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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A LUZ FANTÁSTICA / Terry Pratchett
A LUZ FANTÁSTICA / Terry Pratchett

 

 

                                                                                                                                   

 

 

 

 

O SOL SUBIA DEVAGAR, COMO SE NÃO tivesse certeza de que valia o sacrifício.

Outro dia raiava no Disco, mas muito lentamente. E eis o porquê: quando a luz depara com um campo mágico intenso, perde toda a noção de urgência. E logo desacelera. No Discworld, a magia era constrangedoramente intensa, por isso a suave luz amarela da alvorada se estendia sobre a paisagem adormecida como a carícia do amante terno ou, como preferem alguns, feito mel. Então se detinha para encher os vales. E avançava contra as cordilheiras. Quando chegava a Cori Celesti — a haste de pedra cinza e gelo verde que sobe 16 quilômetros no centro exato do Disco e é a morada dos deuses —, subia aos poucos até estourar afinal numa grande onda lenta, macia como veludo, na escura paisagem além.

Em nenhum outro mundo poderíamos ver algo assim.

É claro, nenhum outro mundo era levado pelo infinito estrelado no lombo de quatro elefantes gigantescos, eles próprios assentados na carapaça de uma tartaruga gigantesca. O nome Dela — ou Dele, de acordo com outra corrente de pensamento — é Grande A’Tuin. Ela — ou, como talvez seja, Ele — não vai ter um papel central na trama que se segue, mas para entendermos o Disco é imprescindível saber que Ela — ou Ele — encontra-se ali, muito abaixo das minas, do fundo dos mares e dos falsos fósseis espalhados por um Criador que nada tinha de melhor para fazer além de chatear arqueólogos e lhes dar idéias absurdas.

 

 

Grande A’Tuin, a tartaruga estelar, tem a carapaça coberta de metano congelado, marcada por crateras meteóricas e areada com poeira asteroidal. Grande A’Tuin possui olhos como oceanos antigos e Seu cérebro tem o tamanho de um continente, pelo qual os pensamentos se movem como pequenas geleiras luminosas. Grande A’Tuin, das enormes, vagarosas e tristes patas e do casco polido pelas estrelas, avança na noite galáctica sob o peso do Disco. Grande como os mundos. Velha como o Tempo. Paciente como uma rocha.

Para dizer a verdade, os filósofos se enganaram. Grande A’Tuin, na realidade, está se divertindo à beça.

Trata-se da única criatura em todo o universo que sabe exatamente aonde vai.

É claro, há muito tempo os filósofos refletem sobre a provável meta de Grande A’Tuin. Muitas vezes chegam a admitir sua preocupação com a possibilidade de que talvez jamais venham a descobri-la.

Daqui a dois meses, no entanto, isso vai acontecer. E então eles vão ficar preocupados de fato...

Outra coisa que há bastante tempo aflige os filósofos mais imaginativos do Disco é a questão do sexo de Grande A’Tuin. Muito já se fez para tentar chegar a uma conclusão cabal e definitiva.

De fato, à medida que o enorme vulto negro se locomove como uma infindável escova para cabelo feita de casco de cágado, as conseqüências da mais recente tentativa começam a aparecer.

Despencando aos trancos, completamente fora de controle, vem o Viajante Potente, espécie de nave espacial neolítica construída e empurrada para além da Beira pelos padres-astrônomos da cidade de Krull, que fica situada na borda do mundo.

Dentro da nave está Duasflor, o primeiro turista do Disco. Ele havia passado alguns meses explorando o lugar e agora o abandonava em alta velocidade, por motivos que são um tanto complicados, mas que têm a ver com uma tentativa de fugir de Krull.

A tentativa obteve êxito absoluto.

Mas, apesar de todas as evidências de que o rapaz também venha a ser o último turista, Duasflor está aproveitando o passeio.

Cerca de 3 quilômetros acima dele, caindo, está o mago Rincewind, vestido com o que no Discworld se considera um traje espacial. Basta imaginar uma roupa de mergulho criada por homens que nunca viram o mar. Seis meses antes, ele era um mago fracassado perfeitamente comum. Então conheceu Duasflor, foi contratado como guia por excelente salário e, desde então, passou a maior parte do tempo sendo maltratado, aterrorizado, perseguido e também pendurado em lugares altos sem nenhuma esperança de salvação. Ou, como é o caso agora, caindo de lugares altos.

Não está curtindo a vista, porque sua vida pregressa teima em ficar se desenrolando na frente dos olhos. E agora parece entender por que, quando usamos roupa espacial, é de vital importância não nos esquecermos do capacete.

Muito mais poderia ser acrescentado para explicar por que esses dois homens estão caindo do mundo e por que a Bagagem de Duasflor — vista pela última vez numa tentativa desesperada de segui-lo com suas centenas de perninhas — não é um baú normal, mas essas questões levam tempo e podem dar mais trabalho do que valem. Por exemplo, dizem que, numa festa, alguém perguntou ao famoso filósofo Ly Tin Weedle “Por que o senhor está aqui?” e a resposta levou três anos para ser dada.

Bem mais importante é um episódio que acontece logo acima, muito além de A’Tuin, dos elefantes e do mago em acelerada agonia. Os próprios tecidos do tempo e do espaço estão prestes a ser torcidos.

O ar estava gorduroso, com a textura inconfundível da magia, e acre com fumaça de velas feitas de uma cera preta cuja origem exata o homem sábio evitaria desvendar.

Havia algo muito estranho naquela sala situada nos porões da Universidade Invisível — a mais importante escola superior de magia do Discworld. Em primeiro lugar, parecia ter muitas dimensões, não exatamente visíveis, mas pairando fora do alcance do olhos. As paredes eram cobertas de símbolos secretos, a maior parte do chão era ocupado pelo Selo Óctuplo de Equilíbrio, considerado, nos círculos mágicos, como tendo a mesma capacidade de deter intrusos que um tijolo bem mirado.

A única mobília da sala era um atril de madeira escura esculpido em forma de pássaro — bem, para ser sincero, em forma de um negócio com asas, ao qual é melhor não darmos atenção demais — e, sobre esse suporte, preso a ele por uma corrente pesada cheia de cadeados, um livro.

Um livro grande, mas nada impressionante. Outros volumes da biblioteca da universidade apresentavam capas incrustadas de pedras preciosas raras e madeiras requintadas, ou eram encadernados com pele de dragão. Este era de um couro bem esfarrapado. É aquele tipo de livro que, em catálogos de biblioteca, é descrito como “ligeiramente ruminado”, embora fosse mais honesto admitir que parecia ter sido vomitado por uma vaca louca, uma cabra cega ou um peru de festa.

Fechos de metal o mantinham lacrado. Não eram ornamentados, mas fortes — como a corrente que, mais do que fixar o livro ao atril, o impedia de fugir.

Pareciam obra de alguém com um objetivo muito claro em mente e que passara a maior parte da vida fazendo armadura para elefantes.

O ar se adensou, rodopiando. As páginas do livro começaram a ondular de maneira terrível e deliberada e uma luz azul saiu do meio delas. O silêncio caiu sobre a sala como um punho se fechando aos poucos.

Meia dúzia de magos vestidos com camisolões se revezava para observar através de uma pequena brecha na porta. Nenhum mago conseguia dormir com esse tipo de coisa acontecendo — a magia em estado natural subia pela universidade como maré cheia.

— Muito bem — disse uma voz de homem. — O que está acontecendo aqui? E por que não fui chamado?

Galder Cera do Tempo, Supremo Feiticeiro da Ordem da Estrela Prateada, Lorde Imperial do Báculo Sagrado, Ipsíssimo do Oitavo Nível e 3O4º Reitor da Universidade Invisível, não era uma aparição impressionante mesmo vestindo o camisolão vermelho com runas místicas bordadas a mão, uma touca de bolinha e segurando um castiçal estranho. Mas conseguiu chegar perto com os chinelos fofos de pompom.

Seis rostos assustados se viraram.

— Hum, o senhor foi chamado — retrucou um dos magos inferiores. — É por isso que está aqui — acrescentou afinal.

— Quero saber por que não fui chamado antes — rebateu Galder, abrindo caminho até a porta.

— Hum, antes de quem, senhor? — perguntou o mago.

Galder o encarou e arriscou uma olhada rápida pelo vão da porta.

O ar da sala agora cintilava com minúsculos lampejos, à medida que os grãos de poeira ardiam no fluxo de magia em estado natural. O Selo de Equilíbrio começava a ficar coberto de bolhas e a se dobrar nas pontas.

O livro em questão se chamava O Oitavo e, sem sombra de dúvida, não era nada comum.

É evidente que existem muitos livros de magia famosos. Algumas pessoas poderiam citar o Necrotelicomnicon, com suas páginas feitas de pele de antigos lagartos. Outras talvez mencionassem o Livro do Deixa-Estar, escrito por uma misteriosa e um tanto preguiçosa seita lhamaicana. Poderia haver quem nos lembrasse que o Livro Sagrado da Diversão contém a única piada original que resta no universo. Mas todos não passam de panfletos quando comparados ao Oitavo, que o Criador do Universo deixou para trás — com característico desleixo — pouco depois de terminar Sua grande obra.

Os oito feitiços aprisionados nessas páginas levavam uma vida complexa e secreta e em geral acreditava-se que...

Galder franziu a testa enquanto observava a sala desordenada. E claro que agora só havia sete feitiços. Um dia, algum aluno idiota havia aberto o livro e um dos feitiços fugira, alojando-se em sua mente. Ninguém nunca chegou a entender como tudo tinha se passado. Qual era o nome dele mesmo? Winswand?

Centelhas roxas e octarinas reluziam na lombada do livro. Uma espiral fina de fumaça começou a subir do atril e os pesados fechos de metal que mantinham o volume fechado já se mostravam claramente retorcidos.

(Nota 1. A cor octarina não existe, é uma criação do autor, com conceitos específicos de magia.)

— Por que os feitiços estão tão agitados? — perguntou um dos magos mais jovens.

Galder encolheu os ombros. Ele não podia demonstrar, é claro, mas estava começando a ficar realmente preocupado. Como mago de oitavo grau, conseguia enxergar as figuras meio imaginárias que surgiam de relance no ar vibrante, numa dança de seduções. Da mesma maneira que mosquitos aparecem antes do temporal, grandes formações de magia sempre atraíam Coisas do caótico Calabouço das Dimensões — coisas horríveis e gosmentas, com órgãos fora do lugar, sempre à procura de alguma brecha pela qual pudessem se infiltrar no mundo dos homens. (Nota 2. Elas não serão descritas aqui, uma vez que mesmo as mais bonitas pareciam o cruzamento de um polvo com uma bicicleta. Todos sabemos que coisas de universos indesejáveis estão sempre buscando entrar neste. Para elas, nosso mundo equivale, psicologicamente, à conveniência de um ônibus na porta e à proximidade de um shopping.)

Alguém tinha que dar um basta naquilo.

— Vou precisar de um voluntário — bradou ele.

Houve um silêncio repentino, O único som vinha de trás da porta. E era o barulhinho irritante de metal se partindo à força.

— Pois muito bem — disse então. — Nesse caso, vou precisar de uma pinça prateada, um litro de sangue de gato, um chicote pequeno e uma cadeira...

Dizem que o oposto do ruído é o silêncio. Não é verdade. Silêncio é só ausência de ruído. O silêncio teria sido um barulho terrível comparado à súbita implosão de mutismo que atingiu os magos com a força de um cuco de relógio marcando as horas.

Uma coluna grossa de luz se ergueu do livro, alcançou o teto numa agitação de chamas e sumiu.

Galder olhou para cima, ignorando as partes chamuscadas de sua barba, e apontou de forma teatral.

— Aos porões superiores! — gritou ele e correu pela escada de pedra.

Com os chinelos estalando e os camisolões esvoaçando, os outros magos se puseram a seguir, cada um mais ansioso para ser o último.

Mas todos chegaram a tempo de ver o meteoro de potencialidades ocultas desaparecer no teto do cômodo de cima.

— Argh! — disse o mago mais jovem, apontando para o chão.

A sala em que estavam fazia parte da biblioteca, até a magia passar por ali, reagrupando as partículas de possibilidades de tudo que encontrou pelo caminho. Logo, parecia razoável supor que as pequenas salamandras roxas já foram parte do chão, e era possível que um dia o doce de abacaxi ali espalhado tivesse sido livros. Mais tarde, alguns dos magos jurariam que o pequeno e triste orangotango sentado no meio de tudo aquilo se parecia bastante com o Bibliotecário-Chefe.

Galder ergueu os olhos.

— Para a cozinha! — berrou ele, avançando em meio ao doce de abacaxi, para o lance seguinte de escadas.

Ninguém jamais descobriu no que se transformou o grande fogão de ferro fundido, porque o negócio derrubou uma parede e fugiu, antes que o grupo de feiticeiros descabelados e boquiabertos chegasse ao local. O cozinheiro foi encontrado muito tempo depois, escondido no caldeirão de sopa e balbuciando coisas desconexas como “Os mocotós! Os terríveis mocotós!”

Agora os últimos traços de magia desapareciam no teto, um tanto mais lentamente.

— Ao Grande Salão!

A essa altura, a escada era bem mais ampla e iluminada. Bufando e cheirando a abacaxi, os magos chegaram ao topo no momento exato em que a bola de fogo alcançava o meio do ventoso salão principal da universidade. A bola pairava sem se mexer, exceto por ocasionais saliências que se arqueavam e soltavam faíscas pela superfície.

Os magos fumam, todo mundo sabe. E é provável que isso explique o coro de tosses sepulcrais, caretas e chiados que surgiam atrás de Galder, enquanto o reitor avaliava a situação e pensava se teria coragem de procurar um lugar para se esconder. Ele agarrou um aluno assustado.

— Vá chamar videntes, previdentes, cartomantes e adivinhos — gritou. — Quero que estudem isso!

Alguma coisa vinha ganhando forma dentro da bola de fogo. Galder protegeu os olhos e observou a figura que se desenvolvia. Impossível não reconhecer. Era o universo.

O reitor estava bem certo disso, porque possuía um modelo no gabinete — que todos concordavam ser muito mais espetacular do que o verdadeiro. Diante das possibilidades oferecidas por pérolas miúdas e filigrana de prata, o Criador ficou no prejuízo.

Mas o minúsculo universo dentro da bola de fogo parecia estranhamente... bem, real. A única coisa que faltava era cor. Tudo se mostrava de um branco translúcido e embaçado.

Lá estavam Grande A’Tuin, os quatro elefantes e o próprio Disco. Desse ângulo, Galder não conseguia ver a superfície com nitidez, mas tinha a fria certeza de que fora modelada com perfeição. Dava, no entanto, para divisar a réplica de Cori Celesti, em cujo pico viviam os deuses do Discworld, briguentos e um tanto burgueses, num palácio com suítes de três cômodos revestidos de mármore, alabastro e veludo, e ao qual haviam resolvido dar o nome de Dunmanifestin. Era sempre muito irritante para qual quer cidadão do Disco metido a intelectual o fato de o mundo ser governado por deuses cuja idéia de “experiência artística elevada” era ouvir uma campainha musical.

O pequeno universo embrionário começou a se mexer devagar, inclinando-se...

Galder tentou gritar, mas a voz se recusou a sair.

Aos poucos, mas com a força irrefreável de uma explosão, a imagem se expandiu.

Foi cheio de horror — e depois, perplexidade — que o reitor viu a figura passar através de seu próprio corpo com a leveza de um pensamento. Então ergueu a mão e observou os espectros pálidos de rochas estratificadas fluírem pelos seus dedos, num silêncio agitado.

Grande A’Tuin já se encontrava abaixo do nível do solo, maior do que uma casa.

Os magos atrás de Galder estavam afundados em oceanos, que lhes batiam na cintura. Por um instante, um barco menor do que um dedal esbarrou no olho do reitor, e então a correnteza o levou embora, através da parede.

— Para o telhado! — ele conseguiu dizer afinal, apontando um dedo trêmulo em direção ao céu.

Os magos que ainda tinham miolos para pensar e fôlego para correr foram atrás, cruzando os continentes que deslizavam tranqüilamente pela estrutura de pedra.

Era uma noite sossegada, tingida pela promessa do amanhecer. A lua crescente havia acabado de se pôr. Ankh-Morpork, a maior cidade das regiões que circundam o Mar Círculo, dormia.

Essa afirmação não é verdadeira.

De um lado, a parte da cidade que se ocupava, por exemplo, da venda de legumes, da ferração de cavalos, do entalhe de pequenos enfeites em jade, da troca de dinheiro e da fabricação de mesas, no todo, dormia. A não ser quem tinha insônia, ou se levantara durante a noite, como poderia muito bem acontecer, para ir ao banheiro. Do outro lado, muitos dos cidadãos menos enquadrados nos ditames da lei se encontravam bem despertos, por exemplo, subindo em janelas que não lhes pertenciam, cortando gargantas, espancando-se uns aos outros, ouvindo música alta em porões enfumaçados e, em geral, divertindo-se a valer. Mas a maioria dos animais dormia, exceto pelos ratos. E os morcegos, é claro. Quanto aos insetos...

A questão é que a linguagem descritiva quase nunca é completamente exata e, durante o reinado de Olavo Quimby II como Patrício de Ankh, algumas leis foram aprovadas numa tentativa de dar basta a esse tipo de coisa e garantir mais honestidade aos relatos. Dessa forma, se a lenda de um herói extraordinário dizia que “todos os homens falavam de sua bravura”, qualquer versista que prezasse a vida não tardaria a acrescentar “salvo por alguns indivíduos de sua cidade natal, que diziam se tratar de um grande mentiroso, e também por muitas outras pessoas, que jamais haviam sequer ouvido falar nele”.

Assim, a versão poética se limitava a afirmativas como “seu poderoso corcel era veloz como o vento em dias calmos”, e qualquer papo-furado sobre a amada que tem “um rosto capaz de lançar mil navios ao mar” teria que ser fundamentado em provas de que o objeto de desejo se parecia realmente com a garrafa de champanhe usada para batizar navios.

Quimby acabou sendo assassinado por um poeta desgostoso, durante um experimento conduzido no castelo para provar a verossimilhança do provérbio “A caneta é mais poderosa do que a espada” — que, em sua memória, foi alterado para incluir a frase “desde que a espada seja muito pequena, e a caneta, bem afiada”.

Então. Aproximadamente 67%, talvez 68% da cidade dormia. Não que os outros cidadãos — às voltas com seus negócios, geralmente ilícitos — notassem a maré pálida avançando pelas ruas. Somente os magos, acostumados a ver o invisível, observavam-na borbulhar pelos campos remotos.

O Disco, sendo plano, não tem horizontes reais. Qualquer navegador aventureiro que tivesse a estranha idéia de se demorar olhando ovos e laranjas e partisse em busca do antípoda logo descobriria por que, às vezes, os navios mais distantes pareciam estar caindo da beira do mundo: eles estavam caindo da beira do mundo.

Mas ainda havia limitações mesmo para a visão do reitor Galder, no ar enevoado e poeirento. Ele olhou para o alto. Acima da universidade, assomava a velha e sombria Torre de Arte, que diziam ser a mais antiga construção do Disco, com sua famosa escada em caracol de 8.888 degraus. Do telhado rendilhado de ameias, refugio de corvos e gárgulas perturbadoramente alertas, os magos podiam ver a borda do Disco — obviamente depois de passar mais ou menos dez minutos tossindo de um jeito assustador.

— Puxa vida — murmurou ele. — De que vale ser mago, afinal de contas? Aviento, tessalus! Posso voar! Venham a mim, espíritos do ar e da escuridão!

Estendeu a mão nodosa e apontou para uma parte esfacelada do parapeito. Uma chama octarina brotou debaixo das unhas amarelecidas de nicotina e avançou para a pedra solta no alto.

A pedra caiu. Com uma troca bem calculada de marchas, Galder alçou vôo — o camisolão se agitando em torno das pernas esqueléticas. O reitor subia cada vez mais alto, zunindo através da luz pálida como um, como um... tudo bem, como um mago, velho, mas vigoroso, sendo lançado para cima por um polegar bem versado no cálculo de escalas universais.

Ele caiu numa pilha de ninhos antigos, ganhou equilíbrio e olhou o vertiginoso amanhecer do Disco.

Nessa época do longo ano, o Mar Círculo se encontrava no lado de Cori Celesti em que o sol se punha e, à medida que a luz do dia deslizava para as regiões próximas a Ankh-Morpork, a sombra da montanha cortava a paisagem como o ponteiro do relógio solar de Deus. Ao anoitecer, acelerando a vagarosa luz em direção à beira do mundo, uma linha de névoa branca se erguia.

Houve um estalido de galhos secos logo atrás. Galder se virou, deparando com Ymper Trymon — segundo mago no comando da Ordem —, que fora o único capaz de acompanhá-lo.

Por um instante, Galder o ignorou, tomando apenas o cuidado de manter a mão firme na pedra e dar mais força aos feitiços de defesa pessoal. As promoções eram demoradas numa profissão que, tradicionalmente, dava vida longa aos seus adeptos. Com freqüência aceitava-se que os magos mais novos tentassem progredir tomando posse dos sapatos de bico recurvado dos mortos, tendo antes esvaziado os calçados de seus devidos ocupantes. Além do mais, havia algo perturbador no jovem Trymon. Ele não fumava, só bebia água fervida, e Galder tinha a terrível suspeita de que fosse inteligente. Não sorria muito e gostava de números, além daquelas tabelas cheias de quadrados, com setas apontando para outros quadrados. Em suma, era o tipo de homem que podia usar a expressão “departamento de pessoal” — e a sério.

Toda a área visível do Disco estava agora coberta por uma camada branca e tremeluzente, que se ajustava a ela com perfeição.

Galder olhou as próprias mãos e viu que também estavam cobertas pela mesma rede pálida de linhas brilhantes, que acompanhavam todos os seus movimentos.

Era possível reconhecer o feitiço. Ele próprio já o havia Utilizado, mas numa escala muito, muito menor.

— É o Feitiço de Troca — afirmou Trymon. — O mundo inteiro está se transformando.

Algumas pessoas, pensou Galder, teriam a decência de botar um ponto de exclamação depois de uma frase dessas.

Houve um ruído muito tênue e agudo, como o esfacelamento do coração de um rato.

— O que foi isso? — perguntou ele.

Trymon abaixou a cabeça.

— Dó sustenido, eu acho — respondeu por fim.

O reitor não disse nada. A luz branca e trêmula havia desaparecido, e os primeiros sons matutinos da cidade já começavam a chegar até eles. Nada parecia mudado. Tudo isso só para fazer as coisas ficarem iguais?

Ele bateu de leve nos bolsos do camisolão e, afinal, achou o que estava procurando atrás da orelha. Pôs a guimba úmida na boca, fez chamas místicas subirem dos dedos e tragou a bituca miserável, até luzinhas azuis cintilarem na frente dos olhos, O reitor tossiu uma ou duas vezes.

Estava se concentrando.

Tentava lembrar se algum deus lhe devia favores.

Na verdade, os deuses estavam tão intrigados quanto os magos com tudo aquilo, mas não podiam fazer nada a respeito. Além disso estavam muito ocupados numa guerra secular contra os Gigantes do Gelo, que haviam se recusado a devolver o cortador de grama.

Podemos, no entanto, encontrar alguma pista para o que vinha acontecendo no fato de que Rincewind — cuja vida, a se desenrolar na frente dos olhos, já começava a ficar mais interessante agora, aos 15 anos — de repente não se viu morto, mas pendurado de cabeça para baixo num pinheiro.

Ele desceu sem o menor problema, despencando de galho em galho até cair de cabeça numa pilha de folhas, onde ficou estendido, ofegante e desejando ter sido uma pessoa melhor.

Sabia que em algum lugar deveria haver uma ligação perfeitamente lógica para aquilo. Em uma hora, a pessoa está morrendo, tendo despencado da borda do mundo. Na outra, está de cabeça para baixo numa árvore.

Como sempre ocorria em momentos como esse, o Feitiço surgiu em sua mente.

Em geral, os professores consideravam Rincewind um mago nato, assim como peixes são alpinistas natos. E era provável que ele acabasse expulso da Universidade Invisível de qualquer jeito — afinal, não conseguia se lembrar dos feitiços e passava mal quando fumava —, mas o problema mesmo tinha sido todo aquele lance idiota de ter se esgueirado até a sala onde ficava o Oitavo e ter aberto o livro.

O que tornava o problema ainda mais grave era que ninguém explicava como, naquele dia, todos os cadeados ficaram temporariamente destravados.

O Feitiço não era um hóspede exigente. Apenas se mantinha ali sentado, como um sapo velho no fundo de uma lagoa. Mas, sempre que Rincewind sentia muito cansaço ou medo, o negócio tentava forçar seu hospedeiro a pronunciá-lo. Ninguém sabia o que poderia acontecer caso um dos Oito Grandes Feitiços fosse pronunciado, mas era consenso absoluto que o melhor lugar para se ver as conseqüências seria de um outro universo.

Era um pensamento estranho para se ter deitado num monte de folhas depois de cair da beira do mundo, mas Rincewind teve a sensação de que o Feitiço precisava mantê-lo vivo.

Bom pra mim, pensou ele.

Então sentou e olhou as árvores. Ele era um mago urbano e, embora soubesse que existiam várias diferenças entre os muitos tipos de árvore — pelas quais elas se distinguem —, a única coisa de que tinha certeza era que a extremidade sem folhas se encaixava no chão. Tinha muita vegetação ali, disposta sem nenhuma ordem. O lugar não era varrido havia eras.

Ele se lembrou de algo sobre a possibilidade de nos localizar mos observando de qual lado da árvore o musgo crescia. Essas árvores tinham musgo para todo lado — além de verrugas e galhos velhos e desgrenhados. Se árvore fosse gente, essas estariam sentadas em cadeiras de balanço.

Rincewind deu um chute na mais próxima. Com mira certeira, ela deixou cair um fruto bem em cima dele. O mago soltou um ‘Ai”, e a árvore, com a voz semelhante a uma porta antiga se abrindo, falou:

— Bem feito.

Houve um longo silêncio. Então Rincewind perguntou:

— Você disse isso?

- Disse.

— E isso também?

- Disse.

-Ah.

Ele pensou por um instante. Então arriscou:

— Será que por acaso você saberia dizer onde fica a saída da floresta?

— Não. Não saio muito — respondeu a árvore.

— Uma vidinha chata, imagino — opinou Rincewind.

— Não sei. Nunca fui outra coisa — retrucou a árvore.

Rincewind encarou-a mais de perto. Era bem parecida com todas as outras árvores que já tinha visto.

— Você é mágica? — quis saber ele.

— Ninguém nunca me disse — considerou a árvore. — Acho que sim.

Rincewind pensou: não posso estar falando com uma árvore. Se estivesse falando com uma árvore, estaria maluco. Não estou maluco, logo, árvore não fala.

— Tchau — despediu-se decidido.

— Ei, não vá ainda — pediu a árvore, mas se deu conta de que era inútil.

Ela olhou o homem se afastar cambaleante pelos arbustos e se entregou ao prazer de sentir o sol nas folhas, o gorgolejo da água nas raízes e o próprio fluxo e refluxo da seiva, em reação às forças naturais do sol e da lua. Chata, pensou ela. Que coisa estranha de se dizer! Árvore pode ser chateada, é claro, os besouros fazem isso o tempo todo, mas acho que não é bem isso o que ele estava tentando dizer. E mais: podemos ser outra coisa que não nós mesmos?

Para dizer a verdade, Rincewind nunca mais conversou com essa árvore em particular, mas desse breve bate-papo teceu-se a base da primeira religião arbórea, que acabaria se alastrando por todas as florestas do mundo. Sua doutrina de fé era a seguinte: à árvore que fosse boa e levasse uma vida limpa, decente e reta, assegurava-se uma vida futura após a morte. Se fosse muito boa mesmo, reencarnaria em 5 mil rolos de papel higiênico.

A alguns quilômetros dali, Duasflor também se refazia da surpresa de ter voltado ao Disco. O rapaz estava sentado sobre o Viajante Potente, que afundava aos poucos nas águas escuras de um grande lago cercado de árvores.

Por estranho que pareça, não dava mostras de preocupação. Duasflor era um turista, o primeiro daquela espécie no Disco, e fundamental à sua própria existência era a crença inabalável que nada de mau lhe aconteceria, porque ele não estava envolvido. Também acreditava que qualquer indivíduo podia entender sua língua — desde que falasse alto e devagar —, que as pessoas eram dignas de confiança e que tudo sempre se resolvia entre homens de boa vontade, uma vez que agissem com sensatez.

À primeira vista, isso lhe dava uma expectativa de vida menor que, digamos, a de um sabonete de arenque, mas, para perplexidade de Rincewind, tudo parecia funcionar. A total desatenção do homenzinho a qualquer tipo de perigo, de alguma forma desencorajava o perigo, que desistia e ia embora.

Um mero afogamento não tinha a menor chance. Duasflor estava certo de que, numa sociedade bem organizada, ninguém poderia sair por aí se afogando.

Ele se mostrava um pouco preocupado, no entanto, por não saber onde fora parar sua Bagagem. Mas se consolava em saber que era feita de madeira sábia de pereira e que era inteligente o bastante para cuidar de si mesma...

Ainda em outra parte da floresta, um jovem xamã atravessava um estágio fundamental de seu treinamento. Já tinha comido o chapéu-de-cobra sagrado, fumado o rizoma santo, pulverizado e metido em vários orifícios o cogumelo místico. Agora, sentado de pernas cruzadas debaixo de um pinheiro, concentrava-se, primeiro, em estabelecer contato com segredos maravilhosos e desconhecidos do âmago do Ser e, segundo, principalmente em impedir que o topo da cabeça se desparafusasse e saísse voando.

Triângulos azuis de quatro lados giravam em seu campo visual. De vez em quando, ele sorria deliberadamente para o nada e dizia coisas como “Uau” e “Argh”.

Houve uma agitação no ar e também o que ele mais tarde descreveria como “tipo assim, uma espécie de explosão, só que pelo avesso, entende?” Então, de repente, de onde não havia nada surgiu um grande e danificado baú de madeira, que caiu com força sobre algumas folhas, esticou dezenas de perninhas e se virou com soberba para olhar o xamã. Quer dizer, o baú não tinha olhos, mas, mesmo no enevoamento micológico em que se encontrava, o homem teve a terrível certeza de que a coisa o fitava.

E o fazia de um jeito desagradável. Era incrível como um buraco de fechadura e alguns nós de madeira podiam ser tão funestos.

Mas, para alívio do xamã, o negócio pareceu dar de ombros, partindo a meio galope entre as árvores.

Com esforço sobre-humano, o xamã se lembrou da seqüência correta de movimentos para se levantar e então conseguiu dar uns passos, até olhar para baixo e desistir, vendo que lhe faltavam pernas.

No meio-tempo, Rincewind tinha encontrado um caminho. A trilha serpenteava bastante — e ele teria ficado bem mais satisfeito se fosse pavimentada —, mas seguir por ela parecia mantê-lo ocupado.

Várias árvores tentaram puxar conversa, mas ele estava quase certo de que não era uma conduta normal para árvores, por isso tratou de ignorá-las.

O dia se estendia. Não havia barulho algum a não ser o zumbido pavoroso de insetos que picam, o estalido ocasional de galhos caindo e o cochicho de árvores discutindo religião e problemas causados por esquilos. Rincewind começou a se sentir muito só. Imaginou-se vivendo para sempre no bosque, dormindo sobre folhas e comendo... e comendo... seja lá o que se comesse em bosques. Árvores, imaginou ele, nozes e frutas. Seria preciso...

— Rincewind!

Ali, avançando pela trilha, estava Duasflor — todo ensopado, mas radiante. A Bagagem vinha trotando logo atrás (qualquer coisa feita da sábia madeira de pereira seguiria o dono aonde fosse, por isso era usada para fazer malas em que reis muito ricos levavam artigos fúnebres de primeira necessidade, isto porque queriam ter certeza de poder usar roupas íntimas limpas ao começar vida nova no além).

Rincewind suspirou. Até então, tinha pensado que o dia não poderia ficar pior.

Começou a cair uma chuva bem fria. Rincewind e Duasflor sentaram embaixo de uma árvore e começaram a fazer observações.

— Rincewind?

— Quê?

— Por que estamos aqui?

— Bem, uns dizem que o Criador do Universo fez o Disco e tudo o que está aí, outros argumentam que é uma história bem complicada envolvendo os testículos do Deus Céu e o leite da Vaca Celestial, e também há quem afirme que resultamos apenas da aglomeração aleatória de partículas de probabilidades. Mas, se você quer saber por que estamos aqui e não caindo do Disco, não faço a menor idéia. Tudo não deve passar de um grande mal-entendido.

— Hum. Acha que tem alguma coisa pra comer na floresta?

— Acho — respondeu o mago, com azedume. — Nós.

— Se quiser, pode pegar minhas castanhas — disse a árvore, obsequiosa.

Durante alguns instantes, os dois permaneceram em silêncio.

— Rincewind, a árvore falou...

— Árvore não fala — rebateu Rincewind. — É muito importante se lembrar disso.

— Mas você acabou de ouvir...

Rincewind suspirou.

— Olhe aqui — cortou ele. — É pura biologia, não é mesmo? Quem quiser falar vai precisar do equipamento adequado, tipo pulmão, boca e... e...

— Cordas vocais — complementou a árvore.

— Cordas vocais — confirmou Rincewind, calando-se e voltando por fim os olhos sombrios para a chuva.

— Achei que magos soubessem tudo sobre árvores, alimentos silvestres e tal — disse Duasflor.

Era raro algo na voz do rapaz sugerir dúvida se Rincewind era qualquer outra coisa que não um magnífico feiticeiro. Então o mago se viu na obrigação de reagir.

— Mas eu sei, eu sei — retrucou ele.

— Bom, se é assim, que árvore é essa? — indagou o turista.

Rincewind olhou para cima.

— Faia — respondeu ele, com firmeza.

— Na verdade... — começou a árvore, mas logo se calou, ao ver o olhar recriminador de Rincewind.

— Aquilo parece carvalho — objetou Duasflor.

— É, mas se trata da espécie séssil ou heptocárpica — insistiu o mago. — Na verdade, os frutos se assemelham muito à bolota do carvalho. Enganam quase todo mundo.

— Minha nossa! — exclamou Duasflor. — E que planta é aquela ali?

— Visco.

— Mas é cheia de espinhos e frutas vermelhas.

— E daí? — rebateu Rincewind, encarando-o.

Duasflor desviou os olhos primeiro.

— E daí nada — respondeu, em desalento. — Devo ter me enganado.

— É.

— Tem uns cogumelos grandes embaixo. São comestíveis?

Rincewind estudou os fungos com atenção. De fato, eram muito grandes e ainda possuíam chapéus salpicados de branco e vermelho. Na realidade, tratava-se de uma espécie que o xamã local (que a essa altura se encontrava a alguns quilômetros de distância, fazendo amizade com uma rocha) só comeria depois de amarrar o tornozelo numa pedra grande. Mesmo na chuva, era preciso dar uma olhada naquilo.

Rincewind se ajoelhou sobre as folhas e investigou o que havia debaixo do chapéu. Depois de um tempo disse, desanimado:

— Não, não é nem um pouco comestível.

— Por que não? — quis saber Duasflor. — As lamelas são do tom errado de amarelo?

— Não, até que não...

— Então talvez o caule não possua os filamentos certos.

— Na verdade, não me parece mal.

— Então deve ser o chapéu. Imagino que apresente uma coloração imprópria — sugeriu Duasflor.

— Eu não saberia dizer.

— Bem, então por que não podemos comer?

Rincewind tossiu.

— Por causa das portinhas e janelas — respondeu, aflito. — É mau sinal.

Trovões faziam a Universidade Invisível vibrar. A chuva caía sobre os telhados e jorrava aos borbotões das gárgulas, embora uma ou duas das mais espertas tivessem corrido para buscar refúgio entre o labirinto de telhas.

Bem abaixo, no Grande Salão, os oito magos mais poderosos do Discworld estavam reunidos nos ângulos de um octograma ritual. Talvez não os considerássemos os mais poderosos, se conhecêssemos todos os outros, mas com certeza tinham enorme poder de sobrevivência, o que, no universo altamente competitivo da magia, queria dizer mais ou menos a mesma coisa. Atrás de cada mago do oitavo grau, havia meia dúzia de magos do sétimo grau tentando eliminá-lo; e os magos seniores, com o tempo, precisavam desenvolver uma postura de alerta máximo para descobrir, por exemplo, escorpiões na cama. Um antigo provérbio sintetizava tudo muito bem: quando o mago está cansado de procurar cacos de vidro na comida, é porque se cansou de viver.

O mais velho dos magos, Greyhald Spold, dos Antigos e Verdadeiramente Originais Sábios do Círculo Inquebrantável, apoiou- se no cajado esculpido e falou o seguinte:

— Vamos logo com isso, Cera do Tempo, meus pés estão me matando.

Galder, que só tinha feito uma pausa para causar efeito, olhou para ele.

— Pois muito bem, vou ser breve...

— Que bom.

— Todos tentamos achar respostas para os acontecimentos dessa manhã. Algum de nós conseguiu?

Os magos se entreolharam. Em nenhuma outra ocasião, além de um jantar de confraternização beneficente sindical, encontramos tantas suspeitas e desconfianças mútuas quanto numa reunião de antigos feiticeiros. Mas o fato puro e simples era que o dia transcorrera muito mal. Demônios em geral cheios de novidades, assim que evocados do Calabouço das Dimensões mostrarem-se tímidos e fugiram do assunto quando interrogados; espelhos mágicos tinham se espatifado; cartas de tarô, ficaram misteriosamente em branco; bolas de cristal embaçadas; e até as folhas de chá, em geral ridicularizadas pelos magos, que as consideravam tolas e desprezíveis, juntaram-se no fundo das xícaras, recusando-se a se mexer.

Em suma, os magos ali reunidos estavam perplexos. Houve um murmúrio generalizado de concordância.

— E então proponho executarmos o Rito de AshkEnte — disse Galder, com voz dramática.

Ele tinha que admitir, esperava uma reação melhor, tipo “Não, não o Rito de AshkEnte! O homem não foi feito para intervir nessas coisas!” mas, na verdade...

Na verdade, houve um burburinho geral de aprovação.

— Boa idéia.

— Parece bem razoável.

— Então vamos começar.

Meio desconcertado, Galder chamou um séqüito de magos inferiores, que levaram vários apetrechos mágicos para o local.

Já aludimos ao fato de haver por essa época divergências entre a irmandade de magos sobre a prática da magia.

Os feiticeiros mais jovens, em especial, alegavam que já era tempo de a magia começar a atualizar sua imagem e acreditavam que deviam parar de sair por aí com pedaços de osso e cera, além de estruturar o negócio de forma bem organizada, com planos de pesquisa e convenções de três dias em hotéis de luxo, onde poderiam apresentar trabalhos intitulados Geomancia, Até Que Ponto? ou O Papel das Botas de Sete Léguas numa Sociedade Atuante.

Trymon, por exemplo, quase já não fazia mágica, mas administrava a Ordem com a eficiência de uma ampulheta, escrevia uma infinidade de memorandos e expunha uma grande tabela na parede de seu escritório, coberta de linhas, bandeirolas e sinais coloridos — que ninguém entendia, mas impressionava um bocado.

O outro tipo de mago pensava que isso tudo era besteira e não queria saber de nenhuma imagem que não fosse feita de cera e espetada com alfinetes.

Os chefes das oito ordens eram todos da facção tradicionalista, e os objetos depositados em torno do octograma tinham, sem sombra de dúvida, um aspecto misterioso. Chifres de carneiro, crânios, metais retorcidos e velas grossas se encontravam à vista de todos, apesar da descoberta, feita pelos magos mais jovens, de que o Rito de AshkEnte podia ser perfeitamente realizado com três lasquinhas de madeira e 4 cm cúbicos de sangue de rato.

Os preparativos sempre levavam muitas horas, mas as forças combinadas dos magos seniores encurtaram o tempo de modo considerável e, depois de apenas 45 minutos, Galder entoava as palavras finais do feitiço. Elas ficavam suspensas na frente dele durante alguns instantes e, então, se dissolviam.

O ar no centro do octograma vibrou e se adensou, e de repente havia um vulto alto e escuro ali dentro. A maior parte dele estava escondida por um manto negro com capuz — o que parecia bastante conveniente —, e tinha uma longa foice numa das mãos.

Era impossível deixar de perceber que onde deveriam estar dedos aparecia apenas osso branco.

A outra mão esquelética segurava cubinhos de queijo e abacaxi num palito.

— POIS NÃO? — disse Morte, numa voz em que se percebia toda a cor e o calor de um iceberg.

Então notou o olhar dos magos e baixou as vistas para o palito.

— EU ESTAVA NUMA FESTA — acrescentou, com certo embaraço.

— Ó Criatura da Terra e da Escuridão, pedimos a vós para abjurar... — começou Galder, com firmeza e imponência.

Morte assentiu.

— TUDO BEM, TUDO BEM, JÁ SEI DISSO TUDO — interrompeu. — POR QUE ME CHAMARAM?

— Dizem que você pode ver tanto o passado quanto o futuro — respondeu Galder, meio aborrecido, porque o grande discurso de invocação e encantamento era um dos seus favoritos e todos diziam que ele o proferia muito bem.

— É VERDADE.

— Então talvez possa nos contar o que aconteceu esta manhã — observou Galder, reanimando-se um pouco e acrescentando em voz alta: — É o que peço em nome de Azimrothe, T’chikel e...

— TUDO BEM, JÁ ENTENDI — cortou Morte. — MAS O QUE EXATAMENTE VOCÊ QUER SABER? MUITA COISA ACONTECEU DE MANHÃ. PESSOAS NASCERAM E MORRERAM, TODAS AS ÁRVORES FICARAM UM POUCO MAIS ALTAS, PEQUENAS ONDULAÇÕES TRAÇARAM DESENHOS INTERESSANTES NO MAR...

— Estou falando do Oitavo — adiantou Galder, com frieza.

— AH, ISSO. FOI SÓ UM REAJUSTE DA REALIDADE. ACHO QUE O OITAVO FICOU APREENSIVO POR PERDER O OITAVO FEITIÇO, QUE ESTAVA DESPENCANDO DO DISCO.

— Espere aí, espere aí — disse Galder, coçando o queixo. — Você está falando do que está na cabeça de Rincewind? Um alto e magrelo? Aquele que...

— ... CARREGA O FEITIÇO DURANTE TODOS ESSES ANOS, ISSO MESMO.

Galder franziu a testa. Parecia sacrifício demais a troco de nada. Todo o mundo sabia que, quando um mago morria, todos os feitiços de sua mente se libertavam. Então por que se dar ao trabalho de salvar Rincewind? O Feitiço acabaria retornando.

— Por quê? Alguma idéia? — perguntou ele sem pensar, e então acrescentou às pressas: — Por Yrriph e Kcharla, peço a vós e...

— EU PREFIRO QUE VOCÊ PARE COM ISSO — pediu Morte. — SÓ SEI QUE TODOS OS OITO FEITIÇOS PRECISAM SER DITOS JUNTOS NO RÊVEILLON DOS PORCOS, SENÃO O DISCO SERÁ DESTRUÍDO.

— Fale mais alto! — protestou Greyhald Spold.

— Cale a boca! — irritou-se Galder.

— Eu?

— Não, ele. Esse velho lesado...

— Ouvi isso — rebateu Spold. — Vocês jovens...

Ele parou. Morte o encarava de maneira pensativa, como se tentasse lembrar de onde conhecia aquele rosto.

— Olhe — disse Galder. — Só repita essa última parte, por favor. O Disco vai ser o quê?

— DESTRUÍDO — respondeu Morte. — AGORA, SERÁ QUE POSSO IR? DEIXEI MEU DRINQUE...

— Espere um pouco — cortou Galder, impaciente. — Por Cheliliki, Orizone e assim por diante, o que quer dizer com “destruído”?

— É UMA PROFECIA ANTIGA ESCRITA NAS PAREDES INTERNAS DA GRANDE PIRÂMIDE DE TSORT. A PALAVRA “DESTRUÍDO” ME PARECE DISPENSAR EXPLICAÇÕES.

— E tudo que tem para nos dizer?

— É.

— Mas o Reveillon dos Porcos é daqui a dois meses!

— É.

— Pelo menos, pode nos contar onde Rincewind está agora?

Morte encolheu os ombros, gesto que a ele cabia particularmente bem.

— NA FLORESTA DE SKUND, DEPOIS DAS MONTANHAS RAMTOP.

— O que está fazendo lá?

— SENTINDO PENA DE SI MESMO.

— Ah.

— AGORA POSSO IR?

Galder assentiu, distraído. Estivera ansiando pelo ritual de expulsão, que começava com “Fora, espírito imundo” e tinha alguns trechos bastante pomposos, todos muito bem ensaiados, mas, por alguma razão, não conseguiu reunir nenhum entusiasmo.

— Ah, pode — disse afinal. — Obrigado, sim?

E, como não era nada bom fazer inimigos mesmo entre as criaturas da noite, acrescentou com educação:

— Espero que a festa esteja boa.

Morte não respondeu. Encarava Spold como o cachorro encara um osso, só que nesse caso era mais ou menos o inverso.

— Eu disse “Espero que a festa esteja boa” — gritou Galder.

— NO MOMENTO, ESTÁ — falou Morte, indiferente. — MAS ACHO QUE DEVE PIORAR UM BOCADO À MEIA-NOITE.

— Por quê?

— É QUANDO ESPERAM QUE EU TIRE A MÁSCARA.

O vulto sumiu, deixando para trás apenas o tira-gosto e uma serpentina.

Um bisbilhoteiro assistira àquilo tudo. É claro que ia contra as regras, mas Trymon sabia tudo sobre regras e sempre achou que eram para ser feitas — e não obedecidas.

Muito antes de os feiticeiros começarem a discutir sobre o significado do que o espectro havia dito, ele já se encontrava na biblioteca da Universidade.

Tratava-se de um lugar admirável. Muitos dos livros são mágicos. Sobre eles é importante notar que são mortais nas mãos de qualquer bibliotecário organizado, porque o profissional, vendo que tratam do mesmo assunto, vai acabar metendo todos na mesma estante. E esta não é uma boa idéia, juntar livros que tendem a vazar magia — mais de um ou dois deles juntos compõem uma perigosa Missa Negra. Além disso, muitos dos feitiços inferiores são bastante exigentes em relação a companhia e costumam expressar sua objeção arremessando livros com violência pela sala. Isso sem falar na presença meio adivinhada das Coisas do Calabouço das Dimensões, sempre reunidas em torno de vazamentos mágicos e investigando as fronteiras da realidade.

O trabalho do bibliotecário mágico, que precisa passar os dias em atmosfera tão altamente carregada, é ocupação de alto risco.

O Bibliotecário-Chefe, que estava sentado em cima da mesa — tranqüilamente descascando uma laranja—, sabia muito bem disso.

Ele ergueu os olhos quando Trymon entrou.

— Estou à procura de qualquer coisa que tenhamos sobre a Pirâmide de Tsort — explicou Trymon.

Ele tinha se preparado para o encontro, depois de fazer o pedido tirou uma banana do bolso.

O bibliotecário olhou melancólico para a fruta e caiu para trás. Então Trymon sentiu a mão macia tomar a sua, e o bibliotecário se pôs a conduzi-lo, cambaleando triste entre as estantes. Era como segurar uma luvinha de couro.

À volta deles, os livros zumbiam e faiscavam, com ocasionais descargas de magia sem rumo, iluminando as varinhas cuidadosamente presas às prateleiras. No ar havia um cheiro metálico desagradável, no limite exato da audição humana, o tilintar pavoroso das criaturas do Calabouço das Dimensões.

Como várias outras partes da Universidade Invisível, a biblioteca ocupava muito mais espaço do que as dimensões externas sugeriam — uma vez que a magia distorce o espaço de um jeito estranho. E provavelmente se tratava da única biblioteca do mundo com estantes supradimensionais de Moebius. O catálogo mental do bibliotecário, porém, funcionava à perfeição. Ele parou próximo a uma grande pilha de livros mofados e decolou para a escuridão. Houve um ruído de papéis, e uma nuvem de poeira voou até Trymon. Então o bibliotecário já estava de volta, com um livro fino nas mãos.

— Oook — disse ele.

Trymon pegou o volume com cuidado.

A capa estava arranhada e cheia de orelhas, fazia muito tempo que o ouro das letras do título havia desbotado, mas ainda era possível entrever, na antiga língua mágica do Vale Tsort, as palavras: Ho gyandhe themplo Tsort, Huma histórhia míhstica.

— Oook? — perguntou o bibliotecário, ansioso.

Trymon virou as páginas, cauteloso. Não era muito bom em idiomas — que sempre considerou um negócio bastante ineficaz, achando que deveriam ser substituídos por algum tipo de sistema numérico de fácil entendimento —, mas aquilo parecia exatamente o que estava procurando. Havia páginas inteiras cheias de hieróglifos bem sugestivos.

— É o único livro que você tem sobre a Pirâmide de Tsort? — perguntou, devagar.

— Oook.

— Tem certeza?

— Oook.

Ao longe, ouviu o som de passos e vozes se aproximando. Mas também estava preparado para isso.

Trymon enfiou a mão no bolso.

— Quer outra banana? — perguntou.

A Floresta de Skund era de fato encantada — o que não era incomum no Discworld — e também era a única floresta em todo o mundo a se chamar (na língua local) Seu Dedo, ô Imbecil, que era o significado literal da palavra Skund.

O motivo disso, lamentavelmente, é apenas vulgar. Quando os primeiros exploradores das quentes regiões do Mar Círculo viajaram para a fria hinterlândia, preencheram os espaços vazios dos seus mapas pegando o primeiro nativo que vissem, apontando para um marco distante da paisagem, falando alto e com muita clareza e escrevendo o que quer que o homem desnorteado respondesse. Assim ficaram imortalizadas, em várias gerações de atlas, esquisitices geográficas como Só Uma Montanha, Não Sei, O Quê? e — é claro — Seu Dedo, ô Imbecil.

As nuvens se adensavam em torno do cume escalvado de Monte Oolskunrahod (“Que idiota é esse que não sabe o que é uma montanha?”) e a Bagagem se acomodou embaixo de uma árvore — que até tentou puxar conversa, sem muito êxito.

Duasflor e Rincewind discutiam. A pessoa sobre quem discutiam estava sentada em seu cogumelo e observava os dois com curiosidade. Era parecido com alguém que tem o cheiro de quem mora num cogumelo, e isso incomodava Duasflor.

— Por que ele não tem chapéu vermelho?

Rincewind hesitou, desesperadamente tentando imaginar onde Duasflor queria chegar.

— O quê? — perguntou afinal, desistindo.

— Ele deveria ter chapéu vermelho — insistiu Duasflor. — E também ser mais limpo e mais, sei lá, mais alegre. Não me parece nenhuma espécie de gnomo.

— Do que está falando?

— Olhe a barba — disse Duasflor, ríspido. — Já vi barbas melhores num pedaço de queijo.

— Olhe, ele mede 15 centímetros e vive num cogumelo — rebateu Rincewind. — Claro que é um gnomo.

— Tudo o que temos é a palavra dele.

Rincewind encarou o gnomo.

— Com licença — pediu.

Então puxou Duasflor para o outro lado da clareira.

— Escute aqui — irritou-se ele. — Se medisse 5 metros e dissesse que era um gigante, tudo o que teríamos seria a palavra dele, não seria?

— Pode ser um elfo — argumentou Duasflor, desafiando.

Rincewind olhou mais uma vez a criatura minúscula, que agora se dedicava a limpar o nariz com a ponta do dedo.

— Ora, por favor — disse ele. — E daí? Gnomo, elfo, duende... Tanto faz.

— Duende, não — contestou Duasflor, resoluto. — Os duendes usam uma espécie de roupa de baixo verde, além de terem chapéus pontudos e anteninhas salientes na cabeça. Já vi retratos.

—Onde?

Duasflor titubeou, desviando os olhos para os pés.

— Acho que se chamava... bzzz zzzz bzzzz zz — sussurrou.

— Como? Chamava o quê? — perguntou Rincewind.

Duasflor criou um interesse súbito pelo dorso das mãos.

— O Livrinho Folclórico de Criaturas Encantadas da Nossa Flora — murmurou ele.

Rincewind parecia confuso.

— É sobre como evitá-los? — perguntou.

— Ah, não — respondeu Duasflor. — Diz onde devemos procurá-los. Ainda me lembro dos retratos...

O rosto do homenzinho se iluminou, e Rincewind engoliu um rosnado.

— Tinha até uma fada especial que vinha pegar nossos dentes.

— O quê? Arrancava os dentes?

— Não. Depois que já haviam caído, a criança botava os dentes debaixo do travesseiro, e então a fada vinha, levava embora e deixava uma moeda no lugar.

—Porquê?

— Por que o quê?

— Por que ela colecionava dentes?

— Porque sim.

Rincewind imaginou uma entidade estranha vivendo num castelo feito de dentes. Era o tipo de imagem que o sujeito logo tentava esquecer. Sem sucesso.

— Argh! — disse ele.

Chapéus vermelhos! O mago pensou se valeria a pena instruir aquele turista sobre as coisas da vida, quando sapo era apenas uma boa refeição; toca de coelho, somente um bom refugio da chuva; e coruja, um bicho errante e silencioso terror da noite. Calças de camurça pareciam exóticas a não ser que você mesmo tenha que removê-las de seu proprietário original, quando o fulaninho estiver encurralado na toca dele. Quanto a chapéus vermelhos, qualquer criatura que saísse pela floresta usando cores fortes assim duraria muito pouco tempo.

Ele queria dizer: Olhe, a vida dos gnomos e duendes é má, brutal e curta. Eles também.

Queria dizer isso tudo, mas não podia. Para um homem com ânsias de ver o infinito, Duasflor se encontrava muito fechado em seu próprio mundo. Dizer a verdade a ele seria como chutar um cachorrinho.

— Do sííf suídoss síííí — disse uma voz à altura de seu pé.

Ele baixou a vista, o gnomo, que havia se apresentado como Docis, olhava para cima. Rincewind tinha excelente ouvido para idiomas. O gnomo havia acabado de dizer “Tem um resto de sorvete de salamandra-aquática, que sobrou de ontem”.

— Deve ser uma delícia — arriscou Rincewind.

Docis deu-lhe outro tapinha no tornozelo.

— Tudo bem com o outro grande? — indagou, solícito.

— Só está tendo um choque com a realidade — explicou Rincewind. — Será que você não teria um chapéu vermelho?

—Síís?

— Foi só uma idéia.

— Sei onde tem comida para grandes — informou o gnomo. — E abrigo também. Não fica longe.

Rincewind olhou o céu ameaçador. A luz do dia já se escoava pela paisagem, as nuvens pareciam ter ouvido falar em neve e cogitavam a idéia. É claro que não se podia confiar, necessariamente, em pessoas que habitam cogumelos, mas nesse momento o mago não se incomodaria nada em cair numa armadilha cuja isca incluísse uma refeição quente e lençóis limpos.

Partiram todos. Depois de alguns segundos, a Bagagem se pôs cuidadosamente em pé e começou a segui-los.

— Psiu!

Ela se virou devagar, com as perninhas se movendo num jogo intrincado, e pareceu olhar para cima.

— É bom ser obra de marceneiro? — perguntou a árvore, ansiosa. — Doeu?

A Bagagem pareceu pensar por um instante no assunto — cada alça de bronze e olho de nó irradiando extrema concentração.

Então encolheu a tampa e se afastou, gingando.

A árvore suspirou e sacudiu algumas folhas mortas para fora dos ramos.

O chalé era pequeno, gasto e enfeitado como uma toalha rendada. Rincewind concluiu que algum entalhador maluco tinha esculpido a cabana e causado grandes estragos até ser mandado embora. Cada porta, cada postigo tinha cachos de uvas ou meias-luas cortadas na madeira e, em todas as paredes, havia aglomerações de arabescos feitos com pinhas. Não seria surpresa se um cuco gigante saísse escandalosamente pela janela superior.

O que Rincewind também notou foi a densidade oleosa do ar. Minúsculas centelhas roxas e verdes faiscavam de suas unhas.

— Campo mágico intenso — murmurou ele. — Pelo menos 100 militaumos.

(Nota: 2. Taumo é a unidade básica de força mágica. Foi estabelecido universalmente como a quantidade de magia necessária para fazer surgir um pombinho branco ou três bolas de bilhar de tamanho padrão.

—Tem magia por toda parte — confirmou Docis. — Uma bruxa velha morava aqui. Faz muito tempo que se foi, mas a magia ainda mantém a casa.

— Olhe, tem alguma coisa estranha naquela porta — disse Duasflor.

— Por que uma casa precisaria de magia para ser mantida? — perguntou Rincewind.

Duasflor tocou de leve a parede.

— É grudenta!

— Creme de avelã — esclareceu Docis.

— Meu Deus! Uma autêntica casa de pão de mel! Rincewind, uma verdadeira...

O mago assentiu, com ar de enfado.

— É, da Escola de Arquitetura Confeiteira — afinal disse. — Nunca fez muito sucesso.

Ele olhou com desconfiança a aldrava de goma de alcaçuz.

— A casa se regenera — avisou Docis. — É incrível. Hoje em dia, não vemos lugares como este por aí. Não se acha nem pão de mel.

— É mesmo? — perguntou Rincewind, sem muito ânimo.

— Vamos entrar — propôs o gnomo. — Mas cuidado com o capacho.

—Porquê?

— É de rapadura.

O grande Disco girava lentamente sob o sol, e a luz do dia formava pequenas poças nos vales, escoando-se por completo afinal quando a noite chegou.

Num quarto frio da Universidade Invisível, Trymon estudava o livro — os lábios se movendo à medida que o dedo acompanhava o texto antigo e desconhecido. Ele leu que a Grande Pirâmide de Tsort, havia muito tempo destruída, era feita de 1.003.010 blocos de calcário. Que 10 mil escravos haviam trabalhado até a morte em sua construção. Que era um labirinto de passagens secretas — as paredes supostamente decoradas com a enorme sabedoria do antigo Tsort. Que a altura mais o comprimento, dividido pela metade da largura, dava exatamente 1,67563 ou, de forma precisa, 1.237,98712567 de vezes a diferença entre a distância do sol e o peso de uma laranja pequena. E que 60 anos foram inteiramente dedicados à sua construção.

Parecia trabalho demais, pensou ele, para quase nada.

Na Floresta de Skund, Duasflor e Rincewind comiam o console de pão de mel e ansiavam por picles de cebola.

E, a muitos quilômetros dali, mas em plena rota de colisão, o maior herói que o Discworld já produzira enrolava um cigarro, sem imaginar o que o destino lhe reservava.

Era um cigarro artesanal bem interessante, que o herói girava com perícia entre os dedos, porque, assim como vários dos magos peregrinos com quem havia aprendido a arte, ele tinha o hábito de guardar as bitucas num saco de couro e usá-las em cigarros novos. A inexorável lei das probabilidades, portanto, determinava que parte do tabaco vinha sendo fumado quase ininterruptamente, havia anos. Esse que ele estava tentando acender sem sucesso agora era... bem, pode-se pavimentar estradas com a substância.

Tamanha era a reputação dessa pessoa, que um grupo nômade de cavaleiros bárbaros o convidou com deferência a sentar em volta da fogueira feita de bosta de cavalo. No inverno, os nômades de Centrolândia costumavam migrar para a borda. Esses pertenciam a uma tribo que havia armado barracas de feltro no calor sufocante de 3 graus negativos, estavam com o nariz descascando e insolação.

O chefe da tribo perguntou:

— Quais são as maiores coisas que o homem pode encontrar na vida?

Nos círculos bárbaros, esse é o tipo de conversa que se deve ter para manter o moral alto.

O homem à sua direita bebeu a mistura de leite de zebra com sangue de gato e respondeu o seguinte:

— O horizonte árido da estepe, vento no cabelo e um bom cavalo debaixo da gente.

O homem da esquerda disse:

— O grito da águia branca nas alturas, a queda de neve na floresta e uma flecha de verdade no arco.

O chefe da tribo assentiu e opinou:

— Com certeza, é a visão da morte dos inimigos, a humilhação de toda a sua tribo e o choro de suas mulheres.

Houve um murmúrio generalizado de aprovação às palavras ultrajantes.

Então o chefe se virou com todo o respeito para o convidado, um homem pequeno que tratava, perto do fogo, de aquecer as inflamações produzidas pelo frio, e falou:

— Mas nosso convidado, cujo nome é uma lenda, deve nos dizer a verdade: quais são as coisas que o homem pode considerar as melhores da vida?

O convidado se deteve no meio de outra tentativa frustrada de acender o cigarro.

— O que dische? — perguntou ele, soprando pela banguela.

— Quais são as coisas que o homem pode considerar as melhores da vida?

Os guerreiros se inclinaram para a frente. Era algo que valia a pena ouvir.

O convidado pensou bastante e então, decidido, respondeu:

— Água quente, um bom dentischta e papel higiênico machio.

Brilhantes luzes octarinas chamejavam na forja. Galder Cera do Tempo, sem camisa e com o rosto escondido por uma máscara de vidro fumê, apertou os olhos contra o brilho intenso e desceu um martelo com precisão cirúrgica. A magia guinchou e se contorceu na pinça, mas o feiticeiro não interrompeu o trabalho, traçando com ela uma linha de fogo agonizante.

Uma tábua do assoalho rangeu. Galder tinha passado muito tempo afinando o tom de cada uma delas — boa precaução para quem tinha um assistente ambicioso que andava como um gato.

Ré bemol. Significava que o intruso estava bem à direita da porta.

— Ah, Trymon — disse ele, sem se virar, notando com satisfação que o homem bufava. — Que bom que você veio. Feche a porta, por favor.

Trymon empurrou a porta pesada — o rosto impassível. Na prateleira do alto, várias coisas impossíveis nadavam em vidros de picles e observavam-no com curiosidade.

Como a oficina de qualquer mago, parecia que um taxidermista tinha deixado os animais numa fundição e depois lutado com um soprador de vidro ensandecido, arrebentando os miolos de um crocodilo no processo (o bicho se encontrava pendurado no teto e soltava um cheiro forte de cânfora). Havia lamparinas e anéis espalhados sobre a mesa, e Trymon se continha para não limpar tudo com um braço, além de espelhos que pareciam nos espiar. Um par de botas de sete léguas vibrava na caixa. E toda uma biblioteca de livros mágicos, obviamente não tão poderosos como o Oitavo, mas ainda assim carregados de feitiços, retinia e agitava suas correntes ao sentir o olhar cobiçoso do mago. O poder puro e simples de tudo aquilo mexia com ele, embora Trymon lamentasse a imundície e a teatralidade de Galder.

Por exemplo, como subornara um dos empregados, sabia que o líquido verde borbulhando misteriosamente num labirinto de tubos retorcidos sobre uma das bancadas não passava de tinta verde com sabão.

Um dia, pensou ele, tudo será meu. A começar pelo maldito jacaré...

— Pois bem — disse Galder com animação, pendurando o avental e sentando-se na cadeira com braços de pata de leão e pernas de pato. — Você me mandou este bilhetinho.

Trymon encolheu os ombros.

— Memorando. Apenas para chamar sua atenção para o fato de que todas as outras Ordens enviaram agentes à Floresta de Skund para recapturar o Feitiço, enquanto o senhor não fez nada — disse ele. — Sem dúvida, em breve saberemos quais foram os motivos.

— Sua convicção me embaraça — rebateu Galder.

— O mago que capturar o Feitiço vai conquistar muita glória para sua Ordem e também para si próprio — disse Trymon. — Os outros têm usado botas e toda espécie de encantamentos. O que o senhor pretende usar?

— Senti um certo sarcasmo aí?

— Claro que não, mestre.

— Nem um bocadinho?

— Nem o menor bocadinho, mestre.

— Ótimo. Porque não pretendo ir.

Galder pegou um livro antigo e resmungou uma ordem. O volume se abriu; um marcador suspeito como uma língua se mostrou.

Ele tateou ao lado de uma almofada e trouxe à vista um pequeno saco de couro de tabaco e um cachimbo do tamanho de um incinerador. Com a habilidade de quem, havia muito tempo, era viciado em nicotina, esfregou as folhas de tabaco entre as mãos e botou no fornilho. Então estalou os dedos, e o fogo se acendeu. Ele tragou com vontade, suspirou de satisfação... e olhou para cima.

— Ainda aí, Trymon?

— O senhor me chamou, mestre — respondeu Trymon, com calma.

Ou, pelo menos, é o que sugeria sua voz. No fundo dos olhos acinzentados, ardia uma chama que dizia haver uma lista enorme de cada desrespeito, cada escárnio, cada censura medida, cada manha estudada, e, para cada uma, o cérebro vivo de Galder passaria um ano mergulhado em ácido.

— Ah sim, chamei sim. Perdoe as faltas de um senhor de idade — disse Galder, satisfeito.

E ergueu o livro que vinha lendo.

— Não concordo com essas coisas — observou ele. — É muito deslumbrante sair por aí brincando com tapetes mágicos e tal, mas, na minha cabeça, não se trata de magia de verdade. As botas de sete léguas, por exemplo. Se fosse para o homem percorrer 34 quilômetros a cada passo, estou certo de que Deus teria nos dado pernas maiores... Onde é que eu estava?

— Não tenho certeza — respondeu Trymon, friamente.

— Ah, sim. É estranho que a gente não tenha encontrado nada sobre a Pirâmide de Tsort na biblioteca. Você não acha que deveria ter algum livro sobre isso?

— O bibliotecário será castigado, é claro.

Galder olhou de lado para ele.

— Nada drástico — aconselhou. — Talvez suspender as bananas.

Por um instante, os dois se entreolharam.

Então Galder desviou o olhar — encarar Trymon sempre o incomodava. Tinha o mesmo efeito desconcertante de estar diante de um espelho e não se ver refletido ali.

— Enfim — disse ele. — Por estranho que pareça, consegui ajuda em outro lugar. Na verdade, na minha modesta estante. O diário de Skrek Troca Cesta, o fundador da Ordem. Você, meu jovem e entusiasmado rapaz, sabe o que acontece quando morre um mago?

— Todos os feitiços memorizados por ele se tornam capazes de se autopronunciar — esclareceu Trymon. — E uma das primeiras lições que aprendemos.

— Na realidade, isso não se aplica aos Oito Grandes Feitiços originais. À força de muito estudo, Skrelt descobriu que o Grande Feitiço apenas se refugia na primeira mente aberta e pronta a recebê-lo. Por favor, traga o espelho grande para cá.

Galder ficou de pé e se arrastou até a forja, que agora já estava fria. A linha de magia, porém, ainda se contorcia — ao mesmo tempo ausente e presente, como um corte num universo cheio de luz quente e azul. O mago pegou a linha, tirou um arco da prateleira, disse uma palavra de comando e observou a magia se agarrar nas pontas do arco e comprimi-lo até a madeira se dobrar. Então escolheu uma flecha.

Trymon havia arrastado o espelho grande e pesado para o meio da oficina. Quando eu for chefe da Ordem, pensou ele, com certeza não vou andar por aí de chinelos.

Como já foi dito, Trymon achava que sangue novo era imprescindível — se ao menos os galhos secos pudessem ser removidos —, mas por ora estava genuinamente interessado em ver o que o velho idiota faria em seguida.

Talvez ficasse satisfeito em saber que Galder e Skrelt Troca Cesta estavam completamente enganados.

Galder fez algumas propostas para o espelho, que se anuviou e então clareou, exibindo uma vista aérea da Floresta de Skund. Olhou atentamente para a imagem, enquanto segurava o arco — com a flecha apontando de maneira vaga para o teto. Sussurrou algumas frases como “atenção para uma velocidade do vento de, digamos, três nós” e “adapte-se à temperatura e, então, num movimento bem menos dramático que o esperado, lançou a flecha.

Se as leis de ação e reação tivessem alguma coisa a ver com aquilo, a seta cairia no chão alguns metros além. Mas ninguém ali parecia ligar para essas leis.

Com um ruído que desafia a possibilidade de ser descrito, mas que, a bem da verdade, pode ser imaginado como um “bum!” somado ao barulho equivalente a três dias de trabalho duro em qualquer emissora de rádio decentemente equipada, a flecha desapareceu.

Galder pôs o arco de lado e sorriu.

— Vai levar mais ou menos uma hora para chegar lá — disse ele. — Então o Feitiço vai apenas seguir o caminho ionizado até aqui. Para mim.

— Notável — disse Trymon. Mas qualquer telepata de passagem teria lido em letras garrafais: para você? Por que não para mim?

Trymon olhou a bancada desarrumada, onde uma faca comprida e bastante afiada lhe parecia feita sob medida para o que tinha em mente.

Violência não era algo em que gostasse de se envolver, a não ser de longe. Mas a Pirâmide de Tsort fora muito clara em relação à recompensa para quem tivesse os oito feitiços na hora certa, e Trymon não jogaria no lixo anos de trabalho árduo só porque um velho idiota teve uma idéia brilhante.

— Quer um pouco de chocolate quente enquanto aguardamos? — perguntou Galder, arrastando-se até onde ficava o sino para chamar empregados.

— Claro — respondeu Trymon.

Ele pegou a faca, sentindo seu peso, e examinou o fio da lâmina.

— Devo parabenizá-lo, mestre. Estou vendo que todos precisamos levantar mais cedo para absorver seus conhecimentos.

Galder riu. E a faca deixou a mão de Trymon com tamanha velocidade, que (por causa da natureza um tanto indolente da luz do Disco) ficou um pouco mais curta e compacta ao avançar, com mira certeira, em direção ao pescoço de Galder.

Não atingiu o alvo. Em vez disso, desviou-se para um lado e começou a descrever uma órbita rápida — tão rápida que Galder de repente parecia usar um colar de metal. O reitor se virou, e Trymon teve a impressão de que Galder cresceu alguns metros. Além de mais alto, parecia muito mais poderoso.

A faca escapou e fincou na porta, a um quase nada de distância da orelha de Trymon.

— Levantar cedo? — perguntou Galder, com satisfação. — Meu bom rapaz, você terá que passar a noite em claro.

— Coma mais um pouco da mesa — ofereceu Rincewind.

— Não, obrigado. Não gosto de marzipã — disse Duasflor. — De qualquer modo, não acho certo comer a mobília dos outros.

— Não se preocupe — garantiu Docis. — Há anos não vemos a bruxa velha. Dizem que foi transformada numa mulher boa e digna por um casal de jovens arruaceiros.

— As crianças de hoje em dia... — comentou Rincewind.

— A culpa é dos pais — disse Duasflor.

Uma vez feitos os devidos ajustes mentais, a casa de pão de mel até que era um lugar bem agradável. Resíduos de magia a mantinham de pé, e os animais selvagens que ainda não morreram de cárie dentária terminal a evitavam. Na lareira, um fogo cintilante de lenha de alcaçuz ardia com dificuldade. Rincewind até tentou pegar lenha lá fora, mas desistira. Não é fácil queimar madeira que fala com a gente.

O mago arrotou.

— Não é nem um pouco saudável — disse ele. — Quer dizer, por que doces? Por que não queijo e torradas? Ou salame... Um sofá de salame não seria nada mal.

— Pergunte a mim — disse Docis. — Vovó Unheiro só fazia doces. Você precisava ver os merengues dela...

— Já vi — cortou Rincewind. — Olhei os colchões.

— Pão de mel é mais tradicional — sugeriu Duasflor.

— Para colchão?

— Não seja tolo — disse Duasflor, sensatamente. — Quem já ouviu falar em colchão de pão de mel?

Rincewind grunhiu. Estava pensando em comida — para ser mais exato, na comida de Ankh-Morpork. Engraçado como a velha cidade parecia mais atraente à medida que ele se afastava do lugar. Bastava fechar os olhos para visualizar as feiras, nos mínimos detalhes, as barracas com centenas de petiscos de diferentes culturas. Lá, podia-se comer de tudo... tomar sopa de barbatana de tubarão tão fresca, que os nadadores nem ousavam se aproximar, e...

— Acha que eu poderia comprar o chalé? — perguntou Duasflor.

Rincewind hesitou. A essa altura, sabia que era sempre bom pensar com cuidado antes de responder às perguntas mais surpreendentes de Duasflor.

— Para quê? — arriscou ele, com tato.

— Bom, isto transborda de estilo.

— Ah.

— O que é estilo? — indagou Docis, fungando de leve e afetando uma expressão tipo “não fui eu”, referindo-se sabe-se lá a quê.

— Acho que é um tipo de sapo — respondeu Rincewind. — Mas, de qualquer maneira, você não pode comprar a casa porque não existe ninguém de quem comprar...

— Acho que eu poderia resolver isso, em nome do conselho florestal, claro — interrompeu Docis, evitando o olhar de Rincewind.

— ... seja como for, você não poderia levá-la. Quer dizer, não poderia meter na Bagagem... poderia?

Rincewind apontou para a Bagagem, que se encontrava perto do fogo, de alguma forma conseguindo parecer um tigre satisfeito mas alerta, e então voltou a encarar Duasflor. O queixo do mago caiu.

— Poderia? — repetiu ele.

Rincewind nunca aceitara que o interior da Bagagem não parecesse habitar o mesmo mundo que o exterior. Claro que se tratava só de um subproduto da sua esquisitice essencial, mas era desconcertante ver Duasflor enchê-la de roupas sujas e meias velhas e então abrir outra vez a tampa para encontrar peças limpas e passadas, cheirando a lavanda. O rapaz também comprava uma porção de artefatos nativos exóticos — ou, como diria Rincewind, tralhas —, e até uma vara de ritual encantada de 2 metros parecia caber muito bem, sem ficar para fora.

— Não sei — respondeu Duasflor. — Você é mago, sabe mais dessas coisas.

— É, sim, claro, mas magia de bagagem é uma arte altamente especializada — desculpou-se Rincewind. — Seja como for, tenho certeza de que os gnomos não vão querer vendê-la. A casa é, é...

Ele buscou as palavras que conhecia do vocabulário alucinado de Duasflor.

— ... uma atração turística.

— O que é isso? — entusiasmou-se Docis.

— Significa que muitas pessoas como ele vão querer vir aqui dar uma olhada — explicou Rincewind.

— Por quê?

— Porque...

O mago saiu à cata de novas palavras.

— ... é exótica. Hum, antiga. Folclórica. Hã, um exemplar maravilhoso da desaparecida arte folclórica, banhado à luz fantástica

— É? — surpreendeu-se Docis, olhando espantado para o chalé.

— É.

—Tudo isso?

— Desconfio que sim.

— Se quiser, posso ajudá-lo com a mudança.

E a noite avança sob nuvens baixas que cobrem a maior parte do Disco — o que é uma sorte, já que, quando o céu ficar limpo e os astrólogos tiverem uma boa visão, vão ficar bastante chateados, bravos e preocupados.

E, em diversas partes da floresta, grupos de magos se perdem, andam em círculo, tentam se esconder uns dos outros. E ficam aborrecidos porque, quando dão topada em alguma árvore, o vegetal pede desculpas. No entanto, por mais inconstantes que sejam os progressos, muitos já se aproximam do chalé...

O que nos faz lembrar que é uma boa hora para voltar aos prédios errantes da Universidade Invisível e, em especial, aos aposentos de Greyhald Spold, atualmente o mago mais velho do Disco — e decidido a permanecer naquela posição.

Ele acabou de ficar extremamente surpreso e chateado.

Nas últimas horas, estivera muito ocupado. Spold pode ser surdo e um pouco lerdo, mas os feiticeiros mais velhos têm instintos de sobrevivência bem treinados e sabem que, quando um vulto alto de manto negro, segurando o último dos instrumentos agrícolas, começa a nos encarar de maneira pensativa, é hora de agir rápido. Os empregados foram dispensados. As portas acabaram sendo seladas com uma pasta feita de mariposas em pó, e octogramas preventivos foram desenhados nas janelas. Óleos raros e bem fedorentos foram derramados em traços complexos no chão, compondo desenhos que machucam a vista e sugerem que o desenhista estava bêbado ou era de alguma outra dimensão — ou, possivelmente, as duas coisas. Exatamente no centro do quarto, está o octograma óctuplo de Retenção, cercado por velas verdes e vermelhas. E, no meio dele, encontra-se a caixa feita da madeira de pinheiro crespo, que tem vida longa, coberta com seda vermelha e outros amuletos protetores. Isto porque Greyhald Spold sabe que Morte está à sua procura e passou anos arquitetando um esconderijo impenetrável.

Ele acabou de ajustar o complicado mecanismo de trava e fechou a tampa, repousando na idéia de que esta é afinal a proteção perfeita contra o maior de nossos inimigos. Embora até o momento não tenha considerado a função importante que respiradouros devem ter numa empreitada como essa.

E a seu lado, bem perto da orelha, alguém acabou de dizer:

— ESCURO AQUI, NÃO?

Começou a nevar. As janelas de açúcar mascavo do chalé se mostravam luminosas e brilhantes contra a escuridão.

Num lado da clareira, três pontinhos de luz vermelha piscaram, e houve um ruído de tosse forte bruscamente interrompida.

— Quieto! — sussurrou um mago do terceiro grau. — Vão nos ouvir!

— Quem? Nós despistamos os rapazes da Irmandade do Logro no pântano, e aqueles idiotas do Conselho Honorável de Videntes seguiram o caminho errado.

— É — admitiu o mais jovem dos magos. — Mas quem fica falando com a gente? Dizem que a floresta é mágica e tem um monte de duendes, lobos e...

— Árvores — disse uma voz saída do breu mais acima.

— É — concordou o rapaz.

Então tragou o cigarro e estremeceu.

O líder do grupo observava o chalé de cima de uma pedra.

— Pois bem — disse afinal, batendo o cachimbo no salto da bota de sete léguas, que chiou em protesto. — A gente entra, pega os homens e vai embora. Combinado?

— Tem certeza de que são só pessoas? — perguntou o mago mais jovem, nervoso.

— Claro que tenho — rebateu o líder. — O que você esperava? Três ursos?

— Podiam ser monstros. Esse é o tipo de floresta que tem monstros.

— E árvores – completou a mesma voz simpática vinda dos ramos.

— É — assentiu o líder, com cautela.

Rincewind reparou na cama. Era uma cama bem pequena, de uma espécie de puxa-puxa duro recheado com caramelo, mas o mago preferiria comê-la a ter que dormir ali, e parecia mesmo que alguém já tinha começado a fazer isso.

— Alguém andou comendo minha cama — protestou ele.

— Eu gosto de puxa-puxa — defendeu-se Duasflor.

— Se não tomar cuidado, a fada vem arrancar seus dentes — advertiu Rincewind.

— Não, são os elfos — retrucou Docis, de cima da penteadeira. — Quem faz isso são os elfos. E as unhas dos pés também. Às vezes, os elfos podem ser bastante maus.

Duasflor se sentou na cama.

— Você está enganado — disse ele. — Os elfos são nobres, bonitos, inteligentes e justos. Tenho certeza de que li isso em algum lugar.

Docis e o joelho de Rincewind se entreolharam.

— Você deve estar falando de outros elfos — disse Docis, devagar. — Aqui só temos da outra espécie. Nem se pode dizer que são geniosos — acrescentou às pressas. — A menos que você queira levar para casa seus dentes dentro do chapéu.

Houve o ruído leve característico de uma porta de creme de avelã se abrindo. Ao mesmo tempo, do outro lado do chalé, veio um tinido fraco — como de uma pedra quebrando uma janela de açúcar mascavo com a maior delicadeza possível.

— O que foi isso? — alarmou-se Duasflor.

— Isso o quê? — perguntou Rincewind.

Um galho pesado bateu no peitoril da janela. Com um grito de “Elfos!”, Docis correu até um buraco de rato e desapareceu.

— O que vamos fazer? — disse Duasflor.

— Entrar em pânico? — propôs Rincewind, esperançoso.

O mago sempre achou que pânico era o melhor meio de sobrevivência. Sua teoria sustentava que, nos primórdios da existência, podíamos dividir em dois grupos bem definidos as pessoas confrontadas com um tigre-de-dente-de-sabre faminto: as que se deixavam tomar pelo pânico e aquelas que ficavam ali dizendo “Que besta magnífica” e “Vem aqui, gatinho”.

— Tem o armário — propôs Duasflor, apontando para a porta estreita que ficava comprimida entre a parede e a lareira.

Os dois entraram na escuridão adocicada cheirando a mofo.

O assoalho de chocolate do andar de baixo estalou. Alguém murmurou:

— Ouvi vozes.

Outro alguém respondeu:

— É, lá embaixo. Acho que são os Irmãos do Logro.

— Pensei ter entendido que você os havia despistado!

— Ei, vocês dois, dá para comer esse lugar! Olhem, vejam só, dá para...

— Cale a boca!

Mais ruídos se fizeram ouvir, e um grito abafado veio do andar de baixo: um Honorável Vidente, andando na escuridão, havia pisado nos dedos de um Irmão do Logro escondido sob a mesa. Houve um zunido repentino de magia.

— Miserável! — gritou alguém do lado de fora. — Pegaram ele! Vamos embora!

Irromperam mais estalidos, e então sobreveio o silêncio. Depois de um tempo, Duasflor disse:

— Rincewind, acho que tem uma vassoura no armário.

— E o que há de extraordinário nisso?

— Ela tem guidão de bicicleta.

Um grito estridente ecoou pela casa — na escuridão, um mago tentou abrir a tampa da Bagagem. E um estrondo vindo da copa sugeria a chegada inusitada de um grupo de Magos Iluminados do Círculo Inquebrantável.

— O que acha que estão procurando? — sussurrou Duasflor.

— Não sei, mas talvez não seja boa idéia descobrir — respondeu Rincewind, pensativo.

— Acho que você esta certo.

Com cuidado, Rincewind abriu a porta. O quarto parecia vazio. O mago seguiu na ponta dos pés até a janela e olhou para fora, deparando com três Irmãos da Ordem da Meia-Noite com os rostos voltados para cima.

— É ele!

Rincewind se afastou e correu para a escada.

A cena no andar de baixo era indescritível, mas como essa afirmação receberia pena de morte no reinado de Olavo Quimby II, é melhor a descrevermos. Em primeiro lugar, a maioria dos magos metidos na briga tentava iluminar o ambiente com chamas, bolas de fogo e brilhos mágicos, de maneira que a claridade geral dava impressão de uma discoteca numa fábrica de luzes pisca-pisca. Além disso, cada homem buscava uma posição da qual pudesse ver o resto da sala sem ser atacado, e todos tentavam fugir da Bagagem — que já tinha dois Videntes Honoráveis pendurados num canto e abria a tampa para qualquer um que ousasse se aproximar. Mas aconteceu de um mago olhar para cima.

— É ele!

Rincewind recuou e sentiu algo esbarrar nele. Então viu Duas-flor sentado na vassoura, flutuando em pleno ar.

— A bruxa deve ter esquecido aqui! — gritou o rapaz. — Uma vassoura mágica de verdade!

Rincewind hesitou. Centelhas octarinas se desprendiam das cerdas da vassoura, e ele detestava altura mais do que qualquer outra coisa na vida, mas o que de fato detestava mais do que tudo era uma dezena de magos nervosos e mal-humorados subindo a escada em sua direção — e era o que estava acontecendo.

— Tudo bem — concordou. — Mas eu dirijo.

Ele deu um pontapé violento num mago a meio caminho de um Feitiço de Captura e pulou para a vassoura, que desceu a escada e então ficou de cabeça para baixo, de forma que Rincewind se viu cara a cara com um Irmão da Meia-Noite.

Ele gritou e virou o guidão.

Várias coisas aconteceram ao mesmo tempo: a vassoura disparou para a frente e atravessou a parede numa chuva de farelos; a Bagagem mordeu a perna do Irmão; e com um zunido estranho uma flecha surgiu do nada, errou o alvo, Rincewind, por poucos centímetros e acertou a tampa da Bagagem num baque surdo.

A Bagagem desapareceu.

Numa cidadezinha embrenhada na floresta, um velho xamã jogou mais alguns pedaços de lenha na fogueira e encarou o envergonhado aprendiz através da fumaça.

— Um baú com pernas? — perguntou ele.

— É, mestre. Apareceu do céu e olhou para mim — respondeu o aprendiz.

— Então o baú tinha olhos?

— N... — começou o aprendiz, mas parou, confuso.

O velho franziu a testa.

— Muitos homens viram Topaxci, o Deus do Cogumelo Vermelho, e por isso receberam o nome de xamãs — disse ele. — Outros viram Skelde, a alma da fumaça, e são chamados bruxos. Alguns tiveram o privilégio de ver Umcherrel, o espírito da floresta, e são conhecidos como mestres espirituais. Mas ninguém viu um baú com centenas de pernas que olha sem olhos, e são chamados de idio...

A interrupção foi causada por um grito súbito e uma agitação de neve e centelhas que impeliram o fogo através da cabana escura. Surgiu uma sombra indistinta, então a parede oposta voou pelos ares, e a aparição sumiu.

Houve um longo silêncio. Depois um silêncio mais curto. Depois, com tato, o velho xamã perguntou:

— Você não viu dois homens passarem gritando de cabeça para baixo numa vassoura, viu?

O menino o fitou indiferente.

— Claro que não — respondeu.

O velho suspirou, aliviado.

— Ainda bem — falou ele. — Nem eu.

O chalé ficou em polvorosa porque cada mago queria não apenas seguir a vassoura, mas também impedir os outros de fazer o mesmo, desencadeando uma série de incidentes lamentáveis. O mais espetacular — e certamente mais trágico — ocorreu quando um Vidente tentou usar a bota-de-sete-léguas sem a seqüência apropriada de feitiços e preparativos. Como já foi insinuado, as botas-de-sete-léguas são uma forma de magia bem malandra, e o homem se lembrou tarde demais que é preciso tomar o máximo cuidado ao usar um meio de transporte que, mesmo depois de tudo dito e feito, depende de pôr um pé 34 quilômetros adiante do outro.

As primeiras tempestades do inverno se alastravam, e de fato havia uma suspeita aglomeração de nuvens carregadas sobre o Disco. Mas, bem de cima e sob a luz prateada da pequeníssima lua do Discworld, tinha-se uma das vistas mais bonitas de todo o multiverso.

Nuvens enormes de centenas de quilômetros se enovelavam a partir da queda-d’água da Borda até as montanhas do Centro. E, no silêncio tranqüilo, a imensa espiral branca brilhava, gélida, sob as estrelas, girando imperceptivelmente — como se Deus tivesse mexido Seu café e botado creme em cima.

Nada perturbava a imagem resplandecente que...

Alguma coisa pequena e distante rompeu a camada de nuvens, deixando um rastro de vapor. No sossego estratosférico, sons de briga começaram a ecoar com bastante clareza.

— Você disse que sabia pilotar esse negócio!

— Não disse, não. Só falei que você não sabia!

— Mas eu nunca subi num treco assim!

— Que coincidência!

— Enfim, você disse... Olhe o céu!

— Não disse, não!

— O que está acontecendo com as estrelas?

E foi assim que Rincewind e Duasflor acabaram sendo as duas primeiras pessoas do Disco a verem o que o futuro lhes reservava.

Mil quilômetros abaixo, a montanha central de Cori Celesti furava o firmamento e lançava uma sombra brilhante sobre as nuvens alvoroçadas, de modo que os deuses também poderiam ter notado. Mas os deuses não costumam olhar o céu e, de qual quer forma, estavam envolvidos num litígio com os Gigantes do Gelo, que haviam se recusado a baixar o volume do rádio.

Mais para a Borda, no sentido em que andava Grande A’Tuin, as estrelas tinham desaparecido.

Nesse círculo de trevas, havia somente uma estrela, vermelha e funesta como o brilho no olho de uma raposa enfurecida. Era pequena, horrível e implacável. E o Disco estava sendo levado na direção dela.

Nessas circunstâncias, Rincewind sabia exatamente o que fazer. Deu um grito e apontou a vassoura para baixo.

Galder Cera do Tempo ficou no centro do octograma e levantou as mãos.

— Urshalo, dileptor, c’hula, cumpram minhas ordens!

Uma nevoazinha se formou sobre sua cabeça. Ele olhou com o canto dos olhos para Trymon, que estava numa ponta do círculo mágico, entediado.

— O próximo trecho é magistral — disse ele. — Veja. Kot—b’hai! Kot Venham a mim, ó espíritos de pequenas rochas isoladas e camundongos inquietos com mais de 7 centímetros de comprimento!

—O quê?

— Essa parte precisou de muita pesquisa — observou Galder. — Principalmente os camundongos. Mas onde é que eu estava? Ah, sim...

Levantou os braços de novo. Trymon voltou a observá-lo, correndo a língua pelos lábios, em assombro. O velho idiota parecia realmente absorto, concentrando-se no Feitiço e quase não prestando nenhuma atenção em Trymon.

Palavras de poder rolavam pela oficina, batendo nas paredes e se escondendo atrás de vidros e estantes. Trymon hesitou.

Por um instante, Galder fechou os olhos — uma máscara de êxtase no rosto, ao enunciar a palavra final.

Trymon se retesou, os dedos se enroscando outra vez na faca. Então Galder abriu um olho, balançou a cabeça e lançou uma praga poderosa que pegou o assistente e jogou-o contra a parede.

O reitor piscou um olho para ele e ergueu os braços novamente.

— Venham a mim, ó espíritos de...

Houve um estrondo, uma implosão de luz e um instante de absoluta incerteza física, durante o qual mesmo as paredes pareceram se dobrar para dentro. Trymon ouviu e sentiu um forte deslocamento de ar e então um baque surdo, pesado.

De repente, o quarto estava em silêncio.

Depois de alguns minutos, Trymon saiu engatinhando de trás de uma cadeira e sacudiu a poeira que tinha caído em cima dele. Aí assobiou umas notas e se virou para a porta com extremo cuidado, olhando o teto como se jamais o tivesse visto. Ele se movia de um jeito que dava a impressão de estar tentando bater o recorde mundial de andar despreocupado.

A Bagagem se agachou no centro do círculo e abriu a tampa.

Trymon parou. E se virou muito, mas muito devagar, com medo do que acabaria por ver.

A Bagagem parecia conter roupas limpas, cheirando a lavanda. Mas, de alguma forma, era a coisa mais apavorante que o mago já vira.

— Bem, hã — disse ele. — Hum, será que, por acaso, você não teria visto outro mago por aqui?

A Bagagem conseguiu ficar ainda mais ameaçadora.

— Ah — disse Trymon. — Tudo bem. Não tem importância.

Ele segurou a bainha do manto e pareceu interessado na costura. Quando voltou a olhar para cima, o baú tenebroso ainda se encontrava ali.

— Tchau — disse ele, e correu.

E conseguiu chegar à porta bem a tempo.

— Rincewind?

Rincewind abriu os olhos. Não que ajudasse muito. Significava apenas que, em vez de ver nada além do negrume, via nada além da brancura — o que, surpreendentemente, era pior.

— Você está bem?

— Ah.

Rincewind se sentou. Parecia que estava numa pedra salpicada de neve, mas que não se limitava a fazer o que se espera de uma pedra. Por exemplo, estava se movendo.

A neve se agitava no ar. Duasflor se encontrava a alguns metros de distância, parecendo genuinamente preocupado.

Rincewind gemeu. Os ossos do corpo estavam muito chateados com o tratamento que haviam acabado de receber e faziam fila para reclamar.

— E agora? — perguntou ele.

— Sabe, quando a gente estava voando, e eu fiquei preocupado em bater em alguma coisa na tempestade, então você disse que a única coisa em que a gente poderia bater àquela altura seria numa nuvem recheada de pedras?

—Sei.

— Como é que você sabia?

Rincewind olhou à volta, mas, por toda estranheza do lugar, os dois poderiam muito bem estar dentro de uma bola de pingue pongue.

A pedra se movia, O mago correu as mãos por ela e sentiu as marcas de uma talhadeira. Quando pôs o ouvido na rocha fria e molhada, julgou escutar uma pulsação fraca e demorada — como um batimento cardíaco. Então rastejou até a beirada e olhou para baixo.

No momento, a pedra devia estar passando sobre uma brecha nas nuvens, porque ele teve uma visão indistinta e terrivelmente longínqua dos cumes pontudos de algumas montanhas. Bem abaixo.

O mago balbuciou umas palavras incoerentes e se afastou.

— É um absurdo — reclamou por fim. — Pedras não voam. Nem se mexem. São famosas exatamente por isso.

— Não.

— Talvez voassem se pudessem — argumentou Duasflor. — Pode ser que essa aqui tenha descoberto como.

— Só vamos torcer para que não se esqueça outra vez — disse Rincewind.

Ele ajeitou o manto ensopado e olhou sombriamente para as nuvens ao redor. Então pensou que, em algum lugar, havia pessoas que tinham controle sobre a própria vida: acordavam pela manhã e iam para cama à noite com a certeza bastante razoável de que não iriam cair da beira do mundo, ser atacadas por lunáticos ou acordar numa pedra com pretensões fora de sua alçada. Ele se lembrava vagamente de já ter levado uma vida assim.

Rincewind aspirou o ar. A pedra cheirava a fritura. O aroma parecia vir de cima e chamou a atenção do seu estômago.

— Está sentindo um cheiro diferente? — perguntou ele.

— Acho que é bacon — respondeu Duasflor.

— Espero que seja bacon — concordou Rincewind. — Porque vou comer.

Ele se pôs de pé na rocha vibrante e avançou cambaleando em direção às nuvens, tentando enxergar através da escuridão úmida.

Na beirada dianteira da pedra, havia um druida pequeno sentado de pernas cruzadas, ao lado de uma fogueira. Um quadrado de tecido impermeável cobria sua cabeça, amarrado sob o queixo. E ele mexia a panela de bacon com uma pequena foice decorativa.

— Hum — soltou Rincewind.

O druida ergueu os olhos e largou a panela na fogueira. Então ficou de pé e segurou a foicezinha em atitude agressiva — pelo menos com a agressividade que é possível demonstrar vestindo um longo camisolão branco, molhado e com um lenço na cabeça escorrendo água.

— Estou avisando, vou ser brutal com piratas aéreos — anunciou ele, e deu um espirro violento.

— Prometemos ajudar — disse Rincewind, com olhos compridos para o bacon já prestes a queimar.

A resposta pareceu intrigar o druida, que, para leve surpresa de Rincewind, era bem jovem. O mago supunha que deveriam de fato existir druidas moços, teoricamente ao menos. Só que nunca tinha pensado em como eles poderiam ser.

— Vocês não querem roubar a pedra? — perguntou o druida, abaixando um pouco a foicezinha.

— Nem sabia que era possível roubar pedras — respondeu Rincewind, aborrecido.

— Com licença — interveio Duasflor, polidamente. — Acho que o seu café-da-manhã está pegando fogo.

O druida olhou para baixo e se pôs a bater nas chamas, sem muito êxito. Rincewind correu para ajudar. Houve uma boa dose de fumaça, cinza e confusão, mas a alegria compartilhada por salvarem alguns pedaços de bacon, um tanto queimados, valeu mais do que todo um manual de diplomacia.

— Como chegaram aqui? — quis saber o druida. — Estamos a 150 metros do chão, a não ser que tenha me enganado de novo com as runas.

Rincewind tentou não pensar em altura.

— Estávamos de passagem — explicou ele.

— A caminho do chão — completou Duasflor.

— Só que a sua rocha interrompeu a queda — observou Rincewind, sentindo as costas arderem. — Aliás, obrigado — acrescentou.

— Uns minutos atrás senti qualquer coisa, achei que tivesse sido turbulência — disse o druida, cujo nome era Belafon. — Mas é provável que fossem vocês.

O homem tremia.

— Já deve ser dia — continuou ele. — Danem-se as regras, vou subir. Segurem-se.

— Em quê? — perguntou Rincewind.

— Bem, apenas demonstrem relutância em cair — respondeu Belafon.

O druida tirou um grande pêndulo de ferro do manto e balançou-o numa série de movimentos desconcertantes sobre a fogueira.

As nuvens ao redor começaram a se agitar. Sobreveio uma sensação terrível de opressão e, de repente, a pedra irrompeu à luz do sol.

Ela parou alguns metros acima das nuvens, num céu frio mas azul e reluzente. As nuvens — que pareciam desanimadoramente remotas no dia anterior e terrivelmente úmidas naquela manhã — agora eram um tapete branco e felpudo, estendendo-se para todos os lados. Alguns picos de montanhas sobressaíam como se fossem ilhas. E, atrás da pedra, o vento causado pelo deslocamento esculpia efêmeros rodamoinhos de nuvem. A pedra tinha cerca de 10 metros de comprimento e 3 de largura, e era azulada.

— Que panorama incrível! — exclamou Duasflor, com os olhos brilhando.

— Hum, o que nos mantém aqui em cima? — quis saber Rincewind.

— O poder de persuasão — explicou Belafon, torcendo a bainha do manto.

— Ah! — soltou Rincewind, discretamente.

— Manter as pedras aqui em cima é fácil — observou o druida, erguendo o polegar e voltando o braço para uma montanha distante. — Difícil é pousar.

— Quem iria imaginar? — comentou Duasflor.

— É o poder de persuasão que mantém todo o universo unido — atestou Belafon. — Não adianta dizer que se trata de magia.

Aconteceu de Rincewind olhar para baixo, através das nuvens esparsas, e ver a paisagem nevada a uma distância considerável. Ele sabia que se encontrava na presença de um louco, mas já estava acostumado com isso. Se ouvir o louco significava continuar suspenso ali em cima, o mago era todo ouvidos.

Belafon se sentou com os pés balançando sobre a beirada da pedra.

— Olhe, não se preocupe — garantiu ele. — Se ficar pensando que a pedra não deveria voar, é possível que ela ouça e seja persuadida, então no final das contas é você que estará com a razão. É óbvio que vocês não andam em dia com o pensamento moderno.

— Parece que não — concordou Rincewind, sem forças.

O mago tentou não pensar em pedras no chão. Tentou pensar em pedras voando como andorinhas, deslizando sobre a paisagem no deleite da leveza, zunindo em direção ao céu num...

Então se deu conta de que não era nada bom naquilo.

Os druidas do Disco se orgulhavam de sua atitude progressista diante da descoberta dos mistérios do universo. E claro que, como druidas de qualquer lugar, acreditavam na unidade essencial da vida, no poder de cura das plantas, no ritmo natural das estações e na incineração de qualquer um que não visse tudo isso com a disposição de espírito adequada. Mas também fazia muito tempo vinham pensando sobre a essência da criação e chegaram a seguinte teoria:

Para o seu funcionamento, o universo dependia do equilíbrio de quatro forças, identificadas como sedução, persuasão, indecisão e birra.

Assim, o sol e a lua giravam ao redor do Disco, porque eram persuadidos a não cair, mas não saíam voando por aí por indecisão. Sedução permitia às árvores brotarem, birra as mantinha crescendo, e assim por diante.

Alguns druidas achavam que a teoria apresentava falhas, mas os druidas seniores sempre deixaram muito claro que havia de fato lugar para a argumentação baseada em informações fidedignas — o método de tentativas frustradas de um emocionante debate científico —, e esse lugar ficava no alto da fogueira no solstício seguinte.

— Então você é astrônomo? — perguntou Duasflor.

— Ah, não — respondeu Belafon, fazendo a pedra contornar uma montanha. — Sou consultor de hardware de computador.

— O que é hardware de computador?

— Bem, é isso aqui — explicou o druida, batendo na rocha com a sandália. — Quero dizer, parte de um hardware. É reposição. Estou fazendo a entrega. O pessoal vem tendo problemas com os grandes círculos nas Planícies Vórtice. Pelo menos é o que dizem. Quem dera receber uma moeda de bronze para cada usuário que não lê o manual!

O druida encolheu os ombros.

— E para que serve exatamente? — quis saber Rincewind (qual quer coisa para tirar da cabeça o abismo logo abaixo).

— Serve para... dizer a época do ano — respondeu Belafon.

— Ah. Você quer dizer que, se estiver coberta de neve, então deve ser inverno.

— É. Ou melhor, não. Quer dizer, imagine que eu precisasse saber quando determinado astro vai subir...

— Para quê? — cortou Duasflor, irradiando curiosidade.

— Bom, talvez eu quisesse saber quando plantar umas sementes — imaginou Belafon, suando um pouco. — Ou então...

— Se quiser, posso emprestar meu almanaque — ofereceu Duasflor.

— Almanaque?

— É um livro que nos informa o dia — antecipou Rincewind, aborrecido.

Belafon espirrou.

— Livro? — surpreendeu-se. — Tipo, de papel?

— É.

— Não me parece muito confiável — argumentou o druida, ríspido. — Como é que um livro pode saber o dia? Papel não faz conta.

Ele se afastou para a dianteira da pedra, fazendo-a afundar de maneira alarmante. Rincewind engoliu em seco e chamou Duasflor.

— Já ouviu falar em choque de culturas? — sussurrou ele.

— O que é isso?

— É o que acontece quando se passa 500 anos tentando botar uma roda de pedra para funcionar, até que chega alguém com um livrinho que tem uma página para cada dia e vem cheio de dizeres como “É uma ótima época para plantar fava” e “Deus ajuda quem cedo madruga”. E sabe qual é a coisa mais importante de que devemos nos lembrar em relação a choque — Rincewind se deteve para tornar fôlego e moveu os lábios em silêncio, tentando se lembrar de onde estava na frase — cultural? — concluiu ele.

— Qual?

— Nunca provocá-lo com um homem pilotando uma pedra de mil toneladas.

— Ela já foi?

Trymon espiava pelas ameias da Torre de Arte — a grande construção de alvenaria que se elevava sobre a Universidade Invisível. Bem abaixo, o agrupamento de alunos e professores de magia respondeu que sim.

— Têm certeza?

O tesoureiro pôs as mãos em concha e gritou:

— Uma hora atrás, ela atravessou a porta e escapou, senhor.

— Engano seu — rebateu Trymon. — Ela saiu, nós escapamos. Bom, então vou descer. Chegou a pegar alguém?

O tesoureiro parou. Não era mago, ele era apenas um homem afável e generoso que jamais devia ter visto as cenas testemunhadas na última hora. É claro, todos sabiam que pequenos demônios, luzes coloridas e várias imaginações pseudomaterializadas vagavam no campus, mas havia alguma coisa nas investidas implacáveis da Bagagem que o deixara com muito medo. Tentar detê-la seria como tentar lutar corpo a corpo com uma geleira.

— Ela... engoliu o Decano de Estudos Liberais, senhor — berrou afinal.

Trymon se iluminou.

— Que infortúnio — sussurrou.

Então começou a descer a longa escada em espiral. Depois de um tempo, abriu um leve sorriso. O dia estava, sem dúvida, melhorando.

Havia muito a organizar. E, se havia algo de que Trymon realmente gostava, era organizar.

A pedra deslizava sobre as planícies altas, arrastando a neve que se encontrava alguns metros abaixo. Belafon se movia com agitação, besuntando com um ungüento de visco aqui e traçando uma runa ali, enquanto Rincewind se encolhia de medo e exaustão, e Duasflor se preocupava com a Bagagem.

— Lá adiante! gritou o druida, mais alto que o barulho do vento deslocado pela pedra. — Vejam, o grande computador dos céus!

Rincewind espiou por entre os dedos. No horizonte distante, havia uma imensa, lúgubre e assustadora construção de lajes pretas e cinzentas — dispostas em círculos concêntricos e runas místicas — desoladora e esquecida ali na neve. Com certeza não havia sido o homem que movera aquelas pequenas montanhas — com certeza uma tropa de gigantes fora transformada em rocha por algum...

— Parece um monte de pedras — disse Duasflor.

Belafon hesitou no meio de um gesto.

— O quê? — disse.

— E interessante — acrescentou o turista, às pressas, procurando por outra palavra. — Étnico — decidiu-se por fim.

O druida gelou.

— Interessante? — perguntou. — Um triunfo do silício, um milagre da tecnologia maçônica moderna... Interessante?

— É — respondeu Duasflor, para quem sarcasmo não passava de uma palavra de oito letras começando com S.

— O que quer dizer étnico? — quis saber o druida.

— Assustadoramente impressionante — apressou-se em dizer Rincewind. — Mas parece que estamos tendo problemas em pousar, então se você não se importa...

Belafon se virou, apenas ligeiramente aplacado. Ergueu os braços para o lado e gritou uma série de palavras intraduzíveis terminando com “interessante!”, num sussurro magoado.

A pedra diminuiu a marcha, virou de lado numa onda de neve e pairou sobre o círculo. Bem abaixo, um druida começou a agitar dois ramos de visco em movimentos complicados e Belafon pousou a enorme laje sobre duas vigas gigantescas com um dique rápido.

Rincewind soltou a respiração num suspiro demorado. E ela saiu correndo, para se esconder em algum lugar.

Uma escada de mão surgiu ao lado da laje, e logo a cabeça de um druida mais velho aparecia sobre a beirada. Ele olhou intrigado para os dois passageiros e então encarou Belafon.

— Maldição, já não era sem tempo! — disse. — Sete semanas para o Reveillon dos Porcos, e acontece isso outra vez.

— Oi, Zakriah — disse Belafon. — O que foi agora?

— Está completamente pirado. Hoje, previu o pôr-do-sol três minutos mais cedo. É uma geringonça, cara.

Belafon subiu na escada e desapareceu de vista, Os passageiros se entreolharam, então correram os olhos para o grande espaço entre os círculos internos de pedra.

— O que fazemos agora? — perguntou Duasflor.

— Dormimos? — sugeriu Rincewind.

Duasflor o ignorou e desceu a escada.

Ao redor do círculo, druidas batiam nos megalíticos com martelinhos e ouviam os ruídos com atenção. Havia várias dessas pedras pelos lados, e cada uma delas estava cercada por um grupo de druidas que as examinavam cuidadosamente e discutiam entre si. Frases misteriosas chegavam até Rincewind:

— Não pode ser incompatibilidade de software... O Salmo da Espiral Pisada foi desenhado para anéis concêntricos, idiota...

— Acho que devemos acender de novo e tentar um ritual lunar mais simples...

— ... tudo bem, tudo bem, não tem nada de errado com a pedra; foi o universo que errou, não foi?...

Através das brumas de sua mente exausta, Rincewind se lembrou da estrela pavorosa que havia visto no céu. Na noite passada, alguma coisa no universo estivera de fato errada.

Como ele tinha voltado para o Disco?

O mago teve a sensação de que a resposta se encontrava em algum lugar dentro de sua cabeça. E começou a ter uma sensação ainda mais desagradável de que algo vinha assistindo à cena logo abaixo por trás de seus olhos.

O Feitiço saíra da toca, nas inexploradas estradas esburacadas da mente de Rincewind e agora estava sentado como um peso de ferro no cérebro dele, assistindo ao que se passava e fazendo o equivalente mental de comer pipoca.

O mago tentou afastá-lo para trás. E o mundo desapareceu... Ele estava no escuro — um breu quente e bolorento, a escuridão de uma tumba, o negrume aveludado do caixão de uma múmia.

Sobreveio um cheiro forte de couro velho e ranço de papel antigo. O papel se agitou.

O mago suspeitou que a escuridão estivesse cheia de horrores inimagináveis — e o problema com horrores inimagináveis é que sempre são fáceis demais de se imaginar...

— Rincewind — ressoou uma voz.

Rincewind jamais ouvira um lagarto falar, mas, se algum falasse, teria uma voz como aquela.

— Hã — disse ele. — O quê?

A voz riu — um som estranho, como se fosse papel vibrando.

— Você deveria perguntar “Onde estou?”

— Se eu souber, vou gostar? — indagou Rincewind.

Então forçou a vista na escuridão. Agora que já estava se acostumando à falta de luz, dava para ver alguma coisa. Alguma coisa vaga, sem brilho suficiente para ser qualquer coisa, apenas um simples arabesco no espaço. Algo estranhamente familiar.

— Tudo bem — disse ele. — Onde estou?

— Você está sonhando.

— Será que já posso acordar?

— Não — respondeu outra voz, tão velha e áspera como a primeira, mas um pouco diferente.

— Temos um assunto muito importante para falar com você — disse uma terceira voz, ainda mais cadavérica do que as outras.

Rincewind fez que sim com a cabeça, aparvalhado. O Feitiço se escondeu nos fundos de sua mente e passou a espiar cautelosamente por cima do seu ombro mental.

— Você nos deu muito trabalho, caro Rincewind — prosseguiu a voz. — Toda essa história de cair da beira do mundo sem se preocupar com os outros. Tivemos que distorcer seriamente a realidade, sabia?

— Caramba!

— E agora você tem uma tarefa muito importante à frente.

— Ah, que bom.

— Muitos anos atrás, conseguimos que um de nós se escondesse na sua cabeça, porque antevimos a chegada de uma hora em que você precisaria desempenhar um papel fundamental.

— Eu? Por que eu?

— Porque sabe se safar — observou uma das vozes. — Isso é bom. Você é um sobrevivente.

— Sobrevivente? Quase morri uma centena de vezes!

— Exatamente.

— Mas tente não cair mais do Disco. Não podemos aceitar isso.

— Quem é “nós”? — perguntou Rincewind.

Irromperam sussurros na escuridão.

— No começo, era a palavra — atestou uma voz áspera, a seu lado.

— Era o Ovo — corrigiu outra voz. — Eu me lembro muito bem. O Grande Ovo do Universo. Um pouco emborrachado.

— Na verdade, os dois estão enganados. Tenho certeza de que foi a lama primordial.

Uma voz à altura do joelho de Rincewind reagiu:

— Não, isso foi depois. Antes, teve o firmamento. Um monte de firmamento. Meio grudento, como algodão-doce. Na realidade, melado...

— Caso alguém esteja interessado — gritou uma voz quebradiça, à esquerda de Rincewind. — Estão todos errados. No começo, era o Pigarro...

— ... então, a palavra...

— Com licença, a lama...

— Um pouco emborrachado, eu pensei...

Houve uma pausa. Então, com tato, uma voz concluiu:

— Enfim, o que quer que tenha sido, lembramo-nos muito bem.

— Com certeza.

— Sem dúvida.

— E a sua tarefa, Rincewind, é garantir que nada de ruim aconteça a ele.

— Ah.

Rincewind apertou os olhos contra a escuridão.

— Vocês fariam a gentileza de explicar sobre o que estão falando?

Houve um suspiro.

— Chega de metáforas — irritou-se uma das vozes. — Olhe aqui, é muito importante que você proteja o Feitiço e o traga de volta no momento certo, entendeu? Para que possamos ser ditos, quando for a hora. Entendeu?

Rincewind pensou: possamos ser ditos?

Então lhe ocorreu o que eram os arabescos à frente. Tratava-se da escritura de uma página, vista de baixo.

— Estou dentro do Oitavo? — perguntou ele.

— Sob certos aspectos metafísicos — respondeu uma das vozes em tom distraído. E se aproximou. Rincewind sentiu o movimento áspero bem na frente do nariz...

E deu o fora.

O pontinho vermelho brilhava naquele trecho das trevas. Trymon, ainda com o manto cerimonial de sua investidura como chefe da ordem, não conseguia abandonar a sensação de que o pontinho havia crescido ligeiramente enquanto observava. Então se afastou da janela com um arrepio.

— E aí? — perguntou.

— É uma estrela — respondeu o professor de astrologia. — Acho.

—Você acha?

O astrólogo se encolheu. Os dois estavam no observatório da Universidade Invisível, e o minúsculo rubi no horizonte não era menos assustador do que seu novo mestre.

— Bem, a questão é que há muito tempo acreditamos que as estrelas são mais ou menos como o nosso sol...

— Você quer dizer bolas de fogo com cerca de 2 quilômetros de diâmetro?

— E. Mas essa nova é, hã... grande.

— Maior do que o sol? — surpreendeu-se Trymon.

Ele sempre achou que uma bola de fogo com 2 quilômetros já era bastante admirável, embora, por princípio, não gostasse de estrelas. Faziam o céu parecer bagunçado.

— Bem maior — disse o astrólogo, devagar.

— Maior do que a cabeça de Grande A’Tuin?

O astrólogo pareceu aflito.

— Maior do que Grande A’Tuin e o Discworld juntos — atestou. — Já verificamos e estamos completamente convencidos disso.

— É grande — assentiu Trymon. — A palavra “enorme” vem à mente.

— Imensa — concordou o astrólogo.

— Hum.

Trymon se pôs a andar pelo chão ladrilhado do observatório, enfeitado com os signos do zodíaco do Disco. Havia 64 deles, de Wezen, o Canguru de Duas Cabeças, a Gahoolie, o Vaso de Tulipas (constelação de grande importância religiosa, cujo significado — ai de nós! — havia se perdido).

Ele fez uma pausa no desenho azul e dourado de Mubbo, a Hiena, e se virou de repente.

— Vamos nos chocar? — perguntou.

— Temo que sim — respondeu o astrólogo.

— Hum.

Trymon deu mais alguns passos adiante, passando a mão na barba, de maneira pensativa. Então parou no ápice de Okfulano, o Caixeiro-Viajante, e O Nabo Celestial.

— Não sou especialista nesses assuntos — notou ele — Mas imagino que isso não seja bom.

— Não, senhor.

— Muito quentes, as estrelas?

O astrólogo engoliu em seco.

— Sim, senhor.

— Morreríamos queimados?

— Mais cedo ou mais tarde. É claro que, antes, haveria disquemotos, maremotos, transtornos gravitacionais e, provavelmente, a atmosfera sucumbiria.

— Ah. Em poucas palavras, falta de organização.

O astrólogo hesitou, depois assentiu:

— Acho que poderíamos dizer isso.

— As pessoas ficariam em pânico?

— Receio que por bem pouco tempo.

— Hum — disse Trymon, passando sobre O Portão Talvez e dirigindo-se à Vaca do Paraíso.

Ele fitou o ponto vermelho no horizonte. E pareceu chegar a uma conclusão.

— Não conseguimos achar Rincewind — disse por fim. — E, se não conseguirmos achar Rincewind, não vamos chegar a um dos feitiços do Oitavo. E acreditamos que o Oitavo deva ser lido para se evitar uma catástrofe... Do contrário, por que o Criador o teria deixado para trás?

— Talvez Ele fosse esquecido — sugeriu o astrólogo.

Trymon o encarou.

— As outras Ordens vêm fazendo buscas em todos os países daqui até a Centrolândia — continuou ele, contando os lugares nos dedos — porque parece absurdo que um homem possa entrar numa nuvem e não sair...

— A não ser que fosse recheada de pedras — brincou o astrólogo, numa tentativa infeliz e, como acabou se mostrando, completamente mal-sucedida de melhorar os ânimos.

— Mas ele tem que descer... em algum lugar. Onde? É o que nos perguntamos.

— Onde? — repetiu o astrólogo, com lealdade.

— E logo uma solução se apresenta para nós.

—Ah! — exclamou o astrólogo, apressando o passo para acompanhar o mago, que já andava sobre As Duas Primas Gordas.

— E essa solução é...?

O astrólogo mirou dois olhos cinzentos e frios como gelo.

— Hum. Parar de procurar? — arriscou ele.

— Exatamente! Usamos os dons que o Criador nos deu, olhamos para baixo e o que vemos?

O astrólogo murmurou algumas palavras. E olhou para baixo.

— Ladrilhos? — arriscou.

— Isso mesmo, ladrilhos; que juntos compõem o...?

Trymon pareceu ansioso.

— Zodíaco? — aventurou o astrólogo, em desespero.

— Certo! E portanto tudo que precisamos fazer é traçar o horóscopo exato de Rincewind e vamos saber onde ele está!

O astrólogo sorriu como a pessoa que, tendo sapateado em areia movediça, sente a pressão da terra firme sob os pés.

— Vou precisar saber o lugar e a hora de nascimento — avisou ele.

— Fácil de resolver. Copiei dos arquivos da universidade antes de vir para cá.

O astrólogo viu as informações e franziu a testa. Então cruzou o laboratório e abriu uma gaveta larga, cheia de mapas. Depois, leu as informações mais uma vez, pegou um compasso e fez alguns círculos nesses mapas. Aí apanhou um pequeno astrolábio e girou a manivela com cuidado. Por fim, assobiou por entre os dentes, pegou um pedaço de giz e rabiscou alguns números num quadro-negro.

Trymon, enquanto isso, observava a nova estrela. Ele pensou: a lenda da Pirâmide de Tsort garante que quem disser os Oito Feitiços juntos quando o Disco estiver em perigo vai receber tudo o que almeja. E será em tão pouco tempo!

Também pensou: Lembro-me de Rincewind; não era o menino esfarrapado que sempre acabava sendo o último da turma nas aulas? Nem ao menos uma veia mágica no corpo. Deixe-me ficar cara a cara com ele, e veremos se não pego todos os Oito...

O astrólogo sussurrou:

— Caramba!

Trymon se virou.

— Então?

— Um mapa incrível — disse ele, ofegante.

A testa se franziu.

— Na verdade, um pouco estranho — completou.

— Estranho como?

— Ele nasceu em O Pequeno e Enfadonho Grupo de Estrelas Fracas, que, como o senhor sabe, fica entre O Alce Voador e O Barbante Atado. Dizem que mesmo os antigos não conseguiam achar nada de interessante para dizer sobre o signo, que...

— Está bem, está bem, prossiga — irritou-se Trymon.

— É o signo tradicionalmente associado a fabricantes de tabuleiros de xadrez, vendedores de cebola, fabricantes de imagens de gesso com pouca importância religiosa e pessoas alérgicas a ligas de estanho e chumbo. Está longe de ser um signo de mago. E, na hora em que ele nasceu, a sombra de Cori Celesti...

— Eu não quero saber todos os detalhes técnicos — resmungou Trymon. — Apenas fale do horóscopo.

O astrólogo, que vinha se deleitando com as explicações, suspirou e fez alguns cálculos adicionais.

— Muito bem — assentiu ele. — Diz o seguinte: “Uma boa ação pode trazer conseqüências imprevistas. Não aborreça nenhum druida. Em breve, você vai fazer uma viagem muito estranha. Seu alimento de sorte são pepininhos. Não confie em pessoas apontando facas para você. PS: não estamos brincando em relação aos druidas”.

— Druidas? — espantou-se Trymon. — Fico imaginando...

— Você está bem? — perguntou Duasflor.

Rincewind abriu os olhos.

O mago se sentou às pressas e agarrou o rapaz pela camisa.

— Quero sair daqui! — disse correndo. — Agora!

— Mas vai acontecer uma cerimônia antiga e tradicional!

— Não me interessa que seja antiga! Quero sentir pedras de verdade debaixo dos pés, quero o cheiro familiar das fossas, quero ir para onde tenha gente, incêndios, telhados, paredes e coisas simpáticas assim! Quero ir para casa!

De repente, ele se descobriu com essa saudade desesperada das ruas enfumaçadas de Ankh-Morpork, que sempre estavam no auge durante a primavera, quando o brilho viscoso das águas barrentas do rio Ankh exibia uma iridescência toda especial e os beirais eram tomados pelo canto dos pássaros, ou pelo menos os pássaros tossiam ritmados.

Uma lágrima brotou nos seus olhos ao recordar o sutil jogo de luzes no Templo dos Pequenos Deuses — famosa construção local — e um aperto lhe surgiu na garganta quando se lembrou da barraca de peixe frito na esquina da rua Estrumeira com a rua dos Artesãos Dissimulados. Ele pensou nos pepinos em conserva que se vendiam por lá — negocinhos verdes escondidos no fundo do vidro como baleias afogadas. Eles chamavam Rincewind à distância, prometendo ovos à vinagrete no vidro seguinte.

O mago pensou nas estrebarias aconchegantes e celas quentes em que passava as noites. Como um tolo, muitas vezes reclamara daquela vida. Parecia incrível agora, mas chegou a achá-la tediosa.

Pois já bastava. Iria para casa. Picles de pepino, ouço seu chamado.

O mago empurrou Duasflor para o lado, ajeitou o manto esfarrapado em volta do corpo, voltou o rosto para a parte do horizonte em que acreditava se encontrar sua cidade natal e, com enorme determinação associada a considerável descuido, deu um passo para fora da pedra de nove metros.

Cerca de dez minutos mais tarde — quando um Duasflor aflito e desconsolado cavou-o para fora do monte de neve na base das pedras —, a fisionomia do mago não havia mudado. Duasflor o encarou.

— Você está bem? — perguntou ele. — Quantos dedos tem aqui?

— Eu quero ir para casa!

— Certo.

— Não, não venha tentar me convencer do contrário. Chega. Eu gostaria de poder dizer que foi divertido, mas não posso e... O quê?

— Eu disse “certo” — repetiu Duasflor. — Também quero ver Ankh-Morpork de novo. Imagino que a essa altura já devam ter reconstruído grande parte dela.

Devemos lembrar que, na última vez em que os dois viram a cidade, Ankh-Morpork era consumida por um incêndio atroz, fato que teve muito a ver com Duasflor apresentando o conceito de seguro contra incêndio a uma gente simplória, ignorante, mas interessada. Incêndios devastadores eram uma característica da vida morporkiana, e a cidade sempre fora reconstruída com prazer e meticulosidade, sempre com os mesmos materiais: madeira bem seca e telhados impermeabilizados com alcatrão.

— Ah — soltou Rincewind, um pouco mais calmo. — Ah, tudo bem. Ótimo. Então talvez seja melhor a gente ir andando.

O mago se endireitou e limpou a neve da roupa.

— Só acho que deveríamos esperar até amanhã – acrescentou Duasflor.

—Porquê?

— Bem, porque está frio de doer, não sabemos que lugar é este, a Bagagem sumiu, está escurecendo...

Rincewind parou. Nos enormes desfiladeiros de sua mente, pensou ouvir o barulho distante de papéis antigos. Então teve a terrível sensação de que, dali por diante, os sonhos seriam bastante repetitivos... E ele tinha coisas muito melhores a fazer do que ser repreendido por um bando de feitiços antigos que nem mesmo chegavam a um acordo sobre a origem do universo...

Uma voz desencorpada no fundo de sua mente perguntou:

— Que coisas?

— Ah, cale a boca — disse ele.

— Eu só disse que está frio de doer e... — começou Duasflor.

— Não era com você que eu estava falando. Era comigo.

— O quê?

— Ah, cale a boca — disse Rincewind, enfastiado. — Imagino que aqui não tenha nada para comer.

As pedras gigantescas se mostravam negras e ameaçadoras contra o pôr-do-sol esverdeado. O círculo interno estava cheio de druidas, caminhando à luz de diversas fogueiras e ligando todos os periféricos necessários a um computador de pedra, como crânios de carneiro em mastros cobertos de visco, telas enfeitadas com cobras torcidas e assim por diante. Para além dos círculos de luz, aglomerava-se um grande número de pessoas — os festivais druídicos sempre foram populares, especialmente quando algo saía errado.

Rincewind olhou para elas.

— O que está acontecendo?

— Ah, sim — entusiasmou-se Duasflor. — Parece que vai ter uma cerimônia que data de mil anos para comemorar o, hã, renascimento da lua, ou talvez do sol. Não, tenho quase certeza de que se trata da lua. É um ritual muito solene, nobre e bonito.

Rincewind sentiu um calafrio. Sempre ficava preocupado quando Duasflor começava a divagar daquele jeito. O rapaz pelo menos ainda não tinha falado “pitoresco” ou “exótico”. O mago jamais encontrara uma tradução satisfatória para as palavras, mas a que chegava mais perto era “problema”.

— Quem dera a Bagagem estivesse aqui! — lamentou o turista. — Eu poderia usar a caixa de retratos. O ritual deve ser muito exótico e pitoresco.

A multidão se agitou, em expectativa. A cerimônia estava claramente prestes a começar.

— Olhe aqui — advertiu Rincewind, às pressas. — Druida é padre. Não se esqueça disso. Não faça nada que possa aborrecer um deles.

— Mas...

— Não tente comprar as pedras.

— Mas eu...

— Não desande a falar de costumes nativos exóticos.

— Eu achava...

— De maneira alguma, tente vender apólices de seguro; isso sempre deixa os druidas chateados.

— Mas eles são padres! — objetou Duasflor.

Rincewind se deteve.

— Exatamente — disse afinal. — Esse é o problema, não é?

Num lado afastado do círculo externo, uma espécie de procissão se formava.

— Mas os padres são homens bons e generosos — argumentou Duasflor. — Na minha terra, andam mendigando com tigelas. São seu único bem — acrescentou ele.

— Ah! — exclamou Rincewind, sem saber se havia de fato entendido. — Seriam para botar o sangue dentro?

— Sangue?

— É, dos sacrifícios.

Rincewind pensou nos padres que conhecia. É claro que o Mago jamais pretendera ganhar a inimizade de um deus, então assistira ao culto de diversos templos e, no todo, achava que a definição mais precisa para qualquer padre nas regiões do Mar Círculo era “alguém que passa bastante tempo com sangue até o sovaco”.

Duasflor pareceu horrorizado.

— Ah, não — retrucou ele. — De onde venho, os padres são homens santos que se devotam a uma vida de pobreza, boas ações e estudos sobre Deus.

Rincewind considerou a idéia.

— Sem sacrifícios? — perguntou por fim.

— Claro.

O mago cedeu.

— Bem — arriscou ainda. — Não me parecem muito santos.

Soaram algumas cornetas. Rincewind correu os olhos à volta. Uma fileira de druidas começou a marchar, levando grandes foices cheirando a visco. Muitos aprendizes iam atrás, tocando uma infinidade de instrumentos de percussão, que a tradição dizia afastar espíritos ruins — e era provável que assim fosse.

A luz das tochas dava formas estranhamente dramáticas às pedras, que ainda se mostravam sinistras contra o céu esverdeado. Em direção ao Meio, as cortinas tremeluzentes da aurora centroreal começavam a cintilar entre as estrelas, enquanto um milhão de cristais de gelo dançava no campo mágico do Disco.

— Belafon me explicou tudo — sussurrou Duasflor. — Vamos assistir a uma cerimônia tradicional que celebra a Unidade do Homem com o Universo. Foi o que ele disse.

Rincewind olhou amargamente para a procissão. Enquanto os druidas se espalhavam em torno da grande laje que dominava o centro do círculo, o mago não pôde deixar de notar a bela e pálida jovem ali no meio. Ela vestia um manto branco, usava um colar de ouro e apresentava uma fisionomia de vaga apreensão.

— É uma druidesa? — perguntou Duasflor.

— Acho que não — respondeu Rincewind, devagar.

Os druidas deram início ao cântico. Rincewind considerou que se tratava de um hino particularmente desagradável e bastante enfadonho, parecendo se intensificar num crescendo súbito. Ver a jovem deitada na pedra não contribuía em nada para mudar sua opinião.

— Quero ficar — insistiu Duasflor. — Acho que rituais assim remontam a uma simplicidade primitiva que...

— É, é — assentiu Rincewind. — Mas vão sacrificar a moça, se você quer saber.

— Por quê?

— Sei lá eu por quê. Para a colheita ser boa, a lua subir ou algo do tipo. Talvez apenas gostem de matar. É a religião dessa gente por quem você se interessa.

O mago ouviu um zumbido baixo, que mais se sentia do que se escutava e parecia vir de uma pedra próxima a eles. Pontinhos de luz piscavam sob a superfície, como partículas de mica.

Duasflor estava boquiaberto.

— Mas não podem usar flores e frutas? — quis saber ele. — De maneira simbólica?

— Não.

— Já tentaram?

Rincewind suspirou.

— Olhe aqui — começou ele. — Nenhum Sumo Sacerdote que se preze vai passar por toda essa história de estandartes, cornetas e procissão para enfiar a faca numa margarida e em duas ameixas. Você tem que admitir, essa conversa de ramos dourados e ciclos da natureza sempre se resume a sexo e violência, em geral ao mesmo tempo.

Para surpresa do mago, os lábios de Duasflor estavam tremendo. O rapaz não apenas olhava o mundo através de lentes cor-de-rosa, mas também o filtrava por uma mente cor-de-rosa e o escutava com ouvidos da mesma cor.

O cântico se intensificou num crescendo. O druida-mor testou a lâmina da foice, e todos os olhos se voltaram para a ponta de pedra nos montes nevados, no local em que a lua faria uma participação especial.

— Não adianta você...

Mas Rincewind estava falando sozinho.

A fria paisagem além do círculo, entretanto, não se mostrava de todo desprovida de vida. Em primeiro lugar, um grupo de magos vinha se aproximando, alertado por Trymon.

Mas um tipo pequeno e solitário também observava, escondido numa pedra providencialmente tombada. Uma das maiores lendas vivas do Discworld assistia aos acontecimentos no círculo de pedra com interesse considerável.

Ele viu os druidas se juntarem e desatarem a cantar, notou o druida-mor erguer a foice...

Ouviu uma voz.

— Com licença! Será que posso dar uma palavrinha?

Em desespero, Rincewind procurou uma saída. Não havia nenhuma. Duasflor estava parado ao lado do altar de pedra com um dedo levantado e ares de determinação.

Rincewind se lembrou do dia em que Duasflor tinha achado que um vaqueiro vinha batendo no rebanho com força demasiada, e sua argumentação em prol da piedade para com os animais fizera com que Rincewind fosse pisoteado e levemente corneado.

Os druidas fitavam Duasflor com a mesma expressão dispensada a ovelhas ensandecidas ou a uma inusitada chuva de sapos. Rincewind não conseguia ouvir tudo o que o rapaz dizia, mas algumas expressões, como “cultura popular étnica” e “nozes e flores”, atravessavam o círculo, agora mergulhado em silêncio.

Então alguns dedos finos apertaram a boca do mago, uma ponta afiada lhe espetou o pomo-de-adão, e uma voz soou bem ao seu ouvido:

— Nem um pio, ou vochê morre.

Os olhos de Rincewind giravam nas órbitas como se tentassem fugir.

— Se não quer que eu fale, como vai saber se entendi o que você acabou de dizer? — sussurrou ele.

— Cale a boca e me diga o que o outro imbechil eschtá fazendo!

— Olhe só, se tenho que calar a boca, como é que posso...

A faca se espetou um pouco na garganta, e Rincewind resolveu deixar a lógica de lado.

— O nome dele é Duasflor. Não é daqui.

— Não pareche. Amigo cheu?

— É, temos uma espécie de relação de ódio-ódio.

Rincewind não conseguia ver seu algoz, mas, até onde dava para sentir, parecia que o corpo era feito de cabides. Também cheirava forte a hortelã-pimenta.

— Admito que o rapach tem peito. Facha exatamente o que eu discher, e é poschfvel que ele não acabe com escha parte do corpo cheia de pedrasch.

— Argh!

— Aqui não chão muito ecumênicos.

Foi nesse instante que a lua subiu — em obediência cega às leis do poder de persuasão —, embora, em respeito às leis da computação, não tivesse ficado nem perto de onde as pedras tinham determinado.

O que havia no local, parcialmente visível através das nuvens falhas, era uma estrela vermelha e brilhante. Ela pairava sobre a pedra mais sagrada do círculo, reluzindo como o fulgor das órbitas oculares da Morte. Era sombria e terrível e — Rincewind não pôde deixar de notar — estava um pouco maior do que na noite anterior.

Os padres ali reunidos soltaram um grito de horror. A multidão nas ladeiras circunjacentes se inclinou para a frente; aquilo parecia promissor.

Rincewind sentiu um punho de faca lhe passar para a mão. E a voz chiada perguntou:

— Já fez esche tipo de coisa?

— Que tipo de coisa?

— Entrar no templo, matar osch padresch, roubar o ouro e chalvar a garota.

— Não, não exatamente.

— Facha aschim.

A cinco centímetros da orelha de Rincewind, a voz se transformou no som de um babuíno com a pata presa num desfiladeiro cheio de ecos, e um vulto pequeno mas vigoroso disparou por ele.

À luz das tochas, o mago viu que se tratava de um velho, o tipo magricela que as pessoas em geral chamam de “um senhor muito ativo”, com a cabeça completamente calva, a barba quase batendo no joelho e um par de pernas esqueléticas, nas quais as varizes traçaram o mapa de uma cidade bem grande. Apesar da neve, o homem não usava nada além de uma tanga de couro com tachas e um par de botas que poderia facilmente acomodar um segundo par de pés.

Os dois druidas mais próximos se entreolharam e suspenderam as foices. Houve uma rápida confusão, e então caíram rolando de dor e fazendo grande alarido.

No alvoroço que se seguiu, Rincewind avançou de lado até o altar de pedra, segurando a faca com cuidado para evitar críticas indesejáveis. Na verdade, ninguém estava prestando muita atenção nele; os druidas que não debandaram do círculo — em geral os mais jovens e musculosos — vinham se reunindo em torno do velho, com vistas a discutir toda a questão do sacrilégio no que se referia a círculos de pedra, mas, a julgar pelos cacarejos e pelos sons de chicote, ele estava ganhando o debate.

Duasflor assistia à luta com atenção. Rincewind agarrou o seu ombro.

— Vamos embora — disse ele.

— Não devemos ajudar?

— Tenho certeza de que só atrapalharíamos — apressou-se em dizer Rincewind. — Sabe como é ter alguém espiando enquanto trabalhamos?

— Pelo menos precisamos salvar a moça — argumentou Duasflor, resoluto.

— Tudo bem, mas vamos logo!

Duasflor pegou a faca e correu pelo altar de pedra. Depois de vários golpes frustrados, conseguiu por fim cortar as cordas em torno da garota, que então se sentou e desatou a chorar.

— Está tudo bem... — começou ele.

— Está o caramba! — rebateu ela, fitando-o com dois olhos vermelhos. — Por que as pessoas sempre têm que estragar tudo?

Ela assoou o nariz na ponta do manto. Constrangido, Duasflor encarou Rincewind.

— Hã, acho que você não entendeu muito bem — ele disse. — Quer dizer, acabamos de salvá-la de uma morte quase certa.

— Aqui não é nada fácil — reclamou ela. — Quer dizer, a gente se manter...

Ela corou e torceu a bainha do manto com tristeza.

— Quer dizer, ficar... não se deixando... não perder as qualificações...

— Qualificações? — perguntou Duasflor, ganhando assim o Troféu Rincewind de pessoa mais lenta em entendimento do mundo.

Os olhos da garota se arregalaram.

— A essa altura, eu poderia estar lá em cima com a Deusa Lua, bebendo hidromel num vaso de prata — lamentou-se ela. — Oito anos de sábado à noite em casa jogados no lixo!

Ela olhou para Rincewind e franziu a testa.

Então o mago sentiu algo. Talvez fosse o som de um passo que mal se pudera ouvir logo atrás, ou talvez fossem os movimentos refletidos nos olhos da moça... mas ele abaixou.

Alguma coisa zuniu pelo ar onde seu pescoço estivera e bateu na cabeça de Duasflor. Rincewind se virou, viu o arquidruida preparar a foice para outra investida e, na falta de qualquer esperança de escapar, atacou desesperadamente com o pé, acertando sua rótula.

Enquanto o homem gritava de dor e largava sua arma, houve um ruído pavoroso, e ele tombou para a frente. Logo atrás, o velho de barba comprida tirou a espada do corpo caído, limpou a lâmina com um punhado de neve e disse:

— Meu lumbago eschtá me matando. Pode levar o tesouro.

— Tesouro? — surpreendeu-se Rincewind.

— Cordõesch. Todos osch colaresch de ouro. Tem muitosch — observou o velho. — É para o que chervem osch padresch. Nada fora tungar, tungar, tungar. Quem é a mocha?

— Ela não quer ser salva — explicou Rincewind.

A garota encarou o velho em desafio, com a maquiagem dos olhos borrada.

— Dane-che — reagiu ele.

E, com um único movimento, tomou-a nos braços, cambaleou um pouco, gritou por causa da artrite e caiu.

Depois de uns instantes, ainda de bruços, berrou:

— Não fique aí parada, chua anta... E me ajude a levantar.

Para surpresa de Rincewind — e quase certamente dela própria —, a garota obedeceu.

Rincewind, nesse meio tempo, vinha tentando acordar Duasflor. Havia uma ferida não muito funda em sua têmpora, mas o rapaz estava inconsciente, com um sorriso de leve preocupação estampado no rosto. A respiração era superficial e... estranha.

E ele parecia leve. Não apenas abaixo do peso, mas sem peso algum. Era como se o mago estivesse segurando uma sombra.

Rincewind se lembrou do que as pessoas diziam sobre os estranhos e terríveis venenos usados pelos druidas. É claro, com freqüência as mesmas pessoas diziam que bandidos sempre tinham olhos próximos um do outro, que raios nunca atingiam o mesmo lugar duas vezes e que, se os deuses quisessem que o homem voasse, teriam lhe dado passagens aéreas. Mas alguma coisa na ausência de peso de Duasflor assustou Rincewind. E assustou-o bastante.

O mago olhou para a garota. Ela estava com o velho pendurado no ombro e dirigiu um meio sorriso de desculpas para Rincewind. De algum ponto das costas dela, uma voz irrompeu:

— Pegou tudo? Vamosch embora antesch que elesch voltem.

Rincewind meteu Duasflor debaixo do braço e se pôs a segui-los. Parecia a única coisa a fazer. A alguma distância dos círculos, o velho havia amarrado seu grande corcel branco em uma árvore seca, sobre uma vala cheia de neve. O animal era lustroso, e a impressão geral de um soberbo cavalo de batalha só era levemente manchada pela almofada circular, própria para quem sofre de hemorróidas, atada à sela.

— Tudo bem, pode me pôr no chão. Tem uma garrafa de ungüento no alforje, che vochê não che importa...

Rincewind depositou Duasflor com o máximo cuidado contra uma árvore e, ao clarão do luar — e, ele percebeu, também à luz vermelha da estrela ameaçadora —, pela primeira vez examinou o homem que havia salvado sua vida.

O velho tinha somente um olho; o outro estava coberto por um retalho de pano preto. O corpo franzino era uma malha de cicatrizes e, no momento, contraía-se de tendinite. Era óbvio que, fazia muito tempo, os dentes decidiram abandoná-lo.

— Quem é você? — perguntou o mago.

— Bethan — respondeu a garota, esfregando um pouco do ungüento verde e fedorento nas costas do velho.

Se lhe pedissem para considerar que tipo de episódios poderiam acontecer depois de se ver salva de um sacrifício ritual por um herói com cavalo branco, provavelmente ela não teria mencionado “friccionar as costas de alguém”. Mas agora que isso era de fato a realidade vivida, estava determinada a ser eficiente no que fazia.

— Eu estava falando com ele — explicou Rincewind.

Um olho brilhante o fitou.

— Meu nome é Cohen, rapach.

As mãos de Bethan pararam.

— Cohen? — perguntou ela. — Cohen, o Bárbaro?

— Eu meschmo.

— Espere aí, espere aí — interveio Rincewind. — Cohen é um sujeito grande, com pescoço de touro e peito musculoso. Quer dizer, é o maior guerreiro do Discworld, uma lenda viva. Lembro do meu avô dizendo que viu... meu avô dizendo... meu avô...

O mago vacilou sob o olhar penetrante do velho.

— Ah — acrescentou por fim. — Ah. É claro. Desculpe.

— É — disse Cohen, suspirando. — Ischo meschmo, rapach. Chou uma vida na minha própria lenda.

— Minha nossa! — exclamou Ríncewind. — Quantos anos você tem?

— Oitenta e chete.

— Mas você era o maior! — alegrou-se Bethan. — Os bardos ainda cantam músicas a seu respeito.

Cohen encolheu os ombros e soltou um ganido de dor.

— Não ganho djreitosch autoraisch — reclamou ele, olhando melancolicamente para a neve. — É a chaga da minha vida. Oitenta anosch no negóchio, e o que tenho? Dor nasch coschtasch, hemorróidasch, má digechtão e um monte de recheitas de chopa. Chopa! Deteschto chopa!

A testa de Bethan se franziu.

— Chopa?

— Sopa — explicou Rincewind.

— É, chopa — confirmou ele, desconsolado. — Chão osch dentesch, chabe? Ninguém nosch leva a chério quando não temosch dentesch. Dizem: “Vovô, chente-che perto da fogueira e tome um pouco de cho...”

Cohen fitou Rincewind.

— Rapach, que tosche feia!

O mago desviou os olhos, sem conseguir encarar Bethan. Então o coração se apertou. Duasflor ainda estava apoiado na árvore, tranqüilamente inconsciente e parecendo altamente recriminável naquelas circunstâncias.

Cohen também deve ter se lembrado do homenzinho, por que ficou de pé e se arrastou até onde estava. Então abriu os dois olhos do turista, examinou a ferida e verificou a pulsação.

— Ele che foi — disse afinal.

— Morreu? — alarmou-se Rincewind.

Na sala de debates de sua mente, uma dezena de emoções se levantaram e começaram a gritar. Alívio já tagarelava quando Choque interveio com uma questão de ordem, então Perplexidade, Terror e Perda começaram uma briga que só terminou quando Vergonha surgiu da sala ao lado para ver do que se tratava a confusão.

— Não — respondeu Cohen, pensativo. — Não exatamente. Apenasch che foi.

— Foi para onde?

— Não chei — admitiu o herói. — Mas acho que conhecho alguém que pode ter um mapa.

Num remoto campo nevado, meia dúzia de pontinhos vermelhos brilhava nas sombras.

— Ele não está longe — informou o mago que ia à frente, investigando a pequena bola de cristal.

Irrompeu um murmúrio generalizado, que, mais ou menos, dizia: por mais longe que Rincewind se encontre, não pode estar distante de um banho quente, um bom prato de comida e uma cama aconchegante.

Então o mago que vinha por último se deteve e falou:

— Ouçam!

Todos ficaram atentos e ouviram. Havia os sutis ruídos do inverno começando a dominar o ambiente, o estalido das rochas, o som abafado dos passos de pequenas criaturas nos túneis abertos sob o tapete de neve. Num bosque longínquo, um lobo uivou, ficou constrangido por ninguém acompanhá-lo e parou. Havia o som prateado do luar; e também o chiado de seis magos tentando respirar baixo.

— Não estou ouvindo nada... — começou um deles.

— Psiu!

—Tudo bem, tudo bem...

Então todos escutaram um rangido distante, como algo se movendo depressa na crosta de neve.

— Lobos? — perguntou um mago.

Os feiticeiros imaginaram centenas de animais magros e famintos saltando pela noite.

— N-não — respondeu o líder. — É regular demais. Talvez um mensageiro.

Agora já estava mais alto, num ritmo bastante intenso, como alguém comendo salsão muito depressa.

— Vou disparar um foguete — avisou o líder.

O mago pegou um punhado de neve, fez uma bola, jogou-a no ar e acendeu-a com um raio de fogo octarina saído da ponta dos dedos. Surgiu uma breve e impetuosa chama azul.

Então veio o silêncio. Aí outro mago disse:

— Seu imbecil, agora não consigo enxergar nada.

Foi a última coisa que ouviram antes de um negócio duro, barulhento e veloz sair da escuridão, trombar com eles e desaparecer na noite.

Depois que os homens cavaram uns aos outros na neve, tudo que encontraram foi uma trilha funda de pequenas pegadas. Centenas de pequenas pegadas, todas bem juntas e avançando em linha reta, como o facho de uma lanterna.

— Uma necromante! — exclamou Rincewind.

A velha do outro lado da fogueira deu de ombros e tirou um baralho de cartas gordurosas de algum bolso invisível.

Apesar do frio medonho que estava lá fora, a tenda circular parecia um forno de ferreiro, e o mago já estava suando em bicas. Esterco de cavalo era bom combustível, mas o Povo Cavaleiro tinha muito a aprender sobre ar-condicionado, a começar pelo que significava.

Bethan se inclinou de lado.

— O que é negro amante? — perguntou ela.

— Necromancia. Falar com os mortos — explicou o mago.

— Ah — disse ela, ligeiramente decepcionada.

Eles jantaram carne de cavalo, mortadela de cavalo e queijo de égua regados a égua-mate e uma cerveja aguada, da qual Rincewind achou melhor não perguntar a origem. Cohen (que havia tomado sopa de cavalo) explicou que as tribos cavalares das estepes de Centrolândia já nasciam na sela — o que Rincewind considerou uma impossibilidade obstetrícia — e eram muito versadas em magia natural, uma vez que a vida nas estepes fazia a pessoa perceber bem depressa o ajuste perfeito entre céu e terra. E isso, naturalmente, levava a mente a pensamentos profundos como “Por quê?”, “Quando?” e “Por que não experimentamos carne de vaca, para variar?”

A avó do chefe da tribo balançou a cabeça para Rincewind e espalhou as cartas na frente dele.

Rincewind, como já foi mencionado, era o pior mago do Discworld: nenhum outro encantamento ousava ficar em sua mente desde que o Feitiço ali se instalara, mais ou menos da mesma forma que os peixes não se demoram num lago de pescaria. Mas ele ainda tinha seu orgulho, e magos não gostam de ver mulheres realizar nem a mais ínfima das mágicas. A Universidade Invisível jamais admitira mulheres, alegando qualquer coisa sobre problemas com o encanamento, mas o verdadeiro motivo era um temor tácito de que, se as mulheres pudessem se meter a feiticeiras, era provável que acabassem sendo constrangedoramente boas no negócio...

— Não acredito em cartas de Tarô — sussurrou ele. — E essa história, de que é a sabedoria do universo, não passa de um monte de bobagem.

A primeira carta, amarelecida e amarfanhada, era...

Era para ser A Estrela. Mas, em vez do familiar astro redondo com pequenos raios grosseiros, havia se transformado num minúsculo ponto vermelho. A velha resmungou algumas palavras e raspou a unha na carta, então encarou Rincewind.

— Não tenho nada a ver com isso — defendeu-se ele.

A mulher então virou a Importância de Lavar as Mãos, o Oito de Octogramas, a Abóbada do Céu, o Poço da Noite, o Quatro de Elefantes, o Ás de Tartarugas e — como Rincewind já esperava — a carta de Morte.

Só que também havia algo de errado com a carta de Morte. Deveria ser um desenho bem realista de Morte com seu cavalo branco, e de fato Ele se encontrava ali. Mas o céu estava avermelhado e, surgindo à distância, havia um pequeno vulto, que mal se podia divisar à luz das lamparinas de gordura de cavalo. Rincewind, porém, nem precisou identificá-lo, porque logo atrás vinha um baú com centenas de perninhas.

A Bagagem seguiria o dono a qualquer lugar. Rincewind voltou os olhos para Duasflor — uma figura pálida sobre pilhas de selas de cavalo, do outro lado da tenda.

— Está morto mesmo? — perguntou ele.

Cohen traduziu a frase para a velha, que sacudiu a cabeça e meteu a mão numa pequena arca de madeira, remexendo numa infinidade de sacos e garrafas, até achar uma garrafinha verde, que entornou na cerveja de Rincewind. O mago observou a bebida, desconfiado.

— Ela dich que é um tipo de remédio — falou Cohen. — Eu beberia, che fosche vochê. Escha gente fica meio chateada che a peschoa não acheita hoschpitalidade.

— Não vai estourar minha cabeça? — quis saber Rincewind.

— Ela dich que é fundamental vochê beber.

— Bom, se você me garante que não faz mal... Piorar o gosto desta cerveja é impossível.

O mago tomou um gole, consciente de todos os olhos voltados para si.

— Hum — soltou afinal. — Na verdade, não é nem um pouco rui...

Alguma coisa o suspendeu e jogou no ar. Só que, num outro sentido, ele ainda estava sentado perto da fogueira. Era possível ver a si próprio — o vulto minguado no círculo de luz, ficando cada vez menor. Ao redor, as pessoas em miniatura observavam o corpo com atenção. Exceto pela velha. Ela tinha a cabeça levantada, olhava para ele e sorria.

Os magos seniores do Mar Círculo estavam longe de sorrir. Cada vez mais, percebiam estar diante de algo inteiramente novo e temível: um jovem querendo subir na vida.

A verdade era que nenhum deles sabia ao certo a idade de Trymon, mas o cabelo ralo ainda era preto e a pele tinha um aspecto lustroso, que, com pouca luz, poderia ser tomado como viço de juventude.

Os seis chefes sobreviventes das Oito Ordens estavam sentados à mesa nova, comprida e envernizada do que um dia fora o gabinete de Galder Cera do Tempo, e cada um deles refletia sobre o que exatamente fazia com que quisessem dar um pontapé no traseiro de Trymon.

Não é que ele fosse cruel e ambicioso. Homens cruéis eram burros; todo feiticeiro sabia como usá-los, e não havia dúvida de que também sabia subjugar ambições. Ninguém era mago do Oitavo Nível sem se tornar adepto duma espécie de judô mental.

Não é que ele tivesse sede de sangue, fome de poder ou parecesse especialmente malvado. Essas características não eram inconvenientes num mago. De modo geral, nenhum feiticeiro se mostrava menos malvado do que um membro do comitê do Rotary Club.

E todos subiam na profissão não tanto pelos dons mágicos, mas por jamais deixarem de se beneficiar das fraquezas dos adversários.

Não é que ele fosse esperto. Todo mago se considerava uma sumidade em termos de esperteza; fazia parte do trabalho.

E não é nem mesmo que tivesse carisma. Todos ali saberiam reconhecer carisma, e Trymon tinha o carisma de um ovo de pato.

Era isso, na verdade...

Ele só era bom, mau, cruel e extraordinário num único sentido, que era o fato de ter dado à monotonia o status de belas-artes e cultivado uma mente tão árida, impiedosa e lógica quanto os declives do Inferno.

O mais estranho era que os feiticeiros — que, na privacidade de um octograma mágico, já haviam encontrado várias entidades cuspidoras de fogo, com asas de morcego e garras de tigre — jamais haviam se sentido tão pouco à vontade como no momento em que, com dez minutos de atraso, Trymon entrou na sala.

— Meus senhores, sinto muito pelo atraso — mentiu ele, esfregando as mãos, com entusiasmo. — Tanta coisa para fazer e organizar. Tenho certeza de que compreendem.

Os magos se entreolharam, enquanto Trymon se sentava à cabeceira da mesa e mexia nuns papéis.

— O que aconteceu com a velha cadeira de Galder, aquela com braços de leão e pés de galinha? — perguntou Jiglad Wert.

O objeto tinha desaparecido junto com a maior parte da mobília, e em seu lugar havia algumas cadeiras baixas de couro que pareciam incrivelmente confortáveis, até a pessoa ficar cinco minutos sentada.

— O quê? Ah, mandei queimar — respondeu Trymon, sem levantar os olhos.

— Queimar? Mas era uma peça mágica inestimável, uma verdadeira...

— Traste — cortou Trymon, dirigindo-lhe um sorrisinho. — Tenho certeza de que magos de verdade não precisam desse tipo de coisa. Agora eu gostaria de chamar a atenção dos senhores para o assunto do dia...

— Que papel é esse? — interrompeu Jiglad Wert, da Irmandade do Logro, agitando o documento que havia sido deixado à sua frente, e agitando-o com força porque sua própria cadeira, na torre confortável e bagunçada em que vivia, era mais ornamentada do que a de Galder.

— É a pauta da reunião, Jiglad — explicou Trymon, com paciência.

— E para que serve?

— É só uma lista das questões que temos que discutir. É bastante simples. Sinto muito se o senhor acha...

— Nunca precisamos disso!

— Acredito que tenham precisado, apenas não usaram — argumentou Trymon, a voz exalando bom senso.

Wert hesitou.

— Ora, tudo bem — assentiu de mau humor, buscando apoio nos outros magos ao redor da mesa. — Mas, e essa parte que diz...

Ele examinou o escrito de perto, e concluiu:

— “Sucessor de Greyhald Spold.” Vai ser o velho Rhunlet Vard, não vai? Há anos ele vem esperando.

— Verdade, mas será que é capaz? — perguntou Trymon.

— O quê?

— Estou certo de que todos concordamos sobre a importância de uma liderança apropriada — argumentou Trymon. — O Vard é... bem, digno, é claro, ao seu jeito, mas...

— Não é da nossa conta — disse um dos outros magos.

— Não, mas poderia ser — disse Trymon.

Houve silêncio.

— Interferir nos negócios de outra Ordem? — disse Wert.

— Claro que não — disse Trymon. — Apenas sugiro que ofereçamos... conselhos. Mas vamos discutir isso mais tarde...

Os magos jamais haviam escutado a expressão “base eleitoral”; do contrário, Trymon nunca teria conseguido se safar. Mas o fato puro e simples era que ajudar outros indivíduos a conquistar poder, mesmo a fim de fortalecer a si próprio, era estranho para eles. Até onde entendiam, todo mago estava só. Além dos seres paranormais hostis, o mago ambicioso já tinha muito a fazer, enfrentando inimigos dentro da própria Ordem.

— Acho que agora devemos tratar do assunto “Rincewind” — propôs Trymon.

— E da estrela — acrescentou Wert. — As pessoas estão notando, sabia?

— É, dizem que nós deveríamos tomar alguma providência — disse Lumuel Panter, da Ordem da Meia-Noite. — Eu gostaria de saber qual.

— Ah, isso é fácil — considerou Wert. — Dizem que deveríamos ler o Oitavo. É o que sempre sugerem. Colheitas fracas? Leiam o Oitavo. Vacas doentes? Leiam o Oitavo. Os Feitiços vão endireitar tudo.

— Pode existir alguma verdade aí — disse Trymon. — Meu, hã, finado antecessor fez um grande estudo do Oitavo.

— Todos fizemos — alegou Panter, com rispidez. — Mas do que adianta? Os Oito Feitiços precisam agir juntos. Ah, também concordo que, se todo o resto falhar, devemos arriscar, mas os Oito Feitiços devem ser ditos juntos... e um deles está na cabeça desse Rincewind.

— E não conseguimos achá-lo — completou Trymon. — Esse é o problema, não é? Tenho certeza de que todos tentamos, em segredo.

Os magos se entreolharam, constrangidos. Por fim, Wert disse:

— É. Tudo bem. Cartas na mesa. Não consegui localizá-lo.

— Sondei os cristais — admitiu alguém. — Nada.

— Enviei espíritos familiares — disse um terceiro.

Os outros se endireitaram nas cadeiras. Se confessar fracassos era a ordem do dia, então tratariam de mostrar que haviam fracassado com heroísmo.

— Só isso? Mandei logo demônios.

— Eu consultei o Espelho da Supervisão.

— Ontem à noite, procurei nas Runas de M’haw.

— Eu gostaria de deixar claro que tentei tanto as runas e o espelho como as entranhas de um minotauro.

— Falei com os animais do campo e os pássaros do ar.

— Adiantou?

— Não.

— Bom, eu perguntei à própria estrutura da nossa terra. Sim, às rochas escarpadas e suas montanhas.

Houve um silêncio súbito. Todos fitaram o mago que havia acabado de falar. Tratava-se de Ganmack Treehallet, do Honorável Conselho de Videntes, que, desconfortável, mudou de posição no assento.

— Deve ter sido uma loucura — disse alguém.

— Não falei que responderam, falei?

Trymon correu a vista pela mesa.

— Pois mandei alguém no rastro dele — informou afinal.

Wert bufou.

— Não funcionou muito bem nas últimas duas vezes, funcionou?

— Porque nos baseamos na magia, e é óbvio que Rincewind está de alguma forma protegido da magia. Mas não pode proteger suas pegadas.

— Você mandou um espião?

— De certo modo.

— Um herói?

Wert conseguiu carregar a palavra de vários significados. Em outro universo, no mesmo tom de voz, um sulista teria falado “maldito ianque”.

Os magos encararam Trymon, boquiabertos.

— É — respondeu ele, tranqüilamente.

— Com autorização de quem? — indagou Wert.

Trymon voltou os olhos cinzentos para ele.

— Minha. Não precisei de outra.

— É... é extremamente irregular! Desde quando magos precisam contratar heróis para fazer seu trabalho?

— Desde que descobriram que a magia não funciona — respondeu Trymon.

— Isso passa, é um contratempo passageiro.

Trymon deu de ombros.

— Talvez — disse por fim. — Mas não temos tempo para descobrir. Prove que estou errado. Encontre Rincewind consultando cristais ou falando com passarinhos. Quanto a mim, estou disposto a agir com inteligência. E o homem inteligente faz o que seu tempo exige.

Todos sabemos que magos e guerreiros não se dão muito bem, porque os primeiros acham que os outros são um monte de idiotas sangüinários que não conseguem andar e pensar ao mesmo tempo, ao passo que estes ficam naturalmente desconfiados de um grupo de homens que resmunga muito e usa saia longa. Ah, dizem os magos, se vamos partir para esse lado, então que tal todos os enfeites e músculos lubrificados na Associação Pagã de Moços? Ao que os heróis respondem, é um belo argumento vindo de um bando de fracotes que nem chega perto de mulher, porque — dá para acreditar? — o poder místico drena energia. Tudo bem, irritam-se os magos, já chega, vocês e suas bolsinhas de couro. Ah, é?, rebatem os heróis, por que vocês não vão...

E assim por diante. Há séculos, esse tipo de discussão acontece, gerando uma série de batalhas que já deixaram grandes extensões de terra inabitáveis, por causa da desarmonia mágica.

Na verdade, o herói — que no momento cavalgava em direção às Planícies Vórtice — nunca havia se envolvido nesse tipo de briga, em primeiro lugar, porque não era algo que se levasse a sério, mas principalmente porque esse herói em particular era uma heroína. De cabelos ruivos.

Pois bem, nessas horas, existe uma tendência de olharmos a garota da capa de alguma revista e nos entregarmos a detalhes sobre couro, botas que chegam à altura da coxa e facas afiadas. Palavras como “farta”, “roliça” e mesmo “ousada” se infiltram na narrativa, até o escritor ter que ir tomar um banho frio e se deitar. O que é uma grande besteira, porque nenhuma mulher que se proponha a ganhar a vida com a espada vai andar por aí parecendo capa do mais avançado catálogo de lingerie para especialistas.

Ah, tudo bem. O importante a dizer aqui é que, embora Herrena, a Megera de Cabelos com Hena, pudesse ficar deslumbrante — depois de tomar um bom banho, submeter-se a um tratamento intensivo na manicure e escolher os devidos artefatos de couro na Loja de Suplementos Marciais e Produtos Exóticos Orientais de Woo Hun Ling, na rua dos Heróis —, agora estava vestida de modo bastante discreto, com uma leve cota de malha, botas macias e uma espada curta.

Tudo bem, talvez as botas fossem de couro. Mas não pretas.

Cavalgando com ela, havia inúmeros homens morenos que certamente não tardarão a morrer, de modo que uma descrição mais apurada não nos parece essencial. Não havia nada de ousado em nenhum deles.

De acordo com o gosto do leitor, eles podem ou não vestir roupas de couro.

Herrena não parecia muito satisfeita com os rapazes, mas era tudo que havia encontrado para alugar em Morpork. Muitos cidadãos estavam de mudança, seguindo em direção às montanhas, por medo da nova estrela.

Mas Herrena seguia na direção das montanhas por um motivo diferente. Pouco além das planícies, ficavam as escalvadas Montanhas Trollbone. Herrena, que havia muitos anos se beneficiava das oportunidades excepcionalmente iguais oferecidas às mulheres que sabiam manejar a espada, confiava nos seus instintos.

Esse Rincewind, da forma como Trymon o havia descrito, era um rato — e ratos gostam de se esconder. De qualquer forma, as montanhas ficavam bem longe de Trymon e, apesar de ser seu atual empregador, Herrena estava feliz que assim fosse. Havia alguma coisa no jeito dele que fazia seus punhos coçarem.

Rincewind sabia que deveria entrar logo em pânico, mas não era fácil porque, embora não estivesse ciente disso, emoções como pânico, horror e raiva têm a ver com algumas substâncias que se debatem nas glândulas, e todas as glândulas de Rincewind ainda estavam no seu corpo.

Era difícil saber ao certo onde estava seu corpo, mas, quando o mago olhava para baixo, dava para ver uma linha azul bem fina saindo do que, pelo bem da sanidade, ainda ousava chamar de “meu tornozelo” e se perdia na escuridão em volta. Parecia razoável supor que o corpo se encontrava na outra extremidade.

Não era um corpo particularmente bom — ele seria o primeiro a admitir—, mas uma ou duas partes tinham valor sentimental. E lhe ocorreu que, se a linha azul se rompesse, teria que passar o resto da vi... de sua existência batendo ponto naqueles tabuleiros de mensagens mediúnicas, fingindo ser a tia morta das pessoas e fazendo tudo a que as almas sem corpo se sujeitavam para matar o tempo.

A idéia o amedrontou tanto que ele mal sentiu os pés tocarem o chão. Pelo menos, algum chão — Rincewind estava quase certo de não se tratar do chão, que, até onde se lembrava, não era preto e não rodava de maneira tão estranha.

Ele deu uma olhada em volta.

Montanhas íngremes cercavam a paisagem ao redor, num céu gelado cheio de estrelas cruéis — estrelas que não apareciam em nenhum mapa celestial do multiverso — e bem no meio delas havia um sinistro disco vermelho. Rincewind estremeceu e desviou o olhar. A paisagem à frente tinha um declive abrupto, e um vento seco uivava pelas pedras rachadas.

Uivava mesmo. Enquanto redemoinhos lhe agitavam o manto e puxavam o cabelo, Rincewind imaginou ouvir vozes fracas e remotas dizendo coisas como “Tem certeza de que eram mesmo cogumelos no ensopado? Estou me sentindo meio...”, “Daqui tem uma vista linda, se você se inclinar mais...”, “Não faça estardalhaço, é só uma unhada...”, “Preste atenção aonde aponta o arco, você quase...” e assim por diante.

O mago se arrastou pelo declive com as mãos nos ouvidos, até se encontrar diante de uma imagem que pouquíssimos homens vivos têm oportunidade de presenciar.

O chão abaixava bruscamente até se tornar um grande funil, de 1,5 quilômetro de diâmetro, dentro do qual o vento uivante das almas dos mortos soprava num sussurro aterrorizante, como se o próprio Discworld estivesse respirando. Mas um ressalto estreito de pedra se estendia sobre o buraco, dando num aforamento, cerca de 30 metros adiante.

Ali havia um jardim com pomares e canteiros, e um pequeno chalé negro.

Uma trilha levava à casa.

Rincewind olhou para trás. A linha azul brilhante ainda se encontrava lá.

E a Bagagem também.

Ela estava sentada na trilha, observando-o.

O mago nunca gostou muito da Bagagem, que sempre lhe dava impressão de recriminá-lo. Mas desta vez não parecia encará-lo de mau humor. Na verdade, tinha um ar bem patético, como o cachorro que volta para casa depois de se refestelar em bosta de vaca e descobre que a família se mudou para outro continente.

— Tudo bem — disse Rincewind. — Vamos lá.

Ela esticou as perninhas e se pôs a segui-lo.

Por algum motivo, Rincewind esperava que o jardim estivesse cheio de flores mortas, mas na realidade era bem tratado e obviamente tinha sido plantado por alguém com sensibilidade para combinar cores, desde que as cores fossem roxo-escuro, preto-noturno e branco-sudário. Enormes flores-de-lis perfumavam o ar. No meio do gramado recém-aparado, havia um relógio de sol sem ponteiro.

Com a Bagagem em seu encalço, Rincewind avançou pela trilha de cacos de mármore até se encontrar nos fundos do chalé, e então abriu a porta.

Quatro cavalos olharam para ele por sobre a cevadeira. Eram vigorosos e alertas, e tratava-se dos bichos mais bem cuidados que Rincewind já vira, O grande corcel branco tinha uma baia inteira só para si, e um arreio preto e prateado estava pendurado na porta. Os outros três animais se encontravam amarrados em frente à manjedoura na parede oposta, como se tivessem acabado de trazer visitas. Todos fitaram Rincewind com vaga curiosidade animal.

A Bagagem topou no tornozelo do mago. Ele se virou e resmungou:

— Caia fora!

A Bagagem recuou, parecendo constrangida.

Rincewind caminhou na ponta dos pés até a porta do lado oposto e abriu-a com cuidado. Dava para um corredor lajeado que, por sua vez, desembocava num vestíbulo amplo.

O mago seguiu em frente, com as costas comprimidas na parede. Atrás dele, a Bagagem também avançava na ponta dos pés nervosa.

O vestíbulo...

Bem, o fato de ser consideravelmente maior do que o chalé inteiro parecia do lado de fora não foi o que deixou Rincewind preocupado. A essa altura, do jeito que as coisas andavam, ele teria aberto um grande sorriso sarcástico para qualquer um que dissesse ser impossível passar um camelo por um buraco de agulha. E tampouco se tratava da decoração, no estilo Cripta Antiga e baseada largamente em tapeçarias pretas.

Era o relógio. Era muito grande e ocupava o espaço entre duas escadas de madeira em caracol, cobertas de entalhes de figuras, que o homem comum só veria depois de uma sessão pesada ingerindo alguma coisa ilegal.

Havia um pêndulo bem comprido, balançando num tique-taque demorado, que fazia Rincewind trincar os dentes, porque era o tipo de som irritante e vagaroso que deixava claro: cada tique e cada taque nos tirava um segundo de vida. O barulho sugeria de maneira bastante contundente que, em alguma ampulheta imaginária, num lugar qualquer, outros grãos de areia nos escapavam.

Nem é preciso dizer, o peso que acionava o relógio era afiado como a lâmina de uma faca.

Alguém cutucou o mago à altura da cintura. Ele se virou, enfurecido...

— Olhe aqui, filha de uma mala, eu já avisei...

Mas não era a Bagagem. Era uma jovem de cabelos e olhos prateados, um tanto surpresa.

— Ah — disse Rincewind. — Hum. Oi.

— Você está vivo? — perguntou ela.

Era o tipo de voz que associamos a guarda-sóis, óleos de bronzear e drinques gelados.

— Bem, espero que sim — respondeu o mago, imaginando se suas glândulas estariam se divertindo, onde quer que se encontrassem. — Às vezes não tenho muita certeza. Que lugar é esse?

— A casa de Morte — informou ela.

— Ah — alarmou-se Rincewind, passando a língua nos lábios secos. — Bom, prazer em conhecê-la. Acho que já tenho que ir andando.

A menina bateu as mãos.

— Por favor, não vá! — pediu ela. — É tão raro termos pessoas vivas por aqui. Os mortos são tão chatos, você não acha?

— Hã, acho — concordou Rincewind, mantendo-se atento à porta. — Muito quietos, imagino.

— É sempre aquela história de “Quando eu estava vivo...” e “No meu tempo, a gente sabia respirar...” — reclamou ela, botando a mão branca no braço do mago e sorrindo. — E também são tão sérios. Nada divertidos. Tão formais.

— Rígidos? — sugeriu Rincewind.

Ela o levava em direção a uma arcada.

— Completamente. Qual é o seu nome? O meu é Ysabell.

— Hã, Rincewind. Desculpe, mas, se esta é a casa de Morte, o que está fazendo aqui? Você não parece morta.

— Ah, moro aqui — explicou ela, encarando o mago. — Você não veio salvar a sua amada perdida, veio? Isso sempre irrita papai. Ele diz que é uma sorte nunca dormir porque, se dormisse, sempre teria o sono interrompido pelos passos de jovens heróis vindo buscar um monte de meninas idiotas.

— Acontece muito, é? — perguntou Rincewind, já sem forças, enquanto os dois avançavam por um corredor decorado de preto.

— O tempo todo. Acho romântico. Só que, quando a pessoa vai embora, é muito importante não olhar para trás.

— Por quê?

Ela deu de ombros.

— Não sei. Talvez a vista não seja muito boa. Aliás, você é herói?

— Hã, não. Não dessa maneira. Na verdade, de maneira nenhuma. Até menos que isso. Só vim procurar um amigo — esclareceu ele. — Será que você não o viu? Um rapaz gordinho que fala à beça, usa óculos e veste umas roupas engraçadas.

Enquanto conversava, Rincewind percebeu que havia deixado algo vital escapar. Fechou os olhos e tentou se lembrar dos últimos minutos de conversa. A resposta veio como um raio.

— Papai?

Ela o fitou, séria.

— Na verdade, sou adotada — admitiu por fim. — Ele me encontrou quando eu era pequena. Uma história triste.

A garota se iluminou.

— Mas venha conhecê-lo... Esta noite, os amigos estão aqui. Tenho certeza de que ele vai adorar conhecer você. Meu pai não vê muitas pessoas socialmente. Nem eu — acrescentou afinal.

— Desculpe — disse Rincewind. — Será que entendi bem? Estamos falando de Morte, não estamos? Sujeito alto, magro, de órbitas vazias, especialista no setor de foices.

Ysabell suspirou.

— É. A aparência não ajuda, eu sei.

Embora fosse verdade que, como já mencionamos, Rincewind estivesse para a magia como a bicicleta estava para a abelha, ele todavia dispunha de um privilégio concedido aos praticantes da arte, que se tratava de, no momento da morte, ser reivindicado por Morte em pessoa (que não delegaria o trabalho a uma personificação antropomórfica mitológica menor, como em regra é o caso). Em grande medida por incompetência, mais de uma vez Rincewind havia deixado de morrer na hora certa; e se existe uma coisa de que Morte não gosta é perder a viagem.

— Olhe, imagino que meu amigo só esteja passeando por aí — argumentou o mago. — Ele sempre faz isso, não é novidade. Foi um prazer conhecê-la, preciso ir...

Mas ela já havia parado em frente a uma porta alta acolchoada de veludo roxo. Do outro lado, vinham vozes — vozes sobrenaturais, das que a mera tipografia jamais conseguirá transmitir, até que se crie certa máquina de linotipo com reverberação e, possivelmente, uma espécie de tipologia que se assemelhe a algo falado por uma lesma.

Eis o que as vozes diziam:

— VOCÊ SE IMPORTA DE EXPLICAR DE NOVO?

— Bom, se você devolver qualquer carta que não seja o trunfo, o Sul vai poder botar os dois trunfos, perdendo só uma Tartaruga, um Elefante e um Grande Segredo, então...

— É Duasflor! — sussurrou Rincewind. — Eu reconheceria essa voz em qualquer lugar!

— UM INSTANTE... A PESTE É O SUL?

— Ah, Morte, qual é? Ele já explicou isso. E se a Fome tivesse feito uma, como é mesmo?... uma canastra real?

Era uma voz salivosa e vibrante, quase contagiosa por si só.

— Então você só poderia jogar uma Tartaruga, em vez de duas — explicou Duasflor, entusiasmado.

— Mas se a Guerra tivesse escolhido jogar com trunfo, o contrato teria menos duas.

— Isso mesmo!

— NÃO ENTENDI MUITO BEM. FALE OUTRA VEZ DA JOGADA PSÍQUICA. ACHO QUE EU ESTAVA PEGANDO AQUELA.

Era uma voz oca e pesada, como o ruído de dois pedaços grandes de chumbo se entrechocando.

— É quando você faz uma jogada para enganar os adversários, mas é claro que pode trazer problemas para o seu parceiro...

Duasflor falava com animação. Aparvalhado, Rincewind fitava Ysabell, enquanto expressões como “naipe forte”, “finesse dupla” e “batida total” lhes chegavam através do veludo.

— Está entendendo alguma coisa? — quis saber ela.

— Nem uma palavra — respondeu ele.

— Parece muito complicado.

Do outro lado da porta, a voz pesada disse:

— VOCÊ FALOU QUE OS HUMANOS JOGAM ISSO POR PRAZER?

— É, e alguns são muito bons. Eu não passo de um amador.

— MAS ELES SÓ VIVEM ATÉ OS 80, 90 ANOS!

— Você bem sabe, não é, Morte? — disse uma voz que Rincewind ainda não tinha ouvido e, com certeza, não ia querer jamais ouvir de novo, principalmente à noite.

— Sem dúvida, é muito...

— DÊ AS CARTAS OUTRA VEZ, E VAMOS VER SE ENTENDI.

— Acha que devemos entrar? — perguntou Ysabell.

A voz atrás da porta disse:

— DOU... O VALETE DE CÁGADOS.

— Não, desculpe, acho que está enganado. Vamos ver a sua...

Ysabell abriu a porta.

Ao contrário do esperado, tratava-se de um gabinete bastante agradável — talvez um pouco sombrio — possivelmente criado num dia ruim por um decorador com enxaqueca e obsessão em colocar ampulhetas enormes em todos os cantos. Também havia uma porção de velas grandes, largas, amarelas e gotejantes das quais o sujeito talvez estivesse querendo se livrar.

No Discworld, Morte era um tradicionalista que se orgulhava de seu trabalho e passava a maior parte do tempo em depressão, por não ser valorizado. Ele chamava atenção para o fato de ninguém temer a própria morte — mas a dor, a separação e o esquecimento — e dizia que não era justo atacar alguém apenas porque tinha órbitas vazias e um prazer secreto em realizar seu serviço. Também argumentava que ainda usava a foice, enquanto Mortes de outros mundos já haviam investido em máquinas de ceifar.

Ele se encontrava sentado à mesa coberta de feltro preto no meio da sala, discutindo com a Fome, a Guerra e a Peste. Duasflor foi o único a olhar para cima e reparar em Rincewind.

— Ei, como chegou aqui? — perguntou ele.

— Bem, alguns dizem que o Criador pegou um punhado... Ah, bom, sei, é difícil explicar mas...

— Trouxe a Bagagem?

O baú de madeira passou por Rincewind e se pôs diante do dono. Duasflor abriu a tampa e remexeu no interior, até encontrar um livrinho de couro e entregá-lo à Guerra, que vinha batendo o punho na mesa.

— É o livro de Nosehinger sobre as Leis de Contrato — anunciou o rapaz. — É excelente. Tem muita coisa a respeito de jogadas e de como...

Morte tomou o livro nas mãos esqueléticas e folheou algumas páginas, sem perceber a presença dos dois.

— TUDO BEM — disse então. — PESTE, ABRA OUTRO BARALHO. VOU ENTENDER ISSO A FUNDO, MESMO QUE, PARA ISSO, TENHA QUE MORRER - EM SENTIDO METAFÓRICO, É CLARO.

Rincewind agarrou Duasflor e puxou-o para fora do gabinete. Enquanto corriam pelo corredor, com a Bagagem trotando em seu encalço, o mago perguntou:

— O que era aquilo?

— Ah, eles têm muito tempo e achei que talvez gostassem — explicou Duasflor, arquejando.

— De quê? Jogar cartas?

É um jogo especial — argumentou Duasflor. — Chama... O turista hesitou. Idiomas não eram seu forte.

— Na minha língua, chama-se algo que construímos, por exemplo, sobre um rio — concluiu ele. — Eu acho.

— Ponte? — arriscou Rincewind. — Aqueduto? Dique?

— E, talvez uma dessas coisas.

Os dois alcançaram o vestíbulo, onde o grande relógio ainda tirava segundos das vidas do mundo.

— E por quanto tempo acha que isso deve mantê-los ocupados?

Duasflor parou.

— Não tenho certeza — respondeu ele, pensativamente. — É provável que até o último trunfo... Que relógio incrível...

— Não tente comprar — avisou Rincewind. — Acho que não iriam gostar nem um pouco.

— Afinal, que lugar é esse? — perguntou Duasflor, chamando a Bagagem e abrindo a tampa.

Rincewind correu os olhos em volta. No vestíbulo escuro e vazio, as janelas altas e estreitas estavam cobertas de gelo. O mago olhou para baixo. A linha azul ainda se estendia a partir do tornozelo. E agora ele podia ver que Duasflor também tinha uma.

— Estamos informalmente mortos — disse afinal.

Foi o melhor que pôde dizer.

— Ah.

Duasflor continuou a remexer no baú.

— Não fica preocupado?

— No fim, as coisas sempre acabam se resolvendo, não é? De qualquer maneira, acredito piamente em reencarnação. Como você gostaria de voltar?

— Nem quero ir! — disse Ríncewind, com firmeza. — Vamos dar o fora daqui... Ah, não. Isso não.

Duasflor havia desencavado uma caixa das profundezas da Bagagem. Era grande, preta e tinha uma manivelinha num lado, uma janelinha redonda na frente e uma correia para que o rapaz pudesse pendurá-la no pescoço — o que acabou fazendo.

Houve um tempo em que Rincewind apreciara bastante a caixa de retratos, o “iconoscópio”. Contra todas as evidências, ele acreditava que o mundo era fundamentalmente compreensível e que, se pudesse se munir da ferramenta mental adequada, poderia desparafusar a parte de trás e ver como o mecanismo funcionava. É claro que estava muitíssimo enganado. O iconoscópio não tirava retratos deixando luz incidir sobre papel especial — como havia desconfiado — mas pelo método bem mais simples de aprisionar um diabrete com talento para cores e mãos velozes no pincel. O mago ficara muito chateado por descobrir a verdade.

— Não temos tempo para tirar retratos! — sussurrou ele.

— Não vai demorar —, argumentou Duasflor, resoluto.

Então bateu num lado da caixa. Uma portinhola se abriu, e o diabinho botou a cabeça para fora.

— Que inferno! — exclamou ele. — Onde estamos?

— Não importa — respondeu Duasflor. — Acho que, primeiro, o relógio.

O diabinho apertou os olhos.

— Pouca luz — disse. — Na minha opinião, três malditos anos de f8.

Ele bateu a porta. E, alguns instantes mais tarde, ouvia-se o rangido de um banco sendo arrastado até o cavalete.

Rincewind rilhou os dentes.

— Você não precisa tirar retratos, basta se lembrar! — gritou ele.

— Não é a mesma coisa — disse Duasflor, com calma.

— É melhor. Mais real!

— Na verdade, não é. Daqui a um tempo, quando eu estiver sentado perto da lareira...

— Se não formos embora agora, você vai passar a eternidade sentado na lareira!

— Ah, espero que vocês não estejam pensando em ir embora.

Ambos se viraram. Ysabell estava parada no vão da arcada, com um sorrisinho estampado no rosto. Numa das mãos, tinha uma foice, uma foice de gume notoriamente afiado. Rincewind tentou não olhar para a linha azul da vida. Meninas segurando foices não deviam sorrir daquele jeito desagradável, sugestivo e meio doido.

— No momento, papai parece estar um pouco ocupado, mas tenho certeza de que nem sonharia em deixá-los ir embora assim — acrescentou ela. — Além do mais, eu não teria com quem conversar.

— Quem é essa? — quis saber Duasflor.

— Ela meio que mora aqui — murmurou Rincewind. — E meio que uma garota — acrescentou.

O mago agarrou o ombro de Duasflor e tentou se esgueirar até a porta, para o jardim gélido e escuro. Não funcionou, em grande medida porque Duasflor não era o tipo de pessoa que se ligava em nuanças de expressão e, de alguma forma, jamais imaginava que algo de ruim pudesse acontecer a si próprio.

— Encantado — disse ele. — É uma casa muito agradável, O efeito decorativo barroco das caveiras e dos ossos ficou bem interessante.

Ysabell sorriu. Rincewind pensou: se Morte transmitir o legado da família, a filha vai superar o pai — ela é biruta.

— E, mas temos que ir andando — afirmou ele.

— Não posso concordar com isso — interveio ela. — Precisam ficar e conversar comigo. Tem tempo suficiente, e aqui é sempre tão chato.

Ela correu para o lado e agitou a foice. O instrumento miou como um gato castrado e parou bruscamente no ar.

Houve um estalo de madeira. A Bagagem havia fechado a tampa sobre a lâmina.

Boquiaberto, Duasflor encarou Rincewind. E o mago, com muita cautela e certa dose de satisfação, acertou-o no queixo. Conforme o homenzinho caía para trás, Rincewind o pegou, jogou-o no ombro, e correu.

No jardim iluminado apenas pelas estrelas, galhos fustigavam seu corpo, e coisinhas peludas e certamente pavorosas debandavam, à medida que ele avançava em desespero junto à linha da vida, que brilhava de maneira estranha na grama fria.

Da casa, veio um grito esganiçado de raiva e decepção. O mago se desviou de uma árvore e seguiu correndo.

Lembrava-se muito bem que, em algum lugar, havia uma trilha. Mas no labirinto de sombras e luz prateada, agora tingida de vermelho — uma vez que a apavorante estrela nova se fazia presente mesmo no além —, nada parecia certo. Enfim, a linha da vida parecia estar indo na direção errada.

Atrás deles, surgiu o som de pés. Rincewind arquejou; parecia a Bagagem, e naquele instante ele não queria nem de longe se encontrar com a Bagagem, porque ela poderia ter entendido mal o fato de o mago ter dado um soco no seu dono. Em geral, o baú comia quem não gostava. Rincewind jamais tivera coragem de perguntar para onde iam as pessoas quando a tampa pesada se fechava, mas com certeza já não se encontravam ali quando se abria de novo.

Na verdade, ele não deveria ter se preocupado. A Bagagem logo o ultrapassou, com as perninhas em grande agitação. O mago notou que o baú vinha se concentrando na corrida, como se tivesse alguma noção do que a vinha perseguindo e não gostasse nem um pouco da idéia.

Não olhar para trás, lembrou-se ele. A vista provavelmente não era muito boa.

A Bagagem atravessou um arbusto e desapareceu.

Um instante depois, Rincewind entendia por quê. Ela havia caído da beira do afloramento e estava despencando em direção a um grande buraco, cujo fundo vermelho o mago já conseguia divisar. Partindo de Rincewind e se estendendo até o buraco, ha viaduas brilhantes linhas azuis.

Ele parou, indeciso — embora isso não seja exatamente verdade, porque estava decidido sobre várias coisas. Por exemplo, que não tinha a menor vontade de pular, que não pretendia enfrentar o que quer que os estivesse seguindo, que no mundo espiritual Duasflor era bastante pesado e que havia coisas piores do que morrer.

— Diga duas — murmurou afinal e saltou.

Alguns segundos mais tarde, os cavaleiros chegavam ao local e nem se detiveram ao alcançar a beira da pedra, mas apenas galoparam no ar, conduzindo os cavalos sobre o nada.

Morte olhou para baixo.

— ISSO SEMPRE ME IRRITA — disse por fim. — VOU ACABAR COLOCANDO UMA PORTA GIRATÓRIA.

— O que será que queriam? — perguntou a Peste.

— E eu vou lá saber? — rebateu a Guerra. — Mas o jogo é bom.

— É — concordou a Fome. — Achei bem estimulante.

— TEMOS TEMPO PARA A PRETA — disse Morte.

— A negra — corrigiu a Guerra.

— QUE NEGRA?

— A última partida se chama negra — explicou a Guerra.

— AH, SIM! NEGRAS — disse Morte.

Então olhou para a estrela vermelha, intrigado com o que poderia ser.

— ACHO QUE TEMOS TEMPO — repetiu afinal, sem muita certeza.

Já fizemos alusão à tentativa de introduzir maior honestidade aos relatos do Discworld e ao fato de os poetas ficarem proibidos — sob pena de... bem, pena capital — de saírem por aí cantando rios e alvoradas em tons cor-de-rosa e, por exemplo, só poderem dizer que um rosto afundava mil navios se conseguissem documentação que o comprovasse.

E assim, em respeito a essa tradição, não diremos que Rincewind e Duasflor viraram uma onda senoidal azul curvando- se através das dimensões escuras, que houve um ruído seco de garras monstruosas, que suas vidas começaram a passar na frente dos olhos (Rincewind, de qualquer modo, já vira sua vida se desenrolar tantas vezes diante dos olhos, que poderia dormir durante as passagens menos interessantes) ou que o universo pareceu a eles como uma enorme travessa de gelatina.

Diremos apenas — porque experimentos revelaram ser fato — que houve um barulho parecido com o de uma régua de madeira batendo num diapasão de dó sustenido, ou possivelmente si bemol, e uma súbita sensação de completa imobilidade. Isso se deu porque eles se encontravam de fato completamente imóveis, e estava uma escuridão absoluta.

Ocorreu a Rincewind que algo havia dado errado.

Então ele entreviu os arabescos azuis à frente.

O mago estava outra vez dentro do Oitavo. E imaginou o que aconteceria se alguém abrisse o livro. Será que ele e Duasflor apareceriam em ilustrações coloridas?

Provavelmente não, decidiu. O Oitavo em que se encontravam era um pouco diferente do simples livro acorrentado ao atril nas furnas da Universidade Invisível, que não passava de uma representação tridimensional de uma realidade multidimensional e...

Espere aí, pensou ele. Eu não raciocino assim. Quem está pensando por mim?

— Rincewind — disse uma voz como o folhear de páginas antigas.

— Quem? Eu?

— Claro, imbecil.

Por um instante, uma centelha de ousadia se acendeu no coração acabrunhado de Rincewind.

— Pois já conseguiram se lembrar da origem do universo? — perguntou ele, de rabugice. — O Pigarro, não era? Ou será que foi a Inalação ou então o Coçar de Cabeça, ou quem sabe a Tentativa de Lembrar e, ainda, Na Ponta da Língua?

Outra voz, seca como lenha, sussurrou:

— Você faz bem em se lembrar de onde está.

Talvez seja impossível sussurrar uma frase sem sibilantes, mas a voz chegou bem perto.

— Lembrar de onde estou? Lembrar de onde estou? — berrou Rincewind. — É claro que me lembro de onde estou: dentro de um maldito livro falando com um monte de vozes que não consigo ver. Por que acham que estou gritando?

— Imagino que esteja espantado por ser trazido aqui de novo — disse uma voz perto de seu ouvido.

— Não.

—Não?

— O que ele falou? — perguntou outra voz desencorpada.

— Que não.

— Jura?

— Juro.

— Ah.

— Por que não?

— Esse tipo de coisa acontece comigo o tempo todo — respondeu Rincewind. — Uma hora estou despencando da beira do mundo, na outra apareço dentro de um livro, depois caio numa pedra voadora, então assisto Morte aprendendo a jogar truco ou sei lá o quê. Por que deveria me espantar com o que quer que fosse?

— Bem, imagino que você pelo menos esteja se perguntando por que não queremos que ninguém nos diga — considerou a primeira voz, ciente de que vinha perdendo a iniciativa.

Rincewind hesitou. O pensamento já lhe havia cruzado a mente, só que muito rápido e olhando com nervosismo para os lados, a fim de não ser convocado.

— Por que alguém quereria dizer vocês?

— É a estrela — explicou um dos feitiços. — A estrela vermelha. Os magos já estão procurando por você. Quando você for encontrado, vão querer dizer os oito Feitiços juntos para mudar o futuro. Acham que o Discworld vai se chocar contra a estrela.

Rincewind pensou no assunto.

— E vai?

— Não exatamente, mas de certa... O que é isso?

Rincewind olhou para baixo. A Bagagem surgia da escuridão. Na tampa, havia um longo pedaço de lâmina.

— E só a Bagagem — respondeu o mago.

— Mas não a invocamos!

— Ninguém a invoca — retrucou Rincewind. — Ela aparece. Não se preocupem.

— Ah. Do que estávamos falando?

— Da estrela vermelha.

— Certo. É muito importante você...

— Olá! Olá! Tem alguém aí?

Era uma voz miúda e aguda que vinha da caixa de retratos pendurada no pescoço de Duasflor — ainda inerte.

O diabinho abriu a portinhola e encarou Rincewind.

— Que lugar é este, chefe? — perguntou ele.

— Não tenho certeza.

— Ainda estamos mortos?

— Talvez.

— Bom, vamos torcer para chegar a algum canto em que não precisemos de tanto preto, porque acabou essa cor.

A portinhola se fechou.

Rincewind teve uma rápida visão de Duasflor mostrando os retratos e dizendo coisas como “Aqui sou eu sendo atormentado por um milhão de demônios” e “Aqui estou com aquele casal estranho que conhecemos nos alpes gelados do Além”. O mago não sabia ao certo o que acontecia depois que morríamos de fato; as autoridades eram um pouco vagas no assunto. Um marinheiro moreno das regiões próximas à Borda dissera estar seguro de irmos a um paraíso onde havia refresco de frutas com gás e muitas huris. Rincewind não tinha certeza do que era “huri”, mas, depois de refletir um pouco, chegou à conclusão de que se tratava de um tubinho de alcaçuz pelo qual se tomava o refresco de frutas. Seja como for, bebidas gasosas faziam-no espirrar.

— Agora que as interrupções chegaram ao fim — disse uma voz firme e seca — talvez possamos ir em frente. É muito importante não deixar os magos tirarem o Feitiço de você. Vão acontecer coisas horríveis, se nós oito formos ditos cedo demais.

— Só quero que me deixem em paz — lamentou Rincewind.

— Ótimo, ótimo. A gente sabia que podia contar com você desde o dia em que abriu o Oitavo.

Rincewind hesitou.

— Esperem aí — disse ele. — Vocês querem que eu fique fugindo dos magos para impedi-los de juntar todos os feitiços?

— Exatamente.

— É por isso que um de vocês entrou na minha cabeça?

— Perfeitamente.

— Vocês destruíram a minha vida, sabiam? — gritou Rincewind, encolerizado. — Eu poderia ter sido um grande mago, se não tivessem decidido me usar como uma espécie de porta-feitiços. Agora não consigo me lembrar de nenhum outro encantamento, por que todos morrem de medo de ficar na mesma cabeça que vocês!

— Sentimos muito.

— Eu só quero ir para casa! Quero voltar para onde...

Um rastro de umidade surgiu nos olhos de Rincewind.

— ... para onde temos pedras de verdade debaixo dos pés e podemos comprar uma boa posta de peixe frito à noite, talvez com dois pepinos em conserva e quem sabe uma torta de enguia ou um prato de mariscos, onde sempre se encontra um estábulo quentinho para dormir e amanhecemos no mesmo lugar em que estávamos na noite anterior e tudo continua igual. Ou seja, não me ligo mesmo em magia, provavelmente não fui feito para ser feiticeiro. Só quero ir para casa...!

— Mas você precisa... — começou um dos feitiços.

Era tarde demais. A saudade — essa pequena tira elástica do subconsciente que pode incitar um salmão a nadar 5 mil quilômetros por mares desconhecidos ou levar um milhão de andorinhas a voar animadas de volta a uma terra natal ancestral, que, devido a uma pequena curva na deriva dos continentes, já não está mais ali — subiu dentro de Rincewind como um prato indiano devorado tarde da noite, flutuou pela linha tênue que ligava sua alma atormentada ao corpo, fixou-se ali e puxou com força...

De repente, os feitiços estavam sós no Oitavo.

Sós, a bem dizer, além da Bagagem.

Eles olharam para ela — não com olhos, mas com uma consciência antiga como o próprio Discworld.

— E você também pode dar o fora — disseram por fim.

—... mal.

Rincewind sabia que era ele falando; reconheceu a própria voz. Por um instante, o mago correu os olhos em volta de maneira estranha, como teria feito um espião através de buracos abertos nos olhos de um quadro. Então voltou a si.

— Tudo bem, Rinchewind? — perguntou Cohen. — Vochê parechia um pouco morto.

— Meio branco — concordou Bethan. — Como se estivesse a um passo da cova.

— Hum, é, e provavelmente estava mesmo — disse ele.

Então ergueu os dedos e contou quantos havia. Parecia ter o número certo.

— Hã, eu me mexia?

— Não, só ficava olhando a fogueira como se tivesse visto um fantasma — contou Bethan.

Um gemido irrompeu atrás deles. Duasflor estava se sentando e segurava a cabeça com as mãos.

Os olhos do rapaz se fixaram nas pessoas à frente. Os lábios se moveram sem produzir nenhum som.

— Tive um... sonho estranho — comentou ele. — Que lugar é este? Por que estou aqui?

— Bem — disse Cohen. — Algunsch dizem que o Criador do univercho pegou um punhado de barro e...

— Não, estou falando daqui — cortou Duasflor. — É você, Rincewind?

— Sou — respondeu o mago, utilizando o princípio do “na dúvida, sim”.

— Tinha um... relógio que... e umas pessoas que... — lembrou Duasflor, então sacudiu a cabeça. — Por que tudo aqui cheira a cavalo?

— Você ficou doente — observou Rincewind. — Teve alucinações.

— É... acho que sim.

O rapaz olhou para baixo.

— Mas, nesse caso, por que estou com a...

Rincewind se levantou.

— Desculpem, está muito abafado... Preciso tomar ar fresco — disse ele.

O mago tirou a caixa de retratos do pescoço de Duasflor e correu para fora da tenda.

— Não tinha notado aquilo quando entramos aqui — disse Bethan.

Cohen encolheu os ombros.

Rincewind conseguiu se afastar alguns metros da barraca antes que a caixa de retratos começasse a estalar. Muito lentamente, o aparelho soltou o último retrato que o diabinho havia feito.

Rincewind pegou o negócio.

A imagem seria assustadora mesmo à luz do dia. Sob a iluminação glacial das estrelas, tingida de vermelho pelos raios do funesto astro novo, era bem pior.

— Não — disse Rincewind delicadamente. — Não era assim. Tinha a casa, a menina e...

— Você vê de um jeito, e eu pinto o que vejo — argumentou o diabinho, da portinhola. — O que vejo é real. Fui treinado para isso. Só enxergo o que realmente está ali.

Um vulto negro avançava pelo tapete de neve em direção a Rincewind. Era a Bagagem. O mago, que em geral a detestava e desconfiava dela, de repente sentiu que o baú era a coisa mais normal que já havia visto.

— Então você conseguiu — disse ele.

A Bagagem agitou a tampa.

— Tudo bem, mas o que foi que você viu? — perguntou Rincewind. — Olhou para trás?

A Bagagem não respondeu. Por um momento, ambos ficaram em silêncio, como dois guerreiros que escaparam do campo de massacres e fazem uma pausa para tomar fôlego e recuperar a sanidade.

Então Rincewind disse:

— Vamos, tem uma fogueira lá dentro.

O mago estendeu a mão para afagar a Bagagem. A tampa se fechou com irritação, quase lhe prendendo os dedos. A vida voltava ao normal.

O dia seguinte amanheceu claro e frio. O céu era uma abóbada azul presa à superfície branca do mundo, e o efeito geral teria sido límpido e saudável como um anúncio de pasta de dente, se não fosse pelo pontinho rosa no horizonte.

— Já dá para ver até de dia — alarmou-se Cohen. — O que é aquilo?

Ele cravou os olhos em Rincewind, que enrubesceu.

— Por que todo mundo olha para mim? — disse ele. — Não sei o que é. Talvez seja um cometa ou algo assim.

— E vamos morrer queimados? — perguntou Bethan.

— Como é que eu vou saber? Nunca fui atingido por um cometa.

Eles estavam cavalgando em fileira pelos campos nevados. O Povo Cavaleiro, que parecia ter Cohen em grande estima, havia lhes dado montaria e informações para chegarem ao Rio Smarl — 150 quilômetros na direção da Borda —, onde Cohen acreditava que Rincewind e Duasflor poderiam achar um barco que os levasse ao Mar Círculo. O herói havia anunciado que iria acompanhá-los por causa das inflamações causadas pelo frio.

E Bethan de pronto se propusera a ir junto, caso Cohen precisasse de massagem em alguma parte do corpo.

Aos poucos, Rincewind constatava que uma espécie de química vinha acontecendo. Cohen, por exemplo, havia se dado ao trabalho de pentear a barba.

— Acho que ela está gostando de você — opinou ele.

Cohen suspirou.

— Che eu fosche vinte anosch maisch jovem... — imaginou ele, com melancolia.

—Sim?

— Teria chechenta e chete anoch.

— E o que isso tem a ver?

— Bem... Como poscho explicar? Quando eu era novo e eschtava cavando meu nome no mundo, bem, eu goschtava de mulheresch ruivasch e ardentesch.

— Ah.

— Então fiquei maisch velho e, de preferênchia, procurava mulheresch lourasch com um fulgor mundano nosch olhosch.

—Hum.

— Masch então fiquei ainda maisch velho e comechei a me intereschar pelasch morenasch facheirasch.

Ele se deteve. Rincewind esperou.

— E aí? — impacientou-se o mago. — O que procura numa mulher hoje em dia?

Cohen virou o olho único, azul e remelento, para ele.

— Pachiênchia — respondeu.

— Não acredito! — irrompeu uma voz atrás deles. — Eu cavalgando junto com Cohen, o Bárbaro!

Era Duasflor. Desde cedo, quando descobrira estar respirando o mesmo ar que o maior herói de todos os tempos, o rapaz parecia um macaco com a chave da plantação de bananas.

— Cherá que ele eschtá chendo irônico? — perguntou Cohen a Rincewind.

— Não. Duasflor é sempre assim.

Cohen se virou na sela. O rapaz abriu um sorriso e acenou com orgulho. O herói se voltou para a frente e grunhiu.

— Ele tem olhosch, não tem?

— Tem, mas não funcionam como os das outras pessoas. Tire por mim. Quer dizer... sabe a tenda do Povo Cavaleiro em que estávamos a noite passada?

— Chei.

— Você não diria que era um pouco escura e suja, e cheirava a cavalo doente?

— Deschcrichão baschtante apurada.

— Ele não concordaria. Diria que era uma deslumbrante tenda bárbara, decorada com a pele dos grandes animais caçados por guerreiros do limiar da civilização, e que tinha o cheiro das raras e curiosas resinas saqueadas das caravanas com que eles cruzavam os descampados... bem, e daí por diante. Estou falando sério — acrescentou o mago.

— É maluco?

— Meio maluco. Mas um maluco com dinheiro.

—Ah, então não é maluco. Chei como chão as coisasch; che o homem tem dinheiro, é schó exchêntrico.

Cohen se virou outra vez na sela. Duasflor contava a Bethan como o herói, sozinho, havia derrotado os guerreiros-cobra do lorde de bruxarias de S’belinde e roubado o diamante sagrado da gigantesca estátua de Offler, o Deus Crocodilo.

Um sorriso estranho se formou entre as rugas do rosto de Cohen.

— Se quiser, posso pedir a ele para ficar quieto — disse Rincewind.

— E ele ficaria?

— Acho que não.

— Deixe-o falar — assentiu Cohen.

Então alisou o punho da espada, gasto pelas décadas de uso.

— De qualquer forma, goschtei dos olhosch dele. Enxergam por até schinqíienta anosch.

Cem metros atrás, trotando com certa dificuldade na neve fofa, vinha a Bagagem. Ninguém nunca lhe pedia opinião sobre nada.

Ao cair da tarde, o grupo já havia chegado ao limite das planícies e cavalgava pelos sombrios pinheirais, que tinham sido apenas levemente atingidos pela tempestade de neve. Era um cenário de enormes pedras rachadas e vales muito profundos, em que os dias só duravam cerca de 120 minutos. Uma paisagem silvestre, soprada pelos ventos, o tipo de lugar em que se pode encontrar...

— Trollsch — disse Cohen, farejando o ar.

Rincewind olhou em volta sob a luz vermelha da noite. Pedras que estavam ali, perfeitamente normais até há um instante, de repente pareciam vivas. Sombras, em que ninguém teria nem sequer prestado atenção, agora pareciam esconder vultos.

— Eu gosto de trolls — comentou Duasflor.

— Não gosta, não — rebateu Rincewind, com firmeza. — Não pode gostar. Eles são grandes, cheios de calombos e comem seres humanos.

— Não comem, não — advertiu Cohen, descendo do cavalo e massageando os joelhos. — Grande equívoco. Osch trollsch nunca comeram ninguém.

— Não?

— Não, chempre coschpem fora. Não concheguem digerir peschoasch, entende? O troll normal não quer nada na vida além de um bom pedacho de granito e talvech uma laje de calcário de chobremesa. Alguém me dische que é porque chão feitos de chilíchio...

Cohen parou e limpou a barba, então continuou:

— ... feitosch de pedra.

Rincewind assentiu. É claro que não era difícil encontrar trolls em Ankh-Morpork. Eles quase sempre eram empregados como guarda-costas. Ficava bem caro mantê-los no início, até que eles aprendessem a usar a porta e não sair de casa abrindo caminho pela parede mais próxima.

Enquanto todos juntavam lenha, Cohen continuou a falar:

— O negóchio chão osch dentesch dosch trollsch.

— Por quê? — perguntou Bethan.

— Diamantesch. Chó pode cher, entende? E a única coisa que agüenta asch pedrasch, e todo ano elesch criam nova dentichão.

— Por falar em dentes... — começou Duasflor.

— Chim?

— Não pude deixar de notar...

— Chim?

— Ah, nada — disse Duasflor.

— Hum. Vamosch armar logo escha fogueira. Imagino — continuou Cohen, sem ânimo — que poschamos preparar uma chopa.

— Rincewind é ótimo nisso — opinou Duasflor, entusiasmado. — Sabe tudo sobre ervas, raízes e tal.

Cohen dirigiu um olhar a Rincewind. Parecia dizer que ele, Cohen, não acreditava naquilo.

— Bom, o povo cavalar nosch deu um pouco de charque de cavalo — lembrou ele. — Che vochê puder achar algumasch chebolasch chilvestresch, pode ficar maisch goschtoso.

— Mas eu... — começou Rincewind, mas desistiu.

De qualquer forma, pensou ele, sei o que é cebola: um negócio branco arredondado, com uma parte verde despontando no alto. Deve ser fácil de achar.

— Vou dar uma olhada — anunciou ele.

— Eschtá bem.

— Ali naquelas moitas espessas e sombrias?

— Exchelente.

— Está falando de onde estão todas aquelas valas profundas?

— Lugar ideal.

— É, achei que sim — lamentou Rincewind, com amargor.

E se foi, imaginando como ia fazer para atrair cebolas. Afinal de contas, raciocinou ele, embora costumassem ser vistas penduradas em cordas nas barracas das feiras, era pouco provável que crescessem daquele modo. Talvez os camponeses usassem cães farejadores ou cantassem para chamá-las.

Havia algumas estrelas prematuras no céu quando o mago começou a cutucar o chão com um pedaço de pau, entre as folhas e a grama. Fungos luminosos, desagradavelmente orgânicos e parecendo acessórios eróticos para gnomos, estalavam debaixo de seus pés. Pequenas coisas voadoras o picavam. Outras coisas, por felicidade invisíveis, pulavam ou deslizavam para baixo de arbustos e grasnavam para ele.

— Cebolas! — sussurrou Rincewind. — Alguma cebola por aí?

— Tem um pouco ali ao lado do velho teixo — disse uma voz atrás do mago.

— Ah! — exclamou ele. — Que bom!

Houve um longo silêncio, quebrado apenas pelo zumbido dos mosquitos perto da orelha de Rincewind.

O mago se manteve completamente parado, sem nem piscar os olhos.

Por fim, disse:

— Com licença.

— Pois não?

—Qualéoteixo?

— A árvore baixa e retorcida com folhinhas verdes.

— Ah, sim. Estou vendo. Obrigado mais uma vez.

Mas não se mexeu. Casualmente, a voz perguntou:

— Posso ser útil em mais alguma coisa?

— Você não é uma árvore, é? — indagou Rincewind, ainda olhando para frente.

— Não seja bobo. Árvore não fala.

— Desculpe. É que, nos últimos tempos, venho tendo problemas com árvores, sabe como é.

— Pra dizer a verdade, não sei, não. Sou uma pedra.

A voz de Rincewind quase não se alterou.

— Sei, sei — respondeu ele. — Bom, neste caso acho que vou lá pegar as cebolas.

— Aproveite.

O mago avançou com pompa e cautela, avistou um feixe de coisas brancas fibrosas entre as moitas, arrancou-as com cuidado do chão e se virou.

Viu uma pedra um pouco afastada. Mas havia pedras para todos os lados. Ali, o esqueleto do Disco se encontrava mais próximo da superfície.

Ele olhou feio para o teixo, só para o caso de ter sido a árvore quem tinha falado. Mas o teixo, sendo um vegetal bastante solitário, nunca nem ouvira falar de Rincewind, o salvador de árvores — e, de qualquer modo, estava dormindo.

— É você, Duasflor? Desde o começo, eu sabia que era você — arriscou Rincewind.

De repente, no anoitecer, a voz pareceu muito clara e isolada.

O mago se lembrou da única certeza que tinha sobre os trolls, o fato de eles virarem pedra quando expostos à luz do sol. Aqueles que os contratavam para trabalhar durante o dia tinham que gastar fortunas em protetor solar.

Mas, agora que parava para pensar a respeito, em lugar nenhum se dizia o que acontecia depois que o sol se punha outra vez...

Os restos da luz do dia escoaram. E de repente parecia haver pedras demais ao redor.

— Ele está demorando muito com as cebolas — disse Duasflor. — Não acha melhor irmos atrás?

— Osch magosch chabem che cuidar — garantiu Cohen. — Não che preocupe.

O herói se encolheu. Bethan cortava as unhas do seu pé.

— Pra ser exato, ele não é nenhum grande feiticeiro — advertiu Duasflor, aproximando-se da fogueira. — Não diria isso na cara dele, mas...

O rapaz se inclinou para Cohen.

— ... nunca o vi fazer mágica alguma.

— Muito bem, passe o outro — disse Bethan.

— É muita gentileza chua.

— Você teria pés excelentes, se tratasse melhor deles.

— Já não conchigo me abaixar como antesch — justificou Cohen, envergonhado. — É claro que, na minha linha de trabalho, não encontro muitosch quiropodischtas. Pra dizer a verdade, é até engrachado. Conhechi váriosch padresch cruéisch, deusesch malucosch e déschpotasch, masch nunca um quiropodischta. Imagino que não ficaria muito bem... “Cohen contra osch quiropodischtas...”

— Ou “Cohen e os quiropráticos da destruição” — sugeriu Bethan.

O herói soltou uma gargalhada.

— Ou “Cohen e os dentistas alucinados!” — propôs Duasflor, rindo.

A boca de Cohen de pronto se fechou.

— Qual é a gracha? — perguntou ele.

— Ah, é, bem — começou o rapaz. — Os seus dentes, entende?

— O que tem elesch? — reagiu Cohen.

Duasflor engoliu em seco.

— Hã, não pude deixar de notar que não se encontram na mesma posição geográfica que a boca.

Cohen o encarou. Depois se curvou e pareceu muito pequeno e velho.

— Tudo bem, é verdade — murmurou ele. — Não poscho culpá-lo. E duro cher um herói chem dentesch. Não importa o que maisch che perca. Podemosch até nosch arranjar chem um olho, masch baschta moschtrar a boca cheia de gengiva e ninguém nosch reschpeita.

— Eu respeito — lembrou Bethan, com ares de lealdade.

— E por que não arruma outros? — indagou Duasflor.

— Bom, che eu fosche um tubarão ou algo aschim, tudo bem, acabariam creschendo outrosch — ironizou Cohen.

— Ah não, é só comprar — rebateu Duasflor. — Olhe, vou mostrar a você... Hã, Bethan, você se importa de virar para o outro lado?

Ele esperou a garota se virar e então botou a mão na boca.

— Eschtá vendo? — perguntou.

Bethan ouviu Cohen arquejar.

— Vochê tira osch cheusch?

— Ah, tiro. E tenho váriosch conjuntosch. Com lichencha...

Houve um barulho de saliva. Numa voz mais normal, Duasflor disse:

— É muito conveniente.

A voz de Cohen demonstrava admiração — ou tanta admiração quanto se é possível demonstrar sem dentes, que é mais ou menos a mesma quantidade que se demonstra com dentes, só que parece muito menos impressionante.

— Imagino que chim — concordou ele. — E quando doerem, é chó tirar os malditosch e deixar que che virem, não é? Dar uma lichão aos desgrachadosch e ver o que acham de ficar doendo chózinhosch!

— Não é bem assim — advertiu Duasflor, com cautela. — Eles não são meus, só pertencem a mim.

— Vochê botou dentesch de outra peschoa na boca?

— Não, foram feitos. De onde venho, muitas pessoas usam. Chamam...

Mas a aula de Duasflor sobre substituições dentárias ficou pela metade, porque alguém o acertou.

A pequena lua do Discworld avançava no firmamento. O céu brilhava com luz própria devido ao amontoado - e um tanto ineficiente - arranjo feito pelo Criador. Também se encontrava cheio de deusas lunares que, naquele instante, não prestavam atenção ao que se passava no Disco, mas recebiam uma petição sobre os Gigantes do Gelo.

Se tivessem olhado para baixo, teriam visto Rincewind conversando aflito com um monte de pedras.

Os trolls são uma das formas de vida mais antigas do multiverso e remontam a uma tentativa precoce de se dar início à vida sem recorrer ao gosmento protoplasma. Vivem bastante, hibernando no verão e dormindo durante o dia — uma vez que o calor os deixa bastante lerdos. E apresentam uma geologia fascinante. Poderíamos falar de tribologia, mencionar os efeitos semicondutores do silício impuro ou discorrer sobre os gigantescos trolls da pré-história — que constituem a maior parte das grandes cadeias de montanhas e algum dia poderão trazer problemas imensos, caso venham a acordar — mas o fato puro e simples é que, sem o poderoso e difuso campo mágico do Disco, há muito tempo os trolls já teriam morrido.

A psiquiatria ainda não havia sido inventada no Disco. Ninguém jamais fizera testes mostrando manchas de tinta a Rincewind para ver se o mago tinha algum brinquedo perdido no sótão da infância. Assim, o único modo como ele poderia descrever as pedras se transformando outra vez em trolls seria comparando-as com as imagens que se formavam quando olhávamos o fogo ou as nuvens.

Num momento havia uma pedra perfeitamente comum e, de repente, algumas rachaduras que sempre tinham estado ali ganhavam o aspecto bem definido de uma boca ou uma orelha. Alguns segundos mais tarde, um troll estava sentado à frente do mago, sorrindo para ele com a boca cheia de diamantes.

Não podem me digerir, lembrou Rincewind. Eu lhes faria muito mal.

Não foi um grande consolo.

— Então você é o mago Rincewind — disse o mais próximo, com a voz parecendo o som de algo se locomovendo sobre cascalhos. — Estranho. Achei que fosse mais alto.

— Talvez tenha sofrido erosão — comentou um outro. — A lenda é antiga demais.

Ríncewind se mexia, pouco à vontade. O mago tinha quase certeza de que a pedra em que se encontrava sentado estava mudando de forma, e um troll minúsculo — na verdade não passava de um calhau — estava sentado a seu pé e o observava com enorme interesse.

— Lenda? — perguntou o mago. — Que lenda?

— Desde o poente dos tempos, ela vem sendo transmitida de montanha para seixo — contou o primeiro troll. — “Quando a estrela vermelha alumiar o céu, o mago Rincewind virá à procura de cebolas. Não o partam em pedaços. É muito importante ajudá-lo para que se mantenha vivo.”

Houve uma pausa.

— Só isso? — surpreendeu-se Rincewind.

— Só — reconheceu o troll. — Sempre ficamos intrigados. A maioria das nossas lendas costuma ser bem mais emocionante. Era muito melhor ser pedra antigamente.

— Era? — perguntou Rincewind, já sem forças.

— Ah, era. Diversão que não acabava mais. Vulcões para todos os lados. Ser pedra naquele tempo realmente significava alguma coisa. Não tinha nem um pouco desse absurdo sedimentário. Era-se ígneo ou nada. Agora isso acabou. Hoje em dia, qualquer um se diz troll e, bem, às vezes não passam de ardósia. Ou mesmo giz. Eu não tiraria onda se as pessoas pudessem me usar para escrever, você tiraria?

— Não — apressou-se em responder Rincewind. — Claro que não. Esse, hã, negócio de lenda. Dizia que vocês não deveriam me partir em pedaços?

— Isso mesmo! — assentiu o pequeno troll, ao pé do mago. — E fui eu que falei onde estavam as cebolas!

— Ficamos felizes por você ter chegado — disse o primeiro troll, o qual Rincewind não pôde deixar de notar que era o maior.

— Estamos um pouco preocupados com a estrela nova. O que está acontecendo?

— Não sei — respondeu Rincewind. — Todo mundo acha que sei, mas não...

— Não que nos importássemos em derreter — cortou o chefe dos trolls. — Afinal de contas, foi como todos começamos. Mas achamos que talvez significasse o fim do mundo e isso não nos pareceu uma boa idéia.

— Vem crescendo — interveio outro troll. — Olhe para ela. Maior do que na noite passada.

Rincewind olhou. Estava definitivamente maior do que na noite anterior.

— Achamos que você teria alguma sugestão — disse o chefe, com tanta suavidade quanto se pode manifestar quando a voz se assemelha a um gargarejo de granito.

— Vocês poderiam saltar da Beira — apontou Rincewind. — Deve haver vários lugares no universo que aceitariam de bom grado algumas pedras extras.

— Já ouvimos falar disso — disse o troll. — Conhecemos pedras que tentaram. Depois contaram ter passado milhões de anos flutuando, depois ficaram bem quentes, queimaram e acabaram no fundo de um buracão. Não me parece muito prudente.

Ele se levantou, provocando um barulho parecido com carvão rolando por uma calha, e esticou os braços grossos e encaroçados.

— Bom, estamos aqui para ajudá-lo — anunciou por fim. — Existe alguma coisa que queira fazer?

— Eu deveria estar preparando uma sopa — respondeu o mago.

Agitou as cebolas, de maneira vaga. Provavelmente não foi o gesto mais heróico e determinado do mundo.

— Sopa? — assustou-se o troll. — Só isso?

— Bom, talvez alguns biscoitos também.

Os trolls se entreolharam, abrindo a boca e mostrando pedras preciosas suficientes para comprar uma cidade de tamanho médio.

— Então que seja sopa — disse o troll, encolhendo os ombros.

— Só esperávamos que a lenda fosse, bem, um pouco mais... Não sei, por algum motivo, pensei... Mas não importa.

Ele estendeu a mão, que parecia um cacho de bananas fossilizadas

— Meu nome é Kwartzo. — disse. — E ali estão Krysoprase, Brecha, Jaspe e minha mulher, Berilo... Ela é um pouco metamórfica mas, hoje em dia, quem não é? Jaspe, saia do pé dele.

— Metáfora interessante. É claro que, para os noturnos trolls, a aurora dos tempos fica no futuro.

Rincewind apertou a mão com cuidado, preparando-se para o rangido de ossos esmagados. Mas não ouviu nada. A mão do troll era dura e tinha um pouco de líquens em torno das unhas.

— Sinto muito — desculpou-se Rincewind. — Nunca tinha encontrado trolls antes.

— Somos uma espécie em extinção — lamentou Kwartzo, enquanto o bando se punha a andar sob as estrelas. — O pequeno Jaspe é o único calhau da nossa tribo. Nossa doença é a filosofia, você sabe.

— É? — perguntou Rincewind, tentando acompanhar o ritmo da marcha.

O grupo de trolls andava rápido e sem o menor barulho — grandes vultos arredondados movendo-se como fantasmas pela noite escura. Apenas os ocasionais guinchos dos animais noturnos que não os tinham escutado se aproximar marcavam sua passagem.

— É. Sofremos com esse negócio. Mais cedo ou mais tarde acaba acontecendo. Uma noite qualquer acordamos e começamos a pensar “Do que adianta?” Então paramos e ficamos parados. Só isso. Está vendo aqueles penedos lá?

Rincewind viu umas sombras imensas na grama.

— A última é minha tia. Não sei no que está pensando, mas faz 200 anos que não se mexe.

— Meu Deus, sinto muito.

— Ah, não tem problema quando estamos por perto para cuidar deles — explicou Kwartzo. — Não existem muitos humanos aqui, entende? Sei que não é culpa sua, mas parece que vocês não conseguem distinguir um troll pensante de uma pedra comum. Abriram uma pedreira no meu tio-avô.

— Que horror!

— É mesmo, num momento ele era um troll, uma hora depois virou ornamentação de lareira.

O grupo parou em frente a um rochedo de aspecto familiar. Os restos de uma fogueira ardiam na escuridão.

— Parece que teve briga — advertiu Berilo.

— Todos se foram! — alarmou-se Rincewind.

O mago correu até o extremo da clareira.

— Os cavalos também! E a Bagagem!

— Um deles vazou — atestou Kwartzo, ajoelhando-se. — Aquela coisa vermelha e aguada que vocês têm dentro do corpo. Veja.

— Sangue!

— É esse o nome? Nunca entendi qual é a finalidade do líqüido.

Rincewind corria para lá e para cá, espiando atrás dos arbustos, caso alguém estivesse escondido. Acabou tropeçando numa garrafinha verde.

— O ungüento de Cohen! — murmurou o mago. — Ele não vai a lugar nenhum sem isso!

— Bem — disse Kwartzo — os seres humanos também fazem uma coisa. Quer dizer, como quando nós paramos e pegamos filosofia, só que vocês apenas caem aos pedaços...

— Chama-se morrer! — berrou Rincewind.

— Exatamente. Eles não fizeram isso, porque não estão aqui.

— A não ser que tenham sido comidos! — sugeriu Jaspe, com animação.

— Hum - disse Kwartzo. – É.

— Lobos? — disse Rincewind.

— Faz anos que esmagamos todos os lobos da região — disse o troll. — Na verdade, vovô esmagou.

— Não gostava dos bichos?

— Não é isso. Só não costumava olhar por onde andava. Hum.

Os trolls examinaram o chão outra vez.

— Tem pegadas — continuou Kwarzo. — Muitos cavalos.

Ele encarou as montanhas próximas, onde penhascos íngremes, cheios de precipícios assomavam por cima das florestas enluaradas

— Vovô mora lá — sussurrou ele.

Algo na maneira como o troll falou fez Rincewind decidir que não queria jamais conhecer vovô.

— Perigoso? — arriscou o mago.

— Muito velho, grande e cruel. Faz anos que não o vemos — respondeu Kwartzo.

— Séculos — corrigiu Berilo.

— Ele vai esmagar todo mundo! — acrescentou Jaspe, pulando nos dedos do pé de Rincewind.

— Às vezes acontece de um troll muito grande e velho sair sozinho para as montanhas e... há... o lado pedroso tomar conta, se é que você me entende.

—Não.

Kwartzo suspirou.

— Às vezes, as pessoas agem como animais, não agem? E de vez em quando o troll começa a pensar como pedra. E pedras não gostam muito de gente.

Brecha, um troll magro com acabamento em arenito, bateu no ombro de Kwartzo.

— E aí, vamos segui-los? — perguntou ele. — A lenda diz que devemos ajudar esse Rincewind.

Kwartzo se levantou, pensou por um instante, pegou o mago pela nuca e, num grande movimento decidido, jogou-o nos ombros.

— Vamos — disse, resoluto. — E, se encontrarmos vovô, tento explicar...

 

A dois quilômetros dali, uma fileira de cavalos trotava pela noite. Três deles levavam prisioneiros, habilmente imobilizados e amordaçados. Um quarto animal puxava a pesada armação na qual a Bagagem se encontrava amarrada, enredada e quieta.

Com delicadeza, Herrena deu ordens para o grupo parar e chamou um dos homens.

— Tem certeza? — perguntou ela. — Não estou ouvindo nada.

— Vi vultos de trolls — disse ele, com indiferença.

A heroína correu os olhos em volta. Àquela altura, as árvores já se mostravam mais espaçadas, havia muitos cascalhos no chão e, mais adiante, a trilha levava a uma montanha rochosa e escalvada que parecia especialmente macabra sob a luz da estrela vermelha.

Herrena estava intrigada com a trilha. O caminho era muito velho, mas tinha sido feito por alguém — e trolls custavam a morrer.

Ela suspirou. De repente, parecia que a carreira de secretária não teria sido uma escolha tão ruim.

Não era a primeira vez que Herrena refletia sobre o fato de haver muitos inconvenientes em ser espadachim. Um deles era o fato de os homens só a levarem a sério depois de terem sido mortos - quando já não importava mais. Além disso, tinha todo aquele couro, que a deixava com a pele irritada, mas era uma tradição intocável, nem se podia pensar em não usar. E também a cerveja. Não havia problema nenhum que heróis como Hrun o Bárbaro, ou Cimbar, o Assassino, se embebedassem a noite toda em botecos, mas Herrena só freqüentava lugares que tivessem drinques servidos em pequenas taças, de preferência com cereja. Quanto aos toaletes...

Mas ela era grande demais para ser ladra, digna demais para ser assassina, inteligente demais para ser esposa e orgulhosa demais para entrar na única outra profissão em geral disponível para mulheres.

Por isso virara espadachim, uma excelente espadachim, acumulando uma pequena fortuna que vinha administrando com cautela, uma reserva para um futuro que ainda não estava muito bem decidido, mas que com certeza incluiria um bidê, se lhe fosse dado o direito de escolher.

Ela olhou novamente para a montanha. Dois braços altos se estendiam para a direita e a esquerda. Mais acima havia um grande afloramento com — ela apertou os olhos — algumas cavernas?

Cavernas de trolls. Mas talvez acampar ali fosse melhor do que seguir às cegas pela noite. E, ao nascer do sol, não haveria problemas.

Herrena se inclinou para Gancia, o líder da gangue de mercenários morporkianos. Não estava satisfeita com ele. Era verdade que tinha os músculos e a resistência de um touro — o problema é que também parecia ter cérebro de touro. E a perversidade de uma doninha. Como a maioria dos jovens de Morpork, teria tranqüilamente feito cola com a gordura da avó, e era provável que isso tivesse mesmo acontecido.

— Vamos para as cavernas e acenderemos uma grande fogueira na entrada — disse ela. — Trolls não gostam de fogo.

O rapaz lhe dirigiu um olhar que sugeria idéias diferentes sobre quem devia estar dando ordens, mas de seus lábios saiu:

— Você é quem manda.

— Certo.

Herrena voltou a fitar os três prisioneiros. Aquela era sem dúvida a arca — a descrição de Trymon fora bastante precisa. Mas nenhum dos homens parecia mago. Nem mesmo um mago chinfrim.

— Minha nossa! — exclamou Kwartzo.

Os trolls pararam. A noite se fechava como veludo. Uma coruja piou de maneira estranha — ou pelo menos Rincewind achou que fosse uma coruja; o mago era um pouco atrapalhado em ornitologia. Talvez um rouxinol tivesse piado, a não ser que fosse um tordo. Mas um morcego bateu asas no céu. Ele estava bem certo disso.

Também estava muito cansado e um tanto arranhado.

— Por que minha nossa? — perguntou afinal.

Encarou a escuridão. Havia um pontinho distante na colina, talvez uma fogueira.

— Ah — disse ele. — Vocês não gostam de fogo, não é?

Kwartzo assentiu.

— Destrói a supercondutividade dos nossos cérebros — explicou ele. — Mas uma fogueira tão pequena não vai surtir nenhum efeito em vovô.

Rincewind olhou à volta com cuidado, esperando ouvir os ruídos de um troll cruel. O mago já havia visto o que trolls normais podiam fazer com a floresta. Não é que destruir fizesse parte de sua natureza, apenas tratavam a matéria orgânica como uma espécie de cerração indesejável.

— Vamos torcer para que ele não ache o fogo — sugeriu Rincewind, com fervor.

Kwartzo suspirou.

— Sem chance — lamentou por fim. — Acenderam dentro de sua boca.

 

— É caschtigo! — resmungou Cohen, debatendo-se inutilmente sob as amarras.

Duasflor o fitava, confuso. O estilingue de Gancia havia feito um galo e tanto atrás de sua cabeça, e o rapaz estava um pouco confuso sobre algumas coisas, a começar pelo próprio nome e daí por diante.

— Eu devia ter eschcutado — disse Cohen. — Eu devia ter preschtado atenchão e não ter me deixado levar por escha convercha de de-tritura. Devo eschtar amolechendo.

Ele se ergueu sobre os cotovelos. Herrena e o resto da gangue estavam em volta da fogueira, na entrada da caverna. A Bagagem ainda estava quieta na rede.

— Tem alguma coisa estranha nesta caverna — disse Bethan.

— O quê? — perguntou Cohen.

— Bem, olhe. Já viu pedras assim antes?

Cohen teve que concordar que o semicírculo de pedras em torno da entrada não era comum. Cada uma era maior que um homem, além de se mostrarem muito gastas e surpreendentemente lustrosas. No teto, havia um semicírculo parecido. O resultado geral era uma espécie de computador de pedra construído por um druida com uma vaga idéia de geometria e nenhum senso de gravidade.

— Olhe também as paredes.

Cohen mirou a parede mais próxima. Havia veios de cristal vermelho. O herói não tinha certeza, mas parecia que pontinhos de luz ficavam piscando dentro da própria pedra.

Também ventava muito. Uma brisa constante soprava das profundezas escuras da caverna.

— Tenho certeza de que, quando entramos, ventava no sentido contrário — sussurrou Bethan. — o que você acha, Duasflor?

— Bom, não sou nenhum especialista em cavernas — disse o rapaz. — Mas estava pensando que tem uma estalactite bastante interessante pendurada ali no teto. Meio bulbosa, não é?

Todos olharam para ela.

— Não sei exatamente por que — admitiu Duasflor —, mas acho que talvez fosse uma boa idéia darmos o fora daqui.

— Ah, claro — ironizou Cohen. — Imagino que a gente deva pedir que nosch desamarrem e nosch deixem ir, não é?

Cohen não havia passado muito tempo na companhia de Duasflor, do contrário jamais teria ficado surpreendido quando o homenzinho assentiu e com a voz alta, lenta e cuidadosa que empregava como uma alternativa a falar de fato a língua dos outros — disse:

— Com licença. Será que vocês poderiam nos desamarrar e nos deixar ir? Está muito úmido e venta demais aqui. Desculpem.

Bethan olhou de lado para Cohen.

— Ele deveria mesmo ter feito isso?

— Admito que é inuschitado.

E, de fato, três pessoas se desgarraram do grupo ao redor da fogueira e se aproximaram. Não pareciam ter intenção de desamarrar ninguém. Os dois homens, na verdade, lembravam mais o tipo de gente que, quando vê outras pessoas amarradas, começa a brincar com facas, fazer insinuações macabras e lançar olhares terríveis.

Herrena se apresentou sacando a espada e apontando a arma para o coração de Duasflor.

— Qual de vocês é o mago Rincewind? — perguntou ela. — Havia quatro cavalos. Ele está aqui?

— Hã, não sei onde ele está — respondeu Duasflor. — Talvez, procurando cebolas.

— Portanto é amigo e virá atrás de vocês — concluiu Herrena. Ela fitou Cohen e Bethan, depois cravou os olhos na Bagagem. Trymon havia enfatizado que não deveriam de forma nenhuma tocar na Bagagem. A curiosidade pode matar o gato, mas a curiosidade de Herrena teria massacrado o melhor dos leões.

Ela cortou a rede e agarrou a tampa do baú.

Duasflor se encolheu.

— Trancado — disse ela, por fim. — Onde está a chave, gordinho?

— Não... não tem chave — respondeu Duasflor.

— Tem um buraco de fechadura — mostrou a heroína.

— É, bem, mas se ela quer ficar trancada, não tem jeito — disse Duasflor pouco à vontade.

Herrena notou o sorriso de Gancia. E falou com rispidez.

— Quero que abram — exigiu ela. — Gancia, cuide disso.

Voltou para a fogueira.

Gancia sacou uma faca comprida e fina e levou-a ao rosto de Duasflor.

— Ela quer que abram — disse o mercenário, olhando para o outro homem e sorrindo. — Ela quer que abram, Weems.

Gancia passou a faca lentamente diante do rosto de Duasflor.

— Olhe - disse o rapaz, com paciência. — Acho que vocês não entenderam. Ninguém consegue abrir a Bagagem se ela não está disposta a ser aberta.

— Ah, sim, já ia me esquecendo — ponderou Gancia. — Claro, é um baú mágico, não é verdade? Dizem que tem perninhas. Eu digo: Weems, alguma perna do seu lado? Não?

Ele dirigiu a faca para a garganta de Duasflor.

— Fico realmente chateado por isso — acrescentou. — Weems também. Ele não fala muito, mas o que faz muito bem é cortar pedaços das pessoas. Vamos, abra... o... baú!

Ele se virou e deu um chute na lateral da Bagagem, deixando um talho horroroso na madeira.

Houve um pequeno clique.

Gancia sorriu. A tampa se abria devagar, pesadamente. A luz distante da fogueira reluziu a ouro — muito ouro, em barras, correntes e moedas brilhando no meio das sombras bruxuleantes.

— Uau — murmurou Gancia.

Ele voltou os olhos para os homens desatentos em torno da fogueira — que pareciam gritar com alguém fora da caverna. Encarou Weems, insinuante. Os lábios se moveram em silêncio, com esforços sobre-humanos para fazer aritmética mental.

Ele olhou para a faca.

Nesse exato instante o chão se moveu.

— É.

— Ouvi alguém — disse um dos homens. — Lá entre as... hã... pedras.

A voz de Rincewind saía das trevas.

— Escutem! — gritou ele.

— O quê? — perguntou Herrena.

— Vocês estão correndo um enorme perigo! — avisou o mago. — Precisam apagar a fogueira!

— Não — protestou Herrena. — Você deve ter entendido mal, você está correndo um enorme perigo. E a fogueira continua.

— Tem um troll imenso...

— Todo mundo sabe que os trolls ficam longe de fogo — cortou Herrena.

Ela fez sinal com a cabeça. Dois homens sacaram espadas e avançaram para a escuridão.

— É verdade! — insistiu Rincewind, em desespero. — Só que esse troll em especial não pode.

— Não pode?

Herrena hesitou. O pavor na voz de Rincewind a atingiu por fim.

— Não, entende? Porque vocês acenderam a fogueira na língua dele.

O chão tornou a se mover.

Vovô despertou muito lentamente depois de séculos de cochilo. Na verdade, quase nem chegou a acordar. Algumas décadas mais tarde poderia jurar que nada disso havia acontecido. Quando o troll envelhece e começa a pensar no universo com grave seriedade, em geral procura um lugar calmo e se concentra em questões filosóficas complexas — passando, com o tempo, a esquecer suas extremidades. Passa a se cristalizar nas pontas até não sobrar nada além de um lampejo de vida encerrado numa enorme montanha com uma quantidade incomum de estrato de rocha.

Vovô ainda não chegara a esse ponto. Ele despertou no meio de uma linha de raciocínio muito interessante a respeito do sentido da verdade e sentiu um gosto de queimado onde depois de alguma reflexão, lembrou se tratar da boca.

Estava ficando irritado. Comandos corriam pelas cadeias neurais de silício impuro. Dentro do corpo silícico, pedras deslizavam com suavidade por cursos especiais de ruptura. Árvores vieram abaixo, e o gramado se partiu quando dedos do tamanho de navios se abriram e agarraram o chão. Duas enormes massas de rocha no alto do rosto do penhasco assinalaram o abrir de uns olhos semelhantes a grandes opalas incrustadas.

É evidente que Rincewind não pôde ver nada disso, uma vez que seus olhos necessitavam da luz do dia, mas o mago percebeu a paisagem escura começando a se mexer e a subir desgovernadamente em direção às estrelas.

O sol se erguia.

Mas a luz do sol, não. O que tinha acontecido era que a famosa luz solar do Discworld — que, como já foi mencionado, avança com enorme lentidão pelo poderoso campo mágico do Disco — escorreu com suavidade primeiro pelas regiões em torno da Borda e só depois deu início à silenciosa e tranqüila batalha contra os exércitos da noite em retirada. Ela fluía como ouro derretido (Nota do Autor: Não exatamente, é claro. Árvores não arderam em chamas, pessoas não ficaram de repente muito ricas e completamente mortas, e oceanos não evaporaram. Melhor símile, na verdade, seria “não fluía como ouro derretido”) pela paisagem adormecida — clara, brilhante e, sobretudo, lenta.

Herrena não vacilou. Com grande presença de espírito, correu até a ponta do lábio inferior de vovô e saltou, rolando quando atingiu o chão. Os homens foram atrás, xingando enquanto tropeçavam nos fragmentos de rocha.

Como o sujeito gordo que tenta fazer flexões, o velho troll conseguiu se levantar.

Nada disso, porém, era visível onde os prisioneiros estavam. Tudo que eles sabiam era que o chão se mexia e havia um barulho desagradável.

Weems segurou o braço de Gancia.

— É um disquemoto! — alarmou-se. — Vamos dar o fora daqui!

— Não sem o ouro — disse Gancia.

— O quê?

— O ouro, o ouro. Cara, a gente pode ficar rico como Creso!

Weems podia ter um QI de temperatura ambiente, mas reconhecia a estupidez quando se deparava com ela. Os olhos de Gancia brilhavam mais do que as estrelas, e ele parecia fitar a orelha esquerda do companheiro.

Em desespero, Weems olhou a Bagagem. O baú ainda estava sedutoramente aberto, o que era estranho — imagina-se que toda aquela trepidação teria fechado a tampa.

— Não dá para carregar — advertiu ele. — É pesada demais.

— Vamos levar um pouco! — gritou Gancia, e avançou para o baú, enquanto o chão tremia outra vez.

A tampa se fechou. Gancia desapareceu.

E, só para o caso de Weems ter pensado que havia sido acidental, a Bagagem se abriu de novo — por apenas um segundo — e uma grande língua vermelha como mogno correu sobre dentes brancos feito pau-marfim. A tampa se fechou novamente.

Para horror ainda maior de Weems, centenas de perninhas se esticaram debaixo do baú. A coisa se levantou com determinação e — ordenando os pés com desenvoltura — virou-se para encará-lo.

O buraco da fechadura tinha um ar particularmente maligno, do tipo que diz “Vamos lá, complete o meu dia...”

O mercenário recuou, olhando com súplica para Duasflor.

— Acho que seria melhor você nos desamarrar — sugeriu Duasflor. — Ela fica bastante amigável depois que conhece a pessoa.

Lambendo nervosamente os lábios, Weems sacou a faca. A Bagagem soltou um estalo em advertência.

Ele cortou as amarras e recuou às pressas.

— Obrigado — disse Duasflor.

— Acho que a minha coluna eschtá acabada — reclamou Cohen, enquanto Bethan o ajudava a se levantar.

— O que fazemos com o homem? — perguntou Bethan.

— Pedimosch a faca e mandamosch cair fora — respondeu Cohen. — Cherto?

— Certo, senhor! Obrigado, senhor! — disse Weems, e disparou em direção à saída da caverna.

Por um instante, ele ficou contornado pelo céu acinzentado daquele momento anterior ao amanhecer, e logo sumiu. Houve um grito distante de “aaah”.

Como ondas refluindo na ressaca, a luz solar rugia silenciosamente pela terra. Aqui e ali, onde o campo mágico se mostrava menos intenso, faixas de manhã corriam à frente do dia, deixando ilhas isoladas de noite, que acabavam por diminuir de tamanho e desaparecer no progressivo oceano de luz.

Por fim, as montanhas que cercavam as Planícies Vórtice assomaram diante da maré crescente como um grande navio cinza.

É possível apunhalar trolls, mas a técnica exige prática, e ninguém tem chance de treinar mais de uma vez. Os homens de Herrena viram os trolls surgirem da escuridão como fantasmas sólidos. As lâminas se partiram ao atingir a pele de sílica, houve um ou dois berros altos e curtos, e depois nada além de gritos distantes na floresta, à medida que eles se afastavam o quanto podiam da vingativa terra.

Rincewind saiu de trás de uma árvore e espiou ao redor. Estava sozinho, mas os arbustos farfalhavam conforme os trolls corriam pesadamente atrás da gangue.

O mago olhou para cima.

Bem no alto, dois enormes olhos cristalinos se voltaram para ele com ódio de tudo que era macio, gosmento e sobretudo quente. Rincewind se agachou ao ver a enorme mão do tamanho de uma casa subir, fechar-se em punho e cair em sua direção.

O dia chegou numa explosão silenciosa de luz antes de o punho acabar de descer. Por um instante, o corpo imenso e apavorante de vovô se tornou um quebra-mar de sombra, enquanto a luz do dia acabava de se espalhar por ele. Um rangido breve se fez ouvir.

O silêncio voltou.

Vários minutos se passaram. Nada aconteceu.

Alguns pássaros começaram a cantar. Um abelhão zumbiu sobre o penedo arredondado, que era o punho de vovô, e pousou num raminho de alecrim que havia brotado sob a unha de pedra.

Logo abaixo, irromperam alguns sons. Como uma cobra deixando a toca, Rincewind deslizou para fora do vão estreito que havia entre o punho e o chão.

O mago ficou ali deitado de costas, olhando o vulto congelado. O troll não havia mudado — com exceção da imobilidade — mas os olhos já começavam a pregar algumas peças. Na noite anterior, Rincewind vira fendas se transformarem em olhos e bocas; agora o mago observava os traços no grande rosto se tornarem, como mágica, simples marcas na rocha.

— Uau! — disse.

Ninguém veio ajudá-lo. Levantou, sacudiu a poeira do corpo e olhou em volta. Fora o abelhão, estava completamente só.

Depois de procurar um pouco pelos outros, achou uma pedra que, de certos ângulos, lembrava Berílio.

O mago estava perdido, sozinho e longe de casa. Ele...

Bem no alto, houve um barulho, e pedaços de pedra rolaram até o chão. No rosto de vovô, surgiu um buraco. Rincewind pôde ver a traseira da Bagagem, que tentava recuperar o equilíbrio, e em seguida foi Duasflor quem meteu a cabeça para fora da abertura.

— Alguém aí embaixo?

— Oi! — gritou o mago. — Como estou feliz por ver você!

— É mesmo? Por quê? — perguntou Duasflor.

— Como por quê?

— Meu Deus, a vista daqui é linda!

Eles levaram meia hora para descer. Por sorte, vovô era bastante enrugado — com muitos apoios para mão — mas o nariz teria sido um obstáculo complicado, se não fosse pelo exuberante carvalho que havia florescido numa das narinas.

A Bagagem não demonstrava o menor cuidado. Apenas saltava e seguia morro abaixo sem cair e sem nenhum dano aparente.

A certa altura, Cohen sentou na sombra, tentando recobrar o fôlego e esperando que a sanidade o alcançasse. Encarou a Bagagem com ar pensativo.

— Os cavalos fugiram — disse Duasflor.

— Vamos achá-losch — garantiu Cohen.

Os olhos do herói voltaram a se fixar na Bagagem, que parecia estar constrangida.

— Estavam com toda a nossa comida — lamentou Duasflor.

— Há muita comida na floreschta.

— Tenho alguns biscoitos nutritivos na Bagagem — avisou Duasflor. — Os Digestivos do Viajante. Sempre um alívio nas horas de sufoco.

— Já experimentei — comentou Rincewind. — São terrivelmente duros e...

Cohen se levantou, trêmulo.

— Com lichencha — disse de maneira casual. — Prechiso deschcobrir uma coisa.

Ele caminhou até a Bagagem e agarrou a tampa. O baú recuou, mas Cohen estendeu o pé magro e passou uma rasteira em metade das perninhas. Quando o baú se virou para mordê-lo, o herói rilhou as gengivas e fez força, jogando a Bagagem sobre a tampa recurva, onde oscilou cheia de raiva — como uma tartaruga enlouquecida.

— Ei, é a minha Bagagem! — exclamou Duasflor. — Por que ele está atacando a minha Bagagem?

— Acho que sei o motivo — respondeu Bethan, baixinho. — Porque tem medo dela.

Boquiaberto, Duasflor se virou para Rincewind. O mago encolheu os ombros.

— Não me pergunte nada — disse ele. — Eu fujo do que tenho medo.

Com um movimento da tampa, a Bagagem saltou no ar e caiu correndo no chão, acertando a canela de Cohen com uma das quinas de bronze. Quando o baú estava girando, o herói o segurou com firmeza suficiente para arremessá-lo numa pedra.

— Nada mau — considerou Rincewind, com admiração.

A Bagagem recuou cambaleante, parou por um momento e avançou em direção a Cohen, agitando a tampa de modo ameaçador. Ele saltou e pousou sobre o baú, com as mãos e os pés entre o vão.

A atitude deixou a Bagagem completamente desarvorada. Mas foi ainda mais surpreendente quando Cohen tomou fôlego e fez força, fazendo os músculos saltarem nos braços esqueléticos como cocos dentro de uma meia.

Durante algum tempo, os dois ficaram ali travados, tendão contra dobradiça. Vez por outra, um ou outro soltava estalidos.

Bethan cutucou Duasflor.

— Faça alguma coisa — pediu ela.

— Hã — disse o rapaz. — Está bem. Acho que já chega. Por favor, ponha-o no chão.

A Bagagem rangeu ao ouvir a voz do dono. E a tampa se abriu com tanta força, que Cohen tombou para trás, mas logo se pôs de pé e se lançou sobre o baú.

Todo o conteúdo estava à mostra.

Cohen meteu a mão ali dentro.

A Bagagem rangeu um pouco, mas decerto já havia pesado as chances de acabar indo para o alto do Grande Armário do Céu. Quando Rincewind ousou espiar por entre os dedos, o herói examinava o interior da Bagagem e xingava a meia voz.

— Roupa limpa? — gritou. — Chó icho? Roupa limpa?

Ele tremia de raiva.

— Acho que também tem uns biscoitos — murmurou Duasflor.

— Masch tinha ouro! E ela comeu um homem!

Cohen fitou Rincewind com ares de súplica.

O mago suspirou.

— Não me pergunte nada — disse ele. — Esse negócio não é meu.

— Eu comprei numa loja — justificou-se Duasflor. — Só disse que queria um baú de viagem.

— E foi o que conseguiu — avaliou Rincewind.

— Ela é muito leal — disse Duasflor.

— Ah, claro — concordou o mago. — Se lealdade é o que procuramos numa mala.

— Eschpere aí — interveio Cohen, já sentado numa pedra. — Era uma daquelasch lojasch...? Quer dizer, aposchto que vochê nunca a tinha notado e depoisch, quando voltou, já não eschtava maisch ali.

O rosto de Duasflor se iluminou.

— Exatamente!

— O dono era um velho meio encarquilhado? A loja, cheia de coisasch eschtranhasch?

— Isso mesmo! Nunca mais achei. Pensei que tivesse errado de rua. Onde eu achava que era a loja, não tinha nada além de um muro. Na época, lembro-me de pensar que...

Cohen estremeceu.

— Uma daquelasch lojasch — ressaltou ele. — Icho explica tudo. (Nota do Autor: Ninguém sabe o motivo, mas a maioria dos artigos verdadeiramente mágicos e misteriosos do mundo são comprados em lojas que de repente aparecem e, depois de uma curtíssima vida comercial, somem como fumaça. Houve diversas tentativas de explicar isso, mas nenhuma justifica de maneira consistente os fatos observados. Essas lojas surgem em qualquer lugar do universo. Seu súbito desaparecimento pode muitas vezes ser percebido observando-se as muitas pessoas que começam a vagar nas ruas carregando artigos mágicos estragados e certificados de garantia bem ornamentados, e a olhar com desconfiança para os muros.)

O herói sentiu dor nas costas e fez uma careta.

— Osch deschgrachadosch dosch cavalosch fugiram com meu ungüento!

Rincewind se lembrou de algo e mexeu no fundo do manto rasgado — agora também bastante encardido. Ergueu uma garrafa verde.

— É icho! — alegrou-se Cohen. — Vochê é demaisch.

O herói olhou de lado para Duasflor.

— Eu teria venchido — sussurrou afinal. — Meschmo che vochê não tiveche interrompido, no fim eu teria venchido.

— É mesmo — confirmou Bethan.

— Vochés doisch podiam me fazer um favor — acrescentou ele. — A Bagagem quebrou um dente do troll para nosch tirar de lá. Aquilo era diamante. Procurem osch pedachinhos. Tive uma idéia.

Enquanto Bethan arregaçava as mangas e desarrolhava a garrafa, Rincewind puxou Duasflor para um canto. Depois que se encontravam bem escondidos atrás de um arbusto, o mago disse:

— Ele enlouqueceu.

— Você está falando de Cohen o Bárbaro! — indignou-se Duasflor, genuinamente chocado. — É o maior guerreiro de...

— Era — corrigiu Rincewind. — Toda essa história de padres perversos e zumbis devoradores de homens foi muitos anos atrás. Agora tudo que ele tem são memórias e cicatrizes suficientes para brincar de jogo-da-velha na pele da criatura.

— É verdade que ele está mais velho do que eu pensava — admitiu Duasflor, pegando um pedaço de diamante.

— Nesse caso vamos ter que deixá-los, procurar os cavalos e seguir em frente — concluiu Rincewind.

— E canalhice, não é não?

— Eles vão ficar bem — disse Rincewind, cheio de certeza. — A questão é a seguinte: você se sentiria à vontade na companhia de alguém que ataca a Bagagem com as próprias mãos?

— É, sem dúvida, algo a ser considerado — disse Duasflor.

— De qualquer maneira, é provável que fiquem melhor sem nós dois.

— Tem certeza?

— Absoluta — respondeu Rincewind.

Eles acharam os cavalos perambulando sem rumo no campo, comeram carne de égua torrada e partiram para o que Rincewind acreditava ser a direção certa. Alguns minutos depois, a Bagagem surgia dos arbustos e os acompanhava.

O sol já ia alto no céu, mas ainda não conseguia eclipsar a luz da estrela.

— Ela ficou maior de ontem para hoje — observou Duasflor. — Por que ninguém faz nada?

— Como o quê?

O rapaz pensou.

— Não poderiam pedir a Grande A’Tuin para fugir? — sugeriu ele. — Talvez se desviar um pouco?

— Já se tentou isso antes — disse Rincewind. — Alguns magos se aventuraram a sintonizar a mente de Grande A’Tuin.

— E não funcionou?

— Ah, funcionou — respondeu Rincewind. — Só que...

Só que havia alguns riscos imprevistos na leitura de uma mente enorme como a da Tartaruga do Discworld, explicou ele. Antes, os feiticeiros haviam realizado experiências com cágados e tartarugas marinhas gigantes — para se familiarizar com a disposição de espírito quelônio — mas, embora soubessem que a mente de Grande A’Tuin seria imensa, não haviam se dado conta de que também seria lenta.

— Há 30 anos, um monte de magos se reveza na leitura da mente — explicou Rincewind. — E tudo que descobriram até agora é que Grande A’Tuin não vê a hora de fazer uma coisa.

— O quê?

— Quem sabe?

Durante algum tempo, os dois galoparam em silêncio pelo campo acidentado, onde enormes blocos de calcário marcavam o caminho. Por fim, Duasflor disse:

— Sabe, temos de voltar.

— Olhe, amanhã chegamos ao rio Smarl — argumentou Rincewind. — Não vai acontecer nada com eles; não sei por que mas sei...

O mago estava falando sozinho. Duasflor tinha virado o cavalo e trotava de volta, revelando toda a desenvoltura de um saco de batatas.

Rincewind olhou para baixo. A Bagagem o espreitava como uma coruja.

— O que está olhando? — perguntou o mago. — Ele pode voltar, se quiser. Por que deveria me importar?

A Bagagem não disse nada.

— Olhe aqui, Duasflor não é responsabilidade minha — irritous-e Rincewind. — Vamos deixar isso bem claro.

A Bagagem não disse nada, só que dessa vez mais alto.

— Vá... atrás dele. Você não tem nada a ver comigo.

O baú encolheu as pernas e se assentou no meio do caminho.

— Bom, eu vou embora — avisou Rincewind. — Estou falando sério.

O mago virou o cavalo em direção ao novo horizonte e baixou os olhos. A Bagagem estava ali.

— Não adianta tentar apelar para a minha generosidade. Você pode passar a noite toda aí, que não me importo. Vou embora, está bem?

Ele encarou a Bagagem. A Bagagem retribuiu o olhar.

— Achei que você voltaria — disse Duasflor.

— Não quero falar nisso — rebateu Rincewind.

— Podemos conversar sobre alguma outra coisa?

— Ah, podemos. Bem, discutir como vamos nos livrar dessas cordas talvez fosse uma boa opção — ironizou Rincewind.

O mago tentou mexer os pulsos atados.

— Não consigo imaginar por que você é tão importante — disse Herrena.

Ela sentou numa pedra de frente para ele, com a espada sobre os joelhos. A maioria dos homens da gangue se encontrava entre as rochas mais altas, observando a estrada. Rincewind e Duasflor foram uma presa fácil.

— Weems me contou o que o baú fez com Gancia — disse ela.

— Não posso dizer que tenha sido uma grande perda, mas espero que o negócio saiba que, se chegar a um quilômetro de mim, eu mesma vou cortar a garganta de vocês, entendido?

Rincewind assentiu, em desespero.

— Ótimo — aprovou Herrena. — Vocês estão sendo procurados vivos ou mortos, e não me importo muito de que forma, mas é possível que alguns dos rapazes queiram falar um pouco com vocês sobre esses trolls. Se o sol não tivesse aparecido aquela hora...

Ela deixou as palavras no ar e se retirou.

— Mais uma encrenca! — resmungou Rincewind.

Forçou de novo as cordas que o prendiam. Havia uma pedra atrás dele. Se conseguisse levantar os pulsos... assim, bem como havia imaginado: a rocha lhe cortaria a pele ao mesmo tempo em que se mostraria obtusa demais para ter algum efeito na corda.

— Mas por que nós? — perguntou Duasflor. — Tem a ver com a estrela, não tem?

— Não sei nada de estrela — respondeu Rincewind. — Nunca nem freqüentei as aulas de astrologia da universidade!

— De qualquer forma, imagino que no fim tudo vá acabar bem — considerou Duasflor.

Rincewind olhou para o rapaz. Comentários como esse sempre deixavam o mago desconcertado.

— Você realmente acredita nisso? — quis saber ele. — Quer dizer, de verdade?

— Bom, se a gente parar para pensar, as coisas em geral terminam de maneira bem satisfatória.

— Se você acha que a destruição da minha vida no último ano é satisfatória, deve estar certo. Já perdi a conta das vezes em que quase morri...

— 27 — disse Duasflor.

— O quê?

— 27 vezes — repetiu o rapaz. — Eu contei. Mas acontece que você nunca...

— Nunca o quê? Contei? — perguntou Rincewind.

— Não. Morreu. Não é estranho?

— Não vou fazer nenhuma objeção, se é disso que você está falando — respondeu Rincewind.

O mago fitou os próprios pés. Era evidente que Duasflor estava certo. O Feitiço o vinha protegendo. Não havia dúvida, se Rincewind pulasse de um penhasco, uma nuvem amorteceria a queda.

O problema dessa teoria, concluiu o mago, é que só funcionava enquanto ele não acreditasse ser verdade. No instante em que se imaginasse invulnerável, acabaria morrendo.

Então era melhor, mais prudente, não pensar no assunto. De qualquer modo, podia estar errado.

A única coisa de que tinha certeza era que estava ficando com dor de cabeça. Torceu para que o Feitiço se encontrasse em algum lugar na região da dor e sofresse bastante.

Quando o grupo voltou a galopar, tanto Rincewind quanto Duasflor dividiam a montaria com um dos membros da gangue. Rincewind ia desconfortavelmente empoleirado na frente de Weems — que havia torcido o tornozelo e não estava de bom humor. Duasflor seguia sentado na frente de Herrena, o que significava dizer que, como o rapaz era muito baixo, as orelhas se mantinham aquecidas. A heroína cavalgava com uma faca em punho e o olhar atento para qualquer possível baú ambulante. Herrena não sabia exatamente o que era a Bagagem, mas tinha inteligência suficiente para saber que a coisa não deixaria o dono morrer.

Cerca de dez minutos depois, eles a viram no meio da estrada. A tampa se encontrava convidativamente aberta. E o baú estava cheio de ouro.

— Desviar — ordenou Herrena.

— Mas...

— É uma armadilha.

— Isso mesmo — confirmou Weems, com o rosto pálido. — Podem acreditar em mim.

Relutantes, os homens conduziram os cavalos ao redor da maravilhosa e reluzente tentação e seguiram trotando pela estrada. Weems olhou para trás, temendo ver o baú correndo em sua direção.

O que viu foi ainda pior. O negócio havia desaparecido.

Numa beira afastada da estrada, o mato se mexeu misteriosamente e parou.

Rincewind não era um grande mago — e muito menos guerreiro —, mas era especialista em covardia e de longe podia sentir cheiro de medo. Em voz baixa, disse:

— Ela vai te seguir.

— O quê? —perguntou Weems, distraído, ainda olhando para o mato.

— A Bagagem tem paciência e não desiste nunca. Você está lidando com madeira sábia de pereira. Ela deixa a pessoa pensar que já se esqueceu. Um dia o sujeito está caminhando por uma rua escura e ouve aqueles passos logo atrás... clep, clep, clep... e começa a correr, mas as perninhas ganham velocidade, clepclepCLEP...

— Cale a boca! — gritou Weems.

— Na verdade, ela já deve ter reconhecido você, portanto...

— Já disse para calar a boca!

Herrena se virou na sela e olhou para eles. Weems franziu a testa, puxou a orelha de Rincewind até a boca e, com a voz rouca, disse:

— Não tenho medo de nada, entendeu? Eu cuspo nessas coisas de mago.

— Todos dizem isso até ouvir os passos — rebateu Rincewind. Parou. Uma faca lhe espetava as costelas.

Durante o resto do dia, nada aconteceu. Mas, para satisfação de Rincewind e paranóia crescente de Weems, a Bagagem surgiu diversas vezes. Uma hora, mostrava-se encarapitada num penhasco; na outra, aparecia escondida pela metade numa fossa musguenta.

Ao entardecer, o grupo alcançou o alto de um rochedo e contemplou o amplo vale próximo à nascente do Smarl. Ali, o maior rio do Disco já tinha 1,5 km de largura e carregava muito do lodo que fazia do vale a área mais fértil do continente. Alguns traços de névoa se enroscavam nas margens.

— Hum-hum — disse Rincewind.

O mago sentiu Weems se sacudir na sela.

— Que foi?

— Só estou limpando a garganta — disse Rincewind, sorrindo.

Ele havia pensado bastante naquele sorriso. Era o tipo de sorriso que as pessoas dão quando fixam os olhos na nossa orelha esquerda e, em tom de pânico, dizem que estão sendo espionadas por agentes secretos de uma galáxia vizinha. Era um sorriso que não inspirava confiança. Sorrisos mais terríveis podem já ter sido vistos por aí, mas apenas em criaturas que são cor de laranja com listras pretas, têm o rabo comprido e andam pela floresta atrás de vítimas para quem sorrir.

— Vá tocar — ordenou Herrena, cavalgando.

No ponto em que a estrada se aproximava da margem, havia um cais rústico e um grande gongo de bronze.

— O sinal vai chamar o balseiro — explicou a heroína. — Se atravessarmos aqui, podemos cortar uma grande volta no rio. E talvez cheguemos a alguma cidade ainda hoje.

Weems pareceu indeciso. O sol já estava grande e avermelhado, e a névoa começava a se adensar.

— Ou você prefere passar a noite neste lado do rio?

Weems pegou o martelo e acertou o gongo com tanta força, que o instrumento se virou na corda em que estava suspenso e caiu.

Todos aguardaram em silêncio. Com um tinido molhado, uma corrente irrompeu na água e se esticou a partir do pedaço de ferro preso à margem. Por fim, o vulto plano e lento da balsa surgiu no nevoeiro, com o balseiro encapuzado girando uma grande roda montada no centro, à medida que avançava para a margem.

O fundo da balsa rangeu sobre os cascalhos. O vulto encapuzado se inclinou na roda, arquejante.

— Doisch de cada vezch — murmurou. — Chó doisch, com osch cavalosch.

Rincewind engoliu em seco e tentou não olhar para Duasflor. O rapaz provavelmente estaria fazendo caretas e sorrindo como um idiota. O mago arriscou uma olhada de viés.

Duasflor estava com a boca aberta.

— O senhor não é o balseiro habitual — disse Herrena. — Já estive aqui, e o balseiro é um homem grande, meio...

— Dia de folga.

— Ah, tudo bem — assentiu ela, com desconfiança. — Mas nesse caso... Do que ele está rindo?

Os ombros de Duasflor se sacudiam, o rosto havia ficado vermelho, e o homenzinho soltava soluços abafados. Herrena primeiro o fitou meio disfarçadamente, depois cravou os olhos no balseiro.

— Dois de vocês... Agarrem-no!

Houve uma pausa. Um dos homens perguntou:

— Quem, o balseiro?

— É!

— Por quê?

Herrena parecia confusa. Esse tipo de coisa não devia acontecer. Era fato estabelecido que, quando alguém gritasse algo como “Atrás dele!” ou “Guardas!”, as pessoas cairiam sobre o sujeito e não se entregariam a discussões.

—Porque eu mandei! — foi o melhor com que conseguiu se sair.

Os dois mercenários mais próximos do vulto arqueado se entreolharam, saltaram dos cavalos e cada qual pegou um ombro do balseiro, que tinha a metade do tamanho deles.

— Assim? — perguntou um dos homens.

Duasflor tentava respirar, sufocado pelos risos.

— Agora quero ver o que há debaixo desse manto.

Os mercenários se entreolharam novamente.

— Eu não sei se... — começou um deles.

Mas não prosseguiu, porque um cotovelo pontudo lhe acertou a barriga como um pistão. Aturdido, o colega olhou para baixo e recebeu o outro cotovelo nos rins.

Cohen praguejou ao tentar libertar a espada do manto, ao mesmo tempo em que avançava como um caranguejo em direção a Herrena. Rincewind grunhiu, rilhou os dentes e jogou a cabeça para trás. Weems deu um grito, o mago saltou de lado, caiu na lama, levantou como um alucinado e procurou um lugar para se esconder.

Com um grito de vitória, Cohen conseguiu desembaraçar a espada e agitou a arma de maneira triunfante, ferindo terrivelmente o homem que se aproximava por trás.

Herrena empurrou Duasflor para fora do cavalo e procurou a própria espada. O rapaz tentou se pôr de pé e fez um cavalo se empinar, jogando o cavaleiro no chão, com a cabeça na altura exata para Rincewind chutar o mais forte possível. O mago seria o primeiro a se chamar de rato, mas mesmo ratos brigam em situações críticas.

Weems segurou Rincewind, que sentiu um punho lhe acertar a cabeça como uma pedra.

Ao cair, o mago ainda ouviu Herrena murmurar:

— Matem os dois. Eu cuido do velho imbecil.

— Certo! — disse Weems, e se virou para Duasflor com a espada em punho.

Rincewind viu o homem hesitar. Por um instante houve silêncio, depois ouviram-se os passos da Bagagem, caminhando pela margem.

Weems olhou o baú, apavorado. A espada caiu da sua mão. Ele se virou e correu para a neblina. Um minuto depois, a Bagagem passava por Rincewind e seguia atrás do fujão.

Herrena investiu contra Cohen, que aparou o golpe e gemeu ao sentir uma pontada no braço. As lâminas tiniam, e a heroína se viu forçada a recuar, quando um engenhoso movimento de Cohen quase a desarmou.

O mago se arrastou até Duasflor e o puxou, sem forças.

— Hora de ir — sussurrou ele.

— Isso aqui está ótimo! — exclamou Duasflor. — Você viu como ele...?

— Vi, vi. Agora vamos.

— Mas eu quero... Olhe só, bem feito!

A espada de Herrena lhe escapou das mãos e caiu vibrando no chão. Com um gemido de satisfação, Cohen trouxe a própria espada de volta, envesgou momentaneamente o olho, soltou um ganido de dor e ficou parado.

Herrena o encarou, intrigada. Ensaiou um movimento em direção à própria espada e, quando não aconteceu nada, pegou a arma, examinou a estabilidade e fitou o adversário. Somente o olho agoniado do homem se mexia à medida que ela o rondava.

— As costas dele! — murmurou Duasflor. — O que podemos fazer?

— Podemos ver se pegamos os cavalos.

— Bem — disse Herrena. — Não sei quem você é, nem por que está aqui... E não é nada pessoal, entende?

Ela ergueu a espada com ambas as mãos.

Houve um movimento súbito no nevoeiro e o baque surdo de um pedaço de madeira atingindo a cabeça de alguém. Por um momento, Herrena pareceu aturdida, depois tombou para a frente.

Bethan soltou o galho que vinha segurando e olhou para Cohen. Pegou o velho pelos ombros, meteu o joelho na parte inferior de sua coluna e torceu-a de maneira sistemática.

Uma expressão de alívio atravessou o rosto do herói, que tentou se inclinar.

— Eschtá acabada! — resmungou ele. — A coluna! Acabada!

Duasflor se virou para Rincewind.

— Meu pai recomendava à pessoa se pendurar no alto da porta — comentou, de maneira casual.

Weems avançava com cuidado por entre as árvores frondosas e cobertas de neblina. O ar úmido e esmaecido abafava os sons, mas ele estava certo de que, nos últimos dez minutos, não tinha o que ouvir. Ele se virou muito lentamente e se deu ao luxo de soltar um genuíno e longo suspiro, escondendo-se no abrigo dos arbustos.

Alguma coisa cutucou a parte de trás dos seus joelhos, bem de leve. Alguma coisa angulosa.

Weems olhou para baixo. Parecia ter mais pés do que devia. Houve um estalido curto e agudo.

A fogueira não passava de um pontinho de luz na paisagem escura. A lua ainda não tinha se erguido, mas a estrela já era um brilho errante no horizonte.

— Agora está redonda — observou Bethan. — Parece um sol pequeno. Tenho certeza de que também está ficando mais quente.

— Pare — pediu Rincewind. — Como se eu já não tivesse o bastante com que me preocupar...

— O que não entendo — disse Cohen, enquanto Bethan lhe massageava as costas — é como concheguiram capturar vochês chem ouvirmosch. Nunca teríamosh deschcoberto che a Bagagem não tiveche ficado pulando para chima e para baixo.

— E gemendo — acrescentou Bethan.

Todos olharam para a moça.

— Bom, parecia estar gemendo — defendeu-se ela. — Na verdade, eu acho que ela é muito doce.

Quatro pares de olhos se voltaram para a Bagagem, que estava assentada no outro lado da fogueira. O baú se levantou e, sem titubear, recuou para a sombra.

— Fáchil de alimentar — disse Cohen.

— Difícil de perder — sugeriu Rincewind.

— Leal — propôs Duasflor.

— Eschpachosa — lembrou Cohen.

— Mas eu não diria doce — concluiu Rincewind.

— Não quer vender? — perguntou Cohen.

Duasflor sacudiu a cabeça.

— Acho que ela não entenderia — explicou o rapaz.

— É, acho que não — concordou o herói.

Cohen se sentou e mordeu o lábio.

— Eu eschtava procurando um presente para Bethan, entende? Vamosch nosch casar.

— Achamos que vocês deviam ser os primeiros a saber — disse a moça, corando.

Rincewind não conseguiu chamar a atenção de Duasflor.

— Bem, isso é muito, hã...

— Assim que encontrarmos alguma cidade com um padre — continuou Bethan. — Quero tudo dentro dos conformes.

— É muito importante — opinou Duasflor, sério. — Se houvesse mais moral e bons costumes no mundo, não estaríamos colidindo com estrelas.

Consideraram o raciocínio por um instante. Duasflor disse com alegria:

— Precisamos comemorar. Tenho água e alguns biscoitos, se ainda tiver o charque...

— Ah, ótimo — disse Rincewind, sem muito ânimo.

O mago chamou Cohen de lado. Com a barba aparada, o velho poderia facilmente aparentar 70 anos numa noite escura.

— É sério? — perguntou ele. — Vai realmente se casar com ela?

— Com cherteza... Alguma objechão?

— Bem, é claro que não, mas.., quer dizer, ela tem 17 anos, e você é, você é... como posso dizer? Do tipo mais idoso.

— Hora de me eschtabelecher, é icho?

Rincewind procurou as palavras certas.

— Cohen, você é 70 anos mais velho do que ela. Tem certeza de que...

— Já me casei outrasch vezesch, vochê sabe. Tenho ótima memória — disse Cohen, em tom desaprovador.

— Não, o que estou falando é que... quer dizer, fisicamente... o problema é a diferença de idade. É uma questão de saúde, não é? E...

— Ah! — disse Cohen, devagar. — Entendi o que vochê quer dizer. O eschforcho. Eu não tinha penchado deche jeito.

— Não — completou Rincewind, se endireitando. — Mas é o que se presume.

— Chem dúvida vochê me deu algo no que penchar — admitiu Cohen.

— Espero não ter estragado nada.

— Não, não — retrucou Cohen, um pouco confuso. — Não che deschculpe. Vochê fez bem em me alertar.

O herói se virou e encarou Bethan, que lhe dirigiu um aceno, depois olhou a estrela brilhando através da cerração.

Por fim, disse:

— Chão temposch perigososch.

— É verdade.

— Quem chabe o dia de amanhã?

— Eu é que não.

Cohen bateu no ombro de Rincewind.

— Àsch vezesch prechisamosch correr rischcos — considerou afinal. — Não fique ofendido, masch acho que vamosch procheguir com o casamento e...

Ele olhou para Bethan e suspirou.

— Chó nosch cabe torcher para que ela cheja forte o baschtante.

No dia seguinte, por volta do meio-dia, o grupo chegou a uma pequena cidade cercada por campos ainda verdes e luxuriantes. Mas parecia haver muito trânsito no sentido contrário. Enormes carroças passavam por eles. Rebanhos marchavam ao longo da estrada. Senhoras surgiam carregando rolos de feno e famílias inteiras nas costas.

— É peste? — perguntou Rincewind, detendo o homem que empurrava um carrinho de mão cheio de crianças.

O sujeito sacudiu a cabeça.

— É a estrela, amigo — respondeu ele. — Vocês não viram?

— É, não pudemos deixar de notar.

— Dizem que vai nos atingir no Réveilion dos Porcos, que os oceanos vão ferver, os países do Disco se partirão, reis serão derrubados e as cidades vão parecer lagos de vidro — disse o homem.

— Estamos indo para as montanhas.

— E será que vai adiantar? — indagou Rincewind, desconfiado.

— Não, mas a vista vai ser melhor.

Rincewind se voltou para os outros.

— Está todo mundo preocupado com a estrela — explicou. — Aparentemente, não tem mais quase ninguém nas cidades. Estão todos apavorados.

— Não quero deixar ninguém preocupado — disse Bethan — mas vocês não acham que está quente demais?

— Foi o que eu disse ontem à noite — concordou Duasflor. — Achei muito quente...

— E deschconfio que vá eschquentar ainda maisch — disse Cohen. — Vamosch entrar na chidade.

Eles cavalgaram por ruas cheias de ecos, praticamente desertas. Cohen espiou os letreiros dos mercadores, até desviar o cavalo e dizer:

— É o que eu eschtava procurando. Achem um templo e um padre. Logo me encontro com vochês.

— Uma joalheria? — perguntou Rincewind.

— É churpresa.

— Eu também queria um vestido novo — disse Bethan.

— Roubo para vochê.

Havia um clima bastante opressivo na cidade, concluiu Rincewind. E também muito estranho.

Quase todas as portas estavam pintadas com uma grande estrela vermelha.

— É horrível! — exclamou Bethan. — Como se as pessoas quisessem trazer a estrela para cá.

— Ou afastá-la — sugeriu Duasflor.

— Não vai adiantar. Ela é grande demais — disse Rincewind.

Todos os rostos se viraram para ele.

— Bem, é lógico, não é? — arriscou o mago, de maneira nada convincente.

— Não — respondeu Bethan.

— Estrelas são pequenas luzes no céu - indignou-se Duasflor.

— Certa vez, uma caiu perto da minha casa... um negócio branco e grande, do tamanho mesmo de uma casa. Ficou algumas semanas brilhando, até se apagar.

— Essa estrela é diferente — disse uma voz. — Grande A’Tuin atravessou a praia do universo. Esse é o imenso oceano espacial.

— Como é que você sabe? — perguntou Duasflor.

— Sei o quê? — alarmou-se Rincewind.

— O que acabou de dizer. Sobre praias e oceanos.

— Eu não falei nada!

— Seu bobo, claro que falou! — gritou Bethan. — Nós vimos os seus lábios se mexerem e tudo!

Rincewind fechou os olhos. Dentro da mente, sentiu o Feitiço correndo para se esconder atrás da consciência e murmurando para si mesmo.

— Tudo bem, tudo bem — concordou o mago. — Não precisa berrar. Eu... não sei como sei, apenas sei...

— Nesse caso, gostaria que você nos contasse. Eles dobraram a esquina.

Todas as cidades ao redor do mar Círculo possuíam uma área especial destinada aos deuses — dos quais o Disco tinha uma quantidade mais do que suficiente. Em geral, era um lugar abarrotado, mas não exatamente bonito do ponto de vista arquitetônico. Os deuses antigos dispunham de templos grandes e suntuosos, mas O problema surgiu quando os deuses mais recentes exigiram igualdade, e logo as zonas sagradas se viram cheias de alpendres, anexos, galpões transformados, porões contíguos, quitinetes, puxados eclesiásticos e partilhas extratemporais, uma vez que nenhum deus sonharia em viver fora dos bairros sagrados. Quase sempre havia 300 tipos diferentes de incenso queimando. O barulho era de doer, por causa de todos os padres rivais chamando o povo, competindo pelo seu quinhão de fiéis para as orações.

Mas esta rua em particular estava mergulhada num silêncio mortal, o tipo de silêncio pavoroso que surge quando centenas de pessoas assustadas e aborrecidas se reúnem e ficam juntas, paralisadas.

Um homem da multidão se virou e lançou um olhar mal-humorado para os recém-chegados. Tinha uma estrela vermelha pintada na testa.

— O que é... — começou Rincewind, e se deteve ao notar que a voz parecia alta demais. — O que é isso?

— O que esses desconhecidos estão fazendo aqui? — perguntou o homem.

— Na verdade, nós nos conhecemos muito bem... — começou Duasflor, e se calou.

Bethan apontou para a rua.

Todos os templos tinham uma estrela pintada. E havia uma particularmente grande no olho de pedra da igreja de Cego lo, o líder dos deuses.

— Ai, ai, ai — disse Rincewind. — lo vai ficar muito irritado quando vir isso. Meus amigos, acho que devemos dar o fora daqui.

A multidão estava voltada para um palanque tosco, construído no meio da rua larga. Uma grande faixa havia sido afixada à frente.

— Sempre ouvi dizer que Cego lo podia ver tudo que se passava em qualquer lugar — sussurrou Bethan. — Por que ele não...?

— Silêncio! — pediu o homem ao lado. — Daoné vai falar!

Alguém havia subido no palanque, um sujeito alto e magro com cabelo feito dente-de-leão. A platéia não aplaudiu, apenas deu um suspiro coletivo, O homem começou a falar.

Rincewind escutou com pavor crescente. Onde estavam os deuses?, perguntava o sujeito. Haviam sumido. Talvez jamais tivessem existido. Na realidade, quem se lembrava de algum dia tê-los visto? E agora a estrela vermelha fora enviada...

A voz clara e tranqüila seguia sem interrupções, usava palavras como “limpar”, “purgar” e “purificar”, e entrava no cérebro como uma espada quente. Onde estavam os magos? Onde estava a magia? Será que algum dia havia funcionado, ou fora apenas sonho?

Rincewind começou a temer de verdade que os deuses ouvissem aquilo e ficassem de tal maneira irritados, que acabassem descontando em quem quer que se encontrasse ali perto.

Mas de alguma forma até a ira dos deuses teria sido melhor do que o som daquela voz. A estrela estava vindo, ela parecia dizer, e seu terrível fogo só poderia ser afastado pela... pela... Rincewind não estava bem certo, mas teve uma visão de espadas, bandeiras e guerreiros de olhos duros. O palestrante não acreditava em deuses — o que, até onde o mago entendia, não era de todo injusto — mas tampouco acreditava em gente.

Um vulto alto e encapuzado à esquerda de Rincewind lhe deu um esbarrão. O mago se virou — e viu uma caveira sorridente sob o capuz negro.

Magos, bem como gatos, conseguem enxergar Morte.

Em comparação àquela voz, Morte quase parecia agradável. O espectro se apoiou na parede, com a foice ao lado. E cumprimentou Rincewind com a cabeça.

— Veio se divertir? — murmurou o mago.

Morte encolheu os ombros.

— VIM VER O FUTURO — disse ele.

— E esse é o futuro?

— UM FUTURO.

— É horrível! — exclamou Rincewind.

— ESTOU INCLINADO A CONCORDAR — disse Morte.

— Imaginei que você seria completamente a favor disso!

— NÃO ASSIM. A MORTE DO GUERREIRO, DO VELHO E DA CRIANCINHA, DISSO ENTENDO. LEVO A DOR E DOU FIM AO SOFRIMENTO. MAS NÃO COMPREENDO ESSA MORTE DA MENTE.

— Com quem está falando? — perguntou Duasflor.

Vários membros da congregação se viraram e já olhavam de maneira suspeita para Rincewind.

— Com ninguém — respondeu o mago. — Vamos embora? Estou com dor de cabeça.

Agora um grupo de pessoas estava sussurrando e apontava para eles. Rincewind agarrou os dois e empurrou-os até a esquina.

— Montem e vamos — disse ele. — Estou com uma sensação ruim de que...

A mão de alguém pousou no seu ombro. Ele se virou. Um par de olhos cinza e anuviados numa cabeça redonda e careca sobre um corpo grande e musculoso fitava sua orelha esquerda. O homem tinha uma estrela pintada na testa.

— Você parece mago — disse ele, num tom de voz que sugeria que isso era bastante imprudente e, muito possivelmente, fatal.

— Quem, eu? Não, eu sou... escrevente. É. Escrevente. Isso mesmo — alegou Rincewind.

E deu uma risada.

O homem parou, com os lábios a se mover sem produzir nenhum som — como se viesse escutando uma voz interna. Várias outras pessoas da estrela haviam se aproximado. A orelha esquerda de Rincewind começava a ser amplamente observada.

— Acho que você é mago — insistiu o homem.

— Olhe aqui — rebateu Rincewind. — Se eu fosse mago, conseguiria fazer mágica, certo? Simplesmente transformaria você em alguma coisa, mas não transformei. Portanto, como vocês podem perceber, não sou mago.

— Nós matamos nossos magos — informou um dos homens.

— Alguns fugiram, mas demos cabo de muitos. Eles agitavam a mão, e não acontecia nada.

Rincewind o encarou.

— E achamos que você também é mago — disse o homem que segurava Rincewind, apertando-o cada vez mais forte. — É dono de um baú com pernas e parece mago.

Rincewind se deu conta de que os três e a Bagagem tinham de alguma forma se afastado dos cavalos e se encontravam no meio de um círculo de pessoas sérias, com rosto sombrio.

Bethan estava lívida. E mesmo Duasflor, cuja capacidade de identificar perigo era tão boa quanto a capacidade de Rincewind para voar, parecia preocupado.

Rincewind respirou fundo.

Ergueu as mãos na pose clássica que aprendera anos antes e grunhiu:

— Afastem-se! Ou vou cobri-los de magia!

— Não tem mais magia — advertiu o homem. — A estrela levou embora. Todos os falsos magos diziam aquelas palavras esquisitas, mas não acontecia nada. Olhavam assustados para as mãos e, pra falar a verdade, poucos tiveram o bom senso de fugir.

— Estou falando sério! — ameaçou Rincewind.

O cara vai me matar, pensou ele. É isso. Já não posso nem blefar mais. Péssimo em magia, péssimo em blefar. Sou só um...

O Feitiço se mexeu em sua mente. O mago o sentiu escorrer para dentro do cérebro como água gelada e se preparar. Um formigamento lhe atravessou o braço.

O braço subiu por vontade própria. Rincewind sentiu a boca se abrir e a língua se movimentar, enquanto uma voz que não era a sua — uma voz que parecia velha e seca — dizia sílabas que se espalhavam no ar como vapor.

Debaixo das unhas, irromperam chamas octarinas, que envolveram o homem apavorado até ele se perder numa nuvem fria e faiscante que se ergueu sobre a rua, ficou ali suspensa durante um bom tempo, depois explodiu em nada.

Não restou nem mesmo um fiapo de fumaça engordurada.

Horrorizado, Rincewind olhou a própria mão.

Duasflor e Bethan agarraram os braços dele e correram pela multidão estupefata até chegar à parte desimpedida da rua. Atrapalharam-se por um momento, quando ambos decidiram correr para becos diferentes, mas logo se acertaram e seguiram em frente — com os pés de Rincewind mal tocando o chão.

— Mágica — murmurou ele, bêbado de alegria e cheio de autoridade. — Fiz mágica...

— Isso mesmo — confirmou Duasflor, tentando acalmá-lo.

— Quer que eu faça um feitiço? — perguntou Rincewind.

Ele apontou o dedo para um cachorro e disse “Hurra!” O animal devolveu um olhar ofendido.

— Fazer os seus pés correrem mais rápido seria melhor — disse Bethan, com rispidez.

— Claro! — exultou Rincewind. — Pés! Corram mais rápido! Ei, vejam só, estão obedecendo!

— Eles têm mais juízo do que você — atestou Bethan. — Para onde agora?

Duasflor analisou o labirinto de travessas. Não muito longe, havia uma enorme gritaria.

Rincewind saiu do alcance deles e avançou cambaleante pelo beco mais próximo.

— Eu posso! — gritou, eufórico. — Fiquem olhando...

— Ele está em estado de choque — disse Duasflor.

—Porquê?

— Nunca fez feitiço.

— Mas ele é mago!

— É uma história meio complicada — disse Duasflor, correndo atrás de Rincewind. — De qualquer maneira, não sei se aquilo foi ele mesmo. A voz não era nem um pouco parecida. Venha aqui, rapaz.

Rincewind o fitou com olhos vidrados.

— Vou transformar você numa roseira — anunciou ele.

— Vai sim, que ótimo. Vamos embora — disse Duasflor, de modo a tranqüilizá-lo, puxando-lhe o braço com cuidado.

Ouviram-se passos vindo de algumas travessas, e de repente 12 pessoas da estrela se aproximavam.

Bethan pegou a mão inerte de Rincewind e suspendeu-a de forma ameaçadora.

— Nem um passo a mais! — gritou ela.

— É! — bradou Duasflor. — Temos um mago e, se for preciso vamos usá-lo!

— Não estou de brincadeira! — berrou Bethan, girando Rincewind pelo braço, como um chicote.

— É! Estamos bem armados! O quê?

— Eu perguntei onde está a Bagagem? — sussurrou Bethan, às costas de Rincewind.

Duasflor olhou à volta. A Bagagem não estava ali.

A presença de Rincewind, porém, vinha surtindo o efeito desejado sobre as pessoas da estrela. À medida que a mão se agitava, distraída, todos a tratavam como uma espécie de foice e tentavam se esconder.

— Para onde ela foi?

— Como é que vou saber? — perguntou Duasflor.

— A Bagagem é sua!

— Eu quase nunca sei onde está minha Bagagem. Ser turista é isso — argumentou Duasflor. — De qualquer modo, ela sempre anda sozinha. Provavelmente é melhor não perguntar por quê.

As pessoas começaram a perceber que não estava acontecendo nada e que Rincewind não se mostrava em condição de proferir insultos, que dirá fazer chamas mágicas. Começaram a avançar, mantendo os olhos fixos em sua mão.

Duasflor e Bethan recuaram. O rapaz olhou ao redor.

— Bethan?

— O quê? — perguntou ela, sem despregar os olhos dos homens.

— É um beco sem saída.

— Tem certeza?

— Acho que sei o que é um muro — irritou-se Duasflor.

— Se é assim, não tem jeito — lamentou Bethan.

— Você acha que se eu explicar...?

— Não.

— Ah.

— Não é o tipo de gente que ouve explicações – acrescentou Bethan.

Duasflor os encarou. Como já foi mencionado, o rapaz em geral não se ligava muito em perigo. Apesar de toda a experiência humana, Duasflor acreditava que, se as pessoas conversassem, tomassem alguns drinques, trocassem retratos dos netos e talvez assistissem juntas a um bom espetáculo, então tudo se resolveria. Também acreditava que as pessoas eram essencialmente boas, mas às vezes acordavam pelo avesso. O que avançava agora pela rua estava causando nele o mesmo efeito de um gorila numa vidraçaria.

Houve um ruído atrás dos dois. Na verdade, nem chegou a ser um ruído, mas uma leve mudança na textura do ar.

Os homens deixaram o queixo cair, deram meia-volta e desapareceram no fim da rua.

— Hã? — disse Bethan, ainda amparando o agora inconsciente Rincewind.

Mas Duasflor olhava em outra direção, para uma grande vitrina cheia de mercadorias extravagantes, uma porta com cortina de contas e um grande letreiro que agora, depois de os caracteres terem acabado de se arrumar, dizia:

Frigideira, Wang, Yrxlelyt, Bunglestiff

Cwmlad e Patel

Fundada: diversos

FORNECEDORES

O joalheiro derramou o ouro lentamente sobre a minúscula bigorna, depositando o último diamante estranhamente lapidado no lugar exato.

— Do dente de um troll, você disse? — perguntou ele, analisando de perto o trabalho.

— É — respondeu Cohen. — E, como falei, vochê pode ficar com todo o reschto.

Ele estava mexendo numa bandeja de anéis de ouro.

— Muita generosidade — murmurou o joalheiro, que era anão e sabia reconhecer um bom negócio.

Suspirou.

— O movimento anda fraco? — perguntou Cohen.

O herói olhou pela janelinha e viu um grupo de pessoas de olhos opacos se juntarem no outro lado da rua.

— São tempos difíceis.

— Quem chão eches carasch com a eschtrela pintada? — quis saber Cohen.

O anão nem levantou os olhos.

— Malucos — respondeu. — Dizem que eu não deveria trabalhar porque a estrela está chegando. Pois eu digo que estrelas nunca me machucaram, mas gostaria de poder dizer o mesmo de pessoas.

Cohen assentiu de maneira pensativa, enquanto seis homens se afastavam do grupo e se dirigiam à loja. Carregavam armas e tinham um ar obsessivo e determinado.

— Eschtranho — disse Cohen.

— Como você pode ver, sou anão — afirmou o joalheiro. — Dizem que se trata de uma das espécies mágicas. E essas pessoas acham que, se nos livrarmos da magia, a estrela não vai destruir o Disco. É provável que venham aqui me dar uma surra. Em geral, é o que acontece.

O joalheiro ergueu sua última obra com a pinça.

— O negócio mais esquisito que já fiz — analisou. — Mas reconheço que é prático. Como você disse mesmo que era o nome?

— De-tritura — respondeu Cohen.

Olhou para os objetos em forma de ferradura na palma enrugada da mão, abriu a boca e meteu-os ali dentro, soltando uma série de gemidos.

A porta se abriu. Os homens entraram e tomaram posição ao longo das paredes. Estavam suados e um pouco hesitantes, mas, com arrogância, o líder empurrou Cohen para o lado e suspendeu o anão pela camisa.

— Nanico, já avisamos ontem — começou ele. — Você sairia por bem ou por mal. Então agora vamos...

Cohen lhe bateu no ombro. O sujeito se virou, irritado.

— O que quer, vovô? — grunhiu ele.

Cohen não fez nada até receber toda a atenção do homem. Então sorriu. Foi um sorriso indolente e demorado, aos poucos revelando os cerca de 300 quilates em jóias dentro de sua boca. Elas pareceram iluminar a loja.

— Vou contar até três — preveniu ele, num tom de voz bastante amigável. — Um. Dois.

O joelho pontudo subiu e se enterrou entre as pernas do homem com um ruído satisfatório e, enquanto o líder se curvava de dor, Cohen lhe acertou os rins com o cotovelo.

— Três — disse ele para o sujeito em agonia no chão.

O herói já ouvira falar em luta limpa - e fazia muito tempo que havia decidido se manter longe daquilo.

Ele encarou os outros homens e abriu o inacreditável sorriso.

Todos deviam ter corrido. Em vez disso, um deles — seguro por saber que tinha uma espada grande, enquanto Cohen, não — avançou de lado para ele.

— Ah, não — resmungou Cohen, agitando as mãos. — Ah, rapaz, o que é isso? Não é assim.

O homem o olhou de viés.

— Não é assim como? — perguntou, desconfiado.

— Nunca empunhou uma espada?

O rapaz se virou para os colegas em busca de apoio moral.

— Não muito, não — admitiu. — Não com freqüência.

Agitou a arma de forma ameaçadora.

Cohen encolheu os ombros.

— Posso até morrer, mas gostaria de ser morto por um homem que soubesse empunhar a espada como um guerreiro — argumentou ele.

O rapaz olhou as próprias mãos.

— Não me parece ruim — protestou, sem muita convicção.

— Olhe aqui, meu caro, conheço um pouco essas coisas. Quer dizer, venha cá um segundo e... você se importa?... ótimo. A mão esquerda vai aqui, em torno do botão do punho, e a direita vai... isso mesmo, aqui... e a lâmina vai direto na sua perna.

Enquanto o rapaz gritava de dor e suspendia o pé, Cohen lhe chutou a outra perna e se virou para os outros homens.

— Está ficando fácil demais — reclamou ele. — Por que não fogem?

— Isso mesmo — concordou uma voz próxima à sua cintura.

O joalheiro havia desencavado um machado enorme e sujo, que com certeza incluiria o tétano entre todos os outros pavores da luta armada.

Os quatro homens consideraram a situação e correram para a porta.

— E apaguem essas estrelas ridículas! — gritou Cohen. — Podem espalhar por aí que Cohen, o Bárbaro, vai ficar muito chateado se vir estrelas de novo.

A porta se fechou. Um segundo mais tarde, o machado batia na madeira e caía, cortando uma lasca de couro da sandália de Cohen.

— Desculpe — pediu o anão. — Era do meu avô. Só uso para cortar lenha.

Cohen mexeu a boca. O pequeno engenho parecia se ajustar muito bem.

— Se eu fosse você, daria o fora daqui — opinou ele.

Mas o anão já corria pela loja, despejando as bandejas de pedras e metais preciosos num saco de couro. As ferramentas foram metidas num bolso; o pacote de jóias prontas, no outro. O anão enfiou os braços nas alças da pequena forja, levantando-a até as costas com um grunhido.

— Muito bem — disse ele. — Estou pronto.

— Vai vir comigo?

— Até o portão da cidade, se não se incomodar — salientou ele. — Ninguém pode me censurar, pode?

— Não, mas deixe o machado aí.

Os dois ganharam a rua deserta sob o sol vespertino. Quando Cohen abria a boca, pontinhos brilhantes de luz iluminavam as sombras.

— Tenho que pegar uns amigos — avisou ele. — Espero que estejam bem. Qual é o seu nome?

— Semqueixo.

— Semqueixo, tem algum lugar aqui onde eu possa...

Cohen se deteve para saborear melhor as palavras.

— Onde eu possa comer um bife?

— Não, as pessoas da estrela fecharam as tabernas. Disseram que é errado ficar comendo e bebendo enquanto...

— Já sei, já sei — cortou Cohen. — Acho que estou começando a entender. Eles não gostam de nada?

Semqueixo pensou por um instante.

— Tacar fogo nas coisas — respondeu afinal. — São muito bons nisso. Livros e tal. Armam fogueiras imensas.

Cohen ficou horrorizado.

— Fogueiras de livros?

— Terrível, não é?

— É — concordou o herói.

Ele achou assustador. A pessoa que levava a vida sob as estrelas sabia o valor de um bom livro grosso, que poderia durar pelo menos uma estação inteira de fogueiras — se o indivíduo tivesse cuidado bastante na hora de rasgar as páginas. Muitas vidas já foram salvas em noites de neve por um punhado de gravetos molhados e um bom livro seco. Também se queremos fumar e não achamos o cachimbo, o livro sempre se revela o grande amigo de todas as horas.

Cohen sabia que se escreviam coisas nos livros. Mas sempre lhe pareceu um grande desperdício de papel.

— Se os seus amigos esbarraram com essas pessoas, temo que estejam em apuros — lamentou Semqueixo, quando subiam a rua.

Eles dobraram a esquina e avistaram uma fogueira. Duas pessoas da estrela a reavivavam com livros de uma casa próxima, toda pintada de estrelas e com a porta destruída.

A notícia de que Cohen se encontrava na cidade ainda não se espalhara. Os queimadores de livros nem o notaram passar e se apoiar no muro. Pedaços de papel queimado se agitavam no ar quente e voavam para além dos telhados.

— O que estão fazendo? — perguntou ele.

Uma mulher da estrela tirou cabelo dos olhos com a mão enegrecida de fuligem, fixou os olhos na orelha esquerda de Cohen e disse:

— Livrando o Disco do mal.

Dois homens saíram da casa e olharam para Cohen — ou pelo menos para sua orelha.

O herói estendeu a mão e pegou o livro pesado que a mulher vinha carregando. A capa era incrustada de estranhas pedras vermelhas e pretas que formavam o que Cohen tinha certeza se tratar de uma palavra. Ele mostrou a Semqueixo.

— O Necrotelicomicon — leu o anão. — Os magos usam. Acho que é como estabelecer contato com os mortos.

— Excelente para você — disse Cohen.

O herói sentiu a textura da página entre os dedos. Era fina e bem macia. A escrita um tanto desagradável não chegava a incomodá-lo. Sim, um livro como aquele podia ser um grande amigo do homem...

— Pois não? Deseja alguma coisa? — perguntou ele a um dos sujeitos da estrela, que tinha pegado seu braço.

— Todos os livros de magia devem ser queimados — alardeou o homem, mas com uma pontada de incerteza, porque alguma coisa nos dentes de Cohen estava furando sua crença e lhe provocando incômodos lampejos de sanidade.

— Por quê? — quis saber Cohen.

— Tivemos a revelação.

Agora o sorriso de Cohen se mostrava muito mais aberto e um tanto mais perigoso.

— Acho que devemos ir andando — alarmou-se Semqueixo.

Outro grupo de pessoas da estrela vinha se aproximando.

— E eu acho que quero matar alguém — disse Cohen, ainda a sorrir.

— A estrela ordenou que limpássemos o Disco — alegou o homem, recuando.

— Estrela não fala — rebateu Cohen, sacando a espada.

— Se você me matar, mil pessoas vão tomar meu lugar — argumentou o homem, que agora já se encontrava encostado no muro.

— Tá certo — assentiu Cohen, num tom de voz que sugeria sensatez. — Mas essa não é a questão, é? A questão é que você vai estar morto.

O pomo-de-adão do homem saltava como um ioiô. Ele olhou a espada de Cohen.

— É, tem isso — reconheceu afinal. — E se a gente apagar a fogueira?

— Boa idéia — atestou Cohen.

Semqueixo puxou o cinto do herói. Outras pessoas da estrela vinham correndo em sua direção. Havia muitas delas, várias estavam armadas, e começava a parecer que a situação ia ficar um pouco mais complicada.

Cohen brandiu a espada em desafio, depois se virou e correu. Até Semqueixo teve dificuldade em acompanhar seus movimentos.

— Engraçado — disse ele, arfante, enquanto os dois disparavam pelo beco. — Por um instante... achei... que você iria querer ficar... e lutar com eles.

— Está doido?

Ao chegarem à luz do fim do beco, Cohen se encostou no muro, sacou a espada, manteve a cabeça para o lado enquanto calculava a proximidade dos passos e girou a lâmina numa curva ampla, à altura do estômago. Houve um ruído desagradável e vários gritos, mas Cohen já se encontrava bem longe, correndo nos estranhos movimentos trôpegos que poupavam seus joanetes.

Com Semqueixo avançando implacavelmente ao lado, Cohen virou numa taberna cheia de estrelas vermelhas pintadas, pulou numa mesa soltando apenas um leve gemido de dor, correu por ela — ao mesmo tempo em que, quase como numa coreografia perfeita, Semqueixo avançava por baixo, sem precisar se abaixar — , saltou na outra ponta, atravessou a cozinha e saiu em outro beco.

Eles dobraram mais esquinas e pararam afinal numa porta. Cohen se apoiou no muro e arquejou até as luzinhas roxas e azuis desaparecerem.

— Bem — disse ele. — Pegou o quê?

— Hã, os temperos — respondeu Semqueixo.

— Só isso?

— Bom, eu tive que passar debaixo da mesa, não é? E você também não se saiu lá muito bem.

Cohen olhou com desprezo para o melãozinho que conseguiu espetar durante a fuga.

— Deve ser duro — imaginou ele, mordendo a casca.

— Quer um pouco de sal? — ofereceu o anão.

Cohen não respondeu. Apenas continuou segurando a fruta, com a boca aberta.

Semqueixo olhou à volta. O beco sem saída em que se encontravam parecia vazio, exceto pelo velho baú que alguém tinha deixado contra o muro. Cohen vinha observando. Por fim, entregou o melão para o joalheiro e avançou até a luz do sol. Semqueixo o viu andar furtivamente ao redor do baú, ou ao menos tão furtivamente quanto se é possível com juntas que estalam como um barco a todo o pano, e cutucá-lo de leve uma ou duas vezes com a espada, como se esperasse que o negócio pudesse explodir.

— É só um baú — gritou o anão. — O que tem de tão especial num baú?

Cohen não respondeu. Agachou-se com dificuldade e espreitou a fechadura na tampa.

— O que tem dentro? — perguntou Semqueixo.

— Nem queira saber — avisou Cohen. — Venha me ajudar.

— Está bom, mas o baú...

— O baú... — começou Cohen — o baú é...

Ele agitou as mãos, distraído.

— Retangular?

— Sobrenatural — rebateu Cohen, misteriosamente.

— Sobrenatural?

— É.

— Ah — disse o anão.

Por um instante, os dois continuaram observando o baú.

— Cohen?

— O quê?

— O que quer dizer sobrenatural?

— Sobrenatural é...

Cohen se deteve e olhou para baixo, irritado.

— Dê um chute aí e vai ver.

A bota rematada em aço de Semqueixo acertou a lateral do baú. Cohen se encolheu. Não aconteceu mais nada.

— Certo — disse o anão. — Sobrenatural quer dizer de madeira?

— Não — respondeu Cohen. — Ela não deveria ter feito isso.

— Certo — falou Semqueixo, que na verdade não entendia, e já estava começando a achar que seria melhor Cohen não ter saído naquele sol quente. — Ela deveria ter fugido?

— É. Ou mordido a sua perna.

— Ah — disse o anão.

Pegou Cohen pelo braço.

— Aqui na sombra está mais fresco — observou ele. — Por que você não...?

Cohen se desprendeu.

— Ela está analisando o muro — disse o herói. — Veja, é por isso que não está reparando na gente. Porque está observando o muro.

— Isso mesmo — confirmou Semqueixo, de maneira apaziguadora. — É claro que está observando o muro com seus olhinhos...

— Não seja idiota. Ela não tem olhos — cortou Cohen.

— Ah, me desculpe — apressou-se em pedir Semqueixo. – Está observando o muro sem olhos, é claro.

— Acho que está preocupada com alguma coisa – imaginou Cohen.

— Deve estar, não é mesmo? — perguntou Semqueixo. – Acho que quer que a gente dê o fora e a deixe sozinha.

— Parece intrigada — acrescentou Cohen.

— Ah, com certeza parece intrigada — repetiu o anão.

Cohen o encarou.

— Como é que você sabe?

Ocorreu a Semqueixo que os papéis vinham se invertendo. O anão olhou de Cohen para o baú, com a boca abrindo e fechando.

— Como é que você sabe? — rebateu ele.

Mas Cohen já não ouvia. O herói estava sentado de frente para o baú — supondo-se que o lado da fechadura fosse a frente — e o observava com atenção. Semqueixo se afastou. Engraçado, disse sua mente, mas a coisa está realmente olhando para mim.

— Tudo bem — falou Cohen. — Sei que nós dois não nos damos muito bem, mas estamos procurando pessoas com quem nos importamos, não é?

— Eu... — começou Semqueixo, mas se deu conta de que Cohen estava falando com o baú.

— Pois então me diga aonde eles foram.

Para horror de Semqueixo, a Bagagem estendeu as perninhas, saiu em disparada e bateu em cheio no muro. Tijolos e pedaços de concreto caíram ao redor.

Cohen espiou pelo buraco. Do outro lado, havia um pequeno depósito imundo. A Bagagem estava no meio do aposento, irradiando frustração.

— Loja! — gritou Duasflor.

— Alguém aí? — perguntou Bethan.

— Ai! — resmungou Rincewind.

— Acho que devemos sentá-lo em algum lugar e arranjar um copo de água — considerou Duasflor. — Se tiver água por aqui.

— Tem tudo o mais — observou Bethan.

A loja era cheia de prateleiras, e as prateleiras eram cheias de tudo. O que não podia se acomodar nelas estava pendurado em cachos no teto escuro e sombrio. Caixas e sacos se espalhavam pelo chão.

De fora, não vinha nenhum barulho. Bethan se virou e descobriu por quê.

— Nunca vi tanta coisa! — exclamou Duasflor.

— Mas tem uma que está em falta — retrucou Bethan.

— Como é que você sabe?

— Basta olhar. Acabaram as saídas.

Duasflor se virou. No local em que a porta e a janela tinham estado, havia prateleiras cobertas de caixas — que pareciam estar ali havia muito tempo.

Duasflor botou Rincewind numa cadeira ao lado do balcão e cutucou as prateleiras, desconfiado. Havia caixas de pregos e escovas. Havia barras de sabão desfeitas pelo tempo. Havia uma série de vasos com sais de banho solúveis, aos quais alguém havia afixado um pequeno e gracioso anúncio de que — contra todas as evidências — aquele seria o Presente Ideal. E também havia muita poeira.

Bethan espiou as prateleiras de outra estante e soltou uma risada.

— Olhe para isso! — disse.

Duasflor olhou. Ela estava segurando um... bem, era um pequeno chalé, mas cheio de conchas marinhas, e o responsável por aquilo havia escrito "Uma lembrança especial" no teto (que obviamente se abria para guardar cigarros e, quando aberta, tocava uma musiquinha metálica).

— Já viu um negócio desses? — perguntou ela. Duasflor sacudiu a cabeça, boquiaberto.

— Você está bem? — alarmou-se ela.

— Acho que é a coisa mais linda que já vi — respondeu ele.

Do alto, veio um zumbido. Os dois olharam para cima. Uma grande bola preta havia descido das trevas do teto. Luzinhas vermelhas piscavam, então a bola se virou e fitou-os com um grande olho de vidro. Era um olho ameaçador. E parecia sugerir de modo bastante enfático que contemplava algo repugnante.

— Olá — arriscou Duasflor.

Uma cabeça surgiu do outro lado do balcão. O sujeito estava zangado.

— Espero que pretenda pagar por isso — disse, ríspido.

Ele parecia esperar que Rincewind respondesse "sim", mas de qualquer jeito não ia acreditar nele.

— Isso? — exaltou— se Bethan. — Eu não compraria isso nem se você botasse dentro um monte de rubis e...

— Eu compro. Quanto é? — apressou-se em perguntar Duasflor, metendo a mão no bolso.

O rapaz murchou.

— Na verdade, não tenho dinheiro — lamentou ele. — Está na Bagagem, mas eu...

Houve um suspiro. A cabeça sumiu do outro lado do balcão e reapareceu atrás do mostruário de escovas de dente.

Era um homem baixo, quase perdido no avental verde. E parecia chateado.

— Não tem dinheiro? — perguntou ele. — Vem à minha loja...

— Mas a gente não queria — argumentou Duasflor. — Nem notamos que estava ali.

— Não estava ali — interveio Bethan, resoluta. — É uma loja mágica, não é?

O lojista hesitou.

— É — assentiu, relutante. — Um pouco.

— Um pouco? — estranhou Bethan. — Um pouco mágica?

— Tá bom, mais que um pouco — admitiu ele, recuando. — Tudo bem — concordou afinal, uma vez que Bethan continuava a encará-lo. — É mágica. Não posso fazer nada. Mas não me digam que a porta surgiu e desapareceu de novo.

— Exatamente, e não gostamos nada desse negócio no teto.

Ele olhou para cima e franziu a testa. Então desapareceu na pequena porta com cortina de contas, em parte escondida pelas mercadorias. Houve uma série de estalos e tinidos, e a bola preta sumiu na escuridão. Em seguida, era substituída por um molho de ervas, um móbile anunciando algo de que Duasflor jamais havia ouvido falar — mas que aparentemente era uma bebida para a hora de dormir — , uma armadura e um crocodilo empalhado, com uma expressão bastante natural de dor e surpresa.

O lojista voltou.

— Melhorou? — perguntou ele.

— Já é alguma coisa — respondeu Duasflor, sem muita certeza. — O que mais gosto são as ervas.

Nesse instante, Rincewind gemeu. O mago estava prestes a acordar.

Já se criaram três grandes teorias para explicar o fenômeno das lojas errantes, ou — como são genericamente conhecidas — tabernae vagantes.

A primeira sustenta que, muitos milhares de anos atrás, em algum lugar do multiverso, surgiu uma raça cujo único talento era comprar barato e vender caro. Em pouco tempo, dominaram um vasto império galáctico, ou — como preferem chamar — Empório Galáctico, e os membros mais adiantados dessa espécie descobriram uma forma de equipar suas lojas com excepcionais dispositivos de propulsão que conseguiam romper as paredes escuras do próprio espaço e abrir novos e amplos mercados. Bem depois de os mundos do Empório terem sucumbido — após uma última e desafiadora queima de estoque — , as lojas errantes ainda funcionam, abrindo caminho nas páginas do espaço-tempo como uma traça num romance de três volumes.

A segunda teoria afirma que as lojas são obra de um Destino compassivo, encarregado de prover a coisa certa na hora certa.

E a terceira alega que não passam de um modo bastante inteligente de escapar às muitas leis de Fechamento Dominical.

Todas essas teorias, embora bem diferentes, têm duas coisas em comum: explicam os fatos observados e estão completamente erradas.

Rincewind abriu os olhos e, por um momento, ficou apenas observando o réptil empalhado. Não era a melhor imagem que se podia ter ao acordar de sonhos agitados...

Magia! Era essa a sensação! Não admira que magos não quisessem saber de sexo!

É claro que Rincewind sabia o que era orgasmo. No seu tempo, ele havia tido alguns — às vezes até acompanhado — , mas nada nessas experiências chegava perto daquele breve instante quente em que todos os nervos do organismo vertiam chamas branco-azuladas e a magia em estado natural explodia dos dedos. A pessoa era arrebatada e surfava pela onda crescente e curva da energia elementar. Não admira que magos lutassem tanto pelo poder...

E assim por diante. Mas era o Feitiço na cabeça de Rincewind que havia feito a magia. E ele já estava realmente começando a detestar o intruso. Tinha certeza de que, se Ele não tivesse assustado todos os outros feitiços que tentara aprender, teria sido por seus próprios méritos um mago bastante bom.

Em algum lugar da alma já castigada de Rincewind, a serpente da revolta mostrou a presa.

Certo, pensou ele. Na primeira oportunidade que eu tiver, você vai direto para o Oitavo.

Ele sentou.

— Que lugar é este? — perguntou, segurando a cabeça para fazê-la parar de girar.

— Uma loja — respondeu Duasflor, desalentado.

— Espero que venda facas, porque quero cortar fora minha cabeça — disse Rincewind.

Algo na expressão de Bethan e Duasflor lhe trouxe de volta a lucidez.

— É brincadeira — explicou ele. — Pelo menos, em grande parte. Por que estamos na loja?

— Não podemos sair — respondeu Bethan.

— A porta sumiu — acrescentou Duasflor, solícito.

Rincewind se levantou, um pouco trêmulo.

— Ah — suspirou ele. — Uma daquelas lojas?

— Isso mesmo — falou o lojista, de mau humor. — É, é mágica. É, fica andando por aí. Não, não vou dizer por que...

— Será que o senhor poderia me arranjar um pouco d'água? — pediu Rincewind.

O lojista pareceu ofendido.

— Primeiro não têm dinheiro, depois querem um copo d'água — rebateu ele. — Já está passando dos...

Bethan bufou e se dirigiu até o homenzinho, que ainda tentou recuar — mas demorou demais.

Ela o suspendeu pelas alças do avental e olhou-o nos olhos. Por mais rasgado que seu vestido estivesse e por mais despenteado que o cabelo se encontrasse, por um instante ela virou o símbolo de toda mulher que pega o homem com a boca na botija.

— Tempo é dinheiro — sussurrou ela. — Vou dar a você 30 segundos para trazer o copo d'água. Acho que é uma pechincha.

— Olhe — murmurou Duasflor. — Ela é um terror quando está aborrecida, não é?

— É — concordou Rincewind, sem muito entusiasmo.

— Tudo bem, tudo bem — assentiu o lojista, visivelmente intimidado.

— E depois pode nos deixar sair — acrescentou Bethan.

— Por mim, não tem problema nenhum. De qualquer maneira, a loja não estava aberta. Só parei uns segundos para me localizar, e vocês já estavam aqui dentro!

Ele saiu resmungando pela cortina de contas e voltou com o copo d'água.

— Lavei bastante — disse, evitando o olhar de Bethan.

Rincewind olhou para o líquido no copo. Era provável que a água estivesse limpa antes de ser posta ali, mas agora bebê-la implicaria o genocídio de milhares de germes inocentes.

O mago deixou o copo no balcão.

— Agora eu vou dar uma boa lavada! — anunciou Bethan, e desapareceu pela cortina.

O lojista agitou a mão de maneira vaga e lançou um olhar de súplica para Rincewind e Duasflor.

— Ela não é ruim — defendeu Duasflor. — Vai se casar com um amigo nosso.

— E ele sabe?

— Os negócios não andam bem? — perguntou Rincewind, com o máximo de simpatia que conseguiu manifestar.

O homenzinho estremeceu.

— Você nem acredita — lamentou ele. — Quer dizer, a gente aprende a não esperar muito, faz uma venda aqui, outra ali. É um meio de vida, entende? Mas, hoje em dia, essas pessoas com estrela pintada no rosto... bom, eu mal abro a loja e já estão ameaçando tacar fogo. Dizem que ela é mágica demais. Pois eu digo: "É claro que é mágica, o que mais poderia ser?".

— Existem muitas dessas pessoas? — alarmou-se Rincewind.

— No Disco inteiro, meu amigo. Não me pergunte por quê.

— É porque acham que a estrela vai colidir com o Disco — explicou Rincewind.

— E vai?

— Muita gente acredita que sim.

— É uma pena. Já fiz ótimos negócios aqui. Reclamar que é mágica demais! Eu queria saber o que há de errado com a magia.

— O que você vai fazer? — quis saber Duasflor.

— Ah, ir para algum outro universo. Tem muitos por aí — respondeu o lojista, distraído. — Mas, de qualquer forma, obrigado por me avisarem da estrela. Posso deixar vocês em algum lugar?

O Feitiço deu um chute dentro da mente de Rincewind.

— Hã, não — respondeu o mago. — Acho que talvez seja melhor a gente ficar. Para ver o que acontece.

— Você não está preocupado com a estrela?

— A estrela é vida, e não morte — afirmou Rincewind.

— Como assim?

— Como assim o quê?

— Você fez de novo! — disse Duasflor, apontando um dedo acusatório. — Diz alguma coisa e depois não sabe que disse!

— Só falei que é melhor a gente ficar — defendeu-se Rincewind.

— Você disse que a estrela era vida, e não morte – rebateu Duasflor. — A sua voz ficou toda falha e distante. Não ficou?

Ele se voltou para o lojista, em busca de confirmação.

— É verdade — assentiu o homenzinho. — Acho que os olhos também se viraram um pouco.

— Deve ser o Feitiço — disse Rincewind. — Está tentando me dominar. Ele sabe o que vai acontecer, e acho que quer ir aAnkh-Morpork. Eu também quero — acrescentou, em desafio. – Pode nos deixar lá?

— É aquela cidade grande cortada pelo Ankh? Um lugar meio espalhado, com cheiro de esgoto?

— Ela tem uma história longa e nobre — retrucou Rincewind, com a voz endurecida pelo orgulho cívico ferido.

— Não foi como a descreveu para mim — contestou Duasflor. — Você disse que era a única cidade do mundo que já havia começado decadente.

Rincewind pareceu constrangido.

— É verdade, mas, bom, é meu lar, entende?

— Não — respondeu o lojista. — Na verdade, não. Sempre digo que lar é onde penduro o chapéu.

— Ah, não — retrucou Duasflor, sempre ansioso por ensinar. — O lugar em que penduramos o chapéu se chama porta-chapéus. Lar é...

— Deixe ver como faço para levá-los — cortou o lojista, ao ver Bethan chegar.

Ele passou correndo por ela.

Duasflor o seguiu.

Do outro lado da cortina, havia um quarto com uma cama pequena, um fogão bastante encardido e uma mesa de três pernas. O lojista fez alguma coisa na mesa, houve um ruído como de uma rolha saindo relutantemente da garrafa, um universo surgiu no cômodo.

— Não tenha medo — disse o lojista, enquanto as estrelas passavam por eles.

— Não estou com medo — rebateu Duasflor, com os olhos brilhando.

— Ah — soltou o lojista, levemente decepcionado. — De qualquer forma, não passam de imagens criadas pela própria loja. Não são de verdade.

— E você pode ir a qualquer lugar?

— Ah, não — respondeu o lojista, quase chocado. — Tem várias condições de segurança. Afinal de contas, não haveria razão de eu ir a um lugar com renda per capita insuficiente, por exemplo. E é evidente que precisa haver um muro apropriado. Ah, aqui estamos nós, esse é o seu universo. Sempre achei um bibelô. Uma espécie de universinho...

Aqui temos a escuridão do espaço e a infinidade de estrelas brilhando como pó de diamante, ou — como diriam algumas pessoas — feito enormes bolas de hidrogênio queimando à distância. Mas, não vamos esquecer, algumas pessoas são capazes de dizer qualquer coisa.

Um vulto começa a ocultar o brilho distante e já se mostra mais negro do que o próprio espaço.

Daqui, também parece muito maior — porque o espaço não é grande, mas apenas um lugar onde se pode ser grande. Os planetas são grandes, mas planetas foram feitos para serem grandes, e não há nenhum bom motivo para que eles sejam menores.

Essa sombra que tapa o céu como o som dos passos de Deus, porém, não é um planeta.

É uma tartaruga com 16 mil quilômetros de comprimento, desde a cabeça cheia de crateras até a cauda encouraçada.

E Grande A'Tuin é enorme.

As patas imensas sobem e descem majestosamente, torcendo o espaço em formas estranhas. O Discworld desliza pelo céu como uma embarcação suntuosa. Mas agora Grande ATuin está tendo alguma dificuldade em deixar as profundezas do espaço para enfrentar as torturantes pressões solares. Ali, no litoral de luz, a magia é mais fraca. Vários dias assim, e o Discworld será abatido pelas pressões da realidade.

Grande A Tuin sabe disso, mas Grande ATuin se lembra de já ter feito tudo isso milhares de anos antes.

Os olhos do astroquelônio, reluzindo avermelhados sob a luz da estrela anã, não se encontram voltados para ela mas para um pequeno trecho do espaço pouco adiante...

— É, mas onde estamos? — perguntou Duasflor.

Curvado sobre a mesa, o lojista apenas estremeceu.

— Acho que não estamos em lugar nenhum — respondeu afinal. — Parece que entramos numa incongruência tangencial. Mas pode ser que eu esteja errado. A loja sabe o que faz.

— Quer dizer que você não sabe?

— Aprendo um pouco aqui e ali.

O lojista assoou o nariz.

— Às vezes pouso em mundos que entendem dessas coisas — disse ele, voltando os pequenos olhos tristes para Duasflor. – O senhor me parece um homem bom. E não me importo em lhe dizer.

— Dizer o quê?

— Que não é vida, sabe, tomar conta da loja. Nunca me estabelecer, sempre estar de mudança, jamais fechando.

— E por que não pára?

— Ah, esse é o problema, entende? Não posso. Fui amaldiçoado. Uma coisa horrível.

Ele assoou o nariz outra vez.

— Amaldiçoado para tomar conta de uma loja?

— Para sempre, meu senhor. Para sempre. E jamais fechar! Durante centenas de anos! Foi um bruxo, entende? Fiz um negócio horrível.

— Numa loja? — perguntou Duasflor.

— É. Não me lembro o que ele queria, mas quando pediu... fiz um daqueles barulhos de sugar o ar, sabe, como um assobio, só que para dentro.

Ele demonstrou.

Duasflor pareceu sério, mas no fundo era um homem generoso e sempre estava disposto a perdoar.

— Sei — disse ele, devagar. — Mas mesmo assim...

— Tem mais!

— Ah.

— Eu disse que ninguém procurava aquela mercadoria!

— Depois de fazer o barulho de sugar o ar?

— É. E provavelmente ri também.

— Ai, meu Deus. Você não o chamou de tio, chamou?

— Pode... pode ser que sim.

— Hã.

— Tem mais.

— Não é possível.

— É. Falei que poderia fazer o pedido e que voltasse no dia seguinte.

— Isso não me parece tão ruim — avaliou Duasflor, que sempre deixava as lojas pedirem produtos para ele e não fazia qualquer objeção em pagar grandes quantias de dinheiro para recompensar o comerciante pela inconveniência de ficar com estoque extra na loja durante algumas horas.

— Era dia de fechar cedo — explicou o lojista.

— Ah.

— É. Eu o ouvi mexer na maçaneta. Tinha um aviso na porta, sabe, dizendo algo como "Fechado até para a venda de cigarros Necromancer". Enfim, eu o ouvi bater à porta e ri.

— Riu?

— Ri. Assim. Nhanhanhaquáquá.

— Uma imprudência — disse Duasflor, sacudindo a cabeça.

— Sei, sei. Meu pai sempre disse: "Não se meta com magos..." Enfim, eu o ouvi gritar alguma coisa de jamais fechar e um monte de palavras que não entendi, e depois disso a loja... a loja... a loja ficou viva.

— E desde esse dia você fica vagando por aí?

— Espero um dia encontrar o bruxo e ter a mercadoria que pediu em estoque. Mas, até lá, devo andar de um lugar para o outro...

— Foi uma atitude horrorosa — opinou Duasflor.

O lojista limpou o nariz com o avental.

— Obrigado — disse ele.

— Mas, mesmo assim, o bruxo não deveria ter lançado uma maldição tão cruel — concluiu o rapaz.

— Ah, é. Bem.

O lojista endireitou o avental e tentou se recompor.

— Seja como for, nada disso vai nos levar aAnkh-Morpork.

— O engraçado — cortou Duasflor — é que comprei minha Bagagem numa loja como essa. Uma outra loja.

— Ah, sim. Somos muitos — falou o lojista, virando-se para a mesa. — Acho que o bruxo era um homem bem impaciente.

— Ficar vagando para sempre no universo... – murmurou Duasflor.

— Exatamente. Mas economizamos as taxas.

— Taxas?

— É, são...

O lojista se deteve e franziu a testa.

— Já nem me lembro mais. Foi há tanto tempo. Taxas, taxas...

— Pregos pequenos de cabeça chata?

— Acho que era outra coisa... Mas pode ser isso aí mesmo...

— Espere aí. Acho que ela está pensando — disse Cohen.

Semqueixo ergueu os olhos, enfastiado. Tinha sido bom ficar sentado ali na sombra. Porque pôde chegar à conclusão de que, na tentativa de escapar de uma cidade de homens enlouquecidos, deixara que um único homem louco lhe atraísse toda a atenção. O joalheiro imaginava se ia se arrepender disso.

Esperava do mais profundo de si mesmo que não.

— Ah, é. Não tem dúvida de que está pensando – confirmou ele, irritado. — Qualquer um pode ver isso.

— Acho que os encontrou.

— Ótimo.

— Segure-se nela.

— Está maluco? — alarmou-se Semqueixo.

— Conheço esse negócio, confie em mim. De qualquer forma, você prefere ficar aí com todas essas pessoas da estrela? Elas devem estar querendo mesmo bater um papo com você.

Cohen avançou de lado até a arca, e pulou sobre ela, com uma perna de cada lado. A Bagagem nem notou.

— Venha logo — gritou o herói. — Acho que ela já está indo.

Semqueixo montou com cuidado, atrás de Cohen.

— Ah — disse ele. — E como é que ela v...

Ankh-Morpork!

Pérola de cidade!

É claro que essa não é uma descrição muito exata — a cidade não era redonda nem brilhante —, mas mesmo seus piores inimigos concordariam que, se a pessoa tivesse que comparar Ankh-Morpork a alguma coisa, poderia muito bem ser a um troço coberto das secreções pestilentas de um molusco doente, prestes a morrer.

Há cidades maiores. Há cidades mais ricas. Com certeza, há cidades mais bonitas. Mas nenhuma cidade em todo o multiverso ganharia de Ankh-Morpork em termos de cheiro.

Os Antigos, que sabem tudo sobre universos e já sentiram o odor de Calcutá, !Xrc— ! e Dauntocum Portomarte, concordam que mesmo esses belos espécimes de poesia nasal não passam de versinhos tolos quando comparados à glória do odor de Ankh-Morpork.

Falem de mendigos. Falem de alho. Falem da França. Falem à vontade. Mas, se a pessoa não aspirou o ar de Ankh-Morpork em dia de calor, não sabe o que é cheiro.

Os habitantes se orgulham. Nas manhãs mais agradáveis, levam cadeiras para fora a fim de aproveitar o aroma. Inflam as bochechas, batem no peito e comentam com alegria sobre as nuanças mais distintivas. Já até erigiram uma estátua ao cheiro, em comemoração à noite escura em que as tropas de um estado rival tentaram invadir a cidade às ocultas e, para seu horror, quando chegaram ao alto dos muros, o tampão no nariz não resistiu. Mercadores ricos que passam muitos anos no exterior pedem garrafas fechadas e especialmente arrolhadas do negócio, que sempre acaba trazendo lágrimas a seus olhos.

É o tipo de efeito que surte.

Aliás, só existe uma maneira de descrever o efeito que o odor de Ankh-Morpork surte no nariz do visitante, e é por analogia.

Pegue um pedaço de tecido escocês. Espalhe confete. Ilumine com flashes periódicos.

Agora pegue um camaleão.

Ponha o camaleão sobre o pedaço do tecido escocês.

Observe com atenção.

Está vendo?

E isso explica por que — quando a loja finalmente se materializou em Ankh-Morpork — Rincewind se aprumou na cadeira e disse "Chegamos", Bethan ficou pálida, e Duasflor — que não possui o olfato muito apurado — perguntou "Jura? Como é que você sabe?".

Fora uma tarde longa. Eles entraram no espaço real em muros de uma infinidade de cidades diferentes, porque, de acordo com o lojista, o campo mágico do Disco estava oscilando e dificultando tudo.

A maioria dos habitantes tinha fugido de todas essas cidades, que agora pertenciam a gangues nômades de pessoas ensandecidas que só olhavam a orelha esquerda dos outros.

— De onde surgiu essa gente? — perguntou Duasflor, enquanto fugiam de mais um grupo.

— Dentro de toda pessoa sã existe um demente lutando para sair — considerou o lojista. — Foi o que sempre achei. Ninguém fica maluco mais rápido do que o sujeito completamente são.

— Isso não faz o menor sentido — retrucou Bethan. — Ou, se faz, eu não gosto.

A estrela já estava maior do que o sol. Naquela noite, não haveria noite. No lado oposto do horizonte, o minúsculo sol do Discworld fazia o que podia para se pôr como sempre. Mas o resultado quando toda a luz vermelha deixava a cidade, que nunca fora de fato bonita, parecia uma paisagem pintada por algum artista fanático, depois de se ver às voltas com graxa de sapato.

Mas era o lar de Rincewind. O mago olhou para os dois lados da rua deserta e quase se sentiu feliz.

Nos fundos de sua mente, o Feitiço estava fazendo barulho, mas ele o ignorou. Talvez fosse verdade que a magia viesse perdendo força à medida que a estrela se aproximava — ou talvez Rincewind já estivesse há tanto tempo com o Feitiço na cabeça que havia desenvolvido uma espécie de imunidade psíquica — mas o mago sentiu que conseguiria resistir.

— Estamos no cais — anunciou ele. — Sintam o cheiro do mar!

— Ah — soltou Bethan, apoiando-se na parede. — É.

— Isso é que é ar! — exclamou Rincewind. — Ar de qualidade.

Ele respirou fundo.

Duasflor se virou para o lojista.

— Espero que ache o bruxo — disse ele. — Desculpe não termos comprado nada, mas todo o meu dinheiro está na Bagagem.

O lojista entregou alguma coisa ao rapaz.

— Uma lembrança — observou ele. — Você vai precisar.

Correu de volta à loja, fazendo o sino tocar e a tabuleta onde se lia "Volte Amanhã Se Quiser Sanguessugas Spoonfetcher" bater contra a porta. Imediatamente, a loja desapareceu no muro de tijolos como se jamais tivesse existido. Com cuidado, Duasflor estendeu a mão e tocou a parede, incrédulo.

— O que tem no saco? — perguntou Rincewind.

Era um saco de papel marrom e grosso, com alças de barbante.

— Se for alguma coisa com patas, nem quero ver — resmungou Bethan.

Duasflor espiou o interior e retirou o presente.

— Só isso? — surpreendeu— se Rincewind. — Uma casinha com conchas?

— É muito útil — defendeu Duasflor. — Dá para guardar cigarros dentro.

— E é exatamente do que você precisava, não é? — ironizou Rincewind.

— Preferia que fosse um vidro de bronzeador — admitiu Bethan.

— Vamos — chamou Rincewind, avançando pela rua.

Os outros seguiram.

Ocorreu a Duasflor que o momento exigia algumas palavras de conforto, uma conversa cautelosa para distrair Bethan e tentar animá-la um pouco.

— Não se preocupe — disse ele. — É possível que Cohen ainda esteja vivo.

— Ah, acho que ele está vivo, sim — respondeu ela, pisando nas pedras como se nutrisse rancor pessoal por cada uma delas. – Nessa profissão, a pessoa não vive até os 87 anos para depois sair morrendo por aí. O problema é que não está com a gente.

— Nem a Bagagem — lamentou Duasflor. — Claro que não é a mesma coisa.

— Você acha que a estrela vai bater no Disco?

— Não — respondeu Duasflor, com segurança.

— Por que não?

— Porque Rincewind acha que não.

A moça olhou surpresa para ele.

— Olhe — continuou o turista — , sabe aquilo que se faz com alga marinha?

Criada nas Planícies Vórtice, Bethan só ouvira falar do mar em histórias e muito cedo decidira não gostar do negócio. Ela parecia confusa.

— Comer?

— Não, pendurar do lado de fora da casa para a alga dizer se vai chover.

Outra lição que Bethan havia aprendido era que não existia nenhum bom motivo para tentar entender o que Duasflor dizia, e que tudo o que a pessoa podia fazer era seguir correndo ao lado da conversa e torcer para conseguir pular dentro quando ela dobrasse uma esquina.

— Sei — arriscou a moça.

— O Rincewind é assim, entende?

— Assim como alga marinha?

— É. Se tivesse alguma razão para se preocupar, ele estaria preocupado. Mas não está. A estrela deve ser a única coisa da qual não o vi ficar com medo. E, se ele não está apavorado, vá por mim, não tem com o que se preocupar.

— Não vai chover? — deduziu Bethan.

— Bem, não. Metaforicamente falando.

— Ah.

Bethan preferiu não perguntar o que "metaforicamente" queria dizer, caso tivesse alguma coisa a ver com algas marinhas. Rincewind se virou para trás.

— Vamos, gente — gritou ele. — Está perto.

— Para onde estamos indo? — quis saber Duasflor.

— Para a Universidade Invisível, claro.

— Será que é uma boa idéia?

— Provavelmente não, mas vou mesmo assim...

Rincewind parou — o rosto, uma careta de dor. Botou a mão nos ouvidos e gemeu.

— O Feitiço está incomodando?

— Está.

— Tente cantar.

Rincewind torceu o rosto.

— Eu vou me livrar desse negócio! — disse o mago, com a voz abafada. — Ele vai voltar para o maldito livro a que pertence. Quero minha cabeça de volta!

— Mas... — começou Duasflor e se deteve.

Eles ouviram o som de passos e uma cantoria distante.

— Acha que é a gente da estrela? — alarmou-se Bethan.

Era. O cortejo despontou numa esquina a 100 metros dali, atrás de uma faixa branca e rota com o desenho de uma estrela de oito pontas.

— Não só a gente da estrela — respondeu Duasflor. – Todo tipo de gente.

Ao passar, a multidão acabou levando-os junto. Uma hora, os três estavam parados na rua deserta; no instante seguinte, eram arrastados pela grande massa humana através da cidade.

 

A luz das tochas bruxuleava nos túneis úmidos debaixo da universidade, mas os chefes das oito Ordens de feitiçaria seguiam adiante.

— Pelo menos aqui embaixo está fresco — disse um deles.

— Nós não deveríamos estar aqui embaixo.

Trymon, que comandava o grupo, não dizia nada. Mas pensava bastante. Pensava na garrafa de óleo que trazia no cinto e nas oito chaves que os magos levavam — as oito chaves que entrariam nos oito cadeados que mantinham o Oitavo preso à estante de leitura. Pensava no fato de os velhos magos, ao sentirem a magia se esvaindo, se mostrarem absortos em seus problemas e talvez menos alertas do que deveriam. Pensava que, dentro de alguns minutos, o Oitavo — a maior concentração de magia do Disco — estaria em suas mãos.

Apesar do frio do túnel, ele sentiu que estava suando.

Os magos chegaram a uma porta revestida de chumbo. Trymon pegou a chave pesada — uma boa e legítima chave de ferro, diferente das desconcertantes chaves retorcidas que libertariam o Oitavo — , pingou um pouco de óleo na fechadura, enfiou a peça de ferro e virou. A fechadura se abriu, rangendo em protesto.

— Estamos todos de acordo? — perguntou Trymon.

Ouviram-se resmungos vagamente afirmativos.

Ele empurrou a porta.

Um sopro quente de ar espesso e oleoso chegou até os magos. O ar zumbia de maneira aguda e desagradável. Pequenas faíscas de fogo octarina saíam de cada nariz, barba e unha.

De cabeça baixa contra o vendaval de magia aleatória que soprava do quarto, os magos seguiram em frente. Vultos incompletos riam e flutuavam à volta, uma vez que os habitantes do Calabouço das Dimensões sempre tateavam (com coisas que passam por dedos só porque se encontram na extremidade do braço) em busca de uma abertura desprotegida para o círculo de luz considerado o "universo da ordem e da razão".

Mesmo nesse instante impróprio para tudo que era mágico, mesmo num quarto desenhado para minar vibrações sobrenaturais, o Oitavo ainda pulsava de energia.

Não havia nenhuma necessidade das tochas. O Oitavo enchia o cômodo de uma luz pálida e sombria, que não era de modo nenhum luz, mas o contrário de luz. Escuridão não é o contrário de luz — apenas sua ausência — e o que irradiava do livro era a luz que se encontra no lado oposto das trevas, a luz fantástica.

Na verdade, era de uma decepcionante cor roxa.

Como já foi mencionado, o Oitavo ficava acorrentado a uma estante de leitura conhecida como atril. Este era esculpido em forma de algo que lembrava levemente um pássaro, ligeiramente um réptil e parecia terrivelmente vivo. Dois olhos brilhantes se cravaram nos magos com ódio mortal.

— Eles se mexeram! — gritou um deles.

— Enquanto não tocarmos o livro, não corremos perigo — rebateu Trymon.

Ele tirou um pergaminho do cinto e o desenrolou.

— Traga a tocha aqui — pediu. — E apague o cigarro!

Ele esperou por uma furiosa explosão de orgulho ferido. Mas nada aconteceu. Em vez disso, com dedos trêmulos, o feiticeiro insultado tirou a guimba dos lábios e jogou-a no chão.

Trymon ficou exultante. Então, pensou com alegria, eles fazem o que digo. Talvez apenas por enquanto... mas apenas por enquanto já basta.

Ele examinou a caligrafia nervosa de um mago falecido havia muito tempo.

— Certo — começou. — Vejamos: "Para Haplacá-lo, Haquele Que Hé Guardião..."

O cortejo avançava por uma das pontes que ligava Morpork a Ankh. Logo abaixo, o rio — caudaloso em épocas melhores — não passava de um fio d'água a se evaporar.

A ponte tremeu mais do que deveria sob os pés da multidão. Estranhas ondulações se formaram nos restos lamacentos do rio. Algumas telhas caíram do telhado de uma casa próxima.

— O que foi isso? — alarmou-se Duasflor.

Bethan olhou para trás e soltou um grito.

A estrela estava se erguendo. Enquanto o sol do Disco corria para se refugiar abaixo do horizonte, a enorme estrela subia lentamente no céu, até estar bem acima do nível do mundo.

Eles empurraram Rincewind para a segurança de um vão de porta. A multidão nem notou — apenas seguiu em frente, apavorada como um bando suicida de lemingües.

— A estrela tem manchas — alertou Duasflor.

— Não — reagiu Rincewind. — São... coisas. Negócios que giram em volta da estrela. Como o sol gira em torno do Disco. Mas estão rentes porque, porque...

Ele se deteve.

— Eu quase sei.

— Sabe o quê?

— Preciso me livrar desse Feitiço!

— Onde fica a universidade? — perguntou Bethan.

— Por ali! — respondeu Rincewind, apontando uma rua.

— Deve ser bem popular. É para onde todo mundo está indo.

— Por que será? — quis saber Duasflor.

— Seja lá pelo que for — disse Rincewind — , duvido que seja para as matrículas semestrais.

Na realidade, a Universidade Invisível estava em estado de sítio — ou pelo menos as partes que se projetavam nas dimensões normais do dia-a-dia estavam em estado de sítio. A legião que agora se encontrava do lado de fora dos portões fazia uma ou outra de duas exigências. As pessoas exigiam: ou que a) os magos parassem de embromar e dessem logo fim na estrela, ou — e essa era a exigência preferida da gente da estrela — que b) os feiticeiros cessassem toda a magia e cometessem suicídio de maneira ordenada, assim livrando o Disco da maldição da magia e afastando a terrível ameaça do céu.

Do outro lado dos portões, os magos não tinham a menor idéia de como fazer a) e nenhuma intenção de levar b) a cabo, e muitos haviam de fato apostado em c) que em grande medida consistia em disparar pelas portas laterais e fugir na ponta dos pés o mais rápido possível, se não ainda mais rápido.

A magia que ainda restava na universidade se reunia para manter os grandes portões selados. Agora os magos aprendiam que, embora fosse muito requintado e impressionante dispor de uma série de portões trancados por magia, os construtores deveriam ter pensado em incluir algum artifício extra de emergência, como, por exemplo, um bom par de ferrolhos resistentes e completamente banais.

Na praça de frente para os portões, várias fogueiras imensas foram acesas, mais para causar impressão do que por qualquer outro motivo, uma vez que o calor da estrela era insuportável.

— Mas ainda dá para ver as estrelas — disse Duasflor. – Quer dizer, as outras estrelas. As pequenas. No céu escuro.

Rincewind o ignorou. O mago observava os portões. Um grupo de pessoas da estrela e habitantes da cidade vinha tentando derrubá-los.

— Não adianta — lamentou Bethan. — Nunca vamos conseguir entrar. Aonde você está indo?

— Dar um passeio — respondeu Rincewind, e já avançava com determinação por uma rua lateral.

Ali havia um ou dois desordeiros autônomos, empenhados em destruir lojas. Rincewind não prestou muita atenção, mas apenas seguiu o muro até o ponto em que ele corria paralelo a um beco escuro, desprendendo o terrível cheiro peculiar a todos os becos em qualquer lugar do mundo.

Rincewind examinava as pedras. Ali o muro tinha 6 metros de altura e, no topo, era incrustado de espigões de metal.

— Preciso de uma faca — anunciou ele.

— Vai abrir caminho na parede? — assustou-se Bethan.

— Só me tragam a faca — disse Rincewind.

O mago batia nas pedras do muro.

Duasflor e Bethan se entreolharam e deram de ombros. Alguns minutos mais tarde, voltavam com uma grande variedade de facas — e Duasflor havia conseguido até mesmo encontrar uma espada.

— Pegamos por aí — disse Bethan.

— Mas deixamos dinheiro — ressalvou Duasflor. — Quer dizer, se tivéssemos dinheiro, teríamos deixado...

— Aí ele insistiu em escrever um bilhete — cortou Bethan, irritada.

Duasflor se levantou.

— Não vejo nenhuma razão... — começou ele, inflexível.

— Tá, tá bom — disse Bethan, sentando-se, mal-humorada. — Já sei que não. Rincewind, todas as lojas foram arrombadas. Do outro lado da rua, tinha uma porção de gente levando instrumentos musicais, você acredita?

— Acredito — respondeu Rincewind, escolhendo a faca apropriada e testando a lâmina.

O mago enfiou a lâmina no muro, torceu o cabo e recuou, enquanto a pedra tombava. Olhou para cima, fazendo contas a meia voz, e derrubou outra pedra.

— Como fez isso? — surpreendeu-se Duasflor.

— Por favor, apenas me ajude a subir — pediu Rincewind.

Em seguida, com os pés metidos nos buracos que havia aberto, criou mais alguns degraus até a metade do muro.

— Há séculos, é assim — gritou ele. — Algumas pedras não têm argamassa. Passagem secreta, entendem? Cuidado aí embaixo.

Outra pedra caiu no chão.

— Os alunos fizeram isso faz muito tempo – explicou Rincewind. — Conveniente para entrar e sair depois que as luzes já se apagaram.

— Ah! — exclamou Duasflor. — Entendi. Pulavam o muro e iam às tabernas beber, cantar e recitar poesia, não é?

— Quase tudo certo, fora a parte de cantar e recitar poesia — respondeu Rincewind. — Alguns desses espigões devem estar soltos...

Ouviu-se um tinido.

— A queda não é grande desse lado — gritou ele, depois de alguns segundos. — Venham logo. Se quiserem.

E foi assim que Rincewind, Duasflor e Bethan entraram na Universidade Invisível.

Em outro local do campus...

Os oito magos enfiaram as chaves nos buracos da fechadura e, entreolhando-se com preocupação, viraram cada uma delas. Quando a lingüeta se abriu, houve um estalido.

E o Oitavo se viu finalmente livre. A capa brilhava com uma fraca luz octarina.

Trymon estendeu a mão e pegou o livro, e nenhum dos outros magos fez qualquer objeção. O braço dele estava formigando.

Ele se virou para a porta.

— Ao Grande Salão, irmãos — disse afinal. — Deixem-me ir à frente...

E de novo não houve objeção.

Ele avançou até a porta com o Oitavo metido debaixo do braço. O livro parecia quente e espinhoso.

A cada passo, esperava um grito de protesto — mas não houve nada. Precisou se controlar para não rir. Era mais fácil do que havia imaginado.

Quando passou pela porta, os outros ainda estavam na metade da claustrofóbica masmorra, e talvez até tivessem notado algo na disposição dos ombros dele, mas era tarde demais. Trymon já tinha agarrado a maçaneta, fechado a porta, virado a chave e sorrido o sorriso.

Ele atravessou o corredor de volta, ignorando os gritos enfurecidos dos magos, que agora descobriam ser de fato impossível lançar feitiços num quarto impermeável à magia.

O Oitavo se contorcia, mas Trymon o segurava firme. Ele começou a correr, tentando tirar da mente as terríveis sensações que tinha debaixo do braço, já que o livro se transformava em coisas cabeludas, esqueléticas e pontiagudas. A mão ficou dormente. Os trinados que ele vinha ouvindo aumentaram de intensidade, e havia outros ruídos atrás — ruídos que olham de esguelha, ruídos que acenam, ruídos feitos por vozes de horrores inimagináveis — que Trymon não tardou em descobrir serem bem fáceis de imaginar. Conforme avançava pelo Grande Salão e subia a escada principal, as sombras começaram a se transformar, chegando cada vez mais perto. Trymon também percebeu que algo o seguia, algo com patas que corriam desesperadamente rápido. As paredes criaram gelo. Molduras de porta caíam em cima dele. Sob os pés, a escada parecia uma grande língua...

Não fora à toa que Trymon havia passado horas e mais horas no curioso equivalente à sala de ginástica da universidade, ganhando massa muscular mental. Não confiar nos sentidos porque podem ser facilmente enganados — ele bem sabia. De algum modo, a escada está ali. Deseje que ela esteja aí, evoque-a para que exista enquanto sobe e, cara, é melhor ser bom no negócio. Porque não é só imaginação.

 

Grande A'Tuin diminuiu a marcha.

Com patas do tamanho de continentes, a tartaruga celestial lutou contra o poder de atração da estrela e esperou.

A espera não seria longa...

 

Rincewind chegou ao Grande Salão. Havia algumas tochas acesas, e o lugar parecia ter sido preparado para algum trabalho mágico. Mas os castiçais cerimoniais estavam virados, os complexos octogramas traçados com giz no chão se encontravam meio apagados — como se alguém tivesse dançado sobre eles — e o ar tinha um cheiro desagradável até mesmo para os tolerantes padrões de Ankh-Morpork. Havia um toque de enxofre, mas debaixo de algo pior. Na verdade, cheirava a fundo de lago.

Ouviram um estampido distante e muita gritaria.

— Parece que os portões vieram abaixo — imaginou Rincewind.

— Vamos dar o fora — sugeriu Bethan.

— Os porões ficam por aqui — informou o mago, e avançou por uma arcada.

— Por aí?

— É. Prefere ficar?

O mago tirou uma tocha do suporte na parede e começou a descer os degraus.

Depois de alguns lances de escada, as paredes deixavam de ser revestidas — e eram a própria pedra nua. Aqui e ali, portas pesadas tinham sido abertas.

— Ouvi alguma coisa — disse Duasflor.

Rincewind se deteve para tentar escutar. De fato, um barulho parecia vir mais de baixo. Não era nada assustador. Parecia um monte de gente esmurrando uma porta e gritando "Ai!”.

— Não são aquelas Coisas do Calabouço das Dimensões das quais você estava falando, são? — alarmou-se Bethan.

— Elas não xingam assim — assegurou Rincewind. — Vamos.

Os três correram por várias passagens gotejantes, seguindo os gritos e as tosses secas que de alguma forma eram tranqüilizadoras. Qualquer criatura que arquejasse daquela maneira, decidiram eles, não poderia de forma nenhuma representar muito perigo.

Por fim, chegaram a uma porta que parecia forte o bastante para conter a força do mar. Havia uma minúscula abertura.

— Ei! — gritou Rincewind.

Não era de muita ajuda, mas o mago não conseguiu pensar em nada melhor.

Houve um silêncio súbito. Depois de uma pausa mais ou menos longa, uma voz do outro lado da porta perguntou:

— Quem está aí fora?

Rincewind reconheceu a voz. Vários anos antes, em muitas tardes quentes, aquela mesma voz o havia arrancado dos sonhos mais lindos e lançado no terror da sala de aula. Era o professor Lemuel Panter, que um dia arrogara para si a função de martelar os rudimentos da cristalomancia e da evocação na cabeça do jovem Rincewind. Ele se lembrou dos olhos feito setas, da voz dizendo "E agora o senhor Rincewind vai vir aqui desenhar o símbolo referido no quadro" e dos milhões de quilômetros que parecia ter a travessia da sala, enquanto ele tentava desesperadamente se lembrar do que estava sendo dito cinco minutos antes. Mesmo agora, a garganta de Rincewind secava de pavor e de uma culpa difusa.

— Por favor, senhor. Sou eu, senhor. Rincewind, senhor — disse ele.

Reparou que Duasflor e Bethan o fitavam, e tossiu.

— É — acrescentou na voz mais grave que conseguiu afetar. — Isso mesmo. Rincewind. Certo.

Do outro lado da porta, irromperam cochichos.

— Rincewind?

— Rinse o quê?

— Tenho a vaga lembrança de um garoto que não era nem um pouco...

— O Feitiço, lembra?

— Rincewind?

Houve uma pausa. Em seguida a voz disse:

— Imagino que a chave não esteja na fechadura, está?

— Não — respondeu Rincewind.

— O que ele disse?

— Disse "não".

— Típico do garoto.

— Hã, quem está aí dentro? — perguntou Rincewind.

— Os Mestres da Magia — vangloriou-se a voz.

— Por quê?

Houve outra pausa, seguida de uma conferência de sussurros constrangidos.

— Hum, nós nos trancamos — admitiu a voz, relutante.

— O quê? Com o Oitavo?

Sussurros e mais sussurros.

— Na verdade, o Oitavo não está aqui — explicou a voz, devagar.

— Ah. Mas os senhores estão? — perguntou Rincewind, manifestando o máximo de gentileza possível enquanto sorria como um necrófilo no necrotério.

— Exatamente.

— Tem alguma coisa que possamos fazer? – perguntou Duasflor, ansioso.

— Tirar a gente daqui.

— Talvez se forçássemos a fechadura... — sugeriu Bethan.

— Não adianta — cortou Rincewind. — É à prova de ladrão.

— Cohen conseguiria — protestou a fiel Bethan. — Onde quer que esteja.

— A Bagagem também botaria isso abaixo – concordou Duasflor.

— Bom, então não tem jeito — concluiu Bethan. – Vamos tomar um pouco de ar fresco. Ou, pelo menos, mais fresco.

Ela se virou para ir embora.

— Espere aí, espere aí — interveio Rincewind. — É bem típico, não é? O velho Rincewind não pode ter nenhuma boa idéia, pode? Ah, não. Não passa de um peso morto. Por que não dar um bom chute nele? Nunca confie no que diz, ele é...

— Tudo bem — reconheceu Bethan. — Vamos ouvir.

— ...um Zé-ninguém, um fracasso, só um... o quê?

— Como vai abrir? — perguntou Bethan.

Rincewind a encarou, boquiaberto. Olhou para a porta. Era realmente sólida, e a fechadura tinha um aspecto presunçoso.

Mas um dia, muito tempo atrás, ele havia entrado ali. O aluno Rincewind empurrara a porta e, um instante depois, o Feitiço saltara para sua mente, arruinando-lhe de vez a vida.

— Olhe só — disse uma das vozes do outro lado da pequena abertura, com toda a delicadeza que conseguiu exprimir. — Apenas ache um mago, meu rapaz.

Rincewind respirou fundo.

— Afastem-se — irritou-se ele.

— O quê?

— Procurem um lugar para se esconder — vociferou, com a voz ligeiramente trêmula. — Vocês também — gritou para Bethan e Duasflor.

— Mas você não pode...

— Estou falando sério!

— Ele está falando sério — disse Duasflor. — Essa veia no lado da testa, sabe, quando se dilata assim, bom...

— Cale a boca!

Vacilante, Rincewind ergueu o braço e apontou para a porta.

O silêncio era absoluto.

Ah, meu Deus, pensou ele, o que vem agora?

Na escuridão do fundo de sua mente, o Feitiço se mexeu.

Rincewind tentou entrar em sintonia ou o que quer que fosse com o metal da fechadura. Se pudesse semear discórdia entre os átomos para que se separassem...

Não aconteceu nada.

Ele engoliu em seco e dirigiu a atenção à madeira. Era velha, estava quase petrificada e provavelmente não queimaria, mesmo se fosse banhada em óleo e jogada numa fornalha. Ainda assim, ele tentou — explicando às antigas moléculas que deveriam tentar ficar pulando para cima e para baixo a fim de se aquecerem...

No silêncio da mente, Rincewind contemplou o Feitiço, que parecia bastante encabulado.

Por um momento considerou o ar em torno da porta e imaginou que poderia ser distorcido em formas estranhas, de modo que a porta só existisse num outro quadro de dimensões.

A porta continuava ali, desafiadoramente sólida.

Suando — e mentalmente começando a longa travessia até o quadro-negro, na frente da turma já sorridente —, ele se voltou outra vez para a fechadura. O objeto devia ser feito de pequenos fragmentos de metal, não muito densos...

Da pequena abertura, veio um ruído. Era o barulho dos magos se descontraindo e sacudindo a cabeça. Alguém sussurrou:

— Avisei a você...

Ouviu-se um leve rangido e um clique.

O rosto de Rincewind se congelou. O suor lhe pingava do queixo.

Houve outro clique e o rangido de eixos relutantes. Trymon havia lubrificado a fechadura, mas o óleo fora absorvido pela poeira e pela ferrugem dos anos, e a única maneira de qualquer mago mover alguma coisa através da magia — a menos que consiga aproveitar movimentos externos — é usando o sistema de alavancas da própria mente.

Com todas as forças, Rincewind tentou impedir que o cérebro fosse arrancado pelas orelhas.

A fechadura retiniu. Hastes de metal se fincaram em toras, cederam, empurraram alavancas.

Alavancas estalaram, com as junturas ajustadas. Houve um longo rangido que deixou Rincewind de joelhos.

Por fim, a porta se abriu — as dobradiças rilhando. E os magos saíram do quarto, com cautela.

Duasflor e Bethan ajudaram Rincewind a se levantar. Ele estava lívido e oscilante.

— Nada mau — opinou um dos magos, examinando a fechadura de perto. — Talvez um pouco lento.

— Não importa — cortou Jiglad Wert. — Vocês passaram por alguém vindo para cá?

— Não — respondeu Duasflor.

— Roubaram o Oitavo.

Rincewind ergueu a cabeça, os olhos custando a se acomodar.

— Quem?

— Trymon...

Rincewind engoliu.

— Sujeito alto? — perguntou. — Louro, parecido com uma doninha?

— Agora que você falou...

— Era da minha turma — disse Rincewind. — Sempre disseram que ele iria longe.

— E vai mais longe ainda se abrir o livro — apontou um dos magos, que agora se apressava em enrolar um cigarro nas mãos trêmulas.

— Por quê? — quis saber Duasflor. — O que vai acontecer?

Os magos se entreolharam.

— É um segredo antigo, passado de feiticeiro para feiticeiro, e não podemos contar ao homem comum — explicou Wert.

— Ah, qual é? — disse Duasflor.

— Ah, tudo bem. Provavelmente já não importa mais mesmo. Uma única mente não comporta todos os feitiços. Ela vai se romper e abrir um buraco.

— Onde? Na cabeça?

— Hum. Não. No tecido do universo — corrigiu Wert. — Trymon pode até achar que vai controlar tudo sozinho, mas...

Antes de ouvirem, todos apenas sentiram o som. Começou nas pedras — com uma vibração demorada — e virou de repente um gemido agudo que se desviava dos tímpanos e ia direto ao cérebro. Parecia uma voz humana cantando, falando ou berrando, mas ainda havia sons mais profundos e terríveis.

Os magos empalideceram. Então se viraram e correram para a escada.

Fora do prédio, havia uma enorme multidão. Alguns indivíduos seguravam tochas, outros haviam se detido em pleno ato de juntar material inflamável em torno dos muros. Mas todos fitavam o alto da Torre de Arte.

Os magos abriram caminho entre as pessoas distraídas e olharam para cima.

O céu estava cheio de luas. Cada uma delas era três vezes maior que a lua do Disco, e todas se encontravam no escuro — à exceção de uma meia-lua rosa, banhada pela luz da estrela.

Na frente de tudo isso, porém, o alto da Torre de Arte era um desvario incandescente. Podiam-se entrever vultos indistintos lá em cima, mas não havia nada de tranqüilizador neles. O som agora tinha se transformado num zumbido de vespa, um milhão de vezes aumentado.

Alguns magos se ajoelharam.

— Ele fez mesmo — afligiu-se Wert, sacudindo a cabeça. — Abriu uma via.

— Aqueles negócios são demônios? — perguntou Duasflor.

— Ah, demônios — disse Wert. — Demônios seriam moleza comparados ao que está tentando vir por ali.

— São piores do que qualquer coisa que possamos imaginar — acrescentou Panter.

— Posso imaginar umas coisas bem feias — admitiu Rincewind.

— Estas são piores.

— Ah.

— E agora vão fazer o quê? — disse uma voz clara e lúcida, logo atrás.

Todos se viraram. Bethan olhava para eles, com os braços cruzados.

— O quê? — perguntou Wert.

— Vocês são magos, não são? — argumentou a moça. – Pois bem, vão lá.

— O quê, enfrentar aquilo? — alarmou-se Rincewind.

— Sabe de mais alguém que possa fazer isso?

Wert deu um passo à frente.

— Senhorita, acho que não entendeu muito bem...

— O Calabouço das Dimensões vai desaguar no nosso universo, certo? — cortou Bethan.

— Bom, é...

— Todos vamos ser devorados por criaturas que têm tentáculos no lugar da cabeça, certo?

— Antes fosse algo assim tão simples...

— E vocês vão simplesmente deixar isso acontecer?

— Escute aqui — interveio Rincewind. — Acabou, entendeu? Não se pode devolver os feitiços ao livro. Não se pode desdizer o que foi dito, não se pode...

— Vocês podem tentar!

Rincewind deu um suspiro e se virou para Duasflor.

O rapaz não estava ali. Os olhos do mago voltaram-se para a base da Torre de Arte bem a tempo de ver o vulto rechonchudo do turista — segurando uma espada de maneira bisonha — desaparecer na porta.

Os pés de Rincewind tomaram uma decisão que — do ponto de vista da cabeça — não era a certa.

Os outros magos observaram enquanto ele se afastava.

— E aí? — insistiu Bethan. — Ele está indo.

Os magos tentaram evitar os olhares uns dos outros. Por fim, Wert disse:

— Acho que podíamos tentar. Não parece estar se espalhando.

— Mas quase não nos sobrou mágica — retrucou um deles.

— Tem alguma idéia melhor?

Um a um, os magos se viraram e se arrastaram em direção à torre, com os mantos rituais brilhando sob a luz estranha.

A torre era oca, com os degraus de pedra da escada em caracol junto à parede. Duasflor já se encontrava a algumas voltas do solo quando Rincewind o alcançou.

— Espere aí — pediu ele, com o máximo de alegria que conseguiu dissimular. — Isso é trabalho para homens como Cohen, não você. Não leve a mal.

— Ele daria jeito?

Rincewind olhou a irradiação luminosa se infiltrado pelo buraco distante no alto da escada.

— Não — admitiu.

— Pois é, vou ser tão eficiente quanto ele — concluiu Duasflor, brandindo a espada roubada.

Rincewind correu atrás do amigo, mantendo-se o mais perto possível da parede.

— Você não está entendendo! — gritou o mago. — Lá em cima tem horrores inimagináveis!

— Você sempre falou que não tenho imaginação.

— É verdade — admitiu Rincewind. — Mas...

Duasflor se sentou.

— Olhe — disse ele. — Desde que cheguei aqui, espero por uma ocasião dessas. Quer dizer, é aventura, não é? Sozinho contra os deuses, esse tipo de coisa.

Rincewind abriu e fechou a boca algumas vezes antes de as palavras certas conseguirem sair.

— Sabe manejar a espada? — perguntou afinal, sem forças.

— Não sei. Nunca tentei.

— Você é maluco!

Duasflor olhou para ele com a cabeça inclinada.

— Olha quem fala — disse ele. — Estou aqui porque não sei no que estou me metendo. Você está aqui por quê?

O rapaz apontou para baixo, em direção aos outros magos, que subiam penosamente a escada.

— E eles?

Uma luz azul atravessou o interior da torre. Ouviu-se um trovão.

Os magos alcançaram os dois homens, tossindo terrivelmente e debatendo-se para respirar.

— Qual é o plano? — perguntou Rincewind.

— Não tem plano — respondeu Wert.

— Certo. Ótimo — disse Rincewind. — Vou embora para que possam dar prosseguimento...

— Você vem conosco — ordenou Panter.

— Mas não sou nem mago de verdade — considerou Rincewind. — Vocês me expulsaram, lembra?

— Não consigo pensar em nenhum aluno mais incompetente — admitiu o velho mago. — Mas você está aqui, e esse é o único requisito necessário. Vamos.

A luz bruxuleou e se apagou. Os sons terríveis cessaram como se tivessem sido abafados.

O silêncio tomou conta da torre. Um daqueles silêncios pesados, carregados...

— Parou — disse Duasflor.

Alguma coisa se mexeu no círculo de céu vermelho. Depois caiu devagar, virando-se no ar e se deixando bater de um lado para o outro. Por fim, tombou na escada, uma volta acima deles.

Rincewind foi o primeiro a ver do que se tratava.

Era o Oitavo. Mas estava ali no chão inerte e inanimado como qualquer outro livro, com as páginas ondulando ao sabor da brisa que soprava na torre.

Duasflor chegou arfante atrás de Rincewind e olhou para baixo.

— Está em branco — murmurou o turista. — As páginas estão completamente em branco.

— Ele conseguiu — constatou Wert. — Leu os feitiços. Com sucesso. Não acredito.

— Mas teve toda aquela barulheira — protestou Rincewind. — As luzes. Os vultos. Não me pareceu tão bem-sucedido assim.

— Ah, qualquer grande obra de magia sempre chama muita atenção extradimensional — rebateu Panter. — Impressiona as pessoas, só isso.

— Pareciam monstros lá em cima — sussurrou Duasflor, aproximando-se de Rincewind.

— Monstros? Mostre-me os monstros! — gritou Wert.

Instintivamente, todos olharam para cima. Não havia nenhum som. Nada se movia no círculo de luz.

— Acho que deveríamos subir e, hã, parabenizá-lo – propôs Wert.

— Parabenizá-lo? — explodiu Rincewind. — Ele roubou o Oitavo! Prendeu vocês!

Os magos se entreolharam, com ar de superioridade.

— É, bem — disse um deles. — Meu jovem, quando estiver mais adiantado no ofício, vai entender que existem momentos em que o importante é alcançar o sucesso.

— O que importa é chegar lá — acrescentou Wert, com rispidez. — Não são os meios usados.

Os feiticeiros dispararam pela escada em espiral. Rincewind se sentou, franzindo a testa na escuridão. Logo sentiu um toque de mão no ombro. Era Duasflor, que também segurava o Oitavo.

— Isso lá é maneira de se tratar um livro? — resmungou o rapaz. — Olhe só como ele dobrou a lombada. Sempre fazem isso. As pessoas não sabem como tratar os livros.

— É — respondeu Rincewind, distraído.

— Não se preocupe — disse Duasflor.

— Eu não estou preocupado, só estou com raiva — rebateu Rincewind. — Agora me dê essa droga!

Ele apanhou o livro e abriu-o com violência. Vasculhou o escuro de sua mente, onde o Feitiço estava.

— Tudo bem — rosnou ele. — Você já se divertiu bastante e destruiu minha vida. Agora volte para o seu lugar!

— Mas eu... — objetou Duasflor.

— O Feitiço, estou falando com o Feitiço — explicou Rincewind. — Vamos, volte para a página!

O mago cravou os olhos no antigo pergaminho até ficar vesgo.

— Então vou dizê-lo! — gritou ele, com a voz ecoando pela torre. — Assim pode se juntar aos outros e fazer bom proveito!

Ele empurrou o livro outra vez para os braços de Duasflor e seguiu cambaleante escada acima.

Os magos já tinham alcançado o topo e desaparecido. Rincewind subiu atrás deles.

— "Meu jovem", é? — murmurou. — Quando eu estiver mais "adiantado no ofício", é? Consegui passar anos com um dos Grandes Feitiços na cabeça sem ficar completamente louco, não consegui?

Ele considerou a pergunta de todos os ângulos.

— Conseguiu, sim — assegurou a si mesmo. — Você não resolveu falar com árvores, mesmo quando árvores começaram a falar com você.

A cabeça de Rincewind emergiu no ar quente do cume da torre.

O mago esperava ver pedras enegrecidas pelo fogo e riscadas com marcas de garras, ou talvez algo ainda pior.

Em vez disso, viu os sete magos sêniores parados ao lado de Trymon — que parecia totalmente ileso. O homem se virou e sorriu com simpatia para ele.

— Ah, Rincewind. Junte-se a nós.

Então é isso, pensou Rincewind. Todo aquele fuzuê para nada. Talvez eu realmente não tenha nascido para ser mago, talvez...

Ele olhou para Trymon.

Talvez fosse o Feitiço que lhe tivesse afetado os olhos, nos muitos anos que vivia dentro de sua cabeça. Ou talvez o tempo que havia passado com Duasflor — que só via o mundo como deveria ser — ensinara- o a ver o mundo como de fato era.

O certo é que a coisa mais difícil que Rincewind teve que fazer em toda sua vida foi olhar para Trymon e não sair correndo ou ficar terrivelmente enjoado.

Os outros não pareciam ter notado.

E também pareciam estar muito parados.

Trymon tentara guardar os sete feitiços na mente, e ela tinha se rompido — o Calabouço das Dimensões achou a brecha de que precisava. Bobagem imaginar que as Coisas teriam surgido marchando de uma espécie de fenda no céu, acenando mandíbulas e tentáculos. Seria antiquado e arriscado demais. Mesmo criaturas nefandas aprendiam a acompanhar a mudança dos tempos. Tudo que precisavam para entrar era uma cabeça.

Agora os olhos de Trymon não passavam de buracos vazios.

A idéia atravessou a mente de Rincewind como uma lâmina de gelo. O Calabouço das Dimensões seria um playground comparado ao que as Coisas poderiam fazer num universo de ordem. As pessoas estão sempre ansiando pela ordem, e é o que receberiam: a ordem da repetição, a lei constante dos números e das linhas retas. Elas implorariam pela quebra...

Trymon estava olhando para ele. Alguma coisa estava olhando para ele. E, todavia, os outros não notaram. Será que Rincewind conseguiria ao menos explicar o que acontecia? Trymon parecia o mesmo de sempre, salvo pelos olhos e por certo brilho na pele.

Rincewind viu que existiam coisas bem piores que o Mal. Todos os demônios do inferno torturavam almas, mas precisamente porque tinham almas em grande estima. O Mal sempre tentaria roubar o universo, mas pelo menos considerava o universo digno de ser roubado. O mundo cinza atrás daqueles olhos vazios, porém, esmagaria e destruiria tudo, sem nem ao menos conceder às vítimas o decoro do ódio — sem nem mesmo notá-las.

Trymon estendeu a mão.

— O oitavo Feitiço — pediu ele. — Dê para mim.

Rincewind recuou.

— Rincewind, isso é desobediência. Afinal de contas, sou seu superior. Aliás, fui votado chefe supremo de todas as ordens.

— Sério? — perguntou Rincewind, com a voz rouca.

Ele olhou para os outros magos. Estavam todos imóveis como estátuas.

— Ah, é — respondeu Trymon, cheio de alegria. — E sem nenhuma pressão. Bastante democrático.

— Prefiro a tradição — rebateu Rincewind. — Assim até os mortos votam.

— Você vai me dar o Feitiço de bom grado — disse Trymon. — Será que tenho que mostrar o que vou fazer, caso contrário? E no fim vai acabar cedendo mesmo. Vai implorar pela oportunidade de entregá-lo.

Já chega, pensou Rincewind.

— Se quiser, vai ter que pegá-lo — desafiou ele. — Não vou dar nada.

— Eu me lembro de você — recordou Trymon. — Mau aluno. Não acreditava em magia. Ficava dizendo que deveria existir um jeito melhor de governar o universo. Bem, você vai ver. Tenho planos. Nós podemos...

— Nós, não — objetou Rincewind, com firmeza.

— Agora me dê o Feitiço!

— Tente pegar — disse Rincewind, afastando-se. — Acho que não consegue.

— Ah?

Rincewind pulou para o lado quando chamas octarinas irromperam dos dedos de Trymon e deixaram uma poça de rocha borbulhante nas pedras.

No fundo da mente, sentiu o Feitiço se escondendo — sentiu o medo do Feitiço. E tentou agarrá-lo nas cavernas silenciosas de sua cabeça.

O Feitiço recuou surpreso como o cachorro confrontado por uma ovelha enlouquecida. O mago foi atrás, avançando pelas partes desabitadas e também pelas áreas de calamidade pública do subconsciente, até encontrá-lo agachado atrás de um monte de lembranças condenadas. O Feitiço rosnava em desafio, mas Rincewind não se deixou abalar.

Então é assim?, gritou ele. Quando chega a hora de pôr as cartas na mesa, você se esconde? Está com medo?

O Feitiço respondeu, Que absurdo, você não pode acreditar nisso, eu sou um dos Oito Feitiços. Mas Rincewind avançou com raiva em direção a ele, gritando, Talvez, mas a verdade é que acredito sim. E é bom lembrar na cabeça de quem você está. Aqui, acredito no que bem quiser!

Rincewind saltou mais uma vez para o lado quando outro raio de fogo irrompeu na noite quente. Trymon sorriu e fez alguns movimentos complicados com a mão. A irradiação acertou Rincewind. Cada centímetro de sua pele pareceu estar sendo usado como uma bigorna. Ele se deixou cair de joelhos.

— Tem coisas bem piores — acentuou Trymon, com satisfação. — Posso fazer sua carne queimar sobre os ossos ou encher seu corpo de formigas. Tenho poder para...

— E eu tenho uma espada, sabia?

A voz era aguda e rebelde.

Rincewind levantou a cabeça. Através da névoa roxa da dor, viu Duasflor parado atrás de Trymon, empunhando a espada exatamente na posição errada.

Trymon riu e dobrou os dedos — por um instante, distraído.

Rincewind estava com raiva. Estava com raiva do Feitiço, do mundo, da injustiça de tudo, do fato de que não vinha dormindo bem e de que já não pensava de maneira lógica. Mas sobretudo estava com raiva de Trymon, parado ali cheio da magia que Rincewind sempre almejou e nunca conseguiu, e sem fazer nada digno dela.

Ele deu um pulo, acertando a barriga de Trymon com a cabeça e agitando os braços à volta em desespero. Duasflor foi empurrado para o lado quando os dois homens escorregaram pelas pedras.

Trymon resmungou, soltando a primeira sílaba de um feitiço, e o cotovelo de Rincewind lhe acertou o pescoço com violência. Uma rajada de magia aleatória chamuscou o cabelo de Rincewind.

O mago lutou como sempre havia lutado: sem técnica, perícia ou elegância, uma confusão geral. A estratégia era impedir que o adversário tivesse tempo suficiente para se dar conta de que não enfrentava um oponente forte — e quase sempre funcionava.

Estava funcionando agora, até porque Trymon passara tempo demais lendo manuscritos antigos, sem se dar ao trabalho de fazer exercícios físicos e tomar vitaminas. O chefe das ordens mágicas conseguiu desferir vários golpes — Rincewind estava com ódio demais para notá-los — mas só usava as mãos, enquanto Rincewind também recorria aos joelhos, pés e dentes.

Na verdade, ele estava vencendo.

Descobrir isso foi um choque.

Foi mais do que um choque quando, ao se ajoelhar sobre o peito de Trymon, batendo repetidamente na cabeça, o rosto do homem mudou. A pele tremia como algo visto através da bruma do ódio, e Trymon gritou:

— Socorro!

Por um instante, os olhos fitaram Rincewind com medo, dor e súplica. Já não eram olhos, mas coisas multifacetadas numa cabeça que só poderia ser chamada de cabeça esticando a definição ao limite. Tentáculos, garras e patas serrilhadas se abriram para arrancar a pouca carne do corpo de Rincewind.

Duasflor, a torre e o céu vermelho desapareceram. O tempo desacelerou e parou.

Rincewind mordeu com força um tentáculo que vinha tentando lhe extirpar a cabeça. Enquanto o negócio se desenrolava em aflição, o mago estendeu a mão e sentiu alguma coisa quente e esponjosa quebrar.

Elas estavam assistindo ao embate. O mago virou a cabeça e viu que agora se encontrava lutando no centro de uma enorme arena. Por todos os lados, fileiras e mais fileiras de criaturas o observavam — criaturas que pareciam ter nascido do cruzamento de pesadelos. De relance, viu coisas ainda piores atrás (sombras imensas que se estendiam até o céu nublado), e em seguida o monstro Trymon o atacou com um ferrão do tamanho de uma lança.

Rincewind se esquivou e girou com as duas mãos apertadas num punho único, acertando a coisa na barriga, ou possivelmente no tórax, com uma pancada que resultou no satisfatório esmagamento da carapaça.

Ele se atirou para frente, agora lutando por medo do que poderia acontecer se parasse. A arena fantasmagórica ressoava com o trinado pavoroso das Criaturas do Calabouço — um muro de ruídos confusos martelando seus ouvidos. O mago imaginou aquele som tomando conta do Discworld e desferiu soco após soco para salvar o mundo dos homens, para proteger o pequeno círculo de luz na noite escura do caos e para fechar a brecha por onde o pesadelo avançava. Mas bateu sobretudo para não apanhar.

Patas e garras traçavam linhas quentes em suas costas, e alguma coisa lhe mordeu o pescoço, mas ele achou uma série de canais macios entre pêlos e escamas, e apertou com força.

Um braço espinhoso o jogou para longe, e ele rolou no chão de areia preta.

Instintivamente, curvou-se como uma bola, mas nada aconteceu. Em vez do ataque violento que vinha esperando, abriu os olhos e viu a criatura se afastar, com vários líquidos vazando.

Era a primeira vez que alguma coisa fugia de Rincewind.

Ele pulou sobre ela, pegou uma das pernas escamosas e torceu. A criatura gemeu e, em desespero, agitou os membros que ainda funcionavam, mas a força com que Rincewind a agarrava era inabalável. Ele se levantou e desfechou um último golpe no olho que restava. A coisa gritou e saiu correndo. Mas só havia um lugar para onde correr.

A torre e o céu vermelho voltaram com o clique do tempo restaurado.

Tão logo sentiu a pressão da laje sob os pés, Rincewind jogou o peso do corpo para o lado e rolou com a criatura desnorteada à altura dos braços.

— Agora! — gritou ele.

— Agora o quê? — perguntou Duasflor. — Ah, sim. Certo!

O rapaz investiu a espada sem o menor jeito mas com certa força, errando Rincewind por alguns centímetros e enterrando a lâmina na Coisa. Ouviu-se um zumbido agudo, como se Duasflor tivesse esmagado uma casa de marimbondos. O emaranhado de patas, garras e tentáculos se agitou em aflição. O bicho rolou outra vez no chão, ganindo e se debatendo na laje, mas logo se debatia no ar — porque tinha caído do alto da escada, levando Rincewind junto.

Ouviram-se os ruídos de quando trombou com alguns degraus de pedra, um ganido distante se perdeu nas profundezas da torre.

Por fim, houve uma explosão fraca e um clarão de luz octarina.

Duasflor estava sozinho no alto da torre — sozinho, a bem dizer, apesar dos sete magos que ainda pareciam congelados no mesmo lugar.

O rapaz ficou abismado quando sete bolas de fogo subiram da escuridão e mergulharam no Oitavo, que de repente voltou a ser o que era, mas parecendo agora ainda mais interessante.

— Meu Deus! — exclamou ele. — Imagino que sejam os Feitiços.

— Duasflor...

A voz era abafada, ressonante e lembrava a de Rincewind. Duasflor se deteve, com a mão avançando em direção ao livro.

— Oi? — disse ele. — É... é você, Rincewind?

— Sou — respondeu a voz, soando no tom grave das sepulturas. — E tem uma coisa muito importante que quero que faça para mim.

O rapaz olhou à volta e se recompôs. Afinal de contas, o destino do Disco dependeria dele.

— Estou pronto — anunciou, com a voz vibrando de orgulho.

— O que quer que eu faça?

— Primeiro, quero que preste bastante atenção — continuou a voz desencorpada de Rincewind, pacientemente.

— Estou prestando.

— É muito importante que, quando eu falar o que tem que fazer, você não pergunte "Como assim?" nem discuta ou algo do tipo, entendeu?

Duasflor se manteve alerta. Pelo menos, sua mente se manteve alerta, o corpo não poderia. O rapaz projetou vários queixos para a frente.

— Estou pronto — disse afinal.

— Ótimo. O que quero que faça é...

— Sim?

A voz de Rincewind subia das profundezas da escada.

— Quero que venha me ajudar antes que eu escorregue desta pedra — disse ele.

O rapaz abriu a boca e tratou de fechá-la. Correu até o buraco e olhou para baixo. Sob a luz rosada da estrela, divisou os olhos de Rincewind voltados para cima.

Duasflor se deitou de bruços e estendeu o braço. A mão de Rincewind agarrou o pulso do turista com uma força que sugeria que, se ele, Rincewind, não fosse retirado dali, não haveria a menor chance de aquela força ceder.

— Fico feliz que esteja vivo — alegrou-se Duasflor.

— Ótimo. Eu também — disse Rincewind.

Por um momento, o mago apenas se manteve ali suspenso. Depois dos últimos acontecimentos, era quase agradável — mas só quase.

— Então me puxe — pediu ele.

— Acho que não vai ser muito fácil — gemeu Duasflor. – Na verdade, acho que não vou conseguir.

— No que está se segurando?

— Em você.

— Além de mim.

— Como assim, além de você? — perguntou Duasflor.

Rincewind disse uma palavra.

— Bem, olhe só — começou Duasflor. — A escada desce em espiral, certo? Se eu girar o seu corpo e você se soltar...

— Se está sugerindo que eu despenque seis metros numa torre escura na esperança de cair nuns degraus sujos que podem nem estar mais ali, esqueça — cortou Rincewind, ríspido.

— Tem uma alternativa.

— Fale.

— Pode despencar 150 metros na torre escura e cair sobre pedras que com certeza estarão lá — disse Duasflor.

De baixo, não veio nada além do silêncio. Rincewind falou acusadoramente:

— Isso é sarcasmo.

— Achei que fosse apenas o óbvio.

Rincewind resmungou.

— Você não poderia fazer um pouco de mágica...? – sugeriu Duasflor.

— Não.

— Foi só uma idéia.

Bem abaixo, houve um raio de luz e uma gritaria, depois mais raios de luz e mais gritaria. Uma fila de tochas avançava pela longa espiral.

— Tem umas pessoas subindo a escada — disse Duasflor, sempre ansioso por informar.

— Espero que estejam correndo — ressaltou Rincewind. – Não sinto mais o braço.

— Você tem sorte — notou Duasflor. — Eu sinto o meu.

A tocha que vinha na frente se deteve, e uma voz se fez ouvir, enchendo a torre de ecos indecifráveis.

— Eu acho — disse Duasflor, ciente de que escorregava por sobre o buraco — que pediram pra gente se segurar.

Rincewind disse outra palavra.

Depois, num tom mais baixo e urgente, falou:

— Para dizer a verdade, não agüento mais.

— Tente.

— Não adianta. Minha mão está escorregando!

Duasflor suspirou. Era hora de medidas drásticas.

— Tudo bem — considerou ele. — Caia. Não estou nem aí.

— O quê? — alarmou-se Rincewind, de tal modo perplexo que se esqueceu de cair.

— Vá em frente, morra. Escolha o caminho mais fácil.

— Fácil?

— Tudo o que tem a fazer é cair gritando até o chão e quebrar todos os ossos do corpo — argumentou Duasflor. — Qualquer um faz isso. Vá em frente. Eu detestaria achar que você talvez tivesse que ficar vivo, porque precisamos que diga o Feitiço e salve o Disco. Ah, não. O que importa se vamos todos morrer queimados? Vá em frente, pense apenas em si mesmo. Solte.

Houve um longo e embaraçoso silêncio.

— Eu não sei por quê — disse Rincewind, numa voz um tanto mais alta do que o necessário — , mas desde que conheci você parece que passei muito tempo pendurado em lugares altos e jogado à própria sorte, já percebeu?

— Morte — corrigiu Duasflor.

— Morte o quê? — perguntou Rincewind.

— À própria morte — respondeu Duasflor, tentando ignorar o lento mas inexorável deslizamento de seu corpo na laje. — Jogado à própria morte. Você não gosta de altura.

— Com altura, não me incomodo — garantiu Rincewind, a voz saindo da escuridão. — Não tenho problema com altura. O que está tomando toda minha atenção no momento são profundezas. Sabe o que vou fazer quando sairmos daqui?

— Não — respondeu Duasflor, metendo os dedos do pé numa fenda da laje e tentando se manter imóvel por mera força de vontade.

— Comprar uma casa no terreno mais plano que achar. Só vai ter o andar térreo, e não vou nem usar sandálias de sola grossa...

A primeira das tochas surgiu na última curva da espiral, e Duasflor pôde ver o rosto sorridente de Cohen. Atrás dele, ainda galgando estranhamente as pedras, vinha a Bagagem.

— Tudo bem? — perguntou Cohen. — Posso ajudar em alguma coisa?

Rincewind tomou ar.

Duasflor reconheceu os sinais. O mago estava prestes a dizer algo como, "Pode, eu estou com uma coceira danada na nuca, será que poderia coçar para mim, quando passar por aqui?" ou "Não, adoro ficar pendurado sobre o nada" e decidiu que não agüentaria mais aquilo. Tratou de falar depressa.

— Leve Rincewind para a escada — pediu ele.

Rincewind engoliu as palavras.

Cohen pegou o mago pela cintura e puxou-o sem a menor cerimônia para as pedras.

— Está uma lambança lá embaixo — comentou ele. – Quem era?

— Tinha...

Rincewind engoliu.

—     Tinha... sabe... tentáculos e coisas?

— Não — respondeu Cohen. — Só as partes normais. Um pouco espalhadas, é claro.

Rincewind olhou para Duasflor.

— Só um mago que deixou algumas coisas lhe subirem à cabeça — explicou afinal.

Vacilante e com os braços ardendo, Rincewind foi levado de volta ao topo da torre.

— Como chegou aqui? — perguntou ele.

Cohen apontou para a Bagagem, que já havia se aproximado de Duasflor e aberto a tampa como o cachorro que sabe estar errado e espera que uma rápida demonstração de carinho possa suspender o chinelo da autoridade.

— Turbulento mas rápido — admirou-se ele. — E lhe digo mais, ninguém tenta nos parar.

Rincewind olhou o céu. Havia muitas luas — imensos discos esburacados agora dez vezes maiores do que o minúsculo satélite do Disco. O mago as contemplou sem muito interesse. Estava exausto, frouxo como elástico velho.

Olhou para Duasflor, que estava tentando armar a caixa de retratos.

Cohen examinava os sete magos sêniores.

— Lugar estranho para botar estátua — considerou ele. — Ninguém pode ver. Mas também não têm muito valor. Olhe aqui, um serviço bem porco.

Rincewind foi até onde estavam e bateu com cuidado no peito de Wert. Pedra pura.

Chega, pensou ele. Só quero ir para casa.

Espere aí. Já estou em casa. Mais ou menos. Só quero dormir, talvez tudo esteja melhor de manhã.

Os olhos de Rincewind bateram no Oitavo, que emitia lampejos de chama octarina. Ah, sim, certo, pensou ele.

O mago pegou o volume e folheou as páginas. O papel era grosso e tinha manuscritos complexos que se transformavam à medida que eram lidos. O texto parecia estar indeciso sobre o que deveria ser: uma hora, era um traço comum e bem ordenado; no instante seguinte, uma série de runas angulosas. Então virava a escrita mágica e floreada dos kytianos; depois, pictogramas de algum idioma antigo, cruel e esquecido que parecia consistir exclusivamente em repugnantes seres reptilianos fazendo coisas complicadas e dolorosas uns com os outros...

A última página estava vazia. Rincewind suspirou e olhou para o fundo da mente. O Feitiço olhou de volta.

O mago havia sonhado muito com esse momento, em que finalmente despejaria o Feitiço, tomaria posse da própria cabeça e aprenderia todos aqueles encantamentos menores que sempre tiveram medo de ficar em sua mente. O mago ficou meio decepcionado, sempre tinha imaginado algo mais emocionante.

Esgotado e nada disposto a enfrentar discussão, apenas olhou friamente para o Feitiço e ergueu um polegar metafórico por sobre o ombro.

Você. Fora.

Por um momento, pareceu que o Feitiço iria discutir, mas mudou de idéia.

O mago sentiu um formigamento, viu uma luz azul atrás dos olhos e experimentou uma súbita sensação de vazio.

Quando olhou para a página do livro, estava cheia de palavras. Eram as runas novamente. Rincewind ficou satisfeito que assim fosse. Os desenhos reptilianos não só eram indizíveis como provavelmente impronunciáveis, e lembravam-no de coisas que teria grande dificuldade para esquecer.

Abismado, Rincewind contemplava o livro, enquanto Duasflor corria de um lado para o outro sem ser notado. Em vão, Cohen tentava arrancar os anéis dos magos de pedra.

Eu tinha que fazer alguma coisa, lembrou Rincewind a si próprio. O que era mesmo?

Abriu o livro na primeira página e começou a ler, com os lábios se mexendo e o indicador seguindo o contorno das letras. À medida que sussurrava as palavras, cada uma delas surgia silenciosamente no ar, em cores vivas que saíam flutuando ao sabor do vento noturno.

Ele virou a página.

Agora mais pessoas chegavam pela escada: pessoas da estrela, habitantes da cidade e até alguns membros da guarda pessoal do Patrício. Sem muito ânimo, algumas pessoas da estrela ensaiaram se aproximar de Rincewind — que se encontrava envolto num arco-íris de palavras e nem chegou a notá-las —, mas Cohen sacou a espada, olhando-as como se elas nem estivessem ali, e elas mudaram de idéia.

O silêncio fluía do vulto agachado de Rincewind como as ondulações de uma poça. Caiu como cascata da torre e se espalhou pela multidão abaixo, transbordou dos muros, correu pela cidade e cobriu terras afastadas.

A estrela pairava em silêncio sobre o Disco. À sua volta, as novas luas giravam lentamente, sem fazer nenhum barulho.

O único som era o sussurro enrouquecido de Rincewind, virando página após página.

— Não é emocionante? — entusiasmou-se Duasflor.

Cohen, que estava enrolando um cigarro com os restos do alcatrão de seus antepassados, olhou confuso para o rapaz, com o papel a caminho dos lábios.

— O que não é emocionante? — perguntou ele.

— Toda essa magia!

— São só luzes — disse Cohen. — Ele nem tirou pombos da manga.

— É, mas você não está sentindo o potencial encoberto? — indagou Duasflor.

Cohen tirou um grande fósforo amarelo de algum lugar da bolsa de tabaco, olhou para Wert e, depois de refletir bastante, acendeu o fósforo no nariz fossilizado.

— Olhe — disse afinal para Duasflor, com toda a gentileza que conseguiu manifestar. — Você espera o quê? Sou mais velho, já vi toda essa história de magia e posso lhe dizer que, se você sair por aí ficando de queixo caído toda hora, o queixo acaba não voltando pro lugar. De qualquer modo, os magos morrem como todo mundo se enfiamos uma...

Ouviu-se um estalido quando Rincewind fechou o livro. Ele olhou para cima. Depois, ao redor.

O que aconteceu em seguida foi:

Nada.

Levou um tempinho para as pessoas perceberem. Todos instintivamente se agacharam, esperando pela explosão de luz branca, por bolas de fogo cintilantes ou — no caso de Cohen, que tinha expectativas bem menores — por alguns pombos brancos, e possivelmente um coelho ligeiramente amarrotado.

Não foi nem um Nada interessante. Às vezes, as coisas deixam de acontecer de forma bem impressionante, mas, no que se referia a não-acontecimentos, aquele ali estava longe de ser um primor.

— Só isso? — perguntou Cohen.

Surgiu um burburinho na multidão, e várias pessoas da estrela olharam com raiva para Rincewind.

O mago voltou os olhos lacrimejantes na direção de Cohen.

— Acho que sim — respondeu ele.

— Mas não aconteceu nada.

Confuso, Rincewind fitou o Oitavo.

— Talvez seja um efeito sutil — sugeriu Rincewind, cheio de esperanças. — Afinal de contas, não sabemos exatamente o que tem que acontecer.

— A gente sabia! — gritou uma das pessoas da estrela. – A magia não funciona! É ilusão!

Uma pedra zuniu sobre o terraço e acertou o ombro de Rincewind.

— É — disse outra pessoa da estrela. — Vamos pegá-lo!

— Vamos jogá-lo da torre!

— É, vamos pegá-lo e jogá-lo da torre!

A multidão avançou. Duasflor ergueu as mãos.

— Tenho certeza de que tudo não passa de um mal-entendido... — começou ele, antes de lhe darem uma rasteira.

— Ah, droga — irritou-se Cohen, jogando o cigarro no chão e esmagando-o com a sandália.

O herói sacou a espada e procurou a Bagagem.

A arca não tinha saído correndo para prestar auxílio a Duasflor. Estava parada na frente de Rincewind, que segurava o Oitavo junto ao peito como uma garrafa de água quente. Parecia alucinado.

Um homem da estrela investiu contra ele. A Bagagem abriu a tampa, em ameaça.

— Sei por que não funcionou — disse uma voz saída do meio da multidão.

Era Bethan.

— Sabe, é? — disse o cidadão que se encontrava mais próximo.

— E por que deveríamos dar ouvidos a você?

Uma fração de segundo depois, a espada de Cohen estava em seu pescoço.

— Pensando bem — continuou o homem, sem alterar o tom de voz — talvez a gente deva prestar atenção ao que a jovem tem a dizer.

Enquanto Cohen abria caminho com a espada em punho, Bethan avançava na direção de Rincewind, apontando para as formas espiraladas dos feitiços, que ainda se encontravam suspensas no ar, em torno do mago.

— Aquele ali não pode estar certo — avaliou ela, indicando uma nódoa de marrom-escuro em meio às chamas de cores vivas e pulsantes. — Você deve ter errado a pronúncia de alguma palavra. Vamos dar uma olhada.

Sem dizer nada, Rincewind passou o Oitavo para a moça. Ela abriu o livro e examinou as páginas.

— Que alfabeto engraçado — admirou-se. — Fica mudando. O que o crocodilo está fazendo com o polvo?

Rincewind conferiu o desenho e, sem pensar, explicou a Bethan. Por um instante, houve silêncio.

— Ah — disse ela, depois de um tempo. — Não sabia que crocodilos faziam isso.

— É só uma pictografia antiga — tratou de explicar o mago. — Se você esperar, vai mudar. Os Feitiços aparecem em todos os idiomas.

—Você se lembra de onde estava quando a cor errada apareceu? Rincewind correu o dedo pela página.

— Acho que aqui. Onde o lagarto de duas cabeças está fazendo... o que quer que esteja fazendo.

Duasflor surgiu sobre o outro ombro de Bethan. O Feitiço virou uma escrita diferente.

— Não consigo nem pronunciar isso — reclamou a moça. — Traço, traço, ponto, travessão.

— São as runas nevadas de Cupumuguk — avisou Rincewind. — Acho que se pronuncia "xão".

— Não funcionou. Que tal "saum"?

Eles olharam a palavra. A cor continuava errada.

— Ou "zão"? — sugeriu Bethan.

— Pode ser "zau" — lembrou Rincewind, hesitante.

Não aconteceu nada além da cor ganhar um tom mais escuro de marrom.

— Que tal "zaul"? — propôs Duasflor.

— Não seja ridículo — disse Rincewind. — Com as runas nevadas, o...

Bethan cutucou a barriga do mago e apontou.

A forma amarronzada no céu era agora um vermelho reluzente.

O livro tremeu nas mãos dela. Rincewind tomou a moça pela cintura, agarrou Duasflor pelo colarinho e saltou para trás.

Bethan soltou o Oitavo, que deslizou para o chão. Mas não chegou a atingi-lo.

Em volta do Oitavo, o ar resplandecia. O livro se ergueu lentamente, agitando as páginas como se fossem asas.

Depois de um zunido sonoro e vibrante ele pareceu explodir numa silenciosa e complicada culminância de luz, que se estendeu, desbotou e sumiu.

Mas alguma coisa estava acontecendo no céu, bem acima...

Nas profundezas geológicas do enorme cérebro de Grande ATuin, pensamentos novos atravessaram condutos neurais do tamanho de rodovias. É impossível uma tartaruga celeste mudar de fisionomia, mas de algum inexplicável modo a cara escamosa e cheia de crateras pareceu mais esperançosa.

Ela olhou fixamente para as oito esferas que a orbitavam ininterruptas em torno da estrela, na grande praia do universo.

As esferas estavam rachando.

Pedaços enormes de rocha se partiram e começaram a cair na estrela. O céu se encheu de cacos brilhantes.

Da ruptura de uma das cascas ocas, uma pequena tartaruga celeste deu os primeiros passos em direção à luz vermelha. Não chegava a ser maior do que um asteróide. Na carapaça ainda reluziam uns restos de clara derretida.

Ali também havia quatro pequenos filhotes de elefante. Sobre o lombo deles repousava um discworld — por ora minúsculo — coberto de fumaça e vulcões.

Grande Atuin esperou até que as oito tartaruguinhas tivessem se libertado das cascas e já se encontrassem caminhando aturdidas no espaço. Com cuidado, para não desarranjar nada, a velha tartaruga se virou e deu início à longa jornada até as profundezas abençoadamente frias do espaço.

As tartaruguinhas seguiram, orbitando a genitora.

Duasflor assistia ao espetáculo extasiado.

Nesse momento lhe ocorreu um pensamento terrível.

— Onde está a caixa de retratos? — alarmou-se.

— O quê? — perguntou Rincewind, com os olhos fixos no céu.

— A caixa de retratos — disse Duasflor. — Tenho que tirar um retrato disso!

— Não podemos apenas nos lembrar? — sugeriu Bethan, sem olhar para ele.

— E se me esquecer?

— Não vou esquecer nunca — rebateu ela. — É a coisa mais linda que já vi.

— Muito melhor do que pombos e bolas de bilhar — concordou Cohen. — Tenho que admitir, Rincewind. Como se faz?

— Não sei — murmurou o mago.

— A estrela está ficando menor — avisou Bethan.

Distraído, Rincewind ouviu Duasflor discutindo com o demônio que morava na caixa e fazia os retratos. Era uma discussão bastante técnica sobre profundidade e a existência, ou não, de estoque suficiente de tinta vermelha.

Deve ser mencionado que Grande A Tuin estava muito feliz e satisfeita. Sentimentos desse tipo num cérebro do tamanho de várias cidades grandes estão destinados a se espalhar. De fato, nesse instante a maioria das pessoas do Disco se encontrava num estado de espírito que normalmente se alcança apenas depois de uma vida de meditação ou 30 segundos de uso de ervas ilegais.

Eis o bom e velho Duasflor, pensou Rincewind. Não é que não preze a beleza, apenas tem um modo particular de apreciá-la. Quer dizer, se o poeta vê uma hortênsia, contempla-a e escreve um longo poema a respeito. Duasflor sai para comprar um livro de botânica — pisando na flor. É o que Cohen disse. Basta o rapaz olhar as coisas, elas jamais voltarão a ser as mesmas. Inclusive eu, imagino.

O sol do Disco se ergueu. A estrela já vinha minguando e não se mostrava mais uma rival à altura. A boa e fiel luz do Disco se derramou pela paisagem encantada como um mar de ouro.

Ou, segundo observadores mais confiáveis, como calda de açúcar.

Esse é um final ótimo, dramático, mas a vida não funciona assim. Outras coisas tinham que acontecer.

Por exemplo, havia o Oitavo.

Quando a luz solar atingiu o livro, ele se fechou e veio caindo de volta ao terraço. Muitas das pessoas que assistiam à cena perceberam que o negócio despencando sobre elas era a coisa mais incrivelmente mágica do Discworld.

O sentimento de alegria e fraternidade evaporou junto com o orvalho da manhã. Rincewind e Duasflor se viram empurrados pela legião de indivíduos que avançava, engalfinhando-se e tentando subir uns nos outros, com as mãos esticadas.

O Oitavo caiu no meio da multidão inquieta. Houve um estalo — um estalo resoluto, o tipo de estalo feito por uma tampa que não pretende se abrir tão cedo.

Rincewind olhou para Duasflor por entre as pernas de alguém.

— Sabe o que acho que vai acontecer? — perguntou ele, sorrindo.

— O quê?

— Quando você abrir a Bagagem, só vai ter sua roupa limpa dentro.

— Ah, meu Deus.

— Acho que o Oitavo sabe cuidar de si mesmo. Na verdade, não tem lugar melhor para ele.

— Imagino que sim. Às vezes tenho a sensação de que a Bagagem sabe exatamente o que está fazendo.

— Entendo o que você quer dizer.

Os dois engatinharam até se verem livres da multidão em alvoroço, puseram-se de pé, tiraram o pó da roupa e se dirigiram à escada. Ninguém prestava atenção.

— O que estão fazendo agora? — perguntou Duasflor, tentando olhar por cima das muitas cabeças.

— Parece que estão tentando abrir a tampa — respondeu Rincewind.

Houve um estalo e um grito.

— Acho que a Bagagem gosta de toda essa atenção – disse Duasflor, quando já começavam a cautelosa descida.

— É, provavelmente faz bem a ela sair e conhecer gente — disse Rincewind. — E agora acho que nos faria bem sair e pedir duas bebidas.

— Boa idéia — considerou Duasflor. — Também vou pedir duas bebidas.

Era quase meio-dia quando Duasflor acordou. O rapaz não conseguia se lembrar por que estava num celeiro de feno ou por que vestia o casaco de outra pessoa, mas despertou com uma idéia fixa na mente.

E decidiu que era de vital importância contar a Rincewind.

Saltou do monte de feno e caiu sobre a Bagagem.

— Ah, você está aí — disse ele. — Devia ter vergonha.

A Bagagem parecia confusa.

— Enfim, quero pentear o cabelo. Abra — ordenou Duasflor.

Em obediência, a Bagagem moveu a tampa. Duasflor remexeu em sacos e caixas até achar o pente e o espelho e reparar os estragos da noite. Depois cravou os olhos na Bagagem.

— Você não quer me dizer o que fez com o Oitavo?

A expressão da Bagagem só poderia ser descrita como "cara-de-pau".

— Tudo bem. Vamos.

Duasflor saiu à luz do sol, que brilhava clara demais para seu gosto e seu estado. Foi caminhando ao acaso pela rua. Tudo parecia novo e diferente — até os odores. Muito pouca gente estava acordada. Fora uma noite longa.

Ele encontrou Rincewind na base da Torre de Arte, supervisionando uma equipe de trabalhadores que havia improvisado uma grua no telhado e vinha baixando os magos de pedra até o chão. Parecia que o principal ajudante de Rincewind era um macaco, mas Duasflor já não se espantava com nada.

— Vão voltar a ser o que eram? — perguntou ele.

Rincewind olhou para trás.

— O quê? Ah, é você. Não, provavelmente não. Seja como for, deixaram o coitado do Wert cair. São 150 metros até o chão.

— E você vai poder fazer alguma coisa a respeito?

— Um bom jardim de pedras.

Rincewind se virou e acenou para os trabalhadores.

— Você está bem animado — notou Duasflor, com um leve tom de censura. — Não dormiu?

— É engraçado, não consegui — respondeu Rincewind. – Saí para tomar um pouco de ar fresco e descobri que ninguém tinha a menor idéia do que fazer. Meio que fui juntando as pessoas...

Ele apontou para o bibliotecário, o macaco, que tentou pegar sua mão.

— ... e comecei a organizar as coisas. Está um dia lindo, não está? O ar parece vinho.

Rincewind, tomei uma decisão...

— Sabe, acho que vou me matricular de novo – anunciou Rincewind, cheio de satisfação. — Desta vez, sinto que posso me dar realmente bem. Consigo me ver aprendendo magia e me formando com louvor. E dizem que, se for assim, as portas se abrem...

— Ótimo, porque...

— Tem também muitas boas vagas e, agora que os figurões vão estar servindo de encosto de porta, e...

— Vou para casa.

— ... o sujeito que é esperto e tem um pouco de experiência pode... O quê?

— Oook?

— Disse que vou para casa — repetiu Duasflor, educadamente afastando o bibliotecário, que tentava tirar piolhos da sua cabeça.

— Que casa? — perguntou Rincewind, atônito.

— Casa casa. Minha casa. Onde moro — explicou Duasflor, com timidez. — Do outro lado do oceano. Sabe. De onde vim. Por favor, pare de fazer isso.

— Ah.

— Oook.

Houve uma pausa. Duasflor disse:

— Ontem à noite me ocorreu... pensei que, hã, tudo isso de viajar e conhecer lugares é muito bom. Mas também existe muito prazer em ter estado. Sabe, botar os retratos no álbum e se lembrar das coisas.

— Existe?

— Oook?

— Ah, existe. O importante de ter um monte de coisas para lembrar é depois ir a algum lugar onde podemos nos lembrar delas, entende? Precisamos parar. Até voltar para casa, não estivemos em lugar nenhum. Acho que é isso que estou tentando dizer.

Rincewind considerou a frase. Não fazia muito sentido. — Ah — soltou afinal. — Tudo bem. Se é assim que você pensa. E quando é que vai?

— Acho que hoje. Deve ter algum navio que faça parte do caminho.

— Espero que sim — disse Rincewind, sem muito jeito.

O mago olhou para os pés. Olhou para o céu. Pigarreou.

— Passamos uns bons bocados juntos, não foi? – lembrou Duasflor, cutucando-o na altura das costelas.

— Foi — respondeu Rincewind, torcendo o rosto numa espécie de sorriso.

— Você não está triste, está?

— Quem, eu? — reagiu Rincewind. — De jeito nenhum. Tenho 1 milhão de coisas para fazer.

— Então está tudo bem. Escute, vamos tomar café-da-manhã e depois podemos ir ao cais.

Desolado, Rincewind assentiu e se virou para o assistente, tirando uma banana do bolso.

— Você já entendeu o que fazer, agora pode tomar conta de tudo — murmurou ele.

— Oook.

Na realidade, não havia nenhum navio com destino a algum lugar próximo ao Império Agateano, mas a situação não tardou a mudar, porque bastou Duasflor passar moedas de ouro para a mão do primeiro capitão com navio limpo o bastante, para o homem de repente descobrir que precisava mesmo fazer uma mudança de rota.

Rincewind aguardou no cais até Duasflor terminar de pagar ao homem cerca de 40 vezes o valor do navio.

— Já está tudo acertado — anunciou Duasflor. — Ele vai me deixar nas Ilhas Morenas. De lá, é fácil arranjar outro navio.

— Ótimo — disse Rincewind.

Duasflor ficou pensativo por um momento. Depois abriu a Bagagem e tirou um saco de ouro.

— Viu Cohen e Bethan? — perguntou ele.

— Acho que saíram para casar — respondeu Rincewind. – Ouvi Bethan dizer que era agora ou nunca.

— Bom, quando os vir, dê isso a eles — pediu Duasflor, entregando o saco. — Sei que fica muito caro construir casa e tal.

Duasflor jamais entendeu direito o abismo na taxa de câmbio. Com o saco de ouro, Cohen poderia facilmente construir um pequeno reino.

— Assim que puder, entrego a eles — garantiu o mago e, para sua surpresa, percebeu que falava a verdade.

— Ótimo. Também pensei em lhe dar algo.

— Ah, não precisa se...

Duasflor vasculhou a Bagagem e retirou um saco grande. Começou a enchê-lo com todas as roupas, dinheiro e por fim a caixa de retratos, até que a Bagagem se encontrasse vazia. A última coisa que botou no saco foi a caixinha musical para cigarros com tampa incrustada de conchas, cuidadosamente envolta em papel macio.

— É toda sua — disse ele, fechando a tampa da Bagagem. — Não vou mais precisar e, de qualquer maneira, não caberia no meu armário.

— O quê?

— Você não quer?

— Bom, eu... claro, mas... é sua. Ela segue você, e não a mim.

— Bagagem — chamou Duasflor. — Este é Rincewind. Você é dele, está bem?

Muito devagar, a Bagagem esticou as pernas e se virou para Rincewind.

— Na verdade, acho que ela só pertence a si mesma — argumentou Duasflor.

— É — respondeu Rincewind, hesitante.

— Bom, é isso — falou Duasflor.

Ele estendeu a mão.

— Tchau, Rincewind. Mando um cartão-postal quando chegar em casa. Ou alguma outra coisa.

— Certo. Se passar por aqui algum dia, pergunte por mim.

Alguém por aí deverá saber onde moro.

— É. Bom. Então é isso.

— É isso, exatamente.

— Certo.

— Isso.

Duasflor subiu pela prancha de embarque, e a tripulação impaciente tratou de puxá-la depressa.

Ouviu-se um barulho. O navio foi vagarosamente impelido para as águas do Ankh — agora de volta ao nível antigo —, dali se deixou levar pela correnteza e embicou na direção do mar aberto.

Rincewind ficou observando a embarcação até que não passasse de um pontinho. Voltou os olhos para a Bagagem. A arca olhou de volta.

— Olhe aqui — disse ele. — Vá embora. Estou dando você a você mesma, entendeu?

O mago se virou e saiu andando. Depois de alguns segundos, ouviu passos atrás e se virou novamente.

— Já falei que não quero ficar com você! — gritou ele. E deu um chute na madeira.

A Bagagem bambeou. Rincewind seguiu adiante.

Alguns metros adiante, o mago parou e aguçou os ouvidos. Não escutou nada. Quando se virou, a Bagagem estava no mesmo lugar em que a havia deixado. Parecia um pouco encolhida. Rincewind pensou um pouco.

— Tudo bem — disse afinal. — Vamos.

Ele se virou e partiu para a universidade. Passados alguns minutos, a Bagagem pareceu chegar a uma conclusão. Esticou as perninhas outra vez e o seguiu. Não entendia que tinha muitas alternativas.

Os dois avançaram pelo cais até a cidade, dois pontinhos numa paisagem a diminuir de tamanho. Conforme a perspectiva se alargava, incluía um minúsculo navio avançando no mar verde, que então não passava de um trecho do luminoso oceano circular de um Disco trançado de nuvens e assentado no lombo de quatro elefantes gigantescos que, por sua vez, sustentavam-se sobre a carapaça de uma enorme tartaruga.

Que logo virou um lampejo entre as estrelas — e sumiu.

 

                                                                                Terry Pratchett  

 

 

                      

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