Cuzco, 1 de maio de 1536
Ninguém dá atenção a Gabriel quando, pouco antes do meio-dia, ele vai se agachar na esquina da cancha onde reside Gonzalo Pizarro.
A túnica que vem usando, já há algumas semanas, está bastante suja de modo a afastar os olhares. Ele esfregou argila no rosto para esconder os pêlos louros de sua barba que começa a crescer. Os espanhóis só vêem nele um pobre índio em andrajos, um daqueles miseráveis que passaram a viver nas ruelas de Cuzco. Por causa do barrete quadrado, com os cantos estranhamente pontudos, que ele usa bem enterrado sobre a testa, os índios, por sua vez, crêem estar diante de um camponês de Titicaca.
Enquanto isso, sob o unku, preso na cintura por uma estreita tira de couro, pesa um cassetete de bronze que contém todas as suas esperanças.
Gabriel entrou na cidade quando os primeiros raios de luz anunciavam a alvorada. Aproveitando-se da noite para evitar o fluxo incessante dos guerreiros convocados
por Manco e Villa Oma, ele caminhou sem parar desde a saída de Calca. Duas ou três vezes perdeu-se na escuridão, tendo que refazer o percurso até reencontrar o caminho e tornando mais longa sua jornada. Enquanto isso, sua raiva e seu sofrimento deram impulso a seus passos, impedindo-o de sequer pensar em repouso.
Somente agora, quando se reclina, apoiado no grande paredão aquecido pelo sol, Gabriel se dá conta da fome e do cansaço que entorpecem seus membros. Contudo, nem por um instante sonha se afastar para tentar encontrar alguma coisa para comer. Seu olhar permanece cravado na porta da cancha e dela não se desvia. Ele terá muito tempo, depois, para comer e para dormir, se isto ainda tiver sentido.
Ele está ali para matar Gonzalo. Não tem mais nenhum outro dever.
Ao longo de duas horas, ninguém entra nem sai da casa do irmão do Governador, exceto criados e um punhado de cortesãos.
Em sua maioria, são caras novas, homens cujo comportamento e roupas ainda recendem a Espanha. Percebe-se, no modo como enfiam o salto das botas na poeira, toda a arrogância dos novos senhores.
A fadiga torna as pálpebras de Gabriel pesadas, fechando-as. A sede e a fome volta e meia o fazem tremer dos pés à cabeça.
No entanto, por nada no mundo abandonaria seu posto de vigilância para buscar um pouco de água e de comida. Ele imagina o instante em que golpeará Gonzalo, em que finalmente o mundo será libertado daquele homem nefasto! Da bolsa de pano que traz pendurada no pescoço, sob a túnica, feita do mesmo tecido, retira algumas folhas de coca e as mastiga lenta e conscienciosamente até que a fome desapareça.
O relato terrível do Anão ainda o deixa louco de raiva:
- Gonzalo entrou no quarto de Anamaya. Ela estava dormindo. Quando acordou, ele já estava com as mãos nela. Anamaya gritou e eles lutaram. Manco queria matá-lo ali, naquele instante, mas Anamaya ficou muito temerosa que os estrangeiros se vingassem no Único Senhor. Então, fugimos de Cuzco antes do amanhecer...
Remoídas ao longo de dias, essas palavras terríveis já se tornaram imagens carregadas de um ódio gélido e ardente e, ao mesmo tempo, gelados que aguçam seus nervos muito mais que a fome e a sede. A cada inalação, ele respira a vingança como se bebesse um néctar. E assim, seus olhos permanecem bem abertos e os dedos entorpecidos se apertam em torno do punho do cassetete.
O sol quente da tarde pesa sobre ele e consegue atordoá-lo sem que Gonzalo Pizarro saia da casa. Gabriel acaba adormecendo, com a boca cheia de poeira, mergulhando num pesadelo onde descobre uma Anamaya distante, com o semblante endurecido pela determinação. Ela abraça seu esposo de ouro e declara:
"Nós devemos travar essa guerra contra vocês, os estrangeiros, porque as Montanhas e nossos Ancestrais precisam de nosso amor e de nossa coragem para não serem levados pelo nada. E eu estarei ao lado de meu esposo de ouro quando ele combater, pois é o meu lugar. E você, é preciso que se afaste de mim..."
Ele quer protestar, explicar que eles não podem se enfrentar como se fossem inimigos. Mas a boca de Gabriel se agita em silêncio. Ele faz um esforço sobre-humano para se fazer ouvir. Implora a Anamaya, suplica que ela abandone a dureza de seu olhar. Nada adianta. Nenhum som, nem mesmo um grito sai de sua garganta. Ele desperta tão brutalmente que escuta seu próprio gemido. Com o espírito dominado pela presença de Anamaya, nem sequer reconhece de imediato o cenário que o rodeia.
A sensação de impotência de seu pesadelo parece persegui-lo ainda durante alguns segundos. Depois, como se retorcesse o cabo de um punhal cravado em seu próprio peito, ele se recorda com clareza da resposta que deu a ela em Calca, depois da noite de amor: "Então, teremos que combater um ao outro. Se durante a batalha seu lugar for ao lado de Manco e longe de mim, Anamaya, é porque a seus olhos me tornei um 'estrangeiro 'como os outros. Nesse caso, meu lugar é entre os estrangeiros."
O sofrimento causado por aquelas palavras tinha feito os lábios de Anamaya tremerem. Acariciando o rosto dele com as pontas dos dedos, ela havia murmurado:
Você é o puma, meu amado! Você é o único homem que pode me tocar neste Mundo, como no Outro. Você e somente você é o único que toca meu coração e que pode me levar à felicidade neste mundo."
Sem se dar conta, Gabriel sorri ao mesmo tempo que duas lágrimas escorrem por suas faces cobertas de argila ressecada.
Sim. Não duvida que Anamaya o ame tanto quanto ele a ama.
A despeito disso, mais nada é possível entre eles. Distância demais e dramas demais se levantam para o futuro entre a esposa mágica de um Senhor inca há muitos anos morto e ele, o estrangeiro, que não é mais nada, nem mesmo entre seus velhos companheiros.
Sim, não lhe resta mais nada, salvo assassinar Gonzalo. E seria uma bênção do destino se ele pudesse morrer também! Um pouco antes de a sombra da noite descer sobre Cuzco, aquilo que ele espera finalmente acontece.
Uma algazarra dos diabos o arranca de seus devaneios. Vociferações infernais e gritos enchem a ruazinha estreita. Gabriel se levanta, os joelhos estalando e as coxas doloridas. Surge um porco, com a bocarra aberta. Um porco enorme de pêlos tão negros como a noite! Um verdadeiro "cerrano" da Andaluzia, pesando cerca de cinqüenta libras e arreganhando caninos de javali capazes de destroçar a barriga de um cavalo.
E depois, subitamente, aparecem outros. Uns trinta talvez, correndo com a cabeça abaixada, berrando como se já estivessem sendo degolados. Os machos seguem correndo em frente, enfiando a testa como bestas selvagens contra as paredes da cancha, enquanto as fêmeas de ventre pesado arrastam as tetas na poeira. Uma dezena de leitõezinhos enlouquecidos vêm atrás delas, gritando, ziguezagueando entre as pernas de alguns índios desajeitados e aos berros, que tentam controlar essa horda fedorenta como podem.
Recentemente elevados à função de guardadores de porcos, os camponeses de túnicas manchadas e sujas se agitam com longos bastões. Nem sequer ousam fazer uso deles para bater no traseiro dos porcos. Ao contrário, estão prontos para fugir quando um leitão esbarra neles. Na retaguarda, a uma distância prudente, uma multidão de cusquenhos começou a se formar. Homens, mulheres e crianças, às gargalhadas, arregalam os olhos para ver esse estranho cortejo.
Pondo-se aos berros, Gabriel salta para o centro da ruela. Ele chuta alguns traseiros redondos e, capturando um jovem macho pelas orelhas, bloqueia a debandada.
Subitamente imóveis, os porcos parecem se acalmar. De focinho levantado, olhos estranhamente atentos, eles calam seus gritos estridentes.
Completamente estupefatos, os porqueiros examinam o intruso com desconfiança. Gabriel os saúda em quíchua para tranqüilizá-los.
Mas quando pergunta para onde vão os animais, a resposta inicial é o silêncio. Ele se dá conta de que seu sotaque deve surpreendê-los tanto quanto seus trajes, o rosto onde a lama seca começa a se descolar e onde o suco verde da coca escorre da comissura dos lábios. Finalmente, um dos homens levanta a mão e aponta na direção da casa de Gonzalo:
- Para a casa desse estrangeiro. Esses animais são dele. Mandou que fossem trazidos de Cajamarca só para comê-los.
Na voz do homem há as mesmas medidas de incredulidade e respeito. Numa revelação repentina, Gabriel compreende que a sorte finalmente lhe sorri.
- Vou ajudar vocês - anuncia. - Eu sei como conduzir esse tipo de gado.
Mesmo assim, eles têm de batalhar durante algum tempo para que toda a vara de porcos atravesse a porta em forma de trapézio da cancha.
A algazarra recomeça e, agora, é maior ainda, pois as jovens criadas índias fogem diante dos animais excitados que galopam de uma extremidade à outra do pátio, derrubando e quebrando algumas jarras, irritando os cavalos que estavam recebendo cuidados.
A casa de Gonzalo não mudou quase nada em dois anos, desde que Gabriel esteve ali pela última vez. De novo, no máximo, há as sólidas portas, com um belo trabalho de marcenaria espanhola, que fecham as entradas para os aposentos e uma balaustrada construída no pátio para prender os cavalos.
Sem dar mais atenção aos porcos, Gabriel se posiciona no centro do pátio. Não precisa esperar muito para escutar, vindo do pátio vizinho, chamados e gargalhadas, e reconhecer uma voz odiada.
De camisa de jabô, calções de veludo e botas reluzentes, Gonzalo aparece, acompanhado de dois de seus cortesãos. Sem lançar um olhar para o homem que parece índio, eles ignoram Gabriel e se divertem com a agitação. Um deles agarra uma jovem criada e a segura à força para brincar com ela, oferecendo-a ao leitão mais violento. Antes que o porco ataque, Gabriel empunha seu cassetete de ponta estrelada e, com um golpe seco no braço, empurra o imbecil, obrigando-o a soltar a moça.
- Por Deus! - geme o infeliz. - Ele quase me quebrou o punho, esse macaco!
Furiosos, Gonzalo e seu companheiro já se preparam para bater nele, mas se imobilizam quando ele tira o barrete e revela o rosto. Com as costas da mão Gabriel esfrega as faces para tornar ainda mais fácil o reconhecimento. Gonzalo é o primeiro a se recuperar da surpresa e a reagir com sarcasmo:
- Vejam só que surpresa! Meus amigos, eu lhes apresento dom Gabriel Montelucar y Flores, que nos foi entregue junto com os porcos! Pois bem, meu caro, finalmente parece que encontrou um lugar digno de sua pessoa!
Ao lado dele, os outros já desembainharam a espada. Gabriel os ignora.
- Diziam que você estava desaparecido, foragido e que talvez até estivesse morto - diz Gonzalo em tom de troça. - Mas não, vejam só, aí está você, bem vivo e sujo de merda, ao que parece! Devo compreender que meu caro irmão Francisco finalmente decidiu dar-lhe um pontapé no rabo?
A violência inunda o olhar de Gabriel. Gonzalo e seus companheiro recuam dois passos.
- O inferno abre suas portas, Gonzalo - diz Gabriel rangendo os dentes, agitando o cassetete. - Afinal chegou o dia em que você vai ocupar o lugar que lhe está reservado nele!
- Ora, mas você acredita que vai me meter medo com esse instrumento? - retruca Gonzalo às gargalhadas.
- Com esse instrumento, Gonzalo, vou esmagar seus colhões! Você está perdido. Não sou daqueles que esperam que Deus venha punir os crápulas da sua laia. Terei o prazer de me encarregar disso pessoalmente.
Por um instante o medo crispa os lábios dos companheiros de Gonzalo. É esse o momento que Gabriel escolhe para partir para o ataque. As espadas se cruzam, ele as afasta com um violento revide com o braço. O bronze do cassetete se choca contra as lâminas. Gonzalo recua com um pequeno salto e do calção puxa uma adaga. Com um golpe curto, ele tenta atingir o braço de Gabriel. A lâmina encontra apenas o vazio e a brutalidade do golpe o desequilibra.
Curvando-se para escapar às lâminas das espadas dos outros dois, Gabriel acerta-lhe um violento golpe na coxa. Gonzalo cai no centro do pátio com um grito de dor. Gabriel quer repetir o ataque, mas a ponta de uma espada corta seu unku e toca de leve em suas costelas. Ele rola encolhido sobre o solo enquanto os dois espanhóis acertam o ar à esquerda e à direita. Ele se defende das lâminas com o cassetete, o cabo vai sendo rudemente retalhado pelos repetidos golpes e rapidamente perde a solidez. No espaço de um segundo, ele sonha com aquela terrível impotência que viu tantas vezes nos guerreiros incas quando, com sua espada, destruía suas armas. Como eles, dentro de muito pouco não terá mais nada a oferecer ao ferro além de sua própria carne. É então que lhe ocorre uma idéia.
Com um berro de raiva, ele se torce e gira o braço tomando impulso e, como uma pedra de funda, lança sua maça contra o rosto do mais próximo. O espanhol não tem tempo de se esquivar, o bronze se enterra em sua face, esmagando os ossos com um estalo seco enquanto o homem desaba, já inconsciente. Aproveitando-se do pânico do outro combatente, Gabriel mergulha para agarrar um dos porquinhos enlouquecidos de medo com o combate e o levanta de braços estendidos, estranho escudo esperneante, enquanto seu atacante luta para espetá-lo. A espada trespassa o animal como se fosse manteiga e penetra tão profundamente que fica presa nele.
Com um movimento giratório, empregando toda sua força, Gabriel atira o porquinho para o outro lado do pátio. Com o choque, a espada rasga as entranhas do pobre animal e arranca- lhe gritos esganiçados de agonia, enquanto Gabriel, com um chute bem aplicado no baixo-ventre, afasta o cortesão desarmado. Ele precisa apenas de dois saltos para cair em cima de Gonzalo. Com uma energia de louco, atira-se sobre ele e fecha as mãos em torno de sua garganta.
- Agora acabou, Gonzalo - diz por entre os dentes. - Acabou, o mundo não quer mais você.
Hipnotizado pelo olhar asfixiado de Gonzalo, Gabriel não escuta os gritos nem os ruídos de botas às suas costas. Quando a ponta guarnecida de agulhetas de uma sola de sapato o acerta abaixo das costelas, a surpresa, na mesma medida em que a dor, o faz perder o fôlego.
Ele larga sua presa e balança sobre as pernas de Gonzalo. Antes que possa se recuperar, um novo golpe violento o acerta na têmpora, deixando-o tonto. Ele é dominado. Meio cego, com a cabeça girando, não se debate mais. É com dificuldade que tem consciência de que estão lhe amarrando as mãos atrás das costas. A fúria da frustração lhe dá um último resquício de energia. Reunindo o que resta de suas forças, faz um movimento para tentar se levantar, para que acabem com ele de uma vez.
E é exatamente o que parece acontecer. Sua nuca explode e tudo o que resta é a escuridão. A obscuridade fica avermelhada, torna-se líquida e confusa antes de se transformar numa dor luminosa. Um martelar o importuna como se estivessem lhe batendo dos pés à cabeça. Com espanto, Gabriel se dá conta de que suas mãos o obedecem e se movem. Ele passa os dedos sobre o rosto. A umidade morna de seu sangue os deixa pegajosos. Ele abre os olhos. No tempo que leva para ajustar a vista, compreende. Está deitado no chão de terra batida de um aposento. Ele o reconhece: era ali mesmo que se abrigava há muito tempo, antes de partir de Cuzco cumprindo as ordens de dom Francisco. Ainda atordoado, ele se endireita e se senta.
A golpes de malho, um homem alto e gordo como uma barrica fecha com cuidado sobre seu tornozelo direito a grilheta de uma corrente chumbada na parede. A despeito do corpo volumoso, o homem tem uma espantosa precisão de gestos. Gabriel repara que seus olhos negros não exprimem nem crueldade nem prazer, enquanto cumpre sua tarefa: pelo contrário, a expressão é de tédio. Quatro homens o cercam e o observam, os semblantes ameaçadores e indiferentes.
- Como se chama? - pergunta Gabriel.
- Enrique Hermoso, dom Gabriel, mas meus amigos me chamam de Kike.
- Faça seu trabalho, Kike, e não se preocupe com mais nada.
Com um suspiro, Kike prossegue e Gabriel cerra os dentes. Tenta absorver em sua observação os recém-chegados, cujos rostos não conhece. Igualmente novos sãos seus coletes de couro bem grosso, incrustados com o brasão de família de Pizarro: pinheiro e pinhas ladeados por dois ursos andando sobre ardósia. Novas também as alabardas de lâminas em forma de crescente que eles trazem apoiadas negligentemente contra o ombro. Também é quase sem surpresa que ele os vê se afastarem para dar lugar a um homem grande, de barba requintadamente bem aparada, gola de renda impecável e engomada: dom Hernando Pizarro.
- Acabo num instante, senhor - diz o homem gordo.
Ele aplica um último golpe de malho que escorrega apenas o necessário para machucar o tornozelo de Gabriel, arrancando-lhe um gemido de dor. O carcereiro deixa escapar uma risada constrangida:
- Com esta corrente na perna, ele não vai nem pensar em ir dançar, dom Hernando!
- Perfeito, Enrique - diverte-se Hernando. - Vamos oferecer um baile à nossa moda ao senhor Montelucar y Flores.
Depois de o homem gordo se levantar arquejando, Gabriel cerra os dentes para se pôr de pé sem demonstrar nenhum sinal da vertigem que lhe traz o coração à boca. Sua perna está tão dolorida que mal consegue sustentá-lo. Hernando sacode a cabeça:
- O tempo passa sem lhe causar grandes mudanças, dom Gabriel. Eu o deixo cheio de amargura e volto a encontrá-lo exatamente da mesma maneira trinta meses depois! Se bem que, se considerarmos seus trajes, exatamente da mesma maneira não seriam os termos exatos. Veja só como está, um pouco mais degradado e próximo das fossas fecais!
Gabriel cospe uma saliva vermelha.
- Muito bem - diz dom Hernando. - Agora está explicado o fedor que sinto por aqui desde sua chegada.
Um dos homens de colete de couro faz menção de avançar; Hernando o impede com um gesto da mão.
- Montelucar, dessa vez você não poderá contar com dom Francisco para vir salvar o dia. Aqui, daqui por diante, o patrão sou eu. Meu querido irmão, o Governador, ficou tão feliz ao me ver voltar da Espanha que me nomeou oficialmente Vice-Governador. E, felizmente, ele afinal abriu os olhos a seu respeito. Tomou conhecimento de como havia abandonado a missão que ele lhe tinha confiado!
- De pouco lhe adianta! retruca Gabriel por entre os dentes, apoiando as costas na parede. - O título, por mais grandioso que seja, não basta para esconder a mediocridade daquele que o tem. Estrume você é, e estrume continuará sendo, dom Hernando.
Com uma bofetada violenta, a mão enluvada de dom Hernando arrebenta o lábio superior de Gabriel, que cai de quatro no chão. Você não está mais em situação de se fazer de malcriado, cão sarnento! sibila Hernando.
- Agora, neste instante, eu poderia esmagar você como a merda que é. Poderia lhe deixar nas mãos de Gonzalo, que sonha apenas em arrebentar suas tripas! Mas isso seria lhe dar honra demais. Em Toledo, me explicaram com cuidado como são apreciados os julgamentos. Pois muito bem, vou submeter você a um julgamento! Com todas as devidas formalidades legais. Desse modo, toda a Espanha saberá por que enforcamos o excremento bastardo dos Montelucar y Flores. Toda a Espanha, meu amigo, se lembrará do nome do primeiro dos traidores da Coroa nas terras do Peru!
Uma gargalhada gostosa escapa da boca ensangüentada de Gabriel:
- Vai ser preciso correr com esse julgamento, Hernando! Seus irmãos trataram tão bem Manco e sua família que os incas agora estão como bestas sedentas de sangue. Manco e seus generais reuniram dezenas de milhares de homens nos vales ao norte de Cuzco. Eu os vi com meus próprios olhos. São mais de cem mil! Amanhã ou depois de amanhã, haverá o dobro desse número, e eles estarão aqui...
O efeito de suas palavras é um abatimento entre os homens que cercam Hernando Os olhares se cruzam, duros e sombrios. A gargalhada de Hernando soa carregada de um excesso de desprezo.
- Mas vejam só que novidade! Se esses palhaços imaginam que vão retomar a cidade com suas pedras e seus pedaços de pau, as coisas vão correr como de hábito e eles serão massacrados, cortados em pedaços. Em seu lugar, Gabriel, eu não faria muita fé nessas futilidades. E orações certamente serão de mais valia para salvá-lo do destino que o espera que os selvagens!
Cuzco, 3 de maio de 1536
Não lhe oferecem como esmola nem um colchão de palha. Num canto, o carcereiro largou um cântaro de água e três espigas de milho cozidas. Durante dois dias, Gabriel mal toca nelas. Abre vagamente as pálpebras quando o homem corpulento vem se assegurar de que ele ainda está vivo.
- Dom Gabriel?
- Estou aqui, Kike. Enfim, o que resta de mim...
- Sinto muitíssimo por...
Kike imita o movimento do malho que escorrega sobre o tornozelo. Gabriel levanta a mão com indiferença e uma risada que se assemelha a uma tosse lhe rasga a garganta.
- É que eu acreditava que você fosse mais hábil. Então não foi de propósito?
- Mas claro que não, dom Gabriel, juro que não! Até mesmo desobedeci às ordens de dom Hernando deixando que ficasse com sua...
Com a mão, o carcereiro indica a chuspa. Para esquecer as dores que se irradiam em seus músculos, Gabriel mascou todas as folhas de coca contidas na sua única peça de bagagem. Na verdade, ele mastigou tantas que, insípida, a pasta de folhas tornou-se grande como um ovo em suas bochechas.
- Obrigado, Kike - retruca muito tranqüilamente. - E agora me deixe só.
O gordo lhe dá de beber, sustentando-lhe a nuca. Gabriel sente o cheiro de seu suor, um odor azedo, mas, curiosamente, a intimidade com aquela presença humana tão próxima, em seu estado de fraqueza extrema, lhe parece tão miraculosa que seus olhos se enchem de lágrimas.
Ele fica sozinho.
A fadiga se diluiu como fumaça, fundida numa náusea que não o abandona mais em nenhum instante, mesmo quando se deita no solo do cárcere. súbitas Crises de febre alta o deixam tremendo de frio e todo encolhido junto à parede, os dedos agarrados à corrente como se ela pudesse impedi-lo de naufragar no nada.
Tem medo do sono. Contudo, mergulha nele brusca e irreversivelmente como uma pedra rolando, para cada vez ser dominado por um estranho delírio. Imagens o perseguem, tão estranhamente verídicas, tão palpáveis quanto a realidade, de modo que não consegue acreditar que sejam um sonho.
Ele vê nitidamente as patas de seu cavalo baio se enterrarem brutalmente na crosta de sal de um deserto mais branco que o linho e do qual não recorda mais o nome.
A água goteja entre os cascos e as patas partidas. Os olhos grandes e redondos do baio o fixam, implorando. Ele vê a si mesmo, por muito tempo imóvel, com os braços enlaçados em torno da cabeça do animal enquanto o sol o calcina. E depois, com um golpe repentino, sua adaga se enterra na garganta do cavalo.
Ondas de sangue, muito mais do que qualquer animal poderia ter, escapam sem que o sol possa coagulá-lo. Um sangue que ferve e parece querer engolir tudo.
Agora o sol está imenso. Tão grande que parece se assentar sobre todo o horizonte da terra e não há mais nenhuma sombra. Gabriel quer se proteger se enfiando dentro da carcaça do cavalo. Mas, quando abre o ventre do baio como se abre um fruto, ele próprio se torna um animal, um ser com forma de fera selvagem capaz de saltar e escapar daquele lugar de morte.
A loucura do sonho o transporta para um prazer intenso. O que ele vive e vê não tem mais nenhuma ligação com a razão. O sol está de novo distante e ameno. O deserto desapareceu.
Cada vez que se lança, seus saltos prodigiosos o enchem de um prazer infantil e violento. A sombra de sua silhueta de felino forte e extraordinário desliza sobre as sinuosidades dos campos e sobre a poeira dos caminhos. Seus flancos de pêlos sedosos afastam as folhagens das árvores mais altas. Os rochedos acolhem suas garras com doçura quando neles busca apoio. Como se fosse um pássaro, a brisa é sua amiga e o transporta.
Sua corrida o conduz para logo acima da imensidão azul do Titicaca. Ali, deitado sobre o flanco, ele escuta o ensinamento do Mestre das Pedras. o vê brincar com uma pedra de funda que lança muito alto para dentro do céu.
Gabriel, tomado de espanto, vê a pedra se manter lá no alto, como se ela tivesse se tornado tão leve quanto uma pluma. O Mestre das Pedras sorri para ele. Um sorriso acolhedor e triste, no qual Gabriel adivinha um desejo sem que uma palavra seja pronunciada.
Então ele escuta um som de riso.
Toda vestida de branco, Anamaya aparece, abraçando uma estátua de ouro, uma estátua tão viva quanto um homem. Ela estende a mão para ele e o chama.
- Gabriel!
Um chamado doce e melodioso ao qual ele não pode resistir. Apesar de agora ser um animal feroz, vai ao seu encontro.
Quando se deita junto dela, percebe que o homem de ouro não está mais lá. Mas Anamaya está nua, ao mesmo tempo bela e frágil. Tão desejável quanto se oferecendo a ele. Ela não demonstra nenhum sinal de medo. Ela abraça seu pescoço de animal selvagem, beija seu focinho e a mandíbula que poderia estraçalhá-la. Nem sente seus cascos quando ele põe as patas sobre ela.
Durante um longo momento eles vivem apenas felicidade e paz, e depois, atrás dos ombros de Anamaya, Gabriel descobre o homem de ouro que os observa das sombras. Ele brilha como uma estrela na noite. Sem fazer qualquer movimento com os lábios, ele se dirige a Anamaya. Ela abandona Gabriel sem hesitar. Ela não se vira, não escuta o rugido rouco, aquele urro de fera furiosa e mortalmente ferida que ecoa entre as montanhas. A violência de seu próprio lamento rasga-lhe a garganta e ele abre os olhos. O suor cola as roupas em farrapos contra o peito de Gabriel. Uma saliva amarga empasta sua boca. A dor, que parece perfurar seu crânio depois dos golpes de bota que recebeu no pátio de Gonzalo, toma-o de assalto, ainda mais intensa. Um instante depois, trespassado de dor, ele não sabe mais se sonhou ou se foi dominado pela loucura. Se tivesse forças, rezaria para pedir a Deus que o fizesse dormir um sono verdadeiro até o fim dos tempos.
É o frio de uma aurora, trazido por um vento violento, que afinal o desperta de verdade. Da estreita janela que, no telhado, se abre para a cela, desce um ar gelado que anuncia o inverno. Na luminosidade fraca que precede o amanhecer, Gabriel descobre o estado assustador em que se encontra. Sua túnica, numa imundície de inspirar asco, está em farrapos. Ela mal consegue cobri-lo. Todo seu corpo, da cabeça aos pés, dói. Com as pontas dos dedos, apalpa o rosto ainda inchado por causa dos golpes recebidos.
Sob o anel da corrente, seu tornozelo está em carne viva. A náusea se desvaneceu um pouco, mas sua cabeça continua pulsando como se seu coração, como um tambor, nela estivesse batendo uma chamada.
Com cuidado, ele umedece os lábios inchados na água do cântaro e finalmente mata a sede. As espigas de milho que o carcereiro trouxe dois dias antes agora estão endurecidas. A fome que o atormenta é violenta demais para que deixe de devorá-las.
Só então Gabriel se dá conta de que o bater ritmado que ouvia até aquele momento não vem de seu cérebro louco ou de seu corpo ferido. É um efetivo retumbar de tambores, que soam cada vez mais violentos e mais próximos. Recuperando toda a lucidez, ele aguça os ouvidos, escuta com atenção, agarra a corrente para subir até a estreita abertura no telhado, no instante em que se fazem ouvir os primeiros gritos dos espanhóis ao redor da cela de sua prisão.
- Incas! Incas!
A abertura estreita da janela impede sua visão. De início, ele não vê nada.
Os chamados enlouquecidos agora vêm de todas as direções na penumbra densa que ainda envolve a cidade.
- Incas! Incas!
Mas é uma enorme algazarra de trompas e de gritos que atrai sua atenção para as colinas do leste, que se elevam sobre a cidade, O que ele descobre ali faz gelar seu sangue ainda mais que o vento cortante que castiga seu rosto.
Poder-se-ia crer que são sebes ou arbustos sacudidos por borrascas, mas da massa espessa surgem braços, lanças e auriflamas. Milhares de silhuetas se recortam na brancura do céu!
O imenso exército inca cerca Cuzco, cobrindo a crista das colinas como o corpo de uma serpente monstruosa. Durante a noite, o vento varreu o verde até dos terraços mais altos, deixando ali aquela multidão de cores variadas que agora urra a plenos pulmões.
O bater dos tambores, o som grave das trompas de conchas redobram. O pânico lança os espanhóis nas ruas.
Passado o primeiro arrepio de temor, Gabriel não pode deixar de admirar aquele espetáculo extraordinário. Anamaya e Manco puseram o plano em execução! O prazer da vingança lhe aquece o coração. Ele esquece o que esse plano tem de ameaça para si mesmo e para as centenas de espanhóis em Cuzco.
Na verdade, agora, pouco lhe importa morrer num massacre tão merecido! Mais vale morrer nas mãos dos guerreiros conduzidos por Anamaya que sob os golpes perversos de Hernando e Gonzalo!
Durante horas seguidas ele não deixa a pequenina janela, a cada instante espera o ataque que não deve tardar. Não duvida de sua força e de sua extrema violência.
A surpresa é que ao meio-dia o imenso exército inca ainda não atacou a cidade.
As fileiras de guerreiros parecem ter-se multiplicado a tal ponto que não se consegue mais distinguir as cores vivas das túnicas, apenas uma massa escura e compacta.
A algazarra ensurdecedora não cessou. Ao contrário, Gabriel não ouve mais os chamados ao redor da cadeia, nem um movimento. Cuzco parece abandonada.
Assim, quando escuta alguém retirando o cilindro de madeira que mantém fechada a porta da cela, ele se imobiliza com a corrente nas mãos.
É seu carcereiro barrigudo que aparece, com um grande cantil de couro numa das mãos e na outra uma manta contendo bolachas de milho e batatas cozidas.
- Kike!
- Não me receba tão gentilmente, dom Gabriel, eu não mereço seu reconhecimento.
- Eu daria boa acolhida até ao diabo em pessoa, meu caro Kike. Nunca tinha me dado conta de a que ponto é o rosto dos outros que confirma nossa própria existência.
- Não me venha com conversas filosóficas, dom Gabriel, não entendo nada disso. Aliás, nunca entendi.
É nesse instante que Gabriel repara no medo que transborda de seu semblante. Kike examina cada canto da cela como se nele pudesse estar escondido um exército de índios. O carcereiro quase joga seu carregamento aos pés de Gabriel.
- Será preciso que se satisfaça com isso por um bocado de tempo - resmunga. - Sinto muito, foi tudo o que consegui encontrar.
- Ora, mas o que é isso - protesta Gabriel. - Devem me levar a julgamento, não me fazer morrer de fome!
A risada do homem soa sem nenhuma alegria.
- Você ouviu tão bem quanto nós. Os selvagens estão aí. Deveria estar feliz por eu ter me lembrado de você antes de bater em retirada.
- Vocês estão fugindo? Os espanhóis estão abandonando a cidade?
- Ah, claro que não! Ninguém está fugindo, agora já é tarde demais. Mas eu conheço um buraco bem escondido onde posso desaparecer antes de permitir que os índios me façam em pedaços!
O homem se aproxima da pequena janela e lança um olhar na direção das colinas.
- O que se vê daqui não é nada. Eles estão por toda parte, a planície ao sul está totalmente coberta. Eles já capturaram dois cavaleiros que tentavam passar. Cortaram as patas dos cavalos e a cabeça dos cavaleiros.
E assim, portanto, reflete Gabriel, Hernando foi apanhado de surpresa por seu orgulho e seu desprezo pelos incas.
- O que é estranho - suspira o gordo carcereiro se virando - é que ainda não atacaram. Na minha opinião, eles têm alguma idéia em mente. O melhor será não estar no caminho deles quando quiserem nos mostrar qual é.
- Me aconteceu uma coisa estranha, Kike.
- O que foi?
- Não tenho mais tanta vontade de morrer.
O carcereiro o observa tomado de um enorme espanto.
- E que posso fazer quanto a isso? Eu dei a você tudo o que tinha. Não se preocupe. Aqui tem o suficiente até que eles caiam sobre nós! Quando isso acontecer, na minha opinião, não será mais a fome que o incomodará tanto.
- Então agradeço, Kike.
A calma e a resignação de Gabriel surpreendem mais uma vez o gordo, cujos pequeninos olhos negros se arregalam.
- Não me agradeça assim o tempo todo, isso me deixa mais constrangido do que se me xingasse. Tome.
Das profundezas de seu gibão sujo, ele tira um embrulho que põe na mão de Gabriel.
É uma grossa fatia de presunto, embrulhada em pele de porco curtida.
A gordura em suas mãos faz Gabriel ficar com água na boca. Ele faz um movimento na direção do carcereiro, que recua para a porta e lhe dá as costas.
- Você ainda vai me agradecer de novo - resmunga.
- Apenas rezarei para que você continue vivo.
As costas do homem não se moveram.
- Me disseram que nem sequer acredita em Deus, dom Gabriel.
- Creio o bastante para rezar por você, meu amigo.
Quando a porta torna a se fechar, Gabriel fica sozinho e trêmulo.
Apesar do medo que cresce em seu íntimo, ele continua segurando nas mãos a fatia de presunto, e um murmúrio sai de seus lábios.
Talvez seja uma prece.
Cuzco, 6 de maio de 1536
O carcereiro se enganou.
Os guerreiros incas não atacam. Nem naquele dia, nem no dia seguinte.
Eles permanecem sobre as encostas e as cristas das colinas. Da manhã à noite seu número cresce, mais e mais, ocupando toda a amplidão da planície ao sul da cidade.
À noite, milhares de fogueiras se acendem e desenham um alucinante cordão de luzes ao redor de Cuzco, como se ela estivesse cercada por um diadema de braseiros.
Contudo, os gritos, os urros e o retumbar dos tambores se calaram. Esse silêncio, essa espera se fazem sentir tão pesados e incômodos sobre os espanhóis que, volta e meia, Gabriel escuta os gritos enlouquecidos daqueles que não conseguem mais suportar a ameaça.
Ele também, depois de dois dias desse tratamento, começa a se sentir dominado pela impaciência do combate. Pelo menos a espera e a imobilidade forçadas lhe permitem recuperar as forças e acalmar as dores, a despeito das pequenas rações de alimentos que, por precaução, se permite consumir a cada dia.
Temendo que os asseclas de Gonzalo se aproveitem dessas horas estranhas para vir degolá-lo às escondidas, ele se limita a breves momentos de sono. Aproveita as horas tediosas para confeccionar uma arma improvisada. Com cuidado, quebra o cântaro de água, abandonado pelo carcereiro, de maneira a obter uma lasca comprida e grossa no prolongamento da asa. Durante horas a fio, com gestos maquinais, ele vai polindo a lasca nas pedras da parede. Mas esse movimento repetitivo o deixa com o espírito vazio e ele não consegue se impedir de sonhar com Anamaya.
Seus sonhos lancinantes e loucos cessaram, mas o rosto e o perfume tão especiais de sua amada permanecem vivos em seus pensamentos. Os sons delicados do riso e do prazer de Anamaya dançam em seu cérebro como uma canção. De tempos em tempos, enquanto apalpa o polimento cada vez mais perfeito da cerâmica, ele fecha os olhos.
Imagina-se mais uma vez a tocar, a sentir sob a polpa de seus dedos a nuca e os quadris de seu amor impossível.
Ah! Como poderiam estar felizes naquele instante, se ela o tivesse seguido e fugido com ele para o lago Titicaca!
Infelizmente, basta-lhe abrir de novo os olhos para avaliar a cegueira de suas esperanças e a realidade que o cerca, a corrente que massacra sua perna, a enxerga de palha apodrecida e aquele raio de luz fria, indiferente, que atravessa como uma adaga a parede espessa de sua prisão.
Anamaya está longe na montanha. Ela é a esperança viva de um povo ao qual ele nunca pertencerá, ele, Gabriel Montelucar y Flores, o estrangeiro vindo de tão longe para roubar-lhes a paz e o destino. A sobrevivência deles exige: os incas devem retomar Cuzco, tornar-se de novo os senhores poderosos e destruir todos os espanhóis, sem exceção! Ele e todos os outros. Brevemente, ele não será mais nada para ela, apenas uma lembrança, que Manco e o poderoso sacerdote Villa Oma se esforçarão para apagar de sua memória.
Como foi possível que acreditasse, mesmo por um único instante, que as coisas pudessem ser diferentes, que ele pudesse segurar-lhe a mão, como o faria com uma mulher comum, e abraçado a ela caminhar em direção à felicidade?
Se Deus existe, Deus o estava punindo por essa cegueira... E se não existisse, estava pagando simplesmente por sua ingenuidade.
Ora essa! Ele se coça até arrancar sangue da pele, para se impedir de se perder no turbilhão inútil de perguntas.
O caco de cerâmica, que poliu com extremo cuidado durante dois dias, lhe parece de repente a mais grotesca das obras que algum dia produziu. O esquecimento absoluto em que está sendo mantido é muito pior que a degola! Que necessidade ele tem de uma arma? Os Pizarro nem se darão ao trabalho de enfiar- lhe uma lâmina no corpo.
Basta-lhes esquecê-lo, deixar que a sede e a fome se encarreguem dele, abandoná-lo à fúria dos índios, e pronto.
Então, tomado pela cólera, ele atira contra a parede o caco de cerâmica que explode e se transforma de novo em poeira.
Depois de um instante de estupefação diante de seu próprio gesto, Gabriel se enrosca como uma bola, se enrola na corrente como se fosse um cabresto e busca o sono como se entrasse no vazio.
É um ligeiro ruído que o desperta. Um rangido que ele reconhece. Alguém está levantando discretamente o cilindro de madeira que mantém fecha da a porta da cela.
Instintivamente, ele se levanta apoiado nos braços. Em silêncio, junta os elos da corrente e os cerra no punho como se fossem um malho. Sua resignação se perdeu no sonho. O desejo de combater se irradia por suas costas e quadris. O orgulho exige que ele se defenda com ódio suficiente para massacrar seus agressores.
Está tão escuro que não consegue ver a porta se abrir, mas percebe um breve movimento no ar. É impossível saber quantos são. Tão silenciosamente quanto é possível, se cola contra a parede e permanece agachado. Ele se obriga a respirar suavemente e tenta não imaginar que sua derradeira hora tenha chegado.
Bruscamente, range o postigo de uma lanterna furta-fogo. O clarão amarelo de uma vela percorre as paredes antes de se deter sobre ele. Quando a luz o encontra, o clarão da vela é agitado por um sobressalto.
- Gabriel!
Mesmo baixa e velada, ele reconhece a voz muito antes de distinguir o hábito longo de grossa lã marrom.
- Gabriel, não tenha medo, sou eu.
- Bartolomé! Frei Bartolomé!
- Sim, meu amigo - sussurra Bartolomé com um sorriso.
Como que querendo apagar qualquer sombra de dúvida, o monge estende o escasso facho de luz para a mão em que o dedo médio e o indicador são estranhamente colados.
- Santo Deus! - exclama Gabriel. - Você é realmente a última pessoa que eu esperaria ver aqui esta noite.
- Foi exatamente por isso que tomei a precaução de me mostrar sob a luz antes que você saltasse em cima de mim...
Gabriel ri, deixando cair a corrente.
- Bem pensado!
E, como o monge se aproxima dele para abraçá-lo fraternalmente, Gabriel o afasta com um gesto.
- Seria com prazer que eu lhe daria um grande abraço, mas acho que é melhor não fazê-lo!
Com um movimento lento com o candeeiro, Bartolomé o examina dos pés à cabeça.
- Meu pobre amigo! Em que estado o deixaram!
- O fato é que devo estar fedendo a vinte léguas.
- Segure esse candeeiro e ilumine meu caminho - sussurra Bartolomé.
- Lá fora tenho com que fazer de você um ser humano.
Um instante depois ele retorna, com uma grande cesta nos braços.
- Trouxe comida para acabar com sua fome - anuncia, colocando a cesta aos pés de Gabriel. - Água também, em boa quantidade, bastante para que possa se lavar e beber, e alguns ungüentos para passar nos ferimentos.
- Trouxe o bastante para resistir a um cerco...
- Você não imagina como suas palavras estão certas! Mas falaremos de tudo isso daqui a pouco. Primeiro trate de comer.
Gabriel sacode a cabeça emocionado.
- Ontem à noite, tinha me conformado com a possibilidade de morrer sozinho como um cão, sem que ninguém se preocupasse em impedir que os vermes consumissem meu cadáver.
Acreditava que o último rosto humano que veria neste mundo vil seria o de um carcereiro barrigudo.., que, aliás, não era o pior dos homens, mas mesmo assim ficava muito longe de Erasmo e de Sócrates. Mas aqui está você e já me sinto capaz de arrancar esta corrente da parede apenas com minhas duas mãos!
- À sua maneira Deus sabe exprimir sua misericórdia, Gabriel, mesmo se você prefere não perceber - diverte-se Bartolomé oferecendo-lhe mais um odre cheio. - Parece-me que seria bom para nós dois que você começasse a se limpar um pouco. Infelizmente, roupas são coisas que me interessam tão pouco que nem pensei em trazer uma muda para que você pudesse tirar esses trapos.
- Dom Remando veio me ver para me anunciar que você tinha voltado e sido preso - explica Bartolomé, enquanto Gabriel ataca com apetite um pernil de lhama assado.
- "Meu irmão", disse-me com seu tom de voz mais suave, "esse homem merece apenas a morte. Não duvido que venha a tê-la. Mas nós sabemos que a caridade cristã se melindra com sentenças condenatórias apressadas. Assim sendo, vamos oferecer um julgamento a esse bastardo. Nessas condições, não vejo nenhuma outra pessoa aqui que seja mais indicada e capaz de se desincumbir dessa tarefa de maneira irrepreensível que o senhor..." E foi assim que ele fez de mim o juiz encarregado de seu destino.
Uma pequena gargalhada interrompe Bartolomé, que dá a Gabriel algum tempo para se acalmar, antes de acrescentar:
- Dom Hernando voltou da Espanha mais astucioso do que nunca. Ele se viu em muito má posição em Toledo. Os métodos dos Pizarro chocaram muita gente na corte. Até no séquito da rainha as pessoas ficaram emocionadas com o fim de Atahualpa.
- Até que enfim!
- Ah! Mas isso não foi tão longe quanto deveria! Ele recebeu a ordem de Santiago quando o que merecia era minguar no cárcere da prisão onde nos conhecemos, você e eu.
Essa lembrança os une num sorriso.
- Pedi que me deixassem interrogá-lo imediatamente - prossegue Bartolomé. - Tentaram me dissuadir usando como pretexto o fato de que era preciso que você tivesse mais algum tempo sozinho para se arrepender. A partir disso, concluí que eles deveriam ter posto você em péssimo estado!
- De que sou acusado?
- De tentativa de assassinato contra Gonzalo... Mas, antes disso, de traição por ter abandonado a missão que o Governo havia confiado a você: seguir dom Almagro em sua expedição ao sul...
- E que bela missão! Ela consistia, sobretudo, em assistir aos horrores que Almagro espalhava por toda parte em seu caminho. Você não pode imaginar as coisas que vi por lá, Bartolomé. A corte de Espanha se emocionou com o fim de Atahualpa? Pois ela vomitaria as tripas e os intestinos se eu pudesse lhes mostrar o que meus olhos viram durante semanas! Os caçadores de fortuna que acompanham Almagro violentam e matam os índios como se fossem apenas ratos. As crianças, os velhos, as mulheres, os doentes... Para eles, nem vida nem respeito. Eu os vi até decapitarem mortos! Ao longo de centenas de léguas, não restou um único vilarejo que não tenha sido queimado, pilhado, roubado!
- Eu ouvi falar disso.
- Mas eu estava lá. E estava impotente. Quando quis protestar, Almagro muito gentilmente apontou uma besta contra mim. Imagine o que é estar no meio de todo esse sofrimento, dia após dia, sem poder fazer nada para combatê-lo, nem sequer aliviá-lo. Imagine a vergonha que representa ser um assassino como essa escória da humanidade que se desferra por lá, babando-se de loucura por ouro!
- Por que diz isso? Você, pessoalmente, não fez nada.
- Eu não espalhei o sofrimento, mas também não o impedi, o que acaba dando no mesmo. Desde então, para o futuro, aos olhos das pessoas deste país, todos os espanhóis são iguais...
Com veemência, Gabriel aponta para a pequena janela onde brilham as fogueiras dos incas:
- Para os milhares de guerreiros que nos cercam e berram lá no alto, não existem mais bons ou maus "estrangeiros". Para eles, todos nós merecemos ser exterminados.
É esse o resultado da política de Hernando, de Almagro e de seus cúmplices infernais como Gonzalo, a quem eles permitem tudo!
- Pelo menos você poupa o Governador de fazer parte dessa lista - constata Bartolomé com um gesto de apaziguamento.
Com um murmúrio de amargura, Gabriel se levanta e puxa a corrente para ir respirar um pouco de ar fresco na janela estreita.
- Dom Francisco não é um homem bruto - concorda. - Mas ele sabe muito bem fechar os olhos quando lhe convém, bem demais. E quase sempre lhe convém.
No céu, a leste, quase não se percebe o alvorecer, tão iluminado está o firmamento com as fogueiras dos incas. Como nas noites anteriores, as colinas estão coalhadas de brasas de milhares de fogueiras, cujos reflexos alcançam as paredes de Cuzco. Aqui e ali, podem-se distinguir silhuetas que se deslocam.
- Creio que vamos esquecer o seu julgamento - comenta Bartolomé, que se aproximou. - Vou tomar providências para que você seja libertado, Gabriel. Vou encontrar uma ferramenta para partir essa corrente. Isso passará facilmente despercebido, tamanha é a confusão na cidade.
- Obrigado, irmão Bartolomé. Mas, no momento, poupe-se de criar grandes ilusões. Aqui dentro ou lá fora, estamos todos em pé de igualdade. A hora de nosso julgamento final parece realmente ter chegado.
Por um instante os dois ficam parados em silêncio, fascinados pelo rio de fogo que une as colinas.
- Eles são talvez duzentos mil - murmura de repente Bartolomé. - Ficamos nos perguntando por que estão esperando para acabar conosco.
- Estão esperando apenas que não tenhamos mais nenhuma chance de lhes oferecer resistência.
- Ou que morramos de fome! Há cada vez menos alimentos. O que trouxe para você esta noite, tive de roubar, e tão cedo você não verá um cesto tão cheio. Hoje, um cavaleiro chamado Mejia decidiu que a qualquer preço abriria uma passagem pela planície. Num piscar de olhos ele foi destroçado. Eles o decapitaram antes de fazerem em fatias os tendões de seu cavalo!
- Quais são as ordens de Hernando como defesa?
- Ele pensa em reunir os cavaleiros para conduzir um ataque de maneira - a abrir uma brecha nessa parede humana e ir buscar reforços.
- Isso significa quantos cavalos?
- No total, há no máximo uns sessenta na cidade.
- Que estupidez!
- Por quê?
- Ah, basta refletir! Mas o senhor Hernando Pizarro está absolutamente convencido de que só tem de enfrentar uns reles selvagens para fazê-lo. Eu conheço um pouco os homens que são os comandantes incas no campo de batalha. Eles sabem muito bem como combatemos e quais são nossas fraquezas. Estão esperando apenas por isso: uma carga de cavalaria agrupada. Eis nossa única tática militar até hoje!
- Porque sempre foi vitoriosa.
- Desta vez não poderia ser. Os incas deixarão os cavaleiros passarem sem realmente tentar contê-los. Ou os manterão ocupados com algum tipo de falso combate. Enquanto isso, o que vai acontecer? Restarão apenas duzentos ou trezentos espanhóis em Cuzco para enfrentar cem mil índios e sem nenhuma outra defesa, exceto um par de pernas e uma espada! O combate não vai durar nem um dia, Bartolomé. No corpo-a-corpo, os soldados de Manco são temíveis. Suas pedras de funda perfuram até as melhores couraças e quebram as lâminas de nossas espadas. Estou lhe dizendo: o milagre de Cajamarca não vai se repetir!
- Que outra solução sugere?
- A paz! Restituir a Manco todos os seus direitos reais, devolver-lhe o ouro roubado... Mas isso não vai acontecer e de qualquer maneira já é tarde demais: os incas não quereriam mais. Por que aceitar a paz se podem nos esmagar como se fôssemos moscas?
Bartolomé concorda com um movimento de cabeça. Mas sua voz está ligeiramente diferente quando comenta:
- Dom Hernando afirma que agora você se tornou um espião de Manco, que participou de sua fuga e da organização deste cerco...
- E que eu ando escondendo uma grande estátua de ouro e também uma certa princesa inca que nos apresentam como a esposa desse homem de ouro! - completa Gabriel com uma gargalhada amarga.
- É bem verdade que há rumores muito estranhos correndo a seu respeito - suspira Bartolomé. - Mas também não é de admirar, depois de ver você voltar aqui, disfarçado de camponês índio... Sem falar nas ações violentas que cometeu. Gonzalo só consegue andar manquejando muito, num péssimo momento, e você realmente partiu o crânio de um de seus melhores amigos. Por que tanta selvageria?
De repente Bartolomé mostra aquele distanciamento, aquela mesma curiosidade fria que Gabriel, no passado, tantas vezes suspeitou que escondesse sombrios desígnios.
- Isso é o interrogatório do juiz que se inicia?
- Gabriel!
- A esta altura das coisas, posso lhe confessar sem rodeios que o que mais lamento é ter errado meu golpe. Meu cassetete deveria ter-se enfiado no cérebro de Gonzalo e não no de seu amigo. E por isso, sim, mereço ser punido! Receio que eu continue não compreendendo o motivo de tanto ódio, meu amigo.
Gabriel hesita por alguns segundos. O céu torna-se cada vez mais pálido ao redor das colinas. Parece que os guerreiros incas se agitam mais do que de hábito.
- Há mais de um ano, enquanto eu estava longe, Gonzalo tentou violentar Anamaya - revela em voz baixa. - Foi essa perversidade que precipitou a fuga de Manco. Nem ela nem ele estavam mais em segurança em Cuzco. Evidentemente, Gonzalo não deve ter-se gabado de seu belo comportamento e você não poderia ter conhecimento dele.
- Santo Deus!
- Infelizmente, Gonzalo capturou Manco e o fez seu prisioneiro. Anamaya conseguiu fugir com aquele anão que é seu amigo. Ela se escondeu na montanha para organizar a rebelião. Seu objetivo inicialmente era libertar Manco, que aqui, nesta cidade, estava sendo submetido às piores humilhações. Eu não sabia de nada disso. Soube apenas que Manco era prisioneiro desse louco do Gonzalo e imaginei que Anamaya também devesse estar nas mãos dele. O simples fato de imaginar isso era insuportável para mim. Imediatamente abandonei a expedição de Almagro onde, de todo modo, já havia presenciado mais horrores do que podia suportar...
- Compreendo, agora eu compreendo...
Bartolomé põe a mão sobre o ombro de Gabriel; sua voz recupera o tom caloroso e fraternal.
Gabriel se afasta da pequena janela e, em algumas frases, relata como quis atravessar o estranho deserto de sal para retornar a Cuzco tão depressa quanto pudesse, conduzindo seu cavalo à morte e sendo salvo apenas pela interferência de Katari, o "Mestre das Pedras".
- Eu estava morto e ele, literalmente, me ressuscitou.
- Katari... - murmura Bartolomé emocionado. - Sempre pensei que em nossa terra esse homem seria uma espécie de santo. Ele tem como que uma presciência de nossos mistérios. Foi ele quem me ensinou minhas primeiras palavras em quíchua, e eu ensinei a ele suas primeiras palavras em espanhol. Mas soube, apenas de olhar para ele, que era uma alma pura, uma alma rara. Se Deus quiser, com prazer voltarei a vê-lo.
- Ah! - exclama Gabriel com entusiasmo, quase sem ouvir o monge. - Eu acordei no lugar mais bonito do mundo! Um lago imenso, quase um mar, a gente do lugar o chamava de Titicaca. As montanhas que o cercam são as mais altas que se pode imaginar, nelas há sempre neve e os picos, em certos dias, ficam refletidos na superfície do lago, como que num espelho. Apesar disso, o clima parece tão ameno como em Cadiz! Os habitantes são pacíficos, amáveis. Meu sonho era voltar para lá e viver com Anamaya. Fugir para lá com ela...
Ele interrompe a frase sem completar. Os loucos pesadelos dos dias anteriores, de repente, tomam de assalto seu espírito. Ele gostaria de poder falar deles a Bartolomé, mas alguma coisa o impede. Vergonha, talvez, de confessar que em sonhos se vê como um animal. De modo que se contenta em explicar- lhe sua chegada a Calca quando os guerreiros de Manco ali já chegavam vindos de todo o Império das Quatro Direções.
- Lá ela me confessou, ao mesmo tempo, que também me amava, mas que nos seria impossível permanecermos juntos porque iria haver guerra! Na verdade, o que ela me confessou também, Bartolomé, com a grande doçura de suas palavras e seus beijos, foi que para ela eu não era nada mais que um estrangeiro, como os outros, e que...
- Gabriel! Por Cristo, Gabriel, olhe... Senhor Todo-poderoso!
A exclamação de Bartolomé fez Gabriel gelar. Fazendo estalar a corrente, ele salta para a pequena janela. Um grito de surpresa escapa de sua garganta sem que ele sequer perceba.
A meia-luz do dia que nasce, as fogueiras parecem ter descido a montanha, como se o rio de fogo alimentado pelos índios transbordasse. O som lancinante das trompas explode bruscamente, fazendo tremer o ar e, no mesmo instante, do céu e por toda parte ao redor, vociferações eclodem.
- Eles estão atacando - murmura Bartolomé num fiapo de voz assustada.
- Olhe - exclama Gabriel -, olhe para o céu!
É uma nuvem de flechas que são lançadas, tão próximas umas das outras e formando uma nuvem tão densa que parece que uma rede se levanta do solo. Gritos em espanhol se elevam de muito perto nas ruelas, enquanto os milhares de flechas de repente se inclinam e descem a toda a velocidade em direção ao solo. Instintivamente, Bartolomé recua. Mas as flechas disparadas ainda não chegam a alcançar a cancha onde fica a prisão. Gabriel não ouve mais os gritos. Ele observa a rede mortal descer fazendo os telhados desaparecerem. A despeito da gritaria, o ruído dos impactos soa como um prolongado rasgão surdo. É então que o bater dos tambores recomeça e se alterna com o soar das trompas.
- Eu tenho de ir para ficar ao lado de Remando - avisa Bartolomé.
Gabriel o segura pelo braço.
- Espere um instante, é perigoso demais sair agora, alguma outra coisa ainda vai acontecer...
Ele mal acabou de concluir a frase quando um estranho zumbido ressoa batendo-lhes no peito, como se estivesse abrindo caminho em meio aos chamados e aos gritos de dor. Mas nada é visível ainda.
- As pedras de funda.
Sim, depois da chuva de flechas vem uma tempestade de pedras. E esta não vem das colinas, e sim da grande fortaleza de Sacsayhuaman, que domina Cuzco, ali bem próximo das casas e das ruas estreitas. As pedras chegam muito mais longe que as flechas. Gabriel e Bartolomé escutam aquele marulho sussurrado que elas espalham por toda parte ao bater contra os telhados e as paredes. E vêm cada vez mais pedras voando, elas sibilam e roncam num som surdo, por vezes se chocam umas nas outras no ar, tão grande é a quantidade de pedras atiradas em lançamentos sucessivos. E isso continua por muito tempo. Os gritos aterrorizados dos espanhóis redobram, as vociferações vindas das colinas lhes respondem. Uma nova salva de flechas se eleva e cai sobre a cidade, se misturando às pedras de funda num dilúvio mortal. Parece, literalmente, que o céu está desabando sobre Cuzco para exterminar toda a vida que há na cidade, engoli-la numa vingança que só cessará quando os cadáveres se amontoarem.
- Eu tenho de ir! - grita Bartolomé.
- Então cubra-se com isto - exclama Gabriel, esvaziando a cesta para virá-la de modo a poder cobrir com ela a cabeça do monge. - Isto o protegerá um pouco!
Mas no instante em que Bartolomé abre a porta, ele se imobiliza.
- Ah, Senhor - murmura ele, esboçando o sinal-da-cruz sobre o peito.
Já numa dezena de lugares, nos tetos de colmo das casas de Cuzco, sobe fumaça. As chamas jorram subitamente aqui e ali, como se alguém tivesse acabado de atiçá-las.
- São as pedras de funda - explica Gabriel. - Era para isso! São as pedras de funda que estão incendiando a palha dos telhados.
- Eles vão queimar a cidade inteira - geme Bartolomé.
Gabriel sacode sua corrente com fúria.
- Se você puder, encontre alguém que saiba me livrar dessa maldita corrente!
- Não vou deixar que você morra queimado aqui.
- Você me promete isso?
Apesar de seu assentimento, quando Bartolomé desaparece na atmosfera saturada de fumaça, Gabriel duvida muito que volte a revê-lo.
O vento atiça as chamas até o meio da noite. A cidade inteira é uma fogueira. Apenas algumas casas ao redor da grande praça são poupadas, fora de alcance ou salvas pela coragem de índios aliados, auxiliares fiéis dos espanhóis, que molham os tetos mesmo correndo risco de vida.
Quando chega o crepúsculo, a fumaça se tornou tão densa que há momentos em que mal é possível ver o que se tem diante de si. Acre, ela penetra nos pulmões como um veneno e rasga o peito. Os homens caem de joelhos e não conseguem mais nem gemer de tanta falta de ar. Os cavalos estão assustados. Eles bufam, empinam, reviram os olhos irritados a ponto de sangrar, as narinas palpitando, os beiços trêmulos. Alguns mordem seus cavaleiros com grunhidos de dor.
Sem cessar, as flechas e as pedras de funda atravessam a fumaça assobiando. Ao acaso, elas se quebram contra as paredes ou se enterram na carne dos feridos abandonados. Mas esses não sofrem por muito tempo. Tirando partido da obscuridade criada pela fumaça, com a boca coberta por máscaras de algodão, os guerreiros incas se precipitam pelas ruas estreitas dos contornos da cidade. Eles levantam barricadas, derrubam e empurram troncos, instalam paliçadas preparadas com antecedência. Uma a uma, eles fecham as saídas com obstáculos de altura suficiente para impedir que os cavalos possam ultrapassá-los.
Obedecendo a uma ordem de Villa Oma, grupos furtivos penetram cada vez mais em direção ao centro de Cuzco. Munidos de cassetetes de pedra ou de bronze, eles dão cabo dos feridos abandonados, depois saltam sobre as paredes das primeiras canchas calcinadas. Por vezes, mulheres e crianças caaris, com apenas o branco dos olhos aterrorizados cortando as faces enegrecidas, vêm implorar misericórdia. Mas nenhuma súplica detém os guerreiros de Manco.
Pela primeira vez, eles combatem sentindo na boca o gosto da vitória.
- Faz tanto tempo que eu esperava para ver isso - rejubila-se Villa Oma, dirigindo a Anamaya e a Manco um raríssimo e soberbo sorriso. - Único Senhor, é realmente uma enorme alegria para mim lhe oferecer esta batalha. Espero que seu Pai o Sol e todos os seus Ancestrais se rejubilem como nós!
Eles estão sobre a torre mais alta da fortaleza do sol, Sacsayhuaman. À luz do dia que vai se tornando mais intensa, Cuzco nada mais é que um gigantesco braseiro. Incansáveis, os guerreiros fazem girar as fundas, lançando as pedras conservadas desde a véspera em fogueiras e depois embrulhadas em algodão. O tempo necessário para o lançamento basta para pôr em chamas o algodão e, quando os projéteis atingem os tetos, o ichu bem seco que os recobre precisa apenas de um instante para também se incendiar.
Hoje os Poderosos do Outro Mundo apóiam o Único Senhor Manco. Antes que a noite chegue ao fim, o vento começou a soprar de novo e rapidamente atiçou as primeiras chamas. Elas cresceram, se alongando e se enroscando para deslizar de telhado em telhado. Todas as canchas do Alto Cuzco arderam em chamas ao mesmo tempo, como se o fogo tivesse se tornado líquido.
Os guerreiros lançaram novamente milhares de seixos. As fundas sibilaram e agora são os telhados do Baixo Cuzco que se incendeiam como campos de milho no final do verão. Ali o fogo salta, atravessa as ruas, transpõe os jardins e os pátios. Com as mãos apoiadas sobre a muralha de pedra larga como um caminho, Manco ri cheio de alegria:
- Olhe só, Anamaya! Veja como eles correm, nossos poderosos estrangeiros! Não se poderia dizer que sentem a morte correndo para queimar-lhes as patas?
Anamaya inclina a cabeça em sinal de aprovação. A comparação de Manco é bem apropriada. Os espanhóis e algumas centenas de índios candris, huancas e de outras nações que ainda persistem em se manter fiéis a eles correm em todas as direções, mas sem outro objetivo senão escapar aos telhados e aos vigamentos em chamas. Quando alcançam espaços descobertos, longe das chamas, então são as pedras de funda e as nuvens de flechas que se abatem sobre eles. Já se vêem dezenas de cadáveres e feridos que ninguém ousa socorrer. Depois de um instante, os cavaleiros espanhóis recuaram para a grande praça que é a única que se encontra a salvo das chamas e dos projéteis, por estar muito distante das torres de Sacsayhuaman. Anamaya tenta discernir entre as silhuetas nervosas e em movimento os cabelos louros de Gabriel. Mas os estrangeiros estão em fileiras muito cerradas, juntos uns dos outros, os rostos cobertos por capacetes. Outros mais chegam à praça gritando, se protegendo com os escudos como podem.
- O que acha, Coya Camaquen? - pergunta Manco, que examina seu rosto com um olhar divertido, adivinhando com facilidade o que ela sente.
- Creio que é uma bela batalha e que é terrível, como todas as batalhas.
- Nós vamos vencer - exclama Villa Oma indignado -, e isto não parece alegrá-la.
- Nós ainda não vencemos - responde Anamaya com doçura. - Por enquanto, é somente a nossa Cuzco que está destruída, não os estrangeiros.
O comentário irrita profundamente Villa Oma. Com um gesto brutal, ele mostra a enormidade das tropas que cercam Cuzco.
- Olhe para a planície, Coya Camaquen. Veja nossos guerreiros, eles cobrem as colinas, eles cobrem a planície. Nem uma formiga poderia escapar. Você imagina que possam ser vencidos?
- Por enquanto, os guerreiros estão fora da cidade e os estrangeiros dentro.
- Isso não vai durar. Dentro de um instante eu darei a ordem. Todas as tropas seguirão para as ruas de Cuzco. Observe bem esses estrangeiros, lá embaixo, na praça!
Esta noite, nenhum deles estará vivo!
Villa Oma falou quase gritando. Anamaya não responde; ela sabe o que pensa o velho sábio, a quem a guerra deixa inebriado pela violência. Ela cerra os lábios para não formular a pergunta que a persegue desde que Gabriel e ela se separaram em Calca. Se Gabriel é o puma, o que acontecerá se ele morrer?
- Anamaya tem razão - declara Manco secamente, arrancando-a de seus pensamentos. - O que você me mostra me dá muita alegria, Villa Oma, porém ainda é muito cedo para comemorar.
- Então, espere até esta noite! - resmunga Villa Oma com uma ponta de desprezo. - Olhe ali...
Com o dedo, ele indica os primeiros guerreiros que saltam para as ruas, para levantar as paliçadas que impedirão que os estrangeiros fujam a cavalo.
- Não - ordena Manco com firmeza. - Não entraremos na cidade hoje. Ainda é cedo demais. É cedo demais. Os guerreiros deverão chegar brevemente de Quito, então atacaremos e venceremos.
- Único Senhor! Nós já somos mais de cem mil e eles são apenas duzentos!
- Eu disse que não, Villa Oma. Devemos enfraquecê-los ainda mais. Será preciso destruir as canalizações que levam a água até a grande praça. Precisamos deixá-los famintos, fazer com que cada minuto da vida deles seja insuportável até que desejem se refugiar na planície... Você a inundou, os cavalos não lhes servirão para nada. Eles cairão em nossas mãos e nós sacrificaremos os cavaleiros a Inti! Eles devem morrer de medo!
O semblante de Villa Oma está deformado pela fúria. Mas ele se cala. Contenta-se em observar a cidade que arde em chamas, os homens que correm e gritam. Anamaya vê seus lábios tremerem e seus punhos se cerrarem convulsivamente. Ele tem de se conter para não estender o braço e bater em Manco.
- Villa Oma... - diz em voz doce, tentando acalmá-lo.
- Você não deveria estar aqui - retruca o Sábio com uma ironia cruel. - Se os estrangeiros são tão perigosos quanto acredita Manco, está correndo um grande perigo expondo-se aqui nesta torre. Deve voltar para Calca imediatamente.
Dando-lhe as costas, permitindo que seus olhos azuis se percam no céu para onde sobem as chamas e a fumaça, Anamaya pode finalmente entregar seu coração à inquietação. Sim, ela treme de medo por Gabriel! Sim, com todas as suas forças e do fundo de sua alma, Anamaya deseja que pelo menos ele sobreviva. E não somente porque é o puma anunciado pelo grande Huayna Capac- mas porque é o homem que ela ama e porque viver sem ele não é viver.
Cuzco, maio de 1536
Sentindo-se impotente como um cão preso pela coleira, Gabriel ouve os gritos dos moribundos e assiste à cidade incendiando. A fumaça chega até a pequena janela e o obriga a se afastar. Dobrado pelos acessos de tosse, ele rasga os farrapos que restam de sua túnica imunda para amarrá-los sobre o rosto. Já faz muito tempo que deixou de esperar pela volta do carcereiro ou pelo retorno de frei Bartolomé.
Há muito tempo a esperança o abandonou e agora seu único sonho é conseguir respirar mais uma vez, e sobreviver. Metade de Cuzco está em chamas quando Gabriel começa a ouvir os choques que tanto temia: agora as pedras atingem o telhado de sua prisão. Dez vezes talvez o ruído surdo se repete. Depois uma primeira pedra atravessa o ichu que recobre o telhado e cai bem perto dele.
Quase que imediatamente uma fumaça marrom forma volutas ao redor das cilíndricas peças de madeira do vigamento. Uma pequena chama se encrespa, saltitante. Ela risca uma linha em forma de serpente dourada, ganha a cumeeira do telhado, ziguezagueia, hesita, volta a descer pela inclinação do lado oposto para correr ao longo das paredes. Logo em seguida, em pouco menos de um minuto, outras chamas nascem e se juntam a ela. Então, subitamente, de uma vez só, todo o revestimento de colmo se incendeia.
Antes que Gabriel possa reagir, o fogo balança acima dele como se tentasse acariciar o solo e o obriga a se ajoelhar. Em alguns segundos o calor se torna insuportável. Gabriel amaldiçoa a corrente, amaldiçoa Hernando e todos os Pizarro. Ele se deita de barriga para baixo, para proteger o rosto. Mas suas costas começam a queimar de modo insuportável. Com pequenos rugidos de tigre, maços inteiros de ichu desabam, pulverizando fagulhas em todas as direções. A força das chamas redobra, mas elas são aspiradas em direção ao exterior, puxando consigo a fumaça. É então que Gabriel se lembra dos odres de água trazidos por Bartolomé.
Desafiando o calor que lhe calcina os pêlos das mãos, ele luta para alcançar um deles. Rasgando com os dentes a tira de couro que prende a tampa de madeira, ele molha o rosto e os ombros, e esvazia o odre até a última gota sobre seu corpo em chamas. O choque de frescor é tão violento e tão repentino que o deixa tremendo e batendo os dentes. Gabriel tem apenas um breve instante de consciência para vislumbrar o resto do revestimento de palha lhe desabar em cima. Preso pela corrente que limita seus movimentos, evita como pode aqueles maços de palha em chamas, encolhendo-se junto à parede. De repente, com a mesma brutalidade com que se espalhou, o fogo se acaba.
Restam apenas algumas línguas de fogo em torno das vigas da armação, agitadas por um vento que levanta a fumaça em rolos que giram. Um ar fresco, na verdade até frio, penetra entre as paredes incendiadas.
Com os braços e as mãos doloridos, Gabriel agarra o último odre que lhe resta e não resiste à tentação de beber e de se molhar mais um pouco. Dentro de pouco tempo não terá mais água, mas isso pouco importa. Exausto pelo medo, ele se deita no chão e bendiz o ligeiro frescor que o vento lhe oferece. Agora a fumaça desliza sobre as paredes de Cuzco, escondendo o céu como uma tempestade crepuscular. Parece que é ela que contém todos aqueles lamentos, todos aqueles chamados, toda aquela algazarra de morte e destruição que zumbe e rosna pela cidade.
Gabriel fecha os olhos doloridos e passa a língua, que parece um pedaço de couro velho, sobre os lábios ressequidos e queimados. Ele pergunta a si mesmo quantos espanhóis ainda estarão vivos. Quanto a ele, é como se já estivesse diante do reino dos mortos. Nessa noite, como nas anteriores, o lamento das trompas e os cânticos, os chamados, os insultos dos cem mil guerreiros incas não cessam. O ruído assustador vibra no céu incandescente, acompanhado de rolos de fumaça tão espessos quanto nuvens de tempestade, como se o próprio diabo tivesse estendido o dossel do inferno sobre Cuzco.
Esgotado, sentindo dores dos pés à cabeça e até nas pálpebras, Gabriel adormece por um longo momento, buscando o silêncio no embrutecimento da fadiga. É um grito diferente dos outros que o obriga a abrir os olhos. Ele não tem muita certeza do que vê. Três silhuetas se mantêm de pé, rígidas, sobre a parede acima dele. Silhuetas sem face, das quais ele distingue apenas corpo e membros. Com armas nas mãos: lanças e cassetetes.
Inicialmente, nada se move e ele acredita ainda estar dentro de um pesadelo. Depois, um novo grito sai das sombras. Um braço se levanta e atira alguma coisa. Uma pedra, uma grande pedra amarrada a uma corda! Ela quica no solo a quatro dedos da perna de Gabriel que, já de pé, grita sem refletir:
- Não estou contra vocês!
Ao ouvi-lo falar a língua deles, os três homens hesitam.
- Não estou contra vocês, sou a favor da Coya Camaquen! - Gabriel grita de novo.
Numa revelação súbita, ele percebe a hesitação dos guerreiros incas. Um deles diz alguma coisa incompreensível, depois agita os braços na sua direção. Gabriel repete:
- Não estou contra vocês!
Ele sacode a corrente para mostrar que está preso, um dos homens gesticula, murmurando frases que Gabriel não consegue compreender. O outro índio sacode nervosamente a corda, e a pedra amarrada em sua ponta rola entre os pés do espanhol, porém sem desequilibrá-lo.
Instintivamente, Gabriel agarra a pedra e a corda e as puxa para si. Enquanto isso, no mesmo instante, um dos atacantes solta um gemido enquanto os outros dois se afastam. A corda fica frouxa nas mãos de Gabriel. Sobre a parede, um dos guerreiros se curva e seus companheiros dão gritos agudos, já fazendo girar as fundas, O homem se deixa cair com um ruído seco, como um saco, no solo da prisão.
Quando Gabriel torna a levantar os olhos, os dois guerreiros fogem e somem na noite ocre. O homem caído ao lado dele já está morto, com uma seta de besta tão profundamente enterrada no peito que quase desapareceu!
Gabriel não tem tempo para se espantar. A porta da cela range e uma forma totalmente obscura, parecendo um fantasma tingido de negro, desliza com agilidade para o interior do cárcere sem teto. Na ponta do braço traz uma pequena besta de arco endentado.
Gabriel recua, a corrente se agitando ruidosamente entre suas pernas. Uma risada zombeteira soa baixinho.
- E então, amigo, não me reconhece mais? - sussurra uma voz muito familiar.
A surpresa de Gabriel é tão grande que, por um instante, sua única resposta é o silêncio. Então o vulto se aproxima, dando dois passos cuidadosos.
- Olá, Gabriel! Já arrancaram sua língua?
- Sebastian... Sebastian!
O grande e fiel companheiro negro, o antigo escravo, se aproxima, colocando cuidadosamente a besta sobre o solo, e abraça Gabriel sem hesitar. Na verdade, como Gabriel, ele está tão imundo que não pode temer se sujar mais. A única peça de roupa que veste é uma espécie de casaco curto, sem mangas, de couro, que contém sua reserva de flechas e um longo punhal. Tirando isso, ele está nu, sua pele negra manchada de fuligem cinza.
- Sebastian disfarçado de diabo! - exclama Gabriel com alívio.
Um sorriso de brancura cintilante rasga a escuridão.
- Nos dias de hoje, não conheço trajes melhores. Pelo menos uma vez na vida o fato de ser negro é um trunfo, não vejo por que não aproveitar!
O riso sobe à garganta de Gabriel como se ele bebesse água fresca. Com a ponta do pé, Sebastian cutuca o corpo do guerreiro inca:
- Está morto, bem morto, na minha opinião. Parece que cheguei bem a tempo, não é verdade?
- Como sabia que eu estava aqui?
- Frei Bartolomé me disse, é claro. Foi ele que me contou em que arapuca você estava metido. Demorei um pouco porque tive de arranjar isto aqui...
Sebastian tira do casaco de couro um furador de aço e um pequeno martelo.
- Seu amigo gordo, o carcereiro, foi um pouco difícil de encontrar. Era simpático, o homem, e bem do tipo de temperamento que eu gosto: louco para fazer confidências, me contou que tinha engravidado seis índias diferentes para ter certeza de ter um menino. Enfim... era ele que estava guardando este maldito furador que vai permitir abrir sua grilheta. Sem isto, teríamos de arrancar a corrente da parede para que depois você pudesse passear com ela!
Ao mesmo tempo em que fala, Sebastian põe mãos à obra, atacando a haste que fecha a grilheta da corrente no tornozelo de Gabriel com o furador e batendo com pequenos golpes precisos.
- Não se mexa, que abro isso num instante! Vigie as paredes para que nossos amigos incas não voltem para nos apanhar pelas costas!
Para Gabriel, o bater dos ferros que se abrem é mais precioso que um tilintar de peças de ouro. Imediatamente ele tem a sensação de que respira melhor.
- Pronto, você está livre - exclama Sebastian, segurando afetuosamente o pulso de Gabriel.
- Bom Jesus, eu realmente acreditei que iria ser grelhado como um frango entre essas paredes - sussurra Gabriel, massageando suas panturrilhas que de repente parecem estar sendo espetadas por mil agulhas. - Não sei nem como agradecer a você, só acendendo velas, Sebastian!
- A verdade, meu caro, é que você está cheirando muitíssimo a queimado! - Sebastian faz uma careta cômica. - Agora temos de dar o fora daqui, mas primeiro...
Ele tira seu punhal e se ajoelha ao lado do guerreiro morto. Sem hesitar, enfia a lâmina no peito do cadáver.
- Tenho de recuperar minha seta - explica. - É preciosa demais e temos muito pouca munição para desperdiçar.
- Onde estão Remando e os outros? - pergunta Gabriel, evitando olhar para as mãos de Sebastian.
- Na cancha do alto da grande praça. Aquela não queimou: dom Hernando postou escravos no teto para apagar os princípios de incêndio. Uma dúzia deles morreu por lá, mas, apesar disso, homens e cavalos, todos nos amontoamos lá dentro bem abrigados... Pronto, agora está feito!
Sem nenhuma emoção, Sebastian enxuga a flecha curta na túnica do morto.
- Vou levar você até lá - prossegue ele com uma risadinha. - Acho que vai ser uma pequena surpresa para eles rever você bem vivo!
- Com esses trajes?
A grande gargalhada de Sebastian soa mais alta que o alarido que continua a pairar sobre a cidade.
- Mas claro que não, meu senhor! Tenho coisa muito melhor que isso!
Para surpresa de Gabriel, Sebastian não toma o caminho mais curto em direção à grande praça. Em vez disso, ágil e silencioso como um gato, ele a contorna pelo lado oriental, onde alguns tetos ainda ardem soltando fumaça. Com um olhar, Gabriel se dá conta de que eles desembocaram exatamente na rua onde fica o palácio de Hatun Cancha. De repente, Sebastian empurra uma portinhola de pele de lhama, ainda não curtida, para ter resistido ao incêndio.
- Um instante - diz baixinho depois de ter fechado a porta com cuidado. - Não saia daqui, eu já volto.
Com algumas passadas largas, ele se afasta, tão pouco perceptível na escuridão que Gabriel o perde de vista. Ele não reconhece nada da cancha onde eles se encontram. Como por toda parte na cidade, os telhados desapareceram; a despeito disso, os prédios parecem em bom estado e até mesmo luxuosamente decorados "à moda espanhola". Novas construções com revestimento de argamassa de cor clara unem os prédios de forma alongada, tipicamente inca, formando uma única construção ao redor do pátio. Portas e janelas de verdade lhes dão uma feição familiar.
- Está tudo bem! - sussurra Sebastian, que já voltou para junto dele.
- Eu queria ter certeza de que não tínhamos visitantes indesejados.
- Onde estamos? - pergunta Gabriel.
A gargalhada de Sebastian é límpida como a de uma criança.
- Ora! Onde você acha que estamos? Na minha casa, claro!
- Na sua casa?
- Será que você se esqueceu que sou rico? Um verdadeiro Creso!
Gabriel sacode a cabeça, ensaia uma risadinha brincalhona. Qualquer um que o visse daquele jeito, quase nu e com a besta na mão, teria muita dificuldade em imaginá-lo como o proprietário.
- É verdade! Eu tinha esquecido. E esquecido até que você era rico a esse ponto... Que casa!
- Ela era bem mais bonita com o telhado e os móveis - resmunga Sebastian empurrando-o para a frente. - Venha, não devemos ficar aqui!
O aposento onde eles entram cheira a fumaça fria, a fuligem e a cinzas. Dos móveis de madeira, só resta o couro rachado das cadeiras, as cantoneiras de metal de uma mesa ou o pé retorcido de um candelabro.
- Que bagunça! - resmunga Sebastian.
Ele afasta os escombros de uma cama bem como um tapete feito de mantas costuradas umas nas outras. As grandes lajes de pedra abaixo não revelam nada de excepcional. Mas, antes mesmo que Gabriel possa manifestar seu espanto, com a ajuda de uma haste de ferro Sebastian solta uma das lajes, depois levanta duas outras. Sob a luz fraca das estrelas e de uma lua crescente que finalmente começa a surgir em meio às nuvens de fumaça, aparece um sólido alçapão de madeira.
- Ajude-me - pede Sebastian. - Isto é pesado como três asnos.
O alçapão está sobre o que parece apenas um poço de escuridão. Mas Sebastian segue adiante. Tateando, ele encontra os corrimãos de uma escada de moleiro. Sua mão desaparece, apalpa e descobre uma vela e um fuzil de lume.
- É melhor andarmos depressa. É melhor que não nos vejam.
Um instante depois, Gabriel não consegue acreditar no que vê diante de si e sua estupefação muda encanta Sebastian. Eles estão numa caverna que oferece ao mesmo tempo todo o conforto e a fartura de um depósito de roupas e de armas.
- Como você vê, sou de fato rico - diverte-se Sebastian. - Numa cidade como Cuzco, vive-se num estado um tanto ou quanto instável. Amanhã, quem sabe, eu serei pobre por causa dos índios ou do humor dos Pizarro ou de Almagro. Se há uma coisa que aprendi na vida é que sou negro e sempre serei. Isso é a mesma coisa que dizer que sempre serei um pouco escravo! Esta bendita prudência me aconselhou a nunca exibir à luz do dia todos os meus tesouros. Você é realmente a primeira pessoa a entrar aqui, e digamos que o que você vê aqui é a parcela que decidi arriscar. Esta caverna e o que ela contém não passam de uma miragem!
Enquanto ele torna a subir a escada para fechar bem o alçapão, Gabriel observa boquiaberto os tesouros acumulados ao seu redor. Uma variedade de peças de vestuário novas enche algumas malas: camisas finas, gibões, calções plissados e até mesmo rolos de veludo, de cambraia e de linho esperando pelo alfaiate. Penduradas em estranhos pórticos, há cotas de malha de ferro reforçadas com couro e algodão. Atirados em cestos há morriões. Quatro selas de cavalo, ricamente trabalhadas com adornos de prata, descansam sobre cavaletes, uma grande caixa alongada contém espadas, adagas, duas bestas de manivela... Em lugar algum se vê ouro, mas Gabriel não duvida que, num esconderijo ainda mais discreto, alguns lingotes devam estar empilhados!
- Não consigo acreditar em meus olhos - confessa com incredulidade.
- Venha, ainda tenho uma coisa para mostrar a você - replica Sebastian.
Com o auxílio da vela, eles se dirigem para o fundo da caverna. Uma passagem estreita desemboca numa outra câmara onde o ar é fresco. Gabriel escuta o barulho de água corrente antes mesmo de vê-la.
- Olhe - mostra Sebastian, levantando o pequeno castiçal e revelando uma espécie de banheira natural escavada na pedra. - A água é gelada, mas vamos poder nos lavar,
depois descansar até o amanhecer. Daqui, pelo menos, não se ouve mais a algazarra dos incas. Amanhã, você vai escolher uma bela roupa, uma espada que esteja à sua altura. Quero ver você no maior esplendor!
- Sebastian...
- Não, não e não! Nada de protestos, Gabriel! Para mim é um prazer indescritível poder lhe oferecer esses pecadilhos e um prazer multiplicado por dez pela surpresa de alguns de nossos amigos que descobrirão que você estará bem vivo amanhã!
Ao alvorecer, muito bem vestido, com os pés calçados em botas novas, uma sólida túnica de couro e cota de malha cobrindo sua camisa, uma espada de Toledo ornada de madrepérola e incrustada de prata roçando nos calções de veludo púrpura, Gabriel sai da casa de Sebastian. A cidade ainda fumega. Cerca de metade dela já está nas mãos dos guerreiros de Manco.
Em duas ocasiões eles são obrigados a recuar e correr debaixo da chuva de pedras de funda antes de conseguir se juntar aos espanhóis, entrincheirados na única cancha intacta da grande praça. Colchas grossas, sustentadas por cordame, semelhantes a enormes velas, foram estendidas sobre os pátios de modo a impedir a passagem de pedras e de flechas. Guardas, protegidos por portas ou postigos entreabertos, controlam as entradas e saídas, mas sem hesitação os deixam passar. Para Gabriel, todos os rostos são novos e, no recinto totalmente fechado, ninguém lhe dá atenção.
Depois de ter passeado por alguns instantes entre os soldados cujos olhares revelam angústia, Gabriel de repente ouve a voz de dom Hernando. Ladeado por Juan e Gonzalo, de pé diante de cerca de uma dezena de cavaleiros, ele bate com o dedo indicador sobre um mapa da cidade desenhado às pressas que foi estendido sobre uma grande mesa.
- De acordo com os cafíaris, todas as ruelas do norte da cidade agora já estão fechadas por barricadas de ramagens com altura de quatro, cinco ou até mesmo seis toesas. Altas demais para serem transpostas pelos cavalos, de qualquer maneira. E o mesmo acontece aqui, na parte leste e na parte sul. Eles não perderam tempo...
- O cerco está se fechando, estou dizendo! Eles vão nos garrotear como se fôssemos coelhos! - geme um homem cujo gibão calcinado deixa entrever a camisa.
- Não é o fato de termos o rabo queimado pelas chamas que já nos transforma em coelhos, Diego! - protesta Hernando.
- As barricadas que mais nos prejudicam são as do norte - intervém Juan Pizarro. - Elas impedem qualquer ataque contra a fortaleza de Sacsayhuaman. E é de lá do
alto, infelizmente, que os incas nos mantêm imobilizados dia e noite sob disparos de fundas e flechas. Eu detesto esta sensação. Parece que somos formigas debaixo dos olhos de gigantes!
Irritado com o tom desiludido de Juan, Hernando o interrompe com um gesto.
- Mas, meu irmão, isto não é hora para frases de efeito! Daqui em diante devemos ser prudentes com cada um de nossos movimentos: não podemos mais nem sequer pensar em sair desta cancha em pequenos grupos, pois se o fizermos seremos derrubados por uma saraivada de pedras, correndo o risco de ferir nossos cavalos. O melhor é transformar nossa raiva em paciência e tratar de nos preparar para conduzir uma carga maciça em direção à planície dentro de dois ou três dias. Vamos agir com um pouco de astúcia e também fazer uso dos nervos deles. Vamos deixar que acreditem que estamos enfraquecidos e apavorados e então destruiremos o cerco como se fosse uma argola de vidro.
- Enfraquecidos e apavorados! Se estiverem ouvindo os gritos e gemidos que escapam desta cidade já há vários dias, posso lhe assegurar que não precisaremos fazer com que acreditem em coisa alguma: enfraquecidos nós já estamos e eles sabem disso. E depois, como pode estar tão seguro dessa sua tática, dom Remando? Eles são duzentos mil e nós somos apenas duzentos, com apenas cinqüenta ou sessenta cavalos ainda em bom estado!
- Pois já somos cinqüenta a mais do que éramos em Cajamarca, com meu irmão, o Governador, Senhor del Barco! Nós já vencemos os cem mil guerreiros de Atahualpa em algumas horas. Deus quis que fosse assim e nos concedeu a vontade de fazê-lo. Não se esqueça nunca de que seu braço armado com uma boa espada pode cortar dez índios com um só golpe, enquanto eles precisam de cinqüenta flechas para penetrar nossos plastrões reforçados de couro e algodão! Ao contrário do que sugeria ainda há pouco o meu irmão Juan, não somos formigas, senhores. Estamos com medo? É bom que estejamos: isso nos dará mais colhões.
Quando avança um pouco mais adiante no aposento que fede a fuligem, a suor e a medo, Gabriel encontra o olhar surpreendido e atento de Bartolomé. Com um sorriso de divertimento, pondo um dedo sobre os lábios, Gabriel recomenda que se mantenha em silêncio, enquanto um homem mais jovem, de olhos fundos pela falta de sono, protesta com veemência:
- Dom Hernando, eu não compreendo! Por que esperar até amanhã ou depois de amanhã para conduzir esse ataque e não tentar agora, imediatamente, sair deste ninho de vespas?
- Porque precisamos conseguir passar na primeira tentativa, Rojas. Diante do número deles, teremos somente uma oportunidade. Essas últimas horas foram duras para todos nós. Olhe ao seu redor, tanto cavaleiros quanto soldados de infantaria, todos nós precisamos de um pouco de descanso. E, mais do que todos, primeiro você, meu caro Rodrigo: você mal consegue se manter de pé.
- Mas nos entrincheirarmos aqui, dom Hernando, é entregar-lhes a cidade! Entregar-lhes a cidade significa que morreremos como ratos, e o senhor sugere que devemos perder nosso tempo dormindo!
- Não, Rojas, esse tempo não será inútil. Nossa imobilidade vai irritar os índios. Eles vão se cansar de gritar e de arremessar pedras!
- E o que vai impedi-los de vir aqui nos fazer arder em chamas, aqui mesmo, esta noite? Eles são dezenas de milhares, dom Hernando. Basta-lhes apenas querer e eles saltarão sobre este cercado como pulgas numa sotaina de padre!
- Mas eles não querem, Senhor del Barco! - retruca Remando, rangendo os dentes, a tal ponto irritado que chega a empalidecer. - Não está vendo que se contentam em nos arremessar pedras lá do outro lado da praça? Se eles não tivessem medo de nós, de nossas espadas e de nossos cavalos, já estaríamos mortos. Eles têm medo de nós, dei Barco! Eles talvez sejam milhares, mas são milhares que têm medo! Ouçam o que estou dizendo: uma carga, uma única, unindo todas as nossas forças, e criaremos pânico entre as fileiras deles.
- Não alimente ilusões, dom Remando - intervém Gabriel com a voz calma. - Não estamos em Cajamarca. O senhor estava lá, mas eu também. Estou vindo lá de fora e posso lhe assegurar que esse medo, que acredita que será capaz de lançar por terra os guerreiros incas, muito pelo contrário, lhes dá mais alento. A julgar pelos semblantes dos senhores aqui, e sem nenhum intuito de ofendê-los, parece-me que o terror está sobretudo aqui dentro!
Bem posicionado Gabriel enfrenta os olhares estupefatos que se voltam para ele.
- Santo Deus! - Gonzalo é o primeiro a reagir com um sussurro. - Quem o libertou?
Ele dá dois passos na direção de Gabriel. Ainda não recuperado do confronto entre eles, Gonzalo manqueja. Juan o agarra pelo cotovelo para sustentá-lo e ao mesmo tempo segurá-lo.
- Eu me contento apenas com o fato de estar vivo, uma vez que você também está - Gabriel se diverte provocando-o, antes de saudá-lo com uma profunda reverência, tão cheia de ironia quanto de cerimônia. - Dom Hernando, tendo recuperado a liberdade por meus próprios meios, eu o perdôo por dela ter me privado e me ponho a seu serviço para os belos momentos de batalha que nos esperam.
Gonzalo empurra Juan e cerra a mão sobre o punho da espada. Mas a de Gabriel já está desembainhada.
- Posso lutar com o senhor seu irmão, dom Remando. Contudo, duvido que o momento seja bem escolhido. Os senhores precisam de braços sólidos e não nos faltarão oportunidades de morrer nos dias que temos pela frente. Até dom Gonzalo poderá se dedicar a isso à vontade!
- Meu irmão! - protesta Gonzalo com a voz estridente. - Não pode aceitar um maldito canalha, espião mentiroso e assassino entre nós! Ele nos trairá a partir de amanhã!
- Fecha esta sua gargaleira de idiotices, Gonzalo - replica Gabriel. - Não há mais nada a trair aqui, exceto a honra. Ainda lhe resta o suficiente para compreender isso?
- Basta! - interrompe Hernando friamente. - Acertaremos nossas contas mais tarde. Não creia que vai escapar à justiça, Montelucar!
- Não é de minha natureza fugir à justiça quando a encontro, dom Hernando, algo que não tem sido muito freqüente aqui nesta região. Parece-me que já lhe provei isso em algumas ocasiões.
- Senhores! Dom Remando! Dom Gonzalo! - intervém Bartolomé, levantando sua estranha mão. - A ocasião não é apropriada para este tipo de palavras fúteis. Por mais graves que sejam suas diferenças para com dom Gabriel, ele já combateu os índios tantas vezes ou mais que qualquer um dentre os senhores aqui. Ele pode nos dar bons conselhos. Por que não escutá-lo?
- Está certo - aprova Juan Pizarro, dirigindo-se a Gonzalo. - Frei Bartolomé tem razão no que diz. Deixemos de lado nossos rancores para unir nossas forças! Uma vez vencida esta batalha, se isso for possível, sempre haverá tempo para que nos recordemos das faltas cometidas por dom Gabriel.
Com um gesto e um suspiro, Remando impede a resposta de Gonzalo e pergunta:
- Já que você é tão erudito, esclareça-nos com seus conhecimentos: em sua opinião, como devemos avaliar o comportamento de seus amigos índios?
- Eles nos observam há anos - declara Gabriel, sem demonstrar zombaria e dirigindo-se a todos. - A partir disso, conhecem nossos pontos fracos e sabem como imobilizar os cavalos. Acabou-se o tempo em que as cargas de cavalaria os aterrorizavam e eles se deixavam cortar em dois como cabideiros. Eles sabem manejar as pedras de funda de modo a nos arrebentar um braço ou as pernas dos cavalos. Quanto a combater corpo a corpo, isso há muito tempo é o ponto forte deles: são mais ágeis e mais eficazes que nós.
- Que bela notícia! - zomba Gonzalo. - Não vejo nada aí que nós já não soubéssemos.
- Eles estão esperando justamente nossa impaciência e nossa arrogância - prossegue Gabriel como se não tivesse ouvido. - Esperam que a fome e a sede nos atirem contra suas forças na planície. Esperam que mais uma vez, como sugeriu, dom Remando, decidamos lançar toda nossa cavalaria contra suas fileiras para tentar desamarrar a corda com que eles nos sufocam e fugir. Só que dessa vez eles estão prontos, em posição, senhores! Em todos os caminhos de que poderíamos nos servir com alguma facilidade, eu juro aos senhores, há fossas, estacas, paus ferrados, armadilhas, toda uma quantidade de obstáculos já está lá, escondida. Faça esse ataque, dom Hernando, e nossas montarias espatifarão os jarretes antes mesmo que possamos tocar a nuca de um inimigo com nossas espadas!
O discurso de Gabriel faz efeito com facilidade, pois ele diz em voz alta tudo o que alguns já pensavam há algum tempo. O silêncio que se segue é pesado, carregado de desânimo.
- Que alternativa propõe, dom Gabriel? - pergunta finalmente Juan Pizarro.
- Tomar a fortaleza!
- Você enlouqueceu! - exclama Gonzalo, com uma gargalhada de desprezo. - Isto é a última coisa possível!
- É a única coisa útil e necessária. Vocês sabem muito bem - diz ele, virando-se para Hernando como se Gonzalo não existisse - que sem fortaleza não há mais cerco.
- Ah, sim! E como pensa conseguir fazer isso? - zomba Gonzalo. - Com um pequeno salto, suponho? A torre e as paredes têm nada menos que quinze ou vinte toesas de altura. Isso sem contar as paliçadas que nos impedem de alcançá-las.
- Nós podemos destruí-las esta noite.
Um murmúrio percorre os homens. Gabriel vê olhos se desviarem, testas se abaixarem. Mesmo Bartolomé esboça uma careta pouco convencida. Gabriel levanta uma das mãos e a põe sobre o coração.
- Senhores, eu não perdi a razão nem quero convencê-los a cometer um ato de loucura. Compreendo seus temores. Mas a verdade está diante dos senhores, mais do que nunca. A escolha é entre morrer com prudência ou morrer lutando. Não se trata apenas do fato de que a prudência seja a vergonha e o combate a glória...
- Veja só, ele agora fala como meu irmão Francisco - ironiza Gonzalo no silêncio que se faz.
- ... a questão é que a prudência - prossegue Gabriel, sem olhar para Gonzalo - é a morte certa para todos, enquanto o combate pode nos dar a vitória. E em todo caso, talvez alguns possam escapar com vida.
Aproveitando-se do silêncio e da atenção que mais uma vez conseguiu capturar, Gabriel espicaça Gonzalo.
- Para mim, graças a dom Gonzalo, morrer hoje me é indiferente. Além disso, vejam qual é minha sugestão. Esta noite, eu irei incendiar as barricadas, sozinho, se for necessário. E então veremos o que acontecerá.
- Meu irmão - imediatamente retruca Gonzalo num rugido -, é um ardil! Ele quer pura e simplesmente fugir e ir se juntar aos selvagens.
- Dom Gonzalo - replica Bartolomé, com humor -, mostre um pouco de bom senso! Se dom Gabriel tivesse a intenção de fugir, não teria sido realmente útil que, depois de conseguir escapar de sua prisão, ele viesse aqui avisá-lo!
Antes mesmo que Bartolomé concluísse seu comentário, um sorriso divertido surge no rosto de Hernando, que põe a mão sobre o braço de Gonzalo.
- Pois bem, estou perfeitamente de acordo, dom Gabriel! Se alguém aqui quiser lhe oferecer um cavalo, eu bem que gostaria de vê-lo realizar esta façanha. E se, entre estes senhores, houver alguns que queiram acompanhá-lo, apenas limitaremos o número deles a cinco, de modo a evitar um desastre de grandes proporções.
- Fico contente, dom Remando, que a inteligência ilumine seu desejo feroz de me ver deixar esta terra - responde Gabriel em tom ameno.
- Caro dom Gabriel, se finalmente deseja ser útil a seu Rei e honrar a glória de Nosso Senhor, quem seria eu para impedi-lo?
- Eu vou com você - garante Sebastian um instante depois.
- Não - sorri Gabriel. - Tive prazer em espicaçar o mau humor dos Pizarro, mas estou muito longe de ter tanta segurança de levar meu plano adiante quanto afirmei.
- Enquanto isso, eles estão absolutamente seguros do plano deles, com aquele terrível Hernando no comando. Quando ele olha para você, é como se já estivesse com seus restos mortais nas mãos.
- Deixe-o sonhar!
- Eu vou com você - repete Sebastian com uma expressão severa. - Senão você não terá um cavalo; quem mais, além de mim, ousaria lhe oferecer um?
Os dois amigos se entreolham em silêncio durante alguns segundos, depois, emocionado, Gabriel segura as mãos de Sebastian.
- Vou ficar devendo muito a você.
- Sua dívida já foi paga, adiantado, há muito tempo, amigo Gabriel. Que seja de meu conhecimento, nunca tive maior prazer, até o dia de hoje, do que espetar o rabo do diabo junto com você! Agora venha comigo, quero mostrar meus cavalos.
O segundo pátio da cancha, cuidadosamente protegido por toldos de tela, foi transformado em estrebaria improvisada. O odor forte de urina e estrume traz náuseas à garganta, as moscas ziguezagueiam em enxames. A partir do momento em que Gabriel e Sebastian entram ali, alguns cavalos se afastam assustados e logo todos bufam e relincham, batem no solo com as patas, rolando os grandes olhos inquietos, e se esbarram uns nos outros com brutalidade. Amontoados ali, na verdade sem o espaço necessário, ainda assustados com o incêndio da cidade e com os berros que vêm das colinas, parece que o medo ainda acaricia seus dorsos trêmulos e malcuidados.
Ao ouvir o som baixo de um apito que Sebastian faz soar, uma égua soberba, de pêlo branco como a neve, se aproxima um pouco hesitante, o pescoço estendido e a cabeça baixa, como se buscasse uma mão que a reconfortasse.
- Quero lhe apresentar Itza - diz Sebastian, acariciando-lhe o lado da cabeça. - Está vendo? Eu não sou como você, dou nome a meus cavalos.
- E que significa Itza?
- Não tenho a menor idéia. Mas nos tempos em que eu era apenas um escravo que mal ousava levantar os olhos para os brancos, conheci no Panamá um velho conquistador que falava comigo como se fala com um homem e não com um animal. Ele repetia este nome a todo instante, Itza, Itza, como se fosse uma palavra mágica. Creio que combina muito bem com esta dama: cheia de vida, clara e franca como um relâmpago e ao mesmo tempo de temperamento doce. Veja, este aqui se chama Pongo.
- Não vou nem perguntar por quê.
Um cavalo castrado de pêlo malhado em cinza e branco se adianta, pondo-se à frente das outras montarias, mas sem se aproximar mais, observando com desconfiança as carícias que Sebastian oferece à égua.
- O "cavalheiro" perdeu os colhões, mas conservou seu mau gênio; contudo, nós nos entendemos bem. Você montará Itza; tenho certeza de que ela gostará de você.
E isso parece ser verdade, pois, inesperadamente a égua abandona a mão de Sebastian que a acaricia e vem encostar as narinas no peito de Gabriel.
- Que foi que eu disse? - diverte-se Sebastian.
- Você acredita que outros cavaleiros venham conosco? - pergunta Gabriel em tom sério, depois de ter retribuído as atenções de Itza.
- O mais importante não é termos cavaleiros, e sim alguns índios aliados. São eles que mais poderão nos ajudar.
- Isso não é o mais importante - retruca Gabriel com um sorriso.
- Então me pergunto o que pode ser, meu caro senhor...
- É ter como amigo um negro como você.
A noite, depois de intensas discussões, cerca de cinqüenta índios caíaris e três cavaleiros se apresentaram como voluntários para acompanhar Gabriel e Sebastian.
Diante da porta da cancha que se abre, todos os espanhóis formam uma fileira silenciosa. Ouve-se apenas o bater dos cascos e o murmúrio da oração de Bartolomé, enquanto do lado de fora o pandemônio vindo das colinas não cessa.
Dom Hernando está bem perto da porta. Com um meio sorriso, inclina a fronte.
- Boa noite, dom Gabriel.
- Não tenha receio - replica Gabriel no mesmo tom. - A noite será boa. E se não estiver com muito sono, eu o aconselho a dar uma olhadela por sobre as paredes. O espetáculo poderá lhe agradar.
Aproveitando-se da escuridão e da surpresa do ataque, eles alcançam sem muita dificuldade uma primeira paliçada. Ela bloqueia a maior das ruelas conduzindo à fortaleza de Sacsayhuaman. Comprimidos sobre uma estrutura de troncos de madeira, feixes de galhos de espinheiros constituem uma barreira onde com facilidade se feririam homens e cavalos.
Os clamores dos guerreiros sobre as colinas encobrem os ruídos das espadas e dos arreios. Os pescoços e as cabeças dos cavalos foram cuidadosamente cobertos com tecidos grossos de modo a protegê-los das pedras, enquanto tiras de couro recobrem-lhes o peito, envolvem os jarretes e as articulações acima das ranilhas. Esse aparelhamento dificulta o movimento das montarias, tornando-as mais lentas.
Quando eles estão bem próximos, o chamado lúgubre de um pututu ecoa subitamente. Um vigia avistou o avanço deles e dá o alerta. Num instante, guerreiros incas surgem sobre as paredes calcinadas das canchas vizinhas. Gabriel tem apenas o tempo exato de levantar seu escudo para se proteger da primeira salva de pedras. Por sua vez,
reagindo com gritos, com a cabeça enterrada entre os ombros, ele impele sua égua para a frente num passo de trote irregular, passando rente às paredes, com a espada levantada bem alto para cortar pernas e pés dos combatentes incas.
Atrás dele vêm os caaris, que com uma agilidade espantosa saltam sobre as paredes, com o cassetete ou o machado de bronze erguido. Imediatamente a chuva de pedras cessa e um assustador combate corpo a corpo começa sobre as paredes, cheio de ganidos e gritos de dor.
- O azeite, o azeite! - urra Gabriel para Sebastian.
Enquanto ele faz Itza girar perto da paliçada, a espada golpeando o ar como uma foice, Sebastian e dois dos espanhóis quebram uma grande bilha de azeite contra as ramagens da barricada. Uma centelha basta para incendiá-la. Uma luz amarelada irrompe, ofuscante, ao mesmo tempo que um grito de alegria se eleva:
- Santiago! Santiago!...
À luz da pira ardente, o impiedoso combate corpo a corpo que se trava bruscamente sobre as paredes se assemelha a uma dança demoníaca. Com um júbilo enlouquecido, com grandes golpes de machado, os guerreiros cafíaris cortam os corpos dos soldados incas como se estivessem destroçando apenas espantalhos. As pedras enegrecidas ficam pegajosas, cobertas de sangue e de tripas, os mortos se amontoam uns sobre os outros.
Desviando os olhos do horror, Gabriel urra a ordem de retirada.
- Vamos a uma outra barricada! - vocifera. - Precisamos queimar uma outra imediatamente, antes que eles estejam lá nos esperando!
Com uma simples pressão dos joelhos, ele impele a bela Itza a partir a galope, levando atrás de si cavaleiros e cafíaris.
E assim se passa a noite inteira. As barricadas ardem numa ruela, depois numa outra e depois numa outra. Quatro vezes, cinco vezes, a mesma matança desgastante se reproduz. De paliçada em paliçada, a tarefa vai se tornando cada vez mais difícil. Mas eles conseguiram se aproximar o bastante da fortaleza para distinguir seus paredões altos e sombrios acima deles. A despeito do cansaço dos homens e da tropa de cafíaris que se reduziu à metade, Gabriel quer destruir uma última barricada. Se conseguirem aniquilá-la, no dia seguinte estará livre o caminho conduzindo diretamente à fortaleza!
Mas ali nada acontece como antes. Os guerreiros incas foram alertados e esperam o ataque. A chuva de pedras e de flechas é mais densa, mais difícil de fazer recuar. Os cafíaris, movendo-se mais devagar por causa da fadiga e não contando mais com o efeito da surpresa, têm dificuldade para saltar sobre as paredes. As pedras os acertam no rosto e nas pernas, partindo-lhes os ossos e destruindo-lhes o ímpeto. Acelerando sua égua veloz, Gabriel miraculosamente salta uma vala escavada bem diante da paliçada e escondida sob uma cobertura de galhos e de terra. Mas os dois cavaleiros que o seguem não têm a mesma sorte. Seus cavalos fraturam as pernas. Gabriel ouve seus gritos e faz Itza girar bem a tempo de ver seus companheiros serem apedrejados.
- Sebastian! - berra.
- Estou aqui! - urra o gigante negro, lutando para repelir uma matilha de guerreiros incas. - Eles são muito numerosos, Gabriel, temos de recuar...
Mas já é tarde demais. Os incas afluem às dezenas, urrando. Abandonando qualquer intenção de alcançar a barricada de perto o suficiente para incendiá-la, Gabriel parte para o ataque a fim de liberar os dois cavaleiros que os cafíaris não conseguem mais proteger. Quando sua espada se tinge de sangue, um novo grito de Sebastian o surpreende.
- Cuidado! Cuidado! Cuidado com o fogo do alto, Gabriel!
Do alto da fortaleza, as flechas em chamas caem em cima deles como estrelas despencando sobre o solo. Os cafíaris, de repente petrificados, se imobilizam e depois irrompem em gemidos de dor. Os homens gesticulam, com o peito ou os ombros em chamas. Pelo canto do olho, Gabriel vê os incas recuarem, enquanto uma nova salva se prepara na fortaleza.
- Maldito diabo, eles nos pegaram numa armadilha! - berra Sebastian.
- Estamos encurralados entre a barricada e...
Ele não conclui a frase, pois uma flecha de fogo vem se enfiar em seu plastrão de algodão que, imediatamente, se incendeia. Com a palma da mão, mas atrapalhado pelo escudo circular, Sebastian tenta abafar as chamas. Seu cavalo, apavorado, dispara num galope, correndo em círculos e atiçando o fogo do plastrão, enquanto outras flechas batem quicando contra seus flancos. Gabriel finalmente consegue chegar perto dele e, com golpes de estilete, corta o plastrão e afasta as partes em chamas.
É então que a coisa mais estranha acontece. Todos vêem, os espanhóis, os cafíarjse os incas. Uma nova revoada de flechas incendiárias chega ao solo. Contudo, nenhuma toca em Gabriel e em Sebastian. Eles não têm nem sequer necessidade de levantar o escudo para se protegerem delas. Como se tivessem sido afastadas por uma força invisível, as flechas caem a alguns passos deles, batem e quicam nas lajes ou se despedaçam contra as paredes.
Pondo de novo a galope sua égua branca, tão infatigável quanto ele, Gabriel se lança sobre a fileira de guerreiros inimigos. Muitos recuam, os mais corajosos fazem estalar as fundas. Mas, como as flechas, as pedras se perdem na noite sem atingir Gabriel e Itza. No centro do círculo onde estão reunidos, espanhóis e caniarís vêem Gabriel galopar apontando sua espada para as fileiras incas sem nem sequer tocar nos guerreiros. Como um anjo salvador, transportado pela força imaculada de sua égua, Gabriel abre passagem, sem que nenhuma gota de sangue seja derramada. Petrificados pela surpresa ou pelo temor, ninguém lhe oferece resistência e logo a passagem pela ruela está desimpedida.
- Sigam-me! - grita ele para os companheiros. - Sigam-me, não há nenhum risco!
É de fato, quando, despertando de seu espanto, os companheiros correm atrás dele gritando "Santiago! Santiago!", nenhum inca tenta impedir sua passagem, nenhuma flecha ou pedra de funda os acerta.
Todo esse tempo e durante a noite inteira não é mais o medo, o ódio, nem a violência que se agitam nas entranhas de Gabriel: é uma estranha, intensa e irresistível vontade de rir. O heroísmo dessa noite desesperada é apagado pelo dia seguinte. Por volta do meio-dia, depois de adormecer exausto, a despeito do barulho incessante dos tambores e da fome que o atormenta, Gabriel é despertado por gritos e por uma grande agitação. De má vontade, prepara-se para abandonar o recanto de sombra perto dos cavalos onde encontrou refúgio, quando Sebastian, com o braço e o ombro cobertos por um curativo, aparece diante dele acompanhado por Bartolomé, com a expressão sombria.
- Como está se sentindo? - preocupa-se Gabriel imediatamente.
- Como uma jovem esposa no dia seguinte à sua noite de núpcias - resmunga Sebastian.
- A queimadura dele é grave? - pergunta Gabriel a Bartolomé.
- Grave o suficiente para fazê-lo sofrer por bastante tempo - suspira Bartolomé com resignação. - Receio sobretudo que os ferimentos infeccionem. Eu precisaria de um ungüento de azeite de oliva, mas aqui...
- Não sou nenhuma mocinha, e meu ferimento terá paciência como eu até que cheguem tempos melhores - protesta Sebastian em tom bem-humorado, empurrando Gabriel de volta para seu canto na sombra. - Mas você, meu amigo, é inútil aparecer em público...
- E por quê? O que está acontecendo?
- Nós não temos mais água - anuncia Bartolomé -, exceto por algumas barricas para prioridades. Esta manhã os incas destruíram as canalizações de pedra que serviam os reservatórios da grande praça.
- E de que maneira isto me impede de me mostrar em público? espanta-se Gabriel.
Os olhos de Sebastian procuram os de Bartolomé. Neles também, a fome e o medo já deixaram suas marcas. A febre embaça o olhar de Sebastian, habitualmente tão vivo. Um tique nervoso agita o braço ferido. Quanto a Bartolomé, a pele de seu rosto parece ter adquirido a mesma cor cinzenta de seu hábito de lã grossa e desbotada. Sobre as têmporas e sobre as mãos ela está tão esticada que parece revelar as irregularidades dos ossos logo abaixo! E tanto um quanto o outro parecem tão embaraçados que Gabriel pergunta mais uma vez:
- E então, o que houve?
Alguns consideram que nossa expedição da noite passada contra as barricadas enfureceu os incas - murmura Sebastian -, e que se ela não tivesse ocorrido, eles não teriam pensado em destruir as canalizações.
- Quem pode acreditar numa coisa dessas? - rosna Gabriel.
- Todos aqueles que Gonzalo conseguiu convencer. E com muita facilidade, porque os caíaris fizeram um reconhecimento de terreno ainda há pouco: as barricadas já foram reconstruídas. Todo o esforço da última noite foi inútil, continua sendo tão impossível alcançar a fortaleza hoje quanto era ontem...
- E daí? Mas é claro que eles iam reconstruir as barricadas! - Gabriel o interrompe brutalmente. - Mas nós as queimaremos outra vez e depois mais outra! Não somos nós que estamos cercados, sitiados? Que podemos fazer senão combater? Ou então vamos fazer a paz com os incas. A mim isso não vai entristecer...
- Não se trata somente das barricadas.
- Rã?
- Também há a questão... do que aconteceu.
- E o que aconteceu?
Um breve silêncio se faz. Afinal, Gabriel toma consciência do constrangimento de seus amigos.
- Santo Deus, vocês não vão falar?
- Você sabe muito bem - murmura Sebastian, virando-se para os cavalos.
- Não sei de nada.
- Andam contando um bocado de coisas estranhas a respeito dessa noite - diz Bartolomé baixinho.
- O que eu vi, eu vi - acrescenta Sebastian.
- E o que foi?
- Você montado em Itza, sem que as flechas nem as pedras o atingissem, enquanto elas nos massacravam.
- Uma sorte enorme a que eu tive, só isso!
- Não, havia outra coisa!
- Sebastian, você estava ferido! Sentiu medo e deixou que sua imaginação abrisse as asas. Isso é natural.
- Negue quantas vezes quiser, amigo Gabriel, eu sei o que vi. Aquilo não tinha nada de natural. Parecia que havia alguma coisa protegendo você. Itza voltou sem ter sofrido nem um arranhão, enquanto acabei de passar uma hora cuidando dos ferimentos de Pongo!
- Você quer saber quais são os rumores que estão circulando esta manhã? - intervém Bartolomé. - Gonzalo anda dizendo que o diabo e os incas são seus aliados. Aqueles que estavam com vocês na noite passada juram que viram São Tiago em pessoa ressuscitar em você! Alguns chegam ao ponto de afirmar que a Virgem Maria abria o caminho para você.
- Eu, em todo caso, não vi ninguém - diz Gabriel em tom bem- humorado. - E agora estou ouvindo essas frivolidades... Houve combates e houve mortos demais, isto foi tudo o que aconteceu.
- Não. Até mesmo os guerreiros incas viram - discorda Sebastian. - Foi por isso que eles nos deixaram partir. Aliás, você sabe muito bem disso: conseguiu fazê-los recuar com sua espada sem nem sequer tocá-los.
- Sebastian não foi o único a ver isso, Gabriel - insiste Bartolomé mais uma vez. - Falei com todos os cavaleiros que você salvou e com os caaris. Todos dizem a mesma coisa: as flechas incendiárias e as pedras poupavam você como que por milagre! Será que é Deus que o protege? Serão... aqueles de quem você é amigo entre os incas?
- Frei Bartolomé, com todo o respeito que lhe devo, está se entregando a fantasias! Eu sei em que medida os guerreiros incas são sensíveis à magia durante seus combates.
- Tirei partido disso, e só! Agi como se não temesse nem suas pedras nem o fogo, e isso os impressionou. E depois...
Falta naturalidade ao tom de Gabriel. Nos olhos de seus amigos, ele percebe tanto dúvida quanto incompreensão.
- E depois, eu tive sorte. Muita sorte, isso é tudo...
Na verdade, ele não tem certeza de ser capaz de convencer a si mesmo. Sebastian tem razão: ele sentiu que alguma coisa estranha lhe acontecia durante os combates. Como se sua força repentina não tivesse limites. Mas como confessar algo semelhante sem parecer estar louco?
- É preciso que acreditem em mim - repete numa voz obstinada. - Também é verdade que pouco me importa o fato de morrer. Mas nisso não há nada de miraculoso ou de mágico.
- Para você talvez, mas para aqueles que estão aqui e que sofrem temendo a morte, as coisas não são assim tão simples - retruca Bartolomé. - Eles não têm o orgulho de pensar que o encontro com a morte seja assim um momento tão belo, Gabriel Montelucar.
- Que quer que eu faça para convencê-lo, frei Bartolomé? Que eu saia pelas ruelas sem nenhuma arma para mostrar que os incas podem me matar como a todo mundo?
Mal ele se cala, Bartolomé levanta e aproxima de seu rosto a mão direita com os dedos colados. Com um gesto provocador, ele traça o sinal-da-cruz, murmurando:
- Não pediríamos tanto de você. Deixemos, portanto, que Deus escolha o caminho que Ele sabe que você precisa percorrer! Daqui até lá, tenha a humildade de viver como todos os outros entre nós e fique tranqüilo. Dom Hernando proibiu qualquer outra incursão de ataque e isto também vale para você.
Entregue a seus próprios pensamentos, Gabriel fica prostrado. Seu olhar voou para o alto das pedras maciças da fortaleza inexpugnável e mais acima até as montanhas. Ele zomba de sua sorte ou da proteção dos deuses. "Onde ela está?", murmura incansavelmente. "Onde ela está?" Mas os deuses que lhe pouparam a vida se recusam a lhe permitir ouvir a resposta que lhe devolveria a vontade de viver. Durante os cinco dias e as cinco noites seguintes, Cuzco se resume a pandemônio, morte e sofrimento.
Depois da lição dos ataques da primeira noite, os guerreiros incas não somente reconstruíram as paliçadas impedindo as cargas de cavalaria como também as fortificaram com valas dissimuladas e vigias observando qualquer aproximação em todas as horas do dia e da noite. Também, de maneira a aterrorizar ainda mais os espanhóis e impedir que possam ter qualquer repouso, não se passa uma hora sem que os clamores dos guerreiros se sucedam ao rufar dos tambores e aos lamentos sinistros das trompas.
Dia e noite, sem cessar, os arqueiros e os lançadores de pedras se revezam sobre o alto das muralhas da fortaleza de Sacsayhuaman mantendo um bombardeio permanente sobre a grande praça e a última cancha, onde se amontoam os espanhóis sitiados. A fome e a sede, aliadas à impossibilidade de repouso, ao sono constantemente interrompido pelo alarido, levam os homens à loucura. Alguns gritam fechando os olhos, outros choram como crianças. Outros ainda rezam sem parar com tanta violência que Bartolomé não ousa acompanhar seu fervor. Alguns se recordam de antigas campanhas com o Governador dom Francisco Pizarro e põem para assar vermes tirados da terra ou bebem a própria urina, quando não vão pedir a dos outros!
No quarto dia, prevendo que não conseguirá conter por muito mais tempo a demência desses homens privados de combates, dom Hernando Pizarro concede a seus irmãos Juan e Gonzalo, bem como a cerca de vinte soldados de artilharia, o direito de fazerem uma incursão de ataque para retomar a casa de Gonzalo situada do outro lado da grande praça, onde se espera ainda encontrar alguns dos porcos vindos de Cajamarca, favas e até mesmo um pouco de farinha de milho. Como Gonzalo proibiu a presença de Gabriel a seu lado, com alguns outros ele forma pelotões para vigiar a retaguarda dos combatentes e protegê-los de uma manobra que lhes corte a possibilidade de retirada.
Os combates se prolongam durante quatro horas antes que os cavalos de Juan e Gonzalo, pateando sobre os corpos dos guerreiros incas, finalmente consigam entrar no recinto. Dos porcos, restam apenas os cadáveres apodrecidos e infestados de moscas e vermes. Nos porões, um único barril de farinha foi esquecido pelos sitiantes.
Enquanto isso, como na casa de Sebastian, o descobrimento de um reservatório de água fresca, bem cheio, abastecido por uma fonte invisível, provoca gritos de alegria. À noite, essa magra vitória traz um pouco de esperança aos espanhóis. Contudo, a grande praça de Aucaypata não está mais inteiramente submetida aos bombardeios de pedras dos incas. É dada a ordem de retirar da casa de Gonzalo todos os tecidos, lençóis, toalhas e tapetes. A casa transborda como um armazém de Cadiz.
Por toda a noite, uma atividade febril faz com que o alarido vindo das colinas, a fome e o medo sejam esquecidos. Enquanto os cavaleiros se revezam para conservar a grande praça fora do alcance das tropas de Manco, soldados de artilharia, de dedos grossos e mais habituados à espada ou à lança, reúnem esses tecidos variados, enquanto outros trançam cordas, levantam estacas, e retiram vigas ainda em bom estado em meio aos tetos calcinados. Ao raiar do dia, um gigantesco toldo com cores variadas cobre a grande praça, desde a casa de Hernando até a de Gonzalo, finalmente protegendo os sitiados da saraiva de pedras lançadas de Sacsayhuaman.
Entusiasmado com esse sucesso, Hernando tenta romper o cerco que os asfixia. Ele lança seus cavaleiros em escaramuças que avançam cada vez mais longe ao redor da praça. Mas, muito rapidamente, esses combates se revelam mais perigosos que eficazes, ameaçando até enfraquecer o pouco de força que lhes resta. A cada escaramuça, a aventura é a mesma. Os cavalos caem e se machucam nas valas escavadas até nos terraços que contornam o lado oeste da praça. Os cavaleiros são projetados no solo e imediatamente atacados por dezenas de guerreiros incas ou literalmente enterrados sob um dilúvio de pedras.
É assim que, na noite do quinto dia, Juan Pizarro é estendido sobre um dos catres preparados por Bartolomé para tratar dos feridos como é possível. Uma pedra de funda esmagou-lhe o maxilar e, a despeito de toda sua coragem, ele geme de dor enquanto lhe fazem um curativo.
Bartolomé solicitou a ajuda de Gabriel para mantê-lo imóvel enquanto puxa o queixo do ferido de modo que os ossos fraturados não se encavalem. Apressadamente, talas
e bandagens são confeccionadas. Quando dom Hernando e Gonzalo acorrem, Juan desmaiou. Com espanto, Gabriel vê Gonzalo se ajoelhar ao lado do ferido e acariciar-lhe a fronte como se faria com uma criança. Seus olhos brilham cheios de lágrimas, e balbuciantes palavras de consolo morrem em seus lábios trêmulos.
- Não precisa se preocupar tanto, dom Gonzalo - murmura Bartolomé -, o ferimento é doloroso, mas não é mortal. Seu irmão é tão forte quanto corajoso. Amanhã, terá um pouco de febre, mas estará de pé.
- E de pé para fazer o quê, por Deus! - exclama Hernando cerrando o punho.
Seu olhar cruza com o de Gabriel. Pela primeira vez, ele parece pedir ajuda.Juntos, eles se voltam em direção ao pequeno espaço deixado pelo toldo acima da parede da cancha. A fortaleza de Sacsayhuaman já está pronta para a noite e iluminada por centenas de tochas. Sob a luz hesitante do crepúsculo, suas torres desenham a cabeça de um dragão com pele de fogo.
- É lá para cima que precisamos ir - murmura Gabriel.
- Lá para cima! Você sabe que é impossível.
- Precisamos atacar e tomar a fortaleza - repete Gabriel. - O resto não adianta nada.
- Como insiste nisso! Nada está mais bem protegido que essas torres. Todos os caminhos até lá são de ladeiras tão íngremes que os cavalos escorregam ou ficam lentos demais. Não conseguiríamos dar nem cem passos sem ser massacrados! As paredes das torres são tão altas que o comprimento de uma escada não será suficiente para alcançá-las. Seria preciso tomar a fortaleza por trás, mas para isso ainda teríamos primeiro de sair inteiros da cidade!
- Dom Hernando, sabe tão bem quanto eu: não há outra solução. Devemos nos tornar os senhores de Sacsayhuaman, custe o que custar.
- É mais uma de suas loucuras, como a idéia de destruir as paliçadas!
- Se conseguirmos chegar lá em cima - prossegue Gabriel sem dar-lhe ouvidos -, teremos em nossas mãos as luvas com que eles nos apertam a garganta! Olhe para seu irmão, dom Hernando: de que nos serve seu ferimento? Agora, não somos mais que cinqüenta cavaleiros. É nossa última chance.
O olhar de Hernando torna-se penetrante. Nele, a dúvida e o desafio lutam contra a esperança.
- Vamos primeiro cuidar de meu irmão - diz entre dentes. - Depois pensaremos nisso.
- Cuide de seu irmão - diz Gabriel. - Precisamos de todos os homens corajosos.
Pela primeira vez, Gabriel percebe no olhar rápido que Hernando lhe lança algo diferente da raiva e desprezo habituais: uma espécie de começo de respeito. Depois ele avista os olhos vermelhos e cheios de lágrimas de Gonzalo e tem outra surpresa, antes que o irmão caçula, de rosto de anjo, lhe diga na cara:
- Era você que devia estar ferido, você!
Mas Gabriel percebe tanto sofrimento no mais jovem dos irmãos Pizarro que se mantém de boca fechada.
Ollantaytambo, maio de 1536
O disco do sol está imenso. Ele se posicionou sobre o ar que ainda separa as montanhas do oeste como uma magnífica esfera de ouro e que poderia se abrir para acolher em si Este Mundo como um pai que abraça seu filho que retorna de uma viagem.
De pé sobre os degraus em declive da cidade real de Ollantaytambo, Anamaya está de frente para ele, os olhos muito abertos. Ela sente o calor vibrar contra seu rosto, seu peito e seu ventre. Sente a respiração do sol que vem até onde ela está.
- O, Inti! Inti, clareia nossa noite.
Quanto mais se aproxima das montanhas do outro lado do vale, mais o sol cresce. Às suas costas, Anamaya ouve os sacerdotes de pé sobre os estreitos terraços cortados na encosta, tão escarpados que parecem fixados verticalmente uns sobre os Outros. Entre as hastes das grandes espigas de milho da cerimônia, ainda verdes e espalhando pontas douradas, eles encaram o sol e recitam em tom compassado:
Ó Inti,
Ó Pai Poderoso,
Percorreste o Universo queimando o dia,
Ó Inti,
Ó Pai compassivo,
Quando te tornas vermelho, transformas-te em sangue,
Ó lnti,
Que Quilla possa regenerar teu sangue,
Te abraçar e te aliviar da fadiga
Na obscuridade do Outro Mundo!
E nós que vamos cerrar nossas pálpebras,
Tremeremos como as estrelas até o amanhecer,
Ó Inti,
Na escuridão, tremeremos e gemeremos
Para que teu repouso se complete,
Afim de que a alvorada retorne no fogo de teu ouro.
Ó Inti.
Como eles, Anamaya repete a prece enquanto o sol, mais pesado, se apóia sobre as montanhas, mergulha para além do visível, carmesim como um coração cortado pelo tumi.
O calor que vibrava contra o peito de Anamaya se apaga brutalmente. Um vento fraco, mas frio, desce das montanhas. As pedras dos prédios se avermelham por sua vez, e por um instante parecem tornar-se macias e delicadas como a pele de uma criança. E então uma sombra enorme escava o fundo do Vale Sagrado. Ali o rio deixa de refletir a luz entre os terraços de verde suave. Torna-se negro como o corpo de uma serpente. Torna-se frio como o céu de leste já escuro entre os picos das altas montanhas. O vale que vem a seguir, estreito e recortado, se abre como uma boca sobre a sombra silenciosa que avança até as ruas de traçado regular do centro da cidade, marcado tão rigidamente como o desenho de uma manta.
Os telhados das canchas já estão cinzentos. A fumaça dos pátios sobe mais reta, também cinzenta. O silêncio das ruelas é cinzento, os terraços cortados nas encostas tiue conduzem aos rios, os flancos das montanhas se apagam no cinza. Não resta mais nada, somente o pico do recinto sagrado conserva ainda um último raio dourado, e sobre as pedras brilha delicadamente a luz vermelha de lnti.
Por alguns segundos, Anamaya se sente alçar vôo, como se asas a sustentassem acima de todos. Seus olhos vêem, como os olhos de um pássaro, o vale obscurecido, as encostas das montanhas pálidas e diminuídas, as casas de Olantaytambo como brinquedos de madeira entalhados para crianças. E, de repente, o sol não está mais visível e até o céu torna-se cinzento e sem vida.
- Ó, Inti - murmura ela -, não nos abandone.
O silêncio se prolonga ainda por um breve instante, como se todas as coisas do mundo fossem tomadas pela tristeza da noite. Um ruído de voz na parte inferior das escadas finalmente ressoa e atrai sua atenção. Com o primeiro olhar ela reconhece o homem que fala com os guardas da área fechada para obter permissão de passar. Seu coração dispara. Ela hesita em descer os degraus íngremes para ir se juntar a eles, depois se controla. Obrigando-se a assumir uma postura inflexível para esconder suas preocupações, usando uma força um pouco excessiva para puxar a manta que cobre seus ombros, ela espera que o homem venha ao seu encontro. É o jovem oficial que numa outra ocasião já a havia acompanhado ao encontro de Manco em Rimac Tambo e que viera em seu auxílio antes da batalha de Villaconga, permitindo-lhe salvar Gabriel.
Ele ganhou segurança. Seus traços, bem como seu corpo, tornaram-se mais pesados com os combates. Mas antes mesmo que esteja próximo, somente de vê-lo subir com esforço os degraus íngremes como uma trilha num penhasco, a boca ligeiramente entreaberta e os ombros cansados, ela compreende que ele é portador de uma má notícia. Quando ele ainda está a cinco degraus de onde ela espera, dobra os joelhos na escada e inclina a nuca.
- Coya Camaquen, estou às suas ordens - diz arquejante.
- Levante-se, Titu Cuyuchi - responde ela com algum nervosismo.
O que ela vê em seu semblante confirma seus temores.
- Espero que possa me perdoar este fracasso, Coya Camaquen, mas não conseguimos.
Ela se obriga a respirar para acalmar as batidas disparadas de seu coração.
- Pelo menos sabe se ele está vivo?
- Estava quando o vimos. Mas isso foi há cinco dias.
- Por que não conseguiu, Titu Cuyuchi?
O oficial esboça um gesto de abatimento.
- Eu tinha dois homens comigo. Depois que os telhados de Cuzco pararam de arder, esperei que a noite estivesse bem escura e corri com eles por sobre as paredes até a cancha que você havia me mostrado. Você tinha razão. O estrangeiro estava lá. Nós reconhecemos sua túnica de camponês de Titicaca. Uma corrente o prendia à parede...
- Uma corrente?
- Sim. Foi isso que nos fez falhar. Por um instante nos perguntamos como libertá-lo. Um de nossos soldados foi acertado por uma flecha, morreu. Vimos apenas uma sombra negra. A situação estava muito confusa...
- E ele disse alguma coisa?
- Disse que era seu amigo, Coya Camaquen, que não deveríamos matá-lo. Ele não compreendeu que vínhamos libertá-lo!
Anamaya se cala, desvia o rosto do horizonte ligeiramente avermelhado do oeste.
- Fomos obrigados a fugir - prossegue Titu Cuyuchi. - Não conseguíamos discernir nem mesmo a presença daqueles que nos atacavam.
- Você não tentou mais uma vez?
- Não, Coya Camaquen...
Há uma reticência na voz de Titu Cuyuchi. Anamaya o observa com atenção.
- Fale, fale sem receio - ordena com a voz fraca.
- A partir da noite seguinte os estrangeiros começaram a pôr fogo em nossas paliçadas, com a ajuda dos cafiaris. Mataram muitos dos nossos. Combati na última barricada, onde conseguimos repelir o ataque. Eu o reconheci. Estava montado a cavalo, vestido como os estrangeiros e...
-E?
Mas Titu Cuyuchi hesita mais uma vez antes de responder. Seu olhar desliza por sobre o ombro de Anamaya e segue um pouco mais para o alto. Ela se vira ao mesmo tempo em que ouve as passadas suaves do Mestre das Pedras que vem se juntar a eles. Está quase aliviada por ele estar ali. Repete, em tom duro e com a voz alta de modo que Katari possa ouvi-la.
- Fale, Titu Cuyuchi.
- Ele combatia montado num animal branco, como um poderoso do Mundo de Baixo! Cortava nossos soldados como se mais nada tivesse importância para ele, nem os mortos
entre seus companheiros nem sua própria morte. E então uma coisa estranha aconteceu: nós havíamos cercado os estrangeiros diante da barricada, enquanto os guerreiros
que estavam na grande torre de Sacsayhuaman disparavam sobre eles flechas incendiárias. As flechas se desviavam dele e as pedras de funda também. Vi com meus próprios olhos, Coya Camaquen! Isso impressionou tanto nossos soldados que eles pararam de combater e deixaram que ele passasse.
Anamaya estremece, fechando os olhos.
- Você tem certeza de que era ele?
-Tenho, Coya Camaquen. Eu o vi como a vejo agora e ele tentou enfiar a espada em minha barriga! Estava em liberdade e bem vivo!
O oficial hesita, depois um sorriso se abre em seu semblante severo. Olhando Anamaya diretamente, acrescenta:
- Mas ele queimou as paliçadas inutilmente, Coya Camaquen. Nós as reconstruímos. Os estrangeiros não ousam mais sair da área cercada. Brevemente serão vencidos e o Único Senhor poderá voltar a entrar em Cuzco.
- Agradeço muito, Titu Cuyuchi. Sei que você fez tudo o que era possível. Agora vá descansar e comer...
Quando o oficial desce a escada, parece que a noite já alcançou as ruelas de Ollantaytambo. Anamaya está paralisada. Não ousa olhar para Katari, pois ele veria as lágrimas em seus olhos. É ele quem se aproxima para tocá-la e dizer baixinho:
- Seu puma está em liberdade, Coya Camaquen.
- Em liberdade ou morto, quem sabe? Será que fiz mal, Katari? Quando soube que os estrangeiros o mantinham prisioneiro, quis que Titu Cuyuchi o libertasse.
- Mas o puma se libertou sozinho - replica Katari com um sorriso.
- Você acredita como eu que ele seja o puma que o Único Senhor Huayna Capac me anunciou?
- Quando tratei dele na margem do Titicaca, vi a marca em seu ombro. Coloquei minha mão sobre ela, Coya Camaquen, e, como você, senti.
Mais uma vez, Anamaya estremece. A noite já cresceu sobre as montanhas.
- Eu me enganei, Katari. Não sei mais tomar uma decisão correta porque meu coração deixa meu espírito confuso. Sofro por estar longe dele e receio estar perto demais!
Aceitei me afastar de Gabriel porque Villa Oma me exigiu isso: ele o odeia... Mas quanto mais se passam os dias, eu tenho mais medo de perdê-lo. Ah, Katari, será que tenho medo porque ele é o puma ou somente porque amo um estrangeiro?
- Não posso responder, Coya Camaquen.
- Você pensa como Villa Oma, não é?
- Não. Vila Oma não é mais o Sábio que formou você, tornou-se um louco apaixonado pela guerra. Não vê nada além da violência que está diante de si.
- Ajude-me, Katari. Como posso saber onde está o que é certo e o que é errado?
- Você deve ouvir os Anciãos do Outro Mundo.
- Eu ouço apenas o silêncio.
A luz derradeira desaparece no prédio mais alto da área fechada do templo sagrado e das pontas rochosas que pendem sobre ela. As primeiras estrelas brilham, enquanto as tochas iluminam as ruelas de Ollantaytambo. Anamaya sente a palma quente da mão de Katari tocar seu ombro.
- Se confiar em mim, talvez conheça um meio para que seu esposo o Irmão Duplo possa lhe permitir fazer uma viagem até o Único Senhor Huayna
Capac - sussurra.
Na escuridão da noite, Anamaya não consegue mais distinguir o que brilha nas pupilas do Mestre das Pedras. Mas o eco de sua voz ressoa dentro dela por muito tempo (mesmo mais tarde, quando o sono a tomou e a fez mergulhar numa noite de sonhos agitados) e, pela primeira vez depois de várias luas, ela sente uma esperança que não é destruída pela angústia.
- Espero por você - murmura durante a noite.
E parece-lhe que é ouvida.
Cuzco, maio de 1536
- Inicialmente, Gabriel não reconhece o homem que vê se aproximar na noite do décimo dia de sítio.
Na penumbra acentuada pelos toldos de proteção estendidos sobre o pátio é apenas uma silhueta que parece ter uma cabeça de tamanho anormalmente grande. O vulto avança com precaução, mantendo-se à distância dos escravo do Panamá que cochilam no solo cheio de detritos. Tudo ali está sujo e fedorento, até o hálito dos que estão em jejum exala um mau cheiro de morte.
É que a cada instante a fome endurece os ventres e os corações. Gabriel, como todos os outros, amaldiçoa o ardor lancinante de suas entranhas, que o recorda a todo instante que em cinco dias não comeu nada exceto um pedaço de carne tirada de um cavalo abatido.
Quando o homem está bastante próximo, Gabriel distingue o penacho escarlate do morrião que ele segura debaixo do braço, bem como as grandes manchas de sangue que marcam seu gibão. Quanto ao estranho volume da cabeça, deve-se às bandagens que a envolvem, permitindo que se vislumbre de seu rosto apenas os olhos febris, um nariz arrebitado e lábios que se movem com dificuldade.
- Dom Gabriel!
A voz é tão baixa, as palavras tão mal pronunciadas que mal são compreensíveis. Sem descer da barrica vazia que lhe serve de poltrona, Gabriel o saúda com uma inclinação de cabeça que fica no limite da polidez.
- Dom Juan! Ora, vejam só, está novamente de pé. Frei Bartolomé acolchoou bem sua cabeça para poder suportar outros lançamentos de funda.
A zombaria faz Juan Pizarro se retesar e o incêndio em seus olhos se intensifica. Por um instante eles se encaram medindo forças, Gabriel não pestaneja. É a mão direita de Juan que se levanta em sinal de paz.
- Dom Gabriel, vim aqui para fazer as pazes com o senhor - murmura ele com sua voz estranha, gutural.
Como Gabriel o observa sem responder, ele acrescenta, parando para tomar fôlego a cada frase:
- Eu conheço os motivos que o levaram a agredir Gonzalo... Não posso censurá-lo... O amor por uma mulher não é algo que eu desconheça, dom Gabriel... Minha esposa foi escolhida para mim pela sorte de maneira curiosa, como sabe... Contudo, a amo como se Deus em pessoa a tivesse destinado a mim... A minha doce Inguili com freqüência me falou de sua amiga... de sua... daquela que meu irmão atacou... Gonzalo à vezes faz as coisas sem refletir muito.
Gabriel acaba com o constrangimento de Juan com um pequeno gesto:
- Não me compreenda mal, senhor - diz com a voz carregada de tristeza -, não me recuperei do gesto de seu irmão. Se me for dada a oportunidade, receio muito que meu coração e minha honra me obriguem a repetir a tentativa...
- Nesse caso, vai me encontrar em seu caminho e pelos mesmos motivos, uma vez que creio ter também honra e coração. Por piores que sejam seus defeitos, Gonzalo é meu irmão e eu o amo... E mesmo que isto possa surpreendê-lo, ele também me ama com um sentimento absoluto e devorador, que por vezes me inquieta, como se eu fosse o único a impedi-lo de se entregar a seus demônios.
- Felizmente, hoje ele é guiado pelos anjos!
Juan faz menção de responder, mas um sofrimento repentino deforma seu semblante, e é com uma ironia amarga que declara:
- Muito bem, assim seja, dom Gabriel: o senhor o matará e eu o defenderei. Será que há algo melhor a fazer enquanto esperamos?
Gabriel se contenta em responder com um sinal de desilusão. E desta vez a careta que se desenha na boca comprimida de Juan parece muito querer ser um sorriso.
-Vamos pensar no presente - prossegue, aproximando-se para se fazer entender melhor em vista da dificuldade que tem para falar. - Vim fazer as pazes com o senhor de modo que possamos combater juntos. Dom Hernando nos reuniu, foi tomada a decisão de atacar a fortaleza. A idéia foi sua... Apesar de estar ferido, Hernando também me nomeou comandante de todos os oficiais no ataque... Essa batalha será conduzida por mim!
- Muito bem - aprova Gabriel em tom sério. - Mas não cometa o mesmo erro que nosso Vice-Governador: não subestime os incas. Eu conheço o chefe deles, se chama Villa
Oma. É inteligente e tenaz. Sobretudo, seu único sonho é destruir todos nós, até o último homem, isso lhe dá uma força enorme. Não espere nenhuma fraqueza da parte dele, dom Juan. Corte-lhe os braços e ele lutará com os cotos!
À medida que seu maxilar e a bandagem permitem, Juan dá suas opiniões. A despeito de a noite estar fresca, Gabriel repara que o suor lhe banha a fronte.
- Eu não ignoro isso, dom Gabriel... É por isso que quero o senhor perto de mim. O senhor terá a energia que talvez me falte... Se eu por ventura fraquejar, saberá ocupar meu lugar.
Como que para tornar concretas essas palavras, com um gesto brutal ele enfia seu morrião entre as mãos de Gabriel.
- Quero que ele esteja em sua cabeça... Não posso usá-lo por causa de meu ferimento. Com o senhor usando este penacho, todo mundo saberá para onde deverá ir.
- É uma grande honra esta que me oferece, dom Juan! Não estou nada habituado a isso. Seus irmãos compartilham de sua opinião?
Juan levanta a cabeça ferida, enfrentando o olhar malicioso de Gabriel. As frases que saem de sua boca quase não são audíveis.
- Eu já lhe disse, vim aqui fazer as pazes... E cabe a mim escolher quem serão meus comandantes...
Ele faz uma pequena pausa, depois acrescenta:
- Nossos companheiros querem tê-lo entre nós, dom Gabriel! Alguns afirmam que o dedo de Deus está apontado para o senhor, que a Virgem Maria o acompanha... Outros dizem que não é Deus coisa alguma, mas que é uma magia que lhe foi dada por causa de suas relações com os índios... Sua façanha da outra noite impressionou os espíritos...
- Por todos os santos, como se pode ter fé nessas superstições?
- Eu também vi, vi coisas com meus próprios olhos... E não foi a partir de ontem como essa gente daqui... Isso começou na praia de Tumbez, bem na ocasião de nossa chegada... O senhor deveria ter morrido naquele dia.
A risada de escárnio de Gabriel soa como um queixume.
- Sou indiferente demais a Deus para que ele aponte até mesmo um cílio em minha direção... Quanto à pessoa em quem está pensando, ela não me ensinou nada de muito especial, exceto o fato de que os incas são homens como o senhor e como eu, grandes e pequenos, sofrendo muito de corpo e alma por nossa causa.
- Que interessa se é Deus ou o demônio que o protege? - irrita-se Juan, respirando profunda e rapidamente. - A verdade é que nossos companheiros, ao mesmo tempo que o temem, lhe atribuem o valor de um talismã... Eles agora pensam que sem você não teremos nenhuma chance de vitória!
- E ontem eles pensavam que por minha causa tudo estava perdido!
- Aceita minha proposta, dom Gabriel?
- Se eu recusar, a prisão estará de novo me esperando, não é?
- Eu vim fazer as pazes e não ameaçá-lo.
Gabriel coloca o morrião sobre a barrica com cuidado. Distraidamente acaricia a pluma escarlate e pergunta:
- De que maneira está planejando o ataque para entrar na fortaleza?
Um rosnado estranho escapa da garganta de Juan e seus olhos se franzem. Gabriel compreende com algum atraso que se trata de uma gargalhada.
- Da maneira que lhe parecer melhor!
Gabriel sorri, quase com cumplicidade, e risca com o bico da bota um desenho vago na poeira.
- Na minha opinião, devemos tentar enganá-los. Fazer com que Villa Oma e seus comandantes acreditem que estamos fugindo...
A bota descreve um círculo em torno da massa que representa a fortaleza.
- Aqui está a garganta de Carnenga. Ela nos conduz para fora da cidade pelo noroeste, distanciando-se da fortaleza. Vai ser um trabalho brutal alcançá-la e depois fazer a escalada, pois é um verdadeiro barranco. Os incas farão a morte chover sobre nós. Mas, se conseguirmos, escaparemos à vigilância deles fazendo um longo desvio para retornar pela parte de trás da fortaleza. Lá, existem várias portas e pode ser que estejam acessíveis.
- Assim faremos...
- Dom Juan, nada de ilusões! De minhas mãos não sai nenhum milagre. Nossas possibilidades de obter êxito são tão magras quanto andam nossas barrigas!
- O fato é que não há nenhum banquete previsto para esta noite... Isso nos dará muito tempo para rezar!
Observando Juan Pizarro se afastar com seu passo pesado e irregular, Gabriel é dominado por uma profunda inquietação. Ele acaba de aceitar, sem uma palavra de discussão verdadeira (pois, no fundo de seu coração, está tão assustado quanto os outros por sua invulnerabilidade no combate), servir lealmente seus piores inimigos. Ele não se arrepende disso. Na verdade, sente-se bastante feliz.
Quando desponta a alvorada, como em todas as noites anteriores, enquanto os guerreiros incas não cessaram seu pandemônio horripilante, cinqüenta cavaleiros estão ajoelhados, sob os olhos impressionados de uma centena de guerreiros chachapoyas e cauiaris. Bartolomé passa entre suas fileiras cerradas e, com a mão de dedos colados, abençoa cada fronte.
Com a cabeça envolta em curativos limpos, uma verdadeira couraça ajaezando-lhe o busto e as coxas, Juan recebe a bênção com fervor. A seu lado, com a soberba cabeleira recaindo sobre as ombreiras de aço ornadas por cinzeladuras em ouro, dom Gonzalo arvora uma expressão contraída de descontentamento. Seus lábios mal se movem para deixar passar as palavras da oração.
Um pouco recuado, de pé diante dos soldados de infantaria que brevemente suportarão sozinhos o cerco, Hernando acompanha com o olhar a cerimônia, murmurando maquinalmente. Ele é o primeiro a descobrir Gabriel, na entrada do pátio, com a égua branca vindo atrás silenciosamente. Seu braço esquerdo já está enfiado num escudo redondo, enquanto, com o outro, aperta contra a longa cota de malha reforçada com couro o capacete com o penacho escarlate.
Se o semblante de Hernando se mantém impassível, o de Gonzalo, que imediatamente interrompe sua oração, empalidece. Suas pupilas se arregalam e a boca se cerra em meio ao padre-nosso. Gabriel acredita que ele vai se levantar. Mas o olhar imperioso de Hernando se faz pesado sobre o irmão caçula. É então que a oração acaba e os cavalos são trazidos. Os cavaleiros lançam olhares na direção de Gabriel. A cabeça de alguns se inclina em saudação, outros se persignam mais uma vez, mas nenhum ousa se aproximar, já agarrando as rédeas de seus cavalos para montar.
Apanhado em meio ao movimento, Gonzalo é como que apagado, enquanto Hernando ajuda Juan a montar em seu cavalo castrado. Por sua vez, Gabriel enfia o morrião na cabeça, ajustando com firmeza a correia sob o queixo.
- Você estava em minha oração, meu amigo! E você, eu vi quando rezava ainda há pouco, quando pensou que ninguém estivesse observando.
- Espero que não me denuncie. Isso traria prejuízo à minha reputação! Até que enfim, frei Bartolomé, deve estar contente comigo. Não foi você quem me explicou que não era necessário crer para se ajoelhar?
- Você tem mais fé do que pensa.
Bartolomé põe a cruz de madeira sobre o peito de Gabriel. Com os olhos muito fundos no rosto, a exaustão faz com que suas feições magras pareçam ter envelhecido dez anos.
- Seja prudente, não só com o que terá pela frente, bem como com o que terá pelas costas - acrescenta em voz mais baixa. - Gonzalo está louco de raiva por Juan ter imposto a sua presença. Evite provocá-lo.
- Não precisa se preocupar, agora já é oficial que eu sou protegido de tudo, e por Deus em pessoa.
- Não blasfeme! É inútil.
- Frei Bartolomé, se Deus existe - diz Gabriel com grande seriedade e olhando-o bem nos olhos -, é hoje que ele poderá me convencer de Sua presença. Não ao me salvar a vida, isso pouco me importa, e sabe por que...
- ... mas purificando a Terra da presença de todo o mal de uma só vez, de preferência, a começar pela pessoa de Gonzalo Pizarro, não acha?
- Palavra de honra, frei Bartolomé, eu às vezes me pergunto se não é inspirado pessoalmente por Deus.
- O meu Deus - retruca Bartolomé, em tom sério - não é o Deus da vingança que castiga através da espada, mas o Deus do amor e da caridade. E se quiser acreditar em mim, você faria muito bem se também o ouvisse. Sem esquecer de empunhar a espada quando necessário!
Gabriel já está abrindo a boca para replicar com sarcasmo, mas Juan Pizarro aproxima-se deles. Gabriel lê mais do que ouve as palavras em seus lábios ressequidos.
- Está na hora, dom Gabriel... Dividi nossa cavalaria em dois grupos. Meu irmão Gonzalo comandará o segundo.
Seus olhos buscam uma aprovação, que Gabriel concede meneando a cabeça. É em meio a um silêncio curioso, como para ouvir melhor a balbúrdia das colinas e o ulular das trompas da fortaleza, que eles se aproximam da porta da cancha reforçada por uma barricada de barrotes. Até os cauíaris, geralmente tão barulhentos, se calam.
Gabriel sorri para Sebastian, que está entre os homens que se ocupam de desimpedir a passagem, com o ombro e o braço ainda cobertos por curativos. Pela primeira vez, o grande Negro não sorri de volta. Sua expressão grave está tomada pela tristeza de um verdadeiro adeus. Ele se aproxima para acariciar o pescoço da égua, que responde batendo-lhe de leve com a cabeça.
- Cuide de Itza e cuide de si mesmo, amigo.
- Vou trazer de volta a pomada para que você possa vir comigo da próxima vez - diz Gabriel em tom de brincadeira.
Um ligeiro sorriso estica os lábios de Sebastian.
- Boa idéia.
Então, Gabriel se levanta sobre os estribos e grita com todas as suas forças:
- Por São Tiago, esta noite comeremos na fortaleza!
E, às suas costas, cinqüenta gargantas entoam por sua vez:
- Santiago! Santiago!
Eles ainda estão gritando quando os cavalos entram aos saltos na grande praça, levantando uma poeira que os caíaris atravessam urrando como uma matilha de animais selvagens.
Eles mal ultrapassaram as últimas paredes das canchas e os primeiros terraços que desenham a base da garganta quando uma salva de flechas passa assobiando no alto. Disparadas de muito longe para serem eficazes, elas batem e quicam, como um marulho seco, sobre os grandes escudos redondos e as costelas cobertas de acolchoados dos cavalos.
Enquanto isso, adiante, no caminho que atravessa os terraços cortados na montanha que cercam o oeste da cidade, a linha tripla ou quádrupla de guerreiros incas já forma uma barreira que impede a passagem. Juan vira-se para Gabriel. Seus olhos dizem claramente o que sua boca não pode ordenar.
Com a espada já desembainhada, Gabriel grita a ordem de galope. Itza salta à frente e acelera seu passo como se estivesse apenas esperando por isso. Com a crina esvoaçando, ela parece dançar em direção ao obstáculo, sem tocar a terra e, no mesmo movimento, leva consigo a massa compacta de carne e ferro dos cavaleiros e, um pouco mais atrás, de machados empunhados no alto e escudos levantados, os caía ris, que berram a plenos pulmões e correm com uma agilidade prodigiosa
- Então, que Deus nos acompanhe! -.
Um segundo, dois talvez, e os guerreiros incas cerram fileiras, uns contra os outros, a lança apontada para a frente, o cassetete em punho. Mas tudo acontece depressa demais. Mais depressa que as pedras de funda que ricocheteiam sobre as cotas de malha e as couraças. De olhos arregalados, os incas vêem os cavalos se arremessarem sobre eles. A terra treme, o martelar das patas penetra em seus peitos como uma fumaça de medo. O sol parece recortado em duros clarões pelas lâminas das espadas que giram à esquerda e à direita. Bocas se abrem de dor, o ferro se abate e penetra cortando-lhes a carne, as patas moem ventres, esmagam peitos, os rostos não têm mais formas nem soltam mais gritos, os animais pisoteiam um tapete de carne e ossos girando em círculos. E então os cauiaris se juntam ao combate, aumentando a confusão.
A ferocidade aumenta, os mortos abrem passagem enquanto as espadas ainda os trespassam. As linhas incas recuam, alguns guerreiros lançam seus cassetetes sobre os cavaleiros antes de bater em retirada, outros se suicidam na tentativa de espetar a barriga dos cavalos ou as pernas dos espanhóis. Mas tudo em vão. Com o peito e os jarretes manchados de sangue, os cavalos saltam fora daquele caldeirão mortal galopando em direção à primeira curva do ziguezagueante caminho da garganta. saindo do alcance dos disparos das fundas.
Com o rosto coberto de suor e de sangue, o corpo dolorido de tanto golpear, a respiração arquejando no peito como um fogo rugindo, Gabriel não pára de gritar para que os combatentes o sigam. Sua exaltação é profunda e, sob a indiferença, sob o desgosto de viver, eleva-se um sentimento de poder sem limites.
- Santiago! - grita, uma vez mais, com a voz esgarçada.
E nos gritos dos espanhóis que lhe respondem nos assobios e choques, em meio aos gemidos de agonia ou de triunfo, ao estrépito e ao pisotear, parece-lhe que todas as encostas das montanhas, as pedras e a própria terra aceitam que ele empunhe a espada da vitória.
Mas apenas o mais fácil foi feito. Como Gabriel temia, a encosta de Carmenga é uma provação que esgota grande parte das forças de que dispõem. Durante duas horas eles sobem penosamente, de curva em curva, pelo caminho íngreme em ziguezague. Vinte vezes o terreno friável da trilha, que mal comporta a passagem de um cavalo, se reduz a um monte de entulho ou de fendas. Então, no tempo necessário para que os caaris, agachados sob seus pequenos escudos quadrados e acabando por se assemelhar a um estranho formigueiro, preencham as fendas ou desimpeçam o caminho, é preciso esperar sob o dilúvio de pedras lançadas do alto da encosta.
Gabriel sente o fedor do medo crescer novamente entre os espanhóis. A impaciência e a angústia, aguçadas pela fome, minam a bravura mesmo dos mais duros. Um cavalo, ferido por uma pedra que o acerta bem nas ventas, empina de dor. Ele lança as patas anteriores contra o cavalo que está à sua frente, enquanto seu cavaleiro é arremessado para trás, deixando de despencar pelo barranco apenas por causa da intervenção rápida de dois guerreiros canaris. Ao mesmo tempo, o pânico se apodera dos animais mais próximos, os encontrões que se seguem por pouco não arrastam uma meia dúzia de cavaleiros e montarias para o precipício.
- Todos a pé! - grita Gabriel. - Todos a pé e segurem suas montarias pela brida. Obriguem os cavalos a baixar o nariz!
Mas, como os protestos se elevam, ele muda de tom e afirma com segurança:
- Nós conseguiremos passar, e passaremos porque é necessário!
A despeito disso, a dúvida permanece até nos olhos de Juan. Na verdade, o mesmo pensamento atormenta os dois - que a garganta de Carmenga não venha a repetir o mesmo cenário que viram em Vilcaconga, onde anos antes e pela primeira vez os espanhóis se viram em tão má situação que Gabriel, quase agonizante, tivera a vida salva somente graças à obstinação e ao amor de Anamaya.
- É a mesma situação! - murmura Juan, fechando os olhos como se diante de um pesadelo. - Eles no alto e nós embaixo... obstruídos por nossas montarias.
- Não - rebate Gabriel à meia voz, para que somente Juan o escute-, não há ninguém lá no alto. O grosso das tropas de Villa Oma está atrás de nós.
- Que Deus o ouça!
- Eu me recordo de um platô, antes do cume da garganta. Lá poderemos tornar a montar e seguir pelos terraços em direção ao noroeste. Daremos a impressão de estar nos afastando da fortaleza. Eles acreditarão que estamos apenas tentando fugir.
A única resposta de Juan é fazer o sinal-da-cruz sobre sua fronte coberta de bandagens.
- Cuidado com as pedras! - ruge uma voz. - Cuidado com as pedras.
Instintivamente, Gabriel levanta o escudo sobre a cabeça de Juan que está desprotegida, sem capacete uma vez que por causa do ferimento ele tem dificuldade de levantar seu escudo.
- Proteja-se, dom Gabriel! - ordena Juan num murmúrio.
Dessa vez a saraivada de pedras é tão intensa que parece que a montanha inteira se transforma em avalanche desabando sobre eles. Os braços se dobram sob escudos que se despedaçam, os homens gritam, os cavalos relincham queixosamente. Enquanto isso, em meio ao pânico, todos, até mesmo Gonzalo, vêem a mesma coisa: Gabriel bem como sua égua branca são poupados daquele dilúvio de pedras, enquanto eles têm as coxas, os rins e os ombros massacrados a despeito da proteção dos escudos e das cotas reforçadas! E sob seu escudo, Juan está tão bem abrigado como se estivesse sob um teto.
Mas ninguém ousa dizer nada, mantendo os lábios cerrados e rezando do fundo do coração. Quando afinal, como prometeu Gabriel, a chuva de pedras cessa e eles alcançam o platô, descobrem que os guerreiros incas, que tanto os atormentavam até aquele momento, mal chegam a um total de cinqüenta! Estes não ousam se aproximar muito mais senão para fazer um lançamento de funda e basta um curto galope dos cavalos excitados para lhes tomar o terreno. Gabriel ouve os gritos que acompanham a fuga.
- Eles acham que vamos voltar para Castilha! - anuncia, rindo alto.
Tão violento quanto o terror de pouco antes, o alívio enche o peito de todos com uma grande gargalhada e por um instante a fadiga desaparece.
- Santiago! Santiago! - gritam os cavaleiros se persignando de olhos baixos, como se preferissem não conhecer o motivo daquele sucesso.
Gabriel, nesse instante, tem o coração gelado. Ele pensa no que virá a seguir, e cada imagem está impregnada nele como se já a tivesse vivido. Somente perto do meio da tarde, depois de fazerem uma quantidade de desvios, eles finalmente alcançam uma espécie de planalto irregular salpicado de imensas rochas negras e que desce, em inclinação suave, em direção à fortaleza de Sacsayhuaman. Lá se erguem as muralhas, blocos enormes e, ao mesmo tempo, encaixados com tanta precisão que se poderia duvidar que seres humanos tivessem podido colocá-los uns sobre os outros. Mas, estranhamente, nenhum guerreiro parece observá-los.
Juan ordena uma parada para repouso próximo a uma nascente. Para completar o prazer, vários guerreiros caaris aproveitaram o tempo durante o caminho para caçar ratos silvestres e mesmo duas lhamas perdidas de um rebanho que a guerra dispersou. Como é proibido acender fogueiras, os animais são cortados em pedaços e comidos crus. Passa-se um longo instante, um estranho silêncio reina sobre o acampamento improvisado. Mas as poucas mordidas de carne, a insipidez do sangue bebido muito rapidamente restabelecem o nervosismo e a energia mesmo dos mais alquebrados. Gonzalo é o primeiro a reclamar o ataque.
- Está na hora, meu irmão, não devemos esperar que chegue a noite. Os caaris fizeram um reconhecimento do terreno. As passagens entre os muros de defesa da fortaleza estão fechadas por barricadas, mas, como pensávamos, os incas estão tão despreparados para um ataque nosso que ninguém guarda esta parte da fortaleza. Sugiro que nosso amigo dom Gabriel aproveite seus recursos incomuns para acompanhar os cafiaris e abrir um caminho para nós. Ele fará sinal para nos avisar quando pudermos conduzir um ataque bem ordenado. E como você não está em condições de comandá-lo, meu irmão, sugiro que fique aqui com uma dezena de cavaleiros para nos apoiar a retaguarda em caso de necessidade.
A ironia de Gonzalo arranca apenas um sorriso de Gabriel. Seu olhar se cruza com o de Juan e ele se pronuncia enquanto torna a enfiar o morrião de penacho vermelho na cabeça.
- Não é uma má idéia.
Depois captura de surpresa o olhar de Gonzalo e o que vê ali o enche de uma satisfação que vale como princípio de vingança: o belo e cruel Gonzalo tem medo dele. É a pé e bem no meio dos soldados cafíaris que ele se aproxima da primeira barricada. Não precisam de muito tempo para conseguir abrir uma brecha, pois ninguém os espera ali.
Quando os cajiaris, sem fazer nenhum ruído, sem dizer uma palavra, acabam de desmontar as paredes de pedra, Gabriel salta para a sela de sua montaria. Sempre em silêncio, ele impele Itza a penetrar no labirinto de rochas naturais e de paredes fortes que protegem as grandes muralhas e as torres da fortaleza. A cada segundo, espera ouvir os gritos de alerta dos incas. Mas isso não acontece.
Ninguém o vê nem escuta o trote de sua égua. Ele contorna a pequena colina que ainda lhe esconde a formidável muralha. Agora, já avista a esplanada e é seguindo mais devagar, em marcha normal, que ele alcança o limite da vasta extensão de relva baixa que se estende até a base da fortaleza. Os gigantescos blocos de pedra estão lá.
O coração de Gabriel salta em seu peito. Nenhum guerreiro inca o aponta. Nenhuma pedra, nenhum dardo o ameaça. Um pouco mais adiante, à esquerda, numa espécie de ziguezague da muralha principal, ele avista uma grande porta em formato de trapézio sumariamente fechada por pedras e escudos. Alcançá-la é penetrar no coração de Sacsayhuaman!
Sem esperar mais e certo da vitória próxima, ele puxa as rédeas de sua égua e retorna em um galope rápido para chamar seus companheiros.
- Montem todos! - ordena quando sua voz está ao alcance do ouvido de Gonzalo. - O caminho está livre! Dom Hernando está mantendo todo mundo ocupado do lado da cidade e eles nos ignoram por completo.
Como havia sido combinado, somente dom Juan Pizarro e um punhado de cavaleiros permanecem na retaguarda. A galope e mantendo o máximo de silêncio possível, Gonzalo e seus cavaleiros seguem a égua branca de Gabriel. Eles saltam sobre a barricada, ultrapassam os guerreiros caíaris e avançam para a grande porta em forma de trapézio. É então que tudo se modifica.
O som de uma trompa de concha ecoa vindo do alto da torre redonda. Um clamor furioso ribomba no alto da muralha. Com assombro, quando estava pronto para penetrar nos terraços, vazios um instante antes, Gabriel descobre diante de si cem, duzentos, talvez mil soldados incas. Antes mesmo que possa refrear o galope aéreo de Itza, o estalar das fundas vibra no ar com o poderio de uma bateria de bombardas. Uma chuva de pedras rasga o ar e passa zunindo acima dele. As suas costas, ainda a descoberto, os cavaleiros urram de dor sob os impactos. Os cavalos escoiceiam contra as pedras que caem e quicam, lançam seus cavaleiros de pernas para o ar, fazendo-os cair de ponta- cabeça, enquanto os guerreiros incas já se põem em posição para agarrá-los.
Com um berro de fúria, a espada girando, Gabriel arremete com sua égua para resgatá-los. Sua irrupção aterroriza os defensores de Sacsayhuaman o bastante para que eles se dispersem enquanto os cavaleiros desmontados tentam tornar a montar em seus cavalos ou saltam na garupa de companheiros que já puxam as rédeas e fogem.
Mas a confusão permanece grande. Os guerreiros cafíaris, surpreendidos pela aparição repentina dos incas, se defendem mal e seu corpo-a-corpo atrapalha a retirada dos cavaleiros. O solo está tão juncado de pedras que os cavalos só conseguem avançar com muito cuidado. Logo, há apenas a égua branca de Gabriel mantendo seu galope em investidas inúteis.
Quanto tempo dura esta loucura, ninguém sabe...
De maneira lastimável, com a frustração roncando nas barrigas vazias, os espanhóis recuam para o outro lado da primeira barricada onde Gabriel, cinco ou seis vezes, vem tentar convencê-los a retomar o ataque. Mas, a cada vez, a chuva de pedras despedaça o entusiasmo deles muito antes que consigam chegar à monstruosa muralha. Incapazes de seguir a égua branca, a cada vez eles refreiam seus cavalos por temer que quebrem as pernas.
Mais de uma hora se passou, esgotando-lhes a coragem, e o céu já começa a escurecer, quando Gabriel vem encorajá-los a fazer um último esforço. Mas ele mal parou quando um berro explode em seus ouvidos. Num reflexo de defesa que o salva, levanta o escudo diante da espada de Gonzalo, que tenta fazer seu peito em pedaços.
- Traidor! Rato maldito! - urra Gonzalo com os olhos enlouquecidos.
- Finalmente vemos sua verdadeira cara! Maldito seja você por ter nos trazido para esta armadilha!
- Dom Gonzalo!
- Cale a boca, excremento de bode! Eu vi, todos nós vimos: os incas poupam sua vida. Você aprendeu a evitar as pedras deles e quer nos levar para perto deles para que possam nos massacrar como quiserem!
Gabriel não tem tempo de replicar, pois Gonzalo está de pé nos estribos e continua berrando ainda agitando a espada.
- Companheiros! Companheiros! Este homem não é nosso são Tiago, e sim um traidor e um demônio! Não o sigam mais! Não o escutem mais, ele quer conduzi-los à morte!
Com os olhos esgazeados pelo cansaço e por tanta desventura, os cavaleiros observam os dois homens sem conseguir distinguir a verdade da loucura. Alguns se persignam, outros põem ataduras nas panturrilhas feridas pelas pedras, outros ainda arrancam uns dos outros as flechas partidas presas em suas cotas de malha ou nos plastrões dos cavalos. Mas nesse instante o ruído de cavalos a galope os surpreende, poupando-os de uma decisão. Juan e seus cavaleiros de reserva vêm se juntar a eles rapidamente.
- Juan! - exclama Gonzalo, sem controlar sua fúria. - Meu irmão, você estendeu a mão para uma serpente e ela morde! Montelucar nos assassina. É o demônio em pessoa!
Os incas nos esperam, talvez ele os tenha avisado... Nunca conseguiremos forçar a passagem até o centro da fortaleza. É mais sensato descer de volta para Cuzco antes que chegue a escuridão total da noite!
- Dom Juan - grita Gabriel -, não acredite nessas besteiras! Ainda nos resta uma chance: os guerreiros incas estão tão cansados de lançar pedras quanto nós de recebê-las e logo não agüentarão mais! Mesmo que eu seja obrigado a conduzi-lo sozinho, conceda-me a autorização para fazer um último ataque.
Juan não se permite nem o tempo de hesitar. Com a ponta da espada, ele indica a fortaleza antes de bater na garupa do cavalo. Com algum tempo de atraso, a tropa inteira o segue, a despeito dos protestos de Gonzalo. Dessa vez, ultrapassada a primeira barricada, Gabriel lança Itza em direção à encosta da colina, onde avistou algumas rochas formando degraus sobre os quais a égua salta com facilidade. Apanhando por trás a primeira fileira de guerreiros incas, ele os obriga a retroceder antes que consigam girar suas fundas. De baixo, esta vitória solitária arranca gritos de entusiasmo dos cavaleiros que recuperam as esperanças.
Por um instante ainda, Itza, a égua branca, e o penacho vermelho de Gabriel parecem estar por toda parte na confusão mais acima e continuam progredindo em direção à muralha de maneira fantástica. Os espanhóis retomam seus gritos de vitória.
Mas, do alto da muralha, uma pavorosa salva de flechas e de pedras se abate sobre todos eles. Gabriel, como todos os outros, levanta seu escudo para se proteger e escuta o crepitar mortal que golpeia as couraças e as cotas de malha reforçadas. Um breve e curioso silêncio se segue. Depois um lamento atroz rasga o ar.
- Juan! Ah, Juan! Ah, meu irmão...
A cem passos de Gabriel, Juan Pizarro escorregou de sua sela, caindo sobre o leito de pedras que recobre a relva. O grande curativo voou longe e todo o alto de seu crânio é apenas uma mistura de sangue, ossos e massa cerebral. No entusiasmo da batalha, ele baixou seu escudo, oferecendo a cabeça nua à violência de uma pedra.
Gonzalo já está de joelhos diante dele, a boca aberta emitindo gritos estridentes. Ele o aperta contra o peito como se fosse uma criança e o embala inutilmente. Gabriel sente uma lâmina gelada penetrar em seu peito e bloquear sua respiração. Maquinalmente, ele incita Itza a se aproximar enquanto os cavaleiros cerram fileiras ao redor dos irmãos Pizarro para protegê-los. Depois, enquanto eles rapidamente retiram o corpo de Juan, Gonzalo o encara, o rosto de belas feições deformado pela dor e pelo ódio.
- Você o matou, Gabriel Montelucar, você matou meu irmão tão querido!
Gabriel se cala, todo o ódio e todo o sarcasmo esvaziados apagando-se em seu íntimo. E logo, dominado pela dor, Gonzalo dá as costas a seu inimigo e soluça como uma criança.
- Eu não atirei a pedra que destroçou o crânio de seu irmão, dom Hernando, mas de fato fui eu que insisti para que fizéssemos mais um ataque, que foi tão inútil quanto os anteriores. Dom Gonzalo tem o direito de me acusar da morte dele.
Hernando não responde. Seu rosto emaciado e endurecido está apenas ligeiramente iluminado por um coto de vela. Do aposento vizinho vêm os soluços e as lamentações em que se reconhecem a voz de Gonzalo e o murmúrio das orações de Bartolomé.
Eles levaram quatro horas para tornar a descer da esplanada da fortaleza e alcançar o refúgio da grande praça de Aucaypata, transportando o corpo de Juan sob a perseguição dos incas. Gabriel está tão cansado que não sente mais nem os braços nem as pernas. Nem fome ele sente mais. Seus dedos estão dormentes e a mão inchada de tanto empunhar a espada. Seus olhos têm dificuldade em discernir o que o cerca.
- Mas não é verdade que tenha desejado nem que tenha trabalhado visando à nossa derrota - acrescenta.
Mais uma vez, Hernando não responde. Ele parece escutar os lamentos, o canto fúnebre das mulheres acompanhando as orações. De repente, comenta em voz baixa:
- Juan era a única pessoa no mundo que Gonzalo algum dia amou. Desde sempre e com paixão. É estranho, não é?
É a vez de Gabriel se manter calado. Contudo, ele se recorda das palavras de Juan, ainda naquela manhã.
- Gonzalo nunca amou nem respeitou ninguém, exceto Juan - prossegue Hernando. - Nem mulher nem homem. Ele mal respeita minha autoridade. E agora, a morte de Juan vai torná-lo ainda mais louco que antes.
- Os demônios estarão livres - murmura Gabriel.
Hernando o observa por um instante com surpresa e murmura por sua vez:
- Os demônios, sim...
No aposento ao lado, a oração fúnebre cessou, mas os cânticos continuam. Hernando faz um pequeno gesto com a mão, como para afastar os pensamentos que vêm preocupá-lo. Um leve sorriso aflora a seus lábios.
- Há sempre mortos em batalhas, dom Gabriel - continua, num tom mais irônico. - As batalhas também são feitas para isso. Sobretudo quando as perdemos. Sou um bom cristão e a morte de meu irmão me aflige. Mas o que me aflige ainda mais é que, a despeito de todas as suas garantias e de sua magia, ainda não estejamos dentro daquela maldita fortaleza! Parece que as pedras e as flechas o pouparam mais uma vez, mas nunca um milagre me pareceu tão inútil!
- Vamos descobrir logo, com certeza, se há magia ou não! - diz Gabriel por entre dentes, passando a mão no rosto.
- Ah, sim?
- Nosso ataque teve pelo menos um efeito positivo, dom Hernando. Enquanto mantínhamos as tropas incas ocupadas na parte de trás da fortaleza, vocês finalmente conseguiram alcançar a muralha deste lado. Ainda há pouco vi que nossos companheiros acampavam por lá...
- Amanhã os incas farão de tudo para nos desalojar daquele lugar. E eles conseguirão, pois estamos cansados demais para resistir aos ataques por muito tempo.
- Não. Ao raiar do dia eu subirei sozinho até o topo da torre e abrirei uma passagem.
- Isso é loucura, Gabriel!
Hernando e Gabriel viram-se para ver de quem partiu essa exclamação. Bartolomé passa pelo umbral da porta e exclama ainda:
- Você nunca conseguirá fazer isso!
- No alto, no meio da primeira muralha, há uma janela. Com uma boa escada ela pode ser acessível. Depois, eu sei que há uma escada que vai até a base da torre. Os incas certamente possuem um meio de subir na torre e eu o encontrarei!
- Você está delirando! Por todos os santos, este dia deixou você completamente louco!
- Dom Hernando, mande construir essa escada. Preciso dormir um pouco. Mas cuide para que esteja pronta ao raiar do dia.
- Dom Gabriel, será morto por uma avalanche de pedras antes mesmo de alcançar a metade da escada - observa Hernando com fria circunspecção.
- Minha morte não lhe trará maiores embaraços e, se eu conseguir, não terá motivos para descontentamento. A oportunidade que ofereço só lhe traz vantagens, dom Hernando.
Hernando faz um pequeno movimento de surpresa, depois um estranho sorriso se desenha em seus lábios ressequidos.
- O senhor, de fato, é um personagem curioso, dom Gabriel. Sempre querendo morrer e ressuscitar! Sempre querendo se mostrar melhor que nós. Vamos acabar compartilhando a opinião de meu irmão, o Governador, e reconhecer que tem algumas qualidades.
Gabriel ignora o comentário e o olhar astuto do outro. Ele pega a mão deformada de Bartolomé e a aperta com força.
- Está na hora de saber, amigo Bartolomé. Eu preciso saber! E, desta vez, ninguém deverá me seguir.
Durante a noite, Gabriel não fecha os olhos. Se adormece por alguns breves instantes, é para, involuntariamente, entrar numa espécie de sonho desperto.
E sempre, sem cessar, as imagens que se apoderam de seu espírito o perseguem e não o deixam em paz.
Flutuando suavemente na brisa, ele vê uma corda amarrada nas muralhas denteadas da torre redonda, a mais imponente. E, no instante em que suas mãos feridas se fecham sobre ela, mais nada pode impedi-lo de chegar até o topo. O raiar do dia é frio. O solo está quase congelado, o céu branco como um abóbada de linho. De torso nu, Gabriel está enrolado em um cobertor imundo.
É a carícia suave de uma mão sobre sua testa e seu ombro que o desperta. Uma palma de mão macia, de dedos finos. A mão de uma mulher, uma doçura esquecida. Quando Gabriel abre os olhos e emerge das profundezas de um sono sem fundo, com o corpo dolorido, vê o rosto da jovem mulher sem reconhecê-lo. As lágrimas brilham em seus olhos e suas faces estão borradas de poeira.
- Você não se lembra de mim - sussurra ela com uma sombra de sorriso. - Eu me chamo Inguili. Nós nos encontramos há muito tempo, antes da morte do Único Senhor Atahualpa. Eu era uma mocinha a serviço da Coya Camaquen. Ela muitas vezes me falou de você.
Gabriel se levanta apoiado nos cotovelos, agora completamente desperto.
- Foi ela quem enviou você? Anamaya enviou você?
Ela sacode a cabeça, quase sorrindo:
- Não. Eu sou a esposa do senhor dom Juan.
Sua voz fica embargada, mas logo ela se controla:
- Era, ainda ontem.
- Eu sei. Sinto muito. Ele me falou de você...
No olhar de Inguili, a dor e o orgulho se mesclam.
- Ele me havia escolhido para escrava, contudo me amou como a uma esposa. Eu também o amei. Ele era gentil comigo. Seus Ancestrais do Outro Mundo não quiseram que sofresse muito. Isso é bom.
Com um movimento rápido, ela tira uma pequena jarra do unku e a oferece a Gabriel.
- Ainda temos um pouco de leite de cabra para nossas crianças e eu trouxe para você. Deve tomar o leite antes de subir à torre. Precisará ter forças.
Gabriel agarra-lhe o punho.
- Por que está fazendo isso?
Inguili o observa por um instante. Com a mão livre, ela esboça uma carícia sobre o ombro de Gabriel. Seus dedos deslizam sobre a omoplata e tocam muito de leve na mancha escura desenhada ali.
- A Coya Camaquen o protege, os Poderosos Ancestrais também - sussurra. - Você vai nos salvar, todos sabemos disso.
Os dedos de Gabriel se fecham com mais força em torno do braço de Inguill.
- Como sabe disso? Por que me defender contra o seu povo? Isto não faz sentido!
- Beba o leite, vai lhe fazer bem - diz ela com simplicidade antes de se afastar, fugindo.
Somente então é que ele descobre Sebastian, alguns passos mais atrás, que o observa com um olhar duro.
- Esta mulher diz coisas sem sentido! - resmunga. - Subir no raio da escada deles e no raio da torre é a pior idéia que você já teve, Gabriel.
Gabriel se levanta com um sorriso.
- Você não acredita mais que eu seja são Tiago?
- Ah, mas claro que sim! O suficiente para saber que um de vocês dois é um impostor! E sabe, eu de boa vontade apostaria que o impostor é são Tiago!
- Blasfemo!
Rindo francamente, Gabriel vai abraçar seu amigo.
- Cuide bem de Itza. É uma bela égua e eu gostaria de tê-la para sempre, como presente seu, mais tarde, quando esta batalha estiver acabada.
- Eu lhe darei a égua e mais ainda, Vossa Graça, mas tem de me prometer uma coisa, por são Tiago e pela Virgem, pelo Sol e pela Lua, e por meus dentes, minha barba e pela sua...
- O que, diga?
- Viva, seu cretino.
A escada tem pelo menos quatro toesas de comprimento, mas apenas a altura exata para alcançar a borda da estreita janela cortada na muralha. São necessários vinte homens para levantá-la e colocá-la no lugar preciso. É feita de vigas de teto e de grossas toras de madeira das barricadas emendadas e montadas da melhor forma possível.
Faltaram cordas para amarrar os barrotes de ferro ou de madeira que servem de degraus, que por vezes são apenas pedaços de lanças partidas, de modo que são bem espaçados e Gabriel tem de usar os braços e puxar com força para avançar na subida.
Depois de ele ultrapassar a primeira toesa, a escada começa a oscilar e Gabriel se esforça para fazer movimentos menos bruscos. Ele sobe mais dois barrotes e então ouve chamados. Quando baixa os olhos, vê que Sebastian, Bartolomé, Hernando e todos os outros se afastaram precipitadamente das vigas que seguravam. Antes mesmo de olhar Gabriel, já compreendeu. Enfiando a cabeça entre os ombros e firmando bem os pés contra as vigas laterais, ele levanta o escudo sobre a cabeça.
É quase com prazer que escuta o choque natural das pedras sobre o couro do escudo redondo. Algumas, bastante pesadas, batem também na escada e a fazem vibrar sob seu corpo. Não deve se demorar muito parado ali. Com um trabalho de lenhador, ignorando os projéteis, ele se lança ao assalto dos barrotes superiores. A escada se enverga e range horrivelmente. Ela se curva como uma barriga se enchendo demais de ar. Gabriel mantém os olhos cravados na muralha. Esquece o que está em cima e o que está embaixo, as pedras que assobiam e que passam por ele raspando por vezes ricocheteiam e batem em seu quadril, sobre a madeira, tão perto de seus dedos que poderiam esmagar. Com o impulso dos pés e dos joelhos ele escala. Gritos e clamores se elevam por toda parte ao seu redor, mas ele não os ouve mais.
Ultrapassa a metade da escada. Ali o balanço é tão forte que Gabriel a sente se mover e se deslocar a despeito de seu peso. Pensa nos homens que lá do alto poderiam agarrá-la e empurrá-la fazendo-o cair, depois esquece.
Seus companheiros levaram em conta seu cansaço, pois os últimos barrotes são mais próximos uns dos outros e mais fáceis de subir. Parece-lhe que poderia até correr ali, e é sem nem sequer olhar para o interior que ele se alça sobre a grande verga da janela. A luz ainda pálida do amanhecer pouco ilumina o interior, mas ele vislumbra uma escada e rostos, habitualmente impassíveis, que estão deformados pelo espanto. Apenas o barulho de sua espada saindo da bainha faz recuar os guerreiros que estão diante dele, de funda e maça na mão. Idiotamente, dominados tanto pelo espanto quanto pela curiosidade, eles olham uns para os outros sem fazer um gesto. Depois Gabriel grita em quíchua:
- Para trás, para trás! Não quero lhes fazer mal!
Agitando a espada como se fosse de madeira, ele avança três degraus enquanto os outros, recuando, sobem na mesma medida. E em seguida isso se repete mais uma vez.
Depois um dos incas diz:
- É o estrangeiro do animal branco!
Novamente eles se entreolham, incrédulos, e Gabriel, da mesma forma que eles, não sabe mais o que fazer. Então, sem uma palavra, os soldados fazem meia- volta e com uma agilidade espantosa sobem a escada muito íngreme.
Respirando fundo, Gabriel os segue, com prudência e mantendo a lâmina à sua frente. Quando finalmente chega à luz do dia, é para descobrir que a fortificação na base da torre está vazia. Os guerreiros fugiram e correm amotinando os oficiais.
Então, das torres vizinhas, ele é avistado. De novo, os gritos e as pedras Jorram. Contudo, nenhuma é dirigida contra ele, apenas contra os espanhóis que permaneceram na base da muralha.
Entusiasmado com toda essa facilidade, Gabriel contorna a torre. Levantando os olhos, tomado de exaltação, ele sabe que Inguili estava certa. Que todos estavam certos. Embora nenhuma porta nem janela se abra para o interior da torre, nem permita que se possa alcançar o alto, uma corda de fios de fibra de agave e de ichu, semelhante à que é usada nas pontes, grossa como um braço de homem, se estende ao longo de todo o comprimento da construção como o mais maravilhoso dos convites. Ele vê com uma extraordinária exatidão aquilo que viu em sonho.
O cansaço, os músculos doloridos e a prudência desaparecem. Não podendo mais se conter, Gabriel se aproxima da muralha, agita o escudo e a espada gritando:
- Santiago! Santiago!
Lá embaixo, sob os escudos colados uns nos outros, seus companheiros parecem reduzidos ao tamanho de pequenos animais de carapaças sujas. Gabriel ri como um louco e continua berrando:
- Santiago!
Depois, num só movimento ele encosta o escudo redondo na parede, embainha a espada e despe a pesada cota de malha. Sem nem se preocupar se lá no alto alguém poderia cortar aquela corda, tão miraculosa quanto a escada de Jacó, ele a agarra firme com as duas mãos e começa sua ascensão.
Na verdade, basta-lhe subir duas toesas, com as pernas e o busto em esquadro, as solas das botas raspando nas pedras e os braços penando no esforço para mantê-lo acima do vazio, para que seu frenesi se acalme.
Duas vezes, com as pernas pesadas, seu pé escorrega sobre um ponto de apoio mal escolhido. Imediatamente ele é projetado com todo o peso de seu corpo contra a muralha.
Bate violentamente com os joelhos e o peito, por pouco não largando a corda por causa da dor. Com a respiração de novo ofegante, os músculos retesados, retoma a subida. Uma toesa, duas toesas. Faltam seis, talvez mais. Ele se recorda das palavras de Sebastian: "Daqui a pouco, você vai voar do céu à terra como um anjo de verdade e com um lastro de pedregulhos!" Uma gargalhada desagradável o faz parar, mas o peso de seu corpo torna-se tão grande que ele prefere retomar o esforço.
Mal conseguiu chegar à metade do caminho quando um choque o faz levantar a cabeça. Bem acima dele, uma pedra do tamanho de um tamborete bate e quica contra a parede com um choque surdo. Ele não tem nem sequer tempo de se proteger, apenas de fechar os olhos.
Nada o atinge. Exceto o deslocamento de ar da rocha passando bem perto de seu ombro. Ele reabre os olhos no instante em que a pedra se espatifa em mil pedaços nas lajes na base da muralha.
- Eu sou protegido - murmura, com o peito em fogo. - Anamaya me protege! Ela me ama e me protege!
Então, a estranha loucura se apodera dele novamente. Não vê mais a muralha da torre diante de si, e sim o olhar azul de Anamaya. Não sente mais seus pulmões queimando, os braços que não suportam mais o esforço, as coxas que não querem mais se dobrar. Ele escala como se fosse carregado. Escala como um demônio ou um macaco. E, lá embaixo, é assim que todos o vêem escalar os últimos metros e gritam quando ele agarra o parapeito da mureta que contorna o alto da torre.
- Santiago! Ele conseguiu, Santiago!
Ele descansa por um instante esticando todo o corpo, com dificuldade para respirar. Não tem força para se levantar. Procura ouvir os soldados incas que vão capturá-lo. Mas os ruídos vêm de muito longe. Ele se levanta e descobre que está sozinho. O alto da torre está vazio. Há uma espécie de torrezinha construída em seu centro e ela se abre para uma escada de vários patamares, com degraus tão estreitos que é preciso se posicionar neles de lado. Não há mais ninguém ali e, lá de baixo, Gabriel escuta vozes e chamados.
Então ele retorna para o parapeito; por sua vez, berra e urra gritos de vitória e avisa que a primeira torre está tomada e que todos podem subir! Ao meio-dia, os combates ainda não cessaram e uma segunda torre é tomada. Gabriel não deixou a sua e ninguém veio juntar-se a ele ali no alto. Com horror e incansavelmente, assistiu ao grande espetáculo da guerra. Agora os cadáveres se amontoam no interior das muralhas da fortaleza de Sacsayhuaman. Mil, talvez dois mil cadáveres. Gabriel descansou as mãos doloridas sobre a mureta de pedra e percebe que estão trêmulas. Ele não sente mais nada. Pergunta a si mesmo que loucura o dominou, pois sente-se como um homem bêbado que acaba de despertar.
Não ousa mais nem sonhar com Anamaya, nem acreditar, sem incorrer na obscenidade que ela tenha podido protegê-lo para que ocorresse uma carnificina tão imensa. O odor pestilento da morte devora suas narinas. As palavras afetuosas de Sebastian lhe parecem ter sido dirigidas a uma outra pessoa, não a ele. Sim, ele espera de novo que a morte venha levá-lo embora e que não tenha de pular da torre para esquecer o prazer que sentiu por ser seu instrumento.
"Eu acreditava ser o senhor", escarnece de si mesmo, "e não passava de um escravo miserável!" Mas seus olhos não abandonam - nem por um instante - o movimento incessante dos homens que morrem.
À noite, Hermando Pizarro conduz o ataque à última torre da fortaleza, que é a maior, mas foi construída apressadamente em alvenaria. Quando os homens estão a meio caminho das escadas, o general inca que comandava a defesa de Sacsayhuaman até aquele momento se levanta, sozinho, sobre o parapeito. Os grandes brincos de ouro brilham em suas orelhas e indicam sua linhagem nobre. Com espanto, Gabriel vê que ele esfrega as faces com terra até que a pele se esfole. Depois o inca apanha mais terra entre as pedras da torre e continua a se esfregar e esfregar suas feridas até estar completamente desfigurado.
Nenhum dos espanhóis se move, todos estão com os olhos cravados nele. Os soldados incas também estão silenciosos e um vento gelado parece envolver todo mundo. Então, o general enche a boca de terra, enrola-se inteiro até a cabeça na capa longa e se lança no vazio. Não se ouve nenhum ruído até que o impacto de seu corpo se espatifando contra um monte de pedras de funda se eleva.
Só nesse instante Gabriel percebe uma exclamação às suas costas. Quando se vira, dez guerreiros incas estão diante dele. Percebe hesitação em seus olhos e vê os cordões em suas mãos. Um deles levanta uma maça de bronze, já pronto para golpear.
Gabriel sacode a cabeça.
- Não - diz ele em quíchua. - Não vale a pena.
Lentamente, tira a espada da bainha e a joga longe por sobre a mureta.
- Eu não lutarei mais - diz ele. - Acabou.
E, enquanto os guerreiros o carregam amarrado pela noite adentro, Gabriel escuta se perderem no vento os gritos de bebedeira e de vitória de seus companheiros espanhóis.
Ele quis morrer.
Ele quis viver.
Agora ele não quer mais nada.
Ollantaytambo, junho de 1536
Nas canchas da planície, entre os dois rios, sobre as encostas onde os terraços e os templos são dispostos em degraus, centenas de fogueiras estão acesas. Mas não se ouvem cantos, nem tambores, nem trompas, nem gritos de alegria e de bebedeira. Só se ouve o rugido das águas. Anamaya permite que esse som encha seus ouvidos: é um ruído lancinante de perda, carregado de tristeza.
Os combatentes cruzam a ponte com um passo derrotado. Eles seguem, um por um, sem dizer uma palavra, o semblante impassível, mas a cabeça baixa. Sob a luz branca da lua cheia, seus rostos parecem ser de prata embaçada. As rugas de fadiga sulcam profundamente suas frontes e faces como se fossem feridas. Os unkus estão rasgados, cobertos de lama e de sangue. O cansaço torna seus membros pesados e as armas pendem de seus braços como se fossem inúteis brinquedos de criança. Mesmo aqueles que empunham espadas tomadas dos espanhóis, mesmo aqueles que conservam alguns raros cavalos estão massacrados pela vergonha. Eles perderam.
Quando avistam Manco e Villa Oma do outro lado da ponte, seus ombros se curvam mais um pouco, como se o peso se tornasse impossível de sustentar. Mas, quando passam diante dele, Manco os estimula com um gesto ou uma palavra de orgulho. Eles desaparecem na noite: a exaustão não lhes trará repouso.
Anamaya observa Villa Oma. O olhar penetrante daquele que ela chamava de o Sábio está perdido na distância, acompanhando a extensão do Vale Sagrado, fugindo em direção às colinas acima de Cuzco e refazendo o caminho dessa batalha que deveria ter sido vencida, mas não foi. Seu semblante está crispado por uma raiva silenciosa.
Nem uma vez Manco o encara. Seu perfil altivo demonstra apenas ternura e encorajamento para com seus combatentes. Anamaya se espanta e se comove com essa ternura que se esconde dentro dele, bem no centro de toda a violência que o atormenta - depois das humilhações que sofreu, talvez para sempre.
Desde o dia em que Titu Cuyuchi retornou com a notícia do desaparecimento de Gabriel, Anamaya perdeu a capacidade de dormir. Quando pensa que vai adormecer, o puma passa acima de seu rosto; a todo instante do dia ela acredita ver sua sombra. Na aparência e nas palavras, continua a viver o papel da Coya Camaquen, para quem todos se voltam, a quem mesmo os adivinhos e os sacerdotes aprenderam a respeitar; mas no segredo de seu coração ela é uma mulher torturada pela preocupação com o homem a quem ama.
Na hora da derrota - uma derrota tão cruel porque a vitória pareceu tão próxima- este sentimento é mais forte em seu íntimo do que qualquer outro e ela quase tem vergonha disso.
-Venha.
A voz de Katari é quase um sussurro, um bater de asas de morcego na noite, e Anamaya nem sequer tem certeza de tê-la ouvido. Ela se vira em sua direção; o homem, com um imperceptível movimento de cabeça, faz esvoaçar os longos cabelos que lhe descem quase até os ombros.
Sem mover os lábios, ele faz sinal para que o siga. Anamaya não se preocupa mais com Manco nem com Villa Oma. Os dois jovens seguem a margem do rio que ruge, as águas borbulhando logo abaixo da mureta, cujas pedras cuidadosamente encaixadas indicam sua natureza sagrada. A luz da lua clareia o caminho que agora sobe em direção à cidade. As fogueiras nas casas bem como as dos templos reluzem como se fossem estrelas distantes, vindas de um outro mundo. O bater agitado de seu coração se acalma.
Através das encostas das montanhas, como se músicas com notas mais agudas se sobrepusessem ao bater de tambor do Willkamayo, ela escuta o jorrar das águas que fluem, desviadas por canais, para desembocar nos chafarizes.
De repente, Katari se imobiliza. Anamaya pára por um instante com os olhos fixos em seus ombros largos antes de voltar o olhar, como ele, na direção das Montanhas do Oeste, sobre as quais Quilla colocou seu disco perfeitamente redondo. A sombra negra do condor se destaca na noite.
É um pássaro gigantesco, um pássaro-montanha que observa. O rochedo delineia em uma extremidade seu bico e sua cabeça, onde o olho está aberto, a reentrância pregueada entre as duas asas poderosas. Imóvel, dir-se-ia que parece se estender na direção do Vale Sagrado, protegendo-o, ameaçando aqueles que se sentiriam tentados a violá-lo. Afinal, Katari vira-se para Anamaya.
- Chegou a hora - diz ele com simplicidade.
Anamaya admira mais uma vez a calma desse homem jovem e a sabedoria luminosa que dele emana - de seu corpo grande e musculoso, de seus olhos puxados, como intermináveis fendas numa huaca.
Ela não percebeu imediatamente, mas o rochedo é trabalhado aqui e ali: há regueiras abrindo o caminho para a água correr, entalhes marcam sua base, mostrando que há mil luas os homens reconheceram ali a presença dos deuses.
Eles penetram na sombra do condor e a lua se esconde. A despeito da escuridão, Anamaya segue Katari com confiança, seus passos acompanhando os dele sem hesitar. Eles contornaram um enorme losango de calcário cravado no solo, cuja forma lhe parece familiar. Há ali um pequeno espaço em cujo centro as brasas de uma fogueira ainda estão incandescentes, tingidas de vermelho, e Katari não tem dificuldade para reavivá-las. Mais uma vez levantando o olhar, escrutando os quatro pequenos nichos escavados na mesma rocha, ela tem a mesma impressão de reconhecer um outro lugar.
Enquanto recupera o fôlego, Anamaya é tomada por um sentimento estranho. Sem falar, Katari transmite-lhe o que quer. Ela fica quase assustada com esse sentimento de abandono que, instintivamente, a domina.
- Não há nada a recear - diz ele baixinho.
- Você me ouviu?
A ligeira risada de Katari ressoa na noite.
- Você devia saber que escuto você mesmo quando não estou com você...
A recordação de Gabriel perdido no deserto de Salar a trespassa. Seu mal estar desaparece e ela também sorri.
- Você disse que podia me ajudar...
- É verdade. Mas preciso que você esteja completamente livre do medo. E também que...
Katari já desdobrou e estendeu a manta diante de si.
- E também?
- Na viagem que vamos fazer, é preciso que só um vá...
- Mas ao mesmo tempo eu preciso de você para partir. Que significa isso, Katari? Eu não compreendo.
- Aqui temos a água e a pedra - diz Katari. - Este Mundo aqui e o Mundo de Baixo, o Willkamayo e a Via das Estrelas, Inti e Quilla, o ouro e a prata... Tudo no nosso universo é duplo... Mas o uno, a união dos opostos, se esconde no coração das coisas se soubermos procurá-lo...
O coração de Anamaya deu um salto quando ele começou a falar. Silenciosamente, ela completa suas palavras: existem os incas e os estrangeiros. Mas ela não ousa dizê-lo.
- Continuo não compreendendo - murmura.
Katari lhe lança um olhar rápido.
- Você compreende melhor do que imagina... Não posso explicar agora. Mas você deve saber que nada do que você descobrir me será escondido. Você confia em mim o suficiente para isso?
Ela o observa tirar da manta um galho coberto de folhas. É uma planta da floresta e não das montanhas. Sem hesitar, ele o atira no braseiro. Quase que imediatamente, uma fumaça acre e aromática se eleva.
- Se você confia em mim o suficiente para me levar... - diz Anamaya.
- Deixe que eu dê a você o que tenho...
- Eu guiarei você, Anamaya, contudo é você quem vai me levar.
Ela fixa os quatro nichos e o recorte tão particular do rochedo em que estão engastados. Ela sorri: sabe de que viagem ele está falando. Katari já não olha mais para ela. Balançando a cabeça de um lado para o outro, ele usa sua farta cabeleira como se fosse um abano para fazer descer a fumaça em direção ao rosto de Anamaya. Ao mesmo tempo, com os olhos fechados, canta uma melopéia lancinante, numa língua que Anamaya não reconhece. O odor da fumaça sobe em suas narinas e invade-lhe a cabeça e o corpo inteiro, a música faz seu efeito. Ela se sente ao mesmo tempo pesada de sono e desperta, quase incapaz de se mexer e tomada por uma leveza total. Ela o vê se levantar.
Quando ele retorna para sentar ao lado dela, tem entre as mãos um esplêndido kéro, um vaso de madeira entalhado com mil desenhos geométricos cuja precisão singular ela distingue com uma clareza sobrenatural. No fundo do vaso, descansa um líquido verde-escuro.
Depois Katari faz surgir dois outros kéros menores, sem nenhuma decoração. São de madeira em estado bruto, que conservou a forma do galho. Somente a cavidade revela que passaram pela mão do homem. Ele enche os dois pequenos vasos de madeira e estende um para Anamaya. Eles bebem lentamente, deixando que o palato e a garganta fiquem impregnados pelo sabor suave, semelhante ao do milho ainda jovem. O canto de Katari começou como o rumor distante de uma torrente na montanha; ele agora se avolumou e quase encobre o ruído da água dos chafarizes. O zumbido nos ouvidos, o palpitar surdo de seu coração - o corpo inteiro de Anamaya acompanha o ritmo desse canto, cuja origem lhe parece não estar mais no peito de Katari, mas nas pedras, na água, em toda a montanha.
Sobrepondo-se à sua melodia lancinante vem uma voz mais aguda. Com dificuldade ela se dá conta de que é um sibilar, um gemido que escapa de seus próprios lábios. Sua cabeça se balança no mesmo movimento que a de Katari e pouco a pouco ela se entrega. Sua consciência do tempo se apaga, sua percepção do espaço... Subitamente, um espasmo a sacode da cabeça aos pés. É uma descarga violenta como um raio, que parece nascer de sua nuca e se propagar como rios de tremores descendo ao longo de suas costas para irrigar cada um de seus membros. Anamaya é agitada e sacudida dessa maneira várias vezes: a cada vez, ela se abre para receber a sensação como num encontro amoroso. O prazer é uma explosão deliciosa, e a onda de sensações se derrama dentro dela e ferve. Seu ventre está quente, queimando. É uma felicidade tão completa, tão intensa, que ela nem tem tempo de medir sua brevidade. O silêncio retornou.
Manchas de cores intensas, luminosas, brilhantes dançam diante de suas pálpebras. O canto cessou. Resta apenas o ruído de água: o da água do chafariz, o da água do canal ao longo da huaca do Condor, o da água do rio que corre mais abaixo. Mas, nessa fração de calma em que a natureza fica em suspenso, sua percepção se aguça bruscamente e com uma clareza absoluta, mesmo nas profundezas da noite ela se torna capaz de ver tudo e de ouvir tudo, de sentir tudo e de saborear tudo... Ela percebe as ondulações do vento, cujas variações, cada uma delas, da brisa à borrasca, chegam a seus ouvidos; sente sua carícia sobre sua pele e deixa bem abertas as narinas e a boca para se inebriar com ela. De repente, é o grito de um pássaro que enche o horizonte - o pássaro que ela não ouviu mais desde os anos em que vivia, ainda menina, no meio da floresta. Ela respira os escondidos perfumes da terra, o húmus, as pesadas ramagens carregadas de umidade noturna...
O ruído de um roçar na pedra a faz abrir os olhos e Anamaya vê Katari. Ele olha fixamente para os quatro nichos situados bem diante deles e cujo fundo ela não consegue distinguir. Ele toma sua mão e Anamaya permite que ele a conduza sem medo.
À medida que eles se aproximam da parede, um dos nichos parece se animar com uma luz fugidia, cor de leite, proveniente da própria pedra. O movimento deles, que se iniciou de joelhos, se transforma num imperceptível andar de rastos em que eles esposam o corpo do rochedo, se confundindo com a pedra. Na entrada do nicho, a luz branca os envolve inteiramente e, na vibração de toda a massa rochosa, ela não consegue distinguir se foi o nicho que se dilatou para recebê-los ou se o tamanho deles repentinamente diminuiu. E isso não tem nenhuma importância.
Num determinado momento, sem que ela possa dizer quando, o contato com a pedra, de roçar, se transformou em doce carícia e em todos os roçares de pele, todo o temor e o peso do corpo desapareceram numa espécie de envolvimento e absorção muito suaves, como se a matéria e a carne entrassem em contato e imediatamente se fundissem.
Uma voz ressoou dentro dela, com palavras indistintas que lhe diziam que era assim, outrora, que os homens nasciam. Mas ela está tão tomada que não tem tempo de ouvir: membro após membro, seu corpo é aspirado pela montanha e sua última sensação humana é a da palma da mão de Katari na qual sua mão estava abrigada. De muito longe ela vê seu terror, bola de fogo na noite, bola de sofrimento na cabeça, enquanto seu corpo se torna leve por causa de seu extremo peso, como uma massa enorme sendo detida por uma massa maior ainda e que a absorve, pedaço por pedaço, fibra por fibra. Ela é a pedra. Ela é a própria montanha.
O mais estranho é que conserva uma consciência absoluta de si mesma. Ela é Anamaya, mas uma Anamaya que subitamente teria se enriquecido de um universo inteiro de sensações onde todas as formas, todas as substâncias, todos os aspectos da natureza se misturam. Ela não tem tempo de gozar de novo pois tudo começa a se dilatar em seu ser, como se mil tambores, mil trompas, mil rios e mil estrelas pulsassem todos juntos até a explosão. No meio dessa sensação feita do excesso de todas as sensações, todo o seu ser se contrai transformando-se numa minúscula bola cujo único esforço, intenso, é se arrancar fora da pedra - como se, na imobilidade absoluta, ela quisesse com todas as suas forças evitar se dissolver e se perder.
Vinda de dentro dela, muito baixa, porém perfeitamente nítida, em meio ao caos, ela ouve a voz de Katari: "Venha, Anamaya, está na hora." Ela está do outro lado. Não há mais nada além dessa vibração que percorre seu corpo e o sustenta, esse deslizar, essa leveza. Ela voa. Por um instante, não há nada além dessa delícia que mescla a sensação de poder com uma liberdade absoluta, infinita. Parece-lhe não ter mais olhos para ver, nem orelhas para ouvir, e seu corpo transformou-se numa montagem frágil, como uma balsa derivando sob o rio do vento. Você é o condor.
Por um breve instante, quando esse pensamento lhe ocorre, sua estranheza lhe causa um calafrio. Depois ela compreende que Katari não segura mais sua mão, não está mais a seu lado, mas que está com ela nesse vôo - que se tornou o condor com ela e por ela. Ela se entrega à sua transformação sem temor nem reservas. Então compreende que atravessou a noite e vê o sol raiar; imediatamente, as correntes de ar a levam às alturas no céu. Sob suas asas, o esplendor se desdobra: a fita do rio, no fundo do vale, tem as escamas de prata da serpente Amaru, o símbolo da sabedoria, que com freqüência se manteve a seu lado. Ela rodeia aquele lugar, se enrosca em torno dele, oferecendo-lhe o cofre precioso de esmeraldas da floresta.
Seu olhar varre as cadeias das montanhas distantes na altura das quais ela se encontra; o cume nevado de Salcantay, toda a majestade dos Apus dos Andes se oferece a ela sob os primeiros raios do astro solar. Dentro dela, a voz de Katari ressoa e canta sortilégios de felicidade: "Hamp 'u!Hamp 'u!' e parece-lhe que as montanhas respondem, uma a uma, reluzindo.
E depois, é claro, ela as reconhece: o jovem e o velho pico, protegendo a Cidade-cujo-nome-não-se-pronuncia, aquela onde a mocinha que ela havia sido fora admitida tantos anos antes. Ela plana sobre os terraços plantados onde o milho está carregado de frutos, plana sobre os prédios de onde as silhuetas minúsculas dos sacerdotes e dos astrônomos, dos adivinhos e dos arquitetos começam a sair para saudar a chegada de Inti. Ela sente os olhares dos homens voltados para o condor lá no alto, no céu, e o temor e o respeito deles lhe dão prazer.
"É aqui", diz ela a Katari, "que se esconde o mais secreto dos segredos do Império - aqui é o lugar que deve existir para além do tempo."
Katari mantém-se em silêncio, mas percebe a felicidade que se apodera dela e que a impulsiona, batendo as asas com grande força, a voar cada vez mais alto no céu. "Villa Oma me trouxe aqui, quando ainda o chamávamos de Sábio e ele falava com os Deuses; mas ele se desencaminhou, perdeu o caminho e nunca mais o encontrará." "Veja o triunfo do Sol", diz Katari.
No coração da cidade secreta, eles sobrevoam uma pedra sobre a qual os raios do sol se prendem, se refletem e de onde eles tornam a partir para iluminar o mundo, para dividir o tempo. É uma pedra que foi cortada - nos tempos antigos - para responder ao eterno arrebatamento do Jovem Pico, o Huayna Picchu. Eles planam por um longo tempo acima da pedra, dominados pela harmonia que dela se desprende. Estão emocionados com a unidade que reina aqui, entre a sabedoria dos homens e a ordem da natureza. A pedra parece ter sido recortada para receber a luz; a divisão que ela faz da luz com a sombra é uma prece que ressoa silenciosamente através das montanhas. Sua fragilidade é inatingível. Sua beleza é a própria memória.
Anamaya sente que Katari absorve e se enche de todas as sensações ao mesmo tempo, que ele as bebe como se fossem um líquido inebriante - cada templo, cada terraço, cada pedra faz vibrar nele uma lenda que abraça as origens do mundo, a água, a pedra e os homens.
O ar repleto de umidade pouco a pouco vai assimilando o calor do sol; os ruídos perfeitos da vida, os pilões no fundo dos almofarizes, o crepitar do fogo reanimado pelas mulheres, a corrida louca dos esquilos, as flores de sangue das orquídeas - tudo contribui para essa perfeição. Anamaya volta a subir acompanhando a extensão dos terraços e vislumbra a veia invisível que atravessa o Velho Pico: o caminho que ela percorreu tantos anos atrás, quando um condor interrompeu o gesto dos sacerdotes que iam sacrificar uma menina. Uma piedade infinita faz com que ela estremeça da cabeça aos pés. Ela se recorda de seu olhar, da mão pequenina aninhada na sua com a confiança e o abandono absolutos da infância.
Pouco a pouco, à medida que ela se aproxima do pico, o vôo perde velocidade, torna-se mais pesado. Suas asas já não a sustentam tão bem, como se uma fadiga repentina se apoderasse dela. Ela pousa logo acima da huaca. Não ouve nada além do sopro: o sopro de sua respiração, da respiração de Katari, o sopro do vento. Observe , diz Katari, observe com o que ha de mais profundo em seu coração. Sem refletir, ela alça vôo seguindo em direção ao Huayna Picchu, cuja silhueta impetuosa se eleva bem à sua frente. Seu olhar mergulha no vazio e fica como que suspenso diante da montanha, adivinhando cada aspereza, cada veio de rocha. E, dentro da montanha, surge uma forma terrível e familiar: o puma. A montanha se transformou em puma ou o puma em montanha, da mesma maneira que ela e Katari se transformaram em condor. O espetáculo a inflama em sua magia e faz jorrar em seu íntimo um rio de sentimentos e de emoções muito humanos. "Gabriel", pensa, de início timidamente, depois com uma força crescente: "Gabriel!"
"É ele mesmo, ele está diante de você e a espera", diz a voz tranqüilizadora de Katari.
Sem dar a si mesma tempo para compreender e para refletir, ela é transportada pela alegria: ele está aqui, bem diante dela, e todos os seus temores desaparecem na manhã! Por muito tempo ela fica ali, diante da montanha-puma, sentindo-se protegida por sua força. Agora compreende o sentido profundo da intuição de Katari: nada pode acontecer a Gabriel, ele é protegido pelos Apus. Quando o sol chega ao meio-dia, ela retoma o vôo. Com apenas um bater de asas eles descem em direção à esplanada dos templos e permanecem acima do vazio, apreciando a vertigem se apoderar dos homens perdidos entre o leito do Willkamayo, cujo rugido se eleva lá de baixo, e as neves da Cordilheira de Vilcabamba, ao longe. Um único pequenino rochedo se eleva num canto da esplanada. Foi talhado com precisão e indica as Quatro Direções. E esse rochedo fala.
A esplanada está inteiramente vazia e qualquer um que se aproximasse veria o estranho espetáculo de um condor pousado diante do rochedo se aquecendo ao sol. Isto seria para os que não soubessem ver.
Somente Katari sabe que Anamaya tornou-se de novo a menininha inocente, pura e abençoada que esteve ao lado do grande Huayna Capac, no anoitecer de sua vida. Ele a vê vestindo um afiaco branco com uma simples faixa vermelha na cintura, ajoelhada junto do velho rei-rochedo, cuja pele acinzentada vibra, sacudida por tremores, seu perfil de montanha voltado para as neves, para o Mundo de Baixo. Katari a vê inclinada sobre ele, absolutamente silenciosa, ouvindo suas palavras.
Você está comigo, Menina Anamaya, dos olhos de lago, E eu não a abandonarei enquanto proteger meu Irmão Duplo, Depois tudo desaparecerá e ele desaparecerá também. O puma é aquele que você verá saltar por sobre o Oceano. Quando ele partir é que ele voltará para você. Ainda que separados vocês estarão unidos, E quando todos tiverem partido, você permanecerá e a seu lado permanecerá o puma. Juntos, como seus ancestrais Manco Capac e Mama Occlo, Vocês engendrarão a nova vida desta terra. Haverá guerras como sempre houve guerras, Separações como sempre houve separações, Os estrangeiros conhecerão a miséria em seu triunfo, E nós, os incas, será necessário que sejamos humilhados, escravos da vergonha, para que compreendamos o longo caminho que percorremos e que nossos panacas, dominados somente pelo espírito da guerra e não inspirados por Inti, esqueceram em sua loucura de destruição. Mas nós não morreremos.
Anamaya está no hálito do velho Rei. Ela o escuta contar de novo como foi o passado, a criação do mundo, a confiança dos Incas nascida no berço das montanhas de Cuzco; ela o escuta glorificar suas conquistas e chorar a guerra entre seus filhos. Ele fala da bola de fogo que designa Atahualpa e ela se recorda; ele evoca Manco, o primeiro nó dos tempos futuros, e ela se recorda. Eu quis me tornar pedra, como os Velhos de minha raça, pousado na relva flexível e macia de uma montanha de Cuzco. A guerra me obrigou a ir-me embora e encontrei abrigo na Cidade Secreta. Minha pedra se abre para as Quatro Direções exatamente como estendi o Império das Quatro Direções; contudo é apenas uma pedra, pois no fim isso é tudo o que restará do Império: uma pedra sobre a qual o Sol se prenderá e será refletido. As Quatro Direções estarão no coração do homem puro. Hoje eles ainda não sabem, mas já existe uma guerra entre os irmãos. E guerra haverá de novo. Guerra entre os Filhos do Sol e guerra entre os estrangeiros: este é o sinal. O sangue do irmão, o sangue do amigo são derramados mais generosamente que o do inimigo: este é o sinal. A pedra e a água desaparecem na floresta: este é o sinal. O estrangeiro que roga a uma mulher e não a seu Poderoso Ancestral está morto: este é o sinal. Nenhum adivinho o vê, os sacerdotes estão confusos, o Sol escurece para os astrônomos, a traição é amiga do povo, o Oceano vomita estrangeiros em número cada vez maior, logo chegará para você também a hora de fugir para salvar o que sempre foi e sempre será. Mas você esperará os sinais e permanecerá ao lado dos nossos até que Inti tenha consumido o ódio entre nós e que restem apenas as mulheres chorando pelo sangue derramado. Você não cometerá nenhum erro. Você reencontrará aquele cuja pedra faz parar o tempo e ele estará diante de mim como você, mas ele irá para o lugar das origens, enquanto você irá para a Cidade cujo nome não se pronuncia. Você saberá o que deve ser guardado em silêncio e se calará. Dirá apenas o que deve ser e será, e quando isso acontecer, dois dedos de uma só mão, dois dedos de uma só mão unirão vocês. Você estará livre. Você conduzirá meu Irmão Duplo até o fim de seu caminho e ele, igualmente, estará livre. Um único segredo permanecerá oculto para você e terá de viver com ele. E durante todo esse tempo, não duvide de mim. Permaneça em meu hálito e confie no puma.
O silêncio retorna, quase intocado pelo diálogo eterno entre o vento e o rio. O sol está encoberto, e o ar se enche de nuvens negras e úmidas. A silhueta de Anamaya está tão imóvel quanto a de Huayna Capac. Apenas sua mão está pousada sobre o corpo do velho soberano que morre. A dor antiga torna-se novamente jovem, e a solidão abolida retorna para apertar-lhe o coração. Ela mantém os olhos fechados. Ela estremece. Sente a presença que foge sem se mover, como que seguindo em direção a uma outra margem, e sofre por não poder ir junto com ela e viver com ela.
Katari vem pousar a mão sobre seu ombro e contém seu sofrimento. O vale inteiro se encheu de bruma e os picos desaparecem diante deles, o dourado do milho nos terraços se apaga, a quinua em flor torna-se cinzenta, e os templos parecem feitos de pedra de água. Filamentos de nuvens os envolvem, dançando ao redor deles.
Anamaya levanta a mão que estava pousada sobre o corpo de Huayna Capac. Ela vê apenas a pedra, mas não se surpreende. Sobre seu ombro, a grande palma da mão de Katari ainda descansa pesadamente. Ela continua triste, mas sente que seu amigo a impediu de se entregar a uma viagem perigosa. Os dois olham para o oeste, lá onde, no horizonte ainda escuro, um halo de luz ainda se filtra através das nuvens. Eles não percebem a chuva que os trespassa até os ossos, permanecem indiferentes ao frio que sobe da terra. E depois, tão brutalmente como escureceu, o céu parece se rasgar. Lá no alto, na abertura central do templo dos três nichos, um arco-íris se ergue como um pilar.
"Venha", diz Katari.
E os dois se lançam para o céu. A noite caiu sobre Ollantaytambo. Anamaya e Katari estão deitados sobre o muro baixo que acompanha o curso do Willkamayo e não ousam falar. O céu está claro e o rochedo do condor, sob a lua cheia, se destaca, como sempre, com muita clareza.
- Tive um sonho em que você estava presente - diz Anamaya finalmente, se levantando.
Katari não se move, os olhos muito abertos voltados para a imensidão do céu e das estrelas.
- Eu tive o mesmo sonho - replica sem olhar para ela.
- Como sabe?
Katari não responde, mas Anamaya escuta o eco da voz dele em seu íntimo e, numa revelação súbita, compreende a realidade dessa viagem que eles fizeram juntos. Katari tem razão. Ela gostaria de perguntar a ele se retornaram ao ponto de partida ou se passaram um dia fora... Observando a lua, quase perfeitamente cheia, ela não encontra resposta.
"Você saberá o que deve ser guardado em silêncio e se calará."
Anamaya deixou as palavras explodirem dentro de si e toda a força das palavras de Huayna Capac a invade subitamente. Não, na verdade, ela não é mais a menininha aterrorizada que esquecia o passado, o presente e o futuro; ela não é mais a Coya Camaquen que precisava lutar para compreender o mistério. O mundo está em seu lugar: o que foi revelado assim permanece, o que é segredo também assim permanece. Um rugido surdo se faz ouvir vindo do norte. Katari se levanta.
De início, eles se perguntam se não será uma convulsão que agita a terra e que vai levantar o rio, fazê-lo sair de seu leito. Mas o estrondo ribombante aumenta e eles percebem, simultaneamente, de onde se origina: é da montanha situada diante deles, a que fica aprumada bem no meio, entre os dois rios, a montanha que guarda o Vale Sagrado.
A montanha ruge como um homem dominado por uma dor violenta. Pode-se senti-la tremer, se dilatar retesada ao ponto da ruptura com o esforço, antes que um enorme bloco se desprenda em meio a um gigantesco estrondo, deixando na encosta escarpada uma órbita escancarada. Pouco a pouco, uma espessa nuvem de poeira negra se eleva e invade a noite, enquanto a montanha ainda é sacudida, esporadicamente, por tremores. Depois vem o som de uma outra rachadura e o afundamento de uma face inteira, que eles vislumbram por trás da nuvem opaca. Duas vezes ainda, a montanha geme sob as contusões que inflige a si mesma.
Eles vivem o espetáculo, fascinados, esquecendo qualquer temor. Aquela rebelião da natureza não é uma cólera dirigida contra os homens. Aquilo vem de mais longe; o simples fato de presenciá-lo faz parte do segredo.
A poeira vem, entrando-lhes nos olhos, deixando-os meio cegos. Têm de ir até o chafariz para lavá-los e impedir que se queimem com a poeira ardente. Eles esperam.
Quando o ruído cessa por completo, eles se viram. A nuvem vem baixando muito suavemente e eles distinguem de novo a forma familiar da montanha. Anamaya deixa escapar um grito.
O que ela vê, claramente delineado pela luz do luar, é o próprio rosto de Huayna Capac, seu perfil exatamente como o viu diante de si nas horas que precederam sua morte, tantos anos antes, e, mais uma vez, em seu sonho - durante a viagem - quando ela era condor. Foi traçado no próprio flanco da montanha, como se um escultor miraculoso o tivesse talhado com grandes golpes de cinzel: é o homem-pedra, de um tamanho cem vezes, mil vezes maior que os homens de carne e osso.
Seu olho está fundo na órbita e o nariz poderoso prolonga-lhe a testa numa linha reta que acentua sua vontade. Uma falha abre-lhe a boca e seu queixo está coberto por uma longa barba de rochedos. Ele está virado para o norte, para o coração do vale, acima da floresta, na direção da Cidade Sagrada.
Então, Anamaya sabe que, agora, o conhecimento está depositado nela.
Ollantaytambo, barreira de Choquana
16 de junho de 1536
Com as mãos amarradas nas costas, os pés presos por peias de laços de espessas cordas de agave que limitam a amplitude de seu passo, rodeado por uma dezena de combatentes que se revezam dia e noite para vigiá-lo, Gabriel caminha há três dias.
Depois de sua captura, foi conduzido a um vilarejo com umas poucas miseráveis casas de barro, no coração de uma montanha árida, onde ficou detido durante um mês. Uma velha o alimentava e nem ela nem seus guardiões respondiam às suas perguntas. Com o passar dos dias, as tentativas de Gabriel foram se tornando cada vez mais raras e pouco a pouco, depois da exaltação louca dos combates, ele foi mergulhando numa espécie de apatia. Como antes, seu destino não lhe pertencia mais e ele foi se deixando levar, sem sentir nenhuma raiva, rumo a uma sorte que, sem dúvida, só poderia ser a morte. Muitas vezes fora perseguido pelo pensamento de que eles deveriam tê-lo matado imediatamente, mas o afugentara considerando-o importuno.
Três dias antes, ao amanhecer, os homens vieram buscá-lo e lhe indicaram que estava na hora de seguir caminho. Gabriel não disse nada e foi a muito custo se, desde então, trocou três palavras com seus guardiões, que o observam com aquela indiferença aparente que agora sabe ser curiosidade dissimulada e, sem dúvida, temor. Na hora do crepúsculo, ele escuta seus conciliábulos, mas a exaustão o impede de se esforçar para tentar compreendê-los.
Gabriel desperta como de um sonho.
Durante todas aquelas semanas, viveu como se fosse um possuído: sobreviver à vingança de Gonzalo, depois ao incêndio da prisão, escapar das flechas e das pedras de funda, conseguir tomar a torre... Ele se revê, de fato, realizando esses feitos que arrebataram a admiração de seus companheiros, mas tem mais a impressão de assistir em sua imaginação a uma representação num palco de teatro ou ao desempenho de um ator, usando uma máscara, que representava seu papel. Ele, Gabriel, parece ter estado desmaiado aquele tempo todo, ter- se eclipsado. Encontrar-se preso por pegas de corda, impotente, caminhar toda a extensão daquele vale fechado pela barreira das montanhas o fazem retornar à vida com sensações desagradáveis.
Diante dele, se não estivesse vendo as pernas nuas de panturrilhas musculosas, nodosas como madeira, não distinguiria nem sequer a silhueta dos carregadores que desaparecem sob a massa de enormes feixes de quinua. Toda a largura do caminho inca parece ter-se transformado num campo agitado por um vento caprichoso. Gabriel exala o ar de seus pulmões, os feixes sobem e descem, ele sopra de novo; ondulam mais uma vez. De maneira repentina e absurda, ele tem vontade de rir. "Sou o senhor da quinua!", exclama em castelhano. "O senhor do milho." E ele sopra à sua frente, sopra como se seus pulmões contivessem o maior dos ventos, Os soldados índios o observam, estreitam suas lanças, franzem o cenho: será que o prisioneiro ficou louco? Gabriel ri com violência, até tossir, antes de parar bruscamente.
O vale aberto pelo leito do rio progressivamente se estreitou. É dominado, à esquerda e à direita, por encostas íngremes na base das quais foram edificadas fortificações. Formando meandros, o rio se dirige de uma encosta para a outra, de um forte para outro forte. Centenas, talvez milhares de homens vestidos apenas com o huara estão trabalhando para reforçá-los, algumas fileiras dentre eles carregando impressionantes blocos de pedra, enquanto outras equipes, visivelmente muito bem organizadas, levantam as paredes e os vigamentos.
Mas é no momento em que os soldados o empurram para dentro do rio para atravessá-lo a vau que Gabriel percebe o alinhamento majestoso dos terraços. E, dominando-os com toda sua imponência, um prédio que pelo fato de estar inacabado não deixa de ser fascinante. Templo, fortaleza, ele não saberia dizer o que é - já sabe, contudo, que entre os incas essa distinção não existe. Ele está com a respiração entrecortada. E, no mesmo instante, vinda de lugar nenhum, Gabriel tem a certeza exaltadora e dolorosa de que vai revê-la.
Ao entardecer, eleva-se um vento que refresca o ar. Percorrendo as ruas retilíneas, perfeitamente pavimentadas, onde portas altas e estreitas de acesso às canchas se abrem sob os telhados de colmo muito inclinados, Gabriel se impressiona com a animação que reina ali.
É uma cidade em construção, fervilhando com uma animação incessante, onde se fala o quíchua que ele já domina, mas também o jaki aru e o pukina, línguas de Kollasuyu que conhece apenas o bastante para identificar de ouvido. Muitos dentre os índios nunca viram um estrangeiro e têm dificuldade em esconder seu espanto quando o descobrem, com seus cabelos louros desalinhados e a barba que, depois de semanas de detenção e de combates, lhe engole o rosto. Depois que os soldados entraram na cidade, mantêm as fileiras mais cerradas do que nunca, como se ele tivesse alguma minúscula chance de escapar em meio à multidão.
A cancha diante da qual eles param é guardada por dois orejones - foi assim que os espanhóis se habituaram a chamar os nobres incas cujas orelhas são adornadas por discos, que outrora eram de ouro e que, desde a conquista, quase sempre são de madeira.
Ele é empurrado de qualquer maneira para o interior do prédio de forma familiar. O pátio está cheio de soldados e as mulheres se mantêm mais para trás, algumas ocupadas em preparar a comida e outras agrupadas timidamente junto à parede no fundo do pátio e até mesmo na escada que leva ao andar intermediário da cancha vizinha. No centro do pátio, imediatamente reconhece Manco, sentado em sua tiana real, e, a seu lado, sobre um banco ligeiramente mais baixo, a silhueta alta e descarnada, de lábios finos, de Villa Oma. Ainda que o cenário seja mais modesto, o jovem soberano transmite uma majestade e uma dignidade muito distintas das de sua coroação na praça da Alcaypata, em Cuzco. Gabriel não consegue deixar de ficar impressionado com a vontade sombria, mas inflexível, que agora emana dele. Aquele rei marionete instalado no trono por dom Francisco está morto. O que ele tem diante de si é o combatente que por pouco não os venceu em Sacsayhuaman e cujas tropas continuam a cercar e sitiar Cuzco. Ele não vê Anamaya.
Um silêncio pesado se estabelece. O olhar de Gabriel vai do Sábio para o Inca e do Inca para o Sábio. Ele também aprendeu a não falar depressa demais e a ler a escultura dos semblantes antes de se precipitar. É Villa Oma quem primeiro quebra o silêncio.
- O estrangeiro deve morrer! - declara, levantando-se de sua tiana.
Ele cuspiu as palavras com uma tranqüilidade furiosa. A platéia fica imóvel.
- Foi ele quem comandou o ataque à torre de Sacsayhuarnan e é por causa dele que muitos de nossos combatentes estão mortos. Foi por causa dele que o nobre Cusi Huallpa se sacrificou. Os estrangeiros afirmam que ele possui uma magia superior a todas as de nossos adivinhos e que é protegido pelos deuses deles... Lendas ridículas! Vamos cortá-lo em pedaços e enviar-lhes seu crânio e sua pele esticada como um tambor, de maneira a mostrar que nossos combatentes são mais poderosos que aqueles seus deuses falsos! Deveríamos tê-lo matado há muito tempo e somente nossa fraqueza nos impediu de fazê-lo naquela ocasião...
Villa Oma vira-se para Manco e prossegue com uma exasperação visivelmente contida por tempo demais:
- . . .essa mesma fraqueza que nos privou de uma vitória completa sobre os cães estrangeiros!
Nunca ninguém ousou atacar Manco tão direta e violentamente, daquela forma, em público. Gabriel está consciente do insulto e, estranhamente, embora sua vida seja o objeto da disputa, sente crescer em seu íntimo uma espécie de distanciamento que o transforma em espectador de seu destino. É com uma voz calma, os olhos cravados profundamente nos de Manco, ignorando o Sábio, que ele responde.
- Minha vida, para mim, é mais indiferente que para o senhor. Os meus compatriotas tentaram tomá-la de mim e Deus ou a sorte a pouparam... O senhor quer me matar por ter feito o que fazem os soldados? Mate-me. Não cabe a mim dizer se é uma decisão justa ou uma crueldade inútil que ofenderá seus deuses e o de meus compatriotas.
Manco ainda não abriu a boca. Ele parece perdido em seus pensamentos, quase inerte. Villa Oma se exaspera:
- Acabemos com ele, irmão Manco! Este será o sinal que o povo e os deuses esperam para nos dar uma vitória estrondosa!
- Este homem não morrerá.
Manco pronunciou as palavras sem olhar para ninguém. Villa Oma parece imobilizado pela fúria. Seu braço começa a se levantar e ele aponta na direção de Manco. Mas, antes que tenha tempo de censurar o Inca, uma confusão explode na entrada da cancha. Dois chaskis banhados em suor atravessam o pátio e se prosternam no chão diante de Manco.
- Falem - ordena o Inca.
Sem levantar a cabeça, o mais velho dos dois começa.
- Único Senhor, viemos para anunciar uma vitória estrondosa. Nossas tropas destruíram um exército de estrangeiros que o kapitu deles tinha enviado para auxiliar aqueles que mantemos sitiados em Cuzco. Destruímos muitos homens e tomamos armas e cavalos. Estão vindo para cá, Único Senhor, como oferenda e para sua glória!
Manco permanece tão impassível quanto esteve desde a entrada de Gabriel na cancha.
- O Sábio Villa Oma - diz afinal, lentamente - agora deve saber que não é necessário cometer a injustiça para obter grandes vitórias.
O rosto de Villa Oma está tão esverdeado quanto o suco de coca que lhe escorre pelos cantos dos lábios, mas não diz uma palavra. Sem se despedir ou pedir licença,
ele atravessa o grupo de soldados estupefatos, empurra as mulheres e se mete pela escada. No momento em que vai desaparecer no andar do prédio vizinho, enrola-se em sua manta e se vira.
- Manco, eu não me esqueço que nós somos filhos do mesmo pai, o grande Huayna Capac. Não me esqueço de que você é o Filho do Sol. Mas Inti, ele faz o que é necessário para brilhar cada dia. Você está querendo estender a noite sobre todos nós?
Diante da violência do insulto, os soldados ensaiam um movimento em sua direção. Mas Manco os detém com um gesto.
- Deixem-no - ordena. - O Sábio não é mais o Sábio. A cólera e o ódio se apoderaram dele e suas palavras são apenas ruídos que ele faz com a boca! Também eu - diz ele, fixando Gabriel - fui submetido a humilhações pelos estrangeiros, que quiseram roubar minha mulher, me trataram pior do que se trata a um escravo, pior do que se fosse um cão... Mas mantive-me em silêncio e no segredo de nossas montanhas, com a ajuda de nossos deuses, preparei esta guerra que nós venceremos...
A voz de Manco assumiu um tom orgulhoso ao longo de seu discurso e um rumor, logo transformado num clamor, ressoa por toda a cancha.
- Agora - diz Manco quando a agitação se acalma-, quero ficar sozinho com o estrangeiro.
Ele se levanta subitamente, empurrando as mulheres que se apressam para varrer o solo diante dele. Manco se aproxima de Gabriel e o toma pelo braço. Os presentes não conseguem conter um grito de surpresa; o Inca permanece indiferente. Ele puxa Gabriel para dentro de um aposento, o maior e mais ricamente decorado do lugar. Exceto por essa abertura, nenhuma luz do dia penetra ali. As paredes são escavadas com nichos onde repousam vasos de ouro ou de prata e estatuetas de animais.
- Você sabe muito bem qual é o motivo de minha demência, não? - pergunta Manco secamente.
Gabriel não consegue esconder sua surpresa.
- Não, Senhor Manco.
- Ela tem um nome que lhe é muito querido.
Na penumbra, Gabriel vê o olhar de Manco se inflamar... Há apenas um instante o Inca parecia cheio de uma serenidade de sábio; e agora é sua vez de ser dominado pelo furor, uma cólera que cintila em seus olhos.
- Anamaya é a sua vida - declara Manco. - Se eu não soubesse o que você representa para ela, você não teria sequer sido trazido a mim e a poeira de seu corpo estaria alimentando nossos campos férteis...
- Compreendo nobre Manco, mas no entanto sei que o que disse a Villa Oma era de coração! Pode me odiar, mas não pode me impedir de admirá-lo.
- Eu sou o Inca, estrangeiro! Lembre-se de que se você põe os olhos em mim é só porque eu quero isso... Nem seus sentimentos lhe pertencem!
Gabriel domina o tremor que se apoderou dele.
- Então permitirá que eu guarde para mim a única coisa que não me pode tomar: o silêncio.
Manco não responde. Depois ele gira nos calcanhares para sair do aposento. No momento em que vai passar pela tapeçaria sobre a porta, observa Gabriel uma última vez.
- O puma! - exclama num tom que Gabriel interpreta como desprezo.
- Eis aqui o puma!
Ollantaytambo, noite de 18 de junho de 1536
Gabriel avança no frio da noite.
Ele cochilava em seu leito duro, escutando o ruído da água que jamais cessa naquela cidade, quando o índio entrou silenciosamente no aposento da cancha que Manco lhe havia destinado. Ninguém disse que era prisioneiro, ninguém disse que ele estava livre: simplesmente seus pulsos foram desamarrados e as cordas das pegas que prendiam seus tornozelos foram retiradas. Duas mulheres estão a seu serviço e também dois índios, dois kollas silenciosos que devem protegê-lo - ou vigiá-lo. Quando Katari entrou em seu quarto, Gabriel o reconheceu imediatamente e seu coração se alegrou: é ele o amigo de Bartolomé, foi ele, sobretudo, que o salvou nas margens do Titicaca.
- Bem-vindo, Mestre das Pedras! Está aqui para me trazer de volta ao mundo novamente?
Para sua grande surpresa, Katari não diz nada, não esboça nem sequer um sorriso de compreensão ou de amizade. Seu rosto de maçãs salientes permanece inexpressivo, enquanto seus longos cabelos esvoaçam na penumbra.
- Siga-me - é só o que diz a Gabriel.
Gabriel teve tempo de se lavar e de jogar fora as roupas imundas que usava desde o dia do ataque à torre. Agora está vestido com uma ampla túnica de lã de alpaca. Seus músculos estão doloridos, todo seu corpo está enrijecido como se tivesse levado uma surra... Ele não faz nenhuma pergunta a Katari, se levanta e passa pela tapeçaria de lã grossa que cobre a entrada e segue seus passos.
Katari diz algumas palavras em voz baixa aos dois guardas que se afastam. Eles percorrem as canchas silenciosas; suas sandálias deslizam sobre as lajes de pedra. Sem reduzir a velocidade e sem dizer uma palavra, Katari atravessa uma vasta praça antes de passar por uma porta monumental. Seguindo um atrás do outro, sobem, sucessivamente, seis plataformas através de alguns lances de escadas. Depois, a despeito da luz fraca da lua que se põe, Gabriel vislumbra que diante deles se abre uma escadaria que traça uma linha reta, quase vertiginosa, sobre a encosta íngreme da colina. Foi nessa encosta que viu, ao chegar naquela tarde, os terraços cortados como grandes degraus e as estruturas maciças do templo.
Passo a passo, ele vai deixando para trás o peso de sua fadiga e também da estranha atitude de Katari; na penumbra, vê, acima dos terraços solidamente calçados de pedras, uma construção com vários nichos que imagina ser um templo tendo em vista a qualidade de suas paredes; mas o silêncio persistente de Katari e a crescente dificuldade para respirar o impedem de interrogar o rapaz. Mesmo quando chegam ao pé dos muros maciços do Grande Templo que se pode avistar desde o vale, Katari não pára, nem reduz a velocidade de seus passos. Apenas a inclinação da encosta diminui um pouco, permitindo-lhe algum alívio. Quando, afinal, eles chegam a um paredão maciço que impede a passagem para a colina, Katari se detém.
Gabriel põe as mãos sobre as coxas para respirar, ofegando pesadamente. Depois de recuperar o fôlego, levanta os olhos para o Mestre das Pedras:
- Agora você vai falar comigo?
Katari ainda permanece em silêncio, mas pelo menos seu semblante perdeu aquela expressão neutra que Gabriel havia interpretado como hostilidade.
- Quem falará com você é ela.
Gabriel perde o fôlego novamente, mas dessa vez não é por causa do esforço. Ela!Desde que descobriu Ollantaytambo, afugentou para um recanto de seu espírito o pensamento que lhe rasgou o coração como um raio: revê-la, tomá-la nos braços... É tão magnífico e tão doloroso ao mesmo tempo que ele é obrigado a segurar a cabeça entre as mãos. Com a mão, Katari lhe indica o caminho, para além do paredão, que serpenteia sobre a inclinação suave e que leva até o cume da colina.
- Vá - diz simplesmente.
Ele desaparece sem dizer um adeus, sem dar mais nenhuma explicação. Gabriel observa o caminho, avança; cada um de seus passos é pesado e ele treme como não tremeu em combate.Depois do crepúsculo, Anamaya ficou sozinha no pequeno templo no topo da colina. Ele não é visível do vale e foi por este motivo que ela o escolheu com Katari; quando eles comunicaram suas intenções a Manco, o Inca os ouviu sem qualquer manifestação antes de aceitar com um suspiro: "Vocês sabem de coisas que eu desconheço."
Foi Katari quem dirigiu sua construção com alguns de seus irmãos kollas, para que o segredo fosse mais bem guardado. Foi concluída em apenas um dia: uma simples parede de pedras ao redor, um pequeno prédio no qual se abrem quatro nichos do tamanho de um homem. Há três noites, eles trouxeram o Irmão Duplo para lá, embrulhado em mantas para que nenhum dos soldados ou dos sacerdotes - na verdade, para que mais ninguém, exceto Manco - e sobretudo Villa Oma tomassem conhecimento disso. No primeiro nicho, voltado para o sul, o Irmão Duplo agora está instalado.
Desde a Grande Viagem, Anamaya não olha mais para o Irmão Duplo da mesma maneira; é como se o conhecimento que foi depositado nela tivesse estancado sua sede e sua inquietação. Não é mais tanto ele quem detém aquilo de que ela precisa, é ela que deve guardá-lo e protegê-lo a despeito das circunstâncias da guerra.
Contudo, quando os últimos raios do sol desapareceram nas montanhas atrás dela, depois, quando o frescor e os ventos da noite chegaram para fazer- lhe companhia, ela não conseguiu impedir a invasão da expectativa da espera... Rever Gabriel, finalmente revê-lo.., ela se levanta e vasculha a escuridão, aguça a orelha tentando adivinhar seus passos... Ela recorda o olhar simples que lançou para Katari quando o chaski chegou com a notícia de que o prisioneiro estava a caminho... Ela impede sua imaginação de correr em sua direção para se jogar em seus braços e abraçá-lo, para dizer-lhe as palavras que conteve durante todas aquelas luas. Palavras em quíchua e em espanhol que lhe sobem desordenadamente aos lábios, e as lágrimas, e o riso.
Depois ela observa o Irmão Duplo, imóvel, eterno, e uma aparência de calma torna a se apoderar dela. Anamaya dá alguns passos fora do prédio. O sussurrar da brisa se tornou tão distante quanto o dos dois rios. "Quando ele partir é que ele voltará para você. Ainda que separados, vocês estarão unidos..." Essas foram as palavras do grande Huayna Capac: será que dizem o que já aconteceu ou o que acontecerá? O sangue de Anamaya ferve com mais perguntas para as quais a profecia não lhe deu respostas. Do outro lado da porta do conhecimento encontra-se uma outra porta e assim por diante, até o fim da vida neste Mundo, e nas escadas que nos conduzem ao Mundo de Baixo.
Uma nuvem esconde a lua que se torna quase negra. O vento sopra de novo e é então que ela ouve o passo de Gabriel e, quase ao mesmo tempo, vê aparecer sua silhueta. Ela corre, mas não em direção a ele e sim para o interior do templo. E é deitada no chão, abraçada ao Irmão Duplo, que ele a encontra. Ele desliza para o chão pondo-se ao lado dela. Nenhum dos dois consegue dizer uma palavra, fazer um gesto. Eles não se olham.
Apenas a brisa faz com que se misturem as mechas dos cabelos louros de Gabriel com os cabelos negros de Anamaya; eles não se tocam, exceto com ombro, e na comoção que se apodera de ambos não saberiam distinguir o tremor que sacode um do que sacode o outro. Anamaya é quem se recupera primeiro.
Delicadamente ela estende sua mão cor de mel na direção do ombro de Gabriel e a enfia entre o tecido do unku e a pele. Ela lhe descobre o ombro lentamente e é um outro arrepio que sacode o corpo de Gabriel. Ela advinha com os dedos a mancha do puma, roça-lhe as unhas e arranca-lhe um gemido.
Depois ela se cola às suas costas e encosta os lábios lenta e interminavelmente naquele lugar de seu corpo onde foi colocada a marca que era destinada a ela.
Assim, durante a noite inteira, eles se redescobrem. Muito tempo antes das primeiras palavras, vêm os primeiros movimentos. Um riso, uma lágrima derramada. A mão de Gabriel em seus cabelos que neles traça um sulco delicioso, dez vezes redesenhado; as unhas de Anamaya que se embaraçam em sua barba antes que a palma pouse sobre suas faces, seu queixo, todo seu rosto. Eles respiram um ao outro, se tocam, se acariciam com os dedos, com a pele, com a língua. Trocam pequenos tapas que não machucam, mas cujo toque desperta sensações esquecidas.
Depois o longo tempo de saudade e de ausência, o furor da separação se apodera dos dois e se inicia um momento de carícias violentas, de doçuras brutais... Eles rolam um sobre o outro como filhotes de animais, brincam de se morder e de surpreender um ao outro. Gabriel tem a força, mas Anamaya redescobre seus reflexos de animal da floresta, foge dele antes de saltar sobre suas costas.
Ele consegue se virar e agarrá-la; num único movimento ele faz cair seu afiaco. Eles se imobilizam. Ela está nua diante dele e o furor inicial de agarrar, de capturar um ao outro se dissolveu na noite. Eles se olham e tudo recomeça, mão na mão, boca na boca, mas dessa vez com uma lentidão, uma ternura a cada gesto e a cada instante.
Quando a boca de Gabriel se aproxima de seu seio, Anamaya prende a respiração. Ele a beija como se quisesse com os lábios percorrer cada parcela de sua pele. Seu desejo é tão profundo, tão intenso, que ele se torna paciente, cruelmente paciente. Anamaya se estica na direção dele e timidamente o encoraja, o chama: ainda não são palavras, são mais gemidos, pequenos gritos inarticulados nos quais ele ouve a exigência do desejo que ela sente por ele. Mas ele continua a beijá-la tão delicadamente quanto pode, a despeito do ardor que sobe de suas entranhas, e usa a lentidão de sua descoberta. Ela põe as duas mãos sobre os cabelos dele com tanta força que ele se levanta sobressaltado e cobre a boca de Anamaya com a sua. Ele a beija interminavelmente, beija como se bebe água depois de passar por um deserto, beija como se ama, como se respira, como se vive - ele a beija como se nunca tivesse beijado.
As roupas dos dois estão no chão e fazem um leito para seus corpos que se entrelaçam. Não fosse pela cor diferente da pele, seria possível dizer que esse entrelaçamento os transformou num único corpo. Sim, eles desejam ser um, o conquistador e a moça estranha da floresta, o Espanhol e a Inca. Nesse momento eles possuem mais que o corpo um do outro, e Anamaya se sente deslizar para um estado de felicidade que, em clarões, recorda-lhe a viagem que fez com Katari. Ela gozou quase que no instante em que ele a penetrou, mas agora que ele continua seu prazer aumenta até atingir as dimensões do universo, e nesse prazer ela faz entrar miríades de estrelas e todas as nascentes frescas que se escondem nas fendas rochosas das montanhas. E ele, Gabriel, está feliz, ele salta e salta mais ainda e seu rugido poderoso enche os vales.
Ele não tem medo de seu corpo e do que nele se esconde, sente-se capaz de superar todos os seus limites. Lá no fundo, em seu íntimo, se esconde o riso diante de todos os seus feitos passados - era então, montado em seu cavalo branco, que ele era um menino, e é agora que ele é um homem.
No movimento incessante da paixão, eles se cobrem de um suor cujo sabor salgado lhes dá cada vez mais sede. A brisa aumenta e a brisa passa, o frio se intensifica, mas isso pouco lhes importa, eles esticam as fronteiras da noite, se chocam como pedras, jorram como rios, se arranham como animais - eles se amam como um homem e uma mulher.
Mesmo quando afinal se entregam a um sono exausto, o amor os acompanha. Estão deitados aos pés do Irmão Duplo, mão sobre a coxa, ombro no pescoço. Um sorriso flutua em seus lábios entreabertos. Estão belos, felizes. Os primeiros raios do levante tocam de leve a crista das montanhas, e logo Gabriel desperta e volta a estreitar os braços em torno dela. Eles se levantam e assistem juntos ao nascimento do mundo para mais um dia: o tumulto das águas do Willkamayo no ponto em que uma garganta se estreita ao redor delas e as faz ferver furiosamente, o pico impetuoso do Wakay Willca.
Depois Gabriel vê aparecer, emergindo das sombras, o perfil monumental que se recortou no paredão da montanha bem defronte. Ele se vira para Anamaya, uma expressão interrogativa nos olhos. Ela observa com ele, sem responder ainda; mas ele percebe o calor que emana dela, a luz, e, sem compreender como, sente a ligação entre ela e a figura poderosa e misteriosa. Ele a abraça um pouco mais forte e ela se entrega, sem tirar os olhos do rosto de Huayna Capac, cujas palavras não param de ressoar dentro dela como os chafarizes do rio Patacancha.
Então, ela diz as primeiras palavras.
- Gabriel...
As três sílabas escaparam de seus lábios com a doçura de um suspiro. Seu espírito é um caldeirão sobre um braseiro: ela tem tanto o que dizer a ele e não sabe por onde começar, nem sabe o que ele pode ouvir... E em seguida é tomada por um desejo que lhe toma como uma necessidade urgente agora que a luz chegou, que inundou o vale e as montanhas: ela precisa ouvir a voz dele e se fartar dela como se fartou de seu corpo.
- Conte-me, Puma...
Gabriel lhe relata aqueles dias atrozes em que pensou que a guerra os separaria para sempre, em que cedendo ao desespero ele quis morrer libertando a terra da corja de Gonzalo... Ela sorri quando ele lhe fala dos três índios que vieram matá-lo na cela e da intervenção miraculosa de Sebastian... Ela escuta sem estremecer o relato da batalha, da morte de Juan, daquela estranha sensação de invencibilidade que cresceu em seu íntimo e que, do fundo de sua angústia, o fez realizar os feitos mais loucos, os mais absurdos...
- Eu não compreendia - murmura Gabriel - e ainda não compreendo... Parecia-me ao mesmo tempo que a luz vinha de dentro de mim e que ela me cercava. Eu já tinha ouvido falar dessas bobagens, sabe, e zombava delas, das histórias de combatentes nos quais as flechas batem e quicam ou de quem as pedras de funda se desviam no último momento para ir rolar nos rochedos. Não acredito nisso mais que na Tão Querida e Santa Virgem de dom Francisco... E, no entanto, tive de aceitar: ainda que eu mesmo não acreditasse, os outros, meus companheiros, os poucos valorosos e a massa da gentalha acreditavam mais do que eu e me olhavam, não como se olha para um herói (isso é algo que conheço, isso ainda é totalmente humano e afinal cheio de sentimentos comuns em que se misturam a admiração e a inveja), mas com uma espécie de temor divino. Não imagine que eu tenha ficado orgulhoso com isso. Tornei-me mais indiferente ainda, se fosse possível... Quando joguei fora minha cota de malha ao subir na torre, pareceu-me que estava me libertando, e se eu também tivesse podido jogar fora minha pele, eu o teria feito.
Gabriel fica em silêncio por um instante e ela deixa que suas palavras cantem em seu íntimo, ainda sem buscar-lhes o sentido.
- E depois tive aquela sensação estranha em meu sonho, como se estivesse vendo.
Anamaya se sobressalta.
- Foi como se eu soubesse o que iria fazer, como se um mensageiro surgido de lugar nenhum me anunciasse, pintando para mim imagens que tinham a nitidez da vida. Aquela corda que balançava na parede da primeira torre, eu a vi muito antes de segurar nela. E quando minhas mãos se fecharam em torno dela, eu estava muito além do medo e da coragem, além da dúvida e do dever: eu fazia somente o que devia ser.
- Você chega, vem, se aproxima...
- Ao fazer o ataque que rechaça os seus?
- Você está aqui para nos salvar.
É a vez de Gabriel se sobressaltar.
- Na véspera ou na própria manhã do ataque, vi Inguili, e ela usou essas mesmas palavras...
- Aceite-as...
Gabriel sacode a cabeça.
- Tudo ainda é novo demais em meu espírito e eu, por vezes, tenho a impressão de estar separado de mim mesmo por uma parede, uma parede mais espessa que a daquelas torres que nós tomamos.
- Você passará através dessa parede.
Gabriel suspira:
- Por hoje, desisto de tentar compreender mais.
- Que aconteceu depois da tomada da torre?
- Quando seus homens me fizeram prisioneiro, foi um homem embrutecido que eles capturaram e amarraram com peias sem nenhum esforço. Por que não me mataram? Eu ainda não sei, como também não sei por que me mantiveram durante um mês inteiro naquela casa perdida na montanha, me alimentando com essas malditas papas mirradas e passadas. Vocês chamam isso de chuio, não é? Aquele gosto de terra bolorenta... E sabe me dizer por que numa bela manhã, quatro dias atrás, eles finalmente decidiram me tirar daquela delícia para me trazer aqui?
Gabriel suspira antes de relaxar e dizer rindo:
- E então, Princesa que conhece todos os segredos, não pode me contar?
Ela hesita, se levanta para recolher as roupas espalhadas.
- Passaram-se duas luas, não é? - disse ela finalmente. - Durante essas duas luas, eu com freqüência sonhava que se pudesse passar algum tempo com você, passaria uma noite inteira. E agora que tive esta noite...
Ela se interrompe e ele também deixa que a frase fique em suspenso. Não é mais hora para suas impaciências brutais. "Bartolomé, se você me visse, talvez me chamasse de sábio..."
- Eu gostaria de ensinar a você tudo o que aprendi - diz ela -, pois você faz parte do que me foi ensinado, você talvez seja o que há de mais bonito em tudo o que aprendi. Mas, como eu, você deve ultrapassar as etapas.
- Parece-me que já ultrapassei algumas etapas - observa Gabriel com um tom de alegria um pouco forçada.
- Eu sei, meu amor, mas ainda falta tanto a descobrir...
- Há anos, passamos toda uma terrível noite, ao lado dos despojos de Atahualpa, seu Único Senhor, e você entreabriu para mim a porta deste Mundo, não foi?
- Eu era muito orgulhosa, naquela época, por ter sido nomeada Coya Camaquen, porque os Poderosos me chamavam para saber segredos que eu nem sequer conhecia. Que confusão havia em meu íntimo! Mas sim, você tem razão, foi naquela ocasião que eu quis dizer a você que existia um Outro Mundo por trás de nosso amor, um Outro Mundo por trás da guerra...
- Você acredita que eu tenha me aproximado dele?
Há alguma coisa de suplicante na voz de Gabriel, e Anamaya não contém o riso.
O meu puma às vezes é tão criança - diz ela, tomando-lhe a mão e apertando-a entre as suas, como para atenuar o tom zombeteiro de suas palavras. - Mas sim, sem dúvida, você se aproximou dele, com grandes saltos furiosos, sem saber para onde ia, mas com seu coração generoso!
- Agora estou com você, não é?
"Ainda que separados, vocês estarão unidos..." Por tanto tempo ela procurou por essas palavras sem encontrá-las. E agora que elas estão dentro de si, seria quase capaz de lastimá-las porque elas lhe acorrentam a língua. Ela não é mais a mocinha ignorante educada por Villa Oma, não é mais a orgulhosa Coya Camaquen, a apaixonada...
Ao se recordar desta última palavra, seu coração se revolta: sim, ela ainda é aquela mulher apaixonada e quaisquer que sejam os segredos que a profecia ainda esconde, ela tem o direito de viver esse amor e de se nutrir dele.
- Sim - responde -, você está comigo.
A agitação de Gabriel se acalma e ele pode mais uma vez se entregar ao esplendor da paisagem da alvorada. Mais que tudo - mais que as neves eternas, mais que o verde-esmeralda das florestas quentes -, é o perfil na montanha que o atrai. Ele mal se delineia à luz do sol nascente, mas sua presença é tão formidável que é impossível fugir dele. Os olhos de Anamaya se juntam aos seus na contemplação.
- Quem é ele? - afinal sussurra Gabriel, timidamente.
- É aquele que nos permitiu estar juntos.
Ollantaytambo, princípio de julho de 1536
Desde o alto da grande escadaria que se ergue entre os terraços sagrados, o espetáculo que se oferece a Gabriel é espantoso. As canchas da parte baixa do vale são antigas e sua construção foi concluída há muito tempo. Mas Manco agora decidiu fazer de Ollantaytambo seu principal bastião: um gigantesco canteiro de obras ocupa todo o terraço estreito que se eleva acima da cidade. Nunca, até então, Gabriel pôde assistir aos trabalhos de titãs necessários a uma obra desse porte e, dia após dia, tirando proveito da liberdade vigiada que lhe foi concedida por Manco, ele retorna, fascinado.
Ao longe, na pedreira de Cachicata, centenas de minúsculas silhuetas trabalham ao redor de blocos de todos os tamanhos caídos da Montanha Negra. O vale ressoa com o bater ritmado dos martelos e dos cinzéis de pedra e de bronze com os quais, incansavelmente, os operários talham a rocha.
É uma verdadeira multidão que se agita a partir do flanco da montanha até as margens do rio. Milhares de homens, os quais cada um tem uma tarefa bem definida, se põem em ação a partir do raiar do dia. Alguns golpeiam os blocos de pedra pouco a pouco, à medida que eles são empurrados em direção à parte baixa do vale. Ao dar-lhes uma primeira forma ainda grosseira livram-nos de seu peso supérfluo, depois do que eles são transportados sobre jangadas de uma à outra margem escarpada do rio.
Outros fabricam as cordas e cortam as toras cilíndricas de madeira que permitirão içá-los, na margem oposta, até o pico de Ollantaytambo. Outros ainda, às centenas, puxam e empurram durante horas a fio. Para subir cada palmo de terreno, centenas de manobras acionam gigantescas pranchas servindo de alavancas, que permitem fazer com que a pedra avance imperceptivelmente, mas com precisão e regularidade.
A entrada da rampa que, depois do rio, permite que os blocos de pedra sejam levados até as construções está formigando de gente. Mas alio trabalho é mais delicado.
Em meio a uma poeira branca, unicamente com a ajuda de espátulas de bronze e de pedra, os homens limam e dão polimento em blocos enormes, de modo que eles possam se encaixar perfeitamente uns nos outros. Gabriel observa com fascinação uma nuvem de operários se acotovelando ao redor de um monólito três vezes mais alto que um homem. O bloco é colocado sobre uma série de toras de madeira e manobrado por meio de um conjunto de cordas.
Katari é o chefe desse colossal canteiro de obras. Gabriel o observa supervisionando, com seu comportamento parcimonioso habitual, a edificação de um templo, de uma parede ou a forma de um rochedo.
Gabriel não duvida nem por um instante que o trabalho de Katari obedeça a regras precisas. Mas elas não se assemelham a nenhuma daquelas de que ele já ouviu falar em seu conhecimento, sem dúvida limitado, da arte dos arquitetos. Katari nunca tem uma planta ou um desenho na mão e parece preferir os lugares mais difíceis para construir seus prédios. Para ampliar a cidade, haveria lugar entre os dois rios do vale, ali, onde não há nada além de chafarizes; mas é verdade que "ampliar a cidade" não é sua preocupação. Nada do que está sendo edificado é destinado à habitação.
Nenhuma das novas construções é mais misteriosa, para Gabriel, que as paredes do Templo situado a meia encosta sobre uma vasta esplanada desimpedida para dar lugar à multidão de blocos já preparados. Apenas uma de suas paredes já está montada em quatro blocos enormes formando um conjunto único. A pedra é cor-de-rosa. Ela assume a todo momento surpreendentes colorações sob a luz do sol. Cada bloco é separado de seu vizinho pelo que parece, ao olhar leigo, um longo caniço de pedra.
Como sempre, nas mais belas construções incas, nenhuma argamassa mantém as pedras juntas. Elas se erguem, perfeitamente encaixadas, provocantes e indestrutíveis. Quando se chega mais perto, percebe-se que a superfície de três delas é ornada com protuberâncias de forma estilizada. Gabriel tenta adivinhar para que serão destinadas, mas não consegue.
- Parece-lhe bonito?
Katari está pingando de suor, mas seu semblante de olhos amendoados e maçãs salientes recuperou o sorriso. Ele está de torso nu, como os trabalhadores ao seu redor. Gabriel admira sua musculatura bem definida e forte; as mãos grandes, cobertas de fina poeira de rocha, parecem capazes de esmigalhar sem esforço os quadris de um homem. Ele tem no pescoço uma chave de pedra pendurada numa fina corrente de ouro.
Gabriel não tenta dissimular sua admiração.
- É magnífico, Katari. Nunca vi nada semelhante... Duvido que os melhores de nossos arquitetos sejam capazes de tamanha proeza!
- Não procuramos realizar proezas.
- Então o que procuram realizar?
- Você sabe mais do que imagina.
Gabriel fica confuso.
- O que está querendo dizer?
O sorriso de Katari se alarga.
- A forma dessas pedras não o faz se recordar de nada?
Com as pálpebras franzidas, Gabriel fica imóvel diante dos monólitos. Pouco a pouco, uma imagem se forma em seu espírito. Ela é esmaecida, antiga, associada a sofrimentos esquecidos...
- Taypikala! - exclama finalmente. - Pedras exatamente como estas já existiam lá!
Katari sacode a cabeça.
- Isso não é tudo. Chegue mais perto.
Gabriel entra na sombra magra do meio-dia, chega bem perto das pedras. Ali, estranhos relevos são perceptíveis em sua superfície. Ele pensa reconhecer a geometria de uma escada dupla. A parte superior sobe da maneira tradicional, enquanto a parte inferior desce no sentido inverso, como as montanhas se refletem num lago! Mais adiante, sobre um bloco preparado e colocado sobre seu pedestal, as mãos de Gabriel roçam de leve numa chave entalhada em forma de T.
- Eu já vi isso! - exclama ele, virando-se para Katari.
- No mesmo lugar - responde calmamente o Mestre das Pedras. - Isso o espanta?
- Não sei - responde francamente Gabriel , não sei o que significa.
- Eu poderia contar a você que essas concavidades, formadas por chaves de bronze semelhantes a esta que uso pendurada no pescoço, servem para encontrar o posicionamento exato para as pedras e que essas saliências permitiram arrimá-las e manobrá-las para transportá-las até aqui, mas...
Ele se cala, com os olhos perdidos na distância, voltados para o norte.
- Mas?
- ... seria verdade. Mas não seria o suficiente. Há outra coisa.
Gabriel sente crescer em seu íntimo o desejo de saber. Não é somente uma curiosidade, mas a esperança de ganhar acesso a um mundo já costeado ao longo de tanto tempo na ignorância.
- Você está vendo a cidade, lá embaixo - prossegue Katari -, as canchas, os pátios em torno dos quais os prédios para moradia são distribuídos; suas ruelas desenham uma planta em que as linhas se cruzam. Nunca vi as cidades de sua terra, estrangeiro, mas as nossas não devem tê-lo surpreendido... Enquanto isto aqui...
O braço de Katari descreve o arco de um círculo ao seu redor e seu olhar volta a se fixar em Gabriel.
- Aqui, nós queremos, com cada construção, cada pedra, cada rochedo, prestar homenagem aos deuses que nos cercam: nosso Pai, o Sol, é claro, mas também a Lua, Illapa, o Raio, e ainda todos esses picos... Observe esses terraços... Por toda parte ao redor do terreno da construção, o templo parece engastado numa série de pequenos terraços onde o milho cresce alto.
- Eles não são dispostos ao acaso, como você pode ver. Eles cercam este templo como um estojo protege uma jóia... E o próprio templo: durante muito tempo nossos astrônomos observaram o céu, o movimento das estrelas e dos planetas para determinar seu lugar exato, bem como a posição de cada parede. Para nós, a sombra e a Luz são uma homenagem aos deuses...
Fugidiamente, Gabriel pensa nas antigas abadias e igrejas de sua terra. Um fio tênue se estende, em seu espírito, entre os construtores cristãos e os incas. Mas ele está fascinado demais pela narrativa de Katari para se deter ali.
- O que estou lhe dizendo aqui não é nada - observa Katari rapidamente -, todos os incas sabem disso... Mas o que eles não sabem é que ao se aproximar da pedra, ao olhar para ela, ao tocá-la, eles podem ter acesso aos segredos mais profundos de nossa história, retornar aos tempos mais antigos, quando os incas não existiam.
- Os incas não foram sempre os senhores dessas terras? - espanta-se Gabriel.
Katari explode numa gargalhada.
- Os incas são apenas algumas gerações de homens, combatentes excepcionais, mas não invencíveis, como você e eu agora sabemos...
Katari lança um olhar rápido para Gabriel antes de prosseguir.
- Eles vieram depois de civilizações cuja força espiritual era imensa. Mesmo para nós ela é misteriosa, e o caminho de uma vida inteira dedicado a compreendê-la não seria mais que uma centelha.
- Aquele que está nas margens do Titicaca está no caminho da volta - murmura Gabriel.
- Está vendo como sabe mais do que imagina? Sim, é preciso seguir o caminho de Taypikala e o do lago das origens. O segredo está na água e na pedra, nos picos que se refletem eternamente no lago Titicaca. Foi perto desse lago que eu nasci e, embora meu pai tenha abraçado a carreira das armas, fui iniciado na arte das pedras por meu tio, Apu Poma Chuca, o homem que convenceu o Inca Tupac Yupanqui a restituir o esplendor aos santuários do Sol do lago Titicaca... Mas basta dessa conversa, quero lhe mostrar uma coisa. Chegue mais perto.
Katari segura a mão de Gabriel e o posiciona exatamente diante dos dois monólitos da direita.
- Olhe bem estas esculturas.
Gabriel havia reparado nelas muito tempo antes. Há três delas sobre cada pedra, situadas a uma distância igual umas das outras. A olho nu, elas parecem representar formas alongadas, todas mais ou menos semelhantes.
- É preciso que você olhe realmente, não só apenas com seus olhos, mas com o corpo inteiro. É preciso, por assim dizer, entrar nelas...
Ao dizer essas últimas palavras, a voz de Katari ficou mais baixa, e Gabriel percebeu nela um ligeiro tremor. Sem ter certeza de compreendê-las, ele tenta obedecer às palavras do Mestre das Pedras. Parece-lhe que as formas se animam e adquirem vida.
- Animais - murmura, hesitante.
- Um animal que você conhece, meu amigo.
- O puma!
Katari o observa em silêncio, sorrindo.
- Você já falava nossa língua e ama uma das nossas - diz com emoção.
- Mas creio que pela primeira vez você tomou consciência de que sobre estas pedras também está escrito o seu destino.
Gabriel pisca os olhos. Diante de si há apenas os grandes blocos de um templo em construção. Com tudo parece-lhe que o mundo acabou de mudar. Uma nuvem isolada esconde o sol. O rosado das pedras se torna quase cinza.
- Você quer ir mais adiante?
Gabriel olha para Katari, estupefato. Como se pode "ir mais adiante"? Katari observa sua confusão achando graça.
- Não se preocupe, meu irmão de Longe, esta noite tudo o que você viu retornará em seus sonhos e isso apagará seu medo de saber. Venha, está na hora de voltar ao povoado.
Gabriel o segue pelas escadas íngremes que desembocam no caminho traçado ao longo do Willkamayo. Enquanto eles alcançam o meio da encosta, um cântico profundo enche o vale. Ele não ouviu nenhum sinal ser dado e no entanto os milhares de operários cessam seu trabalho. Os da pedreira e os das fortificações, os dos chafarizes e os dos templos, os cortadores, os carpinteiros, os que carregam e os que cinzelam, todos ao mesmo tempo se viram para o Sol e entoam um cântico de saudação ao astro que, a oeste, começa a se pôr atrás das montanhas.
Como que movido por uma vontade independente da sua, Gabriel também levanta as palmas das mãos para o céu e, sem abrir a boca, se une silenciosamente ao cântico do universo.
Ollantaytambo, agosto de 1536
- Por vezes - diz Gabriel -, tenho a impressão de que Katari jogou de novo sua pedra que faz parar o tempo.
- Quem disse que ele não o fez?
Os dois sorriem e a mão de Anamaya toca de leve na de Gabriel. Diante dos outros - isto é, a qualquer hora que não seja durante a noite -, eles têm o cuidado de não se tocarem, mas ela gosta de às vezes brincar de provocá-lo, com um roçar de unha de uma doçura imprevista, e sentir o arrepio que o faz estremecer. Nesse universo, progressivamente, eles vão a cada dia ora para o frescor dos chafarizes, ora para o templo do Irmão Duplo, ou para o caminho onde se alinham as colinas...
Na verdade, eles vão para onde seus passos os guiam, pois por toda parte o amor encontra espaço para se apresentar e para crescer. Gabriel está deslumbrado. Certos dias são catedrais de silêncio, dedicadas à pura beleza, ao azul do céu, à passagem dos ventos. Em outros, em vez disso, eles têm necessidade de falar a mais não poder, de dizer tudo, de contar tudo um para o outro... Eles passam de uma língua para outra com facilidade e sem se dar conta, se distraindo com as palavras da outra.
Mas, seja se mantendo calado ou em conversas, a cada dia ele tem a impressão de que seu coração cresce. É claro que há sempre o mistério dos olhos azuis de Anamaya, nos quais às vezes, sem razão aparente, passa a nuvem de uma inquietação, de um segredo. Ele não faz perguntas e se contenta em sondar a profundidade de suas respostas; não é mais aquele amante ciumento, sombrio, aquele soldado ingênuo. Sim, ele se sente homem - não realmente ajuizado, mas, de todo modo, mais calmo e, para falar a verdade, ele busca uma palavra que o surpreende quando a deixa escapar de seus lábios: feliz.
Sua vida passada retorna em ondas à sua memória: o sofrimento de menino rejeitado, os entusiasmos de adolescente, dona Francesca, a prisão... O sonho com a liberdade, com a glória, a vontade de fazer um nome para si mesmo... Ele se dá conta de que em nenhum momento permitiu que a idéia de felicidade lhe tocasse o coração. Ainda é tão frágil que não se entrega inteiramente a ela, mas quando fecha os olhos sob a carícia do sol, banhado pelo sentimento da presença de Anamaya, parece-lhe que a vida é incrivelmente mais bonita que os pobres sonhos que teve um dia.
- Está sonhando, Puma?
- Não importa qual de nós dois esteja sonhando, desde que o outro esteja com ele no sonho.
Eles estão a meia encosta, já bem acima do longo trapézio desenhado pelas canchas da cidade, um pouco mais abaixo da entrada da rampa da pedreira e do canteiro de obras do Grande Templo, para o qual, desde aquele dia, Gabriel não olha mais sem recordar a iniciação que recebeu de Katari. Diante deles se desenha o perfil do rosto-montanha que ele descobriu com ela no amanhecer do primeiro dia. Ele não se cansa de voltar ali e de refletir sobre o mistério. Pois, embora Anamaya se abra com ele fazendo o relato de toda a sua vida, embora saiba que ela esteve ao lado do Inca no momento de sua morte, seus lábios ficam selados quando chega o momento de evocar os segredos que ele lhe confiou. Com essa benevolência (talvez ilusória) que o amor concede, Gabriel não a tortura com perguntas.
- Feche os olhos - diz ela.
Ele obedece com uma docilidade de criança. Acariciando suavemente a mão dele, através do espírito Anamaya lhe pede silenciosamente que esvazie sua alma de tudo o que foi a guerra e que se deixe levar com ela, para além do desejo, para além dos sentimentos, em direção à água e à pedra. Seu corpo está relaxado e ela sente que ele se entregou inteiramente a ela.
O que ela pode lhe contar é tão pouco... É preciso que ele percorra todo o caminho por si só, não existe outro meio. Quando ele chegar ao fim, então saberá de tudo como ela e as palavras virão a seus lábios. Mas, antes disso, ela só pode lhe mostrar o percurso do sol e o lugar das estrelas, esperando que ele suba com os ventos e que siga o fio da água.
- Abra os olhos, agora.
Gabriel esfrega o rosto, como se viesse à vida pela primeira vez.
- Então, o que você vê?
Nos olhos de Gabriel brilha um riso de criança.
- Vejo que amo você, meu amor, tanto, tão violentamente!
- Nem um movimento, Puma! Seriamente, diga-me o que estava vendo...
- Estive vendo o que se vê com os olhos fechados: manchas de cor que dançam e, perto da luz do sol, uma luz mais forte, um calor... Embora você tenha dito para eu não pensar em nada, eu me via de novo montado em meu cavalo branco e sentia as pedras e as flechas assobiando ao redor de meu corpo...
O coração de Anamaya bate disparado.
- Alguém escolheu por mim, não foi? É nisso que devo acreditar?
- Não tenho resposta para essas perguntas, Puma. Quando elas estiverem em seu íntimo, dentro de você, é que você saberá tudo o que deve saber.
- Você fala por meio de enigmas.
- O que eu sei, sei por enigmas. E cabe a mim trazer meu corpo em direção a todas as coisas para decifrar esses enigmas...
- Então traga-o - responde Gabriel, contendo mais uma vez o riso - traga-o em minha direção e descobrirá...
Muito docemente, Anamaya se deixa pesar contra ele com sua leveza de pluma. Ele fecha os olhos de novo, mas dessa vez é impossível escapar da felicidade pura e simples de sentir o corpo dela contra o dele, sentir seu controle e sua paixão. E é impossível para ele pensar em outra coisa que não o amor. Com um gesto repentino, ele estende o braço para ela, mela escapa com um salto e quando a mão dele se fecha segura apenas sua sombra e o vento.
Ela está de pé, o olhar voltado para as coilcas onde os carregadores com fardos pesados descarregam suas mantas cheias de espigas de milho verdes e douradas.
- Villa Oma voltou a insultar Manco esta manhã...
O semblante de Gabriel se anuvia. A guerra... Eles falam pouco sobre a guerra, mas não podem ignorá-la, esta guerra que por pouco não os separou, esta guerra a respeito da qual não ousam pedir notícias, esperando contrariar qualquer lógica ao saber um dia de tudo se acabou num grande baile ao redor do Aucaypata...
- Ele continua querendo me transformar em tambor?
- Ele censura Manco por não ter atacado Cuzco antes e por ter enviado exércitos para combater os reforços que o seu Pizarro conseguiu enviar, em vez de concentrar todas as nossas forças contra a cidade... Afirma que, a menos que seja feito um esforço desesperado, esta batalha brevemente será perdida.
- E Manco, qual é a opinião dele?
- Manco é um guerreiro cuja determinação as humilhações impostas por Gonzalo tornaram inabalável...
- Isto não significa que ele vencerá.
- Ele irá até o fim, mesmo que esta guerra não possa ser vencida.
- E você, o que acha?
O olhar de Anamaya foge para longe do de Gabriel.
- Eu creio que ela acabará um dia.
Gabriel deixa escapar uma pequena risada triste.
- Até eu, que não sou o detentor de segredos, também sei disso.
- Até eu, que sou a detentora de segredos, ao mesmo tempo sou a última das ignorantes. Contudo, sei que o fim da guerra nos tornará livres, Puma. Mas enquanto ela durar...
Anamaya vem se agachar ao lado dele e, apoiando-se nele, encosta a cabeça em seu ombro.
- Não diga nada - sussurra ele.
Uma fila de trabalhadores da pedreira passa diante deles e, a despeito de sua timidez, Gabriel sente que eles os observam. Ele faz um movimento para se levantar, e fazendo pressão com a mão Anamaya o impede.
Sim, Katari de fato atirou a pedra que faz parar o tempo, mas ela a vê tornando a cair e se aproximando do solo depressa demais. Os rumores atravessam o vale com a velocidade das águas fervilhantes do Willkamayo. Foram trazidos de pico em pico antes que os chiskas chegassem para se apresentar diante do Único Senhor Manco.
Uma parte do exército do general Quizo Yupanqui, comandada pelo orgulhoso Apu Quispe, retorna com numerosas e magníficas presas de guerra: armas espanholas, roupas e até mesmo cavalos... Os prisioneiros estão alguns dias mais atrás.
O vale ressoa com os sons de cantos, tambores e trompas. Os operários param de trabalhar para admirar a chegada dos vencedores. Ninguém tocou nas armas que se amontoam sobre algumas liteiras que os carregadores levantam com um respeito digno da liteira do Inca.
Há uma dezena de cavalos, cada um deles cercado, contido por cerca de vinte combatentes assustados e cujos membros se entrelaçam para formar uma espécie de correia humana destinada a prendê-los.
Quando a notícia foi comunicada a Manco, ele quis vir ao encontro dos vencedores com alguns senhores de sua corte; pediu a Gabriel que lhe desse o prazer de acompanhá-lo, vindo ao lado de sua liteira, e Gabriel o seguiu sem ter tempo para refletir sobre a honra que lhe estava sendo concedida. Quando chegam ao pé das fortificações de Choquana, eles esperam. Até mesmo Villa Oma também veio, mas se mantém mais atrás, fechado num silêncio hostil e carregado de desprezo.
- Eu queria examinar com você para que servem todas essas peças - diz Manco sorrindo para Gabriel, depois de descer da liteira. - Quero conhecer o modo de viver de seu povo.
Gabriel observa que ele examina as armas. Ele se cala enquanto todos os olhares se voltam para ele.
- Não tenho muita certeza de que elas possam lhe ser úteis, Senhor Manco.
- Pois tenho a impressão de que me serão muito úteis. Não compreendo o que está querendo dizer. Preciso que você me explique...
Felizmente para Gabriel, cujo constrangimento não pára de aumentar, o tumulto da tropa se aproxima.
Enquanto Apu Quispe se prosterna aos pés de Manco, os senhores se aproximam em silêncio das liteiras de butim: espadas, escudos, lanças, morriões, cotas de malha, plastrões de couro e até mesmo peças de artilharia... Cada uma dessas peças faz o coração de Gabriel se sobressaltar, desperta nele as imagens desordenadas das batalhas de que participou. Se ele tivesse alguma dúvida sobre a duração da guerra, agora estaria desfeita.
Atrás das armas vêm carregadores a pé que estendem suas mantas, depois duas macas transbordando com uma variedade de riquezas inúteis que, há dois anos, chegaram da Espanha: brocados e sedas, roupas de cama de tecidos finos, mas também jarras de vinho, conservas e outras mercadorias. Há até mesmo porcos vivos, cujos gritos deploráveis e aspecto estranho arrancam caretas de nojo dos índios, que se esforçam para manter a impassibilidade diante desses tesouros.
O que desperta a admiração de todos são os cavalos. Não está muito distante o tempo em que alguns deles se perguntavam se o cavaleiro e sua montaria não formavam um único e mesmo ser, de poderes fabulosos. Gabriel se lembra do temor dos homens de Atahualpa, e do furor do Inca... A maioria dos índios aqui nunca teve a oportunidade de se aproximar dos cavalos - que lhes são estritamente proibidos pelos espanhóis, bem como as armas de aço, sob pena de morte. Ter capturado alguns exemplares de ambos é uma vitória que os enche de orgulho.
- O que me diz? - pergunta Manco.
- Isso não vale o resgate de seu irmão Atahualpa - responde Gabriel com a voz neutra -, mas pode se sentir contente.
A prudência do conquistador provoca o sorriso de Manco, que se desvia dele e faz sinal para que o general vencedor se levante.
- Relate-nos como foi sua vitória, Apu Quispe, e fale bem alto para que nenhum dentre nós ignore os grandes feitos dos combatentes incas.
- O exército comandado por seu fiel general Quizo Yupanqui surpreendeu um destacamento estrangeiro de setenta cavaleiros e um número igual de combatentes a pé. Eles estavam todos bem armados. Estavam a caminho para socorrer os estrangeiros de Cuzco. Durante dois dias, nós os seguimos sem que eles percebessem nossa presença; nós os esperamos no desfiladeiro do rio Pampas, quando eles acabavam de atravessar o alto platô gelado de Huitara. Nós os destruímos com golpes de pedras e foi assim que pudemos matar uma grande parte deles. Os sobreviventes são prisioneiros e nos seguem acompanhados de uma boa guarda. Os cavalos estão aqui.
O soldado não tem o hábito de falar muito. Suas frases são curtas e picotadas, e a voz rouca não ressoa enquanto seus olhos não se descolam de suas sandálias.
- Está ouvindo, Villa Oma? - pergunta Manco, visivelmente encantado.
O Sábio não responde.
- Há outras notícias - acrescenta o homem.
- Diga quais são.
O homem hesita, intimidado.
- O general Quizo Yupanqui sabe que uma outra força espanhola se aproxima e ele está se preparando para destruí-la também, com a ajuda de Inti. Mas nós também recebemos mensageiros vindos do sul...
O olhar de Manco se ilumina. O sul é a direção onde seu irmão Paullu se encontra com seu exército, sob o pretexto de dar apoio à conquista de Diego de Almagro, o
Zarolho. Depois da notícia do ataque a Cuzco, ele deveria destruir de surpresa seu "novo amigo" para retornar para a capital inca e se reunir ao levante do general.
- Meu irmão está a caminho?
- Sim, Único Senhor. Mas...
- Mas?
- . . .ele acompanha o exército de Almagro e lhe oferece assistência em tudo, como fazia por ocasião da partida. Além disso, tendo oportunidade, ao longo de vários
combates, de infligir prejuízos aos estrangeiros, não só ele não deu esta ordem, como se aliou a eles.
- Se aliou? Meu irmão? Se você não me trouxesse a notícia da vitória de Quizo, eu lhe cortaria os lábios e a língua por ter dito esta impiedade!
- Então será necessário cortar os lábios e a língua de muitos senhores, Manco!
A voz de Villa Oma surpreendeu todo mundo. Soa seca e sibilante.
- Todos nós sabemos que sua aliança com Paullu não existe mais, exceto em seu espírito...
- Meu irmão nunca me trairá!
- Você tem razão, Manco: ele não precisará trair você, pois ele já traiu, e só o que resta é sua ingenuidade e sua fraqueza para não ver isso.
A raiva faz Manco tremer.
- Cale-se, falso sábio. É somente por respeito a nosso pai Huayna Capac e pelo auxílio que me deu no passado que não destruo você com minhas próprias mãos, como suas palavras merecem!
Villa Oma se cala, mas seu olhar não se desvia. O coração de Gabriel bate com força. É a primeira vez que ele testemunha uma explosão de tensão daquelas proporções entre os incas e nela não vê nada de bom para o futuro. A guerra o alcançou muito antes do que imaginava e sente que não o deixará mais. Manco, espumando, se dirige para as primeiras liteiras, onde as armas estão empilhadas. Ele agarra uma espada e a empunha brandindo com facilidade.
- Eu aprendi, Villa Oma, aprendi com o relato do Grande Massacre. Sei que nos comportamos como crianças diante deles, quando nos deixávamos degolar; e prometi a mim mesmo que nunca mais aquilo voltaria a acontecer. Também aprendi com a terrível guerra entre nossos irmãos Atahualpa e Huascar e isso, igualmente, jurei que não voltaria a acontecer. Antes de sua partida com o homem de um único olho, meu irmão Paullu e eu fizemos um juramento de sangue, aquele que existe entre nós desde sempre... E agora, pela primeira vez, nós capturamos as armas deles, e os vencemos em batalhas, nós os sitiamos e vemos o medo, o verdadeiro medo, brilhar no fundo de seus olhos e você vem me falar de fraqueza, inventa lendas sobre meu irmão! Manco faz a espada girar e apresenta sua lâmina para o sol.
- Eu os combaterei - berra -, com nossas armas e com as deles, eu os combaterei nas montanhas e nas planícies, sobre os rochedos e sobre o mar salgado, eu os combaterei, eu os destruirei e os oferecerei em sacrifício aos deuses para que nossa terra reencontre a paz e o poderio do passado!
Manco se cala. A multidão permanece silenciosa, apenas um murmúrio a atravessa. Manco deixa cair a arma e se dirige para os cavalos. Diante dele, os homens se afastam e se prosternam no chão.
- Vou montar os cavalos deles - declara Manco, num tom subitamente mais calmo.
- Quem lhe ensinará? - pergunta Gabriel.
- Você.
Ollantaytambo, verão de 1536
Gabriel selou os dois cavalos falando baixinho com eles, acompanhando seus movimentos precisos com alguns tapinhas afetuosos. Todos os olhos estão cravados nele, que toma grande cuidado para não cometer nenhuma grosseria. Depois de apertar as correias do grande cavalo branco, ele lança um olhar rápido sobre Manco para acertar o comprimento dos estribos; reserva para si mesmo um belo alazão cuja pelagem avermelhada e cabeça inteligente o seduziram. "Você será o terceiro", pensa com um sorriso. Depois de passar os freios e as rédeas nos cavalos, ele se aproxima do Inca.
- Estamos prontos.
Manco fica surpreendido. Não faz parte da dignidade do Inca expor sua imperícia aos olhos dos senhores e a pouca distância de milhares de outros olhos. Mas Gabriel o poupa desse risco.
- Vamos caminhar segurando-os pelas rédeas até a ponte, que de qualquer maneira temos de atravessar a pé. E montaremos depois disso, quando estivermos ao abrigo dos olhares, na curva do caminho, antes de entrar na cidade. Isso é conveniente?
Manco agarrou as rédeas sem hesitar e inclina a cabeça.
- Não lhe dê ouvidos, Manco! - exclama Villa Oma. - Não se esqueça de onde ele vem e que ele pode apanhá-lo de emboscada!
- Gostava mais de você em silêncio - replica Manco, afastando-se. - Que nenhum de vocês se mova daqui antes de me ver entrar na cidade com o estrangeiro!
Depois de Choquana, o caminho é em linha reta, ornado em cada um dos lados por uma mureta baixa e bem construída. Gabriel o percorreu quando era prisioneiro, com os pés amarrados, admirando a paisagem da cidade, dos terraços e do templo como através de uma bruma. Ele reflete sobre esta ironia: aqui está ele agora, de cavalo na mão, guiando o Inca sozinho, privilégio que sem dúvida só é concedido a Anamaya e a poucos outros.
- Devo agradecer-lhe mais uma vez, Senhor Manco!
Manco se esforça para não se virar para trás com demasiada freqüência para observar os movimentos imprevistos do animal que o segue com aparente docilidade. Gabriel repara que ele segura a brida nem curta nem longa demais e que seu corpo não manifesta nenhuma crispação, nenhuma apreensão.
-Eu já disse a você, não é a mim que deve agradecer, e sim a Anamaya. Ela me fala a seu respeito há muito tempo e sei que sua morte a teria desesperado...
- Mas sabe também que temos inimigos comuns...
O semblante de Manco fica sombrio.
- Este Gonzalo Pizarro é um ser surgido do Mundo de Baixo, um monstro que é preciso destruir.
- Como você talvez não ignore, eu tentei. E foi minha própria vida que arrisquei. Receio que depois da morte de Juan ele adquira um poder sem limites...
- Não compreendo tudo isso - diz Manco - e não quero compreender. Para mim, todos esses irmãos têm a cara de estrangeiros que querem nos tomar tudo. Sei que Atahualpa confiou no kapitu Pizarro e sei o que aconteceu com ele.
- E, no entanto, em mim você confia.
Manco não responde ao comentário. Os dois homens caminham em silêncio, e Gabriel admira os terraços que se debruçam mais acima. Cerca de cem passos à frente, ele vê a ponte suspensa e, no meio do rio, o pilar de incomum pedra que a sustenta.
- Não gosto desses homens, Senhor Manco, não sou amigo deles. Quando foi necessário combater, combati, mas a princesa Anamaya deve ter-lhe dito que nunca deixei de cumprir minha palavra e que desejo paz para seu país.
- Você é o Rei deles? Comanda seus exércitos?
- Serão necessários homens como eu, Senhor Manco, quando esta guerra acabar...
- Só existe uma maneira de pôr fim a esta guerra, e é que nós a vençamos.
Agora é a vez de Gabriel manter-se em silêncio.
- Aprendi a conhecer a história de seu povo - diz finalmente - e creio que existe entre vocês uma sabedoria que equivale à nossa. Mas é preciso tempo, palavras e presentes...
- Fui obrigado a respeitá-lo à força e creio que você seja um homem corajoso; eu lhe concedo este sobrenome puma que lhe foi dado... Mas quem é você para vir me falar de tempo e de presentes, de sabedoria e de boas palavras, quando seus companheiros só me trouxeram raiva e destruição, pilhagens e humilhação? Será que devo escutar somente a você e ignorar os templos destruídos, as mulheres violentadas, as traições, os roubos, a redução de meu povo à escravidão? Devo esquecer o que eu mesmo passei?
- O senhor tem certeza de que quer atravessar esta ponte sozinho comigo?
- Você não compreende. Eu quero que você me guie na travessia desta ponte. Quero que me ensine a montar esses animais. Quero que me ensine a manejar as armas, a fabricá-las.., quero que você nos ajude.
- Vou começar a travessia na sua frente - diz Gabriel vendando os olhos dos cavalos.
- Eu já atravessei pontes!
- Na liteira do Inca!
- Antes de conhecer liteiras, fui um fugitivo e um vagabundo... Creia- me, já atravessei muitas pontes que você não se arriscaria a atravessar.
- Espere que eu chegue ao pilar central da ponte para iniciar sua travessia. Eu pararei lá e virei socorrê-lo se houver necessidade.
- Não será necessário.
Ao ultrapassar as duas colunas que marcam a entrada da ponte, Gabriel admira a determinação de Manco, mas isso não diminui a profunda confusão que o domina. Ainda naquela alvorada, ele se sentia cheio de uma certeza tranqüila e a luz dos olhos de Anamaya dava resposta para todas as perguntas. Mas as palavras de Manco o abalaram e o fizeram vacilar. Elas o preocupam mais que as primeiras ondulações da ponte. É impossível ignorá-las; é impossível limitar-se às respostas desajeitadas e pretensiosas que deu a elas...
O alazão o segue com uma docilidade notável.
- Deve avançar com um passo regular, de modo a não assustar seu cavalo.
- Eu sei o que é preciso fazer - retruca Manco.
Sua irritação é tão visível que Gabriel deixa de embaraçá-lo com conselhos. Gabriel sente a tranqüilidade do alazão que o segue e a ondulação do tabuleiro da ponte suspensa não o incomoda mais como antes; da mesma forma que o fervilhar das águas agitadas lhe é familiar agora.
Contudo, quando sente a firme plataforma do pilar sob seus pés, quase cai e é obrigado a se agarrar na sólida corda de agave que serve de corrimão para não escorregar. Do outro lado da ponte, sozinha, Anamaya os espera. Por vezes, de tanto vê-lo com seus trajes indígenas, Anamaya esquece que Gabriel não é do seu povo. Ainda que ele pronuncie algumas palavras em quíchua com um estranho sotaque, apesar do fato de que em alguns dias os pêlos louros invadam seu rosto, ela não sente mais nada de estrangeiro nele.
Mas, ao ver ao longe sua silhueta guiando um cavalo, ela se lembra num clarão do primeiro encontro dos dois, perto de Cajamarca, e de como os cavalos haviam impressionado Atahualpa e seu povo. Um inesperado calafrio de pânico sacode seu corpo antes que ela consiga se controlar. Gabriel se aproxima e ela percebe seu espanto; cinqüenta passos atrás dele, Anamaya vê Manco conduzindo o grande cavalo branco.
- Por que você veio?
- Porque eu também quero que você me ensine a montar a cavalo - responde Anamaya.
O caminho faz uma curva que os esconde dos olhares indiscretos dos senhores índios que acompanharam Manco. Eles estão muito distantes do portão da cidade para que possam distingui-los de tão longe.
Manco não manifestou nenhuma surpresa ao ver Anamaya e não perguntou nada a Gabriel quando ele diminuiu os estribos para ela. Gabriel os exercita um depois do outro, dando-lhes instruções em voz suave sobre como montar na sela sem assustar seus cavalos, como segurar a rédea nem solta nem curta demais, como fazê-los caminhar em passo normal. Um campo onde o quinua já foi cortado e colhido lhes serve de picadeiro e ele os conduz, um de cada vez, controlando os cavalos pela ponta de uma longa corda.
- Vamos! - diz ele. - Devagar!
Anamaya adora ouvir o som de sua voz dando as ordens e adora a confiança que nasce em seu íntimo, suas pernas nuas que se arqueiam ao redor daquele corpo vivo, tão estranho e cheio de uma força que ela sabe ser tremenda. Observa Manco, aluno esforçado, impaciente, cujos calcanhares nus pressionam os flancos do cavalo branco como para lhe dizer que ele já é seu senhor.
Quando eles já dominam o passo alongado, Gabriel introduz o primeiro trote. Anamaya observa com surpresa a postura de Manco, que parece ter incorporado naturalmente o ritmo do cavalo branco; quando chega sua vez, ela também se habitua sem dificuldade àquela marcha de batidas espaçadas, deixando-se deslizar como que acompanhando o curso de um rio. Gabriel está banhado de suor.
- Quero andar mais rápido - diz Manco -, quero andar na velocidade em que vocês andam quando atacam!
- O galope?
- O galope.
- Você cairia - diz Gabriel -, ainda precisa de mais umas lições, de se habituar a seu cavalo, e que ele se habitue com você...
- Quero andar a galope hoje!
Sua fronte está franzida; é a fronte de menino que Anamaya conhece desde o dia do huarachiku, já faz tantos anos. Gabriel, sem dizer mais nem uma palavra, desamarra a corda e lança um olhar rápido para Manco. Com uma palmada, um grito de encorajamento, ele incita o cavalo, que hesita, sacode a cabeça, como se procurasse reconhecer aquele que o monta. Então Gabriel, cerrando os dentes, bate-lhe na garupa com a ponta da corda. Imediatamente ele salta num trote nervoso, irritado, seguindo reto pelo campo. Manco é sacudido como um boneco e perde os estribos. Suas mãos, num instante, buscam onde se segurar.
Ele se agarra à crina, mas seus quadris escorregam à esquerda e à direita. O alazão não chega a dar trinta passos antes que Manco escorregue de banda e caia pesadamente deixando escapar um gemido rouco.
- Por que você o deixou fazer isso? - pergunta Anamaya, que permaneceu ao lado de Gabriel.
- Ele não pediu?
Lá adiante, Manco se levanta, esboça um gesto de cólera em direção ao cavalo que parou a alguns passos e o observa com um olhar indiferente. O Inca retorna para junto deles evitando massagear o corpo que deve estar dolorido.
- Muito bem - diz Gabriel sem fazer rodeios -, agora você acredita no que eu digo?
- Quero tentar de novo!
Gabriel suspira.
Durante a tarde inteira e até o anoitecer, Gabriel exercita Manco, que não se cansa de cair, tornar a se levantar sem uma reclamação ou um grito, sem um gesto de aborrecimento. Um criado veio buscar o alazão e mantém-se afastado, de costas para o Sapa Inca. Anamaya simplesmente observa Gabriel, admirando a sobriedade de suas palavras, sua paciência, sentindo a violência de Manco pouco a pouco ser domada e se ajustar ao animal. Quando o sol começa a se esconder atrás das últimas montanhas, Manco finalmente consente em desmontar.
- Você nos ensinará a cavalgar - diz ele a Gabriel -, a mim e aos senhores. Depois nos ensinará a manejar a espada, a pólvora...
- Eu não farei nada disso - retruca Gabriel.
- Você não é contra Gonzalo?
- Eu depus as armas quando a última torre de Sacsayhuaman foi tomada, Senhor Manco, e jurei que não as retomaria nunca mais. Nem contra os seus nem contra os meus.
Anamaya observa os homens, os corpos tensos um diante do outro. Gabriel se esforça para manter a tranqüilidade de gestos enquanto tira a sela do cavalo branco, cujos flancos estão banhados de suor. Manco está imóvel, os olhos e a boca esticados numa furiosa linha reta.
- O que significa "ser o puma"? - pergunta Manco virando-se para Anamaya. - Comer nosso milho e nosso quinua? Fazer com que você se afaste e deixe de cumprir seus deveres para com o Irmão Duplo? De que espécie, desconhecida em nossas montanhas, é este puma, que se recusa a combater?
- Ele diz a verdade - afirma Anamaya calmamente.
- A verdade?
Manco olha de um para o outro, sentindo-se tentado primeiro pela violência, depois pela ironia. Ele se cala. O cântico do anoitecer ressoa por todo o vale, de terraço em terraço, e uma luz dourada desce sobre as canchas.
- A guerra acontece quer você queira quer não, estrangeiro. A guerra acontece porque não pode ser de outra maneira, depois que vocês violaram nossa terra...
- Não nego isso, senhor Manco.
- Como, então, você pode não estar nem de um lado nem de outro?
Estranhamente, a agitação de Gabriel se acalmou, como se para ele fosse revelada uma verdade que até então lhe permaneceu oculta.
- Talvez seja exatamente isso ser o puma - diz Anamaya.
Mais uma vez, os lábios de Manco permanecem cerrados. Sua mão se levanta para Gabriel, mas o gesto, sem ameaça, tem uma intenção que ele não compreende. Ele permanece imóvel. Manco até esboça um ligeiro sorriso.
- Ponha de volta a sela no cavalo - ordena Manco -, por favor, estrangeiro que não combate, puma que não dilacera, e olhe!
Gabriel obedece e ajuda Manco a tornar a montar. O Inca se afasta em direção à cidade, de início em passo alongado, depois trotando e finalmente num galope que levanta poeira no caminho. Quando eles vêem apenas um ponto negro no horizonte das muralhas da cidade, escutam um clamor que se eleva, mais alto que os cânticos, mais profundo que as trompas e os tambores. Com passadas lentas, Gabriel aproxima-se do criado que permaneceu esse tempo todo de costas para eles, segurando o cavalo pelas rédeas.
- Pode ir - diz ao homem cujos olhos não deixam o solo, como se ele, Gabriel, fosse o Inca. O criado desaparece correndo.
Com um pequeno impulso, Gabriel monta com facilidade, reencontrando o couro familiar da sela, o calor amado do animal. Ele se inclina para Anamaya e lhe estende os braços. Ela se segura nele e, confiante, deixa que a suspenda montando à sua frente na sela.
Eles seguem em passo lento, tão devagar quanto podem. Enquanto a noite cai e a obscuridade os engole e os protege, não precisam dizer nenhuma palavra para compartilhar um sentimento de profunda nostalgia. É a nostalgia do cavaleiro que, ao mesmo tempo em que cavalga, tem entre seus braços a mulher que ama. É a nostalgia daquele dia em Cajamarca, quando ele a salvou do pisoteio e do massacre, e quando o destino deles, pela primeira vez, apareceu para ele, em meio a um turbilhão de poeira e de suor.
Ollantaytambo, outubro de 1536
No pátio da cancha real, as sombras se agitam no anoitecer, roçando as sandálias de palha sobre o solo. Seja ele o grande Huayna Capac, Atahualpa ou Manco, os deuses querem que o serviço do Inca - o Filho do Sol - seja realizado de acordo com os ritos e costumes. O que foi, novamente é, o que será... As túnicas do Inca, tecidas com a mais fina lã de vicunha, são usadas somente uma vez, sua mão não toca em seus alimentos, cada fio de seu cabelo é cuidado... É para que seja assim que um balé incessante, bem ordenado e silencioso o cerca sem cessar.
No meio do pátio, um chafariz. É composto de uma pedra simples, quadrada, do centro da qual jorra a água, partindo em seguida nas Quatro Direções, através de quatro canais de pedra entalhados no bloco e que depois atravessam o pátio. A energia da água corre em direção ao centro antes de tornar a partir para irrigar o Império nos Quatro Pontos Cardeais...
A cada dia que se passa, Anamaya observa esses detalhes que foram tão naturais como o ar que ela respirava, e a respeito dos quais hoje tem dúvidas. Depois que a visão lhe apareceu, sente a secreta rachadura no coração do Império: o que é eterno deve permanecer - mas nem tudo está destinado a durar, e será possível que um símbolo como esse, que se acreditava que deveria durar para sempre, nada mais seja para os deuses que um bater de asas de colibri?
Do outro lado do cortinado, Anamaya ouve duas vozes - a voz ribombante e enternecida de Manco, e a voz do filho que ele prefere, o pequeno Titu Cusi, que ele teve com uma mulher que morreu de parto. Sua esposa, a doce e bela Curi Ocllo, agora cuida dele com amor.
Enquanto estava em Calca, Manco não se interessava pelo filho. Mas, depois da chegada a Ollantaytambo, mandou que o trouxessem para junto de si e não se passa uma noite sem que brinque com ele.
- Com mais força! Vamos, bata os calcanhares! - diz a voz grave de Manco.
- Vamos, mais depressa, mais ainda! - exclama a voz aguda, superexcitada do garotinho.
Anamaya passa pelo cortinado de tapeçaria sem nenhuma oposição dos dois guardas que, impassíveis, vigiam a entrada dos aposentos do Único Senhor. Sob a luz das tochas, ela vê Titu Cusi cavalgar seu pai e bater-lhe nos quadris girando o braço com movimentos largos para incitá-lo.
- Mais depressa, cavalo! Mais depressa!
Manco se desloca aos saltos sobre os tapetes e as almofadas que recobrem quase que inteiramente o aposento e, para Anamaya, isso é uma visão ainda mais insólita do que a do cavalo-Inca montado pelo garotinho, aos saltos em meio às plumas e aos mais finos cumbis.
- Veja, Anamaya - exclama Titu Cusi. - Eu sei montar a cavalo como meu pai.
Com um movimento suave, Manco faz seu filho escorregar para o chão e o toma em seus braços fortes, abraçando-o para beijá-lo, quase até sufocá-lo.
- Agora vá - diz ele pondo-o de volta no chão.
O garotinho, cujos cabelos longos e negros emolduram um semblante iluminado por dois olhos brilhantes, cheios de travessura e inteligência, sai correndo do aposento gritando.
- Até amanhã para a lição, cavalo! Esteja pronto!
Anamaya sorri para Manco.
- Entre muitos irmãos, é ele, não é?
O semblante de Manco torna-se sombrio.
- Ele é o mais velho... É quem me traz sempre seu entusiasmo, sua confiança... Foi criado por Curi Ocllo, foi alimentado pelo leite e pela força da mulher que amo. Quando ele está em meus braços, penso no amor que tenho pela Coya... e esqueço por um instante as preocupações da guerra e sua ausência.
As últimas palavras têm um tom triste de censura.
- Minha ausência?
- Sei que você está aqui, sei que você cuida do Irmão Duplo, mas...
- Mas?
- Tenho a impressão de que você já partiu com ele e que para você o destino de nossa guerra é indiferente.
- Você está enganado, Manco. Ouço as notícias de nossos sucessos com alegria, e saber de nossas derrotas entristece meu coração. Mas as palavras de seu pai, Huayna
Capac, nunca deixam de ressoar em mim e elas vão muito além da guerra. Manco explode numa risadinha seca.
- Então existe algo para além da guerra? Você sempre esteve a meu lado, Anamaya, você me estimulou a conduzir a revolta e é você, agora, que vem me falar de algo para além da guerra! No momento decisivo! Meu querido irmão Quizo Yupanqui fracassou no ataque a Lima. Ele morreu em combate. Felizmente Illac Topa e Tisoc e tantos outros o substituíram. Mas você? Parece-me que, não faz muito tempo, teria pessoalmente lançado as pedras de funda para fazer esta guerra! Que aconteceu com você para que agora não queira mais nada exceto ver "para além" dela?
- Vou contar a você, irmão Manco.
Anamaya fala com Manco longamente. Recorda com ternura a história passada de ambos, que se iniciou quando ela era apenas uma jovem princesa tendo por pouco escapado da morte. Ela o recorda da serpente que afastou do caminho dele; eles conversam sobre Guaypar, o inimigo jurado, que dizem ter reaparecido comandando um exército ao lado dos espanhóis. O tempo todo, Anamaya hesita, as palavras de Huayna Capac ecoam dentro dela: "Você saberá o que deve ser guardado em silêncio e se calará."
Sobre o que deve se calar, e o que deve dizer a Manco?
- Eu prometi que ficaria com você e fico com você. Eu prometi isso quando você me reencontrou com os estrangeiros e, desde então, sabe que mantive minha promessa.
- Eu falei com Katari e ele se mantém calado. Falo com você e, da mesma maneira, você se cala. Eu sei que cumpriu sua promessa, você nunca ouviu uma censura sair de minha boca. Já reparou na maneira como o Sábio Villa Oma olha para você? Alguma vez me ouviu dizer uma palavra que o encoraje em suas ameaças? Mas este silêncio, este seu silêncio me é pesado, ele ressoa em mim durante a noite e eu me pergunto...
Enquanto ele relata suas dúvidas, Anamaya ouve a voz terrível de Huayna Capac: 'E nós, os Incas, será necessário que sejamos humilhados, escravos da vergonha... Mas nós não morreremos... O sangue do irmão, o sangue do amigo são derramados mais generosamente que o do inimigo: este é o sinal."
- ... pergunto a mim mesmo por que continuo lutando se Paullu e você, que estiveram comigo desde o começo, se afastam de mim. Até mesmo Villa Oma sonha em fazer a guerra por conta própria. Illac Topa está no norte e Tisoc no sul, mas eles só me prestam contas muito raramente. Cada um por si em seu lado! É uma loucura!
Anamaya gostaria de responder, mas se dá conta de que não existe uma resposta. Ela não pode dizer a ele que as palavras de Huayna Capac sem dúvida o condenam; seu silêncio o aprisiona numa guerra inevitável em que ele está sozinho, como uma criança que luta com sombras, com árvores.
- Era você que me dava coragem - prossegue Manco -, você que me chamava de "o primeiro nó das cordas do futuro"... Isso não significava nada, era apenas ruído, um sopro de vento, nada mais que...
- Você é corajoso, Manco, a nobreza arde em você como se fosse uma chama.
A respiração de Anamaya se acelera e a expectativa que havia desaparecido de seu íntimo subitamente a submerge.
- Ele deveria nos ajudar e suas palavras provam que não servirá para nada.
- Ele pode nos ajudar sem empunhar armas.
Manco afasta a objeção com um gesto de desprezo.
- O que é um amigo que não combate a seu lado quando o inimigo ataca? Um covarde, mais nada!
- Você sabe muito bem que ele é corajoso.
- Eu sei. Mas também sei que se Villa Oma ouvir as palavras do louco do seu puma, ele será condenado à morte e executado e eu não poderei fazer nada para me opor.
Você não quer ouvir os rumores que correm contra ele, pelos terraços e até na pedreira; todos os que estão aqui gostariam de assistir a seu sacrifício...
- Você não permitirá que isso seja feito!
Manco suspira suavemente e, depois de um momento, responde:
- Isto é o mais estranho. Não, eu não permitirei que isso seja feito.
- Mas isso não servirá para nada! Se eu aprendo a montar a cavalo, o cavalo será derrubado, se manejo a espada, ela se despedaçará, se mil flechas
voarem, elas cairão...
- O que seu pai me falou - diz Anamaya pesarosa, com grande dificuldade - ainda é obscuro, até para mim mesma. Revejo as palavras e elas me aparecem durante o sono, como se fossem sonhos, como enigmas que nunca acabo de decifrar. Mas quanto mais elas estão em mim, mais me sinto ignorante. A única coisa que eu sei é que esta destruição tem um fim... Mas não sei o que vem depois.
- Esse fim é o nosso?
- Consulte Katari, é ele quem conhece os tempos.
Manco revira entre os dedos uma pedra negra de ângulos agudos. Ele a deixa cair diante de seus pés.
- O homem que pode fazer tudo não pode fazer nada - suspira ele. - Não é verdade?
Mais uma vez, Anamaya é obrigada a se calar.
- Mas, mesmo assim, há alguma coisa - diz ele.
- O quê?
- O puma.
Ollantaytambo, outubro de 1536
O rosto que está diante dele urrou antes de morrer. A boca está deformada em um ricto que se imobilizou em pleno sofrimento e terror atrozes. Ele nunca saberá o que passou pelo olhar, pois as órbitas foram enucleadas: suas cavidades são apenas um monte de carne putrefata, de sangue enegrecido e de cascas meio formadas.
Com o coração revoltado, Gabriel se vira para evitar o vômito. Na grande avenida que desce a partir das canchas até o rio Willkamayo, reina uma animação que poderia ser a de um mercado na Espanha. Mas ali onde se trocariam tecidos. especiarias, ali onde os cambistas estariam preparando suas balanças, só o que se vê são cadáveres. A avenida é ladeada por dois muros altos nos quais foram instalados nichos do tamanho aproximado de um homem. E são de fato homens que estão expostos neles, para serem admirados por todos. Os índios, habitualmente tão indiferentes, os mostram uns aos outros com gargalhadas e exclamações.
Nos primeiros nichos - os mais próximos das canchas - foram expostos os principais troféus. São os corpos de uma dezena de espanhóis. Foram desossados e transformados não em tambores, mas em bonecos. A pele, esvaziada de tudo o que havia no interior, foi recosturada, depois enchida de ar, reconstituindo assim uma forma humana que guarda apenas uma grotesca semelhança com a original. Em seu desgosto e horror, Gabriel não consegue se impedir de pensar numa espécie de ironia cruel: aqueles homens criados por Deus foram recriados pelos deuses estrangeiros à imagem e semelhança de seus crimes, disformes, imundos, corrompidos... Contudo, é ainda o homem que está presente nesses bonecos mal articulados, como se em sua crueldade os combatentes índios tivessem revelado a natureza do monstro que nele se esconde.
Cada um dos corpos está fixado numa estaca e ocupa um nicho. A despeito de sua revolta interior e de seu terror, Gabriel se sente obrigado a observar cada um daqueles rostos para ver se reconhece um companheiro. Ele os detestou, em sua grande maioria, e se isolou deles em virtude de sua oposição aos Pizarro e por causa de seu relacionamento, para eles incompreensível, com Anamaya; mas, para sua surpresa, subitamente se sente muito próximo deles, como se fosse ele quem tivesse sido torturado e morto, em meio aos gritos de júbilo dos soldados incas inebriados por suas primeiras vitórias, insaciáveis no triunfo como tinham sido humilhados na derrota.
Para sua grande felicidade, só vê rostos desconhecidos: provavelmente são dos reforços chegados recentemente do Panamá. Eles têm a juventude apaixonada, surpreendida, daqueles que vieram em busca do ouro e que em seu lugar encontraram a morte. Depois dos espanhóis vêm os escravos negros, os homens do istmo, os aliados índios... Mas esses não foram submetidos ao mesmo tratamento. Simplesmente foram decapitados e suas cabeças estão cravadas em lanças embrulhadas em peles de cavalos dos quais ainda se consegue distinguir, aqui e ali, a crina, os cascos ou o rabo. Gabriel pensa em ídolos pagãos: estes aqui são cópias grotescas dos semideuses que certos índios viam neles, nos primeiros tempos da conquista.
Pobres deuses... Os dentes brancos dos escravos foram arrancados, as plumas multicoloridas daquele que foi um chefe estão enegrecidas de poeira e de lama, e pendem, lamentavelmente quebradas, sobre a fronte que não se franzirá mais. Alguns caciques cafiaris conservaram sua faixa colorida que escorregou sobre o espaço vazio dos olhos, sobre a pele enrugada do pescoço onde o sangue escorreu. Na multidão que gesticula e comenta ruidosamente, Gabriel se sente brutal e irremediavelmente sozinho. De repente, uma mão bate sobre seu ombro e ele se sobressalta:
- Katari!
O Mestre das Pedras tem a expressão sombria.
- Não fiquemos aqui.
Gabriel o segue. Os dois homens se afastam pelas ruelas estreitas das canchas, em direção à escada íngreme que sobe para o Grande Templo. Assim que se afasta um pouco do espetáculo macabro, Gabriel sente que começa a respirar mais livremente. Quando alcançam a esplanada do Templo, Katari e ele sentam sobre uma das pedras que ainda estão deitadas ali, à espera de serem talhadas e levadas para seus lugares. Desde o dia em que descobriu aquele lugar, novos monólitos gigantes foram levantados, sempre separados de seus pares por uma fina linha da pedra em forma de bambu.
- Você está correndo perigo.
- Estou correndo perigo desde que cheguei aqui - declara Gabriel com tranqüilidade. - E não corro mais perigo que os infelizes que vi. Que barbaridade...
Katari, de início, se cala. Depois diz simplesmente:
- Um homem morto é um homem morto.
- Você tem razão. Ele não está mais ou menos morto porque está cortado em pedaços, porque lhe enfiaram os testículos na boca ou porque o transformaram em bandeira ou em balão...
Ao falar, Gabriel se dá conta de que uma amarga ironia penetra e transborda de suas palavras. Ele, que acreditava ter-se tornado um estranho para seus companheiros, percebe que ainda é, em seu íntimo, irmão deles.
-Aqueles que fizeram isso queriam me pedir que os ajudasse a aprender a manejar as armas para matar ainda mais homens e fazer com eles Deus sabe que novos troféus...
Eles não me compreendem, mas isso pouco importa: não pegarei mais em armas.
- Mesmo ao preço de sua vida?
Há um tremor inesperado na voz de Katari.
- Minha vida, minha vida... - murmura Gabriel. - Será que eu sei o que é minha vida? Ela me foi tomada e devolvida sem que eu tenha feito grande coisa para isso.
- Você é o puma - diz Katari em tom sério. - Você deve sobreviver a tudo isso.
Quando está diante de Anamaya, Gabriel sente-se tão sufocado de amor que seu espírito fica como que obscurecido. Mas diante de Katari, ao contrário, adquire uma lucidez mais profunda.
- Não se eu tiver de tomar armas para...
- Eu sei - retruca Katari com impaciência-, e não estou dizendo que deva fazê-lo. Mas Anamaya e eu não poderemos proteger você por muito tempo, e Manco não estará em condições de resistir a Villa Oma, para quem o espetáculo desta vitória sanguinária é uma ocasião inesperada.
- Então?
- Então será necessário que você parta.
- Quando?
Uma explosão ressoa antes de Katari ter tempo de responder. Enquanto eles descem correndo a escada em direção às canchas, o coração de Gabriel bate descontrolado. Mas ele ignora se é de apreensão por algum novo horror ou se por causa da certeza que trazia adormecida em seu íntimo de que mais uma vez terá de se separar de Anamaya. Villa Oma está vestido com um unku de cor vermelho-sangue, do qual emergem seus longos braços de magreza cadavérica.
- Vocês querem acabar como eles? - grita apontando para os corpos em exibição nos nichos.
Os dois espanhóis se esforçam para conservar uma aparência de dignidade, mas tremem dos pés à cabeça. Gabriel está numa posição que lhe permite saber melhor do que ninguém o que aquele espetáculo de seus companheiros pode evocar.
- O que está havendo? - pergunta em voz firme.
- Eis que surge o puma vindo das profundezas - zomba Villa Oma com a voz esganiçada.
Gabriel se imobiliza diante do Sábio. Uma multidão os cerca, mas ele não vê nem Anamaya nem Manco. Katari permaneceu a seu lado, o único a apoiá-lo em meio a uma hostilidade surda, atiçada pelo gosto do sangue e pelo medo que paralisa os dois prisioneiros vivos, cujos tornozelos e mãos estão amarrados.
- Nossos combatentes tentaram usar suas armas que cospem fogo - diz Villa Oma -, mas conseguiram apenas se assustar sem obter o resultado pretendido.
Ele aponta para os nichos de conteúdo sinistro. Não bastasse terem sido mortos, os pobres-coitados agora servem de alvo.
- E estes aqui - prossegue Villa Oma abarcando os prisioneiros num gesto de desprezo - fingiram ajudá-los, mas o fogo explodiu no rosto de um de nossos guerreiros.
- O que aconteceu? - pergunta Gabriel virando-se para os espanhóis.
- Eles quiseram pôr ainda mais pólvora e o cano do arcabuz explodiu - responde o mais jovem com a voz pálida.
- Foi um acidente - diz Gabriel a Villa Oma.
- Um acidente? Foram esses cães estrangeiros e agora eles vão morrer!
Um grupo de índios agarra os dois prisioneiros que mal oferecem resistência e os empurram em direção a dois nichos vizinhos. Outros liberam duas estacas sobre as quais estavam enfiadas cabeças que caem e rolam pelo chão, sobre a poeira, em meio aos risos. Gabriel corre e se põe diante dos dois homens.
- Quero que os homens ao seu redor saibam quem você é realmente, Villa Oma.
- Quando eu estive no sul e assisti aos mais indignos sofrimentos impostos por meus companheiros à gente de seu povo, tentei advertir este homem - declara, apontando para Villa Oma. - Ele tinha o poder para fazê-los cessar, pois sua voz e a voz de Paullu Inca eram preciosas para os espanhóis. Mas não fez nada...
- Não lhe dêem ouvidos! - berra Villa Oma. - Ele mente!
- Ele dirá a vocês que estava preparando a guerra em que seu povo finalmente se vingaria dos estrangeiros. Mas digo a vocês que neste homem que chamam de o Sábio se esconde uma crueldade sem limites, que o conduzirá à morte, a ele e a todos os que o seguirem. Os sofrimentos da guerra são o que são. Mas se vocês matarem esses dois homens, Inti se enfurecerá contra vocês.
Aquilo é demais para Villa Oma que explode em fúria:
- Ouçam-no invocar nossos deuses! - vocifera. - Amarrem-no como os outros e que ele tenha a mesma sorte.
Os soldados logo se aproximam e o agarram. Dois guerreiros avançam com uma vasilha de cobre cheia de pólvora e enchem a boca dos dois prisioneiros; dois outros se adiantam com archotes acesos para pôr fogo e queimá-los vivos. Gabriel se debate furiosamente, mas é inútil. Ele busca em vão o olhar de Katari.
- Basta! - troveja a voz de Manco.
O Inca surgiu do meio da multidão sem que Gabriel o visse. Soldados e senhores se afastam para dar-lhe passagem e somente Villa Oma se mantém firme para enfrentá-lo, o suco verde de coca escorrendo de seus lábios e sobre seu queixo.
- Incline-se diante de seu Único Senhor! - ordena ele a Villa Oma.
O Sábio é o único que, desde sempre, se abstém de dar as demonstrações necessárias de respeito devidas ao Inca. Seus olhos injetados de sangue mergulham por um instante nos olhos de Manco, antes de inclinar o busto num movimento imperceptível. Gabriel finalmente avista Anamaya meio escondida atrás de Manco.
- Olhe ao seu redor, Manco! - Villa Oma recomeça a falar. - Veja o pachacuti que já começou e submeta-se à força maior... Os estrangeiros, nós os chamávamos de deuses, e veja o que fizemos com eles.
Villa Oma aponta para os nichos nos quais jazem aqueles que foram homens, mantidos de pé por um grosso e longo bastão de ponta de bronze.
- É o princípio da grande virada, é a paz que retornará para nós e os nossos...
- O pachacuti já começou há muito tempo, Villa Oma. Meu pai Huayna Capac foi sua primeira vítima, mas desde então ele nos guia do outro mundo.
Villa Oma não escuta. É necessário aguçar os ouvidos para escutá-lo murmurar, o olhar vago, perdido:
- Há alguma coisa antiga e impura em você...
Quando viu Gabriel em perigo, Anamaya ficou paralisada. Ela estava longe das palavras incertas de Huayna Capac e teve medo das visões que não vêem nada, das profecias que não anunciaram nada. As ruelas estreitas e retilíneas das canchas estão cheias, repletas de todos os índios do vale. Eles deixaram suas ferramentas, abandonaram os campos e formam uma massa vinda de todos os lados que pressiona a cidade. Anamaya resiste sozinha em espírito ao gosto de morte e de sangue que ferve neles com a mesma força que as águas do Willkarnayo. Acima da multidão, ela se vira para o rosto do Ancestral e diz seu nome pedindo que venha em seu socorro.
- Você não possui mais clareza de visão, Villa Oma, seus olhos se avermelham como os de Atahualpa e um lago de sangue está dentro de seu coração. Você roga imprecações e oferece sacrifícios em segredo, nunca se farta de matar, mas esqueceu-se de que não é nada sem o poder dos Ancestrais, nada sem os deuses que nos rodeiam...
- Alguma coisa impura! - repete Villa Oma como se não tivesse ouvido nada. - Recordo-me daquele dia maldito em que, a despeito de meus conselhos, com o espírito obscurecido pela sombra da doença, o grande Huayna Capac se recusou a dar ao puma o corpo de uma jovem impura e, em vez disso, trouxe-a para junto de si para dizer-lhe segredos de que ninguém jamais teve conhecimento... Eu deveria tê-la tomado dele e acabado com ela, pois agora, eis que em vez de ser devorada pelo puma, ela o fez sair das entranhas da terra para que nós todos sejamos devorados...
- Pela última vez, Villa Oma, cale-se! Anamaya jamais traiu os Incas e você se esquece que ela jamais deixou de ser a Coya Camaquen escolhida por Huayna Capac e que foi você mesmo quem a guiou pelo caminho... Anamaya é a tradição, ela é o que era antes e o que será depois...
Villa Oma se cala. Seu corpo magro é agitado por um movimento interior e seu unku parece ondular como um riacho de sangue. Ele não consegue mais pronunciar as palavras que lhe sobem aos lábios; deles sai apenas uma baba que se transforma em bolhas de espuma e se mistura com o suco verde de coca que não pára nunca de mascar. Sua pele cor de cobre tornou-se acinzentada. Então, depois de um esforço violento, cada um de seus membros retesado pelo furor, ele abre a boca para articular, como se num lamento:
- Devo me retirar. Adeus, meu Único Senhor.
E, com um passo sofreado, sozinho, dirige-se para o rio.
A despeito de sua raiva e de seu ódio, a despeito de tudo o que parece separá-los dali por diante, Anamaya ouve ressoar em suas últimas palavras o eco do respeito que Villa Oma se recusa a conceder a Manco e que no entanto concede a ela ao se afastar, a recordação da antiga aliança dos irmãos que se tornaram inimigos.
Ollantaytambo, novembro de 1536
Depois do desaparecimento de Villa Oma, os soldados cercaram Gabriel e o arrastaram, em meio aos rugidos da multidão, para a cancha de Manco. O rosto de Anamaya, o de Katari e mesmo o do próprio Manco desapareceram, e Gabriel se sente como um cesto frágil sendo transportado pelo curso rápido de uma torrente. Quando Gabriel entra no pátio da cancha, as mulheres se retiram e ele se vê sozinho, ao lado do chafariz das Quatro Direções, o coração batendo disparado depois de ter escapado da morte, rememorando as palavras violentas que Manco e o Sábio trocaram, perguntando a si mesmo sobre a proteção misteriosa que parece tê-lo beneficiado mais uma vez.
- Todos os estrangeiros são como você?
Um garotinho de olhos negros brilhantes de curiosidade o observa sem nenhum medo, do alto de seus quatro ou cinco anos.
- Muitos são mais maus que eu! - responde com um sorriso.
- Como você se chama?
- Gabriel.
O garotinho assume uma expressão séria e pensativa.
- É um nome estranho. Não quer dizer nada.
Alguns, de seu povo, me disseram que quer dizer "o puma". E você, como é seu nome?
- Eu me chamo Titu Cusi, sou filho de Manco Inca e um dia eu serei o Inca.
- Tenho certeza de que você será um senhor poderoso e que exercerá a generosidade...
Mas o garotinho já não está mais ouvindo e sai correndo para junto do pai que entrou no pátio no meio de uma fileira de senhores e de soldados. Manco se inclina sorrindo para seu filho, e Gabriel vê o gesto cheio de ternura com que o abraça. Depois se levanta e Gabriel reencontra a dureza de seu olhar negro, hostil, impenetrável.
- Venha - diz Manco -, siga-me.
Logo atrás de Manco vêm Anamaya e Katari, que seguem-no passando pelo cortinado de tapeçaria da porta da câmara real.
- Senhor Manco - começa Gabriel -, eu sei que meus agradecimentos não fazem nenhum sentido para o senhor, mas os que ofereço neste momento vêm do fundo de meu coração.
Manco o observa sem responder; Gabriel não ousa buscar os olhos de Katari nem os de Anamaya.
- Se Villa Oma soubesse o que eu sei agora, você já estaria morto - declara Manco finalmente.
- O que sabe agora?
- Seus companheiros estão chegando. Um exército poderoso, composto de numerosos cavaleiros comandados por um dos irmãos do kapitu Pizarro, auxiliado por milhares de traidores.
- Gonzalo?
Mesmo sem querer, o coração de Gabriel se sobressalta ao pronunciar o nome maldito.
- Hernando.
Ele dá de ombros.
- Você sabe que não sou companheiro deles.
- Eu não sei o que sei a respeito de você. Mas tenho diante de mim as duas únicas pessoas para quem sua vida é preciosa. Você tem sorte que elas sejam também aquelas de quem mais preciso.
- Que pretende fazer?
- Vamos nos sentar.
Manco assume seu lugar sobre sua tiana enquanto Gabriel, Anamaya e Katari sentam-se a seus pés, sobre as almofadas macias de guanaco que estão espalhadas sobre cobertas de lã de vicunha. Os reflexos das tochas brincam sobre seus rostos e passam como uma poeira dourada sobre os traços de Anamaya.
- Nossos espiões estão informados já há vários dias que eles se preparam para nos atacar e nós vamos combater, esmagá-los tão completamente que os sobreviventes irão procurar o Governador e o convencerão a nos deixar em paz...
- Você se engana, nobre Manco!
Um clarão de cólera contorce o semblante do Imperador.
- Você duvida de nossa vitória?
- A vitória é sempre incerta, mais do que se pode dizer... Mas não é isso que quero dizer a você: eles não partirão. Se você vencer esses, outros virão depois deles, e se também os vencer, outros ainda virão... Acredite em mim, eu conheço Pizarro melhor que qualquer pessoa: é um homem que não desiste. Nunca.
- É ele que não me conhece!
- Eu lhe suplico, Senhor Manco, ninguém aqui duvida de sua coragem. Mas deve meditar a respeito do seguinte, se não quiser se tornar um outro Villa Oma... O senhor precisa apreciar realmente os espanhóis, a natureza da força deles...
- Cale-se!
- Mesmo assim, vou concluir com um conselho que sei que não vai seguir: busque uma paz honrosa, aceite as humilhações em silêncio, salve o que pode ser salvo e prepare em segredo um grupo de rapazes para que eles aprendam em suas casas a ter domínio sobre o uso das armas deles... Não estou falando da espada, da pólvora, dos cavalos...
Falo da língua, do Deus deles, de seus costumes.
- Eu não posso fazer isso.
- Creio que compreendi, Manco, aceito que você deva fazer o que lhe parece ser necessário.
- Eu não posso fazer isso...
Manco repetiu a frase como se estivesse sozinho, dentro de um sonho. Gabriel falou de maneira apaixonada e sincera. O silêncio cai novamente sobre o aposento onde a luz das tochas bruxuleia.
Depois Manco vira-se para Anamaya.
- Que me diz você, Coya Camaquen?
- Vença esta batalha, Manco, não há outra escolha nem para você nem para nós. Mas, depois, ouça as palavras da sabedoria.
Manco a observa em silêncio. Então seu olhar se volta para Katari.
- E você, meu amigo, você, o Mestre das Pedras?
Katari não diz nada em resposta. Ele se levanta e se aproxima de Manco, segura-o pelos ombros fazendo-o se levantar. Os dois homens se abraçam brevemente. Logo em seguida, Manco retoma seu lugar na tiana.
- Agora deixem-me - diz ele -, preciso ficar sozinho.
Ollantaytambo, novembro de 1536
Ao raiar do dia, Katari embrulhou Anamaya e Gabriel em mantas sob as quais os dois ficam escondidos, cobertos até o pescoço. Com o passo rápido, sem uma palavra inútil, eles subiram as escadas em direção ao Grande Templo, tentando fugir aos comentários, aos olhares. Depois de ultrapassar a muralha que cerca o templo, Anamaya deixou escapar um suspiro de alívio.
Agora, a colina os protege e ninguém ousará vir até o pequeno templo dos quatro nichos onde o Irmão Duplo os espera.
Gabriel e Anamaya se beijam longa e interminavelmente, as mãos pousadas sobre o rosto do outro, com uma avidez de primeira vez, uma tristeza de última vez. Percorrer a pele do outro é uma viagem tão perturbadora quanto cruzar os mares, explorar montanhas. Eles nunca se cansam de fazê-lo. Quando seus dedos se reencontram, eles se prendem como se fossem dois fios para formar uma corda sólida, indestrutível. Quando as bocas se separam, os olhos estão cheios de lágrimas.
- Eu vou partir - anuncia Gabriel.
- Não há outra maneira - replica Anamaya.
Os primeiros raios do sol se refletem sobre o ouro do Irmão Duplo ao mesmo tempo em que clareiam as cristas das montanhas.
- Eu não quero ficar triste - diz Gabriel.
- Eu também não. Tudo está acontecendo como Huayna Capac me revelou. Os mistérios se desfazem e você ainda está aqui. Estará aqui no fim...
- Eu sei que você me diz tudo o que pode e isto não é muito... Sei que preciso seguir meu caminho e aprender por mim mesmo. Esta é a grande lição e por vezes a perco, por vezes a conheço. Quando falava a Manco, não sentia mais medo, todas as coisas estavam em seu devido lugar dentro de mim. Você acredita que eu possa me tornar um bom puma?
Um pouco de terna ironia penetrou em suas últimas palavras e Anamaya deixa seu corpo cair contra o dele.
- Foi o seu amor - prossegue Gabriel - que me desvendou os olhos. É o seu amor que torna tudo isso possível, mesmo este absurdo de ser novamente separado de você e de não saber quando estaremos juntos de novo.
- Ele me disse: "Quando ele partir é que ele voltará para você. Ainda que separados, vocês estarão unidos..."
- Ele era cruel, esse seu velho Inca!
Os dois começam a rir baixinho, como crianças. Olham para o Ancestral da maneira como o Irmão Duplo deve vê-lo: através da perspectiva vertiginosa do nicho do sul. Um farfalhar os sobressalta: a sombra de Katari ergue-se diante deles.
- Está na hora - diz.
Eles sobem a montanha do Ancestral por um caminho estreito, mal calçado. Katari e Gabriel - cada um carrega nas costas uma pedra pesada embrulhada numa manta. Eles atravessaram a agitação das canchas onde todos se preparam para a batalha sem avistar nenhum sinal de Villa Oma; depois se afastaram passando pelas coilcas bem abastecidas. Foi ao pé da encosta que Katari escolheu uma pedra para Gabriel - esta pedra que agora pesa-lhe sobre os ombros e as costas, tornando cada passo uma agonia.
Contudo, nem um som escapa de sua boca e ele não sente necessidade de perguntar por que foi transformado em carregador. Katari, seguindo à sua frente, avança com uma agilidade de alpaca, o fardo parecendo não pesar mais sobre seus ombros que os longos cabelos que esvoaçam livremente sob a brisa. De tempos em tempos, Gabriel vira-se para ver o deslocamento dos incas saídos da floresta, aos quais eles se juntaram, as centenas de temíveis arqueiros de Antisuyu.
Na parte inferior do curso do Willkamayo, uma barragem foi construída e o nível das águas subiu, tornando difícil a travessia a vau. Ele, que não quer mais pegar em armas, sente uma pulsação dolorosa bem no fundo de seu corpo, como se fisicamente compartilhasse a aproximação dos espanhóis e como se a estranheza de não estar entre eles, montado em seu cavalo branco, de espada na mão, transpirando sob o morrião e a cota de malha, agora se revelasse plenamente. Está dilacerado por uma dor inesperada: Sebastian está entre os espanhóis e ele não estará lá para defendê-lo, talvez para salvá-lo.
Gabriel cerra os dentes para não gritar de raiva e de impotência, encaixa as mãos nas pregas da manta permitindo que a pedra, cujo peso sobrecarrega seus quadris, lhe machuque as costas. Pouco a pouco, a dor e o cansaço fazem seu efeito e ele sente o alívio do entorpecimento dos sentidos. Eles alcançaram uma espécie de plataforma rochosa do tamanho de uma esplanada natural. Gabriel se abaixa, arria sua pedra e por pouco não cai, tamanha é a dor que o trespassa. Anamaya o sustenta com um olhar e ele levanta muito lentamente o corpo alquebrado pelo esforço e por aquela dúvida repentina que o tomou.
- Chegamos - anuncia Katari.
Gabriel está completamente perdido e observa Anamaya tentando compreender.
- Estamos acima do rosto do Ancestral - ela explica.
Katari agachou-se e tirou de sua chuspa um cinzel de bronze com o qual, em alguns cortes precisos, trabalha sua pedra. Depois ele faz a mesma coisa com a de Gabriel.
- Olhe - diz ele.
Sobre uma pedra, o kolla desenhou a forma de um puma, e sobre a outra, a de uma serpente.
- A força - diz Gabriel - e a sabedoria de Amaru.
- Muito bem - sorri Katari -, você já conhece nossos deuses... Aqui, brevemente, para coroar a face de Huayna Capac se erguerá um templo no qual aqueles que buscam a força do Inca virão dizer suas preces e fazer oferendas. O céu se desanuvia de alguns filamentos de bruma e a luz clara da manhã se estende sobre as encostas das montanhas; um sol nascente corre pelos terraços e faz as águas brilharem. É um belo dia para morrer. Quando lá embaixo um movimento amplo da multidão o adverte da iminência do perigo, seu corpo se retesa dolorosamente. Anamaya vira-se para ele com ternura.
- Você está pálido - observa.
Todo o sangue parece ter desaparecido de seu rosto e seu coração bate desenfreado.
- Eu não posso - diz ele.
Anamaya põe a mão sobre a sua.
- Não posso deixá-los morrer sem estar com eles...
- Você quer combater?
- Não!
O grito lhe escapa, descontrolado.
- Morrer com eles?
- Eu acreditava que fosse... protegido...
- De tudo, menos de si mesmo.
Anamaya observa as encostas, os terraços cobertos de guerreiros.
- Deixe-o ir - diz Katari calmamente.
Nesse exato instante ressoa o primeiro clamor. É como se uma água gelada tivesse sido derramada sobre ela e imperceptivelmente paralisasse seu corpo e cada um de seus membros. Ela está incapacitada de se mover. Os primeiros passos de Gabriel foram tão lentos, intermináveis... Pouco antes do desvio do caminho, ele parou como se fosse se virar e voltar. Mas não o fez: pelo contrário, foi quase correndo que ela o viu partir pela encosta, homem transformado em pedra de funda.
Sobre os terraços abaixo dela, Anamaya vê a massa de arqueiros em posição e, na margem esquerda do Willkamayo bem como nas encostas da montanha, os incontáveis atiradores de funda...
Anamaya dirige-se em pensamento para a pedra onde Huayna Capac falou com ela, mas não há mais nenhuma outra palavra. Nada diz que o puma salta em direção à morte como um animal selvagem, nada diz que ele atravessa o oceano na direção oposta para se juntar aos seus. Katari permaneceu imóvel a seu lado. Com seu cinzel, ele acaba de entalhar as duas pedras que serão as primeiras do novo Templo.
- Você tinha se esquecido de que o puma era um homem - diz simplesmente.
Ela sacode a cabeça sem acreditar.
Gabriel desceu a encosta correndo, o sangue latejando em suas têmporas. A decisão foi tomada sem sua participação consciente, por assim dizer, e, em meio a seu arquejar sufocante, retalhos de dúvida lampejam em seu espírito. À medida que ele se aproxima, parece-lhe que a montanha e a planície são sacudidas por rugidos, como se milhares de tambores estivessem roncando nas profundezas da terra, fazendo-a se levantar.
São as vozes de homens que sentem medo ou que gritam para ganhar coragem. É o pisotear de milhares de passos, o retinir das armas. À meia encosta, ele se encontrou subitamente acima dos terraços onde o grosso dos arqueiros vindos das florestas se instalou. Faz uma pausa, impressionado com a massa dos combatentes; depois de ter passado semanas vivendo em Ollantaytambo, ele não suspeitava que as montanhas escondessem tantos guerreiros. Pois atrás dos arqueiros ainda se encontra a massa dos soldados, armados com lanças, maças e piques. Ele percebe num clarão que alguns usam elementos esparsos dos trajes de combate dos espanhóis, um morrião abandonado aqui, uma cota de malha ou um plastrão de couro ali. Certos oficiais empunham até mesmo espadas.
Vindo de baixo para cima, do outro lado do rio, ele vê o exército espanhol se aproximar. Está longe demais para distinguir os rostos, mas reconhece o penacho de Hernando Pizarro, que vem à frente. Eles são uma centena de cavaleiros, seguidos por no mínimo trinta mil guerreiros índios: os aliados habituais, caaris e huancas, mas também os incas hostis a Manco.
Ao vê-los, Gabriel é tomado por um entusiasmo súbito e tenta se esgueirar pelo meio da massa de guerreiros apertados uns contra os outros. Graças a cotoveladas acompanhadas por pragas, consegue ultrapassar algumas fileiras.
Mas, quando chega às costas dos arqueiros, é uma barreira intransponível que se levanta diante dele. Com desespero, compreende que não conseguirá passar. Nesse instante, ele avista, na extremidade dos terraços, a silhueta orgulhosa de Manco. Está montado em seu cavalo branco, que controla com facilidade, e empunha uma lança cuja lâmina reluz ao sol. Seu olhar não alcança a planície onde os espanhóis avançam, mas Anamaya sente a aproximação deles através das ondulações que percorrem as fileiras dos incas. Das encostas da montanha onde fica situado o Templo cuja entrada foi murada, ela ouve elevar-se um infernal bater de tambores, um concerto de trompas, como se, em vez da surpresa que por vezes os favoreceu, Manco e seus guerreiros quisessem mostrar a seus adversários que os esperam e fazer com que o medo desça sobre eles.
Fechando os olhos, ela faz aparecer a imagem de Gabriel. Onde está ele? Será que conseguiu atravessar as fileiras? Contrariando toda a lógica, ela o imagina introduzindo-se em meio às fileiras de guerreiros e mergulhando no rio para ir se juntar a seus companheiros, saltando sobre um cavalo e agarrando uma espada... Ele diversas vezes lhe relatou as façanhas que realizou para tomar Sacsayhuaman e ela não tem dificuldade em imaginá-lo assumindo o comando do ataque espanhol...
A luz do sol a ofusca quando abre os olhos. "Não é possível", murmura por entre os lábios, "ele jurou que não pegaria mais em armas, ele já percorreu um caminho tão longo..."
Mas aquilo não a tranqüiliza: onde quer que ele esteja, qualquer que seja sua vontade, ele está bem no meio da batalha e as visões de sua morte a assaltam sem que ela possa afastá-las.
- Santiago!
O grito de guerra espanhol, tão fácil de reconhecer, retumba pelo vale e seu eco ressoa até em seu peito.
- Santiago!
Ela tem um movimento de temor e Katari se aproxima.
- Fique aqui - diz ele. - Espere. Afaste o medo para longe.
Mas quando ela olha para Katari, percebe a inquietação em seus olhos. Seu coração se aperta. A partir do momento em que avistou Gabriel, Manco dirigiu-se para onde ele estava e os soldados se afastam para abrir-lhe passagem.
- Por que você está aqui? - pergunta rudemente. - Veio combater conosco?
Gabriel não responde, contentando-se em fitar o Inca com intensidade.
- Ou será que você quer ir se juntar a eles? Morrer com eles?
Manco diz isso tranqüilamente e Gabriel compreende sua confiança.
- Se você quiser atravessar para o outro lado e fazer isso, eu não impedirei - declara Manco, indicando-lhe a planície.
Gabriel permanece imóvel.
- Você tem certeza? Não quer? Então, venha com os meus senhores - convida Manco -, você não tem nada a temer, venha ver o que espera seus companheiros...
O grito "Santiago" faz ferver alguma coisa muito antiga em suas veias, um chamado que lhe daria forças para se levantar, para obedecer à sugestão provocadora de Manco, para se libertar da massa e saltar para o meio de seus companheiros. Mas ele cerra os dentes e se cala. Em um movimento perfeitamente ordenado, os incas enviam em direção aos espanhóis uma chuva de flechas e de pedras que faz hesitar e depois recuar a primeira onda.
Em seguida, dois cavaleiros se destacam e partem para o assalto às primeiras fortificações. Por suas silhuetas altas, mesmo sem ver os rostos, Gabriel reconhece os dois gigantes, Candia e Sebastian, o Negro montado num cavalo branco, Candia num cavalo negro... Um zumbido sussurra em seus ouvidos quando ele reconhece Itza - é claro, a égua que Sebastian lhe deu. É como se seu passado viesse ao seu encontro a galope.
Katari tira a chave de pedra que traz pendurada no pescoço e a entrega a Anamaya. Seus olhos azuis estão distantes e pálidos. A algazarra que sobe dos terraços é ensurdecedora e o ar está cheio de assobios. A cada saraivada de flechas, é como se uma nuvem de insetos invadisse o céu para destruir a terra, e as pedras caem como pássaros. Anamaya vira-se para o norte, na direção da Cidade Sagrada onde reencontrou Huayna Capac, e Katari vira-se ao mesmo tempo que ela.
- "Até que Inti tenha consumido o ódio entre nós..." - murmura ela.
E Katari:
- "... e que restem apenas as mulheres chorando pelo sangue derramado."
- Você acha que é agora?
Katari abre as mãos fortes, cujas linhas são cortadas por uma multidão de cicatrizes.
- Não, os sinais não estão presentes.
- E ele pode morrer?
- Eu já disse a você que o puma é um homem e um homem deve morrer... Mas, este homem é o puma.
Anamaya sorri.
Nesse instante ribomba uma explosão. Gabriel viu com fascinação o ataque dos índios repelir Candia e Sebastian, a despeito de sua bravura; eles fizeram meia-volta antes que um grupo de cavaleiros partisse para um assalto ao Templo - visto de baixo, com suas muralhas formidáveis, os espanhóis devem pensar que é uma fortaleza. Os defensores pareceram recuar antes que dois índios chachapoyas despedaçassem, com um jato de projéteis, as patas do primeiro cavalo, provocando o pânico entre o resto dos cavaleiros que apressadamente batem em retirada. Depois disso, nenhum outro cavaleiro ousou tomar a ofensiva.
Gabriel percebe uma hesitação entre os espanhóis. Pela primeira vez numa batalha de fileiras organizadas, eles não têm o domínio. O efeito da surpresa de seus cavalos pertence ao passado, suas peças de artilharia são ineficazes e a defesa organizada por Manco parece ter previsto o conjunto de seus movimentos.
Mesmo o grupo de soldados de infantaria que Hernando envia para contornar a montanha por meio de um novo ataque às muralhas do Templo é repelido pelo ininterrupto jato de pedras.
É nesse instante que a columbrina dispara: mas ela está posicionada no meio dos terraços, do lado inca, e a explosão, provavelmente ineficaz (o único milagre, pensa Gabriel fugazmente, é que ela não tenha explodido a cabeça dos artilheiros amadores que são os incas), provoca um sussurro de orgulho no peito de todos os combatentes.
O burburinho percorre os terraços e todas as encostas onde os guerreiros esperam e coincide com o rugido lançado por Manco. Parecendo descer de todos os lados ao mesmo tempo, os incas se lançam ao assalto aos espanhóis. Gabriel, impotente e semicego, não sente mais nada por um instante, exceto o completo abalo que sacode a terra. Ele se concentra apenas na tarefa de não se deixar esmagar por aquela explosiva onda de homens berrando, pronta para arrastar tudo consigo, carregada pela cólera de meses de humilhação e de medo.
Quando ele toma pé de novo, no tumulto que sobe da planície, vê subir apenas uma bruma: é a poeira, é o suor, é a terra que se levantam com força, são as espadas que voam e, no meio da confusão, o estranho espetáculo de Manco montado em seu cavalo branco, de lança na mão, com a mascapaicha na testa, e seus ataques furiosos são os de um demônio que não teme nada. Num relance fugaz, Gabriel revê a imagem de sua primeira lição de equitação.
- Eu não queria fazer a guerra - murmura-, mas mesmo assim faço... Passo a passo, a despeito da resistência furiosa e dos estragos que causam aos incas, os espanhóis e seus aliados recuam. As cargas de cavalaria tornam-se menos decisivas, menos profundas, menos devastadoras. O penacho vermelho do capacete de Hernando aparece cada vez mais distante na planície, como uma jangada à deriva que se afasta.
O crepúsculo já está caindo e Gabriel se espanta; parece-lhe que o sol tinha apenas acabado de raiar. Seu olhar desvia-se do combate e volta-se para os picos, os Apus que Katari e Anamaya agora já lhe ensinaram a conhecer. Depois ele volta a olhar para os dois rios antes de ficar paralisado pelo espanto. O que um grupo de uma centena de índios está em vias de fazer é, pura e simplesmente, desviar o curso do rio Patacancha em direção às canalizações há muito tempo preparadas.
Gabriel compreende numa revelação súbita. A planície vai ser invadida. E os espanhóis vão se afogar.
Ollantaytambo, novembro de 1536
No cume da montanha, a escuridão cai como a asa de um condor com as dimensões do céu. De baixo para cima, o pandemônio parece sufocar, se distanciar. Há menos gritos e mais gemidos, e as explosões praticamente cessaram. Anamaya sente-se dominada por um frio repentino. Ela aperta sobre o corpo gelado as bordas da manta.
- Eu me pergunto onde estará Villa Oma - comenta.
Katari reflete.
- Provavelmente refugiado numa huaca subterrânea, preparando novas imprecações, na esperança de uma derrota que confirmaria suas funestas profecias...
- Imaginei que ele viesse se juntar a Manco nesta batalha.
- A cólera o confinou sozinho numa ilha perdida no meio das terras.
- Para mim, ele era o Sábio...
- Ele também é um homem. No fundo, nunca compreendeu porque o poderoso Huayna Capac não lhe confiasse os segredos do Tahuantinsuyu e preferisse escolher aquela estranha menina de olhos azuis...
Anamaya continua pensativa, com a expressão sonhadora.
- Para mim, ele continuará sendo o Sábio.
A gargalhada de Katari ressoa docemente na noite.
- De que está rindo?
- Por muito tempo, eu tentei ver por trás da Coya Camaquen a menininha que você era quando chegou diante do Inca Huayna Capac. Acabo de ouvi-la falar pela primeira vez.
Agora é a vez de Anamaya sorrir.
- Por que você me deu esta chave de pedra?
- Um dia, quando todos os sinais tiverem se cumprido, nós também iremos nos separar. Eu partirei para o lago das origens, enquanto você voltará para...
Ela o interrompe, pondo um dedo sobre seus lábios.
- Não diga o nome, por favor.
- Você precisará desta chave, ela abrirá a pedra para você.
- Como vou saber?
- Você saberá.
A brisa da noite sopra mais forte e traz os ruídos dos homens. Curiosamente, Anamaya não sente mais frio.
- E ele? - pergunta ela.
Gabriel viu a água subir com uma velocidade prodigiosa, inundando a planície, subindo até a cilha dos cavalos imobilizados, como que travados num lago que surgiu de dentro da terra e os engole. Ele vê um cavaleiro escorregar para dentro d'água e, batendo os braços em círculos para trás, tentar boiar ao mesmo tempo em que tenta se libertar de seus pesados petrechos de guerra.
Pouco a pouco, como a noite cai completamente, a retirada dos espanhóis nada mais é para ele que um ruído que se distancia, um chamado que retine, o som de uma trombeta, um clamor repentino quando os incas capturaram um retardatário ou derrubaram um cavalo.
Uma fadiga infinita faz pesar seu corpo e todos os seus membros. Ele não combateu, mas se sente brutalmente velho, estropiado por golpes e ferimentos. Fechando os olhos, ele se vê ao mesmo tempo inca e espanhol, a cavalo e a pé, empunhando a espada e manejando a funda... É uma visão da qual tem dificuldade de se afastar, uma visão pela qual, no entanto, tem vontade de ser tragado, como um combatente que não foi morto na batalha, mas que no final desmorona, quando tudo está acabado, e que não pode mais ser vencido exceto pela mais profunda exaustão. Manco vem a pé, segurando pelas rédeas seu cavalo coberto de lama. Ele mede Gabriel com o olhar, sem lhe dirigir a palavra, os olhos negros brilhantes de orgulho, ainda carregados, inebriados pela loucura da batalha. Vitória - droga mais forte que jarras de chicha, que milhares de folhas de coca.
Depois Manco estende as rédeas do cavalo para Gabriel e toma o caminho das canchas sem lhe dirigir um olhar, como um vencedor estafado. Gabriel o segue. O caminho é tão íngreme e em certos lugares calçado com pedras de maneira tão irregular que a descida, durante a noite, é perigosa. A despeito disso, Anamaya e Katari avançam com passos seguros e regulares, guiados por clarões de luar e pelo instinto de quem já caminhou sob todo tipo de céu. Quando começam a se aproximar do Willkamayo e dos chafarizes, ouvem o clamor dos atzijaiii, os cantos de vitória que já narram as proezas dos heróis. A terra ainda bebe sangue, o rio arrasta em seu curso os cadáveres dos afogados e dos mortos... Sobre a margem, Anamaya vê, virado em sua direção, o rosto de uma mulher que tem ainda apertada contra o peito a manta onde guardava as roupas de seu marido, que ela seguiu para uma guerra incompreensível. Seus olhos estão brancos, perdidos para além das Quatro Direções.
Na entrada das canchas, eles cruzam com homens que cambaleiam. Alguns estão esparramados no chão, com a lama se misturando ao vômito, cantando ainda com um lamento indistinto a lenda de sua vitória sobre os deuses vindos do outro lado do Oceano. É nesse instante que os estrangeiros se tornam de novo os seres fabulosos que eram descritos, muitas luas antes, como aqueles homens-cavalos invencíveis cujas mãos cortam e que portam bastões de prata que cospem fogo. Diante deles, nas palavras dos guerreiros vencedores e bêbados, levantam-se os incas que Viracocha, em pessoa, transformou em pedra para fazer deles os combatentes nos quais os braços cortados tornam a crescer, que são os senhores da água e do granizo...
Aos poucos e à medida que avançam pelas ruelas estreitas das canchas, Anamaya e Katari ouvem aqueles mesmos comentários sussurrados - que são repetidos pela voz dos homens, que vêm dos recantos mais profundos nos pátios e dos quais nem mesmo as mulheres que trabalham ao redor das fogueiras para nelas assar os porquinhos-da-índia escapam. Todo mundo fala daquele que lançou a pedra e quebrou as patas do primeiro cavalo, todo mundo fala sobre como o Patacancha foi desviado, todo mundo assobia imitando flechas ou pedras voando, todo mundo faz de conta que agarra um cavalo e o faz cair antes de deixar seu cadáver seguir à deriva no curso do rio. Todo mundo fala e nunca haverá palavras suficientes para saciar a felicidade daquela vitória.
Anamaya está assustada. Gabriel não está ali e ela não pode se impedir de escrutar cada rosto na semi-obscuridade. Mas sua língua parece estar presa e ela não ousa perguntar nada. O estrangeiro? Que ele desapareça no Mundo de Baixo, isso é o que todos desejam. Seu peito está em fogo quando, finalmente, os guardas lhe cedem passagem diante da alta porta trapezoidal que se abre no muro da cancha de Manco. O Inca está no meio dos senhores, com uma cota de malha sobre o unku, uma lança a seus pés. Ele estende as mãos para descrever um movimento e Anamaya vê que elas ainda estão cheias de terra e sangue; lágrimas de lama escorreram sobre suas faces, e seu olhar faísca de orgulho e de ódio. Os semblantes dos que o rodeiam estão repletos de risos e mesclada ao respeito devido ao Inca vibra um pouco da camaradagem de combatentes que venceram juntos. Quando Anamaya e Katari entram, se faz o silêncio.
- Ora, Coya Camaquen, meu pai sem dúvida deve tê-la avisado dessa nossa vitória para você ter ficado longe de nós por tanto tempo...
A um sinal, duas mulheres trazem-lhe uma jarra de chicha e servem um pouco de seu conteúdo num copo de ouro finamente cinzelado. Manco toma um grande gole.
- E você, Katari, estava jogando pedras conosco do alto da montanha de Pinkylluna?
Os dois jovens se calam. A ebriedade faz arder as faces do Inca e seus olhos lançam chamas.
- Eles não me respondem - declara ele, virando-se para os senhores. - Será por desprezo ou será, talvez, porque têm vergonha?...
- Nós colocamos as pedras no local para um novo templo - diz Katari -, que um dia coroará a fronte do Ancestral, seu pai Huayna Capac.
Sua voz soa calma, sem temor. O brilho assassino se apaga no olhar de Manco. Ele aponta para Anamaya.
- Eu encontrei um animal durante a batalha - anuncia com um tom de resto de raiva que já quase se esgotou - e quero dá-lo a você.
- Qual é o animal? - pergunta ela com doçura.
- Um puma. Dizem que você é ligada a ele.
A mão de Manco descreve um arco e indica um ponto na sombra. Ladeado por dois soldados, Gabriel se adianta, o rosto impassível.
- Eu o devolvo a você, Anamaya, ele é seu.
Anamaya se obriga a permanecer imóvel enquanto com todo seu corpo e de todo seu coração queria poder correr para ele e tomá-lo nos braços.
- Mas seu puma só conservará a vida sob uma condição.
O olhar azul de Anamaya mergulha no de Manco, que não pestaneja.
- Antes que Inti tenha lançado seus primeiros raios para a aurora do dia seguinte de nossa vitória, ele deverá ter desaparecido. Você me compreende?
Anamaya mantém-se em silêncio. Deixa Gabriel aproximar-se dela, os passos inseguros das pernas trôpegas, exausto. Sem se tocar, eles permanecem lado a lado diante de Manco, antes de atravessar a multidão do pátio. Todos se afastam e abrem caminho diante deles, mas ela percebe a carga de hostilidade, o desejo de vingança. Se eles pudessem despedaçá-lo... No momento em que passam sob a verga da porta de pedra onde há um condor esculpido, escutam a voz de Manco uma última vez.
- Antes da alvorada - repete ele.
E não há nenhum traço de bebedeira em sua voz.
A noite torna a se fechar ao redor deles enquanto se afastam das canchas. Ela o conduz primeiro por entre os chafarizes, depois acompanhando o curso do Willkamayo, rumo à huaca do condor. Por muito tempo os dois mantêm-se calados e não ousam se tocar. Eles estiveram separados apenas por algumas horas, mas primeiro terão de se reencontrar recuperando o fôlego, acalmar o bater desenfreado de seus corações, antes de pronunciarem as primeiras palavras.
A noite está fresca e agradável, e no caminho todos os ruídos, os temores e os horrores da batalha se apagam. Não há mais vitória nem derrota, não há mais a agitação, os gritos de ódio e de vitória. Quando eles se aproximam do rochedo, Anamaya pára e Gabriel também. Ela o segura pela mão e faz com que se deite sobre o muro baixo que acompanha a margem do rio. Os dois fecham os olhos e deixam que toda a violência se esvaia, permitindo que seus espíritos e seus corpos inteiros acompanhem o eterno ruído da água. Depois ela torna a levantá-lo, os dois descem até a beira da água e com gestos ternos ela o despe. O unku ainda molhado de suor escorrega para o chão. A água fria por pouco não lhe arranca um grito de surpresa e de dor, mas Anamaya o guia sem temor em direção a um rochedo negro e plano que aflora à superfície no meio do curso d'água. Ele se deita ali, semicoberto pela água fria, e lentamente as mãos de Anamaya o lavam e o libertam de toda a fadiga.
A água, as mãos... Ele não faz nenhuma distinção e se deixa levar para enviar para bem longe toda a lassidão, desde a raiz. Pouco a pouco as imagens que o perseguiam desaparecem, pouco a pouco ele sai daquele corpo-a-corpo que viveu sem ter combatido. Um bem-estar delicioso o invade - e até mesmo o princípio do desejo - quando Anamaya o faz se levantar e o conduz de volta para a margem do rio.
Ela guardou para ele em sua manta um unku cuja lã fina é como uma carícia sobre a pele. Os dois tornam a ultrapassar o muro baixo e retomam o caminho. Acima deles se desenha a silhueta da huaca do condor.
- Eu não queria partir - diz Gabriel.
- Eu sei.
Eles falam em voz baixa na escuridão, não por temor de serem ouvidos, mas para criar na obscuridade uma espécie de gruta onde os dois possam se refugiar. Falam de tudo, exceto da separação que se aproxima, que vem tão depressa através da noite aparentemente imóvel.
- Achei que era necessário para mim estar perto deles. Não queria combater contra seu povo, queria estar na altura da relva pisada pelos cavalos, ao alcance da mão dos feridos, perto de seus olhares... Tive até mesmo uma sensação estranha de que deveria de qualquer maneira ver o penacho vermelho do capacete daquele canalha imundo do Hernando. Sim, sentia por ele uma espécie de ternura que me deixava envergonhado, mas que não podia me impedir de sentir. Sabia que eles iriam perder esta batalha, mas do pico da montanha eu teria me sentido como um traidor.
- Uma voz dizia que você não iria morrer, mas uma outra via você pisoteado, dilacerado, retalhado. Uma voz dizia que nos reencontraríamos e outra que eu perderia você.
- Você estava lá, comigo. Quando eu vi Sebastian e Candia se aproximarem a galope, quis me virar para você para dizer...
Ela ri; depois, em tom sério, pergunta:
- Eles estão vivos?
- Não sei. Espero que sim... Lembro-me que, quando vi a saraivada, pedras e flechas cair sobre eles, tomado por um entusiasmo, precipitei-me em espírito na direção deles e tive a impressão de pedir com toda a força de meu corpo aquela proteção que me beneficiou durante a batalha de Sacsayhuaman.
Eu estava rezando para todos os tipos de deuses, o meu, os seus, e lhes implorava: "Não importa quem sois vós, nem qual seja minha descrença, salvai meus dois amigos, fazei com que eles não morram agora."
- Então eles ainda estão vivos.
- Eu tenho este poder?
- Este poder existe. Venha.
Pelos rochedos, eles sobem para a huaca. Com sua nova sensibilidade para as crenças dos incas, Gabriel percebe a energia que vibra no local. Ele se cala, permitindo de novo que Anamaya o guie de pedra em pedra.
Ela se imobiliza diante de um rochedo de alguns pés de altura, cuja forma arrojada, sem que nenhuma marca de cinzel seja visível, marca a passagem do homem. Ao longe, escondida na noite, deve se erguer uma montanha com o mesmo desenho.
- Aqui é o lugar.
O coração de Gabriel pára. Anamaya se cala, surpreendida por suas próprias palavras. Ela falou sem pensar e as palavras saíram. Em seu íntimo, um resquício de medo desaparece: aqueles segredos que ela devia guardar para ele, daquele dia em diante estão muito perto dele. Ele precisa saber.
- Existe um lugar - diz ela -, ao mesmo tempo longe e perto daqui, cujo nome deve permanecer em segredo. Dentre todas as pessoas de Ollantaytambo, só Katari e eu viajamos para lá... Ele esculpiu esta pedra com a forma de uma montanha que ninguém aqui jamais viu e que se ergue lá, acima de nosso santuário secreto. Sobre o flanco dessa montanha...
Gabriel deixa que as palavras de Anamaya fluam, sem procurar compreendê-las. Elas penetram nele por todos os poros de seu corpo e deixam nele sua marca.
- ... um rosto se desenha. É o rosto do puma.
Anamaya se cala e Gabriel precisa de algum tempo para compreender que ela fala dele. Inseguro, tenta escrutar a escuridão acima do rochedo talhado numa forma indistinta. Não distingue nada.
- Você não o vê - diz ela -, e no entanto está lá. Katari disse que seu destino estava escrito na pedra e aqui está você exatamente diante dele.
Um calor intenso invade o corpo de Gabriel, uma emoção singular que não se assemelha nem àquela dos combates furiosos, o gosto de cinza e de sangue, nem àquela outra, a do amor, o sabor de mel. Um arrepio sacode seu corpo todo e ele se sente em união com o mundo, cheio de um reconhecimento espantoso.
- Eu sei - murmura -, eu o vejo!
O rosto do puma tem presas que saem da pedra, prontas para morder e dilacerar. Mas Gabriel não sente medo, está inebriado de uma felicidade inexplicável e magnífica, para além das lágrimas e do riso. "Finalmente", pensa, "finalmente cheguei."
Ollantaytambo, novembro de 1536
Eles estão nus, colados um no outro, abraçados, entrelaçados como se pertencessem a um mesmo bloco de pedra e algum escultor os tivesse cinzelado na mesma rocha. Estão todos os dois profundamente absorvidos e quase não fazem nenhum movimento. Permitem que o deslizar imperceptível de um dedo sobre a pele lhes ofereça sensações deliciosas; compartilham o sopro da brisa. Estão repletos de uma completa felicidade que torna necessários, manifestos, todos os desvios e curvas do seu estranho destino. Nesse instante, sem nenhuma explicação, estão unidos na certeza de que tudo está bem. Suas emoções ondulam sob a luz da meia-lua.
Em certos momentos, eles se paralisam numa imobilidade tão perfeita que a respiração quase que se interrompe e poderiam até acreditar terem se transformado em pedra; em outros, estão tão bem diluídos um no outro que flutuam como que seguindo o curso de um rio cujo ruído os acompanha - cujo ruído está dentro deles. Eles se falam sem mover os lábios: as palavras são como as mãos, os batimentos do coração, como a luz e as sombras - elementos, entre outros, de uma dança de seus corpos em meio ao universo.
É Anamaya que se afasta primeiro. Gabriel não sente nenhum sofrimento. Ele a vê vestir graciosamente o aííaco e estender-lhe seu unku. Ela vem sentar-se junto dele; seu olhar se perde na sombra da montanha, lá onde ele pensou ter divisado alguns nichos escavados no rochedo.
- Vou lhe contar uma viagem - diz ela num murmúrio.
Gabriel escuta Anamaya relatar-lhe a travessia da pedra, seu vôo de condor acima da Cidade Secreta. Ele a escuta narrar a história do rochedo que fala, o semblante do velho Huayna Capac. Ele se lembra que ela viveu ao lado dele há muito tempo. Anamaya repete para Gabriel as palavras do Inca e nem todas as palavras lhe trazem esclarecimento, mas todas se inscrevem em seu íntimo por algum motivo; nem todas as palavras desfazem os enigmas que o cercam, mas, ao ouvir o murmúrio de sua voz, ele se sente dominado por uma paz, por um abandono que jamais sentiu. Sente até mesmo uma certa alegria; compreende que não apenas depôs as armas, mas que o espírito da guerra o abandonou.
Ele compreende que a guerra o pôs em movimento, o fez manter-se em movimento incessante desde o dia triste em que aquele a quem, em segredo, chamava de seu pai, com desprezo, tirou-o de um cárcere.
Gabriel tem a impressão de sobrevoar sua vida com Anamaya da mesma forma que ela voou sobre aquele vale misterioso com Katari; observa suas batalhas, os atos de violência, os entusiasmos, os rompantes de cólera; ele os visita, não como um estrangeiro, mas com uma espécie de nova indulgência, uma pacificação de todo o ser que lhe dá vontade de dizer baixinho:
Ah, bom, então era só isso... Isto não diminui em nada a ternura que sente por seus raros amigos nem, é claro, a bola de fogo do amor que arde em seu peito.
Ele explora este amor, deslumbrado ao mesmo tempo com sua potência e seus poderes infinitos. Ele percorre seu medo. Depois, toda a paisagem desaparece e ele ouve ressoar, como um relógio de carrilhão, a voz inflexível de Manco: "Antes da alvorada", repete o jovem Inca, "antes da alvorada." Ele tem a impressão de ver a crista da montanha do Ancestral clarear ligeiramente. Anamaya o abraça.
- Você agora sabe o que eu sei - declara. - Nada lhe foi escondido. Agora, você ainda tem de viver o que deve viver para se juntar a mim. Resta- nos esperar que todos os sinais se cumpram...
- Como saberemos?
Anamaya recorda-se de ter feito a mesma pergunta quando Katari lhe deu a chave de pedra.
- Nós saberemos. Você saberá tão bem quanto eu.
- Vamos esperar muito tempo?
Há uma inquietação súbita e imprevista em sua maneira de dizer "muito tempo", como se a criança nele aflorasse e reclamasse sua felicidade imediatamente, pronta para bater o pé se não fosse satisfeita. A aurora chegou. A pálida luz amarela toca levemente as cristas e a noite foge. Cada instante é um grão de areia que range em seu coração enquanto Anamaya, à guisa de resposta, beija-lhe os lábios longamente. Eles se levantam juntos e ainda se abraçam, alternando ímpetos de violência e gestos carregados de doçura e de delicadeza. Num esforço que quase lhe arranca o fôlego, Gabriel consegue se separar dela.
- Eu amo você - diz Anamaya.
Ele olha para ela e as imagens de todas as expressões que viu em seu rosto, de todos os seus sorrisos e de todas as lágrimas, se fundem numa única onde ele se perde, no lago de águas calmas de seus olhos; ele tem a impressão de ver refletidos neles o pico de uma montanha.
- Vamos esperar muito tempo? - repete, mas em tom mais doce.
Ela põe um dedo sobre seus lábios.
- Eu amo você - repete Anamaya, em voz mais alta.
Seu último olhar é para o Ancestral-montanha. "Permaneça em meu hálito e confie no puma..." As palavras vêm até seu coração e lhe dão o último impulso de coragem que lhe falta. Gabriel sente que ela permanece imóvel atrás de si enquanto começa a descer em direção ao caminho que segue ao longo do rio. Gabriel não se vira por medo de parar e não conseguir fazer o que deve ser feito - agora sabe o que deve ser feito, ele compreende isso e o aceita do fundo de seu coração. Depois seu passo se acelera, enquanto ele se apressa em direção às canchas. Quando atravessa a ponte, o primeiro raio de sol ilumina sua face e ele pisca os olhos.
Lago Titicaca, março de 1539
O dia apenas começou a raiar. Uma bruma transparente desliza devagar sobre a ilha da Lua. O lago ainda permanece invisível. Tudo está em silêncio. Mal se consegue ouvir o quebrar das ondas na praia de seixos.
Virando-se de costas para o Templo de Quilla, Gabriel sentou-se sobre o muro baixo do terraço mais alto. A despeito da pesada capa de lã azul que está vestindo, o frio do amanhecer faz sua pele se arrepiar. Como em todas as ocasiões em que vem àquele lugar, é dominado pela poderosa serenidade daquele santuário que agora conhece tão bem.
Adora esse instante em que o céu e o lago parecem feitos apenas de uma matéria leitosa e móvel no coração da qual a luz não pára de crescer. Seu sentimento de solidão é intenso e no entanto ele poderia acreditar que está sendo arrebatado pela força todo-poderosa da vida e do dia que nasce. E então a brisa da manhã ganha força. Ela levanta seus cabelos louros e agita sua barba que se tornou comprida. Vinda do sul, ela rasga a bruma em volutas e retalhos que empurra para o norte em grupos, como se fossem uma matilha a galope. As encostas cobertas de relva baixa e de arbustos da pequena ilha aparecem. Cuidadosamente sublinhado por muros de pedras de cor ocre e marrom, o desenho preciso dos terraços cerimoniais se revela até as margens do lago de águas escuras, riscadas pela espuma das ondas baixas.
Logo, é toda a imensidão do Titicaca que está descortinada. Na distância, em direção ao leste e ao norte, pouco a pouco Gabriel distingue os flancos vertiginosos dos Apus, Ancestrais-montanhas e orgulhosos guardiões do grande lago da origem do Mundo. Das curvas dos rios para os barrancos, as últimas sombras da noite vão fugindo, uma a uma, enquanto a bruma se dissolve no alto do céu já azul. Os primeiros raios de sol tingem de dourado as nuvens algodoadas que envolvem os picos do Ancohuma e do lilampu. Eles cintilam sobre as encostas para sempre cobertas de neves eternas, tocam de leve os montes de rochas, os penhascos e os blocos de gelo nas fendas.
Depois, muito rapidamente, os picos das outras montanhas, por sua vez, são banhados em ouro. O lago adquire um tom azul-escuro e espesso. As margens escarpadas parecem se elevar. Como um pavão abrindo sua admirável cauda colorida, os milhares de terraços abraçando as margens do oeste exibem uma miríade de tons de verde e de formas geométricas de curvas suaves e sutil- mente intercaladas. Por um instante, Gabriel tem a sensação extraordinária de assistir ao nascimento do mundo. Mas, de repente, bem diante dele, exatamente ao norte, descoberta pelas últimas massas de nuvens, aparece a Mãe Lua! Perfeitamente redonda, enorme, ela permanece bem acima do lago cuja superfície reflete as montanhas. Por muito tempo ela se mantém assim. Por tempo suficiente para que Gabriel possa seguir o relevo sonhador de suas sombras, a transparência de seu brilho que encobre, pouco a pouco, a claridade do dia.
E depois, repentinamente, o sol ultrapassa os grandes Apus. Ofuscante, ele derrama seu fogo por toda parte. A superfície do lago, tão escura um instante antes, se transforma num reflexo espelhado impossível de se olhar. Então a lua se apaga. Com um sobressalto, Gabriel ouve o recitar às suas costas:
Ó QuilIa, nossa Mãe, como foi fria a noite!
Ó QuilIa, nossa Mãe, estreita-nos em teus braços, Ó Mãe Lua, abraça-nos! O Sol bebeu o leite do dia em teus seios, O Sol lançou o leite da vida em teu ventre, Ó, Mama Quilla! Vai repousar no fundo do Titicaca, Transpõe a sombra da noite, Volta a estar conosco no amanhã que ainda não nasceu, Faz crescer nossos ventres e nossos seios, Ó, Mãe Lua, No Mundo do Alto, No Mundo de Baixo, Estreita-nos em teus braços, Pois somos tuas filhas, Ó, Mama Quilia!
Elas são cerca de uma dezena de mulheres idosas que recitam a prece. Com os braços erguidos ao alto, elas fixam os olhos baços no disco cada vez mais diáfano da lua. Ainda uma vez o cântico do adeus sai de seus lábios enrugados, infla-lhes as bocas desdentadas. Elas pontuam cada um dos chamados com um breve movimento dos quadris que faz ondular duas capas bordadas com aplicações de placas de prata. Estranhamente, embora seus rostos não pareçam ter idade, sob os tecidos esplêndidos, os corpos envelhecidos parecem ter conservado uma graça juvenil.
Atrás delas, os prédios do Templo da Lua delimitam em três lados um pátio de contornos perfeitos. Treze portas de ombreiras e vergas de pedras ocres tão finamente trabalhadas quanto mantas se abrem para celas ligadas aos terraços superiores. Diante de cada porta está postada uma mocinha de túnica branca, com o peito coberto por uma placa de prata.
Gabriel não consegue deixar de estremecer. Ele se levanta e espera o fim da prece, com os músculos entorpecidos.
Quando as sacerdotisas se calam, três adolescentes saem de um dos aposentos do templo. Duas delas trazem nos braços cumbis de lã de vicunha tão finamente tecidos que parecem não ter nenhum peso. A terceira se dirige para Gabriel e lhe estende uma túnica longa ornada com desenhos simples, dourados e vermelhos.
Sem dizer uma palavra, ele tira a capa, ficando somente de camisa e calção de veludo. A mocinha o ajuda a passar a cabeça pelo orifício estreito da túnica que o cobre completamente, deixando visíveis apenas as pontas de suas botas. O odor animal da lã e das tinturas enche suas narinas. Ele lança um último olhar para as montanhas, agora inteiramente irisadas pelo sol da aurora, e se inclina diante da mais velha das sacerdotisas.
- Estou pronto, filha de Quilla - murmura respeitosamente.
As velhas o cercam e seguem à sua frente entrando num aposento de aspecto acanhado, iluminado apenas por alguns cotos de vela. Ali, cada uma coloca algumas folhas de coca num braseiro. Com uma solicitude estridente, elas empurram Gabriel para um longo cortinado de tapeçaria de cores discretas. Uma das sacerdotisas levanta a tapeçaria e entra num corredor escuro, estreito e estranhamente tortuoso que penetra obliquamente na parede. Cinco das outras velhas desaparecem pelo mesmo caminho. Afinal, Gabriel sente as mãos que o empurram para a escuridão absoluta do corredor.
Ele mal acabou de passar pela tapeçaria e não vê mais nada. Às cegas, mantém as mãos estendidas diante de si, tateando a superfície fresca da parede. A superfície do reboco de argamassa é surpreendentemente lisa, polida como couro pelos milhares de dedos que já a tocaram. O corredor se divide em dois, em ângulo reto para a esquerda, e se reduz brutalmente. Gabriel faz uma parada mas, às suas costas, uma velha, que está tão próxima que ele sente sua respiração regular sobre a nuca, murmura um protesto e lhe ordena que continue. Gabriel se posiciona de lado. Roçando a parede com o peito, ele avança com cuidado algumas toesas antes de descobrir, através de uma espécie de fenda que tem o exato tamanho para permitir sua passagem, um outro aposento, bem maior que o anterior e terrivelmente cheio de fumaça.
Ali, sobre uma das paredes, há quatro nichos em forma de ogiva, perfurados com pequenos orifícios quadrados e que deixam entrar alguma luz do dia. Do lado oposto, com duas vezes a altura de um homem, reluz um disco de prata ligeiramente abaulado. Em uma imagem dilatada, arredondada e distorcida, como que sobre um espelho malfeito, refletem-se as paredes do aposento e as sombras em movimento das mulheres. Abaixo, dois grandes braseiros de terracota ricamente pintados fumegam abundantemente e empestam o ar carregado. Ao odor azedo de estrume de lhama seco, que serve de combustível, se misturam os cheiros desagradáveis de gordura rançosa e de vísceras calcinadas, o sabor atordoante das folhas de coca queimadas e o cheiro acre de bolor da cerveja sagrada. A fumaça é tão densa, aquele fedor tão antigo e tão bem conservado, que parece que até as próprias paredes estão impregnadas dele.
Involuntariamente, Gabriel cobre a boca e o nariz com um movimento de recuo. Mas as velhas já se acotovelam ao seu redor. Algumas seguram suas mãos, seus braços e até mesmo seu pescoço, outras se agarram às pregas de sua longa túnica. Desse modo, como se fossem um único e estranho corpo unido, eles alcançam o centro do aposento, levantando turbilhões de fumaça acre. Com os olhos irritados, Gabriel vê a massa bizarra que eles formam se torcer em um reflexo líquido no disco de prata enquanto as velhas recitam em voz surda:
Ó QuilIa, nossa Mãe, estreita-nos em teus braços, Ó Mãe Lua, abraça-nos!
A mais velha das sacerdotisas atiça violentamente as brasas nos braseiros. Só então Gabriel dá-se conta de que o colo alto dos braseiros é decorado com uma cabeça de puma rugindo. A sacerdotisa joga neles uma chuva de folhas de coca, depois pequenas raízes cujo perfume, semelhante ao do incenso, por um instante encobre todos os outros odores. Mas, quase que imediatamente, Gabriel sente a irritação de seus olhos se tornar tão insuportável que as lágrimas afloram e se avolumam sob suas pálpebras. Segurando-o com firmeza, as mulheres que o rodeiam começam a se balançar para a direita e para a esquerda. Elas o arrastam em sua dança sapateada com tanta força que ele sente o peso de seu corpo desaparecer, como se fosse apenas um boneco que elas estivessem agitando enquanto gemem:
Ó Mãe Lua, No Mundo do Alto, No Mundo de Baixo, Estreita-nos em teus braços...
Agora, a sacerdotisa mais velha está diante deles. Ela levanta a mão direita e acaricia o disco de prata onde se move uma imagem cada vez mais alucinante, depois levanta bem alto uma jarra de chicha. Continuando seu requebrar enérgico, ela inclina a vasilha e espalha ao seu redor e até sobre as brasas o líquido acre, gritando:
Ó QuilIa, bebe por nós! Ó Mãezinha, bebe por ele!
O ar no aposento está absolutamente irrespirável, Gabriel tenta respirar com a boca bem aberta, as lágrimas escorrem de seus olhos tão dolorosamente que lhe parece ter areia rolando sob as pálpebras. Ele gostaria de passar as mãos nos olhos, acalmar o ardor, mas as velhas penduradas nele não largam nem por um segundo seus braços e mãos. É com dificuldade que ele percebe que a sacerdotisa coloca sobre os braseiros os tecidos magníficos das virgens cujas cores reluzentes se refletem esplendorosas, por um breve instante, no disco de prata.
Enquanto a fumaça é encoberta por um brevíssimo momento antes de redobrar em volutas negras e pesadas, o balançar das velhas torna-se mais nervoso e desordenado. Sobre os braseiros, os cum bis se retorcem, os fios de lã, tão delicados, se transformam em chamas curtas verdes e azuis devorando os admiráveis desenhos. As cores inigualáveis crepitam. Uma a uma, as dobras de tecido se desmancham sobre as brasas. Gabriel sente a fumaça penetrar em sua boca como uma pasta abrasiva, incendiando-lhe a garganta e os pulmões. Cada inspiração é uma morte. Seus dedos cerram-se violentamente sobre os ombros das mulheres, mas, com uma força espantosa para seus corpos idosos, elas o sustentam sem dificuldade e não param de recitar.
Abrindo os olhos com grande esforço, penosamente Gabriel consegue ver o disco de prata e a sombra da sacerdotisa. A náusea o domina e acaba por sufocá-lo, mas as velhas o seguram ainda com mais força.
De repente, faz-se o silêncio e os movimentos cessam.
Então ele consegue entrever a estranha dança da fumaça diante do disco de prata de Quilia. É uma fumaça de cores variadas. Aqui de um tom branco puro, ali um vapor amarelo, marrom, quase negro. Ou ainda turbilhões de um cinza que se torna verde, depois vermelho. Os movimentos são contraditórios e aberrantes. Pesadas espirais de fumaça recaem sobre um poderoso leito liso e ascendente antes de se dispersar em volutas transparentes, entremeando suas cores matizadas antes de se apagarem diante de um vapor confuso e brutal, enquanto vapores e fumos opacos turbilhonam em espiral diretamente contra o disco de prata como se nele estivessem escavando um poço.
Enquanto isso, a escuridão no aposento torna-se ameaçadora, as paredes e a estreiteza do corredor parecem fechar-se como um punho que se cerra. Gabriel sente sua garganta fechar-se também, como se o estivessem garroteando. Suas pernas, quadris, ombros, todos os seus músculos adquirem um peso tão extraordinário que ele não seria capaz de levantar nem um pé. Seu coração bate contra as costelas, como para despedaçá-las. Arregalando os olhos, a despeito da dor, percebe o esboço de um rosto no disco de prata. Mas, um segundo depois, não há mais nada exceto a escuridão e ele sabe que está morrendo. Vê o sangue escorrer de seus olhos e da boca.
Ele se vê mergulhar no vazio. Sem poder nem sequer emitir um grito, Gabriel solta-se das mãos que o seguram. Empurra as velhas longe, jogando-as no chão, e arrasta-se até a fenda na parede que serve de saída. Esfolando as palmas das mãos e a testa nas paredes por demais estreitas do corredor, ele finalmente escapa daquele aposento infernal e se precipita para fora do Templo com a boca aberta, escancarada, para engolir o ar fresco da manhã.
Ele precisa de um longo momento, prostrado sobre a esplanada relvada do Templo, com os olhos fechados, para recuperar os sentidos. Quando afinal levanta a cabeça, descobre a mais idosa das sacerdotisas de pé, a alguns passos. Mais para trás, diante das portas do Templo, está um grupo de mocinhas. Curiosamente, todas têm o semblante sorridente e alegre, e é uma gargalhada aguda que transforma o rosto da sacerdotisa numa máscara desdentada.
- Eu havia prevenido você, estrangeiro de pêlos cor de ouro! - exclama. - Eu disse que você não suportaria a Fumaça do encontro! Somente as mulheres e os homens muito velhos suportam a prova e são capazes de deslizar para dentro do disco de prata!
Passando as mãos sobre a cabeça latejante, Gabriel se levanta, lançando um olhar duro para a velha:
- Talvez eu não seja capaz de resistir à prova - resmunga. - Ou será talvez você que não seja capaz de produzir a Fumaça do encontro?
Mais uma vez a mulher muito idosa ri. Mas sua gargalhada é tão violenta quanto breve.
- Suas palavras nada mais são que um encrespamento nas águas do lago! - retruca em tom sério e mordaz. - Você me pediu que o levasse para junto da Coya Camaquen através da fumaça e eu disse que você não conseguiria. Já é a terceira vez que você tenta e a terceira vez que fracassa.
- Será possível que a Coya Camaquen não possa mais me ouvir? Será que ela passou para o Outro Mundo?
A velha sacerdotisa recebe suas perguntas com uma careta de desprezo.
- Você é pretensioso, estrangeiro de cabelos cor de ouro. Como não tolera a fumaça, pensa saber melhor do que eu o que significa o silêncio de Quilla! Pois fique
sabendo que se ela quisesse, ainda há pouco, poderia tê-lo feito sufocar e ter acabado com você de uma vez por todas! Desde sempre os domínios de Quilia são proibidos para os homens que ainda são vigorosos. Contudo, o Grande Pachacuti se iniciou e a Mãe Lua precisa de você.
Com um dar de ombros, Gabriel dá as costas para a velha e suas repreensões. Depois ele se afasta e começa a tirar a túnica longa com uma agilidade espantosa. Mas a sacerdotisa corre para junto dele e agarra sua mão.
- Não! - ordena ela. - Você não pode partir assim. Deve servir a Quilla para que ela perdoe sua grosseria.
- Que está querendo dizer?
Sem responder, a sacerdotisa faz um sinal na direção das mocinhas.
- Siga as Filhas da Lua e faça o que elas pedirem.
- Não - protesta Gabriel. - Acabou: para mim, por hoje basta dessas tolices!
- Siga-as - repete a sacerdotisa sem largar a mão de Gabriel. - Quilia quer assim e ela saberá responder às suas perguntas.
- Apinguela! Apinguela!
O grito da jovem mulher ressoa na proa.
- Apinguela! Apinguela!
As vinte mocinhas que ocupam a embarcação retomam em coro o mesmo grito, apontando com o dedo para uma ilhota de encostas suaves, que há pouco emergiram das águas do lago.
Gabriel levanta-se com dificuldade para ver melhor e agarra-se ao mastro da longa embarcação de bambu. Mas o balanço do barco sobre as ondas curtas e brutais o obriga imediatamente a tornar a sentar. Uma risada de zombaria saúda seu esforço inútil enquanto as mocinhas se põem a cantar com fervor:
O Sol, A Lua, O dia e a noite, A primavera e o inverno, A pedra e as montanhas, O milho e a cantuta. Ó Quilla, Tu és o leite e a semente, Tu abres as coxas Para o calor da noite, Ó Quilia, é tua vontade, Aquele que se afasta do Titicaca Já está no caminho de volta.
O vento do sul infla a estranha vela feita de totora, um tipo de cana delgada e flexível trançada numa trama bem fechada e que não fica longe de ter a mesma eficácia de um tecido de fio de algodão comum. O casco do barco é feito com o mesmo tipo de material vegetal fiado e torcido em cordões grossos reunidos em grandes toras confortáveis sobre as quais as jovens mulheres se mantêm deitadas. Entretanto, por ser desprovido de quilha, de remos e de leme, o barco avança aos poucos, com movimentos bruscos, governado somente pela vela ou com a ajuda de varas compridas quando o fundo do lago permite. Por isso, foi necessário quase um dia inteiro de navegação para se aproximar da ilhota que as Filhas da Lua chamam de Apinguela. E, durante todo esse dia, as acompanhantes de Gabriel não pararam de rir e de cantar.
Gabriel é o único homem a bordo e, ao longo de horas, o centro das atenções e das brincadeiras das mocinhas. Nenhuma de suas companheiras quis responder às suas perguntas: para onde o estão levando e para fazer o quê? O que Quilla quer dele?
- Você vai ver, você vai ver - respondem elas, às gargalhadas, visivelmente divertidas. - Mama Quilia só pensa em sua felicidade!
Elas também não aceitaram que ele as ajudasse na navegação. Empanturrado de chicha e de frutos silvestres, entorpecido pelo sol forte que rebrilha sobre o lago como uma chama branca, ele dormiu durante boa parte do dia e então despertou sobressaltado.
Agora, o vento já traz o frescor do anoitecer e a inclinação do sol alonga as sombras das margens rochosas da ilhota que se aproxima. Subitamente, as mocinhas se calam. Não se ouve nada além do rangido dos cordames no mastro e na embarcação, o quebrar das ondas cortadas pelo casco. Os semblantes ficam tensos, sérios e atentos. Surpreendido, Gabriel se levanta de novo. Seus olhos vasculham a costa da ilhota buscando um sinal de vida, uma embarcação que venha ao encontro deles. Mas as encostas da ilha são recobertas apenas por placas de rochas numa disposição caótica, semelhantes a estilhaços cristalizados, semeadas aqui e ali com tufos de ichu ou com arbustos açoitados pelas lufadas de vento.
- Apinguela! - murmura de novo a jovem que se mantém na proa.
E a mocinha que está mais perto de Gabriel estende o braço para a ponta leste da ilha.
- Ali - diz ela baixinho, indicando uma sombra maior que as outras entre as rochas que mergulham no lago. - Apinguela! O ventre da Mãe Lua está aberto.
Gabriel consegue distinguir na altura da linha d'água a larga abertura de uma gruta, semelhante a uma fenda cuja ponta superior voltada para cima oferece acesso ao coração da ilha.
Antes de sequer entrar na gruta, as Filhas da Lua se põem a trabalhar. Algumas recolhem a vela, enquanto outras pegam as longas varas para dirigir o barco. Outras ainda tiram as brasas que trouxeram protegidas em uma bolsa de couro e acendem, com muito cuidado, uma dúzia de tochas, enquanto quatro mulheres, no centro do barco, retiram os cumbis que envolvem uma urna de pedra e quinze pequenas estatuetas de ouro representando lhamas e mulheres que protegem com os braços os seios miúdos.
Quando a embarcação desliza para o interior da gruta, Gabriel percebe o estranho sopro de ar quente que sai de dentro dela. As chamas das tochas vacilam. Depois tudo se transforma numa tepidez calma. As paredes interiores são lisas, recobertas até o alto da abóbada natural por um musgo pouco espesso. A água é absolutamente parada, sem uma ondulação, e é de uma transparência tal que a luz das tochas é suficiente para enxergar o fundo pouco distante.
Todas as mulheres estão de pé, em silêncio, viradas para a frente. Gabriel também quer se levantar, mas duas mãos o obrigam a permanecer sentado. Impulsionada pelas varas, a grande barca avança na semi-obscuridade da gruta que, de repente, se separa em duas sombrias passagens apertadas. Sem hesitar, as Filhas da Lua seguem pela galeria da esquerda, a maior e cujo fundo parece escavar-se brutalmente, desaparecendo sob uma água verde-esmeralda, fora do alcance da luz das tochas.
Aqui, o estranho calor torna-se cada vez mais intenso. As gotas de suor já se acumulam sobre a fronte de Gabriel e escorrem em suas costas. As paredes da' gruta se estreitam mais e os bordos arredondados da barca de totora roçam levemente contra o musgo.
A embarcação ainda progride cerca de dez toesas, depois se imobiliza. Com enorme espanto, Gabriel descobre que um disco de prata, tão grande quanto o que havia na câmara dos sacrifícios do Templo da Lua, impede a passagem. Sem uma palavra, as mulheres enfiam as tochas em anéis esculpidos nas próprias paredes cobertas de musgo. Juntas, num murmúrio, elas retomam o refrão. Depois, tudo acontece tão depressa que Gabriel não tem tempo de protestar, nem mesmo de compreender direito.
Num abrir e fechar de olhos, as mais jovens dentre as Filhas da Lua se despem e mergulham na água. As outras, por sua vez, também ficam nuas. Constrangido, Gabriel se levanta, apoiando-se na parede da gruta. Ele quer desviar o rosto, mas as mulheres já estão levantando sua túnica e a tiram fora, e sem hesitar arrancam-lhe a camisa e puxam seus calções.
- Ei! - exclama, afastando as mãos. - Mas o que estão fazendo?
Sua voz explode dentro da gruta com a violência do ribombar de um trovão. Parece que até mesmo o disco de prata vibra com ela. Suas companheiras redobram seus esforços e rasgam as roupas que ainda lhe restam. E, como ele ainda luta, amarram-lhe os punhos com um cordão.
- Deus do céu, vocês são loucas! - exclama Gabriel mais uma vez, fazendo vibrar o ar da gruta.
Mas a vergonha da nudez, a embriaguez que ainda faz latejar suas têmporas, bem como a estupefação diante do que lhe está acontecendo o deixam fraco como um recém-nascido. Enquanto ele tenta desajeitadamente desatar o cordão em volta dos punhos, com destreza as mulheres amarram a outra ponta no sulco profundo entalhado ao redor de toda a urna de pedra.
Imediatamente depois, duas Filhas da Lua levantam a urna e, puxando Gabriel atrás delas, sem hesitar, vão jogar a urna por sobre a amurada dentro d'água. Com um grito de fúria, Gabriel se sente arrastado pelo peso da urna. Em um último esforço, ele tenta impedir a queda da pesada massa de pedra, mas o cordão corta-lhe os pulsos. Entregando-se, com um gemido de derrota, tem apenas tempo de respirar fundo uma última vez antes que seu rosto bata na superfície da água e ele seja totalmente engolido por ela.
Para sua surpresa, a água está morna, na mesma temperatura que o ar da gruta. Quanto mais ele se aproxima do fundo, mais quente está a água. A descida dura pouco tempo. Duas toesas, talvez três no máximo. Depois a urna se assenta no fundo com um choque surdo que reverbera na água. Com as pontas dos dedos ele toca no fundo rochoso. Acima, através das águas pouco agitadas, ele vislumbra a luz das tochas. Mas parecem estar muito distantes, inatingíveis.
De novo, ele tenta desatar as mãos. Mas é então que as sente ao seu redor: todas as Filhas da Lua agora o cercam, nadando habilmente; algumas estendem diante de si as estatuetas de ouro, cujos reflexos estriam a água como peixes. O ar começa a lhe faltar. O pânico se apodera dele ao mesmo tempo em que a dor toma seu peito. As mulheres não param de nadar ao seu redor, cada vez mais roçando nele, acariciando-o, apalpando-o. Ele tem vontade de gritar para que o libertem e ele possa aliviar seus pulmões em fogo. Contudo, o balé das mulheres parece se tornar cada vez mais lento e mais suave. É com dificuldade que percebe que elas levantam a tampa da urna para recolocar as estatuetas de ouro dentro dela.
Suas têmporas latejam com uma violência espantosa, o fogo que arde em seu peito se espalha pelo corpo todo e rasga seus músculos como se seu sangue, de repente, estivesse fervendo. A asfixia confunde seus sentidos. Gabriel tem a impressão de que ainda lhe acariciam o rosto, as nádegas, o ventre. Ele se debate, dá socos, choca-se contra corpos. Mas ainda é abraçado, cada vez mais intensamente. Coxas e braços o estreitam. Então, alguma coisa cede. Ele pára de pensar em viver ou morrer. Sente um corpo de mulher se apertar inteiro contra o seu e reconhece o calor de Anamaya. Imediatamente, ele se acalma. Sente-se aliviado, acalentado, protegido. Busca apenas o semblante da amada distante e jamais esquecida. Infelizmente, antes que consiga encontrá-lo, a língua de fogo retorna a seus pulmões. Um grito rouco rasga sua garganta.
Sem abrir os olhos, ele compreende que consegue respirar de novo. De corpo em corpo, de braço em braço, as faces deslizando de um peito d para outro, ele é carregado de volta para o barco. A dor de respirar é tão terrível quanto a da asfixia.
"Eu não vi o rosto dela", pensa Gabriel cheio de aflição.
Ele estremece, sacudido por tremores nervosos; seus dentes batem. É enxugado, mãos o acariciam e reanimam o sangue em suas veias. Quando abre os olhos, a visão ainda embaçada pelo galope de seu coração, vislumbra faces sorridentes inclinadas sobre ele.
- Não consegui ver o rosto dela - murmura mais uma vez.
- Mama Quilia só se mostra quando ela quer - responde uma mulher com doçura.
- Não o rosto de Mama Quilia - protesta Gabriel. - O de Anamaya!
- Quilia tem todos os rostos - responde outra mulher.
O calor retorna a seu corpo e a doçura das carícias finalmente se faz sentir.
Em um último esforço, ele tenta despertar toda sua consciência para reconstituir as feições de Anamaya, torná-las tão perceptíveis como se pudesse tocá-las com as pontas dos dedos. Em vão. São somente as carícias insistentes das Filhas da Lua que ele sente sobre seu corpo, lábios que buscam sua carne e seu prazer. Dedos que seguram seu sexo já ereto.
Sem abrir os olhos, ele percebe coxas que se abrem e quadris que vêm ao seu encontro. Ele se entrega às sensações, fugindo ao esquecimento de Anamaya.
Vilcabamba, março de 1539
- Escute! Escute!
Anamaya levanta-se no rio, com a água se agitando num turbilhão ao seu O momento é apenas esplendor. Na distância, na longa enfiada do canyon, o céu se incendiou, passando do dourado ao vermelho como na trama perfeita de um cumbi, enquanto permanece de um azul muito pálido, quase verde, no zênite.
Pela primeira vez depois de dias não choveu, e a umidade da selva está menos sufocante. Nessa hora, ao final do dia, as ribanceiras do rio encaixado nas verdejantes encostas escarpadas readquirem vida.
- Escute - murmura de novo Anamaya, o rosto voltado para a cabeceira do rio.
A alguns passos de distância, mergulhando nas águas rápidas com prazer, Curi Ocllo, a belíssima e jovem esposa de Manco, se imobiliza. Ela toma pé sobre os calhaus do leito do rio, levanta o corpo mais baixo e arredondado que o de Anamaya, mas de proporções perfeitas. Depois de alisar as sobrancelhas, ela cobre os seios de aréolas marrons com as mãos, vira-se na direção do vale, depois sacode a cabeça com incompreensão.
- O que você quer que eu escute?
Com a mão, Anamaya a intima a se calar. Seu olhar se levanta vasculhando até as mais altas ramagens que dominam a pequena piscina natural onde elas se banham. Os galhos se estendem e longas fileiras de folhagens se agitam como sob o efeito de um vento. Mas é apenas o balançar de jovens micos que se entregam aos prazeres de brincadeiras no frescor do crepúsculo.
Na verdade, somente ruídos ordinários e reconfortantes ressoam na floresta que se anima com o cair da noite. Os gluglus dos verdelhões-tecelões encobrem por breves
instantes o crepitar regular da cascata que penetra a vegetação num jato de espuma. O vôo de um bando de periquitos verdes atravessa o rio piando com estridência, e sua passagem desencadeia a cólera de uma dezena de araras vermelhas e azuis. Num instante, com um tagarelar furioso, elas dançam uma sarabanda diante de seus ninhos escondidos numa reentrância da encosta. Depois o silêncio retorna, e tudo o que resta é o murmúrio das águas.
- Estou ouvindo, mas não escuto nada - diz Curi Ocllo.
Ela mergulha de novo até o pescoço na água fresca enquanto Anamaya, com o olhar ainda alerta, vasculha as margens onde jovens tartarugas se pavoneiam sobre troncos caídos.
- Periquitos, foi isso que você ouviu - graceja Curi Ocllo alisando os cabelos fartos.
- Não - afirma Anamaya. - Tenho certeza de ter ouvido alguma coisa.
Enquanto isso, Anamaya por sua vez se deixa levar pela água. O rosto redondo de Curi Ocllo, de traços delicadamente desenhados, se aproxima. Anamaya sente as mãos da jovem mulher descansarem suavemente sobre seus ombros.
- Então, foi porque você ouviu como deve ouvir a Coya Camaquen. Coisas que não chegam aos ouvidos de uma mulher como eu.
- Pode ser.
- Com certeza - declara Curi Ocllo com uma careta de despeito. - Você e o Mestre das Pedras são capazes de realizar coisas tão estranhas, tão poderosas!
Com um pequeno movimento da mão, ela afasta um turbilhão de minúsculas borboletas brancas. Depois, graciosa, deixa-se boiar de costas até a margem coberta de limo e pouco profunda. De olhos fechados, ela oferece toda a nudez de seu corpo esplêndido às carícias da correnteza.
Com um sorriso nos lábios, Anamaya está a ponto de responder quando de novo levanta a cabeça, os ouvidos aguçados, o olhar buscando. Sim, ela percebe um sopro que vem da cabeceira do rio e que a envolve num murmúrio indistinto e carinhoso. Não é nada, apenas uma sensação. Poderia ser nada mais que uma brisa ligeiramente fresca, o farfalhar apenas audível de um vento leve entre os galhos das árvores e a folhagem espessa da floresta. Mas não pode se impedir de adivinhar nele outra coisa. Sentir ali uma outra presença. O hálito do puma!
- Gabriel!
Durante alguns segundos, ela é completamente tomada por sua presença. Com um tremor que lhe contrai o ventre, os braços apertados contra o peito que se arrepia ela se retesa para ouvir melhor, para sentir melhor ainda. A carícia invisível a envolve como um sussurro. Ela tem a impressão de sentir o toque das palmas das mãos e o hálito de Gabriel sobre sua pele trêmula, arrepiada. A emoção é tão violenta que ela fecha os olhos num abandono involuntário. Sem sequer se dar conta, ela murmura seu nome.
E depois o sortilégio cessa tão brutalmente como começou. Ele se apaga, subitamente, no ar quente e úmido da floresta, como se fosse uma alucinação. Anamaya se descontrai e volta a abrir os olhos. Tudo está como antes. O crepúsculo incendeia o céu ainda mais e a sombra se alonga entre as verdejantes margens escarpadas. Os micos, excitados com a aproximação da noite, tagarelam aos gritos no alto das ramagens, os papagaios berram para afastar os periquitos enquanto pequenas nuvens de borboletas voam graciosamente acima da espuma fervilhante da cascata em direção ao alto.
- Que foi que você sentiu? - pergunta com a voz trêmula Curi Oclo, que tornou a acocorar-se dentro d'água.
Anamaya suspira com uma ligeira risada. Os olhos ardentes e escuros da jovem esposa de Manco a escrutam cheios de uma curiosidade mesclada com temor.
- Você viu alguma coisa! - afirma em tom insistente. - Você ficou tão estranha por um instante. Como se não estivesse aqui...
Com um sorriso constrangido, Anamaya se deixa deslizar na água. Ela esconde a nudez como se Curi ocllo pudesse perceber em sua pele algum traço da estranha carícia de Gabriel que os Poderosos do Outro Mundo acabam de lhe transmitir. Com a palma da mão ela detém a água borbulhante do rio, depois asperge os ombros e a nuca.
- Para mim seria difícil explicar.
- Quer dizer que é proibido.
- Não, não é proibido. Só é difícil de explicar e difícil de compreender.
Um biquinho amuado franze os belos lábios ainda infantis de Curi Ocllo. Ela balança a cabeça para trás, a cabeleira agitada como uma alga negra por um instante pela correnteza, enquanto seus seios arredondados emergem da água parecendo seixos com reflexos dourados.
- Agora devemos voltar - diz Anamaya.
Uma risadinha, ao mesmo tempo zombeteira e enciumada, sacode o ventre de Curi Ocllo.
- Eu sei o que você não quer me contar, Coya Camaquen. Você pensou no estrangeiro que você ama, aquele a quem chama de puma!
Anamaya hesita antes de sorrir e confessar.
- Eu não pensei nele. Senti a presença dele.
- Sentiu? Sentiu como se ele a tomasse nos braços? - exclama Curi Ocllo, agora de pé, com os olhos arregalados.
Anamaya se contenta em rir e concordar balançando a cabeça antes de estender a mão para segurar a da outra mulher e puxá-la na direção da margem, onde suas roupas estão penduradas nos galhos baixos de um ficus.
- Isso acontece com freqüência - pergunta Curi Ocllo - que ele consiga estar com você dessa maneira?
Anamaya espera até sair da água para responder, a voz um pouco abafada como se a confidência fosse uma confissão:
- Ele não está verdadeiramente comigo. Mas sua presença está ao meu redor. Ele me procura, está pensando em mim.
- Não tenho certeza de estar compreendendo.
- Foi o que eu disse, é difícil de explicar. Onde quer que ele esteja, está pensando em mim, ele também quer estar junto de mim. De modo que tenta penetrar no Outro Mundo para vir ter comigo.
- Como é possível?
- É possível porque ele é o puma... e porque sacerdotes ou sacerdotisas devem ajudá-lo a fazer isso!
Anamaya conclui a frase com uma pequena risada de deleite. Curi Ocllo, acabando de se vestir, lança-lhe um olhar ao mesmo tempo desorientado e desconfiado.
- Não estou zombando de você, Curi Ocllo - prossegue Anamaya docemente. - O mundo não é apenas o que se vê e os Poderosos Ancestrais velam por nós. É preciso confiar neles.
- Sim, sim, eu sei! Todos vocês dizem isso, você, os sacerdotes, o Mestre das Pedras. Mas o que de fato parece é que os Poderosos Ancestrais não querem velar por todo mundo com o mesmo cuidado. Talvez até mesmo dêem as costas para Manco e para mim... assim como para quase todos os incas!
A voz da jovem mulher está enrouquecida pela cólera e pelas lágrimas. Com passo brutal, ela sai pelo caminho aberto na floresta como se quisesse fugir por ali.
- Curi Ocllo!
- Há quanto tempo o estrangeiro está longe de você, Anamaya? - pergunta Curi Ocllo em tom duro, sem se virar.
- Vinte e oito luas.
- E há vinte e oito luas você não sabe onde se encontra esse homem a quem chama de puma?
- Não.
- Contudo, a despeito de todo esse tempo, ele não se esquece de você e você não se esquece dele. A despeito de todo esse tempo, você o sente a seu lado e ele deve sentir você ao lado dele.
- É possível.
- Mas sem dúvida! Eu tenho certeza de que você o vê em seus sonhos, que por vezes até mesmo faz amor com ele durante o sono! Vinte e oito luas! Sim, você tem razão: os Poderosos Ancestrais protegem vocês e não querem separá-los. Você e um estrangeiro!
Curi Ocllo faz meia-volta, barrando o caminho de Anamaya.
- Por quê? Você pode me dizer por que, Coya Camaquen?
Ela gritou e, durante alguns segundos, o rumor incessante da floresta se cala.
- Não compreendo sua pergunta, Curi Ocllo - responde Anamaya com doçura.
A angústia e o sofrimento desfiguram o belo rosto da jovem rainha.
- Eu - balbucia ela -, faz apenas quatro luas que estou separada de Manco. Meu sono permanece sem sonhos, meus banhos são solitários. Aonde quer que eu vá, não há nenhuma presença de meu amado ao meu redor! Os Poderosos Ancestrais me cercam de frio. Eles me ignoram, Coya Camaquen, eles não me dão mais nenhum apoio. E creio que eles não dão mais apoio nem a Manco.
- Manco faz o que deve fazer - diz Anamaya em voz baixa, o coração apertado por compreender bem demais as verdades que atormentam Curi Ocllo. - E ele ama você. Ele ama você como não ama nenhuma de suas outras esposas.
- Ele me ama, mas não posso estar com ele. Deixa meu leito frio. Ele me ama, mas eu não sinto suas mãos nem sua boca me tocarem. Ele me ama, mas amanhã me parece tão glacial como um dia de inverno nas mais altas montanhas.
- Ele está numa guerra, Curi Ocllo. Manco está em combate contra os estrangeiros e esta guerra é terrível.
Com as faces agora banhadas de lágrimas, Curi Ocllo sacode a cabeça.
- Não, Anamaya, você sabe melhor que eu. Manco não está fazendo a guerra, ele a está perdendo.
- Curi Ocllo!
- Quem não é capaz de ver esta verdade? O Único Senhor Manco, meu esposo, está sozinho e suas forças se enfraquecem. Seu irmão Paullu se aliou aos estrangeiros.
O Sábio Villa Oma faz a guerra por conta própria. Você e o Mestre das Pedras estão aqui, escondidos na nova cidade da selva, Vilcabamba, sempre ocupados com seus Poderosos Ancestrais, mas longe de Manco, meu bem-amado. E até eu estou aqui!
- Curi Ocllo - murmura Anamaya, tomando-a nos braços, incapaz de contradizê-la.
- Ele está sozinho! Os estrangeiros capturaram seu filho Titu Cusi, que ele tanto ama! Que traição! Eles levaram até mesmo os Corpos Secos dos Poderosos Ancestrais para Cuzco... Com tristeza, Anamaya não encontra nada para dizer que possa amenizar esse quadro terrível. Ela se contenta em acariciar a face da amiga dizendo baixinho:
- Não acredite que eu tenha abandonado o Único Senhor Manco, Curi Ocllo. Eu sempre estive perto dele e ele sempre foi como um irmão para mim. Nada do que fazemos aqui, em Vilcabamba, é contra ele, muito pelo contrário. O Mestre das Pedras construiu a cidade para que um dia seu bem-amado Manco possa viver aqui como deve viver um Filho do Sol.
Curi Ocllo estremece libertando-se dos braços de Anamaya. Orgulhosamente, enxuga as lágrimas. Mas o sofrimento a faz franzir o rosto mais uma vez. Com uma voz de criança perdida, ela exclama.
- Ah, Anamaya, tenho tanto medo do amanhã!
O sol lança seus últimos raios de fogo quando elas alcançam as primeiras muralhas de Vilcabamba. A cidade inca totalmente nova, construída de acordo com os planos precisos de Katari, o Mestre das Pedras, resplandece com uma estranha serenidade.
Seus terraços e as canchas são perfeitamente dispostos ao redor da grande praça das cerimônias e diante do Templo do Sol, um prédio comprido com dez portas. As paredes dos aposentos do templo, assim como as dos recintos fechados das canchas, são revestidas de um reboco de argamassa de cor ocre que se incendeia como ouro na noite que cai. Como uma pedra preciosa, ela capta o adeus do Sol, enquanto o rio próximo e os terraços férteis e bem cultivados se apagam na escuridão.
O céu noturno já pesa sobre as montanhas ao norte e os vales sinuosos de Pampakona a leste, cobertos de cedros e de caboas gigantescos onde se rasgam retalhos de bruma.
Um silêncio apenas ligeiramente perturbado por gritos de pássaros envolve as duas mulheres e torna mais lento seus passos na relva úmida. Elas mantêm os olhos cravados nos picos ainda reluzentes, ao sul da cordilheira. Depois, tão brutalmente como se as neves eternas e as geleiras tivessem sido cobertas, a escuridão as esconde.
Rãs, muito próximas, coaxam com violência e se calam subitamente. É então que Curi Ocllo tem um sobressalto e agarra o braço de Anamaya ficando imóvel. Sem dizer uma palavra, ela aponta com o dedo para um pequeno bosque alongado, uma compacta massa de árvores que cercam um paredão. As grandes folhas balançam, se vergam e deixara aparecer um jovem puma de olhar espantado. Sua pelagem ainda muito (:lara reluz na penumbra do anoitecer.
Ele avança, agilmente, saltitando na direção delas, as patas poderosas deixando pegadas no solo. Anamaya não consegue mais respirar. Ela ouve o pequeno gemido de pavor de Curi ocllo. O puma está tão perto que elas discernem com precisão as pequeninas sombras brancas ao redor de seus olhos, o halo pálido que marca o contorno de suas orelhas finas. Ele se detém a dois passos de Anamaya e procura seu olhar. Sua boca se entreabre emitindo um longo e doce ganido. E com um salto ele desaparece em meio à folhagem.
Anamaya e Curi Ocllo permanecem petrificadas por um instante, acompanhando o ruído suave da corrida do felino que se distancia em direção à floresta. Quando Curi Ocllo, com o peito ainda erguido pelo fôlego retido pelo medo, vira-se para Anamaya, descobre o sorriso de felicidade que transfigura o semblante de sua amiga.
- Ah, você tinha razão - sussurra-, tinha toda a razão: ele estava bem perto de você.
Lago Titicaca, Copacabana, abril de 1539
- Senhor Gabriel!
O menino de pé na soleira da porta do aposento tem apenas dez anos. Contudo, seu semblante é tão severo que qualquer pessoa lhe daria alguns anos a mais sem hesitar.
- Deixe-me em paz, menino! - resmunga Gabriel. - Deixe-me dormir senão corto você em pedaços!
- Senhor Gabriel, não deve dormir mais! - retruca o menino sem se deixar impressionar.
Gabriel suspira entreabrindo os olhos.
- Por todos os santos! Parece que realmente isto incomoda você, Chillioc. E por que você quer me proibir de dormir quando mal amanheceu?
- Está chegando uma pessoa, senhor Gabriel. Uma pessoa que veio ver o senhor.
- É mesmo?
Dessa vez, Gabriel dá um pouco mais de atenção ao garoto que continua parado na soleira da porta. No pátio ressoam alguns ruídos matinais anunciando que as mulheres já preparam a refeição da manhã.
Soerguendo-se com cuidado para não balançar a rede, Gabriel pergunta:
- Quem é essa pessoa e como você sabe que veio me ver?
- O chaski disse: "Um estrangeiro chega a cavalo. Ele é velho e está cansado. Já ultrapassou Copacabana e vai na direção de Cusijata!"
O menino se cala; depois, com um pequeno dar de ombros, acrescenta:
- Se um estrangeiro vem até aqui, só pode ser para se encontrar com você.
Gabriel não consegue conter um sorriso. Ele se levanta, enquanto a rede balança suavemente.
- Traga minha túnica, Chillioc - ordena. - Um estrangeiro velho e cansado, você disse? Ele tem pêlos brancos no rosto?
- Acho que não. O chaski disse apenas que não se podia ver seu rosto porque estava todo coberto por um pano. E que não está longe e estará diante de sua cancha antes que sua sombra diminua um palmo.
Depois de se vestir, Gabriel lança um olhar intrigado para o menino. Quando ele sai do aposento e aparece no pátio, as criadas ocupadas ao redor da fogueira, sob o pequeno alpendre que serve de cozinha, o saúdam com um sorriso e o convidam a se juntar a elas. Gabriel recusa com um movimento de cabeça e põe a mão sobre o pescoço do garoto para mantê-lo a seu lado.
- Muito bem, Chillioc, acho que vou precisar lhe agradecer por ter-me acordado. Então, venha comigo, para receber o estrangeiro.
O que eles avistam inicialmente é tão estranho que mesmo Gabriel leva algum tempo antes de poder distinguir a silhueta de um homem a cavalo, O vulto parece um bizarro montículo de panos e cobertas, algumas espanholas e outras índias, que se move entre os terraços que se debruçam sobre a margem do lago.
- Seja lá quem for esse estrangeiro, não parece estar passando muito bem - comenta Gabriel puxando o menino.
Quando eles estão a cerca de vinte toesas da figura estranhamente trajada, o cavalo se imobiliza e o homem escondido sob as pregas das mantas parece a ponto de desmontar.
- Hola!- grita Gabriel apertando o passo. - Hola, compaíero! Quem é você?
Nenhuma resposta atravessa os tecidos. De repente, desconfiado, Gabriel modera o passo e, prudentemente, puxa Chillioc para trás.
- Fique aqui, menino. Não se aproxime mais! O sujeito poderia querer nos fazer mal e ter uma besta escondida debaixo dos panos.
O garoto obedece a contragosto, lançando-lhe um olhar de censura. Gabriel observa por mais um instante o homem e o cavalo que permanecem tão imóveis como se não estivessem mais vivos, sem conseguir distinguir a forma de uma arma. Na verdade, nada do cavaleiro é visível, nem um pedacinho de pele, nem um fiapo de pêlo. Nem um olhar. Com um calafrio de inquietação, Gabriel se pergunta se não tem diante de si um cadáver transportado obstinadamente por um cavalo exausto.
- Hola! Hola, compaíero!- grita Gabriel novamente, mas em voz mais alta.
O único efeito de seu grito é um estremecimento de medo do cavalo, que recua uma ou duas toesas, girando para o lado. Só então Gabriel descobre o hábito de grossa lã marrom que se dobra em pregas sobre as descobertas botas do cavaleiro. E, ao mesmo tempo, uma mão crispada sobre as rédeas do cavalo. Aquela mão tão facilmente reconhecível entre todas, com o dedo indicador e o médio colados um ao outro, formando um único dedo!
- Santo Deus! Frei Bartolomé! Chillioc! Chillioc, venha me ajudar! Com algumas palavras doces, Gabriel vai se aproximando do cavalo. Então, enquanto com uma das mãos acaricia-lhe a cabeça, com a outra agarra com firmeza um dos anéis do freio.
- Chillioc, chegue mais perto, não precisa ter medo...
- Não estou com medo, senhor Gabriel!
- Perfeito! Então, segure esta tira de couro e mantenha-se bem na frente do cavalo, sem puxar...
Enquanto o menino imobiliza o animal, Gabriel empurra para trás o amontoado de panos. O que ele descobre faz seu rosto se contrair numa careta. Adormecido ou desmaiado, Bartolomé está acocorado sobre a sela. Seu hábito de grossa lã marrom está rasgado de alto a baixo. Mas é seu rosto, sobretudo, que mal se consegue ver, todo enrolado em velhas ataduras manchadas de marrom-escuro por sangue coagulado.
- Deus do céu! - exclama Gabriel por entre dentes, segurando a mão de Bartolomé. - Frei Bartolomé! Frei Bartolomé, acorde!
O olho visível não pestaneja. A mão que Gabriel segura na sua está tão magra que parece não ter mais nenhuma carne. Por um instante estupefato, Gabriel hesita com relação à conduta a seguir. Depois, largando Bartolomé, ele se vira para o menino.
- Venha até aqui, Chillioc.
Ele o segura pela cintura e o levanta para que o menino possa montar na garupa do cavalo, bem atrás da sela.
- Ponha os braços em volta de meu amigo para que ele não caia - explica, puxando as mãos de Chillioc para a maçã do arção da sela. - Isso, assim mesmo. E segure-se bem enquanto eu conduzo vocês até a cancha.
E como o menino, com o lado do rosto apertado contra os panos fedorentos, faz uma careta de nojo, Gabriel esboça um sorriso.
- Ele está com um cheiro horrível, mas é apenas o cheiro dos estrangeiros quando chegam ao Titicaca!
Só bem depois de terem as mulheres, com grande cuidado, lavado seu ferimento, é que Bartolomé começa a pestanejar. Seus olhos, muito fundos nas órbitas, buscam referências ao seu redor. Um som esgarçado finalmente escapa de seus lábios cobertos de crostas.
- Gabriel?
- Estou aqui, amigo Bartolomé.
Interrompendo os cuidados das mulheres, Gabriel segura a mão descarnada de Bartolomé. Seus olhares sorriem e Gabriel percebe o alívio que acalma a respiração de seu amigo. Nunca, até então, ele havia visto Bartolomé nu, mas o que pôde verificar ao ajudar as mulheres a despi-lo de seus ouropéis era pura e simplesmente estarrecedor.
A magreza do padre era tamanha que a pele sobre suas costelas e quadris estava lustrosa como uma película a ponto de se partir. Hematomas e feridas mal cicatrizadas cobriam seus braços e pernas. Ao retirar de seu rosto os trapos que serviam de curativo, eles descobriram, rasgando a carne e a barba maltratada, um longo corte enviesado abrindo- lhe a têmpora e a face esquerdas. A ferida malcheirosa, supurada e em vários pontos infeccionada, onde se retorciam alguns minúsculos vermes lívidos, arrancou exclamações horrorizadas das criadas.
Depois de lavada, limpa e tratada com cinzas e o suco de uma raiz ácida, o ferimento foi recoberto com um emplastro verde que dava ao monge uma aparência de homem com dois rostos.
- Eu não sei como conseguiu arranjar este corte, meu querido amigo - comenta Gabriel em voz baixa e afetuosa -, mas fizeram-lhe um belo trabalho.
- Estou aqui! Graças a Deus, estou aqui com você, isto é tudo o que importa!
Um sorriso fugaz franze seus olhos exaustos e ele acrescenta:
- Acreditei que nunca conseguiria chegar aqui. Mas você vê, Deus sabe impor sua vontade quando quer...
- Quem dera, por vezes Ele pudesse impor essa vontade com mais doçura - retruca Gabriel com ironia, pegando uma tigela. - É um pouco de caldo de quinua. Você precisa comer. Está tão magro que mais parece uma pluma ao vento!
Depois de ter tomado quatro colheres, Bartolomé afasta a mão de Gabriel.
- Faz onze dias que tomei a estrada para vir me encontrar com você. Estávamos voltando do sul, onde os Pizarro dominaram a insurreição de Tisoc, o general de Manco. Ele foi feito prisioneiro e... Oh, é indizível! O horror, meu amigo, o horror todos os dias!
A voz soa seca, as palavras hesitantes, bruscas e nervosas. Gabriel sabe que Bartolomé precisa falar. E conhece melhor do que ninguém as imagens que perseguem o monge. Não foram as mesmas que o perseguiram durante meses e meses?
- Crianças, mulheres, velhos! - prossegue Bartolomé ofegante. -Todos os dias, todos os dias, massacres, humilhações. E quando Tisoc foi capturado, suas tropas vencidas,
Gonzalo ordenou que a repressão fosse ainda mais feroz! Fossas com paus ferrados para atirar os homens e as mocinhas violentadas. Casas incendiadas cheias de pobres infelizes que eram queimados vivos como se fossem folhas no outono! Ah, Gabriel...
- Eu sei, amigo Bartolomé. Eu sei. Já fiz esse caminho em companhia de Almagro, alguns anos atrás. Não esqueci nada, pois essas coisas não se esquecem.
Agarrando a túnica de Gabriel com os dedos que não passam de ossos, Bartolomé se sustenta como se quisesse expurgar sua memória profanada por demasiado horror.
- Eu me lembrei de suas palavras, Gabriel: "Eu não espalhei o sofrimento, mas também não o impedi, o que acaba dando no mesmo." Compreendi e, como a você, minha impotência me deixou envergonhado! Ó, Senhor, creio até mesmo ter-vos insultado ao me obrigar a manter os olhos abertos diante de tanto sofrimento...
- Bartolomé!
- Não, deixe-me falar! Deixe! Minha garganta fede com o ar que respirei lá, minhas narinas ainda estão cheias do odor das crianças queimadas Gabriel! E se eu durmo, eu as vejo... Cristo! Cristo! As chamas queimam em mim, elas me calcinam...
Com gestos delicados, Gabriel e as criadas passam lenços úmidos e frescos sobre a fronte e o torso de Bartolomé. Mas nada é capaz de interrompê-lo.
- As mulheres que tinham sido acorrentadas. Nenhuma tinha mais de vinte anos! Infelizmente, acabei sendo apanhado de surpresa. Os monstros! Os monstros! Ser um servo de Deus não me protegeu de nada. Sem dúvida o Senhor quis deixar marcado em minha carne o sofrimento de todos os seus filhos... Jesus fez isso, sim, Ele! Sim, Ele quis me marcar, Gabriel! Pois são suas crianças, é preciso que todos saibam: os índios também são filhos de Deus...
- Calma, Bartolomé, calma!
- Mas elas conseguiram fugir antes que os soldados me moessem de pancadas e tentassem me cortar a cabeça. Eu consegui, Gabriel! Pelo menos aquelas conseguiram fugir... Mas quantas? Vinte pobres crianças. Havia tantas, por toda parte! Por toda parte!
A voz de Bartolomé, à beira do delírio, de repente tornou-se aguda e penetrante. Gabriel põe a mão sobre sua testa para tranqüilizá-lo.
- Acalme-se, meu amigo, estou aqui e vamos cuidar de você...
- Eu fugi, viajando apenas durante a noite, para que não me seguissem! Como animais selvagens. Eles são como animais selvagens, suas presas no inferno...
- Bartolomé, vamos lhe dar uma poção para beber e você vai dormir.
- Não, não, preciso contar a você!
- Nós teremos todo o tempo do mundo amanhã. Descanse...
- Eu vim para lhe pedir uma coisa, Gabriel. Uma coisa importante! Não há mais ninguém, só você que...
Mas Gabriel fez um sinal para as mulheres, que já compreenderam pela voz e pelo comportamento febril de Bartolomé o que devem fazer. Enquanto ele segura o padre pelos ombros e o levanta com delicadeza, elas passam um braseiro de erva fumegante sob as narinas do monge. Quase que imediatamente ele relaxa, torna-se mais dócil e bebe um líquido que o faz adormecer em alguns instantes.
Somente dois dias depois, no final da tarde, Bartolomé, com o espírito finalmente mais calmo, está em condições de fazer sua primeira refeição de verdade. Gabriel mandou que pusessem seu leito num dos aposentos abertos que dão para as margens do lago. As mulheres o velaram, dia e noite, acompanhando o estado de coma em que o mantiveram com poções até que a febre baixá-se. Quando os olhos de seu amigo se abriram, Gabriel mandou trazer frutas e a infusão de coca para que ele pudesse começar a se recuperar com alimentos doces. E, dessa vez, é com uma fome que faz tremer seus dedos que Bartolomé devora o que lhe é oferecido.
- Amigo Gabriel, eu lhe devo a vida - comenta ele com a voz esgarçada, limpando a boca depois de um longo silêncio onde se percebe um pouco de constrangimento.
- Nesse caso, estamos em pé de igualdade. Sem você, há muito tempo eu teria apodrecido naquela prisão de Cuzco.
- Eu delirei e disse muitas besteiras, não foi?
- Infelizmente, não, você disse apenas verdades. Esqueça isso. Estou feliz por vê-lo aqui, perto de mim, e finalmente com algum apetite.
- Uma delícia essas frutas - murmura Bartolomé inclinando a cabeça.
- Seria de acreditar que foram criadas para o paraíso.
Com a cabeça envolta num curativo feito com cuidado, que afastou para o lado para poder saborear melhor o suculento caldo dos abacaxis e das goiabas que parecem trazer de volta um pouco de vida a seu rosto emaciado, ele deixa o olhar vagar sobre o azul espelhado do lago. Nessa hora do dia, as montanhas estão cobertas por nuvens densas que unem seus picos uns aos outros. O reflexo das encostas vertiginosas está esfumaçado sobre a superfície do Titicaca, tingindo-o de uma cor mais escura, mais opaca.
- Começo a compreender por que você veio se refugiar aqui - aprova Bartolomé com um sorriso débil. - Você tinha razão: é difícil imaginar uma paisagem mais bonita e mais pacífica.
Ele se cala bruscamente, os lábios comprimidos por uma gravidade dolorosa.
- Depois do que vi nesses últimos meses - prossegue -, é como se Deus finalmente me concedesse um pouco de repouso e quisesse me mostrar que a harmonia ainda existe neste mundo!
Gabriel lança-lhe um olhar surpreendido. A grande bandagem que deforma a face esquerda do monge e envolve seu crânio acentua ainda mais sua fadiga e prostração. Então, esboçando um sorriso amargo, ele concorda com um pequeno sinal de cabeça.
- Quando eu descobri este paraíso, não estava em melhor estado que você, Bartolomé! E, deixando Deus de lado, refleti e cheguei à mesma conclusão. Sim, realmente parece que o Titicaca deve ser nosso refúgio quando o mundo dos homens se torna desumano demais...
- Desumano!
É quase uma risada que escapa da garganta de Bartolomé, um gracejar cheio de amargura.
- Desumano! Esta é a palavra exata! Infelizmente, Gabriel, devo confessar que você foi mais inteligente do que eu. Como estava certo em fugir de nós e se manter à distância dos Pizarro depois daquela terrível batalha que arruinou Cuzco! Espero que o Senhor me perdoe: você me alertou, mas eu não quis escutar suas palavras. Somente hoje compreendo o que você me disse quando estávamos em sua cela e os incas se preparavam para nos exterminar: "Desde então, para o futuro, aos olhos das pessoas deste país, todos os espanhóis são iguais... Para eles, todos nós merecemos ser exterminados. É esse o resultado da política de Hernando e de Almagro e de seus cúmplices infernais, como Gonzalo, a quem eles permitem fazer tudo!" Você tinha razão do princípio ao fim. Três anos se passaram e as coisas só fizeram piorar.
Com o peito sacudido pela emoção, Bartolomé cala-se por um instante, de olhos fechados.
- Gabriel - pergunta, num murmúrio quase inaudível -, como Deus pode querer uma coisa dessas? Onde e quando Ele finalmente ordenará o castigo? Ah, meu amigo, meu amigo! Por vezes sou tomado pelo desejo de ser aquele através de quem ele virá golpear esses demônios que nos tornamos!
Gabriel percebe as lágrimas nos olhos de seu amigo e desvia o olhar com pudor. Um breve silêncio os une na contemplação do lago, enquanto gritos de crianças e chamados ressoam na margem e uma barca se afasta do povoado em direção às ilhas. Gabriel pega um abacaxi cortado e observa sombriamente a polpa perfumada como se ela escondesse algum misterioso veneno.
- Este país é como esta fruta. Ele aspira apenas a disseminar suas riquezas e seus mais doces perfumes. Aqui, na margem do Titicaca, por vezes me parece que estou no limiar de um grande mundo aberto e que nos espera, que se oferece a nós e que nós obstinadamente mantemos invisível. Seria necessário muito pouco para que a paz enriquecesse todos os espanhóis mais que todas as carretas de ouro.
- Oh, a paz! - exclama Bartolomé com sarcasmo. - De minha parte, já não peço mais tanto. Ficaria satisfeito se dom Francisco e seus irmãos se conduzissem com um pouco de comedimento em vez de alimentar o sofrimento e as lágrimas. Como se a praga da guerra com os incas não fosse suficiente, agora é a guerra civil que se desencadeia furiosamente entre os espanhóis!
- Eu soube que o "Zarolho" foi condenado por Hernando.
- A verdade é que dom Diego Almagro foi assassinado! Ele cometeu um erro fatal. Depois do fim do cerco, quando os irmãos do Governador estavam enfraquecidos, ele se apoderou da cidade, aprisionando Hernando e Gonzalo. Posso lhe garantir que tentei dissuadi-lo de fazer isso. Não para dar apoio a Hernando, mas porque o efeito desse golpe era mais que previsível! Infelizmente, que valor tinha a palavra de um homem da Igreja diante da obstinação de um velho convencido de ser, ao longo de anos, vítima do logro dos Pizarro? Não se passava uma noite sem que Almagro não sonhasse com o ouro do resgate de Atahualpa e da partilha de Cajamarca de que o Governador o havia despojado. Seu ódio e seu desejo de vingança eram tão profundos que o faziam perder a razão por completo. Ainda se aceitaria que ele se apoderasse de Cuzco, mas encarcerar os irmãos Pizarro era como estender a mão para o aguilhão peçonhento do escorpião... Tão logo puderam, eles se livraram dele com a mesma emoção com que se torce o pescoço de uma galinha!
Gabriel sacode a cabeça.
- Tenho más lembranças demais de Almagro para lamentar a morte desse velho cruel. Contudo, nisso reconheço muito bem as manobras de Hernando e de Gonzalo!
- Eles são loucos! Todos loucos! Dali por diante, a vingança passou a trocar de campo como uma bola no jogo de péla. Alguns apóiam os Pizarro e outros sonham apenas em se apropriar de seu poder e de suas riquezas. Todos sonham unicamente em estripar o clã adversário!
Gabriel não consegue conter uma pequena risada maliciosa. Bartolomé lança-lhe um olhar de censura e apalpa sua bandagem como se pudesse avaliar todos os sofrimentos do Peru.
- A verdade, Gabriel - suspira-, é que brevemente nós, os espanhóis, iremos nos destruir mutuamente e com mais eficácia que os incas jamais puderam fazê-lo! Que Deus Todo-poderoso possa nos perdoar! A menos que Ele considere que está na hora de punir cada um desses homens pelo horror infinito que engendram neste Novo Mundo!
As últimas palavras de Bartolomé soaram com veemência. Gabriel se cala por um momento, com o olhar perdido na distância sobre os reflexos do lago, antes de perguntar.
- Quer dizer que a guerra contra Manco arrefece?
- Manco está em vias de perder sua guerra. Durante sua breve supremacia, Almagro criou muita confusão entre os incas ao nomear rei o próprio irmão de Manco, Paullu. Muitos índios tomaram seu partido. Atualmente, Manco se encontra isolado e enfraquecido. Ele perdeu batalhas, cada vez mais se embrenhando no interior da floresta como única defesa. E depois, sofreu dois terríveis golpes...
Bartolomé demonstra hesitação, enquanto Gabriel segue suas palavras com a maior atenção.
- Seu filho foi capturado. Um garotinho ainda muito jovem, chamado Titu Cusi...
- Titu Cusi! - murmura Gabriel, revendo o rosto do menino que brincava em Ollantaytambo e que lhe havia perguntado: "Todos os estrangeiros são iguais a você?".
- E o Inca Paullu recuperou e mantém junto de si, em Cuzco, as múmias de seu clã... Você sabe, sem dúvida melhor que eu, o que isso significa para o moral de Manco.
- Para os incas, os senhores, bem como para a gente do povo, se as múmias estão com um Poderoso Senhor, quer dizer que os Ancestrais o apóiam e aprovam suas decisões - declara Gabriel por entre dentes, franzindo as sobrancelhas. - E isso é muito importante.
Bartolomé, de olhos fechados, espreme o sumo de uma ameixa roxa entre os lábios ressequidos. Um sorriso de bem-estar, quase imperceptível, relaxa fugazmente suas feições.
- O Inca Paullu é um personagem estranho. Não sei se é o caso de admirar a sabedoria de seu realismo ou de sentir nojo de sua covardia. Mas o fato é que ele passa sempre para o lado do mais forte. Ontem Almagro, hoje os Pizarro. E, tanto em um caso como no outro, não hesita nunca em lutar contra seu irmão Manco, O que ele pensa não deixa transparecer nunca. Ele nos acompanhava por ocasião dessa terrível expedição ao sul. Nem por um instante se opôs ao massacre de seu próprio povo nem à captura de Tisoc, aquele general que comandava a rebelião.
- De modo que - murmura Gabriel -, desde então, Manco está sozinho. é observa com intensidade, a boca entreaberta para fazer uma pergunta. Depois muda de idéia e apenas declara:
- Ouvi dizer que ele havia construído uma nova cidade inca, muito distante, ao norte de Cuzco. No meio da selva, em vez de na montanha, de modo que ela seja absolutamente inacessível para nós. Mas, para não lhe esconder a verdade, depois do que vi nesses últimos meses, creio que brevemente seu reinado e sua rebelião serão apenas uma lembrança.
Um silêncio pesado se instala bruscamente entre eles. É Bartolomé que o interrompe, com uma voz hesitante:
- Devo concluir que você continua sem notícias de Anamaya?
Gabriel sacode a cabeça com um meio sorriso.
- Dentro de pouco tempo se completarão trinta meses que não a vejo. Hoje, ignoro até mesmo se ela ainda está viva aqui neste mundo.
Mais uma vez o silêncio os embaraça.
- Isso não tem nada de surpreendente? - prossegue Gabriel com falsa leviandade. - Se me permite dizer, foi isso que combinamos. Por muito tempo, aceitei isso com resignação. Dizia a mim mesmo que, sem dúvida, nossa separação não duraria... Que a guerra acabaria ou que a própria Anamaya iria querer vir se juntar a mim... E depois a verdade se revelou para mim. O tempo passa e começo a esquecer até a lembrança que guardava de seu semblante. É insuportável mas no entanto devo aceitar isso. Ou eu a poria em perigo! Certas coisas fazem com que ela não possa se afastar de seu povo e menos ainda se juntar a mim.
- Certas coisas? - questiona Bartolomé em voz baixa. - Aquela estátua de ouro que ela chama de seu "esposo"?
- Sim, o Irmão Duplo - concorda Gabriel sorrindo. - A despeito de todo seu desejo de respeitar os incas, duvido que possa compreender o que isso significa para ela e para eles.
- Que importância tem eu compreender? - protesta Bartolomé com algum humor. - O que interessa é que Gonzalo e Hernando continuam a alimentar o desejo de se apropriar desse... desse objeto! Um número tão grande de onças de ouro os deixa loucos.
- Para o diabo com a loucura deles! Nunca o terão.
O tom de Gabriel é tão sereno, tão seguro que Bartolomé o observa com atenção, como se descobrisse um desconhecido sob a aparência tão familiar do rosto de seu amigo.
- Você parece muito seguro disso! Eles são capazes de vasculhar o Peru virando pedra por pedra para consegui-lo!
- Eles virarão as pedras e só encontrarão o vazio - afirma Gabriel ainda sorrindo. - Nós, os espanhóis, podemos fazer sofrer as pessoas que vivem neste país. Podemos assassiná-las, roubá-las. Mas contemple este lago, frei Bartolomé. Olhe para estas montanhas...
- Sim, é tudo muito bonito - admite Bartolomé -, mas...
- Não - interrompe Gabriel -, não se trata de beleza. Tudo isso está vivo. Montanhas, pedras e água... Tudo aqui está vivo, com uma vida semelhante à nossa e que no entanto você e eu não sabemos ver!
- Que quer dizer?
- Que eles, os incas, sabem ver o invisível. Melhor, eles sabem perceber o sopro de vida que há nele e receber de seu hálito o sustento. Sabem ver a vida onde quer que ela esteja e qualquer que seja a maneira como se manifeste. Sob o gume cortante da lâmina de uma espada, eles não têm mais força que uma galinha. E talvez um dia sejam todos exterminados como se fossem galinhas! Contudo, o essencial será preservado. Nada impedirá que levem consigo o saber que têm do mundo nas montanhas, nas pedras e neste lago que não sabemos ver nem ouvir. Existem forças, aqui, que estão muito além do que pode combater um Pizarro!
Dessa vez, Gabriel falou com arrebatamento. O olhar de Bartolomé se tornou sombrio e triste.
- Eis uma maneira muito pouco cristã de conceber as coisas! Dizem que aqui, de vez em quando, você participa de cerimônias pagãs com os sacerdotes índios.
Por um breve segundo, parece que Gabriel vai perder a calma. Mas uma gargalhada irônica brota de seus lábios e ele sacode a cabeça.
- Que importância tem o que possam dizer de minha vida aqui? Ela é perfeitamente adequada para mim.
- Você tem certeza?
- Por acaso está fazendo uma investigação?
- Sou um homem de Deus, Gabriel, e sou seu amigo. Não imagine que eu possa me alegrar ao ver você abandonar e talvez mesmo escarnecer da obra de Cristo neste mundo e a esperança que ele representa para cada um de nós!
- Não abandono o respeito pelos homens nem o respeito pela vida. Isso deveria ser suficiente para reconfortá-lo.
Por um instante, Bartolomé escruta o rosto de Gabriel. A tensão ainda aviva seu semblante descarnado. Depois, de repente, como se o cansaço o vencesse, ele inclina a cabeça.
- Sem dúvida, você tem razão. Mas é bem estranho admitir.
A mão de Gabriel busca o braço de seu amigo.
- Estou em paz com minha alma, frei Bartolomé. Não se preocupe.
Um calafrio de febre sacode o monge. Seus lábios tremem com violência, enquanto ele torna a fechar os olhos, e murmura tão baixo que quase não se faz ouvir:
- Não duvido que sua alma esteja em paz, meu caríssimo Gabriel. Infelizmente, a minha está longe de estar em paz... Estou exausto e vou dormir um pouco. Faça-me um favor. Enquanto durmo, gostaria que você abrisse as bolsas de couro penduradas em minha sela. Dentro delas encontrará algumas páginas escritas por mim. Pelo amor de Deus, leia-as.
- O amor de Deus nisso não servirá para nada, frei Bartolomé. Mas a amizade que tenho por você, certamente.
É somente ao cair da noite que Bartolomé desperta de um sono pesado como chumbo. A alguns passos de seu leito, junto de um braseiro já aceso, ele descobre Gabriel, sentado, imóvel na contemplação do lago e das montanhas que já mergulham na obscuridade do anoitecer. Sobre os joelhos, ele tem um grande estojo de couro contendo um maço de folhas de papel cobertas por uma escrita de letra apertada.
- Gabriel...
Quando se vira, Gabriel sorri com amizade. Mas parece que todo o cair de sombras que ele acaba de contemplar permaneceu em seu olhar. Bartolomé indica o estojo de couro.
- Você leu?
- Li. Nessas páginas há tantos horrores e injustiças que se poderia crer estar diante do catálogo dos tormentos do inferno.
- E no entanto, posso jurar diante de Deus, só estão aí os fatos aos quais assisti pessoalmente desde o dia em que pus os pés sobre esta terra do Peru. Anotei tudo, cada dia. Todas as dores e as humilhações infligidas aos índios, cada falta cometida contra as regras de Deus e de Roma, o descumprimento e desvio das leis do reino... Tudo está aí!
Gabriel observa o estojo de couro como se fosse um estranho animal, depois o deposita aos pés de Bartolomé.
- Sim, está tudo aí. Entretanto, você é um irresponsável, amigo Bartolomé. Se os Pizarro ou qualquer outro desses senhores encontrassem esses papéis, você seria um homem morto!
- Foi exatamente por isso que viajei durante a noite para vir encontrá-lo - arqueja Bartolomé.
Gabriel responde com um sorriso grave:
- Receio que isso não seja suficiente. Queime estas folhas no braseiro, Bartolomé, ou esconda-as num lugar absolutamente secreto para guardá-las para mais tarde.
- Neste momento, elas são inúteis: quem quereria ler tão triste prosa?
Com uma espécie de ganido de fúria, Bartolomé se esforça para se levantar. Andando de quatro, agarra o estojo de couro para brandi-lo acima da cabeça.
- Queimar? Esconder estas verdades quando o rei Carlos precisa conhecê-las? A Espanha deve saber o que acontece aqui. Roma, o papa devem ficar horrorizados com estas páginas!
Gabriel sacode a cabeça ironicamente.
- A febre o está deixando exaltado, meu bom amigo. Esqueceu-se do ouro? Quem se importa, do outro lado do Oceano, com a maneira como ele é obtido? Por acaso imagina que o rei ou o papa se recusarão a revestir de ouro seus palácios e suas igrejas sob o pretexto de que os selvagens aqui estão sendo tratados como bichos? Vamos! Dom Francisco e seus irmãos podem muito bem ser tiranos, desde que façam a fortuna da Europa!
- Você está enganado! Está enganado, Gabriel!
Bartolomé acaba de se levantar, cambaleando. Seus gritos de indignação são tão violentos que duas criadas e Chillioc vêm correndo, de tocha na mão. Gabriel os tranqüiliza com um sinal de cabeça enquanto Bartolomé, fora de si, se agarra a suas mãos.
- Não, não! - protesta com veemência. - Não quero que você diga isso. Não você, Gabriel! Existem homens de boa vontade na Espanha e em Roma. Na Igreja bem como na corte. Homens que acreditam que os índios são filhos de Deus como todos nós!
- Infelizmente, eles estão lá e não aqui.
- É por isso que eles devem saber.
- E mesmo quando souberem...
Envolto pelo turbante, o semblante de Bartolomé parece demente, seus olhos não param de piscar e uma veia grossa pulsa em seu pescoço. Gabriel teme a cada segundo que ele sofra um desmaio, mas, tensionado como um arco, ele se agarra a seus ombros:
- Gabriel, escute-me: na Espanha existe uma pessoa, um religioso, que trabalha para que todo e qualquer homem vivo aqui nestas montanhas seja tratado com respeito e dignidade. Um dominicano chamado Las Casas. Um sábio do tipo que você e eu gostamos. Um homem que leu Erasmo...
- Um homem sozinho, frei Bartolomé! Como você. Como eu. E tão distante dessas montanhas...
- Não tão sozinho! Ele é influente e é ouvido. Já conseguiu que o papa Paulo III promulgasse uma bula ordenando que os índios de toda a terra sejam tratados como
homens...
Diante do sorriso irônico de Gabriel, Bartolomé se arqueia para trás e se afasta com cólera. Com a mão esquelética ele aponta para os servidores de Gabriel que permaneceram imóveis no fundo do aposento, de olhos arregalados de incompreensão.
- "Considerando que os índios, por serem verdadeiramente homens, estão não somente aptos a receber a fé, mais uma vez declaramos, não obstante qualquer opinião em contrário, que os ditos índios não poderão de maneira alguma ser privados de sua liberdade nem da posse de seus bens e que eles deverão ser chamados à fé de Jesus Cristo através da pregação da palavra divina e pelo exemplo de uma vida virtuosa e santa!"
Com o fôlego curto, a cabeça envolta em bandagens balançantes, Bartolomé conclui sua declamação e agarra o jovem Chillioc para empurrá-lo diante de si.
- Estas são as palavras e a vontade do Santo Papa: sobre a cabeça deste menino, eu juro por Deus Todo-poderoso. Ele quer o que nós queremos.
Como única resposta, Gabriel estende a mão para Chillioc e acaricia seu rosto assustado.
- Não tenha medo, Chillioc - sussurra em quíchua. - Meu amigo está com um pouco de febre. Ajude-me a levá-lo de volta para a cama.
Bartolomé protesta, mas a exaustão vence sua exaltação e as pernas mal conseguem sustentá-lo; só com muita dificuldade ele se mantém de pé. Enquanto o menino e Gabriel o obrigam a se deitar e puxam uma coberta sobre seu corpo, ele pergunta com uma voz abatida:
- Você acredita em mim, Gabriel?
- Acredito.
- Então leve estas páginas para a Espanha. Faça com que cheguem às mãos de Las Casas. Ele precisa delas.
Gabriel se imobiliza, estupefato. A luz das tochas dança nas sombras, deforma os rostos. Por causa das bandagens, o de Bartolomé parece uma máscara.
- Eu? - exclama.
- Quem mais senão você teria a vontade e a coragem? Veja como este menino olha para você, Gabriel - insiste Bartolomé agarrando as mãos de Chillioc. - Se você levar estas folhas para a Espanha, ele terá uma vida de homem.
E, como Gabriel virou o rosto, as sobrancelhas franzidas, o olhar distante, ele acrescenta ainda:
- O que você está esperando aqui? Que Anamaya retorne para junto de você? Sabe que as coisas não serão assim. Você está sozinho. Está perdendo seu tempo aqui contemplando a beleza do Titicaca, enquanto aqueles que acredita defender vão desaparecer. Leve esses documentos para Toledo, faça com que a verdade seja conhecida lá, onde ela deve causar escândalo. Quem melhor que você para falar ao rei sobre este país? Ajude-me, Gabriel. Não por causa de Deus, uma vez que você o abandonou. Mas por aquela que você não quer esquecer e que enche seu coração de tristeza.
Pensativo, Gabriel fita o monge longamente, sem pestanejar, sem responder. Mas, pelo tremor que o sacode dos pés à cabeça, ele sabe que suas palavras atingiram o alvo. Uma aurora leitosa se estende sobre o Titicaca. As brumas se desfazem aos poucos. Elas deixam ver a superfície cinzenta da água e as paredes cinzentas dos terraços. No cavado da grande baía que fica defronte às ilhas sagradas do Sol e da Lua, alguns fios de fumaça ainda se elevam das casas de Cusijata. A meia encosta, de uma espécie de ponta rochosa que se projeta sobre o lago, Gabriel admira uma última vez aquele lugar encantador. O único onde ele soube viver em paz depois daquele dia de março de 1532 em que, com Sebastian, e depois de por pouco não ter morrido no mar do Sul, ele pisou nas areias da praia de Tumbez, um dos primeiros conquistadores a avançar em solo inca.
Sete anos, quase que exatos! Sete anos de esperança, de combate, de glória, por vezes. E quase sete anos de amor. Mas tão pouca felicidade! Instantes fugazes, roubados à guerra e aos dramas...
Anamaya!
Só de murmurar seu nome na brisa suave da manhã, ele sente seu corpo estremecer como se cada parcela de sua carne estivesse tatuada pelas sílabas mágicas do nome da bem-amada! Anamaya!
E eis que hoje, quando se tornou um homem totalmente diferente daquele de sete anos antes, vai partir de volta para a Espanha. Partir sem se virar e olhar para trás, sem nem sequer beijar uma última vez os lábios de Anamaya. Partir e esquecer lentamente o gosto de sua pele, o calor de suas coxas. Esquecer aquelas viagens na estranheza do mundo para onde ela soube tão bem levá-lo.
Na verdade, ele nem sequer acredita realmente que isto seja possível. Mas, durante toda a noite, as palavras do monge deram muitas voltas em seu espírito. Palavras cheias de razão e de força, a despeito da exaltação de Bartolomé. Ele as repeliu e afastou tanto quanto pôde. E depois, bruscamente, foram outras palavras que vieram a seu espírito. Palavras pronunciadas por Anamaya. As palavras que ela dizia ao "puma" e através das quais repetia a estranha e incrível mensagem de um Imperador inca há muito tempo morto. O puma é aquele que você verá saltar por sobre o Oceano. Quando ele partir é que ele voltará para você. Ainda que separados, vocês estarão unidos, E quando todos ti verem partido, você permanecerá e a seu lado permanecerá o puma. Juntos, como seus ancestrais Manco Capac e Mama Occio, Vocês engendrarão a nova vida desta terra.
Palavras ouvidas sem que as compreendesse e guardadas na memória como um cofre esconde um enigma. Mas palavras, frases que, subitamente, haviam se tornado límpidas: sim, ele devia partir! Finalmente, compreendia como ir se encontrar com Anamaya. Não mergulhando no Titicaca, mas partindo para o outro lado do Oceano. Voltando para a Espanha. Submetendo-se ao acaso manifesto e à força de seu destino que faziam de Bartolomé, sem que ele soubesse, o mensageiro dos Poderosos Ancestrais Incas tanto quanto de Cristo!
O ruído de um galho faz Gabriel se sobressaltar e interrompe seu devaneio. Quando se vira, de início, não vê nada. Depois as folhagens de um arbusto se afastam e surge Chillioc, hesitante, mal ousando levantar os olhos para ele.
Com um sorriso doce, Gabriel estende a mão.
- Venha, Chillioc, chegue mais perto.
Quando o menino põe a mão pequenina na sua, ele o faz sentar-se bem junto de si.
- Não conseguia. Vi que você não dormia e vim procurá-lo.
Gabriel aprova e aperta um pouco mais a mão do menino escondida na sua. Juntos e sem dizer uma palavra, eles observam a dança da bruma sobre o lago.
- Vai partir, senhor Gabriel?
- Por que acha isso? - admira-se Gabriel.
- Vi em seu rosto quando conversava com o estrangeiro doente.
- Sim, eu vou partir, Chillioc. Você tem razão, e vou sentir sua falta.
- Mas por que quer ir embora? Não está bem aqui conosco?
- Estou - Gabriel sorri. - Estou muito bem.
- Então por quê?
- Porque está na hora de partir para ir me encontrar com alguém... e também para fazer uma coisa.
O olhar do menino se fixa nele, cheio de incompreensão e de tristeza.
- Se você for embora - diz Chillioc baixinho -, os estrangeiros que não gostam de nós virão aqui. Todo mundo vai ter medo.
- Também é por isso que vou partir - murmura Gabriel, com a garganta apertada. - Para que vocês nunca mais tenham medo dos estrangeiros.
- Acha que isso é possível? - pergunta o menino arregalando os olhos.
- Talvez. Não sei. Mas sei que é impossível viver sem tentar.
- Você deveria estar dormindo - ralha afetuosamente.
Vilcabamba, junho de 1539
- Adoro sua presença, Irmão Duplo - sussurra Anamaya. - Veja só, agora já faz dez anos que sou sua esposa. Dez vezes que as quatro estações alternaram o frio e o calor em nosso mundo. Dez vezes que o dia de meu nascimento se distanciou no passado. Eu era uma criança quando o Único Senhor Atahualpa ordenou que eu acompanhasse você para sempre e que me tornasse a Coya Camaquen. Hoje, sou uma mulher mais velha que as princesas e as concubinas do Único Senhor Manco. Contudo, perto de você, parece-me que o tempo passa sem nos tocar, nem a você nem a mim.
Anamaya sorri com ternura. Ela está sentada nos calcanhares, ao lado da estátua de ouro do Irmão Duplo colocada diante do Grande Templo do Sol de Vilcabamba, sobre a estela construída por Katari. Com alguns gestos já repeti- dos mil vezes, ela reparte as oferendas diante do Irmão Duplo,mel e frutas, peixes do rio e milho verde. Depois, seguindo uma ordem rigorosa, ela arruma as folhas de coca sobre os carvões em brasa empilhados numa gamela pintada com a efígie da Serpente Amaru.
"O, meu esposo", medita inclinando silenciosamente o busto, "aceite o que oferece de todo coração a Coya Camaquen!"
A fumaça acre e seca das folhas de coca sobe tremulante. Ela se enrosca numa carícia lenta em volta da estátua de ouro antes de se elevar na tepidez nascente do dia. Como em todas as manhãs depois que a estação das chuvas acabou, a pequena cidade no coração da selva resplandece sob os primeiros raios dourados da aurora. Um após o outro, a partir da ponta do Rochedo Sagrado onde o sol se fixa a cada manhã, a grande praça de cerimônias e depois as paredes cercando os terraços das canchas reais emergem da opulenta floresta. Logo em seguida, o labirinto de ruelas, escadas e pontes, por sua vez, sai das sombras. Dia após dia, Anamaya admira a perfeita harmonia desta cidade, que Katari parece ter tirado de dentro da terra através de uma de suas magias. Por seu tamanho e disposição, os templos, as residências nobres e comuns e até os depósitos se confundem tão bem com a selva que basta se afastar de Vilcabamba por um quarto de hora de marcha para que a cidade desapareça como uma miragem.
- Amo sua presença, Irmão Duplo - prossegue Anamaya com doçura.
- Ela me acalma e me enche de esperança, pois sinto por seu intermédio que o Único Senhor Huayna Capac nos protege, enquanto a guerra mata e destrói tudo ao nosso redor. Por muito tempo, Irmão Duplo, não soube amá-lo nem ouvi-lo. Eu era uma menina jovem demais. Tinha medo de você. Duvidava de seu silêncio e de seu corpo de ouro. Duvidava de meu dever de esposa a seu lado. Duvidava do saber que sua presença me ensinava e que atraía para mim a inveja, o ciúme e a cólera dos Poderosos Senhores.
Anamaya conclui seu murmúrio, pensativa. Um grupo de jovens Virgens Escolhidas, trazendo os cumbis das oferendas ao Pai Sol, entra pela porta alta em formato de trapézio do recinto do Templo. Descobrindo a Coya Camaquen fazendo suas preces, as mocinhas fazem uma reverência. Com respeito, elas mantêm os olhos fixados nas lajes do chão.
- Pois sua presença, ó meu esposo - prossegue Anamaya com um sorriso terno e irônico na direção das jovens achas -, fez de mim, uma menina tão simples e tímida, de sangue mestiço, uma mulher que é temida!
O semblante tornando-se de novo grave, ela estende a mão, acaricia o ombro da estátua.
- A verdade, Irmão Duplo, é que temi sobretudo que você me impedisse de amar aquele que o Único Senhor Huayna Capac me indicou. Temi seu ciúme. Temi que você procurasse me afastar daquele por quem, a despeito da ausência tão prolongada, meu coração e meu corpo se dissolvem como a neve sob a carícia de Inti. Sim, ó Irmão Duplo, tive medo de seu ciúme!
Com uma atenção inquieta, Anamaya escruta o semblante de ouro. Sob a luz crescente da manhã, a sombra do olhar se torna mais leve. Sob o arco poderoso do nariz, ela se alonga sobre o traço fino bem modelado dos lábios que, de repente, parecem sorrir. Então Anamaya fecha os olhos e, com um suspiro, deixa escapar as palavras de sua confissão.
- O Irmão Duplo, quantas vezes, quando minha boca e meu espírito pronunciavam o nome dele, Gabriel, e suas mãos ou seus lábios tocavam minha pele, temi sua cólera!
Perdoe minha tolice, esposo bem-amado. Agora, sei que esse medo era vão. Eis que já se passaram três luas desde que o hálito do puma tocou em mim, num anoitecer no rio. Desde então e na sua presença, não há noite nem há sono sem que o puma venha ao meu encontro. De sonho em sonho, ó Irmão Duplo, estamos juntos. Nós nos tocamos e nos amamos como um homem e uma mulher se amam sob a luz de Inti! Passo meus dedos entre aqueles pelos que agora cobrem suas faces. Sinto seu rosto tremer sob a palma de minha mão. Vejo o brilho de seu olhar quando ele me deseja e me possui com a mesma força que nas noites de Cajamarca, de Cuzco ou de Ollantaytambo! Noite após noite, ó bem-amado Irmão Duplo, meu coração é acariciado por seu coração. Sonho após sonho, eu o vejo tornar-se o puma e sei que não me esqueceu, ele também não me esqueceu. A cada despertar, sinto- me tranqüilizada e confiante. Hoje, eu compreendo as palavras do Único Senhor Huayna Capac. Sim! Desse modo se cumprem as palavras e a vontade dos Poderosos Ancestrais. E eu, a Coya Camaquen, acompanharei você até lá, onde ficará em paz entre eles.
Profundamente mergulhada em sua devoção, Anamaya permanece imóvel por um instante. Com os olhos ainda fechados, ela se curvou sobre si mesma como para melhor receber a resposta silenciosa da estátua de ouro. Somente um longo momento depois é que ela percebe o som de uma respiração rápida. O queixume de um soluço contido. Levantando-se sobressaltada, descobre a jovem esposa de Manco prosternada a alguns passos de onde está, com o rosto banhado em lágrimas.
- Curi Ocllo!
- Ajude-me, Coya Camaquen! Ajude-me, eu suplico...
- Curi Ocllo! - exclama Anamaya mais uma vez, pondo-se de pé e estendendo-lhe as mãos. - O que aconteceu?
- Um chaski veio esta noite para anunciar que os soldados estrangeiros estavam partindo de Cuzco. Eles estão avançando pelo Vale Sagrado e vêm em nossa direção.
Os grandes olhos escuros de Curi Ocllo procuram se dissolver nos de Anamaya, como se pudessem transmitir-lhe sua angústia. Contudo, Anamaya se contenta em franzir as sobrancelhas. Curi Ocllo soluça com intensidade redobrada e exclama:
- Vai acontecer o que sempre temi, Anamaya! Ah, é terrível! Que Inti nos proteja!
Anamaya se obriga a se levantar e passa os dedos de leve sobre as faces da jovem rainha.
- Não compreendo sua angústia, Curi Ocllo! Manco está em Vitcos com três mil guerreiros. Ele repelirá os estrangeiros, e não será a primeira vez. Eles são muito maus combatentes na selva.
Um novo soluço sufoca o protesto de Curi Ocllo. Atrás delas, Anamaya percebe os olhares disfarçados das jovens achas. Ela envolve com o braço os ombros trêmulos da pequena rainha e a leva para fora do templo.
- Acalme-se, Curi Ocllo - sussurra com ternura. - Não é bom que as Filhas do Sol vejam você neste estado.
Quando Curi Ocllo balbucia uma desculpa, elas chegam à grande praça de cerimônias. Anamaya dirige-se para a grande escadaria que conduz, em grandiosos degraus, para o exterior de Vilcabamba e para os campos cultivados às margens do rio.
- Explique-me o que tanto a preocupa - pede, fazendo com que Curi Ocllo se sente num pequeno muro.
Curi Ocllo mal se permite algum tempo para se acalmar.
- Há cinco luas, Manco quis mais uma vez retomar Cuzco dos estrangeiros. Mas ele não conseguiu chegar nem até a Cidade do Puma, pois seu irmão Paullu voltava por ali com milhares de soldados do Sul, depois de ter vencido o velho e fiel Tisoc...
- Eu sei disso! - interrompe Anamaya com impaciência. - Preveni Manco pessoalmente, pois achava que sua expedição seria inútil. Ele não deveria procurar um confronto com Paullu!
- Não é Paullu quem mais quer mal a Manco - murmura Curi Ocllo, desviando os olhos. - É meu irmão, Guaypar.
Anamaya se retrai enquanto Curi Ocllo, com a voz abafada, prossegue:
- Há muito tempo Guaypar reuniu um grande número de guerreiros do Norte e desde então os põe a serviço de Paullu. Não lhe interessa que Paullu se submeta aos estrangeiros como uma mulher se submete sem amor a um homem. Já há muitos anos ele tem por Manco tanto ódio quanto eu tenho amor. Não pensa em mais nada exceto isso: destruir Manco. E não sei nem mesmo por quê.
Anamaya estremece e fecha os olhos. Sua mão busca o ombro de Curi Ocllo e seus dedos se fecham ali com afeição.
- Mas eu sei - murmura.
Como se as palavras de Curi Ocllo a tivessem transportado totalmente para o passado, ela revê aqueles dias frios e luminosos do huarachiku de Tumebamba. Eles eram crianças. Todos: Manco, Paullu, Guaypar. E ela também, ainda recém-saída de seu aprendizado com o Sábio Villa Oma, mas já protegida por Atahualpa. Ela se lembra daquela terrível corrida. Do medo de Manco diante da serpente, da grande amizade de Paullu por seu irmão. E já, naquela época, da violência e do ódio de Guaypar.
Ela se lembra do combate entre Manco e Guaypar em volta do fogo, dois garotos devorados pela raiva e pelo gosto do sangue, bêbados de chicha e rasgando a noite com a vontade de matar, até que um tio de Manco interrompesse o combate.
"A lição está dada e ninguém vai esquecer", dissera ele. Ao que Guaypar, louco de vergonha e de ódio, havia respondido: "Você está amaldiçoado, Manco! Vai arder antes de chegar ao Outro Mundo. A sua alma nunca será livre!"
Anamaya, por sua vez, sente as lágrimas lhe subirem aos olhos e sua respiração se acelerar. O verdadeiro motivo de todo aquele ódio, sim, ela conhece. É ela!
Também se recorda de outra coisa: Guaypar em Huamachuco pedindo- lhe para ser sua esposa, quando os estrangeiros se aproximavam de Cajamarca. Guaypar lhe dizendo:
"Minha alma aqui neste mundo só respira por você, Anamaya! Minhas entranhas queimam só de pensar em você."
- Sim - repete -, eu sei o que os separa.
- E eu, eu quero impedir que eles se matem, Anamaya. Manco é meu esposo bem-amado! Jamais desejei outro homem em meu coração. Mas Guaypar é meu irmão. Eu também
o amo.
Anamaya se cala, sem ousar sustentar o olhar horrorizado de Curi Ocllo.
- Coya Camaquen, ajude-me - suplica a jovem rainha.
- Como posso ajudá-la? Como posso me opor ao que é?
- Deixe que eu vá ao encontro de Manco. Ele precisa de mim e quero estar perto dele quando Guaypar quiser desafiá-lo para um confronto. Eu me porei entre eles se for necessário.
- Não, Curi Ocllo - declara Anamaya docemente - não permitirei que você faça tamanha tolice. O que opõe Manco e seu irmão é muitíssimo mais antigo e forte demais para que você possa impedir que eles se enfrentem se isto tiver de acontecer.
- Não! Eu nunca poderei abandoná-los! - protesta Curi Ocllo gritando. - Irei sem escolta até Vitcos se for necessário. Que vergonha para você que abandonou seu Único Senhor...
- Curi Ocllo!
Mas Anamaya não é rápida o bastante para segurar a jovem mulher que corre, chorando e gritando de angústia, em direção ao centro de Vilcabamba. É com dificuldade que ela esboça alguns passos para segui-la.
"Ó Inti!", reflete Anamaya, por sua vez dominada pelas lágrimas. "Este dia começou com tanta esperança e felicidade, e o que vem já será um fardo mais pesado para carregar que as nuvens que fazem tremer as montanhas."
Cuzco, junho de 1539
Ao se aproximar de Sacsayhuaman, Gabriel toma um choque. Os combates furiosos e os incêndios arruinaram parcialmente as muralhas da fortaleza pela qual tantos homens morreram e na qual ele conquistou sua lenda. As torres estão derrubadas e os exércitos de guerreiros que lançavam flechas e pedras desapareceram. Mas os blocos ciclópicos se erguem com a mesma imponência, não protegendo nada além de um mistério e o vento.
Bartolomé freia seu cavalo e estende a mão.
- Você viu?
Na pedreira alta que se eleva atrás da fortaleza, podem-se distinguir silhuetas de crianças que brincam, correm umas atrás das outras, tentam se agarrar para rolar pelo chão e lutar. Seus gritos estridentes ecoam através das colinas. Gabriel sorri.
- É uma guerra sem vítimas esta que é feita pelas crianças.
- Elas crescem depressa. Infelizmente, não há nada mais simples que aprender a matar.
Gabriel concorda em silêncio.
Eles passam por campos onde agora são cultivados, além da quinua e do milho, trigo, cevada e aveia. Ao aproximar-se da cidade, ele avista com surpresa até mesmo pequenos jardins cercados com plantações de couve.
Na base das muralhas nas quais a relva cresce, estende-se a Cidade do Puma. Gabriel recorda-se de seu deslumbramento quando a descobriu pela primeira vez, e revê o semblante subitamente tão distante de Anamaya ao lado de Manco, o triunfo de Pizarro. De um alforje, Bartolomé tira algumas roupas e estende para ele.
- Somos mais ou menos da mesma estatura - diz timidamente -, e pensei que...
- Não preciso disso.
Gabriel falou em tom delicado, mas com firmeza. Sente o olhar de Bartolomé fitando-o: não está mais disfarçado de índio como na ocasião de seu retorno a Cuzco para tentar matar Gonzalo. Adotou um traje simples e que ressalta sua aliança com aquela nova terra: um unku de cor creme no qual as mulheres do Titicaca, a seu pedido, teceram um puma negro.
- Levei muito tempo para me tornar o que sou, frei Bartolomé. Não vou me disfarçar do que não sou mais.
Bartolomé se cala, respeitoso e intrigado. Depois faz uma última tentativa:
- Você sabe o que vão dizer, não é?
Gabriel não se dá ao trabalho de responder.
- Vamos andando - diz, encorajando o cavalo com uma leve pressão dos calcanhares.
Está alegre como um homem que vai fazer o que deve. Ao entrar na cidade, Gabriel repara imediatamente nas mudanças ocorridas desde sua última passagem. A mais espetacular é a sujeira. As canalizações centrais das ruas. onde corria uma água clara, estão obstruídas por detritos de toda natureza, dentre os quais se reconhecem cascas de batatas e espigas de milho comidas pela metade. O odor que sobe da água estagnada é nauseabundo e também é nauseabundo o cheiro de bosta de cavalo misturado com excrementos de porcos...
- A contribuição da civilização - ironiza Bartolomé ao ver a expressão de Gabriel.
Ele levanta os olhos para o céu.
Depois do incêndio de Cuzco, os tetos de colmo foram consumidos pelo fogo e, em sua grande maioria, foram reconstruídos com telhas: causa uma impressão curiosa ver aqueles nobres palácios incas cobertos de telhas espanholas. Ao mesmo tempo, Gabriel vê que certas entradas de forma trapezoidal foram fechadas na base para permitir o encaixe de portas de madeira, munidas de um grande ferrolho.
- Eles não conheciam o roubo - diz Bartolomé -, e barravam as entradas apenas com um simples bastão para assinalar que estavam ausentes. Mais um de nossos presentes...
Um coelho perseguido por dois porcos passa correndo entre as patas do cavalo de Gabriel, que se desvia. Ele percebe os olhares cravados nele: aquele estrangeiro vestido à moda dos indígenas provoca mais comentários que os numerosos índios que passaram a usar, além de suas roupas tradicionais, acessórios espanhóis: um usa luvas, outro um cinturão de couro, um terceiro calções... Somente os incas continuam vestindo orgulhosamente os trajes de sempre.
Quando eles entram na praça de Aucaypata, as imagens começam a desfilar novamente diante dos olhos de Gabriel: a entrada das múmias, a coroação de Manco... Mas sua viagem ao passado é interrompida pelo repicar de um sino, O som familiar e tão antigo o faz parar onde está. Ele olha para Bartolomé com estupefação. O padre lhe indica o local onde ficava o Sunturhuasi, aquele prédio misterioso que dominava a praça.
Ali, onde se erguia a torre coberta por um telhado cônico, há apenas um canteiro de obras. Nenhuma pedra foi colocada, mas o vigamento de um edifício já se eleva. Numa viga de ferro, os trabalhadores penduraram um único sino cujo repicar enche a praça, fazendo com que todos os índios se virem.
- El Triunfo!- declara Bartolomé. - Eles já o estão construindo em memória da vitória e do cerco. Dizem que virá um pintor da Espanha para nele pintar um quadro dos milagres que aconteceram aqui...
- Que milagres?
- O da Virgem Maria apagando o incêndio, acompanhada por um cavaleiro montado num cavalo branco e que parece invulnerável a todos os golpes.
- Tenho uma vaga lembrança desse milagre - diz Gabriel.
- Poucos são os homens que não precisam acreditar em milagres para ter a força de viver.
- Estou começando a me dar conta disso.
Num prolongamento da praça, Gabriel conduz Bartolomé até a rua do Hatun Cancha. Eles param diante de um palácio de pequenas dimensões, cuja porta está coberta por uma pele de guanaco. Gabriel desmonta do cavalo e entrega as rédeas a um velho que se tornou especialista nesse oficio.
- O que você está fazendo? - pergunta Bartolomé.
- Uma pessoa me espera - diz Gabriel tranqüilamente.
- Quando este encontro foi marcado?
- Numa outra vida. Afinal, não é você quem vive me incitando a acreditar em milagres?... Quer vir comigo?
Com um enigmático movimento da mão em que os dedos são colados, Bartolomé faz sinal que não e se afasta depois de um último sorriso.
Atravessar aquele palácio é toda uma encenação, como os preparativos para a representação de uma peça. Antecâmara, corredores, criados índios de libré, jovens criadas
- Gabriel tem a impressão cômica de ter sido brutalmente transportado para uma peça de teatro na qual desempenha um papel cujo texto esqueceram de lhe dar. Quando começa a se impacientar num salão cheio de tapeçarias, vira-se ao ouvir a explosão de uma enorme gargalhada.
- Sebastian!
- Não está reconhecendo os lugares? É bem verdade que estavam notavelmente em pior estado...
Depois de um esforço, Gabriel evoca a lembrança de paredes enegrecidas pelo fogo, telhados queimados desse palácio para onde, ao sair da prisão, Sebastian o levou para reequipá-lo. Os dois amigos se abraçam sem constrangimento. Por maior que seja a compreensão que tem de frei Bartolomé, Gabriel jamais terá com ele esta intimidade de aventuras compartilhadas. Quando eles se afastam, depois de mais risadas e palmadas nas costas, Gabriel finalmente pode observar seu amigo. Seus trajes são absolutamente extraordinários, dos calções multicoloridos até a larga gola, de fina renda branca plissada, imitando a de Pizarro. Ele finge não perceber que Sebastian o observa com o mesmo espanto.
- Ora, mas que roupas engraçadas! - dizem os dois quase que ao mesmo tempo, antes de caírem na gargalhada novamente.
- Tenho de me esforçar muito para me distinguir dos escravos negros que chegam do Panamá - diz Sebastian. - E você, virou inca?
- Eu serei inca no dia em que você for governador.
- Por que não? Faríamos uma bela aliança e, depois de ter festejado nossa vitória com um assado de Gonzalo, prepararíamos a paz... não sem antes termos enchido bem os bolsos, como precaução para dias mais difíceis!
- Você me parece já ter-se preparado bem para isso.
Sebastian faz uma careta amuada.
- Você não imagina o que é - diz ele - uma luta cotidiana... é muito cansativo.
Ele estala os dedos e imediatamente duas jovens criadas aparecem. Sem que precise dizer uma palavra, elas trazem sobre uma bandeja de prata uma garrafa de vidro branco cheia de um líquido que brilha com um vermelho profundo sob a luz das tochas e dois copos de prata. O paladar de Gabriel se desabituou ao sabor do vinho e seu rosto fica rubro depois do primeiro grande gole.
- Não é nada mal - comenta, estalando a língua. - Mas não chega aos pés daquele do... Como se chamava mesmo a estalagem?
- Ao Pichel Livre!- exclama Sebastian. - Ah, aquele adorável escroque e seu inesquecível vinhozinho... Você tem razão, nada nos trará de volta aquele gosto.
Há uma súbita nostalgia na voz de Sebastian, e Gabriel deixa que se passe um momento de silêncio entre eles.
- Conte-me como anda sua vida - diz Sebastian finalmente. - Correm boatos de que você se tornou um senhor muito importante por lá, nas margens do Titicaca...
- Eu lhe contarei depois, Sebastian. Preciso que você complemente as últimas notícias que obtive por intermédio de Bartolomé... e quero que comece por me dizer como anda a sua fortuna.
- Eu sou rico, como você pode ver, mas sinto-me quase tão ameaçado como se fosse o infeliz escravo que você conheceu, protegido apenas pela amizade do bom Candia...
- E por que isso?
- Depois da morte de Almagro, que era meu protetor apesar de tudo (ele tinha defeitos, aquele homem, mas não conseguia esquecer que eu lhe salvei a vida!), sinto o círculo do desprezo e do ciúme se fechar ao meu redor... E depois, eu já lhe disse, todos os dias chegam escurinhos que andam por aí seminus, e um bom espanhol que me vê com meus trajes esplêndidos, meu bom vinho da Espanha, minhas três concubinas e outras coisas mais diz a si mesmo que sou um insulto à natureza das coisas e à ordem divina. Brevemente, ele arranjará alguém para me matar numa ruela escura e aproveitará meu corpo para dar de comer a seus inúmeros porcos, sempre famintos...
- Você não poderia ser mais.., discreto? Guardar tudo sob aquela laje, no fundo daquela caverna onde antigamente os tesouros se acumulavam?
Sebastian explode numa gostosa gargalhada.
- E é logo você quem me diz isso!
- Mas não é a mesma coisa.
O Negro se contém e sorri.
- Você tem razão. Não é a mesma coisa. Não sei quais são seus motivos para perguntar, mas não me esqueço nunca do que eu lhe disse uma vez: existe um mar entre nós e nenhum piloto, nem mesmo o mais hábil, saberia atravessá-lo. As coisas são assim.
Ele bebe longamente e com prazer. Estende seu copo para uma das mocinhas e sorri com gentileza. Ela torna a encher o copo.
- Eu não quero mudar, mesmo se tiver de morrer. Precisei fazer esforços demais, passar por demasiados enganos, sofrer humilhações demais para ter o que tenho. Não
trocaria isto por uma sobrevivência incerta e miserável. Se tiver de morrer amanhã, que seja com minha espada de aço de Toledo na mão, e que o sangue escorra sobre minha gola de renda.
- Compreendo.
Sebastian afasta com um gesto largo o que suas palavras podem ter de demasiado pessimistas.
- Você não veio aqui para ouvir falar das incertezas de meu destino. Veio por causa dela, não é?
Gabriel imediatamente fica alarmado.
- Ela, a princesa de olhos azuis - explica Sebastian, como se fosse necessário. - Você sabe, é claro...
O coração de Gabriel bate como o sino do Triunfo.
- Não sei de nada, não, frei Bartolomé não me contou nada. Que está havendo?
- A expedição, pelo sangue de Cristo! Você não ouviu falar da expedição?
Gabriel levanta-se da cadeira, derrubando o copo que derrama o resto de vinho sobre um grosso tapete de lã.
- Ande, conte logo! - diz quase gritando. - Diga-me o que está acontecendo!
- Já faz bem uns dois meses que eles partiram, cumprindo ordens do Governador - diz Sebastian sombriamente. - Trezentos homens comandados por Gonzalo, mais um bom número de índios comandados por Paullu e outros comandantes incas hostis a Manco. Eles se embrenharam na floresta numa perseguição que tinha um objetivo muito preciso: capturar Anamaya e aquela grande estátua de ouro que sabem que ela leva consigo aonde quer que vá, por ser de alguma forma casada com ela.
O silêncio se faz de novo.
- Por que ela?
- Eles acreditam que Manco esteja enfraquecido, separado de seus principais generais, e que a captura de Anamaya seria para ele um golpe fatal. Depois disso, terão apenas que fazer o cerco final. E depois eles estão furiosamente obcecados por essa estátua de ouro. Você deve ter ouvido falar da desgraça que houve com Candia...
Gabriel se impacienta.
- Você me contará numa outra ocasião, tenho certeza de que deve ser divertido. Sabe se conseguiram atingir seus objetivos?
- Certamente não conseguiram, caso contrário as notícias do triunfo teriam chegado a nós. E Paullu não teria voltado agora, neste exato momento, para solicitar reforços a dom Francisco.
Gabriel abraça rapidamente Sebastian.
- Preciso ir vê-los. Onde estão?
- Sem dúvida na casa do Governador, em La Cassana. A menos que estejam em casa de Paullu, no palácio de Colcampata, que ele ocupa desde sua coroação.
Gabriel dirige-se para a porta de saída, precedido pelas jovens criadas que ele afasta sem brutalidade.
- Sebastian, talvez eu possa lhe pedir uma coisa...
-E o que é?
- Não quero falar disso agora. Mas se eu lhe pedir um favor você me ajudará?
Ele escuta apenas o suspiro de seu amigo e rapidamente se emenda.
- Eu não disse nada, perdoe-me.
- Eu não posso fazer de conta que não ouvi. Não sei qual é a loucura que você tem na cabeça, mas, infelizmente para mim, sim, é claro que ajudarei.
Gabriel retira-se rapidamente depois de um breve abraço de despedida, escapando dos criados de libré e das criadas que parecem ser concubinas. Bartolomé o espera na saída do palácio. Sem dizer uma palavra, de um salto Gabriel monta no cavalo.
- Para onde vamos tão depressa? - pergunta Bartolomé.
- Para Colcampata. Por que você não me contou nada?
- Eu não...
- Não venha me dizer isso, frei Bartolomé, não você! Não venha me dizer que não sabia da expedição de Gonzalo!
- Você não poderá fazer nada sozinho, Gabriel, sabe muito bem disso.
- Deixe que eu julgue o que posso e não posso fazer.
Enquanto os cascos dos cavalos ressoam sobre as pedras do calçamento, Gabriel obriga sua cólera a se calar e tenta dominar a angústia terrível e profunda que se apoderou dele.
Cuzco, Colcampata, junho de 1539
Há uma multidão na esplanada de Colcampata. Ao chegar, ainda que sua atenção esteja fixada na silhueta de Francisco Pizarro, que ele avista imediatamente, Gabriel lança um olhar rápido para o cofre dentro do qual repousa a Cidade do Puma, no coração das montanhas. Ele compreende melhor que nunca sua força eterna - longe dos odores dos porcos e das ignomínias trazidas pelos conquistadores. Percebe seu hálito poderoso, sonolento, mas pronto para saltar e para rugir de novo. Nos nichos abertos no meio do perfeito trabalho de alvenaria do palácio estão instaladas as múmias. Gabriel reconhece a do Inca Huayna Capac, não sem alguma emoção.
- Foi Paullu quem pediu que fossem trazidas - sussurra Bartolomé em seu ouvido. - Não convinha que o Inca "legítimo" estivesse separado de seus Ancestrais.
Gabriel inclina imperceptivelmente a cabeça ao mesmo tempo em que volta o olhar para seu antigo protetor, dom Francisco Pizarro. O governador está mais magro e ossudo que nunca; com o passar do tempo, parece se enrugar sem perder nada da força que se desprende dele. Tudo é preto em seus trajes, exceto o chapéu e as meias brancas. O único sinal de sua imensa riqueza é a fineza da renda da gola plissada que esconde seu pescoço. Seu olhar negro está fixado com intensidade e atenção no personagem que tem diante de si, sentado sobre a tiana como senta o Inca e em quem Gabriel reconhece Paullu.
O novo Inca de Cuzco tem a mesma idade e a mesma estatura de seu meio-irmão Manco. Mas onde o rebelde tem as feições talhadas pelo cinzel do escultor de pedra, é todo arredondado. Sem ser gordo, seu rosto evoca uma espécie de flacidez, uma entrega ao prazer de viver; só os olhos manifestam uma vontade firme, sem falhas, e uma inteligência desperta.
Os dois homens falam sem a ajuda de intérpretes, pois Paullu domina perfeitamente o espanhol. No momento em que Gabriel e Bartolomé se juntam ao círculo de senhores índios e de fidalgos reunidos, o rosto de Pizarro vira-se na direção deles. Ao reencontrar os olhos negros, muito fundos nas órbitas, do velho Capitão, Gabriel sente-se sacudido por uma onda de antigas emoções. Ele se retem se esforça para dar um sorriso acompanhado de uma ligeira inclinação de cabeça.
- O que preciso compreender antes de ajudá-lo, senhor Paullu - prossegue Pizarro , é quais são as chances de sucesso da expedição.
- São muito grandes, Governador, quase garantidas...
A voz de Paullu é carregada de entonações roucas típicas do quíchua. Às suas costas, Gabriel ouve um fidalgo cuspir e murmurar: "Este cachorro nos levará todos à morte nessa selva maldita..."
- Eu voltei apressadamente, por insistência de seu irmão Gonzalo, para conseguir reforços, pois as tropas de Manco são fortes e bem organizadas.
Ao ouvir o nome de Manco, os olhos de Pizarro soltaram faíscas.
- Tem certeza de que podemos destruir esse cão?
- Não posso chamar de cão a meu próprio irmão - diz Paullu polidamente -, mesmo que eu acredite que ele cometeu um erro lamentável ao prosseguir com sua rebelião além dos limites do que seria razoável. Para responder à sua pergunta: sim, nós podemos vencer seu exército. Mas há uma condição...
Paullu, seguro de ter causado o efeito desejado, faz um momento de pausa.
- Qual? - pergunta dom Francisco com impaciência.
- O Governador sabe a que ponto seus homens precisam dos meus para guiá-los através da floresta. Ele sabe - e o olhar de Paullu varre com uma expressão de desafio toda a assembléia dos espanhóis - que em numerosas ocasiões, de que seus irmãos Hernando e Gonzalo poderiam ser testemunhas se estivessem presentes, minha lealdade com relação ao senhor foi decisiva nos combates...
- Eu não duvido disso, senhor Paullu. Sabemos o quanto devemos ao senhor. E o senhor sabe o que nos deve...
O olhar de Pizarro fixou-se sobre a franja real que orna a fronte de Paullu.
- Uma bela amizade é feita de um belo equilíbrio - comenta o temível Paullu, como que emocionado. - O que eu queria lhe dizer, Governador, é que é imprescindível que eu retorne com minhas tropas e os reforços para retomar o caminho da floresta de modo a ir ao encontro de seu irmão Gonzalo e assegurar o sucesso de todos os objetivos da expedição.
- Quando quer partir?
- Amanhã ou na noite seguinte... O tempo é curto! Mas, lembre-se, Governador: tão logo a vitória esteja assegurada, o senhor poderá tornar a dedicar atenção ao projeto de desenvolver Lima, sua bela Cidade dos Reis...
- E o senhor, ao de reinar sobre sua caríssima cidade de Cuzco.
- Não posso ser indiferente à cidade de meus Ancestrais - responde Paullu, indicando com um gesto discreto a fila de múmias que os observa de seus nichos.
- Então vá, senhor Paullu. Pode anunciar que, por ordem do Governador, está encarregado de recrutar as tropas que julgar necessárias.
- Eu preciso de yungas, Governador, mais que de homens das montanhas. Esses vêm da costa e o clima úmido...
Pizarro faz mais um gesto de impaciência:
- Faça como achar melhor, meu caro Sapa Inca, o senhor conhece os seus índios. Faça isso e vença.
Pizarro é o primeiro a se levantar de sua cadeira e a esboçar uma ligeira reverência diante de um Paullu impávido. Nesse movimento, reflete Gabriel, está presente toda a ambigüidade que rege a relação entre os dois homens. Depois os dignitários incas se afastam.
Imediatamente, os rumores se elevam entre as fileiras espanholas. "Confiar neste traidor.., amigo de Almagro..." Pizarro lhes impõe silêncio com um sinal da mão. Sua autoridade nunca é contestada, sobretudo na sua frente.
- Paz - diz ele. - Nós precisamos dele, mas ele precisa de nós. Há duplicidade inteligente demais nele para que nos traia agora. Ele quer se livrar de seu irmão tanto quanto nós...
Ao dizer as últimas palavras, sua voz adquire um tom de divertida ironia.
- Agora, saiam todos. Quero ficar sozinho com...
Ele se virou na direção de Gabriel. Novos murmúrios se elevam entre os ouvintes. Nem todos conhecem o espanhol que veste a túnica de índio, mas todos conhecem a lenda desse orgulhoso combatente protegido de Santiago e que, sozinho, tomou a fortaleza. O velho conquistador e aquele que foi seu filho finalmente ficam a sós na esplanada.
- E então - começa Pizarro -, o que é esta sua roupa estranha?
Gabriel não saberia dizer quantas horas eles passaram juntos. O meio-dia chega e se vai no azul quente do céu, o ouro desliza sobre as montanhas, a sombra do anoitecer se alonga - e eles continuam conversando. O Governador visivelmente tem grande prazer em reencontrar seu companheiro. Ele o interroga sobre a vida às margens do lago Titicaca e o espicaça em tom brincalhão sobre as mulheres indígenas; Gabriel o faz falar de sua querida cidade de Lima, cuja fundação tanto o ocupou. Sobretudo, por insistência de Pizarro, eles recordam o passado, Sevilha, Toledo, a audiência real e os sofrimentos da viagem. Na intimidade que assim se estabelece, o Governador se descontrai e agita seu chapéu branco, dependendo da história que relata, como se fosse um lenço, uma bandeira ou uma vela.
- Eu com freqüência me faço uma pergunta, dom Francisco.
- Diga qual é, meu rapaz.
- Dizem que, por ocasião de uma de suas primeiras expedições, seus companheiros estavam a ponto de abandoná-lo, quando o senhor riscou uma linha sobre a areia para mostrar a todos eles onde ficava o limite entre a miséria e a fortuna, o passado e a glória...
- Na ilha de Gallo - murmura Pizarro, com ar sonhador.
- Dizem também que foram doze a atravessar essa linha para se colocar a seu lado.
- Muito bem, e o que você quer saber?
- Eu queria saber se é verdade. Se as coisas de fato aconteceram assim.
Pizarro permanece em silêncio por um instante. Seu semblante severo se abriu num sorriso.
- Mas você não é amigo de alguns dentre eles? - pergunta. - Já fez esta pergunta a Candia?
- Ele só faz rir a mais não poder! E eu queria ouvir do senhor. Mas Pizarro não se deixa convencer - ou então a conversa o está divertindo demais para que ceda agora.
- Pois a mim disseram - retruca ele - que um cavaleiro com as suas feições, mas não vestindo esses trajes estranhos, montado num cavalo branco, galopava no meio das flechas dos índios, atravessava os incêndios e, protegido pela Virgem Maria que aparecia a seu lado, partiu sozinho para um ataque e tomou três torres da fortaleza.
É verdade?
Gabriel por sua vez sorri.
- O senhor também tem muitos amigos dom Francisco. Não perguntou a eles?
- Por Cristo, todos eles juram que isso aconteceu, é verdade que com a notável exceção de meu irmão Gonzalo.
Gabriel começa a rir e o velho conquistador o acompanha.
- Essas lendas - murmura Pizarro -, quem dentre nós sabe o que é verdade... Eu me lembro de tantos episódios de minha vida como se os visse através de uma bruma.
Por vezes, desperto de manhã e me parece que passei a noite numa aldeia de minha boa Estremadura construindo um campanário e que desse modo passou-se a minha vida inteira. Depois me lembro de onde estou, do que passei, e me torno velho.
- E no entanto está aqui.
Com um gesto, Gabriel abarca toda a paisagem aos pés deles, com as luzes das tochas que começam a se acender na noite que cai. Durante um momento os dois homens mantêm-se em silêncio, cada um perdido em suas reflexões, cada um prolongando a evocação do passado que os reaproximou.
Depois Gabriel ouve a voz do Governador que quase cochicha.
- Preciso de você, meu filho.
Seu corpo se crispa como se ele tivesse acabado de levar um tabefe. A despeito da afeição que o liga a dom Francisco, a despeito do respeito que ainda nutre por ele, percebe uma ameaça terrível, insuportável, nessas palavras.
- Mais uma vez estou sozinho, como você já deve saber. Hernando assassinou o Zarolho e, agora, lá se foi de volta para a Espanha para se justificar diante do Rei...
Só Deus sabe o que será feito dele. Não ignoro que você o detesta, mas ele é o único que tem alguma cabeça acima dos colhões, se me perdoa a expressão... Os outros, já sabe muito bem qual é minha opinião a respeito deles.
- Então, por que confiou Cuzco a Gonzalo?
A voz de Gabriel está calma, mas é impossível não sentir a censura contida
- Apesar de todos os seus defeitos, é um de meus irmãos, o único em quem posso confiar... E todos esses capitães que nos chegam da Espanha com dez cavalos e cinqüenta soldados de infantaria armados, eles acreditam que tudo lhes é permitido e esperam que todos os tesouros do Peru lhes sejam oferecidos...
- É preciso construir um país, e o senhor só pensa em fazer a guerra, sempre a guerra...
- Como agir de outra maneira? Creia-me, Gabriel, aspiro à paz tanto quanto você. Deixe-me lhe contar...
Pizarro põe seu chapéu sobre uma pequena mureta que circunda a cidade e segura Gabriel pelo braço, inclinando-se para junto de sua orelha, numa atitude de confiança.
- Você sabe que vivo em concubinato com uma princesa indígena que nós batizamos de dona Angelina... Pois muito bem, tenho a maior dificuldade do mundo em esconder quanto a amo! E a filha que tive com dona Inés Quispe Sisa, a maravilhosa pequenina Francisca, você não imagina como tenho vontade de correr a cada instante do dia para tomá-la em meus braços. Faz semanas que não a vejo e tenho saudades dela, se você soubesse como tenho saudades dela...
Os olhos de dom Francisco estão brilhantes de lágrimas.
- Não quero outra coisa: viver com elas, comer minha refeição simples acompanhada de um copo de vinho misturado com água, manter meu velho corpo em boa forma para os jogos simples do campo, como os que eu jogava quando era criança, o jogo de malha, o jogo da péla... Você acha que eu tenho algum prazer em cavalgar desde a aurora por essas estradas impossíveis, em comandar esses exércitos, em seduzir esses caciques, em torturar minha consciência para saber se devo acreditar ou não em Paullu...
- Então faça a paz!
A palavra ecoa no silêncio. Pizarro pega de volta seu chapéu branco e o faz rolar como se fosse um torrão de terra.
- A paz! Você agora emprega muito as grandes palavras, meu filho.
- Mas o senhor não está vendo, dom Francisco?
- O que eu vejo é uma espécie de diabo, meu filho, um espanhol disfarçado de índio e que vem me dizer frases que estão muito acima de sua condição...
Agora, uma cólera fria faz vibrar as feições do velho que, um instante antes, desempenhava com sinceridade o papel de um pai encantado. Mas pergunta.
Gabriel se sente dominado por uma força que jamais sentiu diante dele, e uma doce euforia invade todo seu corpo. Sua voz está firme quando responde.
- Já ouviu as palavras daqueles que não tremem diante do senhor? O senhor sabe que seus soldados não respeitam nenhuma das leis e que persistem em viver pilhando
assassinando e reduzindo os índios à escravidão? Acredita que é assim que obterá a paz com os índios?
- Primeiro eu preciso ganhar a guerra contra esse infeliz Manco. Restabeleceremos a paz e a concórdia depois...
- Mas não, dom Francisco, o senhor não está vendo a realidade das coisas! O espírito da guerra se instalou por toda parte, mesmo entre nossas fileiras. O senhor permitiu que Almagro fosse morto...
- Eu não sabia...
- Ora vamos, o senhor não sabia... do mesmo modo que não sabia que Atahualpa foi executado. O senhor sabia e virou a cabeça e fechou os olhos o tempo necessário para que a perversidade fosse cometida. E agora a vingança está por toda parte no ar: cada um odeia seu irmão e sonha apenas em tomar- lhe o que ele tem, todos vêem a injustiça e acreditam que a força da injustiça, se for bem sustentada, é seu direito, é seu pleno direito, é o único direito que existe! Pois muito bem, apesar de o senhor ser diferente deles, o senhor faz exatamente o que eles fazem! E agora o senhor não vê entre os olhos dóceis de seus próprios companheiros aqueles que o trairão e que talvez já estejam tramando para tirar-lhe a vida...
Pizarro se agitou várias vezes para responder, mas a eloqüência apaixonada de Gabriel o fez emudecer. Ao ouvir as últimas palavras, ele zomba:
- Ora vamos, filho. Eles não ousariam!
Gabriel não se cala diante dessa exclamação.
- O senhor tinha, o senhor ainda tem a oportunidade de passar para a história como o homem que conquistou uma terra e que dela fez um país! O senhor a está destruindo.
- Gabriel, eu não posso!
A frase soa como um grito de desespero.
- Conheço sua generosidade e sua coragem e estou disposto a ouvir tudo de você. Não nego a verdade de muito do que você me diz e por vezes, durante a noite, quando eu rezo à Santíssima Virgem com o Menino, derramo lágrimas pelos crimes que são cometidos. Não creia que eu me julgue com menos severidade que você. Ninguém exceto meu Juiz Supremo sabe o que eu sei! Mas o que você diz é impossível compreende, impossível...
- É verdade que a expedição de Gonzalo e de Paullu tem como missão principal capturar Anamaya e a estátua de ouro?
- É, e Manco também. Mas Gonzalo convenceu-me que ele seria mais facilmente capturado se a sacerdotisa estivesse em nossas mãos e também essa estátua de ouro pela qual ele detém não sei que poderes mágicos...
- E depois disso, o senhor diz que haverá paz.
A ironia e o sofrimento sibilam nessas palavras que Gabriel diz entre dentes.
- O senhor pensa que, pura e simplesmente destruindo o que existe de mais precioso para eles, se aproxima da paz? É o contrário, dom Francisco: o senhor acrescenta
guerra à guerra! Quando tiver acabado com Manco, se conseguir fazer isso, ainda terá de enfrentar Villa Oma, o Sábio que se transformou em guerreiro, e depois Tila Topa. E quando esses dois estiverem mortos, outros surgirão... e quando tiver acabado com eles, ainda terá de enfrentar os homens que lutam com o senhor, em suas próprias fileiras, terá de se proteger de todos os lados sem poder confiar em ninguém. O senhor não vê que agindo desta maneira deixa a todos, espanhóis e índios, o espírito da guerra como uma herança da qual eles nunca poderão se desfazer!
- Você não compreende, Gabriel, ainda é jovem demais. Eu sei de tudo isso. Mas também sei de coisas que você desconhece. Por lá - diz ele, apontando para o oeste - eles andam agitados e chegam-me notícias de que estão planejando enviar um vice-rei. Se eu não tiver capturado Manco antes e pacificado a rebelião, será o fim.
- Será o fim de quê? De seu poder. das cobranças e dos assassinatos?
- Será o fim de meu sonho...
As últimas palavras escapam como um sussurro dos lábios pálidos e finos de dom Francisco, e Gabriel interrompe seu discurso exaltado. Não pode dizer nada a respeito da consistência do sonho desse velho, vindo de tão longe: é o segredo de cada ser, desprezível e magnífico. Os dois homens respiram suavemente. Toda a cólera que por vezes tingiu suas palavras se retira, escapa para a noite, enterra-se nas pedras, talvez absorvida pela sabedoria das múmias que não cessaram de observá-los.
- Permita que eu vá com eles - pede Gabriel -, com ordens para negociar a paz imediata com Manco. Eu o conheço bem, o senhor sabe, sou o único espanhol com quem, talvez, ele aceite falar.
- Não.
Gabriel se levanta, dá alguns passos pela esplanada. Todas as suas emoções se transformaram numa enorme exaustão - o cansaço de todos aqueles anos acumulado, a tristeza de não poder convencer o homem que ele tanto admirou, tanto detestou.
Seu olhar mergulha na escuridão em direção à múmia de nariz quebrado de Huayna Capac. Uma onda de sensações antiqüíssimas o trespassa e ele estremece como se, na noite estrelada, tivesse sido subitamente transportado para os terraços poderosos de Ollantaytambo. Ele se vira de volta. Francisco Pizarro não se moveu.
- Adeus, dom Francisco.
O Governador ainda assim não faz nenhum movimento, e Gabriel se prepara para descer em direção à cidade.
De repente, a voz do velho ressoa às suas costas.
- O que você vai fazer?
Gabriel faz meia-volta para ficar de frente para ele, mas na escuridão não consegue ver nada além de sua silhueta que já se afasta e se apaga.
- Dom Francisco, eu refleti a respeito da história da ilha do Gallo e vou lhe dizer o que penso: o senhor realmente riscou aquela linha na areia com a ponta de sua espada. E todos tiveram de tomar uma decisão: de que lado queriam ficar. Ele faz uma pausa e respira fundo, várias vezes enchendo os pulmões com o ar fresco da noite.
- Creio que na vida de todo homem chega um momento em que, como o senhor fez, ele pode puxar a espada e riscar uma linha na areia. Creio que todo homem escolhe.
- O que você vai fazer?
- O que devo.
Gabriel desaparece na noite.
Cuzco, junho de 1539
- Você está louco! - urra Sebastian.
Gabriel se cala e levanta as mãos para acalmar seu amigo. Nunca o viu tomado de tamanha raiva.
- Acalme-se.
- Você está dizendo para eu me acalmar.
- Deixe-me explicar mais uma vez...
- E o que você acha que sou, um negro cretino?
Gabriel baixa os braços em sinal de impotência.
- Acho que você é meu amigo.
Os olhos de Sebastian ainda lançam faíscas. Na noite que banha todos os aposentos de seu palácio, restam apenas uma tocha acesa e algumas velas sobre a pequena mesa de marchetaria delicada à qual os dois homens estão sentados. Os criados e as mulheres foram se deitar, e os dois homens falam quase que em voz baixa.
- E por acaso um amigo - prossegue Sebastian, mais calmamente - pode desejar a morte de seu amigo? E se suicidar com ele?
- Peço simplesmente que você...
- Simplesmente que eu me arruíne para ajudar você a financiar uma expedição em plena floresta para ir salvar uma índia, quando posso encontrar cinqüenta outras, mais bonitas, apenas com um estalar de dedos, e para salvar uma paz que, de qualquer maneira, ninguém quer. Ah, e eu esquecia: e proteger a fuga de um ídolo de ouro que, mais cedo ou mais tarde, acabará fundido em Cassana ou no palácio de um desses nobres fidalgos. Eu repito, meu amigo: você está louco. E se eu ainda estou ouvindo o que você diz, estou tão louco quanto você.
- E eu também - diz uma terceira voz vinda das sombras. - Tomado pela mesma loucura ou por uma semelhante. Mas tenho vontade de acreditar nela.
- O senhor, frei Bartolomé?
O monge saiu das sombras onde se mantinha, com os olhos aparentemente perdidos num quadro de estilo simples que retrata a fortaleza de Sacsayhuaman.
- Será - pergunta Sebastian - que depois do retorno do bispo Valverde o senhor não faz mais parte das mais altas autoridades desta bela cidade de Cuzco?
- O que você quer dizer?
- Seu cargo não faz do senhor... um aliado deles?
- Meu amigo, este cargo e seu peso fizeram de mim uma testemunha e há muito tempo um cúmplice do que apenas já durou tempo demais. Eu não vim para cá para permitir que se fizessem massacres em nome de Deus. E este homem, seu amigo, é minha única chance para que isso cesse. Há dois anos, quando Sua Santidade o Papa Paulo III publicou sua bula, pensei que havíamos obtido uma vitória decisiva. Mas isto não se verificou. Eu queria que Gabriel partisse para a Espanha para prestar um depoimento e exigir a ajuda do Rei a serviço da lei de Deus. Mas compreendo o que você chama de sua loucura e, se eu pudesse, o acompanharia...
Sebastian olha de um homem para o outro.
- E pode-se saber, é uma simples curiosidade, como você vai fazer para arranjar homens?
- Tenho alguns amigos - diz Gabriel sorrindo.
- Quem? Nosso velho companheiro Candia já está semi-arruinado por causa de suas tentativas de penetrar nessa maldita floresta! Se você quer fazer falar o meu dinheiro, será que eu poderia pelo menos saber o nome desses amigos?
- Não seria melhor, para permitir que você possa gozar o que vai restar de sua prosperidade, que você não soubesse?
- Que maravilha, Vossa Graça! Ele me autoriza a gozar o resto de minha prosperidade. É uma generosidade que me comove...
- Sebastian...
- Que Sebastian, que nada! Você me depena, me mata e quer que eu agradeça?
Gabriel e Bartolomé se calam. Na noite não há mais tempo para convencer, para bajular, para argumentar, para fazer piadas e brincadeiras. Eles podem apenas escrutar o semblante do antigo escravo, ver passar ali expressões de cólera e de dúvida, de tentação e de recusa...
- E se eu disser não?
Gabriel e Bartolomé andam rapidamente pela escuridão que, na noite sem lua, ganhou as ruelas de Cuzco. Eles atravessam a praça Aucaypata e descem em direção ao Templo do Sol. Ao se aproximar do Templo, Gabriel tem uma surpresa de tirar o fôlego. As muralhas foram derrubadas, as paredes estão semi-arruinadas. Restam apenas as pedras das bases maciças sobre as fundações que os conquistadores não tiveram coragem de destruir - ou que talvez tenham a intenção de reutilizar para construir sobre elas.
"O jardim de ouro", sussurra Gabriel para consigo mesmo, "o que fizeram com ele? Uma gamela para seus porcos?"
Envolto pela noite, ele permite que voltem a ecoar em seu íntimo as palavras da profecia do Inca, aquelas que Anamaya lhe revelou na última noite que passaram juntos e cujo sentido continua tão misterioso.
É por causa de sua fé nessas palavras tanto quanto pelo amor que bate em seu coração que está disposto a enfrentar qualquer coisa. Quando eles chegam às canchas de Pumachupan, silenciosamente, Gabriel põe a mão sobre o ombro de Bartolomé. O monge vira-se para ele e sorri; a cicatriz banha de sombras seu rosto. Sem hesitar, ele se dirige para uma abertura cuidadosamente feita numa parede de construção modesta.
- É aqui - diz o monge.
O pátio está deserto e mergulhado na escuridão. Com a chegada deles, alguns porcos-da-índia acordam e correm guinchando entre suas pernas. Depois, uma tocha se aproxima na direção deles, na altura do peito. ofuscado pela luz, Gabriel põe a mão diante dos olhos. Uma voz rouca e familiar dirige-se a ele em bom castelhano.
- Bem-vindo, senhor.
Gabriel afinal consegue distinguir no halo a silhueta característica do Anão. Ele o segue sem receio, com a impressão de reencontrar um velho amigo. Eles sempre se encontraram durante a noite, nunca trocaram mais que algumas palavras, mas o Anão sempre esteve presente para reaproximá-lo de Anamaya. Mais uma vez, vai ajudá-lo.
Atrás da modesta tapeçaria do aposento para onde o Anão os conduziu abre-se um pequeno palácio cujo luxo surpreende e encanta Gabriel. É como se o Anão tivesse se tornado o Inca de um minúsculo reino criado por ele, para ser governado por ele - e destinado a jamais ser conhecido exceto por ele. Tudo no aposento é de raro valor: ouro, prata e jóias ornam as taças, as jarras, as travessas. Os tapetes no chão são de lã de vicunha e a mesa rodeada por um banco e duas cadeiras é de madeira preciosa, incrustada de esmeraldas. Nos nichos estão dispostas as estatuetas familiares de lhamas e de condores, mas também as estatuetas mais assustadoras que Gabriel jamais viu entre os incas. Mais surpreendente, há uma espécie de ícone da Virgem. E tudo é pequeno, como se tivesse sido feito de acordo com o tamanho do Anão e unicamente para seu prazer, por artistas trabalhando em sua corte.
A convite do homenzinho, eles se acomodam como podem. Já vai longe o tempo em que vestia sua túnica vermelha demasiado comprida cujas franjas recolhiam a poeira. Ele veste calções de linho amarelo e um gibão da mesma cor; na cabeça tem um barrete de quatro pontas empinadas que faz Gabriel recordar os dos kollas que conheceu na margem do lago Titicaca.
- Esta residência é mais modesta que minha casa de Yucay - diz o Anão -, mas estou contente de recebê-los aqui.
- Parece que seu destino lhe trouxe a fortuna - replica Gabriel sorrindo.
- Escravo fui encontrado, escravo permanecerei. Mas, enquanto isso, gozo discretamente o que o destino me deu e vejo crescerem meus filhos que, com cinco e sete anos, já são mais altos que eu. Isto prova que o destino sabe se deixar acariciar. Mas vocês não vieram aqui para escutar a história de minha vida.
- Nós viemos pedir sua ajuda.
O Anão explode em gostosas gargalhadas, batendo com as mãos grandalhonas nas coxas.
- Quem diria! Quem diria! - exclama e repete sem parar.
Depois que ele se farta de rir e que sua última exclamação "Quem diria!" se afogou num soluço, Gabriel explica: precisa de um guia e de uma dezena de homens para ir até Ollantaytambo e, a partir de lá, seguir pelas florestas impenetráveis onde Gonzalo está à procura de Anamaya e Manco. O Anão não faz nenhuma pergunta. Ele contempla Gabriel longa e seriamente.
- Desde o início, sempre conduzi você para junto dela.
Gabriel inclina a cabeça.
- Quando você quer partir?
- Ainda esta noite, se for possível.
O Anão assobia por entre dentes.
- Iremos até minha casa, em Yucay, e eu reunirei os homens de que vai precisar. Mas você tem o ouro necessário?
- Ele tem.
A tapeçaria foi levantada para deixar passar a silhueta do gigante negro.
- Ele tem - repete Sebastian baixando a cabeça, como se a pequenez de tudo o que o cerca o obrigasse a se encolher. - Ele não quer perder tempo, não é mesmo?
O espanto imobilizou a expressão de Gabriel num trejeito que faz Sebastian dar uma gargalhada.
- Só para ver esta sua cara, Vossa Graça, vale a pena me submeter à tortura. Vamos, tratemos de andar logo, estou com dor no pescoço só de ficar aqui.
Os quatro homens tornam a sair. Gabriel segura o braço de Bartolomé e o aperta num gesto emocionado. Diante deles, os dois antigos escravos caminham sem dizer uma palavra, lado a lado: o Anão corre, enquanto o gigante reduz seus passos. Eles passam por canchas silenciosas antes de desembocar na estrada calçada de pedras de Collasuyu.
Quando estão na altura das últimas casas, e diante deles se desenham apenas os campos de cereais e o contorno sombrio do desfiladeiro atrás do qual se esconde Yucay, Bartolomé e Sebastian se imobilizam. Sebastian dá um ligeiro assobio por entre dentes. Dois índios aparecem - e uma sombra branca na noite.
- Itza! - exclama Gabriel.
- Eu disse que a guardaria para você!
- Itza!
- A variedade de suas exclamações me deixa confuso. Vai nos dizer isso uma terceira vez?
Sem dar atenção aos comentários sarcásticos, Gabriel dá palmadinhas afetuosas no focinho da égua. Depois, com os olhos brilhantes, vira-se para seus amigos. O monge levanta a mão de dedos colados para Gabriel.
- Você vai me permitir abençoá-lo - diz com um sorriso. - Que o Verdadeiro Deus esteja consigo!
- E não vá se esquecer de seus grandes colhões - diz Sebastian sombriamente. - Trate de guardá-los bem entre as pernas.
Gabriel contempla seus dois amigos e os abraça rapidamente. Abre a boca para agradecer.
- Fique calado - resmunga Sebastian -, pois já está me aborrecendo.
Você vai chorar como uma mulher, vai gemer "Itza! Itza!", e eu detesto isso. Trate de se apressar. Depois de uma última hesitação, Gabriel finalmente lhes dá as costas antes de montar na sela com um movimento ágil e desaparecer na noite.
Vilcabamba, Vitcos, julho de 1539
Antes de se aproximar, Anamaya observa por um instante a ruidosa faina de homens e mulheres sobre os terraços, isolados na parte baixa de Vilcabamba, que se estendem na margem do rio. Sob o olhar atento de Katari, as mulheres amassam e moldam a argila para colocá-la com cuidado no interior de molduras de madeira. Em seguida, os homens pegam as espessas placas de greda reluzente que são obtidas desse modo. Sentados, eles as curvam sobre suas coxas antes de colocá-las com cuidado ao sol, sobre um tapete de folhagem, para que sequem. Um pouco mais adiante, outros homens transportam as placas já secas, de uma cor cinza mais clara, para o centro de um forno redondo cujo braseiro está sendo preparado.
Quando vai ao encontro de Katari, Anamaya o vê chamar de longe um dos trabalhadores e pedir-lhe que traga a placa de argila que ele acabou de recurvar. Com a ajuda de um estilete de cana, em alguns gestos rápidos, o Mestre das Pedras desenha no material ainda macio uma pequena serpente.
- O que você está fazendo? - espanta-se Anamaya. - Para que servirão estas placas de greda?
- Para cobrir seu teto, Coya Camaquen, e para mantê-la seca e bem abrigada durante as próximas chuvas!
Anamaya franze as sobrancelhas e olha para ele sem compreender. Katari de novo desenha uma serpente sobre uma outra placa. Seu gesto é tão simples e tão natural que a imagem da serpente parece surgir com a celeridade de um verdadeiro réptil.
- É o que os estrangeiros chamam de telhas - explica Katari, os olhos brilhando de excitação. - Uma vez cozidas essas placas de greda, bastará recobrir com elas o madeiramento de nossos tetos para que se tornem absolutamente impermeáveis. Decidi cobrir primeiro o seu teto, Coya Camaquen, para lhe prestar uma homenagem. Depois, poremos telhas sobre todas as canchas de Vilcabamba. Isto acabará de embelezar a nova cidade real de nosso Único Senhor.
Em parte preocupado, mas também em parte se divertindo, Katari mostra a telha que acabou de desenhar e acrescenta:
- Minha única preocupação é que as coxas de um homem dos nossos são menores que as de um estrangeiro. Também as telhas que moldamos são menores que as que vi serem feitas em Cuzco. Vamos ter de trabalhar o madeiramento de nossos telhados para resolver este problema.
- Você me surpreende, Mestre das Pedras - sorri Anamaya. - Você, o guardião do saber de nossos Ancestrais, o depositário de nossas tradições, quer suprimir as coberturas de tetos incas e substituí-las por uma invenção dos estrangeiros?
- E por que não? Não devemos aprender com os outros povos o que a vida lhes ensinou? Nós não aprendemos a ourivesaria com as lições dos artesãos chimus, a cerâmica com seus ancestrais mochicas e a tecelagem com os antigos habitantes de Paracas? Estas telhas são uma invenção soberba. Com elas estarão acabadas os cansativos cortes do ichu e essas coberturas de teto que apodrecem e têm de ser trocadas a cada quatro estações! Deveríamos ignorar este saber somente porque os deuses não tiveram tempo de nos ensiná-lo? Isto não roubará em nada as belezas dos prédios e das paredes que nós, os incas, sabemos construir melhor que qualquer outro povo criado por Viracocha.
O semblante e a voz de Katari manifestam um raro entusiasmo. Emocionada, Anamaya observa o intenso balé das operárias e dos operários.
- Fico contente com o que você diz, Katari. Pois significa que, para você, nosso povo ainda deve se desenvolver e ter esperanças para o futuro a despeito da guerra, da fraqueza de Manco e dos sombrios presságios do Único Senhor Huayna Capac.
- O que você acaba de me fazer são duas perguntas numa só, Coya Camaquen - replica o Mestre das Pedras, assumindo uma expressão mais séria.
- Vou precisar lhe dar duas respostas. Primeiro para lhe dizer que me parece pernicioso dispor inutilmente de conhecimentos e de poderes. Isto só pode desagradar aos Poderosos Ancestrais que quiseram que cada coisa existisse neste Mundo para assinalar a presença deles.
Katari levanta o braço e mostra, mais além do terraço enlameado onde eles se encontram, um campo onde pastam tranqüilamente alguns cavalos que as crianças agachadas admiram.
- Manco capturou esses animais durante a batalha de Ollantaytambo. Com orgulho, os conduziu até aqui. Mas para fazer o quê? Somente ele sabe montar em seus lombos.
Infelizmente, na selva que se tornou nosso único território, esses animais são incapazes de se deslocar. Além disso, eles precisam de uma espécie de sola de sapato de metal nos pés que ainda não temos condições de fabricar. Desse modo, de que nos servem esses cavalos, senão para arregalar os olhos das crianças?
- Eles servem ao orgulho de Manco - diz Anamaya com ternura. - Esses cavalos mostram a todos que o Único Senhor nem sempre se submete ao poder dos estrangeiros!
Não longe deles, uma fumaça espessa e de odor forte agora escapa dos fornos redondos. Com o semblante grave, Anamaya contempla os homens e mulheres que os rodeiam e que parecem não ter visto nada no estranho jogo de Katari com as telhas.
- Estou muito lisonjeada que você queira decorar primeiro o meu telhado - declara. - Mas levarei algum tempo até poder ver seu trabalho. Concordei que Curi Ocllo vá ao encontro de Manco e decidi acompanhá-la.
Como Katari a observa com surpresa e inquietação, Anamaya responde à sua pergunta antes mesmo que ele a formule.
- Já faz quase uma lua que me recuso a deixá-la partir de Vilcabamba. Mas ela está definhando, chora com mais freqüência do que come. E talvez ela tenha razão: sua presença poderia reconfortar Manco.
- Mas por que acompanhá-la?
Anamaya hesita alguns segundos. Mais adiante, os homens gritam, enquanto rapidamente recobrem o forno com uma quantidade de novas ramagens para manter uma temperatura regular sobre as telhas.
- Prometi a Manco que estaria a seu lado e faz muito tempo que eu também o deixei sozinho. Além disso, Curi Ocllo receia que desta vez seja seu irmão Guaypar a enfrentar Manco. Entre eles existe um ódio antigo pelo qual me sinto um pouco responsável. Quem sabe eu não possa ser útil ao nosso Único Senhor?
Katari sacode a cabeça, com a expressão duvidosa.
- Este não é seu lugar, Coya Camaquen. Os ódios de Manco são como os tetos cobertos de ichu desta cidade: são hábitos antigos que não impedem nem a chuva de umedecer os leitos nem os estrangeiros de ganhar as batalhas! Além disso, atravessar a floresta quando os estrangeiros se aproximam é perigoso para você!
- Nós teremos uma boa escolta - interrompe Anamaya, pondo a mão afetuosamente sobre o punho do Mestre das Pedras. - Katari, confio a você o Irmão Duplo. Cuide bem dele. Estarei de volta o mais depressa que puder. Sinto que se aproxima o momento em que deveremos conduzi-lo para lá, você sabe onde.
É no terceiro dia de prudente marcha que o pequeno grupo delas, acompanhando o curso do rio, alcança o ponto de onde se pode avistar o esporão rochoso que sustenta o palácio fortificado de Vitcos. Contrariando as inquietações de Katari, o progresso pela selva se fez sem qualquer dificuldade exceto penetrar a desordenada massa vegetal tão vigorosa que não cessa de querer devorar e apagar o caminho traçado a cada passagem.
Curi Ocllo também se mostrou corajosa, nunca hesitando em deixar sua liteira quando o estreitamento das trilhas o exigia. Agora, quando os muros de Vitcos surgem projetados sobre o vale, sua impaciência é tão grande que suas mãos tremem. Ao longo de todo o dia, seu rosto perdeu as sombras que o enfeavam para tornar-se de novo aquele tão belo rosto amado e desejado por Manco. Cintilantes e alegrados pela exaltação, seus olhos e boca são ao mesmo tempo os de uma mocinha muito jovem a que nenhuma das provações do mundo saberia afligir e, vibrantes de promessa, os de uma mulher que sabe que muito brevemente o amado a tocará com o olhar e as pontas dos dedos.
Enquanto isso, quando eles alcançam os primeiros degraus de uma encosta bastante íngreme que se liga à fortaleza pelo flanco norte, a coluna se imobiliza bruscamente. Antes que o oficial no comando dos quinze guerreiros da escolta se aproxime da liteira, Curi Ocllo já reclama:
- Oficial, por que ordenou esta parada? Estamos quase chegando...
Com respeito, o oficial inclina-se diante dela e, com a habilidade de um homem habituado a este tipo de cerimonial, por meio de uma torção do busto, consegue fazer com que sua saudação seja ao mesmo tempo dirigida a Anamaya.
- É verdade, Coya que estamos muito próximos de Vitcos. Mas, exatamente, quero pedir permissão à Coya Camaquen para enviar dois soldados até a fortaleza para prevenir o Único Senhor de sua chegada.
- É inútil! - exclama Curi Oco. - As sentinelas o avisarão. E além disso, se eu pudesse lhe fazer a surpresa com minha chegada, seria maravilhoso!
Com uma ligeira gargalhada ela se vira para Anamaya e suplica:
É inútil perder tempo, não é?
- Oficial - pergunta Anamaya -, acredita que seja realmente necessário enviar previamente soldados? A Coya tem razão, o Único Senhor será avisado de nossa chegada pelas sentinelas.
O constrangimento reprime por um breve instante a resposta do comandante da escolta. Finalmente, ele se inclina ainda mais baixo para declarar:
- Na verdade, Coya Camaquen, eu queria me assegurar de que o Único Senhor Manco de fato esteja na fortaleza.
Por que ele não haveria de estar? - indaga Curi Ocllo. - Se ele tivesse partido, nós já saberíamos. Ele nos teria enviado um mensageiro. Ah, Anamaya, por favor, estamos tão perto!
- Seria estúpido ser imprudente - responde Anamaya docemente.
Imediatamente, as lágrimas sobem como pérolas aos olhos negros de Curi Ocllo. Anamaya não pode conter um sorriso diante desse capricho.
- Oficial - suspira -, envie um soldado para anunciar nossa chegada, mas retomemos o caminho sem esperar que ele volte.
Sem nenhuma moderação, com uma espontaneidade de criança mimada, Curi Ocllo lança os braços em volta do pescoço de Anamaya e a abraça.
- Obrigada, Anamaya! Obrigada... Você não pode saber como estou feliz por finalmente reencontrar Manco!
A coluna não está a mais de dois lançamentos de funda da fortaleza quando o soldado que havia sido enviado vem se juntar a eles correndo. De novo, o comandante da escolta interrompe a marcha.
- Coya Camaquen - anuncia -, não há ninguém. Victos está vazia...
- Vazia?
O grito de espanto de Curi Ocllo é um grito de dor.
- O Único Senhor e seus soldados parecem ter deixado o palácio há vários dias...
- Mas por quê?
- Pode ser que haja estrangeiros por essas paragens, Coya.
- Neste caso, oficial - ordena Anamaya rapidamente -, é inútil nos demorarmos aqui neste caminho. Apressemo-nos para alcançar a fortaleza.
Uma vez que está vazia, poderemos nos abrigar nela e nos proteger se for necessário.
De fato, assim que eles atravessam as muralhas que cercam a fortaleza, encontram os prédios e pátios abandonados.
Inquietas, Anamaya e Curi Ocllo saltam da liteira e cruzam o primeiro dos pátios, cercado de construções baixas dispostas num grande e perfeito quadrado. Acompanhadas pelos soldados, elas se dirigem para os aposentos do lado oposto à entrada do palácio. Formando um corredor estreito e defensivo, uma espécie de ruela em ângulo reto permite a passagem até a parte mais avançada da fortaleza.
Ali, nada além de uma vista esplêndida se oferece a elas. Construído bem na ponta de uma protuberância de rocha, como uma proa, projetando-se sobre uma encosta vertiginosa que acaba no rio, um prédio longo e imponente, com quinze magníficas portas ornadas com vergas de granito branco, encerra um pátio num nível mais alto. Ao redor elevam-se as encostas nevadas dos mais altos Apus; tudo parece indestrutível e estranhamente pacífico.
Eu não compreendo! - repete Curi Ocllo com uma voz abalada. - Por que Manco partiu sem nem sequer enviar um chaski ao nosso encontro?
- Isso é apenas um contratempo - tranqüiliza Anamaya, escrutando a floresta sobre as encostas ao redor. - Ele deve ter recuado para o pequeno forte de Machu Pucara.
- Por quê? Sem nos avisar...
- O oficial talvez tenha razão: os estrangeiros estão mais próximos do que imaginamos. Devemos ser prudentes. Vou enviar um mensageiro a Machu Pucara para que Manco possa...
Ela não tem tempo de concluir sua frase; gritos espantosos rasgam o ar e lhes gelam o sangue. De início, elas não vêem nada. Parece que os gritos não vêm de lugar algum. E então eles aparecem. Cem ou duzentos guerreiros índios do Norte. De n'micas com as cores de Quito, capacetes de couro e escudos erguidos à frente, eles saltam do vazio, jorrando num fluxo contínuo de trás do prédio comprido onde estavam escondidos.
As maças de bronze e as fundas giram. As lanças estão apontadas e os machados erguidos! O comandante da escolta começa a gritar ordens. De lança em punho, seus soldados cercam Anamaya e Curi Ocllo formando uma barreira irrisória. Mas mal assumiram suas posições quando as pedras de funda começam a voar sibilantes, matando de uma vez dois deles. Mais alto que todos os outros, o grito de Curi Ocllo enche o ar e parece desencadear o ataque.
Um ataque tão breve e tão violento que Anamaya quase não tem tempo de compreender e muito menos de fugir. O último a ser morto, com a cabeça aberta por uma maça estrelada, é o comandante da escolta. De repente, faz-se o silêncio. Os soldados do Norte formam um círculo compacto ao redor delas. Curi Ocllo cai de joelhos. Sob os olhares inexpressivos dos guerreiros, ela se abraça a Anamaya. Em meio a um roçar de escudos que se entrechocam, um caminho se abre na massa de homens. Um oficial inca de alta linhagem, usando magníficos brincos muito grossos e uma capa em que correm fios de prata, o capacete coroado por um curto leque de plumas azuis e douradas, avança. Seu rosto é duro e anguloso, os olhos parecem estranhamente pequenos em suas órbitas. Anamaya o reconhece no instante em que Curi Ocllo se levanta de um salto e corre para ele:
- Guaypar! Ah, Guaypar, meu irmão!
Com emoção, ela se prosterna no solo. Guaypar a evita, sem nem sequer baixar um olhar para seus ombros trêmulos. Um sorriso estica seus lábios bem desenhados. Ele se aproxima, chegando bem junto de Anamaya, que ostenta uma máscara de desprezo absoluto.
- Nós a esperávamos, Coya Camaquen. Para dizer a verdade, viemos aqui apenas por sua causa.
- Nesse caso, que maneira curiosa de nos receber, Guaypar.
O sorriso de Guaypar se alarga enquanto, às suas costas, os homens retêm Curi Ocllo, que chora soluçando violentamente e cujas mãos já estão sendo amarradas.
- Eu não dou importância aos laços de sangue, Anamaya. Minha irmã me renegou há muito tempo ao se casar com Manco, o traidor, o usurpador...
- Saiba que o destino dela e o meu estão ligados, Guaypar!
- É a mim que caberá decidir, Coya Camaquen. Mas é preciso compreender minha impaciência. Faz tanto tempo que sonho com este momento!
Seu olhar está tão vibrante de confiança e de ódio que, pela primeira vez em muito tempo, o veneno da dúvida e do medo se infiltra nas veias de Anamaya.
- Você se lembra daquela noite em Huamachuco? Foi antes da chegada dos estrangeiros, o Único Senhor Atahualpa conduzia a guerra contra Huascar, o Louco...
Guaypar sorri ao fazer esta pergunta. Mas seu sorriso é gelado, assim como sua voz. Anamaya sorri por sua vez antes de responder.
- Sim, eu me lembro.
Ela está sentada, quase agachada no chão de uma das pequenas salas da fortaleza para onde os guerreiros de Guaypar a conduziram. Sem brutalidades inúteis, mas também sem nenhum respeito por sua posição, seus braços e panturrilhas foram amarrados a uma grossa tora de madeira colocada às suas costas, obrigando-a a se manter numa postura contorcida que lhe machuca os quadris. Uma dor lancinante já começa a se estender ao longo de sua coluna vertebral e se irradia para os ombros. Contudo, ela segue sorrindo e repete:
- Eu me lembro. Você acabava de ser nomeado capitão por ter capturado os generais de Huascar na batalha de Angoyacu.
Os olhos sombrios de Guaypar revelam espanto. Anamaya o vê respirar fundo, enchendo o peito. Depois ele desvia o rosto para o pátio onde suas tropas se instalam ruidosamente. Mil perguntas se precipitam no espírito de Anamaya mas ela as contém, obrigando-se a deixar Guaypar vomitar seus rancores tão antigos:
- Naquela noite, eu tinha dito que você era a mais bonita das mulheres do Tahuantinsuyu. Que nenhuma outra possuía a metade de sua beleza, que nenhum olhar e nenhuma boca podiam ser comparados com os seus...
Apesar de ele estar de pé, numa postura provocante, e, com toda a sua altura, dominar Anamaya submetida ao suplício da tora de madeira, Guaypar dá a impressão de estar mais em guarda do que em posição de dominador. O machado cerimonial, de prata e ouro, treme um pouco em sua mão. Como se o veneno das lembranças que o assaltam lhe poluísse a carne, a pele de seu rosto se torna acinzentada enquanto ele acrescenta:
- Eu fiz mais: naquela noite, eu pedi a você que se tornasse minha esposa e você recusou.
- Pois então você se lembra também por quê - replica Anamaya docemente.
Uma gargalhada zombeteira, carregada de fúria, escapa dos lábios de Guaypar.
- O Irmão Duplo! Você disse: "Não posso por causa do Irmão Duplo!" Desde então, não existe um único Poderoso Senhor deste país que ignore como a Coya Comaquen exerceu sua fidelidade ao Irmão Duplo do Único Senhor Huayna Capac escancarando suas coxas para um estrangeiro! Um estrangeiro que se disfarça de índio e que é tão desprezado por seus companheiros como deve ser detestado pelos nossos. Se ele não tivesse sua proteção...
Guaypar não conclui a frase. Mas o movimento cortante de sua mão revela muito bem a sorte que reserva para Gabriel. A dor nos rins dá um nó no ventre de Anamaya e a obriga a fechar os olhos, por um instante, para respirar melhor. Do lado de fora, o barulho e os gritos anunciam a chegada de novas tropas. Quando torna a abrir as pálpebras, Anamaya distingue, no limiar do aposento, oficiais que esperam as ordens de Guaypar sem que nenhum deles ouse perturbá-lo.
- O que você quer de mim? - pergunta ela, tentando mascarar seu sofrimento.
Como se não tivesse ouvido a pergunta, Guaypar atravessa a sala duas vezes diante dela. Bruscamente, ele pára de andar, observa, sem ver, a agitação do lado de fora e declara numa voz surda:
- Eu também disse a você uma outra coisa nessa época distante. Você não se lembra?
- Você sempre disse muito, Guaypar. Se estiver me perguntando quais são minhas recordações de você, eu poderia resumi-las facilmente: palavras de ódio e de violência! E isto desde a primeira vez.
- Não!
A raiva desfigura o rosto de Guaypar e seu grito faz os oficiais do lado de fora se sobressaltarem.
- Não! - ruge, agachando-se para ficar na altura de Anamaya. - Desde o primeiro dia, em mim só houve amor por você. Mas você, Anamaya, você que não era nada, nem mesmo uma princesa de sangue inca, você, a menina da floresta, não deixou de me repelir sem cessar, primeiro para melhor seduzir Atahualpa, depois Manco!
- Tantos anos de ciúme! - suspira Anamaya sacudindo a cabeça. - Pobre Guaypar! Como é possível viver tanto tempo sendo atormentado desse modo?
- Eu lhe disse há muito tempo, Anamaya! Quis muito esquecer você, mas isso me foi impossível. Não se passou uma estação, nem um combate sem que eu pensasse em você!
Não levei uma mulher para meu leito sem pensar em você. Não lutei contra os estrangeiros sem pensar em você. E sempre, sempre soube que haveria um dia como este, em que finalmente chegaria a minha vez de fazer com que você passasse pelos sofrimentos que seu desprezo me fez suportar!
Cada parcela do rosto de Guaypar está endurecida pela violência, que torna suas palavras pesadas como pedras. Com uma lentidão próxima da loucura, seu olhar fixa os lábios trêmulos, e ele levanta a mão para tocar a face de Anamaya. Mas não a toca. Fascinado, detém as pontas dos dedos antes do contato e se contenta em esboçar uma carícia de seus cabelos até o centro de seu peito.
- O que você quer de mim? - sussurra Anamaya com esforço.
- Primeiro, vou usar você para destruir Manco. Depois, será sua vez. E um dia, eu ocuparei o lugar de Paullu e por minha vez me tornarei o Único Senhor!
- Você é louco e estúpido - murmura Anamaya tornando a fechar os olhos. - Você ignora tudo do amanhã. Sua raiva o conduz para o Mundo de Baixo, você jamais reencontrará seus Poderosos Ancestrais!
- Frivolidades de Coya Camaquen! Nunca fui daqueles que se impressionam com suas palavras, Anamaya. Não acredito em sua magia. O Huayna Capac estava demasiado doente e demasiado velho para poder lhe transmitir o menor poder! Tudo isso nunca foi mais que uma manobra de Atahualpa para se impor aos clãs de Cuzco. E você, você bem soube se aproveitar disso.
- Que importa o que você pensa de mim, Guaypar. Você pode me matar. Pode enfraquecer Manco e mesmo vencê-lo. Mas não creia que vai mudar seu futuro e menos ainda o futuro do Império. Você jamais será um Único Senhor. Inti já decidiu o caminho de seus filhos.
Como se não sentisse mais os braços, as costas e os ombros martirizados, Anamaya mergulha seu olhar azul bem fundo dos olhos de Guaypar. Desconcertado por sua calma, ele torna a se levantar e se afasta, o rosto ainda mais pálido, os olhos mais fundos nas órbitas.
- O que você fez com sua irmã Curi Ocllo? Quer matá-la também? Curi Ocllo ama você quase tanto quanto ama Manco e você a ignora com desprezo.
Com um gesto, Guaypar varre para longe a censura de Anamaya, mas não tem tempo de responder. Grandes gargalhadas ressoam do lado de fora, acompanhadas de um retinir de espadas e do bater de botas.
- Ora muito bem, já está pondo mãos à obra, senhor Guaypar!
Anamaya reconhece tudo ao mesmo tempo: a voz, os longos cabelos louros e as feições delicadas. Além disso, com o passar do tempo, as rugas sublinharam os olhos e uma marca de expressão amarga repuxou a boca para baixo. Também falta-lhe um dente do lado, quando Gonzalo dá uma gargalhada zombeteira observando-a com a arrogância de um caçador diante da caça finalmente vencida.
Atrás dele estão uns dez espanhóis, com capacetes de metal e botas de cano alto, os calções imundos pela travessia da selva e a mão cerrada sobre o punho das espadas. Num instante a pequena sala está cheia. Enquanto os olhares pesam, todos cravados nela, Anamaya se obriga a conservar o rosto virado para a frente, o semblante impassível, o olhar na altura das botas que a cercam de muito perto.
- Devo felicitá-lo, senhor Guaypar - prossegue a voz de Gonzalo no mesmo tom brincalhão. - Realmente soube resolver esta questão! Imaginava que teríamos mais dificuldade para desentocar esta preciosa princesa nesta maldita selva.
O semblante de Guaypar tornou a se fechar, insensível à bajulação do espanhol que, subitamente, se inclina. Com os dedos enluvados, ele agarra o queixo de Anamaya e o levanta brutalmente.
- Vejo que não consegue esconder a felicidade por me rever, bela princesa! Anamaya não responde nada. Mas os olhos azuis mergulham sem nenhum traço de temor nos do irmão do Governador, com tamanha intensidade que Gonzalo finalmente é obrigado a desviar o olhar com uma gargalhada zombeteira de constrangimento.
- Esta mulher sempre foi assim - explica aos companheiros, empertigando-se orgulhosamente. - Provocante, segura de si. Vai ser um verdadeiro prazer interrogá-la! Senhor Guaypar, já perguntou onde ela escondeu a estátua de ouro?
Os rins doloridos de Anamaya se congelam. De súbito, ela compreende. É o Irmão Duplo que Guaypar e os estrangeiros estão procurando. Sua captura não foi absolutamente fruto do acaso! O olhar carregado de ódio de Guaypar pesa sobre ela e o que vê em seu olhar confirma seu temor.
- Quando Manco não tiver mais nem o Irmão Duplo de seu Pai nem você - murmura em quíchua -, ele ficará tão enfraquecido quanto uma criança.
- Pensei que você desprezasse minha influência sobre Manco - zomba Anamaya.
- Que importância tem o que penso! É ele, Manco, quem acredita em seus poderes. Se bem que, até o dia de hoje, esses poderes não tenham lhe sido muito úteis. A sua captura vai assustá-lo. Ele dirá a si mesmo que é o sinal de que seus Poderosos Ancestrais o abandonaram! Então poderei acabar o combate que nós começamos na noite do huarachiku.
- Guaypar! - exclama Anamaya. - Guaypar, você não pode fazer isso! Atahualpa o chamava de "meu irmão", o sangue que corre em seu coração é o sangue de Inti. Você é um Inca: não permita que os estrangeiros se apoderem do Irmão Duplo! Você sabe o que farão com ele: placas de ouro que levarão para o outro lado do oceano. E então será o fim de nosso povo. Guaypar! Nenhum Filho do Sol poderá mais se manter de pé à luz do dia! Você, da mesma forma que os outros. Mate-me, abata Manco se este é seu objetivo. Mas não conduza os estrangeiros ao Irmão Duplo, senão destruirá aquilo que fez você nascer! Eu suplico, Guaypar! Não sou eu que lhe peço isso, mas todos os Poderosos Ancestrais suplicam através de minha boca...
- Hola! Hola!- ruge Gonzalo levantando a mão como se quisesse capturar no espaço as palavras de Anamaya. - Eis que temos muitos gritos e discursos, senhor Guaypar.
Mas eu preferiria que fossem em espanhol! O que ela está lhe dizendo?
- Eu disse a ele que para mim será mais agradável morrer - responde Anamaya, antes que Guaypar possa abrir a boca - que permitir que o senhor encontre o que procura.
- Ah, bela amiga - retruca Gonzalo dirigindo uma piscadela de olho a seus companheiros -, essas são coisas que se afirmam quando se é ignorante. Não imagina o prazer que eu terei em fazê-la mudar de opinião!
- Senhor Gonzalo - intervém Guaypar num espanhol bastante lento.
- Deixe que eu me ocupe da Coya Camaquen. Creio que sei onde está a estátua de ouro. Brevemente eu o conduzirei a ela como o conduzi até aqui...
-Ah, sim?
A sobrancelha de Gonzalo se levantou, com uma expressão de suspeita. Uma crispação se apodera de todo seu rosto que, de repente, exprime apenas desconfiança.
- Não é desse modo que eu vejo as coisas, meu bom amigo - diz ele num tom imperioso. - Soube que você tinha encontrado aqui sua irmã, a bonita esposa de Manco. Faça com que ela o acompanhe até ele. Tenho certeza de que conseguirá convencê-la a fazer esse pequeno esforço! E, quando estiver diante de Manco, poderá lhe anunciar que esta aqui está conosco e que eu estou conversando com ela. Tenho certeza de que ele o ouvirá com atenção...
O dedo de Gonzalo está apontado para Anamaya enquanto Guaypar sacode a cabeça.
- De que serve ir ver Manco, se não é para guerrear com ele?
- Nada o impede de matá-lo, se puder, senhor Guaypar - ironiza Gonzalo. - Mas não foi você quem me explicou que, sem esta moça, Manco era como uma minhoca saída da terra sobre uma pedra aquecida pelo sol?
Dessa vez, o olhar que Guaypar lança para Anamaya, enquanto os estrangeiros já o empurram para fora da sala, é menos carregado de ódio que de cansaço.
Vitcos, Machu Pucara, julho de 1539
Há muito tempo a noite já caiu. Uma lanterna furta-fogo está posicionada bem perto de Anamaya, que não bebeu nem comeu nada desde sua captura. Sem um instante de alívio, a dor corta seu corpo e interrompe sua respiração com tanta freqüência, que ela tem de pensar somente em respirar. Por causa disso, esqueceu da sede e da fome.
A despeito de tudo, ela se esforça para manter os olhos abertos. Quer que Gonzalo leia neles toda sua indiferença. Ele retornou, sozinho, até a sala onde ela está presa. Está de camisa, com uma adaga na mão, e a luz fraca da lanterna mal permite distinguir suas feições.
- Agrada-me que você esteja silenciosa - murmura ele, fazendo a lâmina dançar nas pontas dos dedos. - Meu prazer será maior e mais demorado.
Ele se levanta com uma gargalhada, se afasta nas sombras, desliza atrás dela.
- Sabe que o seu Gabriel desapareceu? Partiu, fugiu... Alguns dizem que já voltou para a Espanha, outros afirmam que se afogou num lago.
Anamaya não move nem um cílio. Toda sua vontade está dedicada a este esforço: não oferecer a Gonzalo o prazer que ele espera. Nem um murmúrio. Nem uma queixa, nem o menor sinal de emoção.
- Anos atrás, eu poderia ter feito de você minha mulher. Você me agradava bastante. Tinha falado sobre isso com meu irmão Juan... Sabe que foi por causa de seu Gabriel que meu querido Juan morreu?
A lâmina da adaga desliza entre a pele e a túnica dela.
- Eu amava Juan. Lá onde ele está hoje, no paraíso ou no inferno, quero que ele escute seus gritos quando minha adaga lhe beijar.
Com um golpe seco da lâmina, Gonzalo rasga-lhe a túnica, desnudando o ombro e um seio. Como se uma mosca tivesse pousado a seu lado, ela não faz nenhum movimento.
- Você é forte - sussurra Gonzalo em seu pescoço. - Mas vai ver que sou mais forte que você.
De novo ele aparece diante dela e busca seus olhos.
- Vou fazer como seus guerreiros fazem com meus companheiros. Mas à minha maneira...
Ele encosta a ponta de ferro no ombro de Anamaya e a deixa descer até o peito.
- Vou começar tirando um pouco de pele aqui - diz numa voz suave.
- Um seio, depois o outro... Uma mulher não morre desse tipo de ferimento, mas parece que sofre muito. Sobretudo se lhe salpicam um pouco de sal sobre a ferida.
Ele sorri. Espera uma reação que não vem.
- Também existe uma outra técnica que vi usarem: põe-se um pouco de pólvora sobre as feridas, depois se põe fogo. A vantagem é que isto impede que o sangue escorra...
Anamaya não escuta mais as palavras. Ela as deixa zumbir ao seu redor como um ruído inútil e vão. Quando Gonzalo acrescenta frases às frases, se excitando com os horrores que ele mesmo profere, ela sente uma estranha paz dominar seu coração e seu espírito, O medo a abandona e mesmo a dor em suas costas parece se amenizar.
Gonzalo pode falar e falar, lançar os vômitos de seus pensamentos e de seus desejos; ele permanece tão impotente quanto um menino que quer caçar e abater os animais que povoam sua imaginação.
- Mas, antes de todos esses prazeres - diz Gonzalo rangendo os dentes, pegando a lanterna e se levantando -, meus caros companheiros se divertirão com você. Você lhes oferecerá seu belo corpo antes que eu o corte: deve haver pelo menos uns vinte a quem você agradará antes que esse seu buraco entre as coxas não seja mais utilizável!
Com uma risada satisfeita, ele levanta a tapeçaria da porta e acrescenta:
- É claro, Princesa, seria possível evitar essas coisas desagradáveis: basta que nos conduza à estátua de ouro. Você tem minha palavra que depois disso não me interessará mais que a bosta de meu cavalo. E então?
Ela não abriu a boca desde que ele começou a provocá-la e a ameaçá-la. Com uma delicadeza de cortesã, uma gota de suor aflorando sobre o lábio, ela deixa escapar sua primeira palavra.
- Não.
Talvez ela tenha adormecido.
Na escuridão profunda de sua prisão, ela percebe um estranho farfalhar de folhagens. Seus braços e pernas estão tão dormentes que ela não os sente mais. Só resta o aguilhão da dor em suas costas e ombros. O rangido torna-se mais insistente. Ele se interrompe bruscamente, depois recomeça, lento e comedido. É então que talos de ichu caem em cima de Anamaya e ela compreende. Felizmente, todo o teto da sala ainda é feito de ichu e não das telhas tão orgulhosamente fabricadas por Katari!
- Estou aqui! - diz ela baixinho. - Sou a Coya Camaquen...
Como única resposta, alguns blocos de palha despencam na escuridão. Um sopro do ar fresco noturno toca de leve seu ombro desnudo. As cordas que a impedem de se mover não permitem que veja distintamente, mas percebe uma silhueta na abertura do teto. Um temor a domina. Não será um dos homens de Guaypar? Ela se cala e prende a respiração enquanto o homem salta com agilidade para o solo. Depois nada mais acontece. O silêncio é absoluto. Por que o homem permanece tão obstinadamente calado?
E então, ao mesmo tempo, ela vislumbra dedos de uma mão que encontram sua carne nua, que deslizam e apalpam as cordas que a amarram, acariciam sua nuca e sua têmpora. Ela estremece de terror, contém um grito que lhe sobe aos lábios, quando uma voz que reconheceria entre todas murmura em seu ouvido.
- Anamaya!
Ela pensa que vai desmaiar. Seu coração é um rio de lavas dentro de seu peito.
"Ó Poderosos Senhores, vossa vontade assim o quis!"
A voz sussurra ainda: "Anamaya!" As mãos e braços sólidos a envolvem e acariciam. Uma felicidade louca cresce em seu íntimo e explode em seu peito.
- Gabriel! Gabriel!
- Sim, sou eu! Quieta, não grite, tem um guarda lá fora!
- Ah, Puma, meu Puma! Eu sabia que poderia confiar em você!
- Espere, vou cortar essas cordas... Devagar... Esses canalhas não pouparam corda.
- Como você soube?
- Devagar, nada de impaciência.
Tão logo a pressão das cordas desaparece, Anamaya quer se ajoelhar e tocar o rosto de Gabriel, mas suas pernas fraquejam e se dobram. Enquanto o sangue circula de novo em suas veias como se arrastasse mil pontas de agave, ela desaba nos braços dele.
- Devagar - repete ele, com um sorriso na voz, beijando suas têmporas, suas pálpebras, já buscando seus lábios.
Mas sua mão apalpa o rasgão na túnica e ele se imobiliza:
- Você está ferida? Fizeram alguma coisa?
- Nada - ela sorri, por sua vez -, apenas palavras... Eles querem o Irmão Duplo e esperavam me assustar.
- Eu sei. Saí atrás de Gonzalo tão logo soube por que ele fazia esta expedição - explica Gabriel, massageando suavemente os músculos doloridos de Anamaya.
- Alcancei o grupo deles há quatro dias. Como não sabia onde você estava, achei que seria mais inteligente esperar que eles me conduzissem até você.
- Faz tanto tempo - murmura Anamaya segurando seu rosto para beijá-lo mais uma vez. - Tanto tempo! E nem uma noite, nem um dia acreditei que estivéssemos separados para sempre. Já há alguns dias, eu sentia que você estava bem perto de mim...
Gabriel põe os dedos sobre seus lábios. Um ruído de passos do lado de fora recorda a presença da sentinela. Gabriel estreita Anamaya em seus braços e murmura em seu ouvido.
- Nunca mais aceitarei ficar separado de você. Nunca mais. Não me peça mais isso, pois recusarei!
Uma pequena risada sacode o peito de Anamaya, colada nele.
- Não pedirei mais isso - responde ela no mesmo tom. - Daqui para a frente, iremos juntos.
Em silêncio, eles permanecem abraçados assim, como se finalmente a eternidade realizasse o desejo deles. Depois, sem levantar a voz, Gabriel mostra o buraco que abriu no teto de palha.
- Gonzalo está tão seguro de si que não escolheu sua prisão com muito cuidado! Um grosso galho de árvore chega até o telhado e de lá rapidamente estaremos do lado de fora das muralhas da fortaleza. O Anão nos espera e nos conduzirá: Manco está no pequeno forte de Machu Pucara.
- Eu suspeitava disso.
- Se caminharmos a noite inteira, alcançaremos o acampamento de Manco antes que Gonzalo e seus comparsas descubram sua fuga.
- Sim - aprova Anamaya levantando-se lentamente. - Temos de nos apressar. Curi Ocllo estava comigo. Guaypar a fez sua prisioneira e quer obrigá-la a levá-lo até Manco. Devemos chegar antes deles.
- Você tem razão - concorda Gabriel -, não temos um minuto a perder.
Ele a abraça longamente antes de levá-la consigo.
O Único Senhor Manco vestiu um unku de tecido axadrezado em preto-e-branco cuja metade é recoberta por um peitoral de ouro. Grandes brincos de ouro balançam sobre as pregas do ombro de sua longa capa de vicunha. Ele colocou sobre a fronte o Ilautu, o cordão real, e, sobre seu capacete trançado em tiras de cana e recoberto de ouro, a brisa agita as três plumas de curiguingue que o designam como o Filho de Inti.
Ele se mantém de pé sobre a liteira de combate carregada por dez homens. A mão esquerda está cerrada sobre a lança cerimonial, enquanto a direita está pousada sobre o punho de uma espada embainhada cingida à sua cintura, o mais ornamentado dentre os troféus que lhe foram trazidos por seus guerreiros. Seu olhar é duro como as pedras das altas montanhas. Seus lábios e pálpebras estão tão imóveis que não se sabe dizer se ele respira.
- Há muitas luas que os oficiais e os guerreiros de seu séquito não vêem seu Único Senhor com tão bela aparência, e todos sentem que nesse dia alguma coisa de essencial vai acontecer.
Ao alvorecer, quando as brumas da noite ainda se estendiam sobre o rio de águas geladas, Manco subitamente deu ordem a seus comandantes para pôr as fileiras em formação e se posicionarem diante das muralhas do velho fortim como se estivessem na grande esplanada de cerimônias de Aucaypata, em Cuzco. Em resposta aos olhares intrigados e às perguntas silenciosas, ele diz sorrindo:
- Soube esta noite que os estrangeiros estavam nos enviando um mensageiro. Quero recebê-lo com honras.
De fato, quando os primeiros raios de Inti penetram entre as folhagens, a trompa soa e anuncia os visitantes. Como na grande praça de Aucaypata, os milhares de guerreiros estão alinhados em cinco fileiras e formam até dentro da floresta uma parede de lanças, de piques, de auriflamas e de longas maças. Atrás de Manco, uma dúzia de oficiais rodeia os arquebuzes tomados aos espanhóis.
Ninguém se move quando Guaypar se aproxima à frente de Curi Ocllo. A cem passos de Manco, com o rosto banhado em lágrimas, a Coya se prosterna gritando tão alto que todos a ouvem:
- Perdoe-me, meu Único Senhor! É somente a você que amo e a quem obedeço, meu esposo tão amado. Suplico que perdoe meu irmão Guaypar: ele não quer lhe fazer mal.
Certos soldados percebem um breve sorriso na linha dura da boca de Guaypar. Mas os oficiais já o estão cercando. Eles o agarram pelos braços e, ainda que Guaypar se defenda com violência, obrigam-no a se prosternar diante de Manco. Um velho capitão traz uma pedra bem pesada que deixa cair sobre seus ombros, rosnando:
- Saúde seu Único Senhor ou morra, traidor nojento!
- Você não passa de um covarde, Manco! - grita Guaypar em resposta. Precisa de milhares de homens para me enfrentar, quando eu venho sozinho.
Manco o observa sem responder, a boca franzida pelo desprezo. Dois oficiais mantêm a ponta da lança apoiada sobre a nuca de Guaypar e obrigam- no a olhar para o solo, enquanto ele continua a gritar.
- Você não é filho de seu pai, Manco! Sem as intrigas da Coya Camaquen e a loucura de Villa Oma, você jamais poderia ter posto o lia utu sobre a testa. Nunca meu irmão Atahualpa teria escolhido você para sucedê-lo...
Enquanto Guaypar segue berrando, Curi Ocllo precipita-se para ele. Seu corpo treme inteiro e suas mãos apertam o tupu de prata com tanta força que se tingem de sangue. Com o olhar enlouquecido, ela geme:
- Cabe-se, Guaypar! Cale-se! Você não pode falar assim com meu esposo, o Único Senhor!
- Seu esposo não é mais nada! - exclama Guaypar.
Curi Ocllo tenta cobrir a boca de Guaypar com suas mãos ensangüentadas. Mas, diante de um olhar de Manco, um soldado segura seus braços e a puxa para trás.
- Anamaya é minha prisioneira - ruge Guaypar com a nuca ainda inclinada. - Ela me conduzirá ao Irmão Duplo... Está tudo acabado, Manco! Os Poderosos Ancestrais daqui por diante estão comigo.
Enquanto os gritos e as lágrimas de Curi Ocllo redobram de intensidade, Manco se aproxima e com um gesto puxa a espada da bainha que bate em suas pernas.
- Anamaya não tem mais o apoio de seu Pai Huayna Capac - rosna com fúria Guaypar. - Mas os estrangeiros me prometeram: se você voltar a Vilcabamba e cessar a guerra, eles não o matarão.
Com um gesto da espada, Manco afasta os guerreiros.
- Levante-se! - ordena com um sorriso.
Quando Guaypar faz cair a pedra em seus ombros e se põe de pé, o sorriso de Manco torna-se ainda mais terrível.
- Pobre Guaypar, você nunca compreendeu a lição que lhe dei há tantos anos, no dia do huarachiku! Olhe o que está à sua frente!
Então Manco se afasta. A fileira de guerreiros abre-se diante de Anamaya e Gabriel que se aproximam.
- Pobre Guaypar - ainda zomba Manco com uma gargalhada estridente. - Suas palavras ressoam na floresta, sonoras e tão assustadoras quanto as de um papagaio!
Mas, no mesmo instante, a trompa soa longamente. Um oficial grita:
- Os estrangeiros se aproximam Único Senhor! Estão a uma distância de cem lançamentos de funda!
Curi Ocllo de um salto atira-se aos pés de Manco, que já levanta bem alto sua espada:
- Não mate meu irmão! Poupe-o pelo amor que tem por mim, ó, Manco!
- Não deveria tê-lo conduzido até aqui, Coya - rosna Manco. - É melhor que eu mesmo lhe corte a cabeça antes que ele arranque a minha. Seu irmão ama a espada dos estrangeiros. Que ele a engula!
Sibilando, a lâmina descreve um grande arco circular. A cabeça de Guaypar é sacudida por um estranho tremor. Seus olhos arregalados pela surpresa não se fecham quando ela cai e um jato de sangue jorra bruscamente de seus ombros. Com um terrível grito animalesco, Curi Ocllo tenta segurar o corpo sacudido por espasmos de seu irmão, cujo sangue encharca seu rosto e seu peito. Anamaya e Gabriel correm para ela, mas Manco já dá ordens aos comandantes para se dispersarem na floresta. Durante alguns minutos, reina a maior confusão enquanto alguns dos guerreiros, em completo silêncio, quebram suas linhas perfeitas e correm em direção ao norte.
- Não fique aqui - suplica Anamaya agarrando os ombros de Curi Ocllo, prosternada sobre o cadáver viscoso de Guaypar. - Não fique aqui. Os estrangeiros vão capturar você, siga-nos...
Mas Curi Ocllo enterrou o rosto no peito de seu irmão dando pequenos gritos de dor, como um animal em agonia.
- Ela não está ouvindo - explica Gabriel sem conseguir abrir os dedos de Curi Ocllo, agarrados às mãos de Guaypar.
As explosões dos arcabuzes já ressoam na floresta.
- Venha, Anamaya! - ordena Gabriel, fazendo-a soltar Curi Ocllo e agarrando-a pela cintura. - Caso contrário, nós é que seremos capturados.
E enquanto eles afinal correm atrás dos últimos soldados, Gabriel, virando-se para trás, ainda vê Curi Ocllo, com os cabelos ensopados de sangue, abraçada ao corpo sem cabeça de Guaypar, como se ela quisesse desaparecer no vazio junto com ele.
Chuquichaca, março de 1540
A luz do entardecer desce em cascata através das copas das árvores. As folhagens espessas escondem o céu azul que lentamente escurece. Na imensidão da floresta retinem os gritos dos animais, os chamados dos pássaros, toda aquela preparação para o crepúsculo que imediatamente faz Anamaya mergulhar de novo no território de sua infância.
Sentada na praia, na margem do córrego, ela pensa em sua mãe.
O rugido da corredeira, mais acima, a transporta em seu devaneio e, ainda que mantenha os olhos abertos, quase não está consciente da presença de Gabriel à sua direita.
Estão sentados na estreita faixa de areia, no centro de um entrelaçamento de galhos mortos polidos pelas águas. Ela se vê correr descalça em direção à sua mãe, que abre os braços para recebê-la. Durante muito tempo este sonho acabava em pesadelo: a lembrança da pedra de funda que acerta sua mãe em plena testa, o súbito peso morto em sua mão a despertavam banhada em suor frio e a solidão a oprimia.
- Onde você está?
A voz de Gabriel chega como um novo fôlego em meio às águas e sua doçura lhe permite sair sem brutalidade daquele sonho de infância. Desde que deixaram Curi Ocllo, desesperada, aos pés do cadáver do irmão, já se passaram seis luas que estão juntos na floresta, longe de Manco, longe de qualquer pensamento sobre a guerra, e é como se a compreensão entre eles se tornasse mais profunda a cada aurora e a cada crepúsculo. Com freqüência, eles nem sequer precisam de palavras e alcançam a plenitude simplesmente ficando na companhia um do outro. Um olhar, um movimento de mão bastam para enchê-los de felicidade.
- Estava fazendo uma longa viagem...
- Eu estava com você?
Anamaya sorri.
- Não, eu estava com minha mãe.
Uma nuvem faz o sol desaparecer e lança uma sombra sobre o rosto deles.
- Você já me falou muito de sua mãe - comenta Gabriel - e sei que a reencontra no Outro Mundo. Mas seu pai, nunca acontece de vê-lo?
Gabriel jamais formulou a pergunta de maneira tão direta, e Anamaya sente a garganta ficar seca.
- Não sei. Seu rosto se perde na noite...
- Anamaya...
Gabriel segura sua mão, e ela a entrega a ele antes de responder.
- ... é como se a morte de minha mãe tivesse apagado tudo o que eu tivesse vivido antes e restassem apenas sensações imprecisas.
- "Um único segredo permanecerá oculto para você e terá de viver com ele." Não foi isso que o Rei Huayna Capac disse?
- Você conhece bem as palavras dele.
- Para mim, são as suas. E talvez seja este o segredo. Ou então alguma coisa totalmente diferente: quando eu esperava você no Titicaca e tentava me encontrar com você em espírito, com a ajuda das servas de Quilla, uma delas me falou de você, dizendo: "a menina de olhos da cor do lago". Ela acrescentou: "Não há nenhum milagre.
A Mãe Lua pôs a água do lago nos olhos dela, porque aquela que você procura une o começo e o fim do tempo. Ela é aquela que traz a Origem em seu olhar. E você, se quiser se juntar a ela, terá de aprender a ver!'
Gabriel ri baixinho ao se recordar da fúria da sacerdotisa. Um sorriso frágil ilumina o semblante de Anamaya enquanto o grito de uma perdiz ressoa no céu. Eles se despiram do unku e do aiaco e se banham por muito tempo. A água barrenta os refresca deliciosamente ao sol que reapareceu. Sobre um galho que emerge da água, duas tartarugas puseram o pescoço para fora e se aquecem levantando a cabeça bem alto na direção do sol. Ao lado delas, seis tartarugas menores permanecem perfeitamente imóveis.
Na superfície da água, por vezes rebrilha o clarão azul de um Martim pescador enquanto o rabo de um peixe-gato espadana. As borboletas fazem revoadas rodopiando acima de uma poça na margem, atravessando o ar como uma longa tira de cores.
Anamaya e Gabriel mergulham e emergem, alternadamente, e suas risadas jorram com os jatos de água. Seus corpos se entrelaçam, se enroscam como se fossem duas serpentes aquáticas, desenhando esteiras de espuma que a correnteza carrega.
De mais abaixo no rio, eles vêem chegar uma piroga de madeira escavada num tronco de árvore que sobe o rio, aproveitando uma contracorrente da margem. Os dois homens que a navegam, de pé, um em cada extremidade, com longas varas, se abaixam com freqüência para evitar os galhos que impedem o caminho. Quando passam na altura deles, seus rostos se viram para eles com uma breve saudação antes de ultrapassá-los e de virar em direção à ribanceira por onde entrarão na floresta para evitar as corredeiras.
Quando se deixam levar deslizando para a areia e se deitam ali, Anamaya se inclina para Gabriel. Ela esfrega longamente suas costas e ombros com folhas cujo odor, ao mesmo tempo apimentado e doce, provoca uma ligeira embriaguez. Gabriel se entrega a esta massagem doce como uma carícia. Foi Anamaya que lhe ensinou, noite após noite, que seu corpo não era apenas um bloco de ossos e nervos, cheio de força, ávido de conquistas, mas também um rio de doçura, pronto para despertar sob uma carícia antes de vibrar de desejo.
O vento da noite que se aproxima os faz tremer e Anamaya os cobre com sua manta. Ela aperta os joelhos contra o peito, encolhendo-se contra o corpo dele, que a envolve com o braço agora magro, onde os músculos se desenham como lâminas.
- Sinto que o momento se aproxima - sussurra ela.
- Como você sabe?
- Tudo parte, tudo se vai. É um momento de sinais. Estou com medo e estou feliz, tenho tanta pressa de levar você.
- Para onde?
- Para lá...
- Você ainda não pode deixar Manco. Deve permanecer com ele.
- É ele quem nos deixa, Gabriel. É ele que se vai e se embrenha na floresta de sua cólera. É claro, Guaypar foi morto, e Gonzalo partiu de volta para Cuzco. Mas outros virão e depois, outros ainda. Nós não sabemos o que é feito de Villa Oma, mas sua guerra não o conduz a nenhum lugar. Illac Topa continua resistindo, mas sozinho, como um fugitivo. Há muitas luas Manco reina sobre sombras. O Império das Quatro Direções não existe mais. Vilcabamba é uma capital sem terra, os incas não têm mais povos que possam submeter, nem mais espaços a conquistar.
Eles estão longe de suas montanhas, da terra fendida pela foice de Manco Capac e Mama Occlo.
- Mas, mesmo assim - protesta Gabriel -, isto não poderia desaparecer sem deixar nenhum vestígio!
Anamaya inclina a cabeça.
- Restará um vestígio. Devemos esperar Katari - diz ela. - Foi ele quem nos aconselhou a nos afastarmos por algum tempo de Vitcos, é ele quem nos chamará quando chegar o momento. Confiemos nele.
De repente, eles escutam gritos que se propagam como uma cascata ao longo da margem. Os dois se levantam e avistam, cem pés acima na cabeceira do rio, crianças que correm com um bastão na mão. As crianças parecem seguir um pedaço de madeira que flutua suavemente e acompanha os caprichos do rio. Volta e meia, um dos meninos salta dentro d'água e puxa o pedaço de madeira para a margem, enquanto um outro acerta-lhe um golpe com o bastão que novamente o afasta; por vezes ele quase desaparece num cavado na água antes de reaparecer sobre um turbilhão e prosseguir sua lenta descida.
- É um cesto! - exclama Anamaya.
- Vamos deixá-los brincar...
- Parece conter alguma coisa.
Quando o cesto chega à altura deles, alguns meninos mergulham. Animados pelas risadas e gritos dos que ficaram na margem, eles agarram a beirada da estranha embarcação e a empurram para a margem estreita, fazendo-a encalhar numa faixa de areia. Com um sorriso de curiosidade nos lábios, Anamaya se aproxima.
O cesto, de uma dimensão incomumente grande, é fechado por uma tampa solidamente amarrada com um cordão de agave. Quando Gabriel por sua vez se aproxima, as crianças excitadas puxam a tampa com toda força para abri-la. Com um estalo, a tampa se abre brutalmente. O grito de horror de Anamaya explode antes mesmo que as crianças compreendam o que vêem.
Vitcos, março de 1540
Ao avistar a massa elegante do palácio de Vitcos pousada sobre o espigão rochoso, Anamaya é tomada por um calafrio. Ela se lembra muito bem da fortaleza e da terrível surpresa do ataque de Guaypar, de sua captura e das ameaças de Gonzalo, do frio do aço da adaga sobre sua pele. Como se tivesse adivinhado esse temor, o braço de Gabriel estreita seu ombro e lhe transmite seu calor e sua força.
"Nunca mais aceitarei ficar separado de você", ele havia murmurado ao libertá-la. Mesmo passadas muitas luas, a força dessas palavras ainda não deixou de ressoar em seu íntimo ao mesmo tempo que uma imagem terrível a assombra sem cessar. Entre as faces internas do cesto, o cadáver de Curi Ocllo, ressequido e encolhido em posição fetal, como se tivesse sido enxovalhado e pisoteado, conservava o semblante intacto, a despeito de sua macabra navegação. E o eco daquela beleza exposto nos restos mortais profanados era pior que tudo.
Depois de ter colocado aquele fardo terrível sobre uma liteira de ramagens e caniços, eles se puseram a caminho de Vitcos, acompanhados por alguns guerreiros. Que teria acontecido para que a mulher adorada de Manco fosse torturada daquela maneira? Quem teve a idéia sinistra de enviá-la pelo rio, na esperança absurda e finalmente alcançada de que ali seria descoberta para ser levada a Manco?
Manco! Só de imaginar seu sofrimento, Anamaya já sente as entranhas dilaceradas pelo pesar. A despeito de seus esforços, é impossível para ela proteger o jovem Inca desse sofrimento, e impossível também prever quais serão as conseqüências. Apesar das dificuldades para avançar na floresta, eles tiveram, a cada noite, o cuidado de fazer oferendas à alma dupla de Curi Ocllo errante no Outro Mundo. Queimaram folhas de coca e suplicaram a Mama QuilIa que lhe desse apoio durante seu difícil percurso rumo ao Mundo de Baixo. Uma vez, Anamaya surpreendeu Gabriel com as mãos unidas, os olhos fechados, a cabeça erguida para o impenetrável teto de árvores que os cobria.
- Que está fazendo?
- Rezo para esse Deus em quem não acredito.
- Se você reza, não é porque acredita?
- Eu rezo por ela, para que sua alma encontre paz.
Anamaya não fez mais perguntas, mas em meio à sua dor uma luz se fez: mais que nunca, o puma e ela estão unidos. Nem os deuses nem a guerra os separarão. Agora, à medida que se destacam nas paredes do palácio as quinze portas ornadas por suas vergas de granito branco, ela avista os primeiros soldados que, de lança na mão, respeitosamente se aproximam do pequeno grupo, por terem reconhecido a Coya Camaquen.
Eles transpõem a porta estreita que dá acesso ao topo da colina onde estão instalados, numa única cancha, o palácio e os catorze prédios que o cercam. Os soldados os guiam em silêncio, com o semblante fechado, até o vasto pátio onde está Manco. Ao entrar no palácio, instintivamente, Anamaya aperta a mão de Gabriel.
- Onde vocês estavam?
A voz de Manco troveja pelo pátio coberto de orquídeas de perfume inebriante. Em um vasto nicho, um puma ainda filhote, capturado na floresta, agita-se com furor em sua jaula de bambus.
Manco ignora os carregadores que depositam o cesto a seus pés. Seus olhos, muito fundos nas órbitas, permanecem cravados em Anamaya e Gabriel. Criados e soldados,
senhores e concubinas, todos baixam a cabeça e se calam. O medo transborda em meio às pedras.
- Estávamos na confluência do Willkamayo e do Vilcabamba - responde Anamaya.
Há alguma coisa infinitamente calma em sua voz e isto perturba Manco. Seu olhar se desvia e fixa o cesto a seus pés.
- O que me trazem? - pergunta.
Curvando-se, na demonstração de submissão que todos devem ao Único Senhor, Anamaya se aproxima. Nem uma palavra aflora em seus lábios quando ela levanta a tampa de vime.
O olhar de Manco se imobiliza. Sua boca se entreabre como se todo o ar escapasse de seus pulmões. Ele escorrega para o chão e, de joelhos, se agarra à borda do cesto. O urro rasga o ar. Não é o grito de um homem. Não há nele nenhuma palavra. É um animal ferido cuspindo a dor que morde suas entranhas. No pátio, todos se encolhem e tentam desaparecer em si mesmos. Com freqüência, ao longo desses dias de perambulações errantes, eles temeram as cóleras e as angústias do Único Senhor. Mas o que ouvem supera tudo o que puderam testemunhar até aquele dia.
Quando Manco recupera o fôlego, uma espécie de soluço sacode todo seu corpo. Ele agarra o rosto de Curi Ocllo, levanta-o diante de si, trazendo ao mesmo tempo os despojos murchos do que foi o corpo esplêndido de sua esposa e a felicidade de suas noites. Então ele urra mais uma vez. Anamaya estende a mão para ele. Toca de leve a nuca estrangulada pela violência do grito. Mas, no momento em que os dedos dela encostam em sua pele, ele se afasta com um sobressalto, como se ela o queimasse.
- Manco... - murmura Anamaya como para consigo mesma, sem mais esperança de ser ouvida.
Ele não chora. Comporta-se como uma tempestade que troveja e risca a noite com seus raios, fazendo tremer o mundo até as profundezas.
- Não! Não!
São as primeiras palavras humanas que jorram de sua boca e elas não trazem nenhum alívio, não acalmam nada, são tão animalescas quanto os gritos que saíam de sua garganta.
- Não! Não!
Agora é toda sua recusa que se manifesta, sua recusa em se submeter, sua recusa em perder, sua recusa em ser capturado, sua recusa em ceder, sua recusa em admitir que o tempo tenha se passado tão cruelmente; mas, de recusa em recusa, ele não é mais que um animal encurralado, cercado por uma horda famélica, nada mais que uma massa ligada à vida por uma raiva única e atroz.
Um por um, seus homens deixam o pátio, retirando-se na esperança covarde de não serem vistos por ele, colando-se às paredes e transidos de medo e de suor sob os semblantes impassíveis. Só Anamaya não se move, agachada diante dele, que está estendido no chão e continua entregue a seus estertores, agora menos violentos. Gabriel também se retira, depois de ter tocado de leve em Anamaya, cujo olhar terno o acaricia antes de se fixar de novo em Manco.
- Manco chama baixinho, mais uma vez.
Anamaya o observa. O jovem Inca parece um homem velho - seu corpo e seu rosto estão mais envelhecidos e exaustos que os de Huayna Capac quando ela vivia a seu lado. E, enquanto Huayna Capac conhecia os segredos, Manco não sabe mais nada, não quer mais nada. Os olhos foram enterrados em seu rosto à força de murros e o rosto está marcado por rugas e sulcos que se agitam e tremem. A pele morena tem reflexos acinzentados. Manco... Ele se levanta um pouco, apoiando-se no cotovelo. Olha para ela.
- Eu não... eu não posso...
E, sozinho diante de Anamaya, ele se entrega às lágrimas amargas e inúteis do desespero e da derrota.
À noite, o pátio de novo se encheu de gente. A despeito da chuva que começa a cair, Manco não se move. Ele deixou que Anamaya o vestisse com suas mais belas roupas, e as plumas do curiguingue agitam-se ligeiramente sob a chuva fina. Uma travessa de prata permanece cheia diante dele, uma bela concubina mantém-se pronta para obedecer a uma ordem que não será dada.
-Fale - diz ele.
O Anão domina o medo que lhe enche as entranhas, lembrando-se de que não pode mais ser morto desde que o grande Huayna Capac o descobriu debaixo de uma pilha de cobertores.
- Duas mulheres vieram à minha casa, em Yucay, e me contaram o que precisa ouvir, Único Senhor.
- Por que esperou?
- Eu tinha medo, Único Senhor, deste segredo pesado demais para mim.
A voz grave do Anão diz a verdade por impotência e fraqueza. Enquanto todos esperavam uma explosão de cólera, é apenas um suspiro que escapa dos lábios finos de Manco.
- Agora, fale - ordena, apontando para o cesto. - Seu segredo não mais lhe pertence.
- O Governador Pizarro havia recebido suas mensagens de paz e havia enviado, em troca, uma égua, um escravo negro e outros presentes preciosos. O destino quis que um de seus capitães interceptasse este comboio e, acreditando que lhe agradaria, sacrificasse a égua, o escravo e alguns outros criados. Aqueles que conseguiram escapar voltaram para se queixar ao kapitu, que foi tomado por um violento acesso de cólera.
Anamaya sente as gotas de chuva que escorrem por seu pescoço e sob seu aaco. Mas, como todos os outros, ela também não pode se mexer.
- Ele entregou Curi Ocllo para que ela fosse violentada por seu irmão, depois por seu secretário, e depois por outros soldados espanhóis, e talvez por índios aliados.
Quando suas coxas estavam cobertas de sangue e de sêmen, eles se deram por satisfeitos. Então ele deu a ordem para que ela fosse executada. Ao ouvir as palavras do Anão, Gabriel ficou gelado de horror. Em sua memória, o eco da voz do Governador, a lembrança de sua mão se colocando sobre seu ombro com uma pressão afetuosa - tudo o que ele censura em seu antigo chefe o desgosta. Manco não olha para o Anão, nem para ninguém. Tem os olhos perdidos na noite que cai, na distância onde estão os Apus que não o protegem mais.
- Guri Ocllo distribuiu suas jóias e todos os seus bens às mulheres incas que a cercavam. Ela não disse uma palavra de cólera ou de ressentimento. Simplesmente pediu que depois de sua morte seu corpo fosse recolhido, colocado dentro de um cesto que pudesse seguir o curso de um rio para encontrar o caminho até chegar a você.
No pátio, reina um silêncio absoluto no qual só ressoa a voz cavernosa do Anão.
- Ela mesma colocou sobre os olhos uma faixa de pano que uma das mulheres lhe tinha dado, depois de ter-lhe agradecido e de tê-la estreitado nos braços. Enquanto eles a amarravam num poste, ela dizia as seguintes palavras, que meu coração seja servido vivo ao puma se uma única de minhas palavras for falsa! "Vocês satisfazem sua cólera às custas de uma mulher! O que uma mulher como eu poderia fazer a vocês? Apressem-se para que seus apetites sejam satisfeitos!" Mesmo entre os espanhóis, dizem que alguns choravam. Depois os índios caaris a trespassaram com suas lanças e flechas, sem que ela deixasse escapar um grito ou mesmo um gemido durante sua agonia. Então, eles acenderam uma grande fogueira para que ela fosse queimada, mas Inti não permitiu isso e seu corpo permanecia intacto apesar das chamas. À noite, minhas mulheres a recolheram e a colocaram dentro de um cesto para que ela chegasse a você da maneira como tinha pedido.
Katari esgueirou-se em meio à multidão e consegue chegar junto de Gabriel; discretamente, aperta-lhe o braço, dizendo-lhe em voz baixa: "Temos de ir embora!" Anamaya vira-se para eles, os interroga com o olhar.
- E depois? - pergunta Manco.
- O Sábio Villa Oma estava lá, depois de ser capturado em Condesuyu, e eles também o levaram para Yucay. Apesar de estar acorrentado e impotente, ele os amaldiçoava, os chamava de cães pelo que tinham feito à sua mulher. Então o queimaram vivo...
Contrariamente ao silêncio que cercou a narrativa da morte de Curi Ocllo, a do suplício do Sábio provoca gemidos e injúrias. Levantando a mão, Manco impõe o silêncio.
- Na hora em que as chamas já lhe lambiam os pés, o Sábio pedia a ajuda de Huayna Capac e de todos os Sapa Incas, Chalkuchimac e Atahualpa...
- E a mim, ele chamou?
Pela primeira vez, o Anão hesita e sua voz desce de tom.
- Ninguém ouviu seu nome, Único Senhor, mas, sem dúvida, foi porque ele morreu depressa demais para chamar a todos de que precisava. Depois dele, queimaram o general Tisoc...
Katari leva Gabriel consigo, e Anamaya os vê desaparecer em meio à multidão no pátio. Na confusão provocada pelos nomes dos comandantes que o Anão vai recitando lentamente, eles passam despercebidos.
- Eles queimaram Taipi e Tanqui Hualipa, Orco Huaranca e Atoc Suqui...
O rosto de Manco não se move, não abandona o céu que a noite invade. Enquanto todos recebem o nome desses grandes guerreiros como um soco no estômago, Manco parece
mergulhar em si mesmo e desaparecer. Mas Anamaya vê suas mãos que se retorcem e cerram o vazio. Sem saber para onde Katari o levou, ela se alegra que Gabriel tenha desaparecido.
- ... e Ozcoc, e Curi Atao - continua o Anão, desencadeando ainda mais angústia, como se as estrelas se apagassem, uma a uma, na noite clara, deixando o mundo inteiro numa escuridão profunda e definitiva.
- Villa Oma tinha razão - diz finalmente Manco. - Era preciso destruir essa raça antes que ela nos destruísse. Chalkuchimac também tinha razão. Muitas vezes eles
estiveram enfraquecidos e nós não aproveitamos essas ocasiões... Acreditamos em ilusões, em falsos sinais, acreditamos em cometas e em pumas...
Manco não olha para Anamaya, mas o ódio e a decepção são palpáveis em suas palavras.
- Deixem-me sozinho - diz Manco baixando os olhos para eles. - Agora quero ficar só.
Todos saem em meio a um caos de lanças, de escudos que se chocam, do ranger de sandálias e de vozes que se levantam e em seguida baixam. Só Anamaya fica.
- Você também - diz Manco.
- Eu nunca deixei você, sabe muito bem disso.
- Houve um tempo em que eu acreditava que você estivesse comigo para construir o Império das Quatro Direções, e para torná-lo mais amplo que qualquer Inca já o tivesse feito. Acreditava, como meu pai tinha dito, como o Sábio havia se convencido, que você fosse um sinal vindo do lago das Origens para nos fazer ter esperança de alcançar a grandeza. Você não era nada disso e essas profecias que você carrega em silêncio não me trazem nada exceto humilhação e destruição. Vá embora!
- Você não quis escutar a sabedoria e seguir o caminho, Manco, você deu ouvidos à sua cólera, exatamente como no primeiro dia, quando sua violência se desencadeava inutilmente contra Guaypar...
- E agora Guaypar está morto, Villa Oma está morto, Tisoc está morto, minha querida Curi Ocllo está morta, todos eles estão mortos e eu também vou morrer. É esta a sua profecia, mulher vinda do Mundo de Baixo para me fazer sofrer?
- Seu filho Titu Cusi está vivo e tantos outros que confiam em você...
- Tantos outros?
O braço de Manco descreve um círculo na noite e depois se detém sobre sua testa. Com um gesto seco, ele arranca a faixa que a cinge.
- Meu poder é o poder desta pluma - diz ele, sacudindo-a com desprezo. - Um golpe de ar a carrega, um golpe de ar a enxota.
Ele explode numa gargalhada seca de desdém.
- Veja o que resta de meu poder...
Manco levanta-se de um salto e se aproxima da jaula onde o filhote de puma dorme. Ele o observa em silêncio. Depois murmura:
- Você precisa crescer para nos ajudar, não é verdade? Você não foi encontrado por acaso e, quem sabe?, você é um sinal...
Ele tira a barra de madeira que fecha a jaula e agarra o animal adormecido. Com um único golpe seco, enterra seu tumi no coração do puma, antes de lhe partir as vértebras e lhe torcer o pescoço com uma raiva vinda do fundo de suas entranhas. Ele quebra cada uma das patas, arranca-lhe os olhos, rasga a garganta inerte e mostra as mãos cheias de carne e sangue.
- Você ainda quer ficar comigo, amiga dos pumas?
Anamaya está muda de horror, mas não obstante insiste:
- Eu não devo abandonar você. Sim, quero ficar com você.
- Não!
Manco levanta em sua direção uma mão ensangüentada. Não há ameaça em seu gesto, mas ele marca a separação definitiva dos dois. Contudo, dominando seu desgosto, Anamaya se aproxima e toma esta mão entre as suas.
- Eu vou porque você quer, mas você se lembrará de que nunca o abandonei. E se lembrará de que desde o primeiro dia, aquele em que seu Pai Huayna Capac me confiou seus segredos, tudo o que fiz foi obedecer...
Manco se cala e tira a mão das mãos de Anamaya; ela não sabe nem se ele ouviu suas palavras, perdido em seu transe de solidão e violência. Sua voz parece vir do Mundo de Baixo quando ele repete:
- Não.
E enquanto Anamaya finalmente deixa o pátio molhado de chuva onde o sangue do puma escorre, misturado na poeira como uma lama avermelhada, reflete que toda vida de Manco, o rebelde, se desenrolou apenas para desabrochar naquela única palavra, pronunciada calmamente, e que vem do fundo de sua alma: não.
Katari e Gabriel atravessaram rapidamente a cancha vazia, evitaram os grupos de soldados que patrulham o circuito e arredores da fortaleza e ganharam o caminho da floresta sem trocar uma palavra. Quando afinal estão ao abrigo das árvores e da noite, Gabriel interpela Katari:
- O que você tem a me dizer?
O Mestre das Pedras agita os longos cabelos negros.
- Seu amigo Bartolomé chegou há três dias. Ele teve a prudência de não tentar vir para a fortaleza e enviar dois mensageiros para me prevenir. Nós o escondemos numa huazca uma hora de marcha daqui.
- Bartolomé...
- Ele é um homem de grande instrução e sabedoria - prossegue Katari -, e nós falamos sobre as origens do mundo, de sua criação e também de suas estranhas criaturas, os homens...
- Não me diga que ele atravessou a floresta para ter essa conversa com você!
- Nós conversamos sobre o que era antes e sobre o que será depois.
A ironia desaparece da voz de Gabriel.
- Eu conheço o meu monge. Por maior que seja a amizade que tem por você, não se embrenhou na floresta até aqui sem um bom motivo...
- Ele lhe dirá o motivo.
A chuva agora afoga os ruídos do crepúsculo.
- E Anamaya?
- Era preciso afastá-lo dali antes que a cólera de Manco se voltasse contra você. Brevemente ela virá se juntar a nós com o Anão.
Os dois homens progridem lentamente; apesar de a chuva ter parado, a água impregna toda a floresta e escorre sobre seus pescoços como um suor vindo do céu e das árvores.
Uma clareira abre-se diante deles; no centro dela, alguns blocos de pedra rapidamente adelgaçados formam um muro ao redor de uma simples cabana de juncos.
Com a aproximação deles, a silhueta familiar de Bartolomé surge emoldurada pela entrada. O monge de olhos cinzentos abraça Gabriel longamente. Ele parece trêmulo de febre.
- Você não está nada bem, frei Bartolomé...
- Não se preocupe comigo. Agora que o vejo, já estou muito melhor. Onde está ela?
Ele se virou para Katari, que indica a direção da fortaleza invisível.
- Ela chegará com o Anão assim que puder...
Está bem - diz Bartolomé -, eu preciso dela.
Os três homens observam por um instante o céu acima da clareira se encher de borboletas coloridas depois que o tempo limpou; nas ramagens a algazarra dos macacos misturada com os gritos dos pássaros e de duas araras, cujas penas de cores vibrantes reluzem em meio às folhagens. O monge observa Gabriel com amizade:
- Você percorreu um longo caminho desde a última vez que o vi... A cólera praticamente desapareceu de seu rosto e você não parece mais um homem assombrado pelo diabo...
- Então era assim tão grave?
- O amor se apoderou de você, meu irmão. Eu falo do amor que nutre e que incendeia, do amor que dá e que compartilha...
- Você fala do amor que eu conheço...
Sentados em simples troncos de árvore dispostos diante da cabana, os três homens conversam em voz baixa em meio ao esplendor da noite que cai. Gabriel não se impacienta.
De vez em quando, lança um olhar para a orla da floresta para ver se algum movimento das folhas não dissimula a chegada de Anamaya. A paz reina entre eles, paz entre três homens de origens tão diferentes e que escaparam da guerra que destrói os corações dos outros. Anamaya e o Anão finalmente aparecem à luz dos últimos raios do poente, enquanto Katari acende uma fogueira. Bartolomé a contempla com admiração e com respeito.
- Eis que aqui estão vocês juntos - exclama, os olhos cinzentos brilhantes de febre -, e ao vê-los compreendo o que seus povos têm de grande e por que essa união, por uma via misteriosa, hoje se tornou mais importante que as destruições que sofreram...
Anamaya aproxima-se de Gabriel e senta-se ao seu lado. Os dois jovens ficam de mãos dadas, em silêncio, sentindo a solenidade das palavras de Bartolomé, perguntando-se aonde ele quer chegar.
- Você se lembra, Gabriel, que eu queria enviá-lo à Espanha para levar os documentos que diriam a verdade sobre esta conquista?... Há pouco tempo, tomei conhecimento de uma notícia que só pude compreender como um sinal divino...
Um sorriso cruza o rosto fatigado do monge, como se a profundidade de sua própria fé fosse também, para ele, um sinal de zombaria.
- O Imperador Carlos Quinto enviou para este país um juiz residente. Ele se chama Vaca de Castro e, até onde soube, é um homem de bem e amante da justiça. Ele está possivelmente no mar, neste momento, a caminho de Lima. Para nós é uma ocasião que, talvez, nunca mais se repetirá... Nós queríamos ir à Espanha e é a Espanha que vem a nós!
- Como pode ter tanta certeza?
- Eu sei, Gabriel. Ah, estou ouvindo muito bem em sua voz as dúvidas e a desconfiança e, creia-me, compartilho-as com você. Mas há sinais que não permitem enganos: na Espanha, o infame Hernando foi preso por seus crimes...
- Certamente, não pelos que cometeu contra os índios! Pelo crime de ter assassinado Almagro!
- Não importa. O tempo da impunidade acabou. Em toda parte, na Igreja, como também na Corte, as vozes se levantam para denunciar os excessos da conquista e reclamar justiça para esses povos!
Gabriel suspira.
- É preciso ter sua fé para acreditar nisso, frei Bartolomé. Para mim...
- Esqueça minha fé em Deus e esqueça até mesmo minha fé na grandeza da alma da Espanha. Você não compartilha minha fé no homem? Não acha que esse homem deverá ouvir, quando chegar, algo além das divagações das duas partes obstinadas em se destruírem e em pilhar o máximo possível, enquanto restar uma onça de ouro ou de prata nesta terra?
Gabriel levanta os braços para o céu.
- Eu não sei...
- Ouça o que ele diz!
A voz de Katari ressoa e o faz sobressaltar-se.
- O que quer dizer, Mestre das Pedras?
- Quero dizer que a voz dele está certa. Quero dizer que não podemos viver uma vida inteira na floresta, perseguidos como animais, inquietos diante do menor ruído nas folhas, ameaçados pela umidade e pela doença, à mercê de um bando hostil. Esta é a vida que Manco escolheu, mas talvez não seja a nossa.
- E Anamaya? - pergunta Gabriel virando-se para a princesa.
- Ela deve vir com você - afirma Bartolomé, buscando a aprovação de Katari. - Com você ela deve prestar testemunho de que os índios não são animais incultos, e sim seres humanos cuja história, religião, tradições e maneira de viver merecem nosso respeito e nossa proteção.
- E se ela cair nas mãos deles? - acrescenta Gabriel com a voz trêmula. - Se o juiz residente não for este sábio e este santo, e sim um outro Gonzalo? E se lhes der na cabeça de fazer com ela o que fizeram com Curi Ocllo?
- Há este risco - diz Anamaya tranqüilamente. - Como também existe o risco de que você venha a ser detido, encarcerado... Mas, apesar disso, Bartolomé e Katari têm razão: devemos tentar.
- E o Irmão Duplo?
Agora é a vez de Katari falar:
- Se a Coya Camaquen quiser, eu cuidarei do Irmão Duplo e o prepararei para sua viagem...
Gabriel observa-os um após o outro.
- Exceto por Sebastian, vocês são as três pessoas nesta terra em quem confio mais do que confio em mim mesmo. De onde vem minha dúvida?
- Nós também duvidamos - diz Bartolomé. - Não estou falando da certeza de obter resultados, mas da possibilidade, talvez mínima, de fundar um país.
- Mais de cem luas se passaram desde a chegada de vocês - recorda Katari calmamente -, e é preciso ser cego para não ver que os estrangeiros estão aqui para ficar. Você pode aproveitar esta oportunidade para que as gerações futuras tenham um rosto como o seu e não o rosto odioso das crianças da destruição e da pilhagem...
- E se fracassarmos?
Ninguém responde, mas eles enfim ouvem a aquiescência na doçura do tom de Gabriel.
- Eu irei - diz ele baixinho.
Ele toma a mão de Anamaya e a aperta entre as suas.
- Nós iremos, uma vez que vocês acreditam que este é o caminho que devemos seguir. Não darei ouvidos à sensação de perigo que tenho em meu íntimo. Será necessário rezar por nós, meu irmão...
Bartolomé sorri.
- Você está sempre presente em minhas preces, quer queira, quer não.
Gabriel vira-se para Katari:
- E você, Mestre das Pedras, não nos abandone...
- Nós nos reencontraremos brevemente.
- Como saberemos? - pergunta Anamaya.
Katari tira de sua chuspa um cordão em que vai fazendo vários nós com os dedos fortes. Depois o estende para Anamaya.
- Leve este quipu - diz em tom firme. - Quando chegar a hora, ele indicará onde estou. E a chave de pedra abrirá o espaço e o tempo para você. Eu também estarei unido a vocês, mesmo estando separado de vocês; fugirei enquanto vocês aparecerão, descerei enquanto vocês subirão. Mas juntos estaremos na eternidade do caminho de Viracocha. Agora, tratem de ir.
Enquanto Katari retoma sozinho, sem nem sequer a ajuda de uma tocha, o caminho para Vitcos, Bartolomé, o Anão, Anamaya e Gabriel se embrenham na floresta para a viagem da esperança e da dúvida.
Lima, 24 de junho de 1541
Vindos do oceano enevoado, pássaros marinhos de longas asas brancas deslizam acima da cidade que nasce. Depois de ter girado em círculos sobre a grande praça e a catedral inacabada, eles se afastam em direção às ondulações verdejantes da costa lançando gritos estridentes.
Anamaya levanta o rosto para observá-los. A suavidade do sol matinal acaricia-lhe a testa. Levantada pela brisa, a estranha mantilha que cobre seus cabelos cai em pregas delicadas sobre suas faces e lábios antes que ela a afaste com um gesto de surpresa.
Dos pássaros às casas de Lima e até o oceano imenso que ela descobre pela primeira vez, tudo o que ela vê desde sua chegada a Lima a surpreende incessantemente.
Do alto dos andaimes da catedral para onde Gabriel a levou, o plano da cidade aparece em sua inteireza. As casas construídas pelos estrangeiros são tão regularmente dispostas quanto as canchas dos incas. Rigorosamente do mesmo tamanho, elas desenham quadrados perfeitos. Aqui, seus tetos são de telhas. Planos, recobertos por uma espessa camada de greda, eles rodeiam pátios idênticos e orlam ruas retilíneas onde, ao longo do dia, os estrangeiros vão e vêm como se esta fosse sua única atividade.
Do mesmo modo que a catedral ainda está sem campanário, a nave apressadamente recoberta por pranchas de madeira e palha à guisa de abóbada, a maioria das casas ainda não está bem concluída. Algumas não são mais que simples esboços feitos de pranchas e de ripas de telhado. Aqui ou ali, terrenos vagos servem de cercados para porcos ou aves domésticas e, às vezes, até mesmo para aquelas coisas estranhas que os estrangeiros chamam de "carruagens", espécies de caixas colocadas sobre quatro círculos de madeira onde eles sentam para serem puxados por seus cavalos!
Uma única construção, separada da catedral pela grande praça, é maior que as outras. Suas paredes, revestidas com um reboco de argamassa absolutamente branco, cheias de sacadas de madeira e de persianas pintadas de azul, encerram dois pátios e um jardim frondoso do tamanho de uma casa. É a casa do Governador dom Francisco Pizarro.
- Você se lembra daquela carta que enviei a Bartolomé para que ele lesse para você, na ocasião em que eu devia ir me juntar a Almagro a caminho do sul? - pergunta
Gabriel a Anamaya, apertando-lhe as mãos entre as suas. - Isso faz... uns sete ou oito anos! Creio até que também estávamos em junho! Eu a escrevi aqui mesmo, pouco antes de anoitecer. O sol se afastava, já longe, sobre o oceano. Ainda não havia casas. Somente árvores carregadas de frutos. Algumas barracas e uma clareira de onde as crianças nos observavam com os olhos arregalados de espanto. Isto aqui se parecia com todas as imagens do paraíso que podíamos ter na cabeça.
Com a mão estendida, ele indica o rio de águas amarelas que desemboca no mar e, mais distantes, os opulentos pomares; depois indica o lugar logo abaixo deles, ainda vazio.
- Dom Francisco declarou muito solenemente: "Vai ser aqui!" No dia seguinte, bastou enfiar estacas na terra e decidir que aqui seria a praça, ali a igreja, ali adiante as casas e as ruas! Nada mais simples! Quatrocentos e cinqüenta pés de comprimento para cada quadrado contendo quatro casas e quarenta pés de largura para cada rua. E pronto: assim nasceu a capital do Peru!
Na voz de Gabriel há uma mescla de orgulho e de amargura. Anamaya comenta com doçura:
- E assim que se mostra o poder daquele que conquistou um país. O Único Senhor Huayna Capac fez a mesma coisa em Quito depois de ter vencido os povos do Norte. Seus Poderosos Ancestrais fizeram o mesmo antes dele por toda parte no Império das Quatro Direções. Hoje em dia isso está acabado. Não nos cabe mais construir cidades.
Ela diz isso sem tristeza aparente, e até mesmo com uma calma que deixa Gabriel incomodado. Ele a sente estremecer de repente, a despeito de o vento do mar estar cálido.
- Você está com frio? - pergunta.
- Não! - ela sorri. - Não, não é nada...
Na verdade, não é o frio que a faz estremecer, mas o estranho silêncio que reina na cidade naquela manhã. Exceto pelos gritos dos pássaros, não há nenhum ruído, como se aquele dia estivesse prendendo o fôlego antes de gritar. Mal se vêem algumas silhuetas que passam na rua. Aqui e ali, o vento levanta pequenos turbilhões de poeira na praça vazia.
Silêncios como esse. ela já ouviu. A cada vez eles anunciavam as chamas que arderiam no porvir.
Involuntariamente, Anamaya se recorda das palavras do Único Senhor Huayna Capac: "Os estrangeiros conhecerão a miséria em seu triunfo..." Contudo, como Gabriel a observa com uma expressão preocupada, ela acrescenta com um sorriso bem-humorado:
- É simplesmente porque não estou habituada a estas roupas!
Há menos de uma semana, antes mesmo que eles entrassem em Lima e a despeito dos protestos de Gabriel, Bartolomé os obrigou a adotar trajes espanhóis. "Imagine só o que acontecerá se Anamaya entrar na cidade vestida como uma princesa inca? Em menos de uma hora, todos os senhores fidalgos estariam diante de seu nariz para interrogá-la sobre o que veio fazer aqui! Não seria necessário muito mais tempo para que os esbirros de dom Francisco lhe perguntassem onde está a estátua de ouro... Vestida à moda espanhola, com os cabelos cacheados e seus olhos azuis, ninguém pensará que é índia. Já há muitas jovens mulheres mestiças em Lima e que se apresentam muito bem assim. Aliás, o mesmo se aplica a você. Esqueceram-se de você. Trate de cuidar para que isto dure mais algum tempo..."
- Essas malditas roupas - resmunga Gabriel, desabotoando a gola da camisa que perdeu o hábito de usar. - Parece realmente que vamos ter de vestir esses disfarces durante algum tempo. Ontem, as notícias não eram boas. Bartolomé ouviu dizer que o navio do juiz Vaca de Castro teria naufragado antes mesmo de chegar a Tumbez.
- Isso quer dizer que ele não virá?
- Por enquanto, isso não quer dizer absolutamente nada. Exceto que esta cidade me parece ainda mais doente que Bartolomé e que estou começando a me arrepender muito de ter atendido a seu pedido.
Por um instante Gabriel escruta as casas ao redor da praça. Depois acrescenta, sacudindo a cabeça:
- Não, estou enganado: a cidade não está doente! Ela está petrificada pelo ódio que agita os partidários dos Pizarro e os do falecido Almagro! Não agrada nada este silêncio, não me agrada nada esta praça vazia. Não gosto de star aqui e gosto menos ainda de ter trazido você comigo. E também não gosto nada dessa doença que corrói Bartolomé. Poderia revelar-se contagiosa para você. Dizem que muitos índios têm morrido por causa das febres que nós trouxemos para cá.
- Não estou correndo nenhum risco - garante Anamaya. - E, se ele aceitasse minha ajuda, eu saberia curar seu amigo.
- Ora! Bartolomé tem a cabeça mais dura que uma bola do jogo de malha! A cada dia que passa, parece ir de mal a pior, mas não aceitará nada para se tratar exceto suas preces. Na verdade, eu nunca o vi ao mesmo tempo tão fraco e tão apaixonado por seu Deus. Nem mesmo quando chegou em frangalhos ao Titicaca. Se ele não estivesse assim tão febril, eu não ficaria aqui.
- Precisamos fazer o que devemos fazer - replica Anamaya calmamente.
- Eu sempre duvidei que pudéssemos fazer qualquer coisa!
Mas antes que Anamaya possa responder, uma brusca lufada de brisa levanta a grande saia do vestido espanhol. Com um grito de surpresa, ela a abaixa. Na falta de jeito de seu gesto, é seu xale que escorrega, levando junto a roupa.
Uma gargalhada terna e brincalhona escapa dos lábios de Gabriel. Delicadamente ele a ajuda a repor em ordem suas roupas. Na verdade, a cada um dos olhares que dá para ela, não consegue se impedir de sentir-se perturbado por sua beleza. Sua elegância inata é realçada pelo vestido de seda e pregas largas que desenha a cintura fina, ao mesmo tempo que a blusa de cambraia de linho complementada pelo corpete de veludo revela a curva de seu busto.
- Como você é bonita! - murmura, emocionado. - Em certos instantes, tenho a impressão de que nada poderá tocar em você, que sua beleza a protege e que ela me protege também!
Mas, quando quer puxar Anamaya para junto de si, Gabriel contém o gesto. Um homem atravessa a praça em passo rápido. Um homem grande, com um modo de andar conhecido. Antes de entrar na sombra da catedral, ele se vira, como se temesse olhares indiscretos. Ainda que o chapéu lhe esconda o rosto e que uma velha capa de cor desbotada cubra seus ombros e esconda suas mãos, Gabriel não tem dúvida de sua identidade.
Gabriel agarra a mão de Anamaya e a leva em direção à escada de madeira.
- Venha! - exclama. - Parece que temos uma visita inesperada.
- Sebastian de la Cruz!
O grande chapéu se levanta. Sob os olhos de Sebastian as olheiras estão mais fundas e as rugas mais numerosas que no último encontro. Todavia, os olhos brilham com a mesma intensidade de sempre no alongado rosto negro. Calorosamente, as mãos fortes do antigo escravo abrem a capa e se estendem para Gabriel.
- Santo Deus, então é verdade! Você está mesmo aqui...
Nesse meio tempo, o abraço é tão forte quanto breve. O sorriso de boas- vindas quase que imediatamente cede lugar a uma expressão furiosa.
- O diabo que o carregue! - fulmina Sebastian. - Você pode me dizer o que veio fazer aqui na boca do lobo? E, além disso, acompanhado de uma...
Ele se cala subitamente, o olhar assombrado, só então reconhecendo Anamaya.
- Deus do céu, é você! Perdoe-me, princesa, eu sou um idiota! - exclama rindo às gargalhadas e inclinando-se numa saudação galante. - Este disfarce a esconde perfeitamente!
Eu a tomei por uma dessas caçadoras de ouro que têm chegado sem parar enchendo barcos. Eu me perguntava o que nosso amigo Gabriel estaria fazendo com uma mulher como essas!
- Bartolomé quer que Anamaya se encontre com o juiz Vaca de Castro quando ele chegar... - explica Gabriel com um sorriso.
- Pois bem, é provável que tenham de esperar muito tempo!
- O que está querendo dizer?
- Que o juiz chegará aqui quando o inferno gelar...
Ora, mas que palavras pouco apropriadas para este recinto, dom Sebastian!
A voz os faz virarem-se ao mesmo tempo que o "dom" arranca uma gargalhada de Sebastian. Com a mão apoiada na moldura da pequena porta da sacristia, Bartolomé está lívido, a testa reluzente, os olhos curiosamente dilatados. A cicatriz que lhe corta a face esquerda parece avermelhada como um ferro em brasa e estranhamente inchada. Todavia, quando Anamaya se aproxima, ele levanta a mão para impedi-la.
- Estou bem, minha filha - protesta. - Minha aparência é enganadora. É assim todas as manhãs, mas, depois de algumas horas, a febre baixa. Preciso apenas ser paciente: logo chegará um dia em que será a vontade de Deus que ela se vá para sempre.
- O senhor repete isso desde que deixamos as montanhas - insiste Anamaya com doçura. - Contudo, parece que seu Deus não o ouve. Tenho aqui comigo ervas que poderiam curá-lo em alguns dias e...
- Silêncio - Bartolomé a interrompe, tomando a mão de Anamaya delicadamente para levá-la aos lábios, para surpresa de Gabriel e de Sebastian. - silêncio, não diga mais nada, Coya Camaquen... Eu sei do que é capaz, pois já a vi em ação. Mas está numa casa onde é melhor esquecer essas coisas.
Ele se persigna com uma pequena risadinha que desencadeia um ataque e tosse. Quando recupera o fôlego, Bartolomé agita a mão na direção de Sebastian.
- Vamos esquecer isso! Dom Sebastian parece ter notícias mais urgentes nos relatar... O que sabe da vinda do juiz de Castro?
- Que ele não vem mais porque morreu afogado!
- Pelo sangue de Cristo! Isto foi confirmado?
- Se é verdade ou mentira, é difícil dizer! Durante três horas na noite passada, dom Juan Herrada nos assegurou que o naufrágio do juiz Vaca de Castro não havia sido um infortúnio acidental no mar. Segundo ele, as ondas e as correntezas não tiveram nada a ver com isso. Teria sido um barco do governador que o teria posto a pique.
- Ele tem prova disso? - pergunta Gabriel.
- Não estamos mais em situação de precisar de provas, Gabriel. Aliás, circula na cidade um outro boato que afirma que o barco do juiz teria sido avariado no Panamá para que jamais alcançasse o Peru. Esta manhã, todos estão convencidos de que o juiz está morto e que em conseqüência disso a rania dos Pizarro não terá fim enquanto o Governador estiver vivo.
- Desse modo - concorda Bartolomé deslizando um dedo descarnado sobre a cicatriz -, dom Herrada atiça as brasas sob as cinzas, sabendo muito bem para onde irão as chamas de seu fogo!
- Quer dizer que Herrada e seus asseclas estão pensando em assassinar Dom Francisco? - indaga Gabriel.
- Neste momento, não se trata apenas de estar pensando, é uma decisão.
- Seja prudente, dom Sebastian - murmura Bartolomé tornando abrir a porta às suas costas. - Sua voz pode ser ouvida de longe e, nesta igreja inacabada, as paredes quase não impedem a passagem das palavras. Vamos para minha cela.
- Você pode me dizer o que está fazendo aqui? - pergunta Gabriel, enquanto eles atravessam a sacristia e se dirigem para o pequeno apartamento de Bartolomé.
- Ah - resmunga Sebastian -, estou fazendo papel de imbecil, exatamente como você. Há uns três meses, achei que estava farto deste país e sobretudo de seus habitantes...
Sebastian toca de leve no ombro de Anamaya que caminha entre eles, para explicar com um sorriso irônico:
- Quero dizer, os habitantes espanhóis. Aqueles cuja pele é bem branca a despeito do sol das montanhas! Quer sejam do clã do Governador ou estejam com o filho de
Almagro, não me agrada nem um pouco o que fazem com o Peru. Posso muito bem agora ser um "negro" livre e rico, mas meus olhos continuam vendo. E o que eles me mostram são navios inteiros de escravos que são desembarcados aqui para serem vendidos pela metade do preço de um porco ou de uma mula. Com a idéia de voltar a me instalar no Panamá, vendi minha casa em Cuzco. Por um bom preço, devo dizer: muito ouro bem brilhante. Que já me serviu para comprar um belo barco para empilhar meus tesouros...
- Panamá? - espanta-se Anamaya. - Onde fica?
- Mais para o norte, Princesa. É o país que me viu nascer e onde soubemos da existência do seu. Mas isso dependerá de como correrem as coisas. Quem sabe? Pode ser que o Panamá se revele tão inviável quanto Lima e que eu, também, tenha de descobrir um país!
A gargalhada de Sebastian soa um pouco estridente e a emoção faz seus olhos brilharem mais do que ele gostaria.
- Por que você ainda não partiu? - pergunta Gabriel.
Ah! Isto é uma outra história. Minha caravela está ancorada a trezentas e sessenta braças do porto. Só que faz oito semanas que dom Francisco recusa permissão para que os barcos dos partidários de Almagro façam-se ao mar. Ele receia que corram ao encontro do juiz de Castro. E eu, por mais que tenha me mantido reservado com dom Herrada e o filho de Almagro, para os Pizarro serei para sempre "o negro do Zarolho"... Quanto aos almagristas, esses não perdem uma oportunidade para me mostrar que pertenço a eles.
- O que está querendo dizer?
A única resposta de Sebastian é um suspiro de cortar o coração. Com o olhar, ele segue Anamaya, que desaparece por uma pequena porta lateral com um farfalhar de tecido.
- Por um instante - murmura com um sorriso para Gabriel -, seria de se lamentar que ela não esteja sempre vestida assim! A moda da Espanha lhe cai como uma luva!
- Dom Sebastian - intervém Bartolomé com rudeza, empurrando-o para dentro de seu pequeno aposento de estudos -, agora estamos ao abrigo de ouvidos indiscretos. Falaremos a respeito da moda mais tarde! Tem certeza de que querem acabar com dom Francisco?
- Dom Herrada não está sozinho atiçando os espíritos. As armas estão prontas há dois dias. Até mesmo o instante adequado já foi escolhido.
- E quando será?
- Daqui a pouco, quando o Governador atravessar a praça para vir aqui.
- Antes da missa?
- Herrada deseja que o Governador, a despeito de sua devoção, assuma mais rápido possível seu lugar no inferno! Em sua opinião, não lhe deve ser dada a oportunidade de se arrepender durante a missa.
Bartolomé sacode a cabeça com um suspiro que parece esvaziá-lo de suas últimas forças. Com um queixume abafado, deixa-se cair numa cadeira alta. Com as pálpebras fechadas, murmura:
- O que posso fazer? Dom Francisco sabe que tenho algum interesse na vinda do juiz. Ele me censura até mesmo o fato de seu irmão Hernando ter sido preso! Eu bem que gostaria de avisá-lo do complô, mas ele jamais me ouviria. Pelo contrário, desconfiaria de sei lá que tipo de armadilha.
- Se me perdoa, frei Bartolomé, há uma pessoa que pode prevenir o governador e que teria até mesmo grande interesse em fazê-lo!
Num movimento quase que simultâneo, os olhos de Sebastian e de Bartolomé viram-se para Gabriel.
- Não - protesta Gabriel com furor, levantando as mãos diante do peito.
- Gabriel...
- Não, Bartolomé! Essas brigas entre assassinos não me interessam mais. Na época em que eu encontrava desculpas para dom Francisco já se acabou há muito tempo. Nem o que aconteceu nesses últimos meses nem a morte horrível de Curi Ocllo que poderão me fazer revogar minha decisão!
Com a mão direita, Sebastian agarra a camisa aberta de Gabriel.
- Por que acha que estou aqui, Gabriel? Seu nome foi mencionado esta noite na casa de Almagro. Herrada e os outros souberam que você está aqui, nesta igreja. Alguém deve ter visto e reconhecido você. E sabe a que conclusão eles chegaram?
Como Gabriel, com o semblante fechado, não responde, Sebastian o larga e martela suas frases batendo com o indicador no peito de seu amigo.
- Que dom Francisco, sentindo-se em perigo, o havia chamado para socorrê-lo. Você, o fiel dos primeiros tempos da conquista! Aquele que por tanto tempo ele chamou de seu "filho"! Gabriel de Montelucar y Flores, "o Santiago" do cerco de Cuzco! Tem alguma idéia de como você os faz borrarem-se de medo?
- Eles são malucos!
- Não. Estão furiosos e estão com medo. Vêem ameaças e armadilhas até no vôo de uma mosca! E nem sempre sem motivo.
- Ele tem razão no que diz, Gabriel...
- É claro que tenho razão, frei Bartolomé. E o que vai acontecer, amigo Gabriel, é que se não tratar de se mexer para pôr o Governador em guarda, eles matarão você junto com ele. A menos que cuidem de apanhar você primeiro, para estarem mais seguros!
O ranger de um gonzo e um farfalhar de tecido os sobressaltam. Trazendo uma tigela de líquido quente com uma estranha cor marrom, Anamaya retorna ao aposento e dirige-se para o monge.
- É preciso que tome isto - diz ela, oferecendo-lhe a bebida com um grande sorriso. - Seu Deus não poderia ficar aborrecido por isso. Não há nada aí dentro que ele próprio não tenha criado...
- Vejo com prazer que as primeiras lições cristãs não lhe são desconhecidas...
Um esgar travesso repuxa os lábios ressecados de Bartolomé. Sua mão está pronta para afastar a tigela de madeira mas, com um pequeno dar de ombros, ele a aceita.
- Já que insiste tanto - murmura.
Quando ele começa a beber, Anamaya vira-se para Gabriel.
- Sebastian tem razão. Você deve ir avisar o Governador.
- Anamaya - protesta Gabriel -, eu acabei de dizer a você: a única coisa inteligente que poderíamos fazer é deixar Lima imediatamente!
- Não. Cada coisa que é iniciada deve primeiro ser concluída. Depois, poderemos partir para as montanhas. Gabriel continua com a expressão sombria, contraída, e Sebastian inclina-se para ele, a voz grave e baixa.
- Eu suplico que faça isso, meu amigo.
Gabriel tem um sobressalto diante da solenidade do tom.
- Eu disse a você - prossegue Sebastian - que eles estavam me pressionando, me atormentando... Herrada me deu a entender que eu poderia esquecer meu barco se não estivesse com eles, daqui a pouco, de espada em punho...
- Está bem - diz Gabriel simplesmente -, eu vou.
É preciso muita insistência para que a porta do palácio do governador se abra diante de Gabriel. Somente depois de ter anunciado seu nome completo, "Sou Gabriel
Montelucar y Flores!", seguindo-se uma nova espera, é que o pesado batente guarnecido de pregos gira em volta do eixo. Acima das librés vermelho-sangue, dois rostos de pequenos camponeses o examinam com circunspeção antes de lhe dar passagem.
- O Senhor Marquês o espera no jardim - anuncia o pajem mais jovem.
Quando entra no pátio, Gabriel descobre acima, na galeria, outros rostos o escrutam. Reconhece alguns, velhos companheiros de Cajamarca ou cortesãos mais recentes, vistos de relance em Cuzco. Da mesma forma que eles, não leva a mão ao chapéu para saudá-los. Com o salto de suas botas estalando sobre os seixos redondos que revestem o pátio, ele envereda por um corredor seguindo atrás do pajem. No instante em que se abre a porta baixa do jardim, ele o vê. Talvez os ombros estejam um pouco mais curvados, mas a silhueta alta continua empertigada sob a veste comprida, de tecido negro, que desce até os calcanhares. Um cinto cravejado de ouro, de onde pende a bainha de prata de um punhal, marca-lhe a cintura. Seu chapéu de feltro é de um branco tão imaculado quanto o das botinas de couro de cabrito. Virando-se de costas para Gabriel, ele estende a mão com um regador de cobre e, com delicadeza, deixa correr um filete de água para um pé de figueira ainda pequeno. A idade avançada desenhou grandes manchas marrons sobre suas mãos, ligeiramente deformadas pelo reumatismo. A voz continua idêntica, um pouco áspera, mas com uma ponta de ternura quando ele declara, sem se virar, sem nem sequer saudá-lo:
- Eis aqui a primeira figueira plantada neste país. Todos os dias, eu venho dar-lhe de beber e digo-lhe algumas palavras... Você sabe que as plantas gostam que conversemos
com elas quando estão crescendo?
- Dom Francisco - responde Gabriel secamente -, os homens de Almagro decidiram matá-lo daqui a pouco, quando estiver entrando na catedral.
Francisco Pizarro não se sobressalta; nem seus ombros nem suas mãos revelam que tenha ouvido as palavras de Gabriel. O mesmo filete de água clara continua a correr, com a mesma regularidade, para o pé da figueira, abrindo um sulco na terra fofa.
- Governador, o senhor ouviu o que acabei de dizer? - pergunta Gabriel, a voz mais áspera. - Durante a noite inteira, dom Herrada atiçou a revolta entre os homens de suas tropas. Eles estão de espada em punho.
O filete de água pára de correr. Um ruído de persianas batendo soa em um dos lados do jardim. Ali Gabriel percebe rostos que se apertam e estudam cada um dos movimentos deles. Mas dom Francisco finalmente se vira e pousa nele os olhos desbotados, de pupilas tão pequeninas quanto a ponta de um estilete, e nos quais Gabriel tantas vezes procurou em vão o brilho da verdade. Ainda que aparada com cuidado, a barba, já toda branca, não mais esconde as rugas. Quando a boca se abre num sorriso, mostra apenas três dentes estragados em gengivas tão rosadas quanto as de um bebê.
- Agora - diz ele com doçura -, não me chamam mais de "Governador", e sim de "Senhor Marquês".
- Por Deus, dom Francisco, pare com essas afetações. Duzentos homens decidiram matá-lo!
- Besteira!
- O senhor sabe muito bem que não é! Metade dos espanhóis deste país o odeia e ruge de cólera contra o senhor.
- Eles não têm nenhum motivo para estar com raiva! Não passa de maldade e de traição.
- Eles têm bons motivos, dom Francisco! - irrita-se Gabriel, levantando a voz. - E o senhor sabe muito bem disso!
- Por quê? Não sou bom como um pai para todo mundo? Você sabe o que eu faço quando vejo um ou outro em estado de indigência? Eu o convido para vir jogar malha!
- Dom Francisco...
- Escute-me, Gabriel! Eu o convido para vir jogar malha. Uma partida a dez pesos. Às vezes mais. O dobro, se ele puder. Às vezes, se o homem tiver um nome conhecido ou um título, uma moeda de ouro. E eu perco... Demoro um pouco a perder porque gosto de jogar, mas perco. Você vê, assim o pobre não é mais pobre e eu respeitei sua honra não lhe dando uma esmola. Falam mal de mim e não querem me deixar em paz. Não tenho outras preocupações senão o bem de todos e no entanto fazem correr mentiras a meu respeito, distorcem minhas palavras e me traem!
- Aceite que os barcos dos homens de Almagro partam e ficará em paz.
- Por que motivo você veio me dizer todas essas coisas, filho? E vestido como um bom espanhol, que você é...
- Não estou em Lima por sua causa, Governador. Estou aqui para encontrar o juiz da Coroa.
-Ah?
- Mas parece que o senhor o afogou.
- Mentira! Mais uma mentira... Eu sugeri que ele viesse para cá em um de meus galeões e ele preferiu um barco em más condições. Mas vai chegar. Não se afogou, absolutamente.
O que você quer dizer a ele?
- Que está na hora de oferecer aos índios deste país o respeito que se deve aos seres humanos. Eu direi que eles são homens exatamente como nós e que o papa tem a mesma opinião.
- Você conhece a opinião do papa?
- E a sua? Eu direi a ele que o senhor e seus irmãos fizeram sofrer centenas, milhares de inocentes.
- E você, não?
- Sim, eu também, estupidamente, cumprindo a sua vontade. Tornando-me cego até que os gritos e os horrores que espalhávamos por toda parte me abriram os olhos definitivamente!
- Neste caso, meu amigo, deveria dizer a ele como você e eu tivemos de lutar contra esses selvagens para fazer deste país uma terra cristã! Você dirá a ele como a Santíssima Virgem com o Menino e a Rosa mil vezes afastou de nós os perigos e que, se não fosse pela vontade da Virgem, nada poderia ter sido realizado. Você dirá a ele como, em Cajamarca, nada mais fomos que o instrumento de Deus Todo-poderoso!
- Não, dom Francisco.
- Então você vai mentir como os outros! Você que foi o escolhido de Deus mais que qualquer outro: está esquecendo como Ele protegeu você durante o cerco de Cuzco?
- Eu desconheço quem me protegeu.
- Você nos renega! - vocifera Pizarro subitamente, agitando seu regador. - A Deus e a mim, você ousa nos renegar! Eu, que conduzi você até aqui! Eu, que lhe dei um nome quando você não passava de um piolho na superfície do mundo!
- O senhor fala de uma história que não me agrada recordar nem repetir, dom Francisco. Estes senhores que nos escutam, debruçados nas janelas de sua casa e que o cobrem de elogios todos os dias, se encarregarão muito bem de fazê-lo. Eu serei totalmente incapaz de cantar esta sua ladainha: guardo nos olhos e no coração demasiadas lembranças más que o senhor nunca quis apagar. Demasiados sofrimentos que o senhor jamais amenizou. Quando foi o senhor quem os causou!
- Você também está com raiva de mim, meu filho?
- Esta palavra não significa mais nada entre nós, Senhor Marquês. Além do que, ela agora é inútil. Já faz muito tempo que me habituei a não ter mais pai.
- E, no entanto, você se preocupa comigo. Não quer que eu morra, está pronto para puxar a espada para me defender!
- Eu não disse isso. Não lutarei pelo senhor. Eu só vim avisá-lo porque sua morte teria boa chance de causar a minha e ainda tenho muitas coisas a fazer antes de deixar este mundo.
- Ora! Mas o que você tem de tão importante a fazer?
A amargura do tom, a ironia de dom Francisco surpreendem Gabriel e, de repente, fazem com que ele recupere a calma. Ele sorri e se afasta com um passo atrás.
- Na verdade, Senhor Marquês, receio que me seria impossível explicar. Isto nos tomaria, ao senhor e a mim, tanto tempo quanto viver uma nova vida.
O semblante de dom Francisco se fecha como a porta de um casebre muito velho e solitário. Suas rugas se tornam mais acentuadas e os olhos não exprimem mais nada, exceto um longínquo desdém.
- Vou mandar rezar a missa aqui, em meus aposentos - anuncia numa voz indiferente. - Veremos se Herrada e seus indigentes desocupados ousarão vir me procurar aqui!
E você, enquanto eu estiver rezando, poderá beber um pouco do suco de minhas laranjas. São as primeiras que colhi neste país.
- Não estou com sede, dom Francisco.
O marquês aproxima sua mão do ombro de Gabriel, naquele gesto tantas vezes repetido e com o qual assinala para ele uma forma de amizade, acompanhada de uma exigência de submissão. Mas alguma coisa nova, calma e decidida nos olhos de Gabriel interrompe seu movimento. Ele fica parado assim, a mão suspensa no ar, os olhos negros escrutando desesperadamente os de seu querido "filho". Um por um, os dedos se dobram.
- Será como você quiser - diz finalmente com uma voz abafada.
Sua impotência comove Gabriel mais que todas as palavras que foram ditas.
- Tenha cuidado para não morrer...
O vestígio de fraqueza e de dúvida que pareceram sobrecarregar e abater o marquês desaparece. É com o corpo empertigado, a voz firme, que ele exclama com arrogância:
- Um homem como eu não morre.
"Viva o rei! Viva o rei! Morte ao tirano!"
De início, eles não são mais que trinta a surgir de uma ruela e avançar sobre a praça diante da catedral. Do alto do andaime para onde levou Bartolomé, Anamaya mal vê suas feições, mas a excitação deles faz vibrar a atmosfera cada vez mais úmida de Lima.
Mais uma vez eles gritam: "Viva o Rei! Viva o Rei! Morte ao tirano!" Com frenesi, agitam todo tipo de armas, bestas e alabardas, espadas e azagaias e até mesmo dois arcabuzes!
- Eles estão loucos - murmura Bartolomé, quase que involuntariamente apertando o braço de Anamaya. - Será que eles querem travar uma batalha de fileiras?
Tentando localizar a silhueta de gigante de Sebastian, Anamaya não responde imediatamente. Mas antes que ela consiga fazê-lo, um imenso clamor faz vibrar até as pranchas de madeira do andaime. Das ruelas vazias um instante antes, das casas sem vida cercando a praça surgem inesperadamente duzentos ou trezentos homens, a maioria a cavalo, de couraça e cota de malha cobrindo o peito, a boca aberta aos berros.
- Doce Jesus - exclama Bartolomé, lívido e com a testa banhada de suor.
- Eles têm medo do Governador a este ponto - pergunta Anamaya -, que precisam ser tão numerosos para matá-lo?
- Certamente, eles têm medo de dom Francisco. Mas temem muito mais ainda Gabriel e seus sortilégios de "Santiago de Cuzco"!
Anamaya não consegue conter um gesto de zombaria que surpreende Bartolomé.
- Isto a faz sorrir, Coya Camaquen? - resmunga com uma ponta de humor. - Acho que está muito calma!
Um novo clamor segue o tiro de festim de um arcabuz e lhe corta a palavra. Bartolomé tem quase de gritar para se fazer ouvir.
- Olhe para eles! Dentro de uma hora, se continuarem no compasso em que vão, Pizarro estará morto e talvez também Gabriel. Esta é toda a inquietação que isso lhe provoca?
- Acalme-se, amigo Bartolomé. Gabriel não vai morrer.
- Como pode ter tanta certeza?
A raiva exaltou as feições de Bartolomé. Mas, quando seu olhar encontra os olhos de Anamaya, sabe imediatamente que ela tem razão e que jamais poderá compreender de onde lhe vêm aquele conhecimento e aquela certeza.
Como se entregando-se a um gesto de desespero, ele fecha os olhos e se persigna com fervor enquanto, na praça, o mar dos revoltosos, de repente, se lança contra a casa de dom Francisco Pizarro.
- Peguem as armas! Peguem as armas! Eles vão forçar a porta para matar o Senhor Marquês!
O grito do pajem ressoa em toda a enorme construção e cria pânico no pátio. Do alto da galeria, Gabriel vê os cortesãos se esbarrarem uns contra os outros, procurando mais tentar fugir que empunhar a espada. No mesmo instante, um punho de fero agarra seu braço e o puxa para trás. Quando ele se vira, o rosto de dom Francisco está tão próximo do seu que poderia contar as rugas finas que saem dos olhos e desaparecem na barba.
- Siga-me até meu quarto. Você pode pelo menos me ajudar a vestir a couraça! Você vai ver que daqui a pouco nós não seremos muitos!
De fato, são três ou quatro que se encontram com dom Francisco no quarto dos fundos que forma um dos cantos da construção e que possui a vantagem de ter apenas uma única saída.
- Mantenham-se diante da porta - ordena Pizarro a dois Senhores que já estão com a adaga numa das mãos e a espada na outra.
Tirando sua longa capa de feltro de lã, ele acrescenta para o pajem que não o deixou um instante:
- Você, meu bom Diego, observe bem o que acontece e conte-me!
Quando abre o baú contendo sua velha couraça embrulhada num lençol de algodão, seu olhar encontra o de Gabriel e parece mesmo, por um instante, que ele sorri.
- Senhor, senhor - exclama o pajem -, está feito! Eles destruíram a porta e agora estão no primeiro pátio!
- Quantos?
- Dez... Não, catorze. Talvez quinze. Estão se movendo e não consigo contá-los.
- Os covardes! Você ouviu isto, Gabriel? Eles são duzentos lá fora, na praça, mas só quinze ousam entrar. Faltam-lhes os colhões!
- Senhor! O tenente Velasquez e o secretário Salcedo ficaram com medo pularam para o jardim pela janela...
- Ah! Aí estão outros que têm asas entre as pernas!
O rugido de dom Francisco é quase uma gargalhada.
- Em nome do céu, Gabriel, desamarre estas tiras de pano enquanto visto minha cota. Eles vão ver o que é me assassinar!
- Senhor, dom Herrada e seus homens estão na escada do segundo pátio. Estão lutando e... Ah, senhor, dom Hurtado e dom Lozano estão feridos!
- Tudo isso está andando muito depressa. Feche as portas da galeria e ponha três homens diante de cada uma!
- Senhor Marquês, isso não é possível. Muitos dos nossos senhores estão escondidos debaixo das camas e dos aparadores!
- Com os cueiros borrados de medo! Eles que comam poeira e sua própria bílis... Gabriel, meu garoto, aperte! Aperte bem!
Gabriel aperta as correias de couro que unem o plastrão e as costas da couraça. Com um desgosto crescente e, ao mesmo tempo, com uma calma que o deixa espantado consigo mesmo, tem a impressão de que está enclausurando o velho vociferante dentro de seu próprio túmulo de aço enquanto os clamores dos combates ressoam cada vez mais próximos.
- Ah, Senhor Marquês, o senhor Chavez vai ser morto! Eles estão lhe enfiando duas facas no pescoço! Senhor! Estão matando! Matando!
- Os cães! No pescoço, dez contra um! Os velhacos! Que vergonha!
Os gritos e insultos aumentam de repente e com um só golpe o batente da porta se abre quicando contra a parede. Sem uma palavra, com a garganta cortada, o pajem fiel cambaleia, cai para trás e não se levanta mais. Por um breve segundo, todos ficam imóveis, a respiração arquejante e os olhos arregalados. Então o brado de "Morte ao tirano!" ecoa contra o peito de ferro do Governador.
Por reflexo, Gabriel saltou a seu lado, de espada em punho, embora tivesse prometido a si mesmo deixá-la embainhada. Mas o quarto está tomado por um turbilhão caótico. O entrechocar das armas, os gritos, o ranger de dentes e o fedor de hálitos furiosos giram loucamente. Quase não lhe dão atenção, enquanto dom Francisco se defende como se o demônio tivesse se transformado em homem. Equilibrando uma azagaia na mão esquerda enquanto na direita sua espada voa, apara golpes e corta, ele não tem mais idade nem fraqueza. Mesmo sua barba parece feita de um metal cortante. Seus rugidos e seu furor repelem os conjurados, cujos golpes enfraquecem.
- Que morra o tirano! - grita então dom Herrada, muito pálido, empurrando seus homens à sua frente.
- Traidores! Bufões! Excrementos do diabo! - replica dom Francisco.
E então, de repente, outros conjurados se engolfam no aposento e Gabriel descobre a silhueta alta de Sebastian, desajeitada e pesadona, na confusão da batalha.
- Sebastian! Não fique aí! - grita. - Deixe que eles lutem!
Com um giro pesado, Sebastian afasta a azagaia de Pizarro, mas seu braço recebe o golpe de um dos últimos defensores do Governador. Com uma careta de dor, o sangue já jorrando da manga, ele se vira para Gabriel que se aproxima. Enquanto isso, antes que Sebastian possa se juntar a ele, como se adivinhasse sua intenção, as duas mãos de dom Herrada agarram as costas de Sebastian e o empurram para a espada assassina de dom Francisco.
- Sebastian!
A lâmina de Gabriel sibila para desviar a de dom Francisco. Mas o punho do Governador golpeou com toda a força. A espada que tantas vezes cortou e combateu encontra um caminho na parte inferior da cota de malha de Sebastian. Ela penetra com tanta facilidade que dom Francisco por pouco não esbarra contra seu peito enquanto o gigante negro geme baixinho.
E tudo acontece ao mesmo tempo. Enquanto Sebastian desaba no chão levando consigo a espada de dom Francisco, a surpresa, por um segundo, imobiliza o Governador. Com um berro em uníssono, dez punhos armados com adagas se abatem sobre ele.
- Mata! Mata! Mata! Morte ao tirano!
Agarrando-o pelo ombro, com dificuldade Gabriel consegue puxar Sebastian para trás. Enquanto tira a lâmina de suas entranhas, a dois passos dele, dom Francisco Pizarro desaba no assoalho, a boca desdentada aberta num longo grito silencioso. É apenas um sussurro, misturado com sangue, que escapa de seus lábios.
- A confissão! Por piedade, a confissão! Por piedade, que eu possa mais uma vez beijar a imagem da Santíssima Virgem da Rosa!
Gabriel percebe sob suas mãos os sobressaltos de agonia de Sebastian.
- Agüente firme! - suplica, comprimindo o ferimento aberto com a mão, reparando com indiferença que a lâmina da espada deslizou sobre a alma de sua mão, fazendo um grande talho. - Não se deixe morrer, Sebastian, Anamaya vai curar você.
- Deixe, Gabriel. Assim está bem.
As mãos de Sebastian se apóiam sobre a de seu amigo, ele sorri enquanto o olhar vacila até o rosto destruído do governador. Com um derradeiro gesto e ferocidade, em resposta à súplica de dom Francisco, um dos assassinos acaba de arrebentar contra seu rosto uma moringa, rasgando-lhe ao mesmo tempo a boca e as preces.
- Ele já está morto - arqueja Sebastian. - E eu, finalmente, vou deixar de ser um escravo.
- Espere, espere...
As palavras se precipitam na boca de Gabriel ao mesmo tempo que ele sente a mistura de suor e lágrimas lhe escorrer pelo rosto.
- Ainda quero pedir uma coisa, Sebastian.
- Eu conheço você, Sua Graça... Você quer ganhar tempo...
- Eu juro que preciso de você!
- Você sempre teve a tendência de choramingar na hora de dizer adeus, Gabriel. Cale-se e aperte minha mão.
E enquanto os olhos de seu amigo se fecham, enquanto o navio o leva rumo à libertação final, Gabriel não larga sua mão.
A bruma tenaz e úmida que vem do oceano cobre a costa e os rochedos de ocre que nela desenham meandros. Ela também luta contra o sol duro que calcina a imensidão do deserto ao norte de Lima. Bastaram três horas no lombo de cavalos e mulas para que eles vissem lhes aparecer a opulência verde da cidade e a loucura que dela se apoderou depois da morte de dom Francisco Pizarro. Os gritos de ódio transformaram-se em rândolas dementes de vinganças a serem satisfeitas. O corpo todo esfaqueado o velho Governador foi carregado e exibido na grande praça como se fosse um lenço onde se pudessem enxugar os velhos rancores e os temores de tantos os selvagens.
Enquanto a pilhagem da casa dos Pizarro desencadeava gargalhadas, Bartolomé imediatamente pressionou Gabriel para fugir da cidade antes que dom errada o aprisionasse.
- Primeiro eu quero enterrar Sebastian! - protestou Gabriel, os olhos vermelhos.
- Impossível, eles não vão permitir que tenha tempo para isso. Você é o último de quem eles ainda têm medo. Não pense que vão se esquecer de você, assim, com essa facilidade.
Foi Anamaya quem propôs que deixassem a cidade levando o cadáver do antigo escravo negro.
- E por que não? - argumentou Bartolomé com um dar de ombros.
- Eu consagrarei um quadrado de terra e ele não terá menos paz enterrado nele que aqui.
E agora eles estão no local, diante de uma cova escavada entre duas protuberâncias de rocha, semelhantes aos braços acolhedores de um gigante. Uma cruz, da altura de um homem, feita com dois pedaços de madeira flutuante trazida pela corrente, estende sua sombra sobre o lençol de terra poeirenta. Ajoelhado, Bartolomé murmura a prece que não sobe aos lábios de Gabriel.
Com a mão boa apertando com força a mão de Anamaya, abraçada a ele, Gabriel deixa que as lembranças o invadam como uma revoada de pássaros tristes. Há o primeiro sorriso, em Sevilha, na estalagem Ao Pichel Livre, e as primeiras palavras de amizade: "Nós descobrimos um país novo." Há Sebastian que repete: "Não se esqueça nunca, amigo, que sou negro e escravo. Mesmo que façam de conta que não, eu nunca serei outra coisa!' Há Sebastian apertando o garrote que mata Atahualpa. Sebastian que o salva, que o protege, faz troça, mas que jamais deixa de ser fiel. Até em sua derradeira hora!
- Aqui, ele ficará bem - diz Bartolomé baixinho, levantando-se e olhando para Anamaya, como se não ousasse encontrar o olhar de Gabriel. - Foi mais uma de suas boas idéias, Princesa.
- É verdade - concorda Gabriel com um esgar de amargura. - Para um homem que sempre viveu como uma sombra dos outros, aqui está ele, definitivamente descartado, sozinho! Neste momento, Herrada e seus asseclas já devem ter-se apropriado de seu barco. Dentro de alguns dias, Sebastian estará tão apagado de seus espíritos que, para eles, será como se nunca tivesse vivido...
A cólera faz tremer seus lábios. Bartolomé o fita com seus olhos cinzentos.
- Eu não esquecerei nunca que o batizei - murmura.
- Batizou? - espanta-se Gabriel. - Sebastian?
- Sim. Um pouco antes de partir de Cuzco, foi ele que me pediu... Fique tranqüilo, eu nunca o interroguei muito profundamente sobre sua fé. Digamos que ele quisesse ser... tranqüilizado.
Bartolomé fecha a mão com os dedos colados sobre as mãos enlaçadas de Gabriel e Anamaya.
- Mas o batizei com o mesmo amor com que casei vocês.
Gabriel se sobressalta.
- Não me lembro de nenhuma cerimônia, frei Bartolomé.
- Não fique agitado, meu amigo. Não fui eu quem primeiro incentivou você a se aproximar dela? E não fui eu quem veio buscar vocês no coração da floresta, Anamaya e você?... Naquele dia, eu casei vocês em meu coração e tenho certeza de ter compartilhado os ritos com meu amigo Katari. As palavras, por vezes, nos separaram, Gabriel, mas não quero deixá-los sem dar a vocês minha amizade e um amor não só divino como humano, como você preferir. Você o aceita? Vocês o aceitam?
- Obrigada - diz Anamaya com simplicidade, enquanto Gabriel baixa a cabeça em assentimento com gravidade.
- Não, Coya Camaquen. Eu é que devo a você um obrigado. Bem mais do que possa imaginar! Sem você, eu sei que a vergonha e o sofrimento de todos, hoje, seriam ainda maiores. Eu nunca a esquecerei. E quando falar com o juiz de Castro, quando estiver em Toledo para defender a causa de vocês e a do Peru, será seu rosto que sempre terei diante dos olhos.
Por um instante, unidos tanto por uma mesma emoção quanto pelos dedos das mãos que se estreitam, eles se calam. O calor do deserto e o ruído próximo do bater das ondas do mar os envolvem, ao mesmo tempo, numa imensa solidão e numa imensa paz. Estranhamente, Gabriel sente sua tristeza se dissolver, como se a imensidão que o cerca a absorvesse e lhe desvendasse, subitamente, o verdadeiro começo de sua vida.
É Bartolomé quem primeiro desfaz o aperto de mãos. Com um gesto que se tornou maquinal sempre que a emoção o embaraça, ele acaricia a cicatriz com os dedos colados e dá uma risada:
- E, como podem ver, a febre me deixou em paz. Não se saberá se Deus finalmente ouviu minhas súplicas ou se é o efeito de sua beberagem, não é, Princesa? Mas que importa! Tenham certeza de que vou viver muito tempo!
Um instante depois, quando sua silhueta, inclinada sobre a mula, se afasta em direção ao norte, Anamaya, mais uma vez colando seu corpo contra o de Gabriel, o abraça com força.
- Não é estranho que ele também tenha falado de um sinal de seu Poderoso Senhor?
Gabriel sabe em que ela está pensando. Ele próprio reflete sobre as palavras do Único Senhor Huayna Capac:
"Guerra entre os Filhos do Sol e guerra entre os estrangeiros: este é o sinal. "O sangue do irmão, o sangue do amigo são derramados mais generosamente que o do inimigo: este é o sinal. O estrangeiro que roga a uma mulher e não a seu Poderoso Ancestral está morto: este é o sinal."
Sim, agora, cada uma dessas coisas, de fato, se cumpriu.
- Vamos - diz Anamaya baixinho. - Agora, está na hora de ir para as montanhas e de libertar o Irmão Duplo de nossa presença.
- "E durante todo esse tempo, não duvide de mim. Permaneça em meu hálito e confie no puma" - responde Gabriel com um último olhar para o túmulo de Sebastian.
Machu Picchu - Caral, 1542
Desde que eles deixaram Lima, mantiveram-se em silêncio.
Cada um dos dois está perdido em si mesmo, cada um revive a desordem, os horrores e as surpresas de sua vida. A Gabriel acontece de fixar a fita de pedra movente na estrada real inca e se imaginar flumando sobre um mar que o leva sempre cada vez mais para o alto; Anamaya deixa seus olhos vaguearem pelos cumes das montanhas e por vezes é obrigada a estender os braços para se recordar de que é apenas humana, mente humana. Todo o orgulho que poderiam ter os abandonou - a Coya Camaquen e o cavaleiro branco de Santiago não são nada mais que um homem e uma mulher que caminham com alguns carregadores. O amor não lhes inspira nenhuma palavra: apenas gestos esboçados, olhares apagados.
Eles conservaram os trajes espanhóis. À luz da manhã Gabriel examina a não ferida, que cicatriza lentamente, aquela pele de criança que se forma de novo ao redor da crosta de pele morta do adulto. Pensa em Sebastian. Alguma coisa se rasgou em seu íntimo que não vai sarar como aquela mão - e entre tanto, é estranho constatar que está vivo enquanto ele está morto. Tantas mortes para compreender uma coisa tão simples...
Agora que eles chegaram ao vale do Apurirnac, Gabriel vez por outra se vira para observar o triângulo perfeito de uma montanha que se crava no fundo do vale estreito pelo centro do qual eles sobem. Amanhã, estarão em Rimac Tambo. Por toda parte ao longo do caminho, ele é perseguido pelas lembranças de batalhas, da passagem de uma torrente, de um monte de pedras. Depois virá o desconhecido. Contudo, não precisa perguntar a ela para onde vão. Ele sabe. Ele sabe que no tambo os carregadores os deixarão e que ficarão sozinhos. Sabe que se despirão dos trajes espanhóis para nunca mais voltar a usá-los e que mais uma vez vestirão um unku e um aaco de fina lã branca. Sabe que ela olhará para o norte e que lhe mostrará o lugar onde o cometa apareceu; depois eles seguirão pelo caminho na floresta densa por onde o Sábio Villa Oma a conduziu. Ela dirá as primeiras palavras: "É ali."
Como a noite se aproxima, uma bruma espessa sobe e os envolve, tornando-os quase invisíveis. Gabriel não consegue impedir seus dedos de se crisparem na umidade imaginando-a desaparecer repentinamente em meio a esse véu. Como um homem embriagado, ele gira e só pára quando ela o segura pelo braço. Ele se imobiliza, o coração disparado.
Ela segura sua mão e leva a seus lábios doces o seu ferimento. Katari sente a fronte banhada por milhares de gotículas trazidas pelo vento do mar. Tudo desaparece. O céu, o mar e a terra têm uma cor branca leitosa onde tudo se funde, tudo se apaga. Ele precisa tocar a própria pele para se assegurar de sua textura, de sua consistência. Todos os seus outros sentidos estão quase aniquilados, como se os três Mundos se tivessem unido e unido todos os elementos. Contudo, ele avança sempre para o norte, guiado pela luz que tem em si.
Não parou de caminhar um dia desde que deixou Vilcabamba e os olhos perdidos no infinito de Manco. O Inca nem sequer o viu se afastar, nem sequer prestou atenção aos preparativos de viagem do Irmão Duplo. Sua solidão não era mais interrompida, exceto por ordens breves, e ele só recuperava um pouco de vida, no meio da noite, entre as pernas das concubinas. Os sinais de respeito nada mais eram que sinais de medo. Manco despertava de manhã aos berros e mandava vir os adivinhos para interpretar os sonhos que o assustavam e deformavam seu rosto. Quando Katari partiu, ele o deixou com os lábios trêmulos: o Inca ainda queria lhe dizer alguma coisa, mas o esforço necessário era grande demais, impossível. O esquecimento já o devorava por dentro.
Aqueles a quem Katari confiou o Irmão Duplo são kollas como ele, que o obedecem sem pedir explicações e têm, desde a infância, um hábito profundo de guardar o silêncio. Eles escoltarão a liteira da estátua através da floresta fazendo menos barulho que uma anaconda. Eles a levarão até o lugar onde ela deverá ficar, de acordo com as palavras do Huayna Capac, para reencontrar Anamaya e o Puma, e ganhar sua morada para a eternidade. Katari preferiu partir sozinho.
A simples presença de um ser humano o teria perturbado em seus pensamentos, talvez o tivesse afastado de seu caminho. Já passado quase um mês, ele vive apenas com os ruídos da natureza e dos animais, regalando-se com o perfume das orquídeas de pétalas úmidas, tendo de responder apenas aos pássaros. Dormindo muito pouco, Katari se entrega sempre ao mesmo sonho: ele sabe onde está, ainda que esse lugar nunca tenha sido visitado. Ele desperta feliz, tomado por uma certeza que o faz saltar e avançar cada vez mais depressa. Suas pernas musculosas o conduziram ao longo das paisagens, do calor ao frio e de novo ao calor. Depois da floresta, Katari ganhou os planaltos recortados por vales da puna, onde as colinas desenham seus contornos arredondados a perder de vista. Seu olhar repousava nos tufos amarelos de ichu sob o céu azul límpido. Quando uma nuvem de poeira se levantava, não eram homens, mas uma manada de vicunhas cujos saltos faziam tremer a terra.
Descendo em direção à costa, atravessou desertos de pedras, às vezes cortados por pequenos riachos à margem dos quais se acotovelavam, em meio a uma vegetação luxuriante, índios imóveis, quase nus, que o viam passar sem lhe dar atenção.
Pouco a pouco, à medida que se aproximava do mar, retalhos de bruma rasgavam o céu e carregavam o ar de uma umidade que penetrava profundamente em sua pele. Agora, ela está ali, por toda parte ao seu redor. Ela o cega, mas ele vê tudo. Ela transforma a atmosfera numa espécie de algodão onde todos os sons são apagados, mas ele ouve tudo. Ela traz fortes odores do mar, mas ele sente perfumes que vêm de muito mais longe.
"Vocês estão aqui", sussurra para Gabriel e Anamaya, "vocês estão longe, mas estão muito perto de mim. Nós estamos juntos."
A medida que eles se embrenhavam na montanha e se afastavam do Apurimac, a bruma se desfez. Caminharam durante a noite e no frescor da aurora, e ela se abraçou a ele. Ele mergulhou com abandono no azul de seus olhos - azul do céu, azul da noite, azul do mar, azul do lago no qual ele nadou para reencontrá-la.
Quando transpuseram as colunas de pedra que se erguem em direção ao céu, Anamaya pôs as mãos sobre os olhos de Gabriel para que ele os fechasse. Enquanto eles continuavam a subir os degraus, suspensos entre o céu e a terra, ele foi tomado por uma inquietação profunda. Depois, com uma leve pressão da mão, Anamaya indicou que podia abrir os olhos de novo.
O espetáculo que Gabriel descobre ultrapassa tudo que poderia imaginar em beleza e em força. É como se, nesse lugar secreto, uma aliança tivesse sido feita entre os homens, o céu, as montanhas e o rio para criar um templo com as dimensões de toda a natureza a fim de exaltar a presença dos deuses.
- Picchu - murmura Anamaya, apenas uma vez.
Ele tem os olhos brilhantes e o peito repleto de um fôlego violento e calmo. Está ali onde deve estar, ali onde seu caminho o conduziu. Ele desliza sobre os terraços dispostos como degraus, sobre as casas e os templos, segue o murmurar do vento e da água, da fumaça que sobe em volutas cinzentas dos telhados de ichu, adivinha ao longe uma vasta esplanada... Sem cessar, seu olhar é atraído para a montanha que domina o sítio, leve e impetuosa. Com um palpitar no coração, ele reconhece a mesma forma do rochedo dos quatro nichos de Ollantaytambo, assim como o desenho familiar do puma enroscado acima da cidade, como que adormecido e ao mesmo tempo aterradoramente vigilante.
Há tanto a perguntar e nada a compreender: tudo está ali. Anamaya, a seu lado, vibra e resplandece.
- Eu prometi - diz ela em voz baixa - que jamais revelaria o segredo e que nunca passaria por esta porta com um estrangeiro...
- Mas não é isso o que está fazendo?
- Você não é um estrangeiro. Você é o puma. O segredo é seu. Você está em casa.
Gabriel se sente feliz e livre, e a criança muito jovem que dorme nele se deixaria descer pelos terraços, saltar pelas ruelas estreitas, para desembocar pelas encostas vertiginosas abaixo das quais a fita de prata do rio rebrilha... Mas desse lugar emana tamanha nobreza que ele contém a agitação e se sente dominado por sua paz.
Anamaya desce a escada que leva à porta monumental atrás da qual, tantos anos antes, ela viu Villa Oma desaparecer. A pesada paliçada de madeira está lá, sempre em seu lugar, fechando hermeticamente o acesso ao centro de Picchu. Ela encosta as mãos e a porta balança imediatamente, revelando a rua e suas casas baixas. São três guardas impassíveis de semblante fechado, lança em punho que os recebem e sem dizer uma palavra os guiam até uma vasta casa de paredes cuidadosamente caiadas e telhado de ichu de inclinação muito acentuada. Na parede estão abertas duas janelas em forma de trapézio pelas quais se descortina toda a profundidade do vale.
Um velho os recebe, sentado sobre uma tiana. Seus longos cabelos têm a brancura de Salcantay.
- Os anos se passaram, Huilloc Topac - diz Anamaya lentamente -, mas você continua sendo o guardião deste lugar.
O índio de cabelos cor de neve tem os olhos quase brancos de um cego. Contudo, quando os vira para eles, os dois sentem-se escrutados até o fundo da alma. Finalmente, diz com simplicidade:
- Eu os esperava.
No meio do berço imenso das colinas banhadas por uma luz cinzenta, seis montículos desenham um círculo quase perfeito. O mar já está longe, há muitos dias de marcha, e no entanto seus perfumes discretos ainda o fazem presente. Mais abaixo serpenteia um rio cujas margens foram invadidas dos dois lados pela vegetação selvagem.
O coração de Katari bate forte.
Para o olho não exercitado, não são mais que montes de poeira e de terra cuja coloração mais escura se destaca no fundo de seixos e rochas; para o Mestre das Pedras, que viajou de muito longe, para além de sua idade, é o fim do caminho. Aqui, os tempos acabam e começam. Seu passo subitamente se torna mais lento e ele deixa o vento cantar em suas orelhas que se tornam conchas; através de seu corpo ressoa uma trompa, que vem de antes dos tempos e lhe murmura a lenda do que foi e do que será.
Foi aqui que tudo começou, muito antes que o próprio Viracocha saísse do lago Titicaca, muito antes que ele tomasse o caminho do Norte e se enfiasse no seio do Grande Mar pela porta de Tumbez, agora para sempre profanada pela chegada dos estrangeiros. É aqui que jaz, profundamente cravado na terra, o monólito huanca, o Marco das Origens, que assinala a ancoragem, o surgidouro dos homens naquela terra dos Andes. As pedras disseram-lhe isso, os velhos quzus salvos do saque de Cuzco o confirmaram para ele. Katari tira os quzpus de sua trouxa, e seus dedos percorrem os nós ao longo do comprimento dos cordões enquanto ele canta, de olhos fechados, uma invocação sem palavras.
Um amauta muito idoso deu-lhe este segredo. Esses quipus são a memória dos Andes; desde então ele sabe como despertá-la. Chega às suas narinas o odor marinho ao qual se mistura o do rio. Os longos cabelos negros varrem seu rosto. Ele se dirige sem hesitar para o mais alto dos montículos. À medida que se aproxima, sua forma se torna mais definida, e ele imagina, sob o abandono aparente, o posicionamento regular dos terraços. Ele está diante de uma pirâmide.
Os dedos sempre cerrados sobre seus quzpus, Katari não se demora em procurar o acesso sob o amontoado de pedras; lentamente ele dá a volta na pirâmide, deixando-se penetrar por sua presença e pela presença de gerações que ali praticaram seus cultos. Quando ele se encontra na base da rampa cujo acesso avista sob o monte em ruínas, o terreno bruscamente se estreita em forma de um grande círculo. Seu semblante se ilumina. "Urku Pacha", diz baixinho, "a passagem para o Mundo de Baixo. É aqui. Venham." Ele se senta no centro do círculo e dispõe os qurpus diante de si. Depois se deita, braços e pernas abertos, e o rumor da terra se eleva dentro dele.
O dia inteiro e a noite inteira, eles estiveram com Huilloc Topac. O velho não quer saber nada sobre as guerras nem do que se passa no Mundo de Lá, não lhe resta nada daquela hostilidade desdenhosa de que Anamaya se lembrava. Ele tem o despojamento de uma pedra sobre a qual a chuva escorreu por muito tempo. Ao alvorecer, ele os conduz em silêncio pelas ruelas escarpadas, enquanto a luz toca de leve a parte superior dos terraços, até uma plataforma de pedra ao fundo da qual abre-se uma gruta. Dominando-a, destaca-se a sombra de pedra de um condor cujo bico mergulha dentro da terra. Huilloc Topac arruma as folhas de coca e Gabriel se sente estranhamente em harmonia com ele enquanto o ajuda a acender a fogueira e depois a servir a chicha.
"Falta pouco", diz Huilloc Topac, de olhos revirados, a cabeça girando como uma estrela perdida.
Eles o deixam e saem para vaguear livremente. Cruzam com as mocinhas e os sacerdotes, os ourives e as tecelãs; ao longe, os camponeses já trabalham nos terraços plantados de milho. Reina uma calma escura e pesada - uma calma de antes da tempestade. Entre eles, não há mais que palavras isoladas, gestos soltos. No crepúsculo, eles chegam à casa que domina a região e observam a noite cair. De repente, o eco de uma voz chega até eles e por todo o vale um cântico se eleva, um cântico de uma beleza trágica e misteriosa, entoado numa única nota, um cântico penetrante em que as vozes humanas, as trompas e os tambores estão unidos. Anamaya se levanta e Gabriel a segue.
Sobre a vasta esplanada, abaixo do templo dos cinco nichos, toda a multidão de Picchu está reunida. Os unkus e os aacos são brancos e um caminho de tochas está iluminado no centro da esplanada, enquanto o cântico, enchendo todos os peitos, continua a ressoar infindavelmente. Gabriel e Anamaya se aproximam e vêem.
Ele chegou. No poente, o Irmão Duplo os espera.
A gente de Picchu está de cabeça baixa, as costas curvadas, alguns estão até mesmo prosternados no chão em sinal da mais profunda reverência. Anamaya vai sozinha para junto do Irmão Duplo. Quando ela toca sua cabeça, o cântico se interrompe e nada mais resta em todo o vale senão o eco do vento e o rugido do Willkamayo.
Nada existe em vão, ó Viracocha! Todos vão até as margens do Titicaca, Todos vão às pirâmides que se perderam, Todos encontram o lugar que para eles escolhestes!
Por muito tempo as palavras da prece são pronunciadas. Quando ela acaba, Anamaya arruma os quipus diante de si e deixa seus dedos descobrirem os nós, o espírito de Katari surgindo dentro dela. Gabriel a vê mais bonita e luminosa que nunca quando ela volta a se levantar e fala.
- Faz muito tempo - diz ela - o Sapa Inca Huayna Capac confiou segredos a uma mocinha ignorante saída da floresta. Para possuí-los, muitos combateram, muitos acreditaram revelá-los na guerra e na destruição sem fim. Este tempo está acabado. Só existe um segredo: e este é que o Irmão Duplo agora deve encontrar sua morada, de modo que sejam conservadas, para a eternidade dos tempos que é a alma de nosso povo, a alma eterna de nossas montanhas, a unidade de todos os mundos, o Mundo Daqui, o
Mundo de Cima e o Mundo de Baixo...
O cântico recomeça quando Anamaya se cala, como uma dança que faz ondular os corpos da gente de Picchu, lenta e solene, confiante. Os carregadores levantam o Irmão Duplo sobre a liteira e Anamaya os guia através de três níveis de terraços abaixo da esplanada, que o resto da multidão não abandona. Num semicírculo com o entorno fechado, cuja borda se abre sobre a ravina do Willkamayo, há três rochedos que são atravessados cada um por uma galeria que parece mergulhar nas profundezas da terra.
- Urku Pacha - diz Anamaya segurando a chave de pedra que Katari lhe deu. - É aqui.
Os últimos raios de sol se prendem à Intihuatana e se fixam ali por um instante, enquanto o Irmão Duplo desaparece na galeria central.
O cântico cessa de novo e toda a terra é agitada por um tremor, por um pisotear universal, como se milhares de tambores ressoassem sob seus pés.
Quando o sol ia mergulhar atrás das montanhas, Katari sentou-se para lançar pela última vez a pedra que faz parar o tempo.
Um raio de sol fixou-se no pico da pirâmide e deslizou sobre seu flanco como um relâmpago, imobilizando-se a seus pés, no lugar onde se abre o círculo do templo subterrâneo.
- Aqui - repete ele tomando nas mãos a chave de bronze.
Com um ruído surdo, um martelar abafado, o solo treme subitamente. É uma vibração que penetra seus pés e pernas, como se de toda parte um exército viesse até onde ele está. No alto da pirâmide, a ganga secular do Marco das Origens se racha antes de se desagregar, dispersando poeira no vento vindo do oceano. Enquanto sua ponta emerge do solo, nua, as primeiras gotas de chuva explodem contra sua pele de granito.
Katari, de olhos voltados para o alto, oferece o rosto à chuva.
O sol desapareceu atrás das montanhas e Gabriel foi se juntar a Anamaya no terraço na borda da ravina. Lentamente, engolida pela noite, a gente de Picchu se vai. Em longas filas silenciosas, eles abandonam a cidade para sempre. Desenhando serpentes de rogo na sombra das montanhas, na hora em que as estrelas aparecem no céu, eles se afastam nas Quatro Direções, com suas tochas na mão.
Durante anos, eles construíram a cidade secreta de Picchu para fazer dela uma morada digna do Irmão Duplo. Suas entranhas de ouro contêm toda a história e o poder dos incas, o tempo passado e o futuro dos Andes, a memória as glórias e das provações. Saberão disso aqueles que partem hoje? Sem dúvida, não, reflete Anamaya, mas eles têm orgulho da obra realizada. Eles partem sem dizer uma palavra, sem um olhar: o que precisava ser dito foi dito, e feito que precisava ser feito.
Entre eles, Anamaya e Gabriel vêem por um longo instante se agitarem os longos cabelos cor de neve de Huilloc Topac até que eles também desaparecem. Agora não há mais nada, exceto o silêncio.
No ar carregado, uma umidade repentina cola-se a seus rostos ao mesmo tempo que nuvens mais negras que a noite encobrem o céu. As primeiras gotas de chuva caem. Os relâmpagos silenciosos riscam a escuridão das montanhas e lançam uma luz esbranquiçada. Muito rapidamente eles cercam Machu Picchu como um bando de feras de presas cintilantes. Aqui e ali, os raios plantam seus arcos de luz com trovoadas roucas.
Instintivamente, Anamaya se abraça a Gabriel, cuja respiração se acelera. Ela procura sua mão e a aperta contra seu ventre. Como se este simples gesto o tivesse atraído, o raio se abate muito perto, sobre o terraço mais alto. Eles tremem, todos os dois, fechando os olhos à espera do estrondo do trovão. Mas o fogo do céu, com apenas um estalar de galho morto, se transforma numa bola ofuscante. Lançando estilhaços de ouro derretido, ele desce a encosta, explode numa multidão de riachos de fogo que seguem a menor falha de rocha. O odor acre de enxofre se espalha no ar carregado de água. Somente agora, fazendo vibrar o peito dos dois, o trovão ruge ecoando de encosta em encosta até o fundo das ravinas. O furor vem do céu e sobe da terra, sacudindo o Mundo todo de uma só vez.
Eles não sentem medo.Quando a tempestade se acalma, um vento fresco dispersa as nuvens e clareia o céu.O vento de novo agita as folhagens no silêncio.A noite é tão absoluta que parece que o mundo é feito apenas de céu.Quando a chuva pára, Katari viaja com as estrelas. A partir do horizonte, ele segue o Mayo do céu, o Rio Sagrado celeste, e sorri quando pára sobre a nuvem obscurado Lhama. Os Poderosos do Outro Mundo agradecem-lhe pelo trabalho realizado. A bruma se abriu e ele distingue claramente os Mamaciawin, os olhos do Lhama. As duas estrelas brilham suavemente. Sua pulsação se torna regular, lenta e harmoniosa, casal eterno no compasso de um mesmo coração.
"Vocês estão aqui", sussurra Katari para si mesmo, "eu estou com vocês. O tempo é um. Nós viemos antes e viremos depois. Tudo está bem."
A noite toda Gabriel e Anamaya passeiam entre as constelações.Anamaya chama as Plêiades de coilca e diz que elas são a Mãe de todas as outras estrelas. Ela aponta com o dedo as estrelas do Cinturão de Órion.
- O condor, o abutre e o falcão - cochicha no ouvido de Gabriel.
Ele voa com ela e descobre, cingidas pelas estrelas, as silhuetas do Pássaro, do Urso, da Serpente e finalmente do Puma.À meia-luz da aurora, Anamaya lhe mostra Vênus sob o nome de Chasca Cuyllor.O mundo engoliu a si mesmo, o mundo renasce.O tempo se enroscou como uma serpente, o tempo se desdobrou.Eles se beijam longamente.
Depois tornam a subir pelos terraços, seguem as ruelas da cidade deserta até as escadas que levam à saída. Anamaya o conduz pelo caminho íngreme e escorregadio que atravessa a floresta para alcançar o pico de Machu Picchu, lá onde, anos antes, ela segurou a mão de uma garotinha que deveria ser sacrificada e não foi.
Eles sobem em meio à vegetação luxuriante, os olhos ofuscados pelo sol do novo dia. Transpõem as portas de pedra e, como se a abóbada do céu estivesse ao alcance de seus dedos, levantam o rosto.
O vento brinca com as nuvens e a bruma, e eles avançam sem nenhum temor até a ponta do rochedo. Abrem os braços, e é como se abrissem as asas para se lançar no vazio.
O vento ganha mais força e o azul se torna mais profundo no horizonte. Eles se mantêm ali, pássaros-homens repletos de amor, diante do sol que nasce.
Lá embaixo, bem lá no fundo, há apenas pedras e, já, algumas sombras.
- Estamos sozinhos! - grita Gabriel mais alto que o vento.
E é bem baixinho que ela responde:
- Estamos juntos.
Antoine B. Daniel
Por volta de 1520, uma década antes da descoberta do Peru por Francisco Pizarro, as fronteiras orientais do Império Inca tiveram de enfrentar a invasão de hordas de tupinambás. Na liderança desses índios, vindos do Brasil, encontrava-se um europeu chamado Alejo Garcia. Os Filhos do Sol conseguiram conter a vaga dos invasores que, contudo, se estabeleceram ao pé da Cordilheira sob o nome de chiriguanos.
Uma lenda relatava que Alejo Garcia, esse português de ascendência flamenga, teria capturado uma princesa inca que teria tornado sua companheira, antes de desaparecer rumo ao leste. E esse homem tinha olhos de um azul cor de porcelana...
Depois de ter tido sucesso em resgatar seu filho, Titu Cusi, capturado pelos espanhóis, Manco conseguiu sobreviver alguns anos em seu refúgio de Vilcabamba. Foi morto em Vitcos, em 1544, por sete almagristas que, entretanto, ele havia abrigado. Esses homens esperavam obter o perdão
de Gonzalo Pizarro graças a esse covarde assassinato.
Com o nome de Cristobal e em companhia dos membros mais importantes de sua família, Paullu foi batizado em 1543. Em 1545, foi agraciado com um título de nobreza e tornou-se um fidalgo. Nesta sombria epopéia, ele será um dos raros protagonistas a morrer de "morte natural" em 1549.
O Anão, Chimbo Sancto, sem dúvida passou os anos de sua velhice em suas terras no vale de Yucay. Dentre seus muitos filhos, duas filhas herdaram seu tamanho pequenino. Mas seus rastros se perderam nas zonas de sombra do passado.
Hernando Pizarro passou vinte anos encarcerado na Espanha. De sua prisão, no castelo de La Mota, em Medina dei Campo, ele administrou com atenção e tenacidade a imensa e inútil fortuna do "clã" Pizarro, graças a seu casamento com a filha de seu irmão Francisco. Libertado em 1561, construiu um palácio em sua Trujilo natal, onde veio a falecer, quase cego, em 1578, com a idade extremamente respeitável, para a época, de setenta e um anos!
Fiel a seus costumes, Gonzalo Pizarro jamais recuou diante de suas ambições e a vida pareceu querer recompensá-lo por isso. Em 1544, ele se fez proclamar Governador do Peru, em rebelião aberta contra a Coroa da Espanha. Durante quatro anos, semeou terror entre seus opositores, especialmente por intermédio do braço armado de seu tenente Francisco de Carbajal, apelidado "o Demônio dos Andes ". Em 1548, finalmente foi vencido pelas forças reais e decapitado no campo de batalha.
Os sucessores de Manco resistiram ainda em Vilcabamba até 1572, ao longo de sucessivos episódios de guerrilhas e negociações de paz. Nesse último ano, o jovem Tupac Amaru, o último Sapa Inca legítimo, foi capturado em seu refúgio na floresta, transferido para Cuzco e decapitado na praça de Armas da antza capital do Império Inca, por ordem do vice-rei Francisco de Toledo.
Sua cabeça, pregada ao pelourinho, longe de se decompor, se embeleza a cada dia e torna-se objeto de crescente veneração. Ainda nos dias atuais, o mito prevê o retorno do Inca, no dia em que a cabeça reencontrar seu corpo mutilado.
O melhor da literatura para todos os gostos e idades