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A LOURA HUBERTA / Alexandre Dumas
A LOURA HUBERTA / Alexandre Dumas

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Tendo vivido na época mais brilhante do romance francês, o que vale dizer, com propriedade, genericamente "do Romance", Alexandre Dumas (nascido em 1803, morto em 1870) foi o homem de letras, cujos livros mais se venderam e que mais dinheiro ganhou com eles.
Dramaturgo e romancista popular do Romantismo no seu apogeu, não o diminuiu a concorrência dos gigantes desse período, os Victor Hugo, os Vigny, os Musset, os Mérimée, uma George Sand. Nem, com o dealbar do Realismo — que ele viu chegar sem abdicar da sua exuberância e derramamento românticos — o afetaram as obras de gênios como as de Balzac e Stendhal.
O segredo da aceitação de Dumas como romancista, tanto no seu tempo, como depois e até aos nossos dias, está na sua "verve" de narrador fluente, vivo; na agilidade (que lhe vem da experiência como autor teatral) dos seus diálogos, na resistência a praticar uma literatura de alto estilo e de profundo estudo das paixões humanas. Sem embargo do que, não se lhe pode negar a propriedade de uma linguagem romanesca de eficiência funcional e de um dom de criação de tipos novelescos tão imortais como um Dom Quixote, um Pai Goriot, um Jean Valjean, um Robinson Crusoe, um Tristram Shanéy, aos quais não são inferiores em popularidade — e até mesmo superiores, observadas evidentemente as considerações de tratamento de ordens psicológica, sociológica e estética — os D'Artagnan, Athos, Porthos, Aramis dos famosíssimos "Os Três Mosqueteiros", "O Visconde de Bragelonne" e "Vinte Anos Depois9', e o Edmond Dantes do "Conde de Monte Cristo".
Em dois dos mais prestigiosos historiadores da literatura francesa — René Jasinski e Philippe van Tieghen — encontramos o epíteto "endiabrado" a qualificar amaneira de contar de Alexandre Dumas. Para Jasinski a sua "verve" é endiabrada; para Van Tieghen é endiabrado o movimento — a ação, o desenvolvimento novelesco — que envolve e carrega o leitor no seu torvelinho.
De fato, quem lê Dumas tem a sensação de ser arrebatado no velocíssimo ciclone dos acontecimentos dos seus romances. Que neles predominam a ação, a sucessão dos fatos, o dinamismo das suas personagens, a agilidade dos seus diálogos. Sem que essa agitação resulte em esquematização, em tratamento superficial das personagens, as quais, embora rodeadas do "manto diáfano da fantasia" romântica, se constituem em protótipos existenciais: e tal é iniludìvelmente o caso dos três mosqueteiros, que acabaram sendo quatro, e do mártir e justiceiro Monte Cristo.
 Pouca gente, de meados do século passado até nossos dias, vale dizer, mais de cem anos, terá deixado de ler os seus romances, a grande maioria históricos; pelo menos "Isabel de Baviera", "A Rainha Margot", "A Dama de Mansoreau", "Os Quarenta e Cinco", a trilogia dos mosqueteiros ("Os Três Mosqueteiros", "Vinte Anos Depois" e "O Visconde de Bragelonne"), "José Bálsamo", "O Colar da Rainha", "O Conde de Monte Cristo", "Os Moicanos de Paris", cada um dos quais traduzido para, todas as línguas civilizadas e editado dezenas e mesmo centenas de vezes. E não são poucos os que se deleitaram com as suas peças teatrais, que subiram a 91, entre as quais avultam Antony, "Henrique III e sua Corte", "Convite à Valsa", "A Torre de Nesle".
Este livro prova a extraordinária versatilidade de Dumas. Conhecemo-lo em geral como emérito cozinheiro do aventuroso e agitado, do violento e apaixonado, do enredado ao imprevisto, do pérfido e do vingativo — material e condimentos para, pantagruelescos pratarrazes do "boillabaisse" que é a história da França dos fins do Medievo do Renascimento. E mal o sabemos capaz de dinamizar uma história de ternura, dedicação e amor como é esta em que um triângulo de expressões as mais delicadas da alma humana — o velho Tio Ruína, a loura Huberta, e o jovem Valentim — contém na sua área espiritualmente inviolada tudo quanto de bom, de digno, de .sensível e ingênuo pode sobreviver, não obstante a agonia e a morte físicas, na alma coletiva dos humildes.
Diurnas, com esses três tipos, oferece três símbolos românticos: o do amor paternal, configurado no Tio Ruína, tantas vezes tão próximo do extraordinário Valjean de "Os Miseráveis" a defender a felicidade e a honra da neta; o da amorosa ludibriada não apenas pelo sedutor, mas pela própria inexperiência, que lhe não permite auscultar o coração; o do enamorado sem esperança, que se sacrifica pela felicidade da amada.
Este romance, que é mais o romance das dedicações do que mesmo o do amor, não é, entretanto, piegas, lamentoso, arrastadamente perdido em arrebatamentos de namorados. O "tonus" de Dumas fá-lo dinâmico, agitado, peripecioso, muitas vezes espirituoso e não raro respeitosamente malicioso.
Com isto, evita o monótono, sem, no entanto, incorrer no dramalhão tão do gosto dos românticos de baixa extração senão naquilo e onde as escolas de Hugo, de Staël e Lamartine o exigem como conseqüência da própria ação fissionada. Mesmo quando, porém, em obediência a tal exigência de escola, Dumas acolhe o dramático exacerbado, fá-lo com um poder descritivo e representativo tal, que a verossimilhança se impõe soberana, salvando a cena de qualquer ridículo.
"A Loura Huberta" é sem dúvida uma leitura que se impõe para um conhecimento mais íntimo de um dos romancistas mais romancista que conhecemos.

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CAPITULO I
Antes de lançar-se no Sena, em Charenton, o Marne torce-se, dá uma volta, dobra-se sobre si mesmo, semelhante a uma serpente que se aquecesse ao sol; aflora à margem do rio, que o vai absorver; depois, num brusco desvio, corre cinco léguas para mais longe. Finalmente, aproxima-se, novamente, para afastar-se de novo, como se não se se decidisse senão a contragosto, casta náiade, a abandonar as suas margens umbrosas e verdejantes, indo misturar suas águas de esmeralda ao grande esgoto parisiense.
Num dos meandros, que acabamos de assinalar, ele forma uma península perfeita, da qual o burgo de São Mauro ocupa o istmo, e cujo contorno ladeia as terras e as aldeias de Champigny, de Chennevières, de Boneuil e de Créteil.
Essa península, outrora, pertencia quase inteiramente à ilustre casa de Condé, como indicava o seu nome de Ia Varenne, um dos numerosos lugares de prazer dessa raça guerreira, na qual o gosto ou antes o frenesi da caça se transmitia de pai para filho.
O resultado desta disposição especialíssima era que, apesar da vizinhança da cidade, apesar das aglomerações de indivíduos e das construções novas que se iam conglomerando no resto do arrabalde, a península de São Mauro conservou-se deserta. As lebres, os faisões, as perdizes, protegidos por essa larga cinta de águas profundas contra redes, laços, armadilhas e outros engenhos usados pelos caçadores, aí viveram durante muito tempo num sossego perfeito.
Depois, a Varenne foi vendida, na qualidade de propriedade nacional.
Portanto, na data em que começa esta história, duas ou três casas isoladas, algumas herdades, cedidas a rudes camponeses, que semeavam o trigo, viam crescer as gerações de coelhos e recebiam indenizações, as cabanas dos guardas e a choça do encarregado de passar o vau de Chennevières, constituíam os únicos habitantes da península.
Ainda assim, uma dessas casas subsistia apenas por um favor especial de monsenhor, o príncipe de Condé.
Era a moradia de Francisco Guichard, por alcunha o "Ruína".
Este campônio tinha uma genealogia. Verdade seja que não estava assente em pergaminho, que não estava esmaltada de arabescos, floreada de escudos armoriados. Não, a genealogia de Francisco Guichard era, simplesmente, tradicional, como a de Abraão, mas nem por isso deixava de ser autêntica, pois era religiosamente transmitida de pai para filhos, encarregando-se estes de, a cada geração, acrescentar-lhe um novo capítulo.
E todos se haviam escrupulosamente incumbidos deste piedoso dever (o que Francisco Guichard alardeava com certo orgulho), ao contrário de certos gentis-homens, que se veriam embaraçados para dizer, como ele podia afirmar com toda segurança, como haviam falecido seus avós, e isso durante onze gerações.
É verdade, também, que os Guichard haviam sempre demonstrado uma espécie de predileção por um gênero de morte excepcional e, enquanto tinham vivido, haviam manobrado tão sabiamente que tinham todos conseguido deixar este mundo* de maneira igual, de sorte que, quando alguém interrogava Francisco Guichard acerca do citado problema, ele invariavelmente respondia: " Enforcados! Enforcados! Enforcados!
Efetivamente, tinham sido todos enforcados, desde Cosme Guichard, no reinado do bom rei Luís XI, até José Pedro Guichard, que teria sido o derradeiro pendurado na forca.
Não se devem, todavia, julgar severamente demais os desenlaces trágicos dessas onze existências, dados os princípios e costumes dos Guichard. Se se enforcava um Guichard, era mais a lei que deveria envergonhar-se do suplício, do que o paciente que, com sobras de razão, podia apelar para o julgamento da posteridade.
Os Guichard nasciam caçadores furtivos, assim como os Condé nasciam caçadores oficiais. Entre quatro e cinco anos um pequeno Guichard olhava de soslaio, com olhos brilhantes de cobiça, os coelhos do rei, que vinham comer as couves de seu pai; entre sete e oito anos, começava a perguntar a si mesmo se, em virtude da quantidade de legumes sucessivamente armazenada no ventre do animal, não teria algum direito ao coelho que os encerrava; entre oito e nove anos, chegava à convicção desse direito e à resolução de reaver essas couves a todo custo e, daí, armar um pequeno laço de fio de cabelo ou de latão; entre nove e dez anos, tornava-se, sabe Deus como, proprietário de uma arma de fogo; aos doze anos, caçava a laço, às escondidas; aos vinte, assassinava, conforme o progresso atingido no fabrico das armas, tudo quanto lhe passasse ao alcance do arco, ou da espingarda; finalmente, entre trinta e quarenta anos, o carrasco trepava-lhe nos ombros.
Não deve supor-se, entretanto, que a rude lição que os Guichard recebiam, uns após outros, fosse perdida para a posteridade dos incorrigíveis caçadores furtivos. O suplício deixava após si uma impressão salutar, que persistia durante a geração seguinte. Ordinariamente, o filho do enforcado detestava os coelhos e desmaiava só à vista de um desses inocentes animais.
Era incapaz de dirigir contra eles a ponta de uma flecha, o virotão de uma "arbaleta"' ou o chumbo de uma espingarda, ou de preparar-lhes um laço com o menor fio de latão. A morte trágica de seu pai tornara "tabu" tudo quanto era caça de pêlo ou de penas; mas como ao mesmo tempo lhe era impossível desembaraçar-se dos instintos de pilhagem, inerentes ao sangue dos Guichard, vingava-se nos peixes.
De caçador furtivo, que era o pai, convertia-se em vagabundo dos rios e, quando não encontrava presa suficiente, passava dos rios para os tanques, dos tanques para os viveiros, dos viveiros para os fossos dos castelos, cujas carpas monstruosas, duas ou três vezes centenárias, exerciam sobre sua imaginação o efeito do ímã sobre o ferro, e as coisas, pêlo, penas e escamas, arranjavam-se sempre de tal maneira que, um dia, um juiz qualquer, um preboste ou um bailio dava ao filho o que lhe restava receber da herança do pai, ou seja, a corda que servira para enforcá-lo.
E foi assim que, de piratas do bosque a piratas de água doce, os Guichard haviam chegado a Francisco, que vivia na nossa época e do qual vamos ocupar-nos.
O pai de Francisco fora o último representante das pessoas, sujeitas à talha e à corvée, enviadas ao patíbulo, cujo privilégio o feudalismo generosamente havia concedido à sua família. Era aos animais de pêlo e de penas, aos quadrúpedes e às aves que ele havia declarado guerra. É verdade que, não podendo desmentir o seu sangue, nem infringir os regulamentos da polícia a respeito da caça, singularmente abrandados depois de Luís XVI, ele fora obrigado a acrescentar às suas vítimas peludas ou emplumadas um pobre diabo de bímano, a pretexto de que este, usando uma placa e um tricórnio na cabeça, o ameaçava de levar para a cadeia. Mas, enfim, como a causa primária desta desgraça permanecesse a mesma, Francisco, fiel à tradição, jurou guardar-se de pecado tão funesto, como era o da caça às escondidas, e de arma tão perigosa, como a espingarda.
Encontramo-lo, pois, estabelecido nas margens do Marne, em vez de sermos obrigados a procurá-lo ao fundo de uma floresta, como necessário seria se seu pai tivesse tido a vocação da pesca em lugar da mania da caça.
Mais ou menos três anos e meio após o trágico fim de seu pai, Francisco Guichard plantou a sua tenda na Varenne.
Levado pela conscrição anterior, chegava ele de Mogúncia, que havia defendido contra as tropas de Frederico Guilherme. Fizera parte dos soldados franceses, cuja capitulação permitia que deixassem a cidade, com as honras de guerra, sob a condição de não servirem durante um ano.
Para ir de Mogúncia a Saumur era necessário atravessar a França.
Quando batia o tambor, e o clarim soava, quando ecoava a Marselhesa, Francisco Guichard, façamos-lhe justiça, estava à altura de seus companheiros de armas, mas, por desgraça, por mais encarniçada que seja uma guerra, não é possível continuar lutando sempre, e a reflexão nos dias de descanso era fatal ao seu ardor.
As alucinações aproveitavam-se disso. Era-lhes, então, presa fácil aquele pobre cérebro.
Francisco Guichard, sob o império dessas visões, esmorecia, dia a dia, no seu entusiasmo pelas escaramuças, emboscadas ou combates.
Por isso, quando os batalhões de Maiença passaram por Lagny, Guichard, ao atravessar a ponte, lançou para o rio, por «cima do parapeito, um olhar repassado de desespero e de concupiscência, Eram sete horas da tarde, e, para nos servirmos de um termo de pesca, os peixes bloqueavam, quer dizer, traçavam à superfície do rio, brincando e "ceando", pequenos círculos, cuja multidão dava uma alta idéia do número dos que os produziam.
Após esse suspiro, sobreveio-lhe certo escrúpulo, cuja causa não pôde senão honrar o seu caráter até à mais remota posteridade.
Achou que a Convenção agia um pouco levianamente a respeito da capitulação e concluiu que a situação tinha sido muito mais absoluta do que julgara a célebre assembléia. Resolveu, pois, aliviar o seu chefe, o general Kleber, de um décimo milésimo de sua responsabilidade; fingiu reajustar uns farrapos sem cor e sem forma que lhe serviam de calçado, deixou a coluna passar, escondeu-se debaixo do arco da ponte, aí permanecendo até desaparecer de seus olhos o derradeiro retardatário. Atirou a espingarda ao rio, assim como o seu chapeuzinho de flâmula vermelha; com o canivete cortou as compridas abas do casaco, vestiu uma camisa de algodão por cima daquela espécie de vestimenta, e, mais ou menos assim disfarçado, desceu para a corrente, unicamente preocupado com reconhecer ao luar os lugares que podiam ser abundantes em peixe.
Nesses tempos de crise, a polícia sanitária não era nem severa, nem muito cuidadosa, com relação aos desertores. Outros cuidados absorviam suas atenções.
Francisco Guichard não foi incomodado a respeito da sua deserção.
Lego no dia seguinte em que tinha dito adeus a seus heróicos companheiros, estava ele sentado ao pé de um salgueiro, que ainda hoje pode ver-se, a montante do vau da Varenne, mãos firmes numa cana de pescar, de comprimento mediano, olhos fitos na rolha que parecia valsar à flor d'água, no redemoinho que nesse ponto forma um pequeno ancoradouro. Essa rolha servia de indicador a uma linha extraída de um cordel.
Parece que o cheiro da pólvora, de que as mãos do ex-bravo não podiam deixar de estar impregnadas, não re-pugnava muito aos peixes, pois, dentro de poucas horas, Francisco Guichard realizou uma colossal pescaria de trutas, percas, dourados, carpas, que naquela mesma noite foi vender ao dono de uma hospedaria em Vincennes.
Esse negócio foi para Francisco Guichard o começo da fortuna, pois vendeu tanto mais facilmente quanto, naqueles tempos de escassez, os comestíveis estavam pela hora da morte. Com o produto da venda comprou algumas centenas de anzóis e uns novelos de fio. Estendeu as linhas de noite e os dourados, as carpas e as enguias vieram pendurar-se às dúzias. Colheu uns feixes de vime nas cercas próximas, fabricou algumas nassas, e estas multiplicaram tão bem os produtos da sua indústria, que, dois meses mais tarde, após ter abandonado o serviço militar, já podia comprar um barco.
O barco tornou-se o alvo de toda a ambição presente de Guichard: primeiro, porque com ele não podia demorar a ter bastante dinheiro para adquirir o que os pescadores chamam os seus utensílios, isto é, redes e tarrafas de todas as qualidades; depois, porque o outono estava aí e não lhe era indiferente ter outro abrigo que não aquele tronco carcomido de salgueiro que o abrigara até então. Para ele, não havia coisa melhor que um bom barco de madeira de carvalho, onde pudesse deitar-se e dormir, embrulhado num cobertor de lã, bem quentinho.
Durante três anos, o ex-soldado não possuiu outro teto, outro dormitório, outra cama...
Mas era um homem feliz! Como podia deixar de o não ser?
Era evidente que, durante séculos, o velho sangue celta continuara a correr, sem mistura, nas veias de todos os homens dessa raça. Era ele que conservava os instintos de altiva independência e selvagem liberdade que, do fundo da alma, protestavam contra a civilização e que só poderiam satisfazer-se com um retorno à vida primitiva. A Providência, mau grado todas as probabilidades, concedera em pleno século XVIII, ao último dos Guichard, aquilo que seus avós haviam tão baldadamente desejado: a quatro léguas de Paris, arranjara para ele um deserto, do qual podia considerar-se tão completamente rei, como Robinson na sua ilha.
Efetivamente, durante esses três anos, só por mero acaso Francisco Guichard topava no rio com algum burguês de São Mauro, ou algum cidadão de Charenton que viessem, por um dia, fazer-lhe vã concorrência no rio. Ele era bem o único senhor, desde Champigny até Créteil. E, enquanto durou a República, o Diretório e o Consulado, as comunas que, à falta de amadores, haviam renunciado arrendar as suas pescarias, pouco pensaram em perturbar o intruso no uso e gozo de seus "privilégios", tanto que ele não pôde imaginar que não fossem eternos.
Um dia, quando pescava carpas no meio das ilhas, ergueu a cabeça e avistou entre os salgueiros uma linda donzela que lavava roupa acocorada à beira d'água, cantando uma cantiga alegre.
Os bonitos braços, a cara risonha, a voz provocante da jovem lavadeira despertaram em Francisco Guichard distrações até então desconhecidas.
Sem pensar no que estava fazendo, pegou na vara às avessas e com o cabo rasgou a rede, de sorte que, ao tirá-la da água, os peixes pescados caíram uns atrás dos outros pela larga brecha que o seu desastrado gesto preparara, retornando, buliçosos, às suas úmidas habitações.
A importância e a realidade do prejuízo reconduziram Francisco Guichard aos seus instintos materiais. Sentou-se no barco, tirou do bolso fio e lançadeira e tratou de consertar m rede.
A moça continuava a cantar, batendo o compasso com a roupa, e a atenção do pescador ficou de tal maneira absorta que a lançadeira, não sendo metòdicamente dirigida, traçou no tabuleiro arabescos fantásticos.
Ele dedicava-se à pesca mais por paixão hereditária, se é permitido arriscar o termo, do que por amor do ganho; mas a esquisita emoção, que experimentava naquele momento, triunfou de uma e outra coisa. Francisco Guichard, o rude pescador, para quem até então a pesca de uma carpa ou de uma sôlha resumira os maiores prazeres, mergulhou, ao som da voz da moça, em profundos devaneios. Foi com uma espécie de timidez que afastou os ramos da árvore para entrever o rosto da jovem, quando esta, batendo a roupa na prancha, erguia a cabeça, o rosto afogueado, enquanto os seus lábios e os seus olhos estavam todos entregues à expressão da cançoneta.
Aquele êxtase de Francisco Guichard durou até a moça torcer o seu derradeiro guardanapo.
Então, ela juntou na sua cesta o trabalho do dia e dis-pôs-se a carregar o fardo nos ombros.
Com isso é que não contava Francisco Guichard, que teria ficado a noite inteira a escutar aquela, cuja voz o tinha encantado. Não podia compreender que uma pessoa que cantava tão bem tivesse outra ocupação senão a de cantar.
Desceu lentamente o gancho até à margem e, impelindo bruscamente o bote, fê-lo deslizar com tamanha força e rapidez que num só impulso atravessou o rio de lado a lado.
Voltando-se para apanhar a sua prancha de bater roupa, a lavadeira, por seu lado, avistou o rapaz que a contemplava de boca aberta e olhos pasmados e se havia aproximado tão silenciosamente que lhe causou o efeito de uma aparição.
Soltou um grito, quis apanhar a cesta e fugir, mas a sua emoção foi tal que tropeçou e lá se foram, rolando pela margem, os panos de variegadas cores...
— Está vendo o que fez!? — exclamou a lavadeira, dirigindo-se a Francisco Guichard, que acabava de saltar em terra. — Bonito, não acha?...
Roupa toda enxaguada!...
O ex-bravo mostrou, então, uma fisionomia tão transtornada e parecia tão confuso pelo acidente do qual fora causa involuntária, que, mal o olhar da moça o fitou, e já a expressão do rosto imediatamente se lhe modificava de maneira sensível.
As lágrimas, que no primeiro momento de contrariedade haviam subido aos olhos da moça, aí se demoraram; mas seus lábios, pondo a descoberto trinta e duas pérolas, entreabriram-se numa risada alegre, de sorte que poderia julgar-se que ria um excesso de alegria que a fazia chorar.
A alegria da lavadeira acabou por desconcertar Francisco Guichard.
Parecia tão contrariado que ela se compadeceu e, Impondo-lhe, como castigo, ajudá-la a reparar o acidente que linha provocado, infundiu-lhe um pouco de coragem.
Ajoelhou-se, então, Guichard na areia e começou a enxaguar a roupa tão habilmente como poderia ter feito a própria lavadeira.
Esta, porém, já não cantava, tagarelava, e Francisco de bom grado teria aceitado uma tarefa quatro vezes maior, para conseguir a esmola de uma pequena canção.
Vendo que tal não acontecia, resolveu provocá-la: — Dize-me uma coisa, cidadã, como é que, cantando as Canções mais bonitas que jamais passaram pela garganta de uma mulher, não conheces esta?
Ó Ricardo, meu rei, O universo te abandona!
Só eu na Terra Me interesso pela tua pessoa...
— Quem foi que te disse que eu não a conhecia? — respondeu a lavadeira.
— Bem; estive duas horas, talvez mais, a escutar-te, porque o tempo passou tão depressa que sou incapaz de dizer desde quando eu estava ali, e não a ouvi.
— Se a não ouviste, cidadão, foi porque eu não a quis cantar.
— Está bem, cidadã, como, desde que minha mãe deixou este mundo, não ouvi ninguém mais cantar essa canção de que eu tanto gostava, quando pequeno, se tu quiseres cantá-la para mim eu me comprometo levar tua cesta até ao alto da colina de Chennevières.
— Não faço negócios dessa espécie, cidadão Guichard!
— Então, tu me conheces?
— Ora! Pescadores e lavadeiras, parece-me, são primos-irmãos...
— Então, vamos ao canto, sim?
— Muito obrigada! Uma cantiga aristocrática que faria que eu fosse presa, se a ouvissem cantar. Ajude-me a erguer a cesta, sim? Uma canção como essa só se canta a portas fechadas, a cabeça no travesseiro, em voz baixa, ao ouvido do marido da gente. Adeus, cidadão Guichard!
O pescador viu a moça desaparecer por entre os troncos dos choupos.
Quando ela atingiu as vinhas da colina, virou-se, para dizer ao seu admirador um adeus cheio de malícia. O rapaz não arredara pé do mesmo lugar.
Ficou, assim, muito tempo e, embora tivesse algumas centenas de anzóis preparados, não foi, conforme era seu propósito, armar as linhas.
Reconduziu o seu bote ao ponto onde, durante tanto tempo, ficara parado, a escutar a moça. Logo que escureceu, deitou-se; mas não dormiu e toda a noite, ao ouvir os rouxinóis que lançavam às trevas e ao silêncio os seus trinados amorosos, levantava a cabeça acima da bordagem do seu barquinho, à procura da lavadeira, na margem do rio...
CAPITULO II
Nos dias seguintes, Francisco Guichard manteve-se muito distraído.
Esqueceu-se de iscar os anzóis e seria preciso que um peixe não possuísse um átomo de juízo para morder no ferro nu e acerado, com que ele pretendia tentá-los.
Durante horas inteiras, ficava-se a ruminar todas as cantigas que a bonita lavadeira lhe havia deixado escutar. E, durante todo esse tempo, o seu barco descia mansamente a correnteza e era somente ao chegar ao moinho de Bonneuil que ele se dava conta de que não havia lançado nenhum anzol à água.
Mas ele não era feito daquela massa de que o bom Deus faz os namorados sem coragem. Compreendeu que era indispensável tomar uma resolução suprema e imediata.
Com uma remada furiosa, virou o barco e embicou para o lado departamento do Seine-et-Marne, plantou a fateixa na margem, amarrou a embarcação e subiu rumo Chennevières, com essa fisionomia fatal e resoluta que devia a de Guilherme, o Conquistador, quando desembarcou na Inglaterra.
Percorreu de cabo a cabo a rua da aldeia, onde a sua presença causou certa impressão, dado que, pouco familiarizado com as regras da civilidade campestre, o Iôbo-do-rio abria, sem cerimônia, a porta de todas as casas que encontrava no caminho, enfiava a cabeça espantada na semi-abertura, inspecionava o conteúdo de cada habitação e safava-se, desatento aos protestos que tais processos provocavam da parte dos homens, às invectivas que recebia das mulheres e aos gritos de terror das crianças.
Chegou, finalmente, à derradeira cabana do caminho de Champigny, sem que tais visitas domiciliárias tivessem outro resultado senão proporcionar-lhe um cortejo de garotos e meninas, que o acompanhavam à distância, manifestando interesse pela sua loucura e comentários confusos, em voz baixa.
Francisco Guichard pensou em interrogar um desses jovens Curiosos.
Todavia, a maneira de fazê-lo embaraçava-o, não sabendo como descrever o objeto de suas pesquisas: uma carinha bonita não constituía verdadeiramente um sinal.
 Dirigiu-se, entretanto, até ao pequeno grupo, que, mal adivinhou as suas intenções, debandou: aqueles que estavam Riais na frente voltaram-se contra os que lhes ficavam atrás, os mais fortes, empurrando os mais fracos, uns caindo, e fazendo os outros cair, correndo todos o mais que podiam, semelhantes a uma nuvem de pardais surpresos na comida.
Isto, que estava longe de esperar, acabou deixando Francisco Guichard de mau humor. Agarrou um daqueles que lhe estava mais perto e sacudiu-o com tanta violência que o coitado do garoto desatou a chorar, levantando para ele as mãos suplicantes.
Foi em vão que Francisco Guichard procurou tranquiliza-Io. Quanto mais docemente lhe falava, mais a criança chorava, de sorte que foi obrigado a pousá-la no chão. Então, o garoto soltou uma risada trocista e deu de correr, juntando-se aos companheiros.
Logo que o ex-soldado soltou o pequeno cativo, arrependeu-se: a fisionomia da criança, sem cessar de fazer caretas de terror, assumira um aspecto que o impressionou. Os grandes olhos pretos, brilhantes e úmidos, entrevistos sob os cabelos esguedelhados que recaíam pela testa do homenzinho, ele já o.s tinha visto algures. Céus! O sorriso que se desenhava nas suas faces firmes com maçãs vermelhas como cerejas era, sim, o sorriso da linda lavadeira, lembrava aquele sorriso!
O pescador, então, seguiu no encalço do seu ex-prisioneiro; mas, se Francisco tinha pernas velozes, o garoto, este, corria mais do que ele! E enfiou por uma viela, ao lado da igreja de Chennevières. Chegando ao fim, precipitou-se para dentro de um portão, que fechou, rapidamente, indo, a seguir, esconder-se na cozinha.
Francisco Guichard sentiu o coração pulsar-lhe de esperança, porque não havia ainda passado por aquela ruazinha, nem inspecionara aquela casa.
Entrou, resolutamente, por onde tinha visto o pequeno entrar e encontrou-se num pátio, cheio de estrume, onde cacarejavam galinhas e grasnavam gansos.
Mas não havia unicamente galinhas e gansos nesse pátio: via-se também, ali, uma carroça e, ao lado dessa carroça, um homem que aparentava os seus cinqüenta anos, ocupado em fazer feixes de feno. Além disso, na carroça, estava uma moça que colocava, simètricamente, esses feixes, entre as grades da carreta, à medida que o homem lhos passava.
Avistando Francisco Guichard, a moça corou, mas o pescador corou mais ainda, porque havia reconhecido a bonita lavadeira.
— Bom dia! — disse o homem entretido com o feno, sem, Contudo, interromper o seu trabalho.
— Bom dia - respondeu Francisco Guichard, encostando-se no monte de feno, porque a corrida lhe havia tirado o fôlego.
Fez-se silêncio. O dono da casa, campônio fino e malicioso, não queria dar ao recém-chegado a vantagem de uma perg unta e esperava que ele se explicasse a respeito da sua visita.
— Venho falar de negócios — disse por fim Francisco Guichard, lançando um olhar significativo à moça que empilhava o feno, com dobrado zelo, a fim de dissimular o seu embaraço.
— Ah! O senhor vem para tratar do vinho? Este ano, i mercadoria será cara, meu rapaz. Não é que as vinhas tenham gelado, nem que se tenham estragado as uvas, nem tampouco por ter sido seco demais ou muito molhado o tempo, é que o diabo fez das suas e a uva não rende: serão precisos muitas geiras de terra para conseguir-se um barril.
— Não, não é a respeito do vinho que venho à sua casa disse Francisco Guichard, o qual sentiu que, se não precipitasse a sua declaração, a coisa se lhe tornaria extremamente difícil. — Venho pedir-lhe sua filha em casamento.
O campônio nem sequer virou a cabeça, somente seus olhos examinaram o pretendente, de alto a baixo, com vivaz singularidade.
— Ah! Isso é outra coisa — disse o vinhateiro: é uma excelente trabalhadora a minha Luísa! Veja só! Ela revolve um quintal de feno e limpa uma quadra de vinha mais facilmente do que o senhor ou eu seríamos capazes de fazê-lo. Temos de ver isso, meu amigo! Temos de ver isso! Mas, diga me uma coisa — continuou o vinhateiro, que parecia disposto a jamais deixar perder o benefício de uma situação — Visto que pretende fazer parte da família, precisa mostrar-se, rapaz, precisa mostrar-se, em vez de ficar por aí deitado como um que não presta para nada, ao pé desse monte, precisa, sim, ajudar nos a carregar esta carroça. Eh! Eh! Eh! As moedas que me darão amanhã na cidade, bem pode ser que, um dia, venham a passar para o armário de minha filha!... Vamos, vamos, toca a trabalhar!
Estas palavras foram como que uma chibatada que exacerbou até ao paroxismo a exaltação de Francisco Guichard. Precipitou-se sobre o feno, como sobre um inimigo que se tratasse de abater, apertou-o, enrolou-o em feixes com viola ida cheia de raiva e trabalhou tanto e tão depressa que a montanha de forragem começou a diminuir a olhos vistos e logo a carroça ficou completamente cheia.
Luísa contemplava o seu apaixonado, sorrindo; o pai sorria, também; mas os dois sorrisos tinham, um e outro, significação bem diferente.
Terminada a tarefa, o vinhateiro encheu Francisco Guichard de muitos agradecimentos, nos quais era fácil adivinhar uma tal ou qual mangação.
Depois, convidando-o a sentar-se a seu lado, num velho tronco de cerejeira, que era um dos principais ornatos do pátio, pediu-lhe algumas informações a respeito da sua posição, não antes de ter convidado Luísa a oferecer um copo de vinho ao hóspede.
Guichard, que não trocaria a sua posição pela do primeiro-cônsul e não conhecia coisa mais nobre do que ela neste mundo, não hesitou em responder que era pescador.
Ouvindo esta confissão, o vinhateiro franziu o sobrolho e, quando sua filha lhe apresentou o pichei de vinho, para que ele enchesse o copo do hóspede, encheu-o tão avaramente que mal daria para cobrir-lhe a terça parte.
Era esta a maneira pela qual o pai de Luísa entendia testemunhar a pouca estima que nutria pela posição social do pretendente.
Todavia, quando este último insistiu em obter uma resposta, que decidisse da sua sorte, o vinhateiro não se resolveu ainda a uma recusa radical que, todavia, estava escrita na sua vontade: repetiu cinco ou seis vezes: — Teremos que ver, rapaz, teremos que ver isso!
Era evidente que a força muscular de Francisco Guichard produzira funda impressão sobre ele e que o manhoso camponês alimentava qualquer projeto a seu respeito.
O pescador retirou-se com o coração a transbordar de audaciosas esperanças. Enquanto descia a colina, cantava, ou antes, berrava, com uma voz tão falsa como pouco harmoniosa, a cantiga que aprendera de Luísa, na manhã em que a havia escutado, escondido atrás do salgueiro.
No dia seguinte, voltou a subir até Chennevières. Levava para o futuro sogro os elementos de uma caldeirada de peixe. O velho agradeceu e, sem dar-lhe tempo de dizer sequer bom-dia a Luísa, conduziu-o ao campo, a fim de que o ajudasse a dar a última demão à sua vinha.
Francisco Guichard fez maravilhas, revolvendo a terra, tal como havia feito ao ajudar a carregar o feno na carroça.
Na tarde seguinte, voltou, trazendo, numa cesta, uma dúzia de belos dourados. Nesse dia, tratou-se mas foi de revolver o estrume que tinha de carrear-se.
Estava armada a coisa. Cada dia, o vinhateiro encontrava uma ocupação nova para o rapaz. Empregava o futuro na expectativa de melhorar o seu pequeno patrimônio. Eram assim dois dias de salários-trabalhadores com que ele assim se beneficiava e o processo tinha, além disso, a vantagem de nem custar gastos de comida ao pai de Luísa. Efetivamente, se o pescador, quando havia algum trabalho a fazer, podia considerar-se como da família, não sucedia o mesmo, quando tinha que sentar-se à mesa. O vinhateiro mostrava-se sempre parcimonioso na distribuição do vinho, como o fizera da primeira vez.
Guichard não se rebelava contra tais exigências; o sorriso de Luísa, de início tão cativante, tornara-se terno, mesmo comparecido, e esse sorriso havia dito ao pretendente: "O meu coração será o penhor de vossos trabalhos".
Quanto à pergunta de Francisco Guichard, que se tornara tímido pelo hábito de servidão que insensivelmente havia tomado, se, por acaso, se arriscava a repeti-la, o velho ladino respondia sempre com o seu eterno: "Vamos ver! Vamos ver!”
E durou isto, assim, mais ou menos um mês.
Francisco Guichard, pescador durante a noite, convertera-se num autêntico vinhateiro, durante o dia.
Mas, concluída a vindima, chegou o inverno. As folhas cor de púrpura das videiras juncaram o vale; as cepas tomaram aquele aspecto de troncos mortos; as estacas foram guardadas em pilhas, até à primavera seguinte.
O vinhateiro não deixou de distribuir serviço a Francisco Guichard, durante algum tempo, mandando-o limpar a colheita de trigo da granja, mas chegou um momento em que a palha ficou viúva de seu derradeiro grão de trigo.Passeando por ali, o velho aproximava-se de Luísa sempre de sobrecenho carregado, com uma expressão ameaçadora.
Num dia, seguinte àquele em que Guichard voltou a Chennevières, notou que os olhos da moça estavam vermelhos: linha chorado. O vinhateiro não correspondeu ao cumprimento, que lhe dirigia o pescador. Era evidente que, embora cheio de neve o pátio da casinha, por mais cintilantes de geada que estivessem os telhados de colmo, em que o gelo derretia, formando longas agulhas, uma tempestade terrível ameaçava o pobre pescador.
A tempestade não demorou a estalar.
Com um gesto imperioso, o vinhateiro ordenou à sua filha que saísse do quarto, e, apontando para o pescador um escabelo, defronte ao seu, ao canto da alta chaminé, na qual fumegavam, prestes a arder em chamas, duas raízes de choupo, declarou-lhe que a sua presença dava que falar e convidou-o a cessar as visitas que podiam comprometer o futuro de Luísa.
Se Francisco Guichard houvesse encontrado um elefante na sua tarrafa, o seu espanto não podia ser mais profundo!
Trabalhando para o pai daquela que amava, julgava receber o penhor do negócio que desejava concluir.
Corou, ficou pálido, balbuciou algumas palavras; mas revelando, subitamente, o caráter violento dos Guichard, soltou uma praga tão formidável que o vinhateiro estremeceu, no seu escabelo.
Quis este responder, mas o pescador não lhe deu tempo; a sua cólera rebentou em invectivas furiosas. O homem teve o cuidado de não tentar opor um dique a essa torrente.
Logo que Francisco Guichard terminou: — Meu rapaz! — respondeu o pai de Luísa. — Se para mim trabalhaste, foi que isso foi de teu agrado, e, agradando-ir, eu não seria capaz de contradizer-te. Na vida, prestam-se assim, pequenos serviços sem maiores conseqüências; mas, dar-se minha filha, isso seria bem mais grave. Tu não possuis coisa alguma, a não ser uma posição de preguiçoso.
— De preguiçoso! — interrompeu o pescador, ao qual, só a recordação das longas noites sem dormir passadas sob a chuva e o vento cortante, o indignava profundamente.
— Não, de preguiçoso, não! — corrigiu o velho. — confesso que darias um vinhateiro razoável, mas pouco hábil. Qual a profissão que não fornece àquele que a exerce o meio de ter aquilo que os últimos dos animais possuem entre nós, um teto e quatro paredes! Queres uma mulher? Onde iras acomodá-la? No teu barco? Bonito domicílio para oferecer a uma moça!
— Tio Pommereuil, diga-me o que deseja que eu traga à sua filha, e, mesmo que eu tenha de trabalhar como um condenado às gàles, juro que, antes de pouco tempo, o terei ganho.
A voz de Francisco Guichard assumira um tom suplicante ao pronunciar aquelas palavras; mas, longe de impressionar o vinhateiro, livraram-no da inquietação que lhe havia causado o começo da conversa e a fisionomia do camponês tornou-se mais velhaca do que nunca: — Eh! Eh! Meu rapaz, possuo vinte e duas quadras da vinha e dois filhos; são onze para o garoto e onze para a pequena; a quinhentos francos a quadra, não é caro demais, não lhe parece?
— Não! — respondeu maquinalmente o pescador.
— Isso perfaz portanto cinco mil e quinhentos francos, que um e outro terão, depois de mim, além daquilo que a cada um tocar na partilha das pequenas economias, meu rapaz.
— Meu Deus! Meu Deus! — replicou Guichard, a modos de interjeição.
— Ah! Ah! Isso te espanta. Ora, a gente trabalhou, estas vendo, e a vinha rende mais do que o rio. Tem-se alguma coisa — acentuou o campônio, com um orgulho que triunfava da sua prudência habitual. — Pois bem!
Vejamos, mines que eu te indique um meio de conseguires o que desejas?
— Se quero! Creio bem que o quero!
O vinhateiro pegou de cima da guarda da chaminé um livro, cujas folhas estavam tão negras como a própria capa. Era a Bíblia.
— Li nesse livro — disse — que Jacó serviu Labão durante v i nt e anos para conquistar sua filha, Raquel. Resigna-te às condições que ele aceitou de Labão e se, daqui a vinte anos, Luísa não fez outra escolha, pois bem, então teremos que ver...
O tio Pommereuil acompanhou a sua eterna cantiga de uma risada escarninha, que fez que o pobre Guichard não tivesse a menor dúvida de que zombava dele. Levantou-se, bruscamente, e saiu, batendo a porta da casinhola com violência.
Estava em metade do pátio, quando sentiu que a mão de alguém lhe puxava pela blusa. Era Luísa, que, provavelmente, tinha ouvido toda a conversa do pai com o namorado, porque mostrava o rosto desfeito em lágrimas.
Guichard ia falar-lhe do seu desespero, mas o tio Pommereuil mexeu nos ferrolhos da porta.
— Vai, vai! — exclamou a moça, acompanhando estas palavras com um aperto de mão.
— Você vai hoje ao rio, Luísa? — perguntou Francisco Guichard.
— Vou — disse Luísa, num tom de firmeza que serenou o pescador, quanto às más disposições que o tio Pommereuil lhe havia testemunhado.
A partir daquele dia, Francisco Guichard não voltou a Chennevières, o que não quer dizer que os dois namorados não tornassem a ver-se; ao contrário, viram-se, e o pescador não lastimou as suas idas à aldeia, onde a presença do vinhateiro, sempre constante nas entrevistas de ambos, lançava uma frieza que mal se coadunava com o estado de suas almas.
Um dia, o tio Pommereuil, estando a trabalhar na sua vinha, avistou perto, do outro lado do rio, exatamente defronte da ponta da grande ilha de Varenne, quatro pequenos muros que se erguiam já a dois palmos do chão e que um homem, trabalhando com extraordinário ardor, colocando pedra sobre pedra, procurava levantar.
Apesar da distancia, o homenzinho reconheceu aquele, no qual havia tão frutuosamente explorado o amor por sua filha.
— Eh! Eh! — disse a Luísa, que estava ajudando o pai a enterrar estacas. — Finalmente aquele idiota compreendeu que para formar uma família é preciso primeiro que tudo tratar de construir um ninho. E como ele vai trabalhando!
Levantadas as paredes, Francisco Guichard dispôs os caibros e o madeiramento, cobriu toda a construção com um telhado de caniços e, um dia, o tio Pommereuil, que acolhia cada progresso novo na construção da casinha, com sarcasmos, os mais mordazes, viu o pescador subir ao cimo do telhado, a fim de amarrar à chaminé um ramo magnífico de todas as flores primaveris, que as margens do seu rio muito amado lhe haviam fornecido.
O vinhateiro torcia-se de riso, vendo o que considerava pretensão exorbitante da parte de pedreiro tão digno de lástima. Apressou o seu trabalho para voltar mais cedo a Chennevières e deliciar Luísa com aquela ridícula nova de seu antigo namorado.
A moça, parece, não compartilhou dessa alegria paterna; tornou-se pálida e muda e ficou pensativa, durante o resto do dia até ao cair da noite. A pretexto de achar-se indisposta, fechou-se no pequeno reduto, que lhe servia de quarto.
Entretanto, era meia-noite e não adormecera ainda; ia r vinha, descalça, pelo estreito aposento; torcia os braços, parecia presa da mais violenta agitação; às vezes, caía de joelhos e rezava com fervor.
O ruído de uma pedrinha, batendo nos vidros da janela, interrompeu as suas orações. Levantou-se precipitadamente, abriu-a, e viu Francisco Guichard, escarranchado no muro da rua.
— Ah! Meu Deus! Se meu pai acordasse! Fez sinal ao namorado para ter um pouquinho de paciência e evitar, a todo custo, ficar no muro; juntou, apressadamente, um pequeno embrulho; pegou dos sapatos, atravessou cautelosamente o quarto, onde seu pai dormia, abriu o portão e deu a mão a Francisco Guichard. Este soergueu-a nos braços, pegando nela como a mãe carrega o seu filho e, sem deixar que ela tocasse o chão, desceu a correr pela colina abaixo, só parando para depositar o precioso fardo no seu barco e pegar nos remos para atravessar o rio.
Estava-se em plena primavera; noite tépida e perfumada; uma brisa suave encrespava de leve a superfície das águas, brincando com as folhas agudas das sagitárias. A lua traçava um largo círculo de prata no rio; um rouxinol cantava o seu hino de amor, em cada arbusto.
Luísa cedeu à onipotência desse espetáculo e suas lágrimas enxugaram-se...
Consumava-se o inevitável: Francisco Guichard conquistara a sua companheira, a maneira dos lordes ingleses e como os heróis de muitos romances.
CAPÍTULO III
O acontecimento fez barulho na planície e no rio. Durante oito dias, de Joinville a Ormesson, de Gravelle a Sucy, a tagarelice das comadres não teve outro assunto.
Geralmente, excetuando-se alguns espíritos mal formados, toda gente criticava o tio Pommereuil. O vinhateiro triunfara cedo demais.
Escarneceram dele e a sua cólera contra o raptor de sua filha cresceu mais ainda.
Felizmente, porém, ura dos vizinhos, droguista e um pouco letrado, fez observar que Luísa, sendo de maioridade, podia reivindicar a herança materna e, mediante certas formalidades, que custariam bastante dinheiro, repeliria toda má vontade paterna. Então, o velho campônio rendeu-se.
Detestava o futuro genro: vinte vezes por dia e do fundo do coração desejava que Francisco Guichard se enredasse na sua tarrafa e descesse até ao fundo do Marne; mas, ver o belo dinheiro, que não podia decidir-se a considerar como seu, passar para as mãos daqueles que nunca deixava de chamar essa vérmina de plumitivos, por Deus, já era demais!
Consentiu que sua filha se tornasse a esposa de Guichard, sob a condição dela subscrever uma renúncia formal aos seus direitos à herança de sua defunta mãe.
Francisco Guichard obtivera, pois, mais do que seus antepassados haviam sonhado. Não somente reinava no Marne, como senhor das águas, podendo nelas fazer o que bem entendesse, mas ainda possuía a única mulher que amava, e, o que é bem mais extraordinário, essa mulher lhe saíra melhor do que havia prometido a moça solteira.
Durante vinte anos, Francisco Guichard foi certamente o homem mais feliz da sua província, ainda que essa província fosse a do Sena, que contava entre os seus habitantes bastantes milionários.
Mas a felicidade assemelha-se a certos usurários, que abrem a sua caixa aos filhos-família e fazem figurar a sua facilidade cúpida e a sua solicitude egoísta, na conta dos juros.
O dia do vencimento desses juros aproximava-se para o pobre lar da Varenne. Francisco Guichard e Luísa Pommereuil tinham três belas crianças, dois meninos e uma menina, Bem logo, o serviço militar tomou-lhes os dois rapazes. O pescador suportou com bastante resignação esta primeira prova; estavam ainda vivas na sua memória as recordações do cerco de Mogúncia e não havia ainda esquecido a tempestade de ferro e fogo, no meio da qual havia vivido durante três meses. Falava disso com certo desprezo e acusava os canhões de fazerem mais barulho do que trabalho bem feito.
O coração de Luísa, esse sangrava e seus olhos vertiam lágrimas. Ela bem quisera resgatar os seus dois filhos, mas, nesse tempo, o sangue humano era de alto preço e muito módicos os recursos do pobre casal.
Para vingar-se da desobediência de sua filha, o tio Pommereuil havia resolvido tornar a casar-se. Como ele contava sessenta anos, não faltara nova progenitura a aumentar o número dos herdeiros, tanto que, por ocasião de sua morte, a parte de sua filha mais velha, na herança, se havia reduzido à metade. Entretanto, vendendo as vinhas, talvez tivesse sido possível reunir meios para resgatar os dois irmãos. Mas, então, estabeleceu-se uma luta de generosidade entre estes e, não querendo um ficar sem o outro, o resultado foi partirem os dois. Francisco Guichard e sua mulher ficaram sós em casa, pois havia um ano que a filha se havia casado. Desposara um antigo soldado que, depois de Wagram, fora obrigado a amputar uma perna e se tornara o amigo íntimo de Francisco Guichard.
Em virtude da ojeriza tradicional, Francisco Guichard não caçava, mas gostava de ver caçar. Mais de uma vez, quando Pedro Maillard — tal era o nome do antigo soldado — se dedicava furtivamente à caça, o pescador o tinha acompanhado, como amador.
Foi no meio da narrativa da campanha do Egito, após um esboço pitoresco dos misteriosos haréns dos paxás, que ocorrera a Pedro Maillard a idéia de uma união que consolidasse os laços de amizade dos, então, já dois amigos.
O pescador acolhera-a com entusiasmo, Luísa com uma tal ou qual frieza, e a moça com resignação, pois o seu pretendente já não estava na primeira juventude.
Apesar da ligeira repugnância das duas mulheres, o casamento realizou-se e nenhuma das duas teve de arrepender-se, pois a bondade de Maillard resgatava amplamente sua imperfeição física.
No começo do ano seguinte, justamente no dia em que a filha de Francisco Guichard acabara de torná-lo avô, no momento em que sua mulher lhe apresentava o pobre pequeno ser para que ele o abraçasse, um soldado ferido, que voltava para a sua aldeia e que tinha servido no mesmo regimento que o dos dois filhos do pescador, apresentou-se à porta da casa de Pedro Maillard e informou a família de que, em Montmirail, o mesmo obus de canhão havia ceifado a vida dos dois irmãos.
Por pouco, Francisco Guichard não deixava cair ao chão a netinha que Luísa lhe colocara nos braços, Restituiu-a à esposa e desatou aos soluços, em maldições, em gritos de dor, rolando pelo chão, despedaçando tudo quanto lhe ficava ao alcance da mão, pedindo graça e piedade a Deus. Tomaram-no por doido.
Esse estado do marido tirou Luísa da dor em que estava: tentou acalmá-lo, prodigalizando-lhe palavras de ternura. Pela primeira vez, em vinte anos, o pescador repeliu aquela que lauto amava.
Então, a pobre mãe teve uma inspiração: apresentou novamente a seu marido a criança que acabara de nascer e olhava para Francisco com olhos tão suplicantes, que todo o seu furor se acalmou, como cessa a chuva, quando o vento varre as nuvens para longe.
Mas Guichard não se consolou; permaneceu sombrio, taciturno. Fugia de sua mulher, ficando dias e dias sem dirigir-lhe uma única palavra.
Retomou o.s hábitos de sua mocidade. Mais de uma vez, sucedeu-lhe, para não tornar a contemplar I quarto dos filhos mortos, passar a noite em seu barco.
Certa manhã, um ruído estranho acordou o pescador. Era o ribombar do canhão. Francisco Guichard ergueu-se na beirada do barco e pôs-se à escuta. Um minuto de observação bastou para certificar-se de que aquele mugido de Combate vinha dos lados de Saint Denis. Na véspera, uns fugitivos haviam anunciado, ao atravessar o Marne no vau de Varenne, que as vanguardas prussianas batiam o campo, do lado de Meaux.
A França ia expiar, como Francisco Guichard, os seus vinte anos de felicidade e glórias.
O pescador levantou-se, os olhos faiscando, narinas dilatadas, aspirando o cheiro da batalha que, através do espaço, parecia vir ao seu encontro. A dor que amargurava o seu Coração converteu-se em cólera; o pai sentia aproximar-se os assassinos de seus filhos.
Pela primeira vez em sua vida, talvez, amarrou descuidada mente o seu barco a margem do rio e encaminhou-se para casa.
Encontrou lá Pedro Maillard, o qual, fuzil a tiracolo, e outro na mão, o esperava.
Vendo seu sogro, o guarda apresentou-lhe uma das armas. Sem lhe fazer qualquer pergunta, aquele pegou no fuzil; os dois homens haviam-se entendido perfeitamente. Abraçara, um, sua esposa e sua filha, o outro, sua sogra e sua mulher e ambos, de mãos dadas, marcharam contra o canhão estrangeiro, cujo rugido parecia aproximar-se sensivelmente da cidade.
As duas mulheres ficaram, ajoelharam-se e rezaram pelos dois homens que amavam.
Mas, a mulher do mutilado não possuía nem força d’alma, nem a vontade que o exemplo e o amor do valente pescador haviam comunicado a Luísa Pommereuil.
Pouco depois, o seu desespero cresceu. Perdeu literalmente a cabeça e, aproveitando um instante em que sua mãe não podia vê-la, fugiu para o campo e, sem abandonar a filhinha que segurava nos braços, correu na direção que tinha visto os homens tomar. O troar do canhão guiava-a e agora chegava-lhe claro e distinto. Atravessou o bosque de Vincennes, passou por Montreuil, por trás dos soldados franceses, que faziam frente ao corpo de Schwartzenberg, e chegou a Belleville, no momento em que os prussianos surgiam de todos os lados.
Pela primeira vez, a mulher de Pedro Maillard ouviu o crepitar dos fuzis misturar-se às vozes solenes das peças de artilharia.
Repelidos de todas as suas posições, vencidos por um inimigo vinte vezes superior, os soldados e civis, que tinham querido morrer pela honra da bandeira da França, recuavam, nesse dia funesto.
A filha do pescador chegou por uma das ruas laterais à grande artéria de Belleville, no momento em que se travava uma refrega corpo a corpo.
Perdera tão completamente o sentimento do perigo, que avançou até ao ângulo de uma pequena rua, mau grado a saraivada de balas que caía de todos os lados e fustigava as paredes em todos os sentidos.
Perto do homem, de roupa bordada, que impelia os combatentes contra os inimigos e os encorajava com o exemplo e a palavra, através da fumaça espessa, estriada de línguas de fogo, a jovem senhora avistou Francisco Guichard e seu genro.
O inválido, fuzil na mão, atirava à queima-roupa contra os prussianos; o pescador, que esgotara as suas munições, servia-se de seu fuzil como de maça e, com um golpe, acabava de derrubar um oficial prussiano.
A inditosa avançou para eles, soltando um grito terrível que fez voltar a cabeça de Pedro Maillard. Reconheceu sua mulher e viu a criança que ela lhe estendia como para implorar-lhe, em nome dessa inocência, que não se expusesse mais. E aquele homem que, havia cinco horas, mostrava valor e heroísmo que bastariam para Condecorar dez soldados, perdeu repentinamente a força e a coragem. A arma escapou-se-lhe das mãos e, alucinado precipitou-se para o lado de sua mulher e de sua filhinha, com a velocidade que o seu defeito físico lhe permitia.
Nesse momento, os prussianos, em conseqüência de seu movimento de pressão, avançavam e, em número considerável, achavam-se a dois passos de Pedro Maillard: dez baionetas Cruzaram-se ao mesmo tempo sobre o inválido que fugia ele caiu atravessado de golpes, gritando para o sogro: — Salva tua filha! Salva minha filhinha!
Ao apelo que lhe dirigia o genro moribundo, Francisco Guichard lançou um olhar aterrado para o lado que o pobre mutilado, ao morrer, lhe apontava, e, através da fumaça e da poeira que se torciam em espirais e se cruzavam em espessos turbilhões, pareceu-lhe ver uma forma branca, perdida entre as roupas escuras dos soldados. Precipitou-se nessa direção, fazendo molinetes tão furiosamente com o fuzil, que a coluna de soldados, embora compacta, se abriu à sua passagem. Na esquina da pequena rua, encontrou a sua filha.
Estava sentada, encostada a um marco. Embora parecesse desmaiada, apertava com força ao peito a criancinha a chorar.
Francisco Guichard fez o que Pedro Maillard tinha feito. Atirou o fuzil, abraçou a filha, em cujos braços estava a pequena, e fugiu na direção da Varenne, sem olhar para trás, e só parou no bosque de Vincennes. Aí, percebeu que tinha o pescoço e os ombros úmidos. Era de sangue. Depositou a criança na relva e viu que as roupas da pobre mulher estavam manchadas.
Ficou imóvel, mudo, sem se atrever a tocar-lhe. Tinha receio de fazer qualquer movimento: parecia-lhe que o Céu, as árvores, tudo, em redor, girava e a terra lhe estremecia debaixo dos pés.
Finalmente, decidiu-se a um esforço supremo, desabotoou o corpete da moça e colocou-lhe a mão no coração. Cessara de bater. A criança continuava nos braços de sua mãe, mas acabara por adormecer.
Francisco Guichard pegou, então, no seu precioso fardo e dirigiu-se para casa. Lá chegando, colocou a filha morta na cama, libertou a criancinha do amplexo fúnebre, apresentou-a a sua esposa, e, sem dizer palavra, sem encontrar nos seus olhos exaustos uma lágrima sequer, pegou nos seus utensílios e foi para o seu barco.
CAPÍTULO IV
Desde que a filha e o genro haviam acompanhado seus dois filhos ao túmulo, o exterior e o caráter de Francisco Guichard tinham-se modificado singularmente: os cabelos haviam-se tornado brancos como neve e as suas faces e a fronte estavam sulcadas de rugas profundas.
Abandonara completamente Luísa e a casinha; parecia decidido a ignorar tudo que pudesse recordar-lhe um passado, cuja memória constituía a mais pungente de suas dores. Parecia mais que triste, mais que sombrio: dir-se-ia mau, e a crispação de seus lábios, o franzimento do seu cenho, davam à sua fisionomia um caráter sinistro que fazia tremer aqueles que o encontravam.
Com tais hábitos, com tais aparências, tudo que se contava a respeito de Francisco Guichard devia parecer não só provável, mas certo.
Entretanto, por mais rigorosa que fosse a vigilância que sobre ele se exercia, a respeito, da caça furtiva, não era possível apanhá-lo em flagrante.
Todavia, encontravam-se armadilhas em todos os recantos do bosque; as perdizes fugiam com inteligência e presteza, indicadoras de assídua perseguição, e poucas noites havia que não se ouvissem alguns tiros aos faisões por entre as árvores.
A conseqüência natural seria que esses tiros fossem de algum caçador escondido que explorava a desconfiança geral contra o pescador. Mas o raciocínio era simplista demais para merecer consideração. O ódio requer algo mais.
O direito de pesca tinha sido posto em leilão. Noutros tempos, ele teria recusado pagar o direito que lhe reclamavam, mas, sob a impressão da profunda tristeza em que vivia, nem forças tinha para discutir o princípio favorito de que o peixe pertencia a quem o soubesse pescar; por isso, pagou os direitos e ficou em regra com a lei.
Aliás, outras preocupações o absorviam. Havia um mês que Luísa caíra enferma. Certa manhã, a pequena Huberta, sua neta, chamou por ela. Luísa tentou levantar-se, mas os seus membros recusaram-lhe qualquer movimento; fez um esforço, saltou da cama e caiu sem sentidos ao pé do berço. Vendo sua avó estendida no chão, a pequena gritou. A mulher do barqueiro, que passava na ocasião, ouviu-a; correu para auxiliar a pobre Luísa e foi chamar Francisco Guichard que estava no rio.
O homem correu e, ao ver o rosto pálido daquela que tinto havia amado, o pescador ficou petrificado. Obedecendo p unia inspiração súbita, correu a Champigny, à procura de um médico, o que era contrário às suas idéias. Francisco escutou com ansiosa avidez os oráculos do facultativo e seguiu minuciosamente as suas prescrições.
Um dia, pelas cinco horas da tarde, enquanto velava junto do leito de Luísa, com a netinha nos braços, bateram rudemente à porta.
Francisco Guichard foi abrir, mandando para o diabo o importuno. O importuno era um homem que vestia uma casaca preta, em mau estado, e umas calças que, à força de uso tinham ficado cor de cinza. Esse homem entregou-lhe um papei, depois de haver-lhe perguntado se era ele de fato Francisco Guichard.
O pescador não sabia ler, nem escrever. Atirou o papel para cima da mesa, pensando em pedir a Luísa que lho lesse, logo que ficasse melhor.
No dia seguinte e nos outros, Luísa, longe de ficar melhor, piorou Oito dias mais tarde, estava nas últimas. Olhando casualmente do lado do vau, Guichard observou um pequeno grupo de pessoas que se encaminhava para o seu lado.
A frente, vinha o mesmo homem que lhe havia entregado o papel, a seu lado, o representante do príncipe, dono daquelas terras, e atrás dois ou três gendarmes.
— Está ou não disposto a obedecer à intimação que lhe foi entregue?
— Minha pobre mulher está agonizante; não tenho tempo de ocupar-me dessas frioleiras; voltem daqui a uma semana; então, ela estará melhor e a gente responderá.
O homem da lei deu de ombros:
— Você teve oito dias para preparar os seus meios de defesa e oposição; não o fez; trate de mudar-se hoje mesmo.
— Mudar-me hoje mesmo?! — disse o pescador, cuja voz se tornou ameaçadora.
— Sim e se o não quiser fazer por bem, a isso o obrigaremos.
— Com mil raios! — exclamou Francisco Guichard. — Não entrem, ou rebento-lhes a cabeça com este machado... Ah! Os miseráveis, vão acordar a minha pobre mulher!
Francisco Guichard estava prestes a precipitar-se em cima deles, mas pensou na mulher; se ele morresse, ela morreria, também, infalivelmente.
Conteve a sua cólera e torceu um punhado de cabelos grisalhos.
— Deixem-me ficar mais oito dias; durante esse tempo, a sorte de Luísa ficará decidida. Se Deus a chamar a si, eu abandonarei de bom grado estas paredes; se Ele permitir que ela viva, terei ao menos tempo de encontrar outro abrigo.
Havia tantas lágrimas contidas e recalcadas na voz do pescador que o oficial de diligência, habituado aliás a essas cenas, sentiu-se comovido.
Voltou-se para os guardas, como a perguntar-lhes se devia conceder o que o pobre homem estava pedindo.
— Não! — respondeu o chefe. — Monsenhor virá amanhã caçar na Varenne; é preciso limpar o lugar dessa vérmina. Executem o mandado!
— E eu estou-lhes dizendo que não entrem! — exclamou Francisco Guichard.
— Vamos ver — respondeu o chefe.
Naquele instante, ouviu-se a voz de Luísa que tinha acordado: — Francisco! Francisco! — dizia ela. — Que é que há? Por que estás discutindo com esses senhores? Vem, vem para junto de mim, não me deixes sozinha, tenho medo!
Essa queixa deu vertigem ao pescador; zumbidos confusos atordoaram-lhe os ouvidos, mil fagulhas deslumbrantes passaram-lhe ante os olhos; perdeu a cabeça.
— Ah! Covardes! Covardes! Querem matá-la! — exclamou. — E são sete contra um! Mas pouco importa, repito ! Aquele que der mais um passo, será o último de sua vida!
Falando desta maneira, o pescador colocara-se diante da porta, brandindo um machado de rachar lenha. Os mais valentes recuaram. O chefe lançou-se sozinho para a frente. O machado estava levantado; e recaiu, não sobre o homem, Rias sobre a espingarda com que ele tentava alvejar o pescador. A arma, rachada em duas metades, explodiu. A comoção foi tão violenta que os dois gatilhos se desfecharam ao mesmo tempo e o chumbo, formando bala, sem, atingir o pescador, foi cravar-se no taipal da porta, diante da qual ele se postara.
A essa dupla explosão, gritos partiram de dentro da casinha, os gritos da agonizante e da criança.
Francisco Guichard não esperou novo ataque de seus Inimigos; precipitou-se em cima deles. O coitado do homem da diligencia foi quem recebeu o primeiro choque. Atingido por um soco do pescador, caiu de costas e foi rolando pelo declive até ao rio, onde deu um mergulho. Os outros tiveram de recuar.
Naquele momento, o barqueiro do vau abeirou-se de Francisco Guichard.
— Foge! Foge! Francisco! — disse ele. — Estás em maus lençóis. Contra dois gendarmes podes resistir, mas não poderás resistir a dez, a vinte, a toda a guarnição de Vincennes. Foge! Vamos transportar Luísa para nossa casa e trataremos dela, o melhor que pudermos. Foge!
O pescador arrancou ura punhado de cabelos, mas compreendeu o conselho do barqueiro era razoável. Lançou um derradeiro olhar à sua pobre casinha, entreviu, destacando-se, um fantasma branco no fundo negro das cortinas de sarja que, olhos espantados, cabelos desgrenhados, escutava com terror o ruído da lula. O pobre homem gritou-lhe: — Até breve! Até breve! Luisa!
Depois, deu a volta à cerca e deitou a correr o mais que pôde, no campo.
Guardas e gendarmes perseguiram-no com afinco, mas inutilmente.
Francisco Guichard tinha-se atirado ao rio, onde maior era a profundidade e, com água a dar-lhe até ao pescoço, escondera a cabeça numa raiz de salgueiro, tornando-se invisível para todos.
Quando caiu a noite, o pescador, ansioso por saber o estado de sua esposa, atravessou o rio, tendo o cuidado de conservar-se o mais possível oculto e percebeu, finalmente, na outra margem, a silhueta de sua casa, que se destacava em preto, no fundo avermelhado do céu; nesse instante, sentiu-se aliviado de um peso enorme.
Então, não a tinham demolido, como lhe haviam dado a entender. Não tinham expulso de sua casa a pobre enferma; tiveram piedade dela.
Em dez braçadas vigorosas, passou para a outra margem. Deslizando como uma cobra, aproximou-se da casinha e, erguendo docemente a cabeça, ao nível da janela, lançou o olhar para dentro de sua casa e ficou mudo de espanto.
À luz de dois círios, que rodeavam um crucifixo e a vasilha de água benta, colocada em cima de uma cadeira, havia visto uma forma humana, inteiramente coberta com um lençol branco. As feições desenhavam-se nitidamente sob o pano: dir-se-ia uma estátua de mármore.
Na lareira, o fogo crepitava; Mateus, o barqueiro, sentado num escabêlo, tinha nos joelhos a pequenina Huberta e fazia-a comer, colher a colher, a sopa, numa escudela de pau.
Francisco Guichard não reparou senão no cadáver da esposa, sem querer conformar-se, sem a querer reconhecer, dizendo: — Não, não, não é ela!
O pobre pescador precipitou-se para dentro de casa e, sem preocupar-se com a pequena, que lhe estendia os bracinhos, arrancou o lençol que cobria o rosto da morta.
Francisco Guichard pegou na mão de sua mulher e, até de manhã, conservou-a entre as suas, cobrindo-a de beijos e de lágrimas.
CAPITULO V
Francisco Guichard conduziu o corpo de Luísa à sua derradeira morada; fez uma curta oração diante da cova ainda aberta, voltou à casa e passou aí o resto do dia em íntimo Convívio com a pequena Huberta.
Naquele aposento, ainda quente do calor misterioso, que a morte deixa após si, Francisco Guichard começara a chorar; mas Huberta, que passara tão tristemente os últimos dias, vendo um raio de sol deslizar através das árvores e penetrar pela vidraça e brincar-lhe nos joelhos, começou, rindo, a apertar as carnes flácidas e enrugadas do velho, alargando-as e encurtando-as alternadamente, muito satisfeita com as caretas que resultavam daquele movimento de vaivém.
O avô zangou-se, mas, apenas viu lágrimas a correr pelas faces cor-de-rosa da criança, esqueceu logo a sua angústia, para pensar no aborrecimento, que acabara de provocar à pequena criatura.
Francisco Guichard tomou, imediatamente, muito a sério a maternidade que lhe incumbia e nunca mulher alguma se mostrou mais atenta, nem mais terna pela sua progenitura do que o pescador pela sua netinha.
A partir desse momento, Guichard não mais se separou da pequena Huberta. Renunciou às suas pescarias de noite, mas, a não ser mais ou menos isso, a criança não conheceu outro berço senão aquele que o pescador lhe tinha talhado, a golpes de enxó, num tronco de carvalho.
Entretanto, os habitantes de Champigny e de Creteil, aos quais Francisco Guichard era obrigado a recorrer para a venda do seu peixe, comovidos pela dor sempre muda, mas sempre acabrunhadora, impressa na fisionomia do bom homem, alcunharam-no de o tio Ruína.
Nessa altura da vida, muitos anos se passaram, Francisco Guichard orçava pelos sessenta e cinco anos. Mas, apesar das canseiras extenuantes do seu ofício, o seu corpo conservara todo o vigor. Em contraste muito lógico, os sintomas naturais de caducidade haviam-se refugiado na cabeça e no rosto, onde a vida tinha sido mais ativa, os sofrimentos mais vivos e mais rudes os trabalhos. O sol dera à pele daquele homem um verniz fulvo, mas sem calor, o tom morto da terracota. Os olhos, fortemente encaixados nas órbitas, eram vermelhos, quase manchados de sangue.
Huberta, ou a Loura, como a chamavam, entrara no seus dezesseis anos. A educação rústica, que recebera, enquadrava-se admiravelmente na sua natureza: era alta, fortemente constituída, sem contudo nada ter de comum ou de grosseiro; a sua estatura estava longe de ser esbelta, mas o desenvolvimento das cadeiras, o vinco das presilhas do pescoço, davam às suas maneiras, sob a chita que lhe acusava nitidamente as formas, um caráter de distinção raro nas mulheres de sua classe. Bonita, ela não era, mas toda gente a achava encantadora.
Huberta adorava seu avô. O bom homem impusera-se como regra não associar a criança às suas penas e tristezas, antes dela ter dez anos. Quando, nas efusões da sua ternura retrospectiva, Francisco Guichard derramava lágrimas sobre ela, abraçando-a, a Loura atribuía essas lágrimas ao afeto do velho pela criatura, que continuava a povoar a solidão de sua choupana; mas, quando cresceu, tornou-se mais perspicaz e procurou descobrir as causas daquela melancolia constante do avô e não lhe custou adivinhar o que se passava na sua alma. E resolveu lutar contra esse desânimo, contra esse peso, sob o qual ela receava que ele viesse a sucumbir. Para consegui-lo, recalcou em sua alma a melancolia natural, que tantas vezes se encontra nas mulheres que cedo demais ficaram órfãs. Tornou-se risonha; o riso estereotipou-se em sua boca e não se passava dia sem que as colinas do Marne ecoassem com a explosão das suas alegres risadas.
Os acontecimentos decidiram, porém, que Huberta não alcançaria o fim que se havia proposto. Um dia, que Francisco Guichard, em companhia da Loura, partia para a sua faina da pesca, ela, que carregava à cabeça uma braçada de redes, virou-se para ele e disse-lhe:
— Olha, pai, que será aquela gente?
Guichard reparou, então, em três homens, um dos quais pareceu-lhe burguês e os outros dois, pedreiros. Com uma corrente de ferro estavam medindo o terreno que confinava com a pequena casa do pescador.

CAPITULO VI
O burguês, que dirigia as operações gráficas dos pedreiros, era um homem de trinta e cinco a quarenta anos. De estatura mediana, cheio, sem, entretanto, ser gordo. Difícil surpreender qualquer pensamento em seus olhos, um dos quais, fixo e sem vida, como se fosse de vidro, enquanto o outro pestanejava incessantemente com vertiginosa rapidez. A dobra vertical do lábio, o seu hábito de mordiscar constantemente, indicavam uma preocupação, mais ou menos evidente, de lutar astuciosamente, nos menores pontos da vida.
Esse personagem chamava-se Átila Batifol. A sua profissão prendia-se simultaneamente a classe burguesa e operária. Átila Batifol era rabugento, invejoso, astucioso e mentiroso. A educação que recebera não fora capaz de fazer reentrar qualquer uma das protuberâncias doentias de seu cérebro.
Desde os doze anos, fora aprendiz numa oficina de bronze. Foi bastante maltratado por seu patrão, pelos operários mais velhos do que ele, o que lhe proporcionou, nos seus acidentes de infância, um ódio profundo contra os seus semelhantes.
O patrão com que ele então trabalhava havia recebido de um seu camarada o depósito de certos papéis políticos de importância, que poderiam, não só comprometer esse seu amigo, mas, também, aquele que tinha consentido em ocultá-los. Esses papéis achavam-se ocultos num velho cofre, em cima de sua secretária. Ele tinha acabado de encher o cofre com limalha e restos de cobre.
Um dia, enquanto os operários estavam trabalhando, a polícia invadiu a oficina. Não perdeu tempo com inúteis perquisições, foi direita ao cofre, esvaziou no soalho o seu conteúdo, deixou de lado a limalha e pegou nos papéis, depois prendeu o imprudente cinzelador, que se comprovou pertencer ao complô do general Berton, do qual nunca se ouvira falar, e foi Condenado a três meses de prisão.
Mal os agentes de polícia haviam saído, enquanto os seus camaradas conversavam sobre o que se havia passado, Batifol remetia friamente a limalha e os resíduos de cobre no cofre que tão mal havia guardado o segredo de que era depositário. Batifol era homem incapaz de faltar a seus hábitos.
Os operários do cinzelador encarcerado não suspeitaram de ninguém que tivesse atraiçoado o pobre diabo. Entretanto, um deles, mais clarividente que os demais, surpreendeu certos olhares de ternura trocados entre a patroa e Batifol e notou ainda que, depois da partida do marido, Átila assumia atitudes de dono, dentro de casa, que lhe pareceram singulares.
O futuro encarregou-se de dar-lhe razão. Três meses após a morte do pobre prisioneiro, os editais de casamento da viúva e do seu operário eram afixados na Prefeitura...
Falou-se muito no bairro; alguns pretendiam ver nisso uma tramóia tão hábil quanto pérfida, urdida por Batifol contra seu antigo patrão. Batifol não ligou importância ao falatório. Sem abrir os cordões da bolsa, ficou sendo proprietário do próspero estabelecimento e o regozijo desse inesperado êxito abafou toda e qualquer preocupação.
Logo que atingiu o fim a que tendiam todos os seus secretos desejos, Batifol tirou a máscara de humildade e misericordiosa resignação. Aumentou de maneira gorda os seus negócios e, em todas as circunstâncias, vingou-se daqueles que o tinham tratado mal, na pessoa de alguém que o acaso ou a necessidade colocavam sob a sua possibilidade de prejudicar.
No entanto, como a presença da Sra. Batifol em casa, aos domingos, não constituía para ele distração suficiente, depois de maduras reflexões, acabou por dedicar-se à pesca, distração que tinha a dupla vantagem de separá-lo, durante algumas horas, de sua cara-metade, e de constituir um prazer pouco dispendioso, que promete fazer ganhar sempre mais do que custa.
Foi a pesca que o conduziu a Varenne, onde ele casualmente havia observado a tendência que ia assumindo o mais populoso dos bairros de Paris.
Pequenos anúncios em alguns jornais da capital alcançaram prodigioso êxito. Em menos de seis meses, Batifol viu-se desembaraçado dos terrenos na urbe, cuja posse lhe causava certo receio, realizando lucros de uns doze mil francos e ganhando alguns metros de terreno à beira da água, sua ambição, que ele adquirira, de maneira hábil e por pouco dinheiro.
Foi no dia seguinte, em que assinava o último dos contratos, parciais daqueles terrenos situados em Varenne, que o antigo operário conduziu os pedreiros no local e tratou de lançar os fundamentos de suas futuras combinações.
Batifol tinha razão para não perder tempo. Ele via aproximar-se o momento em que, finalmente, lhe ia ser permitido dar maior amplitude a seus projetos. O velhaco vira passar mais de uma vez pelo rio o tio Ruína; várias vezes mesmo lhe tinha dirigido a palavra, sem que o velho pescador lhe desse ensejo para prolongar a conversa.
Quando Huberta saiu da cabana, carregando o feixe de redes, que seus braços alvos e roliços seguravam, Batifol reconheceu, imediatamente, a moça que acompanhava o velho pescador. Mas, pela primeira vez, reparou que ela era bonita. Mordeu os lábios até fazer sangue; o seu olho vivo acelerou o movimento oscilatório, o seu olho morto lançou uma faísca, e com a extremidade do metro, que segurava na mão, tocou 1o de leve a nuca da moça.
Huberta voltou-se, e, à vista dessa estranha fisionomia, dessa pálpebra trêmula, ela entoou uma cantiga escarninha, que acentuou ainda com uma risada.
Mas o tio Ruína, que caminhava a alguns passos de sua nela, não pôde suportar o que considerava um insulto. Arrancou o metro das mãos do fabricante e quebrou-o em mil pedaços, que atirou a seus pés.
O primeiro movimento do senhor Batifol foi procurar opor-se ao que considerava um ato de vandalismo; quando os pedaços lhe caíram aos pés, apanhou-os, viu de relance que o mal era irreparável, e com uma praga tremenda: — Quebrou o meu metro; você o pagará, está ouvindo?! — exclamou.
— Quebrei o seu metro porque ele era insolente e, assim mesmo, velho como sou, tratarei você como tratei a ele, se continuar com seu jogo.
— Ah! Deixe, papai! — disse Huberta. — Não se deve fazer casos de tolices como essa. Insolente! Bem ele o quereria ser, mas é feio demais: o seu físico não lho permite. Ele faz como os macacos; venha daí, papai, deixá-lo fazer caretas aos seus pedreiros!
— Tens razão, minha Loura, fizeste bem em segurar-me, porque eu teria sido capaz de cometer uma desgraça. Ah! Esses malandros de parisienses!
Esta última exclamação chegou aos ouvidos do senhor Batifol: — Todos os mesmos! — exclamou. — Falam mal daqueles que lhes permitem viver, canalhas! Mas, nós vamos ver, e, para começar, tu moras nessa casa?
— Moro, e depois? — disse Francisco Guichard em ar de desafio.
— Depois, é que me farás o favor, dentro de vinte e quatro horas, de fechar essa janela, que dá para a minha propriedade, e que não está nas condições da lei; estás ouvindo?
— Bem; então experimente a ver se a fecha! — disse o tio Ruína, brandindo um dos remos, ameaçador. — Basta tocar na minha janela!
— Não hei de ser eu quem vai tocar; vai ser o oficial de justiça, que eu te enviarei amanhã. Ele te há-de decidir a fazê-lo!
— Fechar a minha janela! — continuou o velho. — Ah! Eu direi aos juízes a razão pela qual você quer que eu a feche! É porque eu vejo dali a extensão do rio a jusante e porque não há meio, descortinando-o eu, de vocês roubarem os petrechos e o peixe da gente pobre, como costumam fazer, seus parisienses, que não prestam para nada! Não, não, a justiça é por demais justa para obrigar-me a isso, não haja receio!
— Ele está no seu direito, tio Ruína — disse um dos pedreiros, que se aproximara. — Não vá em juízo por causa disso, o senhor perderá.
— O seu direito! O seu direito de comer o ar e a claridade de um pobre cristão! O seu direito de privar-me daquilo que o bom Deus dá à gente?
— E não será somente isso — disse Átila Bati foi, num tom que a cólera tornava vibrante. — Esta pereira é tua? Bem, olha os ramos que se estendem pelo meu terreno. Abaixo Com ela. Vou mandar construir uma parede desse lado. Bem, vê se te lembras de fincar um prego nessa parede! Se te atreveres a violar os meus direitos, eu te faço engolir o teu casebre, o teu barco e a tua roupa velha!... Lembra-te da minha ameaça. — E, vocês, andem-me depressa, depressa com essa parede, tenho pressa de ver a casa levantada, a fim de mostrar a esse homem o que lhe estou prometendo. Vamos, andem com isso!...
O tio Ruína permaneceu alguns instantes mudo e quedo, como se o tivesse fulminado um raio. Depois, sacudiu os ombros e afastou-se...
CAPÍTULO VII
O senhor Batifol mandou construir a sua casa e, de acordo com a lei, Francisco Guichard foi intimado a tapar a janela que dava para o prédio vizinho. Ficou furioso, mas, por experiência, já sabia quanto custava ir contra as determinações da lei. Obedeceu.
Toda gente começara por fazer pouco do ex-operário, que havia medido, calçado, etiquetado as ruas do terreno que deixava de ser baldio.
Faltava-lhe, porém, o que ordinariamente constitui uma rua: casas. Mas, aqueles que riam, logo tiveram que passar para o seu lado. A solidão logo se povoou, o campo transformou-se em jardim e as sebes converteram-se em paredes de divisão.
O exemplo de Batifol eletrizou rapidamente os compradores de terrenos e cada um pôs mãos à obra. À medida que as pedras se elevavam, alinhando o rio, o movimento ia crescendo e aqueles que dispunham de algumas economias bem depressa se entregaram a uma febre de vilegiatura, mandando construir suas residências com maior ou menor riqueza arquitetônica.
A mudança radical da velha Varenne produzia em Francisco Guichard, naturalmente, o efeito que era de esperar. Quarenta anos de gozo pacífico e incontestado do rio e da região tinham constituído para o tio Ruína uma espécie de posse, que nunca ele imaginara ter de contemplá-la daquela maneira. Por isso, considerava os recém-vindos, fosse qual fosse a legitimidade dos títulos de posse que tivessem em seu poder, como bárbaros, invasores, inimigos, cem vezes piores do que os prussianos.
Entretanto, os hábitos e os trabalhos do tio Ruína e da Loura continuavam a ser os mesmos de outrora. Enquanto o sol se conservava alto no céu, permaneciam eles no rio, nos pontos onde, durante os cinco ou seis dias da semana, a revolução operada na região não se tornara sensível.
No domingo, ficavam invariavelmente fechados em casa. Era em vão que a Loura, cujo caráter não adotara a misantropia de seu avô, estimulada pelos ruídos alegres do baile campestre, que lhe chegavam aos ouvidos, implorava ao velho para que se sentasse num banco de relva, colocado sob os altos choupos, que estendiam os ramos sobre a casinhola: Francisco Guichard nunca o consentiu.
O senhor Batifol, é preciso dizer-se, não deixava de ser sensível ao desprezo de seu vizinho que não se dignava honrar com um minuto de atenção as maravilhas arquiteturais de sua casa, o que contribuía e não pouco para aumentar as queixas que contra ele alimentava. O ex-cinzelador compreendia, dificilmente, que alguém passasse perto do que chamava o seu monumento sem tirar o chapéu.
Mas o Sr. Batifol tinha contra o tio Ruína outra razão de queixa, ainda mais forte, talvez, do que a indiferença que o velho pescador mantinha contra a sua casa. Era a inveja do ofício. O senhor Batifol tentara, sem êxito, o emprego de todos os aparelhos de pesca. A sua falta de sorte tornara-se proverbial 12 quilômetros ao redor.
Entretanto e depois de haver deixado em liberdade o seu mau humor, o senhor Batifol pareceu suavizar-se. Mais de unia vez e sem se mostrar ofendido pela rudeza dos golpes, ele tentou entabular conversa com o velho pescador, a respeito da chuva e do tempo, sobre os seus reveses aquáticos, e as esperanças e as realidades da pesca; mas, ao mesmo tempo, ele havia-se humanizado sobretudo por causa de Huberta.
Primeiramente, contentara-se, quando a via surgir no limiar da cabana, em fazer agir telegràficamente os olhos desaparelhados, para exprimir a profunda admiração e a simpatia amorosa que sentia pela bonita vizinha.
Mas a alegria travessa da moça, que o senhor Batifol tomou por sinal de coragem, fez que ele se tornasse deveras atrevido, e começou a passar em frente da porta, de mãos abanando, cantarolando uma cançoneta brejeira de mau gosto.
Uma noite, Huberta havia saído. Embora tivessem chegado os belos dias da primavera, o dia fora frio e úmido. O tio Ruína, que passara no rio desde o nascer do sol até à noite, estava a secar a roupa a urna fogueira de folhas secas. O bom homem parecia sonhador, quando, subitamente, um ruído de passos precipitados, vindos de fora, o fizeram erguer a cabeça. No mesmo instante, pareceu-lhe ouvir um grito abafado e reconheceu nesse grito a voz de sua neta.
Era evidente que acontecera algum acidente a Huberta. O velho sentiu frio no coração. Pulou tão precipitadamente que derrubou o escabêlo em que estivera sentado, e correu à porta. Mal havia dado, porém, dois passos, a porta abriu-se e deu passagem à moça.
A neta parecia sob forte emoção, estava ofegante, como quem acaba de correr, fugindo. Entrando no quarto, correu o ferrolho da porta, com singular vivacidade, e atirou-se aos braços de seu avô.
— Que tens, Huberta?... Que aconteceu?... Que te fizeram?... — perguntou o velho, ansioso.
Depois, sem esperar resposta, como se houvesse pressentido que a pequena tinha sido exposta a algum perigo, correu para a margem do rio, numa vivacidade toda juvenil.
A margem estava deserta. O vento soprava e levantava ondas, que cintilavam na sombra, enquanto a silhueta móvel das árvores se curvava e levantava novamente.
— Mas entre, pai — dizia Huberta, que o seguira e o puxava pela blusa — que é que vai procurar lá fora, por um tempo destes?
— Ah! Se encontro aquele que procuro — murmurava o velho, ameaçando a massa sombria da casa de Batifol. — Se o encontro, farei dele dois pedaços, tão certo como São Francisco é meu padroeiro!
Depois, erguendo a voz, dobrando de cólera: — Mas onde é que esse covarde se esconde? Fala — disse bruscamente, voltando-se para o lado de sua neta. — Por que foi que gritaste, há pouco? Por que entraste em casa, assim amedrontada?
Huberta hesitava. Francisco Guichard, que o embaraço da moça confirmava em suas suspeitas, aproximou-se da porta da casa de Batifol e sacudiu-a com tamanha força que Huberta teve subitamente a coragem, que até então lhe havia faltado, de mentir: — Pai — disse ela — fui eu, como uma louca, que fiz medo a mim mesma.
— Medo?... Tu com medo? Tu que passaste noites inteiras deitada no barco a meus pés?
— Mas de quem quer o senhor que eu tivesse medo, se não há ninguém na rua?
— Estou vendo; não ha ninguém, o tratante foi abrigar-se por trás dos muros. Ah! Mas eu o farei sair da toca, mesmo que tivesse de demolir a casa, pedra por pedra.
— Mas não há ninguém na casa, como não se vê um transeunte na rua.
— Está bem; mas quando nós entramos, todas as janelas brilhavam como fogos de São João.
— É possível; mas isso há uma hora, o Sr. Batifol terá partido para Paris.
Depois, como que envergonhada de si mesma, pelas suposições do velho pescador: — Mas que está pensando, pai?
O tio Ruína não lhe deu resposta, mas foi à cata de uma pedra destinada a arrombar a porta do Sr. Batifol. Aquela demonstração aterrou Huberta: — Pai! — exclamou. — Que vai fazer? Juro-lhe que...
O velho olhou para Huberta, e estacou: — Está bem Loura, que é que tu ias jurar?
E a doçura com que foram ditas estas palavras contrastava de maneira estranha com a violência anterior.
A moça baixou os olhos e ficou muda.
O tio Ruína sacudiu a cabeça e deixou cair a pedra no chão.
Em seguida, pegando na mão de Huberta, levou-a para casa, depois de haver gritado contra a casa de Bati foi, como se as pedras e os tijolos o pudessem ouvir: — Não perderás nada por esperar, bandido!
CAPITULO VIII

O senhor Batifol foi não tinha razão alguma para acreditar na virtude; estava perfeita e muito sinceramente convencido de que a filha do pescador ficaria muito orgulhosa de ser objeto da preferência de quem se intitulava o maior burguês da Varenne.
E tinha caminhado para a frente com a sublime confiança da tolice.
A decepção foi cruel.
A mão delicada de Huberta não ofendeu severamente o rosto do galante proprietário que ia tomando atitudes de conquistador... mas em compensação havia causado profunda ferida a seu amor próprio.
Enquanto o tio Ruína descansava muito tranqüilamente, o seu rico vizinho ruminava projetos de vingança terríveis. Essa vingança tinha uma condição essencial: deveria ser de caráter econômico.
Após dez horas de insônia, julgou ter encontrado o que procurava.
Levantou-se logo que amanheceu e foi à casa do senhor Padeloup.
O senhor Padeloup era um ceramista da Praça, Royale. Trabalhava toda a semana e, ao domingo, tornava-se amador entusiasta de pomologia.
Embora fossem, apenas, seis horas da manhã, já ele descera ao seu jardim e contemplava amorosamente os ramos de umas pereiras, em que as pérolas rosadas começavam a aparecer de seus amentilhos amarelados.
O senhor Padeloup não deu tempo ao senhor Batifol de tomar a palavra. Apertou-lhe a mão e apontando para as suas árvores: — Veja que plantação! — exclamou. — E pensar que não tem mais do que um ano! Que promessas, Batifol, que promessas! Contei os botões, senhor, e só num ramo temos dezessete! Compreende, Batifol: são dezessete peras, das quais a mais pequena será mais volumosa do que a cabeça de uma criança!...
O senhor Batifol, enquanto o proprietário saboreava, em imaginação, os frutos deliciosos, fazia o elogio do terreno que devia produzir tais maravilhas.
Na conversa, percorreram dois terços do jardim e chegaram a um ponto em que ele fazia ângulo reentrante. Era a extremidade do jardim de Francisco Guichard, que cortava ao meio o terreno adquirido pelo ceramista, destruindo-lhe o conjunto.
Como hábil negociador, o senhor Batifol convencera Padeloup, quando este mostrava desejos de vir a ser proprietário na Varenne, que o pescador não iria recusar ceder alguns metros de terreno, necessários ao alinhamento projetado. Aquela parede quebrada constituía o desespero do senhor Padeloup.
— Se eu me chamasse Padeloup e fizesse tanto empenho desse pedaço de terra, Francisco Guichard já me haveria dado — insinuou Batifol.
— Como?
— Esse homem não possui outros recursos a não ser essa casinha, que nada produz e um quadrado de vinha, incapaz de alimentar duas pessoas.
Além disso, a pesca constitui para ele tanto uma paixão, como uma necessidade ou ganha-pão. Tirem-lhe a pesca e ele será obrigado a escolher entre a miséria e a sua paixão por essa cabana: ora, a escolha não pode ser duvidosa e, então, você poderá levantar a sua parede.
— Mas, como diabo hei de tirar-lhe a pesca? — disse Padeloup, batendo desesperadamente na cabeça.
— Tomando-a para você.
— Para mim? Para mim? Mas se eu nem sei quando um anzol prende um peixe pelo bico ou pela cauda!
— Fique tranqüilo; para tomar conta dela, ninguém lhe fará passar por algum exame. Contanto que pague o custo do arrendamento, o governo nada mais lhe pedirá.
Então, o senhor Batifol explicou a seu amigo e vizinho que o Estado, como proprietário dos cursos d'água e rios, concedia o privilégio àquele que oferecesse preço melhor e que Francisco Guichard só pescava no rio, em virtude da tolerância do arrendatário atual, que nele respeitava um direito consagrado pelo tempo. Mas que, se o arrendamento tivesse logo fim, se procederia a nova concessão. Propunha-lhe, portanto, juntar-se a ele, Padeloup, dizendo-lhe que, uma vez donos do cantão, teriam toda a liberdade de não continuar as tradições cordatas, que não hesitava em declarar abusivas e imorais, libertando o país desse devastador das águas limpas.
O senhor Padeloup ficou um pouco amedrontado com o maquiavelismo do plano que lhe desenrolavam diante dos olhos, mas estava por demais interessado não só em compreendê-lo mas sobretudo em apreciá-lo.
Se mostrou alguma hesitação em aceitá-lo, não foi porque tal plano iria contribuir para tirar o ganha-pão a um pobre, mas pelo escrúpulo, que iria despertar na alma rígida de um observador das leis.
O senhor Batifol dissipou todo e qualquer obstáculo, propondo ao ceramista com ele associar um terceiro personagem, o senhor Berlingard, pescador obstinado, que não poderia deixar de sentir antipatia pelo tio Guichard e por todos aqueles que nutriam alguma pretensão contra o despovoamento do rio.
Quinze dias depois desta cena, o senhor Batifol, em nome de seus dois amigos, entrou na posse dos direitos de pesca ao longo do braço do rio, que se estendia de Joinville até Charenton.
O caso provocou algum barulho na aldeia nova, contribuindo para aumentar a estima e a consideração que já cercavam um homem rico bastante para dispor de considerável soma em favor de seus prazeres. Quem ficou menos impressionado foi aquele que era mais diretamente ameaçado.
Que importava ao tio Ruína qual fosse o possuidor do privilégio que a seu ver era puramente imaginário?
O dia 15 de junho foi fixado para abertura da estação da pesca.
 Esse dia, que os pescadores chamavam renovação, era considerado por eles dia de festa. Nesse dia, Francisco Guichard subia para o seu barco, vestindo a sua blusa mais limpa e na cabeça o seu chapéu de cerimônia, velho objeto com seus vinte anos que servia, apenas, para essa ocasião.
Ao mesmo tempo, exigia que Huberta fizesse um pouco de toalete. A região podia mudar de aspecto, mas o tio Ruína é que não modificava os seus hábitos.
No dia 14, à tardinha, foi colocar as suas redes, estender os seus petrechos de pesca e as suas linhas, e no dia 15, pela manhã, saiu de casa, todo janota, na sua roupa solene.
Na margem, a afluência de gente era maior que a de costume. Os senhores Batifol, Padeloup e Berlingard formavam um grupo; Mateus, o barqueiro, os comerciantes de vinhos, seus confrades, todos os habitantes do que se chamava o "porto", todos estavam às portas; era evidente que toda gente estava à espera de um grande acontecimento.
Desde que tinha perseguido a moça, era a primeira vez que o antigo cinzelador se encontrava em presença dos habitantes da casinha.
Ao passar diante de seu rico vizinho, o tio Ruína carregou o sobrecenho e tartamudeou algumas palavras ameaçadoras. Para desviar a tempestade, que, inevitavelmente, o pai estava prestes a atrair sobre a sua cabeça, a Loura tratou de chamar as atenções para si e começou a cantar uma canção alegre.
— Senhor Guichard — disse, a alturas tantas o ex-cinzelador, cuja voz demonstrava intensa emoção. — Senhor Guichard, desejava dizer-lhe duas palavras.
— Que é que pode haver de comum entre um homem honrado e o senhor? — respondeu o tio Ruína, chegando logo ao diapasão mais elevado da cólera. — Estou aqui; o senhor não pode insultar uma pobre moça, o senhor que faz dinheiro de todos os bens de Deus, o senhor que os estima apenas pelo que se lhes paga...
— Senhor Guichard — interrompeu Bati foi, mudando de cor — se começa por dizer injúrias, a coisa vai acabar mal.
— E como é que pode acabar aquilo em que o senhor se mete, mau comerciante de limalha? Não se aproxime do meu barco ou apanha um golpe de remo que lhe deixará o focinho tão achatado que nem a alma.
— Quero perguntar-lhe por que é que o senhor está munido de utensílios que podem servir para a pesca e qual o seu direito de pescar no canto que me foi arrendado?
O senhor Batifol dissera estas palavras num tom de grande solenidade; mas, longe de elas assustarem o tio Ruína, pareceram fazer cair a sua raiva.
A sua boca abriu-se, enorme, e uma risada gutural saiu-lhe da garganta.
Nesse momento, um pássaro de vôo brusco, precipitado, rápido, dobrava a ponta da ilha, fazendo brilhar ao sol as cores da safira, de topázio e de esmeralda de suas asas. Aflorou a superfície da água que se separava sob o seu peso e se espalhava num milhar de pérolas irisadas; depois, soltou um grito estridente e voltou a aparecer com um peixe no bico.
— Olhe esse pássaro — disse o tio Ruína ao senhor Batifol, apontando-lhe o pássaro. — Pergunte-lhe em virtude de que direito pegou ele esse peixe e, logo que o conhecer, já o senhor não terá necessidade de perguntar-me qual o meu, pois é o mesmo.
— Aquilo que o senhor acaba de dizer é contrário à noção de propriedade...
— Não perca o tempo em discutir moral com esse pândego ! — exclamou o senhor Berlingard, afastando bruscamente seu sócio. — Você vai ver como a gente se explica. Tio Ruína — continuou, dirigindo-se ao pescador — o rio pertence-nos a nós que o pagamos, e, se o senhor tiver a idéia infeliz de lançar na água um anzol, por mais que se esconda por trás dos vimeiros, ocultando-se entre os juncos, como é seu costume, seu velho rato d'água, eu lhe farei ver com que lenha se esquenta Berlingard.
Aquelas ameaças nada mais fizeram que dobrar a alegria de Francisco Guichard.
O tio Ruína tomava esse acontecimento com uma alegre filosofia, que estava tão fora de seus hábitos que, mau grado a inquietação que lhe fazia experimentar a sua apreciação mais exata dos direitos de cada um, Huberta se deixou arrastar pela situação, na qual, aliás, a sua alegria natural parecia descobrir grande encanto. O tio Ruína deu, então, dois empurrões furiosos no barco que o fez emborcar no rio, sob os aplausos de todos os circunstantes.
Infelizmente, o desfecho da cena não correspondeu à alegria do começo.
O guarda-pesca, que o senhor Berlingard mandara chamar à pressa, apesar de sua viva predileção por Guichard, não pôde deixar de verificar um delito.
Com grande surpresa do tio Ruína, mais tarde, os tribunais deram razão aos senhores Batifol e companhia, Condenando o velho pescador à multa e custas, com uma indenização a favor dos queixosos. Ao todo, trezentos francos. Para pagá-los. foi preciso vender a pequena vinha da encosta.
CAPÍTULO IX
Com geral espanto, o tio Guichard suportou aparentemente a decisão do caso com indiferença perfeita.
Mas, é bem compreensível, essa indiferença era fictícia; estabeleceu-se a luta francamente entre ele e os chamados parisienses.
A pesca lícita, autorizada, era-lhe proibida, em pleno dia; lançou-se à pilhagem secreta, recorrendo a todas as astúcias que duzentos anos de tradição lhe haviam legado.
Com o dinheiro restante da venda de sua vinha, comprou um segundo barco, que não apareceu na Varenne, mas ficou amarrado, na confusão das ilhas do moinho de Bonnoeil Comprou todos os petrechos que o espírito conservador das administrações proibiu nos cursos d'água. Durante o dia, dormia; e, por mais ingrato que fosse o tempo, consagrava as noites a saquear o rio. Animava-o, aliás, a guerra surda de Huberta contra os parisienses.
Huberta representava, junto de Francisco Guichard, os forrageadores, que fazem mal ao inimigo, não tanto por vantagem pessoal, como pelo prazer de prejudicá-los. O velho pescador era o animal feroz que entra no campo cultivado e estraga tudo a seus pés. A Loura era o macaco que destrói tudo quanto suas mãos podem alcançar. Era ela que, não satisfeita com a desordem que as redes de arrasto introduziam entre os petrechos e as linhas de fundo que os três amadores iam acumulando no leito do rio, sabia, com um golpe de gancho, habilmente dirigido, rebentar os arcos das redes, quebrar as nassas, junto das quais passava o barco do avô; era ela, também, que, todas as vezes que o diabo fazia cair algum desses engenhos na suas malhas, atirava com ele, maliciosamente, às margens; finalmente, era ela quem colocava peixes já em decomposição nos anzóis do Sr. Batifol.
O tio Ruína solapava-lhes o negócio pela base. Naturalmente, as suspeitas de tudo recaíam logo sobre Francisco Guichard.
O senhor Batifol pôs-se a espiá-lo, com a consciência que lhe era habitual, mas nada veio justificar as acusações.
Ao despontar do dia, o homem, em mangas de camisa, esfregava os olhos e espreguiçava-se à porta de casa. As roupas do tio Ruína estavam limpas e o seu calçado limpo, também, senão luzidio, sem qualquer traço de umidade ou mancha de vasa; o barco, intacto e imaculado como seu dono, balouçava-se na corrente; Huberta dava as suas voltas na casinha, cuidando do governo da residência, com o ardor e o aspecto vivaz de uma rolinha. A sua distração consistia em sentar-se, depois do almoço, ao pé da cerca de pilriteiro e cantar as suas mais belas canções para seu avô, que a escutava com olhar melancólico, contemplando o rio.
Tendo estudado durante três dias os atos e gestos de seus vizinhos, o senhor Batifol, muito a contragosto, chegou quase a convencer-se da inocência deles.
Entretanto, restava-lhe uma esperança. Duas vezes por semana, Huberta atravessava o rio, voltando a hora bastante adiantada da noite.
Onde teria ela ido?
Era esse um enigma, que espicaçava ao mesmo tempo a curiosidade e não menos o interesse do senhor Batifol, assim como a paixão que lhe inspirara a jovem.
Pensou que, talvez, a Loura tivesse arranjado um apaixonado, suposição que lhe causou muito azedume. Resolveu, pois, permanecer em observação até poder penetrar o segredo.
A partir desse dia, em que Batifol pensara nas razões que podiam dar motivo às demoradas ausências da moça, ele perdera a calma e o sangue frio que constituíam toda a sua força. Até então, o desdém de Huberta não havia despertado nele mais que uma espécie de despeito banal. Agora, ficava muito surpreso por sentir um ódio profundo por aquela criatura. Enganava-se: esse ódio era amor; travava conhecimento, pela primeira vez, com tal sentimento; somente, tomava-o ao contrário; segundo a especialidade de seu organismo, o senhor Bali foi começava por onde os outros terminam.
Uma tarde, divagava ele nesse dilema inquietante, que encontrara meio de insinuar-se entre as preocupações aritméticas r queridas cio Sr.
Batifol, quando bateram à sua porta, Era o empregado do senhor Berlingard, obrigado a ficar em Paris por via de seus negócios, que trazia uma carta de seu patrão: "Agradece a Deus que te haja dado uma esposa que se parece contigo.
Quantas desgraças o grão de malícia, que acompanha sempre o grão de beleza, não te teria atraído. Escarnecem de ti, ludibriam-te, a não ser que sejas tu mesmo que, seduzido pelas graças aquáticas da donzela, não faças pouco dos amigos. Julgas que a garota está ocupada em costurar ou em remendar roupa e, duas vezes por semana, ela carrega ao mercado cestas cheias de nosso peixe. Chora sobre a tua vergonha, Batifol! Não me atrevo a dizer-te: vinguemo-nos !"
Em lugar de chorar, como lhe aconselhava o amigo Berlingard, o senhor Batifol lançou breve suspiro de satisfação. Despachou o mensageiro.
Bastara-lhe um minuto para deduzir que era durante a noite que Francisco Guichard se dedicava a suas tenebrosas operações.
O senhor Batifol vestiu uma blusa, por cima da roupa, pôs na cabeça um boné, pegou num pequeno cajado e colocou a mão no botão da campainha, com a idéia de ir encontrar o guarda-pesca. A sua mão, todavia, não terminou o movimento que havia começado. Ocorreu-lhe um pensamento mau: o de atraiçoar aqueles que Berlingard chamava seus amigos!...
Os três ou quatro dias, durante os quais o senhor Batifol havia discutido contra ele mesmo as probabilidades dos amores de Huberta, haviam completamente modificado as suas opiniões a respeito do belo sexo.
Huberta perdoar-lhe-ia, não tinha dúvida, as questões que tivera com o tio Ruína, o primeiro processo e suas conseqüências, quando os atribuísse ao desespero do seu afeto, mas, se prolongasse tal perseguição, podia muito bem comprometer as suas esperanças.
No dia seguinte, era um sábado, um dos dias em que Huberta ia a Paris, o senhor Batifol atravessou o rio, antes da hora em que a moça costumava pôr-se a caminho, e escondeu-se no pequeno bosque, que se liga ao parque do castelo de Retz. Desse posto de observação, dominava a Varenne e o rio. Enxergou Huberta no barco do pescador. Huberta desceu; em vez de subir para Chennevières, entrou no caminho de Sucy que acompanha, paralelamente, o rio.
O senhor Batifol seguiu-a, tendo o cuidado de manter-se a meio-caminho, dissimulando-se por trás das vinhas, que estavam em plena vegetação.
Pôde assim caminhar a dez metros da moça sem ser visto por ela, sem que ela ouvisse os passos do ex-cinzelador, amortecidos pela relva.
Chegando ao ponto em que o regato desemboca no Marne, Huberta sentou-se no talude do pequeno curso d'água.
O senhor Batifol deitou-se de barriga no chão, enterrando-se na erva, mas afastando-a devagar, para não perder de vista a pequena do tio Ruína, que lhe ficava em face, tão pertinho que ouvia o ruído de sua respiração.
Naquele instante, a Loura estava realmente encantadora, sob o lenço de quadrados vermelhos e brancos, que sustinham bastante mal a luxuriante cabeleira.
A precipitação da sua corrida fazia ressaltar a frescura de sua beleza. A sua coloração estava animada, os olhos brilhantes, os lábios entreabriam-se vermelhos, como a flor da romãzeira.
Tirou os sapatos, depois tirou as meias e entrou, resolutamente, no rio.
O senhor Batifol estava tão fora de si mesmo que por pouco lançava um grito de alarma.
O Marne é de leito desigual e, conseqüentemente, perigoso. Parecia-lhe que a moça ia afogar-se em algum abismo. Felizmente, porém, ou infelizmente para ele, recordou-se de ler ouvido dizer que existia um vau nesse lugar.
Huberta continuava seu caminho, equilibrando-se o mais que podia, abafando um gemido de dor, quando os seus pés topavam num calhau acerado ou escorregavam no musgo de alguma pedra.
O senhor Batifol, que se erguera um pouco, a fim de refletir nos perigos que iria encontrar, se se afastasse do seu caminho, atirou-se ao vau do rio, sob pena de apanhar algum resfriado, o que ele abominava.
O amor havia-o enlouquecido como a qualquer outra pessoa!
CAPÍTULO X
O senhor Batifol caminhava atrás de Huberta, aproximando-se cada vez mais da jovem. Ela atravessou a ilha, em todo o comprimento, desceu para a margem e, semelhante a uma pastorinha, saltou de pedra em pedra, a fim de vencer um pequeno arroio, que separava a ilha das outras duas ilhotas paralelas, que a acompanham.
Era entre essas duas ilhotas que Francisco Guichard escondia o barco que lhe servia para a sua pesca noturna.
O senhor Batifol escondeu-se pela segunda vez entre os silvados.
Huberta pegou numa cesta que se encontrava cm lugar secreto do barco, e encheu-a com peixes de toda espécie; depois, carregou o seu fardo ao ombro e retomou o caminho, por onde tinha vindo, para ir à ilha maior.
O senhor Batifol julgou que era a hora favorável de mostrar-se. Saiu do seu esconderijo e apresentou-se em toda a sua altura.
Essa brusca aparição espantou a moça de tal forma, que lhe escapou das mãos a cesta que acabara de retomar, espalhando uma quantidade de peixes de todas as cores e de todas as espécies, que começaram a saltar na erva, enquanto outros, aproveitando a depressão do terreno, escorregavam pelo talude é retornavam ao seu elemento.
— Ah! Ah! — disse Batifol, fazendo um esforço sobre-humano para iludir a sua fisionomia, que, contra a sua vontade, permanecia terna e sorridente. — Eis, finalmente, presa em seus artifícios, a bela selvagem!
Huberta, surpreendida em flagrante delito, ficou pálida, muda e trêmula. Os seus joelhos sucumbiam sob o peso do seu corpo e lágrimas do tamanho de punhos começaram a deslizar-lhe pelas faces.
O senhor Batifol explodiu numa ruidosa risada. Essa risada significava: "creio que a acolhida que vai fazer-me, hoje, não será semelhante àquela que recebi de sua parte, quando conversamos juntos".
— Ah! Vocês arruínam nossos petrechos de pesca! — continuou, retomando a sua voz natural. — Roubam-nos os nossos peixes!
— Eh! — retorquiu a Loura, com um sorriso zombeteiro. — Pese tudo isso, senhor Batifol. Serão três moedas, não acha?
— Mesmo que fossem cem, julga que eu não seria capaz de pagá-las?
— Oh! Toda gente sabe perfeitamente o contrário; mas, diga, veio sozinho para surpreender-me e não está ninguém consigo na ilha?
— Fique tranqüila, ninguém pode ouvir-nos.
Huberta escapuliu por entre os salgueiros. Batifol tomou essa fuga por uma negaça: — Se fugir, tenha cuidado com o processo! — exclamou ele, como para provar-lhe que conhecia a brincadeira.
— Ah! Que me importa o processo — replicou Huberta. — Para intentar fazê-lo, seriam precisas testemunhas, meu lindo amigo; se o senhor é guarda, mostre a sua placa, mas essa placa, que transformaria um tratante como você, como diria papai, você não a tem, louvado seja Deus!
Essa frase foi a ducha de água gelada que caiu sobre as ilusões do senhor Batifol, mas, longe de apagar a fogueira da sua paixão, dobrou-lhe a efervescência. Atirou-se a perseguir Huberta, que o peso da cesta, contendo parte dos peixes, e os ramos que era obrigada a afastar para desembaraçar o caminho, demoravam a marcha, Todavia, a moça era tão leve e tão ágil que o senhor Batifol não a teria alcançado se ela não tropeçasse num tronco e caísse de costas. Antes de ter tempo de verificar o acontecido, o ex-cinzelador estava junto dela.
No mesmo instante, pareceu-lhe distinguir no rio o ruído cadenciado de vários remos na água do rio.
— Socorro! — gritou ela. — Socorro!
O senhor Batifol comprimiu-lhe a boca com tanta violência, que Huberta se viu perdida. Faltaram-lhe as forças e perdeu os sentidos.
Mas, naquele mesmo instante, mão hercúlea agarrou Batifol pelo colarinho, ergueu-o do chão, como faz o caçador ao levantar uma peça de caça e, demorando-o alguns segundos, suspenso a dois pés do solo, atirou-o para o meio de um espesso silvado.
Aquele, que acabava de dar provas de uma força muscular incomum, era um homem de seus vinte e quatro ou vinte e cinco anos. O seu vestuário compunha-se de um colete com faixas vermelhas e pretas, uma calça larga de pano preto, seguro na cinta por uma tira de couro, da qual pendia uma faca de cabo de buxo, presa em sua bainha. Este vestuário marítimo completava-se com um chapéu de palha de feitio baixo, em cuja faixa se lia, escrita em letras maiúsculas: La Mouette.
Logo que se desembaraçou do senhor Batifol, virou-se um instante a olhar para Huberta tão fleumàticamente, como se o estado da menina não reclamasse qualquer cuidado.
— Com um milhão de diabos! — exclamou, depois. — Uma verdadeira Psique, a pose, o perfil, a pureza de linhas, o sentimento, tudo! Um verdadeiro modelo como eu precisava para a minha exposição.
E, voltando-se para o senhor Batifol: — Com os diabos, não tinhas mau gosto!...
No mesmo instante, um segundo jovem juntou-se a ele. Esse não trajava roupa de marinheiro; vestia paletó e um boné na cabeça.
— Ricardo! Ricardo! Que está pensando? Não vê que essa moça desmaiou?
— Meu caro Valentim — replicou o marinheiro-artista — a mulher foi mandada ao mundo para alegrar os olhos do homem, graças à sua beleza.
Esta jovem é singularmente bonita no seu delíquio: creio que é servir os seus interesses e a vontade da Providência prolongar este estado o mais tempo possível...
— Vai fazer-me Condenar com suas tolices. — Manuel!... Bota Curta, traz um pouco de água!
— Ninguém se mova antes de um sinal do capitão. Ah! A goleta La Mouette é uma escuna maravilhosa, com tripulação bem disciplinada...
— Em nome do céu, chame por eles, Ricardo!
Ricardo pegou num assobio de metal, que trazia suspenso ao pescoço, e soltou um apito agudo e prolongado.
Dois novos indivíduos, vestidos exatamente como o primeiro, que havia socorrido Huberta, acorreram.
— Água, meus amigos, água! — repetiu Valentim.
— Ninguém se mova, se faz conta da vida! — disse Ricardo com uma voz de melodrama. — Tudo ficou em ordem, a bordo?
— Sim, capitão! — disseram ao mesmo tempo os dois marítimos.
— Bem; você, Manuel, corra à embarcação, traz um frasco de sais, que está no paiol dos víveres...
— Mas, nada disso — insistiu Valentim — água...
— Ao mesmo tempo que trouxer os sais, traga, também, um pouco d'água. A você, Bota Curta, reservo-lhe o comando de uma prisão.
— Uma prisão, capitão? — respondeu Bota Curta, como um eco.
— Sim, está ali atrás dessa árvore — continuou o capitão, designando Batifol que, todo atarantado, não se atrevia a fazer qualquer movimento. — Olha-me esse orangotango; se ele tentar fugir, já sabe o que deve fazer: abra-lhe a barriga...
Bota Curta deu mostras da satisfação, que lhe causava a ordem que acabara de receber, fazendo para Batifol uma terrível careta; mas, no meio da careta, deteve-se um instante: — Mas eu conheço esta cara, é meu conterrâneo, chama-se Batifol.
Não é preciso recomendar-me esse cara: vou vingar lindamente os camaradas...
Durante esse colóquio, os dois marinheiros tinham regressado; Valentim aspergiu com água o rosto e as mãos da moça, introduzindo-lhe na boca algumas gotas de aguardente. E Huberta recuperou os sentidos.
Abrindo os olhos e vendo-se no meio de pessoas que lhe eram desconhecidas, de vestes estranhas, recordando-se do perigo a que havia escapado, desatou num choro convulso. Mas, nesse momento, enxergou Batifol, pálido, aterrado, olhos esgazeados, cabelos arrepiados, ao redor do qual Bota Curta dançava a dança do escalpelo, que enfeitava com as novidades de sua invenção. Esse espetáculo grotesco fê-la desatar numa grande gargalhada.
Cientes todos de tudo que acontecera com a moça, Valentim aproximou-se do feroz capitão: — Ora, vejamos, você compreende — disse — que necessitamos de achar um grão de motivo no seu cérebro maldito; compreende que devemos tomar um partido sério, a respeito deste tal de Batifol.
— Já está tomado, e vamos tratar de executá-lo — respondeu Ricardo que, repentinamente, ficou muito sério.
— Basta de loucuras, só temos uma coisa a fazer: é conduzir esse filho de Charenton ao comissário de polícia, junto ao qual a moça deverá formular sua queixa, que nós apoiaremos com o nosso testemunho.
— O senhor Batifol perdeu a cor.
— O comissário de polícia? — exclamou indignado o capitão. — Saiba, Valentim, que a bordo do meu navio eu sou o rei e, conseqüentemente, senhor desta ilha, que eu poderia ter descoberto e que todos os delitos que dentro dela se cometerem estão sob a minha alçada.
— Quando põe o pé no seu mau barco, você se torna louco, de uma hora para outra. Esse homem cometeu uma ação que a lei prevê e pune.
Temos de entregá-lo àqueles que representam a lei — insistiu Valentim.
— Senhores, meus senhores! — arriscou Batifol, ao qual a perspectiva que acabavam de invocar causava mais medo do que havia causado a mímica da equipagem da escuna.
— Silêncio! — disse Ricardo, com voz terrível.
— Mas, finalmente, senhores...
— Estão recomendando silêncio — repetiu Bota Curta, acompanhando a injunção com um gesto que não comportava réplica.
Tenha cuidado, Ricardo — disse Valentim. — Com essas violências, vai fazer recair sobre nós a animosidade de todos.
— Senhor Valentim — tornou o capitão — o senhor é passageiro a bordo do meu navio, e nessa qualidade está convidado a consentir que o chefe cio navio resolva seus pequenos problemas como melhor lhe parecer.
Depois, baixando a voz, em surdina: — Animal, deixe-me fazer o que quero. O comissário de polícia mandaria embora esse sujeito apenas com uma advertência e tudo estaria terminado; ora, eu quero que as coisas terminem de outra forma.
Valentim calou-se, ou porque estivesse convencido, ou porque conhecesse melhor o seu camarada, para compreender que não haveria vantagem em apelar para a sua razão.
— Vou convocar o pessoal da equipagem para um conselho de guerra — disse o capitão.
Os dois acólitos lançaram gritos de júbilo.
Ricardo escolhera para a sua cadeira de juiz um tronco de árvore, no qual se sentara a cavaleiro. Já se sentara, com a sua faca espetada ao lado e, para conservar a impassibilidade que deve distinguir sempre a justiça humana, acendera o seu enorme cachimbo que, como de costume, trazia entre a fita do chapéu.
— Tragam o preso! — ordenou.
Os dois marinheiros sacudiram Bati foi, trazendo-o em face daquele que ia ser seu juiz.
Valentim e Huberta aproximaram-se igualmente; esta, inquieta e surpresa com as maneiras e linguagem, novas para ela, daqueles marinheiros e muito intrigada pelo que iria acontecer. O moço, esse, erguendo os ombros, não parecia opor-se â execução da sentença, fosse ela qual fosse, pronunciada pelo tribunal.
— Pelo que eu ouvi dizer, por um dos homens da minha equipagem, o senhor é burguês? — começou o capitão Ricardo.
— Sem dúvida — respondeu Batifol, que começava a compreender que se tratava de uma comédia.
— E não se envergonha de confessá-lo? Está fazendo pouco de mim, creio eu. O senhor é burguês, e é feio e idiota, já lhe disse — tornou o capitão. — Como pode ignorar que, reunindo esses três vícios, lhe é proibido abraçar uma moça?
— Senhor — respondeu Batifol, a quem o exagero da acusação dava coragem — eu lhe perguntaria por que motivo, depois de haver-me maltratado, se constitui meu juiz.
— Sou seu juiz porque o senhor é culpado — replicou o impassível capitão — porque o senhor se arriscou a deitar a mão sobre esta jovem. O seu crime é passível de morte!
O senhor Batifol deu de ombros, Agora, já tinha a certeza de que o desfecho da cena não seria tão desagradável como supusera. Mas, à palavra morte, Huberta, que levará a coisa a sério, precipitou-se para o capitão-juiz: — Ah! Senhor, não diga isso, o senhor me causa medo. Você compreende? O senhor parece tão extravagante e tão feroz... ao mesmo tempo, que não sei se o senhor está rindo ou se fala a sério. Oh! Senhor, deixe-o ir embora; pela minha parte, perdôo-lhe, pode ter a certeza; de resto, foi meu pai que primeiro teve as suas desavenças com ele; nós não tínhamos o direito de pescar no rio que esse senhor alugou. Oh! Eu jamais me -consolaria se acontecesse alguma desgraça a alguém por minha causa!
— Escute, Batifol, e aproveite essa generosidade, se é capaz de compreendê-la, seu atrevido. Em consideração a esta graciosa menina, quero comutar-lhe a pena. Ajoelhe; quero dar-lhe a ocasião de mostrar-se tão generoso como um grande senhor, ou como um marinheiro, que recebeu o seu soldo. Dê dez mil francos de dote a esta moça e vamos todos comer uma caldeirada de peixe em casa de Jambon, em Creteil. Aceita?
— Dez mil francos a esta gatuna de peixe? O senhor toma-me, então, por algum imbecil, meu belo amigo marinheiro ?
Valentim logo viu que o capitão não se sairia honrosamente da negociação e interveio: — Escute — disse a Batifol — eu não lhe pedirei que dê dez mil francos a essa pobre moça, por dois motivos: primeiro, porque ela me parece honrada e, como tal, não os aceitaria e segundo, e julgo este motivo o mais forte, porque, embora o reconheça um perfeito imbecil, o senhor, com isso, não concordaria, para reparar males por maiores que fossem, em privar-se de seu dinheiro. Mas o senhor vai imediatamente entregar àquela que o senhor pretendeu fazer sua vítima uma licença de pesca para seu pai, quando não, palavra de honra, serei eu que irei denunciá-lo, não ao comissário de polícia, mas ao procurador do rei.
A excentricidade do dono da escuna havia inspirado tanta confiança a Batifol que, embora a voz breve e severa de Valentim e a expressão enérgica de seu olhar indicassem que não estava representando uma comédia, o ex-cinzelador respondeu: — Não darei, nem dinheiro, nem a licença de pesca livre e, se o senhor se atrever a pôr-me ainda a mão, serei eu que Irei procurar o procurador do rei, está compreendendo?
O capitão pareceu vivamente contrariado com ver o seu amigo tomar a palavra: — Embora a intervenção de um passageiro num caso de justiça — disse — esteja fora de todos os hábitos marítimos, estou de acordo com a modificação que meu amigo introduziu na minha proposta, apenas com a diferença de que, em lugar do procurador do rei, é o porão úmido cuja alternativa lhe deixo.
— Sim, sim, o porão úmido! — exclamaram ao mesmo tempo os dois marujos.
— Vá para o diabo! — fez o ex-cinzelador, para o qual aquelas duas palavras eram grego que ele não compreendia. — Se não me soltarem imediatamente, juro-lhes que vou imediatamente apresentar uma queixa contra vocês e contra essa lambisgóia, cujo delito farei testemunhar.
E com estas palavras, que o Sr. Batifol pronunciou com voz majestosa, quis afastar-se, mas a mão onipotente do dono da escuna caiu novamente em cima do ombro do ex-cinzelador, abatendo-o a seus pés. Ao mesmo tempo, Bota Curta tirava do bolso um pedaço de corda e amarrou-lhe as mãos.
— A licença de pescar! — repetiu Ricardo.
— Isso, nunca! Vocês são covardes, estão abusando de sua força; mas, nós vamos ver que figura vão fazer diante da verdadeira justiça...
O senhor Batifol não concluiu a sua frase.
Bota Curta passou uma corda por baixo dos braços do ex-cinzelador, atirando a outra extremidade por cima de um ramo de salgueiro, que dominava o rio, e ajudado pelo camarada içou fortemente a referida corda, de sorte que Batifol ficava suspenso a dois pés acima da superfície da água.
— Atenção ao comando! — disse o capitão da escuna, enquanto Valentim se dirigia ao paciente, procurando fazer-lhe compreender que o seu interesse consistia em assinar a permissão pedida.
O terror começava a agir fortemente na alma do ex-cinzelador, mas o capitão Ricardo, que fazia questão de não deixar perdidos aqueles preparativos tão regulamentares, fez soar um formidável apito. Os dois homens soltaram logo a corda e o senhor Batifol verificou, imediatamente, que ia descendo para o fundo de um abismo, que se fechou em cima dele.
Logo que o senhor Batifol desapareceu no torvelinho, o capitão, formalista até ao fim, puxava do relógio para contar os segundos durante os quais a vítima devia permanecer mergulhada.
Felizmente, Valentím atirou-se à corda, puxando-a com força, apesar das in junções de seu amigo e da oposição dos dois marujos, conseguindo reconduzir o ex-cinzelador à superfície da água.
— Estou de acordo — disse Batifol, agitando as mãos e cuspindo a água que havia engolido — estou pelo que vocês quiserem, mas, por favor, tirem-me daqui... Socorro! Socorro!
Valentim estendeu-lhe a mão e conduziu-o para bordo.
O senhor Batifol ficou tão fortemente impressionado e com tanto medo do porão úmido, que foi o primeiro a pedir papel para desembaraçar-se quanto antes das exigências de seus perseguidores.
Em seguida, Batifol escreveu e tornou a ler o seu compromisso, sendo advertido que, se a ele faltasse, estaria sempre em tempo de ver formulada a queixa com que havia sido ameaçado.
CAPÍTULO XI
Por muito consciente que praticasse o comando da escuna La Mouette, esse comando não constituía a única profissão de Ricardo Loullier; além disso, era escultor de tempos a tempos ou quando não tinha coisa mais urgente a fazer.
Não que lhe faltasse talento; ao contrário; tudo parecia sorrir ao jovem nos seus começos no mundo da arte. Poucos anos antes, tinha ele exposto um grupo que representava Prometeu encadeado no seu rochedo, com o abutre a roer-lhe o flanco. O êxito foi grande. O escultor ganhou uma medalha de segunda classe e um amador inglês adquiriu a obra por trinta mil francos.
Com a certeza de passar à posteridade, julgou-se perfeitamente quite com o futuro e não fez outra coisa senão "comer" as moedas ganhas, na Inglaterra, o que não demorou muito. Mas, com a morte do pai, herdou cerca de oitenta mil francos, podendo, assim, prolongar quatro anos a sua vida de dissipação e luxo.
Quando o escultor percebeu o fim da sua opulência, num dia de tédio mais que de sabedoria, tentou retomar o seu trabalho, mas a mão entorpecera-se-lhe durante a ociosidade, e sentia o cérebro paralisado.
Atirou fora, então, com amargo desencanto o pincel e as tintas, mas a necessidade coagiu-o a recomeçar novamente o seu trabalho. Fez uma estátua que foi recusada no Salão. Ricardo atribuiu o fracasso a inveja causada pelo seu primeiro êxito e gritou contra a iniqüidade.
Num acesso de cólera, quebrou a estátua.
Como recurso supremo, experimentou trabalhar para o comércio, modelar relógios de mesa, candelabros, ornatos para os negociantes de objetos de bronze. Mas, para render alguma coisa, esse serviço requer uma atividade que compense a modicidade do preço com que tais trabalhos são pagos. A sua preguiça ficou espantada e o orgulho depressa lhe extinguiu a nova tarefa. Declarou que não podia prostituir, assim, o seu talento, admirado em toda a França. Preferiu vegetar na ociosidade e na indigência mais absolutas, comendo quando a sorte no bilhar lhe era favorável, muito apreciado como gênio incompreendido e calorosamente querido no café de onde não saía senão para dormir.
Foi nessas condições que travou conhecimento com Valentim, ourives de profissão. Valentim tinha, então, vinte anos. Era um enjeitado, educado pela caridade pública. Pequeno, franzino, esperto, resgatando, apenas, as suas imperfeições físicas pelo encanto de sua fisionomia, liberal e modesta, inteligente e resoluta.
A natureza tinha-o amplamente compensado, dando-lhe uma alma de elevação pouco comum. Numa idade, em que as enganadoras miragens ocultam em geral a vista do futuro, cedo ele compreendera que, na sua humilde esfera, o trabalho era o único objetivo para o qual devia tender.
Como todos aqueles que não foram iniciados, ele alimentava ilusões estranhas a respeito da arte, considerada como a mais sublime expressão da inteligência. Os artistas eram para ele uma espécie de semideuses encarregados de pôr os homens em contacto com as regiões celestes.
Quando soube que um desses semideuses estava a seu lado, que morava numa mansarda tão miserável como a sua, que era mais pobre do que ele mesmo, pobre órfão, sentiu uma dolorosa ternura pelo pobre vizinho, que se tornou objeto de seus pensamentos constantes e de sua profunda simpatia.
Entrando pela primeira vez no quarto do artista, ao ver a desordem mais triste ainda do que revelava o mísero aposento, duas grossas lágrimas deslizaram ao longo das faces de Valentim. Procurou Ricardo em silêncio, pegou-lhe a mão e beijou-a como faz o servo de um rei que volta a encontrar o seu amo na indigência e no exílio.
O jovem operário pusera tanta simplicidade na grandeza desse gesto humilde, que o escultor, que ria de tudo e já nem acreditava em si mesmo, se sentiu comovido e não teve vontade de fazer troça.
Entretanto, após alguns dias de intimidade, Valentim verificou que o seu ídolo tinha pés de barro; mas a afeição já viera e seu coração oferecia-lhe mil e uma razões para legitimar uma amizade que repugnava à sua precoce sabedoria.
Quando as confidencias, que, reciprocamente, faziam um ao outro, autorizavam Valentim a imiscuir-se na vida de Ricardo, tentou fazer-lhe algumas observações a respeito da sua ociosidade e de seu mau comportamento. Tentou, então, amolecer aquele coração endurecido, a força de solicitude, de delicadeza e ternura.
Operário hábil na sua arte, ganhava um salário bastante alto; efetuara mesmo algumas economias. Um dia, em que Ricardo se encontrava na mais profunda miséria, ofereceu-se para partilhá-las com ele.
O escultor corou. No grande naufrágio, conservara um resto de altivez natural. Pedia dinheiro, sem envergonhar-se, li seus camaradas de botequim, mas aceitá-lo de quem cada moeda representava uma hora de trabalho, privando-o, assim, dos recursos que uma doença, uma inatividade forçada podiam, no dia seguinte, torná-lo indispensável, isso repugnava singularmente a Ricardo.
Valentim deixou o seu amigo à vontade, propondo-lhe Atribuir esse empréstimo ao preço de uma estatueta, que o artista lhe faria mais tarde e decidiu-o a aceitar a proposta.
Mas os remorsos de Ricardo fugiram com o derradeiro vintém do dinheiro recebido de seu camarada, e, um mês mais tarde, já nem pensava na estatueta como se de tal nunca se houvesse falado.
Valentim venceu os escrúpulos da sua delicadeza e foi o primeiro a falar-lhe a tal respeito. Ricardo, um tanto envergonhado, desculpou-se com a impossibilidade material que encontrava em trabalhar numa tal mansarda.
Era o que Valentim esperava.
Perguntou-lhe se ele teria qualquer repugnância em sair daquela habitação e, graças à resposta negativa do escultor, alguns dias mais tarde, conduziu-o à Rua Saint-Sabin, onde, sem falar-lhe de seus projetos, alugara e instalara um pequeno apartamento em que ambos poderiam morar. Todos os petrechos próprios para a escultura ali estavam no seu lugar. As mesas esperavam as suas maquetas, os pães de greda estavam empilhados a um canto do atelier.
Ao entrar no aposento, recebendo mais essa prova da afeição do operário, o seu coração comoveu-se, os seus olhos molharam-se de lágrimas e caiu nos braços de Valentim, que abraçou afetuosamente.
Logo, desde o dia seguinte, estava trabalhando e, embora os seus velhos hábitos, com os quais não tinha, efetivamente, rompido, lhe interrompessem constantemente o trabalho, ao cabo de um mês, a estatueta destinada a Valentim estava pronta e ele dispunha-se a mandá-la fundir.
Era isto no mês de setembro. Os dois jovens haviam abraçado com entusiasmo a causa de uma revolução, cujos princípios compartilhavam.
Ainda sob o império dos combates do mês de julho, Ricardo havia modelado um grupo que representava dois operários, içando a bandeira tricolor numa barricada.
Na manha do dia em que devia terminar a sua obra, ao acordar, Ricardo quis lançar um golpe de vista sobre a sua obra, colocada na sua frente, em face da porta, que comunicava o seu quarto com o atelier.
Não a enxergou em cima da mesa. No mesmo instante, Valentim entrou com um saco bastante volumoso.
Foi, sem dizer palavra, direito à cama, onde dormia o seu amigo, desatou o saco e fez cair uma chuva de moedas de cinco francos.
Ricardo perguntou o que queria dizer aquilo.
— Significa — respondeu Valentim — que eu não quis ficar à espera de que você me tivesse feito presente do seu bronze, porque então teria o direito de desfazer-me dele. Tenho muito tempo de esperar pela minha estatueta e você não tem nenhum minuto a perder se quiser decidir-se a viver honestamente. Quis que o seu primeiro trabalho fosse destinado a reconciliá-lo com o comércio, que é hoje a única maneira de impedir que você venha a cair como um vagabundo, em qualquer esquina; quis vender o seu grupo por quinhentos francos.
— A algum fundidor de bronze?
— Sim, a um fundidor de bronze.
— De certo para suspender uma pêndula, não achas?
— É provável.
Uma das mãos de Ricardo apertou a mão de seu amigo; a outra desenhou o gesto dramático que, no teatro, faz um gentil-homem, cujo brasão desonraram.
O gesto não impediu que o escultor apanhasse o vil metal, até à derradeira moeda de cinco francos.
Valentim, preparando as suas baterias, julgara bem o artista. Ricardo tomou gosto, não pelo trabalho, mas por aquela chuva prateada. Tornara-se incapaz de paixão, perdera o sentimento da arte; ficara-lhe, apenas, a sua superfície.
Esse resultado estava longe de ser aquele que Valentim se tinha proposto. Pretendera restituir uma estrela ao céu, um nome à glória, e havia, simplesmente, aumentado as vit i m a s dos fabricantes com alguns motivos um pouco menos Vulgares, um pouco menos toscos que os de seus vizinhos.
Por seu amigo, Valentim fora amoroso qual mãe indulgente e, durante os três anos que se seguiram à sua entrada para a Rua Saint-Sabin, a constância de sua solicitude para com Ricardo não se desmentiu. É mais uma realidade do que uma figura de retórica: tudo aquilo que é grande possui uma irradiação, que se reflete em tudo quanto se acha à sua volta. Fosse qual fosse a diferença de idade, de educação e de posição existente entre Ricardo e Valentim, este sofria até certo ponto a influência de seu companheiro.
CAPITULO XII
Depois da cena narrada num dos capítulos anteriores, a Varenne tornou-se o porto de descanso habitual do barco de Ricardo Loullier e Valentim tornara-se o passageiro permanente da escuna.
Um domingo, pela manhã, mais ou menos um mês após o primeiro encontro dos dois jovens com Huberta, Valentim passeava, pálido, agitado, no pequeno quarto, mobilhado com uma modéstia quase monacal, que ele habitava no apartamento comum.
Como todas as pessoas que não são atormentadas pelo remorso ou pelas paixões, Valentim aparentava uma fisionomia extraordinariamente serena. A melancolia que naquele dia nela se refletia era mais aparente do que habitual.
Ficou encostado durante muito tempo na chaminé, em face da famosa estatueta de seu amigo, que era o único ornato que ali havia. Essa estatueta representava a "Fraternidade", com uma emoção enternecida, como se possuísse o poder de reconduzi-lo atrás, aos tempos mais felizes em que havia sido modelada.
Finalmente, como que tomou um partido; soltou um suspiro, passou a mão pela testa, a qual apesar da mocidade de Valentim começava já a desguarnecer-se de cabelo, e entrou para o atelier.
Muito ao contrário de seu amigo, o escultor parecia muito alegre, sem se preocupar por dissimular a sua alegria. Com voz mais forte do que harmoniosa cantava uma barcarola. Essa alegria, assim como a escolha da canção que servia para modulá-la, tinha como pretexto três uniformes de marinheiro napolitano, estendidos numa cadeira e novos em folha.
A equipagem da escuna, como sucede ainda hoje, era composta de bons operários que, aos domingos, por paixão, se convertiam em marinheiros, associando-se, para dar largas a esse gosto pelo esporte, a outro amador mais favorecido pelo Céu e ao qual os seus recursos haviam permitido a aquisição do principal instrumento de seus prazeres — a escuna.
Contribuíam eles com os seus braços e Ricardo com a sua escuna, deixando a este o privilégio de sentar-se no banco do leme, concedendo-lhe ainda o direito de serem chamados pestes, cães falidos, e outros epítetos usuais no vocabulário da água salgada. Em compensação, aquele que assumia o título de capitão, nesse grupo fraternal, o menos que podia fazer era correr com as despesas do luxo e da fantasia.
Ora, o domínio da fantasia era sem limites para Ricardo Loullier.
Começara ele por trajar os seus marujos com as roupas marítimas que conseguira arranjar. Mas, havia algum tempo, atormentava-o a idéia de certa modificação que, no seu juízo, devia produzir um efeito prodigioso em todo o percurso da volta ao Marne.
Era assim que ele chamava o passeio que consiste em penetrar nesse rio até ao canal de Saint-Maur, descendo depois até à foz do Sena, passando diante da Varenne.
Ricardo havia hesitado durante certo tempo, solicitado de um lado pela sua indolência e de outro pelo seu desejo. Alguns dias antes, esse desejo como que recebera um impulso novo. Trabalhara durante toda a semana e os bonecos de gesso já estavam nas mãos do fabricante. Pela sua parte, o escultor já entrara na posse de três soberbos trajos de marinheiros napolitanos, que Ricardo não se cansava de admirar.
À vista desses preparativos, Valentim franziu a testa, ficando mais pálido do que já era de seu natural.
Mas Ricardo andava por demais preocupado com tão belos preparativos, para prestar a menor atenção ao que se passava na fisionomia de seu amigo: — Ah! — disse. — Que tal esta roupa, hein?
— Digo que ela estaria muito melhor numa parada de festa do que nos bancos de seu barco.
— Ora, ora! Lá está você a ridicularizar os meus marinheiros! Quer alguma coisa para você?
— Não; bem sabe que as suas mascaradas não são do meu agrado.
Mas, diga-me uma coisa: pode-se saber para quem está fazendo todo esse luxo?
Valentim olhou tão fixamente para Ricardo, ao falar dessa forma, que este ficou, por um momento, embaraçado: — Para quem? Para quem? Com mil diabos! Mas para fazer rebentar de raiva os marinheiros da escuna Doris, que se pavoneavam todos com as suas blusas de fustão vermelho, para fazer cair de bruços os burgueses! E depois...
— Não — respondeu friamente Valentim — conheço-o muito bem para acreditar que você tenha sacrificado oito dias de trabalho unicamente com tal perspectiva.
— Bem; então, se quer mesmo saber, tenho ainda uma idéia.
— Qual?
— Conto com a sedução provocada por este uniforme para encontrar o que há tanto tempo me faz falta.
— Então, que é que faz falta?
— Ora essa! Um grumete! Não há barco nenhum por mais modesto que seja o seu gabarito que não tenha o seu, O regulamento exige-o para os pescadores. Além disso, ele tem toda espécie de vantagens; é como na vida particular e fica bem quando a gente navega: ele vai comprar cigarros, dá de beber aos gajeiros e canta, quando se fazem as abordagens. Preciso de um.
— E a quem destina você esse emprego?
— Não sei por que motivo havia de esconder: para a pequena da Varenne — disse Ricardo com um toque de leviandade e indiferença.
— À pequena filha do pescador? A Huberta?
— Não acha que será encantadora? É ágil como um mastaréu de joanete; ela sabe manobrar os remos, como um velho lobo-do-mar; é capaz de fazer uma costura num cabo como ninguém no alto Sena e, com isso tudo, gentil, atraente, alegre como um pintassilgo! Eu teria de procurar durante muito tempo antes de encontrar uma solução como esta.
— Mas — replicou Valentim, com voz abafada e cuja mão tremia nas costas da cadeira a que se apoiara — mas, antes de fazer-lhe semelhante proposta, é preciso que tenha a certeza de que ela sentiria por você alguma inclinação... que ela o amaria ou o estimaria!
— Você conhece-me bastante — replicou o escultor, corando — sabe que a fatuidade não é nenhum dos meus vícios; não seria tão tolo que procedesse assim, se não me julgasse plenamente autorizado a fazê-lo.
Valentim ficou mudo por alguns momentos. Faltava-lhe a respiração, dir-se-ia prestes a sufocar e a mão, que continuava a apoiar-se no recosto da cadeira, tremia agitada por um estremecimento nervoso.
— Ricardo — disse finalmente — pensou bem no que tenciona fazer?
— Ora — replicou o capitão de La Mouette — vai começar um fogo cruzado de moral, por bombordo e estibordo. Se continuar a pregar-me moral, vou-me embora.
— Não, não vá!
— Então, vejamos, seria ela muito digna de dó se se alistasse na minha fragata? Gosto imenso dessa pequena...
— Não, você não gosta dela; se gostasse, não trataria de pedir-lhe, como primeira prova do seu amor para com você, o sacrifício da sua dignidade de mulher.
— Enfim, gosto dela — tornou o escultor, num tom desabrido e ameaçador.
— Sim, e porque gosta dela, há-de desgraçá-la...
— Desgraçá-la? Não diriam que se trata da rainha das ilhas Marquesas?
— Ricardo! Ricardo! Não se faça pior do que é na realidade. Por um providencial acaso, salvou Huberta da desonra e havia de querer, agora, recomeçar e continuar a ação má que você impediu outro de cometer? Não creio nisso, Ricardo.
— Mas — replicou o escultor, cuja desconfiança despertara e que, ao falar, olhava fixamente para seu amigo como se lhe quisesse ler na alma — nunca vi você se interessar tão vivamente por uma mulher...
— É você, Ricardo — respondeu Valentim, dominando bastante a sua agitação para parecer calmo — é você que pode admirar-se porque eu me interesso por aqueles que sofrem?
— Não — tornou o escultor, como se falasse a si mesmo — não é você que queria mostrar-se. Eu o conheço. Você está coberto por uma blindagem.
A sua carapaça está à prova do diabinho que tem a aljava... Nunca lhe conheci nenhuma ligação amorosa...
— Nem há de conhecer, então...
— Jure — acrescentou o dono da escuna, como se precisasse desse juramento para dissipar uma última suspeita.
Ricardo parecia dominado por viva agitação. O humor alegre, as graças singelas, tanto quanto a beleza de Huberta, haviam conquistado o escultor.
Fazia já um mês que ele acariciava a idéia de fazer dela a soberana do seu coração e o grumete de sua embarcação.
— Mil milhões de diabos! — exclamou ele, multiplicando mais que nunca seu empréstimo ao vocabulário da marinha. — Que loucura a minha haver-lhe descoberto a minha bandeira, antes que o grumete fosse contratado! Oh! Como fui idiota de ter-lhe falado de meus projetos!...
— São outros tantos remorsos que lhe pouparei, Ricardo — replicou Valentim — vejamos, eu nunca lhe pedi nada, pois agora peço, faça esse sacrifício pela nossa amizade.
— Tentaremos — disse brutalmente o dono de La Mouette. — Hoje, é a festa de Argenteuil, haverá corridas para as canoas; a minha goletá irá passear a sua quilha por esses lados, em vez de fazer a volta do Marne. Vou beber, até cair debaixo das mesas.
Falando assim, o escultor juntara os três uniformes napolitanos e, depois dessas palavras, pôs o pacote debaixo do braço e foi saindo, sem se despedir do amigo e com uma cara zangada de estudante que recebeu repreensão.
Quando o ruído dos passos de Ricardo se extinguiu, Valentim não mais se preocupou em dominar a dor que lhe torturava a alma. Deixou-se cair numa cadeira, exclamando, com um suspiro: — Meu Deus! Meu Deus! Ela ama Ricardo!
E permaneceu assim na mesma atitude, a cabeça entre as mãos, enquanto as lágrimas, que lhe deslizavam pelas faces, traçavam desenhos caprichosos nas tábuas do soalho. Finalmente, ergueu a cabeça e sorrindo melancòlicamente: — Ao menos, por agora, posso tornar a vê-la, sem perigo para ela ou para mim... Fiz o juramento.
CAPÍTULO XIII
Voltando ao apartamento da Rua Saint-Sabin e encontrando ali Valentim, Ricardo não pediu a seu amigo explicação alguma. Dali por diante, evitou que a conversa recaísse sobre o velho Guichard e sua filha, mantendo a tal respeito uma indiferença com a qual o ourives não se iludia.
No domingo seguinte, Valentim perguntou ao escultor se não queria acompanhá-lo à Varenne; e quando se encontrou ao mesmo tempo que seu amigo junto da Loura, pôde Valentim notar que as maneiras do dono de La Mouette tinham inteiramente mudado a respeito da moça.
Valentim acreditava que seu amigo estivesse radicalmente curado de sua fantasia e regozijava-se por ter tido bastante influência sobre o escultor para fazê-lo renunciar a seus projetos. Sentia ao mesmo tempo uma alegria secreta, cuja significação exata não compreendia bem e que manifestava por uma expansão de amistoso reconhecimento, do qual Ricardo adivinhava as razões. A paixão do jovem ourives, livre do freio que ele julgara de seu dever impor-lhe, fazia rápidos progressos em sua alma: era fácil avaliar pelos olhares com que envolvia Huberta, quando junto dela se encontrava, pelo prazer com que recolhia cada uma de suas palavras, pelo seu ar sonhador, pela melancolia que se estampava em sua fisionomia.
Todavia, não lhe parecia que se tivesse passado bastante tempo desde o instante em que havia pedido a seu camarada para reclamar, mesmo com intenções bem diferentes das que tinha Ricardo, o lugar que voluntariamente deixava vazio. Valentim calava-se sobre o que se passava em seu coração.
Huberta tratava os dois rapazes mais ou menos de igual maneira; tinha por ambos a mesma singela amizade, a mesma franca cordialidade, a mesma ternura infantil. Todavia, seria preciso estabelecer certa diferença: era evidente que se mostrava mais fria, mais reservada com Valentim, à medida que ele se revelava mais entusiasta e mais solícito; era mais amável com Ricardo desde que ele limitasse as suas pretensões àquelas que uma boa camaradagem autoriza.
Quando se encontrava só com o primeiro, parecia contrafeita, embaraçada, sonhadora, quase triste; falava pouco, como que desejando a terminação de seu colóquio. Quando chegava o segundo, entregava-se livremente a inspiração da sua alegria natural, tornava-se no que realmente era.
Talvez, suspicaz como todos os corações sinceramente apaixonados, Valentim observasse essa cambiante nas simpatias da moça. Talvez, juntasse a essas implícitas razões a desconfiança para impedir-lhe declarar seu amor à filha de Francisco Guichard.
Chegou-se, assim, aos primeiros dias de setembro, ou seja, à época em que se havia fixado a festa patronal da Varenne.
Tal festa, havia dois meses, era a preocupação constante do senhor Batifol, o que o impedia de sentir todo o amargor das recordações que devia ter-lhe deixado a sua triste aventura.
Os muros da aldeia nova mal haviam começado a surgir do chão, e já aqueles que os tinham construído concebiam acerca de sua importância as perspectivas mais enganadoras e lançavam olhos invejosos sobre as outras aldeias vizinhas.
Na sua opinião, o governo devia abster-se das preocupações que a Europa pouco simpática lhe testemunhava, para pensar em dotar a Varenne de uma igreja, uma escola, um serviço de incêndios, de todos os melhoramentos, enfim, inclusive um guarda-campestre, que concedia invariavelmente às cidades mais povoadas, sem dúvida, mas de menor importância que esse novo centro pela distinção excepcional de cada um de seus habitantes.
Dentro em pouco, chegaram a contestar a Saint-Maur o direito de possuir uma casa comunal, reivindicando para si todas as honras municipais.
Como era de esperar, essas veleidades ambiciosas e o concerto de recriminações, que lhe serviam de cortejo, não conseguiram a menor espécie de êxito: repelidas em massa as pretensões dos habitantes da Varenne, trataram eles de compensar-se com futilidades.
Saint Maur tinha uma festa; as casas da pequena península pensaram em ter também a sua festa.
O senhor Batifol sugerira e fomentara esse desejo. Conhecia o valor da publicidade. Foi a ela que recorreu para estimular a venda dos terrenos que lhe restavam. Só as despesas consideráveis daí resultantes o teriam impedido, mas achou meios de realizar esses gastos à custa de seus concidadãos.
Oito dias depois de receber a necessária autorização, enormes cartazes amarelos anunciavam à população de Paris e da zona suburbana que aqueles que gostassem de vilegiatura poderiam ter quase grátis uma soberba casa de campo.
Era um plano do senhor Bati foi. Dessa maneira, desembaraçava-se por um bom preço de alguns metros de seu terreno, fazendo uma espécie de loteria para a qual todas as pessoas presentes à festa receberiam um bilhete.
Casa de campo não existia nenhuma nos terrenos do senhor Batifol, mas não deixava de ser perfeitamente verdade que a todo aquele a quem a sorte sorrisse ficava toda a liberdade de construí-la, quando quisesse.
O cartaz teve um resultado prodigioso. Todos os bairros de leste desceram até à península do Marne. A loteria só deveria contentar a um, mas todos esperavam ser esse felizardo e aqueles aos quais a sorte recusava esse privilégio podiam consolar-se com os torneios, as corridas de barco, de abóboras e de patos, os jogos de enguias, o baile e outros divertimentos de que o senhor Bati foi, muito a par das predileções daqueles aos quais se dirigia, não deixara de acrescentar ao trecho capital de seu programa.
Desde as primeiras horas do dia, a margem do rio apresentava um aspecto fora do comum.
O senhor Batifol, de roupa preta, gravata branca, ia e vinha, com toda a importância de um general de exército, dando ordens, com voz rouca e imperiosa, indicando onde deveriam colocar-se as bóias para as corridas, levantar as auriflamas, suspender as grinaldas de folhagem, ajudando os homens a levantar os mastros de cocanha.
Só o tio Ruína não participava dessa atividade e da alegria geral.
Embora Huberta fizesse todos os esforços por decidi-lo, o bom homem, que de tão bom grado fazia as honras do que ele chamava o belo chapéu à renovação da primavera, não quisera obstinadamente vestir a sua roupa domingueira. Francisco Guichard não queria reconhecer a nova Varenne e decidira fechar-se em casa durante as festas.
— E de que havia eu de alegrar-me? — dizia ele à Loura. — Seria porque tudo está de cabeça no ar nesta terra, tanto que se me torna impossível reconhecer os lugares que freqüentei durante mais de cinqüenta anos? Será porque todos os dias vejo derrubar árvores que serviam de balizas às minhas recordações?
— E eu lhe digo, papai, que precisa vestir-se; tenho as minhas razões para insistir.
— E quais são essas razões?
— Ora, pai — respondeu Huberta, cujo rosto se cobriu de um ligeiro rubor. — Os senhores Valentim e Ricardo devem vir e...
— E queres que teu pai fique bonito para recebê-los? Parece-me que, desde que tu fiques bonita, é tudo quanto o senhor Valentim pode desejar e penso que nada deverá faltar, pois levaste mais tempo a enfeitar-te do que eu preciso para ajustar bem uma dúzia de linhas.
— Por que é que fala antes do senhor Valentim do que do senhor Ricardo? — disse Huberta, torcendo a ponta do seu avental.
— Eh! Eh! Tenho as minhas razões, minha Loura, e tenho a certeza de que no fundo tens que achá-las boas.
— E poderiam conhecer-se essas razões, pai? — perguntou a moça, sorrindo.
— É porque o senhor Valentim, embora seja de classe que não se parece nada com a nossa, que tenha maneiras de cavalheiro, me inspira tanta confiança que eu me iria embora para o outro mundo se, antes de partir, eu colocasse a tua mão na sua. Falei com franqueza, Loura. Sê tu franca, também. Vejamos, gostas dele tanto como eu?
— Papai, o senhor Valentim, não me desagrada.
— Isso é já alguma coisa.
— Mas — tornou logo Huberta — se devo dizer-lhe a verdade, é que...
— Então, que?
— Algumas vezes, interrogo-me a mim mesma e já me tenho perguntado se seria feliz com o senhor Valentim como meu marido, e essa idéia me faz tremer, não sei por quê.
— Essa idéia te faz tremer?
— Sim; faz; tenho muita amizade por ele. Quando o vejo, sobretudo quando o ouço falar, sinto-me muito feliz. Mas, apesar disso, invade-me junto dele uma tristeza, cuja causa desconheço; ele é tão sério, tão grave!
— Dize, antes, que é um rapaz muito direito.
— De resto, pai... e isso posso jurá-lo, o senhor Valentim nunca me disse que me amava e perdemos o tempo, conversando sobre coisas bobas...
— Sim, sim, tens razão, a gente não se deve demorar nos sonhos agradáveis, mas fica tranqüila, Huberta, o senhor Valentim não se envergonhará de nós. O outro, não creio que ele tenha o direito de mostrar-se difícil, ele que suja com alcatrão e gordura as suas blusas novas, para dar a impressão de que esteve em alto mar. Deixa-o em paz, minha Loura, e deixa-me descansar...
Eis o que Francisco Guichard chamava descansar, enquanto o sol permanecia acima do horizonte: ficava ao canto da lareira, ou diante da porta de sua casa, olhos fechados, em perfeita imobilidade, sem dormir, mas sem dar fé dos ruídos em redor dele, tão absorto permanecia em seus pensamentos, recolhido em suas recordações.
Huberta sabia, por experiência, que todas as vezes que o velho se refugiava no meio das imagens do seu passado se tornava difícil arrancá-lo aos seus devaneios. Por isso, não insistiu e foi para a margem aguardar a chegada das embarcações.
A coitada da moça ficara sonhadora. As poucas palavras pronunciadas por seu pai tinham esclarecido a situação, como um golpe de vento dispersa as nuvens do céu. Agora, esse céu, mesmo que fosse puro, seria .sereno?
Huberta interrogara-se mais de uma vez e não sabia responder a si mesma, como não sabia responder a seu pai. Mais de uma vez, ela se perguntara qual teria preferido para marido, Valentim ou Ricardo. O peso da razão fazia que se inclinasse para Valentim, o gosto do prazer arrastava-a para Ricardo.
Estava, assim, muda e melancólica, sentada junto da margem, onde ficou meia hora mais ou menos. Mas, subitamente, a sua fisionomia ficou radiante e correu para casa, exclamando: — Eles aí estão! Eles aí estão!
O tio Ruína saiu de seus devaneios e encaminhou-se devagar para o rio.
Efetivamente, La Mouette, escoltada por sete ou oito canoas, que vinham tomar parte na corrida, apontava abaixo da ilha dos Guardas.
A escuna apresentava grande luxo de bandeiras e galhardetes para a circunstância e a equipagem vestira a sua bonita roupa napolitana. As cores garridas das bandeirolas ondulavam ao sol.
Com grande surpresa de Huberta, em vez de embicar no lugar do costume, a escuna destacou-se da pequena flotilha, deu uma volta e veio aportar justamente em face do lugar, onde se encontravam o velho e sua filha.
O capitão desembarcou imediatamente. Parecia radiante de alegria e orgulho, na sua capa debruada de vermelho, que traçara ao ombro; tão radiante que, apesar de sua predileção pelos inocentes triunfos do vestuário, era razoável supor outra causa para uma tão expansiva satisfação.
Ao contrário, porém, quanto mais a escuna se aproximava, mais carregada ficava a fisionomia de Huberta. É que havia procurado debalde entre esse carnaval de cores a cor sombria e severa dos vestidos que Valentim usava. Quando a goleta fez diante dela o seu movimento circulatório, ela percebeu que o jovem ourives não estava entre os seus amigos.
Ricardo, cujo olhar não abandonara Huberta, desde que tinha podido distingui-la, já havia notado o desapontamento que se desenhava na fisionomia da moça. Inclinou-se para os seus marujos e disse-lhes, em voz baixa: — Atenção! Portem-se todos como "senhoritas"! A desordem fica para logo, à noite.
Por mais profunda e sincera que fosse a tristeza que se difundira no coração de Huberta, logo que verificara a ausência de Valentim, essa tristeza não conseguiu resistir diante do espetáculo que lhe ofereceu Ricardo, quando subiu os degraus cortados na grama da margem. Desatou a rir na cara do rapaz e o tio Ruína achou o tal capitão tão interessante com o seu boné vermelho e pernas ao léu, que, mau grado a sua natural gravidade, fez coro com a filha, rindo às gargalhadas.
Essa hilaridade teria desconcertado qualquer outro que não fosse o soberbo catraieiro: ela não afetou sensivelmente Ricardo, o qual caminhou para Huberta, apertou-lhe a mão e estreitou-lhe o busto numa expressão de brincalhona galanteria. Depois, dirigindo-se a Francisco Guichard: — Tio Ruína — disse ele — o senhor está vendo em mim o deputado dos "flamantes" do Sena!
— Eu teria antes pensado que você fosse o deputado dos mercadores de cerejas; você até parece um espantalho para assustar pardais!
— Tio Ruína — tornou o capitão de La Mouette, elevando o tom de voz, a fim de dominar a de seu interlocutor — tio Ruína, o senhor é o decano dos homens do rio, o senhor é o Nestor da população aquática, com a qual temos o orgulho de caminhar: em nome dos barqueiros, reunidos na Varenne, tenho a honra de convidá-lo para presidir ao banquete fraternal, no qual nos reunimos sempre, após as corridas.
— Com efeito, é muita honra para mim, senhor Ricardo — respondeu Francisco Guichard — mas não posso aceitar. O senhor salvou minha filha, quase somos camaradas, mas daí não se deve concluir que eu seja amigo de seus amigos. É verdade que somos do mesmo elemento, mas não o exploramos da mesma maneira, eles e eu.
— É impossível que o senhor recuse. Eu propus o senhor como presidente e a minha proposta foi aclamada por unanimidade. Além disso, teremos que fazer um brinde à liberdade dos mares, à libertação dos peixes, e convém que o senhor esteja presente.
Francisco Guichard continuava a resistir. O patrão da escuna teve de recorrer a todas as baterias da sua eloqüência. De persuadido e insinuante, tornou-se patético e falou do serviço prestado a Huberta, invocando-o como um título a que Guichard não recusasse o pedido que lhe era feito.
Manifestou tão singular insistência que o tio Ruína acabou por ceder aos desejos do escultor.
Ficou, então, combinado que tanto ele como Huberta assistiriam ao banquete.
— O senhor Valentim estará sem dúvida presente — disse o tio Ruína.
— Por que é que não o vejo aqui?
— Talvez, ele venha, quem sabe — replicou o capitão, demonstrando um embaraço maior do que em realidade sentia, — Será que está enfermo? — interrogou Huberta, com uma vivacidade que fez passar um clarão de cólera nos olhos do moço.
— Ou ter-lhe-á acontecido alguma coisa? — tornou o tio Ruína, obedecendo, por seu lado, à simpatia profunda que sentia pelo ourives.
Ricardo respondeu com um piscar de olhos e um estalo de língua, que teria significado qualquer coisa para alguém que não fosse o velho pescador.
Depois, tomando-o à parte, disse-lhe, baixando a voz, não tanto, porém, que suas palavras não chegassem aos ouvidos de Huberta, que estava muito atenta: — Ora! O senhor compreende que, depois de ter dado tantos domingos a amizade, não é muito que o amigo Valentim conceda um ao amor...
— Não compreendo.
— Como bom francês, Valentim foi levar a sua namorada a passear por Saint-Cloud. Compreende, agora, tio sabidão, homem virtuoso e fenomenal que, se não me engano, foi um pândego, quando moço...
O tio Ruína ergueu os ombros, como fazia sempre que seu jovem amigo se entregava a alguma de suas excentricidades. Huberta, porém, ficou mais branca do que a cambraia de sua touca.
Ricardo notou essa palidez. A pretexto de pegar alguma coisa na sua embarcação, aproximou-se de Bota Curta: — Trata de arranjar uma grande confusão para esta noite — disse. — Bem fiz eu em deixar a coisa para hoje. Que às nove horas, La Mouette esteja preparada nas Falconnières; talvez eu precise dela. Não encarregues ninguém disso. Challamel é um excelente camarada, mas se bebe, nem que seja uma garrafa só, não se pode contar com sua exatidão e sua discrição; não o percas de olho; eu vou preparar a pequena para levantar âncora.
Ricardo procurou Huberta; havia desaparecido, entrara em casa.
Ele foi atrás dela e, ao entrar, pareceu-lhe perceber que a moça enxugava precipitadamente os olhos com o lenço. Efetivamente, notou que tinha os olhos vermelhos de chorar.
O patrão de La Mouette tinha mil excelentes razões para não deixar parecer que a moça se sentisse pesarosa pela falta de Valentim. Tentou distraí-la com as momices que lhe eram habituais, com as suas anedotas mais interessantes e, quando viu reaparecer o sorriso nos lábios da Loura, retomou os seus ares de apaixonado que havia abandonado. Somente mudou de tática. Entretendo a pequena pescadora dos seus amores, mostrou-se tão respeitoso com ela, quanto o próprio Valentim o teria sido.
Huberta permaneceu durante muito tempo inquieta e sonhadora; depois, subitamente, como que animada de repentina resolução, como se se decidisse a romper idéias importunas, esmagando pesares, que contra sua vontade persistiam em brotar em seu coração, respondeu a pouco e pouco, como lhe era habitual, com risos, com motejos, com brincadeiras de toda espécie, às frases inflamadas do catraieiro, tanto que quase se esqueceu de Valentim, mostrando-se contente com a presença de Ricardo, testemunhando-lhe tão amistosa simpatia que ele quase ficou furioso, quando Bota Curta o veio arrancar às doçuras daquela conversa.
As corridas iam começar.
Infelizmente para Ricardo, La Mouette ganhou dois prêmios e a alegria de triunfar aos olhos daquela que estava prestes a conquistar, vendo-a associar-se às aclamações, que saudavam a vitória, embriagou-o de tal maneira, que se esqueceu do papel que se havia proposto.
Ele, tendo avistado o senhor Batifol, não resistiu à tentação de pregar-lhe uma boa peça.
Devido à solenidade da circunstância, o senhor Batifol resolveu inscrever-se numa corrida de batéis, que deveria encerrar as diversões náuticas do dia.
Vestira-se de aparato, com vestimenta de combate, talvez menos graciosa mas seguramente tão original quanto a da equipagem de La Mouette. Usava, além da malha reclamada pelos costumes modernos, o distintivo dos lutadores antigos.
Foi dado, finalmente, o sinal da partida.
O senhor Batifol, suando, soprando como um touro, contorcendo-se nos remos, debatendo-se como um forçado da turma, mantinha-se à cabeça de seus rivais e tantos esforços pareciam dever receber a sua recompensa.
De repente, viu surgir a seu lado o rosto sardônico do escultor que, num barco ligeiro, seguia bordo a bordo a embarcação do operário, enchendo-o das mais irônicas palavras de animação.
— Senhor, aquilo que está fazendo é contrário aos regulamentos! — gritou Batifol.
O escultor, porém, não parecia ouvi-lo; esganiçava-se com essa voz de falsete, particular aos garotos de Paris: — Avante, banana!
Tu vais ganhar o coelho! Já o ganhaste, meu velho!...
E outras brincadeiras mais ou menos do mesmo gosto, que contribuíram para exasperar o senhor Batifol.
Durante um minuto, o ex-cinzelador teve a tentação incontida de descarregar uma grande pancada de remo a frágil nau que conduzia o seu inimigo. Só o conteve a recordação da força muscular de Ricardo, da qual o senhor Batifol conservava a mais rude experiência. O desânimo apoderou-se dele. Puxou o seu barquinho do meio dos outros e encaminhou-se para terra, perguntando aos Céus se não lhe seria dado, finalmente, um modo de vingar-se daquele miserável escultor.
Mas, dir-se-ia que, afinal, a sua invocação havia sido atendida.
O senhor Batifol escondera-se numa das tendas dos mercadores de vinho, erguidas ao longo das margens para abrigar os seus fregueses. Numa das mesas, vizinhas àquela diante dii qual estava sentado o senhor Batifol, dois barqueiros esvaziavam uma garrafa, conversando.
Um desses barqueiros, aquele que fazia face ao senhor Batifol, não lhe atraiu a atenção; o outro, que lhe dava as costas, trazia a indumentária muito vistosa da equipagem de La Mouette.
Absorto em seus pensamentos, o senhor Batifol, a princípio, não prestou grande atenção à conversa dos dois; mas, ao nome de Ricardo, pronunciado várias vezes, aguçou a orelha como fazem os cavalos de caça, quando ouvem o som da buzina.
Eis aquilo que ele ouviu: — Como — dizia o primeiro dos barqueiros, tentando em vão levantar-se, a fim de encher o copo que o outro tinha entornado — como, Challamel, é você, a quem nós tínhamos denominado "Tenho sede", que fica amuado diante desta zurrapa?
— Sim — respondeu o outro, cuja língua e linguagem balbuciante testemunhavam uma sobriedade um pouco tardia — amanhã, tanto quanto você quiser, a despensa dos líquidos estará aberta; hoje, porém, respeite um barqueiro escravo do seu dever.
— De seu dever?
— Sim, de seu dever. O patrão de La Mouette honrou--me com a sua confiança; quero continuar sendo digno dessa confiança.
— Mais um copo. Isto lhe dará mais coragem para fazer força nos remos e tornará sua mão mais forte para rasar a água do Marne.
— Se vou rasar hoje alguma coisa, meu velho, vai ser esse peru, chamado Valentim, e não ficarei muito aborrecido, porque lhe tenho antipatia, esse frango d'água molhada, que mistura água ao seu vinho, como se os negociantes não nos poupassem esse trabalho.
— Valentim, o amigo íntimo de Ricardo?
— Ah! Pois sim! Amigo íntimo!
E Challamel fez um gesto muito significativo e muito popular.
— Que foi que se passou?
— Silêncio! — disse Challamel. — Silêncio! Posso dizer--lhe que é amigo, que não mistura água ao vinho como esse tranca de Valentim. Todos os barqueiros são irmãos. Estamos tramando um golpe, que fará proclamar Ricardo o rei dos homens bravos e estourar o amigo íntimo de cólera e despeito?
— Conte lá isso...
— Então, devo dizer-lhe que nosso patrão e o outro davam caça ao mesmo "navio", uma corveta fina e lindamente construída, suave como um sebo ou escovem de veludo azul, a filha do tio Ruína, que tu conheces.
Valentim quis armar o golpe ao barqueiro, e esta noite o barqueiro deita a manápula na corveta...
— Ora!
— Pois é, mas o engraçado da coisa é a maneira como o patrão dispôs tudo para afastar esta noite o seu rival da Varenne.
— Vejamos como foi.
— Imagina que, esta manhã, Valentim embarcara conosco em La Mouette para vir até aqui. Entre o Moulin rouge e os moinhos de Gravelle, eis que esse miserável de Bota Curta, conforme tinha sido combinado entre o capitão e ele, faz uma abordagem guinada; o barco inclina-se, caímos todos para o mesmo lado. Compreendes que, nadando como nós nadamos, inclusive Valentim, não nos embaraçávamos uns aos outros mais do que um barbilhão numa tenca. Estávamos, pois, ocupados em virar La Mouette, em pescar os remos, quando subitamente eis que Bota Curta exclama: "Mas onde está o capitão?" Valentim procura com os olhos, nós fizemos como se o procurássemos. Nada de capitão. Valentim atirasse à água; nós fizemos o mesmo. Ele mergulha, mergulha, nós fingimos que procuramos, quer dizer que, quando o vemos voltar à superfície, nós mergulhamos... Finalmente, após uma hora desta manobra, tivemos que renunciar a salvar nosso infeliz capitão. Gritamos, à toa, por socorro, pois bem sabíamos que a margem, nesse ponto, é deserta e ninguém viria socorrer-nos. Consultamo-nos uns aos outros. Finalmente, ficou combinado que Valentim, que arrancava os cabelos com tamanho desespero — teria vontade de rir-lhe na cara, se o caso não fosse sério — iria a Bercy, a fim de fazer a sua declaração e recrutar marinheiros para a procura do corpo de seu amigo e que nós, que nos queixávamos do frio, carregaríamos a embarcação para a sua garagem. Ele sai, continuando a lamentar-se, mas, logo que virou as costas, o capitão volta a aparecer. Aquele endiabrado de Ricardo havia mergulhado, passado debaixo de uma carga de madeira, subindo pelo outro lado, escondendo a cabeça entre os feixes, durante toda essa cena. Embarcamos, remamos, trocamos a roupa por aquela que tínhamos confiado aos marujos da Doris e aí está, após havermos dragado, durante o dia todo, o fundo cio Sena, aquele farrapo de Valentim ficará são e salvo no seu apartamento da Rua Saint-Sabin, enquanto nós caminharemos para o largo, com a senhorita da Varenne.
A longa narração tinha alterado Challamel, que modificou até certo ponto as suas primeiras resoluções: estendeu o copo a seu camarada.
O senhor Batifol levantou-se e deixou a tenda. Não queria saber mais.
Surgira-lhe a idéia de instigar um contra o outro aqueles que considerava como seus inimigos e iria imediatamente pôr a sua idéia em prática.
Pediu emprestado a Berlingard o seu cabriolé e fustigando vigorosamente o cavalo tomou o caminho de Paris.
CAPITULO XIV
O baile da Varenne não parecia ser muito do agrado dos burgueses, que haviam presidido à maior parte das diversões do dia.
Desdenhando um pouco essa parte do programa, o grande animador da festa, o senhor Batifol, como que deixara todos os cuidados à própria natureza e esta desempenhara-se da incumbência de maneira a satisfazer, não talvez o senhor Batifol e seus pares, mas todos os amadores das cenas pitorescas.
O baile tinha-se instalado num bosque de olmeiros e faias, chamado Bosque dos Frades, no meio de um terreno sombreado por uma dupla fileira de árvores seculares.
O senhor Batifol havia gasto tal quantidade de chita multicolorida para os ornamentos do seu espetáculo náutico, que mal lhe haviam chegado as sobras para decorar a tribuna dos músicos, com bandeirolas de rigor. A iluminação fora também repartida com parcimoniosa discrição. Algumas candeias fumarentas, suspensas pelos troncos das faias, um lustre guarnecido de lampiões vacilantes desciam dos ramos mais velhos.
A ressonância sonora dos instrumentos de cobre, misturada ao sussurro, já triste como ameaça de inverno, produzido pelas folhas, quando batidas pelo vento do outono, o aspecto dessas sombras que passam e tornam a passar na semi-escuridão, tornavam-se visíveis, quando penetravam na zona de luz, depois desapareciam, para voltar a aparecer um instante depois.
Os barqueiros, em vez de se retirarem à noite, como é costume, para se aproveitarem das barragens do Marne, haviam permanecido em massa.
A indiscrição de Challamel não podia mais deter-se; o boato sobre os projetos do patrão de La Mouette havia-se espalhado pela rapaziada, ávida de conhecer o desfecho da aventura.
Aqueles, que não dançavam, conservavam-se na ponta dos pés para avistar a moça, sorrindo com sorriso malicioso todas as vezes que ela corava e baixava os olhos, ao encontrar o olhar inflamado de Ricardo. Outros, os amigos particulares do escultor, encarregavam-se de distrair o tio Ruína, que acompanhara a Loura, desembaraçando o seu camarada de uma solicitude capaz de entravar os seus planos.
Aliás, não havia necessidade. Francisco Guichard assistira ao banquete.
A sua sobriedade preservara-o da embriaguez tão aguardada pelos seus vizinhos. Mas, tanto haviam vilipendiado os burgueses, em geral, e Batifol, em particular, que o pobre velho se embriagara com palavras e com ruído, em vez de vinho e, no seu entusiasmo, estendia a toda essa mocidade a confiança que Valentim e Ricardo tinham sabido inspirar-lhe.
Huberta começara por chorar a ausência de Valentim e acabara por esquecer-se completamente de seu amiguinho.
O prazer é absoluto; enquanto reina, não suporta rival no coração que abrasa. Apenas, de longe em longe, um suspiro, um pensamento, levantavam o seio e pesavam sobre as pálpebras da moça e protestavam contra essa alegria, em nome do ausente.
O baile completava a sua fascinação. Desde manhã, Ricardo não cessara de pintar-lhe o seu amor. Tudo contribuía para lançar a desordem em seu coração. Essa desordem era de tal ordem que, por momentos, sob o império de uma terrível excitação nervosa, a sua alegria degenerava em sofrimento.
Ela valsava; estava pálida, seus olhos velavam-se por instantes, depois, reabriam-se nos turbilhões da valsa. Parte de sua linda cabeleira desatara-se e flutuava-lhe ao redor da cabeça como uma auréola transparente.
— Huberta! Huberta! — dizia ele, ao qual nada escapava de quanto se pasmava na alma da moça — Huberta, haverá na terra felicidade maior do que a nossa? Dir-se-ia que o céu gira à roda das nossas cabeças, que a terra salta debaixo de nossos pés, semelhante a um balão! Parece que a tempestade nos arrasta e nos embala! Ah, se tua doce voz em semelhante momento murmurasse: "Amo-te!", não existiria na Terra felicidade igual à minha!
Huberta não respondia, mas Ricardo sentia o acelerar das batidas do coração de Huberta e seus pés, como se estivessem impacientes de devorar o espaço, aumentavam os batimentos.
— Huberta, dir-se-ia que nossos corações estão soldados um ao outro!
Nossos corações já não são mais que um único, Huberta! Diga-me que não os desunirá jamais, embora venham todas as misérias deste mundo, mesmo a morte, eu as enfrentarei!
— Valsemos, valsemos! — dizia a moça.
Ricardo respondia, fazendo turbilhonar o seu par, com uma rapidez tão vertiginosa que o seu olhar mal podia acompanhá-la e inclinava-se a seu ouvido e dizia-lhe: — Sim, a existência é breve; é preciso andar depressa se a quisermos aproveitar. Deus não deixou entre a taça e os lábios senão o espaço necessário a uma reflexão.
— Mas esses músicos estão dormindo nos seus bancos!
— Mais depressa! — exclamava o patrão de La Mouette. — Eles inclinam a cabeça sobre as estantes como os noviços no coro e a noite está apenas começando. Vamos terminá-la em Paris, Huberta; eu a levarei a um baile, Huberta, em que a música acompanhará a sua impetuosidade.
— Não, não! — dizia Huberta, amedrontada.
— Venha, venha — repetia Ricardo — os seus olhos, Huberta, vão ficar deslumbrados ante o esplendor das toaletes e das luzes; os seus ouvidos ficarão encantados com os suaves acordes da orquestra e, cada dia, dançaremos ao seu ritmo, confundindo as palpitações de nossos corações.
— Oh! Rogo-lhe que não me fale dessa maneira, senhor Ricardo!
— Que é que pode temer? Eu não estarei junto de você? Que é a solicitude de um pai ou de um irmão para com sua irmã ao lado da ternura de um namorado por aquela que ama? Quem se atreveria a tocar num só de seus cabelos, estando eu aí para defendê-la, tesouro mais precioso a meus olhos que todos os tesouros deste mundo?
— Oh! Senhor Ricardo, Valentim não me falaria dessa maneira.
— Valentim — continuou o escultor — não falaria assim v. que faz ele a esta hora? Como nós, entrega-se ao prazer; não é essa a lei que rege tudo neste mundo? Venha, venha, eu serei feliz com a sua felicidade e orgulhoso de surpreender as primeiras emoções que o mágico espetáculo vai fazer evocar a seus olhos e fará nascer em sua alma. Não hesite, Huberta, venha!
— Não posso... meu pobre pai...
— Nós estaremos de regresso antes que ele tenha notado a sua ausência. De resto, se ele a descobrisse... bem eu lhe diria... eu lhe diria que a amo, que a amo... e só teria de abençoar-nos.
O escultor havia dado a esta última frase uma intenção irônica, que se destacava de maneira singular com o acento de convicção de suas palavras, quando lhe parecera obrigado a recorrer aos grandes recursos da paixão.
Huberta era franca demais e ao mesmo tempo singela demais para reparar nisso: — Mas será verdade, senhor Ricardo, seria verdade que faríamos assim?
— Sim, eu o faria, com mil demônios!
— O senhor gosta tanto de mim que não se envergonharia de me...?
—Se a amo! Se a amo! O céu e o inferno estariam aí presentes, que eu responderia a sua pergunta como respondo neste momento.
Dizendo estas palavras, o escultor inclinou-se sobre a cabeça da moça e imprimiu-lhe um beijo na testa.
Huberta estremeceu como se houvesse sucumbido a sua emoção.
— Passagem! Camaradas, por favor! — disse Ricardo a meia voz.
As fileiras tumultuosas dos dançarinos abriram-se diante dele, como por encanto, fechando-se logo e a valsa recomeçou com tanta fuga, enquanto o dono de La Mouette ia carregando a Loura, que os espectadores não tiveram tempo de perceber esse movimento.
Naquele instante, um homem de fisionomia desfeita, pálido, com roupas manchadas de lama, penetrava no baile.
Era Valentim.
A dez passos atrás, caminhava o senhor Batifol, esfregando alegremente as mãos, nos lábios um sorriso mau.
Valentim passeou ansiosamente o olhar pela turba, tentando sondar-lhe a profundidade; deu a volta ao baile e, não descobrindo seu amigo, nem Huberta, o seu peito dilatou-se; levou a mão à fronte banhada de suor e respirou ruidosamente. Estava, então, em frente ao estrado, onde ficavam os músicos. Contornando-o, viu-se repentinamente em face do tio Ruína, sentado ao pé de uma árvore e rodeado de seus novos conhecidos, aos quais contava algumas peripécias de pesca, com essa perplexidade complacente, particular aos velhos, tão bem desenhada por Homero e que se encontra entre os pescadores, assim como entre os reis.
Valentim correu para Francisco Guichard e, afastando bruscamente aqueles que o separavam do velho: — Onde está Huberta? — exclamou, — Huberta? — respondeu o velho, atordoado pela súbita aparição do moço.
— Que fez de sua neta? Responda! — repetiu o jovem.
— Poderia responder-lhe que isso não é de sua conta, senhor Valentim, mas julgo melhor dizer-lhe que seus olhos são como certos utensílios dos burgueses: ainda não descobriram Huberta a divertir-se com seus amigos e as moças de sua idade?
— Ah! Guichard, Guichard! O senhor está louco!
— Não lhe fica bem, senhor Valentim, dirigir-me essas palavras pesadas, pois foi em consideração para com o senhor e para com o senhor Ricardo que eu permiti que ela tomasse parte nas diversões, que não são, o senhor bem o sabe, de meu gosto, nem segundo os meus princípios.
— Mas ela já não se encontra ali, já aí não está! — exclamou Valentim, louco de desespero.
— Já não está aí? — murmurou o tio Ruína, como se fechasse os olhos diante de um abismo que estivesse entrevendo e cujo aspecto o enchia de terror. — Já não está aí? Mas é impossível; não deve estar longe... Huberta!
Huberta! — continuou, chamando em voz alta, correndo, receoso, ao redor do círculo que se formara ao redor deles.
A sua voz ficou sem eco. O velho permaneceu um instante como que esmagado pelo horror da realidade. Voltando-se para Valentim: — Mas onde estará ela? — exclamou com indizível expressão de angústia.
Valentim inclinou a cabeça, sem responder. Fossem quais fossem as razões que tivesse contra Ricardo, repugnava-lhe dar o nome daquele que tinha sido seu amigo à vingança de um avô.
— Não! Não! Não posso acreditar — tornou o tio Ruína, lutando ainda uma vez contra a verdade que despertava em sua alma. — Huberta, minha neta, minha única neta! Não, não é verdade, querem escarnecer de mim, não é? Querem rir da inquietação de um pobre velho?
Depois, reparando que aqueles que o rodeavam permaneciam em silêncio: — Ah! Com um milhão de diabos! Se a tivessem raptado!... Se tivessem enfeitiçado minha neta!... Se algum desses malandros tivesse aprisionado minha filha nos seus enredos ... Oh! Ai dele!
— Sossegue, tio Guichard! Sossegue! — dizia-lhe Valentim.
De certo, o tio Ruína não o ouviu, mas naquele momento percebeu o senhor Batifol, que estava junto dele: saltou-lhe à garganta e apertando-lhe a gravata como que para estrangulá-lo : — Foste tu, miserável, foste tu, malandro, que me roubaste minha neta... Conheço todos os teus enredos; somente tu serias capaz deste rapto...
Que fizeste dela? Anda, responde, ou, mesmo que tivesse de custar-me a cabeça, esmago-te como um réptil!...
— Senhor Guichard, juro-lhe!... Largue-me... A justiça... Socorro!
Senhor Valentim, socorro!
Valentim e os circunstantes tiveram as maiores dificuldades deste mundo em arrancar o senhor Batifol das mãos do velho pescador.
— Venha, venha — disse o ourives — venha para sua casa, senhor Guichard; entre, eu o acompanho.
— Entrar em minha casa! Não vou mais encontrar a Loura, pois não sei onde ela está! Entrar em casa — continuava o velho, arrancando os cabelos.
A maior parte dos catraieiros havia-se afastado. A cena produzira-lhes uma impressão bem diferente da que eles esperavam. O senhor Batifol recompusera a gravata e o desalinho que o tio Ruína tinha provocado em sua roupa; aproximou-se do velho.
Como os catraieiros, embora de um ponto de vista muito oposto, o senhor Batifol contara com um desfecho muito diferente.
— Há pouco, o senhor acusava-me — disse ele. — Pois bem, eu vou encontrar a sua filha.
— O senhor?
— Sim, sim; não se perca um segundo; já faz dez minutos que eles partiram! Desciam o Mame; vão encontrar fechada a barragem; terão que tirar o barco para fora d'água e transportá-lo para além da comporta.
Cortando através da planície, estaremos antes deles na barragem.
— Vamos! — disse o velho, correndo.
Valentim quis segurá-lo, mas o homem já ia longe. Só havia um caminho a seguir: ir com ele.
Foi o que fez o senhor Batifol; estava convencido de que Ricardo não abandonaria facilmente a sua conquista.
Todos três atravessaram a planície, caminhando pelos atalhos, pelas terras lavradas, saltando fossos, atravessando as cercas, dirigindo-se direitos aos choupos de Creteil, que se desenhavam em preto no horizonte.
Valentim e Batifol estavam já arquejantes; não se ouvia ,i (respiração do tio Ruína e, entretanto, nem um minuto deixou distanciar-se por seus companheiros.
Chegaram, finalmente, à barragem.
O tio Ruína, que foi o primeiro a chegar, afastou os juntos com as mãos, para ver se a passagem de um corpo pesado OS havia curvado na terra úmida, procurando no chão o vestígio da quilha de um barco, quando é arrastado no solo.
— Talvez já tenham passado! — disse o senhor Batifol.
— Não! — observou Francisco Guichard.
— Silêncio! — disse em tom imperioso Valentim. — Ei-los aí.
Realmente, a algumas centenas de metros, água acima, ouvia-se a marulhada regular dos remos e ao mesmo tempo uma voz forte e vibrante, a de Ricardo, que cantava no meio do silêncio da noite; depois, um coro de vozes masculinas repetia um estribilho...
— Aí não está — disse Valentim — ela não está junto deles.
— Ah! Meu Deus! Não demos uma busca em casa — disse o tio Ruína, que se agarrava novamente à esperança — talvez ela esteja em casa...
— Cale-se! — disse, por sua vez, o senhor Batifol.
A voz entoou nova cantiga, mas desta vez o coro repetiu as últimas palavras e o tio Ruína soltou um gemido surdo: sentou-se na margem, escondendo o rosto com as mãos.
Tinha reconhecido a voz de Huberta misturada às outras vozes.
Na indignação, que lhe causavam aquelas cantigas pelo menos suspeitas, o Sr. Batifol fez um movimento e saiu da sombra dos arbustos, que abrigavam o pequeno grupo. Sem dúvida, enxergaram a sua silhueta da barca que principiava a distinguir-se semelhante a uma forma negra a deslizar pela superfície prateada do rio, pois ouviu-se imediatamente Ricardo dar ordens a .seus barqueiros que parassem.
— Quem vem aí? — perguntou.
O tio Ruína não fazia movimento algum, parecia não ver nem ouvir nada do que se passava em redor.
— Quem vai aí? — repetiu Ricardo.
— Senhorita Huberta! — respondeu Valentim, evitando dirigir a palavra ao seu ex-amigo. — Senhorita Huberta, é seu avô que deseja falar-lhe.
— Meu avô! Meu avô! — exclamou a moça. — Ah! Senhor Ricardo, por favor deixe-me descer!
— Nadem como possam! — disse o dono da escuna aos seus barqueiros, sem responder à jovem. — Vamos saltar por cima da barragem em vez de descer à terra. Vamos, depressa!
— Senhor Ricardo! Senhor Ricardo! Estou-lhe dizendo que quero ver meu avô, que quero voltar para junto dele; senhor Ricardo, solte-me!
— Não estejam a perder tempo, vendo as caretas da moça, rapazes!
— Ricardo! Covarde, infame! — gritou Valentim.
— Eh! Eh! Belo barqueiro que ameaça os outros com a justiça — disse ao mesmo tempo o senhor Bati foi. — Parece-me que é você que está prestes a responder a justiça!
— Ricardo, rogo-lhe, imploro-lhe! — exclamou Huberta. — Se me ama como diz, deixe-me voltar para junto de meu avô. Não me reduza ao desespero. Prometeu-me tanta felicidade, meu Deus! que não queria que a nossa união começasse com a maldição de um velho...
Depois, como o escultor fizesse sinal a Challamel e a Bota Curta para que redobrassem de esforços: — Se não fizer aquilo que eu lhe peço Ricardo, atiro-me ao rio!
O dono da escuna soltou uma imprecação de furor, mas ao mesmo tempo manobrou violentamente a cana do leme e o barco, que estava apenas a poucos passos da catarata cujo surdo mugido se ouvia, rodou sobre si mesmo e avançou para a margem.
— Tio Guichard! — disse Valentim, agitado por mil sensações diversas, tocando o velho no ombro. — Tio Guichard, tenha coragem, eis sua neta que vem vindo para cá.
— Que vem vindo? — disse o velho, levantando-se. — o senhor pensa que uma donzela seja capaz de abandonar seu avô e voltar para ele, como acontece nos amores frívo-los?... Que volta para mim? Existe um atalho para descer, mas não existe para subir novamente. Não, não, já não tenho neta!
Não me falem mais daquela que eu amei; a sua recordação não é como a recordação daqueles que morreram; longe de consolar, esmaga-nos.
— Pai! Pai! — disse Huberta, que saltara do barco para a margem. — Peço-lhe que me perdoe, — Que quer? — replicou o velho pescador, repelindo o braço da jovem que tentava abraçar as pernas do avô, diante de quem ajoelhara. — Que quer? Eu não a conheço.
— Como você não me conhece, eu sou Huberta!
— Aqui, não há mais Huberta, existe, apenas, uma prostituta, que será a diversão de gente má, que a segue nos seus deboches, que com ela canta canções infames. Huberta era uma menina sábia e pura, não há mais Huberta. Terias coragem de entrar no quarto em que tua avó e tua mãe morreram, ambas, puras e santas como os anjos do bom Deus? Se tu te atrevesses a tanto, o teto desabaria sobre a tua cabeça.
— Oh! Meu Deus! Meu Deus! — disse a pobre Loura, torcendo os braços com desespero.
— Tio Guichard — disse Valentim — o senhor está sendo severo demais para com esta criança; não creio que Ricardo seja um homem desonesto e, por maior que seja o escândalo, ele pode ser reparado.
— Oh! Ricardo, Ricardo, lembre-se do que me prometeu; fale com vovô, fale-lhe, rogo-lhe, conjuro-lhe! — implorou Huberta, juntando as mãos.
E como Ricardo tardasse em responder: — Esse falso operário seduziu-te — tornou o tio Ruína, — Pois bem, como todos os sedutores, será ele que há de vingar o avô que ultrajaste.
Adeus!
O velho pescador fez um gesto para retirar-se. Huberta agarrava-se a ele com toda a energia do desespero.
— Pai! Pai! — dizia ela. — Deixe que eu o acompanhe, deixe-me ir consigo; estou inocente, ainda sou digna da recordação daquelas pelas quais o senhor chora!
— A quem o hás de persuadir? Não, a moça já não existe, somente a mulher entrará em minha casa. Que esse homem que te desonrou aos olhos de todos repare sua falta e a tua, então ser-te-á aberta a minha casa, então eu perdoarei, se não esquecer. Daqui até lá, não ouse apresentar-se à minha porta, pois serei eu o primeiro a gritar vergonha e desgraça para ti e agradeça a Deus .se vou esperar alguns dias ainda, antes de amaldiçoar-te.
Terminando estas palavras, o velho libertou-se do amplexo da neta e, precipitando-se no talude, desapareceu, rapidamente.
Huberta havia perdido os sentidos.
A dor moral que sofreu Valentim, acrescida a profunda impressão que esta cena nele provocara, paralisara todas as suas faculdades. Não tivera um gesto para reter o tio Ruína, nem sequer tentou acompanhá-lo, mas, quando viu o corpo de Huberta estendido no chão, quando ouviu o ruído pesado e surdo da moça, ao cair sobre a relva, correu para ela.
O dono da escuna e a sua tripulação já se haviam antecipado, tentando levantar a moça.
— Que é que você está querendo? — disse, brutalmente, Ricardo, quando viu aquele que havia sido seu amigo aproximar-se da moça.
— E você ainda pergunta?
— Proíbo-lhe pôr a mão na minha namorada.
— Sua namorada? Não, não, ela não é sua namorada! Por mais corrompido que você seja, se ela fosse sua namorada, você não a deixaria curvar-se sob a maldição paterna.
Ricardo respondeu-lhe com uma risada, a que fizeram eco os marujos e a que o senhor Batifol, por sua vez, quis juntar-se, também.
— Não, ela não é sua namorada e, mesmo que o fosse, você seria covarde, gabando-se disso!
— Por que você não tem jeito com as mulheres, não é motivo para ser grosseiro com os homens — tornou o escultor com afetada calma.
— Ricardo, em nome de tudo quanto existe de santo e sagrado na Terra, responda à minha pergunta: esta mulher é sua namorada?
— Quando uma donzela abandona seu pai para seguir um homem, existem algumas presunções para que essa donzela e esse homem estejam unidos por algum vínculo secreto. Depois disso, Valentim, se fizer questão de conservar esse lato para consolações futuras, nada seria mais interessante para mim.
— A fé salvou bom número de maridos — disse Challamel.
— E o senhor tem tudo quanto é preciso para vir a sê-lo — acrescentou Bota Curta.
Valentim não se dignou dar resposta a tais sarcasmos. Sentia uma dor imensa; seu coração estava amargurado, destruídas as suas derradeiras esperanças; mas, como todas as almas fortemente temperadas, encontrou o seu sangue-frio no próprio excesso do mal.
— Ricardo — disse com voz recolhida, embora vibrante ainda de emoção — Ricardo, você abusou da inocência e da credulidade desta criança; mas, como, no fundo, você é um rapaz honesto, não há de reduzi-la a todas as conseqüências de sua desonra.
— Seguirei os seus conselhos, Valentim; eles são tão excelentes que bem podia aproveitá-los...
— Vai casar com essa jovem, porque é justo. Promete?
— Vamos ter muito tempo para pensar nisso, até que ela e eu tenhamos cabelos grisalhos...
— Vai desposá-la sem demora.
— Ora, ora; nem me dará tempo de fazer a barba? E, quem vai obrigar-me a casar com ela?
— Eu.
— E se eu recusar?
— Mato-o, Ricardo! — replicou Valentim, em voz baixa, mas sibilante como a lâmina de uma espada, agitada no ar.
— Ah! Ah! — fez Ricardo, que se animava à medida que o seu velho amigo se mostrava mais frio e mais calmo. — Se é uma provocação que me faz e como não quero supor nem por um instante que as bazófias de um garoto como você me intimidem, aceito-a.
— Amanhã.
— Sim, amanhã.
E Ricardo ergueu Huberta, a fim de transportá-la para o seu barco.
Nesse ínterim, Valentim arrancou das mãos de Challamel o gancho pelo qual ele retinha a embarcação e com um pontapé vigoroso afastou-a para o largo.
O barco girou várias vezes sobre si mesmo, cedeu a correnteza, obedeceu-lhe, acelerou o seu movimento e correu como uma flecha, apareceu um segundo no meio da larga toalha d'água, depois submergiu com ela no abismo e alguns destroços, que flutuavam aqui e além, espalhados pelas ondas, foi tudo quanto ficou da encantadora goleta.
Ricardo soltou uma praga formidável.
— Valentim! — exclamou. — Agora toca a mim jurar que amanhã o matarei!
— Seja! — respondeu Valentim. — Amanhã não demorará muito, mas, daqui até amanhã, vou ficar com você junto de Huberta para ver se fala verdade.
— É o que vamos ver — replicou o escultor escarninho. Ao mesmo tempo, e apesar de todo o peso que carregava, o corpo inanimado de Huberta, fugiu através dos campos, correndo com tamanha velocidade quê Valentim, seguindo-o, não tardou a perdê-lo de vista, entre o nevoeiro.
CAPITULO XV
Durante a noite, Valentim percorreu a península em toda a sua extensão: bateu à porta de todas as tabernas das aldeias Vizinhas. Não encontrou em parte alguma Ricardo, nem pessoa alguma que soubesse dizer-lhe o caminho seguido por aquele que havia sido seu amigo.
Cada uma das fadigas que ele suportava desde quase vinte e quatro horas, depois do rapto de Huberta, deixara o seu vestígio na roupa do operário: estava todo manchado de lama, a escorrer água, rasgado pelas silvas. A dor que lhe esmagava a alma refletia-se na sua fisionomia, mas a energia moral essa não esmorecia. Pôs-se a refletir e chegou a conclusão de que o escultor havia aproveitado a embarcação de algum de seus camaradas, para voltar à cidade. Decidiu-se, pois, a não esperar pela partida das carruagens das pessoas que tinham ido à festa e tratou valentemente de seguir a pé para Paris.
O dia começava a despontar: largas manchas de um vermelho açafroado erguiam-se no horizonte, acima das colinas que enquadravam a grande cidade, quando o jovem se encontrou na imensa avenida que começa em Vincennes e termina na barreira do Trono. Acelerou o passo, já rápido.
Todavia, não se dirigiu ao atelier, e, durante o dia todo, esperou na Rua Saint-Sabin, com febril impaciência, medindo a passos precipitados o seu quarto, abrindo e fechando a janela, a cada instante estremecendo ao ruído de qualquer toque da campainha. Não se pense que o coração de Valentim se entregasse aos apetites desordenado da vingança. Não! As naturezas dotadas de nobres sentimentos jamais são tão generosas como quando sofrem. Como os metais preciosos, é no meio das chamas que resplandecem em toda a sua pureza.
Por maiores torturas que Valentim sofresse, não pensava em si mesmo; só pensava naqueles que amava. A sua imaginação não admitia que a sorte do duelo lhe fosse favorável; nem o desejava. A sua morte não importaria a ninguém, não faria derramar uma lágrima sequer, ao passo que, agora, matar Ricardo iria fazer sofrer Huberta. Estava resignado a um sacrifício supremo e, no estado de depressão que nele produzia a decepção do seu amor, considerava-o como um repouso, como o porto após a tempestade e ruminava no cérebro meios de tornar a sua morte útil a Huberta. Não tinha a menor dúvida de que o derradeiro pedido dele, que morria às mãos de seu amigo, produzisse uma profunda, uma salutar impressão sobre o espírito, senão sobre o coração dó escultor. Esse último pedido, Valentim formulava-o de antemão no pensamento, pedido que devia ter por objeto a felicidade e o futuro da neta de Francisco Guichard.
Passou o dia inteiro nessa expectativa. As sombras desceram ao longo das habitações. A noite caía e Valentim continuava à espera: ninguém aparecia, ninguém se aproximava.
Uma dúvida surgiu no seu espírito: teria acontecido algo de mal a Huberta? Não conseguiu, contudo, sustentar essa hipótese.
Saiu, precipitadamente, correu à casa de todos os amigos de Ricardo, foi a todos os lugares por ele habitualmente freqüentados, como na noite precedente vasculhou todas as tabernas da península. As suas pesquisas tiveram tanto êxito em Paris como haviam tido em Varenne. Nada! Algumas vezes, o desânimo apoderava-se da alma de Valentim. Então, ele dizia consigo mesmo:
— Para que todas estas investigações? De que servirá agora a minha intervenção? Vê-se logo que ele não me mentiu e que ela é, realmente, a sua amada. Para que procurar uma certeza que só pode acabar fazendo-me sofrer?
Então, procurava afastar-se. Enfiava por uma dessas ruas, que conduzem à parte central da cidade, mas, ao cabo de poucos passos, uma vontade inflexível mudava o seu itinerário e voltava para a beira d'água.
Chegou, assim, até a um restaurante, cuja fachada estava iluminada, e ao qual se achava ligado um terraço sombreado por castanheiros enormes.
Por trás do terraço, havia um jardim, no qual ressoava a música de uma orquestra.
Era o baile dos barqueiros.
Valentim atravessou rápido a entrada; mas, ao aproximar-se da sala onde se dançava, ao ver uma multidão variegada e fremente, teve medo.
Céus! Estaria ela no meio dessa turbamulta.
Esta idéia fazia-o tremer: receava descobrir Huberta nesse inferno.
Refugiou-se numa avenida de tílias, que lhe pareceu deserta. Na extremidade oposta àquela por onde entrara, enxergou um homem e uma mulher sentados diante de uma das mesas alinhadas ao longo da parede do terraço.
Fixou o olhar durante bastante tempo; os seus olhos não se enganavam aquele homem era Ricardo e aquela mulher era Huberta!
Valentim foi direito a eles. Cedia, sem o perceber, a um desses movimentos de raiva a que raros conseguem escapar. Ao aproximar-se, reconheceu logo a alteração profunda que vinte e quatro horas haviam bastado a produzir nas feições da moça.
Dir-se-ia que no espaço de uma noite ela havia perdido a frescura e o sorriso que emprestavam singular encanto à sua fisionomia: o rosto estava pálido, as suas pálpebras avermelhadas pelas lágrimas.
Passou pelo espírito de Valentim um louco clarão de esperança: aquilo que via diante de seus olhos não era o amor, absolutamente; talvez fosse o remorso, mas poderia ser, também, o desespero que causava a essa alma honesta a situação para a qual se sentira arrastada.
Ricardo falava com extraordinária veemência, mas falava em voz tão baixa que Valentim foi incapaz de distinguir qualquer palavra. De quando em quando, o escultor levava a mão ao coração, como para testemunhar o que ia dizendo. Finalmente, ergueu o braço como o ator que repete um juramento.
Diante desse gesto, Huberta que, até então, ao que parece, escutara o que ele dizia com bastante indiferença, animou--se: brotaram-lhe lágrimas dos olho.s, o seu olhar tornou-se mais suave; pegou na mão de Ricardo levando-a aos lábios com uma expressão de reconhecimento.
— Mantenha os seus juramentos, Ricardo — disse ela — e não só eu esquecerei o pesar que me causou, mas ainda, por minha vez, juro que nunca homem encontrou mulher mais dedicada e mais obediente do que serei eu para com você.
Valentim não escutou mais; fugiu, sem olhar para trás.
Não havia dado ainda volta à esquina da rua, quando ouviu um ruído precipitado de passos, que avançavam no seu encalço e o seu nome pronunciado em voz alta.
Pareceu-lhe reconhecer a voz de Ricardo. Teria dado dez anos de vida para evitá-lo naquele momento. Sentia, então, vivo ódio contra aquele homem. O escultor ganhava terreno sobre o seu antigo amigo.
— Pára Valentim! — exclamava ele. — Pára! Parece que eu lhe causo medo.
Valentim virou-se imediatamente e foi ao encontro do escultor. Este parecia tão confuso, que Valentim teve muita grandeza d'alma para não aumentar tal embaraço, lembrando--lhe que havia esperado por ele, o dia todo.
— Que é que você quer? — perguntou ele.
O escultor deu de ombros.
— Então, dura ainda essa bobagem entre dois velhos amigos? Quer à viva força que nos separemos por causa de uma mulher?
— Não! — respondeu, com esforço, Valentim, lembrando-se das palavras há pouco ouvidas.
— Tanto melhor, com os diabos! Porque eu é que não quero.
— Muito satisfeito que você tenha retornado a melhores sentimentos, Ricardo.
— Não é a mim que deve agradecer, e sim a ela... Foi Huberta que me fez jurar que eu renunciaria a esse duelo.
— É muito natural — disse Valentim, com amargura na voz.
— Foi-lhe preciso um mundo inteiro de juramentos, mas era esse o que mais lhe interessava — continuou Ricardo, com aquele sorriso escarninho que lhe era familiar.
Valentim sentia-se abafar.
— De resto, compreende que, mesmo que ela o não exigisse, esse duelo não teria lugar. Eu não poderia esquecer todas as obrigações que contraí para com você.
— Disso, você está quite, Ricardo; adeus.
— Ora, vamos — disse Ricardo com a Condescendência majestosa das pessoas felizes — não quero vê-lo assim, com essa cara que faz lembrar um necrotério.
— Peço-lhe, apenas, uma coisa, Ricardo — retorquiu Valentim, com voz grave e firme.
— Fale, desde já faço o que você quiser, palavra de homem! Ia dizer palavra de marinheiro, esquecendo-me de que já não tenho goleta alguma.
— Ricardo, vou repetir-lhe as palavras que Huberta lhe dizia há pouco: seja fiel aos juramentos que você lhe fez e, talvez, se dá mesmo algum valor à minha amizade, a encontrará de novo.
O escultor levou alguns instantes para responder. Aquela frase de Valentim parecia ter dissipado ao mesmo tempo os seus pesares e as disposições amistosas que testemunhava a seu antigo camarada.
— Sim — respondeu, tentando mascarar sob o seu mau humor todas as aparências do orgulho ofendido — sim, mas com a condição de que ninguém se intrometerá nos meus negócios.
— Seja — replicou Valentim — que ela seja feliz e pouco me importa não ter contribuído com coisa alguma para a sua felicidade. Adeus!
O escultor respondeu bastante friamente a esse adeus, mas, logo que seu amigo deu alguns passos para afastar-se, chamou-o de novo: — A propósito — disse — amanhã mandarei buscar à Rua Saint-Sabin as minhas coisas e alguns trabalhos meus de pintura.
— Não tenha esse incômodo — tornou Valentim — aceitei um lugar que me ofereceram em Londres e, depois de amanhã, poderei deixar-lhe o apartamento.
— Ah! Sim? Melhor — fez o escultor sem se dar ao trabalho de ocultar a sua satisfação — porque a pocilga de Bota Curta, por mais perto que esteja do céu, para uma lua de mel nada tem de olímpica...
Dois dias mais tarde, Ricardo apresentou-se sozinho à Rua Saint-Sabin.
O guarda-portão entregou-lhe a chave do apartamento, informando-o de que seu antigo camarada havia partido na véspera à noite.
O escultor foi imediatamente a procura de Huberta; o apartamento ficara em nome de Valentim, e apresentava tal limpeza que o tornava elegante e Ricardo sentia-se orgulhoso por mostrá-lo a jovem.
Visitou com ela o seu atelier, passou em revista todo o gesso, todos os móveis, que ela admirava com curiosidade infantil.
— Aonde se vai por aqui? — perguntava Huberta, parando diante da porta que dava para o quarto de Ricardo.
— Era o quarto de Valentim — disse o escultor, que, se tivesse olhado para a jovem, teria notado a sua mudança de cor. — Quer vê-lo?
— Não! — respondeu Huberta.
— Deixou ficar a chave; tiremo-la, não a usemos.
Ricardo escondeu-a no côncavo de uma cabeça de gesso.
Logo, porém, que o escultor saiu, Huberta foi à procura da chave no lugar, onde Ricardo a havia colocado. Introduziu-a na fechadura do quarto de Valentim, hesitou um instante, depois, obedecendo a uma idéia imperiosa, abriu a porta.
O quarto do ourives ficara na mais completa desordem.
As gavetas da cômoda estavam abertas; na precipitação da partida, nem tivera tempo de fechá-las A cama não havia sido desfeita, mas ficara como se alguém rolasse sobre o colchão, e a manta de cobrir os pés estava toda manchada de lama.
Diante da chaminé, o grupo da "Fraternidade" jazia no chão quebrado em mil pedaços. Sem saber o que eles tinham representado, Huberta apanhou piedosamente os pedaços que, depois, veio espalhar em cima da cama.
O travesseiro conservava o sinal da cabeça de Valentim. Huberta colocando ali a mão, observou uma umidade singular. Afigurou-se-lhe que alguém ali tivesse chorado...
Então, caiu de joelhos e rezou durante muito tempo.
CAPÍTULO XVI
Ricardo obtivera tudo quanto havia desejado; todavia, a sua felicidade foi menos fecunda em delícias do que ele tinha pensado.
Em Huberta, o abalo, que havia agitado a sua existência, deixara-lhe uma impressão que parecia não fácil de esquecer-se. De alegre e comunicativa, como quando morava junto do avô, mostrava-se, na Rua Saint-Sabin, grave, melancólica e silenciosa. A sua doçura primitiva não se alterara, mas uma doçura mais parecida com resignação. Ela, que nunca perdia o tempo em divagações, tornara-se abatida e sombria, ficando pensativa durante horas e horas, viajando em espírito por todos os domínios dos devaneios, dos sonhos.
O escultor retomou, aliás em vão, todo o seu repertório de graças.
Debalde imitava o galo, os cães, o rique-raque de uma serra, o zumbido da mosca, práticas que outrora gozavam do privilégio de desopilar o fígado da pobre Loura. Nada serviu para dissipar da sua fronte o leve sulco que a melancolia lhe tinha deixado. Só mal e mal faziam perpassar um sorriso complacente nos lábios da moça e ainda assim a expressão desse sorriso era de tal ordem que mais se assemelhava a nova manifestação de tristeza.
Por muito pouco que esperasse ver-se, nessa circunstância, metamorfoseado em Pigmalião, Ricardo não renunciou logo à esperança de animar de novo essa carne tão subitamente convertida em mármore. Tentou estimular a garridice de Huberta, comprou-lhe um pano de seda colorida, algumas jóias, apelou para a inclinação, que nela conhecia, dos prazeres, mas a moça permaneceu insensível aos presentes, indiferente às suas propostas.
A seda ficou intacta na peça, Huberta nunca consentiu em acompanhá-lo a um baile, ao teatro, como o escultor teria desejado. E como, cansado de vê-la nessa atitude, o escultor, querendo a todo o custo arrancá-la daquele tédio, lhe rogasse de dar um passeio sentimental pelos arredores do canal: — Mais tarde — disse ela —- quando eu for sua mulher, farei aquilo que me pede; agora, porém, parece-me que morreria de vergonha se encontrasse alguma pessoa conhecida.
O escultor armou carranca e não insistiu.
O artista teve que resignar-se a essa vida passada entre quatro paredes e que não estava nos seus hábitos. Para sermos justos, temos de admitir que talvez Ricardo não cedia simplesmente à influência que a fantasia exercia em sua alma. Era-lhe impossível refletir durante muito tempo para ter uma exata compreensão da situação que criara para Huberta, mas talvez compreendesse vagamente que a sua conduta para com a neta do pescador lhe impunha deveres sérios e talvez ele cedesse à influencia desse pensamento, cumprindo aqueles de seus deveres que menos repugnassem a seus instintos.
O que é fato é que, durante oito dias, poderia comparar-se ao mais exemplar dos maridos do bairro do Marais.
Era ele que, todas as manhãs, ia buscar a garrafa de leite; que disputava a sua companheira a honra de acender o fogo no grande fogão que aquecia o atelier e ao qual, desde a entrada de Huberta para o apartamento, tinham outorgado certas atribuições culinárias. Não se envergonhava de largar mão de sua maqueta para ir inspecionar a panela que estava no lume.
Parecia muito satisfeito e orgulhoso, quando, depois de deitar a sopa numa terrina que servira primitivamente para molhar a roupa com que envolvia o barro, ele se sentava ao lado da jovem na mesa, que brilhava muito menos pelo luxo dos pratos do que pelo espírito engenhoso que o .substituía, com o auxílio de alguns bibelôs existentes no atelier, dada a ausência de todos os utensílios gastronômicos que se encontram nos lares mais pobres, mas que o local de trabalho de nosso artista julga poder sempre dispensar.
Por mais agradáveis que fossem estas distrações, elas cansam com o tempo. Ricardo cansou-se depressa.
Dormia, bocejava; tentou novamente alegrar a fisionomia de sua companheira, mas, vendo que tudo isso resultava inútil, pensou no trabalho como recurso supremo. Pensou em modelar uma estatueta, uma Veleda, com a qual entraria triunfalmente na exposição.
Descontando os êxitos futuros de sua imaginação, Ricardo considerava Huberta com interesse. Ela, sim, ela, tal como estava na ocasião, podia ser uma Veleda perfeita.
Ricardo comunicou-lhe imediatamente o seu projeto.
Huberta era perfeitamente ignorante quanto aos termos técnicos de que se servia o artista para fazer-lhe compreender as belezas de que entendia tirar partido; mas, desde que ela entreviu as necessidades de vestimentas que o papel de Veleda exigia, a sua modéstia revoltou-se; repeliu a proposta, primeiro com firmeza, depois com indignação.
Para aquele espírito reto e honesto, que certas subtilezas artísticas não tinham ainda estragado, essa reprodução pública de suas formas pareceu-lhe uma monstruosidade.
Então, a tempestade que havia muito tempo dormitava no coração de Ricardo estalou em toda a sua fúria.
Ele praticara um ato mau, uma loucura.
Embora o não confessasse, a consciência dessa verdade tornava-o de mau humor contra si mesmo e foi Huberta que teve de suportar o peso desse mau humor.
Com a soberba singeleza dos egoístas, encheu-a de censuras. Cedera a um momento de embriaguez para arrastá-la fora da casa paterna; não se receava de atribuir-lhe a responsabilidade de uma ligação que, dizia ele, iria paralisar a sua vida, congelar o seu gênio, fazer secar nas suas mãos a fonte do trabalho.
Enquanto Ricardo falava, Huberta fitava-o com olhos espantados; permanecia muda, imóvel, e de quando em quando levava a mão à fronte como para assegurar-se de que ainda existia, que não era a ilusão de um sonho mau.
Ricardo não esperou, aliás, que ela lhe respondesse: saiu, batendo com violência a porta do atelier.
Não dera ainda dez passos na rua, a sua fisionomia acalmou-se.
Respirar o ar puro, apreciar o ruído, o movimento, sentir-se viver, fugir a tristeza que um instante julgara dever tornar-se contagiosa, era afinal tudo quanto ele desejava.
A partir desse dia, tornou-se o Ricardo dos belos dias da escuna La Mouette.
Tratou de achar todos os seus velhos amigos e retomar seus velhos hábitos: levantava-se tarde, saía e entrava madrugada fora.
Nas primeiras noites, abriu a porta do seu apartamento com certa apreensão: esperava encontrar Huberta desfeita em lágrimas, tendo que suportar os seus amuos e as suas censuras. Com grande surpresa sua, ela não disse palavra de suas ausências tão prolongadas. Essa indiferença espicaçava até certo ponto o seu amor próprio, embora se acomodasse bem a seus gostos de independência.
É necessário explicar como Huberta chegara a tão singular resignação.
A natureza nada tem de absoluto. Por mais sincera que seja a virtude das mulheres ela pode ceder um instante às fraquezas humanas, sem, todavia, deixar de o ser.
Huberta não tinha sido feliz: pobre árvore torcida pela tempestade, ela havia-se dobrado até quebrar, e Ricardo havia podido dominá-la até ela não mais se pertencer a si mesma.
O seu primeiro movimento, quando considerou mais friamente o que se havia passado, foi detestar a sua desgraça e o seu primeiro pensamento procurar na morte a expiação dá sua falta. Duas razões de natureza muito diferente davam--lhe forças para suportar a sua posição: ela queria a todo custo que o seu infortúnio não custasse a vida a Valentim, de quem, desde que pertencia a outro, pensava emocionada com um sentimento que a ela própria causava surpresa. As promessas que Ricardo não poupava de fazer-lhe alimentavam a esperança para a reparação, que seria a derradeira felicidade devida a seu avô. Vencendo toda a sua repugnância, consentiu em permanecer junto de Ricardo, não recusando essa coabitação que devia preceder uma união que ele realizaria, afirmava ele, logo que fossem satisfeitas as formalidades indispensáveis.
Foi somente quando verificou que aquilo era um sacrifício, para o qual calculara mal as suas forças, é que a melancolia, que acabamos de assinalar, se apoderou dela.
Não tinha ódio contra Ricardo que até gostaria de amar; ficou espantada, mais indignada por sentir o seu coração rebelde a sua vontade; mas por mais que fizesse não conseguia dominá-lo. Cada dia, as qualidades que ela achara amáveis no escultor, desapareciam uma a uma, como somem as estrelas, quando o sol se mostra no horizonte, e o astro que o fazia empalidecer era uma figura que surgia semelhante a um espectro diante da moça, enchendo-a ao mesmo tempo de angústia e dor.
Esperava ela, logo que estivesse casada, logo que tivesse o direito de entregar-se às distrações que julgava dever abster--se, quando numa situação falsa, ela havia de encontrar a energia necessária para vencer a .sua repugnância e esquecer uma determinada simpatia, que não ousava confessar a si mesma.
Mas o tempo caminhara; o capricho de Ricardo arrefecera. Ele já não falava de legitimar os vínculos que o uniam àquela que tinha seduzido, e quando Huberta, timidamente, ousou lembrar-lhe o que para ela se convertera numa âncora de salvação: — Temos muito tempo! — foi a resposta seca.
Esta resposta acabou por esmagar Huberta. A sua alma, presa às recordações do passado, às decepções do presente, ao terror do futuro, passou por todas as torturas imagináveis.
Ela era muito doce e ao mesmo tempo muito orgulhosa para queixar-se, por isso chorou, abismando-se na sua dor que coisa alguma vinha distrair.
Efetivamente, Ricardo deixava-a sozinha durante a maior parte do dia e da noite.
Mas essa solidão, se tem suavidades para os corações aflitos, não está isenta de perigos.
Abandonada a esses devaneios, Huberta tornou a ver a imagem, cuja aparição a fazia tremer. Entregou-se à única consolação que podia receber neste mundo: à contemplação dessa imagem. A pouco e pouco, atreveu-se a chamá-la pelo nome, a sombra tornou-se corpo. Abriu novamente o quarto de Valentim, no qual não tornara a entrar desde a sua instalação na Rua Saint-Sabin; parecia-lhe que, penetrando nesse estreito aposento, respirava mais à vontade do que no imenso atelier; as suas tristezas afiguravam-se-lhe menos amargas entre as paredes, onde Valentim havia vivido, experimentava uma sensação estranhamente doce ao tocar os objetos em que ele tinha tocado. Quando chorava no travesseiro, que tinha bebido as lágrimas do moço, essas lágrimas corriam de seus olhos menos acres e menos ardentes.
Consagrou um dia inteiro a colar os pedaços da estatueta que ele havia quebrado e esse dia correu doce e rápido; achou imenso alívio no culto das relíquias que ocupam tão largo espaço na religião das recordações. E assim foi levada, insensivelmente, a estabelecer uma comparação entre aquele, cujo coração não linha adivinhado e aquele cujo capricho lhe fora tão fatal e perguntava a si mesma, levantando o.s olhos para o céu com uma expressão de piedosa censura: — Meu Deus! Por que é que este não é igual àquele?
Nesse dia, Huberta compreendeu que estaria duas vezes perdida se alguma resolução enérgica não viesse arrancá-la à paixão que se revelava em sua alma.
Saiu do quarto de Valentim, fechou a porta e atirou a chave para um pequeno pátio para o qual se abria uma porta envidraçada, que servia de janela ao antigo aposento do moço ourives.
Não havia senão um meio de ser honesta, de conservar essa pureza, essa fidelidade d'alma que julgava dever a Ricardo, fossem quais fossem os seus defeitos. Estava decidida a fazê-lo, custasse o que custasse.
Esperou por Ricardo, não se deitou enquanto ele não voltasse da rua e disse-lhe que, a partir do dia seguinte, o acompanharia ao baile, ao qual tanto havia insistido para levá-la.
O escultor recebeu esta notícia com grande satisfação: o rapto da neta do pescador da Varenne, as circunstâncias que o tinham acompanhado, haviam produzido forte ruído entre os barqueiros. Tinham perguntado ao ex-dono de La Mouette por que era que ele não levava a sua amiguinha às reuniões dos barqueiros do alto Sena; escarneciam, então, dos seus ciúmes, censura injusta, porque o escultor gostava mais de fazer exibição de sua companheira do que contemplar sozinho esse tesouro, fosse ele muito embora uma mulher jovem e bonita.
No dia seguinte, pela manhã, Huberta saíra para buscar as provisões diárias, quando, na esquina da rua do Bairro de Santo Antônio ao entrar na Rua Charonne, deu de cara repentinamente com Mateus, o pescador de Varenne.
Huberta estremeceu; a vista de Mateus lembrou-lhe mais vividamente o avô; correu ao seu encontro.
Mas o bom homem virou a cabeça como se não tivesse visto a moça e continuou o seu caminho.
Esse desprezo, embora o sentisse dolorosamente, não deteve Huberta; agarrou o pescador pelo braço: — Por favor, Mateus — disse ela — dê-me notícias de meu avô!
— Que ele esteja passando bem ou mal, isso pouco lhe importa — respondeu Mateus, tentando desembaraçar-se da mão que o prendia. — Já lhe deu bastantes provações.
— Oh! Por favor, Mateus — tornou Huberta — responda-me; o senhor é bom, o senhor é caritativo. Por mais pobre que tenha sido, nunca houve ninguém mais pobre a quem o senhor não tenha estendido a mão; não recuse a esmola de uma palavra a quem lha roga com o coração humilde e arrependido.
A resolução visível no rosto da moça comoveu sensivelmente o bom homem: — Huberta! Huberta! — replicou ele em voz mais suave. — Você, que era a pérola da nossa península, como foi que depressa se tornou a sua vergonha?
Huberta curvou a cabeça, sem responder.
— A moça que os pais contrariam nos seus amores e que procura, apesar da oposição deles, unir-se àquele a quem ama, isso compreende-se; mas como, Huberta, você foi amar um debochado ?
— Ele vai casar comigo, Mateus.
O pescador deu de ombros: — Então, que ele ande depressa — disse, com evidente ironia — pois, se tardar muito, encontrará um pretexto certo para adiar o casamento para daqui a seis meses.
— Qual?
— O seu luto, ora essa!
— O meu luto?... Ah! Santo Deus! Meu pai, coitado do meu pai!
— Ora! As lágrimas que a gente derrama sobre as mulheres honestas, que morreram, não são afinal, senão água; mas aquelas que se derramam sobre a menina que faz aquilo que você fez, é sangue, sabe, Huberta!...
— Ah! Meu Deus! Meu Deus!
Ele vai indo, o teu avô, como sempre; mas vê-se bem que bate apenas com uma asa. Continua a limpar os seus Utensílios, para fazer raiva aos nossos burgueses, que ainda não foram capazes de descobrir os bons lugares para a pesca; in.i , [az isso com tanto custo, custa-lhe tanto puxar os remos, que antigamente pareciam tão leves para os seus braços, que logo se vê que tem a morte nos braços. Quando o avisto no rio, a cabeça inclinada sobre o peito, tão pálido, tão desfeito, que mais parece um cadáver a conduzir um barco, quando ele passa na frente da gente, baixando os olhos como se tivesse algum motivo para envergonhar-se, tenho que fazer força para repelir as lágrimas; se assim não fosse, o meu crânio rebentaria como barrica cheia demais. Ah! Se não fosse o senhor Valentim...
— O senhor Valentim, Mateus! Que diz do senhor Valentim?
— Digo que não fossem as consolações que lhe dá esse moço, há muito que dele você estaria desembaraçada... Ah! Um rico coração, esse; não é um falso operário como o outro...
— O senhor Valentim está na Varenne?
— Não, sem dúvida; vai lá três ou quatro vezes por semana, o que sempre reanima ura pouco o coitado do velho. Ficam juntos dentro do barco e minha mulher, o outro dia, ao passar diante da porta, ouviu que ambos estavam chorando... Ah! Huberta! Com um pouco de atenção penso que você teria encontrado um marido sem precisar de desfiar ao vento a flor de laranjeira, sem esse maldito que os Céus confundam...
— Valentim! Ele gostava de mim? Que me diz, Mateus?
— Que ele a amasse ou não mais a ame, dá tudo na mesma, minha filha! Uma boa resolução vale mais que vãos pesares. Agora, não pense senão numa coisa: se você quiser que a mão de seu avô se estenda sobre a sua cabeça nos seus derradeiros instantes, tem de apressar-se, porque dentro em pouco essa mão estará inerte.
— Mateus! Mateus! — exclamou Huberta, cujas faces se haviam animado de um súbito rubor e cujo olhar brilhava. — Ou, até amanhã, eu poderei prometer a meu avô ser dentro em pouco digna de seu perdão, ou então morrerei antes dele.
Dizendo estas palavras ao pescador, a jovem começou a correr para a Rua Saint-Sabin.
Segundo seus hábitos, Ricardo dormia, ainda. Acordou ao ruído que fez Huberta ao puxar a porta do quarto com violência, e, abrindo os olhos, viu a sua companheira trêmula, a fisionomia espantada, em pé, diante de sua cama.
— Que é que há? — perguntou, quase amedrontado.
— Ricardo, o que há, é que meu avô está prestes a morrer.
— Diabo! Diabo! Pobre tio Ruína, seria uma pena, porque, embora nos tenhamos deixado apenas com um aperto de mão, a última vez que nos encontramos, faço-lhe justiça que era um homem muito direito, firme como a água. Vejamos — continuou o escultor com uma bondade que, nele, equivalia à ternura — se está doente, não deve continuar na pesca e, se não pescar, o dinheiro não lhe deve ser muito pesado no bolso. Na sua cabana, sentia-se mais o cheiro do peixe do que o da opulência. Vou tratar de terminar quanto antes um par de candelabros que me foi encomendado e assim você poderá mandar-lhe um pouco de dinheiro, sem que ele saiba que vem de nós.
— Não é dinheiro que seria preciso, Ricardo.
— Bem sei. O melhor seria tirar-lhe uns vinte anos de cima da cabeça, mas, que diabo, não pode exigir de mim um milagre...
— Cumpra a sua obrigação de homem, Ricardo, e aquilo que é possível sucederá. A morte do velho será, talvez, retardada e, com toda certeza, não nos deixará a ambos o remorso de a termos causado.
— Está bem! — exclamou o escultor com esse arrebatamento que não falta nunca às consciências pervertidas. — Vai com certeza recomeçar todas as suas momices a respeito da benção nupcial?
— Ricardo, você jurou pela sua honra que eu seria sua esposa!
— E, então, não o é? Que mais lhe adiantariam as quatro palavras de latim que murmurassem, sobre as nossas cabeças?
— O direito de ajoelhar-me à cabeceira do leito, onde meu avô vai morrer, o único parente que eu tenho neste mundo.
— É uma infantilidade, à qual não sou tão simples que a ela possa sujeitar-me. Pretendo amá-la sempre: esse juramento eu o fiz e quero cumpri-lo; eu lhe serei fiel porque seria um covarde se a abandonasse.
— Ricardo — tornou Huberta, de mãos juntas — ligo tão pouca importância à minha pessoa, que, se se tratasse apenas de mim, eu não compraria essa consolação ao preço de ser importuna, mas trata-se de meu avô, daquele que cuidou de mim, desde a minha infância, de um pobre velho, cuja vida foi tão miseravelmente torturada. Ricardo! Ricardo! Eu imploro, não deixe de atender ao pedido que lhe faço: que eu seja sua esposa perante Deus e perante os homens, como você jurou que faria e eu, por minha vez, juro que esse titulo não lhe será um fardo muito pesado.
— Não, cem vezes, não, não cederei a seu capricho; encadear a nossa liberdade a um e a outro será o meio de nos odiarmos um ao outro, antes do fim do mês. Eu, sobretudo, nunca senti uma corrente ao pescoço, sem ter logo vontade de quebrá-la. Não! Façamos como as rolas, Huberta, arruinemos juntos, enquanto durarem as nossas penas, mas livremo-nos de amar-nos de acordo com a lei. Pela minha parte, nunca em tal hei-de consentir...
— Ainda mesmo que tivesse de custar a vida, não só a um velho, mas ainda à sua neta, não é assim? — disse Huberta, erguendo-se fria, digna, quase calma.
— Vamos, não estará você também doente? Será preciso chamar o médico ou o vigário?
— Prouvera a Deus que eu estivesse doente! — replicou Huberta com ar triste. — Uma doença me pouparia, talvez, um último remorso.
Ricardo respondeu-lhe com uma risada.
Para ele, era interessante que Huberta lhe fornecesse um pretexto para dar à conversa um tom agradável que lhe convinha melhor do que qualquer outro e, graças ao qual, poderia disfarçar a gravidade da situação.
Cobriu-a de sarcasmos os mais violentos, perseguindo-a com os seus escárnios os mais bobos.
Dir-se-ia que a moça já o não estava ouvindo.
Entretanto, a expressão com que Huberta havia pronunciado seu fúnebre desejo produzira no artista certa impressão. Ele tinha, apenas, essa maldade negativa particular aos egoístas; recusava sacrificar a sua liberdade à felicidade de sua companheira, mas ficaria extremamente desolado se lhe acontecesse alguma desgraça. Fez esforço sobre si mesmo e mostrou-se afável com ela e, embora Huberta não respondesse à proposta que lhe fizera a respeito do avô, não se ausentou do atelier e trabalhou o dia todo nos seus candelabros.
Durante todo esse dia, Huberta conservou-se sombria e pensativa.
Mas Ricardo atribuía o seu ar taciturno à inquietação que lhe causava a doença do tio Ruína; não se espantou por demais, porque a noite ia chegando, a sua assiduidade no trabalho o tinha cansado e porque sentia a necessidade de sacudir ao vento da rua as tristezas daquele dia.
Depois de ter arrumado os seus petrechos e envolvido com um pano úmido a maqueta do seu trabalho: — Bem; não vamos ao baile? — disse ele a Huberta, não sem uma certa hesitação.
— Não, não, para outra vez — respondeu ela — vá você sozinho.
— Não insisto, e compreendo por quê não quer ir.
— Repito esta noite, não. Vá você sozinho. Adeus, adeus meu amigo — disse Huberta ao artista que, continuando a falar, fazia os seus preparativos para o baile.
— Como diz esse adeus de maneira tão esquisita! Vamos, não vai recomeçar as tolices desta manhã. Seja boazinha e mais tarde, quando alguns anos mais nos tiverem introduzido um pouco mais de chumbo nos miolos, então, não digo que não vamos apresentar as nossas cabeças ao hissope do senhor padre-cura, tal qual um casco de navio flamante de novo que tem pressa de ser lançado ao mar...
— Sim, meu amigo, sim, eu serei boazinha; não terá mais queixa de mim, pode ficar tranqüilo, prometo.
Proferindo estas palavras, Huberta apresentou a testa aos beijos de seu amiguinho e este, que parecia muito satisfeito da certeza que acabara de receber, saiu.
Mal ele teria ultrapassado o limiar da porta do atelier, Huberta caiu de joelhos e começou a derramar lágrimas ardentes.
Quando se ergueu, a noite ia adiantada. Dirigiu-se, então, ao quarto de Valentim.
Foi só quando passou a mão sobre a porta à procura da Chave que se recordou de que dias antes a tinha atirado fora.
Mas, nesse momento, pareceu-lhe ouvir passos furtivos dentro do quarto.
Perguntou quem ali estava, mas não teve resposta.
Na disposição de espírito em que se encontrava, Huberta deveria admirar-se dificilmente. Riscou um fósforo, a fim de ir à procura da chave no outro quarto.
Esse aposento era a única peça, o apartamento que tinha saída para o pequeno pátio de que já se falou. Para ir até lá, ela precisava sair do atelier, atravessar em toda a sua extensão o corredor da casa e abrir uma porta que dava para esse pátio: tudo isso, levou-lhe alguns minutos.
Ao entrar no pátio com a luz que protegia com a mão contra o vento, a primeira coisa que lhe chamou a atenção foi que a chave de que ela precisava brilhava no meio da erva que crescia entre os paralelepípedos.
Huberta inclinou-se para apanhá-la, voltou a entrar precipitadamente no quarto, sem reparar que o guarda-portão e sua mulher, que haviam notado a sua agitação, haviam permanecido no cubículo, olhando para ela, de olhos espantados. Finalmente, conseguiu penetrar no quarto de Valentim.
Empurrou a porta e, com grande surpresa de sua parte, o pequeno cômodo que era fácil abraçar com o olhar estava deserto; os móveis permaneciam nos seus lugares, nada parecia mudado.
De repente, estacou admirada. Acabara de ver o grupo da "Fraternidade", de que ela com muito trabalho havia colado os pedaços e posto sobre a mesa de mármore, novamente em mil pedaços, no chão!
Aproximando-se, Huberta viu logo que o simples acaso não podia ter sido a causa do acidente; o gesso tinha sido literalmente reduzido a poeira, como se fosse esmagado com o tacão de um sapato, como que para impedir que lhe restituíssem pela segunda vez o corpo e a forma.
— Ah! — fez ela. — Ele está aqui, ele está aqui! Sim!... Ele sabe o que se está passando; sem dúvida, esta manhã ele ouviu o que estávamos dizendo. É Deus que me diz que é preciso que aquela que foi culpada se sacrifique para impedir que inocentes sofram o castigo de sua falta...
Então, com uma atividade febril, procedeu a estranhos preparativos.
Calafetou cuidadosamente todas as saídas, todas as fendas que poderiam permitir que o ar se introduzisse no quarto, tapou a chaminé, aferrolhou a porta envidraçada do pátio, juntou grande quantidade de carvão no forno e acendeu-o.
Quando a base da pirâmide, que formara, começou a colorir-se de púrpura, irradiando para todos os lados fagulhas ardentes, Huberta encerrou-se do lado do atelier como se havia encerrado do lado do pátio, e, estabelecida assim essa suprema barreira entre ela e a vida, um sorriso de tristeza aflorou-lhe aos lábios. Agora, julgava-se no direito de dirigir o seu derradeiro pensamento para aquele, cujo amor só tardiamente havia reconhecido.
Compôs a toalete, alisou cuidadosamente a sua esplêndida cabeleira em frente do espelho de Valentim, depois, estendeu-se na cama do rapaz.
Finalmente, murmurando uma oração, um adeus de amor, fechou os olhos e esperou a morte que, prontamente, deviam trazer-lhe os vapores deletérios, que já enchiam o acanhado aposento.
CAPÍTULO XVII
Ricardo ficou bem admirado de não encontrar fora de casa as distrações, das quais uma longa experiência lhe dava o direi t o de esperar.
Mal havia entrado no salão de baile, já o invadia profundo aborrecimento. Reparou logo que as velas enchiam o recinto de fumaça, alumiando-o com uma luz esverdeada, e que o cornetim de pistão, o instrumento muito em voga, dada a sua novidade, feria dolorosamente os ouvidos. Respondia com caretas ou cumprimentos muito pouco delicados às negaças que os fregueses costumeiros se julgavam no dever de dirigir a um personagem tão importante como o velho dono de La Mouette.
Teve o bom senso de perceber que, se tudo lhe parecia desagradável, era causado pelo mau humor com que ele viera para o baile. Tentou distrair-se. Tomou lugar numa quadrilha, mas também não conseguiu dissipar o péssimo humor que o afligia. Sua dança era sem graça, insípida.
Pensou que poderia abandonar a vaga preocupação que o dominava e que mais tarde chamou de pressentimento. Esvaziou copo atrás de copo, com geral admiração e sem tomar fôlego. Os aplausos dos circunstantes lisonjearam-no, sem triunfar das suas inquietações, e o vinho turvou-lhe o cérebro sem colorir-lhe de rosa os pensamentos que lhe destruíam a harmonia ordinariamente tão calma e soberana: esses pensamentos, ao contrário, assumiam uma coloração cada vez mais sombria e carregada.
O ruído dos copos, batendo uns nos outros, parecia-lhe ter alguma coisa da voz de Huberta a repetir as suas queixas assim como a fúnebre invocação com que a jovem havia terminado a conversa daquela manhã e, se formos dar crédito ao que ele contou mais tarde, as manchas azuladas que o vinho deixara sobre a toalha assumiram a seus olhos a cor vermelha brilhante do sangue.
Levantou-se e, embora a sua saída antes da hora estivesse fora de seus hábitos, apesar das reclamações em «coro de seus camaradas, declarou que ia voltar para casa.
Quando Ricardo saiu do baile, aquelas obsessões tornaram-se mais imperiosas; apressou o passo, contra a sua vontade.
Chegando à casa da Rua Saint-Sabin, reparou com certa admiração que nem o guarda-portão nem sua mulher estavam na sua guarita. O coração apertou-se-lhe num movimento violento e tentou forçar a porta.
A resistência que se lhe ofereceu inspirou-lhe outra idéia: dirigiu-se ao pequeno pátio.
Com não pequena surpresa, achou aberta a porta desse pátio. Ao entrar, vinda do quarto de Valentim, percebia-se uma luz ofuscante que desenhava um quadro avermelhado na parede que fazia face ao apartamento: nesse quadro, via-se passar e tornar a passar a silhueta de um homem.
Um furioso movimento de cólera e de ciúme recalcou os sinistros pressentimentos que até então haviam agitado o escultor. O silêncio de Huberta, a presença de um estranho no quarto desabitado, pareceram-lhe indícios de traição. À idéia de vingança sucedeu em seu coração a de um vago terror que o acabrunhava; precipitou-se para aqueles que tinham na conta de culpados.
Ao ruído de seus passos, o homem surgiu no limiar da porta. Ricardo reconheceu Valentim.
— Não esperava por mim! — exclamou o companheiro de Huberta, numa espécie de furioso frenesi.
— Ao contrário, esperava por você — respondeu-lhe Valentim, cuja vibração de voz tomara um tom cheio de ameaças mau grado a calma que visivelmente afetava e que a sua fisionomia conturbada desmentia — estava à sua espera; entre para contemplar a sua obra!
Dizendo estas palavras, o moço ourives agarrou o seu mitigo amigo pelo braço, arrastou-o para o quarto e parou diante da cama.
No leito, jazia Huberta inanimada, lívida, os lábios descorados, olhos fechados e orlados de uma cor azulada.
— Santo Deus! — fez Ricardo. — Vamos socorrê-la!
Tentou precipitar-se para Huberta, mas a mão de Valentim, mão fina, delgada, como se fosse de mulher, mas que parecia retesar-se com músculos de aço, impediu o escultor de fazer qualquer movimento: — Ah! — disse, com profunda amargura na voz. — Julga que eu estaria à espera de suas recomendações para fazer o que humanamente fosse possível fazer para fazê-la Voltar à vida?
— Mas, pelo menos um médico! É preciso chamar um médico!
— Ele não demora, mas será tarde demais! Você matou-a, Ricardo, matou-a, ela está bem morta, desgraçado!
— Não é possível! — exclamou o escultor que ficara tão pálido quanto a moça. — Não, não é possível! Olha, a mão ainda está quente!
Estendera o braço, conseguira apalpar a mão de Huberta, que pendia inerte ao longo da cama.
— Ricardo! — exclamou Valentim. — Proíbo-o de tocar nessa criatura.
— Proíbe?
— Lembre-se das margens do Marne, da noite que você a roubou a seu avô. Você me repeliu, quando eu tentei correr em seu auxílio. Você disse: — É minha amada! Então, estava ainda viva; agora, que está morta, proíbo-o de que a profane, tocando-a.
— Valentim! Valentim! — replicou o escultor, fazendo violento esforço para dominar a sua cólera. — A razão abandona-o, volte a você mesmo, a razão o confunde...
— Libertando-a de todas as dores da vida, a morte libertou-a da maior de todas, a de pertencer a você.
— Valentim!
— Atreva-se, agora, de pedi-la a Deus, diante de quem você se envergonhou de considerá-la sua esposa.
— Valentim, está abusando do meu sofrimento para insultar-me, mas, tenha cuidado!
— Ah! A verdade parece-lhe, agora, um ultraje? Melhor, isso facilita a minha tarefa. Porque eu havia curvado a cabeça sob a desgraça que nos atingia, a ela e a mim, você cuidou que eu havia cessado de amá-la, de pensar nela; pensou que ela não tinha quem a protegesse e não tinha apoio de ninguém, que você podia agora ser para ela um homem covarde e infame.
— Valentim! — exclamou o escultor, rubro de cólera. — A minha paciência está-se esgotando, tenha cuidado, tenha cuidado!
— A minha durou dois meses, a sua há-de prolongar-se ainda mais alguns segundos. Sim, há dois meses eu estava ali — e apontava com o dedo para a casa vizinha, da qual, através da porta, se distinguia a massa sombria, — Nunca falei com ela, mas, de quando em quando, eu a via e lia no seu rosto o sofrimento que você lhe causava. Compartilhava das suas angústias, das torturas que você lhe infligia. Cada dia que passava eu a via tornar-se mais pálida e ficar mais magra... Eu via-a inclinar-se dia a dia cada vez mais para o túmulo que você lhe cavava aos pés... E, entretanto, eu esperava e dizia comigo mesmo: "Não, um homem revolta-se contra os homens que o oprimem, contra os inimigos que o perseguem, mas não assassina uma pobre criatura que não tem outra culpa senão a de ter amor por alguém; não se assassina essa criatura, quando se fez o juramento de torná-la feliz. Ricardo terá piedade dela...” E aí está como você teve piedade dela!
— E podia eu imaginar que ela fosse tão louca?...
— Para preferir a morte a uma vida de desonra? Não, efetivamente, Ricardo, não podia pensar isso; tem razão, fui eu, eu que tinha adivinhado tudo quanto havia de honesto no coração dessa pobre moça, eu é que devia ter vindo mais cedo para dizer-lhe: "Deixe quanto antes esse miserável que a enganou, tenha coragem, e levante a cabeça, aqui tem a mão de um homem honrado para apoiar a sua mão."
Terminando esta frase, Valentim parecia ter-se completamente esquecido de Ricardo. Continuou, falando para si mesmo: — Ah! É bem verdade, é verdade!... Se eu tivesse procedido assim, ela não estaria morta, poderíamos ainda ouvir-lhe a voz... Meu Deus! Meu Deus!
Como eu sofro!... E, no transe de sua dor, precipitou-se para o corpo da jovem, tomou-a nos braços, cobriu-lhe o rosto de lágrimas, proferindo desesperadas imprecações.
Por mais duro que fosse o coração de Ricardo, por mais humilhante que fosse o papel por ele desempenhado nesta cena, a impressão que ela lhe produziu foi profunda e duas lágrimas enormes escorreram-lhe pelas faces.
Subitamente, Valentim ergueu-se: — Compreendeu, agora, Ricardo! — exclamou. — Que eu não tenho senão um pensamento que é o de vingá-la?
— Seja — replicou o escultor — amanhã estarei à sua disposição.
— Amanhã?... Que fala você de amanhã?... Amanhã, insensato!... Sei lá se estarei vivo amanhã, se Deus, amanhã, se dará ao trabalho de alumiar a Terra, o Sol que não mais a verá?... Não será amanhã... será agora mesmo.
— E, onde quer você que nos batamos? Está louco!
— Aqui mesmo, diante deste cadáver.
— Ora, vamos! Nunca consentirei em tal coisa.
— Há-de bater-se, porque a isso o obrigarei.
— Como?
— A isso, obrigá-lo-ei, repetindo-lhe que é um covarde.
— Um covarde!
— E, se isso não for bastante, cuspirei na sua cara.
— Mil milhões de raios! Quer acabar, ou não? — exclamou o escultor, repelindo tão violentamente Valentim, que se havia aproximado dele, que o fez cair em cima do leito.
— Oh! Sim, um covarde — repetia o ourives — abusa de que nossas forças são desiguais e por estar eu desarmado, não é? Covarde! Covarde!
Covarde!
E Valentim fez o gesto insultuoso com que havia ameaçado o escultor.
Os olhos de Ricardo cintilaram, seus lábios contraíram-se: — Pois seja, batamo-nos e por minha vez lhe juro: deste quarto sairão dois cadáveres. Dentro de cinco minutos, esta rei aqui com as armas.
E voltou-se para sair.
— Armas? — disse Valentim, detendo-o. — Ah! Sim; um senhor, um artista como você não pode matar senão conforme todas as regras; além disso, não o desagradaria aproveitar-se da vantagem de sua experiência sobre a minha. Não, eu sou apenas um operário; bato-me simplesmente com aquilo que me cair nas mãos; vá simplesmente fechar a porta do pátio.
— Como quiser! — exclamou o escultor. — Eu me servirei, se for preciso, de um martelo de forja, contanto que o esmague e faça você pagar as suas injúrias.
Enquanto Ricardo entrava no pátio, Valentim desaparecia no atelier.
Regressou com um compasso comprido, agudo, acerado, semelhante àqueles de que se servem os carpinteiros.
Tentava em vão parti-lo.
— Dá aqui, vamos! Reserva as suas forças para mais logo!
E, invertendo o compasso, Ricardo torceu-o entre os dedos, separando as pontas da charneira. Ficaram dois punhais de mais ou menos seis polegadas cada um.
— Escolha — disse Ricardo — e depressa! — Agora, eu tenho tanta pressa quanto você, Valentim!
Este apoderou-se da arma que lhe era oferecida e lançou um último olhar a Huberta.
Durante esse tempo, o escultor enfaixara o punho com um lenço, prendendo a sua arma numa das dobras e ficara na defensiva: — E agora, venha — disse — e que seu sangue recaia sobre a sua cabeça! Foi você que assim o quis.
Valentim não respondeu; parecia abismado na contemplação da morta.
— Já será vingada, Huberta, ou eu estarei junto de você — murmurou.
Depois, voltando-se, ficou em guarda, sem tomar nenhuma das precauções que o escultor tinha usado.
Ricardo estava de pé, junto do leito, ao qual dava as costas. Havia escolhido esse lugar, assim como tinha preso a arma ao punho da mão, em conseqüência de um cálculo. A luz estava colocada à cabeceira de Huberta; daria em cheio nos olhos de Valentim, enquanto ele ficaria no escuro.
Talvez, também, não deixasse de ficar contente por evitar a vista da jovem, única testemunha do duelo.
Fosse como fosse, percebia-se que, do mesmo modo que Valentim, o escultor estava decidido a tornar o encontro mortal.
Os pés de um e de outro tocavam-se; os dois pedaços de ferro com que estavam armados ficavam a duas polegadas de distância um do outro e a luta começava como começam todas as lutas de homem para homem, por um duelo dos olhos, em que o olhar parece preceder o ferro no peito do adversário.
Contando com a sua força muscular, desde que começasse um combate corpo a corpo, Ricardo tentou precipitar-se sobre Valentim, mas este levou-lhe vivamente a ponta do compasso ao rosto. Ricardo deu um salto para trás, mas não tão prontamente que não sentisse o ferro rasgar-lhe o rosto e o sangue correr-lhe ao longo das faces.
Retomou a sua atitude primeira e procurou derrotar o seu inimigo com ataques bruscos e imprevistos.
Mas Valentim era desembaraçado e ágil. Servindo-se de ambos os braços para aparar qualquer golpe, não foi atingido, e o escultor sentiu pela segunda vez a ponta acerada do ferro que lhe penetrava no ombro.
A humilhação de ser dominado por aquele que até então ele considerava fraco como uma criança tornou Ricardo ainda mais furioso. Mas esse furor não o cegou. Voltou à sua primeira tática e esperou um instante favorável para rojar-se de corpo inteiro sobre o operário.
Valentim compreendeu o seu plano e, tal como se o seu ardente desejo de vingar Huberta o dotasse de uma segunda vista, com a arte de um lutador exercitado, não somente fugiu às duas tentativas mortíferas de Ricardo, mas ainda, agarrando-o pela perna, atirou-o de costas.
Somente o enxergam do leito impediu Ricardo de cair em cheio no chão.
Valentim aproveitou aquele acidente para dominar o seu antagonista.
E operou essa manobra tão vivamente, que lhe prendeu os braços, de tal maneira que a mão armada ficou presa entre os dois peitos e, devido a essa posição, Ricardo nada podia fazer, tolhidos os movimentos.
A arma de Valentim estava por cima da cabeça do escultor e ia enterrar-se-lhe entre os ombros. Apesar dos esforços que Ricardo fazia por libertar-se, estava perdido, quando repentinamente o braço de Valentim permaneceu levantado, imóvel. O seu olhar havia encontrado o rosto de Huberta e os olhos da moça tinham-se aberto e estavam fixos, olhando para aquela luta, da qual, dir-se-ia, não compreendia coisa alguma.
Um suor frio correu pelo rosto de Valentim; os seus cabelos ergueram-se-lhe na cabeça, o compasso escorregou-lhe por entre os dedos. Pareceu-lhe que Huberta fazia um movimento e com a boca aberta, pálida, olhos espantados, tentava em vão falar. Valentim recuou diante de um fantasma.
Só recuperou a voz para lançar um grito terrível: o compasso de seu adversário penetrara-lhe profundamente no peito.
Um grito fraco, inarticulado, doloroso, respondeu a esse grito.
Ricardo voltou-se; pareceu-lhe que esse segundo grito fora proferido por Huberta.
Mas ou fosse terror, ou porque a visão entrevista por Valentim não passara de uma alucinação, os olhos de Huberta tinham-se novamente fechado e sua boca permanecia n inda.
O ruído do corpo de Valentim, rolando pelo chão, obrigou Ricardo a voltar-se.
Atirou para longe o compasso, enterrou convulso as mãos nos cabelos, lançou primeiro os olhos para a moça, cujo corpo readquirira a rigidez de cadáver, e depois para Valentim, que agonizava no chão.
Então, com um rugido mais terrível do que a imobilidade de Huberta e as convulsões de Valentim, correu para fora do quarto, urrando: — Matei-os! Matei-os!
Naquele aposento em que Ricardo, fugindo, deixava as suas duas vítimas, passou-se algo tremendo, uma a caminhar para a morte, a outra, retornando à vida, Efetivamente, Valentim não se havia enganado: Huberta abrira mesmo os olhos, Huberta havia feito um movimento.
A asfixia de Huberta não se prolongara bastante, para ser completa. A influência do ar, que se filtrava pelo pátio e pelo atelier, produzira o que os cuidados inexperientes do jovem não tinham podido fazer; os pulmões paralisados retomaram pouco a pouco o seu jogo, o sangue recomeçara a circular nas veias, as artérias latejavam; mas essa ressurreição era lenta tão lenta, que escapara à atenção de Ricardo.
Mas, a pouco e pouco, os sinais de vida tornaram-se mais visíveis, o zunido dos ouvidos diminuiu de intensidade, as pálpebras dilataram-se, os olhos fixos e átonos reanimaram-se; o nevoeiro que lhe obscurecia a vista dissipou-se insensivelmente e ao mesmo tempo as faculdades da inteligência retomavam posse do cérebro.
Huberta começava a distinguir aquilo que se passava em torno dela.
Percebeu um suspiro, soergueu-se e viu Valentim deitado no chão, braços estendidos para ela, a boca com uma franja de espuma avermelhada.
— Valentim! — murmurou.
Escutando aquele som pronunciado pela boca que julgara morta, o moço apelou para todas as suas forças e arrastou-se para junto de Huberta.
Finalmente, sua mão crispada apalpou a da moça e, auxiliado por ela, conseguiu encostar-se ao leito.
— Ah! — murmurou ela. — Valentim, meu amigo, que foi que lhe aconteceu?
Valentim quis responder, mas uma golfada de sangue abafou-lhe a voz.
O mais que pôde foi rasgar o paletó, o colete, a camisa e descobrir o seu ferimento.
Esse ferimento era mal e mal visível e dir-se-ia uma picada de sanguessuga.
À vista desse ferimento, Huberta compreendeu tudo, pois, à medida que enxergava melhor, a recordação daquilo que antes presenciara lhe acudia ao espírito. Deixou-se escorregar da cama, caiu de joelhos e apoiou os lábios na ferida de Valentim.
Nesse momento, ela escutou o seu nome murmurado num suspiro e sentiu a cabeça de Valentim bater-lhe com todo o seu peso no peito.
Fez um movimento para trás.
Valentim tinha os olhos fechados e de seus lábios frouxos e sangrentos brotava um estertor de agonia.
Por algum tempo, ficou a olhar, estarrecida; depois, desatou num riso nervoso, sacudido, terrível: — Você fez bem reunir-nos, Ricardo! — exclamou ela. — Compreendeu que era Valentim o único que eu amava e agora eis-nos noivos para a eternidade!
CAPITULO XVIII
Quando Ricardo entrou no quarto de Valentim, acompanhado do médico que tinha ido procurar, soltou um grito de espanto e recuou de pavor.
Huberta estava viva e Valentim parecia morto.
A jovem, sentada no chão, as costas apoiadas ao leito, o olhar parado, febril, colocara a cabeça do ferido sobre os joelhos e balançava-o suavemente ao som de uma daquelas cantigas com que as mães adormecem os seus filhos.
Ao grito que soltou Ricardo, ergueu a cabeça e a sua mão estendeu-se para aqueles que vinham perturbá-la: — Chut! — disse com aquela voz secamente articulada dos loucos ou das pessoas em delírio. — Não o acordem, está dormindo? Está cansado, coitado, fez uma longa caminhada para juntar-se a mim, Depois, fazendo um gesto com a mão, como se tentasse afastar uma nuvem que a impedia de reconhecer as pessoas recém-chegadas: — É amanhã o nosso casamento; obrigada por terem vindo; só estamos à espera de meu pai para irmos à igreja, mas, não se aflijam, se ele demorar, eu sei o caminho para ir buscá-lo.
E recomeçou a sua canção.
Ricardo havia recuado até à parede; tinha as mãos nos cabelos, esforçando-se por reprimir os soluços que lhe partiam o coração.
Foi o médico quem primeiro rompeu o silêncio: — A pobre infeliz perdeu a razão. É preciso transportá-la para fora, ou ao menos para um quarto vizinho, a fim de que eu possa dispensar os meus cuidados àquele que está ferido.
Ricardo fez um movimento para satisfazer a vontade do médico, mas não teve coragem de pôr a mão em Valentim ou cm Huberta e caiu sobre uma cadeira, desatando em soluços.
Então, o médico, com o auxílio do porteiro, tentou arrancar à moça o corpo ensangüentado que segurava nos braços, mas ela resistiu com tanta força, agarrando-se à roupa de Valentim, que era de recear que a violência dos abalos no organismo do ferido lhe aumentasse a hemorragia.
Então, o facultativo, para conseguir seus fins, resolveu entrar na loucura da pobre moça: — Deixe o seu noivo vestir-se para ir à festa e você vista-se, também, pois não pode ir à igreja com a roupa que tem no corpo.
Huberta fez um movimento de cabeça, que significava ter compreendido o que o médico lhe dissera. Sem fazer a menor resistência, acompanhou-o até ao atelier. O médico voltou só e, para não o molestarem no seu trabalho de prestar cuidados ao ferido, fechou a porta que dava de um quarto para o outro.
Ricardo, esse permanecia inerte e sem palavra, sentado na cadeira, onde se deixara cair.
O médico examinou o ferimento, não se atrevendo sondá-lo, tão grave lhe pareceu. Mas, sucede, às vezes, que, nos ferimentos muito profundos, a natureza açode em auxílio da arte, formando-se um coalho de sangue que faz parar a hemorragia. Esse coágulo a sonda pode destruí-lo, mas então não é propriamente do ferimento que se morre, é o médico que mata.
Nessa espécie de acidentes, só existe um tratamento a seguir: sangrar largamente o doente para abrir ao sangue um segundo ponto de saída.
À medida que o sangue se derramava na cuveta, a vida parecia retomar posse desse corpo que por um instante se tomaria apenas por um cadáver. Finalmente, a respiração restabeleceu-se, os olhos tornaram a abrir-se, passando da atonia à expressão, e começaram a vagar pelo aposento, visivelmente à procura de alguém.
Detiveram-se em Ricardo, que se ergueu da cadeira e deu um passo para a frente, murmurando o nome de Valentim.
Este não podia ainda falar, mas seus lábios mexeram-se e a sua fisionomia tomou a expressão de angústia, a respeito da qual não era possível enganar-se.
— Ela está ali — disse Ricardo, apontando para o atelier. — Está ali e está salva.
Valentim exalou um suspiro e um clarão de luz perpassou-lhe pelos olhos.
— Ela está viva — balbuciou — Deus seja louvado! O resto pouco importa.
O escultor deu alguns passos para a frente e caiu de joelhos diante do ferido: — Valentim, meu pobre Valentim! — murmurou. — Oh! Se soubesse quanto sofro, você me perdoaria, estou certo...
O ferido olhou para ele com um sorriso doloroso, pôs um dedo na boca para recomendar-lhe silêncio e, dirigindo-se ao médico: — Senhor, receio bem que esteja tendo um trabalho inútil — disse, olhando para a corrente de sangue que lhe corria do braço. — Eu infelizmente estou ferido de morte, sinto-o r repito; talvez seja melhor assim.
— Para que desesperar, senhor? Somente, eu desejaria saber de que maneira ocorreu o acidente.
Ricardo, que escondia o rosto nas mãos, afastou-as e olhou para o seu amigo com uma expressão de terror que não escaparia ao médico se toda a sua atenção não estivesse voltada para o ferido.
— Oh! Senhor! — disse Valentim. — Foi coisa muito simples. Eu amo a moça, que está no aposento contíguo. Entrando em casa, encontrei-a estendida na cama e um fogareiro, ainda com carvões acesos, a dois passos dela. Estava imóvel, sem sentidos. Julguei-a morta, não quis sobreviver-lhe, enterrei a ponta desse compasso no peito. Não inquietem ninguém por causa da minha morte. A minha morte foi um suicídio. Se pairasse alguma dúvida a esse respeito, o senhor repetiria a minha declaração, não é verdade?
Ricardo escondera a cabeça nos lençóis; chorava e gemia como choram e gemem as crianças.
O sangue cessara de correr; o médico colocou um aparelho sobre o ferimento. Pronto o curativo, Valentim disse-lhe: — O senhor quis há pouco tranquilizar-me com uma mentira, da qual só tenho que agradecer-lhe, mas, se deseja que o meu reconhecimento seja ainda maior, tratame como um homem. Quanto tempo me resta ainda para viver?
— Repito — tornou o médico — que, se não ocorrer emoção alguma, se não sobrevier acidente nenhum, é possível que possa resistir e continuar a viver.
Valentim interrompeu-o com um sorriso triste: — Mas — disse — supondo que sobrevenham essas emoções, admitindo esses acidentes, diga, quanto tempo tenho ainda na minha frente?
O médico fitou Valentim. Havia tanta firmeza no olhar do ferido que o médico julgou nada dever ocultar-lhe: — É uma coisa bem triste isso que o senhor me pede — respondeu ele.
— Mas, quando nos interpelam dessa maneira, devemos dizer a verdade.
Assim como, sem emoção, sem acidente, o senhor pode sarar, da mesma forma o mais pequeno acidente, a mais ligeira emoção, podem provocar-lhe a morte por sufocação.
— Ah! Senhor! — exclamou Ricardo. — Repita-me que ele pode viver, diga-me que ele viverá!
— Basta, basta, Ricardo! — interrompeu Valentim. — Ainda uma vez obrigado, doutor. E agora eu desejaria ficar só com o meu amigo.
Ricardo parecia temer esse colóquio, tanto quanto o seu amigo parecia desejá-lo; mas o médico inclinou-se para o seu ouvido: — Durante esse tempo, vou ocupar-me da moça — disse ele. — Pode ser que ela necessite de meu auxílio.
Ricardo estremeceu: — Sim, sim — disse.
O médico passou para o quarto vizinho. O porteiro voltou a ocupar-se da sua função. Valentim e Ricardo ficaram sós.
Este último, de mãos juntas, continuava a pedir-lhe perdão. Mas, Valentim, com um doce e triste sorriso, disse: — Deus sabe muito bem aquilo que faz, meu pobre Ricardo! Parece que esta desgraça era necessária, pois que, abrindo-nos os olhos, fazia reconhecer as leis sagradas da justiça e da probidade. É a minha vida, bem sei, que Deus pede em troca do milagre que opera, mas, desde que a minha vida garante a sua felicidade e a de Huberta, juro-lhe, Ricardo, que a não lamento.
— Mas eu não posso acreditar que vá morrer! — exclamou o escultor, arrancando os cabelos. —- Não! Não! Não! Isso não é possível!
— Não percamos um tempo precioso, Ricardo: tudo é possível à morte, ela pode vir no próprio instante em que lhe falo, cortar em duas a frase que pronuncio, deixar incompleta a palavra que exprimo. Mas eu também não quero morrer sem ter ouvido repetir que a sua dor não consistirá, apenas, cm imprecações vãs, mas que o reconduzirá a melhores sentimentos, ou seja, a reconhecer os seus erros e dar a Huberta a reparação a que tem direito.
Ricardo como que se entregou a um violento combate íntimo, mas permaneceu mudo.
Esse silêncio causou inquietação a Valentim: — Meu Deus! — disse, fazendo esforço para levantar as irmãos para o céu. — Eu que acreditava que o meu sacrifício não teria sido inútil!
— Pois bem, com mil diabos! Não o será... Sejam quais forem as tristezas que para mim daí devam resultar, Huberta será minha esposa. Ah!
Pode crer, juro, Valentim, por tudo quanto há de mais sagrado para o homem neste mundo!
— Acredito, acredito — disse o ferido, apertando com sua mão trêmula a mão de Ricardo. — Seja qual for a leviandade de seu espírito, o seu coração é bom, você não mentiria a um velho amigo, que vai deixá-lo para sempre.
Mas, para que falar de tristezas? É a sua felicidade, pode crer-me, que vai garantir para sua vida, garantindo a felicidade de Huberta. Os meus discursos o aborrecem, meu pobre Ricardo, muitas vezes me disse, mas escute-me: este será o ultimo.
Somente os soluços de Ricardo responderam a estas palavras.
— Recorde meu nome algumas vezes à memória dela, quando estiverem ambos ao canto da lareira: que o nome de Valentim passe dos seus para os lábios dela!
Ricardo apertou a mão de seu amigo. Sufocava; conseguiu apenas articular algumas palavras.
— Ricardo! — disse Valentim, com voz suplicante. — Será que não posso vê-la mais uma vez antes de morrer? Ricardo não respondeu.
— Oh! — fez Valentim com uma expressão de censura. O escultor compreendeu quanta dor encerrava aquela simples exclamação: — Impossível! Valentim, juro-lhe que é impossível!
— Impossível! — repetiu o ourives, com olhos terrivelmente dilatados.
— Impossível? Sabe, Ricardo, que você faz nascer uma suspeita terrível em meu espírito? Ter-me-á enganado, dizendo-me que ela ainda está viva?
Ricardo, morta ou viva, quero vê-la, quero vê-la ainda uma vez!
E, apesar de todos os esforços que Ricardo fez para segurá-lo, Valentim ergueu-se num joelho.
— Que está fazendo, infeliz? — exclamou Ricardo. — O médico proibiu-lhe toda e qualquer emoção, todo e qualquer movimento.
— Quero ir aonde ela está, pois você não quer que ela venha até mim.
Naquele momento, ouviram-se alguns gritos inarticulados no aposento, onde Huberta se encontrava. Valentim reconheceu a voz.
— Que é que se está passando? — perguntou, fazendo esforços para suster-se de pé. — Que gritos são esses?
— Em nome do Céu, Valentim — suplicou Ricardo — em nome do que há de mais sagrado, agora não, mais tarde!
— Mas não está ouvindo? — disse Valentim. — Ela está gritando, clamando por socorro.
E hesitante, arrastando-se, fez dois passos para a porta.
— Pois bem! — exclamou Ricardo. — Mais vale que você saiba a verdade: Huberta...
Hesitou.
— Bem; Huberta...? — perguntou Valentim.
— Está louca!
Valentim soltou um grito, que terminou numa espécie de estertor.
Estremeceu, girou sobre si mesmo, e caiu no pavimento, como a árvore desarraigada que se abate no chão.
Ao grito que Valentim proferiu, respondeu um grito não menos terrível de Ricardo; ao ruído da queda do corpo do ferido, a porta do quarto de Huberta abriu-se e o médico surgiu à entrada.
O médico e Ricardo precipitaram-se para o corpo de Valentim e levantaram-no. Tinha os olhos muito abertos, mas fixos e átonos. Os seus lábios moviam-se ainda, sem poder articular qualquer som; o corpo torcia-se numa convulsão suprema; um suspiro doloroso escapou-se-lhe da boca.
A sua alma exalara o derradeiro suspiro.
— Nada mais há a fazer; está morto! — disse o médico.
O escultor, imóvel, pálido, agitado por movimentos nervosos, permaneceu por algum tempo ajoelhado diante do cadáver de seu amigo, chorando e orando, porque há horas em que a oração, mesmo que os lábios a não houvessem aprendido a dizer, se eleva espontaneamente do fundo da alma.
Deu o último beijo a seu amigo, cerrou-lhe a boca e os olhos e, cambaleando como um ébrio, dirigiu-se para o quarto onde havia deixado a moça.
Com grande surpresa sua, o médico estava sozinho no aposento, cuja porta dava para o pequeno pátio. A porta estava escancarada.
— Onde está Huberta? — perguntou num tom de voz em que a ameaça se juntava à súplica.
— Ela queria ir em busca do pai, que estava demorando a chegar — respondeu o médico. — Daí os gritos que o senhor ouviu. Eu segurava-a com muita dificuldade, quando os seus gritos me obrigaram a correr para junto do senhor e do ferido.
— Oh! Infeliz! Infeliz de mim!... — clamou Ricardo.
Correu para fora do quarto, a fim de interrogar o porteiro.
Este tinha visto Huberta sair, cabelos desgrenhados. Correra após ela.
Infelizmente, o portão estava aberto. Ele notara qualquer coisa semelhante a uma sombra, dirigindo-se para o bairro de Santo Antônio. Chamou pela moça, mas inutilmente; ela havia desaparecido no ângulo da Rua de Charenton.
Ricardo precipitou-se na mesma direção, para tentar apanhá-la.
A noite estava fria e chuvosa.
Uma esperança restava a Ricardo. Essa esperança estava nas próprias palavras de Huberta: — "Meu pai está demorando a chegar; vou buscá-lo".
Ela, sem dúvida, tomara aquela direção, pois esse era o caminho que tantas vezes seguira, quando levava a Paris o produto da pesca do avô Guichard.
Ricardo chegou à barreira do Trono, parando a interrogar cada mulher que seguia o caminho de Vincennes, mas nenhuma delas havia reconhecido Huberta.
Aliás, os transeuntes eram raros; no instante em que atravessava a barreira, batia meia-noite.
De quando em quando, parava, para olhar em redor. Por mais que chamasse Huberta, ninguém lhe respondia. Tinha medo da própria voz...
Em Saint-Maur, abandonou o caminho batido e cortou através dos campos, dirigindo-se para o grupo de casas que formavam, então, toda a aldeia da Varenne e ficavam à beira d'água.
No meio dessas casas, a de Francisco Guichard distinguia-se pela sua velhice. Aproximou-se com o coração aos pulos; as pernas tremiam-lhe.
Era a única, através da qual se filtrava ainda uma réstia de luz.
Foi isso que lhe deu um raio de esperança.
Ricardo aproximou-se da veneziana. Conforme previra, a porta não estava fechada por dentro; estava simplesmente encostada.
Empurrou-a devagar.
Apesar do adiantado da hora, o tio Guichard não se deitara; sentara-se diante da chaminé. A claridade da lâmpada colocada sobre um caixote de madeira iluminava-lhe o rosto. Esse rosto estava pálido e murcho como o de um cadáver. Imóvel como o de uma estátua, poderia julgar-se morto se, de tempos a tempos, uma grossa lágrima, juntando-se no canto da pálpebra, não lhe escorresse pela face.
Era evidente que Huberta não havia aparecido.
Ricardo, com o coração oprimido ante aquela dor muda, que lhe parecia eterna, fechou devagar a porta, e afastou-se.
Depois, disse a si mesmo que, em Joinville, Huberta, provavelmente, havia tomado pelo caminho que vai ao longo do Marne e, ele, seguindo esse caminho em sentido inverso, acabaria por encontrá-la. Assim o pensou.
Assim o fez.
À força de caminhar nas trevas, os olhos habituaram-se-lhe ao escuro.
Em face das últimas casas de Chennevières, avistou um barquinho que seguia o fio da água e que descia, por conseguinte, do lado da Varenne.
Desceu até ao fundo da margem e chamou; mas, a bordo, não se fez movimento algum. Como a Lua, naquele momento, deslizasse entre duas nuvens, verificou que o barco estava vazio.
Chegando à ilha dos Guardas, parou. Pareceu-lhe ver passar por entre os salgueiros e os arbustos da ilha uma forma branca.
Essa forma desapareceu e tornou a aparecer. O coração de Ricardo batia descompassadamente; um suor glacial escorria-lhe da fronte.
Fez, finalmente, um esforço sobre si mesmo: — Huberta! — gritou. — Huberta!
A forma branca parou, pareceu escutar, mas, quase logo, abaixou-se, para logo levantar-se. Dir-se-ia que estava a colher flores.
— Huberta! — repetiu Ricardo.
— É você, Valentim? — respondeu uma voz, que Ricardo reconheceu ser a de Huberta.
O coração pulou-lhe no peito: — Sim, sou eu — disse.
— Espera por mim — disse a sombra.
E, como se fosse dotada da faculdade de caminhar sobre as águas, a sombra desceu, por entre os ramos dos salgueiros e dos arbustos, até ao rio.
Subitamente, ressoou um grito; Ricardo procurou em vão a sombra com os olhos. Tinha desaparecido.
O escultor ficou, um instante, imóvel de espanto e terror, depois, precipitou-se no rio.
Foi debalde, porém, que mergulhou diversas vezes e, depois de um quarto de hora de esforços e de buscas inúteis, voltou a subir até à margem, perguntando a si mesmo se tudo não teria sido um sonho ou uma ilusão.
CAPITULO XIX
As chuvas haviam elevado o nível do Marne, que corria cheio, rolando uma água amarelenta e lodosa. O tempo era maravilhoso para a pesca. Os peixes deixaram os seus esconderijos e apinhavam-se de encontro às margens ou nas terras invadidas pela enchente.
Todos quantos no litoral se julgavam com o direito de mergulhar uma ponta de linha nas águas do Marne achavam abençoado aquele momento e permaneciam na margem do rio, desde pela manhã até à noite e, algumas vezes, desde a noite até de manhã. Francisco Guichard era dos mais encarniçados nessa "guerra", procurando esquecer a sua dor, na distração do trabalho.
Embora se tivesse deitado depois das três horas da madrugada, mal a aurora despontava, subia lentamente o rio, porque, como Mateus comunicara a Huberta, os seus braços haviam-se tornado fracos demais para lutar contra a correnteza.
Além disso, tomava sempre certas precauções, quando levantava as redes.
Efetivamente, o tio Ruína não se enganara quanto a mansidão do senhor Batifol. Este tolerava-o no rio, porque era sobretudo na esperança de surpreender os lugares privilegiados, cujo conhecimento — diziam — constituía o mistério, origem primordial dos grandes êxitos do velho pescador.
Quando o velho chegou às alturas de Champigny, soltou o seu barco, amarrado a margem do rio, impeliu-o para o largo e começou a tirar da água o seu cesto de pesca. Como estava sozinho, não lhe seria possível, com o auxílio dos remos, manter-se contra o fio da corrente e ao mesmo tempo dedicar-se à pesca. Por isso, logo que chegou ao ponto, onde havia colocado um de seus engenhos, após haver cuidadosamente examinado todos os arredores, enterrou duas compridas estacas no leito do rio e segurou o barco. Em seguida, com um gancho, pôs-se a procurar o engenho no fundo da água.
Acabava de passar além da Ilha dos Guardas e já havia retirado a sua terceira nassa, quando, repentinamente, parou, todo trêmulo: o gancho encontrara resistência estranha, mas cuja natureza nem a sua longa prática do ofício lhe permitia descobrir a causa.
Compreendeu que ia trazer um cadáver à superfície da água. Ergueu o gancho, e as dobras de um vestido branco começaram a aparecer, turbilhonando na corrente.
Descobrindo um vestido de mulher, apoderou-se do ancião um vago terror. Deteve-se alguns momentos, sem puxar a si o cadáver.
Virou a cabeça e quase largou o gancho e tudo no fundo do rio. E, subitamente, levado por uma repentina resolução, inclinou-se e, pegando no corpo pelo busto, deixou-o cair dentro de seu barco.
Mas, junto desse corpo, caiu de joelhos, apatetado, faces lívidas, a testa a escorrer-lhe suor.
Efetivamente, era Huberta!
Um doce sorriso parecia animar ainda o rosto da infeliz, que conservava na mão o ramo de flores que, à semelhança de Ofélia, tinha estado ocupada a colher, no momento em que lhe havia chegado aos ouvidos a voz de Ricardo.
Guichard chegou, finalmente, às primeiras casas da aldeia, com o corpo de Huberta deitado sobre as tábuas do barco, onde a desditosa criatura passara a sua infância, ou melhor, onde, durante dezoito anos, se sentara cada dia, cantando ruidosa e alegremente.
No momento em que transpôs a porta de sua casa, o ancião parou, e, apoiando os lábios na testa do cadáver que tinha entre os braços murmurou: — Agora, podes descansar no leito, onde elas morreram; bem ganhaste esse descanso pelo teu martírio, pobre criança!
Depois, colocando Huberta no seu leito, encerrou-se dentro de sua cabana. À tardinha, Mateus, o pescador, ousou ali penetrar, a fim de ver se o seu velho amigo carecia de alguma coisa.
Huberta jazia na cama larga, franjada de sarja, alumiada pela pequena lâmpada pregada na parede, por cima de sua cabeça; em face dela, estava o seu avô, que lhe apertava uma das mãos geladas entre as suas e contemplava aquele rosto azulado, com uma espécie de ávida raiva.
Agradeceu a Mateus.
E, como ele insistisse em saber se podia ser-lhe útil em alguma coisa: — Sim — disse — faze-me o favor de ir a Paris e contar ao senhor Valentim o que se passou, depois, rogar-lhe-ás que venha amanhã ao enterro de Huberta e ele te agradecerá, com certeza, assim como eu te agradeço.
Mateus, sem levantar a menor objeção a respeito das nove léguas a percorrer, partiu imediatamente.
Muitas horas depois, estava de volta e, com certa hesitação, anunciou ao tio Ruína que, no momento em que chegara a Paris, estavam encerrando o corpo do senhor Valentim no caixão.
Acrescentou que o enterro do moço deveria ter lugar no dia seguinte, às onze horas.
O tio Ruína parecia não ter prestado atenção ao que o amigo Mateus lhe contava. Ouviu, entretanto, porque respondeu: — Exatamente à mesma hora, pobres crianças!...
Com efeito, no dia seguinte, às dez horas e meia, o enterro da moça saía da cabana de Francisco Guichard. O ancião havia colocado pelas próprias mãos o corpo de Huberta no caixão e o acompanhou-o até ao cemitério de Saint-Maur, onde já dormiam a mãe e a avó de sua neta.
Não derramara uma única lágrima, desde casa até junto da cova; assistiu a todos os pormenores da inumação com uma calma sinistra que causou a admiração dos poucos vizinhos, que o haviam acompanhado.
Os seus olhos como que tinham exaurido a fonte das lágrimas; apenas, as suas pálpebras demonstravam essa cor avermelhada que ostenta o ferro ao sair da forja.
Quando a terra ressoou com esse ruído, que, uma vez ouvido, nunca se esquece, Mateus quis reconduzir o seu velho amigo à casa.
— Ainda não — disse ele.
E ficou até que a cova se enchesse de terra.
Então, ajoelhou-se e beijou piedosamente o montículo que indicava o lugar, onde Huberta, deitada, repousava para a eternidade e, voltando-se para os assistentes: — Agora, é com toda a verdade que podem chamar-me o tio Ruína.
Durante a noite seguinte, os moradores das casas localizadas às margens do Marne foram despertados por uma claridade sinistra, que era vista no meio da água e iluminava todo o curso do rio. Correram a ver e verificaram que Francisco Guichard havia juntado as suas redes, todos os demais petrechos de pescador no barco e acabara ateando-lhes fogo...
O fogo havia feito tais progressos nesse monte de madeira seca e de fios, que seria inútil pretender apagá-lo.
Correram ao quarto do velho, a porta não estava fechada, mas o quarto achava-se deserto.
Não o tinham visto sair da Varenne, nunca mais ali o tornaram a ver.
Que teria sido feito dele? Onde morreu? Para onde se dirigiu? Ninguém o sabe.

 

 

                                                                  Alexandre Dumas

 

 

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