Lá está um Calder, Jovem e orgulhoso, Pronto a decidir Qual será o seu destino.
Um sol indiferente brilhava na extensão infinita do céu de Montana, chamejando sobre o gado agitado e ruidoso que entulhava os currais próximos à linha do trem. O silvo explosivo da locomotiva imóvel era quase inaudível ante o mugido amedrontado dos bois e o estrondo de cascos fendidos sobre a rampa de madeira que levava aos vagões de carregamento. O ruído era pontuado por gritos e xingamentos dos cowboys que incitavam os bois com longas varas, forçando-os a entrar no vagão.
- Dezoito!
Com um vagão de gado já lotado, a locomotiva saiu de seu ronco preguiçoso, ribombando para puxar a fila de vagões para frente, a fim de que o próximo pudesse ser carregado. Rolos de fumaça fluíam da chaminé, os tinidos e guinchos juntando-se à cacofonia reinante. Colocar o gado destinado ao matadouro do leste nos vagões era uma tarefa tediosa, ainda mais desagradável devido ao ruído e fedor coletivo dos animais do curral.
Benteen Calder assistia aos trabalhos do lado de fora. A grande aba do chapéu sombreava o rosto queimado de sol, escondendo parcialmente o olhar inquieto e analítico. Os cabelos negros tingiam-se de prateado, os cinquenta anos colocando algum peso naquele corpo de ossos largos, sem dúvida típico dos reis do gado. Pedaço por pedaço, ele construíra a fazenda Triplo C com seu suor, seu sangue e sua astúcia. Lutara com criminosos, índios renegados e vizinhos ávidos por tomar-lhe o rancho. Sempre existiria alguém querendo fazer isso. E o homem que dera seu nome a Chase Benteen Calder sabia disso.
O gado que estava sendo colocado no vagão de carga levava a marca Triplo C, como propriedade da Calder Cattle Company, sua fazenda. A aridez do verão deixara o gado em condições inferiores às ideais para o mercado, mas o clima a leste de Montana raramente era ideal.
Após quase seis semanas de rodeio, Benteen sentia seus músculos envelhecidos doloridos. Esfregava distraidamente o braço esquerdo quando Percebeu um movimento à direita e virou levemente a cabeça para identificar a figura que se aproximava. Sorriu silenciosamente ao reconhecer o maquinista, Bobby John Thomas.
O carregamento deve terminar daqui a uma hora - observou o homem, sem qualquer cumprimento preliminar.
Mais ou menos - assentiu Benteen com um ligeiro movimento de cabeça.
Os olhos sagazes do maquinista localizaram um boi com marca diferente entre o gado encurralado. - Estou vendo que você pegou alguns desgarrados. Diamond T. - Leu a marca e franziu o cenho. - Não me lembro de ter visto essa marca por aqui.
- Acho que é da Dakota. - Era impossível saber as diferentes iniciais de fazendas localizadas fora do Estado, e Benteen não tentou fazêlo. - No total, temos quatorze desgarrados neste carregamento.
A descrição de cada um estava incluída no despacho. O gado tem uma natural tendência à dispersão e à falta de atenção a limites ou cercas, e era inevitável que um rodeio de bois incluísse gado pertencente a outras companhias. Representantes de fazendas vizinhas sempre se encontravam por perto por causa disso. Caso não houvesse um representante de uma certa marca, o animal sempre era incorporado à remessa do mercado. Se lhe fosse permitido perambular, o gado desgarrado acabaria morrendo de velhice, sem proporcionar benefício a ninguém. Mais importante, ele se alimentaria do capim que teria nutrido o gado do dono da fazenda.
Quando o gado desgarrado chegasse a um mercado terminal, um inspetor de marcas o reconheceria e o pagamento por sua venda seria entregue ao verdadeiro proprietário do animal. Tal prática, obedecida tanto pelo fazendeiro que encontrara o desgarrado quanto pelo inspetor de marcas, era considerada uma cortesia do rancho, observada por todos e raramente desrespeitada. Era a Regra Dourada posta em prática: " Não faça aos outros o que não gostaria que lhe fizessem."
Outro vagão foi carregado de bois e a porta fechada. O trem começou a funcionar, colocando o próximo carro em posição. Durante a curta pausa na operação de carregamento, um dos vaqueiros saiu de sua posição na rampa e tirou o chapéu, enxugando a testa com o antebraço, enfiando em seguida o chapéu sobre os cabelos quase negros, tudo em um só movimento. Uma rápida olhada nos traços bem delineados, da cor e textura do couro de boa fibra, era suficiente para que se percebesse a semelhança entre o jovem vaqueiro e o dono do gado.
Bobby John Thomas olhou para Benteen.
- Esse é Webb, seu garoto?
A boca de Benteen enrijeceu-se imperceptivelmente, enquanto assentia com a cabeça. Um brilho de preocupação, vindo de uma apreensão renitente, tremeluziu em seus olhos.
- Ele cresceu um bocado desde a última vez em que o vi - observou o maquinista.
- É. - A resposta abrupta parecia carregar uma conotação negativa. Benteen não contou que, até então, Webb só crescera.
A promessa em que o filho se constituíra nos primeiros anos não se realizara ainda.
Muito do que havia no jovem alto e forte merecia o orgulho de Benteen. Aos 26 anos, Webb era um dos trabalhadores mais graduados da fazenda Triplo C. Equiparava-se aos melhores, lançava o laço com eles, e colocava a mão em quase tudo. Webb jamais fugia do trabalho pesado, consequentemente Benteen não podia culpá-lo por isso. Era a responsabilidade que Webb evitava, aceitando-a somente quando forçado a tal. Nestas raras ocasiões, ele se desincumbia bem da tarefa, tomando poucas decisões erradas. Mas era aquela falta de interesse em assumir papel ativo na administração do rancho o que inquietava Benteen. Quanto mais ele o impelia, recordando-lhe que um dia a Triplo C seria dele, menos interesse Webb demonstrava.
Lorna não ajudava muito, insistindo que Benteen esperava demais do filho. Achava Webb demasiado jovem, necessitando de tempo para gozar a vida antes de assumir qualquer responsabilidade na direção da fazenda. Talvez estivesse certa, mas ele tinha a mesma idade de Webb quando trouxera o rebanho de longhorns do norte do Texas para fundar a Fazenda Triplo C. Preocupava-o pensar que criara um filho que se satisfazia recebendo ordens, ao invés de dá-las. O futuro da fazenda dependia de seu filho.
Transferindo a atenção do filho de ossos largos e músculos delgados, fonte de vaga ansiedade, Benteen virou-se para o agente. O rosto não demonstrava um pingo das perturbações interiores.
- Tem estado ocupado, Bobby John? - indagou.
- Temos estado ocupados, mas não temos feito muito dinheiro declarou um agente, em tom pesaroso.
A boca de Benteen crispou-se em uma linha seca. - Essa é sempre a reclamação dos ferroviários. E cada vez fica mais difícil engoli-la, quando vejo a taxa de frete subir.
- É um fato. - Bobby John era um homem honesto. - Podemos transportar muito gado de Miles City no outono, mas não com regularidade. Não há movimento de pessoas nem de mercadorias por aqui.
- Imagino - concedeu Benteen.
- No entanto, tudo isso deve mudar... - o comentário foi feito e deixado ali, como uma isca, próxima a um tronco submerso onde um grande peixe descansava.
A observação espicaçou a curiosidade de Benteen, fazendo surgir um interesse muito verdadeiro:
- Por quê?
- Um cara lavrou um pouco da terra próxima ao rio Musselshell e plantou algum trigo. Dizem que colheu quarenta alqueires por acre - percebendo o ceticismo nos olhos escuros de Benteen, prosseguiu - usou aquele método para terra seca que desenvolveram em Kansas.
Benteen tinha uma vaga ideia do princípio envolvido em tal método. Em terra árida, onde não havia fonte de água local para irrigação, plantava-se somente em metade da extensão dos campos enquanto a outra metade
era deixada sem cultivo. Essa terra ociosa era lavrada e gradada, de forma que nenhuma vida vegetal desperdiçasse a umidade. No ano seguinte, aquela metade seria plantada. Era uma maneira de conservar a umidade da chuva e da neve para utilização no ano seguinte.
- Isso não vai funcionar aqui - declarou Benteen, categórico, sem levar em consideração evidência em contrário. - Essa terra é das vacas. Ela só serve para isso. Além do mais, nunca ouvi falar em fazendeiro que conseguisse viver só com 25 hectares.
Essa área era a metade dos cinquenta hectares permitidos para propriedade rural, e o máximo já tornado produtivo, até então, através do método de terra seca.
- Pode ser que seja verdade - admitiu Bobby John -, mas ouvi dizer que há uma proposta apresentada ao Congresso para dobrar a área permitida pelo Ato de Propriedade Rural.
O queixo de Benteen ergueu-se um milímetro, em reação a esta nova informação. Uma sensação de desconforto percorreu-o, ao olhar para a pastagem além do cercado do gado.
Na tarde de outono, a paisagem rígida de Montana assemelhava-se a um mar de talos escuros. Era a melhor pastagem que qualquer vaqueiro poderia esperar encontrar. A ideia de vê-la rasgada por um arado e substituída por trigo estava além do suportável. Muitas coisas haviam mudado desde que ele chegara àquele território, mas essa mudança Benteen não aguentaria. Lutaria contra qualquer tentativa de transformar o pasto em plantação.
- Eles nunca conseguirão fazer passar essa lei no Congresso. - Sua voz parecia de aço, mas a perspectiva de uma batalha, política ou de outra natureza, pesava sobre seus ossos cansados.
- Eu não teria tanta certeza disso - alertou-o Bobby John Thomas - Não é só um bando de fazendeiros ávidos por terra que quer passar a lei. - Não acrescentou mais nada.
Benteen praguejou contra si mesmo, em silêncio, por falar sem pensar. Os vaqueiros eram sua última preocupação. O que o deixava apreensivo eram os ferroviários. Eles eram proprietários de terras sem bens líquidos naquela região do Oeste, donos de milhares de quilómetros quadrados em extensões de terras para passagem das estradas de ferro, transferidos a eles pelo governo norte-americano para a via férrea. Os ferroviários usariam um Ato de Cessão de Terras mais amplo como uma isca para atrair os fazendeiros para cá e acabar vendendo-lhes terra para fazendas ou vilas. Eles criariam um boom do cultivo, que traria colonos, negociantes e fazendeiros. As pessoas precisariam de produtos, o que significaria mais trens de carga oferecidos pelos ferroviários.
Não era preciso ser muito inteligente para compreender isso. Os ferroviários tinham feito o mesmo em Kansas, Nebraska e Colorado, e agora o gramado de toda aquela pradaria estava semeado com algum trigo de origem russa. Mas a terra não era a mesma. Os métodos lá utilizados não podiam ser aplicados ali.
A proposta a ser apresentada ao Congresso precisava ser detida, e detida suavemente. Benteen sabia que não podia perder tempo, embora as seis semanas de rodeio o tivessem deixado fatigado. Apesar da grande semelhança física com o filho, não possuía mais a capacidade de rápida recuperação da juventude.
- Acho melhor voltar para o escritório. - Bobby John Thomas mudou de posição, relutando em colocar em prática suas palavras, mas Benteen não disse nada que convidasse o agente da ferrovia a ficar para conversar mais. - Dê lembranças a sua senhora.
- Darei. - Na mente de Benteen, formou-se uma imagem de Lorna aguardando-o no hotel da cidade. De súbito, sentiu uma necessidade esmagadora de estar junto dela. Mal se deu conta do afastamento do agente, a atenção já desviando-se para outro assunto. com o olhar varreu os cercados de gado e a plataforma de carregamento, esforçando-se para localizar Barnie Moon, detendo-se no filho. Maldição, algum dia a fazenda e a terra seriam dele, pensou Benteen, franzindo o cenho em preocupação irritada. - Webb! - A voz soou ríspida ao alteá-la para ser ouvido.
Voltando-se, Webb olhou por sobre o ombro e viu o pai fazendo sinal para falar com o filho. Foi-se afastando da rampa de carregamento, enquanto estendia a longa vara a outro vaqueiro, para que o substituísse. Ao se aproximar do pai, Webb experimentou aquele estranho sentimento de orgulho e ressentimento: orgulho pelo homem que Chase Benteen Calder era, por ter atravessado aquela terra praticamente sozinho, e ressentimento pelas mesmas razões.
Ele não queria ser o filho de seu pai; não queria ser destacado dos outros trabalhadores porque seu nome era Calder; desejava adquirir o direito ao comando, embora tivesse nascido em posição de herdá-lo. Preferia ter nascido Webb Smith, a Webb Calder; assim, colocava em prática uma rebelião silenciosa, jamais aberta, sempre sutil, negando a si mesmo o direito de reivindicar o que era seu por nascimento. Webb fazia questão de não fazer valer sua posição nem suas opiniões sobre as dos outros trabalhadores da fazenda. A despeito disso, todos os vaqueiros, exceto aqueles mais velhos, que tinham vindo do norte com o pai, voltavam-se para Webb semPre que havia uma decisão a ser tomada, acatando-o porque era um Calder. Aquilo o enraivecia, embora dificilmente demonstrasse.
Webb sabia que o pai estava desapontado com ele. Recebera suficientes sermões sobre a aceitação da responsabilidade. Só uma vez tentara explicar como se sentia, a determinação em ser aceito devido à sua habilidade, e não às circunstâncias de seu nascimento. O pai dispensara os argumentos como caprichos bobos, recordando inutilmente o fato de que Webb nascera Calder. Sentindo-se rejeitado com essa falta de compreensão, Webb to?mara o caminho solitário, incapaz de simplesmente ser um dos rapazes Recusando-se a assumir o papel que o pai desejava que representasse. Mais de Uma vez considerara a hipótese de colocar o saco de dormir na sela do cavalo e sair da Triplo C; então pensara na mãe e resolvera ficar, na espetativa de que alguma coisa mudasse.
Sim, senhor? - Webb deteve-se diante do pai, fazendo com que o tom de voz indagasse o motivo da convocação. Há mais de seis anos não se dirigia a ele como pai.
Não havia nada na expressão ou atitude do filho que demonstrasse mais do que interesse casual. Benteen investigou, tentando descobrir mais. Nunca sabia o que o garoto estava pensando, ou se estava pensando. Um pai devia estar a par do que se passava na cabeça do filho. Benteen estava consciente de que não sabia.
- Quero que vá ao telégrafo e envie alguns telegramas para mim declarou Benteen. - Um para Frank Bulfert, o assistente do senador em Washington. Quero que pergunte a ele no telegrama a situação da proposta levada ao Congresso de aumentar o Ato de Cessão de Terras e que tipo de apoio preliminar está recebendo. Peça a mesma informação a Asa Morgan, em Helena. O último telegrama que quero que mande é para Buli Giles, do Black Dove Bar, em Washington, com o mesmo pedido de informação. - A falta de interesse demonstrada por Webb o aborreceu.
- Entendeu tudo?
- Sim, senhor. - Por trás do exterior calmo, a mente do rapaz estava trabalhando em cima de possíveis significados da informação que estava sendo buscada e como poderia afetar a fazenda. - Mais alguma coisa?
- Não. - Os lábios apertaram-se em uma linha fina. - Não quer saber por que a informação é importante? - indagou Benteen, tendo a satisfação de ver o olhar estável do filho oscilar rapidamente.
- Pensei que você me diria quando achasse que eu devia saber. Não houve hesitação na resposta, e o convite a fazer a pergunta não foi aceito.
Frustrado com o comportamento do filho, Benteen virou-se parcialmente de costas para ele, resmungando: - Vá mandar os telegramas, e peça que enviem as respostas para o hotel.
Enquanto Webb se afastava, as esporas chocalhando a cada passada, o entorpecimento doloroso voltou ao braço e ombro esquerdos. Ele esfregou o local dolorido, massageando os músculos com os dedos.
- O que há com seu braço? - A voz esboçando a pergunta pertencia a Barnie Moore.
Benteen deixou a mão direita deslizar pelo braço e com um menear de ombros afastou a dor insistente.
- Muitas noites dormindo no chão frio e duro, acho.
- Sei o que é isso. - Barnie arqueou as costas, flexionando músculos enrijecidos. - Nenhum de nós é jovem como antes. - O olhar seguiu Webb. - Lembro quando esse era um garotinho brincando com meu filho. Agora ambos são homens feitos.
Benteen suspirou, irritado.
- Gostaria de saber onde foi que errei com ele.
- Webb? - Barnie franziu o cenho. - Não existe melhor vaqueiro na fazenda do que ele.
- Não é um vaqueiro que quero - replicou Benteen, mas não compartilhou as dúvidas que tinha sobre a habilidade de Webb em tornar-se o líder da fazenda. - Quantos carregamentos de bois ainda faltam? Barnie pegou a deixa para mudar de assunto.
- Uns oito ou nove, eu diria. - Percebeu as linhas duras que aprofundavam os traços de Benteen, mas ocultou sua própria preocupação enrolando um cigarro casualmente. - Não há necessidade de você ficar. Podemos cuidar do resto.
Benteen hesitou, mas o alarido ininterrupto do carregamento na ferrovia agia sobre os nervos já à flor da pele. - Se precisar de mim estarei no hotel.
Barnie assentiu, sem erguer o olhar, continuando a tirar tabaco da bolsa e calcá-lo no pedaço de papel para cigarro.
Quando Benteen se aproximou do balcão do hotel para pegar a chave, havia uma mensagem para ele:
- Sua esposa pediu para avisar que foi fazer compras, Sr. Calder - disse o funcionário.
O aborrecimento estampou-se em seu rosto enquanto crispava os dedos em torno da chave, murmurando um "obrigado" automático.
- Avise-nos se precisar de alguma coisa - ofereceu o funcionário, zelando para que o hotel não fosse o responsável pelo desprazer de hóspede tão importante como Benteen Calder.
- Peça a alguém para levar uma garrafa do melhor uísque - ordenou.
Um sorriso rápido irradiou-se no rosto do rapaz.
- Sua esposa já providenciou isso, senhor. A garrafa está em seu quarto.
Subindo as escadas para a suíte, Benteen apostou consigo mesmo que haveria um charuto à sua espera, junto com o uísque. Acertou em cheio. A preocupação da esposa atenuou as curvas duras em torno dos lábios, mais do que o charuto ou o uísque que bebericou. Tirando o casaco, deixou-o cair junto com o chapéu sobre uma cadeira da sala de estar da suíte, sentando-se na outra e esticando as pernas.
O uísque no copo mal fora tocado, apesar de o charuto já estar pela metade, no momento em que Benteen ouviu uma risada suave e vozes femininas no corredor do hotel. Uma chave girou na porta, que foi empurrada. Seu instinto foi ficar de pé, mas uma letargia parecia ter assumido o controle de seus músculos, e Lorna adentrou o quarto com um farfalhar de saia e anáguas.
Os braços dela estavam repletos de pacotes. A garota de cabelos louros que a seguiu para o interior da suíte encontrava-se igualmente carregada. Benteen não podia deixar de observar que Lorna não parecia muito mais velha do que a adolescente. Ela alegava que havia cabelos grisalhos em sua cabeleira escura, mas eram tão poucos que não apareciam. A silhueta da mulher mantinha as curvas jovens e elegantes, o corpo tinha a leveza da porcelana, evidenciando poucos traços da ação da idade - graças às loções que ela usava para combater os efeitos do clima severo de Montana.
Ninguém que a olhasse adivinharia sua força interior, ou os reveses que sofrera nos anos de mocidade. A luta que ela empreendera para vencer a terra fora tão grande quanto a dele. com Lorna a seu lado, Benteen sentia não haver nada que não pudesse superar.
- Espero que papai não ache que gastei demais - declarou a jovem Ruth Stanton, com uma ponta de apreensão.
Nenhuma das duas mulheres se dera conta da presença de Benteen, que gostou da oportunidade de observar Lorna sem que ela percebesse. Após colocar os pacotes sobre a mesa, ela começou a desamarrar o chapéu de seda azul e penas.
- Seu pai queria que você comprasse coisas bonitas - insistiu Lorna, ainda dirigindo-se à filha de sua falecida amiga. Desde que a pneumonia reclamara a vida de Mary Stanton no último inverno, tomara Ruth a seuJ cuidados. Benteen suspeitava de que isso preenchia um vácuo na vida de ambos, atenuando-lhes o pesar. Como mãe-substituta de Ruth, Lorna ganhara a filha que sempre desejara, enquanto Ruth adquirira uma mulher mais velha para agir como conselheira e modelo.
A cinza aumentava na ponta do charuto de Benteen, que bateu-a com uma pancadinha leve. O movimento ou o cheiro da fumaça do charuto, talvez ambos, de súbito atraíram a atenção de Lorna para o lado do quarto em que ele estava sentado.
- Benteen! - Lorna colocou o chapéu azul sobre os embrulhos e cruzou o quarto para falar com ele, os olhos escuros radiantes de prazer. - Ninguém na portaria me avisou que você estava aqui. Por que não disse nada quando entramos? - Inclinando-se, roçou os lábios contra a aspereza da bochecha do marido, empertigando-se em seguida e descansando a mão sobre o ombro dele, de forma a manter o contato.
- Sabia que você ia perceber a minha presença aqui sentado mais cedo ou mais tarde. - Um sorriso lhe assomou aos cantos da boca. - Parece que vocês duas compraram a cidade.
- Tentamos. - Lorna piscou para Ruth em conspiração zombeteira. Uma garota atraente, cabelos louros cacheados e olhos azuis, Ruth Stanton era de uma timidez congénita. Embora Benteen tivesse sido quase um tio durante toda sua vida, ela não era capaz de fitá-lo diretamente. O olhar rapidamente voltava a Lorna.
- É melhor levar esses pacotes para meu quarto. - Ela praticamente agarrou-se à desculpa para sair.
- Encontramos com você na sala de jantar às seis. - Lorna não tentou deter a garota. - Webb também vai estar lá. Por que não coloca seu vestido rosa novo?
- É, vou colocar. - A sugestão provocou um rubor de prazer nas bochechas de Ruth. com um movimento de cabeça circunspecto em direção a Benteen, ela deslizou até a porta, atravessando o corredor até seu quarto.
Quando ficaram sozinhos, Benteen inclinou a cabeça para trás, fitando a esposa.
Tem certeza de que Webb vem jantar conosco? - com o fim do rodeio e o gado a caminho do mercado, a maior parte dos vaqueiros do Triplo C estaria na cidade. E Webb se incluía entre eles.
Ele vai, nem que eu tenha que arrancá-lo do bar - afirmou Lorna, um brilho de determinação no olhar.
A boca de Benteen crispou-se em uma linha carrancuda.
Talvez ele não esteja em um bar - sugeriu secamente.
Não vai fazer diferença. - Ela afastou-se da cadeira onde estava o marido, cruzando o quarto mais uma vez, até a mesa com os pacotes. Importa-se que lhe faça uma pergunta? - Ela parecia demasiado casual.
Qual? - Benteen ficou instantaneamente alerta, preparado para praticamente qualquer coisa.
É verdade que Connie, a Rainha dos Vaqueiros, tinha um vestido bordado com a marca de todas as companhias daqui até Platte? - Ao virar-se para fitá-lo, havia uma inocência enganadora na expressão de Lorna que fez Benteen balançar a cabeça negativamente.
Onde ouviu essas coisas? - Mesmo após todos esses anos, ainda conseguia surpreendê-lo agora e sempre. Connie, a Rainha dos Vaqueiros, fora uma das prostitutas mais conhecidas de Miles na época do apogeu da cidade.
- As mulheres falam sobre outras coisas além de costura, cozinha e crianças. Prometo que vou parecer adequadamente chocada tranquilizou-o com um olhar zombeteiro. - A marca do Triplo C estava gravada no vestido dela, Benteen?
- Como é que vou saber? - Um brilho de diversão fulgurou em seus olhos.
Mas ela não estava disposta a deixar sua tentativa sem resposta.
- Um homem pode frequentar tais lugares sem escandalizar. Ou talvez você nunca a tenha visto de vestido? - Lorna fingiu acusá-lo de infidelidade.
- Quando eu tinha mais mulher do que podia dar conta em casa? Benteen contrapôs, erguendo a sobrancelha, que por fim voltou à linha natural. - Quanto ao vestido, havia uma coisa assim. E ele não estaria completo sem a marca Triplo C. - O olhar estreitou-se sobre a mulher, com censura cautelosa. - Espero que você não conte esse tipo de coisa a Ruth. A pobre garota provavelmente ainda nem foi beijada.
- Não, não discuti temas íntimos com ela. - Isso implicava que chegaria o dia em que Lorna os discutiria com a menina. Virando-se de lado Para manter Benteen sob seu raio de visão, ela se pôs a desamarrar os barbantes que envolviam os embrulhos. - Tenho certeza de que Ruth está mais do que apaixonada por Webb.
- É por isso que você tem certeza de que ele virá jantar esta noite... Por isso Ruth vai vestir seu vestido rosa novo?
Lorna estacou para olhar pensativa o espaço.
Não seria maravilhoso se nosso filho e a filha de Mary se casassem.
- Mal controlou um suspiro, prosseguindo na abertura dos pacotes.
Parece extremamente adequado para mim.
- Eu não teria muitas esperanças. - Benteen engoliu o que restava de uísque no copo, em um esforço de queimar o gosto amargo na boca. Provavelmente você vai ter tanto sucesso tentando casar Webb e Ruth quanto eu tive tentando transformá-lo em fazendeiro, o que quer dizer nenhum.
- Você é impaciente demais. - Lorna lançou-lhe um olhar levemente crítico. - Você cresceu em uma época diferente, sob circunstâncias diferentes, portanto não pode julgar Webb por sua vida.
Benteen pousou abruptamente o copo sobre a mesa, recolhendo as pernas e empertigando-se.
- Talvez o problema seja esse - declarou, carrancudo. - Não fui suficientemente duro com ele. Deixei você mimá-lo.
- Eu? - ela se enrijeceu diante da declaração desafiadora.
Mas Benteen continuou o fio dos pensamentos em voz alta, vagando impaciente em torno da sala.
- Ele teve tudo desde o dia em que nasceu. Foi mimado, coberto de cuidados exagerados, o centro das atenções. Todos sempre aplainaram o caminho para ele. Nunca teve de lutar por nada na vida.
- Isso não é verdade. - O instinto maternal de Lorna de súbito despertou, fazendo-a enfrentar Benteen e forçando-o a parar. - Olhe só como Webb tem trabalhado duro para ganhar o respeito dos outros vaqueiros. Ele nunca os deixou tratá-lo de maneira diferente porque é o filho do chefe.
- Por que não trabalha tão duro para ganhar o meu respeito? - insistiu Benteen, as sobrancelhas negras unindo-se em uma linha melancólica. - Posso contratar uma dúzia de vaqueiros tão bons quanto Webb para o trabalho do gado por trinta dólares ao mês. Não preciso de outro burro de carga com arreios; preciso de alguém que possa comandar os arreios.
- Dê tempo a ele - argumentou Lorna.
- Não há mais muito tempo. - Ele suspirou e virou-se de costas para ela. A derrota pesava sobre seus ombros, mas ele os manteve aprumados.
- Ele não liga a mínima para a fazenda. - Benteen começava a acreditar nisso.
- Ele liga, sim. - A voz dela era firme, fixa em sua convicção. É o lar dele.
- vou considerar sua palavra. - Gostaria de não ter puxado o assunto. Passadas longas e rígidas o levaram até a mesa, onde apagou o charuto. - É melhor eu me lavar e barbear para o jantar.
Antes de dar dois passos em direção ao quarto contíguo, ouviu uma batida na porta. Deteve-se, esperando para saber quem estava do lado de fora, enquanto Lorna ia até a porta, o farfalhar exagerado do vestido servindo como um sinal para ele.
- Oi, mãe. - Webb cumprimentou-a, fechando a porta. A suavidade atenuou-lhe os traços duros do rosto ossudo, conferindo-lhe uma expressão de carinho que geralmente não possuíam.
- Webb - por um instante, Lorna vacilou, surpresa, lançando um olhar rápido sobre os ombros em direção a Benteen, esperando que a chegada de Webb no instante da discussão não precipitasse uma segunda, talvez menos amena. Não gostava de sentir-se no meio, a lealdade dividida entre o filho e marido.
A naturalidade fugiu do rosto de Webb quando seu olhar correu da mãe para o pai. A atmosfera parecia pesada e tensa, fortes correntes ocultas correndo entre seus pais.
- Entre, Webb - convidou o pai, em uma voz que soou resignada e severa. - Eu e sua mãe estávamos mesmo falando de você.
O olhar da mãe vacilou sob a inspeção silenciosa do filho, afastando-se da porta para dar-lhe passagem. Webb entrou no quarto. Evidentemente ele fora o assunto da discordância entre ambos. Não queria ser a causa da desarmonia dos pais. Simplesmente desejava viver a vida à sua maneira, sob suas condições.
- É, estávamos - concordou a mãe com autocontrole digno de elogios. - Eu estava ameaçando arrastar você de qualquer bar em que estivesse, até mesmo de um bordel, para que pudéssemos jantar juntos essa noite. Agora que está aqui, podemos poupar seu pai desse embaraço.
- Vim para - Webb estacou para direcionar a explicação ao pai avisá-lo de que enviei todos os telegramas. As respostas virão para cá.
- Telegramas? - Lorna enviou um olhar inquisidor para Benteen, levemente curiosa, pois este lhe parecia um tópico menos suscetível de discussões, e também porque ele não mencionara haver telegrafado para alguém. - Sobre o quê?
- Nada com que precise preocupar-se.
- Espero que algum dia você me explique por que insiste em que algo não é de minha conta sempre que tem alguém por perto, e depois me fala sobre isso quando ficamos sozinhos - zombou dele levemente. - Parece que os homens acham que o único lugar onde podem conversar com suas esposas é o quarto. Só que isso não é verdade, Webb - alertou o filho.
Os cantos dos lábios dele aprofundaram-se em um sorriso dissimulado diante da ousadia da mãe. Webb percebeu que o pai oscilava entre a irritação e a diversão.
- vou tentar lembrar-me - murmurou Webb secamente.
- Pensei que tinha casado com uma mulher calma e dócil. - Benteen sacudiu a cabeça em exasperação carinhosa. - Espero que tenha melhor sorte, filho.
- Isso me lembrou - acrescentou Lorna - que vamos encontrá-lo às seis hoje à noite na sala de jantar. - Correu um olho materno crítico ao longo das roupas empoeiradas e fedorentas e do rosto com a barba por fazer. - Isso lhe dá tempo para tomar banho e mudar de roupa. Ruth veio comigo à cidade para fazer compras, e vai jantar conosco também.
A última informação fez com que Webb sentisse uma certa perturbação sem saber por quê. Gostava de Ruth. Ela era praticamente da família, uma irmã mais nova.
No entanto, a mãe fora bastante insistente sobre tomar banho e trocar de roupa. Sem dúvida um homem não precisava se preocupar em demasia com a aparência para uma garota que era como irmã. Um brilho de diversão surgiu em seu olhar ao perceber a manobra sutil da mãe.
- Foi bom a senhora tê-la trazido para a cidade, mãe - comentou.
Sei que as coisas não têm sido fáceis para ela desde que Mary morreu.
Precisa sair e afastar-se da casa.
- Foi o que pensei - concordou a mãe com um sorriso de satisfação.
- Acho melhor eu me lavar. - Webb virou-se em direção à porta para sair.
- Ah, Webb - ela o chamou, hesitando por um segundo. - Repare no vestido que ela vai estar usando hoje à noite. É novo.
- Pode deixar. - Saiu do quarto sorrindo. Esperava-se um elogio ao novo vestido. A idade dele parecia não importar; a mãe ainda se sentia obrigada a lembrar-lhe boas maneiras e cavalheirismo. Ou seria outra tentativa de despertar interesse pessoal na mulher usando o vestido novo?
Lorna fechou a porta e apoiou-se nela, mordiscando pensativa o lábio inferior. Quando percebeu que Benteen a estava observando, empertigou-se.
- Enquanto você está se lavando, acho que vou ajudar Ruth a pentear o cabelo.
- Arranjar casamento é como levar um cavalo até a água. Você não pode obrigá-lo a beber - admoestou Benteen.
- Não, mas talvez ele lembre de onde está a água e encontre-a sozinho quando tiver sede - raciocinou Lorna. Não sabia se era a luz fraca da tarde ou se simplesmente ela não o olhara tão atentamente antes, mas de repente Benteen pareceu-lhe cansado. - Talvez fosse melhor você deitar e descansar um pouco antes do jantar.
- Estou bem. - Uma carranca impaciente acentuou os traços já marcados de seu rosto. Mais uma vez ele se dirigiu para o quarto e parou. A última vez que falamos com Buli Giles antes dele sair de Denver... foi em Black Do vê, em Washington?
- Foi. - Chegou a vez dela franzir o cenho.
- Foi o que pensei - ele assentiu, distraído.
- Pediu a Webb que telegrafasse para ele? - já adivinhara a resposta à indagação. - Por quê?
- Ele pode ter saído da cena política, mas ainda deve ter seus contatos. Existe uma lei que vai ser apresentada diante do Congresso que tem que ser parada. - Benteen explicou vagamente. - Essa lei abriria todo esse Estado a colonos que recebem terras do governo e seus arados. Não quero me meter nisso agora, não até descobrir os detalhes.
- É isso que está preocupando você, não é?
- Em parte. - Ele esfregou a mão ao longo do pescoço. - E estou cansado. Cansado de lutar para manter o que temos. Não seria tão ruim se meu filho estivesse lutando comigo. Estou lutando sozinho...
- Você não está sozinho. - Deslizou agilmente, percorrendo o espaço que os separava, passando as mãos pelo braço do marido e inclinando a cabeça para fitá-lo.
- Não, não estou sozinho - assentiu Benteen, mas uma luz triste permanecia em seus olhos castanhos. - Na verdade não me importo com a luta. Só que não sou mais nenhum garoto. O que vai acontecer quando eu me for, Lorna? Fico apreensivo por você, como vai se arranjar sozinha. Não posso depender de Webb para tomar conta de você.
Ela conteve a respiração, uma nota crescente de medo.
- Você está só cansado, Benteen. - Tentou desesperadamente afastar as preocupações dele como exageros. - Tudo vai parecer melhor depois que descansar uns dois dias.
- É. - Mas ele não pareceu convencido enquanto acariciava a mão da mulher, afastando-se em seguida em direção ao quarto.
A maior parte do tempo Webb considerava a existência de Ruth coisa certa. Parecia que ela sempre estivera nas sombras de fundo de sua vida, nunca buscando qualquer atenção, nem tampouco esperando. Tão quieta, que era fácil esquecer até que ela estava por perto.
Na mesa do jantar naquela noite, Webb se dera conta do modo determinado com que a mãe incluíra Ruth na conversa, solicitando-lhe comentários quando ela não os tecia. Parecia impossível que uma garota loura e de olhos azuis pudesse parecer banal. Os traços eram graciosos, e o corpo de curvas adequadas, embora não chegasse a ser estonteante. A tez corada parecia muda, caindo no nada, assim como sua personalidade.
No entanto, havia algo de diferente em Ruth. Ela se mostrava mais feminina essa noite. Webb não sabia ao certo se fora o vestido rosa com o decote ligeiramente franzido ou os cachos claros de seu cabelo. com uma certa dose de cinismo, suspeitou que provavelmente a impressão se devia às seis semanas com as vacas como única companhia feminina.
Foi o impulso inicial da mãe para que percebesse a presença de Ruth que o levou a centrar a atenção nela, mas o ar de vulnerabilidade, corando e baixando timidamente o olhar a cada vez que ele dizia algo agradável, foi o que despertou-lhe o interesse. Não havia falso pudor; as atitudes dela eram inteiramente naturais. Possivelmente foi isso que incitou Webb a deixá-la à vontade com ele.
Quando saíram da sala de jantar, após uma refeição longa e lenta, Webb deixou que os pais subissem as escadas na frente, enquanto ele e Ruth os seguiam. Nate e os garotos estavam esperando por ele no bar do fim da rua. Terminado o jantar, tinha uma desculpa perfeita para despedir-se de Ruth e deixá-la ir para seu quarto, como estavam fazendo os pais, mas ele não lançou mão da oportunidade. Colocou a mão da garota em seu braço e deixou o olhar deslizar para ela, estudando-lhe o perfil.
- Gostaria de dar um passeio e tomar um pouco de ar fresco? Webb surpreendeu-se com o convite.
O olhar aturdido da garota revelou reação semelhante, mas os olhos brilharam mais. Sentiu um leve tremor da mão dela onde os dedos tocavam-lhe o braço.
- Gostaria sim - aceitou Ruth, mantendo os olhos fixos à sua frente.
- Vai estar frio lá fora. Você vai precisar de um agasalho - alertou-a Webb. - vou pegar um em meu quarto. Só vou levar um minuto para colocá-lo.
Parecia ansiosa, como se temendo que ele mudasse de ideia e retirasse o convite.
vou esperar por você aqui. - Webb deteve-se ao lado do balaústre ao pé da escada que levava aos quartos, enquanto ela arrebanhava as saias e subia os degraus correndo, tentando não parecer exageradamente apressada. Para Webb, era novidade estar com alguém que lhe exigia tão pouco. Aparentemente não nutria expectativas em relação a ele. Isso era realmente uma raridade. Se não era o pai, era algum vaqueiro querendo testar sua habilidade com o laço. Até as prostitutas esperavam mais dele porque era um Calder, fosse pelo dinheiro ou pela proeza sexual.
Quando correu a vista para a escada, imaginando quanto tempo ela demoraria, Ruth surgiu no sopé dos degraus. Um casaco de lã marrom em tom desmaiado cobria o vestido rosa, praticamente destruindo a ilusão de feminilidade que ele formara, mas a ansiedade que entreviu no rosto da garota foi substituída pelo alívio, no momento em que Ruth o viu esperando. Desceu rapidamente os degraus, postando-se a seu lado, um tanto ofegante.
- Não demorou muito. - O olhar dele errou pelo casaco marrom impróprio, escolha nada adequada para um casaco de noite.
- Foi a única coisa quente que trouxe comigo. - Ela ofereceu a explicação quase se desculpando, consciente de que o casaco não era apropriado.
Um sorriso suavizou a linha rígida da boca.
- Nessa época do ano, você vai precisar desse agasalho. Eu estava pensando que é uma vergonha alguma coisa cobrir esse belo vestido rosa.
- Tentou fazê-la menos consciente da aparência, colocando a mão dela no côncavo do braço para escoltá-la até a rua.
Sombras noturnas acumulavam-se próximas às bordas das ruas iluminadas a gás, movendo-se furtivas junto às esquinas dos prédios e espraiando-se em partes das calçadas. As ruas estavam relativamente tranquilas, a maior parte do barulho proveniente dos bares ao fim da rua. A investida do ar frio transformou-lhes a respiração em ondas de vapor.
- Você vai voltar para a fazenda amanhã? - inquiriu Ruth.
- Espero que sim - respondeu Webb, distraído.
- Provavelmente vai ficar contente de voltar, depois de estar há tanto tempo no rodeio - ela murmurou.
- É mesmo. - Correu o olhar sobre ela, percebendo o modo como enfiara o queixo profundamente no colarinho do casaco para proteger-se do frio. - Está bem quente?
- Estou - mas os dentes batiam um pouco.
Foram andando até a um quarteirão de distância do hotel. Webb suspeitou de que Ruth não reclamaria, mesmo se estivesse congelando.
- Acho melhor voltarmos. Está mais frio aqui fora do que eu pensava. - Guiou-a em uma curva larga sem aumentar o passo.
- É, é melhor - admitiu Ruth.
- O que vai fazer agora que terminou a escola? - Não mencionou o recente falecimento da mãe dela.
Pensei em ensinar às crianças mais novas da fazenda. A Sra. Calder falou que talvez pudéssemos transformar uma das cabanas menores em um externato.
- Parece boa ideia.
- Não há muito trabalho para uma garota aqui nessas redondezas... trabalho adequado - ela acrescentou, quase ao mesmo tempo em que ecoou uma gargalhada feminina rouca vinda do bar do outro lado da rua.
- Meu pai precisa de mim agora, portanto quero ficar junto dele por um tempo.
- Algum cowboy virá e a levará embora - declarou Webb, com um sorriso largo. - Provavelmente vai estar casada antes que possa decidir entre lecionar e ir trabalhar em outro lugar.
- Não. Não vai acontecer isso. - Ela pareceu tão decidida que despertou a curiosidade de Webb.
- Por que não?
- Porque... - quase olhou para ele, mas baixou o olhar e deu de ombros. - Porque não.
- Você não quer casar com um cowboy! havia rispidez na voz dele, pensando se ela era como as outras garotas, com ambições mais altas.
- Não, não é isso - apressou-se em corrigir a impressão que causara. Ao encontrar o olhar direto do rapaz, pareceu incapaz de desviar o seu.
- Então o que é? - Webb tentou sondar a causa do jeito desamparado com que Ruth o fitava.
Ela quebrou o feitiço dos olhos atraentes, retirando os dela e tornando-se mais contida.
- Só acho que nunca vou me casar.
- Por que não? - ele jamais ouvira uma mulher prever a própria condição de solteira. - Você é uma garota bonita, Ruth. Algum dia vai aparecer o cara certo para ver esses cabelos louros e olhos azuis, e se apaixonar por você na mesma hora.
- Talvez. - Ela concedeu, preferindo isso a continuar o assunto. Luzes brilhavam nas janelas do hotel.
- Aqui estamos, de onde começamos. - Webb abriu a porta e seguiu-a para o saguão aquecido. - vou levá-la em segurança até seu quarto.
- Você também vai ficar?
- Não. - Se o pai não estivesse, ele teria ficado, mas Webb preferia dormir mal acomodado com o resto dos vaqueiros da Triplo C. Por isso dormia no alojamento da fazenda, e não na Casa-Grande, como era chamada a construção principal.
Subiram as escadas em silêncio, Webb um pouco atrás dela. Sentiu-a embaraçada; parecia não saber como se comportar. A sensação tornou-se mais forte ao chegarem à porta do quarto. Ela se sobressaltou visivelmente quando Webb pegou a chave da mão dela e abriu a porta.
- Quer que eu verifique o interior? - ele indagou, devolvendo-lhe a chave.
Ela balançou a cabeça, a tensão estampada no rosto.
- Gostei do passeio - o que ficava aparente no tom murmurante da voz dela. - Obrigada.
- O prazer foi meu, Ruth - insistiu Webb, polido, esperando-a entrar no quarto.
Mas ela continuou de pé na soleira da porta, olhando-o e parecendo ansiosa, insegura. Os olhos azuis arredondaram-se em um pedido silencioso, passou-se um segundo inteiro antes que Webb reconhecesse a expressão de filhotinho apaixonado. Queria que ele lhe desse um beijo de boa noite.
A indecisão não durou muito. Sob a luz difusa do corredor, os cabelos louros luziam como seda cremosa e os olhos assemelhavam-se a safiras azuis. Sem direcionar conscientemente seus movimentos, Webb aproximou as mãos da lã grosseira do casaco marrom, descobrindo os ombros arredondados e inclinando a cabeça em direção à dela.
Os lábios da garota aderiram aos dele, entregues e suaves, ansiosos e inexperientes. Tudo devia ter terminado ali, mas Webb prolongou o beijo a uma distância imprópria. O sabor era doce, fresco e novo.
Relutante, ele se afastou, embora a atenção permanecesse nas curvas úmidas dos lábios de Ruth. Um cavalheiro não satisfazia as necessidades básicas com senhoritas como Ruth.
- Boa noite, Webb - sussurrou ela, em um tom de felicidade leve. O olhar dele correu para a luz brilhante dos olhos da garota.
- Boa noite, Ruth - murmurou, rouco. - Acho que provavelmente vamos nos ver mais na Casa-Grande, se você começar a lecionar lá.
- É - Ruth inclinou-se para ele.
- É melhor você entrar - alertou-a.
Ruth continuou sorrindo, sem perdê-lo de vista enquanto entrava no quarto e fechava a porta. Webb ficou olhando mais um segundo para a porta trancada, por fim afastou-se em direção à escada. Quase imediatamente a imagem dela apagou-se em uma névoa, uma bruma indistinta. No topo das escadas, passou por um garoto mensageiro do telégrafo, provavelmente com a resposta de um dos telegramas enviados. Webb deteve-se para acender um charuto longo e fino, o olhar seguindo o garoto pelo corredor, até vê-lo parar na porta da suíte dos pais.
Apagando o fósforo, Webb segurou-o entre os dedos e deu uma baforada pensativa no charuto, começando a descer os degraus. O Ato de Cessão de Terras a Colonos existia há anos. O pai o usara, torcendo-o ligeiramente, para construir a Fazenda Triplo C em seu tamanho atual. Ainda assim, ele parecia considerar a emenda proposta como uma espécie de ameaça ao rancho.
Saindo do hotel em direção à noite clara de outubro, Webb parou e Jogou o fósforo apagado na rua. Deixou-se ficar ali durante alguns minutos, matutando se a nova lei poderia não ser um benefício para a fazenda, Permitindo aumentar a atual quantidade de terra cujo título detinham; em Seguida voltou-se e desceu a rua até o bar onde o grupo desordeiro de vaqueiros da Triplo C se reunira.
A porta abriu quando Webb estava chegando. O cowboy que saiu cambaleando quase lhe deu um encontrão, recuando sobre os saltos para fitá-lo de olhos semicerrados. O som de vozes altas e turbulentas e do piano tomou conta da noite.
- Aonde vai, Johnny? - Webb deixou um leve sorriso suavizar os traços pronunciados de seu rosto. - A festa está começando.
O vaqueiro por fim reconheceu-o sob a luz fraca, agarrando-o pelo braço para puxá-lo para dentro do bar. O ar do bar estava quente e viciado, abafado com o cheiro de uísque e cerveja. A fumaça dos charutos e cigarros pairava sobre o salão.
Havia poucos frequentadores habituais no salão lotado, em grande parte, pelo grupo da Triplo C. Uns dois vaqueiros rodopiavam com duas garotas de programa pelo salão, dançando, segundo os padrões deles. Cavaleiros sem companhia feminina dançavam uns com os outros. Alguns apoiavam-se sobre o comprido balcão, encorajando e criticando os dançarinos. Nos fundos do bar, um jogo de pôquer estava em andamento.
- Ei, garotos! - gritou Johnny, a voz um pouco enrolada. - Olhem quem finalmente chegou!
Webb foi saudado com uma coleção heterogénea de gritos e perguntas sobre onde ele estava. Alguém à direita gritou seu nome. Correu o olhar naquela direção no instante em que uma garrafa de uísque foi lançada para ele. Num reflexo rápido, agarrou-a com uma das mãos.
- É melhor começar - aconselhou Nate, acenando com um copo cheio em saudação. - Você tem muito o que beber junto conosco!
Webb tirou a rolha e ergueu a garrafa até a boca, engolindo uns dois goles do líquido ardente. À ação seguiu-se um coro de saudações dos cowboys agitados, enquanto ele foi puxado para o balcão.
Na manhã seguinte, lembrava-se de pouca coisa da noite anterior. Jogou a sela sobre o lombo de seu cavalo preto castrado, e em seguida teve de descansar durante um minuto, até que o latejar violento da cabeça diminuísse para uma batida surda. Ele fedia a perfume barato e a região entrepernas doía. Cada movimento era doloroso, enviando ondas de desconforto da cabeça para baixo. Rangendo os dentes, Webb apertou a correia da cilha e a fixou. Sentia um pequeno consolo ao pensar que os outros cavaleiros selando os animais estavam tão acabados e miseráveis quanto ele.
Cautelosamente, puxou o chapéu um pouco por sobre a testa. Sentia-se em um balão prestes a explodir. O cavalo preto bufava e pisava para o lado, rolando um olho em direção a Webb. Ele mudou de ideia quanto a montar o animal, pegando as rédeas para guiar o cavalo para fora da cocheira, distendendo um pouco as costas antes de montar e começar a habitual manhã de montaria.
Uma parelha de alazões estava atrelada a um coche da fazenda parado diante do estábulo. Os raios de sol feriram os olhos de Webb, ao que ele afundou mais o queixo para baixo, a fim de que a aba oferecesse sombra contra o sol. Passando com o cavalo pela carruagem, Webb percebeu o pai colocar o estribo na sela para soltar a cilha. O capão virou o nariz para resfolega»r, pedindo que ele se decidisse.
Naquela semana, o telégrafo de Miles ficou ocupado na transmissão de mensagens de e para a capital da nação, arranjando uma data em que todas as partes interessadas pudessem comparecer. Quando um trem do leste entrou na estação dez dias depois, Webb e o pai ali estavam para esperá-lo. Morgan tinha chegado de Helena no dia anterior e estava com eles. ?
Assim que o vagão particular foi separado e levado para um desvio, os demais vagões convergiram para a ramificação, cruzando os trilhos cobertos de cinzas, gingando até a plataforma dos fundos. Um negro uniformizado recepcionou-os no vagão particular, fazendo uma mesura de respeito servil.
As paredes do interior do vagão eram forradas de carvalho; um tapete espesso, verde e dourado, cobria o chão. Fazia dez anos, talvez mais, que Webb não via o homem musculoso sentado na cadeira de couro, mas reconheceu Buli Giles imediatamente. Uma perna estava esticada diante dele e uma bengala estava à espera a seu lado, apoiada na cadeira. Um segundo homem, atarracado, estava de pé junto à janela, tendo sem dúvida observado a aproximação deles. Voltando-se, ele deu um passo à frente para cumprimentá-los ao entrarem no vagão. O rosto corado torceu-se em um sorriso de boas-vindas.
- Benteen, que bom revê-lo. - Sacudiu a mão do pai vigorosamente, voltando em seguida o olhar astuto em direção a Webb. Este ficou em dúvida se o homem já estava beirando os trinta, mas havia uma aparência de astúcia antiga por trás daquela fachada de bom caráter. O velho-jovem, corpulento, coçava as costas com impaciência. - Você também deve ser Calder - adivinhou, cumprimentando Webb com firmeza.
- Este é meu filho Webb. - O pai completou as apresentações. Frank Bulfert, o ajudante do Senador. - Em seguida, apresentou o terceiro membro do grupo de Montana: - E estou certo de que se lembra de Asa Morgan, do grupo de pressão dos pecuaristas.
- Claro que me lembro. Como vai, Asa? - Frank Bulfert cumprimentou-o com um entusiasmado tapa nas costas.
Benteen desviou o olhar para o homem da cadeira, com seu rosto estúpido, e que não parecia ter envelhecido desde a última vez em que o vira. Conheciam-se de longa data, desde os tempos do Texas e daqueles primeiros anos em Montana. Benteen não mais considerava Buli Giles como um rival, mas também não o chamava de amigo, embora confiasse em Buli Giles como em poucos homens. Ele lhe salvara a vida certa vez, o que lhe custara um dano irreversível no joelho. Benteen nunca esquecera disso.
com todo aquele físico musculoso, Buli Giles era também de uma inteligência astuta. Durante os longos anos que passara em Washington como companheiro e associado de Lady Elaine Dunshill, aumentara suas conexões nos círculos políticos, exercitando considerável influência por trás do pano.
- Olá, Buli. - Percebia-se um lampejo de respeito na saudação de Benteen. - Não precisa se levantar. - Esboçou um movimento para que permanecesse sentado. - Como vai a perna?
- Entrevada, mas ainda a tenho - replicou Buli Giles, com um sorriso. - Como vai Lorna?
- Bem - assentiu.
Em seguida Buli virou a cabeça para olhar Webb. - Há quanto tempo, Webb. Tinha esquecido quanto tempo fazia até que você passou por aquela porta e me lembrou. Você não é mais um garoto imberbe.
- Não senhor. - Webb inclinou-se para cumprimentar o homem, vagas lembranças da infância despertas, o modo como ele costumava ir atrás desse urso.
A voz de Frank Bulfert interrompeu a saudação:
- Acomodem-se todos. Percy - dirigiu-se ao criado negro -, sirva uma bebida a esses senhores.
Seguiu-se um intervalo na conversa enquanto sentavam nas cadeiras agrupadas em torno da calefação de latão. Depois que Percy, o empregado, serviu os drinques, Frank Bulfert abriu uma caixa de charutos e passou-a aos convidados. A fumaça aromática do tabaco acumulou-se no ar acima do grupo selecionado.
Participante indesejado, Webb estava impaciente para que a conversa chegasse logo ao objetivo do encontro; mas sua ansiedade não parecia ser compartilhada pelos demais. Sorveu um gole do uísque importado, desejando ter ficado de boca fechada dez dias antes. Teria regressado à fazenda, ao invés de estar aqui nesse vagão particular, envolvido em uma reunião que não considerava necessária.
- O senador pediu-me que estendesse seus cumprimentos a você, Benteen. - Frank Bulfert recostou-se na poltrona de pele de vaca, puxando o cós das calças para o centro. - Tenho instruções para dar-lhes toda assistência que estiver ao meu alcance. O senador sabe do valor do apoio de vocês. - Após essa declaração formal, a expressão séria transformou-se num esgar brincalhão. - Ouvi histórias sobre como os fazendeiros arranjam votos nessa parte do país. Contaram-me que às vezes seus vaqueiros votam duas vezes para que fique garantida a eleição do candidato.
- Eles são conhecidos pelo entusiasmo de seu apoio - admitiu Benteen com um sorriso ténue.
- A mim me parece que vocês possuem homens que obedecem ordens - concluiu Frank Bulfert.
- Eles são leais à marca - foi a única resposta. - E essa nova Lei de Cessão de Terras?
- Temo que não gostem do que vou dizer - avisou o assistente, analisando atentamente a reação de Benteen. - Ela está recebendo forte apoio de muitos lados.
- O dos ferroviários é o mais vigoroso? - Benteen buscou a confirmação de sua própria opinião.
- Sem dúvida eles estão de olho nos benefícios substanciais que derivarão do aumento da necessidade de frete e do número de passageiros que a chegada de novos colonos do oeste vai trazer. E estou certo de que esperam vender as extensas terras que possuem. Sim. - Frank assentiu. - Eles têm um interesse grande na passagem dessa lei.
- Mas não só os ferroviários querem isso - acrescentou Buli Giles.
- Vocês precisam compreender a situação no Leste. As cidades estão ficando cheias de imigrantes. O Oeste sempre foi uma válvula de escape segura para retirar essa chamada escória de outros países das áreas populosas e para evitar agitação social ou política. As favelas estão lotadas; há reclamações sobre salários baixos nas fábricas e rumores de sindicatos e greves por melhores condições de trabalho. Portanto, todos os grandes negócios estão por trás dessa lei, que vai manter a ordem, mandando tantos quantos seja possível para as fronteiras.
Benteen, carrancudo, soltou um suspiro profundo, reconhecendo que estava se opondo a um grupo enorme.
- Mas isso não é o Kansas. Aqui eles vão morrer de fome do mesmo jeito que nas cidades.
- Você acha que qualquer das grandes companhias está se importando? - escarneceu Bulfert. - Se eles morrerem, sobra lugar para mais gente. - Fez uma breve pausa. - Os homens de dinheiro do Leste não estão interessados em colonizar o Oeste. Eles só querem se livrar de um monte de imigrantes pobres e indesejáveis. Não estão ligando para onde vão. Os índios foram forçados a ir para as reservas nas terras mais pobres. Se os imigrantes terminarem da mesma maneira, ninguém no Leste vai ligar a mínima.
- Até agora - Asa Morgan se manifestou, tornando a conversa mais sombria -, esse novo método de terra seca para a agricultura tem mostrado alguns resultados notáveis. É difícil argumentar contra o tipo de sucesso que eles têm obtido com o método.
- Sucesso agora, sim - aquiesceu Benteen. - com o método deles, é possível fazer uma plantação com somente 246 centímetros cúbicos de chuvas por ano. O que vai acontecer se houver sucessivos anos de seca com menos do que isso, como aconteceu vinte anos atrás?
- Vinte anos atrás não é hoje. - Frank Bulfert descartou o argumento.
- Isso parece argumento de pecuarista. - Buli mudou a perna dura para uma posição menos cansativa. - Vocês, grandes fazendeiros, são muito impopulares. A opinião pública está contra vocês. A maior parte dos europeus que vem para o país considera os fazendeiros como senhores feudais. Eles vêm para cá a fim de escapar daquele sistema de grandes e pequenos proprietários de terras. Lá você vê assentamentos sobre trezentos mil hectares ou mais. Eles querem acabar com isso, para que cada um possa ter um pedaço da terra. Vêm para a América cheios de sonhos, querem possuir sua própria terra.
- Em outras palavras, você está dizendo que não teremos oportunidade de nos defender dessa lei - desafiou Benteen.
- Por enquanto mantemos os estudos sobre o assunto - disse Frank Bulfert. - Mas é provável que a lei passe assim que sair de lá. É o que a maioria deseja.
Fez-se um breve silêncio, todos esperando por uma resposta de Benteen. Ele fitou seu copo de uísque, girando preguiçosamente a bebida no interior do copo.
- Querem isso porque vêem a lei como uma forma de arrancar a terra das mãos do fazendeiro e colocá-la nas mãos de um punhado de imigrantes - Benteen declarou por fim. - Mas e se eles se convencerem de que a lei não vai cumprir esse objetivo?
- Como? - Frank Bulfert inclinou a cabeça para observar Benteen com olhar curioso mas cético.
Fez-se outro silêncio enquanto Benteen corria os olhos para o filho.
- Webb acha que a nova lei permitiria que os pecuaristas adquirissem mais títulos de terra. O que acha que aconteceria, Buli, se certas facções ouvissem que os pecuaristas estavam a favor dessa proposta de ampliar o Ato de Cessão de Terras?
O homem troncudo soltou uma risadinha.
- Acho que chegariam à mesma conclusão que Webb. Iam ficar com medo de não levarem vantagem e preocupados com o fato de a lei trazer ainda mais segurança para os fazendeiros. - Voltou-se para o auxiliar do senador. - Benteen descobriu o ponto fraco deles.
Frank assentiu.
- Pode ser que essa seja a tática que vai dar certo. - Olhou para Asa, que também balançou a cabeça afirmativamente, oferecendo sua concordância. - É preciso uma boa imaginação.
Mais tarde, no princípio da noite, depois que a reunião chegou ao fim, Webb e Benteen regressaram ao hotel para tomar um banho antes do jantar. Caminharam a maior parte da distância que os separava do hotel em silêncio.
- Aprendeu algo?
A indagação desafiadora atraiu o olhar de Web em direção ao pai.
- O que eu devia aprender?
- Que deu a resposta certa ao motivo errado. Não pensou realmente na proposta. Você tem de analisar como uma coisa pode trabalhar contra você e a seu favor.
- Depois de ouvir Giles e o Sr. Bulfert, acho que a lei será derrotada - concluiu Webb.
- Não é assim tão simples - afirmou Benteen. - Esta é somente a primeira escaramuça. Os ferroviários ainda querem mais gente aqui, e as cidades do Leste têm milhares de pessoas de quem querem se ver livres. Tudo que podemos fazer no momento é adiar o que parece inevitável. - Ergueu o olhar, perscrutando o pôr-do-sol. - Aqueles malditos agricultores virão, como uma horda de gafanhotos; só que, ao invés de capim, seus arados vão mastigar grama.
Havia um quê de profético nas palavras do pai que lhe deu um arrePiO na espinha. Não parecia possível.
Dois anos e meio depois, no dia 19 de fevereiro de 1909, o Congresso satisfez o clamor público por mais terras e aprovou o Ato de Cessão de Terras Ampliado. Cada reivindicação seria atendida com 320 acres de terra, contanto que esta fosse não-irrigável, não pertencesse a reserva e não tivesse dono, além de não possuir madeira negociável. Essa descrição incluía quase oito mil hectares da terra de Montana.
Surge um Calder, Forjado em sangue e carne, Ansiando por um amor Impossível.
Flores silvestres cobriam as longas extensões das planícies violadas, em movimentos ondulantes de amarelo, vermelho e branco, dançando sobre as colinas baixas e irregulares. O capão preto ia a meio galope através daquela massa espessa, crescendo em um emaranhado de capim entrelaçado. Um rolo de fumaça escura destacava-se contra o céu, a distância. Webb viu e seguiu o rastro da fumaça até a locomotiva, aproximando-se da pequena coleção de prédios que formavam o povoado de Blue Moon.
Blue Moon, agora, era oficialmente uma cidade, com um armazém geral para abastecer os fazendeiros locais, um bar para molhar a garganta dos cowboys, um ferreiro para reparar os vagões e uma igreja para os pecados serem perdoados. Desde que a ferrovia estendera os trilhos até ali, possuíam um depósito de fretes e a correspondência era entregue regularmente.
À esquerda, uma carroça chocalhava pela trilha rude que atravessava a planície, servindo como estrada. Havia provisões a serem escolhidas e alguns fretes no depósito que precisavam ser levados à cidade. Nada seria feito com rapidez, portanto haveria bastante tempo para se pôr em dia com os acontecimentos locais e informações comerciais.
O assovio estridente e solitário do trem penetrava a quietude da paisagem estéril, deixando um rastro de fumaça e anunciando a chegada iminente à pequena cidade. O capão preto movimentava-se sob Webb, assustando-se com o ruído, mas voltando em seguida ao galope habitual.
A quantidade de prédios aumentava e tornava-se mais visível na vasta planície, à medida que o pessoal da fazenda Triplo C se aproximava. Webb calculou que chegaria quase na mesma hora que o trem.
Ao atingirem os limites de Blue Moon, Webb levou o capão para o lado da carroça e fê-lo diminuir o trote. Havia mais gente na rua do que estava acostumado a ver na pequena comunidade vaqueira.
- Lugar cheio - observou Nate de seu assento na carroça.
- Provavelmente tem mais gente por causa do trem. - Isso costumava fazer as pessoas saírem de casa.
Mas parecia haver um grande número de rostos desconhecidos na rua.
Webb só divisou poucas pessoas que conhecia. O cenho começou a franzir-se ao tentar descobrir o que trouxera esses estranhos à cidade, e de onde vinham.
- Vamos ao depósito? - indagou Nate ao se aproximarem do armazém geral.
- Vamos. - Quase todos se dirigiam àquela direção, assim, eles se deixaram levar. Dois novos prédios haviam surgido na rua. Nate também os percebeu, trocando um olhar inquisitivo com Webb.
O capão, nervoso, agitava-se sob Webb, tentando ver tudo de uma só vez. Adiante, o depósito estava repleto de vagões vazios atrelados a parelhas de cavalos movimentando-se inquietos no pequeno espaço ao lado do "monstro de ferro". Este fazia ruídos de descarga preguiçosos, soltando rolos de fumaça. Nate teve de levar a carroça para o fundo da plataforma de depósito, onde havia lugar para estacioná-la. Webb puxou as rédeas do capão na mesma direção, enquanto Nate parava o coche e enrolava as rédeas em torno da alça.
Os passageiros, na maioria homens, saíam dos carros para o depósito. Havia poucas mulheres com crianças. Nenhum dos homens se vestia à maneira dos cowboys ou caixeiros-viajantes. Aparentemente, quem estava ali para receber os recém-chegados era um homem baixinho, com cara de raposa, de terno branco e chapéu de palha branca. Tirou o chapéu e acenou com ele, o braço levantado para atrair a atenção dos passageiros.
- Pronto, camaradas! A viagem terminou! - Parecia um pregador anunciando a seu rebanho que eles tinham chegado à Terra Prometida. Estes vagões trouxeram vocês ao novo Éden americano! bom, sei que todos estão cansados da longa viagem e devem querer esticar um pouco as pernas. Enquanto descansam alguns minutos e desempenam os ossos, quero que olhem em volta. Dêem uma espiada naquela planície. - Esboçou um gesto em direção à extensão das planícies, além dos trilhos da ferrovia, que levavam até a cidade. - É muita terra até para cavalo grande. Olhem para aquela planície e imaginem trigo!
Nate, do assento da carroça, lançou um olhar atento para Webb.
- De que diabos ele está falando? - resmungou, sem esperar resposta, deslizando para fora, na direção da multidão aglomerada.
Webb olhou novamente para os vagões vazios alinhados diante da pequena estação ferroviária. De ambos os lados dos carros haviam colocado tábuas, formando bancos para acomodar o carregamento humano. A madeira nova contrastava com o restante do vagão, revelando a recente adaptação para acomodar passageiros.
Desmontou e amarrou as rédeas do capão na retaguarda da carruagem, avaliando o grupo de pessoas. Uns poucos, de rosto bronzeado pelo sol, assemelhavam-se a fazendeiros. A grande maioria tinha a palidez da cidade, mas os rostos cansados pareciam acesos pela esperança. Webb percebeu, no entanto, que a expressão deles era mais decidida do que esperançosa. A crença brilhava naqueles olhos, mostrando que agora haviam alcançado a Terra Prometida.
Meu Deus, ele pensou, com um misto de divertimento e raiva. Os pobres-diabos não sabem em que estão se metendo.
Nate já estava se dirigindo para o pequeno prédio que abrigava o escritório do agente ferroviário encarregado de conferir a mercadoria para a Triplo C. Um punhado de recém-chegados circulara até o fim do trem, onde a carroça estava estacionada, proporcionando a Webb a possibilidade de uma análise mais detida dos passageiros.
Os olhos escuros passaram por uma garota jovem à frente do pequeno grupo e voltaram até ela. De pé, empertigada no limite das planícies infinitas, ela fitava o capim alto com suas ravinas ocultas e seus morrotes. Ergueu o queixo contra o vento que soprava como se estivesse sorvendo a frescura do ar, livre dos odores de fumaça e da confusão da cidade.
Tufos de cabelos castanho-avermelhados escuros saíam de um laço atrás da cabeça, os raios solares iluminando o brilho flamejante das tranças. Um chapéu azul caindo frouxo prendia-se à cabeça da moça por uma fita e um xale preto caía-lhe dos ombros. O vento agitava o guingão do vestido, colando-o ao corpo esbelto da garota, permitindo a Webb entrever a curva deliciosa dos seios altos e jovens e o contorno gracioso dos quadris e pernas.
Vitalidade e excitação pareciam irradiar de cada traço dela. O que chamou a atenção de Webb, retendo-lhe o olhar, foi mais do que simplesmente a forma jovem. Havia algo mais que lhe atraía o interesse, algo que não o deixaria ir embora. Meio inconscientemente, Webb fez com que seu caminho até o depósito se alongasse, de modo a passar mais perto da garota.
A imobilidade dela foi quebrada quando ela se voltou para olhar por sobre os ombros, procurando alguém no grupo de passageiros, muito provavelmente os pais; Webb duvidava que uma garota tão jovem viesse ali sozinha. Certamente ela os vira, pois voltou-se de novo para trás, para a planície, revolteando os cabelos que o vento trazia para seu rosto. Mas ao olhar para trás, ela percebeu a aproximação dele.
Encarou-o com evidente curiosidade. Os olhos pareceram examinar cada detalhe, desde a copa do chapéu de cowboy empoeirado até o tecido grosso das calças de brim e as esporas baixas nas botas. Em seguida, seu olhar foi subindo, demorando-se nos traços rudes do rapaz. Nascido e criado em Montana, sem saber ele carregava em si a marca da terra, grande e forte, uma certa dureza nas linhas inflexíveis da face. O peito musculoso era largo e poderoso, projetando sombra considerável no solo.
Webb ficou indiferente à impressão que causara. Estava preso à cor daqueles olhos, azuis como o céu de Montana sobre sua cabeça. Assim como quando olhava para o céu, sentia como se fosse capaz de ficar olhando para sempre. A sensação tomou conta dele, amedrontando-o um pouco.
A atenção fora tão óbvia que seu senso de propriedade exigia um cumprimento. Tocou a aba do chapéu com um dedo quando chegou a meio metro de distância dela, diminuindo o passo largo.
- Bom dia, senhorita.
Bom dia. - Abaixou um pouco a cabeça em resposta, sem afastar os olhos dos dele. - Você é cowboy? - perguntou de súbito oferecendo-lhe um sorriso que parecia rir da própria impetuosidade.
- Sou. - A boca crispou-se em uma linha divertida. Desnecessário explicar ser ele filho de fazendeiro. Por profissão, ele era vaqueiro.
- Foi o que pensei. - O sorriso acentuou-se com a afirmação. - Você está vestido como os vaqueiros que estavam na parada do Sr. Cody.
Ele levou um segundo para entender a referência ao homem; por fim esclareceu sua dúvida.
- Você está falando de Buffalo Bill Cody e seu show do Oeste Selvagem - percebeu, divertido com a impressão falsamente exagerada que o show criara para milhares de pessoas no que se referia ao Oeste. - Você o viu?
- Não. - Ela balançou a cabeça negativamente, soltando uma risada suave, como se tal possibilidade estivesse fora do seu alcance. O que levou Webb a mais uma vez observar o vestido dela, imaginando que provavelmente era o melhor que a garota tinha, embora estivesse desbotado, exceto onde as costuras haviam sido desmanchadas para compensar o crescimento dela. O vestido estava amassado com a viagem, mas limpo. Naturalmente a família não possuía dinheiro para gastar em tais frivolidades como o show do Oeste Selvagem, o que a afirmativa seguinte confirmou.
- Não podíamos pagar o preço da entrada, mas eles fizeram uma parada com índios e tudo mais.
- Onde foi isso? - indagou Webb, curioso por saber de onde era aquela inocente criança-mulher que não poderia ter mais de dezessete anos.
- Em Nova York. É onde moramos, aliás, morávamos - corrigiu-se, a excitação aflorando-lhe ao rosto, encantando Webb por completo com sua ânsia de vida.
- O que está fazendo aqui? - Lutou para quebrar o feitiço vindo dela, forçando-se a olhar para o agrupamento disperso dos passageiros do trem.
- Vamos começar uma vida nova aqui. - Havia uma segurança absoluta na voz dela, segurança de que seria uma vida melhor. O olhar de Webb retornou à garota, estudando-lhe o perfil que fitava as planícies circundantes em expectativa, como se a Utopia estivesse logo depois da próxima elevação. - Vamos ter nossa própria terra e plantaremos acres e mais acres de trigo.
- Se é isso que querem plantar, devem ir para o Kansas. Essa terra não é boa para pasto e gado - declarou Webb, carrancudo.
Mais uma vez a atenção dela concentrou-se inteiramente no rapaz, e uma determinação, que ele nunca vira antes, de súbito assomou-lhe os traços puros. Até mesmo uma sombra de desafio brilhou em seu olhar. - Não é o que o Sr. Wessel diz.
Ele virou a cabeça para um lado.
- E quem é o Sr. Wessel?
- É aquele lá. - Indicou o homem de terno branco. - É quem vai nos mostrar as melhores seções de terra sem dono, para que possamos escolher em qual vamos nos instalar.
Não era difícil imaginar as promessas de riquezas que o homem fazia a esses colonos desinformados e inexperientes.
- Ele vai encontrar terra para toda essa gente que veio no trem com você? - adivinhou Webb.
- Vai - ela declarou, o queixo desafiador em riste. - Todos nós nos alistamos com ele porque é o único que sabe a localização dessa terra. Ninguém mais a viu, exceto ele. Vamos ser os primeiros.
- Junto com os fazendeiros e cowboys que já percorreram cada palmo desse campo - debochou levemente da fanfarronice do Sr. Wessel, do terno branco. - Imagino que ele tenha dito a vocês que tudo que precisam fazer é arrancar a grama, plantar algum trigo e ficarão ricos da noite para o dia. Não é assim tão fácil.
- Nada que vale a pena ter é fácil. - Ela parecia falar por experiência e não simplesmente repetir uma frase de efeito. - Lemos todos os folhetos que a ferrovia imprimiu, falando sobre a riqueza deste solo e sobre o método de terra seca para plantar trigo. A ferrovia verificou e tem as evidências que provam a possibilidade de sucesso da plantação.
Webb não discutiu sobre esse tema, pois não tinha argumentos. Considerando a insistência do pai em contrário, era um ponto que o preocupava. Trigo fora colhido em quantidades lucrativas. Grande parte da oposição de Webb em transformar essa terra em fazendas de trigo provinha de uma resistência arraigada contra qualquer mudança do atual estilo de vida, baseado na criação de gado e nos póneis.
- Lillian! - Uma voz masculina gritou o nome, e a garota dos cabelos castanho-avermelhados voltou-se em resposta. Webb não foi rápido o suficiente para ver o homem que a chamara do grupo de colonos reunidos em torno dos vagões.
Sentindo o olhar dela voltar a ele, Webb fitou-a. A expressão da garota assumira um ar de preocupação, uma espécie de arrependimento resignado, mas não era exatamente isso tampouco. Então a expressão deu lugar a um sorriso polido mas amigável.
- Agora preciso ir. Estão carregando os vagões para nos levar até a nova terra - explicou desnecessariamente.
- Espero que você e sua família encontrem o que estão procurando - respondeu Webb - aqui ou em outro lugar. - Em sua mente surgiu o desejo de voltar a vê-la, enquanto tocava a aba do chapéu com as pontas dos dedos.
- Também espero - respondeu, preocupada.
Jogando o xale em torno dos ombros, a jovem mulher chamada Lillian virou-se para juntar-se aos outros. A princípio afastou-se lentamente dele, depois foi acelerando o passo, conforme se aproximava do grupo.
Webb pegou o saco de tabaco do bolso do colete, tentando, ao enrolar um cigarro, disfarçar o interesse que sentira pela garota de cabelos castanho-avermelhado. Ela se aproximou de um homem mais velho, com um terno mal cortado, e falou com ele. O homem era alto, os ombros um tanto curvados, como se carregasse o peso de anos longos e duros. Os traços esquálidos estavam quase inteiramente cobertos por uma barba branca, tufos de cabelos prateados saindo do chapéu preto de abas caídas. Contudo, ele parecia forte como uma rocha, mais um trabalhador do que um fazendeiro, usando os músculos das costas e o suor das têmporas para ganhar a vida com dificuldade para si e para a família.
Correndo um fósforo pelo zuarte resistente que cobria a parte posterior das coxas, Webb levou a chama com a mão em concha, protegendo-a, até o cigarro, tragando-o e sorvendo a fumaça. Estava apagando o fósforo quando Nate Moore aproximou-se, vindo da direção do depósito.
- Nosso carregamento está aí. - Nate confirmou a chegada da remessa da fazenda. O olhar estendeu-se até o grupo heterogéneo de viajantes subindo para os vagões adaptados. - Assim que eles forem embora, podemos levar a carroça e carregá-la.
- Ótimo. - Webb tocou a cabeça do fósforo com os dedos, certificando-se de que estava apagado, antes de jogá-lo no capim junto aos trilhos.
Os poucos pertences que os novos colonos haviam trazido estavam empilhados na plataforma junto com o outro frete. Após escolherem um local, voltariam para pegá-los. A bagagem era uma indicação clara da intenção de ficar, declaração desesperada de que não possuíam outro lar para onde voltar, as raízes arrancadas para ser replantadas no solo de Montana.
- Já viu uma ralé assim reunida? - observou Nate, seguindo com os olhos a direção do interesse de Webb. - O ferroviário disse que eles são só o começo. A ferrovia baixou os preços das passagens para uma ninharia. Mas só estão vendendo bilhetes de ida. Eu não me surpreenderia se alguns desses camaradas tiverem vendido quase tudo que possuíam para juntar o dinheiro da passagem. com sorte eles têm um dólar no bolso.
- Para que precisam de dinheiro? - contrapôs Webb, com cinismo.
- A terra é de graça. - Zombou da ignorância dos colonos que haviam chegado ali com o bolso cheio de sonhos e nada mais.
Os vagões repletos de colonos ansiosos afastaram-se da estação, seu novo Moisés à frente, liderando os pobres oprimidos para a chamada Terra Prometida.
- Vamos levar a carroça para o depósito. - Nate colocou seu corpo magricela em movimento, mas Webb se deixou ficar mais um segundo. Correu o olhar pelos vagões ribombando, tentando sem sucesso descobrir em qual a mulher entrara.
Colocado o carregamento na retaguarda, foram para o centro da cidade. O armazém geral tinha como característica o fato de ter sido a construção que dera origem ao pequeno povoado. Já não se parecia tanto com as cabanas de madeira do início; especialmente após a reforma da fachada. Embora ainda levasse o nome Fat Frank Fitzsimmons, a viúva o vendera anos atrás, quando Frank morrera, decidindo voltar para o Leste, onde possuía família. O novo dono era um homem de meia-idade chamado Ollie Ellis, um tipo prestativo em busca de comércio com os fazendeiros da área.
Acreditava em servir seus fregueses, ansioso por descobrir-lhes as necessidades e satisfazê-las para que não fossem fazer negócio em outro local. Poucos fazendeiros o fizeram.
A Fazenda Triplo C representava uma grande conta para o comerciante. Quando Webb entrou na loja, Ollie Ellis saiu de trás do balcão para cumprimentá-lo. Era um homem atarracado, com cabelos ruivos emaranhados, eficiente em seu comportamento.
- Que prazer vê-lo, Sr. Calder. - Embora Webb fosse o filho do dono, Ollie sempre se dirigira a ele com o respeito que considerava adequado ao herdeiro aparente da Calder Cattle Company. - Estamos tendo uma excelente primavera, não é mesmo?
- Até agora o tempo tem estado ótimo - concordou Webb, sentindo-se feliz com o fato de ter sido reconhecido e Nate relegado a segundo plano.
- Olá, Nate. - Ollie se sentia mais livre com o vaqueiro, uma saudação com tapinha nas costas. - E o tabaco?
- Vou precisar de outra lata - replicou Nate, sem perceber a desconsideração que Webb via.
Pegando a lista de suprimentos necessários do bolso, Webb entregou-a ao proprietário da loja. O homem olhou-a sem tecer comentários, caminhando para trás do balcão.
- Por acaso viram aqueles vagões cheios de novos colonos que entraram na cidade logo antes de vocês entrarem na loja? - o comerciante indagou, começando a pegar os artigos.
- Estávamos na estação quando eles chegaram. - Nate assentiu em resposta. - Eles pretendem preencher a requisição de terras cedidas pelo governo.
- Foi o que ouvi dizer. Corre o boato de que vão fincar a bandeira . - Ollie Ellis parecia cético. - Sem dúvida a ferrovia está tentando dirigi-los para cá. - Consciente de onde se colocava sua lealdade, apressou-se a certificar de que Webb estava informado também. - Claro, não acredito muito nessa história de transformar essa terra em um campo de trigo gigante. Essa terra sempre foi para pastagens, para gado ou carneiros, para os búfalos e antílopes.
- Era o que diziam antes de os agricultores começarem a cercar o aras e pararem com o gado. - Um pouco do que Webb recordava da vida. - Dodge City é quase tão monótona hoje quanto qualquer cidade, cheia de agricultores no dia da feira, ao invés de vaqueiros soltando gritos depois de meses na picada.
- É verdade - concedeu o comerciante -, mas não consigo ver agricultores tomando conta de Blue Moon e transformando-a em uma cidade bela. Não que eu não gostasse de negócios com eles, vocês compreendem. Novos fregueses são sempre bem-vindos em minha loja, mas um homem simplesmente não esquece seus fregueses habituais. É como cuspir no prato em que se come.
- Esse grupo não parece ter vindo com muito dinheiro nos bolsos - observou Nate. - Portanto, acho que por enquanto não vão comprar qualquer coisa.
- Percebi que há uns dois prédios novos na cidade - disse
Beenten.
- Um cara chamado Wessel é dono de um deles. É um especulador de terrenos, pelo que ouvi - redarguiu Ollie. - Veste-se muito espalhafatosamente, usa terno branco. Disse que o segundo prédio vai ser um banco.
- Um banco? Em Blue Moon? - Nate parecia mais do que espantado.
- Foi o que ele disse - confirmou o comerciante, com um sorriso curvo. - Se esses novos colonos são tão duros quanto você acha, vão precisar de um banco para emprestar-lhes dinheiro para as sementes.
- A terra é de graça. - Nate olhou para Webb, recordando as palavras que ele usara na estação. - Mas vão ter que vender a alma para pagar qualquer coisa.
Um sorriso descontente de concordância surgiu rapidamente nos lábios de Webb.
- Enquanto você pega as coisas, Ollie, eu e Nate vamos ao café.
- Vai estar tudo pronto em menos de uma hora - prometeu o comerciante.
- Não há pressa. - Sabia que não teriam pressa de sair do bar para fazer a longa cavalgada de volta à fazenda.
Até dez anos antes, o bar não passava de uma pequena sala parecida com um armazém geral. Então, a ferrovia entrara em Blue Moon e Sonny chegara na cidade e construíra uma hospedaria completa, com um bar para atrair o comércio até seu estabelecimento. Uma combinação de diversão e comércio de mercadorias que finalmente acabou por fechar o bar ao do armazém geral.
Assim como Ollie Ellis, Sonny Drake agradara os fazendeiros e seus empregados, contente em servir-lhes uísque, depois alugar-lhes quarto para dormir quando já estavam cheios de bebida. O prédio foi preparado com um bar no primeiro andar e meia dúzia de quartinhos no andar de cima. ainda possuía o encanto suplementar de localizar-se a apenas alguns metros de um grande barracão atrás do prédio, onde a Srta. Fao Owens exercia discretamente sua profissão milenar.
Ao meio-dia, havia somente um freguês apoiado sobre o comprido balcão de madeira esculpida à mão, importado de Chicago. Quando Web e Nate entraram na hospedaria, o recinto pareceu escuro, diante da luz e do sol brilhante. Sonny estava varrendo o chão, a maior parte das cadeiras viradas sobre as mesas, com exceção de uma. Um homem de cabelos encaracolados ajeitara as cadeiras e reclinara-se em uma, as botas sobre a mesa. Uma garrafa de uísque estava ao alcance da mão, pronta para encher o copo em que bebericava.
Ergueu os olhos do copo ao ouvir o tilintar combinado de esporas, e a expressão dura e mal-humorada desapareceu ao reconhecer Webb. O rosto iluminou-se com um sorriso, revelando o homem de boa índole que Webj geralmente associava a Doyle Pettit. Doyle era uns dois anos mais novo do que Webb, e filho de fazendeiro também. Só que não era mais simplesmente o filho do fazendeiro. O pai, tom Pettit, dono da fazenda TeePee, morrera há três anos, e agora o rancho pertencia a Doyle.
- Ei, Webb, Nate! Venham se sentar comigo! - Acenou para eles da mesa em que estava. - Há quanto tempo não vejo vocês, caras! Sonny - chamou o robusto dono e garçom. - Traga copos para esses garotos.
- O que está fazendo na cidade? - Nate puxou uma cadeira e se jogou sobre ela, descansando os braços sobre a mesa.
- Estou bebendo em homenagem ao fim do negócio de gado. Doyle ergueu o copo em uma saudação zombeteira, em seguida emborcou o drinque.
Era de conhecimento geral na comunidade das fazendas que TeePee estava em decadência desde que Doyle assumira o controle. Uma combinação de má administração com mercado do gado em declínio.
- Não está pensando em vender a propriedade, está? - Webb ergueu uma sobrancelha, surpreso com a possibilidade de desistência de Doyle. Era boa terra, a melhor depois da Triplo C.
- Diabos, se os preços do gado baixarem mais, não vou ter escolha.
- Momentaneamente desconcertado com o fracasso implícito, Doyle Pettit voltou a encher os copos, oferecendo os outros dois que Sonny trouxera a Webb e Nate.
- Eles vão subir. Sempre sobem. - Era uma questão de aguentar o mercado ruim e diminuir as despesas.
- Despedi a maior parte dos empregados ontem. - Doyle suspirou.
- Só consegui pagar o pessoal do rodeio de primavera. vou despedir todos se for preciso, mas não vou me desfazer daquela terra. Aquilo vai ser uma mina de ouro.
- Não ter vaqueiros significa não ter gado, portanto não sei onde você vai arranjar essa mina de ouro - replicou Nate secamente.
- Ouro como o trigo. - Os olhos cor de avelã se iluminaram. Trigo significa terra. E, Deus sabe, tenho o bastante.
- Você não acredita de verdade que alguém pode plantar trigo aqui, não é? - escarneceu Nate, fitando o fazendeiro como se este tivesse perdido o juízo.
- Diabos, claro que não acredito, mas aqueles criadores sim. - Doyle soltou uma gargalhada. - Quando toda aquela terra gratuita estiver devorada, eles vão começar a comprar.
O que Doyle estava dizendo fazia sentido, mas Webb não conseguiu aprovar o plano. A ideia de transformar TeePee em fazenda de trigo parecia um ato de traição para um vaqueiro. Só ficou em silêncio porque Doyle era um bom amigo de muitos anos.
Seguiu-se uma pausa silenciosamente crítica. Tirando os pés de cima da mesa, Doyle sentou-se ereto e debruçou-se sobre a mesa, ansioso por convencer os amigos da sensatez de seu plano.
- É a jogada mais esperta - insistiu. - Aqueles trouxas estão vindo para cá famintos por terra. Nada vai detê-los. Agora que começaram, vai ser como uma inundação. Olhe só: o preço da terra aqui vai subir às alturas. Não vai mais importar quantas cabeças de gado você possui. O importante será quanta terra. Quem continuar na fazenda será idiota. Qualquer um vai se tornar rico com a terra.
- Você está esquecendo um detalhe. - Nate mudou de posição na cadeira. - Toda valorização repentina tem sua quebra. Quando aqueles agricultores não conseguirem plantar uma semente que valha, eles vão perder suas terras.
- Isso é que é o melhor. - Um sorriso alargou-lhe a boca. - Pense em quantas vezes o mesmo homem vai poder vender o mesmo pedaço de terra.
- Isso não me parece certo. - Nate balançou a cabeça.
- Não é diferente do comércio de cavalos - Doyle declarou. - Se o comprador não consegue enxergar que o cavalo é manco, então ele merece o que compra.
Sem dúvida Doyle considerava a comparação uma justificativa adequada. Webb também percebeu que Doyle pensara em cada ponto. Não era simplesmente conversa de mesa de bar para ser esquecida. Ele ia seguir a ideia à risca.
- O que diz disso, Webb? - Nate voltou-se para ele, buscando apoio para sua oposição.
- Acho que é ótimo o velho tom Pettit estar morto e enterrado. Os movimentos estavam um tanto rígidos ao tomar um gole rápido do uísque.
Doyle ficou um pouco ruborizado, os olhos cor de avelã estreitando-se.
- Meu pai era como o seu, Webb. Só entendia de fazenda e gado. Para ele, não existia outro mundo fora dos limites do pasto. Esse pensamento é velho. Ele colocou quase trinta anos de vida naquela fazenda. Quando morreu, me deixou um punhado de gado, mas não me deixou dinheiro, nem um tostão depois de trinta anos. É isso que você vai receber, Webb, gado e todas as dores de cabeça consequentes. Não vou desperdiçar minha vida como meu pai fez.
- Cada um deve fazer o que acha certo - murmurou Webb, mas as palavras de Doyle o tinham desconcertado. Dessa vez não tinha nada a ver com o fato de ser filho de Chase Benteen Calder e futuro dono da Triplo C. Era algo mais que o atormentava. Algum novo pensamento que não havia lhe ocorrido antes.
- Seu pai lhe deixou um bom pedaço de terra - recordou Nate.
- E eu vou pegar essa terra e transformá-la em dinheiro - afirmou Doyle, menos defensivo. - Estive conversando com Harve Wessel sobre a possibilidade de uma sociedade. Já foi apresentado a ele? - lançou um olhar para Webb.
- Só o vi.
- Aquele cara é capaz de vender mocassins de contas a índios da reserva - declarou com um sorriso largo. - Temos considerado a ideia de comprar alguma terra para especulação. Desde que teve um ataque cardíaco no último inverno, Evan Banks está falando em vender a velha Ten Bar.
Harve está certo de que podemos convencer o banco a nos emprestar o dinheiro para comprar a terra.
- Ao invés de ter pouco gado, você vai ficar é sem terra - alertou Webb.
- vou ser rico em terras - corrigiu Doyle, correndo o olhar por Webb. - Se seu pai fosse esperto, venderia pelo menos um pouco de sua terra. Os tempos das grandes fazendas de gado terminaram. Seria melhor se ele começasse a pensar em diminuir o tamanho da Triplo C, ou vai acabar perdendo-a toda.
Mais de uma hora se passou antes que Nate e Webb se despedissem de Doyle e saíssem do bar para comer algo. Detiveram-se do lado de fora, estudando a única rua da cidade. Nate puxou as calças para cima e lançou um olhar de soslaio para o amigo.
- O que acha? - perguntou.
Webb não precisou indagar o que ele queria dizer.
- Acho que Doyle vai fazer isso. Vai vender TeePee.
A certeza não caiu bem em nenhum dos dois. O tempo muda, e ambos haviam visto muita mudança. Outras estavam por vir, ao que parecia, e eles não estavam gostando disso.
Circundados pelas planícies onduladas de Montana oriental, os imigrantes ouviam de olhos arregalados o homem de terno branco. Altos talos de capim roçavam contra os joelhos deles. Harve Wessel escolhera cuidadosamente o lugar para seu discurso sobre o método de plantação de trigo em terra seca. Até onde o olhar podia alcançar, em qualquer direção, via-se terra virgem, terra do governo para ser tomada de graça. O tempo e a erosão haviam cavado um platô na encosta de uma pequena elevação do terreno, proporcionando-lhes uma plataforma elevada natural de onde falaria.
com a confiança de um vendedor convencido de que o produto fora vendido, convidou-os a fazer perguntas. - Existe algo que não entenderam sobre o método de terra seca?
Todos olharam em torno para ver se mais alguém ia falar. Stefan Reisner balançou a cabeça negativamente quando o demonstrador Harve Wessel olhou diretamente para ele. Estava na primeira fila de imigrantes, com Lillian de pé a seu lado, a cabeça ligeiramente virada para fitar o demonstrador de terras.
- bom, para aqueles que dispõem de poucos recursos - o que praticamente incluía todos eles, como Wessel sabia -, posso ajudá-los a obter um empréstimo de nosso novo banco... o novo banco de vocês... a fim de que possam comprar sementes e o equipamento necessário. O juro é de dez por cento, mas a terra é de graça - enfatizou. - Alguma pergunta?
- Onde poderemos morar? - perguntou alguém.
- Vagões e barracas serão suficientes para que passem o verão, até que vendam a primeira colheita. Vai haver um depósito em Blue Moon, onde poderão comprar madeira para construir uma casa. Peçam dinheiro emprestado ao banco, se não quiserem esperar. Ou - fez uma pausa - vocês podem construir uma casa de grama com toda essa "pradaria de mármore".
Uma mulher ergueu a voz:
- O que usaremos como combustível para cozinhar e aquecer nossas casas no inverno? Não existem árvores por aqui.
- Ainda bem que você perguntou isso - declarou ele, olhando para Lillian Reisner. - Jovem dona-de-casa, me dê um pedaço dessa rocha a seus pés.
Havia uma quantidade de pedras negras e brilhantes aos pés dela, quebradas do grande veio visível no solo do platô. Agachando-se, Lillian pegou um grande pedaço áspero e entregou-o a ele. Os olhos estreitaram-se em uma carranca de curiosidade, pois a rocha parecia com carvão.
- Ora, tenho dito a vocês, pessoal, que tesouros podem encontrar nessa terra. Este é um deles. - Harve Wessel segurou o pedaço de rocha preta para que todos vissem. - É carvão. Existe a poucos metros no sub-solo em qualquer lugar que quiserem olhar. E em lugares como esse - apontou para o veio de carvão no platô - está na superfície. Eis o combustível de vocês!
Lentamente, Lillian voltou a atenção para Stefan. Já não tinha dúvidas sobre a sensatez de vir para Montana. Só faltava encontrar seu pedaço de terra.
O vento soprava pelo capim verde em crescimento, curvando os talos altos da primavera e criando um brilho em tons esmeralda, jade e turquesa sob um céu de safira. Parecia uma terra crivada de jóias com flores selvagens de rubi vermelho e topázio amarelo espalhados e um horizonte sem limites. Finalmente as promessas de riquezas que haviam atraído seus pais para a costa americana estavam prestes a se realizar.
com a cabeça erguida em direção ao sol brilhante, Lillian Reisner encheu os pulmões com ar puro. A esperança cega fora sua companheira de viagem durante tão longa distância. Estar aqui de pé no meio dessa vastidão a fazia sentir como se algo maravilhoso estivesse explodindo por dentro. Uma sensação de liberdade que não conseguia expressar.
Não mais um amontoado de prédios bloqueando a luz do sol. Não mais céus com nuvens de fumaça e ar poluído que abafava os pulmões com o mal cheiro de esgoto e restos animais. Não mais viver sobre vizinhos, ouvindo todas as suas brigas e lamentações.
- Escute o vento, Stefan. - Voltou o rosto esfuziante para o homem de queixo quadrado. - Não me lembro de ter ouvido o vento antes.
- E os pássaros, também. - A fala dele era carregada com o sotaque áspero de sua Alemanha natal. - Há tanto tempo que meus ouvidos só escutavam os pombos que eu tinha esquecido o som dos pássaros na campina. Eu era jovem quando deixamos a Alemanha, seu pai e eu. Você não passava de um clarão nos olhos de seu pai.
Lillian já ouvira essa história muitas vezes: a longa viagem pelo oceano em terceira classe, o desejo ardente de seus pais de que o primeiro filho nascesse na América, onde as ruas eram pavimentadas em ouro. Ela era natural da América, criada no gueto alemão da cidade de Nova York. Tanto seu pai como sua mãe haviam acreditado no sonho da América até o dia da morte, com uma distância de poucos meses entre um e outro. Não importara as ruas não serem pavimentadas em ouro. Os mercados ofereciam mais comida do que jamais haviam visto em toda a vida. Para eles, aquela continuara como uma terra de plenitude, não maculada pela desilusão.
Ouvindo o sotaque forte de Stefan, Lillian lembrou-se de como ela já se envergonhara com a maneira dos pais falarem, como fora intolerante, incapaz de apreciar a força e coragem de que tinham precisado para deixar sua terra natal por uma terra estranha, um país novo com uma cultura diferente. Para seu profundo arrependimento, fez essa descoberta depois que eles morreram.
Agora fizera uma jornada bastante similar à deles: atravessar esse grande continente da América, ansiosa, ainda que insegura quanto ao que encontraria à sua espera. Essa extensão de terra imensa e descampada era impressionante, uma grande e solitária distância de qualquer lugar. Mas não se sentia intimidada diante da paisagem desolada.
Seu pai e Stefan haviam compartilhado o sonho de possuir sua própria fazenda na América. Aqui estava ela com Stefan, assumindo o lugar do pai, para transformar o antigo sonho em realidade. Lançou um olhar de respeito e profunda afeição ao homem de quarenta e três anos que era seu marido. A despeito dos cabelos grisalhos, era forte como um touro, embora bom e generoso.
À sua maneira, ela o amava. Se faltava paixão ao sentimento, Lillian não estava preocupada. O amor romântico era um luxo dos ricos que podiam se permitir tais coisas. A mulher comum precisava ser mais prática e escolher um homem que lhe oferecesse alimento, abrigo e companheirismo. Lillian estava satisfeita com a escolha.
- Você esperou muito tempo para ter uma terra que pudesse chamar de sua. - Lillian percebeu o orgulho da posse nos olhos dele, voltando-se em seguida para fazer um gesto de varredura com o braço. - Eis aí, trezentos e vinte acres.
- Aquele Sr. Wessel disse que ia nos mostrar a melhor. - Balançou a cabeça satisfeito, os traços estóicos inalterados mas os olhos bastante expressivos.
Um dia antes eles tinham preenchido a Declaração de Cessão de Terra, acertando tudo no banco para a obtenção de um empréstimo com a ajuda do Sr. Wessel, e compraram sementes, equipamento e provisões necessárias para iniciarem uma vida nova. com a parelha de cavalos de tração e um carroção usado, pegaram os pertences que haviam deixado na estação ferroviária e os trouxeram até a propriedade onde iam construir seu lar. Localizava-se a trinta quilómetros da cidade e a dez quilómetros do vizinho mais próximo, mas, depois de viajar de tão longe, não se intimidavam com essas distâncias.
- Olhe isso, Lillian. - Stefan indicou o solo a seus pés e cutucou a grama com a ponta da bota de cano longo. Agachou-se para analisar mais de perto, o que Lillian também fez, afastando as saias próximas aos pés para que não ficassem no caminho. A mão calosa e grosseira expôs o emaranhado de talos de capim unidos junto ao solo. - Vamos fazer o trigo ficar grande assim.
- Vamos sim. - Sabia que ele estava vendo isso acontecer mentalmente, a transformação desse mar de capim em um oceano de trigo ondulante.
Ele fechou a mão em torno de um talo de capim e deu um puxão forte, os músculos retesando-se para quebrar a tração tenaz das raízes entranhadas no solo. O fato de Stefan Reisner conseguir arrancar de sua cama de terra o capim era uma demonstração clara de seu valor físico. Jogou o torrão para o lado e pegou um punhado de terra. Os olhos sorrindo, ofereceu a Lillian um pouco. Uniu as mãos em concha enquanto ele derramava os torrões sobre elas.
- Nossa terra - disse ele simplesmente.
O solo marrom estava frio contra as mãos dela. Fechou os dedos em torno da terra seca, sentindo-lhe a aspereza e recordando a si mesma que esse solo era uma fonte de alimento para a vida vegetal. Era a fertilidade em suas mãos, a primeira cadeia no ciclo da natureza.
- Vamos construir nossa casa nesse local - ele disse, pondo-se de pé. - Primeiro, vamos lavrar o solo e plantar nosso trigo.
- Vamos precisar arar um espaço para a horta também, para plantarmos nossos vegetais - acrescentou Lillian.
Por trás deles, um dos cavalos se movimentou, fazendo as correntes dos arreios tilintar. Lillian empertigou-se e limpou a sujeira das mãos sem conseguir tirá-la completamente. Enquanto Stefan ia até o vagão para começar a descarregá-lo, ela se deixou ficar analisando mais detidamente o capim ondulante salpicado de flores.
Durante tanto tempo essa terra permanecera improdutiva, domínio unicamente do gado e dos homens que tomavam conta dele, os vaqueiros. As comissuras labiais acentuaram-se em um leve sorriso com o último pensamento. O primeiro que encontrara em carne e osso acabara não sendo o que ela esperara de um cowboy. Pensava que eram rudes e desordeiros, sempre prontos para brigar, mas o que conhecera fora educado e simpático.
Ainda se lembrava dos olhos escuros e do modo como ele a olhara, admirando-a claramente, cheio de interesse. Ele sempre tivera o campo livre, nunca estivera confinado ou no meio de multidões. Isso ficava nítido em suas maneiras, no modo como se portava, tão livre e à vontade como o ambiente que o circundava, acostumado com a extensão do céu.
Havia algo de diferente nele, proveniente da vida ao ar livre. O rosto bronzeado pelo sol fazia com que Stefan parecesse pálido. Ele parecia orgulhoso e vigoroso, os ombros largos e não curvados como os de Stefan. Era forte e robusto como essa terra, possuidor de uma simplicidade que Stefan não tinha.
Balançando a cabeça em silêncio, Lillian percebeu não ser justo comparar Stefan ao cowboy. Stefan era pelo menos quinze anos mais velho. Talvez em sua juventude as diferenças não fossem tão gritantes. Além do mais, não era aconselhável ficar imaginando coisas desse cowboy.
E era igualmente idiota ficar ali de pé sonhando acordada quando havia tanto trabalho a ser feito.
Cavalgar ao longo da cerca era uma tarefa solitária, mas Webb nunca se incomodara com a solidão, longos dias somente com o cavalo, a terra e um grande pedaço de céu como companheiros.
Enquanto o cavalo pardo trotava ao longo da cerca, Webb estendeu a mão para checar a tensão do arame onde quer que parecesse frouxo, testando os postes para certificar-se de que estavam firmemente cravados no solo. Os movimentos eram automáticos, deixando-lhe a mente livre para suas próprias elucubrações.
O trote do cavalo provocava ruídos farfalhantes no capim alto, já em processo inicial de modificação do verde para o amarelo do início do verão. O som e a cor o fizeram evocar a cena dessa terra coberta de talos dourados de trigo. Visão sem graça que não parecia combinar com essa pastagem descampada e selvagem.
Nos últimos dois meses, os comentários no alojamento se centralizavam nos plantadores em terra seca, termo dado aos agricultores das terras cedidas. Estavam sendo chamados por vários outros nomes dados pelos cowboys: cata-ninhos, resto de imigrante, cata-terra. Desde a primavera, estes imigrantes não paravam de chegar pelo trem. Os colonos espalhavam-se pelas planícies como ervas-daninhas, ameaçando tomar conta das ricas pastagens que haviam sido domínio dos fazendeiros.
Webb não gostava mais da ideia do que qualquer vaqueiro, mas assumira uma posição mais filosófica em relação ao assunto. No tempo de seu pai, essa fora a última área de pastagem livre para os pecuaristas. Agora era a última área livre para o agricultor. Sempre fora assim na colonização das terras do Oeste. Primeiro vieram os caçadores de peles, depois os pecuaristas e finalmente os agricultores. Nenhuma resistência contra a ordem estabelecida modificara o resultado. A invasão dos arados começara.
com a perspectiva histórica, ele considerava os esforços ininterruptos do pai, ao mesmo tempo fúteis e irreais através de seus contatos políticos, para deter ou refrear o fluxo de colonos jorrando na região. Há cinco anos, o pai previra a vinda de agricultores, e Webb não conseguia compreender por que ele estava se empenhando em uma luta que já estava perdida.
Quando o cavalo pardo chegou ao topo da suave elevação, ergueu a cabeça, as orelhas captando com súbito interesse algum objeto do outro lado da cerca, fora dos limites da Triplo C. Webb sentiu o movimento dos flancos do animal em saudação à parelha de cavalos no vale ao lado daquele trecho da propriedade. Estavam deixando sulcos marrons para trás, numa linha reta através da grama.
Webb freou seu cavalo por simples reflexo. O tilintar de correntes dos arreios atravessou claramente o silêncio das planícies ondulantes. Surgindo por trás dos lombos musculosos da parelha de tração Webb viu, em primeiro lugar, o homem que os conduzia, em seguida o arado, descendente do famoso corta-grama que domesticara as planícies do Meio-Oeste. O velho arado de ferro dos primeiros colonos não conseguia cortar o gramado densamente emaranhado que fora cozinhado pelo verão escaldante e congelado pelo inverno frio, até que um homem chamado John Deere inventou um arado com lâmina rotativa e aiveca de aço, capaz de cortar o capim e levá-lo.
Vieram as evoluções, mas o princípio era o mesmo na versão moderna que Webb viu. Relaxou a pressão no freio e deixou que o pardo descesse a elevação até onde o colono estava arando a grama virgem. A parelha de trabalho estava demasiado ocupada para responder à saudação relinchada pelo pónei, limitando-se a virar as cabeças naquela direção.
O homem comandando as rédeas usava suspensórios para segurar as calças largas. O suor deixava manchas na parte dianteira da camisa, quase até debaixo do braço. O boné com pequena aba mal cobria o rosto queimado pelo sol e sem pêlos.
Ao perceber que as bochechas do homem estavam barbeadas, Webb julgou que o colono talvez fosse o pai da garota que conhecera na estação ferroviária. Mas o homem não era somente escanhoado, era também mais jovem, aproximadamente da idade de Webb. Mesmo assim, o olhar do vaqueiro passou pelo agricultor de terras secas e seu arado puxado por cavalos, seguindo a trilha da terra recém-revolvida até encontrar o ponto de partida.
A quase um quilómetro da linha da cerca, as extremidades gastas de uma carroça quase se confundiam com o pano de fundo das planícies. Os olhos de Webb primeiro foram atraídos pelo formato branco de um teto de barraca; em seguida o vagão tomou forma. Duas criancinhas brincavam diante da tenda, supervisionadas por uma criança mais velha. Todas possuíam cabelos claros, tornando remota a possibilidade de serem parentes da garota de cabelos avermelhados que conhecera. O olhar de Webb voltou ao homem.
Assim como o cavalo, o colono estava entretido demais em seu trabalho para perceber o cavalo e o cavaleiro aproximando-se dele pelo lado oposto da cerca. Só quando Webb já estava quase emparelhando com a dupla de cavalos é que o homem o viu. Sua reação foi puxar as rédeas da parelha imediatamente, lançando um olhar desconfiado ao cavaleiro alto.
Pelo que Webb ouvira no alojamento, a atitude do colono era compreensível. Os ferroviários e negociantes da pequena cidade receberam bem os imigrantes, mas a recepção de seus vizinhos, fazendeiros e cowboys, fora bastante fria, variando do desdém glacial à hostilidade espalhafatosa.
O cavalo pardo queria parar e travar conhecimento com os recém-chegados equinos, o que Webb permitiu. A sela rangeu enquanto Webb mudava de posição, empurrando o chapéu para a nuca. O capão esticou o pescoço sobre o arame farpado para farejar o cavalo mais próximo, tão indiferente quanto seu dono quanto à demonstração de interesse.
- Parece que o dia vai esquentar - observou Webb, falando sobre o tempo, pois este afetava tanto fazendeiros quanto agricultores.
O colono esboçou uma resposta afirmativa com um movimento de cabeça mas os olhos não se afastaram de Webb para inspecionar o céu. Webb voltou a olhar para a terra revolvida por trás do arado.
- Está planejando semear esta terra com trigo? - A indagação era óbvia.
O agricultor ergueu o queixo em desafio.
- Estou.
- Não está um pouco tarde?
Algo acendeu-se no rosto do homem. Webb não sabia se era dúvida ou simples preocupação. A expressão rapidamente foi substituída por uma determinação desesperada que mais tarde Webb reconheceria como característica comum a praticamente todos os colonos de terras secas. Por um segundo, deixou os pensamentos retornarem a Lillian e seus cabelos castanho-avermelhados, contente de que sua família estivesse entre os primeiros a chegar, pois as sementes teriam tempo para amadurecer, contanto que chovesse. Esse homem estava jogando com a sorte, torcendo para que não houvesse geada prematura, mortal para as sementes.
- O Sr. Wessel disse que teríamos tempo de plantar e colher. - A voz do colono possuía um tom cuja origem Webb não conseguia determinar, mas a crença era inconfundível.
A impaciência com a fé cega nesse tal promotor de terra, Wessel, diminuiu o traço de benevolência no rosto de Webb, tornando-o duro. Lançou um olhar de pedra em direção ao vagão e à tenda, e às crianças brincando tão despreocupadamente sob o sol quente.
- É sua família? - Webb ofereceu o mesmo olhar apertado para o agricultor.
Por sob a atitude irritada do homem percebia-se a preocupação, como se a referência de Webb à família fosse de alguma maneira ameaçadora. No entanto, Webb ponderava como aquelas crianças iam fazer se a colheita falhasse, o que provavelmente aconteceria, com semeadura tão tardia e a falta de dinheiro para comprar comida para o inverno.
- Aquela é minha Helga e aqueles são meus filhos - declarou o homem.
- Você tem ideia de como esse lugar vai ser duro para eles? - indagou Webb seriamente.
- Tenho uma arma. - O colono devolveu o olhar insistente de Webb.
- Se houver problemas com minha família, vou usá-la.
Embora sem demonstrá-lo externamente, Webb surpreendera-se com a resposta. Estava se referindo às dificuldades inerentes àquela terra e seu clima. Não quisera insinuar qualquer outro tipo de dano físico ao homem e sua família. Será que tinha havido atitudes violentas ou importunas por parte dos vaqueiros ou fazendeiros, sobre as quais não tivesse ouvido falar?
A essa altura não importava. O que ficou claro para Webb foi a facilidade com que algo do género poderia acontecer. Deus sabia como os alojamentos estavam repletos de cowboys de cabeça quente, loucos para brigar por qualquer coisa. Se se deparassem com um colono igualmente beligerante, algum tipo de violência seria com certeza o resultado.
Webb mudou a posição do chapéu, trazendo a parte dianteira sobre a testa, analisando o homem com os olhos semicerrados.
- Como você se chama? - indagou.
- Kreuger. Franz Kreuger - disparou com orgulho combativo, que desafiava Webb silenciosamente a fazer algum comentário depreciativo sobre sua nacionalidade.
- Deixe-me dizer-lhe uma coisa, Franz Kreuger. - Webb levou o cavalo pardo para perto da cerca, até aproximar-se do homem. - A maior parte dos fazendeiros daqui são homens da antiga. Lutaram e expulsaram índios e ladrões de gado, e algumas vezes lutaram uns com os outros. Eles sabem o que é uma arma. Quando vêem uma, não a consideram um aviso. Acham que ela vai ser usada. Meu conselho é, Sr. Kreuger, dê essa arma a sua mulher. Vocês todos estarão mais seguros assim.
Dito isto, Webb deu rédeas ao cavalo. Aquele trecho da cerca poderia esperar para ser verificado outro dia, depois que ele acalmasse. Eram conversas bobas como essa, com o homem errado, que provocavam incidentes.
Quando Webb direcionou a montaria rumo ao cume do vale, ouviu o colono fustigar a parelha com as rédeas. Instigou sua montaria a galopar, fazendo com que o ruído surdo dos cascos abafasse o som dos cavalos de tração forçando a coelheira.
Antes de chegar ao topo da inclinação suave, um trio de cavaleiros desenhou-se contra a crista à sua direita. Webb mudou de direção, subindo para juntar-se a eles. Como não devia terminar sua tarefa em menos de dois dias, sua curiosidade aumentou, para dissipar-se assim que reconheceu o pai entre os cavaleiros. Pararam no cume da elevação e esperaram que ele terminasse de subir.
Abriu-se um espaço para Webb ao lado do cavalo do pai. Requisitavam-no a assumir a posição ao lado dele porque era seu filho ou porque o patrão queria falar com um dos seus cavaleiros? Webb aproximou-se do trio de cavaleiros e ocupou o espaço entre a montaria do pai e a de Ely Stanton. Judd Turner, um errante que viera trabalhar para a companhia há um ano, cavalgava na extremidade.
O pai lançou-lhe um rápido olhar de soslaio, nunca ficava satisfeito com o que via.
- Tudo bem?
Não estava indagando sobre as condições da cerca nesse setor. Benteen Calder queria saber sobre a condição do colono do outro lado do limite da Triplo C. Webb olhou para baixo, para a cena favorecida pelo local privilegiado no topo da elevação. O colono lançava olhares ansiosos para os homens a cavalo, mas continuava mantendo a parelha em movimento.
- Tudo bem. - Webb não mencionou o desafio do agricultor de que possuía uma arma. Observações como essa chegariam ao alojamento, e era possível que alguém viesse atormentar o homem genioso.
A luz do sol naquele momento formou um ângulo com o arado, refletindo a lâmina que sulcava a grama emaranhada, revirando a terra escura. Webb sentiu, mais do que viu, o ódio que tomava conta do pai. Parecia pesar no ar.
- Turner está aqui para substituir você - declarou o pai, embora Webb já tivesse adivinhado. O olhar que Benteen jogou sobre o cowboy era uma ordem silenciosa para que assumisse o lugar de Webb.
O errante deu rédeas ao cavalo, despedindo-se com um sorriso relâmpago.
- Não se esqueçam de que me deixaram aqui - brincou.
Quando o cowboy não estava mais ao alcance do ouvido, o pai disse:
- Buli Giles vai chegar depois de amanhã. Você vai comigo recebê-lo. Uma parte de Webb desejava indagar o motivo por trás da visita de Buli, mas o pai não parecia estar para explicações. Assim, ele disse o que pensava.
- Os colonos estão aqui. Agora o Exército não pode tirá-los daqui. Mais estão para chegar, e não há nada que você ou Giles possam fazer para detê-los.
- Então não devo nem tentar, não é mesmo? - O pai mediu-o com um olhar de fúria glacial. - Olhe só lá para baixo, Webb, logo ali na frente daquela parelha de cavalos. Está vendo a grama?
- Estou - respondeu sucinto, olhando sem ver para onde o pai apontava.
- Dê uma longa e boa olhada, porque esta é a última vez que aquele solo vai ter aquela grama. - A voz era áspera.
- É como o estupro de uma virgem. Você jamais pode repor o que ela perdeu. Talvez você consiga assistir isso acontecer sem tentar fazer algo, mas eu não consigo.
Webb pensou em apontar os muitos acontecimentos históricos anteriores a esse momento, em que agricultores invadiram o que anteriormente fora domínio dos fazendeiros, mas seria perda de tempo. A implicação de que ele se dava por vencido facilmente o amargurava.
- O tempo muda lugares e pessoas - foi sua única resposta.
- Já atravessei muito tempo, filho - Benteen Calder recordou -, mas essa é uma época que não quero viver para testemunhar. - Desespero sombrio embargou-lhe a voz, o olhar de volta ao colono. Ao curto silêncio seguiu-se um menear de cabeça de Benteen. - Não sei se admiro a coragem estúpida que trouxe esse colono de terra seca até aqui, ou se odeio o desgraçado pelo que está fazendo com essa terra. - A voz vibrava, presa da intensa emoção que o perturbava.
A violência que Webb pressentiu sob as aparências fê-lo lembrar da declaração de luta feita pelo colono tão facilmente. Parecia reforçar a possibilidade de a situação tornar-se incerta.
- Se nessa terra cresce grama, como você pode ter tanta certeza de que não vai crescer trigo igualmente bom? - Era um desafio implícito, uma pequena rebelião aberta contra o mundo em preto e branco do pai, o qual não deixava espaço para o cinza.
- Pela mesma razão que me leva a saber que o milho não cresce em um campo pedregoso, nem arroz no deserto. - A resposta veio suave e perfurante. - Existem certas coisas que a terra pode suportar. Não importa o que um homem possa fazer ou tentar, ele não consegue mudar isso; não permanentemente. Aquele homem lá embaixo é um estranho nesse lugar.
- Esboçou um gesto em direção ao colono. - Seu desconhecimento é pelo menos desculpa parcial para o que está fazendo. Mas você devia saber. Nunca compreenderei por que as pessoas só aprendem batendo com a cabeça. - Pegou as rédeas da montaria e afastou-se de Webb.
No entanto, não oferecera qualquer explicação, qualquer prova capaz de convencer Webb de que o fazendeiro estava certo e o agricultor errado. A última coisa que queria era ver a Triplo C transformada em uma gigantesca fazenda de trigo, mas isso não queria dizer que os agricultores não pudessem utilizar a terra de maneira mais lucrativa. Sem dúvida o gado não estava trazendo dinheiro, não naquele ano ou nos dois anteriores. Webb não sabia em que situação financeira se encontrava a fazenda, já que não indagara, mas não podia ser boa.
A única rua de Blue Moon era um atoleiro de lama pegajosa que se prendia às rodas do vagão dos Reisner, mas Lillian era toda sorrisos. Um dia antes caíra a primeira chuva boa que presenciaram desde que haviam chegado a Montana oriental, exceto por uns dois aguaceiros rápidos que não fizeram mais do que assentar a poeira. Ela rira e dançara sob a chuva, tentando persuadir Stefan a sair da cabine de papel alcatroado para juntar-se a ela, mas ele permanecera ao abrigo do umbral, satisfeito em observá-la e à chuva torrencial caindo em seus campos de trigo desabrochando.
Como o solo estava demasiado enlameado para que trabalhassem ao ar livre, tinham atrelado a parelha ao carroção e aproveitado a oportunidade para ir à cidade em busca de mais suprimentos. A rua estava lotada, dando a impressão de que todos os outros colonos estavam fazendo a mesma coisa. Lillian não deixou de observar a alegria nos rostos das pessoas. Sabia o que estavam pensando, pois tinha que ser a mesma coisa que lhe passava pela cabeça: essa terra era considerada seca, e chovera!
O que importava se o chão molhado assemelhava-se a uma gosma pesada que grudava nos sapatos e sugava os pés? Toda aquela chuva faria o trigo crescer. Quando chegasse o outono, colheriam sua primeira safra. O cheiro do sucesso impregnava o ar. Stefan a advertira a não contar com o ovo no cu da galinha, mas ela vira o alívio nos olhos dele e sabia que só estava expressando o que interiormente ele sentia.
- Primeiro vamos encher o barril de água - declarou Stefan ao frearem a parelha em frente à loja do ferreiro.
Desde a chegada dos colonos às planícies de Montana, o poço do ferreiro se transformara em fonte de água para os que não estavam próximo a um rio ou não haviam feito um poço em sua propriedade, ou seja, a maioria dos colonos. Pagando uma pequena taxa, eles podiam encher os barris d'água no poço do ferreiro e transportá-los para casa. Agora que chovera, este parecia um inconveniente menor, e somente temporário.
Outros carroções agrupavam-se em torno da loja do ferreiro com o mesmo objetivo. Lillian perscrutou os rostos das mulheres nos assentos dos carroções, mas não viu alguém de quem se lembrasse do trem. Sorriu e assentiu para aquelas que olharam para ela e elas retribuíram, enquanto seus companheiros esperavam sua vez no poço, como Stefan estava fazendo.
Voltando a atenção para a rua, Lillian viu meia dúzia de cavaleiros escoltando uma carruagem para a cidade. Duas mulheres encontravam-se dentro.
De súbito, descobriu-se olhando fixamente para um rosto familiar. Um pequeno arrepio de prazer percorreu-a ante a visão daquele cowboy com quem falara no dia em que tinha chegado. Ele parecia mais alto do que ela lembrava, mas talvez fosse a altura do cavalo que dava essa impressão.
Quando o olhar distraído vagou lentamente até onde ela estava, Lillian inconscientemente reteve a respiração. Estava certa de que ele estava olhando para ela, mas não deu mostras de tê-la reconhecido. Sentiu-se loucamente diminuída ao ver que os olhos dele não se demoraram nos dela.
Então ele virou rapidamente a cabeça para olhar na direção em que Lillian se encontrava. Ela quase podia sentir o olhar de investigação de Webb. Os traços duros e másculos que pareciam esculpidos em bronze assumiram o calor e o carinho próprios do reconhecimento. O coração dela pareceu acelerar-se, um pouco descompassado.
O arremedo de um sorriso aflorou em seus lábios enquanto o rapaz erguia a mão e tocava a ponta arredondada da aba do chapéu. O mesmo gesto que fizera quando se conheceram. com um leve movimento de cabeça, Lillian retribuiu a saudação. Então ele passou por ela e os olhares de ambos se separaram, ele prosseguiu na escolta à carruagem juntamente com o grupo de cavaleiros, aparentemente ao depósito da ferrovia.
Lillian lançou um olhar rápido em direção ao poço, entrevendo Stefan no meio dos outros colonos, em seguida olhou para trás, para o grupo de cowboys. Estavam todos montando cavalos marcados com os três C no lombo esquerdo. Lillian lembrou-se de que eram chamadas marcas a ferro em brasa. Ficou pensando o que aqueles três C significariam, o que era apenas uma outra forma de pensar no cowboy.
- Viu aquilo? - Um colono de boné também percebera a passagem dos cavaleiros. Fez a pergunta a quem quer que escutasse, captando imediatamente a atenção de Lillian. Virou a cabeça e soltou uma cusparada no chão. - Entram na cidade como se fossem os donos dela.
O homem falou como se soubesse quem eles eram, e de que fazenda vinham. Lillian debruçou-se para frente no assento, uma indagação formando-se em seus lábios, ainda que os mordesse para reter a pergunta.
Mas a interpelação acabou brotando.
- Quem são?
- Calder. - O desagrado enevoou os olhos azuis do homem ao pronunciar o nome. - Ele é dono da maior fazenda da região. Na América existem lordes iguais aos da Rússia.
Outras pessoas estavam escutando, algumas esticando o pescoço para ver o grupo de cavaleiros que passara. Lillian acompanhou-os com o olhar, presa ao cowboy de ombros largos.
Voltando a atenção ao poço, olhou para outras famílias de colonos em volta. Essa era uma gente orgulhosa e trabalhadora, com um passado de pobreza e luta bastante semelhante ao dela. Não acreditava que o cowboy tivesse sofrido como eles.
- Como você os conhece, Kreuger? - Outro colono questionou o russo.
- Meu terreno faz limite com a terra dele. Um dos homens dele apareceu quando eu estava arando meu campo e avisou que minha família poderia sofrer algum mal. - Fez uma pausa para avaliar a reação silenciosa em torno dele, empertigando-se um pouco e adotando uma pose arrogante.
- Disse a ele que tinha um rifle e ia usá-lo.
Uma voz ergueu-se sobre o zunzum de sussurros que se seguiu.
- E o que aconteceu depois?
- Ele fez mais ameaças e depois foi embora - disse para os homens.
- Devemos nos unir, todos nós. Esses fazendeiros acham que porque chegaram aqui primeiro são donos de tudo. Temos que mostrar a eles que não estamos com medo.
As frases pareciam ecos do passado. O olhar de Lillian vagou em direção ao solo pegajoso e azul da terra molhada em torno do poço. Os sapatos de Stefan estavam cobertos de lama. No conjunto habitacional que moravam em Nova York, ela ouvira aquele tipo de homem falar: resmungos zangados para que se organizassem e permanecessem unidos contra os barões espoliadores. O desespero sempre parecera provocar o nascimento da violência.
Esta era uma terra nova. Poderia ser o lugar para um novo começo, onde uma pessoa poderia construir algo unicamente com o suor puro do trabalho, sem hostilidade nem medo. Mas essa terra descampada não era tão calma quanto parecia.
No depósito da ferrovia, Webb desmontou junto com os outros cavaleiros, amarrando as rédeas do cavalo em um poste. Ao pisar no chão de madeira da plataforma coberta, bateu o pé para tirar a lama acumulada nas botas. Ondas de impaciência percorriam-no, criando uma tensão interna que o deixou com os nervos alterados. Os outros cavaleiros reuniram-se em volta dele, abrindo caminho para Benteen Calder juntar-se a eles.
- Curley, veja com o agente se o trem está para chegar - ordenou Benteen.
- Certo, patrão. - O cowboy dirigiu-se para o depósito com o modo de andar típico dos vaqueiros.
Em seguida o olhar frio de Benteen pousou em Webb.
- Ajude sua mãe e Ruth naquela lama.
com um movimento afirmativo de cabeça, Webb voltou-se para a carruagem e o cavalo estacionados a poucos metros da plataforma. Por um instante hesitou, ao encontrar o olhar carinhoso de Ruth dirigido a ele. Uma contração de desconforto alterou-lhe os músculos enquanto se aproximava da carruagem, mas não demonstrou seus sentimentos.
- Precisam de ajuda para manter as saias longe da lama? - murmurou para a mulher quieta e loura de pé na carruagem, um pé descansando no degrau do lado de fora.
- Por favor. - Ruth retribuiu o sorriso, com seus modos reservados.
As mãos enluvadas do rapaz tomaram-na pela cintura esguia, erguendo-a com um movimento suave sobre o meio metro de lama no chão depositando-a sobre o piso de madeira da plataforma. Ele sentiu a leveza das mãos femininas sobre seus ombros em busca de equilíbrio, e o modo lento como as retirou. Em seguida, ele já estava se virando para ajudar a mãe a sair da carruagem.
- Não me lembro de ter visto tanta gente na cidade - declarou a mãe, alisando a saia cor de caramelo.
- Na maioria são colonos das terras secas - afirmou Webb. - A chuva os tirou de seus terrenos para a cidade, imagino.
- Este sol vai secar o solo rapidamente - ela disse, o cenho franzido.
- Eles vão precisar de um cinzel, e não de um arado, para voltarem a suas terras amanhã.
Webb sorriu em resposta, diante da observação. A lama de Montana realmente tornava-se dura como pedra quando secava. A chuva era tão rara que ele até esquecera esse detalhe.
- Tenho pena daquela pobre gente - murmurou Ruth, atraindo o olhar de Webb com o comentário.
- Eles parecem determinados a conseguir o que querem - retrucou. Webb analisava aquele vestido que Ruth estava usando e a delicadeza de sua pele, semelhante a uma pérola branca. Atravessou-lhe o pensamento a figura daquela garota imigrante, Lillian, em seu vestido barato e a pele já bronzeada pelo sol. Passara direto por ela quando a vira pela primeira vez no grupo de carroças em torno do poço. Aquela terra árida já estava provocando seus efeitos sobre ela.
Era estranho não tê-la reconhecido. Não percebeu o tom avermelhado dos cabelos até olhar uma segunda vez. Algo mais ajudara no reconhecimento. Talvez tivesse sido a ânsia acumulada nela, aquela vitalidade de corpo e espírito.
- Vão precisar mais do que determinação, temo - disse a mãe. Os lábios alargaram-se em um sorriso. - Mas gosto de ver todas essas pessoas na cidade, mesmo se um certo Sr. Calder considera essa observação traiçoeira. - Ergueu os olhos atrevidos para o homem que acabava de juntar-se a eles, espicaçando-o de maneira amorosa.
Se outra pessoa tivesse dito isso, teria recebido um olhar duro, mas Benteen limitou-se a lançar um sorriso indulgente para a esposa.
- O trem está meia hora atrasado - avisou-os. - O agente disse a Curley que há dois vagões cheios de colonos. Espero que fique feliz com isso, Lorna.
Ela suspirou e não replicou.
- Como temos mesmo que esperar pelo trem, podíamos encontrar um lugar confortável para sentar. - Olhou para Ruth. - Você gostaria de entrar no depósito comigo, ou prefere ficar aqui na plataforma com Webb?
- Acho... - Ruth fez uma pausa e olhou para Webb, relutando em concordar com a manobra de Lorna Calder para colocar os dois juntos.
A falta de firmeza não era novidade para Webb. Ela nunca ousava no relacionamento de ambos, sempre deixando a iniciativa partir dele e nunca demonstrando insatisfação com a lentidão dele. O próprio Webb não sabia ao certo por que evitava cortejá-la abertamente.
- Ruth precisa de ar puro depois de ficar trancada durante tanto tempo na escola. - Tomou a decisão por ela, percebendo o olhar de prazer nos olhos da mãe.
- Você vem comigo, Benteen? - Enfiou a mão entre o braço dele, sem esperar resposta.
Webb pegou um cigarro feito à mão no bolso da camisa e ficou olhando os pais caminharem de braços dados até o armazém. Como Ruth nunca fizera objeções a seu hábito de fumar, não se deu ao trabalho de pedir permissão antes de acendê-lo. Uma mulher índia expunha suas mercadorias e aproximou-se de Webb, oferecendo um par de mocassins. Ele sacudiu a cabeça e ela voltou a seu cobertor para esperar o trem.
- Espero que as cartilhas que encomendei para as crianças tenham chegado - falou Ruth, embaraçada com o silêncio.
Ele semicerrou os olhos para proteger-se da fumaça. Talvez fosse do tipo que Nate se autodenominava, o não-casamenteiro. Havia outros na fazenda, de sua idade ou mais novos, com filhos na escola de Ruth. Â vida dele era muito sem sentido. Uma esposa e uma família significariam assentar-se e tornar-se o homem de seu pai, o que Webb rejeitava terminantemente. Ao invés de ficar perambulando, estava na hora de decidir se queria permanecer na Triplo C ou começar a vida sozinho.
- Você devia se casar, Ruth - declarou abruptamente. - Devia ensinar a seus próprios filhos, e não aos filhos dos outros.
- Você parece sua mãe - ela replicou. - Só que ela diz que eu devia estar ensinando aos netos dela.
- O que não é provável. - A resposta saiu antes que Webb a considerasse, mas o sentimento era verdadeiro. Percebeu que a declaração se referia às intenções que nutria em relação a Ruth, ou à falta delas. - Já foi ao Texas? - Mudou de assunto, consciente de que ela desviava a atenção para outro ponto, evitando olhá-lo.
- Não, nunca fui. - A voz saiu fraca. Há muito esperava que Webb tomasse conhecimento dela. Vez por outra ele ia visitá-la, jantava em sua casa, e a beijara pelo menos uma dúzia de vezes. Todo ano achava que a pediria em casamento. Ele não estava saindo com ninguém, Lorna Calder assegurara.
- Eu mesmo só estive lá umas duas vezes. Meus avós ainda vivem em Fort Worth. Mamãe sempre fala em ir visitá-los, mas... - franziu o cenho e não completou a frase.
O lamento solitário do apito de um trem soou à distância. Os que esperavam na plataforma agitaram-se e puseram-se a caminho dos trilhos. O mesmo ocorreu na rua. A chegada do trem era um acontecimento que atraía espectadores à estação. Era uma ligação com a civilização para os que moravam nessa comunidade isolada no meio do nada.
Quando o apito do trem tornou a anunciar a chegada, três carroças vieram sacolejando pela rua. A figura de terno branco na primeira carroça, Webb a reconheceu como o demonstrador de terras Wessel, mas seus olhos estreitaram-se ante a visão do segundo homem, sentado na carroça com o outro. Era Doyle Pettit, do rancho TeePee. Naquele dia, no bar, Doyle falara em engrenar com o promotor de terras. Como Webb suspeitara, não fora somente conversa fiada; mas ver os dois juntos era outra coisa. Ao entrever os condutores dos outros dois carroções, foi ainda mais difícil aceitar. Eram antigos trabalhadores de TeePee, partes quase tão integrantes da fazenda quanto Barnie Moore e Shorty Niles eram da Triplo C. Webb não gostou de ver esses homens, esses vaqueiros, dirigindo carroças de colonos para ajudá-los a encontrar terras para morar.
- Não é o Doyle Pettit? - O pai falou à direita de Webb, enquanto o trem bufava e silvava até parar na estação. - E Charlie... e Jingles?
- É. - Webb fitou o trem, ao invés de assistir à traição de seus conterrâneos do outro lado.
Os primeiros dois carros de passageiros atrás dos vagões de carga portavam sinais pintados que os designavam como Especial da Northern Pacific. Não mais importava como era uma pessoa. Havia sempre algo para caracterizar os colonos. Famílias lotavam os carros especiais. Em silêncio, Webb viu-os sair, sendo saudados por Wessel, aproximando-se com passadas largas em seu terno branco berrante. Os lábios do pai estavam cerrados, os olhos com um brilho duro.
- Olhe aquele bando de cata-ninhos. - Um dos vaqueiros da Triplo C resmungou as palavras de desagrado. Não interessava qual deles, já que ele representava o sentimento de todos.
- Lá está Buli. - Lorna Calder foi a primeira a localizar o corpanzil descendo os degraus do trem, apoiando-se pesadamente na bengala. Um carregador negro o seguia com sua maleta.
Perderam-no de vista por trás da maré ondulante de imigrantes amontoados em volta do locador de terras. Wessel subiu em um caixote de madeira para que todos pudessem vê-lo.
- Bem-vindos à futura capital do trigo em Montana. - A voz dele estava carregada como a de um pregador. - Espero que não tenham vindo para cá à procura de terra seca. Só temos lama!
Risadas baixas e sorrisos largos espalharam-se pelo grupo de colonos novos. Os únicos a balançar a cabeça sombriamente foram os homens da Triplo C. Quando Buli Giles surgiu novamente, Webb colocou a voz do locador exaltando as virtudes dessa região em segundo plano.
com a compleição de um macaco e quase tão feio quanto um, Buli Giles vestia um terno preto feito sob medida. O paletó estava desabotoado, revelando um colete de brocado prateado e um alfinete de gravata de diamante. A despeito do físico pesadão, ele parecia um cavalheiro dos pés à cabeça. A impressão tornou-se mais forte quando Lorna Calder adiantou-se para os cumprimentos iniciais. Seus traços suavizaram-se, neutralizando o corpo maciço e o rosto desagradável.
- Você não mudou nada, Lorna. Se mudou, ficou mais bonita.
Tomou-lhe a mão, curvando-se galantemente para beijar os dedos enluvados de branco.
- E você também não mudou nada, Buli - ela declarou. Você ainda é o galante.
- Se seu marido não estivesse aqui, me lançando esse olhar sombrio, tentaria convencê-la de que minha admiração é sincera. - Havia uma leveza na resposta que não combinava com a intensidade do olhar. Em seguida ele já estava se voltando para Benteen, antes que se pudesse deduzir algo mais de seu comportamento com Lorna. - Acho que não preciso perguntar como vão as coisas - fez Buli, sacudindo a mão de Benteen. Circulou o olhar pelos imigrantes em torno do promotor.
- Estão empesteando esta terra como uma praga de gafanhotos. Benteen os colocava na mesma categoria de uma calamidade, o que parecia um exagero injustificado aos olhos de Webb. - Espero que você tenha trazido algo.
- Â represa arrebentou, Benteen - declarou Buli. - Agora seria preciso um ato divino para deter essa inundação de gente.
A revelação não foi diferente do que Benteen esperava; ainda assim, seu desprazer não diminuiu ao ouvir o que já adivinhara. Fez-se uma breve pausa na conversação, enquanto Buli pagava o carregador. Benteen chamou um dos empregados para que colocasse a maleta na carruagem.
- A cidade cresceu mesmo. - Buli olhou para a rua, percebendo os novos prédios que flanqueavam a via pública enlameada. - Aquilo é um depósito de madeiras? - Fez um movimento de cabeça na direção das pilhas de madeira verde amontoadas contra um edifício inacabado.
- O depósito é o mais novo - admitiu Benteen. - Blue Moon tem até um banco. E já ouvi conversas otimistas sobre a construção de um celeiro.
- Nada permanece igual, acho. - Buli estudava pensativo o trecho largo da estrada que se transformara em uma cidade em pleno desenvolvimento no espaço de poucos meses. - As coisas mudam.
- Nada é bom para sempre.
A boca de Buli torceu-se em um sorriso seco.
- Você vai ter de dar duro para convencer os comerciantes disso.
- O problema da ganância é que ela se auto-alimenta. - Benteen parecia afastar o mau humor com esforço, lançando a primeira sugestão de saírem da estação. - Vamos tomar um drinque enquanto Lorna faz as compras.
- Boa ideia - concordou Buli. - É uma longa e seca cavalgada, segundo me lembro.
Para o curto trajeto para subir a rua, Benteen entrou na carruagem com a mulher, Ruth e Buli Giles. O solo enlameado estava ficando mais espesso, secando lentamente sob o sol quente. Era como caminhar sobre cola, enquanto Webb desatava as rédeas do cavalo e preparava-se para montar.
Quando estava colocando o pé no estribo, Nate recuou sua montaria do poste, abrindo caminho para Webb. O condutor da carruagem mais próxima deles era um cowboy negro apelidado Tlim-Tlim devido às esporas em forma de guiso que usava. Fingiu não ver os cavaleiros da Triplo C acompanhando a carruagem.
Mas Nate forçou o cumprimento, detendo o cavalo ao lado do assento da carroça.
- Tlim-Tlim, o que está fazendo neste caixote? Um empregado de primeira como você devia estar em cima de uma sela.
- As fazendas daqui estão despedindo empregados de primeira. Não estão contratando. - A voz soou surda de ressentimento, em razão do trabalho vil que estava realizando, mas ele tinha mulher e filhos para sustentar. - Pelo menos estou sendo pago para transportar estes peregrinos através do oceano de capim.
- Continue a transportá-los - replicou Nate. - E não vai mais haver capim. Sem capim, não vai haver mais gado. Vocês vão acabar deixando a gente sem nada.
Tlim-Tlim abaixou o chapéu sobre a testa para cobrir a culpa em seus olhos, baixando o queixo. Nate esporeou o cavalo atrás da carruagem em movimento. Webb não acrescentou nada às misérias do cowboy. O mercado de gado em decadência tornara os tempos difíceis para todos os fazendeiros. A fim de cortar os gastos, a maior parte estava trabalhando com equipes reduzidas. O Triplo C não contratara seu contingente habitual de cavaleiros para a estação, contando estritamente com seu grupo de trabalhadores permanentes.
O pai dissera que a mudança nem sempre era boa. Tlim-Tlim concordaria com ele. Perscrutando,as carroças dos colonos espalhadas pela rua de Blue Moon, Webb reconheceu que eles gostavam da mudança, assim como os comerciantes. Se a mudança fora boa ou má, parecia depender da perspectiva de cada um.
Uma parelha de alazões postava-se placidamente adiante da carroça parada diante do novo banco. As boletas de pena estavam cobertas de lama, ocultando as patas brancas. Mas a origem belga das duas éguas de tração era inconfundível. Para um cowboy, fazia parte de sua segunda natureza estudar os animais e observar seus donos, atitude quase tão automática quanto respirar.
Enquanto Webb analisava as éguas belgas de tração, compreendeu sem olhar uma segunda vez que a parelha atrelada à carroça era a mesma em que Lillian estava sentada antes. Mas agora o assento do carroção estava vazio. E ele não a viu entre os pedestres caminhando nas tábuas colocadas sobre a lama.
Soltou um longo suspiro, olhando em torno. Sentiu seus nervos atiçando-se e os músculos contraindo-se. Voltava aquela sensação de impaciência, de insatisfação sem saber o motivo. Webb não estava certo de que o sentimento o tivesse abandonado por algum momento. Não entendia esse desassossego, ou sua origem. Seriam os colonos e as modificações que traziam o que o estava afetando? Ou seria algo dentro dele?
O cavalo começou a trotar, reagindo à inquietação do dono. Webb deu um puxão, acertando o passo da montaria, contraindo os maxilares com a ânsia de enfiar as esporas no cavalo e fugir enquanto pudesse.
A cerveja na caneca diante de Webb estava quente e choca. Só dera um gole na bebida. O pai e Buli Giles discutiam política, mas ele não estava ouvindo.
Os outros cavaleiros da Triplo C tinham se reunido ao longo do balcão, assistindo à competição de bilhar em andamento. As vozes e gargalhadas altas e ruidosas acentuavam a diferença entre eles e o silêncio mal-humorado de Webb. Ele se sentia atado e limitado pelo nome Calder, não era um deles. Esticou a mão e pegou a caneca de cerveja, empurrando-a em seguida e pondo-se de pé. Tentou evitar o olhar áspero e inquisitivo que o pai lhe enviou.
- Onde vai, Webb?
- Minha mãe e Ruth provavelmente devem estar precisando de ajuda com os pacotes. - Era simplesmente uma desculpa para sair da mesa e do bar, obedecendo à agitação que lhe incutia uma energia perturbadora.
Buli fitou o jovem Calder cruzando a porta.
- O que há com Webb? Ele está parecendo um touro levando aguilhoadas no pasto.
Benteen olhou para o filho e deu de ombros, vago.
- Talvez ele e Ruth tenham brigado. - Mas não acreditou nem por um minuto no que dissera.
- Ruth não parece nem um pouco com a mãe. - Como se sentindo a relutância de Benteen em discutir o comportamento do filho, Buli virou a conversa para outro rumo.
- É mesmo - admitiu Benteen. - Sem dúvida ela é completamente filha do pai, calma e gentil como o Ely.
- Webb está noivo dela?
- Metade do tempo não sei nem se ele a está cortejando. Se ele está pensando em casamento, está demorando demais a demonstrar - concluiu Benteen, com um suspiro de descontentamento, irritado com a fuga de toda responsabilidade por parte do filho, até mesmo em forma de uma esposa.
Do lado de fora do bar-hospedaria, Webb deteve-se perscrutando a rua. A carruagem estava estacionada em frente do armazém geral, ao lado. Depois dele, havia uma carroça com a parelha de éguas.
Tábuas largas cobertas de passadas de lama haviam sido dispostas sobre o solo, fazendo a ligação entre as calçadas de madeira dos dois estabelecimentos. Webb esperou ao lado do bar, enquanto uma família de colonos com quatro filhos atravessava as tábuas. O menor, um garoto de quatro anos, virou a cabeça, os olhos arregalados fixos em Webb.
- Onde estão os índios, mãe? - indagou, após passar perto do primeiro cowboy verdadeiro.
Webb curvou a boca em um sorriso torcido, pisando nas tábuas enlameadas e atravessando-as. A rua parecia mais cheia do que nunca, mais carroças chegando do que saindo. Não era comum que uma família nessa terra solitária e difícil, fosse de fazendeiros ou agricultores, fizesse uma viagem até a cidade. Quando o faziam, geralmente a excursão durava o dia todo.
O armazém geral expandira-se para acomodar mais negócios, mesmo assim tinha mais do que podia dar conta. Havia um fluxo excessivo na calçada do lado de fora. Webb não viu um par de botas de salto ou um chapéu Stetson entre os homens de calças e macacões diante da loja. Essa cidade só conhecera cowboys, até poucos meses atrás. Aquela era sua cidade. Era estranho sentir-se deslocado.
Ao atravessar a porta, os agricultores afastaram-se para abrir-lhe caminho. Webb sentiu os olhares avaliadores. Cumprimentou um deles, mas o homem hesitou em retribuir o cumprimento de cabeça.
A porta ficou aberta. Webb entrou e posicionou-se em um dos lados, o burburinho de vozes mais alto no espaço restrito. Buscou na multidão de fregueses e localizou o homem chamado Franz Kreuger, que estava plantando a seção de terra adjacente ao limite leste da Triplo C.
Quando estava perscrutando pela segunda vez a loja aumentada, entreviu uma cabeleira loura no setor de secos. Webb abriu caminho com os ombros até aquela seção, onde a mãe e Ruth estavam ocupadas escolhendo peças de tecido. Lançou um olhar para a mulher de vestido de guingão que também se encontrava ali, mas não viu nenhuma com cabelos castanho-avermelhados escuros.
Tocou o ombro da mãe, ao que ela se voltou com leve sobressalto. A expressão do rosto desanuviou-se em um sorriso ao ver quem era.
- Espero que seu pai não esteja para sair - declarou, adivinhando que Webb vinha para apressá-las. - Eu e Ruth ainda não conseguimos fazer nossas compras. Paramos primeiro na igreja, antes de virmos para cá. Chegamos há poucos minutos.
- Não, não foi ele quem me mandou. Achei que poderiam precisar de alguém para carregar seus pacotes - explicou Webb, contente ao constatar que não precisavam, pois a loja superlotada já estava lhe provocando uma certa claustrofobia.
- Ainda não, mas não vá para muito longe - admoestou a mãe. Uma mulher sempre precisa de um par de braços fortes, não é, Ruth?
Ruth dissimulou um sorriso de concordância, mas não olhou para Webb. Ollie Ellis, o proprietário do armazém, veio correndo, ar esbaforido.
- Não queria deixá-la esperando, Sra. Calder - desculpou-se por sua falta de pronta atenção. - Em que posso ajudá-la hoje?
- Eu cheguei primeiro. - Uma mulher com cara de passarinho empurrou Ruth, exigindo a atenção de Ellis. - Elas acabaram de entrar.
- Atenda esta senhora, Sr. Ellis. - A mãe demonstrou fria indiferença diante da grosseria e, polidamente, cedeu à exigência evidentemente justa da mulher. - Eu e Ruth ainda não decidimos que tecido queremos.
- Obrigado, Sra. Calder - murmurou o negociante, imensamente aliviado com a aquiescência tão elegante.
Alguém esbarrou acidentalmente em Webb, oferecendo desculpas grosseiras. O ar no armazém lotado estava sufocante.
- vou esperar vocês lá fora - disse.
A mãe assentiu antes dele afastar-se, tomando o caminho mais curto até a porta de entrada. Webb não parou quando chegou do lado de fora do prédio. A calçada também estava igualmente congestionada com os agricultores fofoqueiros, consequentemente ele voltou a atravessar as tábuas até a calçada do bar e hospedaria. com exceção de um passante, Webb teve o alpendre todo para si. Aquele grupo de colonos evidentemente compunha-se de abstêmios, já que nenhum estivera no bar.
Apoiando um ombro contra a pilastra do alpendre, Webb acendeu um cigarro, seu olhar percorrendo a rua cheia. A análise fê-lo perceber sinais de que antes não se dera conta. No novo depósito de madeiras, onde carpinteiros serravam um tapume para o prédio inacabado, um letreiro com letras pretas estava encostado na parede da frente. Estava escrito Companhia de Madeira Pettit. A tabuleta oscilante sobre o escritório da companhia de terras identificava o negócio como WP Locadores de Terra, confirmando que Doyle se tornara sócio de Wessel. O nome do antigo fazendeiro aparecia novamente em letras pequenas sob a placa da Loja de Ferramentas e Suprimentos Blue Moon, do outro lado da rua.
Não foi preciso muita adivinhação para suspeitar de que Doyle também estava por trás do celeiro projetado. O antigo fazendeiro traçara um círculo astucioso, auxiliando os colonos a encontrar terra, vendendo-lhes as ferramentas de trabalho e a madeira para a casa. com o tempo, Doyle provavelmente compraria a colheita dos homens. Os agricultores talvez jamais ficassem ricos, mas Doyle ficaria, isso era certo como o inferno. Possivelmente aquela era uma boa prática de negócios, mas não estava cheirando bem a Webb.
Um par de passadas leves subiram o alpendre do bar, à sua esquerda. com uma virada parcial de cabeça, ele reconheceu a garota esbelta com o grande chapéu de palha. com um movimento do polegar e indicador, jogou o cigarro na rua enlameada, empertigando-se e afastando-se da pilastra.
Ao movimentar-se para barrar-lhe os passos, ele viu o brilho de reconhecimento nos olhos azuis. Sentiu um arrepio de prazer com o sorriso que brotou tão naturalmente da boca de Lillian. Ela levava uma cesta trançada volumosa, do tipo que os índios na reserva haviam aprendido a fazer.
- Oi. - Ela o saudou primeiro, a voz alcançando-o junto com o frescor suavizante de uma brisa em um dia quente.
- Oi. - Tocou com os dedos a ponta arredondada da aba do chapéu, demorando-se a baixar o braço. Webb estava fascinado com a sinceridade daquele olhar. Ela parecia tão à vontade. A maior parte das jovens que conhecera, excetuando as mulheres de bar, não se sentia segura quando havia homens por perto. Percebendo que estava olhando com muita insistência, ele baixou a mão. - Posso carregar para você? - Desviou a atenção para a cesta.
- Posso aguentar. - Ela aumentou a pressão em torno da alça, defesa quase inconsciente de sua propriedade. - Não está pesada.
- Insisto em ajudar. - Webb estendeu a mão para a cesta trançada, que ela entregou, relutante. - Comprou isso da índia Crow, que fica no depósito?
- Foi. - Era visível sua satisfação com a compra. - Ela não estava com muita pressa em vender, mas essa cesta vai ser tão útil para guardar coisas. E é decorativa também.
Poucos colonos haviam trazido alguma mobília, exceto miudezas de família. Como não possuíam nada, até uma cesta trançada índia pareceria muito, ele supunha.
- Espero que você não tenha pago o que ela pediu - declarou Webb, consciente de que o preço sempre era maior.
Ela soltou uma risada curta e baixa, embora cheia de vitalidade, uma de suas características.
- Não. Sou muito boa em pechinchas. Sempre consigo um preço bom por alguma coisa, melhor do que Stefan.
Parecia a conversa inocente de rivalidade entre irmãos. Webb deixou passar o nome, imaginando que Stefan era seu irmão, consequentemente destituído de interesse para ele.
- Nossa carroça está em frente à loja. - Polidamente ela indicou que, em vez de ficarem no meio do alpendre, deviam ir para o carroção.
Ele mudou de posição, afastando-se para olhá-la.
- É, percebi a carroça antes - admitiu Webb e ficou matutando se ficara ali de propósito à espera dela. - Achei que você tinha se instalado aqui por perto.
- É, temos um lugar trinta quilómetros a oeste da cidade. Oeste da cidade significava proximidade com a divisa da Triplo C.
Lançou-lhe um olhar curioso.
- É perto da terra de Kreuger?
Ela o olhou surpresa, detendo-se por um segundo antes de atravessar , as tábuas do armazém geral.
- Ele é nosso vizinho. Mas como é que você sabe disso? Ele assumiu a terra não faz nem uma semana. Pra falar a verdade, só o conhecemos hoje.
- Foi só uma adivinhação. - Webb deu de ombros.
A testa dela vincou-se com uma leve ruga enquanto o olhava de frente novamente.
- Tinha esquecido que você trabalha na fazenda ao lado da terra do Sr. Kreuger.
- Como é que sabe, Lillian? - Em sua boca formou-se uma linha de surpresa. Usara o nome inconscientemente e não sabia se tinha feito algo errado até que ela lhe ofereceu um olhar desconfiado de soslaio. - Seu nome é Lillian, não é?
- É. - A atitude da garota em relação a ele modificou-se de alguma maneira indefinível. Era como se estivesse tentando afastá-lo, criando distância entre eles.
Mas Webb recusou-se a ser dispensado. Estudou-lhe o perfil preguiçosamente, analisando o bronzeado de sua pele e o leve salpico de sardas nas bochechas. O chapéu de palha gasto cobria a maior parte dos cabelos castanho-avermelhados, presos e ocultos dentro da copa, mas uns poucos fios enrolavam-se ao longo do pescoço.
- Alguns anos atrás eu estava no Texas para trazer um carregamento de bois do norte, de trem, para a engorda nesse capim. Vi aquelas flores crescendo em uma vala. Eram cor de laranja escuro, com pontinhas pretas saindo do centro da flor. Alguém disse que se chamavam tigrídias. É isso que você me faz lembrar, Lilli.
Não era uma tentativa deliberada de cortejá-la, embora Webb não estivesse desacostumado a cumprimentar as mulheres. Geralmente o fazia por um senso de obrigação, fosse a uma garota de bar que lhe proporcionara uma noite de prazer ou à filha do fazendeiro ou do capataz. Não havia muitas garotas respeitáveis em idade de casar, na região. A maioria conhecia desde pequeno, como Ruth. Consequentemente, tudo em Lilli afigurava-se novo para ele. Ela despertava-lhe interesse como poucas haviam conseguido.
Ela tentou parecer insensível com o comentário lisonjeiro, permanecendo em silêncio e ignorando-o. O prazer que ele estava sentindo aumentou quando percebeu que ela o olhava disfarçadamente, pelos cantos dos olhos.
- Alguém a chama de Lilli? - Aquele nome lhe parecia mais apropriado, combinando melhor com a personalidade expansiva do que o Lillian tão formal.
- Não. - Ninguém jamais abreviara-lhe o nome, nem os pais nem Stefan. Ela gostaria de ser uma daquelas tigrídias de que ele falara. Ficava difícil imaginá-las só pela descrição breve dada pelo rapaz. Por um momento, não se incomodou com o avermelhado de seus cabelos castanhos.
Começando a galgar os poucos degraus levando à calçada do armazém geral, sentiu o leve apoio da mão dele em seu cotovelo. O toque provocou uma sensação quente e agradável dentro dela. Virando a cabeça, ela lhe lançou um olhar direto, gostando da força áspera daqueles traços queimados de sol.
Lillian estava vagamente consciente das pessoas circulando em frente à loja, mas sentia-se indiferente a elas. Era como estar na cidade novamente, onde se prestava pouca atenção àqueles que estavam nas calçadas. Assim, não se deu conta dos olhares carrancudos que lhe foram lançados, em razão do cowboy caminhando com ela.
- Como você se chama? - indagou ela.
- Webb. - Não disse mais do que isso.
Ficou pensando se ele estaria lhe contando histórias; em seguida sorriu diante de pensamento tão fantasioso.
- Há quanto tempo trabalha para o Sr. Calder?
Virando de costas para o balcão, Nate Moore apoiou os cotovelos e enganchou o salto da bota no descansa-pé de latão. A cerveja terminara e não queria gastar dinheiro em mais uma, já que não tinha mais sede. A mesa de bilhar oferecia a única animação disponível. Lançou o olhar até a mesa de fundo, onde Benteen Calder estava sentado com o grande homem, Buli Giles. A cadeira de Webb continuava vazia. Ele saíra há uns vinte minutos e ainda não voltara, Nate imaginou que ele fora mandado com alguma missão.
O bar estava ficando calmo demais para seu gosto. Talvez fosse melhor ir procurar Webb, para que animassem um pouco as coisas. Afastou-se do balcão e girou a parte superior do corpo, erguendo a mão em adeus aos companheiros.
- Até mais tarde - disse, sem se sentir obrigado a revelar suas intenções.
As pernas longas e finas estavam um tanto arqueadas, devido aos muitos dias montado em uma sela. com pouco esforço, marchou pelo salão. Detendo-se próximo à cadeira de Benteen Calder, adotou uma expressão verdadeiramente respeitosa com o patrão.
- Para onde foi Webb Calder? - indagou quando Benteen tomou conhecimento de sua presença com um olhar.
- Foi ao armazém dar uma mão a Ruth e à mãe com os pacotes.
Nate assentiu com um movimento de cabeça e tocou o chapéu em saudação casual. A missão de Webb parecia tão monótona quanto esse lugar se tornara, mas Nate decidiu procurá-lo mesmo assim.
No interior do armazém geral, Stefan Reisner pegou um punhado de pregos e separou-os até que só restou um na palma da mão. Testou-lhes a resistência, tomando um deles entre os dedos e fazendo leve pressão, para ver se entortaria com facilidade.
- São mais baratos do outro lado da rua - avisou uma voz à sua direita.
Voltando-se, Stefan reconheceu o novo vizinho, Franz Kreuger. Os olhos escuros e mal-humorados do homem não eram fáceis de encarar durante muito tempo, embora nada parecesse passar-lhes despercebido. Franz Kreuger estava ali há bem pouco tempo; apesar disso, adquirira mais conhecimento sobre as pessoas e locais dali do que Stefan. Stefan tentou justificar sua própria falta de conhecimento recordando que dedicara todas as suas horas aos melhoramentos de sua terra. Mas, interiormente, também sabia que era um seguidor por natureza. Fora ideia do pai de Lillian, Reinald, vir para a América. A maioria de seus sonhos não passava da sombra dos sonhos de outrem.
Por outro lado, Franz Kreuger era um líder, externando suas opiniões naturalmente, como fizera no poço, revelando as ameaças do dono daquela grande fazenda. Fizera-se conhecido de todos os colonos, enquanto Stefan ouvia em silêncio e não arriscara qualquer opinião.
No entanto, Stefan nunca quis ser o centro das atenções. Sendo pacífico e trabalhando, ele não atraía confrontações como as que Franz Kreuger experimentara com o fazendeiro e seus homens. Era um homem passivo que nunca buscava encrenca, portanto raramente a encontrava.
- Você comprou pregos na loja de ferramentas? - Stefan ergueu o prego que estava segurando, satisfeito com a qualidade. - Bons?
Franz Kreuger assentiu afirmativamente.
- Comprei os meus lá. - Olhou para os artigos com desagrado. Os preços nessa vila são altos. Muitas coisas eu teria comprado mais barato na cidade.
- É. - Stefan concordou. - Mas os fornecedores ficam longe daqui. O dono da loja tem que pagar o frete de seus artigos à ferrovia. - Raciocinou quanto à causa dos preços mais altos, embora inicialmente tivesse se assustado, ao perceber quanto mais teria que gastar nesse lugar, para morar e pagar suas contas.
- Está comprando pregos para construir sua casa? - o novo colono investigou.
- Minha casa já está terminada, mas falta a mobília - replicou Stefan. - Também preciso construir um poço para quando o solo secar.
- Quando o solo secar vou voltar para os campos com meu arado.
- A boca de Kreuger apertou-se. - A chuva não veio em boa hora para mim. Minha terra ainda não está pronta para receber o trigo. Já perdi dois dias. Isso não é bom. Não tenho muito tempo para plantar e deixar a colheita crescer para colher no outono.
Stefan podia entender a preocupação do homem, a qual parecia explicar o mau humor raivoso que enevoava-lhe o olhar.
- Lá no poço você disse que temos que nos unir. Meu trigo está crescendo. Quando o solo secar, levo meu arado e cavalos para sua terra. Trabalhamos juntos para plantar seu trigo.
Formou-se um sorriso no rosto do homem, expressão que parecia estranha a seus traços duros.
- E eu, Franz Kreuger, vou cavar seu poço de água. - Estendeu a mão para selar o trato com um vigoroso cumprimento. - Venha. Vamos à loja de ferramentas comprar seus pregos para a mobília.
Stefan não fez objeção à maneira como Franz Kreuger estava tomando conta da situação. Aquilo fê-lo lembrar o tempo passado, quando Reinald estava vivo. Dividiam o trabalho e faziam quase tudo juntos. Desde então não se aproximara assim de outro homem. Talvez seu novo vizinho mudasse isso.
Lado a lado, dirigiram-se para a porta. Stefan dera um passo além do portal quando Franz pousou uma mão em seu ombro. Stefan deteve-se e lançou um olhar inquisitivo para o letão, querendo saber por que haviam parado.
Os olhos dele tinham se estreitado e escurecido, mas a atenção não se dirigia a Stefan. Olhava além dele, focalizando algo ou alguém. Stefan voltou-se para olhar.
- Aquele cowboy - disse Franz em voz baixa, e só havia um indivíduo usando as roupas próprias de vaqueiro. Stefan empertigou-se ao ver que o cowboy estava conversando com Lillian. A mão dele apertava-lhe o ombro de maneira familiar. - Foi ele que o fazendeiro Calder mandou para ameaçar minha família. Vê como está abordando uma de nossas jovens indefesas? Alguém precisa fazer algo para deter esse tirano.
As palavras incitaram Stefan à ação. Era evidente que estando Lillian de costas, Franz não a reconhecera. com passadas longas e rápidas , Stefan caminhou para enfrentar aquele cowboy com jeito de brigão importunando sua Lillian.
- Há quanto tempo trabalha para o Sr. Calder? - ela perguntou.
- A vida inteira, acho. - Webb não pôde forçar o sorriso que deveria ter iluminado a voz impassível. Nem aproveitou-se da segunda oportunidade para explicar que era filho do dono e não um simples vaqueiro. Mais cedo ou mais tarde ela descobriria, portanto ele não compreendia sua relutância em revelar agora.
- Eu... - ela começou um comentário, mas uma voz gutural, grossa de raiva, interrompeu-a.
- Deixa ela em paz!
Antes de terminar a ordem, alguém já agarrava o braço de Lillian, arrancando-a de perto de Webb. Por um segundo, Webb ficou aturdido com a ação repentina. Como reação puramente instintiva, a raiva faiscou em resposta ao ataque, fazendo-o enfrentar o colono encolerizado plantado diante de Lillian.
- Que diabo você está fazendo? - Webb exigiu uma explicação do homem alto e bigodudo.
- Fique longe dela! - O homem já passava da meia-idade, era musculoso mas esquálido.
- Stefan! - Lillian puxou o braço que a mantinha protegida. Parecia confusa e chocada com a hostilidade agressiva contra Webb.
- Você não está entendendo... - tentou protestar, mas ele não estava no estado de espírito para ouvir.
- Você vai para a carroça. - Sem afastar o olhar de Webb, empurrou Lillian para o lado. - Franz - chamou o homem com o bonezinho.
- Leve-a para a carroça.
Webb rapidamente identificou o homem que pegou Lillian pelo braço como o colono hostil, Franz Kreuger. Ele jurava que o pensamento tortuoso daquele homem tinha algo a ver com a animosidade demonstrada pelo pai de Lillian.
- Não sei o que você está pensando que viu - iniciou Webb, rispidamente, a cesta índia ainda no braço. - Mas eu estava carregando essa cesta até a carroça. Sua filha comprou-a e...
- Ela não é minha filha. - O homem encolerizou-se ainda mais. Ela é minha esposa!
A revelação foi como um balde de água fria. Esposa dele! Webb ficou olhando para o homem com idade mais do que suficiente para ser pai de Lillian. Parecia um pecado contra a natureza esse homem passado da juventude desposar uma mulher que mal atingira a sua.
O choque transformou-se em ódio glacial. Aquele homem não tinha o direito de possuir alguém jovem e viçosa como Lilli. Era sujo e sórdido, incestuoso. Por quê? Por que ela casara com ele? Como podia suportar aquelas mãos velhas e calosas tocando-a?
O olhar duro e acusador procurou-a, encontrando-a sendo ajudada a subir na carroça. Os olhos de Webb prenderam-se aos della, a expressão muda em apelo. Webb tremeu sob o esforço de conter a fúria que procurava qualquer desculpa para enfiar o punho na cara daquele velho.
Sentia vontade de amassar a cesta em seus braços, mas em vez disso, empurrou-a para o homem plantado em seu caminho.
- A cesta de sua esposa. - A voz soou sarcástica.
Passou-se um momento de hesitação antes de Stefan aceitar a cesta, mas o olhar belicoso não deixou o velho. Ele parecia esperar que a iniciativa partisse de Webb, quase convidando-o. Para Webb, era difícil não aceitar o desafio e lutar: o vencedor levaria Lilli como prémio.
Atormentado por esse pensamento, Webb rapidamente avaliou seu possível adversário. A despeito da esqualidez do homem, seus braços assemelhavam-se a carvalhos delgados. Tinha alguma força acumulada, mas estava muito velho para resistir por muito tempo. Não seria páreo, e Webb sabia disso.
- Acho melhor sair do meu caminho antes que eu esqueça que você é velho - avisou Webb, a voz baixa e grossa.
Não esperou que o homem se afastasse. Ao contrário, seguiu em frente, abrindo caminho com o ombro. Mas ao lançar o corpo contra o do homem, este retribuiu o empurrão. A força da resposta jogou-o contra a parede. Webb bateu na parede e espalhou a poeira do caibro. Começou a se descolar da parede, os músculos contraídos para investir contra o homem.
Um corpo magro e rijo encostou-o novamente na parede, pressionando-lhe os ombros. Cego por um ódio primitivo, Webb não reconheceu Nate, até que o cowboy falou, a voz baixa e ansiosa.
- Pelo amor de Deus, Webb, ficou maluco? - indagou. - Aquele cara é um velho.
- Saia da minha frente. - Os olhos de Webb faiscavam para o homem de bigode, de pé, com os punhos meio erguidos, a poucos metros dele. Webb tentou afastar Nate.
Embora Webb fosse superior em tamanho e peso, Nate era feito de aço.
- Droga, Webb - resmungou, impaciente. - Gosto tanto de uma briga quanto qualquer um, mas olhe em volta. Se pegar esse velho, essa multidão toda vai pular em cima de você.
Parte do aviso penetrou o cérebro raivoso e enlouquecido, o suficiente para desviar-lhe a atenção para o círculo de colonos se fechando em torno deles. Um ataque de um deles começaria a briga com todos. Só um idiota os ignoraria, e Webb nunca se considerara tolo. Estava ofegante quando relaxou os músculos.
- Tudo bem - resmungou.
Nate não soltou logo. Webb correu um olhar faiscante pelo círculo, em seguida agachou-se para pegar o chapéu do chão. com movimentos bruscos e rígidos, Webb limpou-o enquanto centrava o olhar frio no velho, marido de Lilli.
- Não seremos mais intimidados. E você deixe nossas mulheres em paz daqui pra frente - ordenou o homem.
Webb irritou-se por estar levando uma reprimenda sem motivo.
- Fui criado aprendendo a ter boas maneiras. Por aqui, um homem sempre carrega os embrulhos para uma senhora. Você é recém-chegado. Mas da próxima vez que empurrar, não vai ficar de pé quando a coisa tiver terminado.
Enfiou o chapéu na cabeça e começou a andar. Ouviu o ruído de um par de botas atrás dele, indicando que Nate estava bem próximo. Webb ignorou as tábuas sobre a lama e dirigiu-se diretamente para a rua, indo até o poste onde seu cavalo estava amarrado. Soltou as rédeas e subiu para a sela, virando a montaria em direção ao armazém. Entreviu a mãe e Ruth na entrada do prédio. Ambas pareciam alarmadas e assustadas.
Em seguida, olhou para a carroça onde Lilli estava sentada, fitando-o com rosto inexpressivo. Não havia traço de culpa ou arrependimento. Sentiu a raiva aflorando mais uma vez, e enfiou as esporas no cavalo. Saiu da cidade a galope, Nate pouco atrás dele.
Tons de laranja e escarlate riscavam o céu do oeste, o sol permanecendo mais uns poucos minutos na ponta do horizonte. A luz lançava som bras coloridas nas planícies onduladas e escurecia a grande extensão de solo, cuja grama fora arrancada. Uma trilha sulcada dividia o solo nu do campo, onde o trigo novo balouçava seus jovens talos ao sabor da brisa do entardecer.
A parelha de éguas belgas, Dolly e Babe, acertou o passo quando o lar ficou visível. Não havia nenhum estábulo confortável para recebê-las, somente um pequeno curral e um galpão de madeira verde. A casa quadrada também fora feita de madeira verde, com seis metros por seis de extensão. As paredes externas haviam sido forradas com papel alcatroado. Havia uma janela dianteira ao lado da porta e uma chaminé dava energia do teto simples e inclinado, sem beiral ou saliências. Um par de arames para esteio atravessava o teto e ancorava-se de cada lado no chão, a fim de que os fortes ventos de Montana não pusessem abaixo a frágil casa.
Mas para o homem e a mulher na carroça puxada pela parelha de tração, aquilo era um lar, um lar que haviam construído em terra que pôssuíam, ou possuiriam, quando o tempo da distribuição tivesse passado e as outras exigências tivessem sido satisfeitas, e eles receberiam a escritura do governo para sua terra. No entanto, o casal não parecia ansioso para chegar ao fim da trilha sulcada onde a carroça se encontrava. O silêncio entre eles afigurava-se pesado com a desaprovação emanada de ambos os lados. Não haviam feito o menor comentário a respeito do incidente que causara aquela distância entre eles.
Quando a carroça aproximou-se da casa forrada com papel alcatroado, Stefan Reisner recostou-se no assento, puxando as rédeas para deter a parelha. Assim que o movimento cessou, Lillian desceu do carroção sem auxí«lio, caminhando para a parte de trás, descarregando as compras do dia. Stefan demorou a descer lançando um olhar de soslaio em direção à casa.
A casa estava abafada depois de permanecer o dia inteiro fechada, assim deixou a porta aberta e colocou os pacotes em cima da cama. Tinham forrado a janela com mica. Quando colhessem sua primeira safra, esperavam substituir a mica por vidro de verdade. Lilli enrolou a cortina semitransparente para deixar o ar ventilar, aproveitando o que restara da luz em declínio para economizar seu precioso suprimento de querosene para lampião.
As paredes de dentro estavam cobertas com jornal, que servia como isolante, colado com uma pasta feita com farinha e água. Duas prateleiras toscas pregadas à parede serviam para guardar utensílios de cozinha e mesa, bem como escassas provisões. O fogão era a única fonte de aquecimento, a tampa servindo como mesa. Não havia mesa nem cadeiras. O único outro móvel da casa era a cama, construída por Stefan. O colchão fora estofado com capim, colocado diretamente sobre as tábuas de madeira que cruzavam a estrutura tosca.
As poucas roupas que possuíam ainda estavam guardadas nas malas, e havia pregos na parede para pendurar chapéus e casacos. Também havia um baú, onde foi colocada a bacia d'água e o balde. O chão de madeira não tinha forração.
Todos os requintes e mobílias viriam mais tarde. Por enquanto, tentavam ir levando com o que tinham e atravessar o primeiro inverno. No próximo ano construiriam uma verdadeira casa de madeira. Lilli considerava-se uma mulher de sorte por ter essa pequena cabana. Muitos dos colonos, soubera, estavam morando em casas de sapé. Uma família chegara ao ponto de estar habitando uma caverna que tinham escavado em uma ribanceira.
Quando Stefan terminou de tratar dos animais e descarregar o resto da carroça, Lilli já preparara um prato frio para o jantar, e colocara-o numa travessa enquanto esperava o marido. Como ainda não possuíam mesa e cadeiras, tinham de sentar na beira da cama, equilibrando o prato sobre os joelhos.
Stefan tinha um antigo hábito de comer em silêncio. Para ele, o objetivo de uma refeição era consumir o alimento, e não conversar. A conversa ficava para antes ou depois. com essa atitude simplória, ele limpava seu prato antes que Lilli chegasse à metade do seu, embora as porções no prato dela fossem menores do que as dele.
Quando Stefan pôs-se de pé para levar o prato sujo até a bacia de metal, a mosca zumbindo que o atormentara durante a refeição voltou-se para atacar o prato de Lilli. Distraída, ela abanou o prato com a mão, para manter o inseto longe dos poucos pedaços de comida que deixara. Deixando prato e talheres na bacia, Stefan parou para acender o lampião suspenso por um arame do meio do teto, dissolvendo as sombras púrpuras do entardecer que invadiam a morada humilde.
Passou os olhos por Lilli, pegando o cachimbo no bolso, mas ela estava voltada para o prato pousado no colo. Após a refeição, ele sempre ia lá fora fumar seu cachimbo. Fazia parte da rotina diária de sua vida, conseqúentemente não era preciso avisar Lilli.
- Vou fumar lá fora - ele disse.
Ela respondeu com um leve aceno de cabeça. Ele afundou os dentes no tubo do cachimbo vazio, saindo empertigado da casa. Deteve-se ao lado da carroça e encheu o cachimbo lentamente com tabaco, socando bem o fumo. Antes de acendê-lo, analisou a chama do fósforo para ter certeza de que a brisa noturna levaria a fumaça para longe da choupana. Lillian não gostava do cheiro da fumaça. Stefan sabia o motivo que a levava a não gostar, embora ela tivesse bloqueado a causa em sua mente.
Não admira que ela não lembrasse, pois só tinha sete anos quando o prédio ao lado do deles pegara fogo e queimara até o chão, aprisionando muita gente em seu interior. Fora uma experiência terrível para uma criança. E muito depois de o entulho do prédio queimado ter sido retirado, o cheiro da fumaça permanecera no minúsculo apartamento onde viviam como uma família.
As primeiras estrelas no céu noturno, juntando-se à lua em forma de foice, zelavam pela terra. Para Stefan, as estrelas eram como velhas amigas, que não via desde que era jovem, na Alemanha. Na maior parte das noites, gostava de ficar observando-as, o brilho aumentando lentamente enquanto fumava seu cachimbo. Essa noite estava demasiado preocupado com sua jovem esposa para se dar conta dos astros.
Nunca houvera uma discussão séria entre eles. Não conseguia lembrar de ter sentido raiva dela, nem de alguma vez em que ela parecesse zangada com ele. Sempre houvera um fluxo de gentileza e carinho entre ambos, desde o dia em que ela nascera e Reinald colocara a filha nos braços do melhor amigo. Os pequenos dedos tentaram envolver-lhe o polegar enorme. Forjara-se o primeiro elo, a partir daquele momento.
Através dos anos, Lillian viera a representar tudo que uma mulher pode significar para um homem. Primeiro ela fora como uma sobrinha. Quando as mortes consecutivas da mãe e do pai a deixaram órfã, Stefan assumiu o papel de família e criou-a como sua própria filha. Mas as mentalidades maledicentes do prédio olhavam de esguelha para um solteirão vivendo com uma garota de quatorze anos. Os rumores acentuaram o conflito de emoções que o tomara, vendo-a amadurecer até tornar-se mulher. Tanto para acalmar esses desejos como para manter a reputação da menina imaculada, Stefan sugeriu o casamento no aniversário de quinze anos. Lillian concordara calmamente e sem qualquer hesitação. A transição de sobrinha e filha para esposa e companheira operara-se com facilidade, consequentemente nenhum dos dois se sentiu embaraçado com a mudança.
No entanto, algo se alterara hoje. Pitando seu cachimbo, Stefan foi tomado por temor indefinível. Lillian conhecia os perigos da cidade, mas parecera ter abandonado todo o senso de precaução desde que viera para cá. Ouvira Franz Kreuger contar como aquele fazendeiro mandara um de seus homens para ameaçar a família Kreuger, assim ela devia ter evitado qualquer aproximação com aquele cowboy ou quem quer que tivesse qualquer ligação direta com a comunidade dos fazendeiros, a não ser que eles tivessem estabelecido laços de camaradagem com os colonos, do mesmo modo que o sócio de Wessel fizera.
Talvez fosse preciso explicar isso a ela. O cachimbo apagara. Bateu com o fornilho na palma da mão, jogando as cinzas no chão. O cachimbo mais uma vez enfiado no bolso, Stefan entrou na casa.
Os pratos estavam lavados e secos, empilhados em seu local na prateleira. Lillian estava tirando o avental quando ele entrou. Ela se voltou e desviou o olhar do dele, dobrando o avental e colocando-o sobre o baú, ao lado da bacia. Stefan hesitou, em seguida foi até a cama e sentou-se.
- Venha sentar, liebchen - pediu, suavizando a firmeza do tom empregado usando a denominação carinhosa. - Vamos conversar.
Os ombros naturalmente empertigados e o queixo levemente erguido, Lillian aproximou-se e sentou-se ao lado dele na beirada da cama, olhando-o. Os olhos de um azul profundo ofereciam uma superfície calma e não o que estava em ebulição por trás deles.
- Você está zangada comigo por causa do que aconteceu hoje. Stefan iniciou o assunto bruscamente. - Mas tem muita coisa que você não compreende.
- É, estou zangada - admitiu ela. - Porque você não me ouviu. O que ele disse era verdade. Delicadamente, ele insistiu em carregar a cesta até a carroça para mim. Foi uma atitude de cavalheiro e só.
Ele ouviu pacientemente a defesa do homem e tentou não dar vazão à raiva que o espicaçava por dentro. Quando ela terminou, ele a desafiou calmamente:
- O que sabe daquele cowboy?
- Não sei muito sobre ele - reconheceu de má vontade, mas defendeu a idoneidade do rapaz -, exceto que me tratou com respeito. Não resta dúvida de que nada fez para merecer o modo como você o atacou. Não fez quaisquer avanços indecorosos.
Stefan empertigou-se na cama diante da crítica da mulher.
- Eu só queria proteger você de algum mal.
- Por que cargas d'água ele ia querer me fazer mal? - contrapôs Lillian. - Lembra-se quando chegamos no trem e falei com um cowboy esperando na estação? Era o mesmo cowboy.
- E também era o mesmo cowboy que tentou ameaçar Franz Kreuger e a família dele - declarou Stefan.
- O mesmo? - A expressão dela fechou-se em uma carranca de preocupação. - Tem certeza?
- Franz apontou ele para mim. Tenho certeza, sim - afirmou Stefan, indo além. - E é também o filho daquele fazendeiro Calder.
- Como é que sabe disso? - a carranca acentuou-se. - O Sr. Kreuger lhe disse?
- Não. Foi o comerciante. Ele ficou muito preocupado com o fato de o incidente acontecer em frente à loja dele. Ouvi-o pedindo desculpas a uma senhora chamada Calder. Queria que ela soubesse que ele não era responsável pelo que acontecera com o filho.
- Entendo. - A evidência parecia irrefutável, embora Lillian não compreendesse sua relutância em aceitar ser ele filho de um poderoso fazendeiro.
- Agora você entende por que eu não queria ele perto de você? Estava certo de que ela entenderia que ele agira corretamente.
Lilian não respondeu de pronto, tentando ordenar todos os pensamentos conflitantes atravessando-lhe a mente.
- Tenho certeza de que você acha o que fez justificável - observou.
- Mas ele não fez nem disse nada de errado para mim. Estava sendo gentil e cortês.
- O que ele lhe disse? - Induziu-a a falar, pacientemente. As mulheres tendiam à credulidade. Talvez Lillian estivesse adquirindo aquela característica feminina.
- Definitivamente nada de ameaçador - ela insistiu. - Lembrou-se de ter falado comigo na estação e perguntou se tínhamos encontrado um lugar por perto.
- E você disse? - incitou-a.
- Disse. - Ela não considerava a informação como segredo. Em seguida lembrou algo mais e um brilho de incerteza assomou-lhe ao rosto.
- Ele perguntou se nossa terra era perto da do Sr. Kreuger - acrescenteou hesitante.
- Evidentemente estava procurando informação através de você. Agora estava inteiramente convencido de que agira acertadamente ao pensar que o cowboy não era boa coisa.
A ideia inquietou-a. Apesar de só tê-lo encontrado duas vezes, gostara daquele vaqueiro de cabelos escuros chamado Webb. Webb Calder. Agora sabia o resto do nome.
- Está tarde. - Pousou uma mão conciliadora sobre o ombro da esposa. - O sol já está dormindo. E é o que devíamos estar fazendo também.
Lillian soltou um suspiro de insatisfação, pondo-se de pé para buscar a roupa de dormir na mala. Perguntas sem respostas permaneciam em seu pensamento, e Webb Calder era a única pessoa que poderia fornecê-las.
Stefan fechou a porta, passando o ferrolho por dentro e baixando a cortina para cerrar a janela aberta. Lillian lhe deu o pijama e começou a desabotoar o vestido, enquanto ele apagava o lampião. Na penumbra íntima, ela tirou as roupas e deslizou para dentro da comprida camisola.
Quando terminou de escovar os cabelos e prendê-los em uma trança, Stefan já estava na cama, sob o cobertor acolchoado. Deitou ao lado dele na cama estreita, a extensão ossuda do corpo masculino ao lado do seu oferecendo um calor companheiro.
- Você vai acabar de cavar o poço amanhã? - Lillian tentou afastar o pensamento do cowboy, desviando-o para temas mais essenciais.
- Não. Amanhã vou à fazenda de Franz Kreuger ajudá-lo a arar o campo para plantar o trigo - informou Stefan. - Estarei de volta antes do anoitecer.
- E o poço? E a mesa que você ia fazer? - Ela virou a cabeça, tentando enxergar o perfil bigodudo na escuridão.
- Franz vai me ajudar a cavar o poço. Depois faço sua mesa e as cadeiras. - declarou. - Temos que nos ajudar uns aos outros. É bom ter vizinhos.
- É. - Ela virou para o lado, de costas para Stefan, pensando sem querer em outro vizinho. - Boa noite, Stefan.
- Boa noite. - A voz dele já soava sonolenta. Lillian não conseguiu dormir assim tão facilmente.
Antes do amanhecer, Webb já tirara o cavalo do curral e estava colocando a sela. Havia luz na cozinha, o que significava que logo o café da manhã estaria pronto, mas Webb não pretendia esperar.
O ódio não o deixara nos quase dois dias desde a alteração com o colono idoso. A lembrança da briga continuava a atormentá-lo como uma ferida irritante. E o último dia e meio passado na sede com o pai e Buli Gi lês só servira para aprofundar a ferida. Ia sair a cavalo antes que o pai pudesse mandá-lo passar outro dia confinado em discussões fúteis.
Apertada a cilha, soltou o estribo e subiu para a sela. O capão saltitante agitou-se um pouco e depois acalmou-se em um trote vigoroso que levou Webb para longe dos prédios da fazenda. Só queria afastar-se; quanto mais longe, melhor. Longe dos ruídos do rancho, deixou o cavalo tomar sua própria passada.
O meio da manhã encontrou-o a quilómetros da sede da Triplo C, com a cerca do limite leste diante dele. O capão seguiu ao longo da barreira, aguardando o comando de seu cavaleiro quanto à direção a tomar. Webb puxou as rédeas, fazendo a montaria estacar, e desenrolou a corda amarrada em torno da maçaneta da sela. Fez um laço no poste e outro na sela, afastando o cavalo da cerca.
Um toque com as esporas e a montaria jogou o corpo para o lado contrário do peso da cerca parcialmente ancorado. O poste de madeira rangeu; em seguida, a base de terra cedeu. Desmontando, Webb soltou o laço em volta do poste e passou com o cavalo pela cerca caída, em seguida acertou o poste, pisando a terra solta em torno da base até ficar bem batida.
Novamente na sela, dirigiu o cavalo na direção sudeste. Agora sabia onde estava indo, a destinação que estivera oculta em sua mente o tempo todo. Deu rédeas ao cavalo, fazendo-o galopar e observando a paisagem ao longo de uma extensa faixa de terra árida.
Gotas de suor brotavam-lhe da testa. Lillian interrompeu a tarefa de cultivar o jardim para enxugar as têmporas com a ponta do avental. Um movimento à distância chamou-lhe a atenção. Pensando que fosse Stefan voltando da casa de Franz Kreuger, parou para dar uma olhada mais atenta. Ele disse que duvidava muito que estivesse de volta até a tarde, mas era possível que tivesse terminado de arar antes do previsto.
Mas havia somente um cavalo, não uma parelha. E o cavaleiro estava montando o animal e não guiando-o, portanto não podia ser Stefan. Além do mais, o cavaleiro estava atravessando o campo de trigo diagonalmente.
Stefan jamais se arriscaria a estragar os jovens talos. Lilli apertou a enxada entre as mãos, tentando identificar o cavaleiro.
A construção semelhante a uma choupana combinava com a paisagem árida, revolvida e riscada, a grama protetora arrancada. Diante dela havia uma carroça, mas Webb percebeu que o curral estava vazio, sem a parelha de cavalos. Vasculhou a terra com o olhar, buscando sinais de cavalo e arado. Estava prestes a concluir que não havia ninguém quando viu uma pessoa do lado sul da choupana. À distância, a cor escura do vestido dela combinava com a paisagem. Sem chapéu, os cabelos escuros brilhavam à luz do sol. Sentiu um aperto por dentro.
Ela observou a aproximação dele, mas não se adiantou para saudá-lo, mesmo depois dele sofrear a montaria. O olhar dela era de desconfiança, um ar de dúvida que Webb não percebera antes. Contudo, ela não falou. Era costume do local convidar um homem a desmontar, mas ela não fez isso.
- Você podia arranjar um pouco d'água para o cavalo? - Webb quebrou o silêncio com a pergunta sucinta.
- Tem um pouco no barril. - Ela se movimentou até a carroça. Ele assentiu, breve, agradecendo, e desmontou para levar o cavalo até a carroça. Pelo canto do olho, percebeu que ela o seguiu, como se pensando que poderia roubar algo. Apertava a enxada como uma arma.
Como ela não lhe ofereceu um balde, Webb tirou o chapéu e encheu duas conchas d'água, jogando-as na copa do chapéu virado.Ao voltar-se para oferecer água ao cavalo, ficou de frente para ela. O olhar corria dela para a montaria afundando o nariz no chapéu para sugar o líquido.
- Trouxe sua cesta para casa em segurança? - Atiçou-a com a lembrança do incidente, sentindo que alguém lhe devia desculpas.
- Trouxe. - Ela o olhava como se esperasse que crescessem chifres nele a qualquer momento, pronta para arrancá-los com a enxada. Ela virou a cabeça levemente para o lado. - Você é filho do Sr. Calder, não é?
- Sou. - O cavalo bebera a água, e Webb aproveitou o momento para esvaziar o que restara no chapéu. - Acho que não peguei seu último nome, Sra... - colocou ênfase sarcástica na condição conjugal, movendo-se calmamente para o lado esquerdo do cavalo como se fosse montar, mas o movimento o colocou a meio metro dela.
- Reisner. Sra. Stefan Reisner - ela disse, sem qualquer traço de culpa ou arrependimento.
- Seu marido está? - Mais uma vez, correu os olhos pela propriedade.
- Por que quer saber?
- Por nada. - Webb voltou a atenção a ela. Em seguida, baixou os olhos para a mão esquerda. - Você não está usando aliança de casada - acusou.
- Não, não estou. - Baixou o olhar ante a análise de Webb. - Eu e Stefan decidimos usar o dinheiro para vir aqui, ao invés de comprar uma aliança.
- Todo mundo sabe que seu pai está tentando impedir que venha mais gente para cá.
- É, está mesmo, porque ele não quer ver a terra destruída por gente que pensa que vai plantar trigo. - Webb defendeu a posição do pai.
- Mas pode-se plantar trigo. Você passou a cavalo por ele - lembrou ela, com um tom de voz radiante. - Seu pai está errado.
Ficava difícil discutir diante da evidência. Ele soltou um longo suspiro.
- Não vim aqui para discutir com você, Lilli.
Ela o fitou, encontrando o olhar de Webb tão diretamente quanto das outras vezes.
- Por que veio?
- Porque... - ele trincou os dentes, o músculo mandibular saltando. Deu um passo em direção a ela, as rédeas deslizando das mãos dele e caindo no chão. - Por que casou com ele, Lilli?
Os olhos dela arredondaram-se, assustados com a pergunta brusca.
- Stefan... é um homem bom... e bom marido. - Debatia-se com a resposta. - É carinhoso e bom e...
- E tem idade para ser seu pai, se não avô. - Fechou as mãos nos ombros dela, terminando a frase incompleta.
Ela soltou a mão direita que segurava a enxada, erguendo o braço em protesto mudo ante o toque de Webb.
- Ele é mais velho que eu - admitiu.
- Velho o suficiente para ser seu pai - persistiu Webb, determinado a obter a admissão dela.
- É - disse em desafio. - Mais do que isso, ele foi o melhor amigo de meu pai. Eles vieram juntos para esse país. Eu tinha quatorze anos quando meus pais morreram. Se não fosse Stefan, não sei o que teria sido de mim.
- Por isso casou com ele? - Perscrutava o rosto de Lilli, tentando desesperadamente compreender... querendo desesperadamente compreender. - Porque estava sozinha?
- Porque estava sozinha. Porque me importava com ele. Porque ele era bom para mim. Porque não havia outra coisa que eu pudesse fazer. Ninguém mais ligava para mim. - Ela lançou as razões que sempre haviam sido tão sólidas.
- Você não precisava casar com ele. - Apertou os dedos em torno dos ombros dela. Sentia as coisas muito confusas em seu íntimo. Mas de uma coisa tinha certeza: ela não pertencia ao homem com quem casara. Você podia ter arranjado um emprego.
- Fazer o quê? O único emprego que uma garota pode ter é em uma fábrica ou... - Cerrou os lábios diante da outra alternativa, que não precisava ser dita. - Não me arrependo de ter casado com Stefan. Teria feito o mesmo se fosse cem anos mais velho, porque me interesso por ele. Sou esposa dele, e sinto orgulho disso.
Webb sentiu um zumbido no ar com a declaração dela. Ficou com a sensação de que perdera uma batalha, onde não sabia que tinha lutado. As mãos caíram, soltando os ombros dela.
- Acho que não há mais nada a dizer, não é? - Ele esperou, mas
ela não respondeu.
Virando-se, ele pegou a rédea solta e colocou a bota sobre o estribo. A sela rangeu ao receber o peso do rapaz. Um cutucão com a espora fez com que o cavalo girasse em semicírculo, ficando Webb de frente para ela. A raiva ansiosa e ferida dera lugar a um profundo sentimento de perda.
Ele tocou o chapéu com a mão.
- Obrigado pela água, Sra. Reisner - murmurou formalmente, incitando o cavalo com um estalo da língua.
AO arrancar a pesada sela de cima da montaria, Nate viu Webb aproximando-se a cavalo. Mesmo tendo sido criados juntos como eles haviam sido, Webb sempre lhe parecera um solitário. Nesse último mês, ele estivera tão sumido quanto cabelos na bunda de um mosquito. Ao que constava a Nate, não era preciso ser nenhum génio para saber que Webb não era o mesmo desde que tivera aquela alteração por causa da esposa do agricultor. Ele ainda não se recuperara.
Cumprimentaram-se com um movimento de cabeça, enquanto Nate levava a sela para a viga mais alta do curral. Voltando ao cavalo, Nate usou o cobertor da sela para limpar a montaria, observando Webb desmontar e pendurar o estribo na maçaneta da sela para soltar a cilha. Webb estava de costas para ele, nada o incentivando a conversação. Mas Nate não se deixou abater com isso.
- Aqueles cata-ninhos vão fazer uma grande comemoração na cidade no Quatro de Julho. Tá pensando em ir? - indagou Nate.
Houve uma pequena quebra momentânea no ritmo dos movimentos de Webb com a pergunta; por fim, ergueu a sela do lombo do cavalo, a expressão fechada a qualquer investigação dos olhos de Nate.
- Não. - Foi uma resposta clara e definitiva.
- Acho que você vai ser o único que não vai. O resto dos rapazes está pensando em ir - Nate informou-o, mas Webb não pareceu hesitar.
- Ei, Webb! - Shorty Niles saudou-o, desviando-se do caminho que tomara em direção ao alojamento. - O Velho deixou recado para você ir jantar na Casa-Grande hoje à noite. - Colocou ênfase zombeteira na ordem para jantar.
Webb assentiu o recebimento da mensagem com um curto movimento de cabeça, mas não denotou satisfação com a novidade. Assim como Nate, levou a sela para a viga mais alta do curral, usando o cobertor para limpar a umidade no lombo do animal. O Shorty inclinou-se sobre a cerca para espiar.
- Ike pegou um cartaz na cidade hoje. Vai haver um grande acontecimento depois de amanhã, para comemorar a Independência. - Os olhos de Shorty brilhavam com a notícia.
- Ouvi dizer - comentou Webb, com definitiva falta de interesse.
- Vai haver corridas e fogos de artifício, até dança vai ter. - Ofereceu uma curta lista das atividades. - A única coisa que esses colonos fizeram por essa terra foi trazer as filhas. Não tenho mais simpatia por esses cata-ninhos do que por qualquer um, mas não pretendo ter nada contra as filhas deles. vou rodopiar com as garotinhas até arrancar elas do chão.
Dirigindo-se para a cabeça do cavalo, Webb desafivelou a correia e tirou o freio. Sacudindo o cobertor, dispensou o cavalo de perto da cerca, fazendo-o galopar ao encontro de seus companheiros equinos reunidos do outro lado do curral.
Nate ficou de olho em Webb enquanto respondia à última observação de Shorty.
- Você vai ter que entrar na fila para pegar uma daquelas garotas dos agricultores. Acho que todo cowboy das redondezas teve a mesma ideia.
Eles poderiam estar falando chinês, pois Webb não prestou a menor atenção à conversa. Pegou a sela e jogou-a sobre os ombros, lançando um olhar rápido para os dois.
- Tchau - disse, dirigindo-se para o celeiro, a fim de guardar os arreios.
Ultimamente, Webb estava tendo dificuldade em sentir emoção pelo que quer que fosse. Até mesmo as convocações para jantar com o pai produziam uma sombra pálida do antigo ressentimento. Por um breve segundo, quase saíra de sua indiferença, quando Nate revelara as notícias sobre a comemoração do Quatro de Julho em Blue Moon, mas também afastara essa emoção.
Adivinhou que o jantar daquela noite seria uma despedida para Buli Giles. O mês que ele planejara ficar já devia estar no fim, portanto devia estar indo embora um dia desses. Ao que Webb sabia, Buli não conseguira nada com aquela visita.
Depois de tomar banho, barbear-se e mudar de roupa, Webb saiu do alojamento e dirigiu-se para a grande casa de dois andares com a frente de colunas, sobre a elevação que dava para a sede. A casa parecia representar a imensidão que o nome Calder implicava.
O burburinho vinha do escritório quando Webb entrou na casa. Tirando o chapéu, desviou-se para a esquerda em direção ao som, correndo os dedos pelos cabelos escuros e ajeitando-os. Ao atravessar a porta aberta, viu a mãe sentada no sofá de couro diante da enorme lareira de pedra. O pai postava-se diante do armário de bebidas, tampando a garrafa de uísque.
- Chegou bem na hora para um drinque, Webb. O que vai querer? - indagou carinhosamente o pai.
- Uísque está bom - ele replicou, vagando pela sala. Correu o olhar preguiçoso sobre a mesa imponente e o mapa emoldurado na parede, atrás. O mapa desenhado à mão delineava os extensos limites da fazenda, e a mesa representava o coração de onde emanava o controle dos extremos mais distantes. Webb desviou a atenção para a mãe, sorrindo levemente. - Vestido novo?
- Estou surpresa que você tenha percebido. Quase não o vejo ultimamente. - A crítica foi adoçada pelo sorriso aconchegante. - Por que é que sempre precisamos convidar nosso filho a vir jantar conosco?
Ele deu de ombros.
- Acho que você não devia ter me criado tão independente. - Não era uma resposta, mas simplesmente um desvio do tema que dificultava o relacionamento com os pais.
Circulando por entre a mobília, Webb deteve-se diante da lareira. Um par de chifres majestosos de longhorn encimava o consolo da lareira. Eles haviam pertencido ao Capitão, o velho touro malhado que levara a primeira manada de gado da Triplo C até Montana, além de mais doze viagens em anos subsequentes. Houvera tantos cruzamentos na fazenda que os longhorns acabaram desaparecendo. Capitão foi o último de sua espécie.
- Vi um boi de um ano outro dia com um longo par de chifres - observou Webb, passando pelo pai, que estava oferecendo um copo de vinho do porto a Lorna antes de trazer o uísque de Webb.
- Um retrocesso surge de vez em quando - replicou o pai, voltando ao armário de bebidas para pegar a sua.
- Estou matutando o que está fazendo Buli demorar. - A mãe lançou um olhar de curiosidade em direção à porta aberta.
- Ele vai descer logo. - Benteen Calder não estava preocupado. com aquela perna ruim, ele demora mais para se locomover.
- Imagino. - Ela bebericou o drinque, voltando em seguida o olhar brilhante para Webb. - Por falar em convites, você convidou Ruth para ir às festividades do Quatro de Julho que estão planejando na cidade?
Ele estudou o próprio drinque antes de tomar um gole.
- Não.
- Você vai convidar? - insistiu a mãe.
- Não tinha pensado nisso - replicou Webb.
- Ela está esperando você convidá-la.
- Eu não dei razão a ela para esperar - ele contrapôs. - Para falar a verdade, não pretendo ir. Alguém deve ficar e tomar conta. O resto dos rapazes está tão ansioso para ir que pensei em me oferecer como voluntário para ficar na fazenda. - Webb não sabia ao certo por que estava se estendendo tanto para justificar sua decisão.
- Vindo de você, a decisão é uma surpresa - observou o pai secamente. Era uma alfinetada sutil diante da expressão de preocupação com a fazenda por parte de Webb.
- Esqueça um pouco a fazenda - a mãe, impaciente, interrompeu-os, continuando o assunto -, estou interessada em Ruth. - A situação já fora deixada à deriva há muito tempo. Webb tinha trinta anos. Já era hora de começar a pensar em casamento e família, tomando uma decisão sobre o papel de Ruth no futuro dele.
- E ela? - Webb ergueu a cabeça, enfrentando o olhar desafiador da mãe com um de igual frieza.
- Como a mãe não está aqui para tomar conta dela, sinto ser meu dever fazer isso. - Lorna estabelecera que sua preocupação consistia em proteger a filha de sua melhor amiga, ao invés do próprio filho. - Você tem encontrado com Ruth regularmente há mais anos do que me dei ao trabalho de contar. Afinal, o que significa isso?
- Significa que gosto dela, mas não é a única mulher com quem tenho me encontrado. - Ele estava irritado com as perguntas.
- Existe outra mulher? - indagou a mãe asperamente, traindo surpresa diante da possibilidade.
- Não. - Ele lançou a negativa, em seguida percebeu que fazia-se necessária uma explicação. - Quer dizer, não existe uma mulher especial com quem eu esteja saindo.
- Você está dizendo que não considera Ruth especial? - O olhar materno estava longe do contentamento.
- Não, não considero, e nunca disse nada que permitisse a ela pensar isso. - Os traços duros uniram-se em uma carranca, enquanto Webb balançava o conteúdo do copo de uísque.
- Talvez você não tenha dito nada, mas suas atitudes com certeza indicaram outra coisa - insistiu a mãe. - Quando um homem fica saindo com uma mulher durante um longo espaço de tempo, é natural que ela acredite que o relacionamento evoluirá para algo mais permanente. Não é justo esperar que Ruth aguarde sua decisão quando poderia estar saindo com outros homens.
- Nunca pedi a ela que não saísse com outros - declarou Webb.
- Então você ficou esse tempo todo se divertindo com ela? - indagou a mãe.
- Conheço Ruth desde pequeno. Agora que crescemos, devo ignorá-la? - desafiou ele em resposta. - Acho que era o que eu devia ter feito, já que agora está me acusando de brincar com os sentimentos dela. Posso tê-la beijado algumas vezes, mas nunca saía da linha. E nunca fiz promessas.
- Então você não tenciona casar com ela - concluiu a mãe.
A raiva desapareceu, a dor voltando mais uma vez a esvaziá-lo de quaisquer sentimentos.
- Ela é uma boa garota, e daria uma boa esposa. Mas não vai casar comigo.
Lorna suspirou arrependida. A tristeza que inundava seu coração não se derivava somente de uma sensação de perda do sonho há muito acalentado de que algum dia o filho e a filha de sua melhor amiga se casassem. A tristeza provinha mais da percepção de que Ruth estava perdidamente apaixonada por Webb e fora tudo em vão.
- Compartilho da vontade de sua mãe em vê-lo casado e estabelecido - o pai se manifestou, as mechas brancas nos cabelos pretos aparecendo com mais força sob a luz. - Está na hora de parar de evitar a responsabilidade e tomar algumas decisões difíceis sobre o que você vai fazer o resto da vida.
Algo incitou Webb a externar o pensamento que estivera acalentando nas últimas semanas.
- Pensei em ir para o Texas, depois do rodeio de outono, e ficar por lá. As sobrancelhas escuras de Benteen Calder uniram-se em uma carranca ao fitar o filho.
- Ficar por lá para quê? Não há nada no Texas que possa se comparar ao que você tem aqui.
- Talvez eu simplesmente queira ver com meus próprios olhos.
Webb deu de ombros, preparando-se mentalmente para a discussão prestes a irromper.
- Benteen... - Lorna tentou assumir o papel de conciliadora. - Talvez não seja má ideia. Estou querendo visitar meus pais há muito tempo. Do jeito que as coisas estão, sei que vai ser difícil para você sair por qualquer período de tempo que seja. - A verdade era que Benteen não sentia vontade de regressar ao Texas, tendo cortado todos os laços quando foram embora de lá. No passado, falara em voltar só porque sabia ser esse o desejo de Lorna. - Se eu for com Webb, você não precisaria se preocupar com o fato de eu viajar sozinha. - Também era uma forma de garantir a volta de Webb.
- vou pensar sobre isso - concordou Benteen, evidentemente sob protesto.
Passos desiguais aproximaram-se do escritório, seguidos pelo ruído surdo de uma bengala sobre o chão de madeira.
- Vai pensar sobre o quê? - Buli Giles estacou no limiar da porta.
- Webb está com umas ideias sobre fazer uma viagem ao Texas nesse inverno - resmungou Benteen, fitando o copo. - Como se não fôssemos ficar desfalcados de trabalhadores. Aliás já estamos.
Buli lançou um olhar em direção a Webb e foi mancando até a sala.
- Está pensando em entrar naquele boom do petróleo?
- Pode ser. - Na verdade, ele não pensara nisso. Ali, seria sempre o filho de Benteen Calder. Em outro lugar, poderia ser ele mesmo. O Texas seria somente um possível ponto de partida se finalmente decidisse fazer a mudança.
Mais tarde, na mesma noite, depois do jantar, Benteen sugeriu que fossem para o escritório tomar um cálice de conhaque. - Acho que vou recusar o convite - esquivou-se Buli Giles, descansando o peso do corpo sobre a bengala. - vou até a varanda. - Fitou Webb. - Incomoda-se de vir comigo?
Ocultando a surpresa com o convite inesperado, Webb rapidamente percebeu ser aquele um jeito de evitar outro sermão do pai.
- Claro - aceitou.
- Vá em frente e aproveite seu conhaque, Benteen - instruiu Buli Giles, não sugerindo, deliberadamente, que o velho amigo os acompanhasse.
Do lado de fora, a brisa de verão tomava o ar quente. Uma lua crescente pendurava-se no céu, lançando luz pelos telhados das muitas instalações da fazenda espalhadas na base da colina. Buli Giles vasculhou o bolso do terno e retirou dois charutos, oferecendo um a Webb.
- Está falando sério sobre esse negócio do Texas? - indagou enquanto Webb inclinava a cabeça em direção à chama do fósforo que Buli segurava.
Webb ergueu a cabeça lentamente, tentando ler a expressão do rosto do homem, mas o fósforo bruxuleante não iluminava os traços belicosos.
- Estou pensando. Por quê? - Tentou parecer casual.
- Só estava pensando. - Buli acendeu seu charuto, lançando rolos de fumaça; Webb duvidava que Buli Giles estivesse só pensando. Buli apagou o fósforo e fitou os prédios além deles. - A primeira vez que vi esse lugar, havia somente uma choupana comprida. Benteen sem dúvida construiu bastante.
- É - concordou, evasivo. - Cada pedaço de terra que você vê está sob um céu dos Calder.
- É um grande céu - comentou Buli, com aparente negligência.
- E um grande pedaço de chão - acrescentou Webb.
- É preciso um homem para dirigir tudo isso, mas acho que não preciso falar isso para você. - Buli retirou o charuto da boca e estudou a chama brilhante.
- Não, acho que você não precisa. - Webb mudou de posição, inquieto, sentindo que escapara do sermão do pai para cair no de um velho amigo da família.
- Ele está ficando cansado. Precisa começar a passar o controle para outros. Está começando a ser demais para ele. - Buli mudou de posição, de modo a ficar de frente para Webb.
- Imagino que a próxima coisa que você vai fazer é sugerir que eu comece a assumir o lugar de meu pai.
Algo próximo de um sorriso surgiu no rosto do homem.
- É isso que está lhe aborrecendo? Não lhe agrada a ideia de seguir os passos de seu pai?
- Não, não gosto - declarou Webb, impassível. - Ele construiu sua marca e sinto orgulho dele.
- Mas você quer fazer a sua - concluiu Buli, surpreendendo Webb com a habilidade em entender a situação tão claramente. - Você é um idiota, Webb Calder.
- Senhor? - Empertigou-se com o insulto, questionando se ouvira direito.
- Disse que você é um idiota. - Buli repetiu calmamente. - No dia em que seu pai se for, você não vai seguir os passos dele. Vai pegar o que ele deixou. E se não for forte e altaneiro, vão pisar em você.
- O que quer dizer?
- Quero dizer que o tenho observado. Pelo pouco que vi e pelos poucos comentários que seu pai fez, tive a impressão de que está tentando ficar neutro. Está tentando agir como todos os outros empregados e só fazer seu trabalho diário, mas algo o instiga a fazer com que os outros vejam onde você está.
- E? - Webb não confirmou nem negou.
- E... - ele soltou uma baforada de charuto - Você vai ter que sair de cima do muro. Poderia ter essa fazenda algum dia. Se acredita que fez algo para merecê-la ou não, isso não importa, mas você vai ter que lutar para mantê-la. Porque vai ter alguém por aqui querendo pegá-la de você. Conseguir algo é fácil, mas manter esse algo é a verdadeira prova de fogo para um homem. Tenha isso em mente enquanto estiver pensando no Texas.
- vou pensar sobre isso. - Correu o charuto entre os lábios, saboreando a riqueza da marca. - bom charuto.
- O melhor. - Buli apoiou-se sobre a bengala, usando-a como suporte para ir até a porta. - Acho que já é noite.
- Eu também. - Webb dirigiu-se lentamente até os degraus, correndo os olhos pela terra escurecida pela noite.
No Quatro de Julho, a sede da Triplo C parecia uma cidade-fantasma. Todos haviam ido à cidade participar das comemorações, deixando Webb, o cozinheiro anti-social Grizzly Turner e outro vaqueiro, chamado Budd Papas, para trás.
Todos os serviços que Webb planejara fazer terminaram no começo da tarde. Ele nunca gostara de ficar sentado à toa desperdiçando o tempo. Após umas doze rodadas de paciência e igual número de xícaras de café, começou a vagar inquieto pela cozinha.
- Por que não vai para algum lugar? - Grizzly Turner resmungou, irritado. - Você está pior do que um touro no pasto na hora do acasalamento.
Webb ignorou a reclamação e levou a xícara até o fogão para enchê-la novamente. Pingou um pouco de café preto, insuficiente para cobrir o fundo da xícara, a garrafa vazia. Ele balançou-a e olhou para o cozinheiro.
- Acabou o café.
- É, bom, tudo bem - rosnou o cozinheiro. - Por que não vai para a cidade como todo mundo? Não tem nada pra você fazer aqui, a não ser me infernizar a vida.
Webb ia dar uma resposta sobre a vida infernal do cozinheiro, mas fechou a boca e colocou a xícara em cima do fogão. A inquietação que o atormentava foi crescendo, até que desejou ter ido à cidade afogar as mágoas com os outros. Quanto mais pensava nisso, mais atraente se tornava a ideia.
- Você me deu uma ideia, Grizzly. - Arrancou o chapéu do gancho na parede, enfiando-o na cabeça. - vou para a cidade. A fazenda é toda sua.
- Já vai tarde - Grizzly Turner gritou, enquanto Webb caminhava até a porta, indo para o curral.
Ao entrar na cidade, a rua estava repleta de gente, cavalos e carroças. Como era de se esperar, havia uma dúzia de cavalos com a marca Triplo C amarrados diante da hospedaria e bar. Webb desmontou e enrolou as rédeas na extremidade do poste.
Dois cowboys estavam cruzando a porta quando Webb entrou. Riam e falavam alto, mas o som que estavam produzindo parecia um sussurro comparado com a gritaria do interior. Quase todas as companhias das redondezas estavam representadas entre a multidão de vaqueiros que enchiam a hospedaria. Webb demorou um minuto para localizar o grupo da Triplo C e atravessar a sala para juntar-se a eles.
- Webb! - Shorty Niles deu-lhe um tapa nas costas e empurrou-o para o balcão. - Diabos! Achei que você estava tomando conta do forte.
- Estava de saco cheio e achei melhor vir ver em que encrenca vocês estavam se metendo - ele replicou, pedindo uma cerveja.
- Ei, não nos metemos em nenhuma encrenca, não é, caras? Shorty perguntou, recebendo um coro de negativas vigorosas. - Só escolhemos as garotas com quem vamos dançar hoje à noite. Tem um monte delas na cidade.
- Se eu fosse vocês, caras, não ia me engraçar muito com essas filhas dos cata-ninhos. - O aviso veio de um homem que não era do grupo deles, a voz áspera de descontentamento com os colonos. - Vocês vão acabar arranjando encrenca.
Webb lançou um olhar ao longo do balcão, encontrando o homem de cara comprida que fizera a observação desdenhosa. Hobie Evans fora para uma fazenda vizinha. Ele fazia bem seu trabalho, mas alguns diziam que era completamente intratável. Sem dúvida ele não era novato em matéria de confusão, fosse por sua causa ou por culpa de outrem.
Sentindo os olhos da companhia Triplo C pousados nele, Hobie Evans voltou ligeiramente a cabeça naquela direção, mas continuou debruçado sobre o balcão, curvado sobre seu drinque. Em torno do olho havia o colorido desmaiado de uma contusão.
- Arranjar o quê? - Shorty queria saber, uma luz demoníaca dançando em seu olhar. - Um soco no olho dado por algum agricultor? Os cavaleiros da Triplo C estouraram em risadinhas. - Não foi assim que você conseguiu esse olho roxo, Hobie?
Afastando-se do balcão para enfrentar o perguntador, Hobie pareceu pronto a ofender-se com a indagação. Mas correu os olhos pela fileira de trabalhadores da Triplo C e pensou melhor.
- É, arranjei esse olho roxo com um cata-ninho - admitiu Hobie, apontando para o olho escurecido. - Mas a última vez em que o vi, ele estava estirado no chão, e sua aparência também não estava lá muito boa.
- O que houve? - alguém por trás de Webb indagou.
- Ele reclamou que eu desobedeci a lei, disse que eu não podia cuspir na rua. - Hobie abriu o peito em um sorriso zombeteiro que curvoulhe a boca para baixo. - Então comecei a explicar que nós fazemos a lei aqui nessas redondezas muito antes dele chegar; então cuspi na camisa dele e perguntei se gostava mais assim. Quando ele lançou o punho na minha direção, eu naturalmente tive de me defender.
As risadas aumentaram, demonstrando apoio aos atos do vaqueiro valentão. A boca de Webb alargou-se em um sorriso enquanto se inclinava sobre o balcão e sorvia um gole da caneca de cerveja espumante.
- Essa cidade é nossa - declarou Hobie, alteando a voz para se fazer ouvir em todo o salão. Esses cata-ninhos de fala engraçada acham que podem vir pra cá e começar a dizer pra gente o que podemos fazer na cidade. Chegamos aqui primeiro. Estou dizendo, se eles não gostarem que se retirem!
Houve um zunzum de concordância e movimentos afirmativos de cabeça em toda a sala. A satisfação fez os olhos de Hobie brilharem ao ouvir a resposta. Empertigou-se um pouco mais, seguro do apoio.
- Eles são uma praga, eis o que são. Piores do que um monte de malditos gafanhotos. Olha como engolem a terra até não sobrar um talo de capim. - Ele fez uma pausa, ouvindo o burburinho no salão. - Alguém ergueu a mão para pará-los?
Aquele tipo de conversa dura não agradava Webb.
- Você está esquecendo uma coisa, Hobie. - Mesmo sem aumentar o tom de voz, Webb foi ouvido claramente em todo o salão subitamente silencioso.
Não mudou de posição, nem mesmo ergueu o olhar da caneca de cerveja. - Aqueles colonos têm todo o direito de requisitar terra do governo, o mesmo direito que você tem.
- Eu nunca ia imaginar que um Calder ficaria do lado deles e contra os seus. - Hobie fitou-o com um olhar de escárnio. - Talvez na terra do seu paizinho nada tenha se alterado, mas acho melhor você dar uma olhada nas fazendas por aqui. Cowboys estão sendo despedidos a torto e a direito. E tudo por culpa daqueles agricultores.
- Todas as fazendas estão sentindo os baixos preços do mercado do gado - replicou Webb, virando a cabeça para estudar o homem. - Se alguns cowboys estão sendo dispensados, a culpa é do mercado do gado.
- Alguns cowboys! - Hobie zombou da expressão, voltando-se para o grupo de homens. - Quantos de vocês não receberam o último pagamento? Levantem as mãos.
Começou lentamente, primeiro um homem ergueu a mão, depois outro e mais outro. Quando Webb olhou o salão, aproximadamente metade dos cowboys presentes indicava estar desempregada. Ele não sabia que a situação estava tão ruim.
- Nem todos temos um paizinho que é dono do lugar - o vaqueiro refrescou a memória de Webb com sarcasmo deliberado. - E se os preços do mercado de gado estão ruins, de quem é a culpa? - Hobie queria saber, oferecendo ele mesmo a resposta. - É do agricultor. O preço do grão está tão alto que estão vendendo tudo na Europa, ao invés de engordar o gado. Eles conseguem mais dinheiro com os grãos do que com o gado, por isso não estão comprando bois no mercado. Estão ficando ricos e tomando conta de nossa terra, e nós não estamos fazendo nada.
- Não podemos fazer nada - resmungou um vaqueiro descontente.
- O governo deu a terra pra eles.
- Alguém devia pegar de volta - sugeriu Hobie, analisando as reações. - Desde quando alguém nesse território presta atenção ao que um bando de políticos de Washington faz? - Houve agitação, desconforto e até ligeira concordância. - Diabos, essa terra não é para plantar trigo argumentou Hobie. - Eles aprovaram a lei sem nem ter vindo aqui para olhá-la. Cometeram um erro, e nós poderíamos consertar.
- O que você está sugerindo é contra a lei - apontou Nate, secamente.
- Que lei? - contrapôs o cowboy. - A lei de Washington ou a lei do pasto?
- Você não sabe, Hobie? - falou alguém nos fundos do salão. Eles contrataram um homem da lei. Agora Blue Moon tem seu próprio xerife.
Webb ergueu a cabeça, os traços endurecendo-se. A notícia provocou a mesma reação em torno dele, indicando que nem todos ali sabiam daquilo.
- Você pode apostar que esse xerife foi contratado para proteger aqueles cata-ninhos. Nenhum de nós jamais precisou de alguém para nos proteger - declarou Hobie. - Sabíamos cuidar de nós mesmos.
- E aqueles detetives do gado e os caçadores de lobos? - ofereceu Webb. - Eles eram profissionais contratados pelos fazendeiros para seguir a pista e capturar ladrões de gado e lobos. Me parece que vocês estão usando dois pesos e duas medidas.
- Com certeza não esperamos um xerife vir fazer isso para nós - recordou Hobie. - Se dependêssemos da lei, todo o gado teria sido roubado. Quando a lei falha, sempre tomamos a dianteira e fazemos o que precisa ser feito. Não ficamos por aí nos lamuriando.
- Sabe, me parece que... - Nate tirou tabaco e papel do bolso e começou a preparar um cigarro - nosso problema não é diferente do dos índios. Não importa o quanto a gente possa lutar, cada vez vamos sendo empurrados para mais longe. Eles são em maior número do que nós, e continuam a chegar. Nos livramos de um e mais três tomam o lugar.
A demonstração de concordância que se iniciara com a observação de Hobie nivelou-se com a comparação séria de Nate. Assim como todos os outros, Webb sentiu que as observações de Nate aproximavam-se mais do ponto-chave.
Antes que o silêncio se tornasse pesado, Shorty deu um tapa nas costas de Nate quando este estava prestes a fechar o cigarro com a língua. O cigarro escorregou da mão dele, tabaco espalhando-se pelo chão, deixando Nate somente com o papel entre os dedos.
- Você sabe o que eles dizem, Nate - declarou Shorty. - Se não pode derrotá-los, junte-se a eles. E é exatamente isso que pretendo fazer. vou me agarrar com uma filha de agricultor e dançar até o sol raiar. - O júbilo era contagiante, acendendo a atmosfera pesada do bar. Shorty acenou para Hobie. - Encoste a barriga no balcão, Cavalo Doido - disse, comparando o cowboy ao famoso chefe guerreiro dos sioux. - E pago um drinque para você.
O convite quebrou a magia que Hobie lançara sobre o salão, e o barulho mais uma vez aumentou. Quando Sonny Drake, garçom e dono do estabelecimento, abriu a garrafa de uísque para reencher os copos, Shorty jogou o dinheiro no balcão.
- Dançar é negócio que dá sede. É melhor você me dar duas garrafas para levar - declarou, olhando em seguida para a caneca quase cheia de cerveja que Webb bebericava. - É melhor acabar com a cerveja, se não ainda vai estar aqui quando chamarem para a escolha dos pares.
Na área ao ar livre, atrás do depósito de madeira, várias tábuas haviam sido colocadas de forma a proporcionar uma rústica pista de danças. Uma carroça de feno com a armação aberta fora colocada a um canto, cheia de bandeirolas, formando um palco para a banda. Já começara a se juntar uma multidão, uma variedade de carroças e carruagens em torno do local.
Benteen voltou à carruagem onde deixara Lorna e Ruth, mas não viu nem sinal delas. O cavalo mais próximo da parelha de baios focinhou a manga da camisa de Benteen. Ele acariciou-lhe o focinho enquanto lançava um olhar carrancudo em torno, localizando-as por fim, três carroças à frente, conversando com a esposa de Gil Brickmam, do Bar M.
- Ei-aaaa!
O ruído súbito e alto assustou os cavalos. Benteen agarrou as rédeas sob as fauces dos animais e acalmou-os, mas eles continuaram a se movimentar irrequietos, rolando os olhos na direção da geringonça barulhenta que passou ribombando. Benteen fitou enojado o veículo moderno e espalhafatoso, e seu motorista de guarda-pó e enormes óculos com nojo ainda maior.
- tom Pettit levantaria do túmulo se soubesse em que seu filho está gastando o dinheiro dele. - Foi Ed Mace quem falou, a aproximação abafada pelo ruído do engenho.
- É verdade - concordou Benteen. - Não sei o que ele vai fazer com essa coisa aqui.
- Dirigir pra cima e pra baixo na rua, imagino. - Ed Mace balançou a cabeça diante do desperdício de dinheiro. - Por aqui não existem estradas para essas carruagens sem cavalos. E não vai haver em vinte ou trinta anos, posso apostar.
- É só um brinquedo. - Benteen relaxou a mão que segurava as rédeas, os cavalos agora mais calmos. - Você ouviu falar que o garoto Pettit está vendendo lotes de sua fazenda aos colonos, não ouviu?
- Ouvi, mas não quis acreditar. - Ed Mace assentiu, o ódio faiscando em seus olhos. - Mais um grupo de fazendeiros está pensando em vender um pouco de suas terras, tentando se manter à tona enquanto o mercado do gado não melhorar. Os preços que aqueles colonos estão oferecendo por terra sem valor torna o negócio tentador.
- Parece dinheiro fácil, imagino. - Benteen suspirou profundamente.
- Desgraçadamente fácil, quando os bancos estão cobrando dez por cento de juros - declarou o fazendeiro. - Juro que eles estão sendo dirigidos por um bando de rábulas. - A mandíbula endureceu-se enquanto ele perscrutava o amontoado de carroças de agricultores na área. - Você algum dia pensou que se sentiria deslocado aqui, Benteen? E cada dia chegam mais deles.
- Temo que isso seja só o começo. - Ele não encontrara um modo de deter a imigração.
- Você não sabe de metade da história - declarou Ed. - Essa terra está crescendo rápido demais. Pequenas cidadezinhas de um prédio estão explodindo em tudo que é lugar... com nomes como Popular e Lovejoy. É como se alguém jogasse um barraco no meio do nada e o chamasse de cidade.
- Eles são piores do que uma praga de gafanhotos - admitiu Benteen. - Estão cobrindo mais terreno do que uma nuvem de gafanhotos.
- É, bom, talvez devêssemos jogar querosene neles e atear fogo. Queimá-los como fazemos com os gafanhotos. - Fitou as famílias de colonos reunindo-se em grupos em torno da pista de dança. - Escute a algazarra deles. Metade não sabe nem falar inglês. E a outra metade... Eu não daria um touro velho em troca da outra metade.
Um homem baixote e com ancas largas, vestido com roupas de cowboy, veio em direção aos dois fazendeiros. Não parecia ter pressa em alcançá-los, usando o tempo para analisar a dupla. Benteen entreviu o brilho de uma estrela na camisa do homem e seus olhos estreitaram-se.
- Acho que nunca nos encontramos antes - declarou o homem, detendo-se diante dos dois fazendeiros. - Meu nome é Potter. A cidade contratou-me como xerife para manter a paz.
- Calculei quem você era. - Ed Mace assentiu, demonstrando clara indiferença diante da autoridade que o homem supostamente representava.
- Meu nome é Ed Mace. Sou dono da Fazenda Snake M, a leste daqui.
- Benteen Calder, da Triplo C. - Cortesmente, estendeu a mão em cumprimento, sentindo o homem relativamente jovem pressionar a mão contra a sua e esforçar-se para sacudi-la.
- Estava pretendendo ir a cavalo até ambas as propriedades - disse o xerife, dando a impressão de que não tinha pressa para nada. - Gostaria que falassem com seus rapazes e pedissem a eles que não arranjassem problemas. Quando vêm à cidade, é natural que se sintam meio brincalhões. Não estou esperando que consigam controlar isso, mas gostaria que providenciassem para que eles não importunem o camarada que respeita a lei.
- Acho que não vão fazer isso, contanto que você garanta que seus camaradas respeitadores da lei não os importunem - desafiou Ed Mace.
- Aquele Hobie Evans é seu vaqueiro, não? - Foi mais uma declaração do que uma busca de informação.
- É. - O olhar do fazendeiro praticamente desafiava o xerife a dizer mais.
- Foi bom encontrar vocês dois, senhores - disse o xerife, a fala arrastada, assentindo com um movimento de cabeça em direção a cada um. - Este é um dia de comemoração. Espero que seus trabalhadores se comportem e não saiam da linha. Não gostaria realmente de prender ninguém no dia da independência de nossa nação. - Os cantos da boca ergueram-se no esforço mais aproximado de um sorriso, dizendo até logo aos fazendeiros e afastando-se no mesmo passo preguiçoso que o levara até eles.
- Tinha ouvido um boato de que a cidade estava pensando em contratar um xerife, mas não sabia que tinham realmente feito isso. - Benteen lançou um olhar inquisitivo para o homem a seu lado. - Deve ter acabado de acontecer.
- O primeiro do mês.
- Houve confusão?
- Alguns incidentes menores, nada sério. - O fazendeiro deu de ombros. - Não existe uma companhia das redondezas que não tenha tido que despedir alguns cowboys. A maior parte ficou pela cidade até o dinheiro acabar. Sabe como são os rapazes, Benteen. Ficam de saco cheio quando não têm o que fazer e começam a atormentar os colonos. Basicamente, é brincadeira sem maldade, mas às vezes eles são meio brutos.
Os colonos eram novatos, consequentemente mais propensos a serem vítimas da frustração de um vaqueiro. E caso o senso de humor de um colono não combinasse com o de um cowboy, este se sentiria mais do que propenso a impingir sua opinião sobre o assunto. Benteen tinha certeza de que algumas confusões haviam se originado a partir daí.
- Tem havido reclamação também sobre o bar do Sonny, e o "malfeitor" que ronda por ali. - Ed Mace enfatizou a referência depreciativa aos homens que ali trabalhavam. - Acontece toda vez que se deparam com um bando daqueles agricultores de espírito elevado. Não vai demorar muito e eles vão querer que fechem o local. Deus ajude Fannie quando os caras de cavalo puritanos a descobrirem.
- A próxima coisa de que vamos ter notícia é que eles vão traçar uma linha de separação, do jeito que fizeram nas cidades - sugeriu Benteen, secamente.
- com o camarada respeitável de um lado e os criadores de gado do outro - Ed Mace definiu, com ressentimento crescente. - E nós seremos proibidos de cruzar a linha. Fomos nós e homens como nós que construíram essa cidade. Ninguém vai dizer a mim e a meus homens onde podemos andar. Nunca.
- Espero que nenhum de nós veja esse dia. - Muitas mudanças estavam se processando, e tão rapidamente que era impossível prever o que o amanhã traria. Mas a água estava fervendo no caldeirão. Se pusessem mais lenha na fogueira, provavelmente iria transbordar. E parecia não haver falta de combustível. Uma dupla de músicos subira ao coreto provisório para começar a afinar seus instrumentos. - Parece que o baile vai começar - observou Benteen. - Acho melhor encontrar minha esposa.
Separando a área livre para dança e a hospedaria-bar, não havia mais do que um quarteirão, mas um cowboy nunca caminha quando pode ir a cavalo. Alguém avisou que o baile ia começar, e os vaqueiros saíram do bar em direção a seus cavalos, alguns colocando uma garrafa no alforje.
Nenhum deles estava bêbado, mas todos sentiam-se bem, gritando e rindo enquanto incitavam as montarias a percorrer a distância a meio galope. Webb cavalgava no meio deles, mais sóbrio do que a maioria, pois só tomara uma cerveja. Os carroções formavam uma barricada que os impediu de levar os cavalos até o meio da pista de dança. Forçados a desmontar, amarraram as montarias na roda disponível de alguma carruagem mais próxima, abrindo caminho até a pequena plataforma de madeira onde o baile já começara.
Na extremidade da plataforma, começaram a se dispersar, estacando em grupos de três e quatro, passando em revista o potencial de dança dos pares presentes. Todos os colonos estavam juntos do outro lado. Webb percebeu os pais entre os dançarinos na pista, e Ruth dançando com o capataz da fazenda Brickman.
com exceção de poucas filhas de fazendeiros, sobravam garotas esbeltas do lado dos cowboys. Do lado dos colonos era diferente, parecia haver número igual de homens e mulheres.
- Olha o peito daquela garota com a fita amarela no cabelo! Shorty cutucou Webb com o cotovelo. - Porra, essa tá pra mim.
Assim que Webb localizou a jovem de vestido branco, viu também Lilli de pé ao lado dela e ficou imóvel. Ela estava usando vestido azul brilhante que, ele sabia, combinava com os olhos dela. Observando os dançarinos, ela oscilava ao compasso da música.
- Eu a vi primeiro - insistiu Abe Garvey. - Você fica com a de azul ao lado dela.
- Ela é casada - declarou Webb impassível, baixando os olhos e forçando-se a olhar em outra direção.
- Diabos! - Abe franziu o cenho.
- Tenho uma inclinação por fitas amarelas - insistiu Shorty. - Não é minha culpa, Abe, se você não disse nada antes de mim.
Quando Shorty Niles atravessou o salão, Abe apressou-se a seguir um passo atrás dele.
- Quando ela te dispensar, Shorty, sai da frente que estou logo atrás de você.
- Vai tentar a sorte? - inquiriu Nate, lançando um olhar de soslaio para Webb.
- Não. - Mas ele sentiu o exame minucioso de Nate, deixando um sorriso torto erguer-lhe o canto da boca. - vou deixá-los abrir caminho. Assim vou poder correr mais rápido seguindo os passos deles.
- Não parece que estão indo muito bem - Nate conjeturou. Relutante, Webb deixou o olhar voltar à garota de fita amarela, sem estendê-lo até Lilli. Um homem alto, de aparência austera e ascendência escandinava, estava de pé ao lado da garota de cabelos dourados. Shorty evidentemente fora rejeitado e ficou olhando enquanto Abe tentava. A garota recusou com um meneio de cabeça, aproximando-se mais do homem alto a seu lado.
- Talvez ela também seja casada - sugeriu Webb, sem pretender que a voz soasse tão amarga.
- Não. Aquele sueco alto ao lado dela é um cara chamado Anderson. Ele tem uma ninhada de filhos e a mulher é quase do tamanho dele. Mulherão - declarou Nate. - Tomaram posse de alguma terra que faz limite com a Triplo C a sudeste. Já os vi trabalhando nos campos algumas semanas atrás. A garota é filha dele.
Quando a música terminou e outra começou, Webb percebeu que Abe e Shorty não haviam sido os únicos rejeitados. Os vaqueiros de todas as outras fazendas também. Os colonos não tinham intenção de permitir que as filhas inocentes se associassem a tipos como aqueles cowboys sem valor. Pelo menos, Webb suspeitou ser esse o pensamento que acalentavam.
Até a pista de dança parecia dividida, os colonos de um lado e os fazendeiros de outro. Webb se deu conta de que a eletricidade da atmosfera não se devia totalmente ao estado de espírito festivo.
A princípio os vaqueiros foram benevolentes com as recusas dos convites para dançar. Estavam prontos para uma festa e não estavam dispostos a desperdiçá-la. Assim, voltaram a atenção para os membros do sexo feminino do próprio lado, dançando tanto com as casadas quanto com as solteiras.
Webb aproximou-se da mãe, retirando o chapéu galantemente e oferecendo-lhe a mão.
- Posso ter a honra da próxima contradança?
Ela desatou a rir, passando a mão pelo braço do filho. - Estava guardando esta justamente para você. - Quando estavam na pista de dança e tinham completado o primeiro conjunto de passos de valsa, ela ergueu a cabeça para ele. - Pensei que não vinha.
- Grizzly me expulsou da fazenda com uma faca de açougueiro. com a mãe, ele conseguia escapulir com uma réplica leve, e foi o que fez. Era mais fácil do que aprofundar-se nos motivos que o haviam levado até ali quando insistira em não ir.
- Vai dançar com Ruth? - Ela não resistiu à pergunta, na esperança de que ele houvesse reconsiderado. Supunha que a falha de toda mulher estava em viver de esperança.
- Não a vi sem par - replicou ele.
- Não. Na verdade, ela dançou todas as músicas.
Ao completarem outro círculo, Webb percebeu Lilli do outro lado da pista. Estava nos braços do homem de bigode e ombros curvos com quem casara. Irritou-o ver o rosto sorridente erguido para aquele homem. Era errado estarem juntos.
- Webb? O que houve?
- Nada. - A expressão fechada não permitiu que a mãe percebesse seus sentimentos quando Webb a fitou mais uma vez. Ela pareceu não estar convencida, mas não o pressionou em busca de resposta mais reveladora.
Quando a canção terminou ele a levou de volta à companhia do pai e regressou para seu grupo. Raiva e desapontamento revolviam-lhe as entranhas, atormentando-o com ânsias perigosas, atiçando desejos que estariam melhor adormecidos.
Os resmungos sombrios em torno dele pareciam o eco de seu estado de ânimo. Os olhares lançados para as mulheres descomprometidas transformaram-se em clarões ressentidos. As garotas dos colonos eram como doce diante de um garoto necessitado de açúcar. E a cada vez que ele estendia a mão para pegá-lo, levava um tapa. E assim como os garotinhos, os cowboys estavam ficando mal-humorados e indóceis.
- Eles acham que elas são muito boas para nós, essa é que é a verdade.
- Algumas garotas são completamente horrorosas. A gente estaria fazendo um favor a elas tirando-as para dançar.
- Olha pra eles, pensando que as filhas são tão puras e inocentes. Aposto que elas não são assim atrás do celeiro.
- Elas não passam de uns abutres. Queria saber onde arranjaram essa ideia de que são melhores do que nós.
O eco de comentários corria de um lado a outro no grupo de cowboys, o ressentimento crescendo entre o bando liderado por Hobie Evans. Não faltava praticamente nada para a violência. Webb sentiu isso e parte dele não ligou.
Quando a banda começou a tocar outra daquelas canções folclóricas rápidas, desconhecidas para a maioria dos vaqueiros, eles ergueram a voz em objeção. Dessa vez não limitaram as reclamações a seu próprio grupo. Externaram-nas em voz alta, para que todos os dançarinos pudessem ouvir.
- Não conhecem música boa?
- Alguém chute aquele cara com o acordeom no coreto!
- É! Queremos ouvir um pouco de rabeca!
Nate esgueirou-se para o lado de Webb. - Parece que finalmente a festa vai ficar animada.
- Ou vai ser um baile ou vai virar pancadaria - concordou Webb.
- Não vejo por que esperar para descobrir. Pegue Shorty e Abe. Vamos fazer isso virar uma coisa ou outra.
Os três juntos, ladeando Webb, foram para o canto do coreto do lado dos fazendeiros. O objetivo era Doyle Pettit, menor em seu chapéu, óculos grandes e casaco, de pé junto ao capo de seu automóvel preto brilhante, demonstrando orgulhoso aos curiosos o funcionamento da manivela.
- Ei, Webb! Não sabia que você estava aqui! - Doyle adiantou-se em passadas largas, cumprimentando-o alegremente. - vou levá-lo para um passeio e mostrar como funciona a invenção de Ford. É a primeira no género nessa região. Comprei...
- Depois. - O convite foi rejeitado bruscamente enquanto Webb pegava o homem, impelindo-o em direção à pista de dança. - Aqueles colonos pensam que você é amigo deles, portanto confiam em você. Nós cinco vamos até lá, mas depende de você convencê-los a nos deixar dançar com as mulheres deles.
- Não sei se vão me ouvir. - Doyle recuou.
- É melhor você arranjar um pouco daquela fala mansa do Wessel
- foi a resposta de Webb. - Kreuger é o líder, portanto não perca tempo falando com outro.
A meio caminho da pista de dança, eles foram interceptados por um homem calmo e esguio mais ou menos da idade deles. O distintivo preso na jaqueta o identificava como o novo xerife de Blue Moon. A atenção centrava-se em Doyle Pettit, embora já tivesse encontrado os demais e marcado o rosto deles em sua memória.
- Sr. Pettit, espero que o senhor não esteja pensando em criar algum problema - disse calmamente.
- Eu só pretendia falar com eles como àmigo. Não quero mais problema do que o senhor, xerife - insistiu Doyle com um sorriso expansivo.
Mas o xerife olhou seus companheiros para avaliar-lhes as intenções. O olhar analítico de Webb não evitou a sindicância silenciosa.
- Vamos lá à procura de paz. Se a coisa virar, não vai ser nossa culpa.
- Você foi franco - assentiu o xerife e afastou-se, satisfeito com o dever cumprido.
Ao recomeçar a avançar, Webb buscou com o olhar o grupo de colonos em silêncio crescente até encontrar Franz Kreuger. O queixo do homem já apontava agressivamente em direção a eles. A atenção de Webb foi desviada para o casal de pé ao lado de Kreuger, Lilli Reisner e seu marido. A revolução na boca do estômago aumentando lhe disse que soubera o tempo todo que os dois vizinhos estariam juntos. Percebeu que inconscientemente estivera contando com isso.
Ao reconhecer Webb Calder aproximando-se deles com o Sr. Pettit, os nervos de Lilli sacudiram-se de excitação, enquanto uma pontada de apreensão fez com que lançasse um olhar rápido em direção a Stefan. Percebendo a expressão cautelosa e desconfiada, ficou contente de não lhe ter contado sobre a visita que Webb fizera à fazenda deles. Stefan passara muito tempo na companhia do vizinho, Franz Kreuger, e sua atitude em relação aos vaqueiros endurecera. Ela não acreditava que tivesse conseguido convencer Stefan de que Webb só tentara preveni-los dos problemas que iriam enfrentar, e não ameaçá-los. Além do mais, fora um encontro perturbador sob outros aspectos, assim lhe parecera de bom alvitre não mencioná-lo.
A batida do coração de Lilli acelerou-se quando o Sr. Pettit deteve-se diante de seu vizinho. Antes do baile começar, os colonos haviam combinado não associar-se aos vaqueiros barulhentos e impetuosos, evitando assim aborrecimentos que haviam transtornado a cidade em muitas outras ocasiões. A princípio os cowboys haviam sido tão polidos e respeitosos em seus convites para dançar que Lilli achou que Stefan e os outros homens os haviam julgado mal. Mas as observações em tom cada vez mais alto e ridicularizador foram a confirmação de que os homens estavam certos.
Ainda assim, Lilli não queria incluir Webb Calder na mesma categoria dos outros cowboys meio selvagens. Se não havia cordialidade na maneira como ele observava Franz Kreuger, talvez fosse porque este não demonstrara qualquer receptividade. A vaidade feminina de Lilli fora ferida pela ausência de ao menos um olhar passageiro por parte de Webb. Não esperara que ele a ignorasse. Aquilo a atormentou. Lilli voltou a atenção para Doyle Pettit, pedindo eloquentemente a Franz Kreuger que persuadisse os colonos a mudar de ideia a respeito dos vaqueiros.
Ele estava insistindo em seu argumento.
- Afinal de contas, Sr. Kreuger, nos reunimos aqui para comemorar a Independência de nosso país - ponderou Doyle Pettit. - Neste dia especial, acho que devíamos pôr de lado pequenas diferenças e nos juntarmos à festividade. Eu pessoalmente vou me responsabilizar pelo comportamento de todos os membros da comunidade de fazendeiros aqui presente, e garanto ao senhor que o comportamento deles será exemplar. Se alguma de suas mulheres se dispuser a dançar com os cowboys, prometo que serão tratadas com o maior respeito.
- E se não forem? - desafiou Franz Kreuger com ceticismo evidente.
- O senhor tem minha palavra. - Webb respondeu à réplica fria antes que Doyle Pettit pudesse falar. - A palavra de um Calder significa alguma coisa por aqui, Sr. Kreuger. Se algum vaqueiro sair da linha, vai ter que falar comigo pessoalmente. - Fez uma rápida pausa. - Temos sua permissão para convidar as moças para dançar?
- Não sou um homem tão grande e importante quanto o senhor, Sr. Calder. Sou somente um agricultor de trigo. - A renúncia modesta de Franz Kreuger foi dita com um traço de desrespeito. - Posso dizer que o senhor tem minha permissão, mas isso não significa que alguma mulher vai aceitar tal convite.
A resposta era uma maneira sutil de indicar que a atitude não mudara. A garantia de permissão não passara de palavras da boca para fora, e Lilli considerou-as grosseiras e injustificáveis. Um olhar para a boca crispada de Webb foi suficiente para revelar que ele pensava da mesma maneira. A requisição fora razoável e adequada. Ela ficou irritada com a resposta tão descortês. Afinal de contas, Webb estivera propenso a conhecê-los mais de uma vez. O gesto devia ser retribuído e não rejeitado.
Ela deu um passo impetuoso à frente, saindo do lado de Stefan.
- Eu aceito - sustentou Lilli, vendo a cabeça de Webb erguer-se, o olhar saltando para ela. - Estou certa de que podemos confiar na palavra do Sr. Calder.
A expressão fria de Webb não se alterou, mas os olhos escuros tornaram-se afetuosos e aprovadores, brilhando sob alguma força perturbadora. Lilli sentiu a mão constrangedora que Stefan pousou em seu ombro, voltando a cabeça ligeiramente em direção a ele.
- Está tudo bem, Stefan - insistiu em voz baixa, mas ele não retirou a mão.
Ela irritou-se com a proteção tão irracional. Se Stefan fazia objeção, não podia desafiá-lo abertamente, o que o envergonharia diante de todos os amigos. Lilli sentiu-se dividida entre o senso de dever para com o marido e a percepção de que aceitar o convite para dançar seria a resposta adequada para acalmar a animosidade crescente entre as duas facções.
Esperando um sinal de Stefan, ela olhou para Webb. Ele pareceu perceber o conflito por que Lilli passava, desviando a atenção para Stefan e retirando o chapéu em um gesto respeitoso, mantendo-o junto ao peito.
- com a sua permissão, Sr. Reisner, gostaria de dançar com sua esposa - declarou calmamente.
O respeito que Lilli sentia por Webb aumentou um pouco mais com aquela atitude. Webb Calder tirara a decisão de suas mãos e a colocara nas mãos de seu marido, indicando que a acataria e não assumiria a atitude impulsiva de Lilli. Conseqúentemente, ela não precisaria desafiar os desejos do marido. Silenciosamente, rezou para que Stefan fosse tão magnânimo quanto Webb Calder.
Os dedos largos de Stefan crisparam-se brevemente sobre o ombro dela, relaxando em seguida para soltá-la. Naquele momento Lilli orgulhou-se dele. Lançou um sorriso fugaz em direção ao marido, em seguida pousou a mão no braço de Webb e deixou-o guiá-la até a pista de dança.
A mão do rapaz amoldou-se naturalmente na curva elegante de sua cintura, os dedos espalmados em suas costas. A mão de Lilli era quente e pequena na dele, e Webb segurava-a a menos de um braço de distância. Ela era ágil e graciosa, seguindo os passos dele com facilidade, como se tivessem dançado juntos muitas vezes antes. Os braços e pescoço da garota possuíam uma beleza dourada pelo sol, ao mesmo tempo que a cascata de cabelos castanho-avermelhados coroando-lhe a cabeça fazia-a parecer mais alta. Por um momento, a vitalidade dela destruiu inteiramente o autocontrole de Webb.
Em torno deles, outros colonos haviam cedido e dado permissão às filhas para aceitar o convite dos cowboys. Não muitas, mas em número suficiente para demonstrar que a maioria estava cedendo. Webb não estava interessado no possível problema que evitara. Toda a atenção concentrava-se na garota em seus braços.
- O senhor estava certo, Sr. Calder - disse ela.
- Estava? Que bom saber. - O sorriso saiu com facilidade. - Em quê?
- O poço. Encontramos água, mas contaminada de álcali, exatamente como o senhor disse - admitiu ela. - Vamos ter de depender de uma cisterna para nossa água.
- Desta vez eu preferiria estar errado, para o seu bem. - As últimas palavras saíram em tom rouco.
- Vamos conseguir nos arranjar. - Ela parecia confiante; em seguida olhou em torno. - Não sabia que cowboys gostavam de dançar.
- Não passamos o tempo todo domando potros selvagens e laçando gado como o show do Oeste Selvagem quer que vocês acreditem. - Webb recordou o conceito que a moça tinha dos cowboys, colorido de maneira errada por aquele show. - Nossos gostos não são totalmente grosseiros.
A dança aqui está em primeiro plano na lista de passatempos prediletos de um cowboy.
- Ao lado do cavalo? - ela indagou com olhar divertido.
- Sem dúvida. - Ele gostou do senso de humor de Lilli. - Nosso maior problema aqui tem sido a escassez de pares femininos. Você pode contar nos dedos o número de mulheres disponíveis. Por isso foi tão frustrante para os garotos ver todas aquelas garotas a seu lado sem dançar. Eu
já estava esperando uns dois cowboys se oferecerem para serem marcados como novilhos.
- O que é isso? - Ela ergueu a cabeça em direção a ele da forma mais atraente.
- É quando um vaqueiro amarra um lenço na manga para mostrar que está disposto a dançar fazendo o papel da mulher - explicou Webb. - É uma medida desesperada. Mas no alojamento, um cara pode ficar bastante desesperado por uma diversão. Eles também amarram o lenço em um avental.
- Você já foi marcado como novilho? - O brilho em seu olhar parou antes de chegar a flertar com ele, mas o interesse permaneceu, Webbpercebeu, estivesse ela consciente ou não.
- Não. Acho que não nasci para ser conduzido por alguém.
- Acredito - replicou Lilli.
Quando a canção terminou, Webb demorou a deixá-la ir.
- Eu estava certo em outra coisa - ele disse, olhando profundamente nos olhos dela. - Quando a vi no começo da noite, tive certeza de que o vestido combinava com a cor de seus olhos. E combina.
Foi a intensidade do olhar e a luz que ardia ali, mais do que o elogio, o que perturbou Lilli. Ela baixou a cabeça, tentando evitar aquele olhar e a sensação que causava em seu estômago.
- Obrigada. - Retirando a mão daquele contato quente, ela se voltou para caminhar até onde estava Stefan.
Webb acompanhou-a, mas não queria levá-la até lá. Não queria entregá-la ao marido. Ele era um homem; instintos vitais o espicaçavam. Pela primeira vez em sua vida, concedia de má vontade a obrigação de sua palavra.
Detendo-se diante de Stefan Reisner, Webb percebeu ser o melhor a fazer, o que não o consolava. Entregou Lilli ao domínio do homem, os traços carrancudos.
- Obrigado pelo privilégio de dançar com sua esposa, senhor. - Ele inclinou a cabeça, os olhos escuros faiscando.
Não ousou olhar para Lilli novamente e afastou-se.
Do outro lado da pista, Ruth observou-o voltar, assim como o analisava desde que Webb chegara, sem perder de vista onde estava e com quem. Era algo que não conseguia deixar de perceber, embora Webb não tivesse falado com ela nem uma vez, nem mesmo aventurando-se na direção dela.
O olhar de Ruth voltou à esposa do colono. O ciúme era um sentimento doloroso, fixando toda competição claramente em sua mente para que não esquecesse qualquer mulher que pudesse ser sua rival. Recordou que a garota jovem e de cabelos castanho-avermelhados era esposa do colono mais velho com quem Webb quase brigara. Apesar disso, Webb acabara de dançar com ela. Isso preocupou Ruth, como se a garota fosse solteira.
Enquanto Nate observava Webb voltando a passos largos para junto deles, lembrou um touro com a cauda empinada. Um cavaleiro esperto ficava a distância. Engoliu em seco e nada disse quando Webb se aproximou, deixando os outros falarem. Se não tinham percebido os sinais de aviso, o problema era deles. Correu o olhar para a garota de azul, balançando a cabeça e sentindo-se consternado e pesaroso pelo amigo. Achava que sabia o que o estava atormentando.
- Por um momento achei que não ia conseguir, Webb - declarou Shorty, mas ele era do tipo que matutava até onde ia a areia movediça. Fita Amarela não quis dançar comigo, mas acho que da próxima vez vou vencer o paizinho dela pelo cansaço.
- Sobrou algum uísque naquela garrafa que você colocou no alforje?
- Webb não deu sinais de que houvesse escutado a congratulação.
- Claro, rapaz! - Shorty confirmou com um sorriso largo. – Você teve a ideia certa. Vamos tomar um trago agora que estamos tendo uma verdadeira festa.
Webb saiu, mergulhando no labirinto de carroças até a parte de trás, onde haviam deixado os cavalos. Os raios oblíquos do sol se pondo projetavam sombras profundas no chão, enquanto uma brisa de verão afastava a música tocada pela banda. O ar quente era penetrante, juntamente com o cheiro dos cavalos.
Shorty pegou a garrafa de uísque no alforje e jogou-a para Webb.
- Você primeiro.
Foi o mesmo que apagar o fogo com o fogo! Webb tentou desmanchar o ódio com um longo gole do álcool ardente. Estremeceu, pressionando a mão sobre a boca, os músculos da garganta paralisados.
- Nossa, Webb. - Shorty lançou-lhe um olhar reprovador enquanto pegava a garrafa, limpando a boca com a manga da camisa. - Por um instante, pensei que você ia emborcar a garrafa toda.
Houve uma intensificação de atividade no caminho, estalar de couro das selas e retinir de metal e correntes de bridas indicando que os cavaleiros estavam montando. Ao voltar-se automaticamente para olhar, Webb reconheceu Hobie Evans e mais dois cavaleiros da Snake M dando rédeas aos cavalos, afastando-se das carroças.
- Parece que Hobie não sabe perder - observou Abe Garvey. com certeza estava esperando que as coisas corressem de outro jeito. Ele tinha um bando de caras preparados para ensinar os colonos a ser mais simpáticos. Mas a sua jogada os deixou na mão.
- Ele nunca fez muito sucesso com as garotas - concluiu Shorty.
- Elas não são grossas o suficiente para ele. Claro, com uma cara feia daquelas, que mulher ia querê-lo? - Soltou uma gargalhada com a própria pergunta, passando a garrafa para Abe.
- É mesmo. - Abe observou o trio de cavaleiros atravessando a rua principal da cidade a trote. - Parece que eles vão pró Sonny.
- Uma coisa se pode dizer de Hobie; esse cara consegue se segurar - admirou-se Shorty, olhando para Abe, que lançava um suspiro alto e satisfeito com o trago de uísque que lhe limpara a garganta. - O que acham? Voltamos para Fita Amarela e tentamos a sorte com ela e o paizinho?
Webb enfiou a mão no bolso da calça de brim e retirou uma moeda.
- vou comprar o resto da sua garrafa, Shorty. - Lançou a moeda com um piparote em direção ao cowboy, que a pegou com movimento rápido de uma só mão.
- Você não vem? - Shorty hesitou, concedendo-lhe um olhar intrigado.
- Não, acho que vou ficar aqui e beber um pouco. - Webb pegou a garrafa pelo gargalo e sentou-se no chão, apoiando as costas na roda de um carroção.
Shorty analisou-o por mais um segundo, dando de ombros.
- Faça o que achar melhor.
Enquanto Shorty e Abe se afastavam, Nate deixou-se ficar para enrolar um cigarro, mas Webb não demonstrou querer companhia, Nate acendeu o cigarro, fitando Webb com os olhos semicerrados em meio à fumaça.
- Acho que você sabe que a única coisa que vai encontrar nessa garrafa é uma maldita de uma ressaca, portanto te vejo depois - disse Nate, gIrando pelo meio das carroças à procura dos outros dois amigos.
Sozinho com os ruídos de caudas de cavalos espantando moscas, Webb fitou a garrafa aberta. O baile em andamento não passava de um zumbido distante. Deu outro gole, apoiando a cabeça na armação da roda. O céu azul e distante estendia-se sobre ele, mas havia sombras em torno. Havia sombras em seu coração e em seu cérebro, sombras negras, direcionando s«eus desejos para um mau caminho.
Hobie Evans cavalgava no meio, a montaria um ou dois passos à frente dos cavalos que o flanqueavam. Passaram pela hospedaria-bar e saíram da cidade tomando a direção oeste. Hobie ia relaxado sobre a sela, o olhar taciturno contemplando a terra adiante.
- Nunca pensei que veria um Calder bajular um bando de agricultores inúteis. - Ace Rafferty quebrou o silêncio.
- Nunca devíamos ter deixado o primeiro deles erguer um barraco - contrapôs rudemente Hobie, lançando em seguida um olhar faiscante e malévolo a seus compatriotas. - Vocês já entraram em alguma daquelas cabanas deles?
- Não. - Mas ambos mostraram súbito interesse com a questão, adivinhando que ele tinha algo em mente.
- Existe um cata-ninho que tem uma casa a uns dez quilómetros daqui. Querem ir ver o lugar? - Hobie riu.
Os três homens esporearam as montarias, que de trote passaram a galopar, dirigindo-se para a cabana do colono.
- Está ficando tarde, Lillian. - Stefan pegou-a pelo braço, olhando o sol se pondo no horizonte. - O sol vai se pôr daqui a uma hora. É melhor irmos indo.
- Tão cedo? - ela murmurou em protesto, mas sorriu uma concordância relutante. - Acho que temos de ir - concedeu. Fez-se um intervalo quando a banda parou.
- Vocês mulheres sempre gostam de dançar, mas amanhã tem trabalho de novo - ele recordou. Em seguida observou: - Você não disse se gostou de dançar com aquele Calder. - Dirigiam-se para a carroça.
- Gostei sim, tanto quanto a polca com o Sr. Anderson - ela replicou, embora as experiências tivessem sido inteiramente diferentes. - Hoje fiquei orgulhosa de você, Stefan. Você foi tão cavalheiro quanto Webb Calder.
- É? - Ele pareceu questionar a observação, mas Lilli se deu conta de que ele ergueu um pouco mais a cabeça.
Estranhamente, não encontrou satisfação no sentimento de que tinha proporcionado segurança ao marido. Os olhos azuis estavam enevoados com os pensamentos turbulentos em sua mente, ocasionados pela lenta descoberta de que Stefan fizera a pergunta por ciúme. Evidentemente, Webb Calder era mais jovem e mais forte, mais belo no modo rude com que a terra fazia os homens crescerem. Ela esperava que fosse somente o ciúme de um homem mais velho em relação ao mais novo. Stefan lhe era muito querido. Lilli não queria que ele soubesse que um lado seu a fazia sentir-se atraída por Webb Calder. Tinha certeza de que era natural gostar de alguém mais atraente e próximo a sua idade, mas isso não significava que considerasse Stefan de maneira inferior, embora duvidasse que ele acreditasse na inocência da atração.
Alguém chamou-os antes de passarem a primeira fila de carroças em torno da pista de dança. Ambos estacaram e olharam para trás.
- É Franz Kreuger - Stefan identificou o homem aproximando-se em ziguezague, atravessando o grupo de colonos.
- Tenho certeza de que quer falar com você. - Lilli nutria a impressão de que o vizinho não gostava muito dela, apesar de nunca ter demonstrado isso de maneira clara. - vou para a carroça esperar você lá.
Stefan assentiu e voltou-se para encontrar o amigo. Lilli deixou-se ficar por um momento observando-os. Na verdade, ela também não gostava muito de Franz Kreuger. Talvez ele tivesse adivinhado isso. Ele lhe parecia arrogante e intolerante com qualquer um que não partilhasse suas opiniões. Sabia disso e impingia suas opiniões tendenciosas sobre todos que o rodeavam. Lilli suspeitava que Franz Kreuger desconfiava daqueles que possuíam mais do que ele, especialmente os fazendeiros, mascarando sua inveja. Naturalmente Stefan discordaria, mas ele fora influenciado pela personalidade mais forte do vizinho.
Suspirando, Lilli voltou-se e foi lentamente até a carroça. Em certos pontos, os carroções estavam bem ocultos. Eles haviam chegado à área de dança tarde, portanto o deles ficara em uma das filas mais externas. Já anoitecera, mas o sol de verão ainda não se pusera e o ar estava quente. A banda recomeçara a tocar, mas a música foi levada para longe por uma brisa fraca.
Ela começou a cantarolar a melodia que a banda tocara quando dançou com Webb Calder. Podia quase sentir a pressão guia das mãos dele, levando-a a reproduzir os passos. Ele era uma pessoa importante, provavelmente o solteiro mais cobiçado da área, e ela dançara com ele. Para falar a verdade, só o vira na pista de dança duas vezes. Curioso como ele desaparecera logo depois de terminar de dançar com ela. Sentiu-se especial por ter sido uma das poucas a dançar com ele. Gostara da maneira como a fizera sorrir com a história divertida sobre cowboys dançando juntos. Por um breve segundo, ficara tentada a flertar com ele discretamente.
Era uma experiência nova ter um homem prestando atenção nela, especialmente um do calibre de Webb Calder. A maior parte da vida ela fora demasiado jovem; depois os pais haviam falecido e a dura realidade de viver sozinha tivera de ser enfrentada. Ela não fora cortejada, portanto a contradança com Webb Calder lhe proporcionara um pequeno exemplo de como seria a experiência. Stefan era tão sério e insensível, deveria se opor a que ela tivesse alguns minutos de excitação, mas Lilli sabia que essa não era a realidade.
Ao chegar ao vagão, a égua belga, Dolly, deu um relincho baixo e inquisitivo.
- Vamos para casa assim que Stefan chegar - ela tranquilizou o animal, os lábios levemente soerguidos. Ao invés de subir para o assento da carroça, ela se apoiou na lateral da boleia.
- Lilli. - Uma voz baixa chamou seu nome.
Ela se voltou, espantada. A vaga surpresa desapareceu no instante em que reconheceu Webb Calder. Não lhe ocorreu indagar o que ele estava fazendo ali ou por que a procurara. Por um momento, sentiu somente o prazer de revê-lo.
Ele se desenhava contra o pano de fundo oferecido pela planície, e parecia combinar com a paisagem que o havia forjado. Era algo que ela conseguia ver com clareza, tendo sido criada na cidade. com tanto espaço, ele crescera alto e forte, mas o sol e o vento haviam-lhe desenhado músculos delgados e bronzeado sua pele. Ele custava a sorrir, mas quando o fazia irradiava expressividade. Mesmo quando a olhava, como agora, os olhos escuros ainda refletiam o hábito de fitar longas distâncias.
- Oi - ela o saudou, desembaraçada.
Enquanto caminhava em direção a ela, Webb analisou a curva daquele corpo delgado e elegante contra a cortina de veludo das sombras. Não sobrara quase nada na garrafa de uísque, atirada contra a roda, alguns vagões atrás. Ele seguiu uma linha reta até ela, um pé determinado à frente do outro.
Webb deteve-se quando chegou perto dela. Os lábios carnudos de Lilli curvaram-se em um sorriso, e ele pensou entrever um carinho especial nos olhos azuis. O cuidado que ele deveria ter tomado se o álcool não estivesse dentro dele não surgiu. Após esperar tanto, sem saber o que queria, ele parecia ter encontrado o objeto de vontade.
- Está indo embora? -A voz continuava baixa.
- Estou - ela assentiu. - Stefan parou para falar com um vizinho e resolvi vir na frente.
As palavras dela deflagraram o sentimento sutil que ele captara com brevidade. Ela pertencia a outro homem. Todo aquele espírito audacioso e aquela beleza eram para Stefan Reisner. Webb vacilou, como um animal selvagem e ferido no fim de suas forças, vendo os outros da mesma espécie correrem livres. Pressão demais sobre a corda, e ela arrebentou. As mãos crisparam-se nos ombros dela, e ele a sentiu enrijecer, oferecendo uma resistência aturdida enquanto ele a trazia para junto de si.
Surpresa demais para lutar, Lilli mal teve tempo de pousar as mãos contra o peito de Webb, em um esforço instintivo de afastá-lo. O braço musculoso que envolvia-lhe a cintura apertou-a contra seu corpo forte e rijo; em seguida a mão dele apertou-lhe a nuca, segurando-a de forma a não poder evitá-lo. Ela sentiu o cheiro de bebida e se deu conta de que ele estava bêbado.
Um pequeno grito animal de luta brotou na garganta paralisada da garota, o qual foi silenciado pela pressão crescente da boca masculina sobre seus lábios. Ele os tomou com fome e ânsia bruscas. Era uma sensação louca, uma espiral decrescente que pareceu percorrer todo o trajeto até o estômago dela. Ela ficou assustada com a intensidade da sensação.
Estremeceu de alívio quando ele retirou a boca e percorreu o caminho até a curva do pescoço de Lilli; ela se sentia abalada e desnuda; a sensação não diminuiu sob a exploração e o impacto viril da extensão rija contra ela.
- Lilli, você não é dele - Webb murmurou pesadamente.
O som da voz dele pareceu liberá-la do silêncio entorpecido em que mergulhara. Lilli agarrou-se à crença de que ele não a teria forçado se não tivesse bebido. Como ele perdera a cabeça, cabia a ela permanecer calma.
- Sr. Calder, se o senhor não me deixar nesse minuto, vou ser obrigada a gritar - ela o informou. A voz soava controlada, mas esperava que ele não percebesse como estava a respiração.
Estava pronta a desculpar o comportamento dele e não dizer nada a Stefan se Webb a soltasse agora. A bebida levava os homens a caminhos que não tomariam quando sóbrios, ficou repetindo para si mesma, tentando racionalizar por que ela queria que o incidente fosse mantido em segredo.
A ameaça de Lilli não afrouxou a pressão dos braços dele, mas ele ergueu a cabeça, como se para constatar se ela ia cumprir o prometido. Com esforço, Lilli retribuiu o olhar com frieza, de modo a convencê-lo de que ia gritar se ele não fizesse o que pedira. Ele balançou a cabeça em um pedido silencioso para que ela não emitisse qualquer ruído, pousando a mão sobre a boca da garota, a palma calosa esfregando-lhe os lábios. Ainda assim, a delicadeza da atitude indicava que ele não pretendia verdadeiramente abafar algum grito.
Um segundo depois, afastou-se dela. O olhar sofrido quase partiu o coração de Lilli; descobriu que aquilo ao mesmo tempo a excitava e deprimia. Algo que estava tomando conta de seu coração, engolfando-a em uma luta tão antiga quanto os séculos, embora nova para ela. Frustração e dor percorreram-na.
- Ei! Não é fumaça? - gritou um homem fora do campo de visão, alguns carroções além. - Olha lá! A oeste!
O grito de alarme chamou a atenção de Webb, há muito treinado a manter-se alerta, o que o impedia de não responder. Ficou sóbrio assim que seu olhar arguto varreu o horizonte a oeste, detendo-se no vergalhão de fumaça erguendo-se no ar.
Fogo. Um homem não precisava viver muito nessa terra descampada para conhecer o tipo de devastação que o fogo no pasto seria capaz de provocar, uma vez disseminado. A fumaça parecia confinada em uma pequena área, mas poderia espalhar-se para toda uma elevação em questão de minutos, com toda aquela grama seca de verão como combustível.
Webb não perdeu tempo confirmando a visão. Pôs-se a correr para seu cavalo. A área em torno da pista de dança esvaziou-se de fazendeiros e cowboys, todos despertos com os perigos do fogo na pradaria. Os colonos novatos reagiram com mais lentidão, mas o alarme dos nativos de Montana foi contagioso.
Quando Stefan encontrou Lillian, ele não perdeu mais tempo com explicações do que Webb. Apressou-a para a carroça e pegou as rédeas, batendo-as no traseiro da parelha belga. Ela se agarrou ao assento com as duas mãos e aguentou firme.
Cascos vibravam no solo enquanto cavaleiros e carroças corriam em direção à crescente torre de fumaça. Webb estava entre o primeiro grupo a chegar ao local. O fogo começara no barraco de papel alcatroado de algum colono, alastrara-se e pusera fogo no capim em torno. Dali espalhara-se rapidamente. O calor do fogo gerara sua própria corrente, a qual inflamara as chamas.
Os cowboys desceram de suas montarias e demoraram o tempo suficiente para retirar os cobertores das selas e usá-los para apagar as chamas. Cavalos soltos espalharam-se e agruparam-se, atrapalhando as parelhas que chegavam. Um trecho largo de terra arada formava uma barreira ao fogo, confinando em um lado as chamas que se espalhavam.
O fogo se propagava rapidamente a oeste, e os vaqueiros empregaram todas as energias naquela direção, de modo a deter as chamas.
- Não tem um pingo da maldita água! - alguém reclamou. Sem água para molhar os cobertores, eles não seriam tão eficazes.
Ao lado dos restos ardentes da choupana havia um barril chamuscado e enegrecido que continha a água do colono. O conteúdo evitara que o barril pegasse fogo, mas havia muito solo queimado entre ele e os que combatiam o fogo para que o barril servisse para algo.
Os cowboys organizaram-se em uma unidade de combate, experientes na luta contra incêndios na pradaria, mas os colonos, com toda a ânsia em ajudar, juntaram-se no meio da confusão sem saber o que fazer. Webb, aturdido com o calor das chamas, percebeu os colonos desnorteados avançando hesitantes em direção ao fogo, sem cobertores ou armas exceto a própria vontade de acabar com o incêndio.
- Onde está a carroça de incêndio? - um deles perguntou. - Por que ela não chegou?
Webb reprimiu o arroubo de impaciência diante da pergunta e tirou o lenço que atara em torno do rosto para evitar inalar fumaça demais. A maioria dos colonos vinha da cidade, onde confiava em alguém para combater o fogo. Mas não estavam na cidade agora.
- Se algum de vocês tiver barris de água nas carroças, traga para cá.
- Webb gritou a ordem. - Molhem cobertores e casacos, tudo que tiverem, e usem para apagar as chamas! - Ninguém fez objeções às ordens dele, aliviados em saber o que deviam fazer, e de súbito Webb viu-se no comando. - Dispersem-se e formem fila! Não fiquem agrupados! Se o fogo mudar de direção, vocês vão ficar aprisionados em um círculo de fogo!
Um colono veio correndo até ele, ferido e pálido.
- Você tem que impedir que o fogo tome meu campo de trigo!
- Para o inferno seu campo de trigo! - vociferou Webb. - Se não detivermos esse incêndio, ele vai queimar centenas de quilómetros! - Empurrou o homem para uma brecha entre a fila recém-formada. - Fique aí.
Duas carroças vieram chegando, as parelhas de cavalos arremetendo e recuando diante da cortina de fumaça ondulante que anunciava as chamas avançando. Ambas possuíam barris de água. Webb saltou para a traseira de uma das carroças e levantou a tampa do barril.
- Vocês, senhoras! - Acenou para as mulheres hesitantes e ansiosas na retaguarda. - Comecem a molhar os cobertores para os homens, assim eles não vão precisar sair da fila! E se algumas de vocês tiverem pás ou ferramentas no carroção, tragam para cá!
Todas as mãos ocupadas no trabalho construtivo, Webb subia e descia a fila, atirando-se à ação onde havia focos de fogo. O calor das chamas expulsou o álcool do corpo com a descarga de adrenalina em seu sangue.
O fogo crepitava quase aos pés deles e a fumaça sufocante encheu os pulmões de Benteen, paralisando-o em um espasmo de tosse. Webb viu isso e agarrou o pai pelos ombros, guiando-o para longe do incêndio em direção a uma área próxima às carroças, segura e onde o ar estava relativamente livre de fumaça e cinzas esvoaçantes.
- Você está bem? - Webb deteve-se o tempo suficiente para fazer a pergunta e ver o balançar de cabeça afirmativo do pai. Em seguida, empertigou-se e gritou uma ordem para a primeira mulher que reconheceu.
- Ruth, tome conta dele e mantenha-o aqui.
Ruth acorreu, trazendo um canecão de água para o Calder mais velho. Ele aceitou, lançando um olhar agradecido à garota antes que corresse os olhos para o filho. Havia lágrimas em seus olhos, em parte causadas pelas chamas, mas em sua maioria provocadas pelo orgulho. Finalmente seu filho estava assumindo a responsabilidade de alguma coisa e dando ordens.
- Maldição, eu sabia que tinha isso dentro de você todo o tempo, filhO - sussurrou Benteen.
- O que disse, Sr. Calder? - indagou Ruth.
- Nada. - Ele balançou a cabeça, erguendo a caneca até a boca e deixando a água aliviar a garganta arranhada pela fumaça. Céus, estava cansado, pensou, apoiando-se em um vagão. Talvez a partir de agora não precisasse mais trabalhar tanto; deixaria Webb assumir as tarefas mais duras, para que pudesse passar mais tempo com Lorna. Deus sabia como ela merecia mais de seu tempo do que ele lhe dera.
Quase já haviam extinguido o fogo quando Webb sentiu que algo estava errado. Ergueu a cabeça, tentando identificar a causa, vasculhando a área do incêndio com o olhar. Demorou um segundo para perceber a mudança quase imperceptível da direção do vento. Houve um súbito crepitar e revolutear das chamas amarelas, virando na direção das carroças.
- O vento está mudando! - Ele gritou o aviso para os outros no fim da fila, dirigindo-se para o novo ponto de ataque.
Os que estavam mais próximos já haviam percebido a ameaça e con vergiam naquela direção. Ao correr para juntar-se a eles, Webb viu Lillí açoitando as chamas em uma espécie de frenesi aterrorizado. Ela estava demasiado próxima para obter bons resultados, e o fogo estava sendo propagado, ao invés de debelado.
Antes que pudesse chamá-la, a fumaça entrou pela barra da saia dela e ele ouviu o grito.
- Lilli, role! -Mas o medo que sentia impediu-a de escutar, tentando primeiro bater na saia e depois correr para as carroças.
Webb mergulhou sobre ela, jogando ambos sobre o solo. Pareceu-lhe nunca ter conhecido o medo até aquele momento. As mãos dela crisparam se sobre ele, tentando desvencilhar-se, mas ele a manteve deitada e agarrou o cobertor ensopado que ela estava usando, atirando-o sobre as pernas irrequietas e a saia carbonizada. Ele a imobilizou, mantendo-lhe o corpo junto ao chão sobre a pressão do dele e pressionanddo o cobertor em torno das coxas e quadris de Lilli. Passaram-se segundos longos e angustiantes antes que a saia parasse de queimar. Mas ela ainda lutava com ele solu çando histérica, os olhos fechados.
- O fogo acabou, Lilli - tranquilizou-a, correndo uma mão pelo rosto dela. - Acabou.
- Ainda estou sentindo cheiro de fumaça - protestou ela, a voz estrangulada.
- O fogo acabou - Webb repetiu, afrouxando um pouco do peso sobre ela, que começou a relaxar. - Prometo a você que acabou.
Ela levou a mão à boca como se para conter o choro.
- Estou sentindo o cheiro - insistiu, sem abrir os olhos.
Webb moveu-se, passando um braço sob ela e erguendo-a. Fraca, Lilli escondeu o rosto em sua camisa, chorando suavemente agora. Ele virou a cabeça para ela, os lábios cerrados esfregando as pontas dos cabelos.
Sua bobinha corajosa - ele sussurrou, meio irritado com o perigo que Lilli correra. Pegou-a no colo para carregá-la.
Em seguida, Stefan Reisner ajoelhou-se diante dele, os traços escurecidos pela fumaça fazendo-o parecer ainda mais velho. Seus olhos irradiavam ansiedade, enquanto estendia uma mão para a esposa.
- Ela está bem? - indagou. - O que aconteceu?
- A saia dela pegou fogo, mas acho que apagou antes que se quei masse muito. - Apertou os braços em torno dela, possessivo - vou carregá-la até a carroça, onde as mulheres poderão cuidar dela.
- Eu a levo. - Stefan insistiu que o direito era dele.
- Fui eu que a peguei. - Webb pôs-se de pé, recusando renunciar a ela e deixando Stefan sem escolha, a não ser concordar. Lilli parecia inconsciente a ambos, não importando que braços a envolviam.
Webb caminhou a passos largos até a carroça, Stefan seguindo-o de perto. A mãe de Webb e várias outras mulheres acorreram assim que o viram carregando alguém nos braços. Ruth foi uma das poucas que se deixou ficar para trás.
- Ela está ferida? - perguntou a mãe. Imediatamente, sugeriu:
Coloque-a na parte de trás da carroça.
Alguém abriu a carroça para que Webb pudesse colocá-la dentro.
- Acho que ela está mais apavorada do que outra coisa - explicou quando entregou-a aos cuidados da mãe. - A saia pegou fogo. Deve haver poucas e pequenas queimaduras nas pernas.
- Pobrezinha, ela desmaiou - murmurou a mãe, colocando a cabeça de Lilli em seu colo. - Alguém me traga um pano molhado. - Webb deu um passo atrás e imediatamente Stefan tomou-lhe o lugar. - Você é parente dela? - A mãe perguntou quando a mão trémula de Stefan tocou o ombro inconsciente da mulher.
- Lillian é minha esposa - declarou. - Ela vai ficar boa?
- Tenho certeza que vai. - Lorna tranqúilizou-o, lançando um olhar confuso em direção a Webb, como se questionando por que levara a garota para lá, ao invés de deixar o marido tomar conta dela.
Webb fez meia volta, o músculo da mandíbula saltando. Ao passar por Ruth, olhou-a sem ver, indo em direção ao foco do incêndio. Haviam contido as chamas, impedindo que chegassem aos carroções. Mas o fogo não terminaria até que a última brasa apagasse.
Lilli, movimentou-se, parecendo amedrontada, apesar dos olhos embaciados.
- O fogo... fumaça...
- Está tudo bem, Liebchen - murmurou Stefan, acariciando-lhe a mão.
- Stefan? - ela voltou a cabeça em direção ao som da voz dele.
- Estou aqui - tranqúilizou-a, e ela mergulhou novamente no universo da inconsciência. Os olhos tristes de Stefan voltaram-se para a mulher que segurava o pano molhado sobre a testa de Lillian. - Ela tem medo do fogo. Quando era pequena, um incêndio acabou com o prédio perto de onde ela morava. Havia pessoas presas dentro. Ela não conseguiu esquecer.
- Compreendo - murmurou Lorna, adivinhando ser aquele um dos muitos vínculos que uniam aquele homem mais velho e a jovem, a despeito da grande diferença de idade. Ela ficou pensando se Webb saberia como esses laços poderiam ser fortes. Vira o olhar dele ao carregar a garota e seu coração compreendeu.
Ninguém foi embora enquanto o incêndio não fora completamente extinto. Todos que moravam nas pradarias sabiam como um fogo aparentemente sufocado poderia arder lentamente e sem chamas e ressurgir. Assim, caminharam ao longo das cinzas apagadas, à procura de locais quentes sob o sol do crepúsculo. O incêndio tomara parte do trigal, mas boa parte não fora danificada.
Um pequeno grupo de colonos aventurara-se através do trigal queimado para inspecionar alguns restos carbonizados de madeira, evidência de que uma casa tosca existira ali. Um do grupo era o dono. Ele possuía muito pouco a perder, mas até este pouco se fora. Tudo que restara para ele e a família foram as roupas que usavam, a carroça e a parelha de cavalos e metade de um trigal.
- Nada. Não há nada - murmurou ele, acabado. Até o arado fora danificado pelo fogo. No centro da armação chamuscada, havia o metal carbonizado de um lampião quebrado.
- Foi a vontade de Deus - alguém sugeriu.
- Nenhum Deus fez isso - declarou Franz Kreuger. - Vocês acham que esse fogo simplesmente aconteceu? Alguém começou.
- Por que diz isso? - Stefan franziu o cenho.
- Porque é a verdade. - Mas Franz não forneceu provas. - Eles nos ameaçaram. Agora queimam nossas casas.
- Você acha que os fazendeiros fizeram isso? - indagou o dono, descrente. - Mas eles vieram e nos ajudaram a apagar o fogo.
- Para que não queimasse a terra deles, só a sua casa e seu trigal - apontou Franz. - Provavelmente eles estão tristes porque o trigal inteiro não pegou fogo.
- Temos que falar com o xerife - propôs Stefan, como o passo lógico a ser dado. Os outros assentiram em concordância.
- Vamos todos juntos falar com ele - declarou Franz, mas o cinismo nos olhos brilhantes demonstrava o ceticismo de que essa atitude resultasse produtiva. com a experiência que adquirira, sabia que o pequeno só consegue ajuda de outros em circunstâncias como essa. - Amanhã vamos todos vir ajudá-lo a construir outra casa.
- Não posso vir - Stefan desculpou-se. Tenho que tomar conta de minha mulher.
O colono Sokoloff assentiu sua compreensão:
- Sinto muito por sua mulher.
- Temos sorte de mais ninguém ter ficado ferido. - Franz Kreuger ofereceu-lhes um olhar que parecia indicar ser um deles o próximo. Durante muito tempo acreditara nas conspirações dos poderosos para que não as visse ali.
Seguros de que o incêndio fora extinto, fez-se um agrupamento em direção aos carroções e carruagens, famílias escurecidas pela fumaça e pela fuligem preparando-se fatigadas para partir. Três colonos haviam se oferecido como voluntários para permanecer no local e vigiar durante a noite para que o fogo não ressurgisse. Meia dúzia de vaqueiros montaram e saíram atrás dos cavalos soltos. Nate regressou trazendo o capão preto de Webb e mais dois.
- Nós nem chegamos a ver os fogos de artifício que iam soltar na cidade. - Havia um brilho seco e bruxuleante em seu olhar ao passar as rédeas a Webb.
- Acho que a maioria já teve excitação bastante para esse Quatro de Julho - respondeu Webb com um sorriso retorcido, montando. O céu púrpura formava silhuetas indistintas de pessoas cansadas vagando até as carroças a pouca distância. Somente os que estavam próximos eram visíveis.
E Webb reconheceu Stefan Reisner carregando um corpo envolto em um cobertor para a carroça.
- Lá vêm Shorty e Abe - anunciou Nate, puxando as rédeas da montaria e juntando a parelha. - Você vem?
- Em um minuto. - Webb lançou um olhar distraído para o amigo e incitou o cavalo com o joelho. Chegando à carroça dos Reisner, o homem de bigodes estava no assento com Lilli a seu lado, envolta num cobertor. Webb tentou vê-la na luz difusa. Ela estava consciente, mas havia um quê de alheamento em seus olhos. - Ela está bem?
- Ela vai ficar boa. - O homem retribuiu o olhar numa espécie de desafio. - Eu cuido dela.
Webb cerrou os lábios e afastou-se com o capão. Ao cavalgar em direção a Nate e os outros, olhou para trás. Sentiu um aperto no estômago ante a visão da figura delgada descansando a cabeça nos ombros da segunda silhueta.
Imersa em letargia entorpecida, Lilli, observava Stefan aproximando-se da cama, carregando uma pequena tigela de mingau e uma colher. No último minuto, ela ergueu-se o suficiente para sentar-se. Stefan deteve-se e trouxe para perto da cama uma das cadeiras que construíra, sentando-se. Os olhos ausentes o fitavam mergulhando a colher na tigela, mas a colher já estava a meio caminho de sua boca antes que ela esboçasse um protesto.
- Posso comer sozinha, Stefan - disse, a voz sem vida, erguendo a mão fraca para tomar a colher dele.
- Mas assim sei que você vai comer tudo. - Ignorou a tentativa da esposa e carregou a colher cheia de mingau até os lábios de Lilli.
A comida descia leve e sem gosto. Stefan não era o melhor cozinheiro, mas preparara todas as refeições nos dois últimos dias. Lilli sentia uma pontada de culpa diante do modo como ele a tratava, não deixando que levantasse um dedo para fazer algo sozinha. Fisicamente, não havia nada de errado com ela. Uma ou duas queimaduras na perna com certeza não a incapacitavam. No entanto, desde que Stefan a trouxera para casa naquela noite, se deixara ficar na cama, falando raramente, simplesmente deitada ali como se estivesse em uma espécie de transe. Stefan estava sendo a bondade em pessoa durante esse tempo.
- A maioria dos maridos estaria reclamando por fazer todas as refeições e serviços de casa. - Ela olhou para Stefan. - Você não disse uma palavra.
- O que são dois dias? - ponderou ele com um sorriso carinhoso.
- Você faz isso para mim o tempo todo. Agora, eu faço para você. - Mergulhou a colher no mingau. - Até você melhorar - acrescentou.
Ele nem mesmo indagara o que havia de errado. Lilli percebeu e analisou-o novamente com confusão maravilhada.
- Foi o incêndio. - Sentiu que ele merecia uma explicação.
- Eu sei - fez ele, empurrando a ponta da colher sobre a boca da esposa. - Coma.
O cenho franzido produziu pequenas linhas na testa de Lilli, que engoliu obediente a mistura suave.
- Não estou falando do fogo no pasto. Foi somente parte dele. Foi o prédio ao lado pegando fogo quando eu era pequena.
- Você não precisa falar sobre isso - Stefan tranquilizou-a.
- Eu...acho que quero. - A percepção foi gradual, e Lilli sentiu-se insegura quanto ao objetivo de falar. - Na outra noite, eu estava molhando os cobertores e levando-os aos homens lutando contra o fogo. Estava dando o cobertor a alguém quando vi aquelas chamas amarelas erguendo-se de repente. - Ela olhou além de Stefan sem ver realmente, revivendo a experiência que a aprisionara em um pesadelo infantil. - O fogo começou a se aproximar, mas eu não conseguia me mexer. Tive de ficar ali como aquelas pessoas no prédio em chamas. Aí minha saia pegou fogo e me senti como um deles. - O peito crispou-se, os músculos contraídos sem permitir a passagem de ar. - E a fumaça. Ainda posso sentir o cheiro da fumaça.
- Acabou. Você está aqui... sã e salva, felizmente - disse com segurança.
Os pulmões dela relaxaram, expelindo um suspiro de alívio.
- É. - Um sorriso abatido desenhou-se em seus lábios. - E estou me comportando como uma mulher idiota.
- Foi uma coisa apavorante para você. - Stefan indicou que não considerava a reação ao incidente algo de anormal.
- Sinto pelos Sokoloffs, perder tudo do jeito que perderam. - Descobriu que poderia pensar em outra pessoa que não ela. Talvez essa apatia que a levara a ficar insensível contra qualquer sentimento finalmente estivesse desaparecendo. - Que coisa horrível.
- Terrível, sim. - Stefan assentiu com insistência carrancuda. - Estamos convencidos de que o fogo foi iniciado de propósito. Contamos nossas suspeitas ao xerife.
- Alguém colocou fogo na casa de propósito? - Lilli franziu o cenho com a afirmativa. - Mas quem faria isso?
- Kreuger diz que um dos fazendeiros mandou seus homens fazer isso depois que teve certeza de que estávamos todos na cidade. Era a oportunidade perfeita.
- Mas por que a casa do Sr. Sokoloff? O que ele fez? - Achava inacreditável que ele fosse escolhido sem motivo.
- Foi um aviso para todos nós. A casa de Sokoloff era a mais perto da cidade, assim todos nós poderíamos ver.
- Kreuger disse quem ele achava que estava por trás disso? - No instante em que fez a pergunta, Lilli percebeu como o homem era traiçoeiro. Assim como Stefan, ela começava a aceitar tudo que Kreuger dizia, tivesse ele ou não provas do fato.
- Ele diz que Calder pensaria ser suficientemente poderoso para fazer tal coisa. E o filho dele saiu depois de dançar com você. - Stefan parecia observá-la atentamente, e Lilli tomou cuidado para não parecer estar evitando o olhar do marido. - Talvez ele não tivesse sido o primeiro a chegar. Talvez já estivesse lá.
Ela sabia que não, mas guardou o segredo para si.
- O que o xerife disse?
- Isso aconteceu fora da cidade. Ele diz que não pode fazer nada.
- A voz soava áspera, recordando o que Franz Kreuger dissera, ser a culpa de quem esperavam. - O xerife só pode nos proteger. Nossas propriedades são outro problema. Da próxima vez que formos à cidade, Franz vai também para me ajudar a comprar uma arma.
Stefan. O bom e gentil Stefan com uma arma. Era tão absurdo que Lilli sentiu vontade de rir, mas não conseguiu porque sabia que ele estava falando sério. O que realmente a assustava era a ideia de que ele poderia usar a arma. Gostaria de usar antolhos como um cavalo para não ver ou tomar conhecimento de nada disso.
- Vamos. Você tem que comer um pouco mais. - Ele ofereceu outra colherada.
Ela ficou pensando se o estômago subitamente embrulhado toleraria outra colher daquele mingau sem graça.
- Stefan, por favor, você não precisa mais me tratar como uma inválida. Sou capaz de me alimentar sozinha. - com força renovada, estendeu a mão para a tigela e a colher. - Você já gastou tanto tempo cuidando de mim que deve ter esquecido o trabalho. - Ao vê-lo hesitar, Lilli acrescentou: - Prometo que vou comer até o fim.
- Está bem. - Ele acabou sorrindo, relaxando a posse da tigela e da colher. - vou deixar você e voltar para o trabalho.
Depois que ele saiu do barraco de um só quarto, ela pousou a tigela no colo e ficou olhando a luz do sol refletindo no chão. Partículas brilhantes de poeira dançavam sob a luz que atravessava a janela.
Era julho e ela sentia frio. Sentia mudanças dentro de si que não desejava. Até Stefan estava se modificando. Pressionou os dedos sobre os lábios, sentindo-os. Um homem a beijara, e ela não contara ao marido. Não contara a Stefan que ficara sozinha com Webb Calder, mesmo quando ele era falsamente acusado de iniciar um incêndio. Por quê? Porque aquele beijo a fizera sentir coisas que não eram certas.
Durante aqueles momentos aterrorizantes no incêndio, foi a voz dele, os braços dele, a sensação do corpo de Webb pressionando o seu o que manteve sua ligação com a sanidade. Não mencionando o fato, deixara Stefan acreditar ter sido a força e a assistência dele o que a ajudaram. Jurara ser uma boa esposa para ele. Agora tinha de manter a promessa.
As esporas de Webb produziram um tilintar enfadonho quando atravessou o piso de madeira da entrada até o escritório. O pai estava sentado atrás da grande escrivaninha, estudando os livros de contas. Webb tirou o chapéu e passou os dedos pelos cabelos enquanto se aproximava da mesa.
- Barnie disse que você queria me ver. - Manteve o chapéu ao lado, batendo-o de leve contra a coxa, pequena demonstração da impaciência diante da convocação.
- É, queria. - A grande cadeira rangeu quando o pai apoiou o peso contra o espaldar, percorrendo Webb com olhar calmo. - Decidi que não vou ao rodeio nesse outono. Quero que você fique no meu lugar e supervisione a operação para mim.
- Barnie é mais qualificado do que eu. Por que não pede a ele ou Ely?
- Webb enrijeceu-se diante da súbita autoridade jogada sobre seus ombros.
Seguiu-se um momento de absoluto silêncio. Benteen lançou um olhar faiscante, de irritação evidente, a Webb, mas pareceu fazer esforço para controlar a raiva.
- Se eu quisesse Barnie ou Ely, teria pedido a eles que se encarregassem disso. Maldição, quero meu filho liderando o rodeio - declarou rudemente.
- É uma ordem? - indagou Webb.
Benteen curvou os cantos dos lábios para baixo, formando uma linha dura e severa.
- Não. - desviou o olhar de Webb. - Não é uma ordem. - A teimosia o levava a querer que Webb aceitasse a responsabilidade sem ter de receber ordem para tal. - Isso é tudo que eu queria. Você pode sair.
Ao começar a colocar o chapéu, Webb percebeu o pai pressionar a mão no peito e deixá-la ali. Deteve-se, os olhos estreitos de preocupação.
- Você está bem?
- Estou bem. - Foi uma resposta irritada, mas a mão custou a sair do peito. - Meu peito tem me incomodado desde o incêndio. - O pai resmungou uma explicação. - Acho que tenho muita fumaça nos pulmões. Só dói de vez em quando, e pára.
Webb apertava e soltava o chapéu. Estava meio decidido a dizer ao pai que mudara de ideia sobre o rodeio. O Velho Homem realmente parecia cansado. Provavelmente se sentiria mais tranquilo se soubesse que Webb estaria encarregado. Webb também sabia que Barnie e Ely ficariam perto dele, a fim de que não cometesse erros. Era isso que o irritava, saber que os dois homens estariam supervisionando-o. Eles só o estavam "deixando" ficar liderando.
- Estão falando que o incêndio foi provocado - mencionou o pai de passagem.
- Onde ouviu isso? - Webb franziu o cenho.
- Alguém ouviu na cidade. - Ele deu de ombros indicando fonte indefinida. - Não me surpreenderia se fosse verdade.
- O que o faz dizer isso? - Os olhos estreitaram-se.
- Muitos vaqueiros estão desempregados, e há um mal estar entre eles e os colonos. Isso está me cheirando ao tipo de brincadeira de mau gosto que um vaqueiro faria depois de uns dois drinques.
A observação fez com que Webb recordasse algo que não lhe parecera significativo antes. Hobie Evans e dois cowboys da Snake M saíram cedo para um baile. Menos de uma hora depois viram a fumaça.
- Hobie é um tipo intratável. - Fez uma pausa e olhou para Webb.
?? Todo homem é. É só uma questão de quanto. Você deveria ter isso em mente.
- Por quê? - Webb achou o conselho curioso.
- Para que não subestime, um dia, o que a oposição é capaz de fazer - replicou o pai, voltando a atenção para o livro aberto sobre a mesa.
Aquele parecia um aviso secreto. Webb guardou-o na cabeça, onde o deixou enquanto saía da Casa-Grande para reassumir o dia de trabalho.
As pedras chocalhavam sob os cascos do capão preto seguindo ao longo da ravina onde havia uma inclinação bastante pronunciada. Quando o solo nivelou-se e as passadas ficaram mais sólidas, o cavalo acertou o passo sem qualquer estímulo do cavaleiro, Webb Calder. O animal deteve-se imediatamente ao atingir o choupo jovem e a proteção de suas sombras. Orelhas negras viraram em direção ao cavaleiro, aguardando mais instruções.
A fazenda Reisner encontrava-se a aproximadamente um quilómetro e meio daquele ponto, a choupana perfeitamente visível. Webb chegara até esse local escondido há umas três semanas e desde então o usara quatro vezes. Duas vezes ele vira Lilli trabalhando no jardim ao lado da casa, mas em nenhuma das vezes deixara o esconderijo à sombra do choupo. Reisner estivera nos campos das redondezas. Por fim, Webb certificara-se de que Lilli estava bem, embora não procurasse enganar a si próprio de que essa era a única razão por que vinha.
Ao perscrutar os campos e a área em torno da casa de papel alcatroado, não viu sinais de Reisner. Os cavalos e a carroça não se encontravam lá. Da chaminé fluía fumaça, indicando que alguém estava em casa. Novamente ele olhou para os campos; em seguida saiu com o capão debaixo da árvore e atravessou a terra intermediária a galope.
Chegando ao barraco de um quarto, diminuiu a marcha do cavalo e observou de perto as mudanças desde a última vez em que estivera ali. Duas galinhas ciscavam a poeira sob a gamela de comida no curral. Havia um bombeador sobre a cisterna, e um canteiro de flores irregular mas determinado, crescendo ao lado da casa. O ar estava carregado do aroma de levedo de pão assando, o que lhe garantiu a presença da dona da casa.
Sem pressa, desmontou do cavalo e deixou as rédeas no chão, prendendo a montaria. A porta estava aberta, espécie de convite silencioso que ele prontamente aceitou. Webb deteve-se no umbral, deixando o olhar percorrer a figura esbelta da mulher de pé ao lado da mesa, de costas para a porta. Ela estava amassando pão, aparentemente inconsciente da presença dele. Tufos de cabelo escapavam do chapéu e caíam sobre o pescoço. O tom vermelho queimado não se mostrava na sombra escura dos cabelos, sem a luz brilhante do sol para expô-los.
Tirando o chapéu, ele correu os dedos pelos cabelos, em seguida bateu levemente com os nós dos dedos na moldura da porta.
- Tem gente? - A voz soou carinhosa e segura da resposta. Seus olhos irradiavam os mesmos sentimentos ao observar a rápida virada de cabeça e o olhar atirado sobre os ombros pela mulher. Houve uma rápida interrupção no trabalho com a massa antes que ela continuasse o ritmo anterior.
- Se está querendo água para o cavalo, pode retirá-la com o bombeador - disse ela.
Agradou-o ver que Lilli recordava a razão que ele dera para parar na última vez.
- Não foi por isso que vim. - O tilintar monótono das esporas avisava que ele estava atravessando a soleira da porta.
- O que deseja, Sr. Calder? - ela indagou sem virar-se.
Ele foi até a mesa, o olhar perscrutando o interior com suas paredes de jornal e mobília feita em casa. A cabeça escura de Lilli inclinava-se sobre sua tarefa, e não a ergueu quando ele estacou no canto da mesa. A frente do avental estava manchada com a poeira da farinha e havia uma pequena nódoa na bochecha.
- Vamos estar ocupados na temporada de outono do rodeio na fazenda durante as próximas seis semanas e queria ter certeza de que você tinha melhorado das queimaduras - Webb ofereceu o motivo.
- É muita delicadeza de sua parte, Sr. Calder, mas na verdade as queimaduras foram pequenas. Em poucos dias curaram sem deixar cicatrizes - ela o tranquilizou, continuando a bater e esmurrar a massa.
As luzes e sombras da sala e os aromas suaves possuíam estranha familiaridade. Webb circulou pela mesa, uma sensação de conforto e de estar em casa percorrendo-o.
- Quando era garoto, morávamos em uma cabana de troncos mais ou menos desse tamanho - comentou. - Aqui de pé, não parece fazer muito tempo. Acho que esse lugar me lembra um pouco minha casa.
- Stefan vai gostar de saber que você encontrou algo agradável a dizer sobre nossa casa. - Ela moldou o pão, fazendo com que as duas extremidades da massa se encontrassem.
O olhar dele estreitou-se ligeiramente diante da referência determinada ao marido. Quando finalmente ela ergueu a cabeça e ele conseguiu ver-lhe o rosto completamente, foi como se Lilli estivesse usando uma máscara. Webb preferiu ignorar a resposta.
- Tinha esquecido que fazer pão era tão difícil - sorriu. - Eu ia ficar roxo se apanhasse assim.
- Você tem que tirar o ar, se não o pão fica cheio de buracos - ela declarou, pegando o pão. Evitando passar por ele, ela foi pelo outro lado da mesa até o fogão e abriu a porta do forno. Ele a observou agachar-se para colocar a massa e ver como estava o pão que assava no forno.
- O cheiro está bom - ele comentou.
Fechando a porta do forno, ela empertigou-se e passou as mãos nervosamente pelo avental. Percebeu que ela estava evitando deliberadamente olhá-lo.
- Não cheguei a agradecer-lhe Sr. Calder, por ter apagado o fogo antes que eu fosse queimada mais seriamente - começou ela, pronunciando as palavras como se as tivesse ensaiado mentalmente durante algum tempo.
- Estou muito agradecida. Gostaria que soubesse disso.
- Você não precisa me agradecer. - Webb virou o chapéu de lado, tentando descobrir por que ela estava assim distante quando sempre fora tão aberta antes. - Só fiquei contente de estar lá na hora.
Ela baixou novamente o queixo e olhou em torno como se procurando algo.
- Foi muita bondade sua passar para saber de mim. - Umedeceu os lábios, fazendo esforço para olhá-lo de frente. Durante uns poucos segundos, ela pareceu indecisa. - Espero que compreenda que estou muito ocupada com o pão e todo o resto e não posso pedir que fique.
Foi uma maneira velada de dizer a ele para ir embora, mas Webb não acreditou na sinceridade dela. Cruzou o curto espaço que os separava e postou-se diante de Lilli. Havia uma agitação no soerguer dos seios.
- Você está com um pouco de farinha na bochecha, Lilli - estendeu a mão para limpar, mas ela virou a cabeça, afastando-se das mãos dele e limpando ela própria a mancha.
- É verdade que no passado deve ter parecido ao senhor que poderia me tratar de maneira tão familiar, Sr. Calder - ela disse muito empertigada. - Mas de agora em diante, eu gostaria que o senhor me chamasse mais adequadamente como Sra. Reisner, caso nos encontremos no futuro.
As sobrancelhas de Webb uniram-se numa carranca intrigada.
- Lilli...
- O senhor sabia que meu marido não estava aqui quando chegou, não sabia? - ela o acusou subitamente, um olhar ferido e zangado faiscando em seu rosto.
- Eu...percebi que os cavalos e a carroça não estavam - ele admitiu.
- A verdade, Sr. Calder, é que o senhor parou porque ele não estava aqui. - Ela controlou o tom de voz, retirando a inquietação e enfatizando a firmeza de seus propósitos. A suavidade daquela voz fez com que as palavras o penetrassem e apertassem suas entranhas. - O senhor veio aqui de propósito enquanto eu estava sozinha. Sou uma mulher casada, Sr. Calder, e não recebo visitas masculinas quando meu marido não está em casa. É impróprio o senhor esperar que eu deva. Portanto, tenho que pedir-lhe que vá embora, e agora. - Mas ela ainda não acabara. - E da próxima vez que vier e meu marido não estiver, não pare. Porque se o fizer, vou ter que bater com a porta e recusar qualquer hospitalidade.
Webb não podia, em sã consciência, discutir com ela. Sua posição era indefensável, o que tornava a situação de mais dura aceitação. Ele se sentia ferido por uma raiva injustificada. Ela estava em seu direito ordenandolhe que fosse embora.
- Por que não me quer aqui, Lilli? - Ele usou o apelido deliberadamente, desafiando-a por não querer recebê-lo. - Eu a faço lembrar muito que seu marido é um velho?
Raiva surda faiscou em seus olhos. Uma fração de segundo após, ela lançava a mão ao rosto dele, o que Webb não tentou evitar, sabendo que merecia o tapa devido à observação que fizera. Só que não foi um tapa leve no rosto. Toda a força de Lillian concentrou-se em sua mão, que bateu com força. O bofetão o sacudiu, enviando ondas dolorosas através da cabeça e fazendo-o perder o pouco controle que ainda tinha.
Em retaliação instintiva, Webb agarrou a mão que o esbofeteara. O primeiro tapa ele merecera, mas não aguentaria o segundo calmamente. Após uma tentativa de libertar o pulso, ela simplesmente o olhou falseando, o pulso lutando contra a pressão que ele estava exercendo. Webb podia sentir os tremores enraivecidos vibrando através do braço da garota. Ela sabia que não tinha chance em um embate físico com ele.
- Me solte ou vou gritar - ela ameaçou em voz baixa e tensa. Os lábios dele entreabriram-se em um sorriso duro.
- Foi o que você disse no baile, mas não fez isso.
Estendeu a mão para a cintura de Lilli, determinado a provar que estava certo ao pensar que ela o queria ali tanto quanto ele. Webb precisava da confirmação, para que pudesse justificar a própria conduta. A resistência selvagem foi facilmente contida quando os braços dele a envolveram e aprisionaram contra seu corpo.
Os seios arredondados apertaram-se contra seu peito e as curvas esbeltas dos quadris se acomodaram contra os dele. Não mais importava o fato dela carregar o nome de outro homem. Era difícil assimilar isso, mesmo sóbrio, e ele não tinha consciência nem remorso por tomar o que pertencia a outro homem.
Ela tentou expulsá-lo com os lábios, mas ele insistiu em tomar-lhe a boca. Ele conseguiu sentir o enrijecimento crescendo no corpo e o fluxo da vitória correndo em seu sangue. Webb afrouxou a pressão e ela continuou colada a ele. Era a prova, inegável evidência de que não estava errado em acreditar que ela o queria.
Quando ela afastou vagarosamente os lábios, Webb não tentou impedir. Através dos olhos semicerrados, entreviu a ternura dolorosa na expressão dela antes de virar a cabeça e baixar o queixo.
- Está satisfeito agora, Sr. Calder? - O som torturante da voz de Lilli atingiu-o até o âmago. Toda a sensação de orgulho foi lavada por uma lágrima que escorreu dos cílios da garota. - Ou ainda não fui suficientemente humilhada?
- Lilli... - Queria dizer a ela que aquilo não era errado; só que era e ambos sabiam disso. A frustração torturante sufocou qualquer falsa afirmação que ele poderia ter feito.
Quando ela se afastou de seus braços, Webb sentiu-se sem poderes para detê-la. Ela caminhou até a porta aberta, a cabeça inclinada como se incapaz de encará-lo, mas por outro lado havia também um quê de orgulho. E foi isso que ele viu.
- Por favor, vá agora - murmurou ela em um tom de voz quase destituído de emoção. - E não volte.
A boca de Webb crispou-se, o músculo da mandíbula flexionando-se convulsivamente. Sentiu-se tomado por ódio de si mesmo quando pegou o chapéu que deixara cair e atravessou a porta. O olhar deslizou pelo rosto pálido e composto. Nunca se sentira tão vil e desprezível em toda sua vida como quando passou por aquela porta e foi em direção a seu cavalo.
Não precisou olhar para saber que Lilli estava de pé no umbral da porta. Uma espécie de sexto sentido lhe transmitira a certeza. Agarrando as rédeas, Webb enrolou-as em torno do pescoço da montaria e enfiou a bota no estribo, montando com um só movimento. Por uma fração de segundo, Webb a fitou. Parecia que a sorte fora lançada desde o dia em que a conhecera na estação, só que na época ele não o sabia. Era inevitável, assim como era inevitável ter que ir embora. Não havia nada mais baixo do que arrancar a mulher de um homem, e ele fora quase até o limite. Não sentia muito respeito próprio, consequentemente ela tampouco o teria em boa conta.
com um leve aceno de cabeça Webb afastou-se, com o capão, da porta aberta e de Lilli. Quando estava prestes a esporear o cavalo, ouviu o bater de cascos e ergueu o olhar, vendo três cavaleiros atravessando a terra alqueivada e aproximando-se da casa. Todos os sentidos entraram em alerta ao reconhecer Hobie Evans e os dois cavaleiros do Snake Mali.
Enquanto os três cavaleiros aproximavam-se da cabana, foram freando as montarias até o trote resfolegante. Na expressão de Hobie ele viu um sorriso largo e especulativo, um brilho calculista e interessado no olhar, avançando em direção a Webb.
- Nunca esperava encontrar você aqui, Webb - declarou, correndo um olhar de inspeção por ele. - O que o trouxe tão longe do pasto da Triplo C?
- Eu ia fazer a mesma pergunta - Webb retribuiu calmamente, o olhar estreitando-se. Não lhe agradava muito aquele brilho de entendimento nos olhos do homem, nem tampouco a risada beirando a zombaria.
- E essa, agora? - Hobie correu os olhos para os dois cavaleiros acompanhantes, - Não é interessante, garotos? - Então ele pareceu perceber Lilli de pé no limiar da porta da cabana e retirou o chapéu, pressionando-o contra o peito em um gesto de respeito que não pareceu verdadeiro. - Como vai, senhora? - Cheirou o ar exageradamente. - Esse pão que a senhora está fazendo cheira muito bem. - Ela inclinou a cabeça em um cumprimento breve e cauteloso, mantendo-se em silêncio. - Seu marido está? - Hobie indagou, embora parecesse já saber a resposta.
Lilli lançou um olhar para Webb, os olhos azuis enevoados de apreensão, mas a resposta foi simples e confiante.
- Não.
Hobie incitou o cavalo para diante até ficar lado a lado com Webb, quase joelho a joelho. O chapéu caiu para trás, mas não ofuscou o brilho em seu olhar.
- O que é essa coisa branca em sua camisa, Webb? - desafiou, zombeteiro. Os músculos de Webb endureceram-se com a tensão. - Raios me partam se não parece farinha - declarou Hobie, fitando-o com expressão de quem sabe. - Imagino que você estava ajudando-a a fazer pão, hem?
A mão de Webb crispou-se na maçaneta da sela. Ele não olhou para confirmar que sua camisa estava manchada com as nódoas de farinha do avental de Lilli. Queria lançar o punho na garganta de Hobie e escurecer aqueles malditos olhos que viam demais.
- Cuide de seus negócios, Hobie. - Atirou a ordem por entre os dentes cerrados.
- Você fala como se estivesse em terras de seu paizinho, mas aqui você não tem direitos, Calder - lembrou Hobie, sentindo prazer com a situação.
- Estou dizendo a você para desembuchar por que veio - avisou Webb, pronto para arrancar o motivo, se fosse preciso.
- Ora, Webb, não precisa ficar nervoso. - Hobie soltou uma gargalhada despreocupada e jogou o chapéu para trás. Seu cavalo movimentou-se lateralmente, afastando o cavaleiro e Webb Calder e colocando a garota de cabelos castanho-avermelhados no raio de visão de Hobie. - Na noite passada aconteceu uma coisa desgraçada na Fazenda Snake M, senhora. Parece que alguém assustou parte de nosso gado e ele debandou, arrebentando uma parte da cerca. Depois disso, eles se espalharam. Alguns dos garotos estão procurando por eles até agora. Se vir reses desgarradas rondando por aqui com a marca Snake M, ficaríamos agradecidos se os levassem para casa. Sem dúvida detestaríamos ver o gado em seu trigal.
- Vou falar com meu marido para ficar de olho em seu gado - disse Lilli.
- Por favor, senhora - assentiu ele, ainda sorrindo; em seguida voltou a olhar para Webb. - Vejo você por aí, Calder.
- Eu já estava saindo, Hobie. vou acompanhá-lo - declarou Webb, afrouxando as mãos na sela e colocando a montaria em movimento.
Ao saírem do quintal da casa, Webb cavalgou ao lado de Hobie Evans. Seguiram a trilha feita pelas rodas da carroça, dividindo a terra alqueivada do trigal amadurecendo. Não havia nada que Webb pudesse dizer, nenhuma negativa que ousasse pronunciar em defesa da reputação de Lilli. Não pretendera fazer-lhe mal, mas fizera; mal irreparável.
- Webb, por que estou tendo a sensação de que você está nos escoltando para fora dessa terra? - Hobie indagou com um olhar de soslaio divertido.
- Não sei - replicou ele empertigado, lançando então um olhar lento e inquisitivo para o cowboy queixudo. - Talvez você esteja com a consciência pesada.
- Não sei por que eu teria a consciência pesada. - Hobie soltou uma risada curta. Durante longos minutos, o silêncio só foi quebrado pelo ruído de cascos trotando e o rangido das selas de couro. - Até que para uma invasora ela não é feia.
Webb puxou as rédeas do cavalo, o ódio ameaçando irromper, mas Hobie deteve-se, fingindo surpresa.
- Eu não diria mais nada, Hobie - Webb avisou bruscamente.
- Ei, Webb, vamos lá. - Hobie esboçou um gesto com a palma da mão erguida indicando que não havia com que se preocupar, os olhos sempré zombeteiros. - Uma jovem como aquela provavelmente se sente sozinha. Não tenho nada com isso se você quer alegrá-la de vez em quando. Eu também ficaria tentado.
- vou te dizer uma coisa, e não vou repetir. - Os dentes estavam trincados e os olhos escuros não podiam ser ignorados. - Se acontecer algo aqui, se alguma vaca entrar no trigal ou começar algum incêndio acidentalmente, se sequer erguerem uma única mão contra essa gente, mesmo se ? de brincadeira, eu mesmo vou cuidar disso. Fui claro?
- Claro como a água da chuva. - A diversão deixara os olhos de Hobie, tornando-os frios e mal-humorados.
- Ótimo. Porque, se acontecer alguma coisa, vou procurar você.- ? Webb manteve a pressão na rédea. - vou deixá-los aqui.
Hobie analisou-o com um olhar avaliador, e por fim deu rédeas ao cavalo, fazendo um semicírculo para juntar-se aos dois cavaleiros que o esperavam. Webb ficou no mesmo lugar, vendo-os cavalgar até se tornarem pequenos com a distância crescente. Por fim girou o cavalo em direção à cerca da Triplo C.
Após percorrerem mais de um quilómetro e meio, Hobie Evans deixou que seu cavalo saísse do trote e fosse mais lentamente. As montarias dos dois outros cavaleiros seguiram o mesmo passo. Ace Rafferty lançou um olhar ansioso para Hobie.
- Como é que você acha que o Calder descobriu que fomos nós que começamos o incêndio? - perguntou.
- Ele não descobriu - declarou Hobie. - Ele só jogou verde. Ninguém nos viu.
- Talvez ele tenha encontrado o lampião quebrado - sugeriu Ace.
- E daí? - desafiou Hobie. - O lampião era do agricultor. Quem é que vai saber se não caiu e quebrou durante o fogo? - com o olhar corria a terra de aparência monótona, característica irrequieta de seus olhos.
O terceiro cavaleiro, Bob Sheephead, aproximou sua montaria dos outros dois.
- Aquela não é a garota casada com aquele velho de bigodes brancos? Aquela que está sempre com o tal Roosky?
- É, acho que foi onde eu a vi - concordou Hobie sem interessar-se pela identidade de qualquer deles. Eram cata-ninhos, e em sua mentalidade preconceituosa, esse fato os colocava em um nível de vida consideravelmente inferior.
- Não admira que o Calder estivesse se pavoneando com ela feito um garanhão no pasto. - Ele sorriu. - Aposto que ela está mais do que sozinha. Talvez a gente devesse fazer uma visita amigável a ela qualquer dia desses.
- Você está maluco. - Ace fitou-o com olhar dúbio. - Às vezes acho que você é mais do que meio índio. Você ouviu o que o Calder disse ao Hobie.
- Estou tremendo de medo. - Bob Sheephead abriu os dentes em um sorriso. - Você não, Hobie?
- Eu também - concordou ele com uma risada seca. - Estou tremendo.
- Façam o que quiserem, rapazes - Ace declarou com firmeza. - Mas não pretendo desafiar um Calder.
Hobie apoiou-se sobre os estribos, olhando para a esquerda.
- Vocês tão vendo? - murmurou. - É um bando do gado Snake, não é? Estão pastando muito perto do trigal daquele colono. Seria uma vergonha se eles entrassem no trigal.
- Sem dúvida que seria - concordou Bob Sheephead com um sorriso largo. - É melhor corrermos até lá e pegá-los.
- É, é melhor - assentiu Hobie.
O cavaleiro soltou um berro e todos os três enfiaram as esporas nos cavalos, impulsionando-os para a esquerda. O gado disparou, direto sobre os talos altos do trigal. Os cowboys caçaram o gado com inépcia proposital e estouraram a boiada por sobre o campo. Os cascos retumbantes e agitados, com e sem ferraduras, esmagaram os talos de trigo, estragando fileiras extensas de grão. Cada vez que uma vaca tentava escapar para o pasto, um dos cavaleiros fazia o animal retornar ao trigal, estragando mais grãos.
O colono frenético veio correndo pelo campo, agitando os braços para deter a destruição de sua colheita. Nem o gado nem os cavaleiros prestaram atenção a ele. Desesperado, ele se agarrou ao bridão da montaria de Hobie Evans, violando a ética do pasto, a qual proíbe a interferência sobre o controle que um cavaleiro exerce em sua montaria. O cavalo empinou, arrancando o homem de seus pés e quase derrubando o cavaleiro. Mas o colono não largou o bridão.
- Você tem que parar! - ele insistia. - Está estragando meu trigo!
- Larga meu cavalo, seu maldito cata-ninho! - Hobie chicoteou-o com a corda de laçar, deixando um risco nos olhos do homem. com um grito de dor, o colono largou o bridão e o cavalo jogou-o no chão e pisoteou-o. Indiferente, Hobie viu o homem contorcer-se, cego, tentando evitar os cascos afiados do cavalo, e Hobie nada fez para afastar a montaria.
- Não está vendo que estamos tentando pegar esses desgarrados? - Hobie declarou com um tom de escárnio. - Tentamos pegá-los antes que entrassem no seu trigal. Fique fora do caminho, ninheiro. Sabemos o que estamos fazendo.
com uma gargalhada silenciosa diante do assombro do colono, Hobie disparou novamente atrás de uma vaca. Dessa vez, lançou o laço, fazendo-o cair em torno do pescoço do animal. Deixou a corda frouxa quando jogou o cavalo para o outro lado, fazendo peso contrário. A vaca arremeteu de costas, arrancando mais um pouco de trigo até conseguir equilibrar-se, começando a lutar e dar marradas contra a corda estrangulando-lhe o pescoço.
Quando finalmente os três cavaleiros se cansaram da brincadeira e conduziram o pequeno mas destrutivo grupo de vacas para fora do trigal, não sobrara muita coisa. O colono olhava em torno, a colheita praticamente arruinada. Em seu rosto havia uma expressão desolada e acabada, enquanto foi tropeçando em direção à família esperando junto à casa de céspede. O sangue gotejava do corte da corda que quase o cegara.
A notícia do desastre espalhou-se entre os colonos como fogo-fátuo. No dia seguinte, mais de uma dúzia deles convergiu para o terreno atacado para ver a extensão do dano com seus próprios olhos, oferecendo a ajuda que pudessem dar. No grupo presente, Stefan Reisner estava entre os quatro selecionados para ir à Fazenda Snake M de Ed Mace e exigir reparação. Franz Kreuger foi escolhido por unanimidade o porta-voz do grupo. Acomodaram-se todos em uma carroça e dirigiram-se para a fazenda.
Como a Snake M planejara enviar seu grupo para o rodeio no dia seguinte, quase todos os cavaleiros, exceto aqueles em campos limítrofes, encontravam-se na sede da fazenda, testando equipamento e arreios e selecionando cordas quando o carroção dos colonos surgiu. Dirigiram-se diretamente à construção de troncos de cinco quartos. Ed Mace estava no alpendre para recebê-los antes que descessem da carroça.
Todos os empregados perceberam a chegada e se prolongaram em suas tarefas enquanto ficavam de olho no grupo de colonos falando com o chefe na casa principal. O meio-índio Bob Sheephed foi devagar até onde Hobie Evans estava consertando uma tira frouxa da cilha. Agachou-se ao lado dele e entregou um pedaço de couro puído de rédea na mão dele, como se este fosse o objeto de interesse.
- O que acha que eles querem aqui? - o cowboy com cabelo de corvo perguntou a Hobie. - Calcula que vieram chorar o trigo destruído?
- Calculo. - Hobie apertou a cilha, testando-lhe a força, e lançou um olhar em direção à sede. - Parece que vamos descobrir.
Ed Mace aproximava-se do celeiro a passos largos, onde a maioria dos cavaleiros se deixava ficar. Os quatro colonos em seus trajes esquisitos de agricultor seguiam-no de perto. Hobie percebeu o desagrado na expressão do patrão, olhando impaciente sobre os ombros para os colonos colados a ele e sorriu para si mesmo.
- Escutem todos vocês. - Ed Mace pedia a atenção de seus homens, enquanto os colonos formavam um arco curto atrás dele. - Esses... senhores - hesitou deliberadamente diante do termo polido - vieram informar-me que parte do gado que se dispersou de nosso pasto outro dia entrou em um dos seus trigais. Eles também reclamam que três de vocês perseguiram o gado por sobre o trigal, causando ainda mais dano.
Deixando a cilha cair no chão, Hobie Evans ficou de pé e adiantou-se até a frente dos trabalhadores.
- Chefe, acho que eles estão falando de mim, Ace e o índio. Caçamos um grupo de gado que entrou no trigal de alguém.
- Ele é um deles. - O dono do trigal confirmou, pressionando a mão sobre o corte ao longo da bochecha, lembrança amarga.
- E você veio correndo abanando os braços como um corvo maldito.
- Hobie apontou para o homem e em seguida olhou para o patrão. - Poderíamos ter tirado o gado dali com quase nenhum dano se ele não tivesse se metido. O senhor sabe como são essas vacas de pasto. São mais rebeldes do que uma lebre. Ele veio abanando os braços e elas dispararam em todas as direções.
- Ele me chicoteou com uma corda e tentou me derrubar com o cavalo - acusou o dono.
- Você pulou na frente do meu cavalo - contrapôs Hobie. - Se eu não tivesse tirado você do caminho com a corda, ele o teria pisoteado.
- Isso é mentira. - Franz Kreuger deu um passo à frente. - Mas não viemos aqui porque bateram em Otto. Estamos aqui porque seu gado estragou um trigal. Seus próprios homens confirmaram isso. Exigimos que paguem pelo trigo que seus animais destruíram.
- Não me parece que meu gado teria estragado muito trigo se não fosse pelos atos desse... senhor, - Ele indicou o dono com um movimento de mão escarninho. - Ele alega ter perdido toda a colheita. Estou disposto a acertar os danos com ele, mas não vou pagar por todo o trigal. - Ele citou uma quantia bem abaixo do valor que o grupo queria receber.
- Mas gastei mais do que isso pelas sementes - protestou o colono, virando-se para os outros três em busca de apoio.
- Isso não é suficiente! - Franz Kreuger declarou zangado. - Não é justo.
- É a minha oferta. - Ed Mace desafiou-os sem hesitar. - Se não gostarem, levem o caso ao tribunal e esperem a data do julgamento. - Enfatizou o verbo, indicando quanto tempo demoraria. - A escolha cabe a vocês. Esperem e vejam se o juiz concorda, ou aceitem minha proposta, em dinheiro, agora.
O colono olhou para Franz Kreuger em busca de orientação, assim como os outros dois, incluindo Stefan. Franz fitou o adversário com olhar frio e analítico.
- Esse juiz... você o conhece? - indagou. Um sorriso brotou no rosto de Ed Mace.
- O juiz Paulson? Ora, crescemos juntos.
Franz Kreuger soltou um suspiro duro e voltou-se para o colono.
- Aceite a oferta dele. Se ele não te der, vai usar o dinheiro para comprar o juiz.
parte da manhã do rodeio era gasta aplainando ravinas e vales para o gado. Os cowboys agrupavam-se nos cantos mais distantes de uma certa área da pastagem e recolhiam todo gado que encontrassem, levando-o em direção ao centro, em um círculo progressivamente estreito para classificação e ocasional marcação dos animais que tinham conseguido arrebanhar na primavera.
O ar estava fresco e limpo, com uma certa frieza que parecia alertar para a chegada do inverno, tentando fazer com que os cavaleiros acelerassem suas tarefas. Webb levava o último grupo de vacas em direção à manada, composta em grande parte de gado Hereford, pastando sob um manto de poeira. A meio quilómetro do cercado, uma vaca rebelde começou a deixar o grupo.
Quando o animal disparou para o campo aberto, o baio cansado mas cheio de energia sob Webb rodopiou como um relâmpago para perseguir e trazer a vaca de volta. Mas a montaria tropeçou na segunda passada, quase derrubando Webb, e começou a mancar, protegendo a pata dianteira direita. Sem chances de trazer a vaca naquele momento, Webb percebeu-a acenando em adeus com o rabo alto.
Pelo canto dos olhos, percebeu um raio acinzentado e prendeu a atenção ali. Um cavalo grande e cinza-ferro galopava em busca da vaca, tentando interceptá-la antes que conseguisse a liberdade. O cavaleiro era nada mais nada menos do que seu pai. Enquanto desmontava do cavalo manco, Webb observou o cavaleiro primeiro verificar onde estava o bando a que a vaca pertencia, em seguida bloquear qualquer tentativa do animal de prosseguir e finalmente a vaca desistiu e voltou-se para juntar-se ao grupo. Evidentemente, tanto cavalo quanto cavaleiro entendiam de vacas, mas Webb não teceu comentários quando o pai se aproximou. Um homem fazia seu trabalho, e se fosse bom, as pessoas perceberiam. Se não fosse, elas também perceberiam.
Quando o pai desmontou, a mão de Webb inspecionou a pata direita do baio.
- Como ele está? - indagou o Calder mais velho.
- Parece que foi um estiramento de tendão. - Webb endireitou-se e acariciou o pescoço do cavalo, já coberto por uma manta felpuda de inverno. O pai não procurou conferir o diagnóstico com exame próprio. Um cavaleiro não questionava o julgamento de outro sobre seu cavalo. Webb olhou para o rebanho e os dois cavaleiros que vieram juntar seu grupo com os outros. - Não me lembro de ter visto o gado em melhor forma.
- E eles não conseguiriam metade do que valem no mercado o pai replicou, taciturno. - Disse a Barnie para reter tudo menos os piores e os antigos. Este ano temos mais feno para alimentá-los no inverno, então poderemos mantê-los até a primavera. Talvez os preços aumentem até lá.
- Mais cedo ou mais tarde, o mercado vai mudar. - Webb compreendeu o jogo que o pai estava fazendo, segurando todo aquele gado durante o inverno.
- Não conte com isso para logo. - O pai alertou em voz grave. Buli Giles escreveu que o próximo ano não promete ser melhor do que este. Ele disse que provavelmente vai haver uma alta pequena nos preços do gado na próxima primavera, mas não devemos esperar que a alta se mantenha.
Havia algo mais preocupando o pai. Webb sentiu que havia um motivo por trás da informação. Ela levaria a algo, mas não sabia exatamente o quê.
- O que você acha... mais uma semana e o rodeio termina? - o pai interpelou-o com um olhar de soslaio.
- Um dia a mais ou a menos. - Webb concordou com o tempo. Agora já fazia mais de cinco semanas, e as longas horas de trabalho começavam a cansar homens e cavalos.
- vou ter que dispensar alguns dos empregados, só durante o inverno, espero - declarou o pai. - Posso manter os casados com as famílias na folha de pagamento, mas os outros... - balançou a cabeça.
Webb franziu o cenho. Sabia que a situação não estava boa, mas não percebera que a fazenda estava mergulhada em apuros tão graves que tivessem que dispensar alguns dos empregados permanentes.
- Nate? Abe?
- Todos são bem-vindos. Podem ficar na fazenda, dormir no alojamento e comer no refeitório, mas não posso pagar salários a eles. - Benteen Calder não excluiu os dois companheiros de Webb, mas os incluiu por dedução.
- Vamos cuidar de todos esses bois durante o inverno com menos homens? - Webb não conseguia acreditar que o pai pretendesse assumir aquele risco.
- Não tenho escolha - foi a resposta curta.
Por um momento Webb não respondeu. Olhou para aquela terra cujos limites os olhos de um homem não conseguiam enxergar. Era uma terra árida e selvagem, testemunha de muitas modificações. Webb viu algo mais no horizonte.
- Talvez esteja na hora de procurar outras operações para a fazenda - sugeriu Webb com uma certa relutância carrancuda.
- O que quer dizer? - Benteen fitou-o com interesse.
- Quero dizer que a fazenda depende unicamente do gado. Talvez esteja na hora de diversificar as atividades. - Dirigiu-se ao outro lado do baio e lançou os estribos sobre a sela, para afrouxar a cilha.
- Diversificar como? Ovelhas? O mercado de lã está tão em declínio quanto o de gado - afirmou o pai. - A Austrália e a Europa já saturaram o mercado.
- Eu não estava pensando em ovelhas - replicou Webb, sabendo que sua sugestão seria considerada como uma blasfémia pelo pai. - O dinheiro alto está nos grãos.
- Trigo? - a palavra saiu em meio a um choque enraivecido.
- Estão plantando trigo à nossa volta - ponderou Webb com firmeza. - Já somos meio agricultores com o feno que cortamos e empilhamos. Não vejo por que não podemos expandir a criação para o trigo. Não é por falta de terra.
Os olhos do pai inundaram-se de raiva dolorosa e desilusão quando Webb finalmente olhou para ele.
- Pensei que você era um pouco inteligente, mas já vi que é tão estúpido quanto aqueles colonos.
- Você quer dizer os que estão plantando trigo? - Webb encolerizou-se.
- Você acha que estou arriscando porque estou segurando tanto gado. Mas aqueles colonos estão arriscando com a terra. O que vai acontecer se perderem?
- Talvez eles não percam. - Webb vira algumas grandes medas nos terrenos vizinhos ao pasto da Triplo C durante o período de rodeio.
- Eles vão perder, sim. - O pai declarou num tom de voz onde não havia dúvida. - Essas planícies possuem ciclos alternados de seca e umidade. Nos últimos tempos, temos tido anos de umidade, com chuva em quantidade adequada. Mas os períodos secos virão. Sempre vieram e sempre virão.
Webb sentiu um frio por dentro que não era causado pela brisa fustigante. Analisou o pai com os olhos semicerrados pela concentração, ouvindo as palavras da experiência.
- Provavelmente você é muito jovem para lembrar como era no princípio. - Benteen concedeu. - Vê essa grama? - indicou o emaranhado espesso cobrindo-lhes os pés. - Já vi esse capim queimado e marrom na primavera, raízes crestadas entrando por um solo seco e duro como rocha. Sem o capim para cobrir e segurar o solo, ele teria sido destruído pelo vento, Por isso é tão importante que não se paste exageradamente aqui. E aqueles colonos estão arrancando essa grama com o arado. Vamos ter seca novamente, e quando ela vier, aqueles colonos estarão em um deserto. - Lançou um olhar longo e duro a Webb. - A cada vez que você tenta fazer a terra ser o que não é, ela se vira contra você e o destrói. Se não se lembrar disso, essa terra não estará aqui para seu filho, caso algum dia você tenha um.
As palavras amargas pareceram ecoar no ar, enquanto o pai voltou-se e montou seu corpo altivo sobre o grande cavalo cinza. Deu rédeas à montaria, afastando-se de Webb e esporeando-a a um meio galope de volta ao rebanho.
Após mais de um mês e meio no pasto recolhendo gado, o grupo de trabalhadores da Triplo C que se dirigia à cidade transbordava de excitação com o pagamento de dois meses, prontos para se divertir. Lavaram-se de sujeiras e suores, barbearam os pêlos ásperos do rosto e puseram suas melhores roupas. Todos, exceto Webb e um ou dois outros, guardaram os últimos salários, mas nenhum deles pretendia segurar o dinheiro. O inverno poderia ser duro, mas eles teriam uma última aventura aconchegados em torno de um fogão na noite fria de Montana.
Cavalgavam ao longo da trilha de cascalho que servia de estrada principal levando a Blue Moon. Havia trilhas paralelas formadas pelas rodas das carroças e carruagens, enquanto marcas de cascos de cavalos cobriam o solo. Um objeto escuro bloqueava a trilha à frente deles.
- O que é aquilo? - Nate olhou para o obstáculo de cor negra no caminho.
- Parece o automóvel de Doyle Pettit - adivinhou um dos cavaleiros. - Acho que ele quebrou.
A possibilidade apresentava uma oportunidade de zombar do ex-fazendeiro transformado em empresário, a qual esses cowboys amantes de uma travessura não podiam deixar passar. com um brado, esporearam seus cavalos, incitando-os a galopar e descer em direção ao automóvel.
- Ei, garotos! - Shorty Niles apontou para o pneu, que fora retirado da roda e apoiado no pára-lamas traseiro. - Parece que o carro perdeu o sapato.
As gargalhadas não perturbaram Doyle Pettit, que examinava o tubo ; apertado ao pneu, tentando descobrir o furo. A grande caixa de metal na lateral do veículo estava aberta, mostrando uma variada coleção de ferramentas.
- Continuem rindo, rapazes. - Doyle esboçou um sorriso. - vou consertar esse pneu e chegar na cidade antes de vocês. - Ele localizou o furo. - Ah, está aqui. - Pegou um pedaço de lixa e pôs-se a esfregá-la na área.
- O que está fazendo aqui com essa coisa? - Webb debruçou-se sobre a sela para observar o procedimento curioso.
- Fui à casa do Big Jim Tandy. Ele está pensando em vender um pouco de sua terra, e eu tinha uma proposta a fazer a ele, que vai trazer muito dinheiro para nós dois. Você não vai acreditar nos preços da terra, Webb. - Ele balançou a cabeça, os olhos brilhantes de surpresa, estendendo a mão para a garrafa na caixa de ferramentas. - Já triplicaram desde a primavera, juro. Harve Wessel ficou ansioso. Comprei a parte dele na nossa sociedade. Ele acha que mudou para pastagens mais verdes, mas nada de ser mais verde do que aqui.
- O que é isso? - Webb apontou para a garrafa com um movimento da cabeça.
- Benzina. - Doyle disse o nome do produto. - Você passa na área em volta do furo, reveste o ponto com cola de borracha e aplica o remendo. Olhou para Webb e riu. - Posso fazer isso até dormindo. Calculo uns três pneus furados entre minha fazenda e a cidade, ou seja, estou com bastante prática.
- Pensei que precisava queimar pólvora para remendar essas coisas - fez Webb.
- Aí é um remendo quente, mais complexo. Demora mais tempo do que um remendo frio como esse. - Doyle explicou em termos que demonstravam seu conhecimento. - Tenho que dar uma passada para ver seu pai qualquer hora dessas. Nesse momento há uma fortuna a ser ganha com a terra.
- Pode falar com ele. - Webb empertigou-se na sela, pegando as rédeas para ir embora. - Mas acho que ele não vai ouvir. - Afastou a montaria do automóvel preto. - Vejo você na cidade, Doyle, e tome o cuidado possível, pois essa carruagem sem cavalo pode dar um pinote e jogá-lo longe.
- Se você não aparecer até o meio-dia, mandamos alguém com um cavalo para buscá-lo. - Shorty zombou, enquanto apontavam os cavalos para a estrada.
A três quilómetros da cidade, o grupo de cavaleiros ouviu a buzina do automóvel atrás deles. Dividiram-se em dois grupos, saindo da estrada a fim de abrir caminho para o veículo mais rápido. Doyle arriscou-se a tirar a mão do volante, o qual sempre agarrava com ambas, acenando-lhes zombeteiramente. com a passagem dele, os cavaleiros ficaram mergulhados em uma nuvem de poeira e vapores do escapamento.
Quando chegaram a Blue Moon, a rua estava repleta de carruagens e carroças, além das carroças de grãos. O celeiro deixara de ser assunto de conversa e fora erguido no fim da rua, próximo à linha do trem. Para quase todos os lugares que se olhasse, viam-se os agricultores e suas famílias. O congestionamento forçou os cowboys a frear os cavalos. Eles estavam estranhamente silenciosos, sentindo-se deslocados nessa cena, poucos se dando conta de que eram um anacronismo nessa sociedade mudada.
De seu assento na carroça recentemente transformada com a instalação de laterais mais altas para o transporte dos grãos, Lilli viu Stefan saindo do celeiro. Em seus passos percebia-se uma exuberância enquanto ele se aproximava da carroça.
- Cinquenta alqueires por hectare - proclamou o sucesso da colheita. Ela esboçou um sorriso, demonstrando prazer com a notícia, e ficou pensando por que não estava tão excitada quanto deveria. Era a realização do sonho de ambos; no entanto, ela se sentia curiosamente apática, enquanto Stefan subia para o assento a seu lado. - Estão dizendo que a Europa pode entrar em guerra, e acham que o preço do trigo vai aumentar no ano que vem.
- Boa notícia. - Embora não parecesse certo a Lilli que lucrassem com a adversidade alheia.
- Agora vamos ao banco. - Stefan tomou as rédeas e soltou o freio da roda.
- Vamos pagar o empréstimo? - ela sabia que Stefan não gostava de ficar devendo.
- Não, vamos pegar mais dinheiro emprestado e comprar mais terra enquanto ela ainda está barata - ele declarou. - E vamos precisar de dinheiro para mais sementes. Talvez até a gente compre um trator. Franz disse que um trator consegue arar em um dia o que uma parelha de cavalos levaria duas semanas para fazer. Poderemos plantar muito trigo.
Stefan não discutira nada disso com ela, mas era evidente que conversara com Franz Kreuger. Somente mais um exemplo de como ela e Stefan haviam se afastado. Não estavam mais tão próximos como antigamente.
- Pensei que íamos usar o dinheiro que fizemos nessa colheita para construir uma casa de verdade. - Lilli fez uma tentativa de recordar os planos iniciais que tinham. - Vai sobrar o suficiente para a casa também?
- A casa pode esperar - declarou ele. - No ano que vem, vamos ter muito mais dinheiro e poderemos construir uma casa bem grande.
Mas havia muito que ele não revelara. Ao invés de pagar a dívida, eles estavam pegando mais dinheiro emprestado, o que significava que teriam que fazer um orçamento bastante cuidadoso. Não haveria um centavo a gastar no inverno com supérfluos, ou mesmo com as necessidades menores.
- Vamos à loja comprar muitas provisões - avisou Stefan. - O inverno logo vai chegar e talvez demore bastante tempo até virmos novamente à cidade.
- É. - Mas Lilli estava olhando os cavalos com as selas atrelados em frente ao bar. Ficou pensando se Webb estaria lá dentro. Quase culpada, lançou um olhar para Stefan, e o silêncio entre eles aumentou. Não conseguiu decidir se era ela que estava mudando ou se era Stefan, mas as coisas não eram mais as mesmas entre eles.
Shorty Niles olhava incrédulo o homem de avental atrás do balcão.
- O que você quer dizer com não podemos beber nada? - indagou.
- Não servimos bebidas até as três da tarde - repetiu o homem. Agora, se quiserem algo para comer, sentem-se em uma daquelas mesas.
- Não quero nada para comer. Quero uma cerveja. Onde está o Sonny? - Shorty olhou em torno à procura do dono.
- Está na cozinha, cozinhando. - O homem fez um gesto brusco sobre o ombro.
- Desde quando isso aqui se transformou em restaurante? - Outro empregado da Triplo C abriu caminho até o balcão para juntar-se à exigência de explicação de Shorty.
- Desde que a cidade aprovou um regulamento que proíbe servir bebidas até as três da tarde - explicou o homem não muito pacientemente.
- Sonny não viu por que deixar o lugar vazio o dia todo, portanto começou a servir comida, já que a cidade não tinha restaurante.
Meia dúzia de mesas estavam ocupadas por comensais aproveitando o serviço adicional da hospedaria. Os cowboys eram o centro das atenções desde que haviam entrado no estabelecimento. Webb poderia afirmar que eles não eram bem-vindos.
- Não estou interessado nos regulamentos da cidade - declarou outro cowboy descontente. - Deixe-os comer e me dê um drinque.
- Temos um xerife que se interessa pelo regulamento - retorquiu o homem. - Ora, eu já disse a vocês que não servimos bebidas até depois das três. E se não gostarem, vou chamar o xerife para resolver isso.
- Por que aprovaram uma lei idiota como essa? - Nate franziu o cenho.
- Acho que eles não querem mais um bando de cowboys na rua molestando mulheres decentes - sugeriu o homem, desafiador.
- vou lhe propor uma coisa - interpôs-se Webb. - Por que não vende uma garrafa para nós e vamos para outro lugar?
- É. - Rapidamente houve um murmúrio de concordância entre o grupo. - Vamos ver Fannie.
- Fannie não está mais aqui. O médico instalou o consultório dele lá - o homem informou-os.
- O médico? Essa cidade tem médico?
- Um médico de carne e osso e certificado, chamado Bardolph.
- O que aconteceu com Fannie? - Aquela parecia ser a maior preocupação dos homens, já que preferiam a cura que ela proporcionava às feridas deles a qualquer remédio do médico.
- O xerife presenteou-a com uma passagem de trem para fora da cidade - disse o homem.
- Não estou gostando muito desse xerife - declarou Shorty.
- E a garrafa? - Abe Garvey refez a pergunta de Webb. - Também é contra a lei vender uma garrafa para nós?
- Não me lembro de haver alguma objeção contra isso - reconheceu o garçom. - Acho que posso vender. Mas vocês não podem beber aqui
- recordou. Seguiu-se uma demonstração zombeteira de mãos erguidas e juramentos solenes.
- É melhor duas garrafas - alguém sugeriu quando o homem agachou-se atrás do balcão. - Vai ser um tempo muito longo e sedento até as três horas.
- Aonde vamos?
Todos se entreolharam, tentando pensar em um bom lugar para beber, até que por fim alguém sugeriu:
- Vamos para a estação.
Dois dos vaqueiros pegaram uma garrafa cada um e as enfiaram nos bolsos do casaco. Juntos, saíram da hospedaria transformada em restaurante diurno e foram passeando pela calçada que levava até o depósito. Cumprimentavam as senhoras que passavam com um toque no chapéu e foram generosos nos cumprimentos às belas e disponíveis. As respostas eram sempre as mesmas. As quietas coravam e as outras soltavam risadinhas. E as mães sempre lançavam olhares austeros e desaprovadores para os cowboys, apressando as filhas virgens a se afastar.
Na estação, ficaram perambulando pela plataforma, usando os bancos e caixotes de frete. Após meses de solidão, sem ter com quem conversar a não ser cavalos e vacas, eles compensaram o silêncio e falta de companhia com bastante ruído e risadas. Mal tinham começado a segunda garrafa, o xerife aproximou-se deles a passos calmos.
- Desculpe, rapazes, mas não permitimos ociosidade em lugares públicos, e este é um lugar público. Vocês vão ter que sair daqui - declarou.
Houve resmungos e algumas palavras murmuradas, mas eles não discutiram.
- Diabos, de qualquer jeito eu estava sem tabaco - resmungou Nate.
- É, vamos ao armazém. - Shorty aproveitou a sugestão. - Estou querendo comprar um casaco novo para o inverno.
Saíram em bando, retraçando seus passos e passando pelo bar para ir ao armazém geral. Um motorista intrépido entrou na cidade, fazendo ruídos explosivos de descarga em outra daquelas carruagens sem cavalos. Um colono lutou para controlar a parelha de cavalos, evitando que disparassem. Distraídos com a agitação na rua, Webb caminhou na direção de uma mulher que saía da loja, atirando os pacotes na calçada de madeira. Agarrou-a para que não caísse também.
- Desculpe, senhorita, eu... - deteve-se abruptamente, olhando fixo aquele par de olhos azuis familiares. - Lilli. - O nome saiu junto com o suspiro suave que soltou. As mãos dele imediatamente tornaram-se delicadas, a pressão transformando-se em carícia involuntária.
Por um segundo, ele entreviu um carinho brusco nos olhos dela; por fim, Lilli baixou o olhar, ocultando seus sentimentos. - A culpa foi minha, Sr. Calder - murmurou, mexendo os ombros ligeiramente, pedindo silenciosamente que ele retirasse as mãos dela. - Eu não vi para onde estava indo.
Ele a soltou um pouco rápido demais, dura frustração preenchendo-lhe as entranhas. Ao vê-la ajoelhar-se para pegar os pacotes espalhados, ele foi levado a ajudá-la.
- Deixe que eu pego para você - insistiu.
- Pode deixar - ela retrucou, concisa.
- É o mínimo que posso fazer por quase tê-la derrubado. - Webb juntou a maioria dos pacotes e entregou-os a ela. Novamente de pé, disse:
- Eu me ofereceria para levá-los até sua carroça, mas...
A porta abriu e Stefan Reisner saiu carregando um rifle novo e brilhante. Ao ver Webb com Lilli, a expressão em seu rosto acendeu-se com a suspeita. Imediatamente colocou-se ao lado da esposa.
- Ele a está incomodando, Lillian? - inquiriu, só que dessa vez perguntou antes de desafiar Webb.
- Não - respondeu ela rapidamente, lançando um olhar entre os cílios para Webb. - Deixei cair alguns pacotes e o Sr. Calder teve a bondade de pegá-los para mim.
Webb percebeu a descrição alterada do incidente, mas não a corrigiu. Fosse qual fosse o motivo para a mentira, não era ele que ia revelá-la.
- Esse rifle parece bom, Sr. Reisner. - Webb percebeu que o cano estava distraidamente apontado em sua direção. - Vai ser bom nesse inverno para caçar, embora não haja mais muita caça por aqui. Os coelhos podem estar bem gordos, apesar disso. - Webb fez uma pausa, perguntando em seguida: - Já usou muito rifles, Sr. Reisner?
- Sei atirar. - Ele estava colocando uma caixa de balas debaixo do braço.
- Não sei como é o lugar de onde o senhor vem, mas por aqui... casualmente, ele estendeu o braço e apoiou um dedo sobre o cano da arma, apontando-a em outra direção - não apontamos um rifle para nada, a não ser que se pretenda atirar. É considerado falta de educação.
- vou me lembrar disso.
Eles continuaram frente a frente enquanto Lilli postava-se de um lado, observando-os inquieta. O ar parecia pesado com o antagonismo velado que corria entre os dois homens, cuidadosamente indefinido.
O xerife interpôs-se.
- Qual o problema aqui?
- Nenhum problema, xerife. - Webb replicou com olhar tranquilo.
- Eu só estava admirando o rifle novo do Sr. Reisner e desejando-lhe boa caçada. - Tocou o chapéu com a ponta dos dedos, cumprimentando Lillian. - bom dia, senhora.
Passou pelos dois e entrou na loja, ouvindo o arrastar dos vários pares de botas de salto dos cavaleiros da Triplo C atrás dele. Energia rude e arrojada pulsava em seu sangue. Webb queria bater em algo, qualquer coisa.
A atividade era intensa no interior do armazém cheio de fregueses, famílias inteiras de colonos circulando entre mercadorias e suprimentos. Jovens de calções com um centavo para gastar hesitavam entre potes de doces variados, a decisão de qual comprar quase tão doce quanto a guloseima.
Webb foi até os fundos da loja, afastando-se das janelas da frente para que não visse Lilli entrando na carroça com o marido. Todos os cavaleiros da Triplo C permaneceram juntos em um grupo barulhento, passando os olhos pelos artigos à venda. Nate era o único que pretendia fazer compras e foi até o balcão comprar tabaco. Webb seguiu-o, inquieto.
Um novo vendedor perguntou se podia ajudar Nate quando Ollie Ellis, o proprietário, aproximou-se e mandou o vendedor atender outro freguês. A princípio Webb não pensou nada a respeito, apesar da expressão dura e eficiente do dono. Ollie Ellis sempre atendera pessoalmente representantes da Triplo C, portanto dessa vez a situação não pareceu diferente.
- Em que posso servi-los? - a indagação fria não se fez acompanhar nem ao menos de um aceno familiar.
- Preciso de tabaco. É melhor uma lata inteira de Prince Albert acrescentou Nate, dando-se conta de que o tabaco deveria durar o inverno inteiro.
- Só isso? - Havia algo na voz do dono que denotava ressentimento diante de compra tão insignificante.
Por trás deles, Shorty Niles experimentava um chapéu de mulher, seguindo-se de apupos e gargalhadas dos outros vaqueiros. Shorty sempre fora metade palhaço e metade galo de briga, consequentemente, tanto seu temperamento quente quanto suas brincadeiras eram igualmente conhecidos pelos comerciantes locais.
- É, é só isso - replicou Nate, enfiando a mão no bolso para pegar o tabaco.
- Então agradeço a vocês se pegarem o tabaco e seus amigos e saírem da loja. - O pedido do proprietário foi lançado em frases polidas, calmamente, mas com firmeza. - Vocês estiveram bebendo e não quero que criem caso aqui ou ofendam meus outros fregueses.
Webb voltou-se, não acreditando inteiramente no que ouvira, mas viu pouco respeito ou delicadeza no rosto do homem.
- Os garotos são um pouco desordeiros, Sr. Ellis, mas não estão fazendo nada. - A irritação que estivera contendo estava prestes a escapar.
- Há seis semanas que estamos na sela de um cavalo e viemos à cidade para nos divertir um pouco. Não estamos aqui para criar confusão.
- Só estou pedindo que façam seu "divertimento" em outro lugar.
- Ao perceber a dureza no rosto de Webb, Ollie Ellis acrescentou nervosamente: - Espero que saiam em paz. Não gostaria de ter de pedir ao xerife para removê-los do recinto.
- Nós vamos sair, tudo bem. - Havia uma calma sepulcral na voz de Webb. - Mas você tem a memória fraca, Ellis. Você e todos dessa cidade que estavam aqui antes dos colonos chegarem. Era o nosso comércio, o comércio do gado, que mantinha seus negócios.
- Os tempos mudaram - replicou o dono, um pouco na defensiva.
- Mas a ganância, não. Você sentiu o cheiro do dinheiro no bolso de outro homem e só consegue pensar nisso. É como um cachorro olhando o próprio reflexo na água e vendo um osso maior, só que você deixou cair o seu, Ellis - murmurou Webb friamente. - Porque minha memória é melhor que a sua, e não vou esquecer isso.
- Ora, veja bem, você não tem direito de falar comigo assim - protestou Ollie Ellis com dignidade afrontada. - Meu pedido foi perfeitamente razoável e...
Mas Webb já dera meia volta, afastando-se do balcão sem ouvir uma única palavra.
- Vamos, rapazes - disse para os outros. A relutância inicial foi silenciada pelo olhar duro que viram no rosto de Webb. Rapidamente foram atrás dele. Foi Nate quem deu a explicação para a saída brusca da loja.
- Parece que não somos bem-vindos em nenhum lugar dessa cidade - um deles resmungou.
- Eu nunca fiquei onde não era bem-vindo.
Alguns minutos depois, o grupo de cavaleiros trotava para fora da cidade. Não levavam boas lembranças, somente o gosto amargo na boca.
Na cama, naquela mesma noite, Stefan fez sua exigência e Lilli entregou-se. Depois que ele terminou, ela deitou de costas olhando para o caminho prateado.
Lá está um Calder, Agora sozinho, Voltando-se para a terra, Entregando-se a Triplo C.
Grandes flocos de neve caíam de um céu cinza desmaiado que som, a paisagem branca e desolada. O ar estava frio, queimando as áreas do rosto de Webb. Um longo cachecol de lã envolvia-lhe o chapéu e o pescoço, parcialmente erguido de forma a cobrir nariz e boca. Sem inclinar a cabeça, ele perscrutou o céu de dezembro, buscando sinais do tempo, enquanto o capão preto com uma camada branca afundava em meio a um amontoado de neve até atingir uma região varrida pelo vento com somente meio centímetro de neve.
O céu estivera ameaçador a manhã inteira e o ar cortante com a friagem da massa de ar do Ártico. Até então, o vento permanecera calmo, como se congelado pela temperatura gélida. Mas Webb estava alerta para qualquer mudança do vento para nordeste, que os índios chamavam Lobo Branco: uma tempestade uivante do Ártico que se abatia sobre a terra. Ele podia quase sentir o cheiro dela no ar enquanto cavalgava até os campos limítrofes naquela manhã.
A rota o levara a fazer um círculo quase completo em torno da seção do pasto que patrulhava. Webb trouxera todo o gado das áreas distantes para mais perto do campo e das medas de feno que os alimentariam quando a neve se tornasse muito intensa para que pudessem ir à procura de forragem. O capão resfolegou, a respiração quente saindo em ondas grossas de vapor. Sem virar a cabeça, Webb lançou um olhar na direção apontada pelas orelhas empinadas.
Uma vaca chapinhava na neve, mas os movimentos desajeitados não eram provocados pela profundidade da neve que cobria a área. O animal estava ferido, uma perna quebrada, ao que parecia. Webb foi em direção à vaca- Houve uma tentativa desajeitada de esquivar-se da aproximação de Webb, mas a vaca branca viu o cavalo e estacou na neve e voltou os olhos cheios de dor e rebeldia para Web.
A perna dianteira esquerda torcera em um ângulo estranho, indubitavelmente quebrada. Era uma velha vaca, o que era um consolo. Dali a mais dois anos ela provavelmente seria separada do rebanho. O ferimento devia ter acontecido nas últimas horas; caso contrário, os lobos a essa altura já a teriam pegado.
- Se os lobos não a pegaram, a tempestade vai pegar. - O pesado cachecol de lã abafou as palavras murmuradas e verteu o calor da respiração do rapaz sobre seu rosto. - Então é melhor acabar com seu sofrimento, Veterana.
O couro endurecido pelo frio rangeu sob a mudança de peso quando Webb tirou uma perna entorpecida da sela, pisando no solo coberto de neve. Os dedos enluvados tiveram dificuldade com a tira de couro da bainha do rifle. Ele deu um passo à frente do capão, ficando frente a frente com a vaca de olhos arregalados e colocando uma bala na câmara.
Flocos de neve redemoinhavam através do silêncio. Ele passou um braço pelas rédeas amarradas antes de erguer a base do rifle até o ombro. Não queria que o capão se assustasse com a explosão do tiro e o deixasse a pé nesse campo distante. O capão puxou o freio de metal quando Webb mirou na vaca e puxou o gatilho.
O estampido ensurdecedor do rifle destruiu a calma da manhã cinzenta. Abafando o baque ruidoso da vaca esparramando-se sobre a neve. Ele expeliu o projétil vazio da câmara e voltou à sela, enfiando o rifle na bainha. com a tira presa sobre a base, colocou uma bota sobre o estribo e lançou o corpo entorpecido pelo frio para a sela, mas a visão da vaca morta e da neve manchada de escarlate o deteve.
Era uma vergonha deixar a carcaça para os lobos e coiotes disputarem. A idade da vaca tornaria a comida dura e fibrosa, mas mesmo assim parecia-lhe um desperdício de carne. Ele mesmo poderia cortar um quarto, só que já possuía bastante suprimento de carne no campo limítrofe.
Webb sabia para onde seu pensamento estava se voltando e, por mais que tentasse, não conseguia deixar de pensar em Lilli. Exceto se um colono tivesse seu próprio novilho, carne não era exatamente o esteio da dieta dele. Bife fresco vinha principalmente da caçada. E aqui estava uma carcaça inteira de carne.
Ele voltou a cabeça em direção leste. com o gado todo levado para o campo, não havia nada a fazer a não ser sentar-se na choupana do campo e esperar pela tempestade. Seu trabalho estava concluído e não parecia que a tempestade fosse começar logo. Havia algumas horas para ir até a propriedade dos Reisner levar a carne, talvez até mesmo para voltar antes que o tempo piorasse muito.
Depois disso, sua decisão estava tomada. Ele tirou a bota do estribo e pegou a faca de caça na sela. O procedimento consistia simplesmente em abrir a veia jugular e deixar a vaca sangrar. Levaria mais tempo providenciando uma haste de árvore jovem para amarrar a carcaça com a corda. A neve parara quando Webb montou e dirigiu o cavalo em direção leste.
Durante todos aqueles anos na cidade, confinada em um apartamento de conjunto habitacional com dois quartos pequenos, junto com mais três pessoas , Lilli nunca se sentira tão presa como naquela choupana de um quarto. Sentia-se irrequieta e irritadiça, revoltando-se contra todas as pequenas tarefas que fariam o tempo passar. O universo cinzento do lado de fora parecia fazer pressão e entrar, tornando a choupana ainda menor.
Os pratos do café-da-manhã ainda estavam à espera, recordação gritante de que ela estava negligenciando suas tarefas. Lilli desviou o olhar e continuou a folhear as páginas gastas de um catálogo sem nem mesmo vê-las. Por fim, jogou o livro sobre a mesa e foi até o fogão esquentar água para os pratos.
Havia uma variedade infinita de coisas que deviam ser feitas. Consertos, pão a ser assado, pedaços de tecido para uma colcha, lenha a ser colhida para o forno, sem falar nos pratos do café-da-manhã e do almoço não muito distante. Ela simplesmente não entendia como Stefan conseguia passar o tempo ociosamente, sem mostrar sinais de tédio. Nunca pensara que a calma dele fosse tão irritante, lançando um olhar faiscante em direção ao marido.
Ele estava pondo seus agasalhos, camadas de roupas para combater o frio lá fora. Ela pensou que ele ia ver os cavalos, o que lhe pareceu uma deserção. Já era ruim tentar conversar com o marido taciturno e manter um diálogo, mas era ainda pior não ter com quem falar.
- Onde você vai? - ela perguntou, pronta a tirar a chaleira do fogão e acompanhá-lo até o galpão dos cavalos, ao invés de ficar sozinha nessa prisão de quatro paredes.
- Caçar. - Uma única palavra foi a resposta que ele sentiu ser necessária enquanto pegava o rifle do porta-armas em cima da porta.
Ela devia ter imaginado, Lilli percebeu. Ele mencionara que precisavam de carne fresca hoje pela manhã quando saíram para dar água aos cavalos.
- Vou com você - fez ela.
- Está muito frio. - No que se referia a Stefan, aquela era a conclusão. Quando se decidia, dificilmente mudava de ideia. Lilli meio que desconfiou que, como Franz Kreuger não deixava a esposa ir caçar com ele, Stefan também não permitiria. Stefan parecia estar adquirindo mais e mais as características do vizinho.
Quando ele se aproximou para beijá-la em despedida, Lilli ofereceulhe a bochecha friamente. Sentiu a barba esfregar-lhe a pele e em seguida ele já se empertigava. O carinho afetuoso nada significava, a excessiva brandura retirando o sentido do gesto.
- Estou de volta na hora do jantar. - Ele se virou e caminhou até a porta.
Ela não se ofereceu para preparar comida para a caçada, nem tampouco desejou boa sorte. Ao ouvi-lo puxar o trinco, Lilli de súbito pôs-se a examinar a própria atitude insensível.
A origem ia além do simples ressentimento por se ver privada de companhia e deixada nesse cubículo sozinha. A insatisfação íntima crescia há algum tempo. Podia percorrer todo o caminho de volta até o primeiro encontro com Webb Calder.
Atormentada pela culpa que sempre surgia quando pensava em Webb Calder, Lilli correu para a porta fechada. Uma rajada de neve entrou pela porta que ela abriu, juntamente com uma lufada de ar frio. Stefan atravessava pesadamente a neve, a vários metros da casa, o rifle ao ombro.
- Stefan! - Ela contraiu os ombros, tremendo de frio na porta. Quando ele se voltou, Lilli sentiu afeição e amizade singulares percorrendo-a novamente. Percebeu que estava sendo ingrata com a bondade e gentileza que recebia. - Parece que vai haver uma tempestade. Não vá muito longe! - gritou, preocupada.
Ele ergueu a mão demonstrando que ouvira, em seguida voltou-se e recomeçou a atravessar a neve, uma figura escura e arqueada em um mundo branco-acinzentado. Lilli fechou a porta e correu para o fogão para aquecer-se. Olhou em torno. Quando ele voltasse, jurava ter feito tudo e preparado um jantar quente para ele. A chaleira estava fervendo para aquecer a água da neve na bacia. Ela derramou o líquido na bacia. O trabalho era sempre a maneira mais rápida de aquecer-se, ela recordou a mãe dizendo.
As nuvens aproximavam-se da paisagem árida e coberta de neve, tornando terra e céu indiscerníveis. A área escura no quadro cinzento foi se tornando progressivamente maior, conforme Webb se aproximava. A fumaça saindo da chaminé misturava-se ao céu. Ele podia sentir o aroma no ar, mas não conseguia distinguir o rastro fino das nuvens cinzentas.
A carroça coberta de neve estava ao lado dos postes descorados do curral. O abrigo contra o vento para a parelha de tração fora fechado de forma a criar um galpão onde os animais tivessem proteção contra o tempo inclemente. No momento, Webb podia ver as duas éguas focinhando a palha espalhada em torrões, servindo de pasto. Havia um brilho de luz dentro da choupana, em grande parte bloqueado pela cobertura na janela.
O capão preto parou por si mesmo próximo à porta, como se pressentindo ser este o destino deles. As pernas de Webb estavam entorpecidas e duras de frio. Sentiu-as como duas varas mortas ao tentar desmontar, não muito propensas a suportar-lhe o peso quando conseguiu pisar o solo. Bateu o pé para reanimá-las, com resultados vibrantes, a dor atravessando-lhe o corpo.
- Ô de casa! - chamou os ocupantes da choupana, avisando-os de sua presença.
A despeito do cachecol em torno da boca e do nariz, o rosto estava entorpecido e os lábios não conseguiam formar as palavras. O ar estava tão frio que doía respirar. Mais um pouco nesse frio e ele se transformaria em um sincelo. Foi até os fundos da casa para desamarrar a carcaça. Seu chamado não obtivera resposta de dentro da choupana. Webb deteve-se para chamar novamente.
- Ei! Tem alguém em casa? - colocou as mãos em concha em torno da boca e gritou.
A porta abriu um pouco. Reconheceu Lilli, apesar do xale pesado, semelhante a um cobertor, que a envolvia. Ele ficou ali de pé durante um longo segundo, respirando com dificuldade devido ao frio e ao esforço. Ela não disse nada em resposta à saudação.
- Diga a seu marido para vir aqui fora me ajudar com isso - Webb finalmente falou, quebrando o silêncio e agachando-se para continuar a tentativa desajeitada de desamarrar o cadáver quase rígido da vaca. A neve rangeu sob os passos de alguém se aproximando dele. Webb olhou para cima e viu Lilli vindo em sua direção.
- O que é isso? - O xale envolvia-lhe o rosto, abafando completamente a voz.
- Uma de nossas vacas. Quebrou a perna e tive de matá-la - ele grunhiu, puxando um nó com os dedos entorpecidos. - Pensei que vocês podiam usar a carne. Ou eu fazia isso ou colocava veneno para os lobos comerem. - Ficou de pé e olhou em expectativa na direção da casa. A porta estava fechada. - Seu marido não vem?
Fez-se uma longa pausa antes que ela respondesse.
- Ele não está. - O azul dos olhos dela parecia desafiá-lo a dizer algo. Os olhos eram tudo que ele conseguia ver do rosto de Lilli, o restante escondido pelo xale escuro que lhe cobria os cabelos.
- Os cavalos estão aqui. A carroça também. - Não queria ser acusado de ir até lá sabendo previamente que o marido estava ausente. - Onde ele está?
- Foi caçar hoje de manhã e ainda não voltou - disse ela.
- Ele foi caçar com esse tempo? - Webb franziu o cenho. O frio era uma frígida espada de aço atravessando-lhe a testa.
- Foi. - Ela ficou apreensiva com a reação dele.
- Todos os animais vão procurar refúgio com a tempestade que está vindo. Não vi nem uma lebre no caminho até aqui - ele afirmou, impaciente com a ignorância de um colono que não possuía conhecimento prático da vida no campo. - Onde quer que eu ponha essa carcaça? - Então percebeu que Lilli não sabia mais do que o marido a respeito de tais coisas.
- Tem que ficar em lugar onde os lobos não consigam pegar. O galpão dos cavalos está bom?
- Está - assentiu ela. - Posso ajudar?
- Duvido. - Para ele era mais fácil demonstrar raiva contra ela, assim mantinha os outros sentimentos à distância. - Você pode abrir a porta do galpão.
Sem os músculos de outro homem para auxiliá-lo, Webb sabia que não ia ser fácil levar a carcaça para dentro. A maneira mais simples seria cortá-la ali, mas estava frio demais. Ele verificou os laços para ver se estavam bem firmes e foi até seu cavalo, pegando as rédeas e levando-o o mais próximo possível do galpão.
Rolou a carcaça diretamente até a porta e olhou para Lilli, toda enrolada em seu xale.
- Vá para dentro que está mais quente - ordenou.
- Você precisa de ajuda. - Ela não demonstrou sinais de querer Voltar para a casa.
- Você entende algo sobre estripar, tirar a pele e cortar um animal? - ele desafiou, observando-a baixar os olhos diante da pergunta perfurante.
- Foi o que pensei. Vá para dentro.
- Posso aprender - argumentou ela.
- Faça como quiser - Webb deu de ombros.
Entre ambos e uma corda pendente de uma viga, eles lançaram a carcaça para dentro do galpão e a penduraram pelo pescoço. Quando Webb estripou a vaca morta, Lilli sentiu-se nauseada. Era bem maior do que as galinhas que limpara. Por alguns minutos, achou que ia vomitar. Quando Webb a desafiou a jogar o saco de aniagem cheio das vísceras a alguma distância fora do galpão ela conseguiu engolir a náusea na garganta e levar o saco para fora. Â jornada até o ar frio e cortante operou um efeito revitalizante. Quando voltou, Webb já retirara metade do couro da vaca e ela não lamentou ter perdido o começo da operação.
- Por ora está bom. - Webb deu um passo atrás, parecendo cansado e com frio. - Espero que você tenha café quente. - Tentou flexionar os dedos sem luvas, mas eles resistiram. Sobrara suficiente calor animal para manter-lhe as mãos aquecidas enquanto trabalhava, mas agora elas estavam duras e congeladas. Ele colocou as luvas antes de sair no frio em direção à choupana. - Depois que eu me esquentar um pouco, vou procurar seu marido.
- Você não está achando que aconteceu algo com ele, não é? - Lilli ergueu o xale sobre a cabeça. Stefan disse que estaria de volta na hora do jantar, e ainda faltavam umas duas horas, portanto ela não estava alarmada por ele ainda não ter voltado. Stefan saíra para caçar em outros dias de inverno e retornara são e salvo. A iminente tempestade ainda não chegara, portanto não entendia a preocupação de Webb.
- Ele deve estar bem - Webb concedeu, abrindo a porta do galpão e esperando Lilli passar primeiro. - O Senhor tem um modo de tomar conta de puritanos e colonos. - A última frase foi murmurada para si mesmo enquanto ele saía sob a neve, aumentada agora por um vento flutuante.
Dentro da cabana, Webb começou a tirar suas vestimentas enquanto Lilli atiçava o fogo e colocava mais carvão no fogão. Ele esfregou os braços ativamente, tentando acelerar a circulação, aproximando-se da fonte de calor. Lilli colocou uma xícara de café para cada um e Webb aqueceu as mãos com a sua, consciente do silêncio tenso, analisando-a calmamente.
- É melhor você tirar esse xale - aconselhou -, ou nunca vai se aquecer. - Ela pareceu relutante em dispensar a proteção do xale, mas dificilmente devido ao frio. Quando o tirou, Webb viu que estava usando um suéter comprido e pesado, de gola alta. - Isso, também - afirmou ele.
Lilli lançou um olhar desconfiado em direção a ele, resistindo à sugestão.
- Sempre visto esse suéter dentro de casa. O vento passa pelas paredes e eu...
Você pode recolocá-lo depois, mas tire-o por enquanto - Webb insistiu. - Ele está bloqueando o calor do fogão e não vai aquecê-la.
Seguindo o conselho oportuno, Lilli tirou o suéter pela cabeça e dobrou-o, deixando-o de lado. Em seguida, pegou sua xícara de café e ficou perto do fogão. As bochechas estavam coloridas, atingidas pelo frio, os cabelos castanho-avermelhados escuros atraentemente desordenados. Webb sentia vontade de passar os dedos por eles e retirar os grampos que os mantinham no alto da cabeça. Olhou para a xícara. Seus membros começavam a formigar com pontadas finas como agulhadas irradiando-se das extremidades nervosas, o entorpecimento induzido pelo frio começando a desaparecer.
- Obrigada pela carne. - A voz dela chegou até ele, clara e suave, sem timidez. Webb fechou os olhos, torturado por tudo que queria dizer e não tinha o direito. Suspirou e sentiu o cheiro perturbador dela, tão próxima.
- Como eu disse, ou trazia a carne para cá ou ela ia virar isca para lobo - ele parecia mal-humorado. Tinha de estar, caso contrário começaria a lamentar a escolha feita. Engoliu um grande gole de café, deixando a quentura da bebida descongelar suas entranhas. - Você sabe que direção seu marido tomou quando saiu? - Webb mencionou Stefan Reisner de propósito, para lembrar-se da existência do homem.
- Ele foi para oeste, em direção à casa de Franz Kreuger. - Ela não se surpreenderia se Stefan tivesse dado uma parada lá para o almoço e saído para caçar com Franz à tarde.
Webb ergueu a cabeça e engoliu o que restava de café, estendendo a xícara vazia para Lilli, desviando o olhar do dela.
- É melhor eu sair a cavalo para ver se acho sinal dele antes que a temperatura comece.
- Você vai voltar? - Lille segurava a xícara, olhando para ela e não para Webb, mas ele sentiu a tensão e deixou o olhar percorrer-lhe o perfil durante um longo segundo.
- Acho que vai depender. - Mas ele não disse de quê. - Me dê a tina de carvão para eu encher antes de ir, para o caso de não voltar. Pegou o casaco de lã pesado e enfiou-se nele.
Não pôde deixar de pensar que se não tivesse ido até lá estaria sentado aquecido e aconchegado na cabana do campo, ao invés de se aventurar na temperatura abaixo de zero com uma nevasca a caminho. Ele estaria melhor longe dali, e Webb não estava preocupado com os riscos de sair em tal tempo quando pensava nisso. Era o risco de voltar, como sabia que o faria, com ou sem o marido dela, que o preocupava. Amaldiçoou a fraqueza que o impedia de afastar-se dessa mulher.
Quando estava todo protegido em seu casaco de inverno, Lilli lhe deu a tina de carvão. Sem uma palavra, ele foi até a porta e pegou a tranca. Hesitou por um segundo, por fim abriu a porta com um movimento impaciente e arrastou-se para fora, fechando-a atrás de si.
A neve fria e revoluteante atingiu-o, fazendo-o estacar por um segundo. As nuvens cinzas haviam criado uma escuridão prematura, tirando muito do que restara da tarde. Webb moveu-se rapidamente até a lateral da cabana onde o carvão estava empilhado e encheu a tina, tirando a neve que se acumulara nos troncos negros.
Lilli deve ter ficado à espera na porta, pois estava de pé ao lado quando ele voltou com o cesto cheio. Colocou-o no chão e voltou-se para sair novamente, mas o silêncio tenso precisava ser quebrado. Não podia simplesmente sair sem nada dizer.
Estava com a mão no ferrolho e olhava para a porta, a cabeça baixa ao falar.
- Está ficando escuro. Mantenha o lampião aceso o tempo todo para que a luz mostre o caminho.
Dentro de Lilli operou-se uma ruptura dolorosa. Involuntariamente, estendeu a mão para o braço dele, retendo-o com ela mais um segundo.
- Webb, tome cuidado. - As palavras ansiosas brotaram antes que ela as pudesse deter.
O ângulo para baixo em que se encontrava a cabeça do rapaz ergueu-se levemente em direção a ela, enquanto olhava a mão na manga de seu casaco. Ela retirou a mão como se tivesse tocado em algo fervendo.
- Você não quer dizer Sr. Calder? - A mandíbula endureceu-se, a voz um pouco amarga. Enquanto Lilli ainda buscava resposta, Webb já se fora pela porta.
O capão preto empacou quando Webb tentou guiá-lo para fora. O cavalo sabia que o tempo não estava bom para homem ou animal, ainda que o cavaleiro não o soubesse. Por fim, o capão obedeceu, sob protesto, ao comando de seu cavaleiro.
Após alguns minutos cavalgando, cavalo e cavaleiro estavam envoltos no cinza. Os flocos de neve haviam se transformado em pelotas, rodopiando em torno de Webb como chumbo grosso, machucando e arranhando. O vento aumentara, reduzindo a visibilidade a menos de meio quilómetro. Não havia muita chance de encontrar a trilha de Stefan Reisner. com a neve recém-caída e o vento soprando, as passadas a essa altura já estariam cobertas. Webb seguiu em ziguezague em direção a algum ponto ao sul do terreno de Kreuger e a oeste dali. Praticamente era a única área onde havia animais para caça. A chegada dos colonos transferira grande parte deles para regiões mais agrestes, onde os arados não tinham sucesso.
O homem devia estar a caminho de casa, se não estivesse perdido. com sorte, Webb conseguiria encontrá-lo. O capão preto podia não gostar da ideia de levar dois, mas era isso o que Webb pretendia - se encontrasse Reisner.
O frio entorpecedor afastou toda percepção do tempo. Parecia que ele estivera cavalgando por aquela galeria maldita durante a vida inteira. Webb estava perdendo a sensação das pernas e precisava ficar batendo nelas com a mão para ter qualquer reação. Não sentia mais o frio e sabia que isso era mau sinal. Se Reisner não tivesse encontrado abrigo, o velho estaria prestes a congelar de frio.
O terreno pedregoso circundava-o, quando de súbito Webb percebeu que o vento mudara para nordeste, algo que estivera esperando e temendo. Há quanto tempo mudara ele não sabia. Parou o capão para orientar-se rapidamente. Ele estava aproximadamente à mesma distância da casa de Kreuger e da de Lilli. Havia uma boa possibilidade de Reisner ter ido à casa do vizinho, já que ficava um quilómetro mais perto. Era possível que tivesse pegado um cavalo para voltar a sua casa. Isso explicaria por que Webb não vira sinais dele.
Tinha duas escolhas: ou ir até a casa de Kreuger e confirmar que Stefan Reisner tomara aquele caminho, ou dar meia-volta e regressar à casa de Lilli. Agora que a tempestade começara, ele poderia fazer uma das duas coisas, mas não ambas. Precisava arranjar um abrigo, e aqueles eram os lugares mais próximos.
Webb não pensou duas vezes, dando rédeas ao capão para voltar em linha reta de onde viera. O cavalo preto concordou com a decisão e dirigiu-se de pronto ao abrigo que deixara tão relutantemente. Webb arqueou os ombros e enfiou o queixo no peito para proteger-se do vento, deixando o chapéu enfrentar a força do vento frio.
Quando a luz amarela pôde ser vista brilhando na janela da choupana, cavalo e cavaleiro estavam brancos de neve. O capão deteve-se à porta do abrigo, Webb tentou desmontar e acabou caindo da sela, os músculos demasiado enregelados para funcionar. Jogou um braço sobre o pescoço do animal, em busca de apoio até conseguir mover as pernas enrijecidas.
Dentro do galpão estava completamente escuro, mas o vento uivante não os alcançava. Webb apoiou-se na parede fina e ouviu o farfalhar de palha agitada pelos cavalos e o resfolegar inquisitivo de uma das éguas grandes. Sons acolhedores. Reuniu suas energias e levou a mão à boca, tirando uma luva com os dentes. Os dedos estavam demasiado entorpecidos para segurar um fósforo e acendê-lo para iluminar o lampião perto da porta. Webb enfiou a mão no casaco e sob as axilas para aquecê-la.
Uma vez aceso o lampião, ele conseguiu enxergar as duas éguas de pé em duas baias rústicas. O capão preto postava-se pacientemente na pequena e abafada área de alimentação, a neve endurecida cobrindo-o de tal forma que a cor do animal tornou-se irreconhecível. A carcaça lúgubre continuava pendurada a um canto sombreado.
Antes que pudesse aconchegar-se no calor da choupana, Webb tinha de cuidar do cavalo. A sela parecia três vezes mais pesada quando a tirou da montaria, os músculos endurecidos pelo frio encontrando dificuldade em suportar o peso da sela. Para retirar os arreios, esfregou as mãos com palha e pôs-se a esfregar o animal, limpando a cobertura de neve antes que o calor do corpo da montaria a dissolvesse.
Quando o capão estava acomodado para passar a noite parte de Webb desejou deitar-se e enterrar-se na pilha de palha no canto. Mas ânsia mais forte o levou a sair na tempestade e atravessar o espaço que o separava da choupana.
A tempestade agora estava em plena força, o vento Ártico soprando ar em seus pulmões. Embora sua memória lhe dissesse que a choupana de papel alcatroado ficava a vinte metros do galpão, a neve caindo aocultou dele. Não havia nem mesmo o brilho do lampião amarelo para mostrarlhe o caminho. Confiando em seus instintos, Webb foi em frente na direção que acreditava ser a certa. No íntimo sabia que os homens se perdiam e congelavam até a morte a menos de dois metros de sua porta.
O vento uivava na choupana de um cómodo, assoviando através da menor brecha e enviando a frialdade perfurante para dentro. Lilli lançou carvão ao fogo, tentando produzir mais calor para combater as correntes cada vez maiores. Foi novamente até a janela, mas era impossível enxergar o lado de fora. Tanto Stefan quanto Webb estavam lá e ela não sabia com qual estava mais preocupada.
Voltou ao fogão para mexer a sopa de vagem, temperada com carne de porco salgada, e ver se o café estava quente. Uma rajada de vento sacudiu a estrutura frágil, ameaçando pô-la abaixo. Lilli correu os olhos, apreensiva, em torno da sala, como se esperasse ver sinais de danos causados pelo vento fustigante. Já passara por outras tempestades de inverno, mas nenhuma como esta. O vento soprava tão forte que ela mal podia ouvir os próprios pensamentos. Sabia que nunca escutaria alguém se aproximando da casa em semelhante tempestade.
Algo bateu contra a porta, assustando-a. Antes que pudesse reagir, a porta abriu e uma figura coberta de neve arremeteu para o interior, apoiando-se contra a porta para fechá-la. Um vento furioso congelou a choupana, envolvendo Lilli em sua friagem. Por um momento, a súbita invasão de ar frio a deixou imóvel; por fim, ela correu até o homem de neve com chapéu de cowboy congelado.
- Meu Deus, você virou gelo, Webb - ela declarou em um murmúrio, começando a quebrar o gelo no cachecol de lã.
As sobrancelhas negras e os cílios espessos estavam inteiramente endurecidos pela neve. Até mesmo a pele normalmente bronzeada pelo sol parecia sem cor. Somente as pupilas pretas continuavam a brilhar com vida. Ao tirar o cachecol e o chapéu, pedaços de neve derretida espalharam-se pelo chão e sobre ela. Os botões do casaco estavam congelados em suas casas. Lilli teve de cavar para soltá-los antes de conseguir tirar-lhe o casaco. Ele parecia incapaz de reunir forças para fazer objeções a Lilli removerlhe as roupas ao invés de deixá-lo fazer isso.
- Venha para o fogão. - Ela o agarrou pelo braço para ajudá-lo, sentindo a frialdade do membro através das camadas da camisa de lã cinza e da roupa de baixo de mangas compridas. Webb conseguiu esboçar um movimento de concordância com a cabeça, aceitando o apoio, tropeçando pela sala, as pernas duras como chumbo.
Quando conseguiu colocar o corpo trémulo junto ao fogão, Lilli colocou as mãos dele em torno de uma xícara de café, e em seguida deixando-o, pegou a vassoura de palha encostada a um canto. As calças dele estavam completamente tomadas por uma mistura de neve e gelo.
- Fique quieto - ela ordenou, começando a passar a vassoura em volta..
- O chão está ficando todo molhado - ele avisou, a voz irregular.
- É melhor ter toda essa neve no meu chão do que em você - ela replicou prontamente.
Algo a levou a erguer os olhos de sua tarefa. O tom azulado desaparecera da boca de Webb. Os cantos dos lábios voltavam-se para cima, formando as linhas enrugadas de um sorriso em torno dos olhos. Ela sentiu um fulgor inesperado brilhar dentro de si e retribuiu hesitante o sorriso fraco antes de terminar de esfregar o que restara de neve.
- É melhor tirarmos essas botas - ela sugeriu. - Seus pés devem estar congelados. - Trouxe uma das cadeiras para ele sentar. - Imagino que não encontrou Stefan. - O olhar indagador não chegou ao rosto do cowboy.
- Acho que ele foi para a casa de Kreuger. - Webb abaixou-se até a cadeira, a elasticidade retornando a seus músculos. - Provavelmente está esperando a tempestade passar lá. - Ao menos ele esperava que sim; pelo bem de Lilli.
Ela pareceu tranquilizada pela sugestão.
- Geralmente ele vai caçar com o Sr. Kreuger. Provavelmente fez o mesmo hoje, ainda que não tenha me dito. - Ela o fitou e estendeu a mão.
- Me dê o seu pé.
A bota estava fria e molhada, o couro endurecido. Foram precisos alguns puxões antes dela conseguir removê-las. Também tirou as meias de lã. Os pés entorpecidos de Webb formigavam dolorosamente ao contato com o ar quente.
Lilli deu uma olhada para os pés brancos descongelando e estendeu a mão para a bacia. Uma chaleira d'água fora posta para esquentar no fogão. Ela a esvaziou na bacia e ajoelhou-se para enfiar os pés dele na água quente. Webb mal conseguiu abafar um grito de dor que atravessou-lhe os nervos desde a ponta praticamente congelada do pé.
- Acho melhor você tirar essas calças molhadas antes que fique resfriado - ela observou.
Webb podia sentir a umidade em suas entranhas, mas não achou que a situação requisitasse medidas tão drásticas.
- Acho que vou ficar de calças - afirmou secamente. - Se não fizer diferença para você. - Soergueu uma sobrancelha para ela, certo de que Lilli não considerara a sugestão com cuidado.
O leve rubor que coloriu-lhe as bochechas pareceu confirmar isso enquanto ela evitava o olhar dele, mas a boca manteve-se em uma linha de determinação.
- Sou uma mulher casada, Sr. Calder, portanto já vi um homem de roupas íntimas antes.
- Voltamos ao "Sr. Calder", é? - ele murmurou com uma certa irritação diante do fato dela conseguir destruir a sensação de intimidade que havia sido criada.
Ela não respondeu e voltou-se de costas, sem mais discussões quanto ao tema da remoção das calças.
- O jantar está quente - mudou o assunto por completo. - Gostaria de comer algo? Só tenho sopa de vagem...
- Parece bom - Webb interrompeu-a antes que começasse a pedir desculpas pela refeição.
- Mergulhe seus pés na água quente enquanto faço o prato. - Ela colocou as meias para secar, o vapor exalando.
Ele não seria homem se não gostasse de ser servido por uma mulher, cada necessidade por ela antecipada. com movimentos calmos, ela pôs a mesa, um pedaço de pão e uma faca sobre a toalha. Encheu dois pratos de sopa e colocou-os sobre a mesa. Depois foi até um canto da sala onde ficava a cama e pegou algo de um baú. Voltou com uma toalha e um par de meias secas.
- Pode usar essas - fez ela.
Webb segurou-as por um segundo, consciente de que pertenciam ao marido; por fim colocou-as no colo enquanto secava os pés. Só havia uma cadeira na mesa, assim ele trouxe aquela em que estivera sentado. A neve derretendo em suas roupas formara pequenas poças d'água no chão. Os pés com meia se molharam quando Webb foi até a mesa, mas ele não disse nada.
- Está cheirando bem. - Aspirou com prazer a sopa consistente e aceitou a fatia de pão que Lilli lhe estendeu. - Obrigado. - A sopa estava muito quente para que a tomasse imediatamente, assim ele mergulhou um pedaço de pão no líquido e comeu. - O gosto está tão bom quanto o cheiro.
Como única resposta ela ofereceu um sorriso breve; em seguida, mergulhou sua colher na sopa e soprou-a para esfriar. O silêncio aumentou. Webb ficou irritado.
- Você é sempre tão calada na mesa? - indagou, lançando um olhar duro para ela.
- Desculpe. - Ela pousou a colher na mesa, parecendo pouco à vontade. - É um hábito. Stefan acha que não se deve conversar à mesa enquanto se estiver comendo.
- Entendo. - Ele baixou a cabeça lutando com a raiva que estava sentindo. Por fim lançou um olhar rápido em direção a ela. - bom, se não se incomodar, prefiro conversar enquanto como. Ou você pensa como seu marido?
- Não, simplesmente é o costume da casa. - O vento aumentou sua fúria e sacudiu os lados de papel alcatroado da choupana. Lilli retesou-se com o barulho, sentindo o vento aproximar-se.
- Algo errado? - Webb indagou.
- Não consigo me acostumar com o vento - admitiu ela, mergulhando a colher na sopa. - Parece que ele nunca pára de soprar aqui.
- Se você deixar, ele toma conta de você - Webb observou.
- Como você faz para evitar isso? - ela perguntou, tentando sorrir.
- Penso em outra coisa. - Ele deu de ombros.
- É mais fácil falar do que fazer - ela replicou. - Quando o vento soPra assim, eu me sinto engaiolada aqui.
- Febre da choupana - Webb diagnosticou a aflição com um sorriso.
- O que é isso? - ela o fitou, o cenho franzido pelo interesse.
- É uma doença comum por aqui - explicou ele. - Acontece Quando se passa muitos dias entre as mesmas quatro paredes olhando para
si mesmo o tempo todo. Os sintomas são inquietação, irritação e melancolia.
- Acho que contraí um caso grave da doença - Lilli declarou. Qual é a cura?
- Não conheço nenhuma. - Webb sorriu simpático. - Ela acaba por ir embora. Minha mãe disse que ajudava ter companhia.
- É. - Ela pareceu considerar a ideia. - É bom ter com quem conversar.
- Outro que não seu marido, claro. - Ele sentiu vontade de morder a língua por dizer isso.
- Stefan não é muito falante. - Ela deu de ombros e continuou a tomar a sopa.
- Eu imaginava - murmurou Webb secamente.
- Ele é um homem calmo e simples, muito forte e carinhoso. - Ela fez Uma pausa, como se pensando em algo. - Desde que viemos para cá, ele mudou um pouco.
- Ah, é? Em quê? - Webb tentou ocultar a curiosidade que a observação aparentemente inocente despertara.
- Antigamente ele detestava a ideia de dever dinheiro a alguém. Mas quando vendemos nossa colheita esse ano, ele não pagou o empréstimo que tinha feito ao banco. Pegou mais dinheiro emprestado para comprar mais terra - ela explicou. Em seguida defendeu rapidamente a atitude do marido. - Tenho certeza de que vai ser um bom investimento. - Viu o prato quase vazio de Web.
Quer mais sopa?
- Não, já tomei o suficiente - Webb recusou, limpando o prato com a casca de pão.
vou trazer café. - Ela empurrou a cadeira e levantou para pegar a xícara.
O suéter pesado delineava o corpo de Lilli. Webb estudou o brilho avermelhado dos cabelos à luz do lampião. Os sons e visões da sala o agradavam.
Ela trouxe o café e foi para seu lado da mesa, contida e sem demonstrar ter considerado a observação pessoalmente. - Primeiro as mães tomam conta dos homens, depois as esposas. Os homens em geral não gostam de fazer as coisas.
O olhar dele estreitou-se ligeiramente ao sentir que havia algo de depreciativo na observação de Lilli a respeito do sexo masculino.
- Imagino que alguns homens se casam pela conveniência de ter uma mulher para cuidar deles e satisfazer-lhes as necessidades.
Suspeitava disso em alguns poucos casais que conhecia. As atitudes deles contrastavam gritantemente com o relacionamento especial de seus pais. Talvez por esse motivo ele tenha se dado conta disso. Talvez por isso não desejasse casar-se, por invejar o que o pai possuía e por não querer contentar-se com menos. Nunca pensara muito no assunto até então.
- Acho que alguns homens fazem isso. - De súbito, ela pareceu relutar em externar suas opiniões.
Ele se irritou com a maneira como Lilli se mostrava natural e aberta com ele e depois recuava e distanciava-se.
- E imagino que algumas mulheres se casam pela conveniência de ter um marido que cuide delas e satisfaça suas necessidades. - O tom de voz duro transformou a observação em acusação. Imediatamente ele se arrependeu ao vê-la empalidecer ligeiramente.
- Se um homem e uma mulher estão satisfeitos com o que têm, acho que uma opinião externa não é importante - retrucou ela, empertigada.
- Você está satisfeita com o que tem, Lilli? - perguntou calmamente.
- Isso não é da sua conta, Sr. Calder. - O ódio faiscante nos olhos dela parecia mascarar a dor. - Por essa vez vou ignorar sua indelicadeza.
Ele crispou os lábios, silencioso. Não ia se desculpar pela pergunta, assim bebericou o café e deixou a conversa morrer.
Do lado de fora, a tempestade rondava a choupana, isolando-os em uma ilha de calor. Ambos estavam isolados pela nevasca. Webb sabia que isso poderia acontecer quando regressara. Parte dele contara com isso. Não fora responsável pela tempestade, mas a usara, inteiramente consciente de que Lilli não o expulsaria. No entanto, não se sentia muito honesto quando pensava nisso. Um homem gostava de pensar que fazia o que era certo, mas o pai o alertara para o bem e o mal dentro de cada homem. Webb nunca pensara que aprenderia isso por si mesmo. No entanto, sabia o tempo todo que só havia um quarto na choupana - e só uma cama. E era noite.
O chocar de pratos interrompeu o silêncio prolongado quando Lilli começou a tirá-los da mesa. Webb levantou da cadeira e foi até o fogão, onde as roupas estavam secando.
- Acho melhor colocar as botas - fez ele, sentindo necessidade de falar -, antes que o couro seque e fique duro.
As meias estavam um pouco úmidas, mas não o suficiente para tornar a sensação desagradável. Webb tirou as meias do marido de Lilli e pôs as suas, forçando em seguida os pés para dentro das botas de salto. Ouviu o chapinhar da água quando Lilli tirou um pouco do balde e colocou na bacia de água quente para os pratos. Ele pegou o casaco e o chapéu e os colocou.
Pelo canto dos olhos, Lilli viu o que ele estava fazendo e virou-se, o cenho franzido.
- O que está fazendo?
- vou lá fora. - com o cachecol em torno do chapéu para proteger as orelhas, Webb pôs as luvas. - Pensei em pegar dois baldes de neve e trazer para cá, assim vamos ter água amanhã de manhã.
Lilli voltou aos pratos, consciente dos movimentos dele saindo pela porta com os dois baldes. Durante o breve instante em que a porta foi aberta para que Webb saísse, o vento rugiu mais alto, fustigando-lhe o rosto. A sala parecia estranhamente vazia sem Webb.
Era tudo tão diferente quando Stefan estava ali. com toda a calma dele, Lilli quase o considerava como um móvel certas vezes, até mesmo esquecendo a presença do marido. com Webb era impossível acontecer isso. Ele preenchia a sala com uma vitalidade que desordenava o curso monótono de sua existência. A diferença se devia mais à personalidade do que à atração que ela sentia por ele. Webb estimulava, mental e fisicamente, enquanto Stefan acalmava. Lilli fechou os olhos, lutando contra a confusão de emoções, quando a porta abriu e Webb voltou, batendo com os pés para retirar o frio e a neve.
- Está pior lá fora. - Sacudiu a neve como um grande cão, tirando o casaco e dirigindo-se vigorosamente para o fogão.
- Quanto tempo você acha que esta tempestade vai durar? - Os pratos já estavam quase todos lavados, não restando mais o que fazer para ocupar o tempo.
- O pior vai passar daqui a umas doze horas. Então só vai ficar soprando neve e fazendo frio. - Ele estendeu as mãos para o fogão, aquecendo-as. - Quer ajuda?
- Não, já terminei. - Lilli enxugou o último prato e o colocou na prateleira.
- Vou pôr mais um pouco de carvão no fogo para queimar durante a noite. - Enquanto ia para a tina de carvão, Webb percebeu a tensão que a observação criara. Lançou um olhar de soslaio e entreviu a expressão desconfiada que ela não conseguiu ocultar inteiramente. - vou dormir aqui perto do fogão, se não houver problema.
- vou arranjar uma colcha, - ela atravessou a sala e foi até o baú, ajoelhando-se para abri-lo. O acolchoado de reserva formava um fardo desajeitado, que ela ergueu, pondo-se de pé. Uma veia palpitava em sua garganta quando voltou-se para levar a coberta para Webb. Ele pegou a colcha a meio caminho.
Lilli entregou-a a ele sem encontrar seu olhar, sem fitar seus traços fortes e desenhados. Ela estava atenta contra a ânsia que sentia por dentro; ao mesmo tempo, sentia-se agitada com a ausência de avanços amorosos feitos por ele. Lilli conhecia os sentimentos contraditórios, querendo e rejeitando a ideia que ele tentasse algo. O desejo de não se sentir culpada por incentivar algo temperava o silêncio dela.
Depois de entregar o cobertor, ela se voltou e foi até o pé da cama, ouvindo o som dos passos dele dirigindo-se para o fogão. Ela tirou o sueter pesado pela cabeça. Sob tais circunstâncias, Lilli achou melhor dormir com a blusa e saia que estava usando.
Até o momento, Webb sentia-se vencedor na batalha contra seus instintos íntimos enquanto estendia a colcha no chão diante do fogão. O acolchoado grande permitiria que dormisse sobre metade e se cobrisse com a outra parte. A luz do lampião o deixava ver em demasia o outro lado da sala, onde Lilli estava de pé diante da cama vazia.
- vou apagar o lampião - ele anunciou sua intenção antes de ir até o centro da sala.
Webb considerou o silêncio dela como afirmativo, mas quando esticou o braço para apagar o pavio, olhou para Lilli, querendo ter certeza de que não faria objeção. Ela estava de costas para ele, as mãos sobre a cabeça, retirando os grampos dos cabelos. A massa vermelha caiu sobre as costas. Webb sentiu um aperto no peito, contendo a respiração.
- Seu cabelo é lindo. - De alguma maneira, sabia que ela estava compondo um quadro vivo com os longos cabelos soltos sobre os ombros. Quando ela se voltou, ouvindo o som da voz dele, Webb aproximou-se, levado por um impulso mais forte do que seu controle. Parou perto dela, ainda procurando e buscando algo que revelasse os pensamentos de Lilli naquele momento, mas ela não o deixou ver nada.
- Você é feliz, Lilli? - Precisava saber. Talvez se ela pudesse convencê-lo de que o era, ele conseguisse encontrar a decência para voltar ao outro lado da sala.
- Eu era... - Lilli cortou a resposta, assombrada ao ouvir-se falando no passado, o que revelava algo que não desejava que Webb soubesse. Tentou virar-se de costas novamente, mas as mãos dele pousaram em seus ombros, mantendo-a de frente para ele.
- Ele a faz feliz? - Dessa vez era uma exigência e não uma pergunta.
- Não sei. Estou tão confusa que eu... - Ela o olhou e soube que aquilo era um erro. Os cabelos de Webb brilhavam, negros e bastos, tão escuros quanto os olhos falseando sobre ela. Os traços eram belos e rudes. O olhar de Lilli pousou sobre a boca do rapaz.
- Não olhe assim para mim, Lilli, a não ser que queira que eu a beije - avisou ele, a voz pastosa e profunda tomada pela emoção.
- Você não vê? É exatamente isso. Eu quero que você me beije. A confissão brotou como um protesto diante da própria confusão.
Mas Webb não ouviu o protesto que a confissão continha ao tomá-la em um abraço contra o qual ambos haviam lutado e perdido. O beijo longo e premente cresceu de ímpeto. Os braços dela o envolviam com mais e mais força, enquanto os dedos de Webb mergulhavam na cascata de cabelos e sustavam seu peso contra a nuca. Ela sentia o sangue pulsando nas veias, fazendo-a sentir-se atordoada e descontrolada, os joelhos fracos necessitando do apoio do corpo de Webb para sustentá-la.
A mão vagava sobre ela, ao mesmo tempo acariciando-a e puxando-a para mais perto. Quando a boca de Webb deixou a de Lilli para beijá-la nas faces e nas têmporas, ela ouviu o ritmo da respiração do rapaz tão desordenado quanto o seu. O hálito úmido aquecia-lhe a pele, que já estava quente de paixão. Paixão e desejo eram sensações novas para Lilli, que não se sentia bem sob a força de ambas.
- Sabia que isso ia acontecer se você voltasse - murmurou, a voz estrangulada. O queixo proeminente de Webb estava próximo ao canto de sua boca, o cheiro masculino excitando-lhe os sentidos.
- Você ainda não percebeu que não consegue me manter afastado?
- Webb indagou, descansando a testa contra ela, as bocas quase se tocando e as respirações se misturando. - Deus sabe que eu tentei, mas não posso ficar longe de você.
A proximidade torturante da boca de Webb era uma tentação maior do que ela conseguia suportar. Passou os braços em torno do pescoço dele e trouxe-o para baixo enquanto se punha na ponta dos pés. Essa pequena demonstração de iniciativa inflamou-o e a pressão crescente do beijo que lhe deu forçou-a a abrir os lábios. Quando a língua invasora juntou-se à dela, Lilli estremeceu sob o impacto excitante de seus sentidos.
Parecia não haver certo ou errado no que estava acontecendo. Era inevitável. Parecia que a razão de viver de Lilli concentrava-se nos beijos que Webb lhe dava, nas carícias e abraços. Quando os lábios dele começaram a explorar o lóbulo da orelha e a curva do pescoço, calafrios percorreram-lhe a pele, acendendo-lhe a carne já excitada.
Enquanto mordiscava e beijava com cada vez maior intimidade o pescoço de Lilli, os dedos de Webb procuraram os botõezinhos da blusa dela. Alguma roupa de baixo, fina, bloqueou a passagem até a pele de Lilli, mas acabou funcionando como uma segunda pele. A palma da mão dele em concha fechada sobre um seio, arredondado e tenso, sentiu a ponta endurecida.
Lilli gemeu com uma vontade que não saberia explicar. Todos aqueles beijos e carícias não faziam parte de sua experiência, e não restava dúvida de que ela nunca se sentira excitada assim. Stefan expressava simplesmente o desejo de ter relações, montava-a após poucas preliminares, e mesmo essas poucas eram experimentais. Ela começava a compreender que a dor profunda que sentia em seu sexo era a resposta direta ao membro viril de Webb.
- Eu amo você. - A boca de Webb corria sobre seus lábios enquanto murmurava a declaração. - Deus me ajude, mas eu amo você.
Ela só ouvira aquelas palavras de um outro homem em toda sua vida, e esse homem era Stefan, seu marido. Uma sensação de culpa invadiu-a, trazendo junto a primeira resistência que ela ofereceu ao abraço, Lilli virou a cabeça e colocou as mãos sobre os ombros dele.
- Não diga isso. - Ela estava mais uma vez mergulhada em confusão.
- Eu amo você - ele repetiu, puxando-lhe o rosto com a mão em concha, fazendo-a fitá-lo. - Não dizer isso não vai mudar o que sinto.
Os olhos escuros brilhantes pareceram atraí-la para ele. Ele quase tornou possível o que estava pensando, mas sabia que não era. O desespero começou a arrefecer-lhe os sentidos.
- Quando essa tempestade passar, vamos embora juntos - começou, em voz baixa e ansiosa. - Vamos para algum lugar e descobriremos uma casa só para nós.
- Não posso. - Lentamente ela balançou a cabeça. - Sou casada. Este é meu lar.
- Deixe-o e venha comigo - Webb insistiu. - Você não o ama, não desse jeito.
- Não, não desse jeito - Lilli admitiu, meio consciente de que estava admitindo amar Webb. - Mas sou esposa dele.
- Só durante o tempo que levar para conseguir o divórcio. Aí nós nos casamos e você será minha esposa - ele afirmou.
- Divorciar-me de Stefan? - ela o olhou com raiva triste. - Por que motivo? Porque ele é bom e generoso comigo? Porque confia em mim? O reconhecimento de sua traição a fez afastar-se dos braços de Webb. Não posso deixá-lo. Não poderia magoar Stefan assim.
- E eu? - os traços toldaram-se em uma carranca. - Eu amo você. Tem ideia do inferno por que estou passando? A dor física de querer você? A agonia de amar uma mulher casada?
- E o que eu estou passando? - ela explodiu, próxima às lágrimas.
- Fiz um juramento diante de Deus. No baile você deu sua palavra e disse que ela significava alguma coisa. Eu dei minha palavra a Stefan, e isso significa alguma coisa para mim! E você quer que eu esqueça isso.
Ele se empertigou, afastando-se dela, o rosto transformado em uma máscara. Lilli enfrentou-o, dura e orgulhosa, ferida com a falta de compreensão com sua posição. Quando Webb fez meia volta, algo estilhaçou-se dentro dela. Lilli demorou um segundo para perceber que ele estava pondo o chapéu e o casaco. A essa altura ele já estava se encaminhando para a porta a passos largos.
- Onde você vai? - ela piscou, aturdida. - Não pode ir embora nessa tempestade.
- vou dormir no galpão com os cavalos. - Webb vociferou.
- Mas... - não conseguiu terminar o protesto, que ele interrompeu.
- Não me peça para dormir aqui, porque se eu fizer isso vai ser nessa cama com você! - declarou brutalmente. - Pode soar grosseiro, mas essa coisa entre as minhas pernas não tem consciência e só me restaram sobras, portanto me deixe agir pelo menos uma vez com decência.
Já chegava à porta, saindo e batendo-a com força atrás dele. Lilli estremeceu, sentindo subitamente muito frio, um frio interno e não causado pela correnteza vinda da neve que conseguiu adentrar rapidamente a choupana.
O capão preto virou a cabeça e bufou uma indagação curiosa quando Webb entrou no galpão. Depois que o cowboy acendeu o lampião, o cavalo resfolegou a desaprovação diante do barulho que o cavaleiro estava fazendo. Rápido e carrancudo, Webb juntou palha em uma pilha encostada a uma parede e trouxe a sela e o cobertor para servir de travesseiro e coberta. Estava frio no galpão, mas ele já dormira em locais mais frios. Na verdade, precisava congelar seus desejos.
Fez a cama de palha o mais confortável possível, e foi até o lampião. A porta abriu e ele se virou, enrijecendo diante da visão de Lilli, o xale escorregando da cabeça.
- O que está fazendo aqui? - ele vociferou, ao mesmo tempo sem querer saber. - Fora!
- Trouxe a colcha para você. - Ela passou a mão sobre o fardo dobrado em seus braços. - Pensei que ia precisar.
Baixando o olhar, ela foi até a cama de palha em silêncio e ajoelhou-se para estender a colcha. Webb oscilava como um homem entre duas forças conflitantes. Por fim, moveu-se para assumir a tarefa.
- Eu faço isso - Não queria que Lilli fizesse a cama.
- Já estou quase terminando - ela protestou, apoiando-se sobre os joelhos para observá-lo concluir a tarefa. Correu os olhos pelos traços duros, sabendo que fora a causadora de tudo. - Webb, sinto muito.
Ele estacou com as mãos nas coxas, voltando-se para olhá-la por sobre os ombros. Os olhos escuros estavam semicerrados e duros.
- Acho que ambos sentimos muito por uma série de coisas - concluiu, sombrio.
Havia tanto que ela queria dizer, mas aquilo só pioraria a situação ainda mais. Então, achou melhor dizer uma frase banal: - Vai ficar bem aquecido?
- Nunca vou ficar bem aquecido, Lilli, sem o seu corpo ao lado do meu - ele disse.
Ela sufocou um pequeno grito e tentou levantar-se, mas ele a agarrou pelo braço e puxou-a para ele.
- Você acha que está ferida - Webb zombou amargo, a frustração crescendo dentro dele. - Não sabe o que é querer tanto alguém, que não se consegue olhar para outra pessoa.
- Webb, não. - Ela não lutou contra o abraço.
- Você não devia ter vindo aqui, Lilli - ele gemeu, apertando-a em seus braços e empurrando-a com seu peso sobre a palha. O beijo rude era uma punição por ela tentá-lo, vindo até o galpão. Lilli compreendeu. Era uma situação em que ambos e nenhum dos dois eram culpados pela posição em que agora se encontravam. Lilli compreendeu isso melhor do que Webb. Os homens preferiam acreditar que tinham controle sobre o que lhes acontecia; Lilli sabia.
Tão rapidamente quanto o beijo começara, Webb jogou seu peso sobre ela e apoiou-se sobre os joelhos. O chapéu caiu enquanto acariciava os cabelos dela, mantendo a cabeça abaixada, a respiração entrecortada.
- Saia daqui - ordenou ele, a voz rouca.
Consciente de que o controle de Webb fraquejava, Lilli finalmente reconheceu a decisão inconsciente que a impelira ao galpão. Certo ou errado, queria que ele a fizesse sentir-se viva. Não havia mais o que pensar, nada mais a prendê-la. Webb estava ali naquele momento, e os problemas que o amanhã poderia trazer desapareciam diante desse raciocínio primário. Sem mudar de posição, metade na colcha e metade na palha, ela ergueu uma mão para tocá-lo.
- Webb, eu não quero ir - disse. O corpo dele imobilizou-se. - Queria que isso acontecesse. A inquietação, a febre da choupana, você disse, não era isso. Acho que não penso em outra coisa senão nesse momento há muito tempo. Você está na minha cabeça desde que o conheci no depósito, mais e mais até que...
A impassibilidade dele foi quebrada; Webb se voltou lentamente, baixando a mão e penetrando-a com o olhar, sem muita certeza de que ela soubesse o que estava dizendo. A boca curvada ligeiramente, ela abriu os braços para ele, convidando-o a vir até ela. Webb deitou sobre a palha ao lado dela, abraçando-a possessivo. Durante um longo segundo, satisfez-se só em olhá-la.
Os dedos dela corriam sobre o rosto de Webb.
- Isso é tudo que posso lhe dar, Webb. - Não ia deixar Stefan, e queria que aquele momento fosse suficiente, mesmo sabendo que não seria. Viria o dia em que ambos desejariam mais, mas aquele dia ainda não chegara.
A palha farfalhou sob os movimentos de Webb em direção aos lábios dela. A mão de Lilli correu para a nuca do cowboy, aumentando a pressão do beijo, guiada pelo instinto do desejo. Webb já descobrira nos encontros anteriores que ela não conhecia muito das artes preliminares que levavam ao ato do amor. Queria ir com calma e ensiná-los a ela, mas o desejo que sentia era como uma vara quente e impetuosa que exigia, impaciente, satisfação.
Do lado de fora do galpão, a tempestade uivava e gemia, fazendo a temperatura baixar em todos os lugares, exceto onde estava a cama de palha. Ali, a fricção de dois corpos tentando aproximar-se criava seu próprio calor. O capão preto resfolegava com todos os ruídos farfalhantes provenientes da pilha de palha; voltando a cabeça para observar o casal entrelaçado.
As roupas de ambos eram um empecilho que não podia ser removido com aquele frio, mas somente afastado temporariamente para que suas mãos pudessem buscar e invadir áreas escolhidas. A boca de Webb cada vez tornava-se mais faminta, sorvendo-lhe os lábios e enroscando a língua na dela. Os seios de Lilli retesavam-se sob as mãos em concha do rapaz, o material que os recobria distendendo-se e impedindo que ele tocasse a carne macia.
O calor do corpo dela queimou todas as restrições que porventura Webb tivesse. Pequenos gemidos ofegantes brotavam dos lábios de Lilli, Que voltava para ele quadris e pernas. Webb sentiu a indecisão dela, sentiu-a confusa por ele ainda não a ter tomado, o que destruiu o que lhe restara de controle, o sangue quente correndo selvagemente por suas veias, bloqueando toda consideração, diante do desejo de possuí-la.
O tecido pesado das saias dela era uma barreira irritante a ser erguida, para alcançar as calcinhas. O calor da pele de Lilli queimava e atravessava as roupas de baixo de algodão, aquecendo a mão dele e distraindo-o por instantes. Tocou-lhe as nádegas, sentindo sua rigidez. Em seguida, Webb a colocou de frente diretamente sobre a palha, a mão escorregando para diante, percorrendo o osso púbico. O suspiro surpreso de prazer de Lilli quase o levou ao auge. Impaciente, enfiou as mãos pelas roupas debaixo; Lilli arqueou os quadris para facilitar a tarefa.
Quando adentrou a abertura apertada, o desejo crescente quase explodiu com o contato. Ele se sentiu endurecer, trincando os dentes para conter-se. Ela se movia sob ele, excitando todos os sentidos de Webb. Ele a agarrou de modo a parar todo movimento.
- Fique quieta - ordenou Webb, a voz pastosa, os músculos da mandíbula flexionando-se com o esforço dilacerante. - Ou vou terminar antes de você ter oportunidade de começar.
- O quê? - Â voz rouca revelava um traço de confusão.
Ele buscou o controle de que precisava enquanto, com a boca, esfregava os lábios úmidos dela. - vou lhe mostrar o que quero dizer.
Enquanto se apossava da boca de Lilli, as mãos de Webb deslizaram pelos quadris da jovem, imobilizando-os ligeiramente enquanto ele se mexia contra eles. A pressão cresceu, trazendo junto a brutalidade do desejo fervente. Ela se movia sob ele, a língua entrando na boca masculina, exigindo-o todo. A respiração de Lilli começou a acelerar e Webb mergulhou sobre ela, deixando que a sensação que os embalava assumisse o comando. O desejo o percorria.
A dor no ventre fora satisfeita, mas a sensação ia além disso.
- Eu ficava pensando se seria assim - ela murmurou, fitando-o de seu travesseiro de palha. - Agora eu sei.
- Só que não é só isso. - Ele pousou a mão no rosto de Lilli, acariciando-lhe o lábio inferior com o polegar. - vou querer mais e mais além desse ponto.
- Você tem a mim. Não posso mais fugir disso. - Á luminosidade deixou o rosto de Lilli.
- Nunca ficaremos satisfeitos com isso, Lilli. O tipo de proximidade que estamos buscando não se satisfaz com a abertura de paredes de carne - ele avisou. - Quero comer com você, conversar com você e dormir todas as noites com você em meus braços. Eu amo você.
Os olhos dela brilharam de lágrimas.
- Isso é tudo que temos, Webb. Ao menos temos isso. - A voz falhava. - Não posso deixar Stefan.
A argumentação do rapaz foi silenciada pela linha triste mas determinada na boca de Lilli. Webb afastou a mão, consciente dos tremores que a percorriam devido à ausência de contato.
Depois que ela saiu, Webb ficou olhando para a porta durante longo tempo, até apagar o lampião e colocar-se debaixo da colcha. Empilhou a palha em torno de si e apoiou a cabeça na sela. Agora sentia uma determinação. Nenhum final feliz poderia redundar disso e ela ficaria mais marcada do que ele.
Fechou os olhos e analisou as imagens torturantes em seu pensamento. Lilli viera até ele sorrindo. Em algumas coisas, as mulheres eram mais corajosas do que os homens.
O sono custou a chegar, e quando veio foi de maneira irregular. Por volta de três horas da manhã ele foi acordado pelo bufar nervoso do cavalo. Estava vagamente consciente de que a tempestade amainara; depois ouviu a troca de uivos de uma alcateia de lobos. Provavelmente tinham encontrado as entranhas da vaca estripada e estavam fazendo um festim com elas. Quando os restos acabassem, os narizes dos lobos os guiariam até o galpão e a carcaça da vaca pendurada a um canto. O cheiro do homem com certeza os manteria à distância, mas por via das dúvidas, Webb tirou a mão de sob a coberta e pegou o rifle da bainha, colocando-o a seu lado. O capão resfolegou novamente.
- Estou escutando os lobos - Webb murmurou, e o cavalo pareceu soltar um suspiro satisfeito.
Um ruído acordou Lilli de seu sono intermitente. A princípio pensou que eram os lobos novamente. Por fim, reconheceu o som diferente e, cansada, saiu da cama, enrolando o xale em torno dos ombros. Parecia um cavalo do lado de fora. Ela esfregou os olhos sonolentos e jogou para trás os cabelos que não se dera ao trabalho de prender na noite anterior.
Por um instante, ocorreu-lhe que Webb poderia estar indo embora sem dizer adeus. Ela correu até a porta e abriu-a, parando gélida ao ver Stefan descendo do lombo desnudo de um cavalo de tração. Havia um segundo cavalo carregando Franz Kreuger. Ela lançou um olhar preocupado para o galpão, pensando se Webb ainda se encontrava lá ou se ouvira os cavaleiros chegando.
- Estava preocupada comigo - Stefan julgou pela perturbação que viu no rosto da esposa. - Estou bem. Fiquei com Franz. Assim que a tempestade passou, disse a ele que tinha de voltar para minha Lillian.
- Eu esperava que você estivesse lá - fez ela, dando um passo atrás para que os dois homens entrassem.
- Você ficou bem? Fiquei preocupado com você sozinha. - Uma pequena ruga marcou-lhe a testa. O vago espanto que sentia aumentou ao perceber tufos de cabelos soltos e a palha presa nas costas do xale quando ela foi até o fogão. - Você já foi lá fora cuidar dos cavalos hoje?
- Não, não fui. - Estava de costas para ele, inclinando-se sobre o fogão para abrir a grade e mexer o carvão. - Para falar a verdade, ainda não alimentei o fogo nem fiz café. Eu estava dormindo. Acho que foi o ruído dos cavalos que me acordou.
Ela estava dormindo de roupa? E o cabelo não estava trançado. As rugas de Stefan aprofundaram-se. Nada disso era normal. Ela se esticou diante do fogão para pegar o bule de café e levá-lo até a bacia d'água, oferecendo a Stefan uma visão lateral da esposa.
- E você não precisava ter se preocupado por eu ter ficado sozinha - disse ela, ocupada em encher o bule com água. - O Sr. Calder passou aqui. Veio procurar você antes da tempestade começar, mas não o encontrou. Ele quase não conseguiu chegar aqui.
- Calder estava aqui? - A raiva surda começou a tomá-lo, originando-se do ciúme e do medo.
- Estava. Ele dormiu no galpão com os cavalos essa noite. - A informação saiu com uma certa rapidez, e levou o olhar de Stefan até as partículas de palha nos cabelos dela. - Não o vi esta manhã, não sei se já foi embora ou não.
- Você estava no galpão com ele. - A voz ribombou a acusação, os traços de Lilli toldando-se rapidamente com surpresa e dor, até que conseguiu ocultar os sentimentos. Apesar de toda a calma externa, Stefan sentiu a tensão que a dominara e apertou a mão que segurava o rifle.
- Levei uma colcha para ele - ela admitiu, erguendo um pouco o queixo.
- Olha os olhos dela. - Franz Kreuger pôs-se ao lado de Stefan, inclinando-se ligeiramente para o lado do amigo enquanto falava, como se para partilhar algum segredo com ele. - Estão vermelhos e úmidos. O que acha que aconteceu para fazê-la chorar?
A indagação só aumentou as suspeitas de Stefan. Vibrava com o ódio que jorrava de dentro dele.
- Ele violentou você? - indagou, canalizando a raiva para a vingança, que assim se justificaria.
- Não - ela negou, o olhar chocado correndo de Franz Kreuger para Stefan.
- Olhe como ela está assustada. - Franz voltou os olhos faiscantes para Stefan, a certeza incendiando-lhe o rosto. - Ele a ameaçou. Ela está com medo de dizer a verdade.
- Stefan, não dê ouvidos a ele - protestou Lilli, assustada.
Mas Stefan enxergou a evidência que seus próprios olhos viam, comprovada pelas observações de seu amigo esperto, o que o levou a chegar às suas próprias conclusões. A vingança era muito mais nobre do que o ciúme de um velho por um homem mais jovem. Sempre de poucas palavras, Stefan não externou suas intenções, voltando-se e caminhando a passos largos para a porta, o rifle na mão.
- Stefan! - Lilli colocou o bule de café sobre o fogão e correu atrás dele, mas Stefan ignorou o grito da mulher, saindo da choupana como um raio e colocando uma bala na câmara do rifle.
O capão preto agitou-se, irrequieto, girando as orelhas em direção a atividade humana do lado de fora, o instinto animal sentindo que algo estava errado. Os movimentos do cavalo despertaram Webb de um sono profundo, seu subconsciente captando o aviso do animal. Automaticamente, estendeu a mão para o rifle a seu lado, ainda não inteiramente acordado, esperando ouvir o fungar e dilacerar dos lobos do lado de fora do galpão nas horas que antecedem o amanhecer.
Quando a porta abriu com um safanão, súbita e violentamente, o instinto dominou Webb, fazendo-o pôr-se de pé em posição defensiva. Segurou o rifle à altura dos quadris, preparando-se para enfrentar esse ataque desconhecido. No mesmo instante, Webb reconheceu o homem de suíças adentrando o galpão como o marido de Lilli e começou a relaxar, até que viu o olhar assassino do homem.
Uma explosão, línguas vermelhas saídas do rifle na mão de Reisner e o grito de uma mulher misturaram-se enquanto Webb foi projetado para trás com o impacto da bala disparada a curta distância. O projétil o lançou contra a carcaça pendurada a um canto. Agarrou-se a ela em busca de apoio, o próprio rifle perdido em algum lugar na palha.
O relinchar dos cavalos assustados acompanhou o segundo disparo do rifle. Dessa vez a bala enterrou-se na carcaça animal que Webb instintivamente usara como proteção ao ouvir o engatilhar da arma. Sabia que levara um tiro, mas o choque não o deixava sentir mais do que uma sensação de queimadura ao lado.
Indefeso diante do ataque, Webb compreendeu que tinha que sair do canto. Podia ouvir Lilli gritando para que o marido parasse. Ao vê-la lutando pelo rifle, o obturador em sua mente gravou a cena na memória. Investiu em direção ao par enquanto Reisner tirava Lilli do caminho. O rifle oscilava tentando apontar novamente para Webb, que lançou-se sobre o agressor, empurrando-o para a parede do galpão e tirando o rifle das mãos de Reisner.
Algo atingiu a nuca de Webb, projetando uma pontada lancinante pelo corpo do cowboy. Luzes explodiram, cegando-o; em seguida, veio a escuridão.
- Webb! - Lilli arfava, horrorizada enquanto ele caía ao chão, abatido pelo golpe desferido por Franz Kreuger. Ela correu para Webb, ajoelhando-se ao lado do corpo caído. O lado esquerdo da camisa estava molhado de sangue, e a mão dela ficou vermelha ao tocá-lo. O alívio fê-la estremecer ao ver que ele ainda estava respirando, embora assustadoramente fraco. - Ele está vivo.
- Afaste-se dele - ordenou Stefan.
Ela ergueu os olhos para o marido, consumida pelo medo.
- Não - recusou, meio pedindo, percebendo em seguida o rifle de Stefan apontado para Webb, reforçando a recusa desafiadoramente. Não, não vou deixar você matá-lo.
- Afaste-se dele, mulher. - Franz Kreuger juntou sua ordem dura à de Stefan, aproximando-se para pegar Lilli pelos ombros e afastá-la dali.
- Isso é negócio de homem. Não é lugar para mulher.
- Não! - Ela lutava selvagemente, apavorada com o que Franz Kreuger poderia incentivar Stefan a fazer. - Você não pode matá-lo a sangue frio! Pelo amor de Deus, me escute, Stefan! - explodiu em lágrimas, lutando contra os dedos de ferro de Kreuger.
- Ninguém condenaria um homem por defender a honra de sua esposa. - Stefan lançou-lhe um único olhar faiscante.
- Oh, Stefan - ela soluçava derrotada, forçada a condenar-se. Se existe alguma culpa, ela também é minha. Ele não fez nada que eu não quisesse. - Observou o efeito estilhaçador que sua confissão provocara e desejou morrer por ferir Stefan daquela maneira. Ele a olhava fixamente, um homem alquebrado. E, o que era mais vergonhoso, o homem cujo respeito ele buscara, acima do dos outros, testemunhara a humilhação máxima, a infidelidade da esposa.
- Você fez isso comigo? - murmurou ele.
- Stefan, por favor, me deixe explicar - Lilli pedia o benefício da dúvida. - Não vou deixá-lo. Não faria isso com você.
- Você me fez de corno e eu devo perdoar? - replicou ele, a voz impassível. Por fim, ergueu uma mão fatigada e virou o rosto. - Vá para a casa.
Lilli parara de lutar contra as mãos de Kreuger. com a última frase de Stefan, ele a deixou. Mas ela não fez menção de sair do galpão, perscrutando o perfil virado de Stefan.
- O que vai fazer com ele? - ela indagou, olhando rapidamente para o corpo imóvel de Webb. - Vai sangrar até morrer se não receber ajuda.
- Não sei. - Deu de ombros impaciente, diante da insistente preocupação da mulher com o outro homem. - vou levá-lo para a família dele.
- Foi uma decisão difícil.
- Mas há um médico na cidade - Lilli argumentou debilmente. Ele ergueu a cabeça, o semblante cheio de seu antigo orgulho.
- Não quero que a cidade inteira saiba o que aconteceu aqui informou-a friamente. - Vá para a casa.
Não precisou explicar que não estava preocupado com o fato de a cidade tomar conhecimento do tiroteio, mas sim da causa dele. Nesse ponto, não havia mais nada que Lilli pudesse fazer, exceto obedecê-lo. Ela estacou na porta do galpão e lançou um último olhar para o corpo amarfanhado sobre a palha, os olhos toldados pelas lágrimas.
Os dois homens não trocaram uma só palavra enquanto a parelha de cavalos puxava a carroça sob a neve que caía. Correntes de metal tilintavam no ar frio da manhã, as rodas da carroça cortando a superfície dura da neve. Stefan Reisner não olhava para a esquerda ou para a direita enquanto levava a carroça em direção ao coração da sede da Triplo C. No vagão, o homem inconsciente jazia embrulhado em uma colcha sem esboçar qualquer ruído durante a viagem até a fazenda.
Havia pouca atividade no quintal da fazenda. Os que estavam do lado de fora detiveram-se e olharam para a carroça dos colonos que não se desviou de seu curso até a sede, a Casa-Grande de dois andares situada no topo de uma elevação. Stefan dirigiu a parelha até os degraus da frente do comprido alpendre e parou.
Desceu da carroça sem demonstrar pressa, caminhando até a parte de trás. Franz Kreuger ajudou-o a baixar a grade traseira. Stefan puxou o corpo envolto no cobertor até a borda, onde o ergueu como um saco de farinha. com Franz abrindo caminho, subiu os degraus que levavam à porta da frente, onde bateu com o punho enluvado.
Da janela do escritório, Benteen Calder já percebera a chegada da carroça e se pusera a caminho para a sólida porta de madeira, chegando antes da batida insistente. Ele abriu a porta, o rosto franzido ante a visão do colono barbudo e das botas saindo da coberta que carregava aos ombros. Não havia afabilidade no rosto vermelho pelo frio do homem que levou o fardo para dentro da casa sem ser convidado a entrar.
- É seu filho. Onde quer que o coloque? - A declaração foi feita em voz inalterada, tão calmamente quanto se estivesse anunciando a entrega de um tapete.
- Meu filho - repetiu Benteen chocado, o olhar correndo para as botas, tudo que conseguia ver. Mas o colono já estava passando por ele em direção à sala de estar.
Benteen virou-se para segui-lo, ignorando o segundo homem que também entrou na casa. Lorna acabara de sair da cozinha, enxugando as mãos no avental.
- Quem foi... - ela não terminou a pergunta ao ver o homem velho, mas forte, jogar o fardo no sofá da sala.
As pontas da coberta abriram-se, revelando o rosto pálido de Webb. A essa altura Benteen também já chegara à sala, enfurecido com a ideia de que perdera seu único filho vivo. Há muito tempo tirara o corpo sem vida de seu filho mais novo, Arthur, dos braços de Lorna. Nenhum homem viveria para ver a morte de todos os filhos. Ouviu o grito de Lorna, mas primeiro precisava saber. Colocou a mão na garganta de Webb, sentindo a pulsação, enquanto percorria o corpo do filho com o olhar, que não foi além do lado esquerdo ensopado de sangue e do furo no tecido.
- Ele levou um tiro. - Benteen virou-se para o homem que o trouxera, a pergunta dura misturando-se com o ódio. - Quem fez isso?
Os traços inexpressivos do homem não esboçaram reação.
- Peguei-o com minha esposa e atirei nele - declarou sem pestanejar.
A explicação negava qualquer justificativa para o ódio vingativo que Benteen estava sentindo. Fitou o homem que seu filho enganara, os musculos do pescoço saltados, tendo que engolir amargamente a raiva.
Atrás dele, Lorna exclamou em um suspiro aliviado.
- Benteen, ele está vivo!
Sentiu uma dor do lado esquerdo ao ouvir as palavras de esperança. Pegou o colono pelo braço:
- Fora! - ordenou, a voz rouca.
- Se seu filho sobreviver, diga a ele que se chegar perto de minha mulher novamente, eu mato ele - jurou o homem no mesmo tom de voz sem emoção de suas declarações anteriores, voltando-se em seguida para sair da sala, seguido pelo segundo homem.
Ao saírem pela porta da frente, Nate Moore e dois outros cavaleiros curiosos se aproximavam despreocupados.
- O que aqueles dois queriam? - perguntou Nate antes de perceber o corpo sobre o sofá, Benteen e Lorna ajoelhados ao lado. - É Webb! Abandonando a pose preguiçosa, correu até o sofá. O lado ensanguentado da camisa fora rasgado para expor a carne dilacerada pela bala e o sangue coagulado. - Ele levou um tiro.
- Ele parou de sangrar, mas já perdeu muito sangue. - Benteen lançou um olhar para Nate, como se só então tivesse percebido a presença dele ali. - Vá buscar o médico, correndo.
- Quer que eu reúna os rapazes para ir atrás dos almofadinhas que fizeram isso? - Nate olhou para o patrão, na expectativa.
- Não - foi a resposta carrancuda. A testa de Nate enrugou-se.
- Não quer que vá chamar o xerife, não é?
- Não! - A segunda negativa foi mais enérgica do que a primeira. Droga, eu disse para você ir chamar o médico. Vá logo!
A notícia foi rapidamente transmitida a todos os homens e mulheres da Triplo C, da maneira curiosa como o telégrafo de boca em boca da pastagem trabalhava. Cavaleiros foram despachados para cada campo limítrofe, espalhando a notícia de que não somente um deles levara um tiro, mas que fora o filho do patrão. Ruth chegou na sede minutos após ouvir a notícia. Os outros reuniram-se no alojamento ou na cozinha, a atenção dividida entre a Casa-Grande na elevação, onde Webb estava inconsciente e a direção de onde o médico viria.
Como ninguém sabia os detalhes do tiroteio ou a identidade dos outros envolvidos, a especulação era desenfreada. Mas todos, especialmente os mais velhos, que tinham vindo do norte com Benteen, lutado com renegados e com ladrões de gado para construir esse império do gado, achavam que haveria algum tipo de retaliação contra os responsáveis por aquele ato. Todos sabiam que quando alguém atingia um Calder, recebia o troco em dobro. Assim, esperaram.
Ao ouvir o tilintar dos arreios e o ruído das rodas da carroça, Lilli desejou correr até a porta, mas aguardou do lado de dentro, sentada com as mãos cruzadas sobre o colo. Prendera o cabelo no alto da cabeça, arrancando aqueles malditos talos de palha. Parecia composta e pronta a explicar-se com Stefan, no entanto tudo não passava de aparência. Por dentro, sentia um alvoroço efervescente, uma mistura de culpa, ansiedade e desejos dilacerados. A preocupação com Webb praticamente bloqueava todo o resto. Lilli teve de suportar uma espera longa e torturante. Os cavalos foram desatrelados da carroça e os arreios removidos e guardados. Passou-se uma eternidade até que ouviu a batida dos pés do lado de fora da porta. Stefan entrou na choupana e começou a tirar as roupas de inverno sem olhá-la uma única vez.
- Stefan, sinto muito pelo que aconteceu. - Não conseguiu tolerar o silêncio acusador.
Ele a olhou friamente, caminhando até o fogão. Uma raiva impotente percorreu-a diante da recusa silenciosa do marido em escutar qualquer explicação. Aquilo a fez mais determinada a explicar-se.
- Ele trouxe carne para nós. Uma vaca quebrou a perna e ele teve de matá-la. Aí trouxe a carne para nós. Você deve ter visto a carcaça pendurada no galpão - insistiu ela.
- Eu joguei fora - finalmente, ele respondeu com uma voz desprovida de sentimento, fria. - Não quero nada dele. Deixe os lobos aproveitarem.
Uma vaca inteira. Mas Lilli não comentou nada a respeito da perda, consciente de que a atitude de Stefan fora ditada por um lastimável arroubo de orgulho.
- Quando ele soube que você tinha ido caçar, me avisou que estava vindo uma tempestade. Por isso ele saiu para procurá-lo.
- Ele queria que eu tivesse morrido na neve.
Mas o comentário soava como se Stefan estivesse externando o próprio desejo.
- Stefan - Lilli murmurou, alquebrada. Reisner não parecia ouvila. - Ele queria que eu fosse embora com ele, mas eu disse que não. Eu...
- Chega! - vociferou ele, controlando quase imediatamente o jorro de ódio. O rosto parecia de pedra quando por fim a fitou novamente. Não vamos mais falar nisso.
- Stefan, você precisa compreender...
- Chega. - Ele foi frio e definitivo.
Mas as palavras dele pareciam pôr fim a algo mais: a proximidade que fora parte vital do relacionamento de ambos. Não era mais o amigo e companheiro, mas um estranho que não desejava que ela curasse a ferida que causara. Lilli queria dizer a ele que poderia banir o assunto, mas jamais conseguiria apagar a lembrança das mentes de ambos. De alguma maneira, ela sabia que era inútil tentar. Os anos nunca haviam sido tão numerosos entre eles.
Benteen pediu a dois cowboys que levassem Webb para seu antigo quarto no segundo andar. O médico foi levado para lá quando chegou. Era um homem relativamente jovem, saído há um ano da faculdade. Levemente admirado com o tamanho da casa, o dr. Simon Bardolph estava um tanto ansioso por testar sua própria habilidade, especialmente enquanto examinava o paciente sob a presença intimidante de Benteen Calder em pessoa. Nunca tratara de um ferimento a bala antes. Era um começo excitante na aventura do Oeste, mas achou melhor guardar a ideia para si.
- A bala passou pelo corpo. - Ficou um pouco desapontado com a descoberta. Se tivesse de procurá-la, teria uma lembrança de primeira qualidade. - Parece que não atingiu órgãos vitais, o que foi uma sorte - tranquilizou o cavalheiro do outro lado da cama, tentando tecer comentários profissionais. - É um milagre ele não ter sangrado até morrer. O frio deve ter impedido. - Sorriu para a mulher loura que ajudou a colocar uma atadura limpa na ferida. - Se não houver infecção, a ferida vai cicatrizar bem. Naturalmente ele vai se sentir muito fraco devido à perda de sangue.
- Quando vai recobrar a consciência? - Benteen Calder transformou a pergunta mais em ordem do que em simples indagação.
- Ele levou uma pancada forte na cabeça. - O doutor Simon Bardolpn considerou a resposta cuidadosamente. - Poderá voltar à consciência em poucos minutos ou em algumas horas, talvez dois dias. - E talvez nunca, mas achou melhor não aventar essa possibilidade no momento. Isso é tudo que posso fazer por ele. Naturalmente voltarei amanhã.
- Obrigada, doutor. - A Sra. Calder colocou-se ao lado dele, a única do quarto que parecia compreender os limites de suas habilidades curativas. - Temos café quente e torta de maçã feita em casa lá embaixo. Espero que aceite um cafezinho antes de ir embora.
- Bondade sua, senhora. - Ele fechou a maleta preta e preparou-se para sair do quarto.
- Você fica com Webb, não é, Ruth? - A Sra. Calder interpelou a garota loura. - Benteen? - Chamou o nome do marido em um tom que o requisitava a acompanhá-la.
A impaciência pareceu acentuar a linha dura dos lábios dele. Lançou um olhar turbulento para Ruth. - Quero ser informado quando ele voltar a si.
- Eu o avisarei - ela prometeu, puxando uma cadeira para junto da cama, iniciando a vigília.
Mas Webb só se moveu no meio da segunda noite. Ruth acabara de entrar no quarto para que Lorna pudesse dormir um pouco. Ela estava ao lado dele quando Webb esboçou o primeiro sinal de movimento.
- Ele está com um pouco de febre.
Lorna Calder torceu um pano molhado e entregou-o a Ruth para que o pusesse na testa de Webb.
Quando colocou o pano na testa, Ruth percebeu os lábios de Webb se movimentando. Ela se aproximou para acalmá-lo, franzindo o cenho ao ouvi-lo murmurar algo que parecia Lilli. Correu o olhar para Lorna Calder.
- Ele está consciente? - indagou Lorna, ansiosa.
- Não. Quer dizer... - Ruth vacilou. - Você conhece alguém chamado Lilli?
Os traços de Lorna ficaram impassíveis.
- Não. Não conheço ninguém com esse nome - negou. Em seguida, considerou Ruth com o olhar. - Preferia que você não contasse isso a Webb.
- O homem que trouxe Webb até aqui era bem velho, com uma barba grisalha? - indagou Ruth, sentindo a pontada dolorosa da suspeita e tentando ocultá-la.
- Era. Por quê? - Lorna Calder olhava-a atentamente.
- Só para saber. - Ruth murmurou, baixando os olhos. Ela perguntara por que Webb fora baleado, mas Lorna dissera não saber. A princípio, Ruth achara a ideia provável, já que Webb não recobrara a consciência. Mas se o homem que o trouxera era o mesmo que Ruth sabia ser o marido daquela jovem com quem Webb dançara na comemoração do Quatro de Julho, parecia bastante provável que o tiro fosse por causa da mulher.
Em algum momento daquele ano ela perdera Webb, sem nem mesmo saber.
Benteen, por favor, lembre-se de que ele está muito fraco. - Lorna alertou o marido antes de entrarem no quarto de Webb.
- vou me lembrar - disse, mas estava impaciente com o mínimo atraso provocado pelo comentário. Agora que Webb recobrara a consciência, queria saber as circunstâncias reais que haviam envolvido o tiroteio. Depois de dois dias atormentado pela declaração do velho, Benteen não podia aceitá-la como verdadeira. - Mas existem algumas coisas que quero descobrir.
Ao abrir a porta, Lorna lançou outro olhar de aviso ao marido, pedindo que se controlasse e fosse com calma. Ruth estava sentada na cama, alimentando Webb com uma sopa rala. Benteen surpreendeu-se com a palidez do rosto do filho, que tornava os cabelos e olhos negros e as maçãs do rosto mais destacados. Um conjunto de travesseiros de pena o mantinha semi-reclinado. Benteen sentiu novamente uma pontada de ódio contra o homem que prestara seu filho forte e cheio de vitalidade.
- Ruth, você podia nos deixar a sós com Webb por alguns minutos?
- Lorna requisitou.
Benteen precisou de algum tempo para recompor-se e controlar suas emoções. Estava tremendo e enfiou as mãos nos bolsos para que não vissem o tremor das mesmas. Enquanto Ruth pegava a bandeja e saía, Benteen caminhou ao longo da cama, perscrutando os traços pálidos do filho crescido. Não disse uma palavra enquanto Ruth não saiu do quarto.
- Como está se sentindo, filho?
- Bem. - Faltava força à voz dele. - Acho que foi bom eu ter a cabeça dura. - O esforço para falar pareceu enviar ondas de dor através da cabeça de Webb, aumentando o dolorido surdo que oscilava entre o embotamento constante e punhaladas perfurantes.
- Quero saber sobre os tiros, Webb - declarou Benteen, tocando no assunto que o levara ao quarto. - Quero saber o que aconteceu e quem fez isso.
O que fechou os olhos de Webb não foi uma dor física.
- Esqueça.
- Esqueça? - A resposta veio rápida e dura, cheia de génio.
- Benteen. - Lorna enviou um aviso calmo de sua posição na cabeceira da cama.
Ele lutou para baixar a voz, a qual saiu rouca com o esforço.
- Não vou aceitar isso. Ora, você vai me contar o que aconteceu e por que, ou não?
- Eu disse esqueça isso - repetiu Webb, abrindo os olhos para desafiar o pai. Mas Lorna viu a umidade neles e sentiu o coração confranger-se pelo filho. Os homens seguiam um código estúpido que os fazia chorar para dentro, e ela desejaria poder chorar as lágrimas de Webb por ele. - É problema meu. Você não tem nada a ver com isso - Webb insistiu.
- Não tenho nada com isso o cacete! - Benteen aproximou-se da cama. - Você é um Calder, e isso faz com que o problema seja meu também! - As mãos saíram dos bolsos e Benteen lançou um dedo em direção ao filho. - Ninguém atira no meu filho, ninguém atira em um de meus vaqueiros, sem que eu tenha interesse pessoal no motivo!
- Não tem nada a ver com a fazenda. - Webb afundou cansado nos travesseiros; a discussão estava lhe tirando a pouca força que tinha.
- Não me interessa se o problema é pessoal ou de negócios - insistiu o pai, a boca apertada enquanto aguardava uma resposta que não obtinha. - O homem que o trouxe aqui disse que pegou você com a mulher dele. - Desafiou a negar a informação. Como a negativa não veio, Benteen foi forçado a perguntar. - É verdade?
O quarto foi tomado pelo silêncio até que a resposta simples, uma só palavra, foi dada:
- É.
- Por Deus, acho melhor você dar uma explicação melhor do que essa. - A voz do pai vibrava. - Como você foi se envolver com uma mulher casada?
- Eu a amo. - A sinceridade do filho comoveu Lorna, mas não chegou a atingir Benteen. - Se pudesse, a teria tomado dele. - Webb não esperava que o pai compreendesse, portanto não ficou desapontado com a reação.
- Você não foi criado para pegar o que pertence a outro homem o pai condenou-o, a voz rouca de ódio.
- Benteen, acho melhor você sair - Lorna interpôs-se entre ambos, enfrentando o marido com o olhar determinado que ele já vira antes. Você descobriu o que queria saber. O resto fica para mais tarde, quando Webb estiver mais forte.
- Como você pode defendê-lo? - desafiou-a.
- Ele é meu filho, e seu também - ela contrapôs sem hesitar. Agora está muito fraco para erguer a cabeça, para asssumir a responsabilidade. - Ela o fitava de frente, sem ceder um milímetro. - Estou falando sério, Benteen. Saia do quarto.
- Tudo bem - Benteen concedeu, carrancudo. - vou esperar até ele sair dessa cama.
Ele se virou nos calcanhares e saiu bruscamente do quarto. Lorna esperou até que a porta estivesse fechada para voltar a atenção para Webb.
A despeito de estar preparado para a raiva do pai, a discussão aumentara seu desespero. A lembrança do tiro estava envolta em irrealidade, a qual não tornava nada mais claro, muito menos revelando como ele sobrevivera. Adivinhara que Lilli de alguma maneira conseguira impedir que Reisner o matasse. Lilli. O que acontecera a ela? Amaldiçoava o ferimento que minava suas forças. ?
Ao ver tristeza e arrependimento na expressão da mãe, suspirou fatigado, agravando a dor abrasadora do lado:
- Não peça desculpas por ele, mãe - disse. - Eu já esperava. Ela passou os dedos pelos cabelos do filho em um gesto de carinho, afastando-os da testa de Webb.
- Ela é a jovem que foi ferida no incêndio - adivinhou, e Webb confirmou com um movimento de cabeça, sem se surpreender com a astúcia da mãe. - Eu imaginava - ela murmurou, mudando de assunto. - Trouxemos suas coisas do alojamento. Você vai ficar aqui no seu velho quarto onde podemos cuidar de você. - Passou a mão sobre a barba áspera e tentou sorrir. - Você precisa fazer a barba, mas primeiro é melhor descansar.
- Estou cansado - ele admitiu.
A mãe fez menção de sair do quarto, mas virou-se.
- Webb - começou -, sei que seu pai foi desnecessariamente duro, mas lembre-se: a mãe dele fugiu com outro homem quando era pequeno. Pensei que tinha superado isso, mas... - ela hesitou. - Ele sabe o que isso fez ao pai. É duro para ele aceitar que o próprio filho tente desfazer um casamento deliberadamente.
Não foi necessária uma resposta e a mãe saiu do quarto. Webb ficou olhando pela janela para o azul polar do céu. Aquele era um detalhe da vida do pai que esquecera. A mãe lhe contara a história, algo que o pai nunca comentara.
A mente afetada pela dor não se demorou muito no assunto. Logo a cor do céu lhe trouxe a imagem de Lilli e de seus olhos incrivelmente azuis.
- Se ele colocou a mão em você por minha causa, Lilli, juro que o mato - murmurou Webb, imergindo na escuridão da exaustão.
Naquela noite, Barnie Moore foi à Casa-Grande, sob o pretexto de relatar os efeitos da tempestade, mas na verdade estava cansado de esperar e especular. Conhecia Chase Benteen Calder desde que ambos eram garotos levados, e seu filho Nate era o melhor amigo de Webb. Outros poderiam não ousar questionar o silêncio prolongado da sede, mas Barnie não era um deles.
O fogo na grande lareira do escritório crepitava. As chamas
brilhavam acima das toras de lenha, objetos da atenção mal humorada de Benteen, sentado na cadeira forrada de couro igual à que Barnie ocupou.
- No todo, o rebanho suportou bem - Barnie dizia, preparando-se para abordar o assunto. - Até agora, as mortes de inverno têm sido poucas.
- Ótimo - resmungou Benteen, mas pareceu oferecer uma resposta automática, sobre a qual não refletiu.
- Como vai o garoto? - Barnie iniciou com uma pergunta segura.
- Recobrou a consciência. Você sabe. - Benteen lançou um olhar rápido ao amigo, consciente de que as notícias estavam circulando. Barnie assentiu com um menear de cabeça. - Ele está fraco como um bebé. Vai demorar um pouco para ficar de pé novamente.
- Eu imaginava. - Barnie acendeu um fósforo e levou-o até o cigarro, protegendo a chama com a mão em concha e olhando para Benteen.
- Espero que ele já esteja forte o suficiente para contar como levou o tiro.
com um rompante de irritação, Benteen pôs-se de pé e aproximou-se da lareira.
- Foi um acidente.
Barnie conseguiu expelir a fumaça que tragara antes de engasgar-se.
- Acidente?
- Webb estava limpando o rifle e ele disparou acidentalmente - vociferou Benteen diante da indagação cética de Barnie. - Isso vive acontecendo.
- E a pancada na cabeça? Imagino que tenha acontecido quando ele caiu - disse Barnie, mais convencido ainda quando viu os músculos contraídos das costas de Benteen, assinalando raiva controlada.
- É, acho que foi isso. - A concordância imediata corroborou o raciocínio de Barnie.
- Então como é que você explica que aqueles agricultores o tenham pegado? - Barnie desafiou calmamente.
Benteen virou-se.
- Como diabos vou saber! - disparou. - Talvez ele tenha buscado abrigo na casa deles para esperar a tempestade passar. - Mas sabia que a explicação era falha, pois não oferecia um motivo para o fato de Webb não estar no campo limítrofe. - No que diz respeito a você e aos outros, o tiro foi acidental. É o que vocês precisam saber.
Sem responder, Barnie pôs-se de pé lentamente e foi até a lareira, onde jogou o fósforo nas chamas.
- Tem problema se o Nate vier vê-lo? - indagou.
- Ele está recebendo visitas - disse Benteen.
- Então ele virá - avisou Barnie. - Fico contente de saber que Webb está melhor. Você sabe que todos nós nos sentimos responsáveis pela criação dele.
- É. - Benteen ficou pensando se esse era o problema. Talvez Webb tivesse pais em demasia. Ou talvez fosse o sangue de sua mãe que corresse nas veias do filho, tornando-o irresponsável e inescrupuloso. Talvez Webb fosse um retrocesso a ela. Benteen levara muito tempo para aceitar a mãe como era, mas não conseguiria tolerar aquelas características no filho. Teria de tomar uma decisão difícil e penosa.
Não ouviu Barnie sair do escritório.
O peito nu, Webb estava de pé em frente do espelho com moldura de madeira. A cintura estava envolta em uma atadura larga, enquanto um par de calças de brim apertava-lhe as pernas e os quadris. O rosto meio encoberto pelo creme de barbear apresentava dois cortes feitos pela navalha na mão dele.
A mão tremia quando ergueu a navalha para dar o terceiro corte na barba, o braço incrivelmente pesado. Webb amaldiçoou a maldita fraqueza que ainda o tomava, mais de uma semana depois, e tentou realizar a tarefa. Sentiu uma pontada de dor quando a navalha cortou-lhe a pele. Praguejando novamente, estendeu a mão para a toalha e secou o sangue do corte. Ouviu uma batida rápida na porta.
- Entre. - Irritado, deu permissão para a pessoa entrar.
A porta se abriu e Ruth entrou com a bandeja de café da manhã.
- Bom dia. - Ela o olhou, colocando a bandeja junto à cama. O que acha que está fazendo? - perguntou enquanto ele se virava para o espelho e lavava a navalha na bacia d'água.
- A barba - respondeu conciso, fitando o reflexo dela no espelho, ao lado do seu.
Ruth pegou a toalha que ele pressionava contra o corte.
- Parece que você não ficou satisfeito com a quantidade de sangue que perdeu e decidiu se livrar de mais um pouco. Sente-se. - Carinhosamente, ela o empurrou em direção a uma cadeira de espaldar reto. - vou terminar isso para você.
Aliviado, Webb afundou na cadeira. As pernas pareciam de borracha e não aguentavam ficar de pé por longos períodos. Ele chegara quase ao limite de suas forças, por isso não se incomodou com o fato de Ruth assumir a tarefa. Ergueu a cabeça, apoiando-a nas costas da cadeira e fechou os olhos, a navalha começando a barbeá-lo, golpes firmes ao longo da barba. Abriu os olhos e fitou Ruth inclinada sobre ele.
- Você é boa nisso - observou.
- Tinha que ser, com a prática que tive com você. - Foi uma declaração simples, sem pretender ser provocante. - Fique quieto e não fale, ou vou acabar cortando você. Não sou tão boa assim.
Webb ficou em silêncio, lembrando, com a observação de Ruth, quantas horas ela passara com ele, desde que fora ferido. A garota o alimentara, lavara, barbeara e lera para ele, sem falar a não ser quando ele falava, e trabalhando em silêncio quando ele estava calado.
Ao terminar, estendeu a toalha para ele limpar os restos de espuma.
- Vá tomar seu café antes que fique frio.
Webb limpou o rosto e olhou-a fixamente, sentindo-se vagamente intrigado. Levantar-se e atravessar o quarto até a cama requeria esforço. Quando chegou à cama estava suando, sua vitalidade minada pelo pequeno exercício. Ruth afofou os travesseiros, proporcionando um melhor apoio, e colocou a bandeja no colo dele.
- Sabe que você não me perguntou sobre o tiro uma única vez, Ruth?
- Webb percebeu. Todo mundo quisera um relato de primeira mão, exceto ela.
- Seu pai disse que foi um acidente. - Evitou o olhar dele. - Não me importa como ou por que aconteceu. Só quero que você se recupere.
- Uma mulher que não faz perguntas. Você deve ser um tipo novo - ele sugeriu secamente, observando os lábios dela se separarem como se fosse dizer algo, e em seguida se fecharem novamente. - O que você ia dizer?
- Nada. - Ela sacudiu a cabeça, negando haver alguma pergunta que quisesse fazer. Tome o café da manhã. Daqui a pouco volto para pegar a bandeja.
- Ruth. - Webb chamou-a quando se preparava para deixar o quarto. - Obrigado por não fazer perguntas.
Ela ofereceu um pequeno sorriso. Quando saiu, Ruth ficou matutando se jamais ocorrera a Webb que ela não desejava saber as respostas.
Somente na terceira semana Webb aventurou-se a descer. A princípio apenas para as refeições, gradualmente foi ficando por períodos maiores. Não viu muito o pai. Quando o fazia, tinham pouco a dizer um ao outro. Há muito que não mantinham um bom relacionamento, que se tornara mais tenso depois daqueles tiros.
Durante a longa recuperação, Webb tivera muitas horas para pensar em Lilli. Era melhor que não a visse novamente; melhor para ambos. Como ela não tentara entrar em contato com ele, Webb concluíra que a decisão de ficar com o marido não mudara, apesar do tiro. Webb não queria dividila. Não desejava um caso, sem nunca saber quando a veria ou como. Era melhor deixar a porta fechada.
Há algum tempo que o jantar terminara, mas os três, Webb e seus pais, se deixavam ficar à mesa para o café. Webb bebeu o que havia em sua xícara e a recolocou no pires. O pai fitou-o de sua cadeira na cabeceira da mesa.
- Bem. - A palavra foi lançada em tom de desafio. - Está pronto para se explicar comigo, Webb? Prometi a sua mãe que esperaria até você ficar mais forte para termos nossa "discussão".
- Benteen... - a mãe tentou protestar.
- Não adianta, Lorna - ele cortou. - O adiamento não vai me fazer mudar de ideia.
- Ele está certo, mãe. - Webb concordou. - Não vamos ganhar nada protelando mais a conversa. - Olhou para o pai. - Vamos para o escritório? - Recebeu um menear afirmativo de cabeça e ambos se puseram de pé ao mesmo tempo.
- vou também - insistiu a mãe, empurrando a cadeira.
- Não vai não, Lorna - o pai recusou. - Dessa vez não há espaço para pacificadores. Existem coisas que precisam ser ditas, e a conversa provavelmente vai ser dura. Não a quero lá. Isso é algo que eu e Webb temos que acertar de uma vez por todas.
A declaração estivera fermentando há muito tempo, Webb percebeu enquanto saía da sala de jantar, caminhando a passos largos com o pai em direção à entrada do escritório. Não sabia o que estava por vir, mas sentia-se Pronto para o que fosse. Agora que Lilli estava evidentemente perdida para ele, parecia restar pouca coisa em sua vida que possuísse algum significado. Portanto, não havia realmente nada a perder.
No interior do escritório, Webb deteve-se e esperou que o pai fechasse a porta. Feito isso, ele foi até a lareira e remexeu os troncos brilhantes até acender a chama. Ainda sentia o lado doer, e não recuperara a força que tinha, mas sentia-se capaz de enfrentar o pai.
- Bebida? - indagou o pai, e Webb sacudiu a cabeça negativamente.
- Nem eu. A bebida não vai ajudar a melhorar o gosto de nada do que tenho a dizer.
- Então vá em frente - declarou Webb.
Benteen Calder olhou para ele e soltou uma risada resmungada. - Esta foi a única coisa compatível com um Calder, dita por você. - Balançou a cabeça em uma espécie de desesperança e caminhou até a escrivaninha.
- Acho que seu romance com uma mulher casada foi a gota d'água.
- Não planejei me apaixonar exatamente pela mulher de outro homem - disparou Webb. - Mas não esperava que compreendesse isso.
- Você sabe o que é? - O pai virou a cabeça para o lado, estudando o filho. - Você é um malandro em cima da sela. Você pode não ficar indo de fazenda em fazenda, mas é igual aos malandros em todos os outros aspectos. Você bebe, briga e pega prostitutas com os rapazes. E nunca se importa com nada. Você está sempre procurando o caminho mais fácil, deixando que outro se preocupe e dê ordens.
- Essa é sua opinião. - Webb recolocou o espeto na prateleira, sentindo os cabelos da nuca eriçarem-se com a condenação avassaladora.
- Opinião? Você nunca me demonstrou ser algo além disso - replicou Benteen. - Vê aquele mapa na parede? Quando eu tinha sua idade, construí isso, lutei e me tornei o dono.
- Estou cansado de ouvir o que você fez quando tinha minha idade - exaltou-se Webb. - O que espera que eu faça? Que saia e duplique isso tudo, só porque foi o que você fez?
- Não! Maldição! - O génio do pai insuflava-se com o do filho. Há anos espero ver você começar a assumir um pouco da responsabilidade, mas você não quer nem liderar o grupo de rodeio! Nada do que você diz ou faz me mostra que se importa com o que acontece nessa fazenda!
- Isso vai se transformar em outro sermão sobre a fazenda? - indagou Webb. - Porque se for...
- Não. - O pai fez uma pausa, a respiração alterada e a voz mortalmente fria. - Não é outro sermão. Porque percebi que você não vai mudar.
- Fico contente de ver que finalmente você enfiou nessa cabeça dura que não quero dirigir nada - retorquiu Webb com um traço de sarcasmo.
- Enfiei na cabeça, sim. E você não vai dirigir nada, porque eu não ia colocar a Triplo C nas mãos de um vagabundo inescrupuloso, irresponsável como você - declarou. - Você não vai herdar a Triplo C quando eu me for. Não vai receber um palmo dessa terra.
Webb ficou olhando o pai, tentando digerir o que ele acabara de dizer. Foi como se alguém tivesse arrancado sua alma. Um ódio estranho crescia dentro dele, martelando em suas veias como um estouro de boiada.
- Você não pode fazer isso. - A voz soava apertada, mal parecendo a dele.
- Não posso uma ova!
- Vá para o inferno! - Webb vibrava com a intensidade de sua fúria. - Essa terra é tão minha quanto sua! Nasci aqui! Trabalhei aqui e percorri cada palmo dela!
- Foi? - os olhos do pai possuíam um brilho duro e calculista.
- Você sabe muito bem que sim!
- Você quer a terra?
- Quero! - resistira à ideia durante tanto tempo que ela saiu como um choque, quão desesperadamente desejava aquela fazenda. Ele pertencia a ela. A fazenda era tão parte dele quanto seu coração. - E juro por Deus que não vou deixar você tomá-la de mim.
- Se você a quer, vai ter de lutar por ela - o pai desafiou-o. - Vai ter de me mostrar que herdou a coragem minha e de sua mãe, porque não acho que você possua o necessário para tomar conta de um lugar como esse.
- Sou um Calder, não sou? - retorquiu Webb. - Sou seu filho.
- Não sei se você é um Calder. - Benteen olhou-o de cima a baixo.
- Mas é melhor você lutar para ser um, porque vai ter de me enfrentar. Você tem muito o que aprender, garoto. Tem que se sair bem em uma luta corpo-a-corpo. O que vai acontecer se perder?
O desafio era figurado e Webb o sabia, mas a febre do combate aumentava. A violência física teria sido um alívio bem recebido para seu ódio. Assim, Webb respondeu à zombaria com um convite meio sério.
- Por que nós não lutamos aqui mesmo? Resolveríamos essa questão rapidamente - declarou.
A perspectiva pareceu divertir o pai, que respondeu de forma arrogante. - Tem certeza de que não quer esperar até o ferimento estar completamente cicatrizado e você ter mais força?
- Não. Acho que isso nos colocaria em pé de igualdade, porque você é velho e lento - contrapôs Webb.
- Os punhos não ganham tantas lutas quanto os cérebros. Nesse momento você está pensando com os intestinos, garoto. E essa não é maneira de pegar a fazenda de mim - afirmou o pai. - Tudo que está fazendo é provar que não merece a fazenda. Você fala grosso, mas não me mostrou nada.
- Vamos ver. - Webb concordou que nada mais poderia ser feito com palavras. Deu as costas para o pai e saiu do escritório a passos largos.
Benteen observou-o do centro da sala. Ficou de pé, alto e empertigado, os ossos largos cobertos pela pele amadurecida e os cabelos escuros tornados grisalhos. A expressão de raiva e desafio zombeteiro que tomara conta de seu rosto marcado dera lugar ao orgulho, e o brilho nos olhos castanhos toldaram-se de lágrimas. Um segundo depois, ouviu o som de um par de botas subindo as escadas e Lorna veio correndo até o escritório.
- O que houve? - perscrutou-lhe o rosto, esperando o pior depois das vozes alteradas que ouvira e do jeito que Webb saíra da sala. - Webb está indo embora da fazenda?
- Não. - Estendeu os braços para ela, puxando-a contra seu peito. Descansou o queixo no topo da cabeça de Lorna e fechou os olhos, tremendo de alívio e gratidão misturados. - Finalmente tenho meu filho!
- Não entendo. - Lorna mudou de posição, erguendo a cabeça para fitá-lo.
- Ele vai lutar comigo pela posse da fazenda. - Benteen sorria. - Chamei-o aqui essa noite para dizer que não ia herdar a fazenda.
- Benteen! - Ela ficou chocada com a declaração, mais do que um pouco zangada.
- Não tive escolha. - Ele defendeu sua decisão calmamente, agora que conhecia o resultado. - Até agora, ele não mostrara ligar a mínima para a fazenda. No fundo, acho que eu esperava que ele reagisse assim, mas Webb já tinha me desapontado muitas vezes.
- Mas o que aconteceu? - Lorna não entendia como as coisas iam funcionar.
- Vá até o quarto dele, mas não diga que fui eu que mandei - Benteen lhe disse -, diga a ele que uma fazenda desse tamanho nunca foi dirigida com o sucesso de um alojamento. E diga que se espera ter alguma autoridade, vai ter de assumi-la. E não se trata simplesmente de dar ordens. Ele tem que assumir o encargo.
Quando se acalmou, Webb percebeu que fizera o jogo do pai. Mas havia uma diferença. Não estavam jogando um contra o outro. Eram parceiros.
No primeiro dia do rodeio de primavera, o recolhimento matinal do gado aos berros acontecia a cem metros do carroção-cozinha onde a massa de cowboys estava reunida. Webb estava de pé um pouco afastado, sem juntar-se aos homens e tentando ser um deles.
Os ferros de marcar estavam quentes, prontos para o trabalho da tarde. Webb girava o resto de café e borra na xícara, misturando-os antes de beber a infusão amarga e negra.
Em curioso flash da memória, lembrou outra xícara de café que bebera em uma noite de tempestade e a mulher de cabelos castanhoavermelhados que o servira. Seus pensamentos voltavam a Lilli de vez em quando, sem aviso, desnorteando-o com sua futilidade. Ela dissera não a ele. E o simples fato de não ter tentado entrar em contato com ele ou saber a seu respeito disse a Webb que ela não mudara de ideia. Lilli pretendia ficar com o homem que desposara. Embora lançasse todas as energias na fazenda, não conseguia esquecê-la.
Engoliu o último resto de café e foi até a carroça colocar a xícara na bacia, consciente de que os homens aguardavam seu sinal para começarem o trabalho da tarde. Mas ele se deixou ficar ali, acendendo um cigarro, sem fazer um movimento em direção aos cavalos descansados e selados. Junto com os empregados da Triplo C, havia representantes de outras companhias encarregados de reclamar o gado desgarrado e levá-lo de volta a seus pastos.
Nate foi atirar o prato e a xícara na bacia e parou ao lado de Webb.
- Deve estar se sentindo bem em voltar para o trabalho depois de ficar o inverno inteiro de molho. - Tirou o tabaco e o papel do bolso para enrolar um cigarro. - bom, chefe, está pronto para derrubar alguns novilhos?
- Logo vou estar. - Webb sorriu de leve com o termo designativo de sua autoridade. Não o amofinava como pensara que aconteceria.
A maioria dos vaqueiros, especialmente os mais antigos, considerara o progresso de Webb com aprovação silenciosa, embora ainda observando como ele se portava. Webb não se incomodava com isso, pois significava que ganharia o respeito deles, e iam esperar mais dele do que de um dos companheiros. Era loucura não ter considerado a situação sob esse ponto de vista antes.
Talvez finalmente ele tivesse crescido. Talvez tivesse sido preciso perder um pouco daquele sangue quente da juventude e levar uma pancada na cabeça. Sem dúvida aprendera duras lições. Desejara Lilli e ela o quisera, mas isso não resolvera as coisas. Saber disso não tornava tudo mais fácil, mas ao menos ele começava a aceitar o fato.
Estava fazendo a mesma coisa de novo, pensando em Lilli, ao invés de concentrar-se no trabalho da terra. Correu o olhar para Nate, observando a parcimônia com que ele fumava seu cigarro, guardando o resto para a tarde poeirenta que tinham pela frente. Os rodeios eram violentos para um cowboy. com chuva ou sol, trabalhava-se todo o dia até os músculos estarem tão fatigados que não se discernia mais nada, nunca era possível dormir o suficiente. Seriam seis semanas extenuantes, ou mais.
- Por que não fuma cigarros industrializados e evita todo esse trabalho, Nate? - indagou Webb.
- Desse jeito eu fumo menos; e é mais barato - acrescentou como fator decisivo. Webb olhou para o cowboy por entre a fumaça, caminhando vagarosamente em direção a ele. Hobie Evans não era um de seus favoritos. Nate achava que Ed Mace poderia ter escolhido um representante melhor para a marca Snake M; mas não tinha muito tempo para pensar em Ed Mace.
- E aí, Sr. Chefão? - Hobie deteve-se diante de Webb, dirigindo-se a ele desafiadoramente. - Pretende ficar o dia todo aí de pé?
Antes que Webb pudesse responder, Nate interpôs-se:
- Parece que tem mais desgarrados misturados nesse gado do que o normal. A maior parte levando a marca Snake M. Como acha que isso aconteceu?
- Tivemos muito problema com nossas cercas esse ano - respondeu HoBie rapidamente -, incluindo o acúmulo de neve. A neve amontoada proporcionou uma ponte para as vacas atravessarem a cerca. Aqueles cata-ninhos ficam irritados com o gado entrando nos campos deles - declarou com um sorriso retorcido. - Eles espalham o gado e não fazem o favor de levá-lo de volta ao lugar. O chefe precisa construir nova cerca, mas com o dinheiro curto do jeito que está, não sei como ele vai fazer para manter o gado todo esse ano.
- Você parece arrasado com isso, Hobie - observou Nate. Webb deu uma longa tragada no cigarro, em seguida jogou a ponta fora e apagou-a sob o salto da bota.
- É melhor começar a marcação e separar esse grupo.
Fez um sinal para que o longo trabalho da tarde fosse iniciado, caminhando até o cavalo baio de pernas longas que usava para laçar e montando-o. Quando girou a montaria em direção ao rebanho, o restante dos homens já estava montado em seus cavalos ou colocando um pé no estribo.
Era costume o dono da fazenda ou o capataz selecionar o primeiro novilho a ser marcado no rodeio, assim Webb cavalgou por entre a manada balançando o laço. Laçou com suavidade o novilho mais próximo e levou-o até o fogo, onde os ferros de marcação dos vários ranchos representados aqueciam até o vermelho vivo. O problema da escolha de qual marca usar era facilmente solucionado com a aplicação de um dos princípios básicos conhecidos dos vaqueiros: o novilho seria marcado com a mesma marca da mãe, e uma vaca rapidamente informava ao cowboy com um mugido e olhos furiosos quando ele laçara seu novilho.
Webb deu uma olhada para a vaca que observava seu novilho laçado com ansiedade e gritou a marca:
- Triplo C! - Dois homens desmontados derrubaram o novilho e Shorty Niles queimou a marca certa no flanco do animal.
Mais uma dúzia de novilhos foram marcados da mesma maneira. Mais dois laçadores juntaram-se a Webb no trabalho com a manada. O próximo novilho que ele laçou era um pesadão que parecia ser do último outono. Uma marca irreconhecível já havia sido queimada no flanco do animal, parecendo com a da Snake M, embora a mãe frenética carregasse a marca Triplo C. O novilho que mugia foi lançado ao solo e os dois homens que o seguravam olharam em expectativa para Webb, esperando que ele dissesse a marca.
- Triplo C! - Gritou a ordem para que se apagasse a outra marca, em seguida localizou Hobie Evans entre os encarregados do ferro de marcar. - Evans! É melhor você dizer ao Mace para ensinar seus novilhos desgarrados a não mamar nas vacas da Triplo C - avisou. - O novilho pode ter levado a marca errada por acidente uma vez, mas duas é impossível.
Webb sabia que não podia deixar o incidente passar sem um comentário. O silêncio poderia ter significado, para o inescrupuloso, uma temporada aberta para novilhos não marcados.
O homem da Snake M decididamente mostrava um olhar desagradável, mas não teceu comentários ao aviso ofensivo de Webb, o ar tornado acre com o cheiro de couro de animal chamuscado.
Quando Lilli entrou no armazém geral ao lado de Stefan, percebeu os olhares rápidos e os sussurros das esposas dos outros colonos. Não culpava Stefan pelo que viu nos olhos delas. Sem dúvida a fonte era Franz Kreuger e sua mulher submissa, que repetira tudo que o marido lhe contara. Lilli sentiu-se a heroína daquele livro de Nathaniel Hawthorne, The Scarlet Girl. Caminhou diretamente para o meio delas, a cabeça erguida. Estava acostumada a esse tratamento silencioso, já tendo suportado o suficiente de Stefan. A confiança, estava aprendendo, era um sentimento frágil. Uma vez quebrado, demorava um longo tempo para ser consertado, e a restauração nunca era total. As fraturas sempre eram visíveis, como porcelana emendada.
A chegada da primavera trouxe-lhe algum alívio, pois Stefan ficava no trigal do amanhecer até o entardecer. Os acres adicionais que comprara no outono significaram mais chão a ser arado e semeado com trigo, o que requisitara a compra de outra parelha de cavalos e o gasto de um trabalhador contratado, o filho mais novo de um dos vizinhos. Não mais satisfeito com a simples prosperidade, Stefan via a riqueza em cada esquina. Lilli desconfiava que essa súbita obsessão pelo dinheiro resultava em parte da necessidade do marido de provar que era homem e superar a sensação de fracasso que ela causara com seu breve interlúdio com Webb Calder.
Houvera algumas vezes, nos últimos meses, em que a relação com Stefan parecera perdida. Nessas ocasiões, ela ficara matutando se deveria ceder ao convite de Webb para que fugisse com ele. Dispunha de tempo em demasia para pensar nele. O fantasma de Webb assombrava a choupana e sentava-se à mesa durante muitas refeições silenciosas. Soubera que ele se recuperara simplesmente porque ninguém falara dele perto dela. Se ele tivesse morrido, não teriam tentado esconder-lhe a notícia.
No interior da loja, ela se voltou para Stefan, sem se comportar de maneira submissa.
- vou olhar tecidos para fazer camisas para você. O Sr. Ellis disse que estava esperando uma nova remessa quando viemos à cidade em abril.
Vou ver se já chegou.
Declaradas suas intenções, Lilli deixou a ele a decisão de acompanhála ou não. Stefan a seguia como uma sombra toda vez que iam à cidade. Lilli desconfiava que o marido achava que ela poderia combinar algum encontro com Webb se ele não estivesse por perto. Mesmo sendo errado, ela esperava ver Webb, não necessariamente falar com ele, mas somente vêlo.
Peças de fazenda enchiam as prateleiras na parede do fundo, junto com as agulhas, linhas e uma variedade de botões. Quando Lilli atravessou a loja em direção à seção de secos, Stefan não a seguiu. Sabia onde ela estava e podia ficar de olho nela com facilidade. E Lilli estava plenamente consciente disso.
Ao aproximar-se das peças de tecido para camisas, várias mulheres reuniram-se em torno da mesma área, analisando a seleção de fazendas. Nenhuma delas fez menção de abrir espaço para Lilli, ignorando-a e colocando-a em sutil ostracismo. Lilli lutou para manter a calma e esperar sua vez, mas parte dela fervilhava. Por fim, foi até o balcão de botões, zangada demais para perceber as duas mulheres examinando pequenos carretéis de renda.
- Acho que prefiro esse, Ruth. O que você acha? - A mulher mais velha olhava a garota loura, esperando sua opinião.
Curiosidade estritamente feminina incitou Lilli a lançar um olhar para a dupla e ver se teria escolhido a mesma renda, e também para descobrir quem poderia comprar artigo tão luxuoso. A resposta da loura não foi ouvida, pois Lilli reconheceu a mulher mais velha com os cabelos negros prateados. Era a mãe de Webb. Não havia dúvida. Sentiu o coração acelerar, e antes que tivesse tempo de pensar melhor, aproximou-se da mulher.
- com licença, Sra. Calder. - A voz falseou ligeiramente, quase transformando a frase em pergunta.
- Sim? - A mulher voltou-se para ela, o olhar inquisitivo cedendo lugar a interesse verdadeiro.
- Como está seu filho? - Lilli conseguiu parecer casual. - Está bem?
- Está, sim. Recuperou-se completamente do acidente. - Houve uma leve tensão na última palavra.
- Fico contente de ouvir isso. - Ela não conseguiu conter o sorriso. O alívio que sentia era tão natural e verdadeiro que não podia ser contido.
- Fica, Lilli? - A mãe indagou com uma certeza que denotava conhecimento da resposta. Webb fora o único que usara o nome abreviado.
- Fico, sim - admitiu Lilli, preparando-se mentalmente para a desaprovação que esperava ver. Havia um quê de orgulho no modo como se postava, e uma certa defesa também. - Evidentemente, ele falou de mim com a senhora.
- Falou - confirmou ela, mas não se estendeu no tema.
Uma sensação depressiva começou a pesar dentro de Lilli, ao perceber que a conversa não servira para nada além de tranquilizá-la de que Webb estava bem. Todo o resto permanecia igual.
Um tanto deprimida, ela sugeriu:
- Acho que seria melhor se a senhora não mencionasse que perguntei sobre ele, Sra. Calder.
- Compreendo - assentiu ela.
- bom dia. - Desviou o olhar das duas mulheres e afastou-se.
A coincidência de encontrar com a jovem mulher respondera a muitas perguntas que estavam na cabeça de Lorna Calder. Distraída, ficou olhando para as costas eretas e altas e o brilho dos cabelos escuros presos no alto da cabeça.
- Que estranho - murmurou Lorna, percebendo em seguida que falara alto, e por isso o comentário pedia uma explicação. - Em algumas coisas ela me lembra sua mãe, Ruth. - Lorna Calder continuou a estudar a mulher chamada Lilli, tão jovem e orgulhosa. - Tem o mesmo estado de espírito forte e arrojado, a mesma determinação. Acho que estas qualidades atraíram Webb mais do que a aparência. - Olhou para Ruth para ver o que ela achava. Ruth não costumava mascarar seus sentimentos, A dor que Lorna percebeu na expressão de Ruth fê-la arrepender-se imediatamente do ímpeto do comentário. - Que bobagem minha - Lorna repreendeu a si mesma. - Não sei do que estou falando. Provavelmente ela não é assim. bom, que renda você disse que preferia?
Durante os dias quentes do verão, Webb descobriu-se mais e mais envolvido no trabalho da fazenda. Conquanto grande parte da autoridade final continuasse a cargo do pai, Webb assumira a responsabilidade de verificar o cumprimento das ordens. Era um trabalho de tempo integral, ocupando-lhe cada minuto, mas ele precisava e agradecia esta ocupação que exigia todo seu tempo e energia.
Tarde da noite, em agosto, Webb chegou à Casa-grande depois da hora do jantar. Cansado e empoeirado após um dia inteiro em um dos campos limítrofes, dispensou o oferecimento da mãe de preparar-lhe algo para comer e fez sua própria incursão à cozinha, voltando com um pouco de carne fria entre duas fatias de pão caseiro. Levou a refeição para o escritório, onde o pai terminava algum trabalho escrito, e afundou no sofá de couro, esticando as pernas e cruzando um salto com esporas pela outra bota.
- O feno está pronto na sucursal sul. - Webb deu uma mordida no pão com carne, mastigando-o cansado.
- Está na hora de nos aparelharmos para o rodeio de outono. Tenho uma lista de provisões de que o cozinheiro vai precisar. - Benteen Calder colocou o pedaço de papel na ponta da mesa, lançando um olhar rápido para Webb.
vou mandar dois cowboys à cidade comprar as provisões. - Webb não saiu de sua posição confortável para pegar a lista, deixando-a na mesa temporariamente.
- Há quanto tempo você não vai à cidade? - O pai recostou-se na cadeira, estudando-o com olhar penetrante.
- Faz um bom tempo, acho. - Webb deu de ombros e mordeu o sanduíche. A cidade era um lugar que mais ou menos evitava; a cidade e a possibilidade de ver Lilli. Precisava de tempo.
- Está na hora de você ir lá e ver pessoalmente o que está acontecendo na área - declarou o pai em tom decidido. - Compre você os suprimentos.
- Não é necessário. - Webb ignorou o tom de comando da intimaÇão. - Além do mais, os rapazes tiveram um verão duro. Merecem um dia na cidade.
- Leve-os com você. - A impaciência brilhava nos olhos de Benteen Calder, afastando a cadeira e circundando a mesa. - Estou fazendo minhas próprias suposições sobre os motivos que o levam a não querer ir à cidade. Mas aposto que um bando de colonos deve ver uma razão diferente para sua ausência. É provável que pensem que você está apavorado. Acham que amedrontam você. É verdade? - desafiou.
- Não. - Foi a resposta dura e impassível.
- Então é melhor provar isso a eles - aconselhou Benteen. - E leve Ruth com você. Ela vai gostar de uma viagem à cidade.
- Por quê? - Ele franziu o cenho.
- Porque você não vai à cidade arranjar encrenca. com uma mulher do lado, eles vão ver isso - raciocinou calmamente. - Não vai procurar encrenca, não é?
- Não vou fugir dela se vier - replicou Webb.
- Você não seria um Calder se fugisse de uma encrenca. - O pai virou-se e voltou à mesa.
A Partir do instante em que a carruagem e o grupo acompanhante de cavaleiros deixou os limites da Triplo C para fazer a viagem à cidade, Webb confrontou-se com as mudanças que menos de um ano havia trazido. Onde antes havia trechos limitados de terras dos agricultores, agora existiam trechos limitados de pastos para o gado. Choupanas variadas e palhoças dispunham-se em ambos os lados da estrada, a intervalos quase regulares. Longas faixas de trigo alternavam-se com extensões de terra arada e alqueivada.
Aquelas faixas áridas e estéreis de terra exposta criavam um quadro sombrio, o ventre desprotegido do solo. Webb reconheceu o fato preocupante de que o número de colonos na área não diminuíra, mas triplicara.
Quando entraram na animada Blue Moon, Webb teve a desconfortável sensação de que aquilo era só o começo. No ano anterior, houvera somente um pequeno número de colonos. Agora estavam em meio a uma avalanche. A única rua de comércio de Blue Moon explodia em ramificações, ameaçando transformar-se em uma segunda. Meia dúzia ou mais de automóveis competiam com carroças puxadas a cavalos por tudo, desde espaços diante de lojas a água da calha.
Desmontaram diante da loja de ferragens e Webb percebeu Franz Kreuger entre os homens na calçada do prédio. Não percebera a carroça de Reisner em algum ponto da rua, mesmo assim sentia a ansiedade. Se o vizinho estava na cidade, era provável que Stefan Reisner também estivesse; o que significava a presença de Lilli. Não adiantava lembrar a si mesmo que não ganharia nada vendo a garota.
Franz Kreuger os observara chegar, os olhos escurecendo com ressentimento mal-humorado.
- Vê, como esses fazendeiros nunca vêm à cidade sozinhos? - Dirigiu o comentário a seus companheiros colonos. - Eles sabem que somos em maior número. Então por que reclamamos tão pouco quando o gado deles invade nossos trigais e estraga nossa colheita? Devemos ficar prontos para defender o que é nosso. Meu vizinho, Stefan Reisner, enfrentouos. Estava com a razão e não puderam fazer nada. Temos que ficar preparados para fazer o que ele fez, ou eles vão continuar nos importunando.
Kreuger não tentou manter o tom de voz baixo. Trechos de seus comentários chegaram a Webb, enquanto ajudava a Ruth a sair da carruagem, e foram suficientes para que captasse o essencial do que dizia. Estava se tornando evidente que Kreuger era um criador de casos, o instigador de grande parte das alterações de ânimos entre as facções.
Webb aproximou-se dos colonos com Ruth apoiada em seu braço, dirigindo o olhar para Kreuger.
- Olá, Kreuger, cavalheiro. - A saudação foi lacónica, mas o silêncio poderia indicar estar ele intimidado. Kreuger não respondeu, nem mesmo assentiu, o que Webb não esperava.
No interior da loja, ele estava olhando um novo carretel de arame farpado, que o vendedor elogiava como o melhor do mercado, quando olhou por acaso pela janela da frente, justamente no momento em que a carroça de Reisner passou. Webb entreviu Lilli muito empertigada no assento da carroça; em seguida, ela desapareceu de vista. Sentiu uma ânsia avassaladora de sair da loja e ir atrás dela, só para dar uma olhada mais próxima, mas lutou contra a ideia. Saber que ela estava na cidade testava o controle que se impusera para ficar longe da moça.
Após fazer as compras necessárias na loja de ferragens, Webb ficou na calçada observando o carregamento das provisões na carroça. Sem querer, percebeu a carroça de Reisner estacionada diante da ferraria, mas nem Lilli nem o marido estavam à vista. Melhor assim, disse a si mesmo. Ruth aproximou-se.
É quase meio-dia. Por que não comemos algo no restaurante?
Tenso e determinado a não ceder a seus nervos, Webb hesitou, concordando em seguida, um tanto rispidamente:
parece boa ideia. - Chamou o cowboy magro esparramado no assento da carruagem, os pés apoiados no painel. - Nate, providencie para que seja tudo colocado na carruagem. vou levar Ruth à hospedaria.
Certo, Webb. - Nate ajeitou-se no assento para examinar o carregamento atrás dele.
Com uma mão guiando Ruth pela cintura, Webb escoltou-a através do tráfego intenso de veículos puxados a cavalo e desviou-se dos dejetos dos animais. chegando ao prédio do outro lado da rua. O ruído de gente, animais e veículos era constante.
Acho que gostava mais dessa cidade quando não havia tanta gente - murmurou Ruth.
Web deu uma olhada para ela, permitindo que somente por alguns segundos seus pensamentos fossem desviados. Percebeu o desconforto da garota diante de tantos rostos desconhecidos e hostis.
Nunca lhe ocorreria falar com um estranho, não é? - observou
um tanto secamente, pois isso seria tão artificial para Ruth quanto seria natural Para Lili.
Não. - Ela replicou, como se alguma outra resposta fosse impensável.
Ao abrir a porta do restaurante para Ruth, Webb por acaso olhou para a rua. Lili acabava de entrar no armazém geral com o marido. Não havia indicação de que ela o tivesse visto. Webb seguiu Ruth um passo atrás.
Tinham uma variedade de mesas à escolha, e Webb se decidiu por uma separada- Estava impaciente, pensando em Lilli durante a refeição inteira, dando respostas curtas às tentativas de Ruth de estabelecer uma conversa, até que ela acabou ficando em silêncio.
Não adiantava, ele se deu conta. Estava se enganando se pensava que poderia permanecer na mesma cidade que Lilli sem tentar, de alguma maneira, falar com ela. Nas duas visões que captara da garota, parecera reservada e altiva, traços não naturais nela. Talvez fosse somente sua imaginação, mas...
Ruth estava sentada à direita. Webb pousou o garfo e cobriu a mão da moça com a sua.
Ruth, quero lhe pedir um favor - declarou com voz rouca, aprisionado no cerne de seus desejos.
O olhar intenso de Webb, bem como o toque das mãos calosas, causou um imPacto em Ruth. Sentiu o ânimo revigorar-se, o coração acelerarse. Ele não sabia que ela seria capaz de morrer se pedisse.
O que quiser. - Ignorou a voz fininha que não soou como queria.
Gostaria que você arranjasse um encontro particular para mim com uma certa... mulher. - Tinha dificuldades em pronunciar as palavras.
Ruth fitou o próprio prato, uma dor estilhaçante destruindo a frágil esperança.
- Lilli - adivinhou ela, em um murmúrio trémulo.
Webb ficou imóvel. Lentamente, retirou a mão e pegou o garfo que pousara.
- É - admitiu em voz baixa e inalterada. - Como sabe o nome?
- Quando você... estava inconsciente, ouvi-o chamar o nome dela - respondeu suavemente, cheia de hesitação e dor.
- Sabe quem é ela?
- Sei. - Ruth baixou a cabeça.
Aquela resposta eliminava a necessidade de explicações, tornando tudo mais fácil. No entanto, Webb sentia-se torturado pela tensão.
- Não existe mais ninguém a quem possa pedir isso, Ruth - fez ele.
- Tenho que falar com ela. Preciso descobrir se está bem.
- Não sei como poderia arranjar esse encontro. - Internamente, Ruth se ressentia com a injustiça do pedido.
- Vi Lilli entrando no armazém geral antes de entrarmos aqui. Provavelmente ela ainda está lá. -? Do jeito que a loja estava cheia, havia uma grande chance. - Ellis nunca tranca a porta dos fundos. Posso ir até lá sem ser visto. Você só precisa arranjar alguma desculpa para que ela vá até os fundos. - Olhou-a. - Você pode fazer isso?
- Posso. - Ruth fez uma amarga descoberta: não conseguia recusar nada a ele, mesmo ao preço de seu próprio coração.
Ao entrar na loja, Ruth quis voltar e sair correndo dali, mas obrigou-se a andar para diante, os dedos se torcendo nervosamente. O rosto estava pálido e tenso enquanto perscrutava os fregueses, quase todos estranhos.
- Posso ajudá-la, Srta. Stanton? - A voz do proprietário assustou-a.
- Não - ela respondeu rápido demais. - Estou... só olhando.
- O tecido que encomendou já chegou. Está na sala dos fundos. Gostaria que o pegasse para a senhorita? - ele indagou.
E encontrar Webb? O coração batia descompassado, descontrolado pelo pânico.
- Não, por favor... - fez força para falar em tom mais calmo. Primeiro vou dar uma olhada. Pego o tecido depois.
- Certamente. - Ele sorriu, polido. - Se me dá licença, tenho que atender outros fregueses.
- Claro. - A respiração dela normalizou-se.
Esperou até que ele se afastasse antes de recomeçar a busca pela loja. Talvez a mulher tivesse saído, poupando-a de tal situação; era o que esperava. Mas não seria assim, percebeu, ao ver a mulher examinando alguns artigos de jardim.
Uma pequena semente de rebeldia tentou crescer dentro de Ruth, mas rapidamente foi suprimida pela promessa que fizera a Webb. Viu o brilho de reconhecimento nos olhos azuis escuros, a consciência de que tinham se encontrado, embora não tivessem falado uma com a outra; em seguida, Lilli desviou o olhar rapidamente.
Ruth não tinha prática nas sutilezas dos negócios ocultos. Se tivesse que pensar demais sobre o que tinha a dizer, poderia acabar não dizendo nada.
- Você poderia ir até os fundos da loja comigo? - Deixou escapar o pedido com rapidez nervosa. O olhar surpreso que recebeu em resposta fez com que Ruth percebesse a necessidade de uma desculpa. - Olhar um tecido que pedi. Tenho mais do que preciso e pensei...
- Não posso realmente comprar nada - replicou a rival. - Estava somente olhando esse... sonho, sabe?
- Você poderia ir até a sala dos fundos ver o que tenho? É logo depois daquela cortina.
Intrigada com a evidente agitação da loura e seu ar de urgência, de súbito ocorreu a Lilli que a mulher poderia ter algo a lhe dizer sobre Webb. Tornou-se imperativo descobrir.
- Está bem - assentiu Lilli.
Ao chegarem à abertura da cortina, Ruth deixou a fazenda de lado; o olhar astuto do proprietário localizou-as.
- Posso ajudá-las em algo, senhoras? Ruth respondeu rápida e culpada.
- Não, eu ia mostrar a ela o tecido que pedi. O senhor disse que estava aqui nos fundos?
- Está, mas prefiro trazê-lo para vocês - ele ofereceu.
- O senhor está ocupado - Ruth insistiu, nervosa. - Só vamos dar uma olhada antes de terminarmos nossas compras.
Um dos vendedores chamou Ollie Ellis, requisitando a assistência do patrão, que não insistiu. - Está do lado direito de quem entra, na segunda prateleira.
- Obrigada - fez Lilli, passando para trás da cortina e seguindo a mulher loura até a penumbra do depósito. - O que você quer? - indagou ela, deixando de lado qualquer movimento de olhar a fazenda.
A mulher não respondeu, voltando-se ligeiramente para perscrutar o canto onde a luz do sol filtrava-se através das vidraças sujas de uma janela. Algo se moveu. Inconscientemente, Lilli empertigou-se, o instinto lhe dizendo quem estava lá.
A pouca luz que chegava até o canto refletia-se nas superfícies de ébano dos olhos de Webb, formando sombras pronunciadas sob a mandíbula e na depressão exposta na base da garganta. Alto, ombros largos, os quadris estavam finos após tantas horas sobre uma sela.
Ao se olharem através dos raios luminosos, Webb viu o orgulho e a vontade forte que tornavam aquela mulher diferente de todas as outras que conhecera. A cabeça lançada para trás deixava que os raios empoeirados captassem o brilho sutil dos cabelos avermelhados. Ela estava usando um vestido de pano simples que caía delicadamente ao longo de seu corpo ereto e ritmado. Ele pensou que ela ia sair.
Lilli. - O chamado a fez parar, embora não houvesse urgência na voz calma e inalterada.
Ela pareceu mudar de ideia, aproximando-se lentamente dele. Estacou com o queixo erguido, os lábios unidos em uma linha suave, sem sorrir. Webb estava consciente dos muitos sentimentos perturbadores que os mantinham silenciosos. . .
- Por que está aqui? - ela indagou, a voz mais baixa.
- Precisava ver você. Tinha de descobrir se estava bem, se ele a maltratara depois... depois daquilo.
Ela começou a ficar tensa por ouvir a voz dele e pelos sentimentos contidos ali. Nenhum dos dois tomou conhecimento de Ruth, imersa na escuridão sentinela silenciosa de prontidão, de costas para eles, o murmúrio baixo das vozes de ambos acrescentando uma infinidade de pequenas feridas.
- Stefan não fez nada para me ferir - Lilli tranqúilizou-o. - Você não devia estar aqui.
- Estou aqui. Não adianta falar sobre isso. - A voz estava a beira da raiva. - Certo ou errado, acertado ou não, tinha de ver você, conversar com você. . .
Quando ela o olhou, viu a ânsia nos olhos dele, a imprudência que o levara a arranjar aquele encontro clandestino. Todos os sentimentos derrubaram a barreira que o mantivera impassível durante tanto tempo. Agarrou-a pelos ombros e puxou-a para si, abafando o grito fraco com um beijo. Webb não pretendia ser rude com ela; queria mostrar-lhe, através do carinho, a profundidade de seus sentimentos, mas o chamado dos lábios dela acendeu o desejo no rapaz, buscando a proximidade. Lilli correspondia com seus próprios sentimentos. Abraçados, eles oscilaram, apertando-se e sentindo-se, até que Lilli finalmente virou o rosto para o lado
e afastou-se.
Tristeza próxima ao desespero retirou o orgulho do corpo elegante, fazendo-o pressionar os lábios. O mesmo que a fizera afastar-se dos braços dele fez com que voltasse a ele, apoiando a cabeça no ombro de Webb. Ele a abraçou, dilacerado pelo choro terrível e silencioso dela.
- Lilli, certa vez pedi a você que o deixasse...
Ela se afastou, soerguendo o queixo. Webb possuíra um instante para entrever a saudade desprotegida nos olhos dela, antes que a lealdade interviesse e apagasse os sentimentos de Lilli. - Eu não vou deixá-lo - repetiu teimosamente a recusa anterior.
- Quero poder ver você de vez em quando - insistiu ele rudemente.
- Podemos combinar algo...
Não - ela balançou a cabeça firmemente, rejeitando a proposta sem hesitação. - Não vou mais encontrar com você assim.
Enfureceu-o o fato dela demonstrar tão pouco sentimento.
vou deixar você ficar com outro homem. Só estou pedindo para ver você. - A voz soava seca. - Você não pode me amar como eu amo você.
- Só existem duas pessoas na minha vida que importam - ela retribuiu calmamente. - Você e Stefan. Na última vez em que estivemos juntos, você quase foi morto e Stefan ficou arrasado. Eu não conseguiria suportar isso novamente. - Ela o fitou com tristeza resignada. Você é jovem, Webb. Pode me esquecer e encontrar outra mulher para amar. Stefan é velho.
- Finalmente você reconheceu isso - ele resmungou, tenso, atacando a única coisa que podia.
- Adeus. - Ela já se afastava. Antes que pudesse detê-la, Lilli estava do outro lado da cortina. Webb voltou-se, os ombros curvados, olhando friamente para Ruth. Ela ergueu a mão em direção a ele, mas Webb afastou-a, saindo pela porta dos fundos.
A locomotiva apitava a intervalos na estação de Blue Moon, pegando mais água, o vagão de frete descarregado. Um vento norte soprava pelas planícies extensas, manchadas com a neve suja. O inverno lançava sua mão fria e azul sobre o céu de Montana. Webb estava de pé na plataforma com os pais, a gola do casaco para cima, o chapéu puxado sobre a cabeça, tentando proteger-se do vento.
- Ainda não sei como conseguiu fazê-lo concordar com essa viagem, mãe. - Piscou os olhos levemente diante da figura esbelta da mãe, envolta no calor de uma pele, com um chapeuzinho elegante adornando os cabelos prateados.
- Quieto, Webb. Não precisa dar ideia a ele de voltar atrás admoestou-o, brincando, suspirando em seguida e fitando o marido. - Duvido que tenha sido a carta que recebi de minha mãe, avisando que papai não está bem. É aquele touro de que ele ouviu falar. É sempre o gado.
Benteen soltou uma risadinha baixa:
- Não consigo pensar em outro motivo para ir ao Texas - declarou, passando um braço encasacado em torno dos ombros dela e olhando para Webb. - Você vai sentir o gosto de ficar sozinho no controle da fazenda enquanto estivermos fora.
- Acho que posso segurar as coisas durante um mês - disse Webb.
- Aquela caixa de presentes foi colocada junto com nossa bagagem?
- A mãe voltou um olhar ansioso em direção ao trem. - Disse à mamãe que levaria presentes para comemorarmos um segundo Natal juntos.
- O carregador levou o pacote - Webb tranquilizou-a.
- Embarcar! - O condutor gritou a ordem para os passageiros à espera.
- Somos nós - declarou o pai, estendendo a mão para Webb. - A fazenda é toda sua, filho. Tome conta dela.
- Pode deixar. - Apertaram as mãos com força, mantiveram uma na outra por um instante e por fim separaram-se. Webb inclinou-se para beijar a face da mãe. - Adeus, mãe.
Os olhos escuros de Lorna estavam marejados de lágrimas.
- Cuide-se - Acariciou as bochechas do filho com os dedos enluvados.
- Mulheres - murmurou o pai com um menear de cabeça. - Há séculos ela fala em ir ao Texas. Agora está chorando porque estamos indo.
- Embarcar! - o condutor voltou a gritar. Webb foi com eles até o vagão de passageiros.
- Divirtam-se e não se preocupem com nada - disse quando pararam na plataforma, acenando pela última vez. Então, o condutor fez sinal para ser dada a partida.
Enquanto o trem se afastava, Webb permaneceu de pé na plataforma, as mãos enfiadas nos bolsos do casaco. O vagão vermelho empoeirado sacudia-se sobre os trilhos, bloqueando a visão dos carros de passageiros. Ele se voltou e caminhou até a carruagem, subindo e pegando as rédeas, fazendo um ruído com a língua que incitou a parelha de baios.
A Casa-Grande pareceu estranhamente quieta naquela noite. Webb teve a sensação de que ela também estava vigiando para ver como ele ia cuidar de tudo. Foi até o escritório e deteve-se diante da escrivaninha, olhando para o mapa emoldurado. Sentiu a responsabilidade que a terra significava, não somente por seu tamanho, mas pelo bem-estar dos que ali viviam, os cowboys e aqueles com famílias, bem como os animais aos cuidados deles. Moveu os ombros, como se testando a resistência dos mesmos ao peso da responsabilidade. O peso não o constrangia, embora sentisse sua solidão. A vontade de ter Lilli foi mais forte.
A costura jazia preguiçosa em seu colo enquanto Lorna Calder analisava a mãe cochilando na cadeira de balanço, a boca aberta. A pele murcha e o corpo engelhado combinavam com os finos cabelos brancos, mas não com a imagem que ela guardara na lembrança durante tantos anos. Sabia que os pais haviam envelhecido, mas não conseguia imaginá-los envelhecidos. Lembrava-se deles de maneira completamente diferente.
Um sorriso repuxou-lhe os cantos da boca: quem poderia imaginar sua mãe roncando? Mas dela vinha o ruído que aumentava e diminuía de volume com a respiração. Lorna pegou a costura para terminar os pontos que faltavam.
A calma da tarde foi perturbada pelo chocalhar e bufar de um automóvel na rua, o ruído aumentando à aproximação. A tranquilidade foi-se embora pela súbita e ruidosa explosão do cano de descarga, que assustou a mãe em seu sono profundo. Ela levou as mãos para o alto, a cadeira de balanço rangendo.
- Está tudo bem, mãe. - Lorna falou rapidamente. - É só um automóvel.
- Essas engenhocas barulhentas! - Voltou a acomodar-se na cadeira e enrolou impaciente o xale em torno dos ombros. - As ruas não são mais seguras - fungou sua desaprovação. - Essas engenhocas estão em todos os lugares.
- Sem dúvida estão se tornando populares - Lorna concedeu. A mãe empertigou-se, os lábios enrugados unidos.
- Parece que aquela coisa parou em frente à casa. Provavelmente quebrou. Vá dar uma olhada, Lorna. - Acenou com um dedo ossudo, apressando-a.
Lorna colocou a costura de lado e foi até a janela. Arregalou os olhos, sem acreditar, ao reconhecer Benteen descendo do carro.
- Meu Deus, é o Benteen! - Não procurou adivinhar nada, correndo até a porta e saindo na tarde amena de fevereiro no Texas. - O que está fazendo nessa coisa?
- O que você acha? Gosta? - Um sorriso abriu o rosto crestado pelo sol.
- Se gosto? O que quer dizer? - Deu outra olhada para o veículo preto. - Não me diga que comprou isso?
- Sim. Providenciei para que seja despachado para o Norte com o touro novo que comprei. - Espanou a poeira que se acumulara no páralama preto brilhante. - É um dos modelos T da Ford. O assento é de couro legítimo. Suba, vou levá-la para um "giro"... foi a palavra usada pelo vendedor para passeio - explicou com uma piscadela.
- Tem certeza de que sabe operar essa coisa? - Lorna fitou a máquina com um certo ceticismo.
- Uma das primeiras coisas que aprendi foi a fazer voltas. E que "Ela" não adianta - brincou Benteen. - Entre que vou ligá-lo. - Ajudou-a a subir para o assento de passageiro, em seguida foi até a frente. Para ligar o motor, você tem que girar essa manivela. É como encher uma bomba. - Pôs-se a girar a manivela, que produziu um ruído estridente e uma explosão fraca.
- Tem certeza de que sabe ligar isso? - Lorna repreendeu-o brincalhona ao vê-lo parar para tomar fôlego.
- É preciso girar um pouco a manivela - ele garantiu, tornando a girar o mecanismo.
De súbito, ele parou, dobrando-se e apoiando-se na capota. Durante um segundo, Lorna pensou que ele estava zombando dela. Mas ele caiu de joelhos e ela viu a mão no peito.
- Benteen, o que foi? - Desceu do carro e correu até ele, que tentava respirar, o rosto pálido e contorcido pela dor. - O que há? - Tentou passar um ombro sob ele e ajudá-lo a ficar de pé.
- Meu peito... a pressão... - a voz áspera não explicou mais do que isso, o peso dele aumentando mais e mais sobre ela.
- Benteen, ah, meu Deus! - Lorna soluçava, incapaz de aguentar o peso do marido. Olhou para a casa. - Mãeee!
Ela segurava as mãos de Benteen com toda força, de modo a sentir a pulsação tranquilizadora, embora fraca. O médico de terno preto dobrou o estetoscópio e recolocou-o na maleta. O olhar sério e silencioso que enviou a Lorna requisitava uma palavra em particular. Relutante, ela soltou a mão de Benteen e foi até o pé da cama.
- Como está ele? Vai ficar bom? - indagou em um sussurro fraco, para que Benteen não escutasse. Desde o ataque, ele perdera e recobrara a consciência.
- Não vou mentir para a senhora. O estado dele é extremamente sério - replicou o médico gravemente. - Considero um milagre ele ainda estar vivo.
Lorna inspirou, e o ar ficou preso em sua garganta. Tremia inteira, tentando manter-se controlada. No momento era impossível uma resposta. Benteen mexeu-se, atraindo o olhar choroso da mulher. Ela percebeu os dedos tateando, débeis, à procura dela, que rapidamente correu para o lado dele, tomando a mão do marido e pressionando-a contra os lábios.
- Estou aqui, querido - conseguiu balbuciar.
Ele entreabriu as pálpebras mostrando a luz fraca mas determinada que brilhava em seus olhos.
- Me leve para casa, Lorna. - A voz soava fraca, sem força. - Pelo amor de Deus, não me deixe morrer no Texas.
- Sshh, querido. - As lágrimas rolavam pelo rosto da mulher diante do apelo do marido, as bochechas tremiam. - Você não vai morrer. - Ele fechou os olhos e ela compreendeu que entrara novamente em incons ciência. - Doutor - ergueu o rosto para o médico -, ele poderia sobreviver a uma viagem de trem até Montana?
- Nesta condição, é improvável, Sra. Calder - replicou.
- Ele vai viver se ficar aqui? - perguntou ela.
- Não sei. - Balançou a cabeça tristemente. -Como já disse, não sei como ele conseguiu sobreviver.
Baixando a cabeça, ela pressionou a mão na testa. Poderia ter explicado ao médico que era bastante simples. Benteen lhe dera a resposta quando pedira a ela que não o deixasse morrer no Texas, mas Lorna achava que o médico não compreenderia. Quando cruzaram o rio Vermelho, muitos anos atrás, o cascalho do Texas fora retirado das botas dele. Fora pela terra de Montana que ele ansiara, e agora era por aquela terra que ansiava. No passado ela fora com ele sem saber o que os esperava no fim do caminho; agora ela iria com ele, ainda sem saber o que os esperaria.
Passou a mão pelo rosto, enxugando as lágrimas. Sentiu uma profunda calma. - Gostaria de contratar uma enfermeira para fazer a viagem conosco. O senhor poderia recomendar uma, doutor? - Era mais uma ordem do que um pedido.
- Está consciente do que vai fazer? - indagou ele.
- Estou, doutor - assentiu ela. - vou levar meu marido para casa.
Através dos contatos do marido, Lorna conseguiu usar um vagão privativo da ferrovia para a viagem ao Norte. Contratou uma enfermeira experiente para viajar com eles e mandou um telegrama para Webb. Deixou o Texas com Benteen, sob os protestos dos pais e do médico, pela segunda vez.
O sacolejar do vagão privativo seguindo os trilhos sinuosos despertou Lorna. Sentindo-se culpada, percebeu que cochilara e olhou rapidamente para Benteen, que parecia dormir. Os músculos cansados relaxaram um pouco na cadeira, os efeitos da viagem interminável e das horas sem dormir deixando-a esgotada. Deviam estar bem próximos de seu destino, agora. Ela olhou pela janela, mas a paisagem estava obscurecida pelo cristal do degelo.
- Chegamos, Lorna? - a voz dele soava perfeitamente clara.
- Estamos bem perto, querido.
A enfermeira descansava na saleta do vagão particular. com o som de vozes, veio até a porta e olhou para o interior.
- Sra. Calder, o cabineiro veio com uma mensagem nesse instante. Me pediu para dizer à senhora que atravessamos o Yellowstone.
- Ouviu, Benteen? - Lorna voltou-se ansiosa para ele. O rosto contraído pela dor suavizara-se com o contentamento. Uma pontada de terror gelado perfurou seu coração. - Benteen? - Estendeu as mãos para ele, enquanto a enfermeira corria para a cama. - Não! - Foi o grito de raiva que terminou em um lamento de dor lancinante.
O vento frio soprava a fina camada de neve, fazendo-a revolutear em espirais em torno do depósito da ferrovia. Havia um ajuntamento solene e silencioso de cowboys aguardando na plataforma o trem que entrou soltando fumaça na estação. O médico, tremendo, estava de pé entre os homens encolhidos em seus casacos, lutando contra o frio.
O vagão particular era facilmente distinguível dos demais. Webb dirigiu-se a ele no instante em que a locomotiva deteve-se sobre os trilhos escorregadios pelo gelo. Subiu no vagão e abriu a porta, sem se dar ao trabalho de bater. Uma mulher de branco voltou-se assustada, enquanto amarrava a comprida pelerine de lã. Após dar uma olhada em Webb, fitou a porta aberta do segundo compartimento do vagão. Webb dirigiu-se para lá a passos largos.
Mal dera um passo para dentro do compartimento, estacou. A mãe estava sentada empertigada em uma cadeira, as mãos cruzadas no colo. Ergueu um rosto rígido e sem lágrimas para o filho. Em seguida, correu o olhar para a cama e para a forma coberta por um lençol. Ele deu meia volta, a cabeça baixa enquanto se dirigia para o vento.
Uma grinalda negra pendia da porta da frente da Casa-Grande, Webb subiu os degraus e estacou para fitar o pedaço de tecido, a descrença ainda o entorpecendo. Voltou-se e fitou os prédios da sede e o horizonte talhado ao fundo, voltando em seguida os olhos para o céu azul distante. O frio congelava as lágrimas em seus olhos.
- É sua, filho. Tome conta dela.
Esta fora uma das últimas coisas que o pai lhe dissera.
Foram necessários cortadores de gelo, em lugar de pás, mas eles enterraram Chase Benteen Calder naquela manhã. E o enterraram em solo dos Calder.
Lá está um Calder, Solitário, Passando ao filho O legado dos Calder.
Webb estava sentado à cabeceira da mesa, bem acomodado, um braço apoiado nas costas da cadeira. Inicialmente, relutara em ocupar o lugar que sempre fora do pai. Mas calmamente a mãe assegurara preferir vê-lo sentado à cabeceira do que olhar para uma cadeira vazia.
A xícara de louça há muito estava vazia, mas Webb ouvia a conversa animada entre a mãe e Buli Giles. Buli chegara à fazenda logo depois de receber a notícia da morte de Benteen Calder e ficara, tornando-se quase um hóspede permanente. Webb estava contente com a presença dele. Passava grande parte do tempo longe da Casa-Grande, e a mãe ficava sozinha durante longos períodos. Ficava mais tranquilo sabendo que Buli Giles faria companhia à mãe.
- Webb, esse domingo você tem que pegar Buli para lhe ensinar a dirigir o modelo T - declarou a mãe com um brilho de excitação no olhar.
- Ele me levou para um giro hoje. Foi tão rápido que perdi o fôlego.
Quando o automóvel chegara, Webb pensou que a mãe ia querer se livrar do veículo, pois causara o ataque do pai. Mas ela não pusera a culpa no Ford T, a última compra do pai, o que ela considerava da maior importância.
- Você dirigiu? - ele perguntou.
- Tentei - ela riu. - Ele dá mais pinotes do que um cavalo selvagem. Não consegui usar direito aqueles pedais no chão. Embreagem, não é assim que você chama? - pediu a Buli que dissesse se o termo estava certo, e ele assentiu. - E você tem que segurar o volante com as duas mãos. Ele balança suas mãos com tanta força no chão irregular, que acho que vou ficar machucada uma semana. Mas é muito divertido.
- Imagino - Webb sorriu para ela. - É tão bom escutar você rindo.
A expressão do rosto da mãe tornou-se mais pensativa, enquanto alisava a bainha do vestido preto e dava uma olhada para seu velho amigo e companheiro.
- Acho que Buli sempre soube fazer uma garota se sentir bem, mesmo que por pouco tempo.
- Eu tento, Lorna. Eu tento. - Buli Giles ria abertamente, mas uma espécie de mágoa brilhava em seus olhos. - Ainda tem café? Acho que gostaria de mais uma xícara.
- Tem. - A mãe estendeu a mão para o bule e encheu a xícara. E você, Webb?
- Não... - A recusa foi interrompida pelo ruído da porta da frente se abrindo. Webb ergueu a cabeça com a aproximação do som de botas e esporas tilintando.
Ike Willis e Nate Moore entraram na sala de jantar, tirando o chapéu assim que perceberam a presença de uma mulher. O rosto de Ike estava sujo com a mesma poeira que lhes cobria as roupas. Ambos estavam com os rostos sérios.
- O que houve? - Webb correu o olhar de um para outro, os olhos estreitando-se ligeiramente, esperando que um deles falasse.
- Temos uma família de invasores na extremidade leste - iniciou Ike.
- Na extremidade leste? - Franziu o cenho. - Em nossa terra?
- É. Eles cortaram a cerca e levaram a carroça para lá - relatou Ike, girando o chapéu na mão. - São seis, um homem e a mulher, dois garotos mais velhos e dois mais novos. Descobri-os acampados a mais ou menos um quilómetro e meio do grande vale. Eles cortaram um par de choupos jovens crescendo ao longo daquela erosão e estavam erguendo uma tenda. Eu me aproximei e disse a eles que estavam em propriedade particular e que saíssem, mas o homem falou que você não tinha direito à terra. E os garotos tinham dois rifles. Então vim para cá.
- Pegue quatro rapazes, sele os cavalos e prepare-se para montar ao amanhecer - Webb ordenou.
- O que está pretendendo fazer? - indagou Nate, interessado.
- vou ter uma conversa com essa família, explicar alguns fatos; aí vamos escoltá-los de volta àquela abertura na cerca - replicou ele. - O homem está com a família, provavelmente não vai arranjar encrenca.
- Acho que não - assentiu Nate. - Nós nos vemos de manhã. Boa noite, Sra. Calder, Buli.
Quando os homens saíram, Buli Giles apagou o charuto no cinzeiro de vidro e lançou um olhar de soslaio para Webb.
- Eu lhe disse que sempre haveria alguém querendo tirar a terra de você, aos poucos ou de uma vez só. - Lembrou a Webb a conversa que haviam tido no alpendre, dois anos atrás.
- Você disse mesmo - admitiu ele, recordação que se tornara amarga com a situação atual. - Agora temos invasores.
- Não posso dizer que estou surpreso - refletiu Buli. - Toda terra vazia tem sido reclamada. Os recém-chegados, os pobres sem dinheiro, não podem comprar terra. Provavelmente não têm dinheiro nem para voltar de onde vieram, portanto se jogam em um pedaço de terra e tentam estabelecer direitos de posse. Isso funcionou no passado.
- Não vai funcionar aqui - afirmou Webb.
- Não os subestime - alertou Buli. - São gente desesperada. Todos os colonos são, na maioria. Não estou falando dos agricultores que vieram para cá de lowa, Minnesota ou Kansas. Falo dos outros, a maioria de imigrantes.
Buli fez uma pausa e Webb permaneceu em silêncio. Não conseguiu deixar de pensar em Lilli enquanto Buli estava falando dos colonos.
- Estão famintos por terra, tão famintos que vão pegar qualquer coisa, boa ou má, terra disponível ou de outrem. - Buli soltou uma risada curta de incredulidade. - No outro dia mesmo ouvi dizer que estavam querendo a terra nos pântanos de Missouri, no Madison superior. Naquela altitude trigo nem amadurece.
- Os outros, os que chegaram aqui primeiro, parecem estar indo bem - comentou Webb, ainda pensando em Lilli e no marido, e nas colheitas de trigo que haviam obtido.
- Estão plantando trigo, muito trigo - concedeu Buli. - Pelo que pude saber, só o suficiente para que atravessem mais um ano, até o próximo. Todo ano têm que pedir dinheiro emprestado para comprar sementes. Quando vendem seu trigo, têm que pagar ao banco e só lhes sobra o suficiente para se arrastarem através do inverno. No ano seguinte, sempre esperam que seja melhor.
- Ouvi falar que alguns compraram mais terra para que possam plantar mais trigo e aumentar os lucros. - Fora o que o marido de Lilli fizera.
- O que algumas pessoas não percebem, e outros não se importam, é que cem hectares em Montana são iguais a aproximadamente dez hectares no Illinois ou lowa. No máximo vinte hectares. Não dá para se viver com isso.
- Então você está dizendo que eles nunca vão progredir - inferiu a mãe, o rosto franzido.
- Alguns podem conseguir, mas a maioria não. - Balançou a cabeça negativamente. - Não se esqueça de que o preço do trigo nunca esteve tão alto. Enquanto houver problema na Europa, e a Inglaterra e a França estiverem em guerra com a Alemanha, o preço provavelmente vai se manter. Mas você viu o mercado do gado subir e descer ao longo dos anos. O mercado dos grãos não vai permanecer nesse nível para sempre. Ninguém parece estar olhando adiante. Nem mesmo os bancos. Aquele novo banco em Blue Moon, onde o filho de tom Pettit, Doyle, possui metade dos lucros, tem feito empréstimos que correspondem a mais do dobro do que tem em depósito. Qualquer dia desses o fundo vai desaparecer. - Girou o charuto entre os lábios, tirando-o da boca para analisar as cinzas crescentes. - Eu tomaria cuidado ao depositar meu dinheiro.
Durante os meses em que Buli permanecera com eles, Webb descobrira ser ele um sábio conselheiro. A experiência prática proporcionara conhecimento do gado, dos homens e do mercado a Webb, mas com Buli Giles estava aprendendo alguns dos pontos delicados da política e de outras influências económicas. A fazenda Triplo C era quase tão grande quanto alguns
Estados do leste, mas era afetada pelo que acontecia do lado de fora de suas fronteiras.
- Aliás, é oficialmente certo que Bulfert vai se candidatar ao Senado
- Buli informou Webb. - Você poderia começar a pensar em apoiar a campanha dele.
- Você está recomendando? - Webb sorriu. Buli sorriu em resposta, um sorriso de lado.
- Só porque você não confia nele inteiramente.
A manhã já ia pela metade quando o pequeno grupo de cavaleiros aproximou-se da grande depressão nas planícies ondulantes do setor extremo leste. O campo dos invasores não estava à vista, mas Webb percebeu poeira à frente deles.
- Parece que têm alguém tomando conta de nós. - Nate também observou.
Webb limitou-se a assentir com um movimento de cabeça. Quando chegaram à borda arredondada do vale, viram o acampamento dos invasores abaixo. Uma tenda cinza suja fora erguida ao lado da carroça. Rolos de fumaça subiam de uma fogueira apagada diante da tenda, onde uma mulher apressava duas crianças pequenas para dentro. Um rapaz magricela de aproximadamente quatorze anos incitava dois cavalos em direção à estreita faixa de choupos atrás da barraca. Um segundo garoto, não muito mais velho, estava de pé ao lado da carroça com um homem que obviamente era seu pai.
Um torrão de terra saltou na frente do cavalo de Webb após o estampido de um rifle. A montaria de cor castanha corcoveou, lançando a cabeça para trás. Webb virou o cavalo para a direita, formando um ângulo com o acampamento e parou-o enquanto os cavaleiros atrás dele se comprimiram e pararam.
- Aquele desgraçado idiota acabou de atirar em nós! - exclamou Ike.
- Estamos fora de alcance. - Webb já medira a distância. Outro torrão de terra e grama voou um metro à frente deles, e um ruído surdo após o som do tiro. Desta vez ele viu a fumaça saindo do rifle. O invasor estava usando a roda da carroça como apoio para a arma. O cavalo de Webb rolou o olho e mordeu nervoso o freio.
- Acha que ele sabe que estamos fora de alcance? - Nate interpelou-o. - Será que é somente um aviso para nos manter à distância?
- Se ele não sabia, agora já sabe. - Webb considerou a questão desimportante e esticou a mão para abrir a bainha do rifle, tirando-o.
- Se ele está fora de alcance, nós estamos também. - Nate fitou o rifle como se Webb devesse ter percebido.
- Obrigado por me lembrar disso. - A boca de Webb entreabriu-se em um sorriso, enquanto desamarrava o lenço em torno do pescoço e o prendia na ponta do rifle. - Vocês rapazes, fiquem aqui enquanto vejo se consigo descer e o faço ter um pouco de bom senso antes que alguém saia ferido.
Nate esticou a mão para seu rifle.
- Tenho a impressão de que esse cara não está muito interessado em conversa. Vamos proteger a sua retaguarda, por via das dúvidas.
O lenço não era branco, mas a mensagem era a mesma. Webb deu rédeas ao cavalo castanho, a coronha da arma descansando na perna e o cano apontado para o céu, o lenço ondulando uma trégua. O cavalo não estava muito seguro e movia-se a passo. Webb olhava fixamente para o homem e o garoto, aos quais se juntou o segundo garoto, também carregando uma espingarda. Estava atravessando a área onde os dois primeiros tiros haviam arrancado pedaços de terra quando os viu erguendo os rifles ao ombro.
- Não sejam estúpidos - resmungou Webb, e continuou incitando o cavalo hesitante para a frente. Podia ser que quisessem mantê-lo sob mira caso ele fosse tentar algo.
Um segundo depois, viu o clarão e o coice do rifle do invasor. Quase no mesmo instante, Webb enfiou as esporas no cavalo, fazendo-o rodopiar para a direita. A montaria quase saltou, soltando um guincho com o ferrão da bala que passou raspando pelo lombo. O cavalo disparou em direção à orla. Seguiu-se uma explosão de tiros de ambos os lados, deixando o cheiro de pólvora no ar.
A barragem que os cavaleiros haviam feito ao invasor e seus filhos fez com que estes buscassem abrigo atrás da carroça, sem atingir ninguém mas chegando perto o suficiente para assustá-los. Quando Webb voltou ao grupo em segurança, o tiroteio parou.
- Eu pensava que eles iam ser razoáveis - declarou Nate.
- E agora? - Ike olhou para Webb. - Seria um pouco idiota descer como se fôssemos a cavalaria. Eles têm a carroça para se proteger.
- Quer que eu vá deslizando até lá? - Um novo cavaleiro da companhia, de nome Virg Haskell, indicou o extremo norte do vale. - O acampamento estaria ao alcance de lá. Eu poderia dar alguns tiros em volta da carroça, mantendo-os presos lá enquanto o restante de vocês se aproximaria a cavalo.
- Não. - Webb rejeitou a sugestão. - É muito arriscado. Um tiro perdido poderia ferir a mulher e as duas crianças na tenda. Tenho uma ideia melhor. - Ike... - voltou-se na sela para o cavaleiro enquanto dava instruções. - Você, Slim, você, Virgil, e Hank reunam um grupo de bois de bom tamanho. Quando tiverem reunido, vamos causar o estouro deles em direção ao acampamento e vamos segui-los. O resto de vocês fica aqui para manter um olho nas coisas.
Depois que os quatro vaqueiros se afastaram da elevação para reunir os bois que estavam naquela área do pasto, Webb desmontou. Nate passou a perna pela sela e começou a enrolar um cigarro.
- Aquele invasor vai pensar que você mandou buscar reforço. - Nate perscrutava o acampamento, passando a língua no papel. - Já está parecendo nervoso, querendo saber onde os rapazes foram.
- Só que ele não sabe que nosso reforço é do tipo de quatro patas - Webb observou secamente, examinando a ferida leve que deixara um raio vermelho no alto do lombo do cavalo. A montaria moveu-se nervosa com o toque do dono. - Você vai viver, camarada - Webb falou, acariciando o pescoço do cavalo distraidamente.
- O sol estava praticamente sobre a cabeça quando Webb escutou o mugido do gado em movimento. Havia aproximadamente quinze bois no grupo que os vaqueiros haviam recolhido e trazido até o vale. Montando, Webb virou a montaria para juntar-se ao pequeno rebanho.
- Aquele invasor realmente vai ficar matutando o que está acontecendo agora. - Nate soltou uma risadinha, aproximando o cavalo do de Webb.
- Não vai matutar por muito tempo.
Trumbo e Ike Willis cavalgavam à frente do rebanho. Webb e os outros cavaleiros dividiram-se nos postos no flanco e nas laterais. Quando com os bois galgaram a elevação, atiraram com os rifles para o ar, para fazê-los disparar. Slim e Ike correram lado a lado com os líderes até terem certeza de que os bois se dirigiam diretamente para a carroça. Aí retrocederam com os outros cavaleiros, usando o rebanho como abrigo para a entrada no acampamento dos invasores.
O gado em disparada desviou-se da lona adejante da tenda e dividiu-se em dois grupos em torno da carroça, forçando o homem e seus filhos a ir para baixo da carroça para não serem atropelados pelos bois. Antes que o último animal tivesse passado pela carroça os cavaleiros já estavam descendo das selas. Houve uma breve luta entre o homem e seus filhos e os cavaleiros até que os primeiros foram desarmados.
- Verifique a tenda e certifique-se de que estão bem. - Webb dirigiu a ordem a Slim Trumbo, enfrentando em seguida o invasor e seus filhos magros e ruivos. Constituíam triste visão em suas roupas esfarrapadas e corpos desnutridos. O homem encarou-o, os olhos faiscando com o orgulho que não escondia uma névoa provocada pelas lágrimas. - Não sei quem o senhor é, ou o que achava que estava fazendo, mas alguém poderia ter se machucado. - Webb precisou endurecer-se ante a visão da mulher de bochechas encovadas e das duas crianças de olhos arregalados saindo da tenda na frente de Slim. - Você devia pelo menos ter cuidado com eles, já que não tem consigo próprio.
- O cuidado que tenho com eles é colocar comida no bucho deles retorquiu o invasor, sem demonstrar arrependimento diante das circunstâncias.
- Aquela cerca que você cortou a um quilómetro e meio é o limite leste da Fazenda Triplo C. Você está em propriedade particular, assim peço que arrume suas coisas e saia por onde veio.
- Nossos cavalos, pai - disse um dos garotos.
- Dispararam junto com o gado. - Nate explicou a observação do garoto a Webb.
- Virg, pegue os póneis e traga-os de volta - instruiu Webb.
- Esse é só um pequeno pedaço de terra - argumentou o invasor.
- Com toda essa terra que o seu patrão tem, um pedacinho não vai fazer falta. Por que não vão embora e dizem a ele que me expulsaram? Ele nunca vai saber que estamos aqui.
- É aí que você se engana, porque por um acaso eu sou Webb Calder. E se eu permitir, estarei abrindo as comportas para que outros como você venham. E não pretendo fazer isso - declarou. - Arrumem suas coisas e saiam.
- Mas não temos para onde ir - protestou o mais velho dos garotos.
- Isso não é problema meu. Você devia ter pensado nisso antes de vir para cá. - Webb não queria vacilar. - Se não começarem a desmontar a tenda, vou dizer a meus homens que façam eles mesmos o serviço.
O invasor fez um movimento em direção aos filhos. com bastante relutância, foram até a barraca e puseram-se a tirar as estacas.
- E nossos rifles?
- vou deixá-los com o xerife em Blue Moon. - Webb caminhou até seu cavalo, pegando as rédeas da mão de Nate. - E da próxima vez que entrarem em uma terra, certifiquem-se de que ela não tem dono.
- Me diga onde existe esse pedaço de terra e irei para lá. Aquele homem da estrada de ferro disse que havia terra disponível aqui, mas não vi nenhuma - declarou o homem amargamente, virando-se para carregar a carroça com os poucos pertences que tinha.
Nate resmungou baixinho .para Webb:
- Esse homem é um idiota em trazer a família para cá. Detesto ver esses pequenos sofrerem assim. Tudo que Ike encontrou na barraca foram algumas batatas, farinha e alguns ossos de coelho.
- Pegue um boi e amarre na traseira da carroça deles - disse Webb em voz mal-humorada. - Pelo menos vão ter o que comer até encontrarem um lugar.
Quando Virg Haskell voltou com o par de cavalos de narinas aquilinas pertencentes ao invasor, a carroça já estava carregada. A mulher começou a chorar quando Nate amarrou o boi na carroça, mas o homem nem agradeceu.
Após escoltarem a carroça para fora da Triplo C, Webb mandou Ike à cidade com os rifles da família relatar o incidente ao xerife. Assim que a cerca foi consertada, viraram os cavalos na direção de casa.
As roupas molhadas agitavam-se sob a brisa quente, enrolando-se em volta dos fios de arame que evitavam que o barraco fosse soprado por um vento forte. Lilli estendeu as roupas fervendo na enorme panela do lado de fora da choupana, lançando um olhar para Helga Kreuger, esfregando uma camisa na tábua de bater roupa. Torceu-a e atirou-a em outra tina, detendo-se em seguida para esfregar as costas com a mão. Quando arqueava as costas, a barriga arredondada aparecia mais ainda, indicando a gravidez avançada.
- Deixe que eu esfrego as roupas para a senhora. - Lilli ofereceu-se como voluntária, sabendo que o trabalho não devia ser fácil para a mulher.
- Os homens estão chegando dos campos. Vamos terminar isso mais tarde. - Helga Kreuger protegeu os olhos com a mão e voltou-se para olhar a filha mais nova. - Anna, vá fazer a mesa para nós comermos.
Usando a vara de madeira, Lilli pôs-se a retirar as roupas da água quente, depositando-as em outro grande balde. O calor e o vapor envolveua, fazendo seu rosto e pescoço transpirarem. Quando terminou, enxugou o rosto com o avental e virou-se para saudar os homens chegando.
- Entrem. A comida está na mesa - Helga Kreuger cumprimentouos apressada.
- Fez aquele ensopado hoje? - indagou Stefan. - Você precisa dar a receita a Lillian.
Lilli mal recebera um olhar do marido, mas já estava se resignando a isso. Franz Kreuger parou de súbito, franzindo o cenho em direção a ela. Lilli soergueu a cabeça, pensando ser o objeto do desprazer de Kreuger, quando percebeu que seu olhar dirigia-se para trás dela. Voltou-se e viu uma carroça aproximando-se pelo caminho.
- Quem é? - Franz indagou, como se esperando que alguém respondesse.
A comida foi esquecida enquanto esperaram a carroça chegar à choupana. Os garotos ruivos caminhavam ao lado. No assento da carroça, havia um homem dirigindo a parelha de cavalos e uma mulher com uma criança no colo e uma segunda criança sentada a seu lado. Um boi de olhar selvagem lutava contra a corda que o levava atrás da carroça barulhenta.
Quando a caravana errante estava quase junto a eles, o homem puxou as rédeas e a carroça parou, sacolejando. O rosto do homem refletia amargura e desapontamento, cumprimentando Stefan e Franz com um menear de cabeça.
- Você poderia ceder um pouco d'água para os cavalos? - perguntou.
- Gustav! - Franz chamou o filho mais novo. - Traga um balde d'água da cisterna.
- Obrigado, senhor. - Ele desceu da carroça e foi até os cavalos, esfregando as narinas dos animais. - Vocês conhecem um lugar onde uma família possa acampar e passar a noite?
Enquanto Lilli observava, Franz Kreuger empertigou-se. Em seu olhar percebia-se desagrado velado, analisando os garotos sujos e maltrapilhos e a pobreza da carroça e da parelha. O homem não fizera a barba e parecia igualmente descuidado. Lilli suspeitou que Kreuger se sentia culpado por possuir duplos critérios, olhando os outros com superioridade e detestando os que o olhavam de cima.
- Você pode perguntar a alguém na estrada - disse ao homem. - Pode ser que conheçam algum lugar.
- Eles podem perfeitamente acampar naquele canto de nossa propriedade com os choupos, não é, Stefan? - Lilli manifestou-se. Não se importava se Franz Kreuger achava que uma mulher devia deixar tais decisões a um homem.
- Parece boa ideia, senhora. - O homem tocou o chapéu, sem perceber o olhar de silêncio que Stefan enviou à esposa. - A gente acabou de ser expulso do último lugar.
- Onde vocês estavam? - indagou Franz com um olhar glacial.
- Encontramos um pedaço de terra vazia a noroeste daqui. Boa terra. Tinha um lugar para minha mulher fazer um jardim e o trigo teria crescido tão alto quanto sua barriga. - A boca torceu-se em outra demonstração de amargura. - O problema foi que um homem chamado Calder já era dono dela.
- Calder? - A expressão no rosto de Franz Kreuger desapareceu.
- É, ele e seus homens nos expulsaram. Eu e meus garotos tentamos brigar, mas eu tinha que pensar na mulher e nos pequenos. Não pude fazer nada. - O homem balançou a cabeça. - Nenhum homem tem o direito de possuir tanta terra. Disse a ele que eu só queria um pequeno lugar onde pudesse plantar comida para minha família, mas ele me olhou com aqueles olhos pretos como os do demónio e me mandou embora.
A atitude de Franz Kreuger mudou completamente.
- Stefan, você não disse que precisava de um homem que trabalhasse duro para ajudá-lo na plantação?
- É. - Stefan assumiu a liderança do amigo. - Não posso pagar muito, mas você teria um lugar para ficar e um pequeno espaço para sua mulher cultivar um jardim.
- Meus filhos talvez também pudessem trabalhar. - O homem reanimou-se com a ideia.
- Conhecemos muita gente - declarou Franz. - Vamos falar com eles a respeito de seus filhos. Há sempre alguém precisando de ajuda temporária. Se eles forem bons trabalhadores, vão ser empregados.
- Eles são bons trabalhadores, sim - disse o homem, pegando o balde d'água do filho de Kreuger de cabelos louros pálidos e oferecendo aos cavalos. - Eu estava contando com a ajuda deles quando tivéssemos nosso lugar, mas acho que não vai ser assim.
- No ano que vem, eu e Stefan ajudamos você a encontrar alguma terra boa - prometeu Franz. - Devemos todos ficar juntos, ajudar uns aos outros; assim seremos mais fortes.
Depois que os cavalos beberam sua parte, o homem entregou o balde ao garoto e voltou-se para Stefan.
- Onde é o lugar que sua filha disse? - Lilli estremeceu, sabendo que o marido se tornara sensível em relação à diferença de idade deles.
Stefan empertigou o corpo ligeiramente curvado, a expressão fria e ameaçadora.
- Ela é minha esposa.
O homem enrubesceu e lançou um olhar vagamente surpreso a Lilli, desviando-o rapidamente em seguida.
- Desculpe - retratou-se de imediato, resmungando seu embaraço com o erro.
Depois que Stefan deu as instruções sobre o lugar, disse:
- Espere em nossa casa. Eu e minha esposa chegaremos logo. vou mostrar o lugar para acamparem.
A carroça fez meia-volta e a família dirigiu-se pelo caminho que levava à estrada. Lilli ficara paralisada com a marca no flanco do boi. Correu o olhar para a família que vira Webb Calder. A inveja rasgou-a por dentro, preenchendo cada parte de seu corpo até que pensou em explodir.
- Venha. Vamos comer antes que a comida fique fria - Helga Kreuger apressou-os.
Lentamente, Lilli voltou-se para segui-los até a pequena choupana, não muito maior do que a deles, embora acomodasse o triplo de pessoas. Não deixou transparecer nada em seu rosto. Ela, que sempre deixara seus pensamentos e sentimentos fluírem livremente, agora os mantinha guardados em segredo. Às vezes ficava pensando se não estava ficando cada dia mais parecida com Stefan. Fazia muito tempo desde que um dos dois sorrira.
Terminada a refeição, eles se puseram a caminho de casa em sua carroça. Stefan sentou-se arqueado diante das rédeas, oscilando com o sacolejar da carroça sobre o chão pedregoso da estrada. Lilli pôs-se ao lado dele, ereta e empertigada, resistindo aos movimentos bruscos. Olhava sem ver o horizonte distante, enquanto Stefan observava os cavalos trotando.
- O neném da Sra. Kreuger deve chegar antes da colheita. - Stefan fez uma rara tentativa de conversação. - Isso é bom.
- É. - Lilli se deixou tomar por um pensamento cínico, raciocinando como os homens achariam inconveniente se Helga começasse o trabalho de parto quando a debulhadora chegasse.
- É o segundo bebé desde que vieram para cá - fez ele, lançando um olhar para Lilli, intrigada com o motivo que o levara a falar no assunto.
- É - replicou ela.
Durante o espaço de vários minutos, só se ouviu o trotar dos cascos dos cavalos e o estalar da carroça preenchendo o silêncio. Stefan ajustou a empunhadura das rédeas.
- Quando formos novamente à cidade, você vai ao médico descobrir por que não teve filhos - declarou ele, sucinto.
- Oh, Stefan. - Pronunciou o nome irritada, olhando para todos os lugares menos para ele. - Não é preciso engendrar um filho para provar ao mundo, ou a Franz Kreuger, que você é homem.
Há uma hora ela se orgulhara por conseguir manter seus pensamentos e sentimentos só para si, e eis que agora eles explodiam. Não importava se o que dissera era verdade. A observação imprudente ferira Stefan. Ele estava zangado com ela. Lilli estava aprendendo muito sobre os homens, e como eram sensíveis à chamada masculinidade. O problema era que nunca pensara em Stefan como um homem tal qual Webb Calder. Stefan era seu amigo, seu tio, seu pai. Não percebera haver esse outro lado nele.
- É errado um homem querer um filho? - A voz soou grossa devido à raiva.
- Não, não é errado. - Lilli franziu o cenho em frustração impotente, envergonhada por descobrir que não queria um filho de Stefan. - Mas essa não é a hora para se ter um, não agora, quando mal somos capazes de nos alimentar. - Novamente ela dissera uma coisa errada. Mas era verdade. O pedaço de trigal adicional só servira para deixá-los ainda mais endividados. Venderam mais trigo, mas gastaram mais dinheiro com cavalos de tração, equipamento, empregados contratados e sementes. Parecia que cada vez possuíam menos dinheiro, ao invés de ocorrer o contrário.
- Stefan, não quis dizer que você não tem feito tudo para prover a nossa subsistência. - Lilli tentou atenuar a observação anterior. - Você tem feito. Só que as coisas não têm corrido exatamente do jeito que você tinha pensado.
- Vamos ter uma colheita melhor no ano que vem - ele insistiu.
- Claro que teremos. - Eram palavras vazias, pronunciadas para o bem dele. Mas Lilli sabia que esse ano as chuvas haviam chegado tarde. O trigo não seria tão bom quanto o do ano passado.
- Descubra por que você não tem filhos - Stefan repetiu a exigência anterior.
- vou descobrir - concordou impassível. Medo silencioso tomou conta dela. Se a causa fosse a esterilidade de Stefan, ele ficaria completamente acabado.
Novamente o silêncio caiu entre eles, enquanto viajavam para casa. Lilli sempre pensara conhecer Stefan tão bem; toda a sua vida acreditara nisso. Mas somente durante a infância e a adolescência. O silêncio do marido originava-se de uma necessidade de esconder-se dentro de si mesmo para que os outros não tomassem conhecimento de seus fracassos e fraquezas. Ele era inseguro e indeciso, suas atitudes modificadas e coloridas por indivíduos de caráter dominador que o cercavam. Ele queria ser o que via em outros homens. Adotava os atos e comportamentos deles, obedecendo à liderança dos mesmos em determinadas situações, fingindo ser sua a iniciativa. Se Franz Kreuger não estivesse com ele naquela manhã, Lilli duvidava que Stefan tivesse atirado em Webb. Fora impelido à ação ao perceber o que Franz Kreuger teria feito em seu lugar.
Lilli acabou enredada em sua própria confusão. Ela estava tentando encontrar defeitos em Stefan, usando sua fraqueza, para justificar o amor que sentia por outro homem? Só havia uma coisa certa em seu pensamento. Não amava Stefan do jeito que uma mulher ama um homem. Preocupava-se profundamente com ele, assim como uma pessoa se preocupa com um amigo íntimo da família. Devia muito a ele, por ter tomado conta dela quando os pais morreram, embora ela também tivesse sido tudo que lhe restara. E ela lhe devia a lealdade de uma esposa. Mas uma voz interna insistia em perguntar se ela não devia alguma felicidade a si mesma. Lilli tentava não dar ouvidos a essa voz.
Naquela noite, depois que Stefan adormeceu, Lilli saiu da cama, tomando cuidado para não despertá-lo, e mergulhou na noite. O frio da brisa noturna envolveu-a, agitando o tecido fino da comprida camisola. Voltou os olhos para oeste, a saudade profunda e dolorosa. Por que fora tão desgraçadamente altiva e recusara-se vê-lo? Por que negara a si própria uns poucos momentos de prazer roubado em seus braços?
Ele estava tão próximo e tão distante. Baixou a cabeça, sabendo que jamais daria o passo para diminuir a distância. Ficou de pé ali, em dúvida se estava sendo inacreditavelmente forte ou simplesmente idiota.
Os invasores eram um problema para todos os fazendeiros, mas as dimensões da Triplo C a tornavam mais vulnerável. Nos últimos quatro anos, Webb estivera envolvido em uma batalha incessante para mantê-los fora de sua terra. Houvera algumas trocas de tiros, mas a maior parte ia embora quando sua presença era descoberta. Ele organizara patrulhas, em um esforço para afastar os invasores antes que cruzassem suas cercas, mantendo o roubo habitual de bois feito pelas famílias famintas em nível tolerável.
Outros fazendeiros haviam agido com severidade com os invasores, Ed Mace principalmente. Seria mais acertado dizer Hobie Evans. Corriam histórias que Hobie usava seu rifle com rapidez, e houvera muitos ferimentos justificando as histórias. Webb sabia que seus próprios homens resmungavam que ele estava sendo demasiado benevolente com os invasores, ao invés de lhes dar uma lição que transmitiriam aos outros de seu tipo. Mas Webb não conseguia olhar para as esposas dos invasores sem pensar em Lilli.
Vira-a na cidade algumas vezes e milhares de vezes se sentira tentado a procurá-la durante os últimos cinco anos. Mas ela o rejeitara duas vezes, recusando o amor que ele desejava dar-lhe. Webb não se sentia propenso a expor-se uma terceira vez. Um homem tinha um certo orgulho.
E muita solidão. Outro funeral enlutara as portas da Casa-Grande há dois anos, com a morte da mãe. Pneumonia, dissera o médico, mas Webb desconfiava de que simplesmente ela não sentira vontade de lutar contra a doença. Nem mesmo a companhia constante de Buli Giles preenchera o vazio que fora criado pela morte do pai. com o falecimento da mãe, Buli fizera as malas e se fora. Giles parecera velho, e muito cansado.
Assim, agora Webb era o único ocupante da Casa-Grande. Não passava mais tempo ali do que o necessário, não gostando do som de seus passos ecoando nos quartos vazios. com o sol de fim de tarde caindo sobre as construções da fazenda, Webb saiu do celeiro e foi até o novo armazém. Os preços dos suprimentos na loja de Ellis haviam aumentado tanto que se tornara mais vantajoso construir uma loja particular na fazenda, comprando comida e equipamentos a preço de custo dos fornecedores e vendendo a sobra aos homens e suas famílias a preços ligeiramente maiores, mas ainda assim menores do que os que Ollie Ellis cobrava.
O aumento de preços de mercadorias fora praticamente o único efeito da guerra na Europa. A guerra acontecia muito longe dali - em outro continente. As notícias de batalhas estavam velhas quando chegavam a Blue Moon, e os nomes dos lugares na Alemanha e na França eram desconhecidos para a maioria dos moradores de Montana, exceto os imigrantes cujas raízes e famílias vinham daqueles lugares.
Mas o grão e a carne do local alimentavam o exército americano, tornando-se sua contribuição para o esforço da guerra, desobrigando vaqueiros e fazendeiros do recrutamento. Alguns rapazes da região foram para a guerra, a maior parte filhos de imigrantes ansiosos em provar lealdade a seu novo país. A vida continuou da mesma maneira para todo o resto, a Primeira Guerra Mundial na Alemanha transformando-se simplesmente em outro tema de conversa e especulação.
A meio caminho da loja, Webb reduziu os passos e observou Ruth saindo da escola. Virg Haskell estava esperando por ela, tomando-lhe livros e papéis que carregava e caminhando ao lado dela como algum aluno levando a garota para casa. Não era a primeira vez que Webb percebia um homem em torno de Ruth. A visão dos dois juntos despertou um vago sentimento de desagrado. Webb não podia criticar o trabalho de Virg Haskell na fazenda, embora não conseguisse afastar a sensação de que havia algum tipo de fraqueza no caráter do homem, ainda que não tivesse demonstrado. Ruth era uma mulher excelente. Merecia alguém melhor do que um nómade comum como Virg Haskell.
Os celeiros e currais estavam logo à frente de Nate, enquanto seu cavalo exausto aproximava-se a passo pesado, fungando a poeira que lhe obstruía as narinas. Escaparrachado sobre a sela, a energia minada pelo calor de agosto que tornara a pastagem prematuramente marrom, Nate sentia-se tão fatigado quanto sua montaria. As coisas não pareciam bem por lá. Ao perceber Webb cruzando seu caminho, corrigiu a direção do cavalo e encaminhou-se para junto de seu patrão e amigo.
Embora o corpo estivesse apático, os olhos mantinham a vivacidade. Nate observou o interesse de Webb no casal afastando-se da escola e o desprazer que crispou-lhe os lábios. Nate adivinhou, com uma certa dose de cinismo, ser aquele um caso em que Webb não a queria, mas tampouco desejava que outro homem levasse Ruth.
Um segundo depois, Webb reconheceu cavalo e cavaleiro aproximando-se dele com lentidão, as cabeças baixas, e parou para esperar por eles. O cavalo e seu cavaleiro combinavam, os corpos empoeirados cobertos com suor lamacento.
Nate não perdeu tempo em preliminares:
- Você vai ter que mudar o gado para a pastagem norte mais cedo do que planejara. Está perdendo peso tentando encontrar capim.
A declaração fez com que Webb olhasse distraído para o solo seco e duro a seus pés. Ele esperara que as outras seções do pasto aguentassem pelo menos mais um mês. A pastagem norte estava bem irrigada e possuía capim relativamente bom. Seria boa forragem para o inverno, considerando-se a colheita de feno ruim que haviam tido.
- Lá está mal, hem? - Não era uma pergunta, somente um protesto contra os fatos.
- Geralmente junho é nosso mês de chuva. Mas não tivemos mais do que alguns milímetros. E o céu está seco desde então - recordou Nate.
- Se você acha que o capim está ruim, devia ver os trigais daqueles colonos. Esse ano não plantaram trigo, mas conseguiram uma desgraçada de uma colheita de carpos.
Webb recebeu a notícia sem reação aparente, mas frustração amarga manifestou-se interiormente. Nos anos anteriores, os colonos haviam lutado de uma estação de plantio para outra. Muitos deles haviam desistido quando quitaram o contrato de posse, vendendo sua terra para o próximo disposto a tentar a sorte; e parecia nunca faltar esse tipo de gente. Os Reisner, Lilli e o marido, não estavam entre os que deixaram a terra. Disso Webb sabia, mas não ouvira dizer nada que indicasse estar o terreno deles melhor do que o de outros.
A estação fora praticamente seca, o que poderia significar o começo de um ciclo de seca. Webb deu uma olhada para o céu através da cerração que transformava o azul em um tom empoeirado. O tempo estava quente e seco, tão seco que a transpiração evaporava quase imediatamente após brotar na pele, ou então tornava-se pastosa com a poeira que obstruía os poros dos homens.
- Vamos começar o rodeio do outono mais cedo esse ano e vender todos os bois em idade de mercado. Não quero atravessar o inverno com nada extra e usar todo o capim que temos - declarou Webb. Os preços do gado estavam altos no momento, com a guerra na Europa, e ele pretendia vender o gado enquanto tinha peso e podia conseguir preços mais altos.
A grande égua belga manteve-se quieta e dócil enquanto Lilli tirava os arreios de suas costas altas e os colocava no chão. Foi até a cabeça e a égua baixou-a e tentou tirar o freio lançando a cabeça em direção ao peito de Lilli. O animal desequilibrou a mulher, que deu um passo atrás até conseguir recuperar o equilíbrio, desafivelando a correia das fauces. O freio estava em suas mãos, a égua cuspiu o pedaço do freio e foi até a tina d'água.
Juntando os arreios e o freio, Lilli levou-os até o galpão e pendurouos em seus ganchos. Deteve-se para quebrar um pedaço de sal do novo bloco branco, deixando-o dissolver na boca enquanto saía. Deixou-se cair à sombra do galpão, exausta com o calor seco.
Puxou as saias sobre as pernas dobradas, na esperança de fazer circular um pouco de ar, fazendo a pele esfriar. Anáguas eram demasiado sufocantes nesse calor abrasador e muito incómodas nos trigais. Lilli as abandonara após a primeira semana nos campos, realizando o trabalho de um homem, porque não puderam contratar alguém. A família que haviam amparado se mudara, e não encontraram outra pessoa disposta a trabalhar em troca de casa e comida.
Fatigada, ela pousou a cabeça no braço apoiado no joelho. Estava tão cansada que sentia vontade de chorar, mas os olhos pareciam não ter suficiente umidade para as lágrimas. Todo o seu corpo doía de arrancar as ervas daninhas dos trigais, para que não sugassem a umidade preciosa do solo. Os braços, rosto, pescoço e parte do peito estavam tão bronzeados da constante exposição ao sol, que se tornara impossível dizer onde terminavam as sardas e começava o bronzeado.
Ela ouviu o bater de cascos de cavalo no chão duro e o tilintar das peças metálicas dos arreios. Stefan estava voltando dos campos. Empertigou-se e puxou as saias sobre os joelhos quando ele surgia à vista.
- O jantar está pronto? - perguntou, lançando uma interjeição para a égua.
A raiva percorreu-a com o modo como ele esperava que ela trabalhasse nos trigais e também preparasse o jantar quando ele chegasse.
- Não. - A voz soou áspera. - Acabei de desatrelar a égua.
- E daí? Agora ela está sem os arreios - disse ele, irritado. Inútil argumentar que ela estava cansada. Era preciso pôr o jantar na mesa, e cabia a Lilli fazê-lo. Entrou na choupana empertigada, batendo com os objetos, o que ajudou a aliviar momentaneamente a frustração e sensação crescente de impotência ao ver que todo o trabalho servira para nada. Havia uma mínima chance de obterem um terço da colheita habitual. Colocando a sopa de batata para esquentar no fogão, Lilli foi até a bacia d'água e mergulhou um pedaço de pano, que pressionou contra a pele quente. Sobre a bacia pendia um pequeno espelho retangular. Ela olhou para seu reflexo, os cabelos opacos, a pele queimada pelo sol, e as olheiras sob os olhos. Estava acabada para seus vinte e cinco anos.
- Não adianta mais pensar nele - murmurou para si mesma. Webb não ia querer você agora.
Afastou-se do espelho, incapaz de olhar para si própria. O pano molhado foi posto de lado e foi até o fogão mexer a sopa. Do lado de fora, ouviu Stefan na cisterna bombeando água no balde. Foi até a porta falar com ele.
- Não se esqueça de regar o jardim. - O jardim praticamente acabara nesse calor, mas alguma coisa poderia ser salva.
Stefan estava debruçado sobre o balde, jogando água no rosto. Ele parecia tão velho e alquebrado, sem vontade de prosseguir, embora houvesse também a teimosia dentro dele, oriunda do medo horrível do fracasso que o impulsionava. Apesar de nunca ter dito nada a Lilli, ele estava convencido de que esse prolongado tempo seco era o castigo de Deus por ter nascido alemão e pela guerra que se travava naquele país. Ao invés de suportá-lo como uma cruz, ele se tornara uma ninharia. Ao vê-lo fechar as mãos em concha para beber um pouco d'água do balde, Lilli franziu o cenho preocupada.
- A água não tem estado com gosto muito bom, Stefan - avisou.
- Estou fervendo-a antes de bebermos.
Mas ele não deu atenção a ela e tomou vários goles, pondo-se de pé em seguida.
- Ela só está quente - insistiu, pegando o balde para levá-lo ao jardim.
Tudo estava quente, Lilli pensou. Nunca refrescava, nem mesmo à noite. Ela voltou para a casa e colocou a sopa nas tigelas. Tinham levado a mesa e as cadeiras para fora para que pudessem comer onde o ar não era tão sufocante. com o calor interminável, a choupana se tornara tão pequena que Lilli sentia-se sufocar lá dentro. Mas do lado de fora não era muito melhor, a não ser que o vento soprasse. Até mesmo uma brisa quente era melhor do que nada, embora significasse poeira sobre a comida. No entanto, isso também não importava, pois ela sentia a boca arenosa o tempo todo.
Inquieto e confinado, Webb pousou a caneta e levantou da grande cadeira de couro. O maldito trabalho escrito não terminava nunca. Multiplicava-se em elevações a cada vez que o deixava de lado por um só dia. Atravessou o escritório até o armário de bebidas e serviu-se de um copo de uísque. Após um gole rápido e ardente, estremeceu e esfregou a nuca.
Ouviu um ruído, o ranger fraco do assoalho. Ergueu o olhar e viu Ruth no umbral da porta. Tentou esboçar um sorriso.
- Não ouvi você entrar.
- Tentei ser silenciosa para não perturbar você caso estivesse trabalhando. - Olhou para a mesa. - Já terminou tudo?
- Quase. - Virou a cabeça para engolir outro gole da bebida.
- Vim convidá-lo para jantar comigo e papai - explicou ela. Ele hesitou, olhando-a; por fim sacudiu a cabeça.
- É melhor não. Sou capaz de passar a noite conversando em vez de cuidar dos papéis.
- Você precisa comer - insistiu ela. - Prometo que vou enxotá-lo assim que terminar de comer.
- Ou talvez você bata em mim com uma régua - sugeriu Webb, referindo-se secamente ao trabalho como professora.
- Se algum dia fosse à minha sala de aula, você saberia que não faço isso com meus alunos - sorriu, experimentando-o. - De vez em quando você parava por lá, mas ultimamente não tem passado.
- Tenho estado muito ocupado. - Deu de ombros, pondo de lado a extensão de tempo que se passara desde que estivera na companhia da garota. - Estou surpreso que tenha percebido. Haskell, parece, tem sido um visitante regular nos últimos tempos.
- Isso o incomoda? - Ela esperava que sim. Esperava que ele sentisse ciúme. Ele percebera que Virg Haskell a estava assediando, embora ela tentasse desencorajá-lo.
- Por que deveria me incomodar? - Ele franziu o cenho, surpreso com a pergunta. - É você que ele está visitando - ocorreu-lhe. - Ele a está importunando? Posso dizer a ele para que a deixe em paz se você quiser.
- Não é necessário. - Ruth baixou a cabeça, mais uma vez sentindo-se derrotada. - Vai jantar conosco? - repetiu o convite, esperando que ele aceitasse.
Webb correu o olhar por ela, como se comparando-a com outra pessoa.
- Não, obrigado - recusou.
Ela sentiu como se uma faca mergulhasse em seu coração.
- Você ainda não a esqueceu, não é? - Não pretendera falar em voz alta, mas já estava feito, e não se arrependeu.
Webb crispou os lábios:
- Não, acho que não a esqueci - concordou, a voz entrecortada. Nenhum dos dois pronunciou o nome dela. Ambos sabiam que se referira a Lilli.
- Ela é casada, Webb. - Ruth precisou de muita coragem para dizer isso.
- Sei muito bem disso. - Lançou-lhe um olhar frio e impaciente, como se o irritasse o fato dela fazê-lo lembrar que Lilli era casada.
Este atrito entre eles era intolerável. Ruth atravessou o espaço que os separava com pequenos passos rápidos para tranquilizá-lo de que não quisera magoá-lo. Estacou ao lado dele, erguendo uma mão que pousou no antebraço de Webb, pedindo a atenção que ele retirara.
- Desculpe, Webb. Não tinha o direito de dizer isso. - Simplesmente ela vivera durante longo tempo na esperança de que ele esquecesse Lilli, e quando isso ocorresse, ele finalmente se voltaria para ela.
Durante um longo segundo, Webb fitou a mão em seu braço, até erguer o olhar para o rosto de Ruth. O colorido dos cabelos e olhos parecia indescritível, apesar da suavidade dos traços dela, e Webb percebeu algo ali que apelou para a fraqueza dentro de si. Toda ela inclinava-se para ele, desejando agradá-lo e eliminar aquela frieza.
Ao colocar o drinque sobre uma mesa de lado, Webb não estava consciente do embate silencioso que travava consigo mesmo. Por fim, voltou-se para Ruth e escutou a respiração acelerada com um certo distanciamento. Quando a tomou nos braços, não estava buscando a gratificação de suas necessidades masculinas. Existiam mulheres que se encarregavam disso.
Desejava afundar-se na doçura de uma mulher solícita e encontrar alívio para a solidão avassaladora. Ela se entregou aos braços dele, pressionando o corpo contra o seu. Os lábios de Ruth dobravam-se às exigências dele. Tudo corria como devia, mas não era suficiente.
A dor solitária tornou-se mais intensa, mesclada ao amargor. O beijo não conseguiu preencher o vazio dentro de Webb. Sentiu nojo de si mesmo por usá-la sem preocupar-se com os sentimentos da moça. Pegou-a pelos ombros e afastou-a. Apertou-a, forçando-a a afastar-se dele. A visão do olhar de garotinha ferida no rosto de Ruth o separou dela, e Webb estendeu a mão para a bebida que acabara de deixar de lado.
- Eu não devia ter feito isso, Ruth - disse ele, carrancudo, ouvindo-a esboçar um ruído de mágoa. - Peço-lhe desculpas e prometo que isso não se repetirá.
- Não, Webb...
Ele interrompeu o protesto com brutalidade.
- Chame Virg Haskell para jantar. Ele vai gostar mais do convite do que eu.
Havia uma espécie de determinação no silêncio que se seguiu. Passaram-se vários segundos até que escutou os passos lentos da garota saindo da sala. Bebeu o resto do uísque no copo com um gole só, mas a bebida não apagou os pensamentos.
Enquanto mergulhava o pano molhado na bacia d'àgua, Lilli lançou um olhar preocupado para o homem inconsciente na cama. O rosto estava estranhamente ruborizado e a pele queimava ao toque. Stefan resmungava em sua língua alemã natal, a febre o levando ao delírio. Ela torceu o pano e pressionou-o sobre o rosto dele, tentando esfriá-lo.
Tudo começara na manhã passada, com a cabeça latejando, dor de estômago e diarreia. Stefan insistira em ir trabalhar nos trigais, não dando atenção à sugestão de Lilli de que talvez devesse descansar. Durante a noite ele estava tão fraco que Lilli precisara ajudá-lo a ir para a cama. A febre continuara a noite inteira.
A audição de Lilli estava sintonizada aos ruídos do lado de fora da choupana. Pensou ter ouvido algo, mas o ruído foi tão fraco que não soube se estava imaginando ou não. Voltou a cabeça, lançando um olhar para a mulher loura junto ao fogão, aquecendo um pouco de sopa para que forçassem Stefan a se alimentar um pouco.
- Acho que ouvi uma carruagem. Vá ver se é o médico, Helga. Lilli apressou a mulher grávida de Franz Kreuger.
- Claro. - Helga Kreuger afastou-se do fogão, em direção à porta, olhando para fora.
Assustada com a rápida piora do estado de Stefan durante a noite, Lilli fora até a vizinha em busca de ajuda naquela manhã. Não queria deixar Stefan sozinho nem mesmo por pouco tempo, mas precisava mandar alguém chamar o médico. Franz fora a cavalo até a cidade pegar o médico e Helga deixara seus filhos aos cuidados da filha mais velha, permanecendo com Lilli para ajudá-la no que pudesse.
- É o Franz - confirmou ela. - O médico vem com ele.
- Graças a Deus - Lilli murmurou, piscando para evitar que as lágrimas descessem. A febre parecia estar minguando Stefan diante de seus olhos, afundando-lhe as bochechas e tornando o corpo esquálido mais debilitado.
O jovem médico entrou e não perdeu tempo com preliminares, indo direto até a cama. Os olhos já faziam o exame do homem doente enquanto abria a maleta preta. Não pareceu surpreso com o que viu; ao contrário, a linha fina formada pelos lábios parecia indicar que a doença era o que ele esperava.
Lilli relutou em deixar a cabeceira da cama, mas Helga Kreuger a pegou pelos ombros e guiou-a até o lado oposto do único compartimento. Forçou uma caneca de sopa pelas mãos de Lilli.
- Você também precisa ficar forte - ela insistiu.
Era mais fácil aceitar do que fazer o esforço de discutir. Lilli envolveu a caneca com as mãos e foi para a janela, agora com vidraças, praticamente única melhora que haviam feito na choupana. Uma película de poeira enevoava o vidro, turvando a visão do campo alqueivado lá fora. O vento redemoinhante atravessava o solo seco, erguendo demónios de poeira que rodopiavam e turbilhonavam em abandono selvagem. O ar estava tão seco que sugava qualquer umidade que encontrasse.
A distância, Lilli podia ouvir Franz Kreuger e a esposa conversando em voz baixa e ininteligível. A mãe dela tivera essa doença antes de morrer: sintomas diferentes, mas ainda assim o cheiro da morte. Algo que Lilli não conseguia esquecer. Até esse momento ela estivera demasiado ocupada cuidando de Stefan para que sua mente considerasse a possibilidade dele morrer. Toda a atenção concentrara-se em fazê-lo melhorar; agora seus pensamentos voltavam-se para o que poderia acontecer se ele não melhorasse.
A lembrança das mortes dos pais lhe vinha em flashes; a dor e a angústia, a infinidade de coisas a fazer. Se Stefan morresse, ela teria de fazer tudo de novo: conseguir dinheiro para o caixão, providenciar o enterro e recolher todos os pertences do marido. Se ele morresse, ela seria livre para ir até Webb.
No instante em que o pensamento atravessou-lhe a mente, Lilli ficou enojada com o que pensara. Era algo terrível de se considerar em um momento desses. Desprezou a si mesma por pensar assim e esmagou a semente antes que ela pudesse crescer, recordando a si própria seu rosto no espelho e o fato de que anos se haviam passado sem que Webb fizesse uma única tentativa de vê-la. Provavelmente a esquecera há muito tempo.
Ergueu o olhar para o céu enevoado. Os lábios formaram as palavras silenciosas:
- Stefan, me perdoe. - Ouviu um ruído no canto do quarto onde estava o marido e voltou-se para olhar a figura ereta atendendo-o. Caminhou até o pé da cama e perscrutou o rosto inexpressivo do médico.
- O que ele tem, doutor? - Pedia uma resposta que a livrasse dos medos que a atormentavam.
Ele pareceu não querer fitar os olhos inquisitivos da mulher.
- De onde vem a água que bebem, Sra. Reisner? - Lançou-lhe um olhar indagador, percebendo os sinais de juventude que o sol queimara.
- É esposa dele? - O paciente era bem mais velho, embora ele tivesse aprendido ser este fato comum entre os imigrantes.
Lilli assentiu afirmativamente à última pergunta e respondeu à primeira:
- Temos uma cisterna lá fora.
- Seu marido está com febre tifóide - anunciou ele, sombrio. - O que significa que a água está contaminada. Temo que, com a falta de chuva .- este ano, esta situação se torne mais comum. Não é o primeiro caso que diagnostico.
Febre tifóide. As palavras a deixaram insensível, diante do presságio sinistro. Teve uma vaga noção de Franz Kreuger intervindo e pedindo ao médico que desse algo capaz de fazer Stefan melhorar. Perdeu a maior parte da resposta enquanto tentava se acostumar com a notícia.
- ... dê banhos seguidos para fazer a febre baixar e faça com que ele tome bastante líquido - instruía o médico. - Tenho que fazer outras visitas, mas volto aqui durante a noite. Vamos ver como ele vai estar.
Lilli levou o médico até a porta e agradeceu-o por vir, mas ela parecia mergulhada em um vácuo, desprovida de sentimentos ou sensações. Nada a impressionava, nem mesmo o abrasivo Franz Kreuger.
O tempo em Montana era sujeito a truques cruéis e antigos. Uma grande mancha surgira no céu e lançara o cheiro de chuva sobre o território. A chuva caiu a cântaros durante quarenta minutos, mas não em todos os lugares, somente na pequena área onde se localizava a sede da fazenda Triplo C. O temporal transformou o chão crestado em um atoleiro, o que impossibilitou o uso do automóvel que levaria Webb até a cidade mais rapidamente.
Assim, ele selou o baio Appaloosa para fazer a longa jornada. A menos de seis quilómetros da Casa-Grande, a grama estava seca. As nuvens negras atravessavam o céu, desaparecendo tão rapidamente quanto haviam chegado, atormentando o solo ressequido com a fragrância da chuva.
Um vento seco fustigava as construções desgastadas de Blue Moon com seu fardo de poeira. Havia uma fina película de poeira em tudo. Poucas pessoas estavam na rua, caminhando com as cabeças baixas e os rostos escondidos do vento. Os olhos semicerrados contra a poeira torturante, Webb percebeu a procissão variada seguindo lentamente até o novo cemitério na elevação gramada fora da cidade.
A cavalgada longa e poeirenta lhe deixara garganta e boca secas. Voltou o cavalo para a viga de amarrar montarias diante do restaurante de Sonny e desmontou, amarrando as rédeas na viga. Ao entrar, encontrou o restaurante diurno e bar noturno quase tão vazio quanto a rua. Observou os ocupantes, reconhecendo Hobie Evans apoiado no balcão. Empurrando o chapéu para a nuca, Webb sentou-se em uma das mesas.
- Só café - disse para a garota que fizera menção de sair de trás do balcão para anotar o pedido. Ela parecia pertencer a uma das famílias de colonos, trabalhando na cidade para complementar a renda magra da família. com a seca deste verão, muitos dos filhos mais velhos haviam sido forçados a procurar trabalho e ajudar a sustentar a família. Houvera uma avalanche deles na fazenda, dispostos a fazer qualquer coisa que produzisse alguns trocados.
Hobie veio calmamente até a mesa e puxou uma cadeira, virando-a ao contrário para montá-la, sem esperar que Webb o convidasse a sentar. Bebericou a xícara de café e fitou Webb com olhar complacente.
- O verão tem sido longo e seco - observou.
Webb assentiu e olhou rapidamente para a garota que trouxe o café e colocou-o sobre a mesa diante dele. Ela estacou, os traços sem expressão.
- Quer mais alguma coisa?
- O que ela quer dizer é que - Hobie debruçou-se para murmurar a explicação, de modo que não fosse além da mesa -, por vinte e cinco centavos e o preço de um trago, ela faz esse café mais forte.
A hipocrisia da situação não passou despercebida a Webb. Quando aqueles colonos chegaram, haviam sido inteiramente contrários a servir bebidas alcoólicas entre eles; no entanto, uma de suas filhas se dispunha a desobedecer as regras em troca de um quarto de dólar.
- Vou beber assim mesmo. - Recusou o oferecimento de misturar bebida ao café. A garota deu de ombros, indiferente, e voltou ao balcão.
- Aposto que com um pouco mais de dinheiro um cara consegue comprar mais do que um drinque dela. - Hobie observou-a afastar-se. - Isso se ele não se incomodar de se pendurar nessas costelas finas. Claro, cataninhos não são meu doce de coco, mas não sei como alguém pode ter uma queda por elas.
Com um homem como Hobie Evans, era melhor ignorar as observações maliciosas e obscenas. Qualquer comentário acabaria por encorajar mais observações do género. Webb bebeu seu café quente e preto.
Percebi um bando de carroças indo em direção ao cemitério quando entrei na cidade. Quem vai ser enterrado? - mudou de assunto.
Hobie deu de ombros.
Algum cata-ninhos. Alguma febre está arriando eles a torto e a direito. Espero que a febre continue. Talvez a gente finalmente se livre de alguns desses filhos da mãe. Isso devia ter acontecido há muito tempo.
- Uma febre? - Webb soergueu a sobrancelha, exigindo resposta mais específica.
É. O médico esteve aqui antes, tentando comer algo, mas um colono esquelético o arrancou daqui com uma chamada de doença. - Uma espécie de esgar ergueu-lhe os cantos da boca. - O médico parecia em frangalhos. Disse algo sobre a água estar contaminada. Ele está perdendo tempo com tipos como aqueles. Se mais uns cem deles morresse, ainda não seria o suficiente, na minha opinião.
Webb perdera o gosto pelo café e pela companhia. Afastou a cadeira e pôs-se de pé, atirando um níquel sobre a mesa para pagar o café que mal tocara.
- Hobie, quando você morrer, vai estar completamente sozinho. E o pior é que você nem vai saber.
Saindo do restaurante, desamarrou as rédeas e dispôs-se a montar, mas percebeu o som de vozes unidas em uma canção levada pelo vento e deteve-se. Pedaços de melodia chegaram até ele, o suficiente para que reconhecesse o hino fúnebre Rock of the Ages.
Ficou pensando sobre o poço dos Reisner, se a água estaria contaminada, mas não adiantava ficar matutando. Não havia nada que pudesse fazer. Não tinha direito de fazer nada a respeito. Colocou a bota no estribo e montou, dando rédeas ao cavalo em direção ao depósito.
O xale negro que cobria a cabeça de Lilli agitou-se sob o vento fustigante, mas ela não baixou a cabeça enquanto as pás de terra caíam sobre o caixão de Stefan. As pessoas amontoavam-se atrás dela: amigos, vizinhos, todos oferecendo sua solidariedade. Pareciam esperar o silêncio e embotamento dos olhos dela.
Ninguém perguntou o que ela pretendia fazer, mas era preciso que Lilli tomasse suas decisões. Estava colocando a fazenda à venda. Franz Kreuger ia colher o trigo que houvesse nos campos, dividindo o lucro. Depois, ela ia embora. Não havia mais motivo para ficar, com Stefan morto. Lilli nem mesmo se permitiu pensar em Webb Calder, pois isso acontecera muito tempo atrás. Ele também estava morto, assim como Stefan.
Quando o médico desceu de sua carruagem, Webb percebeu a mudança de um jovem ansioso por sua primeira prática para esse médico sobrecarregado de trabalho que não conseguia comer ou dormir regularmente. Era o único médico em centenas de quilómetros em qualquer direção e as exigências eram constantes. Os cabelos prematuramente grisalhos e os olhos avermelhados demonstravam a falta de sono.
- Desculpe, tive que chamá-lo, Simon - Webb antecedeu o cumprimento com um pedido de desculpas e levou o doutor Simon Bardolph em direção ao alojamento. - Espero que não esteja tão cansado quanto parece.
- Diabos, já passei do ponto do cansaço. - Simon deixara de lado o respeito pelo nome Calder. - O que houve?
- Abe Garvey foi pisoteado por um cavalo durante o rodeio de primavera. Nós o trouxemos para cá e fizemos o que pudemos por ele, e aí chamamos você - Webb explicou, abrindo a porta do alojamento. - Parece que ele está sangrando por dentro.
- vou dar uma olhada nele. - O médico entrou no alojamento, o pensamento já percorrendo as possibilidades. Um sorriso cansado iluminou seus traços fatigados ao reconhecer a mulher loura ao lado do homem machucado no alojamento. - Ah, minha enfermeira favorita. Como vai, Ruth?
- Bem. - Ela correu o olhar para Webb, baixando-o em seguida.
- Realmente você devia deixar de lecionar e vir trabalhar para mim, Ruth. - Simon começou o exame do paciente imediatamente, falando enquanto o fazia. - Deus sabe como sua ajuda seria útil. - Ela a sentiu empertigada e a alta tensão escondida logo abaixo daquela superfície plácida. Era fácil diagnosticar a causa. Webb Calder. Tornara-se evidente para Simon, quando tratara de Webb após o tiro, que ela estava perdidamente apaixonada por ele. Naturalmente a situação não mudara. Uma olhada para o cowboy ferido alertou-o de que precisaria da ajuda dela, e da atenção integral.
- Webb, por que você não sai e deixa os profissionais cuidarem dele?
- sugeriu Simon bruscamente, e outra metade da mente exercitando sua profissão no paciente. - E providencie bastante café quente. vou precisar de um galão quando terminar.
Houve uma certa hesitação antes que Webb concedesse não ser sua presença necessária.
- Vou estar no refeitório.
Mais de duas horas depois, Simon Bardolph entrou no refeitório. Webb encheu uma xícara de café para ele e a colocou na mesa comprida onde o médico sentou. Este esfregou o rosto como se tentando espantar o cansaço.
- Eu diria que ele tem mais do que uma boa chance de curar-se foi o veredito. - Quem enfaixou aquela perna quebrada fez um bom negócio.
- Slim e Nate fizeram isso antes de colocá-lo na carroça que o trouxe à fazenda - disse Webb. - Grizzly tem um bife pronto para você.
Fez-se uma pausa, seguida por uma risada curta e cansada.
- Não consigo me lembrar da última vez que comi - Simon declarou.
- Foi o que pensei. - Webb fez um gesto para o cozinheiro mal-humorado servir a comida. - Ouvi dizer que há uma febre atingindo os colonos. - Estava em busca de informações sobre Lilli, quisesse ou não admiti-lo.
- Febre tifóide. - Quando o prato foi colocado diante dele, Simon pegou garfo e faca e pôs-se a cortar a carne com precisão meio cirúrgica.
- Tem me feito correr de um lado para outro do Estado. Estou tentando espalhar o conselho de que todo mundo deve ferver a água antes de beber, mas... - deu de ombros, indicando a falta de cooperação e a simples preguiça de alguns. - Estou perdendo os muito jovens e os velhos. - Mastigou um pedaço de carne. - Tinha esquecido o gosto de comida boa - disse, sem esperar até engolir.
- Temos bastante comida, portanto não fique envergonhado de pedir para repetir - ofereceu Webb.
- Não tenho tempo. - Simon falava entre uma garfada e outra. Tenho um parto à espera.
- Ah? - O som era uma indagação.
- A esposa de seu vizinho Franz Kreuger. Entrou em trabalho de parto. Se o neném seguir o caminho dos outros, só vou chegar em tempo de colocá-lo no mundo. - Cortou outro naco de carne tostada. - Para falar a verdade, estou surpreso do Kreuger ter me chamado.
- Por quê?
- Ele acha que eu podia ter feito mais para salvar seu vizinho. - Balançou a cabeça. - Às vezes o homem é irracional.
- O vizinho. Qual vizinho? - Webb franziu o cenho.
- Um cara velho... - Simon oscilou o garfo no ar, tentando recordar o nome. - Richter... Richner... algo assim.
- Reisner. Stefan Reisner. - Webb disse o nome, surpreendido ao perceber como sua voz soara impassível.
- Isso. - Simon assentiu e enfiou outro pedaço de carne na boca, comendo com uma rapidez contra a qual teria alertado seus pacientes.
- E a esposa? - Ele estava imóvel por dentro, à espera.
- O que tem ela? - O médico não compreendeu a pergunta. - Ao que eu saiba, ela está bem, se é isso que você quer saber. Mas ela era jovem e saudável.
- Quando aconteceu isso? - Tinha de ser recente, ou Webb com certeza teria ouvido falar no acontecimento.
- Vamos ver... ele deve ter morrido duas... não, três semanas atrás - decidiu o médico, lançando em seguida um olhar curioso para Webb.
- Por quê?
Três semanas! Tudo pareceu liberar-se dentro dele. A frustração misturou-se à raiva por Lilli não ter tentado avisá-lo. Aquilo o confundiu, enchendo-o de incertezas. Afastou o banco paralelo à comprida mesa, inconsciente de que não respondera à pergunta do médico.
- Webb? - Simon empertigou-se mais, completamente confuso com o comportamento de Calder.
- Vejo você depois, Simon. - Webb lançou a observação por sobre o ombro sem diminuir as passadas largas, saindo do refeitório e passando por Ruth que estava entrando.
Simon Bardolph continuou olhando fixamente a porta comprida fechada, tentando decifrar o enigma. Ruth percebeu-lhe a confusão.
- Algo errado?
Ele correu os olhos confusos para ela; por fim balançou a cabeça e voltou à comida.
- Acho que Webb acabou de lembrar que devia estar em algum lugar.
- Por que você diz isso? - Ela olhou em direção à porta, lembrando-se de que Webb fora bastante rápido, mas pensou que fosse por causa do último encontro de ambos.
- Estávamos conversando. Ele me fez perguntas sobre a morte de Reisner... - O médico começou a explicar, falando e ruminando os acontecimentos em sua mente ao mesmo tempo.
- Reisner. - O nome saiu em meio a um suspiro rápido. - Lilli Reis ner?
- Não. É o nome da esposa dele? - Deu de ombros, denotando que isso não importava. - Foi o velho que morreu. - Estreitou o olhar ante a luz que saía dos olhos de Ruth. - Você poderia me explicar o que está acontecendo aqui?
Ela se recusou com um breve movimento de cabeça.
- Nada. - Não cabia a ela falar. De qualquer maneira, possivelmente ele saberia por si mesmo dentro de pouco tempo.
Ela esperara tão pacientemente, agarrando-se ao último fio de esperança. Agora esse fio se desvanecera. As lágrimas brotaram em seus olhos. Pediu desculpas rapidamente e escapou antes que o médico visse que ela estava chorando.
As primeiras duas semanas após a morte de Stefan foram tão repletas de detalhes a serem resolvidos, tantas coisas a fazer que Lilli mal tivera tempo de soltar um suspiro. Na terceira semana, tudo fora demasiado para ela, que dormiu praticamente o dia todo. Finalmente corpo e mente clarearam do cansaço e indecisão. Não havia mais olheiras escuras em torno de seus olhos, que enxergavam a realidade com um brilho estável de determinação. Um vento ininterrupto tentava erguer a saia do vestido de pano grosseiro, enrolando-o em torno das pernas de Lilli. O xale circundando os ombros era a única vestimenta preta que estava usando. Ela não queria desrespeitar Stefan, mas comprar tecido preto para fazer vestidos de luto parecia um desperdício do pouco dinheiro que ela tinha. O vento atingiu o cheque na mão dela, tentando arrancá-lo.
- Sinto muito não ter sido mais, Sra. Reisner - declarou Doyle Pettit, segurando o chapéu respeitosamente. - Mas com a falta de chuva esse ano, o preço da terra caiu. Esperava, para o seu bem, ter conseguido vender a fazenda por mais.
O que ele não disse é que ele mesmo comprara a terra. Ela insistira em vender a propriedade imediatamente. Portanto, Doyle pagara o preço atual de mercado, confiante em dobrar seu dinheiro na próxima primavera. Sem dúvida não trapaceara; simplesmente aproveitara a situação.
- Compreendo. - Depois de pagos os empréstimos bancários, não restara muita coisa. com certeza não tanto quanto ela esperara. Dobrou o cheque em dois e colocou-o no bolso. - Foi bondade sua ter vindo até aqui para trazer o cheque para mim.
- Não foi nenhum problema, lhe garanto. - Usou o sorriso encantador, parecendo adequadamente preocupado. - O que vai fazer agora, Sra. Reisner? Não é muito dinheiro, mas naturalmente a senhora vai querer investi-lo da maneira mais adequada. Ficaria mais do que contente em aconselhá-la sobre o assunto.
- Já fiz meus planos. O dinheiro deve ser suficiente para comprar um pequeno restaurante, talvez em Butte. - Cozinhar era a única coisa que sabia fazer, o único meio de sobreviver e com todas aquelas minas de cobre perto de Butte, Montana, aquele parecia um bom lugar. Além do mais, seria aconselhável deixar aquela área e colocar distância entre ela e seus sonhos idiotas sobre Webb Calder.
- Abrir um negócio próprio, ora, é um grande passo, Sra. Reisner.
- Doyle Pettit tinha o mesmo olhar cético das outras pessoas. Homens dirigiam negócios e mulheres lecionavam ou cuidavam de doentes. - Há muitas coisas que precisa saber.
- Dirigi os afazeres domésticos durante um bom número de anos, Sr. Pettit. Acredito que conheço um pouco sobre compra de suprimentos e pagamento de contas. - Lilli estava um tanto irritada, por trás do sorriso que ofereceu ao homem. - Mas obrigada por sua preocupação.
Ela não o encorajou por palavras ou atos a ficar e conversar, nem mesmo convidou-o a entrar na choupana que não era mais sua. O homem era muito insinuante, muito bem-vestido e o modelo T estacionado a poucos metros estava pouco empoeirado. Havia uma vaidade e um egoísmo que o tornavam superficial. Como viúva recente, ela poderia sentir-se lisonjeada com sua atenção e interesse; mas duvidava que fossem verdadeiros.
Doyle acentuou o sorriso e tentou disfarçar sua confusão com essa recepção formal. Entregara o cheque e ela parecera ansiosa por vê-lo ir embora. Poderia ter sido interessante consolá-la. Certamente ela parecia mais atraente do que no dia em que fora ao banco querendo vender a fazenda.
- Se houver algo mais que possa fazer, Sra. Reisner, espero que entre em contato comigo. - Não havia nada mais a fazer, exceto ir embora.
- Obrigada. - Ela meneou a cabeça com brevidade, sem afirmar se o procuraria ou não. A luz do sol atingiu o colorido de outono de seus cabelos.
Mas ele não estava com pressa de ir embora, virando a gola do casaco e colocando as luvas.
- Acho que o inverno vai chegar mais cedo. Já está quase um cheiro de geada no ar. - Um ruído surdo chegou, distante. Doyle voltou-se para olhar o caminho. Cavalo e cavaleiro se aproximavam, ainda demasiado distantes para que pudesse identificá-los. - Parece que vem vindo alguém.
Ela se afastou do protetor contra o vento da janela e puxou mais o xale em torno dos ombros. O cavaleiro possuía algo de familiar que aceleroulhe a pulsação. Tudo estivera tão em ordem; agora seus pensamentos começavam a tomar outros caminhos, enquanto o cavaleiro se aproximava o suficiente para que Lilli tivesse certeza de que era Webb.
O cavalo bufava quando parou ao lado do automóvel, empinando as orelhas, desconfiado, para o veículo. Webb continuou sentado na sela durante alguns segundos, correndo o olhar inexpressivo dela para Doyle Pettit.
- Webb Calder. - Doyle recobrou-se da surpresa e adiantou-se para cumprimentá-lo. - Não esperava encontrá-lo aqui.
Deixando as rédeas no solo, Webb apertou a mão que Doyle lhe estendeu, deslizando um olhar avaliador para Lilli.
Ela quase ficou contente com a presença de Doyle Pettit, que lhe deu tempo para manter os pés firmemente no chão e não ser lançada no turbilhão de suas emoções.
- Parei para oferecer meus sentimentos à... Sra. Reisner. - A hesitação quanto à maneira formal com que se dirigiu a ela não passou despercebida a Lilli, apesar de ténue. - Também não posso dizer que esperava encontrá-lo aqui, Doyle.
- Cuidei da venda da fazenda para a Sra. Reisner. A transação foi concluída hoje e trouxe o cheque para ela - ele explicou.
Os olhos de Webb brilharam, surpresos, com a notícia de que ela vendera a fazenda. Não conseguiu resolver se a decisão fora acertada. Ela não conseguiria dirigir a fazenda sozinha sem contratar um homem. Ele duvidava que houvesse dinheiro suficiente para tal; certamente não haveria, com a péssima colheita desse ano.
- Webb, devo dizer que você está sendo muito amável vindo até aqui e tudo mais - disse Doyle.
Webb não tentou evitar que seu olhar perscrutasse Lilli. Ela parecia tão desgraçadamente composta que ele se sentiu amargurado. Os olhos possuíam um tom azul escuro, olhando-o de frente. Os lábios unian-se em uma linha harmoniosa. Era como se estivesse esperando que ele dissesse ou fizesse algo.
Webb tirou o chapéu, sentindo-se embaraçado e não gostando da sensação.
- Pensei em vir para saber se havia algo que eu pudesse fazer. - Não era o que ela queria ouvir e não era o que ele queria dizer. Mas com a presença de Doyle Pettit, ele ficava limitado pelas convenções. Assim, estimulou o homem a ir embora. - Se você já estava indo, não se prenda por mim, Doyle.
Doyle lançou um olhar para a jovem viúva, pensando que ela poderia querer que ficasse. Havia algo no ar que não conseguiu captar. A expressão dela não mudou. Continuava a não haver nada que indicasse ser desejada sua presença.
- Tenho alguns negócios na cidade - ele mentiu. - Lembre-se do que lhe disse, Sra. Reisner. Se houver algo em que possa ajudar, por favor entre em contato comigo.
- Mais uma vez obrigada por vir - ela repetiu.
Webb pegou as rédeas do cavalo e segurou-as enquanto Doyle girava a manivela de seu automóvel e o ligava. Enquanto a atenção de Webb estava em outro lugar, Lilli aproveitou a oportunidade para analisá-lo. Os poucos anos não haviam operado diferenças na aparência física dele, exceto por acrescentar rugas às dobras próximas aos olhos e boca. O corpo musculoso era longo e másculo e os cabelos anelados pelo vento estavam quase negros e espessos.
As mudanças haviam sido mais sutis, do tipo que uma mulher que o amava perceberia. Antes, ele era um vaqueiro; único em muitos aspectos, mas ainda assim um vaqueiro. Agora, poder e autoridade descansavam, com naturalidade, sobre seus ombros largos. Lilli sentiu que muitas coisas estavam imersas dentro dele, há muito tempo controladas. Talvez tempo demais. Ele viera vê-la, mas por quê? Ficou pensando se Webb saberia. O orgulho lançou seu manto invisível em torno dela, impedindo que ele percebesse que somente o fato de vê-lo novamente a perturbava.
O automóvel partindo liberou uma nuvem de fumaça sufocante no quintal estéril. Lilli ergueu uma ponta do xale sobre o nariz e boca para evitar que a fumaça arenosa entrasse em sua boca e pulmões e fechou os olhos para protegê-los contra a poeira irritante. O vento colheu a fumaça e fê-la rodopiar antes que se depositasse no solo. O cavalo de Webb movimentou-se em torno dele, bufando nervosamente com o veículo barulhento.
Passou-se um segundo ou dois antes que Webb deixasse as rédeas caírem no chão e se aproximasse de novo, sacudindo a poeira do chapéu. Pousou o olhar nela, perscrutando, buscando algo: uma reação, um sinal, um sinal milenar entre homem e mulher, facilmente reconhecível e jamais definido. Ela estava de pé a poucos centímetros, diante da porta, observando-o sem demonstrar hostilidade, mas sem tampouco abrir-se para ele. Webb esperou que ela sugerisse que entrassem, saindo da poeira e do vento, mas ela permaneceu em silêncio. Havia uma espécie de barreira entre eles, e Webb não se decidia sobre o modo de penetrá-la, pois não compreendia a causa.
- Um de meus homens feriu-se no rodeio. Simon... o dr. Bardolph... veio cuidar dele, então eu soube esta tarde sobre Stefan. - Queria deixar claro que teria vindo mais cedo se soubesse. - Senti muito ao ouvir a notícia. - Não, maldição! Ele não sentira muito. Por que estava pronunciando palavras convencionais quando havia tantas outras coisas que desejava dizer? - Gostaria que você tivesse me avisado. - Foi a primeira coisa honesta que disse. - Não deve ter sido fácil para você.
- Eu me virei. - O queixo baixou por um instante, erguendo-se em seguida. A audácia existia, mas controlada.
Ele não estava agindo com habilidade, mas parecia ter tomado um caminho inalterável.
- Você vendeu a fazenda.
- É. - O olhar dela correu pelas construções ressequidas sob o vento interminável, algumas lembranças distantes surgindo em seu olhar. - Vendi tudo, os cavalos e o equipamento. Não havia motivo para manter tudo isso.
- Voltou a atenção para ele. - Mesmo se Stefan estivesse vivo, do jeito que o tempo está seco, acho que não íamos conseguir aguentar até o ano que vem.
- O que você estava pretendendo fazer? - Inconscientemente, Webb usou o passado, no entanto queria descobrir se ela o incluíra em seus planos para o futuro.
Ela vacilou sob o olhar fixo de Webb, sustentando-o em seguida.
- Depois que todas as dívidas foram pagas, tenho dinheiro suficiente para comprar um pequeno restaurante em algum lugar.
- Você ia embora. - Endureceu o queixo. - Não ia nem mesmo me dizer adeus? - Webb desafiou rudemente.
O movimento da mão de Lilli afastando os cabelos que o vento lançara sobre seu rosto pareceu uma maneira de evitar o olhar dele.
- Os tempos mudam. As pessoas mudam. - Lilli ofereceu como resposta. - Não é razoável esperar que as pessoas tenham os mesmos sentimentos depois de passado tanto tempo.
A resposta surpreendeu-o, atingindo-o profundamente, enquanto percebia a mensagem de que ela mudara. Lilli se voltou com um movimento gracioso e sem pressa e deu alguns passos até a porta. Ali estacou, o corpo em ângulo com o dele, fitando-o por sobre os ombros.
- Foi gentileza sua ter vindo - disse ela.
A porta da choupana rangeu em suas dobradiças e oscilou, aberta. Ele se sentiu ferver com uma dureza que não desapareceria simplesmente, como ela acabara de dispensá-lo. Quando Lilli pisou dentro da choupana e virou-se para fechar a porta, Webb já estava no limiar, o braço contra a porta para impedi-la de fechar.
- Isso é tudo que você tem a dizer... foi gentileza minha ter vindo?
- Ele forçava seu caminho de entrada e ela deu um passo atrás, os olhos agora mergulhados nele, observando e aguardando. - Por que acha que estou aqui?
- Não posso adivinhar. - Tinha muito medo de estar errada. Havia muitos motivos que poderiam tê-lo levado até ali.
- Então me explique o que significa esse "os tempos mudam" - exigiu Webb. - Diga claramente se não quer mais me ver. - Algo brilhou nos olhos dela, fazendo um pouco da dúvida desaparecer. Esperava que ele dissesse a razão que o levara ali, que declarasse suas intenções. Ele fechou a porta e pegou-a pelos ombros com um mesmo movimento. - Juro, Lilli, você tem um orgulho capaz de gelar um homem - murmurou pesadamente, buscando a boca da mulher com um beijo rápido e faminto, para que não houvesse mais dúvidas sobre o que ele queria.
A pressão dos lábios dela mexeram com ele como ninguém conseguiria. As mãos de Lilli descansavam levemente sobre seu peito, sem resistir, embora tampouco o convidasse a um abraço mais apertado. Webb estava intrigado com a maneira como ela o beijava e continha, ao mesmo tempo, sem se deixar levar pelo impulso dos sentimentos.
- O que é, Lilli? - Ergueu a cabeça e passou a mão pelo rosto dela, traçando a linha de seus lábios quentes com o polegar. Os supercílios dela permaneceram parcialmente fechados.
- Eu não tinha certeza do motivo que o trouxera aqui. - Ela ainda não estava certa. Podia perceber isso na voz dela.
Moveu a mão ao longo das costas dela, sentindo a ondulação e a tensão dos ossos da coluna.
- Estou aqui porque quero você. Ainda amo você. Se houve alguma mudança, foi porque os sentimentos cresceram mais. - O sorriso curvo estava um tanto contraído. - Eu estava começando a pensar se com você acontecia o mesmo. Você sente o mesmo?
Ela afastou a cabeça para olhá-lo e ver o que havia em seus olhos. Havia uma expectativa calma na expressão do rosto dela, à espera de algo mais que ele não dissera.
- Sinto - ela admitiu sem qualquer hesitação. Não estava satisfeita com o que via no rosto dele e afastou-se lentamente dos braços de Webb, que franziu o cenho quando ela se distanciou. - Para onde vamos daqui? - perguntou ela.
O orgulho de seu porte e a contenção de sua voz começaram a impressioná-lo. Lentamente, Webb passou a compreender a causa da reticência orgulhosa. Ela não sabia que papel ele lhe pedia para representar, se de amante, caso ou esposa. Estava preocupada com a possibilidade dele pensar mal dela porque dormira com ele e revelara seus sentimentos enquanto estivera casada com outro homem. Ela não queria ser considerada merecedora de menos respeito.
Webb veio por trás dela e colocou as mãos sobre seus ombros, acariciando-os e sentindo o tremor do desejo que a percorria. Ela inclinou-se um pouco para trás, rendendo-se ao toque.
- Gostaria de levá-la direto para minha cama. - O odor nítido dos cabelos escuros o excitavam. - Mas acho melhor irmos até o padre primeiro.
Ela se voltou, varrendo o rosto dele com o olhar para ter certeza de que falava sério. O corpo perdeu a rigidez quando ele a tomou nos braços. A fome profunda no beijo que ela lhe deu percorreu-o como fogo sacudindo-o. Ela possuía um poder sobre ele que o elevava a alturas, deixando-o captar a glória que um homem e uma mulher podiam conhecer.
Quando se separaram, nenhum dos dois estava satisfeito, mas a questão é que somente os beijos não poderiam satisfazer-lhes as necessidades, passando por um momento de confiança antes que outro passo fosse dado. Ela retirou os lábios carnudos dos beijos possessivos dele e da barba rala que avermelhava-lhe a pele. Â luz nos olhos azuis de Lilli dirigia-se especialmente para ele. Ela correu o dedo sobre o lábio superior do homem.
- Você está suando - murmurou ela, tomando-lhe a mão e pousando-a sobre seu peito. - Está sentindo meu coração bater?
- Estou. - O dele disparara como uma locomotiva, a respiração igualmente acelerada. Ele deslizou a mão, cobrindo-lhe o seio, tão rijo e pleno contra sua palma. - Lilli. - Mil noites de desejo descortinaram-se no sussurro do nome dela.
Ela se aproximou, descansando a cabeça nos ombros dele e passando os braços possessivos em torno de Webb. Ela sentia um contentamento excitado, satisfeita com ele e consigo mesma. Estudou a pulsação na garganta e o pescoço bronzeado.
- Por que não veio me ver durante todo esse tempo? - ela perguntou.
Surpresa e perplexidade toldaram-lhe o rosto enquanto ele baixava a cabeça, tentando enxergar a face de Lilli.
- Você deixou claro que era uma mulher casada e não queria me ver de novo - relembrou.
- Eu sei - murmurou Lilli.
- Eu devia deixar isso de lado?
- Às vezes eu esperava que sim, embora ficasse aliviada que você não o fizesse. - Ela estava consciente da contradição da resposta e sorriu, pois isto não a tornava menos verdadeira.
- Esse é um exemplo do pensamento feminino? - Webb zombou carinhosamente. - Você me pede para me afastar, mas quer que eu venha. Você me diz para esquecê-la e encontrar outra pessoa e espera que eu não o faça.
Ela lançou a cabeça para trás e fitou-o, sorrindo, alegre e confiante.
- É, é exatamente o que eu queria.
- Esse tipo de lógica não é fácil de ser compreendida. - Ele a beijou nos lábios, sentindo-os unirem-se aos seus.
Os dedos dela exploravam a linha firme da boca de Webb, traçando a ruga que corria junto aos lábios.
- Só estou viúva há três semanas. As pessoas vão falar se casarmos tão cedo.
Aquilo o irritou.
- Pouco me importa se as conveniências ditam um período de um ano de luto. Você cumpriu todas as obrigações que considerava dever a Stefan. Você vai ser minha esposa, Sra. Webb Calder, e ninguém vai ousar dizer algo contra. Pois deixe-os falar. Nada do que puderem dizer ou fazer conseguirá nos atingir - insistiu rudemente.
Ela ouviu as palavras, pesando-as contra seus próprios sentimentos. Parte dela teria preferido não apressar o casamento, para que não se tornasse uma solução de conveniência que decidisse para onde ela iria, e para que fossem namorados antes de se adaptarem à rotina de marido e mulher.
A hesitação de Lilli era evidente, e Webb percebeu a intenção de adiar a ida ao padre como uma forma de obter outra coisa. Não foi difícil compreender, dada a dureza de sua vida pregressa e a insipidez de seu casamento prático com Stefan.
- Você gostaria que eu a cortejasse e seguisse todas as sutilezas do galanteio, não é? - adivinhou, observando a surpresa dela diante de sua perspicácia. - Quer que eu ganhe seu amor de novo.
- Isso é muito errado? - Havia algo meio provocador, meio sério no olhar dela.
- Não é errado. - Ele a tranquilizou com um sorriso leve. - É impossível. Uma semana. É tudo que você vai ter antes do casamento, e vou levá-la para a minha casa hoje. Não pretendo deixá-la mudar de ideia.
- Você gosta de ser autoritário, não é? - Lilli zombou, mostrandolhe mais uma vez o lado atrevido de sua personalidade, apressando-se onde ingénuos iam com calma. - Você gosta da ideia de me dizer o que fazer. bom, acontece, Sr. Webb Calder, que isso é exatamente o que quero.
Era tudo que precisava ser dito. O beijo longo e entorpecedor afirmou todo o resto. Os contornos do corpo de Webb endureceram-se contra a carne tensa de Lilli, acendendo um desejo que permanecera adormecido durante muito tempo. Ela não precisava mais conter suas emoções; elas não murchavam dentro dela mas, ao contrário, brotavam e floresciam de maneira natural e infinita. Ela estremeceu com as pequenas mordidas em sua orelha e na veia que pulsava em seu pescoço. Com esforço, ele ergueu a cabeça e passou os dedos pelos cabelos.
- Quero que arrume suas coisas. - Teria sido mais fácil continuar o beijo até a conclusão que ambos desejavam. Mas quando finalmente ela estivesse em seus braços, Webb queria que fosse sob seu teto - não ali, onde ela vivera com Stefan. - Só leve roupas e objetos pessoais que quiser manter. O resto pode vender ou dar. Volto daqui a pouco para pegar você.
Ela passou as mãos em torno do pescoço dele, trazendo-lhe a cabeça para um último beijo.
- vou estar esperando.
A dimensão era surpreendente, diferente de tudo que Lilli já vira antes. Dois andares, com uma grande varanda percorrendo toda a extensão da frente, a casa ficava numa elevação, dando para prédios menores e mais simples. Os raios oblíquos do sol de fim de tarde banhavam a mansão com uma luz laranja suave que coloria as vidraças com um brilho de boas-vindas. Rolos cinzentos de fumaça saíam de duas chaminés de pedra sobre o teto, inclinado para que a neve caísse, e ondulavam contra um céu açafrão.
Webb estava de pé junto à porta aberta, ajudando-a a sair do carro. Por fim, ela afastou os olhos da casa e olhou para ele, ligeira descrença ainda em seu olhar.
- É sua casa? - deixou-o tomá-la pela mão enquanto descia do carro e pisava no chão.
- Não. É nossa casa - ele corrigiu, segurando-a pela mão e guiando-a pelos degraus da frente que levavam às portas dianteiras. - A casa é normalmente chamada Casa-Grande.
- Casa-grande. - Ela emitiu uma risada curta com o nome modesto, achando-o inadequado para lugar tão grandioso.
Webb estacou, voltando-a para que visse as pastagens infinitas da terra dos Calder.
- Este é o local onde meu pai começou a fazenda. Quando ele expandiu suas propriedades, todos começaram a chamar essa parte da terra de Casa-Grande, para diferenciá-la das novas propriedades. Gradativamente, o nome passou a significar essa casa.
Ao invés de olhar para a terra, Lilli o fitava, percebendo o orgulho da posse na voz e nos olhos de Webb - e o traço de humildade. De alguma maneira, a condição de riqueza e poder não significara muito até que ela viu o lugar, que havia exigido estudo cuidadoso da parte dela. Mas o homem que acreditara conhecer era a pessoa de pé a seu lado. A vigilância desaparecera dos olhos dela quando ele a olhou.
- Vamos entrar; vou lhe mostrar seu novo lar - declarou Webb. Lilli estava ansiosa para ver como era a casa por dentro. Ele a levou a uma visita completa dos aposentos do primeiro andar, começando na sala de estar e terminando no escritório-biblioteca.
- Esses livros todos são seus? - Lilli foi até as estantes, correndo os dedos de leve sobre os muitos volumes. Livros eram um luxo e nunca conhecera alguém que possuísse tantos.
- vou ler todos eles - declarou ela, excitada como uma criança. Webb estava descobrindo que, ao mesmo tempo em que se deslumbrava com as coisas, ela não se intimidava. Assim que se acostumasse com o tamanho da casa, ela a transformaria num lar para ambos, preenchendo-o com o calor e os risos, como quando seus pais eram vivos.
- O que é isso? - Ela estava atrás da escrivaninha, olhando para o mapa.
- A fazenda. - Ele fez a volta na mesa para apontar os limites da propriedade para que Lilli se orientasse e tivesse uma ideia da localização em relação aos lugares que ela conhecia. Quando ele terminou, Lilli continuou a olhar o mapa desenhado sobre a lona amarelada. - Em que está pensando? - A expressão do rosto dela era impenetrável.
- Vinte e dois hectares não dariam um dedo nesse mapa - murmurou. Era a quantidade de terra de que ela e Stefan haviam cuidado.
- A fazenda é grande - admitiu Web.
- É indecente - ela retorquiu, mas a risada curta retirou qualquer mordacidade da resposta. - E seu pai obteve tudo isso. - Lilli voltou o olhar para Webb, analisando-o e tentando imaginar como seria o pai. Gostaria de tê-lo conhecido.
- Era um homem notável. Levei algum tempo para me dar conta de que só havia um Benteen Calder. - E que seu caminho seria diferente do do pai, uma continuação, mas sobre novos fundamentos.
- A maioria das pessoas não gosta dos pais até ser tarde demais. Eu era assim. - Havia compreensão nos olhos azuis de Lilli.
Ele se inclinou sobre ela, que lhe ofereceu os lábios, envolvendo-lhe a cintura para aproximar seus corpos. O beijo exigente abriu os lábios de Lilli, expressando um desejo mais do que simplesmente físico, descoberta que ela só fez depois. Todo soberano precisava de um parceiro que o visse simplesmente como homem. Ele precisava dela. Os dedos de Lilli estenderam-se sobre os músculos delgados das costas, a forma feminina adaptando-se naturalmente ao corpo masculino. O cheiro de Webb a preencheu como Lilli sabia que preencheria durante muitas noites, quente e almiscarado, mesclado ao odor estranho do queixo barbeado. As mãos dele brincavam em suas costas e quadris, acariciando-os e moldando-os com seu toque possessivo. Ela se perdeu no abraço, bloqueando tudo exceto a glória inexperiente que começava a descobrir.
Quando Ruth percebeu o modelo T estacionado em frente à casa-grande, foi até a casa. A água fria lavara os olhos vermelhos de lágrimas, embora sombras de sofrimento continuassem em seu rosto pálido. Adivinhara que Webb fora ver Lilli e queria saber o resultado da visita. A espera dolorosa fora intolerável.
com a quietude habitual, entrou na casa e foi diretamente ao escritório, único lugar que Webb usava com frequência. O casaco estava desabotoado, mas as mãos estavam enfiadas nos bolsos, onde podiam crispar-se em punhos tensos. As toras de lenha queimando crepitavam na lareira, ela percebeu assim que entrou no escritório.
Ruth deu três passos para dentro do compartimento antes de ver o casal atrás da mesa em um abraço quase sexual. O choque retirou o colorido de seu rosto, dissolvendo toda esperança. Ela girou sobre si mesma cegamente, querendo escapar antes que eles a percebessem, dirigindo-se às cegas para uma das portas duplas, batendo-a com estrondo.
- Ruth! - A voz surpresa de Webb soou áspera e descompassada. Estava de costas para eles e não se voltou. A dor interna era maior do que as lágrimas seriam capazes de lavar, e seus olhos queimavam, secos.
- Desculpe. Não queria incomodar. - Foi a desculpa rápida, oferecida enquanto ela dava um passo para sair do escritório.
- Não vá, Ruth. - Ele a chamou de volta, a voz quase normal. Ela estacou relutante, ouvindo os dois pares de passos saindo de trás da escrivaninha. Voltou o corpo rígido, ficando de frente para o casal. O orgulho e a delicadeza, o amor fluindo através dos traços rudes de Webb quase despedaçaram Ruth. - Quero que você seja a primeira a saber que eu e Lilli vamos nos casar.
Ruth sentiu vontade de gritar que não queria ser a primeira a saber, mas simplesmente não era do temperamento dela ficar zangada com ele. O calor da emoção represada deixou-lhe as faces vermelhas.
- Meus parabéns. - Ruth forçou-se a cumprimentá-los, sabendo que precisava dizer algo mais. - Sei que é isso que desejam há muito tempo.
- Esperava sinceramente que ele fosse feliz, mas sentia-se magoada por não ser a eleita.
- Você se lembra de Ruth Stanton, não é, Lilli? - Ele envolvia a mulher de cabelo castanho-avermelhado pela cintura, mantendo-a junto a si em discreto contato corporal. - Ruth sempre foi como alguém da família.
- Lembro dela, sim. - Lilli assentiu, os lábios curvados para cima em um sorriso acolhedor e escusatório. - Espero que nosso comportamento de há pouco não a tenha embaraçado.
- Não. Acho que eu devia ter batido - Ruth murmurou uma resposta constrangida, incapaz de suportar tal franqueza.
- Ninguém bate à porta na Casa-Grande. - Webb olhou para Lilli com intimidade. - Simplesmente vamos ter que aprender a ser mais circunspectos.
- Gostaria que fôssemos amigas - declarou Lilli, com uma naturalidade que Ruth encontrou dificuldades em não apreciar. - Posso chamá-la de Ruth?
- Claro - concordou ela. Mas precisava de tempo até poder lidar com esse relacionamento.
- Você veio falar comigo sobre algo? - Webb percebeu que não havia perguntado o motivo da ida de Ruth à casa.
Ela usou a desculpa que aprontara:
- Só vim avisar que Abe Garvey está bem.
- Fico contente por ouvir isso. vou vê-lo mais tarde - disse ele.
- Se me dão licença, estou certa de que preferem ficar sozinhos. A voz de Ruth quase falhou. Nenhum dos dois levantou objeções, pronunciando as frases habituais de despedida e ela deixou a sala.
Um curto silêncio seguiu-se e a porta da frente foi fechada. A mão de Webb alisou distraída a curva da cintura de Lilli enquanto fitava pensativo as portas abertas do escritório. Lilli não sabia o que ele estava pensando.
- Algo errado? - indagou.
Ele correu os olhos para ela, fitando o rosto com carinho, uma sensação de carícia em seu olhar.
- Não. A única maneira de as coisas estarem melhores seria se você já fosse minha esposa. - Apertou os braços em torno dela, relaxando-os em seguida para deixá-la sair. - vou trazer suas coisas para dentro e vou lhe mostrar onde vai dormir.
O quarto principal era maior do que a choupana de um só compartimento. Uma cama larga com a cabeceira desenhada estava coberta com uma colcha de pena de ganso. Ao lado postavam-se uma cómoda e um baú com gavetas, um par de cadeiras e um pequeno sofá de veludo rosa agrupados, formando uma saleta em torno da lareira. Enquanto Webb colocava a maleta gasta no chão, Lilli foi forçada a recordar a pobreza da bolsa comparada ao novo ambiente.
- Enquanto você se arruma, vou ver como está Abe Garvey - declarou Webb. - Aquela porta dá para o banheiro particular. Liguei o aquecedor antes, portanto tem água quente se você quiser tomar banho antes do jantar. - Percebeu o modo como ela fitava o quarto, analisando tudo.
- Gosta do quarto?
- Quem não gostaria? - Lilli contrapôs com um sorriso.
Ele deixou o olhar pousado naquele sorriso por mais um instante, mas evitou beijá-la.
- Volto já - prometeu vigorosamente e caminhou até a porta. Sozinha no quarto, tudo aquilo pareceu irreal durante um momento.
Ela se sentiu tranquilizada com o som dos passos de Webb descendo as escadas, e o quarto espaçoso exigiu novamente sua atenção. Moveu-se por ele, explorando-o, abrindo gavetas que engoliriam seu magro guarda-roupa, testando a maciez do colchão e sentando-se nas cadeiras. Deteve-se na janela que dava para o Sul, assim como a frente da casa, e observou Webb caminhando em direção a um dos prédios. Quando ele desapareceu dentro da construção, ela soltou a cortina e voltou-se para o quarto.
Lilli atravessou o quarto em direção à porta interna que Webb lhe apontara, virou a maçaneta de bronze e empurrou. Arregalou os olhos de espanto. Havia uma pia de porcelana com torneiras de bronze para água corrente, quente e fria, e uma toalete de porcelana completa com uma corrente fazendo a conexão com uma caixa d'água no alto. Lilli testou ambos, rindo deliciada. Após tantos anos carregando água, aquecendo-a no fogão, e esvaziando urinóis, aquilo era o máximo do luxo.
Correu os dedos ao longo da extremidade delicada da grande banheira branca de ferro fundido sustentada por apoios em forma de garras e lembrou a pequena banheira onde se banhava quando havia água suficiente para gastar. Era tão apertada, os joelhos batiam no peito, mas ali ela podia se esticar quase completamente.
Seu olhar foi atraído pelos frascos com tampa de mármore junto à pia. Abriu um e mergulhou o dedo na loção cremosa, esfregando o creme nas mãos, sentindo a textura delicada que a mistura conferia à sua pele. A curiosidade acentuada, ela destampou um recipiente de cristal contendo sais fragrantes. Um único espargir e Lilli voltou-se para a banheira, uma luminosidade inteiramente feminina brilhando em seus olhos.
Minutos depois, a tampa de borracha estava no ralo e as torneiras abertas para encher a banheira de porcelana com água que brotava junto com os sais fragrantes. E Lilli tirou as roupas para o primeiro banho luxuoso de sua vida. Uma toalha estava pendurada em um anel de bronze na parede e havia uma grande esponja na pia e um sabonete perfumado. Lilli adivinhou terem sido esses artigos de toucador da última Sra. Calder, mãe de Webb. Eram uma tentação a que ela não conseguiu resistir. Além do mais, evidentemente eles estavam ali para serem usados por quem ocupasse o quarto ao lado.
Quando mergulhou o corpo nu nas bolhas perfumadas e sentiu o calor relaxante da água em sua pele, Lilli duvidou de que outra coisa pudesse ser tão venturosa. Estendendo-se na banheira, apoiou os dedos dos pés em uma extremidade e descansou a cabeça na outra extremidade curva de porcelana. Fechou os olhos para usufruir a sensação, ficando imersa durante longo tempo, até que a água se tornou tépida.
Desinibida, Lilli brincou com as bolhas, colocando algumas sobre a mão em concha e soprando-as, sorrindo consigo mesma. com o dedo do pé, recebeu a água que saía da torneira de água quente, brincando de esconder os dedos na espuma perfumada. Por fim, estendeu a mão para a esponja e ensaboou-a, lavando-se enquanto murmurava uma suave melodia de contentamento, borrifando um pouco d'água.
Quando voltou, Webb não encontrou Lilli no primeiro andar, subindo os degraus para descobrir o que a retardara. A porta da suíte estava aberta. Entrou e viu a maleta no chão onde ele a deixara, mas Lilli não estava à vista.
- Lilli? - Já ia elevar a voz para chamá-la uma segunda vez quando ouviu o som de água corrente vindo do banheiro. Uma pressão interna dirigiu-lhe os passos para a porta adjacente, incitado por uma força maior do que seu senso de conduta adequada.
A maçaneta da porta girou silenciosamente. Lilli não se deu conta da presença dele até que a porta abrindo chamou-lhe a atenção. Ela se voltou, os lábios separados em um pequeno gritO. Uma fração de segundo depois, reconheceu Webb e o susto foi menor. Uma vaga timidez tomou o lugar da surpresa, pois o ato de banhar-se sempre fora uma atividade estritamente particular em sua vida. A camada de bolhas ocultou a nudez de Lilli do olhar dele. Por algum motivo, encontrou dificuldade em reunir forças para um protesto genuíno diante da invasão de sua privacidade.
- Você sempre entra assim quando uma senhora está tomando banho? - desafiou ela.
- Como não estava lá embaixo, subi para descobrir você. - A voz dele soou rouca, lançando sua mensagem perturbadora.
- Agora que você me encontrou, pode sair - ordenou Lilli, ainda em tom brincalhão, tentando tornar a situação leve, embora sua pulsação começasse a acelerar. O castanho escuro dos olhos dele escureceu até que ficassem quase negros com a intensidade do olhar. Quando ele deu um passo em direção a ela, Lilli fez algo que sabia iria provocá-lo. Foi totalmente instintivo. - Webb Calder, você pode fazer o favor de sair daqui? - perguntou atirando a esponja molhada em Webb, espargindo gotas nele e no chão e lançando uma risada ofegante enquanto ele se esquivava para evitar a esponja.
- Ora, saia desse banho - ele resmungou uma ameaça zombeteira.
Durante alguns segundos, ficaram brincando, Lilli afundando na banheira e jogando água em Webb para espantá-lo. No momento em que as mãos dele tocaram os punhos molhados dela, a risada desapareceu do rosto de ambos. Por um momento, fitaram-se intensamente. Por fim, a pressão constante da mão dele incitou-a a sair da água. Ela se pôs de pé com lentidão, estranhamente desembaraçada com a própria nudez.
Ele não poderia supor que nenhum homem a vira antes, não com a luz acesa, nem mesmo Stefan. Eles sempre se haviam despido no escuro, de costas um para o outro. Quando Stefan desejava satisfazer-se nela, não tiravam as roupas de dormir, apenas as afastavam. Ela jamais questionara o costume ou mesmo pensara se outros se comportavam da mesma maneira.
Quando Webb afrouxou a pressão sobre os pulsos dela para envolver-lhe a cintura escorregadia, ela o tomou pelos ombros, segurando-se enquanto ele a tirava de dentro d'água. Os pés molhados tocaram o chão a poucos centímetros das botas, o corpo de Lilli pingando contra as roupas dele. Um silêncio impetuoso envolveu-os, os olhos dele captando cada detalhe íntimo dela. Lilli tremia ligeiramente, agitada com o calor selvagem fluindo em suas veias.
Webb estendeu a mão para a toalha grossa em torno do anel na parede e começou a secar a umidade e as bolhas na pele de Lilli. Começou pelo alto, pescoço e ombros, trabalhando lentamente, abrindo caminho até os seios e estômago, agachando-se em seguida para secar-lhe os quadris, coxas e pernas, terminando nos pés. Ela sentiu uma fraqueza louca nos membros quando ele se pôs de pé. A respiração não estava mais profunda, mas superficial, quando Webb envolveu-lhe os ombros com a toalha.
Sem esforço, ele a ergueu nos braços. Automaticamente, ela uniu as mãos por trás do pescoço de Webb. O rosto próximo ao dela, Lilli analisoulhe os traços fisionómicos, tão fortes, bronzeados e profundamente belos. Havia uma integridade em tudo, que não conseguia explicar, enquanto ele a carregava até o quarto.
No meio do quarto, Webb deteve-se e deixou-a pousar os pés no chão. Ela ficou de pé junto ao círculo dos braços dele. A toalha deslizou, mas um movimento instintivo das mãos dela susteve a toalha, cobrindo-a parcialmente na frente, não por algum senso de modéstia, mas simplesmente porque a proteção estava lá. Ela correu o olhar para as manchas na camisa dele, além de outras nas calças.
- Suas roupas estão molhadas - ela disse, a voz rouca.
com calma deliberação, ele desabotoou a camisa e tirou-a. Ela sentiu o estômago contrair-se enquanto fitava os músculos delgados do peito dele e os pêlos negros ali aninhados. A sensação aumentou quando ele tirou as calças. A cueca branca comprida sob as calças desenhava a parte inferior do corpo dele como uma segunda pele. As botas e meias desapareceram segundos depois.
- Você não precisa disso. - Ele correu o olhar para a toalha e ela baixou a mão, deixando-a cair no chão junto com as roupas. - Lilli - gemeu o nome dela e a ergueu no ar, pressionando a boca contra o seio redondo.
Desejos rudes e envolventes fizeram-na estremecer enquanto ele a levava, abrindo caminho com a boca até seus lábios. Quando chegaram à cama, ela estava sendo consumida por um beijo estonteante. Ele a pousou sobre a colcha, seguindo-a e deitando-se parcialmente sobre ela. Lilli compreendeu a rigidez que se delineou contra suas coxas, mas a ausência de qualquer exigência de satisfação da parte dele era algo novo para Lilli.
A boca de Webb rolava sobre os lábios dela, a língua penetrando em toques enlouquecedores, até que ela se tornou o agressor e entrelaçou a língua na dele. As mãos percorriam a carne nua da moça, acariciando as elevações dos seios, deslizando sobre barriga e quadris, aquecendo a pele onde a tocava.
Ela já mergulhava em ondas de sensação quando ele começou uma exploração mais íntima. Beijou-a no rosto, cabelos, pescoço, descendo para o vale entre os seios. Ela mordia os lábios enquanto ele esfregava a boca no mamilo excitado. Crispou os dedos nos cabelos dele e lançou um gemido de prazer quando Webb tomou o mamilo entre os lábios.
Depois ele virou e ficou de costas, puxando-a junto e fazendo-a deitar sobre ele. Ela o fitava com os olhos semicerrados, confusa, até que buscou-lhe os lábios. Beijou-o, ansiosa pela excitação que o contato produzia. Alguma região distante de sua mente sabia que ele estava tirando as cuecas. É agora, ela pensou. Mas não foi.
Ele mudou ambos de posição novamente, colocando-se de lado, para olharem-se mutuamente, os corpos se tocando. Não havia mais barreiras entre eles. Parecia impossível aproximar-se o suficiente dele. Os seios de Lilli pressionavam a parede de músculos delgados do peito de Webb enquanto ela acariciava as costas dele, apertando-o mais contra si. Ele não exigiu penetrá-la, apesar dos quadris arqueados de Lilli.
O desejo era tão intenso que Lilli sentiu que não ia aguentar mais. Como se percebendo isso, Webb a pressionou com seu peso, deslizando as pernas por entre as dela. Ela provou o suor da pele máscula e arqueou os quadris para encontrar os dele. Ele penetrou o vazio latejante. Sob o poder crescente dos quadris dele, ela se movia, dando e exigindo, tomando e recebendo. Nenhuma experiência anterior preparara ambos para a paixão selvagem daquela união, junção de almas e de corpos.
Contentamento docemente voluptuoso inundou cada parte do corpo de Lilli, aninhada nos braços dele. Ela suspirou, sorrindo suavemente com a descoberta extraordinária e inacreditável que fizera-, apertando-o mais em seus braços, o calor do corpo rijo de Webb transformando-se no cobertor mais confortável que ela jamais conhecera. Ele passou os lábios pelos cabelos dela.
- Você está tão contente quanto eu? - murmurou ela, tão repleta de prazer que liberara toda a energia.
- Estou - disse ele, embora parecesse uma palavra sem graça para descrever a satisfação inenarrável.
- Eu me sinto como seda por dentro. - Lilli suspirou profundamente. Era um sentimento tão especial que não conseguia exprimi-lo com simples palavras.
A semana de galanteio que Webb prometera tomara um rumo muito mais íntimo do que pretendera. De qualquer maneira, duvidava que conseguisse ficar longe da cama dela, mas sentia dever a ela uma escolha, agora que a possuíra antes do casamento.
- Quer adiar a data do casamento? Porque não vou deixar esse quarto hoje à noite - avisou-a.
Ela virou de lado para olhá-lo. Malícia dançava em seus olhos, surpreendendo-o.
- Nem mesmo para comer? - perguntou ela com descrença zombeteira, imperturbável com a antecipação da noite de núpcias e mudando de assunto para exibir sua calma audaciosamente a ele. - Um homem grande como você?
- Você percebeu. - A diversão que surgiu nos olhos dele modificou o sentido da observação.
Ela ficou ligeiramente ruborizada ao perceber o sentido mais íntimo da interpretação, mas pareceu mais satisfeita do que embaraçada.
- Percebi - replicou. - Por isso pensei que você precisava comer para manter a força.
- Essa noite eu ficaria satisfeito comendo você. - Envolveu um seio com a mão em concha e inclinou-se para beijar o mamilo
adormecido. Existem outras formas de fazer amor, e não somente uma.
- É verdade? - A curiosidade brilhou nos olhos dela, contradizendo a resposta casual. - Mesmo assim, é melhor comermos algo. - Deslizou dos braços dele e pisou no chão.
Começou a atravessar o quarto quando entreviu seu reflexo de corpo inteiro no espelho. Foi até ele e postou-se diante da própria imagem, fitando o corpo nu com novos olhos, fazendo uma avaliação crítica. Relativamente alta e esbelta, ela era bem-formada, descobriu, possuindo seios rijos e redondos, cintura fina e quadris arredondados. As pernas eram compridas e os músculos delgados: não eram finas.
Da cama Webb usufruía a visão integral da mulher.
- O que está olhando? - perguntou, curioso.
- Uma mulher. - Ela voltou-se para fitá-lo, um fulgor em sua expressão que o fez perder o ar. Webb pensou que se satisfizera, mas a pressão estava voltando. Havia malícia na maneira como ela se postava diante dele sem tentar cobrir-se; no entanto, não era uma postura impudente para acender-lhe a luxúria. Era muito mais natural do que isso. - Acho que acabei de descobrir como é ser uma mulher - declarou Lilli.
- Venha cá - disse ele, e ela se aproximou da cama, deixando-o pegar-lhe a mão e puxá-la para a cama a seu lado. Imediatamente ela se insinuou contra ele.
- Você acha que um dia vamos ter o suficiente um do outro? - ela murmurou.
- Vai demorar uma vida inteira para isso acontecer, se acontecer. Ela se sentiu tomada pelo arrependimento.
- Há tanta coisa que já poderíamos ter compartilhado...
- Não olhe para trás. Vamos esquecer o que ficou para trás e vamos olhar somente para frente.
- Está bem. - Ela acariciou-o, tocando levemente a depressão deixada pela bala, deixando-o pensar ser possível o que sugerira.
Terminando de lavar os pratos do jantar, Ruth Stanton estendeu o oleado sobre a mesa e limpou os restos de comida. Ouviu uma batida na porta da frente, de portal de madeira, da casa onde morava com o pai. Companhia era a última coisa que desejava essa noite.
- Pai - chamou-o na sala da frente. - Tem alguém batendo na porta. Você pode atender? - Foi até o armário, fazendo barulho para que parecesse estar ocupada.
Quando a segunda batida ficou sem resposta, Ruth foi até a porta da cozinha e viu o pai dormindo ruidosamente em sua espreguiçadeira. Ele não escutava muito bem. Impaciente, aproximou-se dele e o sacudiu pelo ombro. Ele se mexeu, olhando em torno, confuso.
- Tem alguém batendo na porta, pai - repetiu Ruth.
- O quê? Ah! - ele piscou, saindo da névoa sonolenta. - É melhor você atender, Ruth.
Frustrada ela foi até a porta e tentou compor uma aparência calma em seus traços descompostos, abrindo. Virg Haskell estava de pé no alpendre, rodando o chapéu na mão. Ela sentiu uma sensação de fraqueza. Pensara, esperara, que fosse um dos amigos do pai vindo conversar sobre os velhos tempos ou jogar xadrez, alguém com que não precisasse falar. Essa noite, mais do que todas as outras, ela não queria Virg Haskell forçando suas atenções sobre ela.
- Posso entrar? - Ele mostrava um sorriso aberto, esperando ser bem recebido como sempre.
Não havia motivo para recusar a entrada dele na casa, mas Ruth não respondeu com entusiasmo, abrindo um pouco mais a porta.
- Claro.
- Olá, Virg. - O pai fez menção de levantar da cadeira para cumprimentar o homem que considerava o pretendente da filha.
- Não se levante, Sr. Stanton. - O cowboy aproximou-se rapidamente para cumprimentar o homem mais velho.
- O que o traz aqui, se é que preciso perguntar? - indagou com uma piscadela para Ruth. A visão falha não percebeu a rigidez dos traços da filha.
- Está uma bela noite lá fora... lua cheia. Pensei que Ruth gostaria de dar um passeio. - O vaqueiro delgado e de cabelos castanhos voltou o olhar atento para ela, uma luz acendendo-se em seu olhar.
- Essa noite não posso. Tenho... tenho que corrigir provas - mentiu, mas o pai percebeu.
- Você fez isso antes do jantar - refrescou-lhe a memória.
- Bem, quer dizer... tenho que preparar os deveres para amanhã. Fez uma vã tentativa de encobrir a mentira.
- Não vai demorar muito esse passeio - o pai rebateu a desculpa.
- Vá passear com seu jovem e faça os deveres quando voltar.
Sem mais desculpas a dar, Ruth não conseguiu dizer que não desejava passear com Virg, o que significara ser obrigada a aceitar. Procurou ganhar tempo. - vou precisar de um agasalho.
Inconscientemente, demorou bastante tempo colocando o casaco, mas Virg Haskell estava esperando junto à porta quando ela voltou. O pai teceu alguma observação para que se divertissem quando saíram.
Havia uma vantagem na situação. Virg sempre falava muito, a maior parte do tempo sobre si mesmo; assim, Ruth raramente precisava dizer algo. Enquanto vagavam sob a luz da lua, ela deixou a voz dele atravessá-la sem se dar ao trabalho de ouvir as palavras. Correu o olhar até a Casa-Grande. Só havia uma luz acesa, no segundo andar. A visão fez com que ela estacasse, uma faca sendo mergulhada em seu coração.
De súbito, o rosto de Virg Haskell bloqueou a visão, os lábios na boca de Ruth, exercendo pressão. Por um segundo, ela fingiu que ele era outra pessoa e retribuiu o beijo, até que se tornou demasiado exigente.
- Ruth - gemeu ele rudemente, movendo as mãos ao longo das costas da moça e tentando diminuir a resistência, fazendo-a aproximar-se dele novamente. - Não sei quanto tempo mais vou suportar isso. Já pedi tantas vezes a você que se case comigo, O que preciso fazer para que diga sim?
Ela o olhou, percebendo repentinamente o grande vazio da vida que a esperava. Uma mulher solteira não era nada, algo próximo à morte. Não conseguia suportar a ideia de não ser desejada. Preferia casar-se com um homem que não amava, a ter que suportar isso. Era uma espécie de lei não escrita de sobrevivência: uma pessoa precisava se arranjar com o que tinha.
- Peça de novo, Virg - fez ela. - Já tenho uma resposta.
A luz do sol refletia no anel de ouro, intensificando-lhe o fulgor. Lilli virou a mão experimentalmente e observou a modificação do brilho sobre o anel, matutando se todas as mulheres recém-casadas ficavam fascinadas com coisas tão simples. A despeito do dia frio de novembro, ela se recusara a usar luvas para aquecer as mãos, pois elas ocultariam a aliança que portava com tanto orgulho.
Os lábios uniam-se suavemente, curvando-se para cima numa espécie de sorriso secreto, enquanto ela supostamente supervisionava o carregamento de suas coisas na carruagem. O casaco de gola alta que vestia era novo, de lã verde adornada com motivos em preto. O verde escuro realçava o azul dos olhos dela e o brilho avermelhado de seus cabelos.
- Mais alguma coisa, Sra. Calder?
O traço de um sorriso acentuou-se com o uso de seu nome de casada.
- Isso é tudo, Sr. Ellis. Obrigada. - Ela percebeu o modo como o proprietário do armazém geral olhava sua boca e ficou pensando se ele tentava adivinhar a fonte da satisfação secreta que se escondia por trás dela. Os homens faziam coisas assim, ao menos fora o que Webb lhe dissera.
- Volte sempre - declarou ele, entrando na loja.
Lilli deteve-se por um momento na calçada e aspirou o ar fresco e revigorante. com o estado de espírito atual, nem mesmo a poeira conseguiria ofuscar o brilho de seu mundo. Webb ia encontrá-la no restaurante dali a vinte minutos. Ainda era cedo, mas Lilli tomou aquela direção, pensando que Webb gostaria dos tecidos que ela comprara.
- Não pensei que você tivesse coragem de mostrar a cara na cidade.
- Â voz fria e descontente atingiu-a.
Ela hesitou um passo, em seguida estacou para enfrentar Franz Kreuger aproximando-se.
- Olá, Sr. Kreuger. - Manteve a cabeça erguida. - Soube que o senhor ganhou um filho. Meus parabéns. - O Dr. Simon Bardolph contara a novidade quando fora à fazenda ver os progressos de Abe Garvey. Helga está bem, espero.
- Uma assanhada despudorada como você não tem o direito de pronunciar o nome dela. - A boca curvou-se, desdenhosa. - Stefan ainda nem esfriou no túmulo e você já foi para a cama de outro homem. Você não respeita os mortos.
Não havia motivo para tolerar essas palavras grosseiras. Lilli fez menção de passar por ele, mas Kreuger ficou em seu caminho. Ela estava empertigada de raiva e determinada a não dar a ele a satisfação de pensar que algo do que dissera a impressionara.
- Stefan era um homem bom e fiel. Ele merecia mais do que uma vagabunda como você - escarneceu. - Foi você quem matou ele.
- O senhor está mal informado, Sr. Kreuger - Lilli replicou friamente. - Foi febre tifóide.
Ele a olhou com nojo.
- Por sua causa, ele tinha vergonha de erguer a cabeça entre os amigos. Agora você vem à cidade com suas roupas finas e seus ares de senhora, mas nenhuma mulher decente vai falar com você.
Consciente de que a voz dele estava aumentando deliberadamente para atrair a atenção de seus companheiros colonos e humilhá-la publicamente, Lilli fez um esforço determinado para terminar aquele encontro.
- Suas opiniões são muito interessantes, Sr. Kreuger, mas o senhor vai ter que me dar licença. Meu marido está me esperando. - Tentou desviar-se dele, que não a deixou passar.
- Você acha que porque casou com um Calder se tornou importante - acusou ele.
- Não acho nada disso - ela negou, a voz vibrando de irritação. Por favor, saia do caminho.
- Ah, sim, você vai se encontrar com seu marido em algum lugar.
- Os olhos lançaram um brilho mau. - As calçadas são para pessoas decentes, tementes a Deus. Vá pela rua! Pelo esgoto de onde você saiu.
A voz dele vibrava no ar parado. Um ódio surdo sacudiu-a, fazendo com que cada nervo de seu corpo gritasse de tensão. Queria bater nele, enfiando cada palavra vil garganta abaixo, mas sabia que isso só o agradaria.
- Talvez eu encontre menos macacos histéricos na rua do que na calçada. - A fúria que sentia concentrara-se nele; ficou cega para tudo em torno de si.
De repente, uma mão grande pousou nos ombros de Kreuger, girando-o sobre si mesmo. Lilli entreviu o ódio negro no rosto de Webb antes dele socar a cara de Kreuger, que foi lançado para trás, estatelando-se na calçada de tábuas ao lado dela. Em seguida, Webb agarrou-a pelo braço e puxou-a rudemente com ele, voltando-se para ir embora.
Ele não dera dois passos quando um corpo lançou-se sobre ele por trás. O ímpeto carregou os dois homens para o chão do caminho estreito entre os dois prédios. Começavam a lutar na poeira, rolando e torcendo-se, tentando ganhar vantagem sobre o oponente. Cotovelos e joelhos transformaram-se em armas enquanto Kreuger lutava com esperteza selvagem.
Uma multidão de curiosos amontoou-se em torno de Lilli para assistir à briga. Quando ela fitou a fileira de rostos, não havia um só amigo. Torciam por Kreuger, que era um deles, gritando conselhos e encorajando-o. Ele estava em desvantagem, menor do que Webb, mas sua rapidez e força compensaram a desvantagem.
Kreuger escapou das mãos de Webb e abaixou-se enquanto este se ajoelhava. Webb viu a bota se aproximando e conseguiu bloqueá-la com o braço, a força do chute acertando-o no ombro. Depois, foi lançado para o alto, não mais subestimando seu adversário. Girou um punho para o rosto abaixado e acertou Kreuger na testa com um murro cruzado.
Era uma sensação gostosa, a luta, os socos, o sangue latejando nas veias, limpando-lhe o sistema venoso. Os murros estavam atingindo Kreuger, acertando-o na barriga e no peito. O vento entrava em seus pulmões assoviando com a força que colocava nos punhos. Um par de juntas rangeram contra sua boca, enquanto Kreuger se preparava para mais. O lábio de Webb abriu contra os dentes, o sangue jorrando pela boca. Outro golpe abriu o corte e fez com que Webb cambaleasse para trás. Ele balançou a cabeça, tentando apagar o zumbido interno.
Esperou Kreuger aproximar-se para dar o troco, e ele veio, saltando como um gato pronto para matar. Webb deu um passo para o lado e ergueu o joelho, lançando-o em direção aos órgãos vitais de Kreuger. Enquanto este baixava os braços, tomado pela dor, Webb lançou o punho no nariz do oponente e ouviu o estalar de um osso. Um segundo golpe rasgou um pedaço de carne da testa de Kreuger. Por fim, ele mirou mais em baixo e ouviu o estalido de costelas.
Não sentiu pena de Kreuger, sabendo que ele arrancaria seus olhos e chutaria seu rosto se tivesse oportunidade. Os olhos do homem brilhavam, vítreos; a língua presa entre os dentes. Webb crispou os dedos em torno do pescoço dele, segurando-o quando as pernas não o sustentaram mais.
- Pare! - Alguém o agarrou, tentando separá-lo de Kreuger. Webb! Pare! Deixe ele!
A voz de Lilli acabou penetrando o ódio violento que velava o cérebro de Webb. Afrouxou a pressão na camisa de Kreuger, dando um passo cambaleante para trás, deixando o homem cair inconsciente no chão. Os músculos de seu corpo começaram a tremer, os socos que levara começando a disseminar a dor. Levou uma mão à boca e olhou o líquido rubro, percebendo que o sangue era seu. A respiração estava ofegante e difícil.
Dois homens de macacão ajoelharam-se para ajudar Kreuger, caído. Quando Webb os viu, correu o olhar pelo círculo de homens, percebendo a hostilidade e ressentimento em seus rostos. Tomou conhecimento de Lilli agarrando-o firmemente pelo braço, enfrentando os mesmos olhares com uma expressão de desafio cauteloso.
- É melhor alguém arranjar um médico para ele. - A voz soava rouca enquanto Webb esboçava gestos fracos em direção a Kreuger. Alguém se destacou do círculo e foi correndo para a hospedaria, atrás da qual ficava o consultório médico. Webb voltou o olhar duro para o grupo de homens bloqueando os degraus do restaurante. - Abram caminho para minha esposa. - Desafiou-os a sair do caminho dela, como fizera Kreuger.
Por um momento, ninguém se moveu. Por fim, houve uma ligeira mudança de posição, abrindo caminho para Lilli passar. Webb soltou o braço da mão de Lilli e passou a mão pela cintura dela, guiando-a em direção ao restaurante. Ela ia na frente, os ombros eretos e o queixo erguido. O cansaço invadia os membros de Webb, mas ele a seguiu, enfrentando os olhares dos homens de ambos os lados.
Quando chegaram à calçada da hospedaria, sentiu a tensão no ar. Lilli abriu a porta do restaurante, detendo-se por um segundo para certificarse de que Webb a seguia, entrando em seguida. Ele percebeu o brilho zangado nos olhos dela e ficou matutando sobre o motivo.
- Sente-se naquela mesa - ordenou ela e ele obedeceu, puxando uma cadeira na mesa por ela indicada. Antes que arriasse o corpo, ela já estava dando ordens ásperas à garçonete para que trouxesse água quente e um pano, com os quais ia limpar e tratar os cortes. Webb se divertia com o modo como ela fazia todos se apressarem a cumprir suas ordens, intimidando-os com seu comportamento ditatorial; mas quando ele tentou sorrir, o corte grande no lábio superior abriu e recomeçou a sangrar.
Depois que tudo que ela pedira estava sobre a mesa, Lilli começou a limpar as pequenas feridas. O toque das mãos dela era delicado, mas Webb sentiu a raiva represada que ardia nos olhos da esposa. Observou-a limpar com cuidado o lábio aberto, concentrando a atenção na tarefa. Como Lilli fora a responsável pelo fim da luta, Webb supôs que ela estava preocupada com o que acontecera. Tentou explicar a necessidade de seus atos violentos.
- Se eu o deixasse continuar a tratá-la daquele jeito, isso nunca acabaria, Lilli. - As palavras soavam ligeiramente abafadas devido ao tratamento do corte na boca. - Ele queria brigar. Se eu não tivesse acabado com aquilo...
- Eu sei - ela o interrompeu com a aceitação brusca dos motivos dele, o que o deixou ainda mais intrigado.
- Pensei que você estava zangada porque lutei com ele - fez Webb.
- Estou. - Ela enxaguou o pano com movimentos rápidos. - Eu queria ter batido nele. Eu queria ter arriado com ele. - A voz estava pastosa com a cólera. - Foi a primeira vez em minha vida que desejei ser homem.
Ele se tornou pensativo, escondendo algo por trás da observação leve.
- Fico contente por você não ser.
Ela estacou, um traço de preocupação em seus olhos.
- Provavelmente eu não devia ter detido você, Webb. Não conhece Franz Kreuger como eu. Foi ele quem estimulou Stefan a atirar em você. Se ele não estivesse lá naquela manhã, não teria ocorrido a Stefan reagir daquela maneira. Tenho certeza.
- Isso faz parte do passado. Não vamos olhar para trás, se lembra?- Webb viu a tensão no rosto da mulher antes de esboçar uma fraca tentativa de sorriso em resposta.
- Lembro - disse ela, lembrando a si mesma que isso não era possível.
- Terminou suas compras? - Ele mudou de assunto.
- Terminei. - Parecia que se passara muito tempo desde que ela supervisionara o carregamento das compras. Lilli tentou recobrar um pouco do entusiasmo anterior, tranquilizando Webb de que tudo estava bem quando sabia que não estava. - Encontrei um tecido azul para fazer um vestido para o casamento de Ruth. Espero que você goste.
Ele pressionou o indicador no corte do lábio, como se testando o grau de dor que sentiria, mas o cenho franzido não se devia ao corte.
- Espero que Ruth saiba o que está fazendo.
Ela o olhou duramente.
- Parece que você não aprova o casamento dela com Virg Haskell. A boca estreitou-se em uma linha curva que não aumentava o corte.
- Algum homem aprova a escolha do marido feita por uma irmã?
- contrapôs.
- Imagino que não. - Lilli compreendia que Webb considerava Ruth parte da família, conseqúentemente a referência a ela como irmã não a surpreendeu.
A porta do restaurante de Sonny se abriu e o xerife Potter entrou.
Olhou para Webb e dirigiu-se à mesa. Ganhando tempo, tirou o chapéu, usando os segundos para analisar as juntas feridas e o rosto machucado de Webb.
- O médico me chamou - disse. - Kreuger teve o nariz quebrado e algumas costelas também. Não está com a cara muito boa, mas está bem. Webb digeriu a informação sem comentários. O que quer que se passasse na cabeça do xerife, ele não o diria sem o incentivo de Webb, que não pretendia defender o motivo que o levara a lutar ou o fato de ter vencido.
- A cidade me contratou para manter a ordem - declarou Potter.
- Não gosto de problema.
- Então somos dois - afirmou Webb. - Mas Kreuger parece ter uma tendência para a confusão. Portanto, não fale comigo sobre isso.
Potter ouviu a voz de Calder, sem se preocupar com as palavras, mas captando a segurança do tom. A luta não ameaçara sua autoridade. O médico estava tratando de um e a mulher recém-desposada de Calder cuidava do outro. Mas o distintivo que ele usava na camisa significava que era obrigado a fazer uma aparição em nome da lei e da ordem. Potter possuía sua própria visão das responsabilidades. Era mais seguro e barato deixar os homens resolverem suas contendas. Como nada fora roubado, e mulheres e crianças não haviam sido feridas, o caso não era da sua conta. Aprendera que a justiça possuía um modo próprio de fazer valer seus direitos. Bem mais fácil do que tentar descobrir por si mesmo quem estava certo e quem estava errado.
- vou falar com ele - disse Potter, referindo-se a Kreuger. Lançou um olhar para a esposa de Calder, consciente de que ela fora casada com o melhor amigo de Kreuger, tirando suas próprias conclusões sobre a causa da briga. Cumprimentou-a com um movimento de cabeça polido. – Bom dia, senhora. - Sem pressa, recolocou o chapéu e caminhou em direção à porta.
O casamento de Ruth foi realizado logo depois do Ano-Novo. A cerimónia simples aconteceu na Casa-Grande, com a presença das famílias da fazenda. Ruth estava pálida e tremia quando fez seu juramento. Os olhos estavam secos, todas as lágrimas derramadas meses atrás. Mais tarde, quando Webb a cumprimentou, ela até conseguiu sorrir.
Um casamento no inverno era uma desculpa perfeita para os cowboys escaparem e comemorarem, fazendo com que o dia do casamento fosse tudo, menos tranquilo. Apesar do frio e da neve, ela e o marido foram arrancados, pela turba formada pelos trabalhadores da fazenda, da casa que iam compartilhar com o pai dela, fazendo-os desfilar pela noite gelada. Lilli e várias outras esposas haviam preparado refrescos para a ocasião, assim a festa só terminou bem depois da meia-noite.
Ruth tinha certeza de que aquele fora o dia mais longo de sua vida. A aliança de ouro em seu dedo ainda parecia fria e estranha. Ela olhou para Virg, fechando a porta para o último amigo, e soube que o estava enganando. Baixou o olhar quando ele a fitou, iniciando uma tentativa de arrumar o quarto.
- Essa casa está uma confusão - murmurou quando ele se aproximou e a pegou pela mão, detendo-a.
- Amanhã você vai ter bastante tempo para limpar a casa - ele insistiu. - Acho que devemos seguir o exemplo de seu pai e ir dormir.
Ela olhou para a porta do quarto do pai, para onde ele fora há mais de vinte minutos. Quando Virg começou a guiá-la para a porta do segundo quarto, o quarto deles, ela não opôs resistência. Era um quarto pequeno, suficiente para a grande cama de penas e o toucador com espelho.
Virg segurou a mão dela; Ruth retirou-a e foi até o espelho soltar o cabelo e prendê-lo em trança como fizera ao longo de mil noites. Só que desta vez ela não ia para a cama sozinha com seus sonhos sobre Webb. Dividiria a cama com seu marido. Observou o reflexo dele no espelho, afrouxando o nó da gravata. Não havia lugar para arrependimento, não mais.
Enquanto escovava os cabelos louros mecanicamente, ela analisou o corpo musculoso do homem tirando o terno. Ele ergueu o pescoço para desabotoar o colarinho da camisa branca e lançou um olhar para ela. Os olhares de ambos se encontraram no espelho, e ele parou para estudá-la com intensidade possessiva.
- É um sentimento especial olhar para você e saber que é a Sra. Virg Haskell. - Em seguida sorriu, um pouco para si mesmo e sua ideia. Ela entreviu o brilho de satisfação nos olhos dele. - Agora sou um homem casado, com uma mulher com que me preocupar... e algum dia, uma família. Isso faz um homem olhar as coisas de maneira diferente.
- O que quer dizer? - Como ele parecia esperar uma resposta dela, Ruth fez uma pergunta. Aprendera ser mais fácil fazer perguntas do que afirmações. Virg sentiu-se encorajado a falar, assim ela não precisou fazer muita coisa.
- Seu pai me disse que tem algum dinheiro guardado para você. Talvez a gente devesse usá-lo para comprar um pequeno lugar só nosso. – sugeriu ele. - Não vai ser fácil cuidar de você adequadamente com o salário de um vaqueiro.
A ideia de sair da fazenda era uma possibilidade que Ruth jamais considerara. E não queria agora. Esse era seu lar; todos os amigos estavam ali... e Webb também. - A saúde de meu pai não está boa - murmurou ela.
- Devo ficar por perto para cuidar dele. com o que eu ganho lecionando...
- Mas eu não quero mais que você dê aulas - ele a interrompeu, sentando-se na cama para tirar as botas. - Você é minha esposa. Seu lugar é em nossa casa, cuidando de tudo e criando nossos filhos. Eu não seria um homem se não conseguisse sustentar uma esposa. - Tirou uma bota e atirou-a a um canto, em seguida ergueu a perna para tirar o outro par.
- As chances de eu me tornar algo além de um vaqueiro nessa fazenda são iguais a zero. Calder não transforma forasteiros em capatazes. Os únicos que galgam posições assim são os homens cujos pais trabalharam para o pai dele.
- Acho que você não está sendo justo com Webb. - Ruth não conseguiu manter silêncio diante da crítica. - Se falasse com ele a respeito de uma posição melhor, tenho certeza de que ele o consideraria.
- Não. - A outra bota juntou-se à primeira no canto. Virg Haskell pôs-se de pé e deu alguns passos até o espelho, só de meias, pousando as mãos nos ombros dela. - Talvez se você falasse com ele, ele escutasse. Mas ele não pensa tão bem assim de mim.
- Isso não é verdade. - Ruth voltou-se para olhá-lo, defendendo Webb como sempre faria. - Ouvi-o dizer a outros que você trabalha firme e é digno de confiança.
- Talvez, na semana que vem, por que você não fala com ele sobre me tornar capataz... tipo testando-o sobre a ideia - disse Virg, deixando a mão percorrer a extensão da trança clara. - Se parecer possível, eu mesmo vou conversar com ele. Se eu conseguir ganhar um salário decente, não teremos razão para sair daqui.
- Eu... vou falar com ele - concordou Ruth relutante, pois não queria ir embora.
Ele abriu um sorriso largo e beijou-a levemente.
- Falando como uma esposa - disse ele, afastando-se para desabotoar a camisa.
Mas ela sabia que não, o que a fez olhá-lo e dizer:
- vou ser uma boa esposa para você, Virg - prometeu, determinada a compensar o fato de não amá-lo como deveria.
A camisa estava completamente desabotoada e saindo de dentro das calças, mas ele não a tirou. Olhou-a por um longo segundo antes de falar.
- Você pode começar desabotoando esse vestido. - A voz estava rouca e o olhar ávido enquanto observava os dedos de Ruth cumprirem o que pedira. - Dessa noite em diante, você vai pertencer a mim, e a mais ninguém.
Nem mesmo a Webb Calder. Virg Haskell sabia sobre ele. Ruth se tornara sua esposa por falta de opção, mas Virg estava convencido de que venceria mesmo assim. Ele a desejara, e ela era sua. Nada poderia mudar isso. Era o nome dele que ela levava, e seriam os filhos dele que ela colocaria no mundo. Se agora não o amava da maneira como ele desejava, ainda viria a amá-lo.
Quando tirou o vestido e ficou diante dele de anágua com laços, Virg Haskell estendeu a mão para tomar o que era seu por direito. Essa noite o corpo dela conheceria o seu, e a cada noite por vir.
A pastagem estivera em más condições durante os meses de inverno, que fora um dos mais rigorosos dos últimos trinta anos. Os ventos do sudoeste demoraram a chegar, ou nem chegaram. A brisa quente e forte soprava através das planícies, anunciando março e oferecendo alívio contra o vento mortal, derretendo neve e gelo. A Triplo C levou vantagem com o tempo brando, aproveitando o curto espaço de tempo para verificar o gado da fazenda e as perdas que sem dúvida seriam grandes.
Separando-se do grupo de cavaleiros em suas montarias com mantos, Webb foi até a casa dos Stanton e desmontou. Bateu na porta e ouviu uma permissão abafada para entrar. Entrou na casa e fechou a porta atrás de si. Ruth veio da cozinha e hesitou ligeiramente ao vê-lo.
- Webb, não sabia que era você. - Ajeitou o cabelo, tentando colocar os tufos soltos no lugar, esboçando um gesto nervoso em direção a uma cadeira. - Sente-se. vou servir um café para você.
- Não, obrigado - ele recusou, sem se preocupar em tirar o chapéu, pois não pretendia ficar mais do que alguns minutos. - Estamos indo verificar o rebanho. Parei para perguntar se você se incomodaria de visitar Lilli enquanto eu estiver fora, hoje. Ela não se sentiu bem essa semana.
- Oh? - Ruth pôs a mão no estômago, consciente da vida ali contida. Os recentes acessos de enjoos matinais deixavam-na mais fraca e trémula durante a maior parte do dia. - O que há de errado? Você sabe?
Webb balançou a cabeça.
- Ela se sente bem quando acorda, mas de tarde parece que não consegue comer nada. Já mandei dois rapazes à cidade para pedir ao Simon que passe aqui quando fizer suas visitas. Ela insiste que está bem, mas... vou chegar tarde hoje, e me sentiria mais tranquilo se você fosse vê-la.
- Claro. - Perguntou-se por que Webb não fizera comentários sobre o filho que ela estava esperando. com certeza Virg contara a ele. Virg espalhara a notícia rapidamente pelas outras famílias da sede da Triplo C. Ela se lembrou como Virg ficara orgulhoso quando ela contou a novidade, mais feliz do que quando Webb lhe dera o cargo de capataz.
- Obrigado, Ruth. - Um sorriso breve entreabriu-lhe os lábios, mostrando alívio. Ele esticou a mão para a maçaneta da porta e deteve-se no ato de abri-la. - Ouvi falar da novidade. Parabéns. Você vai ser uma boa mãe.
Mas não para um filho seu, ela pensou, soterrando o pensamento em seguida.
- Estamos muito contentes. - E era verdade, porque uma criança lhe daria algo semelhante ao amor, do qual ela tinha grandes reservas.
- Estou certo que sim. - Webb estudou-a durante mais um segundo, não inteiramente convencido de que estivesse contente com o marido. Ele não sabia o que não o agradava em Virg Haskell. Torná-lo capataz fora uma das raras vezes em que Webb demonstrara favoritismo, unicamente por causa de Ruth. Não podia criticar Haskell pelo trabalho que fizera até o momento. Talvez jamais considerasse Haskell suficientemente bom para Ruth.
Tocou a aba do chapéu cumprimentando Ruth e saiu da casa. Sempre consideraria aquela a casa dela e nunca de Haskell. Ela era uma pessoa cujas raízes mergulhavam tão profundamente na terra quanto as dele. Webb sabia que podia contar com Ruth para cuidar de Lilli quando ele se fosse, o que ajudava a diminuir a preocupação com a mulher.
Lilli não conseguia se lembrar de ter estado tão doente antes. Observou o médico com atenção enquanto ele a examinava, tentando adivinhar com antecedência se havia algo sério. Mas o rosto dele nada denotava, tão calmo e composto, da mesma maneira como quando tratara de Stefan.
- Não compreendo, doutor - começou ela, externando sua confusão e apreensão.
- Simon - corrigiu ele com um sorriso fraco.
- Sinto-me bem quando levanto de manhã. Aí, logo depois do almoço, começo a ficar enjoada. Estou tão tonta e fraca que mal consigo ficar de pé. - Repetiu os sintomas que a atormentavam. - O senhor pode me dar algo? Algum remédio que eu possa tomar? - Ela tentou espantar o medo com uma risada. - Sei que Webb está cansado de fazer o próprio jantar toda noite.
- Tenho a impressão de que é melhor ele se acostumar com a ideia.
- Quase piscou os olhos, ficando de pé, o exame evidentemente concluído.
- O que quer dizer? - Ela o olhou insegura, temerosa de mexer muito com a cabeça e a tontura voltar.
- Tenho fortes suspeitas de que você está esperando um filho - informou ele com um sorriso que foi aumentando progressivamente.
- Mas... - ela não ousava acreditar. Todos aqueles anos casada com Stefan e sem filhos. Ficou pensando se teria um filho realmente, apesar das garantias de fertilidade feitas pelo médico. - Tem certeza?
- Ainda é cedo - admitiu ele. - Mas estou quase certo. Todos os sinais apontam para esse diagnóstico. A náusea associada à gravidez geralmente não acontece pela manhã. Algumas mulheres não chegam a ter enjoos.
Os olhos dela se encheram de lágrimas. Mordeu o lábio, tentando conter a felicidade que inundava-lhe a garganta. Buscou a mão do médico e apertou-a, incapaz de expressar todas as emoções que a percorriam.
- Webb já voltou? - A pergunta ansiosa veio junto com uma risada.
- Mal posso esperar para contar a ele.
- vou perguntar a Ruth. - Ele deu uma piscadela. - Acho que ela ainda está lá embaixo. - Ficou de pé, sorrindo para ela, parte do cansaço desaparecendo. - Se vocês duas tivessem um pouco de pena desse médico sobrecarregado de trabalho, teriam os filhos no mesmo dia, assim eu não precisaria fazer duas viagens até aqui para cuidar de ambas.
- Vamos ver o que podemos fazer - prometeu Lilli com uma risada, guardando a notícia deliciosa consigo mesma, depois que Simon Bardolph saiu do quarto.
Ao chegar ao topo da escada, o médico viu Ruth subindo.
- Não precisa se apressar - alertou-a para a maneira como estava subindo as escadas. Ela estacou abruptamente.
- Precisam de você aqui embaixo, Simon, imediatamente - murmurou, ansiosa. - Shorty se meteu numa briga na cidade. Ele está mal. Slim o trouxe para cá.
Houve uma época, quando viera para esses campos vazios para começar a praticar, em que teria corrido escada abaixo para tratar do ferido, mas desde então aprendera a racionar sua energia. Raramente a situação era de vida ou morte, portanto ele não demorava nem corria.
O vaqueiro tinha uma variedade de ferimentos, incluindo um ombro deslocado, algumas costelas e dedos quebrados, além de um corte profundo que precisou de alguns pontos. Aqueles ferimentos Simon podia tratar; a infinidade de equimoses teriam de curar por si mesmas. Niles foi tratado e parecia pior do que os machucados indicavam. Simon estava examinando as costelas e o ombro quando Webb entrou.
A princípio, Webb nem reconheceu Shorty Niles. Os dois olhos estavam pretos e fundos, transformados em simples traços, as equimoses púrpuras estendendo-se pelo restante do rosto. O peito estava envolto em atadura. O sangue gotejava na superfície da atadura na testa. Os lábios inchados abriam-se em vários pontos e dois dentes da frente estavam faltando. A única pista para reconhecer o homem era a baixa estatura.
- O que houve? - Webb perguntou ao médico, olhando em seguida para Slim Trumbo, que também carregava algumas marcas de batalha.
- Ele não está tão ruim quanto parece - assegurou Simon Bardolph, fechando bem a atadura e entregando a camisa de Shorty. - Embora possa lhe garantir que ele deve estar sentindo uma dor desgraçada.
- Como aconteceu isso? - Webb repetiu a pergunta, dirigindo-se estritamente aos dois homens, enquanto Slim ajudava Shorty a colocar a camisa. Ambos evitaram olhá-lo.
- Eles brigaram na cidade - Simon ofereceu-se como voluntário para contar, guardando os apetrechos na maleta e fechando-a.
- Com quem? - O médico deu de ombros com a pergunta de Webb e Slim mudou de posição, desconfortável sob o olhar fixo do patrão, lançando olhares para Shorty. - Eles quase transformaram seu rosto em uma pasta, Shorty.
Shorty Niles disse algo parecido com "pessoal", mas com os dois dentes faltando e os lábios feridos ficou difícil entender as palavras. Slim entregou o chapéu ao cowboy.
- Você estava com ele, Slim - declarou Webb. - Diga-me o que houve. - Novamente, teve a sensação de que estavam lhe escondendo algo quando o vaqueiro olhou para o companheiro machucado.
- Você sabe como Shorty é - defendeu-o. - Alguém disse algo que ele não gostou e Shorty partiu para briga. Antes que eu tivesse visto o que estava acontecendo, já estavam feito um enxame em cima dele.
- Quem?
Slim deu de ombros, nervoso.
- Só alguns cata-ninhos - disse, sem citar nomes.
- Kreuger e os amigos? - adivinhou Webb.
Slim baixou os olhos para as botas, lançando um olhar para Shorty. O cowboy balançou a cabeça em uma negativa fraca, avisando a Slim que mantivesse silêncio.
- Não sabemos os nomes deles - resmungou Slim, tentando fugir da pergunta brincando. - Eles não se apresentaram.
- Não minta para mim - ordenou Webb, lançando um olhar duro e frio para ambos. Suspeitas já se formavam em sua mente. - Acho melhor vocês admitirem que era Kreuger e me contarem o que ele disse.
- Ele disse uma coisa que Shorty não gostou, só isso - insistiu Slim.
- Acho melhor eu levar Shorty para o alojamento.
- O que foi que Kreuger disse? - perguntou Webb. - A discrição deles o convenceu de que o colono dissera algo que ele consideraria ofensivo. Eles teriam contado se fosse algo contra a fazenda ou os vaqueiros, mas estavam tentando esconder o assunto dele. - A observação se referia a minha mulher?
Slim passou a língua nos lábios e não disse nada, mas Shorty falou, tão claramente quanto conseguiu:
- O desgraçado estava dizendo mentiras.
- Slim. O que Kreuger disse? - desafiou Webb.
- Só um monte de porcaria, que você estava vadiando com ela quando ela ainda era casada e que você levou um tiro do marido dela. Ele estava até dizendo os nomes de vocês dois. Shorty tentou calar a boca dele e... - ele parou, parecendo constrangido. - Ninguém escuta o Kreuger. Ele não passa de um bestalhão.
- É. - A palavra dura e seca confirmou o que Webb já suspeitava. O ódio fervia lentamente dentro dele, aumentando e expandindo-se gradualmente, espalhando-se por todo o corpo.
Simon fez sinal para que o cowboy tirasse o ferido da sala. Dessa vez, Webb não tentou detê-los, já com detalhes suficientes para saber o resto da história.
- Por acaso você não tem nenhum uisque bom na casa, Webb? indagou o médico. - Eu poderia usar um copo... uso puramente medicinal, é claro.
- Tem um pouco no escritório - respondeu distraído, sem pensar realmente no assunto. Webb estava pensando em Franz Kreuger. Estava de mãos atadas. O colono não ouvira a voz da razão, e a luta que travara com ele no último outono evidentemente não fizera diferença. Portanto era inútil pensar que poderia silenciá-lo. Kreuger ia continuar a espalhar fofocas maliciosas e não havia nada que Webb pudesse fazer, exceto escondêlas de Lilli, se conseguisse. - Como está Lilli? - perguntou, lutando para controlar a raiva e a frustração, tirando o chapéu e passando a mão pelos cabelos.
- Ela vai ficar boa.
- O que há de errado com ela? - ele ergueu uma sobrancelha inquisitiva para o médico.
- vou deixar que ela conte a você. - Simon sorriu levemente. - vou me servir de um pouco de uísque enquanto você vai lá em cima vê-la. Sei que ela está ansiosa que você volte para casa.
Simon Bardolph deixou-se ficar por um momento na sala de estar, observando Webb Calder subir as escadas. Um brilho de inveja percorreu seus olhos, e ele se voltou para ir até o escritório.
Amanhecia. Todo o horizonte do lado leste parecia arder com a luminosidade flamejante do sol nascendo, iniciando seu caminho de travessia do céu. De acordo com o calendário, a primavera viera e já se fora, mas a terra de Montana não conhecera as cores verdes. A zona rural ainda vestia seu manto castanho de hibernação, adormecida sob a cobertura de grama morta e seca de meados do verão.
Uma xícara de café na mão, Webb estava de pé na janela da sala de jantar observando o sol surgir da cortina de névoa. A poeira constante era um rebotalho que fazia lembrar a seca que tomava a terra. Ela pesava no ar, refratando os raios solares e criando nascer e pôr-do-sol espetaculares Passava através de fissuras, deixando uma película sobre os móveis. Tirar o pó era tarefa inútil, pois uma hora depois a granulação voltava.
Houvera algumas vezes em que as nuvens haviam escurecido o céu e umedecido o ar seco. Os trovões soaram zombeteiros e raios estilhaçaram cúmulos de trovoadas. Em seguida, as nuvens negras lançaram chuviscos sobre a terra palpitante e correram para outro lugar, pregando suas peças cruéis. Riachos secaram e rios diminuíram.
Durante toda a primavera e grande parte do verão, eles haviam movimentado o gado com regularidade. Webb não podia correr o risco de usar qualquer trecho da terra como pasto até deixá-la sem grama, portanto mudavam o rebanho de uma seção para outra. Enquanto isso, os homens estavam sempre checando as condições do pasto em outras áreas determinando onde o suprimento de água era estável e onde estava disponível ao alcance do gado.
Tudo estava seco. A fazenda inteira, novecentos quilómetros quadrados inflamáveis. Bastaria uma faísca para que tudo fosse pelos ares. Fumar e fogueiras de qualquer tipo eram proibidos. Patrulhas e vigilantes contra o fogo faziam parte da rotina da fazenda. Nas áreas onde não havia extintores de incêndio naturais, eles eram criados.
Tempestades de poeira tornaram-se comuns. Chegavam em uma parede escura de vento que encobria o sol e escurecia o céu prematuramente. A poeira juntava-se em nuvens, vagalhões que envolviam o solo, varrendo tudo que não estivesse pregado à terra.
Webb levou a xícara de café até os lábios e engoliu o conteúdo. Um esgar torceu-lhe a boca, os pensamentos retornando àquela noite tão distante em que Buli Giles o avisara de que teria de lutar para manter a fazenda. Ele jamais esperara envolver-se em uma guerra de larga escala com a Mãe Natureza.
Ouviu o ruído de cavalos se aproximando da Casa-Grande, os cascos cobertos com ferraduras batendo no chão duro. Saindo da janela, ele foi até a mesa e deixou a xícara para começar mais um dia de trabalho. A visão da mulher sonolenta entrando na sala de jantar o deteve.
Os cabelos castanho-avermelhados estavam soltos e desalinhados, caindo sobre os ombros em desarranjo. Havia uma radiância de madona nos traços suavizados pelo sono que o tocaram, contraindo-lhe a garganta. Era verdade. A gravidez a tornara mais bela, mais desejável. Ela estava amarrando a faixa do robe, dando um nó sobre a barriga protuberante.
- bom dia. - Pousando a xícara na mesa, caminhou até ela e a envolveu em seus braços, apertando-a. Beijou-a nos lábios, sentindo-os abrir, generosos. Correu as mãos pelos ombros e costas da esposa, usufruindo a sensação do corpo esbelto.
- Os rapazes estão lá fora. - Lilli podia ouvir o ruído familiar de cascos e freios mastigados enquanto tocava o colarinho da camisa, percorrendo a abertura com o dedo. - Pensei em tomar uma xícara de café com você antes que saísse.
- Você torna difícil para um homem sair de casa. - Ele resistiu à excitação dos membros inferiores e tomou-a pelas mãos, beijando as juntas brancas antes de soltá-las. - Vai cuidar-se?
- vou. - Sorriu para ele, divertida com a preocupação persistente do marido. - Ruth vem essa tarde para terminarmos as colchas dos bebés. - com Webb tanto tempo longe durante esse verão e primavera, Lilli desenvolvera uma amizade íntima com a loura Ruth. Tudo começara com uma troca de preocupações comuns, já que ambas estavam grávidas pela primeira vez e os maridos ausentes grande parte do dia. A amizade cresceu a partir daí.
- Não gosto de deixar você sozinha tanto tempo. - Principalmente agora que ela estava chegando ao fim da gravidez.
- Você já tem muito com que se preocupar. Não se apoquente comigo e o pequeno Chase Benteen Calder. - Pousou a mão no alto do estômago, acariciando-o distraída. No dia em que descobrira que estava grávida, Lilli dissera a Webb que gostaria de chamar o bebé com o nome do pai dele, caso fosse menino.
- Vai ser um nome engraçado para uma garota - ele provocou, beliscando a ponta do nariz de Lilli.
Ela riu, o sorriso permanecendo em seu rosto até depois da porta da frente ser fechada por Webb.
O lenço estava amarrado em torno do nariz e boca para filtrar a poeira levantada pelo gado. Webb levou seu cavalo para junto dos outros, deixando as vacas se espalharem e perambularem, observando o couro vermelho do gado Hereford em meio a uma névoa escura. O capim seco e quebradiço estalava sob os cascos do cavalo e farfalhava como palha.
Um puxão das rédeas deteve o baio. O animal meneou a cabeça e bufou alto para liberar as narinas entupidas de poeira. Um vento seco e penetrante sussurrara através dos talos mortos de capim que mantinham o solo no lugar. Webb segurou a ponta do lenço e o baixou para o pescoço. Detivera a montaria em um alto banco de terra que lhe oferecia uma visão ampla dos campos adjacentes. A leste, podia ver a linha da cerca serpenteando através das planícies, demarcando o limite da fazenda. O outro lado pertencia aos colonos. A pastagem ali estava em péssimas condições, mas não se comparava aos trigais.
A colheita dos campos fora prejudicada pela falta de umidade, crescendo mais cardos do que trigo. Mas o que preocupava Webb eram os hectares arados e abandonados. O vento carregava a terra seca, espalhando-a em dunas de poeira, formando montes e espalhando-as novamente. Ao longo da cerca, o pó estava depositado em montes suficientes para chegar ao arame farpado. Era uma visão triste. Se uma chuva torrencial caísse agora, a camada superior do solo seria levada pela água e não seria preciso cavar muito para mergulhar no cascalho.
Webb resmungou uma observação irritada.
- É bom que meu pai não esteja vivo para ver isso.
O cavalo moveu-se inquieto enquanto outro se aproximava.
- Você disse algo, Webb? - indagou Nate, baixando o lenço para falar.
Webb balançou a cabeça negativamente. O couro da sela estalou quando se virou para olhar os outros cavaleiros. A poeira cobria-lhes a testa e o rosto com uma camada escura, mas os lenços deixavam uma marca na parte inferior do rosto, onde a poeira não conseguira se infiltrar.
Virg Haskell tirou o chapéu para enxugar o suor da testa. Usou o chapéu para apontar o céu.
- Parece que vem vindo uma nuvem de chuva em nossa direção. Continuou a observar a mancha negra aproximando-se sombria. - Engraçado de olhar, não?
A nuvem estava mudando de cor. O que começara como um ponto preto agora tingira-se de verde. Webb começou a ficar apreensivo, olhando para ela. Quando o raio de sol a atingiu, conferindo-lhe um brilho prateado, não teve mais dúvidas.
- É uma nuvem de gafanhotos. - Webb apertou mais as rédeas, anunciando o que outros trabalhadores experientes haviam adivinhado.
O manto vivo de insetos aproximou-se, aumentando o zumbido e os estalidos. O cavalo de Webb moveu-se inquieto, girando as orelhas nervosamente. Os gafanhotos começaram a descer para o solo, caindo do céu como granizo. O gado do pasto estava disperso calmamente, quando de súbito foi atingido pelos insetos caindo. O pânico foi imediato. A vaca líder disparou para leste e o resto a seguiu, correndo desajeitadamente, sacudindo o solo.
Antes que os cavaleiros conseguissem esporear os cavalos atrás do gado em disparada, o ataque furioso dos gafanhotos atingiu os cavalos, que começaram a relinchar seu medo da tempestade ruidosa de coisas que rastejavam. Os gafanhotos batiam no chapéu enquanto Webb curvava os ombros, tentando levar a montaria para longe da invasão. O capim precioso foi coberto pelos insetos, que mastigavam ruidosa e vorazmente cada broto e folha à vista.
A cerca não conseguiu segurar o gado em disparada. Postes estalaram e o arame estourou sob a pressão dos animais em pânico. Passou-se uma eternidade até que os cavaleiros controlassem suas montarias. A essa altura, a terra circundante estava coberta de gafanhotos. Os cowboys dispararam atrás do gado, os cavalos nervosos avançando com dificuldade em meio aos insetos, bufando com o chão escorregadio.
Ninguém falou. Ninguém disse uma palavra. Os gafanhotos estavam por toda parte, cobrindo cada centímetro de solo, cada talo de grama e cada broto. O ruído das mandíbulas mastigando e das asas batendo era assustador, enquanto os insetos desnudavam a terra de sua vegetação. Os cavaleiros precisavam tirar os insetos que se penduravam em suas roupas. O apetite deles era tamanho, que comiam qualquer coisa.
A devastação foi completa e disseminada. Nos sete dias que precisaram para reunir o gado disperso, Webb viu o quanto os gafanhotos haviam destruído. Devido à imensidão da Triplo C, o prejuízo sofrido foi mínimo, confinado ao extremo leste, que ficou desnudo. Mas a força destrutiva dos gafanhotos atingiu duramente os colonos, que já estavam sofrendo dolorosamente com a seca.
Os campos perderam os poucos talos de trigo que haviam resistido. Onde havia árvores, não sobrou uma única folha ou ramo jovem. Os ramos espalhavam-se pelo solo devastado, quebrados pelo peso dos insetos. Jardins cultivados pelas mulheres com o precioso racionamento de água desapareceram. Quando toda a vegetação foi consumida, os gafanhotos começaram a devorar as ripas do telhado, arreios de couro, roupas e cercas de madeira, satisfazendo sua fome indiscriminadamente.
O número de insetos era incalculável; eles invadiram as choupanas, comeram a comida nos armários e as cortinas nas janelas. Os animais permaneceram de pé, desamparados, enquanto os insetos rastejavam sobre eles, as crianças chorando aterrorizadas, certas de que seriam comidas assim que um gafanhoto pousasse sobre elas. Os colonos determinados lutaram contra a praga, tentando salvar o mínimo que fosse deixado. Amarraram barbantes em volta das pernas das calças para que os gafanhotos não se arrastassem por dentro delas. Empilharam os gafanhotos com pás em montes, jogaram querosene e atearam fogo. Cortaram limões e misturaram arsénico com as cascas, em seguida espalharam-nos para os gafanhotos comerem; mas eles devoraram a mistura venenosa e continuaram a sanha destrutiva.
Quando Webb e os outros vaqueiros levaram o gado reunido para o pasto, através do caminho da devastação, viu que o resultado das hordas de insetos fora tão caótico quanto o primeiro ataque. O ar exalava o mau cheiro dos gafanhotos. A água nos poucos riachos estava marrom e manchada com os resíduos, completamente intragável. Qualquer colono cujo poço não estivesse seco, agora encontraria sua preciosa água impotável.
Naquela noite, Webb tirou a roupa e ensaboou-se da cabeça aos pés para livrar-se do cheiro e da sensação dos gafanhotos. Mal falou com Lilli. Só quando já estava deitado com as luzes apagadas e abraçando a mulher, o calor do corpo dela fluindo para o seu, foi que começou a falar sobre o que vira.
Não havia emoção em sua voz impassível, mas uma lágrima correu pela face. Ele sentia o conflito de emoções, desprezando os colonos pelo que haviam feito com a terra e sentindo pena deles pela devastação que haviam sofrido. E havia gratidão misturada, gratidão por tanta terra de sua propriedade ter escapado da praga, por Lilli estar com ele, segura contra o horror que poderia ter presenciado com o primeiro marido.
- Graças a Deus o pior já passou - murmurou Lilli quando ele terminou a história.
- Duvido que tenha terminado. - Ele desviou o olhar do teto e virou a cabeça no travesseiro, fitando o rosto dela, banhado pela luz da lua entrando pela janela. - O que a seca não arruinou, os gafanhotos devastaram. Não há mais nada para segurar a poeira. Milhares de hectares de pó vão ser soprados pelo vento. Porém há mais do que isso. - Fez uma pausa, deixando um dedo traçar o caminho de sardas através da bochecha dela. - Aqueles gafanhotos deixaram ovos; na próxima primavera, esses ovos vão se quebrar e eles precisarão lutar novamente. Primeiro a seca, depois a pestilência. Onde isso vai acabar? - murmurou, carrancudo.
Ela se aninhou junto a ele. Desde o momento em que ele entrara na casa naquela noite, soubera que Webb estava profundamente preocupado e esperara que ele falasse. Tentou imaginar o que seria e não conseguiu. Talvez fosse melhor.
- Simon mandou uma mensagem para nós hoje à tarde. - Não mencionara até agora, mas lhe pareceu apropriado ter esperado. - O poço da cidade está contaminado e ele perguntou se poderíamos mandar toda a água de que pudermos dispor.
- vou mandar dois rapazes encherem os barris que temos e pegarem dois carroções amanhã de manhã - disse ele. Olhou-a, e por um segundo sentiu quase como se estivesse sendo sugado pelas profundezas noturnas dos olhos azuis dela. Lançou um pequeno gemido, o rosto junto ao dela.
- Às vezes, Lilli, gostaria de poder simplesmente estar dentro de você e tê-la como meu mundo, em volta de mim. Invejo a proximidade que nosso filho está usufruindo. Todo aquecido e seguro dentro de você.
Ela tomou o rosto dele entre as mãos. Sentiu a umidade daquela lágrima e pressionou os lábios contra a boca do marido, beijando-o furiosamente, amando-o com força igualmente ardente. Para um homem tão poderoso, ele foi surpreendentemente gentil naquela noite.
A água batia contra as bordas dos barris enquanto as carroças puxadas por cavalos sacolejavam, entrando na cidade próximo ao meio-dia. A luminosidade forte não era favorável aos prédios empoeirados e gastos pelo tempo. A maioria fora erguida muito rapidamente, respondendo ao boom da terra que repentinamente ultrapassara a capacidade de Blue Moon. Agora a cidade parecia exausta, hesitando sobre seus pilares trôpegos e envelhecendo aceleradamente. Um pequeno prédio já estava cercado por tábuas, uma placa dizendo "Desativado" pintada na empoeirada janela da frente. A deterioração era tão inevitável quanto o boom, percebeu Webb, pois este fora construído sobre esperança, ao invés de basear-se no potencial da terra para sustentá-lo.
Não havia muita gente na cidade, mas todos pareciam carregar um olhar aturdido e vago, como se estivessem mergulhados na agonia de um pesadelo que nunca terminava. A poeira pairava sobre a cidade como uma névoa, avermelhando os olhos e cobrindo os dentes com o pó. Algumas carroças estavam estacionadas em frente à ferraria, no poço que geralmente fornecia água para os colonos.
O grupo de colonos, exaustos e esfarrapados olhava distraído as carroças da Triplo C e os cavaleiros que as seguiam aproximando-se. A seca sugara toda expressão dos traços deles e os gafanhotos haviam arrancado a esperança de seus olhos. Somente o instinto de sobrevivência os carregava agora.
A chegada das carroças carregadas com barris de água tirou as pessoas das lojas. Era como se estivessem sentindo o cheiro do líquido e tivessem saído para ver o artigo raro. Quando Webb voltou o capão para o pau de amarrar cavalos, percebeu o xerife e Simon Bardolph atravessando a multidão crescente em direção a ele.
- Recebeu minha mensagem! - Um sorriso aliviado suavizou os traços duros do médico quando Webb desmontou.
- Isso foi tudo que conseguimos trazer nessa viagem. - Eles estavam com falta de barris. Perscrutou o grupo ressecado de colonos. - Estou contente por você estar aqui. vou mandar os rapazes descarregarem as carroças e você e o xerife podem decidir como dividi-la, para que todos recebam um pouco.
- O xerife pode fazer isso. - Simon ofereceu o homem como voluntário para o trabalho. - Como estão as coisas no caminho da fazenda até aqui?
- Escapamos do pior dos gafanhotos, mas essa seca ainda está nos consumindo - admitiu Webb. - Os rios estão tão lentos que dá para andar por eles e pegar todas as trutas que se quiser.
- Quanto tempo mais isso pode durar? - O médico suspirou, sem esperar resposta.
Webb voltou-se e fez sinal para seus homens começarem a descarregar os barris. O xerife Potter afastara-se e erguera os braços, cansado, para atrair a atenção dos colonos.
- Vai ter água para todo mundo, portanto mantenham a ordem. Quero que formem uma fila...
Uma voz surgiu da retaguarda do grupo, exigindo ser ouvida.
- De onde veio essa água?
Fez-se uma breve pausa antes que o xerife retomasse as instruções, ignorando a pergunta.
- Formem fila aqui.
- Como vamos saber se a água é boa? - A voz insistia em obter uma resposta. Webb reconheceu-a antes que Franz Kreuger forçasse caminho até a dianteira do grupo.
- O Sr. Calder trouxe de sua terra - respondeu o xerife, com paciência forçada.
Kreuger cuspiu no chão um olhar de ódio para a fonte da água.
- Não tomem essa água - alertou os demais em volta dele. - Provavelmente ela está envenenada.
Webb balançou a cabeça, baixando-a exasperado e enojado. A seu lado, Simon resmungou algo e afastou-se, postando-se ao lado do xerife.
- Kreuger, não há nada de errado com essa água - disparou.
- Você deu a ele o veneno para colocar na água? - Kreuger desafiou-o, erguendo as mãos. Foi então que Webb percebeu que ele estava carregando um rifle.
- Não seja ridículo - iniciou Simon, zangado.
- Não quero nada que venha de um Calder, de sua puta ou do médico que trata deles. - Os olhos de Kreuger irradiavam loucura quando se voltou para olhar os camaradas colonos. - Desde que chegamos, Calder está querendo se livrar de nós. Ele tentou de tudo; botar fogo em nossas casas e esmagar nosso trigo com seu gado. Os gafanhotos nunca teriam descido em nossas terras se o gado não tivesse sido levado para nossos campos pelos homens dele. Os gafanhotos seguiram o gado, pousaram nas costas deles e foram carregados até os trigais. Ele não queria que os gafanhotos destruíssem sua terra, aí jogou os insetos na nossa.
- Isso é mentira! - falou Simon, percebendo que Kreuger estava manipulando com a ignorância supersticiosa dos colonos. Eles queriam um bode expiatório e Kreuger estava lhes dando um.
- É? - Kreuger zombou, dirigindo-se em seguida aos outros. - Não é verdade que em todo lugar onde o gado estava havia gafanhotos? - Cabeças assentiram e olhares foram trocados, até mesmo pelos mais céticos.
- Os insetos comeram nossa colheita e nossa comida, e arruinaram nossos poços. Agora Calder nos traz água... água que provavelmente vai nos deixar doentes. Ele acha que estamos com tanta sede, tão desesperados, que vamos aceitar água mesmo de um homem que sempre foi nosso inimigo.
Simon virou-se, erguendo as mãos em um gesto de ódio feroz.
- O homem é louco - resmungou para Webb. - Ele não raciocina. Doyle Pettit vira o ajuntamento de pessoas e carroças em torno do poço
comunitário ao sair do banco para o almoço. Virou-se para ver do que se tratava e pegou o fim do discurso de Kreuger, o suficiente para relacioná-lo com a evidência das carroças e homens da Triplo C.
A boca curvou-se lentamente num sorriso, os olhos brilhando, pensando em uma forma de usar a situação a seu favor. Sem chamar atenção, fez a volta na multidão e aproximou-se de Webb pelo lado da cocheira, usando o cavalo de Webb para protegê-lo da visão da maior parte dos colonos.
- Webb. - Manteve a voz baixa. - Mesmo se algum deles quisesse, Kreuger não ia deixá-los pegar a água. O homem fica cego quando se trata de você. Você e os rapazes podiam muito bem levar as carroças e a água em direção à fazenda.
- Mas como eles vão fazer para arranjar água? - Webb murmurou, concordando com a conclusão de Doyle Pettit e sabendo que o problema continuava.
Um sorriso infantil iluminou os traços de Doyle, revelando orgulho com sua própria esperteza.
- Eu disse "em direção à fazenda", mas não "vá para a fazenda". A uns oito quilómetros da'cidade há uma ponte levadiça. Espere por mim lá. Vai demorar umas duas horas para reunir carroças e alguns condutores. Vamos transferir sua água para minhas carroças e trago-a de volta para a cidade. Esses colonos acham que sou um deles, portanto não vão perguntar duas vezes onde arranjei a água. - Ele olhou para Webb. - Que tal o negócio?
Era uma solução simples e efetiva. Webb assentiu.
- Nós encontramos você em Simon's Wash daqui a duas horas.
- vou ficar por aqui conversando, mas Kreuger pode ter me visto falando com você e decidir que estou mancomunado. - Doyle recuou tão despercebido quanto viera, congratulando-se silenciosamente consigo mesmo. Sua habilidade em avaliar a situação e virá-la em sua vantagem permitiria a ele obter metade do Estado algum dia. Um homem precisava pensar e não deixar a oportunidade lhe escapar.
Potter ainda estava tentando convencer os colonos de que a água era segura quando Webb montou em sua sela e levou o cavalo até o xerife.
- Deixa pra lá, Potter - disse ele. - Vamos embora. Se eles não querem a água, nós mesmos a usaremos.
A expressão surpresa do xerife objetava contra a decisão, mas Webb não o esperou para colocá-la em prática, dando rédeas ao cavalo em direção às carroças e fazendo sinal aos homens para irem embora. A confusão e descrença eram compreensíveis, pois eles não sabiam sobre o plano de Doyle. Webb o explicou quando saíram da cidade.
Mais de duas horas depois, Doyle os encontrou no local combinado com as carroças. Trocara seu terno elegante do Leste por roupas de pasto. Era um truque que Doyle aprendera, trocar de roupa para adaptar-se às pessoas e seu meio ambiente, como um camaleão.
Na cidade, ele era o homem de negócios. Quando ia nas casas dos colonos, tirava seu terno, afrouxava a gravata e enrolava as mangas. Para fazendeiros como Webb, ele guardava um par de jeans gastos, um chapéu manchado pelo suor e uma jaqueta de pele de carneiro para lembrar-lhes que era um deles: o filho de tom Pettit.
Nenhum deles olhava além dessa fachada de menino bem comportado e via a ambição e a astúcia nos olhos dele. Era de conhecimento geral que ele era dono do banco, do galpão de madeiras, do celeiro e de mais dois outros negócios na cidade, além da prática da advocacia. Diabos, ele era dono de quase toda a cidade. Mas Doyle tinha certeza de que poucos se davam conta de que suas posses eram tão extensas que rivalizavam-se com as de Calder. Não estava na hora de saberem disso, mas divertia-o pensar sobre o assunto, especialmente agora, em seu encontro com Webb Calder.
- É bondade sua dar água a esses colonos - disse a Webb. - Eu poderia pedir aos rapazes para pegarem um pouco de TeePee - disse, referindo-se à fazenda que herdara do pai. - Mas estamos quase secos lá.
O que não era exatamente verdade. A fazenda possuía alguma água de reserva, mas não havia motivo para desperdiçá-la como Calder estava fazendo. No devido tempo, aqueles colonos estariam comprando água, quando então Doyle planejava usar seu suprimento. Enquanto isso podia levar vantagem com a dádiva de Webb e levar o crédito de salvador dos colonos. Seria um bom trabalho de relações públicas.
- Tenho dois rios de boa corrente. - Webb não precisava mencionar esse fato, do qual Doyle estava a par. - Enquanto houver água, teremos um pouco sobrando.
- Do jeito que Kreuger colocou aqueles caras contra você, acho melhor eu mandar minhas carroças até sua propriedade e fazê-los acreditar que ela vem da minha. - Doyle sugeriu.
- Está bem. - Webb não se importava com os ardis, contanto que aqueles que precisassem de água a recebessem.
- Depois de levarmos esse carregamento para a cidade, vou mandar carroças até sua propriedade para pegar mais água para amanhã. Estes barris não vão durar muito. - O último barril foi levado para a carroça de TeePee e Doyle sacudiu a mão de Webb com firmeza. - Dê lembranças a sua esposa. Sem dúvida você nunca me deu chance de competir por ela.
Quando subiu para o assento da carroça, Doyle pensou que na verdade nunca estivera seriamente interessado na viúva que Webb desposara, mas aquela era a coisa certa a ser dita a um Calder. O casamento ainda estava longe para ele, e escolheria com cuidado. Talvez pegasse uma rica noiva do Leste. Uma aliança, era o que desejava. Um casamento que melhorasse sua posição.
Antes de voltar à cidade, ele tomou o cuidado de contorná-la com as carroças e entrar por outro lado, para que Kreuger e seus colonos não suspeitassem de que na verdade estava trazendo a água de Calder. Quando os cavaleiros detiveram as carroças em frente ao poço comunitário seco, a multidão de colonos agrupou-se em torno deles e formou prontamente uma fila para pegar sua parte.
Quando alguém agradeceu, Doyle sorriu e deu de ombros, modestamente.
- Só fico contente de poder ajudar. - Seu olhar malicioso captou Franz Kreuger observando-o. - Todos temos que permanecer unidos em tempos duros como esse. - Sabia ser esta a doutrina que Kreuger pregava com frequência, e externou-a deliberadamente. Viu o leve movimento afirmativo de cabeça que Kreuger inconscientemente fez e pareceu que tinha o chefe desses colonos no bolso. - Se precisarem de alguma coisa, estarei no banco.
Havia pelo menos quatro colonos no grupo que ele sabia estarem em má situação. Tinham ido até ele em busca de empréstimo, pois já haviam hipotecado a terra. Dessa vez, Doyle teria seus animais e equipamentos Na próxima primavera, Doyle Pettit, o dono de terras, lhes pagaria um décimo do valor dos terrenos e posses deles e eles cairiam de joelhos em agradecimento. Todos acreditavam que ele lhes emprestava dinheiro para ajudá-los e mais tarde comprava a parte deles só por bondade, saldando as dívidas e lhes dando dinheiro suficiente para deixarem o Estado. Enquanto atravessava o ajuntamento para voltar ao banco, ele viu a gratidão nos rostos deles e quase soltou uma gargalhada alta.
Definitivamente orgulhoso, olhou para todos os negócios que levavam seu nome. Havia obtido bastante dinheiro com eles, os artigos vendidos duas ou três vezes mais caro do que o preço que ele pagara. Desde que a seca chegara, a maioria dos negócios estava no vermelho, mas Doyle convencera-se de que aquele era um recuo temporário. A situação atual de pobreza da cidade melhoraria. Os negócios que haviam sido criados, entrando em competição com os dele, começavam a fechar suas portas. Não demoraria muito e teria toda a cidade para si.
Três cavaleiros amarravam suas montarias na trave diante do banco. O interesse de Doyle acentuou-se ao reconhecer o homem velho e atarracado se aproximando da entrada do banco. Era Mace, da Snake M. Havia algo de derrota e cansaço no modo como o fazendeiro idoso se arrastava. Doyle ficou matutando o quanto se deveria aos seus mais de sessenta anos. Não conseguia atinar com algum motivo que levasse Mace a seu banco, exceto a necessidade de dinheiro. Aquilo o fez pensar. Poderia ser uma maneira de pôr as mãos na Fazenda Snake M.
Antes que o fazendeiro alcançasse a porta do banco, Doyle Pettit o saudou e ficou conversando com ele na calçada durante alguns minutos, convidando-o em seguida a entrar, como se não soubesse todo o tempo o destino de Mace. Na privacidade de seu escritório, Doyle manteve a conversa longe de banco e empréstimos, discutindo sobre a fazenda e condições do pasto. Lentamente, foi levando a conversa para a dureza da seca e os efeitos nas áreas dos fazendeiros.
- Não existe um só fazendeiro por aqui que não tenha sido atingido por essa seca. Homens como você, por exemplo - disse Doyle. Desde a primeira vez que participei de um rodeio com meu pai, tenho respeitado criadores de gado. É gente sólida, cuja palavra vale ouro. Quero que saiba Ed, que se algum dia precisar de um empréstimo para ajudar a cobrir algum vermelho, é só falar e você o terá.
- bom... foi um ano difícil - ele admitiu com dificuldade, em razão do orgulho de declarar por que viera. - Tenho considerado a possibilidade de conseguir um pequeno empréstimo.
- Basta me dizer quanto quer e faço um cheque para você nesse minuto. - Esticou a mão para os formulários de empréstimo e pegou uma caneta, começando a preenchê-lo. Então deteve-se, olhando para o fazendeiro como se um pensamento acabasse de lhe ocorrer. - Odeio falar em negócio, mas você estaria melhor levantando dinheiro de outra maneira. Ed Mace pareceu cético. Já explorara todas as opções para que não precisasse se endividar e se vira encostado à parede, forçado a procurar o banco de chapéu na mão. No entanto, era forçoso admitir, até agora Doyle Pettit tornara o procedimento bem suave.
- Como? - perguntou.
- Você tem gado e os preços nunca estiveram tão altos quanto agora. Por que não vende seu gado? - Doyle sugeriu, astuciosamente. - Ano que vem você poderá começar a reorganizar novo rebanho, provavelmente pela metade do preço que vai obter por suas vacas, agora.
Doyle não citou que no próximo ano Ed Mace não teria gado para usar como garantia, o que significaria que precisaria hipotecar a fazenda. Depois disso, comprá-la a preço baixo seria tarefa simples. Suas próprias finanças ficariam afetadas, mas valia a pena arriscar-se e possuir a fazenda Snake M.
AS folhas haviam caído dos choupos e salgueiros que cresciam ao longo da margem do rio. Os contornos esqueléticos dos troncos e galhos sobressaíam áridos contra a neblina escura do céu de outubro. Webb enfiara as mãos nos bolsos da jaqueta e olhava o leito lamacento do rio. Atrás dele, as construções da fazenda eram banhadas pelo sol e a Casa-Grande destacava-se contra o horizonte do norte. Mas o que atraía sua atenção eram as piscinas de lama ao longo do leito do rio.
- Esse rio nunca havia secado antes. - Voltou a cabeça para Nate.
- Está todo assim?
- Pior - resmungou ele. - Aqui pelo menos tem poças. A maioria não tem nem lama no fundo. O rio na pastagem norte ainda tem um filete correndo. - Desejava um cigarro, mas havia muitas pilhas de folhas secas e capim morto em volta. - O que você pretende fazer? - A pergunta de Nate não recebeu resposta imediata. - Ouvi dizer que Ed Mace vendeu todo o gado para que o pasto não ficasse sobrecarregado esse inverno.
Webb balançou a cabeça, recusando essa opção.
- Demoramos muito tempo para organizar nosso rebanho e termos o gado de qualidade que temos agora. Não vou vender. - A decisão era definitiva. - Vamos levar todo o rebanho para o pasto do norte e esperar o melhor. - Desviou o olhar do rio seco. - Leve um bilhete a Doyle dizendo que não podemos mais dispor de água para os colonos. O poço nos estábulos secou hoje de manhã.
Nate nada disse, soltando um suspiro em meio a uma carranca que parecia perguntar quando a seca terminaria. Em comum acordo, subiram a margem e dirigiram-se para os prédios da fazenda. Abe Garvey vinha mancando o mais rápido que podia, bufando com o esforço. Deteve-se e acenou para apressá-los.
- Ei, Webb, me mandaram pegar você. É sua mulher. Está na hora! - gritou.
Webb começou a correr, excitaçãõ e ansiedade acometendo-o ao mesmo tempo.
- Mande alguém chamar o médico - ordenou apressado. Simon estivera na fazenda um dia antes para fazer o parto de Ruth.
Não precisa - Abe bufava. - Ele está aqui, veio ver como estava Ruth e seu bebé. O médico está lá na Casa-Grande.
Ruth respirava rapidamente, com gotas de suor na testa e sobre os lábios. Ao ver os traços rudes e simples do marido crispados pela preocupação, sorriu para ele, o próprio desconforto desaparecendo.
- Acho melhor você não pensar em se arrepender de ser pai - ela o alertou, enquanto ele lhe tomava a mão, inclinando-se sobre a cama. - Porque agora é tarde demais.
- Não, não vou me arrepender. - Um meio sorriso surgiu em seus lábios, suavizando-os. - Você está bem?
Ela assentiu com um movimento de cabeça e Webb inclinou-se para beijá-la.
- Nada disso. - Simon Bardolph interrompeu o carinho, aproximando-se da cama. - Se você não pretende fazer o parto, sugiro que vá lá para baixo e tome um drinque, Webb.
- Depois. - Ele não tirava os olhos de Lilli, os cabelos escuros espalhados sobre o travesseiro onde a cabeça da esposa descansava, o tom vermelho suavizado.
- Agora - insistiu o médico, fazendo um gesto em direção à porta.
- Fora. Ainda vai demorar, portanto vá andar de cima para baixo em outro lugar. Não quero que você preocupe nossa mãezinha.
Relutante, Webb cedeu ao argumento, beijou-a novamente e saiu do quarto para aguardar no escritório. Tentou ficar calmo, mas ouvia pequenos ruídos no andar de cima, gritos abafados e movimentação. Os sons agiam sobre seus nervos como um espeto. O sol descia incandescente rumo ao horizonte quando escutou o choro de um bebé. Subiu os degraus de dois em dois e bateu impaciente na porta fechada. Simom abriu-a com um fardo vivo nos braços.
- Chase Calder, apresento-o a seu pai. - Entregou o bebé a Webb.
- Lilli?
- Está bem.
Webb olhou pela primeira vez para seu filho recém-nascido, todo vermelho e enrugado, uma massa úmida de cabelos escuros na cabeça e um punho perfeitamente formado agitando-se junto à boca do pai. Numa espécie de embriaguez, Webb foi até a cama. Sentia as lágrimas brilhando em seus olhos quando fitou Lilli. Os cabelos escuros dela caíam úmidos pelos lados do rosto. Parecia exausta, embora notavelmente feliz.
- O pobrezinho é feio como eu - Webb sorria.
- E vai ser tão belo quanto você - murmurou ela, um tanto fraca. Simon aproximou-se da cama, sorrindo para os três.
- Acho que seu filho gostaria de comer algo; depois os dois precisam descansar.
Webb colocou o bebé nos braços de Lilli e saiu do quarto, relutando pela segunda vez.
Após ajustar a touca, Lilli amarrou-a sob o queixo e lançou um olhar para Webb, observando-a ansioso. Ela estava evidentemente cansada e fraca, mas não inválida como ele pensava.
- Estou pronta. Vamos? - Colocou as luvas, sentindo-se tão coberta quanto o pequeno Chase nos braços de Webb.
- Acho que você devia ficar - disse ele, pela décima vez. - É muito cedo para se movimentar. Você devia estar na cama. O bebé nasceu somente há dois dias.
- Webb, você está fazendo isso parecer que vou embarcar para alguma viagem arriscada - ela o reprovou com um traço de diversão. - Só vou até a casa de Ruth. Garanto que estou forte o suficiente para caminhar até lá.
- Mas não tem necessidade. Eu posso ir. - O brilho determinado no olhar dela avisou-o de que a esposa não tinha intenção de ficar. Suspirando sua irritação, Webb envolveu-lhe a cintura e guiou-a até a porta da frente.
Usou o corpo tanto quanto pôde para protegê-la, e ao filho, do vento cortante soprando do norte, varrendo o solo ressecado diante deles, erguendo nuvens de poeira que irritavam-lhes os olhos e pulmões.
Virg Haskell abriu a porta quando chegaram à casa dos Stanton. Webb mal deu tempo a Lilli de tirar a touca, sentando-a em uma cadeira. O pequeno Chase choramingava nos braços dele, completamente coberto pela mantinha de bebé. Webb virou a ponta da manta e recolocou a chupeta na boca do filho para acalmá-lo.
- Seu filho é muito bonito - disse Virg Haskell, fitando o homem e a mulher e tentando descobrir por que tinham vindo.
- Como está Ruth? - perguntou Lilli.
- Ela e o filhote estão bem. - Ele sorriu, orgulhoso. Do quarto, Ruth chamou:
- Quem é, Virgil?
- É - ele virou um pouco a cabeça para responder. - A Sra. Lilli, Webb... e o filho.
Ouviram sons de movimentação no quarto.
- Já estou indo.
- Posso ajudar em algo? - Virgil ofereceu vagamente. Embora a esposa tivesse se tornado muito amiga de Lilli Calder, duvidava muito que aquela fosse uma visita social.
Não satisfeito com a chupeta, o bebé no colo de Webb começou a ficar inquieto, abanando punhos zangados no ar.
- É melhor você dar o bebé para mim. - Lilli estendeu os braços para o filho.
Webb entregou-o aos cuidados dela antes de responder à indagação de Haskell.
- Não, nada, obrigado. Eu e Lilli viemos aqui falar com você e sua esposa sobre outro assunto.
A porta do quarto abriu e Ruth apareceu. Obviamente ela fizera uma tentativa apressada de arrumar-se. Prendera os cabelos louros com uma fita em um comprido rabo-de-cavalo que caía à altura do pescoço, e usava um vestido solto. Estava empertigada e um pouco insegura sobre seus pés, segurando-se à porta antes de atravessar o resto do caminho da sala.
- Lilli, você não devia se levantar. Precisa descansar e recuperar as forças - murmurou, ansiosa.
- Foi o que tentei dizer a ela - respondeu Webb secamente. - Mas ela insistiu em vir.
- Ouvi dizer que as mulheres índias têm seus filhos e levantam para fazer seu trabalho - disse Lilli, discordando de ambos. - Estou bem, de verdade. Por favor, sente-se, Ruth - insistiu. - Eu e Webb viemos porque temos algo a pedir a você.
- O que é? - Ruth sentou-se em uma cadeira próxima à de Lilli e fitou o bebé enrolado na manta, no colo de Lilli. - É um belo bebé. Havia um traço de inveja na voz dela.
- É um bebé faminto. - Misturado ao amor em seu rosto, havia arrependimento e uma ponta de culpa. Olhou hesitante para Ruth. - Não tenho leite suficiente. Simon preparou um leite especial para ele, mas não concordo. Ele disse que a melhor solução seria encontrar outra mulher disposta a amamentá-lo. Eu e Webb pensamos... - fez uma pausa, olhando para o marido de pé a seu lado - em pedir a você.
Ruth não precisou de tempo para considerar o pedido, aceitando-o de imediato.
- Claro que sim.
- Obrigada. - Lilli inclinou a cabeça para ocultar o queixo tremendo e afastar as lágrimas. Chase recomeçou a chorar. Carinhosamente, ela beijou-lhe a testa, entregando-o a Ruth em seguida. - Provavelmente seria melhor se ele ficasse aqui durante a noite. - Era a coisa mais dura que Lilli jamais dissera. - vou pedir a Webb que traga o berço dele... tudo.
- A voz falseou.
- Não se preocupe, Lilli. - Ruth aconchegou o filho de Webb contra seu seio, pousando uma mão tranquilizadora no braço da amiga. - vou tomar conta dele como se fosse meu filho. - Foi a promessa mais fácil do mundo para ela.
Alguma espécie de alarma maternal despertou Ruth no meio da noite para a alimentação das duas da madrugada. Pegou seu filho barulhento e impaciente e o levou até a sala de estar, sentando-se na cadeira de balanço. Os cabelos louros dele caíam macios e cacheados, os olhos azuis demonstrando sinais de que permaneceriam daquela cor. Seu nome era Timothy Ely Haskell, mas o marido começara a chamá-lo "meu bucho" desde o primeiro dia. O nome parecera cair bem, assim Ruth agora pensava nele como Buck. Ela o adorava do modo especial como uma mãe ama seu filho, sorrindo quando ele sugava furiosamente seu peito e golpeava o busto com os pequenos punhos.
Mas depois, quando Chase Benteen Calder sugou seu seio repleto de leite, lágrimas vieram-lhe aos olhos. Era o filho de Webb, diferente do seu em tamanho, cor e temperamento. Ela sonhara com esse dia: segurar o filho dele nos braços. Isso se tornara realidade, mas estava acalentando o filho dela.
O estetoscópio foi capturado por uma mãozinha que imediatamente decidiu que ele servia para ser comido. Simon Bardolph soltou uma risadinha e afastou os dedos do bebé Calder do instrumento. Castanhos olhos inocentes o olharam atrevidos.
- Ao que parece, Chase, você já comeu o suficiente - declarou ele.
- Ele cresceu, não é? - Lilli afirmou orgulhosa de seu filho de quase cinco meses, que começou a tagarelar. Ele estava sentado ereto, bem equilibrado, rechonchudo, mas não gordo. - Ele já está tentando engatinhar, mas geralmente acaba caindo para trás.
- Logo ele vai aprender; aí provavelmente você vai desejar que não tivesse aprendido - murmurou Simon, fechando a maleta. - Há muito tempo eu não via dois bebés tão saudáveis quanto esse e o pequeno Buck.
- Vai tomar um café com bolo, não é? - fez ela, pegando o neném e equilibrando-o nos quadris. - Webb deve estar voltando. Ele teve que ir à estação ferroviária pegar o Senador. Sei que vai querer ver você.
- Não posso. - Simon deu de ombros dentro do casaco. - Tenho que passar pela casa de Kreuger. Três dos filhos estão doentes. Parece pneumonia. - Ele balançou a cabeça, sem querer comparar as disparidades entre essa família e as circunstâncias deploráveis da família do colono.
- Sinto muito. - Lilli apertou Chase um pouco mais. Apesar de odiar Franz Kreuger, ela ainda sentia pena da esposa, Helga. - Como está... a esposa dele?
Ele a percorreu rapidamente com o olhar, tentando decidir se ela queria realmente saber. - Acho que você não a reconheceria - suspirou. Acho que ela não come. Não me surpreenderia se toda a comida fosse para as crianças e o marido e ela comesse os restos.
Lilli sentiu-se culpada por ter tanto, culpada por não ter pensado nas famílias com quem convivera com Stefan. Estivera vagamente consciente da seca e dos gafanhotos que haviam prejudicado muito as famílias, mas não permitira que seu pensamento se demorasse no assunto. No entanto, a observação do médico a fez lembrar os invernos em que ficara faminta, com pouca coisa comestível na casa.
- Simon, antes de ir, pare no armazém e leve uma provisão de comida com você - insistiu ela. - Se Kreuger perguntar onde você conseguiu, diga a ele que a igreja está distribuindo. Leve comida para outras famílias necessitadas na área.
Ele assentiu brevemente, um sorriso leve de compreensão surgindo em seus lábios. Ela conhecia a maior parte daquela gente e se sentia devedora de algo, algo de irmão. Ela começou a brincar com o bebé e Simon deixou o assunto morrer com o oferecimento dela.
O Senador Bulfert era hóspede de fim de semana na fazenda, detendo-se a caminho de Helena. Nessa ocasião viera sozinho, sem seus ajudantes, o que parecia mudar o tom da visita. A loquacidade habitual e alta do político parecia contida e menos efusiva.
Ao fim do jantar, Webb percebeu o Senador colocando a mão no bolso do colete, buscando os charutos. Sabendo que Lilli não gostava do cheiro de charuto, sugeriu que fossem para o escritório tomar café. Lilli desculpou-se e não se juntou a eles, indo ver o neném.
Webb serviu um copo de uísque para cada um e passou um copo ao homem de rosto corado. O sorriso formal do homem acentuou-se por um momento quando ergueu o copo em um brinde silencioso.
- É melhor aproveitar enquanto tem - ele declarou. - Aquelas senhoras das ligas de temperança vão realizar seu desejo. - O Senador suspirou seu desgosto, olhando o uísque que rodava no copo. - Todos aqueles bares que Carry Nation destruiu em Butte. Pensei que aquele movimento pró-proibição terminaria quando ela morresse. Diabos! Ela se tornou uma mártir.
- O Congresso não vai realmente proibir a bebida. - A possibilidade era demasiado irreal.
- Tudo faz parte do fervor moral que está varrendo o país por causa da guerra - resmungou ele, fitando Webb e dando uma piscadela. - Espero que você tenha alguns amigos no Canadá para manter seu armário de bebidas cheio para uso pessoal.
- Conheço umas duas pessoas. - Webb sorriu. - Não vendemos tanto gado para as reservas de lá como antigamente, mas ainda temos contatos.
- Ótimo. - Bebericou seu uísque, oferecendo em seguida um charuto a Webb, cortando a ponta de outro para si. - Giles morreu. - A declaração veio sem aviso prévio.
A chama do fósforo estava a meio caminho do charuto. Webb estacou, tirando o charuto da boca e olhando o político.
- Buli? - Descrença evidenciava-se em sua voz. - Quando?
- Há três meses, antes do Natal. Acabei de saber também. - Soltou uma baforada. - Nunca mais foi o mesmo depois que voltou. Começou a beber muito e parou de sair com a velha turma. Acho que por isso demorei tanto a saber. Ele daria um bom político, um grande boi resistente, esperto como uma raposa - concluiu, sorvendo outro gole do uísque como se em um brinde silencioso ao homem.
Webb fez o mesmo e observou as chamas crepitando na lareira. Desde a morte da mãe, não recebera notícias de Buli. Agora tampouco receberia alguma.
- O que sabe sobre esse advogado, Doyle Pettit? - Os olhos semicerrados, Bulfert fitava Webb através da fumaça do charuto.
Webb ergueu a cabeça, algum instinto lhe dizendo ser este o objetivo da visita do Senador. - Conheço Doyle desde pequeno. Ele assumiu a fazenda TeePee quando o pai, tom Pettit, morreu há uns dez anos, e tem alguns negócios na cidade. Por quê? - Reduziu suas informações até que percebesse o motivo da pergunta.
- Dei uma olhada nos contratos de propriedade há umas duas semanas. Ele é dono, ou se declara dono, de quase 250 mil hectares.
A extensão da posse de Pettit surpreendeu Webb, mas ele não demonstrou. Terminou de acender o charuto com novo fósforo, apagou a chama e atirou o fósforo na lareira. Doyle acumulara bastante terra silenciosamente, através do banco que possuía, evidentemente, comprando as concessões dos colonos que iam desistindo. Lembrou-se do esquema de compra e venda de Doyle, compra e venda.
Olhou para o mapa na parede. Doyle Pettit. Aquele amigo meio garotão, que adorava se divertir, sempre ria e raramente brigava. Ele sempre fora meio exibido, comprando o primeiro automóvel da região e usando roupas elegantes, desperdiçando dinheiro, pagando bebida para os amigos e emprestando dinheiro com rapidez. Doyle sempre conseguira ser o centro das atenções. Calmamente, muito calmamente, obtivera o controle de toda aquela terra, quase o tamanho da Triplo C.
O homem sempre fora uma espécie de fazedor da paz, não gostava de discussões ou de sentimentos exacerbados. Ficava em cima do muro, nunca tomava partido. Os fazendeiros o consideravam o filho de tom Pettit, um deles, e os colonos o olhavam como amigo.
Quanto mais olhava para o mapa, mais inquieto Webb se sentia. Não fazia sentido pensar que a maciça aquisição de terra por Doyle fosse uma ameaça. Conheciam-se há muitos anos. Nem sempre haviam sido íntimos, mas Doyle não era do tipo de ir contra alguém. Não era do seu feitio. No entanto, Webb se preocupou com a descoberta de como o grande Doyle crescera em tão curto espaço de tempo.
Mas seu comentário para o político revelava que ele tinha conhecimento do fato.
- Quando esse boom começou, Pettit passou a especular com a terra - admitiu.
- Se essa seca continuar - a expressão do rosto do Senador contorceu-se -, ele vai saber que é dono de terra em mais uma dúzia de Estados. O vento está soprando o que ele já tem aqui.
A boca de Webb torceu-se em concordância silenciosa e amarga. Interiormente, pensava: Graças a Deus temos capim cobrindo a terra dos Calder e mantendo o solo.
O manto pesado de pele de búfalo envolvia-lhe o queixo, aquecendo o ar que Simon respirava, a cabeça batendo sonolenta. A maleta preta de médico estava no chão da carroça, próxima a seus pés, o manto de búfalo envolvendo-a também. Simon Bardolph preferia seu cavalo e sua carruagem, embora os automóveis fossem um meio de transporte mais rápido. Sua carruagem podia ser mais lenta, mas sofria menos avarias. Podia atravessar o campo onde um carro não passava; e se Simon adormecesse, como acontecia frequentemente, podia ter certeza de que o cavalo permaneceria na estrada e não bateria em alguma vala.
O capão parou diante da choupana onde havia uma luzinha brilhando na janela. Virou a cabeça e resfolegou calmamente para o homem adormecido na carruagem. O som não recebeu resposta. Quase com desagrado, o cavalo colocou as orelhas para trás e deu um coice na carruagem, acordando seu dono.
Simon abriu os olhos com uma carranca relutante e olhou em torno durante um minuto antes de reconhecer a casa de Kreuger. Afastou o manto de búfalo e estremeceu sob o frio do começo da noite. Um cobertor para o cavalo estava guardado no fundo da carruagem. Sacudiu-o e envolveu o capão, enfiando um pouco de grão na ponta de uma sacola, colocando uma parte na boca do animal antes de deixar a sacola aberta. Depois de cuidar do cavalo, pegou sua maleta preta e foi até a choupana.
Franz Kreuger abriu a porta quando Simon bateu. O cheiro da doença estava entranhado na pequena choupana. Simon imaginou que nunca se acostumaria com esse odor. A cortina de pano que geralmente separava as áreas de dormir havia sido retirada para deixar o calor do fogão atingir o canto mais distante, onde estavam os beliches.
Simon visitara a família muitas vezes para perder tempo em amabilidades com Franz Kreuger, já que o gesto não seria retribuído. Tirou o casaco e olhou para os dois filhos mais velhos deitados na cama dos pais, e o terceiro paciente em um beliche mais baixo. Helga Kreuger, esquálida e de olhos fundos, estava sentada na ponta do beliche, tentando enfiar um pouco de sopa na boca frouxa do filho.
Quando o médico se aproximou da cama com a maleta na mão, a mulher foi forçada a suspender a operação, com um espasmo de tosse que tinha uma sonoridade distinta e tísica. O olhar do médico endureceu-se, perscrutando a mulher em um exame superficial. Ela emagrecera, ganhara círculos negros sob os olhos. A dureza de sua vida a envelhecera até parecer tão idosa como se fosse a avó daquelas crianças. Simon não gostou do som daquela tosse. Após examinar os mais novos, pretendia atender a mãe.
Deteve-se ao lado dela, consciente de que Franz Kreuger estava ao lado.
- Como está Gustav? - Sorriu brevemente para o rosto ansioso e lívido de Helga antes de voltar a atenção para o garoto. Um segundo depois, ouviu o ruído nos pulmões do menino. Sentiu-se gelar. A violência não fazia parte de sua natureza, mas agora sentia-se tomado por ela. - Maldição, Kreuger! - praguejou, segurando o homem pela camisa. - Eu disse a você que entrasse em contato comigo imediatamente se eles piorassem!
- Eles não estão piores do que quando você os viu pela última vez - negou Kreuger, irritado, os olhos escuros transformados em pequenos pontos de ódio e desconfiança.
Helga Kreuger se pôs de pé, o alarme levando a pouca cor que lhe restava no rosto. - Gustav não está pior, está?
Simon compreendeu que ela estava tão desesperada com o filho que seria melhor não saber que ele piorara. Voltou à normalidade e soltou a camisa de Kreuger, voltando-se para a criança.
- O estado dele não é bom - disse rispidamente, compreendendo a situação.
- Mas ele vai melhorar - murmurou ela, olhando ansiosa para o filho.
- Vou fazer tudo que puder. - Foi o máximo que Simon pôde prometer. Recuperar uma criança saudável já seria duro, e os filhos de Kreuger estavam subnutridos e fracos. Não se ensinavam milagres em sua profissão, e ele tinha a sensação de que seria preciso um milagre.
Acontecera outras vezes. Na explosão da febre tifóide, Simon vira um ou dois membros de uma família morrerem, mas nunca fora fácil aceitar, sobretudo quando as vítimas eram crianças. Sempre perdurava aquele sentimento de que poderia ter feito mais alguma coisa; que, com todo seu conhecimento, ainda havia algo que não sabia, mas deveria ter tentado.
Foi o que Kreuger pensou quando todos os seus filhos, exceto um, foram enterrados no espaço de uma semana. Simon tentou fechar os ouvidos às acusações do homem. Kreuger estava convencido de que aquilo acontecera porque ele era pobre e não podia pagar os serviços do médico, certo de que se seu nome fosse Calder, ao invés de Kreuger, o resultado teria sido diferente.
Cansado, frustrado e torturado pela culpa que o atormentava cada vez que perdia um paciente, Simon debruçou-se sobre a mesa no centro da pequena cozinha de sua choupana. Pratos sujos de duas semanas entulhavam a pia, desde a última vez em que fizera uma refeição em sua casa e consultório ao mesmo tempo. Olhou para a confusão.
- Contratei uma garota para arrumar a casa para mim, mas a família dela se mudou no último outono. Ainda não tentei arranjar outra pessoa. - Pediu desculpas a Doyle Pettit pelo estado de desarrumação de sua casa.
- Se quiser, posso encontrar alguém para você - Doyle ofereceu-se afavelmente, bebericando o café preto amargo que Simon lhe oferecera.
- Você devia tirar uma semana para descansar. Está com a aparência horrível.
- Está brincando de médico? - Simon sorriu, cansado.
- Em que está pensando, doutor? - Doyle Pettit recostou-se na cadeira de espaldar reto, sentindo-se à vontade. - Sei que não me pediu para vir aqui só para passar tempo, um homem ocupado como você não faria isso. Então deve haver alguma coisa preocupando-o.
- É o Kreuger, mais especificamente, a mulher dele. Ela está com tuberculose, e esse clima... o frio e a poeira... só estão agravando o estado dela. Ele precisa tirá-la daqui se não quiser enterrá-la também. - Correu a mão pelos cabelos. - Tentei explicar isso a ele, mas ele pensa que estou conspirando com Calder para tirá-lo da terra. Não consigo alcançá-lo. Simplesmente ele não me escuta. Mas você... é mais provável que acredite, vindo de você.
Doyle franziu o cenho, a preocupação marcando seu rosto geralmente sem rugas. Girou o café na xícara, estudando o líquido. - Não sei se existe alguma coisa capaz de separar aquele homem da terra. Aquele lugar é quase uma obsessão para ele. De todos os que vieram no primeiro ano de concessão de terra, ele é um dos poucos que ficaram. Não sei o que o faz continuar aqui.
- O ódio. - Simon declarou sua opinião. - Um ódio não necessariamente de Webb Calder, mas do que ele representa, um grande proprietário de terra. Certas vezes fiquei pensando se não escolheu esse lugar simplesmente porque fazia limite com a propriedade de Calder.
- Pode ser - concedeu Doyle, bebendo o conteúdo da xícara. - vou ter uma conversa com ele sobre a mulher, mas não sei se vou ter mais sucesso do que você.
Simon esperava que sim. Algo lhe dizia que Kreuger estava próximo do limite. A essa altura a maior parte dos homens já teria desistido. Só restara a ele uma fazenda com a terra remexida sendo levada pelo vento. A seca e a poeira estavam agindo sobre todos, deixando os nervos à flor da pele e causando irritação. Juntando isso ao ressentimento profundo que ele nutria por Calder, estava prestes a explodir.
- Tem visto Webb ultimamente? Como vai o bebé? - Doyle mudou de assunto para um tema mais leve.
- Saí da Casa-Grande há umas três semanas, antes de tudo isso começar. Ia tudo bem, incluindo o jovem Chase. - O pensamento do neném saudável provocou o traço de um sorriso no rosto de Simon.
- Sabe de uma coisa, doutor? Você e eu devíamos fazer uma viagem de volta para o Leste e encontrar duas esposas. Quando pensei em Webb tendo um filho, fiquei com inveja. - Doyle declarou sem parecer estar falando sério. - Provavelmente eu devia falar com ele para assegurar o futuro de seu filho. Algo que meu pai nunca fez por mim. Ele deixou a fazenda e um monte de dívidas, e só.
- Acho que nenhum de nós acha que vai morrer. - Simon riu sem muita convicção, levando a xícara de café até a boca.
A primavera chegou, trazendo o alívio do vento de inverno, mas não o fim da seca. Todos diziam que não poderia durar outro verão. Os bancos faziam empréstimos aos colonos para que pudessem comprar sementes e plantar seu trigo. Junho era a estação chuvosa. Todos esperavam, observando o céu e prendendo a respiração.
As nuvens vieram, preenchendo o ar com o cheiro doce da chuva, fazendo o solo seco vibrar com o clamor dos trovões. De súbito, as nuvens se abriram e a chuva caiu a cântaros. O júbilo desapareceu do rosto de Kreuger, do lado de fora de sua choupana, alagada em poucos minutos; ele ficou olhando o temporal carregar a camada superior do solo e os brotos de trigo.
O dilúvio não durou mais do que meia hora, mas o chão seco não absorveu tanta água em tão pouco tempo. O que o vento não destruíra, a chuva levara, carregando encostas de colinas e formando sulcos que antes não existiam. A colheita fora perdida novamente, dessa vez para a chuva.
Pelo fim da tarde do mesmo dia, o solo já mostrava sinais de estar secando. Somente nos pontos mais baixos a consistência de lama continuava no outro dia.
A estrada que levava a Blue Moon estava repleta de carroças empilhadas com as pequenas posses dos colonos que haviam arrumado as malas e fechado suas contas. Para eles, esse último revés fora o golpe de misericórdia. Não possuíam os recursos nem a força de vontade para tentar mais uma vez. Galinhas piavam protestos nas gaiolas de madeira e cães de costelas à mostra trotavam ao lado das carroças lentas, seguindo seus donos alquebrados e desanimados. Duas carroças possuíam uma vaca leiteira que esperavam vender, obtendo algum dinheiro para recomeçar em algum lugar longe de Montana e da má sorte que haviam conhecido.
A cada quilómetro que viajavam, Lilli ficava mais silenciosa. Havia rostos familiares entre os grupos sem casa que passavam. Cada vez que webb deixava para trás outra carroça, ela se retesava, pensando quem reconheceria dessa vez. com a aproximação do automóvel deles, as carroças ficavam para o lado para deixá-los passar, oferecendo a Lilli um relance rápido dos ocupantes. Era sempre um alívio quando descobria estranhos. Lançou um olhar de soslaio para Webb e entreviu os traços carrancudos e amargos. Duvidava que ele estivesse em silêncio pelo mesmo motivo que ela. O solo estava rasgado por novos sulcos e ravinas. Assemelhava-se a algo em agonia mortal, retorcido e torturado em agonia. Ela suspeitou que pequena parte dele sentia pena das pessoas que haviam perdido toda esperança, mas em grande parte ele se sentia magoado pelo que haviam feito com a terra. Chase contorceu-se no colo dela, cansado de estar inativo. Distendeu o corpinho, desejando ficar de pé e ver algo, mas Lilli o segurou com firmeza.
Blue Moon estava igualmente desanimada quando chegaram. Mais casas comerciais haviam sido fechadas. A rua estava repleta de colonos, os que queriam continuar e os que faziam parte do êxodo. Alguns formavam fila diante do banco, esperando outro empréstimo para comprarem mais sementes ou para venderem seus terrenos pelo que conseguissem. Outros tentavam vender seu gado ou a mobília, a fim de comprar o que precisavam. Outros ensaiavam trocas por bens de que tinham necessidade, ou tentavam persuadir os vendedores a fornecer-lhes mais crédito.
O único lugar disponível para estacionar o automóvel era a estação ferroviária, onde os poucos felizardos que possuíam uma passagem esperavam o próximo trem. Lilli demorou a abrir a porta e Webb fez a volta para ajudá-la e ao bebé.
- Desculpe ter-lhe pedido para vir à cidade - disse ela. Estivera ansiosa para vir, mas a experiência estava se tornando deprimente. - Fico me lembrando como você tentou nos avisar, mas ninguém ouviu.
Ele empertigou-se com a maneira como ela se alinhava ao lado dos colonos. Segurava a mão esquerda dela, e rodou o anel de casamento com o dedão. - Aconteceu. Não há nada que você possa fazer, nem que eu possa fazer. - Colocou a mão dela sobre o braço dele e sorriu. - Onde gostaria de ir primeiro, Sra. Calder?
- Para casa. - O que era verdade, mas imediatamente mudou de ideia, consciente de que Webb não poderia concordar com seu desejo de evitar a cena. Ele não participara dos sonhos das pessoas que haviam vivido do mesmo jeito que ela. - Não. - Ela sorriu rapidamente. - Vamos ao Ellis comprar algumas fazendas para fazer roupas para Chase. Ele está crescendo muito rápido e você não tem mais camisas.
Diante do restaurante de Sonny Drake, Webb quase deu um encontrão com Ed Mace. O fazendeiro parou, o hálito cheirando a uísque. Seu corpo atarracado se resumia em um ventre avantajado e flácido, e os olhos estavam impassíveis.
- Entre, Webb. - Ed o agarrou pelo braço, a mão sem força. Se ele notou Lilli e o bebé, não deu a perceber. - Quero lhe oferecer uma bebida.
- Outra hora, Ed - Webb recusou calmamente.
- Não vai ter outra hora. - O homem inspirou, o som resultante semelhante a uma fungada. - Tive que vender.
- Do que está falando? - O olhar dele semicerrou-se, olhando o velho e tentando descobrir se estava suficientemente sóbrio para saber o que estava dizendo.
- Vendi a Snake M. Aquela chuva que tivemos... bom, eu tinha acabado de comprar algumas vacas para recomeçar a formar uma manada. Houve uma inundação em meus terrenos. Mais da metade delas foi pegada. Se afogaram. - Ele olhou para a rua vagamente. - Isso me arruinou, essa é que é a verdade. Estou acabado. Acabou. Tudo por que trabalhei durante toda minha vida foi embora com a chuva.
Você vendeu a fazenda? - Webb ainda não conseguia acreditar.
É. Pettit tirou isso das minhas mãos. - Fez uma pausa mal-
humorada. - Falei mal dele, mas acho que o velho tom ficaria orgulhoso com o modo como o filho ajuda os amigos. - A atenção dele foi atraída para o nenê nos braços de Lilli. O bonezinho amarrado na cabeça do neném estava torto, devido ao constante movimento do pequeno Chase, curioso para ver tudo que se passava em torno dele. Ed Mace cambaleou para mais perto, estendendo uma mão nodosa e gasta pelo trabalho, em direção ao bebê. - Você tem um belo filho, Webb,. Eu nunca tive filhos. Acho que deve ser bom. - A língua enrolava como quando um homem está descontrolado pela bebida. - O que eu poderia deixar para ele? Perdi a fazenda, foi levada de armas e bagagens. Me rendeu dinheiro suficiente para chegar ao México. Talvez consiga encontrar um lugar pequeno para mim por lá, onde possa ter umas duas vacas e uma daquelas senoritas de olhos escuros para cozinhar para mim.
- Então você vai para o México. - Era duro para Webb sustentar o olhar do homem. Sentia pena dele, e a despeito de todo o falatório de Ed, ele era demasiado orgulhoso para tolerar alguém sentindo pena dele.
- Comprei uma passagem. - Ed Mace assentiu, ainda deixando o neném agarrar seu dedo caloso. Por fim, deixou a mão cair e os olhos ficaram enevoados de lágrimas. - Diabos, nunca gostei de tequila, mas ao menos lá é legal. - Esfregou a mão pela boca. - vou tomar outro dos especiais do Sonny. Cuide desse garoto, Webb.
Não repetiu o convite de pagar um drinque a Webb; o antigo fazendeiro virou-se e voltou para a hospedaria. Tudo que a Proibição conseguira em Blue Moon fora aumentar o preço da bebida. O xerife Potter já demonstrara uma propensão a ignorar o que se servia nas xícaras de alguns fregueses. O negócio continuava como sempre. Nesse Estado seco, a bebida era mais abundante do que água.
Havia muitas coisas que Webb estava remoendo em seu pensamento, mas não mencionou nada a Lilli. Não eram somente os colonos que estavam cortando as despesas e vendendo tudo; os fazendeiros também passavam por isso. Só que havia mais colonos do que fazendeiros. Estava curioso quanto ao número de propriedades que cairiam nas mãos de Doyle Pettit.
Houve uma pequena comoção na rua lotada de carroças. Bastou uma olhada e Webb localizou a causa. Hobie Evans e mais dois molestavam os colonos que iam embora.
- Pensaram que poderiam vir para cá e pegar o que não lhes pertencia, não é? - Hobie estava atormentando uma família amontoada em uma carroça deixando a cidade. As crianças encolhiam-se de medo do rosto dele. - Pensaram que tinham vindo para a Terra Prometida, mas ela se transformou no inferno, hem? Suas colheitas queimaram nos campos; os poços secaram; e sua terra foi levada embora pelo vento. Essa era a Terra Prometida, sim senhor, porque quando o primeiro de vocês chegou, prometi transformar isso aqui em um inferno para cada um de vocês.
- O sorriso era áspero, um ruído de chacota que parecia mais alto do que o chacoalhar das carroças e o bater de cascos dos cavalos. - Sou o filho do demónio. Não sabiam?
Investiu contra as crianças, que gritaram aterrorizadas. Soltou outra gargalhada e deu uma palmada com a mão espalmada no traseiro de um cavalo de tração manco. Ele deu um salto, assustado, e o colono foi obrigado a suster as rédeas para evitar que a parelha disparasse sobre os pedestres que estavam atravessando a rua na frente dele.
- Ei, Hobie! - O outro cowboy encontrara outro objeto, agora que a outra carroça estava indo embora. - Olha aqui!
Um colono apregoava um relógio de mesa em sua carroça. Era o objeto mais valioso que possuía, herança de família que atravessara oceanos somente para acabar sendo vendido em uma rua empoeirada, a fim de que ele comprasse comida para outra viagem.
- O que há, senhor? - Hobie passeou em torno da carroça. O homem agarrou protetoramente o relógio nos braços, olhando cautelosamente para os três homens que se aproximavam. A mulher segurou-o ansiosa pela manga da camisa, tentando persuadi-lo a subir para a carroça com ela. Não vai me deixar ver? - Hobie desafiou-o com um esgar escarninho. Se um homem está interessado em comprar algo, ele tem o direito de olhar primeiro.
- Vendo por dez dólares. - O homem desesperado ofereceu relutante o relógio a Hobie para inspeção. - Vale dez vezes mais do que isso.
- Ora, essa coisa é velha. Está vendo como está velho? - Mostrou o relógio aos amigos. - Aposto que não dá nem a hora.
Quando ele balançou o relógio, a mão de Lilli apertou o braço de Webb. Ele mal olhou para a esposa, soltando o braço.
- Fique aqui, fora do caminho. - Saltou por sobre o travessão de amarrar cavalos e dirigiu-se por entre a multidão em direção à carroça em frente à loja de Ellis.
- Para mim isso não está com jeito de valer dez dólares. - Hobie Evans fez menção de devolver o relógio ao homem, mas antes que o colono esticasse a mão para pegá-lo, Hobie deixou-o cair. A campainha do relógio tilintou ao cair no chão duro. A mulher gritou com o som estilhaçante. - Agora com certeza ele não vale dez dólares. - Hobie deu uma gargalhada enquanto o homem se abaixava para pegar cuidadosamente o relógio quebrado. Os ombros de Lilli afundaram. Era tarde demais; o mal já estava feito; e Webb ainda não estava na metade do caminho. - Não adianta, senhor - escarneceu Hobie. - Assim como o senhor, também não serve para nada. Não queremos sua laia por aqui. Essa terra vai ser amaldiçoada enquanto vocês não forem embora. Portanto, caia fora!
Uma garrafa foi atirada na carroça. Lilli ouviu-a espatifar-se contra a lateral. Cacos de vidro atingiram os cavalos. Um deles recuou e Webb o agarrou pelo bridão, imobilizando o animal. Ninguém pareceu se dar conta dele, exceto duas garotinhas encolhidas no assento da carroça. Todas as atenções estavam voltadas para a traseira da carroça, onde o colono colocava seu relógio, tentando juntar as partes quebradas.
- Vocês me ouviram? - Hobie desafiou. - Ninguém quer seus trastes. Portanto subam em suas carroças e fora! E levem seu lixo com vocês!
Foi demais para o colono. A única coisa de valor que possuía para vender fora quebrada. Virou-se para Hobie Evans, tremendo e à beira das lágrimas. Sem avisar, atirou-se sobre o vaqueiro. Hobie deu um passo para o lado com facilidade, uniu as mãos em um único punho e arriou-o nas costas do homem, lançando-o ao chão.
- Maldito idiota tentando me atacar - declarou com uma gargalhada, como se tivesse acabado de destruir um mosquito com uma palmada.
Webb segurou os cavalos e deu um passo em direção à traseira da carroça quando uma explosão chocou todos que estavam na rua, deixando-os imóveis. Hobie ficou na ponta dos pés, a boca aberta em descrença aturdida enquanto as mãos comprimiam as costas arqueadas. As pernas começaram a dobrar sob ele, mas o vaqueiro conseguiu girar sobre si mesmo e fitar o agressor desconhecido que atirara nele. Lilli cobria a boca com as mãos quando viu o pequeno buraco vermelho no meio das costas.
A trinta metros de distância, Franz Kreuger postava-se empertigado com o rifle apoiado no ombro, um risco fino de fumaça saindo do cano. Enquanto Hobie caía sobre o chão empoeirado, seus dois camaradas fugiram antes que o rifle se voltasse para eles. Mas Kreuger o manteve apontado para o homem morto.
Seus olhos eram os de um homem enlouquecido, levado a seu limite por muitas batalhas com adversários que não conseguia derrotar: a seca que arruinara sua fazenda e a doença que levara seus filhos e tornara a mulher inválida. Hobie Evans finalmente representava algo que ele podia destruir. Sua vida poderia ser tomada, como a seca levara a vida da terra e a doença reclamara o último suspiro de seus filhos.
Todos reconheceram o olhar demente do homem e ninguém deu um passo em direção ao morto ou ao homem com o rifle, temerosos de que ele não discriminasse seu próximo alvo. Webb sabia que era preciso fazer algo e lutou contra o frio na boca do estômago. Começou a mover-se em direção a Kreuger, quando alguém o agarrou pelo ombro e o deteve. Virou a cabeça e viu Doyle Pettit à sua esquerda.
- É melhor ficar fora disso, Webb - murmurou, fitando Kreuger com fria determinação. - Ele atiraria assim que pusesse os olhos em você.
Do outro lado da rua, o xerife Potter abria caminho por entre a multidão, com uma espingarda na mão. Doyle Pettit deixou Webb e foi se juntar ao agente da lei.
com um descaramento que Webb não conseguiu deixar de admirar, Doyle aproximou-se de Kreuger com um olhar inocente e brilhante em seu belo rosto. As mãos enfiadas nos bolsos das calças, a jaqueta aberta casualmente para provar que não estava armado. Hobie também estava desarmado. O olhar de soslaio que Kreuger lançou a Doyle estava repleto de desconfiança, mas Doyle ficou de pé ali, olhando para o corpo ensanguentado no chão.
- Ele era um ordinário, não é? - Disse ele, a voz impassível e desapaixonada.
- Ele mereceu morrer - declarou Kreuger. - Ninguém deve ter prazer com o sofrimento dos outros. Ele devia ter sido assassinado há muito tempo. Há muito que eu dizia que devíamos ficar todos juntos e nos ajudar uns aos outros. Mas estamos deixando gente como ele nos tirar de nossas terras. Está na hora de detê-los.
Doyle pareceu pensar sobre a declaração do homem.
- Sabe, Kreuger, acho que você está certo - assentiu. - Temos que ficar juntos nisso. Você, eu e o xerife devemos sentar e elaborar um plano. Esse Hobie Evans só trazia aborrecimentos ao xerife, desde o começo. Não é verdade, xerife? - A pergunta convidava Potter a adiantar-se.
O xerife manteve a arma apontada para o chão, sem fazer movimentos ameaçadores em direção a Kreuger. A arma foi facilmente descartada por Doyle, pois Potter só ouvira o barulho do tiro e não sabia que tipo de problema esperar ou de quem. Em poucos minutos, os dois levavam Kreuger em direção à delegacia. Doyle Pettit continuava fazendo Kreuger falar e escutava atentamente tudo que ele dizia.
Dois vaqueiros adiantaram-se para carregar o corpo de Evans até a ferraria, que também funcionava como funerária. Lilli estava pálida e tremendo quando Webb voltou para seu lado. Imediatamente, ele a guiou para longe do aglomerado, em direção à hospedaria, onde encontrou uma mesa vazia a um canto. com a excitação do tiro, passaram-se vários minutos até que ele conseguisse fazer com que a garçonete trouxesse café para a mesa deles.
Lilli segurou as mãos de Chase, para que ele não agarrasse a xícara de café quente que ela estava bebericando. A bebida pareceu acalmar-lhe os nervos.
- Você está bem? - perguntou Webb, e ela assentiu com um movimento de cabeça.
- Acho que eu sempre soube que Kreuger seria capaz de matar alguém a sangue frio - murmurou ela. - Mas ver isso... - estremeceu expressivamente, sem precisar terminar a frase.
- Agora acabou. - Ele envolveu a mão da esposa.
- Acabou? - Ela o olhou, os olhos azuis arregalados com a dúvida.
- Ou é só o começo? - Webb não respondeu, aturdido com a calma convicção na voz dela. - Ouvi muitas histórias sobre longos períodos de seca que levaram as pessoas à loucura. Kreuger sempre defendeu a violência. Já mostrou que é capaz de cometê-la. O que vai detê-lo agora?
- O xerife o tem sob custódia, Lil. Não precisa se preocupar mais com ele - ele insistiu.
- Gostaria de acreditar nisso - murmurou ela, pois a declaração não a tranquilizou.
A porta da hospedaria abriu e Simon Bardolph entrou. Estava a meio caminho de uma mesa vazia quando localizou Webb e Lilli sentados a um canto. Mudou de direção e foi se juntar a eles.
Viram aquilo? - indagou, puxando uma cadeira para sentar. Não era preciso referir-se diretamente ao tiro. Era o único assunto discutido na cidade. Webb assentiu. Simon apoiou os cotovelos na mesa e pousou o rosto nas mãos, alisando os cabelos desalinhados atrás das orelhas. - Só vim olhar o corpo e assinar o atestado de óbito. Sabia que Kreuger explodiria alguma hora. Muitas coisas o pressionavam.
- Kreuger vendeu tudo? - Ele vai embora? - indagou Webb.
- Ele só vai deixar o lugar se morrer. - O médico balançou a cabeça e suspirou cansado.
Chase estava tentando colocar os dedos na boca de Lilli. Distraída, ela segurou-lhe as mãozinhas e puxou-as para baixo.
- E Helga? - perguntou, subitamente preocupada com a esposa de Kreuger. - Ela veio à cidade com ele?
- Duvido muito. Qualquer esforço faz com que comece a tossir. Estou certo de que ela ficou em casa com a filha - adivinhou Simon, fazendo sinal à garçonete de que também queria café.
- Alguém tem que contar a ela o que aconteceu - disse ela, sentindo pena da mulher e matutando o que aconteceria a ela.
O médico soltou um suspiro profundo.
- vou até lá. Provavelmente ela vai precisar de mim. - Não estava muito ansioso por fazer isso, mas ele era a pessoa mais indicada nas atuais circunstâncias.
Vozes aumentaram de volume do lado de fora da hospedaria, observações de júbilo entrando até onde estavam. Quando a porta abriu, meia dúzia de pessoas espalhou-se pelo restaurante, lutando por uma oportunidade de cumprimentar Doyle Pettit e parabenizá-lo pela maneira calma como conseguira desarmar Kreuger. Doyle varreu o local com o olhar, detendo-se na mesa de Webb. Levou alguns segundos para conseguir se desvencilhar do grupo e aproximar-se da mesa.
- Estou contente de vê-lo, Simon. - Puxou uma cadeira ao lado da do médico e sentou-se. - Estava procurando você e alguém me disse que tinha entrado aqui.
- O que é? Está tendo problemas com Kreuger? - Simon indagou, empertigando-se na cadeira.
- Não exatamente. Agora mesmo ele está fechado em meu escritório. Nós o levamos para lá, ao invés de alarmá-lo levando-o para a delegacia - explicou Doyle. - Fechei o banco hoje, para que se resolva o que fazer com ele.
- Ele está no banco? - Simon franziu o cenho.
- Ele não vai criar problema por enquanto. - Doyle dispensou a preocupação que viu no rosto deles. - Coloquei um pouco de láudano na bebida dele. Vai dormir por várias horas.
- Então qual é o problema? - Simon compreendeu apenas que Doyle e o xerife queriam manter Kreuger sedado.
- Kreuger está sob ação de forte stress. Hoje entrou em colapso. Percorreu a mesa com o olhar, detendo-se para analisar um ponto intermediário. - Acho que devemos ficar felizes por ninguém mais ter se machucado, além de Evans. Não posso dizer que o culpo por matar Hobie. Certas vezes tive vontade de estrangular o homem eu mesmo. Se Kreuger ficar preso até o julgamento, acho que vai enlouquecer completamente. Gostaria que você me ajudasse a convencer o xerife a libertá-lo sob minha custódia. Posso controlá-lo. Posso levá-lo e à família para minha fazenda, onde terão bastante comida e descanso.
- Você está dizendo que ele tinha razão em matar um homem desarmado porque aquela pessoa era Hobie Evans? - Simon olhou-o fixamente, levemente zangado.
- Não cabe a mim decidir. Isso é trabalho do júri. Não estou dizendo que ele deve ficar solto - insistiu Doyle. - Mas, devido às condições dele, acho que não deveria ficar preso até o julgamento. Depois de tudo por que passou, ele merece alguma compaixão. Homens desesperados às vezes fazem coisas desesperadas. - Fez uma pausa para analisar o médico com um olhar atento. - Vai falar com o xerife para mim, doutor?
- Você está realmente preparado para responsabilizar-se por ele? murmurou Simon.
- Estou. Além do mais, terei homens vigiando-o o tempo todo. Não estou pensando só em Kreuger. É a mulher e tudo que essa situação vai lhe causar - argumentou Doyle, persuasivo.
- Espero que você não esteja cometendo um erro. - Suspirou Simon, ainda cético, mas propenso a aceitar a sugestão.
- Ótimo. - Doyle curvou a boca de satisfação, recostando-se na cadeira. - O xerife está em meu escritório, de olho em Kreuger, para o caso dele acordar. Vamos lá falar com ele.
- Primeiro deixe-me ir até minha casa escrever o atestado de óbito.
- A garçonete veio com o café. Ele o empurrou em direção a Doyle. Beba você. Estarei de volta em poucos minutos.
Quando o médico saiu, Lilli esperou em silêncio que ele não conseguisse convencer o xerife a aceitar o plano de Doyle. Não gostava da ideia, embora não compreendesse a causa de suas apreensões.
Mas quando dois dos mais respeitáveis membros da comunidade colocaram a proposta a Potter, ele sucumbiu a ela. Kreuger ainda estava inconsciente quando o carregaram para a carruagem do médico e o levaram a sua fazenda, onde buscaram a mulher e a filha.
Doyle analisava o céu, uma camada de poeira sem uma nuvem à vista. O tiro daquela manhã fora um golpe de sorte, no que se referia a ele. Soubesse Kreuger ou não, Doyle lhe devia. Houvera uma corrida ao banco, sugando sua reserva de dinheiro até um nível perigosamente baixo. O tiro na rua lhe fornecera a desculpa perfeita para fechar as portas antes que o dinheiro acabasse e as pessoas começassem a entrar em pânico. Em razão dele assumir a custódia de Kreuger, a cidade passou a considerá-lo como uma espécie de herói. Aceitariam qualquer desculpa que desse para não abrir o banco no dia seguinte. Aí chegaria o fim de semana. Na segunda-feira, ele conseguiria levantar o dinheiro para cobrir o déficit.
Ter comprado o Snake M o comprometera, mas valeria a pena. Se tivesse adivinhado que Mace a venderia tão cedo, poderia ter feito uma reserva de dinheiro, ao invés de enfiá-lo na reserva do banco. Agora não importava. Tudo ia dar certo.
Você parece um gato que conseguiu o leite. - Simon observou o sorrisinho no rosto de Doyle.
Pareço? - O sorriso tornou-se mais acentuado. - Acho que faz
bem ajudar outras pessoas. - Virou-se para olhar o médico. - Você sabe o que dizem: lance o pão sobre as águas... - a citação bíblica não precisava ser completada.
Uma buzina soou atrás da carruagem e Simon puxou as rédeas, levando o capão para o lateral, a fim de que o automóvel passasse. Webb estava ao volante. Ergueu a mão ao passar.
Não haviam permanecido na cidade para fazer compras como Lilli pretendia. Ela perdera o interesse no passeio. Quando reconheceu a carruagem de Simon e adivinhou-lhe o destino, todas as apreensões voltaram.
- Me sentiria muito melhor se soubesse que Kreuger está na prisão.
- Ela precisou falar alto, para se fazer ouvir sobre o ruído do motor.
- Ele vai a julgamento. Pode estar certa - Webb replicou. Mas ela não tinha tanta certeza.
O raio iluminou o horizonte, mas Lilli não se deixou enganar. Era um raio de calor e não o precursor de chuva. O vento noturno erguia as cortinas da janela, quente e seco, e diminuía a temperatura do quarto de cima, embora deixasse tudo coberto de poeira pela manhã.
Ela passou a mão pela massa de cabelos castanho-avermelhados e ergueu o pescoço, voltando-se para o berço onde Chase dormia. A camisinha de dormir do menino colava-se à pele, empapada de suor no pescoço rechonchudo, mas ele dormia profundamente, indiferente ao calor.
A brisa quente envolveu a pele exposta do pescoço dela, refrescando-a um pouco. Lilli culpara o calor do verão pela inquietação que a tirara da cama, mas a quentura interminável não era responsável pelos pensamentos que continuavam em sua mente.
No dia seguinte Kreuger seria julgado. Três semanas haviam se passado desde o tiro, no entanto ela ainda se sentia apreensiva. Ninguém velara o cadáver de Hobie Evans. Lilli não gostava dele mais do que os outros, mas Kreuger o matara, atirara nele pelas costas. Se ficasse livre, não pararia mais. Consideraria a si próprio acima da lei, com direito de se vingar de qualquer mal real ou imaginário. Mais cedo ou mais tarde, seu objetivo de vingança seria Webb. Ele o desprezara durante muito tempo e o ódio era demasiado profundo.
Ela tentara confidenciar seus medos a Webb, mas ele não chegara a compreender. Kreuger seria levado ao tribunal e seria punido por seu crime, insistira Webb, mas apesar de sua tranquilidade, ela não tinha muita fé na lei, e lhe dissera isso. Fora um dos desentendimentos típicos entre ambos. Tinham discutido ferozmente sobre o assunto, o que agora preocupava Lilli mais do que tudo.
Pensando nele, seu olhar correu para a cama, iluminada intermitentemente pelos clarões dos raios de calor atravessando a janela onde ela estava. Mesmo dormindo, os traços rudes do marido possuíam força, os lábios sólidos unidos em uma linha firme. As cobertas haviam sido chutadas por ele. Ela estudou o corpo masculino simétrico, agora relaxado. A emoção intensificou-se dentro dela, um amor profundo e durável que parecia não ter fim.
Silenciosamente, tirou a camisola de algodão e deslizou para a cama. Ao toque dela, Webb automaticamente apertou-a em seu braço, mas Lilli se debruçou sobre o peito do marido, os cabelos caindo sobre os ombros e roçando-lhe a face. Os lábios dela incitaram a boca imóvel do marido, fazendo-o acordar lentamente. Quando o desejo do beijo dela se manifestou, ele passou os dedos nos cabelos da mulher, pressionando-lhe a cabeça e Aprofundando o beijo.
Rolou-a pelo colchão. Houve um momento em que os lábios deles se separaram. - Faça amor comigo, Webb - Lilli murmurou nesse espaço de tempo.
Lenta e apaixonadamente, fizeram a união durar um longo tempo. Nenhum dos dois parecia capaz de obter o suficiente do outro. Mesmo quando terminaram e separaram-se para dormir nos braços um do outro, perdurou a sensação de que não fora bastante, de que jamais haveria saciedade no amor.
O amanhecer surgiu com seus tons intensos de vermelho e laranja, anunciando um sol amarelo chamejante. Webb parou o Modelo T diante da casa dos Stanton, deixando o motor ligado. Desviou o olhar para a esposa e o filho no assento de passageiros. Estendeu a mão para ajeitar carinhosamente a massa desordenada de cabelos escuros do filho, mas foi Lilli quem chamou-lhe a atenção.
- Tem certeza de que quer ir ao julgamento? - indagou ele.
- Tenho. - Foi uma resposta determinada que o alertou para o fato de que ela não mudaria de ideia, não importava o quanto ele discordasse.
com Chase nos braços, ela saiu do carro e subiu os degraus do alpendre em direção à porta. Ruth os ouvira chegar e abriu a porta antes de Lilli bater. Chase reconheceu-a e ficou excitado, rindo e estendendo as mãos para que ela o segurasse. Ruth era sua segunda mãe, assim ele nunca reclamava muito quando a mãe o deixava com ela.
- Ele já tomou o café da manhã - avisou Lilli, deixando Ruth pegá-lo. O pequeno Buck veio engatinhando até a porta e Chase imediatamente começou a se sacudir nos braços de Ruth, desejando ser colocado no chão para poder brincar com o filho dela. - Não sei quando vamos voltar. Vai depender de quanto tempo demorar o julgamento.
- Por favor, não se preocupem com Chase enquanto estiverem fora.
- Ruth colocou-o no chão. - vou tomar conta dele.
Lilli observou o filho engatinhando pelo chão, tão à vontade. Quando ergueu o olhar para Ruth, sentiu a garganta apertar ligeiramente.
- Sei que não preciso me preocupar com ele quando está com você, Ruth. Acho que você o ama tanto quanto eu. - Estendeu as mãos impulsivamente e tomou a mão da mulher, voltando-se em seguida para retornar ao carro. Tinham uma longa viagem pela frente através dos campos.
Antes de entrar no tribunal, Doyle Pettit puxou Kreuger algemado para longe dos ouvidos do xerife mas ao alcance de seus olhos. Doyle podia ver a desconfiança e suspeita com o julgamento no rosto de Kreuger, e tentava apaziguá-lo antes que o homem não pudesse mais ouvi-lo. Esperava que Kreuger nunca soubesse o quanto ele dependia do julgamento. - Você vai ter que se declarar culpado e implorar a misericórdia da corte.
- Não irei para a prisão. - Um brilho ameaçador perpassou-lhe o olhar.
- Se fizer o que eu disse, não irá. - As palmas das mãos de Pettit suavam. Não estava certo se conseguiria convencer Kreuger. E precisava pois havia muita coisa em jogo. - Alguma vez eu o conduzi mal em alguma coisa? Estou tentando ajudá-lo, Kreuger. - O homem não disse nada, mas demonstrou estar ouvindo, embora taciturno. - Os doze jurados são colonos, portanto sabem o que você tem passado. Vão ser benevolentes. Não se preocupe com o juiz. Não existe maneira do Calder tê-lo influenciado, assim você não precisa pensar nisso. Ele é meu homem de confiança. - Graças a uma dilatação do prazo de pagamento de um empréstimo do juiz com o banco, mas Doyle não mencionou esse fato. - Agora temos poucos minutos. Quer recapitular?
- Não sou ignorante. - Kreuger empertigou-se, entendendo a pergunta como um insulto implícito. - Você já me disse várias vezes o que devo fazer.
- Está bem. - Doyle não insistiu, embora tivesse se sentido mais confiante se o fizesse. Na verdade Kreuger era desgraçadamente imprevisível. Estava se arriscando muito apostando tanto no homem, mas se conseguisse ser bem-sucedido todos os seus problemas estariam resolvidos. As pessoas começavam a matutar por que o banco não estava abrindo todos os dias. Quando as desculpas acabassem, tudo entraria em colapso, a não ser que o plano desse certo.
As pessoas estavam amontoadas no tribunal como gado num vagão de trem. Lilli e Webb encontraram lugares na segunda fila, atrás da mesa do promotor público. Viram Simon Bardolph procurando um lugar para sentar, mas foi inútil tentar chamar o médico com toda a algaravia de vozes. Webb pôs-se de pé e fez sinal indicando que havia um lugar ao lado deles. Lilli juntou-se mais a Webb, a fim de que Simon tivesse espaço para sentar.
- Não sabia que vocês vinham. - Simon abriu caminho com os ombros até o espaço, os cotovelos junto ao corpo.
- Lilli insistiu em vir. - A voz de Webb revelava desaprovação, mas ele não insistiu no assunto.
- Estão me chamando para atestar a causa da morte. - A boca contorceu-se. - Vai ser uma resposta de quatro palavras. Uma bala nas costas.
O tribunal ficou em silêncio quando os advogados da acusação entraram, seguidos pelos da defesa. Tanto Doyle Pettit, o advogado de defesa, quanto Franz Kreuger permaneceram de pé ao lado de seus assentos. A atitude de ambos provocou um murmúrio de surpresa que percorreu a multidão no tribunal.
- bom Deus, o que ela está fazendo aqui? - Simon resmungou zangado, e Lilli percebeu a mulher tuberculosa sendo guiada até a frente, um homem de cada lado, meio carregando-a até uma cadeira vazia atrás da mesa da defesa. - Ela não devia sair da cama.
- Evidentemente Doyle está planejando atrair as simpatias deles.- A voz de Webb soava dura, uma carranca precavida em seu rosto. Fora um golpe esperto. A inteligência da manobra tornou-se ainda mais evidente quando os jurados entraram em fila e Webb viu que o júri consistia de agricultores de trigo. Perpassou-o a sensação desconfortável de que subestimara Doyle Pettit pela segunda vez, contudo não conseguia perceber o que Doyle esperava ganhar libertando Kreuger. Certamente esperava uma chance melhor de obter a terra de Kreuger se ele fosse absolvido.
Quando Helga Kreuger se sentou, Doyle Pettit acomodou-se em seu assento e fez sinal a seu cliente para pegar a cadeira junto a sua. Kreuger fez o que ele mandara com lentidão, virando o olhar maligno ao perceber Webb Calder na segunda fila.
- Calder está aqui - disse a Pettit.
- Não pense nele agora - ordenou Doyle, mal movendo os lábios ao lançar o aviso. - E tire essa expressão do rosto. Se os jurados virem, você vai acabar com o pescoço no laço.
- É o que ele espera que aconteça comigo. - Kreuger virou-se para o banco do juiz.
- Então só precisamos enganá-lo, não é? - Doyle olhou para Kreuger e sorriu com os olhos. Por um momento, pensou que o apelo não ia funcionar; por fim, a expressão de Kreuger mudou para a apatia. Mentalmente, Doyle recordou a si mesmo que Kreuger poderia ser um trabalho de simples manobra.
O juiz entrou e todos se puseram de pé quando bateu o martelo e pediu ordem no recinto. O julgamento começara.
com a declaração de culpa, Doyle Pettit tentou provar que o ato fora cometido sob circunstâncias atenuantes. Dentro de poucos minutos, Webb percebeu que era Hobie Evans que estava em julgamento e não Franz Kreuger. Uma dúzia de testemunhas atestaram o abuso físico e os insultos que haviam sofrido nas mãos do assassinado. Depois que Evans foi pintado mais negro do que o demônio, Pettit eloquentemente detalhou todas as durezas e perdas que Kreuger suportara: a seca assassina, a colheita perdida com a praga dos gafanhotos, a morte dos filhos e a doença debilitante da mulher. Comparou aquela experiência à de Jó, na Bíblia, suportando tudo em silêncio até ver um vizinho sofrendo nas mãos de um capanga cruel e vilão. Por fim, aquilo fora demais para ele. Em suma, Pettit pediu ao júri misericórdia para aquele homem e sua mulher digna de piedade e que precisava do marido.
Webb ouviu tudo. A seu lado, Lilli lhe transmitia a tensão que a fazia pálida. Quando o júri saiu do tribunal para decidir o veredicto, ele a tomou pela mão e apertou os dedos entre os seus.
Ela não conseguiu encontrar conforto no gesto, embora tenha apertado a mão do marido com força. Ninguém saiu do tribunal, como se suspeitando de que o júri de doze homens bons e verdadeiros não demorasse muito a deliberar sobre o veredito. Em menos de vinte minutos, eles retornaram ao tribunal e tomaram seus assentos.
Quando o juiz leu o veredito que considerava Kreuger culpado de uma acusação menor, suspendendo a sentença, Lilli se pôs de pé.
- Não! - Protestou zangada contra a decisão que libertava Kreuger. - Vocês não podem fazer isso! - As mãos crispadas em punhos caíam rígidas a seu lado.
Webb levantou e pegou-a pelo braço para contê-la.
- Não adianta, Lilli. - A voz soava baixa e áspera. - Você não pode mudar a decisão. - Forçou-a a voltar-se e guiou-a pelo corredor, deixando a sala do tribunal. Ela não ofereceu resistência, mas seu corpo continuou rígido, toda ela contraída.
Outras pessoas saíam, algumas detendo-se para assistir a cena tocante da retirada das algemas dos punhos de Kreuger e sua reunião com a esposa. Simon afastou-se dos Calder e dirigiu-se em meio à multidão para Helga Kreuger, preocupado que o julgamento tivesse sido demais para ela.
Lágrimas corriam pelas bochechas pálidas de Helga, enquanto ela se lançava nos braços do marido. Estava muito fraca para chorar ou tossir, fazendo débeis tentativas que só minavam ainda mais sua resistência.
Símon voltou o rosto zangado e carrancudo para Doyle Pettit.
- Saia daqui - exigiu. - Ela precisa de descanso e repouso na cama, e muito.
- Tenho um quarto para ela na hospedaria no fim da rua. - Doyle não mostrou preocupação, fazendo sinal aos dois homens que haviam trazido Helga Kreuger ao tribunal para que a levassem de volta.
Franz protestou:
- vou levá-la para casa.
- Ela não está em condições de viajar - contrapôs Simon Bardolph.
- Não vê que está doente? Ela precisa de descanso, e não estou falando em uma ou duas horas de repouso. Estou falando de dias e semanas.
O som terrível da tosse da mulher convenceu Franz Kreuger onde o aviso do médico fracassara. Resmungando, ajudou-a a ficar de pé e sustentou-a através da multidão já menor.
- Como você pôde fazê-la passar por uma provação como essa? Simon olhou atentamente para o homem que acreditara ser um indivíduo compassivo.
- Não tive escolha.
- Não, imagino que ela fosse um instrumento importante para obter a soltura de Kreuger - acusou ele. - Portanto, você a usou e venceu. Espero que saiba o que está fazendo, colocando um homem desses em liberdade.
- Não o coloquei em liberdade. Foi o juiz que fez isso - recordou Doyle suavemente. - Como médico, é sua obrigação fazer tudo que pode para salvar um paciente. E é minha obrigação defender meu cliente com o máximo de minha habilidade. O certo e o errado ficam a cargo da decisão do júri e do juiz. Não posso fazer nada além disso.
A comparação não deixava margem a argumentação, mas Simon ainda assim não gostava da ideia. Tudo estava escrito na expressão rígida de Doyle, enquanto ele se afastava do advogado, a opinião do médico em relação ao homem mudando com rapidez.
Do lado de fora do tribunal, Webb estacou com Lilli na calçada. Ela não dissera uma palavra, mas ele percebia o olhar indignado no rosto dela na única vez em que o virou para o marido. O tempo todo ela temera que de alguma maneira Kreuger fosse posto em liberdade, e ele não acreditara na possibilidade. Kreuger matara um homem, atirara nele pelas costas diante de várias testemunhas e estava saindo do tribunal como homem livre. Webb observou-o levando a mulher fraca até a carruagem que esperava.
- Webb, quero ir para casa. Agora. - Lilli fora tomada por uma ansiedade que não conseguia espantar. Era uma espécie de medo desarrazoado que não sabia explicar. Mas de súbito tornou-se imperativo voltar à fazenda nessa tarde.
Ele pegou o relógio no bolso do colete e viu as horas.
- Está tarde. Nunca chegaríamos antes do anoitecer e não vou me arriscar a dirigir nessas estradas no escuro.
- Por favor, tenho a sensação de que devemos ir. - Ela o fitou intensamente, implorando em silêncio que a ouvisse. - Quero ver Chase e me certificar de que ele está bem.
Webb hesitou. Por um instante, Lilli pensou que conseguira convencêlo; mas ele sacudiu a cabeça negativamente.
- Não. Vamos passar a noite aqui como planejamos e sair de manhã cedo. Ruth tomará conta de nosso filho.
- Está bem - admitiu ela, com mais do que um simples traço de agitação.
Passou o braço pela cintura da esposa e trouxe-a para junto de si.
- Essa história do Kreuger assustou você. - Sorriu carinhoso para ela. Seus olhos irradiavam orgulho pela mulher elegante e forte que carregava seu nome. Ela era bela e corajosa, possuidora de uma vontade que assemelhava-se à dele. Mesmo agora, ela afastava o medo que nublava-lhe o olhar.
- Talvez - concedeu.
- Acha que vou conseguir persuadir uma certa senhora casada a jantar comigo essa noite? - ele murmurou, a voz mais rouca.
- Você pode tentar - ela replicou com um leve tom de desafio.
O sol da tarde inclinava-se em direção a oeste, lançando seus raios através da janela da hospedaria. Franz Kreuger abaixou a persiana para que a luz não perturbasse a mulher. Ela fechara os olhos há poucos minutos, finalmente conseguindo adormecer. Ele saiu silenciosamente do quarto e desceu as escadas para a sala de estar.
- Como está ela? - Doyle Pettit ergueu os olhos por um instante, terminando em seguida de derramar o líquido de sua garrafinha de bolso em um copo.
- Finalmente ela dormiu. Vai melhorar. - Franz Kreuger recusava-se a acreditar em outra possibilidade. Foi até a janela, a impaciência dirigindo seus atos; o olhar era duro e inquieto. - Devíamos ir para casa. Há muito tempo estamos longe de casa. Há muito trabalho a ser feito.
- Parece que vai demorar um bom tempo até sua mulher estar em condições de viajar. - Doyle serviu um drinque da garrafa contrabandeada.
- vou ter que deixá-la aqui até que melhore. - Franz estava confiante que a esposa compreenderia. Ela nunca discordara de quaisquer de suas decisões, e perceberia o sentido dessa. - Decidi ir hoje à tarde.
- Calder só vai embora de manhã, portanto é uma boa ideia você ir embora hoje. - Doyle concordou com um movimento de cabeça. - vou providenciar para que a Sra. Rogers tome conta de sua esposa até ela se sentir melhor.
Kreuger olhou para ele, a desconfiança assomando em seus olhos estreitos.
- Você fez muito por mim, e não posso pagar.
- Mas você vai me pagar. - Doyle sorriu, afastando a preocupação.
- Orgulho-me de saber julgar bem o caráter das pessoas, Kreuger. Você é do tipo que sempre paga suas dívidas. Essa seca não vai durar para sempre. E enquanto você tiver sua terra, vai colher trigo um dia. Isso significa negócios para meu armazém de grãos, meu banco, e minha loja de ferragens. Ajudando você, também ganho muito. - Muito mais do que Kreuger jamais suspeitara. Doyle estava con f iante de que tudo daria certo como planejara. Ergueu o copo e bebeu-o em silêncio.
Kreuger viu as muitas formas com que Pettit lucrava ajudando-o, e sentiu-se mais tranquilo. Chegaria o dia em que o pagaria. Não aceitava a caridade de ninguém. Pettit indicara respeitá-lo por isso, o que agradou Kreuger. Preferia morrer a cair aos pés de algum homem, portanto não agradeceu a ajuda que Doyle lhe dera. O homem seria pago, consequentemente a gratidão não era necessária.
- vou embora agora - anunciou Kreuger. - Por favor, diga a minha mulher que virei buscá-la daqui a três semanas.
- Claro. - Doyle baixou a cabeça. Depois que Kreuger saiu da hospedaria, um sorriso espalhou-se em seu rosto e uma luminosidade diferente começou a brilhar em seus olhos. - Corra para casa, Kreuger - ele murmurou, soltando uma risadinha baixa. - Corra para casa.
Na manhã seguinte, bem cedo, o Modelo T estava na estrada, fazendo a viagem de volta à fazenda. Webb e Lilli passaram por famílias de colonos, visão comum atualmente. Alguns estavam a pé, outros em veículos de carga arruinados e outros ainda em carroças. Mas a poeira não parecia tão ruim. E o vento produzido pelo automóvel tornava a temperatura quente suportável. Havia extensões de terra escurecidas por incêndios nas pastagens e acres acumulados em dunas de terra, salpicados com cardos que serviam de forragem para vacas leiteiras. Dirigiam ao longo de fazendas remexidas, com galinhas ciscando inutilmente a terra e porcos magros chafurdando a poeira.
Foi um alívio quando chegaram ao portão da Fazenda Triplo C. Aqui o terreno ondulado estava coberto de capim marrom, seco e queimado, mas era uma cobertura que mantinha a terra intacta.
- Estamos quase chegando. - Webb tirou os olhos do caminho o suficiente para fitar Lilli.
O vento soprando soltara tufos dos cabelos escuros da esposa, aos quais o sol ateava fogo. A boca carnuda entreabriu-se em um sorriso fraco diante do fim esperado da viagem.
- Gostaria que pudéssemos ir mais rápido.
Adiante, havia uma extensão da estrada aplainada. Webb pisou no acelerador, a paisagem transformando-se,em uma mancha lateral. Estavam quase na metade da reta quando, ao mesmo tempo, houve uma explosão e o volante foi subitamente puxado para a direita, quase saindo das mãos dele.
Um pneu furado. Webb lutou para recuperar o controle, mas o automóvel derrapou violentamente para a direita, foi de encontro a uma vala e parou abruptamente junto a um aterro. Passou-se um segundo inteiro até Webb perceber que não estavam mais em movimento. Assim que virou, viu Lilli jogada contra a porta.
Um medo selvagem fisgou-o ao estender a mão para ela, chamando seu nome. O corpo da mulher estava inerte quando a tomou nos braços. Um corte bastante fundo coloria-lhe a têmpora direita. Os dedos dele buscaram o pulso da esposa, mas a pulsação não estava forte. O coração de Webb começou a bater loucamente em seu peito, o sangue bombeando com força. Tão cuidadosamente quanto possível, ele a deitou no assento e esticou o braço para abrir a porta.
Houve o estampido ressoante de uma bala ricocheteando no metal do carro, e Webb atirou-se ao lado de Lilli. Não fora um acidente. Alguém atirara no pneu. Outro tiro perfurou o estofo do assento a poucos centímetros acima da cabeça de Webb. Ele esticou o braço para abrir o porta-luvas e tirar um revólver que sempre ficava ali, principalmente para defendê-lo das cobras, comuns naquela parte do Estado. Não era difícil encontrar uma quando estava trocando um pneu. Quem quer que estivesse atirando possuía um rifle, mas ao menos Webb também estava armado.
Consciente de que precisava desviar o tiroteio do carro, onde Lilli poderia ser atingida, Webb esperou até que o terceiro tiro quebrasse o pára-brisa. Deu um chute, abrindo a porta e rolou para fora, contando com o fator surpresa. Caiu no chão e continuou a se movimentar. Dois tiros ecoaram em rápida sucessão, atingindo o solo atrás dele enquanto o agressor escondido tentava mirar no alvo em movimento. A erosão expusera um afloramento de carvão logo à frente dele. Webb investiu para o abrigo oferecido pelo terreno, agarrou-se ali e entrou. Outra bala fragmentou a extremidade de carvão, o mineral em pedaços salpicando a mão de Webb, que puxou-a e encostou-se contra a pedra.
Estava ofegante; o suor brotava de sua testa e do lábio superior. Todos os tiros tinham vindo do mesmo rifle. Só havia uma pessoa ali. A julgar pela direção dos tiros, o homem tinha que estar naquela área de pinheiros mortos na colina, do outro lado do caminho. Webb verificou o revólver. Só havia cinco balas, o cão descansando sobre o tambor vazio. Ele virou o tambor esperando que lançasse alguns projéteis.
Havia a possibilidade de algum cavaleiro da Triplo C estar nas vizinhanças e ter ouvido os tiros. Mas com Lilli ferida e inconsciente, Webb não podia correr o risco de esperar ajuda.
Até o momento, o atacante não sabia que ele estava armado, o que dava uma ligeira vantagem a Webb. com somente cinco balas, ele não podia desperdiçar tiros no homem, o que lhe deixava somente outra opção: aproximarse de seu atacante. Ele tinha pouca cobertura a seu redor. O lugar da tocaia fora bem escolhido. A colina e as árvores ofereciam um bom local para atirar. Webb teria que confiar nas dobras do terreno e ocultar sua movimentação, mas primeiro precisava verificar a localização de sua presa.
Fez um movimento como se pretendesse arremessar-se para a proteção do Modelo T e deixou o disparo do rifle levá-lo de volta ao afloramento de carvão. Dessa vez ele procurou pontos vermelhos nos pinheiros. Percebeu-os entre os galhos da árvore mais baixa da elevação, hastes marrons e frágeis ocultando o atirador.
Não ouvia qualquer som proveniente do Modelo T, nada que indicasse que Lilli recobrara a consciência. Os lábios dele estavam secos de medo e ele umedeceu-os. Não podia se permitir pensar nela, não agora em que toda sua concentração devia estar em sua movimentação.
O mais silenciosamente possível, Webb deitou-se no chão e deixou o chapéu no esconderijo de carvão. Em seguida, começou a sair, arrastando-se como uma cobra através do capim, usando cada depressão e dobra do terreno. Estava muito exposto. A cada minuto esperava ouvir o ruído de uma bala junto a sua cabeça. Mas o descampado era sua proteção, pois tranquilizava o atacante, fazendo-o acreditar que ele não poderia se aproximar nessa terra enganosamente plana.
Pareceu levar uma eternidade para engatinhar até a encosta da elevação. O nariz e a garganta de Webb constantemente coçavam, devido à poeira e ao cheiro do capim seco. Um vento persistente abafava parcialmente os ruídos farfalhantes que ele fazia. Webb deteve-se, a camisa manchada de suor, tentando chegar o mais próximo possível das árvores. Flexionou os dedos, apertando a coronha da pistola.
O resfolegar baixo e suspeito de um cavalo ecoou da direita, atraindo o olhar de Webb para aquela direção. Um cavalo de tração, alto e esquálido, estava amarrado ao capim nas costas da colina. Por um segundo, Webb levou um choque ao reconhecer o animal como um dos cavalos de Kreuger. Kreuger! Era ele o atacante.
Webb praguejou contra si mesmo por não ouvir os avisos de Lilli sobre o homem. Mas mesmo que tivesse ouvido, não havia nada que pudesse ter feito. A lei julgara e libertara Kreuger, para matar novamente.
O cavalo bufou percebendo sua presença. Não havia mais tempo para pensar sobre como as coisas poderiam ter sido diferentes, ou como ele estava próximo de Kreuger. Kreuger teria ouvido o cavalo e suspeitado do Que o estava assustando. Tinha de agir agora.
Pondo-se de pé, ele lançou o corpo na direção em que esperava encontrar Kreuger e levantou o cano da arma. Kreuger estava saindo de trás de uma árvore, meio de lado para olhar a colina, ao invés de observar o lado onde Webb estava.
Jogue o rifle no chão, Kreuger! - Webb apontava a arma para ele, o dedo descansando no gatilho.
Não se passou nem uma fração de segundo entre o som da voz de Webb e o giro do colono. Ele não teve tempo de levar o rifle ao ombro, dando um tiro enquanto se virava. A bala afundou na manga da camisa de Webb. Por puro reflexo, apertou o gatilho e sentiu o coice do revólver na mão.
O impacto do tiro atingiu Kreuger em pleno peito. Ele cambaleou, mas recobrou-se. Dessa vez ergueu o rifle e fez mira. Webb atirou novamente, dando um passo para a esquerda, enquanto a espingarda dava um coice, expelindo uma chama. Webb ouviu o som da bala passando por ele. O braço esquerdo de Kreuger caía inerte, uma mancha escarlate espalhando-se pela manga. Ele ainda tentou recobrar o equilíbrio e mirar o rifle com o braço bom. Webb trincou os dentes e disparou novamente, percebendo que o homem não ia parar até morrer.
O rifle foi arrancado das mãos de Kreuger, que girou e caiu no chão. Webb avançou, a arma apontada para o homem como faria com um animal de rapina que fora acertado mas não estava morto. com esforço quase sobre-humano, Kreuger tentava arrastar-se até o rifle. Webb chegou primeiro e pegou a arma. Kreuger virou a cabeça para olhá-lo. O ódio em seus olhos não diminuíra.
- Maldição, Kreuger. Por quê? - vociferou Webb, ouvindo o borbulhar do sangue do homem nos pulmões.
- Você ateou fogo à minha casa. - O sangue saía pela boca, correndo escarlate pelos lábios. - Você mandou seus homens botarem fogo na minha casa. Pettit me avisou que você poderia tentar, então... - A voz fraquejou, tornando-se ininteligível, a luz dos olhos obscurecendo.
- Pettit? - Uma carranca marcou os traços de Webb. Ficando de cócoras, ele agarrou o ombro de Kreuger. - O que diabos você quer dizer com Pettit avisou você? - Mas ele fitava olhos que não viam.
Kreuger estava morto e o solo seco e rachado já estava sorvendo o sangue do homem. Webb sentiu o estômago nauseado até pensar em Lilli. Logo estava correndo colina abaixo, compelido pelo temor por ela.
Lilli estava deitada no assento como a deixara, sem sinal de haver se recuperado. A pulsação estava fraca, a respiração quase imperceptível.
Webb teve que trincar os dentes para conter os soluços. era um por amor de Deus, não morra- Preciso de você. - A voz era um lamento rouco Que vibrava em um sussurro.
Ele se afastou para verificar os danos causados ao automóvel. O pára-lama dianteiro direito estava encostado ao aterro, tornando impossível trocar o pneu furado. Ele tentou ligar o motor para levar o carro para o chão livre, mas o motor não pegou. Quando Webb levantou a capota para localizar o problema, ouviu o ruído de cascos no chão, assinalando a aproximação de cavaleiros. Abriu a porta do carro rapidamente e tomou Lilli nos braços.
Quando Ike Willis e Nate Moore aproximaram-se, estava de pé no meio da estrada, esperando por eles. Os cavaleiros deram rédeas aos cavalos até pararem.
- Ouvimos tiros. O que houve? - indagou Nate, desmontando, um olhar preocupado em direção à mulher inerte nos braços de Webb.
- Kreuger. O corpo está lá em cima. - Webb fez um movimento com a cabeça indicando a colina. - vou pegar seu cavalo, Nate. Ike, você vai até o médico. É a cabeça dela. Ela bateu... - Engasgou, incapaz de terminar a frase. Nate segurou as rédeas de seu cavalo e Webb subiu para a sela com Lilli nos braços.
Nate ficou de pé na estrada enquanto os dois cavaleiros saíram em direção opostas. Ele era bom na leitura de sinais, portanto não demorou muito a compreender o que acontecera.
Simon permanecia de pé, inconsolável, ao lado da cama, observando a vida escorregar do corpo de Lilli a cada minuto. Não havia nada que pudesse fazer, exceto controlar-lhe os sinais vitais de pulsação e respiração. Webb estava jogado a uma cadeira junto à cama, as mãos grandes apertando a mão dela em um esforço silencioso de transmitir-lhe sua força. Havia uma tristeza profunda nos olhos escuros e uma palidez cadavérica nos traços bronzeados pelo sol.
Debruçando-se sobre ela, Simon examinou novamente o pulso com um estetoscópio e não encontrou as batidas do coração. Ela se fora tão rapidamente que não pôde nem dizer o exato momento. Lágrimas corriam em seus olhos quando olhou para Webb.
- Eu perdi - fez ele. - Sinto muito.
Simon preparou-se para a negação, a descrença de Webb, mas elas não vieram. A cabeça escura estava abaixada. As mãos apertavam tanto a dela que as juntas estavam brancas. O silêncio foi mais difícil de suportar do que uma explosão de dor e protesto.
Quando falou, a voz de Webb soou anormalmente baixa e áspera.
- Deixe-me ficar sozinho com ela.
Simon deixou o quarto, as faces trémulas e os olhos tão enevoados de lágrimas que mal conseguiu enxergar a porta. Fechou-a e apoiou-se nela, a respiração saindo aos arrancos. Do outro lado da porta, ouviu o arrastar de uma cadeira.
Webb sentou-se na borda da cama, as lágrimas correndo pelo rosto. Tomou Lilli em seus braços e escondeu o rosto nos cabelos escuros da mulher. Soluços profundos e violentos sacudiam-lhe o corpo. Segurou-a assim até não haver mais calor no corpo dela.
Seu rosto estava inexpressivo, toda a dor escondida sob os traços de pedra. Webb postava-se ao lado do túmulo aberto, os pés ligeiramente separados, o filho de quase um ano nos braços. O padre rezava sua oração para os que acompanhavam o enterro. À exceção de Simon Bardolph, eram todos cavaleiros da Triplo C e suas famílias.
Um vento redemoinhante ergueu a terra da cova recém aberta, amontoada ao lado do túmulo, jogando-a sobre os presentes. O pequeno Chase esfregou o nariz, fazendo cara de desagrado com a poeira perfurante que o golpeava, mas Webb não se deu conta disso.
com o fim da oração, Webb deu um passo à frente e mudou o filho de braço. Uma pá estava plantada sobre o monte de terra. Ele a agarrou e encheu-a com terra solta, ajudando com o pé e atirando a terra no túmulo. Os torrões faziam um ruído oco quando caíam no caixão de madeira. Webb mergulhou a pá na terra uma segunda vez e ergueu-a, oferecendo-a ao filho. A mãozinha fechou-se sobre a terra. Em seguida, Chase lançou um olhar radiante para o pai, pensando que estavam brincando.
- Jogue no chão, filho - pediu ele, a voz impassível, seguindo-se a um movimento de cabeça em direção ao túmulo.
Impulsionando a mão, Chase soltou a terra na direção da cova e bateu palmas. Estendeu a mão para pegar mais, querendo repetir a ação, mas Webb esvaziou a pá sobre o túmulo. Em seguida, passou a pá a Nate Moore, de pé com os pais. Deu um passo atrás, uma figura solitária em seu terno de casimira preta, demasiado impassível e silencioso. E a criança em seus braços só tornava a cena mais pungente.
O céu escurecia a oeste quando o último dos presentes lançou sua pá com terra na cova. Olhares ansiosos desviaram-se naquela direção Ninguém confundiu a nuvem lúgubre. Já haviam visto formações similares muitas vezes para que não soubessem que era uma parede de poeira levada pelo vento, conhecida como vagalhão negro.
Antes qUe o gruPo de Assistentes se dividisse em direção a suas casas, ele aproximou-se de Ruth Haskell e o marido. Chase estendeu os braços para a mulher que era sua segunda mãe, e Webb entregou-o a ela.
Cuide dele por mim, Ruth - pediu ele e afastou-se.
- Aonde você vai? - Nate aproximou-se e acariciou a crina do ani mal com os dedos, fitando Webb de soslaio.
- Pra cidade. - Ele apertou a cilha e passou a tira em torno do anel.
- Pra quê?
- Tenho umas perguntas a fazer ao Pettit.
- Não pode deixar pra depois? - Já estava escurecendo. - Vem vindo uma tempestade de areia.
- Não, não dá pra esperar. - Webb pegou as rédeas e colocou a bota sobre o estribo.
- Então vou com você. - Nate ofereceu-se, querendo descobrir por que era tão importante para Webb falar com Doyle Pettit.
- Obrigado, mas não preciso de companhia. - Passou por Nate e saiu com o cavalo pela porta aberta da cocheira, em direção ao pátio da sede.
A nuvem de poeira negra lançava uma comprida sombra escura sobre a terra, obstruindo os raios de sol e transformando o dia em um falso entardecer. A maior parte do tempo, ele cavalgou em direção a Blue Moom na frente da nuvem, mas ela o pegou a sete quilómetros da cidade. A tempestade envolveu cavalo e cavaleiro em um véu de poeira. O vento chicoteava o rabo curto do cavalo entre as pernas enquanto o buckskin baixava a cabeça, contraindo as narinas para fechar a abertura às partículas de poeira, movendo-se pesadamente pela estrada. Webb virou o colarinho e amarrou um lenço em volta do nariz, curvando os ombros contra a poeira.
Os prédios estavam todos com as persianas abaixadas e cobertos com tábuas quando Webb chegou à cidade. Alguns estavam fechados permanentemente e outros se protegiam contra a tempestade. A rua estava suja com os papéis que voavam com o vento, latas, garrafas e plantas. Telhas haviam sido arrancadas de telhados, transformando-se em mísseis voadores.
Havia uma placa dizendo Fechado na frente do banco. Webb levou o cavalo para o beco ao lado do banco, o edifício próximo obstruindo a força do vento. Havia uma luz na janela de trás do banco. Webb desmontou junto à porta dos fundos e tirou a arma e o coldre do alforje, afivelando-o em torno dos quadris. O buckskin movia-se ao lado do prédio, aproveitando o abrigo contra a tempestade.
Quando Webb tentou abrir a porta dos fundos do banco, a maçaneta correu livre em sua mão. Abriu a porta e entrou, baixando o lenço e aspirando o ar empoeirado.
A luz no prédio imerso em escuridão provinha do escritório de Doyle Pettit. A porta estava entreaberta e Webb entrou esgueirando-se. O vento uivante do lado de fora encobriu qualquer ruído que porventura Webb tivesse feito. No entanto, quando Doyle Pettit ergueu os olhos de trás da mesa, não pareceu surpreso em vê-lo.
Uma garrafa de uísque vazia pela metade esperava diante dele, que tinha um copo na mão. A sombra da barba por fazer crescia em seu rosto e ele parecia ter dormido com a mesma camisa. Olhou para Webb com os olhos tomados pela bebida. Um sorriso surgiu rapidamente nos lábios de Doyle Pettit, sorriso que Webb conhecia desde sempre, intensificando o contraste entre o homem que conhecera e aquela pessoa alquebrada e desesperada sentada atrás da mesa.
- Olá, Webb. - Até a voz estava estranhamente impassível, como se Doyle tivesse deixado de se preocupar com a vida. - Sabia que você ia aparecer, mais cedo ou mais tarde. Fico contente de não ter tido que esperar muito.
- Você sabe que minha mulher morreu? - Deu um passo em direção ao centro do recinto, mas não sentou, embora houvesse uma cadeira vazia diante da escrivaninha.
- Sei, sim. - Doyle não conseguiu enfrentar o olhar de Webb e baixou a cabeça, estendendo a mão para a garrafa de uísque, enchendo o copo novamente. - Não espero que acredite em mim, mas sinto muito mesmo pelo que aconteceu.
- Antes de Kreuger morrer, disse que você o avisou de que eu poderia colocar fogo na casa dele. - Dentro da afirmação, havia a exigência de explicação.
- Não foi exatamente isso. - Doyle ergueu a garrafa na direção de Webb, oferecendo um drinque silenciosamente, mas Webb recusou com um movimento de cabeça. A mão de Doyle tremia quando ergueu o copo e bebericou o drinque. - Ele achava que você faria alguma coisa do género, e eu o encorajei a pensar assim.
- Então você ateou fogo à casa, sabendo que ele colocaria a culpa em mim - adivinhou Webb.
- Paguei dois vagabundos para fazer o serviço, mas ordenei que ficassem até o fogo apagar, para terem certeza de que o incêndio não se estenderia para a pastagem - fez Doyle, como se a precaução de alguma maneira compensasse o resto.
- Você sabia que Kreuger viria atrás de mim. Sabia que ele tentaria me matar. Era o que você queria que ele fizesse. Por quê, Doyle? Por quê?
- Webb perguntou friamente.
A cadeira rangeu barulhenta sob o peso de Pettit, que se recostou e olhou para o teto.
- Estou acabado. Perdi tudo. - Baixou o olhar para Webb. - O banco, o armazém de madeiras, toda minha terra, até a fazenda de papai. Perdi tudo. Estava vendo que isso ia acontecer e estava desesperado, tentando deter a catástrofe. Sempre quis ser grande, Webb. - Os olhos reviveram com a paixão do poder. - Queria ter tudo: dinheiro, terras, poder e o que vem com isso. Estava quase chegando lá, Webb, mas precisei colocar a mão em muito dinheiro e alguns bens que pedi emprestado.
- Você estava atrás da Triplo C. - O vento sacudia as vidraças da janela, o uivo ininterrupto sempre ao fundo, mas a atenção de Webb não se afastou do homem atrás da mesa.
- Você tem que acreditar em mim, Webb, se eu tivesse outra escolha teria usado. Não teria pegado a fazenda. - Ele tentou explicar. – com você fora do caminho - Doyle evitou a palavra "morto" - seria mais fácil me fazer designado administrador da propriedade de seu filho. Eu guardaria a propriedade para seu filho. Se eu conseguisse somente um empréstimo da Triplo C, ele teria me tirado dessa situação. Eu pagaria de volta.
- Então você convenceu Kreuger a me tirar de cena. - A mandíbula permanecera inflexível. Ele não tinha pena de Doyle, não com Lilli debaixo da terra por culpa dele.
- Você não sabe o que passei no dia seguinte ao julgamento. - Baixou a cabeça e meneou-a; ergueu a garrafa de uísque mais uma vez. - Fiquei pensando se você estaria vivo, e matutando se poderia conviver comigo mesmo se você estivesse morto. Foi quase um alívio ver você aqui. Sei que não acredita nisso, mas é verdade.
O ódio transbordou no interior de Webb quando arrancou o copo das mãos de Doyle com um movimento zangado do braço.
- Eu poderia matá-lo pelo que fez. - As palavras amargas escaparam entre dentes em um resmungo baixo.
Distraído, Doyle limpou o uísque derramado na camisa. Um sorriso triste surgiu em seu rosto ao erguer os olhos para Webb, elevando-se sobre a mesa.
- Seria um ato de misericórdia se você me matasse. Estou arruinado. Nesses dois últimos dias tenho pensado em cometer suicídio, mas não tenho coragem. Acho que por isso fiquei aqui sentado esperando você.
Webb pegara a arma com ideia de matar. Agora, deu um passo atrás, afastando-se da mesa e puxando lentamente a arma. Doyle estava recostado à cadeira, a camisa branca amassada um alvo fácil. Webb virou a arma, segurando-a pelo cano, e pousou-a na escrivaninha.
- Você sempre convenceu alguém a fazer seu trabalho sujo. Se não fosse Kreuger, seriam aqueles vagabundos que contratou para botar fogo na casa dele. - A voz soava abafada, enojada. - Se você quer morrer, vai ter que puxar o gatilho. Não vou tornar essa tarefa mais fácil para você.
Ele saiu de trás da escrivaninha, os ombros e as costas rígidas enquanto caminhava em direção à porta.
- Não, Webb! - ele ouviu o soluço de Doyle e continuou seu caminho. - Não me deixe! Volte!
Ele já estava no corredor, estendendo a mão para a maçaneta da porta dos fundos. Hesitou por um segundo, em seguida abriu a porta e mergulhou na falsa escuridão provocada pela tempestade de poeira. A terra girava em torno dele, obscurecendo o buckskin encostado ao prédio, a cabeça baixa. Webb pegou as rédeas e começou a levar o cavalo pelo beco. O vento uivante foi pontuado por um estouro. Podia não ter sido nada, uma telha solta de um telhado ou uma garrafa quebrando contra um alicerce.
Webb atravessou a rua, guiando o cavalo pelo beco e terminando no bar de Sonny, ao lado da casa onde Simon clinicava. Colocou o buckskin abrigado atrás da choupana e entrou. Simon ainda não voltara, provavelmente esperando em algum lugar até que a tempestade passasse. Webb serviu um drinque e esticou-se em uma cadeira, deixando a dor tomar conta de seu rosto, esvaziando seus traços. Em algum momento adormeceu.
Foi o silêncio que o despertou. A tempestade passara. Pôs-se de pé, arqueando os músculos enrijecidos e paralisados. Seu primeiro pensamento foi voltar à fazenda para que Lilli não ficasse preocupada; em seguida, lembrou que ela não estaria na Casa-Grande. Sentiu um peso sobre si, saindo da choupana e selando o cavalo.
Quando guiava a montaria, viu o xerife aproximando-se e detendo-se.
- Pettit está morto - anunciou Potter, perscrutando o rosto de Webb para julgar-lhe a reação. Webb não deixou transparecer nada. Havia uma arma enfiada na cintura da calça do xerife. - É sua?
- É. - Webb pegou o revólver e colocou-o no coldre vazio. Voltando-se, montou e ajustou as rédeas.
- Pettit deixou um bilhete. Não quer saber o que dizia? - indagou o xerife. - É um bilhete para você. Queria que você o perdoasse.
Webb não teceu comentários, incitando o cavalo a afastar-se. Havia lágrimas em seus olhos pela mulher que perdera. Era uma dor que carregaria por muito tempo, um tempo de solidão. Dirigiu o buckskin em direção à fazenda, dando rédeas ao cavalo.
Da varanda da Casa-Grande, Webb observava a luz do sol do começo da manhã brilhar na superfície do rio que corria ao longo do vale e em torno das construções da fazenda. Os choupos estavam ficando verdes e o vasto capinzal além apresentava suas cores de primavera. Acima, o céu era de um azul profundo, finalmente lavado da poeira de alguns anos atrás, quando as chuvas vieram, designando o fim da seca assassina.
Desviou o olhar da pastagem para olhar Nate Moore. A postura do vaqueiro era descontraída enquanto enrolava um cigarro, tomando cuidado para não perder um pingo de tabaco. Era reconfortante observar o cowboy preparando seu cigarro: a continuação de uma tradição dos velhos tempos.
Três cavalos selados estavam amarrados junto à varanda, esperando pacientemente seus cavaleiros. O grupo de rodeio e a carroça-restaurante haviam saído há uma hora, quando o sol surgira no horizonte a leste.
- Quando fomos à cidade para o funeral do médico, ouvi que a casa do velho Beasley, ao norte daqui, foi comprada por algum marinheiro, vindo da guerra, chamado O'Rourke. - Nate passou a informação, riscando um fósforo nas calças e levando a chama até o cigarro.
- Já o conheço - assentiu Webb. - Ele veio se apresentar a mim. A língua dele é solta demais para o meu gosto.
Parte do prazer da manhã desapareceu quando seus pensamentos desviaram-se para Simon Bardolph. Fora um bom amigo. Talvez isso tenha tornado a morte tão sem sentido. Algum vaqueiro bêbado decidira descobrir com que rapidez seu caminhão rodava e bateu na traseira da carruagem de Simon, matando-o na hora.
- É, acho que O'Rourke fala tanto quanto suas vacas têm novilhos.
- Nate riu. - Ele comprou um pedaço de terra bem ruim. Um monte de terreno acidentado sem muita água.
O'Rourke não estivera ali durante a seca prolongada. Algo que os que passaram pela experiência não falavam. Mas dos quase oitenta mil colonos que tinham vindo para aquela terra, mais de sessenta mil haviam abandonado suas terras e se mudado. Aquilo se transformara em um êxodo em massa, deixando para trás fazendas desabitadas e cidades, além de duzentos bancos falidos. Muita coisa mudara em tão pouco tempo. Qualquer um que fosse a Blue Moon custaria a acreditar que um dia ela fora uma cidade em desenvolvimento explosivo, uma comunidade florescente brotando sobre seu filão. A maioria dos prédios pegara fogo quando alguém de passagem acendera uma lareira em uma loja abandonada, para aquecer-se.
A hospedaria ainda existia, e o dono era um homem chamado Jake. Tornara-se a versão de Montana de um bar clandestino, fornecendo bebida para os cowboys, que mais uma vez dominavam a região. Outro prédio fora convertido em posto de gasolina, mercearia e correio. A loja de ferragem começara a ter uma seção de secos quando o empório de Ellis fora junto com a fumaça. A estrada de ferro abandonara seus trilhos até Blue Moon. Agora voltara a ser uma nódoa na estrada.
Todos os traços do passado haviam sido apagados. Mas a terra ficara marcada, e jamais voltaria a ser a mesma. com exceção dos pontos em que havia água para irrigá-la, ela se transformara em pastagem para o gado, domínio dos pecuaristas. Mas o capim nativo nunca voltaria a crescer nas regiões onde o arado transformara a grama, aquela grama rica em proteínas que engordava o gado. Capim novo e duro crescera nos milhões de acres, mas não era a mesma coisa. A diferença era evidente quando se comparava ao pasto preservado da Triplo C, onde as planícies de capim haviam sobrevivido.
A porta da frente foi aberta com estrondo e um garoto de cabelos escuros e olhos castanhos atrevidos entrou estabanado na varanda. Webb virou-se, e pegou-o em seus braços, erguendo-o alto. Chase estava com cinco anos, quase seis, ansioso por cada nova experiência. Quando olhava para o filho, Webb entrevia Lilli na audácia do menino e em sua determinação, embora Chase não possuísse a cor da mãe. Sentia a garganta apertar e os olhos faiscarem, aprofundando o amor que sentia pelo garoto.
- Disse ao Buck que eu ia laçar um novilho. Eu posso, não posso? - indagou ansioso.
Webb decidira levar o filho com ele sempre que fosse possível. Este seria seu primeiro rodeio, e certamente não seria o último.
- com o que você tem praticado, não vejo por que não conseguiria.
- Webb sorriu, e percebeu em seguida a presença de alguém mais atrás.
Olhou por sobre o ombro. Ruth esperava junto à porta, segurando um saco de dormir e um alforje com algumas roupas do menino. Buck estava a seu lado, não tão grande quanto Chase, e sua boca formava um bico, enquanto ele olhava o amigo cheio de inveja.
- É melhor pegar suas coisas com a Ruth para irmos. - Webb colocou o garoto no chão e observou-o correr para pegar seu equipamento.
Era mais do que Chase podia carregar, mas Webb não ofereceu ajuda. O garoto tinha que aprender a se virar, e ele podia começar enquanto era jovem.
Nate desceu os degraus e aguardou ao lado do alazão manso que Chase ia montar. Era um cavalo adulto, maior que um pónei, treinado para trabalhar com o gado. Sua calma o tornara uma montaria adequada para uma criança, tornando desnecessário um pónei esgotado, que não conseguia sair do trote.
Chase conseguiu meio carregar e meio arrastar seu alforje e saco de dormir, descendo os degraus, onde Nate pegou o equipamento e colocou-o na tamanho de uma criança. Chase aprendera a montar sem ajuda, pendurando-se no estribo. Quando subiu para a sela, as per rédeas das mãos de Nate e olhou para o pai.
- Vamos, pai? - ele chamou.
- Em um minuto - Webb tranquilizou-o, voltando-se para Ruth.
- Se acontecer algo, pode mandar um dos rapazes me chamar.
- Tome cuidado - ela murmurou, observando-o juntar-se ao filho.
- Por que eu não posso ir? - reclamou Buck. - Chase vai.
- É, mas o pai está levando - argumentou ela calmamente. Buck olhou ansioso para o amigo indo embora.
- Queria que ele fosse meu pai...
As palavras penetraram no coração de Ruth, mas ela nada disse. Agora Webb era viúvo, mas ela ainda estava casada com Virg. Ficara em paz com seu coração e aprendera a contentar-se em cuidar da casa e do filho de Webb. Era tudo que podia ter, e era melhor não desejar mais.
Enquanto se afastavam da sede, Nate ia atrás de Webb e de seu filho. Era costume na fazenda não cavalgar na frente do patrão. Webb diminuiu o passo e Nate acompanhou.
Ao passarem pelas cocheiras com as enormes vigas de madeira e a imensa pastagem estendida diante deles, Webb lançou um olhar de soslaio para o garotinho no alto do grande cavalo.
- Algum dia tudo isso vai ser seu, Chase.
Era algo que estava determinado a instilar no garoto. Depois que Lilli morrera, fora mais fácil deixar Chase na casa dos Stanton, onde Ruth podia cuidar dele. Mas isso só durara quatro meses, até que Webb se deu conta de que era um erro. Chase era um Calder; pertencia à Casa-Grande. Precisava aprender que jamais seria algo diferente; sempre se esperaria mais dele. Webb não queria que Chase cometesse o mesmo erro que ele. Sempre seria Chase Calder e nunca um simples vaqueiro.
- É bastante terra, Chase, mas tem que ser grande assim para combinar com esse céu. - Havia orgulho nas palavras, orgulho com o legado que seria de seu filho.
Quando o mercado do gado entrou em colapso e veio a Grande Depressão dos anos trinta, os habitantes de Montana já haviam passado por situação semelhante uma década antes. Quando os Estados das planícies inferiores começaram a sofrer os anos de seca, os habitantes de Montana sabiam como era. As chuvas impediram que a terra sofresse pela segunda vez.
Quando a terra é maltratada, a natureza possui sua maneira de revidar. No fim, a terra retorna ao que a natureza pretendia, mas o custo é alto. A terra é o que é, não importa o que o homem faça ou pense poder fazer, Benteen Calder sabia disso, e Webb aprendera com ele.
As esperanças morrem e o homem prossegue, mas a terra permanece.
Janet Dailey
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