quando o egoista do Peter invocou a força de resistência dos seus nervos. E pensou: Na verdade quando se é resistente
toda a gente nos enerva e nos faz suportar tudo quanto há, acabando por nos abandonar. E sorriu com aquele sorriso velho como o mundo que Karbon tão bem conhecia.
Ele exclamou:
- Makako!
- Que quer dizer?
- Melancolia. Sorriso da floresta virgem. Macacos a contemplar a gente.-explicou, em fórmulas abreviadas. ela mudou logo de expressão e perguntou:
-Tens tido notícias do pequeno? -Tenho. Escreveu-me uma carta perfeita, em inglês. Creio que o colégio é bom.
- Quem ? Mas não estou a falar do teu filho. Queria dizer o nosso pequeno, o Franz Albert.
-Ah, sim. Veio visitar-me duas vezes, acompanhado pela senhora. Não veio cá ?
- Todos os dias. Era mentira.
- Vês ? Ele pôde cá vir e a mim, não querias receber-me.
- Ciumento ? - interrogou a actriz, abrindo a boca com uma expressão de espectativa que, no cinema, fazia grande efeito. Mas desta vez foi lamentável com a cicatriz
por cima do lábio.
- É claro que sou ciumento. Otelo.
"Se o fosse, nunca o confessaria." pensou ela. Gemeu em voz baixa:
- Oh! Peter...
Ele tornou-se muito sério, pensando: "Tenho pena de ti."
Ter pena - é o sentimento mais mortalmente perigoso que se pode experimentar em face duma mulher.
Olhou-a com ar sonhador e triste. Ela tentou sorrir, não conseguiu e pôs se a fumar.
Leore Lania e Peter Karbon, que estavam sentados em face um do outro e através dum certo espaço, trocavam palavras pouco sinceras, haviam partido (de Berlim como
dois apaixonados. Esta é que é a verdade, embora o sentimento que os unia fosse um certo amor de hoje: sem condições estabelecidas nem perspectivas sobre o futuro.
Absolutamente sem responsabilidades, sem plena consciência do carácter problemático de todas as relações humanas. Pudicos em face dos seus próprios sentimentos,
nada dispostos a formulá-los e com um grande respeito pela liberdade do outro, o que é talvez mais precioso do que a fidelidade e os juramentos. Haviam
partido sem se preocuparem com o ontem ou com o amanhã, entregando-se intensamente ao presente; tinham sofrido um desastre em que a morte se aproximara tanto que
o seu surdo zumbido lhes aflorara as fontes, e eis que estavam ali sentados como sobre as duas margens dum rio nitidamente seco.
- É assim mesmo, Leore. - disse Peter, na conclusão duma longa cadeia de pensamentos.
Como pessoa honrada que era, perguntava a si próprio como havia de enganar a Lania acerca do que sentia, mal adivinhando que, logo no primeiro aperto de mão, ela
se pusera a caminho para uma nova solidão bem conhecida, em que, se fosse possível, desejava conservar decoro.
Aproximou-se de Karbon e colocou a mão sobre os cabelos ruivos e espessos. Perguntou em voz baixa:
- Então Pitt, o que te apoquenta?
- Nada. Mais uma vez.
- Apaixonado? - perguntou ela, retendo a respiração.
- Sim... -confessou, com um aceno de cabeça, lembrando um colegial.
Apertou se a garganta da actriz. Mas dominou-se e disse:
- Olha que esta?! Outra vez apaixonado! Mas como é possível uma coisa dessas em Lohwinckel?
- É verdade. E uma outra espécie de amor.
- Mas que espécie?
- Outro formato. Outro peso, compreendes? Outra significação: não é uma coisa no ar. Começa por ser um pecado, o que é magnífico! Alguma vez, na tua vida, pensaste
que cometias um pecado? Ora eu estou em pleno pecado, o que é delicioso. É preciso ter trabalho, vencer resistências - tudo é tão sério! É necessário lutar por uma
mulher, conquistá-la, seduzi-la... enfim, não sei que palavras empregar. É ridículo, concordo, mas ao mesmo tempo dá-nos a consciência de sermos homens. Não achas
que o amor, como nós o praticamos, é bastante baixo?
- Ignorava que fosses assim um atleta sentimental, um tal galo de combate. Isso deve ser sport... não?
E retirou definitivamente a mão da cabeça ruiva.
Karbon pôs-se a reflectir; pensou em Elisabete Persenthein, pensou e sentiu duma forma muito nítida. com uma impressão de calor que o tornava forte, feliz e cheio
de esperança, mergulhou em si mesmo.
-Sport? Não, que ideia! Assumo uma grande responsabilidade. Vejo com absoluta clareza. Aquela mulher, sabes?... é diferente de tudo. Conhece-la apenas superficialmente,
senão verias como ...
-Obrigada. Peço-te que não contes. - disse Lania, que logo se dominou - Queres fumar?
- Obrigado.
Silêncio. Ambos pensavam na Elisabete, Ele na mulher que era feita duma pura e preciosa matéria, que se podia libertar, acordar, reanimar. Ela na mulher que andava
dum lado para outro com uma cara aborrecida e um avental de mangas, espalhando um aroma de preocupações mesquinhas e sabão. Não pôde deixar de criticar :
- As enfermeiras são sempre encantadoras.
- Tenho a impressão de que a vida me oferece uma ocasião excepcional, dando-me aquela mulher. E tenho que não deixar fugir a ocasião, compreendes Pittyevitte?
- Compreendo. Mas talvez seja ainda cedo para te meteres num convento.
- És muito simpática, Leore. Como facilitas tudo! -e estendeu-lhe por sobre a mesa, a palma da mão, aberta. Ela não lhe tocou.
- É claro que não somos pessoas para andar à espreita, com uma garrafa de vitríolo debaixo do braço, no momento em que uma coisa destas acaba... - disse a actriz,
piscando os olhos por causa do fumo e das lágrimas.
Esperava que ele exclamasse :
"-Mas isto não acabou!"
Peter Karbon estava atacado pela absorta surdez de todos os homens recentemente apaixonados. Voltou a examinar o rosto da Leore que parecia ter diminuído naqueles
minutos.
- Realmente estás muito bem. Não deves
inquietar-te por causa da cicatriz. O doutor disse que essa vermelhidão vai desaparecer, Quanto ao nosso seguro... pagar-nos ão talvez dez marcos, na melhor das
hipóteses. Lania não sorriu com o dito de espírito. Tornou-se também muito delicada.
- E o teu carro, como está ?
.- Rebocaram-no até Schaffenburg. Parece que fica como"novo.
- Ainda bem.
- Não me servirei dele. Nunca mais tornarei a entrar num automóvel. Fiquei com um medo! Não me faltava mais nada ...
- E então, como tencionas ir-te embora?
- No comboio. -Ah!
E o seu coração começou a bater como se estivesse solto no peito, parecendo um animalzito atacado de convulsões. Chegara o momento em que se ia separar de Peter,
falara até aí para se treinar a chegar, com coragem, ao desfecho. Tudo se passava em silêncio, fumava-se enquanto morria um nós e surgiam um tu e um eu.
- Quando tencionas partir? - perguntou.
- Não sei ainda.
Olhou-a atentamente. Sentia também a separação decisiva que aparecia naquela simples pergunta.
- Queres que combine contigo? - perguntou por delicadeza.
- Obrigada. És muito gentil, mas estou à espera do meu marido.
- Julguei que estavam zangados... desde o divórcio ?
- Não falo do Ricardo, mas do Erich.
- O primeiro?
- O segundo.
- Ah, sim. Faço sempre confusão.
Ficaram ainda sentados, durante alguns segundos, indecisos e ocos, em frente um do outro. A pesada nuvem da tarde desdobrara se num fino nevoeiro sob o qual a paisagem
tinha tempestuoso aspecto, enquanto esperava o crepúsculo. Um bando de pegas sombrias
fazia exercício, voava, dava voltas e aterrava. O criado, de socos, ia e vinha, na faina de tirar água do poço. pouco depois, um automóvel atravessou o portão, fez
a curva no pátio e veio parar à porta do castelo.
- Vêm buscar-te. - disse Lania, levantando-se. -Não é para mim. Não subo para um carro.
vou a pé.
-Queres que te acompanhe?
- Se quiseres, és muito amável. Mas devem vir ao meu encontro, pela estrada... -explicou, tossicando.
Ela achou-o ridículo. Dava-lhe uma grande consolação poder achá-lo ridículo com a sua paixoneta pela astuciosa criatura que viera descobrir naquele provinciano buraco.
- Afinal, é melhor que eu não vá. O Franz Albert deve cá voltar outra vez.
Disse com desenvoltura a tremenda mentira.
- De resto, hoje vou tornar a ver-te. No cinema.
- O que levam?
-"Aventura em Monte-Carlo". Está toda a gente excitada com o espectáculo. Cai lá tudo.
- É fantástico! Um filme tão velho! E tu, para que vais vê-lo?
Peter Karbon encolheu os ombros. Deitou um discreto olhar enviesado para o seu relógio de pulseira que, desde o desastre, umas vezes andava e outras parava. A Elisabete
já devia vir a caminho do Domínio.
-Então o pequeno vem cá ver-te? - disse, com tingido interesse - Dá lhe saudades minhas. Amanhã voltarei cá, Lania.
A actriz tirou uma linha do ombro de Karbon. Era um dos pequenos gestos pelos quais uma mulher deixa ver que um homem lhe pertence.
- Até à vista, cidadão de Lohwinckel! - disse, a rir. Ficou de pé no alto da escada, a vê-lo afastar-se.
Apressado, nem se voltou para trás.
Enquanto Lania subia para o seu quarto, sentando-se, muito direita, na beira da cama, como se aquela atitude a impedisse de sentir a dor que de todo o seu ser se
apoderara, Karbon encontrou, ao fim da escada,
um cavalheiro muito alegre que o cumprimentou e que ele se lembrou confusamente de ter visto em qualquer parte. Era o dr. Ohmann, o presidente da Câmara de Lohwinckel
que, em seguida ao desastre, visitara atenciosamente todos os feridos. Chegara, havia alguns minutos, ao Domínio, por razões absolutamente particulares.
- Já sabia que aqui estava. Não me demoro. Se quiser, levo-o no meu carro.
Peter agradeceu. Sentia literalmente a Elisabete a vir ao seu encontro, pela estrada. Desde a sua adolescência que não experimentava igual alvoroço.
O dr. Ohmann bateu à porta do vestíbulo que, ao mesmo tempo, servia de gabinete de trabalho ao dono da casa, e entrou.
- Deixou um recado tão urgente para mim, na Câmara, que preferi vir eu cá imediatamente, -disse ao fidalgo que estava de pé em atitude cerimoniosa, com as articulações
das mãos retezadas sobre a mesa. Dava a impressão de receber, em audiência de favor, o visitante. Verdade seja que as mãos tremiam sem parar.
- É extraordinário... mas não queria que se incomodasse ... - tossicou.
- Tive a impressão de que era urgente e desejo evitar que mais uma asneira seja cometida nesta terra.
O presidente da Câmara disse isto em tom negligente, empregando algumas palavras de dialecto afim de tornar o tema abordável.
-Desculpe. Queira sentar se. Um charuto?
- Obrigado, não fumo.
Este facto aumentou a antipatia pelo visitante. Os dois homens estimavam-se reciprocamente mas eram adversários políticos. O funcionário do estado achava o fidalgo demasiado conservador e este censurava ao outro ter ideias muito avançadas.
com a delicadeza de quem está melhor colocado, o visitante declarou:
- Pois tive muita pena de me não ter encontrado na Câmara. Estava em Schaffenburg. Fui pedir alguns polícias. A nossa cidade não me está agradando nada, neste momento.
Desde que chegou o comunista, Obari
ger está de pernas para o ar. Vão mandar-me seis homens. Mas isto não o interessa. Trata-se do seu negócio ... da "Costa do Sol", não?
-Corro? Ah, sim... isto é, não. Evidentemente que da "Cesta do Sol" também... Mas isso é apenas um lado da questão. Quási que tive uma apoplexia quando soube que
as quatro hipotecas tinham passado para a mão do sr. Profet.
- E verdade. Deu-se precisamente aquilo que nós temíamos. Não é nenhuma surpresa, sr. Raitzold.
- E uma surpresa que a Caixa Económica tenha, desta forma, faltado aos seus compromissos. Foi uma condição absoluta que eu impus: que nunca se desse a passagem para
as mãos sujas do sr. Profet.
A frase "mãos sujas" fez estremecer as sobrancelhas do sr. Ohmann. Pregou o olhar numa das manchas de ferrugem existente na velha estampa de caça, ao lado do armário
das espingardas, e tornou se ainda mais oficial.
- A Caixa Económica não faltou ao estabelecido. As hipotecas foram cedidas em várias partes: uma para a fábrica de fiação de lã Baerwald, outra ao Kruger de Dusswald
a quem Kampersa comprou. E foi por Kampersa que o Profet entrou na posse de tudo.
- Aqueles cavalheiros da Caixa Económica ignoravam talvez que os Baerwald, os Kruger e os Kampers
eram cabeças de pau ? Bem sabe que não, sr. Ohmann.
-A Caixa não podia, por mais tempo, suportar o
empréstimo. Não tomou nenhum compromisso para
fazer seguir por detectives as pessoas que lhe compram
AS hipotecas, afim de saber se são, ou não, cabeças de pau. Demos lhe certos prazos para o pagamento dos
Impostos, e afinal o senhor deixa cair cada vez mais a
propriedade, corta árvores, estraga ... Compreende que
a hipoteca vai muito além do valor real.
O fidalgo deu um pulo. Tinha as mãos trémulas e
testa azul.
- Deixo cair a propriedade ? Coos demónios! Então eu ... Como se dependesse de mim obter colheitas por bruxaria ! - gritou. - Ora deixe-o vir para cá, a esse sr.
Profet, esse ferreiro que ninguém sabe donde veio,
e veremos o que ele faz. Não há maneira de continuar assim. É uma tortura! Uma tortura que parece fazer saltar o sangue por todas as pontas dos dedos! com que então
eu deixo ir abaixo o Domínio Raitzol, an ? Mas o senhor, que percebe disso, não me dirá? É talvez um excelente advogado; mas não pode compreender o que um pedaço
de vinha, aquela "Costa do Sol" representa para nós! Se eu quisesse cedê-la a um Profet..
- Ele tem decerto outros projectos. É um homem para fazer render a minima parcela de terreno.
- Fazer render! O quê? Fazer render!
- Quere aumentar a sua empresa e fazer construções. Não pode ficar eternamente com o velho depósito da antiga tinturaria. Tem um projecto de construção para o lado
de trás, até ao muro.
- Como ? Mas aí há vinha ?!
Tirou o charuto da boca, deixando tombar o lábio inferior, na atitude da mais completa incompreensão. Ohmann encolheu os ombros. Raitzold, batendo com a mão na mesa,
exclamou :
- Mas isso é impossível! Depois, em voz baixa, repetiu :
- Não é possível..
Tremeu abertamente e não escondeu a dificuldade que tinha em respirar.
O visitante disse, com prudência:
- Ao ponto a que as coisas chegaram, não vejo o que se possa fazer... não, realmente ...
- Sr. presidente. Dr. Ohmann ... o senhor ... É preciso que impeça isto. O senhor é daqui.. bem compreende que semelhante coisa não é possível.. Não se pode permitir
que um indivíduo qualquer que está possuído pela mania das grandezas, vá assim construir armazéns numa vinha-porque uma vinha é uma coisa sagrada, sr. presidente!
Se eu provar, de olhos fechados, cem qualidades de vinho, distingo logo o "Costa do Sol", é um pedaço da terra... Percebe? Se eu quisesse proceder assim, então há
muito tempo que poderia ter extraído uma fortuna do Domínio. O Profet passava a vida a fazer-me ofertas. Disse sempre que
não - e agora.. cheguei a isto? Então aquele homem ficaria assim de posse daquela abençoada terra, por dez reis de mel coado? O que ele trapaceou para conseguir
isto!
- Ele não está muito entusiasmado com a compra, pode crer. Não é nenhuma bagatela. Tem as suas preocupações também : a fábrica não caminha como desejaria ..
Deteve-se a olhar para a velha gravura de caça que tinha ao centro um veado perseguido, de músculos curiosamente retesados. Apoderou se dele um sentimento desagradável,
ao pensar que estava a defender uma causa que, intimamente, reprovava. O proprietário do Domínio respirava a custo, o que o comovia. Mas retomou a palavra, e parecia
mais calmo.
- O sr. presidente teve a amabilidade de vir a minha casa. Creio que o não fez para defender a causa do Profet..
- Vim logo, porque a sua carta tinha qualquer coisa de ... como dizer ?... de ameaçador. Queria tranquilizá-lo.
Sob o bigode de Raitzold esboçou se um sorriso desdenhoso, altivo e absurdo. Dirigiu-se para a velha mesa onde trabalhara toda a tarde e bateu com o dedo nas folhas
que lá estavam espalhadas. Disse:
- Comecei a fazer um relatório que lhe poderei entregar amanhã ou depois. Proponho à cidade tomar conta da propriedade, fazer disto uma quinta municipal, deixando-me
ficar como caseiro. Em certas condições que exporei, estou pronto a ceder a propriedade ao Estado, assegurando-lhe a exploração como feitor. Estou persuadido de
que...
Embora aquilo parecesse sensato, era um puro e irrealizável absurdo, fosse qual fosse o lado por que se encarasse a questão. Só na beira do abismo, uma pessoa se
agarra a tais divagações.
- Que quer o senhor que a municipalidade faça da sua propriedade, Deus do céu?-perguntou o dr. Ohmann, compassivo. -- Se nem sabemos como pagar as nossas dividas!
-Poder-se-ia fazer disto uma quinta modelo, com algum capital. O vinho... a leitaria... as experiências com o trigo americano... a minha irmã trata de horticultura
Vendo o gesto de recusa do visitante, Raitzold afastou-se da mesa. Sentia o vácuo lá dentro, no crânio; o que provinha do trabalho que tivera em somar, durante horas,
incompreensíveis algarismos.
Repetiu em voz mais fraca:
- A minha irmã dedica-se à horticultura.
Foi até à janela e abriu-a num gesto violento. A tarde entrou com o longínquo aroma das folhas secas e queimadas, das batatas e com o perfume, mais próximo, das
nogueiras molhadas pelo orvalho. O crepúsculo começara a tombar com nódoas cor de estanho no rebordo do ângulo formado pelo sol; todos os pássaros cantaram e se
calaram no pomar. O fidalgo tentava respirar fundo mas não podia: desde a guerra que sofria de asma e durante toda a conversa estivera a lutar contra uma crise de
que sentia a aproximação. A tampa do poço rangeu de forma determinada - era um som profundamente familiar que o acompanhava desde a infância. Nunca o ouvira com
plena consciência como naquele momento em que estava abatido.
Como que falando para a terra, disse:
- Nisto tudo há uma coisa certa: não saio vivo do Domínio.
Do fundo do aposento, o dr. Ohmann. respondeu:
- Não faça tolices, Raitzold, vamos reflectir, ver o que se poderá fazer.
Era uma frase sem verdade e que não convenceu o dono da casa.
De repente, um piano pouco sonoro e desafinado começou a deixar ouvir um fox-trott moderno, tocado de forma bizarra, e que os discos de gramofone já haviam popularizado
em Lohwinckel, de tal modo que os estudantes e os empregados do correio o assobiavam pelas ruas.
- A nova hóspede. - explicou o fidalgo, com um sorriso forçado,
-Ah!-disse o presidente da câmara, em ar respeitoso-E verdade, encontra-se tudo cheio de celebridades, como se diz em Berlim. E essa senhora, como está? ; - Obrigado,
vai indo.
- Em seguida àquele desastre, tivemos uma data de perturbações, cá na terra. - disse o visitante, dirigindo-se para a porta. - Parece que as pessoas estão embruxadas.
Até no liceu houve uma revolta, esta tarde. O reitor veio suplicar-me para eu interceder, mas não posso fazer nada. Tem que aprender a caminhar com a juventude.
Pois é verdade, o senhor fica com o prazer de falar com a sua hóspede e eu tenho que ir trabalhar. Logo à noite sou forçado a ir ao cinema.
- Isso é que é trabalho! - exclamou Riitzold no seu tom de militar.
Sabe Deus quanto lhe custava tomar aquela atitude desenvolta.
- Sim; vou lá no exercício das minhas funções. Sinto que anda por aí qualquer coisa suspeita. Já hoje, os operários mal trabalharam ...
Chegaram ao pátio. Já em frente do carro, disse:
- Hoje é quarta-feira... no sábado temos reunião municipal. Aproveitarei o momento para tratar do seu assunto.
E subiu para o carro, com o sentimento de se ter mostrado diplomata e de ter conseguido talvez desviar o proprietário das suas sombrias e incendiárias ideias de
suicídio.
O auto demarrou e os faróis construíram uns cones de luz. Lá em cima, o fox-trott continuava a insistir sempre nos mesmos compassos, como se houvesse obsecação na
pessoa que tocava. Quando o fidalgo voltou para dentro, encontrou a irmã. Tinha vestido as velhas calças do uniforme do irmão, o que demonstrava ter trabalhado no
curral.
- Mandei buscar o veterinário. Creio que a vaca de dois anos deve dar hoje à luz. O Kilker está certo disso. Não quis incomodar-te...
Não obteve resposta. O irmão abriu uma gaveta
da mesa, arrumou cuidadosamente o borrão do relatório e pegounuma caixa de remédio.
- Queres comer alguma coisa ? - perguntou ela. Recebeu um aceno negativo, em resposta.
- Ainda vais trabalhar ? Ele pensou:
"Não. Para quê?" Mas não disse palavra. A irmã fitou o. Havia puxado para si um cinzeiro, deitou dentro o pó e queimou-o, aspirando o vapor. Tinha as mãos enclavinhadas
na mesa, inclinava-se para a frente com inchadas veias azuis e olhos angustiados, lutando para obter um pouco do sopro de vida de que necessitava. A irmã aproximou-se
e deu-lhe uma pancada no ombro, como se fosse um cavalo
- Daqui a pouco estás melhor, Fichli. - disse lhe, lembrando-se do gentil nome da sua infância, naquele tempo em que ambos se sentavam sob as groselheiras. com efeito,
a crise atenuou-se, passado algum tempo. De cima, vinha a mesma música.
- Melhorzinho ?
- Sim.
- Queres vir ao curral ? -Não.
- Vais-te deitar ?
- Não.
E abotoou o casaco.
- Então que vais fazer?
- vou a Obanger, ao cinema.
Foi a resposta mais surpreendente que a irmã lhe ouviu, em toda a sua vida. Enquanto ela permanecia de pé, olhando-o surpreendida, abriu, num gesto habitual, a gaveta
do armário das espingardas, tirou o seu revólver e meteu-o na algibeira. Era uma série de movimentos acostumados que fazia sempre que saía.
Depois de ter desaparecido, o fumo do pó anti-asmático continuou a flutuar, deixando um aroma vagamente amargo.
Para chegar à sala da hospedaria de Oertchen, onde se realizava a representação cinematográfica, era preciso atravessar um estreito corredor de pedra onde se encontravam
vazios barris de cerveja, de úmido aroma e dominical aspecto. À entrada, estava sentado o jovem Oertchen, por trás duma pequena mesa, a vender os bilhetes; havia
plateia de primeira e de segunda-o dinheiro amontoava-se num prato de sopa, de grossa louça branca, de uso comum. À entrada da sala estava o hoteleiro, a fiscalizar
os bilhetes, cumprimentando as pessoas ilustres que, naquela noite, se apresentavam. Chegava a ser estranho vê-las ali, num local ordinário frequentado pelos habitantes
de Obanger. O começo do espectáculo estava marcado para as sete horas, mas às seis e meia já havia grande influência. O acesso à sala, com os homens gesticulantes,
empurrando-se e tomando a mesma direcção, parecia se com a entrada duma colmeia. Primeiro, chegaram os operários da fábrica, os quais vinham aos grupos, estando
presentes mesmo os mais velhos, que nunca haviam gasto dinheiro com filmes. Lá estava o antigo contramestre Hockling, examinando as fotografias expostas na montra,
e mostrando um sorriso estúpido e obscuro, contemplando a Leore nas suas variadas atitudes. Haviam deixado as mulheres em casa e vinham como a uma reunião - aquilo
era um negócio só para homens. Parecia estarem à espera de qualquer coisa. Talvez duma certa mensagem que havia de chegar de Berlim, da parte do paginador Pank,
com as instruções que ele prometera enviar sobre se devia ou não declarar-se a greve geral na fábrica. Era isto que lhes dava a desabrida impaciência duma véspera
de combate. Um pouco mais tarde, chegaram as operárias; davam os braços umas ás outras, rindo e cacarejando como jovens camponesas quando passeiam à tarde através
da aldeia
- costume que haviam guardado no novo modo de vida, e no bairro proletário,
Oertchcn metera-se em despesas: mandara vir de Dusswald o pianista Roggenzahn, um indivíduo mal visto e beberola que, às seis e três quartos, começou a tocar a Marcha
Nupcial do Sonho duma Noite de Verão, inclinando se para o piano com os olhos voluptuosamente fechados dum verdadeiro músico e esforçando-se por encobrir com o demasiado
uso do pedal o som das teclas gastas.
Entretanto, o criado acendera os dois candeeiros da entrada que imediatamente foram assaltados pelas últimas borboletas de cabeça grande que volitavam na tarde quente.
Gratuitamente, a sr.a Oertchen serviu, numa sala particular, cerveja aos dois polícias chegados no comboio de Schafíenburg e que estavam encarregados de vigiar o
local. Outros dois patrulhavam as ruas e o último par girava à roda da fábrica, visto pelos operários e cumprimentado sem afabilidade: a sua presença, na cidade,
contribuía para exacerbar ainda mais a tensão geral.
A primeira desordem estalou na caixa, quando terminou a marcha nupcial. com efeito, embora uma tabuleta muito visível indicasse que a entrada era "reservada aos
adultos" e o reitor tivesse proibido, duma vez para sempre, ir ao cinema, uns trinta estudantes apresentaram-se, pedindo bilhetes. Tinham mandado à frente os mais
velhos, uns cábulas repetentes cuja voz, na muda, demonstrava que tinham mais de dezoito anos. Os outros - não sem premeditação - haviam-se colocado em pequenos
grupos entre os quais os mais pequenos, evidentemente menores, se escondiam. Já estavam muito excitados quando os últimos chegaram: desde a reunião na poça dos patos
ainda não haviam recuperado a serenidade. Naquela reunião haviam decidido não se submeter às ordens recebidas; depois tinham-se dividido em duas partes: uma optava
pela ausência pura e simples, enquanto que a outra preconizava uma atitude viril e uma revolta aberta contra a tirania do reitor. Aquilo acabara por uma tremenda
batalha em que haviam vencido os mais fortes. À tarde, o primogénito dos Profet, acompanhado pelo aluno do último ano, Gurzle, (o mais valente aluno liceal) e pelo
próprio
pensionista do reitor, Kollce, dirigiram se ao liceu e anunciaram que os alunos se recusavam a ficar de castigo naquela tarde que o regulamento reservava para a
educação física. Muito solenes, saíram, em seguida, do domicílio do reitor e perto da árvore mutilada, cumprimentaram-no, deixando o mudo de surpresa e espanto.
Depois, em grupos numerosos, dirigiram-se ao Priel onde morava o sr. Profet, indo buscar Franz Albert que aos dois filhos da casa fizera a formal promessa de assistir
ao desafio de futebol. Assistiu e nele tomou parte, até com muito prazer, pois pouco mais velho era do que o alto Gurzle. Mal sentiu sob os pés a curta relva do
estádio e a camada de granulada cinza, da pista, sentiu se como que em sua casa. Foi um belo jogo, findo o qual, nenhum dos rapazes, a transpirar, nem Franz Albert
tinham vontade de ir para casa. Continuou a divertir-se com eles até ao crepúsculo, fez os cem metros que perdeu com 14,8 segundos, o que não admira, pois não estava
treinado para a velocidade mas sim para encaixar Além disso, desde que o obrigavam a comer demais, na casa Profet, parecia-lhe ter uma dilatação de estômago. Os
rapazes aclamaram a vitória do esgrouviado Gurzle (12,7) com gritos furiosos, depois houve um silencio de morte quando Franz Albert executou, na sua frente, alguns
dos seus exercícios de treino e lhes mostrou o iippercut esquerdo com o qual conseguira o seu título de campeão. Experimentaram o desejo, muito sincero, de se conduzirem
como homens e, em frente da papelaria Leelig, ao ver as fotos de Leore Lania, amadureceu neles a resolução de ir ao animatógrafo.
Iam inchados e agressivos quando apareceram na sala de Oertchen; as costelas apareciam retezadas como no corpo de animais novos e os seus dorsos de rapazotes quási
deitavam fumo. Sabe Deus onde tinham ido procurar as moedas de cinquenta pfennig que apertavam nas úmidas palmas das mãos, mas agora estavam ali e queriam entrar,
coos demónios!
Primeiro, houve risos, depois troca de ditos e, por fim, uma verdadeira discussão. Os operários excitavam-nos-os jovens a favor e os velhos contra - e, enquanto
o filho de Oertchen prcguntava a si próprio se devia chamar a polícia, os rapazes recorriam à violência. Os que estavam atrás empurravam com força, os que se encontravam
à frente mostravam os punhos cerrados e dos lados fizeram pressão, servindo-se da sua recente ciência do box. Abriram caminho, derrubaram o prato do dinheiro que
se espalhou, telintando, invadiram a sala, subiram as escadas e ocuparam as partes laterais da pequena galeria.
Foi assim que, quando os burgueses de Lohwinckel chegaram, um pouco antes das sete, e procuraram os lugares ao som da valsa As Ondas do Danúbio, encontraram os seus
rebentos, muito afogueados, debruçando-se da varanda da galeria. O carniceiro Scyfried, por exemplo, cujo filho estava destinado a ser alguém, ameaçou-o abertamente
com a mão muito espalmada. O sr. Profet chegou com a esposa e o hóspede. Ao ver, não só o seu primogénito mas também Otto, o mais novo, apesar de furioso, desatou
a rir:
- Estes mafarricos são da pele do diabo, exactamente como eu era!
A mulher lançou lhe um olhar oblíquo, um destes olhares de mulher casada que significam :
- "Ora... tu!"
Franz Albert estava sentado entre ambos com o seu meigo rosto de anjo e ria-se voltado para os rapazes que se haviam tornado seus amigos.
O piano tocava a abertura de Poeta e Camponês e o operador da casa alugadora do filme, que raramente aparecia, posse a instalar o seu aparelho de projecção ao fundo
da galeria central.
De súbito, houve um movimento de curiosidade no público porque, guiado pelo sr. Oertchen, fazia a sua entrada o dr. Ohmann com a mulher e a filha, colocando-se ao
centro da galeria, em cadeiras almofadadas cuja disposição dava ao conjunto o aspecto dum camarote. A sr.a Ohmann era uma pessoa cuidada e faladora, já de certa
idade. Coxeava levemente mas não admitia que se desse por isso. Quando havia alguma reunião (nunca superior a doze pessoas) era obrigatório pedir-lhe
para cantar. Sabia música e entoava a ária das rosas das Bodas de Fígaro, a Nogueira de Schumann e a Primavera cJe Hildach, três trechos que julgava igualmente belos.
a filha, também musicista, que fizera aplicados estudos de violino e era noiva de jovem médico cuja existência obscurecia o horizonte vital dos Persenthein, estava
sentada a seu lado, com sobrancelhas demasiado fartas, um vestido que lhe ficava mal e o ar ligeiramente ofendido que arvoram as filhas de certas mães que são muito
orgulhosas.
O presidente da Câmara deitou um rápido olhar para a galeria, a abarrotar, onde a madeira estalava e cuja aparência era difícil de conciliar com uma tabuleta suspensa
à entrada, onde se lia: "Máximo de lugares autorizados: 80". Reprimiu uma observação, iniciou o seu sorriso bem educado de funcionário superior e perguntou à esposa:
- Ele que está a tocar?
Era o Idílio de Siegfried, interpretado sem música, com expressão sonhadora e muitas variantes improvisadas.
- É ... é Beethoven. - declarou a mulher.
- Wagner. - emendou a filha.
E o dr. Ohmann ficou colocado entre dois fogos, como sempre na sua vida familiar.
Entretanto, cinco minutos tinham decorrido desde as sete horas e os operários que estavam à espera desde as seis e meia começaram primeiro a bater com as mãos e
depois com os pés. Um gritou uma palavra ininteligível, depois caiu o silêncio. Pouco depois, recomeçou a pateada, mais forte e alegre. Também os rapazes, lá em
cima, pateavam, o que levou o presidente a deitar novo olhar apreensivo à construção de madeira. Ainda se levantou um pouco, mas achou mais prudente não fazer caso,
hoje, das faltas cometidas contra o regulamento. O pianista Roggenzahn, a quem haviam trazido uma caneca de cerveja, e murmurado algumas palavras ao ouvido, começou
a tocar um trecho movimentado que parecia anunciar o princípio do espectáculo. Mas depois nada aconteceu.
Embora todos os lugares estivessem ocupados
se vissem espectadores em pé, lá fora havia cada vez mais gente a querer entrar, no desejo de assistir ao espectáculo. As filas de cadeiras, de primeira, enchiam
completamente o espaço que lhes fora destinado, mas o criado ainda arranjou maneira de meter mais algumas, de ferro, pertencentes ao jardim. Quanto à segunda plateia,
era formada por bancos compridos.
- Apertem se um pouco, vá, os outros também querem sentar-se. - aconselhou o hoteleiro.
Mas esta intervenção, embora feita em dialecto e num tom jovial, desagradou. O público que menos pagara, aproveitou esta insignificante ocasião para protestar com
desproporcionada violência. Alguns levantaram-se e gesticularam, outros resmungaram, uns gritaram e o resto recomeçou com a pateada. A revolta só amainou quando
o hoteleiro se foi embora e o pianista tocou a Barcarola dos Contos de Hojjmann, acompanhada pela voz do contramestre Birkner, que murmurava :
- Os outros ... ora ... os outros ...
- Mas eles que têm ? - perguntou a mulher do presidente, virada para o marido, que franzira as sobrancelhas.
Arvorando o seu rosto amável, explicou:
- É uma brincadeira. Ela criticou:
- Olha, olha... a mulher do médico, mesmo no meio dos operários. E sem o marido! Não é o Karbon que está com ela ? Realmente, não achas que ... ?
- Karbon ! Ó Karbon ! - gritou lá em baixo o Franz Albert fazendo-lhe sinais. Sentia-se extremamente aborrecido sempre com a sr.a Profet a seu lado, constantemente
emocionada e significativa. - Vem para aqui, Karbon!
Peter Karbon voltou-se, encolheu os ombros e riu-se alegremente virado para o boxer. Era impossível sair dali, daquela plateia de segunda onde ele e a Elisabete
se haviam sentado, ao acaso. Estava loucamente satisfeito. Havia muitos anos que não empreendera nada tão estúpido. A seu lado, a Elisabete tremia, quente e delicada
junto do seu ombro; era tão leve que
ele advinhava-a mais do que a sentia. é assim que, na primavera vibram os troncos das árvores; Karbon, que era caçador, lembrava-se como estremeciam as árvores agitadas
pela seiva quando a gente se lhes encosta, esperando o crepúsculo, afim de atirar às galinholas que passam.
Elisabete enfiara o único vestido elegante que possuía, o azul-escuro, é claro, mas alegrado por uma nova gola e enriquecido com um lindo camafeu antigo que fora
da avó Burhenne. Uma precipitada e infeliz tentativa de arranjar as unhas deixara pequenos vestígios de sangue nas beiras. Lambia as feriditas, de vez em quando.
Estava febril e docemente angustiada: o que a trouxera ao cinema, não fora senão o ciúme. Muito impaciente, queria ver a Leore Lania, observá-la durante horas, enquanto
Peter Karbon estivesse sentado a seu lado, como se pertencessem um ao outro. Uma breve conversa na estrada da floresta, quando fora buscá-lo, enchera a duma perturbação
feliz e dum frio terror. perguntara: - A sua amiga como está?
- - Bem. Decorreu lindamente.
- Já lhe tiraram os pontos?
- Os pontos ? Sim ... Separei-me dela.
- O quê? An? Porquê?
- Por causa de ti, claro.
A resposta batera, em cheio, no coração da Elisabete, com a aguda violência duma bola. Tratava-o sempre por senhor. E ele, a tratá-la assim por tu, tirava-lhe a
respiração. Levara muito tempo a habituar-se àquela resposta, enquanto ia seguindo as pedras brancas que orlavam o caminho.
- Então para vocês, é assim tão fácil separarem-se ?
- não pôde deixar de perguntar.
- Não generalisemos, Elisabete.
À beira da estrada cresciam campainhas selvagens, com os caules resistentes e as flores cor de rosa com tons de cinza. Elisabete, calada, brincava com elas, enquanto
Karbon lhe pegava no braço, como se fosse a coisa mais natural deste mundo uma mulher casada andar
a passear numa floresta, enlaçada por um estranho. E era, na verdade, natural: Elisabete achava-o com lancinante sentimento de injustiça e pecado.
Uma das campainhas conservava-se ainda na botoeira de Karbon, exalando delicado perfume a campo
e pó.
- Isto vai finalmente começar. - disse ele, colocando a palma da sua mão sob a da Elisabete, no momento em que a sala ficou às escuras.
O filme, como todos os que ali se exibiam, já não era novo, estando, mesmo, bastante riscado. A Cote dAzur que apareceu logo ao princípio, parecia bastante escura
e chuvosa, embora o sol e a sombra estivessem perfeitamente delimitados. Viu-se a Riviera, em alguns quadros: a subida perto de Monte-Carlo, o casino, uma sala de
jogo, um hiate no porto de Villefranche, tilas de automóveis lá em cima, montras de luxo em Nice -todas as coisas que estavam longe dos hábitos de Lohwinckel e que
aquela gente devorava com olhos ávidos, até mesmo os operários que pensavam no aumento de salário. A sr.a Profet, pessoa muito viajada, pronunciava, em voz alta
embora derretida, os nomes das cidades, dos hotéis e das ruas que reconhecia, ao ouvido de Franz que já lá estivera três vezes, mas que de nada se lembrava. Podiam-lhe
fazer dar a volta ao mundo: tinha tanta memória como uma encomenda postal.
- Bati me uma vez em Espanha. - contou, fora de propósito - Quási que deram cabo de mim! Livra! Nesse tempo, ainda não tinha o Simotzky.
Encostado à parede, mesmo no meio dos operários, estava o sr. Markus. Também ele conhecia bem a Riviera, quanto mais não fosse pelos livros, as descrições, os romances
e as fotografias. Á manicura viera para junto dele, o que constituía uma vizinhança incómoda e comprometedora, mas em todo o caso, antes ela do que outra pessoa.
Em voz baixa, dava-lhe explicações e esforçava-se por afastar dos seus ombros delicados a multidão dos moços operários que fumavam e transpiravam. O judeu, de manhã,
apaixonara-se violentamente pela Leore Lania. "O senhor devia ter seguido a sua vocação de escritor", dissera ela. Daí nasceu o sentimento amoroso que se tornou
mais torturante, forte e penetrante quando a imagem da actriz apareceu no écran. Por outro lado, encontrava-se em ebulição o seu amor secreto e platónico por Elisabete
Persenthein, que estava sentada na terceira fila com o rosto iluminado por uma nova expressão de vivacidade. Para acabar, tinha junto de si a manicura e seria essa
que afinal lhe pertenceria quando, no fim do espectáculo a levaria a casa - à falta de melhor, visto que era vulgar, fácil e grosseira. "À falta de melhor" - pensou
Markus, suspirando. "Toda a minha vida é feita de restos". Esta frase pareceu lhe tão feliz, que se sentiu quási reconfortado.
Mas eis o que se passava com Leore Lania, a heroína do filme que em Monte-Carlo se chamava Lorc: Extraordinariamente pequena, só e frágil, descera da estação e tirara
da algibeira uns papéis que demonstravam ir ocupar um pôsto de professora alemã. Embora fosse muito pobre, tinha um taileur de alta costura como é costume no cinema.
Tornou-se imediatamente simpática por um gesto comovedor. No bufete da gare mostrou à evidência que tinha fome, no entanto, em vez de mandar vir uma costeleta de
vitela, comprou com o último dinheiro que possuía um ramo de violetas de Parma. Depois foi acolhida por uma alentada matrona muito bem vestida e o alegre quiproquó
começou. com efeito, a pobre e ingénua professorita fora vitima duma confusão e caíra nas garras duma dama que tinha um dancing elegante onde Leore se devia exibir
como dançarina mundana. Os habitantes de Lohwinckel não perceberam logo à primeira, como os estudantes ladinos; depois a luz da compreensão entrou nos cérebros dos
operários e por fim, nos dos burgueses. Quando toda a gente percebeu do que se tratava, surgiu nos rostos um sorriso claro e satisfeito.
Fazia imenso calor na sala. O pianista limpava com o lenço a umidade que se espalhava pelas teclas. A madeira da galeria, em certo momento, estalou de tal maneira
que parecia um tiro de espingarda; toda a gente ergueu os olhos, assustada. Quanto ao resto,
tudo decorria calmamente, embora os cotovelos e os joelhos de uns estivessem enterrados nas ancas dos outros. Na segunda parte do filme, quando Leore provou o vestido
de baile, os operários começaram a rir grosseiramente e sem razão; fizeram-no porque, estavam um pouco chocados e também porque, como bons renanos que eram, adoravam
as mascaradas. Haviam escolhido para Lania um vestido assaz picante, feito de alguns quadrados pretos entre os quais a pele aparecia como uma amostra de sêda branca.
O operador soubera acentuar esta sedosa aparência da pele fazendo incidir sobre a superfície lisa pequenas projecções algo perversas. Sobretudo no arredondado do
ombro cintilava um reflexo que retinha todos os olhares.
Elisabete Persenthein, que nunca se contentara com o seu aspecto, com a sua figura de marmórea Sigismunda, jamais vira um ombro como aquele. Sem dar por isso, apertava
muito a mão de Karbon, enquanto tinha sob os olhos aquele espectáculo gracioso, tentador e vibrante constituído pela admirável linha de ombros. Compreendeu subitamente
que aquele homem estranho possuíra e abandonara uma das mais lindas mulheres do mundo, por sua causa. Tudo era tão inverosímil que, durante segundos, teve uma vertigem.
O que lhe acontecia, passava-se fora do mundo, num espaço cuja atmosfera diferia, sobre um astro onde não reinava nenhuma força de inércia. Lá em cima, a Lania dançava
sozinha sobre um estrado iluminado, cheia duma sedução fria e longínqua. Elisabete fechou os olhos, não quis continuar a ver. O seu ciúme tornara-se escaldante,
quási erótico, porque o verdadeiro ciúme contém, no fundo, um laço físico, uma ponta de inveja quási amorosa em relação à pessoa rival. Peter Karbon olhava para
o écran tranquilamente, quási que aborrecido. Conhecia o filme, que considerava medíocre, e então assim riscado, era insuportável. Elisabete olhou lhe para a boca,
notando, pela primeira vez, a forma viril dos lábios. Teve um arrepio.
- Que há? - perguntou ele.
-Não quero que olhes para lá!-respondeu com
violência e tratando-o por tu, pela primeira vez e sem dar por isso.
Nesse momento, a terceira parte acabou e a sala foi iluminada porque o hoteleiro queria vender cerveja. Instalara mesmo um balcão ao fundo da sala, sob a galeria.
Para lá se dirigiram os espectadores sequiosos. A sede crescera de tal maneira na atmosfera cheia de calor que se viu o contramestre Hockling beber a sua cerveja
lado a lado com o notário, e o director da Caixa Económica não hesitou em empurrar um moço operário, apoderando-se do seu copo. No momento em que findou o intervalo,
o sr. Roggenzahn começou a tocar uma abertura e no instante em que as luzes se apagaram, entraram mais duas pessoas na sala. A primeira tinha o ar exausto dum corredor
da Maratona e era o reitor Burhenne que, por vias indirectas, tivera conhecimento do procedimento inqualificável dos alunos, indo ao cinema. Atrás dele, caminhava
a governante, frau Bartels agitada, inquieta, tentando acalmá-lo. Logo à entrada do corredor, Burhenne teve uma altercação com o filho de Oertchen, depois com o
próprio hoteleiro. A discussão cobriu o ruído do piano, perturbando a encantadora cena em que Leore se apaixonava por um motorista. Alguns espectadores assobiaram,
outros riram-se; por fim, a porta da sala abriu-se bruscamente, o reitor quási caiu para a frente e exclamou na sua catedrática voz:
- Proíbo! Exijo que...
Não teve tempo para declarar quais eram as suas exigências, porque, embora os pais estivessem zangados com a atitude dos filhos, e mesmo prontos a dar-lhes uma sova,
encontravam-se, naquele momento, absolutamente presos ao espectáculo e não queriam ouvir mais nada. Depois de algumas exclamações veementes e vários assobios e pateada,
conseguiram fazer calar o reitor que ficara no fundo da sala. Alguns afirmaram que o carniceiro Seyfried lhe colocara mesmo a mão na boca, ameaçando-o com o punho
esquerdo. Tudo se calou mas estavam inquietos, principalmente por causa do filme.
Na realidade, Leore apaixonara-se pelo chauffeur que
estava ao serviço dum velho cavalheiro gordo e antipático que ia ao dancing onde a rapariga se exibia, começando a fazer-lhe a corte. E o pobre motorista cá fora,
na rua, à espera do velho e gordo patrão milionário!
Nesta altura, entrou um novo espectador atrazado: o sr. de Raitzold, que viera a pé não sem ter parado na floresta para tossir e tentar respirar fundo, agarrando-se
às árvores, aflito com a crise de asma. Embora a atmosfera da sala estivesse viciada, tendo absorvido todo o oxigénio, ele ficou ali por obscuras e desesperadas
razões. Talvez por inquietação e instabilidade, não podendo mais permanecer em casa; talvez na esperança de encontrar alguma pessoa influente que o pudesse auxiliar.
Exteriormente, - a sua perturbação era invisível - apenas uma leve palidez se lhe espalhava sobre a pele queimada de homem que vive no campo. Deitando um rápido
olhar para a sala, subiu ao balcão e, respirando a custo, sentou-se, com a naturalidade dum homem bem educado, ao lado da filha do presidente da Câmara.
Mal se sentou, explodiu um barulho lá em baixo. O cavalheiro de idade, que devia ser considerado apenas como uma figura cómica, foi diversamente interpretado pelos
operários. Estava sentado à mesa, comendo copiosamente. Os criados, a correr, serviam-lhe acepipe após acepipe e o próprio chefe de mesa lhe trouxe o champanhe que
espumou na taça. O velho e gordo senhor mastigava, engolia e bebia como um glutão.
- É como o velho, lá na fábrica, - disse um.
A exclamação nada tinha de provocante e limitaram-se a rir. "O velho" no calão operário era o sr. Profet. com efeito, ainda havia uma certa semelhança entre ele
e o actor: nas pregas da nuca, na redonda cabeça de foca, na expressão contente e maligna.
- Aquilo é que é chamar ao estreito! - disse outro. De trás, da plateia superior, veio um schiu enérgico.
Um operário comentou ainda:
- com o dinheiro que tem, pode comer tudo quanto quiser.
Alguém assobiou estridentemente por entre os dedos. O sr. Roggenzahn, que já estava um pouco bebido,
olhou para o público com ar cúmplice e careteou um sorriso. De repente, do lado da parede, onde os moços operários estavam em pé, ouviu-se uma canção:
Profet passa a sua vida a beber. Os operários não têm que comer,
Risos. Barulho.
- Silêncio!
- Vê se os mandas calar! - disse a esposa do presidente.
O marido fez sinal que não, como homem experimentado que era.
Raitzold procurava o Profet, com os olhos. Detestava os operários; duma vez para sempre, classificara-os como "proletários" como uma canalha que abandona a terra
para obter melhores salários na oficina, que deixa morrer a terra, morrendo também. No entanto, naquele instante estava sentimentalmente a seu lado, embora o não
quisesse confessar.
Profet não se portava mal, naquela desordem. Verdade seja que as suas orelhas se lhe aproximavam dos ombros, mas sorria, não sem malícia, num ar quási de aprovação,
como se tivesse querido dizer: "Divirtam-se, rapazes, não faz mal. Sou igual a vocês.
Franz Albert, ao braço do qual a esposa de Profet se agarrara, mostrava uma cara assarapantada, não compreendendo nada do que se passava. Ia raramente ao animatógrafo
e já que viera, achando a Lania muito mais sedutora ali do que na realidade, queria vê-la sossegadamente.
- Calem o bico! -gritou, levantando-se e fazendo o gesto de dar um murro.
Um barulho enorme foi a resposta. Reconheceram o indivíduo que o chauffeur Muller vira a beber champanhe, enquanto ele andava, de porta em porta, com o corpo do
desgraçado Fobianke. Franz Albert sentou-se. Conhecia a voz do público, mas não sabia o que lhe queriam. Sentia a nostalgia da sala de treino, de Simotzky e do seu
saco de areia. No entanto, o filme
continuara a desenrolar-se, a matrona obrigara a inocente Lore a sentar-se ao lado do cavalheiro rico e este começou o cerco com tanto realismo que a interdição
do espectáculo aos menores, se encontrou amplamente justificada. Mas como o barulho na sala, os gritos dos operários e os protestos dos burgueses não acabavam, como
se levantavam das cadeiras e atiravam um banco ao chão e que alguns se dirigiam para a porta, o sr. Oertchen, muito esperto, resolveu fazer outro intervalo. Quando
as luzes voltaram e que uma corrente de ar frio se estabeleceu entre a porta e as janelas abertas, a sala apaziguou-se um pouco e o criado serviu cerveja, com abundância.
- Quer ir-se embora ? -perguntou Karbon.
- Não. - respondeu Elisabete. E pensou confusa mente: "Para onde havíamos de ir?
A casa, o marido e até a filha lhe metiam medo, Deixara tudo naquela tarde, confiara a cozinha ao duvidoso Lungaus e saíra como quem foge. Agora não sabia como voltar.
Desejava apenas que aquilo continuasse assim indefinidamente. Sentia-se culpada, mas em revolta, ansiosa por ver a mulher do filme e febril ao sentir a muda e palpável
presença daquele homem. Peter Karbon largou a mão da Elisabete quando a sala se iluminou mas, pouco depois, pegou-lhe outra vez, julgando que ninguém repararia.
Viram o gesto a mulher e a filha do presidente, a costureira Ritting, o operário doente Lingel, a manicura, o Markus e o farmacêutico Behrendt.
O sr. de Raitzold travou uma conversa de sociedade com a sua vizinha.
- A peça... -começou, mostrando bem como ignorava os termos cinematográficos.
- Oh! Um pouco banal. Nada elevada.
- O senhor seu noivo está bem ?
- Obrigada. Está ainda em Wiesbaden. Tem lá uma boa clientela de termas.
- Ah! E teremos o prazer de o ter em Lohwinckel ?
- Bem queria. Mas não é coisa que lhe agrade muito...
- Sim, compreendo.
Raitzold enterrou-se na cadeira. Respirou, com gratidão, o ar que entrava por uma das janelas da galeria, mas os seus sensíveis órgãos respiratórios receberam, com
surpresa, um aroma estranho e amargo.
- É curioso. O ar tem um sabor especial!- disse ao presidente - Aquela fábrica envenena toda a região.
O presidente estava furioso por o fidalgo se ter sentado a seu lado. Foi em voz colérica que respondeu:
- Não é o cheiro da fábrica. É possível que seja o das raízes de batata que o senhor anda a queimar nos seus campos há mais duma semana.
- Não, isso é que não é. - replicou Raitzold, convencido. Depois ficou silencioso a analizar aquele aroma.
Enquanto esta conversa era travada nas superiores esferas sociais do balcão, produziu-se em baixo um pequeno incidente, perto do sítio onde se vendia cerveja. Ó
sr. de Oertchen, seguido pelo carteiro Ellinger, aproximara-se do contramestre Birkner, muito ocupado a beber, batera-lhe no ombro e dissera:
- Birkner, tem aqui um telegrama.
O homem, que não estava habituado a receber telegramas, limpou as gotas de suor que lhe escorriam pela testa e disse, em ar indeciso:
- Só pode ser do Pank.
Depois ficou de pé, a dar voltas ao papel, antes de se decidir a abri-lo e de encontrar a maneira regulamentar de o fazer.
O telegrama dizia assim:
"Greve não aconselhável. Recomendam-se negociações amigáveis. Apoio federação."
- Ora bolas! - exclamou Birkner em voz tão alta que o reitor, empenhado em querer fazer sair dali os estudantes, teve um sobressalto.
Não tardou a espalhar-se pela sala a notícia de que a resposta decisiva chegara de Berlim. Os operários das primeiras filas aproximaram-se do chefe dos delegados
sindicalistas, enquanto o sr. Roggenzahn voltava para o
piano, dando o sinal da continuação do espectáculo. Deixando o bufete, os burgueses esforçavam-se por se reapossar dos seus lugares, caminhando em sentido oposto.
Estes movimentos contrários foram tão nítidos que, vistos de cima, davam ideia dum conflito. Foi esta a impressão colhida pelo presidente, o que fez com que se levantasse
e abandonasse a sala nas pontas dos pés, não sem que Raitzold lhe lançasse um olhar interrogativo.
- Parece-me que isto vai acabar mal. vou mandar vir a polícia para a porta.
- Deseja que acompanhe as senhoras? - perguntou o fidalgo, cavalheiresco.
- Não; tornar-se-ia notado.
Também o Profet tivera a mesma ideia porque conhecia a sua gente, tendo visto que os delegados sindicalistas estavam muito excitados.
- É melhor ir para casa. -disse à mulher, empurrando-a um pouco. - O sr. Albert que abra caminho,
O boxer detestava a violência. Batia-se só quando lhe pagavam para o fazer. Possuía a doçura e a timidez habituais a todos os atletas. Era uma coisa que não podia
admitir: atacar alguém sem luvas de box, atacar quem o não atacava. Calmamente, ficou atrás de Profet e foi assim que passaram rente aos joelhos dos vizinhos até
aos corredores arqui-cheios.
- Ninguém sai daqui!- exclamou um moço operário. E com um simples gesto de ombros, empurrou-os para trás.
Profet sentiu a ameaça expressa naquele pequeno gesto. com a mulher e o convidado, voltou para o seu lugar.
Na sala, reinava a escuridão mas não a tranquilidade. Birkner e alguns operários tinham ficado atrás do balcão e discutiam com fanática violência, divididos em dois
grupos, falando tanto mais veementemente quanto menos eram incapazes de saber exprimir as suas opiniões. O pianista teve, de súbito, uma ideia infernal. Fora outrora
um bom músico: maestro no teatro dum pequeno reino. Vivia roído pela amargura da sua existência falhada.
Como que para apaziguar os provocadores desiludidos, abandonou-se, durante algum tempo, à Berceuse de Brahms. Mas, de repente, achou aquilo monótono e mudou para
um trecho violentamente ritmado e forte, com enorme poder de excitação. Era a marcha da Sinfonia Patética de Tchaíkowski - como amador de rádio, Markus conheceu-a
logo e como excelente musicista, a filha do presidente também. Martelava, duma forma absolutamente diabólica, a revolta na sala e não estava nada em harmonia com
as imagens do écran.
Elisabete Persenthein era, sem dúvida, a única pessoa que seguia as peripécias do filme com um interesse ardente. Bateu-lhe o coração quando Lania, maleável como
um lagarto e carregada de sedução, começou a dançar em frente do senhor gordo. Este bailado era o ponto culminante da produção. O cenarista não mostrava apenas a
dança mas também os seus efeitos. Rostos de homens, ávidos de desejo, mãos que se enclavinhavam nas mesas - como a de Elisabete na do Peter - o moço criado que ficava
petrificado com a bandeja levantada, olhando fixamente a bailarina. Um primeiro plano mostrava os olhos do senhor rico que se rebolavam a cada gesto da Leore. Depois
apareceu outro quadro: lá estava o motorista, em frente do dancing, à espera. Olhava para o relógio, bocejava, ia dum lado para outro, lia o jornal e, como era muito
tarde, tornava a ver o relógio. De novo, apareceu a rapariga a dançar e, depois, outra vez o motorista. Já alvejava a manhã, estava muito frio. O homem levantou
a gola do casaco, passou pelo sono, acordou sobressaltado... - não tinha o direito de dormir,
- Fobianke !-gritou alguém, do fundo da sala.
Era uma destas associações de ideias que não têm razão de ser mas que lançam uma luz de relâmpago, como acontece com os doidos. Um segundo antes reinava o mais profundo
silêncio e, um segundo depois, estava desencadeada a maior algazarra. Gritos, assobios, barulhos, risos, schius, exortações de calma. Um rugido: Fobianke! Fobianke!
Fobianke!
No entanto, o piano continuava com a sua marcha, cada vez com mais força, e parecia ouvir-se a guerra, a
peste e a revolução. O presidente da Câmara pronunciava palavras ininteligíveis, em pé no balcão. Os estudantes, doidos de contentamento, eram os que mais estridentemente
assobiavam. Os dois policias entraram e postaram-se no limiar da sala. Por trás do balcão, partiam os copos e já havia luta. Nas filas da frente, viraram os bancos.
Todos se precipitavam: todos haviam encontrado um inimigo. O operador deixou a máquina, apagando mesmo antes de estarem as luzes acesas. Alumiada apenas pelos candeeiros
vermelhos, a sala rodopiava como água negra e agitada.
Já antes disto acontecer, o sensível Markus tinha inclinado a cabeça, de ouvido à escuta, como se para lá do som do piano e do barulho, percebesse qualquer ruído
longínquo e indeterminado, exactamente como o asmático Raitzold que em cada inspiração do ar farejava um aroma bizarro.
- O que há ? - perguntou a manicura.
- Oiço qualquer coisa: sinais, o sino a tocar.
Era um sócio apaixonado da corporação dos bombeiros voluntários do Lohwinckel, embora aí mesmo, por questões de raça e de política, encontrasse más vontades.
- Está a sonhar. - disse a rapariga, agarrando-se a ele.
Mas continuou atento. O som aproximava-se. Estava a ouvir o badalar das campainhas enquanto, na sala escura, recebia pancadas que lhe não eram destinadas.
De súbito, voltou a luz e viu-se então o motorista Muller, desfigurado e lívido, encharcado de suor, suspenso da balaustrada da galena, ao lado do presidente, gritando
em voz rouca:
- Corram! Vão para as bombas. A fábrica está a arder!
Na cozinha da casa do Angermann havia uma banca centenária, talhada no granito pintalgado de vermelho, da região. Era ali que Elisabete amontoara toda a loiça
suja antes de deixar a casa para ir ter com Peter, à estrada de Dusswald. A torneira não estava bem fechada e as gotas de água caíam com monótono e triste som sobre
os pratos sujos. O médico, que interrompera a consulta às cinco horas, porque fora chamado para um parto, e que, exausto, chegara às sete, ficou parado, na cozinha,
com a cabeça inclinada para a frente, não percebendo nada do que se passava.
Lembrava-se confusamente de que Elisabete lhe dissera qualquer coisa acerca daquela noite mas como nunca prestava atenção, não sabia do que se tratava. Vagueou através
da casa. Também o quarto da filha estava vazio. Procurou na cave e encontrou as duas casas de banho em indescritível desordem, exactamente como os doentes as haviam
deixado. As duas banheiras ainda se encontravam cheias: numa havia turvos vestígios dum banho de sal, no outro, lama escura. O chão estava molhado, assim como os
lençóis arrastando pelo chão. O médico, que só via estes aposentos depois de Elisabete os ter arrumado, achou aquele aspecto horrível. Não percebeu, com nitidez,
que o papel da esposa consistia, duma forma cotidiana e permanente, em afastar do seu caminho aquelas repugnantes realidades, mas teve a visão do seu dorso curvado
de fadiga, da atitude em que ela caía quando se não julgava observada. Também à mesa tinha um gesto que o enervava: pegava no garfo com a mão direita e deixava tombar
a esquerda para debaixo da mesa, pousando-a entre os joelhos. Teve a impressão de que também aquele mau hábito provinha dum excesso de cansaço. Mas estes pensamentos
foram logo cobertos por outro referente à análise do sangue dum doente no qual encontrara estreptococos. Em pé, no gabinete de consulta e tamborilando no reservatório
de vidro onde se conservava o algodão hidrófilo, reflectiu que era preciso mandar pôr compressas de azeite em redor das articulações. Depois lançou os olhos para
o livro das notas. Encontrou uma informação: no filho do negociante Keiler, apesar da febre, nenhuma erupção se produzira. Por baixo leu: "vou ao cinema. A tua comida
está na casa de jantar. Não esperes por mim."
Também no consultório reinava leve desordem; impaciente, o médico, deitou algumas sondas e um especulum para o esterilizador, depois abriu a janela para que saísse
o bafo humano e entrasse o ar da noite. Realmente, sentia-se mal naquela casa abandonada; colérico, sentou-se em frente da mesa de trabalho, primeiro na escuridão,
depois sob o círculo da forte lâmpada de que se servia para as pequenas intervenções cirúrgicas. Acabou por diagnosticar que aquela impressão de mal-estar era devida
à fome. Mas não se levantou logo, como se estivesse à espera de que o seu descontentamento tivesse o poder de fazer voltar a mulher logo para casa. Por fim, decidiu-se.
Encontrou a refeição fria preparada num tabuleiro que, em equilíbrio incerto, colocou em cima da mesa sem toalha. Perguntou a si próprio onde haveria pratos e talheres.
Decerto seguira a mulher com os olhos, inúmeras vezes, enquanto ela punha a mesa, mas nunca vira nem os seus gestos nem a sua finalidade. De maneira que ficou indeciso
no meio do aposento, sentindo-se incapaz de proceder. Depois de ter aberto e fechado várias gavetas, abandonou o propósito de se servir. Por outro lado, voltaram-lhe
as ideias profissionais: esquecera-se de auscultar o operário Hahn com a sonda duodenal; começou a andar de um lado para outro, tomou uma nota acerca de certa ideia
que surgiu, abriu, sem se sentar, o manual de medicina interna, leu a passagem relativa à supuração da vesícula biliar, demorou-se a matutar e só voltou a si quando
ouviu passos na escada. Apressado e contente, embora decidido a fazer algumas censuras, dirigiu-se para lá. Mas deu de cara com o Lungaus, em fato domingueiro e
falando sozinho. Estava tão absorto no seu rouco monólogo que não ouviu o doutor chamá-lo e continuou a subir a escada até às suas águas-furtadas. Chegando lá acima,
apagou a luz da escada, de maneira que o médico ficou na escuridão não se decidindo, senão passado algum tempo, a dar volta ao comutador e ir ter com o operário.
Quando entrou no quarto, encontrou-o sem luz mas mergulhado numa claridade difusa, porque só faltavam
dois dias para a lua-cheia. Muito negra e parecida com um fantasma, a silhueta de Lungaus destacava se da janela à qual apoiava as mãos. Prosseguia no seu solilóquio.
- Temos então mais asneiras ? - interrogou o médico, que conhecia bem o seu doente.
- O que diz o senhor doutor ?-perguntou o homem, dirigindo-se lentamente para a porta.
Persenthein não insistiu, informou-se apenas:
- Onde está a Avelã ?
- Isso também eu queria saber.-respondeu Lungaus, irritado. - É a mim que o vem perguntar, não ? Desde esta manhã que estou furioso porque ela passa a vida a mandar
a Avelã aqui e acolá. Como se eu a não pudesse deitar! Ou como se ela o não fizesse sozinha. É espertalhona a pequena, mais do que muita gente crescida.
- Vamos, onde está ela ? - perguntou o médico, um tanto surpreendido pelo seu tom de queixume, embora soubesse que no ressequido organismo daquele reincidente sombrio
e recalcitrante, um único ponto terno havia: o afecto pela pequenita.
- Talvez a pobre criança tenha ido para casa do avô. Onde quer o senhor que vá quando a mãe desaparece ?
- Homessa! E então eu, não estou aqui ? Não lhe consinto que se vá embora sem dizer nada a ninguém.
Apesar da sua irritação, o dr. Persenthein bem sabia que a filha era uma pessoa a quem era preciso dar todas as explicações.
Tomando as dores da criança, o operário explicou:
- Está zangada porque o senhor não a levou consigo .
- Que diabo, não vou agora também levá-la aos partos.
Lungaus encolheu os ombros.
- Eu queria comer. Mas não sei onde estão os pratos.
O outro continuou a olhar para a janela e sentou-se na beira do leito. Sem entrar nas preocupações
domésticas do médico, prosseguiu o fio dos seus próprios pensamentos, dizendo:
- Não acho bem que ela ande a fazer teatro à filha. Foram três, as vezes que entrou no quarto da pequena, e começou a beijá-la como uma doida. E depois perguntava-lhe:
"Ouve, Avelã, se a mamã se for embora, tu que farás?" E mais: "Agarra-me bem, filha, aperta-me muito o pescoço. Sim e depois: "Gostas muito de mim?" É claro que
a pequena não é tola: percebeu tudo. Porque uma avelã daquelas é capaz de lhe quebrar os dentes todos e ficar intacta. E depois a pequena vem ter comigo e diz-me:
"se a mamã se quere ir embora, que vá... compreendes, eu tenho o Kola e tu... eu ensino-te a cozinhar e não precisaremos da mamã para nada . Aqui tem o que ela me
disse. E mais: "A Erika não me deixa". É a boneca sem cabeça, sabe? E vai eu então digo-lhe: "Tens razão, Avelã, a gente deve deixar ir aqueles que não querem ficar".
Mas não acho bem que ela fale disto com a criança. Pode andar doida à sua vontade, mas que deixe a menina em paz porque uma criança daquelas compreende muito bem
tudo o que se passa.
Embora o médico estivesse muito familiarizado com a maneira de falar, do seu protegido, desta vez não percebeu quási nada.
- Mas o que há ? - perguntou, impaciente. - A casa vai cair, lá porque a minha mulher foi ao animatógrafo?
- Vai cair, vai... - repetiu Lungaus, arranhando a colcha. - Vai cair... vai...
A frase agradava-lhe. Mas deixou-a para retomar o fio dos seus pensamentos.
- É preciso ver que uma criança como aquela é muitíssimo inteligente. Tinha eu seis anos quando encontrei um homem no quarto da minha mãe. Seis anos e voltava da
escola. Nunca mais consegui esquecer, nunca mais, garanto-lhe.
O médico não se sentia à vontade.
- Bem, Lungaus, venha ajudar-me a procurar os pratos.
- Estão na segunda gaveta do aparador. - disse o
operário, nada decidido a mexer-se - Dentro deve haver salchichas. Sim, é claro que também não trata de si, pois. Já não há bananas cá em casa nem sumo de laranjas
e o leite estragou-se. "Coma chouriço, Lungaus. teve o arrojo de me aconselhar. "Escusa de o dizer ao senhor doutor. Ah? É claro que eu farto-me de comer chouriço,
já que querem que eu coma chouriço... De resto, não preciso de o dizer ao senhor doutor, amanhã, quando fizer a análise ao sangue, vê-lo-á. E o certo é que o doutor
faz curas maravilhosas, lá isso é verdade...
- Comeu chouriço ? - perguntou Persenthein, com violência, sentindo-se empalidecer de raiva. Ficava com as orelhas frias quando se encolerizava.
Em tom de mofa ou de compaixão, Lungaus replicou:
- Se o doutor não tem mais nada que o incomode... O médico caminhou para ele e agarrou-o pelos
ombros.
- E bêbedo, também está, não ? - perguntou rudemente, sentindo, com surpresa, tremer os ossos do homem.
- Não estou. - respondeu, calmo.
O quarto estava iluminado apenas pela lua em cuja luz embaciada se desenhavam os contornos da chaminé e da fábrica. Durante toda a conversa, o operário olhara para
a janela. Agora voltou-se para o médico.
- Deixe-os andar.-disse misteriosamente-Quando se chega àquele extremo, já não se podem deter. Deixe-os andar, sr. doutor. Eu, no seu caso, dava-lhe um pontapé em
certo sítio e ala! que se faz tarde. Não é bonito para um homem ficar sentado à espera que ela fuja com outro. Também eu fui casado. É não julgue que o aliviará
bater no tipo. Ponha-os na rua e acabe com isto. Digo-lho eu !
- Mas de que diabo está você a falar ? - perguntou o médico, impressionado com a calma do homem, com a tremura do seu magro corpo de trabalhador, com uma sombria
e nova expressão de cumplicidade.
- De quem há-de ser ? Da sua mulher que nos engana com aquele indivíduo.
Largou o operário como se ele fosse uma labareda. O homem esboçou o seu sorriso omnisciente e experimentado.
- É sempre o último a saber... - chacoteou.
- Está doido! - exclamou o médico, dirigindo-se para a porta - Se amanhã sei que você hoje bebeu, ponho-o na rua.
- Hoje não bebi.
Havia um clarão em redor da fábrica, lá ao longe.
- Vá a casa do reitor e traga a menina. - disse Pcrsenthein, a quem torturava a ausência da criança.
- Infelizmente não posso.
- Porquê?
- Por causa da reputação, senhor doutor. Quando se não tem uma boa reputação, é preciso estar de sobreaviso. Sabe Deus o que acontecerá ainda esta noite aqui na
cidade e em Obanger! Há uma data de boatos e depois acabam por acusar aquele que tem má toada. Se o Lungaus for visto na rua, toda a gente dirá que o Lungaus é o
culpado, mas se tiver passado toda a noite no seu quarto, ninguém poderá dizer nada acerca da sua reputação.
O médico não ouviu esta explicação até ao fim. Bateu com a porta e voltou à sala de jantar. Coisa estranha: sentia vertigens e mal-estar.
- Que idiota!
O apetite havia-se dissipado tão totalmente que foi com verdadeira repugnância que encontrou o tabuleiro sobre a mesa. Pegou nele e levou-o para a cozinha. Na igreja,
o relógio deu as sete e três quartos, mas sendo-lhe dada corda só aos sábados, ia-se atrazando um pouco, todos os dias. No relógio de Persenthein eram oito horas.
Pouco depois soou a campainha da porta: um som estridente, outro breve, outro estridente, outro breve. Era a maneira de tocar, da Avelã. Aliviado, o pai correu para
a porta. Era ela, pequenina, cerimoniosa, com o vestido de fazer visitas.
-Cá estou eu, Kola.-anunciou, tão radiante e senhora de si que o pai não teve coragem para lhe ralhar.
- Então onde fôste?
- A casa do avô. Os rapazes deram-lhe um desgosto; eu fui lá consolá-lo. - declarou a optimista criança.
- E como o consolaste? -perguntou o doutor, que se sentia melhor tendo na sua mão a da pequenita.
Voltaram para dentro.
- Assim, com açúcar e sumo de limão.
- Ah! Ah! -exclamou o médico, sentindo que o apetite lhe voltava.
Dirigiu-se para o aparador e dispôs-se a ir, outra vez, buscar o tabuleiro.
- Que porcaria aqui vai! -disse a pequena vendo a louça suja na banca e imitando o tom "dona de casa" da mãe.
Cheio de esperança, o pai perguntou:
- Saberás tu, por acaso, onde estão os pratos?
- Claro que sei.
Gostava de ser clara nas suas frases mas ressentia-se .ainda das incorrecções da infância, o que lhe dava infinita graça. Encheu-se de grande importância na tarefa
de auxiliar o pai a pôr a mesa e acabou por se ajoelhar numa cadeira em frente dele.
Vendo o seu aspecto um tanto nervoso, notou:
- Há muito que devias estar na cama.
- Queria dormir em casa do avô mas foram ao cinema.
- Também eles ? Mas então esta gente está toda doida com o cinema ?
- É verdade.
- Ouve bem, Avelã, o que te disse a mamã antes de sair?
- Não me lembro.
- Vê se te recordas, minha ratinha.
- Ah, já sei. Foi assim. Pediu-me para eu não adoecer. Porque é que eu havia de adoecer, não me dirão? E se a mamã for viajar, que devo ter muito juízo! Claro que
tenho juízo! Não precisa de mo
dizer.
-Viajar? Mas então a mamã e as suas mãos espalmaram-se na toalha.
Viajar? Mas então a mamã quer ir viajar? -e
- Agora não estou para lavar a cara. vou só escovar os dentes. - anunciou a Avelã.
-Sim... sim.
Embora muito pequenina, a Avelã sabia quando era preciso distrair o pai com conversas profissionais.
- Então o menino já chegou?
- O quê? Ah! Já, sim.
- A mulher gritou muito?
- Não; tudo correu bem. - respondeu o médico, apoiando a sua cabeça na daquela camarada pequena.
Depois, afastando-a:
- Agora vai-te deitar. Preciso de trabalhar. Tenho que reflectir.
Mas depois de ver a pequenita ir-se embora, não conseguiu reflectir. Acendeu um cigarro e começou a andar dum lado para outro. Começou por desenvolver uma grande
actividade, fazendo muitas coisas sem importância, para fugir ao principal. Pegou nas fichas da caixa e substituiu-as, mudou a ordem dos escalpelos na fila dos instrumentos,
subiu e desceu a cadeira operatória e, desorientado, percorreu a casa, que opunha um mutismo quási malicioso às suas perguntas e à sua agitação.
"vou trabalhar até que ela volte e perguntar-lhe-ei o que aconteceu", pensou. Ao evocar a clara fisionomia da esposa sentiu-se mais calmo. Mas, ao mesmo tempo que
tirava da gaveta e sublinhava com tinta encarnada o título: "O princípio biológico da modificação da predisposição sob a influência do regime", lembrou-se nitidamente
que a Elisabete não era a mesma havia alguns dias, existindo nela qualquer coisa de febril e vacilante. Não devia ser nada nos pulmões, embora o seu corpo estreito
e alto não estivesse ao abrigo de qualquer tara hereditária.
"De resto, a temperatura anormal pode ter causas psíquicas."
Mas, ao mesmo tempo, invadiu-o um pensamento tão nu e tão brutal que ficou com os lábios, as orelhas e as mãos geladas.
"Matá-lo-ei! Se ele se atrever, matá-lo-ei!"
Nunca na sua vida experimentara um sentimento de tão grande violência como aquele desejo de assassínio que dele se apoderava. Passados momentos sorriu, exausto,
e limpou a transpiração que lhe formava pérolas por cima do nariz.
"Estou doido! - murmurou.
A casa permanecia muda, trazendo ameaças de todos os lados.
"Vamos lá trabalhar!"-ordenou a si próprio.
Ainda custou a começar mas lá foi. Mal ouviu os passos miúdos que se aproximavam. Era a Avelã, completamente nua, moreninha e de tórax bem desenvolvido.
- Está aqui a correspondência, Kola. - disse ela, pondo tudo em cima da secretária.
Era uma das suas ocupações: ir ver a caixa do correio. E levantara-se da cama para reparar o esquecimento. ; O médico agarrou-a e disse em tom suplicante:
- Ouve, filha, a mamã não vai viajar, pois não?
- Já te disse que sim. - respondeu a pequenita, categórica.
Levantou a e sentou-a nos joelhos. Não sabia que fazer, procurava consolação naquela fresca pele em botão. À criança aconchegou-se muito entre os seus braços e ficou
silenciosa - animalzinho quente a respirar e a escutar.
Quando o pai julgou que ela adormecera, exclamou:
- Os bombeiros!
O médico andava perdido nos seus pensamentos, vendo a febril Elisabete dos últimos dias e comparando-a com a calma e sorridente Elisabete de sete anos de casamento
e mais atrás ainda, com a do tempo de noivado, no hospital de Schaffenburg - ele jovem assistente e ela enfermeira toda de azul e branco, na Maternidade (recordava-se
perfeitamente daquela perigosa eclampsia à qual acabara de assistir quando, pela primeira vez, a encontrara no corredor). Voltou a si, de repente. Em baixo, soavam
passos rápidos sob a torre do Angermann, confundindo-se com outros que chegavam,
- O que há ? - perguntou ele, da janela.
- Fogo na fábrica.
Ouviu-se distintamente a bomba. O médico sentiu-se aliviado com o rumor crescente na rua, como se a sua tensão e a sua febre pessoal se encontrassem determinadas
e perdessem gravidade com aquele fenómeno de carácter geral. com a pequena nos braços subiu rapidamente a escada. Lá de cima do quarto, poderia ver Obanger. A chaminé
da fábrica destacava-se, muito negra, no fundo vermelho. O céu transformara-se numa cúpula amarelada; o fogo, àquela distância, parecia compacto e imóvel, não semelhante
a uma chama, mas antes a uma lava, o que era devido às espessas nuvens de fumo que se espalhavam pelo ar.
- Vamos lá de moto, Kola ? - perguntou a Avelã que, embora estivesse a cair com sono, desejaria empreender arriscadas aventuras.
- Não. Preciso de ficar aqui, pode haver ferimentos.
Tinha a garganta apertada, ao pensar que a Elisabete podia correr perigo no local do incêndio. Segurava na Avelã, nuazinha, que contemplava o clarão vermelho como
se fosse uma árvore do Natal que tivessem alumiado em sua intenção.
- É bonito, não achas ? E esfregou o nariz no do pai, o que na sua linguagem significava: "um beijo preto".
Ele articulou :
- E a mamã sem vir!
A pequenita não respondeu. Daí a pouco, as pálpebras tombaram e adormeceu. O pai sentiu-a tornar-se mais pesada nos braços e levou a para a cama. A Erika já estava
a dormir, rodeada de ligaduras, como se fosse uma múmia. Quando a estendeu no leito, ela ainda murmurou umas palavras em tom protector:
- Se tiveres medo de dormir sozinho, deixa a porta aberta.
- Está bem, minha ratinha. - respondeu o pai, a sorrir, e apertando-lhe a mão até a ver mergulhar profundamente no sono. E agradeceu : - Obrigado.
Já haviam soado as nove horas, o incêndio
aumentava. A multidão continuava a agitar-se. Na rua, ziguezagueavam os pirilampos dos ciclistas, como acontecera na passada semana, por ocasião do desastre de automóvel.
- A desordem prossegue... -murmurou Persenthein e esta palavra "desordem" implicava grande número de coisas. "Trabalhar" - pensou, num sentimento egoísta, possuído
pelo desejo de fugir de si, de não deixar penetrar no seu domínio pessoal, a desordem ambiente.
Sentou-se à mesa e então, vendo a quantidade de minuciosas fichas e as centenas de anotações sobre o caso Lungaus, um clarão iluminou-lhe subitamente o espírito.
Viu a perturbação que o operário, há pouco, não soubera esconder, a tremura nervosa dos seus ombros, enquanto estava junto dele, na mansarda. Viu o seu olhar que
não desfitava a janela.
- Mas foi aquele animal que provocou o incêndio! E cheio de raiva: -Vão tirar-mo! Vão levá-lo para a prisão e sujeitá-lo ao regime de lá. Nessa altura, podes fazer
as malas, Kola, podes rasgar todos os teus estudos!
Levantou-se, sobressaltado, e deu volta à cama operatória. Tinha agora assunto para ruminar, o bastante para lhe fazer esquecer o incidente relativo à esposa. Se
o Lungaus tivesse deitado fogo, ou mesmo que não tivesse e apenas suspeitassem dele, eram umas quatro a seis semanas de prisão preventiva ...
Como se encontrasse na sua frente uma espessa parede, Persenthein parou bruscamente. Fora, sob a janela, continuavam a andar e a falar e a abóbada repercutia os
passos e as vozes. Havia gente que voltava do incêndio.
"É a Elisabete..." - pensava ele, a cada passo que se aproximava.
Mas não era.
Foi à janela e abriu-a com tal violência que o velho Aristóteles que continuava no seu nicho, caiu sobre as páginas do antigo livro amarelo e de minúsculas letras.
- Harmonia! Bela harmonia! -gritou o médico, com vontade de espezinhar o livro.
Voltou à janela e fechou as persianas de madeira. Era um gesto de defesa contra o mundo perturbado. E significava: "Pois fica lá fora.
Por mais esforços que fizesse, embora tivesse voltado para junto do trabalho, não conseguia encontrar-se.
Ainda pensou em dormir, mas sacudiu a cabeça. Notou, surpreendido, que não podia pensar em dormir, enquanto a mulher não tivesse voltado e apaziguado toda aquela
escuridão com a sua claridade. Depois de ter dado numerosas vezes a volta à cama de operações e de ter fumado uma incalculável quantidade de cigarros, para acalmar,
acabou por se deter perante a correspondência que a pequenita trouxera. O retardatário relógio da igreja dera as onze, quando ele se pôs a folhear o Jornal Médico,
de Munique. Ficou extáctico perante um titulo inscrito no sumário.
Modificação experimental da contribuição pela alimentação e pela mudança na maneira de viver" era o título em questão. Procurou, com o coração a bater, e embrenhou-se
na leitura, enquanto os ombros se curvavam e os olhos se tornavam vermelhos.
Como a maior parte destes relatórios, tratava-se dum artigo feito por um médico a uma associação médica. Persenthein voltou atrás várias vezes para relembrar os
nomes: Wolland era o autor do comunicado, director-clínico do hospital municipal de Essen, no Ruhr, onde podia dispor de abundante material humano. Pretendia ter
encontrado a maneira de modificar fundamentalmente a predisposição por meio de certas regras de vida e pela aclimatação progressiva dos organismos ameaçados. Afirmava
e demonstrava isto duma forma evidente, mas sem dar grande importância, declarando que se havia baseado nos estudos bem conhecidos de Krobins, em Oslo, e do professor
Williams, do Instituto Bros-Mays, em Boston. Terminando, fazia mesmo alusão a uma escola nascida da Universidade de Friburgo que, na teoria e na prática, havia muitos
anos que se ocupava do assunto. Embora modestas, classificou de prometedoras as experiências feitas sobre cento e sessenta e sete doentes.
A catástrofe que se deu no íntimo do dr. Persenthein foi silenciosa mas duma grande violência. Releu várias vezes aquela comunicação, comparando com as
suas próprias observações e colhendo ensinamentos do artigo, embora estivesse tratando o assunto nas suas linhas gerais. Aquele Wolland, de Essen, sob um ângulo
diferente, abordara a questão cuja ideia lhe pertencia. Agora era a ideia do dr. Persenthein, de Wolland, dos doutores Krobins, de Oslo, Williams, da América e da
escola de Friburgo. Era afinal, a ideia de toda a gente. Uma destas ideias que flutuam no ar e que, na passagem, se podem agarrar aqui ou acolá!
Soou meia-noite. E depois, embora o relógio estivesse atrazado, soaram a uma e as duas. A Elisabete não voltara. O médico perdera a consciência disso mas, no abismo
sem fundo onde tinha a impressão de mergulhar, sentia um obscuro perigo. Ficou sentado, só, na silenciosa casa do Angermann durante a noite inteira. De vez em quando,
as traves estalavam e a cal escorregava das paredes.
Gozava a pobre glória de saber que estava no bom caminho e que as suas ideias se encontravam justificadas e sentia também uma longínqua impressão de calor ao reconhecer
que puxava pela mesma corda que outros, e alguns célebres. Era bem pouco para um homem devorado pela ambição, como era aquele humilde médico de aldeia, perdido no
fim do mundo. Pobre Jó, estava ali sentado em face do inútil trabalho que, durante longos anos, fizera sobre o seu Lungaus, sobre aquele caso único e isolado que
estudara e observara à custa de mil sacrifícios. O dr. Wolland, de Essen, no Ruhr, estudara cento e sessenta e sete casos e falava disso nestes termos : "um diminuto
número de observações, pouco convincentes".
Durante a guerra, conhecera ele um homem cujos cinco filhos haviam tombado, um após outro. Naquela noite, teve a impressão do que era amortalhar os filhos mortos.
E ali estava, entre o seu "Princípio biológico da modificação do temperamento por meio de regime" e a "Modificação experimental da constituição pela alimentação
e pela mudança na maneira de viver", do dr. Wolland, de Essen,
Na sua frente não via nada, como se estivesse completamente cego.
Era um teimoso, um maníaco, um original este médico; um pensador, um homem estruturalmente alemão, que só e em silêncio, era capaz de amortalhar em si toda a ansiedade
da sua vida.
Inúmeras vezes, a irmã vira o sr. de Raitzold a fazer o mesmo gesto; pôr o velho revólver no bolso, antes de sair. Naquela noite, voltou-lhe a visão desse acto depois
de ele ter saído. Assustou-se, tendo a impressão de que ia acontecer qualquer coisa extraordinária: uma sombra, um perigo pareciam ameaçá-los. Sentia isto devido
à agitação que pairava no ar e à febre que se apoderara de Lohwinckel, aumentando sempre desde o desastre que trouxera agitadores para a calma cidadesita adormecida.
No Domínio, tudo estava sereno naquela noite. A maior parte do pessoal fora para o animatógrafo e apenas o velho Kilker, que ocupava uma situação intermediária entre
primeiro criado e mordomo, estava sentado com a criada Genoveva, ainda mais idosa do que ele, no estábulo onde a vaca ia dar à luz pela primeira vez. Em cima, a
Lania continuava a tocar o seu fox-trott, recomeçando trinta ou quarenta vezes; ouvi-la, dava vontade de fugir. Jacinta subiu a escada, bateu à porta e entrou na
sala forrada dum velho damasco e com o lustre envolto em gaze. A actriz não deu pela sua presença. Estava sentada em frente do cansado piano com o queixo levantado
e ar absorto. Parecia ainda mais pequena e frágil. O vácuo onde se encontrava era tão impenetrável, que a dona da casa, muda, tornou a abrir a porta, calçou as botifarras
e foi-se embora.
Depois das oito e meia da noite, chegou o
veterinário, que se dirigiu com a fidalga para o estábulo. Nessa altura, telefonaram. Uma voz apressada anunciou o incêndio que se declarara na fábrica e pediu os
cavalos, visto que o Domínio era obrigado a fornecer os cavalos para a velha bomba de que se serviam juntamente com a bomba-automóvel. Jacinta ficou aflitíssima
porque relacionou o nervosismo do irmão com o incêndio. Correu para o pátio, à procura do moço da cavalariça, o qual escalara a grade e estava a olhar fixamente
para o céu que apresentava um tom avermelhado. Cantavam os grilos no pomar, o que dava uma estranha impressão de serenidade e isolamento. Os cavalos, que eram empregados
indistintamente em todos os serviços, lá partiram, conduzidos pelo rapaz. Passados dez minutos ela achou impossível ficar ali, imóvel. Os grilos continuavam a cantar,
a vaca já começara com as dores, a Lania persistia em repetir as mesmas notas desesperadas. Procurou a bicicleta no armazém dos utensílios velhos, enfiou as luvas
de cocheiro e partiu para Obanger.
O incêndio declarara-se nos depósitos n.? 2 e n.? 3, exactamente onde faltara a electricidade de manhã, e onde se produzira o falado curto-circuito. O guarda de
noite só se apercebera quando uma espessa nuvem de fumo se evolara do edifício, indo para o alto perseguida por aguda labareda. O motorista Muller viera ajudá-lo
para manejar os extintores, mas sem resultado. Os bombeiros de Dusswald chegaram primeiro do que os de Lohwinckel, sendo a culpa deste atrazo devida ao espectáculo
cinematográfico - no qual, diga-se de passagem, nunca se chegou a saber o que aconteceu aos três protagonistas. Foi bastante evidente a desordem que presidiu aos
primeiros vinte minutos de luta contra o fogo. Através das vigas em chamas, o incêndio dirigiu-se para o anexo habitado pelo motorista. Sob as ordens do comerciante
de loiça e capitão dos bombeiros, Voegele, dirigiram as mangueiras para aquele ponto, havendo meia dúzia de heróicos voluntários que salvaram os móveis da casa:
camas, armários de cozinha, a gaiola do pássaro, o retrato de Bebé, com moldura, a Virgem em porcelana azul decorada a estrelas doiradas.
Entretanto, no depósito em chamas, acumulavam-se compactas nuvens de fumo escuro. À falta de janelas e de bocas de arejamento, não podiam sair e os bombeiros encontravam-se
impossibilitados de entrar. O fogo ia subindo sempre, do interior para o telhado, e reanimando-se visto que em toda a parte encontrava oxigénio.
Sobre os esqueletos negros das traves, homens pretos estavam em pé, com as mangueiras atestadas. Em baixo, faziam-se buracos nas paredes. De vez em quando, uma língua
de fogo, hesitante e pesada, saltava dum ponto para outro. As pessoas de Lohwinckel estavam fora, perto do muro. Tinham os rostos alumiados pelo incêndio e experimentavam
a grande alegria que se tem sempre ao ver chamas. Era um incêndio importante e um espectáculo a que se não assiste todos os dias - só se dá, quando muito, de dez
em dez anos.
-A garagem! A gasolina! - gritou um homem. Tinha o rosto negro e o corpo muito inclinado mas reconheceram Birkner, o revolucionário chefe do conselho da fábrica
- o chefe do partido grevista. Um espírito inteligente que não tinha medo ao trabalho e deitava mão a tudo. Ordenou aos operários e convenceu os bombeiros a porem
a salvo a gasolina, antes de mais nada. O telhado da garagem estava encharcado mas muito quente, não havia maneira de se salvar. Os depósitos iam-se desmantelando
trave a trave, dir-se-ia que a negra madeira se fundia na braseira amarela sobre a qual dançavam círculos azuis e agitados. Embora o fogo estalasse, crepitasse e
caísse aqui um pedaço de parede e além uma chuva de cal, tinha-se a impressão dum estranho silêncio, devido ao assobiar ininterrupto das labaredas, ao mutismo da
equipa dos salvadores e ao laconismo dos assistentes. O que arrepiava era sentir os morcegos. Em geral, estavam pendurados, aos centos, nos tetos dos depósitos,
com as finas garras enterradas na madeira e os focinhitos de ratos adormecidos. Mas agora, o instinto expulsara-os, a tempo, dos edifícios ameaçados; na noite cheia
de luz estavam desorientados e o seu voo mole e ziguezagueante deitava-os constantemente para cima das pessoas.
Quási toda a gente achava que o sr. Profet merecia o que lhe estava acontecendo, mas também não havia motivo para demasiado regozijo. Ele tinha aquilo no seguro
e como homem de negócio, até do fogo era capaz de tirar algum lucro: novos depósitos arejados e construídos em higiénicas condições pela Companhia de Seguros. Verdade
seja que o trabalho ia ser interrompido e então quem sofreria? Os operários. Os mais velhos, os que sempre se mostravam cobardes e preocupados, falavam já de suspensão
de pessoal e de provisória interrupção de trabalho, agrupando-se com inquietação. Mas também os revolucionários esqueciam os seus projectos de greve: formando cadeia
em frente do edifício principal, molhados por um suor enegrecido de fuligem, protegiam a importante fundição onde duas equipas de vinte e cinco homens ganhavam o
seu pão a trabalhar.
O sr. Profet também se portava bem no meio de tudo isto. Primeiro, fez o seu dever como simples membro sem distinções do corpo voluntário dos bombeiros, dando à
bomba com toda a força, alternativamente com o sr. Markus, gordo e a bufar, que também fornecia todo o seu esforço à velha bomba de sistema anti-diluviano. Depois,
não perdia a cabeça nem o bom humor, chegando mesmo a gracejar no meio dos estalidos, das línguas de fogo e das nuvens de fumo; prometeu um pronto-socorro aos bombeiros,
anunciou uma distribuição gratuita de cerveja e fez com que houvesse turnos. Era um pequeno Napoleão, um homem de princípios modestos e grandes sucessos. Naquela
noite, desvendou se abertamente a larga e popular energia do seu temperamento e explicou se então o motivo por que ele prosperava enquanto Raitzold cada vez se afundava
mais.
O fidalgo estava entre o povo de Lohwinckel a olhar para o incêndio, contrariado por esta atenção que considerava demasiada para com a propriedade do inimigo. Mas
a força de atracção do fogo era tão grande, estas explosões e crepitantes quedas respondiam tão bem ao seu estado de alma que não conseguia arrancar-se dali. Como
os outros, também ele sentiu, na garganta,
o ar carregado de fuligem; os olhos lacrimejantes começaram-lhe a arder e a pele cobriu-se-lhe com uma camada fina e negra enquanto, como que fascinado, continuava
a contemplar as labaredas.
À medida que o incêndio ia diminuindo, os espectadores iam desaparecendo. O fidalgo adiantou-se, da quarta para a primeira fila. Comunicou-se-lhe a decepção dos
outros assistentes quando, ao cabo de três horas, o fogo se apagou, não restando senão algumas nuvenzitas de fumo erguendo-se dos calcinados telhados.
Rodeava as ruínas numa atmosfera arrepiante, devido ao vento que se levantara, felizmente demasiado tarde. Estava frio; chegara Outubro com uma lua que engolia as
nuvens e uma aragem de fazer bater o queixo.
O sr. de Raitzold ainda ali estava, quando as bombas já se aprontavam para partir. Como se falasse sozinho, o seu descolorido bigode de oficial de cavalaria estava
sempre em movimento. Foi nessa altura que a irmã o descobriu, aproximando-se dele. Os cavalos do Domínio, atrelados à bomba, quando ela passou, viraram as cabeças
e deteve-se um momento junto deles, examinando os arreios e fazendo-lhes uma festa. O sr. Profet, embora estivesse sem colarinho, a transpirar e todo preto, inclinou-se
profundamente em frente dela. Acompanhava precisamente o presidente da Câmara que tinha o automóvel um pouco afastado dali.
- Então? Podia ter sido pior.
- Sim ... Ao menos, não houve desastres pessoais.
- Está no seguro, an ?
- Bem sabe que sem um processo não se tira nada das Companhias.
- Como pegou o fogo? Tem alguma ideia? Isto é... não suspeita de ninguém? A sua fábrica andava um pouco agitada, ultimamente, não?...
- Suspeitar? Não. Ultimamente, andaram com efeito, a excitar-me o pessoal; mais nada. Teria que desconfiar de todos, ou de nenhum. Também nas instalações eléctricas
se produziram incidentes: já nesta manhã lá houve um acto de sabotagem. Há quem tenha visto andar por aqui um operário de má fama; um certo
Lungaus. Mas não posso provar o que não sei. E também, para que haviam eles de cortar a árvore que lhes dá pão? Vai ver o que vão protestar quando eu disser que
vou reduzir o trabalho durante um mês.
- O quê? Vai fazer isso? - perguntou o presidente, aflito.
- Vamos a ver... Se não me aguentar...
- Quer que o leve no meu carro? O seu, com certeza que está impossibilitado de andar.
- Obrigado. Desejo ficar aqui até amanhã de manhã. Mas se o sr. presidente quisesse levar a mulher do meu motorista, agradecia-lhe. A pobre criatura sempre apanhou
um susto! Dormirá na minha casa. Fizeram la mais camas.
Não, realmente, este Profet não é o pior homem da região. Há outros piores, como o da fiação, de Dusswald, ou o das máquinas, de Schaffenburg. Dizem isto os operários
que, extenuados, voltam para as suas casas. A revolta extinguiu-se como se o lume a tivesse queimado. O vento começou a soprar de outro lado: afinal o paginador
Pank, de Berlim, falou muito mas não fez nada.
- Fichli,- disse a Jacinta, aproximando-se meigamente do irmão e tocando-lhe no cotovelo - Fichli, toda a gente se foi já embora. Se queres ir, deixo-te a bicicleta
e vou buscar os cavalos que levarei com o rapaz.
O proprietário sobressaltou-se, ao ouvir a voz apaziguadora da irmã, como se um raio caísse junto dele.
- Eu? Não. Preciso ainda de dizer algumas palavras àquele Profet. - respondeu, tossicando.
- Agora? Já deu meia-noite. Ele deve estar exausto, sem cabeça para tratar seja do que for.
-Também eu.
- Mas tem que ser já?
- Se o não fizer agora, não o farei nunca!- replicou em tom violento.
com efeito, queria aproveitar aquele dia. A febre do espectáculo, o incêndio, o sonho por entre as chamas, a excitação geral haviam-lhe dado energia para combater.
Rudemente, disse à irmã:
- Vai-te embora. Deixa me.
E o seu braço desviou-se do fraternal gesto que desejava dar-lhe calma.
Tinham recuado para a sombra projectada pela fábrica, de modo que Profet só os viu quando voltou. A lua iluminava o agora e também dois candeeiros, um junto do portão
e outro no edifício central. Ele, que até aí fora tão corajoso, mostrava-se agora muito abatido, ao atravessar o pátio que cheirava a fumo arrefecido e amargo, para
se dirigir ao seu escritório.
Raitzold deixou a irmã na sombra da parede e seguiu o industrial. Alcançou-o de repente, como uma bola lançada em imprevista trajectória.
- Senhor Profet, preciso de lhe falar. - disse, abafando.
O interpelado estremeceu. Refreou um movimento mais de receio do que de surpresa e olhou para o fidalgo, dizendo:
- Pois não.
No escritório, o motorista Muller esforçara-se já por estabelecer um pouco de ordem: acendera o candeeiro da mesa ; no divã de couro estava a manta do carro. Fazia
frio porque todos os vidros haviam estalado. Profet teve um arrepio dentro do fato encharcado de suor.
- Quere um cálice de conhaque, sr. de Raitzold ?
- Não, obrigado.
- Pois eu vou beber para aquecer.
E, sem cerimónia, meteu o gargalo à boca.
- Fique lá fora, Muller.
E indicou ao visitante uma das poltronas de couro. Raitzold permaneceu de pé, no meio do compartimento, olhando sem ver as paredes que o Profet tivera orgulho em
decorar com fotografias que mostravam os seus humildes princípios: os pais dele, a sua primeira comunhão onde estava ridiculamente vestido e com a vela na mão, sentado
com os camaradas em redor dum pipo de cerveja, como membro do clube ciclistas "Alegre Passeio...
- Então que há ? - perguntou.
- Fui oficialmente informado que o senhor...- começou o fidalgo, mas percebeu logo que aquela frase
de simples formalidade não daria ideia do que viera ali fazer. Interrompeu-se. Depois de um silêncio, exclamou apressado:-Queria apenas dizer-lhe que é impossível!
Em voz não destituída de cordialidade, Profet respondeu :
-Não é desta maneira que podemos tratar de negócios, sr. de Raitzold.
Estava exausto e o seu fundo de bondade apossava-se dele, como dum homem levemente embriagado.
- Para si, trata-se dum negócio. Para mim, não. Compreende que não sou homem de negócios.
Profet examinou-o com atenção.
- E quem lhe diz que, para mim, isso representa realmente um negócio? O seu Domínio custar-me-á uma certa soma; e quanto gastarei depois? A propriedade está completamente
arruinada.
Ao ouvir a palavra "arruinada", o fidalgo sentiu outra vez a congestão gelada dos outros vasos sanguíneos que se traía pela palidez - tanto mais que as palavras
do industrial eram verdadeiras.
- Nesse caso, não sei porque motivo o senhor quer... me quer expulsar das minhas terras!
Queria acusar, mas não pôde conter o queixume.
- Há anos que me persegue! - e mordiscou o bigode que começara a tremer.
- Fiz-lhe há tempos, uma boa oferta.
-Sim. O senhor é daqueles que julgam que o dinheiro pode comprar tudo.
Profet concordou mas guardou a reflexão para si. Sentou-se pesadamente, deixando Raitzold em pé.
- Ora vamos lá a ver. Um inimigo é sempre um inimigo. O senhor fez-me sempre mal onde pôde; eu prejudico-o quando posso.
A estas palavras, o proprietário mostrou estar tocado e o industrial olhou-o com atenção.
com efeito, aquelas palavras definiam bem a situação.
O industrial, falando com a mulher e os amigos, gozara antecipadamente o instante em que se apoderasse do Domínio, fosse o senhor absoluto de Lohwinckel.
mas, infelizmente, naquela noite sentia-se mole, de forma
que não saboreava o seu triunfo da maneira profunda
que idealizara. ?;
E disse: ;:
- Estou muito fatigado agora para poder entabolar negociações.
- Não quero negociações! - respondeu Raitzold, ficando imóvel a fitar os olhos de Profet. Depois, em voz mais baixa: -Não é um negócio. Queria apenas preveni-lo
de que não sairei do Domínio, a mim ninguém me tira de lá. Antes de o abandonar... antes que o senhor tome posse... deitarei tudo abaixo. Matarei o gado, arrancarei
as árvores, inundarei os campos, incendiarei a casa... deitarei fogo ao solar... ??
- Ah, sim? Mas se nem sequer está no seguro!- atalhou Profet, estremecendo. !
- Se estivesse no seguro, não tinha o direito de lhe deitar fogo. - gritou o proprietário.
Dois mundos haviam falado. Ficaram silenciosos, arquejantes, respirando a custo, como dois animais irre conciliáveis que vão bater-se. O sr. Profet sentou-se outra
vez. Sentira bater o coração o que, em negócios era uma coisa que nunca lhe acontecia. Verdade seja que as circunstâncias eram excepcionais,
- Mas o senhor endoideceu! - exclamou, respirando", com tanta dificuldade como Raitzold torturado pela asma.:,
O fidalgo tornou a dizer:
- Antes de deixar a minha casa, demolirei tudo, arrasarei tudo. Nem um canteiro nem uma paliçada. As flores... - a minha irmã dedicava-se à horticultura arrancarei
as roseiras e atirá-las-ei para o estrume, hei-de tapar os poços, hei-de... hei-de ... Quanto à "Costa do Sol" - disse em voz ainda mais baixa e rouca - julga que
lha dou? Arrancarei as vinhas, tirarei todos os pés eu próprio, com as minhas mãos, um após outro!
Profet sorriu.
- A vinha? Mas a terra fica. E o que conta é a terra.
Raitzold ergueu os braços ao ar.
- A terra é que conta! Então o senhor sabe tam-
bem que, acima de tudo, está a terra? E um belo dia chega um indivíduo como o senhor e quer construir, nessa terra, depósitos e caminhos de ferro, an? Arremata tudo
e começa a especular, não ? Todas estas porcarias que tem ideia de pôr na minha Costa do Sol". O fidalgo chorava agora sem vergonha, sem se abandonar e desatar aos
soluços mas com uma espécie de estertor depois de cada palavra. Isto comoveu o sr. Profet que nem pensava em construir na "Costa do Sol". Pelo contrário, tivera
sempre a impressão de que a posse e a plantação da vinha naquele terreno, o colocariam numa categoria especial, mais elevada. Mas como as queixas do antagonista
lhe iam direitas ao coração, tornou-se carrancudo e declarou:
- Não sei porque motivo não havia de construir. E não era o senhor que mo ia impedir.
- Eu, sim! Eu. Cão! -berrou o sr. de Raitzold e tirou o revólver que se lhe prendeu na calça, aparecendo um segundo mais tarde do que o indicado.
Profet empalideceu mas não perdeu a cabeça. Sorriu até, pàlidamente, não de coragem mas de temor. Teve um gesto feliz na direcção do braço direito de Raitzold que
repeliu, tirando a arma da mão trémula.
- Mas está doido! Está em perigo de morte!-balbuciou.
Os joelhos tremeram-lhe e deixou se cair na poltrona.
Raitzold deixou-se cair também na outra cadeira, apoiou os cotovelos nos joelhos e mergulhou a cara nas mãos.
Silêncio.
Bastante mais tarde, pediu:
- Podia agora dar-me um pouco de conhaque?
- Pois não. - respondeu Profet, colocando a garrafa na sua frente.
O fidalgo sentia se perdido em nevoeiro, os olhos estavam injectados de veias azuis. O sangue e a consciência equilibravam-se lentamente.
- É só um instante ... vou me embora já ...
Às apalpadelas, procurou o revólver, sobre a mesa, até o ter encontrado. Depois meteu-o no bolso.
Um revólver não é um argumento, mas aquele minuto trágico deixara em Profet uma profunda lassidão misturada de arrepios. Parecia-lhe que a noite durava havia anos;
eternidades tinham decorrido desde o fogoso tumulto do cinema, o incêndio e a sua extinção. De repente, teve a sensação de que aquele negócio do Domínio lhe repugnava.
Tinha outras preocupações. Pensou: "Quero cá saber disto para nada!" Mal seguro nas pernas, levantou se. Raitzold imitou-o e esforçou-se por tomar uma atitude protocolar.
Estavam ambos extremamente pálidos, encharcados de transpiração, torcidos como roupa molhada.
- Muito boa noite. - disse o fidalgo.
- O meu carro não pode andar, senão conduzi-lo-ia
- respondeu o industrial.
Quando o proprietário já estava na escada, Profet dirigiu estas palavras ao seu inimigo mortal:
- O negócio ainda não está arrumado. Devemos chegar a um acordo.
A irmã esperava-o. Ansiosa, perguntou:
- Então ?
- Parece que ficamos, pelo menos provisoriamente.
- E agora, onde vamos ? - perguntou Karbon, depois de ter salvo Elisabete do tumultuoso animatógrafo, interpondo a sua possante estatura entre ela e a multidão.
- Não sei. - respondeu ela, febril. Mas, maquinalmente, tomou a direcção da casa do Angermann. Karbon largou a trémula mão da sua companheira e começaram a andar.
Passado um momento, passou-lhe o braço sob o seu, o que, para ele, era um gesto natural. Para ela, consistia em romper com todo o equilíbrio e todas as conveniências:
caminhar para um abismo sem
fundo. O céu estava límpido, claro, bicolor: dum vermelho ardente a leste, por cima da fábrica em chamas, dum luar azulado a oeste, por cima da cidade e na direcção
do Priel. Na estrada de Obanger encontraram grupos de pessoas agitadas ou aflitas que iam contemplar o incêndio.
- Vem. - disse Karbon, levando Elesabete para uma ruazita lateral, orlada de casas construídas em série, em tijolo vermelho, iguais umas às outras, com dois metros
quadrados de jardim e um renque de lilazes que erguiam para o ar as suas umbelas escuras e secas. Cheirava a incêndio e a cano de esgoto-pois canalização não existia.
A luz vinha de raras lanternas que espalhavam uma luz amarelada.
Atravessaram aquele bairro apertando-se muito um contra o outro, chegaram perto dum arco feito na muralha da cidade que se chamava: O Regato". Era um pequeno rio
de curso rápido que servia a serralharia do Priel e que aqui, marginava com certo ruído, as fachadas de traves à vista duma fila de casas.
Caminhavam e falavam, seguindo o rio até à serralharia. Depois, pelo Priel, vieram para o centro de Lohwinckel. Passaram em frente do liceu, olharam para a barra
fixa e a cova que os rapazes haviam feito para os seus saltos em comprimento e detíveram-se, um momento, junto ao portão.
- Foi aqui que eu nasci, - disse Elisabete, indicando , a casita e o arborizado jardim.
Karbon achou que era uma coisa comovente e incompreensível ela ter nascido em Lohwinckel e ter lá vivido sempre.
-Quando a gente atravessa uma aldeola assim, diz: "Mas como poderá esta gente viver aqui, tão longe de tudo?"
- Pois não são assim tão diferentes das outras, estas pessoas... - respondeu ela.
Contemplou o rosto erguido para ele e reconheceu o sorriso feminino, carregado de desejo e admiração que encontrara em todo o mundo. Sorriu também e mur-
murou :
- Pois não...
Atravessaram o mercado, passaram ao lado da igreja, voltaram para trás. Soava a meia das nove quando deram volta à igreja, ao longo das velhas pedras tumulares do
muro exterior. Pararam a respirar o turvo aroma da poça dos patos, viram, à vacilante luz dum candeeiro, estremecer na água suja as suas duas silhuetas, depois chegaram
à farmácia e dirigiram-se, em passo cada vez mais hesitante, para a casa do Angermann. Levaram quási meia hora a transpor esta última distância. Os candeeiros apagaram-se
às dez horas, um pouco antes de soarem na igreja, visto que o minúsculo gazómetro de Obanger observava a hora certa da Europa Central.
De braços caídos em face da casa, Elisabete não se dispunha a entrar. A sua vontade não era bastante forte para a obrigar a dar os cinco passos que faltavam. Como
o médico fechara as persianas, a casa estava toda às escuras e a sentença que se lia lá no alto tornara-se invisível, o versête que dizia assim: "Aquele que vive
sem inveja e que tem filhos, assemelha-se a um punhado de flechas na mão do Todo-Poderoso". Elisabete tentara algumas vezes estabelecer uma correlação entre aquela
divisa e a sua existência, assim como, arrancando cada folha do calendário dava. um sentido profundo e profético à legenda inscrita. Mas não encontrava nada.
Demoraram-se sob a torre. Lá em cima, São Jorge brincava com o dragão que tinha cabeça de delfim. Cada vez era mais difícil separarem-se. Karbon largara-lhe o braço
e contemplava-a, de um pouco de longe. Mas a atracção exercida pelos seus corpos era tão grande, que logo se aproximaram, encostando-se um ao outro, sentindo o bater
dos respectivos corações. Depois o homem pegou na mão da mulher e colocou-a sobre o seu peito, no calor que havia entre a camisa e o casaco; era, para ambos, um
contacto duma doçura e duma proximidade assustadoras.
- Sinto-o bater. - balbuciou ela.
Peter, como que embriagado, sorriu e respirou-lhe os cabelos. Passava gente. Elisabete sentia confusamente que estava ali de pé, junto da torre do Angermann,
com um homem, exactamente como vira algumas vezes a criada na companhia do limpa-chaminés Zuzchkan mas era uma impressão confusa e secundária.
Karbon, sentindo que ela não podia entrar em casa, levou-a para a estrada que conduzia a Obanger, para longe da cidade. Pediu :
-Mais cinco minutos.
Elisabete respondeu, como em estado de sonambulismo :
- E o incêndio ainda dura... -como se fosse desculpa suficiente.
Era tão insensata e tão moça aquela maneira de andar a passear pelas ruas, como se os ligassem cadeias delgadas e incandescentes! Peter Karbon, que tinha quarenta
e três anos, sentiu-o com força, tendo a consciência de viver uma noite de ardente intensidade. Deu parte a Elisabete:
- Há uma coisa apenas: sentir a gente que vive esta impressão que, totalmente, se apodera de nós - a única razão de viver.
Ela não compreendeu bem; permanecia por trás dum luminoso nevoeiro.
Andaram, andaram, chegaram outra vez a Obanger, Pela segunda vez, atravessaram a rua das casas de tijolo onde tinham estado uma hora antes. Chegaram ao local chamado
"Perto da parede" que limitava as propriedades do sr. Profet. Pararam então a contemplar o fogo, olharam fixamente, durante muito tempo, sem falar, esperando que
as chamas subissem sempre para mais alto. Em seguida, prosseguiram o caminho, quando a intensidade das labaredas começou a diminuir. As suas mãos continuavam enlaçadas
e, às vezes, ela sentia uma subtil dor, quando as unhas de Karbon se lhe enterravam nas palmas. Tinha nervos de que ignorava a existência, veias novas batiam-lhe
na garganta e o seu corpo parecia um país em que viajava pela primeira vez, cheio de revelações e mistérios. Deram volta à fábrica, ao longo do muro; através da
erva úmida alcançaram a estradazita que, entre vinhas, conduzia à estação. Elisabete sentia-se tão fatigada que tinha a impressão de caminhar sobre nuvens
mas estava plena de vivacidade como nunca o estivera na sua vida. O incêndio parecia estar extinto, por trás deles fechava-se o céu; com ar ofendido, a lua dirigia-se
para o campanário no qual se acendeu uma pequena cintilação. Em baixo, no vale, os bombeiros voltavam para a sede. Peter Karbon e Elisabete estavam junto das vinhas,
esperando que o silêncio chegasse.
- Tanto nevoeiro! - disse ele.
- Para ali fica o Reno... -murmurou ela. E cada palavra lhes parecia carregada de signihcação. Karbon reconheceu o mesmo aroma das urtigas que aspirara na noite
do desastre.
- Deve ter sido por aqui. E procurou.
Ao descer, abrigou a Elisabete sob o seu ombro e ela sentiu-se protegida por aquele calor. Na floresta de Dusswald brilhavam as manchas brancas dos marcos quilométricos.
Estava-se em plena noite, não havia mais ninguém na estrada. E eles falavam, falavam, balbuciavam, tinham-se, fundiam-se num beijo, tornavam a partir.
- Aqui é que o desastre se deu.
Na escuridão, reconheceu o tronco de árvore onde ficara sentado tempo indefinido com a Leore desmaiada nos seus joelhos. Tirou mesmo uma acendalha do bolso e, à
claridade da minúscula chama, examinou a estrada, a árvore, a curva. E pensou: "Que bom ter escapado e poder tirar da vida tão grande prazer!" Foi num gesto de revolta,
que se sentou no tronco da árvore e tomou Elisabete nos braços - de ouvido à escuta, parecia um violoncelista tocando numa corda e apreciando o som.
Depois começou a falar de Fobianke, cuja sombra parecia andar com eles.
- O dever... -respondeu Karbon a uma objecção que Elisabete havia formulado muito antes - Falas em dever. Mas nunca ninguém descobriu ainda qual era o dever realmente
importante: aquele que diz respeito aos outros ou a nós. Não tenho deixado de pensar no Fobianke. Morreu, não é verdade? E então?
cumpriu o seu dever. Conhecia-o bem; como sabes, andámos sempre juntos: de noite, por estradas solitárias, teve ocasião de me contar muita coisa. Há tempos, quis
emigrar para o Canadá, mas faltou-lhe a coragem. A sua primeira mulher morreu por ele andar atrás doutra qualquer: uma caixa num bar automático, uma criatura gorda
e bonita. Mas não casou com ela, apesar de viúvo. Preferiu uma viúva também, insignificante, mais velha do que ele, mas que possuia alguns patacos. Não tinha força
para lutar pela vida. Cumprir o seu dever - é bom para aqueles que o podem fazer. "Fiz o meu dever" era a frase que o Fobianke repetia sempre. Morreu de repente.
Achas que um morto poderá estar satisfeito por ter cumprido o seu dever? Não te rias, Elisabete, não sou um filósofo e exprimo-me mal. Não ligo grande importância
à vida. Mas acredita que quando aqui estava sentado, com a cabeça a zumbir, só tinha pena duma coisa: do que não fiz. Não de qualquer tolice ou pecado, não... Estive
já várias vezes a ir desta para melhor... certo dia, uma serpente mordeu-me e foi um feiticeiro preto que me curou; doutra vez estávamos vinte e quatro homens num
abrigo: pois eu fui o único que me salvei. Não; acho que se deve tirar da vida tudo o que ela possa dar -é o mais importante. Acontece o mesmo com a natação. Se
não tiveres confiança na água e te convenceres de que ela não te aguentará, é que não te aguentas mesmo. Se não tiveres confiança na vida, é mais que certo: vais
abaixo. O dever, o dever! Lavar a loiça, fazer as camas, engraxar o calçado - mas tu que és no meio disso tudo Elisabete, tu consegues viver? Elisabete, Elisabete!
Ouvindo-se chamar assim com tanta insistência, abriu os olhos que fechara enquanto ele falava com veemência. O braço direito do homem estava sob a sua nuca e o esquerdo
sobre o seu peito. A floresta erguia as paredes negras e, lá em cima, brilhavam estrelas.
- Talvez tenhas razão... - balbuciou.
Cobriu-a de beijos, enquanto ela murmurava:
- vou para casa.
Mas quando se pôs de pé, em vez de tomar a
direcção de Lowinckel, dirigiu-se para a estação, como se alguma coisa a afastasse do seu lar e do combativo São Jorge que deixara de ser um símbolo. O cansaço tornara-a
tão leve que já não sentia pernas nem braços; todos os membros estavam adormecidos ou insensíveis. Haviam perdido a noção do tempo; o relógio-pulseira de Karbon
parara e como o nevoeiro da noite lhes subia até aos joelhos, tudo se tornava irreal. Acabaram por emergir duma insondável profundidade de tempo perto da estação
de Dusswald-Lohwinckel: entre os rails, brilhava uma luzita vermelha que ali fora colocada por desconhecidas razões, visto que nenhum comboio percorria o trajecto
local durante a noite.
- Não parece que há ali anões a trabalhar ? -perguntou Elisabete numa espécie de embriaguez.
No jardinzito da gare, os girassóis erguiam os largos rostos para a lua que já vinha a descer.
- Anda, vem. - murmurou Karbon, levando a Elisabete para a pequena sala de espera que se assemelhava a um terraço e que cheirava a madeira amarga e úmida.
Como a noite refrescara, ele tirou o casaco e cobriu-a; era quente e terno, quási tinha vida aquele calor.
- Bem; aqui muito quietinhos vamos falar tranquilamente.
E ela começou a tremer, como se ele a ameaçasse.
Falaram de tudo e durante muito tempo. Era uma situação insensata: Karbon sentia-o e estava radiante ao ver que ainda tinha bastante entusiasmo para se colocar em
situações destas.
Falaram, calaram-se, balbuciaram, levantaram-se, andaram dum lado para outro, voltaram para a cidade: tinham caminhado durante toda a noite, durante anos, durante
a vida inteira. Contaram um ao outro todo o passado e todo o futuro.
Ainda não surgira a madrugada quando chegaram à casa do Angermann, mas já o orvalho matinal caía em pérolas minúsculas sobre os cabelos e os lábios frescos da Elisabete.
-Boa noite, boa noite, boa noite.-murmurou Karbon inúmeras vezes quando ela meteu a chave na
fechadura. Como era doloroso separarem-se! - Boa noite. Pensa em mim. Até amanhã.
"Amanhã!" pensou ela.
Foi com um sorriso estranhamente vago e demente que ouviu escorregar a cal ao longo da parede, quando entrou no vestíbulo.
"Vou-me deitar no sofá." resolveu com a impressão de sair dum sonho, duma longínqua viagem, como quem deu a volta ao mundo.
Ao fazer força na maçaneta da porta do consultório
- havia ali pesadas e curiosas maçanetas do século XVI quási se admirou por ver a porta responder à sua pressão com o velho som que ouvira mil vezes. Como o candeeiro
ainda estava aceso, ficou imóvel no limiar, com o orvalho nos cabelos, o sorriso pálido, os olhos muito abertos e uma ferida minúscula no lábio inferior.
O dr. Persenthein estava sentado, não à sua mesa de trabalho, mas na beira da cama de operações. Não lia mas reflectia, com a revista na mão. Ergueu a cabeça, passado
um segundo, e disse:
- Ah! És tu ?
- Sou.
Era uma troca de palavras inúteis. No aposento reinava uma opressora atmosfera de desgosto e mau humor, fumo de cigarro envolvia o candeeiro, um tubo de comprimidos
estava aberto sobre a mesa, o que demonstrava a luta do médico contra terríveis dores de cabeça. Algumas toalhas úmidas e sujas haviam sido lançadas para um canto
da sala, o balde de algodão maculado fora derrubado e sobre o homem tombara uma camada de gelo triste. A Elisabete reconheceu aquilo tudo como sendo a atmosfera
em que a sua vida conjugal decorrera até ao momento encantado.
- Então não estás a dormir, Kola ? - perguntou por compaixão.
- Já é tarde ? - e só então se lembrou que, na véspera à noite, ficara inquieto com a ausência da mulher. Interpelou-a - E tu, por onde andaste ?
- Houve um grande incêndio. - anunciou em voz baixa.
Maquinalmente, pegou nos cinzeiros cheios, abriu janelas e persianas e despejou-os. Pôs em ordem alguns papéis caídos no chão e apanhou as toalhas sujas. Persenthein
olhava para ela, intensamente.
- Mas o incêndio acabou há que tempos! Elisabete foi até junto dele e, no gesto habitual,
apoiou a cabeça do marido no seu ombro; fechou os olhos e respirou profundamente.
- Anda, Kola. Precisas de descansar.
- Onde estiveste ? - perguntou o marido, fatigado como um corredor que gastou todas as suas energias e que chegou em último lugar.
- Fui passear com o sr. Karbon.
- Durante toda a noite ?
- Sim.
E olhou de frente para o marido.
- Não compreendo. - disse ele - Há nisso qualquer coisa que não se encontra em harmonia contigo. Que sucedeu ?
Aproximou-se dela e encostou-lhe a testa à sua; era um gesto também habitual. Sentiu latejar as veias. Tão perto do seu rosto que não podia vê-lo, perguntou em voz
angustiada :
- Aconteceu alguma coisa ?
- Aconteceu.
O médico esperava um "não. Os joelhos vacilaram. Nunca, na sua vida, sentira nada semelhante.
- Mas o que há ? - e a sua voz mal se percebia.
- Agora não. Falaremos disso mais tarde. - replicou ela, cheia de pena. Retirou a testa mas colocou a mão no seu ombro. Renunciara à ideia de passar o resto da noite
no sofá.
- Ficaste levantado à minha espera ?
- Não. Tinha outra preocupação.
- Um doente que veio de noite ?
- Não. - apagou a luz e dirigiu-se para o inclinado soalho do quarto. - Outra coisa. Recebi uma pancada. A pior coisa que me podia acontecer. Amanhã lerás.
"Uma carta anónima." pensou ela.
- Qualquer coisa que diz respeito ao Karbon e a mim?
- Não. Trata-se da minha Ideia.
Mordendo os lábios, calou-se porque sentia que ia chorar. Só passado um instante, como se a voz de Elisabete o tivesse acordado, é que perguntou:
- Ah, sim, tu e o Karbon, sim ...
Estava sentado na beira do leito, que formava sob ele a depressão habitual, a tirar os sapatos. Mudo e com expressão irritada, olhou para ela. Por fim, vendo que
não falava, perguntou:
- Mas afinal o que é que se passou entre ti e o Karbon?
Ela não respondeu.
Um frio áspero entrava pelas janelas abertas. com o queixo para a frente e os braços caídos, a mulher estava no canto mais sombrio do quarto. Começou também a despir-se.
Os nós da madeira, no teto, formavam bizarros desenhos. Quando Elisabete fechava os olhos, parecia-lhe ver as chamas azuis revoluteando sobre os telhados negros.
Deu um passo para a janela e olhou para fora. A madrugada não surgira ainda. Desejaria rezar mas não podia. com a ponta da língua humedeceu o lábio inferior e sentiu
um infinito desejo de estar só para poder pensar em Peter Karbon. O dr. Persenthein que era vagaroso, levou imenso tempo a deitar-se. Por fim, Elisabete ouviu o
habitual ranger das molas do enxergão que anunciavam a chegada do marido ao leito. Voltou-se para dentro e perguntou:
- Posso apagar a luz, Kola?
Era um dos desconfortes da casa, aquilo de não haver um comutador junto da cama, de modo que era preciso atravessar o quarto para a acender e apagar. Ele não respondeu.
Ela deu volta ao comutador e deitou-se às escuras. Mais do que nunca, assemelhava-se agora à defunta Sigismunda de Raitzold que lá estava no
sarcófago de pedra, estendida na sua camisa de linho, com os pés hirtos, os braços ao longo do corpo, pronta a defender-se contra indeterminados acontecimentos.
Há certos detalhes mínimos que permitem aos casados saber se dormem ou não. À Elisabete bastava-lhe ouvir a respiração do marido para saber se estava embrenhado
no sono: respirava então mais lentamente. Quanto a ela, quando estava acordada, as pálpebras batiam na almofada, com um leve ruído que o marido muita vez ouvira
ternamente comovido e risonho sem nunca a tal se referir. O silêncio que tombou depois da última pergunta durou tanto tempo e colocou entre ambos um tal espaço,
que o médico experimentou a angustiadora sensação de que nenhum caminho o tornaria a levar para a esposa. Às apalpadelas, estendeu a mão para o rosto dela. Sim,
tinha os olhos abertos.
- Porque motivo não teve Lungaus o seu regime?
- perguntou sem brusquidão. Não queria referir-se àquilo mas era um princípio de conversa. A doçura da sua voz deu coragem à mulher.
- Oh, Kola! Já não podia mais! Garanto-te que já não posso mais.
"Tem razão." -pensou ele, movendo a cabeça, às escuras. "Não pode mais. Aquela tortura deu cabo dela, como de mim. Mas agora tudo acabou. E disse em voz alta:
- Agora tudo isto acabou.
- O quê ? - perguntou ela, fora de si, com medo e, ao mesmo tempo, na esperança de que ele soubesse tudo e a poupasse a explicar, a destruir o que tinha de ser destruído.
- O trabalho. A minha ideia e tudo. Nada mais tenho a procurar por aquele lado. Só fiz tolices. Li hoje um artigo no Jornal Médico. Há muito tempo que outros médicos
sabem tanto como eu. E passei tantas horas, neste buraco, a torturar-me com aquela ideia, como um doido!
Ergueu-se rápida e inclinou-se para ele, apoiando as duas mãos na sua cama.
- Que dizes, Kolla? - perguntou, aflita.
Era o único ser no mundo que compreendia a catástrofe encerrada naquelas palavras. O médico fechou os olhos e abandonou-se um pouco àquela proximidade, à sensação
de calor e segurança que lhe dava a presença da esposa. Depois, olhou-a por muito tempo, silencioso e atento, na manhã que começava a dealbar. Já se contornavam
as janelas e os móveis principiavam a sair da escuridão.
- Ouve... a pequena... a nossa Avelã disse que tu querias ir-te embora, mas... mas não é verdade, pois não ? - balbuciou Persenthein, de súbito, para a sombra inclinada
sobre o seu rosto. Experimentou uma sensação, absolutamente nova, de medo, a tal ponto que sentiu o peito opresso.
- É verdade... -respondeu ela em voz imperceptível e com enorme esforço.
- Então não estás satisfeita ? Então nós não somos felizes ? -perguntou um pouco mais tarde, mostrando uma ignorância tão grande que ela sorriu.
- Oh, não!
- Nunca mo disseste ..
- Não tinha dado por isso.
"E agora sabe-o. E porque o sabe agora?" murmurou para si o médico, e só nesse momento pensou no outro homem, naquele indivíduo de pijamas de seda e maneiras de
globe-trotter, naquele preguiçoso homem dum outro hemisfério que tinham apanhado do chão e cujo reconhecimento consistira em revolucionar a terra e a sua casa, tudo
dissolvendo com o feitio desleixado e gozador, pela sua extravagante maneira de ser. A garganta de Persenthein encheu-se de calor e, durante instantes, estrangulou
nos dedos enclavinhados o pescoço de Karbon. Mordeu o polegar como se fosse um tampão, mas não impediu que um uivo de assassino lhe saísse da boca. Elisabete espiou-o
na penumbra. Ele respirou fundo. E perguntou:
- Mas de que estávamos nós a falar ? Estamos cansados. Sentes-te excitada e eu também. Tudo isto não passa dum contra-senso.
Enquanto Elisabete deixava que o marido lhe pegasse na mão, pareceu-lhe que ele tinha razão.
O pequeno espelho, do outro lado do quarto, recolhia já a primeira claridade do céu. Nos inclinados leitos, sob as cobertas baratas, de cetim vermelho, toda aquela
história do Karbon, parecia nunca ter existido. Mas ainda tinha um pontinho no coração.
- Nunca soube o que era divertir-me... Também queria gozar um pouco da vida... - balbuciou ela.
Persenthein, que lhe apertara os pulsos ate fazer doer, pegou-lhe na mão e trouxe-a para a sua cama, como se fosse um objecto.
- Não és tu que estás a falar, Elisabete! - murmurou, assustado.
Ela ficou a reflectir durante bastante tempo. O marido afastara-se, voltando-se para a parede que aparecia agora, hesitante na meia-luz, com o desgracioso desenho
do papel barato.
- Parece que não me exprimi bem.-disse Elisabete. Juntou os seus intermináveis solilóquios nocturnos, a impressão de deslumbramento, o sonho. E continuou:
- Há tantas coisas novas, Kola! Eu não sabia nada disto. Julgava que te tinha amor. com o Karbon é diferente, muito diferente. Só agora sei... espera ... vou explicar-te.
Tu não me conheces... nunca olhas para mim, não precisas de mim para nada. Foste feliz comigo ? Tu nem sequer és capaz de ser feliz, Kola, por isso não precisas
de mim, bem vês... Eu saberia, sim, mas tiras-me tudo! É verdade: tiras-me tudo. - repetiu com violência. - Precisas de mim para a casa, bem sei, e deitas tudo para
as minhas costas como se eu fosse um animal de carga. E porque hei-de ser eu e não outra? Podes crer que, às vezes, chego a ter a impressão de ser o Lungaus. É quási
a mesma coisa, embora eu o não saiba exprimir. Serves-te de nós como de objectos, és desumano -o trabalho tornou-te desumano. Quando entro onde estás espero sempre
que olhes para mim, sorrindo. Quando voltas de fora, pensas, sequer, em me estender a mão? Não, nem isso, Kola, é uma coisa que tu não sabes fazer; mas não tem importância.
No entanto, para mim, podes crer, para mim era muito importante.
Ao ouvir dizer era, o médico susteve a respiração. Ela continuou:
-Tu, por exemplo, nunca me ajudas a enfiar o casaco, não apanhas aquilo que eu deixo cair, não me tiras das mãos uma coisa que é pesada, nunca me acaricias, não
és amável. Tu... espera, cala-te, já sei o que me vais dizer... Às vezes, beijas-me, sim, mas é como que uma coisa que cai do céu, como que um tiro de revólver.
E eu não quero assim, rebaixa-me, é brutal. Se não precisas de mim senão para isso, então não vale a pena que eu sacrifique a minha vida inteira. Tudo poderia ser
tão diferente, tanto! Tanto!... É uma coisa que eu hoje sei.
Persenthein estava deitado na sua cama, do outro lado, como à beira dum oceano intransponível. Em voz baixa, disse:
- Mas, Elisabete, esqueces-te que somos casados...
- É verdade, mas Deus do céu, então o casamento é só isto ? Engraxo todos os dias o teu calçado que arrebita na frente porque tens um andar especial: não imaginas
como, às vezes, detesto o teu calçado! E sempre este cheiro a cigarro, ou então, quando bebes café, ao colocares a chávena em cima da mesa, não tens cuidado, e fica
o tampo cheio de círculos. Estás sempre a sujar tudo e eu atrás de ti a limpar; então é isto o casamento e mais nada? Por isso, ao ver surgir um homem que... como
o Karbon, que me quer arrancar a toda esta miséria e que me quer dar tudo, sim, já vês, eu... Não ter mais desgostos, mas viajar, correr o mundo inteiro, ouvir música
e ter vestidos, possuir tudo quanto me apetecer e o mais que não sonho... como será bom! Enquanto que aqui havia só trabalho e aridez...
A palavra havia fez estremecer o médico. Sacudiu-a pelos ombros e disse em voz forte:
- Mas de que estás tu a falar, Elisabete? Não és cristã?
- Sou ... - replicou ela, em ar hesitante e voltando
os olhos para o marido. - Eu sei. Mas agora já não serve de nada ter fé. Isto passa por cima de tudo.
O médico largou-lhe os ombros. Permaneceu com o rosto inclinado para ela. O seu corpo, de pesados ossos, estremecia no esforço que lhe causava a incómoda posição
na qual tentava aproximar-se dela sem lhe tocar.
- Elisabete, - disse em voz terna - perguntas-me se o casamento é isto. É sim, é isto mesmo: difícil para ti e para mim. Hoje estás a ver tudo deformado mas convence-te
que a vida não é um prazer contínuo como desejas. O seu valor não reside na superfície -é uma coisa que não vês mas sentes. Somos feitos para vivermos juntos, tu
e eu, para mutuamente nos ajudarmos. A nossa filha - mas não quero falar nela, não quero servir-me da pequenita como dum argumento. Mas não é verdade que é nossa,
a Avelã? E não pensávamos mesmo em ter um filho, mais tarde, quando a vida corresse melhor? Sim, bem sei que não é já... -apressou-se a dizer, quando viu a boca
da esposa a crispar-se numa recusa.
- Mas verás como isto há-de melhorar. Pois tu não sabes que és tudo para mim, absolutamente tudo, o motor, o centro... embora eu me esqueça de te ajudar a enfiar
o casaco ? Ouves, Elisabete ?
Num gesto habitual, rodeou o pescoço do marido com o seu braço e colocou-lhe a mão no rosto. Disse em voz baixa:
- Como tudo isto é difícil, Kola!
O marido deixou-se tombar a seu lado, sobre a almofada, e declarou em tom pensativo:
- Tudo que é moral, é difícil. Lutar, dominar, renunciar, são acções que pertencem à moral. O casamento e a fidelidade também lá estão incluídos. compreendo que
o outro lado seja tentador, mas não foi feito para nós, Elisabete, não é para gente da nossa raça. Isso com que tu sonhas, não é o casamento, é uma ligação.
Afastou-se violentamente e exclamou:
- Estás enganado. Ele casará comigo. Foi a minha primeira condição. É claro que casará comigo!
Em face destas palavras que revelavam a sua ignorância,
o médico sorriu. E raramente sorria. Concentrou-se como se fosse fazer uma operação difícil.
Estava dominado por uma impressão de lucidez e claridade espiritual e pelo claro sentimento da prudência com a qual devia avançar. Sentia o grande perigo que corria,
e de que maneira o futuro dependeria da forma como se comportasse naquela hora decisiva, decorrendo entre o orvalho da manhã e o nascer do sol. Os cabelos da mulher
cheiravam a incêndio e amargura. Tornara-se transparente, repousando na almofada, com a marca do beijo proibido, no lábio inferior. Experimentou um grande turbilhão
de amor pela sua mulher, num sentimento sem fim, pleno de profundidade como um poço, insondável. Tinha um medo horrível de a perder e também uma grande alegria lhe
sacudia o coração: porque ainda estava junto dele, falando-lhe, enunciando inocentemente uns princípios tão disparatados que bem demonstravam a confiança que ainda
nele depositava, a força dos laços que os uniam, a sua falta de habilidade para mentir. Ela encostou a cabeça ao seu ombro, naquele lugar que sempre lhe pertencera
exclusivamente e esperou.
- Dizes então que casará contigo ? Mas, minha filha, também há ligações legitimadas. E julgas-te com força para isso ? Ignoras então que espécie de mulher és?
- Não percebo... - respondeu em voz baixa.
- Também sabes que é casado ?
- Sei. Mas vai divorciar-se.
- E é assim tão fácil ?
- Sim. Eles vivem como dois estranhos. Ela anda a viajar, pelo Mediterrâneo. Quando voltar...
Persenthein encolerizou-se contra aquele Peter Karbon para quem não havia complicações. Como vivia facilmente em plena decomposição!
- E, além disso, ainda tem com ele aquela actriz..- a sua voz tremia porque sentia imenso desgosto ao ver a sua Elisabete misturada com aquela porcaria toda.
- Já se separou dela.
- Tão facilmente ?
- Sim, sem a menor dificuldade.
- Tens muita coragem, Elisabete. Não sabes tirar conclusões desse procedimento ? Não te vês nas costas dos outros ?
- Eu ? Porquê ?
Na vida corrente, o médico falava pouco e fazia-se compreender, de preferência, por meio de frases breves e inacabadas. Agora, que era preciso conservar-se calmo
e exprimir-se com precisão, as suas palavras tinham um som abstracto, um tanto frio: era a linguagem dos trabalhos científicos, com os quais se impregnara durante
milhares de horas de estudo.
Tentou traduzir o que pensava àquela mulher que estava apoiada ao seu ombro.
- Julgas que um homem que muda de mulher como de camisa, ficará contigo até ao fim da vida ?
- Não. - respondeu Elisabete. E passou um segundo antes que encontrasse uma resposta. - Mas pensei esta noite: se eu pudesse viver assim durante um ano! ou menos
tempo até uns meses... umas semanas... Não me importaria do que depois pudesse acontecer. Era-me indiferente. É verdade, Kola, pensei assim, durante esta noite.
Embora Elisabete se quisesse manter meiga, esta resposta estalou de tal forma apaixonada e imprevista que o marido teve medo. Um medo cheio de cólera a queimá-lo
e a rasgar-lhe o coração. E no mais profundo da ira, o pressentimento duma nova doçura, até aí desconhecida. Como lhe era estranha aquela mulher com a sua sede de
viver, como era nova para ele, após tantos anos de casamento!
Até aí, ele esforçara-se por conservar a serenidade, ficando tão concentrado como se estivesse ocupado com uma operação de vida ou de morte, quási frio, guardando
as distâncias em face da perturbação que atacara o centro da sua vida. Mas agora, ia perdendo a calma, cerrou os punhos, via tudo vermelho, tinha um nóna garganta.
A sua voz estava rouca, ao dizer:
- Esta noite... pensaste ... mas também eu esta noite sofri por tua causa... e foi nesta noite que ficou
arruinado o meu trabalho, tudo... tudo! E agora, que vai ser de mim?
Renunciava. Tudo era bizarro. Voltou-se e deitou se com a cara para baixo. O dia levantara-se; queria tornar-se invisível desaparecendo na almofada. Elisabete fez
um gesto vago e calou-se.
"Que devo fazer?" pensou. Quis tornar a ver a cara de Karbon ou os seus olhos, apenas. Mas tudo desaparecera. Reteve a respiração.
Não percebeu logo o que se passava na outra cama. Viu as costas do marido agitadas por contracções e distensões. Os punhos cerrados, de cada lado da cabeça, agitavam-se
duma forma particular, violenta e convulsiva. Mas tudo se passava em silêncio.
- Que tens? Que tens tu? - perguntou, colocando um dedo no cabelo fino e leve do marido. Compreendeu e disse: - Estás a chorar, Kola!
Ele negou, abafando um soluço. Exactamente como a Avelã, quando tinha um desgosto.
- Estás a chorar por causa do teu trabalho ?
O marido voltou para ela o rosto cheio de lágrimas, desfigurado, cheio de angústia.
- Por causa do trabalho? Que tolice! Que me importa a mim o trabalho? É por tua causa, por ti, por ti, só por ti, por ti só!
Este grito, proferido quatro vezes, comoveu-a.
- Por causa de mim ? - repetiu, sentindo-se estranhamente leve e fraca. Quási a desmaiar, começou a sorrir, enquanto toda a excitação, a fadiga e a loucura se fundiam
em lágrimas.
Tomou o marido nos braços como faria à filha, com quem ele tanto se parecia, não querendo capacitar-se da sua tortura. Fechava já os lábios sobre a palma da mão
dela. Quente e familiar, o seu cabelo tocava no pescoço da esposa. Emanava de si, como sempre, um cheiro a iodo e tabaco.
Sentindo com uma dor horrível que, dentro de si, qualquer coisa se quebrava, Elisabete sorriu. Pensou mesmo distintamente: "Está qualquer coisa a partir-se dentro
de mim, um sonho que não mais voltará..."
Mas, ao mesmo tempo, acariciava a cabeça do marido e a nuca que aparecia, com as vértebras visíveis, por cima da gola azul da camisa de noite;
- Sossega, vá, sossega... não acontecerá nada ... sossega, anda.
Uma mulher subia uma escada na companhia de Peter Karbon, uma mulher estava em pé na ponte dum navio (era o navio que aparecia no reclame de certo café) uma mulher
dançava com ele - uma mulher que não era a Elisabete.
- Preciso de ti, não te largo, és minha, és minha e ficas comigo, ninguém virá para te levar, és minha, és minha! - murmurava Persenthein na mão da mulher.
- Sim, Kola, sim ... -respondia ela, acariciando-o. Ergueu a cabeça e mergulhou o olhar no dele.
Parecia-se outra vez com o São Jorge.
- Gosto de ti, bem sabes, gosto de ti!-exclamou com tanta violência como se proferisse uma ameaça.
Era uma palavra estranha que, naquele momento, nascia na casa do Angermann e que ficava suspensa sob o teto atravessado pelas vigas, como se tivesse asas.
- Está bem, Kola, está bem. - disse ainda Elisabete. Sentia-se fatigada e infeliz mas, ao mesmo tempo,
transfigurava-a uma estranha felicidade.
- Eu julguei que podia... mas não posso. Não sou feita para aquelas coisas... O meu lugar é aqui. murmurou, sem forças, como se tivesse tentado erguer um peso enorme
e o deixasse cair, como se tivesse nadado contra a corrente e se deixasse, de novo, ir à deriva. Como se se tivesse encontrado em plena tempestade, vindo abrigar-se
em casa.
O casamento é uma coisa esquisita, velho como é, mais velho do que a torre do Angermann. Um casamento como o do dr. Persenthein e da mulher não é decerto um mau casamento, mas não é precisamente uma festa quotidiana ou uma alegria constante. Nem feliz, nem infeliz.
Um destes cem mil consórcios médios onde o marido é rabugento e a mulher está carregada de trabalho, onde se pensa mais nos desgostos do que no amor, uma união com
muitos acontecimentos previstos e poucas surpresas. Um tanto ou quanto desconsolador, não? com horizonte limitado, sem perspectiva larga, como uma casa sem portas
nem janelas. Um casamento marcado por aquela longínqua proximidade à qual os homens e as mulheres foram condenados desde a saída do paraíso. Uma coisa curiosa, este
casamento atacado e atacável, vetusto e absurdo nos seus alicerces, ameaçado de todos os lados. Um castelo de cartas quando tudo corre bem; uma galera para voluntários
quando corre mal.
Se qualquer incidente surge - e não é preciso um milagre, o pequeno grão de areia basta, uma perturbação passageira, um clarão, a indicação de uma nova directriz,
outro homem, outra esperança, outro caminho na vida deve então desmoronar-se, não é verdade?
Mas resiste, o casamento do dr. Persenthein não se deslaça; cem mil resistem ... possuem a vontade de viver e a teimosa persistência das plantas que brotam das pedras
e gostam das dificuldades.
Deve-se, portanto, concluir que, apesar de tudo, há forças profundas que actuam no casamento, forças elevadas que tocam no que de melhor o ser humano possui: forças
que se podem denominar eternas tanto quanto a breve eternidade pode durar nesta fria e pequena estrela que se chama Terra ...
Soaram as seis no relógio da igreja. Na sua cama, a Avelã respirava com regularidade. Em cima, Lungaus
começava a mover-se. E logo em seguida, o telefone retiniu, ouvindo-se a voz do comerciante Keitler a chamar o médico.
A essa hora insólita, um automóvel passou a porta da cidade e a casa do Angermann estremeceu. Elisabete Persenthein, que estava a varrer a sala de jantar, dirigiu-se
para a janela. Deitara pelos ombros o velho chalé triamgular, de lã, e fixara as duas pontas nas costas porque o dia estava fresco e ela sentia-se gelada após a
noite passada em claro. Era um carro de Schafíenburg que entrava com três cavalheiros desconhecidos. com o espíírito ausente, Elisabete continuou a varrer. Sentia
uma impressão de vácuo completo, como a que se produz quando uma alma atinge o limite da sua vontade e que tem necessidade de readquirir as forças. Deu um passo
para a escada e chamou:
- Ó Maria, tenha cuidado, não vá o leite pegar no fundo.
Porque a pouco conscienciosa criadita, voltara naquela manhã e não fora a única em Lohwinckel que retomara o trabalho. Também Lungaus se metera ao caminho um quarto
de hora antes de se ouvir o apito da fábrica a uivar por cima do depósito incendiado. Sem se consultarem, os operários encontraram-se lá todos e aqueles cujas oficinas
estavam destruídas, esperavam no pátio, respirando o ar amargo e falando pouco. ÀS dez da manhã deviam os delegados dos trabalhadores ir falar com o sr. Profet.
Estava pálido o Birkner: trazia o braço esquerdo ao peito, visto que fora ferido nos exercícios de extinção; aquilo doía-lhe e logo de manhã passara por casa do
médico.
Também no liceu havia ordem. Os rapazes lá estavam ; gritaram menos do que habitualmente, antes de tocar a sineta, e nenhum chegou atrazado. O aluno do sétimo ano,
Gúrzle, homem de confiança da sua aula, no segundo intervalo dirigiu-se a casa do reitor e, vermelho de confusão, gaguejante, pediu desculpa do que se passara. Antes
disso, todos se haviam agrupado em redor do jovem professor Kreibisch, que, previamente, preparara o reitor para receber as desculpas dos rapazes
e mostrar-se indulgente. Verdade seja que o liceu inteiro foi condenado a não ter feriado no sábado à tarde, mas, na verdade, podia ter sido pior, e eles não deixaram
de gozar à farta: o campeão alemão dos pesos médios estivera no seu campo desportivo e até os rapazes de treze anos haviam assistido a uma proibida sessão de cinema,
sem contar com o gratuito suplemento da fábrica; impressões que se gravariam com tal força que vinte anos mais tarde ainda haviam de reaparecer, sob a forma de lembranças
da infância, nas narrativas dos burgueses de Lohwinckel.
- Vai ver como isto acalma. - disse o presidente da Ccâmara ao seu homem de confiança, Haberlandt, tirando o chapéu e o sobretudo, cortando a ponta do charuto da
manhã e abrindo a "Folha de Aviso da Cidade e do Campo."-Sinto que tudo entra na normalidade.
A costureira Ritting dizia ao caixeiro do sr. Markus:
- Chegaram três cavalheiros desconhecidos num automóvel de Schaffenburg.
O próprio Markus, em atitude pouco própria para um merceeiro, estava encostado à porta da loja, com a cabeça tocando na vidraça e a contemplar o largo. O começo
duma poesia à maneira de Klabunde nascia nele, mas não chegava a dobrar o cabo difícil.
Um dia frio corre ao longo dos vidros, O carrocel mói a mesma melodia A girândola dos foguetes é negra e triste, As estrelas estão doentes...
As estrelas estão doentes... as estrelas estão doentes... mas agora era preciso rimar com qualquer daqueles versos e isso era o mais difícil.
A mãe perguntou pela terceira vez:
- Será preciso tornar a encomendar cebolas vermelhas?
- Sim. Vermelhas. Três quintais. Adeus menina Ritting.
- O sr. Markus também não sabe quem são os senhores que vieram no automóvel de Schaffenburg?
- Infelizmente não sei, menina Ritting... muito prazer em vela... Estrelas doentes...
- Não é de admirar que V. Ex.a tenha uma crise cardíaca com todas estas comoções. - disse o farmacêutico Behrendt à sr.a Profet que, vestida de preto e branca de
pó de arroz, estava sentada na farmácia, agitando um copo de água e tomando comprimidos.
- É melhor mastigar, minha senhora, começa assim a circular mais depressa e a opressão cessa imediatamente. A nossa terra começa a estar mais calma. Mas só uma catástrofe
conseguiu fazer voltar o juízo.
- Sabe que ontem partiram os vidros na ocasião em que estávamos no cinema? - perguntou a esposa de Profet, enquanto, queixosa, torcia a boca por causa do mau gosto
dos comprimidos. - Acontece tanta coisa quando as pessoas se encontram excitadas! Naturalmente é tudo inveja. E nós então que estamos tanto em evidência! Partiram
os vidros, imagine! O sr. Alberto teve que ir dormir para um quarto mais frio, ele que se preocupa tanto com a sua preciosa saúde!
- Preocupa-se assim tanto ? A gente calcula que um atleta não é nada disso. Ele é bem simpático.
- Oh, muito, muito! Uma criança, um santo, pode crer. Havemos de ter imensa pena quando se for embora. Mas o seu treinador já chegou!
E o gordo queixo da sr.a Profet começou a tremer só com o pensamento de que ia terminar a última aventura da sua vazia existência.
- Deseja que ponha vinagre, minha senhora? - perguntou à esposa do presidente da Câmara a manicura, que era a conscienciosa empregada do cabeleireiro Kuhamer. -
A sr.a presidente já sabe que chegaram três estranhos num auto vindo de Schaffenburg? Desceram no "Cisne Branco". O criado veio aqui, há pouco, fazer a barba e contou-mo.
Um deles, é decerto um célebre professor de medicina. Vieram de Berlim por causa do sr. Karbon.
-Oh! Mas isso é muito interessante. - respondeu a presidente, erguendo a cabeça, de cabelo molhado, acima
da bacia. -Um professor? Dar-se-á o caso de o nosso médico ter feito mais alguma asneira? Para mandarem vir outro?!
A manicura encolheu os ombros.
- De resto, a mulher do médico parece ter grande intimidade com o tal sr. Karbon, pelo que se diz.
Gesto significativo da cliente.
- Pelo menos, ontem no cinema...
Peter Karbon ainda estava em pijama quando os três cavalheiros chegaram. O primeiro, de largos ombros, tinha um rosto quadrado, bronzeado pelo ar e a testa branca
do oficial aviador: Erich von Mollzahn, o segundo dos quatro maridos que Leore Lania contara até então. Um gigante moreno de mãos peludas e tendo o osso do nariz
partido, de sotaque russo: o treinador de Franz Albert-Simotzky. Um cavalheiro esbelto, de estatura média, com um imprevisto e saliente abdómen, possuidor de olhos
inteligentes por cima da barbicha cuidada e decorativa: o famoso médico dermatologista, professor Raiffeisen.
Karbon conhecia vagamente o médico e o aviador e tratava por tu o treinador.
- Alugámos em Schaffenburg este chaço porque estávamos sem paciência para esperar pelo comboio. disse o jovem Mollzahn.-A Bibi deu-me que pensar, fiquei inquieto.
Vim de Holtenau o mais depressa possível e o seu irmão teve a amabilidade de me recomendar ao professor Raiffeisen. Cá estamos e o salvamento pode começar. Como
está hoje a Bibi?
-Hoje?... A Bibi?... ainda hoje não falei à Pittyevitte. - respondeu Karbon que, tendo a consciência turva, começou a olhar atentamente para as pantufas de cabedal
vermelho.
- Ah! - limitou-se Mollzahn a dizer.
Tinha vinte e seis anos e uns olhos claros, redondos e inquietos, de pássaro. Acrescentou depois:
- Quando a Bibi dá o sinal S. O. S. é porque realmente precisa de socorro.
O professor, tamborilando na vidraça, disse:
- Estou aqui para ser agradável ao irmão de
V. Ex.a Não há nada mais penoso do que a reparação duma operação que foi mal feita. Se essa senhora é nervosa, melhor será preveni-la de que vou dar um golpe em
toda a cicatriz afim de fazer uma nova sutura. Neste caso especial, compreendo perfeitamente a importância do resultado estético da intervenção, mas ...
O treinador Simotzky que, não se sabe como, se juntara à pequena coluna salvadora, achou que se preocupavam demasiado com a Lania. com as peludas mãos apoiadas nas
coxas, informava-se, com mal-humorada inquietação, acerca do boxer, dos seus nervos, apetite, sono, hábitos, estado de músculos e peso.
- Ah, meus amigos, meus amigos! - disse ele em tom sombrio - dentro de três semanas o meu rapaz deve subir ao ring com Kid Rowles. Como há-de ele estar em forma,
se tu começas por o atirar de encontro a uma parede e se, em seguida, ele come seis vezes mais do que deve ?
Carregado de todas estas responsabilidades, Peter Karbon pediu àqueles senhores que o esperassem durante alguns minutos na sala da hospedaria, enquanto se vestia.
Sentia-se sonolento e experimentava um certo peso e também descontentamento na boca do estômago. Entre ele e a noite do incêndio, duas horas dum sonho matinal e
transparente se haviam interposto. apeteceu-lhe um pequeno almoço inglês, com uma pratada de porridge para principiar. Em vez disso, queimou-se com o café quente
mas pouco substancial do "Cisne Branco".
Conversas telefónicas. O treinador com o boxer, o qual, tomado dum frenesi de impaciência e excitação, lamuriou ao ouvi-lo como o bebé que velha ama. Erich von Mollzahn
com a irmã de Raítzold a quem, respeitosamente, pediu para prevenir com cuidado a Lania, anunciando-lhe a visita do professor. Leore precipitou-se com veemência
para o telefone e disse ao ex-marido: "Tu és o mais gentil de todos, o único, o melhor, o... e fisicamente não estás mal de todo, mas quanto ao resto, mereces um
zero... Agora vem depressa... depressa, anda!"
Peter Karbon para a Leore;
- bom dia, Pittyevitte. Não tenho a consciência tranquila. vou logo ver-te com o mestre dos cirurgiões. Posso ir ? Dormiste bem ? Posso ir ?
Do outro lado do fio, o coração bateu apressado. Mas a resposta foi fria:
- Se quiseres... Se tens algum tempo a perder... Chamada telefónica para casa do dr. Persenthein
que estava na consulta.
- Alô! Aqui é o dr, Raiffeisen, de Berlim. Meu caro colega, vim a Lohwinckel, a instâncias do meu amigo Miguel Karbon, para examinar as vítimas do desastre e quis,
antes de mais nada, pôr-me em comunicação consigo, visto ser o médico assistente ...
- Quem está ao telefone ?
-O dr. Raiffeisen, de Berlim (não disse que era professor nem mencionou o título de Conselheiro). Como disponho de pouco tempo e como não quero ir sem o colega,
peço-lhe o favor de me acompanhar, ainda antes do almoço, a casa da doente. Como lhe disse, vim apenas porque o meu amigo Miguel, o irmão do Peter Karbon mo pediu.
De resto, estou persuadido de que o caro colega fez tudo que era preciso. Não sei se o meu nome lhe é estranho. Talvez lhe tenha ido parar às mãos o meu tratado
de cirurgia dermatológica...
O médico deixou logo o seu doente: era outra vez o operário Língel que estava sentado com ar melancólico e resignado, mostrando as gengivas podres. O dr. Persenthein
sentiu o coração a bater duma forma violenta. Deitou para longe a bata, lavou as mãos, vestiu o casaco de sempre e depois tirou-o, procurando outro melhor. Chamou
a Elisabete e quando ela chegou à escada, sentiu-se impossibilitado de lhe explicar o que se passava, beijou a Avelã e magoou-se, no cotovelo, contra um armário.
Estava cheio de medo como se fosse fazer exame. Foi-se embora a correr, mas voltou para trás buscar a pasta de que se esquecera, meteu dentro alguns papéis e, antes
de desaparecer, declarou que não havia consulta nem de manhã nem de tarde. Apesar da pressa com que se moveu, levou doze minutos a encaminhar-se para o "Cisne Branco"
onde ia
cumprimentar a sumidade médica que estava em Lohwinckel, sem que nada se tivesse modificado: o pântano dos patos lá estava por trás da igreja e ao pôr-do-sol as
cabras atravessariam as ruas.
- E o senhor teve a sorte de ficar sem nenhum ferimento? - perguntava o professor a Karbon, na sala da hospedaria, enquanto esperavam o dr. Persenthein e von Mollzahn
se ocupava com o carro de aluguer.
- Umas pequenas coisas em que nem vale a pena falar. Desloquei um ombro, meti duas costelas dentro, tive uma leve perturbação cerebral mas agora já está tudo em
ordem.
- Realmente? - admirou-se o professor. Falava o dialecto bávaro mas compensava esta particularidade com frases escolhidas, como que destinadas a serem impressas
- Feche os olhos. Não se mexa. Olhe para a frente, veja os meus dedos... assim ... agora para aqui.
- Dirigiu o raio da lâmpada de algibeira sobre a vista de Karbon, que estremeceu. Os reflexos funcionavam normalmente - Muito bem. Posso dar-lhe os parabéns por
nada de pior lhe ter acontecido.
Lacònicamente, Peter Karbon disse:
- O meu motorista morreu.
- Sim, é verdade. - respondeu o médico, em tom de pêsames.
Silêncio. A sombra conscienciosa e trabalhadora de Fobianke atravessou, muda, a sala da hospedaria. Vivera tranquilamente com os dedos no volante, o boné na mão
quando abria a porta, esperando, de noite, em frente das casas onde o patrão se divertia, exacto na rapidez,dominando a situação nas multidões. Karbon via ainda
o gesto com o qual ele lhe aconchegava a manta nos joelhos. Mais tarde, Fobianke pediria um posto com bomba de gasolina, uma casita com quintal, isto entre Rheinsberg
e Globsow. Morrera discretamente, sem ruído.
- Então como vai isso, Fobianke?
- Bem, obrigado.
- Sente-se mal?
- Agora já não.
Acabara! Fobianke ficava em Lohwinckel com a sua
coroa de contas e o moço Weichert, que havia tanto tempo desejava o lugar, substitui-lo-ia. Peter Karbon suspirou. Que diabo! Sentia-se triste, naquela manhã.
- Aí vem o médico. - disse, afastando-se da janela. Baixou-se porque havia uma data de mata-moscas pendentes do teto.
O dr. Persenthein já não estava possuído por ideias de assassinato em relação a Peter Karbon e este não se sentia nada culpado em face dele. Para dizer a verdade,
no momento em que, entre dois loureiros à entrada do "Cisne Branco" se encontraram, tinham a preocupá-los coisas bem mais importantes do que a mulher que os separava.
Persenthein estava emocionado por ir ser apresentado ao célebre colega, enquanto que Karbon, ao tornar a ver um automóvel sentira uma vertigem e um zumbido nos ouvidos,
apagada repetição do seu choque nervoso. Teve que fazer um enérgico esforço sobre si mesmo para entrar no carro e tomar lugar junto do impaciente sr. de Mollzahn.
- Estamos todos? Vamos lá.
- Onde está o Simotzky ? - perguntou alguém.
- Já foi a casa do pequeno. - responderam.
- Bem; vamos então. - disse Karbon, cerrando os dentes.
O cheiro a gasolina reanimava nele um leve mal-estar e uma impressão de enjoo. Mas aquilo passou.
Depois sentiu-se empalidecer e, como explicação, disse:
- Estava convencido de que nunca mais me sentaria num auto.
- Sei o que isso é. Quando me estatelei com o meu avião, pela primeira vez, também jurei não tornar a voar. Mas não se renuncia. Não há animal mais persistente do
que o homem.
- Ainda bem. - replicou Karbon.
Os dois médicos haviam-se sentado atrás. Depois de algumas hesitações, o dr. Persenthein caíra automaticamente na linguagem dos seus anos de estudante e de assistente,
prodigalizando os: "O sr. professor não concorda?... Qual é a maneira de ver do sr. professor?"
Quanto ao cirurgião, com a natural amabilidade do homem célebre prosseguia na conversa com simplicidade. Tomava a atitude que adoptava nas conferências onde a família,
pouco afortunada, vendo o caso desesperado, empregava os últimos recursos para ouvir a opinião duma notabilidade. O médico da Lania expôs o caso. Tratava-se dum
rasgão do lábio superior, servira-se de quatro agulhas e o resultado, até agora, era satisfatório...
- Talvez seja necessário fazer uma nova plástica da mucosa. - sugeriu o especialista.
- Creio que não.
- Deu um golpe na inserção da mucosa?
- Não, isso não ... É verdade que não pensei... balbuciou o dr. Persenthein, aflito.
- Nesse caso, decerto sobrevirá uma contracção na beira do lábio. - disse o professor. O colega ficou silencioso.
- Hum! - murmurou o de Berlim.
- Olhe, lá está já o Domínio - esclareceu Karbon. Mollzahn, no último momento, perguntou:
- A Bibi... diga-me: está feia?
- Acho que não. Mas eu não reparo muito. - respondeu Karbon, contrariado.
Vexava-o que aquele rapazelho se comportasse como se a Pittyevitte fosse sua propriedade particular e como se ele, Karbon, tivesse desprezado os seus deveres e as
suas responsabilidades. Ora ele nem sabia como havia de apresentar aquele aviador, caído do céu, ao sr. de Raitzold que estava pronto a saudar os recém-chegados,
no alto da escadaria. Situação embaraçosa: "Ó sr. de Mollzahn, o marido de frau Lania"? Já o não era. "O antigo marido"? Seria uma falta de tato. "Um amigo"? Mas
o amigo da Leore sou eu, pensava Karbon. De resto, a dificuldade foi transposta sem que ele tivesse necessidade de intervir porque os Raitzold e os Mollzahn descobriram
que tinham primos comuns, uns Dohna, da Silésia, não da descendência dos condes mas dos outros que deram funcionários públicos e inspectores das florestas.
Lania hesitara entre as duas máscaras que devia
apresentar. Dum lado, estava o grande pontífice da ciência: o que ele pensasse da ferida tinha uma importância decisiva e fatal. Do outro, imaginava como seria o
encontro entre Mollzahn e Karbon Q estas situações embrulhadas constituíam o verdadeiro elemento da sua alma ávida de sensações.
Poderia mostrar-se feia, desiludida, desesperada, esforçando-se por excitar a compaixão -com a perspectiva de conseguir despertar nos homens instintos bons e protectores.
Ou poderia pintar-se, mostrar-se linda, forte, indestrutível e sendo superior aos acontecimentos. Tinha qualidades para ser uma ou outra destas personagens, pois
tudo quanto fazia era metade verdade e metade mentira, como um copo de numerosas facetas que quebra a luz em muitos raios, fazendo-a cintilar. Por fim, pusera-se
em frente do espelho e chamara para a superfície do seu ser todos os recursos da beleza que deixara afundar-se durante a sua convalescença. Era -bem conhecia os
homens - mais animal, mais primitivo, mas também mais seguro.
Portanto, mostrou primeiro o lado intacto do rosto e teve a satisfação de ver nos quatro rostos a expressão que desejava. Até aquele médico provinciano, que parecia
de pau, se animou, vendo a, pela primeira vez, assim formosa.
- Creia, minha senhora, que nunca vi doente a quem uma ferida ficasse tão bem. - disse logo o professor no tom galanteador que empregava para as operações de gente
rica.
Depois, com uma sonda, pôs-se a tocar na chaga donde a crosta já tinha caído em vários sítios. Persenthein, com o céu da boca gelado pela agitação, dava explicações.
- Sob o ponto de vista académico, talvez não seja correcto descobrir a cicatriz logo ao quarto dia. Mas sobre esse ponto tenho umas ideias especiais, fiz experiências
na cura mais rápida das pequenas feridas não tratadas que confirmam - se o sr. professor quiser ouvir-me, dar-lhe-ei alguns esclarecimentos - ... que confirmam a
minha opinião.
A pele do crânio ficou rosada sob o cabelo fino.
- Hum ! - respondeu o professor, que observava um ponto de pus através dum monóculo que, na realidade, era uma lente destinada a melhorar a miopia do seu olho esquerdo.
- Vamos ver. Sim, sim.
Depois deste "sim, sim" houve um silêncio, durante o qual foi abolida a noção do tempo. O dr. Persenthein e Leore Lania sentiam os corações a bater numa tempestade
de angústia e cheios de louca esperança. Um delicado olhar do professor mandara retirar Karbon e Mollzahn, que estavam sentados na ante-câmara com o dono da casa,
bebendo vinho do Domínio e falando do tempo, com impaciência.
Lá em cima, no quarto de hóspedes, o professor tornou a pôr o monóculo no estojo de couro e meteu-o no bolso do casaco. Disse:
- Bem. Muito bem. Perfeito. Magnífico, minha senhora. Não pode estar melhor. Daqui a quatro semanas não se conhecerá nada. Talvez junto do nariz fique uma cicatriz
minúscula, um pequenino ponto branco, como a cabeça dum alfinete, mais uma originalidade no seu rosto picante. Devo felicita la e também ao meu colega. Quer que
chamemos os nossos amigos e confessemos quanto nos afligimos para nada ?
Sentindo a mão úmida, Persenthein hesitou em a dar ao professor, que lhe estendia a sua.
- Ò sr. professor está então de acordo .. o sr. professor acha que .. ? - balbuciou, descendo ao quarto de Jacinta Raitzold onde ela tinha preparado água e toalhas
para os médicos lavarem as mãos.
Ali, naquela fresca penumbra, enquanto ambos, com as mangas levantadas, lavavam as mãos que tinham ásperas e de unhas curtas, o professor dizia:
- Aquela pequena supuração não tem importância, meu caro colega, mas sabe? eu faço de preferência aquelas suturas com crina de cavalo, e dou-me bem com isso. De
resto, não fui eu que inventei isto, foi o nosso colega Zullauíí.
Sem se dar por isso, era um conselho, uma rectificação. E nesta conversa de médico para médico. Per-
sentheín encheu-se de. coragem e começou a contar a sua vida.
Falou de tudo ao mesmo tempo; da clientela, da impressão de estar enterrado num buraco, da sua resistência, da intoxicação saturnina e finalmente da sua Ideia: o
princípio biológico da modificação da predisposição pelo regime e da adaptação do organismo ao perigo, citando o caso Lungaus, quadros, notas, observações que metera
na algibeira e que mostrava agora, com dedos trémulos. Falou da erupção que curara e do reumatismo das trincheiras que fizera desaparecer, mencionou outros casos,
senão tão decisivos, pelo menos dignos de nota. Referiu se à clientela operária de Obanger e até à Avelã, assunto adorado e florescente produto das suas ideias sobre
as melhores regras de vida, Por fim, depois do professor ter lançado um olhar para o relógio preso a uma fina corrente de ouro, tendo declarado que tudo aquilo o
interessava muito e que, de resto, não poderia partir antes das cinco horas da tarde para apanhar em Schaífenburg o comboio da noite, o dr. Persenthein, num supremo
impulso, convidou o célebre colega para vir à casa do Angermann, primeiro para almoçar e depois para tomar conhecimento do seu trabalho. O professor, não só lera
o artigo do dr. Wolland no Jornal Médico mas até tratava por tu aquele médico de Mehl que fundara a escola de Friburgo, à qual Wolland fazia numerosas alusões. Não
achou trágico nem digno de desespero que lá se tivesse experimentado em grande escala a mesma terapêutica e que se houvesse obtido os mesmos resultados que o colega
obtivera aqui com tanto esforço, modestamente, e com tanta discreção. Chegou mesmo a pronunciar palavras calorosas:
- Pelo contrário. As minhas felicitações. O meu respeito vai todo para um médico que segue o seu caminho em semelhantes condições. Bravo, Persenthein ! Nós precisamos
de pessoas como o senhor. Se os vossos resultados estiverem de acordo, veremos... Falarei ao Wolland. Temos sempre necessidade de assistentes. Se os vossos resultados
estiverem de acordo...
Em seguida, declarou se pronto a almoçar na casa
do Angermann e a travar conhecimento com o caso Lungaus. O dr. Persenthein, doido de alegria, precipitou-se para o vestíbulo e pelo telefone, preveniu a mulher que
levava uma pessoa para almoçar. Entretanto, o professor fora buscar a sua maleta e despedir-se de Lania.
Encontrou-a entre os dois homens, encostada ao enorme e bizarro fogão de faiança que aquecia o aposento. Estava frio, até as rosas da Jacinta tinham um ar gelado
nas jarras. Ela falava acerca dos seus olhos:
- Imagina tu, Peter, que o Erich nunca reparou que os meus olhos eram diferentes! Mas tu viste-o logo no primeiro dia, o que não admira, porque és um "homme à femmes".
O meu olho direito é verde e o esquerdo é castanho. Gosto mais do verde mas o outro dá melhor na fotografia. E por isso que apresento sempre o lado esquerdo à objectiva.
Graças a Deus que será esse o lado sem cicatriz, sem a tal cabeça de alfinete.
Já gracejava sobre a ferida e esquecera tudo. Os homens ouviam-na falar.
- Estão contentes? Sim ou não? - perguntou ela.
- Sim. - responderam ambos. Mollzahn com uma veemência um tanto exagerada (na verdade, não desgostaria de vir encontrar uma Bibi desmoralizada e aflita, porque a
Bibi feliz, dominando a situação, tornara-lhe a vida bastante dura, mesmo nada agradável) e Karbon em tom de voz bastante triste.
- Então, Peter ? -exclamou a rapariga, tomando, de súbito, uma decisão de combate". Não a mostrou, mas no ar pairou um subtil fluído. Pegou-lhe nas duas mãos e colocou-as
na deliciosa covasita existente entre o peito e os ombros, local em que as mãos do homem, sentindo que estavam em sua casa, foram possuídas por uma vegetativa felicidade.
- Então, Peter? - repetiu, observando-lhe o ínfimo estremecer das narinas.
Ficou sabendo o que queria. Em gesto coleante afastou-se dele.
O professor entrou
- Tenho a impressão de ter sido absolutamente ridícula. Fiz tanto barulho com isto e afinal parece que
tudo corre lindamente. Então aquele horrível médico saiu-se bem ?
- É verdade, minha senhora. Pode agradecer-lhe e ir-se embora.
Já?
- Não corre o mínimo risco. Aqui, o conforto não
deve ser excessivo. Na minha qualidade de médico, proponho que o sr. Karbon tome já conta de si, empacotando-a muito bem e expedindo-a já para Baden-Baden.
- Karbon não pode. - replicou ela em voz ligeira e apressada.
- Porque não?-respondeu Karbon, também rápido. com a ponta da língua, Leore Lania tocava pensativamente na ferida.
- Já falei a esse respeito com o Franz Albert. - declarou, simplesmente pelo prazer de mentir.
Mollzahn informou que o boxer ia ser levado dali, pelo treinador, a toda a velocidade. Despedindo-se, o professor disse:
- O essencial é que esta senhora vá para Baden-Baden, o mais depressa possível.
Guardou para si o resto da frase que devia ser mais ou menos esta: ccom qual dos seus homens irá, isso é que me é completamente indiferente..."
- Acompanhar-te-ei a Baden-Baden. Tenho três dias de licença. - disse Mollzahn em ar autoritariamente conjugal.
- Muito bem. - concordou ela, deitando um olhar enviesado a Karbon, que se sentia inútil. - Dentro de oito dias devo estar em Berlim. Terei o prazer de te ver, Peter?
Karbon encolheu os ombros, pensando: "Coos diabos, lá começam as complicações!" A recordação da Elisabete apossou-se dele com uma força cheia de doçura.
Em baixo, soava o clackson. Impaciente, Persenthein não lhe tirava o dedo de cima. Jacinta Raitzold, nas suas calças da cavalariça, estava muito direita, ao lado
do carro.
- Vamos ter outra vez a casa vazia, - disse ela, mas
como tinha o cachimbo na boca, as palavras saíram mais em tom aborrecido do que sentimental.
- O que se passa entre ti e o Karbon ? - perguntou Mollzahn à ex-mulher, quando o outro desceu. - Está tudo acabado ?
Leore, de pé, iluminada pela luz vermelha que atravessava a vinha, replicou:
- Não completamente... nada de definitivo ...
O dr. Persenthein, francamente, não tinha a menor ideia sobre as dificuldades que causava à esposa, levando-lhe uma personagem notável para almoçar, e ainda por
cima, prevenindo só à uma menos vinte. Não havia dinheiro em casa, o fogão trabalhava mal e dos quatro pratos de sobremesa, a criada partira, precisamente naquele
instante, o único que não estava esbotenado. A Elisabete, que trabalhara até ao meio-dia num estado de semi-inconsciência, esperava obscuramente que qualquer acontecimento
exterior a decidisse a partir ou a ficar.
Acordou de vez, em face do alarme telefónico do marido. Durante meia hora, a casa do Angermann pareceu-se com um quartel general durante uma ofensiva, mas tudo ficou
pronto a tempo. A sr.a Bartels emprestou a loiça, o sr. Markus, invocado pelo telefone, no cúmulo da aflição e da falta de vergonha, emprestou dinheiro, cinquenta
marcos em metal sonante, a criada engomou os guardanapos, a Avelã foi buscar conservas, salsa, nata batida, o carniceiro mandou carne e o próprio reitor fez o sacrifício
de alguns copos de compota de ameixas e de bergamota. A Elisabete cozinhava, punha a mesa, lutava com o fogão, guarnecia a saladeira, tornava a acender o lume que
se apagara. A Avelã voltava a sair para ir ao "Cisne Branco" buscar duas garrafas "Costa do Sol", dos Raitzold. A Elisabete esfregava os dedos,com
pedra pomes, enfiava o vestido azul, reacendia pela terceira vez o fogão recalcitrante, lavava outra vez as mãos, batia a nata, provava os acepipes, ralhava com
a mulher-a-dias e, para seu próprio alívio, não tinha um momento livre para pensar em Karbon e no seu caso.
Chegou o momento impressionante em que cumprimentou o célebre hóspede.
O professor, mais cordial, deitara fora as maneiras pedantes e as frases destinadas a ser impressas, descobrindo o forro bávaro da sua personalidade. Beijou a mão
da mulher do seu colega que tentara cobrir o cheiro a cozinha e sabão com um pouco de água de Colónia, observou a Avelã com surpresa e grande prazer, comeu distraída
mas abundantemente, fez honra ao "Costa do Sol s e falou de medicina com o dr. Persenthein, duma forma tão conscienciosa que o diálogo pouco tardou em não encerrar
uma única palavra alemã.
Se não se atentar em que a saladeira estava rachada, a carne rija e em que a criada entrara de súbito, com chinelas e meias rotas nos calcanhares a pedir um esclarecimento
à dona da casa, murmurando em voz alta pode dizer-se que tudo correu lindamente. Logo depois do almoço, mesmo antes de acenderem os charutos, os cavalheiros retiraram-se
para o gabinete de consulta, afim de estudarem tranquilamente o caso Lungaus e a "ideia" do dr. Persenthein.
O médico reapareceu ainda uma vez, vindo procurar a mulher que estava a lavar a loiça. Apertou-lhe a mão, com muita força, e ficou silencioso, embora a sua intenção
fosse de lhe dizer muitas coisas decisivas. Murmurou algumas palavras acerca do café e do bolo para as quatro horas e desapareceu definitivamente com aquele olhar
transparente e o tremor dos lábios que caracterisavam o seu rosto por ocasião de partos, operações ou falecimentos.
- Eu vou... eu vou buscar o bolo.- disse Elisabete que tinha a impressão de ser chamada, urgentemente chamada para fora de casa, da rua ou de mais longe ainda. O
que devia ser uma ilusão dos nervos excitados.
- Queres que vá contigo ? - perguntou a filha.
- Não. - respondeu ela, tomada por absoluto desejo de solidão.
Pegou na rede das compras e saiu de casa, em purrou a porta contra a corrente de ar que soprava na torre do Angermann e, com a cabeça inclinada, atravessou, subiu
à praça do mercado e seguiu pelo passeio fronteiro ao "Cisne Branco, que conduzia também à padaria Jaennecke.
Peter Karbon que, em vão tentara dormir um pouco antes de almoço, estava de pé, indeciso, à janela do enorme e desconfortável quarto que ocupava na hospedaria. Pensava:
"Preciso que me aconteça imediatamente qualquer coisa. Não posso ficar eternamente neste buraco . Estava inquieto e sentia a nostalgia dos negócios, do escritório,
das conferências, viagens, movimento e actividade. Sentia-se tão sonolento que se sacudiu. E pensou ainda: "Tenho que falar àquele dr. Persenthein. Não é nada do
outro mundo. Tudo quanto há de mais simples .
Mas sentia que aquilo não era assim tão simples... mesmo nada.
"Gosto da Elisabete, amo-a", confirmava a si próprio, e, no entanto, aquele patético "Amo não era um pensamento definido mas um sentimento que se não deixava limitar
nem determinar. "Este médico deve ser moderno", murmurou, sorrindo com simpatia à lembrança das excentricidades de Persenthein. Os -homens não modernos eram, na
sua opinião, aqueles que se comportavam solenemente, que respeitavam os compromissos e se mantinham fiéis às leis. Pessoas modernas eram ele, o Mollzahn, a Pittyevitte,
a sua mulher, o irmão, o filho. Homens volúveis, profundamente convencidos da sua pouca importância, pessoas que se não tomavam a sério e com as quais se podia falar.
Tratava-se de saber se aquele Persenthein era moderno e se se poderia falar com ele.
i Elisabete! esforçou-se por pensar, com a intensidade dos dias passados - mas sem o conseguir.
-Que tempo horrível! -exclamou numa voz cheia
de censuras e em tom bastante alto, como se o tempo fosse o causador do seu arrefecimento. Embrutecido e indeciso, continuou a olhar para a rua.
Preocupando-se sempre com o prestígio do marido, já sabemos que frau Persenthein nunca saía à rua sem pôr chapéu. Na véspera, haviam-lhe visto os cabelos brilhantes
e descobertos, mas isso fora sinal de grande tumulto interior. Hoje pusera o chapéu e o casaco novo, aquele que tinha três anos, e não o velho, no qual esperara
o nascimento da filha. Este era cinzento e tinha botões de madrepérola. Lutando contra o vento, atravessou a rua.
"Estou farto desta vista" pensava Karbon, de mau humor. "Sempre os mesmos cães, o mesmo velho em mangas de camisa e suspensórios, a sair da casa, a tirar o boné,
a coçar a cabeça, a tornar a pôr o boné e a entrar outra vez em casa. E que aspecto arrepiante têm as mulheres desta terra!
Nessa altura dos seus pensamentos, Peter Karbon teve um choque. Oh! nada de esmagador nem trágico, uma simples bofetada, mas qualquer coisa que, por mais fraca que
fosse, não se podia apagar. Elisabete, que lá ia com a sua rede para as compras, não podia passar por ali sem fitar a janela dele.
Reconheceu-a mas, involuntariamente, recuou um passo, ficando tão imóvel como se o mínimo gesto pudesse trair-lhe a presença.
- Então? - murmurou. - Bem sabemos que é pobre. É claro que não é uma pessoa de sociedade. Comprar-lhe-emos tudo, tem um corpo magnífico, poderemos vesti-la como
uma princesa. Uma mulher que é encantadora, mesmo com um avental de cozinha!
Como sombras chinesas, vários rostos moviam-se no seu sub consciente. Ele próprio não percebia que a Elisabete, a mulher do avental se transformava na criada Betty,
do tempo em que era estudante, a primeira mulher que conhecera. O primeiro beijo na casa de jantar do médico, era o primeiro beijo na água-furtada da criada: a cama,
o candeeiro de petróleo a deitar fumo, um pequeno leque na parede, o retrato dum marinheiro e, por
fim, a escuridão. Tudo aquilo reaparecia como sob o efeito duma fórmula mágica.
-Mas isto que é? Que tenho eu? -disse em voz alta, como para acordar.
Durante um longo momento, ficou em pé no meio do quarto, bastante tempo: quási quatro minutos. Depois, pegou no chapéu e no casaco, desceu e colocou-se entre os
dois loureiros, diante do portão da hospedaria, decidido a esperar o regresso da Elisabete.
- Oh! - disse ela, detendo-se com a rede cheia de bolos. Tinha luvas. Todas as senhoras de Lohwinckel usavam luvas - e assim ele não pôde sentir o calor da sua mão
do qual esperava nem sabia o quê.
- Como se está hoje? - perguntou, acompanhando-a em passo vagaroso. Ela também abrandou o seu.
- Obrigada. Dormiu-se?-Ambos evitavam o você e o tu. A voz da Elisabete era mais alta que de costume, o que lhe fazia perder riqueza.
- Temos lá em casa a visita duma notabilidade. disse Elisabete mostrando os doces.
- É verdade; o sumo pontífice abençoou o seu marido.
A sobrancelha esquerda da Elisabete tornara-se independente e começara a tremer nervosamente.
- Calha bem termo-nos encontrado, não é verdade?
- disse ele. ;
- Era preciso.-replicou Elisabete, muito séria.
Ele pegou-lhe no braço. Caminhavam agora mais depressa porque o vento arrastava-os com turbilhões de pó, pedaços de papel e folhas amarelas, de tília.
- Oh, não! - exclamou ela, desprendendo-se aflita.
- Vem por aqui, há menos gente.
E levou-a, dando volta à igreja, para um sítio onde estavam abrigados do vento. Silenciosos, caminharam até à pequena arcaria de esteias funerárias e depois pararam.
Elisabete ergueu os olhos para ele e sorriu. Como era suplicante a sua atitude!
- Tira o chapéu. - pediu Karbon, tirando-lho ele mesmo e acariciando-lhe o cabelo que hoje estava menos brilhante.
Sem cessar de sorrir, ela arranjou coragem para falar.
- Queria dizer-lhe que... o que ontem se passou, não conta.
-Que dizes, Elisabete?
- Não conta. O que combinámos ... eu não posso sair daqui.
- Não? - perguntou ele, perdido nos seus pensamentos e contemplando-a. Só passados segundos, se tornou violento, exclamando: - Precisas de te libertar! Mas faltava-lhe
a chama. No entanto, continuou: Virás comigo, viveremos juntos, havemos de ser felicíssimos. - Mas havia notas falsas naquela sinfonia de promessas. Calou-se.
Haviam chegado à poça dos patos, onde o vento enrugava a luzidia superfície da água. Na outra margem, o varredor Schmittbold dedicava-se a um trabalho profundamente
outonal: deitara fogo a uma data de ramos úmidos que não se resolviam a arder.
Karbon abraçou Elisabete com veemência, querendo beijá-la.
- Não! - negou ela, em voz baixa, e com um gesto aflito, apontou para o varredor.
Karbon voltou-se para todos os lados e depois levou-a para as arcarias. Por trás duma coluna baixa que parecia nascer da terra, sem pedestal, antiga e maciça, tomou-a
nos seus braços. Depois ficaram ambos silenciosos, como se estivessem à escuta, como se estivessem à espera de qualquer coisa que não vinha: nem dela, nem dele.
Ainda o homem procurava na sua boca o gosto embriagador da noite anterior e já a mulher se desprendia.
- Vês como já passou? -e sorriu puerilmente.- Como se pode ser doido, não achas? Vou-me embora, dá-me o chapéu.
- E como vai isto continuar? Que se passará agora?
- perguntou ele.
- Agora, vais fazer as tuas malas e partes. Às cinco vão os outros, de automóvel. - E começou a andar, deu volta à igreja, aparecendo na rua principal, onde toda
a gente os podia ver.
- Queres então que eu me vá embora?
- Quero.
- Bem. Irei. Mas isso não significa nada. Escrever-te-ei. Voltarei. Virei cá buscar-te, Elisabete.
Ela ouviu-o, bebendo-lhe as palavras. Agora pensava. "É agora, agora, agora! Sentiu uma dor atroz, mortal. "É como se a gente morresse!" Andando sempre, continuava
com a atenção fixa no sofrimento que a roía.
- Não venhas. Adeus. Quero ir à igreja. - disse de súbito.
Não podia mais. Deixou-o ali, no portal, com os anjos de pedra, cujas bochechas ficou, perplexo, a contemplar.
Sentindo nitidamente que era impossível seguí-la dentro da igreja, permaneceu algum tempo, com aspecto ofendido, no sítio onde ela o deixara.
Por fim, disse em voz alta, com ar rebarbativo:
- bom. Vou-me embora.
Ainda hesitou e depois tornou a lutar contra o vento cheio de pó, em direcção ao "Cisne Branco".
E pensava:
"Que maneira de dizer adeus! Mas como estava comovente a lutar com as lágrimas! No fundo, não é uma amorosa. É preciso um amor formidável para contentar mulheres
deste género. E eu não sei se.."
Havia só dois lugares onde a Elisabete podia chorar à sua vontade: o altar da Virgem, na igreja, e o cubículo, lá em casa. Ainda tinha as pestanas molhadas quando
regressou. No consultório, os dois médicos estavam sentados e haviam fabricado uma inquietante quantidade de fumo de cigarro. As pastas em que estava inscrito o
famoso caso Lungaus enchiam a mesa, os parapeitos das janelas e até o chão. Persenthein estava iluminado por
um fogo interno. A sumidade também estava entusiasmada.
- O seu marido é uma pessoa excepcional. - disse o professor a Elisabete, quando ela trouxe o tabuleiro com o café e os bolos. - É um homem extraordinário. Duvida
disso, minha senhora? Realmente, seria um crime deixá-lo apodrecer aqui! É preciso, com mil demónios, arranjar-lhe um lugar, nem que seja um posto de assistente
num hospital...-terá, ao menos, material humano, poderá trabalhar! Nem todas as horas devem ser agradáveis com um indivíduo assim, não é verdade, minha senhora?
Desconfio que não. Mas é de homens destes que nós precisamos. Lutadores, pensadores, criaturas que preferem rebentar a renunciar à sua ideia. A ideia! exclamou,
erguendo um dedo doutoral. - A ideia é um tirano impiedoso e torna os homens duros. Dos outros temos nós demais, de todos esses parlapatões e borguistas, desses
Karbon e quejandos. Pessoas simpáticas, sem dúvida. Mas não é graças a eles que se avança. São precisos homens como o senhor, meu caro colega. Mas são raros. Muito
obrigado, minha senhora, pelo seu bom acolhimento. São horas de partir.
Elisabete mal pôde responder. Nem sequer ouvira tudo. Ficou de pé no seu posto, com o delicado e corajoso sorriso de dona de casa, até que o professor partiu. O
dr. Persenthein acompanhou ainda o seu célebre hóspede sem se decidir a parar com a apaixonante conversa de que estava privado havia muitos anos. A Avelã, agarrada
à mão do professor, acompanhou-os com toda a naturalidade.
Agora, a casa estava silenciosa, ninguém respirava nela. Perguntou a si própria se o entusiasmo do professor teria brotado do estudo das fichas ou se o "Costa do
Sol" também teria contribuído. Tudo o que ele dissera, lhe parecia um tanto bizarro, mas, ainda assim, acendera uma pequena luz dentro de si. "Kola! Kola!" pensou.
Gritou mesmo o nome como à procura de alguém que tivesse perdido. Levantou-se, foi ao consultório onde o ar do marido, o seu trabalho e o seu feitio estavam prisioneiros.
Ficou em frente do esterili-
zador, viu o seu rosto desfigurado pelo metal que o reflectia e tentou pensar. Mas ainda não estava tudo ordenado, dentro de si. "Isto há-de voltar" consolou-se.
Levou o tabuleiro para a cozinha, lavou as chávenas,
inscreveu uns algarismos no seu livro de contas. Desceu
.a cave, empurrou a aranha Catarina para o seu canto,
varreu as teias e deu lustro às torneiras metálicas. O
tempo passava, ia andando, andando. Podia uma pessoa
deixar-se ir à deriva, como num rio... amanhã, dentro
duma semana, dali a um mês e a um ano, tudo estaria
melhor. Subiu e foi buscar roupa para passajar: ficara
muita da semana passada.
Bateram à porta.
Não; não havia nada que justificasse aquele alvoroço no peito e na cabeça. O Markus estava no limiar, com a caixa do violino.
- Boa tarde, minha senhora. - disse simplesmente. Tenho a impressão de que esta tarde será agradável tocar algumas músicas.
- Porquê? - perguntou ela.
- Não sei. Pensei assim: a música faz bem.
- Acha?-Nesta interrogação havia um certo reconhecimento. Subiu a escada, na sua frente, até à sala.
- Sabe, minha senhora ? Vi há pouco o carro. Foram todos juntos buscar a actriz ao Domínio; o?seu marido também ia. Pensei então que estaria só em casa e talvez
aborrecida. Eles vão-se embora e nós ficamos. Tanta agitação, tanto turbilhonar e afinal nada nos resta; é triste. Pensei que teria também esta impressão... e que
talvez o mesmo pensamento a afligisse...
- A mim, não. - declarou Elisabete, dominando-se. Mas abriu o piano.
-Tantos meios-resultados! - e Markus começou a tirar o violino para fora da caixa, extraindo-o, em seguida, duma seda cor de canela que cheirava esquisitamente a
café. - Agora que tudo passou, que nos resta em Lohwinckel ? Os operários conseguiram um pequeno aumento de salário, mas não vão para longe. E os rapazes do liceu
têm licença de fumar; é verdade, o reitor cedeu,
mas só ao domingo e não em público. Dizem que os Raitzold ficam no Domínio. Mas por quanto tempo? Até ao próximo pagamento de juros... O sr. Profet está mais humano.
Mas são meias soluções que enojam. Nem felicidade completa nem completa infelicidade. Quer dar-me o la, minha senhora?
Elisabete, primeiro deu o la sozinho, depois a consonância em ré menor. Não saiu harmoniosa e o seu tom era mais magoado que triste. Voltou-se um pouco para o Markus
e disse:
- Tenho que mandar afinar o piano.
Era uma frase que já pronunciara cem vezes: cada vez em que começava a tocar. Ele já a não ouvia. Continuou a falar:
- Por exemplo, aquela Lania. Nunca mais tornará a ser linda como foi. Mas também não será bastante feia, suficientemente desfigurada para que seja tomada ao trágico.
Estive quási apaixonado por ela, mas depois pus-me a reflectir. Quási, vê? É tudo metade. Só o pobre Fobianke morreu inteiramente, completamente e para sempre, como
escrevem aqueles imbecis da Folha de Aviso, de Dusswald. Que diz, se tocássemos a nossa sonata de Brahms, a sonata dos Mestres Cantores, em la ?
E o sr. Markus colocou o violino com o seu veludo cheirando a café e cor de canela, sob o queixo, e inclinou o rosto míope, inteligente e sensível de judeu, sobre
o murmúrio consolador das notas.
- Não tenho feito exercício. - disse Elisabete, observando as mãos sobre as teclas. Notou uma pequena ferida, proveniente da inábil tentativa de tratar as unhas.
O relógio da igreja dá cinco horas, com dez minutos de atrazo. Enquanto o Markus toca, passa em baixo
um carro, que sai pela porta do Angermann Pode ser aquele auto ou outro qualquer. A Elisabete tem vontade de ir a janela mas não vai, faz força nas teclas do piano
até já não ouvir o motor. A casa treme leve mente, cai a caliça.
Prau Persenthein acaba por se levantar. Pega no pano do pó e, conscienciosamente, limpa o montinho de cal. Sorri sem grande custo.
Volta para o piano e diz:
- Fez bem em ter cá vindo hoje, Markus.
A vida continua numa leve cadência em lá maior.
Vicki Baum
O melhor da literatura para todos os gostos e idades