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Fazia frio no castelo, e a mulher que estava à janela olhando dos topos nevados das montanhas para o mosteiro lá embaixo pensou, com saudade, no conforto de sua casa na Piazza Pizzo di Merlo, a noventa e seis quilómetros de Roma.
No entanto, estava contente por estar ali, porque Roderigo queria que o filho deles nascesse em seu castelo na montanha; e ela não podia sentir outra coisa que não prazer por ele se importar tanto assim.
A mulher deu as costas para a majestosa vista e correu os olhos pelo quarto. A cama estava convidativa, porque as dores estavam ficando mais frequentes. Ela esperava que fosse um menino, já que Roderigo poderia fazer muito mais por um menino do que por uma menina.
Ela já dera a ele três belos meninos, e ele era louco por eles, em especial, acreditava ela, por César e Giovanni; mas isso porque Pedro Luís, o mais velho, tinha sido mandado para o exterior. Era triste perdê-lo, mas o futuro que ele teria era maravilhoso: educação na corte espanhola, onde iria receber o ducado de Gandia. E haveria oportunidades igualmente valiosas para os outros - para César, para Giovanni e para o filho que ainda não nascera.
As damas estavam andando de um lado para o outro por perto dela. A senhora devia deitar-se, aconselhavam, porque não havia dúvida de que a criança nasceria em breve.
Ela sorriu, limpando o suor da testa, e permitiu que elas a ajudassem a ir para a cama. Uma delas tocou-lhe a testa com unguento de perfume doce, que era frio e refrescante; uma outra levou-lhe aos lábios uma taça de vinho. Aquelas mulheres estavam ansiosas por servirem Vannozza Catanei, porque ela era adorada por Roderigo Bórgia, um dos maiores cardeais de Roma.
Era uma mulher de sorte por ter-se tornado tão cara a ele, porque ele era um homem que precisava de muitas amantes; mas ela era a principal, o que por si só era como que um milagre, já que ela não era mais jovem. Quando uma mulher estava com trinta e oito anos, precisava ser mesmo atraente para manter a atenção de um homem como o cardeal Roderigo Bórgia. No entanto, ela conseguira; e se havia momentos em que se perguntava se ele ia mais para ver os filhos e não para fazer amor com ela, o que importava? Filhos como Pedro Luís, César e Giovanni podiam estabelecer um vínculo mais forte do que a paixão; e se, no futuro, houvesse mulheres mais jovens e mais bonitas para cativá-lo, ela ainda seria aquela que lhe dera os filhos favoritos.
Por isso, ela ficaria contente - quando as dores acabassem e a criança nascesse; estava certa de que o bebé seria saudável e bonito; todos os seus filhos o eram. Todos tinham herdado sua beleza loura, e ela esperava que o novo filho também a herdasse, pois aquilo deixava o pai encantado. De modo que ela devia sentir-se satisfeita por ele ter insistido para levá-la para o castelo dele em Subiaco, muito embora a viagem tivesse sido longa e enfadonha e o vento fosse violento nos Apeninos. Ele queria que ela tivesse o filho no seu palácio, e queria estar perto dela quando ele nascesse. Isso teria sido menos simples de realizar em Roma, porque no final das contas Roderigo era um homem da Igreja, que jurara o celibato, e ali na fortaleza das montanhas do castelo de Subiaco ele poderia dar vazas à sua alegria com maior tranquilidade. Assim, ela se acalmaria enquanto esperava, pensando em sua bela casa na Piazza Pizzo di Merlo, na qual, devido à generosidade de Roderigo, vivia com muito conforto. Ela adorava o bairro da Ponte, onde sempre aconteciam tantas coisas. Era um dos bairros mais populares da cidade, e havia comerciantes e banqueiros em abundância. Era frequentado pelos mais notórios e prósperos cortesãos e dominado pela nobre família Orsini, que tinha seu palácio no Monte Giordano e cujo castelo, o Torre di None, fazia parte do muro da cidade.
Não que Vannozza se considerasse uma cortesã. Era fiel a Roderigo e considerava-o seu marido, embora, é claro, soubesse que ele, por ser um cardeal, não podia casar-se, e que se tivesse podido fazê-lo teria de procurar uma esposa numa camada diferente da sociedade.
Mas se Roderigo não podia casar-se com ela, vinha sendo tão atencioso quanto qualquer marido. Roderigo, pensou Vannozza, era sem dúvida alguma o homem mais charmoso de Roma. Ela não acreditava que fosse a única a pensar assim, embora um homem como Roderigo devesse ter seus inimigos. Ele nascera para ser um homem distinto; seus olhos estavam fixos em um certo objetivo, o papado, e quem conhecia bem Roderigo achava que ele tinha uma excelente oportunidade de realizar sua ambição. Ninguém devia deixar-se enganar por aqueles modos graciosos, aquela voz encantadoramente musical, aquela cortesia atraente; eles faziam parte de Roderigo, era verdade, mas por baixo do encanto estava uma ambição abrasadora que certamente iria levá-lo até o ponto que ele pretendia.
Roderigo era um homem que Vannozza podia adorar, porque tinha todas as qualidades que ela mais admirava. Portanto, agora rezava aos santos e à Virgem para que a criança que estava para ter tivesse charme e beleza (porque Roderigo, possuindo tanto o primeiro, era muito suscetível à segunda) e que se ela, uma matrona de trinta e oito anos, não conseguisse provocar o desejo sexual dele, pudesse continuar a desfrutar da sua gratidão pelos filhos que lhe dera.
Por quanto tempo os filhos seriam mantidos sob o seu teto? Não muito, imaginava ela. Eles iriam partir, como Pedro Luís partira. Roderigo tinha belos planos para os meninos; e Vannozza, por mais adorada pelo cardeal que fosse, tinha uma posição social inferior em Roma.
Mas ele iria lembrar-se de que uma parte dela vivia naqueles filhos e ela continuaria na sua encantadora casa, a casa que ele lhe dera. Era o tipo de casa que os nobres de Roma tinham, e Vannozza se encantava com ela. Gostava de ficar sentada na sala, cujas paredes caiadas ela decorara com tapeçarias e alguns quadros; porque quisera fazer sua casa tão luxuosa quanto as das grandes famílias - os Orsini e os Colonna. Seu amante era generoso e lhe dera muitos presentes; além de suas tapeçarias e quadros, ela possuía jóias, uma bela mobília, ornamentos de pórfiro e mármore, e - o mais adorado de todos - sua credenza, aquela enorme cómoda onde guardava sua majólica e suas taças e copos de ouro e prata. A credenza era um sinal de posição social, e os olhos de Vannozza brilhavam toda vez que ela olhava para a sua. Ela andava pela bela casa, tocando seus belos bens e dizendo para si mesma, na calma frieza de que desfrutava por trás das grossas paredes, que tinha sido realmente uma mulher de sorte quando Roderigo Bórgia entrara em sua vida e a achara atraente.
Vannozza não era boba, e sabia que as preciosidades que Roderigo lhe dera eram, segundo ele, nada em comparação com as que ela dera a ele.
Agora a dor a estava apertando outra vez, mais insistente, quase que continuadamente. A criança estava ansiosa por nascer.
Em uma outra ala de seu castelo de Subiaco, o grande cardeal também aguardava. Seus aposentos ficavam longe dos de sua amante, porque ele não queria ficar triste com o som dos gritos dela; não queria pensar no sofrimento de Vannozza; queria pensar nela como ela sempre se esforçara muito para ser em sua presença - bela, despreocupada e cheia de vitalidade, tal como ele também. No parto, Vannozza poderia não ficar assim, e ele preferia lembrar-se dela daquela maneira, já que era um homem que odiava ficar contrafeito; e Vannozza sofrendo iria fazer com que ficasse.
Portanto, era melhor isolar-se dela, esperar com paciência até que recebesse a mensagem de que a criança tinha nascido.
Afastara-se do santuário diante do qual estivera ajoelhado. A lâmpada que ardia constantemente diante das imagens e retratos dos santos tinha iluminado o rosto sereno da Madona, e ele imaginara ter visto ali uma expressão de recriminação. Será que ele, um dos mais poderosos cardeais, devia estar rezando pelo nascimento seguro de um filho que ele não tinha o direito de ter gerado? Poderia ele esperar que a Madona lhe desse um filho - um menino bonito e saudável - quando, como filho da Igreja, jurara o celibato?
Era um pensamento incómodo, e, como Roderigo sempre se afastava depressa desse tipo de pensamento, ele permitiu-se esquecer o santuário e olhou, em vez disso, para o emblema do touro pastando que adornava as paredes e que nunca deixava de inspirá-lo. Era o emblema dos Bórgia e um dia, assim decidira Roderigo, seria o símbolo mais temido e respeitado da Itália.
Ah, sim, era reconfortante contemplar o touro - aquela criatura forte, pastando em paz e, no entanto, indicando tanta coisa que era violenta e forte. Um dia, pensava o cardeal, o brasão dos Bórgia iria ser exibido por toda a Itália, porque o sonho de Roderigo era que um dia a Itália inteira viesse a ser unida, e unida sob o governo de um Bórgia. Um outro papa Bórgia! Por que não? O Vaticano era o centro do mundo católico; era evidente que o Vaticano deveria unir um país dividido, porque na unidade estava a força, e quem mais indicado para governar uma Itália unida do que o papa? Mas ele ainda não era papa, e tinha seus inimigos, que iriam fazer todo o possível para impedir que ele chegasse àquela alta eminência. Pouco importava. Ele realizaria sua ambição, assim como seu tio Alfonso realizara a dele quando se tornara o papa Calisto iII.
Calisto tinha sido inteligente; soubera que a força de uma família estava em seus membros jovens. Era por isso que Calisto adotara Roderigo e seu irmão Pedro Luís (em homenagem a ele Roderigo batizara o filho mais velho de fonnozza), era por isso que os tornara ricos e fizera deles homens poderosos no país.
Roderigo sorriu com complacência; não precisava adotar filhos; tinha seus filhos e filhas. As filhas eram úteis quando se tratava de fazer casamentos que unissem famílias eminentes aos Bórgia; mas os filhos eram aquilo de que um homem ambicioso precisava e, louvados fossem os santos, eram o que ele tinha, e seria eternamente grato à mulher que agora estava dando à luz naquele mesmo castelo por tê-los gerado. Pedro Luís na Espanha iria garantir a benevolência daquele país para com seu pai; o arrojado e jovem Giovanni - para ele, Roderigo tinha os planos mais ambiciosos, porque o mais adorado de seus filhos deveria comandar os exércitos dos Bórgia; e César, que ousado e jovem velhaco (Roderigo sorriu de prazer ao pensar no arrogante filhinho), era evidente que deveria entrar para a Igreja, porque, se os Bórgia quisessem obter tudo o que Roderigo planejara para eles, um deles deveria ter influência no Vaticano. Por isso, o pequeno César estava destinado a seguir o pai em direção ao Trono Papal.
Roderigo deu de ombros e sorriu levemente para si mesmo. Ainda tinha que atingir aquela posição; mas atingiria; estava decidido. O sorriso delicado desaparecera e por alguns instantes fora possível ver o homem de ferro por trás da aparência agradável.
Ele progredira muito, e nunca recuaria; preferiria a morte. Estava tão certo de que um dia subiria ao trono papal quanto estava certo de que uma criança estava nascendo no seu castelo de Subiaco.
Nada... nada deveria ficar em seu caminho, porque só como papa poderia dar aos filhos as honrarias que lhes possibilitariam trabalhar em prol daquele grande destino que seria o dos Bórgia.
E a nova criança? "Um menino", rezava ele. "Santa Madre, que seja um menino. Tenho três belos filhos, meninos saudáveis, mais um seria ótimo!"
Ele estava que era só delicadeza novamente, pensando na ala infantil na casa da Piazza Pizzo di Merlo. Como aqueles pequeninos ficavam encantados com as visitas do tio Roderigo! No momento, era necessário que eles o considerassem um "tio"; seria inconcebível que ele - um sacro cardeal fosse chamado de papai. "Tio" era bom, por enquanto; um dia aqueles garotinhos iriam saber o que eram na realidade. Ele esperava ansioso pelo prazer de contar a eles. (Roderigo gostava de dar prazer àqueles que amava, e se houvesse algum serviço desagradável a fazer, ele preferia que outros o fizessem.) Que destino glorioso os aguardava porque ele, o ilustre cardeal, não era apenas o tio, mas o pai deles! Como os olhos de César - aquela criaturinha arrogante e deliciosa - iriam faiscar! Como Giovanni - o querido e adorado Giovanni iria andar com ar empertigado! E o novo filho... ele também teria a sua quota de honrarias.
O que estariam eles fazendo naquele momento? Discutindo com a ama-seca, muito provavelmente. Ele imaginava as ameaças de César, a rabugice de Giovanni. Os dois transbordavam vitalidade - herdada de Vannozza e também do pai, e cada um sabia como conseguir o que desejava. Eles levariam vantagem sobre vinte amas-secas
- que era o que ele devia esperar. Eram os filhos de Roderigo Bórgia, e quando foi que ele não conseguiu o que queria com as mulheres?
Agora estava pensando no passado, nas centenas de mulheres que o haviam satisfeito. Quando entrara para a Igreja, ficara consternado porque esperavam que ele adotasse o celibato. Ele agora ria daquela ingenuidade. Não levara muito tempo para descobrir que os cardeais, e mesmo os papas, tinham suas amantes. Não se esperava que levassem uma vida de celibato, só que aparentassem levá-la, o que era inteiramente diferente. Não continência, mas discrição, era tudo o que se pedia.
Era um momento solene aquele em que uma nova vida estava prestes a começar; era ainda mais solene pensar que, não fosse um ato seu, aquela criança não estaria se preparando para chegar ao mundo.
Sentou-se e, mantendo os olhos no touro que pastava, relembrou os incidentes de sua vida que tinham sido do maior significado para ele. Talvez um dos primeiros e, por isso, o mais importante porque, se não tivesse acontecido, tudo aquilo que se seguira não teria sido possível, fora quando seu tio Calisto iII o adotara e ao irmão Pedro Luís e prometera tratá-los como filhos se eles abandonassem o sobrenome Lanzol, que era do pai, e se chamassem Bórgia.
Os pais deles estavam ansiosos para que a adoção acontecesse. Tinham filhas - mas o papa Calisto não estava interessado nelas, e eles sabiam que não haveria melhor destino para seus filhos do que ficarem sob o amparo imediato do papa. A mãe - irmã do papa - era uma Bórgia, de modo que aquilo simplesmente significava que os meninos deveriam adotar o sobrenome da mãe, em vez de o do pai.
Aquilo foi o começo da sorte.
O tio Alfonso Bórgia (papa Calisto iII para o mundo) era espanhol e nascera perto de Valência. Fora para a Itália com o rei Alfonso de Aragão quando este monarca subira ao trono de Nápoles. A Espanha - potência muitíssimo ambiciosa que rapidamente estava dominando o mundo - ansiava por ver a influência espanhola por toda a Itália, e qual a melhor maneira de conseguir isso do que com a eleição de um papa espanhol?
O tio Alfonso tinha o apoio da Espanha quando aspirara ao papado, e saiu vitorioso no ano de 1455. Todos os Bórgia estavam cônscios de um sentimento de família. Eram espanhóis, e os espanhóis não eram bem-vindos na Itália; portanto, era necessário que todos os espanhóis se unissem enquanto faziam o possível para conquistar os cargos mais importantes.
Calisto tinha planos para os dois sobrinhos. Prontamente, nomeou Pedro Luís generalíssimo da Igreja e prefeito da cidade. Não satisfeito com isso, fê-lo duque de Spoleto e, a fim de que sua renda aumentasse ainda mais, fez dele vigário de Terracina e Benevento. Pedro Luís estava muito confortavelmente instalado na vida; era não só um dos homens mais influentes de Roma - o que seria mesmo, devido ao seu parentesco com o papa - como o mais rico.
As honrarias que couberam a Roderigo eram quase do mesmo nível. Um ano mais moço do que Pedro Luís, fora feito cardeal, embora só tivesse vinte e seis anos; mais tarde, foi acrescentado a isso o cargo de vice-chanceler da Igreja de Roma. Na verdade, os Lanzol não precisavam lamentar a adoção de seus filhos pelo papa.
Ficou claro, desde o início, que Calisto pretendia que Roderigo o sucedesse no papado; e Roderigo tomara a decisão, desde o momento de sua adoção, de que um dia iria sucedê-lo.
Infelizmente, isso fora há muito tempo, e o papado estava longe como sempre estivera. Calisto era um homem velho quando fora eleito, e morreu três anos depois. Agora se percebia a sabedoria de sua ação rápida em conceder altos cargos aos sobrinhos, porque mesmo enquanto Calisto estava em seu leito de morte houvera um clamor contra os espanhóis que tinham recebido os melhores cargos; e os Colonna e os Orsini, as poderosas famílias que tinham se sentido menosprezadas, ergueram-se em fúria contra os estrangeiros; Pedro Luís tivera de abandonar suas belas propriedades com toda a sua riqueza e fugir para não morrer. Morrera pouco depois.
Roderigo continuara calmo e digno, e não saíra de Roma. Em vez disso, enquanto a cidade se agitava contra ele e seus parentes, foi solenemente à catedral de São Pedro, a fim de que pudesse rezar pelo tio moribundo.
Roderigo possuía um grande charme. Não que fosse muito bonito; seus traços eram pesados demais para serem belos, mas sua dignidade e sua presença eram impressionantes; o mesmo acontecia com a graça cortesã que raramente deixava de provocar a devoção de quase todos aqueles que entravam em contato com ele.
Por estranho que parecesse, as pessoas que implicavam contra ele afastavam-se para deixá-lo passar a caminho de São Pedro, enquanto ele sorria benignamente para elas e murmurava, delicado: "Deus os abençoe, meus filhos." E elas se ajoelhavam e beijavam-lhe a mão e a barra da túnica.
Teria sido aquela uma das horas mais triunfantes de sua vida? Depois disso, houve triunfos; mas talvez naquela ocasião ele tenha se conscientizado pela primeira vez daquele grande poder que tinha de cativar e dominar com o seu charme todos os que se opunham a ele.
Por isso, rezara pelo tio e ficara com ele, ao lado de sua cama, enquanto todos os demais tinham fugido; e, embora o seu grandioso palácio tivesse sido saqueado, ele continuara indiferente e calmo, pronto para dar o voto decisório no Conclave que viria a seguir e que assegurara a Aeneas Sylvius Piccolomini a eleição para, como Pio II, suceder a Calisto.
Pio devia ser grato a Roderigo, e era mesmo.
Assim, Roderigo enfrentara com sucesso a primeira tempestade de sua vida e garantira a si mesmo que tinha capacidade para agir por conta própria, o que o pobre do Pedro Luís não conseguira fazer.
Roderigo recolheu os bens valiosos do irmão, lamentou amargamente sua morte - mas apenas por um curto intervalo de tempo, pois não era de sua natureza chorar uma perda por muito tempo - e viu-se poderoso como sempre, e com a mesma esperança de aspirar ao trono papal.
Roderigo enxugou a testa com um lenço perfumado. Tinha sido uma época de grande risco, e ele esperava nunca passar por coisa parecida novamente; no entanto, sempre que pensava nela, percebia a satisfação de um homem que descobriu que o momento perigoso não o encontrara com falta de recursos argutos.
Pio vinha sendo, na verdade, um bom amigo, mas houve momentos em que Pio achara necessário repreendê-lo. Agora se recordava das palavras de uma carta que Pio lhe enviara, reclamando da conduta de Roderigo em uma certa casa onde cortesãs tinham sido reunidas para dar prazer aos clientes. E ele, o jovem e bonito cardeal Roderigo, estava entre os clientes.
"Fomos informados", escrevera Pio, "de que houve danças indecorosas, de que não faltaram atrações amorosas e de que você se conduziu de maneira inteiramente mundana."
Roderigo inclinou a cabeça para trás e sorriu, lembrando-se dos jardins perfumados de Giovanni de Bichis, da dança, dos quentes corpos perfumados de mulheres e de seus olhares sedutores. Ele as achara irresistíveis e elas sentiam o mesmo por ele.
E a reprimenda de Pio não tinha sido séria. Pio compreendia que um homem como Roderigo devia ter suas amantes. Apenas achava o seguinte: Sim, sim, mas nada de danças em público com cortesãs, cardeal. O povo reclama, e isso dá má fama à Igreja.
Como ele fora descuidado naquela época, tão certo estava de sua capacidade de conseguir alcançar sua meta. Decidira aproveitar o que havia de melhor nas duas vidas. A Igreja era a sua carreira, por meio da qual iria subir ao trono papal; mas era um libertino, um homem de irrefreáveis desejos carnais. Sempre haveria mulheres em sua vida. Não era uma fraqueza rara; praticamente não havia um padre que levasse a sério os seus votos de celibato, e uma das pessoas espirituosas de Roma dissera que se toda criança chegasse ao mundo vestindo as roupas do pai, todas elas estariam vestidas de padres ou cardeais.
Todo mundo compreendia; mas Roderigo talvez fosse mais abertamente promíscuo do que a maioria.
Então, ele conhecera Vannozza e instalara-a numa bela casa onde agora eles tinham os filhos. Não que tivesse sido fiel a Vannozza; ninguém teria esperado isso; mas ela continuara sendo a favorita por muitos anos, e ele adorava os filhos. E agora haveria mais um.
Era enfadonho esperar. Ele, que estava com cinquenta anos, sentia-se como um jovem marido de vinte, e, se não fosse pelo medo de ouvir os gritos de dor de Vannozza, teria ido aos aposentos dela. Mas não seria preciso. Alguém estava vindo.
A pequena ama de Vannozza, corada e bonita, ficou à frente dele. Mesmo numa ocasião como aquela, Roderigo percebeu os encantos da jovem. Iria lembrar-se dela.
Ela fez uma mesura.
- Eminência... a criança nasceu.
Com a graça e a agilidade de um homem muito mais jovem, ele se deslocou para o lado da jovem e colocou-lhe as belas mãos brancas nos ombros.
- Minha filha, você está ofegante. Como o seu coração bate!
- É, meu senhor. Mas... a criança nasceu.
Ele seguiu à frente. A pequena ama, indo atrás, percebeu de repente que se esquecera de dizer a ele o sexo da criança e que ele se esquecera de perguntar.
A criança foi levada ao cardeal, que lhe tocou a testa e a abençoou.
As mulheres recuaram; elas pareciam envergonhadas, como se fossem ser acusadas pelo sexo da criança.
Era uma criança linda; havia uma macia penugem de cabelos louros na cabecinha, e Roderigo acreditou que Vannozza lhe dera mais uma beldade de ouro.
- Uma garotinha - disse Vannozza, observando-o da cama.
Ele aproximou-se dela, tomou-lhe a mão e a beijou.
- Uma linda garotinha - disse ele.
- O meu senhor está desapontado - disse Vannozza, com a voz cansada. - Ele esperava que fosse um menino.
Roderigo soltou uma gargalhada, aquela musical e grave risada que fazia com que a maioria das pessoas que a ouviam o adorasse.
- Desapontado! - disse ele. - Eu? - Olhou então à sua volta para as damas de companhia, que tinham se aproximado, os olhos pousando em cada uma, acariciantes, especulativos. - Desapontado porque ela é do sexo feminino? Mas vocês sabem... todas vocês... que eu amo o sexo frágil de todo o meu coração, e tenho para com ele uma ternura que negaria ao meu próprio.
As mulheres riram, e Vannozza riu com elas; mas seus olhos aguçados tinham percebido a pequena ama que tinha no rosto uma expressão de expectativa quando o olhar de Roderigo se demorou nela.
Ela decidiu que, assim que voltassem para Roma, aquela jovem deveria ser demitida, e se Roderigo procurasse por ela, iria procurar em vão.
- Então o meu senhor está contente com a nossa filha?
- murmurou Vannozza, e fez um sinal para que as damas a deixassem a sós com o cardeal.
- Acredito sinceramente - disse Roderigo - que vou encontrar no meu coração, para esta doce menina, um lugar mais terno do que o que tenho para aqueles alegres peraltas que agora habitam a nossa ala infantil. Vamos batizá-la com o nome de Lucrécia; e quando você se recuperar, Vannozza, voltaremos para Roma.
E assim, naquele dia de abril, no castelo dos Bórgia de Subiaco, nasceu a menina cujo nome seria notório no mundo inteiro: Lucrécia Bórgia
Vannozza ficou encantada por estar de volta a Roma. Parecia que durante aqueles meses que se seguiram ao nascimento de Lucrécia ela era a mulher mais feliz do mundo. Roderigo visitava a ala infantil com uma frequência maior do que nunca; havia uma atração adicional na menininha de cabelos dourados.
Era uma criança encantadora - de temperamento muito doce - e ficava contente no berço, dando um belo sorriso para quem se aproximasse.
Os meninos ficaram interessados por ela. Ficava um de cada lado do berço, e tentavam fazê-la rir. Discutiam por causa dela. César e Giovanni sempre aproveitavam qualquer diferença entre eles e armavam uma discussão sobre ela.
Vannozza ria com as amas, ouvindo as altercações deles. "Ela é minha irmã." "Não, ela é minha irmã." Já fora explicado a eles que ela era irmã dos dois.
César respondera, os olhos faiscando:
- Mas ela é mais minha do que do Giovanni. Ela gosta mais de mim... César... do que do Giovanni.
Isso, lhe dissera a ama-seca, quem vai decidir é a própria Lucrécia.
Giovanni observava o irmão com olhos que mostravam uma emoção reprimida; ele sabia o motivo pelo qual o irmão queria que Lucrécia gostasse mais dele. César estava ciente de que quando o tio Roderigo ia visitá-los era sempre Giovanni que ganhava mais doces; era sempre Giovanni que era erguido naqueles fortes braços e beijado e acariciado antes que o magnífico tio Roderigo se voltasse para César.
Portanto, César estava decidido a que todas as outras pessoas deveriam gostar mais dele. A mãe gostava. As amassecas diziam que gostavam; mas isso devia ser porque, se não dissessem, ele iria vingar-se de alguma maneira, e elas sabiam que era mais imprudente ofender César do que Giovanni.
Lucrécia, assim que pudesse mostrar uma preferência, deveria mostrá-la por ele. Ele havia decidido. Era por isso que rondava o berço mais do que Giovanni, esticando a mão para que aqueles dedinhos se enroscassem em seu polegar.
- Lucrécia - murmurava ele. - Eu sou César, seu irmão. Você gosta mais de mim... mais do que de qualquer outra pessoa.-Ela olhava para ele com aqueles grandes olhos azuis e ele ordenava: - Ria, Lucrécia. Ria assim.
As mulheres se agrupavam em volta do berço para olhar, porque por estranho, que pareça Lucrécia invariavelmente obedecia a César; e quando Giovanni tentava fazê-la rir para ele, César ficava atrás do irmão fazendo caretas tão demoníacas que em vez de rir Lucrécia chorava.
- E aquele demónio do César - diziam as mulheres umas às outras, pois, embora ele tivesse apenas cinco anos de idade, não tinham coragem de dizer isso a ele.
Um dia, seis meses depois do nascimento de Lucrécia, Vannozza estava cuidando de suas trepadeiras e flores no jardim. Ela tinha seus jardineiros, mas aquilo era um trabalho que fazia com amor. As plantas eram bonitas, e ela sentia prazer em cuidar delas pessoalmente, porque seu jardim e sua casa lhe eram quase tão caros quanto os filhos. Quem não sentiria orgulho de uma casa daquelas, com a sua fachada, dando frente para a praça, e o quarto claro com a grande janela, tão diferente da maioria dos quartos sombrios de outras casas romanas? Ela também tinha uma cisterna com água, o que era uma raridade.
Sua dama de companhia - não aquela que Roderigo havia admirado; ela já deixara o serviço de Vannozza há muito tempo-veio avisá-la de que o cardeal chegara e que com ele estava um outro cavalheiro; mas enquanto a jovem falava Roderigo entrou no jardim, e estava sozinho.
- Meu senhor - bradou Vannozza -, o senhor chegando e me encontrando desse jeito...
O sorriso de Roderigo foi desconcertante.
- Mas você fica um encanto em meio às suas plantas disse.
- Não quer entrar na casa? Eu soube que o senhor trouxe um convidado. As damas deveriam tê-lo atendido melhor.
- Mas era meu desejo falar com você a sós... aqui fora, enquanto você trabalhava em meio a suas flores.
Ela ficou assustada. Sabia que ele tinha algo importante a dizer, e perguntou-se se ele preferia dizê-lo do lado de fora, porque até mesmo em casas bem-administradas como a dela os criados tinham o hábito de ouvir o que não deviam.
Um grande medo entorpeceu a mente de Vannozza enquanto ela se perguntava se ele tinha ido lhe dizer que era o fim do relacionamento deles. Ela estava agudamente cônscia de seus trinta e oito anos. Mantinha bem a sua beleza, mas mesmo assim uma mulher de trinta e oito anos que já tivera vários filhos não podia competir com mulheres jovens; e praticamente não podia haver umajovem que, se conseguisse resistir ao encanto do cardeal, pudesse dar as costas a tudo que um homem influente como ele podia dar a uma amante.
- Meu senhor - disse ela, em voz baixa -, o senhor tem notícias.
O cardeal ergueu o rosto sereno para o céu e sorriu o seu mais belo sorriso.
- Minha cara Vannozza, como você sabe, eu tenho a maior consideração por você - disse. Vannozza prendeu a respiração, horrorizada. Aquilo parecia o início de uma dispensa. -Você mora aqui nesta casa com os nossos três filhos.
É uma casinha feliz, mas falta alguma coisa: essas crianças não têm pai.
Vannozza quis atirar-se aos pés dele, implorar-lhe que não retirasse a sua benevolente presença da vida deles. Para eles seria como a morte, se o fizesse. Seria como tentar viver sem o sol. Mas ela sabia o quanto ele era contra cenas desagradáveis; e disse, com calma:
- Meus filhos têm o melhor pai do mundo. Eu preferiria que eles nunca tivessem nascido a vê-los tendo que ter um outro pai.
- Você diz coisas deliciosas... deliciosamente - disse Roderigo. - Eles são meus filhos, e eu os adoro. Nunca me esquecerei do grande serviço que você me prestou ao dá-los a mim, minha adorada.
- Meu senhor... - As lágrimas lhe afloraram aos olhos e ela afastou-as depressa, mas Roderigo estava olhando para o céu, tamanha era a sua determinação de não as ver.
- Mas não é bom você morar nesta casa... uma mulher bela e ainda jovem, com os filhos à sua volta, e só o tio dessas crianças para visitá-la.
- Meu senhor, se o ofendi de alguma maneira, rogo-lhe que me diga depressa onde foi que errei.
- Você não cometeu falta alguma, minha cara Vannozza. Só fiz esses planos para tornar a vida mais fácil para você. Não quero que ninguém aponte para você e diga: "Ah, lá vai Vannozza Catanei, a mulher que tem filhos mas não tem marido." Foi por isso que arranjei um marido para você.
- Um marido! Mas, meu senhor... Roderigo silenciou-a com um sorriso autoritário.
- Você tem uma filhinha nesta casa, Vannozza; ela está com seis meses. Portanto, tem que ter um marido.
Aquilo era o fim. Ela sabia. Ele não teria arranjado um marido para ela se não tivesse se cansado dela.
Ele leu seus pensamentos. Mas não era de todo verdade que ele estivesse cansado dela; ele sempre teria um certo afeto por ela e continuaria a visitar sua casa, mas seria com o objetivo principal de ver os filhos; havia mulheres mais jovens com quem ele desejava passar suas horas de lazer. Havia um certo grau de verdade no que ele estava lhe dizendo; achava realmente aconselhável que ela fosse conhecida como uma mulher casada, porque ele não podia admitir que dissessem que seus pequeninos eram filhos de uma cortesã. Ele disse, rápido:
- Os deveres de seu marido são viver nesta casa, aparecer com você em público. Acabam aí, Vannozza.
- O senhor quer dizer?
- Você acha que eu poderia me referir a qualquer outra coisa mais? Eu sou um amante ciumento, Vannozza. Você ainda não aprendeu isso?
- Eu sei que o senhor é ciumento quando é amante, meu senhor.
Ele colocou uma das mãos no ombro dela.
- Não tenha medo, Vannozza. Você e eu ficamos juntos por um tempo longo demais para nos separarmos agora. É unicamente pelo bem de nossos filhos que tomo essa providência. E escolhi um homem tranquilo para ser seu marido. É um bom homem, um homem de grande respeitabilidade, e está preparado para ser o único tipo de marido ao qual eu daria você sem me preocupar.
Ela segurou-lhe a mão e beijou-a.
- E Vossa Eminência virá visitar-nos de vez em quando ?
- Como sempre, minha cara. Como sempre. Agora venha conhecer Giorgio di Croce. Vai ver que ele é um homem de bom temperamento; eu lhe asseguro que você não vai ter dificuldades com um homem assim.
Ela o seguiu para dentro de casa, imaginando que tipo de estímulo tinha sido oferecido àquele homem para fazê-lo concordar em casar-se com ela. Não era difícil adivinhar. Praticamente não haveria um homem em Roma que se recusasse a se casar com uma mulher que o influente cardeal escolhera para si.
Vannozza estava aflita. Não gostava de ser negociada assim, como se fosse uma escrava. Sem dúvida iria manter Giorgio di Croce no lugar dele.
Na sala que dava para a praça, ele estava esperando. Levantou-se quando eles entraram, e o cardeal fez as apresentações.
O homem de bom temperamento tomou as mãos dela e as beijou; ela o estudou e viu que os olhos lívidos brilharam enquanto ele assimilava o seu voluptuoso encanto.
Será que o cardeal percebeu? Se percebeu, não demonstrou.
Da loggia da casa de sua mãe, Lucrécia olhava a praça e observava com um prazer tranquilo as pessoas que passavam. A cidade das sete colinas, lá fora da casa de sua mãe, a deixava fascinada, e seu prazer favorito era escapar para a Iqggia e ficar vendo as pessoas passando pela ponte de Santo Angelo. Havia cardeais montados em mulas brancas, cujos bridões de prata brilhavam à luz do sol; havia damas e cavalheiros mascarados; havia liteiras, com as cortinas cerradas de modo a tornar impossível ver seus ocupantes.
Os grandes olhos curiosos de Lucrécia olhavam através de fendas na alvenaria, enquanto seus dedinhos gordos enroscavam-se nos pilares.
Ela estava com dois anos, mas a vida com os irmãos fizera com que parecesse mais velha. As mulheres da ala infantil a adoravam porque, embora ela se parecesse com os irmãos, era completamente diferente deles no caráter. A índole de Lucrécia era resplandecente; quando era repreendida por uma falta cometida, ouvia séria e não guardava rancor de quem a repreendia. Não era de admirar que naquela ala infantil, tornada turbulenta pelos dois meninos, Lucrécia fosse considerada uma bênção.
Ela era muito bonita, e as criadas nunca se cansavam de pentear ou adornar aqueles longos cabelos de cor amareloouro que tão raramente se via em Roma. Lucrécia aos dois anos já tinha - tal como os irmãos, era precoce - consciência de seu charme, mas aceitava isso com uma satisfação tranquila, como aceitava a maioria das coisas.
Naquele dia havia um silêncio na casa, porque algo importante estava acontecendo, e Lucrécia estava cônscia dos sussurros dos empregados e empregadas e da presença de mulheres estranhas na casa. Ela sabia que aquilo dizia respeito a sua mãe, porque já fazia um dia inteiro que não lhe permitiam vê-la. Lucrécia sorria placidamente enquanto olhava para a praça. Ela acabaria sabendo, de modo que iria esperar que chegasse a ocasião.
Seu irmão Giovanni aproximou-se e ficou em pé a seu lado. Estava com seis anos e era um menino bonito, com cabelos castanho-avermelhados como os da mãe.
Lucrécia sorriu para ele e estendeu a mão; o irmão sempre era delicado com ela e ela já percebera que cada um deles estava fazendo o possível para ser o seu favorito. Ela já era coquete o bastante para gostar da rivalidade por seus afetos.
- O que é que você está olhando, Lucrécia? - perguntou Giovanni.
- Estou vendo as pessoas - respondeu ela. - Olhe a mulher gorda com a máscara!
Os dois riram juntos porque a mulher gorda bamboleava-se como uma pata, disse Giovanni.
- Nosso tio vai chegar logo - disse Giovanni. -Você está esperando por ele, Lucrécia?
Lucrécia sacudiu a cabeça, sorrindo. Era verdade que ela sempre esperava o tio Roderigo. As visitas dele eram o ponto alto de sua vida. Ser levada por aqueles braços fortes, ser erguida acima daquele rosto risonho, sentir o leve perfume que aderia às roupas dele e observar as jóias faiscantes em suas mãos brancas e saber que ele a adorava - era maravilhoso. Ainda mais maravilhoso do que ser tão amada pelos dois irmãos.
- Ele virá hoje, Lucrécia-disse Giovanni. - Na certa que virá. Está esperando uma mensagem de mamãe.
Lucrécia prestou atenção, alerta; nem sempre ela compreendia os irmãos; eles pareciam esquecer-se de que ela tinha apenas dois anos, e que Giovanni, que tinha seis, e César, que tinha sete, pareciam adultos, ilustres, grandes e importantes.
- Sabe por quê, Lucrécia? - disse Giovanni.
Quando ela abanou a cabeça, Giovanni riu, mantendo o segredo, ansioso por contar a ela e no entanto relutando em fazê-lo porque a perspectiva de contar o agradava muito. De repente, ele parou de sorrir para ela e Lucrécia entendeu por quê. César estava em pé atrás deles.
Lucrécia voltou-se para sorrir para ele, mas César estava olhando firme para Giovanni.
- Você não tem nada que contar - disse César.
- Tenho tanto quanto você - retorquiu Giovanni.
- Eu sou o mais velho. Eu vou contar-declarou César.
- Lucrécia, não dê atenção ao que ele diz.
Lucrécia abanou a cabeça e sorriu. Não, ela não daria atenção ao que Giovanni dizia.
- Eu vou contar, se eu quiser - berrou Giovanni. Tenho tanto direito de contar quanto você. Mais... porque fui o primeiro a pensar em contar.
César tinha agarrado o irmão pelos cabelos e o estava sacudindo. Giovanni dava pontapés em César. César respondeu, Giovanni gritou e os dois meninos passaram a rolar pelo chão.
Lucrécia continuou calma, porque lutas como aquela eram bem comuns na ala infantil, e ela ficava assistindo, contente por eles estarem brigando por ela; quase sempre, ela era a causa daquelas brigas.
Giovanni estava gritando de dor; César berrava de raiva. As criadas não tinham coragem de se aproximar deles quando os dois brigavam daquele jeito. Elas tinham medo dos dois meninos.
Giovanni, que estava sendo imprensado contra o chão por César, gritou:
- Lucrécia... nossa mãe vai...
Mas não conseguiu dizer mais nada, porque César tapou com a mão a boca do irmão. Os olhos dele pareciam negros de raiva, e o rosto estava escarlate.
- Eu vou contar. Sou eu que tenho de contar. Nossa mãe vai ter um filho, Lucrécia.
Lucrécia ficou olhando, os olhos arregalados, a macia boca de criança aberta numa expressão de espanto. César, vendo o assombro dela, recuperou a calma. Ela olhava para ele como se ele fosse o responsável por aquela coisa estranha. Ela o fez sentir-se poderoso, como fizera desde quando era criancinha e ele rondava seu berço e ficava olhando os dedinhos dela enroscarem-se em seu polegar.
Ele soltou Giovanni e os dois meninos se levantaram. A briga terminara; era uma das muitas que aconteciam todos os dias na ala infantil. Agora eles estavam prontos para conversar com a irmãzinha sobre o novo bebé, desfilar diante dela e jactar-se de tudo o que sabiam a respeito dos grandes acontecimentos que tinham lugar do lado de fora da ala infantil.
Vannozza estava deitada, esperando que o cardeal a visitasse. Daquela vez tinha sido um menino, mas ela estava inquieta.
Tinha boas razões para isso.
O cardeal continuara suas visitas durante os dois anos em que ela estava casada, mas elas tinham sido menos frequentes e ela ouvira muitos mexericos sobre as encantadoras jovens pelas quais ele se interessava.
Giorgio era um homem bom, um homem dócil, como o cardeal dissera; mas até mesmo os mais dóceis dos homens não deixam de ser homens, e Vannozza possuía um charme voluptuoso e irresistível. Tinha havido longos serões no verão
- o frescor do anoitecer era a melhor parte do dia - em que eles jantavam no belo vinhedo dela na Suburra, quando os dois conversavam e ficavam sonolentos e depois iam para dentro de casa, cada qual sentindo-se estimulado pela presença do outro.
Afinal de contas, estavam casados, e as visitas de Roderigo eram muito infrequentes.
Aquilo era de se esperar, é claro, muito embora tivesse sido estabelecida a regra de que Giorgio deveria apenas compartilhar dos aposentos públicos da casa dela.
Será que Roderigo poderia culpá-la? Ela achava que não. Mas se houvesse uma dúvida de que o filho fosse dele, ele poderia sentir-se menos inclinado a fazer por ele o que planejava fazer pelos outros.
Quando uma mulher segurava um filho nos braços, um filho nascido há poucas horas, como poderia evitar que por um curto momento aquele filho lhe parecesse mais precioso do que qualquer outra coisa sobre a Terra? César sempre estaria em primeiro lugar em suas afeições; mas naquele momento em que ela jazia exausta na cama, o pequenino recém-chegado - o seu Goffredo -, por ser o mais frágil de sua ninhada, tinha, decidiu ela, de ter as mesmas oportunidades que os irmãos.
Ele parecia exatamente com os outros quando nasceram; na verdade, poderia ser a pequena Lucrécia que estava em seus braços agora, um nenenzinho de quatro horas de idade; e não havia dúvida de quem era o pai. Goffredo podia ser filho de Roderigo. Com um amante e um marido vivendo sob o seu teto, até mesmo Vannozza não podia ter certeza. Mas deveria fazer tudo ao seu alcance para deixar o cardeal certo de que era ele o pai da criança.
Ele agora estava se dirigindo para a cama em que ela se encontrava. As amas recuaram, em temerosa reverência, enquanto ele se aproximava.
- Vannozza, minha cara! - A voz dele parecia terna como sempre, mas ele raramente demonstrava raiva, e ela não conseguiu entender quais eram os sentimentos dele para com a criança.
- Desta vez foi um menino, meu senhor. Ele se parece muito com Lucrécia... e acho que verei sua Eminência nesta criança todos os dias.
Uma rechonchuda mão branca, brilhando de jóias, tocou a face da criança. Era um gesto carinhoso, paternal, e o ânimo de Vannozza voltou.
Ela agarrou o filho e estendeu-o para o cardeal, que o tomou de suas mãos; ela viu a fisionomia dele abrandar-se numa expressão de orgulho e alegria. Não era de admirar, pensou ela então, que muita gente gostasse de Roderigo; seu amor pelas mulheres e pelas crianças fazia com que elas ficassem ansiosas por agradá-lo e servi-lo.
Ele andou de um lado para o outro com a criança, e em seus olhos havia um olhar distante, como se estivesse vendo o futuro. Claro que aquilo significava que ele fazia planos para o menino recém-nascido. Ele não desconfiava. Devia ter-se comparado com Giorgio e se perguntado como uma mulher poderia pensar no pequeno funcionário apostólico, quando devia compará-lo com o encantador e poderoso cardeal.
Roderigo colocou o menino de novo nos braços dela e ficou por uns instantes sorrindo benignamente para ela.
Então, com ironia, disse:
- E Giorgio? Está contente?
Houve um período na vida de Lucrécia do qual ela iria lembrar-se até o dia de sua morte. Ela estava com apenas quatro anos de idade, mas a recordação era tão vívida que ficou marcada em sua mente. Em primeiro lugar, fora o começo da mudança.
Antes daquela época, ela levara a vida da ala infantil, segura no amor de sua mãe, aguardando ansiosa as visitas do tio Roderigo, deliciando-se com a batalha dos irmãos pelo seu afeto. Tinha sido um pequeno mundo feliz aquele em que Lucrécia vivera. Todo dia, ela tomava sua posição na loggia e ficava observando o mundo cheio de cores passar, mas tudo o que acontecia fora da casa de sua mãe lhe parecia apenas quadros para o seu deleite ocioso; havia uma irrealidade com relação a tudo o que acontecia do outro lado da loggia, e Lucrécia estava segura em seu aconchegante mundo de amor e admiração.
Ela sabia que era bonita e que ninguém podia deixar de perceber isso, por causa de seus cabelos amarelos e de seus olhos claros, de um tom azul-acinzentado; as pestanas e as sobrancelhas eram escuras e tinham sido herdadas dos ancestrais espanhóis, segundo diziam; e aquela combinação, em parte por ser muito rara, era muito atraente. Ela possuía os traços cativantes de uma pessoa que era apenas uma parte italiana, e também uma parte espanhola. Os irmãos também tinham aquele charme.
As criadas não podiam deixar de abraçá-la, dar palmadinhas no seu rosto ou acariciar os belos cabelos. "Querida madonazinha", murmuravam elas, e sussurravam juntas sobre os encantadores occhi bianchi que iriam fazer de sua pequenina madona uma mulher sedutora.
Ela sentia-se feliz com a afeição delas; aconchegava-se nelas, dando amor em troca de amor; e ansiava por uma carreira de sedutora com o máximo de prazer.
A pequena Lucrécia, até então, acreditava que o mundo tinha sido feito para o seu prazer - os irmãos sentiam a mesma coisa com relação a eles -, mas, porque Lucrécia era, por natureza, serena, estava sempre contente e só podia sentir-se agradada quando agradava a outros, seu caráter era inteiramente diferente do de seus irmãos. A vida jovem de César e de Giovanni era obscurecida pela inveja que cada um tinha do outro; Lucrécia não sabia o que era aquele tipo de sentimento. Era a rainha da ala infantil, com a certeza do amor de todos.
E assim, até o quarto aniversário, agarotinhaficou fechada no seu mundo de contentamento que a envolveu como um confortável casulo.
Mas com o quarto aniversário veio o primeiro indício de que a vida era menos simples do que ela acreditava que fosse, e que não continuava para sempre no mesmo padrão agradável.
A princípio, ela percebeu a agitação nas ruas. Havia muitas idas e vindas pela ponte. Todos os dias, grandes cardeais, acompanhados de suas comitivas, chegavam a Roma em suas mulas. As pessoas ficavam por ali em pequenos grupos; algumas conversavam calmamente, outras gesticulavam, iradas.
O dia todo ela esperara uma visita do tio Roderigo, mas ele não viera.
Quando César entrou na ala infantil, ela correu para ele e segurou-lhe as mãos, mas até César havia mudado; não parecia tão interessado nela quanto antes. Foi até a loggia e, paciente, se pôs ao lado dele, como um pequeno pajem, humilde, esperando suas ordens, como ele gostava que ela fizesse; no entanto, ele nada disse: ficou quieto, observando as multidões nas ruas.
- Tio Roderigo não veio visitar a gente - disse ela, tristonha.
César abanou a cabeça.
- Ele não virá, irmãzinha. Hoje, não.
- Ele está doente?
César abriu um sorriso lento. Ela viu que as mãos dele estavam fechadas e que sua fisionomia estava tensa, como tantas vezes ficava quando estava zangado ou decidido quanto a alguma coisa.
Ela ficou no degrau que lhe permitia ficar com altura suficiente para chegar ao ombro dele e colocou o rosto perto do dele, para que pudesse estudar sua expressão.
- César - disse ela -, você está zangado com tio Roderigo?
César agarrou o pescoço dela com suas mãos fortes; aquele golpe dele doía um pouco, mas ela gostava porque sabia o que significava: veja como eu sou forte. Veja como eu poderia machucá-la, pequena Lucrécia, se quisesse; mas não quero, porque você é minha irmãzinha e eu a amo porque você me ama... mais do que qualquer outra pessoa no mundo... mais do que a nossa mãe, mais do que o tio Roderigo, melhor, sem dúvida de que melhor, do que Giovanni.
E quando ela gritou e mostrou pela expressão do rosto que ele a estava machucando - só um pouquinho -, aquilo queria dizer: sim, César, meu irmão. Eu te amo mais do que a qualquer outra pessoa no mundo. E ele compreendeu e seus dedos tornaram-se delicados.
- Não se fica zangado com o tio Roderigo-disse César a ela. - Isso seria uma tolice, e eu não sou tolo.
- Não, César, você não é tolo. Mas está zangado com alguém?
Ele abanou a cabeça.
- Não. Eu estou contente, irmãzinha.
- Diga por quê.
- Você ainda é uma criança. O que poderia saber sobre o que se passa em Roma?
- Giovanni sabe? -Lucrécia, aos quatro anos, sabia ser diplomata. Os encantadores olhos claros ficaram sombrios; ela não queria ver a ira de César; tal como Roderigo, ela desviava o olhar daquilo que era desagradável.
O ardil deu resultado.
- Eu vou lhe contar - disse César - Claro que contaria. Ele não poderia deixar que Giovanni desse a ela algo que ele lhe tivesse negado. - O papa, que você sabe que é Sisto IV está morrendo. É por isso que eles estão agitados lá, e é por isso que o tio Roderigo não vem nos visitar. Ele tem muito o que fazer. Quando o papa morrer, haverá um conclave, e então, irmãzinha, os cardeais vão escoltar um novo papa.
- Tio Roderigo está escolhendo; É por isso que ele não pode vir nos visitar - disse ela.
César ficou ali sorrindo para ela. Ele se sentia importante, um sabe-tudo; ninguém o fazia sentir-se tão inteligente ou importante quanto sua irmãzinha; era por isso que ele a adorava tanto.
- Eu gostaria que ele pudesse escolher depressa e vir nos visitar - acrescentou Lucrécia. - Vou pedir aos santos que façam um novo papa depressa... para que ele possa vir nos visitar.
- Não, Lucreciazinha. Não peça uma coisa dessas. Em vez disso, peça o seguinte: peça que o novo papa seja o nosso tio Roderigo.
César soltou uma gargalhada, e ela riu com ele. Havia tanta coisa que ela não compreendia; mas, apesar da ameaçadora estranheza, apesar da multidão que se acumulava lá embaixo e da ausência de tio Roderigo, era bom ficar na loggia, agarrada ao gibão de César, vendo a agitação na praça.
Roderigo não foi eleito.
A agitação, observada pelas crianças, continuou por toda a cidade. O cenário mudara. Lucrécia ouvia os barulhos da batalha nas ruas lá embaixo, e Vannozza, aterrorizada, mandou levantar barricadas em volta da casa. Nem mesmo César sabia exatamente do que se tratava, embora ele e Giovanni, andando pela ala infantil, não o admitissem. Tio Roderigo só visitava a casa rapidamente, para assegurar-se de que as crianças estavam seguras. Suas visitas eram, agora, meramente para ver as crianças; desde o nascimento do pequeno Goffredo, ele deixara de considerar Vannozza sua amante, e agora havia uma outra criancinha, Otaviano, que Vannozza nada fazia para que fosse considerada como sendo dele. Quanto ao pequeno Goffredo, Roderigo estava encantado com ele, que estava se revelando de todas as formas tão bonito quanto os irmãos mais velhos. Roderigo, tendo necessidade de filhos e sendo suscetível a filhos bonitos, na maioria das vezes tendia a dar a Goffredo o benefício da dúvida, e a atenção dedicada aos outros era, então, compartilhada pelo garotinho. O pobre do pequeno Otaviano era o estranho no ninho, ignorado por Roderigo, embora fosse adorado por Vannozza e por Giorgio.
Mas durante aquelas semanas houve pouco tempo até mesmo para lamentar a ausência de Roderigo; as crianças só podiam olhar para a praça, assombradas com o cenário em mutação.
Inocêncio VIII tornara-se papa e permitira que o cardeal della Rovere, que era sobrinho do falecido Sisto, o convencesse a fazer guerra contra Nápoles. Os poderosos Orsini, que, como os Colonna, dominavam Roma, eram amigos e aliados dos napolitanos, e isso lhes proporcionara uma desculpa para levantarem-se contra a cidade. Colocaram Roma quase em estado de sítio, e seus velhos inimigos, os Colonna, não perderam tempo e entraram em combate contra eles. Portanto, as ruas de Roma, durante o período que se seguiu à morte de Sisto e à eleição de Inocêncio, foram cenário de muitas batalhas ferozes.
As crianças-César, Giovanni e Lucrécia-, olhando por trás das barricadas, tinham visões estranhas da cidade de Roma. Viram os ferozes Orsini saindo em grande número de Monte Giordano para atacar os igualmente ferozes e sanguinários Colonna. Viram homens cortando uns aos outros em pedaços na praça imediatamente diante de seus olhos; viram o comportamento de soldados lascivos com meninas e mulheres; sentiram os horríveis cheiros da guerra, de prédios em chamas, de sangue e de suor; ouviram os gritos de vítimas e os gritos triunfantes de atacantes.
A morte era comum; a tortura, também.
A pequena Lucrécia, com quatro anos de idade, assistia àquilo a princípio com espanto, e depois quase que com indiferença. César e Giovanni assistiam com ela, e ela ia aprendendo com eles.
Tortura, estupro, assassinato - tudo isso fazia parte do mundo fora da ala infantil em que eles viviam. Aos quatro anos de idade, as crianças aceitam sem surpresa aquilo que diariamente desfila diante de seus olhos, e Lucrécia iria lembrar-se daquela época de sua vida não como uma época de horror, mas de mudança.
Aos poucos, o combate acabou; a vida voltou ao normal; e dois anos se passaram antes que houvesse uma outra, e dessa vez mais importante, mudança para Lucrécia, uma mudança que assinalou o começo do fim de sua infância. Ela estava com quase seis anos, uma criança precoce para a idade, César, com onze e Giovanni, com dez; ela ficara tanto em companhia deles que aprendera mais do que a maioria das crianças sabia aos seis anos de idade. Ela estava serena como sempre, talvez um pouco mais ansiosa agora do que antes, por provocar aquela rivalidade entre os irmãos, compreendendo mais do que nunca o poder que aquilo lhe dava, e que, enquanto cada um deles procurasse ser o seu favorito, ela poderia ser a pessoa mais poderosa da ala infantil.
Claro que ela era serena, porque era inteligente; adquirira o poder através da rivalidade dos irmãos, e tudo o que tinha de fazer era dar o prémio - seu afeto.
Continuava sendo a querida da ala infantil. As amas podiam ter a certeza de que não haveria acesso de fúria algum por parte de Lucrécia; era delicada com o jovem Goffredo, que os irmãos praticamente não se dignavam a notar por causa da pouca idade; e era igualmente delicada com o pequeno Otaviano, a que os irmãos não davam absolutamente atenção alguma. Eles sabiam de alguma coisa a respeito de Otaviano que fazia com que o desprezassem, mas Lucrécia sentia pena dele, de modo que lhe dedicava uma delicadeza especial.
Lucrécia desfrutava a vida; era divertido jogar um irmão contra o outro, extrair deles os segredos, usar aquela rivalidade. Ela gostava de andar pelos jardins, os braços envolvendo Giovanni, sendo especialmente carinhosa quando sabia que César podia vê-la da casa. Ser assim tão amada por dois irmãos tão maravilhosos fazia com que ela se sentisse bem e à vontade.
Quando o tio Roderigo ia visitá-los, ela gostava de subir nele olhando de perto para o rosto, talvez estendendo um dedo delicado para tocar-lhe o nariz, que parecia gigantesco, acariciar o grande queixo, enfiar o rosto nas roupas perfumadas e dizer a ele que o cheiro dele a lembrava dos jardins de flores de sua mãe.
Tio Roderigo adorava todos eles, e muitas vezes chegava com presentes; fazia com que eles ficassem à sua volta enquanto se sentava na cadeira ornamental que a mãe deles mantivera para ele, e olhava para todos, um de cada vez - os adorados filhos que, segundo ele lhes dizia, amava mais do que tudo na Terra; seus olhos pousavam com uma expressão mais terna em Giovanni. Lucrécia sabia disso; e às vezes, quando via a contrariedade que aquilo provocava em César, ela corria para o tio Roderigo e atirava-se contra ele para desviar sua atenção de Giovanni para ela.
Com frequência, conseguia, pois quando os longos dedos do tio Roderigo acariciavam seus cabelos amarelos, quando os lábios dele tocavam sua face macia, havia uma ternura especial que ele só podia dar a ela. Ele a apertava mais nos braços e beijava-a mais vezes.
- Minha encantadora pequena - murmurava ele. Meu amorzinho.
Então, ele parava de olhar para Giovanni com tanta devoção e isso agradava a César, que não se importava com o amor que tio Roderigo dedicava a Lucrécia. Só Giovanni lhe provocava a inveja.
Então Vannozza podia aparecer à porta levando o pequeno Goffredo pela mão, empurrando-o para a frente; e Goffredo se soltava da mãe e corria dando gritinhos de alegria, berrando: "Tio Roderigo, Goffredo está aqui." Ele estaria vestido com sua túnica azul, que fazia com que parecesse um anjo pintado em um dos quadros que sua mãe adorava; e tio Roderigo hesitaria - ou fingiria hesitar - por um segundo antes de apanhar o belo garotinho. Mas só depois que Vannozza tivesse se retirado, ele o cobriria de beijos e o colocaria no joelho e deixaria que ele tirasse presentes dos bolsos de sua túnica, enquanto o chamava de "meu pequeno Goffredo".
Otaviano não ia nunca. Pobre Otaviano, o estranho; era pálido e delicado, e tossia muito. Parecia-se muito com Giorgio, que era delicado mas que, segundo ordens de César, devia ser ignorado por todos eles, já que nada tinha a ver com eles.
Mas foi através de Otaviano e Giorgio, os dois que eram considerados insignificantes pelas três crianças na ala infantil, que a mudança entrou na vida deles.
Os dois cresceram e foram ficando apáticos. O tempo estava quente e abafado e dizia-se que havia peste no ar. Giorgio foi ficando mais pálido e mais magro a cada dia, até que caiu de cama e fez-se silêncio por toda a casa.
Vannozza chorava copiosamente, pois passara a amar o dócil marido, e quando ele morreu ela ficou muito triste. Não se passou muito tempo e o pequeno Otaviano, sofrendo da mesma maneira que o pai, caiu de cama e morreu. Assim, em poucos meses a família perdeu dois de seus membros.
Lucrécia chorava por ver a mãe infeliz. Ela também sentia falta do pequeno Otaviano; ele tinha sido um de seus mais fiéis admiradores.
César encontrou-a chorando e perguntou o motivo.
- Mas você sabe - disse ela, os olhos claros arregalados e pensativos. - Nosso pai morreu e o nosso irmãozinho morreu com ele. Nossa mãe está triste, e eu também.
César estalou os dedos, irritado.
- Você não deve chorar por eles - disse. - Para nós, eles nada são.
Lucrécia abanou a cabeça e pela primeira vez não concordou com ele. Ela adorara os dois; achava fácil gostar das pessoas. Giorgio tinha sido muito bom para ela, Otaviano tinha sido seu irmãozinho, de modo que ela ia insistir em chorar, ainda que César a proibisse.
Mas César não devia ser contrariado. Ela viu a expressão de raiva surgir nos olhos dele.
- Lucrécia, você não vai chorar por eles - insistiu ele.
- Estou dizendo que não vai. Enxugue os olhos. Olhe, aqui está um lenço. Enxugue-os e sorria. Sorria!
Mas não era possível sorrir com toda a dor que sentia. Lucrécia tentou, mas lembrou-se da bondade de Giorgio e de que ele a levava nos ombros e parecia muito satisfeito quando as pessoas admiravam-lhe os cabelos amarelos; lembrou-se de que o pequenino Otaviano tinha o hábito de engatinhar para perto dela e enfiar a mãozinha na dela; lembrou-se de que ele balbuciava o nome dela. Ela não conseguia sorrir, porque não podia esquecer que jamais tornaria a ver Giorgio e Otaviano.
César parecia estar encontrando dificuldade para respirar, o que significava que estava muito zangado. Ele agarrou-a pelo pescoço, e dessa vez havia mais raiva do que ternura naquele gesto.
- Está na hora de você saber a verdade - disse ele. Você não adivinhou quem é o nosso pai?
Ela não pensara que tinha pai até que Giorgio fora morar na casa, e então, como Vannozza o chamava de marido, Lucrécia o considerara um pai, mas sabia muito bem que não podia dizer que Giorgio era o pai deles; por isso, ficou calada, esperando que César relaxasse a pressão em seu pescoço e deixasse a ternura voltar aos seus dedos.
César aproximara bem o rosto do dela; ele sussurrou:
- Roderigo, o cardeal Bórgia, não é nosso tio, sua boba; ele é nosso pai.
- Tio Roderigo? - disse ela, pausadamente.
- Claro, sua tola. -Agora, o aperto dele era suave. Ele pousou os lábios na face fria dela e deu-lhe um daqueles beijos longos que a deixavam perturbada. - Por que você acha que ele vinha aqui com tanta frequência? Por que iria gostar tanto da gente? Porque ele é o nosso pai. Já estava na hora de você ficar sabendo. Agora vai perceber que não vale a pena chorar por gente como Giorgio e Otaviano. Entende isso agora, Lucrécia?
Os olhos dele estavam com uma expressão sinistra-não de raiva, talvez, mas de orgulho porque tio Roderigo era pai deles e era um ilustre cardeal que - e para isso eles deveriam rezar todos os dias e noites - um dia poderia vir a ser papa e o homem mais poderoso de Roma.
- Sim, César - disse ela, porque tinha medo de César quando ele ficava com aquele olhar.
Mas quando ficou sozinha, foi para um canto e continuou a chorar por Giorgio e Otaviano.
Mas até mesmo César iria descobrir que a morte daqueles a quem ele considerava insignificantes poderia fazer uma grande diferença para sua vida.
Roderigo, ainda solícito quanto ao bem-estar da amante, decidiu que, já que ela perdera o marido, deveriam arranjarlhe outro; portanto, arrumou um casamento para ela com um certo Carlo Canale. Foi um bom casamento para Vannozza, porque Carlo era o camareiro do cardeal Francesco Gonzaga e um homem de uma certa cultura; ele estimulara o poeta Angelo Poliziano a escrever Orfeo e trabalhara com distinção entre os humanistas de Mântua. Ali estava um homem que poderia ser útil a Roderigo; e Canale era inteligente o bastante para saber que por intermédio de Roderigo ele poderia adquirir a riqueza que até então não conseguira acumular.
O notário de Roderigo redigiu os contratos de casamento e Vannozza preparou-se para morar com o novo marido.
Mas se ela ganhara um marido, iria perder os três filhos mais velhos. Aceitou filosoficamente a situação, porque sabia que Roderigo não iria permitir que seus filhos continuassem em casa dela depois de passada a infância; o lar relativamente humilde de uma matrona romana não era o ambiente certo para aqueles que tinham um destino brilhante pela frente.
Assim aconteceu a maior de todas as mudanças na vida de Lucrécia.
Giovanni deveria ir para a Espanha, onde se juntaria ao irmão mais velho, Pedro Luís, e onde o pai providenciaria para que lhe fossem concedidas honrarias; e estas honrarias deveriam ser do mesmo vulto que as concedidas a Pedro Luís. César deveria ficar em Roma. Mais tarde, iria fazer os estudos para entrar para uma diocese espanhola, e para isso precisava estudar a lei canónica nas universidades de Perugia e Pisa. Por enquanto, ele estava com Lucrécia, mas os dois deveriam deixar a casa da mãe em breve, indo para a de uma parenta do pai; lá, seriam educados como convinha aos filhos de um pai como o deles.
Aquilo foi um golpe tremendo para Lucrécia. Tudo o que significara um lar para ela durante seis anos iria acabar. O golpe foi rápido e repentino. A única pessoa que se alegrava naquela casa que dava para a Piazza Pizzo di Merlo era Giovanni, que cambaleava de um lado para o outro da ala infantil, brandindo uma espada imaginária, curvando-se numa reverência fingida diante de César, a quem chamava de senhor bispo. Giovanni, dominado pela excitação, falava sempre na Espanha.
Lucrécia observava César, que ficava de braços cruzados, o rosto branco de raiva reprimida. César não tinha ataques de raiva, não gritava que ia matar Giovanni; pela primeira vez, César estava derrotado.
A primeira mudança importante na vida deles tinha sido feita e todos tinham de aceitar o fato de que, por mais que pudessem jactar-se na ala infantil, não tinham alternativa a não ser obedecer ordens.
Só uma vez, quando estava a sós com Lucrécia, foi que César berrou enquanto batia os punhos contra as coxas com tanta violência que Lucrécia achou que ele devia estar se machucando:
- Por que ele tem de ir para a Espanha? Por que eu tenho de entrar para a Igreja? Eu quero ir para a Espanha. Quero ser um duque e um soldado. Você acha que não sou mais talhado para conquistar e governar do que ele? É porque o nosso pai gosta mais dele do que de mim que Giovanni o levou a fazer isso. Eu não vou suportar. Não vou.
Então, segurou Lucrécia pelos ombros e seus olhos faiscantes a amedrontaram.
- Eu lhe juro, irmãzinha, que não vou descansar enquanto não ficar livre... livre da vontade de meu pai... livre da vontade de quem quer que tente me reprimir.
Lucrécia só conseguiu murmurar:
- Você ficará livre, César. Você sempre vai fazer o que quiser.
E então ele de repente soltou uma gargalhada e deu-lhe um daqueles abraços violentos que ela conhecia tão bem.
Ela ficou aflita em relação a César, e isso significou que não se preocupou tanto com o seu próprio futuro quanto deveria.
Adriana, da casa de Mila, era uma mulher muito ambiciosa. O pai, um dos sobrinhos de Calisto iII, tinha ido para a Itália quando o tio se tornara papa, porque parecia que sob aquela benigna e poderosa influência poderia haver um grande futuro para ele. Adriana, portanto, era parenta de Roderigo Bórgia, que a tinha em grande estima, porque era uma mulher não apenas bonita, mas inteligente. Fora devido a essas qualidades que ela se casara com Ludovico, da nobre casa de Orsini, e os Orsini eram uma das mais poderosas famílias da Itália. Adriana tinha um filho que recebera o nome de Orsino; este menino era doente e, por ser vesgo, muito pouco atraente, mas devido à sua posição - herdeiro de uma grande fortuna - Adriana esperava conseguir um brilhante casamento para ele.
Os Orsini tinham muitos palácios em Roma, mas Adriana e sua família moravam no que ficava no Monte Giordano, perto da ponte de Santo Angelo. E foi para esse palácio que Lucrécia e César foram enviados depois de se despedirem dos irmãos e da mãe.
Ali, a vida era muito diferente do que na casa que dava para a Piazza Pizzo di Merlo. Com Vannozza tinha havido uma alegria despreocupada, e as crianças desfrutavam de uma grande liberdade. Podiam andar pelos vinhedos, ou fazer viagens no rio; visitavam com frequência o Campo di Fiori, onde o misturar-se com todos os tipos de pessoas lhes dera um grande prazer. César e Lucrécia perceberam que a vida realmente mudara.
Adriana inspirava um medo respeitoso. Era uma mulher bonita, mas estava sempre vestida de um preto protocolar, insistindo constantemente que não se devia esquecer que aquela era uma casa espanhola, muito embora estivesse situada no coração da Itália. Com suas imponentes torres e fortificações em ameias dominando o Tibre, o palácio era sombrio; suas grossas paredes impediam a entrada da luz do sol e da alegria da Roma que as crianças tinham conhecido e amado. Adriana nunca ria como Vannozza, e nela nada havia de calor e amor.
Ela tinha muitos padres morando no palácio; havia orações constantes, e, por conseguinte, Lucrécia acreditava, naqueles primeiros anos no palácio dos Orsini, que sua mãe de criação era uma mulher muito virtuosa.
César se irritava contra a disciplina, mas nem ele podia fazer qualquer coisa contra ela, até ele estava intimidado pelo sombrio palácio, pelas muitas orações e pelo sentimento de que o palácio era uma prisão na qual ele e Lucrécia tinham sido encarcerados, enquanto Giovanni pudera ir com pompa e esplendor para a Espanha e a glória.
César remoía em silêncio. Não tinha acessos de raiva como acontecia em casa de sua mãe; ficava mal-humorado e às vezes sua raiva dominada deixava Lucrécia com medo. Então, ela se agarrava a ele e lhe pedia que não ficasse triste; cobria-o de beijos e bradava que era dele que ela mais gostava... mais do que de qualquer outra pessoa no mundo, que iria amá-lo aquele dia, no dia seguinte e para sempre.
Nem mesmo essa declaração conseguia acalmá-lo, e ele continuava sorumbático e infeliz, mas às vezes voltava-se para ela e a agarrava em um daqueles abraços ferozes que a machucavam e a excitavam. Então, ele dizia:
- Você e eu estamos juntos, irmãzinha. Sempre vamos amar um ao outro... mais do que tudo no mundo... mais do que tudo no mundo inteiro. Jure.
E ela jurava. Às vezes, os dois ficavam deitados juntos na cama dela ou na dele. Ela ia até lá para consolá-lo, e ele ia procurá-la em busca de consolo. Então, ele falava sobre Giovanni e no quanto a vida era injusta. Por que o pai deles adorava Giovanni?, perguntava César. Por que César não tinha sido o escolhido para ir para a Espanha? César nunca entraria para a Igreja. Ele odiava a Igreja, odiava... odiava.
Sua veemência a assustava. Ela se benzia e lembrava-o de que dava azar falar assim contra a Igreja. Os santos ou, talvez, o Espírito Santo poderiam ficar zangados e vir castigá-lo. Ela dizia que estava com medo; mas dizia aquilo para dar a ele a oportunidade de consolá-la, de lembrá-la de que ele era o grande César, que não tinha medo de ninguém, e ela era a pequena Lucrécia, que devia ser protegida.
Às vezes ela o fazia esquecer da raiva contra Giovanni. Às vezes, eles riam juntos e lembravam-se de como tinham se divertido nas idas ao Campo di Fiori. E então juravam que, acontecesse o que acontecesse, iriam sempre amar um ao outro mais do que a qualquer outra pessoa no mundo.
Mas, durante aqueles primeiros meses, as crianças sentiam que eram prisioneiras.
Roderigo ia visitá-los em Monte Giordano.
No princípio, César pedia que os deixassem ir para casa, mas Roderigo, apesar de pai extremoso, sabia ser duro quando achava estar agindo para o bem dos filhos.
- Meus queridos - dizia ele -, na casa de sua mãe, vocês faziam suas travessuras. Mas fazer travessuras é coisa de criancinha, não de crianças crescidas. Não é apropriado que vocês passem o tempo naquela casa humilde. Um grande futuro aguarda vocês dois. Confiem em mim, que vou julgar aquilo que é melhor para vocês.
E César sabia que, quando o rosto do pai assumia aquela expressão, nada havia a fazer. Ele tinha de obedecer.
- Muito em breve - disse Roderigo a César – você deixará esta casa. Irá para a universidade. Lá, meu filho, você terá muita liberdade; mas primeiro quero que aprenda a agir como um nobre, e embora haja, aqui, uma disciplina como você nunca viu antes, isso é necessário para torná-lo digno daquilo que virá a ser. Tenha paciência. É só por pouco tempo.
E César se acalmara.
O chefe da casa de Orsini era Virgínio, um dos grandes soldados da Itália, e quando ele estava em Monte Giordano o palácio parecia um acampamento militar. Virgínio berrava ordens para todos, e os criados e as aias corriam de um lado para o outro, com medo de desagradarem ao grande comandante.
Por estranho que parecesse, César, que ansiava tanto por ser um soldado, não fazia observações àquele comando rígido; e pela primeira vez na vida Lucrécia viu o irmão pronto a aceitar a vontade de um terceiro. César cavalgava atrás de Virgínio, teso como um soldado, e Virgínio muitas vezes o observava e fazia o máximo para esconder o sorriso de aprovação que lhe assomava aos lábios. Ficava olhando César, nu da cintura para cima, aprendendo a lutar com alguns dos melhores professores de toda a Itália; o menino saía-se muito bem.
- Aquele menino para a Igreja! - disse Virgínio a Adriana e a Ludovico, marido dela. - Ele nasceu para a carreira militar.
Adriana respondeu:
- As carreiras na Igreja, meu caro Virgínio, trazem mais vantagens para um homem do que as da área militar.
- É uma tragédia fazer dele um prelado. O que é que Roderigo Bórgia está pensando?
- No futuro dele... e no futuro dos Bórgia. Eu lhe digo que aquele menino está destinado a ser papa. Pelo menos é isso que Roderigo Bórgia pretende fazer dele.
Virgínio praguejava como seus soldados e dava ao menino tarefas mais árduas, berrava com ele, maltratava-o, e César não reclamava. Ele sonhava ser um grande soldado. Virgínio aprovava os seus sonhos, e chegou até a querer que o menino fosse seu filho.
Assim, aquele ano ficou tolerável para César e a índole de Lucrécia era tal que, ao ver o irmão conformado, ela também se conformava.
Mas quando chegou o fim do ano César já deixara o palácio Orsini e fora para Perugia, e Lucrécia chorava amargamente em sua solidão. Então, de repente, ela começou a perceber que com César ausente ela desfrutava de uma certa liberdade, de uma certa falta de tensão; descobriu que podia começar a pensar no que acontecia com ela sem levar César em consideração.
Lucrécia estava crescendo, e sua educação religiosa não podia ser negligenciada, já que formava a base da educação de todas as moças italianas de berço nobre. A maioria ia para um convento, mas Roderigo tivera muitos pensamentos aflitos sobre isso, porque o comportamento em conventos nem sempre estava acima de qualquer censura e ele estava decidido a proteger a sua Lucrécia. Era verdade que os Colonna enviavam as filhas para San Silvestre em Capite, e ele acreditava que os conventos de Santa Maria Nuova e San Sisto eram igualmente recomendáveis; por isso, decidiu que seria para o de San Sisto, na ViaÁpia, que Lucrécia deveria ir para receber a educação religiosa. Mas ela deveria ficar lá apenas por curtos períodos de tempo, e voltava com frequência para Monte Giordano, onde recebia aulas de línguas - espanhol, grego e latim - e também de pintura, música e finos trabalhos de agulha.
Não era necessário, salientara Roderigo a Adriana, que sua filhinha se tornasse uma virago (termo que na época significava apenas uma mulher erudita). Desejava que a sua Lucrécia fosse altamente instruída, a fim de que pudesse ser uma companheira digna para ele próprio. Era vital que ela recebesse aulas de postura, para que adquirisse os ares e as graças de uma mulher nobre e fosse capaz de assumir o seu lugar entre reis e princesas; ele queria que ela fosse modesta no comportamento. Sua serenidade de caráter lhe dava uma encantadora graciosidade que era aparente até mesmo aos sete anos de idade, quando começou esse curso de preparação; isso Roderigo queria que fosse preservado porque, à medida que via sua filhinha ficar cada dia mais bonita, se tornava cada vez mais ambicioso em relação a ela.
As freiras de San Sisto aprenderam rapidamente a amar sua pequena pupila, não apenas por sua aparência agradável e suas maneiras encantadoras, mas devido àquele forte desejo de agradar a todos e ser amiga; e talvez também elas se lembrassem de que corriam boatos de que ela era, na verdade, filha do grande Roderigo Bórgia, o mais rico dos cardeais e aquele que, segundo se dizia nas altas rodas, tinha todas as chances de vir a ser papa.
Quando Lucrécia estava há três anos em Monte Giordano, Ludovico, marido de Adriana, morreu, e o palácio mergulhou no luto. Adriana cobriu-se de véus pretos e passava muito tempo com os padres que moravam lá, e Lucrécia disse para si mesma, então, que Adriana era uma mulher muito boa.
Um dia, quando Lucrécia tinha voltado do convento de San Sisto para Monte Giordano e estava sentada à mesa com Adriana e Orsino, ela pensou como era triste ela e Orsino comerem e beberem usando utensílios de prata enquanto Adriana, por ser viúva, de luto do marido à moda espanhola, tivesse de fazer isso com utensílios de barro.
Lucrécia inclinou-se sobre a mesa, cujo tampo era feito de mármore e de pedaços coloridos de madeira, e disse:
- Querida senhora Adriana, a senhora ainda está muito infeliz por ser uma viúva. Eu sei, porque minha mãe ficou infeliz quando Giorgio di Croce morreu. Ela chorava e falava sobre a sua infelicidade, e então se sentia melhor.
Adriana endireitou o longo véu preto que lhe caía sobre os ombros.
- Eu não quero falar sobre a minha dor - disse ela. Na Espanha, dizemos que é mal-educado uma pessoa mostrar ao mundo a sua dor.
- Mas nós... Orsini e eu... não somos o mundo insistiu Lucrécia. - E minha mãe...
- Sua mãe era italiana. Seria bom que você se esquecesse de sua origem italiana. Na Espanha, compartilhar um prazer é uma coisa boa, porque ao compartilhar o que é bom a pessoa dá algo que vale a pena receber. Compartilhar a dor é implorar que o fardo da pessoa seja levado, em parte, por uma outra. Os espanhóis são orgulhosos demais para pedir favores.
O assunto estava encerrado. Lucrécia olhou para o seu prato, enrubescida. Percebeu que tinha muito o que aprender. Lamentava ter falado, e agora lançou para Orsini um olhar que implorava consolo; mas ele não estava olhando para ela. Orsini era uma das poucas pessoas que não admirava os seus cabelos amarelos e seu rosto bonito. Ela podia ser uma das cadeiras ornamentais, das quais existiam muitas nos aposentos principais do palácio, tal era a pouca atenção que ele lhe dava.
Adriana estava com ar severo, e Lucrécia temia que fosse sempre desapontá-la, porque ela era uma mulher boa e sempre pensava em fazer o que era corre to.
Mais tarde, naquele dia, enquanto ela e Adriana estavam sentadas juntas trabalhando em uma toalha de altar, Adriana disse:
- Em breve você vai ter uma companhia para compartilhar suas aulas de dança e música.
Lucrécia largou a linha dourada e esperou, a respiração presa.
- Eu vou ter uma filha - disse Adriana.
- Oh, mas... uma filha! Eu pensei... - Lucrécia, aos nove anos de idade, era bem-informada. Vira certas coisas lá da casa que dava para a praça; escutara as conversas dos irmãos e dos criados. Parecia incrível que a piedosa viúva pudesse ter uma filha.
Adriana estava olhando para ela, surpresa, e Lucrécia voltou a enrubescer.
- Meu filho está em idade de se casar - disse Adriana, com frieza. - A noiva dele virá para cá em breve. Ela vai morar conosco como minha filha até que o casamento se realize.
Lucrécia apanhou a agulha e começou a trabalhar, esperando esconder o seu embaraço.
- Será maravilhoso, senhora Adriana - disse ela, mas ficou com pena da jovem que ia casar-se com Orsino.
- Orsino é um dos melhores partidos de Roma-disse Adriana, como se estivesse lendo seus pensamentos.
- Orsino está feliz? - perguntou Lucrécia. - Está dançando de alegria porque vai ter uma esposa?
- Orsino foi criado como um nobre espanhol. Eles, minha querida Lucrécia, não pulam de alegria como qualquer pastor italiano no Campo di Fiore.
- Claro que não, senhora Adriana.
- Ele vai ser feliz. Conhece o seu dever. Tem de se casar e ter filhos.
- E a noiva...
- Em breve você irá vê-la. Vou ensinar a ela tal como ensino a você.
Lucrécia continuou a costurar, pensando na companheira que ia ganhar. Esperava que a noiva não se importasse muito... por ter de casar-se com Orsino.
Lucrécia esperava no grande salão escuro no qual, porque se tratava de uma ocasião especial, as tapeçarias tinham sido penduradas.
Eles estavam reunidos para saudar a jovem que estava sendo levada para o novo lar, e Lucrécia se perguntava como ela estaria se sentindo. Lucrécia iria tentar logo tranquilizá-la, porque a menina talvez estivesse um pouco amedrontada. A própria Lucrécia sabia o quanto podia ser alarmante ser levada de casa para um lugar inteiramente diferente.
Orsino estava de pé ao lado de sua mãe. Adriana falara seriamente com ele sobre o seu dever, e o pobre Orsino estava mais pálido do que nunca em seu traje preto espanhol, e não parecia nada um futuro marido; seu estrabismo estava mais aflitivo do que nunca; nos momentos de tensão, ele sempre parecia mais pronunciado, e o frio olhar de sua mãe estava sempre repreendendo-o.
Lucrécia também estava de preto, mas no seu vestido havia bordados em ouro e prata. Ela preferia que nem sempre eles tivessem de seguir os costumes espanhóis. Os espanhóis gostavam muito do preto para todas as ocasiões cerimoniosas, e Lucrécia adorava o escarlate vivo e em especial o tom de azul-escuro que fazia com que seus cabelos parecessem mais dourados do que nunca. Mas o preto fazia um belo contraste com os seus olhos claros e seus cabelos louros, de modo que quanto a isso ela se achava afortunada.
E enquanto ela esperava, Giulia Farnese entrou no salão. O irmão, Alessandro, um jovem de seus vinte anos, a levara. Ele era orgulhoso, tinha uma aparência distinta, e estava esplendidamente vestido; mas foi Giulia que atraiu a atenção de Lucrécia e de todos os que estavam ali reunidos, porque era bonita, e seus cabelos eram tão dourados quanto os de Lucrécia. Estava vestida à moda italiana, numa túnica azul e dourada, e parecia uma princesa de uma lenda e bonita demais para aquele clã sombrio dos Orsini.
Lucrécia sentiu uma ponta de inveja. Todos estariam dizendo: essa Giulia Farnese é mais bonita do que Lucrécia.
A jovem ajoelhou-se diante de Adriana e chamou-a de "mãe". Quando Orsino foi empurrado para a frente, ele caminhou desajeitadamente e foi titubeante e sem graça na saudação que fez. Lucrécia observou o adorável rosto à procura de um sinal da repulsa que sem dúvida a jovem devia estar sentindo, e esqueceu-se da inveja ao ter pena de Giulia. Mas Giulia não demonstrou emoção alguma. Foi recatada e graciosa - tudo o que se esperava dela.
As duas ficaram amigas logo. Giulia era vivaz, bem-mformada, e muito pronta a prestar atenção a Lucrécia quando não havia homens por perto.
Giulia disse a Lucrécia que estava com quase quinze anos. Lucrécia ainda não completara dez; e aqueles anos a mais davam a Giulia uma grande vantagem. Ela era mais frívola do que Lucrécia e não estava tão disposta a aprender, nem tão ansiosa por agradar. Quando ficaram a sós, ela disse a Lucrécia que achava a senhora Adriana muito rigorosa e solene.
- A senhora Adriana é uma mulher muito boa-insistiu Lucrécia.
- Eu não gosto de mulheres boas - disse Giulia, soltando uma gargalhada.
- Será que é porque elas fazem com que todas nós nos sintamos muito más? - sugeriu Lucrécia.
- Eu prefiro ser má do que boa - disse Giulia, com uma risada.
Lucrécia voltou a cabeça para trás e olhou por cima do ombro para a imagem da Virgem com o Menino Jesus, à frente da qual havia uma lamparina acesa.
- Oh - disse Giulia, rindo -, há muito tempo para se arrepender. O arrependimento é para gente velha.
- Há algumas freiras jovens no convento de San Sisto
- disse Lucrécia.
Aquilo fez com que Giulia soltasse uma gargalhada.
- Eu não fui feita para ser freira. Nem você. Ora, olhe para você! Veja como é bonita... e vai ficar ainda mais bonita. Espere até ter a idade que eu tenho. Talvez então, Lucrécia, você fique tão bonita quanto eu e vá ter amantes, muitos amantes.
Era desse tipo de conversa que Lucrécia gostava. Trazia ecos de um passado de que ela não conseguia lembrar-se. Fazia quatro anos desde que ela deixara a animação da casa de sua mãe para ir para a rígida etiqueta e a depressão espanhola de Monte Giordano.
Giulia mostrou a Lucrécia como caminhar com um andar sedutor, como dar brilho aos lábios e como dançar. Giulia possuía conhecimentos secretos e permitia que Lucrécia a provocasse para revelá-los.
Lucrécia estava um tanto preocupada com Giulia; tinha medo de que se Adriana descobrisse o que ela era na realidade a mandasse embora e ela, Lucrécia, perdesse aquela emocionante companheira.
Elas não deviam deixar que Adriana visse o carmim em seus lábios. Não deviam aparecer a ela com os cabelos soltos no penteado que Giulia arrumara. Giulia nunca deveria usar nenhum dos vestidos estonteantes mas ousados que trouxera consigo. Giulia soltava risadinhas e tentava ficar cerimoniosa diante da sogra em perspectiva.
Orsino nunca as perturbava, e Lucrécia percebeu que ele parecia ter mais medo da noiva do que a noiva dele.
Giulia tinha uma natureza radiosa; disse a Lucrécia que saberia como lidar com Orsino quando chegasse a hora. Estava claro que todos os vestidos bem-decotados, a atenção à aparência que parecia absorver Giulia, não eram para Orsino.
Lucrécia achava que Giulia devia ser muito depravada.
Mas eu acredito, dizia ela para si mesma, que gosto mais de gente depravada do que de gente bem-comportada. Eu ficaria desolada se Giulia fosse embora, mas não me importaria muito se a senhora Adriana fosse.
Havia uma agitação no palácio dos Orsini. Era um daqueles dias especiais em que Lucrécia devia estar mais sisuda do que de costume, quando devia portar-se como uma dama espanhola e andar com o máximo de graça, porque o cardeal Roderigo Bórgia estava indo a Monte Giordano para visitar a filha e Adriana estava ansiosa por que ele não se decepcionasse com ela.
Lucrécia usou os cabelos repartidos no meio e caindo recatadamente sobre os ombros. Com grande interesse, Giulia observava a aia espanhola prepará-la.
- O grande cardeal é muito sério? - perguntou ela.
- Ele é o homem mais importante de Roma-jactou-se Lucrécia.
- Neste caso - disse Giulia -, você vai ter de dar aos seus lábios uma expressão mal-humorada porque, quando não faz isso, fica parecendo muito feliz, e vai ter de ficar calada e só falar quando se dirigirem a você.
- Meu pai gosta de me ver feliz - disse Lucrécia. Ele gosta que eu sorria, e também gosta que eu fale. Ele não se parece nada com Adriana. Mas ela estará observando, e eu terei de me lembrar de tudo o que ela me ensinou, já que, como ele me mandou para cá para ser instruída por ela, não há dúvida de que é isso que ele queria que eu aprendesse.
Giulia fez um trejeito; e Lucrécia afastou-se dela e desceu para a íntima e agradável saleta onde Roderigo a esperava.
As tapeçarias estavam penduradas nas paredes, e as mais finas taças de prata tinham sido escolhidas para aquela ocasião.
Adriana ficou de pé ao lado de Roderigo, enquanto Lucrécia fazia uma mesura ao estilo espanhol. Roderigo colocou as mãos em seus ombros e beijou-lhe as faces, e depois a testa.
- Mas como está crescendo a minha querida - disse, com ternura. - A senhora Adriana esteve me falando sobre o seu progresso.
Lucrécia olhou de soslaio para Adriana, cuja expressão estava séria.
- Ele não tem sido tão bom quanto o senhor esperava?
- perguntou Lucrécia, tímida.
- Minha querida, quem de nós atinge a perfeição? Você me satisfaz. Isso é o suficiente.
Roderigo olhou para Adriana, que curvou a cabeça. Ele estava pedindo que os dois fossem deixados a sós.
Depois que Adriana se retirou, levou consigo todas as restrições, e Lucrécia atirou-se nos braços do pai dizendo-lhe que era maravilhoso vê-lo.
Ele a beijou com ternura e paixão e tirou do bolso um bracelete, que colocou no pulso dela. Ela beijou o bracelete, e ele fez o mesmo. Ele era sempre apaixonadamente sentimental quando os dois ficavam a sós. Ele queria falar a ela sobre o seu amor e ter a confirmação do dela.
Depois que as confirmações foram feitas, eles conversaram sobre Vannozza e sobre César e Giovanni.
- César está indo bem na universidade - disse Roderigo. -Estou orgulhoso da erudição dele e de sua perícia nos esportes. Não vai demorar, eu juro, para que se torne um cardeal. E o Giovanni vai muito bem na Espanha. A minha Lucrécia está crescendo e se transformando numa bela mulher. O que mais poderia eu querer?
- E Goffredo?
- Ele fica mais forte e bonito a cada dia que passa. Ah, nós vamos ter de fazer planos para ele em breve.
Por cima do ombro do pai, Lucrécia viu a porta abrir-se devagar. Giulia, o rosto ruborizado, estava espiando.
Lucrécia ficou apavorada. Aquilo era uma imperdoável quebra de etiqueta. Giulia não percebia o quanto o cardeal era importante. Ter a ousadia de chegar espiando assim... era inimaginável. Giulia seria mandada embora, e os tratos sobre o casamento seriam rompidos se Adriana descobrisse que ela tinha feito uma coisa daquelas.
Roderigo percebera a aflição da filha; voltou-se rapidamente sobre os calcanhares e Giulia foi descoberta.
- E quem é essa? - perguntou Roderigo.
- Giulia, pode entrar, agora - disse Lucrécia -, e eu a apresentarei ao cardeal.
Giulia entrou; para consternação de Lucrécia, não estava usando o seu vestido mais modesto, e os lábios estavam levemente pintados de carmim. Lucrécia rezou para que o cardeal não percebesse.
Giulia, travessa que era, enrubesceu e, com os cabelos de ouro caindo em cachos pelos ombros, parecia um pouco apreensiva enquanto caminhava lentamente em direção a eles.
- Meu pai - disse Lucrécia, rápida -, esta é a Giulia, que vai se casar com Orsino. Posso lhe garantir que ela não fez de propósito.
O cardeal disse:
- Creio que ela fez de propósito. Ela parece ser muito mal-intencionada.
- Oh, não... - começou Lucrécia; e então parou, percebendo que o pai não estava nem um pouco zangado.
- Venha, menina - disse ele -, você não precisa de minha filha para falar por você. Eu lhe peço que fale você mesma.
Giulia correu até ele e ajoelhou-se. Ergueu aqueles maravilhosos olhos azuis para ele e estava sorrindo aquele sorriso confiante que dizia claramente que não acreditava que alguém pudesse ficar aborrecido com ela, ainda que fosse apenas devido à sua encantadora presença.
- Com que então você vai se casar com Orsino - disse o cardeal. - Pobrezinha! Você ama o rapaz?
- Eu amo Roma, eminência - disse Giulia -, e as pessoas que fiquei conhecendo em Roma.
O cardeal soltou uma gargalhada. Para grande alívio de Lucrécia, que percebeu, agora, que, longe de estar zangado, ele estava contente.
- Nessas ocasiões em que eu visito Lucrécia - explicou ele a Giulia como se ela fosse uma pessoa da família
- não há cerimónia. Eu quero assim. Venha, você vai se sentar de um lado meu, Lucrécia do outro, e nós vamos falar sobre Roma... e as pessoas que ficamos conhecendo em Roma...
- Vossa Eminência é gentil para comigo - disse Giulia com um recato que não pareceu sincero. - Acho que me portei muito mal.
- Minha jovem, você é encantadora o bastante para dispensar a etiqueta que outras menos afortunadas devem manter.
Lucrécia percebeu, enquanto eles ficavam sentados rindo e conversando juntos, que o pai se voltava com mais frequência para Giulia do que para ela.
Estava perplexa demais para sentir ciúme.
E foi assim que Adriana os encontrou.
Por estranho que pareça, Adriana não pareceu zangada, e Lucrécia ficou aliviada e assombrada pelo fato de que nada foi dito sobre o ato alarmantemente ousado de Giulia.
A própria Giulia pareceu sofrer uma mudança sutil; ficou mais submissa e, quando Lucrécia tentou falar com ela sobre Roderigo, pareceu menos comunicativa do que de costume. Sim, respondeu ela diante da insistência de Lucrécia, ela achava que o cardeal era um homem muito bonito. O homem mais bonito que ela já vira?, perguntou Lucrécia, que sempre gostava de ouvir cumprimentos sobre sua família. Giulia admitiu que era bem possível.
Não quis dizer mais do que isso e, durante aquele dia todo, pareceu afastar-se de Lucrécia, de modo que a garotinha não pôde deixar de ficar aflita.
E quando, no dia seguinte, ouvindo o barulho de patas de cavalo, Lucrécia olhou pela janela e viu o cardeal se afastando do palácio, o primeiro impulso foi chamá-lo, mas isso, é claro, seria inconveniente. Ele chegara sozinho, o que era fora do comum, e não a procurara, o que era ainda mais fora do comum. Por que motivo ele iria a Monte Giordano, se não fosse para ver a filhinha?
Aquilo era impressionante. Então, Lucrécia achou que compreendia. Estava claro que ele não podia deixar que a ousadia de Giulia no dia anterior passasse em brancas nuvens. Por ser delicado por natureza e odiasse estar presente quando era necessário punir, ele não repreendera Giulia, mas fingira estar contente com a companhia dela. Aquilo era inteiramente devido aos seus modos corteses; mas agora ele voltara para falar com Adriana a sério; fora reclamar e perguntar como é que uma sirigaita como Giulia podia ser uma companhia adequada para sua filha.
O assombro de Lucrécia tornou-se um sofrimento. Ela teve a certeza de que muito em breve ficaria privada da animada companhia de Giulia.
Giulia estava alegre. Estava usando um novo colar incrustado de esmeraldas e rubis.
- Mas isso é um trabalho primoroso - bradou Lucrécia. - Você possuía um tesouro desses e não me mostrou antes!
- Sem dúvida que é primoroso - concordou Giulia; -e eu jamais o teria escondido de você, minha doce Lucrécia, se o tivesse para mostrar-lhe. Acabei de ganhá-lo.
- Um presente! De quem?
- Isso seria revelar um segredo, e revelar um segredo não é prudente.
Giulia parecia ter amadurecido em poucas horas. Cheia de coqueteria, ela parecia mais uma jovem de dezoito anos do que de quatorze. Sua risada era alta e contagiante; ela cantava alegres canções italianas sobre o amor; e estava torturantemente misteriosa. Havia, também, o mistério do colar.
Mas Giulia era jovem demais, estava excitada demais para manter o segredo por muito tempo. Queria compartilhar confidências; queria exibir sua experiência diante de Lucrécia. Lucrécia perguntou:
- O que foi que aconteceu? Por que está tão contente? Você não se importa que o cardeal tenha reclamado com a senhora Adriana de sua ousadia... o que pode muito bem significar que você vai ser mandada embora?
Então, Giulia soltou uma gargalhada e retorquiu:
- Eu não vou ser mandada embora. E o cardeal não reclamou. Vou lhe contar uma coisa, Lucrécia. Eu tenho um amante.
- Orsino...
- Orsino! Você acha que algum dia eu arranjaria Orsino como amante? Você arranjaria?
- Eu... mas eu nunca...
- Talvez você ainda seja jovem demais. Quanto a mim, vou fazer quinze em breve... e me casarei com Orsino. Portanto, o que me resta fazer, a não ser arranjar um amante?
- Oh, tenha cuidado - implorou Lucrécia. - E se a senhora Adriana a ouvisse falar assim? Você seria mandada embora,
- Eu não vou ser mandada embora. Oh, não... não... não!
Giulia riu tanto que lhe vieram lágrimas aos olhos. Lucrécia ficou olhando para ela, intrigada.
As visitas do cardeal a Monte Giordano tornaram-se muito frequentes, e nem sempre ele ia ver Lucrécia.
Giulia vestia-se com muito apuro antes das visitas dele não os vestidos mais modestos -, e às vezes Lucrécia ouvia a risada em tom agudo de Giulia quando ela estava a sós com o cardeal. Aquilo era desconcertante.
Mas ele sempre vinha visitar a mim!, dizia Lucrécia consigo mesma.
E então começou a compreender.
Giulia tinha muitos presentes valiosos. Lucrécia ouvira os criados dizerem que ela era a jovem mais bonita de Roma. Eles a tinham apelidado de La Bella e referiam-se a ela mais por esse apelido do que pelo nome. Os ricos presentes vinham de um amante rico, um amante que Giulia recebia na casa formal dos Orsini. Demorou algum tempo para que Lucrécia se permitisse acreditar quem era aquele amante.
Então, ela não podia mais guardar as suspeitas para si.
Uma noite, saiu da cama, apanhou sua vela e foi até o quarto de Giulia. Giulia estava dormindo, e a luz da vela de Lucrécia mostrou-lhe a beleza daquele rosto perfeito. Giulia era, realmente, La Bella.
A luz da vela, refletindo-se no rosto de Giulia, despertoua, e ela se levantou de um salto, olhando assustada para Lucrécia.
- O que foi que aconteceu? - perguntou ela.
- Eu preciso saber - disse Lucrécia. - O cardeal é seu amante, não é?
- Você me acordou para me dizer o que tudo mundo sabe? - perguntou Giulia.
- Então é verdade! Giulia soltou uma gargalhada.
- Pense nisso - disse ela, sentando-se na cama e abraçando os joelhos. -Ele tem cinquenta e oito anos e eu ainda não fiz quinze. No entanto, nós nos amamos. Não é um milagre? Quem iria pensar que um homem com a idade dele poderia fazer com que eu o amasse?
- Com ele todas as coisas são possíveis - disse Lucrécia, solene.
Aquilo fez com que Giulia desse uma daquelas risadas misteriosas.
- É verdade - disse ela. - E eu me sinto feliz. Lucrécia ficou calada, olhando para Giulia, vendo-a sob uma nova luz, tentando lembrar-se de como ela era antes daquela coisa assombrosa lhe acontecer.
Então, falando devagar, disse:
- Se a senhora Adriana souber disso, vai ficar muito zangada.
Giulia tornou a rir com o que a Lucrécia pareceu indiferença.
- O que você está fazendo deve ser mantido em segredo
- insistiu Lucrécia. - Eu sei que nós não gostamos da senhora Adriana, mas ela é uma mulher honrada e jamais permitiria que você morasse na casa dela se soubesse.
Giulia parou de rir e olhou atentamente para Lucrécia.
- Você vai sentir frio, em pé aí - disse ela. - Venha para a minha cama. Você já não é criança, Lucrécia. Ora, em breve vai fazer dez anos. Daqui a pouco vai ter os seus amantes. Pronto! Assim é melhor, não é? Agora deixe-me dizer-lhe uma coisa. O cardeal é meu amante. Ele diz que sou a mulher mais bonita do mundo. Mulher, está entendendo, Lucrécia? E em breve vou me casar com Orsino. Mas quem liga para Orsino? Eu não. Nem o cardeal.
- A senhora Adriana liga para ele.
- Liga. Liga, sim. É por isso que ela está contente por eu agradar ao cardeal. Minha família também está contente, Lucrécia.
- Contente! Mas como pode ser isso, se você vai se casar com Orsino?
- Vou, vou. E é um bom casamento. Os Farnese e os Orsini ficarão unidos, e isso é bom. Não se pode casar com um cardeal... infelizmente... infelizmente!
- Se os cardeais pudessem se casar, meu pai teria se casado com minha mãe.
Giulia confirmou com a cabeça. Depois, continuou:
- Você não deve sentir pena de Orsino. Eu lhe disse que a mãe dele está contente por eu ser amante do cardeal. Eu lhe disse isso, não disse?
- Mas ela é uma mulher virtuosa. Nós a achamos impiedosa, mas temos que admitir que é virtuosa.
- Lucrécia, você vive num mundo infantil, e está na hora de sair dele. Adriana está satisfeita com o fato de o cardeal me amar. Ela me ajuda a me vestir quando ele está para chegar, me ajuda a me embelezar. E o que é que ela diz quando me ajuda a me vestir? Ela diz: "Não se esqueça de que dentro em breve será esposa de Orsino. Faça com que o cardeal concorde em promover Orsino. Ele tem uma grande influência no "Vaticano. Não deixe de extrair disso o máximo de vantagem... para você e para Orsino."
- Então ela está satisfeita por você e meu pai serem amantes?
- Nada poderia deixá-la mais encantada. Ela torna tudo fácil para nós.
- E você vai se casar com o filho dela dentro de tão pouco tempo!
Giulia soltou uma gargalhada.
- Está vendo, você não conhece o mundo. Se eu fosse ter um caso amoroso com um cavalariço... ah, aí eu estaria derrotada. Cairia em desgraça, e ele, pobre rapaz, sem dúvida teria o corpo traspassado por uma espada numa noite escura, ou seria encontrado no Tibre com uma pedra amarrada ao pescoço. Mas o meu amante é um ilustre cardeal, e, quando os homens de influência amam como ele me ama, todo mundo se reúne em volta para pegar alguns dos benefícios. A vida é assim.
- Então Adriana, com todas as suas orações e com todo o seu rigor, toda a sua correção, no final das contas não é uma mulher virtuosa!
- O que são virtuosa e má, pequena Lucrécia? Só as criancinhas têm ideias sentimentais como as suas. O cardeal está feliz por me amar; eu me sinto feliz por ser amante dele. E a família de Orsino e a minha estão felizes por causa do grande benefício que eu posso lhes trazer. Orsino? Ele não conta, mas poderíamos dizer que até ele está feliz, porque isso significa que não vai ter de fazer amor comigo, o que... por ser um monstro fora do normal... não acredito que ele esteja ansioso por fazer!
Lucrécia ficou calada algum tempo, pensando mais em Adriana do que em qualquer outra pessoa: Adriana solenemente de joelhos diante da Virgem e da lâmpada; Adriana, lábios enrugados, murmurando: "Deve-se fazer isso porque, embora seja desagradável, é assim que deve ser"; Adriana, que fazia com que a pessoa sentisse que os santos estavam continuamente vigilantes, registrando a menor falha para ser alegada contra ela no dia do Juízo Final, a mulher virtuosa, que estava disposta a permitir que acontecesse em sua casa o caso de amor ilícito entre um homem de cinquenta e oito anos e sua futura nora de quatorze e, além disso, era conivente com ele e o estimulava porque ele poderia trazer honrarias para seu filho.
Honrarias! Lucrécia percebeu que era necessário fazer uma reavaliação das palavras e seus significados.
Ela era realmente uma criança; havia muito o que aprender; e estava ansiosa por sair da infância, um estado no qual parecia que inocência era sinónimo de loucura.
Giulia casara-se com Orsino, e a cerimónia tivera lugar no palácio dos Bórgia, e a primeira das testemunhas a assinar os documentos do casamento fora Roderigo Bórgia.
O casal voltou para Monte Giordano e a vida continuou como dantes. O cardeal fazia visitas frequentes ao palácio dos Orsini e ninguém, agora, fazia qualquer segredo do fato de que ele ia com a finalidade principal de visitar a amante.
Ele também ficava encantado em ver a filha, e parecia contente em passar muito tempo em companhia das duas jovens.
Giulia estava exercendo sua influência sobre Lucrécia, que ficava cada vez mais parecida com ela. Giulia falava do amor entre ela e o cardeal e sobre muitos outros assuntos triviais. Disse a Lucrécia que sabia como os cabelos delas poderiam manter a brilhante cor amarela; tinha uma receita que os faria brilhar como ouro puro batido pelo sol. Elas lavaram os cabelos, experimentaram a mistura e congratularam-se porque os cabelos estavam mais dourados do que nunca. Lucrécia começou a ansiar pela época em que iria ter um amante, porque, sempre pronta a ser influenciada por aqueles que lhe eram próximos, ia usando Giulia como modelo.
Quando soube que seu irmão mais velho, Pedro Luís, morrera e que Giovanni iria tornar-se duque de Gandia e casar-se com a noiva que tinha sido escolhida para Pedro Luís, aquilo pareceu não ter importância, a não ser pelo fato de que ela se perguntou como César iria receber aquela notícia. Não havia dúvida de que ele iria querer o ducado de Gandia; com toda certeza, iria querer a noiva de Pedro Luís.
Lucrécia estava com onze anos quando o cardeal foi visitar o palácio e, depois de abraçá-la, disse-lhe que estava arranjando um casamento para ela.
Iria ser um casamento com um espanhol, porque ele acreditava que a Espanha, que estava progredindo depressa para ser uma potência de primeira grandeza, decidida a dominar o mundo, tinha mais a oferecer à sua filha do que a Itália.
O noivo seria dom Cherubino Juan de Centelles, que era o senhor de Vai d'Ayora, eminência, e era um grande partido.
Lucrécia ficou um tanto alarmada, mas o pai apressou-se a assegurar-lhe que, embora o contrato nupcial estivesse redigido e fosse ser assinado em breve, ele combinara que ela ainda levaria um ano para deixar Roma.
Aquilo era reconfortante. Um ano parecia um tempo muito longo para a jovem Lucrécia.
Ela agora podia conversar com Giulia sobre o futuro casamento, e gostava de fazer isso, em especial levando-se em conta que o acontecimento parecia estar em um futuro muito distante.
Estava começando a conhecer o mundo, a aceitar com a máxima calma o relacionamento entre seu pai e Giulia; a
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aceitar a confusa piedade e a insensível amoralidade de Adriana.
Aquela era a vida que era vivida naquela camada da sociedade em que Lucrécia entrara ao nascer.
Ela aprendera todas aquelas coisas; e aquilo significava que deixara a infância para trás.
Durante o ano seguinte, Lucrécia realmente amadureceu, e depois pareceu-lhe que antes de Giulia entrar em sua vida, trazendo esclarecimentos, ela fora mesmo uma menina inocente.
Giulia era sua amiga queridíssima. Juntas, elas faziam muitas viagens até o palácio do cardeal, onde Roderigo mimava as duas, encantado por ser Lucrécia que lhe levara Giulia e Giulia que lhe levara Lucrécia.
E por que iria Lucrécia questionar a retidão dessa conduta? Ela, Giulia e Adriana foram convidadas para o casamento de Franceschetto Cibo, um acontecimento pomposo quando Roma inteira se alegrou e houve fogueiras em todas as sete colinas; Franceschetto era abertamente reconhecido como filho de Inocêncio VIII, e o Santo Padre não fazia segredo disso, pois esteve presente ao banquete e fez com que as fontes jorrassem vinho; além do mais, a noiva de Franceschetto era filha do grande Lorenzo de Médici; de modo que não foram apenas romanos que homenagearam o bastardo do papa.
Por isso, era natural não ter ocorrido a Lucrécia fazer outra coisa que não aceitar as condições nas quais vivia.
Goffredo agora morava em Monte Giordano, e ela se sentia feliz por ter o jovem irmão ao seu lado. Ele chorou um pouco por ter deixado a mãe, mas Vannozza, embora sentindo muitas saudades dele, ficou muito contente por deixá-lo ir porque via naquele arranjo uma admissão, por parte de Roderigo, de que ele aceitava Goffredo como seu filho.
Foi durante aquele ano que Roderigo decidiu que dom Cherubino Juan de Centelles não era um marido satisfatório para sua filha. É possível que tenha sido o brilhante casamento de Franceschetto Cibo que fez com que ele se decidisse. Era verdade que Franceschetto era filho de um papa, mas Inocêncio estava envelhecendo depressa, e quem sabia o que os meses seguintes poderiam trazer? Não! Ele iria conseguir um marido melhor para sua filha.
Alegremente, desfez o contrato anterior e fez um outro mais adequado aos seus planos ambiciosos, escolhendo dom Gasparo di Procida, conde de Aversa, para noivo de Lucrécia. Isso porque dom Gasparo era uma ligação com a Casa de Aragón, que agora mandava em Nápoles.
Lucrécia aceitou a mudança placidamente. Como não vira nenhum dos maridos em perspectiva, o assunto não a tocava de perto. Ela possuía a natureza feliz de Roderigo, que a fazia acreditar que tudo acabaria saindo bem para ela.
E então, naquele agosto de 1492, quando Lucrécia tinha doze anos, ocorreu o fato que iria mostrar ser muito importante para o resto de sua vida.
Inocêncio estava morrendo e havia tumultos por toda Roma. A pergunta em todos os lábios era: quem sucederá a Inocêncio?
Havia um homem que estava decidido a fazer isso. Roderigo estava com sessenta anos. Se quisesse concretizar a ambição de sua vida inteira, deveria fazê-lo em breve. Quando ouviu a notícia de que Inocêncio estava em seu leito de morte, decidiu, como nunca dantes decidira, que seria o próximo papa.
Roderigo, delicado, cortês, parecendo maleável, era um homem de ferro por baixo de um exterior delicado. Nada iria atravessar-se em seu caminho. Infelizmente, teria de haver um conclave, e o papa deveria ser eleito. Aqueles dias foram dias de verdadeira tensão para Roderigo. Ele não visitou a amante ou a filha durante aquele período de decisão, mas o pensamento de todos, no palácio dos Orsini, estava com ele. Todos rezavam para que o próximo papa fosse Roderigo.
Lucrécia estava agitada. O pai lhe parecia um deus; alto, poderoso; ela não podia compreender por que deveria haver qualquer ansiedade. Por que todos não compreendiam que havia apenas uma coisa que podiam fazer, e era eleger o cardeal Roderigo Bórgia seu papa?
Ela conversava com Giulia, que estava tão tensa e aflita quanto ela, pois, embora fosse excitante ser amante do cardeal mais rico de Roma, quanto mais não seria ser amante do papa? Por isso, Giulia compartilhava da excitação de Lucrécia, de seu entusiasmo e de seus temores. O pequeno Goffredo procurava entender e acrescentava suas orações às delas; e Adriana via um futuro brilhante, no qual ela poderia pôr de lado o seu luto e acompanhar a nora para o Vaticano; lá, poderia viver no luxo... bastando que Roderigo fosse eleito papa.
O calor estava violento em Roma durante aquele fatídico mês de agosto. Cada qual em sua cela separada, os grandes cardeais iniciaram o conclave. Multidões reuniam-se nas ruas, aglomerando-se em torno do Vaticano, e havia uma especulação continuada e acalorada quanto aos resultados.
No princípio, ninguém valorizava muito as chances de Roderigo.
Havia grandes rivalidades, porque a Itália era, na época, um país dividido em pequenos estados e ducados, o que resultava em contínuas diferenças entre eles. Inocêncio tinha sido fraco, mas desfrutara dos conselhos de seu grande aliado, Lorenzo de Medici, e fora em grande parte devido a isso que a península gozara de um período de paz. Mas Lorenzo morrera e havia problemas surgindo.
Ludovico Sforza, regente de Milão, e Ferrante de Aragón, rei de Nápoles, eram os grandes rivais que ameaçavam mergulhar a Itália em um estado de guerra. A razão para isso era que o sobrinho de Ludovico, Gian Galeazzo, era o verdadeiro herdeiro de Milão; mas Ludovico mantivera o jovem preso e nomeara a si mesmo regente. Sua desculpa fora de que o jovem duque não estava apto a governar; ele, Ludovico, provocara aquela infeliz situação, fazendo com que o menino fosse desmoralizado tanto mental quanto fisicamente com orgias arranjadas por provocação de Ludovico. Gian, no entanto, casara-se com uma enérgica princesa de Nápoles, Isabella de Aragón, que era neta de Feirante. Era esta a causa dos problemas entre Nápoles e Milão que ameaçavam, naquela época, explodir numa guerra que poderia ter envolvido a Itália inteira.
Nápoles e Milão tinham medo de que os franceses procurassem invadir seu território, porque os franceses declararam que reivindicavam seus direitos a Nápoles e Milão - a Nápoles, por intermédio da Casa de Anjou, e a Milão, pela Casa de Orléans.
Isso significava que seria muito importante, para Ludovico e Ferrante, ter um papa no Vaticano que fosse a favor deles.
A rivalidade era intensa. Ascanio Sforza, irmão de Ludovico, era a esperança de Milão. Ferrante apoiava Giuliano della Rovere.
Roderigo, como uma raposa astuta, esperava.
Sabia que tinha pouco a temer de Ascanio, já que este estava com apenas trinta e oito anos e se se tornasse papa seria o golpe de morte nas esperanças de quase todos os cardeais vivos. Com um homem assim tão jovem eleito, a menos que ele morresse jovem, praticamente não haveria esperança de um novo conclave durante anos. Além do mais, dificilmente havia probabilidade de que o candidato de Ludovico tivesse muito apoio. O regente de Milão era conhecido, nos quatro cantos da Itália, como um usurpador.
Não era o que acontecia com dela Rovere, mas, embora ele fosse elegível, possuía uma língua ferina que ofendia as pessoas. Ele poderia ter adeptos, mas também tinha muitos inimigos.
O favorito talvez fosse o cardeal português Costa, que estava com oitenta anos. Em épocas como aquela, era frequente achar-se aconselhável eleger um homem muito velho, para dar um curto período a fim de que se tomasse fôlego antes que houvesse um novo conclave. Se o cardeal Costa fosse eleito, não seria uma tragédia tão grande quanto a eleição de della Rovere ou - que os santos não permitissem! - de Ascanio Sforza,
Mas Roderigo estava decidido a fazer com que ninguém fosse eleito, exceto ele.
Havia, também, entre os vários candidatos, o cardeal Oliviero Carafa, que Ascanio - sentindo que devido à sua pouca idade ele próprio tinha poucas chances - apoiava porque Carafa era inimigo de Ferrante.
Um outro candidato - Roderigo Bórgia - parecia não estar na disputa; mas Roderigo estava calado, esperando com astúcia.
Roderigo era o mais rico dos cardeais, e sabia como a riqueza era um fator importante em épocas assim. Um pequeno suborno aqui, um grande ali, uma promessa de ouro e prata, uma insinuação do que um homem de sua fortuna podia pagar por votos - e quem sabe?, o trono papal bem poderia ser seu, enquanto os outros brigavam entre si.
Os cardeais estavam isolados, e o conclave começou. Foi um período de forte tensão para Roderigo, e no entanto ele conseguiu esconder seus sentimentos. Enquanto comparecia à missa e à comunhão matutina, pensava em como poderia conseguir os votos de que precisava. Naquele momento, parecia não ter esperanças a tarefa que tinha pela frente, e no entanto enquanto seguia para a Capela Sistina, pronta e iluminada por velas sobre o altar e a mesa diante de cada um dos tronos, parecia perfeitamente calmo. Corria os olhos pelos cardeais seus colegas, vestidos em farfalhantes túnicas violeta e rochets brancos, e sabia que no íntimo de nenhum deles o fogo da ambição queimava com a violência com que queimava no dele. Tinha de vencer.
A ele pareceu que os procedimentos estavam mais lentos do que nunca, mas os cardeais-escrutadores acabaram sendo eleitos, e ele estava sentado à sua mesa. Não havia som algum na capela, exceto o raspar de muitas penas enquanto cada cardeal escrevia: "Eu, cardeal, elejo para o Sumo Pontificado o Reverendíssimo Senhor Cardeal..."
Oh, por que, perguntava-se Roderigo, irado, não se pode votar em si mesmo?
Ele se levantou com os demais e uniu-se ao caminhar cerimonioso até o altar. Ajoelhou-se e murmurou: "Eu atesto, perante Cristo que será o meu juiz, que escolhi aquele que acho o mais indicado para ser escolhido se isto estiver de acordo com a vontade de Deus."
Eles colocaram as cédulas com o voto no prato raso que cobria o cálice e inclinaram a patena até que o papel escorregou para dentro do cálice; depois, lenta e solenemente, cada figura vestida de roxo voltou para o seu trono.
Na primeira contagem de votos, Roderigo teve sete, mas Carafa, nove, Costa e Michiel, o cardeal de Veneza, também tiveram sete, e della Rovere, cinco. Quanto a Ascanio Sforza, não teve voto, e estava claro desde o início que nenhum dos cardeais estava disposto a ver um homem tão moço no trono papal.
Era um impasse, porque tinha de haver uma maioria de dois terços para um candidato antes que ele fosse eleito.
Foi feita uma fogueira e os votos foram queimados; e todas aquelas pessoas que estavam esperando na praça de São Pedro para ouvir o resultado da eleição, vendo a fumaça, chamaram a atenção umas das outras para ela e viram que o primeiro escrutínio tinha sido infrutífero.
Roderigo decidiu, então, que precisava agir com rapidez. Em sua cela, fez os planos, e quando se misturou aos colegas cardeais não perdeu tempo e pôs-se a trabalhar.
Começou por Ascanio Sforza, pedindo-lhe que caminhasse com ele nas galerias depois da sesta. Ascanio, percebendo que não tinha chance alguma de ser eleito, deu a entender que estava pronto a ganhar o que pudesse. Roderigo poderia oferecer-lhe subornos maiores do que qualquer outro.
- Se eu fosse eleito papa - prometeu Roderigo - eu não me esqueceria de você. A vice-chancelaria seria sua, e eu também lhe daria o bispado de Nepi.
Era um bom prémio de consolação, e Ascanio hesitou apenas um pouco antes de concordar. E como aconteceu com Ascanio, aconteceu com os outros que perceberam logo que estavam fora da disputa mas podiam sair do conclave mais ricos do que quando entraram.
Assim, enquanto Roma suava e aguardava os resultados, a astuta raposa Roderigo trabalhava em silêncio, sorrateiramente e com a máxima velocidade dentro do conclave. Ele tinha de fazer isso. Decidira que dessa vez tinha de vencer, porque como poderia dizer quando haveria outra chance?
Era o dia 11 de agosto, cinco dias depois que o conclave começara. Na praça de São Pedro, as pessoas que tinham estado esperando a noite toda observavam, os olhos na janela emparedada.
Enquanto o amanhecer iluminava os rostos ansiosos, houve um grito repentino e a excitação ficou febril, porque os tijolos tinham começado a cair da janela emparedada.
A eleição terminara. Depois do quarto escrutínio, houvera uma escolha unânime.
Roderigo Bórgia tinha sido eleito papa, e dali em diante seria conhecido como Alexandre VI.
Roderigo estava na sacada, ouvindo a aclamação do povo. Aquele era o momento mais importante de sua vida. A coroa pela qual ele lutara desde que seu tio, Calisto iII, o adotara junto com seu irmão agora era sua. Ele se sentia poderoso enquanto ficava ali em pé, capaz de qualquer coisa. Quem teria acreditado, cinco dias atrás, que ele seria o escolhido? Até mesmo seu velho inimigo, della Rovere, lhe dera o seu voto. Era maravilhoso o que uma pequena persuasão podia fazer, e quem poderia resistir a uma persuasão como um rico abadado, a legação de Avignon e a fortaleza de Ronciglione? Não della Rovere. Um alto preço a pagar por um voto? Em absoluto. Ele comprara poder com a riqueza que acumulara ao longo dos anos, e iria assegurar-se de que o poder se tornasse ilimitado.
Estendeu as mãos, e por alguns segundos fez-se um completo silêncio na multidão. Então, bradou:
- Eu sou o papa e o vigário de Cristo na Terra.
Houve uma alta aclamação. Não importava como ele chegara àquela eminência. Tudo o que importava era que ela era dele.
A coroação de Alexandre VI foi a mais pomposa que Roma jamais vira. Lucrécia, observando de uma sacada no palácio de um cardeal, ficou dominada pelo orgulho e pela alegria com aquele homem que - depois de César, que ela não via há muito tempo - ela mais amava no mundo.
Aquele era o seu pai, aquele homem bonito, em sua túnica suntuosa, montado tão ereto em seu cavalo branco, abençoando as multidões que se aglomeravam em torno dele, o centro de todo o desfile, aquele homem era seu pai.
Alexandre estava perfeitamente cônscio de que não havia coisa alguma de que o povo gostasse mais do que pompa, e quanto mais brilhante, mais ele gostava; e quanto mais esplêndida, maior seria o respeito que o público teria por ele. Portanto, estava decidido a superar todas as coroações anteriores. Ordenara que não se poupasse despesa alguma; e não se poupou. O povo de Roma iria alegrar-se naquele dia porque Alexandre VI era o seu papa.
Os guardas papais estavam vestidos com tamanho esplendor que até mesmo ilustres príncipes pareciam andarilhos ao lado deles; as longas lanças e os escudos brilhavam ao sol, e eles pareciam deuses. Cardeais e altos dignitários, que tomavam parte da procissão com suas comitivas, estavam todos determinados a sobrepujar uns aos outros em esplendor, e a procissão era tão longa que levou duas horas para passar da catedral de São Pedro para a de São João Latrão. E no centro de tudo estava o papa em seu cavalo branco de neve, o papa de sessenta e oito anos que parecia ter o vigor de um homem de vinte. Não era de admirar que o povo - tal como Lucrécia
acreditasse que o novo papa era mais do que humano.
A procissão era detida aqui e ali para que os admiradores e partidários de Alexandre-que agora compreendiam Roma inteira, ao que parecia-pudessem prestar suas homenagens.
"Vive diu bos, vive diu celebrande per annos,
Inter Pontificum gloria prima choros", cantou um belo menino em nome de sua nobre família que queria mostrar que apoiava de todo o coração o novo papa.
Outros espalhavam flores à frente dele e bradavam: "Roma elevou César à grandiosidade - e agora aqui está Alexandre; mas um era apenas um ser humano, e o outro é um deus."
Alexandre recebia todas aquelas homenagens com um charme e uma cortesia que conquistavam os corações de todos os que o viam.
Que momento de triunfo! Por toda parte lá estava o emblema do touro pastando. Alexandre, erguendo os olhos, o viu; e também percebeu a jovem de cabelos dourados na sacada, a única de seus filhos a testemunhar aquele triunfo. Giovanni estava na Espanha, César, na sua universidade de Pisa, e o pequeno Goffredo (que ele aceitava em parte por gostar muito do menino e em parte porque os filhos homens lhe eram muito necessários) era jovem demais para comparecer. Seus filhos! Todos eles teriam seus papéis a representar em seu sonho de poder. A pequena Lucrécia ali de pé, os olhos arregalados de admiração respeitosa e assombro, aceitando-o, como fazia aquele público nas ruas naquele dia, como um deus entre eles, era a representante de seus filhos.
A homenagem do povo, os gritos de aclamação, o inebriante senso do poder eram o narcótico que levava um homem a dormir um sono no qual ele sonhava com a grandeza; e toda grandeza deve, primeiro, tomar sua forma em sonhos.
- Bênçãos para o Santo Padre! - gritava a multidão.
Isso!, pensou Alexandre. Que as bênçãos dos santos caiam sobre mim, para que eu realize meus sonhos e una toda a Itália sob um único governante; e que esse governante seja um papa Bórgia.
Lucrécia aprendeu logo o quanto era mais agradável ser filha de um papa do que de um cardeal.
Firme no trono papal, Alexandre não fazia segredo de suas intenções. Giovanni deveria voltar da Espanha, para que Alexandre pudesse colocá-lo no controle dos exércitos papais; César seria feito arcebispo de Valência; quanto a Lucrécia, ganharia um palácio - o de Santa Maria in Pórtico. Lucrécia ficou encantada com essa honraria, especialmente porque agora poderia mudar da sombria fortaleza de Monte Giordano para o centro da cidade.
Alexandre tinha um propósito duplo ao dar a Lucrécia aquele palácio; ele ficava ao lado da igreja de São Pedro e havia uma passagem secreta que o ligava com a igreja e continuava até o Vaticano. Adriana e Giulia deveriam fazer parte da equipe de Lucrécia; Orsino iria acompanhá-las, mas é claro que ele não tinha importância.
Lucrécia esperava pela nova vida com entusiasmo. Era maravilhoso ser uma pessoa madura. Seu irmão Giovanni estaria na Itália em breve, e César, pelo que seu pai lhe dissera, seria chamado de volta a Roma. Ele estava apenas sendo mantido longe por um curto período de tempo, porque Alexandre não queria que pensassem que ele estava continuando com a sua política de nepotismo, já que, antes da eleição, prometera abandoná-la. César já era arcebispo, e Alexandre sabia que, se o filho estivesse em Roma, ficaria muito difícil cobri-lo de mais honrarias. Assim, por enquanto, César ficaria em Pisa - mas seria apenas por enquanto.
Lucrécia tinha muito por que aguardar. Via o pai com frequência, via-o em meio a toda a sua pompa e cerimónia, e assim ele parecia ficar mais esplêndido, mais magnífico.
O dia todo, ela ouvia os sinos de São Pedro; e enquanto trabalhava em seu bordado ou ficava sentada ao lado da janela observando os préstitos, o cheiro de incenso e o som das vozes cantando chegavam até ela, parecendo prometer-lhe um futuro maravilhosamente excitante.
Adriana tirara o luto e respeitava tanto Lucrécia quanto se dedicava a Giulia, que tinha ainda mais influência sobre o Vaticano do que Lucrécia.
Lucrécia entendia por quê. Ela não ficava surpresa se, dando uma olhada no quarto de Giulia, via que ajovem estava ausente. O som de passos, tarde da noite ou de manhã cedo, naquele corredor do qual saía a passagem secreta para o Vaticano, não a surpreendia.
Ela concordava com Adriana que Giulia era, de fato, afortunada por ser amada por um homem tão magnífico quanto Alexandre.
Muitos visitantes importantes - embaixadores e outros dignitários dos diversos estados - compareciam ao palácio de Santa Maria, e sob a proteção de Adriana Lucrécia sabia como recebê-los. Nenhum deles chegava sem levar presentes - alguns para Lucrécia, outros para Giulia.
- Como são delicados! - disse Lucrécia um dia, quando examinava um belo conjunto de peles. - Ninguém vem de mãos abanando.
Giulia riu da sua simplicidade.
- Não fique tão grata assim, adorada Lucrécia - aconselhou ela.-Eles só dão porque esperam conseguir em troca algo que signifique muito mais para eles.
Lucrécia ficou pensativa.
- Isso estraga o presente-disse ela. - Na verdade, faz com que não se trate de presente coisa nenhuma.
- Claro que não é presente. É um pagamento por favores que esperam receber.
- As peles já não parecem tão bonitas - disse Lucrécia, suspirando.
Giulia olhou para ela com carinho e pensou como Lucrécia demorava a ficar realista. Se Lucrécia tivesse nascido pobre, que simplória bondosa deveria ter sido!
Será que ela não percebia que, como filha adorada do papa, era grande a sua influência sobre ele?
Lucrécia sabia, porque percebera logo isso. Adriana acreditava que Alexandre não queria uma simplória como filha, e portanto aquela simplicidade, aquela generosa sinceridade de Lucrécia precisava ser contida. Essas qualidades eram uma tolice.
Era necessário que ela tivesse muitos bens valiosos, dava a entender Adriana. Será que ela pretendia contar totalmente com o pai para obtê-los? Não, ela devia ser sutil. Devia usar a sua própria esperteza, para que o papa percebesse que tinha uma filhinha inteligente e pudesse sentir orgulho dela.
Ela adorava belas roupas? Ninguém as adorava mais do que ela. Lucrécia sempre tinha sido um pouco vã em sua beleza, e o que é que podia mostrar melhor essa beleza do que belas peles e finos brocados? Então, que fizesse com que aqueles que procuravam seus favores ficassem cientes disso. Que ficassem sabendo que, se lhe dessem presentes que a agradassem, ela mostraria sua gratidão pedindo ao pai que lhes desse a ajuda de que precisavam.
- Ora - disse Adriana -, Francesco Gonzaga virá visitá-la em breve. Ele quer muito que o irmão, Sigismondo, se torne um cardeal.
- Ele vem me pedir isso?
- Uma palavra sua com seu pai ajudaria a causa dele.
- Mas como é que eu, que sei tão pouco sobre esses assuntos, poderia influenciar meu pai?
- Seu pai quer que você mostre que é uma Bórgia. Ele ficaria satisfeito por fazer o que você pedir, e gostaria que Gonzaga soubesse a estima que ele tem por você. Se Gonzaga lhe trouxesse um presente valioso e você pudesse dizer a seu pai: "Veja o que Gonzaga me trouxe!", ora, então Sua Santidade ficaria contente com a honra prestada a você e estaria disposto, disso não tenho dúvidas, a conceder favores a uma pessoa que tivesse mostrado saber como pagar por eles.
- Entendo - disse Lucrécia. - Eu não sabia que esses assuntos eram resolvidos dessa maneira.
- Então, está na hora de aprender. Você adora pérolas, não?
Os olhos de Lucrécia cintilaram. Ela adorava pérolas, sim. Elas combinavam com a sua pele clara; quando colocava o belo colar que Giulia ganhara de Alexandre, tinha certeza de que ficava tão bonita quanto Giulia.
- Vou dizer a Gonzaga que você gosta demais de pérolas - disse Adriana, sorrindo como quem sabe das coisas.
E sem dúvida seria maravilhoso, pensou Lucrécia, possuir pérolas como as de Giulia.
De modo que era assim que a filha de um papa vivia. Era maravilhosamente emocionante e muito lucrativo. Quem era Lucrécia - a Lucrécia muito preguiçosa, que mais do que a maioria das jovens adorava roupas finas e ornamentos que lhe caíssem bem -, quem era ela para discordar daquele modo de viver?
Alexandre recebeu a filha em seus aposentos privados no Vaticano; com ela, como acompanhante, estava Giulia. Alexandre estava muito apaixonado pela segunda e praticamente não deixava um dia passar sem vê-la.
Quando Alexandre recebia suas duas adoradas, gostava de fazê-lo com o máximo de intimidade, de modo que dispensava todos os seus assistentes quando elas chegavam e mandava as jovens sentar uma de cada lado, para que pudesse envolver cada uma delas com um dos braços.
Como eram bonitas, pensava ele, com as jovens peles macias e os brilhantes cabelos dourados - sem dúvida duas das mais bonitas jovens de Roma. A vida parecia boa quando ele, aos sessenta anos, tinha o vigor de um jovem, e ele estava certo de que Giulia não fingia quando mostrava tão claramente que a paixão dela por ele era tão grande quanto a dele por ela, e que o seu pobre marido vesgo, embora jovem, para ela não tinha charme algum.
Lucrécia, aconchegada ao pai, admirava o esplendor dos aposentos dele. O teto era folheado a ouro, e as paredes tinham cores delicadas; havia tapetes orientais no chão, e o grande artista Pinturicchio começara a pintar os murais; mas estes ainda não cobriam as paredes, e abaixo deles havia pendentes da mais fina seda. Havia muitas cadeiras, tamboretes e almofadas de seda e veludo em cores brilhantes; e dominando tudo estava a glória do trono papal.
Tudo aquilo pertencia àquela pessoa que parecia um deus e que, parecia impossível acreditar, era o seu terno e amantíssimo pai, e que, quando ficava a sós com suas adoradas garotas, parecia dar a entender que a maior alegria de sua vida era agradá-las.
- Mandei chamá-la hoje porque tenho uma coisa a lhe dizer, minha filha - disse ele. - Nós vamos cancelar os contratos que fizemos para o seu casamento com dom Gasparo di Procida.
- É mesmo, papai? - perguntou ela. Giulia soltou uma gargalhada.
- Ela não se importa. Ela não se importa nem um pouquinho.
O papa acariciou a face da filha, e Lucrécia lembrou-se do prazer que sentira com as carícias de César.
- Papai - bradou ela -, quando é que vou ver César? Giulia e o papa riram juntos e trocaram olhares.
- Está vendo que tenho razão - disse Giulia. - Pobre Lucrécia! Nunca teve um amante!
Não foi bem um franzir que passou pelo rosto do papa; raramente ele mostrava contrariedade com suas adoradas.
Mas Giulia percebeu que a sua observação o perturbara. Ela, no entanto, estava certa demais de seu poder para ter medo de desagradar.
- É verdade - disse ela, quase que desafiadoramente.
- Um dia - disse Alexandre -, não tenho dúvida de que minha filha irá encontrar um grande prazer no amor. Mas ela vai esperar até o momento em que esteja pronta.
Lucrécia tomou a mão do pai e a beijou.
- Ela gosta mais do pai e dos irmãos do que de quaisquer outras pessoas - disse Giulia. - Ora, sobre todo homem que vê, ela diz: "Como ele fica insignificante ao lado do meu pai... ou de César ou de Giovanni!"
- Lucrécia é uma Bórgia - disse Alexandre -, e os Bórgia vêem uma grande virtude nos Bórgia.
- Eles não são os únicos - disse Giulia, rindo e mantendo o braço dele junto ao corpo. - Eu lhe peço, adorado e Santo Padre, que nos diga quem será, agora, o noivo de Lucrécia.
- Um homem de grande importância. O nome dele é Giovanni Sforza.
- Ele é velho? - perguntou Giulia.
- O que tem a idade a ver com o amor? - perguntou o papa, e dessa vez havia um tom de reprovação em sua voz.
Mas Giulia foi rápida em sua resposta apaziguadora.
- Só os deuses têm o dom de continuarem jovens para sempre. Sou capaz de jurar que Giovanni Sforza é um simples ser humano.
Alexandre riu e beijou-a.
- É um bom casamento. Minha filha adorada irá me abençoar por arranjá-lo. Vamos, Lucrécia, não vai mostrar a sua satisfação?
Lucrécia beijou-o, obediente.
- Mas eu já fiquei noiva tantas vezes! Vou esperar até vê-lo, e depois até estar casada com ele, antes de ficar agradecida demais.
O papa soltou uma gargalhada. Elas o divertiam com o seu papaguear, e ele lamentou ter de mandá-las embora porque havia assuntos oficiais a resolver.
Cercadas pelas amas, elas deixaram o Vaticano, e enquanto atravessavam a praça um vagabundo maltrapilho olhou com insolência para Giulia e bradou:
- Ora, é a esposa de Cristo!
Os olhos de Giulia faiscaram, mas o homem não perdeu tempo: correu com a velocidade que as pernas lhe permitiam e desapareceu antes que Giulia pudesse mandar qualquer pessoa atrás dele.
- Você está zangada, Giulia-disse Lucrécia -, zangada com as palavras de um mendigo.
- Não gosto de ser insultada - retorquiu Giulia. Você sabe o que ele quis dizer.
- Que você é amante de meu pai. Isso não é um insulto. Pense em todos os que vêm cortejá-la por causa disso!
- O povo acha isso um insulto-disse Giulia.-Quem dera que eu pudesse mandar aquele homem para a prisão. Eu mandaria castigá-lo.
Lucrécia sentiu um arrepio. Sabia que muitas vezes homens que insultavam pessoas de destaque tinham a língua cortada.
Ela não iria pensar nisso. Talvez tivesse de aprender a ver aquelas coisas com indiferença, como tivera de aceitar o relacionamento entre seu pai e Giulia e a aceitação disso pela piedosa Adriana, e como tivera de aceitar o fato de que devia ficar rica e importante aceitando subornos. Não duvidava de que com o tempo iria ficar tão indiferente quanto os outros com relação àqueles assuntos; mas havia em seu íntimo uma suavidade que tornava aquilo difícil.
Ela precisava adaptar-se. Precisava ser como aqueles que viviam à sua volta. Mas por enquanto iria recusar-se a pensar nas coisas cruéis que podiam acontecer a homens e mulheres simplesmente porque falavam com liberdade demais.
Queria ser feliz; portanto, não iria pensar em qualquer coisa que pudesse fazer com que se sentisse o oposto.
Voltou-se para Giulia.
- Talvez eu me case com esse homem, esse Giovanni Sforza. Gosto do som do nome dele. Ele tem o mesmo nome de meu irmão.
- Existem muitos Giovanni na Itália - lembrou-lhe Giulia.
- Mas eu duvido que aconteça alguma coisa para fazer meu pai escolher um outro marido para mim. Giulia, não seria estranho se eu nunca me casasse... porque assim que fico noiva de um, tenho de me casar com alguém que será muito mais importante, mais adequado?
- Não há dúvida de que um dia você vai se casar.
- Então, vou ter um amante... como você tem.
- Nem sempre os maridos são amantes, minha cara. E ainda lhe falta muito para ser como eu sou.
Giulia aproximou o rosto do de Lucrécia e sorriu com o seu mais misterioso sorriso.
- Vou lhe contar um segredo. O papa é mais do que meu amante. Ele é o pai da criança que trago dentro de mim.
- Oh, Giulia! Então você vai ter um filho! Giulia sacudiu a cabeça.
- Foi por isso que fiquei tão zangada quando aquele vagabundo disse o que disse. Creio que isso está se tornando conhecido. Isso significa que alguns dos nossos criados são mais indiscretos do que deviam ser... e falam demais.
- Não os castigue por isso, Giulia - disse Lucrécia. É natural que eles sejam assim.
- Por que você se importa com quem eu castigue? Lucrécia disse:
- Eu não quero pensar em castigos. O sol brilha com tanta beleza sobre a praça, não?, e os aposentos de meu pai não eram bonitos? Em breve César e Giovanni estarão de volta e eu terei um marido. Há tanta coisa para me deixar feliz. É só que não quero pensar que alguém possa não estar contente.
- Há momentos - disse Giulia-em que você parece muito simples; e há momentos em que parece muito difícil de se compreender.
Lucrécia estava em seus aposentos no palácio de Santa Maria e suas escravas e aias a ajudavam a vestir-se. Uma prendia a fita do vestido enquanto outra colocava em seus cabelos um ornamento com jóias incrustadas.
Os entendimentos para o seu casamento tinham progredido muito; dom Gasparo, o candidato rejeitado, tinha sido aplacado com um presente de três mil ducados; e a Itália toda estava falando na aliança Bórgia-Sforza. Havia quem visse nisso uma ameaça à sua segurança, e della Rovere decidira que estaria mais seguro fora de Roma. Ferrante de Aragón ficou perturbado com a aliança e esperava apreensivo pelo que ela teria como consequência.
Não havia dúvida, na mente de Lucrécia, de que aquele noivado atingira um estágio que nenhum dos outros alcançara, e parecia quase certo que ela iria casar-se com Giovanni Sforza.
Por isso, quando um pajem bateu à porta pedindo licença para entrar e disse a uma de suas amas que um nobre cavalheiro chegara ao palácio e pedia para vê-la, Lucrécia pensou logo que Giovanni Sforza tivesse chegado.
Aquilo era um erro dele, é claro. Ele não devia chegar informalmente; deveria haver uma procissão solene na entrada da cidade; a filha do papa e seu futuro marido não poderiam encontrar-se como um criado e uma empregada qualquer; mas seria um prazer e muito romântico fazer isso. Ela alisou as dobras de seu vestido brocado e olhou para sua imagem no espelho de metal polido. Estava linda; estava ansiosa por compartilhar daquele tipo de amor sobre o qual Giulia falava.
- Diga a ele que irei recebê-lo - disse.
Mas quando girou nos calcanhares, o visitante já estava na porta, e a visão dele fez com que Lucrécia esquecesse a ânsia romântica que tinha por ver o futuro marido.
- César! - bradou ela e, esquecendo toda a cerimónia, correu para ele e atirou-se nos braços do irmão.
Ouviu a risada grave dele, a risada de triunfo, de paixão, de algo que ela não compreendia mas adorava. Pegou a mão dele e beijou-a muitas vezes.
- Está feliz por me ver, Lucrécia?
- Faz muito tempo - bradou ela.
- Você pensava em mim de vez em quando?
- Todos os dias, César, todos os dias de minha vida. Nunca me ajoelhei diante da minha Virgem em meu quarto sem mencionar o seu nome.
César estava olhando com impaciência para as amas reunidas em volta dela. Era como se um novo elemento estivesse no quarto, dominando todos os demais; as mulheres pareciam diferentes; ficaram paradas como criaturas que tivessem virado pedra. No entanto, elas quase se curvavam servilmente. Lucrécia se lembrou de que, há muito tempo, na ala infantil em casa de sua mãe, os escravos e os empregados de ambos os sexos tinham medo de César.
- Deixem-nos a sós - disse. - Meu irmão e eu queremos conversar muito, e isso é só entre nós.
Não foi preciso falar duas vezes com elas.
Irmão e irmã abraçaram-se, e César atraiu-a para a janela.
- Quero olhar para você - disse ele. - Ora, você mudou, minha Lucrécia.
Havia ansiedade nos olhos dela.
- César, você não está contrariado com a mudança? César beijou-a.
- Ela me encanta - disse ele.
- Mas você precisa me falar sobre você. Você andou pelo mundo. É um arcebispo. Isso parece estranho. Meu irmão César, arcebispo de Valência. Vou ter de ser muito recatada quando estiver com você. Tenho de me lembrar de que você é um homem santo da Igreja. Mas, César! Você não parece um arcebispo! Esse seu gibão! Eu digo que está costurado com ouro. E que tonsura pequena. Um simples padre tem mais do que isso.
Os olhos dele flamejaram de repente; ele cerrou os punhos e Lucrécia viu que ele estava tremendo de raiva.
- Não fale nessas coisas! Lucrécia, eu ordeno que pare. Arcebispo de Valência! Eu pareço um arcebispo? Eu lhe digo, Lucrécia, que não serei obrigado a continuar nesta vida. Eu nunca pretendi entrar para a Igreja.
- Não, César, não pretendia, mas...
- Mas um de nós tem de entrar para a Igreja. Um de nós, e este fui eu. Sou o mais velho, mas sou aquele que tem de se afastar para meu irmão passar. Ele vai voltar em breve. É de se imaginar os preparativos que serão feitos para ele. Giovanni, duque de Gandia! Nosso pai se importa mais com o dedinho do pé dele do que com o meu corpo inteiro.
- Não é verdade-bradou ela, aflita.-Não é verdade.
- É verdade. - Os olhos dele pareciam assassinos quando se voltaram para ela. - Não me contradiga, menina, quando eu lhe digo que é verdade. Eu não vou ficar na Igreja, não vou...
- Você precisa dizer ao nosso pai - disse Lucrécia, apaziguadora.
- Ele não vai dar importância. Por todos os santos, eu juro. - César foi até o santuário e, erguendo as mãos como quem estava prestes a fazer um juramento solene, bradou: Santa Mãe de Deus, eu juro que não descansarei enquanto não puder levar a vida que quero. Não vou deixar que ninguém me tolha, que ninguém me dirija. Eu, César Bórgia, sou meu próprio senhor, a partir de hoje.
Ele mudara, percebeu Lucrécia; ficara mais violento, e ela ficou com medo dele.
Pousou a mão no braço dele, num gesto de súplica.
- César-disse ela -, você fará o que quiser. Ninguém irá guiá-lo. Você não seria César, se permitisse isso.
Ele voltou-se para ela e parecia que toda a paixão o abandonara; mas ela viu que ele ainda tremia com a violência da emoção.
- Minha irmãzinha - disse ele -, nós ficamos separados por muito tempo.
Ela estava ansiosa por desviar o assunto da Igreja.
- Eu tenho tido notícias suas de vez em quando, sei que você tem se saído muito bem nos estudos.
Ele tocou-lhe a face com delicadeza.
- Sem dúvida ouviu muitas histórias a meu respeito.
- Histórias de atos ousados.
- E tolos?
- Você tem vivido como os homens vivem... homens que não respondem perante ninguém.
Ele deu um sorriso carinhoso.
- Você sabe como me acalmar-disse ele. - E eles vão casar você com aquele paspalhão de Pesaro, e sem dúvida irão tirá-la de mim.
- Nós nos visitaremos muitas vezes, César... todos nós, você, Giovanni... Goffredo...
A fisionomia dele ficou séria.
- Giovanni-bradou ele com uma careta.-Ele estará em suas brilhantes campanhas, dominando toda a Itália com os seus exércitos. Ele vai ter pouco tempo para estar conosco.
- Neste caso, você vai ficar contente, César, porque sempre o odiou.
- E você... como os demais... o venerava. Ele era muito bonito, não era? Nosso pai era louco por ele - tanto que me obriga a entrar para a Igreja, quando é para lá que Giovanni devia ir.
- Vamos, conte-me sobre suas aventuras, você era um rapaz folgazão, não era? Todas as mulheres de Perugia e Pisa estavam apaixonadas por você, e você, pelo que se sabe, não ficava indiferente a elas.
- Não havia uma só delas com cabelos tão dourados quanto os seus, Lucrécia. Não havia uma só delas que soubesse como me tranquilizar com palavras doces como você faz.
Ela encostou a face na mão dele.
- Mas isso é natural. Nós nos compreendemos. Ficamos juntos quando éramos pequenos. É por isso que, de todos os homens que já vi, não havia um único tão bonito aos meus olhos quanto o meu irmão César.
- E quanto ao seu irmão Giovanni? - bradou ele. Lucrécia, lembrando-se das velhas brincadeiras de coqueteria e rivalidade, fingiu pensar.
- Sim, ele era muito bonito - disse ela; depois, observando a expressão sombria voltando ao rosto de César, apressou-se a acrescentar: - Pelo menos, sempre achei que sim, até que o comparava com você.
- Se ele estivesse aqui, você não diria isso - acusou César.
- Diria. Juro que diria. Ele vai chegar em breve. Então, vou mostrar que gosto mais de você.
- Quem sabe que modos alegres que ele aprendeu na Espanha! Sem dúvida que será irresistível para o mundo inteiro, como agora é para o nosso pai.
- Não falemos dele, César. Então você soube que eu vou ter um marido?
Ele colocou as mãos nos ombros dela e olhou-a nos olhos. Devagar, disse:
- Prefiro falar sobre meu irmão Giovanni, a beleza e os triunfos dele, do que sobre isso.
Os olhos dela estavam arregalados, e a inocência que havia neles provocou nele uma ternura que lhe era rara.
- Você gosta dessa aliança com os Sforza? - perguntou ela. - Ouvi dizer que o rei de Aragón ficou muito contrariado. César, talvez se você for contrário ao casamento e tiver um bom motivo... Talvez, se falasse com o nosso pai...
Ele abanou a cabeça.
- Lucreciazinha - disse ele, em voz baixa -, minha irmã adorada, não importa quem eles escolham para seu marido, eu irei odiá-lo.
Era um mês de junho quente, e por toda parte da cidade tremulavam bandeiras. O leão dos Sforza estava lado a lado com o touro dos Bórgia, e toda loggia, todo telhado, bem como as ruas, estavam cheios para ver a entrada em Roma do noivo que o papa escolhera para sua filha.
Giovanni Sforza tinha vinte e seis anos e era um viúvo que tinha uma natureza morosa e estava um pouco desconfiado da barganha que lhe estava sendo oferecida.
A menina de treze anos que seria sua esposa nada significava para ele como tal. Ouvira dizer que era bonita, mas era um homem frio, que não era tentado pela beleza. As vantagens do casamento poderiam ser óbvias para alguns, mas ele não confiava no papa Bórgia. O magnífico dote que tinha sido prometido com a menina - trinta e um mil ducados deveria ficar retido até a consumação do casamento, e o papa impusera com rigor o preceito de que a consumação não aconteceria por enquanto, porque Lucrécia era muito criança; e se ela morresse sem filhos, os ducados passariam para o irmão dela, Giovanni, o duque de Gandia.
Sforza nada tinha do jovem impetuoso. Ele esperaria, antes de se congratular consigo mesmo, para ver se havia algo pelo qual congratular-se.
Possuía uma timidez natural que poderia ser devida ao fato de vir de um ramo subalterno dos Sforza de Milão; era filho ilegítimo de Costanzo, o lorde de Cotignolo e Pesaro, mas apesar disso herdara as propriedades do pai; estava sem dinheiro, e o casamento com os ricos Bórgia parecia uma excelente perspectiva; era ambicioso, e isso, se pudesse confiar nas intenções de Alexandre, o teria feito muito feliz com a união.
Mas não podia deixar de sentir-se contrafeito quando trompetes e clarins anunciaram sua aproximação quando ele atravessou a Porta del Popolo, para onde os cardeais e altos dignitários haviam enviado importantes membros de suas comitivas para recebê-lo e dar-lhe as boas-vindas a Roma.
Naquele cortejo seguiam dois jovens, mais magnificentemente, mais elegantemente vestidos do que quaisquer outros. Eram dois dos homens mais bonitos que Sforza já vira, e pelo porte Sforza adivinhou quem deviam ser. Deu graças por poder fazer uma bela figura em seu cavalo da Barbaria, nos trajes ricos e nos colares de ouro que lhe tinham sido emprestados para a ocasião.
O mais moço daqueles homens era o duque de Gandia, que voltara recentemente da Espanha. Era realmente bonito, um tanto solene no momento porque aquela era uma ocasião cerimoniosa e ele, depois de passar alguns anos na corte espanhola, tinha os modos de um espanhol. No entanto, podia ser alegre e despreocupado; isso era óbvio.
Mas foi o mais velho que exigiu e manteve a atenção de Sforza. Era César Bórgia, arcebispo de Valência. Sforza ouvira histórias sobre aquele homem que o faziam tremer ao recordá-las. Ele também era bonito, mas de uma beleza sorumbática. Claro que era atraente; dominaria qualquer ambiente; Sforza estava cônscio de que as mulheres nas ruas, que viam o cortejo de loggias e do alto de telhados, em sua maioria concentravam seu interesse naquele homem. O que haveria nele? Estava belamente vestido; o irmão também. Suas jóias brilhavam; mas não brilhavam mais do que as do irmão. Seria a maneira de ele se portar? Seria um orgulho que sobrepujava todo o orgulho; uma certeza de que ele era um deus entre os homens?
Sforza não se importou em levar o assunto adiante. Sentiu, apenas, que se tinha suspeitas quanto a Alexandre, sentia-se ainda mais contrafeito com relação ao filho dele.
Mas agora a saudação era amigável; a recepção, calorosa.
Pelo Campo di Fiore seguiu a cavalgada, com os jovens ao centro - César, Sforza e Giovanni - atravessando a ponte de Santo Angelo para fazer uma parada diante do palácio de Santa Maria in Pórtico.
Sforza ergueu os olhos. Lá, na loggia, os cabelos brilhando como ouro ao faiscante sol, estava uma menina vestida de cetim vermelho decorado com rubis e pérolas. Agarrava-se a um pilar da loggia e a luz do sol pousava em suas mãos ofuscantes de tantas jóias.
Ela olhou para baixo, para os irmãos e para o homem que seria seu marido.
Ela estava com treze anos, e as pessoas que a cercavam não tinham conseguido tirar-lhe as ideias românticas. Ela sorriu e ergueu as mãos em sinal de boas-vindas.
Sforza olhou para ela sério. A beleza juvenil não o tocou. Estava cônscio dos irmãos dela, um de cada lado; e continuou a perguntar-se até que ponto poderia confiar neles e no papa.
O palácio de Santa Maria estava num estado febril de agitação; havia sussurros e gritos, o barulho de pés correndo de um lado para o outro; as costureiras e os cabeleireiros lotavam a ante-sala; o capelão de Lucrécia ficara tanto tempo com ela, preparando-a espiritualmente, que aqueles que tinham de prepará-la fisicamente estavam impacientes.
O calor era intenso - era o mês de junho -, e Lucrécia sentia-se esmagada pelo peso do vestido de noiva pesadamente bordado com fios de ouro e decorado com jóias que tinham custado quinze mil ducados. Seus cabelos dourados estavam contidos numa rede ornamentada com cintilantes pedras preciosas. Adriana e Giulia tinham insistido pessoalmente em pintar-lhe o rosto e arrancar as sobrancelhas para que ela pudesse aparecer uma elegante dama da alta sociedade.
Lucrécia nunca se sentira tão agitada em toda a sua vida. O vestido podia ser pesado demais para que fosse considerado confortável naquele dia quente, mas ela pouco se importava, porque gostava muito de enfeitar-se.
Estava pensando na cerimónia, no povo que iria aglomerar-se para vê-la atravessar do palácio para o Vaticano, em si mesma, serenamente bela, a heroína daquele acontecimento esplendoroso, com seus pajens e escravos para espalhar coroas de flores de perfume doce à sua frente enquanto ela caminhava. Praticamente não pensava no marido. Pelo que deduzia ao observar as pessoas que lhe eram próximas, o casamento não era um assunto com o qual uma pessoa devia preocupar-se em demasia. Giovanni Sforza parecia ser velho, e não sorria muito; os olhos não faiscavam como os de César e de Giovanni. Ele era diferente; era solene e parecia um pouco severo. Mas o casamento não iria ser consumado e, segundo Giulia lhe dissera, ela não precisava preocupar-se com ele, se não quisesse. Ela continuaria em Roma - de modo que para Lucrécia casamento significava apenas um brilhante espetáculo com ela como a figura central.
Giulia bateu as mãos de repente e disse:
- Tragam a escrava para que a senhora Lucrécia possa vê-la.
As criadas fizeram uma mesura e logo depois uma anã preta estava de pé diante de Lucrécia. Estava resplandecente em um vestido dourado, os cabelos presos em uma rede incrustada de jóias, e o traje era uma réplica exata do de sua estonteantemente bela patroa. Lucrécia soltou um grito de alegria, porque os cabelos e a pele negra daquela mulher faziam com que os de Lucrécia parecessem mais louros do que nunca.
- Ela irá carregando a sua cauda-disse Adriana. - Vai ser divertido e encantador de se ver.
Lucrécia concordou e, voltando-se para uma mesa na qual havia uma travessa de doces, apanhou um deles e enfiou-o na boca da negra.
Os olhos negros brilharam com o afeto que a maioria dos criados - e em especial as escravas - tinha pela senhora Lucrécia.
- Vamos - disse Adriana, severa -, ainda há muito o que fazer. Madalena, traga as caixinhas de perfumes incrustadas de jóias.
Enquanto Madalena se dirigia para a porta, ela prendeu a respiração de repente, porque um homem havia entrado, e os homens não deviam entrar na câmara de uma dama quando ela estivesse sendo vestida; mas lorde César não obedecia a regra alguma, a lei alguma, exceto às suas.
- Meu senhor... - começou Adriana, mas César silenciou-a com um franzir de cenho.
- César, o que acha do meu vestido? - bradou Lucrécia. - Diga-me se você me admira ou não.
César ignorou-a e, olhando direto para Adriana, disse:
- Eu quero falar com minha irmã... a sós.
- Mas, senhor, o tempo é curto.
- Eu quero falar com ela a sós - repetiu ele. - Não estou sendo claro?
Até mesmo Adriana intimidava-se diante daquele arrogante jovem de dezoito anos. Rumores de sua vida nas universidades de Perugia e Pisa tinham chegado até ela, e o conteúdo estranho das histórias a tinha feito estremecer. Muitas vezes aconteciam acidentes com quem se opunha àquele arrogante filho do papa, e ela não era tão poderosa a ponto de poder correr o risco de ofendê-lo.
- Já que o senhor pede, assim será - contemporizou ela -, mas, meu senhor, peço-lhe que se lembre de que não podemos chegar atrasadas ao Vaticano.
Ele sacudiu a cabeça e Adriana fez um sinal para que todas as damas saíssem com ela.
Depois que elas saíram, Lucrécia bradou:
- César, há pouco tempo. Eu devo estar preparada...
- Você deve estar preparada para me dar um pouco do seu tempo. Já se esqueceu, agora que tem um noivo, de que jurou que jamais iria amar qualquer outro como me amava?
- Eu não me esqueço, César. Jamais me esquecerei. Ela estava pensando em si mesma, atravessando a praça, imaginando os gritos de admiração; podia até sentir o cheiro do incenso e o perfume das flores.
- Você não está pensando em mim - disse César. Quem pensa? Meu pai me restringe, e você... você é tão fútil quanto qualquer cortesã.
- Mas, César, hoje é o dia do meu casamento.
- Há pouco o que comemorar. Sforza! Você o considera um homem? No entanto, eu preferiria vê-la casada com ele do que com alguns outros, porque eu juro que ele é pouco mais do que um eunuco.
- César, você não deve ter ciúme.
César soltou uma gargalhada. Aproximou-se dela e agarrou-lhe o pescoço, no gesto de que ela se lembrava tão bem. Ela soltou um grito de alarme, porque tinha medo do que pudesse acontecer à sua rede com jóias.
- O casamento não será consumado. - Ele riu. - Fiz com que o nosso pai entendesse o bom senso disso. Ora, quem sabe, se o panorama mudar, esses Sforza poderão não ser dignos de nossa amizade, e então é bem possível que o Santo Padre vá desejar que não tivesse ficado tão ansioso por casar a filha.
- César, por que é que você está tão perturbado com esse casamento? Você sabe que eu tenho de me casar, e isso não faz diferença para o meu amor por você. Eu nunca poderia amar qualquer outra pessoa como amo você.
Ele continuou a segurar-lhe o pescoço; os dedos deixariam marcas - sempre deixavam - e ela estava ansiosa por pedir a ele que a soltasse, mas não tinha coragem. Ela gostava de estar com ele, como sempre gostara, mas agora, como sempre, a excitação que ele provocava tinha suas raízes em um certo temor que ela não compreendia e que a repelia ao mesmo tempo em que a atraía.
- Eu acredito que sim - disse ele. - Não importa o que aconteça a você ou a mim... sempre haverá esse elo entre nós. Lucrécia e César... somos uma só pessoa, irmãzinha, e nenhum marido seu nem esposa minha poderão mudar isso um dia.
- Sim, sim - disse ela, ofegante. - É verdade. Eu sei que é verdade.
- Não estarei no jantar de gala depois da cerimónia disse César.
- Oh, mas você tem de ir, irmão. Estou muito ansiosa por dançar com você.
César olhou para os seus trajes de arcebispo.
- Não fica bem, irmã, homens da Igreja dançando. Você estará dançando com seu irmão, o duque de Gandia. Não tenho dúvida de que ele será um esplêndido par.
- César, você tem de estar lá!
- Nas suas comemorações nupciais. Claro que não estarei. Você acha que posso suportar vê-la se divertindo num momento desses?
- Giovanni vai estar lá, e talvez Goffredo...
- Um dia, irmã, você vai compreender que meu sentimento por você é mais forte do que qualquer coisa que Giovanni possa sentir por alguém.
Houve gritos na praça, e César foi até a janela.
Lucrécia ficou ao lado dele, mas já não podia sentir mais o mesmo prazer com toda a pompa que estava sendo preparada para ela, porque estava profundamente cônscia do cerrar e descerrar dos punhos de César e da expressão de raiva de seu rosto.
- Ele está vindo - disse César. - O belo duque de Gandia.
- Ele vai me conduzir até o Vaticano - disse Lucrécia.
- Eu já devia estar pronta. Oh, nós vamos nos atrasar. César, temos de trazer de volta Adriana e Giulia. Giovanni chegou e eu não estou pronta.
Mas Adriana, ouvindo os sons da chegada de Giovanni, decidiu que era necessário arriscar-se à raiva de César e entrou no quarto, seguida de Giulia e das amas de Lucrécia.
- O duque chegou - disse ela. -Vamos, deixe-me ver se sua rede está no lugar. Ah, sim, e onde está a anã preta? Venha cá, anã. Pegue a cauda do vestido da senhora Lucrécia e fique ali...
César assistiu aos preparativos com o cenho franzido, e Lucrécia, ciente do que ele sentia, achou que seu ciúme estava empanando aquele dia feliz.
Giovanni entrou.
Ele mudara muito desde que fora para a Espanha. Alto e muito elegante, levara uma vida de devassidão, mas aos dezessete anos isso deixara muito poucos sinais em seu rosto. Usava uma barba dourada que suavizava a crueldade sensual de sua boca, e os olhos, lívidos, transparentes e tão parecidos com os de Lucrécia, embora belamente desenhados e de pestanas escuras, não tinham a serena delicadeza dos de sua irmã e eram, em contraste, frios e duros. Mas ele possuía aquele fascínio dos Bórgia que herdara do pai, e em seus belos trajes vistosos, que consistiam de uma túnica turca à lafrançaise, tão comprida que se arrastava pelo chão, feita de tecido crespo, de ouro, com pérolas imensas costuradas nas mangas, e um gorro adornado com uma enorme pedra preciosa, ele era um espetáculo magnífico. As jóias cintilavam nele, e em torno do pescoço havia um longo colar composto inteiramente de rubis e pérolas.
Lucrécia prendeu a respiração ao olhar para ele.
- Ora, Giovanni - bradou ela -, você está magnífico!
Por um instante, ela ignorou César, que ali estava, carrancudo. Para ele, aquilo parecia simbólico do desejo de seu pai de humilhá-lo. Ali, diante de Lucrécia, estavam seus dois irmãos, os rivais; e um deles, através dos favores e da generosidade do pai, podia chegar como um príncipe, enquanto o outro era obrigado a usar os trajes relativamente sem vida da Igreja.
César sentiu um daqueles acessos de raiva tomar conta dele. Quando os tinha, ficava com vontade de envolver com as mãos a garganta de quem os provocava e apertar, apertar, para que pudesse apaziguar a vaidade ferida com os gritos de piedade.
Ele não podia apertar aquela elegante garganta. Tinha havido uma centena de vezes, na vida, em que ficara ansioso por fazer isso. Não se devia tocar no adorado do papa. Um dia, pensou ele, não vou poder me conter.
Giovanni, compreendendo o estado de espírito do irmão, olhou com ironia dele para Lucrécia.
- Ah, minha irmãzinha, minha adorada Lucrécia, você está dizendo que eu estou magnífico, mas você... você parece uma deusa. Nem acredito que possa ser a minha bonita irmãzinha. Nenhum ser humano pode possuir tamanha beleza. Como você cintila! Como brilha! Até mesmo o senhor arcebispo parece mais vivo pela sua proximidade dele. Estou sabendo que você não vai à festa do nosso pai, irmão. Talvez seja até bom. O pesado traje de vocês, homens da Igreja, pode ter o efeito de fazer o ambiente ficar sério, e hoje à noite não deve haver outra coisa que não alegria.
- Silêncio! - berrou César. - Silêncio, estou mandando!
Giovanni ergueu as sobrancelhas, e Adriana bradou:
- Meu senhor, temos que ir. Já vamos chegar atrasados. César voltou-se e saiu do quarto. Seu acompanhante, que ficara esperando fora dos aposentos, preparou-se para seguilo. César voltou-se para o menino - era pouco mais do que isso.
- Você sorri - disse ele. - Por quê?
- Meu senhor?
César pegou o menino pela orelha. A dor era quase insuportável.
- Por quê? - berrou César. - Eu perguntei por quê.
- Meu senhor... eu não estou sorrindo.
César bateu com a cabeça do menino contra a parede.
- Você está mentindo, então. Você andou escutando, e o que ouviu o divertiu.
- Meu senhor... meu senhor!
César agarrou o menino violentamente pelo braço e empurrou-o em direção à escada. O menino ergueu as mãos enquanto caía, e César ouviu os seus gritos enquanto ele rolava de cabeça pelos degraus. Ficou ouvindo, os olhos semicerrados, a boca ligeiramente voltada para baixo. Os gritos de outras pessoas sofrendo nunca deixavam de atenuar a dor que ia em seu íntimo, a dor nascida da frustração e do medo de que houvesse algumas pessoas no mundo que não o reconhecessem como da máxima importância.
Levada pelo irmão Giovanni, Lucrécia entrou nos novos aposentos do papa no Vaticano. Os aposentos já estavam lotados por todas as pessoas mais importantes de Roma e representantes das cortes de outros estados e ducados.
Lucrécia se esquecera de César na emoção de atravessar a praça, do palácio para o Vaticano; os gritos das pessoas ainda estavam em seus ouvidos, e ela ainda sentia o cheiro das flores que tinham sido jogadas em seu caminho. E ali, no trono papal, estava seu pai, magnífico em suas vestes brancas e douradas, os olhos brilhando de amor e orgulho enquanto pousavam nela. Aqueles olhos, no entanto, desviaram-se rapidamente para a adorada e bela Giulia, que estava em pé a um dos lados de Lucrécia; do outro estava outrajovem bonita, Lella Orsini, que se casara há pouco tempo com o irmão de Giulia, Angelo Farnese.
O noivo adiantou-se. Parecia quase andrajoso comparado com a glória daquele outro Giovanni, o irmão da noiva. Giovanni Sforza, cônscio de que lhe faltava a elegância espanhola do duque de Gandia, estava se lembrando de que até o colar que usava ao pescoço era emprestado.
Quanto a Lucrécia, ela mal prestava atenção a ele. Para ela, aquele casamento nada mais era do que um brilhante baile de máscaras. Sforza tinha de estar ali, porque sem ele ela não poderia representar o seu papel, e, como não iria haver consumação durante muito tempo, ela sabia que a vida ia ser exatamente como sempre fora.
Os dois ajoelharam-se juntos sobre uma almofada aos pés de Alexandre, e quando o notário perguntou a Sforza se ele aceitava Lucrécia como sua mulher, o noivo respondeu em voz alta e sonora: "Aceito, de bom grado!" E Lucrécia repetiu as palavras dele. O bispo colocou os anéis nos dedos deles enquanto um nobre mantinha uma espada desembainhada sobre suas cabeças; e depois disso o bispo fez um tocante sermão sobre a santidade do casamento, ao qual nem Lucrécia nem o marido prestaram muita atenção.
O próprio Alexandre estava impaciente. Havia um número demasiado de cerimónias como aquela em sua vida, e ele estava ansioso por prosseguir com os festejos.
Agora as comemorações começaram, e havia muitos homens da Igreja presentes que ficaram impressionados com a facilidade com que o papa podia pôr de lado o seu papel de Santo Padre e tornar-se o anfitrião galhofeiro decidido a que todos se alegrassem no casamento da filha.
Ninguém dava gargalhadas mais sinceras do que o papa diante das piadas um tanto picantes que circulavam e que eram consideradas parte necessária das celebrações de casamentos. Foi representada uma comédia para distrair os presentes, canções obscenas foram cantadas; enigmas eram propostos e respondidos, e todos eles faziam uma alusão irónica ao casamento. Centenas de quilos de bombons foram distribuídos entre os convidados - o papa e todos os cardeais sendo servidos primeiro, seguidos pela noiva e pelo noivo, as senhoras, os prelados e os demais convidados. A brincadeira ficava hilariante quando se deixavam cair bombons pelos corpetes dos vestidos das mulheres e havia gritinhos de prazer quando eles eram apanhados. Quando os presentes ficaram cansados dessa brincadeira, os restos dos bombons foram atirados pelas janelas e as multidões que esperavam lá embaixo correram desordenadas para pegá-los.
Mais tarde, o papa ofereceu um jantar no salão pontifício, e depois que os presentes se banquetearam começou a dança.
A noiva estava sentada ao lado do marido, que olhava de testa franzida para os dançarinos; ele não gostava daquele tipo de diversão e estava ansioso para que aquilo acabasse. Lucrécia não; ansiava por que o marido pegasse sua mão e a guiasse na dança.
Olhou de soslaio para ele. Ele parecia muito velho, achou ela, muito austero.
- Você não gosta de dançar? - perguntou ela.
- Eu não gosto de dançar - respondeu ele.
- Mas a música não o inspira a fazer isso?:
- Nada me inspira a fazer isso.
Os pés dela estavam batendo o compasso, e o pai a observava; o rosto dele estava um pouco vermelho de tanto se banquetear e se divertir, e ela sabia que ele compreendia como ela se sentia. Ela o viu olhar para seu irmão Giovanni, que interpretara o olhar. Num instante ele estava ao lado dela.
- Irmão - disse ele -, já que você não dança com minha irmã, eu dançarei.
Lucrécia olhou para o marido, pensando que talvez agora ela teria de pedir-lhe permissão; estava um pouco apreensiva, sabendo que nenhum de seus irmãos deixaria quem quer que fosse atrapalhar o que ele gostaria de fazer.
Não precisava ter se preocupado. Para Giovanni Sforza era inteiramente indiferente se sua mulher dançasse ou ficasse ao seu lado.
- Venha - disse o duque de Gandia. - A noiva deve dançar no seucasamento.
E então a levou bem para o centro dos dançarinos e segurando-lhe a mão disse:
- Ah, minha irmã, você é a mulher mais bonita do baile, que é como devia ser.
- Eu realmente acredito, querido irmão - disse ela -, que você é o mais bonito dos homens.
O duque inclinou a cabeça e seus olhos brilharam para ela, divertidos e apaixonados como tinham sido na época da ala infantil.
- César ficaria fora de si de ciúme se nos visse dançando juntos.
- Giovanni - disse ela, rápida -, você não devia provocá-lo.
- Uma das alegrias de minha vida - murmurou ele é provocar César.
- Por quê, Giovanni?
- Alguém tem de provocá-lo, e todos os demais, exceto nosso pai, parecem ter medo de fazer isso.
- Giovanni, você não tem medo de coisa alguma.
- Eu, não - disse Giovanni. - Eu não teria medo de seu marido se ele, sentindo ciúme ao ver a esposa me dirigindo um olhar tão amoroso, me desafiasse para um duelo.
- Ele não fará esse tipo de desafio. Acho que ele está contente por se ver livre de mim.
- Pelos santos, então talvez eu devesse atravessá-lo com a espada por seu desprezo a minha adorável irmã. Oh, Lucrécia, como me sinto feliz por estar com você mais uma vez! Já se esqueceu da época na casa de nossa mãe... as discussões, as danças? Ah, aquelas danças espanholas. Está lembrada?
- Estou, Giovanni.
- E não acha que elas são mais inspiradoras, mais cheias de significado do que as da Itália?
- Acho, Giovanni.
- Neste caso, nós dois vamos dançá-las...
- Giovanni, será que teremos coragem?
- Nós, os Bórgia, temos coragem para tudo, irmã. Ele atraiu-a para si e havia uma luz em seus olhos que a lembrava dos de César. - Não se esqueça - prosseguiu ele
- que, embora você tenha se casado com um Sforza, você é uma Bórgia... sempre uma Bórgia.
- Não - respondeu ela, e estava ofegante devido à súbita excitação. - Eu jamais esquecerei.
Um a um, os outros dançarinos afastaram-se deles, de modo que depois de algum tempo não havia ninguém dançando, exceto o duque de Gandia e sua irmã. As danças eram da Espanha - vibrando de paixão, o tipo de dança que uma noiva e um noivo poderiam ter dançado juntos, retratando amor, desejo, realização.
Os longos cabelos de Lucrécia escaparam da rede no abandono da dança; e houve muita gente que sussurrou: "Que estranho, a irmã e o irmão dançando assim enquanto o noivo fica olhando!"
O papa observava, com um afeto benigno. Aqueles eram seus filhos adorados, e não lhe pareceu estranho vê-los dançar assim: Lucrécia na expectativa, no limiar da condição de mulher, e Giovanni com o brilho de um demónio nos olhos e um malicioso olhar por cima do ombro para o enfadonho noivo - e para uma outra pessoa, talvez, uma outra que ele desejava que estivesse presente para ver aquela dança quase ritual com a irmã.
Giovanni Sforza bocejou em sua indiferença. No entanto, estava menos indiferente do que parecia. Não que tivesse quaisquer sentimentos profundos em relação à menina de cabelos dourados que era sua esposa; mas lhe ocorrera que os Bórgia eram uma família estranha, estranha a Roma; o sangue espanhol os tornava assim; e sentiu-se ligeiramente inquieto ali sentado, e embora estivesse num semi-estupor devido a muita comida e muito vinho, calor demais, celebrações demais, estava cônscio de uma voz no seu íntimo que o avisava: "Cuidado com esses Bórgia. Eles são uma gente estranha, anormal. Deve-se estar preparado para vê-los fazendo qualquer coisa... por mais assombrosa, por mais estranha que seja. Cuidado... Cuidado com os Bórgia!"
As semanas que se seguiram ao seu casamento foram cheias de prazer para Lucrécia. Ela via pouco o marido, e os irmãos estavam constantemente com ela. A velha rivalidade foi revivida, e embora Lucrécia tivesse consciência de que havia, agora, um elemento ainda mais perigoso naquilo do que na época da ala infantil, ela não podia deixar de sentir-se estimulada por isso.
Era uma situação fora do comum; a mulher e o marido indiferentes um em relação ao outro, enquanto os irmãos da esposa pavoneavam-se diante dela, como se estivessem tentando conquistá-la, cada um tentando persuadi-la de que era melhor do que o outro.
Os irmãos invadiam os aposentos de Lucrécia dia e noite; cada qual planejava espetáculos em que representava o papel principal e Lucrécia participava como convidada de honra.
Adriana protestava, mas Giovanni a ignorava, e os olhos de César faiscavam de raiva.
- A insolência dessa mulher é insuportável! - bradava ele, e havia uma ameaça em sua voz.
Giulia protestava com Lucrécia.
- Este é um comportamento estranho - declarou ela.
- Seus irmãos a tratam como se você fosse algo mais do que uma irmã.
- Você não compreende - explicou Lucrécia. - Nós estivemos juntos na ala infantil.
- É muito comum irmãos ficarem na ala infantil.
- A nossa infância foi diferente. Nós sentíamos o mistério que nos cercava. Morávamos na casa de minha mãe, mas naquela ocasião não sabíamos quem era o nosso pai. Nós nos amávamos... éramos necessários uns aos outros, e depois ficamos separados por muito tempo. é por isso que amamos mais do que a maioria das famílias.
- Eu preferiria vê-la arranjando um amante. Lucrêcia sorriu com delicadeza; era bondosa demais para dizer a Giulia que compreendia o motivo de sua preocupação; o papa ainda era louco por ela e ela continuava sendo sua amante favorita, mas todos os amantes de membros da família Bórgia deviam ter ciúme dos sentimentos daquela família para com os seus membros. Giulia estava pensando que, agora que César e Giovanni estavam em Roma, o amor que o pai tinha por eles e pela filha era muito maior do que o que tinha por ela, e ela estava francamente ciumenta.
Lucrêcia gostava de Giulia; compreendia seus sentimentos; mas o elo entre Lucrêcia e os irmãos não podia ser quebrado por ninguém.
Enquanto isso, as semanas se passavam. Lucrêcia ia ao Campo di Fiore para ver Giovanni justar; depois, César organizava uma tourada no mesmo local, com ele próprio atuando como o bravo matador. Providenciava para que houvesse uma multidão para assistir, e no lugar de honra, de onde não perdia coisa alguma, estava Lucrêcia, para tremer quando o via enfrentando a morte, para exultar quando o via triunfar.
A vida toda, Lucrêcia jamais esqueceria aquela ocasião; o momento de medo quando via o touro atacar e ouvia o profundo suspiro da multidão; ela mesma quase desmaiava de medo, em um terrível segundo visualizando um mundo sem César. Mas César era supremo; leve como um dançarino, ele dava um passo para o lado enquanto o irado touro passava ameaçador. Como ele ficava bonito! Como era gracioso! Ele poderia, pensou Lucrêcia, estar dançando a velha ferraca, a dança na qual o homem imitava o seu jogo com o touro, tão despreocupado parecia. Ela nunca dançaria aferraca, nem veria outras pessoas dançarem-na sem se recordar daquele momento de medo e de exultação; iria sempre lembrar-se do sol quente no Campo di Fiore e a constatação de que César era, para ela, a pessoa mais importante do mundo.
Ela ficara ali sentada, aparentemente tranquila, mas o tempo todo estava rezando: "Nossa Senhora, mantenha-o são e salvo. Santa Mãe de Deus, não deixe que o tirem de mim."
Suas orações foram atendidas. Ele matou o touro e foi colocar-se diante da irmã, para que todos os presentes soubessem que fora para ela que lutara.
Ela tomou-lhe a mão e beijou-a, e seus olhos haviam perdido a brandura quando ela os ergueu para os dele. Ela nunca o vira aparentando tanta felicidade quanto naquele momento. Ele pusera de lado todo o ressentimento; esquecera que era um arcebispo e que Giovanni era um duque. A multidão o estava aclamando, e Lucrécia estava transmitindo-lhe a profundeza e a amplidão de seu amor por ele.
Lucrécia organizou um baile em honra ao seu bravo matador.
- E o herói da justa? - perguntou Giovanni.
- Para ele também - disse Lucrécia, carinhosa.
Ela queria que eles ficassem juntos; só quando tomava consciência da intensa rivalidade entre eles é que sentia estar de volta à infância.
Assim, no baile ela dançou com Giovanni enquanto César olhava com ar irritado, e com César enquanto Giovanni assistia com um ciúme reprimido. Muitas vezes o papa comparecia em ocasiões assim, e havia assombro entre os espectadores com o fato de o Santo Padre ficar assistindo, sorrindo, enquanto os filhos e a filha dançavam as danças espanholas estranhamente eróticas, e testemunhar a ciumenta paixão daqueles dois irmãos - e o prazer que a filha sentia com isso
- com tamanha satisfação tolerante.
Lucrécia era vista cavalgando entre os irmãos até o Monte Mário, para ver os nobres experimentando seus falcões, rindo, fazendo apostas sobre qual dos pássaros iria ganhar o prémio.
Quanto a Giovanni Sforza, vivia como um estranho naquela estranha família. O casamento ainda não seria consumado tão cedo. Quanto a isso, ele dava de ombros. Não era um homem profundamente interessado naqueles prazeres, e suas necessidades podiam ser atendidas pela ocasional convocação de uma cortesã. Mas havia ocasiões em que ele se ressentia da contínua presença daqueles dois jovens dominadores, e em uma delas ousou protestar junto a sua mulher. Ela voltara, com os irmãos, de um passeio a cavalo, e quando foi para seus aposentos ele a seguiu; ele se voltou e fez um sinal de dispensa para as amas que a serviam. Elas obedeceram e não entraram no quarto.
Lucrécia sorriu para ele com uma expressão especulativa. Desejando viver bem com todos, era sempre delicada com o marido.
Sforza, então, disse para sua mulher:
- Você está levando uma vida estranha. Está constantemente em companhia de um de seus irmãos... ou de ambos.
- Isso é estranho? - perguntou ela. - Eles são meus irmãos.
- Sua conduta é comentada por toda a Roma. Os olhos de Lucrécia arregalaram-se de surpresa.
- Você não entende o que estão dizendo?
- Eu não ouvi.
- Um dia - disse Sforza - você vai ser minha esposa de verdade. Desejo que se lembre de que esse dia terá de vir. Eu lhe peço que veja menos seus irmãos.
- Eles jamais iriam permitir isso - disse Lucrécia. Ainda que eu quisesse.
Do lado de fora chegou o som de risadas, e os irmãos entraram no quarto. Ficaram parados lado a lado, as pernas separadas, e não foram os óbvios vigor e força que fizeram com que um toque de alarme passasse por Sforza. Ele sentiu, então, que havia algo a temer que ainda estava oculto, e que qualquer homem normal que fizesse deles seus inimigos viveria, sem dúvida, com medo de perder a vida.
Eles não estavam fazendo caretas, e Sforza achou que poderia ter sido melhor se fizessem. Estavam sorrindo, e Lucrécia e o marido poderiam não estar no quarto, tal era a pouca atenção que os irmãos lhes davam.
Giovanni disse, enquanto a mão se apoiava ligeiramente em sua espada:
- Esse homem com quem nossa irmã se casou... ouvi dizer que ele não gosta de nossa presença em casa dela.
- Ele devia ter a língua arrancada, se fez essa monstruosa sugestão - disse César com voz arrastada.
- E sem dúvida terá - acrescentou Giovanni, desembainhando metade da espada e deixando-a voltar de novo para a bainha. - Quem é esse homem?
- Um filho bastardo do tirano de Pesaro, pelo que ouvi dizer.
- E Pesaro, o que é Pesaro?
- Apenas uma pequena cidade na costa do Adriático.
- Um mendigo... pouco mais do que isso, hein? Eu me lembro de que ele veio para o seu casamento usando um colar emprestado.
- O que deveríamos fazer com um sujeito desses se ele se tornasse insolente?
Giovanni Bórgia deu uma risada baixa.
- Ele não vai se tornar insolente, irmão. Mendigo ele pode ser, mas não é tão tolo assim.
Então os dois soltaram uma gargalhada e voltaram-se para a porta.
Lucrécia e Sforza ouviram-nos gritar e rir enquanto se retiravam. Lucrécia correu para a janela. Era uma visão estranha, os irmãos caminhando juntos como dois amigos.
Sforza ainda estava de pé onde estivera quando a porta se abrira. Durante o tempo em que os irmãos tinham estado falando, ele se sentira incapaz de se mexer, tão forte fora a sua consciência de uma avassaladora sensação de maldade.
Lucrécia dera as costas para a janela e estava olhando para ele. Havia compaixão em seu olhar, e a compaixão era dirigida a ele; pela primeira vez desde que o vira, Lucrécia percebeu algum sentimento por ele, e ele por ela.
Ele viu que ela também estava consciente daquele mal que parecia emanar de seus irmãos.
Enquanto se afastavam a pé, os irmãos sabiam que Lucrécia estava na janela olhando para eles. César disse:
- Não há dúvida de que isso vai fazer com que o bobo pense duas vezes antes de tornar a falar de nós com desprezo.
- Você viu ele se encolher de medo diante de nós? disse Giovanni com uma risada. - Eu lhe digo, irmão, fiz todo o possível para evitar sacar minha espada e dar-lhe uma ou duas picadas.
- Você demonstrou um grande controle, irmão.
- Você também.
Giovanni olhou de soslaio para César. E então, disse:
- Há olhares estranhos dirigidos para nós. Já percebeu?
- Raramente temos sido vistos andando juntos tão amigavelmente assim. O motivo é este.
- Antes que você comece a me olhar com aspecto ameaçador, César, deixe-me dizer o seguinte: há momentos em que você e eu deveríamos ficar unidos. Todos os Bórgia devem fazer isso, às vezes. Você me odeia por eu ser o favorito de nosso pai, pelo meu ducado e pela esposa que vou ter. A noiva não é nenhuma beldade, se isso for um consolo para você. Ela tem um rosto comprido como o de um cavalo. Você não iria gostar mais dela do que eu.
- Eu a aceitaria, e aceitaria o ducado de Gandia, em troca do meu arcebispado.
- Isso eu sei, César, isso eu sei. Mas eu vou ficar com ela e com o meu ducado. Eu não seria um arcebispo, mesmo que o trono papal fosse ser meu no futuro.
- Nosso pai tem uma longa vida pela frente.
- Rezo aos céus que assim seja. Mas, arcebispo... não, não fique tão irritado assim... arcebispo, vamos continuar essa amizade só por mais uma hora. Nós temos nossos inimigos comuns. Vamos falar sobre eles como fizemos com o Sforza há pouco tempo.
- E esses inimigos?
- Os malditos Farnese. Não é verdade que aquela mulher, Giulia Farnese, exige o que quer de nosso pai e o pedido é concedido?
- É verdade - murmurou César.
- Irmão, vamos permitir que essa situação continue?
- Concordo com o senhor, senhor duque, que seria bom pôr um fim nisso.
- Neste caso, senhor arcebispo, vamos nos unir e provocar essa feliz solução.
- Como assim?
- Ela é apenas uma mulher, e existem outras. Tenho em minha suíte uma freira de Valência. Ela tem beleza, graça, e o encanto de uma freira. Tem me dado um grande prazer. Acho que vou colocá-la a serviço de meu pai. Também tenho uma escrava moura, uma beldade morena. Elas formam uma dupla satisfatória... a freira e a escrava; a primeira toda relutância vestal, a segunda... insaciavelmente apaixonada. Você e eu vamos procurar o nosso pai e falar com ele sobre as virtudes dessas duas. Ele vai querer compartilhar... e compartilhando, quem sabe?, pode ser que se esqueça da bela Giulia. Pelo menos ela não será a única companheira de suas horas de lazer. Há segurança na quantidade; é quando há apenas uma... e raramente qualquer outra... que se vê o perigo pela frente.
- Vamos visitá-lo agora. Vamos falar com ele sobre a sua freira e a sua escrava. Pelo menos ele vai ficar ansioso por vê-las, e se elas forem tudo o que você diz... ora, é possível que possamos afrouxar o controle dos Farnese sobre o nosso Santo Padre.
Os dois jovens atravessaram a praça em direção ao Vaticano enquanto muitos olhos os seguiam, impressionados com aquela nova amizade.
Dizia-se nas ruas que um casamento gerava outro, e foi isso mesmo o que aconteceu. Giovanni iria fazer um casamento espanhol; César era da Igreja e não podia se casar; Lucrécia estava casada com Giovanni Sforza; agora era a vez do pequeno Goffredo.
Vannozza, feliz com o marido, Carlo Canale, estava tonta de alegria. Os filhos iam visitá-la com frequência, e nada a deliciava mais do que oferecer pequenas festas íntimas para distraí-los. Sua conversa, em sua maioria, era sobre os filhos; meu filho, o duque, meu filho, o arcebispo, minha filha, a condessa de Pesaro. E agora ela poderia falar com igual orgulho de seu Goffredo. Ele seria um duque ou um príncipe muito em breve, já que o papa iria fazer um casamento ilustre para ele.
Isso mostrava claramente, pensava Vannozza, que Alexandre já não duvidava que Goffredo fosse seu filho. Mas não era verdade; Alexandre continuava a duvidar. No entanto, era de opinião de que, quanto mais brilhantes fossem os casamentos que ele pudesse arranjar para os filhos, melhor para os Bórgia de maneira geral; quem dera que ele tivesse doze filhos; portanto, era conveniente pôr de lado todas as dúvidas e, pelo menos aos olhos do mundo, aceitar Goffredo como seu.
O momento era propício para arranjar um novo casamento para um Bórgia. Ferrante, o rei de Nápoles, tinha observado, com preocupação, a crescente amizade entre o Vaticano e os Sforza de Milão.
Alexandre, apesar de libertino, também era um diplomata inteligente. Preferia ter um bom relacionamento com as casas rivais de Milão e Nápoles. Além do mais, a Espanha era naturalmente favorável à casa dominante de Nápoles, que era de origem espanhola e mantinha os costumes espanhóis na corte.
Feirante estava ciente do desejo de amizade por parte do papa e mandara seu filho, Federico, a Roma com propostas a apresentar ao Santo Padre.
O filho mais velho de Feirante, Alfonso, que era herdeiro do trono de Nápoles, tinha uma filha natural, Sanchia, e a sugestão de Feirante era no sentido de que Sanchia deveria ficar comprometida com o filho caçula do papa, O fato de Goffredo ter apenas onze anos e Sanchia dezesseis não representava uma desvantagem; como também não representava a ilegitimidade dela, porque a ilegitimidade não era considerada um estigma importante na Itália do século X embora, é claro, os filhos legítimos tivessem precedência sobre os naturais. O próprio Goffredo era ilegítimo; portanto, parecia um bom arranjo.
O pequeno Goffredo ficou encantado. Assim que ouviu a notícia, foi correndo procurar Lucrécia, para dar-lhe a nova.
- Irmã, eu também vou me casar. Não é uma ótima notícia? Devo ir para Nápoles, para me casar com uma princesa.
Lucrécia abraçou-o e desejou-lhe felicidade, e o garoto correu pelos aposentos dançando com uma noiva imaginária, imitando a cerimónia que tinha visto Lucrécia realizar com o marido.
César e Giovanni visitaram a irmã e Goffredo correu para eles e contou-lhes a novidade. Lucrécia sabia que eles já a tinham ouvido; percebera isso por causa do ar carrancudo de César. Aquilo era mais um lembrete de que ele era o único de tinha de ficar solteiro.
- Que marido você vai ser! - disse Giovanni. - Um marido de onze anos, de uma mulher de dezesseis que é, a menos que os rumores mintam... mas pouco importa. Sua Sanchia é uma beldade... uma grande beldade, meu irmão... de modo que, o que quer que ela seja mais, deverá ser perdoada.
Goffredo começou a andar pelo aposento nas pontas dos pés, para fazer com que parecesse mais alto. Parou de repente, os olhos com uma expressão inquisidora; depois, olhou para César.
- Todo mundo está contente - disse ele -, exceto o senhor meu irmão.
- Você sabe por que ele está contrariado, não sabe? bradou Giovanni. - É porque como homem santo da Igreja ele não pode ter uma esposa.
O rosto de Goffredo se contraiu de repente e ele se aproximou de César.
- Se quiser uma esposa, meu senhor - disse ele -, eu lhe dou a minha; porque não sentirei prazer com ela se por possuí-la eu lhe causar sofrimento.
Os olhos de César faiscavam enquanto ele olhava para o menino. Ele não sabia, até aquele momento, o quanto Goffredo o admirava. O garoto ali de pé dera claramente a entender que achava César a pessoa mais maravilhosa do mundo; e com Lucrécia e seu jovem irmão admirando-o daquela maneira, de repente César sentiu-se feliz.
Ele não ligava para o escárnio de Giovanni. Ufanava-se de sua rivalidade com Giovanni porque tomara a decisão de que um dia Giovanni iria pagar por todos os insultos, tal como qualquer outro homem ou mulher pagaria.
- Você é um bom menino, Goffredo - disse ele.
- César, você acredita que eu sou seu irmão... totalmente seu irmão, não acredita?
César abraçou o menino e assegurou-o de que acreditava; e Lucrécia, observando-os, viu toda a crueldade e toda a dureza desaparecerem da fisionomia do irmão. Assim, pensou ela, meu irmão César é, sem dúvida alguma, a pessoa mais bonita do mundo.
Lucrécia ansiava por uma paz entre todos eles. Agora estavam juntos, e César estava encantado com as palavras sinceras do menino. Se ao menos Giovanni pudesse entrar para o círculo feliz deles, acabariam com a rivalidade; poderiam ficar em completa harmonia, que era como Lucrécia ansiava por vê-los.
- Vou tocar canções de casamento no meu alaúde, e nós vamos cantar - bradou ela. - Vamos fingir que já estamos no casamento de Goffredo.
Ela bateu palmas e uma escrava lhe trouxe o alaúde; então, sentou-se em almofadas, os cabelos dourados caindo-lhe pelos ombros; e quando seus dedos tocaram o alaúde, começou a cantar.
Goffredo ficou de pé atrás dela e, colocando as mãos em seus ombros, cantou com ela.
Os irmãos olhavam para eles, prestando atenção; e por um curto intervalo de tempo a paz esteve com todos eles.
Agora havia mais comemorações no Vaticano em honra ao noivado oficial de Goffredo e Sanchia de Aragón, que teve lugar nos aposentos do papa, com Federico, príncipe de Altamura e tio da noiva, representando-a na cerimónia. O ato foi realizado na presença do papa, com todo o ritual de um casamento de verdade.
Houve muita brincadeira, porque o pequeno Goffredo, como o marido, parecia muito desproporcional ao lado do príncipe que representava a noiva, e surgiram logo comentários picantes; e estes não foram contidos pela presença do Santo Padre, que, na verdade, ria mais do que ninguém e chegava até a fazer suas piadas.
Não havia coisa alguma de que Alexandre gostasse mais do que o que ele chamava de uma boa piada, e por "boa" ele queria dizer "picante". Federico, vendo-se o alvo de todas as brincadeiras e sendo metido a ator, começou a distrair os presentes representando o papel da noiva, com tamanha vibração das pestanas e com gestos melindrosos que aquilo que se passou no Vaticano pareceu mais uma representação teatral do que uma cerimónia solene.
Federico continuou com a sua representação nas festas e bailes que se seguiram; era uma brincadeira da qual ninguém parecia cansar-se, e a graça aumentou quando um membro da comitiva de Federico aproveitou a oportunidade para sussurrar ao papa que ele iria divertir-se ainda mais se tivesse visto Sanchia.
- Como assim? - perguntou Alexandre. - Ouvi dizer que ela é uma beldade.
- Ela tem beleza, Santidade, para fazer com que todas as outras pareçam comuns se comparadas a ela. Mas o nosso príncipe se porta como uma virgem melindrosa. Não há nada de melindrosa na senhora Sanchia... e nada de virgem, tampouco. Ela já teve um número enorme de amantes.
Os olhos do papa brilharam de alegria.
- Neste caso, isso torna a brincadeira ainda melhor disse ele. Chamou César e Giovanni para perto dele. Ouviram isso, meus filhos? Ouviram o que foi dito sobre a senhora Sanchia, a nossa virgem melindrosa?
Os irmãos riram muito com a piada.
- Lamento profundamente - disse Giovanni - que o jovem Goffredo tenha de ir para Nápoles e que Sanchia não venha juntar-se a ele aqui.
- Ah, meu filho, eu não daria muito pelas chances do pobre Goffredo se ela pusesse os olhos em você.
- Nós seríamos rivais na conquista da senhora - disse César, animado.
- Uma situação agradável, sem dúvida! - disse o papa.
- Talvez, já que ela é uma dama tão obsequiosa assim, ela fosse esposa de três irmãos.
- E do pai deles, talvez - acrescentou Giovanni. Aquilo divertiu muito o papa, e seus olhos pousaram com ternura em Giovanni.
César decidiu que, se um dia Sanchia fosse para Roma, ela deveria ser amante dele antes de Giovanni.
Depois, seus olhos semicerraram-se e ele disse, ríspido:
- Então o nosso pequeno Goffredo vai se casar. E a mim é negado esse prazer. É estranho Goffredo casar-se antes de você, irmão.
Os olhos de Giovanni faiscaram de ódio, porque compreendeu imediatamente o que César queria dizer. Alexandre ficou triste. Voltou-se para Giovanni.
- Infelizmente - disse ele - você terá de voltar para a Espanha em breve para se casar, meu filho.
- Meu casamento vai esperar - disse Giovanni, mal-humorado.
- Ah, meu filho, o tempo não pára. Vou ficar muito satisfeito quando souber que sua esposa é a mãe de um belo menino.
- Quando chegar a hora... quando chegar a hora-disse Giovanni rápido.
Mas no íntimo César estava sorrindo. A boca de Alexandre estava apertada. Quando se tratava de sua ambição, ele ficava teimoso, e como César tinha sido obrigado a entrar para a Igreja, assim Giovanni seria obrigado a ir para o lado de sua esposa espanhola.
A César, aquilo parecia uma piada ainda melhor do que a imitação da senhora Sanchia feita por Federico. Antigamente, ele ansiara por estar no lugar de Giovanni, para que pudesse ir para a Espanha receber grandes honrarias, inclusive um ducado espanhol; fora obrigado a ficar em Roma e entrar para a Igreja. Agora Giovanni não queria coisa alguma mais do que ficar em Roma, e seria obrigado a partir, como César tinha sido obrigado a entrar para a Igreja.
César riu no íntimo enquanto observava a aparência mal-humorada do irmão.
Giovanni estava zangado. A vida em Roma combinava com o seu temperamento, muito mais do que o modo de viver espanhol. Na Espanha, um homem de posição era abafado pela etiqueta; e Giovanni não sentia atração alguma pela pálida e melancólica noiva, Maria Enriques, que ele herdara de seu falecido irmão. Era verdade que Maria era prima do rei da Espanha e que o casamento com ela iria forjar um forte elo com a casa real espanhola e garantir-lhe a proteção real. Mas o que é que isso importava para Giovanni? Ele queria estar em Roma, que considerava o seu lar.
Preferia ser reconhecido como filho do papa do que primo, por casamento, do rei da Espanha. Enquanto estivera fora, sentira saudades de casa. Imaginara-se cavalgando por Roma e, apesar de cínico em relação à maioria das coisas, lágrimas vinham-lhe aos olhos quando pensava em entrar pela Porta dei Popolo e ver as corridas para a Piazza Venezia na semana do carnaval. Parecia não haver coisa igual na Espanha - os espanhóis eram um povo melancólico, se comparados com os alegres italianos. Ele sentira um grande prazer e uma grande tristeza ao pensar nas multidões, na tribuna principal na Piazza dei Popolo, que se haviam reunido para ver a corrida dos cavalos sem cavaleiros. Como ele gostara daquelas corridas, como gritara de alegria ao ver os animais amedrontados serem soltos, com pedaços de metal atados a eles para fazer barulho e amedrontá-los ainda mais enquanto galopavam, com o demoníaco tipo de esporas preso entre a cernelha e a paleta, de chumbo e em forma de pêra, com a extremidade pesada, tendo sete pontas que espetavam os cavalos a cada passo! Os cavalos aterrorizados, enquanto disparavam pelo corso como um trovão, ofereciam uma visão imperdível. E na Espanha ele sentia uma falta terrível daquilo. Desejava ardentemente perambular pela Via Funari, onde os fazedores de cordas moravam, e pela Via Canestrari, onde moravam os fazedores de cestos, para a Via dei Serpenti; olhar para o Capitólio e pensar nos heróis de Roma que ali tinham sido coroados de glória, e ver a rocha Tarpeia, de onde os homens culpados eram jogados; rir do velho ditado que dizia que a glória estava a apenas uma curta distância da desgraça, e responder a ele: Para um Bórgia, não; para o filho do papa, não!
Tudo aquilo era Roma, e era em Roma que ele se sentia em casa; no entanto, era tão desventurado a ponto de ser mandado embora de lá.
Pensou em adiar a hora da partida. Atirou-se loucamente aos prazeres. Andava pelas ruas com um bando de amigos selecionados, e não havia uma só jovem bonita-ou homem bonito - que estivesse a salvo, desde que Giovanni pousasse os olhos nela ou nele.
Ele preferia as mais notórias das cortesãs. Percorria o bairro Ponte em companhia delas. Gostava de cortesãs; elas eram experientes, tais como ele; e também gostava de moças muito jovens, e um de seus passatempos favoritos era seduzir ou forçar jovens noivas antes que o casamento delas se realizasse. Giovanni, pelo que ele mesmo sabia, nunca seria um soldado valente, e o instinto lhe dizia que César, que nada tinha de covarde, estava ciente daquele traço de covardia que havia nele, e exultava por causa disso enquanto se revoltava contra a injustiça que tinha feito de Giovanni um soldado e dele um homem da Igreja.
Giovanni procurava esconder o traço de fraqueza dentro de si, e qual a melhor maneira de fazê-lo, pensava, do que usar de crueldade para com aqueles que não podiam retaliar? Se raptasse uma noiva que estava prestes a se casar, quem poderia reclamar contra o filho adorado de um papa todo-poderoso? Aquelas aventuras acalentavam o seu medo de inadaptação e, ele sentia, faziam-no parecer um vigoroso aventureiro.
Havia uma pessoa em cuja companhia Giovanni encontrava grande prazer. Era um príncipe turco que o papa estava mantendo como refém no Vaticano. Djem tinha uma aparência assombrosa; seus modos asiáticos divertiam Giovanni; sua roupa turca era pitoresca e ele era mais astuto e mais friamente bárbaro do que qualquer outra pessoa que Giovanni já conhecera.
Giovanni iniciara uma amizade com Djem e eles eram vistos com frequência andando juntos pela cidade. Giovanni aparecia em trajes turcos; caíam-lhe bem, e Djem, com a sua pele morena, fazia um grande contraste com a beleza dourada de Giovanni.
Eles estavam juntos na comitiva de Alexandre quando ela viajava de igreja a igreja; e para o povo de Roma parecia estranho ver duas figuras proeminentes em uma parelha de cavalos, ambas trajando turbantes e vistosas roupas orientais.
A maioria das pessoas ficava horrorizada ao ver o turco naquela procissão, porque ele era um infiel; mas Giovanni insistia para que seu amigo os acompanhasse, e o turco sorria para as expressões de horror do povo, à sua lenta e indolente maneira, que todos sabiam ser um véu para esconder seu barbarismo. Dele, as pessoas olhavam para o belo duque de Gandia, cujos olhos vivos estavam à espreita das mais bonitas jovens, marcando o lugar onde mais tarde elas poderiam ser encontradas e apontando-as para Djem, que estaria planejando as aventuras daquela noite.
Naquele asiático, que era capaz de organizar estranhas orgias de uma crueldade calculada e de um extraordinário erotismo, Giovanni encontrara um companheiro com quem tinha grande afinidade.
Ali estava mais uma razão pela qual ele não queria sair de Roma.
Quanto a Alexandre, sabia das reclamações contra Giovanni; sabia que as pessoas ficavam chocadas com o aparecimento do filho do papa em trajes turcos; mas limitava-se a abanar a cabeça e a sorrir com indulgência.
- Ele não faz por mal - dizia. - Ainda é jovem, e é apenas a vivacidade que faz com que cometa essas travessuras.
E Alexandre estava tão inclinado a deixar seu adorado Giovanni sair de Roma quanto Giovanni estava a ir embora.
Lucrécia estava sentada com Giulia; havia uma peça de bordado diante dela, e ela sorria para o trabalho. Gostava de cobrir o belo desenho sobre seda com fios de ouro, escarlate e azul. Curvada sobre o trabalho, parecia, segundo Giulia, uma criança inocente, e Giulia sentia-se ligeiramente impaciente. Lucrécia era, agora, uma mulher casada, e embora o casamento não tivesse sido consumado, ela não tinha o direito de parecer tão criança.
Lucrécia, pensava Giulia, é diferente de todos nós. É uma pessoa à parte. Parece com o pai, sem ter, no entanto, a sabedoria e a compreensão da vida; tem o mesmo sistema de afastar-se das coisas desagradáveis e recusar-se a acreditar na existência delas; e, além do mais, tem tolerância. Creio que ela apresenta desculpas pela crueldade das pessoas, quase que como se compreendesse o que as faz agir de modo tão cruel; e isso faz parte de sua esquisitice, porque Lucrécia nunca é uma pessoa cruel.
Mesmo assim, Giulia sentia-se impaciente em companhia dela, porque estava apreensiva. Ela odiava César e Giovanni; eles sempre a deixavam constrangida, mas agora ela sabia que eles estavam tentando deliberadamente tirá-la de sua posição. Do ponto de vista sexual, ela estava fora do alcance deles. Era, no final das contas, amante do pai deles, e o elo entre Giulia e o papa era forte, já que ele não sentia por ela o que sentiria por qualquer amor ligeiro de uma noite ou coisa parecida. Portanto, os filhos dele, embora desejando-a como desejavam qualquer mulher bonita, eram obrigados a respeitá-la; por conseguinte, sentiam-se melindrados com aquilo, e fazia parte da arrogância deles não gostar de qualquer pessoa que lhes fizesse ver o fato de que não podiam ter tudo à sua maneira em todas as direções. O papa erguia-se acima dos filhos; era a fonte da qual fluíam todas as bênçãos; e, embora ele fosse o mais indulgente dos pais, o mais generoso dos benfeitores, havia alguns limites que nem mesmo eles podiam ultrapassar.
Giulia era um caso que salientava essa realidade, e eles ficavam indignados com ela por causa disso. Por isso, esforçavam-se por destruir sua influência.
Ela sabia que eles procuravam as jovens mais bonitas de Roma e apresentavam-nas ao pai. (Alexandre nunca se interessara pelos amigos deles do sexo masculino.) O papa ficara muito impressionado com uma certa freira espanhola que Giovanni levara consigo em sua comitiva. O resultado era que o Santo Padre estivera ocupado demais para receber Giulia durante alguns dias. Giulia estava furiosa, e sabia em quem colocar a culpa.
Impetuosa, ela queria entrar de supetão nos aposentos papais e denunciar Giovanni; mas isso seria uma loucura. Por mais que o papa gostasse de agradar sua bela e jovem amante, e de fato achasse difícil recusar os pedidos de qualquer jovem bonita, havia uma pessoa da qual ele gostava mais do que de qualquer mulher - seu precioso Giovanni.
E se a freira espanhola estava se mostrando muito deleitável, ele poderia ficar um pouco mais impaciente do que o normal se Giulia vituperasse contra Giovanni. Alexandre podia amar várias mulheres em vários graus, mas seu amor pelos filhos nunca vacilava.
Giulia, olhando para a bela face jovem curvada sobre o bordado, disse com ironia:
- Lucrécia, estou preocupada com Giovanni.
Os inocentes olhos de Lucrécia arregalaram-se, surpresos.
- Você está preocupada com ele? Pensei que você não gostasse dele.
Giulia soltou uma gargalhada.
- Nós fazemos caçoadas um com outro... como acontece entre irmão e irmã. Eu não diria que o amo como você o ama. Eu nunca teria a adoração cega por um irmão que você tem pelos seus.
- Eu acho que você gosta muito do seu irmão Alessandro.
Giulia sacudiu a cabeça. Era verdade. Gostava de Alessandro a ponto de estar decidida a garantir para ele, em breve, o chapéu cardinalício. Mas era diferente daquela ligação apaixonada que parecia existir entre os irmãos Bórgia e sua irmã.
- Oh, gosto bastante - disse ela, despreocupada. - Mas eu estava falando de Giovanni. Há muitos mexericos pelas ruas com relação a ele.
- Sempre há mexericos - murmurou Lucrécia despreocupada, apanhando a agulha.
- É verdade, mas este é um momento em que os mexericos poderiam ser muito prejudiciais a Giovanni.
Lucrécia ergueu a cabeça, que estava voltada para o seu trabalho.
- Por causa do casamento dele - prosseguiu Giulia, impaciente. - Ouvi dizer, por amigos que chegaram da Espanha, que lá na corte se comenta o comportamento impetuoso de Giovanni, sua amizade com Djem, e a maneira de os dois passarem o tempo. Há uma certa contrariedade em setores nos quais isso pode vir a ser prejudicial para Giovanni.
- Você contou isso ao meu pai? Giulia sorriu.
- Se fosse dito por mim, ele iria pensar que eu estava com ciúme de Giovanni. Ele sabe que estou ciente do afeto que existe entre eles.
- Mas, no entanto, ele deve saber - disse Lucrécia. Giulia ficou satisfeita. Era fácil conduzir Lucrécia por onde se quisesse que ela fosse.
- Deve, mesmo. - Giulia olhou pela janela para esconder o sorriso irónico que estava em seus lábios. - Se fosse contado por você, teria peso.
Lucrécia se levantou.
- Neste caso, vou contar a ele. Vou contar imediatamente. Ele ficaria triste se acontecesse alguma coisa que evitasse o casamento de Giovanni.
- Você é sensata. Eu soube, por uma fonte muito confiável, que o futuro sogro dele está pensando na anulação do noivado, e que, se Giovanni não for reivindicar a noiva nos próximos meses, eles irão arranjar um outro marido para ela.
- Vou falar com meu pai agora mesmo - disse Lucrécia. - Ele deve saber disso.
Giulia a seguiu.
- Eu vou acompanhá-la - disse ela -, e se o Santo Padre estiver disposto a me receber, lá estarei.
Alexandre chorou ao abraçar o filho.
- Pai - bradou Giovanni -, se o senhor me ama como diz, como pode suportar que eu me afaste do senhor?
- Eu te amo tanto, meu filho, que posso deixá-lo partir.
- Será que não podia haver um casamento mais interessante para mim aqui em Roma?
- Não, meu filho. Temos de pensar no futuro. Você se esquece de que é o duque de Gandia e que quando estiver casado com Maria terá o poder da Espanha atrás de você. Não subestime a importância desse elo com a casa real espanhola.
Giovanni suspirou, mas o papa passou um dos braços em torno dele.
- Venha, veja que presentes de casamento eu tenho para você e sua noiva.
Giovanni olhou quase que com mau humor para as peles e jóias e para as arcas decoradas com belas pinturas. Nas últimas semanas, todos os melhores joalheiros de Roma tinham ficado ocupados comprando as melhores pedras e incrustando-as em refinados ornamentos para o duque de Gandia. Alexandre abriu uma arca e mostrou ao filho zibelinas e arminhos, colares de pérolas e rubis, até que fez com que os olhos do jovem ficassem brilhando de vontade de usá-los.
- Está vendo, meu filho, você irá para a Espanha com todo o esplendor de um príncipe. Isso não o deixa satisfeito?
Giovanni, relutante, admitiu que sim.
- Mas - acrescentou ele - ainda há muita coisa que lamento deixar.
O papa o abraçou.
- Esteja certo, meu adorado, que a sua contrariedade ao partir não é maior do que a minha ao vê-lo ir embora. Alexandre aproximou bem o seu rosto do do filho. – Case com a sua Maria - disse ele - engravide-a. Arranje um herdeiro... e então, por que não poderia voltar para Roma? Fique certo de que ninguém, aqui, irá censurá-lo por não ficar lá, desde que tenha cumprido com o seu dever. Giovanni sorriu.
- Farei isso, meu pai - disse ele.
- E lembre-se, Giovanni, enquanto estiver na Espanha deverá portar-se como um espanhol.
- Eles são muito solenes.
- Só em acontecimentos cerimoniosos. Não lhe peço mais do que isto, meu adorado filho: case-se, consiga um herdeiro e porte-se de maneira a não ofender a corte da Espanha Fora isso... faça o que quiser. Aproveite a vida. Seu pai quer que você seja feliz.
Giovanni beijou a mão do pai e deixou-o para juntar-se a Djem, que esperava por ele.
Os dois entraram na cidade a cavalo em uma de suas aventuras, mais alegres, mais bizarros do que nunca. Giovanni achava que devia inserir o máximo de excitação no curto período de tempo que lhe restava.
Depois que o filho partiu, o papa mandou chamar dois homens: Ginès Fira e Mossen Jayme Pertusa.
- Vocês estão fazendo seus preparativos? - perguntou o papa.
- Estamos prontos para partir para a Espanha assim que nos mandarem, Santo Senhor - respondeu Ginès.
- Isso é bom. Mantenham-se perto de meu filho e me informem de tudo o que acontecer a ele; por mais insignificante que seja, eu quero saber.
- Nós somos servidores de Vossa Santidade.
- Se eu descobrir que vocês não comunicaram qualquer detalhe... por menor que seja... vou excomungá-los, e podem esperar pela condenação eterna.
Os homens empalideceram. Depois, caíram de joelhos e juraram que, no que dependesse deles, iriam comunicar todos os detalhes da vida do duque de Gandia; não tinham outro desejo, na Terra, a não ser servir a Sua Santidade.
Lucrécia tinha ido a cavalo até o Monte Mário, para ver os falcões, e enquanto retornava ao palácio uma escrava correu até ela para dizer-lhe que a senhora Adriana estava à sua procura.
Lucrécia seguiu para os aposentos, onde encontrou Adriana um tanto perturbada.
- O Santo Padre quer que você vá vê-lo - disse ela. Parece que há notícias.
Os olhos de Lucrécia arregalaram-se e seus lábios entreabriram-se levemente, uma expressão característica que, com o seu queixo pequeno, fazia com que ela parecesse ter dez anos, em vez de uma menina que se aproximava dos quatorze.
- Más notícias? - perguntou ela, o medo insinuando-se no seu olhar.
- São notícias da Espanha - disse Adriana. - Não sei de mais nada.
Notícias da Espanha deviam ter relação com Giovanni. De fato, nos últimos meses ninguém conseguira esquecer-se de Giovanni. Alexandre estava o tempo todo preocupado por pensamentos sobre o filho adorado.
Quando chegavam más notícias da Espanha, ele se trancava e chorava, e ficava muito desgostoso, talvez por um dia
- o que, para ele, era um longo tempo para ficar se lamentando; depois, alegrava-se e dizia: "Não se pode acreditar em tudo o que se ouve. É natural que um príncipe tão magnífico assim tenha inimigos."
As notícias tinham sido sempre más, de modo que Lucrécia ficou com medo quando ouviu a convocação para ir falar com o pai.
- Vou tirar minha roupa de montaria e irei procurá-lo imediatamente - disse ela.
- Vá - recomendou Adriana - ele está impaciente, esperando para vê-la.
Lucrécia foi para seus aposentos e Giulia a seguiu até lá. Giulia estava satisfeita, porque recuperara todo o seu poder sobre o papa. Ela aprendera que não devia ligar para a ligeira preferência dele por freiras espanholas ou escravas mouras; aqueles desejos passavam. Lucrécia lhe contara sobre a atitude da mãe dela para com os amores menores do pai; Vannozza rira, indulgente, e ele sempre quisera bem a ela; dera-lhe dois maridos, e Canale era tratado como um membro da família; até César tinha uma certa consideração com ele, em respeito à sua mãe. E veja como o papa amara os filhos de Vannozza, despejando sobre eles um carinho que não poderia ter sido ultrapassado mesmo se ele tivesse podido casar-se com Vannozza e eles tivessem sido seus filhos legítimos.
Lucrécia tinha razão; e Giulia estava decidida a que sua pequena Laura fosse tratada com o mesmo carinho. Não havia dúvida de que Alexandre gostava muito da menininha, e como sinal de seu amor pela mãe, prometera conceder o chapéu cardinalício a Alessandro Farnese. A família de Giulia não parava de lhe dizer o quanto a admirava e o quanto dependia dela.
Mas agora Giulia se perguntava qual seria aquela notícia que o papa queria dar à filha. Antigamente, ela teria ficado muito magoada pelo fato de ele não lhe ter dito primeiro, mas agora conseguia adaptar-se e ocultar qualquer ressentimento.
- Meu pai me espera - disse Lucrécia enquanto sua escrava a ajudava a tirar os trajes de montaria.
- Qual será esse novo problema? - disse Giulia.
- Pode não ser problema - disse Lucrécia. - Pode ser uma boa notícia.
Giulia riu dela.
- Você não muda nem um pouco - disse. - Está casada há quase um ano e, no entanto, é a mesma de quando nos vimos pela primeira vez.
Lucrécia não estava prestando atenção; pensava em todos os preparativos anteriores à partida de Giovanni. Sabia o quanto Giovanni era importante para Alexandre; sabia que ele fizera o máximo possível para garantir que o filho agradasse a corte espanhola; sabia sobre o bispo de Oristano, sob cujos cuidados Alexandre colocara Giovanni a partir do momento em que ele pisara em solo espanhol; sabia das ordens que tinham sido dadas a Ginès Fira e Pertusa. Pobres homens, como poderiam eles evitar que Giovanni desobedecesse às ordens do pai?
E pobre Giovanni! Não sair à noite. Não jogar dados. Fazer companhia à esposa e dormir com ela todas as noites até conceber um filho. Usar luvas o tempo todo em que estivesse no mar, porque o sal é prejudicial às mãos, e na Espanha esperava-se que um nobre tivesse mãos brancas e macias.
E Giovanni, é claro, desobedecera ao pai. Chegavam cartas de Fira e Pertusa contando essas coisas, e as cartas levavam o papa à melancolia - uma melancolia temporária, é verdade - antes de recobrar o ânimo e dizer que apesar de tudo sabia que seu filho adorado faria tudo o que se esperava dele.
Tinham chegado cartas melancólicas de Giovanni. Seu casamento tivera lugar em Barcelona, e o rei e a rainha da Espanha tinham comparecido, o que fora uma grande honra e mostrava a estima que tinham por Maria; mas, escreveu Giovanni, ele não gostava nem um pouco da mulher; ela era enfadonha e seu rosto, comprido demais; ela lhe causava repugnância.
Lucrécia tentou não pensar no dia em que chegara uma carta de Fira e Pertusa dizendo que Giovanni se recusara a consumar o casamento e que, em vez de dormir com a esposa, reunia alguns companheiros e saía pela cidade à noite, procurando mulheres jovens para seduzir ou estuprar.
Isso era terrível, porque se o papa justificava o comportamento do filho, o rei da Espanha não o fazia, e a mulher de Giovanni era da casa real e não podia ser humilhada daquela maneira.
Pela primeira vez, Alexandre escreveu em termos candentes a Giovanni e pediu a César que escrevesse para o irmão nos mesmos termos; isso, César ficou ansioso por fazer logo.
Lucrécia estava triste com a situação. Sabia que o pai estava muito preocupado; claro que não era tanto quanto a maioria dos pais teria ficado, mas Lucrécia o amava tanto que não podia suportar a ideia de que ele estivesse até mesmo ligeiramente preocupado.
Ela chorara na presença dele e ele a abraçara e a beijara apaixonadamente.
- Minha querida, minha querida-bradara ele. -Você nunca magoaria seu pai dessa maneira, minha doce, doce criança.
- Nunca, papai - assegurara-lhe ela. - Eu preferiria morrer a magoá-lo.
Ele a apertara nos braços, chamara-a de seu querido amor e praticamente não suportara tê-la longe dos olhos por um dia inteiro.
Mas as tempestades passavam e pouco depois Alexandre tornara a ser o homem alegre e benigno, porque chegara uma carta de Giovanni declarando que ao escrever daquela maneira o pai lhe causara um grande desgosto - o maior que ele já sofrera.
Diante do quê, Alexandre chorara e se recriminara.
Ele lera a carta de Giovanni em voz alta para Lucrécia, já que mandara chamá-la ao receber a carta.
- "Não posso compreender como o senhor pode acreditar nesses relatórios sinistros que foram escritos por pessoas malvadas que não têm apreço pela verdade..."
- Está vendo? - bradara Alexandre, exultante. - Nós o julgamos mal.
- Então - dissera Lucrécia-Fira e Pertusa mentiram? Brilhos de medo surgiram nos olhos azuis-cinza para perturbar sua suavidade. Ela temera por aqueles dois homens que tinham feito, isso ela sabia, o que o Santo Padre lhes pedira, e que poderiam ser punidos para mostrar que Giovanni tinha razão.
Alexandre abanara a mão.
- Não importa. Não importa - dissera.
Ele não queria discutir sobre os dois homens nos quais confiava em que falariam a verdade; não queria admitir que sabia que as palavras de Giovanni eram mentiras. Era muito mais agradável fingir que eram verdades.
- O casamento dele foi mais do que consumado bradara o papa, continuando a ler a carta. Estourou numa gargalhada. - E foi mesmo. Eu conheço o meu Giovanni!
Alexandre continuara a leitura:
- "Se eu saí pelas ruas à noite, meu pai, eu o fiz com meu sogro, Enrico Enriques, e outros amigos de Sua Mui Católica Majestade. Em Barcelona, é costume dar um passeio à noite."
Depois, Alexandre andara pelo aposento, falando sobre Giovanni, dizendo a Lucrécia que estava sempre certo de que seus filhos jamais o decepcionariam; mas Lucrécia apreendera sua aflição. E assim, quando aquela mensagem chegara, ela temia que se tratasse de mais notícias alarmantes sobre seu irmão.
Quando chegou à presença do pai, viu que estivera se preocupando sem motivo; foi envolvida pelos braços dele e beijada com ardor.
- Minha filha adorada - bradou o papa - aqui está a melhor notícia possível. Vamos comemorar isso com um banquete esta noite mesmo. Ouça o que tenho a dizer, minha querida: seu irmão vai ser pai em breve. O que diz a isso, Lucrécia? O que diz a isso?
Ela o envolveu em seus braços.
- Oh, papai, estou tão feliz! Não consigo achar palavras para exprimir minha alegria.
- Como eu sabia que ficaria. Deixe-me olhar para você. Oh, seus olhos brilham e faíscam! Como você está bonita, minha filha! Eu sabia da alegria que isso lhe daria; foi por isso que não deixei que nenhuma outra pessoa lhe desse a notícia. Eu não quis dizer a ninguém enquanto você não soubesse primeiro.
- Eu me alegro por Giovanni - disse Lucrécia. - Sei o quanto isso vai torná-lo feliz; e também fico satisfeita por Sua Santidade, porque acredito que o prazer que isso lhe dá é ainda maior do que aquele que Giovanni vai ter.
- Com que então a minha filhinha se importa profundamente com o pai?
- Como poderia ser de outra maneira? - perguntou Lucrécia, como se assombrada pela pergunta.
- Eu a amo muito desde o primeiro dia em que a segurei nos braços, um nenenzinho de rosto vermelho com um brilho de prata na cabeça; e a amo com a mesma intensidade desde então. Minha Lucrécia... minha filhinha... que jamais me daria, por vontade própria, um único momento de aflição!
Ela tomou-lhe a mão e a beijou.
- É verdade, papai-disse ela.-O senhor me conhece bem.
Ele envolveu-a com um dos braços e conduziu-a a uma cadeira.
- Agora - disse ele -, vamos fazer com que toda a Roma se alegre com essa notícia. Você e Giulia devem trocar ideias e programar um banquete para sobrepujar todos os banquetes.
Lucrécia estava sorrindo quando voltou aos seus aposentos. Ficou surpresa ao encontrar o marido lá.
- Meu senhor? - disse ela. Ele riu.
- Eu sei que é estranho me ver aqui - respondeu ele, sério. - Não devia ser, Lucrécia. Como sabe, você é minha esposa.
Um medo súbito tomou conta dela. Nunca vira Sforza daquela maneira. Havia algo em seus olhos que ela não compreendia.
Esperou, apreensiva.
- Você esteve com Sua Santidade? - perguntou ele.
- Estive.
- Eu imaginava isso. Sua aparência radiante me diz, e eu sei qual é a situação entre vocês dois.
- Entre meu pai e eu?
- Roma inteira sabe que ele a adora.
- Roma inteira sabe que ele é meu pai.
Sforza riu; foi uma risada desagradável, mas pouco; tudo o que se relacionava com Sforza era moderado.
- É porque Roma inteira sabe que ele é seu pai que esse afeto... esse afeto mais do que excessivo... é tão estranho rebateu ele.
Ela olhou para ele com os olhos arregalados, mas ele já se voltara e saía do aposento.
César chegou ao palácio de Santa Maria in Pórtico. Estava estranho, e Lucrécia não tinha certeza do que aquilo significava. Estaria zangado? Claro que deveria estar. Giovanni, agora, iria ser um pai legítimo, e isso era algo, estaria César dizendo para si mesmo, que ele jamais poderia ser. Que pena, pensou Lucrécia, que a felicidade de seu pai com a gravidez da mulher de Giovanni fosse ser mais uma cruz para César carregar.
Ela sabia que ele jamais se esquecera do juramento que fizera perante a Virgem, de fugir da Igreja; e sabia que ele estava tão decidido a cumpri-lo agora como quando o fizera.
Ela ouvira rumores sobre a vida dele nas universidades. Dizia-se que nenhum vício era degradante demais para que César o praticasse, ainda que apenas em caráter experimental. Dizia-se que o dinheiro e a influência de seu pai permitiram que ele criasse uma pequena corte própria, e que governava seus cortesãos como um monarca despótico; um olhar era o suficiente para dominá-los, e, se alguém deixasse de fazer o que ele mandasse, logo aconteciam acidentes com a pessoa.
- César - disse Lucrécia -, aconteceu alguma coisa para deixá-lo zangado?
Ele segurou-a pelo pescoço e curvou a cabeça dela para trás. Beijou-lhe levemente os lábios.
- Esses belos olhos enxergam demais-murmurou. Quero que você venha passear a cavalo comigo.
- Vou, César; com o máximo de prazer. Onde vamos passear?
- Pelas margens do rio, talvez. Pela cidade Deixar que nos vejam juntos. O público gosta disso. E por que não gostaria? É bem agradável ver você, irmã.
- E você é o homem mais bonito da Itália Ele soltou uma gargalhada.
- O quê? - disse ele. - Nos meus trajes de padre!
- Você dá dignidade a eles. Nenhum padre tem a sua aparência.
- Um fato que sem dúvida faz com que todos os bispos e cardeais fiquem muito satisfeitos.
Ele está de bom humor, pensou ela. Estava enganada.
Quando iam saindo, outra pessoa a cavalo juntou-se a eles. Era uma encantadora jovem ruiva, magnificamente, na verdade exageradamente, vestida, brilhando de jóias, os longos cabelos vermelhos caindo-lhe pelos ombros.
- Fiametta a conhece bem, irmã-disse César, olhando da ruiva mulher mundana para a dourada inocência de Lucrécia. - Ela diz que eu menciono o seu nome com uma frequência demasiada quando estou ao lado dela.
- Nós somos uma família dedicada - explicou Lucrécia à jovem.
- É verdade - disse Fiametta. - Toda a Roma fala da dedicação de vocês... um pelo outro; e é difícil dizer quem gosta mais da senhora Lucrécia, os irmãos ou o pai.
- É reconfortante ser amada dessa maneira - disse Lucrécia com simplicidade.
- Vamos - disse César -, vamos cavalgar juntos. Ele seguiu entre as duas, o sorriso sardónico nos lábios enquanto avançavam. As pessoas nas ruas passavam por eles e baixavam os olhos mas, depois que eles passavam, paravam para admirá-los com os olhos arregalados.
A reputação de César já era tal que ninguém ousava dirigir-lhe um olhar hostil ou crítico que ele pudesse ver; mas as pessoas não tinham como não olhar para ele com firmeza, cavalgando pelas ruas com a irmã e a outra mulher.
César sabia muito bem que as estava chocando ao andar a cavalo à luz do dia com uma das mais notórias cortesãs de Roma e em companhia de sua irmã; ele sabia que aquilo seria comunicado a seu pai e que o papa ficaria contrariado. Era isso que César pretendia. Que as pessoas olhassem; que mexericassem.
Fiametta estava gostando do passeio. Estava encantada com o fato de os cidadãos ficarem sabendo que ela era a mais recente amante de César Bórgia. Aquilo era um incentivo à sua reputação; e quanto mais tempo ela continuasse nas boas graças dele melhor, porque sem dúvida aquilo devia mostrar que na sua profissão ela era superior as suas companheiras.
Foram até o antigo Coliseu, que sempre fascinava Lucrécia e, no entanto, a deixava horrorizada ao pensar nos cristãos que tinham sido atirados aos leões e mortos pela fé.
- Isso é tão bonito - bradou ela - e no entanto... perturbador. Dizem que se se vier aqui à noite e esperar entre as ruínas, é possível ouvir os gritos dos mártires e o rugir das feras selvagens.
Fiametta riu.
- Isso é uma lenda que se conta.
Lucrécia voltou-se para César com ar de indagação.
- Fiametta está certa - disse-lhe ele. - O que sem dúvida se ouvirá será alguém levando as pedras e o mármore para construir uma casa. Essas histórias de fantasmas são contadas para manter longe do Coliseu as pessoas que poderiam perturbar os ladrões.
- Talvez seja isso mesmo. Agora já não estou alarmada.
- Mas eu lhe rogo - disse César -, não venha aqui à noite, irmã. Não é para pessoas como você.
- Você viria aqui à noite? - perguntou Lucrécia a Fiametta.
César respondeu por ela:
- À noite, o Coliseu é um antro de ladrões e prostitutas. Fiametta ficou levemente ruborizada, mas aprendera a não mostrar qualquer irritação a César.
Lucrécia, vendo o embaraço dela e compreendendo a causa - porque percebera qual era a profissão de Fiametta -, disse, rápida:
- O papa Paulo construiu seu palácio com esses blocos de travertino. Não é maravilhoso pensar que há todos esses anos o mesmo mármore, a mesma pedra, foi usado, e, embora todas as pessoas que o construíram e viveram nele estejam mortas, mil e quatrocentos anos depois ainda se podem construir casas com o mesmo material?
- Minha irmãzinha não é um encanto? - disse César, e jogou um beijo para ela.
Eles galoparam por entre as ruínas durante algum tempo e depois dirigiram os cavalos de volta para o palácio de Santa Maria in Pórtico.
César disse a Fiamettta que iria visitá-la mais tarde naquele dia e entrou no palácio de Lucrécia com ela.
- Ah - disse, quando ficaram a sós, e sempre que César visitava Lucrécia as criadas dela compreendiam que ele queria ficar a sós com ela -, agora você está um pouco chocada. Confesse, irmã.
- As pessoas olhavam para nós de olhos arregalados, César.
- E você não gosta da pobre da Fiametta?
- Eu gostei dela. É muito bonita... mas é uma cortesã, não é?, e será que devia ter cavalgado em nossa companhia pelas ruas?
- Por que não?
Talvez porque você seja um arcebispo.
César bateu com o punho na coxa, num gesto bem conhecido;
- É precisamente porque sou um arcebispo que andei pelas ruas com aquela meretriz ruiva.
- Nosso pai diz...
- Eu sei o que o nosso pai diz. Tenha suas amantes... dez, vinte, cem, se for preciso. Divirta-se como quiserem particular. Mas, em público, lembre-se, lembre-se sempre, de que você é filho da Santa Igreja. Por todos os santos, Lucrécia, eu jurei que vou fugir da Igreja, e vou me comportar de maneira tal que nosso pai será obrigado a me liberar.
- Ah, César, você vai deixá-lo muito desgostoso.
- E o que dizer do desgosto que ele me causa?
- E para o seu próprio progresso.
- Você dá ouvidos a ele, e não a mim. Eu vejo isso, irmã.
- Não, César, não. Quero que saiba que, se houvesse alguma coisa que eu pudesse fazer para livrá-lo da Igreja, eu a faria de bom grado.
- No entanto, você tem pena de seu pai. Você diz com muita pena: "Ele ficaria desgostoso." Nem uma palavra sobre o meu desgosto.
- Eu sei que você está desgostoso, irmão adorado, e eu faria tudo ao meu alcance para pôr um fim nesse desgosto.
- Faria, Lucrécia? Faria?
- Qualquer coisa... qualquer coisa deste mundo. Ele a segurou pelo ombro e sorriu para ela.
- Um dia eu posso pedir-lhe que cumpra a promessa.
- Estarei esperando. Estarei pronta, César. Ele a beijou com ardor.
- Você me acalma - disse. - Não foi sempre assim? Irmã adorada, não há ninguém sobre a Terra que eu possa amar tanto quanto a você.
- E eu também te amo, César. Isso não é suficiente para nos manter felizes, ainda que tenhamos outras tribulações a suportar?
- Não-bradou ele, os olhos faiscando. - Eu conheço o meu destino. É ser um rei... um conquistador. Você tem dúvida?
- Não, César, não tenho. Sempre vejo você como um rei e um conquistador.
- Querida Lucrécia, quando estávamos cavalgando com Fiametta, você olhava para aquelas velhas ruínas e pensava em épocas remotas. Há um homem glorioso na nossa história. Ele conquistou grandes países. Viveu antes de o Coliseu ser construído e é o maior de todos os homens que... por enquanto... saiu de Roma. Você sabe de quem estou falando.
- De Júlio César - disse ela.
- Um grande romano, um grande conquistador. Eu o imagino atravessando o Rubicão e sabendo que a Itália toda jazia a seus pés. Isso foi quarenta anos antes do nascimento de Cristo, e no entanto nunca houve outro homem igual a ele... ainda. Você sabe qual era o lema dele, não sabe? Aut Caesar, aut nuttus. Lucrécia, a partir deste momento, eu adoto esse lema. - Os olhos dele brilhavam com a megalomania; estava tão certo de sua grandiosidade que fez com que ela acreditasse nele.-Mas você compreende, eles não me deram o nome de César? Não foi um simples acaso. Houve um grande César. Haverá outro.
- Tem razão! - bradou ela.-Tenho certeza. Nos anos vindouros, as pessoas irão falar de você como falam do grande César. Você será um grande general...
Agora a expressão no rosto dele estava horrível.
- E meu pai vai me fazer um homem da Igreja!
- Mas você será papa, César. Um dia, você será o papa. Ele bateu os pés com fúria.
- Um papa governa nas sombras: um rei, em plena luz do dia. Eu não quero ser papa. Quero ser rei. Quero unir a Itália toda sob a minha bandeira e meu governo... eu e ninguém mais. Essa é a tarefa de um rei, não de um papa.
- Nosso pai tem de liberá-lo.
- Ele não vai fazer isso. Ele se recusa. Já pedi. Já implorei. Mas não, devo ir para a Igreja, insiste ele. Um de nós deve ir. Giovanni e sua égua de rosto comprido em Barcelona. Goffredo tem a meretriz dele de Nápoles. E eu... eu devo me casar com a Igreja. Lucrécia, será que já houve uma loucura tão estúpida assim? Sinto vontade de matar, quando penso nisso.
- Vontade de matar, César! Contra ele! César aproximou o rosto do dela.
- É - disse, sério. - Sinto vontade de matar... até mesmo ele.
- É preciso fazer com que ele compreenda. Ele é o melhor pai do mundo, e se ao menos soubesse o que você sente... oh, César, ele iria compreender. Providenciaria para que algo fosse feito.
- Já expliquei meus sentimentos até me cansar. Nessa hora, ele perde toda a expressão benigna. Nunca vi um homem decidido a fazer uma coisa como nosso pai fica quando eu falo em deixar a Igreja. Ele já decidiu que vou ficar.
- César, o que você disse me faz sofrer muito. Não posso me sentir feliz sabendo que você abriga tais pensamentos em relação ao nosso pai.
- Você é conciliadora demais, delicada demais. Não deve ser assim, menina. Como é que acha que o mundo vai usá-la, se continuar assim?
- Eu não tinha pensado em como o mundo me usaria. Penso em você, querido irmão, e em como ele o vem usando. E não posso suportar que haja um ressentimento entre você e o nosso pai. E César... oh, meu irmão... você falou em assassinato!
César soltou uma gargalhada. Depois, ficou carinhoso.
- Não tenha medo, bambina. Eu não o mataria. Que loucura! Dele vêm todas as nossas bênçãos.
- Não se esqueça disso, César. Não se esqueça disso.
- Sou um homem que está cheio de raiva, mas não de loucura - respondeu ele. - Eu me vingo à minha maneira. Nosso pai insiste para que eu entre para a Igreja, e eu insisto em mostrar como não tenho pendor para essa profissão. É por isso que perambulo pelas ruas com a minha cortesã ruiva... na esperança de fazer com que nosso pai perceba que não pode me obrigar a continuar esta vida.
- Mas César, e os rumores que temos ouvido sobre o seu casamento com uma princesa de Aragón?
- Rumores - disse ele, aborrecido. - Nada mais.
- No entanto, nosso pai parecia estar pensando nisso em determinado momento.
- Examinar a possibilidade foi diplomacia, menina. Nápoles fez a sugestão, a fim de alarmar os Sforza de Milão, e nosso pai estimulou o caso por motivos políticos.
- Mas deu uma recepção muito acalorada ao embaixador, e todos sabiam que ele viera aqui para discutir um possível casamento entre você e a princesa.
- Diplomacia. Diplomacia. Não perca tempo pensando nisso. Eu não perco. Minha única esperança é mostrar ao nosso pai o quanto sou incompatível com a Igreja, ou encontrar um meio de obrigá-lo a me liberar. Mas são poucas as esperanças. Nosso pai está decidido a me fazer cardeal.
- Um cardeal, César! Então é este o motivo de sua irritação. - Ela abanou a cabeça. - Estou pensando em todos aqueles que trazem presentes para mim e para Giulia porque esperam que possamos influenciar nosso pai a dar-lhes o chapéu cardinalício. E você... a quem ele está ansioso por dá-lo... não quer saber disso. Como a vida é estranha!
César fechava e abria as mãos.
- Receio - disse - que uma vez eu esteja usando os trajes de cardeal, não haja meio de escapar.
- César, meu irmão, você vai escapar - disse ela.
Tomei a decisão - disse o papa - de que você será um cardeal.
César havia, uma vez mais, abordado o assunto da liberação, e, por achar que sua irmã poderia exercer um efeito abrandador sobre o pai, insistira para que ela o acompanhasse à presença dele.
- Papai, eu lhe imploro para que me libere da Igreja antes de o senhor dar esse passo.
- César, você é bobo? Que homem em Roma recusaria tamanhas honrarias?
- Eu não sou igual a homem nenhum de Roma. Eu sou eu mesmo e só eu mesmo. Rejeito... essa discutível honraria.
- Você diz isso... perante Deus Todo-Poderoso! César abanou a cabeça com impaciência.
- Papai, o senhor sabe, não sabe?, que se eu me tornar um cardeal será mais difícil liberar-me de meus votos.
- Meu filho, não há como discutir a sua liberação de seus votos. Não vamos discutir mais isso. Lucrécia, meu amor, traga o seu alaúde. Eu gostaria de ouvi-la cantar aquela nova canção de Serafmo.
- Sim, papai - disse Lucrécia.
Mas César não a deixaria cantar, e, embora o papa olhasse para o filho com um leve ar de reprovação, não fez mais do que isso.
- O senhor não pode fazer de mim um cardeal, papai
- disse César, triunfante. - Eu sou seu filho, mas seu filho ilegítimo, e, como o senhor sabe muito bem, um homem não pode ser cardeal se não for filho legítimo.
O papa fez um gesto de desprezo pelo argumento dele como se se tratasse de uma mosca provocando uma irritação temporária.
- Ora, eu compreendo a sua aflição, meu filho. É por isso que você tem sido relutante. Você devia ter falado de seus receios antes.
- Então, papai, o senhor vê que é impossível.
- Você... um Bórgia, falando do impossível! Absurdo, meu querido menino, nada é impossível. Uma pequena dificuldade, admito; mas não tenha receio, já pensei em meios de sobrepujá-la,
- Papai, eu lhe imploro que me escute.
- Eu preferiria escutar o canto de Lucrécia.
- Eu serei ouvido! Eu serei ouvido! - gritou César. Lucrécia começou a tremer. Ela o ouvira gritar antes, mas nunca em presença do pai.
- Eu acho, meu filho-disse o papa, com frieza -, que você está superexcitado. Isso é devido ao fato de passear a cavalo em companhia inadequada à sua posição. Sugiro que evite tal conduta que, eu lhe asseguro, meu adorado filho, traz desgosto para aqueles que o amam mas poderá causar um prejuízo maior a você mesmo.
César ficou ali parado, mordendo os lábios, fechando e abrindo as mãos.
Houve um momento de medo quando Lucrécia pensou que ele estava para agredir o pai. O papa ficou sentado, sorrindo com benevolência, recusando-se a aceitar aquilo como uma grande diferença entre eles.
Então César pareceu recuperar o controle; curvou-se com dignidade e murmurou:
- Papai, estou ansioso por ter permissão para me retirar.
- Ela lhe é concedida, meu filho - disse Alexandre, delicado.
César se retirou, e Lucrécia acompanhou-o com uma expressão de tristeza nos olhos.
E então ela, que estava sentada em um tamborete aos pés de seu pai, sentiu a mão dele em sua cabeça.
- Vamos, meu amor, a canção! Ela é agradável e fica melhor em seus doces lábios.
Enquanto ela cantava, o papa acariciava os cabelos dourados da filha, e por uns momentos os dois esqueceram a cena desagradável que César provocara; ambos achavam muito fácil esquecer quando era um alívio fazê-lo.
Nos aposentos privados do papa, os cardeais Pallavicini e Orsini estavam sentados com ele.
- Uma questão simples - disse o papa, com um sorriso afável - e estou certo de que não apresentará dificuldade alguma para os senhores... essa pequena formalidade de provar que aquele que é conhecido como César Bórgia é filho legítimo.
Os cardeais ficaram assombrados, porque o papa reconhecera abertamente César como seu filho.
- Mas, Santíssimo Senhor, isso é, sem dúvida, uma impossibilidade.
- Como assim? - perguntou o papa, com um leve ar de surpresa.
Orsini e Pallavicini olharam um para o outro, pasmos. Então, Orsini falou:
- Santo Padre, se César Bórgia é seu filho, como poderia ele ser um filho legítimo?
Alexandre sorriu de Orsini para Pallavicini como se eles fossem duas crianças ingénuas.
- César Bórgia - disse ele - é filho de Vannozza Catanei, uma mulher de Roma. Por ocasião do seu nascimento, ela era uma mulher casada. Isso resolve o problema da ilegitimidade de César, porque um filho nascido no casamento é legítimo, não é?
- Santidade - murmurou Pallavicini -, não sabíamos que a senhora era casada à época do nascimento dele. De modo geral, acreditava-se que só depois do nascimento da filha, Lucrécia, ela se casara com Giorgio di Croce.
- É verdade que o casamento com Giorgio di Croce teve lugar depois do nascimento de Lucrécia, mas a senhora era casada antes disso. O marido era um certo Domenico d'Arignano, um funcionário da Igreja.
Os cardeais curvaram-se.
- Então isso prova que César Bórgia é legítimo, Santidade.
- E prova, mesmo - disse o papa, sorrindo para eles.
- Que se prepare uma bula declarando quem são os pais dele e a sua legitimidade.
Sua expressão era de arrependimento; negar o filho deixava-o triste; no entanto, aquela negação devia ser feita em nome da ambição. Acrescentou:
- Como eu tomara esse rapaz sob a minha proteção, permiti que ele adotasse o sobrenome Bórgia.
Os cardeais murmuraram:
- Vamos obedecer imediatamente aos seus desejos, Santíssimo Padre.
Mas depois que eles o deixaram, o papa se pôs imediatamente a redigir uma outra bula, na qual declarava ser o pai de César Bórgia. Ficou um pouco triste com o fato de aquela bula dever ser secreta... por enquanto.
César, furioso, andava de um lado para o outro nos aposentos de Lucrécia, e em vão ela tentava acalmá-lo.
- Não contente com me obrigar a entrar para a Igreja
- bradou César -, meu pai agora permite que se diga que sou filho de um certo Domenico d'Arignano. E quem é Domenico d'Arignano, me diga, por favor? Quem já ouviu falar em Domenico d'Arignano?
- As pessoas vão ouvir falar nele agora-disse Lucrécia, delicada. - O mundo inteiro vai ouvir falar nele. O direito que ele tem à fama será o fato de ter sido indicado como sendo seu pai.
- Um insulto atrás do outro! - bradou César. - Uma humilhação atrás da outra! Por quanto tempo mais terei de suportar essa situação?
- Meu irmão adorado, nosso pai quer apenas promovêlo. Na opinião dele, é necessário que você venha a ser um cardeal, e esta é a única maneira pela qual ele pode fazer isso.
- Então ele me nega!
- É só por algum tempo.
- Nunca me esquecerei de que meu pai me renegou bradou César, batendo com os punhos no peito.
Enquanto isso, Alexandre convocara um consistório, para que César fosse declarado legítimo.
Escolhera aquele momento porque muita gente havia saído de Roma. Fazia calor e o ar estava abafado, e tinha havido notícias de peste em vários bairros. Quando a peste se insinuava na cidade, quem podia invariavelmente apresentava uma desculpa para fugir para suas propriedades e vinhedos no interior. Aquela era uma dessas ocasiões.
Alexandre sabia que tinha havido uma oposição muito grande entre os cardeais devido aos favores que ele concedera à sua família e a seus amigos; os assuntos que ele tinha de submeter a eles agora diziam respeito não só ao seu filho, mas ao irmão de sua amante, porque, embora tivesse prometido a Giulia que o irmão dela iria receber o chapéu cardinalício, este ainda não lhe fora concedido.
Havia poucos cardeais presentes ao consistório, o que agradou a Alexandre. Era melhor lidar com poucos adversários do que com muitos. Mas os que estavam presentes estavam desconfiados, porque compreendiam que aquela era uma jogada preliminar e temiam o que estaria por vir. Alexandre levava o nepotismo longe demais, diziam entre si. Não demoraria muito para que todo homem em qualquer cargo de importância fosse ali colocado para servir ao papa.
E as suspeitas aumentaram quando Alexandre cruzou as belas mãos, deu o mais afável de seus sorrisos e declarou:
- Senhores cardeais, façam os preparativos necessários. Amanhã, elegeremos os novos cardeais.
Então, tudo ficou claro. César tinha sido declarado legítimo para que pudesse ser feito cardeal.
Houve um leve murmúrio entre todos os presentes, e muitos olhos voltaram-se para o cardeal Carafa, que em ocasiões anteriores se mostrara ousado o bastante para opor-se ao papa.
- Santíssimo Senhor - disse Carafa -, será que Vossa Santidade levou na devida consideração a utilidade de fazer essas indicações?
Uma vez mais aquele sorriso ameno.
- A questão de criar esses cardeais diz respeito apenas a mim.
- Santidade - disse uma voz vinda dos presentes -, há muitos, entre nós, que acham não ser necessário fazer novos cardeais neste momento.
O sorriso desapareceu do rosto do papa, e por um instante todos os que estavam ali reunidos tiveram uma rápida visão de um Alexandre que em geral ficava escondido.
Carafa continuou, ousado:
- Acontece, Santidade, que sabemos de alguns dos nomes que Vossa Santidade pretende propor, e não achamos que eles sejam talhados para o cargo, nem queremos que sejam nossos colegas.
Aquilo era uma referência direta à reputação de César e um lembrete de que ele tinha sido visto na cidade em companhia da cortesã Fiametta. César exibira deliberadamente sua amizade com a tal mulher prevendo uma cena como aquela.
Era uma característica de Alexandre o fato de sua raiva ser dirigida não contra César, mas contra os cardeais.
Ele pareceu crescer de estatura. Os cardeais tremeram diante dele, porque havia uma lenda em Roma de que nenhum homem com a idade de Alexandre podia possuir tal virilidade, tal saúde impressionantemente boa, a menos que fosse sobre-humano. Aqueles cardeais acharam que a lenda era verdade, enquanto o seu papa os encarava com uma raiva fora do comum.
- Os senhores precisam aprender quem é Alexandre VI
- bradou. - E se persistirem na sua intransigência, vou incomodá-los fazendo tantos novos cardeais quanto eu quiser.
Os senhores nunca me expulsarão de Roma, e aqueles que tentarem, ou aqueles que se opuserem a mim de qualquer forma, serão muito imprudentes. Os senhores devem pensar realmente no quanto eles serão imprudentes.
Houve um curto silêncio enquanto Alexandre olhou com raiva para os intimidados cardeais à sua frente.
Depois, com o máximo de dignidade, prosseguiu:
- Agora, vamos indicar os novos cardeais.
E quando a assembleia viu que no alto da lista estavam os nomes de César Bórgia e Alessandro Farnese, e que todos os treze propostos eram homens que se podia estar certo de que iriam trabalhar para o papa contra os seus inimigos, percebeu que nada havia que ousasse fazer, a não ser concordar com a eleição.
Alexandre sorriu para eles, e a expressão afável retornara ao seu rosto.
Depois que os cardeais saíram da presença do papa, eles discutiram a situação.
Della Rovere, que sempre se considerava um líder, recobrou a beligerância, embora na presença do papa tivesse ficado tão dominado quanto os demais.
Seu ex-inimigo, Ascanio Sforza, apoiou-o. Por quanto tempo iriam eles suportar o absurdo nepotismo do papa?, perguntavam uns aos outros. Não contente em fazer do filho ilegítimo um cardeal, fizera o mesmo com o irmão da amante. Todos os indicados eram seus joguetes. Em breve praticamente não haveria um homem num cargo influente para erguer a voz contra Alexandre.
E qual era a política de Alexandre? Enriquecer a família e os amigos? Parecia que sim.
Havia rumores, na cidade, de que homens estavam morrendo de forma misteriosa. A má reputação de César Bórgia aumentava; dizia-se, agora, que ele estava interessado e estudava a arte do envenenamento; e que ele tinha muitas receitas malignas que vinham dos mouros espanhóis. Mas com quem teria César aprendido aquilo? Com o pai?
- Cuidado com os Bórgia!
Aquelas palavras estavam sendo ouvidas cada vez com maior frequência por toda a cidade.
Alexandre tinha ciência do que se passava e, temendo um cisma, agiu com o costumeiro vigor. Fez de Ascanio Sforza quase que um prisioneiro no Vaticano; ao ver o que acontecera com Sforza, della Rovere apressou-se em sair de Roma.
O marido de Lucrécia, apreensivo, observava a crescente agitação. Seu parente e padrinho, Ascanio Sforza, estava impotente no Vaticano. Além do mais, Giovanni Sforza sabia que o papa estava menos satisfeito com o casamento da filha do que antes, e já estava à procura de um marido que pudesse proporcionar-lhe mais lucro.
O casamento nunca fora consumado; o dote nunca fora pago. Que tipo de casamento era aquele?
Ele estava cercado por temores de todos os lados. Não conseguia dormir com facilidade, porque tinha a certeza de que estava sendo espionado no Vaticano. Tinha medo dos Orsini, que eram aliados de Nápoles e sempre tinham sido inimigos de Milão. Perguntava-se se eles, agora que ele não estava mais nas graças do Vaticano, não iriam achar que aquela era uma boa oportunidade de livrarem-se dele. Se ele atravessasse a ponte de Santo Angelo a pé, será que eles viriam descendo o Monte Giordano e enfiariam uma faca em seu corpo? E se o fizessem, quem iria se importar?
Giovanni Sforza era um homem que sentia pena de si mesmo; sempre fora assim. Os parentes pouco ligavam para ele - como acontecia com os novos parentes que ele adquirira com o casamento.
Sua pequena esposa - ela parecia uma criatura delicada, mas ele não devia se esquecer de que ela era um deles - era uma Bórgia, e quem iria confiar num Bórgia?
Mas durante aquele período Sforza desejava que ele e Lucrécia tivessem sido marido e mulher de verdade. Ela tinha um rosto doce e inocente, e ele acreditava que poderia ter confiado nela.
Agora no entanto era tarde demais para pensar nisso.
Na época, havia um grande espetáculo acontecendo em Roma. Era a partida do pequeno Goffredo para Nápoles, onde ele deveria casar-se com Sanchia de Aragón.
César e Lucrécia viram o irmãozinho partir para Nápoles; estava acompanhado de um velho amigo de César, Virgínio Orsini, que fizera com que o primeiro ano do menino em Monte Giordano fosse tolerável e que agora era comandante-em-chefe do exército aragonês. O tutor de Goffredo também acompanhou a comitiva até Nápoles; era dom Ferrando Dixer, um espanhol; e o papa, para mostrar que não se esquecia do país ao qual pertencia, confiou àquele espanhol dois porta-jóias cheios - presentes para a noiva e o noivo.
E assim Goffredo de cabelos castanho-avermelhados, com onze anos de idade, deixou Roma a cavalo para ir ao encontro da noiva, para ser feito príncipe de Squillace e conde de Coriata e receber a ordem do Arminho, cujo lema era: "É melhor morrer do que trair."
Havia uma pessoa que observava a partida com um misto de orgulho e tristeza. O sonho da maternal Vannozza tornara-se realidade. Seu pequeno Goffredo era aceito como filho de Alexandre; iria ser um príncipe, e ela estava feliz.
Mas havia momentos em que desejava ser uma humilde mãe romana, com os filhos à sua volta; havia momentos em que teria aberto mão de suas videiras e de sua casa com a cisterna d'água para ser aquele tipo de mãe.
A angústia de Giovanni Sforza aumentou devido à nova amizade entre Nápoles e o Vaticano, que o casamento de Goffredo e Sanchia deveria estimular.
Ele tinha medo de mostrar-se nas ruas, por temer os inimigos de sua família; tinha medo de inimigos dentro do círculo do Vaticano. Tinha uma bela esposa, mas não lhe permitiam viver com ela; era lorde de Pesaro, uma cidade na costa do Adriático que lhe parecia, em especial naquela fase, um lugar muito tranquilo, isolado de toda disputa pelas montanhas que a protegiam e abençoado pelas águas frias do rio Foglia. Com o mar de um lado e as montanhas do outro, Pesaro oferecia um frescor, em contraste com o ar fétido de Roma; e Sforza ansiava por estar em Pesaro.
Pediu uma audiência com o papa, porque sentia que já não podia continuar em Roma.
- Ora, Giovanni Sforza - disse Alexandre -, o que tem a me dizer?
- Santo Padre, todos em Roma acreditam que Vossa Santidade fez um acordo com o rei de Nápoles, que é inimigo do estado de Milão. Se for verdade, minha posição fica difícil porque, como capitão da Igreja, um cargo no qual, através de sua benevolência, eu me instalei, estou sendo pago por Vossa Santidade e também por Milão. Não vejo como posso servir a dois senhores sem contrariar um deles. Será que Vossa Santidade, graças à sua bondade, poderia definir minha posição, a fim de que eu possa servi-lo como sou pago para fazer e, no entanto, não me tornar um inimigo do meu próprio sangue?
Alexandre soltou uma gargalhada.
- Você se interessa demais por política, Giovanni Sforza. Seria prudente servir àqueles que lhe pagam.
Giovanni tremeu diante do olhar calmo do papa e desejou de todo o coração que nunca tivesse concordado em se casar com uma Bórgia.
- Suas perguntas estão respondidas, meu filho continuou Alexandre. - Retire-se agora, e eu lhe peço que não se preocupe demais com a política. Ela nem toca a sua alçada.
Giovanni retirou-se e imediatamente escreveu para o tio, Ludovico de Milão, contando o que dissera ao papa e declarando que preferia levar uma vida miserável a ter se casado. Estava se colocando à mercê do tio.
Mas Ludovico não estava disposto a oferecer-lhe asilo. Ludovico observava atentamente o crescimento da amizade entre Nápoles e o Vaticano; ele não estava convencido de que o elo entre aqueles dois tivesse a importância que se poderia pensar em Nápoles; o papa era astuto, e Ludovico preferia manter-se afastado.
Giovanni ficou impaciente.
A peste estava aumentando por toda a Roma, e seus temores aumentavam com ela. No cargo que exercia no Vaticano, ele tinha liberdade de sair de Roma quando quisesse.
Um dia, cercado por alguns de seus homens, deixou a cidade a cavalo, em direção a Pesaro.
Lucrécia não sentiu a mínima falta dele. Ela o vira poucas vezes, e só em funções especiais os dois tinham aparecido juntos.
Giulia riu dela enquanto elas brincavam com a filhinha de Giulia, Laura, que agora estava com quase dois anos.
- Parece que você ganhou um amante, em vez de perder um - disse Giulia.
- Um amante! Ele nunca foi. - Lucrécia estava tristonha. As pessoas cresciam, e ela agora estava com quatorze anos. Giulia tinha quatorze quando se tornara amante de Alexandre.
- Ora, não mostre a sua satisfação com a partida dele assim tão abertamente - aconselhou Giulia.
- O meu Santo Padre vem me visitar? - perguntou a pequenina Laura, puxando as saias da mãe.
Giulia ergueu a criança e cobriu-a de beijos.
- Em breve, eu não tenho dúvidas, minha querida. Ele não sabe ficar muito tempo longe da sua pequena Laura, sabe?
Lucrécia as observava, ainda tristonha, pensando na época em que o mesmo pai encantara outros filhos cuja ala infantil visitara. Alexandre - um pai tão terno para com a pequenina Laura quanto tinha sido para com ela e César, Giovanni e Goffredo - continuava tão jovem quanto na época em que ela e os irmãos estavam na ala infantil. Agora eles já não eram crianças, e parecia que coisas maravilhosas e emocionantes aconteciam a todos eles, exceto a ela. Ela estivera casada, mas não tinha sido um casamento de verdade; e ela podia sentir-se feliz porque o marido agora tinha fugido. Se ele tinha fugido da peste ou dela, não importava. Fosse lá do que fosse que ele tivesse fugido, era um covarde. Sim, estava certa de que ele era um covarde.
Sonhara com um amante tão magnífico quanto seu pai, tão bonito quanto seu irmão Giovanni, tão excitante quanto César - e eles tinham lhe dado um homem pequeno, um viúvo, um homem frio que não protestava pelo fato de o casamento não ter sido consumado; eles a tinham casado com um covarde que fugira da peste e não tentara levá-la consigo.
Não que ela quisesse ir. Mas, disse para si mesma, se Giovanni Sforza tivesse sido o tipo de homem que insistisse em me levar, eu teria querido ir.
- Giulia - disse ela -, você acha que agora que Giovanni Sforza me abandonou, meu pai vai arranjar um divórcio?
- Vai depender-disse Giulia, alisando os longos cabelos louros da filha desde a testa - de até que ponto o Santo Padre considerar o casamento.
- Que valia ele pode ter... agora?
Giulia deixou a filhinha e, aproximando-se de Lucrécia, pôs a mão em seu ombro.
- Nenhuma - disse ela. - Pode estar certa de que o casamento será dissolvido e então você terá um belo marido... um marido que irá declarar que não quer saber desse casamento que não é casamento. Além do mais, você está crescendo, Lucrécia. Já tem idade suficiente para o casamento. Ah, sim, desta vez será um belo marido. Um casamento de verdade.
Lucrécia sorriu.
- Vamos lavar os cabelos uma da outra - disse ela; e Giulia concordou. Era uma ocupação favorita: os cabelos dourados delas tinham de ser lavados de três em três dias, porque depois desse prazo escureciam e perdiam um pouco de sua cor brilhante, de modo que elas passavam muito tempo lavando os cabelos uma da outra.
E, enquanto lavavam, falavam sobre o marido bonito que seria de Lucrécia quando o papa a tivesse liberado de Giovanni Sforza. Lucrécia imaginava-se num vestido de veludo vermelho, com pérolas. Estava ajoelhada em uma almofada aos pés de seu pai e dizendo: Aceito, de boa vontade." E o homem que se ajoelhava a seu lado era uma figura sombria, mas combinava a presença de seu pai e as qualidades que ela admirava em seus irmãos.
A ela parecia que era um Bórgia que estava ajoelhado a seu lado.
Lucrécia parou logo de sonhar, porque quando o pai ficou sabendo que Giovanni Sforza deixara Roma, ficou com raiva e chamou-o logo de volta.
Mas seguro em Pesaro entre seus súditos, longe do conflito da política e da ameaça da peste, Giovanni podia ser ousado. Ignorou as ordens.
Houve ameaças e promessas, pois Alexandre tinha medo do que o genro pudesse fazer, uma vez ficasse fora de seu controle.
E por fim o papa declarou que se Giovanni Sforza voltasse para Roma o casamento deveria ser consumado e o dote, pago
Todos esperavam ansiosos para ver o que Sforza faria então; Lucrécia aguardava... apreensiva.
Mesmo com tais iscas oferecidas a ele, Giovanni Sforza relutava em voltar para Roma.
Havia uma agitação por toda a Itália e Sforza estava plenamente cônscio disso. Dessa vez não eram estados da península em guerra que lançavam uma sombra sobre o país; havia um inimigo mais poderoso.
O rei da França renovara sua reivindicação ao trono de Nápoles e informara a Alexandre que estava enviando uma missão ao Vaticano para que o assunto pudesse ser discutido.
Alexandre, com sua diplomacia inteligente, recebeu a missão francesa com cortesia; e a recepção que ofereceu aos delegados foi vista com tal desaprovação por toda a Itália que havia rumores de que dentro de pouco tempo Alexandre seria deposto. Della Rovere estava alerta; decidira que, da próxima vez em que o trono papal ficasse vago, ele se sentaria nele.
Alexandre, no entanto, não se perturbou. Tinha uma infinita confiança em si mesmo e estava certo de que poderia sair-se bem da situação, por mais ominosa que ela parecesse. Ferrante de Aragón morrera, e agora seu filho Alfonso era o rei. Alfonso decidira manter, a qualquer custo, a amizade do papa, e oferecera grandes subornos a Alexandre a fim de cimentá-la. Não era do feitio de Alexandre recusar subornos, de modo que agora ele estava aliado a Alfonso; enquanto isso, os franceses sentiam-se insatisfeitos e ameaçavam uma invasão.
Em seu refúgio em Pesaro, Giovanni Sforza observava o que se passava, mas não conseguia decidir que caminho tomar. Ludovico de Milão lhe mostrara com toda a clareza que não podia esperar que ele ajudasse seu parente numa emergência. O papa estava forte, evidentemente, já que Alfonso de Nápoles procurava com tanto ardor a amizade papal. Portanto, Giovanni Sforza decidiu voltar para Roma.
Lucrécia esperava. Seus cabelos tinham sido lavados de novo, seu corpo fora perfumado. Finalmente, ela seria uma mulher casada.
O papa recebera bem o genro, como se sua ausência tivesse sido normal. Ele o abraçara com entusiasmo e declarara estar satisfeito ao recebê-lo e que o leito nupcial o aguardava.
Houve banquetes e as costumeiras piadas grosseiras. Foi quase como um outro casamento, mas Lucrécia não pôde participar das celebrações com a mesma despreocupação de quando participara do verdadeiro casamento. Aquele tinha sido uma farsa, com ela no papel principal; esse era a realidade.
A atitude de seu marido para com ela mudara; ela percebeu isso. Ele tomou-lhe a mão e ela sentiu a respiração dele em seu rosto. Pelo menos ele percebera que ela era bonita.
E assim os dois dançaram juntos as danças da Itália, não as espanholas que ela antes dançara com Giovanni naquela ocasião que se parecia tanto com essa mas que era muito diferente.
E então para o leito nupcial.
Ele estava quieto e falou pouco. Ela estava preparada para o que deveria acontecer - Giulia a preparara -, mas sabia que iria ser diferente da experiência de Giulia.
Estava um pouco amedrontada, mas serena como sempre, e sabia que, se não sentisse o êxtase pelo qual ansiara, pelomenos poderia suportá-la.
Quando ficaram a sós no grande leito, ela disse:
Primeiro, diga-me uma coisa, Giovanni. Por que vocêesperou tanto tempo antes de voltar?
- Teria sido uma tolice voltar-balbuciou ele.-Havia a peste e... a situação estava incerta.
Ele voltou-se para ela, impaciente depois de todos os meses de espera, mas ela se manteve indiferente, com um levíssimo sinal de medo nos grandes olhos claros.
- Você voltou pela consumação... ou pelo dote?
- Pelos dois - respondeu ele.
Foi estranho, sedutor, como Giulia dissera; e no entanto não foi como Giulia dissera. Lucrécia estava cônscia da excitação, da descoberta de um novo mundo que parecia estar se abrindo diante dela, de delícias nunca sonhadas. Sabia que com um outro homem teria sido diferente; mas mesmo com aquele foi razoável.
No entanto, com alguns...
Ela ficou deitada, sorrindo.
Ela amadurecera da noite para o dia. Alexandre e Giulia, que tinham percebido, comentaram o fato entre si.
- Tenho pena dela - disse Giulia, pensativa. - A minha experiência foi diferente. Pobre Lucrécia, com aquela criatura fria e nervosa! Santidade, o senhor devia dissolver o casamento e dar a ela um homem de verdade.
Alexandre estalou a língua em tom de brincadeira.
- Que maneira de se falar do casamento! Ah, ela ainda é jovem. Tem a vida toda pela frente. No entanto não descarto a ideia de arranjar um divórcio, mas os divórcios não são fáceis de se arranjar. A Igreja os abomina.
- Mas se o Santo Padre decidisse, a Igreja iria acompanhar seus desejos - lembrou-lhe Giulia.
- Ah, sua malvada, você zomba. Tenho de pensar num castigo para você.
- Eu direi dez "Eu te amo" e me atirarei a seus pés em adoração, e bradarei: "Faça comigo o que quiser, Santo Padre, porque meu corpo e minha alma lhe pertencem!"
- Minha Giulia... meu amorzinho. O que faria eu sem você? Mas você vai tomar conta da minha Lucrécia, não vai? Vai aconselhá-la, mulher experiente que você é!
- Como arranjar amantes e enganar o marido. Como eu fiz.
- Não foi engano. Pobre pequeno Orsino, ele estava querendo que isso acontecesse... querendo muito.
Os dois riram juntos enquanto ela lhe assegurava que gostava de Lucrécia como uma irmã e que iria tomar conta dela como tal.
Mas Giulia queria discutir outros assuntos. Estava ansiosa por que o papa arranjasse um casamento ilustre para Laura, já que queria que a Itália inteira soubesse que a garotinha era aceita como filha dele.
- Vou arranjar. A adorada Laurinha terá o melhor marido que você possa querer.
Alexandre manteve Giulia consigo. Precisava do relaxamento que a sua relação com ela podia lhe dar. Havia nuvens negras sobre Roma na época, e ele não queria pensar nelas. De modo que com a sua Giulia ele iria se divertir; faria amor como um jovem enquanto os dois se regozijavam de sua virilidade.
Ele descobrira que aquilo era o melhor antídoto para os problemas.
Elas - Lucrécia e Giulia-estavam nos aposentos de Lucrécia. Os cabelos das duas caíam soltos sobre os ombros. Os de Giulia chegavam até os pés, e Lucrécia podia sentar-se sobre os dela. Uma vez mais, elas os tinham lavado.
- Faz sol na sacada - disse Giulia. - Vamos até lá para secá-los. Secá-los ao sol deve torná-los mais dourados do que nunca.
Será que devemos ir para a sacada?
- Por que não?
A infecção não nos poderia pegar lá?
Oh, Lucrécia, você não está cansada de ficar trancada no palácio? Nós não devemos sair... nem por um minuto. Estou cansada disso tudo.
- Seria mais cansativo ainda se pegássemos a peste.
- Acho que sim. Vou ficar contente quando o calor tiver passado. Talvez ele leve consigo o ar pestilento.
Giulia se levantou e sacudiu os cabelos úmidos.
- Eu vou para a sacada.
- Você não prometeu ao Santo Padre que não iria? Giulia fez uma careta.
- Eu não mencionei a sacada. Eu disse que não sairia.
- Ele pode ter tido a sacada em mente.
- Então vamos fazer de conta que não tinha. Vou lá agora. Vou me sentar ao sol e secar os cabelos.
- Não, Giulia, não deve ir. Mas Giulia já tinha ido.
Lucrécia sentou-se pensativa, olhando para a imagem da Virgem e a lâmpada diante dela.
- Santa Mãe - rezou ela. - Faça com que tudo fique bem em breve.
Ela sabia que havia muita coisa errada. Não era só a peste; esta era uma visita constante. Corriam rumores horríveis sobre seu pai. Ela ouvira os criados sussurrando; não dissera a ninguém que ouvira, porque os criados poderiam ser açoitados ou ainda mais terrivelmente castigados por dizerem algumas das coisas que ela escutara. Eles tinham dito que a posição do papa estava incerta e que havia muita gente que queria que ele fosse deposto e que um novo papa entrasse em seu lugar. Havia a ameaça de invasão por parte dos franceses, e havia quem dissesse que o papa era um aliado secreto do inimigo da Itália.
Todas aquelas questões deixavam-na muito aflita. Ela não sabia muita coisa sobre os sentimentos políticos do marido. Eles agora partilhavam de sua cama e ela era uma esposa de verdade, mas ligeiramente insatisfeita. Giulia dissera que ele era frio; Lucrécia descobrira que ela não era, em absoluto. Ela não compreendia a si mesma; o desejo - um vago desejo por alguém desconhecido - estava desperto nela, mas não era satisfeito por Giovanni. Ela ficava deitada ao lado dele, ouvindo o seu roncar, e ansiava por sentir os braços de um amante envolvendo-a. Não os de Giovanni. Mas havia momentos em que ela começava a acreditar que qualquer amante era melhor do que nenhum.
O amor que ela sentia era muito diferente daquele que Giulia conhecia, mas só que o amante de Giulia era aquele homem incomparável, Alexandre.
Em algum lugar do mundo existiria o amante que ela desejava, pois devia haver outros homens no mundo que tivessem as qualidades dos Bórgia.
Mas aqueles assuntos eram só seus, e Lucrécia raramente era egoísta, de modo que os assuntos dos outros invariavelmente pareciam ter tanta-ou maior-importância para ela quanto os seus.
Encontrava tempo para pensar no pobre César, mais furioso do que nunca porque agora o perigo o ameaçava e ele não podia agir. Ele ansiava por ter a sua própria condotta no exército; ali estava uma chance de glória militar, e ela lhe era negada. Adriana voltara a tornar-se muito piedosa e passava muito tempo de joelhos, de modo que era claro que estava bastante preocupada.
Lucrécia ouviu gritos vindos da praça e quando correu para a sacada a fim de ver o que acontecia, Giulia caiu quase desmaiada em seus braços.
Havia sangue em sua testa.
- O que foi que aconteceu? - Ela olhou de Giulia para a sacada.
- Não vá até lá-disse Giulia. - Eu estou sangrando?
Eles me viram lá. Uma multidão reuniu-se rapidamente. Você ouviu o que diziam de mim?
Eu ouvi os gritos. Sente-se, por favor. Vou lavar a sua testa.
Ela bateu palmas e uma escrava entrou correndo.
Traga-me uma bacia de água com panos macios - bradou -, e não diga a ninguém por que as está trazendo.
Giulia olhou para Lucrécia com uma expressão grave.
- Eles me chamaram de nomes obscenos - disse ela. E mencionaram o Santo Padre.
- Eles... eles não têm a ousadia!
- Mas tiveram, Lucrécia. Isso significa que na cidade está acontecendo alguma coisa mais do que percebemos.
- Você acha que eles pretendem depô-lo?
- Ele nunca permitirá que façam isso.
A escrava chegou com a água. Lucrécia apanhou-a e Giulia disse:
- Eu caí quando fui para sacada, e arranhei a testa.
A escrava fez uma mesura e retirou-se, mas não acreditou em Giulia.
Elas sabem sobre esse problema, pensou Lucrécia. Sabem mais do que nos têm permitido saber.
Era impossível fazer segredo da notícia de que tinham sido atiradas pedras na amante do papa, que estava em uma sacada do palácio de Lucrécia. Quando Alexandre soube, apressou-se em ir até elas.
Apesar da situação perigosa em que Alexandre sabia estar, sua maior preocupação, naquele momento, era a segurança da amante e da filha.
Abraçou-as com ternura, e pela primeira vez desde que as nuvens da guerra tinham aparecido sobre a sua cabeça demonstrou aflição.
- Mas, minha querida, deixe-me ver esse machucado. Precisamos ter certeza de que não haverá infecção. Santa Mãe de Deus, poderia ter sido o seu olho. Mas os santos a preservaram, minha amada, e o ferimento não é grave. E Lucrécia, minha adorada filhinha, você não se machucou. Agradeço isso à Virgem.
Ele as apertou nos braços como se nunca as fosse largar, e enquanto cada uma delas erguia os olhos para o seu rosto, percebia o conflito que havia nele.
- O senhor não precisa ficar aflito, pai adorado - disse Lucrécia. -Vamos tomar o máximo de cuidado. Não vamos nos arriscar a ir à sacada enquanto todo esse problema não acabar.
O papa soltou-as e foi, pensativo, até a imagem da Virgem. Ficou em pé ao lado dela, os lábios movendo-se levemente. Estava rezando, e as duas perceberam que instava a si mesmo tomar uma decisão.
Lentamente, voltou-se para elas, e era de novo o velho e decidido Alexandre.
- Minhas queridas - disse -, eu agora tenho de fazer uma coisa que me tortura como nenhuma outra. Vou mandá-las para fora de Roma.
- Por favor, não faça isso, meu pai - implorou Lucrécia. - Deixe-nos ficar com o senhor. Nós prometemos que nunca iremos lá fora. Mas ficar longe do senhor seria o pior que poderia nos acontecer.
Ele sorriu e colocou uma das mãos na cabeça dela.
- E a minha Giulia, o que é que tem a dizer?
Giulia atirara-se a seus pés e segurara-lhe uma das mãos. Giulia estava pensando: algo mais terrível até mesmo do que a peste está ameaçando Roma. Os exércitos franceses podem nos invadir... eles vão nomear um papa escolhido por eles, e quem sabe o que irá acontecer com Alexandre?
Giulia achara Alexandre um amante muito satisfatório, perfeito e experiente; não duvidava de que tinha sido afortunada por ter o melhor tutor de Roma. Mas uma parte da atração de Alexandre tinha sido o seu poder; o reconhecimento, primeiro de que ele era o cardeal mais rico de Roma; depois o papa em pessoa. A natureza de Giulia era tal que tudo aquilo havia aumentado o seu prazer. Imaginá-lo sem a sua glória, talvez um prisioneiro humilhado dos franceses, fazia-o parecer uma pessoa diferente do todo-poderoso, sempre indulgente e generoso amante pelo qual era uma honra ser amada.
Giulia, portanto, não ficou de todo triste com a ideia de retirar-se para um lugar seguro até que estivesse resolvido se Alexandre iria ou não manter o poder.
Ela não deu sinais disso; e Alexandre, que teria detectado de imediato a duplicidade em um estadista, não a percebeu na amante. Isso, em parte, era devido àquele desejo constante de ver apenas o que ele queria ver.
Estava tão dedicado a Giulia como antes. A diferença de idade fazia com que ela parecesse, mesmo agora que era mãe, uma mulher jovem e ingénua. A paixão dela sempre parecera espontânea; o prazer que sentia com ele era tão grande quanto o que ele sentia com ela. Portanto, acreditava que ela ficaria tão triste por deixá-lo quanto ele ficaria por perdê-la.
- Não iremos deixá-lo - disse Giulia. - Preferimos enfrentar qualquer coisa, Santo Padre, a fazer isso. Eu prefiro morrer de peste ou pela espada de soldados estrangeiros do que...
- Pare, eu lhe peço - disse Alexandre, encolhendo-se.
- Você não sabe o que está dizendo.
Giulia se recuperara; levantou-se, e sua fisionomia estava tão inocente quanto a de Lucrécia. Ela disse:
- É verdade, não é, Lucrécia? Preferimos enfrentar qualquer coisa... qualquer coisa... qualquer coisa... - Fez uma pausa para que Alexandre pudesse imaginar os piores horrores... - Sim - continuou -, qualquer coisa, do que deixá-lo.
Lucrécia atirou os braços em torno do pai.
- É verdade, pai adorado - bradou ela; e estava sendo sincera.
- Minhas meninas queridas! - murmurou Alexandre, e sua voz tremia de emoção. - Mas é por amá-las como amo que tenho de ser implacável nesta questão. Não posso deixar que fiquem. Não posso imaginar como a vida será triste sem vocês; tudo o que sei é que ela seria ainda mais triste se alguma coisa acontecesse a vocês devido ao meu egoísmo em mantê-las aqui. Os franceses estão reunindo suas forças. Eles são uma nação forte e estão decididos a tomar Nápoles. Mas não vão se contentar com Nápoles. Quem poderá dizer, é possível que vejamos soldados estrangeiros em Roma. E minhas adoradas, minha Giulia, você pensa na morte nas mãos de soldados estrangeiros, mas nem sempre a coisa é tão simples assim. Vocês são muito jovens... muito bonitas. Nunca houve duas criaturas mais encantadoras no mundo. E qual seria o destino de vocês se caíssem nas mãos da soldadesca brutal? Não quero pensar. Não tenho coragem de pensar. Prefiro perder o fulgor de sua presença a pensar nisso.
- Então, deixe que nos afastemos pelo menor prazo que for necessário para deixá-lo tranquilo - acalmou-o Giulia.
- Espero que não seja muito longe de Roma - acrescentou Lucrécia, tristonha.
- Fiquem certas, minhas adoradas, de que assim que for seguro vocês ficarem aqui, eu tornarei a tê-las em meus braços.
Ele abraçou as duas e continuou a apertá-las.
- Meus planos são os seguintes. Lucrécia vai visitar o domínio do marido, Pesaro. É para Pesaro que pretendo mandar as duas.
Houve uma pessoa que ficou contentíssima diante da perspectiva de sair de Roma, e essa pessoa era Giovanni Sforza. Ele garantiu ao papa que a sua primeira preocupação seria com as duas jovens que o Santo Padre estava colocando sob sua proteção, e concordou fervorosamente com Sua Santidade que Roma, naquele mês de maio de 1494, não era lugar para elas.
E assim, num dia belamente ensolarado, reuniu-se na praça de São Pedro uma multidão de criados murmurantes e escravos agitados para completar o cortejo que deveria seguir para Pesaro. Giulia declarou que não poderia viajar sem as suas cabeleireiras, costureiras e todos os criados necessários ao seu conforto; Lucrécia, sabendo o quanto os elementos que formavam a sua comitiva sofreriam se deixados em Roma, insistiu igualmente que os dela deveriam acompanhá-la. Em vão Giovanni Sforza salientou que haveria uma necessidade menor de todas as suas quinquilharias na tranquila Pesaro; as jovens não lhe davam ouvidos; e Giovanni, ansioso apenas por fugir de Roma o mais rápido possível, cedeu.
Adriana, com seus padres e criados, também estava na procissão; e o papa ficou de pé em sua sacada até ver desaparecerem aquelas duas cabeças douradas que tanto prazer davam à sua vida.
Depois que elas se foram, recolheu-se a seus aposentos e isolou-se para lamentar a ausência delas. Entregou-se ao estudo da situação política, decidido a empregar cada grama de energia que possuísse para fazer de Roma um lugar seguro, a fim de que pudesse trazer de volta suas adoradas jovens para animarem sua vida.
Quando deixaram Roma para trás, Lucrécia ficou surpresa ao ver como Giulia ficou animada.
- Dá a impressão - disse ela - de que você ficou contente por se afastar do Santo Padre.
- Não adianta sentir uma melancolia que não pode fazer outra coisa senão aumentar. Vamos esquecer que estamos no exílio do nosso Santo Padre e da nossa querida cidade. Vamos aproveitar ao máximo aquilo que temos.
- Isso não vai ser fácil - disse Lucrécia. - Não percebeu o quanto ele ficou triste?
- Ele é o homem mais inteligente de Roma - garantiu-lhe Giulia. - Muito em breve vai pôr de lado a tristeza. Foi ele que me ensinou a minha filosofia de vida. Em breve ele estará se divertindo. Portanto, vamos também nos divertir como pudermos.
- Não há dúvida de que esta é a filosofia dele - concordou Lucrécia.
- Então, vamos nos alegrar... fico imaginando que tipo de cidade é essa Pesaro.
Lá seguiram elas em direção ao norte, atravessando a Itália, e por toda cidade que passavam as pessoas saíam para ver os estranhos vindos de Roma. Ficavam maravilhadas ao ver as duas beldades de cabelos dourados em seus ricos vestidos; olhavam para a pequena Laura, que estava com a mãe, e ficavam pasmas porque tinham ouvido rumores de que aquela criança, tal como a Lucrécia de cabelos de ouro, era filha do papa.
O público pendurava bandeiras em sinal de boas-vindas, e os lordes das várias cidades pelas quais elas passavam recepcionavam-nas regiamente. Aquelas recepções divertiam o povo e, como ninguém ainda tinha certeza de que Alexandre seria deposto, seria imprudente ofender, àquela altura, uma pessoa que, segundo a lenda, possuía poderes sobre-humanos.
O ânimo de Giovanni Sforza aumentava à medida que aumentava a distância entre ele e Roma. Assumiu uma nova estatura; chegou até a tornar-se parecido com o amante com quem Lucrécia havia sonhado; e ela, sempre pronta a ser satisfeita, descobriu que, no que dizia respeito à sua vida de casada, nunca se sentira mais feliz.
Como Giovanni se enchia de orgulho ao ver as bandeiras desfraldadas em honra deles, ao ser tratado como um igual por alguns dos lordes como os de Urbino, que antes se consideravam muito superiores a ele.
Giovanni estava percebendo, afinal, a honraria que poderia chegar até ele através de sua união com os Bórgia, e isso fazia com que ele fosse carinhoso para com a esposa e ficasse muito ansioso por agradá-la; e já que ela estava pronta a ser satisfeita, o relacionamento harmonioso entre eles continuou durante toda a viagem.
Sforza mandou um aviso de sua iminente chegada a Pesaro e instruiu os criados de lá que queria uma recepção como eles nunca tinham dado antes; queria flores espalhadas pelas ruas e bandeiras penduradas; queria que se escrevessem versos, para que a chegada deles pudesse ser recitada para ele e sua esposa.
E assim, ele estava encantado enquanto seguiam a árdua viagem passando pelos Apeninos, e congratulava-se consigo mesmo por ter uma mulher que não só era fácil de provocar até o ardor, que não apenas era uma beldade, mas filha de um homem que, ainda que seu poder estivesse ameaçado, como concordaria a maioria das pessoas, era o mais poderoso da Itália.
De modo que ele se preparou para a entrada triunfante em Pesaro.
Lucrécia e Giulia não tinham deixado de lavar os cabelos na noite anterior ao dia da chegada. Lucrécia iria usar um rico vestido bordado a ouro, e seus cabelos dourados ficariam presos por uma rede com muitas jóias.
Ela estava deitada ao lado do marido, pensando no dia seguinte, lembrando-se, sonolenta, da paixão que ele demonstrara durante a viagem, paixão da qual ela não pensara que ele fosse capaz. Ela gostaria que ele acordasse e que pudesse haver mais um ato amoroso.
Então, ela se perguntou o que estava acontecendo em Roma e se o pai havia se recuperado de sua tristeza. Giulia parecia não lamentar muito o fato de elas o terem deixado, embora fosse certo de que ele deveria achar consolo com uma outra mulher.
Era estranho que Giulia não se importasse. Mas talvez fosse melhor assim, porque se Giulia tivesse ligado, estaria se sentindo infeliz, e como o papa, sem dúvida alguma, iria encontrar meios de se consolar, era uma felicidade Giulia conformar-se com a separação.
O vento estava aumentando, e Lucrécia ouvia a chuva caindo.
Ela esperava que o sol estivesse brilhando pela manhã.
- Giovanni - murmurou ela -, está ouvindo o vento aumentar?
Ele não era muito bonito; não era como o amante com o qual ela sonhara; mas ela sempre estivera pronta a fazer concessões. Iria dotá-lo de beleza e qualidades que não possuía e pensar nele como queria que ele fosse, e não como ele era.
Ela tocou-lhe a face de leve, com o dedo. O rosto dele contorceu-se e ele ergueu uma das mãos como se para afastar uma mosca.
- Giovanni - sussurrou ela. Mas ele apenas roncou.
Eles entraram em Pesaro sob uma chuva forte e uma violenta tempestade.
Das janelas pendiam bandeiras enlameadas; algumas tinham sido derrubadas pelo vento e jaziam esquecidas no chão. O lorde de Pesaro ordenara que houvesse bandeiras, e bandeiras seus súditos haviam fornecido; mas o vento era cruel e não obedecia a lorde algum; de modo que a entrada em Pesaro não foi o evento triunfal que seu lorde planejara.
Giulia ficou irritada; a chuva encharcara seus belos cabelos, a ponto de parecerem amarelo escuro em vez de dourados. Seu belo vestido ficou arruinado.
- Maldita seja Pesaro! - bradou Giulia, e desejou estar em Roma.
Adriana murmurava orações enquanto eles cavalgavam. Seus trajes agarravam-se-lhe ao corpo de maneira incómoda, e o vento atingia seus cabelos por baixo da rede; ela se sentia sem dignidade daquele jeito, e a dignidade significava muito para Adriana. Mesmo assim, estava calma e havia um certo ar de triunfo em sua fisionomia. Dizia para si mesma: "Qualquer coisa será melhor do que Roma neste momento."
O belo vestido de Lucrécia estava estragado, e os cabelos estavam no mesmo estado dos de Giulia. Uma de suas criadas encontrara uma grande capa, que enrolou em sua patroa, de modo que toda a sua glória ficou escondida para os poucos que tinham suportado o vento e a chuva para ver a entrada da nova condessa.
- Eu não tenho dúvidas de que o sol vai brilhar amanhã - disse ela a Giulia.
- Como não há dúvida de que estaremos de cama, cuidando de febres, isso pouco importará para nós - resmungou Giulia.
Chegaram ao palácio dos Sforza e ali, como tinha sido ordenado, estavam os poetas esperando para ler seus versos de loas ao seu senhor e à sua esposa.
Por isso, todos tiveram de ficar na chuva e no vento enquanto, encolhidos sob os arcos, os poetas liam, tremendo, os versos de boas-vindas à sua condessa ao seu lar na ensolarada Pesaro.
Giulia espirrou, enquanto Adriana rezava, em silêncio, para que os poetas tivessem feito versos curtos, e Lucrécia, a beleza escondida pela grande capa e os cabelos dourados caindo-lhe pelo rosto em fios como serpentes amarelo-foscas, sorria como se esperava que o fizesse, mas seu alívio foi evidente quando a declamação acabou.
Que alegria estar dentro do palácio, secar e aquecer-se junto à grande fogueira, comer comida quente e dar risadinhas com Giulia ao comentar a terrível viagem até Pesaro, que elas sentiam prazer em recordar porque havia terminado.
Mas com o dia seguinte veio o sol, e ali estava Pesaro diante delas, em toda a sua beleza.
Lucrécia, olhando para a linda área do Adriático às margens da qual ficava a cidade, os verdes montes cercando-a em um encantador semicírculo; na ponta de cada um deles ficavam as altas montanhas de Accio e Ardizio. Ficou encantada com o seu novo lar.
- Aqui a pessoa se sente isolada do resto do mundo disse a Giulia.
- Foi por isso que fomos mandadas para cá, para ficarmos a salvo até que o conflito passe.
- Eu acredito que poderia ser feliz se meu pai e meus irmãos estivessem comigo - disse Lucrécia.
- Ah, Lucrécia, você vai ter de aprender a ser feliz sem seu pai e seus irmãos.
Nos dias seguintes, Lucrécia tentou.
Os súditos de Giovanni fizeram o máximo para distrair sua condessa de tal maneira que ela ficasse sabendo o quanto estavam contentes por tê-la entre eles. Havia banquetes, danças e folia. As pequenas ruas da cidade ficavam cheias de gente rindo, de palhaços em trajes grotescos, e malabaristas que tinham seus truques a realizar em honra da senhora Lucrécia. Nunca houvera tamanha alegria em Pesaro, declaravam as pessoas, e era tudo em honra à nova condessa.
Lucrécia aparecia entre eles e conquistava-lhes o coração, não apenas com a sua beleza dourada, mas com o evidente reconhecimento de tudo o que eles estavam fazendo por ela.
Giulia e Lucrécia confabularam e criaram um programa de festividades, decididas a fazer com que o povo de Pesaro visse uma suntuosidade como jamais tinha visto. Elas apresentaram os vestidos mais luxuosos, para que pudessem deslumbrar os provincianos e dar a eles uma pequena amostra de como a sociedade romana era suntuosa.
Elas estavam decididas a sobrepujar uma beldade local, Caterina Gonzaga di Montevecchio, da qual tanto tinham ouvido falar, mas estavam um pouco apreensivas, já que a fama da beleza daquela mulher chegara até Roma.
Lavaram os cabelos, colocaram as redes adornadas de jóias, cada qual assegurando à outra que nunca estivera mais bonita; os vestidos de seda e brocado com pedras preciosas que estavam usando eram do tipo que teriam usado para uma cerimónia oficial em Roma. Vestidas assim suntuosamente, elas partiram, com Giovanni como acompanhante, para o baile dos Gonzaga.
Foi uma noite de triunfo. As duas estudaram a beldade cuja fama chegara bem longe e descobriram que, embora tivesse uma bela pele e um belo corpo, o nariz era grosso, os dentes eram horríveis e os cabelos, insignificantes ao lado das longas tranças douradas de Giulia e Lucrécia.
Giulia ficou hilariantemente alegre; Lucrécia, mais serenamente animada; e assim que voltaram do palácio dos Sforza sentaram-se para escrever ao Santo Padre e contar-lhe tudo o que acontecera, descrevendo a aparência de Caterina, porque sabiam que Sua Beatitude poderia ter tido a impressão de que ela era mais bonita do que era na realidade.
Giulia acrescentou que Lucrécia estava contente com o novo lar e que estava com boa saúde. O povo de Pesaro era devotado a Sforza, escreveu ela, e havia contínuas festividades, danças, cantorias, e mascaradas. Quanto a ela, Giulia, por estar longe de Sua Santidade, do qual dependia toda a sua felicidade, não podia sentir qualquer prazer ou satisfação na alegria. Seu coração estava com uma pessoa que era o tesouro de sua vida. Confiava em que Sua Santidade não as esquecesse, mas que em breve as levasse de volta para ele.
Cartas assim deixavam o papa encantado. Ele mandou que elas escrevessem todos os dias e garantiu-lhes que todo detalhe de suas vidas era da máxima importância para ele.
Parecia que era, porque, embora os franceses estivessem prestes a invadir a Itália e seus inimigos dentro da península estivessem tentanto depô-lo, ele ficava muito feliz quando recebia cartas de suas jovens adoradas.
E quando, algumas semanas mais tarde, chegou a notícia de que Lucrécia estava recolhida ao leito com febre, ele entrou em agonia, temendo pela vida dela. Trancou-se em seus aposentos, não quis ver ninguém, culpou a si mesmo por permitir que ela se afastasse dele, enquanto fazia planos agitados para levá-la de volta, apesar dos perigos.
Ele as queria ao seu lado. Não conseguia aproveitar a vida sem elas. Escreveu que o afastamento de Giulia provocava nele um demónio de sensualidade que só podia ser aplacado por ela; de todos os seus filhos, ele agora entendia que não havia um de quem gostasse mais do que sua pequena beldade de cabelos dourados. Como poderia ele ter pensado que o amor que sentia pelos filhos homens se comparasse ao que um homem como ele devia sentir por uma pessoa de formas tão delicadas, de uma beleza fora do comum, como a sua Lucrécia? Elas precisavam voltar. Eles não deveriam tornar a se separar. Fossem quais fossem os perigos, deveriam enfrentá-lo juntos.
"Dona Lucrécia, minha filha adorada", escreveu, angustiado. você nos proporcionou dias da mais profunda angústia. Chegaram a Roma notícias más, notícias amargas e terríveis que diziam que você tinha morrido ou que não havia esperança de você viver. Você deve compreender a tristeza que nos foi causada, devida ao grande amor que temos por você, que é maior do que aquele que temos por qualquer outra pessoa sobre a Terra. Agradecemos a Deus e à nossa Gloriosa Senhora por terem afastado você do perigo, mas não nos sentiremos felizes enquanto não a virmos em pessoa."
E assim as cartas iam e vinham entre Roma e Pesaro e, embora a muita gente parecesse que Alexandre estava à beira do desastre, ele se recusava a reconhecer isso e declarou que daria tudo o que tinha pela volta de suas queridas.
Não havia coisa alguma que Giovanni Sforza mais quisesse do que ficar em Pesaro; ali, acreditava-se protegido das desgraças de uma invasão; os franceses, sem dúvida alguma, não iriam atravessar os Apeninos para se apossarem de um domínio tão insignificante. Além do mais, Lucrécia, afastada da influência do pai, era uma esposa satisfeita e amorosa. Por que não iriam eles ficar em Pesaro pelo resto da vida?
Havia uma desvantagem nisso. Devido ao seu cargo na Igreja, ele estava na folha de pagamento do papa; e embora como um Sforza ele trabalhasse em favor de Milão, seu parente Ludovico, preparando-se para uma invasão da qual sabia que deveria ser uma das primeiras vítimas, tinha pouco tempo ou dinheiro para dedicar a Giovanni. Portanto, a renda de Giovanni proveniente de Milão não era paga há algum tempo e, se desobedecesse o papa, mantendo a filha longe dele, como poderia esperar que o seu ordenado do papado fosse pago?
Giovanni era um homem perplexo durante aquelas semanas de festividades em que Lucrécia e Giulia exibiam suas belas roupas e seu esplendor na corte provinciana.
Alexandre compreendia perfeitamente o genro. Um homem dócil, um homem covarde, pensou Alexandre; o tipo do homem que ele desprezava. Ele sabia que Giovanni estava encolhido de medo em Pesaro, longe do conflito iminente, e esperava ficar por lá mantendo Lucrécia afastada do pai.
Isso não era possível; e, como se Giovanni decidisse manter sua mulher a seu lado seria um assunto delicadíssimo para o papa ordenar o retorno dela, Alexandre providenciou para que se desse a Giovanni Sforza uma brigada napolitana e mandou ordens para Pesaro no sentido de que ele partisse imediatamente para assumir o comando.
Quando Giovanni recebeu aquela comunicação, ficou estarrecido.
Entrou nos aposentos de Lucrécia e mandou que ela lesse o despacho vindo de Roma.
- Partir imediatamente... para Nápoles - leu Lucrécia.
- Você... Giovanni... ir para Nápoles? Mas a sua família e os napolitanos sempre foram inimigos.
- É verdade - bradou Giovanni. - O que é que seu pai está planejando? Será que ele quer me destruir?
- Como poderia ele querer destruir o meu marido, quando declara que seu maior prazer é me agradar?
- Talvez ele pense que ao destruir-me não iria desagradá-la.
- Giovanni! - os olhos arregalados de Lucrécia imploravam para que ele não dissesse mais nada. Ela tinha muito medo de cenas como aquela.
- É, sim - esbravejou Giovanni. - Ele a quer de volta junto de si. Ele não consegue existir sem você. Não é o que ele diz? Você pensa que não compreendo por quê? Acha que sou bobo?
- É verdade que ele é meu pai adorado. Giovanni soltou uma gargalhada.
- Seu pai adorado! Isso é engraçado. A Itália toda ri. O papa é o pai adorado da senhora Lucrécia, e está ansioso por protegê-la sob a túnica apostólica.
- Giovanni, você está histérico.
Era verdade. Giovanni estava aterrorizado. Via-se preso na teia papal. Seus parentes de Milão não tinham tempo para ele; seu sogro, o papa, queria tirá-lo do caminho; portanto, ele seria enviado para os inimigos de sua família. O que seria dele?
- Vou me recusar a obedecer as ordens do papa - disse ele. - Será que ele pensa que não entendo o que elas significam?
- Oh, Giovanni - disse Lucrécia -, seria desaconselhável desobedecer meu pai.
- Você me aconselharia a obedecer, não? Você diria: "Vá para os napolitanos. Aceite esse comando com eles. Você é um Sforza e um inimigo jurado dos napolitanos, mas vá, vá... porque meu pai o quer fora do caminho, para que eu possa voltar para ele... e para que eu possa viver perto dele, e que os rumores possam aumentar, aumentar... e aumentar..."
Ele começou a rir, mas o rosto estava se retorcendo de medo.
Ela procurou acalmá-lo; mas ele se limitou a gritar:
- Eu não vou... está ouvindo? Eu não vou.
Houve mais problemas. Chegou de Capodimonte, a cidade natal de Giulia, a notícia de que seu irmão Angelo estava muito doente e a família acreditava que ele não poderia sobreviver.
Giulia ficou triste. Gostava muito da família, em especial dos irmãos Angelo e Alessandro.
Foi procurar Lucrécia, e nunca, ao longo de sua amizade, Lucrécia vira Giulia tão abatida.
- São notícias lá de casa - explicou Giulia.
- Minha adorada Giulia, eu sinto muito! - bradou Lucrécia. - Precisamos rezar para que tudo fique bem.
- Tenho de fazer mais do que rezar - disse-lhe Giulia.
- Eu irei visitá-lo. Não posso deixar que ele morra sem tornar a me ver.
- Lembre-se das ordens de meu pai... Não devemos sair de Pesaro sem o consentimento dele.
- Meu irmão está morrendo, compreende? E se César ou Giovanni estivessem morrendo? Você não iria vê-los?
- Mas não é César, nem Giovanni - disse Lucrécia com calma. - É apenas Angelo.
- Ele é tanto meu irmão quanto César e Giovanni são seus.
Mas Lucrécia não podia admitir aquilo. Giulia não compreendia os elos que prendiam a família Bórgia. E o papa ficaria zangado se Giulia deixasse Pesaro para ir visitar a família.
- Ora - salientou Lucrécia -, Orsino está em Bassanello, que não é muito longe de Capodimonte. Você sabe como meu pai não gosta que você fique perto de seu marido.
- Não preciso ver Orsino.
- Mas ele poderia ir vê-la. Ah, Giulia, se você dá valor ao amor de meu pai, não vá a Capodimonte.
Giulia ficou calada. Estava num dilema entre o desejo de ver o irmão e a vontade de agradar ao papa.
Giovanni partiu para Nápoles. Lucrécia despediu-se dele sem muito pesar. Nos últimos dias, ela vira como era fraco o homem com quem se casara, e ansiava pela força que ela sempre admirava em seu pai e em seus irmãos.
Giovanni, furioso e humilhado, decidira que, como não podia servir os inimigos de sua família, iria fingir que o fazia e enviar à família informações dos movimentos feitos pelo exército napolitano. Estaria fazendo um trabalho perigoso, e, se fosse descoberto, como espião correria um risco enorme. Mas o que é que ele podia fazer? De que outra forma poderia reconciliar-se com a família? Era um pequeno governante de uma pequena comunidade; era um lorde provincial que não podia viver sem o apoio da família e do papa.
A tristeza baixou sobre o palácio depois que Giovanni partiu. Não houve mais diversões; as jovens não se sentiam dispostas. Ficavam sentadas nos aposentos, Lucrécia distraindo Laura enquanto Giulia ficava na janela à espera de um mensageiro vindo de Capodimonte.
Um dia, esse mensageiro chegou, e a notícia que trazia era grave. Angelo Farnese estava em seu leito de morte; não havia dúvidas quanto a isso; ele expressara a vontade de ver a adorada irmã Giulia, que tantas honrarias havia trazido para a família. Isso fez com que Giulia se decidisse.
Voltou-se para Lucrécia.
- Estou partindo imediatamente para Capodimonte disse. -Estou decidida a ver meu irmão antes que ele morra.
- Você não deve ir - insistiu Lucrécia. - Meu pai vai ficar contrariado.
Mas Giulia estava decidida, e naquele dia, com Laura e Adriana, partiu para Capodimonte.
Giovanni, Giulia, Laura e Adriana tinham ido embora.
Que mudanças, pensou Lucrécia, ao ficar sozinha em Pesaro, estavam acontecendo à sua volta.
No castelo dos Orsini em Bassanello, Orsino Orsini meditava.
Tal como Giovanni Sforza, ele era um homem fraco. Giovanni nunca se esquecia de que pertencia a um pequeno ramo da família Sforza e era desprezado pelos parentes mais ricos; Orsino não conseguia esquecer-se de que era pequeno em estatura, vesgo, e que nem mesmo criadas humildes ficavam ansiosas por suas atenções.
Muitas vezes ele meditava sobre a maneira pela qual era tratado. Parecia que tinham zombado dele ainda mais do que era necessário ao casá-lo com uma das mulheres mais bonitas da Itália, uma mulher que já se tornara amante do papa antes de ser sua esposa.
Era como se dissessem: Ah, mas é só o Orsino, e Orsino não conta."
Sua mãe chegara até a representar um papel destacado em sua humilhação.
- Não seja bobo, Orsino - dissera ela, em tom de reprovação. - Pense nos favores que Giulia pode fazer com que o papa lhe preste. Riqueza! Terras! Elas são mais lucrativas do que uma esposa. De qualquer forma, se é mulher que você quer, haverá muitas à sua disposição.
La Bella Giulia! Ela era notória em toda a Itália. A amante do papa! Mãe da filha do papa! E estava casada com Orsino, que nunca deixavam que se aproximasse dela, com medo de que isso fosse ofender o papa!
Orsino fez um juramento.
- Isto é o fim da minha humilhação. Ela abandonou o papa. Está em Capodimonte e, por todos os santos, eu juro que ela será minha mulher de verdade. Juro que vou tirá-la do amante.
De seu castelo, ele olhava para a pequena aldeia agrupada em torno da velha igreja com o seu campanário de uma altura equivalente a seis andares; olhava para o vale tranquilo pelo qual corria o Tibre. Em torno de Orsino tudo parecia em paz. Mas se ele fizesse o que se esperava dele, não iria desfrutar da paz por muito tempo. Sua família era um aliado firme dos napolitanos, e ele estava no comando de uma brigada. Em breve teria de partir dali e ir para a área napolitana. Então ficaria longe de Giulia e, se o papa soubesse que ela tinha ido para Capodimonte a fim de visitar o irmão moribundo, não ficaria tão perturbado quanto teria ficado se soubesse que Orsino estava nas redondezas.
Mas por que se devia tranquilizar o papa? Por que isso era tão necessário agora? Os franceses estavam a caminho com um exército poderoso, e dizia-se que um dos seus objetivos seria depor Alexandre. Ora muito bem, será que havia a mesma necessidade de tranquilizar o papa?
- Pelos santos, vou me apossar daquilo que é meu! jurou Orsino.
Mandou chamar um de seus capitães, e quando o homem chegou disse:
- O senhor deverá levar as tropas para a Umbria. Tenho ordens para que elas sigam para lá.,
O homem confirmou ter entendido a ordem, mas Orsino viu o assombro que surgiu em seus olhos.
- Não estou me sentindo bem - explicou Orsino. Sinto a febre tomando conta de mim. Não posso acompanhálo. Tenho de ficar aqui por algum tempo.
Estava com um sorriso irónico quando dispensou o capitão.
Agora, dera o primeiro passo.
O Santo Padre estava prestes a perder a amante, e ele, Orsino Orsini, a ganhar uma esposa.
Depois que seus soldados partiram, ele seguiu para Capodimonte, onde tanto sua mãe quanto Giulia ficaram surpresas ao vê-lo.
- Mas o que significa isso? - bradou Adriana. - Você não devia estar com seus homens no acampamento?
- Eu fico onde quero - disse Orsino.
Giulia bradou:
- Mas nós julgávamos que você tivesse recebido ordens. Orsino olhou-a com insistência. Não era à toa que ela era conhecida como La Bella por toda a Itália. Ele se viu de repente torturado por uma centena de imagens do que deviam ter sido os atos de amor com aquele especialista em amor, o Santo Padre; e ficou alucinado por um misto de raiva e desejo.
- Chegou a hora em que decidi ordenar minha vida respondeu.
- Mas... - começou Giulia.
- E a sua - disse Orsino.
- Isso é loucura-retorquiu Giulia. Olhou para a sogra, mas Adriana estava calada. Giulia estava pensando depressa. Não acreditava que Milão iria resistir ao ataque dos franceses. Acreditava que muito em breve os estrangeiros estariam em Roma. Se eles chegassem até lá, os dias de Alexandre como papa estariam contados. Uma mulher tão astuta quanto Adriana não iria continuar a não provocar um homem que estava prestes a cair. Se a Itália fosse invadida, seriam famílias como os Orsini e os Colonna que iriam sobreviver; e Orsino, embora vesgo, era um Orsini poderoso. Se ele mostrasse um pouco de espírito, sua deformidade física seria esquecida.
Adriana deu de ombros.
- No final das contas, ele é seu marido - respondeu ela.
E deixou-os juntos.
Giulia, assustada, encarou Orsino.
- Orsino, não seja tolo - disse ela.
Ele se aproximara dela e agarrara-a pelo pulso.
- Você sabe que o papa proibiu que você se aproximasse de mim - bradou ela.
Ele riu, e agarrando-a pelos ombros sacudiu-a com brutalidade.
- Já não lhe ocorreu que eu deveria ter o direito de proibir o papa de se aproximar de você?
- Orsino!
- La Bella-disse ele -, você proporcionou um grande lucro para sua família. Você tem examinado todos os pedidos que eles fazem a você.
Os olhos dele estavam fixos no suave pescoço alvo em que ela usava o faiscante colar de diamante que tinha sido um presente de seu amante. Ele puxou o colar e o fecho arrebentou-se. Ele o jogou para o lado, sem olhar onde o colar caiu. E foi como se, no momento em que suas mãos tocaram a pele quente, ele tomasse uma decisão. Não haveria mais prevaricação. Nem mesmo por um instante.
- Se você me tocar-bradou ela -, vai ter de responder ao...
- Eu não respondo a pessoa alguma - disse ele. - Eu gostaria de lembrá-la de uma coisa que parece que você esqueceu... agora, como quando se casou comigo. Você é minha mulher.
- Reflita com cuidado, Orsino.
- Esta não é hora de refletir.
Ela pressionou as mãos contra o peito dele; seus olhos estavam suplicantes; os belos cabelos dourados escaparam da rede.
- Agora! - disse ele. - Neste momento...
- Não! - bradou ela. - Eu não vou. Orsino... eu te odeio. Solte-me. Num momento como este! Meu irmão morrendo... e... e...
- Devia ter havido outras vezes - disse ele. - Cem vezes... mil vezes. Eu tenho sido um tolo, mas já não sou mais. Aquela fase já passou. Esta, não.
Ela estava ofegante, decidida a fugir. Mas ele estava igualmente decidido; e era o mais forte dos dois. Depois de algum tempo, ela desistiu de lutar.
Angelo estava morto. Abraçara a irmã pela última vez e dissera que ela deveria sempre agradecer à Virgem por sua beleza e lembrar-se de que por meio dela conseguira lançar as fundações da grandeza da família.
Ele não sabia o que se passava fora dos muros do palácio. Não sabia o que acontecia dentro deles. Giulia nunca estava livre de Orsino. Ele estava cheio de exigências; insistia em seus direitos; e não queria saber de recusas.
Ela era uma mulher sensual, e como tal estava começando a achar uma certa excitação em seus encontros com Orsino.
Alexandre iria ficar furioso, mas ele era impotente. Era uma prisioneira em Capodimonte à mercê de um marido que tinha sido mantido longe dela durante anos. Alexandre era um amante completo, Orsino era um tanto rústico, mas o rústico oferecia uma mudança estimulante; e ela achava divertido submeter-se ao que era quase um estupro e, no entanto, era um comportamento legítimo entre marido e mulher.
Lamentava que Lucrécia não estivesse com ela, para que pudesse fazer-lhe confidências.
Quanto à família Orsini, naturalmente que apoiava o seu parente. Orsino estava dentro de seus direitos nas exigências que fazia, declaravam eles. O amante dela? Eles agora podiam rir de um velho em declínio. Ele não duraria muito.
Adriana também mudara.
- Tenho de apoiar meu filho - declarou. - É a coisa mais natural do mundo ele insistir que a própria mulher viva com ele.
Notícias do que acontecera acabaram chegando a Alexandre.
Jamais alguém o vira tão furioso como então. Andou de um lado para o outro pelos seus aposentos, ameaçando excomunhões à direita e à esquerda. Não iria deixar Giulia nas mãos daquele campônio, daquele idiota vesgo. Ela devia ser trazida de volta para Roma imediatamente.
Por que tinham deixado que ela saísse de Pesaro? E sua filha? Estaria ela sendo conivente com aquela trama contra ele?
Alexandre escreveu para Lucrécia. Já era bem lamentável, escreveu ele, uma filha ser desprovida de amor filial a ponto de não mostrar desejo algum de voltar para perto do pai, mas que ela o desobedecesse era impossível conceber. Ele estava amargamente decepcionado com uma pessoa a quem amara mais do que tudo sobre a Terra. Ela era falsa e indiferente para com ele, e as cartas que estava escrevendo ao irmão César não eram escritas com a mesma ironia daquelas que ela escrevia para ele.
Quando Lucrécia ouviu aquilo do pai, ficou desesperadamente infeliz.
Sempre houvera discussões entre Giovanni e César, mas nunca entre ela e os outros membros da família. E o fato de seu pai escrever-lhe daquela maneira deixou-a profundamente magoada.
Desesperadamente solitária, ela caiu em melancolia. O que teria acontecido à adorada família? Agora estavam todos separados. Não era de admirar que houvesse mal-entendidos. Giovanni estava na Espanha, e Goffredo em Nápoles. César estava em Roma, envolto em sua amargura, especialmente agora que havia ameaça de guerra. E a tragédia mais terrível de todas, seu pai gostava tão pouco dela que desabafava a raiva sobre ela, sua filha Lucrécia, provocada pela traição de Giulia.
Ela só podia tentar atenuar sua tristeza escrevendo ao pai. Implorou que ele acreditasse que ela não conseguira evitar que Giulia deixasse Pesaro e fizera tudo ao seu alcance para evitar que ela fosse. As cartas dela para ele eram tão amorosas, tão ternas e sinceras quanto as que escrevia para César. Ele podia sempre estar certo de seu amor e sua devoção. "Estou ansiosa", escreveu ela, "por ficar aos pés de Vossa Beatitude, e anseio por ser merecedora de sua estima, porque, se não o for, jamais ficarei satisfeita e não terei vontade de viver."
Quando Alexandre recebeu aquela carta, chorou e beijoua com ternura.
Por que duvidei de minha filha adorada? - perguntou ele. - Minha Lucrécia, meu amorzinho. Ela sempre me será fiel. São os outros que me desobedecem e enganam.
Mas que homem infeliz era ele! Os "demónios da sensualidade" o estavam atormentando, e ele não conseguia tirar da mente as imagens de Giulia e do vesgo Orsino juntos.
A frota francesa teve uma vitória rápida sobre os napolitanos em Rapallo. Os exércitos franceses atravessaram os Alpes e os italianos viram-se em desvantagem numérica desde o início. Aqueles exércitos, sob as bandeiras brancas dos Valois, avançavam pela Itália. Em Pavia, Carlos VIII encontrou o pobre e semidemente Gian Galeazzo, o verdadeiro duque de Milão; e quando sua bela e jovem esposa, Isabella, atirou-se aos pés do pequeno Carlos, o rei francês ficou tão emocionado, por ela ser bonita e ter sofrido tanto, que prometeu que faria tudo ao seu alcance para devolver-lhe o marido. No entanto, os amigos de Ludovico apressaram-se em dar uma bebida ao jovem duque, e poucos dias depois ele estava morto. Ludovico foi, então, declarado duque de Milão.
A notícia foi má para os italianos. Ludovico decidiu não lutar e deu as boas-vindas aos invasores franceses quando eles passaram por suas terras. O grande capitão Virgínio Orsini também não opôs resistência, mas expediu uma ordem dizendo que todos deveriam ceder aos invasores.
Havia apenas uma pessoa que parecia preparada para resistir aos franceses: Alexandre, o papa.
Ele desprezava os italianos.
- Eles são desprezíveis - bradou. - Não servem para coisa alguma, exceto desfilar em vistosos uniformes. As únicas armas de que os franceses precisam para conquistar a Itália são pedaços de giz, para que possam marcar seus boletos.
Estava decidido a resistir sozinho, se necessário fosse, a todos os seus inimigos.
Uma vez mais, como fizera na época da morte de Calixto, Alexandre mostrou ao mundo o estofo de que era feito. Ninguém podia deixar de admirar aquela calma dignidade, aquela certeza de que ele não poderia falhar, embora tivesse o mundo todo contra si.
O rei francês, Re Petito, como os italianos o chamavam, porque era deformado e constituía uma visão estranha em meio a seus vigorosos soldados, ficou um pouco perturbado quanto à decisão de atacar um homem que tinha a coragem de Alexandre. A ele parecia que, no final das contas, havia um toque de divindade em relação ao papa. Portanto, desviou-se dos repetidos rogos dos inimigos de Alexandre na Itália para que fosse em frente e o depusesse.
Carlos decidiu que não partiria dele qualquer malfeito ao papa; se partisse, ele poderia ter toda a França e a Espanha católica contra si.
O cardeal della Rovere, velho inimigo de Alexandre, que se aliara ao rei francês, cavalgando ao lado dele e declarando que os franceses tinham ido livrar a Itália do jugo de Alexandre, ficou consternado. Viu, uma vez mais, que seus planos de entrar no lugar de Alexandre iriam ser frustrados.
Os franceses tinham de atravessar Roma a caminho do sul, mas Carlos decidiu que tudo o que iria pedir em Roma seria a permissão do papa para passar pelas propriedades papais.
Enquanto isso, Alexandre continuava firme. Disse que iria resistir às exigências francesas; um tremor de medo passou por todos aqueles que andavam garantindo a si mesmos que os dias de poder de Alexandre tinham acabado. Adriana e os Orsini em Capodimonte foram os primeiros a vacilar.
Adriana repreendeu o filho por desobedecer ao Santo Padre, e outros membros da família Orsini uniram-se a ela e insistiram com Orsino para que partisse imediatamente para a sua brigada e não arriscasse enfurecer Alexandre ainda mais.
Em consequência, Giulia acordou certa manhã para descobrir que as maneiras mandonas do marido tinham sido apenas temporárias, e que ele tinha fugido.
Chegou uma carta para Giulia, enviada pelo irado papa.
"Pérfida e ingrata Giulia! Você nos diz que não pode voltar para Roma sem a permissão de seu marido. Apesar de agora conhecermos a fraqueza de sua natureza e daqueles que a assessoram, só podemos supor que você quer continuar onde está, a fim de que possa continuar as relações com o garanhão do seu marido."
Giulia leu a carta alarmada; o papa nunca lhe escrevera daquela maneira; a família dela começava a criticá-la por ter-se voltado contra o amante por causa do marido, e o marido, que tinha sido tão ousado, fugira ao primeiro sinal de que o poder de Alexandre continuava inabalado.
Tremendo, ela apertou a filha contra o corpo.
- Nunca devíamos ter saído de Roma - disse ela.
- Nós vamos ver o papai? - perguntou a garotinha. Ela se recusara a chamar o vesgo Orsino de pai; pai, para ela, era uma criatura gloriosa, semelhante a um deus, alto, autoritário, em belos trajes, com uma grave voz sonora, mãos acariciantes e um afeto reconfortante.
- Vamos-disse Giulia, com a determinação brilhando nos olhos. Riu de repente. Afinal, ela era La Bella, podia recuperar tudo o que havia perdido.
Mandou uma escrava pedir a Adriana que fosse falar com ela imediatamente.
- Vou partir para Roma - disse ela à sogra, assim que esta apareceu.
- Para Roma! Mas as estradas estão perigosas. Os invasores franceses podem estar em qualquer parte... antes de chegarmos a Roma.
Mas Adriana estava olhando atentamente para a nora e Giulia percebeu que, por mais perigosa que a estrada pudesse estar, seria ainda mais perigoso continuar sob a sombra da contrariedade de Alexandre.
E assim Giulia, Adriana e uma pequena comitiva deixaram Capodimonte, iniciando a viagem para Roma.
Giulia estava animada; Laura, também. Giulia se perguntava como poderia ter ficado momentaneamente excitada pelos repentinos modos autoritários de Orsino, que ao primeiro sinal de alarme fizera meia-volta e fugira. Ela estava ansiosa por voltar a unir-se ao amante. Laura, no seu linguajar infantil, falava na volta para casa e em ver o pai outra vez; Adriana rezava em silêncio para que o Santo Padre não tivesse ficado zangado com ela e Giulia a ponto de nunca mais vir a ter o mesmo sentimento para com elas. Estavam todas ansiosas por chegarem a Roma.
A viagem foi longa e enfadonha; o tempo não estava bom, já que era novembro; mas a alegria de Giulia era contagiante, e era um grupo animado que seguia pela estrada até Viterbo.
De repente, Laura apontou e bradou que estava vendo casas adiante. Elas pararam para olhar, e sem dúvida alguma, no horizonte, estava a cidade de Viterbo.
- Não vai demorar muito, agora - bradou Giulia. Mais da metade da viagem está feita. Vou escrever à Sua Santidade quando chegarmos a Viterbo e dizer-lhe que estamos a caminho.
- Ouça! - disse Adriana.
- O que foi? - perguntou Giulia.
- Pensei ter ouvido o tropel de cavalos.
Elas esperaram. Não estavam ouvindo coisa alguma, e Giulia riu da sogra.
- A senhora está nervosa. Imaginou que Orsino estava galopando atrás de nós, para nos levar de volta à força?
Laura começou a chorar, pensando naquela hipótese.
- Eu quero ver meu pai.
- E vai ver, minha querida. Não tenha medo. Estaremos com ele em pouco tempo. Vamos, não percamos mais tempo, vamos seguir a toda velocidade para Viterbo.
Elas partiram, mas dessa vez foi Giulia que pensou ouvir o som de cavalos a galope.
Elas tornaram a parar. Dessa vez não havia engano. Giulia olhou temerosa para a sua pequena comitiva, na sua maioria mulheres.
Vamos continuar a toda velocidade - disse. - Não sabemos quem poderemos encontrar nessas estradas em épocas assim.
Elas esporearam os cavalos, mas não demorou e uma das mulheres gritou que a cavalaria estava vindo atrás delas.
Cavalgaram em desespero, mas os perseguidores chegavam cada vez mais perto, e elas estavam a quase um quilómetro e meio de Viterbo quando se viram cercadas.
Os lábios de Adriana mexiam-se numa oração silenciosa; Giulia ficou horrorizada quando reconheceu o uniforme dos invasores franceses.
Foi um momento desesperado aquele em que elas foram obrigadas a parar enquanto os homens as cercavam, e Giulia sentiu vários pares de olhos fixos nela, sabendo muito bem o que significavam aqueles olhares.
- Bela senhora - disse o comandante -, aonde vai com tanta pressa?
Ele falou em francês e Giulia não entendeu muito bem. Voltou-se para Adriana, que estava tão horrorizada que só conseguia murmurar orações quase que involuntariamente enquanto sua mente se antecipava, visualizando as coisas horríveis que poderiam acontecer às mulheres nas mãos dos invasores.
Laura, que cavalgava com sua mãe, de repente soltou um grito e atirou os braços em torno de Giulia como se para protegê-la contra os estranhos.
- Pelos santos, ela é uma beleza! - disse um dos homens.
- Tire os olhos dela - respondeu um outro. - Ela ficará para o capitão. Se você for sabido, irá olhar com mais atenção para uma das outras jovens... e ficar contente.
Giulia disse, com ar de superioridade:
- Eu sou Giulia Farnese, esposa de Orsino Orsini. O senhor agiria com sensatez se me deixasse passar. O papa é meu amigo.
Um dos homens abriu caminho para chegar até ela e tocou seus cabelos dourados, pensativo. Ela afastou-lhe a mão com um tapa, e o homem soltou um resmungo, ameaçador.
Então, alguém bradou:
- Cuidado. Aí vem o capitão.
Um belo homem alto chegou a cavalo, e o ânimo de Giulia aumentou ao vê-lo, porque ele tinha um ar de nobreza natural e havia uma certa delicadeza em sua fisionomia que era muito reconfortante num momento como aquele.
- O que está acontecendo? - bradou ele.
Os homens, que tinham estado tocando algumas das mulheres, recuaram.
- Uma comitiva de mulheres e seus criados, senhor disse o homem que havia liderado o bando. - Uma delas é uma verdadeira beldade, senhor.
O oficial comandante olhou para Giulia e disse, pausadamente:
- Estou percebendo.
Depois, curvou-se e falou em italiano fluente, com um levíssimo traço de sotaque francês.
- Minha senhora, desculpe a grosseria de meus soldados. Espero que não as tenham ofendido.
- Mas ofenderam - disse Giulia. - E eu gostaria que o senhor soubesse que eu sou Giulia Farnese, esposa de Orsino Orsini. Sem dúvida o senhor ouviu falar a meu respeito.
Ele tornou a fazer uma mesura.
- Quem não ouviu falar sobre a mulher mais bonita da Itália? Vejo, agora, que os boatos não mentiram. Madame La Bella, aceite meus pedidos de desculpas pelo que se passou. Meu nome é Yves cTAllegre, às suas ordens.
- É um prazer vê-lo aqui, Monsieur d'Allegre - disse Giulia. - E agora estou certa de que o senhor vai dizer aos seus homens que não sejam tolos. Nós estamos com pressa.
Infelizmente, infelizmente - suspirou Yves d'Allee Essas estradas não são seguras para mulheres bonitas.
Neste caso, acompanhe-nos até Viterbo, e lá talvez possa se providenciar para que tenhamos soldados para nos protegerem. Uma mensagem a Sua Santidade, o papa, falando sobre o nosso apuro irá provocar uma resposta imediata.
Estou certo de que sim - disse o francês, o olhar absorvendo a beleza do corpo encantador. - Não há um homem na Itália ou na França que não gostaria de servi-la.
O temor de Giulia desaparecia com rapidez. O homem era muito charmoso. Os franceses eram notoriamente galantes, e o capitão tinha ainda mais do que galanteria francesa a oferecer. Ela estava começando a gostar da aventura.
- Infelizmente - prosseguiu ele -, sua beleza é tal, madame, que pode enlouquecer tanto aqueles que a contemplam a ponto de eles esquecerem o respeito e a honra devidos a uma dama de sua categoria. Vou pedir-lhe que me permita cavalgar a seu lado até Montefiascone, quando a protegerei com a minha espada.
- Eu lhe agradeço-disse Giulia.-Mas é para Viterbo que queremos ir.
- Lamentavelmente, sou um soldado com deveres a cumprir. Que feitor rigoroso é o dever quando entra em conflito com o prazer! Mil perdões, mas tenho de levar a senhora e sua comitiva para Montefiascone.
Giulia deu de ombros.
- Pois muito bem, quando chegarmos lá, quer me fazer um favor? Mandará que enviem uma mensagem a Sua Santidade dizendo o que se passou conosco?
Yves fez uma mesura e disse que mandaria, sem dúvida alguma.
E assim, segurando o cavalo de Giulia pelo bridão e colocando-o à frente do pequeno grupo, com ela ao lado, liderou a comitiva em direção a Montefiascone.
Montefiascone já estava em poder dos franceses e, quando eles se aproximaram, soldados vieram correndo para vê-las.
Houve gritos de alegria quando eles viram as mulheres, e muitos olhos estavam fixos em Giulia. Mas Yves d'Allegre berrou ordens rigorosas. Sua prisioneira não era uma mulher comum. Quem pusesse as mãos nela ou nos membros de sua comitiva sofreria castigos imediatos e drásticos.
Os homens recuaram. Acharam que compreendiam. O capitão havia selecionado a bela cativa para si.
A própria Giulia achava que era isso mesmo e, enquanto olhava para o belo homem cavalgando a seu lado, tremia, não sem um certo prazer, imaginando o que a esperava.
Yves entrou na cidade ao lado dela e, depois de uma curta conversa com seus oficiais superiores, Giulia e sua comitiva foram recebidas com o maior respeito e alojadas em uma das casas mais confortáveis da cidade.
Giulia mandou Laura para descansar sob os cuidados de sua ama-seca e foi para o quarto que lhe fora designado. Tirou a capa e sacudiu os cabelos, tirando-os da rede. Deitou-se na cama, pensando em todas as coisas estranhas que tinham acontecido a ela desde que deixara Roma. Sua mente foi, com desagrado, para o episódio com Orsino; Giulia disse a si mesma que tinha sido obrigada a participar daquele caso e que ficara contente por ele ter chegado a um fim ignóbil.
Aquele... aquele também seria um caso de force majeure. O homem era tão charmoso, tão bonito...
Mas ela esperou em vão pela chegada de Yves d'Allegre, porque enquanto ela esperava, ele estava escrevendo um recado para o papa dizendo que La Bella Giulia estava detida nas mãos dos franceses e que se exigia um resgate de três mil escudos para que ela chegasse sã e salva a Roma.
Quando Alexandre recebeu a notícia, ficou fora de si de tanta angústia, com medo de que algum mal pudesse acontecer à sua amante. Arrecadou rapidamente o dinheiro, que foi despachado de imediato. Depois, tremendo de expectativa, verificou que não podia esperar pacientemente no Vaticano pela volta de Giulia.
Precisava ir ao encontro dela. Não importava se os franceses estivessem às suas portas; não importava se o mundo inteiro estivesse rindo da paixão de um velho (e de um velho que era papa) por uma jovem, ele não poderia ficar no Vaticano. Precisava ir recebê-la.
Parecia um homem de vinte anos. Mandou trazerem belas roupas. Vestiu um gibão preto com uma borda de brocado de ouro; na cintura, um belo cinto de couro espanhol, no qual estavam incrustadas uma espada e uma adaga com jóias. Nos pés, botas espanholas, e ele usava a sua boina verde em um ângulo jovial.
Foi assim que partiu a cavalo para receber Giulia e levá-la de volta a Roma.
Giulia ficou encantada ao vê-lo. Agora sentia-se humilhada pelo encontro com Orsino e melindrada pelo outro com Yves d'Allegre, mas ali estava Alexandre, o homem mais importante da Itália - apesar de todos os rumores recentes -, e ele era seu apaixonado e devotadíssimo amante.
- Giulia, minha querida! - bradou o papa.
- Santíssimo Senhor! - murmurou Giulia, em tom submisso.
E se houve risadas por toda a Roma porque o Santo Padre, vestido como um magnata espanhol, portara-se como um jovem de vinte anos com a amante, Alexandre pouco ligava. Sua situação era precária, os franceses estavam quase em Roma, ele tinha de lutar por sua coroa mas aquilo parecia pouco para um homem de seu imenso génio em matéria de estadismo. Sua amante estava encantada por estar de volta, desprezando amantes mais moços para ficar com ele.
Restava uma outra coisa necessária para a sua satisfação completa. Lucrécia tinha de ser levada de volta para Roma.
Sozinha no palácio do marido em Pesaro, Lucrécia aguardava ansiosa a chegada de notícias. Às vezes um frade errante aparecia pedindo comida e abrigo por uma noite; às vezes, chegava um mensageiro com cartas de seu pai; Lucrécia recebia com entusiasmo aqueles visitantes e ouvia, ansiosa, tudo o que eles tinham a contar, porque se sentia isolada do mundo atrás das colinas que cercavam Pesaro.
Ficou sabendo que o conflito aumentava, que Carlos da França estava seguindo para Roma; soube da captura e da libertação de Giulia, e do resgate que o papa pagara com prazer. Soube que o pai tinha ido ao encontro da amante vestido como um rapaz, um galante magnata espanhol, e que ficara muito feliz ao ter Giulia ao seu lado uma vez mais.
Outras pessoas poderiam escarnecer do comportamento de seu pai. Lucrécia, não. Ela ficava sentada à janela, olhando para o mar e invejando Giulia pelo afeto e pela paixão que ela inspirava no papa, e pensando em como Alexandre era diferente do homem frio com quem ela se casara.
Mas quando soube que os franceses estavam quase às portas de Roma, tremeu de medo pelo que pudesse acontecer ao pai.
Não havia uma só pessoa em Roma que continuasse mais calma do que Alexandre, enquanto estudava o pequeno rei com seu magnífico exército e os italianos que ficavam ansiosos por se vestirem e brincarem de soldados mas que não estavam tão ansiosos assim por lutar.
César estava com ele nessa ocasião, sardónico porque lhe tinha sido negado o prazer de derrotar os franceses, não perdendo oportunidade de salientar ao pai que, se tivesse estado no comando de sua condotta, teria havido pelo menos uma companhia pronta a deter o invasor.
Ele riu com desprezo e bateu os punhos contra o peito.
- Ah, não! Eu tenho de ficar na Igreja. Eu... que poderia ter salvado Roma, que poderia ter salvado a Itália e, sem dúvida alguma, teria salvado você de sua atual situação humilhante, não tenho permissão para lutar.
Meu filho querido - repreendeu-o o papa -, vocêé impetuoso demais. Não nos apressemos tanto. A batalha ainda não acabou.
Será que Vossa Santidade sabe - disse César - que os franceses tomaram Civitavecchia de assalto e que dentro de um dia ou dois estarão às portas de Roma?
- Sei - replicou o papa.
- E o senhor pretende ficar aqui para que o rei possa prendê-lo e apresentar-lhe suas condições, com as quais o senhor terá de concordar?
- Você vai depressa demais, meu filho. Ainda não fui preso por Carlos. E não tenho intenção de sê-lo. Espere um pouco. Veja quem, daqui a alguns meses, será o vitorioso da campanha. Não cometa, eu lhe peço, o erro de colocar-se entre os meus inimigos que, desde o momento em que o primeiro pé francês pisou em solo italiano, vêm dizendo a si mesmos e entre eles que sou um homem derrotado.
A calma de Alexandre teve um efeito tranquilizador, até mesmo para César.
Mas quando o papa viu a vanguarda do exército francês acampar em Monte Mário, percebeu que precisava refugiarse imediatamente, com a família, na fortaleza de Santo Angelo.
A entrada do rei francês em Roma foi espetacular. Estava escurecendo quando ele e seu exército entraram na cidade marchando, e no crepúsculo eles pareciam mais aterrorizadores do que pareceriam de dia. Chegaram à luz de mil archotes e os romanos tremiam ao vê-los. Os alemães e os suíços, que ganhavam o seu sustento lutando guerras de outros povos, eram todos homens robustos, fortes e rudes, como era de se esperar. Os franceses eram belos soldados e até ali não tinham obtido outra coisa que não vitórias fáceis.
Havia inúmeros nobres acompanhando os soldados, e esses nobres estavam adornados com muitas jóias cintilantes, em sua maioria resultado de saques, apanhadas no caminho para Roma. O exército levou seis horas para passar; havia os arqueiros da Gasconha e os escoceses de d'Aubigny, cujos tocadores de gaita-de-foles tocavam músicas animadas enquanto marchavam; havia os maceiros e os besteiros, e trinta e seis canhões de bronze. Com o cortejo vinha o rei, o que menos inspirava respeito. Cercado pelo seu exército vitorioso, o deformado e maldesenvolvido Carlos parecia patético em sua armadura dourada.
A coluna seguiu pela Via Lata em direção ao palácio de São Marcos, onde o rei ficaria instalado; e os canhões foram montados, com ar ameaçador, na praça.
De sua fortaleza, Alexandre e sua comitiva ouviam os gritos na cidade de "Francia Rovere!"
César estava de pé ao lado do pai, apertando e abrindo os punhos. Ele sabia, como Alexandre também, que quando a noite caísse os cidadãos de Roma passariam maus bocados. Havia tesouros tentadores nas casas - baixelas de ouro e prata, ornamentos de majólica e peltre. E havia as mulheres.
Roma, a cidade eterna, estava prestes a ser saqueada.
E enquanto eles esperavam, ouviam os berros e os mil gritos torturados de uma cidade violentada.
- Há a casa de minha mãe - disse César, em voz grave.
- Não se lamente por uma casa - disse o papa. - Sua mãe não estará nela.
- Onde está minha mãe? - bradou César.
- Não tenha medo. Providenciei para que ela saísse de Roma com o marido há alguns dias.
Como é que ele conseguia ficar tão calmo?, perguntava-se César. O destino dos Bórgia estava em perigo; no entanto, aquele que tornara o nome ilustre ficava ali ouvindo os sons do horror, sereno, como se aquilo nada fosse além de uma passageira tempestade com trovoadas.
César bradou:
Eu vou me vingar dos brutos que entrarem na casa de minha mãe.
Não tenho dúvida de que vai - disse Alexandre, calmo.
Mas o que é que o senhor está fazendo? Ah, meu pai,
como é que o senhor pode continuar tão calmo assim?
Não há outra coisa a fazer - disse Alexandre. - Temos de esperar um momento propício para fazer um acordo com il Re Petito.
César ficou pasmo, porque a ele não parecia bem que Alexandre compreendia o que se passava. Mas Alexandre estava pensando em outra crise em sua vida. Naquela ocasião, seu tio estava à morte e Roma inteira bradava contra os amigos de Calixto. O irmão de Alexandre, Pedro Luís, fugira de Roma e, por conseguinte, nunca realizara suas grandes ambições. Alexandre ficara, confiando na sua dignidade e na sua ousada estratégia; e Alexandre sobrevivera para transformar suas ambições em realidade.
Era isso que iria fazer outra vez.
Nos aposentos dos Bórgia no Vaticano, o pequeno rei francês impacientava-se. Andava de um lado para o outro, olhando pelas janelas para o outro lado dos jardins, para além das laranjeiras e dos pinheiros, para o Monte Mário.
Ele se sentia um tanto magoado. Chegara como um conquistador. Será que devia esperar pelo conquistado? Mas aquela não era uma vítima comum de um exército conquistador. Aquele era o Santo Padre em pessoa, o chefe da Igreja Católica no mundo inteiro. Carlos era católico, seu país era devotamente católico; e Carlos jamais conseguiria pôr de lado o respeito que sentia pelo Santo Padre.
Finalmente, o papa concordara em discutir condições. Que outra coisa poderia fazer? O norte da Itália estava conquistado; Carlos detinha o controle de Roma, pronto para abrir caminho lutando até Nápoles e realizar a grande ambição de seu país.
O papa se vira forçado a fazer um acordo. Ele fora cercado no castelo de Santo Angelo, mas, quando uma bala perfurara os muros daquela fortaleza aparentemente inexpugnável, verificara que chegara a hora de sair e conversar sobre as condições da paz. E estas condições, decidira o rei francês, seriam as suas condições, porque o Santo Padre, um prisioneiro em sua própria cidade, seria obrigado a concordar com elas.
O sol de janeiro brilhava sobre o ouro e esmalte dos murais de Pinturicchio, ainda inacabados, e ali retratados estavam membros da família Bórgia. Carlos os estava estudando quando ouviu um movimento na sala e, voltando-se, viu uma esplêndida figura com um manto dourado. Por um instante, achou estar na presença de um ser sobrenatural e que um dos quadros das paredes adquirira vida. Era Alexandre, que entrara por uma porta baixa e estreita, e, enquanto o papa avançava pela sala, Carlos caiu de joelhos, imediatamente cônscio daquela grande dignidade.
Alexandre pediu-lhe que se levantasse; seus modos eram paternais e benignos.
- Então, meu filho, nós nos encontramos - disse ele.
E, a partir daquele momento, ele passou a ter o comando; Carlos não podia considerar-se o conquistador naquela presença; podia apenas falar com o máximo de respeito com o Santo Padre que conversava com seu filho, como se lhe pedindo que tomasse coragem, apesar do apuro em que se encontrava.
Aquilo era totalmente ridículo, mas apesar disso Carlos gaguejou que queria passagem livre pelos Estados Papais e que viera exigi-la.
As sobrancelhas do papa ergueram-se de repente diante do "exigi-la", mas mesmo enquanto falava Carlos ouviu os barulhos de saques nas ruas lá embaixo e foi trazido de volta à realidade, lembrando-se de que era um conquistador e de que o papa estava em seu poder.
Com que então o senhor pede passagem livre-disse o papa, pensativo. Olhou para um ponto além do rei francês, e sorria com serenidade como se estivesse vendo o futuro.
- Sim, Santidade.
- Ora, meu filho, nós lhe concederemos isso se você e seus soldados deixarem Roma imediatamente.
O rei olhou para um de seus homens que se adiantara um soldado destemido que não se impressionava com o ambiente em que estava ou com a imponente personalidade de Alexandre.
- Os reféns, majestade - disse ele.
- Ah, sim, Santíssimo Padre - disse o rei -, nós precisaríamos de reféns se o deixássemos livre em Roma.
- Reféns. Parece uma exigência justa.
- Fico contente por Vossa Santidade concordar com isso. Nós nos decidimos por César Bórgia e o príncipe turco Djem.
O papa ficou calado por uns instantes. O príncipe Djem, sim. Era um prazer. Mas César!
Lá fora, ouviu os gritos de piedade de mulheres; sentiu o cheiro de fumaça. Roma estava sendo estuprada. Estava em chamas e apelando ao seu Santo Padre em sua agonia. Ele precisava salvar Roma por intermédio de César e Djem.
Olhando para o belo mar Adriático, Lucrécia sentia a inquietação aumentar. Ela sabia que Giovanni estava numa situação desesperadora; estava sendo pago pelo papa e pelos napolitanos e trabalhava para Milão. Como é que ela poderia culpá-lo? Nada a teria induzido a agir contra a sua família, e portanto como poderia culpar Giovanni pelo que ele estava fazendo? Como era sua característica, Lucrécia tentava não pensar no marido; era um assunto desagradável.
Mas ficar remoendo os problemas de sua família parecia ainda mais desagradável. O que estaria acontecendo aos Bórgia? Quando chegavam viajantes ao palácio dos Sforza, Lucrécia mandava levá-los imediatamente à sua presença; dava-lhes comida e abrigo e implorava para que eles lhe dissessem o que se passava com seu pai.
Ela tentava visualizar a situação. Os franceses em Roma; a casa de sua mãe, saqueada; o pai, obrigado a receber o pequeno rei da França e ouvir suas condições. E César - o orgulhoso César - obrigado a sair de Roma como refém dos conquistadores. Isso era a pior coisa que poderia ter acontecido. Ela imaginava a raiva dele, e enquanto estava se remoendo, tentando afastar a mente das coisas desagradáveis, trabalhando um pouco com a agulha, tocando o alaúde ociosamente, percebeu uma agitação lá embaixo; pondo de lado o trabalho, desceu correndo, imaginando a possibilidade de se tratar de mensageiros trazendo notícias.
Viu que quem chegara era um frade, humilde e com fome, que estava visitando a senhora de Pesaro para contar-lhe as novidades - grandes novidades de Roma.
Lucrécia achou difícil mostrar a ele o quanto estava satisfeita. Bateu palmas para mandar que escravas levassem água para ele lavar os pés cansados; elas levaram vinho e comida para ele; mas antes que ele se recompusesse, Lucrécia insistiu que ele lhe dissesse se as novidades eram boas ou más.
- Boas, senhora - bradou ele. -As melhores. Como a senhora sabe, o conquistador francês teve uma audiência com o Santo Padre no Vaticano, e foi necessário Sua Santidade chegar a um acordo.
Lucrécia confirmou com a cabeça.
- E eu sei que as condições incluíam a entrega de reféns e que um deles seria meu irmão César.
- É verdade, senhora. Eles deixaram Roma em companhia dos conquistadores. O cardeal Bórgia e o príncipe turco.
Como estava meu irmão? Diga-me. Zangado eu sei que devia estar, já que seu orgulho foi tão rebaixado.
Não, senhora. O cardeal estava tranquilo. Todos os que o viram ficaram impressionados... não apenas com a sua calma, mas também com a calma do Santo Padre, que podia ver o filho partir com o que parecia ser indiferença. Na ocasião, nós não compreendemos. O cardeal levou consigo muita bagagem. Havia dezessete carroças cobertas com veludo, e isso divertiu muito os franceses. "Que tipo de cardeal é esse", diziam eles entre si, "que se preocupa tanto com os seus bens?" E, como a senhora deve ter adivinhado, o príncipe turco viajou com igual esplendor.
- Então ele partiu ouvindo a zombaria de nossos inimigos - disse Lucrécia - e no entanto seguiu com serenidade e dignidade. Ah, mas como ele devia estar com raiva!
- Ele os surpreendeu quando os soldados acamparam no fim do primeiro dia. Ouvi dizer que foi um espetáculo digno de se ver quando ele jogou longe os trajes de cardeal e, nu da cintura para cima, lutou com eles e derrubou os melhores.
Lucrécia bateu palmas e riu.
- Isso deve tê-lo deixado muito satisfeito. Eu sei.
- Eles ficaram abismados com o fato de um cardeal se portar daquela maneira, senhora. Mas na noite seguinte tiveram uma surpresa ainda maior.
- Diga-me logo, eu lhe peço. Não posso suportar a angústia da espera.
- Na segunda noite eles pararam em Velletri, às margens dos pântanos Pontine. Estava tudo quieto e ninguém percebeu quando um dos arrieiros se levantou e deslocou-se em silêncio por entre os soldados estrangeiros. Esse arrieiro foi até uma taberna na cidade e, lá, encontrou um criado à sua espera com cavalos. O arrieiro montou num cavalo e ele e o criado saíram em disparada em direção a Roma.
- Era César, meu irmão!
- Era o cardeal em pessoa, senhora. Ele voltou para o lado do Santo Padre em Roma, e ouvi dizer que por isso há muita risada e muitas comemorações no Vaticano.
Lucrécia riu de satisfação.
- Esta é a melhor notícia que recebo há muito tempo. Como ele deve ter gostado disso! E o pobre gordo Djem, não fugiu?
- Não, o príncipe continua com os seus captores. Dizem que lhe faltava a fibra de Sua Eminência. Ele não podia lutar com os franceses; nem poderia ter conseguido escapar. Ele fica por lá. Mas eles têm apenas um refém, quando queriam dois; e o mais importante dos dois... o filho do papa... fugiu.
Lucrécia pôs-se de pé e ali, diante do frade, deu alguns passos de uma dança espanhola.
O frade ficou olhando, pasmo, mas Lucrécia apenas inclinou a cabeça para trás e riu enquanto girava e girava até perder o fôlego.
Então parou e explicou:
- Estou fora de mim de tanta alegria. Isso é um presságio. Meu irmão fez dos franceses motivo de chacota. É um começo. Meu pai vai livrar a Itália dos conquistadores, e todos os homens do país inteiro lhe serão gratos. Eu lhe digo que isso é um começo. Vamos! Agora o senhor vai comer o quanto quiser do que há de melhor neste palácio. Vai beber o melhor vinho. O senhor precisa se alegrar. Hoje à noite haverá um banquete no palácio, e o senhor será o nosso convidado de honra.
- Senhora, está comemorando cedo demais-murmurou o frade. - Isso é apenas a fuga de um refém. Há uma parte muito grande da Itália nas mãos do conquistador.
- Meu pai vai salvar a Itália toda - disse Lucrécia, solene.
Mas ficou solene apenas por um instante. Agora, estava falando com suas escravas e suas criadas. Queria que preparassem um banquete; haveria danças e festividades no palácio naquele dia.
César triunfara, e os triunfos de César eram, para ela, tão importantes quanto os seus próprios.
Lucrécia estava certa. Aquilo fora o início de perspectivas melhores. Os franceses ficaram furiosos com a peça que César lhes pregara, mas nada havia que pudessem fazer quanto a isso. Um protesto a Alexandre fez com que ele abanasse a cabeça, em tom de tristeza.
- O cardeal se portou mal, muito mal - murmurou ele; e teve de se retirar depressa, para soltar a gargalhada que o sacudiu.
O pequeno e gordo Djem não pudera suportar os rigores da vida com um exército; foi atacado pela febre e morreu. Assim, num curto período de tempo, os franceses ficaram sem os dois reféns.
No entanto, continuaram a marchar para Nápoles, onde Alfonso, o rei, ao ser avisado da aproximação deles, correu para a Sicília, deixando o reino nas mãos de seu filho, Ferrandino. Mas Ferrandino mostrou que nada tinha de soldado e, quando viu os exércitos franceses se aproximando, seguiu o exemplo do pai - escolhendo a ilha de Ischia para ser o seu refúgio e para lá seguindo com a sua corte -, deixando Nápoles aberta aos invasores.
Aquilo parecia uma sorte para Carlos, mas o rei francês não levara em consideração o clima e a indolência de seus soldados. A Itáliajazia atrás deles, um país conquistado, e eles estavam acampados em uma Nápoles ensolarada. As mulheres eram deliciosas, os bordéis eram inúmeros, e os soldados decidiram desfrutar de um descanso da marcha.
Enquanto isso, Alexandre não ficara parado. Mensageiros tinham cavalgado com afinco entre o Vaticano e Veneza, para Milão, para o rei da Espanha e para o imperador Maximiliano.
Alexandre salientou que, a menos que eles se tornassem logo seus aliados, a Itália iria cair inteiramente sob o domínio dos franceses e isso não seria vantagem para nenhum deles.
Quando o rei francês soube das alianças que estavam sendo formadas, ficou alarmado. Seus soldados estavam debilitados; além do mais, estavam se tornando insubordinados, e muitos deles estavam doentes. Carlos estava prestes a receber a coroa de Nápoles quando lhe ocorreu que aquela coroa de pouco lhe valeria se fosse usá-la apenas por uma semana, mais ou menos, antes de seus inimigos o dominarem.
Só havia um meio de sair daquela dificuldade. Precisava deixar a Itália a toda velocidade. Mas pelo caminho iria falar com o papa, que, desconfiava, corretamente, organizara seus inimigos contra ele, Carlos, e iria exigir dele a investidura de Nápoles.
Carlos deixou Nápoles e iniciou a marcha em direção ao norte, mas Alexandre, avisado de sua aproximação, saiu imediatamente de Roma e foi para Perugia, de modo que quando Carlos chegou a Roma encontrou o Vaticano deserto.
Furioso de raiva, ele nada podia fazer a não ser continuar a marcha.
Estava perplexo. Tinha conquistado a terra com seus exércitos vitoriosos, e os governantes dos estados tinham caído perante ele; então chegara a Roma, acreditando que o papa Bórgia fosse tanto seu vassalo quanto aqueles chefes de estado que se tinham afastado para que ele passasse. Parecera que sim. E no entanto... não era.
Carlos continuou marchando, amaldiçoando a raposa astuta que estava no Vaticano.
Alexandre achava a vida divertida em Perugia. Uma vez mais, ele provara que sua estratégia era bem fundada. Fora como na época da morte de Calixto. Ele havia esperado, então, como agora, sereno, condescendente; e agora, como então, seus inimigos tinham favorecido seus planos.
Com ele estavam Giulia e César; mas havia uma pessoa da qual sentia muita falta: a filha adorada.
- Lucrécia tem de vir juntar-se a nós aqui - disse ele a César. - Ela já está separada de nós há muito tempo.
César sorriu diante da perspectiva de tornar a ver a irmã. Estava se sentindo mais feliz. Seu pai ficara muitíssimo satisfeito com a sua aventura. Estaria ele começando a ver a vantagem que César representaria como comandante dos exércitos? Não era característica de um cardeal lutar, como ele fizera, com soldados e realizar uma fuga tão espetacular.
César estava com vinte anos; crescia em estatura; e o papa, apesar de toda a sua milagrosa virilidade, estava com sessenta e quatro anos.
César começou a pensar no dia em que o pai se voltaria para ele à procura de conselho, e quando ele, César, tomaria as decisões.
Agora estavam perfeitamente de acordo, pois ambos decidiram que Lucrécia deveria ir para perto deles em Perugia.
Giovanni Sforza, que estava de volta a Pesaro, não ficou satisfeito com a mensagem do papa.
Entrou de supetão nos aposentos de Lucrécia, onde ela estava dando ordens para o preparo de sua bagagem.
- Você não vai - disse ele.
- Não vou? - Os olhos claros estavam arregalados de incredulidade. - Mas são ordens de meu pai.
- Eu sou seu marido. Sou eu quem deverá dizer para onde você pode ir.
- Giovanni, você não pode se recusar a me deixar ir.
- Posso, e vou.
Ele estava sendo audacioso; era porque estava pensando nos quilómetros que havia entre Perugia e Pesaro. Pobre Giovanni!, pensou Lucrécia. Não é um homem audacioso.
Mas quase que imediatamente ela ficou alarmada, porque também se lembrou da distância entre Pesaro e Perugia.
Giovanni era um homem fraco, e como tal estava sempre ansioso por mostrar sua força quando achava que tinha chance de fazê-lo. Agora, voltou-se para as criadas dela.
- Tirem os vestidos da condessa - disse. - Coloquem-nos de volta em seus lugares.
Depois, deu meia-volta e retirou-se.
Lucrécia não teve acesso de raiva. Era como o pai, e sabia da eficácia da diplomacia. Estava convencida de que, depois de uma curta demora, estaria a caminho de Perugia. Por isso, teve um sorriso de decepção e sentou-se para escrever uma carta a seu pai.
Giovanni tinha o seu preço. Ele estava aprendendo a necessidade de uma barganha. Era mantido pobre e sem importância, mas os Bórgia deviam lembrar-se de que embora sua esposa fosse filha do papa, como seu marido ele, Giovanni, tinha um certo controle sobre ela. Já que ela era tão valiosa para eles, eles deveriam mostrar algum respeito pelo marido dela.
Queria ser libertado da posição odiosa em que eles o haviam colocado. Queria um novo comando; e como o papa fizera uma aliança com Veneza, por que não deveria ele ser designado capitão do exército veneziano? O papa podia conseguir facilmente isso para o genro; que o fizesse e, em troca desses serviços, Giovanni Sforza não faria restrições aos movimentos de sua mulher.
Quando o papa soube das aspirações de Sforza, soltou uma gargalhada.
- Ora - disse ele a César -, no final das contas há um certo espírito no pobre homem. Vou ver com o doge o que pode ser feito.
César zombava do cunhado. Ele o teria odiado, fosse quem fosse, simplesmente por ser marido de Lucrécia, mas para César parecia humilhante a irmã ter tido de aceitar um homem como aquele.
- É uma pena - disse ele ao pai - que não possamos encontrar um meio de livrar Lucrécia de Sforza.
O olhar do papa deslocou-se um pouco.
- Talvez... - murmurou ele. - Umdia...No momento, vamos passá-lo para o doge.
Giovanni andava de um lado para o outro, agitado, nos aposentos de sua mulher.
- Então - bradou ele - vou ter uma condotta no exército veneziano!
- E você está contente, não está? - perguntou Lucrécia, sem dar muita importância. - Não era isso que você queria?
- Eu devia ter um tratamento igual ao de seu irmão gritou Giovanni.
- Não é isso que tem? Giovanni Sforza e César Bórgia têm comandos no exército do doge. Não é isso?
- É, é isso. Nós dois temos comandos. Mas há uma diferença. Seu pai providenciou para que isso acontecesse. Eu vou receber quatro mil ducados... e seu irmão, trinta e um mil!
- Mas, Giovanni-disse Lucrécia, em tom apaziguador -, se você não tivesse sabido o que meu irmão ia ganhar, estaria feliz com os seus quatro mil!
- Mas eu soube - As veias de Giovanni sobressaíram nas têmporas. - Eu sou tratado dessa maneira para mostrar que não tenho importância alguma ao lado de seu irmão. Seu pai me insulta de forma deliberada. Não vou permitir que você vá.
Lucrécia ficou calada por alguns segundos; depois disse, séria:
- Se não deixar, então nem mesmo os quatro mil ducados serão seus.
Giovanni cerrou os punhos e bateu o pé. Parecia que ia debulhar-se em lágrimas.
Lucrécia observou-o com desinteresse. Pensou: em breve vamos partir para Perugia, e depois que ele tiver me levado até lá, ele nos deixará.
Entregou-se ao prazer de imaginar a reunião com seu pai e com César.
Lucrécia foi abraçada pelo pai e por César, e como aqueles abraços eram calorosos, apaixonados!
- Não posso compreender como conseguimos viver sem você - declarou o papa.
- Sentimos uma saudade que não dá para expressar em palavras - murmurou César.
Ela se voltava de um para o outro, segurando-lhes as mãos e as beijando.
- Ah, meu pai, ah, meu irmão! - bradava. - Por que é que todos os outros homens parecem pequenos e insignificantes perto de vocês?
Eles a faziam dar voltas enquanto estudavam cada detalhe de sua aparência. Ela mudara, declarou César; e durante algum tempo sua expressão ficou séria; lembrou-se de que o seu casamento tinha sido consumado.
- A nossa filhinha está crescendo - murmurou o papa. -Eu me repreendo. Teria sido possível tê-la mantido comigo, minha adorada, durante todos os problemas.
- Houve muitos momentos de inquietação - ponderou César. - Acho que teríamos sofrido agonias de aflição, Santidade, se a nossa adorada tivesse ficado exposta ao perigo.
- Tem razão, meu filho. E por que vamos lamentar o que passou? Que haja um banquete para dar as boas-vindas à minha filha adorada, e deixe-me ver vocês dois dançando e cantando juntos.
César segurara a mão dela.
- E você, o que diz, irmã?
- Estou ansiosa por dançar com você. Estou ansiosa por mostrar a todos o quanto estou feliz por estarmos juntos outra vez.
César segurara o seu rosto e o estudava atentamente.
- Como você mudou, irmã.
- Estou um pouco mais velha, nada mais.
- Mais instruída sobre o mundo - disse o papa, com carinho e quase que maliciosamente.
César beijou-a.
- Espero, adorada irmã, que a sua provação não tenha sido enfadonha demais.
Ela sabia o que ele queria dizer, e riu.
- Não, foi bastante boa.
O papa, observando-os, pôs a mão no ombro de César.
- Solte-a, agora. Deixe que as damas a vistam para o banquete. Depois, verei os dois dançando juntos e ficarei feliz porque tenho dois de meus queridos sob o mesmo teto que eu.
Lucrécia beijou a mão do pai e os dois homens ficaram olhando-a enquanto ela se retirava.
- Como está encantadora! - disse César.
- Estou começando a acreditar que ela é a jovem mais bonita da Itália - replicou o papa.
- Eu tenho certeza - disse César.
Ele olhou rápido para o pai. Giulia estava perdendo o poder sobre o papa, porque ele não a perdoara desde que ela vivera com o marido. Ele fizera o gesto magnânimo de sair a cavalo para recebê-la quando pagara o resgate dela, mas César estava plenamente cônscio de que Giulia já não era a amante favorita do papa, e sentia-se contente. Sempre ficara irritado com a ascensão ao poder da família Farnese.
Enquanto parecia sentir um prazer frívolo nos folguedos que aconteciam à sua volta, Alexandre planejava para mais adiante. Agora disse a César:
Espero que não demoremos muito a voltar para Roma. Há muita coisa que precisamos fazer se quisermos evitar que surjam desastres como aquele pelo qual acabamos de passar. César, temos de nos concentrar em destruir o poder dos barões que se mostraram tão fracos e ineficazes diante da aproximação do invasor. Eu visualizo uma Itália forte.
Uma Itália forte sob o papado - concordou César.
O senhor precisa de um exército forte, meu pai, e de bons generais.
- Tem razão, meu filho.
Alexandre viu o pedido chegar aos lábios de César: libere-me. Veja que general eu vou dar.
Percebeu que não era a hora de dizer a César que assim que chegasse em Roma pretendia trazer Giovanni de volta da Espanha. Giovanni deveria ficar encarregado dos exércitos do papa, e deveria sair e combater os Orsini, que durante a invasão francesa tinham se mostrado traidores do interesse do papa. Quando ele os tivesse dominado, as famílias rivais iriam ver como o papa se tornara poderoso; elas atenderiam aos desejos do papa Bórgia ou teriam o mesmo castigo.
Ele teria gostado muito de conversar sobre isso com César, mas era evidente que as conversas só poderiam levar a um assunto: a ordem de retorno de Giovanni da Espanha.
Era muito agradável ter a sua querida Lucrécia consigo; Alexandre ficava feliz ao ver a satisfação que César tinha com ela e ela com ele. Alexandre não queria que coisa alguma estragasse aquele prazer, de modo que mudou de assunto com habilidade.
- A nossa pequena Lucrécia... - murmurou. - Quem dera que tivéssemos arranjado um marido mais digno dela.
- Eu fico louco ao pensar naquele idiota... naquele grosseirão... perto de minha irmã.
- Vamos providenciar para que ele não goste de Perugia
- sugeriu o papa.
César estava sorrindo outra vez.
- Precisamos mandá-lo a toda velocidade para junto do doge - disse ele. - É possível, isso?
- Temos de pensar juntos, meu filho. Depois, teremos Lucrécia para nós.
Lucrécia estava deitada na cama, os cabelos molhados à sua volta. Sentia uma excitação estranha ao recordar os prazeres da noite anterior. Tinha sido um banquete de gala no palácio de Gian-paolo Baglioni que, como representante feudal da Igreja, achara ser de seu dever e seu prazer recepcionar o Santo Padre.
Baglioni era um homem fascinante, bonito e ousado. Circulavam histórias sobre a sua crueldade, e seus escravos e criados tremiam diante de um olhar severo seu. César dissera a ela, enquanto os dois dançavam, que nas masmorras sob o palácio aqueles que ofendiam Baglioni eram torturados sem piedade.
Parecia difícil acreditar que um homem tão fascinante assim pudesse ser cruel; ele não mostrara outra coisa a não ser delicadeza para com Lucrécia. Se tivesse visto qualquer pessoa torturada por ordem dele, ela o teria odiado; mas as masmorras ficavam muito longe do salão de banquetes, e os gritos das vítimas não chegavam até os convivas.
Baglioni ficara observando Lucrécia e César enquanto dançavam, e seus olhos estavam cheios de uma satisfação maliciosa. O mesmo acontecia com os olhos de outras pessoas.
- As danças espanholas, César - sussurrara ela. Nosso pai gostaria de nos ver dançá-las.
E eles dançaram, ela e César juntos, como Lucrécia dançara com o irmão Giovanni no dia de seu casamento. Ela recordara aquelas danças celebrando o casamento, mas não se referira a elas; não queria deixar César zangado numa noite daquelas.
Baglioni dançara com uma mulher muito bonita, amante sua.
Ele era carinhoso com ela e, observando-os, Lucrécia sussurrara para César:
Como ele é gentil! No entanto, dizem que ele aplica torturas terríveis a quem o ofende.
Então César a puxara para perto de si.
- O que é que essa delicadeza dele para com ela tem a ver com a sua crueldade para com os outros?
- Apenas que é difícil acreditar que uma pessoa que pode ser tão gentil pode também ser tão cruel.
- Eu não sou delicado? Não sou cruel?
- Você... César... você é diferente de qualquer outra pessoa sobre a Terra.
Aquilo o fizera sorrir; e ela sentira os dedos dele agarrando sua mão, quase fazendo-a gritar de dor; mas a dor causada por César sempre, de uma maneira estranha, a deixava encantada.
- Quando voltarmos a Roma - dissera ele, e a expressão em seu rosto a fizera tremer -, vou fazer com aqueles que violaram a casa de nossa mãe coisas sobre as quais os homens vão ficar falando por muitos anos. Vou cometer atos que irão igualar-se àqueles que acontecem nas masmorras de Baglioni. E o tempo todo eu a amarei, minha irmã, com o mesmo amor violento mas delicado que você tem recebido de mim desde que era uma criancinha no berço.
- Ah, César... por piedade. De que pode adiantar lembrar o que foi feito no calor da guerra?
- Vou lhe dizer o que vai adiantar, irmã. Vai mostrar a todos aqueles que tomaram parte que, no futuro, eles deverão lembrar-se do que estarão arriscando se ousarem insultar a mim e aos meus. Ah, você tem razão em dizer que Baglioni ama aquela mulher.
- Ela é a amante favorita, segundo eu soube; e não pode haver dúvida disso.
- Você ouviu mais alguma coisa a respeito dela, Lucrécia?
- Alguma coisa mais? Acho que não, César.
Ele rira de repente, e seus olhos tinham ficado com uma expressão ardente.
- Ela é realmente a favorita dele - disse - e também é irmã dele.
Era nisso que Lucrécia estava pensando enquanto estava deitada em sua cama.
Seu marido entrou no quarto e ficou ao lado da cama olhando para a esposa. Então, agitou a mão para a mulher que estava sentada ali perto, costurando um dos vestidos de Lucrécia.
Lucrécia estudou o marido através dos olhos semicerrados. Ele parecia menor, menos imponente, ali em Perugia, do que em Pesaro. Lá, ela o vira como seu marido e, por ser Lucrécia, estava pronta a se contentar com o que a vida lhe dera; fizera o possível para amá-lo. Era verdade que o achara insatisfatório, frio, com falta de ardor. Os desejos dela tinham sido despertados, e constantemente ela tivera consciência de que eles continuavam insatisfeitos.
Ali em Perugia, ela o via através dos olhos de seu irmão e de seu pai; e o homem que via era diferente.
- É isso - bradou ele -, vou partir. Vou deixá-la aqui.
- É mesmo, Giovanni? - perguntou ela, languidamente, fazendo tudo para que ele não percebesse o leve prazer que ela estava sentindo.
- Você sabe! - vociferou ele. - É bem possível que você tenha pedido que eu fosse transferido.
- Eu? Giovanni! Mas você é meu marido.
Ele se aproximou da cama e agarrou-a pelo braço com brutalidade.
- Não se esqueça disso - disse ele.
- Como poderia eu esquecer uma coisa dessas?
- Você bem poderia fazer isso, agora que está com a sua família.
- Não, Giovanni. Nós todos estamos sempre falando em você.
Falando sobre como poderiam livrar-se de mim, hem?
Por que iríamos querer isso?
Isso o fez soltar uma gargalhada.
Que belos braceletes você está usando! De onde vieram eles? Não me diga... eu vou adivinhar: um presente do Santo Padre. Que belos presentes para um pai dar à filha! Ele não deu coisa alguma melhor à senhora Giulia no auge de sua paixão por ela. E seu irmão, ele é igualmente atencioso. Poder-se-ia dizer que rivaliza com o pai.
Ela baixou os olhos; deixou que seus longos e finos dedos brincassem com os ornamentos cheios de jóias que estavam em seus pulsos.
Lembrou-se do pai colocando-os ali; os beijos solenes, as palavras de amor.
- Eles não me querem aqui - berrou Giovanni. - Eu sou um empecilho. Sou uma praga. Eu não sou seu marido?
- Eu lhe rogo, Giovanni, não faça essas cenas - disse ela. - Meu irmão poderia ouvi-lo.
Ela olhou para ele, então, e viu os clarões de medo passarem por seus olhos. Sabia que a menção ao nome de César provocava aquilo em muita gente.
Os punhos fechados dele tinham pendido para os lados. Ele lançou um olhar para a bela e sedutora jovem que estava na cama; depois, se afastou.
Ela era a isca. Ele tinha de ter cuidado. Era como uma mosca descuidada que fora voando para a rede dos Bórgia. A coisa mais segura que podia fazer era fugir enquanto tivesse tempo. Naquele momento, ele era uma pequena irritação para eles. Quem saberia dizer o que poderia tornar-se?
Pensou na delicadeza dela e nas primeiras semanas em Pesaro, quando ela se tornara realmente sua mulher. Ela era jovem e aparentemente inocente; era muito bonita, muito sensível; na verdade, sensível demais; com o seu medo natural, ele se sentira um pouco assustado com algo que o avisara da paixão presa naquele corpo de belas formas mas frágil.
Ele queria dizer a ela: venha comigo. Venha em segredo.
Não deixe que eles saibam, porque eles nunca deixarão que você fuja deles.
Mas se ela fosse com ele, o que aconteceria ao casal? Jamais deixariam que eles fugissem. Ele compreendia isso. Percebia, agora, o motivo pelo qual eles não a deixariam partir.
A percepção lhe chegara quando ele vira Baglioni e a amante no banquete. O papa os abençoara, Baglioni e a amante, e o papa sabia da situação deles.
Giovanni Sforza hesitou. Leve-a consigo, insistia uma voz dentro dele; ela é sua mulher. Por enquanto, está inconspurcada; ela é delicada e há bondade nela. Eles ainda não a tornaram igual a eles... mas irão fazê-lo. E ela é sua mulher... para você moldar, para você manter para sempre.
Mas Giovanni não tinha coragem, porque era um homem amedrontado.
- Eu tenho de ir embora-bradou, num súbito acesso de raiva. -E você vai ficar. Estão dizendo, em Roma, que há um abrigo amplo para você debaixo da túnica apostólica!
Ela parecia ter-se esquecido de que ele estava ali.
Estava pensando em si mesma, dançando com César, e em Baglioni, sentado à mesa acariciando sua bela irmã.
César tivera razão quando dissera que ela havia crescido. Havia muitas coisas que ela agora começava a compreender.
As escravas de Lucrécia estavam penteando-lhe os longos cabelos. Recém-lavados, tinham um brilho dourado enquanto lhe caíam pelos ombros. Ela estava ficando mais bonita. Seu rosto ainda tinha a expressão inocente que talvez se devesse, em sua maior parte, ao queixo curto e aos olhos grandes; mas naqueles olhos havia, agora, uma expectativa.
Ela estava de volta a Roma depois de uma breve visita a Pesaro, e seu marido Giovanni estava outra vez com ela, mas dentro de pouco tempo estaria indo embora. Precisava voltar para sua condotta. Ela estava contente por ele estar indo. Estava cansada de Giovanni e de suas contínuas insinuações. Ao mesmo tempo, estava cônscia do crescente desagrado do pai com relação ao seu marido, e do ódio firme de César.
César era a pessoa mais importante de sua vida, mas no entanto ela ainda tinha medo dele - aquele terror estranho que ele provocava nela e que ela começava a entender.
Sua vida com Giovanni lhe ensinara o que ela poderia esperar dos homens, e bem poderia ser que, por ela agora saber-se capaz de uma paixão até mesmo como seu pai e seus irmãos, estivesse esperando ansiosa pelo que o futuro fosse lhe trazer. De Giovanni ela nada esperava; no entanto, por ser ele um covarde e por estar continuadamente preocupado com a sua falta de dignidade e com a falta de respeito que lhe era dedicada, sentia pena dele; e ficaria contente depois que ele partisse, porque não apenas sentia pena dele, mas tinha medo do que poderia acontecer a ele.
As amas haviam colocado a rede enfeitada de jóias sobre os seus cabelos e ela ficou pronta para o banquete.
Este seria em honra do conquistador de Fornovo, e seu pai insistira que Gonzaga deveria ser recebido no palácio de Santa Maria in Pórtico, para que Roma inteira ficasse sabendo do grau de estima que ele tinha por sua bela filha.
Então ela estava realmente amadurecendo. Naquela noite estariam reunidas em sua casa todas as pessoas mais notáveis de Roma, e ela seria a anfitriã.
Giovanni Sforza ficaria zangado, porque seria mostrado claramente que ele tinha pouca importância. Ele ficaria nos bastidores e ninguém iria perceber sua presença; e quando Gonzaga fosse embora Giovanni iria com ele, e uma vez mais haveria um breve descanso de sua companhia.
Ela estava muito bonita quando foi receber os convidados, a pequenina negra segurando a cauda de seu vestido, que era de um rico brocado e duro de tantas jóias. Ela possuía o dom de parecer tanto mais jovem como mais velha do que os dezesseis anos que tinha - num instante, uma criança inocente; em outro, uma mulher.
Lá estavam reunidos seu pai, seu irmão e membros da corte papal, e entre eles a comitiva de Francesco Gonzaga, o marquês de Mântua.
O marquês, um homem de notável aparência e personalidade, estava de pé diante dela. Era muito alto, magro e muito moreno; e seu corpo, embora gracioso ao extremo, sugeria uma imensa força e virilidade. Seus olhos negros eram brilhantes, fundos, e as pálpebras recobertas lhes davam a aparência de estarem constantemente semicerrados; os lábios eram cheios e sensuais; era, nitidamente, um homem que tivera muitas aventuras - tanto no amor quanto na guerra.
Ele curvou-se graciosamente diante da filha do papa.
- Ouvi falar muito em seus encantos, senhora - disse, numa voz que tinha um tom de ternura. - Tenho o máximo de prazer ao beijar a sua mão.
- Ouvimos falar muito no senhor, aqui - murmurou Lucrécia. - A história de sua bravura chegou antes do senhor.
Ele sentou-se ao lado dela e contou-lhe sobre a batalha, dizendo o quanto se recriminava pelo fato de o rei francês ter fugido.
- Ele deixou atrás de si muitos prisioneiros - disse Lucrécia-, segundo soubemos aqui, com muitos dos tesouros que tirou do povo da Itália.
Era verdade, concordou Gonzaga, e passou a explicar mais detalhes da campanha, impressionado consigo mesmo por estar falando daquela maneira com uma jovem bonita. Mas era apenas uma criança. Estava com dezesseis anos, porém para ele parecia muito mais jovem.
Quanto a Lucrécia, queria que aquele homem atraente falasse sobre ele, pois sabia que iria interessá-la muito mais do que os detalhes de suas batalhas.
Eles dançaram, e ela sentiu uma ponta de excitação correr-lhe o corpo quando as mãos deles se tocaram. Pensou: se Giovanni Sforza tivesse sido um homem assim, como poderia ter sido diferente o meu sentimento para com ele.
Ela ergueu os olhos e sorriu para ele, mas ele ainda a considerava uma criança.
O papa e César observavam enquanto eles dançavam.
Um belo par - disse o papa.
César parecia preocupado.
Gonzaga é notório pela atração que provoca nas mulheres. Ele não deve pensar que Lucrécia está à sua disposição até ele passar à conquista seguinte.
- Esteja certo de que não - murmurou Alexandre. Ele a considera uma menina bonita.
Havia um outro assunto que Alexandre teria de abordar com César em breve, e queria escolher o momento certo para isso. Giovanni Bórgia iria receber a carta do pai muito em breve, e Alexandre não tinha dúvida de que o jovem duque de Gandia perderia pouco tempo na volta a Roma.
E quando ele chegasse Alexandre iria colocá-lo na chefia de seus exércitos, o que iria deixar César furioso.
Eles são meus filhos, ponderava Alexandre; não caberá a mim controlá-los?
Talvez. Mas, ao olhar o rosto carrancudo ao seu lado, ele ficava inquieto. Aquele lado escuro e sorumbático da natureza de César tornara-se mais pronunciado ultimamente. César recebera grandes demonstrações de afeto; gozara de muitos privilégios. Quando estava nas universidades, a riqueza e o poder do pai lhe haviam possibilitado reunir uma pequena corte própria, uma corte da qual ele era o déspota. Havia rumores inquietantes sobre os poderes de César e os métodos que ele empregava para livrar-se de seus inimigos.
Alexandre não iria acreditar que ele, o papa todo-poderoso, que há pouco tempo triunfara sobre seus inimigos, estivesse com medo do próprio filho.
No entanto, agora hesitava em dizer-lhe que praticamente não havia dúvida de que seu irmão estaria em Roma em breve.
Em vez disso, falou em Goffredo, o filho mais moço, que ele também chamara de volta.
- Está na hora - disse - de Goffredo e Sanchia estarem conosco. Os rumores relativos àquela mulher ficam cada vez mais interessantes.
Aquilo fez César rir; e não havia coisa alguma de que Alexandre gostasse tanto quanto desfrutar de um pequeno mexerico inconsequente com os membros da família. Para os dois, parecia muito divertido ver o pequeno Goffredo com aquela sua esposa, notória por seus amantes.
- Uma mulher dessas - disse César, leviano - será uma interessante adição à equipe de Vossa Beatitude.
Lucrécia ficou com o pai e César na sacada, vendo a partida de Francesco Gonzaga. Ele seguiu à frente do cortejo, o homem que provocara uma certa sensação de mágoa dentro dela porque Giovanni Sforza não era um homem daqueles. Agora Francesco estava seguindo para Nápoles e, enquanto atravessasse a Itália, em toda parte seria homenageado como o homem que, junto com o Santo Padre, fizera mais do que qualquer outro para expulsar o invasor do país.
Ele tinha a aparência de um conquistador. As multidões gritavam aclamando-o; espalhavam flores por onde ele ia passar e os olhos das mulheres estavam dirigidos apenas para ele no vasto cortejo.
Com graça, ele agradecia a aclamação, os olhos negros brilhando quando pousavam em alguma jovem ou mulher destacada pela beleza. Um sorriso de admiração pela beleza, pesar por estar apenas de passagem, tocava seu rosto por um instante, alterando sua expressão.
Ele se voltou e, sorrindo, deu o último adeus ao grupo que estava na sacada, e seus olhos pararam por um breve momento na filha do papa, porque ela era uma jovem tão bonita, com os brilhantes cabelos dourados, mas se lhe passou pela cabeça o pensamento de que dali a poucos anos ela valeria um conhecimento mais chegado, a ideia foi logo esquecida. Havia uma outra pessoa que estava no cortejo e que se voltou para dar um último olhar ao grupo que estava na sacada: era Giovanni Sforza. Ficou zangado quando seus olhos pousaram na jovem de cabelos dourados. Lá estava ela entre o pai e o irmão, e a Giovanni pareceu que era prisioneira deles. Eles iriam tirá-la dele; iriam torná-la igual a eles, e muito em breve seria impossível reconhecer a menina dócil que tinha sido sua esposa durante aqueles meses em Pesaro. Sentiu-se saudoso daqueles meses, pois sabia que nunca voltaria a viver com tal harmonia com a sua meiga Lucrécia.
Ela já estava mudando. Ainda era umajovem, mas era uma Bórgia, e eles estavam decididos a carimbá-la com a marca dos Bórgia. Dali a alguns anos - talvez menos - ela estaria igual a eles... com aquela encantadora inocência perdida, a sensualidade ampliada de tal maneira que ela, também, estaria pronta a saciá-la não importava a que custo; eles iriam macular aquela ternura que havia nela; iriam suplantá-la com a indiferença.
Ele ansiava por voltar, invadir o palácio, obrigá-la a deixálos e voltar com ele para Pesaro, onde os dois viveriam longe dos conflitos da política e da sombra da maquinadora e inescrupulosa família dela.
Mas quem era ele para ter aqueles sonhos? Era um homem pequeno; era um covarde que sempre tivera medo de alguém ou de algo, sempre tentando livrar-se da lembrança da humilhação.
Não. Era tarde demais. Eles a tinham tirado dele, e ela já estava alienada; ele já a perdera.
Névoas de raiva dançaram diante de seus olhos.
Francesco se voltara para ele.
- Você lamenta deixar Lady Lucrécia - disse ele. Sforza deu uma risada amarga.
- Ela não lamenta - disse ele. - Está bem contente por se instalar sob o manto apostólico.
Francesco estava olhando para ele com uma expressão estranha. Sforza, lembrando-se de desprezos passados, não conseguia parar de resmungar com fúria:
- Sua Santidade está ansioso por livrar-se de mim. Ele quer ter o controle completo sobre a filha... ele quer ser marido e também pai.
Fez-se silêncio. Francesco olhava para a frente; o cortejo seguiu adiante.
Na sacada, o papa olhava com ternura para a filha.
- Com que então Gonzaga está indo embora - disse ele. - Agora, minha adorada, você tem de fazer os preparativos para receber seu irmão Goffredo e sua cunhada Sanchia. Eles não vão demorar ajuntar-se a nós.
A voluptuosa Sanchia estava deitada em sua cama beliscando doces. Espalhadas pela cama, servindo-se de vez em quando do prato, estavam suas três damas de honra favoritas: Loysella, Francesca e Bernardina.
Sanchia estava contando a elas sobre o amante da noite anterior, porque gostava de recontar detalhes de seus vários casos amorosos, alegando que assim desfrutava de um prazer duplo - primeiro na realidade, e depois na recordação.
Sanchia era de uma beleza impressionante, e um de seus maiores atrativos era o contraste entre os cabelos negros, as sobrancelhas negras, a pele cor de oliva e os notáveis olhos azuis. Seus traços eram ousados, o nariz aquilino e belamente formado; a boca era delicada e sensual. Olhar para Sanchia era lembrar-se imediatamente de prazeres eróticos; Sanchia sabia disso, e a franca sensualidade de seu sorriso sugeria que ela fizera descobertas que eram desconhecidas por todas as demais mas que ela teria um grande prazer de transmitir àquelas para as quais estava sorrindo, a fim de que elas, e apenas elas, compartilhassem de seu segredo.
Sanchia, pelo que se lembrava, sempre tivera amantes e continuaria tendo-os até morrer.
- Não prevejo uma viagem muito agradável - estava dizendo agora. - Mas como será divertido quando chegarmos a Roma. Já estou um tanto apaixonada por César Bórgia, e nem mesmo ainda o vi. Ah, que grande paixão nos aguarda!
- A senhora vai deixar o papa com ciúme do filho sugeriu Francesca.
- Acho que não. Acho que não. Vou deixar Sua Santidade para você, Loysella, ou talvez para a pequena Bernardina. Juntas, talvez vocês possam recompensá-lo pelo tédio que ele sente pela senhora Giulia, que é conhecida como La Bella.
- Senhora, não deve falar assim do Santo Padre - disse Loysella.
- Ele é apenas um homem, minha filha. E não pareça tão chocada. Não é como se eu sugerisse que você fosse companheira de cama daquele monge louco, Savonarola.
Loysella estremeceu, mas os olhos de Sanchia eram especulativos.
- Eu nunca tive um amante que fosse monge - disse, pensativa. - Talvez na viagem passemos por algum mosteiro...
- Ah, a senhora é maldosa - disse Francesca com um muxoxo. - Não tem medo de falar assim?
- Eu não tenho medo de coisa alguma - retorquiu Sanchia. - Eu me confesso e cumpro minhas penitências. Quando ficar velha, vou modificar meus modos e, sem dúvida, entrar para um convento.
- Vai ter de ser um mosteiro para a senhora, sua maldosa
- disse Loysella.
- Não, não, embora eu experimentasse um monge, teria de ser apenas por uma vez. Não peço por um monge noite após noite... dia após dia.
- Cuidado! - disse Francesca. - Se a nossa conversa fosse denunciada...
- Não importa. Ninguém tenta me fazer mudar minha maneira de agir. Meu pai, o rei, sabia como eu gosto de homens, e no entanto o que foi que ele fez? Disse: "Ela é uma de nós. Não se pode criar laranjas em pereiras." Meu irmão abanou a cabeça e concordou; e até minha velha avó sabia que era inútil me reformar.
Sua Santidade irá reformá-la. É por isso que ele mandou chamá-la.
Sanchia teve um sorriso maldoso.
- Pelo que sei de Sua Santidade, não é para me reformar que ele me chama para Roma.
Loysella fingiu tapar os ouvidos por não querer ouvir tamanha blasfémia, mas Sanchia limitou-se a rir e pediu a Francesca para trazer o colar de ouro e rubis que o amante mais recente lhe dera.
Levantou-se de um salto e, colocando o colar, desfilou diante delas.
- Ele disse: "Só o que há de melhor é digno de adornar esse corpo perfeito."
Ela fez uma careta e olhou para o colar.
- Espero que seja dos melhores - disse ela.
- O trabalho é fora do comum - bradou Francesca, examinando-o.
- Pode experimentá-lo-disse Sanchia. -Vocês todas. Ah-prosseguiu ela -, a noite passada foi maravilhosa. Hoje talvez seja tão excitante quanto ontem, mas talvez não. É a viagem da descoberta que me encanta. A segunda noite é como atravessar um mar que você já cruzou. Não há as mesmas surpresas... não há as mesmas descobertas. Como eu gostaria de ter estado aqui quando os soldados franceses estavam em Nápoles!
Francesca fingiu ter um arrepio.
- Tem havido umas histórias. A senhora não teria escapado. Eles a teriam agarrado.
- Isso teria sido excitante. E dizem que os franceses são bons amantes, e muito corteses, muito galantes. E pensar que enquanto estávamos encolhidos de medo naquela enfadonha ilha de Ischia, essas coisas excitantes aconteciam em Nápoles.
- A senhora poderia ter odiado - sugeriu Bernardina.
- Houve uma mulher que, perseguida por uns soldados, matou-se pulando do telhado da casa dela.
- Eu posso pensar em lugares melhores para se descansar do que as pedras do pátio - disse Sanchia. - Ah, sim, eu queria ter estado aqui para conhecer os galantes franceses. Fiquei zangada... muito zangada quando fomos levados às pressas para viver no exílio. é por isso que tenho de arranjar tantos amantes agora. Há muito tempo a recuperar. Vocês compreendem?
- A nossa senhora recupera o tempo perdido de uma forma muito louvável - murmurou Loysella.
- Pelo menos os rumores não têm mentido - disse Sanchia. - Sua Santidade escreveu para o meu pai dizendo que notícias sobre a minha conduta, que chegaram até ele em Roma, o deixaram muitíssimo perturbado.
- Senhora... Sanchia, tome cuidado... tome cuidado quando chegar a Roma.
- Tomar cuidado! Não, em vez disso, vou tomar o César.
- Tenho ouvido falar muito de César - disse Loysella.
- Histórias estranhas - acrescentou Francesca.
- Dizem - prosseguiu Loysella - que, quando ele põe os olhos numa mulher e diz "Venha cá", ela não tem coragem de desobedecer. Se o fizer, será levada à força e castigada por ter ousado demorar a obedecer ao senhor cardeal.
- Ouvi dizer - acrescentou Bernardina - que ele perambula pelas ruas à procura de virgens boas para encher o seu harém. Soube que quem se meter no caminho dele morre em circunstâncias misteriosas; ninguém sabe como.
Sanchia entrelaçou as mãos na nuca, jogou para trás os cabelos pretos que ondulavam, e riu.
- Ele parece ser mais excitante do que qualquer outro homem que já conheci. Estou ansiosa por vê-lo cara a cara.
- Tome cuidado, Sanchia - implorou Bernardina. Tome cuidado quando ficar cara a cara com César Bórgia.
- Eu é que gostaria que vocês tomassem cuidado disse Sanchia com uma risada. - Rogo a vocês que mantenham o meu pequeno Goffredo ocupado hoje à noite. Não quero que ele entre nos meus aposentos quando eu estiver recebendo visitas. Isso faz mal ao moral da querida criaturinha.
As garotas riram.
- Querido Goffredo. Ele é um encanto, e muito bonito. Fico ansiosa por acariciá-lo - declarou Francesca.
- Pode acariciá-lo o quanto quiser - prometeu-lhe Sanchia. - Mas peço que o mantenham longe do meu quarto. Onde está ele, agora? Vamos chamá-lo até aqui para nos falar sobre o irmão. Afinal, ele sabe mais sobre César Bórgia do que qualquer uma de nós.
Elas ajudaram Sanchia a se vestir, e ela estava reclinada nos travesseiros quando Goffredo entrou.
Ele era muito bonito e parecia mais moço do que era na realidade, porque estava com quase quatorze anos.
Correu para a cama e atirou-se ao lado de sua mulher. Ela estendeu um dos braços e segurou-o contra o seu corpo enquanto acariciava-lhe os belos cabelos, que tinham tons de cobre. Os olhos de longas pestanas olhavam para a esposa com admiração. Ele sabia que tinha se casado com uma mulher que, segundo se dizia, era a mais bonita de toda a Itália. Ouvira a beleza dela ser comparada à de sua irmã, Lucrécia, e à da amante de seu pai, Giulia; e a maioria das pessoas que tinham visto as três beldades declarava que Sanchia tinha beleza para igualar-se às outras e algo mais - havia em Sanchia um feitiço, algo que a tornava sem igual. Ela era insaciavelmente sensual; espalhava promessas de delícias nunca sonhadas para aqueles do sexo oposto que se aproximavam dela. Assim, embora a beleza dourada de Lucrécia e de Giulia fosse admirada, a beleza morena de Sanchia era mais do que admirada; jamais era esquecida.
- E o que é que o meu maridinho andou fazendo hoje?
- perguntou Sanchia.
Ele ergueu o rosto para beijar o firme queixo branco.
- Estive passeando a cavalo - disse ele. - Que belo colar!
- Deram-me ontem à noite.
- Eu não a vi ontem à noite. Loysella disse que eu não devia perturbá-la.
- Loysella maldosa - disse Sanchia, brincalhona.
- Você estava com um amante-declarou Goffredo. Ele foi bom?
Ela beijou a cabeça dele, distraída, pensando no amante da noite anterior.
- Já conheci piores e já conheci melhores - decidiu ela. Goffredo riu e ergueu ligeiramente o ombro, como uma criança faz quando está gostando. Voltou-se para Loysella e disse:
- Minha mulher tem tido mais amantes do qualquer outra mulher em Nápoles... exceto as cortesãs, é claro. Vocês hão de concordar que não se pode incluir as cortesãs.
- De acordo - disse Francesca.
- Agora, fale-nos sobre seu irmão - pediu Sanchia. Fale-nos sobre o famoso César Bórgia.
- Você nunca deve ter conhecido um homem como o meu irmão César.
- Tudo o que temos ouvido nos leva a acreditar nisso respondeu Sanchia.
- Meu pai o adora - jactou-se GofFredo -, e nenhuma mulher já lhe disse não.
- Ouvimos dizer que mulheres são castigadas por lhe dizerem não - disse Loysella. - Como pode ser isso, se nenhuma delas diz?
- Porque elas sabem que ele iria castigá-las se dissessem não. Elas ficam com medo de negar. Portanto, não dizem não, mas sim... sim... sim.
- É lógico - disse Sanchia. - Portanto, nós todas temos de nos preparar para não dizer não, mas sim... sim... sim.
Ela enfiou um doce na boca de Goffredo; ele reclinou-se contra ela, chupando, satisfeito.
- Francesca - ordenou Sanchia -, penteie os cabelos do meu maridinho. São uns cabelos tão bonitos! Quando estão escovados, eles brilham como cobre.
Francesca obedeceu; as outras duas jovens esticaram-se aos pés da cama. Sanchia ficou deitada, sonolenta, com um braço rodeando Goffredo. De vez em quando, ela apanhava um doce e mordiscava um pedaço antes de colocá-lo na boca de Goffredo.
Goffredo, satisfeito, começou a se jactar.
Jactou-se a respeito de César - da bravura de César, da crueldade de César.
Goffredo não sabia por quem sua admiração era maior: pelo irmão, a cujo nome todo mundo em Roma tremia, ou pela esposa, que tinha arranjado mais amantes do que qualquer mulher em Nápoles, exceto, claro, as cortesãs - o que era uma comparação injusta.
O cortejo que seguia para Roma era alegre, porque ao centro cavalgava a bela Sanchia com o seu pequeno marido e suas três dedicadas damas de honra. Sanchia tinha o porte de uma rainha; talvez por ser filha ilegítima do rei de Nápoles, ela assumia em público um ar de realeza; aquilo aumentava a sua impressionante capacidade de atração, porque por baixo do ar de realeza estava aquele olhar de promessa que era dirigido a quaisquer jovens atraentes que ela encontrasse, não importava se não passassem de simples cavalariços.
Suas damas de honra riam de sua promiscuidade; elas mesmas estavam longe de serem pudicas: lépidas em seus casos amorosos como borboletas em dia ensolarado, elas passavam de amante a amante: mas não tinham a capacidade de resistência de Sanchia.
Sanchia parara de lamentar não ter ficado em Nápoles durante a invasão francesa. Deixara de se importar por não lhe terem permitido conhecer o rei francês. César Bórgia, disso ela estava certa, seria um amante mais divertido e excitante do que o pobre do pequeno Carlos.
Fosse como fosse, Sanchia não era de se queixar. A vida era muito cheia de prazeres para uma mulher assim; o seu reino estava ao seu alcance. Coisas lamentáveis e terríveis podiam acontecer aos que a rodeavam. Seu pai tinha sido levado ao exílio e à loucura. Pobre pai! Ficara profundamente desgostoso quando os franceses tomaram o seu reino.
Sabendo de sua angústia, Sanchia estava decidida a não dar valor aos bens que encantavam seu pai.
Quando soubera que iriam casá-la com um menino um filho bastardo de um papa e ainda por cima nem mesmo um bastardo preferido -, a princípio ficara ofendida. Isso porque o casamento proposto mostrara-lhe claramente que ela não tinha a mesma importância que sua meio-irmã, que era a filha legítima do rei Alfonso.
Goffredo Bórgia, filho de Vannozza Catanei e possivelmente do papa Bórgia - e possivelmente não! Ela sabia que houvera suspeitas quanto ao nascimento de seu marido e que de vez em quando até o papa declarara que o menino não era seu filho. Será que Sanchia, filha do rei de Nápoles-embora ilegítima -, devia ser dada em casamento a uma pessoa como Goffredo?
Mas eles lhe haviam explicado: seja ele, ou não, filho bastardo do papa, o papa o aceita, e isso é o que importa.
Eles tinham razão. O papa procurava uma aliança com Nápoles, e era por esse motivo que o casamento tinha sido arranjado. Mas suponhamos que chegasse um momento em que o papa mudasse de ideia quanto a Nápoles e já não considerasse que o casamento poderia trazer-lhe vantagem?
Ela ficara sabendo que Giovanni Sforza tinha perdido o prestígio junto ao papa e estava sendo tratado de forma indigna nos círculos do Vaticano.
Mas aquilo era diferente. Sforza era homem, não muito atraente, não era simpático, e de uma natureza que não podia ser chamada de encantadora. Sanchia saberia como cuidar de si mesma, o que o pobre Giovanni Sforza não soubera fazer.
Por isso, resignara-se com o casamento e passara a gostar do garotinho que lhe tinham levado; participara das piadas irónicas a respeito do casamento, e tinham sido muitas, porque a corte toda sabia que ela tinha amantes e as pessoas não escondiam a graça que achavam ao pensar na sua experimentada e perfeita princesa com aquele menino.
Ele era um belo garotinho quando o levaram para ela. E quando eles tinham sido levados para a cama e ele ficara um pouco amedrontado por aqueles que tinham se agrupado em volta deles com suas piadas grosseiras e gestos indecentes, ela reagira a eles com dignidade; e quando ficara a sós com o marido, tomara-o nos braços, enxugara-lhe as lágrimas e dissera-lhe que não tivesse medo. Não havia coisa alguma com que ele devesse se preocupar.
Por ser Sanchia, ela ficara contente com um marido daqueles. Era muito fácil deixá-lo aos cuidados daquelas dedicadas damas enquanto recebia seus amantes.
Com Sanchia era assim. A vida seria sempre alegre. Os amantes entravam em sua vida e saíam; sua reputação era conhecida em toda a Itália; e ela acreditava serem poucos os homens que não ficariam encantados por tornarem-se amantes da senhora Sanchia.
E, assim, seguir para Roma para tornar-se membro daquela estranha família, sobre a qual eram muitos os rumores.
Em sua bagagem estavam os vestidos que iria usar quando visitasse o papa no Vaticano; lá estava o vestido com que iria fazer sua entrada. Ela precisava ficar bonita para isso porque, se fosse possível confiar nas notícias, contava com uma rival na pessoa da cunhada, Lucrécia.
Roma estava numa agitação febril. Durante a noite toda, os cidadãos se reuniram para formar alas nas ruas. Seria um cortejo brilhante; o povo estava certo disso, porque o filho caçula do papa estava levando a esposa para Roma, e um dos maiores dons dos Bórgias era a capacidade de organizar desfiles brilhantes.
No Vaticano, o papa esperava com evidente ansiedade. Percebia-se que estava distraído com relação a seus deveres, mas que estava profundamente interessado nos preparativos que estavam sendo feitos para a recepção de sua nora.
César também estava aguardando ansioso a chegada, embora não expressasse sua alegria tão abertamente quanto seu pai.
No palácio de Santa Maria in Pórtico, Lucrécia estava mais ansiosa do que ninguém, já que tinha um pouco de medo de tudo o que ouvira dizer sobre a cunhada.
Sanchia era bonita. Até que ponto? Lucrécia estudava-se nos espelhos, aflita. Seus cabelos estavam tão dourados como antes? Era uma pena Giulia praticamente não ser mais vista por ali; não estando mais nas boas graças, ela era uma visitante rara no Vaticano e em Santa Maria. Giulia teria proporcionado consolo num momento como aquele. Lucrécia estava cônscia de um leve sentimento de raiva, que era estranho à sua natureza, quando pensava em como César e seu pai falavam constantemente da senhora Sanchia.
"A mulher mais bonita da Itália!" Ela ouvira isso repetidas vezes. "Basta ela olhar para um homem e ele se torna seu escravo. Dizem que é feitiçaria."
Agora Lucrécia começava a conhecer a si mesma. Estava com inveja de Sanchia. Queria ser conhecida como a mulher mais bonita da Itália; queria que os homens olhassem para ela e se tornassem seus escravos; e estava ansiosa por ser suspeita de feitiçaria devido a seus poderes extraordinários.
E estava com ciúme... com um ciúme profundo, por causa da atenção que César e seu pai tinham dado àquela mulher.
Agora chegara o dia. Muito em breve, Sanchia de Aragón estaria seguindo a cavalo pela Via Ápia. Muito em breve, Lucrécia iria ver se os rumores tinham mentido.
Sentia-se vagamente infeliz. Não quisera ir ao encontro da cunhada, mas o pai insistira:
Mas é claro, minha adorada, que você tem de ir ao encontro dela. É o respeito devido à sua irmã. E que agradável quadro vocês irão compor... você com suas damas, ela com as dela. Vocês duas devem ser as criaturas mais adoráveis do país.
Ouvi dizer que ela é. O senhor não acha que ela vai me ofuscar?
O papa beliscou afetuosamente a face da filha, murmurando:
- Impossível! Impossível!
Mas seus olhos estavam brilhando e ela, que tinha observado a absorção dele por Giulia no início, sabia que seus pensamentos estavam com Sanchia, e não com a filha.
Lucrécia quis bater o pé, berrar para ele: "Vá o senhor ao encontro dela, já que está tão ansioso por sua chegada." Mas, por ser Lucrécia, limitou-se a baixar a cabeça e abafar seus sentimentos.
De modo que agora estava se preparando.
Ficou de pé em seus aposentos enquanto o vestido de brocado verde e dourado lhe era enfiado pela cabeça. Houve um murmúrio de admiração por parte de suas damas.
- Nunca, nunca, senhora, a senhora esteve tão bonita
- disseram-lhe.
- É, é - disse ela -, aqui nos aposentos, entre vocês todas que estão vestidas sem esplendor. Mas como ficarei quando nos encontrarmos na Porta de Latrão? Suponham que ela esteja vestida com um fausto maior. Como é que vou ficar, então, pois dizem que ela é a mulher mais bonita da Itália, e isso significa do mundo?
- Como pode ser isso, senhora, quando a senhora detém esse título?
Caracteristicamente, ela deixou-se ser contentada; e na verdade, quando se olhou vestindo verde e dourado, quando seus olhos viram a boina com penas que lhe caía tão bem, quando olhou para seus brilhantes cabelos dourados, ficou satisfeita. Ninguém tinha cabelos iguais aos dela, exceto Giulia, e Giulia já caíra das boas graças.
Sua comitiva estava pronta, e ela a escolhera com cuidado. Havia doze jovens em belos vestidos - não jovens bonitas, mas vestidos bonitos; não queria uma concorrência demasiada -, e os pajens usavam mantos de brocado vermelho e dourado.
Lucrécia não achava que estava indo receber uma cunhada, mas uma rival. Sabia que enquanto murmurasse palavras delicadas de boas-vindas, na verdade estaria pensando: será que ela é mais bonita do que eu? Será que meu pai e meu irmão vão dedicar toda a sua atenção a essa recém-chegada e esquecer Lucrécia?
Ao sol de maio, os séquitos dos cardeais estavam esperando por ela, todos esplendidamente vestidos, todos brilhando no ar claro; os embaixadores estavam presentes, e os guardas do palácio, a postos.
O povo manifestou sua admiração em voz alta quando Lucrécia e suas doze jovens apareceram. Não havia dúvida de que ela estava encantadora, os cabelos claros caindo em ondas sobre os ombros, por baixo da boina enfeitada de penas, o brocado verde e dourado cintilando de jóias. Mas quando elas se aproximaram da Porta de Latrão, Lucrécia viu a jovem que lhe provocara tantos pensamentos invejosos e percebeu que Sanchia era, de fato, uma rival formidável.
Cercada pelo séquito que, como princesa de Squillace, Sanchia levara consigo - seus alabardeiros e palafreneiros, suas damas e criados, seus escravos, seus bufões -, ela cavalgava com Goffredo ao lado.
Um rápido olhar foi suficiente para dizer a Lucrécia que Goffredo, embora tivesse crescido um pouco, ainda era um menino. As pessoas podiam admirar seus traços bonitos e seus belos cabelos castanho-avermelhados, mas seria para a mulher que cavalgava ao lado dele que todos os olhos estariam voltados.
Aquela era Sanchia, vestida solenemente de preto como Goffredo - para lembrar a todos os que os vissem que eles eram espanhóis. O vestido de Sanchia era pesadamente bordado, e as mangas eram largas; os cabelos azuis-negros caíam em ondas sobre os ombros, e os olhos, em contraste, eram de um azul brilhante.
De repente, o brocado verde e dourado pareceu coisa de criança - bonitinho, mas sem a elegância de um vestido espanhol preto bordado.
As sobrancelhas negras de Sanchia tinham sido um pouco arrancadas, de acordo com a moda, mas ainda eram abundantes, e seu rosto estava muito pintado; houve murmúrios, entre a multidão, de que ela parecia ter mais do que dezenove anos.
Seus modos eram régios e insolentes. Eram altaneiros, e no entanto havia, como sempre, aquela promessa em sua expressão para todo jovem bem-apessoado com quem seus olhos se cruzavam.
Lucrécia fizera seu cavalo parar em frente ao irmão e à cunhada, e as saudações trocadas foram afetivas o bastante para satisfazer a todos que os contemplavam.
Depois, eles viraram os cavalos e seguiram juntos para o Vaticano.
- Estou feliz por termos nos conhecido, afinal - disse Sanchia.
- Eu também estou - respondeu Lucrécia.,
- Estou certa de que seremos amigas.
- É o meu desejo ardente.
- Há muito tempo que venho querendo conhecer os membros de minha nova família.
- Especialmente César - acrescentou Goffredo. Sanchia tem feito perguntas intermináveis sobre o nosso irmão.
- Ele está ansioso por vê-la. Nós recebemos informações sobre você aqui em Roma.
Se estivesse sozinha com Lucrécia, Sanchia teria estourado numa gargalhada. Como não estava, disse:
- Soube de histórias sobre vocês todos. Que bonitos cabelos você tem, irmã!
- Devo dizer o mesmo dos seus.
- Nunca vi cabelos tão louros.
- Você agora irá vê-los com frequência. As mulheres de Roma estão mandando fazer perucas de seda, e nós as vemos andando pelas ruas com elas.
- Em sua homenagem, querida irmã.
- Em sua maioria, trata-se de cortesãs.
- A beleza é o ramo delas, e elas tentam ficar parecidas com você.
Lucrécia sorriu de leve, mas não conseguiu esconder a apreensão que aquela jovem lhe provocava. Não ouviu os sussurros por trás delas.
- A senhora Lucrécia não gosta de ter uma rival no Vaticano.
- E que rival!
Alexandre não conseguira esperar com os cardeais para receber o cortejo, como mandava a etiqueta. Ficara em uma sala que dava para a praça, olhando impaciente, tal era a sua ansiedade pela primeira visão daquela jovem que se dizia ser mais bonita do que qualquer outra mulher da Itália e tão desprendida com os seus favores quanto qualquer cortesã.
Agora, ao vê-la à frente do cortejo, e cavalgando a seu lado sua filha de cabelos dourados-cabelos cor de corvo e cabelos dourados -, a visão o deixou encantado. Como eram bonitas
- as duas! Que contraste, que delicioso contraste!
Precisava descer correndo para ficar em seu lugar para recebê-las quando chegassem. Era todo impaciência para abraçar a bela criatura.
Ficou sob a abóbada dourada, na qual estava retratada a história de ísis, enquanto esperava que a nora chegasse até ele. À sua volta estavam os cardeais, e Alexandre teve um momento de grande alegria. Deleitava-se com toda a pompa, a cerimónia, que como Santo Padre encontrava em todas as horas de sua vida diária; amava a vida; ela tinha para oferecer-lhe tudo aquilo pelo qual ele ansiava, e ele era um daqueles raros seres humanos que podiam sentir-se satisfeitos com cada momento à medida que este chegava. Era um homem feliz; e nunca se sentia mais feliz do que em momentos como aquele.
Ela agora estava se aproximando - bela, cabelos pretos, e muito ousada; os olhos estavam baixos, mas ela não conseguia esconder sua ousadia. Possuía toda a arrogância de uma mulher que sabe que é desejada; tinha todo o charme do seu sexo para um homem como ele.
Ele ficou numa excitação febril quando ela, com o pequeno Goffredo ao lado, ajoelhou-se para beijar-lhe a ponta dos pés.
Agora, ela recuara e os outros se adiantaram, aquelas suas damas - todas deliciosas, todas dignas de serem suas aias, pensou Alexandre. Ele estudou-as todas, e sentiu outra vez o prazer de tê-las junto de si.
Todos tinham tomado seus lugares; Goffredo estava de pé ao lado de César, e César estava com os olhos especulativos dirigidos para a mulher de seu irmão; e nos degraus do trono, ajoelhadas em duas almofadas vermelhas, estavam Lucrécia e Sanchia.
Ah, este é um momento feliz, pensou Alexandre; e desejou terminar logo com a cerimónia solene para que pudesse conversar com a nora, fazê-la rir, fazê-la compreender que, embora fosse seu sogro e chefe da Igreja, era um homem alegre e que sabia ser galante com as mulheres.
Um dos cardeais que observava virou-se para um outro e disse:
- Irmão e pai estão de olho na esposa de Goffredo. Um outro sussurrou:
- Todo mundo está de olho na esposa de Goffredo. A resposta veio:
- Escreva o que estou dizendo, a senhora Sanchia vai trazer encrenca para o Vaticano.
Sanchia entrou nos aposentos de Lucrécia, e com ela estavam três aias.
Lucrécia ficou um pouco assustada com a intrusão. Era domingo de Pentecostes, dois dias depois da chegada de Sanchia e Goffredo, e Lucrécia estava sendo vestida para a missa na catedral de São Pedro.
Sanchia começara ignorando todas as regras de etiqueta, e Lucrécia percebeu que ela estava decidida a se portar ali em Roma como se estivesse na corte relaxada de Nápoles.
O vestido de Sanchia era preto, mas ela nada tinha de recatada; os olhos azuis eram quase cínicos, pensou Lucrécia; era como se Sanchia estivesse fazendo planos, sutis planos secretos.
- E como vai a minha querida irmã hoje? - perguntou Sanchia. - Pronta para a cerimónia? Soube que vamos ouvir um prelado espanhol. - Fez uma careta. - Os prelados espanhóis tendem a ser superdevotos e, portanto, a fazer sermões longos demais.
- Mas temos de comparecer - explicou Lucrécia. Meu pai estará presente, e também todos os dignitários da corte papal. É um ato importante e...
- Ah, sim... ah, sim... temos de comparecer. Sanchia, envolvendo Lucrécia com um braço e puxando-a para um espelho, olhou para as duas imagens.
- Eu não pareço com alguém que está prestes a comparecer a uma missa solene, pareço? E, quando olho bem, nem você. Ah, Lucrécia, como você parece inocente com os seus belos olhos brilhantes e seus cabelos dourados! Mas você é inocente, Lucrécia? É?
Inocente quanto a quê? - perguntou Lucrécia.
Oh, à vida... ao que você quiser. Ah, Lucrécia, dentro dessa cabeça dourada acontecem pensamentos sobre os quais você nada diz. Você parece assustada. Mas eu tenho razão, não tenho? Uma pessoa tão bonita como você não pode estar tão afastada assim de... de tudo aquilo que torna o mundo interessante.
- Acho que não estou compreendendo.
- Então você é tão criança assim? E César? Ele estará nessa missa solene. Sabe, irmã, eu estava ansiosa por conhecer vocês todos, e você é a única pessoa com quem fiquei a sós até agora.
- Tem havido muitas cerimónias - murmurou Lucrécia, incerta quanto à jovem que era tão franca e que, portanto, dizia coisas que causavam embaraço e que teriam ficado muito melhor se não tivessem sido ditas.
- Ah, sim. Mais tarde vou conhecer vocês todos muito bem, sem dúvida. César não é exatamente como eu imaginava. Ele é bonito ao vivo, como dizem os rumores. Mas há algo estranho nele, um ressentimento sorumbático...
- Meu irmão queria ser um grande soldado.
- Entendo. Entendo. Ele não gosta muito das túnicas da Igreja.
Lucrécia, aflita, correu os olhos à sua volta.
- Isso é tudo-disse ela às suas aias.-Podem se retirar. Olhou para Sanchia, esperando que ela dispensasse as dela.
- Elas são minhas amigas - disse Sanchia. - Espero que sejam suas. Elas a admiram. Não admiram? - perguntou ao trio.
- Todas nós concordamos que a senhora Lucrécia é muito bonita - disse Loysella.
- Agora me fale sobre César - insistiu Sanchia. - Ele está agastado... é um homem muito agastado. Eu sei.
- César sempre acaba vencendo - disse Lucrécia. Ele sempre faz aquilo que se decide a fazer.
- Você gosta muito de seu irmão?
- É impossível não o admirar mais do que a qualquer outra pessoa sobre a Terra, já que ele é melhor do que todos os outros.
Sanchia deu um sorriso de quem compreendia. Agora, ela compreendia. Havia algo naqueles rumores que ouvira sobre os elos estranhos e apaixonados que existiam na família Bórgia.
Ela sabia que Lucrécia desconfiava dela, ciumenta porque temia que Sanchia pudesse atrair o papa e César a ponto de fazer com que eles insistissem menos na companhia de Lucrécia. Era uma situação nova, que atraía Sanchia.
Além disso, era reconfortante pensar que César Bórgia nem sempre tinha as coisas à sua moda. Ele odiava os hábitos da Igreja, mas era obrigado a usá-los, e era por isso que ela vira aquela raiva latente em seus olhos. Ela, como filha ilegítima do rei de Nápoles, obrigada a ocupar um lugar secundário em relação à sua meio-irmã, compreendia os sentimentos dele. Aquilo a aproximava mais de César, e a vulnerabilidade dele a intrigava.
Quando seguiram para a catedral de São Pedro, Sanchia sentia-se quase que imprudentemente alegre; passou o braço pelo de Lucrécia, num gesto carinhoso, enquanto as duas entravam na igreja. Como a cerimónia foi longa! Lá estava o Santo Padre, parecendo uma pessoa inteiramente diferente do pai jovial tão afetuoso no banquete da noite anterior. Ela tivera razão a respeito do prelado espanhol; seu sermão parecia não acabar.
- Estou cansada - sussurrou para Lucrécia.
O rosto pálido de Lucrécia ficou levemente rosado. A princesa de Nápoles parecia não compreender coisa alguma sobre como se portar durante uma cerimónia solene.
Lucrécia nada disse.
Será que esse homem não vai acabar nunca?
Loysella abafou um muxoxo, e Bernardina sussurrou: Pelo amor dos santos, senhora, fique quieta!
- Mas é muito demorado para se ficar de pé-reclamou Sanchia. - Por que não devemos ficar sentadas? Olhe, há reservados vazios.
Lucrécia disse, num sussurro agoniado:
- Eles são para os cónegos, quando cantam o evangelho.
- Agora serão para nós - disse Sanchia.
Várias cabeças tinham-se virado por causa das vozes sussurrantes, de modo que muita gente viu aquela bela jovem entrar nos reservados com um farfalhar de seda e exibição de pernas muito bem-feitas. Loysella, Francesca e Bernardina, que seguiam a senhora em tudo, não hesitaram. Para onde Sanchia foi, lá foram elas.
Lucrécia, observando-as por um segundo, percebeu uma agitação que crescia dentro de si. Sabia que aquelas jovens levavam vidas agitadas, e ela mesma ansiava pelo tipo de aventuras que sabia que elas tinham; queria identificar-se com elas.
Sem hesitação, foi atrás, subindo para os reservados, sentando-se ao lado delas com um farfalhar de roupas, tendo nos lábios um sorriso travesso fora do comum, a risada surgindo dentro dela.
Elas tinham se instalado nos bancos, e Sanchia dera ao seu rosto uma expressão de piedade fingida. Loysella abaixou a cabeça depressa para esconder a hilaridade, e Lucrécia precisou de toda a sua força de vontade para evitar cair em gargalhadas histéricas.
Elas haviam chocado a corte papal.
Nunca, reclamaram os cardeais, se vira aquele tipo de comportamento em uma missa solene. A mulher de Nápoles, era evidente, não passava de uma prostituta da corte. Os olhares que ela distribuía confirmavam a reputação que a precedera.
Girolamo Savonarola declamou, durante muito tempo e em voz alta, do púlpito de San Marco em Florença, que a corte papal era uma desgraça para o mundo, e que as mulheres do papa comportavam-se com grande impropriedade e eram a desgraça e o escândalo do povo.
Os cardeais aproximaram-se do Santo Padre para sondálo.
- Vossa Santidade deve ter tido uma grande tristeza disse um deles. - O espetáculo do comportamento daquelas jovens durante as cerimónias da festa de Pentecostes deixou horrorizados todos aqueles que o viram.
- É mesmo? - disse Alexandre. - Percebi muito olho brilhando ao se voltar na direção delas.
- De desagrado, Santidade.
- Eu não vi desagrado algum, mas um certo prazer. Os cardeais ficaram sérios.
- Vossa Santidade, sem dúvida, irá tratar da forma adequada as ofensoras?
- Ora vamos, vamos, que ofensa existe nas travessuras de garotas? As jovens são, por natureza, muito animadas. Eu, por exemplo, não iria querê-las de outro modo. E quem, dentre os senhores, não ficou um tanto enfadado pelo nosso digno pregador?
- Mesmo assim, trazer os modos de Nápoles para Roma!
O papa sacudiu a cabeça, num gesto apaziguador. Iria falar com as jovens.
Falou. Passou um braço em torno de Sanchia e outro em torno de Lucrécia e assumiu uma expressão de falsa reprimenda. Beijou-as ternamente e dirigiu um sorriso benigno a Loysella, Bernardina e Francesca, que estavam de pé à sua frente, as cabeças abaixadas - mas não tanto a ponto de impedir que de vez em quando erguessem os olhos para o Santo Padre.
Vocês chocaram a comunidade - disse ele -, e se não fossem tão bonitas eu seria forçado a repreendê-las e, assim, tenho certeza, a deixá-las tão enfaradas quanto as deixou o seu prelado espanhol.
Mas, Santíssimo Senhor, o senhor compreende - disse Sanchia, olhando para ele por baixo de suas negras pestanas, com aqueles olhos de um azul sem igual.
- Compreendo isso - disse o papa, dirigindo a ela um olhar apaixonado. - Tenho o maior prazer do mundo ao ver tanta animação e beleza em minha corte; e se eu as olhasse com qualquer expressão de censura, seria o homem mais ingrato sobre a Terra.
Diante disso todos riram, e Sanchia disse que elas iriam cantar para ele, pois ele era não apenas o seu Santo Padre, mas o ser que elas adoravam muito.
E assim Sanchia cantou acompanhada pelo alaúde de Lucrécia, e as jovens o cercaram, Loysella, Bernardina, Francesca em tamboretes aos pés dele, erguendo olhos inquisidores e admiradores, enquanto Sanchia e Lucrécia recostavam-se nos seus joelhos.
Repreender aquelas adoráveis criaturas!, pensou Alexandre. Nunca! Suas pequenas travessuras só podiam distrair um pai tão benevolente assim.
Naquela noite, Sanchia dançou com César. Os olhos dele estavam fixos nos dela e ela estava cônscia daquele ressentimento latente contra o mundo que também a atacara. Ela era de um temperamento diferente, e fora por causa disso que pudera não ligar para os desprezos e desfrutar a vida. Mas havia um elo entre eles.
Apesar de todas as demonstrações de afeto, o papa não dera a ela a posição na corte papal pela qual ansiava. Era apenas a esposa de Goffredo, que por sua vez se suspeitava ter um outro pai que não Alexandre; teria sido diferente se ela tivesse sido mulher de César.
Mas a sua natureza sensual tornava-lhe possível esquecer tudo o mais na busca da satisfação sexual. Aquela satisfação dominava a sua vida. O mesmo não acontecia com César. Ele ansiava pelos prazeres carnais, mas tinha outros desejos tão insistentes quanto os outros. Seu amor pelo poder era maior do que o seu desejo pelas mulheres.
Ela, que conhecera tantos homens a ponto de analisá-los com facilidade, estava ciente disso, e decidiu naquele momento fazer com que César esquecesse a ambição e corresse atrás dela. Os dois eram experientes, e iriam sentir um grande prazer em surpreender um ao outro com as suas realizações. Cada qual estava ciente disso enquanto dançavam; e cada qual perguntava: por que adiar mais? Adiamento era uma coisa que nenhum dos dois iria tolerar.
- Você é tudo que ouvi dizer que era - disse Sanchia a ele.
- Você é tudo o que eu esperava que fosse - respondeu ele.
- Eu me perguntava quando você e eu conseguiríamos conversar juntos. Esta é a primeira vez que isso acontece, e agora todos os olhares estão fixos em nós.
- Tinha razão - disse César - quem disse que você era a mulher mais bonita do mundo.
- Tinha razão quem disse que havia algo de amedrontador em você.
- Você me acha amedrontador? Ela riu.
- Nenhum homem me amedronta.
- Eles sempre foram muito delicados?
- Sempre - disse ela. - Desde que aprendi a falar, os homens têm sido delicados comigo.
- Você não desconfia do meu sexo, já que o conhece tão bem?
- Cada homem é diferente de todos os demais. Foi o que descobri. Talvez seja por isso que sempre descobri que eles são muito fascinantes. E nenhum dos que eu conheci se parece de longe com você, César Bórgia; você é um caso à parte.
E você gosta desse aspecto estranho que há em mim?
Gosto tanto que desejaria conhecê-lo bastante a ponto de que ele deixasse de ser estranho e passasse a ser-me familiar. Que histórias ouviu a meu respeito?
- Que você é um homem que não admite que neguem um pedido seu, que homens têm medo do seu franzir de testa, e que quando você chama uma mulher com um gesto ela tem de obedecer, por medo, se não por desejo. Ouvi dizer que aqueles que o desagradam têm um destino infausto, que alguns têm sido descobertos em becos, sufocados ou com facas no corpo. Ouvi dizer que algumas pessoas tomaram vinho à sua mesa e sentiram-se apenas um pouco tontas, para saber depois que estavam morrendo. São essas as coisas que ouvi a seu respeito, César Bórgia. O que foi que você ouviu dizer a meu respeito?
- Que você pratica feitiçaria, de modo que todos os homens que você deseja caem sob os seus encantos, e que depois de ser seu amante ninguém consegue esquecê-la jamais.
- E você acredita nessas histórias sobre mim?
- E você acredita nas histórias sobre mim?
Ela olhou nos olhos dele e a chama do desejo nos dela tinha a mesma intensidade da que havia nos dele.
- Não sei-disse ela -, mas estou decidida a descobrir.
- E eu tampouco - respondeu ele - e acho que estou tão ansioso por fazer minhas descobertas quanto você.
A mão dele apertou mais a dela.
- Sanchia - disse ele-, esta noite? E ela fechou os olhos e sacudiu a cabeça.
Eles estavam sendo observados.
O papa sorriu com afeição. Era inevitável. Como poderia ser de outra maneira? César e Sanchia! Eles combinavam bem, e, a partir do momento em que César ouvira falar nela, decidira que seria assim.
Agora vamos ter os enfadonhos maledicentes sussurrando, refletiu Alexandre, agora teremos os cardeais erguendo mãos e vozes chocadas; e Savonarola estará vociferando de seu púlpito sobre a depravação que acontece na corte papal.
O papa suspirou, com uma ligeira inveja do filho, rindo com ironia para si mesmo; ele iria exigir que César lhe fizesse uma narrativa completa do caso.
Goffredo observava, encantado. Como os dois ficavam bonitos, juntos! Minha mulher e meu irmão. Eles são as duas pessoas mais distintas do salão. Todos os observam. E cada um deles acha o outro encantador.
César, o grande César, ficará agradecido por eu ter-lhe trazido Sanchia. E Sanchia, ela está evidentemente encantada por ter conhecido César. Todos os seus amantes devem parecer muito inferiores quando ela os compara com ele!
Lucrécia observava.
Então, pensava ela, a mulher de Goffredo agora está decidida a ter César como amante. Ela sabe como atraí-lo, como agradá-lo.
Lucrécia quis enterrar o rosto nas mãos e chorar; e desejou fervorosamente que Sanchia nunca tivesse ido para Roma.
Eles estavam deitados na cama de Sanchia.
Sanchia estava sorrindo, olhando de lado para o amante. É verdade, pensou ela, exultante, ele é diferente de todos os outros homens. Tem a virilidade de dois homens; é experiente e, no entanto, ansioso por descobrir; é ardente e, no entanto, distante, apaixonado, frio. Em toda a sua experiência, ela nunca encontrara um amante como César Bórgia.
Ela voltou-se para ele e disse, languidamente:
- Eles deviam ter me casado com você... e não com Goffredo.
Ela viu a mudança ir acontecendo no rosto dele; a frouxa sensualidade desapareceu, e em seu lugar ficou uma súbita raiva, tão intensa que a deixou chocada, mesmo em seu estado de indolência.
Ele cerrou os punhos e ela percebeu que ele estava lutando consigo mesmo para conter a raiva.
- Meu pai achou melhor mandar-me para a Igreja disse.
- Isso é incompreensível - respondeu ela, apaziguadora, e colocou a mão no braço dele, para puxá-lo para si, uma vez mais para provocar o desejo.
Mas ele não queria deixar que a sedução atenuasse sua raiva.
- Tenho dois irmãos, e no entanto fui eu o escolhido disse.
- Você será papa - disse ela - e isso não precisa impedir que desfrute de aventuras como esta, César.
- Eu quero comandar os exércitos - disse ele. Quero ter filhos... filhos legítimos. Quero desfazer-me de meu hábito de cardeal. Eu o desprezo, como desprezo tudo que seja ligado a ele.
Ela sentou-se na cama, os compridos cabelos caindo em torno de sua nudez. Seus olhos azuis brilhavam. Ela agora queria afastá-lo da raiva, levá-lo de volta ao ato amoroso. Era um desafio. Será que a raiva é mais importante para ele do que eu? Que tipo de homem é este, para falar de suas ambições enquanto está deitado na cama comigo?
Ela segurou-lhe as mãos e sorriu para ele.
- Não tenho dúvidas de que tudo aquilo que você deseja será seu, César Bórgia.
- Você é feiticeira? - perguntou ele.
Ela confirmou com a cabeça lentamente e riu, mostrando a língua vermelha.
- Eu sou uma feiticeira, César Bórgia, e uma coisa eu lhe prometo... o uniforme de soldado, uma esposa e filhos legítimos.
Ele estava olhando para ela fixamente; pelo menos ela focalizara a atenção dele nela, ainda que fosse o possível poder da profecia, e não o seu corpo, que o atraísse.
Os olhos dela estavam arregalados.
- Um dos membros da família tem de entrar para a Igreja - prosseguiu ela. - Deveria ter sido o pequeno Goffredo. Por que não Goffredo?
Ele se ajoelhou na cama ao lado dela; segurou-a pelos ombros e olhou nos vibrantes olhos azuis.
- É - disse ela. - Eis a solução. Deveria haver um divórcio. O pequeno Goffredo deveria usar as túnicas de cardeal e Sanchia e César deveriam ser marido e mulher.
- Pelos santos! - bradou César. - É um bom plano. Então, agarrou-a e beijou-a com fúria.
Ela riu.
- Espero que meu senhor não goste menos de mim porque um dia poderei ser sua esposa. Dizem que os cavalheiros de Roma acham as amantes que eles mesmos arranjam mais interessantes do que as esposas que são arranjadas para eles.
- Pare! - disse ele, arrebatado.
- Primeiro - bradou ela - você tem de declarar que quer ser meu marido...
Ela caiu de volta na cama, e os dois se embolaram por uns instantes.
- César - murmurou ela, em êxtase -, você tem a força de dez homens.
Lucrécia pediu uma audiência com o pai.
Alexandre estudou a filha, ansioso. Ela estava pálida e parecia triste.
- O que é, minha adorada? - perguntou ele.
Ela baixou os olhos. Odiava mentir para ele, mas não tinha forças para dizer-lhe a verdade.
- Não me sinto bem, querido pai - disse. - Há peste no ar de Roma, e acho que isso me afeta. Nos últimos dias e noites, tenho tido uma febre ligeira.
As frias mãos dele, cobertas de jóias, estavam na testa de Lucrécia.
- Minha abençoada - murmurou ele.
- Eu rogo o seu perdão-disse Lucrécia-porque vou pedir uma coisa que sei que o senhor não ficará ansioso por me conceder. Sinto que preciso de uma mudança de ares, e gostaria de ir passar um curto período em Pesaro.
Fez-se silêncio.
O marido dela estaria lá, pensou o papa; e ele estava ficando cada vez menos satisfeito com o casamento da filha. Mas Lucrécia estava adoentada, e ele queria muito fazê-la feliz.
Ela deixou que seus olhos pousassem na almofada de veludo vermelho em que estava ajoelhada.
Sentia que era uma jovem estranhamente perplexa, que não compreendia a si mesma. Odiava Sanchia-Sanchia com os brilhantes olhos azuis, a risada entusiástica e o profundo, profundo conhecimento.
Sanchia tratava Lucrécia como uma criança, e Lucrécia sabia que em assuntos mundanos ela continuaria uma criança enquanto não entendesse suas emoções. Sabia apenas que não podia suportar ver Sanchia e César juntos; que odiava a complacência de Goffredo, os muxoxos daquelas três mulheres que serviam a Sanchia.
Ela pensara muito em Pesaro nas últimas semanas, quando fora aos aposentos de Sanchia porque sabia que César estaria lá e que se não fosse não conseguiria vê-lo naquele dia.
Pesaro, aquela tranquila cidadezinha com os morros formando um semicírculo em torno e o mar azul batendo em suas costas, Pesaro, onde ela podia viver com o marido e portar-se como uma esposa normal. Em Pesaro, ela sentia ser uma mulher igual às outras, e era isso que queria ser.
Os dedos do pai acariciavam seus cabelos; ela ouviu a voz dele, muito delicada e terna, como se ele compreendesse:
- Minha adorada, se é do seu desejo ir para Pesaro, para Pesaro você irá.
Alexandre encontrou-se com o filho nos aposentos papais.
- Tenho novidades para você, César - disse ele. Alexandre estava constrangido, mas a notícia tinha de ser dada logo, e César estava muito envolvido em um caso de amor com Sanchia que estava se mostrando muito empolgante. Disso Alexandre não tinha dúvidas. Portanto, com César satisfeito, aquele era o momento de dizer a ele aquilo que há muito queria dizer e que não podia ser escondido por muito mais tempo.
César respondeu:
- Sim, Santíssimo Padre?
- Giovanni está voltando para cá.
Alexandre passou logo o braço pelo do filho; não queria ver o sangue invadir as faces de César; não queria ver o irado vermelho em seus olhos.
- Sim, sim - disse Alexandre, caminhando em direção àjanela, puxando gentilmente César consigo. - Estou ficando velho e serei um homem feliz tendo a família toda à minha volta uma vez mais.
César ficou calado.
Ainda não havia necessidade, pensou Alexandre, de dizer a César que Giovanni estava sendo levado de volta para realizar uma campanha contra os Orsini, que precisavam ser punidos por passarem para o lado dos franceses sem uma luta sequer, durante a invasão. Não era preciso dizer: "Quando Giovanni chegar, vou fazer dele comandante das forças papais." César teria de saber... porém mais tarde.
Quando ele voltar- disse Alexandre alegremente -, teremos de chamar a pequena Lucrécia de volta. Estou ansioso pelo dia em que terei todos os membros de minha adorada família sentados à minha mesa, para que eu possa contemplálos com alegria.
César não respondeu. Seus dedos contorciam-se enquanto ele puxava a sua túnica de cardeal. Não estava vendo a praça do outro lado da janela; não percebia Alexandre, de pé a seu lado.
Tudo em que podia pensar era que Giovanni, o invejado,
o odiado, estava voltando para casa.
Os dois irmãos encontraram-se na Porta Portuense. César, como insistiam seu pai e a tradição, partiu à frente daquele cortejo que era composto dos cardeais e de suas magníficas equipes, para receber o irmão que ele odiava mais do que qualquer outra coisa no mundo.
Os dois se encararam. Giovanni mudara pouco desde que fora para a Espanha. Estava mais arrogante, mais deslumbrante, e as linhas de crueldade em torno da boca haviam se aprofundado. A dissipação marcara sua fisionomia, mas ele ainda era muito bonito. Seu traje era mais vistoso do que qualquer outra coisa que César o vira vestir antes. A capa de veludo vermelho estava adornada com pérolas, e a faixa na cintura, do mesmo tecido, em um leve tom de marrom, estava em fogo, de tantas pérolas e jóias brilhantes de todas as cores. Até o cavalo ficava brilhante com ornamentos dourados e sinos prateados. Giovanni era uma visão deslumbrante ao entrar na cidade de Roma, e os cidadãos ficaram impressionados ao vê-lo.
Enquanto cavalgavam lado a lado para o Palácio Apostólico, que seria a residência do duque, Giovanni não podia deixar de lançar olhares irónicos ao irmão, fazendo com que ele ficasse plenamente cônscio da inimizade que havia entre eles; agora que era um ilustre duque com um filho homem e outra criança esperada para breve, agora que voltava a pedido do pai, para comandar as forças do pai, Giovanni percebia que a inveja de César não deveria ter diminuído um mínimo sequer.
O papa não conteve a alegria ao ver o filho que mais amava.
Abraçou-o e chorou, enquanto César ficou olhando, em pé, afastado, cerrando os punhos e rangendo os dentes, dizendo para si mesmo: Por que tem de ser assim? O que é que ele tem que eu não tenho?
Alexandre, olhando para César, adivinhou o que ele sentia e, como soubesse que César deveria ficar ainda mais zangado quando compreendesse plenamente a glória que caberia a Giovanni, estendeu a mão para César e disse, com ternura:
- Meus dois filhos! Hoje em dia, é raro eu sentir o prazer de ter vocês dois junto a mim ao mesmo tempo.
Quando César ignorou a mão e caminhou até a janela, Alexandre ficou aflito. Era a primeira vez que César o recusara abertamente, e o fato de ter acontecido em presença de uma terceira pessoa era duplamente perturbador. Decidiu que a melhor coisa a fazer era ignorar o gesto.
César disse, sem virar a cabeça:
- Há multidões lá embaixo. Elas esperam, na esperança de ver um pouco mais o magnífico duque de Gandia.
Giovanni caminhou até a janela; voltou-se para César, com aquele sorriso insolente.
- Elas não ficarão desapontadas - disse, baixando os olhos para suas vestes cheias de jóias e depois olhando outra vez para César. - É uma pena - prosseguiu ele - que os trajes relativamente tristes da Igreja sejam tudo o que você tem para mostrar-lhes, irmão.
- Então você compreende - respondeu César, indiferente - que não é o duque que eles aplaudem, mas o gibão cheio de jóias do duque.
Alexandre insinuara-se entre eles, passando um braço em torno de cada um.
- Você vai querer conhecer a esposa de Goffredo, meu caro Giovanni - disse ele.
Giovanni soltou uma risada.
- Ouvi falar nela. Sua fama chegou até a Espanha. Alguns de meus parentes mais pudicos falam o nome dela em sussurros.
O papa soltou uma gargalhada.
- Nós somos mais tolerantes em Roma, não, César? Giovanni olhou para o irmão.
- Ouvi dizer que Sanchia de Aragón é uma mulher generosa - disse. - Tão generosa, de fato, que tudo o que ela tem a dar não pode ser dado a um único marido.
- O nosso César, aqui, é um sujeito fascinante - disse Alexandre, em tom conciliador.
- Eu não tenho dúvida - disse Giovanni, rindo. Havia determinação em seus olhos. César estava olhando para ele com ar de desafio, e sempre que um desafio era feito por um irmão ao outro, era aceito.
Giovanni Sforza seguia para Pesaro.
Sentia-se muito grato por estar em sua cidade. Estava muito cansado dos conflitos que estouravam à sua volta. Em Nápoles, era tratado como um estranho, o que ele era; desconfiavam de que agisse como um espião para os milaneses, o que fizera. O último ano nada trouxera para melhorar o conceito que fazia de si mesmo. Estava com mais medo, e de mais gente, do que jamais na vida.
Só por trás dos montes de Pesaro ele poderia ficar em paz. Deixou-se levar por um agradável sonho acordado enquanto cavalgava para casa. O sonho era sobre ir até Roma, apanhar sua mulher e levá-la consigo para Pesaro - desafiando o papa e o irmão, César. Ouviu a si mesmo dizendo: "Ela é minha mulher. Tentem tirá-la de mim, se tiverem coragem!"
Mas eram sonhos. Como se fosse possível dizer coisas assim ao papa e a César Bórgia! A tolerância que o papa demonstraria para com alguém que ele acreditasse ter perdido o juízo, o desprezo de César por alguém que ele sabia ser um covarde e se fazia passar por valente - eram mais do que Giovanni Sforza podia suportar.
Por isso, só podia sonhar.
Cavalgou devagar pela margem do rio Foglia, sem ter pressa agora que Pesaro estava à vista. Quando chegasse em casa, iria achá-la triste; A vida não seria a mesma que tinha sido durante aqueles meses em que vivera ali com Lucrécia.
Lucrécia! A princípio, naqueles meses antes de o casamento ser consumado, ela parecera apenas uma menina tímida e confusa. Mas ele descobrira que ela era muito diferente! Queria levá-la embora, torná-la sua por completo e livrá-la aos poucos de tudo o que ela herdara de sua estranha família.
Ele podia ver o castelo - forte, aparentemente inexpugnável.
Ali, pensou, eu poderia viver com Lucrécia, feliz, seguro, todos os dias de nossas vidas. Teríamos filhos e encontraríamos a paz no nosso baluarte entre as montanhas e o mar.
Os criados estavam saindo correndo para recebê-lo.
- Nosso patrão voltou para casa.
Ele sentiu-se ilustre e importante, ele, senhor de Pesaro, enquanto avançava. Pesaro poderia ter sido um grande domínio; aquelas poucas pessoas poderiam ter sido uma multidão.
Ele aceitou a homenagem, desmontou e entrou no palácio.
Foi uma estonteante manifestação do seu sonho, porque ela ali estava, o sol brilhando em seus cabelos dourados que lhe caíam soltos pelos ombros e fazendo brilhar as poucas jóias discretas que ela usava - como condizia à senhora de um castelo menor.
- Lucrécia! - bradou ele.
Ela sorriu aquele sorriso fascinante que ainda tinha uma qualidade infantil.
- Giovanni - respondeu ela -, eu estava cansada de Roma. Vim para Pesaro a fim de poder estar aqui para recebê-lo quando você voltasse.
Ele colocou as mãos nos ombros dela e beijou-lhe a testa, depois as faces, antes de tocar-lhe de leve os lábios com os seus.
Naquele momento, ele acreditou que o Giovanni Sforza que ele vira nos sonhos poderia existir na realidade.
Mas Giovanni Sforza não conseguia acreditar em sua felicidade. Tinha de se torturar - e torturar Lucrécia.
Estava sempre descobrindo novos ornamentos em suas caixas de jóias.
- E de onde veio esse penduricalho? - perguntava.
- Meu pai me deu - era invariavelmente a resposta. Ou: - É um presente do meu irmão.
Então, Giovanni atirava a jóia de volta para a caixa, saía do quarto ou olhava para Lucrécia com um olhar furioso.
- O comportamento na corte papal está chocando o mundo! - declarou ele. - Ficou pior depois que a mulher de Nápoles chegou.
Aquilo deixava Lucrécia triste; ela pensava em Sanchia e César juntos, no encanto de Goffredo pelo fato de sua mulher agradar tanto ao irmão, no deleite de Alexandre e no ciúme que ela, Lucrécia, sentia.
Nós somos, mesmo, uma família estranha, pensou.
Ela ficava olhando para o mar, e em seus olhos havia uma esperança, uma esperança de que pudesse ajustar-se aos padrões de bondade estabelecidos por homens como Savonarola, de que pudesse viver tranquilamente com o marido em sua fortaleza entre as montanhas, de que pudesse dominar aquele desejo de estar com sua perturbadora família.
Mas, embora Giovanni não tivesse ajuda alguma para lhe dar, e só lhe fizesse reprimendas contínuas, estava decidida a ser paciente; por isso, ouvia calada suas explosões de raiva e só tentava levemente convencê-lo de sua inocência. E havia ocasiões em que Giovanni se atirava a seus pés e declarava que no íntimo ela era boa e ele era um bruto por estar sempre ralhando com ela. Ele não podia explicar a ela que sempre se considerara uma pobre criatura, desprezado por todos, e que a conduta da família dela e os rumores relativos a eles faziam com que ele parecesse mais pobre ainda, mais desprezível ainda.
Havia momentos em que ela pensava: Já não consigo suportar mais isso. Talvez eu me esconda em um convento. Lá, na solidão de uma cela, eu poderia começar a compreender a mim mesma, descobrir um modo de fugir de tudo de que sei que devo fugir.
No entanto, como é que poderia suportar a vida em um convento? Quando chegavam cartas de seu pai, seu coração disparava e as mãos tremiam quando as segurava. Ler o que ele escrevera fazia-a sentir como se ele estivesse ao seu lado, falando com ela; e então percebia o quanto era feliz quando era amada pela família e que só então poderia sentir-se inteiramente satisfeita.
Precisava encontrar uma compensação para aquele amor avassalador que dedicava à família. Um convento seria a resposta?
Alexandre implorava sua volta. Seu irmão Giovanni, salientava ele, estava em Roma, ainda mais bonito, mais charmoso do que quando partira. Todo dia, perguntava pela adorada irmã e quando ela iria voltar. Lucrécia tinha de voltar imediatamente.
Ela escrevia dizendo que o marido queria que ela ficasse em Pesaro, onde ele tinha certos deveres.
A resposta veio de imediato.
Seu irmão Giovanni estava para partir em uma campanha militar que seria dirigida primeiro contra os Orsini, e que estava programada para subjugar, depois, todos os barões que se tinham mostrado impotentes contra o invasor. As ricas terras e possessões daqueles barões cairiam nas mãos do papa.
Lucrécia sabia que aquele era o primeiro passo naquele caminho que há muito tempo Alexandre planejara seguir.
Agora, o seu querido genro, Giovanni Sforza, podia mostrar sua têmpera e conquistar grandes honrarias. Ele deveria reunir suas forças e juntar-se ao duque de Gandia. Lucrécia não iria querer continuar em Pesaro sozinha, e assim deveria voltar para Roma, onde sua família iria preparar uma grande recepção para ela.
Quando Giovanni Sforza leu aquela carta, ficou furioso.
- O que é que eu sou? - bradou. - Nada mais do que uma peça num tabuleiro de damas, para ser mexida para cá e para lá. Eu não me juntarei ao duque de Gandia. Tenho meus deveres aqui.
E assim ele vociferou e esbravejou em frente a Lucrécia, mas sabia-e ela também-que ele vivia com medo do papa.
No entanto, naquela ocasião ele decidiu tentar um meio-termo. Reuniu seus soldados, mas, em vez de partir com eles, escreveu ao papa e explicou que seus deveres em seu domínio impediam que ele se ausentasse naquele momento.
Ele e Lucrécia esperaram pela ordem para que obedecessem, pelas expressões de irada censura.
Houve um longo silêncio; então, chegou do Vaticano uma resposta apaziguadora. Sua Santidade compreendia plenamente os motivos de Giovanni Sforza; já não insistia para que ele se unisse ao duque de Gandia. Ao mesmo tempo, gostaria de lembrar ao genro que fazia muito tempo que não o via em Roma, e que teria o máximo de prazer em abraçar Giovanni e Lucrécia uma vez mais.
A carta deixou Lucrécia muito contente.
- Eu tinha medo - disse ela ao marido - que sua recusa a se juntar ao meu irmão deixasse meu pai irritado. Mas como ele é benevolente! Ele compreende, sabe?
- Quanto maior a benevolência de seu pai, mais eu tenho medo dele - resmungou Giovanni.
- Você não o compreende. Ele o ama. Ele nos quer em Roma.
Ele quer que você vá para Roma. Eu não sei o que ele quer de mim.
E Lucrécia olhou para o marido e teve um tremor imperceptível. Havia momentos em que sentia que não havia como escapar do destino que sua família estava preparando para ela.
César raramente se sentira tão feliz na vida como agora.
Seu irmão Giovanni estava ajudando a provar tudo aquilo que ele, César, se esforçara tanto para fazer com que o pai percebesse. Como ficara irritado naquela cerimónia em que Giovanni tinha recebido o estandarte, ricamente bordado, e a espada, ricamente ornada de jóias, de capitão geral da Igreja! Como a fúria tomara conta dele ao ver os olhos de seu pai brilhando de orgulho enquanto contemplava o filho favorito!
"Louco!", quisera gritar. "Não está vendo que ele vai trazer desgraça para seus exércitos e para o nome dos Bórgia?"
E as profecias de César estavam se tornando realidade. Era isso que lhe dava aquele grande prazer. Agora, sem dúvida o pai teria de perceber a loucura de dar ao filho Giovanni honras militares que ele não podia preservar, e a crassa estupidez de impedir que o bravo e ousado César assumisse o comando que, pela loucura de um pai extremoso, tinha sido dado a Giovanni.
Estava tudo a favor de Giovanni. A riqueza e o poder do papa estavam por trás dele. O grande capitão Virgínio Orsini ainda estava preso em Nápoles e não podia participar da defesa da família. Para qualquer pessoa com um mínimo de conhecimento militar - era o raciocínio de César -, a campanha devia ter sido rápida e vitoriosa.
E a princípio parecera que seria assim, porque, com Virgínio preso, os Orsini pareciam não ter estímulo para lutar, e um a um renderam-se às forças de Giovanni, como tinham se rendido aos franceses. Um castelo atrás do outro abriu as portas, e neles entrou o conquistador sem o derramamento de uma só gota de sangue.
No Vaticano, o papa comemorou; mesmo na presença de César, sabendo o quanto aquilo era irritante para seu filho mais velho, ele não conseguia esconder o orgulho.
Foi por isso que o novo rumo dos acontecimentos foi tão prazeroso para César.
O clã dos Orsini não estava dominado com tanta facilidade quanto acreditaram o impetuoso jovem duque de Gandia e seu extremoso pai. Ele se reunira em plena força no castelo da família em Bracciano, sob a liderança da irmã de Virgínio. Bartolommea Orsini era uma mulher valente. Fora criada segundo uma tradição militar e não iria submeter-se sem lutar. Nisso, foi ajudada pelo marido e por outros membros da família.
Giovanni Bórgia ficou assustado ao encontrar resistência. Não tinha experiência alguma de guerra, e seus métodos de romper o cerco em Bracciano pareceram, aos guerreiros experientes de ambos os lados, infantis e tolos. Não estava com vontade de lutar, porque era um soldado que tinha mais afeição por uma espada incrustada de jóias e pelo bastão branco do cargo do que por uma batalha. Portanto, enviou mensagens aos defensores do castelo, primeiro usando de sua lábia, e depois ameaçando, dizendo-lhes que o plano mais inteligente seria se renderem. Acampar do lado de fora do castelo era desconfortável; o tempo estava ruim; e os belos trajes de Giovanni não eram adequados para isso. Seu capitão mais capaz, Guidobaldo de Montefeltro, duque de Urbino, estava gravemente ferido e fora obrigado a se retirar, o que significava que Giovanni perdera seu melhor assessor.
O tempo passava, e Giovanni continuava do lado de fora da fortaleza de Bracciano. Estava cansado da guerra, e ouvira dizer que a Itália inteira ria do comandante das forças do papa, e além do mais imaginava o quanto seu irmão estava gostando daquela mudança de rumo.
O povo de Roma sussurrava sobre o grande capitão: "Como é que ele está se saindo agora? Está com a aparência tão deslumbrante que tinha quando partiu? A chuva e o vento não farão bem a todo aquele veludo e brocado."
Alexandre estava dominado pela angústia, e declarara que venderia sua tiara, se necessário, para levar a guerra a uma conclusão satisfatória. Não suportava a companhia do filho mais moço, porque César não tentava esconder seu deleite pelo rumo que as coisas estavam tomando. Aquele ódio de irmão por irmão, pensava Alexandre, era uma loucura de primeira ordem. Será que César e Giovanni ainda não tinham aprendido que a força estava na união?
César estava com ele quando chegou a notícia de que Giovanni ainda estava aguardando do lado de fora do castelo e de que Urbino tinha sido ferido.
Ele observou o sangue vermelho subir ao rosto do pai e, enquanto ficou ali, exultando, Alexandre oscilou e teria caído se César não tivesse corrido para segurá-lo.
Olhando para o pai, cujo rosto estava escuro com o fluxo de sangue, o branco dos olhos injetados de vermelho e as veias salientes nas têmporas, César sentiu um súbito e terrível medo de um futuro no qual não houvesse um Alexandre para proteger a família. Foi então que percebeu o quanto deviam àquele homem - aquele homem que até então tinha sido famoso pela vitalidade, aquele homem que, sem dúvida, devia ser um verdadeiro génio.
- Papai! - bradou César, horrorizado. - Oh meu pai adorado!
O papa abriu os olhos e notou a aflição do filho.
- Filho querido - disse. - Não tenha medo. Eu ainda estou com você.
Uma vez mais, aquela extraordinária vitalidade se fez sentir. Era como se Alexandre se recusasse a aceitar os achaques da idade que avançava.
Pai - bradou César, angustiado -, o senhor não está doente? Não pode ficar doente.
AJude-me até a minha cadeira - disse Alexandre.- Pronto! Assim está melhor. Foi um desmaio temporário.
Sentiu o sangue latejando nas veias, e parecia que a cabeça iria estourar com ele. Está passando. Foi o choque dessa notícia. Tenho de me controlar, no futuro. Não é preciso ficar preocupado com aquilo que ainda não aconteceu.
- O senhor precisa tomar mais cuidado, pai - preveniu-o César.
- Oh meu filho, meu filho, não fique tão triste. E, no entanto, eu me sinto feliz ao ver que você se importa tanto comigo.
Alexandre fechou os olhos e reclinou-se na cadeira, sorrindo. O estadista astuto, sempre voluntariamente cego no que dizia respeito à sua família, deixava-se acreditar que era por afeto que César estava alarmado, não porque estivesse cônscio da situação precária em que ele, com o resto da família, estaria se o papa não estivesse mais lá para protegê-los.
César pediu, então, que o pai chamasse o seu médico, para que pudesse ser examinado; e Alexandre acabou prometendo que o faria. Mas a capacidade de recuperação do papa era impressionante, e, poucas horas depois do desmaio, ele estava fazendo novos planos para o sucesso de Giovanni.
Infelizmente, até mesmo Alexandre acabou tendo de enfrentar o fato de que Giovanni nada tinha de soldado, porque isso ficou inegável quando chegou ajuda para os Orsini, mandada pelos franceses, e eles conseguiram atacar os que sitiavam o castelo.
Tendo pela frente uma batalha de verdade, Giovanni mostrou-se um líder inútil, e o combate foi péssimo para as forças papais; o único homem que se distinguiu entre eles foi o duque de Urbino, que, recuperado dos ferimentos, foi feito prisioneiro pelos Orsini. Quanto a Giovanni, foi ferido, mas de leve; percebendo que se achava numa situação um tanto ridícula, da qual, acima de todas as coisas, queria desvencilhar-se, declarou que por estar ferido não tinha como continuar e precisava deixar seus exércitos para terminar o conflito sob um novo comandante.
Agora, a Itália inteira estava rindo das aventuras do filho do papa. Todos se lembravam da cerimónia em que ele tinha sido nomeado chefe dos exércitos papais; quando saíra de Roma liderando seus exércitos, marchara como um conquistador.
Aquilo era muito divertido para os romanos; e muita gente ficou satisfeita. Devia servir para ensinar ao papa que era perigoso para os seus próprios interesses levar o nepotismo longe demais.
César recuperara-se de seu alarme com o desmaio do papa, pois Alexandre estava cheio de vitalidade como sempre, e César não iria perder a oportunidade de marcar pontos contra o irmão.
Convocou os amigos, e, juntos, criaram cartazes brilhantes que fincaram em várias estradas importantes por toda a cidade.
"Procura-se", diziam as palavras nos cartazes, "quem tiver qualquer notícia relativa a um certo exército da Igreja. Quem tiver tal informação, por favor transmita-a imediatamente ao duque de Gandia."
Giovanni voltou para casa, onde foi recebido com um afeto irreduzido por parte do pai, que imediatamente começou a apresentar desculpas em nome do filho e assegurar a todos que, se Giovanni não tivesse tido a má sorte de ser ferido, a história a contar teria sido outra.
E todos aqueles que ouviram ficaram impressionados com a dissimulação de Alexandre, que tanto gostava de enganar a si mesmo. Mas em pouco tempo estavam admirando a sua diplomacia, porque parecia que o papa jamais perdia uma guerra. Derrotado em combate ele podia ser, mas as negociações seguiam-se à batalha, e dessas negociações o papa invariavelmente saía vencedor.
César foi procurar o pai e encontrou Giovanni com ele.
Quando César olhou para o irmão, não pôde evitar que um ar de desprezo lhe enrugasse os lábios.
Com que então-bradou-o senhor não voltou para o seu exército, general.
- Cardeal, meu exército e eu nos separamos - disse Giovanni, despreocupado. - Nós nos cansamos um do outro.
- Foi o que ouvi dizer. - César riu. - Roma inteira fala sobre isso. Há, até, cartazes nos muros da cidade.
- Seria interessante descobrir quem os colocou lá - os olhos de Giovanni tinham um brilho assassino.
- Fiquem em paz, meus filhos - interpôs Alexandre.
- O que está feito está feito. Nós tivemos azar, e agora vamos fazer a paz.
- Nós temos que pedir a paz! - O tom de César era sombrio. - Um belo passe.
- Vamos transformá-lo em um belo passe, na verdade
- refletiu Alexandre. - Os Orsini não estão com disposição de continuar a luta. Eu agora mandei a eles minhas condições, e elas serão aceitas.
- Suas condições, Santidade?
- Minhas condições e as condições deles - disse Alexandre, despreocupado. - Vou permitir que eles comprem de volta seus castelos. Você vai ver que não vamos perder coisa alguma com essa guerra.
- E Urbino? - perguntou César.-Ele está preso. Que resgate será pedido por ele?
O papa deu de ombros, em sinal de desprezo pela pergunta.
- Sem dúvida a família dele está reunindo o resgate.
Os olhos de César semicerraram-se. Aquele homem brilhante que era pai deles estava, na verdade, transformando a derrota de Giovanni em vitória. Giovanni olhava para o irmão com ironia.
Ele disse:
- Por estar cansado da guerra, fico satisfeito porque amanhã começa o carnaval.
Havia nos olhos de Giovanni um ódio igual ao de César. Você tentou me amesquinhar aos olhos de nosso pai, César Bórgia, estava ele pensando; não imagine que vou permitir que me ataque e fique impune. Tenha cuidado, porque vou encontrar um meio de virar a mesa, senhor cardeal!
Foi com César que o papa discutiu os termos da paz. Giovanni estava ocupado demais pensando na fantasia para o carnaval e planejando a sua folia. Ele sentia falta de Djem, que sempre tinha uma sugestão estranha e fantástica a fazer numa ocasião como aquela.
Deve chegar o dia, pensava César, em que nosso pai vai perceber que sou eu que devo ficar ao seu lado, compartilhar sua ambição. Como pode um homem tão brilhante quanto ele continuar a arriscar a nossa situação através dessa confiança cega e tola num filho em prejuízo do outro?
Em momentos assim, César quase se sentia feliz. Não havia necessidade, agora, de chamar atenção para as deficiências de Giovanni; elas deviam ser perfeitamente óbvias, até mesmo para o apatetadamente dedicado Alexandre.
- Meu pai - disse -, o senhor me impressiona. Nós, os Bórgia, acabamos de sofrer uma derrota que teria sido desastrosa para muitos, e o senhor está transformando rapidamente essa derrota em vitória.
Alexandre riu.
- Meu filho, ganha-se mais à mesa do conselho do que no campo de batalha.
- Isso, me arrisco a dizer, Santidade, deve depender dos soldados. Se eu tivesse sido um soldado, teria levado minha bandeira para dentro do baluarte inimigo. Teria colocado meu calcanhar no pescoço do inimigo, e as condições que eu impusesse teriam sido todas minhas. Na verdade, não haveria condições. Eu teria sido o conquistador das propriedades e dos castelos deles.
- Nobres palavras, meu filho.
César ficou alerta. Teria ele percebido uma certa luz especulativa nos olhos de seu pai? Será que finalmente Alexandre seria razoável?
- Mas-prosseguiu o papa -, nós estamos numa céria situação agora, e temos que nos livrar dela. O importante, no presente caso, é a velocidade. Se fomos humilhados, meu filho, eles estão exaustos. Estão com medo de novos combates; é por isso que estão prontos a fazer um acordo.
César riu, numa demonstração de admiração.
- E o senhor os fez comprar de novo os castelos que eram deles!
- Por cinquenta mil florins de ouro.
- Mas o senhor preferiria ter ficado com os castelos, pai; o que teria feito se os tivesse derrotado por completo.
- Nós ficamos cinquenta mil florins mais ricos.
- Isso seria um começo. Nós apenas começamos com os Orsini. E agora?
- Vamos adotar a paz por enquanto.
- E os Orsini, depois que tiverem se recuperado da fraqueza deles?
O papa olhou direto para o filho.
- Há uma cláusula no tratado com a qual eu tive de concordar. Virgínio Orsini estava na prisão em Nápoles durante o conflito...
César estalou os dedos.
- E se não estivesse, meu pai, teria sido uma grande infelicidade para nós.
O papa concordou. César sorria; estava se lembrando daqueles dias, há muito tempo, em que ele deixara a casa da mãe e vivera durante um ano em Monte Giordano. Lembrava-se da chegada do grande soldado ao baluarte dos Orsini, e de como o seu coração de rapaz se alegrara com aquele homem; pensou nos longos passeios a cavalo, da maneira séria mas afetuosa com que Virgínio o tratava. Durante aquele ano, um dos heróis da vida de César tinha sido Virgínio Orsini. César ficara orgulhoso quando Virgínio desejara que ele tivesse sido seu filho; e, se tivesse sido, Virgínio teria feito dele um soldado.
- Vejo que você o admira - disse Alexandre.
Ele é um grande soldado.
Não tão confiável quando os franceses invadiram a
sem dúvida ele tinha suas razões, papai. Os Orsini tornaram-se aliados dos franceses.
- Contra nós - disse o papa. - Mas essa cláusula no tratado... Os Orsini exigem que Virgínio seja libertado imediatamente.
Estou vendo, papai, que o senhor não quer soltar Virgínio.
Você mesmo disse que a situação teria sido diferente se Virgínio estivesse a postos para chefiar as forças da família. Eles ainda são nossos inimigos. Neste momento, estão exaustos pelo recente conflito; estão sem um líder de verdade; mas se tivessem esse líder... - O papa deu de ombros. - Meu filho, a mim parece que os Orsini podem estar tão prontos a concordar com as minhas condições, insistindo apenas que Virgínio seja libertado, a fim de que, quando ele estiver de novo entre eles, possam reunir-se contra nós. Virgínio não deve ser libertado.
- No entanto, o senhor diz que esta é a cláusula na qual eles insistem.
É.
- E o senhor concordou com ela?
- Concordei.
- Então Virgínio, dentro de muito pouco tempo, estará livre.
- Ele não deve sair da prisão.
- Mas o senhor concordou...
- Nós temos amigos em Nápoles. Ainda faltam alguns dias. César, eu o deixo encarregado disso. Você sempre procurou me mostrar a sua sutileza. Os grandes comandantes devem possuir não apenas coragem, mas recursos.
- Quando eu era menino e morei em Monte Giordano, eu o conheci bem - disse César, pausadamente.
- Isso foi há muito tempo, meu filho.
- É - disse César -, há muito tempo. O papa colocou a mão no ombro do filho.
- Você vai saber como fazer aquilo que for melhor para a nossa família - disse.
Era uma tolice ser sentimental.
César andou de um lado para o outro em seus aposentos. Não era normal ele demorar quando sabia que tinha de ser feita alguma coisa que redundaria em vantagem para ele. E, no entanto, as recordações continuavam a acontecer. Ele se via seguindo a cavalo atrás daquela vigorosa figura; sentia de novo a admiração que conhecera.
Virgínio Orsini, o homem que tornara tolerável a vida em Monte Giordano; Virgínio, que quisera fazer dele um soldado.
Não havia tempo para demoras. Era preciso levar imediatamente uma mensagem a Nápoles. Uma pequena quantidade de um pó branco deveria ser levada até lá, e as instruções deveriam ser dadas.
Virgínio Orsini estaria, em breve, fazendo a sua última refeição na prisão.
Se fosse outra pessoa, eu não teria hesitado, pensou César. Não teria pensado uma segunda vez. Mas Virgínio! Que absurdo, que absurdo! O que era a adoração de um herói por parte de um menino!
No entanto, ele tinha sido bom.
Bom! O que é que a bondade tinha a ver com César Bórgia?
Ainda assim, continuou a andar de um lado para o outro em seus aposentos.
- Virgínio não - murmurou. - Virgínio Orsini não.
Nas ruas, o carnaval estava no auge e o povo de Roma estava decidido a se divertir. O papa, com aquela destreza mental que assombrava a todos aqueles que tinham contato com ela, uma vez mais tirara uma vitória diplomática de uma derrota militar com a agilidade de um ilusionista. Os Orsini tinham sido os vencedores. Mas o que tinham eles ganhado? Simplesmente uma cessação das hostilidades. Pagaram muito dinheiro para recuperar os castelos; e o chefe da família, Virgínio Orsini, embora o papa tivesse concedido sua libertação, morrera de repente poucas horas antes do momento em que deveria ter saído da prisão.
O povo ria da astúcia do Santo Padre, enquanto se dedicava a divertir-se.
Homens e mulheres usando máscaras e fantasias enchiam as ruas. Cortejos passavam, entre os quais alguns levavam figuras grotescas erguidas bem acima da cabeça dos foliões; outros manipulavam bizarras figuras fantásticas, fantoches que faziam gestos indecentes, o que divertia muito a multidão. Havia música, dança e uma folia generalizada, e as guerras e a intriga política pareciam muito distantes.
De seus aposentos, César olhava para os foliões na praça e ficava zangado consigo mesmo, porque não podia tirar da cabeça a lembrança de Virgínio Orsini; quando dormia, acordava assustado, imaginando que a alta figura austera estava em pé ao lado de sua cama, olhando para ele com ar de reprovação.
Aquilo era uma bobagem, e não era normal nele. Ele queria diversão. Gostaria que Lucrécia estivesse em Roma. Ele e o pai precisavam trazê-la de volta, e deviam livrá-la daquele grosseiro provinciano, Giovanni Sforza. Ele odiava aquele sujeito. Havia consolo no ódio.
Agora, iria para os aposentos de Sanchia. Iria fazer com ela uma tal orgia de sensualidade que esqueceria todas as sombras que pairavam sobre ele, o pensamento em Sforza e Lucrécia, a lembrança de Virgínio Orsini.
Encontrou Loysella sozinha nos aposentos de Sanchia e Perguntou onde estava a sua senhora.
Meu senhor - respondeu Loysella, lançando olhares para ele por sob pálpebras abaixadas -, a princesa saiu faz algum tempo, com Francesca e Bernardina, para ver o carnaval. Vossa Senhoria não deve ficar impressionado. Elas estavam mascaradas.
Ele não ficou impressionado; só ligeiramente irritado.
Não estava com disposição para sair e meter-se naquela multidão agitada para procurar por ela.
Olhou para Loysella; Loysella estava esperançosa.
Então, de repente, ele se afastou com repulsa. Era como se fosse de novo um menino, e Virgínio estivesse de pé a seu lado, repreendendo-o por alguma falta em sua conduta.
Saiu do quarto abruptamente; foi para os seus aposentos e tentou em vão isolar os sons do carnaval.
A máscara de Sanchia só escondia parcialmente sua beleza. Através dela, seus olhos azuis observavam o ambiente à sua volta. Seus cabelos pretos saíam do capuz da capa.
Francesca e Bernardina estavam igualmente mascaradas; e davam risadinhas, porque sabiam que ao deixarem o palácio estavam sendo seguidas.
- Que emoção! Que belo carnaval! - disse Francesca.
- Em Nápoles nunca houve um carnaval assim.
- Vamos esperar aqui e ver a multidão passar - sugeriu Sanchia, sabendo que os três homens estavam em pé atrás delas.
Olhou por cima do ombro e um par de olhos brilhantes por baixo de uma máscara encontrou os dela e sustentou o olhar.
- Acho - disse ela - que fomos imprudentes ao sairmos sozinhas, sem estarmos escoltadas por cavalheiros. Ora, qualquer coisa... qualquer coisa pode nos acontecer.
Alguns foliões paravam ao ver as três jovens, porque havia algo no porte delas que atraía logo a atenção.
Um rapaz, que o carnaval fizera ousado, aproximou-se de Sanchia e agarrou-lhe a mão.
- Sou capaz de jurar que por trás dessa máscara esconde-se uma dama muito bonita - disse ele. -Venha, minha bela... junte-se a nós.
Não quero - disse Sanchia.
Isto é carnaval, moça, e uma mulher como você não deve ficar indiferente.
Ela gritou quando ele segurou-lhe o braço, e um dos homens que estavam parados atrás delas bradou:
Despache o cão insolente.
O rapaz que falara primeiro com ela ficou pálido sob a máscara quando um dos três deu um passo à frente, a espada na mão. O rapaz gaguejou:
- É carnaval. Não houve má intenção...
E então, quando o outro ergueu a espada e picou-lhe o braço, ele gritou e saiu correndo, seguido pelos membros de seu grupo.
- Devo ir atrás deles, senhor? - perguntou aquele que sacara da espada.
- Não - disse uma voz lânguida. - Isso já chega. Sanchia voltou-se para ele.
- Obrigada, meu senhor - disse ela. - Tremo ao pensar o que poderia ter acontecido comigo e minhas aias se o senhor não estivesse por perto para nos salvar.
- Temos um grande prazer em salvar pessoas como a senhora - disse o homem.
Ele beijou-lhe a mão.
Ela o conhecia e estava plenamente ciente de que ele também a conhecia. Mas aquele era um jogo agradável que eles estavam jogando; começara com a volta dele das guerras. Ela também estava ciente de que era, em parte, devido ao ódio que tinha por César que ele decidira persegui-la; e, embora ela não tivesse intenção alguma de deixar que a transformassem num símbolo entre eles, estava decidida a fazer do irmão de César seu amante.
Ele era bonito-à sua maneira, mais bonito do que César; sua reputação era tão má quanto a dele, mas de forma diferente. Ela iria dar uma lição ao duque de Gandia; iria mostrar a ele que a sua necessidade de Sanchia de Aragón iria ser maior do que o seu desejo de vingança do irmão. Aquela necessidade iria ser a coisa mais importante da vida dele.
Mas, no momento, eles tinham o prazer de fingir, por estarem mascarados, que não conheciam a identidade um do outro.
Ele manteve a mão dela na sua.
- Vamos juntar-nos aos foliões?
- Não estou certa se seria apropriado fazermos isso replicou Sanchia. - Nós apenas saímos para ficar olhando a distância.
- É impossível olhar o carnaval a distância, como a senhora aprendeu com a conduta daqueles cães insolentes. Venha, permita-me mostrar-lhe o carnaval. Não precisa ter medo. Estou aqui para protegê-la.
- Temos que ficar juntas, minhas damas e eu - murmurou ela. - Eu nunca me perdoaria se alguma coisa acontecesse a elas.
Ela sorria com ironia. O que queria dizer era: não confio na sua proteção, Giovanni. Se houvesse perigo, você poderia sair correndo. Mas com os seus subordinados por perto, eu me sentirei melhor.
- Nós vamos ficar com a nossa pequena comitiva disse Giovanni. Fez um sinal para os dois homens, um dos quais segurou imediatamente a mão de Francesca, enquanto o outro segurava a de Bernardina. - Agora-prosseguiu ele -, para onde vamos? Para o Coliseu? Haverá uma grande farra por lá. Ou vamos ver o certame no corso?
- Leve-nos aonde quiser - disse Sanchia.
- Então permita que eu sugira, meu senhor-disse um dos criados -, que nos afastemos da multidão. Estas delicadas damas estão correndo o risco de serem pisoteadas pela plebe.
- Sábias palavras - disse Giovanni.
- Há um pequeno albergo perto da Via Serpenti. Um lugar onde poderemos ficar livres do clamor da gente comum.
- Então, vamos para lá - disse Giovanni.
Sanchia voltou-se para Francesca e Bernardina.
Não - disse ela -, não acho que eu e minhas damas devemos acompanhá-los a essa estalagem. Se quiser nos levar à praça São Pedro, estaremos bem seguras e...
Vamos - disse Giovanni, os olhos brilhando através da máscara -, coloque-se em minhas mãos, bela dama. Não vai se arrepender de coisa alguma.
Sanchia fingiu um estremecimento.
Estou um pouco preocupada...
Mas Giovanni envolvera-a com um braço e saíra correndo, levando-a consigo. Ela olhou assustada por cima do ombro, mas Francesca e Bernardina estavam sendo tratadas da mesma maneira. Elas davam gritinhos de um terror fingido, mas seus cavalheiros as ignoravam enquanto seguiam Giovanni e Sanchia.
- Abram alas! Abram alas! - gritava Giovanni enquanto forçava passagem pelas multidões. Muitas pessoas o xingavam; algumas tentavam detê-lo. A animação e os temperamentos ficavam exaltados na época do carnaval.
Mas sempre aqueles dois homens estavam perto de Giovanni, e será que era alguma coisa que diziam, ou será que eram conhecidos? Fosse como fosse, todas as vezes ficava evidente que aqueles que os encaravam afastavam-se logo, com medo.
Então Sanchia percebeu que a capa de Giovanni estava presa por um broche no qual estava gravado o touro pastando. Seus criados também portavam o emblema, um no chapéu, o outro no gibão. Sanchia sorriu no íntimo. Giovanni não se arriscaria a ir pelas ruas mascarado em momento algum sem alguma indicação de quem era ele, exibida com destaque em sua pessoa. Poderia haver muita gente para atacar um jovem fanfarrão que se tornasse desagradável, mas quem ousaria erguer um braço contra um Bórgia?
Ela estava gostando da sua noite. César estava para aprender uma lição. Ele estivera muito mais interessado na humilhação do irmão do que nela, e era preciso pagar por aquele tipo de desprezo. Ela sabia de um jeito que o deixaria mais furioso do que qualquer outra coisa. Era esse o jeito pelo qual César deveria pagar pelo desprezo que lhe dedicara.
Nos últimos dias, tinha havido olhares compreensivos entre ela e Giovanni; mas essa era a maneira mais divertida de permitir que aquelas pequenas insinuações atingissem o seu clímax.
Quando chegaram à Via Serpenti, escaparam por um labirinto de becos. O barulho dos foliões parecia abafado, agora, quando um dos homens de Giovanni abriu com um empurrão a porta de uma estalagem e todos entraram.
Giovanni gritou:
- Tragam comida. Tragam vinho... bastante vinho.
O estalajadeiro veio correndo até eles. Fez uma mesura acentuada e pareceu muito amedrontado quando seus olhos pousaram no broche que Giovanni estava usando.
- Bons senhores - começou ele.
- Você nos ouviu pedir vinho e comida. Traga-os depressa - disse Giovanni.
- Com a máxima rapidez, meu senhor.
Giovanni sentou-se em um divã e puxou Sanchia para sentar-se ao seu lado.
- Estou decidido - sussurrou ele - a fazer com que você desfrute da hospitalidade... de toda a hospitalidade... que o estalajadeiro pode oferecer.
- Meu senhor, acho que devo dizer-lhe que não sou uma mulher humilde para ser apanhada na época do carnaval
- disse Sanchia.
- Sua voz, seus modos a denunciam-disse ele.-Mas as mulheres que se aventuram pelas ruas na época do carnaval pedem para ser apanhadas.
Os criados dele riam e aplaudiam tudo o que ele dizia.
- Nós vamos beber vinho com os senhores e depois vamos deixá-los aqui - declarou Sanchia.
- Estamos ansiosos por desfrutar de todos os prazeres que o carnaval oferece - arriscou um dos criados, mantendo os olhos em Giovanni.
Todos - repetiu Giovanni.
O estalajadeiro entrou correndo com o vinho.
Este é o melhor que vocês têm? - perguntou Giovanni.
O melhor, meu senhor.
Então deve ser bom, e, se não for, posso ficar zangado.
O estalajadeiro tremia visivelmente.
Agora-bradou Giovanni-tranque todas as portas.
Queremos ficar sozinhos... inteiramente a sós, está compreendendo?
- Estou, meu senhor.
- Quanto à comida, nem precisa trazê-la. Acho que não estou com fome. O vinho será suficiente. Você tem alguns quartos confortáveis em sua estalagem?
- Posso garantir que são - disse um dos homens entre risadinhas - porque já os usei.
- Agora retire-se, homem - disse Giovanni. E voltando-se para as damas: - Vamos brindar à alegria que este dia trará a todos nós.
Sanchia se levantara.
- Meu senhor... - começou ela. Giovanni abraçou-a. Ela lutou, mas Giovanni estava plenamente cônscio de que a luta era fingida, que ela sabia quem ele era e estivera tão decidida quanto ele a fazer com que aquilo acontecesse.
Ele colocou a taça na mesa e disse:
- Em momentos como este, não preciso de vinho. Ergueu Sanchia nos braços, gritando: - Estalajadeiro! Leve-me ao melhor de seus quartos... e não demore, porque estou com pressa.
Sanchia esperneou com graça e inutilmente. Bernardina e Francesca agarraram-se uma à outra enquanto os dois amantes em perspectiva as agarravam e Sanchia e Giovanni desapareciam.
O quarto era pequeno; o teto, baixo; mas estava tão limpo quanto se podia esperar.
- Não é o divã que eu teria escolhido para você, minha princesa - disse Giovanni. - Mas vai ser o suficiente.
- Você devia saber quem eu sou - disse Sanchia. Ele tirou a máscara.
- Eu fiquei sabendo antes - respondeu ele -, como você também. Ora, doce Sanchia, quer que eu monte essa bela demonstraçãozinha de estupro? Um acordo mútuo de enfrentar o inevitável teria sido muito mais interessante.
- Consideravelmente menos divertido - disse ela.
- Eu tenho a impressão - desafiou ele - de que você tem medo de César.
- Por que teria?
- Porque você é amante dele desde que veio para Roma, e ele tem a reputação de ser um amante ciumento.
- Não tenho medo de homem algum.
- César não se parece com qualquer outro homem. Sanchia... insaciável Sanchia. Você não pode olhar para um homem sem querer conhecê-lo. Vi os seus olhares... vi a sua especulação. No momento em que nos vimos pela primeira vez, eu vi. Você decidiu que nós ficaríamos juntos assim, mas pensou em se proteger. "Giovanni que leve toda a culpa", disse você. "Portanto, que seja estupro."
- Você acha que eu me importo com o que meus velhos amantes pensem?
- Até você tem medo de César.
- Ninguém vai me dizer o que devo fazer.
- Aí é que você se engana. Neste quarto, a porta trancada, eu serei o seu ditador.
- Você se esquece de que instantes atrás me acusou de preparar isso.
- Não vamos discutir isso. Sanchia... Sanchia! Ela riu.
- Como você é dominador! Ora, se tivesse mostrado contra os Orsini a mesma determinação que mostra contra três mulheres indefesas...
Ele a agarrou pelos ombros e sacudiu-a, temporariamente irritado. Depois, riu dela.
A senhora não quer um amante delicado, senhora Sanchia. Eu compreendo.
Estou pensando em Francesca e em Bernardina.
A essa altura, elas devem estar nos braços dos amantes.
Há dias que eles têm observado um ao outro; desde que você resolveu trocar de irmãos, aqueles quatro estavam esperando por este dia. Vamos, por que adiar?
- Por que mesmo? - murmurou ela.
César ficou furioso, porque não demorou muito para que seus espiões lhe levassem a notícia de que Sanchia e Giovanni estavam constantemente juntos.
Ele foi aos aposentos de Sanchia quando as amas estavam penteando os cabelos dela. Entrando de supetão, achou-as dando risadinhas enquanto comentavam suas aventuras com os amantes. César foi até Sanchia, derrubou o prato de doces da mesa e, agitando os braços, berrou para as mulheres:
- Saiam!
Elas a deixaram, temerosas, porque pensavam ter visto uma expressão assassina nos olhos de César.
- Então, sua prostituta - disse ele -, ouvi dizer que você é amante de meu irmão.
Sanchia ergueu os ombros, num gesto de reflexão.
- E isso o surpreende?
- Você se entregar a quem pedir, não! Mas que você ouse provocar a minha raiva, sim!
Para mim é uma surpresa que você tenha tempo de ficar zangado comigo... você, que perde tanto tempo sentindo inveja do ducado de Giovanni e das boas graças de Giovanni junto ao seu pai.
- Cale a boca. Você acha que vou permitir que me insulte e humilhe dessa maneira?
- Eu não vejo, César, como você pode fazer muito quanto a isso.
Ela se voltara e estava sorrindo para ele, os olhos azuis faiscando de desejo. Quando ele ficava com aquela raiva louca, ela o achava mais interessante do que quando era um amante afetuoso.
- Você vai ver, Sanchia - disse ele. - Só lhe peço que tenha paciência.
- Eu não sou uma pessoa muito paciente.
- Você é uma prostituta, eu sei, a prostituta mais notória de Roma. Esposa de um dos irmãos e amante dos outros dois. Sabe que a cidade toda fala do seu comportamento?
- E do seu, querido irmão... e do de Giovanni... e do do Santo Padre. Sim, e até do de Lucrécia.
- Lucrécia nada tem a ver com qualquer escândalo disse ele ríspido.
- É mesmo? - perguntou ela, desdenhosa.
César caminhou até ela e aplicou-lhe um forte golpe em uma das faces; ela agarrou-lhe a mão e enfiou os dentes nela, vendo o sangue jorrar enquanto ela colocava a mão na face que doía.
Foi como se a visão do sangue o enlouquecesse. A raiva surgiu em seus olhos enquanto ele a agarrava pelo pulso, e ela gritou de dor.
- Não pense - disse ele - que pode me tratar como pode ter tratado os outros.
- César, tire as mãos de mim. Está me machucando.
- Fico contente de ouvir isso. É exatamente o que pretendo.
Uma vez mais aqueles dentes afiados enterraram-se na mão dele; ele segurou-a pelo ombro e, quando soltou-lhe o pulso, ela arranhou-lhe o rosto. A excitação do combate dominava os dois. Ele tentou agarrar as mãos dela outra vez; mas ela segurara uma das orelhas dele e a estava torcendo.
Em poucos instantes, os dois estavam rolando juntos no chão, e inevitavelmente, como acontece com duas pessoas assim, o desejo e a brutalidade se misturavam.
Ela resistia; não porque quisesse resistir, mas porque queria prolongar a batalha. Ele a chamou de filha bastarda, prostituta, de todos os nomes que pôde imaginar que ofendessem uma pessoa tão orgulhosa quanto ela. Ela retaliou. Ele não era um bastardo?, berrava ela. "Bruto! Cardeal!", zombava.
Ela ficou ofegante, no chão, os olhos arregalados, a roupa rasgada, enquanto pensava em novos insultos para lançar sobre ele.
- Toda a Roma sabe de sua inveja por seu irmão. Você... o cardeal! Você, com os belos trajes e suas amantes... Eu odeio Vossa Eminência. Eu o odeio, cardeal Bórgia.
Ele a atacou; ela o chutou; ele a xingou, e depois de algum tempo os dois ficaram calados juntos.
Ela riu depois, levantando-se do chão para olhar para sua aparência no metal polido do espelho.
- Estamos parecendo dois mendigos no corso - disse.
- Como é que vou esconder esses arranhões, esses machucados que você me fez, seu bruto? Ah, mas você também está bem marcado. Mas valeu a pena, não valeu? Começo a achar que o chão é uma cama tão boa quanto qualquer outra.
Ele estava olhando para ela com ódio. Mas ela gostava do ódio dele. Era mais estimulante do que o afeto.
- Agora-disse ele -, talvez você fique mais cuidadosa da próxima vez que encontrar o meu irmão.
- Porquê? - perguntou ela.
- Porque você descobriu que sou um homem um tanto genioso.
- Eu adoro o seu mau génio, César. Você não pode me pedir que abra mão do prazer de provocá-lo.
- Quer dizer então que não vai desistir dele? Ela pareceu estar refletindo.
- Nós gostamos tanto de estar um com o outro – disse ela, quase que em tom de queixa, ansiosa por provocar nele um novo acesso de raiva.
Mas ele esfriara.
Ele disse:
- Se você prefere um homem do qual todos os italianos estão zombando, continue a desfrutar dele - disse.
E se retirou, deixando-a estimulada mas um pouco decepcionada.
O papa observava com apreensão o crescente antagonismo entre os dois irmãos.
O pequeno Goffredo estava perplexo. Ficara encantado com o fato de seus dois irmãos acharem sua mulher tão atraente; mas quando descobriu que a admiração que eles tinham por sua bela esposa provocava uma dissensão entre eles que era maior do que qualquer outra, começou a ficar preocupado.
Giovanni raramente saía de perto de Sanchia. Gostava de passear com ela a cavalo pelas ruas de Roma; fazia o possível para espalhar rumores relativos ao relacionamento deles e ficava muito ansioso por que eles chegassem aos ouvidos de César.
Então, de repente, César pareceu perder o interesse por Sanchia.
O pai mandou chamá-lo, porque Alexandre tinha um assunto importante para discutir e estava achando que era com César, e não com seu venerado Giovanni, que queria discutir assuntos de política.
- Meu filho querido - disse Alexandre, abraçando César e beijando-o -, há um assunto de certa importância que quero discutir com você.
O papa gostou de ver o cenho franzido do filho desaparecer diante daquelas palavras.
- É sobre o marido de Lucrécia, esse Sforza, que quero falar - disse o papa.
A boca de César se contraiu numa expressão de desagrado, e Alexandre continuou:
Sua opinião sobre ele coincide com a minha.
Tenho sofrido muito - replicou César - ao pensar em minha irmã passando os dias naquela cidade remota, longe de todos nós... e em Vossa Santidade dando a ele ordens que ele não obedece. Quem dera que pudéssemos livrar Lucrécia daquele matuto.
É para discutir este assunto que mandei chamá-lo.
César, eu quero que isso seja um segredo muito bem guardado.
- Entre nós dois? - perguntou César, ansioso.
- Entre nós dois.
- E Giovanni?
- Não, César, não. Eu nem mesmo confiaria isso ao Giovanni. Giovanni é despreocupado e não é tão sério quanto você, César. Quero que isso seja um assunto muito reservado, e foi este o motivo de eu ter decidido confiar em você.
- Obrigado, Santíssimo Senhor.
- Meu adorado filho, estou decidido a livrar minha filha daquele homem.
- E os meios?
- Há o divórcio, mas a Igreja não gosta de divórcio; e, como chefe de Igreja, espera-se que eu não o veja com bons olhos, exceto em circunstâncias especiais.
- Vossa Santidade preferiria um outro método? Alexandre sacudiu a cabeça.
- Não deve ser impossível - disse César, os olhos brilhando. Ele estava pensando: tinha sido triste saber que Virgínio devia morrer, mas não haveria tal tristeza no que dizia respeito a Giovanni Sforza.
- Nosso primeiro passo - disse o papa-seria chamálo de volta para Roma.
- Então, vamos chamá-lo.
- É mais fácil dizer do que fazer, meu filho. O senhor provinciano tem uma certa desconfiança de nós.
- Minha pobre Lucrécia, como deve sofrer!
- Não estou certo disso, César. As cartas dela parecem ficar mais distantes. Às vezes eu acho que o senhor de Pesaro está afastando a nossa Lucrécia de nós, que ela está se tornando mais uma esposa para ele do que uma filha para mim ou uma irmã para você.
- Isso não poderá acontecer. Ele vai tirar dela o charme. Vai torná-la enfadonha... tão insípida quanto ele. Temos de trazê-la de volta, papai.
O papa sacudiu a cabeça.
- E Sforza com ela. E quando eles vierem... O papa hesitou, e César o ajudou:
- E quando eles vierem, Santidade?
- Nós iremos desarmá-lo com a nossa amizade. Este será o primeiro passo, César, Vamos dizer a ele, por palavras, gestos e atos, que já não temos antipatia por ele. Ele é o marido da nossa adorada, e como tal iremos amá-lo.
- Vai ser uma tarefa difícil - disse César, sério.
- Não quando você se lembrar de para onde isso estará nos levando.
- Quando tivermos a confiança dele, vamos convidá-lo para um banquete - refletiu César. -Ele não vai morrer de imediato. Sua morte vai ser lenta.
- Você irá apresentá-lo ao abraço da cantárida.
- Com o máximo prazer - disse César.
E assim Lucrécia voltou para Roma, e com ela seguiu o marido. Giovanni Sforza estava relutante; ficou resmungando a viagem toda.
- O que é que a sua família está planejando agora? Por que ficaram tão amáveis comigo? Eu não confio neles.
- Ah, Giovanni, você é muito desconfiado. É porque eles têm muita consideração comigo, porque estão encantados em me verem como uma esposa feliz, que lhe oferecem a amizade deles.
Eu a aviso de que serei precavido-declarou Giovanni.
Ele ficou surpreso com a recepção que teve.
O papa o abraçou, chamou-o de filho adorado, e disse que como marido de Lucrécia ele tinha direito a um alto cargo na corte papal. Nunca Giovanni desfrutara de tamanho prestígio como naquelas semanas. Começou a perder os temores. No final das contas, disse a si mesmo, eu sou marido de Lucrécia, e Lucrécia está satisfeita comigo.
Confiava num certo criado que ele gostava de levar para onde quer que fosse, porque achava que Giacomino, seu jovem e belo camareiro, era uma das poucas pessoas em quem podia confiar.
- Meu senhor - disse Giacomino -, parece que o senhor é bem recebido aqui, mas tenha cuidado, meu senhor. Dizem que é imprudente comer de forma irrefletida à mesa dos Bórgia.
- Já ouvi falar nisso.
- Lembre-se da morte súbita de Virgínio Orsini, meu senhor.
- Eu penso nela.
- Meu senhor, eu gostaria que o senhor só comesse aquilo que fosse preparado por mim.
Aquilo fez com que Giovanni desse uma risada; mas eram poucas as pessoas que gostavam dele com tanta sinceridade quanto Giacomino, e ele sabia disso; passou o braço, num gesto afetuoso, pelos ombros do criado.
- Não tenha medo, Giacomino - disse ele. - Posso cuidar bem de mim mesmo.
Falou com Lucrécia sobre as preocupações de Giacomino.
- Elas não têm fundamento - assegurou-lhe Lucrécia.
- Meu pai admitiu você na família. Ele sabe que você e eu podemos ser felizes juntos. Mas Giacomino é um bom homem, Giovanni; e fico contente por ele gostar tanto de você.
E nas semanas que se seguiram Giovanni Sforza adquiriu um novo ar de confiança.
Eu posso fazer Lucrécia feliz, pensou ele; e o papa gosta tanto da filha que está pronto a abençoar quem puder fazer isso. Giovanni começou a acreditar que ouvira rumores exagerados e que os Bórgia eram apenas uma família cujos membros, à exceção de Giovanni e César, tinham uma dedicação especial uns pelos outros.
O carnaval voltou, e os Bórgia achavam os foliões irresistíveis. O papa, observando as cenas de sua sacada, soltava exclamações de aplauso pela libidinagem e dava suas bênçãos ao mesmo tempo. Nunca houvera um homem que pudesse misturar o amor pelo lascivo e pelo piedoso de uma forma tão feliz; nunca houvera um homem mais disposto a levar a religião como se fosse uma brincadeira. Na época do carnaval, mais do que em qualquer outra, o povo ficava contente com o seu Santo Padre.
Giovanni Sforza não gostava de carnaval, ficava embaraçado pelas cenas indecentes que eram representadas e, sem sentir prazer pelas piadas obscenas, já estava com saudades de Pesaro.
Não queria sair e misturar-se as multidões nas ruas, de modo que Lucrécia ia com os irmãos e com Sanchia, alguns dos criados deles e das damas de Sanchia e Lucrécia.
Foi ideia de Giovanni Bórgia que eles deveriam vestir-se como pantomimeiros e misturar-se com maior liberdade às multidões.
Aquilo era uma grande diversão para Lucrécia, que, ao contrário do marido, se deliciava com a alegria de Roma e, sem dúvida, não suspirava pela tranquila Pesaro.
Sanchia decidira dedicar suas atenções a Giovanni, a fim de provocar a raiva de César, e Giovanni não se fez de rogado; em seus trajes de pantomimeiros, as máscaras escondendo-lhes o rosto, eles dançaram pelas ruas, com Sanchia e Giovanni liderando a trupe, dançando ao estilo espanhol, de forma sugestiva, e imitando os movimentos da conquista até um fim que parecia inevitável.
Mas César não estava pensando em Sanchia naquele momento; tinha planos que diziam respeito a Giovanni, mas estava adiando-os porque planos mais prementes relativos a um outro Giovanni o preocupavam agora. Além do mais, Lucrécia estava com ele, e o desejo dele por Sanchia nunca fora tão grande quanto o seu amor pela irmãzinha.
Ele agora podia ter um acesso de fúria, não porque Sanchia estivesse de amores com Giovanni, mas ao pensar na vida de Lucrécia com Sforza.
- Lucrécia, minha menina - disse ele -, você adora o carnaval.
- Ah, irmão, adoro, sim. Não foi sempre assim? Lembra-se de como costumávamos ficar vendo da loggia da casa de mamãe e sentir vontade de estar entre os foliões?
- Eu me lembro de como você batia as mãos e dançava lá na loggia.
- E às vezes você me erguia, para que eu pudesse ver melhor.
- Temos muitas recordações felizes em comum, adorada. Quando penso nos períodos em que estivemos separados, sinto vontade de matar aqueles que nos separaram.
- Não fale em vontade de matar numa noite como esta, César.
- É uma noite assim que faz meus pensamentos voltarem àquelas cansativas separações. Aquele seu marido a manteve deliberadamente longe de nós por um tempo demasiado longo.
Ela deu um sorriso delicado.
- Ele é lorde de Pesaro, César, e como tal tem seus deveres para com a cidade.
- E o que é que você acha, Lucrécia... acha que em breve ele a estará levando de volta para a sua triste cidade?
- Acho que dentro em pouco ele estará impaciente para voltar.
- E você quer nos deixar?
- César! Como pode dizer isso? Será que não percebe que tenho tantas saudades de vocês todos que nunca poderia ser feliz longe de vocês?
Ele respirou fundo.
- Ah! É isso que eu queria ouvir você dizer. - Envolveu-a com um dos braços e apertou-a de encontro ao seu corpo. - Adorada irmã - sussurrou -, não tenha medo. Não vai demorar e você estará livre daquele homem.
- César! - Ela pronunciou o nome dele sob a forma de uma pergunta.
A excitação da dança o dominara. O ódio que ele sentia por Sanchia e pelo irmão foi sobrepujado pelo seu amor por aquela irmãzinha. Ele sentia uma ânsia de protegê-la de toda infelicidade e, acreditando que ela desprezava o marido, tanto quanto ele e o pai desprezavam, não podia perder um momento a mais antes de dizer-lhe que em breve ela estaria livre dele.
- Não vai demorar, doce irmã - prosseguiu César.
- Divórcio? - perguntou ela, anelante.
- Divórcio! A Santa Igreja o abomina. Não tenha medo, Lucrécia. Há outras maneiras de se livrar de um parceiro indesejável.
- Você não pode estar falando... - bradou ela. Mas ele a silenciou.
- Escute, minha adorada. Não vamos falar nessas coisas aqui na rua. Eu tenho planos relativos ao seu marido, e posso prometer-lhe que antes do próximo carnaval você já terá esquecido que ele existiu. Pronto, isso não a agrada?
Lucrécia sentiu-se mal, de tanto horror. Ela não amava Giovanni Sforza, mas tentara; quando estivera em Pesaro, fizera o máximo para ser o tipo de esposa que ele desejava, e não fora infeliz em seus esforços. Ele não era o amante com que ela sonhara, mas era seu marido. Ele tinha sentimentos, aspirações; e se estava cheio de autopiedade, ela também sentia pena dele. Ele tinha sido infeliz muitas vezes.
- César - disse ela -, eu receio...
Os lábios dele estavam próximos ao ouvido dela.
- As pessoas nos observam-disse ele. - Não estamos dançando com os outros, como deveríamos. Amanhã à tarde, irei até seus aposentos, vamos providenciar para que não sejamos vistos nem ouvidos. Então, eu lhe explicarei meus planos.
Lucrécia sacudiu a cabeça, sem dizer coisa alguma.
Ela começou a dançar, mas agora sem qualquer alegria. As palavras de César martelavam-lhe os ouvidos. Eles vão matar Giovanni Sforza, disse a si mesma.
Com medo e na dúvida, aquela noite ela não sentiu sono, e no dia seguinte estava perturbada.
Nunca na vida se sentira tão intimamente ligada à família; nunca tivera de enfrentar uma decisão tão importante.
Ao pai e ao irmão, ela acreditava dever uma total lealdade. Trair a confiança deles seria cometer um ato imperdoável. E, no entanto, ficar de fora e deixar que matassem seu marido
- como poderia fazer isso?
Lucrécia descobriu que tinha uma consciência.
Ela estava cônscia de sua juventude e de sua inexperiência da vida. Percebeu que, tal como o pai, ansiava pela harmonia à sua volta; e, ao contrário dele, não podia consegui-la de maneira impiedosa. Ela não amava Sforza; compreendia, agora, que não se importaria muito se nunca tornasse a vê-lo; mas o que a deixava horrorizada era que ele devesse ser levado a uma morte violenta ou mesmo tranquila, e que ela fosse estar entre aqueles que o levariam até lá, e ela estaria se não o avisasse.
Via-se diante de duas alternativas. Poderia continuar leal ao pai e ao irmão e deixar que Sforza caminhasse para a morte, ou podia avisar Sforza e trair a família.
Era uma decisão terrível que teria de tomar. Todo O seu amor e devoção estavam em guerra com o seu senso de correção.
Assassinato! Era uma coisa hedionda, e ela não queria ter nada a ver com isso.
Se eu deixar que ele morra, a lembrança de minha traição irá me perseguir a vida inteira, pensou.
E se traísse César e seu pai? Eles jamais confiariam nela outra vez; ela ficaria de fora da trindade de amor e devoção com a qual passara a contar.
De modo que ficou deitada, sem sono, perguntando-se o que devia fazer, levantando-se e indo até o oratório da Madona, caindo de joelhos e rezando pedindo ajuda.
Não havia ajuda. O que ela fizesse deveria ser por decisão sua.
César viria à tarde para lhe contar os planos, e ela sabia que antes disso já deveria ter decidido o caminho a tomar.
Lucrécia mandou uma de suas damas chamar Giacomino, camareiro de Sforza.
Quando Giacomino ficou de pé à sua frente, ela pensou no quanto ele era bonito; havia nele uma honestidade visível, e ela sabia que era o criado mais fiel de seu marido.
- Giacomino-disse ela -, mandei chamá-lo para que pudesse conversar um pouco com você.
Lucrécia percebeu as luzinhas de alarme que tinham saltado dos olhos do rapaz. Ele acreditava que ela o achava atraente, porque sem dúvida muitas mulheres assim pensavam, e ela sentia que estava tornando as coisas muito difíceis; mas era o seu plano, e ela teria de levá-lo adiante, já que não via outra saída para o seu dilema. Giacomino estava de pé à frente dela, com a cabeça curvada.
- Você está ansioso por voltar para Pesaro, Giacomino?
- Eu me sinto feliz por estar onde o meu senhor estiver, senhora.
- Mas se você pudesse escolher, Giacomino?
- Pesaro é a minha terra, senhora, e a gente tem afeição pela terra natal.
Ela fez um gesto afirmativo com a cabeça e passou a falar de Pesaro. Estava pensando: ele está perplexo, esse bom Giacomino, e eu tenho de continuar falando, muito embora ele possa acreditar que estou procurando torná-lo meu amante.
Giacomino havia sentado no banco que ela indicara. Parecia ficar mais constrangido a cada instante, como se já estivesse se perguntando como ele, o criado mais fiel de seu patrão, iria repeli-la. Mas em dado momento ela ouviu os sons pelos quais estivera esperando, e muito aliviada ergueu-se de um salto e bradou:
- Giacomino, meu irmão está vindo para cá.
- Preciso me retirar imediatamente, senhora - disse o agitado Giacomino.
- Mas espere. Se você sair pela porta, ele irá vê-lo, e meu irmão não ficaria contente em vê-lo aqui, Giacomino.
Que medo César inspirava em todo mundo! O rapaz ficara pálido, a aflição transformada em terror.
- Oh senhora, o que devo fazer? - gaguejou Giacomino.
- Vou esconder você aqui. Depressa! Vá para trás dessa tela, e eu coloco essas cortinas por cima de você. Se ficar perfeitamente imóvel, não será descoberto. Mas eu lhe imploro que fique o mais imóvel possível, porque se meu irmão o descobrisse nos meus aposentos...
- Vou ficar imóvel, senhora.
- Seus dentes estão batendo, Giacomino. Estou vendo que percebe perfeitamente a situação perigosa em que você se encontra. Meu irmão não gosta que eu receba rapazes amigos. Isso o irrita. Oh, tome cuidado, Giacomino.
Enquanto falava, ela o empurrava para trás da tela e arrumava as cortinas por cima dele. Olhou para o que fizera, com satisfação; o camareiro estava inteiramente coberto.
Então, voltou correndo para a cadeira e estava sentada em atitude pensativa quando César entrou no quarto.
- Lucrécia, minha adorada. - Ele segurou-lhe as duas mãos e beijou-as, enquanto sorria para ela. - Vejo que está preparada paramim e providenciou para que ficássemos a sós.
- Sim, César, você tem alguma coisa a me dizer?
- Seria perigoso conversar ontem à noite nas ruas, irmã.
Ele foi à janela e olhou para fora. - Ah, a folia continua.
As pantomimas e o uso de máscaras continuam. Giovanni Sforza está nas ruas hoje, ou está matutando em seus aposentos, sonhando com a querida e enfadonha Pesaro?
- Sonhando com Pesaro - disse Lucrécia.
- Deixe que ele sonhe enquanto puder-bradou César, sério. - Não lhe resta muito tempo para sonhar.
- Você se refere aos planos que fez para ele?
- Sim, irmã. Ah, era de enlouquecer eu ficar pensando em você com aquele matuto provinciano. Ele merece morrer por ter tido a presunção de se casar com minha doce irmã.
- Pobre Giovanni, ele foi obrigado a isso.
- Você está ansiosa pela sua liberdade, adorada irmã, e, como sou o irmão mais indulgente do mundo, estou ansioso por lhe dar tudo o que você deseja.
- Está, César. Fico feliz quando estou com você. César começara a andar de um lado para o outro.
- Nosso pai e eu não lhe falamos sobre os nossos planos antes. Isso porque sabemos que você é jovem e delicada. Você sempre foi de pedir pelo pior dos escravos que estivesse em desgraça, e implorar que o castigo fosse evitado. Achamos que talvez fosse implorar por seu marido. Mas sabemos que está ansiosa por ver-se livre dele... tanto quanto nós estamos ansiosos por vê-la livre.
- O que é que você pretende fazer, César? - perguntou Lucrécia, falando pausadamente.
- Eliminá-lo.
- Você diz... matá-lo?
Pouco importa o que façamos, doce irmã. Em breve ele deixará de preocupá-la.
Quando é que você se propõe a fazer isso?
Nos próximos dias.
Vai convidá-lo para um banquete ou... será que ele
encontrará seus assassinos à noite, em algum beco escuro às margens do Tibre?
O nosso pequeno Sforza tem seus amigos - disse César. - Acho que um banquete seria melhor para ele.
- César, fala-se de um veneno que você usa... a cantárida. É verdade que só você e nosso pai conhecem o segredo, e que você pode não apenas matar as pessoas, mas decidir o dia e até a hora da morte delas?
- Você tem um irmão inteligente, Lucrécia. Você fica feliz ao saber que ele coloca toda a sua capacidade ao seu dispor?
- Eu sei que você faria qualquer coisa no mundo por mim - disse ela. Deslocou-se até a janela. - Oh César prosseguiu ela -, estou com uma vontade louca de ir para as ruas. Estou ansiosa por me misturar aos foliões como fizemos à noite passada. Vamos cavalgar até Monte Maria, como fazíamos antigamente, lembra-se? Vamos agora.
Ele se aproximou dela e colocou-lhe as mãos nos ombros.
- Você quer sentir o ar em seu rosto - disse. - Quer dizer para si mesma: a liberdade é um dos maiores dons que a vida pode oferecer, e em breve ela será minha!
- Como você me conhece tão bem - disse ela. Vamos, vamos agora.
Só depois que eles saíram do palácio foi que ela conseguiu respirar com facilidade. Estava impressionada com a esperteza com que pudera representar o seu papel.
Cada minuto tinha sido cheio de terror de que algo fosse trair a presença de uma terceira pessoa no quarto; e ainda mais aterrorizante fora o pensamento constante: César, meu adorado, meu amado, eu o estou traindo.
Giacomino livrou-se das cortinas e foi a toda velocidade para os aposentos do patrão. Estava ofegante e pediu a Giovanni Sforza que o recebesse a sós.
- Meu senhor - gaguejou assim que ficaram a sós -, a senhora Lucrécia mandou me chamar, não sei por quê, a menos que fosse para dar-me uma mensagem para trazer para o senhor, mas, enquanto eu estava nos aposentos dela, César Bórgia chegou e a senhora Lucrécia, temendo a raiva dele, obrigou-me a me esconder por trás de uma tela. Lá, eu ouvi que ele e o papa estão planejando matar o senhor.
Os olhos de Sforza dilataram-se de terror.
- Eu desconfiava disso - disse ele.
- Meu senhor, não há um só momento a perder. Temos de sair de Roma a toda velocidade.
- Tem razão. Vá preparar os cavalos mais fortes que temos. Vamos partir imediatamente para Pesaro. Só lá poderei estar a salvo de meus parentes assassinos.
Giacomino obedeceu, e, menos de uma hora depois de o camareiro ter ouvido César e Lucrécia conversando, ele e Sforza cavalgavam a toda velocidade para fora de Roma.
O papa e César ficaram contrariados com a fuga de Sforza. Já se sussurrava por toda a Roma a notícia de qUe ele fugira porque temia a adaga ou a taça de veneno que Os Bórgia estavam preparando para ele..
- Que ele não pense em escapar -, vociferou César. Alexandre estava sereno.
- Acalme-se, meu querido filho - disse. O único assunto que nos preocupa é a separação dele e sua irmã. Ele está desconfiado de nossos sentimentos para com ele. Seria perigoso, agora, fazer o que tínhamos planejado. Só nos resta um caminho aberto. Eu não gosto desse caminho. Como homem da Igreja, acho-o repugnante. o outro teria sido muito mais conveniente. Receio, César, que só nOs resta o divórcio.
- Pois bem, vamos tratar de conseguir o mais rápido possível. Eu prometi a Lucrécia a liberdade e pretendo que ela a tenha.
- Então, vamos estudar esse caso do divórcio. Naminha opinião, existem duas alternativas. Primeiro poderíamos declarar que o casamento é inválido porque Lucrécia nunca foi liberada de um antigo compromisso comQasparo di Procida.
- Receio, meu pai, que isso venha a ser difícil de provar. Lucrécia foi liberada daquele noivado, e haveria muita gente que indicaria a prova disso. Iríamos ter Ludovico e Ascanio
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vindo em auxílio de seu parente se apresentássemos um motivo desses.
- Você tem razão, meu filho. Isso nos deixa com a outra alternativa. Vamos pedir o divórcio com base no fato de que o casamento nunca foi consumado.
- Mas não é verdade.
- Meu querido filho, quem vai dizer que ele foi consumado? Há um filho para confirmar isso?
- É um casamento estéril, meu pai, mas não há dúvida de que houve a consumação.
- Quem vai jurar isso?
- Sforza. Ele não vai querer que sua impotência seja proclamada ao mundo.
- Mas Lucrécia vai dizer o que quisermos que ela diga.
- Sforza vai protestar, vai protestar com todo vigor.
- Nós protestaremos com o mesmo vigor.
- É a solução. Palavra, meu pai, o senhor é um génio.
- Obrigado, meu filho. Você está começando a perceber que sei como dirigir os negócios de minha família e fazer aquilo que é melhor para os meus filhos?
- O senhor tem feito muito por Giovanni - disse César com um toque de mau humor - e agora vejo que vai fazer o que for melhor para Lucrécia.
Alexandre deu uns tapinhas afetuosos no ombro do filho.
- Mande chamar a doce criatura - disse ele. - Vamos dizer a ela a alegria que estamos lhe preparando.
Lucrécia foi vê-los. Estava muito receosa mas, por estar amadurecendo e aprendendo a arte da simulação que eles praticavam com tanta habilidade, conseguiu esconder seu estado mental daqueles olhos perscrutadores.
- Minha adorada-disse o papa, abraçando-a -, César e eu não podíamos resistir ao prazer de trazê-la até aqui. Temos grandes novidades para você. Você vai ficar livre de Sforza.
- De que modo, meu pai?
- Haverá um divórcio. Não gostamos de divórcios, mas há vezes em que ele é necessário. Por isso, vamos usá-lo para livrá-la de Sforza.
Uma sensação de alívio tomou conta dela. Então eles tinham abandonado o plano de assassiná-lo, e ela o salvara.
Os homens perceberam aquele alívio e sorriram um para o outro. A sua querida Lucrécia ficaria muito grata a eles.
Infelizmente - declarou o papa -, a Igreja se opõe ao divórcio, e meus cardeais irão exigir um motivo muito bom para que possamos concedê-lo.
- Vai ser um processo simples - acrescentou César -, já que o casamento não foi consumado.
Lucrécia disse, rápida:
- Mas foi consumado.
- Não, minha filha - contradisse o papa -, não foi.
- Pai, nós partilhamos da mesma cama inúmeras ocasiões.
- Partilhar de uma cama não significa, necessariamente, que houve consumação. Minha querida, doce e inocente filha, há muita coisa que você não sabe. O casamento não foi consumado.
- Mas, meu pai, eu juro que foi.
O papa correu os olhos à sua volta, aflito.
- Está tudo bem - sussurrou César. - Ninguém ousaria ficar a uma distância que permitisse ouvir, quando dei ordens para que não ficassem.
- Minha filha-prosseguiu o papa -, consumação não é o que você está pensando.
- Eu sei muito bem - insistiu Lucrécia - que meu casamento foi consumado.
O papa deu-lhe uns tapinhas no rosto.
- Eles poderão insistir - disse ele a César - em fazer um exame na menina. Eles estão cheios de dúvidas e suspeitas.
- Pai, devo assegurá-lo de que eu...
- Não tenha medo, minha filha-sussurrou o papa.- Esses exames já aconteceram antes. É muito fácil. A virgem, coberta por um véu por causa da modéstia. Você compreende.
Não precisa se submeter a isso. Nós vamos encontrar uma virgem, e tudo estará bem. Tudo o que você teria de fazer seria jurar perante os juristas e cardeais de uma comissão.
- Meu pai, eu não poderia jurar. O papa sorriu.
- Você se preocupa demais, minha filha. Há momentos em que é necessário divergirmos da verdade, se não para o nosso próprio bem, pela felicidade de terceiros.
Ela estava perplexa. Olhava de um para o outro daqueles dois homens a quem amava acima de todos os outros do mundo. Sabia que o que quer que o futuro lhe reservasse, ela deveria continuar a amá-los, que eles deviam significar mais, para ela, do que qualquer outra pessoa, que estava ligada a eles de mais formas do que conseguia compreender; pertencia a eles, e eles a ela; estava ligada a eles por elos de afeto e por um sentimento de família que era mais forte do que qualquer outro que ela conhecera; e sabia que eles eram hipócritas, mentirosos, traiçoeiros e assassinos.
Ela não podia suportar mais.
- Meu pai - disse -, rogo que permita que eu me retire. devo pensar no assunto.
Irmão e pai a beijaram com ternura; e ela se retirou, deixando-os conversando sobre os planos de vencer qualquer oposição.
Quanto a Lucrécia, não esperavam que ela lhes criasse qualquer problema.
Ela não iria assinar o monstruoso documento. Aquilo era uma mentira, uma mentira clamorosa.
O pai e César imploraram. Ela devia pôr de lado os escrúpulos; devia lembrar-se do que estava em jogo. Seu irmão Giovanni acrescentou suas súplicas às de César e Alexandre. Era degradante, declarou, que Lucrécia Bórgia ficasse casada com um homem como Giovanni Sforza. Claro que a família queria provocar a libertação dela. Ela era uma tola ao hesitar. O que era uma simples assinatura de um documento?
- Mas é uma mentira... uma mentira - bradou Lucrécia.
O papa foi delicado nas suas explicações, mas estava impressionado, disse ele, pelo fato de sua filhinha - a mais amada de todos os seus filhos - fazer o pai sofrer tanto.
- Não é tanto pela mentira, meu pai - ela tentou explicar -, mas a mágoa que isso vai causar ao meu marido. Ele será tachado de impotente, e o senhor sabe a humilhação que isso vai lhe causar.
- Você não deve se preocupar tanto por causa dos outros, minha filha. Ele ficará livre para casar-se de novo e mostrar quem é.
- Mas quem vai querer casar-se com um homem que, segundo se declara, não pode gerar filhos?
- Isso é um pouco de bobagem, minha filha. Assine o documento. É tão simples! Seu nome aqui... e em pouco tempo estará tudo bem.
Mas ela estava sempre se recusando.
Enquanto isso, Giovanni Sforza, furioso com os termos em que o papa pretendia basear-se para conseguir o divórcio, protestava em alto e bom som.
Era mentira dizer que o casamento não tinha sido consumado, declarava. Tinha sido consumado mil vezes.
Sforza decidiu que só havia um lugar aonde ele poderia ir em busca de auxílio. Seguiria a toda velocidade para Milão e tentaria a ajuda de seus primos Sforza. Eles não tinham se mostrado muito ansiosos por ajudar no passado, mas não havia dúvida de que uma família devia ficar unida quando um de seus membros era insultado daquela maneira.
Tendo suas próprias preocupações, Ludovico não ficou muito contente ao ver o primo. Era possível que os franceses voltassem à Itália, e se o fizessem Milão seria um de seus primeiros objetivos. Se tais circunstâncias se verificassem, Ludovico iria precisar da ajuda de Alexandre; e o que é que ele poderia esperar, se fosse contra o papa naquela questão? Ludovico, é óbvio, pouco tinha a oferecer ao pobre Giovanni Sforza.
- Meu caro primo - disse Ludovico -, por que não concorda com o divórcio? Ele seria rápido e haveria um fim para o caso.
- Você não compreende essa sugestão monstruosa?
- Eu vejo que o papa irá permitir que você fique com o dote de Lucrécia, se concordar. Ele diz, também, que você terá sempre a boa vontade dele.
- Dote! Boa vontade! Deverei ficar com eles se permitir que ele espalhe para o mundo inteiro que sou impotente!
- Foi um dote excelente, e a boa vontade papal não é de se desprezar.
- Primo, eu lhe pergunto uma coisa: se um estigma desses fosse lançado sobre a sua virilidade, como é que você agiria?
Ludovico ficou pensativo por alguns segundos e depois disse:
- Pois bem, Giovanni, meu primo, há uma maneira pela qual você poderia provar que a alegação dos Bórgia está errada.
- Como assim? - perguntou Giovanni, ansioso.
- Prove isso, sem sombra de dúvida, na presença do nosso embaixador e do legado papal. Lucrécia poderia vir ao castelo de Nepi, e lá você poderia nos mostrar, publicamente, que é capaz de ser um bom marido.
Giovanni afastou-se do primo, horrorizado com a sugestão.
- Mas meu querido primo - disse Ludovico, com calma -, isso já foi feito antes. E se Lucrécia se recusar a vir, eu poderia providenciar para que várias cortesãs ficassem a postos. Você poderia fazer a sua escolha, e posso lhe garantir que nossas mulheres milanesas são tão desejáveis quanto qualquer uma que eles tenham lá em Roma.
- Seria inteiramente impossível.
Eu fiz a sugestão-disse Ludovico, dando de ombros.
Se você se recusa a examiná-la, as pessoas irão tirar suas próprias conclusões.
- Eu me recuso a fazer o papel de ridículo em público.
- A mim parece a única maneira de revidar essa acusação.
- Na presença do embaixador milanês e do legado papal! -bradou o indignado Giovanni.-E quem é o legado papal? Um outro Giovanni Bórgia, sobrinho de Sua Santidade. Ora, não duvido de que, o que quer que eu fizesse na presença dele, ele iriajurar que sou impotente. Ele é mais um exemplo do incessante nepotismo do papa! E o embaixador milanês! Sem dúvida, seria subornado para falar contra mim, ou ameaçado se se recusasse.
Ludovico olhou com tristeza para o parente, mas não havia outro conselho que pudesse dar. Giovanni Sforza era um homem azarado; provocara o desprezo e a antipatia dos Bórgia. Era, também, um tolo; porque os Bórgia queriam livrar-se dele e ele estava tornando aquilo difícil para eles.
Lucrécia sabia que tinha de assinar. Já não podia resistir mais a eles. Todos os dias, eles a visitavam ou ela era convocada à presença do papa. Todos eles lhe asseguravam que ela tinha de assinar. Ali estavam seu pai, ainda benevolente mas dando os mais leves sinais de que estava perdendo a paciência; César, ficando zangado com ela de vez em quando, como nunca ficara; Giovanni, dizendo-lhe que era uma garotinha boba, que não sabia o que era bom para ela.
Ela não sabia onde o marido estava. A princípio, pensara em sair de Roma às escondidas e correr para Pesaro, mas, quando soubera das coisas cruéis que Giovanni tinha dito a seu respeito, já não quisera fazer isso; porque Giovanni Sforza, humilhado e irado, declarara que o papa estava ansioso por um divórcio porque queria que a filha vivesse no seu círculo íntimo, para que ele pudesse tomar o lugar de marido dela.
Foi essa a primeira vez em que Lucrécia ouviu aquele maldoso boato a seu respeito, e sentiu horror do homem que pudera espalhá-lo.
Ela nunca se sentira tão sozinha quanto naquele momento. Estava ansiosa por ter alguém como Giulia com quem trocar confidências, mas agora nunca via Giulia; Sanchia estava dedicada demais aos seus assuntos particulares e à trama da batalha entre César e Giovanni por seus favores.
E assim chegou o dia em que Lucrécia assinou o documento que tinha sido preparado para ela, no qual declarava que, devido à impotência do marido, ela ainda era virgo intacta.
Em Roma, davam-se risadas.
Um membro da mais notória família da Europa declarara sua inocência. Era a melhor piada que se ouvira nas ruas há muitos anos.
Até mesmo os criados, entre eles, não podiam deixar de dar risadinhas irónicas. Eles tinham testemunhado a apaixonada rivalidade dos irmãos pelo afeto de Lucrécia; tinham-na visto ser abraçada pelo papa. E havia muita gente que poderia jurar que Giovanni Sforza e Lucrécia tinham vivido como marido e mulher.
Claro que não fizeram isso. Elas não queriam ser levadas para alguma masmorra escura e voltar sem a língua. Não queriam correr o risco de serem atacadas numa noite escura, presas dentro de um saco e atiradas no rio. Não sentiam vontade alguma de beber um certo vinho e com isso entrar na eternidade.
Mas naquele momento uma das pessoas mais infelizes de Roma era Lucrécia. Sentia-se envergonhada pelo que fizera, e achava que já não podia suportar a rotina diária de sua vida.
Pensava, com saudade, em sua infância, quando vivera muito feliz com as freiras de San Sisto, e tudo dentro dos muros do convento parecia oferecer a paz; e, muito pouco tempo depois de ter assinado aquele documento, ela deixou o seu palácio e foi para o convento de San Sisto.
Lá, pediu para ser levada à presença da prioresa. Quando a irmã Girolama Pichi foi falar com ela, caiu de joelhos e bradou:
- Oh irmã Girolama, eu lhe rogo que me dê refúgio dentro desses muros tranquilos, porque estou cruelmente oprimida e preciso do conforto que este lugar tem a me oferecer.
A irmã Girolama, reconhecendo a filha do papa, abraçoua calorosamente e disse-lhe que o convento de San Sisto seria o seu lar pelo tempo que ela quisesse.
Lucrécia pediu que a deixassem ver suas velhas amigas, irmã Cherubina e irmã Speranza, que há muito tempo, assim parecia, tinham se incumbido de sua educação religiosa. A prioresa mandou chamá-las, e, quando Lucrécia as viu, tornou a chorar, irmã Girolama disse a elas que levassem Lucrécia para uma cela em que pudesse rezar, e que elas poderiam ficar com ela enquanto ela precisasse do consolo delas.
Quando descobriu que Lucrécia tinha ido para o convento, César ficou irritado, mas o papa o acalmou e pediu-lhe que não deixasse que pessoa alguma ficasse sabendo do quanto eles estavam preocupados diante daquele ato inesperado.
- Se alguém soubesse que ela fugiu de nós, iria perguntar o motivo - disse o papa -, e haveria muita gente para indagar se ela colocou seu nome no nosso documento por livre e espontânea vontade ou não.
- Eles vão descobrir logo que ela fugiu para as freiras a fim de se proteger contra nós.
- Isso não pode acontecer. Hoje mesmo vou enviar soldados para trazê-la de volta para nós.
- E se ela não vier?
- Lucrécia obedecerá aos meus desejos - o papa deu um sorriso cruel. - Além do mais, as freiras de San Sisto não vão querer provocar a indignação do papa.
Os soldados foram despachados. Lucrécia estava com quatro das freiras quando os ouviu chegar aos portões.
Dirigiu olhos assustados para as companheiras e desejou ser uma delas, serena e bem distante de todos os problemas. Oh, pensou, o que eu não daria para trocar de lugar com Serafina ou Cherubina, com Paulina ou Speranza?
A prioresa foi procurá-la e disse:
- Há homens da comitiva papal lá embaixo. Vieram para levá-la de volta, senhora Lucrécia.
- Santa Madre - disse Lucrécia, caindo de joelhos e enterrando o rosto no volumoso hábito preto -, eu lhe peço que não os deixe me levar.
- Minha filha, é de seu desejo renunciar a todas as coisas mundanas e ficar aqui conosco todos os dias de sua vida?
Os belos olhos de Lucrécia estavam tomados pelo espanto.
- Eles não vão permitir, Santa Madre - disse - mas deixe que eu fique por algum tempo. Rogo-lhe que me deixe ficar. Eu tenho medo de muita coisa lá fora. Aqui, encontro solidão e posso rezar como não consigo fazer no meu palácio. Aqui na minha cela fico sozinha com Deus. É assim que me sinto, e acredito que, se a senhora me der abrigo por mais algum tempo, vou saber se devo abrir mão de tudo o que está do lado de fora desses muros e tornar-me uma de vocês. Santa Madre, eu lhe imploro, dê-me esse abrigo.
- Nós não o negaríamos a ninguém - disse Girolama. Uma das freiras chegou correndo para informar a elas que havia homens nos portões querendo falar com a prioresa.
- São soldados, Santa Madre. Estão fortemente armados e parecem violentos.
- Eles vieram me buscar - disse Lucrécia. - Santa Madre, não deixe que me levem.
A prioresa foi valentemente aos portões e enfrentou os soldados, que lhe disseram que estavam com pressa e tinham ido, por ordem de Sua Santidade, para levar a senhora Lucrécia com eles.
Ela procurou refúgio aqui - disse a prioresa.
- Escute aqui, Santa Madre, trata-se de uma ordem do papa.
- Lamento. Mas uma regra desta casa é que ninguém que pedir refúgio terá esse refúgio negado.
- Essa visitante não é uma pessoa qualquer. A senhora seria tão insensata a ponto de ofender Sua Santidade? O papa Bórgia e seus filhos não amam quem se opõe a eles.
Os soldados pretendiam ser delicados; estavam avisando a prioresa de que, se ela fosse uma mulher sensata, atenderia ao pedido do papa. Mas se Girolama Pichi não era uma mulher sensata, era uma mulher corajosa.
- Vocês não podem entrar em minha casa - disse. Se o fizerem, cometerão um ato de profanação.
Os soldados baixaram os olhos; não queriam profanar um convento santo, mas ao mesmo tempo tinham suas ordens a cumprir.
Girolama encarava-os, inflexível.
- Voltem para Sua Santidade - disse ela. - Digam a ele que, enquanto a filha dele quiser refúgio, eu o darei, muito embora Sua Santidade mande que eu a libere.
Os soldados fizeram meia-volta, desconcertados pela coragem daquela mulher.
No Vaticano, o papa e seus dois filhos estavam tomados de uma raiva abafada.
Eles sabiam que nas ruas sussurrava-se que a senhora Lucrécia entrara para um convento de freiras e que o motivo era o fato de sua família estar tentando obrigá-la a fazer algo que era contra a sua vontade.
Alexandre chegou a uma de suas rápidas e brilhantes decisões.
- Vamos deixar sua irmã no convento - disse - e não faremos mais tentativas de tirá-la de lá. Essas tentativas provocam mexericos e escândalo, e, até que o divórcio esteja completo, queremos evitar isso. Vamos espalhar que a senhora Lucrécia foi mandada para San Sisto por nós mesmos, porque queríamos que ela vivesse afastada e tranquila até ficar livre de Giovanni Sforza.
E assim Lucrécia foi deixada em paz; mas, enquanto isso, o papa e os irmãos dela redobraram os esforços no sentido de obter o seu divórcio.
A vida, para Lucrécia, agora era regulada pelos sinos de San Sisto, e ela sentia-se feliz no convento em que era tratada como uma hóspede muito especial.
Ninguém lhe levava notícias, de modo que ela não sabia que os romanos continuavam a zombar do que chamavam a farsa do divórcio. Nunca estivera totalmente ciente dos escândalos que tinham circulado sobre ela e sua família, e não fazia ideia dos versos e epigramas que agora estavam sendo escritos nas paredes.
Alexandre vivia a sua vida diária com serenidade, ignorando as insinuações. Seu único objetivo era conseguir o divórcio o mais rápido possível.
Estava em permanente contato com o convento, mas não fazia tentativa alguma de convencer a filha a abandonar seu santuário. Deixava que o boato de que ela pretendia fazer os votos persistisse, percebendo que a imagem de uma Lucrécia santa era a melhor resposta a todas as coisas maldosas que estavam sendo ditas sobre ela.
Alexandre escolheu um membro de sua criadagem para levar cartas à filha e, como estava planejando que depois do divórcio iria mandá-la para a Espanha por algum tempo em companhia do irmão, o duque de Gandia, designou como mensageiro um jovem espanhol que era o seu camareiro favorito.
Pedro Caldes erajovem, bonito, e estava ansioso por servir ao papa. A nacionalidade espanhola estava do seu lado, já que Alexandre era de uma amabilidade especial para com os espanhóis; o encanto de seus modos era um deleite para o papa, que estava ansioso por que Lucrécia não ficasse muito enamorada das freiras e de seu modo de viver.
- Meu filho - disse Alexandre ao seu belo camareiro -, você vai levar esta carta à minha filha e entregá-la pessoalmente. Agora que a prioresa sabe que minha filha está no convento de San Sisto com o meu consentimento, você será admitido à presença dela. - Alexandre deu um sorriso encantador. -Você não será apenas um mensageiro; quero que saiba disso. Vai falar com a minha filha sobre as glórias de sua terra natal. Quero que você desperte nela o desejo de visitar a Espanha.
- Farei tudo o que estiver ao meu alcance, Santíssimo Senhor.
- Eu sei. Descubra se ela está levando a vida de uma freira. Não quero que minha filhinha tenha uma vida tão rigorosa assim. Pergunte se ela gostaria que eu enviasse uma companheira para ela... uma jovem encantadora da mesma idade que ela. Assegure-a de meu amor constante e diga que ela está sempre em meus pensamentos. Agora vá, e quando voltar venha me dizer como a achou.
E assim Pedro partiu para o convento, decidido a tornar sua missão um sucesso. Estava muito contente com ela; vira a senhora Lucrécia com frequência e sentira uma grande admiração por ela. Era a mais bonita das mulheres, segundo ele, e preferia sua juventude serena à beleza mais atrevida da senhora Giulia; quanto à princesa de Squillace, não o atraía nem um pouco, não passando de uma desavergonhada cortesã. Pedro achava que, comparada com mulheres como aquelas, Lucrécia era maravilhosa.
Ele ficou parado diante do convento, ao pé do Aventino, e ergueu os olhos para o prédio. Sentiu, então, que aquele era um momento fatídico de sua vida; iria ter a oportunidade de conquistar a amizade de Lucrécia, oportunidade que ele jamais pensara que poderia ter.
Deixaram-no entrar, e as freiras que passavam por ele nos corredores seguiam apressadas, de olhos baixos, praticamente sem olhar para o estranho. Ele foi levado a um pequeno aposento. Que cómodo tranquilo!
Correu os olhos à sua volta, examinando o chão de pedra e as paredes nuas, onde havia apenas um crucifixo. Os móveis consistiam em um banco duro e alguns tamboretes. Lá fora, o sol brilhante parecia muito longe, porque fazia muito frio por trás daquelas espessas paredes.
E de repente Lucrécia chegou e ficou parada à sua frente. Vestia uma túnica preta, comprida, como as freiras usavam, mas não havia coisa alguma cobrindo-lhe a cabeça, e seus cabelos dourados caíam-lhe pelas costas. Aquilo era simbólico, pensou Pedro. A exibição de toda aquela beleza dourada significava que ela ainda não decidira fazer os votos. Ele saberia quando ela os tivesse feito, porque aí ele não poderia ver aqueles cabelos dourados.
Ele fez uma mesura; ela estendeu a mão e ele a beijou.
- Venho a mando do Santo Padre - disse.
- Trouxe cartas?
- Trouxe, senhora. E espero levar uma resposta para ele.
- Seja bem-vindo.
Ele percebeu a ansiedade com que ela apanhou as cartas. Ele hesitou, e então disse:
- Senhora, Sua Santidade deseja que eu me demore um pouco e converse com a senhora, para que a senhora possa me pedir notícias do Vaticano.
- Bondade dele - disse Lucrécia com um sorriso deslumbrante. - Por favor, sente-se. Eu gostaria de lhe oferecer algo para beber e comer, mas...
Ele ergueu uma das mãos.
- Nada quero, senhora. E não poderia me sentar em sua presença, a menos que a senhora se sente primeiro.
Ela riu e sentou-se de frente para ele. Ela havia colocado as cartas no banco, mas mantinha a mão sobre elas, como se os dedos estivessem ansiosos por abri-las.
- Diga-me o seu nome - disse ela.
- É Pedro Caldes.
- Eu o via com frequência. Você é um dos camareiros de meu pai, e é da Espanha.
- Sinto-me honrado por ter sido notado pela senhora Lucrécia.
- Eu presto atenção naqueles que servem bem ao meu pai.
O rapaz ficou corado de satisfação.
- Para mim, é um duplo prazer estar aqui - disse porque não só Sua Santidade me incumbiu desta missão, mas ela é a mais agradável que já desempenhei.
Lucrécia riu de repente.
- É um prazer tornar a ouvir um cumprimento.
- Há rumores que têm deixado seu pai muito perturbado, senhora. Há quem esteja dando a entender que sua intenção é ficar aqui pelo resto da vida. - Ela ficou calada, e havia alarme nos olhos de Pedro quando ele continuou: Senhora Lucrécia, isso seria um erro... um erro!
Fez uma pausa, esperando ser dispensado por sua insolência, mas nada havia de arrogante em relação a Lucrécia. Ela apenas sorriu e disse:
- Com que então você acha que seria um erro. Explique por quê.
- Porque a senhora é bonita demais - disse ele. Ela riu de satisfação.
- Existem freiras bonitas.
- Mas a senhora devia estar enfeitando a corte de seu pai. Não devia esconder sua beleza em um convento.
- Meu pai mandou que você dissesse isso?
- Não, mas ele ficaria profundamente magoado se a senhoratomasse essa decisão.
- É agradável conversar com alguém que se importa com o que eu faço. Eu queria isolar-me de... tantas coisas. Não me arrependo de ter vindo para cá, para ficar com a querida irmã Girolama.
- Foi um refúgio agradável, senhora, mas temporário. Posso dizer a Sua Santidade que a senhora está ansiosa pelo dia em que voltará para junto de sua família?
- Não, acho que não pode. Ainda estou indecisa. Há momentos em que a paz deste lugar me domina, e penso como é maravilhoso acordar bem cedo e esperar que os sinos me digam o que fazer. A vida aqui é simples, e às vezes fico ansiosa por levar uma vida simples.
- Perdoe-me, senhora, mas se ficasse aqui iria negar o seu destino.
- Fale sobre outras coisas, não a meu respeito - disse ela.-Estou cansada de meus problemas. Como vai meu pai?
- Ele se sente solitário porque a senhora não está ao lado dele.
- Eu também sinto saudades dele. Fico ansiosa por suas cartas.
Ela olhou para elas.
- Quer que eu me retire para que a senhora possa lê-las em paz?
Ela hesitou.
- Não - disse. - Vou guardá-las. Serão algo que esperarei com prazer para fazer depois que você tiver ido embora. Como estão meus irmãos?
Uma vez mais, Pedro hesitou.
- Está tudo praticamente como estava quando a senhora os deixou.
Ela fez um gesto afirmativo com a cabeça, em que havia tristeza, pensando neles e na paixão que sentiam por Sanchia, paixão que estavam usando como mais uma base para o ódio de um pelo outro.
- O senhor vai voltar para a Espanha um dia?
- Espero que sim, senhora.
- Sente saudades de sua pátria?
- Como devem sentir todos aqueles que pertencem à Espanha e a deixam.
- Acho que sentiria a mesma coisa se fosse obrigada a deixar a Itália.
- A senhora iria adorar o meu país.
- Fale-me sobre ele.
- Sobre o que irei falar?... sobre Toledo, que está plantada numa ferradura de cavalo, feita de granito, sobre o Tejo e as imponentes montanhas? Sobre Sevilha, onde as rosas desabrocham durante o inverno, sobre as belas plantações de oliveiras, sobre o vinho que fazem lá? Dizem, senhora, que aqueles a quem Deus ama vivem em Sevilha. Eu gostaria de mostrar à senhora os palácios mouros, as ruas estreitas; e nunca as laranjas e as palmeiras são tão exuberantes quanto em Sevilha.
- Você é um poeta, creio eu.
- Eu me sinto inspirado.
- Pelo seu belo país?
- Não, senhora. Pela senhora.
Lucrécia estava sorrindo. Era inútil fingir que não gostava da companhia do jovem, que não se sentia revigorada por aquele sopro do mundo exterior; sentia-se como se tivesse tido um sono longo e profundo quando precisara dormir, mas agora os sons da vida estivessem se agitando à sua volta e ela quisesse acordar.
- Tenho muita vontade de conhecer o seu país.
- Sua Santidade deu a entender que, quando o duque de Gandia voltar para a Espanha, poderá levar a senhora com ele.
Para a Espanha! Fugir dos mexericos, da vergonha do divórcio! Parecia uma perspectiva agradável.
- Eu iria gostar... durante algum tempo.
- Seria por algum tempo, senhora. Sua Santidade nunca deixaria que a senhora ficasse muito tempo longe dele.
- Eu sei.
- E ele está tão apreensivo quanto à sua felicidade que fica preocupado ao pensar na senhora aqui. Ele pergunta: "A sua cama é dura? A senhora acha a comida sem gosto? As regras do convento a aborrecem?" E fica imaginando quem penteia os seus cabelos e os lava para a senhora. Ele diz que gostaria de enviar-lhe uma companheira, alguém que ele escolheria para a senhora. Ela deveria ser jovem, uma amiga e também uma criada. Ele me pede que leve a informação sobre se a senhora gostaria que ele fizesse isso. Lucrécia hesitou. Depois, disse:
- Rogo-lhe que transmita a minha profunda devoção a meu pai. Diga a ele que o amor que ele tem por mim não é maior do que aquele que tenho por ele. Diga-lhe que rezo todas as noites e todas as manhãs para que seja digna de sua dedicação. E diga a ele que estou feliz aqui, mas que gostei muito de sua visita e espero ansiosa a pessoa que ele vai mandar para ser minha criada e minha companheira.
- E agora, senhora, quer que eu me retire e a deixe com as suas cartas?
- Como você é delicado - disse ela. - Como tem consideração!
Ela estendeu a mão e ele a beijou.
Os lábios dele demoraram-se sobre a mão dela, e ela gostou. As freiras eram boas amigas, mas Lucrécia florescia ao ser admirada.
Ela ainda estava a salvo em seu refúgio; mas gostara daquele sopro de ar do mundo exterior.
O papa mandou chamar a jovem que ele havia escolhido para ser a companheira de Lucrécia no convento de San Sisto.
Ela era encantadora, muito bonitinha e pequena, com brilhantes olhos negros e um corpo gracioso. Alexandre a achara encantadora da primeira vez em que a vira. Ainda achava, mas no momento admirava cabelos ruivos como os de sua amante favorita.
Ele estendeu os braços quando a jovem se aproximou.
- Pantisilea - disse -, minha querida jovem, tenho uma missão para você.
Pantisilea baixou aqueles olhos maravilhosos e esperou. Estava com medo de que o Santo Padre fosse mandá-la embora. Ela andara temendo isso. Sabia que o relacionamento dos dois não poderia continuar indefinidamente; os casos amorosos do papa eram efémeros, e até mesmo o caso com Giulia Farnese não durara para sempre.
Pantisilea tivera sonhos. Quem, no seu lugar, não os teria? Ela se imaginara uma dama de substância como Vannozza Catanei ou Giulia Farnese.
Agora, começava a compreender que tinha sido levianamente escolhida para encantar uma hora de cansaço ou duas.
- Você está tremendo, minha jovem-disse Alexandre, delicado.
- É de terror, Santo Senhor, de ser mandada para longe do senhor.
Alexandre sorriu com delicadeza. Sempre era delicado com as mulheres. Acariciou, distraído, os cachos pretos; estava pensando na amante ruiva.
- Você não vai para longe de nós, minha cara; e, quando souber qual a missão que escolhi para você, vai ficar alegre, sabendo que eu poderia dar essa tarefa... não apenas a uma pessoa que eu amasse, mas a uma pessoa que eu respeitasse e em quem confiasse.
- Sim, Santidade.
- Você vai para o convento de San Sisto, para servir à minha filha Lucrécia.
O alívio de Pantisilea era evidente. A senhora Lucrécia era uma patroa delicada, e todos os que a serviam consideravam-se felizes por isso.
- Pronto - disse o papa. - Você ficou encantada, porque tem ciência da honra que lhe concedo.
- Sim, Santidade.
- Você deve ficar preparada para partir hoje. Minha filha está solitária, e quero que você a console e seja amiga dela. - Ele beliscou ternamente a macia face da jovem. E, ao mesmo tempo, minha doce jovem, vai estar sempre dizendo a ela o quanto o pai dela está sofrendo por não a ter a seu lado. Você vai lavar os cabelos dela e levará alguns dos belos vestidos e jóias que ela tem. Vai convencê-la a usá-los. Pantisilea, minha querida, dizem que minha filha quer tornar-se freira. Sei que isso não passa de conversa; mas minha filha é jovem e impressionável. Sua tarefa é lembrar a ela todos os prazeres que existem fora dos muros de um convento. Conversa de mulheres, mexericos, belas roupas! Minha Lucrécia gostava de tudo isso. Faça, minha menina, com que ela não perca esse gosto. Quanto mais cedo você tirá-la daquele lugar, maior será a sua recompensa.
- Santo Padre, minha ambição é servi-lo.
- Você é uma boa menina. E é bonita, também.
O papa tomou-a nos braços, num abraço de despedida que misturava aprovação e paixão.
Lucrécia estava pronta para gostar muito de Pantisilea. Ficou animada por ter alguém que ria com facilidade e gostava de mexericar. Serafina e as outras eram muito sérias, acreditando que havia algo de pecaminoso na risada.
Pantisilea abria baús e mostrava a Lucrécia os vestidos que levara.
- Estes lhe caem melhor do que esse hábito preto, senhora.
- Não tenho ânimo de usá-los neste lugar tranquilo explicou Lucrécia. - Eles aqui parecem uma incongruência, Pantisilea.
Pantisilea pareceu muito decepcionada.
- E seus cabelos, senhora! - insistiu. - Não estão tão dourados quanto costumavam estar.
Lucrécia pareceu ligeiramente alarmada. Era pecaminoso preocupar-se com assuntos mundanos como o adorno de sua pessoa, tinham-lhe dito as irmãs; e ela tentara não lamentar o fato de seus cabelos não serem lavados.
Explicou a Pantisilea que as irmãs não teriam aprovado se ela lavasse os cabelos com a mesma frequência que lhe era habitual. Iriam acusá-la de vaidade.
- Senhora - disse Pantisilea, com ironia -, elas não têm cabelos dourados como os seus. Eu lhe rogo que me deixe lavá-los, só para lembrá-la de como eles vão brilhar.
Que mal havia em lavar os cabelos? Lucrécia deixou que Pantisilea os lavasse.
Quando eles secaram, Pantisilea riu de satisfação, segurou fios deles e bradou:
- Mas veja, senhora, eles são ouro puro outra vez. É a cor do ouro em seu vestido de brocado verde e dourado. Senhora, estou com o vestido aqui. Vista-o.
Lucrécia sorriu para a jovem.
- Para agradar você, pequena Pantisilea.
E assim o vestido verde e dourado foi vestido, e, enquanto Lucrécia estava em pé com os cabelos dourados caindo-lhe pelos ombros, uma das freiras veio dizer que Pedro Caldes chegara ao convento com cartas do papa.
Lucrécia recebeu-o no frio aposento sem adornos.
Ele olhou fixo para ela, e ela observou o lento rubor subir-lhe pelo pescoço até a raiz dos cabelos. Ele não conseguia falar, mas ficou apenas olhando fixo para ela.
- Ora, Pedro Caldes, aconteceu alguma coisa? - disse ela.
Ele gaguejou:
- Senhora, parece que estou na presença de uma deusa. Era muito agradável estar vestindo belas roupas outra vez
e sentir a admiração daquele rapaz. Ele era atraente, e ela ficara muito tempo sem admiração.
Depois disso, ela não voltou a usar o hábito preto, e seus cabelos estavam sempre brilhando como ouro.
Nunca estava certa de quando Pedro viria, trazendo mensagens da família; e estava decidida a fazer com que aquele rapaz, que tanto a admirava, sempre a visse com os seus melhores trajes.
Pantisilea era uma companheira alegre, e Lucrécia se perguntava como suportara os longos dias antes da chegada daquela inteligente jovem.
Ficavam sentadas em quartos destinados a elas e trabalhavam em um bordado, embora Pantisilea preferisse cantar acompanhada pelo alaúde de Lucrécia. Pantisilea levara o alaúde; também mandara buscar algumas tapeçarias, para que fossem penduradas nas paredes nuas e o aposento já não parecesse uma cela. Falava sempre no mundo exterior. Era divertida e um tanto indiscreta; e talvez, pensou Lucrécia, fosse isso que fizesse a sua companhia tão emocionante; ela sentia, agora, que iria dormir na companhia das bondosas mas sérias irmãs.
Pantisilea, deliciosamente chocada, mexericava sobre a raiva de César contra o irmão e como Sanchia se alternava como amante de um e de outro. Nunca houvera alguém na corte papal como Sanchia, declarava ela. Os irmãos a visitavam abertamente, e Roma inteira sabia que eles eram seus amantes. E havia, também, o pequeno Goffredo, encantado por sua mulher estar causando tanta controvérsia e ajudando o irmão César a prevalecer sobre o irmão Giovanni.
Ela tinha uma história a contar sobre uma bela jovem de Ferrara que estava noiva.
- O senhor duque de Gandia bateu os olhos nela e ficou muito interessado em conquistá-la-disse Pantisilea - mas o pai dela estava decidido a fazer com que ela se casasse, pois o casamento era bom. Ela tinha um grande dote, e isso, juntamente com a sua beleza, era irresistível. Mas o duque de Gandia estava determinado a torná-la sua amante. É tudo muito secreto, senhora; mas agora o casamento foi adiado e há quem diga que a pessoa mascarada que é vista com frequência em companhia do duque de Gandia é essa dama.
Meus irmãos são iguais numa coisa: aquilo que querem, ficam determinados a obter.
- É verdade, e há muito mexerico em toda a Roma sobre o misterioso caso de amor do duque.
E a pessoa mascarada é essa jovem?
Ninguém pode ter certeza. Tudo o que se sabe é que na companhia do duque de Gandia há invariavelmente uma figura mascarada. Eles passeiam juntos a cavalo... às vezes com essa figura na garupa. As roupas usadas pela pessoa que acompanha o duque escondem tudo, de modo que fica impossível dizer se se trata de um homem ou de uma mulher.
- É bem característico de Giovanni atrair atenção dessa maneira. E meu irmão César? Tem uma amante mascarada?
- Não, minha senhora. O senhor cardeal não tem sido visto, exceto em cerimónias na igreja. Comenta-se que ele já não gosta mais da senhora Sanchia, e que por causa disso restaurou-se a harmonia entre os dois irmãos.
- Espero que seja isso mesmo.
- Eles têm sido vistos andando juntos, de braços dados, como verdadeiros amigos.
- É bom saber disso.
- E, senhora, o que é que a senhora vai usar? O veludo verde com a renda rosa vai muito bem com a sua beleza.
- Estou muito bem como estou.
- Senhora, e se Pedro Caldes vier?
- E se vier?
- Seria maravilhoso ele vê-la no veludo verde e na renda rosa.
- Porquê?
Pantisilea soltou a sua gargalhada alegre.
- Senhora, Pedro Caldes a ama. Está lá, nos olhos dele, para todo mundo ver... mas talvez não para todo mundo. Não para a irmã Cherubina. - Pantisilea fez uma careta que foi uma imitação razoável da virtuosa irmã. - Não, ela não reconheceria os sinais. Mas eu reconheço. Eu sei que Pedro Caldes está perdidamente apaixonado pela senhora.
- Que absurdo você está dizendo! - disse Lucrécia.
Ele estava realmente apaixonado por ela.
Ela sabia que Pantisilea tinha razão. Estava em cada gesto, no próprio tom da voz dele. Pobre Pedro Caldes! Que esperança haveria para ele?
Mas ela esperava ansiosa pelas suas visitas e estava se interessando pela aparência, como sempre fizera.
A alegre criada era uma intrigante. Frívola e sentimental, a ela parecia inevitável que Lucrécia devia envolver-se em um caso amoroso. Estava sempre falando de Pedro - de sua bela aparência, de seus modos corteses.
- Ah, que tragédia se o Santo Padre decidisse empregar um outro mensageiro! - bradou ela.
Lucrécia riu.
- Eu acredito que você está apaixonada por esse rapaz.
- Eu deveria estar, se adiantasse alguma coisa - declarou Pantisilea. - Mas o amor dele é de uma pessoa, e só dela.
Lucrécia descobriu que gostava daquelas conversas. Ficava tão agitada quanto Pantisilea, falando em Pedro. Lá, no pequeno quarto delas, que estava se parecendo cada vez mais com uma pequena câmara de um dos palácios, sentavam-se juntas, mexericando e rindo. Quando Lucrécia ouvia os sinos, quando olhava pela janela e via as freiras passando a caminho da capela, e quando ouvia o canto delas nas completas, às vezes despertava assustada de seus devaneios. No entanto, a atmosfera santificada do convento fazia com que as visitas de Pedro parecessem mais emocionantes.
Um dia, quando entrou no frio cómodo escassamente mobiliado para recebê-lo, ela percebeu que ele estava quieto e perguntou-lhe se acontecera alguma coisa para deixá-lo triste.
- Senhora - disse ele, sério -, estou triste, tão triste que acho que nunca mais voltarei a ser feliz.
- Aconteceu algo muito trágico com você, Pedro?
- A coisa mais trágica que poderia ter me acontecido. Ela estava ao lado dele, tocando a manga de seu traje com dedos delicados e ternos.
- Pode me contar, Pedro. Você sabe que eu faria tudo ao meu alcance para ajudar.
Ele baixou os olhos para a mão dela pousada na manga de sua veste, e de repente segurou aquela mão e cobriu-a de beijos; depois, caiu de joelhos e escondeu o rosto nas saias onduladas de Lucrécia.
- Pedro - disse ela, baixinho. - Pedro, você precisa me contar essa coisa trágica.
- Não posso mais vir aqui - disse ele.
- Pedro! Você está cansado dessas visitas. Você pediu ao meu pai que mandasse um outro em seu lugar.
Havia reprovação no tom de voz dela, e ele pôs-se de pé de um salto. Ela notou o brilho nos seus olhos, e seu coração pulou exultante.
- Cansado! - bradou ele. - É só por essas visitas que eu vivo.
- Então, Pedro... Ele lhe dera as costas.
- Não posso olhar para a senhora - murmurou ele. Não tenho coragem. Vou pedir a Sua Santidade que me substitua. Não tenho coragem de voltar.
- E a sua tragédia, Pedro?
- Senhora, é o fato de eu amar a senhora... que os santos me protejam!
- E isso o deixa triste? Sinto muito, Pedro. Ele se voltara para ela, os olhos em brasa.
- Como é que isso poderia fazer outra coisa que não me deixar triste? Vê-la como eu vejo... saber que um dia a ordem vai chegar e a senhora voltará para o Vaticano; e, quando estiver lá, eu não terei coragem de falar com a senhora.
- Se eu voltassse para o meu palácio, isso não iria fazer diferença na nossa amizade, Pedro. Eu ainda iria pedir que viesse me visitar, para distrair-me com a sua conversa e suas histórias de seu belo país.
- Senhora, isso é impossível. Estou ansioso por sua permissão para me retirar.
- Permissão concedida, Pedro - disse ela. - Mas... ainda vou esperar que você me visite, porque ficaria muito triste se viesse um outro em seu lugar.
Ele caiu de joelhos e, segurando-lhe as mãos, cobriu-as de beijos.
Ela sorriu para ele e observou, com prazer, como os belos cabelos pretos dele encaracolavam-se na nuca.
- Sim, Pedro - disse ela. - Eu me sentiria muito infeliz se você parasse de me visitar. Insisto em que continue. É uma ordem.
Ele se pôs de pé.
- A minha senhora é bondosa - murmurou. Depois, olhou para ela com um ardor nos olhos que a deixou emocionada. - Eu... eu não ouso me demorar mais - disse.
Ele se retirou, e depois que ele partiu ela ficou impressionada com o fato de que naquele convento de San Sisto ela passara algumas das horas mais felizes de sua vida.
César cavalgou até a casa de sua mãe para fazer-lhe uma de suas frequentes visitas. Ia pensativo, e as pessoas à sua volta tinham percebido que ultimamente vinha havendo uma certa melancolia em seu comportamento.
Ele parara de cortejar Sanchia; parara de ficar remoendo a retirada voluntária de sua irmã para o convento; tornara-se muito amável para com o irmão, Giovanni.
Quando Vannozza viu o filho aproximar-se, bateu palmas força e vários de seus escravos chegaram correndo para fazer o que ela mandasse.
Vinho, comida - bradou Vannozza. - Estou vendo meu filho, o cardeal, vindo para cá. Carlo - bradou ela para o marido, chamando-o -, venha depressa para saudar o senhor cardeal.
Carlo foi correndo para o lado dela. Carlo estava bem contente com o seu destino, que tinha trazido o casamento com a ex-amante e mãe dos filhos do papa. Ele recebera muitos privilégios, e sentia-se grato por eles. Mostrava sua gratidão com o profundo respeito dedicado ao papa e aos filhos do papa.
César abraçou a mãe e o padrasto.
- Seja bem-vindo, seja bem-vindo, filho adorado disse Vannozza com lágrimas de orgulho nos olhos. Ela nunca deixava de se impressionar com o fato de aqueles filhos maravilhosos visitarem a mãe relativamente humilde. Toda a sua adoração brilhava em seus olhos, e César a amava por causa dessa adoração.
- Minha mãe - murmurou César. Carlo declarou:
- É um grande dia para nós quando o senhor cardeal honra a nossa casa.
César estava afável. Sentou-se com a mãe e o padrasto, e enquanto eles bebiam das taças de prata que tinham sido tiradas às pressas da credenza, Vannozza lamentava não ter sido avisada da chegada do filho e não ter tido tempo de pendurar as tapeçarias nas paredes e tirar os ornamentos de majólica e peltre. Eles conversaram sobre Lucrécia e o divórcio iminente.
- Seu pai fará o que for melhor para todos vocês - disse Vannozza. - Oh, meu filho, quem dera que eu não fosse uma mulher tão humilde e pudesse fazer mais por vocês.
César pousou a mão sobre a dela e sorriu para ela; e quando César sorria, seu rosto ficava bonito. O que ele sentia pela mãe era um afeto sincero; e Vannozza, por saber o quanto outras pessoas o temiam, dava ainda mais valor àquele afeto.
Depois de terem se alimentado e bebido, César pediu que ela lhe mostrasse as flores, das quais ela tinha um justo orgulho, e eles foram para os jardins.
Perambularam por entre as plantas, o braço de César passado pela cintura dela; e já que ele estava tão delicado, Vannozza encontrou coragem para dizer-lhe o quanto ela estava satisfeita porque ele e o irmão Giovanni pareciam estar mais amigos.
- Ah, minha mãe, como as discussões são insensatas! Giovanni e eu somos irmãos. Devemos ser amigos.
- Eram apenas discussões entre irmãos - disse Vannozza, apaziguadora. - Agora que vocês estão ficando mais velhos, percebem a futilidade delas.
- É isso mesmo, mamãe. Quero que toda a Roma saiba que Giovanni e eu, agora, somos amigos. Da próxima vez em que a senhora oferecer um jantar, que seja uma reunião íntima... só para os seus filhos homens.
Vannozza parou, sorrindo de satisfação.
- Vou dar a reunião imediatamente - disse. - Para você e Giovanni. Está fazendo muito calor na cidade. Vai ser um jantar ao ar livre, nos meus vinhedos. O que é que você acha da ideia, César?
- Excelente. Faça logo, mãe adorada.
- Diga quando quer que ele se realize, meu adorado, e assim será feito.
- Amanhã é cedo demais. Depois de amanhã?
- Assim será.
- Mamãe, a senhora é uma grande amiga minha.
- E não deveria ser, meu mais adorado filho, que sempre me adorou e honrou?
Ela fechou os olhos e lembrou-se do que César fizera com todos aqueles que, pelo que ele pudera descobrir, tinham tomado parte no saque da casa dela durante a invasão francesa. Ele tinha sido brutal e muita gente havia sofrido, e Vannozza era uma mulher que não gostava de ver muito sofrimento; mas aquilo mostrava o grau de amor que César tinha por ela. "Nada", bradara ele, "nada... é severo demais para aqueles que tentaram desonrar minha mãe profanando a sua casa."
- A senhora vai ficar contente ao ver Giovanni comigo no seu jantar - disse César. - A senhora também o ama, lembre-se. É uma pena que Lucrécia não estará conosco.
- Eu teria um grande prazer em ver minha filha, e concordo que ficarei feliz ao ter Giovanni ao meu lado. Mas, meu filho, de todos os filhos há um que me encanta como nenhum outro. É você, meu adorado.
Ele lhe beijou a mão com a extravagante demonstração de amor que os membros da família tinham uns pelos outros.
- Eu sei que a senhora diz a verdade, querida mãe. Eu lhe juro, aqui e agora, que nada de mal lhe acontecerá enquanto houver força neste corpo para evitá-lo. Vou torturar e matar quem quer que ouse sussurrar uma palavra contra a senhora.
- Meu adorado, não seja tão veemente por causa de uma pobre como eu. Eu de nada preciso para me fazer feliz, exceto ver você com frequência. Abençoe-me com a sua presença com a assiduidade possível... embora eu saiba que você tem o seu destino, e não devo deixar que meu amor egoísta interfira nisso... e serei a mulher mais feliz sobre a Terra.
Ele a abraçou com força, e depois continuaram o passeio por entre as flores, planejando o jantar.
César caminhou pelas ruas, a capa escondendo suas finas roupas, a máscara escondendo-lhe as feições, a fim de que ninguém adivinhasse a sua identidade. Chegando ao bairro da Ponte, entrou numa rua estreita, esquivou-se por outra e parou em frente a uma casa. Olhando à sua volta para certificar-se de que não estava sendo seguido, passou pela porta aberta, fechando-a depois de entrar, e, descendo os degraus de pedra para um cómodo com painéis de madeira e piso de laje, bateu palmas.
Apareceu um criado, e quando César tirou a máscara o homem fez uma mesura acentuada.
- Sua patroa está aqui? - perguntou César.
- Está, meu senhor.
- Leve-me até ela imediatamente.
Foi conduzido a um quarto que era típico, de muitos cómodos parecidos, mobiliado com uma cama de dossel, cadeiras de madeira com encostos esculpidos, a imagem da Virgem com a lamparina acesa à frente.
Uma jovem muito bonita, alta e esbelta, que havia se levantado à entrada de César, caiu de joelhos à sua frente.
- Meu senhor - murmurou ela.
- Levante-se - disse César, impaciente.-Meu irmão não está aqui?
- Não, meu senhor. Ele vem daqui a duas horas. César sacudiu a cabeça.
- Chegou a hora de você cumprir o seu dever - disse ele.
- Sim, meu senhor?
César olhou para ela com uma expressão astuta.
- Você é adorada por meu irmão. Quais são os seus sentimentos para com ele?
- Eu sirvo a apenas um senhor - disse ela.
Os dedos dele apertaram a orelha dela. Era um gesto ao mesmo tempo terno e ameaçador.
- Lembre-se - disse ele. - Eu recompenso aqueles de quem exijo um serviço, e a recompensa depende da natureza do serviço que me prestam.
A jovem estremeceu, mas repetiu com firmeza:
- Eu sirvo a apenas um senhor.
- Isso é bom - disse César. - Vou lhe dizer rapidamente o que quero de você. Você vai se apresentar no vinhedo de Vannozza Catanei à meia-noite de um dia que lhe indicarei. Estará usando uma capa e uma máscara como faz sempre quando anda a cavalo com meu irmão. Vai saltar sobre o cavalo dele e ir embora com ele.
É tudo, meu senhor?
César sacudiu a cabeça.
Exceto por uma coisa. Você vai insistir em levá-lo para uma estalagem que você descobriu, e onde dirá que planejou ficar até o dia amanhecer.
- E essa estalagem?
Vou lhe dar o nome. Fica no bairro judeu.
Vamos seguir até lá depois da meia-noite!
Você não terá coisa alguma a temer se obedecer minhas instruções. - Ele segurou o rosto dela entre as mãos e beijou-a demoradamente. - Se não obedecer, minha bela...
- Ele deu uma risada. - Mas você vai se lembrar, não vai?, de que serve a apenas um senhor.
Vannozza, ainda uma mulher muito bonita, recebeu os convidados em seu vinhedo no cimo do Esquiline. A mesa estava repleta de boa comida, e o vinho era do melhor. Carlo Canale estava ao lado dela para reverenciar os distintos convidados.
- Você acha que vamos ficar bem animados apenas com o primo de seus filhos, o cardeal de Monreale, e alguns outros parentes?
- Quando meus filhos vêm me visitar, gostam de fugir de toda a pompa que em geral cerca a vida diária que eles têm.
Canale estava sempre provando o vinho, para assegurar-se de que fosse dos melhores; Vannozza observava a mesa, nervosa, e estava sempre gritando para os escravos; mas quando os convidados chegaram, deu toda a atenção a eles.
- Meus filhos adorados - murmurou, abraçando-os; mas o abraço que deu em César foi mais demorado do que aquele que teve para com Giovanni, e César percebeu.
A noite quente de verão estava encantadora; eles podiam ver a cidade lá embaixo, enquanto o fresco ar doce e o perfume das flores das campinas em volta do Coliseu chegavam até eles.
Uma noite perfeita, pensou Vannozza.
A conversa em torno da mesa era animada. César provocava Giovanni da maneira mais agradável possível.
- Ora, irmão - bradou -, você se expõe ao perigo. Ouvi dizer que cavalga por entre bandidos com apenas um cavalariço para protegê-los... a você e a sua companhia mascarada.
- Ninguém ousa fazer mal ao filho de meu pai - disse Giovanni, despreocupado.
- É, mas devia tomar cuidado.
- Já tomei a maior parte das coisas na vida - disse Giovanni, rindo -, mas raramente tomei cuidado.
- Sim, meu filho - disse Vannozza -, eu lhe peço que tenha mais cuidado. Não vá para as partes da cidade onde o perigo está à espreita.
- Mamãe, já não sou criança.
- Ouvi dizer - disse César-que ele foi visto a cavalo no bairro judeu a altas horas da noite de ontem. Isso é uma loucura.
- Loucura mesmo, meu filho - ralhou Vannozza. Giovanni riu e voltou-se para Canale.
- Mais vinho, meu pai. Este seu vinho é bom. Canale, encantado, encheu a taça do enteado, e a conversa passou para outros assuntos.
Passava da meia-noite e eles estavam se preparando para partir quando César disse:
- Ora, vejam, quem é aquela pessoa espreitando por entre as árvores?
O grupo voltou-se e, olhando, viu que, encolhida por trás de um arbusto, estava uma esguia figura mascarada.
- Parece que sua amiga veio visitá-lo - disse César.
- Parece que sim - respondeu Giovanni, e parecia satisfeito.
- Sua amiga tem de vir até à casa de nossa mãe? perguntou César.
- Talvez - disse Giovanni, rindo.
- Essa amiga fica muito ansiosa por sua companhia - disse César. - Vamos, não vamos detê-lo. Adeus, querida mãe. Foi uma noite da qual vou me lembrar por muito tempo.
Vannozza abraçou os filhos e ficou vendo-os montar em seus cavalos. Quando Giovanni já estava na sela, a criatura mascarada saltou para montar atrás dele, na garupa.
César estava rindo e dizendo aos poucos criados que levara consigo que o seguissem; e começou a cantar uma canção, no que todos os outros se juntaram a ele, enquanto desciam a encosta do monte e entravam na cidade.
Quando chegaram ao bairro da Ponte, Giovanni parou e disse ao irmão que iria deixá-lo ali. Bradou para um dos cavalariços:
- Ei, rapaz, venha comigo. Os outros... podem ir dormir.
- Para onde está indo, irmão? - perguntou César. Com toda certeza não vai para o bairro judeu?
- O meu destino - retorquiu Giovanni, com arrogância - só diz respeito a mim.
César ergueu os ombros com uma indiferença que não era comum.
- Venham - disse ele para os seus seguidores e para os criados de Giovanni que não tinham recebido ordens de acompanhá-lo -, vamos para o Borgo.
E assim se separaram de Giovanni que, com a figura mascarada na garupa e o cavalariço um pouco atrás, dirigiu-se para as ruas estreitas do bairro judeu.
Foi a última vez em que César viu Giovanni vivo.
No dia seguinte, Alexandre, esperando para receber o filho adorado, ficou decepcionado com a sua continuada ausência. O dia todo ele esperou, mas Giovanni não apareceu.
Mandou que fossem à sua casa. Ninguém o vira. Ele não havia visitado Sanchia.
Alexandre fez um muxoxo.
- Não tenho dúvida de que ele passou a noite na casa de alguma mulher e tem receio de comprometê-la se sair à luz do dia.
- Neste caso, ele está se mostrando de uma discrição fora do comum - disse César, sério.
Mas aquele dia não trouxe notícias de Giovanni, e, quando o dia ia chegando ao fim, um mensageiro foi procurar depressa o papa para dizer-lhe que o cavalariço do jovem duque, que tinha sido visto acompanhando-o, fora encontrado morto a facadas na Piazza degli Ebrei.
Toda a serenidade de Alexandre desapareceu. Ele ficou louco de angústia.
- Mandem patrulhas de busca-bradou.-Examinem todas as ruas... todas as ruas... Não descansarei enquanto não tiver meu filho nos braços.
Depois que a busca durara vários dias e não havia notícia de Giovanni, o papa ficou desesperado, mas não queria acreditar que algum mal tivesse acontecido ao filho.
- É uma travessura dele, César - repetia. - Você vai ver, ele vai chegar saltitante, rindo de nós porque nos fez de bobos. Pode estar certo.
- É uma travessura dele - concordou César.
Então, foi levado à presença do papa um barqueiro dálmata que alegava ter algo a dizer e que só diria ao Santo Padre, porque acreditava que dizia respeito ao desaparecido duque de Gandia.
Alexandre mal pôde esperar para receber o homem, e este foi imediatamente levado à presença do papa que, com César e várias autoridades da corte, o esperava ansioso.
Seu nome, disse ele, era Giorgio e ele dormia em seu barco, que estava amarrado nas margens do Tibre.
- Meu dever, Santidade - disse ele -, é proteger a pilha de madeira perto da igreja de San Gerolamo degli Schiavoni, perto da ponte Ripetta.
Sim, sim - disse o papa, com impaciência. - Mas não perca tempo. Diga-me o que sabe sobre o meu filho.
Eu sei o seguinte, Santidade, que na noite em que o duque de Gandia desapareceu, vi um homem montado num cavalo branco, e nesse cavalo ele levava o que bem podia ser o corpo de um homem. Havia dois outros homens segurando o corpo enquanto o cavalo ia até a beira do rio. Quando o cavalo chegou à água, o cavaleiro fez a volta de modo que a traseira do cavalo ficou virada para o rio; e então os dois homens puxaram aquilo que bem poderia ser um corpo, Santidade, e ele caiu no rio.
- Podemos confiar neste homem? - perguntou o papa. Ele estava com medo. Não queria acreditar nele. Enquanto o homem falava, ele imaginara aquele corpo inerte em cima do cavalo, e era o corpo de seu filho adorado.
- Não temos motivo para duvidar dele, Santíssimo Senhor - foi a resposta.
- Santidade - disse Giorgio. - Posso lhe contar mais. O corpo escorregou para dentro d'água e foi impedido de afundar pelo que parecia ser a capa, de modo que o corpo flutuou e começou a boiar corrente abaixo. Aí, o homem que estava a cavalo disse algo para os outros e eles começaram a jogar pedras na capa que flutuava. Eles jogavam as pedras repetidas vezes, até que ela afundou com o peso e desapareceu. Santidade, eles ficaram olhando durante algum tempo e depois foram embora.
- Você viu isso acontecer-disse César-e não contou a ninguém! Por que não?
- Ora, salve Vossa Eminência, eu vivo na margem do rio, e vivendo lá vejo inúmeros corpos sendo atirados na água. Não parecia haver nada de especial a comunicar a respeito desse corpo, exceto o de ter acontecido na noite sobre a qual os cavalheiros faziam perguntas.
O papa não podia aguentar mais. Uma terrível melancolia tomou conta dele.
- Nada há a fazer, a não ser dragar o rio - murmurou.
Foi assim que acharam Giovanni. Havia ferimentos na garganta, no rosto e no corpo; a lama do rio agarrava-se a suas belas roupas, nas quais as jóias ainda continuavam presas; a bolsa estava cheia de ducados, e os anéis, broches e colar, valendo uma fortuna, não tinham sido levados.
Quando Alexandre foi avisado, saiu e deteve aqueles que carregavam o corpo que ia sendo levado para o castelo de Santo Angelo. Atirou-se contra o corpo, puxou os cabelos e deu pancadas no peito, enquanto gritava de dor.
- Aqueles que fizeram isso com ele serão tratados da mesma forma! - bradou. - Nada será cruel demais para eles. Não descansarei, filho adorado, mais adorado de todos, enquanto não levar o seu assassino à justiça.
Então, voltou-se para aqueles que levavam o horrível cadáver e disse:
- Levem o meu adorado, lavem-no, ponham-lhe perfume, vistam-lhe os trajes de duque; e assim ele será enterrado. Oh Giovanni, oh meu filho adorado, quem fez essa coisa cruel com você... e comigo?
O corpo de Giovanni foi lavado e vestido nos trajes ducais, e à noite, à luz de cento e vinte archotes, foi levado do castelo Santo Angelo para Santa Maria del Popolo.
O papa não o acompanhou, e enquanto estava sentado à janela do castelo de Santo Angelo, olhando para o cortejo que serpeava iluminado por aqueles archotes, não pôde conter a dor.
- Oh Giovanni, Giovanni - gemeu -, mais adorado de todos, meu queridíssimo, por que fizeram isso com você e comigo?
Pedro Caldes foi ao convento visitar Lucrécia. Estava muito agitado quando ela o recebeu, caindo de joelhos e beijando-lhe as mãos.
- Há notícias, notícias terríveis. A senhora vai saber em breve, mas eu queria dá-las com delicadeza. Sei o quanto a senhora gostava dele. Seu irmão...
- César! - bradou ela.
- Não. Seu irmão Giovanni.
- Ele está doente?
- Ele desapareceu, e agora descobriram o seu corpo. Estava no Tibre.
- Giovanni... morto!
Ela cambaleou, e Pedro envolveu-a nos braços.
- Senhora - murmurou ele-, adorada senhora. Ela sentou-se e recostou-se em Pedro.
Ergueu os olhos para o rosto dele; os olhos estavam perplexos e cheios de dor.
- Meu irmão Giovanni... mas ele era tão jovem, tão cheio de saúde.
- Ele foi assassinado, senhora.
- Quem...?
- Ninguém sabe.
Ela cobriu o rosto com as mãos. Giovanni, pensou ela. Você, não. Não é possível. Ela o viu pavoneando-se pela ala infantil, reivindicando seus direitos, brigando com César. Brigando com César.
César não, disse para si mesma. Não podia ser César o seu assassino.
Pensamentos assim não deviam ser expressos em palavras.
Pedro mantinha os braços em torno dela. Ele contou a história, começando com o jantar no vinhedo de Vannozza, enquanto Lucrécia olhava fixo para a frente, imaginando tudo.
César estivera lá, e a pessoa mascarada ficara à espreita nos arbustos. Ideias horríveis estavam sempre penetrando em sua mente. Quem era a pessoa mascarada?
- Descobriram a pessoa mascarada? - perguntou ela.
- Não. Ninguém sabe quem era.
- E meu pai?
- Está dominado pela dor. Ninguém o tinha visto tão arrasado assim, tão diferente do que sempre foi.
- E... meu irmão, meu irmão César?
- Ele faz o possível para acalmar seu pai.
- Oh Pedro, Pedro - bradou ela -, o que será de nós?
- Senhora, não chore. Eu preferiria morrer a vê-la infeliz.
Ela tocou o rosto dele com delicadeza.
- Doce Pedro - murmurou ela. - Doce e delicado Pedro.
Ele segurou os dedos que lhe acariciavam o rosto e beijou-os desvairadamente.
- Pedro, fique comigo - pediu ela. - Fique aqui e me console.
- Senhora, eu não sou digno.
- Nunca houve uma pessoa mais delicada comigo e, portanto, mais digna. Oh Pedro, eu agradeço aos santos você ter vindo a mim, porque você vai me ajudar a suportar minha tristeza, vai me ajudar a deter o meu medo, porque, Pedro, estou com um medo desesperador.
- De quê, senhora?
- Não sei. Só sei que estou com medo. Mas quando você me envolve nos seus braços, querido Pedro, meu medo diminui. Assim... não fale em me deixar. Fale apenas em ficar comigo, em me ajudar a esquecer essas coisas horríveis que acontecem à minha volta. Pedro, doce Pedro, não fale mais em não ser digno. Fique comigo, Pedro. Ame-me... porque eu também o amo.
Dessa vez, ele beijou-lhe os lábios, atónito, pasmo, e ela respondeu aos beijos.
Havia uma agitação enorme nela.
- Pedro, estou sempre vendo. Os quadros aparecem para mim. O jantar... a figura mascarada... e meu irmão... e então Giovanni. Oh Pedro, eu preciso apagá-los. Não posso suportá-los. Estou com medo, Pedro. Ajude-me... ajude-me, meu adorado, a esquecer.
Alexandre dera ordens para que se fizesse uma busca à procura dos assassinos do filho, para que eles pudessem ser levados a julgamento, e havia rumores implicando várias pessoas, porque Giovanni tinha uma quantidade enorme de inimigos.
Dizia-se que Giovanni Sforza planejara o crime; que ele se sentia ofendido pelo afeto que havia entre sua esposa e a família dela; e Giovanni Bórgia partilhara daquele afeto com o irmão César e o pai.
Giovanni Sforza e outros suspeitos provaram logo sua inocência; havia um nome, no entanto, que ninguém ousava dizer.
O papa estava infeliz demais para expressar seus temores; tampouco queria enfrentá-los. Ficava trancado em seus aposentos, sozinho, porque temia que alguém expressasse a terrível suspeita que àquela altura ele era incapaz de enfrentar, mesmo em pensamento.
Aquela foi a maior tragédia na vida de Alexandre, e quando, poucos dias depois de o corpo de Giovanni ter sido descoberto, se viu diante do consistório, lamentou abertamente a morte do filho adorado.
- Não podia ter caído sobre nós um golpe pior declarou -, já que amávamos o duque de Gandia acima de todos os outros. Daríamos, com todo o prazer, sete tiaras se pudéssemos trazê-lo de volta. Fomos punidos por Deus por nossos pecados, porque o duque não merecia essa morte terrível.
Para assombro dos presentes, Alexandre continuou a falar e declarou que o sistema de vida no Vaticano devia ser modificado e não devia mais haver complacência com os interesses mundanos. Ele iria renunciar ao nepotismo e iniciar as reformas em sua própria casa.
Os cardeais ficaram perplexos. Nunca tinham pensado que iriam ouvir Alexandre falar daquela maneira. Era um homem mudado.
César pediu uma audiência ao pai, depois, e olhando para o rosto abatido encheu-se de um ciúme agudo enquanto se perguntava: será que ele sentiria tanta tristeza assim por mim?
- Pai-disse César -, o que foi que o senhor quis dizer com aquelas palavras que pronunciou perante os cardeais?
- Nós quisemos dizer exatamente o que dissemos replicou o papa.
César sentiu como se mãos geladas estivessem agarrando o seu corpo, percebendo que o pai não queria encará-lo.
- Então - continuou César, que não podia abandonar aquele assunto, uma vez começado -, o senhor quer dizer que não fará coisa alguma para me ajudar, para ajudar Goffredo, Lucrécia e o resto de nossa família?
O papa ficou calado.
- Pai, eu lhe peço, diga o que está pensando.
O papa ergueu os olhos para o rosto do filho e César viu ali aquilo que tivera medo de encontrar. Aqueles olhos faziam uma acusação.
Ele desconfia!, pensou César. Ele sabe.
Lembrou-se, então, das palavras que o papa dissera quando soubera da morte de Giovanni. Aqueles que fizeram isso com ele serão tratados da mesma forma. Nada será cruel demais para eles."
- Pai - disse César -, temos que ficar unidos depois de uma tragédia como esta.
- Nós queremos ficar sozinhos - disse o papa. Retire-se de nossa presença agora.
César retirou-se, preocupado. Foi procurar Sanchia.
- Eu quisera que Lucrécia estivesse aqui - disse ele. Ela poderia consolar o nosso pai. Mas ele nem perguntou por ela. Parece que ele agora não quer nenhum de nós. Não pensa em coisa alguma, exceto em Giovanni.
Mas César não conseguiu encontrar a paz com Sanchia. Precisava ir falar com o pai uma vez mais. Precisava saber se tinha interpretado certo a acusação que havia naqueles olhos.
Foi aos aposentos do papa, levando Sanchia e Goffredo, e depois de uma grande demora eles foram admitidos.
Sanchia ajoelhou-se aos pés do papa e ergueu os belos olhos azuis para ele.
- Pai, console-se - disse ela - é duplamente doloroso para seus filhos ver o senhor assim.
O papa olhou para ela com olhos frios.
- Eles brigavam por você... ele e o irmão - disse. Retire-se. Estou providenciando para que vá embora de Roma. Você vai partir em breve, com seu marido, para Squillace.
- Mas pai - começou Sanchia -, nós o consolaríamos na sua perda cruel.
- Você me consola mais ao se retirar de minha presença. Foi a primeira vez que César viu o pai ficar indiferente à beleza.
- Façam o favor de retirar-se agora, você e Goffredo disse ele a Sanchia. Depois, voltando-se para César, prosseguiu: - Eu gostaria que você ficasse.
Depois que ficaram a sós, os dois se encararam, e não havia como interpretar de forma errada o significado do olhar de Alexandre.
A voz dele tremia enquanto ele dizia:
- Eles não vão procurar mais. Não quero que descubram o assassino de meu filho agora. Eu não suportaria mais sofrimento.
César ajoelhou-se e teria segurado a mão do pai, mas Alexandre a afastou. Era como se não pudesse suportar ser tocado pela mão que abatera Giovanni.
- Quero que você vá para Nápoles - disse Alexandre - Você está nomeado cardeal legado para a coroação do novo rei.
- Pai, um outro qualquer poderia ir - protestou César.
- Nosso desejo é que você vá - disse o papa, com firmeza.-Agora, peço-lhe que se retire. Quero ficar sozinho com a minha dor.
Pedro comparecia diariamente ao convento. Quando a irmã Girolama dava a entender que suas visitas eram frequentes demais, ele tinha suas explicações: Sua Santidade estava prostrado de dor; seu único consolo vinha das mensagens da filha. Ele não queria que ela voltasse para o Vaticano, que estava de luto fechado, mas que ficasse onde estava, a fim de que ele pudesse escrever para ela e ela para ele. Queria saber detalhes da vida diária da filha. Era por isso que Pedro era tão assíduo nas visitas ao convento.
Não era verdade, mas era uma desculpa muito boa. Pode ter acontecido que as irmãs tivessem chegado à conclusão de que a bela jovem jamais seria uma delas. Talvez percebessem seu inato apego às coisas mundanas e não fizessem tentativa alguma para combatê-lo.
Lucrécia vivia em suas celas, que ela havia convertido em quartos confortáveis, e, se Pedro a visitava ali em vez de no cómodo frio e pouco mobiliado que a princípio lhes fora destinado, era um assunto entre a filha do papa e seu visitante. A empregada agia como dama de companhia, e, embora fosse uma criatura muito frívola, tinha sido escolhida para o posto pelo Santo Padre, e não cabia à prioresa reclamar.
Lucrécia mudara, mas as freiras não percebiam aparências físicas, e coube a Pantisilea dizer-lhe que seus olhos estavam mais brilhantes e que ela estava cem vezes mais bonita do que quando ela, Pantisilea, chegara para servi-la.
- É amor - disse Pantisilea.
- É um amor sem esperança - murmurou Lucrécia.
- Às vezes eu me pergunto aonde ele poderá nos levar.
Mas, quando Pedro estava com ela, ela parava de fazer a si mesma aquele tipo de perguntas práticas. Tudo o que importava para Lucrécia era a realização de seu amor, porque estava plenamente viva, agora, para a sua sensualidade.
Aquele amor começara com o sofrimento. Ela se lembrava bem do dia em que o terrível choque da morte de Giovanni fizera com que ela se voltasse para Pedro. Fora então, quando ele passara os braços em torno dela, que percebera como era profundo o amor que sentia por ele.
Amor! Era uma coisa valiosa. Valia a pena enfrentar o perigo em nome do amor; e ela descobrira isso sobre si mesma: nunca mais seria uma pessoa que recusaria o amor.
O amor enchia-lhe a vida, enchia a cela do convento, tocando a austeridade com uma luz rósea.
Descobriu que a tristeza passara, porque chegou a notícia de que até o papa saíra do isolamento, de que já não o ouviam mais chorando e chamando por Giovanni.
No dia em que Pedro levou a notícia de que o papa arranjara uma amante, ficaram todos muito alegres no quarto de Lucrécia. Só Pantisilea ficou um pouco triste, desejando que tivesse sido ela a escolhida para consolar o papa. Mas o seu lugar era com Lucrécia, de quem esperava nunca se separar. E não se separaria; Lucrécia lhe prometera.
- Você vai ficar sempre comigo, querida Pantisilea disse-lhe Lucrécia. - Quando eu sair daqui, você irá comigo. Não importa para onde eu vá, eu a levarei comigo.
Pantisilea podia sentir-se feliz, porque quando elas saíssem daquele lugar ela ainda viveria perto de Sua Santidade, e sempre havia a esperança de que ele pudesse voltar a prestar atenção nela.
As semanas passavam. O papa parecia ter esquecido por completo a sua dor. César estava voltando de Nápoles, e Alexandre preparava uma recepção para ele.
Giovanni, o filho adorado, estava morto, mas isso era coisa do passado, e os Bórgia não se lamentavam para sempre
César ficou de pé diante do pai, e agora o papa olhou direto nos olhos do filho.
- Meu filho - disse, com voz trémula.
César beijou as mãos do pai; depois, voltou para ele seus olhos suplicantes.
Alexandre ficara sozinho por um tempo longo demais, e depois de perder um filho não pretendia perder mais outro.
Porque ele era Alexandre, para ele Giovanni já se tornara uma figura indistinta, e César ali estava ao seu lado, jovem, ambicioso, forte.
Ele é o mais forte dos dois, meditava Alexandre. Vai realizar grandes feitos antes de morrer. Com ele à frente, a casa dos Bórgia irá progredir.
- Seja bem-vindo, meu filho. Seja bem-vindo, Césardisse o papa.
E César exultou, porque tudo o que fizera, agora percebia, não tinha sido em vão.
Lucrécia e Pantisilea estavam trabalhando num bordado quando Lucrécia largou o trabalho e deixou que as mãos repousassem no colo.
- Alguma coisa a preocupa, senhora? - perguntou Pantisilea.
- O que é que você acha que pode ser? - perguntou Lucrécia com rispidez.
- Achei que a senhora parecia... muito preocupada, senhora. Tenho percebido isso ultimamente.
Lucrécia ficou em silêncio. Pantisilea a observava com um certo alarme.
- Adivinhou - disse Lucrécia.
- Não pode ser, senhora. Não deve ser.
- Mas é. Eu vou ter um filho.
- Senhora!
- Por que está tão chocada? Você sabe que isso pode acontecer facilmente quando se tem um amante.
- Mas a senhora e Pedro! O que é que seu pai vai dizer? O que é que seu irmão vai fazer?
- Não tenho coragem de pensar, Pantisilea.
- Quanto tempo?
- Três meses.
Três meses, senhora! Então aconteceu no começo.
Parece que sim.
Junho, julho, agosto - contou Pantisilea. - E estamos no começo de setembro. Senhora, o que vamos fazer?
Não sei, Pantisilea. Penso, talvez, que irei para algum lugar em segredo. Essas coisas já aconteceram antes. Talvez Pedro vá comigo - Lucrécia atirou-se nos braços de Pantisilea. - Sua sortuda! -bradou ela. - Se você amasse, poderia casar-se; poderia viver com o seu marido e seus filhos, feliz pelo resto da vida. Mas, para uma pessoa como eu, não há coisa alguma que traga vantagem para a minha família a não ser o casamento. Eles me prometeram duas vezes e depois me casaram com Giovanni Sforza.
Agora que amava Pedro, ela estremecia ao lembrar-se de Giovanni Sforza.
- Em breve eles irão divorciá-la dele - consolou-a Pantisilea. - Talvez então a senhora se case com Pedro.
- Será que eles vão deixar? - perguntou Lucrécia, e toda a melancolia deixara seu rosto.
- Quem sabe... se houver um filho? Os filhos fazem muita diferença.
- Oh Pantisilea, como você me consola! Então vou me casar com Pedro e nós iremos para longe de Roma; teremos uma casa como a de minha mãe e eu terei a minha credenza, na qual vou guardar minhas taças de prata e minha majólica. Pantisilea, como seremos felizes!
- Vai me levar com a senhora?
- Como é que eu me arranjaria sem você? Você estará lá, e talvez eu lhe consiga um marido. Não, não vou lhe arranjar um marido. Você é que irá achá-lo, e deverá amá-lo como eu amo Pedro. Esta é a única maneira de se casar, Pantisilea, se a pessoa quiser viver feliz.
Pantisilea sacudiu a cabeça, mas estava apreensiva.
Lucrécia ainda tinha que se divorciar, e iria obter o divórcio porque era virgo intacta devido ao fato de o marido ter sido incapaz de consumar o casamento. Pantisilea acreditava que Lucrécia teria de aparecer perante os cardeais, talvez submeter-se a um exame. "Santa Mãe de Deus", pensou Pantisilea "protegei-nos."
Mas ela adorava Lucrécia - como a adorava! Ninguém tinha sido tão bom para ela antes. Por Lucrécia, ela mentiria; faria qualquer coisa para fazê-la feliz. Estar com Lucrécia era partilhar de sua filosofia de vida, acreditar que tudo deve dar certo e que realmente nada havia com que se preocupar. Era uma filosofia deliciosa. Pantisilea pretendia adotá-la pelo resto da vida.
- Pantisilea, será que devo procurar meu pai, contar a ele que estou esperando um filho de Pedro? Será que devo dizer-lhe que Pedro é meu marido em tudo, exceto no nome, e que ele tem de deixar que nos casemos?
Quando Lucrécia falava desse jeito, Pantisilea sentia-se voltar abruptamente à realidade.
- Sua Santidade sofreu um choque, senhora. A morte de seu irmão aconteceu há apenas três meses. Deixe que ele se recupere de um choque antes de dar-lhe outro.
- Isso deveria significar felicidade para ele. Ele adora crianças e está ansioso por que tenhamos filhos.
- Não filhos de camareiros, senhora. Eu lhe peço, aceite o conselho de Pantisilea. Espere um pouco. Escolha o momento certo para contar a Sua Santidade. Ainda há tempo.
- Mas as pessoas vão perceber.
- As irmãs? Elas não são muito observadoras. Vou lhe fazer um vestido com anáguas volumosas. Num vestido desses, seu filho poderia ficar prestes a nascer e ninguém iria saber.
- É estranho, Pantisilea, mas eu me sinto muito feliz.
- Adorada senhora, a senhora nasceu para ter filhos.
- Acho que sim. Quando penso em pegar essa criança nos braços, em mostrá-la a Pedro, fico tão feliz, Pantisilea, que esqueço todos os meus problemas. Esqueço Giovanni. Esqueço a dor de meu pai, e esqueço César e... mas não importa. É errado eu me sentir tão feliz assim.
Não, é sempre certo ser feliz. A felicidade é o verdadeiro significado da vida.
Mas meu irmão assassinado há tão pouco tempo, meu pai curvado de tanta dor, e eu já sendo mulher de um outro homem!
O tempo passa e a dor de Sua Santidade passa com ele. E Giovanni Sforza não é seu marido e nunca foi... é o que o papa queria.
Pantisilea não insistiu no assunto. Sabia que Lucrécia teria de aparecer perante a comissão de cardeais e se declarar virgem. As anáguas teriam de ser bem amplas.
O papa e seu filho mais velho eram vistos juntos com frequência, agora. No Vaticano, dizia-se: "Sua Santidade já se esqueceu do juramento de acabar com o nepotismo; já esqueceu o filho Giovanni, e todo o afeto que tinha por ele agora é dado a César."
Havia um novo relacionamento entre Alexandre e César; o choque da morte de Giovanni abalara Alexandre; César estava exultante, porque acreditava que o pai nunca mais seria o mesmo, que as posições deles tinham se alterado, muito ligeiramente, é verdade; mas havia um indício do que um dia eles seriam um para o outro.
Alexandre perdera um pouco da autoridade; César ganhara aquele pouco. Na época de sua grande dor, Alexandre parecera um homem velho; recuperara-se, mas nunca voltara a ter aquele ar de um homem no vigor dos anos.
César aprendera uma coisa de grande importância: posso fazer o que quiser, e não fará diferença. Não há nada que eu não possa fazer, e ele me ajudará a realizar minhas ambições.
Agora, o papa lhe disse:
- Meu filho, esse divórcio de sua irmã está demorando muito. Penso que devemos providenciar para que ela compareça diante da assembleia.
- Sim, pai. Ela precisa ficar livre daquele homem o mais rápido possível.
- Você não ficou ocioso enquanto esteve em Nápoles, César? Sondou o rei sobre a questão de um possível marido para sua irmã?
- Sondei, Santidade. Alfonso, o duque de Bisceglie, foi o sugerido.
O papa murmurou:
- Ilegítimo. César deu de ombros.
- É irmão de Sanchia - prosseguiu Alexandre.
- Ele é igual à irmã só na aparência - disse César.
O papa sacudiu a cabeça. Ele podia perdoar César por provocar a morte de Giovanni, porque César era um Bórgia e era seu filho; mas achava mais difícil perdoar Sanchia por ser uma das causas da inveja entre César e Giovanni.
Pensou no casamento. Aquela altura, uma aliança com Nápoles seria boa; e, se o casamento ficasse desagradável, sempre haveria meios de acabar com ele.
- Fui abordado pelo príncipe de Salerno com relação ao seu filho, Sanseverino.
- Não tenho dúvida de que o rei de Nápoles ficou sabendo e por isso ficou tão ansioso para que você examinasse a possibilidade de Alfonso de Bisceglie. Ele não iria querer ver um aliado tão firme dos franceses unido a nós por um casamento desses.
- Francesco Orsini é outro; e há o lorde de Piombino e Ottaviano Riario.
- Querida Lucrécia, embora ainda não esteja livre de um marido, tem muitos à sua espera. Que Lucrécia de sorte!
- Você está pensando no fato de não poder casar-se, meu filho.
Os olhos de César estavam, agora, brilhando de ansiedade.
- Ah, meu pai - disse -, Carlotta de Aragón, filha legítima do rei, que está sendo educada na corte da França, está em idade de se casar. Deram a entender que se eu fosse livre ela poderia ser minha esposa.
Houve um breve silêncio. Aquele pareceu a César um dos momentos mais importantes de sua vida, porque era como se o papa estivesse lutando para recuperar a velha supremacia.
Então, depois do que a César pareceu um longo tempo, Alexandre falou. Pausadamente, disse:
Um casamento desses seria vantajoso, meu filho.
César ajoelhou-se, tomado de súbita emoção. Agarrou a mão do pai e beijou-a com ardor.
Neste filho, pensou Alexandre, eu esquecerei toda a minha dor. Ele vai obter tamanha grandeza que com o tempo eu deixarei de lamentar a perda de seu irmão.
A vida, para Lucrécia, no convento de San Sisto, tinha sido uma alternância de alegria e terror.
Ela e Pedro dedicavam-se a um prazer febril que era ainda mais intenso porque sabiam que não poderia durar. Eram duas pessoas que tinham de agarrar-se a todos os momentos de felicidade, saboreando-a, venerando-a, porque não sabiam quando seria a última vez em que estariam juntos.
Pantisilea os observava, compartilhando indiretamente das suas alegrias e de sua tristeza; seus travesseiros muitas vezes ficavam molhados à noite, quando ela ficava acordada tentando vislumbrar o futuro.
Chegou aquele dia em que Pedro levou uma inevitável mensagem do papa. Lucrécia deveria preparar-se para aparecer perante uma comissão de enviados e cardeais no Vaticano. Lá, deveria ser declarada virgo intacta.
Lucrécia ficou horrorizada.
- Mas o que é que eu posso fazer? - perguntou a Pantisilea.
A pequena criada tentou consolá-la. Ela devia experimentar o vestido que Pantisilea fizera para ela. Era inverno, e todos esperariam que ela vestisse muitas anáguas, já que fazia frio no convento. Deveria ficar de cabeça bem erguida e impressionar a todos eles com a sua aparência inocente. Era preciso.
- Como poderei fazer isso, Pantisilea? - bradou ela..
Como posso ficar diante daqueles homens santos e representar essa mentira?
- A senhora tem de fazer isso, querida senhora. O Santo Padre assim ordena, e é necessário que a senhora fique livre de Giovanni Sforza. Com base em que outra justificativa a senhora poderia divorciar-se?
Lucrécia começou a dar risadas histéricas.
- Pantisilea, por que você está tão séria? Não está vendo como isso é uma piada? Estou grávida de seis meses, e vou comparecer diante da comissão e jurar que sou virgo intacta. Parece um conto de Giovanni Boccaccio. É uma piada... ou seria, se não fosse tão sério... se não pudesse acabar em tragédia.
- Querida senhora, não vamos deixar que termine em tragédia. A senhora vai fazer o que seu pai está pedindo, e, quando estiver livre, vai se casar com Pedro e irá para um lugar onde tudo será paz e felicidade para a senhora.
- Se ao menos isso pudesse acontecer!
- Lembre-se disso quando estiver diante daqueles homens, e isso lhe dará coragem. Se representar essa mentira de forma convincente, irá conseguir a sua liberdade; e, no final das contas, não é o filho de Giovanni Sforza que a senhora está esperando. A sua felicidade... e a de Pedro... depende de como a senhora agir perante a comissão. Lembre-se disso, senhora.
- Vou me lembrar - disse Lucrécia, com firmeza.
Pantisilea vestiu-a com cuidado. Astutamente, arranjou os babados de veludo, e depois de terminado ficou satisfeita com o trabalho que fizera.
- Ninguém vai adivinhar... eu juro. Mas como a senhora está pálida!
Sinto o bebé se mexendo dentro de mim, como que me repreendendo por negá-lo.
Não, a senhora não o está negando. Está fazendo uma vida feliz para ele. Não pense no passado, senhora. Olhe para o futuro. Olhe para a felicidade com Pedro, e tudo o que resultará desse dia.
- Pantisilea, minha querida ajudante, o que é que eu teria feito sem você?
- Ah, senhora, ninguém teve uma patroa mais doce do que a senhora. Se eu não pudesse servi-la, a vida seria enfadonha para mim. Qualquer coisa que eu tenha feito pela senhora foi recompensada mil vezes.
Elas se abraçaram com força, duas jovens amedrontadas.
E assim Lucrécia foi ao Vaticano e, na presença de seu pai e dos membros da comissão, ouviu a leitura, por um dos cardeais, do documento que declarava que o seu casamento com Giovanni Sforza não tinha sido consumado e que, em consequência, Lucrécia era virgo intacta. Em vista de não se tratar de um casamento de verdade, eles estavam reunidos para decretar a sua anulação.
Ela ficou em pé diante deles, e nunca os seus ares de jovem inocente lhe valeram tanto.
Os cardeais e enviados ficaram impressionados com a sua beleza e sua aparência juvenil; não precisavam de nenhuma outra prova de sua virgindade.
Disseram-lhe que ela já não estava mais casada com Giovanni Sforza, e ela respondeu com um discurso de agradecimento tão cativante que todos os presentes ficaram encantados por ela.
Houve um momento em que, sentindo a criança mexerse dentro de si, ela ficou tonta e cambaleou ligeiramente.
- Pobre menina! - murmurou um dos cardeais. Que provação para uma pessoa tão jovem e inocente!
O papa estava esperando por ela em seus aposentos privados. César estava com ele.
- Minha adorada - disse o papa, abraçando-a com ardor -, finalmente volto a tê-la em meus braços. Foi uma fase difícil para todos nós.
- Foi, pai.
- E ter você afastada de nós... isso foi o pior de tudo acrescentou César.
- Eu precisava do refúgio - respondeu ela, sem coragem de fitá-los nos olhos.
- Espero que tenha achado a pequena Pantisilea uma boa criada - disse o papa.
Lucrécia respondeu com grande entusiasmo:
- Eu adoro essa menina. Não sei o que teria feito sem ela. Mil vezes obrigada, meu pai, por mandá-la para mim.
- Eu sabia que ela iria servi-la bem - respondeu Alexandre.
- Chegou a hora de começar uma nova vida, querida irmã-murmurou César. -Agora que ficou livre de Sforza, achará a vida doce outra vez.
Ela não respondeu. Estava procurando desesperadamente coragem para contar a eles sobre o seu estado, explicar por que eles deviam abandonar todos os pensamentos de um casamento ilustre para ela, que amava Pedro e que ele era o pai do filho que ela estava esperando.
Imaginara-se repetidas vezes contando a eles, enquanto ficava deitada em sua cela reformada, e, embora parecesse ter pela frente uma grande provação, aquilo não parecera impossível. Diante deles, ela descobriu que subestimara o medo e o respeito que tinha por eles, o poder que eles tinham sobre ela.
O sorriso de Alexandre era quase velhaco.
- Há muita gente suplicando com veemência pela sua mão, minha filha.
- Pai... não quero pensar neles.
César aproximara-se rapidamente dela e passara um braço em torno dela.
- O que é que você tem, Lucrécia? Você parece doente.
Receio que tenha passado privações em seu convento.
Não... não. Lá, eu tive conforto.
- Aquilo não é lugar para uma pessoa como você.
Mas você está pálida e parece exausta - disse o papa.
- Deixem-me sentar por um instante - pediu Lucrécia.
Os dois homens a observavam atentamente. Só Alexandre percebeu o quanto ela estava amedrontada, e apontou um banco para ela.
César falou-lhe sobre os homens que estavam ansiosos por se casarem com ela.
- Francesco Orsini... Ottaviano Riario... e há o irmão de Sanchia, o pequeno duque de Bisceglie.
De repente, Alexandre disse:
- Isso foi uma grande provação para a menina. Ela agora precisa de descanso. Seus aposentos foram preparados para você, minha querida. Você vai para lá imediatamente.
César estava prestes a protestar, mas o papa voltara a ser o homem decidido de antigamente. Estava batendo palmas, e escravos surgiam.
- As damas da senhora Lucrécia devem levá-la até seus aposentos - ordenou ele.
Quando ficou sozinho, Alexandre colocou-se diante do oratório em seus aposentos. Não estava rezando; olhava para ele e havia rugas em sua testa; o rico sangue púrpura manchava-lhe o rosto, enquanto nas têmporas uma pulsação era visível.
Era impossível. Mas não era impossível. O que será que andara acontecendo no convento aqueles meses todos? Ele ouvira histórias do que podia acontecer e realmente acontecia em conventos. Mas não no de San Sisto.
Não ousara expressar suas suspeitas diante de César. Sim, tinha medo do filho. Se César tivesse adivinhado o que lhe ia na mente, poderia ter feito qualquer coisa, por mais imprudente que fosse. César não deveria saber, por enquanto... se fosse verdade. Mas aquela coisa monstruosa da qual ele desconfiava não devia ser verdade.
Agradeceu aos santos o fato de a mente de César estar concentrada com tanta frequência em seus próprios problemas que ele não fora tão perceptivo quanto o pai. César estivera sonhando com a saída da Igreja e o casamento com Carlotta de Nápoles, mesmo enquanto Lucrécia se achava diante deles, e não percebera como fora completa a mudança nela. Será que aqueles meses de vida tranquila no convento de San Sisto poderiam ter feito aquela mudança? Só eles não.
Mas ele precisava ter cuidado. Tinha de se lembrar de seus desmaios. Não seria bom para ele ficar doente agora, porque, se aquilo de que ele desconfiava fosse verdade, iria precisar de todo o engenho para lidar com o caso.
Ele precisava esperar. Tinha de recuperar a sua equanimidade; tinha de lembrar a si mesmo que ele era Alexandre, que surgira triunfante depois da morte de Calixto - Alexandre, que em todas as ocasiões transformava a derrota em vitória.
Por fim, dirigiu-se aos aposentos da filha.
Lucrécia estava deitada na cama, e apenas Pantisilea estava sentada ao seu lado. Havia lágrimas nas faces de Lucrécia, e a visão delas encheu o coração de Alexandre de ternura.
- Deixe-nos a sós, minha querida - disse ele a Pantisilea; os olhos negros da jovem tinham uma expressão de medo e, no entanto, de adoração quando encontraram os dele. Era como se ela implorasse que ele, graças à sua grande ternura, ao seu poder e à sua compreensão, salvasse a sua querida patroa.
- Pai! - Lucrécia teria se levantado, mas Alexandre colocou uma das mãos em seu ombro e delicadamente forçou-a a recostar-se de novo nos travesseiros.
- O que é que você tem a me dizer, minha filha? perguntou ele.
Ela olhou para ele com ar de súplica, mas não conseguiu falar.
Precisa me contar-disse ele, delicado. - Só se você contar é que eu poderei ajudá-la.
- Pai, estou com medo.
Medo de mim? Sempre não fui benevolente com você?
- O pai mais bondoso do mundo, Santíssimo Senhor. Ele segurou a mão dela e beijou-a.
- Quem é ele? - perguntou.
Os olhos dela se arregalaram, e ela encolheu-se contra os travesseiros.
- Você não confia em mim, filha?
Ela se ergueu de um salto e atirou-se nos braços dele; começou a soluçar alucinadamente; ele nunca vira a sua serena pequena Lucrécia tão emocionada.
- Minha adorada, minha adorada-murmurou ele -, pode me contar. Pode me contar tudo. Não vou ralhar com você, seja lá o que tiver para contar. Eu não a amo acima de qualquer outra coisa no mundo? Não é a sua felicidade o meu objetivo mais constante?
- Dou graças aos santos pelo senhor - soluçou Lucrécia.
- Não vai me contar? Então, tenho de contar a você. Você vai ter um filho. Quando, Lucrécia?
- Deve ser em março. O papa ficou pasmo.
- Daqui a três meses. Tão cedo! Eu não teria acreditado.
- Pantisilea foi muito esperta... oh, que grande consolo, pai. Obrigada por mandá-la. Eu não poderia ter tido uma amiga mais querida. Vou adorá-la para sempre... enquanto eu viver.
- Ela é uma ótima pessoa - disse o papa. - Foi bom ela confortá-la. Mas diga-me, quem é o pai do seu filho?
- Eu o amo, pai. O senhor vai permitir o nosso casamento?
- É difícil eu negar alguma coisa à minha filha.
- Oh, pai, pai adorado, quem dera que eu tivesse vindo procurá-lo antes. Como fui tola! Eu estava com medo. Quando o senhor não estava ao meu lado, eu não o via como o senhor realmente é. Eu o via como o poderoso papa decidido a fazer para mim um casamento politicamente vantajoso. Eu me esquecera de que o Santo Padre de todos nós era, primeiro, meu querido pai.
- Então está na hora de ficarmos juntos outra vez. O nome do homem?
- É o seu camareiro, Pedro Caldes.
O papa embalava-a nos braços, de um lado para o outro.
- Pedro Caldes - repetiu ele. - Um belo rapaz. Um de meus camareiros favoritos. E ele a visitava no seu convento, é claro.
- Foi quando ele me levou a notícia da morte de Giovanni, pai, e fiquei muito infeliz. Ele me consolava.
O papa abraçou-a com força; por um instante, seu rosto ficou distorcido de raiva e angústia. Meu adorado Giovanni, assassinado, estava ele pensando; minha filha, grávida de um camareiro!
Mas quando Lucrécia olhou para ele, seu rosto estava com a habitual expressão de ternura e benevolência.
- Minha filha querida - disse -, devo confessar que estou perplexo.
Ela segurou as mãos dele e cobriu-as de beijos. Como estava súplice, olhando para ele com aqueles olhos adoradores mas amedrontados; ela o fazia lembrar-se da mãe dela no auge da paixão deles.
- Pai, o senhor vai me ajudar?
- Você duvida... por um só instante? Que vergonha, Lucrécia! Mas temos de ser cautelosos. Você obteve o divórcio porque se acreditava que seu marido fosse impotente e você fosse virgem.
Apesar do horror do papa com a situação que tinha pela frente, não pôde deixar de sorrir. Era uma situação que, sob quaisquer circunstâncias, ele deveria achar essencialmente engraçada.
- O que acha que os nossos virtuosos cardeais vão dizer se descobrirem que a encantadora e inocente jovem virgem que compareceu diante deles com um aspecto tão decoroso estava com seis meses de gravidez? Ah, Lucrécia, minha inteligente, minha astuta filha, isso não seria bom, em absoluto. Poderíamos até ter Sforza reivindicando a criança e jurando que ela é dele. Então, onde ficaria o nosso divórcio? Temos de agir, agora, com o máximo de cautela. O caso deve ser mantido em segredo. Quem sabe disso?
- Ninguém, a não ser Pedro e Pantisilea. O papa sacudiu a cabeça.
- Ninguém deve saber, minha filha.
- E, pai, posso me casar com Pedro? Queremos ir embora de Roma, para viver com calma e felizes em algum lugar, juntos, onde ninguém se preocupe conosco e com o que fizermos; onde possamos levar uma vida pacífica e feliz, como gente comum.
O papa afastou os cabelos que estavam no seu rosto quente.
- Minha adorada-disse ele -, você tem de deixar esse caso comigo. O mundo vai saber que a provação pela qual você passou foi muito forte. Você vai ficar em seus aposentos em Santa Maria in Pórtico e, até que tenha recuperado a saúde, ninguém irá servi-la, exceto a fiel Pantisilea. Enquanto isso, vamos descobrir o que pode ser feito para fazê-la feliz.
Lucrécia recostou-se nos travesseiros e as lágrimas correram-lhe lentamente pelas faces.
- Na verdade - disse ela -, Alexandre VI, o senhor não é um homem; o senhor é um deus.
A senhora Lucrécia estava doente. Durante dois meses, depois que deixara o convento, ficara confinada em seus aposentos, e só sua criada Pantisilea e os membros da família tinham permissão para visitá-la.
Os cidadãos de Roma riam entre si. O que significava aquilo? O que é que a senhora Lucrécia andara fazendo durante a sua permanência no convento? Eles se lembravam de que, no final das contas, ela era uma Bórgia. Dentro de poucos meses, será que haveria uma criança no Vaticano, um pequeno ou uma pequena infanta que o papa, na sua benevolência, decidira adotar?
César ouvia os rumores e declarava que iria vingar-se de quem os repetisse.
Foi à presença do pai e disse-lhe o que estava sendo comentado.
- É inevitável - disse o papa. - Sempre há esse tipo de histórias com relação a nós. O povo precisa delas como precisa do carnaval.
- Não vou admitir que digam essas coisas de Lucrécia. Ela precisa sair do isolamento. Deve aparecer em público.
- César, como é que ela poderia fazer isso?
O papa estava olhando para o filho, impressionado com o egoísmo de César, que estava esperando pelo dia em que fosse liberado pela Igreja para se casar com Carlotta de Nápoles e assumir o comando dos exércitos papais. Aquela imagem em sua mente era tão grande que toldava todas as outras. Devia ter sido assim quando ele providenciou o assassinato de Giovanni. A dor de seu pai nada era, se comparada com suas grandiosas ambições. Ele até mesmo desconhecia a situação de Lucrécia, o que parecia fantástico porque, se tivesse pensado por um instante no caso, sem dúvida teria sido óbvio.
- Aparecendo em meio ao povo - replicou César. Estava na hora de ele perceber a verdade da situação. No fim do mês, ou no início do seguinte, o filho de Lucrécia iria nascer. Ele teria de saber.
- Só iria confirmar os rumores - disse Alexandre.
Agora César ficou realmente perplexo. O papa observou o sangue quente subir depressa para o seu belo rosto.
É verdade - prosseguiu Alexandre. - Lucrécia está grávida. Além do mais, o nascimento é iminente. César, eu me pergunto como é que você não percebeu.
Alexandre franziu o cenho. Ele compreendia o quanto Lucrécia ficaria aterrorizada por César ter descoberto o seu estado. Ela e a pequena Pantisilea teriam de ser duplamente cuidadosas quando César fosse visitá-la.
- Lucrécia... ter um filho! O papa deu de ombros.
- Essas coisas acontecem - disse ele, despreocupado.
- Enquanto estava no convento! - César cerrou os punhos. - Então era por isso que ela estava tão contente lá. Quem é o pai?
- Meu filho, não deixemos que nossos ânimos se exaltem. Este é um caso para o qual precisamos de toda a nossa astúcia, de toda a nossa calma. É lamentável, mas, se quisermos que esse casamento que estamos planejando para Lucrécia se realize, não vai nos ajudar se se tornar público que, enquanto se achava de pé diante dos cardeais declarando-se virgo intacta, ela, na verdade, estava com uma gravidez de seis meses. Este tem de ser o nosso pequeno segredo.
- Quem é o pai? - repetiu César.
O papa continuou como se ele não tivesse falado.
- Ouça o meu plano. Ninguém cuidará dela, a não ser Pantisilea. Quando a criança nascer, será imediatamente levada embora. Já entrei em contato com uma boa gente que irá aceitá-la e cuidar dela. Eu os recompensarei bem, porque lembre-se de que se trata de meu neto, um Bórgia, e nós precisamos de muitos Bórgia. Talvez daqui a alguns anos eu mande trazer a criança para o Vaticano. Talvez eu supervisione a sua criação. Mas durante alguns anos tem de ser como se não existisse filho algum.
- Eu quero saber o nome desse homem - insistiu César.
- Você está zangado demais, César. Devo avisá-lo, meu filho, de que a raiva é o maior inimigo daqueles que a deixam conquistá-los. Mantenha a sua raiva acorrentada. Foi o que aprendi a fazer quando era muito moço. Não mostre raiva contra esse rapaz. Eu não mostrarei. Compreendo o que o fez agir como ele agiu. Vamos, César, será que você e eu, em circunstâncias semelhantes, não agiríamos exatamente da mesma maneira? Não podemos culpá-lo. - A expressão do papa mudou muito ligeiramente. - Mas saberemos lidar com ele quando chegar a hora.
- Ele vai morrer - bradou César.
- Tudo ao seu tempo - murmurou o papa. - No momento... em que tudo fique em paz. Há a minha pequena Pantisilea. - O tom de voz do papa demonstrava tristeza, e seu sorriso era terno. - Ela sabe de muita coisa. Pobre criança, esse conhecimento não é bom para ela.
- Pai, o senhor é sensato. Sabe lidar com assuntos como este, mas eu preciso saber o nome desse homem. Não vou descansar enquanto não souber.
- Não faça nada precipitado, meu filho. O nome dele é Pedro Caldes.
- Ele não é um de seus camareiros? O papa sacudiu a cabeça.
César tremia de raiva.
- Que ousadia! Um camareiro, um empregado... e minha irmã!
O papa colocou a mão no ombro do filho e ficou alarmado com os tremores que sacudiam César.
- Seu orgulho é grande, meu filho. Mas lembre-se... cautela! Você e eu vamos saber como resolver este caso. No momento, no entanto, o melhor método é a cautela.
Cautela! Em César, ser cauteloso não fazia parte de sua natureza. Os acessos de raiva que ele tinha na infância ficavam mais frequentes à medida que ele ficava mais velho, e ele achava que se tornava cada vez mais difícil controlá-los.
Sua mente, agora, estava dominada por um único quadro: sua irmã com o camareiro. Estava obcecado pelo ciúme e pelo ódio, e no seu coração havia a vontade de matar.
O papa insistira na cautela, mas ele já não obedecia ao papa. Depois da morte do irmão, descobrira a fraqueza do pai. Alexandre não se lembrava de lamentar-se por muito tempo. Esquecia as más ações da família; parava de lamentar os mortos e dedicava toda a sua atenção aos vivos. O grande afeto de que ele era capaz - por evanescente que pudesse ser era intenso enquanto durava; e tinha de ser dirigido a alguém. César ficara com o afeto que o pai dera a Giovanni como se se tratasse de um título ou de uma propriedade. César sabia que não precisava ter medo de perder o afeto do pai, não importava o que fizesse. Era por isso que se sentia poderoso, invencível. Alexandre era o lorde da Itália, e Alexandre iria dobrar-se à vontade do filho.
De modo que quando Alexandre dizia "cautela", por que iria ele dar ouvidos àquele aviso, a menos que o quisesse?
Um dia, ficou cara a cara com Pedro Caldes em uma das ante-salas que levavam aos aposentos papais, e a raiva de César explodiu de tal maneira que ele perdeu todas as lembranças do aviso de seu pai.
- Caldes, pare! - bradou César.
- Meu senhor... - começou o assustado camareiro -, o que deseja de mim?
- A sua vida - disse César, e desembainhou a espada. O assustado rapaz fez meia-volta e saiu correndo para os aposentos do papa. César, agarrando a espada, foi atrás.
Pedro, ofegante e aterrorizado, ouvia a risada cruel de César atrás dele; uma vez, a espada de César tocou-lhe a coxa, e ele sentiu o sangue quente escorrer pela perna.
- Está perdendo tempo em correr - bradou César. Você vai morrer pelo que teve a ousadia de fazer à minha irmã.
Desmaiando de medo, Pedro chegou ao trono papal, no qual Alexandre estava sentado; com ele estavam dois de seus camareiros e um dos cardeais. Pedro bradou:
- Santo Padre, salve-me... salve-me, se não eu morro!
- E atirou-se aos pés de Alexandre.
César alcançou-o. Alexandre se levantara, a expressão de horror e cheia de avisos.
- Meu filho, meu filho, desista - bradou. - Guarde a sua espada.
Mas César limitou-se a rir e a investir contra o camareiro, enquanto Alexandre se inclinava para a frente a fim de proteger Pedro, de modo que o sangue saltou e manchou a túnica do papa, e até respingou em seu rosto.
Aqueles que estavam com o papa recuaram, perplexos, enquanto Alexandre abraçava Pedro e erguia os olhos para o rosto transtornado do filho.
- Largue a espada - disse ele, ríspido, e houve uma volta de Alexandre que por benevolente que fosse, sempre soubera subjugar os filhos. - Não traga suas querelas ao nosso trono sagrado.
César riu outra vez, mas sentiu uma vez mais aquele respeito temeroso do pai que ele ficou surpreso ao descobrir que não dominara de todo.
Obedeceu, enquanto dizia com truculência:
- Que ele não pense que isso é o fim da nossa rixa. Depois, deu meia-volta e retirou-se do recinto.
- O sangue quente da juventude! - murmurou Alexandre. - Ele não tem a intenção de ser tão impetuoso. Mas quem de nós não foi impetuoso na juventude? Mandem cuidar dos ferimentos deste jovem e... para segurança dele, mantenham-no sob vigilância.
Pantisilea curvou-se sobre a cama. Lucrécia murmurou:
- Está começando, Pantisilea.
- Fique deitada, senhora. Vou mandar um recado para o Santo Padre.
Lucrécia acenou com a cabeça.
- Ele cuidará de tudo.
Pantisilea despachou um escravo até o Vaticano com um anel de sinete que o papa lhe dera e que deveria ser um sinal entre eles de que Lucrécia estava precisando de uma parteira. Naquele caso, decidira o papa, nenhuma palavra deveria ser escrita. Quando recebesse o anel, ele saberia o motivo, e por nenhuma outra razão o anel deveria ser-lhe enviado.
- Como sou abençoada por ter um pai assim - murmurou Lucrécia. - Oh Pantisilea, por que não fui procurá-lo logo? Se tivesse ido, agora eu e Pedro poderíamos estar casados. Como faz tempo que não vejo Pedro! Ele deveria estar perto de mim agora. Como eu ficaria feliz se ele estivesse aqui. Vou pedir a meu pai para trazê-lo para o meu lado.
- Sim, senhora, sim - tranquilizou-a Pantisilea.
Ela estava um pouco angustiada. Ouvira rumores sobre o desaparecimento de Pedro Caldes, mas não falara com Lucrécia. Aquilo iria perturbá-la, com os trabalhos de parto tão próximos.
- Eu sonho, sabe? - disse Lucrécia. - Sonho o tempo todo. Vamos ter de sair de Roma. Isso será necessário por algum tempo, não tenho dúvida. Vamos viver tranquilos alguns anos em algum lugar distante... mais distante ainda do que Pesaro; mas não acho que meu pai vai permitir que fiquemos longe dele para sempre. Ele irá nos visitar; e como vai adorar o neto! Pantisilea, você acha que vai ser um menino?
- Quem sabe, senhora? Não vamos rezar para que seja menino ou menina, mas para que lhe traga uma grande felicidade.
- Você fala como um sábio, Pantisilea. E, veja, suas faces estão molhadas. Você está chorando. Por que está chorando?
- Porque... porque é tão bonito! Uma nova vida prestes a começar... o fruto do seu amor. Isso é bonito e me faz chorar.
- Pantisilea querida! Mas primeiro há as dores a suportar, e confesso que estou com medo.
- Não deve ter medo, senhora. As dores vêm, e depois... vem a bênção.
- Fique comigo, Pantisilea. Fique comigo o tempo todo. Prometa.
- Se me deixarem.
- E depois que a criança nascer, quando tivermos o nosso pequeno lar, você estará conosco. Não deve fazer com que o neném goste demais de você, Pantisilea, senão ficarei com ciúme.
A resposta de Pantisilea foi debulhar-se em lágrimas tempestuosas.
- É porque isso é muito bonito - repetiu ela. - Quase bonito demais para ser verdade.
A parteira chegou. Estava mascarada e acompanhada por dois homens, também mascarados. Eles ficaram esperando do lado de fora da porta do quarto de Lucrécia, e a parteira aproximou-se da cama.
Examinou Lucrécia e deu ordens a Pantisilea. Os dois homens permaneceram do lado de fora da porta durante o parto de Lucrécia.
Lucrécia despertou da exaustão e perguntou pela criança. Ela foi colocada em seus braços.
- Um garotinho - disse Pantisilea.
- Acho que vou morrer de felicidade - murmurou Lucrécia. - Um filho meu. Quem dera que Pedro estivesse aqui. Ele deve estar ansioso por ver o filho, não deve? Pantisilea, quero que você traga Pedro até aqui.
Pantisilea sacudiu a cabeça.
- Quero que o traga imediatamente A parteira se aproximara da cama.
- A senhora está cansada e precisa repousar - disse.
- Quero ficar com o meu filho nos braços – disse Lucrécia -, e quando o pai dele estiver aqui comigo, vou me sentir completamente descansada.
- Sua empregada será mandada imediatamente para buscar o pai da criança. Isso já foi combinado - disse a parteira. Ela se voltou para Pantisilea: - Vista a sua capa e prepare-se para partir agora mesmo.
- Eu sei onde encontrá-lo - começou Pantisilea.
- Você será levada até ele.
Lucrécia sorriu para Pantisilea, e os olhos da pequena criada estavam arregalados de satisfação.
- Não vou me demorar nem um instante-bradou ela.
- Vou agora mesmo.
- Você será levada até lá. Vai encontrar o seu guia esperando na porta.
- Não vou me demorar, senhora - disse Pantisilea; ajoelhou-se ao lado da cama e beijou a mão de Lucrécia.
- Vá, Pantisilea - murmurou Lucrécia. - Vá a toda velocidade.
Os olhos de Lucrécia seguiram Pantisilea até a porta. Então, a parteira inclinou-se sobre a cama.
- Senhora, eu vou levar a criança agora. Ele precisa dormir no berço. A senhora precisa de descanso. Tenho um preparado aqui que vai fazê-la dormir. Tome-o e durma por muito tempo e profundamente, porque vai precisar de suas forças.
Lucrécia tomou o preparado, beijou a cabeça loura da criança, deu o menino à parteira e tornou a recostar-se nos travesseiros. Em poucos minutos estava dormindo.
Um dos homens que tinham estado esperando do lado de fora da porta dos aposentos de Lucrécia adiantou-se quando Pantisilea saiu.
- Siga-me - disse ele, e, juntos, os dois saíram do palácio para o pátio, onde um cavalo os esperava.
Já anoitecera e só havia o luar para iluminar as ruas quando Pantisilea, na garupa com o seu guia, afastou-se do palácio. Eles deixaram o bairro populoso e foram para a margem do rio.
Quando estavam perto da beira, o cavaleiro parou.
- Está uma noite linda, Pantisilea - disse.
Ela olhou para o pálido luar refletindo-se na água e achou maravilhoso. O mundo todo parecia bonito porque ela se sentia feliz. Sua senhora dera à luz, sem problemas, um belo menino, e ela estava indo buscar Pedro para levá-lo para o lado de Lucrécia. Estivera pensando no futuro deles enquanto cavalgava.
- Sim - disse ela -, está uma beleza. Mas não vamos nos deter. Minha senhora está ansiosa por ver Pedro Caldes.
- Não há pressa - disse o homem. - Sua patroa vai dormir por muito tempo. Ela está exausta.
- Eu preferiria prosseguir imediatamente até o nosso destino.
- Muito bem, Pantisilea.
Ele desceu do cavalo com um salto.
- Aonde é que você vai? - perguntou ela.
A resposta dele foi erguê-la do cavalo. Ela correu os olhos à sua volta, à procura de alguma casa onde Pedro pudesse estar se abrigando, mas não viu casa alguma.
- Como você é pequena, Pantisilea, e muito jovem disse o homem.
Ele curvou a cabeça e beijou-lhe os lábios. Ela ficou perplexa, mas não contrariada. Fazia tempo que um homem não a acariciava. Ela riu baixinho e disse:
- Este não é o momento. Quero ser levada imediatamente para onde está Pedro Caldes.
- Você pediu, Pantisilea - disse o homem.
Ele colocou delicadamente as mãos na cabeça dela e desceu-as lentamente até as orelhas, acariciando-as. Ela ergueu os olhos para o rosto dele; ele não estava olhando para ela; parecia estar olhando fixamente para o rio banhado pelo luar. Os olhos estavam fixos e vidrados, e de repente um medo terrível tomou conta de Pantisilea.
Por um instante de ofuscante compreensão, ela percebeu, mesmo antes de acontecer.
Então sentiu as mãos descerem para a sua garganta.
Lucrécia acordou. Era dia claro.
Estivera sonhando. Encontrava-se num belo jardim no interior; seu garotinho estava no berço, e ela e o pai dele estavam curvados sobre o berço, olhando para o menino.
Um sonho feliz, mas apenas um sonho. E ali estava o dia, e ela estava acordada.
Não estava sozinha no quarto; havia um homem sentado de cada lado da cama e ela sentiu a batida seca de seu coração. Tinham-lhe prometido Pedro; e ele não viera; e onde estava Pantisilea?
Esforçou-se para se levantar.
- Você deve descansar - disse Alexandre. -Você precisa de suas forças, minha querida.
- Papai-murmurou ela; e então voltou-se para a outra figura. - E César - acrescentou.
- Viemos dizer-lhe que está tudo bem - disse César. Ele falou em tons incisivos interrompidos, e ela percebeu que ele estava zangado. Ela se esquivou dele e voltou-se para o pai. A voz de Alexandre estava delicada como sempre.
- Eu quero o meu filho - disse ela. - Papai, é um menino. O senhor vai adorá-lo.
- Vou - disse o papa. - Dentro de alguns anos ele estará conosco.
Ela sorriu.
- Ah, papai, eu sabia que poderia contar com o senhor para cuidar de mim.
A bela mão branca deu tapinhas na dela.
- Minha filhinha - murmurou Alexandre. - Minha inteligente filhinha.
Ela segurou a mão dele e beijou-a.
- Ora - disse Alexandre, animado -, não há com que se preocupar. Tudo foi resolvido. Dentro em pouco você voltará à sua vida normal, e este caso sem importância, embora tenha havido alguns rumores horríveis, terá sido esquecido
- Papai, Pedro...
- Não fale o nome dele - disse César, áspero.
- César, adorado irmão, compreenda. Eu amo Pedro. Ele é o pai do meu filho e em breve será meu marido. Nosso pai tomou as providências.
- Minha adorada - disse o papa -, infelizmente, não pode ser.
O alarme fez com que ela se erguesse com dificuldade.
- Minha filha querida-murmurou o papa. - Está na hora de você saber a verdade.
- Mas eu o amo, papai, e o senhor disse... Alexandre se voltara e se afastara, e levou um lenço aos olhos.
César disse, num tom quase perverso:
- O corpo de Pedro Caldes foi retirado do rio Tibre ontem. Você perdeu o seu amante, irmã, perdeu-o para a morte.
Ela deixou o corpo cair de volta nos travesseiros, os olhos fechados. O papa inclinou-se sobre ela, carinhoso.
- Foi muito de repente - disse ele. - Minha doce, doce filha, quem dera que eu pudesse sofrer as suas dores em seu lugar.
Um sorriso de sarcasmo contorceu os lábios de César enquanto ele olhava para o pai.
Ele queria gritar: "Com ordens de quem o camareiro foi assassinado? Minhas e suas. E com razão. Será que ela já não denegriu o nosso nome o suficiente, envolvendo-se com criados?"
Em vez disso, disse:
- Há uma outra pessoa que se juntou a ele lá... a sua criada, Pantisilea. Você jamais tornará a ver a cara dela de novo.
Lucrécia cobriu o rosto com as mãos; queria tapar a visão daquele quarto e dos homens que estavam sentados de cada lado de sua cama. Eles eram seus guardiães; eram seus carcereiros. Ela não podia viver uma vida que não fosse projetada por eles. Não podia dar um passo sem eles; se tentasse fazê-lo, eles providenciavam para que ela só encontrasse desgraça.
Pedro no rio! Pensou nele com os ferimentos no corpo ou, talvez, as contusões na garganta; talvez nem uma coisa nem outra. Talvez o tivessem envenenado antes de jogá-lo no rio.
Pedro, o belo rapaz. O que é que ele tinha feito, a não ser amar Lucrécia?
E a pequena Pantisilea. Não a ver nunca mais. Ela não podia suportar. Havia um limite para a tristeza que uma pessoa podia sentir.
- Retirem-se... retirem-se - gaguejou ela.-Mandem trazer o meu filho... e vão embora... vão embora, estou mandando.
Fez-se silêncio no quarto. Nem César nem Alexandre se mexeram.
- A criança está sendo bem-cuidada, Lucrécia. Você não tem com que se preocupar em relação a ela.
- Eu quero o meu filho - bradou ela. - Quero o meu filho. Quero ele aqui... nos meus braços. Vocês assassinaram o homem que eu amo. Vocês assassinaram a minha amiga. Não há nada que eu queira de vocês, agora, exceto que me dêem o meu filho. Eu vou embora. Vou morar sozinha com o meu filho... nunca mais quero tornar a ver este lugar...
- É Lucrécia que está falando? É Lucrécia Bórgia? disse César.
- É - bradou ela. - Sou eu, e ninguém mais. Nós cometemos um erro - disse Alexandre, rápido. Demos essa notícia de forma muito rude. Acredite-me, filha adorada, há vezes em que um corte afiado da faca é melhor. A cicatrização pode começar imediatamente. Foi um erro seu... uma Bórgia, nossa filha adorada... envolverse com um criado. E o fato de ter havido um filho foi... criminoso. Mas nós a amamos muito e compreendemos suas emoções. Nós as perdoamos como perdoaríamos todos os seus pecados. Nós somos fracos e amamos você com ternura. Nós a salvamos da desgraça e da tragédia, como devemos fazer sempre. Você é o nosso querido tesouro, e nós a amamos como não amamos a ninguém mais. Eu e seu irmão temos esse sentimento para com você e, juntos, nós a salvamos das consequências de um grave pecado e de uma grande loucura. As pessoas que compartilharam dessa aventura não existem mais; por isso, não há o perigo de elas a traírem. Quanto à criança, é um belo menino, e eu já gosto muito dele. Mas você tem de se despedir dele... ah, só por um curto período. Assim que possa ser providenciado, vou trazê-lo de volta para nós. Ele é um Bórgia. Esperneou e gritou comigo. Deus o abençoe. Ele está nas melhores mãos; tem uma mãe de criação digna. Ela cuidará dele como se fosse seu filho... não, melhor ainda. Ela não terá coragem de deixar que nada de mal aconteça ao nosso pequenino Bórgia. E uma coisa eu lhe prometo, Lucrécia: daqui a quatro anos... não, três, nós o teremos conosco, vamos adotar o nosso robusto menino, e assim ninguém poderá apontar para ele e dizer: "Lá vai o bastardo da Lucrécia com o pobre camareiro."
Ela ficou em silêncio. O sonho desaparecera; ela não conseguia entender a realidade. Por enquanto. Mas sabia que entenderia. Sabia que não tinha outra coisa a fazer.
César segurara-lhe a mão, e ela sentiu os lábios dele tocarem-na.
- Adorada - disse ele -, nós vamos arranjar um casamento ilustre para você.
Ela teve um estremecimento.
- É muito cedo para falar dessas coisas - disse Alexandre, em tom de reprovação. - Isso é para mais tarde.
Mesmo assim, ela não falou.
Eles continuaram ali sentados. Cada um segurava uma de suas mãos, que de vez em quando curvavam-se para beijar.
Ela sentia-se despojada de toda felicidade; e, no entanto, estava cônscia de um vago consolo que lhe chegava por intermédio daqueles beijos.
Estava ficando ciente da inevitabilidade do que acontecera. Começava a perceber como seus sonhos tinham sido bobos.
Lucrécia estava sendo vestida para o seu casamento. Suas damas a cercavam, admirando o vestido, pesado de tanto bordado de ouro e cheio de pérolas. Rubis brilhavam em torno de seu pescoço, e o desenho no vestido apresentava as armas de Aragón e dos Bórgia entrelaçadas.
Fazia apenas uns meses que ela dera à luz o seu filho, mas agora recuperara a placidez exterior; e, de pé em seus aposentos enquanto era vestida com seus finos trajes, parecia não estar pensando em outra coisa a não ser na cerimónia que estava para acontecer.
Sanchia estava com ela.
Lucrécia voltou-se devagar e sorriu para a cunhada. Quem iria pensar que seria Sanchia que lhe levaria tamanho consolo em sua desgraça?
Fora Sanchia que lhe falara sobre seus inúmeros casos amorosos, que explicara que no começo a pessoa tinha um sentimento muito intenso. As pessoas não se lembravam do primeiro baile, das primeiras jóias? Era assim com os casos de amor. Sanchia não sabia disso? Sanchia não era uma profunda conhecedora do amor?
Sanchia falara sobre o seu irmãozinho. Ele era delicado; era bonito; e todos gostavam muito dele. Lucrécia iria abençoar o dia em que tinha recebido o irmão de Sanchia, Alfonso, duque de Bisceglie, como marido.
Sanchia estava agitada com a perspectiva da chegada do irmão a Roma, e inspirava Lucrécia com esse entusiasmo. Oh, pensava Lucrécia, como estou contente por ter Sanchia comigo nesta hora!
Ela era uma Bórgia. Não devia esquecer-se disso. Para onde quer que olhasse, via o emblema do touro pastando. Não devemos sonhar com um amor e um casamento simples, dizia para si mesma. Isso é para gente simples, gente sem um grande destino.
Ela era a adorada do pai e do irmão. Era como se eles tivessem esquecido que um dia ela tentara desafiá-los. Em algum lugar de Roma-talvez nem mesmo em Roma um garotinho estava sendo criado pelos pais postiços, e dali a poucos anos viria para o Vaticano. Ele era tudo o que restava daquele breve idílio que lhe dera a vida e levara tanto sofrimento para sua mãe e a morte para duas pessoas que a tinham amado muito.
Um Bórgia não remoía os pensamentos. O passado nada era, o presente e o futuro tinham o máximo de importância.
Ela estava pronta, agora, para ir ao encontro do marido.
Jean Plaidy
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