Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A LUZ E AS TREVAS
Segunda Parte
Capítulo XXII
Arsène estava impressionado com a tristeza e a indignação que sentia. Nunca desgostara do irmão. Sentira apenas indiferença por ele e, no máximo, irritação. Nunca lhe passara pela cabeça que Louis fosse vítima de incertezas. O medo não se coadunava com aquele espírito frio e sombrio. Agora, que percebia que o irmão era vulnerável, triste e solitário, sentia-se tomado de compaixão. Impetuoso e ardente, o seu primeiro impulso era ir procurar o irmão e oferecer-lhe consolo, tentar uma aproximação. Isso ainda o espantava mais. Não conseguia entender as próprias emoções ou o motivo que o levava a olhar para os outros com mais sensibilidade.
Sua consciência do mundo, que antes lhe parecera apenas um sonho multicolorido, cheio de alegria e aventura, era agora tão aguda, que chegava a ser dolorosa. Os homens já não eram amigos, ou inimigos, seres a ser amados, ou odiados e exterminados. Eram criaturas cujas personalidades se projetavam na sua, afetando-a com os seus desesperos e as suas angústias individuais. Eram novas percepções, para ele, novas sutilezas, como pequenas feridas, ameaçando abrir-se numa agonia impessoal pelos outros. Sentia-se cheio de uma imensa excitação, de uma inquietação perturbadora, que um homem mais sofisticado ou inteligente teria reconhecido, ou com a qual se teria sentido familiarizado, como alguns homens se sentem familiarizados com velhas dores.
As circunstâncias da sua vida particular tinham passado a um segundo plano. Embora faltasse menos de uma semana para o seu casamento com Clarisse de Tremblant, ela lhe aparecia apenas como uma bela inconsequência, em seus sonhos. Deliciava-se com o lindo rosto e a perfeita silhueta da noiva, mas ela não tinha lugar nos seus pensamentos. Havia dias em que se esquecia inteiramente dela.
O esquecimento assaltava-o com frequência, ultimamente, e os amigos, ofendidos, olhavam-no com frieza, ou fingiam ignorá-lo, quando se encontravam, fazendo com que ele se perguntasse: Que jantar ou festá terei esquecido? A princípio, isso o preocupava, e ele procurava lutar contra os novos pensamentos, que o tinham invadido como um exército estranho e silencioso. Depois, tornara-se indiferente. A única coisa que lhe importava era compreender.
Na véspera do dia em que encontrara Louis nos aposentos do pai, voltara à casa de Paul de Vitry. Paul recebera-o com o afeto de sempre, apertara-lhe calorosamente a mão e fitara-o com os seus radiosos olhos cinzentos, nos quais havia apenas amor e ternura.
Mas Arsène sentira-se irritado. Paul tinha uma visita, um homem de meia-idade, alto e forte de corpo, austeramente vestido e com os cabelos curtos, o bigode e o cavanhaque grisalhos. O rosto era largo e vermelho, com um par de olhinhos brilhantes e azuis como duas pontas de espadas, e lábios carnudos e vermelhos. Ao ser apresentado a Arsène, falara numa voz gutural, embora o «eu francês fosse perfeito. As pontas de espada dos seus olhos tinham penetrado Arsène com franqueza e simplicidade.
Tratava-se do Conde Derek Van Tets, um protestante holandês que vivia temporariamente em Paris. Dentro de um dia ou dois, viajaria para a Inglaterra, levando uma mensagem' para o Parlamento Britânico. Grande proprietário de terras na Holanda, suas propriedades tinham sido invadidas pelos espanhóis de Felipe II. Contara isso em poucas palavras, mas, ao fazê-lo, empalidecera e os seus olhos tinham-se iluminado.
— Amo o meu povo — dissera, calmamente. — Vi o que os católicos fizeram com ele. Mas os holandeses não se deixaram abater. A vez deles chegará.
Ao dizer isso, cerrara os punhos e olhara para Arsène com uma expressão assustadora.
Paul colocara a mão no ombro do conde e dissera a Arsène:
— Estávamos de partida para o hôtel de Rohan. Monsieur le Comte Van Tets tem um recado para de Rohan. Sabemos que o Duque de Bouillon e o Duque de Tremblant também estão à nossa espera. Quem sabe você gostaria de vir conosco?
Arsène aceitara, ansioso, percebendo que havia algo de muito importante no ar. Havia também algo, na simplicidade e na força do holandês, que lhe inspirava respeito e simpatia. Antes, ele detestara todos os estrangeiros, demonstrando desprezo ou animosidade por eles. Agora, compreendia que os homens são todos iguais, em substância.
Foram a pé até a residncía parisiense do Duque de Rohan, no número 8 da Place Royale. A casa estava bem guardada, pois de Rohan não confiava em ninguém. Era evidente que Paul fora reconhecido pelo comandante da guarda, que, não obstante, fingira ignorância e desconfiança, a fim de mostrar a sua autoridade. Arsène levara impulsivamente a mão à espada, mas Paul sorrira pacientemente e dirigira-se ao comandante pelo primeiro nome. O militar servira também ao Marquês de Vaubon e conhecia Arsène desde garoto, mas fingira suspeitar também dele, mordendo o lábio e franzindo as sobrancelhas. Arsène não pudera conter o riso diante daquilo.
— Ah! — exclamara ele. — Não precisa fingir que não me
reconhece, Grimaud! Isso não o absolverá de me estar devendo cinquenta libras!
O comandante enrubescera e fizera uma profunda reverência.
— Perdoai-me se não estou à altura dos meus deveres, Monsieur de Richepin! — dissera ele.
— Até que você está melhorando — retrucara Arsène, bem- humorado. — Lembro-me de que você e seus homens beberam tanto, numa noite de Natal, que os ladrões entraram no hôtel de Vaubon e carregaram tudo o que puderam.
Encontraram o Duque de Rohan e seus amigos esperando por eles na grande biblioteca, cheia de livros que o pai do duque colecionara durante anos e anos. Já o duque era completamente indiferente à leitura e, sentado no meio de tantos livros, parecia ainda mais grosseiro. A luz difusa dos grandes candelabros de pés de bronze misturava-se com as grandes toras em brasa, que ardiam, à luz crepuscular, na enorme lareira de mármore preto. Os retratos dos antepassados do duque pendiam das paredes forradas de lambris, e os seus rostos severos pareciam mais pálidos e espectrais à luz das velas. Os cortinados vermelhos cobriam as janelas, e havia na atmosfera uma tensão que não escapava aos três recém-chegados. Não obstante, o Duque de Bouillon sentava-se negligentemente no seu cadeirão dourado, perto da lareira, como sempre distinto, bebendo lentamente vinho num cálice dourado. O Duque de Tremblant estava andando de um lado para o outro da sala e, quando Paul e os amigos entraram, voltara-se e sorrira para eles com ar preocupado. Colocara o cálice sobre uma comprida mesa de carvalho esculpido e avançara para eles. Apertou a mão de Arsène, sempre sorrindo, como se estivesse surpreso com a presença do jovem. O olhar que deitou a Paul foi de profundo afeto, e saudou Van Tets com afável cortesia.
Como sempre, de Rohan cumprimentou os três com grandes brados.
— Como está o nosso caro marquês? — perguntou a Arsène, arqueando uma sobrancelha ruiva. — Perdi quinhentas coroas para ele, ontem à noite, nas mesas de jogo.
— E eu perdi mil — observou de Bouillon, com o seu sorriso gélido.
Virou-se ligeiramente para Paul e fez uma reverência.
— Conheci bem seu pai, monsieur. Se o filho for a metade do espadachim que ele era e tão gentil-homem quanto ele, será uma pessoa extraordinária.
A presença de Paul desanuviara imediatamente a atmosfera reinante. Seu olhar era tão gentil, suas maneiras tão francas e simples, o seu sorriso tão aberto que sempre tinha o dom de levar paz e
tranquilidade aonde quer que fosse. De Tremblant, que o amava como se fosse seu filho, mal podia tirar os olhos dele, e a preocupação estampada no seu rosto quase desapareceu.
— Messieurs — disse Paul, olhando de um para o outro —, quando pedi para trazer aqui o Conde Van Tets, foi para que vocês pudessem ouvir, dos seus próprios lábios, o que aconteceu na Holanda e o que podemos esperar, caso haja outra perseguição aos hu- guenotes, na França.
— Contaram-me — interrompeu de Rohan, com um riso las- civo — que Sua Eminência recentemente visitou, por várias vezes, uma certa dama, no maior dos segredos. Dizem que ele saiu dos aposentos dela ao amanhecer, faz dois dias, levando consigo uma fita semeada de pérolas, que antes se aninhava numa parte muito íntima do corpo da citada dama.
Paul comprimiu os lábios, repugnado, e, embora ficasse alarmado, desviou os olhos e disse:
— Nunca dou ouvidos a boatos desses.
De Rohan assentiu com a cabeça.
— Pode ter a certeza, monsieur, de que eu não sou mexeri- queiro. Quem me contou isso é digno de todo crédito.
— Pago com o seu dinheiro — acrescentou de Bouillon.
Mas de Rohan não se deu por achado.
— É verdade — respondeu. — Sem dúvida percebem que a deliciosa sedução de Sua Eminência coloca-nos numa situação muito grave. Até aqui, ele sempre esteve entre nós e os Habsburgo e a espanhola. Agora, cativo do leito dessa dama, está surdo a todos os perigos que ameaçam a França. . . e a nossa causa.
De Bouillon revirou a haste do cálice nos dedos elegantes, pensando em Sedan e nas suas ambições. Seus lábios finos e duros formavam uma curva secreta e implacável. Pouco dado a conversas, exceto quando tinha algo a esconder, ouviu atentamente o que os outros diziam.
De Tremblant falou, num tom preocupado e refletido:
— Se isso for verdade, e tenho a certeza de que Monsieur lç Duc não nos rdiria nada se tivesse a menor dúvida a respeito — acrescentou, fazendo uma reverência a de Rohan —, corremos realmente um grave risco. Conhecemos o ódio dessa. . . certa dama. . , e sabemos que, se o Duque de Richelieu for seduzido por ela, estaremos perdidos. La Rochelle será atacada. O Edito de Nantes será revogado. Os huguenotes serão destruídos, ou exilados, em toda a França. Não tardará que a guerra civil irrompa entre nós. Ficaremos então, à mercê da Inglaterra e das Alemanhas, e seremos invadidos pelos Habsburgo, a pretexto de uma aliança conosco contra os hereges. Isso será o fim da França.
De Bouillon deitou-lhe um olhar frio e cauteloso.
— Mesmo que La Rochelle seja atacada e caia, isso não significa que todos nós estejamos perdidos — disse ele, pensativo.
Voltou a pensar em Sedan e no estado renano, que não lhe saíam da cabeça, e disse para si mesmo que, se o pior acontecesse, ele poderia entrar num acordo com o Cardeabn
De Tremblant, com a sua capacidade de adivinhar o que se passava na mente dos outros, voltou-se para de Bouillon e exclamou, com voz trêmula;
— Monsieur, não acredite, nem por um instante, que haja um canto qualquer da França seguro, se La Rochelle cair. Não haverá anistia para os traidores, nem da parte do inimigo, nem dos seus antigos amigos.
De Bouillon olhou para ele com a sua máscara fria, que nada deixava entrever. De Tremblant prosseguiu:
— Existem certas pessoas que, por motivos pessoais, levadas pela ambição e por desígnios egoístas, não se importariam de trair a França. Essas pessoas não são francesas, apenas maus homens, que acabam destruídos por um destino inexorável. A história é uma prova disso. Infelizmente, muitos inocentes morrem antes que eles sejam castigados. Daí aprendermos que o traidor deva ser sempre o primeiro que o patriota precisa destruir. Podem ter a certeza, mes- sieurs — e virou-se para os outros, com expressão emocionada —, que eu sempre fui a favor da paz, mas que considerarei meu dever, como francês, matar o traidor com a minha própria mão.
De Rohan riu alto e bateu no ombro do outro.
— Que extravagância! — exclamou. — Não há traidores aqui, meu amigo. Ou algum de nós será suspeito?
Mas de Tremblant não sorriu. Estava por demais abalado para
isso.
— Não suspeito de ninguém pelo que os outros me digam, mas quando eu próprio descubro motivos para tal.
. Uma breve expressão de desprezo brilhou nos olhos frios do Duque de Bouillon, mas ele não mexeu nem um dedo. O Conde Van Tets ouvira tudo colti a maior atenção, e o seu olhar pousou em cada homem separadamente.
Paul, que sentira um clima de ameaça na sala, ficou muito preocupado. Olhou em volta e disse:
— Estou certo de que nenhum de nós tem. um amor maís forte ou um compromisso maior do que para com a França. Confio, messieurs, em que me dêem ouvidos e, depois de mim, ao nosso distinto visitante. É preciso que eu fale primeiro — acrescentou, com um olhar de desculpas ao holandês — porque ele confirmará o que eu vou dizer.
Arsène estivera andando de um lado para o outro, examinando os livros com os olhos críticos do seu recém-descoberto interesse. Voltou para junto dos demais e sentou-se perto da lareira.
Paul ficou alguns momentos calado antes de começar a falar. Enquanto concatenava mentalmente as palavras que ia dizer, deitou à assembleia um olhar desesperado, como se implorando que acreditassem na sua sinceridade, na sua apaixonada convicção. Não havia ninguém, em toda Paris, que, conhecendo o jovem conde, fosse capaz de odiá-lo, pois logo se reconhecia nele um espírito sem crueldade ou maldade, cheio de boa vontade, gentileza, bondade e compaixão. Nem mesmo de Bouillon conseguia desprezá-lo. Reverenciava os homens de poder e, embora o poder de Paul lhe fosse estranho e suspeito, continuava a admirá-lo. Mais do que isso, aquele coração desumano sentia-se misteriosamente tocado por ele.
Começou a falar, com voz urgente, mas suave, sobrecarregada de paixão. Suas mãos se ergueram a meio, ao olhar separadamente para cada um dos presentes:
— Já se disse que o protestantismo é o herdeiro de todos os homens de boa vontade através dos tempos. Dos homens de coração, sensibilidade e piedade, dos homens que formularam a doutrina revolucionária de que todos somos irmãos e iguais perante Deus. Baseados nessa premissa, declararam que todos os homens deveriam ser iguais perante os outros homens, e não oprimidos, nem injustamente castigados, nem tratados sem piedade, nem aniquilados pelo capricho dos tiranos. Declararam que os pensamentos e as palavras de um homem devem ser respeitados, que não devem ser impedidos de ir e vir livremente, que o seu ler é inviolável e que os frutos da terra não lhe serão confiscados quando ele os tiver ganho pelo seu trabalho e pela sua coragem. São coisas simples, verdades fundamentais, que foram expressas por espíritos superiores no Egito, em Israel, na Grécia e em Roma, ditas por Erasmo, Lutero e seus seguidores. Mas apenas uns poucos acreditaram nelas.
Fez uma pausa. O rosto comprido e feio de de Tremblant estava profundamente emocionado. De Rohan olhava, boquiaberto e pestanejando. O holandês, sentado perto do fogo, inclinara a cabeça, e a mão escondia-lhe parcialmente o rosto. Arsène, de pé ao lado do amigo, sentiu o coração dilatar-se misteriosamente, numa crescente excitação. Mas de Bouillon limitou-se a escutar com uma expressão de contido desdém, as pontas dos dedos tocando a boca rígida.
Paul prosseguiu, numa voz mais rápida:
— A Igreja Católica Romana professou esposar esses princí
pios de fraternidade, justiça, misericórdia e compaixão. Proclamou acreditar na igualdade dos homens, ensinada por Jesus.
— Não obstante, sem qualquer piedade, mas com ódio, crueldade, perseguições e opressão, os seus atos negaram as suas intenções. Isso aconteceu desde que ela ascendeu ao poder. Foi o poder que a corrompeu. Enquanto os seus porta-vozes proclamám as mais nobres verdades, ps padres, seus agentes, colocam-se contra os indefesos e os oprimidos, contra os pensadores e os libertadores. Porque eles sabem que, se a humanidade despertar, a Igreja ficará sem o poder que conseguiu, graças aos serviços que tem prestado aos tiranos e aos assassinos, aos ricos e aos poderosos.
— A Igreja colocou-se contra o esclarecimento dos povos. Certa vez, o Duque de Richelieu me disse: “Eu diria que a maior calamidade que se abateu sobre a Europa, nestes últimos quinhentos anos, não foi Lutero, e sim a invenção da imprensa. Nunca poderemos perdoar isso aos alemães”. Essa franqueza não é exclusiva dele. A Igreja tem frequentemente expressado a sua oposição ao esclarecimento dos homens, por acreditar que o acesso às ideias dás idades de ouro levará os homens a pensar. Sempre foi contra os pensadores, contra os filósofos, porque eles despertam nos outros homens a consciência da sua dignidade perante Deus e os homens, suscitando pensamentos de ira e indignação contra os opressores.
— A Igreja declara que Deus decretou a condição de cada homem e que quem nasce humilde e indefeso tem que permanecer assim e não se revoltar contra os seus amos. Isso é excelente para os patrões, aos quais a Igreja serve. A Igreja decretou a pobreza e a ignorância, a obediência e a humildade para a enorme massa dos miseráveis, e a caridade, a piedade e o poder para os ricos e afortunados. Ofendeu, assim, a grande maioria das pessoas, relegando-as ao nível de animais inferiores, e exaltando os que tiveram a sorte de herdar poder e privilégios. Através dessa doutrina e do serviço prestado aos grandes, obteve poderio para si mesma.
A sua voz, urgente e apaixonada, arrostava os que o ouviam, embora a três deles, pelo menos, as suas palavras parecessem revolucionárias e surpreendentes. Mas de Tremblant, com um sorriso trêmulo, inclinou-se para a frente, a fim de ouvir melhor. O rosto do jovem conde irradiava todo o fervor do seu espírito altruísta. Seus olhos ardiam e reluziam à luz do fogo e das velas, como se iluminados por um vulcão dentro dele.
— No início — continuou — o protestantismo colocou-se contra a injustiça e a opressão da Igreja e daqueles a quem ela servia. Colocou-se contra a ignorância que a Igreja sempre advogou para a multidão anônima e desesperada. Erasmo escreveu sobre isso. Lutero, com a sua voz poderosa, proclamou essas coisas para todos os
homens. No início, o protestantismo representou a libertação da humanidade dos grilhões e do açoite de séculos de domínio por parte da Igreja. Acendeu uma lâmpada que permanecera apagada durante centenas de anos, e mostrou a miséria e os tormentos que a Igreja infligira aos destituídos de voz e aos deserdados.
— Deus deu a Sua bênção à revolução espiritual do protestantismo. Pela primeira vez em séculos, o povo se endireitou e contemplou, ofuscado, a luz da libertação. Uma nova aurora surgia. Pela primeira vez na história da humanidade, o protestantismo tornava universalmente reais os ideais da fraternidade, da liberdade e da igualdade. Prometia sustentar esses ideais, projetá-los na história como uma força poderosa e revitalizante, livre e transmissora de vida. A Igreja temeu-o e odiou-o, por saber que o protestantismo era a trompa que despertaria os homens da inércia em que a opressão e o desespero os haviam lançado.
Nenhum dos presentes sé mexeu, enquanto ele falava. O rosto de de Bouillon tornara-se tão pálido, que mais parecia o contorno de um fantasma, Mas, por estranho que parecesse, o rosto de de Rohan, forte, grosseiro e brutal, tornara-se refinado e ansioso, como se aquela alma terra-a-terra tivesse sido tocada por uma primavera mística. Havia como que vergonha nos seus olhos vividos. Pensou consigo mesmo: Era assim que o meu pai falava e eu já tinha esquecido!
Mas o rosto de Paul ensombrecera de sofrimento e angústia. Ergueu as mãos e deixou-as cair.
— Nestes últimos cem anos, porém, a aurora transformou-se de novo em noite. O grito de libertação calou-se. O protestantismo serviu de pretexto aos grandes senhores para expulsar a Igreja de grandes áreas de terra e de vedar-lhes o acesso a riquezas fabulosas, que para si mesmos cobiçavam. É preciso confessar que, até certo ponto, a Igreja evitara que os príncipes detivessem muito poder pessoal. Agora, os príncipes queriam desforrar-se. De nada lhes importava a libertação dos seus povos, o esclarecimento da alma humana, os princípios de liberdade, igualdade e fraternidade. O protestantismo era a trombeta que os conclamava a revoltar-se contra as restrições de uma Igreja que lhes negava o poder que ela própria desejava deter. O sonho terminara. O homem foi de novo compelido a aguardar nm novo dia de libertação. Entre a pedra superior da Igreja e a pedra inferior dos príncipes protestantes, o povo viu- se de novo esmagado. Mas o frio e estéril protestantismo dos príncipes não tinha calor, não prometia esperança ou vitalidade a esse povo.
Ergueu de novo a mão e exclamou, numa voz forte e impetuosa:
— Devemos colocar-nos contra a sede de poder da Igreja, contra a sua traição aos oprimidos e aos indefesos, e contra a traição, a cobiça, o cinismo e as manobras políticas dos nobres protestantes! Ambos são inimigos da liberdade, da justiça, da paz e da dignidade dos homens. Nenhum expressa uma verdadeira religião, a consciência da relação existente entre Deus e os homens. Roma deseja apenas a escravidão, e a cegueira do povo, para melhor poder submetê- lo, e o protestantismo deseja manter esse povo num estado de ódio, a fim de poder alcançar da Igreja vantagens políticas!
— Devemos nos erguer, com firmeza e paixão, contra essas duas infâmias. De outra maneira, a causa do homem contra os seus opressores estará para sempre perdida. Foi por isso que vim até aqui esta noite, para pedir-lhes ajuda. É preciso esquecer as ambições políticas, o apego aos próprios privilégios. É preciso ressuscitar o velho espírito protestante, para o bem de toda a humanidade. É preciso dedicar-se à libertação do mundo, à liberdade, à justiça e à misericórdia!
Calou-se, abruptamente, mas o seu rosto, os seus olhos, os seus lábios trêmulos e as suas mãos estendidas eram mais eloquentes do que as suas palavras. De Tremblant avançou para ele, passou-lhe o braço pelos ombros e encarou os outros.
— Se não fizermos isso, com dedicação e coragem — disse ele —, a França estará perdida.
— Mas não só a França — prosseguiu Paul. — A causa do protestantismo estará perdida para o mundo se formos remissos, se sucumbirmos à traição que existe no fundo dos nossos corações. O protestantismo tem seguido um curso sinuoso na Inglaterra, mas, graças aos esforços de alguns dos seus filhos mais dignos, está começando a dar ótimos frutos, a despertar a consciência dos ingleses.
De Bouillon estremeceu, ao ouvir aquilo, e fixou em Paul os seus olhos velados, como que especulando e refletindo.
— Acredita realmente, monsieur, que a Inglaterra esteja generosamente preocupada com a segurança do protestantismo na França?
— Acredito — replicou Paul. — Acredito que Buckingham nos ajudará, se formos atacados pelo Cardeal ou pelos Habsburgo.
— Não obstante disse de Bouillon, pensativo — ouvi dizer que uma certa dama fez Buckingham prometer que não mandaria socorros aos rochelenses, em caso de rebelião.
Paul empalideceu e os seus olhos faiscaram, alarmadoS.
— Tem a certeza disso, Monsieur le Duc?
De Bouillon deu de ombros.
— Não costumo repetir boatos.
Paul ficou calado e olhou desesperadamente de um rosto para o outro.
De Rohan disse lentamente:
— Mas existe uma maneira, messieurs. Por exemplo, se ficasse patente que essa. . . certa dama. . . trairia o seu novo admirador, Buckingham poderia não sobreviver o tempo suficiente para manter a sua infame promessa.
Fez-se um profundo silêncio na sala. De Rohan olhou para todos os presentes com ar cínico e um brilho triunfante nos olhos avermelhados.
Paul continuava pálido.
— Não sou a favor de assassinatos, mesmo em se tratando de um traidor — murmurou ele.
De Rohan trocou um olhar divertido com de Bouillon.
— Ah, mas que santo que esse nósso jovem é! Monsieur, não acha que os homens violentos devem ser tratados com violência?
— É um visionário — disse de Bouillon, deitando a Paul um sorriso cínico. — Monsieur, é verdade que libertou os seus camponeses, tornou-os co-proprietários das suas terras e que eles só lhe entregam uma pequena parte do que cultivam?
— Sim, é verdade — respondeu Paul.
— E acha que nós deveríamos seguir-lhe o exemplo?
— Naturalmente — disse Paul, olhando firme para os demais. — Tenho mais do que o suficiente para um homem. Os meus homens trabalham nas minhas propriedades, de modo que, perante Deus, a maior parte dos frutos que a terra produz lhes pertence de justiça. Não preciso mais do que tenho. Nenhum homem deveria ter mais do que precisa.
— Filosofia revolucionária — murmurou de Bouillon e riu de leve. — Mas lhe garanto, monsieur, que a sua extraordinária generosidade não se repetirá universalmente.
— Contudo, esse procedimento foi advogado pelos mais no- bres dentre os líderes protestantes — disse Paul.
De Bouillon deu de ombros. Continuava a sorrir, mas olhou para Paul com aquele ar de sinistra meditação que os seus inimigos conheciam de sobra.
— Nunca ouvi tanta loucura! — exclamou, por fim. — O que resultará de tudo isso? Será que monsieur acredita que pode ensinar o gado a andar como gente e a falar numa linguagem humana?
De Tremblant interrompeu, com um sorriso triste:
— Monsieur de Vitry acredita que os homens possam ser educados acima dos seus instintos. Eu não creio inteiramente nisso. Como se pode impor razão à emoção natural, ou aos preconceitos
que se originam das emoções? Numa crise, o instinto e a emoção acabarão suplantando a educação e a razão.
— Não obstante, partilho até certo ponto das convicções de Monsieur de Vitry. Não creio que a liberdade e o esclarecimento possam elevar todos os homens acima da sua estatura original. Mas acredito que o ar de liberdade e esclarecimento faça jlorescer alguma alma rara, algum espírito de valor para o mundo, e que atualmente esteja inevitavelmente perdido. Esse espírito raro tem que ser salvo, selecionado, alimentado para o bem de todos nós, para o bem da França. O preço que temos de pagar é pequeno, se comparado com o objetivo em vista.
— Não entendo essas sutilezas — disse de Rohan, impaciente. — Só sei que o protestantismo não pode acabar na França e que vou defender a minha gente até à morte. Isso é tudo o que posso prometer. Sou um homem de ação e não úm jesuíta, cheio de belas frases de sentido obscuro.
— A sua promessa é mais do que suficiente — garantiu-lhe Paul, com um sorriso bondoso.
— Não acredito que Monsieur le Comte fale sério! — exclamou de Bouillon. — Vamos ser realistas. Embora eu seja hugue- note, sou cego aos resultados obtidos na Inglaterra. A Reforma, na Inglaterra, provocou a ascensão de uma espécie grosseira, que está criando uma desprezível classe intermediária de comerciantes e artesãos, um clima no qual a tradição aristocrática, que mantém um bastião inatacável entre a ralé e as classes superiores, acabará por morrer.
Deitou aos outros um olhar bem-humorado.
— Vamos refletir. Pertencemos à aristocracia. Não podemos permitir que alucinações de visionários ponham em risco os nossos privilégios, os direitos que nos cabem por sangue e berço. É uma pena que o protestantismo pareça dar origem a uma degradada classe média, onde quer que floresça. Não podemos permitir isso, por mais fervorosas que sejam as nossas convicções de huguenotes.
De Tremblant olhou para ele, o seu longo e comprido semblante convulsionado de ira e desprezo.
— Monsieur le Duc — disse, com frieza e deliberação — parece ligar menos para o protestantismo do que para as suas ambições. Se o que digo for uma ofensa para ele, cabe-lhe exigir uma reparação. — E levou a mão ao cabo da sua espada. — Mas desde já o previno de que não dou a menor importância aos privilégios conferidos por nascimento, nem aos que se vangloriam deles. Tudo o que tenho, na minha pessoa, nas minhas terras, no meu poder, está à disposição de Monsieur le Comte "de Vitry. Devo dizer, tam
bém, que não sou adversário que se despreze e que nunca me desvio do curso que me proponho seguir.
Acrescentou, pondo a mão no braço de Paul, mas olhando para de Bouillon:
— Há extremos no idealismo deste jovem. Mas não se livram ou vencem batalhas senão com gestos extremados. Se tudo aquilo que consideramos como nossos direitos e nossos nobres privilégios tiver que ser destruído para salvar o protestantismo na França e no mundo, que o seja.
De Bouillon empalidecera mortalmente, ao ouvir aquelas palavras tão corajosas. Não respondeu, mas olhou para de Tremblant com uma expressão turva e perigosa. Os outros tinham assistido a tudo com apreensão, pensando que de Bouillon iria se ofender. Mas o duque permaneceu imóvel na sua cadeira, deitando a de Tremblant um olhar quedo, de serpente.
Paul quebrou o silêncio. Ainda estava pálido e começou a tremer.
— Peço-lhes que acreditem que não ambiciono poderes extremos para o protestantismo. Nenhum poder desproporcionado ou arbitrário, seja ele secular ou religioso, pode existir no mundo sem pôr em perigo a liberdade e as vidas de todos os homens. Mas creio que no protestantismo esteja a esperança do mundo moderno, presente e futuro, desde que ele conserve a nobreza e o desinteresse originais. Foi a proclamação da liberdade para toda a humanidade. Não nos esqueçamos disso e não nos deixemos levar por desejos egoístas e interesses políticos.
A atmosfera pesada que reinava na sala aliviara-se um pouco, mas de Bouillon continuou a olhar para de Tremblant com ar ameaçador. Paul voltou-se nervosamente para o Conde Van Tets.
— Fale, Monsieur le Comte — pediu ele. — Diga a estes cavalheiros o que aconteceu na Holanda.
Todos haviam esquecido o holandês, mas, quando ele se levantou, desajeitadamente, voltaram-se cortesmente para olhá-lo. Ele ficou de pé, diante dos outros, encabulado e simples.
— Messieurs, o Conde de Vitry expressou o que eu penso, o que pensam todos os holandeses. Sei que ele não fala intempestivamente. Foi por isso que vim aqui implorar-lhes ajuda para os meus patrícios, pedir-lhes compaixão e simpatia.
— Minhas palavras não podem dar a medida exata do horror, do morticínio e do desespero, que afligem o meu país sob a espada e o fogo de Sua Majestade espanhola e católica, que parece inspirada por toda a maldade da sua Igreja, por toda a crueldade e a impiedade dos seus sacerdotes. Na natureza dos meus compatriotas há a paixão da liberdade, da independência de pensamento e de
ação. A Igreja Romana detesta isso, por ver nessas características um desafio e uma ameaça à condição de servidão e docilidade que sempre recomendou como virtudes do povo. Sempre e eternamente, a Igreja, a serviço dos poderosos e dos opressores, deve-se opor aos pensamentos e às ações dos homens livres, deve-se colocar contra a libertação das massas. Em nenhum outro país da Europa deparou com uma tão nobre resistência e um tal altruísmo quanto nos Paí- ses-Baixos. Por conseguinte, determinou acabar conosco, acreditando que com isso terá exterminado a consciência que começava a despertar na Europa.
De repente, o rosto fleugmático do holandês se iluminara. Estendeu as mãos trêmulas para cada homem por sua vez.
— Messieurs! Na história de todos os povos chéga sempre uma hora em que os irmãos imploram a outros irmãos, do outro lado da fronteira ou do outro lado do mar: “Ajudem-nos, ou pereceremos e vocês conosco!” Essa hora chegou para a Inglaterra, para a França! Nós, holandeses, imploramos a vocês, que sentiram o sol da Reforma nos seus rostos e voltaram os olhos para o futuro em liberdade! Será possível que os franceses nos dêem as costas? Que, levados pelos interesses, pela cobiça, pelos ódios internos, pela covardia, vocês façam ouvidos moucos ao que lhes pedimos?
Olhou para eles com ar apaixonado.
— Se fizerem isso, monsieurs, será o seu fim, e o de todos os franceses. Não pensem que se vão salvar. Vão morrer conosco. Deixem-me dizer-lhes, meus senhores, o que aconteceu na Holanda, nos lugares em que a Igreja, com a ajuda do seu diabólico filho, conseguiu dominar.
Por um momento não pôde falar, mas os seus olhos, mais inflamados do que nunca, brilhavam, como chamas, à luz das velas. A força da sua paixão, do seu desespero, impressionava os presentes, e um ou dois, pelo menos, sentiu medo e vergonha.
O holandês continuou, em voz mais baixa, mas tão carregada de emoção que parecia ainda mais forte e poderosa do que antes:
— Peço-lhes que contemplem o meu pobre país.
A voz tremeu-lhe por um momento, mas logo ele prosseguiu:
— Vivíamos em paz. Nossos burgueses, nossos prefeitos, nosso governo, todos fizeram pouco caso dos avisos dos que não se deixavam cegar pela complacência e por uma noção de falsa segurança. Sabemos o ódio que a Igreja vota a todos os que se libertam dela. Vimos os seus olhos brilhar, macabros, através das nossas fronteiras, através das noites em que dormíamos sossegados e dos nossos dias, tranquilos e inofensivos. Mâs não conseguimos despertar aqueles em cujas mãos estava a segurança da Holanda. É próprio dos homens preferir acreditar no agradável e odiar òs que tentam
despertá-los para o desagradável, por mais iminente que ele seja. E Roma nos atacou, após muitos anos de silêncio e traição.
Apertou as mãos, e um olhar de horror se espalhou pelas suas feições vermelhas e rudes, ao mesmo tempo em que fitava o espaço, como se o que visse lhe dilacerasse a alma.
— Messieurs, assisti a um ato-de-fé, no sul da Holanda. Assisti à ressurreição do Santo Ofício. Vi homens, mulheres, criancinhas, donzelas e jovens serem arrastados para a fogueira; enquanto os padres cantavam, com expressão de ódio nas caras monstruosas. Vi as janelas fechadas dos que esperavam o terror na noite. Senti o pavoroso cheiro de carne queimada, enquanto os inocentes morriam. Vi os camponeses serem presos nas suas choupanas, e os senhores nos seus castelos. Vi as terras por cultivar, as crianças passando fome, a angústia dos fiéis. ’
Fez nova pausa e começou a chorar, limpando as lágrimas nas costas da mão enorme, com simplicidade e desespero.
— Messieurs, os senhores disseram para si mesmos: “Isso não voltará à França”. Ouvi ingleses dizerem, com lábios pálidos e severos: “Isso não voltará à Inglaterra”. Ouvi as vozes de homens libertados, em todas as partes da Europa, gritar: “Isso não voltará a acontecer conosco!” Mas, senhores, eu lhes digo, nesta hora solene, que isso voltará a acontecer com todos os homens, se não acordarem para o perigo que correm, para o horror da Peste Escarlate, que reside nas Sete Colinas de Roma, sempre alerta, sempre espumando ódio. Porque, onde quer que um tirano se erga, um louco que odeie os outros homens, um espoliador, um destruidor, um monstro sedento de poder, um diabo saído das profundezas do inferno, sempre terá a Igreja a respaldá-lo, com os seus tentáculos, com todos os recursos do seu povo cego e miserável, com todas as armas dos seus príncipes subornados, dos seus reis chantageados, com toda a sua riqueza sem limites.
Olhou para as caras dos que o ouviam, à luz das velas. Viu o semblante severo de de Rohan, os olhos comovidos de de Tremblant, as lágrimas de Paul de Vitry, os lábios enfurecidos de Arsène de Richepin. Acima de tudo viu, com apreensão, o sorriso frio de de Bouillon. E voltou-se para ele com uma exclamação apaixonada:
— Monsieur le Duc! O senhor me ouviu com ceticismo. Para si mesmo disse: “Este homem fala com exagero febril, com uma veemência ridícula. Somos pessoas civilizadas. O espectro de Roma, que este holandês tenta conjurar, não passa da expressão histérica de uma natureza desvairada e fora de si”. Mas permita-me recordar-lhe que a própria Igreja se jacta de nunca mudar, de ser sempre a mesma, ontem, hoje e amanhã. A mesma, monsieur, em tòda
a sua crueldade e ânsia de poder e riqueza. Acha que ela mente, monsieur? Ah, ela só mente para conquistar a confiança dos homens, para invadir-lhes os países sob a máscara da santidade e da doçura!
Estendeu as mãos para todos eles.
— Ajudem-nos, senhores! Dêem ajuda e conforto-aos seus irmãos, sejam eles holandeses, ingleses, espanhóis ou alemães! Lembrem-se de que são protestantes, e não apenas franceses. Lembrem- se de que, se o sol da Reforma for extinto na Europa, mil anos de trevas voltarão a cair sobre a humanidade. Lembrem-se dos seus filhos, da sua fé, da sua hombridade, da sua liberdade. Todas essas coisas correm perigo, no momento!
Fez-se um silêncio profundo na biblioteca, enquanto o olhar ardente e súplice de Van Tets se fixava em cada um dos presentes. Todos lhe devolveram o olhar, mas o do Duque de Bouillon era ao mesmo tempo enviesado e tranquilo. Finalmente, cada homem se aproximou do holandês e lhe apertou a mão, emocionado.
De Tremblant disse:
— Monsieur, o meu coração, a minha mão, a minha espada, tudo o que tenho está às suas ordens. Acompanhá-lo-ei à Inglaterra. Buckingham é meu amigo. Pode ter a certeza de que ele lhe dará ouvidos.
— A eterna gratidão dos meus patrícios, monsieur — retrucou Van Tets. — E a França?
— Falo pelos rochelenses — disse de Rohan com voz firme. — Pode ter a certeza de que não trairemos o protestantismo, mesmo à custa das nossas vidas.
E deitou a de Bouillon um olhar desafiante.
De Bouillon tirou do bolso a sua caixa de rapé. Sorria ines- crutavelmente para si mesmo. Aspirou elegantemente o rapé, levando ao rosto o lenço de rendas, para remover restos de pó do cavanhaque. Seus olhos pareciam duas ágatas, brilhando friamente. Olhou para de Tremblant, que esperava, severo, que ele falasse.
— Sem dúvida, meu caro Raoul, você já refletiu na sua impulsiva promessa de acompanhar Monsieur le Gomte à Inglaterra. Nossas relações com a Inglaterra são, no presente momento, e para falar de modo eufemístico, tudo, menos cordiais.
O rosto enrugado de de Tremblant mudou de expressão, literalmente fechou-se, e ele disse, com determinação:
— Monsieur le Duc não receia que a ajuda da Inglaterra à Holanda possa dispersar-lhe a força, no caso de certos cavalheiros desejarem que essa ajuda lhes incremente os próprios interesses?
De Bouillon cofiou, pensativo, o cavanhaque. Por fim, deu de ombros.
— Permita que lhe fale francamente, meu amigo. Monsieur le Comte que me desculpe, se o que eu vou dizer o ofende. Os holandeses alimentam estranhas doutrinas, doutrinas extremamente pe- rigorosas para os franceses, se eles tiverem notícias delas. Doutrina ainda mais perigosas do que as dos violentos ingleses.
— Que doutrinas, monsieur'} — perguntou de Tremblant, sorrindo amargamente, quando de Bouillon fez uma pausa.
— Ah, sim. Doutrinas perigosas porque põem em risco a ordem estabelecida e os privilégios. Incitam o povo a se rebelar contra a autoridade, inspiram estranhos desejos essas perigosas doutrinas de “liberdade”. Que será de nós, os privilegiados, os detentores do poder? Pereceremos num holocausto provocado por asnos. Nossa cultura acabará sob os cascos de suínos. A cultura será sempre das castas superiores. Só pode existir, como uma flor rara, em jardins murados e bem tratados. Como poderemos controlar o povo, se ele for contaminado por ideais revolucionários? Como poderemos reter o poder, as nossas tradições, a nossa autoridade?
— Com a ajuda de Deus, não os reteremos — retrucou calmamente de Tremblant.
— Fala como o Cardeal, esse de Bouillon — disse Arsène para Paul.
De Bouillon fez um gesto elegante.
— Monsieur de Tremblant, não posso concordar com nada que ponha em risco a minha posição. Por conseguinte,-não posso ajudar Monsieur le Comte, na luta do seu povo contra Felipe da Espanha. Ele que trate antes de controlar as doutrinas revolucionárias do seu povo, antes de procurar a ajuda daqueles a quem essas doutrinas ameaçariam. O quê! Ele acredita realmente que pessoas como eu o ajudariam?
— O povo do conde é protestante, como nós — disse de Tremblant, num tom suave, mas ameaçador.
De Bouillon deu novamente de ombros, desdenhoso.
— O que ele é, é revolucionário, monsieur! Repito: Se os holandeses restaurarem a autoridade e o respeito devido às classes superiores e subjugarem os que apregoam a liberdade universal e a igualdade, eu reconsiderarei.
De Tremblant trocou um olhar com os outros. Voltou-se novamente para de Bouillon, que continuava sorrindo.
— Monsieur le Duc falou francamente. Permita-me que eu faça o mesmo. A causa do protestantismo, a causa da humanidade, que os protestantes servem, é ameaçada por pessoas como o senhor. Se Monsieur le Duc se sentir ofendido, pode pedir reparação.
De Bouillon abanou indulgentemente a cabeça.
— Oponho-me apenas às ideias de Monsieur de Tremblant e
não a ele. Confio — e olhou para os outros — em que os cavalheiros aqui presentes não me julguem um covarde.
Os outros encararam-no com hostilidade. Sempre sorrindo, ele fez uma reverência.
— Vejo que já não sou persona grata, devido à minha sinceridade, de maneira que vou me retirar.
Viram-no encaminhar-se, em silêncio, para a porta. Já com a mão na maçaneta, ele parou, fez nova reverência e disse, com ironia:
— Reflitam bem, messieurs. Um homem tem que pensar primeiro no seu país.
Assim que ele se foi, de Rohan irrompeu em exclamações obscenas.
— É uma verdadeira serpente, esse de Bouillon! Mas não desanime, Monsieur Van Tets: nem todos os franceses são como ele! — Voltou-se para de Tremblant. — Enquanto estiverem na Inglaterra, eu tratarei de recrutar os meus rochelenses.
Apertaram-se fervorosamente as mãos.
Capítulo XXIII
Deitado na cama, o Cardeal massageava pensativamente os dedos, levantando-os para uma réstia de sol que entrava pela janela, a fim de lhes admirar a transparência. Mas, apesar dessas delicadas manobras, não tirava os olhos do Duque de Bouillon. Era de manhã bem cedo, mas a mensagem dò duque fora tão urgente que o Cardeal o mandara entrar nos seus aposentos. A pedido do duque, - Louis de Richepin fora mandado sair do quarto, mas ele bem sabia o que tinha a fazer. Sentou-se num tamborete, atrás, da porta que ligava a antecâmara ao quarto de dormir, e ficou a ouvir o que se dizia, embora tivesse vergonha do papel que lhe cabia.
Após um silêncio prolongado, o Cardeal suspirou:
— Oh! —; murmurou, erguendo os olhos e fixando-os languidamente no teto.
Q duque, austeramente vestido, sentou-se perto da cama, com o pálido e comprido rosto, inescrutável, na sombra.
— Dou os parabéns a Monsieur le Duc, tanto pela sua lealdade como pela sua perspicácia — disse o Cardeal. — O assunto é muito grave. Concordo convosco que, se permitirmos que os franceses, recrutados por dois dos mais poderosos senhores da França, sejam etsviados em socorro da Holanda, os Habsburgo e os espanhóis terão um motivo mais do que perfeito para nos atacar. — Ah! — suspirou de novo. — Como estes meus franceses são rebeldes e individualistas! Temos que admirar os alemães pela sua solidariedade racial, embora os desprezemos por outros motivos.
Prosseguiu, sorrindo para de Bouillon:
— Concordo também com o seu ponto de vista de que a introdução dessas ideias de liberdade e esclarecimento da ralé seria catastrófica. Estou espantado. Conheço de há muito o idealismo extraordinário de de Tremblant, mas juígava-o temperado com inteligência e prudência. Os homens, à medida que envelhecem, muitas vezes resolvem esposar causas estranhas. Mas não posso entender de Rohan, que sempre foi realista.
— Já lhe disse — observou de Bouillon, impaciente — que esse holandês o hipnotizou. Se eu não estivesse presente, não teria acreditado. — Sorriu com azedume. — Juro-lhe, Monsenhor, que de Rohan estava literalmente inflamado.
— Gostaria de ter visto isso — retrucou o Cardeal, com uma risada. — Vermelho, e inflamado. É, dava tudo para ver isso.
Massageou delicadamente a ponta de um dedo.
— Contudo, não posso deixar de suspeitar que o entusiasmo de de .Rohan provenha menos de um fervor altruístico do que do seu insaciável amor pelo poder. Nas minhas relações com os homens, aprendi que todos os ideais e todas as revoluções que con- vulsionam a humanidade têm origem no medo, na avareza ou no desespero. De Rohan não tem medo, nem é suficientemente inteligente para sentir desespero. Por conseguinte, a mola que o impele deve ser a avareza. Sim, só pode ser a avareza.
Continuou, enquanto de Bouillon ouvia, com um ríctus perverso nos lábios:
— Deduzi, do que me contou, Monsieur le Duc, que o nosso holandês inspirou na sua audiência um verdadeiro desejo de matar, mesmo no nosso suave de Tremblant. Ora, quando um homem acredita que mata por um nobre ideal, na realidade está apenas tentando destruir o seu próximo, que o enfurece com as suas diferenças raciais ou políticas. Isso me põe perplexo. O nosso de Tremblant até aqui nunca mostrou qualquer ferocidade para com aqueles que diferem dele. Muitas vezes jogou xadrez comigo, e é um ótimo enxadrista. Discutimos muitos assuntos com a maior tolerância e o máximo respeito um pelo outro. Será possível que na realidade ele me odiasse e que essa gana de matar seja inspirada por esse ódio? Deve ser isso.
De Bouillon ergueu impacientemente a mão e deixou-a cair sobre o joelho,
— Monsenhor gosta de filosofar — disse ele. — Mas.eu não vim até aqui para falar de sutilezas. O que importa é que de Tremblant e o holandês sejam impedidos de ir à Inglaterra.
— Ah, sim! — suspirou o Cardeal, fitando-o com olhos velados. — Disso não há dúvida. Monsieur le Duc tem alguma sugestão? É preciso lembrar que não estamos lidando com a ralé, e sim com um poderoso proprietário.
Uma expressão de desprezo apareceu no olhar impiedoso de de Bouillon.
— Monsenhor reluta em levar a cabo o inevitável? — perguntou.
— Baseados em que acusações podemos nós prender de Tremblant e atirá-lo na Bastilha, monsieur? — retrucou Richelieu. — Ah, desagrada-lhe que eu fale com tanta franqueza. É preciso não esquecer também que de Tremblant é muito amado pelo povo de Paris. A França está atravessando um período de desassossego; coisas estranhas e terríveis ameaçam acontecer; se houvesse um cata- clisma, essas coisas se precipitariam. Um de Tremblant na Bastilha não é um de Tremblant silenciado. Monsieur não deve se esquecer disso. O próprio Rei o admira e o estima.
De^ Bouillon levantou-se e pôs-se a andar de um lado para o outro do quarto, com passos silenciosos, de felino, O Cardeal ficou a olhar para ele, sorrindo veladamente. Por fim, o duque estacou junto da cama do Cardeal e olhou para ele com expressão fria e virulenta.
— Quer dizer que está disposto a entregar o assunto nas minhas mãos? — perguntou ele. — Mesmo que o Cardeal seja um ótimo enxadrista?
Lentamente, com esforço, o Cardeal ergueu-se nas almofadas. Qs dois homens olharam um para o outro com súbita gravidade.
Por fim, o Cardeal disse, em voz. muito suave:
— Um de Tremblant preso, mesmo que num lugar remoto, não é um de Tremblant silenciado. Além disso, haveria uma grita geral.
— Não vai haver grita nenhuma — murmurou de Bouillon, com um sorriso perverso.
O Cardeal suspirou profundamente. Voltou a se deitar e contemplou as janelas, através das quais o sol da manhã entrava. Sua expressão era inescrutável, impiedosa e, ao mesmo tempo, triste.
— Monsenhor deseja, então, deixar o assunto a meu critério? — repetiu de Bouillon. — E não gritará depois?
— Por acaso me acusa de duplicidade? — murmurou o Cardeal, sem tirar os olhos da janela.
De Bouillòn sorriu. Aproximou-se da cabeceira do Cardeal, e Richelieu sentiu o odor da morte que exalava da carne fria e perfumada daquele homem. Sentiu-se tomado de ódio por ele, mas isso nada tinha a ver com os seus planos.
— Preciso da sua permissão — disse de Bouillon.
— Já a tem — retrucou o Cardeal.
Voltaram a encarar-se, e . de Bouillon fez uma reverência irônica.
— Quanto a de Rohan, os seus rochelenses têm que ser subjugados — disse Richelieu. — Um Jiomem inflamado pode facilmente originar uma conflagração capaz de consumir a França. — Olhou para de Bouillon. — Monsieur le Duc não põe objeções a que os seus irmãos huguenotes sejam subjugados?
De Bouillon não desviou o òlhar frio e brilhante. Assumiu uma expressão de severa dignidade.
— Não desejo ver a França novamente mergulhada numa guerra civií. Monsenhor precisa se lembrar que eu também sou francês. Se os rochelenses se rebelarem contra o Rei e contra a sua pessoa — e fez nova reverência —, deverão ser castigados.
— Parece-me — disse o Cardeal, após um breve silêncio —
que nos entendemos perfeitamente-. É uma pena que monsieur não seja catóiico.
Olharam um para o outro fixamente. Depois, sem dizer mais nada, o duque retirou-se. O Cardeal ficou a olhar para a porta através da qual de Bouillon saíra, e começou a rir baixo. Passados 'alguns minutos, Louis apareceu, e o riso do Cardeal aumentou.
— Que homem desprezível! — exclamou Louis, pálido de raiva.
Sentou-se perto do Cardeal, e uma branca sombra de preocupação perpassou-lhe o rosto grande e belo.
— É fácil perceber que ele planeja matar o Duque de Tremblant. Isso é terrível. Detesto de Tremblant, mas esse fato não me impede de compreender que, apesar das suas convicções, ele seja um bom homem.
O Cardeal ficou espantado e soergueu-se da cama.
— O que, Louis? Será possível que eu tenha ouvido essas nobres e tolerantes palavras dos seus lábios, a respeito de um hu- guenote?
Louis enrubesceu, levantou-se e, com mão trêmula, cerrou as cortinas. O Cardeal seguia-lhe atentamente os movimentos.
— Quando a necessidade exige, a nobreza e a pena têm que ser postas de lado — disse ele. •— Vou sentir falta de um ótimo parceiro de xadrez, mas a França vale mais do que isso.
— Não haverá outra maneira de detê-lo? — perguntou Louis, tão baixo que mal se ouvia.
— Nenhuma, Louis. Eu sei. Conheço o meu caro de Tremblant.
Suspirou várias vezes, e não havia hipocrisia nesses suspiros.
Por fim, disse:
— O nosso querido Arsène já chegou? Mande-o entrar, Louis. Não quero Ver mais ninguém até às duas. Estou muito indisposto, esta manhã.
Louis afastou-se da janela, e o seu rosto cobriu-se mais uma vez de ódio. Hesitou.
— Sua Eminência apercebe-se da frivolidade do meu irmão?
O Cardeal sorriu, embora os seus lábios finos continuassem levemente azulados.
— Precisarei recordar-lhe, Louis, de que não sou nenhum idiota? Mande logo entrar Arsène. Tenho ouvido curiosos boatos a respeito dele. Não fique tão alarmado. Não me esqueço de que os jovens fazem coisas que hão devem, levados pela sua juventude e não por mal. São capazes de conspirar contra o próprio Deus por pura exuberância.
Louis não respondeu, e, divertido, o Cardeal seguiu-o com os olhos, enquanto ele se dirigia, majestosamente, para as portas maciças e as abria. Uma babel de vozes invadiu o quarto, e o Cardeal fez uma careta. — Morbleu! — exclamou, massageando a testa. Louis fez entrar Arsène. O Cardeal olhou para ele com satisfação, pois o aventureiro que havia nele reconhecia em Arsène um irmão. Admirou-lhe o rosto irrequieto e cheio de vida, os, olhos escuros, que nunca pareciam repousar, o cabelo negro, que lhe nascia bem alto na testa nervosa. Arsène trazia com ele uma aura de alegria e vigor, de despreocupação e ousadia, de coragem e orgulho, de arrogância e altanaria, que recordava ao Cardeal os jovens oficiais, seus ex-colegas na Academia de Pluvinal. j,
— Preciso desse rapaz! — disse para si mesmo, decidido a que Arsène fosse o seu próximo Comandante da Guarda.
Richelieu sentiu voltar-lhe a vontade de viver, ao ver Arsène curvar-se para ele, sorridente. Estendeu-lhe graciosamente a mão, que Arsène beijou de leve. O Cardeal segurou-lhe, por sua vez, a mão.
— Ah, o noivo! — exclamou ele. — Mas ainda não fui convidado para oficiar a cerimônia.
— Será possível? — perguntou Arsène, erguendo as negras sobrancelhas. — Pensei que Madame de Tremblant o tivesse convidado, Monsenhor.
Louis avançou para junto da cama, pálido de raiva e ciúme. Fitou o irmão com olhos frios.
— Sua Eminência tem muita coisa importante na cabeça — disse ele. — Sem dúvida esqueceu um assunto tão insignificante. Mas tomei nota do pedido de Madame de Tremblant; se Sua Eminência não estiver demasiado ocupado ou indisposto nesse dia, oficiará a cerimônia.
— Perdoe-me — disse o Cardeal a Arsène, que encarava o irmão com um leve sorriso. — Só agora me lembro do convite. Será para mim um prazer e uma honra. Quando estiver casado com uma devota da Igreja, talvez monsieur se recorde dos seus deveres e das suas obrigações para com essa Igreja, assumidos, pelo batismo, como católico. — Apertou a mão de Arsène na sua. — Espero que não se tenha esquecido de que é católico, meu filho.
Um tremor perpassou os lábios de Louis, mas Arsène inclinou cortesmente a cabeça, em resposta, seus olhos escuros piscando.
— Agora, sente-se aqui ao meu lado — continuou o Cardeal, com afetuosa animação. — É tão raro receber a sua visita, Arsène! Ainda não me esqueci de que você me derrotou no nosso último jogo de xadrez.
— Vamos jogar xadrez? — perguntou Arsène, fingindo surpresa, ao mesmo tempo em que se sentava.
— De certo modo, vamos — respondeu o Cardeal.
Se esperava perceber um vislumbre de cautela ou apreensão no rosto de Arsène, ficou desapontado. Arsène limitou-se a esperar, com uma expressão cândida e aberta. O Cardeal sorriu intimamente. Conhecia bem o caráter do jovem. Assumiu também um jeito amigo, cheio de afeição paternal. Seus olhos de tigre pousaram no rosto de Arsène com uma suavidade que em parte era genuína.
— Não o tenho mais visto nas mesas de jogos — comentou. — Seu pai, o marquês, é um ladrão. Quem sabe você não acha que basta um ladrão na família?
Arsène riu, mas não respondeu.
O Cardeal juntou delicadamente as pontas dos dedos e contemplou o jovem com ar benigno.
— Nem o temos visto na Corte — acrescentou.
Arsène limitou-se a sorrir, mas os cantos dos seus olhos apertaram-se.
— É preciso não esquecer, claro, que um rapaz, às vésperas de desposar uma bela jovem, tem muito com que se ocupar — continuou o Cardeal. — Não obstante, seus amigos sentem a sua ausência, Arsène.
— É muita bondade de Vossa Eminência — retrucou Arsène.
O Cardeal voltou a sorrir intimamente. Gostava do jeito do rapaz.
— Posso perguntar pela saúde de Mademoiselle de Tremblant?
— perguntou, com interesse de pai.
Ah, pensou Arsène, ele sabe que há dias não vejo Clarisse, que raramente vou ao hôtel de Tremblant. Respondeu, em voz alta:
— Mademoiselle pediu-me para lhe transmitir a expressão da sua devoção e do seu mais profundo respeito.
— Vi-a ontem à noite, nas vésperas — observou o Cardeal, com voz sonhadora.
Arsène continuou a sorrir, mas de dentes cerrados.
— Ela se queixou — acrescentou Richelieu.
— As mulheres sempre se queixam — disse Arsène despreo- cupadamente, encarando de frente o Cardeal.
— Ah, isso é verdade — suspirou Sua Eminência. — É um defeito do belo sexo.
— Se Vossa Eminência conversou ontem à noite com Mademoiselle de Tremblant, deve estar bem-informado quanto à sua saúde — disse Arsène, com um sorriso.
— Mas e você está bem-informado? — redarguiu o Cardeal, sorrindo angelicamente.
— Estou perfeitamente tranquilo quanto às condições de saúde de mademoiselle — replicou, calmamente, Arsène.
Louis sentara-se do outro lado da cama do Cardeal. Não desviara os olhos do irmão durante toda a conversa, mas o seu rosto expressava todo o ódio e toda a desconfiança que sentia.
O Cardeal estendeu o braço e bateu indulgentemente na mão de Arsène.
— Ouvi dizer que há uma bonita soubrette perto da Rue des Fossojeurs — disse ele. — Ah, juventude!
Mas Arsène já não sorria. Pensou na soubrette, uma certa Mademoiselle Annette Benet, que ele pensava ter escondido com a máxima discrição. Nem sequer o marquês, seu pai, soubera do seu caso com a jovem, embora tivesse comentado sobre o seu súbito desaparecimento do mais alegre dos teatros parisienses. A ninguém, nem mesmo a seu amigo Paul, confiara Arsène o seu caso com a moça. Aparentemente, o Cardeal tinha espiões em todos os lados. O comentário tinha implicações perigosas, era como uma sutil advertência de que Arsène não conseguiria esconder nada daquele homem terrível. Arsène teve um momento de medo, que disfarçou atrás de um sorriso ousado. f
— Monsieur le Duc parece saber tudo a meu respeito, embora não seja meu confessor — disse ele.
Mas, se pensava levar o Cardeal a revelar, embora obscuramente, até onde ele sabia, enganava-se. Richelieu limitou-se a sorrir.
— Sinto-me muito honrado com o interesse que Vossa Eminência demonstra pelas minhas coisas — continuou o jovem.
Sempre sorrindo, o Cardeal voltou-se para Louis, que escutava com as sobrancelhas franzidas.
— Louis, quer me trazer uma garrafa de vinho?
Corando, Louis levantou-se obedientemente, odiando o Cardeal por mais essa humilhação. Trouxe o vinho e dois copos. O Cardeal arqueòu as sobrancelhas:
— E você, Louis?
— Agradéço-lhe, Monsenhor, mas não vou aceitar — replicou Louis, secamente.
Levantou a cabeça e descobriu o irmão olhando para ele com uma expressão estranha. Desconhecendo a compaixão, não reconheceu o olhar, que pensou ser de desprezo.
O Cardeal e Arsène beberam o vinho lentamente, como dois amigos. Mas os seus pensamentos não eram nem lentos nem amistosos.
— Como padre e como amigo de seu pai, Arsène — disse o Cardeal —, cumpre-me aconselhá-lo, na véspera do seu matrimônio. Portanto, é com genuíno interesse que lhe peço para refletir sobre os seus deveres e as suas obrigações, que são bem sérias.
— E o que Monsenhor me aconselha? — perguntou delicadamente Arsène.
— Que não se envolva em nada que possa causar desgosto a uma jovem cuja félicidade será sempre motivo de preocupação para mim — replicou o Cardeal, com voz suave. ' •
— Asseguro-lhe que Mademoiselle de Tremblant terá em mim um marido satisfatório — disse Arsène. — Conheço bem a alma feminina e a natureza delicada das mulheres.
O Cardeal estendeu o copo para Arsène, que o encheu com cuidado filial. Mais uma vez o Cardeal sorriu.
— Gosto muito de você, meu filho — disse ele, com sorridente franqueza. — É por isso que o estou prendendo aqui. São tão poucas as pessoas cuja presença eu aprecio!
Arsène fez uma curvatura, bebeu um pouco de vinho e aparentou sentir-se lisonjeado.
O Cardeal também bebeu do vinho, recostando-se nas almofadas, com um ar completamente à vontade.
— Deixe-me ser sincero, Arsène. Não se ganha nada escondendo as coisas. Além disso, sei que posso confiar na sua discrição e que nem uma palavra da nossa conversa sairá destas quatro paredes. Quando o Edito de Nantes foi promulgado, concedendo todos os direitos aos huguenotes, os nobres protestantes reconciliaram-se com a Coroa. Muitos deles tornaram-se os meus maiores amigos. Temos em comum o que há de mais importante: a França.
Fez uma pausa e continuou, em tom de quem medita:
— Sempre que o protestantismo passou a ser a religião dominante de uma nação, essa nação se tornou nacionalista. A cultura católica, pela sua própria natureza, não pode ser nacionalista. Abrange todos os homens, considerando-os como um só, sejam quais forem as barreiras artificiais de fronteiras, língua ou raça.
Arsène sorriu, e o Cardeal, passado um momento, devolveu-lhe o sorriso.
— Em teoria, pelo menos — prosseguiu o Cardeal, arqueando as sobrancelhas —, e no que diz respeito aos católicos. Mas o protestantismo é menos... como diremos?... universal. O protestantismo é a religião do Estado. Sinto bastante simpatia por essa ideia. Chego até a profetizar que as Alemanhas irão se tornar poderosas na Europa; graças ao protestantismo, à, sua ideia de Estado. A Inglaterra também vai dominar no mundo. Há muito percebi que uma nação, para se tornar poderosa, precisa ter uma religião do Estado. Por isso, compreendendo o caráter nacionalista do protestantismo, é que o tenho tolerado. Mas você deve saber disso, não?
Arsène refletiu, consigo mesmo, que o Cardeal nunca seria tão franco com ele, tão sincero, se não possuísse alguma informação capaz de destruí-lo, a ele, Arsène, com um simples gesto de mão. Contudo, assentiu gravemente.
A cordialidade do Cardeal aumentou. Inclinou-se para Arsène e bateu-lhe, de novo, afetuosamente, na mão.
— Já fui chamado Cardeal dos huguenotes por ter mostrado simpatia pelas Alemanhas e pela Suécia, devido ao seu nacionalismo. Devo confessar que as compreendo. Desejaria que na França vingasse o ideal nacionalista, para que ela não corresse o risco de perecer.
Contemplou de novo o teto trabalhado.
— Mas há os que confundem a minha inclinação para o nacionalismo com tolerância para com a heresia. Estão muito enganados. O futuro, a imortalidade da Igreja, na França, na Europa, serão sempre o meu principal interesse — disse ele.
Louis, que até ali escutara com profunda indignação, levantou- se a meio da poltrona onde se sentara. As mãos que agarravam os braços dourados tremiam violentamente.
Mas Arsène limitou-se a escutar, a cabeça inclinada, os olhos escuros fixos no rosto plácido e aristocrático do Cardeal.
— Há quem me interprete mal — disse Richelieu, com voz mansa.
Ergueu-se subitamente das almofadas e fitou em Arsène um olhar firme e terrível, mas prosseguiu, numa voz suave:
— Tenho sido tolerante e compreensivo com os huguenotes. Vou ser franco, Arsène, como não costumo ser com ninguém! Para com o huguenote sinceramente convicto da sua religião, por mais que ela pareça pôr em perigo a cultura e a autoridade católicas, tenho mostrado tolerância, sabendo que, no fundo, nada pode atingir a Igreja. Mas, com o huguenote que não quer reconciliar-se com a Coroa, com o bem-estar da França, tenho sido implacável e continuarei a sê-lo até à morte. Porque essa espécie de huguenote não deseja a paz e a segurança da França, e sim um Estado dentro do Estado, separado e antagônico à França, conivente com os seus inimigos, pondo em perigo a sua existência. Ele não ama a França, apenas odeia os católicos. Para com o magnata huguenote, que pensa ser rei das próprias terras e não se curva às ordens da Coroa, tenho sido impiedoso. Só pode haver um poder na França: o Trono.
Fez uma pausa. O fogo dos seus olhos aumentou, e Arsène sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo.
O sorriso do Cardeal era agora diabólico.
— O rebelde huguenote, que se levanta contra a autoridade da França, ou seja, a Igreja e o Trono, morrerá onde quer que ele esteja. Procura destruir essa autoridade, pensa apenas nos seus lucros. Pois bem, eu caçarei onde quer que ele se esconda, e nada o salvará. Conspira com os nossos inimigos, procura poder para si mesmo, põe em perigo a unidade da França e a paz interna.
Recostou-se nas almofadas, e a expressão maligna desapareceu do seu rosto. Estava de novo calmo e muito sério.
— Seu avô, Arsène, era um desses homens. Não posso negar as suas profundas convicções religiosas. Mas foi com elas que alimentou a rebelião contra a autoridade final do Estado. Professou acreditar, e não guardou essa opinião para si mesmo, que Navarra traíra a.França, ao voltar para o seio da Igreja. Convenceu os amigos a se recusarem a se reconciliarem com o que ele declarava ser a “traição” do pai de Sua Majestade. Mas, um a um, todos os seus amigos e correligionários se reconciliaram e, sendo a maioria, deram todo o apoio à restauração da paz na França e ao estabelecimento de uma unidade. Tal não aconteceu com seu avô, que era teimoso, orgulhoso, fanático e apaixonado.
Arsène escutava, e, no fundo dos seus olhos negros, uma pequena centelha transformou-se em chama. Viu de novo o rosto do avô, e o seu próprio rosto assumiu o aspecto daquelas feições austeras. O Cardeal parara de falar e olhava para Arsène, espantado.
Se ele pudesse reconciliar aquele fanático! Havia algo em Arsène que era igual a ele, e, reconhecendo no jovem o mesmo fogo, a mesma paixão, sentiu um quê de afeto paternal, a determinação de ligar aquele rapaz a ele.
— As propriedades confiscadas foram restituídas aos huguenotes. O Edito de Nantes garantiu-lhes uma tolerância generosa. Foram recebidos, não mais como rebeldes, mas como franceses, devotados à França. Mas o seu avô recusou-se a ser recebido. Ele e seu filho, o seu estimado e admirável pai, retiraram-se para a Gas- conha, para as terras da sua mãe, onde vivam na mais completa modéstia, para não dizer pobreza. Embora ele fosse um insensato, mal-aconselhado pela própria consciência obstinada, a gente tinha que admirá-lo! Foi ele quem me deu o apelido de “Bufão”. — E o Cardeal sorriu. — Foi ele quem me pôs o nome de Padre dos Diabos. Não obstante, continuei a estimá-lo. Os homens honrados, de caráter rígido, por mais errados que estejam, merecem o nosso respeito.
O Cardeal continuou:
— Depois da sua morte, provocada por velhos ferimentos recebidos em La Rochelle, seu pai, sua mãe e os dois filhos permaneceram na Gasconha. Mas seu pai, embora menos fanático do que o pai dele, revelou um inesperado realismo. Reconciliou-se finalmente com o Estado. E, o que é mais, com a Igreja.
Ouvindo aquilo, Arsène não pôde controlar um sorriso. O Cardeal também sorriu. Mas Louis, que tudo ouvia na sombra, o rosto muito branco, iluminado pela réstia de sol que entrava pelas janelas, não sorriu.
— Não sou homem para questionar os graus de reconciliação — disse o Cardeal. — Para mim, basta que um homem professe a reconciliação e se comporte de acordo com a sua convicção íntima. A conformidade é a lei dos príncipes, mas eles não exigem que um homem seja conforme do fundo do coração, desde que as suas ações estejam de acordo com a lei. No que me diz respeito, o retorno dos du Vaubon ao seio da Santa Madre Igreja foi muito gratificante. Sinto muito prazer na conversa e na pessoa do atual marquês, embora confesse que não goste de perder, com tanta frequência, somas enormes para ele.
— Meu pai — disse Arsène, olhando para o rosto sorridente do Cardeal — é um realista também no jogo.
— Ah, sim — murmurou o Cardeal, simpatizando cada vez mais com Arsène.
— Os seus perfumes — continuou ele, em tom de quem medita — têm prestado um excelente serviço a Paris, que há muito tempo precisava ser perfumada. Só por isso já o admiro. Além do mais, as suas performances... e você tem que admitir, meu caro Arsène, que se trata realmente de performances. . . contribuíram muito para dar vida a uma Corte que ameaçava tornar-se cada vez mais monótona. Mais do que isso, distraíram os espíritos descontentes. Os circos ainda são a melhor coisa para distrair os exercícios da mente, que tão perigosos podem ser para o Estado.
Arsène não retrucou. Sentia de novo a proximidade do perigo.
O Cardeal olhou com afeto para o pálido Louis.
— O marquês trouxe os seus filhos para a Igreja, e eu sinto- me grato por isso. Louis é o melhor secretário que eu já tive. Quanto a você, caro Arsène, há muito decidi encontrar uma maneira de o ligar a mim.
— É muita generosidade de Vossa Eminência — replicou Arsène, empalidecendo. — Mas eu não gosto de responsabilidades nem de disciplina. Prefiro uma vida alegre e despreocupada, em que eu seja dono de mim mesmo.
— Vida feliz, a sua! — disse o Cardeal, com um sorriso. — Mas você precisa se lembrar, meu filho, de que não é mais assim tão jovem. Nem acho que esteja enganado, ao suspeitar de que, no fundo, você não seja assim tão irresponsável. Estou convencido de que você não é assim tão frívolo quanto nos quer fazer parecer. Os homens usam máscaras, e a máscara da frivolidade e da irresponsabilidade é a melhor de todas.
O Cardeal prosseguiu:
— Sim, você começou a pensar, meu caro Arsène, e há uma grande vitalidade nas ideias dos homens maduros, que começam a pensar. Estão fartos da incoerência e das loucuras da juventude. Um cérebro cheio de vida e vigor, na cabeça de um homem que passou da primeira mocidade, é muito valioso, para o Estado. Ou muito perigoso — acrescentou suavemente. (
— Monsieur le Duc é muito astuto — disse Arsène, com ironia. — Ou, melhor, me lisonjeia.
— A lisonja — refletiu o Cardeal — é a largesse dos príncipes. Não obstante, não o estou lisonjeando, Arsène, apenas dando- lhe o seu devido valor.
Arsène agradeceu com uma curvatura. Olhou de relance para a cara do irmão, e a sua expressão, melancólica e apreensiva, aborreceu-o.
O Cardeal soltou uma risada inesperada.
— Meu caro Arsène, eu gosto de você! Mas estamos perdendo tempo, embora seja uma deliciosa perda de tempo. Pedi-lhe para vir aqui a fim de lhe fazer uma oferta. Vou aposentar o meu Comandante dos Mosqueteiros. Ofereço-lhe o posto.
O rosto fino e moreno de Arsène empalideceu de vez. Seus olhos pretos brilhavam sob a sobrancelhas escuras. Compreendia agora o perigo que corria.
O Cardeal contemplou-o com afeto.
— Como pode ver, tenho a mais completa fé em você, Arsène. Acho-o falante, alegre, destemido, e um dos melhores espadachins de Paris. É um líder natural, e os homens vão adorá-lo. Suspeito, além disso, que você seja um. disciplinador. Isso se vê em seu rosto. Há dois meses atrás, eu não lhe teria feito essa oferta. Mas, conforme já disse, operou-se em você uma grande mudança, que eu admiro e aprecio.
Arsène permaneceu calado. Levantou-se e disse, apenas:
— Monsenhor me permitirá pensar na proposta?
Tremia, e mordeu o lábio com força para disfarçar o tremor.
— Não vai ser coisa fácil abandonar a vida despreocupada que levo. Preciso pensar bem.
O Cardeal fez um gesto indulgente.
— Peço-lhe que pense bem, Arsène.
— Monsenhor tem a minha mais profunda gratidão, tanto pela oferta quanto pela consideração.
Os dentes do Cardeal brilharam por instantes entre os seus lábios barbados. Inclinou a cabeça.
— A gratidão é o sentimento básico das almas nobres — observou ele. — Peço-lhe que me responda o mais breve possível, Arsène, pois decidi levar a cabo uma campanha. . .
Voltou o rosto mau para Arsène.
Então, é verdade, pensou este. A espanhola seduziu-o. Ele vai atacar La Rochelle.
— Estou desejoso de atividade — prosseguiu o Cardeal. — Antes de mais nada, sou soldado. Eu mesmo chefiarei a campanha. — E olhou para uma cota de malha, estendida sobre uma cadeira, perto da lareira.
Estamos perdidos, pensou Arsène. Mas esse pensamento não o paralisou. Uma chapa de ferro pareceu envolver-lhe o coração, fortificá-lo.
Louis falou então pela primeira vez, numa voz rouca:
— Pode ter a certeza, Eminência, de que o meu irmão acar bará aceitando a oferta que tão graciosamente lhe fez. Não poderá recusar,
E olhou para Arsène com o ódio de toda uma vida estampado no rosto largo e branco, mais uma expressão de advertência.
Ao ver aquilo, e apesar do alarme que sentia, Arsène não pôde deixar de achar divertido.
O Cardeal estendeu a mão para Arsène, que a beijou de leve. Depois, após novos protestos de gratidão, Arsène despediu-se. Louis abriu-lhe a porta que dava para o corredor íntimo, e Arsène atravessou-a. Ficou espantado de ver que o irmão o seguira e fechara a porta atrás de si.
— Você não pode recusar — disse o jovem sacerdote, entre dentes. — Não ouse recusar, para o bem do meu pai.
— Eu ouso tudo — retrucou friamente Arsène. — Mas ainda não recusei. Pode ter a certeza, Louis, de que nenhuma ameaça ou coerção da sua parte fará com que modifique a decisão que eu tomar.
Louis respirou fundo. Manchas vermelhas surgiram-lhe no rosto, ao mesmo tempo em que levava a mão à cinta, procurando instintivamente uma espada inexistente.
Mas Arsène esqueceu tudo, levado pela piedade e pela lembrança do ridículo do pai. Colocou a mão no braço de Louis, que recuou como se tocado por algo indescritivelmente sujo e repelente. Mas Arsène, procurando as palavras adequadas, não lhe soltou o braço.
— Você pensa demasiado no nosso pai, Louis. Eu também o amo, mas não sou cego à sua falta de dignidade.
— Não ouse falar dele assim! — gritou Louis, fora de si. — E na minha frente!
Arsène deu de ombros. Suspirou e retirou a mão, olhando para Louis com compaixão e compreensão.
— Você está mudado, Louis. Há uma nova brandura em você. Isso me encorajou. Pensei que poderíamos ser amigos.
— Não posso ser amigo de um inimigo da Igreja!
Apesar disso, o jovem sacerdote corou, e os seus olhos pesta- nejaram, confusos.
— Não sou seu inimigo, Louis — disse Arsène, suavemente. Louis não respondeu. Sim, pensou Arsène, ele mudou. Está mais magro e parece consumido por uma febre. Alguma mulher? É incrível! Uma nova compreensão, mais tolerância? Também parece incrível. Está se esforçando para sentir raiva, até de mim. Isso só pode ser porque o seu coração foi tocado de alguma maneira. O que toca mais profundamente o coração de um homem? Uma mulher.
Estava surpreso com as conclusões a que, pela lógica, chegara. Mas continuava incrédulo. Que mulher podia ter finalmente penetrado aquela alma austera e glacial, aquele sangue gélido, aquele espírito capaz apenas de sentir tempestades de neve?
Apertou de novo o braço de Louis e afastou-se, perplexo. Tinha andado alguns passos, quando o irmão o chamou. A sua voz era fria, mas Arsène teve novamente a impressão de que ele fazia um esforço consciente.
— Você não pode recusar, Arsène!
Capítulo XXIV
A euforia do Cardeal, depois que Arsène partira, transformou- se numa excitação febril. Quando o Padre Joseph voltou, após bater discretamente na porta, ficou satisfeito de ver o amigo tão animado. Sempre cuidadoso de observar o tratamento devido ao Cardeal, a sua satisfação foi tão grande, que exclamou, com afeto:
— Ah, Armand-Jean,1 você parece cheio de vida, esta manhã! (1 No original está Armand-Jeannes, no feminino, quando o nome de Richelieu era Armand-Jean. (N. da T.)
— Meu caro Joseph — retrucou o Cardeal, estendendo as mãos, num gesto afetuoso. Você chegou demasiado tarde para ouvir uma conversa edificante. Esse jovem Arsène de Richepin! Pus uma pulga atrás da orelha dele. Mas vou conseguir chamá-lo para junto de mim. Tenho a certeza disso. Teremos, então, um pouco mais de vida nesta monótona Paris.
Padre Joseph sorriu. Sua barba avermelhada abriu-se à altura da boca, revelando dentes excelentes.
Voltou-se de novo para o Cardeal, mas já sem sorrir.
— Peço perdão a Vossa Eminência, mas trouxe comigo, esta manhã, o bispo da diocese de Chantilly.
O bom humor do Cardeal desapareceu. Olhou para o Padre Joseph com irritação e fechou os olhos, numa exagerada expressão de cansaço.
— Por que hei de me aborrecer com esse bispo provinciano? — disse ele. — Despache-o, Joseph, despache-o. Confesso que estou surpreso com você.
Padre Joseph comprimiu gravemente os lábios.
— De novo lhe peço que tenha indulgência, Monsenhor. Trata-se de um assunto de suma importância. Na verdade, fui eu quem pediu ao bispo que viesse a Paris consultá-lo.
O Cardeal abriu os olhos com espanto e indignação.
— Será que eu não tenho mais nada com que me preocupar senão com as atribulações e os problemas de um bispo provinciano? Alguma dama rica da sua diocese se nega a fazer uma contribuição? Algum paroquiano pede um favor para o filho? Que história é essa?
Mas o Padre Joseph não ligou para aquela demonstração de mau humor. Esperou que o Cardeal se acalmasse e depois disse, sombrio:
— Vossa Eminência se esqueceu de que a diocese de Chantilly engloba as propriedades do falecido Conde Renaud de Vitry, ora pertencentes a seu filho, Paul?
O Cardeal, embora ainda exasperado, mostrou-se curioso.
— Nunca me esqueço de nada, Joseph, de modo que não é necessário fingir surpresa, nem me instruir. Lembro-me bem do conde. Um católico devotado, embora excêntrico. Por acaso você veio me dizer que Paul de Vitry é huguenote?
Os olhos esgazeados do Padre Joseph expressaram aborrecimento. Retrucou, com uma polidez afetada e irônica:
— Vossa Eminência deve estar a par das atividades de Paul de Vitry, de modo que não precisamos falar nelas. Mas, se as suas atividades secretas, aqui em Paris, são censuráveis, a sua conduta nas suas propriedades perto de Chantilly é perigosa. Mas Vossa Eminência deve ter ouvido boatos a respeito.
— Ouvi dizer que ele não taxa os camponeses — retrucou o Cardeal, desejoso de exasperar o amigo. — Ouvi dizer que ele próprio lhes paga os impostos, para evitar que eles passem fome. Ouvi dizer que manda consertar os telhados das suas choupanas, deixa-os caçar nos seus coutos, julga dispustas e crimes com justiça, piedade e compreensão. Ouvi dizer que mandou consertar a igreja local; não interfere com a religião deles, embora ele próprio não possa ser considerado um católico devoto; é gentil e generoso para com o sacerdote local, o velho Padre Lovelle, nomeado pelo bispo. Ouvi dizer que lhes permite guardar uma grande porção das suas colheitas, do seu gado e das suas aves. Não há dúvida de que tudo isso é censurável. Foi o que você me veio contar?
O Padre Joseph levantou-se.
— Acho melhor Vossa Eminência ouvir o bispo — disse ele friamente.
Fez um sinal de cabeça para Louis, que tudo escutara com um sorriso pálido, e o jovem sacerdote abriu a porta e deu ordens aos guardas para conduzirem o Bispo de Chantilly à presença do Cardeal.
O bispo era um homem gordíssimo e tão baixo que parecia redondo. A batina, repuxada sobre a enorme barriga e o rotundo peito, era negra e reluzente. Gingava de um lado para o outro, ao entrar no quarto, e o seu peso era tal que o soalho vibrou sob os seus passos. Tinha uma cabeça enorme e oval, quase completamente calva, com grandes orelhas, semelhantes a asas avermelhadas. Seu rosto, gorduroso e brilhante, tinha a pele como que tingida de vários tons de vermelho. Tufos de cabelo ondulado, preto e grosso, brotavam-lhe sobre os olhos pequenos e negros como contas, e a boca grosseira, retorcida num sorriso polido e servil, era ao mesmo tempo cruel e sensual, velhaca e hipócrita. Tinha um nariz curto e achatado, de tal maneira embutido na cara gorda que as narinas mais pareciam buracos, o que fez com que o Cardeal fechasse momentaneamente os olhos, tomado de uma náusea aristocrática.
O bispo literalmente resfolegava. O crucifixo de ouro, sobre a pança, subia e descia, refulgindo à luz da manhã. Fez uma profunda reverência ao Cardeal, que lhe estendeu, impaciente, a mão fina e delicada. O bispo apressou-se a beijá-la, fazendo com que Richelieu estremecesse involuntariamente.
— Então, que história é esta? — perguntou-lhe.
Mas o bispo estava por demais impressionado, pelo fato de se encontrar na presença do grande e terrível príncipe da Igreja. Olhou para o Padre Joseph, incapaz de falar. Mesmo quando Louis lhe trouxe uma cadeira, ele ficou a olhar para ela, parado, como se nunca tivesse visto semelhante móvel, e só quando o Cardeal lhe ordenou que se sentasse, é que ele obedeceu, tremendo. Cruzou as mãos gordas e brancas sobre a barriga, num esforço para controlar a tremedeira. Gotas de suor irromperam-lhe no rosto rubicundo.
Percebendo que nada se conseguiria com o bispo naquele estado de trepidação e também que se estava esgotando a pouca paciência do Cardeal, o Padre Joseph pousou a mão no ombro do bispo, à guisa de encorajamento. Sorriu-lhe, a tranquilizá-lo, mas o bispo olhou para ele com o desespero de um pobre ser humano, pe- pindo proteção e ajuda a um super-homem.
— Peço-lhe que conte tudo o que sabe a Sua Eminência — disse o Padre Joseph, na sua voz semelhante aos acordes de um órgão —, que está ansioso por ouvir tudo o que tem a dizer.
O Cardeal fungou delicadamente e olhou para o teto com paciência exagerada. Depois, sentindo a irascibilidade voltar-lhe, acompanhada do vago sentimento de dor que aflige as pessoas nervosas, deitou um olhar de desprezo para o bispo.
— Fale, homem! — ordenou. — Fale ou saia da minha presença.
O bispo suou mais ainda. Abriu a boca, mas dela não saiu nenhum som. Amaldiçoando-o intimamente, o Cardeal disse, numa voz que se esforçava por ser paciente:
— Creio que tem algo muito importante a me comunicar, com referência à sua diocese. Deve ter visto a multidão que se aglomera nas antecâmaras, à espera de ser recebida em audiência por mim. Peço-lhe, portanto, que seja o mais rápido e conciso possível. — E acrescentou: — Se for questão de dinheiro, recordo-lhe que Madame de Collioure pertence à sua diocese, e, embora não se faça notar pela generosidade, tenho a certeza de que, com alguma coerção da sua parte, ela não se recusará a abrir os cordões da bolsa. Para que serve o padre? É inútil me pedir ajuda. O Padre Joseph é quem trata desses assuntos, não eu.
— Não se trata da velha Madame de Collioure — murmurou o bispo, cada vez mais nervoso.
Mas, recordando a terrível dama, esqueceu até certo ponto o medo que sentia.
— Embora eu deva confessar que ela é uma bruxa velha, que torna a minha vida um inferno, com as suas exigências descabidas e os seus caprichos absurdos, fazendo-me pagar com sangue cada cêntimo que me dá. Além disso, ela conta com o apoio da abadessa e das freiras. É uma autêntica rebelião de saias, que eu não vou tolerar por muito mais tempo com calma e boa vontade. Mas Vossa Eminência me perdoe por vir importuná-lo com os meus problemas — acrescentou, assustado com a própria audácia.
O Cardeal sorriu, recordando os problemas que tivera com velhas absurdas e geniosas, quando era bispo. Mas, refletiu ele, nesse tempo era jovem e belo, e nenhuma velha dama fora capaz de lhe resistir. Sempre soubera lidar com as mulheres, pensou.
Disse, com mais brandura:
— Tudo isso é muito desagradável, e pode contar com a minha simpatia. Mas não foi por isso, decerto, que veio consultar-me! O Padre Joseph disse-me que se trata de um assunto da maior importância.
E atirou ao amigo um olhar malévolo.
— Foi Madame de Collioure quem insistiu para que eu entrasse em contato com o Padre Joseph — disse o bispo, retorcendo as mãos.
— Ah! — exclamou o Cardeal, com um olhar ainda mais severo'para o amigo.
— As propriedades dela são vizinhas às do Conde de Vitry — continuou o bispo. E acrescentou, vendo o rosto do Cardeal se fechar: —Elá diz que teme constantemente pela sua vida, devido ao atrevimento e à arrogância dos camponeses do conde. Afirma que não pode dormir, de medo de que eles subjuguem os guardas, e a roubem e a matem na cama.
O Cardeal achou aquilo divertido.
— Quer dizer que o Conde de Vitry alimenta tão bem os seus camponeses, que eles ficam assim, cheios de ideias?
Aquilo deu coragem ao bispo. Esquecendo o medo que tinha do Cardeal, exclamou, indignado:
— Madame de Collioure tem toda a razão para estar apreensiva, Monsieur le Duc! Devo confessar que há muito tempo venho desejando buscar ajuda contra o deplorável e perigoso estado de coisas vigente nas terras do jovem Conde de Vitry
— Prossiga, por favor — suspirou o Cardeal.
Mas estava interessado. Apoiou-se no cotovelo e fixou o olhar penetrante no trêmulo bispo.
— Não tenho nada contra a maneira de Monsieur le Comte tratar os seus camponeses — disse o bispo, com um breve erguer de olhos. — Ele conta com a minha bênção pelo bem que lhes trouxe. Que sacerdote seria eu, se fosse contra choupanas decentes, mesas fartas, cores nas faces das crianças, danças e cantos que resultam da paz, da bondade e da prosperidade? Não são essas coisas que me preocupam. Devo confessar, também, que o conde tem sido muito generoso para com a Igreja, que ele incita os camponeses a cumprir com os seus deveres religiosos e que trata o velho Padre Lovelle como um amigo, muito querido e respeitado. Padre Loveile só fala bem de Monsieur le Comte.
— Então? — insistiu o Cardeal, sentindo voltar-lhe a impaciência.
O bispo suspirou, e uma expressão malévolas tomou conta do seu rosto.
— O conde tomou a si a tarefa de instruir os' camponeses — disse ele, num tom de voz significativo.
— Espera converter o Abade Lovelle e os camponeses ao protestantismo? — sugeriu o Cardeal, com divertida incredulidade.
O ar malévolo do bispo acentuou-se. Inclinou-se para o Cardeal, visivelmente agitado, e disse, quase em lágrimas:
— Vossa Eminência está fazendo pouco caso dos meus problemas. Não, não houve nenhuma atitude subversiva da parte do conde. Ele mesmo, quando nas suas propriedades, ouve missa, seguido dos seus camponeses, e a sua atitude é extremamente reverente, embora eu tenha ouvido dizer que ele já não é um verdadeiro católico, como o foi seu santo pai. O Abade Lovelle disse-me que o conde respeita todas as religiões. As minhas djferenças com o conde não são devidas a nenhuma irreligiosidade da parte dele. De certo modo, são mais profundas do que isso. Talvez Vossa Eminência não saiba da sua perigosa interferência na vida dos seus camponeses, para lá da simples benemerência? Vossa Eminência sabe, porventura, que o conde contratou professores para os seus camponeses e que não só encoraja as crianças a assistirem às aulas, o que já é bastante censurável, como também quer que os pais assistam às mesmas? E as mulheres! — exclamou, dilatando os olhos, na expectativa de ver o Cardeal espantado.
Richelieu ficou realmente surpreso, mas não o demonstrou. Contentou-se com ouvir, com renovada atenção, o que o bispo lhe dizia.
Este estava excitadíssimo. A cadeira rangia com os seus movimentos agitados. Gesticulava violentamente.
— Disse, ao conde que o convento estava ali para instruir as moças do povoado, e ele replicou, sorrindo: “Em trabalhos de agm lha, serviços domésticos e agrícolas, a fim de torná-las mais dóceis e melhores criadas daqueles que, aos olhos de Deus, são seus inferiores?” Vossa Eminência, por aí já pode ver como esse homem é perigoso!
Mal podia respirar, tal a sua raiva.
— Vejo os camponeses dele debaixo das árvores e em volta das mesas, aprendendo a soletrar ou lendo livros estranhos! Disseram-me que discutem heresias nas tabernas e que fazem perguntas e cogitam sobre assuntos impróprios da sua condição, que deviam ser reservados aos padres. Disseram-me que questionam os decretos de Sua Majestade, que falam desrespeitosamente de Vossa Eminência, que não aceitam nada, discutem sempre e se expressam com indignação!
Torceu as mãos; os olhos marejados de lágrimas. Depois, o seu rosto assumiu uma expressão de horror:
' — Contam-me também que eles se perguntam: “Por acaso não somos homens? Não temos, aos olhos de Deus, direitos iguais a esta nossa França, aos; frutos do seu solo, às suas riquezas e aos seus privilégios? Não possuímos almas divinas, tão caras a Deus quanto as aihias dos magnatas e dos reis? A terra não é tão nossa quanto deles, e não temos o mesmo direito à liberdade, à justiça e à fraternidade? Deus decretou a miséria, ou ela foi decretada pela Igreja? E, se foi a Igreja, como a razão nos diz que foi, por que haveremos de suportar a fome e a pobreza, a ignorância e a obediência servil, por que haveremos de nos mostrar dóceis e humildes?”
Calou-se abruptamente, ofegante e fora de si.
O Cardeal já não se mostrava irônico nem divertido.
— O Abade Lovelle lhe disse tudo isso?
Apesar da sua agitação, o bispo ficou subitamente embaraçado.
— Não, Eminência. Foi uma senhora.
— Madame de Collioure, que teme pela própria vida?
— Não, Eminência. Devo confessar que foi uma outra senhora, que vive em pecado com o conde, mas que é uma boa católica, recentemente convertida à Santa Madre Igreja.
O bispo baixou discretamente os olhos, e a sua face gorducha enrubesceu.
— Ah! — murmurou o Cardeal, recostando-se nos seus travesseiros. — O conde mandou-a embora e ela quer se vingar dele?
— Pelo contrário, Eminência. Ele continua fiel a ela. A moça veio ter comigo, chorando e suplicando indulgência -pelo fato de o estar traindo, jurando que só após muita prece e meditação a sua consciência a levara a me procurar.
— Provavelmente, arranjou outro amante — sugeriu o Cardeal.
— Nada disso, Eminência! Deseja muito casar com o conde, mas, como pertence a uma classe inferior, ele não quer desposá-la.
— E ela pensa que, se ele se curvar à Igreja, poderá ser induzido, por você, a recompensá-la com o casamento?
Os olhinhos de porco do bispo piscaram.-Pigarreou e disse, num tom de contido desafio: e '
— Como Vossa Eminência há de perceber, isso seria mais do que justo.
O Cardeal olhou pára o Padre Joseph com um leve sorriso.
Mas a expressão do capuchinho não se alterou.
— Tudo isso é muito censurável — disse o Cardeal. E acrescentou, secamente: — Não obstante, embora já tenha sido feito, e com frequência, não vejo como, nos tempos que correm, um homem possa ser mandado para a Bastilha por praticar a caridade cristã com os que dele dependem.
— A Bastilha, para o Conde de Vitry? — exclamou o bispo, empalidecendo e contorcendo as mãos. — Conheci bem o falecido conde! Era muito meu amigo!
— Então, qual a vossa sugestão?
O bispo engoliu em seco e olhou, súplice, para o capuchinho.
— O bispo está numa situação muito delicada — disse o Padre Joseph, irritado com a calma e a indiferença do Cardeal. —
Pensou em remover o Podre Lovelle, que está pedindo para ser punido, pois teima em apoiar de Vitry no seu perigoso trabalho. Mas, afinal das contas, um de Vitry é um de Vitry, e o bispo hesita em ofendê-lo. Os de Vitry continuam sendo os senhores mais poderosos da localidade.
— E nós dependemos do apoio deles — rematou o Cardeal.
—Se Madame de Collioure fosse mais generosa! — suspirou o bispo.
— Mas não é. Por conseguinte, a principal fonte de ajuda à diocese provém de Monsieur le Comte, que deve ser um homem muito hábil.
— Um paradoxo — disse o capuchinho, erguendo significativamente as sobrancelhas.
O Cardeal recostou-se nas almofadas e uniu as pontas dos dedos. O capuchinho conhecia bem os sinais: o Cardeal preparava- se para se entregar ao prazer de discutir as idiossincrasias humanas.
— Trata-se de um jovem e poderoso magnata, de quem suspeitamos — disse Richelieu. — Suas atividades em Paris fazem parte de um farto dossiê. Nasceu e foi educado como católico, mas deixou de sê-lo, embora ainda não tenha sido excomungado. É um dos mais enérgicos inimigos da Igreja. Não obstante na prática ser huguenote, se não confessadamente protestante, mostra-se devotado ao velho Padre Lovelle, que o adora, e leva os seus camponeses à Igreja com uma dedicação e um 2elo que nossos mais aguerridos senhores católicos bem poderiam imitar. Um paradoxo, como você bem diz, meu caro Joseph. Não, não é bem um parodoxo. Não é a nossa religião que ele despreza e deseja destruir, mas a nós.
Sorriu, pensativo.
Entre nós, há os que não percebem a distinção, mas ela é clara para mim. Nem há confusão alguma nas atividades do jovem conde. É evidente que ele acredita na fé, na tolerância de todas as fés, mas que é inimigo de todo e qualquer seguidor de uma fé que ambicione o poder e a autoridade temporal.
— Essa distinção não passa de um sofisma — observou o capuchinho.
O Cardeal inclinou a cabeça, mas não retrucou. Passado um momento, porém, fez um sinal ao capuchinho, que se voltou polidamente para o bispo.
— Monsieur le Cardinal pede que se retire, por alguns momentos, para a antecâmara.
Ofendido e intrigado, o bispo saiu do quarto.
O padre Joseph voltou para a cabeceira da cama. Estava tão indignado que esqueceu o respeito habitual.
— Armand-Jean! Isto não é motivo para rir. Você sem dúvida percebe que, se as teorias e os métodos desse homem se espalharem por outras dioceses, a França e a Igreja estarão ameaçadas. A educação e a liberação das massas só podem resultar no desafio a toda a autoridade, no ateísmo e na heresia, num clamor e num questionar constantes, em confusão, caos e perda da autoridade do governo e da Igreja. O próximo passo será o povo exigir os seus direitos, fazendo com que o nosso antigo sistema caia por terra.
— Você sabe, tão bem quanto eu, que a autoridade tem de permanecer nas mãos daqueles que Deus indicou para detê-la. . . aqueles que, por berço e posição, herdaram essa autoridade. Você sabe que a Igreja sempre apoiou os direitos dos que herdaram uma posição, ou dos que a obtiveram com a ajuda dela, ou com a sua sanção. Permitir que uma migalha que seja de poder caia nas mãos do povo é contrariar a vontade de Deus e da Igreja, e só provocará revoluções sangrentas, heresia e desgraça.
Louis, involuntariamente levado pela paixão, aproximou-se dos pés da cama e olhou, primeiro para o capuchinho e depois para o Cardeal, com expressão desvairada. O Cardeal deitou um olhar distraído ao jovem sacerdote e de novo pensou qual seria o motivo do ódio espelhado no rosto dele.
— A sua imaginação, meu caro Louis, parece estar solta — observou Richelieu.
O Padre Joseph debruçou-se sobre a cama e fixou no Cardeal o seu olhar veemente e terrível.
— O protestantismo trouxe felicidade para o povo? Não! Trouxe apenas confusão, dúvida e falta de fé. A Igreja acredita no direito dós homens à felicidade e sabe que terras e riquezas não são necessárias à felicidade do povo. O homem comum só pode ficar desnorteado com a posse de bens materiais, porque as suas necessidades são tão simples quanto a sua natureza. A Santa Madre Igreja deseja, pois, evitar que o homem humilde obtenha bens materiais que lhe venham complicar a vida, tornando-o preocupado com a sua segurança, insuflando-lhe a vaidade e a cobiça, aumentando-lhe a vontade de ter cada vez mais. Ela sabe que, se ele conseguir tudo isso, constituirá uma ameaça para os seus senhores, conferirá autoridade, poder de decisão e consciência a si mesmo e não à Igreja e nem ao Estado. Q resultado inevitável será a anarquia, a morte da autoridade religiosa.'
— Não se deixe levar pela paixão — disse o Cardeal. Acaso discordei de você, meu caro-joseph?
O capuchinho bateu na cama com o punho cerrado.
— Não! Mas Vossa Eminência assume um ar de indiferença e tolerância, altamente perigoso! Sem dúvida percebe que de Vitry é mais perigoso para a França do que uma peste, não?
O Cardeal não se deixou perturbar pela indignação do amigo.
— Vamos considerar ponto por ponto e cogitar. Não advogo o procedimento do jovem conde. Mas tampouco acredito que de Vitry seja uma ameaça para a França. O que ele defende vingou, até cerio ponto, na Inglaterra, e, a julgar pelos relatórios que os meus agentes me mandam de lá, a Inglaterra não mostra sinais imediatos de desintegração e colapso...
—•Mas os franceses não são' ingleses! — retrucou o capuchinho, com desdém. — Os ingleses têm blocos de gelo no lugar das entranhas. São incapazes de excessos e paixões. Até mesmo a pequena alma que possuem é contida pela cautela, pela astúcia e pela cobiça próprias da raça. São incapazes de se devotar, de corpo e alma, a qualquer causa. Põem em primeiro lugar a preciosa pele. “Até onde isto vai afetar a minha loja, a minha oficina, a minha taberna, o meu pedaço de terra, a minha cerveja, a minha casa?”, perguntam eles. E isso os' faz pensar duas vezes. São incapazes de se dedicar a uma causa com fervor e desprendimento. Já o francês é capaz de queimar a própria alma no fogo das suas con—.
vições. É capaz de se imolar gritando de alegria. Tem garra, bravura- e capacidade de esquecer a si próprio. Entrega-se a tudo com fúria. Por iss.o, se o puserem em contato com estranhas e catastróficas teorias, e se ele se convencer delas, toda a França, toda a Igreja arderão como plumas envoltas em chamas. Esse é o perigo. Até aqui, a França não foi totalmente convertida ao protestantismo, graças à frieza e à esterilidade dessa heresia, que não possui colorido, dramaticidade, paixão ou glória, e nem exige o sacrifício da própria vida. Mas nas teorias do Conde de Vitry está o gérmen de tudo isso. Os homens não se sacrificam por uma tese intelectual, e sim por outros homens.
— Não acha isso nobre? — murmurou o Cardeal, com ironia.
— Acho perigoso. Para a França.
O Cardeal meditou longamente. Depois, o seu rosto aristocrático tornou-se aos poucos mais estreito, mais fino e mais pálido.
— Concordo com tudo o que você disse — observou, por fim.
O capuchinho respirou fundo, sentindo-se exausto. Olhou para
Louis, que lhe devolveu o olhar satisfeito.
— Não obstante, nós próprios estamos numa situação perigosa e delicada — continuou o Cardeal. — Vou passar em revista os fatos. A cura mais simples para a loucura do Conde de Vitry seria remover o velho Padre Lovelle, sem dúvida caquético, e substituí- lo por um padre capaz de controlar os camponeses de de Vitry, com sutileza, é claro. Mas, se removêssemos o Abade Lovelle, de Vitry ficaria furioso e desconfiado. Precisamos, pois, arranjar uma desculpa adequada. Além disso, de Vitry é amigo, embora não íntimo, do irmão de Sua Majestade, o Príncipe Gaston, por sua vez favorito da Rainha-Me, que não perçleria uma oportunidade de me aborrecer. Por outro lado, de Vitry tem outros amigos poderosos. Se ele já é perigoso dentro das_ suas propriedades, mais perigoso se tornará se o forçarmos a se defender. Pode até ir falar com Sua Majestade, que neste momento não está muito bem comigo. Quando estão envolvidos sentimentos pessoais, a razão vai por água abaixo.
Meditou profundamente, massageando os dedos, virando a mão esquerda de modo a que o magnífico anel que a adornava cintilasse à luz dourada que entrava pelo quarto.
— Se agirmos, terá que ser drasticamente, com. um golpe certeiro. Se pudermos remover o Padre Lovelle, quem você sugeriria para substituí-lo? Tem que ser um padre implacável, impiedoso, terrível, mesmo debaixo de uma capa de doçura e piedade.
Apesar do seu triunfo, o capuchinho empalideceu, fazendo com que a sua barba vermelha parecesse em fogo. O Cardeal olhou para ele com um meio-sorriso, até que o Padre Joseph desviou o olhar.
— Você acha que. . . um tal homem. . . poderia influenciar os camponeses contra de Vitry? Considerando tudo o que o conde fez por eles?
O capuchinho sacudiu a cabeça, com ar de dúvida.
Richelieu bateu de leve na mão do amigo.
— Até que enfim, meu caro Joseph, você é derrotado pela sua consciência.
Olhou, pensativo, para o teto.
— Vê-se bem que você não compreende as pessoas. A bondade não é uma condição natural nelas, e sim a maldade. Guiado -pelos seus instintos, um homem é antes cruel, mau e rancoroso do que compassivo, justo e tolerante. As pessoas nascem más. A bondade que gerações de padres e de sábios têm procurado lhes ensinar repousa precariamente, como uma coroa de flores, na cabeça de um macaco. Todo o príncipe que desejar governar à vontade precisa se lembrar disso. Basta entregar uma vítima ao povo para que ele próprio viva tranquilamente. Descobrimos isso com os judeus.
Uma expressão maligna contorceu-lhe os lábios finos.
— Um destes dias — murmurou para si mesmo — as pessoas ainda se vingarão de Jesus por Ele ás ter conclamado a andar eretas. . . uma posição muito desconfortável.
Voltou-se de novo para o Padre Joseph.
— Repito. . . quem você sugeriria para a nossa campanha contra de Vitry? Há um método mais direto, é claro: eliminar completamente de Vitry. Mas isso não destruiria a influência que ele estabeleceu sobre a sua gente. Seria canonizado como mártir. Não, a coisa precisa ir mais fundo, atingir o coração deles. Se for preciso destruir, eles que o façam.
O capuchinho não retrucou. Sua palidez era extrema. O Cardeal contemplou-o com cinismo divertido. Era sempre essa a sua estratégia, quando se cogitava de usar violência: delegar a solução a quem trouxera o problema à baila. Livrava-o, a ele, Richelieu, de sua responsabilidade.
Por fim, o Padre Joseph falou, em voz baixa, mas firme:
— Já tenho o homem. Vossa Eminência conhece-o bem: Monsenhor Antoine dè Pacilli.
Olharam um para o outro. Mas logo o Cardeal fez uma careta.
— Jamais gostei de italianos — disse.
O capuchinho fez um gesto de impaciência.
— Só o seu avô paterno era italiano. Vossa Eminência conhece bem a sua devoção, o seu fervor, o seu fanatismo. . .
— Nasceu demasiado tarde. O Santo Ofício perdeu um ótimo inquisidor — atalhou o Cardeal, provocante.
— Além disso, ele é praticamente desconhecido em Paris — continuou o Padre Joseph, fingindo não ter ouvido. — Isso lhe dá uma grande vantagem. É um homem brilhante, culto e sutil, capaz de desempenhar qualquer papel. Desde que chegou a Paris, vindo de Roma, tem levado uma vida de austeridade e obscuridade entre os monges franciscanos. Devota a sua vida à oração; embora muitas vezes tenha pedido audiência a Vossa Eminência, nunca a conseguiu.
— Repito, não gosto de italianos.
O capuchinho apertou os lábios.
— Você gosta, Armand-Jean, é de me irritar. Monsenhor de Pacilli esperou quase um ano por uma audiência, por uma posição, e você sempre se recusou a recebê-lo, embora ele tenha vindo depois do pedido que você mandou a Sua Santidade.
— Estive apenas pensando em como poderíamos usá-lo da maneira mais vantajosa possível.
— Então, essa maneira surgiu. Ele não é nem demasiado jovem, nem velho demais — acrescentou o capuchinho, com ironia. — Deixe que o bispo convença de Vitry da necessidade de dar umas férias ao velho Padre Lovelle, que tem duas sobrinhas e um sobrinho perto de Rouen. Pacilli tomará então o lugar dele, ostensivamente por algum tempo apenas. Só teremos de lhe explicar o que desejamos, e ele se encarregará do resto.
Em menos de duas horas, Monsenhor Antoine de Pacilli era admitido à presença do Cardeal, através de passagens secretas. Ninguém o viu chegar. Ele estava cheio de satisfação por ter sido, finalmente, chamado a falar com Sua Eminência.
Capítulo XXV
Havia, em Paul de Vitry, o misterioso e indefinível elemento de grandeza, que nada tem a ver com a fama, com a aclamação ou com a notoriedade. Falava simplesmente, mas com brandura. Tinha um sorriso de uma doçura singular. Quando ria, ria não só com os lábios, mas também com os olhos, e um brilho claro os iluminava. As suas maneiras eram gentis, como se ele se sentisse profundamente humilde. Embora as suas opiniões fossem veementes, nunca eram dogmáticas ou arrogantes. Vivia em constante apreensão de que elas pudessem ofender involuntariamente, e muitas vezes pedia desculpas por elas. Era generoso, compassivo, sutil e sensível. Amigo devotado, não sentia inimizade por ninguém. Não havia amargura ou ódio nele. Acima de tudo, era compassivo, detestando apenas a injustiça, a crueldade e a opressão.
Talvez fosse a soma de todas essas qualidades o que o tornasse tão superior. Possuía-as todas, ao passo que outros homens possuem apenas algumas. Talvez lhe faltasse medida na virtude: não tinha limites para a piedade, o amor, a ternura e a honra. Não havia moderação na sua bondade. O seu coração era infinito. Parecia uma fonte que jorra inexaurivelmente, não confinada pelas pedras da cautela, do egoísmo, da constante consideração da própria bondade, nem restringida pela lama do autocontrole ou da razão. Dava-se todo de coração e não se perguntava se, ao fazê-lo, mostrava sabedoria, prudência ou moderação.
A grandeza dos homens superiores está no completo abandono e na generosidade das suas almas. A grandeza de Paul estava também na sua infinita paixão, no horizonte ilimitado do seu espírito. Onde há artifício, há reserva; onde há reserva, não há grandeza. Parte da sua grandeza estava na sua falta de artifício e na sua nobre indiferença pela desaprovação, pela incredulidade ou pelo desprezo dos outros. Possuía uma enorme inocência que, entretanto, tinha consciência do mal. Mas nessa mesma consciência e no seu invariável e indignado espanto diante dela, é que residia a afirmação da sua majestade. Havia nele a qualidade do exagero, que é a marca de toda a grandeza, boa ou má.
Por tudo isso, era adorado por alguns poucos e odiado pela maioria das pessoas, pois a grandeza, num homem, é geralmente considerada um pecado imperdoável.
Arsène sempre o estimara, mas fora só depois que a sua consciência despertara, que ele se apercebera da grandeza do amigo.
Não teria dito-: — Confiaria a minha vida a Paul — porque, numa afirmação dessas, há um elemento de conscientização, e, para Arsène, esse era um fato empírico.
Assim que deixara o Palácio Cardinalício dirigira-se imediatamente à casa do amigo para lhe contar a proposta recebida. Paul escutara-o com a maior das atenções.
— Acho que tenho de aceitar — disse Arsène — por muitas razões, entre elas o fato de, ocupando um posto desses, ficar sabendo, em primeira mão, dos planos do homem.
Ao ouvir aquilo, Paul soltara uma gargalhada involuntária.
— Arsène, eu adoro você! — exclamara.
Mas logo, diante do ar ofendido do amigo, apressara-se a lhe passar a mão pelo ombro.
— Pronto, já o aborreci! Mas você deve compreender que isso não vai ser possível. A simples aceitação desse posto não o livraria de suspeitas. Pelo contrário, tornaria mais fácil espioná-lo. Que alma galante, mas inocente, a sua, Arsène! Você é por demais apaixonado, por demais temperamental, para ser sutil. Além disso, você se sentiria muito infeliz. A traição não combina com você. Não posso aconselhá-lo a aceitar uma situação dessas. Além do mais, a ideia, em si, é imoral. Não se aceitam favores, nem se faz juramento quando se está determinado a traí-lo.
— Você é que é inocente — disse Arsène, irritado.
— Não — retrucou Paul, subitamente sério —, não é isso. Não quero que você se sacrifique, nem por mim, nem pelos nossos amigos.
— Mas, se eu não fizer, você correrá perigo.
— Não mais do que já corro. Tudo está nas mãos de Deus. — E acrescentou: Não temo demasiado por você, Arsène. Você é filho do Marquês du Vaubon.
— Não obstante — disse Arsène — isso não impediu o Cardeal de contratar um assassino para me despachar.
— O melhor que você tem a fazer, então, é informar um grande círculo de amigos e conhecidos da oferta do Cardeal e da sua recusa, a contragosto. Desconfio de que até o Cardeal hesitaria em fazer algo que o colocasse sob a pior das suspeitas.
Suspirou e começou a falar do Duque de Tremblant e do holandês.
— Partem esta noite, sem dar nas vistas, acompanhados apenas de um. pequeno número de guardas. Um grande séquito suscitaria curiosidade e desconfiança. Vão viajar modestamente, a cavalo, de modo a parecerem homens simples, fazendo uma viagem de negócios.
— A estrada está infestada — disse Arsène, preocupado. — Além disso, não creio que o Cardeal não saiba de nada.
— Não pode saber. Apenas de Bouillon, de Rohan, eu e você sabemos dessa viagem. De onde, pois, poderia partir uma traição? Além do mais, quem ousaria molestar o Duque de Tremblant, mesmo que todos soubessem?
— Você não conhece o Cardeal!
Paul perguntou então a Arsène se gostaria de acompanhá-lo numa visita às suas propriedades. Percebera que o seu bravo amigo estava começando a pensar, e resolvera tomar a si a orientação dos seus pensamentos. Arsène confessou-se encantado com a ideia.
— Mas tenho que voltar daqui a cinco dias — explicou — para o meu casamento.
Disse aquilo calmamente, sem que os olhos lhe brilhassem, sem um sorriso de ternura. Paul olhou para ele. Quando Arsène falava do seu próximo casamento, uma sombra lhe escurecia, os olhos e lhe pairava sobre a boca. Paul não disse nada, mas sentiu uma certa tristeza.
— Partiremos amanhã, então — falou.
Arsène enviou uma carta ao Cardeal, na qual declinava, com as mais exageradas expressões de desgosto, a honra que lhe fora oferecida. Contou ao pai sobre a oferta e a recusa, e o Marquês ficou furioso e desapontado. . , . ;
— Tinha sonhado tanto com isso, seu idiota, seu imbecil! — exclamou. -
— Como poderia eu trair as minhas convicções? — retrucou Arsène, divertido.
— Ora, convicções! Só as mulheres e os eunucos podem ter convicções! Um homem ambicioso não se pode permitir uma tal loucura,
— Não sou ambicioso, pai — replicou Arsène.
— O que você é, é um sem-vergonha! — gritou o marquês. — Ainda não percebeu que essa é a sua única oportunidade de escapar à morte? Nunca pensou que o Cardeal pode vir a saber de você e do seu envolvimento com Les Blanches?-
Q marquês empalideceu, ao falar naquilo, e Arsène compreendeu o terror em que o pai permanentemente vivia.
Procurou tranquilizá-lo.
— Ele não vai me mandar matar. Vou contar a todo mundo que ele me fez essa oferta e que a recusei, a contragosto, por não poder me submeter a uma vida disciplinada. Isso atará as mãos do Cardeal.
O marquês retorceu as mãos, e nem mesmo Arsène pôde sorrir, ao ver aquele gesto tão teatral.
— .Eu lhe peço! — disse o marquês. — Será que você não pode fazer esse favor ao seu pai? Já parou para pensar na angústia e no medo em que vivo, por sua causa? Quanto tempo você acha que vai passar, antes de você ser um homem perdido?
— Tenho pensado muito no meu avô — replicou Arsène calmamente.
Ao ouvir aquilo, o marquês ficou calado, os lábios tremendo, os olhos piscando. Uma expressão estranha surgiu no seu rosto, e, passado um momento, olhou para Arsène como se estivesse vendo um estranho. Por fim, disse, numa voz sumida:
— Então, faça o que você acha que deve.
Arsène ficou espantado. Num impulso de amor e ternura, procurou consolar o pai. Nunca na sua vida sentira tanto afeto e tanta gratidão para com ele, e sentia-se perturbado. Mas, embora o marquês acenasse aqueles gestos de consolo, de apreciação e compreensão, não se conformava. Deixou que Arsène lhe beijasse a face e lhe segurasse a mão. Quando o filho tentou retirar a mão, o marquês agarrou-se a ela, os olhos marejados de lágrimas.
Mais tarde, Arsène ficou pensando naquela estranha cena. Se- .' ria possível que, no fundo, no fundo, houvesse uma certa nobreza no frívolo e leviano marquês, que vivia apenas para as intrigas, as mulheres, os perfumes e a Corte? Custava-lhe crer.
Tinha-se descuidado de Mademoiselle Clarisse de Tremblant, ultimamente, e, nessa noite, resolveu ir visitar a noiva, dirigindo-se para o hôtel de Tremblant no seu sóbrio gibão com meias escuras.
O galante cavalheiro já não parecia ligar para os belos trajes. Até então, Arsène de Richepin fora conhecido pela elegância e pelos ótimos alfaiates, que lhe realçavam a bela figura. Mas, ultimamente, o seu guarda-roupa fora descurado. Pierre, o seu valet, abanava tristemente a cabeça, ao escovar as roupas não usadas e engraxar as esplêndidas botas, ora raramente calçadas.
— Monsieur está parecendo um puritano inglês — queixava-se ele.
Até mesmo os sabres de cabo precioso pendiam, empoeirados, das paredes. Arsène só carregava consigo a espada do avô, como se fosse um talismã,
Ao aproximar-se do hôtel de Tremblant, viu que as altas janelas estavam todas iluminadas e que uma música suave provinha dos jardins atrás do palacete, alumiados por miríades de lanterninhas penduradas das altas árvores. Carruagens entravam pelas ruas estreitas, cheias de parisienses esfarrapados, que olhavam, curiosos, ou discutiam, fazendo uso de expressões obscenas, as personalidades das várias damas elegantes e perfumadas, e dos cavalheiros que desembarcavam dos coches. Eram mantidos a uma distância respeitosa por destacamentos dos mosqueteiros do Rei e do Cardeal, que a toda hora faziam reverências e tiravam os chapéus emplumados. O barulho de vozes ressoava por toda a vizinhança. Quando os criados abriam as portas de carvalho maciço, a luz iluminava a rua escura e fétida, e a populaça vaiava ou dava vivas. No meio da massa anônima, os parisienses esqueciam o respeito, e até os mosqueteiros sorriam de alguns dos dichotes que eles gritavam. A distância, as torres de Notre Dame recortavam-se contra um céu azul- escuro, cheio de estrelas trêmulas.
Arsène parou, perplexo, diante da multidão. Procurou recor- dar-se. Que teria ele esquecido agora? A multidão comprimia-o, empurrava-o, pois ele não se distinguia, no modo de vestir, de qualquer outro homem, exceto pela espada. Sentiu os horríveis cheiros de suor e sujeira que emanavam do zé-povinho, e fçz uma careta. Olhou em volta, para os rostos iluminados pelas tochas; de repente, o terror tomou conta dele. Porque, naqueles rostos escuros e sujos, de olhos brilhantes e negros, e risadas ameaçadoras, ele percebia um perigo informe, mas terrível. Riam e gritavam a cada carruagem que chegava e- a cada nobre que desembarcava; mas, debaixo daquelas risadas, escondiam-se bestas selvagens e enjauladas, famintas e poderosas.
Viu o comandante da Guarda do Rei a uma pequena distância, e esforçou-se por alcançá-lo. Braços, ombros, corpos bloqueavam-lhe o passo. Finalmente, desesperado, como um homem que estivesse se afogando, gritou para o comandante, que se voltou, espantado, para onde vinha a voz. Avançou para ele, e a multidão foi abrindo caminho. Quando viu quem o tinha chamado, a sua boca abriu-se num espanto imbecil.
— Monsieur de Richepin! — exclamou ele, incrédulo, e olhou para trás, como se esperasse ver uma duplicata de Arsène desembarcando de alguma carruagem.
Custou-lhe convencer-se de que aquele jovem desgrenhado, que tentava avançar por entre a multidão, fosse, realmente, Arsène de Richepin.
Finalmente convencido de que se tratava mesmo de Arsène, puxou-o dentre o povaréu e ficou a olhar, ainda mais espantado, para a roupa simples e amassada do jovem aristocrata.
— Ma foi! — exclamou Arsène, esfregando a capa com a mão e tirando o chapéu, para poder endireitar a pluma. — O que está acontecendo aqui?
O comandante ficou sem fala. Os olhos esbugalharam-se. Parecia um peixe tirado da água. Dois ou três dos seus homens aproximaram-se e, ao reconhecerem Arsène, ficaram também boquiabertos. Arsène, embaraçado, perguntou, numa voz irritada:
— Será que todos ficaram mudos? Que está acontecendo?
O comandante foi o primeiro a recuperar a fala.
— Será possível que monsieur se esqueceu da festa em honra de si mesmo e de Mademoiselle de Tremblant, e de que o Cardeal e Sua Majestade estão sendo esperados de um momento para o outro? w
Arsène empalideceu.
— Ah, sim —• murmurou ele. — Tinha-me esquecido.
Ao ouvir aquilo, o comandante deu a impressão de ir desmaiar. Começou a tremer.
— O Marquês de Vaubon e Monsenhor de Richepin já chegaram — disse ele, numa voz fraca. — Sem dúvida estão surpresos com a vossa ausência.
Arsène sentiu-se tomado de aflição. Não estar presente para receber Suas Majestades seria algo imperdoável. Madame de Tremblant nunca lhe perdoaria a afronta, e muito menos o Rei. Mas como iria ele entrar vestido daquela maneira, com uma roupa empoeira- da, usada e apropriada apenas para a rua? Não tinha tempo de voltar ao hôtel de Vaubon para mudar de trajes. A qualquer momento, chegariam os augustos convidados.
— Abra caminho para que eu possa alcançar a entrada de serviço — pediu ele ao comandante dos guardas, enquanto se amaldiçoava a si mesmo.
Os homens de guarda na entrada de serviço não ficaram menos espantados do que o comandante dos mosqueteiros. Os criados mal podiam acreditar nos seus olhos. Arsène pediu que o conduzissem aos aposentos do Duque de Tremblant, onde deparou com o duque, entregue, com total indiferença, aos cuidados dos seus va- lets. Um deles segurava uma peruca cacheada, que o duque contemplava com evidente desgosto. Ao ver a figura de Arsène através do espelho, ficou um momento olhando, incrédulo. Depois, voltou-se e caiu na gargalhada, pois a cara desesperada do jovem, o seu cabelo em desalinho, as suas roupas amassadas, compunham uma estranha e inesperada visão.
— Não há tempo para risos ou explicações — disse Arsène apressadamente e em tom ofendido. — Só que eu me esqueci da festa e não tenho tempo de voltar ao hôtel du Vaubon.
Seu rosto moreno estava vermelho de raiva de si mesmo. Não podia suportar que rissem à custa dele.
— Tenho que lhe pedir perdão, Monsieur le Duc, e perguntar se não me seria possível usar um dos seus trajes.
O duque parara de rir, mas os seus graves olhos castanhos tinham uma expressão divertida.
— Que noivo é este? — murmurou.
Mas logo olhou para Arsène com a habitual gravidade. Voltou- se para os atônitos valets e disse:
— Vejam se podemos atender ao pedido de Monsieur de Richepin.
Pôs-se de pé. Era uns cinco centímetros mais alto do que Arsé- ne. Andou devagar à volta dele, acompanhado dos valets, com a cabeça inclinada e um ar de dúvida. Mesmo a distância e apesar das portas maciças, a música e os sons da festa chegavam até ali. Gotas de suor brotavam da testa de Arsène, e ele sentiu o calor subir-lhe às faces. Parecia um animal estranho, sendo cuidadosamente examinado. Sentia-se humilhado e ultraconsciente do seu corpo.
Por fim, um dos valets correu para o guarda-roupa e voltou com um belo traje de veludo cor de ameixa, com enfeites dourados. Outro valet trouxe uma camisa de seda branca, com a gola e os punhos de renda. Um terceiro procurou numa cômoda e voltou, triunfante, com uma peruca cacheada, meias de seda e escarpins de fivelas douradas.
— Ah, sim — disse o duque, aliviado. — É a roupa que eu pensava devolver ao meu alfaiate, por ter ficado pequena demais para mim. Depressa, rapazes, depressa!
A confusão desceu sobre o quarto de vestir, forrado de espelhos. De um momento para o outro, surgiram bacias cheias de água perfumada e toalhas brancas. Os valets caíram freneticamente sobre Arsène, enquanto o duque, de novo sorrindo, cuidava ele mesmo da sua toalete. Massageado, esfregado, despido, manipulado, Arsène, cada vez mais mortificado, deixava-os cuidar de si. De repente, viu no espelho a cara do duque, com a peruca descaindo-lhe sobre uma orelha, e não pôde deixar de rir.
Mas o gibão estava comprido demais para ele e não havia tempo para encurtá-lo. Os escarpins eram demasiado grandes, e um dos valets teve a ideia de enfiar na ponta um lenço rasgado. A peruca tinha uma tendência alarmante a lhe cair para os olhos. Outro lenço foi dobrado em cima da cabeça dele, para que a peruca se ajustasse melhor.
— Se monsieur tiver cuidado e mantiver a cabeça ereta — disse um dos valets —, não haverá perigo.
A música aumentou nos jardins e nos salões. Um dos valets aproximou-se do duque para os toques finais. A essa altura dos acontecimentos, Arsène já estava de um mau humor terrível. Gostava de brincadeiras, mas não à sua custa. Sentia-se ofendido na sua dignidade. Afivelou ele próprio a espada. O duque estava púr- pura, na sua tentativa de conservar a gravidade. Viu que Arsène se movia cautelosamente, pois os calções lhe estavam bastante apertados. As longas pernas do duque eram famosas pela magreza. Arsène procurou puxar a aba do gibão sobre as coxas reluzentes. Reparou, aborrecido, que a roupa emprestada ficava demasiado larga ou demasiado justa nos lugares estratégicos.
Não obstante, o conjunto tinha a magnificência desejada. Fingindo não reparar no olhar divertido do duque, inclinou-se cuidadosamente para a frente e contemplou-se no espelho, esfregando uma das faces, demasiado pintadas. De repente, ouviram uma fanfarra distante e o rugido da multidão na rua. Simultaneamente, ele e o duque correram para a porta, com os valets atrás deles pelo corredor, borrifando-os desesperadamente com perfume, acenando com lenços esquecidos, brandindo os frascos de perfume. A criadagem, boquiaberta e atônita, olhava para a estranha cena de Arsène e do duque correndo, perseguidos pelos valets.
Os criados deixaram-nos no alto da grande escadaria de mármore e metal dourado, e os dois desceram correndo, atravessando por entre os convidados, que se exibiam elegantemente nos degraus. O duque pegou no braço de Arsène e arrastou-o para o lugar onde Madame de Tremblant, cercada pelas oito filhas, esperava. Mesmo a distância, via-se que madame estava furiosa. O rosto largo e grosseiro, encimado por um penteado complicado, estava vermelho de raiva, e os olhos dardejavam perigosamente. Abanava-se com furor e olhava para a multidão com um brilho que não augurava coisa boa.
O duque tocou-lhe o braço, e ela voltou-se rapidamente, resfolegando. Seus olhos cinza pálidos caíram em Arsène, e uma expressão malévola espraiou-se sobre as suas feições plebeias.
— Ah, então o nosso convidado menos importante condescendeu, finalmente, em chegar! — gritou ela, na sua voz rouca e estertorante.
Fez uma reverência exagerada. As filhas, com exceção de Mar- guerite e Clarisse, riram disfarçadamente, por trás dos leques de renda. Os convidados que tinham ouvido — e eram muitos — também riram, ou sorriram abertamente.
O rosto de Arsène estava vermelho-escuro, e inclinou-se, sem responder, numa reverência contrariada. O duque apressou-se a dizer à cunhada:
— Lucille, a culpa foi minha. Detive Arsène, com uma discussão. . .
Mas Madame de Tremblant não se deixou convencer. Olhou para Arsène dos pés à cabeça.
— Pelo que vejo, a discussão obrigou-o a vestir um dos seus trajes — observou ela.
As filhas riram de novo, assim como os convidados. Arsène levou a mão ao cabo da espada e olhou em volta, furioso.
— Por favor, Lucille — disse o duque com severidade e encarou os outros de tal maneira, que eles logo pararam de rir.
Madame de Tremblant sacudiu a cabeça, e a sua boca, larga e grossa, muito pintada, comprimiu-se ameaçadoramente. Mas não disse mais nada.
Era uma mulher grande de altura e dimensões, mais à vontade caçando, no dorso de um cavalo, do que num salão. Seu vestido de veludo lilás acentuava-lhe o colorido natural, enfatizado pelo ruge vermelho-alaranjado, e o decote baixo, espumado de rendas, mal lhe escondia os seios enormes. Os bastos cabelos, elaboradamente penteados em forma^de torre, da qual caíam cascatas de cachos, não combinavam com os olhos de expressão 'ousada, com o nariz grosseiro e a boca sensual. Parecia uma virago metida em roupas delicadas. Adepta das caçadas, desdenhava os vestidos elegantes, e o seu pescoço, tisnado pelo sol, parecia de couro, assim como as grandes mãos masculinas, ora carregadas de joias. As pérolas que lhe ornavam o pescoço contrastavam de maneira alarmante com a sua cor morena e a textura da sua pele. Seu andar era pesado. Seu caráter, uma mistura de franqueza e manha, obscenidade e brusquidão, lascívia e brutalidade, bom-humor e crueldade, generosidade e avareza. Era uma das mulheres mais poderosas e temidas de Paris. O Rei gostava dela e da sua voz potente. Quanto ao Cardeal, apreciava a sua companhia e repetia incessantemente os seus ditos de espírito.
As filhas rodeavam-na como flores graciosas, em volta de uma estátua enorme, representando uma camponesa em trajes de gala. Annette, Yvonne, Bernadette, Louise, Antoniette e Marie estavam acompanhadas dos jovens e aristocráticos maridos. Clarisse ocupava a direita da mãe; perto dela, com um ar doce e humilde, estava Marguerite. Clarisse era a mais bela das demoiselles Tremblant, a mais alta, a mais graciosa, a mais delicada de rosto e atitudes, a mais lânguida. A sua pele parecia de alabastro. As rosas das suas faces não precisavam de artifícios. Os braços rivalizavam com os da Rainha, e os ombros brilhavam como se polidos por mão amorosa. Um homem podia enlaçar com as mãos a sua cinturinha. O busto era perfeito. O vestido, de cetim branco adornado de renda feita à mão, atraía os olhares invejosos das outras mulheres. Tinha uma profusão de cachinhos louros e sedosos, que lhe caíam em cascata sobre o pescoço branco e os ombros. Seu rosto era oval e delicadamente cinzelado. Os olhos eram grandes e azuis. A boca, Uma flor rosada e sorridente. Nada podia ser mais doce do que a sua expressão, ou mais fascinante, pois transmitia ao mesmo tempo uma impressão de recato e malícia, vivacidade e alegria. Os gestos das suas lindas mãos eram enfatizados pelo faiscar das joias que lhe ornavam os dedos. Se a sua beleza não era artificial, o mesmo não se podia dizer da sua alma. Sua mãe, o seu confessor, o seu noivo só a conheciam até onde ela permitia. Isso fazia parte do seu encanto. Possuía mil facetas, cada qual mais graciosa, mais feiticeira, mais encantadora. Era a predileta da mãe. Nem mesmo aquela dama dura e belicosa podia resistir ao fascínio da jovem, muito embora, ao contrário dos outros, Madame de Tremblant desconfiasse de que, sob a beleza e o aspecto delicado da filha, existisse uma alma mesquinha e avarenta, destituída de caridade, amor, ternura ou espírito. Não obstante, tinha muito orgulho da filha.
Arsène, que, quando não estava com a noiva, esquecia-a completamente, na presença dela não podia resistir aos seus encantos. Estonteavam-no, faziam com que ele ficasse num estado de confusão e adoração. Ela só precisava atirar-lhe um olhar azul e lúcido para que ele se esquecesse do resto do mundo. Bastava-lhe sorrir para que ele se arrastasse a seus pés. Quando lhe beijava a mão, sentia-se perdido.
Fez um beicinho caprichoso e inclinou a cabeça, enquanto ele lhe murmurava as suas desculpas. Ao sentir o hálito dele queimar- lhe, ardente, a face, ela cobriu o rosto com o leque, e, por sua vez, os cachos cobriram-lhe o pescoço e a testa. Mas nessa noite, sem que ele soubesse por quê, Arsène se cansou depressa de toda aquela representação. Virou-se para Marguerite, por quem sentia uma grande ternura.
Vestida de veludo azul e rendas, Marguerite esiava tão encantadora quanto a irmã, mas era tão tímida e modesta que a sua beleza não saltava tanto aos olhos. A pureza da sua alma iluminava- lhe o rosto e os olhos profundos e inocentes. Menor e mais frágil do que Clarisse, era, porém, perfeitamente proporcionada. Arsène beijou-lhe suavemente a mão. Ao erguer os olhos, viu que o rosto dela brilhava, ruborizado, mas sentiu, na sua expressão, uma estranha tristeza. A jovem parecia ainda mais etérea do que de costume, mais frágil. As veias azuis das suas têmporas pulsavam febrilmente. A mão que ele segurava estava quente e trêmula. Sabia que a mãe estava sempre ralhando com ela pelo fato de recusar, obstinadamente, a corte dos seus inúmeros pretendentes. Ouvira dizer que ela pensava entrar para um convento, coisa que indignava Madame de Tremblant, considerada por todos como pagã. Contudo, nunca ninguém ouvira a pobre moça dizer uma palavra de queixa ou de impaciência. Tinha dezessete anos, era um ano mais velha que Clarisse. Era uma idade perigosa para uma solteira, e os jovens nobres já começavam a olhar para damas mais novas.
Arsène, antes pouco sutil, nessa noite sentiu um vago alarme em relação à moça, e uma grande ternura, semelhante à que se sente na presença de uma criança ameaçada por um destino infeliz. O brilho dos seus olhos era demasiado febril, as suas cores por demais vibrantes, a sua pele demasiado tênue. Notou que ela tinha as pálpebras inchadas e descoloridas, como se chorasse muito. Enquanto ele lhe dirigia a palavra, o olhar dela parecia procurar alguém na multidão, e o seu tremor tornou-se mais evidente. Arsène seguiu-lKe o olhar, curioso. Por quem estaria ela esperando? Aquele coração virginal teria, por fim, sido tocado?
Os grandes salões eram iluminados pelos enormes lustres de cristal que pendiam do teto. As paredes, forradas de seda, estavam quase escondidas pelos arranjos de flores e ramos de folhagens. Os soalhos, encerados e polidos como espelhos, refletiam as silhuetas coloridas dos convidados e os seus movimentos, fazendo com que parecessem flores altas espelhadas num lago brilhante. O ar estava permeado de centenas de perfumes, dos murmúrios e dos risos de centenas de vozes alegres e dos acordes distantes da música. Os sentidos não tardavam a ficar estonteantes com as luzes, o calor, o colorido das roupas, os gestos rápidos, o roçagar dos vestidos, o girar de centenas de cabeças cacheadas e o faiscar de outras tantas mãos cobertas de anéis. A vista ficava confusa com o reluzir de inúmeros braços, o brilhar de muitos olhos e o cintilar de um sem-número de pedras. Madame de Tremblant estava entediadíssima. Detestava os cortesãos, embora eles a adorassem, se reunissem à sua volta para ouvir-lhe o último dito indecente, que depois repetiam para os que estavam atrás deles, e assim sucessivamente, numa maré montante de risos. Tomava-se muito rapé, brandiam-se muitos lenços de renda, flertava-se a torto e a direito. As damas fingiam corar, mas, apesar da sua coqueteria, não havia uma face cujo rubor fosse natural.
A fanfarra que Arsène e o Duque de Tremblant tinham ouvido, nos aposentos deste último, anunciara a chegada do Cardeal. As portas se abriram, e surgiu o comandante dos mosqueteiros de Richelieu, seguido dos seus homens, que formaram alas e ergueram as espadas em arco.
O Cardeal entrou. Vestido de veludo negro, severamente adornado de linho branco no pescoço e nos punhos, a sua presença era, como sempre, majestosa. A capa fora removida, revelando-lhe a silhueta esbelta, ereta e harmoniosa. Nada podia ser mais aristocrático do que o seu fino semblante, com o pontudo cavanhaque. Nada mais sobranceiro e, ao mesmo tempo, paternal, do que o dardejar dos seus olhos felinos, que tudo viam com um rápido relancear. Os lentos e nobres movimentos da sua pequena e orgulhosa cabeça suscitavam respeito e reverência. O sorriso, sutil e irônico, inspirava medo e apreensão. A doença aumentara-lhe a palidez a ponto de ele parecer um espectro. A delicada ossatura do seu rosto transparecia sob a pele translúcida. Todo ele irradiava poder e uma divertida condescendência.,Ninguém olhava para ele sem sentir ódio, aversão ou servilismo. Todos os corações batiam mais depressa, diante dele. Todos os sorrisos eram artificiais e nervosos. Um suor frio irrompia nos rostos alegres, calava as võzes frívolas.
Era por demais grande e poderoso para sentir ^muita “Satisfação na impressão que causava. Além disso, tinha demasiado desprezo pelos seus semelhantes para experimentar uma sensação mais grata do que a de um homem comum, ao entrar numa selva é ver os olhos dos animais fitá-lo, com medo. Mas nada disso transparecia, enquanto ele avançava para a dona da casa, sorrindo gentilmente.
Madame de Tremblant estendeu-lhe a mão vermelha e piscou- lhe o olho, ao mesmo tempo em que ria lascivamente.
— Ora, ora, Monsieur le Duc! — exclamou, na sua voz tonitruante. — Tinham-me dito que Vossa Eminência estava indisposto e não poderia nos honrar com a sua presença esta noite.
— Um convite de Madame de Tremblant é uma ordem — replicou o Cardeal.
Ao ouvir aquilo, ela riu e bateu-lhe impudentemente no ombro com o leque.
— Ah, que cortesia a sua! — disse ela. — A gente sente-se tentada a acreditar, e a esquecer que Vossa Eminência é um príncipe da Igreja!
O Cardeal não se ofendeu. Um sorriso divertido tocou-lhe os lábios pálidos e delicados e aqueceu-lhe os olhos frios.
Ela inclinou-se para ele e murmurou, com voz rouca:
— O pedaço de ferro é atraído para o ímã, não é mesmo? Só que o ímã ainda não chegou.
— Não deve tardar — retrucou o Cardeal, com um olhar frio.
Madame de Tremblant ficou desapontada. Esperava um rubor, um estremecimento, um olhar irritado, uma tentativa de intimidação. Provocara o Cardeal, mas ele limitava-se a olhar para ela como que vazio.
Ela voltou ao ataque.
— Ah, os homens são todos iguais, mesmo os religiosos — murmurou. — Não obstante, as mulheres perdoam, compreendem e até se sentem gratas.
O Cardeal sorriu levemente e voltou a sua atenção para as belas filhas de Madame de Tremblant. Um calor inflamou-lhe as feições transparentes. Aceitou as reverências das jovens com a maior benevolência. Quando chegou a vez de Marguerite, o seu olhar tornou-se inescrutável.
— Posso perguntar pela saúde de mademoiselle? — perguntou, suavemente. — Ela não parece estar muito bem.
A moça corou violentamente, e os seus olhos dourados se nublaram. Madame de Tremblant interveio:
—•Ah, o que é ser mãe! Ela ainda não está noiva e continua falando em entrar para o convento. Será que Monsenhor não a pode dissuadir e receber toda a gratidão de quem já não sabe o que fazer?
Mas o Cardeal olhava atentamente para a moça. Segurou-lhe a mão com força e sentiu-lhe o esforço instintivo para retirá-la. A expressão dele era grave, mas não disse nada.
Reparou em Arsène, que o olhava com cautela e incerteza. Sorriu, colocou a mão no ombro do jovem e abanou a cabeça.
—1 Ah, eu não esperava por uma decepção dessas! — exclamou. — Mas ainda não estou resignado, ainda não perdi as esperanças.
Fez uma pausa, reparando no sorriso nervoso de Arsène e no seu vago abanar de cabeça. Falou numa voz um pouco mais alta, e o seu olhar, rápido e penetrante, pousou sem dar a perceber, no rosto encantador de Marguerite de Tremblant.
— Esperava que seu irmão Louis viesse comigo, esta noite — disse ele —, mas, infelizmente, ele alegou indisposição e muito que fazer.
Sentiu, mais do que viu, o estremecer da moça, a sua súbita palidez, o leve descair das pálpebras. Ninguém mais notou, só o Cardeal. Embora continuasse a sorrir, suspirou internamente. Viu a jovem recuar até se misturar com a multidão, a cabeça pendendo- lhe sobre o peito.
O Marquês du Vaubon conseguirá finalmente abrir caminho por entre os hóspedes, fazendo reverências, gingando, arqueando as sobrancelhas, acenando com o lenço perfumado, sempre seguido de dezenas de olhares masculinos, que lhe observavam todos os detalhes da indumentária, de veludo dourado com enfeites pretos. Sua cabeleira, de cachos negros, era enorme. Os punhos eram de renda bordada com pedrarias, e o mesmo detalhe se repetia nas abas do seu casaco. No pescoço, um jabot de rendas resplandecia de diamantes. Satisfeitíssimo com a sensação que provocava, pensou consigo mesmo que o dia seguinte seria um dia cheio para os alfaiates, os joalheiros e os fabricantes de rendas e perucas de Paris. Que responsabilidade, ser ditador de modas! As damas farejavam avaramente os seus novos perfumes e admiravam abertamente os seus trajes e as suas pernas esbeltas, que brilhavam, calçadas nas meias de seda dourada. Ele deitava olhares amorosos, à medida que ia passando por elas. O cansaço do seu rosto fino e malicioso era disfarçado por camadas de ruge e pó-de-arroz: Sinais pretos, recortados sob a forma de estrelas, flores, corações e losangos, adornavam-lhe as faces ossudas, o queixo e a testa,
— Ah! — murmurou o Cardeal. — O árbitro da elegância e o espelho da moda aproxima-se, esplendoroso!
O marquês era sempre motivo de diversão para ele. Achava-o um tonto, mas um tonto dotado de má língua, o que em parte o redimia.
Fez-lhe uma profunda reverência.
— Salve, Febo! — exclamou. — Mas onde está a sua carruagem?
Uma cascata de risos irrompeu dos convidados mais próximos. Arsène levou a mão à espada, disposto a. vingar aquela brincadeira à custa do pai. Mas o marquês era bem capaz de se defender. Por um momento, seus olhinhos negros brilharam, mal-intencionados, embora os seus lábios, pintados, permanecessem fixos, num sorriso que mais parecia uma careta.
Depois, retribuiu a reverência com maior exagero ainda, e disse:
— Salve, Plutão! Mas onde está Proserpina?
Bravo!, pensou Arsène, encantado com o espírito do pai. Olhou em volta, esperando veí sorrisos de aprovação. Mas o que viu alarmou-o. O Cardeal empalidecera mortalmente, diante daquele insulto e das suas implicações. Os convidados, horrorizados, começaram a recuar, deixando Richelieu e o marquês cara a cara, um diante do outro. O marquês sorria, satisfeito, e fitou o Cardeal nos olhos. Sua curta inteligência não se apercebera ainda da enormidade da loucura que cometera.
Então, pensou o Cardeal, todo mundo já sabe.
Madame de Tremblant era uma mulher astuta. Soltou uma risada.
— Que dois cultores dos clássicos! — exclamou. — Perdoem- nos, messieurs, se somos demasiado ignorantes para compreendermos tão sutis alusões.
Deitou um olhar duro em redor, e, como que obedecendo a uma ordem, as pessoas foram mais uma vez se aproximando e rodeando o Cardeal e o pateta do marquês, que continuava a se vangloriar do perigoso rasgo de espírito que tivera e a procurar colher olhares de admiração, como quem colhe flores.
Um motivo de distração surgiu então na pessoa de uma grande dama,.que ninguém, a não ser Madame de Tremblant, sabia que se encontrava no momento em Paris, pois todos pensavam que ela ainda estivesse recolhida à sua casa, em La Rochelle. Era tão raro ela vir a Paris, que só os convidados mais velhos se aperceberam imediatamente da sua identidade. Mas tanto os huguenotes quanto os católicos a olharam com admiração e respeito, pois se tratava da velha Duquesa de Rohan, amiga de toda a vida de Madame de Tremblant e velha amiga do Cardeal.
Todos se calaram, ao vê-la avançar, tranquilamente, por entre a brilhante assembleia de convidados, que lhe abriam instintivamente caminho, como se ela fosse um membro da realeza. E, na verdade, havia algo de majestoso no seu andar e nas suas maneiras. Dirigiu-se para a dona da casa com uma atitude imperiosa e altaneira, pois o seu sangue era mais nobre do que o dos que ocupavam o trono da França. Sua silhueta, embora diminuta, era perfeita. Autoridade e orgulho, soberba e aristocracia eram inerentes a cada gesto dela, a cada palavra, a cada frase que ela pronunciava, numa voz singularmente forte e calma para uma pessoa de físico tão frágil, O brilho do seu olhar era intimidante.
Vestia-se com majestosa elegância, o cabelo branco penteado para o alto da cabeça pequena e arrogante. Grandes brilhantes re- luziam nas suas orelhas; no pescoço ereto, embora enrugado; nas mãos, pouco maiores que as de uma criança. Seu rosto era fino, um pouco comprido, com um nariz álto e curvo, que lhe aumentava a expressão de dignidade. Seus olhos azuis eram firmes e soberanos, astutos e cínicos, ora cheios de tristeza, ora divertidos, ou frios e céticos. Sua boca, grande e pálida, sem qualquer pintura, expressava mil e um pensamentos contidos, mas podia, de um momento para o outro, assumir as linhas duras da coragem, do desdém e do frio ceticismo. Era uma mulher de grande inteligência e caráter, e os filhos respeitavam a sua opinião acima da de qualquer outra pessoa. Às vezes, quando estavam a sós, referiam-se a ela como “a nossa teimosa e adorável briixa velha”, mas diziam isso a brincar, com amor e reverência.
Madame de Tremblant cumprimentou-a com demonstrações de afeto, e as duas se beijaram. Outros se aproximaram para apresentar-lhe os seus respeitos e participar da conversa da duquesa, famosa pelo pugente senso de humor. Falava com impressionante franqueza e não hesitava em chamar um homem de imbecil na cara dele, se a sua imbecilidade a ofendia ou se ele lhe parecia estúpido. Acima de tudo, odiava os imbecis e não os deixava aproximar-se, mesmo que fossem dotados das mais nobres virtudes. Sem ilusões, mas estranhamente idealista, não dava uma opinião sem antes ter examinado todas as facetas e, quando a dava, era com autoridade e firmeza. Não obstante, os poucos a quem ela honrava com a sua amizade conheciam-lhe a grande bondade, a sensibilidade, a dedicação altruísta e o enorme tato.
O Cardeal, cujo rosto abatido adquirira vivacidade ao ver entrar a velha amiga, cumprimentou-a com uma afeição quase tão grande quanto a demonstrada por Madame de Tremblant. Os olhos dela brilharam, quando ele lhe tomou a mão e a levou galantemente aos lábios. Sorriu e declarou que, aparentemente, os últimos un- guentos que lhe mandara de La Rochelle tinham-lhe feito muito bem. Entendiam-se perfeitamente. Ambos eram movidos pela mesma paixão pela França e pelo desejo de ver a pátria -unida contra os seus inimigos. Tinham o mesmo espírito cínico e cético, o mesmo brilhante e profundo intelecto. Embora a duquesa não tivesse ambições pessoais de poder, compreendia-as no Cardeal e não o tinha em menor conta pelo fato de ele alimentá-las. Não obstante, isso a fazia sentir pena dele, da mesma forma que sentia pena das outras doenças que afetavam o corpo do Cardeal. Só a essa velha e aristocrática dama ele confidenciara toda a extensão dos seus sofrimentos físicos, e, quando ela ia a Paris, nunca deixava de lhe levar potes e frascos de remédios estranhos mas eficazes, que ela própria preparava. Quando ele lhe expressava fervorosos agradecimentos, fazia-o com a maior sinceridade.
Mas Madame de Tremblant não queria que o Cardeal lhe monopolizasse a velha amiga, a quem havia muito tempo não via. Quis que a duquesa admirasse as suas filhas e puxou-a para o lado.
— Ah, esse Cardeal! — comentou com a duquesa. — Que libertino! Mas não há dúvida de que é um homem encantador, com ótimas maneiras.
A duquesa sorriu.
— E as boas maneiras, num homem, são preciosas. Devo confessar, também, que temos muito em comum.
Seu rosto assumiu uma expressão ansiosa e secreta.
— Tem visto o meu Henri? Há uma semana que estou em Paris, mas, embora tenha recebido recados dele, ainda não o vi.
Madame de Tremblant olhou cautelosamente em volta, e o seu rosto escureceu de ansiedade.
— Henri esteve aqui em casa, discutindo certos assuntos com o Duque de Tremblant. Não sei do que se trata — acrescentou, apressadamente. — Nem quero saber. Acho que são perigosos.
A duquesa deitou-lhe um olhar inescrutável.
— Quando se tem filhas casadoiras, não é bom saber de coisas perigosas — disse ela.
O Cardeal viu, pensativo, as duas damas se afastarem e prometeu a si mesmo visitar em breve a duquesa. Adorava conversar com ela. Gostava da presença dela. Além disso, talvez ficasse sabendo de alguma coisa, acidentalmente, embora duvidasse, conhecendo a esperteza da velha amiga. Era mais provável que ela ficasse sabendo de algo através dele.
Sentiu alguém se aproximar e virou-se, com aquela agilidade felina que nunca deixava de desconcertar os outros. O Duque de Tremblant, que recuara um pouco à chegada do Cardeal, avançou para ele e fez-lhe uma reverência. Uma curiosa alteração se processou nas feições de Richelieu. De repente, dava a impressão de estar preocupado. Pousou a mão no ombro do duque e olhou-o nos olhos com tristeza e afeto.
— Você tem me negligenciado, monsieur — disse ele. — Não temos jogado nenhuma partidinha de xadrez, Quem sabe amanhã? Quer jantar comigo, no Palácio Cardinalício amanhã, às nove?
— Vossa Eminência lisonjeia-me — replicou o duque. — Amanhã? Talvez.
O Cardeal pressionou o ombro do duque com a mão, mas o seu rosto ficou menos sombrio. Continuou, porém, a fitar os olhos do amigo. Os demais convidados prestavam atenção a algo que o marquês dizia, e o duque e o Cardeal ficaram isolados, a não ser de Arsène, que se colocara atrás de Richelieu.
— Prometido? — insistiu o Cardeal.
O duque hesitou. Seu olhar encontrou o de Arsène, mas logo disse, em voz baixa:
— Prometido.
O Cardeal suspirou. Tirou o braço do ombro dó duque. Uma sombra toldou-lhe os olhos inquietos e incandescentes.
— Há poucas pessoas em Paris, a quem ouso chamar amigos — disse ele, e havia sinceridade na sua voz. — Vossa Eminência é uma delas, Monsieur le Duc.
Fez uma pausa e disse, numa voz penetrante:
— Se saísse de Paris, eu ficaria desolado, temendo que não voltasse.
O olhar do duque encontrou, involuntariamente, o de Arsène, Mas fez uma nova curvatura.
— Pode ter a certeza, Eminência, de que eu voltaria.
O Cardeal agarrou de repente o duque pelo braço e disse-lhe, com suavidade e urgência:
— Os tempos que correm são perigosos. Temo que não retornaria, monsieur. Refleti nisso.
O alarme nos olhos de Arsène transformara-se em terror. Seus lábios moveram-se quase sem ruído, mas o duque percebeu que ele dizia:
— Fomos traídos!
Mas de Tremblant sorriu calmamente. Gostava do Cardeal, como de tudo o que era sutil e brilhante. Tinha passado muitas horas agradáveis na sua companhia. Disse:
— Se eu decidisse sair de Paris, o que mais sentiria seria separar-me de Vossa Eminência..
O Cardeal calou-se. Parecia estar pensando em mil e uma coisas tristes. Seus olhos permaneceram fixos no duque, como se procurasse ler-lhe a alma, transmitir-lhe uma advertência desesperada. Via-se que oscilava intimamente entre a cautela e a sensatez, num acesso de generosidade natural.
— Monsieur — disse ele por fim, lenta e enfaticamente — tem uma natureza ingênua, nobre e confiante. Tais naturezas tendem a depositar confiança nos que não são dignos dela. Quero pre- veni-lo a tempo.
— Confio em que nenhum dos meus amigos seja indigno da minha confiança — retrucou o duque, com voz grave e triste.
— Isso não é uma nobre inocência — disse o Cardeal, subitamente impaciente — e sim egocentrismo. — Pegou no braço do duque. — Não me deixe — acrescentou. — Estou fatigado. Detesto conversas idiotas. Não me abandone, peço-lhe.
Afastaram-se juntos. Arsène seguiu-os com o olhar, cheio de ansiedade. Já ia atrás deles, quando sentiu um leque bater-lhe no braço. Era à sua noiva, e estava zangada, o que aumentava ainda mais a sua beleza.
— Não me está dando atenção, monsieur •— disse ela, inclinando a cabeça sobre o pescoço branco e fino. — Mas acho que já estou ficando acostumada.
Arsène não pôde esconder a impaciência. O Cardeal e o duque já haviam sido engolidos pela multidão. Ia dar um pretexto qualquer, mas o olhar azul de Clarisse subjugou-o. Beijou-lhe a mão.
— Perdoe-me, mademoiselle, a distração.
Ela fez beicinho, mas, no íntimo, já o perdoara. Seu sorriso tornou-se radiante. Sacudiu os cachos louros.
— Faltam dois dias para o nosso casamento — lembrou ela.
— É isso que faz com que monsieur fique distraído?
— O que mais há de ser? — murmurou ele galantemente, os olhos fixos no níveo busto da noiva, que logo corou,
— Confio em que me dê mais atenção depois do casamento!
— exclamou ela. — Não fui acostumada assim.
— Mademoiselle pode ter a certeza de que não terá motivos para se queixar.
Acompanhou essas palavras com um olhar tão amoroso e significativo, que ela corou ainda mais e deu uma risadinha, ao mesmo tempo em que cobria o rosto com o leque. Embora fosse virgem, seus pensamentos havia muito não eram virginais, e a sua mente era tão corrupta quanto o seu corpo permanecia inviolado.
Um grande cansaço caiu dé repente sobre Arsène. Onde estava a satisfação que antes sentia diante de toda aquela animação, daquela música, do colorido movimento dos cortesãos, daquela encan-
i adora jovem e daquelas luzes brilhahtes? Sentia um calor sufocante entrar-lhe pelas narinas, uma náusea no fundo do seu ser. De repente, assaltou-lhe uma terrível saudade, uma angústia profunda. Olhou para os olhos azuis de Mademoiselle de Tremblant e viu um par de outros olhos, não menos azuis, mas graves, doces e firmes. Onde tinha visto aqueles olhos? Como se esquecera deles?
Uma sombra escura como que o toldou. Viu paredes úmidas, o bruxulear de uma vela, sentiu cheiro de mofo, pobreza e poeira. E, à luz incerta de velas, viu um rosto pálido e jovem, severo e calmo, iluminado por aqueles esquecidos olhos azuis.
Não é possível!, pensou, aborrecido. Esqueci mesmo.
O seu aborrecimento aumentou. Mademoiselle de Tremblant ficou alarmada. Arsène tinha um desses rostos vividos e inquietos, que não conseguem ocultar nada, por mais que se esforcem. Viu que o noivo estava aborrecido, agitado, longe dali. É alguma mulher, pensou, com um misto de raiva e ciúme. Acostumada a analisar a natureza humana, reparou numa profunda mudança em Arsène que, subconscientemente, havia muito vinha observando. Parecia mais velho, cansado, e mais magro, como se alguma preocupação não o deixasse repousar. Vivendo num meio onde só eram importantes a sensualidade e a intriga, nunca podia imaginar que os homens pudessem ter pensamentos além dessas trivialidades. Quando algum conhecido parecia distraído, triste ou desvairado, ela achava que, por trás de tudo aquilo, havia um caso amoroso. Tinha ouvido falar em conflitos espirituais, em paixões da alma. Mas sempre sorrira incredulamente e com cinismo, lembrando-se do dito de um tolo decadente, que lhe parecera sábio:
— Todas as torturas do espírito começam na pélvis.
A inquietação de Arsène comunicou-se a ela. Sentiu-o ansioso por sair do seu lado. Sem saber o que fazer e com raiva, virou-se para o marquês, que, sorridente, recebia os aplausos de um grupo de admiradores, a propósito do seu último dito espirituoso. Voltou-se impacientemente, mas logo mostrou todo o prazer que sentia diante da beleza dela. Curvou-se e beijou-lhe a mão.
— Mademoiselle! — exclamou, eufórico com o seu sucesso.
Ela sorriu para ele, inclinou a cabeça e desferiu sobre ele o fascínio do seu olhar azul.
— Estive me queixando com Arsène — disse ela, espichando os lábios rosados. — Ele não me tem dado atenção. Está distraído. Parece estar pensando em coisas misteriosas.
O sorriso permaneceu fixo nos lábios do marquês, mas no olhar que deitou a Arsène havia veneno. Pestanejou, com apreensão e raiva ao mesmo tempo.
— Não é possível, mademoiselle. Ele só fala em você e. no próximo casamento. Não é verdade, Arsène? — perguntou, numa voz imperiosa.
Arsène respondeu, sem convicção:
— É, sim, pai. Mas Mademoiselle de Tremblant não quer acreditar.
Tentou de novo vislumbrar, por entre os convidados, as figuras do duque e do Cardeal. Sentiu o pai segurar-lhe com força o braço. Mas o marquês continuava sorrindo.
— As mulheres, meu filho, preferem ações a palavras.
Arsène olhou lentamente para o pai e ficou impressionado com o medo e a súplica estampados no rosto do marquês. Ao ver aquilo, sorriu ardentemente e levou de novo a mão da noiva aos lábios, num gesto de devoção. Mas a jovem, embora fingisse, não se sentiu tranquilizada, e a sua raiva e o seu ciúme aumentaram.
' Ouviu-se uma fanfarra, e as portas voltaram a se abrir. O porta-bandeira dos Guardas do Rei entrou, o Sieur de la Coste, seguido de um destacamento de guardas, mosqueteiros e arqueiros. Estes últimos distribuíram-se rapidamente pelas portas do hôtel de Tremblant, sem ligar para os convidados. Mais duas companhias de guardas entraram, uma suíça e outra francesa, postando-se junto das paredes dos salões. Gritos e aclamações soaram nas ruas. Era meia-noite, mas a multidão aumentara, em vez de diminuir.
Ouviu-se uma fanfarra mais alta e insistente. O Rei, acompanhado, da sua jovem e bela Rainha, estava entrando no hôtel de Tremblant. Todos se curvaram ao mesmo tempo, e o Rei agradeceu com uma leve inclinação de cabeça. A orquestra tocou mais alto. Um vento de excitação e adoração varreu os grandes salões. A corte de nobres e magnatas que acompanhava o casal real encheu o palacete de novas cores, novos trajes e novos perfumes.
Agora, a festa podia prosseguir, e a animação tornou-se sem limites.
Capítulo XXVI
O Rei Luís XIII estava ainda na força da vida e, embora muito desapontado pelo fato de a Rainha não lhe ter dado um herdeiro, ainda podia esperar, O seu astrólogo predileto não lhe garantira que lhe nasceria um filho, que viria a ser o maior rei que a França já tivera? Supersticioso e místico, ele esperava por aquilo, que, mais tarde, viria a realizar-se.
Oprimido, surrado e desprezado, na infância, pela mãe, a terrível Maria de Médicis, ridicularizado e posto de lado pelos cortesãos que a rodeavam, vítima constante do irmão mais jovem e alegre, Gaston, favorito de Maria de Médicis e da sua Corte, ignorado por ministros e estadistas, relegado a um segundo plano, antes do seu acesso ao trono da França, era dè se esperar que tivesse um ar tímido, humilde e encabulado, uma vontade enorme de agradar e um temperamento timorato.
Não obstante, ele não tinha nenhuma dessas características, geralmente encontradas naqueles que passaram os anos de formação sendo oprimidos, ridicularizados e desprezados. Os seus modos, embora reservados e frios, eram simplesmente arrogantes. Não tinha nada do físico fraco dos perseguidos. Seu corpo era forte e ágil, cheio de vitalidade. Amava os esportes e a vida militar, destacando-se em ambos. Seu temperamento era duro e obstinado, mesquinho e caprichoso, ciumento, desconfiado, calado e inexorável. Todo ele exibia um surpreendente mêtier de roí. Era um triunfo do homem sobre as circunstâncias, reticente mas orgulhoso, recalcado mas dominante, exigindo respeito e fazendo tremer intimamente a quem o olhasse.
Estava vestido de maneira tão majestosa que se destacava, em meio aos elegantes e brilhantes convidados. Sua toalete era conservadora, pois não ligava para cores ou elegâncias, preferindo um aspecto marcial. Não era um homem bonito, mas de aparência fora de série. A pele era amarelada, revelando o sangue italiano, bem como os olhos escuros, frios mas luminosos. O rosto era comprido, algo cavernoso, e tinha um ar distraído e sombrio, enfatizado pelas longas madeixas de cabelo preto, que ele se recusava a cobrir com uma peruca. A boca, com o lábio inferior mais grosso, geralmente ficava entreaberta, mas isso, por estranho que parecesse, não lhe tirava a firmeza ou a expressão de teimosia. Quando falava, a sua voz era baixa e cuidadosamente controlada, pois volta e meia gaguejava. Frio e desdenhoso, não havia ninguém que pudesse dizer gabar-se de privar da sua intimidade, exceto o Cardeal, que ele detestava e temia. (Não obstante, sendo um homem astuto, nunca se esquecia de que fora o Cardeal quem restaurara a dignidade do trono e o seu poder, e que o servira sempre, com total e implacável devoção. Talvez fosse isso, e o ciúme que sentia, o que o fazia detestá-lo.)
Sobrepujado como era pela personalidade e pelo gênio do Cardeal, sentia-se entretanto grato, como rei, se não como homem, por tudo o que Richelieu lhe granjeara. A cada novo sucesso que o Cardeal lhe anunciava, ele dizia, fria e cerimoniosamente:
— A França fica-vos muito grata, Monsenhor.
Não havia hipocrisia nisso. Contudo, na sua vida particular e nos seus pensamentos, ele tinha sempre raiva e medo do Cardeal, suspeitando das suas palavras e dos seus motivos.
A Rainha, que vinha, modestamente, um passo atrás dele, era uma visão de beleza e encanto, num vestido rosa pálido ornado de rendas, com o peitilho de tecido prateado. As pérolas que usava em volta do pescoço não eram mais lustrosas do que os seus famosos ombros e graciosos braços. O perfume que ela usava parecia emanar-lhe do corpo louro e jovem. Os cabelos castanhos, caindo em cascata do alto da cabeça, cintilavam com diamantes. Por mais bela que estivesse, o seu rosto parecia mais pálido e mais triste do que de hábito, e distraído, como se ela recentemente tivesse sofrido muito. O seu sorriso ofuscava, mas era o sorriso de uma boneca; os seus olhos tinham uma expressão de terror, como se ela estivesse à procura de um inimigo.
O Cardeal pareceu materializar-se, surgir do ar, sempre mantendo o Duque de Tremblant ao seu lado. Saudou o Rei com a maior das reverências, mas os olhos do soberano fitaram-no com aversão e má vontade, temperadas com ressentimento.
— Ora, salve! — disse o rei. — Tinha ouvido dizer qúe Vossa Eminência estava por demais indisposto para comparecer a uma festa destas.
— Não pude resistir, Sire, ao saber que Vossa Majestade estaria presente — retrucou gravemente o Cardeal.
— Ah! — exclamou o outro, com mau humor. — Compareci quase todas as noites às mesas de jogo, mas nada de Vossa Eminência!
Durante essa troca de palavras, os olhos ávidos dos convidados observaram com que medo e aversão a jovem Rainha encarava o Cardeal, com que tremor se subtraía ao seu contato, quando ele lhe beijou demoradamente a mão, e com que horror e desespero os seus olhos verdes cintilavam. Parecia querer sumir, desaparecer da presença dele. Quando o Cardeal lhe murmurou qualquer coisa, ela entreabriu os lábios pálidos e não voltou a fechá-lòs, como se nem toda a sua força de vontade pudesse compeli-la a falar.
Um bufê fora expressamente preparado para o Rei, que tinha um apetite voraz. Embora a orquestra e os violinos atacassem os alegres acordes da sua dança preferida, La Merlaison, ele preferiu as iguarias. A Rainha ficou ao lado dele, como um cãozinho assustado, fugindo da presença do odiado Cardeal, que a viu fúgir com um soriso peculiar.
Os convidados começaram a dançar. Todos sabiam bem do apetite do Rei. Mas a orquestra tocou outra coisa, à espera de que Sua Majestade desse início à sua dança favorita. Para trás e para diante, em longos e graciosos círculos, os bailarinos esvoaçavam sobre o chão encerado, que refletia o colorido dos seus trajes e o movimento dos seus corpos. O ar tornou-se sufocante.
O Cardeal conduzira o Duque de Tremblant para um canto sossegado, atrás de vasos de arbustos floridos. Parecia determinado a não deixar o duque a sós um instante que fosse. Sentaram-se em pequenas cadeiras douradas e ficaram a ver os dançarinos. O duque fazia o possível por disfarçar a sua impaciência. Sabia que horas eram e que, dentro de uma hora, tinha de partir na sua missão secreta. Escondido no? seus aposentos, o Conde Van Tets esperava. Não obstante, procurava aparentar tranquilidade.
O Cardeal começou a falar languidamente de coisas sem consequência. Depois, comentou que estava muito cansado e procurara convencer o Rei a permitir que ele se aposentasse, devido às más condições de saúde. O duque não pôde deixar de sorrir diante daquela hipocrisia. Mas o Cardeal, sempre sutil, percebeu e sorriu também.
— Que é que Sua Majestade diz a isso? — perguntou o duque.
— Implorou-me que não o abandonasse — replicou o Cardeal, pensativo.
A troco de que concessão?, pensou o duque, sentindo um frio no coração.
— Mas nem os reis são insensíveis às doenças dos seus criados
— disse ele, deitando ao Cardeal um olhar penetrante.
Richelieu suspirou e ergueu um dos ombros.
— Quem sou eu, comparado com o Estado? — murmurou ele.
— Só vivo para servir à França.
De repente, o seu rosto estreito e pálido iluminou-se, e os seus olhos ficaram brilhantes.
— Não acredita no que lhe digo, Monsieur le Duc?
— Acredito, sim — respondeu, com sinceridade, o duque. — Mas o que de fato é melhor para a França, se as suas esperanças ou as minhas, isso é que eu não sei.
O Cardeal pareceu satisfeito com a resposta. Pousou afetuosamente a mão branca e. fina no braço do duque.
— Você não é mentiroso — disse, no tom de intimidade de quem se dirige a um amigo —, e é por isso que eu-gosto de você, Raoul. Que maravilha encontrar um homem que não é mentiroso! Você fala das suas esperanças. Mas você é um huguenote. O que você quer para a França não pode ser saudável. Quer reduzir a França à árida esterilidade do protestantismo? Esse credo de comerciantes, pequenos proprietários de terras e camponeses? A Igreja sempre prestigiou a arte aristocrática, sabendo que o homem comum não é capaz de apreciar nem de compreender as artes. É um sacrilégio expô-las aos olhos dele.
— A arte é universal — retrucou o duque. — Quando se torna aristocrática, já não é arte. Aí está a contradição. Em Arte, há apenas democracia, igualdade; é como a luz do sol.
O Cardeal meditou nessas palavras, enquanto a orquestra tocava cada vez mais alto e com mais alegria. Depois, abanou a cabeça.
— Não pense que nãb estou a par das palavras dos que precederam e sucederam a Lutero. Acompanhei todos os seus argumentos. Considero Erasmo, por exemplo, um homem estúpido e perigoso, como todos os visionários.
— Quando os homens se consideram todos iguais aos outros, não há mais heróis. Os heróis são necessários, para inspirar as pessoas. A adoração dos heróis é o mais poderoso e o mais nobre dos instintos do homem. Na nivelação do protestantismo, nenhum herói, nenhum santo se erguerá e se recortará contra o céu. A Igreja sabe disso. Por conseguinte, encoraja a aristocracia de berço, privilégio e espírito. Compreende que os homens não são criados iguais.
— Não me interprete mal. A Igreja sabe que, aos olhos de Deus, todas as almas são iguais. Mas há os que nasceram para servir com humildade, pobreza e sofrimento e os que vieram ao mundo para governá-lo.
— Quando todos os homens souberem ler, e Deus queira que isso nunca aconteça, quando todos os homens tiverem as mesmas oportunidades, o resultado só poderá ser uma terrível uniformidade, uma horrível monotonia, imposta à variedade e à colorida exuberância da vida humana. Desejaria isso, monsieur?
— Admito que exista uma desigualdade inerente ao homem — disse lentamente o duque. — Mas afirmo que todos os homens devem ter a liberdade de desenvolver todas as capacidades que possuem, para a sua própria alegria e o bem-estar da nação. Acredito no direito de todos os homens à paz, à dignidade pessoal e à liberdade, a uma medida de segurança sobre a terra.
— Bobagem — sorriu o Cardeal. — A própria trama da vida é feita de perigos, incertezas e riscos. Quem procura paz procura a morte, e é o homem cansado, o homem impotente, que não pode mais enfrentar as emergências do dia-a-dia. A sua fé promete tal segurança?
O duque ficou calado. Tinha a testa úmida. Naquele exato momento, ele devia estar nos seus aposentos. Mas o Cardeal não o deixava ir emborà, e o duque começou a sentir medo. Seria possível que Richelieu soubesse daquela missão? O duque continuava achando isso incrível, embora soubesse que o Cardeal tinha uma enorme rede de espiões.
O Cardeal retomou a conversa, num tom indulgente:
— Raoul, se você tivesse um momento de poder absoluto, no mundo, qual seria o seu primeiro e único ato?
O duque voltou-se para ele, e o seu rosto, comprido e feio, iluminou-se de uma beleza apaixonada.
— Eliminaria da mente de todos os povos a memória da história — disse ele.
O Cardeal meditou sobre aquilo, com ar sombrio. Por fim, sorriu.
— Entendo! — exclamou. •— Sim, estou vendo todas as possibilidades!
Entrementes, o rei voltara aos salões. Arsène, que andava por entre os convidados como um fantasma apreensivo, procurou um seu amigo, íntimo do Rei, o Conde d’Harcourt e chamou-o de lado:
— Quem será que há entre Sua Majestade e Sua Eminência? Por acaso você reparou no rosto preocupado do Cardeal?
O Conde d’Harcourt, católico devoto e simples, assentiu.
— Sua Majestade ultimamente só tem coisas desagradáveis a dizer a Sua Eminência. Parece que o Rei deseja que se ataque imediatamente a Inglaterra, o que o Cardeal, na sua sabedoria, não aprova.
Ao dizer isso, baixou a voz cautelosamente.
Arsène fingiu rir com despreocupação.
— Ah, então é isso! Eu estava conversando com Sua Eminência, e ele deu a entender que tinha chegado à mesma opinião que o rei. Mas todo mundo sabe como ele é orgulhoso. Não falará com Sua Majestade, a menos que seja chamado. Como umas coisas de nada podem decidir o destino das nações! Se Sua Majestade o chamasse, lhe falasse de boa maneira, quem sabe o que poderia acontecer? T
O conde não escondeu a sua ansiedade.
— Tem certeza disso? Então, não se pode perder um minuto sequer. O Rei tem dormido pouco, ultimamente, a o Cardeal tem- no evitado. Vou falar agora mesmo com Sua Majestade!
Tão logo o conde se afastou, à procura do Rei, Arsène, andando mais que depressa, aproximou-se da noiva, que estava furiosa, embora sorrisse e flertasse com dois admiradores. Viu Arsène aproximar-se, e os seus olhos fuzilaram. Mas ele fingiu não notar.
— Mademoiselle — disse —, seu tio está ali no canto, conversando com o Cardeal, que o entedia soberanamente. Por que não vai em socorro dele? Eu iria, mas vejo que madame me chama.
Clarisse gostava muito do tio. Além disso, estava aborrecida com o pouco-caso de Arsène e desejosa de escapar aos admiradores. Arsène seguiu-a a uma distância discreta. Não queria arriscar- se a ser visto pelo Cardeal, sempre ultra-sensível a suspeitas. Viu Clarisse aproximar-se do tio e do Cardeal e, depois, a aproximação do Conde d’Harcourt. Este murmurou algo ao ouvido do Cardeal, que deu mostras de aborrecimento e hesitação. Depois, voltou-se para o duque. Mas de Tremblant pedira à sobrinha para dançar com ele, e o Cardeal aparentemente extraíra alguma promessa do duque, pois este fez uma curvatura e sorriu, antes de sair dançando com a sobrinha.
Arsène esgueirou-se por entre os que contemplavam as danças, sem perder de vista Clarisse e o duque. Por fim, viu de Tremblant levar a moça para um grupo de amigos, onde ela começou a se abanar, rindo do cansaço do tio. O duque pôs-se a procurar alguém na multidão, e Arsène tratou de colocar-se no seu raio de visão, para logo se afastar discretamente para um canto sossegado e isolado, aonde o duque não demorou a ir ter com ele.
— Não há tempo a perder! — disse de Tremblant, ansiosamente. — Obrigado, Arsène. Vamos logo!
Saíram pelos fundos do palacete, para evitar a escadaria cheia de gente. Atravessando a ala dos criados, chegaram, sem ser vistos, aos aposentos do duque, que pelo caminho já fora tirando as roupas e a peruca. Ninguém estava por perto. Os criados festejavam à sua maneira. Reinava o mais completo silêncio. O duque abriu a porta do seu quarto, murmurou uma palavra, e o Conde Van Tets, suando e vermelho, saiu, trajando roupa escura e uma volumosa capa. Conversaram em sussurros, enquanto de Tremblant mudava de roupa e afivelava a espada à cinta.
— De novo peço-lhe que me deixe acompanhá-lo — disse Arsène.
— Impossível! Já esqueceu que você vai se casar dentro de dois dias, ó noivo impaciente?
Mesmo com pressa, o duque parou para rir baixinho.
Arsène não insistiu, mas a sua expressão ficou ainda mais apreensiva. Finalmente, disse:
— Lamento a sua decisão de levar só quatro guardas consigo, monsieur. Compreendo o seu argumento de que um séquito maior atrairia atenção. Mas também amedrontaria os possíveis atacantes.
— Não podemos atrair atenção — retrucou o duque, puxando o chapéu emplumado para o rosto e examinando os coldres das pistolas. — Por isso, temos que correr algum risco para manter a nossa missão em segredo. Contudo, não espero nenhum problema. Quem sabe da nossa viagem? Agora, Arsène, peço-lhe que volte para o baile. A nossa ausência já deve estar sendo notada. íi-
Hesitou e, de repente, abraçou o jovem com desusado afeto, beijando-o calorosamente em ambas as faces. Depois, fitou-o fundo nos olhos.
— Que Deus o abençoe, Arsène — disse. — Você é jovem. Aconteça o que acontecer, você não deve esquecer. Não deve dar as costas.
Arsène empalideceu, ao ouvir aquelas palavras, como se elas encerrassem um mau presságio. Colocou as mãos nos ombros do duque e sentiu as lágrimas subirem-lhe aos olhos. Mas, antes que ele pudesse falar, de Tremblant e o Conde Van Tets já tinham ido embora.
Ficou sozinho no quarto. Através das portas abertas, podia ver os outros quartos, fracamente iluminados pela única vela. Sentiu um frio invadir-lhe o coração. Parecia-lhe que a morte e o perigo tinham ido na esteira do amigo. Não possuía a mesma fé de Paul de Vitry. Na verdade, não acreditava em nada. Não conseguia rezar. Desejou desesperadamente ter fé, poder cair de joelhos e pedir que o céu protegesse o duque. Mas não tinha palavras, apesar dos longos anos em que estudara com padres, e.que só tinham servido para implantar o ceticismo e o sentimento de ridículo no seu coração. Tinha mais fé na sua espada. Maldito casamento o seu! Se não fosse ele, estaria naquele momento ao lado do duque. Levado pela juventude e pelo egocentrismo, achava que a sua presença seria suficiente para afastar todo o perigo e proteger invencivelmente o amigo.
Por fim, teve uma ideia: Não posso perder de vista o Cardeal. Tenho de afastar todas as suas suspeitas.
Voltou para a festa. Encontrou o Cardeal conversando, languidamente, com um grupo de damas e cavalheiros. Achou que ele parecia muito doente. O seu rosto estava azul de cansaço. Os seus terríveis olhos pareciam afundados. Afagava o cavanhaque com mão trêmula, apesar dos sorrisos e do ar de quem prestava atenção.
Arsène abriu discretamente caminho até ficar atrás do Cardeal, de modo a dar a impressão de que já lá estava havia algum tempo, Põr isso, quando Richelieu se virou e olhou em volta, deparou com um jovem que parecia cheio de tédio. Seus olhos se acenderam com uma luz má, mas sorriu amistosamente.
Puxou Arsène pelo braço e afastou-se com ele.
— Por acaso viu Monsieur le Duc, Arsène? Prometeu esperar por mim, para reatarmos a conversa.
— O duque? — retrucou Arsène, fingindo surpresa. — Vi-o não faz cinco minutos!
Voltou-se e fingiu procurar entre a multidão. Sabia que o Cardeal não via bem.
— Ah, lá está ele, Monsenhor. Creio que está dançando com Madame Deauville!
O Cardeal olhou na direção indicada por Arsène.
— Ótimo. Arsène, vou para o canto onde estava conversando com o duque. Quer fazer o favor de lhe pedir para ir ter comigo?
Obedientemente, Arsène afastou-se. Encontrou Madame de Tremblant no centro de um animado grupo. Chamou-a de lado. Os olhos claros e protuberantes da futura sogra encararam-no com irritação mesclada de afeto.
— Madame — murmurou ele —, tenho um recado para lhe dar de parte do duque.
Imediatamente a expressão dela demonstrou preocupação e ansiedade.
— Ele teVe que sair sem se despedir, a um chamado urgente. Voltará dentro de uma semana. Pediu-me para lhe dizer que não se preocupe.
Ela umedeceu os lábios grossos e pintados. Deitou um olhar furtivo em volta, e disse:
— Mas e o seu casamento, Arsène? Ele ia levar Clarisse ao altar! Quem vai tomar o lugar dele?
Mas falava distraidamente. Estava pálida, sob o ruge. Olhou para o jovem com medo. Amava intensamente o irmão do marido. Amara-o antes de se casar com o irmão mais novo dele, mas o duque não lhe retribuíra o sentimento. Ela comprendia muitas coisas a seu respeito. Agora, o seu coração estava cheio de um terrível pressentimento de que nunca mais o veria.
Agarrou o braço de Arsène com dedos que mais pareciam os de um cavalariço, tal a sua força.
— Não! Não me diga nada! Eu não perguntei nada! Meu Deus, que vai ser dele? Ele não corre perigo, Arsène? Não, não me diga. Não aguentaria saber.
O peito dela arfava. Gotas de: suor brotaram-lhe do lábio superior, atravessaram o pó-de-arroz que lhe cobria a testa.
Arsène ficou calado. Sentia o coração pesado. Madame de Tremblant cobriu a boca com o leque, e os seus olhos contemplaram-no com terror.
Por fim, ele murmurou:
— Preciso voltar para junto do Cardeal. Ele está à espera do duque. Tenho que entretê-lo. . .
— A coisa é assim tão grave? — perguntou ela.
— Sim, é grave — respondeu ele, sombriamente.
— Meu Deus! — gemeu ela.
Arsène deixou-a e foi à procura do Cardeal, que se' apoiava numa coluna de gesso branco, parecendo completamente exausto. Abriu os olhos ao ouvir . Arsène se aproximar e, vendo que ele estava sozinho, empalideceu.
Arsène curvou-se diante dele.
— O duque pede-lhe que espere uns momentos mais — disse. — Voltará logo.
O Cardeal não respondeu. Levou a mão à cruz de ouro que lhe pendia do pescoço, brincou um pouco cóm ela, e depois deixou-a cair, sem tirar os olhos brilhantes do rosto de Arsène.
Disse, numa voz estranha è sumida:
— Espero que ele volte.
Capítulo-XXVII
O Duque de Tremblant e o Conde van Tets saíram pela entrada dos criados do hôtel de Tremblant. Esgueiraram-se rente às paredes silenciosas das casas, protegidos pelas sombras das árvores, sem falar, mal ousando respirar. Pulavam de sombra em sombra, ao luar, como se temessem uma armadilha. Atravessaram correndo becos escuros, evitando passar por onde houvesse iluminação. Um getidarme, carregando uma lanterna, fez com que eles entrassem num desvão. Por fim, chegaram ao Bois de Boulogne e desapareceram por entre a folhagem espessa.
O duque parou e assobiou baixinho. Imediatamente, Paul de Vitry e mais quatro homens envoltos em capas emergiram das sombras, puxando pelas rédeas seis cavalos potentes e encilhados. Eram duas horas da manhã. Os sinos das torres de Notre Dame fizeram o ar vibrar com o seu demorado clangor.
— Devia acompanhá-lo, monsieur — murmurou Paul.
— Não. Quanto menos formos, menor será o perigo, meu caro Paul.
E o duque abraçou o jovem conde com mais amor ainda do que o que sentia por Arsène. Paul tinha os olhos marejados de lágrimas.
Os quatro guardas que iriam acompanhar o duque e o Conde van Tets eram todos fiéis e devotados huguenotes, amigos de Paul. Intrépidos e soberbos espadachins, seus olhos brilhavam ao luar que se filtrava por entre as árvores. O duque, após examiná-los em silêncio, ficou satisfeito. Conhecia dois deles ligeiramente.
— Ah, meus caros de Longueville e de Condé! — exclamou. — Temos uma difícil jornada pela frente.
Os homens puxaram das espadas e beijaram-nas silenciosamente, antes de as devolverem às respectivas bainhas.
Despedindo-se de Paul de Vitry, os seis cavaleiros saíram da cidade pela Barrière St. Denis. Não falavam. Iam quase deitados sobre as sejas, envoltos nas capas, os chapéus descaídos sobre o rosto. Ninguém os acostou. As ruas estavam desertas, ora banhadas pelo luar, ora mergulhadas na sombra.
Continuaram em silêncio, enquanto galopavam através do campo, não se sentindo a salvo, senão quando Paris ficou, como um sonho perdido, bem para trás. Os guardas olhavam, desconfiados, para cada moita, temendo alguma emboscada. De Longueville e de Condé iam à frente, o duque e o conde vinham a seguir, e os outros dois guardas fechavam a retaguarda. Todos empunhavam uma pistola. Embrulhados nas capas, voando como sombras ao luar, os cascos dos cavalos mal tocando a poeira quente do verão, pareciam cavaleiros espectrais, os rostos ocultos sob a aba dos chapéus. Passaram por vilarejos adormecidos. Os telhados das pequenas igrejas brilhavam como prata, ao luar. Os grilos cantavam entre o capim alto.
Ao passar por um riacho, desmontaram para dar de beber aos cavalos, e o duque aproveitou para acender o seu cachimbo. A fumaça que se evolou dele ficou branca, à luz da lua. Os cavalos, ofegantes, inclinaram as cabeças para a água; Mesmo assim, eles não ousaram falar senão por murmúrios.
Continuaram a cavalgar, mais rápidos que o vento. Por fim, o céu empalideceu, os pássaros romperam a cantar, e o ar tornou- se fresco como a água. A distância, no horizonte, um fogo parecia levantar-se, e da terra subiu um cheiro pungente. O vento aumentou, fazendo as árvores murmurar. O céu, a leste, ficou opala e o zênite tornou-se branco de leite. Ouviram mugir rebanhos distantes e os galos cantar. A brisa que lhes refrescava os rostos cansados estava cheia de mil odores diferentes.
Às sete da manhã avistaram ao longe as espiras de Chantilly, com as cruzes e as torres pontudas brilhando, vermelhas, contra o céu da manhã. Mas não entraram na cidade, preferindo contorná-la. Deveriam fazer uma breve pausa nas propriedades de Vitry, onde os esperavam novos cavalos. Às sete e meia, chegavam às propriedades. Constituíam um pequeno povoado, entre campos e prados verdes, os morros, ao longe, lilás e rosados à luz da manhã. O duque olhou em volta com satisfação. Não se via uma única choupana miserável, e sim pequenas casas de pedra, cercadas por jardins e cercas brancas. A igrejinha, também de pedra, parecia ter saído da própria terra e era simples mas bela. A cruz brilhava ao sol, e do interior da igreja vinha a voz profunda do padre.
Chegaram a uma pequena taberna, com uma tabuleta, onde se via uma cabra pintada, tremulando ao vento. O pátio, empedrado, estava vazio, a não ser por uma criadinha, que puxava água de um poço. Ergueu o rosto redondo e róseo, ao ouvir os seis cavaleiros entrarem e, inclinando a cabeça, correu para a taberna. Um momento depois, um homem enorme e gordo apareceu. Tinha uma cabeçorra calva e uma cara taciturna. Ao ver os cavaleiros, aproximou-se, lenta e insolentemente, e ajudou-os a desmontar. Tinha olhos pequenos e castanhos, que dardejavam mau humor, lábios grossos, um nariz que mais parecia o focinho de um porco, e uma testa toda enrugada. Não pareceu satisfeito de ver os recém-chegados, mas não disse nada, fazendo apenas um gesto de cabeça na direção da taberna. Depois, segurou as rédeas dos cavalos nas manoplas, e tal era a sua força, que os animais, exaustos, não lhe resistiram, nem sequer levantaram as cabeças em protesto. O gigante levou-os para as cavalariças, tirou-lhes as selas, deu-lhes de comer, trancou cuidadosamente as portas e encaminhou-se para a taberna, sacudindo os braços nus à maneira de um gorila, os músculos dos braços e das coxas parecendo querer pular.
O duque não simpatizou com aquele homem taciturno, mas Paul de Vitry, sorrindo, descrevera-o como um homem violento mas sincero, que nem ele conseguira conquistar ou amaciar.
— Você é o Crequy? — perguntou abruptamente o duque, os olhos brilhando de exaustão.
O homem resmungou que sim, olhando para o duque e seus companheiros com visível aversão e má vontade.
— Queremos comer e apanhar os cavalos prometidos — disse o duque, pensando se Paul não estaria enganado e aquele gigante não os trairia.
O homem não respondeu. Colocou-se atrás do balcão, sentou- se num banco e ficou a olhar para eles sem pestanejar, como se fosse uma estátua enorme e enrugada. A criadinha entrou com uma bandeja, que pousou sobre a mesa, diante dos seis cavaleiros. A refeição foi consumida num silêncio nervoso, pois todos estavam apreensivos com o olhar fixo do taberneiro, que continuava a olhá-los com hostilidade e sem pestanejar.
— Credo! — murmurou de Longueville. — Esse diabo estraga-me o apetite.
A comida era simples mas bem-feita: ovos frescos com presunto, leite e pão acabado de cozer. As pequenas janelas da taberna ficaram douradas pelo sol que entrava e rajadas quentes penetravam pela porta aberta.-
Depois, Crequy, sempre calado, levou-os, através do pátio, para uma escada exterior, que conduzia ao andar de cima. Fê-los entrar em quartos impecáveis de limpos, contendo apenas camas e mantas grosseiras, onde eles se deixaram cair, exaustos. Ouviram o taberneiro trançar as portas e a sua voz rouca dizia à criada:
— Não há ninguém nesses quartos, Roselle. Não chegou ninguém esta manhã, entende? Se você abrir o bico, eu lhe torço o pescoço.
Devia ter feito um gesto ameaçador com as manoplas, pois a moça soltou um grito e ouviram-na sair correndo.
Tranquilizado, o duque virou-se para o lado e adormeceu pesadamente. Mas de Longueville e os outros se revezaram na guarda.
Estava começando a escurecer, quando o duque e o conde acordaram. Uma chave girou na fechadura, e o taberneiro entrou com um gigantesco, jarro de água e algumas toalhas, que colocou sobre uma mesa nua, saindo logo após. Estremunhados, lavaram-se e ficaram à espera. A noite já tinha caído quando o homem reapareceu e lhes fez um sinal. Encontraram uma refeição, à espera deles e cavalos.
O duque abriu a bolsa para pagar, mas o homem recusou as coroas de ouro com um gesto desdenhoso. Olhou bem para o duque e fez uma careta.
— Monsieur le Comte de Vitry é um idiota, mas um bom homem. Não aceito dinheiro dos seus amigos, mesmo que eles sejam também idiotas — disse encarando-os com ar feroz.
— Nunca esquecerei a sua bondade — retrucou o duque, comovido, olhando para os desconfiados companheiros.
O homem grunhiu qualquer coisa e fez um gesto na direção da porta. Seis cavalos esperavam por eles do lado de fora. Montaram-nos e o taberneiro seguiu-os com o olhar até eles desaparecerem na escuridão.
— Não gosto desse Crequy — observou o jovem de Condé. — Tive vontade de passá-lo pela espada, pela sua insolência. De Vitry não cuidou de educar os seus camponenses.
— Suspeito dele — concordou de Longueville.
— Não devemos procurar inimigos escondidos nas sombras — censurou o duque.
Virou-se para o Conde van Tets, que cavalgava a seu lado, e perguntou:
— Que tal, está suportando a viagem?
O holandês, que quase não falara com os companheiros, sorriu gravemente:
— Nesta causa, não há nada que não valha a pena suportar, Monsieur le Duc — respondeu.
Deixou escapar uma espécie de soluço e deitou um olhar profundo para o duque.
— Monsieur, o meu país fica-lhe eternamente grato. Não posso dizer mais nada.
O duque esticou o braço e pousou por um instante a mão enluvada na do outro. Percebeu que o holandês mergulhara de novo num dos seus tristes devaneios.
A lua pairava sobre as copas das árvores que ladeavam a estrada de terra. Ouviram a distância o uivar de um lobo, à medida que a região ficava mais selvagem, desolada e ameaçadora. Grandes charnecas se estendiam à volta deles, sem que nenhuma luz confortadora brilhasse através de uma janela. O barulho de água corrente enchia o ar frio. De vez em quando, perdiam o rumo e voltavam à estrada, atravessando pedras meio escondidas, raízes de árvores e emaranhadas florestas.
Agora, uma névoa se erguia das charnecas, assumindo mil formas fantasmagóricas, ao luar. De Condé, que era supersticioso, per- signou-se várias vezes, esquecendo que, havia muito, abandonara a Igreja. O duque sorria daqueles gestos nervosos. Mas o silêncio profundo, as formas assumidas pela neblina e iluminadas pelo luar, a floresta negra, à volta deles, de que não ousavam se afastar por muito tempo, a imensidão das planícies, a distância, tudo contribuía para énchê-lo de pressentimentos. Chegou a acreditar que, de certa maneira, tinham deixado o mundo dos homens, das luzes, das risadas e das cidades, e sido transplantados para algum planeta ermo e cheio de perigos, morte e estranhas aparições.
— Estaremos em Beauvais ao romper do dia — disse ele. Mas ninguém lhe respondeu.
Confortou-se pensando que, nessa noite, chegariam a St. Omer e, um pouco mais tarde, a Calais. Seriam sessenta léguas ao todo, uma distância prodigiosa, a cavalo.
Mas, apesar de todos os seus esforços, os pressentimentos aumentaram. Em breve chegariam ao fim da floresta e, justamente nas horas mais perigosas, seriam obrigados a cavalgar em espaço aberto, à medida que se aproximassem de St. Omer. Riu de si mesmo, procurando criar coragem. Quem sabia daquela viagem? Era verdade que o Cardeal tinha espiões, mas, mesmo que ele tivesse sido prevenido daquela misteriosa viagem, não poderia saber da missão que eles levavam. No máximo, mandaria segui-los até Calais. Mas lá eles embarcariam, e os espiões ficariam sabendo apenas que o duque e seus companheiros tinham embarcado para a Inglaterra. Isso por si só já era perigoso, mas, quando o duque voltasse, nem mesmo o Cardeal ousaria interrogá-lo. Apesar das relações abaladas entre a Inglaterra e a França, centenas de franceses e ingleses atravessavam diariamente o canal da Mancha, para tratar de negócios particulares ou assuntos diplomáticos.
Mas, embora procurasse tranquilizar-se, de vez em quando aguçava os ouvidos, buscando detectar o barulho de perseguidores ou possíveis ciladas.
Agora, ansiava pelas cidades. O silêncio, o luar, as charnecas e a escuridão começaram a impressioná-lo. Desejava que os jovens, de Longueville e de Condé, fossem mais alegres, cantassem ou troçassem um do outro, à maneira da juventude. Mas eles também seguiam calados, inclinados sobre as selas, os olhos brilhantes pers- crutando as trevas.
O luar desapareceu, e ouviram-se o ribombar de um trovão e o uivar do vento. De repente, van Tets freou o cavaio e, dirigindo-se ao duque, disse, em voz rápida e baixa:
— Monsieur, tenho o estranho pressentimento de que, se não me abandonar agora e voltar atrás, todos nós morreremos. Não sou dado a premonições. Peço-lhe que me abandone!
A sua voz tornou-se mais urgente, e o duque ouviu-lhe a respiração, no negrume da noite.
— Abandoná-lo, meu caro amigo?' Isso é absurdo. Dentro de duas horas estaremos a salvo em St. Omer. Foi a noite que lhe abalou os nervos.
Os outros ouviram essa troca de palavras e também frearam os cavalos. Aproximaram-se, mal se distinguindo uns dos outros, na escuridão. O duque sentiu o medo e a indecisão invadi-los, mas sabia como apelar para eles.
Deu uma risadinha.
— Monsieur •— disse ele — está pondo em dúvida a coragem e a galanteria desses franceses! Se as condições fossem mais favoráveis, cada um destes cavalheiros lhe pediria satisfações por uma afronta que só a sua fadiga e os seus passados sofrimentos podem revelar. Não é mesmo, messieurs?
Houve um momento de hesitação, e logo os jovens responderam, enfaticamente:
— Sem dúvida, Monsieur le Duc!
E ouviram o ruído de espadas desembainhadas.
Van Tets não disse mais nada e retomaram a marcha, em renovado silêncio.
A tempestade aumentava. De vez em quando, a lua surgia por entre as nuvens pretas. Durante esses momentos, o luar refletia-se nos rostos brancas dos cavaleiros, antes de mergulhá-los de novo na escuridão. Gotas de chuva fria começaram a cair, e os cavalos, assustados, apressaram o passo, apesar de exaustos.
A lua apareceu de novo, banhando tudo num brilho de aço polido. Foi então que Longueville, cuja vista era a mais aguçada, viu um refulgir em meio ao arvoredo, à direita da estrada.
Preveniu os outros em voz baixa e todos frearam os cavalos.
Embora mal o pudessem ver, perceberam que ele apontava para a frente.
— Vi algo brilhar ali, como se fosse um mosquete, Monsieur le Duc! — murmurou ele.
Aproximaram os cavalos uns dos outros. Os corações batiam- lhes com força. Cada qual estendeu a mão para a espada e a pistola. Mas era demasiado tarde.
De repente, o arvoredo pareceu incendiar-se. O ar escuro e molhado foi sacudido por um tiroteio. Os cavalos, apavorados, empinaram e começaram a escoicinhar. Novo clarão, novo tiroteio. A confusão tomou conta deles, com o zumbir das balas, a relinchar dos cavalos, os gritos de atacados e atacantes. Os cavaleiros estavam encurralados. De cada lado da estrada, altos barrancos pedregosos impediam-lhes a fuga. Não podiam dar meia-volta e fugir. O duque ouviu gemer perto dele e sentiu, mais do que viu, van-Tets escorregar para o chão, sob o cavalo morto.
Salteadores!, pensou o duque.
Mas, no fundo do coração, sabia que não eram salteadores.
Ouviu-se outro grito, e de Longueville e de Condé deram a impressão de pular dos cavalos. Caíram entre os arbustos e ficaram imóveis. A lua brilhava agora com mais força, tendo emergido das nuvens. O duque viu que havia mais de uma dezena de homens armados, agachados atrás das árvores. Era o fim.
Olhou em volta, tomado de pavor e desespero, e viu os outros dois cavaleiros cair dos cavalos e rolar sob os seus cascos.
— Alto! — gritou ele. — Sou eu, o Duque de Tremblant! Desafio-os. a tocarem em mim!
Agora, tudo era novamente confusão e escuridão. Um clarão vermelho ofuscou o duque e ele. sentiu um súbito ardor no peito. Um rodamoinho de trevas e chamas pareceu engolfá-lo. Ergueu os braços e caiu ao chão, silencioso e imóvel.
Um relâmpago atravessou o céu e penetrou o teto escuro da floresta. Doze homens emergiram cautelosamente do bosque e aproximaram-se da pilha de homens e cavalos mortos. Um deles, o chefe, virou de costas o cadáver do duque para lhe ver o rosto.
— O porco huguenote! — resmungou e chutou-lhe brutalmente a cara com a ponta da bota.
Fez um sinal, e os homens curvaram-se sobre os cadáveres e revistaram-lhes os bolsos, tirando-lhes rapidamente os documentos e as bolsas. Depois, arrastaram-nos para a floresta, onde já tinham sido cavadas valas, e nelas jogaram os corpos. A chuva e o vento misturavam-se aos relâmpagos, fazendo com que eles se apressassem. A tempestade, batendo-lhes nas capas, transformava-os em morcegos gigantescos. Atiraram terra sobre os corpos, cobrindo as covas rasas com galhos e pedras. Depois, montando nos cavalos que tinham amarrado a distância, arrastaram os cavalos mortos do duque e dos seus companheiros, até chegarem a uma grande ravina, onde des- penbaram os ensanguentados animais. Feito isso, afastaram-se na noite.
A tempestade irrompeu com toda a fúria.
Capítulo XXVIII
A terrível tempestade amainara ao amanhecer. Agora, a terra estava fresca e tenra, ao sol da manhã. Arsène de Richepin e o Conde de Vitry partiram a cavalo, rumo a Chantilly, quando todos os sinos de Paris repicavam alegremente.
A natureza de Arsène era tão volúvel, que já esquecera das Júvidas e dos temores da noite anterior. Começou a cantar, batendo com as rédeas no pescoço do cavalo e trotando pela estrada larga e plana, num transporte de alegria e despreocupação. Até os trabalhadores, que consertavam as estradas, olhavam para ele com um sorriso, ao vê-lo passar. Galopava e trotava, agitando o chapéu no ar. Depois, freava o cavalo, sorridente e impaciente, para que Paul, mais calmo, o alcançasse.
— Você trota como um cura montado num burrico! — exclamava.
Paul, que era pelo menos dois anos mais jovem do que ele, sorria e retrucava:
— O que é ser jovem de espírito!
Não falava no Duque de Tremblant, pois não queria sombrear . a radiante vitalidade que emanava do amigo.
Embalavam-no os seus próprios pensamentos, que pareciam iluminar-lhe, com um prazer secreto, o rosto cansado-e pensativo. Arsène reparou, finalmente, que Paul lhe deitava olhares furtivos, como se de posse de alguma informação que lhe desse muita alegria. À medida que o tempo passava, essa expressão foi-se tornando mais marcada, e uma ou duas vezes Paul riu baixinho, como de alguma brincadeira, sem malícia, apenas com afetq desinteressado.
— Você está escondendo alguma coisa, Paul — observou Arsène.
Paul inclinou a cabeça para o lado e encarou o amigo com olhos brilhantes.
•— Você vai dar urna grande alegria a dois velhos amigos seus — disse ele, por fim, após um momento de hesitação. — Ah, não me faça perguntas. Mas vou ficar muito desapontado se você não se sentir tão feliz quanto eles.
Enquanto falava, um pensamento triste pareceu ocorrer-lhe e toldar-lhe um pouco a luz dos olhos cinzentos. Suspirou, esporeou o cavalo e passou à frente do amigo.
A curiosidade tomou conta de Arsène. Mas a manhã estava tão bonita, que ele não se deixou afetar por aquele mistério. Tinha a feliz faculdade de ser capaz de esquecer à vontade todos os pensamentos sombrios. Já tinha esquecido que no dia seguinte se casaria. Não se permitia pensar no Duque de Tremblant. Quando o pensamento lhe vinha à cabeça, repetia para si mesmo tudo o que Paul de Vitry. lhe dissera para tranquilizá-lo.
Olhava para os campos verdes com profunda satisfação, respirando o ar puro e quente, onde se mesclava uma centena de cheiros. Seus olhos pareciam mais aguçados do que nunca. Quando passavam por pequenos povoados e viam as miseráveis choupanas dos camponeses, os rostos fechados e estupidificados das pessoas, a miséria e a sujeira em que viviam, mesmo naqueles campos e vinhedos, a alegria que sentia era substituída por um vago sentimento de culpa. Aquilo não era novo para ele. As propriedades do seu pai eram parecidas com aquelas. Mas nunca se sentira tão afetado quanto agora. Percebeu que Paul também olhava e que a sua expressão era ao mesmo tempo indignada e triste. Pareceu-lhe que ele se demorava desnecessariamente naqueles lugares, como se quisesse que Arsène visse bem tudo aquilo.
Ao meio-dia, chegaram a Chantilly. Atravessaram a cidade e embrenharam-se de novo nos campos. Por fim, chegaram às terras de Paul.
Imediatamente Arsène viu o contraste entre aquelas propriedades e as que ele conhecia. Ali não havia choupanas miseráveis, apenas boas casas de pedra, em meio a jardinzinhos particulares. Os caminhos, empedrados, estavam limpos e sem lixo. Havia uma fonte, no meio de uma praça, onde homens e cavalos podiam refrescar- se, quando o sol estava a pino. Pombas voavam sobre a estátua de um garotinho nu, que despejava água de um grande jarro de pedra para a bacia de granito. Crianças e gansos confraternizavam alegremente em volta da fonte. As crianças jogavam água para o ar, entre gritos de prazer.
À porta das casas, viam-se mulheres com bebês ao colo. Ao verem Paul, faziam uma reverência e o seguiam com o olhar brilhante de adoração. As crianças iam respeitosamente atrás dele, como se atrás de um santo. Quando ele lhes atirou punhados de moedas de cobre e de prata, correram a apanhá-las, igual a um bando de pombas. Não havia condescendência nos seus gestos, nem desprezo nos sorrisos dele. Olhava-as com uma expressão de afeto e compreensão.
Arsène viu que se aproximavam de uma taberna com um cartaz de uma cabra, balançando ao vento contra o azul vivo do céu. Um cavalariço correu a segurar-lhes os cavalos e, quando viu Paul, curvou-se quase até o chão e olhou para ele com verdadeira devoção.
Entraram no interior fresco e penumbroso da taberna e viram um gigante calvo, atrás do balcão. Não se levantou nem se mexeu, ao vê-los entrar, mas o seu lábio inferior espichou-se num gesto de profundo desdém, e a grande testa reluzente enrugou-se, sobre os olhos castanhos e salientes.
— Ah, Crequy — disse Paul, afetuosamente.
O homem não se mexeu nem respondeu. Arsène ficou cheio de raiva diante de tamanha insolência, e olhou para ele com incredulidade e indignação. Como se sentisse o olhar do recém-chegado, o gigante voltou o rosto enorme para Arsène e encarou-o sem mudar de expressão.
Paul sentou-se a uma mesinha, a mesma à qual o Duque de Tremblant e seus companheiros se haviam sentado, algumas horas antes. Sabia que eles estavam dormindo no andar de cima, mas não falou nada. O gigante levantou-se, resmungando e, com passos lentos e pesados, aproximou-se da mesa. Pór um instante, os seus olhos cruzaram com os de Paul, e uma mensagem secreta passou entre eles. Paul sorriu, aparentemente satisfeito, e mandou vir vinho.
Os dois amigos beberam. Paul pensou: Deveria dizer a Arsène que o seu amado duque estava dormindo no andar de cima e permitir que os dois se abraçassem? Seria uma alegria para Arsène, mas interromperia o repouso do duque, que devia prosseguir viagem ao anoitecer, pois, só ousava viajar de noite. Paul decidiu nada dizer.
Após servir um excelente vinho, o gigante voltou de novo para trás do balcão e continuou a olhar para eles de testa franzida. Mas agora Arsène percebeu que, apesar da carranca, havia uma certa tristeza e brandura naqueles olhos porcinos, como se Crequy procurasse esconder os seus sentimentos.
A limpeza e a tranquilidade da pequena taberna alegraram ainda mais o espírito de Arsène. Através da porta aberta, via a fonte e as crianças e ouvia os risos e as vozes das mulheres. Teve a estranha sensação de que todos os seus amigos estavam ali, reunidos debaixo daquele teto.
— Todos bem, Crequy? — perguntou Paul, voltando-se de novo para o taberneiro, que continuava a fitá-lo, como que hipnotizado.
O homem fez um gesto de desprezo com a mão enorme e grunhiu algo. Por fim, falou, numa voz estrondosa:
— É, só dar de comer à canalha, mimá-la, tratá-la como se fosse gente, que eles se sentem muito bem.
Paul não se ofendeu. Parecia acostumado àquela insolência. Riu e virou-se para Arsène.
— O nosso anfitrião não ama a própria espécie — disse ele. — Crequy preferiria que eu o nomeasse capataz, para poder tocar os desgraçados a chicote para os campos. É uma antiga rixa entre nós.
O homem bateu com tanta força no balcão, com o punho gigante, què todas as canecas de estanho pularam. Seus olhos darde— javam de raiva.
— Sim, é uma velha rixa, Monsieur le Comte! — gritou ele. —. E uma briga justa! Como se eu não conhecesse esses suínos! Como se eu não soubesse como eles lhe irão pagar! Será que eu não o preveni bastante? Mas não chega. Monsieur se nega a ouvir, não quer escutar a voz da experiência!
Inclinou-se sobre o balcão e cuspiu. Arsène contemplava, de olhos arregalados, aquela incrível mostra de insolência e liberdade. Não podia acreditar que Paul suportasse aquilo. Mas o amigo limitou-se a jogar a cabeça para trás e rir com vontade. As risadas enfureceram Crequy, que saiu do balcão, deitando fogo pelas ventas e brandindo um dedo enorme para Paul.
— Já o preveni, monsieur! Não o prevenirei mais!
Arsène estava atônito. Sentiu raiva de Paul. Será que ele não tinha orgulho? Por que não puxava da espada e não matava ali mesmo aquele desgraçado? Não podia acreditar no que via. Não podia crer que o senhor daquelas terras pudesse permitir, mesmo que por um instante apenas, tanta insolência e uma atitude ameaçadora por parte de quem não passava de um servo, de um desgraçado, de um pobre-diabo.
Mas Paul parecia apenas divertido. Segurou o dedo gigantesco apontado contra o seu rosto e sacudiu-o para cima e para baixo, afetuosamente, como se fosse uma criança balançando a pata de um mastim ameaçador, no qual ela confiasse inteiramente.
Então, Arswne viu algo espantoso. O homem já não gritava nem grunhia. Ficou calado. Còntinuava de cara fechada, e a sua testa enorme estava mais enrugada do que nunca. Mas tinha os olhos marejados de lágrimas. Enquanto Paul lhe apertava suavemente o dedo, ele olhava para o jovem conde com tal aflição, com tanta tristeza, que Arsène ficou mais confuso do que nunca. Percebeu que a bocarra do homem tremia.
Paul disse para Arsène, sem largar o dedo do taberneiro:
— Crequy tinha uma taberna em Paris. Veio para Chantilly a meu pedido e abriu esta taberna, que antes estava em péssimas condições. Conheci-o em Paris. Pensei que aqui ele passasse a compreender melhor os seus semelhantes, por quem tem um ódio de morte. Mas tenho a esperança de que ainda vou conseguir.
O homem soltou o dedo e voltou para trás do balcão. Sua carantonha reassumia a expressão de ódio e má vontade.
— Já lhe disse não sei quantas vezes Monsieur le Comte que não se pode mudar o coração dos homens! — gritou ele. — Já lhe disse como eles lhe vão pagar, com traição, ódio e maldade. Mas agora não vou insistir mais. Só quero que monsieur não pense, nem por um momento, que vou recebê-lo com palavras de pesar e de consolo, quando ele descobrir que eu estava certo e ele estava errado!
Olhou para Arsène e franziu ainda mais a testa. Apontando para ele, disse:
— Se monsieur é realmente amigo do conde, avise-o, também, antes que seja demasiado tarde! Diga-lhe que Monsieur le Comte se previna contra essa escumalha, que agora o lisonjeia com salamaleques, mas que algum dia lhe irá mostrar os dentes, e então será o fim de Monsieur le Comte!
— Ah! — exclamou, com um riso perverso. — Estou esperando esse dia!
Apesar do espanto e da raiva, Arsène sentiu uma estranha simpatia pelo gigante, pois não lhe tinham passado despercebidos os lábios trêmulos e as breves lágrimas. Era como se estivesse num mundo enlouquecido, onde os criados se dirigiam aos amos com desprezo e insolência, e os amos se limitavam a rir. Ainda não podia acreditar no que via.
Paul estava de novo rindo, bem-humorado, jogando para trás a cabeça coberta de cabelos escuros, cortados rente.
— Crequy acha que os meus camponeses deviam tremer diante de mim, que nunca deviam sequer se atrever a me olhar no rosto, que deviam ser espancados e escravizados, que eu deveria usar o meu poder de vida e morte sobre eles. Em suma, aprova o modo de agir dos outros senhores de terras. Isso, apesar da miséria, da fome e do desespero que ele viu em Paris. De há muito constatei que o miserável é quem mais despreza os miseráveis, o que vive na sarjeta; o que mais odeia os seus semelhantes, o escravo, cansado de apanhar, quem advoga o emprego da chibata para os outros escravos. Não é um paradoxo?
— Não, não é um paradoxo! — gritou o gigante, batendo de novo, enfurecido, com o punho no balcão.
Arsène viu que ele era bastante inteligente.
— Que é que Monsieur le Comte sabe a respeito dessas bestas? Só mesmo um porco que grunhiu e refocilou com eles é que pode entendê-las. Pensam que não as conheço? Não dormi com elas, não chafurdei com elas? Quem pode conhecê-las melhor do que eu?
Paul abanou a cabeça, sorrindo.
— Ah, mas você tem um bom coração, meu pobre Crequy. Ainda não perdi a fé em você. Não acha que a minha gente está feliz, compartilhando dos frutos do seu trabalho? Não cantam, em vez de chorar, quando estão trabalhando? Isso não lhe basta?
— Conheço a maldade que há nos corações deles! — gritou Crequy.
Saíram de novo para o sol. O taberneiro não se dignou acompanhá-los até a porta. Mas uma menina rosada ficou a olhá-los timidamente, de pé, numa porta que dava para o pátio, e Paul cha- fflou-a com um sorriso. Corando e com os olhos fitos no chão, ela fez-lhe uma profunda reverência. Paul pousou-lhe a mão na cabeça e virou-se para Arsène.
— Esta é a sobrinha do urso — informou.
Tocou de leve na face rosada da menina.
— Tudo bem com você, minha pequena Roselle?
Ela fez nova reverência e olhou para ele com timidez e adoração. Paul lembrou-se da primeira vez que a vira, suja e faminta, no colo do tio. Agora, ela estava linda e rosada, no seu avental branco e na sua touca engomada. Suspirou. Quando ele e Arsène montaram de novo, a menina ficou a olhar para eles. Depois, jogou o avental sobre o rosto e rompeu em lágrimas e soluços silenciosos.
Crequy viu tudo aquilo de trás do balcão. Resmungando, levantou o enorme corpo e saiu para o pátio. Abraçando a menina com ternura de mãe, apertou-a contra o peito.
— Não chore, ma chérie — murmurou ele. — Talvez chegue o dia em que você precise confortá-lo.
Paul e Arsène dirigiram-se para o lindo château branco, que se avistava a distância, em meio a um parque de rosas, flores multicoloridas e grandes olmeiros. Havia também um lago azul-escuro, com uma ponte de mármore branco. Cisnes prateados deslizavam na superfície da água, toda salpicada de plantas aquáticas. Os pássaros alegravam o céu com o seu esvoaçar e os seus cantos. Jovens e velhos cuidavam com amor daqueles jardins. Ao verem Paul, seus rostos se iluminaram e avançaram para ele como se quisessem tocá-lo. Ele falou-lhes com interesse e afeto, perguntando, pela família de cada um.
Arsène viu ao longe os trigais verdes, os vinhedos, as colinas rosadas e o céu azul vivo da França. Tudo ali transpirava amor, paz e boa vontade. Viu as casinhas de pedra no vale e no sopé dos dois outeiros e, enquanto respirava os perfumes da terra e das flores, ouvia o doce repicar dos sinos da bela capelinha, à esquerda. A cruz brilhava ao sol. Dois vultos negros junto da porta, um velho e outro bastante jovem, pareciam conversar gravemente. De vez em quando, o velho sacerdote levantava a cabeça lentamente e olhava para os camponeses, trabalhando nos campos e nos vinhedos, guiando os cavalos e cantando em meio ao silêncio e à frescura da manhã.
Era a primeira vez que Arsène visitava as propriedades de Paul. De novo invadiu-o um sentimento de culpa. Que diferença das propriedades do pai, onde os camponeses não ousavam erguer a cabeça, onde os pobres-diabos trabalhavam sem qualquer esperança e envoltos em trapos! Comigo vai ser diferente, prometeu a si mesmo. Como era fácil viver num ambiente de amor e tranquilidade, e não cercado de ódio, mas conhecendo apenas a devoção dos humildes.
O interior do château era simples, mas belo, banhado de uma suave luz verde. Arsène viu salas imponentes, mobiliadas com bom gosto e austeridade. Em todas as mesas, em todos os móveis, no friso das lareiras viam-se jarras com flores. A mesma paz, a mesma calma reinavam ali.
— Vamos almoçar — disse Paul para um velho lacaio, que se apressou a pegar-lhes nas capas e nos chapéus.
Sorriu para Arsène, e este, por sua vez, achou que o rosto do velho parecia iluminado por uma luz de bondade. Depois de se terem lavado, dirigiram-se ao- salão de jantar, onde os esperava uma dama vestida de seda branca, com o decote adornado com um buquê de rosas vermelhas, não menos escarlate do que os lábios dela.
Era Madame duPrès, e Arsène sentiu de novo desprezo e aversão por aquela jovem e bela mulher, de grandes olhos escuros e expressão secreta. Depois que Paul lhe beijara a mão, ela estendeu-a a Arsène, baixando as longas pestanas pretas. Ele inclinou a cabeça, mas não lhe beijou a mão. Não podia esconder o aborrecimento. Julgara a mulher em Paris, no pequeno hôtel de Paul, e não esperava encontrá-la ali.
Ficou calado. Paul mostrou-se embaraçado com a atitude do amigo que, na sua inocência, não entendia. Mas Madame duPrès não era tão ingênua. Sua boca, semelhante a uma ameixa madura, curvou-se. num sorriso astuto. Mostrou-se mais gentil do que nunca para com o convidado do amante, mais afetuosa e atenta para com Pàul.
Este, por sua vez, se não inteiramente escravizado a ela, cumulava-a de atenções. Madame duPrès começou a fazer queixas da insolência dos criados.
— Ah, eles não podem ser insolentes! — exclamou Paul, deitando-lhe um olhar súplice. — Mas eles agora são homens livres, que prestam serviços voluntariamente, sem medo e sem serem obrigados a isso. Os homens livres não precisam ter a .mesma atitude dos escravos, meu amor.
Ela sacudiu a cabeça e fez beicinho.
— Só atendem aos meus chamados quando lhes dá na telha, monsieur. Quando lhe ralho, respondem com o maior atrevimento. Será que eles pensam que eu não sou nada e que tenho que lhes aguentar os insultos calada?
Ele ficou mais e mais aborrecido.
— Minha querida Antoinette, você é demasiado sensível. Mor- bleu? As coisas não podem ser tão más quanto você diz. Mas, se você quiser, discutirei o assunto com eles.
Ela olhou para ele com desdém e fez um gesto tão insolente, que Arsène se sentiu consumido de ódio por aquela mulher.
— Monsieur parece que tem medo desse gado! — exclamou ela, com uma risada.
Paul mordeu o lábio, mais triste do que irritado. O resto do almoço decorreu num silêncio doloroso. Arsène estava com tanta pena do amigo, que acabou falando de coisas inconsequentes, o que Paul lhe retribuiu com um olhar eloquente.
Madame pretextou uma indisposição e retirou-se, após o almoço, para os seus aposentos, não sem antes deitar a Arsène um olhar provocante e sedutor. Ele atribuiu-lhe mentalmente epítetos nada lisonjeiros e saiu do château em companhia do dono da casa. Os cavalos já os aguardavam. Montaram-nos e desceram para os campos e os vinhedos, sob um sol embriagador, semelhante ao vinho aquecido.
Como se o amor que Paul sentia por tudo o que era vivo se tivesse estendido também à terra, tudo ali florescia maravilhosamente. Arsène viu a expressão de afeto nos rostos dos camponeses. Sentaram-se à sombra de uma árvore roxa e beberam água fria e cristalina, de uma nascente próxima. Nos olhos de Paul brilhavam uma paz e uma satisfação sem limites. Os anéis escuros do seu cabelo tremulavam à brisa vespertina, e éle olhava em volta como se estivesse vendo um espetáculo sempre novo.
— Preciso voltar logo — disse Arsène, com relutância. — Você não esqueceu que amanhã é o dia do meu casamento, pois não? Além disso, ainda não me conformei com o fato de você não èstar presente, Paul.
— Perdoe-me — implorou Paul, segurando a mão do amigo. — Você sabe o quanto o amo e o quanto lhe sou devotado. Mas não me é possível assistir. Tenho que ficar aqui até que o duque volte, como você sabe. E há muitas coisas que exigem a minha atenção.
Arsène riu.
— Você está querendo dizer que não suporta Paris, seu hipócrita! Mas não se preocupe, mon cher. Claro que lhe perdôo. Fique com a sua bela mulher e com os seus camponeses. Eu não me ofendo.
Levantaram-se e desceram lentamente para a capela, perto da entrada do vale. Duas velhas rezavam, ajoelhadas, na penumbra da igrejinha, iluminada apenas pela luz que penetrava através dos vi- trais das janelas e pelas velas do altar.
Arsène achou aquela pequena igreja ainda mais bela do que a de Notte Dame. Paul gastara fortunas nela, de modo que nada faltava. Os panos de altares laterais eram do mais branco linho, ornado com delicadas rendas. As imagens eram obras de mestre, e o chão, feito de blocos alternados de mármores branco e preto. As colunas e o pequeno púlpito eram também de mármore branco. Enormes jarras de flores adornavam o altar, enchendo o ar de um perfume incomparável. Toda a paz dos campos parecia concentrada naquele interior branco, naquele sagrado silêncio.
Paul ajoelhou-se com simplicidade, e, após um momento de hesitação, Arsène seguiu-lhe o exemplo. Os dois ficaram ajoelhados lado a lado, diante do altar. Paul ergueu o rosto emocionado. Orou abertamente, juntando as mãos, e a sua expressão encheu-se de uma beleza austera, semelhante à de um anjo. Arsène estava como- vidíssimo. Não conseguia rezar, mas sentia-se cheio.de reverência e de adoração por aquele homem tão bom.
Quando saíram da igreja, Paul não falou. Sorriu e apertou a mão do amigo, como se não tivesse palavras. Junto da porta esperavam-nos o velho padre e um outro, mais jovem e mais alto.
O Abade Lovelle agarrou as mãos de Paul e olhou para ele com veneração.
— Ah, monsieur! — exclamou. — Não o esperávamos hoje! Que grande prazer nos deu!
Paul abraçou o velho abade, que pareceu a Arsène ter muitós dos atributos físicos e espirituais do Abade Mourion. Os olhos do- velho padre pareciam estar vendo um santo. Continuou apertando fervorosamente a mão de Paul.
Paul olhou interrogativamente para o outro padre, que permanecia discretamente afastado. Ao ver aquilo, o abade pediu desculpas e virou-se para o outro.
— Este é o Padre de Pacilli, Monsieur le Comte! — disse ele, apertando a mão de Paul, enquanto o outro sacerdote fazia uma reverência. — O bispo acha que devo descansar por alguns meses, monsieur. Mais do que isso, insistiu para que eu descansasse. De maneira que, com a sua permissão, acho que vou visitar a minha sobrinha e o meu sobrinho em Rouen.
— Que falta de consideração a minha! — exclamou Paul, pousando o braço sobre os ombros do velho abade. — Não me passou pela cabeça que estivesse precisando de descanso. Venha esta noite ao château, que eu lhe darei uma bolsa com dinheiro para lhe garantir uma boa viagem e lhe possibilitar comprar presentes para os seus parentes. Ah, que egoísmo o meu, não pensar no seu conforto e na sua fadiga!
— lAcmsieur é um santo — retrucou o abade, com lágrimas nos olhos. — Se há alguém em quem ele nunca pensa, é em si mesmo.
A emoção não o deixou falar mais. Por fim, explicou:
— O bispo mandou o Padre de Pacilli substituir-me enquanto eu estivesse fora e, após ter conversado com ele, tenho a certeza de que cuidará bem do nosso pequeno rebanho, até que eu volte.
Paul saudou cordialmente o padre, olhando-o com a simplicidade e a franqueza habituais.
Mas Arsène sentiu um mal-estar. Onde tinha visto aquele rosto moreno e comprido, aqueles olhos negros e amendoados? Onde tinha visto aquela boca larga, fina e astuta e aquele queixo pontudo e pálido? A expressão é que o intrigava, pois era dócil e humilde, com um olhar baixo e respeitoso, ao passo que a expressão de que vagamente se recordava era arrogante, divertida e altamente intelectual.
Sentiu uma surpreendente aversão pelo padre. Olhou para a sua figura alta e magra, metida na batina preta, para as mãos estreitas e brancas, tão diferentes das mãos morenas, largas e calosas do Abade Lovelle. Era um homem de ar aristocrático, de aparência estrangeira e demasiado refinado, para o papel que estava representando. Porque Arsène tinha a certeza de que ele estava representando. Aquele padre não podia substituir o velho cura de uma propriedade particular! O padre ficou um momento de perfil para Arsène, enquanto conversava com Paul numa voz baixa e melíflua, e Arsène reparou no longo e delicado nariz, grande e aquilino, com as narinas tão finas e bem desenhadas, que a membrana vermelha era visível. A sua voz tinha um acento aristocrático e cheio de si, que ele não conseguia disfarçar.
Imerso nos seus pensamentos, não prestara atenção à amável troca de palavras entre Paul e o padre, de modo que interveio, abruptamente:
— Onde foi que já o vi, Monsieur le Curé? Porque tenho a certeza de já o ter visto.
Paul ficou espantado com o tom de voz e a brusquidão de maneiras do amigo. Mas o padre olhou para Arsène com respeito e
com um simulacro de surpresa. Arsène, porém, percebera o rápido piscar dos seus olhos negros.
— Não sei onde possa ter tido a honra de estar na sua presença — retrucou ele, com uma reverência. — Antes, estive em Chartres e depois em Amiens. Nunca estive em Paris.
Arsène corou e mordeu os lábios. Sentia-se um idiota, pois Paul e o velho abade olhavam para ele com sorrisos atônitos.
— É jesuíta? — perguntou ele, numa voz ainda mais áspera.
O padre pareceu surpreso. Sorriu humildemente.
— Não, monsieur. Não tenho essa honra. Sou apenas um pobre abade, cuja modéstia não mereceu uma paróquia permanente.
O velho abade sentiu à hostilidade de Arsène e pousou a mão no braço do confrade.
— O Padre de Pacilli é demasiado modesto — disse, ternamente, deitando um olhar súplice a Arsène e a Paul. — É muito talentoso, mas o bispo deu-me a entender que ele prefere viajar de diocese em diocese a ficar sempre na mesma paróquia.
O Padre de Pacilli retribuiu-lhe o gesto de afeto com um sorriso triste e. uma inclinação de cabeça.
Mas Arsène ficou ainda mais desconfiado, embora não pudesse atinar com a razão dessa desconfiança. Tinha, porém, a certeza de que já vira aquele rosto em algum liigar de Paris e de que o padre não era o que fingia ser. Se assim fosse, o que estaria ele fazendo ali, naquele lugar isolado, substituindo um velho e obscuro cura do interior?
Deitou a de Pacilli um olhar penetrante. Paul enrubescera, embaraçado. Mas Arsène não parecia ver ninguém senão aquele padre, que estava diante dele com ar humilde, olhos baixos e uma expressão perplexa. Apesar daquela atitude, Arsène via que ele tinha a majestade de um príncipe, a voz de um aristocrata, os gestos de um nobre.
De repente, teve a certeza de que aquele homem era perigoso. Mas para quem? Que perigo ele podia trazer para Paul e para aquelas terras sossegadas, perto da cidade de Chantilly? Não obstante, teve a súbita certeza de que Paul corria perigo.
Voltou-se para o amigo.
— Perdoe-me a insistência — disse —, mas tenho a certeza absoluta de já ter visto o Padre de Pacilli em Paris. Só não me lembro onde foi.
— E isso interessa? — perguntou Paul suavemente, pedindo aos dois padres perdão com o olhar.
— Os disfarces interessam sempre — respondeu secamente Arsène. — A gente se pergunta: Por que razão um homem se dis
farça? O que há por trás desse disfarce? E a quem ele se destina?
Vírou-se novamente para o padre.
— Monsieur le Curé não me enganou. Não pode ser filho de um camponês nem de um artesão. É, isso sim, um homem de nobre estirpe.
O padre ergueu os olhos do chão e fitou-os em Arsène. Não podia esconder o embaraço, o divertimento ou o desdém que sentia. Mas disse, numa voz suave: c» sen
— Monsieur lisonjeia-me. Meu pai tinha uma pequena taberna em Chartres. Mas a verdade é que minha mãe pertencia à pequena nobreza.
— Ah, então isso explica tudo — disse Paul, com seu sorriso bondoso.
Olhou para o amigo, mas Arsène não se deu por convencido.
— Por que veio até aqui? Que veio fazer aqui, mon curé?
— Não entendo — disse o padre, fingindo gaguejar e mostrando-se cada vez mais surpreso. — O bispo desta diocese pediu que eu substituísse o Abade Lovelle durante a sua ausência. Como a minha saúde é frágil, os meus superiores acharam que o ar do campo e um lugar sossegado me fariam bem.
— Quem são os seus superiores? — perguntou Arsène, num tom ameaçador.
Encabulado, Paul puxou o amigo pelo braço.
— Se não nos apressarmos — murmurou —, você não terá tempo para falar com os seus amigos.
Afastaram-se, mas o rosto de Arsène estava em brasa e os seus olhos brilhavam de fúria.
— Estou-lhe dizendo, Paul, que já vi aquela víbora! Ele não é o que finge ser!
— E isso que importa? —• retrucou Paul. — Que mal ele me pode fazer? Daqui a dois meses, ele terá ido embora.
— Um padre já é mau, mas um padre disfarçado é terrível! — exclamou Arsène.
Agora, que já não estava na presença de Pacilli, todas as suas dúvidas e suspeitas lhe pareciam absurdas.
Paul riu. Arsène abanou a cabeça, mas não disse nada.
Aproximaram-se de uma casa branca, no meio de jardins. Era uma casa maior do que as outras que Arsène vira, e tinha um ar de grande dignidade. Paul parecia excitado. Começou a rir baixinho e a olhar para Arsène com alegria, Abriu o portão.
Não pôde conter-se.
— Administrador! chamou, ansioso. — Meu bom administrador, trouxe-lhe uma visita!
Um homem alto e grisalho apareceu à porta. Segurava uma caneta e curvou-se diante de Paul. Mas Arsène olhou para ele boquiaberto.
— François! François Grandjean! — exclamou. — Não é possível!
Capítulo XXIX
François Grandjean não ficou menos surpreso do que Arsène, que avançou para ele de mãos estendidas. Apertou-as nas suas, mas continuou a olhar, incrédulo, para o jovem.
Arsène estava encantado. Abraçou fervorosamente o velho. Os olhos azuis de François ficaram toldados pela emoção, e ele sorriu tremulamente. Com a sua cabeça clássica, parecia um senador romano recebendo os abraços de um filho. Depois, olhou para Paul, que também sorria, muito comovido.
— Quando você me contou, François — disse Paul —, que um certo Monsieur de Richepin lhe tinha presenteado dinheiro para comprar terras, previ imediatamente a alegria que me traria este encontro. Você falou com tanto afeto de Monsieur de Richepin, que suspeitei de alguma ligação profunda entre os dois e adivinhei muitas outras coisas pelo seu tom de voz e pela expressão do seu rosto. Além disso, recordando o que monsieur me contara, de como fora socorrido por alguém como você, deduzi toda a história.
Aproximou-se deles e segurou-lhes uma das mãos, olhando primeiro para um e depois para o outro com a sua candura habitual.
— Meus caros amigos — disse, com voz emocionada —, alegro-me com a sua alegria.
Um leve rubor subiu às faces de Arsène e ele disse, com uma franqueza que não iludiu François, mas que enganou a Paul:
— Fui até a Rue du Vieux-Colombier, mas ninguém me soube dizer para onde tinham ido.
François retrucou, gravemente:
— Não disse nada aos seus vizinhos, pois duvidava de que monsieur voltasse lá. Não esperava isso.
E os seus olhos brilharam indulgentemente. Arsène ficou calado, furioso consigo mesmo por ter dito uma mentira tão infantil, e mais furioso ainda pelo fato de François tê-la detectado logo. Até mesmo o sorriso bondoso, embora algo triste, de François só fez aumentar a sua irritação. Por um momento, o velho orgulho aristocrático e o desprezo pela ralé transpareceram no olhar dele e se revelaram na sua atitude.
Entraram na pequena casa, onde reinava uma penumbra fresca. As janelas abriam para um trigal alto e dourado, que os primeiros raios do poente tingiam de vermelho, para as colinas cor de safira, rodeadas pela renda verde dos vinhedos, para um riacho distante e prateado e, mais à direita, para a sombra maciça de uma velha floresta. O azul do céu parecia ferver e pulsar como um coração apaixonado. Plumas de nuvens rosadas flutuavam sobre as colinas. Ao longe, os camponeses cantavam, enquanto trabalhavam, e as suas vozes eram doces e alegres. Os rebanhos estavam voltando aos estábulos, e os seus mugidos atravessavam o ar quente e fragrante. As pombas, esvoaçando sobre o telhado da casa e dos currais, captavam o sol nas asas. As abelhas zumbiam, sonolentas, sobre as flores do jardim. Uma névoa começou a subir do vale, e logo a floresta deu a impressão de flutuar num vapor radiante.
Sobre o chão- de lajotas da casinha viam-se móveis simples, mas resistentes, cadeiras, mesas, armários e bancos. Por todo o lado havia vasos de barro com flores.
Ao entrar a contragosto na casinha, ainda cheio de raiva e desdém, Arsène sentiu o coração bater-lhe mais forte e um estranho tremor percorrer-lhe o corpo. Mas a casa estava vazia. Respirou fundo e olhou para uma porta, coberta com uma cortina. Mas ninguém apareceu.
François, com seu jeito grave e digno, convidou os visitantes a sentar-se e trouxe um jarro de vinho e uma bandeja com deliciosos bolinhos. Mas Paul sacudiu, sorridente, a cabeça.
— Ah, não, meu caro amigo — disse ele. — Vou deixar os dois a sós. Parece-me, também, ouvir a aproximação de mademoi- selle. Vou ao encontro dela e do rebanho.
Ao ouvir aquilo, Arsène ergueu a cabeça, com mil e uma perguntas na ponta da língua e um rubor nas faces. Paul saiu, e ele e François ficaram sozinhos. Arsène não sabia o que dizer. Bebeu o vinho que François lhe servia.
O ancião já não estava pobremente vestido e perdera o ar emaciado. Usava roupas grosseiras e resistentes, de camponês remediado, e os seus tamancos batiam contra o chão de pedra. A palidez desaparecera-lhe do rosto, agora vermelha sob a brancura do cabelo. Mas a dignidade, a austeridade da sua expressão tinham aumentado, e, quando Arsène, involuntariamente, encontrou o seu olhar, ele sorriu com cordura, mas também com majestade.
— Tudo isto o surpreende, não é verdade, monsieur? — perguntou, em voz baixa.
Arsène não respondeu. Estava começando a se sentir envergonhado.
Sem pedir licença, François sentou-se também à mesa. Os seus olhos límpidos e azuis fixáram-se em Arsène, e o seu rosto escureceu, como se o desânimo tivesse tomado conta dele.
— Vim para Chantilly com o dinheiro que me deu. Não só arrendei um pequeno pedaço de terra a Monsieur le Com te, como ele me ofereceu o posto de administrador, que aceitei com satisfação. Era a paz, para mim e para a minha neta.
— Não é necessário pedir-me desculpas, nem..dar explicações! — atalhou Arsène, irritado.
As sobrancelhas do velho se juntaram, dando-lhe aó rosto um ar severo.
— Monsieur não entende. Não estou pedindo desculpas.
Arsène apertou os lábios. O tremor do seu corpo aumentou.
Procurou falar em tom natural e olhou para François com o ar de benevolência que se assume para com um criado que se deseja apadrinhar.
— Por falar na sua neta, ela não se casou com o jovem poeta de quem estava noiva?
François abanou a cabeça e respondeu, com reserva:
— Não. Ele não queria desterrar-se aqui.
Arsène esqueceu tudo e perguntou:
— Mademoiselle já se .recuperou ? Não está inconsolável?
O rosto enrugado de François abriu-se num largo sorriso.
— Ela não só está consolada, como aliviada. Desconfio que, no fundo do seu coração, ela não tinha muito afeto peló jovem Henri. Está feliz com a nova vida. Nas suas veias corre o sangue de pror prietários de terras, a par cóm o de marinheiros.
Encheu novamente o copo de Arsène. O vinho era puro e delicioso. Arsène olhou para o velho, procurando disfarçar o tremor que sentia nas pernas. O coração batia-lhe com tal violência, que fazia estremecerem as fitas do seu gibão.
— Estou vendo que monsieur se recuperou completamente — disse François.
Arsène tocou a cicatriz que tinha na face. Olhou para o velho com um misto de franqueza e uma estranha falta de ar.
— È verdade, François, e devo tudo a vocês. Nãó pense que não lhes estou grato.
François não respondeu, mas a sombra de um sorriso pairou- lhe nos lábios.
Tomado de inquietação, Arsène levantou-se e pôs-se a andar de um lado para o outro. François se levantou, em sinal de respeito, apoiando uma das mãos na mesa.
— Sente-se feliz aqui, François? — perguntou Arsène, olhando febrilmente attavés das janelas. — Está contente? Isto é tão diferente da sua morada em Paris...
— Estou contente. Estou feliz — respondeu o ancião, numa voz trêmula e profunda.
Arsène voltou para junto da mesa e deixou-se cair na cadeira. Várias perguntas lhe afloraram aos lábios, mas não ousou falar. .
— Não existe homem como Monsieur le Comte — disse François, numa voz apaixonada. — O que monsieur está vendo aqui é uma experiência humana. Não se sente ofendido de me ouvir falar livremente de Monsieur le Comte?
— Fale! — pediu Arsène. — Há muita coisa que me precisa ser explicada. Na presença de Monsieur le Comte, a gente fica estonteado, como se diante do sol. Mas você está vivendo nestas terras como administrador. Pode me explicar muitas coisas.
François ficou longo tempo calado, traçando um desenho invisível sobre a mesa, com um dedo comprido e trêmulo. Mas o seu olhar era distante e tocado de incerteza e tristeza
— Os sonhos do sonhador são impossíveis. Mas, sem um sonho e uma estrela, nenhum homem pode abrir caminho entre as águas negras do desespero e através das trevas da realidade, que são a origem desse desespero...
— Você acha que meu amigo é um sonhador? — perguntou Arsène, com uma estranha sensação de aborrecimento e decepção. — Um sonhador, um espírito pouco prático?
François hesitou. De repente, cobriu os olhos com a mão, numa atitude desanimáda.
— Eu apenas disse que Monsieur le Comte de Vitry tem um sonho e uma estrela.
Pressionou ambos os olhos com as mãos, como se eles ardessem de dor e cansaço.
— Acho que você, François, dentre todos os homens, devia ser quem mais venerasse o conde!
François deixou cair as mãos e fitou em Arsène com um olhar fervoroso.
— E é verdade, monsieur! Ninguém que conheça o conde pode deixar de adorá-lo, como se estivesse na presença de um santo.
Fez uma pausa e acrescentou, com um sorriso triste:
— Mas os santos nem sempre compreendem os homens.
— Você falou numa experiência humana! — disse Arsène, cada vez mais impaciente. — Estou interessado nessa experiência. Não me vá dizer que você discorda dela. Pelo que me lembro de você, isso não é possível.
— É difícil explicar — retrucou François, em voz baixa e insegura.
Levou de novo as mãos aos olhos e começou a falar, como se consigo mesmo:
•— Tudo isto é tão novo e tão estranho, na França e, talvez, no mundo! Depois de tantos séculos de cristianismo, tudo é ainda tão novo e tão estranho! Misericórdia, justiça, ternura, amor, compaixão e generosidade; de todas essas coisas os nossos sacerdotes nos falaram. Mas, exceto em casos isolados, em terras distantes, nunca se soube que elas acontecessem. Agora, elas acontecem aqui. Reparou na saúde e nà alegria desses camponeses, e no seu aparente amor por Monsieur le Comte? Viu as suas casas, os seus campos, o conforto em que vivem? Apreciou a liberdade com que falam e agem, a dignidade das suas atitudes? Compreendeu que tudo isso foi obra de Monsieur le Comte?
— Compreendi — disse Arsène, cada vez mais impaciente.
François deixou cair as mãos e olhou para Arsène com tristeza.
— Então, talvez monsieur possa explicar-me por que tantos desses camponeses, outrora miseráveis, amam o conde, mas tão poucos o respeitam, e tão poucos honram os seus ensinamentos.
Arsène empalideceu. ’
— Não posso acreditar nisso! Não posso, François!
A raiva tomou conta dele. Pôs-se de pé, cheio de indignação.
— Mas, se você notou isso, por que não contou a Monsieur le Comte?
François não se levantou. Disse, calmamente:
— Já contei.
— Eo que é que ele diz?
— Que estou enganado, ou então ri e pergunta: “Quem sou eu, uma criatura igual a eles, para exigir um respeito servil? Basta- me que eles se sintam satisfeitos e felizes, sem forme e sem dores!”.
— Ah, é mesmo coisa dele! — exclamou Arsène, comovido, mas ainda furioso.
— Eu disse a Monsieur le Comte, e ele me perdoou a insolência, que reformas como esta têm que ser feitas lenta ou espontaneamente e, em todo o mundo. As pequenas revoluções são perigosas, grotescas, desconexas. Mas o conde retrucou: “É preciso começar em algum lugar, e não há melhor lugar do que o nosso jardim”.
— Isso me parece sensato! — disse Arsène.
Mas os seus olhos se cravaram, ansiosos, em François.
O velho sacudiu lentamente a cabeça:
— Liberdade demais, de repente, é como vinho demais para quem não está acostumado. Confunde, inflama, enlouquece e acaba destruindo. Deus caminha devagar, mas os homens teimam em andar depressa, como se quisessem apressar a passagem dos anos e segurar o mundo inteiro na palma da mão. É o caso de Monsieur le Comte.
— Não sei! — disse ele, com um gesto de desespero. — Também estou confuso. Só sei que entre os camponeses há muitos que devem a vida e o sossego de que gozem â Monsieur le Comtè, mas que não o respeitam, admiram ou amam, Tenho-os ouvido ridicularizá-lo. ..
— Mas por quê? — perguntou Arsène, espantado.
François abanou de novo a cabeça.
— Não sei, monsieur. Tenho muitos anos, mas ainda não entendo a humanidade. Quando era mais jovem, achava que a entendia. Mas descobri uma coisa: a ralé respeita o amo. Quando o amo é duro e cruel, o respeito é feito de ódio e de lembranças de sofrimento. Quando o amo é bom, olham-no com desprezo. Quem pode explicar os mistérios do coração humano? Quem pode dizer por que o homem beija a mão que o açoita e morde a mão que o socorre?
Fez uma pausa e continuou, desanimado:
— Certa vez, o Abade Mourion me disse: “Acredite, François, que o mal é mais poderoso do que o bem, que é uma força diferente parecida com uma chama consumidora, que os corações dos hofnens estão mergulhados numa perversidade natural”. Eu ri, achando que era coisa de padres. Mas agora sei que é verdade, é a realidade, como um holocausto, uma tempestade, um maremoto.
Estranhamente nauseado ao ouvir aquilo, Arsène passou a mão pelo cabelo, ao mesmo tempo em que deitava ao velho um olhar súplice.
— Não sabe o que me está dizendo, François! Não sabe o veneno que me está instilando no coração, a confusão que está semeando dentro dele! Em que o homem há de acreditar? O que ele deve procurar fazer?
François pensou um momento, o rosto moreno cada vez mais desanimado.
— A crença geral, monsieur, é de que a bondade e a gentileza indicam um temperamento fraco e tímido. A besta humana, há tão pouco tempo civilizada, conserva toda a ferocidade da sua primitiva condição. Ainda não consegue acreditar que a bondade e a gentileza são a força dos que possuem um coração firihe e nobre, e não a marca dos cavardes.
Hesitou, pedindo compreensão e perdão com o olhar:
— Disse a Monsieur le Comte que a reserva e a dignidade, num patrão, não vão contra a bondade e a justiça. Mas ele ri-se de mim. Anda entre os seus camponeses com a maior simplicidade e espírito fraterno, mostrando-lhes, por palavras e gestos, que eles são seus iguais e, em alguns casos, provavelmente até superiores a ele. Acho que aí é que está a fatalidade. Mesmo que fosse só isso, o seu grande coração sempre seria superior ao dos mesquinhos que o cercam. Não pode condescender, e a condescendência, misturada com a benevolência, é o único procedimento sensato para quem quer reformar o mundo. — Prosseguiu, após nova hesitação: — O homem superior deve ter sempre maneiras dignas e saber que uma confissão de igualdade é o primeiro passo para a anarquia.
—• Acha que Monsieur le Comte é demasiado parecido com Cristo, François? — perguntou Arsène.
François olhou gravemente para o jovem aristocrata.
— Não quero vê-lo crucificado, monsieur.
Fez-se um profundo silêncio, enquanto Arsène, as sobrancelhas franzidas, mordia o lábio e meditava, confusamente, nas palavras do velho. Ouviu-o dizer:
— O homem que sempre desprezou a humanidade costuma ser o mais misericordioso, em contraste com o que a idealizou ,e mais tarde se decepcionou com ela. Não há maior ódio do que o dele.
— Acredita então, meu amigo, que Monsieur le Comte algum dia odiará aqueles a quem fez tanto bem? — perguntou Arsène, incrédulo.
François abanou a cabeça.
— Não, nunca haverá ódio naquele grande coração. Mas ele pode acabar destruído.
— Isso é fantástico!
François ficou calado. Mas logo disse, com um gesto de mãos:
— Monsieur, eu não sei! Quem pode saber? •— E acrescentou, passado um momento: Quando corremos atrás de uiha estrela, nunca podemos ter a certeza de alcançá-la. O máximo que podemos fazer é nortear o nosso caminho por ela-. Pode ser que eu me engane. Monsieur le Comte talvez esteja com a razão. Na minha insolência, falei demais. Sem fé, um homem não é nada. Minha fé é fraca. Já a fé do conde é muito forte.
Inclinou a cabeça e murmurou:
— Podé levar ainda muitos séculos para que os homens compreendam que os que os amam e os ajudam não são nem idiotas nem covardes, nem merecedores de desprezo e martírio.
Arsène pensou em tudo aquilo com a maior inquietação, sentindo que o cume alto e precário a que conseguira chegar estava sendo sacudido por um terremoto.
Ao ver aquilo, François disse:
— Monsieur! Mesmo que não estejamos convencidos do valor da humanidade, isso não nos inibe da necessidade de justiça e compaixão. Na realidade, a obrigação de alcançá-las torna-se ainda maior.
Ouviram o gado entrar nos currais e os seus graves e lúgubres mugidos. Através das janelas abertas, Arsène viu Cécile e Paul tocando destramente as vacas. Uma vez mais sentiu o corpo tremer. Lá estava a moça, esbelta e forte ao mesmo tempo, na sua anágua azul, com a saia preta, de camponesa, repuxada e amarrada atrás. Viu-lhe os tamancos de madeira, o corpete justo e preto, o branco engomado do lenço e da touca que lhe escondia o cabelo castanho- claro. Seus braços nus estavam bronzeados, segurando o cajado de pastora. Ela caminhava rapidamente e Arsène viu que o seu rosto já não era pálido nem emaciado, e sim cheio de força, brilhante de nobreza e de paz. Tocados pelos últimos raios do sol, os seus olhos azuis reluziam de vida e bom humor. Viu-lhe a nuca branca e jovem, atravessada por uma madeixa de cabelo claro, esvoaçando à brisa vespertina.
Mal podia acreditar que aquela vigorosa camponesa fosse a moça pálida, de camisola, que o beijara uma noite, à luz bruxulean- te de uma vela. Quando entrou com a última cabeça de gado, ele viu-a olhar, rindo, por cima do ombro, para Paul, que estava tendo dificuldade com um bezerro teimoso. O olhar era terno e indulgente. Tendo finalmente conseguido puxar o bicho para dentro do curral, Paul avançou para ela e segurou-lhe a mão, rindo alegremente.
Arsène viu a expressão no rosto do jovem conde, terna e concentrada, apesar do riso. Viu também a moça corar, e o rubor subir- lhe pelas faces até a testa. Mas ela não retirou a mão.
De repente, uma verdadeira fúria tomou conta de Arsène, acompanhada de uma sensação de náusea e desolação. Vira muita coisa no olhar cheio de ternura de Paul e na expressão dos seus lábios sorridentes. Viu os dois, à sombra dos currais, sob o telhado vermelho ao soJ noente, tendo atrás deles os corpos arquèjantes do gado, o vento soprando a saia da moça e uma única madeixa de cabelo. Para além dos estábulos estendiam-se o verde dos campos, o violeta das montanhas e o azul-opala do céu.
Não é possível!, pensou Arsène, mordendo o lábio. E acrescentou para si mesmo, sentindo um gosto de fel na boca: Estará ele pensando em substituir Madame duPrès por essa jovem camponesa?
Era muito comum um senhor escolher entre as moças mais bonitas das suas terras. O próprio Arsène várias vezes fizera isso, para aliviar o tédio de uma temporada nas propriedades do pai. Por isso, não conseguia entend a a dor que lhe assaltava o coração, o ódio negro que parecia subir-lhe do fundo da alma. Achou algo de obsceno nos sorrisos francos e inocentes de Paul, no rubor e nas risadas da jovem. A mão, que se apoiava pesadamente no parapeito de pedra da janela, tremeu. Parecia não poder respirar, Ele não é melhor do que os outros!, disse para si mesmo.
Perdido nos paroxismos daquela raiva incompreensível, não ' percebeu que os dois tinham entrado e, quando ouviu a voz da moça perto de si, estremeceu, como se 'despertasse de algum riegro pesadelo. Ela estava diante dele, encarando-o com expressão grave, embora os seus olhos azuis continuassem alegres. Vendo-o olhar para ela como que fascinado, Cécile fez uma profunda reverência e depois, levantando-se com dignidade, esperou que ele, falasse. Agora, ela estava muito séria.
— Bem, mademoiselle, parece que voltamos a encontrar-nos —• gaguejou ele.
Não via senão aqueles olhos azuis, calmamente fixos nos dele. Seria apenas a penumbra no interior da casa que fazia com que as faces da jovem parecessem pálidas, as suas narinas mais afiladas e a sua boca mais firme? Seria apenas a luz tênue que fazia a sua testa parecer de mármore frio, e os contornos da sua cabeça e do seu pescoço parecerem esculpidos em pedra?
Ele não sabia que François e Paul, num misto de fascínio e apreensão, olhavam para ele e para Cécile como se contemplassem um espetáculo surpreendente, que lhe causassem um vago alarme.
Todos os sentidos de Arsène pareciam remoinhar. A dor no seu coração aumentara tanto, que todo o universo parecia pulsar dentro dele. Só agora entendia a depressão sem limites que ultimamente o assaltava e à qual ele se recusava a dar nome, o sentimento de futilidade e cansaço que o invadira quando ele devia estar mais alegre.
— Sente-se feliz aqui, mademoiselle? — perguntou com voz sumida, aproximando-se dela.
— Sinto-me muito feliz, graças a monsieur e a Deus — respondeu ela, calmamente.
O seu olhar parecia acusá-lo, com frio desprezo.
O suave repicar do Angelus ecoou pelos campos e os montes, dourados dos últimos raios de sol, e as janelas lembravam molduras, circundando uma cena de paz. A radiante neblina que pairava sobre a floresta distante foi aos poucos avançando sobre toda a região. Ouviu-se o murmurar das asas das pombas retornando aos pombais.
Num esforço para fugir aos olhos dela, Arsène voltou-se para Paul. O jovem conde estava muito pálido, e a sua expressão era a de quem tinha recebido um soco em pleno rosto. Estava encostado ao respaldo de uma cadeira, uma das suas mãos pendendo sobre ele. Aos olhos de Arsène, ora mais sensíveis, havia algo de eloquente e pungente naquela mão, algo mais expressivo do que mil palavras, mil gritos, naquela mão suave e compassiva, que nunca desferira um único golpe ou causara sofrimento a uma única alma! De repente, Arsène sentiu um renovado amor pelo amigo, e uma grande dor.
Vou-me embora, pensou, despertando daquele torpor que parecia prendê-lo ao chão. O que significava aquela humilde camponesa para ele, que no dia seguinte se casaria com a filha da ilustre casa de Tremblant? O belo rosto de Glarisse surgiu-lhe diante dos olhos, mas pareceu-lhe tão fútil e artificial quanto uma máscara de gesso pintado, e sentiu-se nauseado ao pensar nele.
Um cheirinho bom emanava de Cécile, um cheiro a prados, campos e sol. Sentiu-se de novo invadido por uma emoção de perda e desolação, e os seus lábios ficaram frios de gelo. •
— Preciso partir imediatamente — gaguejou, em meio ao silêncio que engolfava a casa.
Procurou sorrir.
— Amanhã é o dia do meu casamento.
— Devemos dar-lhe parabéns, então! — disse a jovem, na sua voz clara e forte.
Seus olhos azuis pareceram aumentar, mas o rosto conservou a calma e a compostura.
— Obrigado, mademoiselle — retrucou ele.
Virou-se para François.
— Obrigado pela hospitalidade, François — disse, procurando afirmar a sua superioridade. — Foi um grande prazer para mim constatar a sua melhoria de vida, pois nunca esqueci o quanto lhe devo.
François não respondem A clássica cabeça romana parecia imbuída de uma dignidade misteriosa, de uma indignada melancolia.
A jovem fez nova reverência, mas desta vez não se levantou. Continuou no chão, a cabeça pendente, numa atitude de estátua.
Arsène viu-se a sós com Paul, debaixo do céu já escuro, e rodeados pela paz dos campos. Encaminhou-se rapidamente para o lugar onde tinham amarrado os cavalos. Montou, sem dizer palavras, mas Paul ficou de pé, ao lado do amigo, olhando para ele com infinita tristeza.
— Não é possível desistir do casamento com honra? — perguntou.
— Não, não é possível — respondeu Arsène, numa voz estrangulada.
Só mais tarde perguntar-se-ia por que não ficara espantado com a pergunta de Paul.
O conde montou sem dizer mais nada, e dirigiram-se para o château. Arsène recusou o convite de Paul para entrar e tomar algo, antes de partir. Seu único desejo, agora, era ficar a sós com a sua dor. Teria partido imediatamente, mas apercebeu-se de que Paul, havia já algum tempo, lhe estendia, mudamente, a mão. O sofrimento brilhava nos olhos do jovem conde.
Arsène apertou-lhe a mão. De repente, sentiu-se à beira das lágrimas e partiu a galope.
Galopou durante alguns minutos até que, o coração batendo- lhe com tanta força que ele mal podia respirar, conduziu o cavalo para debaixo de uma árvore. Desmontou, jogou as rédeas sobre o pescoço do animal e deixou-se cair na grama úmida, ouvindo ao longe um sombrio coro de sapos. O cavalo afastou-se para pastar. As trevas foram aos poucos aumentando, e os vaga-lumes começaram a pontilhar de luz o lusco-fusco., O vento soprava de algum campo distante, trazendo consigo um cheiro bom e puro de feno. Os sinos repicavam de novo no campanário da igreja, vibrando no ar perfumado. A curva frágil da lua erguia-se, silenciosa, no ocidente, ainda iluminado por uma réstia vermelha, e dourada de sol. À paz da noite espalhava-se por todo o mundo, tingindo tudo de azul e lilás. Os troncos das árvores que cercavam o lugar onde Ar- séne estava deitado foram ficando negros e imóveis, quais gigantescos espectadores.
Ouviu o estridente cantar dos grilos, de mistura com a lúgubre melodia dos sapos. A grama, batendo-lhe na face dolorida, era quente e cheirosa.
Procurou não pensar. Com o coração encostado na terra, sentiu como se a dor passasse dele para as entranhas da mãe de todas as coisas. A força começou a voltar-lhe, junto com uma estranha sensação de conforto.
— Paz! — murmuravam as árvores, inclinando os ramos à hrisa noturna.
— Paz! — cantavam os grilos é os sapos.
Só depois de algum tempo é que se apercebeu do ruído de vozes na floresta. Eram uma voz de mulher, baixa e insistente, e uma voz de homem, sonora e pensativa. Amantes, pensou, e a dor voltou-lhe ao peito.
Distinguia agora o que eles diziam, e a voz da mulher fez com que ele levantasse a cabeça, pois aquele tom impaciente e caprichoso lhe era familiar.
— Não sei quanto tempo ele vai ficar desta vez, monsenhor. Já lhe disse!
— Mas é preciso, madame, é urgente que ele parta imediatamente. Não é possível que ele demore mais de uma semana.
— É possível que ele demore anos! — retrucou ela, numa voz estritente.
— Então, a senhora tem de eonvencê-lo, sob qualquer pretexto, a voltar com a senhora para Paris, madame.
A voz do homem era fria e autoritária,
Arsène sentou-se, a fim de escutar melhor. Mas eles não vol-: taram a falar. Ao ouvir o barulho de passos, deitou-se de novo na grama. Dois vultos emergiram das trevas. Virando cautelosamente a cabeça, Arsène viu que se tratava de Mádame duPrès e do misterioso padre, Padre de Pacilli, Afastaram-se, falando baixo, e não tardou que os perdesse de vista.
Arsène levantou-se. O que escutara era pouco, mas ele estava certo de que havia algo de terrível e perigoso por trás daquelas palavras. Entregue a mil e uma conjeturas, continuou viagem de volta a Paris, sentindo o seu próprio sofrimento diminuído diante da preocupação pelo amigo.
Alguns dias mais tarde, um mensageiro trazia uma carta de Arsène para Paul. Como Paul estivesse nos campos, Madame duPrès recebeu a carta. Um pressentimento fez com que ela desconfiasse de que contivesse uma ameaça à sua pessoa. Como, nem ela mesma saberia explicar. Talvez fosse a intuição à flor da pele dos que se entregam a atos traiçoeiros que lhe originou essa suspeita.
A missiva estava lacrada com o sinete de Arsène, mas Madame duPrès era hábil. Com algum esforço, conseguiu abrir a carta. Parecia ter sido escrita às pressas, como se o seu autor estivesse sob a ação de uma grande emoção.
“Quando você receber esta carta, meu amigo, eu já terei partido em viagem de núpcias. Agradeço-lhe efusivamente os presentes que você enviou a madame e a mim, e espero que, assim que regressarmos, você não demore a nos visitar.
“Sou levado a lhe escrever esta carta por ter sido testemunha insuspeitada de algo muito estranho. Antes de mais nada, porém, quero recordar-lhe as suspeitas que tive daquele singular padre, de Pacilli, e que tanto o embaraçaram. Não fiquei convencido de que ele fosse o que dizia. Agora, tenho a certeza de que ele é ainda pior do que eu suspeitava.
“Depois que o deixei, após a minha visita a Chantilly, parei para descansar na orla da floresta, ao cair da noite, Ouvi vozes, que mais tarde reconheci como pertencendo à Madame duPrès e ao tal padre, Ele instava-a para que convencesse você da necessidade de voltar com ela a Paris. Parecia muito insistente e autoritário e já não falava naquela voz branda e com aquela fingida modéstia com que se dirigiu a mim e a você. Não disseram mais nada que eu pudesse ouvir, mas achei que você corria algum perigo iminente. Por favor, insista com o bispo para que substitua imediatamente esse padre. Mesmo assim, fique prevenido: algo está se preparando contra você.
“Termino estas apressadas linhas na esperança de que nos voltemos a encontrar o mais breve possível. Devido aos distúrbios que ocorrem por toda a Europa, a nossa viagem de núpcias não será demorada. Pretendo passar algum tempo nas terras de minha mãe, na Gasconha. Peço-lhe que aceite as minhas expressões de amizade e devoção.”
Um frio de gelo tomou conta da mulher, ao acabar de ler a carta. Correu imediatamente em busca de Morfsenhor Antoine de Pacilli, que estava agora sozinho na humilde casa do velho abade. Leu a carta em silêncio e depois fixou na mulher os olhos amen- doados, com expressão malévola.
— Precisamos agir o mais depressa possível — falou.
E rasgou a carta em pedacinhos, com movimentos precisos e delicados, como se estivesse dilacerando uma coisa viva, com músculos e nervos capazes de sentir dor.
Capítulo XXX
Da Gasconha, Madame de Richepin escreveu à mãe, Madame de Tremblant:
“Mamãe querida, é com profunda ansiedade que lhe peço dizer-me se tiveram alguma notícia do meu querido tio, que desapareceu de maneira tão estranha às vésperas do meu casamento. A senhora sabe do amor que lhe tenho, não só por ele ser meu padrinho, como pela bondade com que ele sempre nos tratou, à senhora, a mim e às minhas irmãs. Arsène parece muito apreensivo a respeito do tio Raoul, embora continue recusando-se a me dizer as causas dessa apreensão.
“Recebi a sua carta, na qual a senhora quer saber da minha saúde e se estou feliz. Minha saúde, como sempre, está ótima. Mas não posso dizer que estou feliz.
“Minha inocente impressão era de que eu e Arsène faríamos uma alegre visita às propriedades do pai dele, onde nos veríamos rodeados de vizinhos amáveis. Realmente, visitamos essas propriedades e, durante algum tempo, fomos homenageados com banque- ics, bailes e caçadas. Contudo, as toaletes das senhoras deixavam muito a desejar, e via-se que pouquíssimas tinham estado em Paris recentemente. Meus vestidos foram muito admirados e invejados, as modistas locais estão tentando copiá-los, a pedido das senhoras. Tudo isso foi muito agradável. Os cavalheiros, embora algo rústicos, mostraram-se excessivamente galantes, e Arsène fingiu estar louco de ciúmes. Digo fingiu, porque, para minha tristeza, parecia preocupado, e volta e meia desaparecia durante longas horas a fim de inspecionar as propriedades. Mas isso não é tudo. Punha-se a discutir horas a fio, com os nossos anfitriões, sobre assuntos de que até hoje não faço bem ideia, embora acredite que se relacionassem com os que ele chama de a “condição” dos camponeses que trabalham e vivem nessas propriedades. Os cavalheiros, embora polidos, pareciam espantados e, em alguns casos, indignados. A todo momento eu temia que ele fosse desafiado para um duelo. Realmente, algumas das respostas que eles lhe davam dificilmente poderiam ser aceitas por um homem de brio. E Arsène, que sempre esteve pronto a puxar da espada e a duelar, parecia não se aperceber dos mal velados insultos e mergulhar cada vez mais fundo nas preocupações que o assaltavam.
“Tudo isso, porém, poderia ser suportável. Sou sua esposa, escolhida por ele, que sempre deu a impressão de me amar. Contudo, quando estávamos nas terras do pai ele deu para desaparecer, sem mais nem menos, durante horas a fio, inclusive durante toda a noite. Minhas lágrimas passavam-lhe, aparentemente, despercebidas. Estava sempre de testa franzida, e a sua língua tornou-se irascível. Até parecia que eu era uma esposa velha, de muitos anos.
“Nos bailes, quase nunca dançava comigo, embora antes do nosso casamento fosse ótimo dançarino. Muitas vezes o descobria escondido em cantos distantes, travando, com os nossos anfitriões e os outros convidados, longas discussões, durante as quais os gênios pareciam inflamados e as vozes bastante irritadas.
“Não sei 0 que aconteceu com o meu marido, embora note uma mudança nele desde quando ele desapareceu por vários dias, em Paris, e eu adoeci, lembra-se? Está cada vez mais magro e pálido, e mal o reconheço, a tal ponto a sua expressão é séria, preocupada e alarmante. Antes, estava sempre discutindo, mas levado apenas pelo gênio forte. Agora, vive com ar sombrio, e, quando discute, é em tom ameaçador.
“De repente e sem me dar oportunidade de me despedir dos nossos anfitriões, trouxe-me para a Gasconha. Mamãe, por acaso a senhora conhece a Gasconha? Garanto-lhe que não há lugar mais triste no mundo!
“O calor é insuportável. O sol forte faz o campo ficar branco. Os rostos das pessoas parecem-me estranhos, e o seu dialeto arranha-me os ouvidos. Não obstante, minha intenção era mostrar-me amável com elas. Mas, desde o princípio, trataram-me com desconfiança. As senhoras pareciam achar as minhas toaletes ridículas. Vestem-se simples e grosseiramente e dão a impressão de se divertir com as minhas maneiras e os meus vestidos. Caça-se muito, mas sem nenhum requinte. Além disso, o château é muito desconfortável, e os criados são horríveis. Os poucos jantares para os quais fomos convidados destacaram-se pelos pratos intragáveis e o péssimo vinho. Tudo aqui é monótono e tedioso. Pensei que Arsène, que sempre adorou bailes e a animação de Paris, logo se cansasse deste abominável lugar. Mas, que nada! Aqui as suas estranhas preocupações se manifestaram com mais força ainda.
“Querida Mamãe, sei que esta carta nem parece de uma noiva, de uma jovem recém-casada. Mas sinto-me tão infeliz, que as palavras me saem do fundo do coração. Será que a senhora não pode escrever-me uma carta urgente, dizendo ser necessário que eu volte imediatamente a Paris? Despeço-me com as mais carinhosas expressões de amor pela senhora e pelas minhas adoradas irmãs. Clarisse.”
Após terminar de escrever essa angustiada carta, Madame de Richepin enxugou os grandes olhos azuis com o lencinho de renda e dobrou o papel com gestos furiosos e exagerados, que bem mostravam o seu estado de espírito. Olhou para o seu boudoir, austeramente mobilado, e estremeceu, recordando, com saudade, os luxuosos aposentos do seu tempo de solteira. A janela, aberta, deixava ver campos e campos cor de bronze, sob um sol que tudo parecia derreter. A jovem Madame de Richepin olhou para tudo aquilo e ergueu ao ar as mãos suaves e delicadas, num gesto de desespero. Todos os seus sonhos tinham caído por terra. Casara com o homem mais alegre e requestado de Paris, famoso como es padachim, ótimo dançarino, com um senso de humor capaz de fazer rir uma estátua e um espírito mais divertido do que o de qualquer outro cortesão. E eis que, de repente, ele se tornara um homem sombrio e irascível, entregue a estranhos e incompreensíveis pensamentos, sempre pronto a praguejar, e de cara fechada, dado a misteriosas venetas e a ir e vir sem dizer para onde. Aquele não era o seu Arsène! As lágrimas assomaram-lhe de novo aos olhos, ela limpou-as cuidadosamente, de modo a não irritar o suave rosado das faces. Sacudiu as pregas do robe de seda branca e ajeitou os cachos dourados que lhe caíam sobre a testa, as orelhas e o longo e alvo pescoço. Viu-se ao espelho, e a sua beleza animou-a c entristeceu-a ao mesmo tempo.
Ah, se ela tivesse seguido a voz do seu coração e casado com o homem a quem realmente amava! Mas ele era huguenote, e, embora o seu querido tio Raoul também o fosse, sua mãe não aprovara tal casamento, que poria em perigo a sua posição na Corte. Como ela aborrecia esses homens que se entregavam apaixonadamente a esta ou àquela religião! Tudo o que importava na vida eram o amor, os bailes, belas toaletes, alegria, risos e flertes. Num mundo tão cheio de encantos, por que seria que aqueles cavalheiros conspiravam para destruir tudo, a título desta ou daquela doutrina? Não era mais sábio e mais simples contentar-se com ser feliz e viver alegre?
Sentiu uma raiva enorme de tudo aquilo que a deixara, a ela, uma jovem recém-casada, sozinha num quarto desconfortável, num execrável château de província, enquanto o marido andava de um lado para o outro das suas estéreis terras, o cenho franzido, discutindo com um tal de Monsieur Dariot e erguendo a voz numa linguagem abominável, a todas as horas do dia. Quem teria imaginado que Arsène se transformaria num fanático, principalmente numa espécie de fanático que a mente feminina era totalmente incapaz de compreender?
Sentia uma saudade incrível da sua amada Paris, da mãe e das irmãs, dos Bois e dos bailes, dos risos e da luz dos castiçais brilhando nos rostos pintados e nas toaletes luxuosas, dos soalhos encerados e dos belos jardins, com repuxos cintilando ao luar. Ali, só havia o silêncio do campo gascão, quebrado apenas pelo zumbido estridente dos insetos. A luz ofuscante aumentava quando o vento soprava, um vento quente e terrível, que parecia originar-se no próprio sol.
Ouviu então os passos de Arsène no corredor de pedra; um minuto depois, ele abria a porta e entrava no quarto. Suas botas outrora tão engraxadas e elegantes, estavam cheias de barro vermelho. Os calções e o gibão davam a impressão de terem sido vestidos às pressas e estarem cheios de poeira. Seu cabelo estava em desordem e havia manchas de terra nas suas faces e no seu queixo. As sobrancelhas pretas estavam franzidas sobre os olhos escuros e brilhantes, e a boca tinha um ríctus amargo e preocupado. Mas, pior do que tudo isso, para a jovem Clarisse, foi o olhar surpreso e aborrecido que ele lhe deitou, como se a presença dela fosse inesperada e não bem-vinda.
Clarisse levantou-se automaticamente, ao vê-lo entrar, e fez-lhe uma pequena reverência. Arsène não trazia a espada à cinta, e sim um chicote na mão, para o qual olhou por um momento, antes de atirá-lo impulsivamente num canto distante. Clarisse não o amava, mas ele tinha o poder de torná-la trêmula e palpitante. Esperava que ele notasse como ela estava bonita, essa manhã. Mas o rosto dele não se iluminou. Olhou para a pequena escrivaninha onde ela se sentara para escrever, e perguntou, ansioso:
— Escreveu a carta?
— Naturalmente, monsieur — respondeu ela, jogando a cabeça para trás, de modo a fazer com que os cachos lhe caíssem sedutoramente sobre os ombros.
Ele olhou-a, como se não a visse, durante uns dois minutos e depois disse:
— Não posso sossegar enquanto não souber que ele voltou são e salvo.
Deixou-se cair num banco de madeira que havia junto da janela sem cortinas e olhou para as suas terras.
— Esse Dariot! — murmurou. — Um verdadeiro imbecil! Que faria Paul com tal criatura? É grosso como ele só, e não há argumentos que o convençam! Como posso suportá-lo?
— Sempre o achei impossível! — exclamou Clarisse, ansiosamente.
Arsène olhou para ela, perplexo.
— Quando teve oportunidade de falar com ele, madame?
Foi a vez de ela ficar espantada.
— Ora, muitas vezes, Arsène. Embora ele não fosse um frequentador assíduo do hôtel de Tremblant' todo mundo sabe que é um pobre de espírito e um péssimo dançarino.
Arsène olhou de novo para ela e soltou uma risada.
— Ah, mas estamos falando de pessoas diferentes. Eu me referia a Dariot e não ao Conde de Vitry.
A sua expressão era ao mesmo tempo aborrecida e impaciente.
— O conde é meu amigo e vale mais do que toda Paris junta, madame. É uma pena não se aperceber disso.
Ela atirou uma vez mais os cachos para trás.
— Arsène, você está querendo me irritar. O conde inspira apenas tédio entre as pessoas acostumadas à vida em sociedade. A sua conversa provoca bocejos. É gaúche e desajeitado, um descrédito para o pai dele, segundo diz minha mãe. . .
— Sua mãe, madame — interrompeu Arsène, com violência —, é uma idiota. Como todos os demais habitantes le Paris. Mas que se pode esperar de uma cidade de araras e pavões?
Clarisse ficou tão chocada com aquilo, que rompeu em lágrimas sinceras, e tão desolada, que nada fez para enxugá-las, completamente esquecida da sua pele de pétala. As gotas cristalinas cscorriam-lhe pelas faces e entravam-lhe pelos cantos da boca trêmula. Havia naquele espetáculo algo de tão tocante, que Arsène, com uma * exclamação de impaciência, se levantou e tomou-a nos braços. Ela afundou no peito dele e soluçou, inconsolável:
— Ah, monsieur, seria bem melhor se não nos tivéssemos casado! Não é difícil perceber que nada represento para você. Por que, então, pediu a minha mão?
Por um breve momento, Arsène, sempre egoísta e impulsivo, teve uma breve percepção da situação a que arrastava a jovem esposa e da sua própria confusão. Sentiu uma grande vergonha e uma profunda humilhação, por se ter deixado apanhar em tão ridícula armadilha. Havia menos de um ano, fascinado com a beleza e os encantos daquela jovem, tornara-se noivo dela. Clarisse fazia então parte do seu mundo frívolo, um mundo que ocasionalmente podia entediá-lo, mas que quase sempre lhe parecia excitante e divertido. Cada vez mais estupefato, recordou que, até bem recentemente, nunca tivera um pensamento sério ou perturbador; que a sua mente estivera sempre ocupada com aventuras e intrigas, com ódios descabidos e episódios amorosos, todos eles igualmente triviais. Alguma vez tivera um pensamento sério? Nunca, desde os seus tempos de estudante. E pouco se lembrava deles, exceto cm episódios rápidos e desordenados. “Filosofar é aprender a morrer”, dizia Montaigne, e, embora ele várias vezes tivesse repetido esse pensamento, nunca entendera o seu significado. Só agora.
Não fora Arsène de Richepin quem casara com Mademoiselle de Tremblant e sim umar outra pessoa, que se julgara presa a uma promessa feita por um desconhecido.
Agora, vendo a jovem esposa chorar, uma terrível angústia crescia dentro dele. Teve vontade de lhe dizer, movido pela piedade e pela raiva de si mesmo: Eu a enganei! Não sou aquele de quem você ficou noiva!
Mas ele próprio não sabia quem ele era. A confusão mais completa tomava conta dele, como uma nuvem negra e arrebatadora. Todas as coisas nas quais procurava fixar a visão perdiam contorno e substância, transformavam-se em aparições sem significado ou coerência. Só sabia que, durante algum tempo, fora vítima de uma grande reviravolta espiritual, informe, desconcertante e dolorosa. Ouvira atentamente Paul de Vitry, o Duque de Tremblant, o Abade Mourion e François Grandjean, e essas vozes, ou- trora tediosa repetitivas, como os ensinamentos de um professor famoso pela monotonia, de repente tinham-no tomado de surpresa, com o impacto da sua significância e da sua urgência.
Continuava meio cego num mundo novo e gigantesco, cujas infinitas dimensões o enchiam de um vago terror. Só conseguira seguir as vozes dos amigos, confiando, em meio às trevas, no contato das suas mãos.
E fora para aquele mundo, terrível e enorme na sua realidade, que ele trouxera aquela esposa-menina.
Agora, na sua nova capacidade de encarar as coisas do ponto de vista dos outros, compreendia o que ela sentia, a sua perplexidade e o seu terror, a sua dor e o seu sofrimento. Via que ela olhava para ele, através das lágrimas, como se olha para uma criatura desconhecida e ameaçadora, procurando encontrar nela alguma característica familiar e tranquilizadora.
Arsène suspirou profundamente. Tinha pelo menos a obrigação de tentar fazer com que ela compreendesse.
Sentou-se e fê-la sentar nos seus joelhos, os braços ainda agarrados ao seu pescoço, num misto de temor infantil e desespero. Ela pousou a cabeça no ombro dele, fazendo com que os cachos louros caíssem sobre o seu peito. Então, como se um bisturi lhe abrisse o coração e lhe expusesse os nervos e as artérias, uma dor convulsionou-o, enchendo-o de pena e tristeza. Esqueceu a jovem que tinha nos braços e viu outro rosto, outro par de olhos azuis e uma boca jovem e contida, cheia de força e resistência. É ela, a dona do meu coração, da minha alma, pensou, com a simplicidade das verdades inexoráveis.
Começou a falar, de maneira quase inaudível, e numa voz tão rouca e estranha, que ela mal podia acreditar no que ouvia.
— Que lhe posso eu dizer, ma chêrie? Como posso tornar compreensíveis os meus pensamentos? Não é possível, porque eu tampouco tenho certeza deles.
— Não há dúvida de que você mudou, Arsène — choramingou ela, agarrando-se mais a ele.
— Sim, eu mudei — repetiu ele, fitando-a com olhos sombrios. — Mas mudei como? Não sei. Só sei que me sinto infeliz e atormentado. Nem tenho palavras para me fazer compreender por você. Não há palavras, porque eu próprio não me entendo. — Desviou o olhar preocupado. — Só sei que existem coisas que eu preciso entender. Sou arrastado por uma corrente à qual tento resistir. Sei que preciso compreender, que só isso me interessa neste mundo.
Ela olhou para ele, apavorada. Segurou-lhe o rosto nas mãos trêmulas e forçou-o a olhar para ela. Sentiu uma dor no coração e amou-o pela primeira vez.
— Arsène! — exclamou, incoerentemente. — Arsène, volte para mim, meu querido! Deixemos este lugar horrível e regressemos a Paris! Senão, uma calamidade cairá sobre nós! Sinto isso!
De repente, ele sentiu uma vontade enorme de voltar a Paris, à Paris da sua juventude, à Paris que ele conhecera, despreocupada, alegre e divertida, cheia de música, risos e prazeres. E no coração frívolo da jovem esposa brotou uma intuição de perda irreparável. Não compreendia que doença se abatera sobre Arsène. Sentia-lhe apenas a presença. Agarrou-se a ele como se o estivesse vendo afundar num pantanal, num pesadelo.
Ele contemplou-a com olhos em que só se viam dor e cansaço.
— Não posso voltar, madame — respondeu. E gritou, afastando-a de si: — Volte para a sua mãe! Não espere nada de mim, Clarisse!
Deixou-a chorando e atravessou correndo o despido château, com seus criados mal-humorados e desatentos. Foi em busca do administrador, Dariot, que via, com ar sombrio, os camponeses cortarem o feno munidos de longas foices, que reluziam ao sol escaldante. Quando notou a aproximação de Arsène, o seu rosto comprido e queimado escureceu, mas cumprimentou-o respeitosamente.
— Chega de discussões, Dariot — disse Arsène abruptamente, ignorando o olhar frio do administrador. — As choupanas miseráveis onde moram os camponeses precisam ser derrubadas e substituídas por pequenas casas de pedra. Creio que não seja preciso falar mais nisso.
Dariot apontou ironicamente para os campos, cheios de feno por cortar, e para os trigais distantes.
— Monsieur não se importa que os homens abandonem a colheita para construir essas casas?
Arsène hesitou. Um rubor subiu-lhe às faces, diante do tom calmo do administrador.
— Não — disse, por fim, enquanto os camponeses mais próximos abriam a boca, incrédulos. — Primeiro, a- colheita. Você já ouviu as minhas ordens, Dariot. Quando as colheitas terminarem, quero que o seu produto seja dividido, conforme as minhas instruções. Depois, eles construirão as casas. É tudo o que tenho a dizer.
Dariot ficou calado. Olhou em frente, batendo com o chicote contra as botas empoeiradas e, por fim, disse, lentamente:
— Pensa que eles lhe vão ficar gratos, monsieur?
— Que me interessa a gratidão? — retrucou impacientemente Arsène. — Já discutimos isso mais de uma vez. Repito: não me interessa a gratidão. Desejo apenas fazer o que é justo.
Dariot ficou de novo calado, mas deitou a Arsène um olhar demorado, no qual havia um pouco de troça. Arsène sentiu-se embaraçado, como se houvesse sido apanhado em flagrante, fazendo algo ridículo.
— Ainda bem que você reconsiderou, Dariot — disse, secamente —, e que continuará como meu administrador.
Dariot curvou-se com ironia. Perdera para sempre o respeito que antes tinha pelo patrão.
— Monsieur tornou as condições por demais tentadoras — disse.
— Arsène olhou para os campos estorricados e pensou, com tristeza: é estranho que os homens compreendam a dureza e a crueldade e adorem a mão que empunha o chicote, mas só sintam desprezo pela justiça e a piedade.
Talvez algo no seu olhar tivesse tocado o coração de Monsieur Dariot, pois a expressão do administrador tornou-se pensativa.
— Monsieur — disse ele, sombrio —, peço a Deus que você nunca se arrependa e que isto não lhe traga aborrecimento.
Capítulo XXXI
Uma sombra comprida e estreita projetóu-se através da porta aberta da taberna, e Crequy, cochilando por trás do balcão de madeira, levantou a cabeça e deparou com o novo abade, Padre de Pacilli, de pé, diante dele, com um sorriso amável e humilde.
A expressão de Crequy tornou-se feroz. Endireitou-se, e o seu carnudo beiço inferior destacou-se ainda mais, pendurado do rosto enorme e grosseiro.
O padre enxugou a testa úmida e pálida com um lenço branco e sentou-se, sempre sorrindo, a uma das mesas.
— Ah, monsieur — murmurou ele —, que dia tão quente! Poderia me servir um pouco do seu excelente vinho?
Crequy deixou passar vários minutos, como se não tivesse ouvido. Depois, praguejando entre dentes, pegou numa garrafa empoeirada e um copo e pousou-os na mesa do padre com toda a força, com gesto insolente.
— Vinte sous — grunhiu.
O padre ergueu uma sobrancelha, para indicar a sua surpresa.
— É costume o cura pagar o vinho que toma? — perguntou, com um sorriso ao mesmo tempo agradável e humilde.
— Não dou esmolas a homem nenhum, seja ele padre ou outro tipo de mendigo — retrucou Crequy, com um brilho ameaçador nos olhos porcinos.
O padre riu, como se Crequy tivesse dito algo muito espirituoso. Puxou da bolsa, de aspecto modesto, e contou lentamente vinte sous.
— Não quer beber comigo? — perguntou, na sua voz macia e musical, que, mesmo aos ouvidos embotados de Crequy, soou levemente estrangeira.
O taberneiro ignorou desdenhosamente o amável convite e retirou-se para trás do balcão, de onde continuou a olhar fixamente para o abade.
O padre bebeu um copo de vinho e, com admirável autocontrole, fingiu não sentir repulsa por aquele gosto acre, que lhe ofendia a língua, acostumada aos mais delicados buquês e deliciosos aromas.
— Ah, excelente! — murmurou, com ar gratificado.
Mas Crequy não se dignou, sequer com um pestanejar, dar mostras de ter ouvido o elogio.
O padre enxugou delicadametne os lábios, incapaz de continuar a beber. Tocou de leve na garrafa e olhou para Crequy.
— Por favor, dê o resto do vinho ao próximo viajante fatigado que aparecer por aqui — disse ele. — Vou sentir prazer em saber que ele serviu para refrescar algum pobre homem como eu.
Crequy saiu de trás do balcão, aproximou-se da mesa, agarrou a garrafa com a mão enorme, dirigiu-se para a porta e despejou o vinho na poeira do pátio. Depois, voltou para o balcão, sentou-se e ficou a olhar para o padre como um Buda perverso.
O padre concordou intimamente com aquilo, mas disse, numa voz branda e cheia de tristeza:
— Eu não o envenenei, meu amigo.
Crequy não respondeu. Seu rosto vermelho brilhava como uma lua cheia, na penumbra da taberna.
— Não gosta de padres? — perguntou de Pacilli, com um suspiro.
O taberneiro fingiu não ter ouvido. O padre começou a sentir- se mal sob aquele olhar fixo e desumano, no qual não se refletia nenhum pensamento.
— O bom Conde de Vitry não tem dessas aversões — continuou de Pacilli.
Ao ouvir falar no nome do conde, o rosto de Crequy adquiriu expressão.
— O conde é um idiota — resmungou, e um brilho mau as- somou-lhe aos olhos.
O padre ouvira dizer que Crequy tinha, pelo conde, o maior desprezo e animosidade, e que não lhe poupava insultos, que lhe teriam custado a vida, tivesse ele um amo menos misericordioso e insensato. No brilho daqueles olhos castanhos e opacos, cujo branco era amarelado e cheio de veias vermelhas, na projeção daquele beiço enorme e reluzente, no gesto brutal, ele lia ódio e desdém. Seria possível aquele animal saber de algo que depusesse contra o conde?
Ergueu a mão fina e branca, em falso protesto, e o seu rosto, longo e sutil, assumiu uma expressão de choque.
— Ah! — exclamou, em tom de censura. — Como é possível que monsieur não entenda uma natureza tão nobre quanto a do Conde de Vitry? Não percebe que a magnanimidade do conde é comprovada pelo fato de se poder falar mal dele sem temer castigo?
A fúria tomou conta de Crequy, e os seus olhos rolaram, como pequenas bolas de fogo, em meio ao seu grande rosto.
— Uma natureza tão nobre! — repetiu ele, arremedando a voz controlada do padre. — Que é que Monsieur de Curé entende de nobreza?
De Pacilli suspirou e balançou a cabeça. Cobriu os olhos com uma das mãos, como quem se entrega a um devaneio. Quando, por fim, retirou a mão, o seu olhar era suave e humilde.
— Que é que eu entendo de nobreza? — murmurou ele. — Ah, confesso ter visto muito pouca, neste mundo depravado. Mas via-a no Conde de Vitry. Quem pode privar com ele e não se sentir tocado no rfiais fundo do coração, por mais duro que ele seja?
Crequy era um homem esperto, que odiava os padres por motivos lá dele. Mas aprendera, relutantemente, a amar o Padre Lo- velle com toda a sua alma selvagem e independente. Preparara-se para odiar e suspeitar do abade temporário, convencido, como estava, de que os padres e a bondade eram inimigos naturais. Agora, ao olhar para de Pacilli, uma expressão hesitante cobriu-lhe o rosto e ele mordeu o lábio, num mutismo teimoso.
— Quem pode ver as boas obras que ele faz e não se ajoelhar, reverente, diante do Conde de Vitry? — suspirou o padre, levando a mão à testa como se fosse persignar-se. — Ele é um santo. Isto eu não lhe poderia dizer, meu amigo, sobre as condições vigentes nas outras propriedades, cujos senhores não possuem a grandeza de coração de Monsieur le Com te e a sua generosidade! — prosseguiu o padre.
— O conde é um idiota! — berrou Crequy, batendo no balcão com o enorme punho.
O padre sorriu para si mesmo. Tudo estava saindo às mil maravilhas.
— Como assim, meu amigo? — perguntou.
Crequy cuspiu no chão, sentou-se e esfregou o queixo com o punho.
— Monsieur le Comte pensa que sabe mais do que Deus — grunhiu ele.
O padre ficou alguns momentos meditando sobre aquilo. Aprovava aquela maneira de pensar. Por fim, suspirou profundamente.
— Imagino que não esteja falando a sério! — disse, com um sorriso. — Só pode ser brincadeira.
— Brincadeira? — rugiu Crequy, batendo de novo no balcão. — Monsieur le Comte não compreende que algumas pessoas nascem para se arrastar pelo chão, outras para andar de quatro, mas poucas para andar eretas. Quer que a serpente e o porco andem em pé e se considerem homens!
E acrescentou, retorcendo os lábios, entre os quais apareceu um brilho de saliva:
— Ele que tome cuidado para que a serpente e o porco não o ataquem do ponto vantajoso onde ele os colocou!
O padre ficou surpreso e muito satisfeito com aqueles comentários, convencido de que encontrara um aliado. Olhou para Crequy com um respeito e uma atenção capazes de lisonjear o mais desiludido dos homens.
— Ah! — exclamou. — Bem se diz por aí que há poucos tão perspicazes quanto monsieur. Seria capaz de apostar que monsieur é o único homem destas terras que chegou a essa inteligente conclusão e o único que discorda do Conde de Vitry.
Crequy grunhiu de novo, como um urso enfurecido. Mas não foi imune à lisonja. Aproximou-se pesadamente da mesa e sentou-se perto do padre. Seus olhos fixaram-se nos de Pacilli. O seu grande rosto estava vermelho e congestionado de emoção.
— Há alguns que concordam comigo, de certa maneira — disse, brutalmente. — Dubonnet, o anterior administrador, ótimo, por sinal, mas não para o gosto delicado de Monsieur le Comte, porque governava os camponeses com mãos de ferro. Brisset, sempre descontente, um homem sensato, que foi capataz. La Farge, a cujo cargo estavam os vinhedos. Todos foram substituídos e rebaixados pelo conde, sem razão. Zelavam muito bem pelas propriedades do conde, mas parece que isso não era do agrado dele.
— Quer dizer que tratavam os camponeses com severidade?
Crequy fez que sim.
— E como! — exclamou.
O seu rosto fechou-se ainda mais e os seus olhos dardejaram.
— Monsieur le Comte não conhece esses animais! Por mais que ele lhes dê, eles nunca estão contentes. E quer sober por que, Monsieur le Curé? Porque é impossível satisfazer a ambição humana. É só dar um pão a um homem que morre de fome, para que ele peça dois. É só dar-lhe um sou para que ele reclame uma pistole. É só dar-lhe uma roupa, para que ele exija outra. É só sentá-lo à sua mesa, para que ele lhe tenha ódio se o seu prato estiver um pouco mais cheio do que o dele. É só chamá-lo de amigo, para que ele queira ser seu amo. É o que acontece nesta aldeia, antes tão pacífica e ordenada, e agora cheia de ressentimentos.
De Pacilli gravou esses comentários na mente fria de jesuíta, que havia por trás do seu crânio comprido e estreito. Os seus dedos pálidos e transparentes tamborilaram na mesa, pensativamente.
— Não há ninguém que se sinta grato para com Monsieur le Comte? — perguntou, com um suspiro.
Crequy grunhiu e mudou o corpanzil de posição.
— Há alguns que afirmam adorá-lo. Mas até esses estão sendo contaminados pelo safado do Dumont, que era capaz de exigir o último sou que o conde tem na bolsa e depois insistir em revirar- Ihe também os bolsos. Se ele não tivesse mais nada, levava logo um pontapé violento. Ainda por cima, acha que sabe tudo e fica discutindo com os outros camponeses, baseado nos malditos livros que o conde distribuiu entre esses ladrões e assassinos. Porque, agora, esses suínos sabem ler!
O padre ergueu-se. Parecia arrasado com aquela demonstração de ingratidão e bestialidade. Abanou 'a cabeça, pesaroso.
— Ah, que tristeza tudo isso, monsieur! Mas, mesmo assim, a gente não ousa censurar Monsieur le Comte de Vitry por querer seguir, humildemente que seja, os passos de Nosso Senhor. Se algo está errado, não é culpa dele, e sim dos que não o compreendem.
Deitou a Crequy um sorriso súplice.
— Não me despreze demasiado por descobrir no Sr. Conde virtudes além da nossa compreensão de pobres pecadores.
Crequy voltou a grunhir. Ficou a ver, em silêncio, o padre atravessar, sem fazer barulho, o chão de pedra, projetando uma sombra preta e sinuosa à sua passagem pela luz do sol.
Ele é um padre, pensou o taberneiro, mas já agora com alguma hesitação. E todos os padres são serpentes, com a possível exceção do Abade Lovelle.
Não obstante, sentiu um certo alívio. Só não entendia a razão por que, no fundo do seu coração tão sofrido, permanecia ainda um resto de desconfiança.
Monsenhor Antoine de Pacilli foi meditando, enquanto caminhava pela rua empedrada do povoado, sem fazer barulho, o corpo magro e comprido ondulando, (dentro da batina, com a elegância dos seus movimentos aristocráticos.
Sentira uma certa afronta quando o Cardeal lhe anunciara qual seria a sua nova missão em Chantilly. Logo ele, o Barão Antoine de Pacilli, ser enviado para o meio dos camponeses atrasados, num obscuro povoado! Fora para isso que passara longos e amargos anos nas grandes universidades da Itália, da Espanha e da França! Contudo, ele era um homem de inteligência brilhante e sutil. Mal o Cardeal começara a explicar-lhe o caráter de Paul de Vitry e as condições reinantes nas suas terras, ele percebera todas as implicações. Curvara-se respeitosamente diante do Cardeal e dissera:
— Um foco de doença, numa nação, pode tomar-se endêmico e até mesmo epidêmico.
Um brilho transparecera-lhe no rosto e se refletira nos seus olhos amendoados. O Cardeal encarara-o com desagrado, pois não lhe agradava que outro ser humano pudesse ser impelido pelo mesmo grau de emoção que ele. Reconhecera aquele olhar, que sabia ser de ódio por todos os outros homens. Ele próprio odiava a humanidade, mas porque outrora a tinha arriado. Sabia que o Barão de Pacilli nunca a amara, que a odiara desde o início, sem a paixão ou a virulência que provêm de um coração ferido. Odiara-a porque não havia nele virtude ou humanidade.
Embora o Cardeal estivesse quase com quarenta e dois anos, persistira nele uma ingenuidade que às vezes o frustrava e o enchia de mortificação. Ainda não conseguira livrar-se da crença secreta de que os homens eram o que o mundo fazia deles, que o mundo era um agente catalítico, agindo sobre os vários elementos químicos que compunham, em diferentes gradações, cada ser humano. De que maneira tinha, então, o mundo afetado o Barão de Pacilli? Através de um interrogatório discreto, de Pacilli lhe contara que sempre levara uma vida calma e estudiosa, dedicada especialmente ao estudo do grego, do latim e dos clássicos, que era muito mais ligado às filosofias frias e abstratas, que era um grande matemático. Uma sondagem discreta por parte do Cardeal revelara que o pai do barão tinha morrido quando ele era criança, que sua mãe era uma aristocrata, muito orgulhosa do filho. Entre os dois, nunca houvera senão o melhor dos relacionamentos. Ele não conhecera frustrações, lutas, humilhações ou desilusões.
Onde, então, adquirira ele tanta maldade, tanto ódio? Porque o Cardeal sabia que ele era a verdadeira essência do veneno e da crueldade requintada. Durante muito tempo, o Cardeal, que ainda lambia, secretamente, velhas feridas, se recusara a acreditar que alguns homens nascem assim, calados, maus, instruídos e bem-do- tados mentalmente, destituídos de emoções humanas, mas percebendo muito bem todas as paixões que avassalam a alma dos homens, espectadores, sem cinismo, da humanidade. Se o Barão de Pacilli fosse cínico, o Cardeal podia sentir um misterioso alívio. Mas não era. Não tinha comentários amargos a fazer sobre a maldade, o perigo e a estupidez dos outros homens. Aceitava-os sem repugnância ou aversão. E nisso, o Cardeal bem sabia, estava o maior dos perigos.
Era um inimigo natural da humanidade, um homem sem alma. Não tinha razões para detestá-la, fossem elas imaginárias ou reais. A inimizade habitava nele com alegria fria e desprendida.
O Cardeal não gostava de enigmas. Quando chegara à conclusão de que aquele homem era naturalmente mau, ficara cheio de curiosidade. Nunca conhecera um homem naturalmente mau.
Há uma razão para tudo, pensara o Cardeal, antes de se convencer. Mas agora sabia que, para alguns homens, essa razão era a sua própria existência. Outra ilusão do Cardeal fora ele ter acreditado que um homem só podia compreender os outros, baseado na própria experiência e nas próprias paixões. Agora, sabia que se enganara redondamente. De Pacilli compreendia os homens ainda melhor do que o Cardeal, pois este muitas vezes se surpreendia com eles.
Sempre servira fielmente à Igreja, com o brilho de inteligência e com a frieza que o distinguiam. Se servisse a qualquer outra organização, governo ou príncipe, não o teria feito com menos brilhantismo, e não por lealdade, mas sim pelas grandes possibilidades da sua natureza perversa. E tudo isso sem animosidade, apenas com um propósito natural de maldade.
Na sua missão a Chantilly, ele se mostrava mais uma vez brilhante, pois a sua natureza se deliciava com as possibilidades que antevia. Não sentia inimizade ou aversão por Paul de Vitry. Mal se lembrava de como ele era, já que Madame duPrès conseguira con- vencê-lo a voltar a Paris com ela. Não se lembrava de Paul com ódio, espírito de vingança ou triunfo antecipado. Paul nem sequer era um símbolo, para ele, dos graves e portentores ventos de pensamento. que varriam a Europa atormentada. No fundo, ele não ligava para nada disso. Toda a sua alegria, todo o seu prazer estavam no fato de praticar alguma maldade.
Presentemente, aproveitava as horas noturnas de isolamento na pequena casa do Padre Lovelle para escrever um grande livro sobre a Inquisição. Um livro muito preciso, escrito com raro brilho e cheio dessa filosofia abstrata para a qual a sua mente mostrava uma inclinação natural.
Dirigiu-se agora, ao fim da tarde, para um pequeno bosque, cuja sombra protegia do sol, pois as árvores cresciam na orla dos campos de trigo. Paul mandara colocar ali longas mesas de madeira, com bancos iguais, onde os homens se pudessem reunir e comer pão e queijo regados a leite ou a vinho. Embora ainda não fosse hora das vésperas, os.homens já estavam sentados à mesa, ou à sombra das árvores, enxugando os rostos tisnados do sol e contemplando, com satisfação, os trigais dourados. Ficaram a ver o padre se aproximar com aquele ar aberto e sereno que se vê nos olhos do gado. Só que alguns deles não estavam tranquilos. Sentados à mesa, bebendo e mastigando vorazmente, discutiam com calor. Vários livros estavam espalhados sobre a mesa de madeira, e um rapaz batia num liyro aberto com os punhos, enquanto se dirigia aos demais, com gestos enfurecidos. Ao ver o padre, atirou o livro para o lado e fitou-o, furioso. Os outros levantaram-se, respeitosamente, mas ele continuou sentado, o cenho franzido.
Era Jean Dumont, a quem Crequy se referira com tanta ferocidade e tamanho desprezo. O padre percebeu logo tudo, mal viu o homem, sem no entanto parecer se dar conta. Embora poucas vezes o tivesse visto, e nunca na igreja, aquela figura baixa e musculosa, metida numa camisa de algodão branco e em calções de lã, aqueles ombros largos e aquele pescoço queimado do sol não lhe eram estranhos. O rosto quadrado e belicoso estava quase preto, de tão tisnado, e as mãos, grandes e nervosas, eram manchadas do suco das uvas, de que ele cuidava. No meio daquele rosto estavam incrustados dois olhos pretos, brilhantes e ativos, “um nariz largo, uma boca de lábios carnudos e vermelhos, que raramente sorria e quase sempre tinha uma expressão de rancor, e malares salientes, de camponês, sempre reluzentes de suor. Sobre a testa bronzeada, madeixas finas de cabelo preto caíam em desordem, e outras, mais compridas, escorriam-lhe pelo pescoço e chegavam-lhe aos ombros.
Era um rosto selvagem, mas inteligente, o de Jean Dumont, filho bastardo de uma ajudante de cozinha e de pai desconhecido. Revelava o seu temperamento brigão, desvairado e impaciente, astuto e intolerante. Paul não precisara instruí-lo. Jean mostrara desde cedo uma inteligência tão viva, que o Padre Lovelle se encarregara de educá-lo, e o jovem camponês absorvera muitos conhecimentos desconexos. Desde o princípio revelara-se cético e revoltado, para grande desconsolo do velho sacerdote. Nada pudera torná-lo mais dócil. Naquele espírito indisciplinado havia apenas suspeita, ambição e uma estranha e descontrolada sede de justiça.
Monsenhor de Pacilli cumprimentou os camponeses com muita doçura e suavidade. Sentiam-se encabulados na presença dele, e desconfiados, pois sentiam muita falta do velho abade. Mas tinham a rude polidez da sua classe e deixaram um lugar para ele à mesa, bem em frente de Jean Dumont. Um deles serviu-lhe uma caneca de leite. O leite desagradava-lhe tanto quanto o vinho de Crequy, mas ele bebeu-o com um simulacro de prazer. Enquanto bebia, percebeu que Jan Dumont olhava para ele com um misto de desconfiança e troça, pois o rapaz detestava instintivamente os padres e os desprezava. Fingiu ignorar o sacerdote; este quando lhe deitou um olhar de relance, notou que os olhos do rapaz brilhavam com estudado desdém.
O padre interrogou gentilmente os homens a respeito dos seus afazeres diários e ouviu as respostas deles com a maior atenção, mostrando interesse pelos seus esforços. Aquilo lisonjeou-os. Não era como o simples Padre Lovelle, ele próprio de origem camponesa. Instintivamente, reconheciam nele o aristocrata, apesar da sua atitude humilde, da sua voz suave, do seu olhar terno. Não se sentiam inteiramente à vontade com ele, e as suas vozes eram rudes, embora forçadamente polidas. Riam demasiado alto, cutucavam-se, encabulados, ao mesmo tempo em que riam. Pareciam colegiais mal- educados, diante de um professor atento, que parecia gostar deles, mas de cujo caráter ainda não estavam bem seguros. Um deles ousou uma obscenidade, e uma vintena de olhos alerta se fixaram, disfarçadamente, na cara do padre, a fim de observar a sua reação. Mas ele limitou-se a sorrir com indulgência.
Falou no Padre Lovelle, insinuando que deviam estar ansiosos pela volta dele. Todos se calaram, assentindo brevemente com a cabeça. Mas as suas expressões eram de afeto. Ele próprio estava gostando tanto da sua estada naquele agradável e tranquilo lugar, que — disse — ia sentir saudade, quando tivesse que ir embora. Eles gostaram de ouvir aquilo e olharam para os campos, na direção do château, com ar importante, como se concordassem em que aquele era um excelente lugar, graças a eles, e que o padre tinha razão em sentir pena de ir embora. A atitude deles tornou-se mais condescendente e mais à -vontade.
Durante toda aquela amável conversa, Jean Dumont mantivera-se sentado, um sorriso escarninho no semblante selvagem. Os olhos, debaixo do çenho franzido, brilhavam, alerta. De vez em quando, procurava captar o olhar dos companheiros, comunicar-lhes a má opinião que fazia do padre, mas eles estavam por demais atentos às doces palavras de de Pacilli e aos seus sorrisos. O padre parecia não se ter dado conta da animosidade do jovem, e, quando o seu olhar se cruzou com o dele, a sua serenidade não diminuiu.
— Foi só depois de eu ter vindo para estas terras, que compreendi até que ponto certos homens possuem nobreza d’alma e uma autêntica generosidade cristã — disse o padre, com um suspiro. — Que felicidade a sua, meus filhos, em ter um amo como o Conde de Vitry!
Os outros murmuraram o seu assentimento, mas o ouvido aguçado do padre captou o muxoxo, de desprezo de Jean Dumont e o movimento do seu corpo sobre o banco.
— Preciso fazer uma retificação. Já vi um lugar como este — continuou o padre.
Os camponeses mostraram-se vagamente interessados. Alguns recordavam, com horror, as suas' anteriores condições de vida. Um perguntou timidamente onde ficava esse lugar e qual o nome do senhor. Mas o padre abanou a cabeça.
— Seria presunçoso e insolente, da minha parte, dizer-lhes — falou ele, pedindo-lhes que o desculpassem. — Mas fica bem longe daqui. Ninguém esperaria um tal comportamento do senhor daquelas terras. Conheci-o pessoalmente. Homem brutal e ambicioso. Não fáz muito tempo, os seus camponeses curvavam-se sob o chicote dos seus administradores e capatazes, padeciam fome, miséria e doenças. Mas, agora, tudo isso mudou de maneira espetacular. . .
— Por obra e graça de um padre? — sugeriu Jean Dumont, . falando pela primeira vez, num tom desdenhoso e insolente.
Monsenhor 'le Pacilli olhou para ele com brandura e um ar levemente espantA1'. Depois sorriu, sutilmente, mas não tanto, para que não chamasse a atenção do jovem camponês.
— Não, não foi essa a razão — disse ele, numa voz hesitante, como se aquilo o entristecesse.
Começou a falar de outra caisa, mas Jean-Dumont bateu na mesa com a caneca, interrompendo a conversa.
— Qual foi a razão? — gritou. — O que foi que mudou o tal homem, Monsieur le Curé?
O padre hesitou de novo. Parecia preocupado. Murmurou, em tom súplice:
— Seria falta de generosidade, da minha parte, e atrevimento, se eu expressasse a minha opinião. Meu filho, peço-lhe que não insista, porque poderia instilar pensamentos errados a respeito do seu próprio e querido senhor, o Conde de Vitry. E isso seria imperdoável. Não há nenhuma semelhança entre Monsieur le Comte e o marquês. ..
Estacou abruptamente, parecendo mais preocupado do que nunca.
— Mas eu insisto! — berrou Dumont, dominando os outros com um olhar furioso, pois a sua personalidade era mais forte do que a deles, de quem era líder, mesmo quando discutiam com ele ou quando discordavam violentamente da sua opinião. Os outros, que não estavam muito interessados, acabaram sentindo-se curiosos, pois havia algo de peremptório no olhar de Dumont, como se os comandasse a ouvir.
O padre suspirou, curvando a cabeça e dando a todos, inclusive a Dumont, a impressão de que tinha um caráter fraco e complacente, embora inofensivo.
— Minhas opiniões não valem nada, absolutamente nada — murmurou ele. — Não passo de um humilde cura, sem muito estudo e nenhuma ambição. Como posso, pois, tirar conclusões, ou atrever-me a questionar as razões por trás dos atos de pessoas ilustres e importantes?
— Nós lhe perdoamos, Monsieur le Curé — retrucou Jean Dumont, com humor feroz e sem tirar os olhos dos seus companheiros.
Todos riram, embaraçados, e coçaram a cabeça. Muitos estranharam aquela conversa.
O padre fechou os olhos, como se incapaz de pensar, sem sofrer, na iniquidade dos outros. Parecia estar muito cansado.
— Chegaram-me rumores. . . por que e quem sou eu, para que alguém importante me contasse diretamente?... de que o nosso muito amado rei vem, há algum tempo, contemplando levar a cabo grandes mudanças, que afetariam os grandes senhores da França. Disseram-lhe que as condições de vida nas grandes propriedades são insustentáveis, e o seu coração ficou comovido.
— Que nobreza! — exclamou Dumont, com escárnio. — Nós é que ficamos comovidos, de saber que Sua Majestade largou os seus soldadinhos de chumbo e as intrigas de madame o tempo suficiente para se aperceber da miséria geral que aflige o povo!
Diante daquele comentário audacioso, os outros murmuraram, com medo, e fizeram menção de se afastar. Mas os mais jovens riram, fascinàdos. Estavam acostumados a opvir comentários desses, da boca de Dumont, e a coragem dele intrigava-os. Quanto ao padre, não se mostrou chocado, indignado ou zangado. Limitou-se a olhar para o rapaz com ar grave.
— Garanto-lhe, meu filho, que o rei não é insensível à miséria em que o povo vive. Mas, até há pouco tempo, ele nada podia fazer. Só há alguns anos atrás é que começou a meditar a sério nesse doloroso problema. Sei, de fontes seguras, que ele tem discutido o assunto a fundo com o Duque de Richelieu e dado a entender que em breve vai introduzir mudanças radicais.
Fez uma pausa, com se hesitasse na escolha das palavras, e depois continuou:
— Os magnatas estão começando a tremer. Sei, também de fontes seguras, que, na próxima reunião dos Estados Gerais, Sua Majestade vai pedir a revogação dos direitos supremos dos magnatas, passando o seu poder para o trono.
— Quer dizer que o rei, ou melhor, seu amo e senhor, Richelieu, teme o poder dos príncipes e magnatas? — disse Dumont, piscando o olho para os companheiros. — Prefere detê-lo sozinho!
O padre fechou por um momento os olhos, e uma expressão de cansaço e tristeza tomou conta dele.
— Você está errado, meu filho. Não sou partidário do Cardeal — disse, sorrindo levemente — e, como tal, não me deixo influenciar por Sua Eminência. Embora seja possível que o Duque de Richelieu possa ter motivos pessoais, tal não acontece com Sua Majestade, que se mostra sinceramente preocupado com a grande parcela do povo francês submetida ao poder dos proprietários de terras. Ainda não se esqueceu de como foi oprimido pelos que detinham um poder absoluto, e isso faz com que sinta as dores do povo.
— Para que se veja como isso é verdade, basta constatar que os magnatas estão alarmadíssimos com os boatos que correm entre eles. Muitos passaram em revista as suas vastas propriedades, e a si próprios confessaram que o rei tem carradas de razão. Chegaram à conclusão de que, para continuarem a reter o poder nas mãos, precisam mudar as-condições vigentes nas suas terras. Só assim acreditam poder evitar que o rei lhes tire o poder de que agora desfrutam.
Jean Dumont não fez nenhuma exclamação trocista. Inclinou- se sobre a mesa e olhou para o padre com interesse selvagem, erguendo a mão para atrair a atenção dos companheiros. Mas não falou. Seus olhos negros brilhavam intensamente.
O padre sorriu e encarou Dumont com um sorriso terno.
— E agora, meu filho, você entende o que levou esse senhor brutal, de que lhe falei, a mudar de atitude. O seu próprio interesse.
A expressão de Dumont fechou-se, malévola, e as narinas distenderam-se. Os punhos cerraram-se sobre a mesa. Voltou-se para os companheiros com ar de triunfo.
De Pacilli aparentou preocupação.
— Mas, meus filhos, vocês não devem deduzir daí que o seu patrão, o bondoso proprietário destas terras, seja movido por motivos de interesse pessoal e tenha melhorado as condições em quq vocês vivem para evitar que as suas propriedades sejam requisitadas pela Coroa!
Um som gutural saiu da garganta de Dumont. Agora, os outros camponeses já não estavam indiferentes ou entediados. Tinham entendido tudo o que o padre dissera, e olhavam um para o outro, ruminando as palavras dele, os cenhos carregados.
O padre ergueu a mão pálida e aristocrática e encarou-os com olhos e boca severos.
— Mas Sua Majestade não se deixa enganar! Pelo menos, é isso o que espero. Porque quem pode ter a certeza de que esse procedimento hipócrita não vai dar resultado, de que o rei não se sinta tranquilizado e se volte para outros problemas, que os senhores não voltem ao antigo estado de coisas, detendo o poder de vida e morte sobre os seus camponeses, mergulhando-os numa escravidão ainda mais negra?
— Sei, de fontes seguras, que o rei planejava dissolver as grandes propriedades, dividi-las entre os camponeses, diminuir os impostos e garantir a todos os homens dignidade individual, paz, abundância e conforto. É isso o que os senhores temem. Portanto, não é preciso ser jesuíta para compreender que, a fim de evitar isso, os senhores de terras procurarão aparentar magnanimidade, até que o rei fique sossegado e esqueça os seus planos.
Dumont ergueu-se do seu lugar como se impelido por uma mola. Voltou-se para os companheiros, os braços abertos, o rosto terrível, os olhos brilhando como se fosse louco.
— Não lhes disse tudo isso, seus imbecis, mais teimosos que mulas? Não lhes disse para examinar bem as “mercês” de Monsieur le Comte e procurar descobrir que plano diabólico existia por trás daquele rosto bondoso e daquelas palavras brandas? Não lhes disse: “Quando um grão-senhor se inclina para os humildes e os desprotegidos é porque esconde algo nefasto no seu coração?” Não lhes disse que nenhum homem se mostra bom e generoso, a não ser que tenha motivos inconfessáveis? Mas vocês não quiseram me ouvir, rebanho de idiotas! Rastejaram diante do conde, permitiram que ele os enganasse, sem se darem ao trabalho de pensar!
Brandiu os punhos cerrados no ar.
Os camponeses, assustados, olharam para ele, boquiabertos. Mas alguns se aproximaram com passos silenciosos, de tigres acabados de acordar.
— Vocês aceitaram as migalhas e o leite aguado que ele lhes dava, com mostras de adoração! — continuou, num tom cada vez mais inflamado. — Lamberam as botas que só não os chutavam por motivos de interesse particular! Deixaram-se mergulhar num sono letárgico, ninados por falsas promessas! Nunca pensaram: “Tudo isso que temos provém do temor de um magnata de que muito mais nos seja dado, num clima de honra e dignidade, como homens livres?”
Aproximou-se deles por trás da mesa, a cabeça inclinada para a frente como um touro enfurecido. Os outros olharam para ele fascinados, trêmulos, os rostos fechando-se e enrugando-se à medida que as suas palavras lhes penetravam nas almas simples.
— O rei decidiu que a terra que vocês trabalham lhes pertença, como franceses livres! Que o fruto do seu trabalho, que as colheitas lhes caibam por direito. Já pensaram nisso? Não! Só eu me apercebi, só eu lhes avisei. E vocês riram de mim, como imbecis que são!
O padre levantou-se sem fazer barulho e saiu, rindo consigo mesmo. Ninguém reparou na partida dele. Já estava longe e ainda se ouviam a voz de Dumont e o rugido da plateia que ele despertara.
Capítulo XXXII
A lua despontou, nessa noite, com uma beleza- singular, prateando todas as árvores com a sua luz líquida e fria. Os vales pareciam lustrosos ao luar, como se fossem vales da lua, e as florestas vibravam com o canto de centenas de rouxinóis. O telhado do château estava todo prateado, e as paredes tremiam com sombras negras de folhas. As colinas tinham cachoeiras de prata, e o rio, ao longe, brilhava como se composto de milhares de lâminas. Dos vinhedos vinha o cheiro doce e forte de uvas amadurecendo, e, de leste, um vento carregado de fragâncias e sons misteriosos. Qual o coração que não se sentia emocionado pelo canto dos rouxinóis, pelas sombras brancas do luar e pela paz que murmurava em tudo?
Mas havia um coração que não se sentia tocado por nada disso: o de Monsenhor Antoine de Pacilli, ocupado a ler e a escrever na casinha humilde do Padre Lovelle. Nem uma só vez olhou através da janela aberta, para o cenário de beleza e de silêncio que o rodeava. A luz da vela iluminava-lhe o rosto pálido e sinistro e as faces cavernosas, que pareciam desenhadas a carvão, pela mão de um artista. Os olhos amendoados, sob as sobrancelhas bem marcadas, não tinham calor humano, nem revelavam o que ele pensava.
Escrevia um ensaio sobre a Razão:
“Há os que situam o princípio da razão no reino da humanidade física e espiritual. Mas a história plagia a si mesma e repete persistentemente velhas verdades, através dos tempos.
“Quando se procura o universo físico da Razão, fica-se confuso. O sentimental discernirá uma razão benévola na chuva e no vento, na neve e no sol, na roda das estações e nas fases da lua. Detectará em tudo isso um plano antropomórfico e antropocêntrico. Mas, na realidade, todas essas coisas aconteceram durante anos a fio, muito antes de existir um homem para apreciá-las e atribuí-las a entidades criadas para servir aos seus interesses egocêntricos. Quando o homem ouve um pássaro cantar ao luar, pensa: “Ah, que beleza Deus criou para mim!” Quando as árvores se destacam da névoa radiante da manhã, ele diz: “Que bom que Deus criou todo esse encantamento para os meus olhos!” Mas o pássaro continuará a cantar, e a neblina continuará existindo depois que o último homem tiver desaparecido da face da Terra.
“Por conseguinte, no universo não há Razão, e, onde não existe razão, não existem planos antropomórficos ou antropocêntricos para os acontecimentos.
“O homem cria a Razão para si mesmo, porque precisa de que haja ordem no universo. A razão e a ordem são, portanto, conceitos artificiais, que só existem na imaginação dos homens. Não obstante, trata-se de uma imaginação necessária. A civilização não poderia existir ou, se existisse, acabaria destruída, sem esses produtos da imaginação.
“Mas a invenção da razão, por parte do homem, não significa que o homem seja uma criatura racional. Ele permanece elementar, primordial, em todas as suas relações. A razão é a sua poesia, algo separado da vida. Não se estende à sua realidade. Portanto, aqueles que advogam a razão nas relações com a humanidade, operam num mundo fantástico, condenado à destruição. Não se pode ‘apelar para a razão’ dos homens, pois trata-se de um elemento que ele não possui em si mesmo.
“Os príncipes são fortes na medida em que governam sem usar de razão. Compreendendo a natureza humana, o príncipe só deve mandar. Não deve hesitar em usar o chicote e a força, a tortura e a roda, para reforçar os seus decretos. Se ele for misericordioso, o povo perguntará: “Por quê?” Mas, se ele empregar apenas a força, o povo lhe obedecerá. A Igreja, há muito, sabe disso. Ela diz: “Obedecerás” e não “Queres obedecer, por esta ou aquela boa, suficiente e inteligente Razão?”.
No dia seguinte, pensou ele, ao pousar a pena e começar a limpá-la, ele reveria e poliria o ensaio, até transformá-lo numa autêntica joia literária. Abriu uma gaveta e olhou com prazer para uma pilha de manuscritos. Os seus “Ensaios sobre o Homem e a Natureza” logo estariam terminados e prontos para imprimir. Pensava dedicar o livro ao Cardeal, que certamente o apreciaria. Mas muitas seriam as caretas que ele faria, ao lê-lo. Porque o Cardeal, que do ponto de vista emocional discordaria violentamente, acharia a razão implícita nos ensaios. Por um momento ou dois, de Pacilli ficou pensando que aqueles ensaios eram muito superiores a tudo o que fora escrito por Machiavelli — que detestava a humanidade por tê-la amado um dia.
O padre estava sempre com frio, mesmo no dia ou na noite mais quente. O bloco de gelo que ele tinha no lugar do coração nunca era tocado pelos raios do sol ou pelos eflúvios do luar. Em- brulhou-se na capa, puxou o capuz para o rosto e prosseguiu na sua missão.
Sua sombra estreita e negra esgueirava-se atrás dele, sobre as pedras da ruela dó povoado, à medida que ele avançava, ao luar, para a pequena casa de Guy La Farge, o capataz outrora encarregado dos vinhedos e agora trabalhando neles sob a supervisão de François Grandjean. O padre ficara sabendo que aquele homem calado e quarentão nutria uma paixão por Cécile. Viúvo e sem filhos, tinha um temperamento sombrio e azedo.
Ao atender à tímida batida do padre, foi logo fechando a cara ao ver quem era. Mas teve a polidez de convidá-lo a entrar. Era um homem magro, de cabelos grisalhos, com uma expressão alerta e eternamente desconfiada. Sentou-se do outro lado da mesa e ficou à espera de ouvir o que o padre tinha a dizer.
De Pacilli olhou para a ordem que reinava no pequeno aposento com indisfarçável prazer.
— Ah, parece a cela de um monge! — murmurou ele. •— Em ambiente desordenado, os pensamentos tendem a ser confusos. Tenho, diante dos olhos, a prova de que o. senhor é um homem inteligente, meu caro Monsieur La Farge!
La Farge também se tinha nessa conta, e isso originava o desprezo e a aversão que ele sentia pelos humildes camponeses. Sorriu com um ar de secreta satisfação, e olhou sombriamente para o espaço, batendo com os dedos morenos contra os lábios e o queixo.
— Existem pessoas — continuou o padre, com um suspiro — que pretendem descobrir perigos nos homens que pensam. Não posso atribuir isso à preocupação de sofismar. Entendo, porém, que aqueles que se acham passíveis de correr perigo através dos homens que pensam podem querer destruí-los, para os seus próprios e malvados fins.
Começou a falar em outras coisas. Disse ser o humilde filho de humildes vinhateiros. Com o seu conhecimento dos homens, descobrira em La Farge uma verdadeira paixão pelos vinhedos, quentes e olorosos sob o sol. O antigo capataz pôs-se a escutar com atenção, e o seu azedo semblante deu mostras de emoção. Havia agora uma umidade no canto dos seus olhos, semelhante à que aparece nos olhos das pessoas que, de repente, se lembram de um ente querido já falecido.
Não havia dúvida de que Pacilli sabia bastante sobre vinhedos e fabricação de vinho. Como conhecedor de vinhos, podia dar opiniões abalizadas sobre os vários aromas e sabores. Não demorou para que La Farge mergulhasse numa acalorada discussão com ele. O padre espicaçava-o, mas sem chegar ao ponto de animosidade. Parecia sempre vencido pela lógica do ex-capataz e acabava balançando a cabeça, em relutante assentimento, com um brilho de admiração nos olhos. Quanto a La Farge, o seu rosto moreno e melancólico estava agora corado e veemente.
— Meu caro Monsieur La Farge, por que permanece neste vilarejo, quando podia ser apreciado por senhores mais poderosos, que saberiam dar valor aos seus conhecimentos? Ou em Paris, por exemplo, onde o seu talento lhe proporcionaria uma fortuna?
Disse aquilo com tanta candura e com uma tal aparência de espanto, que La Farge sentiu uma onda de euforia invadir-lhe o coração solitário. Revirou o fino bigode grisalho. Hesitou, mas logo uma nuvem escura lhe toldou os olhos e ele os desviou.
Nada disso passou despercebido ao padre.
— Ah! — disse ele, sorrindo e sacudindo o dedo —, quem está errado sou eu! O que o faz permanecer neste lugar encantador mas isolado é um sentimento de lealdade para com o seu excelente e bondoso patrão!
Ao ouvir aquilo, La Farge sorriu, encabulado. Mas suas pálpebras tremularam e seus olhos brilharam de ódio.
— É uma sorte — continuou o padre, num tom de profunda meditação — o bom Conde de Vitry ter hábitos simples e rurais, sem grandes aspirações e sem amor pela vida na Corte. Ouvi dizer, e espero que seja verdade, que está pensando, inclusive, em despo- sar uma moça daqui, uma donzela simples, bonita e de boa saúde. Se for verdade, acho a ideia excelente, porque o aproximará mais das suas terras e do seu povo.
La Farge emitiu um som selvagem e gutural. Seus olhos azul- claro dardejaram, à luz da vela. Olhou para o padre com a expressão enfurecida de um animal, e os seus punhos se cerraram sobre a mesa.
O padre fingiu não ter reparado em nada daquilo. Olhou para o vácuo com um sorriso doce, como se estivesse vendo algo que lhe tocava o coração. De repente, suspirou, deixou cair a cabeça, abanou-a e cobriu os olhos com a mão. La Farge viu aquilo e exclamou:
— Pardieu, Monsieur le Curé, o que há com o senhor?
— Nada — murmurou o padre, numa voz abatida. — Desculpe-me. Estava me lembrando de uma outra história, uma história muito desagradável, que preciso esquecer.
— Conte! — disse La Farge, levantando-se.
— Não tem nada a ver com o seu amo! — retrucou o padre, afetando grande preocupação. — Estava-me lembrando de uma história que aconteceu em outras terras! Por favor, perdoe-me, Monsieur La Farge, é uma história sórdida. O senhor dessas terras apai- xonou-se por uma jovem bela e virtuosa, filha do taberneiro. A moça pensava que ele pretendia casar com ela, apesar da sua origem humilde, pois era muito gentil e tinha recebido uma boa educação no convento das irmãs. Mas ele apenas a seduziu, e a pobre menina afogou-se. Isso me enche de tristeza, pois ela era minha afilhada.
Continuou, numa voz fúnebre:
— Mas até mesmo esse hediondo comportamento poderia ter sido perdoado, se não fosse o tal senhor fingir preocupação com o bem-estar da sua gente, a fim de mais facilmente seduzir a jovem. Porque ela tinha um coração muito terno e amava o seu povo. Pensou que, cedendo aos desejos do amo, asseguraria a permanência das reformas que ele iniciara. Mas, que ilusão! Depois da sua morte dolorosa, ele passou a tratar os camponeses com maior sel- vageria ainda. . . — Fez uma pausa. — Acabou assassinado. Ninguém foi julgado, porque os culpados nunca foram encontrados. A opinião dos juizes, porém, foi de que ele tudo' fizera para merecer esse fim.
La Farge começou a andar de um lado para o outro, falando consigo mesmo, batendo com os punhos no peito. Tinha o rosto contorcido. O suor rolava-lhe da testa. Parecia um homem preso de uma fúria incontrolável. O padre sorriu para si mesmo. Sabia que La Farge, apesar da sua anterior severidade, era considerado pelos camponeses como utn homem íntegro e verdadeiro. Tudo o que ele dissesse seria escutado.
O padre levantou-se. Estendeu a mão e puxou La Farge pelo braço. Mas os olhos do antigo capataz estavam cegos de fúria.
— O senhor é um homem sensato — disse de Pacilli. — E sinto-me comovido de ver que a minha triste história lhe tocou o coração. Queira Deus, monsieur, que o seu amo não seja culpado de planos tão diabólicos.
Continuou o seu caminho, de homem que só podia achar prazer em seduzir e confundir a mente dos humildes e o espírito dos grandes.
Aproximou-se da casinha de Pierre Dubonnet, o antigo administrador, também conhecido pela sua integridade e severidade. Era um homem orgulhoso, muito enérgico, mas pouco imaginativo. Acima de tudo, era um devoto católico, fanático e apaixonado. Uma de suas filhas era freira. Tinha alguma instrução e uma inteligência astuta.
Vivia, com sua devota e manhosa esposa, na maior das casas, que François Grandjean, ao substituí-lo no cargo, se recusara a ocupar. Sabedor dá honestidade do homem, Paul de Vitry continuara a pagar-lhe um ordenado generoso, embora ele agora apenas trabalhasse nos campos, como os outros camponeses!' O golpe dado no orgulho do homem fora permanente. O seu rancor era constante, e o padre sabia disso.
Foi recebido por Dubonnet e sua esposa, com a maior reverência. Seus rostos simplórios revelaram todo o prazer que sentiam diante daquela visita noturna do padre. Ajoelharam-se diante dele, que os abençoou com grande solenidade. Depois, Dubonnet convidou o padre a sentar-se à mesa e acendeu outra vela. De Pacilli olhou em volta com sincera aprovação, admirando as lajes vermelhas do chão, as paredes e as traves de madeira escura, as caçarolas brilhantes, penduradas junto da lareira, e os móveis, modestos mas reluzentes de limpeza. O grande crucifixo que pendia sobre a cama, no quarto ao lado, fora um presente de Paul de Vitry ao seu antigo administrador, e o padre ficou surpreso diante da excelência do trabalho.
Dubonnet colocou em cima da mesa uma empoeirada garrafa de vinho e um copo estreito e vermelho, e erícheu-Ò cuidadosamente. Suspirando intimamente, o padre ergueu o copo. Ficou espantado quando o vinho lhe tocou a língua e lhe penetrou na cavidade estreita e seca da boca. Nunca provara melhor buquê, vinho de sabor superior àquele.
— É da adega de Monsieur le Comte — disse Dubonnet, com satisfação, reparando na expressão de surpresa do padre. — O patrão deu-me três dessas garrafas no Natal.
O padre olhou para Madame Dubonnet. Era uma mulher baixa e gorda, disforme de tanta banha, mas que dava a impressão de grande atividade e resistência. Os cabelos pretos, puxados para trás, deixavam ver um rosto largo, cor de ameixa, com olhos pequenos e pretos, inquietos como os de um animal desconfiado. Prático na leitura das expressões humanas, de Pacilli logo viu que Madame Dubonnet era ambiciosa, cruel, astuta e estúpida. Decidiu dirigir-lhe a maioria das suas insinuações pois em Dubonnet discernira uma integridade e uma força de caráter que seria difícil vencer, mesmo usando dos mais inteligentes meios de sedução.
— Tenho notado a sua devoção, monsieur et madame — disse o padre, com um sorriso doce e paternal.
Mas logo a sua expressão se tornou melancólica.
— Que maravilha, essa devoção, meus filhos! É como uma flor brilhando em meio ao deserto.
Dubonnet corou, desviou o olhar, mas disse, teimosamente:
— Isto aqui não é um deserto, Monsieur le Curé.
Mas a mulher logo pulou, os grandes peitos arfando.
— Cale a boca, Pierre, seu velho imbecil! — exclamou, numa voz estridente, — Como ousa falar de maneira tão insolente com Monsieur le Curé?
— Oh, perdoe-me! — disse o padre, com brandura. — Acho que escolhi mal as palavras. Quando mencionei a sua devoção e a comparei a uma flor crescendo no meio de um deserto, não estava me referindo a Chantilly, e sim ao deserto do mundo...
Madame ficou ainda mais excitada. Aproximou-se do padre, de modo a poder olhá-lo de perto. De Pacilli sentiu-lhe o hálito quente, cheirando a alho, e estremeceu intimamente:
— Monsieur le Curé disse a verdade! Este lugar é um deserto!
Não existe piedade aqui. E por quê? Quem sabe dizer? Talvez seja porque Monsieur le Comte é demasiado tolerante com essa canalha. Não obriga ninguém a fazer nada. Apenas sugere. Mostra-lhes o caminho da Igreja. Ah! Alguns vão, outros não. Ele diz que nenhum homem deve fazer o que não deseja, no que diz respeito a Deus! Eu própria o ouvi dizer isso!
A expressão do padre tornou-se grave e sombria. Estendeu as mãos, num gesto de impotência, e disse, com espanto nos olhos:
— Mas como é que uma simples criança, uma pobre criança, vai saber o que é justo e direito, se não for à escola? Por livre e espontânea vontade, nenhuma criança se submeteria à disciplina do aprendizado. Receio que a senhora esteja imputando coisas estranhas ao seu querido patrão, que é todo justiça e misericórdia para com os seus trabalhadores. . .
Madame endireitou-se, pôs as mãos nos quadris, jogou a cabeça para trás e encarou o padre com olhos brilhantes e furiosos:
— Estou vendo que Monsieur le Curé, bom e simples como é, pensa que o nosso patrão é a encarnação da justiça! Deixe-me falar, Pierre! Talvez o sr. Cura não saiba que meu marido foi afastado do cargo que ocupava, por ser severo com os camponeses e servir devotadamente a Monsieur le Comte, só cuidando dos interesses dele! Por acaso isso é justiça? Será misericórdia, compreensão, ou gratidão? Acha bom que meu marido tenha sido rebaixado a trabalhador, igual aos outros? Sabe o que o nosso bom patrão disse, para se justificar? “Pierre, se você trabalhar lado a lado com os outros, vai poder compreender melhor os seus sofrimentos e esforços.” Eu lhe pergunto, Monsieur le Curé, acha isso sensato, inteligente e justo?
O padre fingiu perplexidade.
— Não sabia disso — murmurou, com voz trêmula. — Mas estou certo de que deve haver alguma explicação.
O rosto estúpido mas honesto de Dubonnet ficara muito vermelho. Via-se que estava furioso com a mulher. Mas também se via que, em certos pontos, concordava com o que ela dissera. O orgulho fazia-o respirar com dificuldade.
— Meu marido — disse Madame Dubonnet, cada vez mais enfurecida — é um homem de algumas luzes. Sabia ler e escrever muito antes de Monsieur le Comte teimar em ensinar a ler essa canalha. Era um homem trabalhador e que conhecia o povo. Devotou-se aos interesses do patrão e meteu na linha essa gentalha. Mas agora dá com eles sentados debaixo das árvores, ao meio-dia, os livros abertos, discutindo apaixonadamente sobre assuntos que não lhe dizem respeito, coisas perigosas e heréticas.
A raiva crescia cada vez mais dentro dela.
— Sei do que estou falando — continuou a mulher — e este idiota aqui dá-me razão, com o seu silêncio e o seu rubor! Como o senhor deve saber, Monsieur le Curé, temos um santuário à beira do caminho. Pois bem, ainda outro dia com estes meus olhos que a terra há de comer, vi um grupo de camponeses voltando, bêbados, da taberna, e um deles gritar, apontando para o santuário: “Olha lá a imagem da escravidão da França!” E, padre, que Deus me castigue se não for verdade que eles cuspiram, riram e blasfemaram na cara da Mãe de Deus!
O padre pareceu horrorizado. Os seus olhos deram a impressão de querer pular fora das órbitas. Persignou-se, como se diante de uma façanha de Satanás. Dubonnet e a mulher imitaram-no.
O padre disse, com voz trêmula:
— A senhora não está insinuando que Monsieur le Comte encoraja isso? Não vai dizer que ele instila heresia nos camponeses!
Dubonnet resolveu falar. Olhou furioso para a mulher, e retrucou:
— Não estamos lhe dizendo nada disso, Monsieur de Curé. Minha mulher fala demais, levada pelo ressentimento e pela raiva. O nosso bom patrão encoraja todas as manifestações religiosas e nunca mostrou senão cordialidade pelos padres. Restaurou a nossa igreja, pagou para a instalação da abadia e é grande amigo da aba- dessa. Foi injusto comigo, isso é verdade. Mas é preciso dizer que ele fez o que fez, levado pela bondade do seu coração, e a crença de que tudo o que faz é para o bem da sua gente. . .
— Como, por exemplo, não castigar os que cuspiram na cara da Virgem Santa! — interrompeu Madame Dubonnet, com feroz sarcasmo e um olhar para o padre.
Dubonnet calou-se um momento e depois murmurou:
— É verdade que Monsieur le Comte declarou ser aquilo uma falta de respeito, uma prova de infantilidade e intolerância pelas crenças dos outros. Mas disse que ninguém naquele grupo fora ofendido, que não tinham feito nada na presença de quem pudesse ter se sentido ferido na sua sensibilidade. Declarou também que os blasfemadores eram homens livres, e, como ninguém fora ofendido e nenhum direito dos outros atacado, eles tinham agido de acordo com as suas convicções.
— Pois eu me senti ofendida! — gritou madame, caindo, como uma pantera, em cima do marido. — Eu estava presente!
— Entãtj, você estava vadiando, mulher — disse Dubohnet severamente. — Você devia estar na sua horta, cuidando dos seus vegetais. Que você estava fazendo lá?
A mulher ficou sem fala. Mordeu os lábios e acabou dizendo, com ar desafiante:
— Será que eu não tenho direito de ir orar naquele santuário?
— Você já tem um santuário no jardim — retrucou o marido.
O padre sorriu intimamente, sem que isso transparecesse no seu rosto pálido e chocado.
Disse, em voz lenta e pensativa:
— Tenho observado muita coisa, nesta minha estada aqui. Tenho podido ver a felicidade das pessoas, a solidez e o conforto das suas casas, a beleza da capelinha, a saúde nos rostos das crianças. Tudo isso é ótimo. E tudo isso se deve ao nobre Conde de Vitry. Se ele errou em certos aspectos, realizou muito também. Receio, cara senhora, que um despeito pessoal a leve a ter uma opinião desfavorável de Monsieur le Comte.
— É isso mesmo — concordou Dubonnet, antes que a mulher pudesse retrucar.
— Não devemos abrigar maus pensamentos, mesmo que tenhamos razão para isso — volveu o padre, sorrindo bondosamente para a mulher.
— O senhor é um santo, como todos os padres, Monsieur le Curé! — exclamou Madame Dubonnet. — Não se dá conta do que se passa aqui. Mas eu sei — acrescentou, com um olhar mau e triunfante.
O padre parecia devanear. De vez em quando, abanava a cabeça, como se tomado de tristeza.
— Não, não — murmurou uma ou duas vezes, com expressão cada vez mais triste.
Os donos da casa contemplavam-no com preocupação.
Por fim, o padre ergueu a cabeça. Estava pálido, mas sorriu tristemente para eles.
— Dêem graças a Deus, meus amigos, pelo fato de o seu querido patrão não ser como outro que eu conheci e que também instituiu reformas e fez coisas boas. Mas os seus motivos eram péssimos. A sua intenção era perverter as almas da sua gente contra a Santa Madre Igreja, levá-las para o protestantismo. Com as suas boas obras, conquistou-lhes a confiança e, uma vez feito isso, arrastou-os para a heresia.
Madame Dubonnet sacudiu a cabeça, num gesto de triunfo. Mas Dubonnet fixou no padre um olhar horrorizado e umedeceu os lábios subitamente ressequidos. Todo o fanatismo que havia nele transpareceu nos seus olhos. Cerrou os punhos e estremeceu.
— Não pode ser! — sussurrou, agusdado. — Não pode! É incrível! Não posso acreditar!
O padre ergueu-se. Pousou suavemente a mão no ombro do homem e fitou-lhe os olhos chocados. u
— Graças a'Deus, monsieur-, não é esse o caso, ao que parece, do seu querido senhor. Não permita que a suspeita penetre em seus pensamentos, mesmo com as provas que madame lhe apresentou. Há muita gente humilde e piedosa nestas terras. Abstenha-se de falar nisso, pois seria uma ingratidão suscitar suspeitas nos seus espíritos puros e simples.
Despediu-se e saiu. Olhou para a lua, para o château, todo branco, para os vales e as florestas escuras. Um rouxinol cantava num galho, sobre a sua cabeça. O luar iluminou-lhe o rosto. Sorriu, satisfeito.
Capítulo XXXIII
Foi com uma noiva pálida e queixosa que Arsène voltou ao hôtel de Vaubon. O marquês não poupara esforços na decoração dos aposentos dos recém-casados, e Clarisse encontrou alívio temporário na alegria e no gosto requintado do sogro, que a adorava. Seu boudoir, em tons de rosa, a2ul e ouro, deu-lhe novo ânimo. Não dava para os barulhentos Champs Elysées, e sim para um encantador jardim, todo cheio de grutas, bancos de mármore branco, salgueiros chorões, belas estátuas e lagos de águas transparentes, nas quais flutuavam lírios aquáticos. Uma escada levava diretamente da sua sacada ao jardim e, ladeando o primeiro degrau, viam-se dois grandes jarrões chineses, cheios de belíssimas flores e folhagem. Clarisse deslizava de quarto em quarto, soltando exclamações de prazer na sua voz delicada, enquanto Arsène a seguia, sorrindo debilmente, satisfeito de que o pai, que conduzia a jovem pela mão, se tivesse dado a todo aquele trabalho para alegrar a nora. Tinha muita pena dela, sentia por ela a mesma ternura que se sente por uma pobre criança a quem se ofendeu sem querer.
Quanto ao marquês, a custo se continha, enrolando uma madeixa de cabelo no dedo cheio de anéis e escutando avidamente as exclamações da jovem. Deliciava-se na contemplação do seu belo e ruborizado rosto, dos seus cachos louros, do seu busto de neve. Toda ela arfava de prazer ao lhe apertar o braço com a mão, e agradeceu-lhe profusamente. Com a sua compreensão do gosto feminino, o marquês não medira esforços para encher os aposentos de detalhes delicados e objetos preciosos. Mandara fazer uma cama expressamente para ela, em forma de cisne prateado; ao ver Clarisse atirar-se nela com gritinhos de alegria, olhou com inveja para o filho, que, em vez de ver a satisfação da jovem esposa, contemplava, desanimado, o jardim.
O marquês franziu a testa e mordeu o lábio, mas não com tanta força que estragasse a pintura. Não havia dúvida de que Arsène não apreciava, como era devido, os esforços do pai com vistas à sua felicidade conjugal. De repente, o marquês ficou alarmado. Arsène parecia atacado de algum mal obscuro, mas persistente. Suas faces estavam cor de cinza, seus lábios, sem cor, seus olhos, circundados de olheiras.
Esperou que Clarisse fosse dar ordens às aias, cujos aposentos ficavam ao lado dos dela, e puxou Arsène pelo braço, obrigando-o a olhar para ele. Viu ansiedade e sofrimento nos olhos do filho.
— Perdoe-me — disse o jovem. — Não sou indiferente a todas estas coisas belas, pai. Mas soube, através de Madame de Tremblant, que o duque ainda não voltou, quando já se passaram quatro semanas da data em que devia ter regressado.
O marquês franziu o cenho e olhou em volta, antes de fechar todas as portas, e perguntou, num murmúrio:
— Já devia ter voltado? Onde é que ele foi? Realmente, temos notado a sua ausência, mas achávamos que estivesse em visita às suas propriedades.
Arsène hesitou e empalideceu ainda mais. Vendo aquilo, o marquês gritou:
— Não! Não precisa me dizer! Já não lhe disse que não quero saber de conspirações?
Estava apavorado. Esfregou febrilmente uma mancha seca de ruge sobre o lábio inferior. Depois, olhando-se no espelho, consertou cuidadosamente o estrago. Mas a mão tremia-lhe. Perguntou, olhando para Arsène através do espelho:
— Você está envolvido nisso?
Arsène fez que sim com a cabeça.
O marquês deu meia-volta, o pavor refletido nos olhos.
— Não há nada que eu possa fazer para convencê-lo a desistir? Será que você ainda não se fartou dessas loucas aventuras, agora, que tem mulher, e conta com a simpatia do Cardeal?
Arsène não respondeu. Empalideceu ainda mais e pôs-se a brincar com uma prega do cortinado que pendia sobre a cama de Clarisse. Por fim, disse:
— Preciso falar imediatamente com Paul. Ele pode ter sabido de algo.
— Maldito de Vitry e o dia em que você o conheceu! — exclamou o marquês. — Ele só trouxe medo e preocupações a esta casa.
Pôs-se a andar de um lado para outro, com passos elegantes mas desordenados.
— Já não chega a Europa estar como está, prenhe de intrigas e complôs? Quem sabe se você não será chamado a se alistar e partir para a guerra? Não basta isso, você ainda tem que ir procurar barulho em outros lugares?
Parou diante de Arsène, agarrou-o pelos dois braços e forçou-o a lhe dar atenção. Tinha os olhos cheios de lágrimas, e a pintura começou a escorrer das pestanas para as faces enrugadas e maquiladas. Arsène sentiu uma dor no coração. O marquês disse, numa voz trêmula:
— Escute, meu filho, eu estou velho. É a primeira vez que digo isto. Olhei-me no espelho, esta manhã, e convenci-me da realidade. Que me resta neste mundo? Sofri muito, suportei o exílio e humilhações, insatisfações e apreensões. Nunca tive o que queria, porque nunca soube o que queria. Minha vida tem sido frívola e superficial. Fui feliz, nestes últimos anos? Nem eu posso dizer. Meti-me em complôs e em intrigas, porque tenho inclinação para essas coisas. Mas agora estou velho e vejo que nada adiantou. As mulheres que conheci causam-me náusea, quando me lembro delas. Acordo mais cansado do que me deito. Sinto um gosto horrível na boca e sei que não provém só do estômago.
As mãos cheias de anéis apertaram os braços de Arsène e a voz tremeu de sinceridade:
— Nenhum homem é responsável pela futilidade e pelo desânimo dos outros. Tenho consciência disso. Fiz muitas loucuras e não culpo a ninguém, senão a mim mesmo. Mas será que isso diminui a minha sensação de cansaço e vazio? No fim da vida, o que traz alegria a um homem? Os seus filhos e os filhos dos seus filhos. Ele só deseja paz na sua família. Fui culpado de muitas loucuras, mas agora estou cansado. Será preciso você me castigar, Arsène? No fundo do seu coração, não haverá um pouco de piedade por mim? Por que você não me deixa olhá-lo sem medo, e gozar, com alegria, dos meus netos?
Fez uma pausa, e a sua expressão foi de surpresa.
— Meus netos! Sempre tive horror a pensar nisso. Mas agora essa ideia me traz esperança e ânimo. Arsène, não me prive do meu filho e dos seus filhos!
O velho libertino falava com tanta paixão, com os olhos tão marejados de lágrimas, com as mãos tão trêmulas, com olhar tão súplice, que Arsène desviou a cabeça. Não podia olhar para o pai sem sentir angústia. Pôs a mão sobre uma das mãos que o agarravam, levou-a aos lábios e beijou-a com amor.
Mas falou num tom resoluto, olhando para o pai com gravidade:
— O senhor diz que tem uma sensação de náusea e vazio no coração, pai. Diz não saber a causa. Mas eu sei.
O marquês estremeceu. Tentou recuar, mas agora era Arsène quem o segurava.
— Quer que eu, quando for da sua idade, sinta a mesma náusea? Não quer me poupar isso, em nome da memória do meu avô?
O marquês soltou-se dos braços de Arsène e recuou, olhando para o filho com terror, sentindo-se despido diante dele. Mas Arsène prosseguiu, inflexível e amoroso:
— Eu estava seguindo os seus passos, pai, trilhando o caminho que me levaria ao mesmo beco sem saída, à mesma futilidade, à mesma sensação de vazio. Livrei-me disso. Quer que eu volte a esse caminho?
O marquês levou as mãos morenas aos lábios e os seus olhos lirilharam intensamente. Arsène esperou que ele falasse.
— Você vai acabar sendo morto! — murmurou o marquês, lívido. — Não sabe que, dentro de quinze dias, La Rochelle será uacada? Não sabe que já assassinaram Buckingham, o qual, apesar de todas as promessas feitas a uma certa dama, decidira ajudar os lochelenses?
Aquilo horrorizou Arsène. Esqueceu tudo o mais, para ver npenas o rosto vermelho e a barba ruiva de Rohan.
— Quem o assassinou? —murmurou ele.
— Dizem que foi por ordem do Cardeal! Depois que se soube, secretamente, que Buckingham faltara com a sua promessa e estava aprestando a sua esquadra para zarpar rumo a La, Rochelle.
A voz do marquês tremeu de medo, ao ver a expressão no rosto do filho.
Arsène olhou em frente, com um sorriso mau.
— Ele não faltou à sua promessa — murmurou, de modo quase inaudível. — Por isso foi afastado, para que os ingleses pudessem cumprir essa promessa contra o seu desejo.
— Que é que você está dizendo? — gemeu o marquês.
Mas Arsène estava andando de cima para baixo, batendo com as mãos uma na outra, exultante.
— É a guerra — disse, incapaz de se controlar. — Até a morte! A guerra chegou. Que venha! Estamos prontos.
A porta abriu-se e Clarisse entrou* rindo. A cor voltara-lhe ao iosto bonito. Correu para o desesperado marquês, pôs-se na ponta dos pés e beijou-o ardorosamente. Ele Olhou para ela sem a ver, esforçando-se por sorrir. Abraçou-a, mas sem saber o que fazia.
Clarisse olhou em volta, rindo e procurando Arsène. Mas ele desaparecera. Ela queixou-se, libertando-se do abraço do marquês.
— Já desapareceu de novo, o meu amável marido! — falou, rompendo a chorar. —• Oh, meu caro marquês, pensei que, quando regressássemos a Paris, a estranha doença que o afeta desaparecesse e ele voltasse a ser o meu marido! Mas vejo que estou condenada ao abandono!
O marquês fê-la sentar-se. O seu rosto estava cor de cinza, por baixo do ruge. Começou a interrogar a chorosa jovem. À medida que ela ia falando, ele ouvia com mais atenção e crescente desânimo.
Arsène desceu correndo os degraus de mármore da escada. O retrato do avô parecia olhar para ele com insistência. Parou a contemplá-lo. Tinha agora uma nova significação para ele, como se lhe quisesse transmitir uma mensagem. Enquanto fitava os olhos do quadro, ora tão cheios de vida e significado, Pierre, seu valet, ajustava-lhe a capa.
— Pierre — perguntou, de repente, Arsène —, eu me pareço com o meu avô? Olhe bem e me diga, sinceramente.
Pierre examinou obedientemente o retrato-e depois olhou bem para o patrão.
— No retrato não se vê tanta impaciência, monsieur. Mas seu avô era bem mais velho quando o quadro foi pintado, e dizem que a impaciência diminui com a idade, que é substituída pela sabedoria.
Arsène riu e continuou a descer a escada. Estava chegando ao andar térreo, quando o Conde de Vitry entrou.
O jovem conde estava mortalmente pálido. Ao ver Arsène, sorriu tristemente. Os dois se abraçaram.
—•Recebi o seu recado, dizendo que tinha voltado e queria me ver esta noite mesmo — murmurou Paul —, embora me parecesse que você achasse que eu não estava em Paris.
Ofegava, como se tivesse um peso no peito. Arsène pressentiu que ele tinha vindo anunciar-lhe uma calamidade. Conduziu o amigo ao grande salão vazio, onde os espelhos que forravam as paredes lhes reproduziam, vezes sem conta, a imagem. Agora que a saison de festas estava suspensa, as cadeiras douradas, as mesinhas de mármore e as belas estátuas, nos seus nichos, estavam envoltas em lençóis de linho, enquanto que os cortinados cerrados mergulhavam o salão em penumbra.
Arsène começou a se dar conta da gravidade da ocasião, que fizera com que o jovem conde, tido como altamente suspeito, o procurasse à luz do dia. Era sinal de que ele tinha uma notícia horrível, que não podia esperar. Arsène achou que já sabia qual a notícia, e disse em voz baixa.
— Já sei, Paul. Foi Buckingham. Meu pai me contou.
O rosto de Paul mudou de expressão e ele abanou a cabeça.
— Isso já seria bastante mau, pardieul Soube há uns dois dias atrás. Mas a notícia que eu tenho para lhe dar é ainda pior.
E Arsène notou que os olhos do amigo estavam vermelhos de tanto chorar.
Antes que ele pudesse falar, Paul murmurou:
— Trouxe alguém comigo. Ficou junto à entrada dos criados. Mande buscá-lo.
Arsène fez sinal para o seu valet, de plantão na porta. Pierre obedeceu imediatamente, mas o seu olhar ansioso, de camponês, fixou-se em Paul, a quem adorava, e de quem também estava acostumado a receber ordens, na qualidade de líder de Les Blanches.
Paul murmurou-lhe algo ao ouvido e Pierre disparou como uma flecha. Depois, de Vitry voltou-se para Arsène e, apesar da dor quê sentia, procurou sorrir.
— Ah, como é bom voltar a vê-lo, mon chery — disse ele, na sua voz bondosa.
Arsène, que temia a notícia, perguntou:
— Não recebeu o meu recado, Paul? Como é que você está aqui?
Paul ficou surpreso.
— Recado? Que recado? Não recebi nenhum recado.
Arsène pegou-o pelo braço, com um gesto urgente e olhos brilhando.
— Então, o que suspeitei era verdade! O recado não lhe chegou às mãos. E você voltou a Paris!
Antes que Paul pudesse responder, Pierre entrou, com um homem alto, de meia-idade, embrulhado numa capa, apesar do calor que fazia, o chapéu empoeirado puxado para a testa. Tinha um rosto pálido e magro, e a palidez era acentuada por um bigode preto e olhos também negros. Parecia ter cavalgado durante muito tempo, tocado pelo desespero. Arsène nunca o vira. Olhou para ele, franzindo a testa, mesmo quando Paul lhe puxou pela mão e o chamou urgentemente de lado. As lágrimas rolavam agora pelas faces de Paul, e Arsène, incapaz de se conter por mais tempo, perguntou:
— É o Duque...?
— Shh! — sussurrou Paul.
Olhou para Pierre e depois para o desconhecido.
— Sim, é o duque. O seu corpo foi encontrado, junto com os dos seus companheiros. Num fosso. Perto de St. Omer.
Após um momento de choque, Arsène exclamou, em desespero:
— Não é possível! Não acredito! Quem ousaria atacar o Duque de Tremblant? — Agarrou Paul pelos ombros e sacudiu-o, desesperado. — Não é verdade! Se ele tivesse sido encontrado assim eu teria sabido. Madame de Tremblant disse-me, esta manhã, que não havia notícias!
— Escute — disse Paul calmamente, fitando o amigo com olhos graves e úmidos. — É verdade. Madame de Tremblant não foi informada, porque a notícia só agora chegou a Paris. Mas eu soube ontem à noite, através de um mensageiro especial. Além disso, este cavalheiro me contou tudo com detalhes.
E indicou o desconhecido.
Este inclinou a cabeça e retorceu as mãos, num paroxismo de angústia.
— A notícia que acaba de chegar a Paris é que o duque e seus companheiros foram atacados por bandoleiros. Seus bolsos e suas bolsas foram revirados e saqueados, para dar crédito a esse boato. Essa.é a notícia que todo mundo aceitará. Mas não é a verdade, Arsène.
Paul falava numa voz cheia de dor.
Voltando-se para o mensageiro, disse-lhe:
— Fale, monsieur.
Chocado e incrédulo, Arsène fixou no desconhecido o olhar desvairado. O homem começou a falar numa voz trêmula e sombria:
— Meu nome é Eduard de Brisson e sou natural de Sedan, monsieur. Sou subcomandante da guarda de Monsieur le Duc de Bouillon.
Os lábios ressequidos de Arsène entreabriram-se, mas nenhum som saiu deles. Tampouco sentiu a mão de Paul no seu braço, contendo-o.
De Brisson suspirou e passou a mão pelos olhos.
— Monsieur le Duc me ofereceu esse posto. Devo explicar, messieurs, que eu costumava acompanhar o duque nas suas excursões, como aquela à qual vocês estiveram presentes, em casa de Monsieur le Duc de Rohan. Foi assim que fiquei conhecendo o Conde de Vitry e a você, Monsieur de Richepin.
Fez uma pausa. Arsène avançou para ele.
— Continue! — gritou, ameaçador.
Mas o desconhecido não recuou. Deitou a Arsène um olhar sombrio.
— Monsieur le Duc confiava em mim como em poucos outros. Fui seu ordenança na Academia de Pluvenal. Acompanhei-o sempre. Também sou huguenote. Não me sinto traidor por ter vindo falar com Monsieur le Comte. Foi o duque quem nos traiu.
— Continue! — exclamou Arsène, fechando o rosto.
— Tenha paciência — disse Paul.
De Brisson suspirou novamente e começou a chorar.
— Numa noite destas, o duque mandou-me chamar e disse: “De Brisson, tenho uma missão para você. La Rochelle vai ser atacada e Sedan também. Nossa única esperança está nos nossos amigos protestantes ingleses, no Duque de Buckingham. Foram enviados mensageiros para implorar-lhe ajuda imediata, que nos evite cair nos mãos da maldita Igreja de Roma. Mas, daqui a duas noites, outros mensageiros partirão a cavalo até Amiens, de onde embarcarão para a Inglaterra. São emissários de uma certa dama...
De Brisson fez nova pausa e prosseguiu, com voz sumida:
— “Esses mensageiros levam um recado dessa dama para Buckingham, ordenando-lhe que não nos dê ajuda. Ele é um homem fraco e apaixonado, quê lhe vai obedecer, pois ela lhe promete tudo. Esses homens não devem chegar ao seu destino, porque, se chegarem, todos nós morreremos, e o protestantismo será para sempre destruído na França.”
Retorceu febrilmente as mãos e deitou-lhes um olhar desvairado.
— O duque sabia com quem falava, messieurs, pois meus pais foram mortos em La Rochelle, assassinados pelos diabólicos sicários de Roma. Compreenderão, portanto, a razão do meu ódio e do meu desejo de vingança. Quando o duque me disse aquilo, sabia que eu obedeceria de bom grado. Escolhi alguns homens, e o duque me deu instruções detalhadas para uma certa noite. Ele mesmo nos levaria até St. Omer, e de lá nós iríamos a cavalo...
— Não! Não! É uma loucura! Não acredito! — gritou Arsène, voltando-se para o amigo.
Mas Paul encarou-o com gravidade e indicou-lhe, com um movimento de cabeça, que ouvisse o que de Brisson, chorando copio- samente, tinha a contar.
— Em St. Omer — continuou de Brisson, com voz trêmula e estrangulada — juntou-se a nós um grupo de doze homens. O duque disse que eram assassinos contratados por ele e que eu não devia falar com eles mais do que o necessário, a fim de proteger a nossa identidade. Eu os chefiaria.
Arsène ouviu, como que num pesadelo, o horrível relato da emboscada e da matança. A voz de de Brisson parecia vir de muito longe. Estremeceu e teve a impressão de que ia desmaiar. Um frio de morte paralisou-lhe o corpo.
— Não distingui os rostos do Duque de Tremblant e dos seus companheiros — disse de Brisson, num murmúrio quase inaudível. — Só depois de ele estar morto e um dos assassinos lhe chutar o rosto, exclamando: “porco huguenote!” é que tive o primeiro pressentimento. Aproximei uma tocha e reconheci o duque.
Ficou um momento sem poder falar e depois continuou, na mesma voz rouca:
— Nenhum dos meus colegas ouvira aquela exclamação, só eu. E mal pude acreditar, messieurs. Mas, depois que o duque e seus companheiros já tinham sido atirados num fosso e enterrados, interroguei o homem que fizera essa exclamação, rezando para ter ouvido mal.
Continuou, retorcendo as mãos, em desespero:
— Escolhi um momento oportuno para interrogar o homem que falara aquilo, um feroz aventureiro, que comentava, com os companheiros, sobre a bela recompensa que iriam receber pelo trabalho daquela noite. Ele não se fez de rogado. Disse não conhecer a identidade do Duque de Bouillon, a quem fora enviado por uma pessoa cujo nome não podia revelar. Mas acreditava que o duque fosse um nobre católico, a serviço do rei e de Richelieu. Tinham-lhe dito que o Duque de Tremblant e seus companheiros eram hugue- notes que conspiravam contra o rei e o Cardeal e que, por isso, tinham de ser eliminados.
Dirigiu-se aos dois amigos, com os olhos marejados de lágrimas:
— Não podem fazer ideia, messieurs, dq que eu senti ao ouvir aquilo. Não ousei dizer nada aos meus amigos, com medo de que se lançassem sobre aqueles malvados e os matassem. Temia pelas vidas deles. Levaja-os a tomar parte naquela horrível aventura, a que eles se tinham prestado, movidos pela sua fé de huguenotes. E agora eles tinham matado o seu melhor amigo e a sua comitiva. Já fora difícil conter-lhes a indignação, ao verem os criminosos revistar e roubar os pertences dos mortos.
Arsène gemeu e cobriu o rosto com as mãos, mal sentindo Paul levá-lo para uma das cadeiras protegidas por lençóis e fazê-lo sentar. A raiva, a dor e o desespero dilaceravam-lhe o coração. Quando, finalmente, ergueu a cabeça viu que ele e Paul estavam sozinhos. O amigo estava ajoelhado a seu lado, cheio de compaixão e sofrimento. Arsène deixou cair a cabeça no ombro do amigo e chorou abertamente.
Por fim, exclamou, numa voz alterada:
— Precisamos nos vingar! O duque tem que ser vingado!
— Sim — disse Paul, numa voz calma e estranha. — Ele tem que ser vingado. Mas, antes de mais nada, temos que pensar no que devemos fazer. Já estamos atrasados. Os inimigos não perdem tempo. La Rochelle vai ser atacada a qualquer momento. Já despachei um mensageiro para o Duque de Rohan, em La Rochelle, contando-lhe esses fatos e a morte do nosso querido Duque de Tremblant. Dentro de alguns dias, deveremos ir pessoalmente a La Rochelle, ajudar os nossos amigos.
Levantou-se. Seu rosto estava muito grave. Olhou em frente e falou, como que para si mesmo:
— Não entendo. Pensei que todos os homens fossem leais a alguma coisa. Pensei que em cada homem, por mais baixo que fosse, houvesse um resquício de decência, alguma devoção, alguma integridade. Mas no Duque de Bouillon não existe nenhuma dessas coisas. Se ele é assim, quantos não haverá, como ele, no mundo?
Suspirou repetidamente, como se o seu coração não aguentasse o peso da dor.
— Se ele, um huguenote, poderoso e determinado, é capaz de trair, em quem confiar? Se é capaz de matar um amigo, por motivos inexplicáveis, como pode um homem andar sossegado, sem suspeitar de traição?
Mas para Arsène tudo aquilo eram divagações. Sua natureza, mais volúvel e violenta, via as coisas com maior clareza. Para ele, bastava que o Duque de Tremblant tivesse sido morto pelo Duque de Bouillon. Não queria saber de motivos obscuros. O fato era esse e precisava ser vingado.
Esqueceu a dor que sentia, na sua ânsia de vingança. As lágrimas secaram-lhe nas faces. Seu rosto fechou-se. As ideias tumultuavam-se na sua cabeça e ele disse, em voz alta:
— O Cardeal odeia de Bouillon. Amava de Tremblant. Acho que ele devia saber que de Tremblant ia fazer aquela viagem e tentou evitá-la. Lembro-me de que não queria deixar o duque a sós, na noite do baile. Terá agora uma dupla oportunidade de vingar a morte do amigo e destruir de Bouillon. Vou imediatamente falar com ele.
Paul ouviu tudo aquilo em silêncio. Parecia mergulhado nos seus próprios pensamentos.
Arsène levantou-se, imbuído de uma determinação inexorável, que lhe punha um sorriso feroz nos lábios.
— Espere — disse Paul, pousando a mão no braço do amigo.
Afastou-se de Arsène e levou as mãos ao rosto. Arsène começou a falar com impaciência, imbuído como estava de sede de vingança, mas algo na atitude do amigo o deteve. Quando, passado um longo momento, Paul tirou as mãos do rosto, a sua expressão estava abalada e a tragédia brilhava-lhe nos olhos.
— Serei idiota? — perguntou, com súbita e inesperada paixão. — Terei sonhado um mundo em que os homens eram naturalmente bons e decentes? Estarei enganado? Terei vivido em meio a uma névoa rosada e sem substância? Se assim for, como poderei continuar vivendo? Como posso existir, sabendo que todos os homens são maus, assassinos, canalhas, traidores e avarentos?
Pegou nos braços de Arsène e sacudiu-o, numa espécie de histeria trágica.
— Arsène, eu lhe asseguro que não posso viver num tal mundo!
Alarmado, Arsène buscou palavras, mas todas as que lhe vieram à mente eram cínicas. Não podia suportar o ar desvairado do amigo. Por fim, disse:
— Por que ir de extremo a extremo, Paul? Por que não compreender que a maioria dos homens não é boa nem má? Essa é a sua tragédia, acreditar na bondade pura.
— Você está matando as minhas ilusões — murmurou Paul, por entre os lábios brancos, e os seus olhos eram os de um moribundo, suplicando uma última esperança.
De mistura com o seu sofrimento e o seu amor por Paul, Arsène sentiu uma certa impaciência.
— Paul, você não entende! Neste momento, posso lhe garantir que não sei de nada capaz de me levar a traí-lo. Mas como posso prever o futuro? Antes de ter mandado matar de Tremblant, talvez de Bouillon se tivesse julgado incapaz de trair. O homem é sempre vítima das circunstâncias. Mas você, meu caro visionário, quer que os homens sejam superiores às circunstâncias. É um dos poucos com essa capacidade. Quem sabe? Procure reconciliar-se com os diversos aspectos da realidade.. .
— Não posso continuar a viver — repetiu Paul, passando a mão pelo rosto como que para afastar dele a agonia.
— Jesus não esperava demasiado dos homens — lembrou Arsène, espantado com a estranha inspiração que tivera. — Não estará você sendo presunçoso, ao esperar mais do que Ele?
— Neste novo mundo, verei realmente a realidade? — perguntou Paul, numa voz débil.
— Temos que agir dentro do contexto dessa realidade — retrucou Arsène, impressionado com a palidez do amigo. — Temos que fazer o que pudermos. Quem sabe se não ajudaremos a criar um mundo maior e melhor? Quer mudá-lo da noite para o dia, seu impaciente?
— Em quem posso confiar? — perguntou Paul, numa voz de moribundo.
— Confie em mim, até onde as minhas fraquezas lhe permitirem — disse Arsène, quase chorando. — Não espere demasiado de mim. Farei o que puder. Faça concessões às minhas falhas de homem e às falhas dos outros. Não sou nenhum anjo, e nem, graças a Deus, um demônio. Mas talvez chegue um momento em que eu me transforme num demônio. Se isso acontecer, não se esqueça de que eu já mostrei que fui homem.
Ao ouvir aquilo, Paul sorriu tristemente. Arsène sentiu que nunca mais o amigo seria feliz, que tudo o que ele fizesse, dali para a frente, seria ditado pela mente e não pelo coração. Era como se uma virtude pura o houvesse abandonado, e um eterno desespero tivesse tomado conta dele para sempre.
Nesse momento, Arsène distinguiu um vulto parado junto à porta distante. Era Louis, majestoso na sua batina negra, a luz suave formando como que uma auréola em volta da sua cabeça loura e orgulhosa.
Capítulo XXXIV
Devido à penumbra que reinava no salão e também à sua vista não muito boa, Louis de Richepin não se apercebeu logo da presença de Paul de Vitry e entrou no salão com o seu passo majestoso, olhando penetrantemente para o irmão.
— Ouvi dizer que você tinha voltado, Arsène — disse ele, na sua voz fria —, e vim dar as boas-vindas a você e a madame.
Mas logo se deu conta de que a pessoa que estava perto do irmão não era uma mulher e muito menos Madame de Richepin. Mais do que isso, reconheceu o jovem conde, por quem nutria a maior inimizade e aversão. Raramente se encontravam em Paris, mas, quando isso acontecia, Louis demonstrava o quanto detestava o amigo do irmão sem a menor sutileza ou sombra de polidez, para divertimento dos espectadores. Por seu lado, Paul traía apenas um leve embaraço e geralmente se afastava, educadamente, de perto de quem lhe manifestava tanta antipatia.
Louis estacou abruptamente no meio do salão, e nessa sua atitude havia algo de ridículo, pois empalideceu e os seus olhos fixaram-se em Paul, como se ele fosse um monstro, um malfeitor, um traidor e um assassino, tamanho o ódio e a raiva do olhar que lhe lançou.
Arrasado pelas emoções que o acometiam, Arsène olhou para Louis com a maior das impaciências. Retrucou apressadamente às boas-vindas do irmão, dando-lhe a entender, por todas as maneiras, desejar que ele fosse embora. Mas Louis, respirando com força através das narinas distendidas, não tinha essa intenção. Ignorou Arsène e pareceu olhar apenas para o conde.
— Acha necessário invadir esta casa logo no dia em que o meu irmão regressa a ela, monsieur? — perguntou ele.
— Vá embora e deixe-nos em paz! — exclamou Arsène, demasiado excitado para se ofender. — Será que você não entende que estamos tratando de coisas importantes?
Mas Louis fingiu não ouvir e disse, numa voz rouca:
— Sou forçado a lhe pedir que se retire imediatamente da casa do meu pai, Monsieur le Comte.
Paul, apesar de toda a sua bondade natural, não era um santo. O orgulhoso sangue dos seus antepassados subiu-lhe à cabeça, diante daqueles insultos, e a sua mão, mais acostumada a apertar outras, em sinal de amizade, procurou o punho da sua espada e agarrou-o.
— Monsenhor — replicou ele, calma e lentamente —, não lhe pedi permissão para visitar o meu amigo, nem darei ouvidos à sua falta de cortesia e às suas palavras vulgares. Arsène pediu-lhe que se retirasse. Peço-lhe que acate o seu pedido, pois temos assuntos importantes a discutir.
Apesar da calma da sua voz, percebia-se nela um frio desprezo, e os seus olhos cinzentos dardejavam.
Arsène, cuja mente só podia dar atenção a uma coisa de cada vez, de repente se deu conta do que estava acontecendo entre Paul e Louis, e ficou furioso. Enquanto procurava palavras apropriadamente contundentes, Louis, sempre fingindo ignorá-lo, olhava para o conde com fúria crescente.
— Os assuntos importantes aos quais o senhor se refere, Monsieur le Comte, dizem respeito a traição, desordem, blasfêmia e revolta. O senhor não trouxe nada a esta casa que não fosse desunião, discussões e perigos. Dividiu uma família, colocou um dos seus membros em risco e provocou infelicidade e discórdia entre um pai e seu filho. Sou padre, mas sinto vontade de esquecer as minhas ordens e tomar uma atitude sumária contra o senhor.
Arsène ouviu tudo aquilo com uma expressão de incredulidade. Mas Paul sorriu amargamente e, sem largar a empunhadura da espada, retrucou:
— Não me digno responder às suas impensadas acusações, mas, se preferir discutir isso numa destas manhãs, e de maneira mais peremptória, estou às suas ordens.
Recuperando finalmente a voz, Arsène gritou para o irmão:
— Morbleu, seu imbecil! Por que você tinha de vir aqui com as suas loucuras? Como ousa se intrometer na nossa conversa? Peço-lhe de novo que se retire, se não quiser que o expulse com as minhas próprias mãos!
Louis olhou para ele com ar malévolo.
— Todos os apelos que eu lhe fiz esbarraram na sua teimosia. Você insiste na sua criminosa estupidez. Está levando as suas ações até as últimas consequências, o que só pode resultar na sua destruição, em angústia para o nosso pai e em sofrimento para a sua esposa. Você se associou a traidores como esse aí, não por convicção, o que ainda se poderia entender, e sim por amor à aventura, à confusão e à violência.
Apontou para Paul e continuou a falar com o irmão:
— Esse homem seduziu a pouca inteligência que você possuía e só pode levá-lo a um fim: à forca ou ao machado. Está penetrado da maldade de Satã, e o seu interesse é levar vítimas, como você, a um fim preconcebido. Protesto contra a presença dele nesta casa e tenho meios de tornar esse meu protesto mais peremptório. Agora, peço-lhe que o mande embora e não se engane quanto às minhas intenções.
A voz dele, ao falar com o irmão, estava cheia do ódio e do desprezo que sentia por Arsène, do ciúme e do veneno inerentes à sua própria natureza. Mesmo nos piores momentos, Arsène nunca vira o irmão com aquela cara, nem lhe ouvira uma voz daquelas. Ficou um momento desconcertado, como qualquer homem são diante de um louco. Depois, a raiva tomou de novo conta dele; avançou, ameaçador para o irmão, pois se sentia tremendamente ofendido com os comentários sobre a sua inteligência:
— A menos que você peça desculpas ao meu amigo e se retire imediatamente, tomarei a meu cargo retificar a qualquer custo os seus insultos!
Esqueceu a compaixão que sentia por Louis e a sua nova compreensão das reações humanas, e o ódio coloriu-lhe as palavras:
— Você está cheio de veneno porque não possui uma mulher, porque fixou o seu pervertido amor numa mulher que merecidamente o despreza e sempre o desprezou! Não lhe agradam estes comentários, Monsenhor? Vejo que você está pálido, que estremeceu. Não sabia que eu conhecia o seu segredo? Pois fique sabendo que conheço, seu padreco venenoso! Volte para o seu claustro, para o seu amo e as suas intrigas, e deixe os homens honestos entregues aos seus pensamentos e aos seus interesses. Se você se intrometer de novo, juro por Deus que não me responsabilizarei pelos meus atos.
Tomado de náusea e aversão por aquelas palavras, Paul segurou o braço de Arsène, mas este, louco de raiva, soltou-se com violência. Estendeu as mãos para a garganta do irmão, mas Louis não pestanejou nem recuou. Parecia ter crescido, em estatura e atitude ameaçadora, apesar das linhas azuladas em volta dos lábios e dos olhos fundos.
— Espada alguma ficará suja do seu sangue poluído! — gritou Arsène, fora de si por causa do medo que sentia pelo amigo. — Farei o que tiver que ser feito com estas minhas mãos, coisa que há muitos anos venho desejando!
Estava furioso, mas também com medo. Sabia muito bem que Louis fora um dos melhores espadachins da Academia de Pluvenal e sabia também que o homem violento não é o mais perigoso, e sim o homem frio, que pode calcular cada -estocada sem os desvios da paixão. Louis derrotara-o em mais de uma ocasião, durante as aulas de esgrima ou quando se defrontavam para treinar, e Arsène não acreditava que Louis, apesar de padre, tivesse perdido a destreza. Paul, embora também ótimo espadachim, não tinha a frieza e a insensibilidade necessária a um duelo de morte, e Arsène sabia que
Louis percebia isso. Para duelar com sucesso, Paul teria de estar imbuído de indignação. E isso ele nunca se permitiria num duelo com o irmão do seu maior amigo. Durante um longo momento, Arsène contemplou a impotência do homem civilizado. Procurou, portanto, atrair a ira de Louis sobre si mesmo.
Mas Louis sorriu para ele com desdém e afastou-lhe as mãos, tão perto da sua garganta. Os comentários violentos e indiscretos do irmão tinham-no tornado realmente perigoso.
— Seu idiota! — exclamou ele, numa voz baixa e desdenhosa. — Você acreditou, por um momento, que eu o desafiaria? Achou que ousaria tocar-me com um dedo que fosse?
Parecia ter aumentado enormemente de altura. Os seus olhos brilhantes fixaram-se, terríveis, em Arsène. Depois, voltou-se para Paul de Vitry.
— Está vendo a inimizade e o perigo que trouxe para esta casa? Estou pronto a desafiá-lo quando assim desejar, Monsieur le Comte, assim como estou pronto a destruí-lo por meios mais impessoais. Não pense que as suas atividades e traições não foram descobertas. Os seus dias estão contados.
Paul não respondeu. Olhou para o amigo com uma expressão de cansaço e grande tristeza.
Completamente fora de si, Arsène agarrou o cabo da espada. A arma já estava quase fora da bainha, quando Louis lhe segurou o pulso. Seus dedos, frios e fortes como o aço, apertaram a carne de Arsène. Sorriu para o irmão com amargura e depois largou-lhe o pulso, com um gesto de desprezo. Levantou a mão e esbofeteou Arsène com lenta e calculada brutalidade, como se ele fosse urr criado insolente ou uma criança malcriada.
— Quer bancar o Caim comigo, imbecil? — perguntou, corr o mesmo sorriso triunfante.
Uma escuridão, salpicada de centelhas, caiu sobre os olhos de Arsène. Ouviu um enorme trovão e sentiu uma mão segurando-lhe o braço. Quando a névoa passou, descobriu que estava sozinho com Paul, e que o amigo lhe falava urgentemente.
Mas ele nem o ouvia. Estava morto de vergonha.
Uma paralisia quase voluptuosa tomou conta dele. Achou que estava morrendo. Não era a primeira vez que sentia ódio, mas nunca daquela maneira. Começou a soluçar, com uma náusea nascida da angústia.
— Um dia eu ainda o mato! — gritou.
Ergueu o punho cerrado e olhou para Paul com uma expressão desvairada.
— Juro, por tudo o que é sagrado, que ainda o matarei!
Paul tinha demasiada experiência de vida para achar que aqui-
Io era simples bravata. Ficou horrorizado. Pegou-lhe na mão erguida, segprou-a na sua e procurou dominar o amigo com o fogo dos seus olhos tranquilos.
— Arsène, por favor, controle-se. Você foi muito insultado e eu também. Esse homem está procurando brigar conosco para nos destruir. Você quer fazer-lhe a vontade? Controle-se, vamos! Temos muita coisa a fazer. Será que o meu último amigo também me vai desapontar? De nenhum outro homem no mundo eu toleraria a infâmia que sofri. Mas existem assuntos que precisam de nós e peço- lhe que não os esqueça. — A voz tremeu-lhe, mas, passado um momento, ele continuou: — Não me atraiçoe. Não me abandone. Você me prometeu que não, e eu confio na sua promessa.
A fúria abandonou Arsène, e um frio veio substituir a onda de fogo que antes o invadira. Quando Paul lhe soltou a mão, ele deixou-a pender.
— Enquanto eu não o matar, não terei paz — disse, numa voz tão calma quanto a de Paul. — Juro! Não posso viver com essa vergonha me envenenando. Suportei toda uma existência de insultos e provocações por parte desse maldito e desumano padre. Agora, chegou a hora da retribuição. Más nada farei antes de lhe ter servido, Paul. Essa é a minha palavra. .
Paul suspirou, mas nada disse. Parecia invadido por súbitos e trágicos pensamentos. Quando Arsène, assustado com o aspecto do amigo, lhe passou a mão pelo ombro, Paul respondeu com um sorriso amargo.
Capítulo XXXV
O Cardeal estava sentado na sua poltrona, junto à janela do seu quarto. A batina preta realçava o tom amarelo e cadavérico do seu rosto fino e delicado. Parecia uma efígie de cera; a cabeça aristocrática reclinada nas almofadas púrpuras, franjadas de ouro; as pálpebras arroxeadas; os lábios, pálidos e frágeis, entreabertos. A luz difusa e dourada do sol pairava-lhe sobre as feições rígidas, au- mentando-lhe o ar moribundo. As mãos jaziam, imóveis, nos braços da poltrona, tranquilas, pendentes, requintadas na sua beleza marmórea. Nunca ele parecera tão próximo da dissolução, tão exausto, tão doente e, paradoxalmente, tão cheio de poder. Era como se a aproximação da morte só fizesse aumentar as potencialidades daquele homem terrível, contrastando-as com a fragilidade cada vez maior do seu físico. Podia estar prostrado, mas o seu espírito ganhava em força o que o seu corpo perdia em energia. Esse corpo podia sucumbir ao peso da sua alma, mas, através da desintegração da sua carne, brilhava, com mais vigor ainda, a mente que aterrorizava toda a Europa.
O Padre Joseph terminara de falar e sentou-se perto do amigo querido. Suas sobrancelhas acobreadas estavam franzidas na contemplação daquele homem doente e temível, e ele sentiu um misto de medo e sofrimento, junto com o grande respeito que sempre o invadia ao olhar para o Cardeal.
A sombra de uma voz saiu dos lábios do Cardeal, embora ele não se mexesse e nem mesmo abrisse os olhos.
— Quer dizer que Buckingham foi liquidado, para que a conspiração contra a França pudesse prosseguir, com todas as suas implicações?
Meditou sobre aquilo, e um sorriso estranho e sinistro lhe aflorou aos lábios. Padre Joseph percebeu que ele estava pensando na jovem Rainha e no seu desespero, ao saber da morte do amante.
Pelo espaço de um momento, o Padre Joseph suspeitou de que o próprio Cardeal tivesse mandado matar Buckingham. Não é possível!, murmurou o capuchinho para si mesmo, horrorizado. Mas até que ponto ele conhecia aquele homem imprevisível? Seria possível que ele tivesse posto em risco a própria existência da França, só para afastar o homem amado por uma mulher estúpida e insensata, que ele próprio cobiçava? Seria o Cardeal capaz de esquecer a si mesmo, por causa de uma mulher como aquela?
O Cardeal voltou a falar, e a aparência cerúlea do seu rosto aumentou: o
— Mas, mais espantosa ainda é a notícia, que você me traz, do assassinato do Duque de Tremblant, por... salteadores. Ele era meu amigo. Não posso suportar essa notícia.
Os olhos azuis do capuchinho fixaram-se, penetrantes, no rosto austero e fechado que tinha à sua frente. Seriam aquelas palavras hipocrisia? Jamais o Cardeal fora hipócrita com ele. Aquelas palavras encerrariam ironia, esconderiam satisfação? A expressão do Cardeal não mudara, a não ser para se tornar ainda mais abatida e imóvel, como se ele tivesse morrido. A respiração não lhe agitava um pêlo sequer da barba fina e grisalha. As pálpebras ergueram-se, revelando os olhos do Cardeal, úmidos e avermelhados como se tivesse havido uma hemorragia por trás deles e estivessem cegos a tudo, menos ao horror de uma secreta angústia.
— Foi uma infelicidade, mas o homem era inimigo da França — disse o capuchinho, numa voz calma e firme. — É preciso distinguir a mão de Deus no caso. Ele era um homem perigoso. Se foi morto pelos mosquetes e as espadas de salteadores, é mais uma prova de que Deus escreve direito por linhas tortas.
O Cardeal fixou o olhar num ponto distante e!,èsbò'çou um sorriso terrível. As mãos, pendentes sobre os braços da poltrona, crisparam-se como se fossem garras. Parecia um cadáver subitamente animado por algum espírito maligno.
— Estive pensando — disse Richelieu, no seu sopro de voz —, se a morte de um homem como de Tremblant não será um preço demasiado alto a pagar pela França.
Apavorado, o capuchinho mordeu os lábios, sentindo o coração bater com mais força. O sorriso do Cardeal aumentou. Parecia olhar para uma terrível visão, surgida do limbo do universo.
— Estou cansado — disse ele. — Estou farto de viver. Gostaria de estar morto.
Padre Joseph levantou-se abruptamente e começou a andar de um lado para o outro do quarto com passos desordenados, passando a mão pelos cabelos de cobre e pela grande barba. Toda a sua atitude era de fúria, mas o Cardeal não parecia vê-lo.
— Deus pôs fim a um dos mais formidáveis inimigos da Igreja — disse o capuchinho, em voz alta, mas abafada. — Não devemos voltar as costas a tão solene fato. Precisamos não esquecer que os huguenotes detêm cidades fortificadas, que a França corre o maior dos perigos. É preciso lembrar que se aproxima a hora terrível, e esquecer tudo o mais. A França vai de novo ser dividida, inundada pelo sangue da guerra civil. Tudo o mais deve ser esquecido, enquanto nos preparamos para defendê-la.
Parou diante do Cardeal, cujo sorriso fixo tinha algo de espectral, como se fosse a careta de um cadáver.
— Será que nada pode evitar o derramamento de sangue francês? — perguntou o capuchinho, sinceramente angustiado, estendendo as mãos como se quisesse captar literalmente a atenção do Cardeal.
— Não há nada que possamos fazer para unir os franceses, huguenotes e católicos, de modo a evitar que a sangueira se espalhe pela França? Não poderemos encontrar um inimigo de fora, um bode expiatório, real ou imaginário, para juntar essas forças opostas e trazer a paz à França? .
O Cardeal não respondeu, o olhar fixo no espaço, e o capuchinho prosseguiu, com mais paixão ainda:
— Não podemos dizer a todos os franceses: “A Inglaterra é nossa inimiga. Apóia os nossos huguenotes para mais facilmente dividir e destruir a França”. É essa a intenção da Inglaterra, mas os huguenotes não querem dar ouvidos. Acima da França está a heresia. Nãó odeiam o seu inimigo hereditário, que prometeu ajudá-los na lútâ contra os outros franceses e contra a Igreja. Não, tem que ser um inimigo mais próximo, uma facção que seja odiada tanto pelos católicos como pelos huguenotes. Tem que ser um inimigo mais fraco, que custe pouco ou quase nenhum sangue francês, mas que sirva para distrair o povo da guerra civil iminente.
— Um inimigo — murmurou o Cardeal — que, exaurindo a sede de sangue de católicos e huguenotes, traga tranquilidade à França e o fim pacífico do protestantismo. É, compreendo isso.
O capuchinho ficou calado. O Cardeal sorriu de novo e olhou para o Padre Joseph, que não conseguiu ler a expressão dos olhos do velho amigo.
— Mas nós não temos mouros — disse Richelieu, com um gesto cansado da mão.
O capuchinho aproximou-se mais e ficou à espera.
— Tem que ser um inimigo inocente e indefeso — continuou o Cardeal e soltou uma risada, ao mesmo tempo leve e terrível.
O capuchinho inclinou-se e murmurou:
— Mas nós não temos judeus.
Richelieu riu ainda mais alto, jogando para trás a cabeça, como se tomado por uma convulsão.
— Só um punhado de judeus! Existem milhares de franceses que nunca viram um judeu! Oh, não duvido da capacidade da Igreja de vestir um miserável judeu com a mais sinistra das roupagens, para tornar impotente um grande e perigoso exército de huguenotes, mesmo aqueles que nunca viram um judeu! Mas haverá judeus suficientes para isso, meu caro Joseph? Haverá bastante judeus na
França para satisfazer o instinto de mandância de cada francês? Ou teremos que importar alguns das Alemanhas, da Espanha, para fim tão nobre?
O rosto do capuchinho fechou-se, e o riso do Cardeal tornou- se quase histérico.
Passado um momento, o Cardeal disse, numa voz normal:
— Mandei construir um molhe atravessando o porto de La Rochelle. A ajuda inglesa está demorando. Quando essa nação monolítica resolver ajudar os seus amigos protestantes (e não é coincidência a ajuda inglesa demorar sempre?), o quebra-mar estará terminado e nenhum navio inglês poderá entrar no porto. Eu próprio pretendo combater contra os rochelenses e destruir para sempre esse antro de poluição.
Parecia subitamente revigorado, e endireitou-se na poltrona com o seu antigo aspecto de vitalidade. O capuchinho, aliviado mas ainda não tranquilizado, perguntou:
— Mas, e de Bouillon e o seu principado de Sedan? Que faremos, se ele permanecer intransigente e decidir ajudar os huguenotes a se rebelarem em toda a França? Ele é um homem terrível! Não teria sido melhor que ele, e não de Tremblant, houvesse sido morto?
— Ele está aguardando uma audiência neste exato momento — disse o Cardeal.
E pediu a Louis, que acabava de entrar, com seu rosto frio e sombrio, para fazer admitir o Duque de Bouillon.
O duque entrou, tão calmo, formal e alerta como de costume. Seus olhos encontraram os do Cardeal com calculada franqueza, ao mesmo tempo em que ele se curvava diante de Richelieu, cuja mão lânguida beijou com ar de profundo respeito. Seu rosto, belo e frio, transpirava autoconfiança e virilidade.
— O Duque de Buckingham morreu, conforme você deve saber — disse Richelieu.
— Uma calamidade — retrucou o duque, assumindo uma expressão de pena.
— Isso quer dizer que ele não trairá nem ajudará os seus correligionários huguenotes — observou o Cardeal.
O duque inclinou a cabeça, com ar pensativo, mas não comprometido.
— Às vezes me esqueço — continuou o Cardeal, com um sorriso. — Já foi católico, não, Monsieur le Duc? Pensa regressar ao seio da Santa Madre Igreja ou prefere manter o seu poder em Sedan?
O duque ficou alarmado. Não confiava no sorriso e no olhar irônico e penetrante do Cardeal. Sentou-se e não respondeu.
— Talvez valesse a pena pensar num retorno — continuou o Cardeal. — É verdade que teria de se submeter ao trono e à Igreja, perdendo o domínio autocrático sobre Sedan, onde é como um rei. Por outro lado, voltando para a Igreja e trazendo consigo a sua gente, estaria reforçando o poder de Sedan. Teria a autoridade da Igreja a apoiá-lo.
O duque franziu as sobrancelhas finas, e os seus olhos azuis fitaram o Cardeal. O coração batia-lhe com grande rapidez mas ele era um homem corajoso, egocentrista e seguro da própria força. Acabou sorrindo.
— Está pensando em abalar as minhas convicções religiosas, Monsenhor? — perguntou, com brandura.
Após um momento de silêncio, Richelieu devolveu-lhe o sorriso e deu de ombros.
— Presumo, então, que preferes o poder ilimitado que tem sobre Sedan a um poder limitado, concedido pela Igreja. Com- preendo-o. Admiro homens poderosos. Apenas não permito que eles me entravem o caminho.
O sorriso desaparecera-lhe, substituído por um ar de candura. O coração do duque pôs-se de novo a bater loucamente e ele empalideceu. Mas o seu olhar era calmo e direto.
O Cardeal levantou as mãos e deixou-as cair sobre os braços da poltrona.
— O Duque de Tremblant, conforme, sem dúvida, você já sabe, foi assassinado. . . por salteadores — disse Richelieu, com voz triste.
Fez-se silêncio no quarto. O duque remexéu-se na cadeira, mas o seu olhar tornou-se secreto e inflexível.
— Isso é outra calamidade — disse o duque, na sua voz calma e musical.
O seu corpo estava tenso. Apertou os joelhos com as mãos. O Padre Joseph aguardava, ao fundo, como uma fúria cor de fogo.
O Cardeal olhou para o espaço com ar pensativo.
— Eu amava de Tremblant. A sua morte deixa uma ferida profunda no meu coração. Gostaria de poder vingá-lo.
— Um homem poderoso, que lhe “entravava o caminho”? — observou suavemente o duque.
O Cardeal entrelaçou delicadamente os dedos e ficou a contemplá-los.
— É — suspirou, como que mergulhado em pensamentos.
Por fim, pareceu despertar. Lançou a de Bouillon um olhar terrível, mas sorridente.
— Nenhuma ajuda poderá chegar aos rochelenses — disse ele.
— E assim — observou de Bouillon — eles poderão ser derrotados com um mínimo de esforço, e a paz será restaurada.
— Não lamenta a conquista de La Rochelle, sendo você mesmo huguenote?
O duque ficou calado. Não tinha a certeza do objetivo daquela conversa, mas sentiu medo. Por fim, disse:
— Antes de mais nada, sou francês. Nunca desejaria uma guerra civil.
O Cardeal inclinou-se para ele, os olhos brilhantes e ameaçadores,
— Pensa, talvez, poder solicitar agora uma ajuda total dos ingleses, já que os rochelenses não mais precisarão dela?
Ao ouvir essas palavras, o duque soergueu-se da poltrona, agarrando-se aos seus braços para não cair. Deixou-se afundar de novo na poltrona e murmurou, por entre os lábios muito brancos:
— Já disse que não desejo a guerra civil.
Sua cabeça parecia estalar. Não obstante, continuou a encarar o Cardeal com ódio e expressão ameaçadora.
O Cardeal inclinou a cabeça e sorriu suavemente:
— Diz-se por aí que Monsieur le Duc não é um verdadeiro francês, que não tem amor pela França, apenas por si mesmo. Será isso uma calúnia, monsieur?
— É uma calúnia — respondeu o duque com voz firme e olhar ainda mais ameaçador.
— Ah! — murmurou o Cardeal. — Isso tira-me um peso de cima.
O duque não retrucou, mas a sua mão procurou instintivamente o punho da espada. Richelieu notou-lhe o gesto, e o seu sorriso aumentou. Estava agora excitado, cheio de ódio e poder.
— Tenho uma sugestão para lhe fazer — disse ele, ainda num tom de voz pensativo. — Sugiro que Monsieur le Duc saia imediatamente de Paris e volte para Sedan. Sugiro que despache os emissários ingleses que o esperam no seu château de Sedan e lhes diga que não quer a ajuda deles, que decidiu não erguer a mão contra a França.
O sangue subiu às faces de de Bouillon. Parecia não poder respirar, como se estivesse itt extremis. Olhou para o Cardeal como uma serpente venenosa, despertada do seu sono para matar. Mas Richelieu não deu mostras de estar afetado pela extraordinária alteração que se processara no magnata. Continuou a murmurar, como se refletisse:
— Sugiro que Monsieur le Duc, após se retirar para Sedan, desista de conspirar, que administre a sua província em paz e obscuridade, que evite toda e qualquer ação, aberta ou escondida, contra o Estado. Sugiro que se liberte das suas ambições, que tomaram sua alma como um bando de diabos.
Ergueu um pouco a voz:
— Por outras palavras, sugiro que monsieur se exile imediatamente e não tenha mais contatos com os ingleses.
O duque pôs-se de pé com o cenho carregado e os olhos dar- dejantes. Via-se que estava fora de si.
— E — perguntou ele, quase gritando —, se eu não seguir as suas sugestões?
O Cardeal estendeu a mão para uma mesa próxima e levantou uma folha de papel, que contemplou com visível prazer, murmurando para si mesmo e assentindo com a cabeça. Por fim, olhou para de Bouillon.
— Tenho aqui uma dupla ordem de prisão. A primeira, pelo assassinato do Duque de Tremblant, muito amado do povo da França, e a segunda, por conspiração contra o Estado. Desta última acusação, talvez consigam se livrar, após uma longa estada na Bastilha, que, podem estar certos, não é um lugar nada agradável. Mas da primeira não se poderão livrar.
O duque estava louco de raiva. Não conseguiu falar. O sangue arroxeara-lhe o rosto orgulhoso e aristocrático. Ergueu a mão e apontou para o Cardeal.
— Monsenhor, é chegado o momento de falar francamente. Consentiu no afastamento do Duque de Tremblant. Sem o seu consentimento, isto nunca teria acontecido!
O Cardeal não perdeu a calma. Continuou a sorrir.
— Monsieur le Duc terá de provar isso e verá que é impossível. Mas eu tenho uma testemunha que pode provar que o duque foi morto por sua ordem. Essa testemunha foi ontem trazida à minha presença.
O duque agarrou-se às costas da poltrona, para não cair.
— Não houve testemunhas! — exclamou.
— Desgraçadamente para você, houve. Monsieur le Duc revelou-se infeliz na escolha dos assassinos. Parece que eles falaram demais com alguém que lhe era dedicado.
Com expressão assustada, o duque repassou mentalmente uma lista de nomes. De repente, estremeceu, recordando que havia dias não via de Brisson, o homem em quem mais confiava. Não se preocupara, pensando que de Brisson andasse atrás de alguma soubrette. Mas agora lembrava-se do rosto alterado do homem, dos seus silêncios, da sua palidez. Cerrou os punhos.
— Não é possível! — murmurou.
— A testemunha — disse o Cardeal, suavemente — está em lugar seguro. Não tente descobri-lo e matá-lo, meu caro duque. Ele já prestou depoimento. Contou toda a história a cavalheiros da maior confiança e, depois a mim, também na presença de testemunhas. O dossiê está num lugar fora do seu alcance. Quem o leu mal pôde acreditar.
O duque compreendeu que era o fim das suas ambições. Olhou, impotente, para o Cardeal.
— Não tenho a certeza de que monsieur seguirá fielmente as minhas sugestões. Seria, porém, uma pena se não as seguisse. Entrementes, uma demora por parte de monsieur será de grande ajuda para nós.
Fez uma pausa, recostou-se na poltrona e fechou os olhos.
— Isso é tudo.
Quase cambaleando, apesar dos esforços para se controlar, o duque saiu dos aposentos do Cardeal. Só quando entrou no seu hotel é que deu largas à sua frustração, ao seu ódio e ao seu desespero.
Capítulo XXXVI
Um mal estranho tomara conta de Louis de Richepin, como se fosse uma pestilência da mente. O seu exterior frio e fleumático sempre fora um invólucro glacial, debaixo do qual se ocultavam paixões violentas e desordenadas. Ele sempre fora como um prisioneiro por trás de paredes silenciosas e cobertas de gelo. Há homens que nascem para a solidão e há os que são condenados a ela, seja por circunstâncias adversas, seja pela sua própria natureza. Louis de Richepin era uma curiosa vítima de ambas as alternativas. Vaidoso, orgulhoso e altaneiro, sofria as consequências desses defeitos sobre um temperamento ultra-sensível e desconfiado. As suas atitudes eram revoltantes, provocavam raiva, quando não intimidavam. O observador pouco atento não ouvia o gemido por trás das palavras medidas e frias, nem via a mão estendida por trás dos olhos indiferentes. Ninguém suspeitava que o temor de ser repelido, uma espantosa falta de compreensão dos outros homens e um medo horrível fossem as pedras do muro que o separava da humanidade.
Cumpria os seus deveres com a meticulosidade de sempre, falava como de costume, movia-se como de hábito. Mas nada vibrava dentro dele, daquela sepultura negra e vazia, que dia a dia ficava mais funda e larga, à medida que as lavas no seu interior esfriavam e se transformavam em cinzas. Sem nunca ter procurado a companhia dos outros, apesar de ser isso o que mais desejava, evitava agora ao máximo qualquer contato com outros homens. Antes, deleitara-se em discutir sobre assuntos da Igreja com o Cardeal e outros eruditos jesuítas. Agora, no meio dessas discussões, uma náusea lhe subia pela garganta, obrigando-o a fugir para não vomitar. Não ia mais ao Bois de Boulogne para ver Marguerite de Tremblant, pois da última vez a náusea fora tão forte, que ele tivera de deixá-la sem mais nem menos.
Ninguém teria suspeitado, ou se importado, de que outrora ele houvesse sentido uma alegria pura na mais simples das manifestações da natureza, que uma brisa perfumada tivesse tido o poder de mergulhá-lo num tímido êxtase, que muitas vezes a mera passagem de uma nuvem prateada pela face da lua lhe trouxesse lágrimas aos olhos. E ninguém sabia que ele podia contemplar todas as coisas belas com os olhos vidrados de um morto, sem que o seu coração reagisse. O prisioneiro sob a concha de gelo estava morrendo. Não mais implorava ou pedia socorro, nem se importava se o socorro viria ou não. As vezes, ficava horas sentado, com a cabeça nas mãos, cônscio apenas de uma dor vaga e tão vasta quanto a eternidade.
O cerco de La Rochelle, seu mais caro desejo, ia ter início, seus maiores ódios iam ter vazão. No entanto, não conseguia interessar-se por nada. Havia nele o instinto do animal que morre: arrastar-se para um lugar escuro e solitário e expirar sem ruído. Nas poucas ocasiões em que sentia fúria, era a fúria mecânica de uma tormenta impessoal, ou a explosão de um homem atormentado além do suportável, que ataca cegamente, como um cão ferido morde sem ver a quem.
Passava horas de joelhos, não orando, e sim suportando, os olhos vazios fixos no crucifixo, e da sua alma se evolava a névoa fina das cinzas que sopravam à sua volta. Não recebia consolo e nem o esperava. O vazio aumentava. Ele esquecia-se de tudo.
Por vezes, o terror tomava conta dele, forçando-o a agir e a falar, pois sabia, instintivamente, que a sua carne acabaria ultrapassando os limites do suportável e ela enlouqueceria ou morreria. Mas esses esforços para galgar a longa vertente em direção à luz o exauriam. Por fim, não se importava mais em atingir, ou não, a luz.
Paris inteira estava agora convulsionada pela trágica e misteriosa morte do Duque de Tremblant. O seu corpo fora levado de volta a casa, e ele fora enterrado ao lado dos seus ilustres antepassados. Madame de Tremblant estava arrasada, mas não chorava. As filhas ajoelharam-se em volta dela, soluçando, na penumbra azulada de Notre Dame, mas ela ficara olhando em frente, com os olhos secos. A grande catedral estava superlotada. Louis de Richepin não assistira a nenhuma das missas por alma do falecido.
Algumas semanas mais tarde, porém, sentira-se tomado por um impulso irresistível e escrevera uma carta a Marguerite de Tremblant, a quem não via fazia já bastante tempo. Uma carta fria mas incoerente, na qual expressava pesar pelo sofrimento dela e a aconselhava a procurar conforto nas consolações espirituais. À medida que escrevia, a incoerência crescia, tornando a letra ilegível. Ao terminar, esquecera-se de que fora a ela que escrevera e ficara a olhar estupidamente para a carta. Seu corpo inteiro tremia e fora obrigado a se jogar na cama e a ficar horas deitado, os olhos fixos na parede.
No dia seguinte, um mensageiro trouxera-lhe a resposta da jovem. Louis revirara-a várias vezes nas mãos, até reunir coragem para abri-la. Só depois de algum tempo é que as palavras dela lhe penetraram na mente.
Marguerite começara a carta sem saudações e terminara sem assinatura:
“Palavras de conforto, quando vindas de um amigo, são sempre recebidas com gratidão. Se esse amigo quiser comparecer num determinado lugar, seu conhecido, hoje à meia-noite, ouvirá pessoalmente a manifestação dessa gratidão e um último adeus”.
Após alguns minutos, o significado e a estranheza daquela missiva penetraram finalmente a consciência perplexa de Louis de Richepin. Sentiu uma vibração erguer-se, lentamente, do vazio do seu ser. Um terror misterioso começou a invadi-lo, junto com outra emoção, que ele julgara para sempre morta. A palavra “adeus” começou a delinear-se na sua mente em letras de fogo.
O terror foi aumentando com o passar do dia. Agora, já não se sentia vazio. Uma enorme inquietação, um pressentimento de agonia o assaltavam. Tudo pareceu escurecer e mudar, diante dos seus olhos. O longo intervalo de silêncio e vácuo em que se debatera ficava para trás dele, como um túnel negro, enquanto ele emergia para a tempestade que se formava. Não sentia senão a presença de Marguerite de Tremblant e exclamou para si mesmo:
— Como é possível que eu a tivesse esquecido, que eu não pensasse nela?
À medida que o pôr-do-sol se aproximava, a sua angústia aumentava. Lembrando-se da horrível agonia das últimas semanas, ele suspeitava, embora vagamente, de que, de alguma maneira, aquilo tivesse a ver com a jovem, que a sua recusa em vê-la se originava no medo, que na sua ausência estava a explicação do seu sofrimento. A intervalos, enquanto esperava pela noite, sentia-se preso de um êxtase que não ousava nomear. Mas o êxtase foi crescendo, alternado com desespero e angústia. Nunca, em toda a sua vida, se tinha confrontado a si mesmo e procurado compreender-se; fechara os olhos diante do espelho implacavelmente colocado à sua frente, temendo enfrentar a verdade. Agora, que a sua carne queimava, que o seu coração, pulsando, bombeava sangue para todas as suas veias e artérias, espalhando por todo o seu corpo um calor desconhecido, ele continuava não querendo compreender ou confessar.
Aquelas horas tormentosas não passariam nunca? Os dias vazios tinham-se escoado como nuvens, sem forma definida, mas agora eram como corredores intermináveis, que ele atravessava correndo, suando e impaciente. A vida estuava nele como unia corrente impetuosa e violenta, cuja forma ele mal podia suportar.
Às onze da noite, estava a postos no lugar onde tantas vezes se encontrara com Marguerite de Tremblant. Ouviu o melancólico ressoar do sino do campanário de St. Cloud, e todas as árvores do Bois pareceram vibrar com ele. O luar era pouco, mas bastava para abrir cavernas fantasmagóricas no bosque e pratear as pontas das árvores, recortando-as contra o negrume do céu. Ouviam-se estranhos ruídos, murmúrios e respirações arfantes; e sombras informes varriam a terra, da qual vinha um cheiro especial. Louis de Richepin, tremendo, apesar do calor que o invadia, sentia-se sozinho num universo abandonado.
Procurou acalmar-se, sentando-se nas pedras onde ele e Marguerite tantas vezes tinham se encontrado, nas quentes manhãs de verão. Mas as pedras pareceram-lhe em brasa. Pôs-se de pé, andando de um lado para o outro na clareira negra formada pelas árvores circundantes, sentindo as folhas secas estalarem debaixo dos pés e o ar fresco da noite soprar-lhe no rosto quente e atormentado. De vez em quando, gemia baixinho e retorcia as mãos. Agora, as árvores tinham um som fustigante ao vento, e, das profundezas da floresta, chegava o canto de um pássaro melancólico, inquieto e insone. Uma ou duas vezes ele viu os olhos fosforescentes de pequenos animais, contemplando-o dentro da escuridão, e teve a impressão de que o olhavam com maldade. Formas pálidas, semelhantes a aparições, flutuavam através das aleias, e ele estremeceu de medo supersticioso. Paris dormia, atrás dele. Não se ouvia nem o rodar de uma carruagem sobre as ruas empedradas, e nem o ruído dos cascos de um cavalo perturbava aquele silêncio.
À medida que se aproximava a meia-noite, uma horrível agonia tomava conta da sua mente e da sua alma. O sangue latejava- lhe no cérebro, pulsava-lhe com força no coração, fazia os seus joelhos tremerem e o suor brotar-lhe de todos os poros. Sentiu-se arrastado para um clímax desconhecido e terrível. A quietude e a ne- grura à sua volta não o tranquilizavam. Sentia-se como se fosse o coração da floresta, inflamado a ponto de rebentar, capaz de incendiar aquelas árvores frondosas e pressagiadoras.
Não ouviu Marguerite de Tremblant se aproximar, quando as gargantas de ferro de St. Cloud apregoaram meia-noite, mas Louis teve a sensação de não estar só. Viu diante dele uma forma pálida e ovalada, e estacou. A lua saiu de trás de uma nuvem, e ele, aos pálidos raios de luz por ela projetados, distinguiu a silhueta da jovem, avançando para ele, toda vestida de preto, com um véu de luto em volta da cabeça. Parou uns dois passos diante de Louis, e as suas mãos, entrelaçadas, brilhavam como mármore. Ele não lhe podia ver o rosto, mas sentia que o seu tormento estava refletido na expressão e no coração dela, e, quando a agarrou, com um som de estrangulada violência, e a apertou nos braços, foi mais um gesto de compaixão e desespero do que de amor. O coração dele batia contra o dela, na mesma língua de dor e sofrimento, e os braços macios e brancos, em volta do seu pescoço, pareciam pedir socorro.
Unidos no sofrimento, abraçaram-se em meio ao silêncio e à escuridão, calados e desesperados, procurando refúgio um no outro, um lugar onde se esconder e se abrigar das enormidades da vida. Louis curvou a cabeça e comprimiu com os lábios a boca trêmula da jovem, que lhe correspondeu com uma paixão febril. As mãos dela agarraram-lhe o tronco, por baixo das árvores. Ela deixou cair a cabeça no peito dele e começou a soluçar.
Louis ergueu-a nos braços e carregou-a para as pedras, onde se sentaram, bem juntos, a cabeça dela no ombro déle, os braços dele em volta dela.
A angústia começou a ceder, dando lugar a uma lassidão que os impedia de falar. A noite estava cada vez mais escura, e eles ouviam a sua respiração desordenada em meio ao silêncio e às trevas.
— Ah, Louis! — murmurou Marguerite, com voz triste e quase inaudível. — Temos que dizer adeus. Nem eu própria sei por que choro. Mas amanhã parto para o convento de Amiens, onde a minha tia é abadessa. Beije-me, Louis. Abrace-me. Faça-me esquecer tudo, por esta noite ao menos.
Ele beijou-a de novo e provou as lágrimas que lhe escorriam dos olhos. Abraçou-a como se ela estivesse se afogando, e uma ferida sangrenta se abriu no seu coração.
— Não — disse ele, por fim. — Você não pode me deixar, Marguerite.
Ouviu as próprias palavras e sentiu-se tomado de horror. Re- petiu-as mentalmente e disse, em voz alta:
— Sou padre.
Ela levou-lhe uma das mãos geladas aos lábios, como se para lhe abafar os soluços. Louis beijou-lhe o cabelo através do véu e puxou-a para ele, soluçando também, mas sem lágrimas, como se não pudesse suportar o sofrimento que sentia.
De repente, a tortura e o vazio de sua vida surgiram diante dele em visões iluminadas pelo fogo do inferno. De repente, todas as horas terríveis de dúvida, ódio, fúria, loucura, solidão e desejo se juntaram numa conflagração devoradora. Sentiu-se morrer. Caiu de joelhos diante da jovem. Encostou a cabeça no seu colo, sentindo- lhe o calor das coxas sob a face. Abraçou-a desesperadamente. Por um instante, as mãos dela seguraram-lhe a cabeça, como que a puxá-la para ela, e depois deixaram-na cair, enquanto Marguerite fitava, imóvel e calada, a escuridão.
Louis começou a falar, numa voz rouca e entrecortada, a cabeça rolando, de um lado para o outro, no colo dela:
— Tenha pena de mim, Marguerite! Você sabe que a amo, não? Temos nos encontrado aqui, e para mim tem sido um sonho. Para você, o que tem sido? Nada, eu sei. Mas esses encontros têm me dado felicidade. Sabe que eu nunca fui feliz, Marguerite? Sabe que nunca houve nada para mim no mundo, em todos estes anos, senão desejo e dor, solidão e tristeza, dúvida e medo? Quem ligou para mim, senão você?
— Sabe por que me tornei padre, minha querida? Nunca tive coragem de procurar saber, até agora! Procurava paz na Igreja, uma tranquilidade que não me exigisse pensar, porque nada para mim tinha valor no mundo e na vida. Nunca tive senão repúdio, desdém, desprezo. Nunca ninguém ligou para mim, senão você!
Fez uma pausa. A sua voz parecia vir diretamente do inferno da sua alma. Marguerite estremeceu. Olhou para ele, e as suas mãos alisaram-lhe as faces, num gesto de compreensão.
Agora, a voz dele alteava-se na crista da sua crescente agonia, como se finalmente as comportas tivessem cedido e o sofrimento represado saísse aos borbotões:
— Que tem sido a Igreja para mim? Só agora percebo claramente! Por que não me apercebi antes? Nunca encontrei paz nela, Marguerite, porque não há Deus! Só o demônio existe, só existe o Mal no mundo! Só encontrei rostos malévolos, na Igreja, os mesmos rostos malévolos do resto do universo. Escutei muitas intrigas, dizendo a mim mesmo que eram intrigas a serviço de Deus. Mas não existe Deus, minha querida. Existe apenas o nada, uma treva eterna, em meio à qual estamos perdidos.
Aquelas palavras estranhas e incoerentes, saídas dos seus lábios, enchiam a floresta de murmúrios e gritos incompreensíveis. Marguerite estremeceu mais uma vez. Um terror infinito tomou conta dela. Segurou-lhe a cabeça e puxou-a para o seu peito, chorando alto. Mas, apesar da sua juventude e da sua inocência, ela sabia que ele mal se dava conta da sua presença, exceto como um canal através do qual a sua tortura encontrava, finalmente, expressão, após uma vida inteira de confusão e sofrimento. E, apesar da sua inexperiência, sentiu uma enorme ternura, como se uma multidão de rostos e formas terríveis os rodeasse, ali, na floresta, para ouvir aquelas revelações, prontos a se vingar de quem ousara, finalmente, falar do fundo da sua alma.
— Oh, Marguerite! — exclamou ele. — Onde é que um homem se pode refugiar? Onde existem esperança, luz e refúgio, neste universo de horror? Olhamos uns para os outros e nos perguntamos: será que existe neste homem, sob o seu rosto tranquilo e atrás das suas palavras mentirosas, o mesmo medo que há em mim? À mesma sensação de mal e vazio, de escuridão e morte, de dor e desespero? Quem pode saber que ódios inspiram um homem contra o outro, já que não ousamos falar, já que cultivamos o segredo? Marguerite, você sabia que eu sempre odiei os outros homens por causa do meu sofrimento? E agora sei que nos odiamos uns aos outros devido a essa agonia, a essa certeza de que não existe Deus e de que estamos todos dentro de um poço do qual não podemos escapar!
O calor do inocente busto dela, sob o corpete preto, inflamou-lhe, finalmente, a carne fria. Sentiu as mãos dela, umas mãos tão pequenas e suaves, contra o seu rosto, como se fosse uma mãe acarinhando uma criança machucada.
— Existe o amor — murmurou ela. — Oh, meu querido, sempre existe o amor. E quem sabe se esse amor não é Deus?
Ela sentiu dentro de si a nobreza de sofrer por outra pessoa e a força desse sofrimento. Desejava apenas dar àquele homem um momento de paz, um momento de alívio. Não podia encontrar palavras que não fossem gastas. Onde existiriam palavras que ainda valessem algo, que não fossem piegas e sem significação? O coração dela parecia uma chaga aberta de amor. e compaixão; aos seus lábios não acorriam senão palavras ocas; da sua garganta não vinham senão murmúrios incoerentes. Seus olhos estavam marejados de lágrimas e ela pôs-se a soluçar.
Mas ele a ouvira. Continuou rígido, mas ficou calado e puxou-a para mais perto dele. Agora, uma onda dourada fluía dela para ele, como se a jovem fosse uma nascente, uma fonte de vida. A onda luminosa engolfou-a, atraiu-o para ela, para além das barreiras da carne. Marguerite sentiu que as suas almas se uniam, e a alegria invadiu-a.
— Não — disse ela, numa voz suave e firme. — A morte não existe, meu querido. Não existem trevas, senão nos nossos olhos. Existe Deus; sim, sempre à espera, embora não o possamos ver.
Não sabia se ele tinha escutado, até que, por fim, ele disse:
— Estou cansado. Quero morrer, descansar. Não quero saber, nem sentir, nem existir. Estou farto de Deus. E Ele está farto de nós.
— Descanse — murmurou ela. — Descanse, um pouco que seja.
Embalou-o nos seus braços jovens, ninando-o, murmurando palavras de amor contra a testa dele, contra os seus cabelos. Seus olhos brilhavam na escuridão. Sorriu, com ternura e pena infinitas. Percebeu o cansaço mortal que havia nele e sentiu-se capaz de o vencer. A sua alegria aumentou.
— Tenha piedade de mim, Marguerite — disse Louis, com voz rouca. — Amo-a como nunca amei coisa alguma neste mundo.
— Eu também — disse ela.
Ficou sentada, em silêncio, enquanto as mãos dele lhe subiam para os seios e lhe percorriam o corpo. Agora, a escuridão da floresta parecia vibrar de vida. Ela não se mexeu. Ficou imóvel, lembrando uma imagem, reluzente e estática, de fogo, amor, desejo e compaixão. Luas rolavam diante dos seus olhos; ruídos estranhos, mas harmoniosos, zumbiam-lhe nos ouvidos. Sentiu, debaixo dela, a terra macia e a grama olorosa. Viu os olhos de Louis em cima dela, ardendo com uma luz mais forte do que as trevas que os envolviam. Soergueu-se e tomou-o nos seus braços. De repente, percebeu que o preço daquela vida, daquele êxtase e daquela alegria seria a morte. Mas sabia também que essa morte passaria como a noite passa, para dar lugar ao ressuscitar da manhã.
Não foi ela a seduzida. Uma paixão desesperada irrompeu nela, uma entrega que continha em si toda a eternidade. Ao se dar a ele, ela o redimia e lhe concedia a paz.
Havia menos desejo, naquela convulsiva posse, do que uma fome terrível de contato humano, uma sede de calor, que ele sempre sentira, sem se aperceber. A louca paixão que se apoderou dele era, primordialmente, o desejo de se libertar do isolamento e sair para a luz e a liberdade. Seu espírito estava obcecado por essa necessidade, daí o seu desejo e o seu frenesi. Parecia querer fun- dir-se nela e cobriu-lhe de beijos o busto, o pescoço, os braços e o cabelo, soluçando alto, como uma criança faminta. Marguerite sentiu-lhe o hálito quente contra a orelha e sorriu, na escuridão.
Finalmente exausto, Louis caiu imediatamente num sono profundo. Ôs débeis raios do luar penetraram a floresta e iluminaram- lhe o rosto. Estava quieto e tranquilo, com uma expressão de paz.
A floresta preparava-se para a chegada da manhã. A luz já se escondera por trás do horizonte do mundo. Ao nascente, o céu tornou-se cor de opala. Nas árvores, os pássaros começaram a pipilar de galho em galho. Não corria uma brisa, mas da terra vinha o mais doce e pungente dos perfumes, e o ar parecia cristalino.
Marguerite dormia sobre o peito do amante, as mãozinhas segurando ainda uma das mãos dele. Com o clarear do dia, ela sorriu e voltou-se para ele. Louis apoiou-se no cotovelo para melhor contemplá-la, a fim de encher os olhos e a alma com a visão dela. O véu preto desaparecera, perdera-se. Os cachos cor de cobre emolduravam-lhe o rosto, que parecia demasiado luminoso. Seus lábios entreabertos reluziam, e os seus cílios eram como franjas douradas sobre as suas faces. O corpete em desalinho revelara a suave brancura do seu colo e dos seus ombros, de um tom translúcido, de pérola.
— Meu amor — murmurou ele.
Agora, o desespero que havia nele fora substituído por uma grande mas confortadora tristeza, e por uma enorme sensação de paz. Não sentia vergonha e nem culpa, arrependimento ou remorso. Sobrepusera-se a essas coisas. Todo ele era ternura.
Mas, ao contemplar o frágil corpo da amada, teve o misterioso pressentimento de que a morte pairava sobre ela. Mas nem isso o desesperou. Era como se uma promessa, um juramento houvessem sido feitos. Pela primeira vez na vida, compreendeu o significado de Deus, da existência e da felicidade eterna.
Olhou em volta, e os seus sonhos pareceram-lhe demasiado vastos para poder expressá-los dentro dos estreitos confins dos pensamentos e das palavras.
Marguerite abriu os olhos e sorriu para ele. Louis tomou-a nos braços:
— Não me abandone — murmurou. — Não me abandone nunca!
— Nunca — prometeu ela. — Nunca!
Capítulo XXXVII
Pouco tempo antes, Paul de Vitry teria sorrido ao ouvir a história, contada por Arsène, da conversa entre Madame duPrès e de Pacilli, tomando-a por um exagero ditado pela imaginação portentosa do amigo. Mas agora ele ouvia tudo com espanto e só um pouco de dúvida. A experiência que tivera com a perfídia humana tornava-o quase pronto a acreditar em tudo.
— Vou voltar imediatamente a Chantilly — disse ele.
A perda daquela virtude que tanto o distinguira era mais evidente do que nunca. Suspirou.
— Mas talvez haja uma explicação. As vozes que você ouviu podem não ter sido de madame nem do padre. O mundo está cheio de gente que trama. . . Mas é estranho que eu não tenha recebido a sua carta.
— Essa mulher ainda está no seu château?
— Ainda.
— Pardieul Então, não há tempo a perder!
A força do hábito fez com que Paul abrisse a boca para acalmar Arsène, mas logo a fechou sem dizer palavra, e novas rugas apareceram no seu rosto pálido. Parecia muito cansado, só que o seu cansaço era espiritual, e não físico. Arsène franziu o sobrolho com impaciência. Não podia conceber que alguém pudesse ficar permanentemente afetado pela descoberta da maldade e da traição humanas. Ele, Arsène, soubera disso toda a vida e nunca essa certeza lhe roubara uma hora sequer de sono e nem o apetite! Ao contrário, dava à vida mais sabor. Só assim se podiam medir forças com ratos, doninhas e macacos, e ver quem era o melhor. Aos seus olhos, havia algo de desprezível na ingenuidade e no desapontamento de Paul.
Estavam sentados na pequena sala do hôtel parisiense de Paul, aquecendo os pés na lareira, pois a tarde esfriara. Paul já dera ordens ao valet para preparar tudo para a viagem a Chantilly. O fogo fazia com que as suas feições finas e delicadas parecessem desenhadas com sangue. Tinha as mãos pousadas nos braços da cadeira entalhada e havia nelas um abandono tocante. Começou a falar em voz baixa, sem olhar para Arsène:
— Encontramo-nos em La Rochelle, daqui a duas semanas?
— Certes! Vamos ter bastante o que fazer lá. Mas isso não me intimida. Ao contrário.
Apesar da tristeza que o invadia, Paul não pôde conter um sorriso. Mas continuou sem olhar para o amigo.
— Quer que eu leve algum recado ao seu velho amigo
Grandjean? Ou a Mademoiselle Cécile?
Arsène não respondeu logo, mas depois disse, numa- voz tensa:
— Dê lembranças minhas a ambos.
Paul continuou, como se Arsène não tivesse falado:
— Grandjean contou-me uma história muito estranha, a respeito dela. Sem dúvida também lhe contou, não?
— Não. Eu estava muito doente. E, ainda por cima, não estava interessado.
Paul não desistiu.
— Não obstante, trata-se de uma história muito estranha e que talvez lhe interesse.
Arsène ia repetir, secamente, que não lhe interessava, mas algo na insistência do amigo lhe despertou a curiosidade. Sentiu que havia alguma coisa que tinha a ver com ele.
Paul falou em meia voz, ainda olhando para o fogo:
— É uma família muito respeitável, de marinheiros bretões. Grandjean era capitão e dono de um pequeno navio mercante, que fazia a rota entre a França e a Inglaterra. Possuía, além disso, um grande pedaço de terra, herdado de gerações e gerações de antepassados. Tinha uma filha moça, que era o enlevo da sua vida e que ele criara sozinho, já que a mãe morrera de parto.
Paul ficou um momento calado, as mãos movendo-se sobre os braços da cadeira.
— Costumava levar Eloise, sua filha, consigo nas viagens. Mas, à medida que ela fora ficando mulher, ele passara a deixá-la em casa, para cuidar das coisas. Contou-me que ela era uma moça prendada, muito bonita e gentil. Fora educada no convento local e era muito querida da madre superiora e de todas as freiras.
Era uma história sem interesse, e só o estranho tom de voz de Paul impedia Arsène de bocejar, pois faltava-lhe a capacidade de se concentrar em tudo o que não lhe dissesse respeito.
— Mademoiselle Eloise acabou ficando noiva do imediato do barco de Grandjean. Iam se casar em junho. Infelizmente, o navio, tendo zarpado para uma viagem que deveria durar umas cinco semanas, perdeu-se durante uma tempestade e só conseguiram voltar à França dali a quase quatro meses, após terem sido dados como mortos. Mas o mais trágico é que o jovem imediato morrera realmente, varrido por uma onda.
Paul ficou longo tempo calado. Mas a atenção de Arsène fora despertada com a antecipação de tragédia.
— Parece — prosseguiu Paul, quase num sussuro — que o pároco local era um homem na força da vida. Havia muito, vinha reparando na jovem Eloise, na sua beleza cada vez maior e na sua inocência, e acabara seduzindo-a pouco tempo depois do pai e do noivo terem partido na malfadada viagem. O resultado não se fizera esperar, mas ele convencera a infeliz moça de que o seu casamento, que deveria ter lugar num futuro próximo, esconderia o mal que lhe fizera. E a jovem, que amava o noivo e não ousava pensar nos possíveis efeitos que aquilo poderia ter sobre ele, no seu desespero não pôde deixar de dar ouvidos ao padre.
Arsène ouvia aquela história sórdida com a testa enrugada e uma expressão de repugnância. Inclinou-se para Paul, que continuou, sem tirar os olhos do fogo:
— Imagine a volta do pai, com a trágica notícia da morte do noivo da filha! Imagine-se a cena entre ele e a pobre moça, quando ela lhe revelou tudo! Grandjean ficou fora de si. Foi nessa mesma noite procurar o padre e matou-o.
Arsène deixou escapar uma exclamação. Estava agora muito interressado na história.
— Voltou para junto da filha, que tentara suicidar-se. Conseguiu salvá-la, mas percebeu, desesperado, que tinham de fugir imediatamente. Imagine o que isso não significou para aquele homem, ter de abandonar a sua terra e o seu barco e fugir no meio da noite com uma filha entre a vida e a morte. Além do mais, não tinha tempo para preparar nada. Havia apenas uma pequena bolsa com dinheiro em casa e ele apanhou-a, juntamente com algumas roupas e um cavalo, no qual ambos montaram. Após uma viagem exaustiva, chegaram a Paris, onde se esconderam no anonimato das massas. Foi em Paris que a jovem Cécile nasceu e, pouco depois, sua jovem mãe morria.
Fez-se silêncio na sala. Arsène pusera-se de pé e, aproximan- do-se do fogo, encarou o amigo, que continuava desviando os olhos. Por fim, Arsène perguntou, numa voz alterada:
— Por que você me contou tudo isso?
O coração batia-lhe de maneira muito estranha e ele não podia esconder o seu aborrecimento.
Paul ergueu finalmente os olhos e fitou-os em Arsène, com uma expressão severa.
— Grandjean contou-me essa história quando eu lhe pedi a mão de Cécile.
— O quê? — exclamou Arsène, incrédulo. — Você, o Conde de Vitry! •
Paul levantou-se abruptamente e olhou para Arsène com desdém.
— Imaginei que você diria isso mesmo, Arsène! Mas esperava que algo tivesse mudado em você, que você se tivesse tornado um homem, uma criatura compreensiva. Parece que me enganei.
Arsène corou. Seus pensamentos eram confusos e raivosos. Retrucou, rancoroso:
— Mas isso não elimina o fato de você ser o Conde de Vitry.
E sentiu uma vergonha inexplicável, que ainda mais o aborreceu.
Paul afastou-se, como se não pudesse suportar olhar para o amigo.
— Qual pode ser o destino de um mundo que persiste nas suas vaidades mesquinhas e idiotas, nas suas ilusões de berço e posição, nobreza e privilégio? Em isolar-se dos seus semelhantes, com base no orgulho e na estupidez?
Arsène mordeu os lábios e não respondeu.
Paul continuou:
— Grandjean não me contou tudo isso para me fazer disistir. Achou que Cécile podia me olhar favoravelmente e queria que eu soubesse que ele vinha de uma família decente e que, consequentemente, Cécile poderia ser uma noiva à minha altura. — Sorriu tristemente. — Parece que o próprio Grandjean não é imune ao orgulho.
— Você esqueceu o padre! — disse Arsène, impelido por obscuras emoções, entre as quais o desejo de irritar o amigo e o seu próprio ciúme.
Paul voltou para ele o olhar grave.
— Não, não me esqueci do padre. Não me esqueci do seu crime. Talvez lhe interesse saber que ele era o bispo daquela diocese, e o filho bastardo do Duque d’Ormond.
— Do Duque d’Ormond? — exclamou Arsène, sem se conter e enrubescendo ainda mais.
Um sorriso amargo aflorou aos lábios de Paul, mas ele nada disse.
Arsène cerrou os punhos. Sentiu a cabeça rodar. Não ousava confessar sequer a si próprio os pensamentos vergonhosos que lhe ocorriam.
De repente, Paul pareceu perder o controle de si mesmo. Voltou-se para o amigo com uma expressão de paixão e desprezo nos olhos brilhantes.
— Vamos deixar de fingimento, Arsène! Vamos ser francos e falar como homens! Eu vi tudo, na casa do meu administrador. Cécile e você se amam, não é verdade?
Arsène não respondeu. Apenas virou a cabeça.
— Mesmo amando essa moça você casou com Mademoiselle de Tremblant. Confesso que eu próprio não via maneira de um homem como você se eximir, com honra, daquele casamento. Se eu estivesse na sua posição, talvez fosse mais sincero. Mas você é um homem de atitudes, enquanto eu talvez seja um sentimental.
Fez uma pausa, mas Arsène continuou calado. Paul perguntou, num tom de voz mais sereno:
— Que você pretende fazer agora?
Arsène retrucou, brutalmente:
— Que você quer que eu faça? Quer que eu seduza a moça?
Paul pousou-lhe as mãos nos ombros e disse:
— Vivemos num mundo nojento e terrível. A única luz que há nele é a do amor. Você vai para La Rochelle. Leve Cécile consigo. Não sei por que, mas tenho a certeza de que você nunca mais voltará a Paris. Quando você sair desta cidade, sairá de vez. Não sei se você vai morrer em La Rochelle, mas sei que não voltará aqui.
Arsène sentiu um arrepio supersticioso.
— Pense — disse Paul. — Isto não vai ser uma simples escaramuça. Os que combaterem por La Rochelle, se formos derrotados, serão para sempre proscritos na França. Você será obrigado a fugir e todos nós seremos caçados até a morte. Se formos derrotados, não haverá perdão. E algo me diz que vamos ser derrotados. Será esse o fim da luta pela liberdade do protestantismo na França? Não creio. Os sonhos de liberalismo persistirão nos corações dos homens. Mas talvez eles não venham a se realizar, senão daqui a muitos anos. Nesse meio tempo, os que participarem dessa luta estarão perdidos. Não haverá senão a morte ou o exílio para nós.
— Portanto, aconselho-o a esquecer tudo e a procurar ser feliz enquanto pode. Por que lhe digo isso? Porque você é meu amigo. Porque o amo. Porque amo Cécile.
Arsène sentou-se lentamente. Cobriu o rosto com as mãos e perguntou, numa voz abafada:
— Você está me aconselhando a oferecer a Cécile um futuro tão precário e perigoso?
— Um momento de felicidade é melhor do que uma vida inteira de segurança infeliz — disse Paul, com comovente sinceridade. — E, quem sabe? Vocês podem encontrar a paz, juntos, no exílio.
Arsène olhou para o amigo. Paul sorria, mas os seus olhos cinzentos estavam úmidos de ternura, renúncia e compaixão.
— Dentro de alguns dias, vá a Chantilly. Estarei à sua espera.
— Irei — prometeu Arsène, respirando profundamente.
Passado um momento, o seu rosto moreno brilhava de alegria e entusiasmo.
Capítulo XXXVIII
Mas essa euforia passou, depois que Arsène de despediu de Paul. A realidade invadiu-lhe inexoravelmente õs pensamentos, ao recordar as solenes e proféticas palavrás: do amigó. Arsène nunca pensara muito na possibilidade de morrer ou ser derrotado. Sempre se entregara ao combate com exaltação, alegria e vigor. Se algo o motivara, fora sempre o ódio pessoal ou o prazer que sentia em se opor a alguma coisa. Quando lhe diziam que estava se metendo na boca do lobo, ele ria, não por bravata, mas com incredulidade bem-humorada. Tal possibilidade nunca poderia ocorrer a Arsène de Richepin, ^ e não tinha inimigos pessoais, e cujo espírito, charme e audácia faziam com que até mesmo os inimigos em potencial sorrissem com simpatia, à sua aproximação. Falara muitas vezes em “perigo”, “desastre” e “morte”, mas nunca, nem sequer por um instante, ligara essas palavras à sua pessoa. O favorito do pai e o querido da Corte não podia ficar à mercê de contingências desconfortáveis e desagradáveis.
Grande parte da confusão que o assaltara depois de haver sido ferido e caído doente se devia à luta entre a convicção que ele tinha da sua invulnerabilidade natural, e a realidade, a constatação de que, pela primeira yez na vida, fora lançado no mundo tempestuoso dos problemas adultos. Até ali, agarrara-se à juventude como todos os homens que detestam a responsabilidade e a obrigação de pensar. Para isso, metera-se em tudo. De certa maneira, fora esse o segredo da sua invulnerabilidade, embora ele não o soubesse. Os homens sérios e responsáveis simplesmente não o tinham levado a sério, não acreditando que alguém como Arsène de Richepin pudesse ter a força de ânimo necessária para se meter em algo importante. E, no fundo do seu coração destemido e entusiasta, Arsène concordara com ele.
Mas agora, para seu espanto, Arsène descobrira que estava num território perigoso, para o qual fora atraído pela sua natural exuberância. Até Paul lhe ter falado, na noite anterior, aquelas palavras graves e proféticas, ele ainda se sentira invulnerável, como se tomasse parte num excitante melodrama. Mas agora via a morte, o exílio e o desastre diante de si, com‘ cores violentas e implacáveis. Em várias ocasiões, seu pai lhe tinha falado nessas coisas, mas ele sempre se mostrara impaciente, como se fossem manias de velho senil, declarando com soberba que nenhuma dessas contingências o induziria jamais a se omitir. Agora, horrorizado, compreendia que Arsène de Richepin não era invulnerável.
Não que tivesse medo, mas toda a sua vida recuara de tudo quanto fosse desagradável ou inexorável, e agora via-se confrontando com ambas as possibilidades.
Dirigiu-se ao seu quarto, trancou a porta e sentou-se a meditar profundamente, pela primeira vez em toda a sua existência. Não era fácil. Pestanejava, como se uma luz implacável o ofuscasse e ele não pudesse recuar. Todas as suas nobres intenções desapareceram, como sempre acontece quando um homem desperta para a maturidade. Só uma inquebrantável decisão é o espírito do dever permaneceram. Não podia recuar porque, aos vinte e oito anos, tornara-se, finalmente, um homem. Rompera o casulo colorido da ilusão e pisava, por fim, o chão negro e duro da realidade. O despertar não era agradável. A vida que até então levara, de alegria e irresponsabilidade, ficara decididamente para trás. Muitas vezes pensara em voltar a ela, mas agora sabia que isso jamais aconteceria.
Levantou-se e olhou em volta. Tudo mudara, porque ele mudara. Sentou-se à escrivaninha e compôs uma longa lista de coisas que precisava fazer antes de deixar Paris. Escreveu uma carta para o pai, uma carta simples e comovente, não sentimental, mas cheia de bondade e consolo. Escreveu uma carta a Clarisse, mas parou, assim que começou. Tinha realmente esquecido a sua jovem e encantadora esposa! Escreveu-lhe uma carta apaixonada, pedindo-lhe perdão e legando-lhe a maior parte dos seus bens e propriedades.
Sentiu uma estranha emoção, ao se lembrar, de repente, do irmão. Não sentia mais ódio por ele, apenas compaixão. Implorava-lhe perdão por qualquer gesto impulsivo ou qualquer demonstração de insensibilidade de sua parte. Deixara o pai aos seus cuidados.
Quando terminou, sentiu-se como um homem às vésperas de embarcar para uma viagem da qual sabe que não voltará, ou como alguém atacado de uma doença fatal. Sentia-se nauseado, e descobriu que estava tremendo. Mas a sua coragem e determinação eram maiores do que nunca. Fechou as cartas à chave na escrivaninha e ficou muito tempo com a chave na mão.
Ouviu bater timidamente à porta do quarto e foi abrir. Clarisse, mais bela do que nunca, sorriu para ele, hesitante. Arsène puxou-a para dentro e beijou-a com ardor e sinceridade. Ela agarrou-se a ele, sorrindo através das lágrimas de gratidão. Depois, ele soltou-a, mas sem lhe largar as mãos.
— Meu amor — disse, gravemente, contemplando aqueles olhos azuis que o fitavam com adoração —, vou ser forçado a partir numa longa viagem. Na minha escrivaninha estão alguns papéis. Três semanas depois da minha partida, peço-lhe que abra a escrivaninha e entregue as cartas aos respectivos destinatários.
O rosto dela empalideceu. Atirou-se nos braços dele e abraçou-o com força, apesar dos esforços de Arsène para se desvencilhar.
— Não! — gritou ela. — Não vá, Arsène! Ou, se tiver que ir, leve-me com você!
Ele não pôde deixar de sorrir tristemente, ao ouvir aquelas palavras. A frívola e egoísta Clarisse, interessada apenas nas suas toaletes e nas intrigas da Corte, no meio da fortificada La Rochelle, com morte e a destruição pairando sobre ela! Mas, quando lhe olhou para o rosto, ficou espantado de ver nele abnegação, amor e decisão. Ela não sabia para onde ele ia, mas o coração lhe dizia que ele não voltaria.
Arsène sentiu-se desarmado. Nunca acreditara que ela o amasse ou fosse capaz de sentir amor. Fora um noivado de conveniência, da parte dela, e, da parte dele, baseado no desejo que sentia por Clarisse. Ambos eram amantes da dança e do prazer e contemplavam o casamento com indiferença, sabendo que mal se conheciam. O amor não entrara na coisa. Arsène estava profundamente comovido, mas também irritado. Aquela jovem não devia amá-lo, pois ele não a amava! Não fazia parte do plano dele que ela o amasse. Ela estava interferindo, balançando-lhe o coração quando ele menos queria. O seu egoísmo e a sua impaciência faziam com que ele sentisse uma grande irritação.
No entanto, ele não conseguia agir com a antiga insensibilidade, que o tinha ajudado quando se defrontara com contingências irritantes e inesperadas. Tinha pena dela, a par da exasperação que sentia.
Atraiu-a de novo para os seus braços, sentindo apenas tristeza, e não desejo. Disse-lhe, em tom confortador:
— Essas cartas de que eu falo, minha querida, contêm apenas algumas diretivas. Não posso levá-la comigo, porque você já mostrou não gostar das nossas propriedades.
Pensava dissuadi-la com aquela mentira, mas ela retrucou, ansiosamente:
— Ah, mas eu mudei muito, Arsène! Qualquer que seja o lugar, por mais horrível que seja, será maravilhoso, se eu estiver com você!
Ele mal podia acreditar. Tomou-lhe o rosto nas mãos e olhou- a bem nos olhos. A luz que emanava deles acabou por convencê-lo, para sua desgraça. Quando teria o amor nascido no coração daquela jovem fútil? Durante a sua breve e turbulenta vida de casados? Deus era testemunha de que ele nada fizera para isso!
Como a sua vida se complicara! Sentiu, de novo, ressentimento e irritação, só que agora, pela primeira vez na sua existência egoísta, esses sentimentos eram dirigidos contra si próprio. Paul referira-se, com desdém, a “um homem como ele”, mas agora Arsène compreendia que devia ter-se eximido do casamento, antes que fosse demasiado tarde. Faltara-lhe coragem para agir com frieza e objetividade, precisamente quando isso equivaleria a agir com justiça. Não podia deixar de sentir desprezo por si mesmo.
Disse, urgentemente:
— Clarisse, acredite em mim, quando lhe digo que é impossível levá-la comigo. Você precisa ter paciência. Deixo-a como dona desta casa e aos cuidados de meu pai. Sem dúvida você deve ter notado como ele está deprimido, desde o nosso regresso, e como uma doença misteriosa parece ter tomado conta dele. Você teria coragem de abandoná-lo, agora, que é sua filha? Deixo-lhe essa responsabilidade. Será que você vai me desapontar?
Falava com súbita inspiração, apelando para o egocentrismo da jovem, para sua sede de autoridade e importância. As lágrimas secaram-lhe nos olhos e ela ouviu-o com atenção, para depois dizer, com toda a formalidade:
— Nunca precisará me acusar, monsieur, de ter negligenciado os meus deveres de esposa.
Disse aquilo com grande dignidade, alisando o vestido e retocando os cachos louros. Fitou-o bem nos olhos, a cabeça erguida, fazendo com que ele a admirasse e, comovido, lhe levasse a mão aos lábios.
— Além do mais — continuou ela —, minha pobre irmã Marguerite está doente. Ia partir para o convento onde a nossa tia é madre superiora, mas agora a viagem foi indefinidamente adiada. Minha mãe está desnorteada. Precisa do meu apoio.
Arsène ficou triste com a notícia da doença de Marguerite, mas achou que o seu problema estava resolvido. Abraçou de novo a esposa, coisa em que ela consentiu, já sem a paixão de antes, apenas com uma nova dignidade.
Arsène deu-lhe as chaves da escrivaninha, após ela lhe ter prometido que não tocaria nas cartas antes do prazo combinado. Clarisse segurou as chaves na mão com expressão fria e ouviu atentamente as últimas instruções. Quando ela saiu do quarto, ele acompanhou-a com o olhar e um sorriso triste. Voltaria a ver aquela encantadora criança? Não saberia dizer. Sentiu pena, como sempre acontece quando a gente se despede de uma coisa bonita e desejável.
Lembrou-se de que tinha um último encargo, algo que lhe desagradava. Mas tinha empenhado a sua palavra. Vestindo-se da maneira menos conspícua possível, dirigiu-se a pé para a Rue du Vieux- Colombier, uma rua obscura e miserável, onde o Abade Mourion vivia.
O sol quente batia nos telhados cinzentos e vermelhos de Paris. O Sena cintilava, azul. Enquanto avançava pelos becos e ruelas, Arsène esquecia parcialmente o mau cheiro que vinha das sarjetas, a miséria e o barulho que o rodeavam, e sentia tristeza por ter, em breve, de sair daquela cidade congestionada, para onde talvez nunca mais voltasse. Sentia-se, de antemão, exilado. Pisava ruas imundas, era molestado por mendigos, vendedores ambulantes e vagabundos. Passava por entre crianças semidespidas e briguentas, no meio de carroças, mulheres bisbilhoteiras, barracas de feiras, e achava tudo aquilo infinitamente pitoresco e nostálgico. Mesmo quando uma mulher atirou, da janela para a sarjeta, os despejos de um urínol, por pouco não o atingindo, ele achou graça e riu. Ao ouvi-lo rir, a mulher olhou para baixo e riu também. Era uma moça bem-parecida, embora suja, com cabelos pretos e desgrenhados e olhos também negros. Gritou-lhe uma indecência bem-humorada, e Arsène respondeu no mesmo tom, para grande risota dela.
Pela primeira vez na sua vida, ele sentia-se irmão daquelas massas anônimas. Era como se lhes pertencesse. Amava-as, sabendo que talvez nunca mais as visse.
O fedor, o calor e a poeira envolveram-no. Passou por becos cada vez mais estreitos, em que se podia tocar com as mãos nas paredes do outro lado. Tropeçou nas sarjetas, escorrendo água pútrida e cheias de crianças imundas. Viu os rostos parados de mulheres famintas, olhando para ele das soleiras e das pequenas janelas das casas. Havia agora uma ameaça no ar, uma desesperança, uma violência escondida, pressagiadora de crimes, fome e bes- tilidade. Arsène já não estava achando divertido. Levou a mão, por baixo da capa, ao punho da espada. Mal podia respirar, pois o mau cheiro tornava o ar fétido. Tinha consciência de que olhos malévolos o seguiam, olhos em que não havia qualquer sentimento de humanidade, apenas ferocidade, sofrimento e fome. O fog da opressão e da desesperança envolveu-o mais profundamente. Havia no ar um clamor, que os ouvidos indiferentes não distinguiam, mas que era nitidamente percebido por Arsène. Sentiu um arrepio na espinha e olhou em volta, desconfiado.
As ruelas estavam cada vez mais cheias de lixo. As crianças já não brincavam; nelas. Sentavam-se juntos das sarjetas, quais animais esfomeados, procurando, nas águas sujas, catar algum pedaço de comida. Quando alguma delas encontrava algo de comer, as outras imediatamente lhe caíam em cima, com urros de fome, tentando tirar-lhe o bocado da mão, e rolavam todas na sujeira indescritível. Arsène estremeceu, procurando desviar os olhos. O coração batia- lhe de maneira sufocante.
O Abade Mourion morava num desses bairros miseráveis. Arsène teve dificuldade de lhe encontrar a casa, na qual nunca entrara. Teve de perguntar, gritando para os rostos fechados que o olhavam, antes que um homem apontasse, silenciosamente, para uma pobre casinha, no meio de um jardim despido. Ao se aproximar da casa, descobriu, alarmado, que estava sendo seguido por quase uma vintena de homens seminus e cheios de feridas, os olhos avermelhados brilhando nos rostos sujos. Havia algo de ameaçador na sua silenciosa insistência, no fato de eles o seguirem. À sua volta viam-se paredes escaqueiradas e sarjetas de onde saía um cheiro fétido, acentuado pelo calor. Arsène olhou para as caras qtíe’o seguiam e pareceu-lhe que não pertenciam a seres humanos, e sim a animais selvagens, cheios de desconfiança e prontos a atacar. Embora estivesse simplesmente vestido, o seu jeito, o seu andar, o seu modo de olhar tinham-no marcado.
Procurou amedrontá-los com um olhar imperioso, mas só conseguiu que eles apressassem o passo. Será que vou ser assaltado, assassinado?, pensou, tomado de medo. Acabaria ele, Arsène de Richepin, em pedaços numa sarjeta de Paris, onde nunca mais o encontrariam?
Com o coração batendo como louco, puxou da bolsa, abriu-a e atirou as moedas de ouro e prata, num movimento instintivo, para os homens. Havia agora mulheres entre eles, rotas, os cabelos negros e desgrenhados escorrendo-lhe pelos ombros, as mãos sujas ameaçadoramente fechadas.
As moedas ergueram-se no ar e caíram, tilintando, em meio ao perigoso silêncio, na sarjeta. Os homens acompanharam a trajetória das reluzentes peças de ouro e prata, com um olhar vazio e brilhante. Uma ou duas mulheres se precipitaram atrás delas, recolhendo-as com gritos exultantes. Mas, para espanto de Arsène, nenhum dos homens fez o menor movimento. Olharam um momento para as mulheres e logo voltaram a encarar Arsène com expressão selvagem.
Com urgência e espanto cada vez maior, Arsène agarrou na aldraba da porta do abade e bateu furiosamente. O som ecoou pelo beco silencioso, onde os raios quentes do sol mal penetravam. A multidão aproximou-se ainda mais. Arsène já’ podia sentir os eflú- vios nauseantes dos seus corpos sujos e ouvir-lhes a respiração ofegante, através dos lábios descoloridos e dos dentes podres. Alguém murmurou, então:
— lEle não é um gendarme.
E o reluzente círculo de olhos aproximou-se ainda mais, para melhor observá-lo.
A porta abriu-se um pouco, e o Abade Mourion espreitou através da abertura.
— Sou eu, Monsieur l’Abbé! — exclamou Arsène, cheio de pressa.
A porta abriu-se inteiramente e o abade exclamou, alegremente:
— Monsieur! Graças a Deus você veio!
Estendeu os braços para Arsène e abraçou-o calorosamente. Arsène olhou para trás, apreensivo. Mas a multidão acalmara-se. Alguns homens sorriam, embaraçados, coçando a cabeça. Outros, porém, privados da sua presa, não escondiam o desapontamento.
O abade convidou Arsène a entrar na sua pobre casa. Depois, olhando para a multidão, disse, suavemente:
— Está tudo bem, meus filhos. É um amigo muito querido.
Fechou a porta. A escuridão caiu sobre Arsène, que pestanejou, tentando acostumar-se à penumbra e à poeira reinantes no pequeno corredor. O abade puxou-o pelo braço e conduziu-o para um quarto quase nu, parecido com o do tugúrio onde François Grandjean vivera. Só que aqui o ambiente era dominado por um grande crucifixo, pendurado da parede cheia de fendas, por onde a umidade escorria.
Um pouco de luz penetrava por duas pequenas janelas gradea- das, perto do teto, e Arsène viu que o abade envelhecera muito, que parecia muito menor e mais encolhido, que a angústia e o sofrimento lhe tinham enrugado o rosto. Mas os grandes olhos, castanhos e luminosos, expressavam mais ternura do que nunca.
Sorriu para Arsène. Indicou o banco de madeira que havia perto da mesa tosca, e Arsène sentou-se, abalado com o incidente da multidão.
— Esse seu rebanho, Mousieur 1’Abbé — disse ele —, é um tanto ou quanto barulhento e perigoso. Confesso que temi pela minha vida. Estou certo de que, se não tivesse aberto logo a porta, eles me teriam estraçalhado.
Falava com desdém, procurando esconder o medo que sentira. Mas o abade, cujas mãos tremiam, não se apressou a pedir desculpas. Sentou-se junto de Arsène e olhou para ele com visível sofrimento. Por fim, disse:
— Monsieur, eles estão me guardando.
Espantado, Arsène perguntou:
— Guardando? E por quê?
O abade não respondeu. Passou as mãos calosas pelo rosto, como se estivesse muito cansado, e deu a impressão de ter encolhido ainda mais dentro da batina.
— Fui excomungado — murmurou.
— Excomungado?!
O abade deixou cair as mãos e olhou para Arsène com expressão angustiada.
— Monsieur, tenho rezado muito. Deus me ouviu e o mandou até aqui. Já lhe contarei tudo o que desejar saber.
Respirou fundo, como se lhe custasse. Arsène ficou à espera. Depois, num esforço para acalmar o velho abade, disse:
— Não esqueci a grande dívida que tenho com você, Monsieur 1’Abbé.
Uma sombra passou pelo rosto do ancião, e ele disse:
— O meu pobre Henri ainda mora comigo. Vivemos do que ele ganha, limpando as sarjetas das ruas elegantes de Paris. Tampouco temos sido esquecidos pelo meu querido amigo François. Uma vez por mês, ele nos manda um pacote de dinheiro.
Arsène ficou envergonhado e amaldiçoou-se por não se ter lembrado de ajudar o abade.
— Tudo isto vai acabar — prometeu. — Arrependo-me de ter atirado o dinheiro que trazia aos seus guardiães, Monsieur 1’Abbé. Mas diga-me de quanto precisa e lho mandarei, assim que chegar a casa. Por que não me avisou de que estava vivendo em tão extrema miséria?
— Não me deve nada, Monsieur de Richepin — retrucou o velho, com dignidade. Um rubor espalhou-se pelo seu rosto enrugado. — Não obstante, eu tinha a certeza de que acabaria vindo. Disse isso a Henri, que achava que você o tinha esquecido.
— Não o esqueci — disse Arsène, irritado por se ter esquecido. — Mas aconteceram muitas coisas. Além disso, acabei de me casar.
— Compreendo — disse o velho com voz branda e olhar súplice.
— Deixará imediatamente este horrível lugar. O mais tardar, esta noite. Vou dar-lhe o endereço de um amigo, que se encarregará de instalá-lo num lugar mais confortável. . .
A alegria desapareceu dos olhos do abade e ele pareceu mais desesperado do que nunca. Deitou a Arsène um olhar penetrante, como se procurasse julgá-lo.
— Isso é impossível — disse.
— E por quê?
Mas o velho limitou-se a olhar para ele mais atentamente, como se não estivesse indeciso.
— Não me disse por que foi excomungado, expulso da Igreja
— continuou Arsène, com impaciência. — É algum segredo, ou você confia em mim? Pode estar certo do meu interesse e da minha simpatia.
O abade ergueu a cabeça, como se procurasse escutar algo. Arsène repetiu o que dissera, mas o padre parecia não se dar conta do que o cercava. Levantou lentamente a mão, num gesto de quem pede silêncio. De algum canto do tugúrio veio o som de um gemido.
O abade levantou-se. Parecia mais alto, a silhueta emaciada dava a impressão de ser de ferro. Disse, solenemente, os olhos brilhando na penumbra:
— Monsieur, tenho que confiar em você. Rezei pedindo ajuda. Acredito que Deus o tenha mandado aqui. Talvez eu esteja enganado, mas tenho que confiar em você. Se me trair, ou aos outros, prometo-lhe que nunca mais terá paz, enquanto viver.
Embora o seu primeiro impulso fosse o de sentir-se afrontado por aquele comentário audacioso, Arsène pôs-se de pé diante do velho, o cenho franzido sobre o nariz aquilino, e disse, friamente:
— Pode ter a certeza, Monsieur 1’Abbé, de que não o trairei.
O velho fez-lhe um sinal e Arsène seguiu-o por outro corredor, cuja porta estava fechada a chave. O abade abriu-a e também a porta de outro quarto, que não tinha janela. Em cima de uma mesa via-se uma vela acesa. No chão, sobre uma enxerga de palha, debilmente iluminada pela luz de vela, jazia, encolhido e gemendo, um jovem.
Surpreso, Arsène não se apercebeu logo dos dois homens que guardavam o quarto e o rapaz. Quando os viu, estremeceu, pois o seu aspecto era tão feroz, tão ameaçador, que teria intimidado o mais corajoso dos homens. Esfarrapados, encurvados, mas altos, com longos cabelos negros caindo-lhes sobre os ombros, adagas à cinta e dentes à mostra, pareciam menos homens do que feras. Seus olhos pretos fitaram Arsène com selvageria, e ele viu que, em cima da mesa, perto da vela, havia um mosquete, carregado e pronto para ser usado.
O abade trancou a porta atrás de si e disse, com voz suave, para os guardas:
— Está tudo bem, meus filhos. Este aqui é um amigo, que Deus nos enviou para socorrer o nosso pobre Alphonse.
Os homens rosnaram, recuaram e voltaram a sentar-se no banco, junto da mesa, sem tirar os olhos de Arsène, que se virou para o abade com ar apreensivo:
— Posso saber o que vem a ser tudo isto?
Mas o abade aproximou-se da enxerga e ajoelhara-se ao seu lado. Arsène, olhando por cima do ombro dele, viu que o inválido era muito jovem, não devendo ter mais de dezenove anos, e estava horrivelmente ferido. Seu braço direito, moreno e nu, estava la- cerado em mais de dez lugares e coberto de trapos brancos, manchados de sangue. Na testa tinha uma grande ferida aberta, sobre a qual lhe caíam os cabelos negros e emaranhados. O peito estava nu, cheio de hematomas e aparentemente pisado. O rosto era pateticamente jovem. Apesar de inconsciente, gemia, os olhos meio abertos, os lábios sanguinolentos retorcidos de dor.
O abade ergueu a vela de cima da mesa e segurou-a, a fim de examinar o jovem. Tocou-lhe a testa escaldante e ferida, e suspirou profundamente. Mas disse, com voz calma:
— A febre parece ter abatido. Deus é grande. Esta pobre criança vai se salvar.
Fez o sinal-da-cruz sobre o rapaz, que pareceu sentir a presença de alguém, pois os seus gemidos diminuíram, e ele deu a impressão de tentar prestar atenção ou ouvir algo. Um leve sorriso aflorou-lhe aos lábios machucados. Suspirou como uma criança e instintivamente se chegou mais ao padre, que começara a chorar, as lágrimas escorrendo-lhe pelas faces. Os guardiães, esquecidos de Arsène, aproximaram-se e olharam por cima do ombro do abade. Um deles soluçou alto, e Arsène descobriu-lhe uma leve semelhança com o jovem.
Ouvindo aquele soluço, o padre levantou a cabeça e sorriu ternamente para o homem.
— Você fez o que devia, Jacques. Seu filho vai se salvar, pela graça de Deus.
Levantou-se, fez um sinal a Arsène e saíram os dois do quarto para o outro cômódo. O abade movia-se com crescente fraqueza, como se carregasse um enorme peso nos ombros. Olhou para Arsène com angústia:
— Durante duas semanas, esta criança esteve entre a vida e a morte. Vai se salvar, mas precisa ser retirada imediatamente daqui.
Sentou-se, apoiando as mãos trêmulas nos joelhos. A escassa luz que entrava punha-lhe um halo nos cabelos brancos. Disse, em voz muito baixa:
— Faz duas semanas, o senhorio deste quarteirão passou por aqui na sua carruagem, escoltado por seus lacaios. Você viu a miséria que reina neste bairro. De vez em quando, essa miséria suscita o prazer mórbido dos poderosos, dos opressores, que resolvem visitar os seus inquilinos, levados pelo desejo perverso de rir deles, de os desprezar.
Fez uma pausà e, erguendo a cabeça, olhou para Arsène com tal ira, com tal fúria, que o jovem recuou involuntariamente:
— Monsieur, alguma vez pensou, você e os outros iguais a você, no povo de Paris? No seu modo de pensar, o mundo consiste apenas nos nobres, nos privilegiados, no círculo estreito de parasitas, idiotas e intriguistas, no círculo corrupto de ladrões e opressores, que enxameiam a Corte. Alguma vez pensou aos milhões que vivem fora desse círculo? Alguma vez refletiu que eles não são bestas, não são animais, e sim criaturas feitãs à sua própria imagem, com coração e sangue e alma, com a mesma capacidade de sofrer, de sentir fome e desejos? São seus irmãos, da mesma carne que você, que sempre os tratou como se fossem menos do que cães, inferiores aos seus cavalos, porque não têm nomes importantes, títulos, terras ou poder! Que influência tiveram as doutrinas do Cristo humilde sobre você, desse Cristo que afirmou serem todos os homens irmãos, que os mais humildes não valem menos do que os mais poderosos? Que significam a caridade, a piedade, a justiça e a compaixão para você? Nada! São meras palavras ocas, faladas por padres gordos, pagos com o seu ouro, vestidos com as sedas, os veludos e as rendas que lhes deu, contra a promessa de que eles o protegeriam dos corpos suarentos dos seus irmãos, de que eles não lhes perturbariam o sono nem poriam em jogo os seus privilégios e o seu poderio! De que eles intimidariam esses milhões de seres humanos, ameaçando-os com o fogo do inferno, se ousassem revoltar-se e exigir o seu lugar ao sol, como homens de Deus que são!
Apontou um dedo trêmulo para Arsène, e a sua ira aumentou:
— Foi você, Monsieur de Richepin, que destruiu a Igreja e os seus servos, que lhe traiu o nome e lhe prostituiu a glória e a força, transformando-a num matadouro, que empesta as narinas dos homens. Era preciso tirar, aos desgraçados que você oprime, também a última esperança e levá-los a crer que o crucifixo não era um refúgio para eles, e sim um sinal de escravidão, da sua impotência e desesperança? Foi você que transformou o Cristo em opressor deles e, por causa disso, não terá perdão do Céu!
Cerrou os punhos e brandiu-os num acesso de fúria:
— Foi você quem ordenou que as chaves de São Pedro ja- zassem numa mão cheia de joias, que o homem, coroado com três coroas, não seja servo de Deus, humilde, pobre e misericordioso, e sim uma imagem dourada e sem vida, sentada numa cadeira entalhada, símbolo da nossa cobiça e ambição! Você comprou o vigário de Cristo, Monsieur de Richepin! E, comprando-o, comprou a sua própria condenação.
O pequeno quarto ecoava-lhe a voz forte e apaixonada. Arsène escutava, incapaz de se mexer, apanhado num pesadelo, no qual o seu coração batia como louco e os seus membros pareciam de chumbo. Não podia desviar os olhos daquele velho e encolhido abade, imbuído agora de força, autoridade e indignação.
O velho padre estendeu os braços, como se esperasse ser crucificado, os olhos erguidos numa expressão de agonia, como que implorando ajuda de um céu alienado e escondido.
— Monsieur, pode ter a certeza de que, desta imundície, desta lama, deste caos, deste sofrimento, desta fome e deste desespero, desta opressão e desta violência, desta amargura e desta ignorância se originará uma terrível revolta, que trará na sua esteira a morte e a fúria! E, quando essa revolta chegar, arrasará, como um incêndio ou uma inundação, tronos, reis, nobres, privilégios, padres e poder! Afogará os opressores do povo num mar de sangue. Até quando pensa que o povo aguentará, monsieur? Já aguentaram tanto tempo, essas criaturas sem nome, esses homens e essas mulheres sofredores, essas massas famintas, doentes e ignorantes! Aguentaram por tanto tempo, que Deus deve ter ensurdecido com os seus gritos e lhes foi feito sinal para, finalmente, se vingarem.
O abade agarrou-se ao banco, como se as pernas não tivessem mais forças para sustentá-lo. Deixou-se cair sobre ele e a cabeça pendeu-lhe sobre o peito. Chorou alto, como se a sua dor fosse impossível de suportar. Arsène deu um passo para ele, os pensamentos num caos, a compaixão estrangulando-o.
Por fim, o abade disse, numa voz mais baixa e rouca:
— Um desses, o senhorio, veio até aqui faz quinze dias, monsieur. A sua carruagem, correndo por estas ruelas, atropelou um garoto junto à sarjeta. As rodas passaram por cima do menino, aleijando-o. Os cavalos pisotearam-no. O senhorio e a sua escolta riram, como de uma piada impagável. Afinal de contas, as rodas e os cascos dos cavalos só tinham passado por cima de um filho da ralé!
— Este rapaz, este pobre Alphonse, ao ver aquilo, ficou louco. Dentro dele começou a arder o fogo que se lastrará por toda Paris, por toda a França, por todo o mundo. Pulou para o estribo da carruagem, arrancou o senhorio do assento, arrastou-o para a sarjeta e, antes que alguém pudesse interferir, matou-o a pancada.
— Conheço Alphonse desde que nasceu, monsieur. Um jovem inteligente, sensível, que confiava em mim. Correu a procurar refúgio aqui. Mas antes os lacaios caíram sobre ele, procurando chaciná-lo. Ele conseguiu livrar-se deles e, coberto de sangue, correu para cá. Desde então, está escondido aqui.
— Estamos bem guardados, conforme você viu. Os gendarmes estiveram aqui várias vezes, à procura de Alphonse, mas não ousaram invadir a casa. Os senhores estão ficando espertos. Preferem contemporizar, ameaçar, prometer, subornar, para ver se pegam Alphonse. Mas a paciência deles logo acabará. A todo momento espero a chegada de um destacamento, ao qual não teremos forças para resistir. Prevejo que muito sangue correrá por estas sarjetas. Mas sei que não vamos poder proteger Alphonse por muito tempo. A morte de muitos não bastará para salvá-lo.
— Meus próprios superiores vieram ter comigo, exigindo que eu entregasse Alphonse à misericórdia dos seus opressores. Recusei- me. Ameaçaram-se, tentaram convencer-me. Continuei me recusando. E assim, pelo crime de “interferir com a justiça e persistir no desafio aos que Deus colocou _acima de mim”, tiraram-me a autoridade como religioso e fui excomungado.
Levantou-se, aproximou-se de Arsène, agarrou-o pelo braço e disse, numa voz urgente, com palavras ansiosas:
— Monsieur, acredito que Deus o tenha mandado aqui. Você falou de uma dívida que tem comigo. Não me deve nada. Eu nada fiz. Mas, em nome dessa dívida imaginária, imploro-lhe que me ajude, que ajude este pobre jovem perseguido!
Muito emocionado, Arsène apertou a mão enrugada que o segurava.
— Monsieur 1’Abbé, não precisa dizer mais nada. Já pensei num modo de ajudá-lo. Hoje, à meia-noite, voltarei com alguns companheiros e levaremos Alphonse desta casa para um esconderijo, um lugar onde ninguém ousará entrar. Lá, ele convalescerá e depois talvez o levemos para fora da França.
Abraçou o velho, que chorava de emoção, e disse, com voz forte:
— Anime-se, meu amigo. Nada está perdido. Até à meia- noite. Entrementes, vou procurar os meus companheiros e combinar tudo.
Abraçado a ele, o padre extravasou em bênçãos toda a gratidão que sentia.
Exausto, mas cheio de esperança, o abade acompanhou-o pelas ruelas fétidas, Quando Arsène se despediu dele e olhou para trás, o velho ergueu mais uma vez a mão em muda bênção.
À meia-noite, Arsène voltou com vários membros do Les Blan- ches. Como ele, pertenciam à aristocracia, e Arsène não tinha muita certeza de que fossem simpatizar com alguém que tinha matado um nobre, de modo que lhes dissera tratar-se de um jovem huguenote, perseguido pelas suas convicções e pela tentativa de incitar os habitantes do seu bairro contra os padres.
Mas, quando chegou, ficou paralisado de horror. Todo o quarteirão ardia. A casa do abade fora destruída. Os becos estavam cheios de homens e mulheres em estado de choque, contemplando a espessa fumaça que saía do que restava das suas pobres casas. Gendarmes a cavalo, com espadas desembainhadas e pistolas em punho, encostavam as pessoas contra as paredes e davam ordens a urna turma de homens, encarregados de apagar o incêndio. Os cavalos refugavam, empinavam e relinchavam diante do fogo.
Passou-se algum tempo antes que Arsène conseguisse perguntar o que acontecera ao oficial dos gandarmes, que levou respeitosamente a mão ao chapéu e mostrou-se espantado diante daquele grupo armado de gentis-homens. Arsène ficou sabendo que, duas horas antes da sua chegada, um destacamento de gendarmes recebera ordens para invadir a casa do padre e entregar à polícia um assassino açoitado. O padre, entrincheirado com o sobrinho na casa guardada por homens e mulheres armados de paus e pedras, recusara-se a entregar o assassino. Os gendarmes tinham atacado e sido contra-atacados pelos miseráveis habitantes do bairro. Cinco gendarmes haviam sido mortos. Vários pobres-diabos tinham morrido. Fora de si, os gendarmes tinham posto fogo à casa, acreditando que a fumaça e as chamas forçariam o padre, o ferido, o sobrinho e os dois guardiães a sair. Mas parecia que eles tinham preferido morrer no incêndio.
Haviam morrido. Entrementes, o fogo alastrara-se por todo o quarteirão. Os animais haviam sido dominados. Isso era tudo, monsieur. Um deplorável incidente, mas o que se podia fazer com tal ralé?
Arsène olhou, atônito, para as chamas e para as caras desvairadas do povo. Uma sensação de medo começou, lentamente, a tomar conta dele, sobrepondo-se até mesmo à dor que sentia pela morte do heroico abade.
— Era um padre excomungado — continuou o oficial. — Mas tinha um sobrinho, jovem inteligente, que compreendia bem a insensatez do tio. Foi ele quem foi ter conosco, hoje, para nos avisar a hora em que a casa ficava menos guardada. Tínhamos oferecido uma grande recompensa, e ele resolveu, muito sensatamente, abiscoitá-la. Ia nos fazer um sinal de quando devíamos atacar. Mas, antes, ele entraria em casa, deixando as portas apenas encostadas, o que lhe era fácil, pois o tio confiava nele. Apareceu à janela e deu o sinal. Infelizmente, uma multidão já se reunira. Quando atacamos a casa, eles nos atacaram, com os tristes resultados que está vendo, monsieur. Fomos obrigados a pôr fogo à casa.
— Foi uma coisa horrível! O sobrinho chegou-se à porta, tentando fugir. Mas ú padre surgiu por trás dele, como um demônio. Sem dúvida, descobrira a participação do sobrinho na coisa. Agarrou o rapaz, puxou-o para trás, para as chamas, e trancou a porta. Vimos o rosto dele, por um instante... um rosto demoníaco, monsieur.
E o oficial; estremeceu.
— Meu Deus! — exclamou Arsène.
Seus companheiros, intrigados e alerta, rodearam-no, montados nos seus cavalos, e intimidando o capitão.
Mas Arsène olhou para a pira funerária do Abade Mourion, que sacrificara a própria vida e a vida do seu querido-sobrinho, num último ato de desafio heroico a um mundo cruel, a uma vida abjeta e a um destino sem esperança. Um desafio que nada trouxera de bom, que resultara inútil.
Mas, de repente, o coração de Arsène pareceu parar de bater. Teria realmente sido inútil? Ou teriam incêndios como aquele, sacrifícios de vidas como aquelas, força para ajudar a melhorar o mundo?
Capítulo XXXIX
Monsenhor de Pacilli sabia muito bem que os mais poderosos impulsos do coração humano têm origem no mal, que os homens têm uma inclinação natural para o ódio, a concupiscência- a avareza, a crueldade e a vingança. Certa vez, provara, após meticulosos cálculos matemáticos, baseados em exemplos da História, que seriam precisos mil dias para que mil padres piedosos e virtuosos conseguissem imbuir o coração de um único homem dos sentimentos cristãos de bondade, misericórdia, justiça e amor, de tal maneira que um grupo de sedutores levasse exatamente doze horas para dissuadi-lo dos seus anteriores ensinamentos.
— Mas, ao fim dessas doze horas, o homem, assistido pelos seus impulsos naturalmente maus, ficaria para sempre imune aos ensinamentos dos mil padres virtuosos e piedosos — concluíra sagazmente de Pacilli.
— Por conseguinte, o Príncipe das Trevas, sabendo que há um milênio e meio a raça humana vem sendo exposta ao cristianismo por apenas alguns curtos períodos, e nunca doutrinada pelos meus hipotéticos mil padres piedosos e virtuosos durante os mil dias igualmente hipotéticos, sabe que é necessária apenas uma hora de exortação ao mal para fazer com que um homem esqueça todos os ensinamentos cristãos e volte a ser o que era: uma besta furiosa, refocilando prazerosamente no mal, que é a sua natural condição espiritual.
Convicto como estava da força irrefutável do seu conhecimento da humanidade, ele não tinha dúvidas quanto ao resultado final da sua ação insidiosa junto dos camponeses que viviam e trabalhavam nas terras do Conde de Vitry. A sua mente, lógica e fria, estudava os efeitos da perfídia que semeara, com interesse científico. Seria necessária uma hora, uma semana ou um mês para se obter resultados? Calculando que a idade média dos camponeses era de trinta anos, que eles tinham, desde a infância, tido em média uma hora diária de doutrinação religiosa, deduziu que uma semana seria suficiente para fazer com que os camponeses revertessem ao seu temperamento normal. Mas, a a como os astrônomos calculam os desvios nos movimentos dos planetas, causados pela influência de outros planetas, assim de Pacilli fora forçado a calcular os desvios na conduta normal desses camponeses, causados pela benigna e nobre influência do Conde de Vitry. Além do mais, ainda de acordo com as teorias da astronomia, ele fora também compelido a compreender que, assim como os planetas diferem nos seus desvios em proporção ao seus pesos, também õs homens variam no grau de velocidade que levam para voltar à sua natureza normal, na proporção exata ao efeito que cada um deles sofre dos seus mestres. Alguns, ele percebia, voltariam bem depressa. Outros iriam mais devagar. Calculando cuidadosamente, utilizando-se de números lógicos e frios, chegou à conclusão de que dez dias bastariam, atraindo assim para a sua esfera de influência aqueles que levariam dois dias a voltar ao seu estado de perversidade natural, num total de doze dias.
Concluiu os seus cálculos sem cinismo, sem um único comentário azedo. Tratava-se de fatos matemáticos, que não exigiam reflexões amargas.
Mas, ao fim de dez dias, foi forçado a conceder que seriam precisos catorze dias. Refez as suas contas, e elas totalizaram novamente dez dias. Mas, apesar das contas, foram necessários mesmo catorze dias.
Ao fim desses catorze dias, ele conseguira seduzir até os mais devotados ao conde, os que mais dependiam dele e lhe tinham mais gratidão. Mesmo os mais velhos, que ainda se lembravam bem da anterior opressão e dos passados sofrimentos, acabaram sucumbindo em duas semanas. Mas de Pacilli estava irritado. Os números chegavam, inevitavelmente, a conclusões que nem Deus nem Satã podiam refutar. Por conseguinte, eles tinham que estar errados. Após duas intermináveis noites fazendo novos cálculos, ele concluiu que seriam necessários mil e quatro dias para que mil incansáveis e piedosos sacerdotes convencessem um único homem a agir segundo os ensinamentos de Cristo, em vez dos mil dias originais. Ah, então era isso! Calculando com base nesses novos números, o resultado foi de catorze dias. Nessa noite, ele dormiu satisfeito.
Deixou que se passassem os catorze dias. Afinal, da mesma forma que os vinhos, os ressentimentos precisam levar algum tempo para fermentar e adquirir força e calor. Ao fim de trinta dias, deixando uma margem para os tais desvios, ele tinha a certeza de què os camponeses estavam prontos. Acordou, essa manhã, sabendo que a sua missão estava cumprida.
Essa noite, o Conde de Vitry chegou ao seu château, acompanhado de Madame duPrès. Paul não tinha por hábito observar o semblante dos outros, à procura de indícios de maldade, traição ou rancor. Se o tivesse feito, teria notado que os criados estavam diferentes, que a atmosfera no château era pesada, que havia um brilho mau nos seus olhos, que eles murmuravam imprecações e brandiam punhos cerrados pelos corredores, que vários tinham cuspido à sua passagem.
Mas Madame duPrès sentiu todas essas coisas. Preocupada, irancou as portas do seu quarto e ficou deitada, os ouvidos alerta. Seria imaginação, ou havia mesmo barulho de passos e murmúrios no corredor? Não era uma tocha, aquele clarão no jardim? Levantou-se e foi até a janela. O que viu fê-la soltar um grito de pavor.
Os jardins tinham sido invadidos por uma horda de homens e mulheres, armados de paus e pedras. A luz das tochas iluminava-lhes os rostos. Na hora em que ela gritou, os que estavam mais próximos jogaram as tochas pelas janelas abertas e avançaram sobre o château, gritando insultos terríveis.
As portas não tardaram a ceder.
Capítulo XL
Monsenhor de Pacilli sabia que só existem duas espécies de homens cujas convicções não podem ser facilmente abaladas: os idiotas e os sábios. O idiota não tem capacidade para combater os argumentos e nem para refletir. Os sábios são, -geralmente, por demais egocêntricos para aceitar a lógica de um argumento contrário ao resultado final das suas exaustivas pesquisas.
Homem sagaz e brilhante, sutil e astuto, as conclusões a que chegara com respeito a Crequy e a François Grandjean teriam surpreendido outros menos perspicazes. Porque ele concluíra que Grandjean era um idiota, e Crequy, um sábio. Tentara, em diversas ocasiões, seduzir a ambos, mas todas as suas artimanhas tinham sido em vão. Grandjean, como tantos homens dignos, íntegros e honrados, infelizmente fizera calar imediatamente o padre, ao suspeitar que ele pretendia falar-lhe mal do Conde de Vitry. O velho mostrara-se indignado. Se fosse sábio, teria ouvido e, talvez, podido evitar uma terrível tragédia. De modo que, como todos os homens demasiado íntegros, demasiado rígidos, ele demonstrara uma completa falta de visão e de sutileza. Fosse ele o suficientemente sábio para ter, no seu caráter, um pouco de malícia e desonestidade, teria fingido dar ouvidos ao padre e escrito ao conde, para preveni-lo. Mas, na sua insensatez, nem sequer pensara nisso.
Crequy, o sábio, não fora procurado pelo padre depois daquela primeira abordagem na taberna. Porque, após longa meditação, de Pacilli chegara à conclusão de que aquele homem não odiava o conde. Ao contrário, amava-o e desejava protegê-lo. Consequentemente, dissera aos líderes do crescente movimento que não falassem do conde na taberna e avisassem os seus seguidores para não o fazer. Mas não explicara por quê.
Assim foi que Crequy, o sábio, e Grandjean, o estúpido, es- tavam quase que inteiramente alheios ao sentimento de fúria que crescia entre os camponeses. Mas, nos últimos dias, Crequy, com seu sexto sentido de camponês, começara a sentir um cheiro pes- tilento nos ventos que sopravam dos campos e vinhedos. Começara a investigar com muito cuidado, mas não encontrara nada. Não obstante, as suas suspeitas tinham aumentado, incluindo agora o padre.
Decidiu falar com o conde, da próxima vez que ele viesse.
— Mas — disse ele, com feroz desespero, para Roselle, sua sobrinha — aquele santo imbecil não vai me dar ouvidos. Vai-se lembrar de que eu sempre o preveni contra a ingratidão dessa ralé e vai rir na minha cara.
Como o conde e sua amante tinham chegado tarde da noite, o povoado não se apercebera do fato. Mas, depois de cearem, Madame duPrès mandara chamar um criado para levar um recado a de Pacilli. O padre, levantando-se da mesa sobre a qual escrevia, envol- vera-se na sua longa capa negra e fora, a coberto das trevas, bater de porta em porta. Sabia que os homens são mais vulneráveis à meia-noite, sobretudo quando subitamente tirados da cama.
Voltou para casa. Não fazia parte do seu plano testemunhar os resultados da sua sedição. Cumprira a sua tarefa. Terminara também o quinto dos seus volumosos livros. Faltavam apenas as últimas páginas. O restante já estava em Paris, nas mãos dos seus superiores. Começou a juntar os poucos pertences e a colocá-los num portemanteaux. Seu espírito ágil partiu para outras preocupações.
Uma ou duas vezes, ao olhar pelas janelas estreitas da casa, viu o furtivo e distante clarão das tochas, o rouco zumbir do povoado acordando. Deu de ombros. Já não estava interessado. De repente, porém, um pressentimento animal fez com que um calafrio o percorresse. Esgueirou-se para fora da casa e dirigiu-se, pelos fundos, para a pequena igreja, cujas portas estavam sempre abertas. Mas o pressentimento não o deixou. Correu os ferrolhos e deslizou para o altar, qual sombra negra iluminada pelo luar que entrava pelas janelas altas e pontudas.
Ficou diante do altar, olhando para a perpétua luz vermelha que o iluminava, sem acender nenhuma vela, o rosto pálido, semelhante a uma máscara, ao luar. Em que pensava ele, ali, diante do crucifixo? Ninguém saberia dizer. Mas o seu rosto foi ficando cada vez mais inescrutável, mais marmóreo de aspecto e de expressão.
Passado muito tempo, dirigiu-se para trás do altar e examinou uma porta pequena e pesada, aberta na parede. Utilizando-se da chave enferrujada que pendia da fechadura, abriu-a. No escuro viu uma série de degraus de pedra, que levavam a uma cripta vazia. Ouviu o escorrer de água e sentiu o cheiro fétido que vinha daquele lugar úmido e subterrâneo. Tapou depressa o nariz com o seu fino lenço de linho e fechou a porta, mas não a trancou, e examinou-a cuidadosamente. Era de madeira pesada, reforçada com ferro, e perfeitamente encaixada. Sentou-se perto dela, as mãos imóveis sobre os joelhos, e continuou a olhar, fixamente, como uma imagem de pedra, para o crucifixo. Ninguém o teria distinguido em meio ao negrume entrelaçado de prateado que adornava a igrejinha. A batina preta confundia-se com a escuridão, o rosto pálido parecia uma mancha de luar.
Paul de Vitry, mental e fisicamente exausto, deitara-se cedo. Madame, contrariamente aos seus hábitos, não o incomodara com suas eternas queixas. Ele estava farto dela e ela sabia disso. Evitava-a sempre que possível. Mas era bom demais para mandá-la embora com uma indenização em dinheiro, como outros homens faziam. Possuía a covardia própria das boas almas: não podia suportar a ideia de ferir outra pessoa, por mais tediosa, má ou repulsiva que fosse. Consolava-se com a esperança dè que ela também se fartasse dele e o abandonasse. Até então, essa esperança não se justificara. Ela agarrava-se a ele com teimosa tenacidade. Mas Paul sabia que nessa tenacidade não havia afeto, apenas avareza e ressentimento. Mesmo assim, esperava que ela acabasse se fartando da sua indiferença e procurasse outro pouso. Quando isso acontecesse, ele a dotaria com uma bela soma em dinheiro. Entrementes, ela persistia em se agarrar a ele e a não deixá-lo ter um momento de paz.
Desejou-lhe boa-noite com a sua costumeira gentileza e aconselhou-a a se deitar cedo, para se recuperar da cansativa viagem. Mas ela parecia relutar em deixá-lo. Seu belo rosto estava desa- costumadamente pálido. Toda ela demonstrava inquietação. Inventou pretextos para prendê-lo. Finalmente, cansado e levado pela tristeza crônica que ultimamente não o largava, despediu-se dela com mais secura do que era comum.
Ficou muito tempo deitado, olhando em frente, os olhos fixos nas sombras que o luar formava no teto, seguindo, mecanicamente, os movimentos dos cortinados, soprados pela brisa suave e perfumada da noite. Ficou ouvindo, sem realmente prestar atenção, o clamor dos grilos na grama úmida, do lado de fora das janelas. Um rouxinol cantou e o coração de Paul se contraiu num espasmo de angústia. Mas nenhum outro som rompeu as trevas enluaradas.
A lua continuou a sua trajetória para o oeste. As árvores começaram a balançar. Através da janela, Paul viu a cruz no campanário da igreja brilhar de repente, como se iluminada por um raio de luar. O vento trouxe até ele o cheiro de terra, de grama, de flores e árvores. Mas, estranhamente, o silêncio parecia aumentar.
As lágrimas afloraram de repente aos olhos fatigados de Paul, que os fechou, suspirando. O peso no seu coração tornou-se quase impossível de suportar. Todo o seu ser parecia engolfado pelo sofrimento, pelo desespero, pelo cansaço e por uma dor inexplicável. A existência tornara-se, para ele, um deserto seco e estéril, que ele tinha de atravessar, como um viajante que perde o rumo e se sente à beira da exaustão. Toda a esperança se fora da sua alma, toda a alegria inocente que sentira no fato de viver desaparecera para sempre. Perdera a fé nos seus semelhantes, essa fé nascida da sua ingenuidade e pureza de espírito, e, como acontece com pessoas assim, não havia consolo para ele, nenhuma filosofia cínica, nenhuma aceitação fatalista ou bem-humorada. Essa fé perdida em muitos homens engendraria ódio. Mas no coração de Paul não havia a semente do ódio. Ele só podia sentir pena e um desespero mortal. Para ele, todos os homens tinham se transformado em animais traiçoeiros, à procura de possíveis vítimas.
Perdera o amor. Amara a jovem Cécile Grandjean com uma paixão desconhecida da maioria dos homens. Outros podiam dizer para si mesmos: “Ora, ela não passa de uma camponesa obscura, igualzinha a milhares que há por aí”. Mas, para alguém tão inocente, tão profundo, tão ingênuo quanto Paul de Vitry, ela era única, não havia outra mulher como Cécile. Nunca ouvira falar no cínico aforismo de que todas as mulheres são iguais no escuro. Os apetites da carne nunca tinham sido muito fortes nele. O seu temperamento sensível, quase feminino na sua delicadeza, era capaz apenas de devoção e eterna fidelidade.
Sentia uma vontade enorme de fugir. Mas para onde? Não havia refúgio, nenhum lugar onde ele pudesse ter sossego.
Finalmente vencido pelo cansaço físico e mental, caiu num sono sobressaltado. De repente, abriu os olhos, Parecera-lhe ouvir um grito. Mas devia ser apenas um pesadelo. Voltou-se para o outro lado e procurou dormir de novo.
Nisso, ouviu como que um rugido. Devia ser o vento. Abriu novamente os olhos, já agora completamente desperto. O rugido aumentara, e, acima dele, ouviam-se gritos e vários estrondos. O luar desaparecera. Longas serpentinas de luz vermelha lambiam o teto do quarto, e Paul sentiu um súbito cheiro de fumaça, ao mesmo tempo em que ouvia gritos e passos no corredor e insultos em voz alta.
Pulou da cama, enfiando o robe por cima da camisola, correu para a porta e abriu-a. O corredor estava vazio, mas de todos os cantos saíam fumaça e um clarão vermelho. O andar de baixo do château estava cheio de homens e mulheres brandindo os punhos cerrados, os rostos suarentos avermelhados pelas chamas que lambiam as paredes, como se fossem rostos de demônios escapados do inferno. Das suas bocas saíam gritos, imprecações e uivos enlouquecidos. Muitos deles, no seu desvario, atiravam delicadas peças de porcelana e mobiliário contra as paredes, espatifando-as e esmagando com os pés o que restava. Outros arrancavam os cortinados das janelas. Outros ainda, tentando subir a estreita escada, se acotovelavam e empurravam, insultando-se mutuamente.
Essa foi a cena que os olhos incrédulos de Paul viram, ao se aproximar do alto da escada. Ficou como que petrificado, olhando para a multidão, que gritava e se comprimia em meio à fumaça. Quando o viram, um rugido diabólico e faminto "brotou-lhes das gargantas.
— Lá está o porco, o assassino, o mentiroso, o maldito opressor e herege! — gritaram as mulheres, estendendo as mãos para ele, como se fossem garras prontas para dilacerá-lo.
Paul ficou imóvel, olhando para baixo. Sentia a cabeça girar. Via aqueles rostos familiares, agora transformados em caras demoníacas. Encostou-se à parede, temendo cair. A cena, lá embaixo, dançava-lhe diante dos olhos: as paredes listradas do vermelho das chamas, a fumaça subindo em rolos, os rostos inflamados, os punhos cerrados. O calor sufocava-o. O barulho ensurdecia-o. Só podia ser um pesadelo, todo aquele horror! Decerto ele estava sonhando! Ouviu os gritos e os urros de bestas selvagens e não pôde acreditar. A sua mente recusava-se a aceitar tudo aquilo.
Alguém lhe roçou o cotovelo. Paul sacudiu a cabeça e viu Ma- dame duPrès perto dele, os negros cabelos caindo-lhe sobre os ombros. Vestia apenas a longa camisola de seda branca, que brilhava ao clarão vermelho das chamas. Através da seda, a sua carne branca reluzia, qual mármore através da neblina.
Louca de terror, ela não viu Paul ou, se o viu, mal se apercebeu da presença dele. De pé no alto da escada, estendeu os braços, em atitude súplice, para a multidão que, ao vê-la, fez uma pausa e ergueu os rostos congestionados na sua direção.
— Não! — gritou ela, incoerentemente. — Não era para ser assim! Não me prometeram que seria assim! Onde está o padre? Onde está o Padre de Pacilli? Por que ele não está aqui?
Desceu uns dois degraus, mas, ao ver a multidão novamente enfurecida, recuou e voltou precipitadamente para o lado de Paul, o rosto mortalmente pálido, os olhos desvairados, as mãos protegendo o peito.
— Onde está o padre? — gritou ela. — Fora daqui, ralé! Eu preciso descer, fugir! Tínhamos combinado que eu teria tempo! A coisa não ia ser assim! Não lhes disseram? Fui eu quem possibilitou isto, eu sou sua amiga, amiga do padre! Deixem-me descer, por Deus, antes que eu morra!
Estendeu as mãos para eles, os cabelos negros esvoaçando em volta dela, o rosto branco brilhando à luz vermelha das chamas. Paul afastou-se dela, encostou-se à parede. Olhou para ela, como se fosse uma terrível aparição.
A multidão soltou uma risada horrível. As bocas das mulheres se abriram, como se fossem cavernas negras.
—• É a rameira! — gritaram. — A amante do herege! Matem a rameira! Estraçalhem-na!
Epítetos insultuosos chegaram-lhe aos ouvidos. Ela recuou, chorando, cobrindo os ouvidos com as mãos trêmulas, rolando os olhos desesperada e febrilmente, procurando escapar. Por fim, o seu olhar pousou em Paul, e ela deixou cair as mãos. O choro transformou-se num gemido.
— Salve-me! — gemeu ela, abrindo caminho para ele-com as mãos estendidas.
Ele olhou para ela e estremeceu. Depois, olhou de novo para os rostos que amara, para os homens e as mulheres que socorrera, para as pessoas a quem se dedicara, com amor, ternura e misericórdia. Quem poderia ler os seus pensamentos, ao olhar para elas, imóvel e calado?
A mulher agarrou-o, desesperada, cravando desvairadamente as unhas nos ombros dele, nos seus braços, nas suas mãos frias. Ele parecia não a ver nem sentir. Continuou imóvel, olhando para baixo. Agora, não havia horror, nem medo no seu rosto. Apenas uma grande tristeza, como se ele meditasse profundamente.
Algo no seu aspecto fez com que a multidão parasse. Olharam para ele e ficaram calados. Em meio ao silêncio, as chamas estalavam, subindo pelas janelas, pelas paredes, pelas colunas.
Amo e camponeses olharam um para os outros àquela luz trêmula e vermelha. Os homens, fitando-o, coçaram, embaraçados, as cabeças. As mulheres pigarrearam. Um cheiro fétido emanava deles, misturava-se à fumaça acre. Os homens olharam para aquele homem imóvel e calado, no alto da escada. Viram-lhe o rosto pálido e reluzente. Viram-lhe os olhos.
Foram aqueles olhos, penetrando-lhes as almas bestiais, o que acabou de enlouquecê-los. Horror, remorso, fúria e desespero tomaram conta deles, inspiraram-lhes um desejo sádico de matar. Sabiam apenas uma coisa: que tinham de acabar com aquele homem. Que tinham de fechar aqueles olhos tranquilos. Que tinham de destruir aquele rosto quieto. Tinham que fazer tudo aquilo por sua própria causa. Se não o fizessem, aquele rosto e aqueles olhos os perseguiriam para sempre, os acompanhariam até as profundezas do inferno.
Enlouquecidos, apavorados, procuraram de novo subir a escada. Muitos fecharam os olhos. As mulheres soluçavam e gemiam. Os homens amaldiçoavam e ofegavam. As mãos deles estavam agora a menos de um metro de distância. Paul podia ver a luz vermelha que lhes dardejava das órbitas desvairadas.
Madame duPrès caíra aos pés dele e agarrava-lhe os joelhos, encostando a cabeça contra o corpo de Paul. Ele olhou para ela, abaixou-se, tomou-a nos braços e fugiu pelo corredor. Entrando no seu quarto, Paul deixou-a cair no chão e trancou a porta. Depois, arrastou febrilmente uma cômoda, um armário e colocou-os diante da porta. Correu para a janela, mas não havia maneira de escapar. Os jardins do château estavam todos cheios de homens que carregavam tochas.
Ao longe, a cruz do campanário brilhava calmamente ao luar. As árvores próximas estavam rosadas do clarão do fogo. De repente, no meio dos homens que corriam, Paul viu o rosto de Cre- quy.
Paul estava de pé na sacada, o seu contorno claramente desenhado contra as paredes brancas do château. Parecia banhado em chamas. Viu Crequy, de pé, imóvel, olhando para ele.
Crequy não se mexeu. Gigantesco, atarracado e desajeitado como sempre, o taberneiro parecia petrificado. Mas os olhos de ambos se encontraram, acima das cabeças dos homens que gritavam e corriam, ensandecidos. Crequy levantou uma das mãos e deixou-a cair de novo. Durante um longo momento, eles se comunicaram em meio ao fogo, à morte e à violência.
De repente, Crequy desapareceu. Paul olhou para as suas terras e viu, ao longe, um fogaréu. Deixou escapar um gemido. Sabia que o fogo vinha da casa de François Grandjean.
Voltou para o quarto. Madame duPrès se levantara, apoiada nas mãos e nos joelhos. Os cabelos caíam-lhe pelo rosto e pelos ombros. Levantou a cara, e os seus olhos fitaram os de Paul, em silêncio.
Depois, palmo a palmo, ela se arrastou, de joelhos, até Paul, e deixou cair a cabeça nos pés dele.
— Perdoe-me —• murmurou.
Ele olhou para ela, e, do fundo do seu nobre coração, um impulso humano fez com que ele levantasse instintivamente o pé. Mas, imediatamente, esse impulso cedeu. A mulher tinha visto o pé erguer-se, tinha pressentido o gesto bestial, e recuado. Mas logo percebeu que ele não seria capaz de atingir-lhe a cabeça inclinada, o corpo indefeso. Ergueu a cabeça. As lágrimas deslizavam-lhe pelas faces. Pôs-se de joelhos e juntou as mãos, como se rezasse.
— Eu o traí, monsieur — murmurou ela. — Pode bater-me, pode matar-me, que eu bem mereço isso e muito mais.
Ele olhou para ela, em silêncio, e depois perguntou, em voz baixa:
— Por que você fez isso, Antoinette?
— Foi o padre — gemeu ela.
Paul passou a mão pelo rosto. Quando a deixou cair, a sua expressão não mudara.
— Foi tão fácil assim? — disse, para si mesmo. — Assim tão fácil? Depois de todos esses anos, foi tão fácil a um padre destruir tudo o que eu tinha conseguido?
Ela abraçou-se aos joelhos dele, corando copiosamente.
— Foi tão fácil, monsieur Não deu trabalho nenhum!
O espanto tomou conta dele. Mexeu com os lábios, mas nenhum som saiu dele. Virou a cabeça de um lado para o outro, como se lhe faltasse o ar. Depois, suspirou, uma e várias vezes. Olhou para a mulher, e a piedade iluminou-lhe o rosto.
Fez com que ela se erguesse e apertou-a contra ele. Ela enlaçou-lhe o pescoço com os braços, as lágrimas escorrendo pelo ombro dele, molhando-lhe a camisa. Mas ele apenas suspirou, olhos fitos no vácuo, e aquele suspiro profundo penetrou o duro coração dela.
A turba já estava no corredor, sedenta de sangue, gritando e rugindo. Jogaram-se contra a porta do quarto, que tremeu nas dobradiças. Ouviram-se os piores insultos e ameaças, através da grossa madeira de carvalho. Paul olhou para a porta. Não demoraria que ela cedesse ao furioso ataque e que a turba enfurecida invadisse o quarto e fizesse coisas horríveis.
Paul levantou suavemente a cabeça da amante. Segurou-lhe o rosto molhado nas mãos e olhou-o penetrantemente.
— Daqui a um momento, eles entrarão, Antoinette. Quer que nos encontrem vivos?
Ela gemeu e estremeceu. Depois, ficou calada. Olhou para ele, e os seus belos olhos, úmidos de lágrimas, iluminaram-se de uma luz desesperada, uma luz de suprema coragem.
Paul afastou-a com todo o cuidado. Ela não se moveu. Viu-o dirigir-se para a mesa e apanhar a espada. Viu-o desembainhá-la, pegar na pistola e voltar para junto dela.
— Só há uma bala na pistola, Antoinette. Tem que ser para mim. Você tem coragem? Será apenas uma dor momentânea.
A voz dele quase foi abafada pelo ruído ensurdecedor que vinha do corredor. A porta rangia nas dobradiças. Um momento mais e ela cederia.
Paul ergueu a espada e encostou a ponta ao peito seminu da mulher. Uma gota de sangue aflorou, vermelha viva. Paul olhou-a nos olhos. Ela não estremecera sequer. Ao contrário, sorria e estendia as mãos para ele, murmurando um último pedido.
Ele inclinou-se lentamente para ela, afundando a espada. Quando o aço lhe penetrou o coração, os lábios de ambos se encontraram.
A porta sucumbiu, enfim, ao peso dos arrombadores. Mas, quando eles entraram, ouviu-se um estampido.
O sol, ao tingir a aurora de escarlate, iluminou o château de Vitry. Estava completamente arrasado. Aqui e ali, uma chaminé, um pedaço de parede, negra de fumo, recortavam-se contra o céu, enquanto pequenos rolos de fumaça cinzenta continuavam a sair deles.
Capítulo XLI
Nunca se soubera que Crequy tivesse um amigo íntimo ou, pelo menos, mais chegado. Os camponeses nunca tinham ignorado que ele os detestava. Detestavam-no, também, mas respeitavam-no. A taberna dele era popular, pois nunca roubava. Além disso, às vezes era tomado de uma estranha generosidade, que o levava a apanhar presuntos, salsichas e outras iguarias e a convidar — entre pragas e grunhidos — quem estivesse na taberna, para se regalar, de graça, com elas. Ninguém jamais entendera por que ele fazia isso. Nessas raras ocasiões, os camponeses sentiam um grande afeto por ele.
Ninguém jamais suspeitara de que ele amava o Conde de Vitry. Dizia-se que ele o detestava. Os camponeses, então orientados pelo Abade Lovelle, indignavam-se com ele por çausa disso e também por Crequy afugentar todos os rapazes que se engraçavam por Ro- selle, sua linda sobrinha.
— Daria até para pensar que ele a estava guardando para o conde, se o conde fosse como o pai dele — resmungavam.
Mas Monsenhor de Pacilli adivinhara o segredo de Crequy; só que não o considerara suficientemente importante para mencioná-lo às pessoas que ele estava seduzindo. E nisso cometera o seu erro capital.
Outra coisa que Crequy mantinha em segredo era a sua gradual e relutante amizade pelo velho François Grandjean. A amizade não se formara a passo e passo, mas acabara se tornando um fato. Cécile e Roselle também se tinham tornado amigas.
A fim de esconder a sua “fraqueza”, Crequy costumava visitar Grandjean, tarde da noite, e ambos ficavam horas sentados, bebendo vinho, Crequy discutindo ferozmente, Grandjean sorrindo, mas sempre persistindo no seu ponto de vista. Aquela amizade era um consolo para ambos. Grandjean não conseguira tornar-se popular entre os camponeses, apesar dos seus esforços. A sua simplicidade de maneiras não os iludira, fazendo-os acreditar que ele era igual a eles. Olhavam-no com respeito, devido à amizade que o jovem conde evidenciava pelo administrador, mas sentiam ciúme dele. O padre trabalhara bem com relação a François Grandjean, que começara a compartilhar das mesmas suspeitas e do ódio que nutriam contra Paul de Vitry.
Naquela noite, a jovem Cécile tinha ido visitar Roselle, que havia alguns dias estava indisposta. As duas moças tinham rido e conversado tanto e Crequy tinha ficado tão entretido a vê-las, rindo e franzindo a testa no seu canto, que, antes que elas se dessem conta, já era tarde. Apressadamente, bem na hora em que o sino da torre da igreja dava as onze badaladas, Cécile agarrara na capa e no cesto vazio, no qual trouxera gulodices para a amiga.
Crequy anunciou a sua intenção de acompanhá-la até a casa.
A moça protestou, dizendo não haver perigo, mas Crequy insistiu.
— Não há animais na rua e nem nos bosques — disse Cécile.
— De quatro patas, não há — retrucou Crequy, com voz azeda.
A casa de François Grandjean ficava a uma distância considerável da taberna, implicando uma caminhada de pelo menos meia hora. A noite estava enluarada, e as sombras dos dois, do gigante atarracado e da jovem esbelta, retorciam-se diante deles. O povoado parecia dormir. O luar banhava as altas e brancas paredes do château, os seus telhados e jardins. A noite parecia abençoada e os dois caminhavam sem falar.
Mas Crequy não era camponês à toa. Ao se aproximarem, às escuras, da casa silêncios^ dos Grandjean, ele de repente agarrou o braço da jovem, fazendo-a estacar, ao mesmo tempo em que farejava o ar.
— Há algo estranho — murmurou.
Assustada, a moça parou e olhou em volta. Diante dela, no fim da rua empedrada, a casa do avô estava adormecida, ao luar. A cada lado dela, as outras casas de pedra também pareciam dormir. Não se via uma luz. Um rouxinol cantava nas árvores que envolviam as casas.
— Não é nada — sussurrou ela, também farejando, com medo de incêndio.
Mas o ar estava fresco e cheio de doces aromas. Crequy deu de ombros e aguçou de novo os ouvidos.
— Você não ouviu um som, uma voz? — perguntou, levando a mão à cinta, da qual pendia sempre um grosso cajado.
— E'o que há de estranho nisso? — retrucou a jovem, com impaciência. — Deve ser alguma criança que não consegue dormir, ou algum doente. . .
Crequy meneou a cabeça, como um touro, resmungando entre dentes. Depois, com um grunhido irritado, pegou a menina pelo braço e levou-a para a casa do avô. Ao chegar junto da porta, parou de novo. Parecia-lhe ter ouvido um ruído no jardim, entre os arbustos e as árvores, um barulho como o de vários homens rastejando. Deixou a moça perto do portão e foi ver o que era. O jardim jazia adormecido ao luar. Os topos das árvores estavam prateados, os caminhos, o telhado, os troncos das árvores pareciam contomados a prata. Aqui e ali, uma folha mexendo ao vento, de repente, se transformava num ovalado de purpurina.
Abanando, preocupado, a cabeça, Crequy voltou para junto do portão, onde Cécile, com um sorriso impaciente, esperava, batendo com o pé.
— Entre — disse-lhe ele. — Vou esperar aqui até a porta se ter fechado.
Ela riu.
— Meu avô está dormindo. Não devemos acordá-lo.
Pôs-se na ponta dos pés e beijou-lhe afetuosamente a face.
Crequy ficou comovido com o gesto, embora não o desse a perceber. Ficou junto do portão, até Cécile abrir a porta, acenar-lhe com a mão, e a porta se fechar atrás dela.
Crequy ficou ainda uns dois minutos ao luar e depois voltou pelo mesmo caminho. Mas não conseguia livrar-se da sensação de estar sendo vigiado por uma porção de olhos furtivos.
Caminhou rapidamente, no seu passo desajeitado, durante uns cinco minutos. Depois, parou de repente, erguendo de novo a cabeça. Havia um cheiro acre no ar. Virou-se mais do que depressa. Um clarão rosado subia para o céu. Começou a correr de volta à casa de Grandjean, a sua enorme sombra pulando à frente dele no empedrado da rua. Não se ouvia nenhum som nem se via qualquer movimento, mas o clarão aumentava.
Era realmente a casa dos Grandjean. Mas por que tudo o mais estava tão quieto? Por que nada se movia em redor, ou nas casas? Disse a si mesmo que devia ter havido um acidente, que uma fagulha devia ter saltado para fora da lareira, ou uma vela caído, quando a jovem subira a escada para se deitar. Mas o seu instinto de camponês negava isso. Sabia que algo horrível estava acontecendo.
Chegou à casa, que ficava separada das outras, no centro de um grande jardim, cheio de árvores. Agora, as árvores pareciam uma caverna escarlate, em meio à qual a casa ardia. As outras casas, bem distanciadas, continuavam envoltas numa estranha escuridão. Ouviu um rugido. Vinha das chamas, mas, ao mesmo tempo, outro rugido, indefinível, chegou até ele, vindo de longe — um rugido humano.
Pulou por cima do portão, sem perder tempo a abri-lo. As janelas brilhavam, vermelhas, refletindo as chamas lá dentro. Arrombou a porta, gritando. A fumaça e o calor arderam-lhe nos olhos, que ficaram marejados de lágrimas. Durante alguns momentos, ele não conseguiu ver nada.
Depois, ao entrar naquele inferno, tropeçou em algo. À luz das chamas, viu que François e Cécile jaziam a seus pés, caídos um por cima do outro, como numa pilha.
Horrorizado, Crequy agarrou os dois e arrastou-os daquela pira viva, que ameaçava carbonizá-los. Carregou-os para longe da casa e pousou-os na grama, onde as gotas de orvalho brilhavam como rubis ao fulgor das chamas. Gritou repetidamente, olhando, em desespero, para as casas apagadas e silenciosas. Mas ninguém acudiu aos seus gritos.
Cécile gemia. Crequy viu que ela fora ferida na cabeça e que sangrava profusamente. Inclinou-se sobre o velho, cujos olhos abertos pareciam fitar a lua. Da boca aberta não vinha qualquer som de respiração. Um horrível ferimento na testa mostrava onde ele fora atingido. Crequy não teve dúvidas de que o velho estava morto.
Os soluços sacudiram o enorme corpo de Crequy. Gritou freneticamente, mas ninguém veio. Depois, vendo o estado da jovem, ergueu-a nos braços e dirigiu-se para a sua própria casa, o sangue dela pingando-lhe nas mãos. Ela parara de gemer e parecia morta em seus braços.
Já quase chegara à taberna, correndo desesperadamente, quando ouviu um prolongado e selvagem rugido. Olhou na direção do château.
Estacou, como que atingido por um raio, a boca aberta, os olhos esbugalhados. As paredes do château estavam envoltas em chamas. E, em toda a volta, no jardim, Crequy viu as sombras negras de um sem-número de homens, gritando a distância.
Foi então que compreendeu tudo. Não pensou, como qualquer homem mais civilizado poderia ter pensado, que tudo aquilo não passava de um acidente, que os homens que pulavam em volta do château estavam tentando salvá-lo. Não se iludiu, como outros mais civilizados poderiam ter-se iludido. Conhecedor da baixeza e da ferocidade da mente humana, compreendeu logo.
Mergulhou nas sombras formadas pelas árvores e pelas casas e correu para a taberna. Sentia as pernas bambas e a respiração en- trecortada. Entrou em casa, fechou a porta e trancou-a. Ao ouvi-lo chegar esbaforido, Roselle surgiu de camisola, na porta do seu quarto, empunhando uma vela. Ao ver o tio, e Cécile esvaindo-se em sangue nos braços dele, cambaleou e soltou um grito. Mas ele afastou-a para o lado, carregou a jovem ferida para a cama da sobrinha e, voltando-se para Roselle, disse, com voz rouca:
— Escute aqui, minha filha, preste bem atenção. O velho Grandjean foi morto por esse rebanho enlouquecido. Pensaram que também tinham matado a neta e deitaram fogo à casa, pensando poder esconder o crime. Não desmaie, ou dou-lhe uma surra! Tome conta desta menina, trate de escondê-la. Não deixe ninguém entrar. Na lareira há uma pistola. Você sabe usá-la. Volto logo.
A moça não gritou. Deitando um último olhar à pistola, Crequy saiu correndo na direção do château. O seu pensamento era só um: salvar o Conde de Vitry. Enquanto corria, a sua mente lenta de camponês ia ficando cada vez mais enfurecida. Agora compreendia tudo. Como se fosse uma cara fantasmagórica, o rosto do padre passou-lhe diante dos olhos, rindo com ar diabolicamente sutil.
•Mas, quando chegou ao château, viu que era inútil. Se tentasse salvar o conde, acabaria assassinado, e o que aconteceria com a sua casa, com Roselle e Cécile? Não obstante, esgueirou-se pelo château em chamas, procurando, de uma maneira ou de outra, acudir ao conde. Até que alguém passou perto dele, gritando:
— Até que enfim, hein, Crequy, que a gente se vinga desse monstro, desse herege! Você sempre o odiou, não? Olhe só para ele, lá em cima, na sacada! Ria na cara dele, Crequy!
O taberneiro ergueu os olhos e viu Paul de Vitry na sacada, olhando para baixo, para os jardins incendiados.
Crequy fitou o conde, e este o fitou também, por sobre a confusão de cabeças enlouquecidas. Durante muito tempo, ficaram olhando um para o outro, à luz do fogo devorador.
Depois, Crequy levantou lentamente a mão, como se fizesse um juramento. O conde não se mexeu, mas o seu olhar era súplice. Crequy abanou a cabeça, com expressão terrível. Deu meia-volta e afastou-se, furtivamente, da multidão.
Dirigiu-se à casa do padre. Bateu de leve. Ninguém respondeu. Empurrou a porta. A casa estava às escuras. Sem fazer barulho, pé ante pé, Crequy revistou toda a casa. Depois, soltou um uivo. O padre tinha fugido!
Crequy saiu correndo de casa. Olhou em volta, desvairado. Para que lado o padre teria fugido? A estrada de Paris ficava além da casa de Grandjean. Crequy não tinha cavalo, nem carruagem, nem lacaios. Seus olhos brilhantes furaram a escuridão e acabaram dando com a cruz, reluzindo no alto da igreja.
Largou a correr na direção da igreja, o cajado na mão. Sabia agora que era lá que o padre estava escondido. Mas só teve a certeza quando tentou abrir as velhas portas. Estavam trancadas. Soltou um grito selvagem, de besta sedenta de sangue.
A sua força, já de si, grande, aumentou com a fúria insana. Arrombou as portas num abrir e fechar de olhos e avançou para o interior escurecido da igreja. Nada se mexia lá dentro. O alto das velhas colunas estava prateado pelo luar, mas, fora disso, as trevas e o silêncio reinavam.
Sem fazer barulho, como um animal espreitando uma presa. Crequy esgueirou-se até o altar. A luz, vermelha e bruxuleante, lembrava um olho maligno. Tateou o altar, à procura de uma veia e, achando o coto gasto de uma, acendeu-o na chama que ardia perene no altar.
Depois, passo a passo, segurando a vela, revistou toda a igreja. Mas não encontrou o padre.
Soltou de novo um grito selvagem e frustrado, que ecoou por toda a nave. A luz da vela refletia-se nas velhas paredes como as sombras dançantes de demônios.
Revistou de novo a igreja, olhando atrás do altar. E, ao fazer isso, descobriu a pequena porta.
Parou e olhou para ela, sorrindo malevolamente. Examinou a fechadura. A chave não estava lá. Empurrou a porta, mas ela nem se mexeu.
Falou então baixinho, a boca encostada à porta, numa voz manhosa:
— Ei, padre, está aqui um pobre pecador què deseja se confessar com o senhor! Saia e ouça o que ele tem a dizer! Não quer confessá-lo, meu bom padre? Enquanto ele lhe conta os seus pecados, que tal lhe dizer como foi que matou um pobre velho e o Conde de Vitry? Ah, padre, não faça ouvidos moucos a este pobre pecador! Saia daí e confesse-o, antes que vá parar no inferno e se encontre cara a cara com o seu amo!
As paredes e o teto ecoavam-lhe a voz sinistramente suave. A chama do altar avivou-se para depois ameaçar morrer. A escuridão tornou-se maior e cheia de rostos invisíveis, mas terríveis.
Crequy bateu de manso na porta e repetiu, numa voz horrível:
— Como é, meu padre, não é possível que o senhor esteja dormindo, enquanto o conde está sendo assassinado, quando um pobre pecador lhe suplica que o confesse!
Rindo como louco, encostou o ouvido na porta. Teve a impressão de ouvir um leve ruído, do outro lado. Seria uma respiração contida, um barulho de passos se afastando, descendo, fugindo?
Crequy começou a rir, a princípio em voz baixa e depois cada vez mais alto, até as suas risadas ecoarem, desumanas, por toda a igreja. As colunas pareciam tremer e as paredes estremecer com as suas gargalhadas.
Pousou cuidadosamente a vela e forçou a porta com o ombro. Mas ela nem se mexeu. O suor escorrendo, tentou várias vezes arrombá-la. A carne doía-lhe e sangrava. A enorme testa e o crânio nu estavam enrugados como os de um macaco, e os beiços entreabertos deixavam ver os dentes possantes. Inclinou a cabeça, pres- sionando-a contra a porta. Toda a sua vida, todo o seu coração, todo ele estava concentrado no esforço de abri-ia. Parecia exausto. Mas não estava. De repente, um leve estalido saiu da madeira torturada.
Os momentos foram passando, e Crequy não parecia mover-se. Mas os músculos do seu pescoço e do seu braço ficaram cor de púrpura e depois pretos, do sangue congestionado. Ás veias davam a impressão de querer estourar, na testa e nas faces vermelhas. As pernas inclinaram-se para a frente, e os músculos pularam, enormes, debaixo dós calções e das meias altas. Agora, não havia outro som na igreja, além do leve ranger da pesada porta.
De repente, as dobradiças cederam e a porta tombou para dentro com um estrondo ensurdecedor, caindo nos degraus de pedra que levavam à cripta. Segurando de novo a vela, Crequy olhou para a escuridão. Ofegante, do esforço. Todo o seu corpò tremia como uma árvore açoitada pela tempestade.
Um sorriso lhe aflorou aos lábios e ele desceu a escada, iluminando os degraus com a vela.
Não demorou que ele se visse numa diminuta cripta. Das velhas paredes de pedra escorria umidade. Um lagarto e outras pequenas e rastejantes criaturas passaram, correndo, por entre os pés dele e desapareceram na escuridão. O chão da cripta estava escorregadio, cheio de cobras-d’água. E, a um canto, ajoelhado e encolhido, estava o padre.
Nunca, em toda a sua vida, a ideia da morte, da própria morte, ocorrera a Monsenhor Antoine de Pacilli. Como todos os homens poderosos, sejam eles, bons ou maus, a morte lhe parecera uma espécie de pântano que sugava os outros, mas que nunca poderia engoli-lo. Tinha sido para ele uma ideia acadêmica, que nunca lhe merecera ponderação ou reflexão. Era algo que atacava aos homens inferiores, e nunca as pessoas de grande intelecto, frio egocentrismo e dotes sobre-humanos. Porque a morte tinha algo de vulgar, de vergonhoso e humilhante. Essa calamidade, que dizimava os ratos e a ralé, nada tinha a ver com homens como Monsenhor Antoine de Pacilli.
Mas eis que se via frente a frente com essa inimiga detestável, degradante e desprezível, mas todo-poderosa.
Por isso, quando Crequy assestou a luz da vela sobre o rosto pálido do padre, não viu nele medo e nem pavor, mas uma terrível repugnância. Aquele rosto delicadamente cinzelado, aqueles olhos amendoados, aquela bela cabeça morena pareciam vibrar diante dele, envoltos numa aura própria. Mesmo naquele momento decisivo, ele continuava sendo um aristocrata, caído de joelhos por exaustão, e não por medo.
Crequy riu alto, balançando-se nos calcanhares. A luz da vela iluminou as paredes, o teto baixo, o chão. Mas de Pacilli não se moveu. Seu rosto ficou mais fino e branco do que nunca, numa negação intelectual da morte que se aproximava.
— Ah, meu padrezinho, por que tão calado e tão pálido? — perguntou o taberneiro. — Por que não respondeu a este pobre pecador? Ou será que estava tão entretido nas suas malditas orações, que não ouviu a minha voz? Quem sabe estava ouvindo a alma do Conde de Vitry, acabando de morrer e murmurando a última confissão nos seus ouvidos?
O padre não respondeu. Seus olhos negros brilhavam como se pertencessem a uma serpente, alerta, imóveis, sem expressão.
Crequy pousou cuidadosamente a vela no chão. Estendeu as mãos. Riu e examinou os enormes dedos, curvos como garras. Olhou novamente para o padre e umedeceu os beiços. Uma luz desumana e obscena dançou-lhe nos olhos pequenos e porcinos. Lentamente, passo a passo, avançou, pelo chão resvaladiço, na direção do padre, as mãos estendidas, os lábios articulando palavras desconexas.
O padre não fez qualquer movimento. Olhou para a aproximação da morte, sem que a sua expressão mudasse, como se já estivesse morto.
Crequy chegou junto dele. Fez uma pausa, e vítima e carrasco olharam um para o outro, à luz bruxuleante.
O taberneiro soltou um novo uivo, meio de lobo, meio de tigre. Abaixou-se, agarrou o padre pela garganta e fez com que ele se levantasse. De Pacilli não lhe resistiu. Ficou pendurado das mãos de Crequy como um espantalho negro, encimado por um rosto branco e fixo.
Crequy aproximou aquele rosto do seu, de modo a quase se tocarem.
— Trate de rezar, seu padreco, porque daqui a cinco minutos você estará diante de Satã — murmurou, sacudindo o corpo do padre pelo pescoço.
Depois, as suas mãos fecharam-se com força em volta do frágil pescoço, e ele sentiu músculos e veias cederem à pressão dos seus dedos. O padre não lutou, os braços caídos ao longo do corpo.
Aos poucos, aquele rosto branco foi ficando vermelho, depois roxo e, finalmente, negro. Os olhos, mesmo rolando, tinham-se fixado no diabólico semblante de Crequy.
Até o fim, aqueles olhos não pestanejaram nem se fecharam. Só a expressão de horror aumentou neles, como se contemplassem uma visão terrível e assustadora.
Capítulo XLII
Havia um homem, ná corte de Luís XIII, para quem a poderosa reação católica e o movimento liberal protestante, com vistas à liberdade, à justiça e ao esclarecimento das massas, pouco ou nada significavam. No máximo, divertiam-no, mas quase sempre ele achava tudo aquilo demasiado tedioso. Era então um jovem cheio de vida, irresponsável e alegre, malicioso e bem-humorado. Achava todo mundo mais ou menos ridículo, e muitas vezes soltava gargalhadas na cara de Richelieu.
Certa vez, com a maior gravidade, dirigira-se ao ambicioso Cardeal, no meio de uma ilustre reunião, como “Vossa Majestade”. E, vendo Richelieu empalidecer e os seus olhos de tigre brilharem ameaçadoramente, e sentindo os que o rodeavam entreolharam-se, temerosos, o jovem apressara-se a emendar, com uma reverência irônica:
— Peço-lhe perdão, Eminência. Quis dizer “Lesa-Majestade”.
Esse incrível trocadilho espalhara-se por toda a França e despertara fúria, risos, aplausos e admiração, dependendo da audiência e das filiações políticas ou religiosas.
Originava-se o trocadilho no fato de o Cardeal, por pressão sobre a Rainha-Mãe, ter feito com que ela concertasse o casamento do jovem príncipe com Mademoiselle de Montpensier, moça de alta estirpe e enorme fortuna, mas a quem o rapaz odiava. Pela sua insistência em contratar esse casamento, o Cardeal usurpara, realmente, um privilégio real. Daí o trocadilho. Fora uma brincadeira pessoal do jovem príncipe, por demais superficial para implicar outra coisa. Mas os franceses trataram de atribuir-lhe sentido mais amplo, e o rapaz granjeou a reputação de sutil e perverso, conclusão que o teria espantado e divertido.
Não obstante o seu jeito desligado e brincalhão, não lhe faltava inteligência. Nunca perdia oportunidade de provocar o Cardeal. Para o observador casual, aquele jovem não passava de um zero à esquerda, inócuo e divertido, apesar do sangue real. Só os que conviviam intimamente com ele sabiam do seu rancor, do seu espírito vingativo e do seu ódio pelo Cardeal.
O jovem era Gaston, irmão mais novo do Rei, com quem fazia um grande contraste, pois a sua forte personalidade e o seu espírito brilhante humilhavam e colocavam na sombra o lento, desajeitado e calado Luís. Gaston era também o querido da Rainha-Mãe, que tinha razões pessoais para odiar o Cardeal. Não havia nada que o manhoso Gaston não conseguisse quando apelava para Maria de Médicis, principalmente se a intenção fosse fazer algo que desconcertasse o Rei ou o Cardeal.
Como se o projetado casamento não fosse bastante para irritar o jovem Gaston, surgira outra questão muito mais séria, que transformara a sua aversão por Richelieu num ódio de morte.
Ele tivera, como tutor, um velho e nobre corso, o Marechal Ornano, que era muito devotado ao aluno e à Rainha-Mãe. Vendo a contrariedade do jovem em desposar Mademoiselle de Montpensier, aconselhara-o a se recusar em casar com ela. A questão tornara-se não só um escândalo na família real, como um caos de importância nacional e internacional, para todos aqueles que desejavam enfraquecer o poder do Cardeal e do Rei. Mesdames de Condé e de Che- vreuse juntaram-se à conspiração. Condé, Soissons e Nevers ofereceram, secretamente, ajuda. Os poderosos irmãos ilegítimos de Gaston, Vendome, Governador da Bretanha, e Vendome, o Grão- Prior, engajaram-se entusiasticamente na contenda. A Inglaterra, a Sabóia e a Espanha apressàram-se a seguir os acontecimentos e a entrar no conluio. Todos os grandes senhores descontentes da França se reuniram em sessão secreta. Por fim, foi decidido que Gaston conquistasse alguma província fronteiriça. Nesse ínterim, os seus partidários se encarregariam de matar o Cardeal e de livrar para sempre a França do seu gigantesco poderio.
Entretanto, os espiões do Cardeal eram por demais eficientes. Ornano, o velho dedicado corso, fora preso e atirado na prisão de Vincennes, onde acabaria envenenado por ordem do Cardeal. Gaston, arrasado, levado por um ódio violento e por uma sede de vin gança, apelara ao irmão, que se recusara a recebê-lo. Correra, então, ao Cardeal, atravessando por entre a barreira de conselheiros e guardas pessoais, até ao quarto de dormir de Sua Eminência e, inclinando-se sobre o leito dourado e vermelho, batera violenta c repetidamente no rosto do Cardeal. Depois, erguera o punho e, entre pragas terríveis, jurara que nunca mais voltaria a dormir sossegado enquanto não tivesse vingado a morte do seu querido tutor.
Richelieu não esquecera aquele insulto. Fora imediatamente ter com o Rei e oferecera-lhe a sua demissão. Luís, que não lhe tinha estima, apenas medo, ficara apavorado, sabendo de sobra, quem lhe sustentava o poder e o trono. Oferecera ao Cardeal tudo o que ele quisesse, desde que permanecesse no cargo. Richelieu retrucara, numa voz baixa e hesitante, que a sua única devoção era para com o trono e que achava impossível dedicar-se ao Rei, quando na nua própria família havia alguém que jurara continuar a tramar contra a autoridade real.
— Por conseguinte — dissera tristemente o Cardeal —, se quiser que eu continue a servir a Vossa Majestade, terei que pedir, por amor a Vossa Majestade, que o Príncipe Gaston seja obrigado a lhe jurar lealdade.
O Cardeal conhecia muito bem o orgulho e a altanaria que se escondiam sob os risos e as atitudes superficiais de Gaston. Era uma vingança mesquinha, a que ele pedia. Mas o Rei não percebeu isso. Ficou sensibilizado com essa prova da devoção do Cardeal. Mandou vir Gaston à sua presença e à presença de Richelieu, a fim de humildemente jurar lealdade à Coroa.
Gaston, ainda abatido com a morte do seu adorado tutor, a princípio negara-se a isso. Mas a Rainha-Mãe, apavorada com o risco que o seu filho predileto corria, implorara-lhe de joelhos que se humilhasse por ela.
— Porque — acrescentara, através das lágrimas — você não perde por esperar, meu filho! Por acaso sua mãe não está a seu lado? Estudaremos a maneira de dar um jeito nesse diabo de Cardeal!
Após refletir bem, e pensando também na sua segurança pessoal, Gaston consentira em jurar lealdade. Mas, no fundo do seu coração, mais uma conta viera somar-se às outras que tinha a acertar com o Cardeal.
A Rainha-Mãe, italiana, tinha a vendetta no sangue. Também ela tinha razões particulares para odiar Richelieu. Não o erguera do nada, não se esforçara para que ele atingisse o poder, a glória e a influência? E, no fim, ele lhe pagara apenas com indiferença, humilhando-a quando mais precisava dele. Católica apaixonada e fanática, digna representante dos Habsburgo, ela era agora forçada a vê-lo refrear o poder dos Habsburgo e a contemporizar com os nobres huguenotes (aqueles horríveis hereges!), tudo em nome da França, conforme declarara o traidor! Que lhe importava a ela, uma italiana da casa dos Habsburgo, a França? Que tinha ela, católica e odiando a Inglaterra protestante, os Países-Baixos e os huguenotes franceses, que ver com a “tolerância” que o Cardeal estava sempre aconselhando?
Além disso, levada pelo amor que tinha pelo filho mais moço, Gaston, ela implorara ao Rei, a quem detestava, que nomeasse Gaston governador de Champagne ou da Borgonha. Mas o Cardeal derrotara essa pretensão com a sua costumeira sutileza e destreza. Furiosa por se ver vencida por aquele homem cujo poder ajudara a firmar, ela se trancara no quarto e chorara, batendo nas almofadas, amaldiçoando o Cardeal, jurando vingança, entre lágrimas ardentes. Porque, naquele coração grosseiro, violento e brutal, persistia ainda uma paixão pelo elegante Armand-Jean du Plessis, uma paixão que ela não conseguia esquecer e que só fazia aumentar, voluptuosamente, a cada nova humilhação e frustração que ele lhe impunha.
Nunca gostara muito de Ana de Áustria, apesar de ter concertado o seu casamento com o Rei. Mas, naquela bela, sofredora e amedrontada jovem, ela encontrava agora uma aliada contra o Cardeal. Os três, Maria de Médicis, Gaston e Ana, formavam um núcleo de ódio e conspiração, dentro da casa real. Todos os três, após terem sentido apenas aversão, indiferença ou desprezo pelo Rei, tinham agora ódio dele, um ódio apenas levemente menor do que o que sentiam pelo Cardeal.
O jovem Príncipe Gaston tinha acabado de tomar o pequeno almoço e estava brincando com os cães em seus aposentos, quando o camareiro entrou e anunciou a chegada de Monsieur Arsène de Richepin.
Gaston gostava de Arsène como de todos os jovens que se pareciam com ele: alegres, irresponsáveis, impulsivos, valentes e divertidos. Arsène escrevera-lhe na véspera, suplicando-lhe uma audiência. O príncipe parou de brincar com os cães e deu ordens para que o amigo entrasse imediatamente.
Enquanto esperava por Arsène, Gaston franziu a testa. Pela urgência da carta, chegara à conclusão de que se tratava de algum pedido importante. Gaston gostava sinceramente dos poucos amigos que tinha, e irritava-o o fato de se ver tão impotente, constantemente vigiado pelos espiões do Cardeal, objeto do ódio e das suspeitas do Rei, seu irmão. Não obstante, decidiu ajudar Arsène na medida do possível.
Vestindo o seu robe de cetim vermelho, esperava, junto à janela do quarto, mordendo o lábio com expressão preocupada, que não combinava com o seu belo rosto, já marcado, apesar da sua juventude, com as pequenas rugas de quem muito ri. Era bastante alto, bem-feito de corpo, e louro de pele, com alegres olhos azuis e uma farta cabeleira ondulada e castanha, que lhe caía sobre os ombros largos e direitos, de soldado. Todos os seus movimentos eram rápidos e elegantes, cheios de graça, força e poder. Embora fosse um libertino, dado a violentos excessos, a sua resistência natural não sofrerá, e todo ele irradiava vitalidade. Nas rugas em volta dos olhos, no olhar rápido, na curva da sua boca móvel e bem-humorada estavam as provas de uma natureza que adorava conspirar.
Arsène entrou, vestido de negro, o rosto abatido, os olhos fundos. Saudou o príncipe com uma profunda reverência, mas, quando ia beijar a mão de Gaston, este levantou-o, com uma risada, e beijou-o de leve na face. Estava encantado de ver o velho amigo, que sabia ser incapaz de traições, velhacarias ou mesquinharias.
Conduzíu-o para um canapé, perto da cama, onde ambos se sentaram, contemplando-se mutuamente.
Na sua exuberância, o príncipe pôs-se a contar uma série de ditos espirituosos, de histórias maliciosas e piadas, e a fazer perguntas, sem dar tempo a que Arsène respondesse. Entrementes, conservava a mão no ombro do amigo, que pressionava ao mesmo tempo em que jogava para trás a bela cabeça e ria, deleitado. Por fim, notando, apesar do seu egoísmo, a extrema palidez de Arsène, os seus sorrisos relutantes e o seu silêncio, exclamou:
— Que há com você, Arsène?
Parou de rir. A sua expressão ficou sombria e preocupada, e ele de novo teve consciência da sua impotência numa situação de crise.
Arsène respirou fundo, como se gemesse. Olhou demorada- mente nos olhos de Gaston e depois perguntou, em voz baixa:
— Vossa Alteza ainda não soube do que aconteceu com o Conde de Vitry?
Gaston estremeceu.
— Com Paul? — perguntou, recuando um pouco.
Passado um momento, voltou a perguntar, numa voz mais preocupada:
— Que foi que houve com Paul?
Agora já não estava indiferente. Entre os seus poucos amigos, Paul fora o melhor, o mais leal, o mais devotado. Poucas vezes se encontravam, mas, em contato com aquela nobre e bondosa natureza, Gaston sentira-se também virtuoso. Agarrou os pulsos de Arsène e forçou-o a virar o rosto abatido para ele.
Após um momento de silêncio, Arsène murmurou:
— Paul foi assassinado.
Gaston pôs-se de pé com um grito abafado.
— Assassinado! Não é possível! Quem iria matá-lo?
Todo ele empalidecera. Os olhos azuis chamejavam.
— Se Vossa Alteza se sentar, eu lhe contarei tudo — disse Arsène, apoiando-se nas costas do sofá.
Gaston voltou a sentar-se, trêmulo. Seu rosto era agora uma máscara branca, em que os próprios lábios pareciam sem cor.
— Foi por instigação do Cardeal — disse Arsène.
— Do Cardeal?!
Gaston ergueu-se a meias, as narinas tremendo. Depois, sentou-se de novo e esperou que o amigo prosseguisse.
— Paul foi morto pelos seus próprios camponeses, a quem tanto bem fizera, aos quais devotara a sua fortuna e a sua própria vida — murmurou Arsène, como se mal pudesse falar.
— Continue — pediu Gaston, igualmente num sussurro.
Seu rosto empalidecera ainda mais.
Arsène passou as mãos pelo rosto. Seu sofrimento era enorme.
Após um longo momento, durante o qual procurou falar sem conseguir, a tal ponto os lábios lhe tremiam, ressequidos, Arsène continuou:
— Vossa Alteza decerto se lembra de que Paul dedicara a sua vida a tornar livres os camponeses que habitavam e trabalhavam as suas terras, a dar-lhes uma existência mais digna e a instruí-los. Recordo-me de que Vossa Alteza não concordava com isso, a ponto de discutir várias vezes com ele. Mas Vossa Alteza conhecia bem o seu grande coração, a sua pureza, o seu idealismo. Alguém, algum demônio, convenceu o Cardeal de que tudo aquilo era apenas o começo de uma conspiração, de que o nosso pobre amigo estava conspirando, de maneira inexplicável, para a destruição da França. Além disso, ele tinha inimigos, que o detestavam pela sua bondade, tolerância e piedade. Insinuaram que, se os métodos de Paul se espalhassem, ganhassem novos adeptos, a França correria perigo. . .
— Para o diabo com a França! — interrompeu Gaston, em voz baixa.
— Esses inimigos foram falar com o Cardeal — prosseguiu Arsène. — Ele encarregou um certo Monsenhor de Pacilli de instigar os camponeses a se levantarem contra o conde. O padre trabalhou bem! Paul foi assassinado, faz duas noites, no seu château. O corpo do padre foi encontrado na igreja. Alguma alma devota se encarregou de fazer justiça.
Não conseguiu dizer mais nada. Encostou a cabeça no respaldo do sofá e chorou silenciosamente.
Não se ouvia o menor ruído no quarto. Gaston olhava para a frente, sem ver. Quando voltou a falar, sua voz mal se ouvia.
— Tem certeza de tudo isso que acaba de contar? Quem era esse de Pacilli?
Arsène esforçou-se por se controlar.
— Conheci-o há algum tempo atrás. A princípio, não o reconheci, mas uma vaga recordação me perseguia. Foi só depois que soube da morte de Paul, que me lembrei de o ter visto, certa vez, na companhia do Cardeal. Compreendi tudo. Nem precisei das explicações da pessoa que veio me procurar.
— O Cardeal! — murmurou Gaston, sempre olhando para o vácuo.
Um sorriso mau lhe aflorou aos lábios.
— Esta manhã — continuou Arsène, no mesmo sussurro — uma jovem chamada Roselle veio me procurar. Seu tio, Crequy, é dono de uma taberna nas terras de Paul. Parece que, antes de matarem Paul, os camponeses tinham assassinado um velho, seu administrador. Pensaram que também lhe tinham matado a neta, mas não conseguiram. Crequy salvou-a, e ela está escondida na casa dele, à beira da morte. Ele teve medo de deixá-la, de modo que mandou a sobrinha dar-me essa terrível notícia.
Não pôde falar mais.
Gastou tampouco falou. Sua testa enrugou-se, franziu-se. Seus olhos pareciam despejar fogo.
—• Queimaram o château — prosseguiu Arsène, após um intervalo. —• Agora, os camponeses estão apavorados, mas ainda enlouquecidos. Andam de um lado para o outro, saqueando tudo. Mas a razão está começando a voltar para eles. Esperam se vingar. Só que o principal responsável está a salvo de ataques. . .
Gaston voltou-se para ele. Embora a expressão do seu rosto fosse terrível, ele perguntou, numa voz muito baixa:
— Que é que eu posso fazer?
Arsène hesitou, mas olhou fixamente para o príncipe.
— Este crime tem que ser vingado. Eu e meus amigos estamos nos preparando para vingá-lo.
Gaston ergueu as mãos, com as palmas para cima, e olhou bem para elas. Depois, com um gesto mais eloquente do que quaisquer palavras, deixou-as cair pesadamente sobre os joelhos. Mas Arsène agarrou-lhe o braço.
— Uma vingança particular não basta. Esses malditos camponeses precisam compreender que o seu crime é contra toda a autoridade! Se não forem exemplarmente punidos pela sua traição, pela sua revolta contra o seu senhor, quem sabe onde as coisas acabarão? Quem sabe o que essa canalha não fará da próxima vez?
Apesar da sua angústia, da sua dor, ele serviu-se dessa artimanha ao apelar para o orgulhoso e jovem príncipe. Gaston vol- tou-se de novo para ele, escutando-o atentamente, cerrando os punhos.
— Além do mais — disse Arsène suavemente, olhando para Gaston —, temos que fazer o Cardeal entender que existe outro poder na França, além do dele. . . o poder da justiça. . . e que ele não pode se sobrepor a esse poder sem sentir as consequências.
Gaston levantou-se, como se o tivessem picado. Uma onda de sangue inundou-lhe o rosto.
— Meus amigos — continuou Arsène — estão ansiosos por levar a cabo essa dupla vingança: contra a canalha, que desafia o poder da autoridade, e contra o Cardeal, que abusa do seu cargo e da confiança dos ingênuos, dos fracos. Mas eles não querem efetuar essa vingança furtivamente e em segredo, como se fossem fora-da- lei. Isso também seria uma atitude contra a autoridade estabelecida.
São gentis-homens, que acatam a lei. Vossa Alteza conhece alguns deles. Querem fazer isso para vingar muitos outros, humilhados e injuriados pelo Cardeal.
Gaston virou-se, deu mostras de querer falar, mas calou-se. No entanto, o fogo dos seus olhos aumentou.
— Além do mais — prosseguiu Arsène —, depois de se vingarem, eles desejam ficar imunes às represálias do Cardeal, por algum tempo, ao menos. Querem provar que o que vão fazer será um simples ato de justiça, sancionado por quem ocupa posições supremas. Terão então uma dupla justificativa contra os camponeses que mataram Paul de Vitry.
Gaston dirigiu-se para junto da janela e pôs-se a puxar, com fúria, os cortinados. Sem se virar, perguntou, numa voz abafada:
— Que é que você deseja de mim?
Arsène agarrou-se às costas do sofá.
— Uma ordem, monsieur. Uma ordem para a justa execução dos rebeldes.
Gaston não respondeu. A mão que puxava os cortinados parou de repente, e ele disse, num tom cheio de humilhação e raiva:
— Não posso dar essa ordem.
— Mas a Rainha-Mãe pode — disse Arsène, com voz suave.
Gaston afastou-se rapidamente da janela. Sua boca se abriu e voltou a fechar-se, sombriamente. A respiração escapava-lhe pelas narinas dilatadas.
Arsène aproximou-se dele, e Gaston, embora não recuasse, ficou tenso.
— Não será difícil conseguir essa ordem — disse Arsène, o rosto decidido. — Só precisa ser uma ordem ambígua, dizer que Arsène de Richepin foi encarregado por Sua Majestade, a Rainha- Mãe, de uma certa missão e está sob a proteção dela.
Gaston ficou calado, contemplando os próprios pés.
— Impossível — disse, friamente.
Arsène respirou fundo e estacou.
— Quer dizer que Vossa Alteza permite que a mais recente atrocidade do Cardeal permaneça impune, que ele ria, satisfeito e certo de que ninguém ousa se opor a ele, que não existe ninguém na França capaz de enfrentá-lo?
Gaston levantou a cabeça, levou a mão à garganta e disse:
— Espere um pouco, não vou demorar.
Encaminhou-se para a porta, com passos rápidos e desordenados. Arsène, exausto, deixou-se cair numa cadeira. Passado um momento, ergueu o punho e praguejou em voz alta.
Mas Gaston demorou muito a voltar. Passou-se meia hora e depois mais outra. Incapaz de se conter por mais tempo, cada vez mais ansioso e desesperado, Arsène pôs-se a andar de um lado para o outro.
— Mesmo que não consiga essa ordem, hei de vingar Paul — disse, em voz alta, para si mesmo.
Em poucos dias estaria a salvo, em La Rochelle. Mas havia o pai, que ficaria em Paris e sobre quem recairia toda a vingança do Cardeal. E alguns membros do Les Blanches hesitariam em tomar parte, temendo represálias contra os parentes, mesmo que eles próprios pudessem fugir para La Rochelle. A aflição de Arsène aumentou, mas a sua determinação não diminuiu.
De repente, parou de andar e deu meia-volta. A porta se abrira quase sem ruído, e Gaston acabava de entrar. Trazia na mão um papel dobrado, selado com um sinete bem conhecido. Sem dizer palavra, estendeu-o a Arsène. Mas o seu rosto estava úmido, e havia marcas profundas e arroxeadas em volta da sua boca.
Capítulo XLIII
O Cardeal tinha dado por encerrada uma longa e árdua manhã de audiências sobre assuntos de Estado.
Geralmente, depois de uma manhã dessas, ele ficava prostrado. Voltava para a cama e lá permanecia o resto do dia, só se levantando tarde do dia seguinte. Mas nesse dia ele não se sentia cansado. Ao contrário, sentia voltar-lhe a vitalidade e a euforia da juventude. As dores pareciam ter desaparecido. Não sentia os membros fracos ou flácidos, e até o seu espírito parecia desanuviado. Pela primeira vez, em meses, achava que a França, o mundo tinham alguma importância, que tinham reencontrado a substância e o significado de outrora. Pensou: essa é a ilusão dos homens inferiores. Mas tratou de afastar esse pensamento, recusando-se a voltar à região escura e nebulosa que tantas vezes trilhara. Alegrava-se de poder momentaneamente pensar como os homens inferiores e acreditar que valia a pena manipular o mundo.
Além disso, havia o caso de La Rochelle. Ele pretendia liderar pessoalmente a campanha contra aquela arrogante cidadela. Pela primeira vez, repetiu o aforismo da reação católica, afirmando que os protestantes estavam tentando contra-atacar a reação, coisa que ele não podia permitir. Na verdade, o alegado desafio dos magnatas huguenotes à reação católica não o preocupava. O que o enchia de preocupação era o crescente poder das cidades huguenotes e a sua constante ameaça à unidade da França. Em defesa dessa unidade, tolerara-as até ali. Mas agora, que essa unidade estava ameaçada, tomara a decisão de ir contra os huguenotes.
Pôs-se a andar de um lado para o outro do quarto, numa excitação cada vez maior. Sempre possuíra uma visão profética. Nesse dia, ela estava mais aguçada do que nunca, dando a impressão de alcançar um futuro longínquo. A visão de um grande Império Francês jazia diante dele como um sonho dourado, flutuando em meio a uma névoa luminosa. Só que para ele já não era um sonho, e sim uma realidade cada vez mais próxima.
Já não estava imbuído de um patriotismo apaixonado. Esse patriotismo fora, no máximo, uma expressão do seu profundo egocentrismo, fato que ele reconhecera, mas que procurava esconder até de si próprio. Agora, porém, já não o escondia. Exultava com ele, reconhecia-o com alegria e deleite. Essa França, esse sonho, era o seu! Fora a sua própria mão que dera forma ao futuro, que o esculpira. Aquele sonho era o seu monumento. A obra de Armand-Jean du Plessis, Cardeal de Richelieu. Trabalhando, finalmente, com base no pleno reconhecimento do seu supremo egocentrismo, ele sentia-se livre.
Um mensageiro entrou, trazendo uma missiva selada com um ornamentado sinete. Mergulhado nas suas grandiosas visões, o Cardeal pegou nela com impaciência e atirou-a em cima de uma mesa. Depois, recomeçou a andar, cada vez mais depressa. Parou um momento, cogitando. Seus olhos recaíram sobre a carta e pegou nela maquinalmente. Leu-a, sem se dar conta do seu significado. Só ao chegar à assinatura, agitada e manchada de lágrimas de Madame de Tremblant, foi que se deu ao trabalho de reler a carta com atenção.
Quando acabou de ler, fez uma pausa e franziu a testa. Revi- rou a carta nas mãos finas e bateu com o envelope nos dentes, suspirando. Depois, mandou chamar o seu secretário, Louis de Ri- chepin, que, como de hábito, atendeu imediatamente.
O Cardeal contemplou-o durante um longo momento. O rosto do jovem padre parecia mais humano, menos rígido. Era como se as suas feições, duras e marmóreas, tivessem sido suavizadas pelas chuvas de séculos. Contudo, naqueles grandes olhos azuis, tão cheios de luzes remotas e glaciais, pairava como que uma sombra, uma abstração.
— Ah, Louis! — disse o Cardeal.
Olhou para a carta que tinha nas mãos e, dirigindo-se rapidamente para uma cômoda que havia perto da sua cama, abriu-a e pareceu ficar um momento distraído na contemplação do seu conteúdo.
— Ah, sim — murmurou.
Pela primeira vez, em muito tempo, não sabia o que dizer. Virou-se para o jovem padre, que esperava, como sempre respeitoso e tranquilo, e repetiu:
— Ah, sim.
— Vossa Eminência desejava falar comigo? — perguntou Louis.
— Claro, claro, naturalmente — disse o Cardeal, brincando com a cruz de ouro que lhe pendia do pescoço. — Não é nada muito importante. Apenas Madame de Tremblant informando que a sua filha, Mademoiselle Marguerite, está doente, e pedindo que eu lhe arranje alguém. . . um confessor.
Não acrescentou que madame lhe tinha pedido que fosse ele mesmo,
O jovem padre estremeceu, ou seria apenas uma sombra passando por entre os pesados cortinados? Empalideceu, ou seria de novo o efeito da sombra? Quando, por fim, falou, foi numa voz baixa e ligeiramente rouca:
— Mademoiselle. . . está muito doente?
O Cardeal hesitou. Levou os dedos à boca e deu de ombros.
— Quem pode dizer? Mas duvido. As mulheres são sujeitas a frequentes indisposições, das quais, felizmente, nós estamos imunes. Não obstante, você me faria um favor, Louis, se fosse imediatamente ao hôtel de Tremblant.
Louis avançou um passo. Havia uma sombra azulada sobre o seu semblante, no qual os olhos se destacavam, com expressão atormentada.
— Monsenhor, está certo de que mademoiselle. . .
— Louis — interrompeu o Cardeal, sentindo uma hesitação desusada —, eu já lhe disse que não sei. Madame me pediu que mandasse um confessor para a filha. Parece que ela não tem podido se confessar ultimamente, e madame, como você sabe, é uma católica rigorosa.
Louis não respondeu. Limitou-se a retorcer as mãos. Depois, com uma reverência, saiu do quarto. Suspirando, o Cardeal releu o bilhete de Madame de Tremblant:
“Suplico a Vossa Eminência, na qualidade de amigo da família, que venha imediatamente ao hôtel de Tremblant. Minha filha Mar- guerite Marie está à beira da morte. Teve uma hemorragia dos pulmões à meia-noite, e o nosso médico informou-me de que ela não resistirá até esta noite”.
Obedecendo a um impulso subconsciente, Louis voltou por um momento ao seu quarto e reuniu todos os artigos necessários à administração da extrema-unção. Quando se deu conta do que estava fazendo e viu o que tinha nas mãos, gritou:
— Não! — e olhou, desvairado, para as paredes nuas.
Ao sair do Palácio Cardinalício, encontrou a carruagem do Cardeal à espera dele. Mais tarde, não se lembraria da corrida, através das ruas empedradas, até o hôtel de Tremblant. Sentou-se, inclinado para a frente, as mãos fechadas sobre os joelhos, os olhos fixos num ponto invisível, à sua frente. Uma sensação estranha e nova tomou conta dele. Pareceu-lhe estar morrendo. Uma névoa preta tremulava diante dele, e a toda a hora sentia um gosto de água salgada na boca.
Bastou-lhe ver os olhos avermelhados do homem que lhe abriu as portas maciças, para saber que a morte rondava aquela casa. Subiu a grande escadaria de ouro e mármore, segurando-se ao corrimão com mão fria de gelo. Não sentia nada debaixo dos pés. Era como se estivesse andando sobre nuvens, que a toda hora mudassem de forma.
Foi recebido, à porta do quarto de Marguerite, pela mãe e pelas irmãs dela, todas chorosas. Deitou-lhes um olhar desatinado.
— Estou aqui — murmurou.
— Ah, Monsenhor, quer dizer que Sua Eminência está indisposto? — perguntou Madame de Tremblant, numa voz abafada.
Louis fixou-a atentamente, e os seus lábios pálidos se entrea- briram sem ruído.
Mas Madame de Tremblant não viu nada de estranho no silêncio do jovem sacerdote. Apoiou-se no seu braço e entraram no quarto da filha, seguidos pelas irmãs, que soluçavam e choravam sem parar.
Louis só uma vez entrara num quarto de mulher — o da sua mãe. Teve uma impressão, de mistura com o seu sofrimento, de tons dourados, prateados e de marfim, de cortinados de seda pálida fechando as janelas, de ver uma pequena harpa de marfim emudecida, a um canto, um oratório contra uma parede, encimado por um grande e magnífico crucifixo de marfim e ouro, uma cama branca com baldaquim de renda e, sobre as almofadas de cetim, uma profusão de cachos cor de cobre emoldurando um rosto quieto e marmóreo. Dois conhecidos médicos se inclinavam sobre a imóvel silhueta, que mal levantava a alva colcha de cetim, tão pequena e frágil que era.
Quando a mãe, as irmãs e o padre entraram no quarto, os médicos levantaram os olhos e deixaram pender as cabeças. A expressão do seu rosto era de profunda ansiedade, e no seu olhar não havia qualquer esperança. Louis aproximou-se da cama e olhou para a moribunda, cujas pestanas douradas tocavam a face descolorida, cujos lábios entreabertos mal deixavam ouvir a respiração entre- cortada. Não fez qualquer movimento. Parecia feito de neve, tal a falta de expressão do seu rosto, tal a sombra que lhe toldava os olhos.
— Ela está voltando a si — murmurou um dos médicos.
Madame de Tremblant ajoelhou-se ao lado da cama e deixou cair a grande cabeça, de feições grosseiras e brutais, no ombro da filha. Não chorava, mas os seus braços estenderam-se sobre o pobre corpo da filha, enlaçando-a num abraço desesperado. As outras filhas se dispuseram em volta da cama, levando aos rostos, inchados de tanto chorar, lencinhos de renda para enxugar novas lágrimas.
A moribunda mexeu-se e gemeu baixinho. Levantou as pálpebras, e os seus olhos dourados, cheios de medo e de dor, pousaram brevemente em cada rosto. Por fim, fixaram-se em Louis, e um brilho inefável iluminou-os.
O velho médico murmurou algo ao ouvido de Madame de Tremr blant, e, chorando com a dureza dos fortes, ela ergueu-se e fez um smal às filhas, que, juntamente com os mecfkos, saíram do quarto, deixando a irmã sozinha com Louis.
Os dois olharam um para o outro. A luz da vela bruxuleava sobre o crucifixo. Uma leve brisa balançava os pálidos cortinados. Algo de luminoso pareceu encher o quarto.
Louis ajoelhou-se ao lado da jovem e, sem dizer- palavra, encostou a cabeça na almofada que sustentava a dele. Marguerite ergueu a mão com enorme esforço e pressionou-lhe levemente a face. A palma da mão, gelada, aqueceu; as pontas dos dedos tremeram. A jovem virou a cabeça, e os seus lábios de gelo tocaram a testa dele. Ficaram muito tempo em silêncio. Fluía dela aquela doce e poderosa radiância, confortadora e terna, que já uma vez reconciliara Louis com a vida, e o fizera fundir-se com outro sér humano.
A angústia do jovem padre acalmou-se, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente ficava mais forte, maior e mais penetrante. Segurou-lhe as mãos e levou-as aos lábios. Não havia lágrimas nos seus olhos, nem da sua boca saíam exclamações de tristeza. A jovem olhou para ele com aquele seu sorriso, ao mesmo tempo doce e forte, de total fé e amor — tão puro, tão irresistível, que a saúde e a vitalidade pareciam ter-lhe voltado, e um leve tom cor-de-rosa lhe subiu às faces transparentes.
— Meu amor! — disse ele. — Minha adorada!
Marguerite suspirou. Seus lábios se mexeram. Depois, com um gesto comovente, virou-se de lado e aninhou-se entre os braços dele. Louis apertou-a contra o coração. Olhou, por sobre os cachos cor de cobre, para o oratório, e não viu senão a própria desolação.
Marguerite ergueu a boca para ele. Louis começou por beijá-la suavemente, mas logo, tomado de uma súbita agonia, de um desespero frenético, os seus beijos foram ficando cada vez mais violentos e entrecortados de gemidos. Parecia fora de si.
— Você não pode me deixar, Marguerite — disse ele, mergulhando com mais força os lábios na suave garganta dela. — Não, você nunca vai poder me deixar. Não foi isso o que você me prometeu? Naquela noite, Marguerite, você me jurou: “Eu nunca o abandonarei”. Lembra-se disso, Marguerite?
— Lembro — murmurou ela, agarrando-se a ele, fitando-o com o seu sorriso meigo. — E eu nunca vou abandoná-lo, Louis. Vou estar sempre com você.
Ele compreendeu o que ela queria dizer. A sua expressão ficou ainda mais desvairada.
— Não, Marguerite. Se você morrer, ter-me-á abandonado! Não há nada para além do túmulo, minha querida! Eu não sou padre? Acha que eu não sei? É tudo uma mentira, Marguerite. Os padres sabem disso. É uma ilusão, uma falsidade, que se conta por piedade, aos que estão sofrendo e desesperados! Você acha que eu não sei? Não confessamos isso uns aos outros, alguns com desdém, outros com pena? Se você me deixar, Marguerite, você terá partido para sempre! Não existe nada. . . nada. . .
A voz dele, rouca, desesperada, saía-lhe dolorosamente da garganta, como se uma faca a rasgasse, inexorável. Suas mãos seguraram febrilmente a jovem. Seus lábios beijaram-na repetidamente, na garganta, nos seios, nos pobres braços emaciados, na testa e nos lábios. Como na noite em que se tinham amado, ele suplicou:
— Tenha pena de mim, Marguerite!
Ela submeteu-se às carícias dele, entrecortadas de gemidos, sentindo o terror com que ele a agarrava. Esqueceu o seu próprio sofrimento, o seu próprio medo, num último e supremo ato de compaixão e amor. Quando ele se aquietou, ela segurou-o nos seus braços e encostou-lhe a cabeça contra o peito. Não podia falar alto. A voz era apenas um sussurro, e os seus olhos, sorridentes e cheios de doçura e de fé, fitavam o distante crucifixo.
— Escute, eu nunca vou deixá-lo. Pode ter a certeza disso. Mesmo que só uma alma continuasse a viver para além da morte, essa alma seria a minha. Se você não acreditar, eu não poderei voltar para você, não poderei esperar por você.
Pôs as mãos debaixo da cabeça dele e levantou-a, obrigando-o, num último esforço, a olhar para ela. Agora, não havia mais medo naquele rosto jovem e moribundo, e nem tristeza. Apenas sorrisos e uma inquebrantável coragem. Puxou a cabeça dele para ela e beijou-o, lenta e ansiosamente, na boca. Depois, fechou os olhos e suspirou.
Louis apertou-a contra si, como se, com a sua própria força, a sua vontade, pudesse livrá-la da suprema inimiga da humanidade. Marguerite jazia nos braços dele, sempre sorrindo. Aos poucos, o sorriso foi ficando fixo e remoto, e a respiração morrendo em seu peito.
Recostou-a de novo nas almofadas. Tinha as pálpebras entreabertas, e um brilho reluzia por entre elas. Lentamente, com dedos rígidos, ele fechou-lhe os olhos. Depois, juntou-lhe as mãos, tão frágeis e pequenas, sobre o busto. A brisa penetrava por entre os cortinados e ondulava-lhe os cachos cor de cobre.
Louis levantou-se e olhou para aquela a quem ele amara tão puramente e sem egoísmo, que lhe fizera compreender o mundo e o transformara num homem, que lhe dera vislumbres do céu e do êxtase. Ficou ali, a mão apoiada no poste do baldaquim, sem se mover.
No seu passado não houvera alegria. No seu presente, não havia consolo. No seu futuro, não havia esperança. O mundo afastava-se dele como uma bola de névoa, desaparecendo entre eternas neblinas. Agora, ele estava face a face com a derradeira e muda agonia do homem, diante do nada, do horror, do pavor e do desespero da eternidade. Uma dor negra transfixou-lhe o coração, uma dor demasiado profunda para se poder expressar por lágrimas- ou palavras. E sentiu um ódio enorme, que abrangia Deus, e que, na sua intensidade, era como que a última acusação, o último gemido de desprezo de um homem atormentado, que pela primeira e última vez estivesse vendo o seu torturador.
De repente, lembrou-se de que não tinha administrado a extrema-unção a Marguerite de Tremblant. Lembrou-se e começou a sorriu, um sorriso terrível, que foi aumentando, até se transformar em risadas roucas.
Um momento depois, Madame de Tremblant, suas filhas e os médicos voltavam a entrar no quarto. Louis não os ouviu. O seu riso também já não era audível. Mas permaneceria no seu rosto e sacudia-lhe todo o corpo.
Capítulo XLIV
O medo tem uma realidade visível, semelhante à de um grande fog fumacento, a um miasma se contorcendo, a uma nuvem escondendo a luz do sol. O medo pairava sobre o povoado, sobre os vinhedos e as colinas, sobre o rio, cavado pelas cataratas de chuva. Até mesmo o aspecto do céu, cheio de nuvens cinzentas e pretas, que rolavam sobre os campos e os prados, das poças d’água que se formavam nas ruas empedradas, dos telhados e das paredes reluzentes das casas baixas, do vento, que inclinava os altos álamos, tornando-os semelhantes a fantasmas, tudo parecia feito de medo, a emanar dele. Tudo parecia estremecer, tremer, sob a tempestade do medo. De vez em quando, a serpente lívida de um relâmpago pulava sobre os montes, dividia o céu tormentoso, seguida de um rugido que lembrava o tumulto distante de gigantes.
Nas ruas, nem uma alma. Nem uma única luz cintilava por trás das janelas fechadas. Os pequenos jardins estavam arrasados, as pétalas voando ao vento, quais borboletas estonteadas, as folhas rodopiando das árvores. A cruz, no campanário da igreja, refletia a luz dos relâmpagos, brilhava sinistramente. O rio crescia. A sua voz, pesada e ameaçadora, ouvia-se nos intervalos do vento e do trovão. A desolação era total. O medo e a tempestade dominavam sobre a terra.
Passava um pouco do amanhecer. Havia dias que os aldeões viviam apavorados. Curados da sua insensatez, da sua monstruosa loucura, sabiam que a feroz lei da França não tardaria a ajustar contas com eles. Tinham matado um grão-senhor e lhe destruído o château, símbolo do seu poderio. Tinham atacado o poder, a lei da França. O castigo não demoraria, sob a forma da força. O padre, que eles esperavam os apoiasse, os livrasse da responsabilidade, estava morto. Nenhum argumento lhes seria permitido, nenhuma justificativa. Os muros da França tinham ouvido os seus golpes e as suas imprecações. Bastava que tivessem erguido as mãos contra o poder estabelecido. Agora, pela primeira vez, davam-se conta da enorme força levantada contra eles, a ralé, os deserdados, os joãos- sem-nome, que tinham ousado atacar a autoridade e os privilégios. Morreriam por isso.
Agrupavam-se, procuravam a companhia uns dos outros, levados pelo medo. Alguns, mais desesperados, falavam em formar uma frente contra os vingadores, mas até os mais valentes sorriam disso. Outros queriam fugir, com as mulheres e os filhos. Mas, para onde? Estavam tão acostumados a pensar como homens, a agir como homens, que faziam mil e um planos desesperados, para logo se aperceberem de que não tinham força. Com a morte do seu defensor, do seu protetor, estavam outra vez sujeitos à selvageria do poder estabelecido.
Ainda não sentiam remorso nem sofrimento pela morte de Paul de Vitry. Não ousavam sentir. Sabiam que, no momento em que se permitissem esses sentimentos, se desintegrariam por completo. Por isso, inventavam um pensamento capaz de lhes dar força: ele fizera parte do poder que agora os ameaçava, que acabaria por destruí-los. Por isso, continuavam a odiá-lo. É assim que a mente tortuosa dos homens se defende.
Poucos tinham dormido durante aqueles dias horríveis. Esperavam, ouvidos alerta, a chegada dos vingadores. Mas a tempestade fora terrível, essa manhã, e por isso eles não tinham ouvido o ruído dos cascos de uma tropa de cavalos, entrando no povoado. Não viram nem ouviram os quarenta jovens e resolutos nobres, com expressões graves, protegidos da chuva pelas capas, nem os seus duzentos anônimos acompanhantes, com cataduras e olhos mais ferozes. Esses duzentos e quarenta homens penetraram no povoado armados e encharcados. Os quarenta nobres entraram na taberna e na casa de Crequy. Os outros duzentos homens acoitaram-se sob os beirais das casas ou debaixo das precárias copas das árvores.
Crequy já os aguardava. A jovem Roselle vinha encarapitada no arçâo do cavalo de Arsène. Correu para os braços do tio, soluçando. Ele beijou-a e disse-lhe para ir ter com Cécile Grandjean, que continuava em estado grave. Depois, o calvo e sinistro gigante virou-se para Arsène e saudou-o respeitosamente, com um sorriso malévolo.
— Você veio pessoalmente, monsieur? — disse ele.
Um grande fogo crepitava na lareira e outro ardia na cozinha. Os nobres dispuseram-se em volta de ambos, -sacudindo vigorosamente as capas molhadas e fazendo o fogo estalar ao contato das gotas de água. As chamas aumentaram e iluminaram-lhes os rostos duros, os olhos ansiosos, os dentes brancos. Pouco falaram, interrogando Crequy com ar condescendente. Encheram a taberna e a casa de um clima de violência e determinação. Enquanto aqueciam as mãos, a luz das chamas fazia brilhar os anéis nos seus dedos aristocráticos, os punhos das suas espadas, os cabelos escorrendo, molhados, nos seus ombros jovens.
Crequy foi buscar o melhor vinho, presuntos, pães e aves que guardara para esse dia. Andava de um lado para o outro, servindo os visitantes, que trataram de comer com apetite mesclado de preocupação. Um ou dois, volúveis, riram um pouco. A taberna nunca estivera tão movimentada. Crequy olhava para eles com venenosa satisfação e expectativa.
Arsène ficou um pouco afastado, o rosto ainda abatido, e algo apático pelo sofrimento que sentia, mas começando a se animar com a ideia da vingança. Bebeu vinho, mas não comeu nada. Por fim, aproximou-se de Crequy e disse-lhe algumas palavras. Crequy assentiu com a cabeça. Foi buscar grandes rolos de corda e dirigiu-se para a porta. Arsène ficou à espera. Finalmente, de um lugar próximo da taberna, veio o ruído de sinistras marteladas. Arsène teve a impressão de que lhes repercutiam no coração e respirou com dificuldade.
Teve, então, a mais estranha das sensações. Sentiu que Paul de Vitry estava de repente presente, que olhava gravemente para eles, com rosto pálido e olhos desesperados. A sensação era tão vivida, que Arsène deu meia-volta e gritou, intimamente, para o silencioso fantasma do amigo:
— Não! Vá embora! Isso não é para você, Paul! Não, eu não vou lhe dar ouvidos!
Custava-lhe respirar. Bebeu avidamente o resto do vinho.
— Vá embora! — gritou de novo, com raiva.
A chuva parou de repente, mas o céu ficou ainda mais escuro. O vento calou-se. Agora, ouvia-se perfeitamente o crescente ma- rulhar do rio. Crequy voltou a entrar na taberna, esfregando as mãos enormes. Parecia uma encarnação do mal, com a luz das chamas refulgindo-lhe no crânio nu.
Arsène olhou para a estreita escada de madeira, e Crequy inclinou a cabeça. Afastaram-se dos nobres, que bebiam e falavam, e, galgando a escada às escuras, entraram num pequeno quarto de água-furtada, onde se podia ouvir o gemer do vento e o crocitar de corvos. Uma vela bruxuleava sobre a mesa, desenhando listas de luz e sombra nas paredes. A jovem Roselle, com os cachos molhados e em desordem, estava sentada num banquinho, junto da cama. Gotas cristalinas escorriam-lhe pelas faces. Duas velhas freiras, de hábito e véu pretos, com rostos pálidos e calmos, olhos tranquilos e mãos brancas e longas, curvavam-se sobre a cama, cuidando da Cécile, ainda inconsciente. Levantaram a cabeça e olharam para Arsène e Crequy, mas não falaram nem se moveram. Perto da cama havia um monte de ataduras e várias bacias com água.
— Monsieur — disse Crequy —, estas são as Irmãs Eloise e Michele, do convento aqui perto, enviadas para tratar de Cécile pela madre superiora, que era muito amiga de Monsieur le Comte. Têm feito tudo o que podem. A Irmã Eloise é muito versada na urte da Medicina.
— O resto fica nas mãos de Deus — disse a Irmã Eloise, com um suspiro.
Arsène olhou para o pobre quarto, que mais parecia uma cela. Aproximou-se da cama e contemplou, em silêncio e com o coração pesado, a jovem que ali jazia, imóvel, na sua camisola branca. Seu cabelo castanho-claro, tocado de dourado, repousava, numa trança, sobre as grosseiras almofadas, emoldurando-lhe o rosto pálido e fino, contorcido pela dor. As pestanas douradas franjavam-lhe as faces emaciadas. Os lábios brancos estavam entreabertos, mal deixando passar a respiração. Mas, mesmo naquele estado de inconsciência, havia um quê de nobreza no seu queixo, na sua boca e nos seus olhos fechados, uma reticência, uma altanaria naquela testa alta e lisa, que nem a sombra da morte podia afastar.
Uma tremenda agonia tomou conta do espírito de Arsène, de mistura com uma enorme paixão. Mas a sua expressão, apesar do que ele sentia, era carregada e fechada. Ali, naquela cama, ferida e à beira da morte, estava tudo quanto ele amava, tudo quanto ele sempre desejara realmente. Uma terrível fogueira se ergueu diante dos seus olhos. Agarrou-se aos pés da cama com a mão molhada, que se fechou em garras. À luz da vela, os seus dentes brilhavam por entre os lábios pálidos.
Cécile murmurou algo, respirou profundamente e virou a meio a cabeça. Foi então que Arsène viu o ferimento, ainda sangrando sob as ataduras. Um som abafado saiu-lhe dos lábios. As freiras, Roselle e Crequy olharam para ele com compaixão.
Ajoelhou-se junto da cama e levantou as mãos frias e inertes da jovem. A sua pele delicada estava cheia de marcas de trabalho. Ergueu-lhes as palmas e beijou-as, a princípio de leve, depois com tormento e ardor. Levou-as às próprias faces, procurando aquecê- las com o seu calor. Beijou-lhe os pulsos finos e os braços suaves e brancos. Deixou-se levar pelo medo e pelo amor que sentia. Tocou-lhe a testa lisa com os dedos e, depois, com os lábios. Colocou a sua face contra a dela. Seus lábios trêmulos aproximaram-se do ouvido dela e ele exclamou, em voz alta:
— Cécile!
Ela mexeu-se levemente, ao som da voz dele. A cabeça voltou-se lentamente na direção de Arsène como se, mesmo inconsciente, soubesse que ele estava a seu lado. Um leve sorriso pairou- lhe nos lábios e ela suspirou.
Incapaz de se conter por mais tempo, ele chorou. Mas as suas lágrimas eram de raiva e ódio. Levantou-se e olhou para as freiras.
— Os que fizeram isso morrerão — jurou.
A irmã Eloise encarou-o com pena.
— Monsieur não é Deus — disse ela.
Mas Arsène olhou de novo para a jovem, com expressão terrível e respiração ofegante.
— Deus misericordioso ainda pode salvá-la — disse a Irmã Eloise. — Mas Ele pode castigá-lo, monsieur, por querer você usurpar os Seus poderes.
Arsène, porém, nada via, a não ser Cécile. O sorriso ainda persistia, como uma luz fugidia, no rosto dela. Arsène inclinou-se e beijou-lhe os lábios, que estremeceram no contato dele. Depois, virou a cabeça e olhou fixamente para a parede, as narinas tão dilatadas, qufe a membrana vermelha se destacava em meio à palidez.
Desceu a escada, com Crequy na peugada.
— Não desespere, monsieur, ela não está pior — grunhiu ele. — O sangramento quase parou. Ela hoje tomou um pouco de vinho. Ontem, nem água ela era capaz de tomar. As freiras têm-se desvelado.
Mas Arsène não respondeu. O ódio que sentia e o desejo de vingança eram mais fortes do que nunca.
O céu cinzento continuava entrecortado de relâmpagos em meio a um silêncio apavorante, quebrado apenas pelo rumorejar cada vez maior do rio. A chuva parara. Até mesmo as árvores estavam agora quietas. Os nobres tratavam de vestir de novo as capas, os rostos novamente duros e secretos.
Arsène enfiou a capa encharcada, e os outros seguiram-no para fora da taberna.
Uma estranha multidão os esperava. Enquanto os jovens nobres comiam e bebiam, Crequy tinha dado ordens aos duzentos acompanhantes, os quais, sob a ameaça de espadas e pistolas, haviam reunido os camponeses, tirando-os dos seus esconderijos. Tinham antecipado alguma resistência e ficado surpresos diante da docilidade desesperada dos seus prisioneiros. Estavam agora todos juntos diante da taberna, da qual se avistava a rua principal do povoado.
Uma luz fraca e espectral pairava sobre a terra, que parecia encolher-se com medo do furor do céu. Só no céu havia ainda algum movimento, em forma de relâmpagos e faíscas que riscavam o cinza-plúmbeo de serpentinas elétricas. Os raios iluminavam os rostos dos aldeões, arrebanhados e trêmulos.
Arsène olhou para aqueles rostos, que Paul tanto amara. Mal podia reconhecê-los. Havia pouquíssimo tempo, aqueles rostos refletiam satisfação, uma felicidade simples e ingênua, um afeto aparentemente sincero. Agora, ao olhar para eles, via como as emoções humanas podem transformar o falso aspecto de paz, simplicidade e bondade em expressões primitivas. Encarou-os fixamente, com uma dor crescente no coração, e viu-os como eles na verdade eram estúpidos, maus, desconfiados, velhacos, desafiantes, apavorados, ignaros e odiosos. A dor que sentia transformou-se numa fogueira de fúria e indignação.
— Liberdade, instrução e misericórdia — dissera Paul, o rosto bom e ingênuo iluminado pela virtude.
E fora isso o que ele dera àquela gente. Como, por baixo da sua aparente gratidão, eles deviam tê-lo odiado por lhes dizer que eram homens, seres humanos como quaisquer outros! Consumido pela raiva, Arsène esqueceu tudo, menos que Paul de Vitry fora um idiota.
• Porque ele via, naqueles rostos alinhados diante de si, todos os vícios e defeitos da humanidade, toda a cupidez, toda a crueldade, toda a bestialidade, toda a traição e toda a degradação, todo o ódio e toda a ingratidão, toda a selvagería e todo o desdém pela bondade, toda a violência e perversidade naturais da raça humana. E foi ficando tomado de uma aversão, de um horror e de uma repulsa pelo fato de pertencer também a essa mesma espécie, de uma terrível vergonha por saber que tinha algo em comum com eles. Nenhum homem, pensou, pode dizer: Eu sou diferente deles! Não havia homem que não compartilhasse dessa herança comum. Todos faziam parte dessas hediondas criaturas, que deviam levar Deus a vomitar, no alto da Sua morada.
Sentiu-se então invadido por um imenso ódio contra a sua própria espécie, esse ódio que é necessário para criar o grande soldado, o grande estadista, o grande tirano, o grande sacerdote e o grande criminoso. E, na medida em que esse ódio o invadia, ele ia se sentindo liberado. A mesquinhez e a baixeza dos outros homens como que o libertavam e o engrandeciam.
Tinham sido aquelas bestas, aqueles porcos, aquelas criaturas degradadas, que haviam acabado com Paul de Vitry. O conde, tão ingênuo, tão bom, tão cheio de misericórdia, doçura e desejo de justiça, fora impiedosamente morto por aquele rebanho, aquela vara de suínos. Suas presas imundas tinham tirado a vida ao seu benfeitor. Tinham cortado a única mão, em toda a França, que se levantara para socorrê-los. Tinham silenciado a única voz que clamara contra os seus sofrimentos. Em troca disso, haviam-lhe dado a morte. Ele, o aristocrata, o senhor, o intelectual, cheio de ternura pela humanidade, acabara vítima da corrupção daquelas imundas bestas !
À medida que esses terríveis pensamentos passavam, como linha de fogo, pela mente de Arsène, os camponeses ficavam impressionados com a ferocidade do seu olhar. Involuntariamente, homens e mulheres recuaram, emudecidos peló terror. Porque, naquele olhar, liam uma perfeita compreensão dos seus motivos e da sua natureza. Umedeceram os beiços. Os corações bateram- lhes com força. Olharam em volta, com desespero de animais acuados. Estavam cercados de espadas desembainhadas, de sorrisos desumanos. Foi então que um deles avistou o cadafalso armado apressadamente diante da porta da taberna. Uma trave de madeira fora pregada, em ângulo reto, no tronco de uma árvore. Dela pendia uma corda, balançando ao vento.
O camponês que primeiro viu a forca soltou um grito animalesco e apontou, com um dedo trêmulo. Os outros olharam e gritaram também. Mas os captores continuaram calados. Atrás de Arsène, Crequy ria, flexionando as mãos numa terrível e monstruosa antecipação. A multidão oscilou, aglomerou-se ainda mais, todos os olhares desesperadamente fixos na forca.
Arsène olhou para aquela demonstração de terror, sem qualquer remorso. Esperou um pouco. Ouviu o soluçar das mulheres, os gemidos dos homens. Avançou um passo e, em meio à escuridão da tempestade, disse, numa voz calma e nítida:
— Cachorros, vim para justiçá-los.
Um silêncio de morte seguiu-se a essas palavras. Arsène olhou para os companheiros, que por sua vez contemplavam os camponeses com desprezo e aversão de aristocratas. Tinham conhecido Paul de Vitry e o amado. Mas não tinham ido até ali para vingar-lhe a morte trágica, e sim movidos pela raiva aristocrática contra a canalha, que ousara sublevar-se contra o poder e os privilégios dos nobres. Ao ver aquilo, Arsène sentiu como se tivesse levado um soco no meio do peito. Viera para vingar Paul, mas via que os outros tinham vindo para destruir uma rebelião que ps ameaçava. Eles próprios não tinham consciência disso, mas a prova ali estava, nos seus rostos finos e nos seus olhos velados.
Não importa qual a razão que os levou a vir, pensou Arsène. Basta-me que tenham vindo. Mas sentiu, pela primeira vez, uma sensação de náusea, um tremor estranho.
Voltou a falar, e a voz ressoou em meio à escuridão e ao silêncio:
— Seu amo era justo e bom. Deu-lhes liberdade, dividiu o que tinha com vocês. Em paga, vocês o mataram. Ao atacarem o Conde de Vitry, vocês atacaram a França. — Fez uma pausa e tirou, do gibão, um rolo de papel. — Tenho aqui uma ordem de morte contra vocês. Morrerão de maneira rápida e ignóbil, como exemplo para quem pretender levantar a mão contra a majestade e a autoridade da França.
Dentre o silêncio que pesava sobre aquela multidão pálida e trêmula, uma voz gritou:
— Foi o padre!
Os outros murmuraram palavras de esperança. Mas Arsène limitou-se a sorrir amargamente.
— O Conde de Vitry, havia muitos anos, os libertara. Esse padre só esteve aqui algumas semanas. Com que facilidade foram levados pelas palavras dele! Se dentro de vocês não houvesse a semente da maldade, nada disto teria acontecido? Morrerão na forca. Só lamento — acrescentou, com ironia — que não haja um padre à mão para os confessar.
Olharam para ele com tremendo desespero, mas viram apenas a espada de ferro da França ameaçando-os, o poder de ferro dos magnatas e dos opressores. As mulheres soluçavam e retorciam as mãos, os homens gemiam. Algumas mulheres gritaram:
— Que será dos nossos filhos?
Arsène olhou para eles e não viu remorso, amargura, ou pena, e sim apenas medo de feras acuadas. O seu ódio cresceu ainda mais. Olhou para os rostos sorridentes dos seus companheiros, aproximando-se, fechando o cerco em volta dos camponeses.
— Um entre cada dez homens e mulheres será executado pela morte do Conde de Vitry, do seu administrador, Grandjean, e pelo cruel ataque a Cécile, neta deste último. Mas antes quero que me entreguem os seus líderes.
Esperando encontrar a maneira de se salvarem, os camponeses puseram-se a procurar freneticamente os líderes. Suas mãos agarraram um jovem, o único que, dentre todos, conservara uma certa dignidade. Mas ele afastou-lhes desdenhosamente as mãos e empurrou os que lhe estavam mais próximos. Dirigiu-se para Arsène com passo rápido e firme, mantendo a cabeça bem erguida. Arsène não pôde esconder a surpresa, porque aquele jovem, com a sua camisa branca, os seus calções de lã, o seu corpo moreno e musculoso, os seus braços fortes, aparentava orgulho e dignidade. Seu rosto quadrado e beligerante, queimado do sol, seus olhos negros e inquietos, cheios de paixão, sua boca severa, não demonstravam medo ou covardia. Toda a sua presença respirava força e liderança.
Parou diante de Arsène e falou calmamente, os olhos brilhantes à luz que se coava através das nuvens:
— Meu nome é Jean Dumont, monsieur. O padre convenceu- me, por eu ter certa influência sobre esses desgraçados, de que o Conde de Vitry tinha más intenções para conosco, que as suas medidas aparentemente libertárias eram apenas um pretexto para adiar a execução das doutrinas libertadoras, propostas por Sua Majestade, o Rei. Compreendo agora que o complô era contra Monsieur le Comte e nós mesmos. Sou culpado de ter desempenhado um papel na sublevação desses pobres-diabos. Percebo que eles não são dignos de qualquer libertação, por menor que seja.
Não obstante, não lhe peço perdão pela parte que me cabe. Sou culpado. Mereço morrer.
Falou com tanto orgulho, com tanta tristeza, com tanto desprezo e desdém, que Arsène ficou perplexo. Olhou para aqueles olhos negros e firmes, para aquele rosto grosseiro mas inteligente, cheio de força e saúde, e viu a desilusão estampada nele. Mas afastou-se e levantou a mão.
Crequy agarrou Jean Dumont pelo braço, mas o jovem camponês afastou-lhe a mão com ar ultrajado. Encamínhou-se calmamente para a forca e ficou à espera. Crequy amarrou-lhe a corda ao pescoço. A multidão ficou a olhar, a respiração suspensa. Crequy pegou na corda, depois de cuspir nas mãos. Jean Dumont voltou-se lentamente, olhou para aqueles rostos pálidos, cheios de medo animal, e fechou os olhos, como que asqueado.
Crequy puxou a corda. Jean Dumont foi içado no ar. Seu corpo estrebuchou contra o cinzento do céu. Horrorizada, a multidão viu as convulsões começarem a diminuir. Por todo o lado reinava o mais completo silêncio. Naquele cemitério de paixões humanas, havia apenas o movimento decrescente do enforcado, do homem que, à sua maneira turbulenta, esperara salvá-los, mas que também terminara por desprezá-los.
Crequy desceu a corda. O corpo caiu, contorcido, em cima da terra. O taberneiro levantou-o e jogou-o para um lado.
Ouviram-se gritos desesperados no meio da multidão. Vários homens arrastaram dois outros, que gritavam incoerentemente. Um deles era Guy La Farge, o antigo capataz. O outro era Pierre Dubonnet, o ex-adminístrador.
Arsène olhou para o primeiro, que se debatia, entre urros apavorados. Viu a magreza de La Farge, o cinzento do seu rosto. Olhou para o outro, Dubonnet, homem rotundo, cujo rosto, outro- ra corado e satisfeito, parecia agora derreter-se em lágrimas. Os dois homens se debatiam e dobravam os joelhos, arrastando os pés como animais a caminho do matadouro, seus derradeiros instintos humanos perdidos num vórtice de terror primitivo. No meio da turba, uma mulher gritava como louca.
— São esses os seus chefes? — perguntou Arsène.
A multidão fez que sim, berrando, erguendo os punhos cerrados, aproximando-se mais de Arsène, esperando obter o favor dele através da vergonhosa traição de entregar os que os haviam incitado. Dubonnet, após ter conseguido livrar-se momentaneamente dos seus captores, caiu de joelhos diante de Arsène e ergueu as mãos.
— Monsieur — gemeu ele —, meu bom amo e senhor, apie- de-se de mim! Não há aqui um padre para me confessar. Sou um fiel católico, não posso morrer sem me confessar. Tenhor mulher, sou casado. Não passo de um pobre homem.
A voz foi sumindo, até morrer-lhe de vez na garganta. Começou a chorar e a fazer gestos desordenados com as mãos. Seus olhos, semelhantes aos de um animal acossado, imploravam misericórdia ao inexorável Arsène. Os gritos da mulher tornaram-se insuportáveis.
— Por que foi que você instigou o seu povo contra o Conde? — perguntou Arsène.
O homem choramingou, esfregou as mãos contra os lábios, e respondeu, numa voz que mais parecia um chiado:
— Monsieur, foi o padre. Eu sou um bom católico. Ele me botou na cabeça que Monsieur le Comte fazia parte de um complô huguenote para destruir a Igreja. . .
Arsène deu meia-volta. Crequy agarrou o pobre-diabo. Arsène ouviu os gritos lancinantes do homem, gritos abruptamente interrompidos pelo súbido descer da corda. Agora, até a mulher ao longe se calara, e todos, menos Arsène, ficaram como que fascinados, vendo Dubonnet morrer.
Um cheiro de enxofre encheu o ar, e da terra subiu um odor fétido de coisa podre. Arsène olhou em volta. O roncar do trovão transformara-se num uivo. Arsène ouviu-o, e uma espécie de paralisia voluptuosa se apoderou dele. Sentiu-se tomado por uma terrível euforia, que o fez rir alto e selvagemente. Uma horrível calma pareceu descer sobre todos os presentes, como se fosse uma pantomima executada por surdos-mudos em meio a um pesadelo.
Arsène ergueu então os olhos para o vulto de La Farge, debatendo-se contra o céu. Crequy, o gigante, estava aos pés da sua última vítima, olhando para cima e rindo. Uma névoa flutuava ao seu redor, como um fog escuro, através do qual brilhasse, eterno, o espírito do mal. Os camponeses e os seus carrascos permaneciam imóveis. O relâmpago ziguezagueou sobre os seus rostos pálidos e exangues, sobre os olhos parados, sobre as bocas imbecis e os cabelos esvoaçantes. Um vento mais forte revelou as paredes saqueadas e incendiadas do château.
Arsène sentiu que não podia mais. Desviou os olhos da forca, fixando-os na rua cinzenta do povoado, para além da multidão e da taberna. Viu então algo que o fez pestanejar, incrédulo. Um cavalo pequeno vinha vindo, a cabeça inclinada e exausta, as patas mancando. E, no dorso desse cavalo, estava uma figura envolta numa capa e com um grande chapéu. Cavalo e cavaleiro transmitiam uma sensação de melancólica preocupação.
Durante momentos, ninguém mais reparou neles. O vulto desmontou e aproximou-se, como se pairasse num sonho cinzento. Era o Abade Lovelle.
Não! disse Arsène para si mesmo. Seus companheiros viraram-se e olharam para o padre. Por sua vez, os camponeses também o viram. Grandes gritos ecoaram. Uma convulsão tomou conta deles, como se fossem águas estagnadas agitadas pela queda de uma enorme pedra. A alegria veio substituir a expressão torturada, desesperada, dos seus rostos. Procuraram chegar perto do padre, por entre o círculo dos captores, mas foram empurrados para trás com violência. Não desistiram, porém, como se não temessem os golpes, estendendo os braços para o abade, gemendo, soluçando, gritando de alegria. Muitos caíram de joelhos, espichando as mãos trêmulas, beijando freneticamente o ar, os olhos brilhantes de esperança.
O padre ficou um momento parado, olhando para todas aquelas coisas, para o cadafalso, para o enforcado balançando no ar, para Arsène e seus companheiros, para as caras vulpinas dos carrascos. Passado um bom bocado, levou as mãos aos olhos. Quando as retirou, suas faces, velhas e murchas, estavam manchadas de lágrimas.
Depois, sem dizer uma palavra, aproximou-se lentamente de Arsène e olhou para ele com firmeza. Arsène ficou calado, vendo-o aproximar-se.
O abade parou diante do jovem. O silêncio voltou a reinar, e não havia movimento senão o do enforcado, estrebuchando, grotesco e desajeitado, contra o céu. Ouviu-se um ruído distante: o grunhido de Crequy, profundo e faminto.
O relâmpago iluminou o rosto do abade, a expressão severa do velho padre. Arsène procurou falar, mas, não conseguindo, ergueu o braço e apontou para as ruínas do château. Seguindo-lhe o gesto, o abade olhou para os lados e para cima. Estremeceu de maneira tão violenta, que a sua gasta batina tremulou, como se soprado pelo vento.
— Sim — disse Arsène, suavemente —, foi o seu rebanho quem fez isso, Monsieur 1’Abbé. Mataram o seu protetor, executaram o seu amigo, como se fosse essa a recompensa justa para a sua misericórdia e a sua justiça. E foram levados a isso e à forca pelo seu querido irmão em Cristo, Monsenhor de Pacilli.
O padre volveu muito lentamente o olhar para Arsène e depois para os camponeses. Não disse nada, não fez sequer um gesto. Olhou apenas para aqueles homens e mulheres apavorados, e o seu rosto expressou a dor, o espanto e o sofrimento de sentia. Os lábios tremeram-lhe. Inclinou a cabeça, como se rezasse.
Depois, disse em voz baixa olhando para Arsène:
— Há sete noites, tive um sonho, um pesadelo horrível. Sonhei que o meu rebanho estava em perigo, que um holocausto caíra sobre ele por causa de uma culpa sem nome. Uma voz me incitou a deixar a minha querida sobrinha e voltar aqui. Saí na manhã seguinte, ao alvorecer. _
Os camponeses olhavam para ele em silêncio, como se fascinados. E então os seus rostos, cheios, até ali, apenas de medo e astúcia, mudaram de expressão, ficaram transtornados. Um a um, começaram a chorar, a soluçar, numa onda crescente e clamorosa, carregada de angústia e desespero. Recuaram, cobriram as faces com as mãos. Suas lamentações, agora roucas, tocavam até os corações mais duros. Já não tinham medo; apenas arrependimento e dor.
Lentamente, um a um, caíram de joelhos e deixaram tombar as cabeças, sempre chorando. Um dos camponeses mais próximos do padre falou, com voz rouca, erguendo uma das mãos em humilde abandono:
— Padre, não sabemos explicar por que fizemos isso. Matamos o nosso amo, o nosso amigo. Não nos pergunte por quê. Não sabemos dizer.
O abade ouviu com atenção e depois levantou as mãos para o céu, voltou o rosto para o firmamento e orou em silêncio, as lágrimas rolando-lhe pelas faces.
Assistindo a tudo aquilo como se sonhasse, Arsène sentiu um puxão no braço. O jovem de la Royale murmurou-lhe, com impaciência:
— Vamos acabar logo com eles e com esse padre esfarrapado.
Arsène olhou para ele como se não o visse, e depois voltou-se para o Abade Lovelle, que o contemplava, chorando.
— Monsieur — perguntou o abade —, que autoridade tem para executar essa gente indefesa?
Arsène passou-lhe às mãos a ordem com o sinete real. O abade leu-a rapidamente e devolveu-a, o rosto mais pálido do que antes.
Disse, com voz serena:
— Houve um Homem que morreu na cruz e disse: “Perdoai-os, Pai, pois eles não sabem o que fazem”.
As suas palavras ecoaram no silêncio reinante. Juntou as mãos e olhou tão-somente para Arsène.
Quando, por fim, este falou, foi numa voz estrangulada:
— Pensa, porventura, que eu estou gostando disto, Monsieur le Curé? Há dez anos, houve um caso parecido, de assassinato do senhor de certas propriedades, um homem cruel e depravado. Não obstante, a lei exigiu que todos os camponeses fossem condenados à morte pelo crime. Se eu não vingar o Conde de Vitry, a lei da França se encarregará de fazê-lo.
Deitando-lhe um último olhar, o padre volveu os olhos para a pilha de homens e mulheres enforcados, pára os corpos atravessados pelas espadas e adagas, estremeceu, como se também ele houvesse sido atingido.
Arsène prosseguiu:
— Pode confessá-los, Padre, mas a vingança precisa ser levàda a cabo. Acredita que a lei seria mais misericordiosa do que eu?
O abade levantou a mão e apontou lentamente -para Arsène.
— Monsieur, você tem plena autoridade de agir como quiser. Se desejar matar esses pobres desgraçados, não lhe falta autorização para tal. Se preferir poupá-los, também.
Suas palavras, trêmulas, mas cheias de força e acusação, encheram o ar. Os soluços e gemidos dos camponeses tinham dado lugar a uma lamentação sem palavras ou preces.
O rosto de Arsène ficou rígido e fechou-se mais ainda.
— Monsieur le Curé — disse ele —, não desejo poupá-los. E acrescentou: — Eles mataram o meu amigo.
A expressão do abade tornou-se mais animada. Juntou as mãos.
— Monsieur, eles mataram o seu amigo, e o meu e o deles! Mas pense bem se ele gostaria de que fizesse uma coisa destas!
Arsène não respondeu. O abade ergueu os olhos e exclamou:
— A alma dele acusa-o, monsieur! Ele teria perdoado essa pobre gente! Ele a teria compreendido. Você não é digno da amizade dele, nem de chamá-lo de “amigo”.
Os amigos de Arsène, tremendo nas suas capas, sorriram levemente. Olharam para o velhinho, as lágrimas rolando-lhe pela face, a voz ecoando no ar sombrio, e não puderam esconder a impaciência e o desprezo. Mas Arsène não lhes deu atenção.
Vendo que Arsène não respondia, o abade chegou-se mais perto, agarrou uma prega da capa do jovem e caiu de joelhos, com uma expressão súplice e dolorosa no rosto.
— Já basta o que você fez, monsieur. Por acaso essas mortes vão trazer de volta o nosso infeliz amigo, que era todo piedade e compaixão? Veja como choram! Não de medo, não de pavor. Desejam a morte, como pagamento do crime cego e ignorante que cometeram. Se os executar, todos eles caminharão humildemente para a morte, cônscios de que esse é o castigo justo. Mas será que mais mortes lhes aumentarão a angústia, o remorso e o sofrimento? Não estará você se vingando de homens que já foram punidos, que já estão arrasados? Não será isso o bastante? Mais violência servirá apenas para destruir-lhe a alma, e não para in- flingir maior castigo a essa pobre gente.
As mãos trêmulas agarraram febrilmente a capa de Arsène, que procurou recuar. Mas o padre segurou-o ainda com mais força. Abra- çòu Arsène e chorou.
— Como posso poupá-los? — perguntou Arsène. — Quero que todos eles morram. Não posso me forçar a desejar outra coisa. Eles merecem morrer.
Uma loucura tomou conta dele, fazendo-o gritar:
— Toda a humanidade merece morrer! Gostaria de poder matar todo mundo!
Os braços do abade enlaçaram com mais força os joelhos de Arsène. Levantou para ele os olhos marejados de lágrimas. Mas a expressão do seu rosto era de pena do jovem.
— Falai . . sim é falar contra Deus Todo-Poderoso, o Criador de toda essa pobre gente. Monsieur, reflita nas origens obscuras da humanidade. Pense em como os homens antes se assemelhavam às bestas da floresta e das planícies. Pense em como a humanidade iniciou a sua lenta e tortuosa subida para a luz. Mil vezes o pé da besta escorregou, e o homem regressou ao poço de onde tinha saído. Mas sempre volta a subir, impelido por só Deus sabe que estranho, terrível e imortal impulso. Monsieur, não podemos esquecer esse impulso, mesmo nos momentos de ódio e desvario. Quem sabe se não chegará um dia em que até a alma mais torpe se abra para a luz universal? Em nome dessa esperança, precisamos ter piedade, precisamos ter misericórdia, precisamos saber rezar, esperar e ter fé. Precisamos ter a paciência de Deus.
Arsène teve a impressão de que o velho já não pedia pela vida dos miseráveis camponeses, e sim pela alma de Arsène. Aquelas lágrimas, aquela veemência tinham por fim apenas a salvação espiritual do jovem. Mil e uma vidas podiam se perder, que não faria diferença. Mas, para aquele velho padre, a perda de uma alma que fosse era mais importante do que a destruição de todo o universo.
— Imploro-lhe que reflita, monsieur! Imploro-lhe, em nome de Deus, em nome do Conde de Vitry, que tanto o amou, em nome da sua própria alma, que poupe essas pobres criaturas!
Um espasmo agitou-o. A força faltou-lhe. Caiu aos pés de Ar- séne, a cabeça humildemente encostada nas botas enlameadas do jovem. Enlaçou-as com o gesto convulsivo de um moribundo. Depois, gemendo, beijou-lhe as botas, ao mesmo tempo em que repetia:
— Poupe-os. Em nome de Deus, pelo amor de Deus.
Arsène não podia suportar aquilo. Tentou erguer o velho, mas o padre agarrou-se a ele com energia sobre-humana, como se, aprisionando Arsène com os seus braços, pudesse deter o carrasco. Arsène mal podia respirar. Olhou em volta para os amigos, que desviaram o olhar, envergonhados, para Crequy.
O gigante fitava-o com uma expressão estranha. Mas não havia nela maldade, apenas confusão e uma certa piedade. Olhou para os camponeses. Já não gemiam nem soluçavam. Ajoelhavam- se, em silêncio, as cabeças inclinadas.
Arsène sentiu como se uma mão de ferro lhe apertasse o coração. Ergueu as mãos e deixou-as cair, impotentes. Olhou para o padre, que continuava a abraçá-lo em desespero. O vento, voltando com redobrada fúria, levantava cada vestimenta como se fosse a asa de um morcego. O trovão reboou mais próximo. Os relâmpagos sucediam-se.
Algo pareceu abrir-se em Arsène, sangrar, pulsar e doer com angústia intolerável. Soltou-se dos braços do padre, fez com que ele se levantasse e estreitou-o contra o peito. A grisalha cabeça tombou-lhe sobre o ombro como se o velho acabasse de expirar.
— Vou poupá-los, Padre — disse ele. — Deixá-los ir em paz.
A chuva desabou, em catadupas, sobre os camponeses ajoelhados. O vento fez com que o último dos enforcados dançasse grotescamente, pendurado da corda. Arsène ergueu o abade nos braços e carregou-o para dentro da taberna.
Paul de Vitry deixara em testamento toda a sua fortuna e as suas propriedades a seu amigo Arsène, para que ele fizesse com elas o que bem entendesse.
Antes de sair de Chantilly, Arsène nomeou Crequy e o padre administradores das terrás.
— De um lado haverá doçura e misericórdia; do outro, justiça e severidade — disse, com base na dolorosa experiência que tivera. — Só assim se conseguirá o equilíbrio.
E acrescentou:
— Os homens precisam ganhar e compreender a liberdade. Se ela lhes for concedida antes que eles a compreendam, será desprezada.
Mandou buscar uma carruagem e embarcou, com Cécile Grandjean e a jovem Roselle, rumo a Paris.
Capítulo XLV
Havia sempre uma hora, logo depois do pôr-do-sol, em que o Cardeal ficava sentado no seu quarto, cochilando, lendo, ou meditando, os olhos fechados, as mãos aristocráticas pousadas, palmas para cima, nos joelhos, numa atitude de repouso e impotência. Louis de Richepin sentava-se junto da janela, ocupado a escrever, franzindo a testa para os compromissos do dia seguinte, redigindo as cartas formais para Sua Eminência assinar e lendo as cartas que acabavam de chegar, Reinava o maior silêncio no quarto, quebrado apenas pelo murmúrio do papel, pelo deslizar da pena de Louis e o escorrer da areia na ampulheta.
Apesar de quieto, o Cardeal gostava de ouvir o som de atividade, em volta dele, e as potencialidades das cartas lidas e escritas por seu secretário davam-lhe uma sensação de continuação, de dinamismo, embora ele descansasse. Podia meditar ou cochilar, sabendo que as vastas rodas que ele pusera em movimento não paravam de girar, com aceleração cada vez maior. Era do tipo de pessoa que nunca pode descansar completamente, nem permitir que o repouso invada a atmosfera à sua volta. Só podia repousar, sentindo em redor o barulho de atividade; só podia respirar quando o ar que o cercava continuava ecoando as suas atividades. Seus olhos, cansados, só ficavam sossegados quando ao seu redor ziguezagueavam os relâmpagos que ele próprio provocara. A tranquilidade só o invadia quando ouvia ao longe os ecos dos acontecimentos. Quando os que o rodeavam descansavam, meditavam ou cochilavam, ele era tomado de uma inquietação febril e de uma terrível sensação de desperdício, de fúria contra a impotência da apatia. Era nessas ocasiões que o seu corpo atormentado se erguia de novo e criava tumulto em derredor.
Nessa noite, porém, por alguma razão misteriosa, ele não conseguia descansar. A tortura que sentia na carne era como uma dor sem nome, mas febril. Supersutil e hipersensível como era, sentia que naquele quarto havia uma agonia maior do que a sua, por mais que, egoisticamente, tivesse lutado, durante horas, por ignorá-la. (Tinha uma convicção arraigada: a de que simpatizar, identificar-se com os sofrimentos dos outros era dispersar uma grande parte da própria força, com consequências desastrosas. O homem sensato vivia no seu próprio universo, no qual não podia penetrar nenhum grito, nenhuma mão desesperada.)
Obrigou as pálpebras e permanecerem fechadas sobre os olhos estranhos e brilhantes, mas elas continuaram a pestanejar descon- fortavelmente. As mãos se erguiam e tremiam, como que num espalmo, Recostou-se na cadeira, à maneira de um animal, que, desesperado de coceira, procura esfregar-se contra algo. Estava aborrecido consigo mesmo, pelo fato de o gemido inaudível que brotava dos lábios do seu secretário lhe ecoar nos ouvidos austeros e altaneiros. Que importância tinham os problemas de uma pessoa como Louis de Richepin, aquele padre obscuro e glacial, aquela pequena alma sem voz ativa, para Armand-Jean du Plessis, Duque de Richelieu, o homem mais poderoso da Europa? Tinha visto tanto sofrimento, tanto sofrimento majestoso e ilimitado, em sua vida, que-a angústia daquele jovem não era nada, absolutamente nada! Tinha visto desespero na expressão de homens poderosos, tinha assistido à morte de amigos e inimigos e, se sentira pena, fora a que pode sentir uma mente acadêmica, que achava algo de artístico naquele desespero e naquelas mortes, alguma dignidade e uma certa perfeição nesses gestos cheios de grandeza.
Louis era seu secretário, havia anos. Muitas vezes divertira-se à custa dele, como se fosse um cão humilde ou um pássaro engaiolado e sem garras. Brincara com Louis, mas, passados alguns momentos, ele o entediara, como sempre o entediavam as pessoas inflexíveis. Até mesmo a veemência ocasional de Louis, os seus mesquinhos arroubos teológicos, o faziam bocejar e sorrir. Só quando Louis dera prova da força e da vastidão do ódio que o devorava, é que o Cardeal se mostrara interessado. Sempre lhe interessavam as paixões humanas, embora isso fosse um interesse cínico, no qual o seu próprio ódio era o ingrediente dominante. Confessava, candidamente, que só as paixões semelhantes às suas lhe suscitavam respeito e atenção. Sou um egocêntrico, pensava satisfeito. Que homem, inclusive Jesus, conseguira triunfar, senão por obra e graça do seu egocentrismo? Para se tornar o centro das coisas, era necessário um homem se convencer de que já era, realmente, o centro. Depois, era fácil convencer os outros.
Meditou nessas coisas, ali, sentado na sua cadeira, e sentiu-se pouco a pouco dominado por uma agradável sonolência. Qs pensamentos abandonaram-no como se fossem grandes navios, zarpando, em silêncio, para os mares sem fim. A alegoria agradou-lhe. Era o seu método favorito de adormecer. Gostava de imaginar a vaga e majestosa luz das estrelas brilhando nas pregas brancas das velas, e as ondulantes montanhas de água, que tinham origem na sua própria alma.
Foi então que ouviu um suspiro. As ondas e os barcos desapareceram e ele sentiu-se mais uma vez agudamente consciente dos limites dolorosos da sua carne. O estado febril do seu corpovoltou a atormentá-lo. Recusou-se a abrir os olhos. Ouviu novo suspiro, dessa vez carregado de desolação. Permaneceu inerte. Louis julgava-o adormecido, como de costume. Aquele suspiro saíra de alguém que pensava estar sozinho.
O Cardeal ergueu parcialmente as pálpebras e olhou para o secretário. A escuridão aumentara nos quartos. Um único castiçal dourado ardia sobre a mesa onde Louis estivera escrevendo. As janelas estavam amortalhadas sob os pesados cortinados. Tudo era silêncio, pesado e triste. Louis estava sentado na sua cadeira, os cotovelos apoiados na mesa, a cabeça entre as mãos. Volta e meia um suspiro fundo lhe saía do peito, como se fosse o último alento de um homem' moribundo.
Louis tinha um corpo forte, cheio da elegância rígida dos homens bonitos mas destituídos de sentido de humor. Suas costas eram direitas e firmes, sob a batina preta. Havia majestade no seu modo de andar e na sua conformação física. Caminhava sempre com ar de príncipe, sem afetação, mas com uma manifestação da qualidade glacial do seu espírito e da sua mente dura e virginal. O Cardeal muitas vezes se divertira pensando no que poderia acontecer com aquele físico, com aquele semblante frígido, com aqueles olhos azuis e gelados, quando a mente e o coração, por detrás deles, fossem atingidos.
Agora, ele já não precisava especular, com sorridente cinismo. Agora ele sabia, ele via. Porque o jovem à sua frente tinha o aspecto de uma estátua de mármore que houvesse sido mutilada e deformada pelas marteladas de um maníaco destruidor. Os seus contornos estavam desfeitos, a grandeza do seu corpo fora dissolvida, como uma estátua de gelo se derrete debaixo do sol forte. A cabeça estava encurvada, como que afundada entre os ombros. As mãos, brancas e fortes, que antes pareciam incapazes de qualquer gesto de ternura, comprimiam-lhe agora os olhos, num gesto de agonia. Tinha as costas dobradas. O corpo balançava para a frente e para atrás, na cadeira. E, dos seus lábios finos, escapavam aqueles dolorosos suspiros.
O Cardeal sabia o motivo daquele desespero. Desde a morte de Marguerite de Tremblant, observava uma desintegração quase imperceptível em Louis de Richepin. Fora como uma montanha, aparentemente imutável à superfície, que por dentro se vai desintegrando, dissolvendo em pó, manifestando-se apenas, ao olhar mais observador, por meio da queda ocasional de alguma pedra, de um murmúrio abafado vindo das suas entranhas. Os ouvidos alerta do Cardeal tinham captado os sinais da desintegração que estava ocorrendo sob a superfície inalterável de Louis de Richepin.
Sentira pena. Mas, no fim, sentira também tédio, como sempre lhe acontecia cotn as coisas que não lhe diziam imediatamente respeito. Sentia impaciência e desprezo pelas desgraças da humanidade, como todo homem que odeia a sua espécie e não gosta de ser identificado com ela. Passado o primeiro sentimento de compaixão pelo secretário, ficara aborrecido com o que vira. Deus do céu, o destino da França, da Europa, dependia dele, das suas intrigas e complôs, e aquele homem pálido se deixava envolver tanto pelas suas pequenas dores, pelo sofrimento que lhe causara a morte de uma jovem tão insignificante, que ninguém na Corte se referira ao seu passamento!
Mas, por alguma estranha razão, ao olhar para Louis, através das pálpebras descidas, não sentiu mais impaciência ou irritação. Uma imensa tristeza tomou conta dele, uma pena enorme. E essa tristeza e essa pena provocaram nele uma violenta convulsão, como que uma derrocada de paredes e barricadas. Espantava-se de se sentir assim, pois não tinha afeto por Louis. O máximo que sentia por ele era uma simpatia ocasional.
Tanto desprezara a humanidade, que o espetáculo dos seus sofrimentos lhe parecera uma coisa mesquinha e vergonhosa, muito abaixo dos sofrimentos de um cão. De repente, porém, a agonia de Louis de Richepin não lhe pareceu mesquinha e vergonhosa. De repente, o Cardeal achou que nenhuma agonia pra mesquinha, fosse ela sentida por um homem ou por uma mulher. No sofrimento, todas as coisas se tornavam grandes e dignas até mesmo do respeito de Deus. Os homens e as mulheres não participavam nos transportes extasiados de Deus, no Seu conhecimento do futuro, na Sua paz e sublime satisfação. Mudos, errando cegamente de um lado para o outro, não tinham persciência nem total compreensão das coisas. Viviam fora do círculo de fogo do conhecimento. Mas, no sofrimento, comungavam com Deus. As antenas da dor universal vibravam igualmente em Deus, nos homens e nos vermes, e a derradeira convulsão do mais humilde dos vermes se refletia no coração de Deus.
Eram estranhos pensamentos para Sua Eminência, o Duque de Richelieu, e uma curiosa excitação se apoderou de alguém que julgara ter experimentado todas as emoções e estar cansado delas. Havia tanto tempo que ele não sentia tristeza, ternura ou compaixão! Ecos da sua mocidade lhe vieram aos ouvidos. A compaixão que outrora sentira por todas as coisas vivas voltava a lhe agitar o coração, fazendo-o doer, como acontece com um músculo atrofiado por falta de uso, após um exercício violento.
A compaixão traz consigo o impulso de aliviar, de consolar, de confortar. Foi o que aconteceu com o Cardeal. Abriu a boca para pronunciar palavras de conforto, mas logo a fechou. De repente, teve consciência de que ele, um prelado da Igreja, um padre, um sacerdote, que antes de mais nada era um ministro de Deus, não tinha palavras de conforto para dar ao homem que sofria ali, à sua frente. Era demasiado inteligente! Demasiado culto! As palavras sacramentais, mesmo que impelidas pela sinceridade, eram por demais pueris, por demais infantis. Como era possível, diante de urna tal angústia, dizer: Deus lhe dará forças, meu filho!? Todas as frases feitas dos padres lhe soavam ridículas e vergonhosas. Quem, senão um idiota ou um cínico, teria o descaramento de insultar uma angústia daquelas com palavras ocas?
Palavras de conforto exigiam superioridade por parte de quem as pronunciava, um distanciamento de quem estava sofrendo. O insulto, a satisfação consigo mesmo estavam implícitos nelas, a menos que tivessem origem na mais profunda fé e humildade.
E Armand-Jean du Plessis, Cardeal e Duque Richelieu, prelado de Roma, apesar de consagrado pelo Papa, não tinha fé, nem humildade. Havia muito tempo que sabia disso, mas nunca como agora, em toda a sua enormidade. Sentiu vontade de rir, um riso amargo Não tenho palavras que soem verdadeiras, porque não tenho fé, pensou.
E alguma vez tivera fé? Recuou, percorrendo os longos e escuros corredores dos anos, e abriu mil e uma portas, buscando, procurando. Mas não encontrou nada, a não ser ambição, ódio e astúcia, nada além de desprezo pelos outros homens. Alguma vez, mesmo por uma hora, conhecera a fé e a humildade? Não se lembrava disso.
Perguntou a si mesmo: Será que creio em Deus? E, passado um longo momento, respondeu a si próprio: Não, não tenho a certeza.
E a si mesmo confessou que sempre acreditara na fé como um atributo que convinha aos idiotas, algo semelhante ao poder dos curandeiros. Não tinha nada a ver com o caráter dos homens inteligentes. A inteligência estava acima da fé. Lembrando-se do Padre Joseph, o Cardeal chegou à conclusão de que o capuchinho tampouco tinha fé. Tinha êxtases, convulsões. Mas não a verdadeira fé.
E agora ele sabia que só os que tinham fé podiam dizer palavras de conforto, sem insultar. Porque a fé implicava uma percepção da angústia e da dor universais, na comunhão com todas as criaturas vivas. A fé exclamava:
— Não posso consolá-lo porque tampouco tenho consolo para mim. Só tenho as minhas lágrimas, e, quando as derramo por você, derramo-as também por mim. Ao chorar, choramos por Deus, que chora por nós.
E assim, participando universalmente de dor, o homem se aproximava de Deus, e ambos se davam as mãos.
Absorto nos seus pensamentos, o Cardeal esqueceu tudo o mais. Suspirou profundamente. A sua visão pareceu vacilar.
Olhou de novo para Louis, e os seus olhos de tigre perderam o brilho mau, tornaram-se ternos.
Chamou, suavemente:
— Louis!
O jovem padre estremeceu, como uma árvore se move ao vento, sem consciência desse movimento. Deixou cair as mãos dos olhos. Mas o seu perfil, gélido e rígido, permaneceu distante. Olhou, sem ver à sua frente.
O Cardeal suspirou de novo e de novo o chamou. Dessa vez, Louis voltou a cabeça para ele. O coração do Cardeal mergulhou na espada da dor, ao ver o rosto de Louis, a expressão fixa e vazia dos seus olhos. Parecia uma dessas máscaras gregas, sem carne, mas transmitindo, através das órbitas vazadas e da boca sem lábios, toda a angústia, toda a tragédia, toda a tristeza. Era como o epí- tome da humanidade, que, nos momentos decisivos, só pode abrir a boca num horror sem palavras.
Os dois se entreolharam num silêncio eloquente. Pela primeira vez, viram-se, de fato. Não podiam mexer-se, nem sequer falar.
Passado um longo momento, o Cardeal levantou as mãos, para deixá-las cair pesadamente, com um gesto de impotência, sobre os joelhos.
Disse, numa voz baixa e rouca:
— Louis, eu sei e não tenho nada para lhe dizer. Não tenho palavras de consolo. Não lhe posso falar de Deus, porque nada sei Dele. Não posso confortá-lo porque eu próprio não sei o que é conforto. Só posso lhe oferecer minha tristeza.
E acrescentou, em voz ainda mais baixa:
— Perdoe-me.
A humildade e a tristeza não combinavam com o rosto delicado e pálido daquele homem terrível. Parecia menor e mais fraco, ali, sentado na sua grande poltrona escarlate. Dava a impressão de ter atingido uma idade enorme, fútil e improfícua. Não obstante, na sua humildade, no seu desespero, ele alcançara a grandeza.
Louis ouviu-o, e, lentamente, muito lentamente, a dura máscara da tragédia foi amolecendo, ruindo, a carne, sangrando, rompeu a camada de gesso, e um grito saiu-lhe dos lábios. Levantou- se e, cambaleando, agarrou-se às costas da sua cadeira. Devagar, com passadas custosas, aproximou-se do Cardeal, oscilando de um lado para o outro, à maneira de um homem ferido. Estendeu as mãos, como que tateando em meio à escuridão impenetrável. Ao chegar junto do Cardeal, caiu diante dele e deixou tombar a cabeça nos joelhos de Richelieu.
O Cardeal não disse nada, mas a sua mão ergueu-se automaticamente e pousou na cabeça sofredora do jovem padre. Palavras rotineiras vieram-lhe aos lábios:
— Não desespere, meu filho. Deus compreende a sua dor e vai lhe dar consolo.
Engoliu-as antes mesmo de as falar, sorrindo interiormente, com desdém e amargura. Quão facilmente o hábito era capaz de destruir a dignidade da verdade! Como era fácil as palavras insultarem essa dignidade!
Por fim, disse, com voz suave:
— Louis, eu também sofri. Eu também senti a mais profunda das dores. Isso é tudo o que eu lhe posso oferecer. É o único consolo que lhe posso dar: a certeza de que todos os homens conhecem a dor.
Só então, após essas palavras, pôde erguer a cabeça de Louis e encostá-la no seu próprio peito, abraçando-o, na simples comunhão, na tristeza sem voz, de todos aqueles que já sofreram.
Acaso confortara o pobre padre? Sentia que sim. Pois em Louis percebera aquela terrível solidão, aquele terror sem limites que sempre tinham habitado nele. Abraçando outro sofredor, Louis voltara a se comunicar com a humanidade, coisa que aprendera com Marguerite de Tremblant. Não tardou que o Cardeal o ouvisse chorar.
Capítulo XLVI
Arsène instalou Cécile Grandjean e a jovem Roselle no pequeno hôtel de Paul de Vitry, em Paris. A criadagem, profundamente sentida com a trágica morte do seu bondoso patrão, mostrou-se ansiosa por tratar de uma moça que quase morrera na mesma ocasião. E ali, na casa do homem que tanto a amara, rodeada pelos retratos dos antepassados dele, Cécile foi aos poucos voltando à vida.
Todos os dias, um discreto mensageiro levava a Arsène notícias de melhoras da moça. Mas ele nunca ia visitá-la.
Arsène estava travando uma luta heróica consigo mesmo. Enquanto, na sua confusão, não conseguisse se encontrar a si mesmo, livrar-se das paixões turbulentas e do caos que o devastavam, não ousava ver ninguém. Trancou-se nos seus aposentos, recebendo apenas o mensageiro do hôtel de Vitry e alguns poucos, que, secretamente admitidos por Pierre, seu valet, lhe levavam planos para a. campanha de defesa de La Rochelle.
Simples e pouco sutil, mas de temperamento instável, Arsène via-se presa de mil e uma dúvidas e paixões. O caso de Chantilly mostrara-lhe até onde o coração humano era capaz de mergulhar. Olhava para si mesmo com profunda desconfiança e veemente desgosto. No entanto, não conseguia convencer-se de que fora injusto ou indevidamente vingativo. Sabia que a primeira reação ao ataque era um violento contra-ataque. Suas dúvidas eram quanto ao motivo que o inspirara. Percebia que o espírito de justiça e o espírito de vingança se opunham frontalmente. Mas onde começava um e acabava outro? Afinal de contas, não era verdade que todas as virtudes tinham raízes nos vícios? A misericórdia não se originava na fraqueza e na complacência? A compaixão não era um atributo dos muito egoístas?
Não conseguia libertar-se do ódio. Agora, sabia que em todos os homens existia ódio pelos demais. Era do ódio que brotavam todos os outros vícios. Mas como era possível a um homem destruir o ódio natural que sentia dentro de si? Percebia que a grande conquista, a grande cruzada, a grande aventura do homem estava na erradicação do ódio existente no seu coração.
Para um homem do seu temperamento, penetrar num mundo cheio de luzes e sombras, murmúrios, dúvidas e perplexidades, era algo profundamente perturbador. Aquele mundo que, outrora, fora para ele um lugar perfeitamente definido, em que tudo era ou branco, ou preto, de contornos firmes e sem complexidades, agora se lhe revelava um mundo cheio de nuanças e tintas, em que a alma humana não parava de fazer perguntas e acabava desistindo, vencida por enigmas irrespondíveis.
Teria Paul de Vitry questionado esses enigmas e conhecido as respostas? Por um breve momento, Arsène conjeturou que homens como Paul se recusavam a ver as nuanças e as sombras, fechando os ouvidos às dúvidas que os assaltavam. Porque, quanto mais se perguntava, mais a confusão aumentava. Era preciso encarar com firmeza a necessidade básica: vencer o ódio dentro de si. Com esse fio frágil, mas brilhante, na mão, o homem podia caminhar a salvo por entre labirintos, poços e precipícios.
Não obstante, ele não conseguiu livrar-se desse ódio, que era parte do sangue e do espírito do homem. Por mais que lutasse, a toda hora ele lhe brotava em outro ponto do coração, mais forte e triunfante do que nunca. Chegou a lamentar ter sido fraco a ponto de se deixar demover dos seus propósitos em Chantilly. Nessas ocasiões, a fogueira irrompia de novo dentro dele, fazendo-o ter vontade de destruir toda a humanidade.
Conheço a verdade, dizia para si mesmo, mas não consigo me forçar a acreditar nela. Se acabar com o ódio que sinto, acabarei destruído, como Paul, o Abade Mourion, o Duque de Tremblant e François Grandjean. Parecia-lhe que o mundo era o cemitério de todas as almas nobres e altruístas. Para sobreviver, era preciso rodear-se de ódio como de uma muralha fortificada.
Foi só depois de passados muitos dias que o pensamento lhe veio, como um sussurro vindo do túmulo: O mundo dos homens só será salvo do ódio pelos que conseguiram vencê-lo.
Não me interessava salvar os homens, pensou ele, em meio à dor que sentia pela perda do amigo. Mas essa nova ideia, qual planta viva, mais frágil, lutava por resistir entre as ervas venenosas.
Compreendia, embora obscuramente, que tinha de travar aquela batalha dentro de si mesmo antes de poder se engajar em batalhas mais objetivas. A campanha de La Rochelle toda a sua vida tinham que esperar que ele pusesse ordem nas suas próprias paixões e formulasse a sua própria e inabalável filosofia.
Um dia, porém, um apressado mensageiro, coberto de poeira e com expressão preocupada, surgiu-lhe à porta, acompanhado do precavido Pierre. Fora enviado pelo Duque de Rohan, para dizer que chegara o momento de que todos os membros do Les Blanches se dirigissem para a sitiada La Rochelle.
“Suplico-lhe, venha imediatamente”, escrevera o duque. “A cada hora que passa aumenta o perigo para nós e para a nossa causa.”
Arsène mandou imediatamente Pierre avisar os amigos. Nessa mesma noite tinham que partir para La Rochelle. A Inglaterra declarara guerra à França. Os huguenotes estavam apoiando o inimigo, por verem no triunfo da Inglaterra protestante a garantia de liberdade e tolerância para si mesmos. Consequentemente, Richelieu compreendera que a primeira ação contra a Inglaterra teria de ser a subjugação dos nobres protestantes franceses de La Rochelle, pois esses nobres representavam o calcanhar-de-aquiles da França e La Rochelle, o porto aberto ao invasor inglês.
Richelieu, que, por temperamento, preferia os bons ofícios da diplomacia e do dinheiro aos da espada, apesar de se considerar um soldado, determinara, com secreta aversão, liderar ele próprio a campanha. À hora em que Arsène recebia o recado do Duque de Ronan, o Cardeal já partira, de manhã, cedo, para La Rochelle, onde um dique estava sendo apressadamente construído para prevenir a entrada dos navios de guerra ingleses.
Ao fim do dia, atravessando a adega do hôtel du Vaubon, Arsène correu ao palacete de Paul de Vitry, pela primeira vez desde que Cécile Grandjean lá se instalara. Uma criada levou-o até à sa- leta onde mademoiselle estava sentada, diante do fogo.
Preocupado com os seus problemas, Arsène estremeceu, de repente, ao ver a jovem. Seu coração começou a bater furiosamente. Ele, que sempre entrara, pleno de confiança, em qualquer sala, entrou naquela timidamente, e com hesitação.
A moça não se apercebeu logo da presença dele. Estava sozinha, sentada diante da lareira, com um xale branco cobrindo-lhe os joelhos. Toda a sua atitude era de desânimo e tristeza, mas havia também força na expressão do seu corpo jovem; e a nobreza, que lhe era peculiar, parecia mais evidente do que nunca. Seu vestido, liso e preto, realçava-lhe a brancura do pescoço e das mãos imóveis. O cabelo castanho-claro, entremeado de fios dourados, estava prèso em longas tranças, que lhe caíam sobre os ombros delicados. Tinha a cabeça inclinada, o rosto com uma expressão meditativa. Arsène viu-lhe o perfil, nítido e silencioso. A luz das chamas dava-lhe um brilho lúcido aos olhos azuis. Seus lábios, do mais delicado rosa, estavam fechados com firmeza, mas sem amargura. Os seus pensamentos podiam ser tristes, mas eram também corajosos.
Ao vê-la, Arsène sentiu-se invadido por uma onda de amor, mesclado de dor. Aquela era a jovem que Paul de Vitry amara. Arsène já não sentia ciúmes. O amor de Paul parecia misturar-se, confundir-se com o seu. Não tinha dúvidas de que a proximidade daquele homem generoso e bom tinha deixado marcas em Cécile
Grandjean, que, se ela não o amara côm paixão, pelo menos o amara. Arsène já não sentia despeito pelo fato de ela chorar a morte do amigo. Se não a chorasse, ele a teria amado menos. Era bom que ela estivesse na casa de Paul. Talvez o espírito dele estivesse feliz com isso.
Arsène sabia que Cécile o amava tanto quanto ele a ela. Mas no amor dos dois havia raiva, irritação, ressentimento, antagonismo e obstinação. Talvez todos esses ingredientes fossem necessários à paixão, e que, sem eles, a paixão fosse impossível. O amor puro, destituído de paixão, era um sentimento nobre mas que não conhecia o êxtase. A luta era essencial à paixão.
Cécile sentiu a presença dele. Virou lentamente a cabeça e olhou para Arsène.
Mil centelhas perpassaram entre os dois. Por um momento, Cécile não conseguiu controlar a expressão do seu rosto. Todo ele se iluminou, excitado. Os lábios entreabríram-se, tornaram-se rosa- escuro, e tremeram. Depois, controlando-se, forçou-se a assumir um ar de reserva, e até de hostilidade.
Arsène aproximou-se, avançou para ela. Cécile não disse nada, mas as suas mãos já não estavam paradas: fincaram-se nos joelhos. Não lhe ofereceu a mão. Seus olhos azuis fitaram-no com uma formalidade em que havia um certo temor.
Ele curvou-se diante dela, sentindo a garganta seca e fechada.
— Mademoiselle, permita-me expressar-lhe os meus sentimentos pela morte do seu avô — disse, numa voz rouca.
As mãos dela crisparam-se ainda mais. Todo o seu rosto, toda ela ficou alerta e em guarda, como se na presença de um inimigo.
— Permita-me também, monsieur, dar-lhe os meus sentimentos pela morte do seu amigo — retrucou.
Arsène julgou detectar um certo desdém no tom formal e frio da moça e sentiu-se tomado de raiva. Seria ela completamente destituída de coração? Não manifestara dor pelas mortes trágicas de pessoas inocentes. Seus olhos não revelavam sinais de passadas lágrimas.
Mal sabendo o que fazia, ele estendeu-lhe a mão. Cécile olhou-a demoradamente e depois ergueu para ele um olhar no qual se liam rancor e amargura.
— Devo dar-lhe os parabéns pelo que aconteceu em Chantil- ly? — perguntou ela.
Arsène não respondeu, mas ficou louco de fúria. Olhou para Cécile com lábios apertados. Os sinais da doença dela e do seu recente sofrimento ainda estavam bem visíveis naquelas faces pálidas e nas olheiras que lhe sombreavam os olhos claros, mas ele não se deixou comover. Tinha vontade de lhe bater.
— Ah, então ouviu dizer, mademoiselle? — perguntou, com ironia. — Quem foi o informante que de tal maneira lhe perturbou a recuperação?
A fúria dela cresceu para se equiparar à dele. O seu rosto empalideceu mortalmente.
— Roselle, que hoje regressou a Chantilly, recebeu essa informação do seu tio, numa carta que ele lhe escreveu. Posso lhe garan- tor, monsieur, que tem um grande admirador na pessoa de Crequy. Ele escreveu se jactando do papel que desempenhou nesse vergonhoso crime. Sem dúvida monsieur está feliz pelo fato de Crequy admirá-lo, não?
A voz dela, cheia de desprezo, ofegante de paixão, acertou-o em cheio. Cécile ergueu-se a meio, as mãos brancas agarrando os braços da poltrona, com visível esforço. O desdém estava estampado no rosto dela, nos dentes que lhe pareciam entre os lábios, nos músculos da garganta, nos seus olhos azuis e flamejantes.
Diante daquele desprezo, a fúria dele aumentou. Sentiu o coração pulsar-lhe nos ouvidos. Estava cheio de vergonha e de raiva.
Por um momento, não conseguiu falar, mas depois disse, numa voz rouca e carregada de emoção:
— Por acaso mademoiselle preferiria que eu cumulasse de honrarias os assassinos do seu avô e do meu amigo? Teria gostado de que eu lhe dissesse que eles tinham agido de maneira nobre e justa? Mademoiselle parece ter desdém pela justiça.
— Justiça! — retrucou ela. — Será que monsieur não confunde a justiça com vingança? Não terá sido levado menos pela dor do que pelo ódio?
Levantou-se, apoiando-se na poltrona, o rosto branco de morte.
Arsène cerrou os punhos, ao olhar para ela. Seu rosto moreno ficou convulsionado, e as bem desenhadas sobrancelhas negras fran- ziram-se sobre os olhos brilhantes.
— As palavras e os atos de mademoiselle mostram que não sente dor pela morte do seu avô ou do meu pobre amigo — disse ele. — Está menos preocupada com o fim horrível que eles tiveram do que com o destino dos seus assassinos. Mademoiselle que me perdoe, se não a compreendo e a suspeito de dureza e insensibilidade.
A expressão do rosto dela mudou. Toda a dor que ela sentia transpareceu nele. Respirou fundo. Sua voz mal se ouvia, ao responder:
— Lamento e choro a morte deles, mas sem ódio. Não pense que eu não sinto tristeza ou desespero, monsieur. Mas não me parece que monsieur seja mais digno ou melhor do que os que foram executados. Também eles foram movidos pelo que julgavam ser uma vingança justa contra o Conde de Vitry. Monsieur foi levado pelo mesmo espírito de vingança contra os assassinos, e não por amor ao conde. Se tivesse parado para pensar, para refletir, teria percebido que o conde não aprovaria uma tal vingança contra aqueles a quem tanto amara. Teria percebido que o conde compreendia tudo, até mesmo a crueldade, e que há muito chegara à conclusão de que os atos mais cruéis têm origem na ignorância, no medo e na confusão. Mas monsieur não quis considerar nem refletir. Ao vin- gar-se desses infelizes, deu largas a um ódio que há muito devia estar latente em si. É isso que não pode ser perdoado. É isso que o Conde de Vitry jamais teria compreendido.
Lágrimas de orgulho lhe vieram aos olhos. Mordeu o lábio, para evitar que um soluço lhe subisse à garganta. Mas não inclinou a cabeça ou desviou o olhar. Continuou encarando Arsène.
— Pensava que monsieur fosse incapaz desse ódio e desse espírito de vingança — acrescentou, com voz trêmula.
De repente, toda fúria dele desapareceu. Arsène avançou para ela. Cécile recuou, continuou a fitá-lo.
— Mademoiselle já pensou que, se eu não tivesse feito justiça, a lei da França teria feito o mesmo, ou muito pior? — perguntou ele, com suavidade.
Mas ela não se deixou convencer. O desprezo voltou a iluminar-lhe os olhos.
— Nesse caso, a França está em dívida com monsieur, por ter tomado a seu cargo fazer justiça por ela!
E continuou, elevando a voz:
— Não posso suportar que monsieur tenha agido dessa maneira! Não me venha com hipocrisia, Arsène de Richepin! Não me diga que a lei teria agido com mais dureza! Isso não me interessa. Não posso é suportar que monsieur, por livre vontade, se tenha vingado de maneira tão terrível!
Arsène olhou para ela, pensativo e com doçura. Ao ver aquilo, Cécile fez um gesto impotente e desviou o rosto, onde se liam a dor e o orgulho.
Ele aproximou-se e tomou-lhe a mão. A princípio ela resistiu, tentou soltar-se, mas depois ficou quieta. Inclinou a cabeça e chorou, como não chorara quando da morte do avô e de Paul, do fundo do seu coração.
Arsène levou a mão dela aos lábios, beijou-a, e depois encos- tou-a à sua face. A princípio, os dedos estavam frios e como que sem vida, mas logo se aqueceram ao contato dos dele. Cécile, porém, não parou de chorar.
— No mínimo, Cécile, fui misericordioso — disse ele. — É verdade que fui levado pelo espírito de vingança.
Fez uma pausa. Quase dissera:
“Mas que significam para nós esses pobres-diabos, essa ralé, essa escumalha?”
Engoliu a tempo essas palavras e ficou deprimido por continuar pensando assim. Seria possível que os nobres, os aristocratas, os poderosos, os privilegiados acabassem sempre pensando da mesma maneira, levados pelo hábido e pelos preconceitos?
Continuou:
— É preciso não esquecer, mademoiselle, que, no fim das contas, fui misericordioso, que acabei perdoando. Tem que compreender que agora lamento ter sido motivado pelo ódio e pela sede de vingança. Mas tudo isso teve origem no meu afeto por Paul de Vitry, e eu apenas reagi humanamente.
Ela não disse nada, mas o seu choro diminuiu, à medida que prestava atenção. ^
Arsène prosseguiu, com maior suavidade ainda:
— Vi-a em casa de Crequy. Mademoiselle estava entre a vida e a morte, devido aos ferimentos causados pela turba feroz. — Hesitou e murmurou: — Se eu estivesse naquela cama, mademoiselle, os seus sentimentos teriam sido mais elevados do que os meus?
Cécile voltou-se impetuosamente para ele. Ao fitar-lhe os olhos, penetrantes e ternos, ficou calada. Um rubor profundo lhe inundou o rosto. Os lábios entreabriram-se. Apenas os seus olhos continuaram fixos na visão que ele invocara. Empalideceu e encarou-o com um misto de paixão e franqueza.
— Monsieur — disse ela, em voz baixa —, acho que eu teria reagido da mesma maneira. — E exclamou: — Continuo a achá-lo culpado. Mas, então, eu também sou culpada!
Olhou para ele com horror e sofrimento. Quando Arsène a estreitou nos braços, ela deixou cair a cabeça no ombro dele e soluçou alto, enquanto ele lhe beijava os cabelos, a testa, as faces, e ela se abraçava a ele, em desespero.
Arsène exultava. Sentia agora apenas paz e confiança. Sabia que podia enfrentar tudo o que o futuro lhe trouxesse, por mais terrível que fosse. Nunca julgara poder amar assim, com um tal sentimento de proteção e ternura.
Disse, tão comovido, que a voz lhe tremia:
— Nosso pobre amigo quis que ficássemos juntos, minha querida. Sabia que nos amávamos. Pouco antes de morrer, ele me disse: “Não importa o que o amanhã lhes reservar; aproveitem ao máximo a felicidade nos braços do outro”.
Calou-se por um momento, enquanto a jovem, agarrando-se desesperadamente a ele, ouvia o que ele dizia:
— Esta noite, Cécile, parto para La Rochelle. Sobreviverei ou ficarei por lá? Serei obrigado a fugir, a me exilar numa terra estranha? Só Deus pode responder a isso. Minha adorada, quer vir comigo, compartilhar de tudo o que o futuro me reservar?
Cécile levantou a cabeça. Os seus olhos, luminosamente azuis, cheios de paixão e coragem, fixaram-se no rosto dele. Nunca lhe parecera mais bela e desejável.
— Que outra coisa eu poderia querer, Arsène? — murmurou ela.
Capítulo XLVII
Tinha sido um alívio para Arsène o fato de, nos últimos dias que passara no hôtel du Vaubon, sua jovem esposa Clarisse ter estado em casa da mãe, Madame de Tremblant, consolando-a pela morte de Marguerite. Madame ficara arrasada, o que surpreendera os amigos, pois nunca parecera ser muito estreito o relacionamento entre aquela mulher grosseira e brutal e sua dócil e calada filha. Dizia-se em Paris que era como se uma égua forte e libertina tivesse dado à luz um cordeirinho. Agora, a égua estava inconsolável com a morte do seu cordeirinho, que vivera e partira sem se fazer notar, à sombra da mãe, violenta e lasciva.
Por conseguinte, Clarisse, a filha predileta, acorrera ao hôtel de Tremblant. Deitada no seu quarto de aparência masculina, madame agarrava-se a ela como a uma tábua de salvação. Arsène, que gostara de Marguerite à sua maneira despreocupada, agradecia-lhe agora ter removido de casa a presença embaraçosa da esposa. Lembrava-se de Clarisse com remorsos, mas não tinha dúvidas de que o fato de ele se afastar permanentemente dela acabaria sendo para a jovem um grande alívio. Não podia crer que ela o amasse como Cécile o amava. Ao pensar nisso, sentia-se aborrecido e irritado. Para ele fora fácil tirá-la da sua vida. Gostaria de que ela o tirasse da sua com a mesma facilidade. Não lhe passava pela cabeça que Clarisse pudesse estar grávida, coisa que ela lhe ocultara cuidadosamente, esperando para revelar-lhe quando sentisse que a notícia seria bem recebida. Porém o marquês, que gostava muito dela, sabia, e estava encantado. A boa nova ia ser dada a Arsène quando Clarisse voltasse da casa da mãe. O marquês, sob muitos aspectos, simplório, tinha a certeza de que, quando Arsène soubesse que ia ser pai, todas as dúvidas e preocupações que pareciam assolá-lo passariam e ele perderia aquele ar sombrio e distraído, tão incompreensível para as pessoas mais realistas e organizadas. Na mente do marquês havia a crença de que o nascimento de uma criança resolvia todos os problemas, inclusive os mais complexos, que atormentavam a alma humana. Nunca tinham resolvido os dele, mas isso não o demovia de achar que era a solução para os outros.
Tendo acabado com a sua antiga existência, e confrontado com um futuro sombrio e incerto, no qual a morte e a violência ocupavam os pólos principais, Arsène irritava-se por ninguém, no hôtel du Vaubon, a não ser Pierre, se aperceber da mudança. Não queria que o pai se defrontasse com o fato inexorável de que ele jamais voltaria a ser o mesmo, mas desejava que o marquês fosse menos indiferente à agitação e às preocupações que o assaltavam. Havia muito de teatral em Arsène. Era como um ator que desempenhasse um drama terrível, mas o marquês, a sua plateia, parecia não se dar conta disso. No entanto, se o marquês tivesse de repente compreendido, ninguém teria lamentado mais do que Arsène, apesar de todo o seu egocentrismo.
Desprezara o pai, mas gostara dele de maneira despreocupada e indulgente. Suportara-o, rira dele, irritara-se com ele. Agora, nos últimos dias, amava-o. Gomo era possível amar uma criatura tão fútil e cheia de afetação, malícia e frivolidade? Parecia um velho camaleão, colorido e pretensioso, mas sem qualquer valor. Contudo, Arsène achava agora as atitudes do pai patéticas, encarava-as com carinho. Podia ser um idiota, e um idiota maldoso, mas era divertido. Além do mais, amava-o a ele, Arsène, e é impossível ser indiferente para alguém que nos ama.
No entanto, a marquês não fora cego às mudanças sofridas pelo filho. Mudanças que, para ele, para a sua tranquilidade de espírito, eram demasiado radicais. Mas estava convencido de que, ignorando-se as coisas desagradáveis, elas acabariam por desaparecer. Por isso, ignorava ou fingia ignorar, de modo tão flagrante e obstinado, as alterações sofridas por Arsène, que o rapaz cada dia mais se convencia de que o pai era mesmo um velho pateta, incapaz de enxergar um palmo adiante do nariz.
No último dia, antes de partir, Arsène mostrou-se muito afetuoso para com o pai. O marquês ia sair para jogar. Queixara-se de que, desde a viagem do Cardeal, as mesas de jogo não eram mais as mesmas. Queixava-se incessantemente. Arsène nada dissera sobre a sua próxima partida para La Rochelle, e o marquês forçava-se a acreditar que, se o filho pensara nisso, acabara desistindo da ideia. Sem dúvida Arsène, tão volúvel, não se teria calado!
Estavam juntos nos aposentos alegres e frívolos, se bem que de ótimo gosto, do marquês. Por todo lado ardiam castiçais. Lacaios, com os braços cheios de coloridos trajes de veludo e cetim, corriam de um lado para o outro, trazendo roupas para serem inspecionadas e rejeitadas, caprichosamente, pelo velho marquês. Numa mesa à sua frente estava uma série de perucas, que ele examinava com ar irritado. Outro lacaio estendia sobre outra mesa a enorme coleção de joias do marquês. Um terceiro ainda dispunha sobre a cama uma coleção de meias e sapatos de cetim com pedrarias. O aroma pesado, mas delicioso, do último perfume criado pelo marquês pairava sobre o quarto. Arsène, sorridente e desusadamente quieto, sentava-se numa poltrona, fingindo interessar-se pelas toaletes. A marquês não conseguia chegar a uma decisão. Estava sentado diante da penteadeira, experimentando vários tons de ruge, depilando as sobrancelhas, comprimindo os lábios pintados, a fim de espalhar a pasta, e passando diante do nariz, com ar impaciente, um lenço, impregnado do seu novo perfume. Mas sorria, satisfeito e arrogante.
Enquanto se queixava do Cardeal, que de uma hora para outra trocara as mesas de jogo pela árdua campanha contra La Rochelle, o marquês insistia em obter a opinião de Arsène sobre o traje que deveria vestir.
— Estou ligeiramente pálido, hoje — disse ele. — O roxo me daria ar de doente, você não acha? Que tal o amarelo? Ou o azul? Madame de Chevrois elogiou a minha roupa azul, na última soirée. Disse que me animava o rosto.
Continuou a pintar-se. Um lacaio aproximou-se e encostou o azul e radiante do casaco ao rosto do marquês, para ver como ficava. Foi como se tivesse acrescentado um tom cadavérico às faces enrugadas e maquiladas do velho.
— Para o diabo com o azul! — exclamou o marquês, empurrando violentamente o lacaio e o casaco para longe de si.
— Se Madame de Chevrois elogiou o azul, use-o — disse Arsène.
Sentia o coração pesado, pois sabia que aquela era a última vez que veria o pai. Mas sorriu, com indulgência.
— Não obstante, eu prefiro o de veludo preto. É mais elegante.
O marquês, sabendo que o filho tinha muito bom gosto, olhou para o traje preto com a testa franzida.
— Talvez — murmurou. — Com os diamantes. Gotas de orvalho espalhadas por entre as rendas. Um brilho nos pés. Severo, mas elegante. E interessante, sugerindo melancolia e romantismo. Sim, não há dúvida, vai mesmo o preto.
Os lacaios puseram mãos à obra. O traje preto foi posto para fora e escovado. As rendas foram sacudidas. As outras roupas, joias e meias desapareceram como por encanto. O traje preto pendia sobre uma cadeira com austeridade aristocrática. O marquês olhou para ele, satisfeito, e estendeu uma perna, para ver como lhe assentaria a delicada meia preta. Ah, não havia pernas como as suas, em toda a Paris! E, com o brilho dos diamantes, entre as fitas das ligas, o efeito seria devastador. Para o diabo Madame de Chevrois e a sua mania do azul! Uma verdadeira bruxa velha, cheia de pés-de- galinha. Já as jovens adoravam a elegância austera, principalmente quando sugeria uma certa melancolia. No preto havia mistério, além de elegância, e uma distinção irresistível para as moças ingênuas.
Tinha de adotar um ar digno e grave, essa noite, como se o destino pairasse, ameaçador sobre ele.
Voltou-se para Arsène e sorriu-lhe ternamente.
— Preciso consultá-lo mais amiúde, meu filho — disse. E acrescentou, de novo queixoso: — Faz tanto tempo que você não aparece nas mesas de jogo! Será que ainda não se recuperou da morte daquele seu tolo amigo?
O sorriso de Arsène tornou-se algo fixo, mas ele respondeu:
— Não desejo perder dinheiro, esta noite.
Levantou-se e começou a andar lentamente de um lado para o outro. O marquês ficou preocupado. Esteve a ponto de lhe dizer que em breve seria pai. Mas um estranho impulso fez com que se calasse. Não obstante, a inquietação que sentia e os esforços para se controlar faziam com que o rosto pintado parecesse subitamente dez anos mais velho e cheio de rugas. Mordeu a unha do dedinho direito e depois, amaldiçoando o estrago que ele próprio fizera, pôs- se a examinar, furioso, o dedo. Tinha muito orgulho das suas mãos finas e efeminadas, e estava convencido de que o menor defeito lhes prejudicava a beleza.
Um lacaio trouxe-lhe um pote de óleo solidificado, que Ar- mand tratou de esfregar na unha mordida, limpando-a a seguir com um lenço de seda fino. Aquela importante tarefa absorveu-o durante vários minutos. Contudo, as rugas aprofundaram-se no seu rosto. Ergueu o dedó à luz dos castiçais e examinou-o outra vez.
— Compreendo que a morte de Paul de Vitry lhe tenha causado tristeza, Arsène — disse o marquês. — Não obstante, será que você me perdoa, se lhe confessar que isto me tirou de cima muita preocupação? Além do mais, ele era um homem desprovido de gosto. Faltava-lhe uma certa noblesse oblige, uma certa elegância aristocrática.
Arsène não respondeu. A princípio, um brilho furioso chame- jara-lhe nos olhos. Mas, após olhar para o pai, sorriu para si mesmo. As palavras do marquês e a sua fingida contemplação da unha não o enganavam. Retrucou, com indulgência:
— Você está se referindo, sem dúvida, ao afeto que ele sentia pelos desgraçados que o mataram. Prefiro acreditar que lhe faltava apenas discernimento, e não gosto.
— É a mesma coisa — disse o marquês, erguendo um espelho de prata e examinando uma espinha perto da boca. — O bom gosto implica sempre a capacidade de discernir. As pessoas obtusas são sempre vulgares.
Pousou o espelho de mão e olhou para Arsène através do espelho da penteadeira. Por um instante, Arsène julgou ver nos olhos do pai compreensão e tristeza.
— Ultimamente, você tem se descuidado da indumentária, meu filho — continuou o marquês. — Devo deduzir que não vai sair esta noite?
Arsène ficou um momento calado, mas logo disse:
— Talvez vá visitar Clarisse.
Falou essa mentira com relutância, mas foi recompensado com o sorriso de aprovação do pai.
Arsène pousou impulsivamente as mãos nos ombros do marquês, e os dois sorriram um para o outro através do espelho. Depois, o rapaz inclinou-se e levou os lábios às faces pintadas do pai, que estremeceu de emoção, apertando na sua uma das mãos do filho. Uma lágrima subiu-lhe aos olhos. Limpou-a, curvando-se para o espelho, a fim de verificar se não tinha borrado o kohl das pestanas.
— Você é mesmo um sem-vergonha — disse, com voz comovida.
Mas Arsène já não sorria. Sua expressão tornara-se grave e severa. Respondeu, olhando fixo e com tristeza para os olhos refletidos no espelho:
— Eu sei, e peço-lhe que me perdoe.
Um frio estranho tomou conta do coração do marquês e ele ficou apavorado. O olhar de Arsène, a sua voz, as palavras, tudo o encheu de um terror sem nome. Deu meia-volta e agarrou o filho pelo braço, dizendo:
— Eu estava brincando, seu bobo! Que felicidade ou satisfação eu tive na vida que não viesse de você? — Apertou com mais força o braço de Arsène, como se o medo aumentasse, e pediu: — Venha comigo esta noite! Há tanto tempo que você não me acompanha!
Arsène hesitou, mas acabou dizendo:
— Talvez. Preciso me distrair.
Havia algo na sua atitude que não tranquilizou o marquês, mas tratou de afastar os maus pressentimentos e sorriu. Voltou a se preocupar com a toalete. Arsène fingiu preocupar-se também. Discutiram a respeito de perucas. Arsène achava que uma peruca demasiado complicada arruinaria o efeito sobriamente elegante do veludo preto.
— Todos esses cachos são demais — disse ele, vendo que o marquês insistia em usar uma peruca complicadíssima.
Finalmente, após exaustivas provas, foi escolhida uma peruca de aspecto digno, longa e lustrosa, ligeiramente ondulada apenas nas pontas. O marquês levantou-se e fez várias piruetas, os braços estendidos, as mãos elegantemente caídas, a cabeça pendendo para um dos ombros, enquanto Arsène e os lacaios não lhe poupavam elogios. Um dos lacaios borrifou de perfume toda a toalete do marquês. Outro passou uma escova de leve sobre o veludo. O marquês éra todo esplendor, com brilhantes reluzindo-lhe na garganta, nos punhos, nos dedos, nos joelhos e nos pés. Estava encantado como uma criança, com a admiração do filho e dos valets, mas mantinha uma expressão altaneira e reservada.
A carruagem esperava. Um chapéu emplumado foi cuidadosamente colocado sobre a peruca. Uma capa foi-lhe jogada sobre o traje. Por entre as suas dobras cintilava o punho incrustado de pedrarias do sabre. Puseram-lhe na mão uma bengala de cabo reluzente. O marquês olhou-se pela última vez no espelho e saiu do quarto, acompanhado de Arsène e rindo de uma de suas próprias piadas libertinas.
Mas Arsène nunca ficou sabendo o fim da piada porque, ao chegarem ao alto da escadaria de mármore branco, depararam com Louis, que subia apressadamente.
Todos três estacaram e um silêncio profundo os envolveu. Louis ficou parado, no meio da escada, segurando-se ao corrimão, a luz do grande lustre de cristal refletindo-se nos seus olhos azuis e muito abertos. Havia um quê de estranho na sua desordenada batina preta, no seu rosto branco e contorcido. Ao olhar para o irmão, a sua expressão alterou-se.
Tão intenso era o ódio que nela se via, que Arsène recuou, involuntariamente. Mas Louis avançou, como uma fúria, completamente fora de si. No olhar que deitou ao irmão transparecia toda uma vida de humilhação, desespero e ressentimento.
— Ah! — exclamou, com voz rouca. — Você vai partir para La Rochelle, seu traidor, seu mentiroso! Vai trair o seu país, lado a lado com uma turba de hereges e estrangeiros, contra as armas, a religião e a segurança da França!
O marquês ficou estupefato. Olhou primeiro para o filho mais novo e depois para Arsène. Mas o seu espanto era causado menos pelas palavras de Louis do que pela ferocidade que ele irradiava.
Louis não parecia ter visto o pai. Segurou Arsène pela parte de cima do gibão e sacudiu-o com toda a força.
— Mas você não vai, nem que para isso eu tenha que o matar com as minhas próprias mãos!
Olharam um para o outro. Ele está louco, pensou Arsène. Enlouqueceu de vez. Tão horrorizado ficou, que não conseguiu soltar- se e deixou-se cair contra o corrimão. Sentia-se trêmulo como um camundongo na boca de um fox-terrier. Sim, não havia dúvida: Louis enlouquecera.
Com um grito de fúria, Louis soltou o irmão com tanta força, que ele cambaleou e teve de se segurar, com força, ao corrimão, para não despencar. Arsène ficou tonto e levou a mão ao rosto, como que a protegê-lo.
O marquês, ao ver aquilo, agarrou o braço de Louis e esbofe- teou-o violentamente.
— Seu bruto, seu padreco desgraçado! — gritou. — Saia imediatamente desta casa e nunca mais volte! Sempre o detestei e agora lhe tenho ódio, seu santarrão imbecil!
A bofetada, as palavras cruéis, o olhar de ódio detiveram Louis, cuja mente parecia um caldeirão, cujo coração torturado estava sendo consumido pela dor. Olhou para o pai, e, durante um momento, toda a loucura, todo o desespero, todo o ódio desapareceram, deixando diante deles um homem moribundo.
Arsène já se recuperara. Viu que tinha de fugir imediatamente, enquanto o pai segurava o irmão. Escapuliu por entre eles, correndo como num pesadelo. Queria ficar logo longe daquela casa, daquele horror e daquela cena. Não tinha tempo para se despedir do marquês, conforme planejara, para um último abraço ou sorriso. Sabia que, se quisesse partir, tinha de ser agora.
A escadaria, à luz forte do lustre, parecia estender-se a perder de vista. Arsène tremia incontrolavelmente. A mão suarenta agarrava o cabo da espada.
Já tinha chegado ao fundo da escada, quando ouviu um grito horrível. Estacou e olhou para trás. Louis vinha descendo atrás dele. Parecia enormemente alto. A batina e a capa negra esvoaçavam. O lustre iluminava-lhe a grande cabeça, dando a impressão de que ele tinha um halo. E, na mão, empunhava uma espada desem- bainhada.
Incapaz de se mexer, como que feito de pedra e gelo, Arsène ficou à espera. Não era o irmão, e sim um arcanjo, com uma espada chamejante, que avançava para ele. Um arcanjo de expressão terrível.
Não saberia dizer, ao certo, quando puxara da espada, mas, de repente, ouviu o embater do aço. Louis jogara para o lado a capa. Já não era um padre, mas um inimigo, com um sorriso mau e fixo, em guarda. Arsène viu de relance o marquês, que descera até o meio da escada e estava de pé, imóvel, com a boca aberta e os dedos de uma das mãos atravessados nela. Atrás dele, no alto da escadaria, agrupavam-se os lacaios, boquiabertos.
É um pesadelo, um pavoroso pesadelo, pensou Arsène. Olhou para Louis, e a sensação de estar sonhando aumentou. Nenhum homem podia olhar para ele com uma expressão tão cheia de ódio. Aqueles olhos, fitos nele, não eram humanos. Arsène deixou cair a espada, e imediatamente sentiu uma dor aguda no ombro esquerdo, não longe do coração.
É a morte, disse para si mesmo. Sou eu ou o meu irmão. O horror daquela situação fez com que sentisse náuseas, e teve de engolir em seco para evitar que o vômito lhe subisse à boca. Gritou, ao mesmo tempo em que aparava o golpe da espada reluzente que lhe apontava o coração:
— Louis! Você está louco! Será que sabe o que está fazendo?
Mas Louis limitou-se a sorrir de novo, aquele mesmo e horrível sorriso. Arsène viu-lhe os dentes rebrilharem por entre os lábios arreganhados, e a luz azul dos seus olhos dançar loucamente. Tinha agora o inimigo à sua frente e, entre eles, a lâmina fria da sua espada! Toda a sua existência ia agora ser vingada naquele símbolo da sua solidão, do seu medo e da sua agonia! Estava agora cara a cara com o seu maior inimigo e o mataria num derradeiro gesto de raiva e desespero!
Num abrir e fechar de olhos, Arsène, com a presciência dos que correm perigo mortal, compreendeu tudo. Era a sua vida ou a do irmão. Não havia como recuar.
Ficou calado, mordendo com força o lábio. Tinha diante de si um inimigo que precisava ser morto, e ele pretendia matá-lo o mais depressa possível. Sua espada avançou e brilhou, qual língua de fogo gélido. Ouviu-se um grito abafado, e logo depois reinou o silêncio.
O ferimento em seu ombro sangrava e doía. Arsène sentiu o sangue escorrer-lhe pelo braço esquerdo. Concentrou-se na horrível tarefa que tinha diante de si. Precisaria de toda a sua força, de toda a sua energia, de toda a sua perícia, pois Louis era um dos melhores espadachins da França. Muitas e muitas vezes, no passado, os dois irmãos tinham esgrimido, e Arsène contava apenas uma vitória sobre Louis.
Mas, enquanto lutava, com aquele rosto fixo e terrível olhando para ele, não conseguia desligar-se dos trágicos aspectos daquela cena. Sentia, com rara intensidade, o tapete macio debaixo dos seus pés, tinha consciência dos retratos nas paredes brancas e douradas, da cara do pai, paralisado, nos degraus. Um torpor ameaçou invadi-lo. Abanou a cabeça, para sacudir a névoa dos olhos. De repente, achou tudo aquilo insuportável.
Gritou:
— Você é meu irmão!
Louis, ao vê-lo recuar por um momento, jogou a cabeça para trás e riu alto. As risadas foram aumentando, até parecerem os uivos de um lobo. A náusea de Arsène cresceu e ele fez menção de vomitar.
Sentiu a espada de Louis apontar uns cinco centímetros acima do coração, muito perto do primeiro ferimento. Recuou, a cabeça a rodar. Ergueu instintivamente a espada e desviou o golpe do irmão.
Preciso acabar com isto, pensou. Preciso pôr fim a isto, ou morrerei de horror.
Resolveu ferir e desarmar o irmão. Não podia matá-lo! Deus sabia que não! Meu Deus, não me deixeis matá-lo, rezou mentalmente. As lágrimas lhe subiram aos olhos, tirando-lhe a visão.
A espada descreveu um arco e apontou-lhe para a garganta. Louis tinha que aproveitar aquela ocasião, antes que se recuperasse.
Arsène avançou sobre o irmão, olhos fixos no ponto em que tencionava feri-lo e desarmá-lo. Mas, nesse mesmo instante, enquanto a espada de Arsène se precipitava na sua direção, o calcanhar direito de Louis torceu-se, fazendo-o desequilibrar-se. E a espada mergulhou fundo no lado esquerdo do seu peito.
Seguiu-se um silêncio terrível. O braço com que Louis segurava a espada tombou. Os dedos abriram-se lentamente, e a espada caiu a seus pés, a ponta manchada do sangue de Arsène. Louis olhou para o irmão, e a fúria foi aos poucos desaparecendo do seu rosto. A boca e os olhos se arregalaram numa expressão de intensa preocupação e surpresa. Ficou rígido, sem se mexer, pouco a pouco se transformando num pilar de neve.
E então, ante o olhar petrificado de Arsène, o padre cambaleou e deixou escapar um débil gemido. As pálpebras caíram-lhe sobre os olhos. As mãos ergueram-se um gesto impotente e indeciso, como se ele tivesse ficado cego. De repente, com um grito abafado, tombou para a frente, a cabeça batendo nos pés de Arsène.
Petrificado, Arsène não conseguiu mexer sequer um dedo. Ouviu gritos à sua volta, gritos confusos, distantes. Sentiu os braços do pai enlaçá-lo, ouviu-o soluçar:
— Oh, mon Dieu, mon Dieu! Meu filho, você está ferido! Foi esse diabo. . .! Meu filho, meu filho querido!
Mas Arsène só tinha olhos para o irmão, imóvel e calado, como uma estátua caída, a seus pés. Um filete de sangue escorria- lhe debaixo do braço esquerdo. Arsène olhou para a espada que tinha na mão. Com um grito convulsivo, atirou-a para longe, contra a parede.
Arsène afastou o pai e ajoelhou-se ao lado do irmão. Ergueu-o nos braços e virou-o. O rosto de Louis já estava ficando cinzento com a aproximação da morte, mas os seus olhos continuavam abertos, serenos e fixos. Tentou falar. O sangue jorrou-lhe da boca. Arsène enxugou-o com o seu lenço e começou a chorar.
Louis reparou nas lágrimas do irmão, tentou de novo falar e conseguiu murmurar, com dificuldade:
— Você sempre me odiou.
— Não! Juro por Deus que não! — exclamou Arsène, puxando o irmão para junto de si. •— Eu nunca o odiei, Louis. Juro, Você tem que acreditar em mim!
Uma estranha expressão tomou conta daquele olhar moribundo, daqueles lábios arroxeados. _
— Eu até o amei, Louis — disse Arsène, sentindo o coração se dissolver de dor. — Quis ser seu amigo, mas você não permitiu. Nunca o odiei, Louis. Você, sim, me odiava.
— Você não me odiava? — repetiu Louis, com uma expressão de surpresa e incrédula alegria nos olhos que se apagavam.
Arsène não conseguiu falar. Inclinou-se sobre o irmão e bei- jou-lhe a testa fria, encostando a face nos seus louros cabelos, agora cheios de sangue.
— Oh, perdoe-me! — gemeu, por fim.
Louis fez um esforço, ergueu o braço direito e deixou-o cair em volta do pescoço de Arsène. Sorriu e fechou os olhos.
Os dois irmãos permaneceram muito tempo assim, abraçados um ao outro. Finalmente, o braço de Louis tombou e ele perdeu os sentidos.
Arsène olhou para o pai, que contemplava a cena com uma expressão estranha. Listras de kohl preto corriam-lhe pelas faces abaixo, desmanchando-lhe a pintura.
— Mandei chamar o médico — disse, com voz trêmula.
— É demasiado tarde — retrucou Arsène, falando com dificuldade. — Ele está morrendo.
Olhou para o irmão, ainda em seus braços. Louis parecia dormir. Um leve sorriso lhe iluminava a face cinzenta.
Arsène deitou-o, com todo o cuidado. Viu os lacaios, boquiabertos e apavorados, atrás do pai. Levantou-se. Era quase meia- noite, e ele não podia demorar mais. Os ferimentos no ombro não eram nada, comparados com a ferida que sentia no coração.
— Fique com ele, até o fim — disse, voltando-se para o marquês. — Ele o amava.
Mesmo sem compreender, o marquês fez que sim. Aproximou- se do filho mais novo e ficou a olhar para ele. Depois, choramingando, ajoelhou-se e debruçou-se sobre Louis. Não viú Arsène sair. Não ouviu uma porta se fechar, ao longe.
Tudo estava muito quieto, em volta. Parecia não haver vida no hôtel. Os rostos dos lacaios formavam como que um pano de fundo. O marquês, ajoelhado junto ao filho, esfregava-lhe as mãos, agora frias de gelo.
Por fim, Louis pareceu voltar a si. Suspirou, abriu os olhos e fixou-os no pai, que inclinou a cabeça, como que envergonhado. Mas o marquês sentiu um tremor na mão que segurava. E, naquele coração tão frívolo e maldoso, uma emoção brotou, nascida de uma dor sem limites.
— Louis, meu filho — murmurou.
Ao ouvir essas palavras, o moribundo estremeceu e procurou levantar-se. O marquês tomou-o nos braços e apertou-o contra o peito, chorando alto.
Louis disse, com tremendo esforço:
— Ele não pode ir! Vão matá-lo. O senhor tem que ir atrás dele e trazê-lo de volta. La Rochelle... vai cair e ele vai morrer.
O marquês soltou um grito. Sentiu as mãos de Louis estreitarem as suas, num gesto derradeiro.
— Ele vai partir... esta noite. Vão matá-lo!
Um estertor fez com que a atenção do marquês se voltasse de novo para o filho. Colocou-lhe a cabeça sobre o joelho. Olhou para o seu rosto moribundo.
— Louis — gemeu, — Ah, meu filho!
Beijou-lhe desesperadamente a testa e os lábios. Um sorriso distante transformou o rostô marmóreo do jovem padre, um sorriso de suprema felicidade. Desviou os olhos do pai, com expressão extasiada.
— Marguerite — disse, nitidamente, e ergueu as mãos com humildade e êxtase.
O marquês deitou um olhar confuso por cima do ombro. Mas não viu o que o filho via. Quando voltou a olhar para ele, Louis já estava morto.
Capítulo XLVIII
Acompanhado por quatro lacaios de confiança, o Marquês du Vaubon galopava furiosamente pela estrada às escuras, rumo a Long- jumeau, por onde Arsène inevitavelmente tinha que passar, a caminho de La Rochelle.
Os lacaios estavam armados, e também o marquês, pois as estradas estavam infestadas de salteadores. Não havia luar, mas as estrelas, semelhantes a milhões de abelhas de prata apanhadas numa rede prateada, iluminavam o caminho com um brilho fugidio e espectral.
Durante as duas últimas décadas, as façanhas equestres do marquês tinham-se resumido a elegantes passeios pelo Bois, no dorso de lânguidas montarias. Adorava a estampa de um cavaleiro sobre o seu corcel (com atitudes apropriadas). Mas sabia que, se quisesse alcançar o filho, não podia pensar em elegâncias. O cavalo em que ele se precipitava, noite afora, tinha sido escolhido com vistas à velocidade e à resistência, e tinha as características físicas necessárias. Isso, somado à ansiedade do marquês, à sua angústia, ao seu estado de confusão mental, fazia com que certas partes da sua anatomia padecessem sobre a sela estreita e dura. Não fizera ainda quinze quilômetros e já a sua mão, enluvada, estava cheia de bolhas causadas pelas rédeas, além de uma certa parte do seu tronco se encontrar toda esfolada. Mesmo assim, ele não diminuía a velocidade, apesar do pressentimento de que iria sofrer muito. Sentia, agora, que estava realmente velho, pois mal podia respirar, em meio ao vento quente, e a exaustão ameaçava vencê-lo. Propenso à asma, os seus pulmões arfavam. Toda a sua aversão pelo campo parecia justificar-se, ao olhar para as árvores solitárias, à beira da estrada.
Não obstante, montava tão bem, que os lacaios tinham dificuldade em acompanhá-lo. Os pescoços dos cavalos, esticados para a frente, compridos e esbeltos, davam a sensação de que os animais iam alçar vôo. Os cascos soavam como tambores contra a poeira espessa e fofa da estrada de Langjumeau, e suas sombras ficavam para trás de maneira desordenada.
Enquanto avançava, o marquês encompridava os olhos, procurando, febrilmente, algum sinal de Arsène. Mas a estrada continuava vazia, a não ser de sombras ameaçadoras. Arsène não lhe levava mais de uma hora e meia de vantagem, mas não havia a menor indicação de que passara por ali.
Não obstante, pensou o marquês, desesperado, ele não podia
ter ido por outra estrada. A menos, claro que, para melhor se esconder, tivesse escolhido um caminho menos trilhado. Nesse caso, meditou o marquês, sombriamente, seria obrigado a perseguir o filho até as portas da maldita La Rochelle.
Era infeliz aquela fuga, mas, devido à morte de Louis, tinha as suas vantagens. O conflito entre os irmãos fora inevitável, mas poderia ter tido sérias consequências. Por ordem do Rei, o duelo estava proibido. Não era improvável que Arsène fosse acusado de homicídio. O marquês já não sentia ódio de Louis, apenas uma grande tristeza, uma sensação de futilidade. Outras coisas, de ordem mais espiritual, estavam em jogo naquela louca perseguição.
Duas horas se tinham passado, sempre galopando. Os animais resfolegavam, pois a velocidade não diminuíra. A estrada serpenteava, sob os ramos das árvores. A luz das estrelas era tão fraca, que às vezes eles temiam ter perdido o rumo.
De repente, ao longe, o marquês distinguiu a luz pálida de uma pequena taberna de beira de estrada. Era possível que Arsène e seus companheiros tivessem parado lá, para tomar alguma coisa. Ao se aproximar da taberna, o marquês soltou um grito de alívio, vendo uma fileira de animais amarrados junto da casa, as cabeças caídas de cansaço. Um deles pareceu-lhe ser o cavalo de Arsène, pois tinha manchas brancas no dorso e numa das pernas.
O marquês deslizou do cavalo, gemendo de dor. Correu, cambaleando, para a taberna e escancarou a porta.
Era um lugar pequeno e sujo, aquecido pelo fogo aceso da lareira. Um grupo de jovens de aspecto grave sentava-se nas diversas mesas. Arsène falava com um ou dois deles. A seu lado, estava uma moça. Apesar da sua agitação, o marquês não pôde deixar de observar que ela tinha uma beleza não destituída de nobreza. Quando ele entrou, fazendo barulho e praguejando, ela fitou-o com olhos azuis brilhantes. Usava uma pesada capa de lã escura, cujo capuz, caído sobre os ombros, lhe revelava os cabelos lustrosos, reluzindo, como fios de ouro, à luz das chamas e das velas. Diante dos homens havia garrafas de vinho e canecas, meio presunto e pães frescos.
Arsène levantou a cabeça e, ao ver o pai, pôs-se de pé, com uma exclamação de surpresa. Seu rosto, moreno, estava pálido, os lábios pareciam não ter um pingo de sangue. Tinha o braço ferido envolto em ataduras e preso numa tipóia.
— Então, meu sem-vergonha! — gritou o marquês. — Até que enfim o encontrei!
Arsène olhou depressa para os companheiros, que se levantaram e fizeram uma reverência, sem poderem esconder o alarme que sentiam. Olharam para a porta, como se esperassem que o marquês
estivesse acompanhado de um formidável destacamento de homens armados. Por sua vez, o marquês fulminou-os com os seus pequenos olhos negros, ao ver que eram membros dos Les Blanches.
Arsène adiantou-se, procurando fechar a cara, mas conseguindo apenas parecer preocupado.
— Pai! Por que você veio? -
Hesitou e perguntou, numa voz mais baixa:
— E Louis?
Irado, ainda ofegante, o marquês voltou-se para ele.
— Seu irmão morreu. Mas, antes de morrer, revelou-me os
seus abomináveis planos e pediu-me que o levasse de volta, para
não ser morto.
Arsène não respondeu. Olhou fixo para o chão, e uma expressão de sofrimento passou-lhe pelo rosto. Suspirou. Os jovens que o acompanhavam e a moça encararam o marquês em silêncio.
— Você vai voltar comigo, imediatamente — continuou o marquês, e a sua voz, apesar dos esforços, tremeu. — Mas não, é claro, para Paris, a não ser que você queira ser preso e condenado por homicídio. Irá para a Gasconha, na companhia de madame sua esposa, que está prestes a lhe dar um filho.
E deitou à moça um olhar comprido e duro.
Arsène empalideceu ainda mais. Olhou para o pai, parado diante dele, o ruge e o kohl manchando-lhe o rosto, aflito, de vermelho e preto. A peruca, que, na pressa, se esquecera de remover, estava colocada de qualquer maneira, debaixo do chapéu emplumado. Vestia ainda o traje de veludo preto enfeitado de diamantes, mas sobre ele usava uma capa empoeirada.
— Um filho — murmurou Arsène.
Não viu a jovem erguer-se nem a ouviu soltar um grito abafado. Não viu a cara dos companheiros, nem os olhares, divertidos e preocupados, que eles trocaram uns com os outros.
Por fim, soltando um suspiro, vírou-se para o pai com ar resoluto.
— Não posso voltar, pai. Estou comprometido, de alma e coração, com esta campanha. Procurei partir sem lhe causar sofrimento ou ansiedade, sem me despedir. Mas tudo estava pronto. Clarisse está de posse das chaves da minha escrivaninha, na qual encontrará cartas e diretivas. — Fez uma pausa. — Deixo Clarisse e o meu filho aos seus cuidados. Trate bem deles, suplico-lhe. Algum dia, pode ser que eu volte. . .
— Você vai abandonar sua esposa e seu filho? — exclamou o marquês, começando a tremer. — Vai romper os votos que fez ao se casar? Prefere fazer sua esposa e seu filho sofrer, por causa de
uma louca aventura, que só pode terminar em morte, ruína ou exílio? Você pretende me abandonar?
— Não vou abandonar ninguém — disse Arsène, sentindo os lábios subitamente secos. — Mas estou comprometido, já lhe disse. Não posso ter paz, enquanto isto não estiver terminado. Se eu morrer, ou tiver que fugir, é porque esse é o meu destino. Não posso lhe dizer mais nada.
Fez-se silêncio na taberna. Desesperado, o marquês olhou, com ar súplice, para os rostos frios e obstinados em volta dele. Por fim gritou, furioso e dorido:
— Quer dizer que você vai com esses desgraçados, com esses traidores, pegar em armas contra o seu próprio povo, na companhia de estrangeiros descontentes, alemães, espanhóis, ingleses e italianos? Será que você não compreende que, se fizer isso, nunca mais verá Paris e nem aqueles que o amam? Não está vendo que esse será o seu fim? Que significa o protestantismo para você, seu aventureiro maluco, dado a bravatas? Uma imbecil religião política, que há gerações vem perturbando a paz na França!
Arsène olhou para o pai com ar severo:
— Meu avô, seu pai, morreu por essa imbecil religião política. O senhor mesmo lutou por ela. Para mim, não se trata de uma religião, e sim de uma luta entre a luz e as trevas, entre a liberdade e a escravidão. Estou comprometido de alma e coração com essa luta. Mas você sabe disso. Não posso recuar.
De repente exclamou, com veemência:
— A História não representa nada para o senhor? Não entende que o destino de milhões de homens depende do resultado de La Rochelle, que gerações futuras conhecerão a liberdade, se homens como eu não recuarem, não abandonarem a luta? Se os interesses pessoais fossem lei para todos os homens, o mundo continuaria a chafurdar na escravidão e na depravação. Morrerei? Não sei. Bas- tar-me-á ter lutado e saber que, graças à minha morte, algum homem ainda por nascer terá direito à vida!
O marquês abriu a boca para replicar, mas, vendo a expressão estranha, severa e emocionada de Arsène, ficou calado. Aquele não parecia o seu filho. Aquele homem grave e decidido, de gestos impetuosos e olhar inflamado, não era o alegre e frívolo Arsène, que gostava de rir, de brilhar nos salões e de flertar. Era um desconhecido, e, diante dele, o marquês sentiu-se confuso e consternado.
Arsène estendeu-lhe a mão, perguntando:
— Quer que eu viva como você vivéú?
O marquês desviou os olhos. Seus lábios pintados tremeram. Depois, com um último e desesperado apelo, voltou-se para a jovem que, pálida e calada, o fitava com seus olhos azuis.
— Mademoiselle, não a conheço! Mas percebo que está ligada
ao meu filho. Peço-lhe que considere! Suplico-lhe, se lhe tem al
gum afeto, fazê-lo voltar para junto da esposa e do filho que vai nascer!
A jovem não respondeu. Sua palidez acentuou-se ainda mais, mas olhou para Arsène, em silêncio. *"
Arsène sentiu pena daquele velho desesperado. Segurou-o sua
vemente pelo braço e sorriu-lhe.
— Não fique assim, não se deixe levar pelg desespero. Sabe que não posso voltar. Sabe que tenho de ir em frente. Peço-lhe que fique ao lado de Clarisse, confortando-a e sustentando-a. Agi mal com ela. Não a devia ter desposado. Não me perdôo por isso. Mas existem coisas mais importantes do qúe esposa e filhos, e é com elas que estou comprometido. Peço-lhe que compreenda.
O marquês não respondeu. Olhou para o filho e umedeceu os lábios ressequidos, cuja pintura começava a descascar e a cair. Cambaleou, como se sentindo subitamente fraco. Tateou, à procura de apoio, e depois deixou-se cair num banco, cobrindo o rosto com as mãos.
Arsène suspirou. Olhou para os companheiros, para Cécile, como que a pedir ajuda. Os jovens encararam-no com reserva e expectativa. Cécile chorava, a cabeça inclinada, as lágrimas correndo- lhe pelas faces. Ninguém o ajudou. A decisão foi deixada nas suas mãos. Todo mundo estava emocionado, mas ninguém falou. O ta- berneiro, a um canto, pestanejava, espantado, sem compreender nada do que via.
O marquês deixou cair as mãos, subitamente acometido de um ar de dignidade e resolução. Nem mesmo a pintura manchada, nas faces enrugadas, conseguia diminuir-lhe a dignidade, o ar decidido, e o orgulho e a calma que os acompanhavam.
— Não posso dissuadi-lo — disse, tranquilamente, fitando o filho com olhos brilhantes. — Seja como você quiser. Mas, se você for, eu irei também.
Arsène soltou uma exclamação. O marquês levantou-se. Olhou para todos em profundo silêncio. Uma expressão inescrutável se estampou no seu rosto. Disse, numa voz surda, de quem reflete:
— Clarisse não ficará sem conforto, sem amparo. Madame de Tremblant não consentirá nisso. Não tenho nada a fazer em Paris. Nunca houve nada lá, para mim, a não ser você, meu filho. Será que você não compreende o que eu suportei? Acha que não pensei muito? Estou velho, mas ainda tenho forças. Se você está mesmo resolvido a ir, eu irei também.
Arsène abriu a boca para protestar, mas, ao ver a cara do pai, a mortal palidez por baixo do ruge, a firmeza estranha e desusada da sua boca maliciosa, o súbito descair dos seus ombros e o brilho
resoluto dos seus olhos, não disse nada. Abraçou-o, e os dois ficaram longo tempo assim, agarrados um ao outro, dando-se mutuamente força.
Mais tarde, quando cavalgavam lado a lado sob o céu, já clareando, com a aproximação do amanhecer, Arsène falou do irmão morto, em voz baixa e carregada de sofrimento.
— Eu não queria que ele morresse. Rezei para não o matar, embora ele tentasse matar-me.
— Fiquei sabendo de muitas coisas no espaço de uma hora — retrucou o marquês, num tom de voz cheio de cansaço. — Ele odiava-o, Arsène, mas era um ódio estranho, que tinha origem na solidão que sentia. Como pudemos ser tão cegos, você, com a sua vida de divertimento, eu, com minha aversão? Temos que arcar até o fim com o remorso provocado pela nossa indiferença, pela nossa crueldade. Mas como poderíamos nos ter aproximado dele? Louis estava entrincheirado na sua própria solidão, no seu próprio desespero. Sou um velho bobo e pervertido, mas agora entendo muita coisa.
— Eu sempre soube — disse Arsène, numa voz baixa e exausta. — Sou culpado por não ter ligado, senão no fim. Atormentei-o durante toda a sua vida. — Olhou para o nascente, já raiado de fogo. — Não tinha tempo! Mas teria gostado de ouvi-lo dizer que me perdoava.
— Ele perdoou-o, Arsène. Implorou-me que o fizesse voltar. Temia por você, temia que eu sofresse. Que estranho, constatar que ele me amava! Eu devia ter visto, acho mesmo que eu sabia. Mas isso me divertia e eu torturava-o para me divertir.
O marquês fez uma pausa. Seu cavalo diminuiu o passo quando a mão dele largou as rédeas.
— Se ao menos ele tivesse tido algum momento de alegria, em vida! — exclamou Arsène.
O marquês suspirou. De repente, ergueu a cabeça, como se lhe tivesse ocorrido algo.
— Antes de morrer, ele disse uma palavra: “Marguerite!” E numa voz tão cheia de amor e alegria! Eu tinha esquecido. Será possível que ele tenha amado uma mulher?
Arsène voltou-se para ele, com um olhar espantado.
— Se Louis viu essa mulher quando estava morrendo, é evidente que ela morreu antes dele. Quem será “Marguerite”?
Fez uma pausa, e logo o seu rosto se iluminou.
— Será Marguerite de Tremblant, irmã de Clarisse?
Entreolharam-se, em silêncio, e depois Arsène disse:
— Sim, deve ser a pobre Marguerite! Ah, então ele conheceu a felicidade. Amou e foi amado! Não podemos esquecer isso, para nosso próprio consolo.
Capítulo XLIX
Continuaram viagem a todo vapor. Arsène .cavalgava como se procurasse fugir dos sofrimentos e das lembranças de uma vida que ficara para trás. No dia seguinte, parou o tempo suficiente para escrever uma carta a Clarisse, cheia de afeto, pena e tristeza, suplicando-lhe que amasse o filho deles, perdoasse a deserção do marido e o recordasse com caridade cristã: “Um dia, talvez voltemos a nos encontrar”, escreveu, “e eritão terei a suprema alegria de beijar o meu filho”.
Sentia o coração pesado, mas tinha pouco tempo para meditar ou ter remorsos. Toda a sua preocupação se concentrava agora na jovem Cécile, que nunca se queixava nem sequer suspirava de cansaço, apesar do rosto branco e da fraqueza que devia ainda sentir, devido à sua recente doença. Pouco falavam. Comunicavam-se apenas por longos e eloquentes sorrisos, por um toque de mãos, por um corajoso entreolhar, mas havia compreensão entre eles e um amor profundo e apaixonado. Arsène maravilhava-se com a firmeza daquele coração de mulher, capaz de enfrentar o perigo, e até mesmo a morte, com a fortaleza de ânimo de um homem nobre e destemido. São as mulheres as verdadeiras fanáticas, as que realmente se dedicam a uma causa, pensava ele. Não têm a prudência do sexo forte, mais realista. São capazes de se entregar ao martírio com alegria e simplicidade. Os homens que possuem essa alegria e essa simplicidade têm algo da natureza feminina, algo da histeria inerente a essa natureza. Nenhum homem, compreendia agora, encararia o martírio e a imolação com paixão e fé, se não houvesse nele algo de feminino. O homem cem por cento másculo tende mais a batalhar ou a negociar.
Admitia que ele próprio não possuía aquele toque invulnerável de feminilidade, e que apenas a força de vontade, lutando contra a prudência e a cautela, lhe permitia avançar resolutamente. Mesmo assim, não conseguia livrar-se de dúvidas e hesitações. Finalmente, com certo orgulho, chegou à conclusão de que os que mereciam aplausos não eram os fanáticos e nem os heróis, e sim os realistas, que enfrentavam a morte e o perigo, sem ilusões, graças ao poder da força de vontade e da razão. Avançavam à luz fria da madrugada, ouvindo apenas a voz gélida do dever.
— Certa vez — dissera-lhe o Abade Mourion — atormentei- me, pensando se amava a Deus o suficiente. Agora, só me atormenta pensar se amo suficientemente aos homens.
Nessas palavras, para Arsène, estava toda a essência do protestantismo. Sabia que tinha muito que andar ainda, para despertar em si o amor completo pelos seus semelhantes. Tolhido pelas tradições, manias de grandeza e superioridade da sua casta, sabia que ia ter que lutar muito. Mas animava-o o fato de ter finalmente dis- tinguido a praia distante, brilhando ao sol da igualdade. Nem tinha a ilusão de que, para amar aos homens, era necessário idealizá-los, acreditar que eram todos criaturas justas e nobres. A compreensão da estupidez, da crueldade e da cupidez da raça humana não diminuía a intensidade do amor de quem realmente a amava. Podia despertar raiva, mas também suscitava piedade, levava a pessoa a alertar os outros homens para a responsabilidade de cada um em relação aos seus semelhantes.
Mas só conseguia fazer com que Cécile apenas compreendesse isso. Seus companheiros eram impelidos tão-somente pelo ódio a uma religião que tentava limítar-lhes a inteligência e a liberdade pessoal, reduzindo-os à servidão intelectual. O marquês, com uma percepção muito vaga da dedicação do pai, e atormentado pela própria consciência, acompanhava o filho levado pelo amor e pela incapacidade de viver sem ele.
Às vezes, Arsène ficava desanimado com tudo aquilo. Mas aos poucos ía percebendo que, no começo, só era necessário que o líder compreendesse. Seus seguidores iam atrás dele cegamente, acompanhando-lhe os passos. Mas o fim acabaria sendo alcançado, e os cegos terminariam vendo a glória a que haviam sido levados.
Não ousavam perder nem sequer uma hora, porque tinham não só de alcançar o Cardeal, que ia pela estrada, principal, em pompa e circunstância, rodeado de estandartes e música marcial, como também passar-lhe à frente e chegar a La Rochelle antes dele. Sabiam que, em cada cidade, o Cardeal devia esperar ímpaciente- tente notícias do Rei, para saber se ele se decidira cm não a segui-lo. A meio caminho de La Rochelle, tinha, enfim chegado a notícia de que Luís se resolvera, finalmente, a seguir o Cardeal, com ciúmes de que um possível triunfo fosse creditado apenas a Riche- íieu. Não podia suportar que o Cardeal obtivesse a rendição de La Rochelle, enquanto ele, Luís, ficava em Paris; de modo que mandara um mensageiro a Richelieu, ordenando-lhe que esperasse por ele em Tours. O Cardeal, furioso e desapontado, praguejou intimamente, enquanto expressava a sua alegria em público. Esperava que madame acompanhasse o Rei, como parte da sua numerosa comitiva, pois então as agruras da viagem e da campanha seriam grandemente aliviadas.
O imbecil, pensou, referindo-se ao Rei, está transformando esta campanha numa festa, num triunfo romano, viajando com esplendor
e música, instalando a sua corte em cada cídadezinha por onde passa. Sabia que todos os bravos e aventureiros acompanhavam o monarca, bem como vários padres ambiciosos e perigosos.
O Cardeal franziu a testa, preocupado. Pensou na Armada Espanhola, cheia de milhares de padres e toda a espécie de instrumentos de tortura, tentando invadir a Inglaterra. Deus, ou o diabo, havia intervindo, e os padres e seus diabólicos instrumentos tinham sumido nas águas cinzentas e turbulentas do canal da Mancha. Mas, e se isso não tivesse acontecido? Que coisas horríveis não se teriam passado na Inglaterra? Além disso, a face do mundo teria mudado. E Ricbeíieu não tinha ilusões de que essa mudança teria sido saudável.
Pensou nos rochelenses e decidiu que os padres não triunfariam sobre os huguenotes. Francês acima de tudo, pensou, com indignação e tristeza, nos franceses sitiados em La Rochelle. Tinha de conquistá-los, para glória da França. Mas, para essa mesma glória, precisava reconciliá-los e fazê-los entender que era seu dever lutar pela total unidade da França, contra a ameaça dos Habsburgo e da Espanha. Tinham que ser franceses contra o resto do mundo, e os padres que se danassem!
Planejara aquela, campanha por instigação de Ana de Áustria. Mas agora animava-o apenas o propósito de unir os franceses, fossem eles católicos ou protestantes, num sentimento de devoção à França. Não havia limites para as glórias e o poderio da França, se todos os franceses a servissem com amor e determinação. Não podia haver uma nova guerra civil, uma vitória obtida por meio da crueldade e da tortura. Essas coisas destruíam uma nação.
Enquanto Richelieu esperava, furioso e impotente, em Tours, a comitiva de Arsène de Richepin o ultrapassava, à meia-noite, por uma estrada distante, quase um caminho de cabras. Ao amanhecer do dia seguinte, Arsène e seus companheiros já estavam a léguas de Tours. O Cardeal, detido sem poder dormir, julgou ouvir o tropel distante de cascos, mas acabou achando que devia ser o vento. Passara toda a noite meditando: Por que não seria possível que homens do mesmo sangue, vivessem em harmonia, apesar de terem religiões diferentes? E por que não era possível a homens de raças e credos diferentes viver em paz, dedicando-se a um único ideal, a uma única filosofia política? A individualidade era necessária à existência do homem. Mas, para o bem-çomum de todos os homens,' era preciso que eles pusessem de lado o individualismo.
Não é possível, pensou o Cardeal. Mas um estranho pressentimento dizia-lhe que era possível e que, um dia, talvez uma grande nação pudesse viver em paz e harmonia, dedicada ao,bem-comum e
à humanidade, embora composta de indivíduos de raças e credos diferentes. Não seria essa a essência do verdadeiro cristianismo? Sem essa essência, o mundo se perderia num holocausto de guerras e destruição
Capítulo L
A viagem para La Rochelle tinha que ser feita às escondidas. Era preciso evitar as estradas, trilhadas apenas à noite e, mesmo assim, com as pistolas engatilhadas. Galopavam, como sombras fugidias, ao luar ou sob as nuvens, colados às árvores, temendo não só o . Cardeal como também os assaltantes. Alguns iam à frente, numa reta perigosa, e depois, assobiando, animavam os companheiros a prosseguir. Atravessavam a parte mais desolada do país, cheia de ravinas e rochas, transformadas em formas espectrais pelo luar, que estendia dedos finos e pálidos sobre a planície vazia, ou riscava com linhas de prata os pantanais. À medida que avançavam, ouviam o soprar doloroso do vento nas árvores escuras, sentiam a respiração, o bafo da terra debaixo deles. Embrulhavam-se nas capas e tremiam, achando-se insignificantes diante da Natureza.
Essas horas eram as piores. Não ousavam cantar, nem contar anedotas ou rir, temendo ouvidos inimigos. Como fantasmas, como exilados, iam deixando para trás aldeias e povoados, vendo o clarão das lareiras, as chaminés, recortando-se, quais flores vermelhas, contra os céus arroxeados, os campanários das igrejas contornados pelas primeiras ou derradeiras estrelas, ouvindo o repicar de sinos em meio à fragrância dos bosques, dos campos cultivados e dos vinhedos, ou o chamado distante de uma criança e o riso de uma mulher, doce e musical no ar da noite. Muitas vezes, agachados atrás de uma noita, viam as camponesas trazerem o gadò, ouviam o mugido dos animais, o tilintar dos guizos ou o ruminar das man- díbulas e, aqui e ali, os latidos alegres dos cães. Viam o Angelus descer sobre os campos com a sua luz dourada, e os camponeses inclinarem humildemente a cabeça e juntarem as mãos, suas silhuetas pesadas e vagas contra o ofuscante pôr-do-sol. Viam os dias nascerem como um exército de bandeiras azuis e vermelhas, sobre o horizonte noturno, anunciando a aproximação do sol que, como um jovem guerreiro, carregando um escudo de ouro, subia à colina mais alta para despertar o mundo. Viam tudo isso e sentiam-se exilados, os corações cada vez mais tristes e pesados, sabendo que não faziam parte daquilo, que talvez nunca mais o fizessem. Até mesmo os rios por que passavam, parando para banhar os olhos cansados e os rostos pálidos, pareciam rios estrangeiros. Estavam na França, mas já não se sentiam franceses, e muitos limpavam furtivamente as lágrimas com as costas das mãos trêmulas. Sentiam-se afastados de tudo o que até então lhes alimentara o espírito. Eram como al
mas que houvessem sido violentamente arrancadas dos seus corpos e condenadas a errar para sempre sobre a terra que tanto tinham amado,, para sempre afastados do calor dos seres vivos e amigos e das vozes dos seus semelhantes. Muito antes de serem exilados, já os seus espíritos sentiam o peso esmagador do exílio.
Havia muitos, como Cécile, que aceitavam o exílio com fortaleza de ânimo, sentindo que era em si mesmo um sacrifício em nome de coisas mais importantes. Havia ocasiões em que Arsène também sentia isso, mas quase sempre a angústia que o acometia lhe parecia sqperior às suas forças.
Galopava durante toda a noite, até o nascer do dia tomar o avanço por demais perigoso, e olhava à sua volta, convencido de que nunca mais passaria por aqueles campos, nem veria aquelas paisagens. Tudo isto acabou para mim, pensava. E a dor que sentia era como uma espada penetrando-lhe o peito, e ele ansiava por se deitar sobre o chão da França e nunca mais se levantar. Todo o amor latente que tinha pela terra natal despertava nele, fazendo-o às vezes pensar que nada, no céu, na terra ou no inferno, deveria poder se intrometer entre o coração de um homem e o seu país. Um homem podia perder tudo, inclusive a alma, mas, enquanto os seus pés pisassem a terra em que nascera e os seus olhos contemplassem paisagens amadas e familiares, o seu ânimo não poderia ser abalado, o seu espírito não poderia ser -esmagado.
Achava que não podia expressar essas coisas, e o seu sofrimento tornava-se insuportável. As formas dos seus companheiros pareciam irreais, em meio à escuridão banhada de luar, destituídas de rosto, sangue e carne, inclusive Cécile. Tinha a impressão de estar acompanhado de fantasmas, galopando ao seu lado por sobre as fronteiras da terra, rumo à noite eterna do exílio. Como poderia ele saber que, para muitos dos seus companheiros, também ele parecia um fantasma?
A aventura não era novidade para Arsène, que sempre gostara dela. Mas aquilo, aquele exílio, era diferente das-aventuras noturnas, que invariavelmente acabavam, de manhã, numa cama quente, entre paredes familiares, e em meio às vozes dos seus semelhantes. Aventuras dessa espécie eram brincadeiras, um esporte de jovens alegres e despreocupados. Mas aquela era uma estrada dura e escura, trilhada por homens graves, sem esperança ou consolo. E Arsène achava o processo de amadurecimento muito doloroso. Às vezes, revoltava-se, desesperava-se e sentia-se rodeado de estranhos, mal- encarados e ameaçadores.
Passou a odiar a noite, que outrora tanto amara. Agora, parecia- lhe ser a fonte de toda a sua angústia. Nunca tinha reparado que a noite pudesse ser tão longa, tão silenciosa, tão vazia e tão fria!- E,
quando a manhã chegava e eles se escondiam nas moitas ou nos bosques, nas ravinas ou nas cavernas, ele se atirava, sem falar, no chão, procurando esquecer tudo.
Mas houve uma manhã que Arsène jamais poderia esquecer, por muito que vivesse, por ser o tipo de manhã que um homem só conhece uma vez na vida, quando tudo se torna lúcido e iluminado por uma luz estranha e solene.
A noite fora desusadamente longa e fria. Depois da meia-noite, uma chuva gélida, acompanhada de um vento cortante, tornara quase insuportáveis os tormentos dos viajantes. Só se ouvia o bater dos cascos dos cavalos contra os caminhos pedregosos ou poeirentos, acima do barulho do vento e do gemer das árvores por ele açoitadas. Tinham sido forçados a procurar abrigo numa taberna isolada e a passar o resto da noite na sala suja, sob o olhar apático e bocejan- te do taberneiro. Os homens tinham acendido a lareira. A luz vermelha das chamas refletia-se nos seus rostos abatidos, nos seus trajes desalinhados, nas suas capas e nos seus chapéus encharcados. O vinho era horrível, mas teve o mérito de dar nova vida aos seus corpos entorpecidos. Comeram os coelhos e as aves velhas que o taberneiro lhes serviu, juntamente com o pão duro e seco. Aos poucos, sentiam-se novamente homens, capazes de sorrir uns para os outros. O marquês, para quem os desconfortos da viagem eram mais insuportáveis, persuadira o taberneiro a lhe aquecer um caldeirão de água; escondido atrás das costas altas de um banco, tirara as roupas amassadas e empoeiradas, e tomara um belo banho. De vez em quando, erguia a voz e lamentava o estado das suas mãos e de outras partes do seu corpo, em contato demasiado com a sela, expressando-se numa linguagem tão pitoresca, que os outros soltavam gargalhadas, inclusive Cécile. Mas, aos olhos de Arsène, o estoicismo com que o pai encarava os inconvenientes da viagem era algo triste e comovente.
Para que fui trazê-lo?, perguntou Arsène a si mesmo, com raiva. Ele não tem a inspirá-lo o ideal e a impulsividade que me movem. Não tem sequer o consolo de uma mulher, como é o meu caso. É um velho, para quem a música, a luz de velas e uma cama macia devem valer muito mais do que qualquer outra coisa. Assim pensando, disse em voz alta, numa voz rouca e estranha, em meio às risadas que ainda ressoavam na sala:
— Pai, você não devia ter vindo comigo!
Os outros calaram-se de repente, e os seus olhares convergiram para Arsène, pois não lhes escapara a angústia que havia em sua voz, Cécile empalideceu. Estendeu a mão para Arsène, mas ele repudiou-a e dirigiu-se para o banco, acima do qual, semelhante a uma cabeça decapitada, o rosto do marquês aparecia. Como esta-
vam cansadas e enrugadas aquelas faces e como os seus olhos esf• vam avermelhados! Arsène não reparou no brilho súbito que os iluminou.
Repetiu:
— Você não devia ter vindo comigo!
O marquês continuou a olhar para o filho, e ambos pareciam ver apenas um ao outro. Por fim, o marquês disse:
— Você pretende tirar-me a ilusão de que eu deixei de ser insignificante?
Fez-se um silêncio pesado na sala, apesar do tom de voz leve com que o marquês falara. Arsène ergueu-se abruptamente. Olhou para o fogo, para os rostos dos seus companheiros, e bateu com as mãos. Mal podia controlar-se.
— Que lhe interessa tudo isto? — perguntou, com voz trêmula. — Que importância tem para você?
— A verdade — replicou o marquês — é que eu aprendi uma coisa: o inefável conforto de um banho e de uma toalha limpa.
Saiu de trás do banco, a toalha em volta da cintura. Seu corpo mostrava todas as costelas, todos os ossos. Era o corpo de um velho. O rosto que encarava Arsène era enrugado, abatido e sem barbear. Mas ninguém sorriu ao vê-lo, apesar do grotesco da aparição. Havia agora um ar de dignidade no marquês, um ar que ele nunca possuíra nos dias em que andava perfumado, vestido de veludos e enfeitado de rendas. Na sua nudez, com a toalha enrolada em respeito a Cécile, encarou Arsène com estranha e desusada majestade, dirigindo-se apenas a ele:
— É consigo mesmo que você fala, meu filho, ou comigo?
Os lábios pálidos de Arsène abriram-se para falar, mas voltaram a fechar-se.
— Se for comigo — continuou o marquês —, você me insultou. Se for com você, só me resta desesperar.
Cécile levantou-se, descabelada e mortalmente pálida, os cabelos escorrendo-lhe pelo rosto, os lábios trêmulos e descoloridos, mas orgulhosos. Estendeu a mão para Arsène e disse, com voz grave e súplice:
— Venha comigo.
Arsène não se mexeu. Olhou para os outros, sentados como estátuas encharcadas, depois para o pai e, finalmente, para Cécile. Os olhos dela, apesar de afundados e olheirentos, continuavam a irradiar uma luz azul e intensa. A força do seu espírito era maior do que o desespero e a revolta dele. Além disso, algo parecia quebrar-se dentro de Arsène, dando-lhe vontade de chorar. Agarrou-lhe a mão e deixou-se levar por ela para fora da taberna, igual a uma criança cega.
A noite já acabara. A terra e o céu estavam banhados numa luz transparente e sem cor. Os passos deles ecoaram no caminho de lajotas. Saíram juntos para a manhã que começava, Cécile guiando-o, abrindo uma porteira rústica, descendo por um caminho íngreme, roçando em arbustos e árvores que lhes sacudiam em cima gotas de diamantes. O ar estava impregnado dos 'cheiros mais pungentes, e os pássaros cantavam nas árvores, esvoaçando de galho em galho, a luz matinal fazendo-lhes brilhar as asas.
Estavam agora numa pequena clareira. Debaixo dos pés deles, a relva cintilava. Uma brisa suave batia-lhes nos rostos. As árvores, frondosas, recortavam-se numa neblina luminosa. À volta deles, tudo era silêncio. O sol ainda não saíra. Não havia ainda cor na terra, apenas aquela neblina, aquela radiante meia-sombra, pairando sobre as colinas distantes, para além das árvores, arautos espectrais anunciando a chegada do sol. A paz que os rodeava era como murmúrio vindo do céu, e Arsène sentiu o fogo que tinha no coração derreter-se gradualmente.
Cécile estava ao seu lado, contemplando com ele aquele silêncio, aquela mágica imobilidade. Continuava a lhe segurar a mão. Voltou-se lentamente e encarou-o.
Como era belo aquele rosto jovem e exausto, como eram firmes aqueles olhos azuis, quão severos mas compreensivos aqueles lábios pálidos! A capa pesava-lhe sobre os ombros fortes. O cabelo, claro e solto, caía-lhe pelo pescoço e sobre a testa cansada. Estava desgrenhada e suja de lama, mas conservava a majestade e orgulho, e Arsène olhou para ela com um pouco de medo e renovada adoração.
— Tenho ouvido os seus pensamentos, durante todas estas noites, Arsène — disse Cécile, calmamente. — Tenho procurado compreendê-lo. Seu pai está com a razão: você não falou com ele, falou consigo mesmo.
Virou-se um pouco e olhou ao longe. As colinas estavam contornadas de ouro.
— Você acha que eu também não amo isto? — murmurou ela. — Esta é a minha terra, também. Vamos deixá-la por uma cidade estranha, habitada por gente estrangeira. Vamos olhar para um mar que não é nosso. Para onde iremos, quando sairmos desse lugar? Qual será o nosso fim?
— E eu a trouxe para este exílio, para esta morte! — exclamou Arsène, com voz rouca.
Procurou abraçá-la, mas ela afastou-se. A luz azul dos seus olhos era tão intensa, que ele recuou.
— Este é o seu momento de decisão, Arsène! Você tem que decidir, neste momento, se a sua vida pessoal, se a sua segurança
valem mais do que qualquer outra coisa! Tem que decidir se existe algo mais sagrado do que a vida, ou regressar a Paris. Não é mais hora de hipocrisias.
Olhando para ela, Arsène ficou mais uma vez impressionado com a beleza, a firmeza e a juventude de Cécile. Não havia des- • dém nos olhos dela, apenas uma serena distância. Arsène pensou, incoerentemente: Será que devo voltar e levá-la comigo, para viver em paz, tranquilidade e segurança? Mas não tardou a perceber que, se voltasse, voltaria sozinho.
Disse, numa voz trêmula:
— Você é dura, minha querida.
Ela sorriu, um sorriso passageiro. Mas não disse nada; limitou- se a esperar.
— Que é que eu posso dizer sobre o que penso e a dor que sinto? Que tenho saudades da paz e da limpeza, que odeio o exílio, ter que fugir, e esta miséria, que talvez nunca acabe? Tenho pensado tanto! Será que você não entende, minha querida, que não podemos vencer, que vamos ser vencidos? Que só podemos lutar e morrer, ou fugir ignobilmente, até cairmos exaustos? Que esta é uma causa perdida?
Não pôde continuar a falar e calou-se, com um gemido.
Cécile respirou fundo. Chegou mais perto dele e olhou-o bem nos olhos.
— Meu avô — disse ela, em voz baixa e veemente — certa vez me disse que não existem causas perdidas, apenas homens perdidos.
A voz da jovem, clara e penetrante, ecoou no ar transparente da manhã. Agora Arsène desejava apenas escapar ao olhar dela.
— Então, talvez eu seja um homem perdido — disse ele, desviando os olhos de Cécile e mal controlando a vontade de chorar.
Quando mais uma vez conseguiu se dominar, começou a falar desordenadamente, as palavras precipitando-se, incoerentes, umas sobre as outras.
— Não há causas perdidas? Essa é a coisa mais estúpida que já ouvi. O rfiundo está cheio delas. Os túmulos dos mártires estão tão cheios, que os seus ossos não cabem mais. Não tenho a vocação do martírio. . . não tenho verdadeiro idealismo. No começo desta viagem, eu ainda tinha ilusões, mas agora elas se foram. Só ficaram o medo, o cansaço e o desespero. Palavras nobres não passam disso mesmo. Não podem substituir a paz e uma boa fogueira, a segurança e a tranquilidade, a limpeza e o perfume dos vinhedos. . .
A voz morreu-lhe na garganta, e ele não conseguiu dizer mais , nada.
Aquela moça estranha e inabalável, tão jovem e inflexível, apesar do cansaço e da desolação, olhou para ele com ar grave e disse:
— E você acredita que essas coisas ainda existam na França, na Europa? Certa vez, meu avô disse que a Europa estava podre de tanta história, que os séculos pesavam demais sobre ela, que os seus porões estavam cheios de sujeira e de ratos, que as suas vigas estavam partidas e cedendo. Tem uma memória demasiado longa. Ele disse que, se os homens pudessem esquecer a história, talvez houvesse esperança.
Fez uma pausa e depois continuou:
— Se pudéssemos ir para uma terra onde a história ainda não existisse, onde tudo fosse novo... Mas não existe essa terra. Temos de viver na nossa cidade arruinada e reconstruir-lhe as muralhas. u
Fez-se um silêncio comprido entre os dois. Arsène inclinou a cabeça. O seu rosto ficou ainda mais pálido, mais abatido.
— Não tenho forças para reconstruir, para . viver neste lugar desolado — disse.
Voltou-se para ela, como se implorando:
'— Minha querida, como posso trabalhar e lutar assim? Sei que esta causa está perdida desde o início. Sei que não temos esperança de poder vencer o Cardeal. Não podemos fazer nada para acabar com a crescente reação católica na Europa. Por todo o lado há só a morte...
Cécile apertou convulsivamente as mãos, mas esse foi o único sinal da sua agitação. Seu rosto continuava calmo e frio e a voz serena, ao perguntar:
— Você não gostaria, talvez, de ir para a Inglaterra?
— Não. Para a Inglaterra, não! Lá também há velhos. Os velhos estão por todo o lado, erguendo-se dos túmulos, suas vozes ecoando nos crânios mortos. Não têm livros novos para abrir, só velhos, cheios de desilusão e desânimo.
— Será que você entende, Cécile — disse ele, elevando a voz —, que eu sonho com uma terra onde ainda não haja velhos, onde túmulos ainda não estejam cheios, e onde não haja história? Nem ódio, nem mentiras, nem cidades, nem intrigas, nem túmulos cheios de ossos apodrecendo? Tudo isso nós temos aqui. Não podemos construir nada de novo com base nessas coisas.
A sua angústia era agora tanta, que a jovem não pôde mais e passou os braços quentes em volta do pescoço dele. As mangas molhadas e rotas do seu vestido caíram para trás, pondo-lhe à mostra a carne branca e macia. Arsène encostou as faces nelas. Cécile ergueu os lábios, e os dois se beijaram como se não houvesse mais ninguém num mundo em ruínas.
Quando, por fim, se separaram, os olhos dela estavam úmidos e meigos como ele jamais os vira. Olhou para os lábios dela e viu que tremiam. Passaram-se alguns momentos antes que Cécile pudesse falar. p 11
— Arsène, meu amor — disse ela, com humildade na voz —, eu só. sei de uma coisa: que é preciso ter fé. É preciso acreditar que o indivíduo, em si, nada é, mas que todos os homens devem se unir para construir o futuro. O trabalho que temos pela frente pode parecer condenado ao fracasso, mas acabará vencendo! Vamos fazer o que pudermos. Quando essa tarefa tiver sido realizada, começaremos outra.
Fez uma pausa e o azul dos seus olhos pareceu intensificar-se, como se ela contemplasse algo que ele não conseguia ver.
— Um mundo novo! — exclamou, sorrindo. — Quem sabe se não haverá um mundo novo para nós?
As palavras dela pareceram-lhe misteriosas, mas Arsène sentiu de repente um novo ânimo, como se lhe tivessem feito uma promessa heróica e entusiasta. Levou as mãos dela aos lábios. Voltaram juntos para a taberna e, quando os outros lhes viram o rosto, sorriram, como se livres de uma pressão insuportável.
Capítulo LI
Galopavam agora com mais ânimo, pois o sêu líder lhes transmitira coragem e, embora ele não soubesse o que esperar, estava esperançoso. As noites estavam mais escuras e muito mais frias, mas agora eles cantavam e brincavam em voz baixa. Ao chegarem a uma taberna obscura, afastada da estrada principal, o dono sempre se esforçava por lhe apresentar o melhor que havia na despensa, pois agora eles já não pareciam, como dantes, fugitivos, e sim uma alegre companhia, viajando a negócios e procurando lugares modestos por não dispor de muito dinheiro. Até então, tinham entrado nas tabernas com os chapéus descaídos sobre o rosto, as capas bem chegadas ao corpo, como se estivessem sendo perseguidos. Tinham inspirado mal-estar e desconfiança nos donos das tabernas. Agora, tudo isso mudara. A alegria que sentiam era espontânea, pois o seu líder já não parecia acossado pelo medo, mas cheio de fortaleza e renovada fé.
Cécile dera-se conta da natureza volúvel de Arsène e não esperava demasiado dele. Sabia que ele seria sujeito a novos acessos de desespero, a outros pensamentos mórbidos. A sua tarefa era estar alerta a essas crises e oferecer-lhe consolo, coragem e compreensão. Quando uma sombra lhe aparecia nos olhos, e os lábios dele se tornavam amargos, ela inclinava-se na sua sela, apertava-lhe a mão, sorria-lhe, e em pouco tempo Arsène voltava a se animar.
Q marquês também se apercebia disso. Embora a sua velha carcaça rangesse e doesse,, ele nada dizia. Mas queixava-se exagera- damente dos pequenos desconfortos da viagem, fazendo com que todos rissem e galhofassem. Cécile, com a sua agulha, mantinha-o decente. Parecia incansável. Capas rasgadas, calções e meias desfiados passavam regularmente pelos seus dedos ágeis. Os homens não tardaram a adorá-la. Maravilhavam-se com a sua resistência, com os seus sorrisos, mesmo quando o seu rosto ficava branco de exaustão. Colhiam frutas para ela, ajudavam-na a vencer pedras e maus caminhos. Chamavam-na de “Madame la Duchesse”, e ela, de brincadeira, fingia ser realmente uma duquesa, viajando com a sua comitiva.
Arsène pensava, consigo mesmo: Não há nada que ela não possa enfrentar com fé e força de ânimo. Nada a abate, nem o cansaço, nem as dificuldades, nem o desconforto. Ah, aquela era uma mulher para um novo mundo!
Um mundo novo. O pensamento não o largava. E então, com
surpresa, lembrou-se: Tenho estado à procura de um mundo novo, mas ele já foi descoberto e está esperando por nós!
Era um mundo selvagem, cheio de lugares inexplorados, de vastidões incríveis, de enormes florestas. Mas muitos dos seus compatriotas, além de ingleses e espanhóis, já tinham ido para esse mundo, e dizia-se até que em vários pontos se haviam fundado cidades respeitáveis e o comércio florescia.
A América! Mas o seu coração recuava ante a ideia, pois ainda estava preso à França, à sua pátria e aos seus compatriotas. A imensidão do novo mundo apavorava o seu espírito europeu. Ao mesmo tempo, porém, fazia com que o seu coração batesse com mais força.
Cada vez que pensava, com medo, nessa possibilidade, a ideia lhe surgia com mais força, com mais esperança. Certa vez, cavalgando ao lado de Cécile, olhou para ela, e a jovem ficou espantada com a expressão do rosto dele, com o seu ar contemplativo. Disse para si mesma: Ele também está pensando num mundo novo! E sorriu para Arsène.
Agora, à medida que se aproximavam de La Rochelle, aumentavam a velocidade, pois tinham que alcançá-la antes de Riche- lieu. Quando ele chegasse, a cidade ficaria realmente sitiada, e seria quase impossível entrar nela.
Arsène pensava muito no Cardeal, ultimamente. Ele já não lhe parecia um conspirador perverso, e sim um homem cansado, que suscitava compaixão. Sem dúvida, também ele devia sentir o peso de séculos de história sobre os ombros, a náusea provocada por tanta pestilência. Por que, então, se esforçava tanto? Seria por não ter esperança, por se saber um prisioneiro? Mas as intrigas eram para os velhos como estimulantes, necessários para aliviar os sintomas da doença.
Certa vez, viram ao longe o brilho de fogueiras e deduziram ser o acampamento dos homens que acompanhavam o Cardeal. Deixaram-no para trás e continuaram viagem, a coberto da noitp. Mas Arsène não pôde deixar de sorrir, pensando: Que sabia Riche- lieu das esperanças de um novo mundo, dessa esperança que tanto o estonteava? Como poderia ele sonhar com um mundo como aquele, tão gigantesco e radiante?
Arsène não podia suspeitar que, naquele mesmo momento, Richelieu pensava justamente nessas coisas, deitado, sem poder dormir, em meio à escuridão. Não sabia que o Cardeal tinha ouvido o tropel distante e que ele lhe provocara esses estranhos e misteriosos pensamentos. Atravessando as trevas da noite, as mãos do velho e do jovem se encontravam, sem saber, sentindo apenas
o frêmito momentâneo que passa do moribundo para o que continua vivo, no instante da dissolução e da despedida.
Arsène começou a pensar em Paul de Vitry, no Abade Mou- rion, no Duque de Tremblant, a conjeturar-se se eles também teriam pensado no novo mundo com paixão e esperança. E teve a certeza de que, mesmo que não tivessem pensado, a ideia devia estar latente nos seus espíritos, de tal modo que eles tinham dado a vida por ela. A sua fé, a sua esperança, a sua crença inabalável no futuro tinham sido os ventos que haviam eníunado as velas das naus em demanda de um mundo novo.
Percebeu que os espíritos desses nobres homens, e os de milhares de outros como eles, estavam presentes a bordo dos navios que zarpavam corajosamente para oeste, e que eles não carregavam apenas os exilados e os visionários, mas também os corações, as esperanças e as paixões dos que tinham morrido para que outros homens pudessem viver em paz.
Com uma tal carga, com um tal vento nas velas, com tais figuras de proa, como deixaria o novo mundo de justificar todos os seus sonhos e ideais? Quem ousaria atraiçoá-los?
Quem permitiria a entrada de homens velhos, de velhas mentiras, das velhas e sangrentas religiões, das velhas pestilências, das velhas doenças, dos velhos ódios e crueldades?
Ah, disse Arsène para si mesmo, esse mundo deve ser para mim, para os meus filhos e para os filhos deles, que o conservarão inviolável e belo, indômito e cheio de esperança e alegria, para que neles os homens possam sempre viver em liberdade e harmonia.
A impetuosidade da sua natureza fez com que ele se entregasse todo a esses pensamentos. Na sua imaginação, ele viu cidades deslumbrantes, povoadas por homens idealistas, vivendo em paz e esperança, governadas com justiça, rodeadas por montanhas incandescentes de luz, banhadas por mares sulcados por um sem-número de navios. Esqueceu os vastos desertos, os vales cheios de penhascos. Tudo se transformou de repente em verdes pastagens, onde abundavam rebanhos gordos e pacíficos. O ar fresco e vibrante ecoava o som de novas cidades, erguendo-se onde antes houvera apenas silêncio e ninhos de águias. Viu grandes estradas e ouviu o tumulto de um novo império. Viu os rostos estranhos mas brilhantes de um povo novo, no qual o seu próprio sangue se misturava a inúmeros outros, formando uma raça de homens fortes e esperançosos. Ventos oriundos de espaços ilimitados sopravam-lhe no rosto, trazendo-lhe novos e embriagadores aromas. Ah, aquele novo mundo sem história e sem maquinações, sem perseguições e livros pestilentos, sem recordações de ódios e rancores, sem sinistras igrejas, construídas por mãos ensanguentadas, sem exércitos
mercenários, engajados em guerras traiçoeiras e em complôs diabólicos! Sem reis e estadistas, contaminados por velhas taras e doenças!
Pensando naquilo tudo, sentiu-se tonto e teve de agarrar-se ao arção para não cair da sela. As lágrimas vieram-lhe aos olhos. O coração batia-lhe com força. Essa era uma solene aventura, ordenada por Deus! Aquela terra virgem aguardava a chegada de homens que acreditassem no futuro!
Percebeu então que, no fundo, nunca acreditara no futuro da França, terra povoada de bruxas num continente assolado por fúrias. Ali, os homens estavam demasiado sobrecarregados de histórias, as suas recordações eram demasiado longas. Não conseguiam esquecer, cercados como estavam pelo passado. A tradição era um labirinto no qual a Europa estava para sempre prisioneira. O ódio pairava no ar. Arsène precisava libertar-se de tudo aquilo. Precisava partir, se quisesse viver.
A embriaguez aumentou. As dificuldades, os temores, as dúvidas cederam. Tantos como ele, tantos huguenotes, tinham partido para esse mundo novo! O que eles tinham feito, ele podia fazer. Decerto não eram mais do que ele! Recordou, vagamente, histórias de ingleses que tinham atravessado os mares terríveis, rumo ao novo mundo, para fugir ao ódio dos velhos da Europa. Ouvia falar nisso com a indiferença de quem escuta falar numa lenda. Mas agora recordava, com esforço, as histórias das cidades que eles tinham fundado, as coisas estranhas que eles tinham encontrado, raças, frutas, árvores, aves e animais desconhecidos. Quando ouvira falar naquilo, estremeceu. Mas agora todas essas coisas tinham um interesse vital e imediato para ele. Sentia um sangue novo correr-lhe, excitado, pelas veias. Os últimos pedaços de cetim, a derradeira roupa de cortesão deixaram o seu corpo espiritual.
Aqueles ingleses, aqueles franceses, aqueles alemães, aqueles representantes de velhas raças tinham ido para o novo mundo e se transformado num povo novo. Uma nova visão surgiu diante de Arsène. Quem poderia afirmar que, num futuro imprevisível, aquele povo novo não cortaria o cordão umbilical que o ligava à Europa e não criaria um império único e invencível, para sempre liberto de homens velhos, de velhas religiões, de velhas tradições, de velhos ódios e mentiras?
Mal podia se controlar, tão turbulentos e apaixonados eram os seus pensamentos.
Numa dessas ocasiões, voltou-se para Cécile, e ela olhou-o em silêncio. Mas ele viu, no rosto dela, o reflexo dos seus próprios sonhos. Perguntou-lhe, pegando-lhe na mão e numa voz estrangulada e trêmula:
— Minha querida, você iria comrgo nem que fosse para os confins da Terra?
Ela apertou-lhe a mão e retrucou, tão baixo, que ele mal pôde ouvi-la:
— Oh, não para os confins da Terra, e sim para o começo!
Um estranho estado de sítio vinha tendo lugar em La Rochelle, vários meses antes da chegada do Cardeal. Embora os acessos por terra, à cidade, ainda estivessem mais ou menos abertos, um dique, ou quebra-mar, estava sendo lentamente construído no porto, a fim de impossibilitar a entrada dos navios ingleses. Os ro- chelenses tinham assistido a essa construção com desespero, rezando para que os ingleses chegassem a tempo de entrar. Até então, não houvera hostilidades entre huguenotes e católicos. O único sinal de combate iminente era o tal dique.
O mar era constantemente perscrutado, à procura de uma vela, de algo que anunciasse a aproximação das naves inglesas. Mas o mar permanecia vazio, enquanto o molhe crescia, pedra a pedra, inexorável. E, com o crescimento do dique, aumentavam, nos sitiados, a amargura e o desapontamento, a certeza de terem sido traídos. As igrejas estavam sempre cheias de gente orando para que os ingleses chegassem a tempo de salvar os seus correligionários, para que as promessas da Inglaterra fossem cumpridas. Mas, à medida que os dias passavam, tornavam-se mais frequentes os murmúrios e as manifestações de ódio e desconfiança. Havia quem declarasse que os ingleses, como sempre, prometiam muito, mas acabavam traindo, que fora o seu eterno ódio da França o que os fizera lançar irmãos católicos contra irmãos huguenotes, para depois tirarem partido da luta interna. Muitos afirmavam que os ingleses viam com apreensão e ciúme o crescente poder da França e, para enfraquecê-la, tinham feito tudo para atiçar uma guerra civil, na qual as esperanças, as ambições e a própria existência dos franceses acabassem num mar de sangue.
Mas a maioria ainda não podia acreditar que os ingleses os traíssem. Sentinelas e plantões ficavam, imóveis, olhando para o mar cinzento, sustentados pela esperança. As crianças olhavam, e as mulheres vigiavam, os cabelos batidos pelo vento salgado. Cada contraforte, cada torre, cada muro, cada penhasco tinha alguém olhando. Enquanto isso, o Cardeal e o rei, rodeados de estandartes, música, tendas de seda, aventureiros e soldados, se aproximavam rapidamente da cidade em desespero.
La Rochelle tinha menos de vinte e oito mil habitantes, incluindo mais de mil alemães, espanhóis e italianos, protestantes ou hereges, que tinham ido ajudar a defendê-la. Entre os espanhóis e
os italianos, contavam-se muitos bravos de sangue nobre, que tinham vindo voluntariamente das suas ricas terras, onde a Igreja não ousava atacá-los, a fim de se devotarem à causa dos homens livres, dispostos a morrer por essa causa. Era estranho, mas, entre esses alemães, espanhóis e italianos, não se via senão a maior dedicação e força de ânimo. Nunca partiam deles quaisquer dúvidas quanto à prometida ajuda da esquadra inglesa, nem jamais eles desanimavam de conseguir salvar a cidade. Com mãos não acostumadas a trabalhar, ajudavam a construir os fortes que deveriam proteger La Rochelle, e era comum ver muitos deles com as mãos sangrando. Sua presença nos contrafortes e nas muralhas, a paixão cbm que punham mãos à obra faziam com que os céticos e temerosos franceses se envergonhassem e se entregassem com redobrado afã ao trabalho. Olhavam para aqueles estrangeiros com espanto, gratidão e até adotação. Mas o espanto era maior do que tudo o mais. Para a maneira de pensar dos franceses, era incrível que estrangeiros, sem nada a ganhar e tendo tudo a perder, pudessem devotar-se de tal modo a um ideal que a eles mesmos parecia um tanto vago. Nos mais estúpidos, a desconfiança não tardou a brotar. O que teria levado aqueles homens, aqueles aristocratas de fostos finos e mãos delicadas, a enfrentar privações, fome, sofrimento e a própria morte? Que importância poderiam ter os franceses para eles? Nunca famosos pelo altruísmo, pelo espírito de sacrifício ou pela dedicação a um nobre ideal, os franceses olhavam para os seus aliados com espanto, dúvida e, muitas vezes, até com suspeita. Alguns chegavam a dizer que era intolerável pensar na possibilidade de que esses forasteiros matassem franceses, mesmo em se tratando dos abomináveis católicos.
A cidade só tinha mantimentos para dois meses, mesmo assim com o maior racionamento. Os lavradores, apostando corrida contra o tempo, conduziam carroças carregadas de provisões, pelas duas estradas ainda abertas. Devido à sua localização baixa e pantanosa, a cidade era facilmente atacável por terra. As estradas estavam bem guardadas, rodeadas de fortes e fortalezas. Os rochelenses eram gente independente e orgulhosa da reputação da sua cidade, um dos mais importantes portos de mar da França. Muitos descendiam de antigos piratas, que outrora haviam dominado os mares, atacando as costas da Bretanha e da Inglaterra. Havia muito desfrutavam do privilégio de recusar a entrada das guarnições reais, e possuíam um governo muito democrático, elegendo o seu próprio prefeito.
A cidade já estava acostumada ao estado de sítio. Em 1573, os católicos tinham tomado La Rochelle e perpetrado crimes horríveis contra a indefesa população, que ficara meses sem ter o que comer, Muitos dos habitantes mais velhos se lembravam desse mas-.
sacre de homens, mulheres e crianças desarmados, e andavam pelo meio do povo, naquele segundo cerco, exortando-o e avísando-o das coisas terríveis que aconteceriam, se a cidade acabasse caindo.
— A Igreja Romana continua a mesma — diziam eles. — Sedenta de sangue e carente de humanidade, despejará todo o seu ódio e fome de vingança sobre nós. Se conseguir destruir-nos, Roma vai mandar cantar um Te Deum sobre os nossos cadáveres e sobre os corpos mutilados dos nossos filhos. Se for necessário, morramos nas nossas casas, de doença ou de fome, mas nunca nos entreguemos, enquanto um único homem permanecer de pé!
Os seus rostos eram tão graves, as suas exortações tão apaixonadas, a sua memória tão viva, que até os mais hesitantes silenciavam. Mas os murmúrios continuavam. Os ingleses não faltariam ao prometido? Lembravam que Charles I, Rei da Inglaterra, tinha como esposa Henrietta Maria, irmã do Rei da França. Conseguiria ela fazer com que ele não cumprisse o que prometera e abandonasse os rochelenses à fúria dos seus inimigos católicos? O terror se alastrou pela cidade, que ainda se lembrava do último cerco, dos massacres de São Bartolomeu, quando os católicos tinham assassinado milhares de mulheres e crianças huguenotes, além de bebês de colo, e atirado os cadáveres sangrentos nos rios das redondezas. Recordavam-se das horríveis torturas infligidas aos jovens e às crianças, queimados e estrangulados, enforcados e marcados a ferro e fogo. O terror foi acompanhado de um ódio enorme, de uma sede de vingança. Se o ideal não alimentava a população, o medo incitava-a.
Alguns dos espanhóis, alemães e italianos tinham sido padres da Igreja Católica, mas, ou haviam sido excomungados nos seus países, por serem verdadeiros cristãos, ou abandonado a batina para apoiar os que lutavam pela liberdade, na França. Não faltava quem murmurasse que eles eram espiões.
Entre esses estrangeiros havia vários ingleses, com rostos pálidos e dedicados. Acreditavam fervorosamente que os seus patrícios viriam em ajuda de La Rochelle. Não tiravam os olhos azuis do mar e nem duvidavam de que os ingleses acabariam vindo.
O Cardeal e o Rei ainda não tinham chegado. O Rei fora acometido de uma febre na estrada de La Rochelle e obrigado a fazer uma pausa em Villeroy, a fim de se recuperar. Assim, aproveitando-se de cada momento, os defensores da cidade tratavam de aumentar ao máximo a inexpugnabilidade de cada forte e de juntar provisões para alimentar a cidade durante o cerco. Cada hora ganha pesava na balança da vitória. Os lavradores huguenotes trabalhavam febrilmente para juntar as colheitas, que depois levavam, em carroças, para a cidade. Os campos e vinhedos estavam carregados de
trigo e de frutas, e os ventos quentes de setembro traziam para os rochelenses os ricos aromas dos campos amadurecidos. O povo ainda estava armado de mosquetes e artilharia, à espera do cerco, olhando, com medo, para as entradas da cidade e para os fortes que as guardavam, e espichando o olhar para ver se os navios de guerra ingleses já vinham chegando. Acreditavam que o acesso por terra era impossível. A única entrada era pelo mar, e, como a França quase não tinha navios, os rochelenses confiavam em que o acesso por mar permanecesse aberto. Aos poucos, porém, vendo crescer o dique, iam ficando cada vez mais desanimados. De que adiantavam as ilhas fortificadas no porto, se o dique lhes cortasse o acesso?
No Senado, os boateiros não paravam. Na sua maioria, não eram traidores, apenas timoratos e cautelosos. Entre os cem' homens que compunham o Senado, havia menos de dez boateiros. Todos os dias, os senadores iam inspecionar as defesas. Sua presença dava novo ânimo aos construtores e ao povo em geral, pois eles representavam a liberdade e a democracia do protestantismo, o baluarte de novas a arejadas ideias. Por sua vez, os senadores cobravam novo ânimo ao ouvir os nobres e os bravos repetirem que, embora os arredores fossem pantanosos e estivessem assolados pela malária, a cidade em si estava a salvo da doença, graças ao seu solo bem drenado. Além do mais, as marés eram-lhes vantajosas. A série de torres que guardava o estreito porto erguia os seus contornos contra o céu azul e cálido.
Mas, pouco a pouco, inexoravelmente, o dique mandado construir pelo Cardeal ia avançando pelo lado raso do mar, perto do porto, sob as vistas dos rochelenses. Seus construtores trabalhavam calmamente e, segundo parecia, completamente alheios à tensão que reinava na cidade. Os inimigos não se falavam, embora de vez em quando os navios dos rochelenses atravessassem o porto para se comunicar com os portos ingleses, passando diante dos que construíam o dique. r£.
Antes de ser morto, Buckingham atacara a ilha da Ré e fora derrotado pelos católicos. Percebendo que o poderio marítimo era essencial à sobrevivência da França, o Cardeal, após essa experiência, ordenara a criação de uma esquadra.
A derrota de Buckingham e a sua morte tinham sido dois golpes terríveis para os rochelenses. Só pediam a Deus, agora, que Charles I não esquecesse a promessa que fizera a Buckingham, e a cumprisse. Assistindo à construção do dique, reforçado por barcos presos uns aos outros com grandes toras de madeira, percebiam que a sua salvação dependia de que os ingleses chegassem antes de concluído o molhe.
Entrementes, Guiton, o heroico prefeito, animava o seu povo. Atarracado e corpulento, com uma grande cabeça e indomáveis olhos azuis, sua esperança e força de ânimo eram tão eficientes quanto as suas fortalezas;
Foi a essa cidade que Arsène de Richepin, seu pai, Cécile e seus companheiros chegaram, duas semanas antes de Richelieu. Entraram por uma das pontes guardadas e penetraram na cidade. Arsène, seu pai e Cécile foram recebidos como hóspedes, em casa do Duque de Rohan, por sua velha e corajosa mãe.
Capítulo LII
Foi aqui, pensou Arsène, ao atravessar as ruas de La Rochelle, que o meu avô morreu, assassinado pelos sicários de Roma, e uma das minhas avós morreu de fome durante o cerco, e outra acabou morrendo de desgosto.
Ali, naquela cidade marítima, naquela orgulhosa cidade de comerciantes, armadores e marinheiros, naquele lugar habitado por homens de olhos azuis e rostos morenos, ficava o último reduto dos protestantes franceses. A luta que se anunciava decidiria se a França poderia contar com um futuro de glória e liberdade, ou afundar no pantanal da opressão, das trevas e da ignorância. Lembrou-se de algo que a Duquesa de Rohan lhe dissera:
— Não desespere. Se formos vencidos, não pense que a batalha está perdida, que a fé está morta, que as trevas tomaram definitivamente conta dos franceses. Um sonho nasceu nos corações dos homens, e nem as chamas do inferno, nem a câmaras de tortura de Roma conseguirão destruí-lo. Hoje, talvez, sejamos vencidos. Mas amanhã, porque há sempre um amanhã!, nós venceremos!
Mas Arsène não tinha tanta certeza. Que lhe importava a ele, ou àqueles a quem ele amava, saber que, dali a cem ou duzentos ânos, a França talvez fosse livre, para sempre liberta de opressores? Não possuía a fé dos grandes homens, que acham que se deve trabalhar para o futuro da humanidade, mesmo não 'conseguindo vivê-lo. Impaciente e impetuoso, ele queria ver logo os resultados pelos quais lutara. Só os santos e os heróis fixam os olhos no amanhã distante, embora morram nas trevas. -.h
Meditando tristemente, Arsène atravessou as ruas tortuosas e empedradas da cidade, ladeadas por casas antigas:e entrecruzadas por pontes estreitas. Viu as torres das fortalezas, sempre guardadas, fortes e imponentes contra o céu azul. Ouviu o barulho do mar, sentiu o seu cheiro pungente, trazido pelos ventos. Passou pelo mercado, onde os apressados lavradores discutiam com as do- nas-de-casa, o gado mugia e as galinhas cacarejavam, enquanto os gansos escapuliam dos braços dos garotos. Viu pequenos jardins floridos, sobrevoados por gaivotas. Lá estava a velha igreja de Santa Margarida, serena e cinzenta, lançando a sua sombra sobre as ruas e as paredes das casas. Arsène era obrigado a se desviar de burros, carroças, gansos, crianças correndo, cães, gatos, cabras, velhas e cavalos a galope, e, de vez em quando, era lançado na
sarjeta e contra as paredes. La Rochelle era muito mais limpa do que Paris, purificada pela brisa do mar, pelo sol brilhante e pelo céu transparente. Havia um ar de esperança, resolução e fortaleza de ânimo, atividade e movimento. Se havia desânimo nos corações dos seus defensores, ele não era visível, exceto nos rostos dos mais velhos, que ainda não haviam esquecido.
Ao subir aos contrafortes, Arsène viu a cortina azul do mar, brilhando a distância. Viu também o quebra-mar, estendendo-se ao comprido, qual uma serpente, atravessando o porto. Virou as costas e olhou para a terra, para os pântanos cinzentos, fumegando ao sol quente, para as pontes, para os longínquos campos dourados e florestas verdes, e para o lilás das colinas, cintilando sob os raios do sol. O ar estava cheio de vitalidade, cor e excitação. Olhou para baixo, para as ruas tortuosas, empedradas e atravessadas de pontes, cheias de pessoas apressadas.
Ali, naquele ar, sentiam-se já os reflexos da liberdade e da coragem. Nada, senão aquele dique, parecia ameaçá-las. As muralhas cinzentas e castanhas da cidade, manchadas pelo sol, davam uma impressão de paz e serenidade. Aqui e ali, viam-se grandes árvores, dobrando-se ao vento salgado que vinha do mar. Arsène deu a si mesmo esperança. Os ingleses tinham que chegar a tempo! Mesmo que não chegassem, a cidade era inexpugnável por mar. Mas por quanto tempo resistiria a um cerco? Arsène forçava-se a acreditar que Richelieu logo se cansaria de enfrentar aquele povo teimoso e regressaria ao seu luxuoso palácio, para curar as dores de um reumatismo que a umidade daquelas terras pantanosas devia piorar de maneira extraordinária.
Passava muito tempo conversando com os amigos defensores das muralhas, entre os quais o Conde Alfred Von Steckler, um nobre alemão, Dom Carlos de Santa, um aristocrata espanhol, e o Conde Luigi di Brizzini, da Itália. Esses três nobres, todos com menos de quarenta anos, eram os oficiais que comandavam aquela fortaleza.
Arsène tinha-os conhecido no hôtel de Rohan, mas sentia-se pouco à vontade na companhia deles. Olhava para a bela estampa do alemão, com o cabelo louro brilhando ao sol e os olhos azuis cheios de fogo. Olhava para o rosto do espanhol, à procura do engenho e da sutileza que distinguiam o caráter ibérico. Quanto ao italiano, era demasiado despreocupado, demasiado alegre, na opinião de Arsène, para a árdua tarefa que os esperava. Baixo, mas delicado de rosto e de físico, com olhos negros e dentes muito brancos aparecendo por entre os bigodes e o cavanhaque negros, de pele morena e expressão satisfeita, parecia mais um bon vivant do que um soldado à véspera de enfrentar a tortura e a morte.
O alemão vestia-se simplesmente, as mangas arregaçadas mostrando os braços brancos de leite, mas o espanhol e o italiano tudo faziam para rivalizar um com o outro em esplendor. Aparentemente, tinham levado enormes guarda-roupas para La Rochelle, e cada um possuía três lacaios que os adoravam. À noite, terminado o plantão, passavam horas tomando banhos perfumados, passando un- guentos e experimentando perucas. Trocavam de roupa mais de dez vezes, até escolherem a indumentária capaz de satisfazer-lhe a vaidade. O hôtel de Rohan era o seu destino predileto, e era divertido, até para o preocupado Arsène, vê-los olhar um para o outro com mal disfarçada hostilidade e inveja. O Marquês de Vaubon, como um árbitro sério e dedicado, andava lentamente em volta de cada jovem, comentando os pontos mais destacados das toaletes, balançando a cabeça com ár grave, até que, depois de muito pensar, concedia o prêmio de elegância da noite a um ou ao outro. Ambos tinham a opinião dele na mais alta conta e nunca a discutiam. O perdedor ficava o resto da noite imaginando a toalete que usaria na noite seguinte, a fim de poder desbancar o seu rival e fazê-lo parecer um autêntico vaqueiro ou pastor de gansos. Ninguém se atrevia a interromper-lhe a meditação. Só quando, com um sorriso profundo e satisfeito, o perdedor se levantava, os olhos brilhando de triunfante expectativa, é que o incluíam na conversa.
Arsène achava tudo aquilo muito frívolo, mas a velha duquesa sorria e dizia:
— A frivolidade muitas vezes encobre um homem nobre e valente. Acredita que Carlos e Luigi sejam menos heroicos pelo fato de preferirem bons perfumes a maus cheiros? Ou por fingirem achar que as coisas mais importantes do mundo são a fragilidade de uma gola de rendas ou a largura que deve, ter uma liga?
Quando o marquês, curioso, lhe perguntou por que não pedia ao Cardeal que abandonasse a campanha, ela olhou para ele com ar ultrajado e orgulhoso. Passaram-se vários minutos antes que recuperasse a voz e dissesse, tremendo de indignação:
— Monsieur le Marquis decerto não compreende a desonra contida na sua sugestão!
Outros, apavorados, pediram-lhe que usasse a uma influência, provocando nela uma tal fúria, que dava a impressão de ir ter um ataque. Não obstante, no fundo do coração ela estava perplexa por saber que muitos padres, inclusive o terrível capuchinho, acompanhavam Richelieu. Não temia grandes represálias contra os rochelenses da parte do Cardeal, mas não tinha ilusões quanto aos padres. No entanto, não confessava a ninguém os seus receios. Pelo contrário, estava exausta de tanto procurar manter ' a coragem e o moral dos que a rodeavam.
Entristecia-se constatar que havia'menos coragem, orgulho e determinação entre os rochelenses do que entre os dois mil estrangeiros que haviam acorrido, voluntariamente, à cidade sitiada, a fim de pegar em armas em defesa da liberdade. Esses, mais do que ninguém, sofreriam um castigo inclemente por parte do Cardeal, mesmo que os rochelenses fossem poupados. Porque ela acreditava que eles seriam poupados. Afinal de contas, reram franceses.
Capítulo Lin
A Duquesa de Rohan era obrigada a achar que, apesar dc todos os protestos de tioblesse oblige, os franceses não possuíam essa qualidade de modo geral. Descobria esse espírito heroico e aristocrático mais entre os estrangeiros que haviam acorrido em defesa de La Rochelle, que entre o seu próprio povo.
Não o encontrava sequer em Arsène de Richepin. Ele possuía uma qualidade talvez maior, em cuja força havia raiva, sofrimento e espírito de vingança. Mas ela deplorava a ausência de algo mais elevado, mais delicado. Sabia que o espírito de noblesse oblige era o apanágio de um gentil-homem, e que Arsène, apesar da sua ilustre linhagem, não era um gentil-homem.
Prudente, e sabendo ver ao longe, a duquesa servia apenas as comidas mais simples e frugais no seu hotel, inclusive ao prefeito, a quem muito respeitava, e aos seus numerosos e constantes hóspedes. As despensas do seu palácio estavam cheias, mas só Deus sabia por quanto tempo permaneceriam assim, e, no fim, os aristocratas teriam de se sacrificar em benefício do povo, se quisessem que La Rochelle resistisse ao cerco. A duquesa não se iludia a respeito das massas. Expostas à tensão, ao medo e à fome, era de esperar que ficassem traiçoeiras, enlouquecidas e tomadas de pânico. Já as pessoas superiores eram capazes de suportar tudo com sorrisos silenciosos e fortaleza de ânimo.
Certa vez, ela dissera a Arsène:
— Você perguntou-me o que me sustenta, se o protestantismo, se um ideal heroico. Devo confessar que nem um, nem outro. Mas só na liberdade, só no liberalismo protestante o homem superior pode existir e levar luzes e paz aos homens em geral. Consequentemente, temos de lutar por essas coisas e morrer por elas. O mundo tem que se tornar um lugar seguro de ser habitado pelo homem superior, e, para esse fim, o homem inferior precisa ser socorrido e salvo.
De outra feita, dissera:
— Examine o sangue, a tradição e a linhagem dos heróis e verá que, por mais humilde que a sua origem pareça, sempre existe, por trás deles, algum antepassado nobre.
Não acreditava que a virtude das massas estivesse no fato de serem vulgares, como era opinião de certos idealistas. A pobreza, a ignorância e a estupidez não faziam uma alma superior. Ao cori'-
trário, essas características eram a marca de uma criatura pouco acima do nível animal.
— Assim como uma nascente, por mais funda que seja, e rodeada de pedras, terra e rochas, encontrará sempre o caminho da luz e do sol, para vir à tona, assim o homem superior, por mais esmagado que seja pelas circunstâncias, sofrimentos e adversidades, conseguirá sempre triunfar — costumava ela dizer.
Gostava de citar como exemplo um velho que atuara como seu conselheiro e administrador, amigo e confidente, e que estava agora com ela em La Rochelle. Nascera nas terras do pai dela, filho de uma camponesa e de um menestrel. Desde tenra idade, mostrava grandes talentos, audácia, inteligência e bom senso. Conseguira convencer um padre local a educá-lo, e quando, na sua enorme audácia, invadira a biblioteca do velho duque, este ficara tão impressionado com a lógica, a coragem e a inteligência do rapaz, que não o tinha mandado enforcar, nem sequer açoitar, como tantas vezes fizera com outros, por crimes bem menores. Em vez disso, tornara-se patrono do rapaz. Mandara buscar os melhores tutores para ele e começara a confiar-lhe assuntos relacionados com a propriedade. Tal a honestidade e o bom senso demonstrados pelo seu jovem protegido, que o duque acabara confiando completamente nele e tratando-o como a um filho. Ao morrer, deixara-lhe uma grande fortuna e a liberdade de sair das suas terras para tentar fazer uma fortuna ainda maior fora dali. Mas ele se recusava a sair e continuara com a duquesa, mesmo depois de ela se casar.
Esse homem, Alphonse, a quem o duque dera o sobrenome de Champaigne, morava agora no hôtel de Roham, como sempre dedicado à patroa, a quem servia como conselheiro e amigo, e não como criado. Sentava-se à mesa dela, misturava-se com os seus convidados e participava de todas as conversas. Em um homem grave e respeitador, mas orgulhoso, sem nada da arrogância do homem vulgar içado a uma posição elevada. Quando falava, as suas palavras eram tão sensatas, penetrantes e lógicas, que todos o escutavam com admiração e atenção. E, quando ele falava, a duquesa olhava para ele com um sorriso orgulhoso e indulgente, e depois, de soslaio, em volta da mesa, para as caras atentas e surpresas dos seus convidados.
Por sua vez, os rochelenses sentiam-se gratos à duquesa por essa manifestação de tolerância e democracia, pois não tinha ela recebido, como um amigo, à sua mesa, um homem da mais baixa estirpe? E assim, partindo da ilusão de que a duquesa elevara à sua altura um pobre criado, achavam que ela tinha a maior das considerações para com os pobres e os miseráveis. A duquesa tinha a sabedoria de guardar, só para si, o que pensava, pois sabia quão
importantes eram o moral e as ilusões para que a canalha, na hora H, se comportasse como gente e não como bestas. Não obstante, poupava as suas provisões, sabendo que, no fim, ter o que comer seria um argumento mais persuasivo para a população do que qualquer ideal elevado.
Ela presidia à mesa, iluminada por dois gigantescos candelabros de prata dourada, e os seus convidados eram servidos nos mais finos pratos e cristais, sobre as toalhas de damasco mais delicado. Só numa coisa a duquesa era pródiga: invariavelmente, eram servidos os melhores vinhos, porque, embora estivesse disposta, por necessidade, a comer apenas pão duro e pedaços de carne velha, não bebia senão bom vinho. Sentava-se na sua cadeira alta, como uma rainha, sempre atenta ao conforto dos convidados, fazendo com que a conversa fluísse amavelmente, sorrindo, acenando com a bela cabeça e abanando-se de leve. O marquês sentava-se à sua direita. À sua esquerda ficava Cécile, bonita e radiante como toda a jovem apaixonada, vestida com os elegantes trajes com que a duquesa a presenteara. Arsène sentava-se ao lado de Cécile. Os outros convidados, inclusive o prefeito, por quem a duquesa tinha um grande respeito, sentavam-se ao redor da mesa: as mais belas e aristocráticas damas de La Rochelle, os mais nobres dentre os aristocratas, incluindo muitos estrangeiros e Alphonse Champaigne.
Por mais fatigada e triste que a duquesa pudesse estar, ela nunca cancelava um jantar, pois sabia do valor de um estímulo constante para os líderes do povo.
Nessa noite, o alemão, Conde Von Steckler, com quem Arsène não simpatizava, discutia acirradamente com ele. Devido à dor constante que sentia pela perda de Paul de Vitry e pela morte do irmão, e também ao seu estado de espírito pessimista e deprimido, ele estava permanentemente propenso a discutir, ameaçando a toda a hora cruzar as perigosas fronteiras da cortesia e do tato. Nem mesmo a presença de Cécile conseguiu abater-lhe o jeito impetuoso, nem amaciar-lhe as palavras, embora ela lhe tocasse a mão por debaixo da toalha, de maneira súplice.
Arsène iniciara o ataque contra o conde alemão com exagerada polidez, erguendo as sobrancelhas negras com ar irônico, para expressar a surpresa, que afirmava ser constante, de que o conde tivesse ido até La Rochelle lutar e morrer pelos franceses. Não — acrescentara, levantando a mão com um sorriso perverso — que os rochelenses e ele próprio não agradecessem um tal sacrifício, mas confessava não poder se imaginar uma posição semelhante. Talvez por ser, antes de tudo, francês e não ter ainda chegado ao estado em que a política e os ideais fossem capazes de sobrepujar esse fato.
*X
Von Steckler ouvira, em silêncio, mas com atenção, fixando os olhos azuis no rosto e Arsène. Sua pele, branca de leite, ficou ainda mais pálida, quase translúcida. Havia algo de heroico e tocante na sua beleza loura e grande.
Respondeu:
— Monsieur, os homens de boa vontade não têm raça. São irmãos de todos os homens. Nesta luta, que é apenas o prelúdio de outras lutas, maiores, na França, entre as forças do liberalismo e da reação, existe um símbolo. Duvidamos, todos nós, de podermos sair vitoriosos do combate que se aproxima e sabemos que a morte nos espera. Mas a vida, de outra maneira, não tem sentido para nós. Se nos rendermos sem lutar, as gerações que virão depois de nós se renderão aos tiranos e opressores de todas as épocas. Mas, lembrando-se da nossa dedicação, do nosso sacrifício, erguerão bem alto as espadas que deixarmos cair e lutarão até que a paz, a liberdade e a fraternidade triunfem.
Olhou em volta da mesa, onde a luz das velas dava a ilusão, bruxuleando sobre os rostos, de que todo mundo estava sorrindo ou fazendo uma careta. Mas todos os olhos pareciam brilhar mais e ter mais vida.
Olhou para o espanhol e para o italiano. O rosto fino do primeiro, tão inteligente e belo, tornara-se espiritual, sém nenhum traço de frivolidade. O italiano sorria, mas no fogo dos seus olhos havia a corroboração das palavras do alemão. Os franceses ouviam educadamente e com visível gratidão, mas, com exceção da duquesa, era evidente não estarem muito convencidos.
— Não posso me sentir entusiasmado — retrucou Arsène — diante da ideia de poder vir a morrer na miséria ou no exílio, para que homens que ainda não nasceram venham a lucrar com o meu sacrifício.
Ninguém, a não ser a duquesa, percebeu o olhar grave, cheio de tristeza, que Cécile deitou ao seu amado, nem a ouviu suspirar.
— Pois eu — retrucou o alemão numa voz baixa e profunda — fico entusiasmado só de pensar nisso.
Olhou para Arsène, um rubor tingindo-lhe o rosto, e disse, com voz trêmula:
— Monsieur, posso lhe perguntar, então, por que foi que veio a La Rochelle?
Arsène deitou-lhe um olhar afrontado e respondeu, friamente:
— Os rochelenses são meus patrícios. São franceses. Sou hu- guenote e vim para defender o meu povo.
Fez-se um súbito silêncio no salão de jantar, como se todo o mundo estivesse envergonhado. O espanhol, com um gesto gracioso,
levou o copo de vinho aos lábios e sorriu para o alemão e o italiano, como se brindando ao ideal comum.
Arsène ficou emocionado. Compreendia perfeitamente, mas a perversidade que o impelia, com base no seu sofrimento e na incerteza que sentia, fê-lo dar de ombros e sorrir.
— Confesso que, nesta luta, só vejo o cansaço das velhas guerras religiosas. Mas existe uma teimosia em mim que me leva a lutar pela minha religião, contra a daqueles a quem desprezo, pois me recuso a ser obrigado, seja por quem for, a seguir as suas convicções, a servi-los com docilidade e servilismo, ou a aceitar ordens, supersticiosas e tirânicas, destinadas a destruir a minha alma e a minha mente.. .
Parou, de repente, e corou.
A duquesa não pôde conter um sorriso, e até mesmo os convidados menos perspicazes sorriram. Mas o olhar que o alemão lhe deitou era terno e compassivo, e o espanhol e o italiano entreolha- ram-se, divertidos, antes de encarar Arsène com ar de aprovação.
— Monsieur — disse o alemão, no mesmo tom suave —, nós nos entendemos, não é verdade?
Embaraçado, mas ainda não disposto a dar o braço a torcer, Arsène exclamou:
— Tudo isto não passa de uma série de guerras religiosas...!
— Impossível, monsieur — disse o cònde, com alívio, coragem e companheirismo na voz. — Os termos são contraditórios. Nenhuma guerra é religiosa, e esta tampouco o é. Trata-se apenas da velha luta entre o opressor e o oprimido, com Deus deixando a decisão nos corações daqueles que odeiam a tirania e a crueldade. Se o seu ódio não for o suficientemente forte, eles morrerão na ignomínia, com a certeza de terem atraiçoado os seus filhos.
Mas Arsène, apesar de concordar, continuou a replicar, como um homem que, sofrendo de uma grande dor, mostra irritação para esconder o seu sofrimento. O alemão continuou a ouvir e a demonstrar compreensão. O marquês bocejou. Os outros puseram-se a conversar entre eles. O espanhol inclinou-se, amorosamente, para Gé- cile, e murmurou-lhe, junto ao ouvido:
— Como madame é bela!
A moça ficou sem jeito diante daquele galanteio e deitou a Arsène um olhar súplice, mas ele nem notou, entretido como estava na discussão. A duquesa franziu a testa. Simpatizava com Cécile que, embora não tivesse o savoir-faire de uma dama da corte, devido à sua origem humilde e à vida que até então levara, possuía, não obstante, uma dignidade e nobreza naturais e a boa educação instintiva de uma grande dama. Vestida de seda dourada, o colo branco visível num decote ousado, o cabelo claro e lustroso, pentea
do para o alto, em cachos e ondas, a cabeça pequena graciosamente empoleirada no pescoço esbelto e níveo, nada tinha de camponjesa. Era toda ela uma verdadeira dama.
— Não é o tipo de moça que arranja um amante pâra se consolar — pensou a duquesa. — Ah, que pena! Ela vai ter uma vida horrível com esse rapaz cheio de vida e de càprichos!/
Mas, ao olhar para Arsène, a sua opinião sobre ele melhorava e a sua testa tornava-se menos franzida.
Assim era La Rochelle, no momento em que o Cardeal se aproximava das muralhas da cidade, com o povo cheio de esperança e determinação, liderado por estrangeiros devotados a uma causa em nome da qual não hesitavam em se deixar matar.
O marquês, após bater discretamente, entrou nos aposentos de Arsène e Cécile. Uma olhadela aos jovens confirmou o seu receio de qu 's coisas não iam bem. Cécile estava sentada diante de um espelho alto, escovando e penteando os cabelos. Vestia um robe de seda branca; ao se levantar para cumprimentar o marquês, os cabelos misturaram-se com a alvura do traje, fazendo com que ela parecesse um anjo orgulhoso e jovem.
Arsène estava de pé junto de uma janela alta, que dava para o parque às escuras, e roía nervosamente as unhas. Tinha a camisa branca aberta, deixando entrever o pescoço moreno. Voltou-se, ao ouvir o pai entrar, e recebeu o marquês com o cenho fechado e o mais completo silêncio.
Os aposentos do casal eram de uma beleza austera. Os castiçais iluminavam belas mesinhas trabalhadas, cômodas e armários antigos, e o colorido intenso dos tapetes persas. Como sempre, o marques não pôde deixar de reparar no ambiente, mas logo disse, indignado:
— A sua conversa à mesa, meu filho, não foi nada edificante. Se você tivesse visto os sorrisos, ter-se-ia calado, envergonhado.
— Isso é comigo! — exclamou Arsène, furioso.
Mas os seus olhos refletiam toda a angústia que ele sentia. O marquês olhou para a moça. Estava muito pálida, mas conservava a habitual dignidade. Será que ele já se cansou dela?, pensou, ansioso. Mas, quando viu a expressão com que ela olhava para o filho dele, a sua preocupação desapareceu. Porque, embora reservada, a expressão era de compaixão.
O marquês amava Cécile como se ele fosse seu pai. Deitou-lhe um sorriso afetuoso, ao qual ela respondeu com um olhar marejado de lágrimas. O marquês sentou-se e suspirou. Apesar do esplendor da sua indumentária, dava de repente a impressão de ter envelhecido e de estar demasiadamente cansado para sequer falar, quanto mais para viver. Seu rosto ficou cheio de rugas e ele come
çou a pestanejar, como se não visse bem. Tirou uma pitada de rapé e ficou a olhar para ele, como se estivesse vendo rapé pela primeira vez na vida. Depois, com um gesto de desespero, recolocou-o na tabaqueira esmaltada que o Cardeal tanto admirava, e voltou a guardá-la no bolso. Passou o lenço perfumado pelo nariz e suspirou de novo. Reclinou-se na cadeira e fechou os olhos.
Arsène olhou para tudo aquilo-com a- testa franzida. Depois, incapaz de manter por mais tempo o ar de desprezo, aproximou-se do pai e pousou-lhe a mão no ombro, como que a lhe pedir perdão.
O marquês não abriu os olhos, mas perguntou, com desusada doçura:
— Que há com você, meu filho?
Arsène ficou um momento calado e depois respondeu, com veemência:
— Não sei! Mas não vou escutar as suas censuras, como não dei ouvidos às de Cécile! — Acrescentou, mais calmo, mas ainda angustiado: — Tudo me parece inútil. Sinto-me deprimido, sem esperanças para La Rochelle ou para a França. Parece que todo o peso de séculos e séculos da Europa me caiu em cima. Tenho ânsias de liberdade, de ar puro, de lua, de novas aventuras e novas oportunidades, de uma terra nova, onde se possa respirar e começar do princípio!
Suspirando, o marquês abriu os olhos e encarou o filho. Seus olhos lembravam carvões extintos, dos quais não podia sair mais nenhuma brasa. Eram os olhos de um velho, que já vira muita maldade, muita malícia e muita frivolidade, e cuja alma acabara se desintegrando. Mas ficou mais confortado ao ver que Cécile se aproximara de Arsène, e que embora este olhasse para o pai com desespero, ele passara o braço à volta dela e a puxara para junto de si, enquanto ela o abraçava como se fosse uma mãe consoladora.
— Onde fica essa terra? — perguntou o marquês, num murmúrio. — Quer me dizer?
— Não fica na Europa! — exclamou Arsène, passando febrilmente a mão pelos longos cabelos pretos.
— Eu não sinto mais vontade de conhecer terras novas, ou Arcádias — murmurou o marquês, com ar exausto. — Mas, também, já não sou jovem,
— Estou cansado de filosofias, discussões e argumentação — disse Arsène, como se não tivesse ouvido.
Ficou novamente excitado.
— Anseio por ação, mas não nos velhos campos de batalha, entre as ruínas poeirentas de cidades onde os homens tenham filosofado, discutido e argumentado, através das épocas. — Abriu.
os braços, exaltado. — Preciso ser livre!' De que adianta lutar nesta terra velha?
Ninguém lhe respondeu, mas ele acabou se virando e beijando apaixonadamente a testa de Cécile, que lhe lançou um olhar eloquente e cheio de compreensão.
O marquês parecia mergulhado num devaneio.- Olhou para o filho, e o seu olhar se iluminou com um novo fogo. Murmurou uma ou duas vezes, abanou a cabeça, e os seus olhos brilharam de novo.
— A luta nunca terminará, neste velho mundo — disse Arsène, elevando a voz.
O marquês parecia não ter ouvido, mas continuou a olhar para o filho da mesma maneira estranha. Finalmente, como se tivesse tomado uma decisão, levantou-se e colocou uma mão no braço de Arsène e a outra no de Cécile. A jovem olhou para ele através das lágrimas, mas sorriu ligeiramente.
Depois, sem mais palavras, o marquês fez uma reverência para Cécile e saiu.
Arsène deixou-se novamente levar pelo desânimo, e Cécile beijou-o com compreensão e compaixão.
— Que é que eu lhe posso dizer? — perguntou Arsène; por fim, em tom melancólico. — Como posso dizer a meu pai que tenho de partir, que não posso ficar na França, na Europa, quando esta tragédia terminar? Ele é um velho. Desistiu do mundo, da vida que tinha por mim. Enfrentaria todos os perigos e a própria morte, como está enfrentando agora. Mas eu não posso expô-lo a isso.
— Ele compreenderia — disse Cécile, alisando-lhe a testa franzida. — É incrível como os velhos compreendem. E perdoam.
Arsène pensou em Clarisse, sua esposa, e o seu rosto tornou-se ainda mais sombrio. Para que Cécile não reparasse, virou-se de costas.
— Temos que fazer o que pudermos — disse Cécile, naquela sua voz baixa e severa, que havia meses ele não ouvia. — E, depois, temos que confiar em Deus.
Ele sorriu de leve, como se estivesse ouvindo uma criança falar. Sentia raiva dela por tê-la ferido tão profundamente.
— Em Deus! :— exclamou ele. — Nenhum deus, criado pelos homens, poderia suportar o espetáculo de tantos séculos de crueldade e morte, ódios, perseguições e torturas! Somos forçados a crer que Deus é tão monstruoso quanto o homem, ou que morreu, ou nunca existiu.
Não sé deixou consolar. Sabia que estava impondo um grande fardo a Cécile, com os seus transportes, mas uma estranha morbi
dez não lhe permitia pedir perdão. Quando se voltou de novo para a jovem, viu que ela já não estava ali.
Que foi que eu fiz?, pensou, desesperado. Não há fortaleza de ânimo em mim. Não existe um propósito firme. Deixo-me levar por qualquer vento mais forte.
Isso o marquês sabia. Para Arsène enfrentar o futuro, teria de ser empurrado pelas mãos daqueles que o amavam. Por isso, depois de ter saído dos aposentos do filho e de Cécile, dirigiu-se aos da duquesa.
A velha dama estava calmamente sentada diante do fogo, meditando. Olhou para o amigo e, ao ver-lhe a expressão preocupada, mandou saírem as damas de companhia e convidou-o a sentar-se. O marquês instalou-se numa poltrona, gemendo baixo como se, de repente, sentisse todo o peso da idade. Encararam-se em silêncio, até que o marquês disse, com voz hesitante:
— Vim dos aposentos de Arsène. Meu filho está doente, com uma doença roendo-lhe o coração. Talvez madame já tenha observado issô.
A duquesa sorriu levemente e os seus lábios se contorceram.
— E se Arsène fosse um poltrão? Mas, claro, sabemos que não é. Um homem como ele não deveria amar, só que é justamente esse tipo de homem que mais ama. Tenho-o observado.
Fez uma pausa e continuou, pensativa:
— Nós dois não temos senão o nosso orgulho. Isso é porque somos velhos. Mas o que têm os jovens a ver com esse .orgulho, eles, que têm o coração quente e o sangue correndo, célere, nas veias? O orgulho e o amor é que estão destruindo Arsène. Você, meu amigo, e a jovem Cécile interferem com a ideia que ele tem, e ele teme por ambos.
— Se ele teme por mim, é um idiota — retrucou o marquês, com humildade. — Cada homem escolhe 0 caminho mais fácil e menos doloroso. Eu escolhi esse caminho, mas não posso obrigar Arsène a compreender isso. Ele acha que eu me sacrifiquei por sua causa. Não entende que o que eu abandonei valia menos do que o que ganhei, ao segui-lo. Mas, perdieu Ele não deve ser culpado. Toda a minha vida parecia indicar o contrário.
A duquesa apertou os lábios, como para esconder um sorriso.
— Não pode convencê-lo de que você foi movido pelos motivos mais nobres?
O marquês percebeu as tentativas que ela fazia para não sorrir. Ele próprio sorriu.
— Morbleu, madame! Como você é cruel!
— Perdoe-me — disse ela.
E ficou olhando para as mãos, cheias de anéis.
O marquês inclinou-se para ela, com uma careta de dor. Ultimamente, as costas doíam-lhe ao menor movimento.
— Esta noite, ele me falou muito excitado numa terra nova, como se alguma coisa misteriosa o impedisse de alcançá-la. Juro que não entendo este meu filho!
A duquesa levantou a cabeça com expressão alerta.
— Ah, uma terra nova! Entendo. Também já pensei nisso, para os que ainda são jovens e fortes. Muitos dentre nós vão ter que fugir da França e da Europa.
Acrescentou, impaciente, vendo o marquês olhar para ela sem compreender:
— Estou me referindo à América.
Se ela tivesse dito “à lua” o marquês não teria ficado mais espantado. Agora ele percebia que, no fundo do seu coração, sempre achara que La Rochelle fosse algo passageiro, que Arsène acabaria, no futuro, por voltar a viver na França. Mas as palavras de duquesa cortaram-lhe esse sonho Percebeu que Arsène podia nunca mais voltar. A princípio, não pôde suportar essa ideia. Nunca pensara em nada que não dissesse respeito à França, e jamais pensara na América senão como um lugar deserto e horrível, do outro lado do mundo, nos confins da Terra. A ideia de Arsène fugir para um lugar desse equivalia à da morte, uma visão por demais horrível, por demais fantástica para se encaixar na realidade.
— À América! — exclamou, olhando para a amiga com ar incrédulo. — Meu filho? Arsène? Madame decerto está brincando!
— Não — disse ela com voz grave. — Não estou brincando.
O brilho dos seus olhos era mais intenso do que o das suas
joias.
— Não vê que este é um mundo velho, sem esperança para os jovens? Não compreende que os velhos estão impedindo os filhos e os netos de fugir deste mundo cheio de corrupção?
Seu rosto iluminou-se, ao olhar para ele.
— Não percebe que é a isso que Arsène se refere, que essa é a causa da sua tristeza e do seu frenesi? Ele está farto de tudo isso. Não pode continuar a prendê-lo por mais tempo.
O rosto do marquês ficou mais fino e pálido do que nunca. Abanou a cabeça, atônito. Por fim, murmurou:
— Mas a América! Uma terra selvagem, inexplorada, terrível, o último refúgio dos criminosos e dos perseguidos... Madame, como é possível meu filho sonhar com essa terra?
A expressão dela suavizou-se.
— Meu bom amigo, terá que se sacrificar pela última vez.
Capítulo LIV
O Cardeal estava acampado para além das estradas de acesso à cidade. Durante a noite, os defensores de La Rochelle ouviam, do alto das suas torres e muralhas, o som distante de risadas, música e clarins. Distinguiam até mesmo os estandartes vermelhos, a fumaça do acampamento. O exército que os cercava era bem um símbolo de decadência, frivolidade e crueldade.
Os rochelenses começaram a sentir medo. Não se ouviam mais risadas, não havia mais alegria na cidade. O medo misturava-se com o sol e os ventos. À medida que o clima de festa aumentava entre os sitiantes, mais esfriava o ânimo dos sitiados.
Á cidade parecia acostumada ao estado de sítio. Semanas se passaram. A princípio, os combates eram poucos. Os sitiantes contentavam-se em não deixar que ninguém entrasse na cidade.
De hora em hora, com desespero crescente, as sentinelas, nas torres, olhavam para o mar, à espera de ver chegarem os ingleses. Mas o mar continuava vazio, cheio de sol, calmo ou tempestuoso
— mas vazio. Não chegariam socorros para aqueles que representavam o espírito da Reforma na França? Iria Deus abandoná-los aos seus desumanos inimigos, como abandonara os huguenotes à fúria dos católicos, na Noite de São Bartolomeu? A história estava cheia de exemplos de abandono. Não havia promessa de que agora fosse diferente, de que o cerco não acabasse em chamas, na forca, em ruas juncadas de cadáveres, dentro das muralhas da cidade, em morte horrível nas mãos dos padres sedentos de sangue.
Fora da França, as guerras religiosas sucediam-se. Os rochelenses sabiam disso, mas não tiravam nenhum consolo pelo fato de toda a Europa estar se destruindo em nome de Deus, de Cristo, da Virgem Maria e de um sem-número de santos e santas. Preferiam que os olhos do mundo se voltassem somente para eles, para que o seu próprio sofrimento tivesse alguma grandeza e a simpatia dos seus correligionários, para que a ajuda chegasse antes que o molhe estrangulasse a cidade. Em vez disso, porém, La Rochelle era apenas uma gota d’água num oceano de agitações.
O povo temia pelos seus corpos. Mas os líderes, tanto os franceses como os estrangeiros, temiam pelas suas almas, pelos seus intelectos e pelos seus ideais.
— Sempre foi e será assim — comentou a Duquesa de Rohan.
— É só dizer ao povo que o inimigo ameaça as suas colheitas, os seus filhos, os seus vinhedos e as suas vidas, para que ele lute até'
à morte. Mas ele se dobrará imediatamente à vontade do inimigo, se este prometer poupar-lhe a vida, os vinhedos e as colheitas. — E acrescentou, com amargura: — No fim, vamos ter que depender dos ventres do vulgo para garantir a existência da alma.
- Assim, quando o povo começou a se queixar, apavorado, de que os alimentos escasseavam, ela abriu os seus enormes porões para o sombrio prefeito, dizendo-lhe que tirasse o que quisesse para distribuir entre o povo. Fez o mesmo com os amigos.
— Guardem os seus vinhos e os seus presuntos — disse-lhes — e preparem-se para entregar as coisas sagradas.
Não obstante, viu, com desdém e tristeza, as pessoas Ierem, temerosas, os panfletos redigidos por Padre Joseph, o terrível capuchinho, e trazidos para La Rochelle por traidores reais e potenciais.
“Capitulem”, diziam os panfletos. “Se se entregarem, hoje, podem contar com a misericórdia e o perdão de Sua Majestade, e tudo o que é seu, as suas casas, as suas lojas e propriedades continuarão lhes pertencendo. São os seus líderes; é o seu prefeito, são os odiosos estrangeiros, ansiosos por destruir a França, e os traidores, que assistirão à sua morte, à sua fome e ao seu castigo com olhares cínicos.”
Outros panfletos diziam:
“Vocês passam fome, mas os porões dos seus líderes estão cheios até o teto, e se regalam bebendo e comendo, enquanto vocês morrem de fome!”
Outros panfletos, apelando para as mais baixas emoções da população, descreviam minuciosamente os castigos, os confiscos e os enforcamentos que cairiam sobre os rochelenses, se se mostrassem obstinados. Outros ainda, baseando-se no ódio bestial que se esconde no fundo de cada homem, perguntavam:
“Quem são os seus líderes? Um alemão inimigo mortal da França, irmão e sabujo da Inglaterra! Um espanhol, natural de uma nação que olha cobiçadamente para a França! Um italiano, súdito de uma nação famosa pelas trapaças, pela falta de caráter e pelos assassinos! Um prefeito, cuja avó era judia! Uma duquesa da Casa de Rohan, que despreza abertamente os pobres e os oprimidos! Um nobre, Arsène de Richepin, que recentemente perpetrou um dos mais abomináveis crimes da história, ao enforcar três líderes do povo, em Chantilly, como vingança pela morte de outro opressor! Homens de La Rochelle! Entreguem esses traidores, esses espoliadores, abram as portas da sua cidade aos seus amigos e libertadores, que vocês só receberão amor e clemência dos seus irmãos franceses!”.
— Sem dúvida — disse o alemão, Conde Von Steckler; para a duquesa —• o povo vai rir dessas mentiras.
Porque ele era um idealista, que julgava os homens tão devotados e fiéis a uma causa quanto ele próprio.
Mas o espanhol e o italiano, mais sutis, mais cínicos, mais realistas, ergueram as sobrancelhas e sorriram ironicamente.
— Não, não vai rir — retrucou a duquesa. — O homem superior ri das mentiras, mesmo quando está passando fome, mas os inferiores só riem quando estão cheios de comida.
Propositadamente, os panfletos não faziam qualquer referência à questão religiosa, e nem sequer falavam em Deus. Apenas enfatizavam a mentira de que “os estrangeiros e os poderosos” estavam usando os pobres e ingênuos rochelenses para os seus próprios e sinistros fins, que eram colocar franceses contra franceses, até conseguir destruir a nação.
Numa coisa a duquesa se enganava: não era só a populaça que se estava deixando convencer. Entre os ricos proprietários de La Rochelle, traçavam-se, furtivamente, planos de traição. Sabiam que, mesmo que a cidade conseguisse resistir ao cerco, suas terras, suas propriedades em outras partes da França seriam confiscadas, como revanche. Que lucrariam, saíssem eles vitoriosos ou vencidos? Começaram a falar num “acordo” e a argumentar, com ar nobre e digno, por que não seria possível aos franceses, tanto católicos como huguenotes, viver em paz e harmonia? Quem tinha começado a jogá-los uns contra os outros?
A fome começava a rondar o povo, apesar dos mais honrados abrirem as portas dos seus celeiros, de vez que os outros, entregues às suas maquinações e pensando em trair a causa de La Rochelle, mantinham as suas despensas trancadas. O pior aconteceu quando, durante uma escaramuça nos arredores da cidade, o primo do Padre Joseph, Feuquières, homem muito ligado ao catolicismo e ao Rei, foi capturado pelos huguenotes. Não se sabia como esse Feuquières conseguira fazer com que as melhores comidas lhe fossem enviadas diretamente da mesa de Sua Majestade, sob a proteção de uma bandeira branca. Os carcereiros que as receberam mostraram-se muito cordiais com os homens do Rei e, depois que as bandejas e os cestos carregados foram entregues a obsequiosos lacaios do lado de dentro das muralhas, os carcereiros ficaram conversando, amistosamente, com os soldados e oficiais católicos.
•— Nunca um cerco saiu vitorioso sem a ajuda dos sitiados — disse a duquesa.
Mas não tinha poderes para punir os traidores, e o prefeito, desiludido, não ousava fazê-lo.
Agora, o dique, fora do alcance dos tiros de canhão, já quase
fechava o porto. Sete milhas de trincheiras cercavam La Rochelle pelo lado de tera, com um total de doze fortes. Do alto das suas torres, os rochelenses assistiam a todos aqueles calmos preparativos, nos quais havia algo de desumano e ameaçador. Enquanto eles passavam fome, viam os sitiantes bem vestidos, bem alimentados e alegres. O inverno chegou, trazendo ventos violentos, vindos do mar, e uma chuva que parecia feita de agulhas de gelo. As casas, nas ruas estreitas e empedradas, estavam gélidas. A chuva açoitava as vidraças e transformava-as em espessas camadas de cristal.
Enquanto isso, eles continuavam à espera dos ingleses, que viriam socorrê-los.
Entrementes, a traição e as conspirações grassavam dentro e fora dos muros da cidade. Agentes, tanto católicos quando huguenotes, atravessavam, de maneira secreta, as muralhas. Padre Joseph era quem os recebia, quem lhes dava instruções, quem lhes pagava o preço da perfídia. Depois, entregava-se a orações intermináveis.
Havia, porém, algumas dificuldades. O Cardeal parecia não estar nada entusiasmado com aquele cerco. Fazia muitos comentários sarcásticos a respeito, e muitas vezes bocejava na cara do seu velho amigo. Quando o capuchinho iniciava uma diatribe contra os huguenotes, dizendo que a cidade simbolizava a luta entre a cultura e a paz católicas na Europa e as forças da heresia, da confusão e da guerra, para não falar no pior, que era a blasfêmia, o Cardeal fitava-o com os seus olhos de tigre e um breve sorriso nos lábios frágeis e finos. Quando isso acontecia, a exaustão e o desânimo tomavam conta do capuchinho, levando-o à beira das lágrimas.
Por sua vez, o Rei mostrava-se horrivelmente entediado com tudo aquilo. Ansiava por voltar a Paris, onde podia ficar a sós com os seus sombrios pensamentos. Nem sequer se dava ao trabalho de fingir entusiasmo. Olhava para as tropas com ar desánimado, ouvia o que o capuchinho dizia, e as rugas em volta da sua boca endureciam. Às vezes, invadia os aposentos do Cardeal e se queixava de mil e uma coisas triviais, enquanto Richelieu escutava, abafando um bocejo e brincando com a cruz que trazia ao peito. Quanto à Rainha, havia muito regressara a Paris, pretextando indisposição, que o Rei esperava fosse indício de um herdeiro. Com a partida dela, o Cardeal sentira-se completamente entediado.
Viviam em relativo conforto. Tinham sido instaladas mesas de jogo. Mas, para além das tendas e das barracas do acampamento,- estendiam-se, a perder de vista, os pântanos, cobertos de neblina sob as estrelas e o pálido luar. Todos evitavam, ao máximo, olhar para eles. Jantavam e comiam prodigamente, exceto o Padre Joseph, que se alimentava apenas de pão seco e água dos regos. Sem nunca ter sido um gourmet decadente, penitenciava-se cada vez mais, como
se para compensar o trem de vida luxuoso dos sitiantes. As risadas dos soldados afrontavam-no. Não pareciam imbuídos de ardor ou entusiasmo. Falavam em saquear a cidade e no muito que se iam divertir com as rochelenses, quando eles se rendessem.
Apesar de não parecer, o Cardeal estava muito preocupado. Sabia que, entre os nobres católicos da sua comitiva, havia homens astutos, para quem uma forte minoria protestante na França era uma garantia de que o poder do Rei não seria absoluto, porque, se o absolutismo triunfasse, o próprio poder que detinham dentro das suas terras e províncias seria ameaçado. Sabia também que, de uma maneira misteriosa, haviam sido contrabandeadas provisões para La Rochelle, e ele não precisava perguntar de onde elas tinham vindo.
O desejo do Rei de voltar a Paris crescia a cada dia que passava. Isso alarmava o Cardeal. A Rainha-Mãe, à semelhança de uma aranha-negra, esperava aprisionar o Rei, subtraindo-o à influência de Richèlieu e recuperando o poder que o Cardeal lhe tirara. Era só o Rei regressar a Paris para que a obra de muitos anos se desfizesse. Ele sabia que, na sua ausência, a Rainha-Mãe daria ouvidos a descontentes e inimigos, cujo maior desejo era destruí-lo.
Por fim, o Rei despediu-se abruptamente de Richelieu e regressou a Paris. Prometeu voltar quando o inverno tivesse passado, mas era uma promessa em que o Cardeal não podia fazer fé. Teria ido atrás do soberano, tal a sua preocupação, se não fosse a presença do Padre Joseph. Diante dos olhos terríveis do capuchinho, ele não ousava demonstrar o medo que sentia. Sua única esperança residia na reiterada opinião dos seus conselheiros, de que La Rochelle não podia ser tomada. Costumava chamar o capuchinho para ouvir o que eles diziam, esperando que o terrível monge se convencesse.
Mas Padre Joseph olhava para o Cardeal e seus conselheiros, e dizia, em voz alta e veemente:
— Pode ser tomada, sim! Para Deus, nada é inexpugnável! Não desistiremos.
O Cardeal sorria e dava de ombros, mas por dentro gemia. Pela primeira vez na vida, sentia vontade de mandar o amigo para o inferno. Mas a vergonha impedia-o de anunciar que a cidade não podia ser tomada e de voltar mais que depressa a Paris. Pôs-se a amaldiçoar a Rainha, que fizera com que ele, Richelieu, ficasse à mercê de uma miserável espanhola, a cuja carne não fora capaz de resistir. Meditava frequentemente na vulnerabilidade do homem diante da mulher, mas a obscenidade repugnava-lhe. O antigo espanto e desprezo que sentia pela própria fraqueza transformaram-se em repugnância por si mesmo, por se ter deixado apanhar na mais primitiva das armadilhas. A confiança em si próprio diminuiu. Quem lhe garantia que o seu corpo não voltaria a traí-lo? Podia exercer
domínio sobre os seus padecimentos, mas não sobre os desejos da carne. Isso o colocava em pé de igualdade com o resto da humanidade, que tanto detestava.
Começou a sentir pena dos rochelenses. Sentia-se irmão deles. Fora arrastado por uma mulher da mesma forma que eles haviam, se bem que indiretamente, sido traídos por ela. Via a si mesmo e a eles como vítimas de uma espanhola tonta. Quantos mundos, quantas mortes não tinham sido enterrados nos corpos de mulheres estúpidas? Enfurecia-o pensar que era tão fraco, tão desprezível a ponto de tomar parte na conspiração universal para depois cair vítima dela.
O seu respeito e a sua admiração pelos rochelenses aumentaram ainda mais. Pensou no prefeito, na duquesa, em Arsène e nos demais com surpresa e prazer. Que ideal os sustentava? Ele não tinha ideais e sempre os achara ridículos nos outros, afetações pretensiosas de imbecis ou intrigantes. Entretanto, o idealismo parecia sustentar os rochelenses. Aquilo chocava-o. Existiriam realmente homens para quem uma filosofia representasse a razão de viver? Sabia que os rochelenses tinham recebido promessas de clemência, portanto não era o medo que os mantinha obstinadamente dentro das muralhas da cidade. Sabia que eles compreendiam que uma resistência prolongada só lhes poderia trazer terríveis consequências. Não obstante, preferiam passar fome e até mesmo morrer, a se render. Pela primeira vez na sua vida, sentia um princípio de respeito por algum elemento da natureza humana que lhe era estranho.
Através do capuchinho e de outros como ele, sabia que havia na religião uma espécie de ópio que embriagava as pessoas, tornando-as insensíveis ao sofrimento. Mas os rochelenses não possuíam essa espécie de religião. O protestantismo, para a maioria dos huguenotes, era algo mais ligado à lógica e à razão, ao pensamento liberal, do que ao êxtase religioso. E a lógica e a razão eram geralmente as primeiras a sucumbir a um ataque, apesar do seu alegado poder. O que era, então, que os sustentava?
Quando lhe ocorreu que certos homens podiam estar dispostos a morrer pelo direito de pensar e agir como queriam, que podia haver certa forma de orgulho, num punhado de homens que se recusavam a se deixar escravizar pelas ideias dos outros e exigiam liberdade, respeito e tratamento honroso não só para eles mesmos, mas também para outros que não se importavam com isso, ficou perplexo. Não era possível, pensou, afastando a ideia. Sem a embriaguez da religião e da superstição, nenhum homem podia ter a fortaleza de ânimo necessária para acreditar que a liberdade era o mais precioso bem da humanidade, a ponto de morrer por ela.
Como era possível um homem pensar assim, sem estar drogado, fa- natizado pela religião?
A prova estava diante dele, atrás daquelas muralhas, que guardavam, desafiantes, a cidade exausta e esfomeada. Apesar dos traidores, dos egoístas, dos oportunistas, havia muitos rochelenses para quem os direitos do homem eram a coisa mais sagrada do mundo, independentemente das igrejas, dos altares, dos santos e de um Deus distante. Estava cada vez mais espantado. Aquilo vinha aba- lar-lhe as convicções de toda uma vida. Não combinava com a sua experiência dos homens, adquirida ao longo de anos e anos de amargas decepções. Era forçado a acreditar que alguns homens estavam acima das bestas, acima do amor de si mesmos, e essa ideia humilhava-o.
Jurou que, se La Rochelle acabasse caindo, trataria os vencidos com toda a cortesia e admiração, como se fossem criaturas estranhas, que ele desejasse conhecer melhor, a fim de aprimorar o seu conhecimento da humanidade.
Muitos homens tinham matado e sido mortos em nome da religião, do fanatismo. Tinham sido criaturas drogadas, destituídas de qualquer capacidade de raciocínio. Mas quantos haviam morrido por amar os outros homens e querer para eles a mesma liberdade e a mesma capacidade de pensar, o mesmo direito de viver em paz e de ter acesso ao conhecimento, que exigiam para si mesmos? Tão poucos! Pouquíssimos! Aqui e ali, um Sócrates surgia, como um pilar de luz no deserto negro da história, juncada das ruínas daqueles que haviam odiado em nome de deuses mortos ou esquecidos.
Mas esses pilares não tinham caído do céu. Tinham sido erguidos por um sem-número de mãos empoeiradas, saído da lama na qual toda a humanidade se debatia.
Agora, ele desejava ardentemente que os rochelenses resistissem até a morte. Acaso ele deveria recuar? Não, não recuaria! Observaria o milagre até o fim. Talvez, então, a doença que lhe roía a carne e a alma o deixasse, e ele ousasse acreditar que nem todos os homens eram vis. Porque precisava acreditar nisso. Se perdesse essa derradeira ilusão, o resto da sua vida se escoaria em morte e sangue, ódio, fúria e loucura.
Ele, que nunca orava senão diante de um altar, ante uma multidão, deu consigo rezando para que os rochelenses preferissem a morte a se render à superstição e à escravidão religiosa e intelectual. E a quem orava ele, se não acreditava em Deus? Não saberia dizer, mas tinha a impressão de que era a um espírito universal, que tivesse mil faces sem possuir nenhuma.
Capítulo LV
O inverno foi aos poucos passando. As condições, dentro dos muros, eram terríveis, mas ainda não desesperadoras. Os aristocratas, os líderes eram quem mais sofriam, mas suportavam tudo com ânimo forte e em silêncio. A sua coragem ainda intimidava o povo, que sentia vergonha de se queixar.
Até que, um belo dia, em que as brisas primaveris já sopravam, e os campos, para além das torres e das muralhas, verdejavam e brilhavam como esmeraldas, e as gaivotas esvoaçavam sobre o porto, o sol batendo-lhes nas asas, um grito de alegria brotou do coração de quantos olhavam para o mar.
Porque, a distância, já se distinguiam as velas brancas dos ingleses, aproximando-se da cidade sitiada. Eram cinquenta naus go todo, fortes e serenas, parecendo tocar as nuvens que flutuavam no céu intenso, lançando sombras sobre o mar opalescente. As gaivotas rodopiavam sobre elas como se fossem mensageiras celestes. Eram capitaneadas por Denbigh, cunhado do assassinado Buckingham.
Da população de mais de vinte e cinco mil habitantes de La Rochelle, dez mil, dentre os fracos, os velhos, as mulheres e as crianças, tinham morrido de fome, miséria e doença. Os ventos e as tempestades do inverno, a fome e o desespero haviam pairado sobre as ruas, qual fog venenoso, sufocando e matando. A dor e a agonia tinham entrada em todas as casas. Mas, com a chegada dos ingleses — dos benditos ingleses! —, a alegria voltava e as ruas se enchiam de multidões que cantavam, choravam e comemoravam. Finalmente, iam ser salvos! As tropas, os padres e os malditos católicos assassinos iam ser expulsos, postos para correr! Deus os ouvira.
Milhares de rochelenses acorreram às muralhas, quais aves esqueléticas. Milhares de rostos famintos, radiantes de alegria, vol- taram-se para o mar. A esquadra inglesa aproximava-se, inexorável. De repente, as naus deram a impressão de ter parado, formando como que uma barreira perto do porto, o sol poente avermelhando- lhes as velas, cintilando nos metais e nas quilhas molhadas e reluzentes. Bandeiras triunfantes tremulavam ao vento. Mas, embora enchessem o mar, as naus não avançavam.
— Amanhã — disseram os rochelenses — elas vão atacar e nos salvar.
Foram deitar-se, roídos por uma fome terrível, mas com novo ânimo.
As sentinelas permaneceram toda a noite nos seus postos, olhos
fixos nos navios. Do alto das suas torres e dos seus postos de observação, podiam ouvir o que se passava a bordo, o vento sibilando por entre os velames, o ranger das quilhas ao sabor das ondas, o guinchar das cordas e as notas estridentes dos clarins.
A noite foi avançando. De repente, as luzes a bordo se apagaram. Ou seriam os seus olhos, cansados de tanto olhar para o mar, que já não as distinguiam? No oceano reinava agora a escuridão, profunda e sufocante. Não se ouvia o menor som. Ninguém ousava falar, com o vizinho, do que via, para não assustá-lo. Não seria possível que os ingleses — os espertos e imprevisíveis ingleses — tivessem apagado as luzes para melhor esconder a sua aproximação do porto? Entre a curva do porto e o molhe, o espaço era pouco. Tinham de se esgueirar por ele, sem serem vistos. Ao romper do dia, estariam dentro do porto, teriam atravessado o dique!
Á aurora chegou, cinzenta e irreal como um sonho. E então as sentinelas viram que o mar estava vazio. Os ingleses tinham fugido.
Ninguém falou. Ninguém olhou para o vizinho, mas todos voltaram para o mar os olhos mortos. Ninguém perguntou nada, ninguém quis saber se os ingleses teriam achado impossível entrar no porto. Bastava-lhes que tivessem partido, que La Rochelle estivesse condenada, que os ingleses houvessem carregado com eles toda a coragem, toda a fé e a esperança dos franceses, de todo um continente de homens dedicados e heroicos. Tinham levado com eles as bandeiras da paz e da liberdade. Um mundo naufragara na esteira das suas naus em retirada. Durante um sem-número de gerações, durante séculos, esse mundo ficaria submerso; suas luzes, apagadas; suas bandeiras, perdidas; seus espíritos mais valentes, mudos e adormecidos. Tinham levado com eles toda a razão, toda a esperança de salvação, todos os fantasmas dos homens que haviam morrido, no decorrer dos séculos, para que outros homens pudessem ser livres. Tinham levado as sombras de Lutero, de Huss, de Erasmo, de Knox e de Calvino, e essas sombras estavam agora mudas e chorando. As bandeiras da liberdade tinham desaparecido, e restava apenas a aurora escarlate, pressagiando milhares e milhares de auroras de escravidão e morte, sangue, ódio e fúria.
Não foi preciso que as sentinelas descessem e informassem a cidade do que acontecera. Imóveis como estátuas de neve, todos os rochelenses adivinharam.
Nenhum som vinha das ruas e das casas. Não se ouviam sequer uma palavra, nenhum grito de desespero ou acusação. Apenas o olhar de rostos mortos, o toque imperceptível de mãos moribundas.
O cerco continuou. As pessoas caíam mortas nas ruas. As crianças que choravam, pedindo comida, eram de repente silenciadas pela morte misericordiosa. Chegaram as tempestades de prirria-
vera, açoitando a cidade deserta e emudecida. Multidões entravam nas igrejas, mas não conseguiam rezar, apenas ajoelhar-se, as cabeças inclinadas, as mãos pendentes, os olhos fixos nas lajes do chão.
A velha duquesa, indômita como sempre, mas com o rosto ema- ciado e cinzento, mandou chamar o prefeito. Recebeu-o sentada diante da lareira vazia e encarou-o com olhos que ainda luziam.
— Meu caro Guiton — disse-lhe, numa voz clara, mas já muito fraca —, precisamos fazer algo pelas crianças, pelas mulheres mais enfraquecidas.
Ele inclinou a cabeça. Quase não podia falar, tal a fome que sentia.
— Abra as portas o suficiente para deixar saírem algumas centenas. O Cardeal será misericordioso. Dar-lhes-ás de comer. Porque, no momento, a comida é mais importante do que a liberdade, para essa pobre gente.
O seu coração, sempre tão frio e duro, fora tocado, como nunca dantes, pelos sofrimentos daquele povo anônimo. Da mesma forma que Richelieu, também ela tinha sido forçada a passar em revista muitas das suas convicções.
— Vou lhes perguntar — disse o prefeito, numa voz rouca. — Talvez não queiram sair.
A duquesa sorriu amargamente.
— Vão querer, sim — afirmou.
Foi assim que, no espaço de uma semana, mais de seiscentas mulheres e crianças receberam os derradeiros beijos dos chorosos maridos e pais, e saíram pelas portas entreabertas da cidade.
O Cardeal tinha passado muito mal à noite. Dormira tarde. Nada sabia a respeito do êxodo. Mas os padres sabiam. Tinham dado as suas ordens. As mulheres e as crianças, rotas, cambaleando, meio mortas de fome, acompanhadas dos velhos, atravessaram as portas, por entre fileiras de soldados silenciosos. As mulheres carregavam ao colo os filhos pequenos. Passaram através das fileiras de soldados, os rostos emaciados procurando um olhar de piedade, um gesto de misericórdia. Mas viram apenas homens grosseiros e brutais, empunhando espadas e mosquetes carregados.
A dolorosa procissão acabou de sair da cidade sitiada. Foram- lhes prometidos misericórdia e socorro cristão. Ah, mas os padres tinham prometido qualquer coisa em troca da rendição daquela pobre gente!
As portas fecharam-se, rangentes, sobre a procissão de mulheres e velhos esfomeados.
De repente, a um sinal dos padres, os soldados caíram sobre as centenas de mulheres, meninas, crianças e velhos, massacrando-os rápida e silenciosamente. Não derramaram muito sangue, ao tomba
rem, com um último suspiro, um último gemido, um último erguer de mãos esqueléticas, pois já não restava muito sangue nos seus corpos. Os cadáveres foram empilhados, como pedaços de lenha. Os bebês morreram no colo das mães, os velhos, caindo sobre as crianças, os cabelos das mulheres se embaraçando, os rostos batendo uns nos outros, corpos vazios tombando sobre outros corpos vazios, olhos abertos, fixos noutros iguais.
O sol, brilhante e alegre no seu esplendor primaveril, iluminou aquela terrível cena. Os braços dos assassinos cristãos erguiam- se e tombavam, até ficarem exaustos, e as espadas, vermelhas de sangue. Só alguns leves gemidos e suspiros e o ocasional disparo de um mosquete, quando os braços que empunhavam as espadas já não tinham mais forças, haviam quebrado a calma da manhã.
A Igreja triunfara! O Te Deum podia agora soar em cada igreja revestida de ouro! Roma tinha razão para se regozijar! Os indefesos e os inocentes, a razão e a inteligência esclarecida tinham sofrido outro golpe mortal! A maré da libertação fora forçada a recuar, uma vez mais. A era da luz continuava à espera da hora da vingança, das vozes insensatas, que diriam:
— Mas isso foi há muito tempo!
À espera da forma e da substância de homens heroicos, que sabiam que o ódio e a tirania nunca dormem, e que é preciso estar sempre alerta.
Tão logo acordou, ao meio-dia, o Cardeal foi informado do que tinha acontecido pelo Padre Joseph. Ficou como louco, fora de si, gritando como se tivesse perdido o juízo. Depois, voltou à sua calma e frieza habituais, e o capuchinho alegrou-se de ver que a razão voltara, finalmente, ao velho amigo. Ele próprio não estava nada satisfeito, com raiva por não ter sido consultado, pelo fato de os seus subordinados terem feito uma coisa daquelas sem nada lhe dizer. Não obstante, a Igreja não podia ser atacada e nem denunciada.
Uma luz estranha brilhou nos olhos do Cardeal, que o capuchinho, no seu alívio, não percebeu.
Richelieu mandou chamar os oficiais e interrogou-os com voz serena. Depois, deu as suas ordens, muito embora os comandantes, horrorizados, declarassem que os soldados tinham obedecido diretamente aos padres, sem que eles, oficiais, soubessem.
Nessa noite, após o pôr-do-sol, cem dentre os assassinos foram escolhidos e fuzilados contra as muralhas de La Rochelle. Os defensores ouviram os tiros, vingando a morte dos seus entes queridos, e pararam, por um momento, de chorar. Não sabiam que o Cardeal tinha proibido administrar a extrema-unção aos executados, que os padres estavam furiosos, em suas tendas, e que Richelieu assistira
às execuções com uma expressão terrível no rosto contorcido. Mas não se regozijou com essas mortes. Sua angústia era demasiado grande-para isso.
— Seus padres — disse o Cardeal ao Padre Joseph, num tom que nunca, até ali, usara para falar com ele — são culpados da morte de assassinados e assassinos. Não obstante, parece ser impossível castigá-los. Deixa-os, pois, cantar vitória, pofque talvez não seja por muito tempo.
— Não o estou reconhecendo — disse o Padre Joseph, gravemente.
O Cardeal fitou no rosto vermelho do amigo os seus olhos inescrutáveis e replicou, calmamente:
— Você nunca me conheceu, Joseph.
A seguir, enviou o seu capitão, Bassompierre, sozinho, até as muralhas da cidade, com um recado para a duquesa.
“Choro com você, querida amiga. Não pense, nem por um momento, que aprovei ou ordenei uma coisa destas.”
A duquesa, sentada sozinha nos seus aposentos, passou a noite relendo esse bilhete. Desde criança nunca mais chorara, nem quando da morte dos seus entes queridos. Agora também não chorava, embora o seu coração fosse como uma ferida, pois já chorara demais durante todo aquele dia.
Nesse dia, atravessara lentamente as_ruas desertas da cidade, na carruagem dourada. Em cada porta onde via sinais de luto, descia da carruagem e entrava, como se fosse uma humilde mulher do povo, apesar da majestade da sua diminuta figura. Não dava pêsames, não oferecia consolo piedoso, não exortava à coragem. Misturava-se com os que choravam e chorava com eles, em silêncio.
— Nada tenho para lhes dar, senão as minhas lágrimas — dizia.
Se Richelieu tivesse sabido disso, teria estremecido, lembran- do-o de outra pessoa a quem não podia consolar, com quem só podia chorar.
O povo a princípio recebera-a com reserva, esperando ouvir palavras nobres e hipócritas. Mas, ao vê-la estender simplesmente a mão, as lágrimas rolando-lhe pelas faces, percebera-se de que ela sofria tanto quanto eles. Por sua vez, olhando para os rostos deles, a duquesa viu, em lugar do medo, da velhacaria e da estupidez, a coragem que só a morte pode dar, uma coragem simples e tão nobre, que lhe partia o coração e lhe inspirava a alma.
Agora, estava sentada com o bilhete do Cardeal nas mãos frias e enrugadas, olhando para a lareira apagada. O rosto altaneiro e imperioso estava agora velho e suavizado. Ouviu-se bater à porta, e Alphonse Champaigne entrou. Era um homem baixo e forte, ou-
trora corpulento, agora muito magro. No seu rosto viam-se as marcas das lágrimas que ele derramara pela sua adorada patroa. Ajoe- lhou-se diante dela e pousou as mãos nos seus joelhos, numa atitude súplice.
— Madame La Duchesse — disse, na sua voz débil —, suplico-lhe que fuja, seja por mar, onde os barcos pequenos ainda estão passando, sèja por terra, para junto do Cardeal, que é seu amigo. Ele a receberá com carinho. Fuja, antes que seja demasiado tarde, antes que morra conosco.
A duquesa não respondeu. A sua expressão não se alterou. Assustado, ele insistiu:
— Por que ficar aqui? Quem lhe ficará grato? A população, que não hesitaria em traí-la, para salvar a própria pele? Que a deixaria morrer de fome, para poder pôr as mãos num pedaço de pão? Que considera pessoas como madame suas inimigas naturais? Que lealdade madame espera dessa gente, a quem sempre desprezou, com justa causa? Não me diga que pretende ficar junto dessa gente!
Tão fraca ela estava, de fome e de dor, que foi com esforço quase sobre-humano que volveu a cabeça para ele e lhe disse, em tom suave, mas distraído:
— Mudei de ideia.
O homem,ficou espantado. Parecia-lhe que ela não se dirigira a ele, mas a si mesma. Franziu a testa.
— Quer dizer que madame pensou em fugir? Não sabia, mas fico muito satisfeito.
Ela, porém, limitou-se a repetir:
— Mudei de ideia.
Aquilo, para ele, parecia um sacrifício heroico. Continuou sem compreender.
Mais tarde, o gordo e bem-alimentado Feuquières pediu-lhe audiência a fim de lhe apresentar condolências. Ela recebeu-o com rígida cortesia, de aristocrata para aristocrata. Mas, ao olhar para ele, o seu rosto foi mudando, como que tomado de horror. Também ele, após ela lhe ter ouvido os sentimentos em silêncio, lhe suplicou que fugisse, que se colocasse à mercê do Cardeal.
Viu, então, uma coisa extraordinária se processar naquele rosto imperioso; aos poucos, foi-se transformando no rosto de uma velha camponesa, acostumada a trabalhar nos campos, a passar fome, a sofrer e a ter paciência. Não era mais o rosto da Duquesa de Rohan que ele tinha à sua frente.
— Por que haveria eu de fugir? — perguntou ela, e até o tom da sua voz mudou. — Meus irmãos não podem fugir.
Após um momento embaraçoso, ele se ofereceu para lhe for
necer iguarias, que lhe eram enviadas pelo Cardeal. Ao ouvir isso, as olhos dela brilharam.
— Traga-me o que puder •— disse. — O meu povo está morrendo de fome.
Ele não tomou aquilo como afronta, pois vira o rosto dela. Três vezes ao dia, enormes cestas de comida eram levadas ao hôtel de Rohan, mas a duquesa pouco tirava para si. O resto era distribuído entre o povo. O Cardeal comentou com o Padre Joseph que Feuquières parecia ter um apetite insaciável, nos últimos tempos.
— Talvez por compensação — disse — pede comida para dez bomens.
Mas, à medida que o verão descambava outra vez no outono, dezenas, centenas de rochelenses foram morrendo de fome e doença nas ruas e casas da cidade. Todos os animais, burros, cães, gatos, cavalos, pombos, havia muito tinham sido devorados. As pessoas comiam ratos quando conseguiam pegá-los. Despiam as árvores das suas folhas. Arrancavam a grama que crescia nas praças, entre as pedras das ruas. Cozinhavam couro, arreios, cintos e sapatos. Procuravam o que comer em meio ao lixo.
Se possível, os membros da casa da duquesa, e os seus amigos, comiam ainda menos do que o resto do povo. Sofriam horrivelmente, mas não se queixavam, como acontecia com as pessoas mais simples. Comiam com ela, à sua mesa, na sua baixela de prata, ensopados de grama, folhas e ratazanas, sempre muito bem trajados, com maneiras impecáveis e os mesmos ditos espirituosos de sempre. Nunca os comentários e epígramas da duquesa tinham sido tão cheios de espírito, pois em suas veias corria o velho sangue dos Lusignans. O povo era corajoso, mas reclamava. A duquesa e seus amigos eram corajosos, mas nunca se queixavam. Demasiado fracos para rir, sorriam apenas. Seus corpos podiam estar tão emaciados, que os belos trajes davam a impressão de pender de cabides. Suas vozes podiam não conseguir se elevar acima de um murmúrio. Mas continuavam de moral alto, mesmo que não pudessem responder aos comentários da duquesa senão com um brilhar dos olhos mor- tiços.
Agora, só metade dos cidadãos de La Rochelle permanecia viva. A duquesa ia visitá-los a pé. Seus cavalos tinham sido devorados pelo povo; seus arreios, idem. Ela caminhava orgulhosamente, mesmo tendo de se apoiar às paredes para não cair. Nunca deixava de visitá-los. E, embora já não tivesse sorrisos para os amigos, tinha-os ainda para a sua gente.
— Podemos morrer — dizia ela para a criadagem — mas o mundo nunca esquecerá este cerco. Vai se recordar para sempre do inimigo e saberá se defender dele.
Novos panfletos eram distribuídos entre os rochelenses pelos católicos, agora com uma nota de desespero.
“Franceses!”, imploravam. “Rendam-se. Estamos sofrendo por sua causa. O massacre dos seus inocentes foi obra de assassinos, já castigados pelas nossas próprias mãos. Isso não voltará a acontecer. Abram as portas para o nosso pão, para a nossa carne e no nosso vinho, para os seus amigos. Juramos, por tudo quanto há de mais sagrado, que serão tratados como irmãos e nada lhes será tirado, e sim dado.”
A duquesa leu aqueles panfletos com o coração pesado e o cenho carregado. Andando pelo meio do povo, sentiu que não poderia culpá-lo se ele cedesse, se desejasse capitular. Mas, para seu espanto, via apenas força de ânimo, e uma decisão inabalável, naqueles rostos esqueléticos. Tocavam-lhe os vestidos, aqueles semi- mortos, e olhavam para ela humildemente. Ela voltou para o seu palácio e, soluçando, caiu de joelhos, a cabeça branca contra o belo tapete.
— Perdoem-me! — murmurou.
Mas os que a ouviram, num silêncio perplexo, não compreenderam por que razão ela pedia perdão.
Capítulo LVI
Para alguém com o temperamento ativo e ardente de Arsène, a lenta tortura da cidade sitiada resultava em desespero e numa espécie de inércia forçada. Embora ele fosse agora o líder reconhecido de La Rochelle, era obrigado a ouvir com atenção as queixas e sugestões que lhe faziam. Aos poucos, foi ganhando ódio e aversão até dos amigos e olhava para os seus rostos emaciados e exaustos com repulsa. Desprezava a paciência que eles'mostravam, mas até nesse desprezo havia cansaço e indiferença.
Certa vez, a duquesa dissera-lhe, em tom de censura, depois de uma tirada rebelde e incoerente da parte dele:
— Que nos aconselha a fazer? Sair por aí atacando o Cardeal? Logo nós, que estamos enfraquecidos e quase mortos de fome, com os nossos defensores dizimados? Nossa esperança vem do mar. Se não vier. . .
— Se não vier? — repetiu Arsène, com amargura.
A duquesa ergueu as mãos miúdas num gesto eloquente e olhou para Arsène em silêncio.
— Morreremos como ratos — finalizou Arsène, com aquele ar amargurado que lhe era tão comum, ultimamente.
— Comentário bem pouco original — disse a duquesa.
Fez uma pausa e depois fitou o jovem com olhos penetrantes.
— Nunca lhe ocorreu, Arsène, dizer: “Morreremos como homens”?
— Não me será difícil morrer — disse Arsène, passado um momento e quando o rubor já lhe deixara as faces. — Mas e Cécile? E o meu pai?
A duquesa levantou-se e, embora pequenina, deu a impressão de ser bem mais alta do que Arsène. Olhou para ele com frieza e desdém.
— Por acaso eles se queixaram? Acho que são mais fortes do que você, que professa amá-los. — Mas logo acrescentou, pois compreendia-o muito bem: — Se é ação o que você deseja, aja. Mas fique sabendo que não resolverá nada.
Sabia que o tinha julgado bem, pois os olhos dele se iluminaram e um sorriso malévolo lhe aflorou aos lábios.
— Um católico morto é um inimigo a menos — disse ele. — É verdade, estou sedento de vingança, de revanche pela morte dos nossos inocentes, madame não concorda?
— Você, Arsène, é o comandante de La Rochelle — retrucou calmamente a duquesa.
Seu rosto empalidecera.
— Já pensou, se você morrer, quem defenderá Cécile?
— Eu não vou morrer! — exclamou Arsène.
Toda a sua inércia desaparecera. A vida voltara-lhe aos lábios e aos olhos. Levou a mão ao punho da espada.
A duquesa estava satisfeita. Apercebera-se da decepção de Arsène ante o desânimo dos rochelenses. Notara o seu desgosto, transformado, com a decepção, em apatia. Dissera para si mesma: Ficar decepcionado com a estupidez, a baixeza e a bestialidade dos homens é algo doloroso, mas muito pior ainda é não sentir sequer desapontamento. Homens como Arsène, exuberantes e apaixonados, precisam de ação. Esperar e ter paciência era para os calmos, os tranquilos.
Arsène correu imediatamente em busca do espanhol, do alemão e do italiano, e, mal tinha começado a falar, eles ficaram loucos de entusiasmo. Garantiram-lhe que os seus seguidores ficariam encantados de entrar em ação. Em menos de duas horas, quinhentos homens haviam beijado as suas espadas, carregado as suás pistolas e se reunido em volta de Arsène. Essa noite mesmo atacariam. Agora, Arsène estava mais calmo. Não seria apenas uma incursão de revanche, e sim um ataque aos depósitos de alimentos do acampamento do Cardeal.
Dirigiu-se aos aposentos de Cécile uma hora antes da marcada para a incursão. Ela estava deitada na cama. Olhou para Arsène com ar calmo e severo, como costumava fazer ultimamente. Arsène ajoelhou-se ao lado dela e levou as mãos dela aos seus lábios. Cécile sentiu-o vibrar, como dantes, e criou novo ânimo.
Ele não sabia se havia de pô-la a par do que iam fazer. Começou, cautelosamente, a dizer que o povo estava morrendo de fome. Ela própria estava morrendo por falta de alimentos. Essa noite, ele tencionava apoderar-se deles.
Cécile soergueu-se nas almofadas e um leve rubor subiu-lhe às faces pálidas. Olhou para ele, subitamente agitada, o peito arfando, os olhos marejados de lágrimas. Aflito, Arsène perguntou:
— Você não concorda comigo, ma chérie? Preferia que eu não fizesse nada?
— Não. Oh, não! — murmurou ela, encostando a cabeça no peito dele.
Arsène ouviu as batidas desesperadas do coração da amada. Nunca a adorara tanto como agora. Beijou-a e abraçou-a um sem- número de vezes, pensando: Talvez eu nunca mais volte. Por um momento, a coragem falhòu-lhe. Quem a protegeria, nesse caso?
Como se lhe adivinhasse o pensamento, ela disse:
— Você voltará. Vou rezar para isso.
Arsène foi então despedir-se do pai, mas, antes que ele pudesse falar, o marquês disse:
— Quero lhe dar um talismã.
E tirou da bolsa uma diminuta figura de marfim, que viera da China. Era uma imagem grotescamente esculpida, representando um homenzinho velho e gordo, com um rosto redondo e risonho, e uma grande pança. Havia algo de obsceno na nudez da imagem e na sua postura, mas também um quê de alegria e de cinismo. Arsène não pôde deixar de rir alto e de sentir alívio, pois o seu espírito tinha ficado deprimido, depois de falar com 'Cécile. O marquês sorriu.
— Dizem que quem ri não é tocado pela morte — disse ele. — Prefiro pensar, neste caso, que o significado seja menos sutil e mais prático. Esta imagem é muito velha. Existe há mil anos, enquanto outras, mais bonitas e imponentes, foram destruídas.
Segurou o rosto de Arsène e beijou-o suavemente em ambas as faces, sem conseguir dizer mais nada.
Assim que Arsène saiu, o marquês dirigiu-se aos aposentos de Cécile. Juntando as últimas forças que lhe restavam, ela levantara- se, com a ajuda das camareiras, vestira um robe de veludo vermelho e sentara-se junto das grandes janelas. Pela expressão do rosto dela, pelas lágrimas que lhe escorriam faces abaixo, ele percebeu que Cécile estivera rezando.
O marquês nunca na sua vida rezara. Ver os outros rezando irritava-o, como se estivesse vendo algo infantil e sem sentido. Agora, porém, estava emocionado. Aproximou-se da jovem e sentou-se ao lado dela. Viu que ela tinha um rosário nas mãos e que, na palma de uma das mãos, a cruz de ouro brilhava.
O símbolo papal espantou o marquês. A jovem disse, numa voz suave:
— Foi o Abade Mourion quem me deu este rosário. Monsieur le Marquis já ouviu fálar dele?
— Já. Arsène me falou — respondeu o marquês.
Olharam ambos em silêncio para a cruz.
A jovem disse, então, com voz trêmula:
— Ele era tão bom! Quando seguro este rosário, sinto-me mais forte, como se ele me estivesse dando coragem e fé. Não faz nem uma hora, pareceu-me ouvir a voz dele, tão suave e bondosa.
Passado um momento, o marquês disse, num tom peculiar:
— Sempre achei que os objetos que pertencem às pessoas boas partilham das suas qualidades, como se elas lhes transmitissem uma essência misteriosa. E, ao contrário, os objetos pertencentes aos maus são afetados pelo veneno deles. Toquei em relíquias de gente malvada e senti a vibração negativa que emana delas, mesmo passados séculos. Talvez neste rosário do Abade Mourion haja alguma virtude, algum poder indestrutível. Talvez Arsène devesse tê-lo levado. . .
Ao ouvir aquilo, a jovem sorriu e os seus olhos se iluminaram.
— Sugeri-lhe isso — disse, os lábios tremendo —, mas ele exclamou: “E se eu fosse preso com isso em meu poder?”
O marquês largou a rir e Cécile riu também, Mas o velho notou que os seus dedos transparentes agarravam a cruz como se fosse uma tábua de salvação.
Procuraram consolar-se um ao outro. Passaram a noite juntos, à janela, olhando para a noite, vendo o reflexo das velas nas vidraças escurecidas e nos seus próprios rostos, molhados de lágrimas.'
Foi só depois de quase todas as fogueiras do acampamento do Cardeal se terem extinguido, que Arsène e seus comandados resolveram atacar. Sabiam que as portas estavam guardadas não só do lado de dentro, como também por fora, pelos homens do Cardeal. Não ousaram dizer nada às suas próprias sentinelas, temerosos de traidores ou de uma excitação demasiada. Deram a volta às muralhas e esperaram que os guardas se retirassem. A noite estava escura, iluminada apenas pela luz distante das estrelas.
A muralha erguia-se acima deles, espessa e sólida contra o céu estrelado. Alguns dentre os mais ágeis subiram aos ombros dos companheiros, segurando facas entre os dentes e amarrando cordas com nós no alto da muralha. Depois, tão silenciosamente que nem se lhes ouvia respirar, o resto dos homens subiu pelas cordas, pulou do alto da muralha e deixou cair as cordas do outro lado. Alguns receberam ordens de ficar junto da muralha, para auxiliar os que voltassem.
Ouviu-se um leve rumor de pés do lado aberto e perigoso da muralha. Os homens ficaram um momento parados no lugar onde tinham caído, a respiração suspensa. As fogueiras perto dos pântanos crepitavam e tremeluziam contra o fundo preto da noite. Até eles chegava o som distante de música e de risadas. Os vultos das sentinelas atravessaram entre as fogueiras e os atacantes. Lentamente, estes últimos foram se arrastando para o extremo oposto das fogueiras. Alguns passaram tão perto de um grupo de guardas, que puderam ouvir-lhes os bocejos, trechos de uma história indecente e as risotas que se seguiram.
Ao chegarem a um lugar seguro, nos pântanos, onde a água fria lhes banhava as mãos e os joelhos, os assaltantes pararam. A música cessara, e as risadas também. Uma atrás da outra, as fogueiras foram-se apagando, até haver menos de meia dúzia, espalhadas em redor. O acampamento estava displicentemente guardado, pois ninguém sonhava sequer que os famintos e exaustos rochelenses pudessem atacar.
De repente, Arsène ergueu a cabeça de acordo com o combinado, e o sinal foi logo imitado pelos que estavam atrás dele, que por sua vez levantaram as mãos para os que vinham “atrás. Então, erguendo-se todos de uma só vez, lançaram-se, silenciosos como fantasmas, sobre a acampamento. Já sabiam onde estavam os depósitos de provisões, pois tinham a guardá-los vários guardas, de vez que os soldados do Cardeal não eram de confiar. Tão rápido foi o ataque, e tão inesperado, que os guardas nem sequer deram um grito, quando Arsène e os seus caíram sobre eles, amordaçando-os com uma das mãos, enquanto que com a outra os esfaqueavam. Ouvi- ram-se apenas débeis gemidos e respirações estertorantes, pois os atacantes, deitaram as suas vítimas, sangrando, no chão, para que nem sequer o ruído metálico de uma espada ou de um mosquete caído se fizesse ouvir.
Cento e cinquenta homens tinham sido escalados para carregar os mantimentos até a muralha. Os outros deveriam penetrar mais fundo no acampamento e cobrir as operações dos atacantes.
Uma terrível excitação tomou conta de Arsène, conferindo força sobre-humana ao seu corpo emaciado. Quando a sua faca penetrara nos corpos roliços dos guardas, ele fora forçado a morder os lábios, a fim de conter um grito selvagem e exultante. Seu apetite fora apenas aguçado. Havia coisas mais importantes a fazer.
Os soldados do Cardeal dormiam em barracões e tendas improvisadas. Era fácil atacar cada unidade separadamente. Em poucos momentos, cinquenta homens foram surpreendidos dormindo e morreram rapidamente, sem ter tempo sequer de estender as mãos para pegar em armas. Nos cinco minutos seguintes, mais cinquenta morriam. Os atacantes não tinham perdido um só homem, embora o ataque se houvesse realizado na mais completa escuridão.
Coberto de sangue e de suor, arfando do esforço, Arsène viu ao longe uma pequena casa, que outrora pertencera a um lavrador. Vários guardas faziam ronda à casa, parando de vez em quando para conversar. Uma fogueira ardia perto deles e Arsène pôde ver- lhes os rostos sonolentos e truculentos, e o uniforme que usavam. Então, era ali que dormia o Cardeal. . .
Uma ideia maluca veio-lhe à cabeça. Por que não prender o Cardeal e levá-lo para a cidade sitiada, como refém? Ou, então, matá-lo? Nada parecia impossível àquele homem, cuja cabeça andava à roda, de fraqueza, fome e excitação.
Comunicou o seu plano, num murmúrio, aos companheiros. Acharam que ele estava louco e abanaram as cabeças com ar cético.
Até ali, estavam indo muito bem. Mas não seria fácil chegar perto da casa do Cardeal. Havia demasiados guardas. Sem dúvida alguns se encarregariam de dar o alarme. Arsène ficou furioso. Parecia delirar. r-i
— Vamos voltar aos depósitos — disse o espanhol, cujo apetite natural fora excitado ao ver tanta comida. — Pegamos o que pudermos e voltamos.
— Ainda não acabei — retrucou Arsène.
Estava coberto, até o nariz, na sua capa, e, a luz das fogueiras distantes, os seus olhos tinham um brilho insano.
O alemão, Von Steckler, hesitou, abanando ligeiramente a cabeça. Os líderes estavam à sombra de uma moita espessa e baixa. Atrás deles ouvia-se a respiração ofegante dos seus seguidores.
Tomado de um delírio cada vez maior, Arsène olhou fixo para a casa. Lá dentro, dormia o Cardeal, o Monstro da Europa. Era tão fácil acabar com ele! E acabariam também as perseguições aos huguenotes franceses, o horror e a crueldade da reação católica, todos os males do mundo. Tão fácil!
Virou-se para os seus oficiais e sussurrou:
— Só preciso de cinquenta homens! Os outros podem voltar aos depósitos e seguir dali para as muralhas.
O espanhol, o italiano e o alemão calaram-se durante alguns momentos. Depois, murmuraram ordens para os que estavam atrás deles, e estes, por sua vez, transmitiram para os outros as ordens murmuradas. Em poucos momentos, cinquenta homens se haviam embrenhado na noite. Os que ficaram não estavam convencidos, mas a excitação de Arsène depressa os conquistou. Tratava-se de um plano impossível, mas eles estavam contagiados pela loucura do seu líder. Se não conseguissem sequestrar o Cardeal, havia ainda a possibilidade de matá-lo antes que os agarrassem.
Avançaram, rastejando, pisando de leve nas pontas dos pés exaustos. Corriam agora grande perigo. A luz das fogueiras não tardaria a denunciá-los aos guardas, Espalharam-se bem, à medida que se aproximavam da casa.
De repente, estacaram. Um grito estrangulado ressoou, a pouca distância deles. Corações batendo loucamente, aguçaram os ouvidos. Aquilo que ouviam à retaguarda não era o barulho de pés furtivos? Olharam para trás, tentando distinguir algo, na escuridão. Mas não viram nem ouviram nada.
Voltaram-se para a casa. De repente, a porta se abriu. O Cardeal, de uniforme completo, o chapéu emplumado na mão, apareceu na soleira. Os guardas perfilaram-se, apresentaram armas. Olhou distraidamente para eles. A sua atenção estava voltada para Arsène e os seus companheiros. A fogueira ardia entre eles. O Cardeal não conseguia ver bem por causa das chamas.
Arsène ergueu desesperadamente o mosquete. À sua volta ouviu-se um ligeiro movimento, como que um protesto involuntário, seguido de silêncio. Apontou o mosquete para o coração do Cardeal. Mas as suas mãos tremiam. Mordeu o lábio com tanta força, que chegou a sangrar, mas nem sentiu. A única coisa que ele sentia era ódio, a única coisa que via diante de si era o que planejara fazer. Piscou os olhos furiosamente, para a luz que o ofuscava, na sua fre- queza, viu a figura do Cardeal dançar em meio às chamas, diante dele.
Richelieu estava à sua frente, uniformizado, desprotegido, calmo e imóvel, olhando para o mato, onde estavam os atacantes. Não fez um gesto. Os guardas tinham recomeçado a andar de um lado para o outro. Nada podia ser mais seguro de si do que aquele vulto magro e aristocrático, com o vento da noite soprando-lhe as penas do chapéu e o amplo manto. Sua expressão era, como sempre, impressionante e distante, com os olhos de tigre brilhando à luz da fogueira.
De repente, um estranho pensamento tomou conta de Arsène. Convenceu-se de que o Cardeal sabia de tudo, percebera tudo, assim que o vira, como se ele, Arsène, estivesse debaixo do sol do meio-dia, Não havia um sorriso irônico no seu rosto de marfim, ou seria apenas o efeito da luz que vinha das chamas?
Arsène sentiu as mãos úmidas, e o mosquete tremeu ainda mais. Seus dedos entorpecidos procuraram o gatilho. Podia ouvir o coração pular e latejar como se fosse um animal enjaulado. Em algum lugar, no passado, tinha ouvido dizer que o Cardeal, como todos os felinos, era capaz de ver no escuro. ..
Nisso, Richelieu ergueu a mão num gesto negligente e delicado. Sorriu, parecendo satisfeito. Sua voz ecoou, forte, na noite:
— É você, meu caro de Bonnelle?
Arsène estremeceu. Era agora ou nunca. Concentrou toda a sua força no dedo trêmulo em volta do gatilho. Mas uma espécie de paralisia o deteve.
Ouviu então um barulho, uma confusão atrás de si. Uma náusea horrível cresceu dentro dele, embora não saísse da posição em que estava, nem deixasse cair o mosquete. Pelas exclamações dos companheiros, percebeu que estavam cercados. Mas não se ouviram gritos, nem tiros. Eles sabiam que estavam perdidos, que não adiantava reagir.
Só ele, Arsène, continuava livre, o mosquete ainda apontado para o vulto que parecia dançar como louco, à luz da fogueira. Dava agora a impressão de ser uma figura diminuta, uma marionete, manobrada por um bêbado. O chão pareceu oscilar debaixo dos pès de Arsène. Gotas de suor escorreram-lhe para os olhos. Mas o dedo paralisado não se mexia, apesar dos seus esforços sobre-humanos para acionar o gatilho.
— De Bonnelle! — disse o Cardeal, com um sorriso mais largo.
Avançou uns dois passos.
— Não fique aí, parado. Já o reconheci.
Arsène sentiu uma mão segurar-lhe o braço e a voz indolente do espanhol dizer-lhe, ao ouvido:
— Estamos perdidos.
Logo depois, sem saber como, sentiu o mosquete escorregar- lhe dos dedos e cair-lhe aos pés.
Um frio estranho envolveu o jovem. Olhou para trás e viu que os seus companheiros estavam cercados por uma hoste de homens armados e silenciosos. Mal os podia distinguir, mas sentia a presença deles.
Ouviu o barulho de passos em meio ao terrível silêncio. Richelieu avançava para ele. Três dos seus guardas postaram-se atrás do Cardeal. Arsène viu-o aproximar-se. A luz das chamas lançava sombras vividas sobre o Cardeal, que avançava com passos calmos e seguros. O sorriso estava agora fixo em seu rosto, como se ele estivesse pensando em algo muito divertido. Alguém jogou mais lenha na fogueira. Imediatamente, as chamas cresceram e banharam de luz vermelha o campo em derredor, revelando completamente Arsène e seus Companheiros, mais os contornos do inimigo, atrás deles.
Está tudo terminado, pensou Arsène. Suspirou. A loucura abandonara-o. Pensou em Cécile, no seu pai. Ao menos, durante algum tempo teriam o que comer. Uma dor profunda tomou conta dele. Esperou que o Cardeal o reconhecesse.
Mas Richelieu continuava calado e avançando. Parou a uns cinco passos de Arsène e os dois olharam fixo um para o outro.
Ele sabia, desde o princípio, pensou Arsène, perplexo.
A fogueira estava agora atrás do Cardeal, cuja silhueta se recortava contra ela/ Arsène já não podia ver-lhe o rosto com nitidez. Sentiu, mais do que viu, a luz estranha que emanava daqueles olhos terríveis, com um brilho demoníaco e irônico. Avançou mais um passo e parou de novo.
Fez-se um silêncio completo à volta deles. Os companheiros de Arsène estavam atônitos. Por que razão o Cardeal não diria nada, não denunciaria o seu líder, não os mandaria prender? Levaram a mão às espadas, à espera de um sinal de Arsène. Estavam dispostos a vender caro as suas vidas.
Mas Arsène não se moveu, nem falou. Ele e o Cardeal olhavam um para o outro como se fossem estátuas, condenadas a se encarar eternamente.
O Cardeal disse então, numa voz suave e afetuosa:
— Ah, é você, meu caro de Bonnelle! Há quanto tempo o esperava! Já estava quase acreditando que não viria mais.'
Ouviu-se um murmúrio atrás de Arsène. Ele ouviu o sussurro de seus companheiros, desanimados, à espera dos algozes.
O Cardeal estendeu a mão. Arsène ficou a olhar para ele, com expressão incrédula. Seria possível que ele não o tivesse reconhecido?, pensou, a cabeça girando. Mas, quando voltou a olhar para o inimigo, viu que ele ria baixinho, a mão ainda estendida na sua direção.
Plenamente convencido de que tudo aquilo não passava de um pesadelo, Arsène segurou-lhe a mão, sentindo a pressão daqueles dedos frágeis e delicados. O Cardeal encarava-o com ar divertido, e os seus lábios moveram-se por trás do cavanhaque, como se a custo pudesse conter o riso.
— Você trouxe poucos valentes, meu amigo — disse ele, em tom de censura, deitando uma olhadela para os companheiros de Arsène. — Mas até mesmo um pequeno destacamento é bem-vindo. Presumo que sejam espanhóis, não? Que pena! Não vão poder conversar e confraternizar com os meus homens.
Arsène ouviu o barulho inquieto dos pés dos seus companheiros. Enlouqueci!, pensou. Estou sonhando. Sentia a cabeça às voltas.
— Sim, é uma pena — murmurou.
— Mas sem dúvida você tem mais homens acampados longe daqui. — Insistiu Richelieu, no mesmo tom leve e amistoso.
Arsène fez que sim com a cabeça. O Cardeal continuava a se- gurar-lhe a mão.
— E você pensa voltar logo para eles, não? —prosseguiu Richelieu.
— Sim, Monsenhor — respondeu Arsène, com voz rouca.
— Mas, primeiro — disse o Cardeal, com afeto e entusiasmo —, monsieur deve descansar um pouco e tomar um copo de vinho comigo.
Olhou para os seus próprios soldados.
— Você, Bretonne, leve os homens de Monsieur de Bonnelle para junto do fogo, dê-lhes bem de comer e um copo de vinho. Não podem conversar com você, mas a comida é como uma língua internacional. Monsieur de Bonnelle voltará dentro de pouco tempo, após termos uma breve conversa.
Soltou a mão de Arsène, que olhou para os seus companheiros. O seu rosto, à luz das chamas, refletia todo o seu espanto. Mas o espanhol e o italiano sorriam. Não entendiam nada, mas tinham sutileza suficiente para fazer o que o Cardeal mandava.
Arsène deu consigo seguindo o Cardeal até a pequena casa que lhe servia de quartel-general. Quanto tempo levaria para que os corpos das sentinelas e dos soldados assassinados fossem descobertos? Seus pensamentos eram confusos, girando num rodamoinho de luz vermelha e escuridão. Aquilo só podia ser um sonho maluco. Não podia estar acontecendo. O Cardeal esperou até que Arsène chegasse junto dele.
— Fez má viagem? — perguntou-lhe.
— Muito má. Demorada e dolorosa — respondeu Arsène, em voz rouca.
O Cardeal assentíu com a cabeça, como a dizer que compreendia. Entraram. A casa estava mobiliada de maneira, simples mas confortável. Havia velas acesas sobre uma comprida mesa de carvalho, e o fogo crepitava na lareira. O ordenança do Cardeal, que Arsène não reconheceu, movia-se rapidamente, colocando sobre a mesa travessas com guisados de aves e coelho, pão, tortas e vinho. O Cardeal despiu a capa, atirou-a para um lado e sentou-se à mesa, convidando Arsène a fazer o mesmo. Depois, ordenou ao criado que saísse, e perguntou, no tom mais amistoso possível:
— Naturalmente, você não chegou até aqui sem ter... matado alguém!
— Naturalmente — repetiu Arsène.
A cabeça doía-lhe de fraqueza. O calor que-reinava na pequena casa, a excitação da noite, a sua captura, o medo que sentia por seu pai e por Cécile, o que se passara naquela última hora tinham-no arrasado completamente. Tudo parecia girar, flutuar numa profusão de cores e luzes, à volta dele. Olhou para as mãos manchadas de sangue, sobre a toalha de damasco branco que forrava a mesa, e um arrepio perpassou-o de alto a baixo.
Ouviu a voz divertida do Cardeal dizer:
— Naquele jarro ali, há água e, perto dele, toalhas limpas. Suponho que deseje se lavar, antes de comer!
Arsène levantou-se com esforço, cambaleou e passou a mão sobre os olhos. O Cardeal ficou a vê-lo, sorrindo, encaminhar-se, com passos oscilantes, para o lavatório. Agora, não havia outro ruído na sala senão o da água e o crepitar do fogo. O contato da água fria nas mãos e no rosto de Arsène fizeram-no reviver. Sua cabeça continuava girando, mas de vez em quando um pensamento mais lúcido lhe vinha à mente. Não tinha dúvidas de que o Cardeal estava brincando com ele, divertindo-se com ele. Afinal, era famoso pela crueldade. Mas, nesse caso, ele também podia brincar. Era uma comédia arriscada, mas ele sempre gostara de se arriscar. Tinha a certeza de que estava perdido. Seu único temor era agora vir a ser enforcado, morrer de uma forma ignominiosa. Resolveu apelar, como soldado que era. . . tinha direito a ser fuzilado.
Tantas vezes vira a morte de perto! Como todos os jovens da sua casta, sempre encarara a morte com indiferença, como uma coisa inconveniente e mais nada. Agora, porém, amadurecera. A vida tinha para ele novos e maiores valores. Não queria morrer. De repente, agarrou a toalha de linho com mãos desesperadas.
Voltou para a mesa. O Cardeal enchera-lhe o prato de iguarias. Arsène sentiu o aroma dos molhos, e a sua boca encheu-se de água. Estava disposto a representar até o fim. Entrementes, trataria de comer, de recuperar as forças para poder enfrentar o que desse e viesse.
Com um gesto cortês, o Cardeal encheu os copos de vinho. Ergueu o seu e esperou que Arsène fizesse o mesmo. Ficaram um longo momento olhando um para o outro. Depois, o Cardeal inclinou a cabeça com um sorriso grave e tocou o copo de Arsène com o seu. No silêncio da sala, o tilintar dos copos ecoou portentosamente. Arsène bebeu um grande trago, com a mão, que segurava o copo, tremendo.
Pousou o copo e fitou de novo aqueles olhos de trigre, agora semicerrados e inescrutáveis. O Cardeal indicou, com um gesto, o prato, e Arsène não resistiu: agarrou na faca e no garfo e comeu vorazmente. Mal saboreou a comida, mal a mastigou. Não olhou para o Cardeal, enquanto devorava o peru, a salada e as tortas e engolia o delicioso vinho. Quando, por fim, levantou os olhos do prato, reparou num enorme crucifixo de ouro, pendurado sobre a lareira. O Cardeal não disse nada. Continuou sentado no seu lugar, uma mão fina pendente, numa atitude de contemplação e alheamento, como se estivesse sozinho. Tinha o perfil voltado para Arsène. A expressão do seu rosto era reservada, severa, mas levemente irônica. Parecia menos frágil, menos terrível, menos carismático no seu uniforme de general, do que nas vestimentas de Cardeal. Era mais homem, mais acessível. Embora o feitio da sua cabeça estreita e aristocrática traduzisse o seu orgulho natural, as suas feições, sem o chapéu cardinalício, pareciam singularmente vulneráveis e delicadas. Quem não soubesse, pensaria que aquela cabeça e aquele rosto comprido e melancólico pertenciam a um intelectual, triste e cansado. No dedo anular, fino e transparente, o anel de Cardeal refletia a luz das chamas e dos castiçais.
Arsène sentiu; finalmente, que não podia comer mais. As forças tinham-lhe voltado, mas o vinho fazia-o ver tudo à roda. O calor da sala e do vinho penetrara-lhe no corpo e nas veias. Criou nova coragem, temperada de astúcia.
O Cardeal suspirou. Olhou, sorridente, para Arsène. Mas o sorriso era como uma armadura invencível.
— Monsieur está satisfeito? — perguntou, gentilmente.
— Estou, graças à sua hospitalidade — respondeu Arsène.
O Cardeal colocou os magros cotovelos sobre a mesa, apoiou o queixo nas mãos e olhou para Arsène com amizade.
— Eu era muito chegado a Louis — disse ele.
O rosto pálido de Arsène ruborizou-se, e ele mordeu o lábio.
— A lei — continuou o Cardeal, delicadamente — é muito restrita, quando se trata de...
— Fratricídio — arrematou Arsène, numa voz cava.
O Cardeal arqueou as sobrancelhas.
— Duelo — corrigiu. — A pena para esse crime é de dois anos na Bastilha. Detestaria sabê-lo numa prisão tão desconfortável.
Embora achasse aquelas palavras extraordinárias, Arsène não atinava com o seu sentido. Tratara de pôr de lado qualquer pensamento a respeito de Louis, naqueles últimos meses, concentrando-se apenas no cerco. Mas agora, todo o remorso, o desespero e a tristeza que sentia voltaram a assaltá-lo. A expressão do seu rosto mudou, seus lábios tremeram. Olhou para o Cardeal com ar súplice.
— Era a minha vida contra a dele — murmurou. Ergueu as mãos, mas logo as deixou cair. — Agora, quase preferia que tivesse sido a minha.
O Cardeal não disse nada. Continuava a sorrir, mas agora parecia pensar noutra coisa. Pousou as mãos na mesa. Os dedos da mão direita começaram a tamborilar sobre a toalha.
Por fim, disse, suavemente:
— Não se deixe levar pelos remorsos. Naquele coração hão havia lugar para a felicidade. Seu irmão foi concebido na tragédia. Viveu e morreu tragicamente. Teve apenas um breve interlúdio de felicidade, mas mesmo assim sombreado pela tragédia. Todos quantos amávamos Louis devemos dar graças a Deus por ele ter morrido.
Arsène estremeceu. Uma expressão emocionada tomou conta do seu rosto. Sentia uma terrível vontade de chorar.
— Não pude oferecer-lhe consolo — prosseguiu o Cardeal, olhando para os dedos. — Essa é a minha tragédia. Mas decerto não entende isso.
Arsène não respondeu. A sua falta de sutileza não permitia, realmente, que ele compreendesse. Estava perplexo: Depois, o pensamento lhe ocorreu, de leve, lançando-o na maior confusão. Viu o rosto do Cardeal, diante dele. Sentiu uma dor no coração e exclamou, com veemência:
— Nós nos reconciliamos, antes de ele morrer! Ele compreendeu! ...
O Cardeal arqueou as sobrancelhas.
— Isso já é um consolo, monsieur — disse, com uma ironia que Arsène não percebeu. — Você teve uma experiência extraordinária.
Seus dedos pararam de tamborilar. A mão descaiu, como que exausta. Agora, já não sorria. Seus olhos brilhavam com uma luz estranha, ao se fixarem, de maneira penetrante, em Arsène. Olhou para o jovem como se ele fosse um objeto misterioso, que o intrigava e excitava, ao mesmo tempo. Recordava-se tão bem daquele aventureiro, daquele alegre e irresponsável cortesão! Onde estavam, agora, aquela vitalidade, aquela coragem, aquela exuberância? O homem que tinha à sua frente já não parecia jovem. O cansaço que demonstrava não era apenas físico. Seu corpo emaciado tinha a sustentá-lo uma força que antes não possuía. A barba escura sombrea- va-lhe ainda mais a mandíbula e as faces abatidas. O nariz aquilino parecia maior e mais afilado, as narinas, mais vermelhas e distendidas. Os olhos davam a impressão de terem afundado nas órbitas e de brilharem com um fogo desusado. O que o sustentava? O Cardeal ardia de curiosidade. Sabia que Arsène não tinha fé, não era movido pelo fanatismo; que sempre fora motivado apenas pelo ódio, pelo ressentimento e pelo amor da aventura. Mas essas qualidades pareciam ter desaparecido e deixado apenas uma herança de força e firmeza. Nos cantos daqueles lábios pálidos, daqueles olhos fundos, havia um resíduo misterioso, uma leve luminosidade, peculiares àqueles que haviam sonhado um sonho nobre e extasiado.
O Cardeal inclinou a cabeça e perguntou, gravemente:
— É, realmente, com Monsieur Arsène de Richepin que estou falando?
Arsène corou, e seus olhos cintilaram, irados, pensando que Richelieu caçoava dele.
— É — respondeu, com a maior frieza.
— Não quis ofendê-lo — disse o Cardeal, sorrindo outra vez. — Por um momento, receei estar enganado. Monsieur mudou muito. Seria descortesia perguntar, com genuíno interesse, quando se operou essa mudança?
Arsène ainda estava irritado, além de perplexo. Olhou rancorosamente para o Cardeal e não respondeu. Sua confusão aumentou.
O Cardeal prosseguiu no seu exame. Seus olhos demoraram-se, pensativos, em cada traço do rosto do jovem. Depois, ergueu lentamente a mão e passou-a pela boca, como se a esconder um sorriso.
— Vejo que continua sendo Monsieur de Richepin — observou.
Arsène não desviou o olhar.
— Monsieur revelou traços insuspeitados de caráter — prosseguiu Richelieu, passado um momento. — Por estupidez, nunca tinha reparado neles.
Fez-se silêncio na sala. A expressão do Cardeal era cada vez mais amistosa, embora não pudesse esconder a sua curiosidade.
— Há ainda outra pergunta que gostaria de fazer, se monsieur me permitir. Não a faço levado por curiosidade vulgar, e sim por um interesse real: O que o sustenta, o que o faz permanecer nessa cidade sitiada?
Arsène não respondeu. Limitou-se a franzir as sobrancelhas.
—• Lembrando-me de você, com quem sempre simpatizei — prosseguiu o Cardeal —, acho que posso ser perdoado por me confessar algo intrigado. Monsieur não tinha fé, nenhuma convicção mais profunda.
Estava cada vez mais curioso.
— Devo pedir-lhe novamente perdão. Acontece que sou um estudante de homens. — Fez uma pausa e acrescentou, com impaciência: — Sem dúvida monsieur entende o que eu quero.-dizer, não?
Arsène continuou calado.
— Permanecendo nessa cidade, você deve sentir-se severamente castigado, sofrendo não só por si mesmo mas por aqueles a quem está ligado — prosseguiu o Cardeal, aborrecido com aquela aparente estupidez, mas decidido a satisfazer a sua curiosidade.
— Decerto você sabe que se trata de uma causa perdida, que a cidade vai acabar se rendendo. Você é o líder. Sem dúvida sofre com a fome e o desespero que se apoderaram dos rebeldes. A esta altura, já percebeu que os ingleses, como sempre, faltaram à promessa feita. Tem você consciência de qual será o fim e de que não há mais esperança. Gostaria, pois, de saber, com a maior sinceridade, o que o sustenta.
Mas Arsène continuou calado. Seus olhos estavam fixos no rosto do Cardeal. Será imaginação minha, perguntou a si mesmo Richelieu, profundamente excitado, ou há mesmo uma luz estranha nos olhos deste valente?
— Monsieur deve compreender — continuou o Cardeal — que, a cada dia que passa, a continuação da resistência vão diminuindo a nossa paciência e as chances de sermos misericordiosos. Contudo, Monsieur deu ordens para que a cidade continuasse resistindo; Gostaria de saber o que o levou a essa desesperada resolução. Não combina com o caráter astuto de Arsène de Richepin, que eu julgava conhecer tão bem.
Arsène remexeu-se na cadeira. A luz estranha aumentou em seus olhos, lançando um reflexo nos seus traços macilentos. Quando, por fim, falou, foi numa voz hesitante e quase humilde:
— Monsieur le Cardinal lembra-se de Paul de Vitry, meu amigo? Paul tinha fé, uma fé que eu não conseguia entender. Ela continua ainda incerta, em mim. Enquanto ele viveu, eu não compreendi o seu sonho. Agora, começo a percebê-lo, embora vagamente. Não sou capaz de expressar o que sinto com palavras lúcidas — disse, erguendo as mãos num gesto impotente. — Não há palavras para expressá-lo. Ainda me custa acreditar... Mas uma coisa eu sei: que preciso ressuscitar, dentro de mim, a fé que animava Paul de Vitry, se quiser voltar a ter esperança.
Fez-se um longo silêncio na sala. O Cardeal olhou para as próprias mãos. Contemplou o anel que lhe brilhava no dedo com expressão remota e divertida. Voltou-o de um lado e do outro, como se fosse um joalheiro, examinando uma peça antes de a comprar. A sua expressão era agora inescrutável.
— Se quiser voltar a ter esperança — repetiu, numa voz quase inaudível.
Levantou os olhos. O rosto de Arsène demonstrava uma intensa emoção, como se ele estivesse à beira das lágrimas.
Que terrível amadurecimento espiritual este bravo deve ter experimentado!, pensou o Cardeal. Que agonias deve ter suportado, e nenhuma delas física. Os homens começam tendo fé e esperança e, aos poucos, iam-nas perdendo. Mas aquele homem partira da futilidade, da irresponsabilidade e da falta de sutileza, e adquirira, após uma luta terrível com os seus próprios valores morais, a esperança e a fé que sustentam os homens e que não podem ser compreendidas. Não resta dúvida de que há algo divino, algo intocável, algo altruísta e heroico, nobre e majestoso, na alma humana! Tem que haver algo indestrutível debaixo da bestialidade natural dos homens, alguma pepita de beleza, abnegação e espiritualidade. O Cardeal constatava que a civilização era o triunfo de uma vontade misteriosa sobre a inércia inerente ao homem. Acreditara que fosse apenas desejo e cobiça. Agora, não estava tão certo assim.
— Não estou tão certo assim — disse, em voz alta, e estremeceu ao se ouvir a si próprio.
Via-se que estava profundamente emocionado. Contudo, ainda podia sorrir de si mesmo. Minha ingenuidade será tão grande, que eu tenha de me ater a qualquer prova, por menor que seja, de que existe nos homens alguma virtude, embora tenra e obscura?, perguntou a si próprio.
Sentiu-se tomado de alívio, e uma espécie de delírio lhe subiu à cabeça. Nesse caso, a esperança e a fé existiam, eram capazes de se manifestar inexoravelmente e com força sobrenatural, até mesmo em homens como aquele valente!
Suas mãos, finas e delicadas, apertaram-se convulsivamente sobre a mesa. Seus olhos penetraram o rosto de Arsène como se fossem dois raios.
— Monsieur porventura sabe — disse, numa voz muito suave — que não adianta resistir, mesmo tendo fé? Não vou desonrá-lo, pedindo que ordene a rendição de La Rochelle. Mas suplico-lhe que reflita.
— Já refletimos — retrucou Arsène, em voz baixa. — Mas não podemos nos render. Por nossa própria causa, não podemos capitular.
— Uma tal resistência só acabará acarretando uma terrível vingança — murmurou o Cardeal, ainda mal acreditando no que ouvia.
Arsène olhou-o fixamente.
— Por nossa própria causa — repetiu — não podemos capitular, aconteça o que acontecer. Se nos rendermos e continuarmos vivendo, como poderemos suportar o fato de estarmos vivos?
O Cardeal recostou-se na sua cadeira.
— E os outros, também pensam assim?
Arsène hesitou, mas o seu rosto não tardou a iluminar-se.
— No princípio, não pensavam. Muitos se queixavam, muitos se mostraram traidores, covardes e egoístas. Mas esses já fugiram da cidade. Os que ficaram pensam como eu, que não podemos nos render.
Levantou-se, como se os seus pensamentos o impelissem a agir. Cerrou os punhos e pousou-os na mesa, deitando a Richelieu um olhar apaixonado.
— Monsenhor, La Rochelle pode cair. A causa do protestantismo na França pode ir por água abaixo. A esperança de que os direitos do homem triunfem, de que a liberdade e a paz acabem vencendo, não pode, porém, ser destruída! Pode ser pisoteada, enterrada sob as muralhas arrasadas de La Rochelle, silenciada pela força da espada, empurrada para o fundo da sarjeta, sepultada durante séculos; mas nunca poderá ser destruída! Porque o sonho já foi sonhado, e nem as espadas de uma centena de exércitos, nem os canhões mais poderosos poderão acabar com ele! Se não voltar a ser sonhado na França, sê-lo-á noutro lugar, e noutro e outro, até que todos os homens tenham notícia dele e tenham se libertado.
E a dúvida e a incerteza, a confusão que até então sentira, foram arrastadas por uma onda de exaltação e convicção. Olhou para o Cardeal com o coração cheio de alegria, como se acabasse de receber uma mensagem, uma promessa invencível.
O Cardeal também olhou para ele, sem falar. Seus dedos frágeis se entrelaçaram. Seu rosto ficou grave.
Depois, levantou-se e começou a andar de um lado para o outro da sala quente e iluminada, as mãos atrás das costas, a cabeça inclinada em profunda meditação. O uniforme militar fazia com que ele parecesse mais alto do que realmente era, e menos franzino. O rosto fino, como o seu cavanhaque, dava a impressão de ser esculpido em marfim. Arsène ficou a olhá-lo, pensativo. Aquele homem delicado e elegante seria o mesmo sinistro e maquiavélico Cardeal, que toda a Europa encarava com terror? Seria o homem perverso e lascivo, cujas intrigas se espalhavam por todo o continente, que manobrava governos e monarcas? Parecia incrível. O homem que estava à sua frente era um pensador aristocrático, um filósofo, menos preocupado com exércitos e tronos do que com o estudo aprofundado do homem, tema inexaurível, que exigiu todos os poderes do seu intelecto e obrigava a conjeturas metafísicas a sua alma, desconhecida e terrível.
Voltou para junto de Arsène e sorriu distraidamente. Arsène achava que ele, na verdade, não o via. Suas palavras eram também estranhas e inexplicáveis.
— Monsieur, acaba de me ocorrer o que poderá acontecer com os reis, os generais e os príncipes da Igreja, se os povos, cheios de ódio e em guerra uns com os outros, de repente se compreendessem e parecessem acordar. Como ficariam chocados! Pode imaginar como olhariam uns para os outros, como deixariam tombar as espadas, e como murmurariam para si mesmos: Como é possível eu ter vindo até aqui, para matar?
Arsène não respondeu. O Cardeal parou diante dele, com um brilho febril nos olhos de tigre.
— E então — continuou, numa voz estranha — em todo o universo se faria um silêncio súbito e total.
Só nos momentos de paixão é que a sutileza e a intuição despertavam em Arsène. Por outro lado, ele estava tão exausto pela fraqueza e pelas emoções, que não podia pensar ou sentir, fosse o que fosse, de modo que apenas olhou para o Cardeal sem nada dizer. Sabia, porém, que Richelieu não se importava com o fato de ele não responder. Estava por demais mergulhado nos seus próprios pensamentos.
O Cardeal continuou a olhar para ele. Por fim, disse:
— Monsieur, conheço-o há muitos anos. Conheci seu pai e admirei-lhe os dons na mesa de jogo, os maravilhosos perfumes, o gosto requintado. Seu irmão me serviu e conquistou a minha estima. Posso lhe perguntar que favor deseja de mim, nesta hora tão triste?
Arsène ergueu a cabeça ansiosamente e umedeceu os lábios ressequidos.
— Prefiro morrer por fuzilamento a morrer na forca — disse. — Sou um soldado e peço-lhe o direito de morrer como tal.
As sobrancelhas do Cardeal arquearam-se delicadamente. Suas feições se escureceram. Parecia mergulhado em pensamentos. Por fim, dirigiu-se para a porta e abriu-a. O comandante da guarda acorreu e fez continência.
— Bretonne — disse o Cardeal. f— Monsieur de Bonnelle deseja levar os seus mercenários de volta ao seu acampamento. Queira reuni-los.
Fechou a porta. Arsène olhou para ele, branco de morte e tremendo. O Cardeal sorriu e colocou a mão no ombro do jovem.
— Poderei dar-lhe um recado para a minha velha amiga, a Duquesa de Rohan? Por favor, transmita-lhe toda a minha admiração e todo o meu afeto, e diga-lhe que estou muito necessitado de mais unguentos para o meu reumatismo, e que o último frasco de ervas para a indigestão, que ela me mandou, foi um santo remédio.
Arsène estava sem fala. As lágrimas cegavam-no. Através delas, podia ver vagamente o Cardeal, sorrindo com toda a candura e amizade, e com um leve traço de ironia.
— Algo me diz que nunca mais nos veremos, Arsène — disse ele, num, tom familiar. — É uma pena. Desejo-lhe felicidade. E paz.
Arsène tentou falar, mas dos seus lábios pálidos não saiu o menor som. O Cardeal apertou-lhe fortemente o ombro e afastou- se. A porta abriu-se. Bretonne fez continência e disse:
— Os mercenários estão esperando por Monsieur de Bonnelle, Monsieur le Cardinal.
Arsène ainda procurou falar, mas o Cardeal, embora continuasse sorrindo, deitou-lhe um olhar acautelador, de modo que o jovem limitou-se a inclinar a cabeça, a fazer uma reverência e a levar a mão do Cardeal aos lábios. Depois, deu meia-volta e saiu, atordoado, para a noite.
Os companheiros esperavam por ele perto das fogueiras, ansiosos e excitados, mas tão silenciosos quanto Arsène. Os hpmens do Cardeal fizeram continência, no que foram correspondidos. Se estavam curiosos ou tinham alguma dúvida, não o manifestaram.
Arsène teve de novo a sensação de que tudo aquilo era um sonho. Seus companheiros tampouco falavam. Começaram a andar mais rápido. Passaram pelos guardas que haviam matado e que ainda não tinham sido descobertos. Chegaram-às muralhas da cidade, onde encontraram os outros à espera, cheios de impaciência e apreensão. Em resposta aos seus murmúrios furiosos, os que voltavam límitaram-se a abanar a cabeça, em silêncio. Andavam, agora, mais depressa ainda. Deixaram-se cair como maçãs maduras do outro lado da muralha.
Ao chegar ao alto do muro, Arsène viu, ao longe, o súbito agitar de tochas, ouviu os gritos distantes, e distinguiu o acender de novas fogueiras. Tinham descoberto os corpos dos assassinados. Fora dado o alarme.
Pulou para o outro lado. Dentro da cidade, também tinham acendido tochas. Viu as gigantescas pilhas de mantimentos, que homens apressados tratavam de carregar.
— Foi um grande presente que Sua Eminência nos deu — riu um jovem.
— Sim, foi um grande presente — concordou Arsène.
Capítulo LVII
O inverno foi horrível. Apenas dez mil rochelenses permaneciam vivos. Quando a primavera chegou, esse número tinha caído para menos de sete mil.
Não havia mais carvão. Quase não havia crianças, pois elas tinham sido as primeiras a sucumbir. A doença invadia as casas, onde reinavam a fome e a desolação, e, quando a fome não matava, a doença libertava as pessoas dos seus sofrimentos.
Quem continuava vivo e livre de fome ou doença eram, os desonestos e os traidores. Ninguém sabia como eles conseguiam comida, mas o certo era que continuavam estranhamente gordos, embora se queixassem mais do que os outros. Feuquières, movido menos por interesse do que por compaixão, foi ter com os líderes, e suplicou-lhes que se rendessem. Nunca mais esqueceria aquele cerco e as cenas que vira na cidade. Até o fim de seus dias, permaneceria um liberal, embora no início tivesse sidò tão, intolerante e cruel quanto os outros da sua classe e religião.
A duquesa deu ordens para que todos os traidores ou suspeitos de traição fossem punidos com a forca. Todas as semanas, o prefeito ordenava dezenas de execuções. Uma noite, tentaram matá-lo. Imediatamente, a duquesa fez com que ele e a sua família se mudassem para o hôtel de Rohan.
À noite, os rochelenses ouviam as orações rezadas em voz alta, em sua intenção e a mando do Padre Joseph, pelas freiras do Calvário, junto dos muros da cidade. Em vez de ficarem emocionados, eles sentiram-se afrontados, tomados de um horror misterioso. O Cardeal classificou aquilo de “carolice”, para grande indignação do capuchinho.
— Julga que as orações de um bando de freiras são capazes de comover franceses emancipados, quando nem os gritos das mulheres e dos filhos moribundos conseguiram dissuadi-los? —• perguntou.
Sofria como nunca dantes sofrerá, e não por sua causa. Por trás daquelas muralhas, havia franceses morrendo, e ele, tão ciumento de cada gota de sangue francês, amaldiçoava o cruel destino que o levara até ali, para infligir tantos tormentos aos seus compatriotas. Seria aquela a maneira de unir os franceses, protestantes e católicos? O ódio latente naquela sangrenta semente não daria origem a guerras terríveis, através dos séculos?
— Quem sabe se, daqui a centenas de anos, quando todos os franceses forem confrontados com uma emergência, essa semente não terá dado frutos horríveis, que acabarão destruindo a França? — perguntava a si mesmo. — Porque, quando os franceses não confiarem nos franceses, tudo estará perdido. _
Apenas seis mil homens permaneciam agora atrás das muralhas, mas estavam escrevendo uma epopeia. Espíritos fortes como os deles enchiam-no de orgulho. Eram necessários para plantar as árvores dos pomares da vida.
Escreveu à duquesa:
“Não lhe supliquei até hoje que ordenasse a rendição da cidade, porque tanto você como eu temos sentimento de honra. Mas tortura-me pensar nos padecimentos do seu povo. Por conseguinte, ajoelho-me diante de você, pedindo-lhe que, em nome da humanidade, mande abrir as portas da cidade. Não posso mais suportar isto. O tormento é muito grande, não consigo mais dormir”.
O mensageiro, com a sua bandeira branca, trouxe de volta um unguento num potinho de ouro, e a resposta da duquesa;
“Recomendo a Vossa Eminência esfregar um pouco na testa, antes de se recolher. É ótimo para dormir”.
Ninguém mostrara, mais força de ânimo, no meio de todo aquele horror, do que Cécile Grandjean. Embora estivesse reduzida a um esqueleto, dela não saía qualquer palavra de queixa ou temor. Estava confinada à cama, pois não tinha forças para andar. Além do mais, estava grávida. Ninguém, a não ser a duquesa, sabia disso. A velha senhora levava-lhe comida trazida por Feuquières, pedindo-lhe que aceitasse pensando no filho que ia nascer. Mas Cécile recusava-se a comer.
— Eu e o meu filho morreremos juntos, se isto tiver que ser — dizia ela, com voz firme.
Acima de tudo, Arsène não deveria saber, para não se deixar abater.
Todos os dias, Arsène, o alemão, o espanhol e o italiano se revezavam montando guarda, embora estivessem tão fracos, que mal conseguiam se manter de pé. As têmporas de Arsène estavam grisalhas. Parecia ter mais de quarenta anos, embora pouco passasse dos trinta. Até que, um dia, uma bala, vinda não se sabe de onde, atingiu o alemão no coração, fazendo com que ele morresse tão bravamente quanto vivera.
Aquilo não suscitou a ira de Arsène, ao contrário do que a duquesa esperava. Apenas ficou calado.
— O nosso Arsène — comentou ela com o marquês — tem pensado tanto, que parece estar com indigestão mental.
— Pois eu acho que ele está digerindo bem demais — retrucou o marquês, no fio de voz que lhe restava.
Todo mundo se espantava com a fortaleza de ânimo e o heroísmo demonstrados pelo velho marquês. Ajudava os rochelenses a enterrar os seus mortos, a montar guarda. Agora, não procurava mais esconder a velhice. Tinha o cabelo branco e ralo. Já não usava as perucas cacheadas, embora, quando se sentasse à mesa, seus trajes continuassem ricos, se bem que usados. A malícia não mais lhe habitava a alma, não mais transparecia no seu rosto cansado. Apenas as rugas finas em volta da boca e dos olhos traíam a passada frivolidade. O marquês também pensava da mesma forma que o filho.
Ninguém sabia que havia alegria em seu coração. Vivera tantos anos desgostoso consigo mesmo, desprezando-se, traindo-se! Agora, ele estava parecido com o pai, com o avô. Às vezes, sonhava com eles, de pé junto da sua cama, as mãos nos punhos das espadas, as cabeças orgulhosas e eretas, sorrindo para ele. Certa vez, ouviu o pai dizer:
— Em breve, meu filho, você estará comigo na glória eterna e se terá redimido.
Viera, por não poder ficar longe de Arsène. Permanecera, por não poder pensar em ficar afastado das almas dos seus antepassados.
Suas mãos, outrora tão finas, delicadas e perfumadas, estavam cheias de calos e arranhadas, de tanto trabalhar e cavar sepulturas para os mortos. Seu corpo estava todo encurvado. Arrastava-se pelas ruas e pelas casas, ajudando a puxar as carroças cheias de cadáveres, e mesmo os que sofriam se esqueciam dos seus sofrimentos e tinham pena dele. Mas bastava olhar para o seu rosto erguido, para os seus olhos brilhantes, para não dizer mais nada.
Ainda era capaz de fazer epigramas. Sentados em volta daquela mesa onde já não havia velas, ele e a duquesa, nas suas vozes murmuradas, trocavam ditos espirituosos, para divertimento dos outros. Só Arsène não sorria. O seu rosto estava perpetuamente carran- cudo, mas cheio de intensidade. Já não tinha ânimo para dizer palavras de amor, nem paraso pai, nem para a sua amada. O máximo que fazia era tocar de leve o ombro ou a mão do marquês, e bei- jar-lhe a face. Ou ajoelhar-se junto da cama de Cécile e encostar a cabeça no seu peito magro.
A ausência de queixumes por parte da jovem, os seus sorrisos heroicos, partiam-lhe o coração. Mas ele não ousava dizer-lhe que fugisse. Amava-a demasiado para poder suportar o seu desprezo ou a sua indignação. Não tinha coragem de lhe dizer o quanto sofria, não por ele mesmo, e sim por ela. Às vezes, rezava para que, quando ele despertasse, de manhã, ela já estivesse morta e livre.
Sentia-se tomado de desespero. Não sabia que coisas estranhas tinham criado raízes na sua alma e nunca morreriam. A aparente calma, que julgava provir da fatalidade, tinha, ao contrário, origem na sua nova e inabalável força de ânimo.
O espanhol e o italiano morreram na mesma noite, quando dormiam. A princípio, pensou-se que tinham morrido de ifíanição, mas os terríveis sintomas da peste não tardaram a ser descobertos nos seus corpos.
Mal eles tinham sido enterrados às pressas, o marquês adoeceu.
O velho magnata, tão logo sentiu o primeiro arrepio, soube que a morte se aproximava. A alegria tomou conta dele. Mandou chamar o filho e disse-lhe que queria vê-lo a sós. Deitado na sua cama forrada de seda, ele pouco mais era do que um monte de ossos, e os seus cabelos eram mais brancos do que os lençóis.
Agora, sentia-se mais forte. Podia falar numa voz clara e firme. Fixou em Arsène os olhos ardentes.
— Falei com Madame la Duchesse, meu filho querido, meu sem-vergonha — disse, com um sorriso que não conseguia ocultar a seriedade das suas palavras. — Ela falará com você quando eu tiver partido. Peço-lhe, suplico-lhe que a escute. O que ela lhe pedir não será só para você, mas também para Cécile, para os seus filhos, para mim... e para os nossos antepassados.
Parecia tão feliz, tão sereno, que Arsène não pôde sentir tristeza. Sentou-se junto da cama e segurou a mão mirrada do pai. De vez em quando, ele perdia o conhecimento, de tão fraco que estava. Mas, quando voltava a si, os olhos do marquês continuavam fixos nele, sorridentes e sem medo, cheios de amor.
— Não só você, meu filho, mas também eu nasci de novo — murmurou.
Não havia nenhuma vela no quarto, mas o luar brilhante da lua cheia entrava pelas janelas, abertas às primeiras brisas do verão. Arsène teve a sensação de que o quarto estava cheio de fantasmas que não o conheciam, mas que conheciam seu pai. De tal maneira, que nem se deu conta das idas e vindas da duquesa. Cécile suplicou, da cama, que lhe permitissem despedir-se do marquês, mas não a deixaram.
A lua já tinha se escondido, a noite estava escura, e a presença dos fantasmas era mais forte no quarto, quando o marquês morreu, sem exalar sequer um suspiro. Arsène só soube que ele tinha partido quando a mão que segurava ficou fria.
O dia estava nascendo, quando o arrumaram na cama. Ali ficou, hirto, parecendo ter crescido, a dignidade da morte oblite- rando para sempre os últimos traços de malícia e frivolidade. Agora, nas suas feições havia muita coisa que fazia lembrar a Arsène o irmão morto: a mesma nobreza, a mesma frieza, a mesma dignidade. Arsène sentiu as lágrimas subirem-lhe aos olhos.
O marquês mal tinha descido à sepultura, quando Arsène recebeu uma carta do Cardeal. Começava num tom afetuoso e de leve censura, mas logo se tornava grave e sombrio:
“Acaba de chegar um mensageiro ao nosso acampamento, trazendo-me uma carta de Madame de Tremblant, sua belle mère. As notícias são más e sei que lhe vão causar muita tristeza. Madame de Richepin morreu, faz um mês, de parto, deixando-lhe um filho robusto, que recebeu o seu nome e o do marquês, seu pai”.
Passaram-se horas, antes que Arsène pudesse aquilatar plenamente a importância daquela carta. Depois, ficou arrasado. Não teve coragem de mencioná-la a Cécile, mas foi desabafar com a duquesa.
— É demasiado tarde para pedir perdão à minha pobre Clarisse — disse, desesperado.
— Você não podia ter feito senão o que fez — retrucou a duquesa, com pena dele.
Mas fitou-o com expressão pensativa e olhos brilhantes.
Sentiu-se aliviada por não ver sinais de amor na dor de Arsène, apenas remorso e pena. Mais aliviada ficou ainda quando ele foi procurar consolo junto de Cécile.
Semanas mais tarde, a duquesa mandou chamá-lo no seu posto de comandante, junto à muralha. Pensando que Cécile estava à beira da morte, ele largou a correr pelas ruas com as últimas forças que lhe restavam. Mas encontrou a duquesa acompanhada do pároco da igreja vizinha, de um certo Monsieur de Duvois, do prefeito e de alguns outros amigos. A velha dama recebeu-o com um sorriso matreiro, e Arsène reparou que ela estava vestida com as suas últimas galas. O último bom vinho que lhe restava fora servido em copos de cristal. Ela beijou-o em ámbas as faces, erguendo-se nas pontas dos pés. Todos sorriam.
O alívio dele foi tão grande, que cambaleou, e teria caído se não o amparassem.
— Tenho planos para você, meu bravo — disse a duquesa. — Mas eles exigem, antes de mais nada, uma cerimônia de casamento. Vá, pois, arrumar-se. Cécile está sendo vestida, para esta auspiciosa ocasião, pelas minhas aias.
Arsène ficou olhando, sem entender nada.
— O tempo urge — disse a duquesa com voz firme. — Não demore e ficará sabendo das notícias.
Sua atitude era tão decidida e autoritária, que ele obedeceu e subiu para os seus aposentos. Nunca pensara em Cécile senão como sua esposa. Parecia-lhe estranho que os outros não pensassem como ele. Ficou irritado e confuso. Ouviu sinais de preparativos através das portas que levavam aos aposentos de Cécile e a sua vozinha fraca. Um valet entrou para ajudá-lo a se vestir.'
Quando voltou a descer, Cécile já o esperava, amparada pelas aias. Estava vestida de azul-claro e arminho, o cabelo penteado para o alto da cabeça. Tinham-lhe salpicado ruge nas faces e nos lábios, de modo a lhe dar uma aparência de saúde. Olhou ternamente para Arsène.
Ele segurou-lhe a mão quente e magra e fitou-a bem nos olhos. Estava tão emocionado, que os presentes sentiram as lágrimas subirem-lhes à garganta. Pensou: Causei tanto sofrimento a esta pobre menina quanto a Clarisse. Trouxe-a para cá para passar fome e morrer. Dei-lhe o meu coração, mas isso nada é, comparado com o que lhe infligi.
A cerimônia foi curta, mas emocionante. Arsène amparou Cécile nos braços. Brindaram com vinho, e o casal recebeu os parabéns. A seguir, Arsène carregou Cécile para os seus aposentos e deitou-a na sua cama.
Agora, sentia-se feliz. Não podiam fugir daquela cidade condenada, mas ele sentia-se feliz.
Deitou-se ao lado dela, e as lágrimas escorreram-lhe pelas faces. Ela estreitou-o contra si, até ele adormecer de exaustão. Mas Cécile ficou olhando para o espaço com os olhos brilhantes de esperança.
Capítulo LVIII
Nessa mesma noite, a duquesa mandou chamá-lo.
Arsène foi encontrá-la, como sempre, a sós e tranquila. Pediu- lhe que se sentasse perto dela e estendeu-lhe um copo de vinho. Depois, ficou a olhá-lo, com expressão pensativa. Arsène viu que ela segurava um papel na mão.
Numa voz calma e serena, a duquesa anunciou:
— La Rochelle vai se render daqui a dois dias.
Arsène pôs-se de pé com tanta violência, que derrubou a cadeira. Cambaleou e agarrou-se à beira da mesa.
— Não! — exclamou. — Não!
A expressão do seu rosto era terrível.
Mas a duquesa não pareceu ligar. Continuou a olhar para ele.
— Pois é, não podemos resistir mais. Somos apenas cinco mil. Resolvi confiar na promessa do Cardeal, de que ninguém será castigado. Ele nunca me faltou à palavra dada.
Parecia misteriosamente calma e animada.
— Não fique tão desesperado, meu filho — continuou ela, vendo a cara dele. — Vamo-nos render, mas não fomos derrotados. O mundo nunca esquecerá a nossa resistência. — Fez uma pausa e prosseguiu:
— Contudo, não há mais lugar para você na França, na Europa. Seu pai falou comigo, faz tempo, de novo, antes de morrer. Chegamos a uma decisão. Existem outros mundos que precisam de você, do seu sangue, da sua força, da sua coragem e da sua fé. Vamos mandá-lo para esses mundos, e não por sua causa, mas pelos que hão de vir.
Indicou de novo a cadeira perto da dela e ele foi obrigado a sentar-se. Mas tremia incontrolavelmente. Mordeu o lábio para impedi-lo de tremer, até sair sangue. A duquesa, porém, não parecia notar nada daquilo. Olhando em frente, disse, calmamente:
— A Europa pode ainda brilhar durante algum tempo, mas os seus dias estão contados. Está por demais contaminada pela pestilência. Não é mais um lugar para os jovens e os fortes de espírito. É uma terra de homens velhos, que só pensam no passado e não acreditam que haja futuro. Nada poderá acabar com a peste que se alastra pelo seu corpo, que lhe corrói a alma. As forças do mal trabalharam muito bem. — Voltou-se para ele, e os seus olhos tinham um brilho severo.
— Mas existe um outro mundo, um mundo novo, ainda selvagem, mas com planícies onde podem ser semeadas grandes colheitas, onde novos governos, novas filosofias podem florescer, onde pode nascer uma raça nova, e coisas importantes podem acontecer. Não, talvez, durante a sua vida, ou na dos seus filhos, mas o seu sangue se projetará no futuro, gerando outros homens e mulheres que não esquecerão, que saberão lutar contra os inimigos da humanidade.
Inclinou-se para ele com grave entusiasmo.
— Por detrás das coisas más, há sempre os pensamentos maus e perversos. Numa casa onde a peste reinar, sempre se pegará a doença, por mais saudável que a gente seja. Isso se aplica também ao espírito. A peste impera na Europa! Não pode ser extinguida. Sempre que houver oportunidade, ela se transformará numa praga. É preciso fugir para um lugar limpo, onde a peste ainda não tenha podido chegar. E, nesse mundo de que eu falei, a peste ainda não criou raízes, embora possa ter surgido esporadicamente no norte e no sul do continente.
De repente, levantou-se, o amplo vestido de brocado roça- gando, e Arsène foi obrigado a se levantar também. As palavras saíam dos lábios dela, mas ele sentia-as no fundo do seu próprio coração, como se o que ela dissesse fosse apenas um eco.
— É ainda selvagem esse mundo novo. Tem apenas algumas vilas costeiras e umas poucas cidadezinhas. Mas não é uma terra estéril. Está cheia de promessas de vida. É para esse mundo que você vai partir, Arsène, com a sua esposa,"o seu sangue, as suas esperanças e a sua fé.
Arsène passou as mãos pelo rosto. Sentia-se tonto, como um homem que tivesse sido confinado numa cela estreita e, de repente, se visse livre. Mas continuava não acreditando nas palavras que ouvia.
— Que é que madame está dizendo? — murmurou, mais para si mesmo do que para ela. Deixou cair as mãos. — Preciso ficar aqui até o fim, aconteça o que acontecer — disse ele.
— Até o fim! — repetiu ela, pensativa.
Mas logo se voltou para ele, com uma tal expressão de desdém, que Arsène ficou espantado.
— Q fim chegou! — exclamou a duquesa. — E você vai acabar morrendo aqui, traindo todas as nossas esperanças!
Parecia uma vidente, apaixonada e profética.
— Não ouse recusar! — continuou. — Não nos deixe capitular sem esperança. Com você irá tudo aquilo por que temos lutado, por que temos sofrido, por que temos morado! Se você se recusar, não o consideraremos mais como um de nós.
Ele não disse nada. Estava perplexo. Mas o seu coração batia com força, como se libertado.
A duquesa olhou fixo para ele.
— Sabe que vai ter outro filho, Arsène? Que Cécile vai lhe dar outro filho?
Arsène não respondeu.
Mas a duquesa continuou, inexorável:
— Se você ficar, seus filhos herdarão a peste e a desesperança da Europa. Se você partir, eles herdarão um mundo novo. Como é que você pode se recusar?
Passou-se muito tempo antes que Arsène pudesse falar. Seu rosto estava pálido e suado.
— Também já pensei nisso, Madame la Duchesse. De há muito decidi deixar este lugar, quando a minha tarefa estiver terminada. Mas ainda não está. Partir agora seria fugir, seria uma desonra, uma traição, um gesto de covardia. Já ouvi falar nesse mundo novo, na América. Sei que milhares dentre nós vamos ter que ir para lá, a fim de fugir às coisas que acontecem na Europa. Mas a minha missão aqui ainda não terminou. Se eu morrer antes, será uma pena, mas não posso partir.
Fez-se profundo silêncio. Os olhos da duquesa e de Arsène encontraram-se, e uma corrente forte e escura, mas dotada de um brilho estranho, pareceu atravessar o quarto.
A duquesa disse, por fim, com voz suave:
— Existem a vez da honra e a vez da sensatez, a vez da coragem e a vez da retirada, a hora de lutar e a hora de fugir.
Tocou-lhe de leve no braço.
— Pense em nós como um exército cercado, defendendo uma fortaleza, enquanto uns poucos, armados com uma mensagem, se fazem ao mar. Pense em nós cobrindo a sua retirada, guardando essa mensagem preciosa e indestrutível. Você não nos está abandonando. Estamos querendo que você vá, com todas as nossas esperanças, as nossas orações e a nossa fé, e manteremos o inimigo a distância até você ter partido, levando as joias consigo. O inimigo encontrará apenas um baú vazio, quando penetrar na fortaleza. Teremos o conforto de saber que as joias estão em lugar seguro e que o inimigo ficou frustrado.
Mas a expressão do rosto de Arsène permaneceu teimosa e obstinada.
— Que será dos que ficaram para trás?
A duquesa deu de ombros e sorriu.
— Não tenho medo. Conheço o Cardeal. Ultimamente, ele tem feito menção a você, nas suas cartas. Parece que você operou mudanças inexplicáveis naquele homem terrível. Repito-lhe, não temos medo.
Disse aquilo com uma expressão divertida.
Arsène não respondeu. Esfregou os punhos um contra o outro e apertou os lábios. Todo ele se revoltava contra a ideia de fugir. Porque, apesar das palavras heróicas da duquesa, era uma fuga. “
— A América — continuou ela. — A sombra da mitra, a sombra da mão que escraviza, a sombra dos homens velhos já tomaram conta da Europa. A América acabará também devorada? A pestilência, o ódio, a opressão, a escravidão, a intolerância e o desespero acabarão florescendo lá, também? Vivem lá homens de sangue inglês, e do seu sangue, da mesma fé e da mesma coragem que você, com os mesmos sonhos e o mesmo espírito decidido. Vá ter com eles. Dê-lhes a sua força e as suas mãos. Dê-lhes a sua crença nos direitos do homem e na dignidade da liberdade. Dê-lhes os seus filhos. — Estava cada vez mais arrebatada. — Conserve esse novo mundo a salvo, livre de nós, os velhos e acabados, os cínicos e os cruéis!
Arsène permaneceu calado, com o rosto fechado. Suspirou fundo.
A duquesa olhou para o papel que tinha nas mãos.
— Seu outro filho espera por você num porto da Holanda. Tratei de tudo, com a ajuda do Cardeal. Você parece espantado. Eu há muito perdi a capacidade de me espantar, pois sei que tudo é possível. Seu filho aguarda-o, com parte da sua fortuna, aos cuidados de outros valentes que irão com você. Assim que chegar lá, você assumirá a custódia do seu filho e o comando daqueles homens e mulheres devotados, que são apenas a vanguarda de milhares de outros. Dali a pouco tempo, vocês zarparão para o novo mundo.
Estendeu a mão e pegou na de Arsène. Ele viu-lhe os olhos úmidos e os lábios trêmulos. Viu as esperanças que lhe iluminavam o rosto.
— Amanhã será tarde demais. Esta noite, um barco estará esperando por você, no porto. Mas só esta noite você poderá passar. O Cardeal deu-me um passaporte...
— Cécile — murmurou Arsène.
— Ela criou novas forças — disse a duquesa. — Contamos- lhe tudo e ela compreendeu perfeitamente. Forçou-se a comer dos mantimentos trazidos por Feuquières. Mais dessas provisões esperam por você no barco. Não privei o meu povo de alimentos. Dentro de dois dias, eles terão comida suficiente.
Arsène gritou, então:
— Não posso fazer o que me pede. Não posso fugir, abandonar a minha gente, como um covarde!
A expressão da duquesa deixou transparecer todo o seu desdém.
— Você é que é covarde, Arsène de Richepin! É você, com o seu egoísmo, com o seu medo da opinião dos outros, quem vai se entregar e entregar os seus filhos à escravidão. Você não pode adiar a rendição de La Rochelle. Se se recusar a partir, ordenarei imediatamente a capitulação. E, então, você estará perdido.
Olhou para ele com severidade.
— Será que você não é capaz de pensar, de discernir?! — exclamou. — Não tem pena de nós? Quer nos privar da nossa última esperança?
Olharam um para o outro em silêncio. Depois, lentamente, Arsène caiu de joelhos e abraçou a duquesa, sentindo a fragilidade e a estranha força do seu corpo franzino. Ela abraçou-o também e sorriu. Nos seus olhos tremulavam lágrimas.
Capítulo LIX
Dois dias mais tarde, La Rochelle se rendia. Os sobreviventes não chegavam aos quatro mil.
O Cardeal e o Padre Joseph entraram na cidade à frente das tropas vitoriosas, que entoavam hinos de triunfo. Padre Joseph vestia o seu burel rasgado, e a cabeça e a barba ruivas fulgiam ao sol poente, dando a impressão de que ele estava imbuído de um fogo próprio e fanático. A Igreja triunfara. Os blasfemos haviam sido conquistados! Ele tinha visões do futuro, em que a heresia protestante fosse para sempre exterminada do mundo, e Roma voltasse a ser, como outrora, o supremo árbitro da humanidade, e esta, por sua vez, fosse a serva de um Deus vitorioso.
Os padres estavam jubilantes. Olhavam para os rostos famintos, que os viam passar, com cruel antecipação, pensando nas torturas, nos açoites e em outros métodos de persuasão. Mas não havia medo nos rostos dos vencidos. Tinham passado muito tempo encarando a morte. Agora, só havia orgulho naqueles olhos mortíços, que a fome e o sofrimento pareciam ter afundado.
A Duquesa de Rohan foi em pessoa receber o Cardeal. Não tinha mais carruagem, de modo que foi a pé. Mas, ao vê-la, Richelieu desmontou do cavalo e avançou para ela, tomando-lhè a mão e beijando-a apaixonadamente. Por um momento, ela teve a impressão de que aqueles olhos terríveis estavam nublados de emoção. Colocou-se diante dele. Seus lábios se abriram. Ele não conseguia falar, tão comovido estava.
— Confio — disse a duquesa, calmamente — que a sua insônia tenha passado!
O Cardeal olhou-a bem no rosto e respondeu, tão baixo, que ninguém mais ouviu:
— Madame, nunca mais poderei dormir.
Conduziu-a para o hotel de Rohan e, uma vez lá, disse-lhe que não pensava em punir aquele povo heroico, “embora outros”, acrescentou pensando nos padres, “pensem de outra maneira”.
. Os soldados tampouco teriam permissão para saquear ou perpetrar massacres, sob pena de morte.
— Tive uma estranha visão — disse Richelieu, numa voz peculiar. — Por causa dela, La Rochelle não sofrerá.
Prosseguiu dizendo-lhe coisas que a espantaram e lhe marejaram os olhos de lágrimas.
Os rochelenses seriam perdoados. Continuariam donos das suas propriedades e com direito à liberdade de culto.
— Só peço — e a sua voz era sincera — que os rochelenses se mantenham fiéis à França.
Olhou-a bem nos olhos e reiterou:
— Só peço fidelidade, para garantir a unidade de todos os franceses. Até o fim.
— Até o fim — repetiu a duquesa.
E os dois velhos amigos se calaram, vendo, sem qualquer ilusão, o fim que se aproximava da Europa com a fatalidade inexorável de um furacão.
No dia seguinte, o Cardeal, apesar de doente, disse missa na velha igreja de Ste. Marguerite. Os sinos repicavam alegremente. Temerosos, os rochelenses permaneceram em suas casas, ouvindo os sinos vibrarem no ar ensolarado e sobre as ruas vazias e devastadas.
A duquesa assistiu à missa, sentada num lugar de honra. Ouviu a voz débil do Cardeal, na qual não havia a menor nota de triunfo. Compreendendo o que ele sentia, atendera ao seu convite e acorrera à igreja. Era como se ele a tivesse convidado para ouvir o seu grito de desespero.
Mas a verdade é que ela não ouvia nem a missa nem o coro. Parecia-lhe estar escutando o vento batendo nas velas que levavam Arsène, sua esposa, seu filho e a criança por nascer para o futuro.
As vozes do coro eram as vozes de homens por nascer, alteadas em esperança e triunfo, vitória e liberdade, na conquista final das forças do mal e das trevas, do ódio, da ignorância, da superstição e do medo.
Taylor Caldwell
O melhor da literatura para todos os gostos e idades