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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MÃE TERRA - P.2 / J. M. Auel
A MÃE TERRA - P.2 / J. M. Auel

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

- Porque não vamos dar uma volta com os cavalos? – propôs Ayla suavemente ao homem deitado ao seu lado. - Ontem pareciam agitados e inquietos. Eu também estou. Quando puxam o atrelado não podem correr livremente. É um trabalho árduo, mas não o tipo de exercício de que gostam.

Jondalar sorriu.

- É uma boa ideia. E Jonayla?

- Talvez Hollida possa tomar conta dela, se a Zelandoni as vigiar- disse Ayla.

Jondalar sentou-se.

- Onde se meteu a Zelandoni? Não está aqui.

- Ouvi-a levantar-se mais cedo. Deve ter ido falar com o Quinto- respondeu Ayla. - Se deixarmos Jonayla, talvez o melhor seja deixar o Lobo também, embora não saiba bem o que pensam dele as pessoas desta caverna. Pareciam um pouco nervosas ontem à noite quando comíamos. Isto não é a Nona Caverna... É melhor levarmos Jonayla connosco. Posso levá-la na manta de transporte. Ela gosta de montar.

Jondalar afastou as peles de dormir e levantou-se. Ayla seguiu-o, deixando a bebé que havia dormido a seu lado a acordar enquanto ia fazer chichi.

 

 

 

 

- Choveu ontem à noite- informou Ayla quando regressou.

- Não estás contente por teres dormido cá dentro? - inquiriu Jondalar.

Ayla não respondeu. Não tinha dormido bem. Não conseguira ficar confortável, mas de facto não se molharam e a tenda arejara.

Jonayla virara-se de barriga para cima e erguia a cabeça. Ayla encaminhou-se para o rio e lavou-se, bem como à filha, na água corrente, um procedimento a que a bebé já estava habituada, apesar de a água estar fria. Vestiu-se e depois procurou um lugar confortável para se sentar frente ao abrigo de pedra e amamentar a menina.

Entretanto, Jondalar encontrara os cavalos no vale, não muito longe dali, e trouxera-os de volta para o abrigo para colocar mantas de montar no dorso de Whinney e Racer. Por sugestão de Ayla, também prendeu duas canastras em equilíbrio na garupa da égua, mas teve alguma dificuldade quando Gray aproximou o focinho da mãe com intenção de mamar. No momento em que se preparavam para ir ao abrigo principal daquela caverna, Lobo regressou. Supôs que tinha ido caçar, mas apareceu tão repentinamente que assustou Whinney, o que por sua vez surpreendeu Ayla. Habitualmente, Whinney era uma égua tranquila e o lobo não costumava alarmá-la; era Racer o mais inquieto, mas os três cavalos pareciam nervosos. E Lobo também, pensou Ayla quando o animal se encostou às suas pernas como que a pedir atenção. Ela mesma sentia-se estranha. Algo parecia errado. Olhou para o céu para ver se ameaçava tempestade; uma capa de nuvens altas e brancas deixava à vista alguns pedaços de azul. Provavelmente todos necessitavam de uma boa corrida.Jondalar colocou os cabrestos em Racer e Gray. Também fizera um para Whinney, mas Ayla usava-o apenas em situações especiais. Mesmo antes de se aperceber que estava a treinar Whinney, ensinara a égua a segui-la; e na realidade ainda não o considerava como treino. Quando mostrava a Whinney o que devia fazer, e repetia a instrução várias vezes até que ela a entendesse, a égua obedecia por vontade própria.

Quando já tinham tudo preparado, dirigiram-se para o abrigo do Zelandoni da Quinta Caverna e, uma vez mais, perante a procissão de homem, mulher, bebé, lobo e cavalos, as pessoas interromperam o que tinham entre mãos para os contemplar, evitando a descortesia de os olhar diretamente. Tanto o Quinto como a Primeira saíram do abrigo.

- Venham tomar a refeição da manhã connosco- convidou o homem.

- Os cavalos estão nervosos e decidimos levá-los para fazerem um pouco de exercício e ver se acalmam- informou Jondalar.

- Bem, ao menos entrem para tomar uma infusão e prepararemos comida para levarem- propôs o Zelandoni da Quinta.

Ayla e Jondalar olharam um para o outro e perceberam que não aceitar podia constituir uma ofensa para a Quinta Caverna.

- Aceitamos, obrigado- disse Jondalar, levando a mão à bolsa que trazia presa à cintura e tirando o seu copo. Ayla fez o mesmo e entregou-o a uma mulher que servia a bebida quente junto à fogueira. Ela encheu os recipientes e devolveu-os.

Ao invés de pastarem, os cavalos permaneciam inquietos. Whinney dançava sem sair do lugar, bufando alto. Cray começava a imitar os sintomas de nervosismo da mãe e Racer caminhava de lado com o pescoço esticado. Ayla tentou tranquilizar a égua acariciando-lhe o pescoço e Jondalar tinha de puxar a corda do cabresto para segurar o corcel.

Ayla olhou para o outro lado do riacho que dividia o vale e viu algumas crianças irrequietas. Viu-as entrar e sair dos abrigos como flechas e, de súbito, teve a sensação de que isso era perigoso, embora não soubesse em que residia o perigo. Quando se preparava para dizer a Jondalar que tinham de ir, umas quantas pessoas trouxeram-lhes pacotes de comida envoltos em couro. Agradeceram enquanto guardavam os recipientes nas canastras equilibradas em Whinney. Não tardaram a montar e a abandonar o vale.

Quando chegaram a um campo aberto, deixaram de refrear os cavalos para que corressem. Ayla experimentou uma sensação de euforia e passou-lhe um pouco o nervosismo, mas não de todo. Por fim os cavalos cansaram-se e abrandaram a marcha. Jondalar reparou num arvoredo à distância e guiou Racer nessa direção. Ayla viu para onde ia e seguiu-o. A potra, que corria já tão depressa quanto a mãe, ia logo atrás. O lobo manteve-se ao lado delas; também ele apreciava uma boa corrida.

Quando se aproximaram das árvores, viram um pequeno charco, obviamente alimentado por um manancial, que já ultrapassava as margens formando um pequeno riacho que atravessava o campo. Contudo, ao chegarem perto, Whinney estacou, quase derrubando Ayla. Esta rodeou a filha com o braço, que levava sentada à sua frente, e apressou-se a desmontar. Notou que Jondalar também tinha problemas com Racer. O garanhão empinava-se, relinchava, e o homem não teve outro remédio senão desmontar.

Ayla apercebeu-se de um ruído surdo e prolongado, sentindo-o e ouvindo-o ao mesmo tempo, e tomou consciência do que se passava há já algum tempo. Olhou para a frente e viu elevar-se a água do charco como se alguém tivesse apertado a nascente e lançado um esguicho para o ar. Foi só nessa altura que reparou que o chão se movia.

Ayla sabia do que se tratava. Já antes sentira a terra mover-se sob os seus pés e uma onda de pânico tomou conta dela. A terra não devia mexer-se. Lutou para não perder o equilíbrio. Aterrorizada, agarrou-se à filha, temendo dar um passo que fosse. Viu que a erva do campo, alta até ao joelho, efetuava uma estranha dança enquanto a terra gemente se agitava de uma maneira pouco natural ao som de uma música quase inaudível produzida no seu interior. Mais à frente, o pequeno arvoredo próximo do manancial amplificou o movimento da terra. A água elevou-se e caiu de novo, redemoinhou na margem, arrancou a terra do leito e cuspiu lama. Sentiu o odor da terra pura; depois, com um estalido, um abeto começou a inclinar-se para o lado, mostrando as suas raízes.

O tremor pareceu durar uma eternidade. Ayla rememorou outros tempos e perdas associadas ao movimento da terra gemente. A tremer, fechou os olhos e chorou de dor e medo. Jonayla desatou também a chorar. De repente, Ayla sentiu uma mão no ombro, uns braços em torno dela e da bebé que ofereciam consolo e segurança. Encostou-se ao peito quente do homem que amava e a menina aquietou-se. Pouco a pouco, deu-se conta de que o tremor passara e que a tensão dentro dela diminuía.

- Oh, Jondalar, foi um tremor de terra! - exclamou- Odeio tremores de terra.

Tremia nos braços dele. Embora não o tivesse dito- porque expressar os pensamentos em voz alta podia dotá-los de poder-, pensou que os tremores de terra eram malignos. Aconteciam sempre coisas terríveis quando a terra tremia.

- Eu também não os aprecio- disse ele, abraçando a sua pequena e frágil família.

Ayla olhou em redor e fixou-se no abeto caído perto do manancial. Assaltou-a uma inesperada memória de uma cena passada. Estremeceu.

- O que se passa? - perguntou Jondalar.

- Aquela árvore- respondeu.

Ele virou a cabeça para onde ela olhava e viu a árvore, derrubada e com as raízes expostas.

- Lembro-me de ter visto muitas árvores caídas e inclinadas como aquela, e outras atravessadas no rio. Deve ter acontecido quando eu era ainda muito pequena... - contou, hesitante-, antes de viver com o Clã. Creio que foi quando perdi a minha mãe e a minha família. Iza disse que eu já andava e falava; penso que devia ter cinco anos quando ela me encontrou.

Depois de lhe contar a sua experiência, Jondalar abraçou-a até voltar a acalmar-se. Embora tivesse sido um relato breve, compreendeu melhor o terror que ela sentiu em menina quando um tremor de terra assolou o mundo que a rodeava e a vida tal como ela a conhecia chegou ao fim.

- Achas que se repetirá? Às vezes, quando a terra se move assim, não acalma de imediato. Volta a tremer- explicou Ayla quando desfizeram o abraço.

- Não sei- disse ele. - Mas talvez seja melhor regressarmos ao Vale Velho e verificarmos se estão todos bem.

- Claro! Estava tão assustada que não pensei em mais ninguém. Espero que estejam todos a salvo. E os cavalos, onde estão os cavalos? - gritou Ayla, olhando em redor. - Estarão bem?

- Para além do susto, creio que devem estar bem. Racer empinou-se e obrigou-me a desmontar. Depois começou a correr em círculos. Tanto quanto me apercebi, Whinney não se mexeu, e Gray ficou ao seu lado. Devem ter saído a galope quando o tremor parou.

Ao longe, num campo plano, Ayla avistou os animais e suspirou de alívio. Com o seu assobio especial chamou-os e viu que Whinney levantava a cabeça e começava a andar na sua direção. Racer e Gray seguiram-na, com Lobo logo atrás.

Quando os cavalos e o lobo chegaram, Ayla estava mais calma. Montou, Jondalar passou-lhe Jonayla e ela olhou para o local onde a árvore continuava inclinada num ângulo precário. Não tardaria a cair, tinha a certeza.

Quando se puseram em marcha em direção ao Vale Velho, escutaram um estalido violento e, quando se voltaram para trás, viram o abeto chocar contra o solo. De regresso à Quinta Caverna, Ayla pensou nos cavalos e no significado do seu comportamento recente.

- Achas que os cavalos sabiam que a terra ia abanar assim, Jondalar? Seria por isso que se comportavam de forma tão estranha? - indagou ela.

- Estavam bastante nervosos, isso é certo- respondeu Jondalar. - Mas ainda bem. Por isso viemos dar uma volta e estávamos em campo aberto quando aconteceu. Creio que é mais seguro estar aqui; não há o risco de que nos caia qualquer coisa em cima.

- Mas a terra pode abrir-se sob os teus pés- argumentou Ayla.

- Penso que foi isso que aconteceu à minha família. Recordo-me do odor da terra profunda, a humidade e decomposição. Mas não me parece que os terramotos sejam todos iguais. Uns são mais intensos do que outros, e a maioria consegue sentir-se a longa distância, mas não com a mesma intensidade.

- Quando eras pequena, devias estar muito próxima do sítio onde começou o tremor, se todas as árvores caíram e o chão se abriu. Não creio que estivéssemos assim tão próximos. Só caiu uma árvore.

Ayla sorriu.

- Aqui também não há muitas árvores, Jondalar.

Ele devolveu-lhe o sorriso.

- Isso é verdade, e mais uma razão para se estar num lugar como este quando a terra treme- declarou ele.

- Mas como saberemos quando a terra vai voltar a tremer?

- Prestamos atenção aos cavalos! - exclamou ele.

- Quem me dera ter a certeza de que isso funciona sempre- desejou Ayla.

Quando se aproximaram de Vale Velho notaram uma atividade pouco habitual. Quase toda a gente parecia fora dos seus abrigos, e muitos apinhavam-se frente a um deles. Desmontaram e levaram os cavalos a pé até ao abrigo que ocupavam, contíguo àquele onde as pessoas se haviam juntado.

- Aí estão vocês! - exclamou a Primeira. - Fiquei preocupada quando a terra começou a tremer.

- Estamos bem. E tu? - perguntou Ayla.

- Também, também, mas a Quinta Caverna tem alguns feridos, um muito grave- explicou a mulher. - Talvez possas dar uma vista de olhos.

Ayla percebeu o tom de inquietude na sua voz.

- Jondalar, podes ficar com os cavalos e ver como está tudo? Vou ficar aqui e ajudar a Zelandoni- informou.

Seguiu a corpulenta mulher até a um abrigo onde jazia um                 rapaz sobre uma pele de dormir estendida no solo, com o lado da pelagem para baixo e assim proporcionar uma superfície mais fofa. Haviam colocado mais almofadas e mantas por baixo dele para elevar ligeiramente a cabeça e os ombros. Mesmo por baixo da cabeça tinha peles suaves e flexíveis manchadas de sangue, que continuava a correr. Tirou Jonayla da manta de transporte, estendeu-a no chão e deitou a bebé. Lobo sentou-se ao seu lado. Logo depois apareceu Hollida.

- Eu tomo conta dela- ofereceu-se a menina.

- Ficar-te-ia muito grata- disse Ayla.

Viu ali perto um grupo de pessoas que pareciam consolar uma mulher e compreendeu que devia tratar-se da mãe do rapaz. Sabia como se sentiria se aquele fosse o seu filho. Cruzou um breve olhar com a Primeira e percebeu que a lesão do menino era mais do que séria. Era lúgubre.

Ayla ajoelhou-se para o examinar. Estava deitado sob a luz do Sol, se bem que umas nuvens altas lhe roubavam a intensidade. A primeira coisa que notou foi que estava inconsciente, mas respirava, embora de maneira lenta e irregular. Sangrara muito, mas isso era normal em feridas na cabeça. Mais alarmante era o líquido rosado que lhe saía pelo nariz e pelas orelhas. Significava que o osso do crânio se fraturara e a substância interior estava danificada, o que não era bom sinal. Ayla entendeu a preocupação da Primeira. Abriu as pálpebras ao menino e observou-lhe os olhos: uma pupila contraiu-se com a luz; a outra, mais dilatada, não reagiu, outro mau indício. Virou-lhe ligeiramente a cabeça para que a mucosidade ensanguentada que lhe corria da boca saísse para o lado e não lhe entupisse as vias respiratórias.

Teve de reprimir a reação de abanar a cabeça para que a mãe não adivinhasse as poucas esperanças que albergava. Levantou-se e olhou intensamente para a Primeira, comunicando-lhe o seu fatídico prognóstico. Afastaram-se para o local onde o Zelandoni da Quinta Caverna as observava. Algumas pessoas tinham ido procurá-lo quando o rapaz se magoou e ele já o examinara. Havia pedido à Primeira que o visse também, para confirmar o seu diagnóstico.

- O que vos parece? - perguntou o homem em voz baixa, olhando para a mulher mais velha e depois para a mais nova.

- Creio que não há esperanças- respondeu Ayla num sussurro.

- Concordo- replicou Aquela Que Era a Primeira. - Não há muito que possa fazer-se com uma ferida assim. Não só perdeu sangue, como também outros fluidos do interior da cabeça. A ferida não tardará a inchar e será o fim.

- Foi o que pensei. Terei de o dizer à mãe- afirmou o Zelandoni da Quinta.

Os três zelandonia aproximaram-se do pequeno grupo que tentava confortar a mulher que se encontrava sentada no chão não muito longe do rapaz. Quando viu as expressões nos rostos dos três zelandonia, a mulher largou a chorar. O Zelandoni da Quinta Caverna ajoelhou-se ao lado dela.

- Lamento, Janella. A Grande Mãe está a chamar Jonlotan à Sua presença. Estava tão cheio de vida e de alegria que a Doni não pode prescindir dele. Ama-o demasiado- disse o homem.

- Mas eu também o amo. A Doni não o pode amar mais do que eu. É muito pequeno. Porque tem de o levar agora? - protestou Janella, entre soluços.

- Voltarás a vê-lo quando regressares ao seio da Mãe e caminhares no outro mundo- argumentou o Quinto.

- Mas não quero perdê-lo agora. Quero vê-lo crescer. Não há nada que possas fazer? Tu és a Zelandoni mais poderosa de todas- suplicou a mãe do menino olhando para a Primeira.

- Podes ter a certeza de que se houvesse alguma coisa que eu pudesse fazer, estaria a fazê-la. Não imaginas o quanto me dói dizer-to, mas não há nada que eu possa fazer por alguém com uma ferida tão grave- explicou Aquela Que Era a Primeira.

- A Mãe tem tantos, porque o quer também a ele? - inquiriu Janella.

- Essa é uma pergunta cuja resposta não nos é dada a conhecer. Lamento, Janella. Devias ir ter com ele enquanto respira e confortá-lo. O seu elã deve agora encontrar o caminho para o outro mundo e por certo estará assustado. Ainda que não o demonstre, ficará grato pela tua presença- disse a mulher corpulenta e poderosa.

- Ainda respira. Crês que poderá acordar? - indagou Janella.

- É possível- respondeu a Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Mãe.

Várias pessoas ajudaram a mulher a levantar-se e conduziram-na até ao filho moribundo. Ayla pegou na sua pequena, abraçou-a e agradeceu a Hollida, depois dirigiu-se para o abrigo onde estavam alojados. Os outros dois zelandonia juntaram-se a ela.

- Oxalá pudesse fazer alguma coisa. Sinto-me tão impotente- desabafou o Zelandoni da Quinta Caverna.

- Todos nos sentimos assim em momentos como este- afirmou a Primeira.

- Quanto tempo viverá? - inquiriu ele.

- É difícil dizer. Pode aguentar alguns dias- retorquiu a Zelandoni da Nona Caverna. - Se quiseres, podemos ficar, mas pergunto-me qual a extensão do tremor de terra e se foi sentido na Nona Caverna. Temos algumas pessoas que não foram à Reunião de verão...

- Devem ir e ver como estão- disse o Quinto. - É impossível saber quanto tempo o menino viverá, e tu és responsável pela Nona Caverna, e deves velar pelo seu bem-estar. Eu farei o que for necessário, como tantas outras vezes. Enviar o elã de alguém para o outro mundo não está entre as minhas responsabilidades preferidas, mas deve ser feito, e é importante que seja bem feito.

Naquela noite todos dormiram fora dos abrigos de pedra, a maioria em tendas. Temiam entrar ali, onde podiam cair rochas, e só entravam a correr para buscar o que necessitavam. Sentiram umas quantas réplicas, e uma ou outra rocha desprendeu-se das paredes e dos tetos, mas nada tão pesado como a que caíra na cabeça do rapaz. Ainda demoraria algum tempo até que as pessoas se voltassem a sentir bem no interior de um abrigo de pedra, mas quando o frio e a neve do inverno periglacial chegassem, esqueceriam o perigo dos desprendi-mentos e alegrar-se-iam por se poderem proteger do tempo.

A procissão composta por pessoas, cavalos e um lobo pôs-se em marcha na manhã seguinte. Ayla e a Primeira pararam para ver o menino e a mãe. Experimentavam sentimentos contraditórios em relação à sua partida. Por um lado, desejavam ficar e ajudar a mãe a lidar com a perda, por outro estavam preocupadas com os que haviam permanecido no refúgio de pedra da Nona Caverna.

Viajaram para sul, seguindo o sinuoso caudal do Rio para jusante. A distância não era grande, mas tinham de voltar a atravessar o Rio, subir as Terras Altas e tornar a descer, porque a tortuosa corrente, numa das secções, batia nas paredes rochosas. Ainda assim, graças aos cavalos, a expedição foi mais fácil e rápida. A meio da tarde, avistaram a parede vertical de pedra calcária que albergava o grande refúgio da Nona Caverna, com a coluna que parecia prestes a cair lá no alto. Aguçaram a vista para ver se conseguiam detetar alguma diferença que os alertasse para possíveis danos no seu lar e respetivos habitantes.

Chegaram ao vale do Bosque e atravessaram o pequeno rio que desembocava no Rio. Umas quantas pessoas esperavam no extremo norte da entrada de pedra orientada para sudoeste quando eles começaram a subir o caminho. Alguém vira-os chegar e avisara os outros. Quando passaram frente ao canto saliente onde estava a fogueira de alerta, Ayla viu que ainda fumegava e perguntou-se a razão.

Como a Nona Caverna era muito populosa, os que não haviam assistido à Reunião de verão eram quase tantos como os que compunham toda a população de algumas cavernas menores, embora em proporção fosse um número comparável ao de outros grupos. A Nona Caverna era a mais povoada, ainda mais do que a Vigésima Nona e a Quinta, constituídas por vários abrigos de pedra. O lar era enorme e tinha espaço suficiente para albergar comodamente os seus numerosos habitantes, e mais gente. Além disso, a Nona Caverna contava com indivíduos peritos em áreas diversas e tinham muito para oferecer. Por conseguinte, desfrutavam de um grande prestígio. Muitos desejavam ingressar na caverna, mas esta só podia admitir uma quantidade determinada e tendiam a ser seletivos, elegendo aqueles que reforçavam a sua importância.

Todos os que não tinham ido à Reunião de verão e estavam capazes, saíram para ver a chegada dos viajantes, e muitos ficaram boquiabertos. Nunca haviam visto a sua Donier num assento puxado pelo cavalo de Ayla. Esta parou para que a Zelandoni se apeasse do atrelado, o que ela fez com dignidade. A Primeira viu uma mulher de meia-idade, Stelona, que considerava equânime e responsável, e que ficara na Nona Caverna para tomar conta da mãe doente.

- Estávamos de visita à Quinta Caverna quando sentimos um forte tremor de terra. Também o sentiram, Stelona? - inquiriu a Primeira.

- Sentimos, e as pessoas apanharam um susto, mas não foi muito forte. Caíram algumas rochas, mas quase todas na zona de reunião, não aqui. Ninguém ficou ferido- disse Stelona, antecipando a pergunta seguinte da Zelandoni.

- Fico contente. A Quinta Caverna não teve tanta sorte. Um menino sofreu uma ferida mortal ao cair-lhe uma pedra na cabeça. Infelizmente não vai recuperar. Pode até estar já a caminhar para o outro mundo- disse a Donier. - Tiveste notícias das cavernas vizinhas, Stelona? Da Terceira? Da Décima Primeira? Da Décima Quarta?

- Apenas pelo fumo das suas fogueiras de sinalização, informan-do-nos de que estavam lá e não precisavam de ajuda imediata- respondeu Stelona.

- Ainda bem, mesmo assim creio que irei avaliar os danos que sofreram, se alguns... - afirmou a Donier. Depois virou-se para Ayla e Jondalar. - Querem vir? E talvez trazer os cavalos? Podem ser úteis se alguém precisar de ajuda.

- Hoje? - perguntou Jondalar.

- Não, estava a pensar amanhã bem cedo.

- De bom grado irei contigo- ofereceu-se Ayla.

- E eu também- acrescentou Jondalar.

Ayla e Jondalar descarregaram o atrelado de Racer, deixando nele as próprias coisas, e arrumaram os demais pacotes na saliência frente à zona de habitação, depois conduziram os cavalos puxando os atrelados quase vazios até deixar para trás a parte do abrigo ocupado pela maioria das pessoas. Eles viviam no outro extremo do espaço habitado, se bem que a saliência de pedra protegia uma secção muito mais ampla, usada apenas de vez em quando, exceto nos lugares arranjados para os cavalos. Ao percorrerem a zona dianteira do abrigo, não puderam deixar de reparar na presença de alguns fragmentos de rocha caídos, mas nenhum demasiado grande.

Quando chegaram à grande pedra lisa perto da beira da entrada frontal na qual Joharran e os outros às vezes se colocavam quando desejavam dirigir a palavra a um grupo, Ayla perguntou-se quando teria caído e qual a causa do seu desprendimento. Teria sido um terramoto, ou caíra por si só? De súbito, os abrigos de pedra, que tanta proteção ofereciam, já não transmitiam a mesma sensação de segurança.

Quando começaram a conduzir os cavalos sob a saliência que levava ao seu espaço, Ayla questionou-se se se recusariam a entrar como na noite anterior. Mas estavam familiarizados com o lugar e, pelos vistos, não pressentiram qualquer perigo. Entraram logo, o que lhe proporcionou uma enorme sensação de alívio. Na realidade, não havia proteção quando a terra decidia abanar, nem dentro nem fora, mas se os cavalos voltassem a preveni-la, preferia estar no exterior.

Soltaram os dois atrelados e deixaram-nos no sítio habitual, depois levaram os cavalos para os recintos que haviam feito para eles. Não os deixavam fechados. Aquelas estruturas por baixo da saliência eram para comodidade dos animais, que podiam entrar e sair quando desejassem. Ayla levou-lhes água do riacho alimentado por um manancial que separava a Nona Caverna do rio Abaixo, e deitou-a nos seus bebedouros, embora os cavalos pudessem facilmente ir bebê-la ao arroio. Queria assegurar-se de que tinham água durante a noite, sobretudo o mais jovem.

Apenas durante a época do cio, na primavera, impunham restrições aos cavalos. Não só os privavam de liberdade, fechando o cercado, como lhes colocavam os cabrestos e os prendiam a postes. Mas Ayla e Jondalar dormiam habitualmente por perto para afugentar os garanhões que eram atraídos pela égua. Ayla não queria que Whinney fosse capturada por um garanhão e levada para a sua manada e Jondalar não desejava que Racer corresse dali para fora e ficasse ferido numa luta com outros cavalos no esforço de montar as tentadoras fêmeas. Tinha até de ser afastado da sua mãe, cujo odor do cio sentia tão esmagadoramente perto. Era uma época difícil para todos.

Alguns caçadores aproveitavam o odor chamativo de Whinney, que podia ser detetado pelos machos a quilómetros de distância, e matavam alguns cavalos-selvagens. Porém, não o faziam à vista de Ayla. Ela conhecia a prática e, na verdade, não os culpava. Pessoalmente não gostava de carne de cavalo, mas sabia que a maioria das pessoas a achava saborosa. Desde que não fosse atrás dos seus cavalos, não se opunha a que os restantes caçassem esses animais. Eram uma valiosa fonte de alimento.

Regressaram à sua habitação e desempacotaram os pertences. Embora não tivessem passado muito tempo fora, nem sequer tanto como durante uma Reunião de verão, Ayla sentia-se contente por estar de volta. Com a visita às outras cavernas e aos locais sagrados pelo caminho, tinha a sensação de que se ausentara mais tempo, e sentia-se cansada. O tremor de terra fora particularmente esgotante. Estremeceu só de o recordar.

Jonayla estava inquieta e levou-a até ao local de troca das fraldas frente ao abrigo; depois entrou e acomodou-se para a amamentar. A estrutura tinha paredes feitas com painéis de couro, mas não tinha teto, pelo menos não um teto construído. Ao olhar para cima, viu a parte inferior da saliência de rocha natural do abrigo. Sentia o odor a comida e sabia que partilhariam uma refeição com algum membro da sua comunidade e depois poderia meter-se sob as mantas de dormir e enroscar-se entre Jondalar e Jonayla, com Lobo ali perto.

- Há uma caverna sagrada perto daqui que ainda não exploraste, Ayla- disse a Zelandoni enquanto partilhavam a refeição da manhã no dia seguinte. - Aquela a que chamamos o Sítio das Mulheres, na outra margem do rio da Erva.

- Mas eu já estive no Sítio das Mulheres- argumentou Ayla.

- Sim, mas até onde chegaste? Há muito que ainda não viste. Fica a caminho da Rocha da Cabeça de Cavalo e do Lar do Patriarca. Creio que devíamos parar lá no regresso.

Ayla considerava fascinantes as visitas às cavernas sagradas, mas esgotantes, e vira tantas recentemente que estava saturada. Era demasiado para assimilar de uma só vez. Necessitava de tempo para pensar no que vira, mas não se atrevia a recusar a proposta da Zelandoni, tão-pouco podia negar-se a acompanhá-la quando fosse visitar as outras cavernas da região para comprovar como haviam sobrevivido ao tremor de terra. Ela também queria saber, mas estava tão cansada de viajar que não se teria importado de descansar um dia ou dois.

O terramoto fizera-se sentir na Terceira, na Décima Primeira e na Décima Quarta, os vizinhos mais próximos, assim como no Lar do Patriarca, a Segunda Caverna, e na Rocha da Cabeça de Cavalo, a Sétima, causando danos escassos, se haviam interpretado bem os sinais das fogueiras, mas a Primeira queria visitar também as cavernas um pouco mais longínquas, só para se certificar. Umas quantas pessoas das cavernas mais próximas tinham ligeiras feridas causadas pela queda de pedras e uma bonita candeia feita de arenito ficara em pedaços. Ayla teve a sensação de que naquela zona o tremor de terra não fora tão intenso quanto no Vale Velho e questionou-se se para norte o teriam sentido mais.

A caminho da Rocha da Cabeça de Cavalo, pararam nuns quantos lares de cavernas menores próximas do pequeno rio da Erva constituídas por jovens que começavam a ressentir-se da falta de espaço. Várias cavernas e abrigos da região estavam habitados, pelo menos em parte do ano, e as pessoas haviam começado a chamar a essa zona Lar Novo. Encontravam-se todos vazios, incluindo o mais povoado, conhecido como Monte do Urso. A Zelandoni explicou que os jovens que ali viviam ainda se consideravam pertencentes às cavernas das suas famílias e viajavam com elas para a Reunião de verão. Os que não podiam ir ficavam com os da caverna principal. Embora não tivessem visto ninguém, Jondalar e a Zelandoni ensinaram a Ayla o “caminho de volta” à Rocha da Cabeça de Cavalo e ao Lar do Patriarca, assim como ao Vale Doce, as terras baixas e férteis entre ambas as cavernas.

Depois de passarem pelo Monte do Urso, atravessaram o pequeno rio da Eva- naquela época do ano, o rio baixava muito e era fácil de atravessar- e encaminharam-se para o vale Doce e para a Rocha da Cabeça de Cavalo. A maioria dos membros da Segunda Caverna que haviam ficado estavam com os da Sétima, mas ainda havia alguns por ali, que acolheram os visitantes com entusiasmo, em parte porque os doentes se alegravam com a presença das doniers, mas sobretudo porque era uma interrupção no tédio de ver sempre as mesmas pessoas. Os Zelandoni eram um povo sociável, habituado a conviver, e na sua maioria, mesmo se não podiam ir à Reunião de verão, sentiam falta da emoção do encontro. Como as pessoas estavam ainda na Reunião de verão, ou a praticar alguma atividade de verão- como caçar, pescar, recoletar, explorar ou visitar- , era estranho aparecer nas cavernas com elas quase vazias.

Tinham sentido o terramoto, mas ninguém ficara ferido, embora alguns ainda estivessem um pouco nervosos e desejassem que a Primeira os tranquilizasse. Ayla observou como os reconfortava com as suas palavras, se bem que na verdade não dissesse nada de específico. Era a maneira de falar, a sua postura confiante. Até a ela a Zelandoni fazia sentir-se melhor. Passariam ali a noite; as pessoas já tinham começado a preparar-lhes um lugar para dormir e a confecionar comida para um pequeno banquete. Seria descortês, para não dizer grosseiro, partir mais cedo.

No dia seguinte, no caminho de volta, a Zelandoni quis passar por um lugar que haviam circundado à ida. Subiram de novo a elevação, em direção ao pequeno rio da Erva, para montante, onde havia uma comunidade, na beira do promontório chamado Atalaia. Era um nome adequado. Tratava-se de uma zona povoada em torno de afloramentos de rocha que oferecia proteção contra as inclemências do tempo, e que parecia desocupada.

Ayla sentiu-se inquieta naquele lugar. Não sabia porquê, mas tinha uma estranha sensação no meio das costas. Por ela, ter-se-iam ido logo embora. Quando desmontou, o Lobo aproximou-se dela, roçando-se contra a sua perna e ganindo. Ele também não gostava daquele lugar, mas os cavalos não pareciam perturbados. Era um dia de verão como qualquer outro, com o sol quente e a erva verde a crescer na encosta, e dali tinha-se uma vista magnífica. Não via nem detetava nada que explicasse o mal-estar, e não sabia se havia de dizer algo a respeito.

- Queres parar para descansar e comer aqui, Zelandoni? - indagou Jondalar.

- Não vejo razão para ficarmos aqui- disse a mulher, regressando ao atrelado- , se vamos parar para ver o Sítio das Mulheres. E se não levarmos muito tempo, fica suficientemente perto da Nona Caverna, para estarmos em casa antes do anoitecer.

Ayla não lamentou nem um pouco a decisão da Zelandoni e ficou satisfeita que a Primeira tivesse desejado mostrar-lhe as profundezas sagradas do Sítio das Mulheres. Desceram pelo lado oeste da elevação até ao pequeno rio da Erva, que atravessaram já próximo da sua confluência com o rio da Erva. Um pouco mais à frente havia um pequeno vale em forma de U delimitado por altos penhascos de pedra calcária que descia em direção ao rio da Erva e seguia; era o vale verde que dava o seu nome ao curso de água: rio da Erva.

A luxuriante erva daquela pradaria atraía muitos ruminantes, mas as altas paredes circundantes atenuavam-se até formar, ao cabo de uns cem metros, inclinações que eram fáceis de subir, em particular para os animais com cascos, pelo que não era um lugar de todo adequado para colocar armadilhas de caça sem uma considerável construção de cercas e currais. Tal obra fora iniciada noutro tempo, mas nunca terminada. Desse esforço sobrava apenas uma cerca apodrecida.

A zona era conhecida como Sítio das Mulheres. Não se proibia o acesso aos homens, mas, como basicamente era utilizado pelas mulheres, poucos homens o visitavam exceto os zelandonia. Ayla já havia parado ali, normalmente para entregar uma mensagem, ou acompanhar alguém que ia de caminho a outro lado. Nunca tivera ocasião de ficar muito tempo. Geralmente, vinha da Nona Caverna e sabia que, ao chegar ao pequeno prado com o rio da Erva atrás, na parede da direita se avistava uma pequena caverna, um abrigo temporário e por vezes local de armazenagem.

Mais importantes eram outras duas cavernas: estreitas e sinuosas fissuras num pequeno abrigo de pedra situado ao fundo do prado. Essas cavernas no final do vale eram um dos motivos da reticência em converter aquele espaço num lugar de caça, embora por si só não tivesse importância se o vale fosse realmente ideal para esse propósito. A primeira passagem, à direita, penetrava na parede de pedra e retrocedia até ao local de onde vinham, terminando numa saída pequena e estreita não muito longe da primeira caverna da parede direita. Embora exibisse muitas gravuras, a caverna e o abrigo de pedra onde esta tinha a sua entrada utilizavam-se principalmente como alojamento, quando se visitava a outra caverna.

Não havia ninguém quando Ayla, Jondalar e a Zelandoni chegaram. A maioria das pessoas ainda não regressara das atividades de verão, e as poucas que haviam ficado não tinham razão para ir de visita. Jondalar desprendeu o atrelado dos cavalos para que descansassem. As mulheres que ali iam mantinham o lugar limpo e em ordem, mas recebia muitas visitas e estava usado. Além disso, um sítio para mulheres era inevitavelmente também para crianças. Na sua anterior visita, Ayla notara indícios de atividades da vida quotidiana. Viam-se por ali tigelas e caixas de madeira, cestos tecidos, brinquedos, roupas, armações e postes para secar ou confecionar coisas. Objetos de madeira, osso ou até sílex às vezes perdiam-se ou partiam-se, ou eram levados pelas crianças, e acabavam deixados por ali ou abandonados na caverna, sem que ninguém os visse na escuridão. Cozinhava-se, acumulava-se lixo e, quando o tempo estava mau, faziam-se as necessidades dentro da caverna, mas, segundo supôs Ayla, apenas na caverna da direita.

Algumas coisas ainda estavam ali. Ayla encontrou um tronco com uma concavidade que obviamente se utilizava para conter líquidos, mas decidiu usar os seus próprios utensílios para preparar uma infusão e sopa. Reuniu lenha e, aproveitando uma depressão negra já existente e cheia de carvão, acendeu uma fogueira e acrescentou pedras de cozinhar para aquecer a água. Os habitantes anteriores haviam arrastado pedras e troncos até perto do fogo e a Zelandoni pegou nas almofadas do seu assento e colocou-as em redor para os tornar mais confortáveis. Ayla deu de mamar a Jonayla e depois deitou-a no solo sobre a sua manta de transporte para poder comer e vê-la adormecer.

- Queres vir também, Jondalar? - perguntou a Zelandoni quando terminaram. - Provavelmente não a vês desde que eras menino e deixaste a tua marca no interior.

- Sim, acho que também irei- respondeu ele.

Quase toda a gente deixava uma marca nas paredes daquela caverna em algum momento, em certos casos mais de uma, embora os homens da comunidade fossem habitualmente crianças ou jovens adolescentes quando faziam as suas marcas. Jondalar ainda recordava a primeira vez que entrara ali sozinho. Era uma gruta simples, sem muitos corredores, e as crianças estavam autorizadas a encontrar o seu próprio caminho. Geralmente, entravam sozinhos ou aos pares para fazer as suas marcas pessoais, assobiando ou cantarolando até que as paredes parecessem responder. As marcas e as gravuras não simbolizavam nem representavam nomes; era a forma de as pessoas falarem de si à Grande Mãe Terra, de se definirem perante Ela. Por vezes apenas desenhavam linhas com os dedos. Era o suficiente.

Depois da refeição, Ayla envolveu a criança e colocou-a firmemente às suas costas. Cada um acendeu uma candeia e entraram na caverna, a Zelandoni à frente e Lobo a fechar o grupo. Jondalar recordou que a caverna da esquerda lhe parecera extraordinariamente comprida- serpenteava pela pedra até uma profundidade de mais de seiscentos metros- e que o início da fissura era de fácil acesso, sem nada de extraordinário a assinalar. Apenas umas quantas marcas nas paredes perto da entrada indicavam que alguém já estivera ali.

- Porque não usas os teus cantos de aves para falares com a Mãe, Ayla? - sugeriu a Primeira.

Ayla escutara a mulher cantarolar, não muito alto mas melodica-mente, e não esperava aquela proposta.

- Se quiseres- respondeu, e iniciou uma série de trinados suaves.

A uns cento e cinquenta metros da entrada, a meio do caminho, a caverna estreitava-se e os sons ecoavam de uma maneira diferente. Era ali que começavam os desenhos. Daí em diante, as paredes estavam cobertas de imagens de todos os tipos. As duas paredes da sinuosa passagem subterrânea continham inúmeras gravuras, algumas indecifráveis e outras sobrepostas. Algumas encontravam-se isoladas e muitas das que podiam ser interpretadas estavam bem executadas. Quem mais frequentava a caverna eram as mulheres adultas e, por conseguinte, eram as autoras das gravuras mais bem acabadas e aperfeiçoadas.

Predominavam os cavalos, representados em posições de descanso e em movimento animado, inclusive a galope. Também se destacavam os bisontes, mas havia outros animais: renas, mamutes, ursos, felinos, onagros, cervos, rinocerontes, lobos, raposas e pelo menos uma saiga, centenas de gravuras. Alguns eram pouco comuns, como o mamute com a tromba enrolada para cima; uma extraordinária cabeça de leão, na qual se havia aproveitado uma incrustada na parede para representar o olho; uma rena agachada a beber água que se destacava pela sua beleza e realismo, assim como outras duas renas viradas uma para a outra. As paredes eram frágeis e não se prestavam bem à pintura, mas era fácil fazer marcas e gravuras, mesmo com os dedos.

Também havia figuras humanas parciais- incluindo rostos, mãos e várias silhuetas- , mas sempre distorcidas, nunca tão nítidas e lindamente desenhadas como os animais. Muitas gravuras estavam incompletas e enterradas sob uma rede de linhas, diversos símbolos geométricos, signos tetiformes e rabiscos indefinidos que podiam interpretar-se de várias maneiras, por vezes dependendo de como se apontava a luz.

Lobo adiantou-se numa das partes mais inacessíveis da caverna. Quando voltou, trazia algo na boca que deixou aos pés de Ayla.

- O que é isto? - perguntou ao dobrar-se para o apanhar. Os três alumiaram o objeto com as suas candeias. - Zelandoni, isto parece o bocado de um crânio! - exclamou Ayla. - E ali está outro, parte de uma mandíbula. É pequena. Deve ter pertencido a uma mulher. Onde terá ele encontrado isto?

A Zelandoni pegou-lhes e observou-os sob a luz.

- É possível que em tempos idos tenha havido aqui um local de enterro. Esta zona é povoada há muito tempo.

Viu que Jondalar estremecia involuntariamente. Ele preferia deixar as coisas do mundo dos espíritos para os zelandonia, e ela sabia-o. Jondalar já colaborara em enterros, quando lhe pediam, mas era uma coisa que detestava. Normalmente, quando os homens regressavam de abrir campas, ou outras atividades que os aproximavam perigosamente do mundo dos espíritos, iam lavar-se e purificar-se à caverna chamada Sítio dos Homens, que se situava numa elevação frente à Terceira Caverna, na outra margem do rio da Erva. Também não era proibido às mulheres o acesso ao Sítio dos Homens, mas ali só se desenrolavam atividades masculinas e poucas mulheres, com exceção das zelandonia, lá entravam.

- O espírito já os abandonou há muito- disse ela. - O elã encontrou o seu caminho para o mundo dos espíritos e agora só sobram pedaços de osso. É capaz de haver mais.

- Sabes porque foi enterrada aqui, Zelandoni? - inquiriu Jondalar.

- Não é costume fazê-lo, mas tenho a certeza de que foi depositada neste lugar sagrado por alguma razão. Não sei porque decidiu a Mãe permitir que o Lobo nos mostrasse os ossos, mas vou deixá-los mais à frente. Creio que é melhor devolvê-los à Mãe.

Aquela Que Era a Primeira adiantou-se na escuridão da caverna. Ficaram a vê-la avançar com a luz da candeia à frente e depois desaparecer. Não muito depois, viram a mulher regressar.

- Creio que está na hora de voltarmos- anunciou ela.

Ayla ficou satisfeita por sair da caverna. As cavernas, além de escuras, eram sempre húmidas e frias, e aquela em particular transmitia uma sensação de aperto, mas talvez fosse ela que estava farta de cavernas. Só queria voltar para casa.

Quando chegaram à Nona Caverna, descobriram que regressara mais gente da Reunião de verão, embora alguns planeassem partir em breve. Acompanhava-os um jovem que sorria timidamente para uma mulher sentada perto dele. Tinha o cabelo castanho-claro e os seus olhos eram cinzentos. Ayla reconheceu Matagan, o jovem da Quinta Caverna que fora ferido na perna por um rinoceronte no ano anterior.

Ayla e Jondalar voltavam do seu período de isolamento após a cerimónia matrimonial quando viram vários jovens- rapazes inexperientes- que acossavam um rinoceronte adulto enorme. Os jovens dividiam um dos alojamentos distantes de solteiros, alguns pela primeira vez, e estavam demasiado confiantes, seguros de que viveriam para sempre. Quando viram o rinoceronte, decidiram caçá-lo sozinhos, sem chamar um caçador mais experiente. Pensavam apenas nos elogios e na glória que receberiam quando os participantes da Reunião de verão vissem a sua presa.

Eram demasiado jovens; alguns mal tinham alcançado a categoria de caçadores, e apenas um vira caçadores acossarem um rinoceronte, embora todos tivessem ouvido falar da técnica. Ignoravam quão enganadoramente rápida a enorme criatura podia ser, ou o importante que era estar concentrado. E esse foi o problema. O rinoceronte dera sinais de cansaço e o rapaz não observara o animal com a devida atenção. Quando o rinoceronte investiu contra ele, Matagan não conseguiu mover-se com a celeridade necessária. Recebeu uma enorme cornada na perna direita, abaixo do joelho. A ferida era grave, ficando a parte inferior da perna torcida para trás e os ossos partidos a aparecerem pela ferida que sangrava profusamente. Teria morrido se Ayla não estivesse ali e soubesse, graças ao seu treino no Clã, como consertar um osso partido e estancar uma hemorragia.

Uma vez salva a sua vida, o maior medo era que não pudesse voltar a andar com aquela perna. Conseguiu caminhar, mas com uma lesão permanente e alguma paralisia. Desfrutava de uma mobilidade considerável, mas a sua capacidade de se agachar ou perseguir um animal ficou reduzida; nunca seria um grande caçador. Pouco depois iniciaram-se conversações sobre a possibilidade de ser aprendiz de Jondalar e aprender a talhar o sílex. A mãe do rapaz e o seu companheiro, para além de Kemordan, o líder da Quinta Caverna, Joharran, Jondalar, e Ayla, já que era com eles que o rapaz ficaria a viver, acordaram por fim tudo na Reunião de verão antes de partirem. Ayla gostava do jovem e apoiara o arranjo. Matagan precisava de um ofício que lhe proporcionasse respeito e prestígio, e ela lembrou-se do muito que Jondalar gostara, durante a sua viagem, de ensinar o seu ofício a quem quisesse aprender, especialmente jovens. Mas Ayla tinha esperança de gozar um dia ou dois de descanso sozinha em sua casa. Respirou fundo em silêncio e aproximou-se para saudar Matagan. Ele sorriu quando a viu chegar e apressou-se a ficar de pé.

- Saudações, Matagan- cumprimentou, estendendo ambas as mãos. - Em nome da Grande Mãe Terra, dou-te as boas-vindas. - Observou-o atentamente na sua maneira indireta, notando que estava bastante alto para a idade, embora ainda fosse jovem e não tivesse alcançado toda a sua estatura. Esperava que a perna lesionada continuasse a crescer a par com a perna ilesa. Era difícil prever que altura alcançaria, mas o coxear podia agravar-se se as pernas não tivessem o mesmo comprimento.

- Em nome de Doni, saúdo-te, Ayla- respondeu o rapaz, na saudação cortês que lhe haviam ensinado.

Presa às costas da mãe com a manta de transporte, Jonayla revolveu-se para ver com quem esta falava.

- Creio que Jonayla também te quer cumprimentar- disse Ayla, afrouxando a manta e deslizando-a para a frente. A bebé mirou o rapaz com os olhos muito abertos e depois esboçou um largo sorriso e estendeu-lhe os braços. Ayla ficou admirada.

Ele sorriu-lhe de volta.

- Posso pegar-lhe? Sei fazê-lo. Tenho uma irmã pouco mais velha do que ela- afirmou Matagan.

“E deve estar com saudades dela e de casa”, pensou Ayla ao mesmo tempo que lhe entregava Jonayla. Era evidente que estava à vontade com bebés.

- Tens muitos irmãos e irmãs? - perguntou ela.

- Acho que sim. Ela é a mais nova, eu o mais velho, e há quatro no meio, incluindo dois que nasceram juntos- explicou ele.

- Deves ser uma grande ajuda para a tua mãe. Ela vai sentir a tua falta. Quantos anos contas? - quis saber Ayla.

- Treze- respondeu o rapaz.

- E alcançaste a idade viril e cumpriste os ritos no ano passado- disse uma voz atrás de Ayla.

Era Jondalar, que ouvira a conversa enquanto se aproximava. A maneira de vestir de Matagan, os padrões cosidos na sua roupa e as contas e joias que usava, indicava que o jovem era considerado um homem da Quinta Caverna dos Zelandoni.

- Sim, na Reunião de verão do ano passado- retorquiu Matagan. - Antes da cornada.

- Agora que és um homem, está na hora de aprenderes um ofício. Tens talhado sílex?

- Algum. Sei fazer uma ponta de lança e facas e voltar a dar forma a uma que esteja partida. Não são perfeitas, mas funcionam- revelou o rapaz.

- Devia ter-te perguntado se gostas de talhar o sílex- precisou Jondalar.

- Gosto quando corre bem. O que nem sempre acontece.

Jondalar sorriu.

- Nem sequer a mim me sai sempre bem- disse ele. - Já comeste?

- Terminei mesmo agora- declarou Matagan.

- Nós ainda não- informou Jondalar. - Acabámos de regressar de uma curta viagem para ver se os nossos vizinhos tinham sofrido danos devido ao terramoto. Sabes que Ayla é acólita da Primeira, não sabes?

- Acho que toda a gente sabe- replicou ele, mudando Jonayla para se apoiar no seu ombro.

- Sentiste o tremor de terra? - inquiriu Ayla. - Ficou alguém ferido dos que viajavam contigo?

- Sentimos, sim. Algumas pessoas foram atiradas ao chão, mas ninguém ficou ferido- disse. - Creio, no entanto, que toda a gente se assustou. Incluindo eu.

- Não conheço ninguém que não tenha medo durante um tremor de terra. Vamos comer qualquer coisa e depois já te mostramos onde podes ficar. Ainda não te preparámos nada de especial, mas tratamos disso mais tarde- explicou Jondalar enquanto se encaminhavam para o outro lado do abrigo onde as pessoas estavam reunidas.

Ayla estendeu os braços para Jonayla.

- Posso ficar com ela enquanto comes- ofereceu Matagan.

- Se ela deixar.

- Vamos ver- disse Ayla, virando-se para a fogueira em torno da qual haviam colocado a comida.

De súbito, Lobo apareceu. Parara para beber água quando chegaram à Nona Caverna, e depois descobriu que alguém pusera comida na sua tigela. Surpreendido, Matagan abriu muito os olhos, mas já antes tinha visto o lobo e não pareceu muito receoso. Ayla havia-lho apresentado no ano anterior enquanto cuidava dele, e o animal cheirou o rapaz que tinha a menina da sua alcateia no colo e reconheceu o odor. Quando o rapaz se sentou, o lobo acomodou-se ao seu lado. Jonayla pareceu satisfeita com a situação.

Quando terminaram de comer, já escurecia. Havia sempre umas quantas tochas preparadas junto à fogueira principal onde o grupo se reunia e Jondalar pegou numa e acendeu-a. Todos levavam equipamento de viagem- sacos, peles de dormir, tendas. Jondalar ajudou Ayla com parte das suas coisas, enquanto ela levava a bebé, mas Matagan parecia ser capaz de tratar das suas, incluindo o pesado cajado de que às vezes se valia para caminhar. Não parecia necessitar dele sempre. Ayla suspeitava que o usara na longa caminhada desde a Vista do Sol, o local da Reunião de verão, até à Nona Caverna, mas provavelmente prescindia dele em distâncias mais curtas.

Quando chegaram ao abrigo, Jondalar entrou primeiro para alumiar o caminho e manter aberta a cortina da entrada. Matagan seguiu-o e por último entrou Ayla.

- Porque não pões a tua pele de dormir aqui na habitação principal, perto da fogueira? Amanhã arranjaremos uma solução melhor- disse Jondalar, questionando-se de súbito quanto tempo Matagan viveria com eles.

 

- Matagan, viste Jonayla e Jondalar? - perguntou Ayla quando viu sair o jovem do anexo construído ao lado do seu abrigo.

Agora moravam ali Matagan e mais três jovens: Jonfilar, que viera de oeste, perto das Grandes Aguas, e Garthadal, cuja mãe, líder da sua caverna, o havia acompanhado desde as terras longínquas situadas a sudeste depois de ouvir falar da habilidade de Jondalar.

Quatro anos passados, Matagan era o aprendiz mais antigo de Jondalar e adquirira tal destreza que ajudava o seu mestre a ensinar os mais novos. Podia ter regressado à Quinta Caverna, ou a qualquer outra, como um experiente talhador de sílex, mas por essa altura já considerava a Nona Caverna o seu lar e preferia ficar a trabalhar com o seu mentor.

- Vi-os há pouco a caminho do cercado dos cavalos. Creio que ontem ouvi Jondalar prometer a Jonayla que hoje a levaria a montar se não chovesse. Apesar de pequena, ela monta Gray cada dia melhor, ainda que não seja capaz de subir e desmontar sozinha.

Ayla sorriu ao evocar a recordação de Jondalar montado em Racer com Jonayla sentada à sua frente, quando a menina ainda nem sabia andar, e tanto Ayla como Jondalar haviam treinado Gray com a criança no seu dorso, à frente deles, o seu pequeno braço agarrado ao grosso pescoço da égua. A menina e a jovem égua tinham crescido juntas, e Ayla acreditava que o laço entre elas era mais estreito do que aquele que existia entre Whinney e ela. Jonayla tinha mão para os cavalos, incluindo o garanhão- de certo modo era melhor do que a mãe porque aprendera a conduzi-lo com o cabresto, tal como Jondalar. Ayla ainda dirigia Whinney recorrendo à linguagem corporal, e ao montar não se sentia tão cómoda usando a técnica de Jondalar.

- Quando regressarem, dizes a Jondalar que esta noite chegarei tarde? Posso até só voltar amanhã de manhã. Soubeste do homem que esta manhã caiu do rochedo perto da Encruzilhada? - perguntou Ayla.

- Sim. É um visitante? - quis saber Matagan.

- Um vizinho do Lar Novo. Antes vivia na Sétima Caverna; agora vive no Monte do Urso. Não entendo como pode ocorrer a alguém escalar a Rocha Alta estando tão molhada. Tem escorrido lama das encostas mais íngremes e lá no alto também devia estar tudo enlameado- comentou Ayla. “Tem sido uma primavera chuvosa”, cogitou. “Desde aquele inverno mais frio que Marthona previu há uns anos que as primaveras têm sido mais húmidas.”

- Como está ele? - indagou Matagan. Sabia o que era sofrer as consequências de uma má decisão.

- Ficou gravemente ferido; ossos partidos, e não sei que mais. Temo que a Zelandoni terá de passar a noite de vela com ele e ficarei para a ajudar- explicou Ayla.

- Contigo e a Primeira lá, irá receber o melhor tratamento possível- disse Matagan com um sorriso. - E falo por experiência própria.

Ayla sorriu de volta.

- Assim o espero. Já enviaram um mensageiro para avisar a família dele. Devem chegar a qualquer momento. Proleva está no lar principal a preparar uma refeição para eles e várias pessoas mais. De certeza que chegará para ti e para os rapazes, e para Jondalar e Jonayla- acrescentou, dando meia volta.

Enquanto regressava rapidamente, deu por si a pensar em Jonayla e nos animais. Quando tinha de se ausentar, Lobo por vezes ficava com Jonayla, e outras vezes ia com ela. Se abalava com a Zelandoni para ajudar alguém de outra caverna, o Lobo acompanhava-a, mas quando tinha de fazer “sacrifícios” ou superar “testes” como parte do seu treino- passar noites sem dormir, renunciar aos Prazeres, jejuar- , costumava ir sozinha.

Habitualmente, alojava-se no pequeno abrigo chamado Cavidade da Rocha da Fonte, bastante confortável. Ficava mesmo ao lado da Profundidade da Rocha da Fonte, ocasionalmente chamada Profundidade da Doni, a extensa caverna que fora o primeiro local sagrado que visitara quando foi viver com os Zelandoni. A Rocha da Fonte ficava a um par de quilómetros da Nona Caverna e o último trecho era uma encosta suave mas prolongada até ao alto da parede rochosa. A extensa caverna pintada tinha outros nomes, sobretudo entre os zelandonia, tais como Entrada para o Seio da Mãe ou Canal de Nascimento da Mãe. Era o local mais sagrado da região.

Jondalar nem sempre apreciava quando ela tinha de se ausentar, mas nunca se importava de cuidar de Jonayla, e Ayla ficava contente por eles estarem a desenvolver uma relação tão próxima. Até lhe começara a ensinar a talhar o sílex juntamente com os seus aprendizes.

As reflexões de Ayla foram interrompidas quando notou que duas mulheres caminhavam na sua direção, Marona e a sua prima. Sempre que Wylopa se cruzava com ela, saudava-a com a cabeça e sorria, e embora lhe parecesse pouco sincera, Ayla devolvia-lhe o sorriso. Geralmente, Marona limitava-se a dirigir-lhe um brevíssimo aceno de cabeça e Ayla respondia-lhe da mesma maneira. Se não havia ninguém por perto, Marona nem isso fazia, mas desta vez sorriu-lhe e Ayla voltou a mirá-la. Não era um sorriso simpático, mas mais um sorriso escarninho, um sorriso de satisfação maldosa.

Desde o regresso de Marona, Ayla não podia evitar perguntar-se porque o havia feito. Pensava que a Quinta Caverna a aceitara bem, e a mulher dissera ao mudar-se que gostava mais da Quinta. “Eu também prefiro que ela lá esteja”, cogitou Ayla.

Não era só porque Marona e Jondalar haviam sido um casal, mas porque ninguém a tratara com tanta maldade e desdém, começando com a artimanha da roupa interior masculina. Ayla enfrentara dignamente as risadas e ganhara o respeito da Nona Caverna. Agora, sobretudo quando montava Whinney, vestia intencionalmente um traje semelhante àquele, e o mesmo faziam muitas outras mulheres, para escárnio de Marona.

Ayla ouvira contar a uns parentes de Matagan, de visita à Nona Caverna, que Marona tinha enfurecido algumas mulheres de alta posição da Quinta Caverna, familiares de Kemordan, o líder, ou da sua companheira. Pelos vistos, convencera um homem prometido a uma das ditas mulheres a fugir com ela. Com o seu cabelo loiro, quase branco, era uma mulher atraente, embora Ayla achasse que as rugas que se formavam na sua testa, por franzir tanto o sobrolho, se começavam a gravar mais profundamente na sua cara. Tal como todas as suas relações, aquela também não durou muito, e ele, depois de expressar o seu arrependimento e de pagar uma compensação satisfatória, foi aceite de novo, embora ela não tivesse recebido um tratamento tão favorável. Quando Ayla se aproximou da morada da Zelandoni, esses pensamentos passaram para segundo plano, dando prioridade à situação do ferido.

Mais tarde, nessa noite, quando saiu da habitação da Donier, que era simultaneamente a sua casa e uma enfermaria, viu Jondalar sentado ao lado de Joharran, Proleva e Marthona. Haviam acabado de comer e bebiam uma infusão enquanto vigiavam Jonayla e Sethona. Jonayla era uma criança feliz e saudável e, segundo a opinião de todos, muito bonita, com o cabelo encaracolado, sedoso e muito claro e uns extraordinários olhos de um azul intenso como os de Jondalar.

Sethona, a prima, nascida apenas uns dias antes e sua permanente companheira de brincadeiras, tinha o cabelo loiro e os olhos cinzentos. Ayla achava-a parecida com Marthona; a menina mostrava já aspetos da dignidade e da elegância da antiga líder, assim como

o seu olhar claro e direto. Ayla voltou a sua atenção para a mãe de Joharran e de Jondalar. Marthona começava a evidenciar a sua idade: tinha o cabelo mais grisalho, o rosto mais enrugado. Mas não era apenas o seu aspeto físico. Não se sentia bem e isso preocupava Ayla. A Zelandoni e ela já haviam falado do estado de Marthona e dos possíveis remédios e tratamentos, mas sabiam que era inevitável que algum dia Marthona caminhasse para o outro mundo; podiam apenas adiar esse momento.

Embora Ayla tivesse perdido a sua verdadeira mãe, considerava-se afortunada por ter tido Iza como mãe durante a sua infância, e Creb, o Mog-ur, como homem do seu lar. A mãe de Jondalar havia-a tratado como uma filha desde o primeiro instante, e via Marthona como uma mãe, a sua mãe zelandoni. Também se sentia próxima da Zelandoni, mas ela era mais uma mentora e uma amiga.

Lobo observava as crianças com a cabeça apoiada nas patas dianteiras. Dera conta da aproximação de Ayla, mas, ao ver que ela não se reunia de imediato ao grupo, levantou a cabeça e olhou para ela, fazendo com que todos olhassem também. Foi então que Ayla se apercebeu de que parara de tão absorta que estava nos seus pensamentos. Pôs-se de novo em marcha em direção a eles.

- Como está o ferido? - perguntou Joharran quando ela se aproximou.

- Ainda é difícil saber. Pusemos talas nos ossos partidos das pernas e do braço, mas não sabemos o que poderá estar partido por dentro. Ainda respira, mas não acordou. A companheira e a mãe estão com ele- respondeu Ayla. - A Zelandoni acha que deve ficar com eles, mas alguém deveria levar-lhe algo para comer e talvez a família se anime a sair e a comer também.

- Eu levarei comida à Zelandoni e tentarei convencer os outros a sair- disse Proleva, levantando-se e aproximando-se da pilha de pratos para os visitantes. Selecionou algumas fatias de carne de cabra-montesa assada no espeto. Era um festim pouco habitual. Alguns caçadores da Nona e das cavernas vizinhas haviam saído para caçar íbex, e a sorte acompanhara-os. Proleva acrescentou umas folhas de verdura e levou tudo até à entrada da habitação da Zelandoni e raspou o pedaço de couro não curtido contíguo à cortina de pele que cobria a entrada. Passado um momento, entrou. Pouco depois saiu com a companheira e a mãe do ferido, conduziu-os até à fogueira principal e deu-lhes pratos de visitantes.

- Devia voltar a entrar- anunciou Ayla, olhando para Jondalar.

- Matagan disse-te que devo chegar tarde?

- Sim. Eu deito a Jonayla- replicou Jondalar, levantando-se e pegando na criança. Abraçou a mulher, encostando a bochecha, ao mesmo tempo que Ayla os cingia a ambos nos seus braços.

- Hoje montei Gray- disse Jonayla. - Jonde levou-me a passear. Ele montou Racer. Whinney também veio, mas não tinha ninguém para a montar. Porque não vieste, mamã?

- Oxalá tivesse podido, Bebé- declarou Ayla, voltando a abraçá-los. O apelido carinhoso que escolhera para a filha era o nome da cria de leão ferida que encontrara em tempos e cuidara, e depois criara. Era uma modificação da palavra utilizada pelo Clã para criança ou pequenino. - Mas hoje um homem caiu e magoou-se. A Zelandoni está a tentar curá-lo e tenho de a ajudar.

- Quando ele ficar melhor, tu vens? - insistiu Jonayla.

- Sim, quando ele estiver melhor, vou montar contigo- garantiu Ayla, pensando, se ele melhorar. Depois virou-se para Jondalar.

- Porque não levas também o Lobo?

Notara que a companheira do homem ferido mirava o animal com desconfiança. Toda a gente ouvira falar do lobo e muitos até já o haviam visto, mas poucos se sentavam junto dele a comer.

Depois de Jondalar abalar com Jonayla e Lobo, Ayla regressou à habitação da Zelandoni.

- Algumas melhoras em Jacharal? - perguntou.

- Não que eu tenha visto- respondeu Aquela Que Era a Primeira. Estava satisfeita por os parentes do ferido se terem ausentado, porque assim podia falar com franqueza. - As vezes as pessoas consomem-se neste estado durante algum tempo. É como se o espírito estivesse confuso, como se o elã não soubesse bem se quer abandonar este mundo enquanto o corpo ainda respira, embora o resto tenha sofrido danos irreparáveis.

- Perdeu fluidos pelo nariz ou pelas orelhas? - indagou Ayla.

- Não desde que está aqui. Tem uma ferida na cabeça, mas não parece muito profunda. Tem tantos ossos partidos que o verdadeiro problema, creio, é interno. Esta noite ficarei a velá-lo.

- Eu fico contigo. Jondalar levou a Jonayla e o Lobo. A companheira deste homem parecia desconfortável perto do Lobo- revelou Ayla. - Pensei que por esta altura a maioria das pessoas já estivesse habituada à sua presença.

- Suponho que não tenha tido tempo para se habituar. Ela não é daqui; chama-se Amelana. A mãe de Jacharal contou-me a história. Ele fez uma viagem para sul, uniu-se a ela lá e trouxe-a. Nem sequer sei se nasceu em território zelandoni. Parece falar bem a nossa língua, embora com um ligeiro sotaque do Sul, um pouco como Beladora, a companheira de Kimeran.

- Que pena, percorrer um caminho tão longo para agora ficar sem companheiro. Não sei o que faria se acontecesse alguma coisa a Jondalar depois de termos chegado aqui, ou mesmo agora- comentou Ayla, estremecendo.

- Permanecerias aqui e continuarias a preparar-te para seres uma Zelandoni, como até agora. Tu mesma o disseste: não tens para onde regressar. Foste adotada. Pertences aqui. És uma Zelandoni.

Ayla ficou grata pelas palavras da Primeira. Faziam-na sentir desejada.

Não foi na manhã seguinte que Ayla regressou a casa, mas apenas dois dias mais tarde, quando o Sol começava a nascer.

Em breve teria de tomar nota do nascer e do pôr do Sol e da Lua durante um ano. A parte mais dura dessa tarefa, segundo lhe haviam contado os outros membros da zelandonia, era o não poder dormir, sobretudo ao observar a Lua, que às vezes aparecia ou desaparecia em pleno dia, e outras em plena noite.

Ayla falara com a mãe de Jacharal e com Amelana, e começava a conhecer melhor a jovem. Tinham uma coisa em comum: eram duas forasteiras que se haviam emparelhado com homens zelandoni. Ayla percebeu que a rapariga era jovem, um pouco imprevisível e caprichosa. Estava grávida e continuava a sentir enjoos matinais. Desejava sinceramente poder ajudar Jacharal, tanto por Amelana como por ele mesmo.

Ayla e a Zelandoni vigiavam atentamente o ferido. Queriam observar a sua evolução para aprenderem mais sobre estados como o dele. Aproveitando que estavam juntas, a Zelandoni também dedicou alguns momentos a ensinar Ayla sobre a maneira de agir dos zelandonia. Falaram de medicamentos e de práticas curativas e realizaram várias cerimónias na tentativa de obter a ajuda da Grande Mãe Terra.

Também falaram de uma iminente viagem que a mulher mais velha queria fazer com a sua acólita, uma longa viagem que se prolongaria por todo o verão, e desejava partir o quanto antes. Havia vários locais sagrados a sul e a leste que a Primeira acreditava que deviam visitar. Não iriam sozinhas. Além de Jondalar, seriam acompanhadas por Willamar, o Mestre do Comércio, e pelos seus dois jovens ajudantes. Enquanto discutiam sobre quem mais deveria acompanhá-las, surgiu o nome de Jonokol. A ideia de viajar para tão longe para ver novos lugares era emocionante; porém, Ayla sabia que seria árduo, e dava graças por terem os cavalos. Assim, viajar seria muito mais fácil.

Quando Ayla chegou ao abrigo, pensou em preparar uma infusão para Jondalar, mas sentia-se cansada. Mal dormira para que a Zelandoni pudesse repousar. De manhã, a Donier tinha-a mandado para casa. Era ainda cedo, e encontravam-se todos a dormir, com exceção do Lobo, que a esperava no exterior. Ayla sorriu ao vê-lo.

Ao entrar, reparou que Jonayla dormia junto de Jondalar. A menina tinha as suas próprias peles de dormir, mais pequenas, junto às deles, mas gostava de se aninhar ao lado do pai quando Ayla não estava, coisa que ocorria cada vez com maior frequência. Para não acordar a filha, decidiu ir dormir para a cama dela. Quando Jondalar acordou e viu Ayla a dormir nas peles de Jonayla, primeiro sorriu, mas logo de seguida franziu o sobrolho. Cogitou que ela deveria estar mesmo cansada, mas sentia saudades de a ter ao seu lado.

Jacharal morreu passados alguns dias, sem chegar a despertar. Ayla utilizou o atrelado para o trasladar até à Sétima Caverna. A mãe desejava que a cerimónia fúnebre se celebrasse ali para que o seu elã estivesse numa zona familiar enquanto procurava o caminho para o outro mundo. Ayla, Jondalar, a Zelandoni e várias outras pessoas da Nona e de cavernas vizinhas participaram no ritual do enterro, assim como todos os habitantes do Monte do Urso. Depois Amelana aproximou-se da Zelandoni e de Ayla e perguntou-lhes se podia falar com elas.

- Disseram-me que estão a planear uma viagem para sul em breve. É verdade? - quis saber Amelana.

- Sim- respondeu a Zelandoni, perguntando-se o que desejaria a jovem. Imaginava-o e preparava-se já para abordar a questão.

- Podem levar-me? Quero ir para casa- disse a jovem, com os olhos cheios de lágrimas.

- Mas a tua casa é aqui, não é? - indagou a Primeira.

- Não quero ficar aqui- contrapôs Amelana. - Não sabia que Jacharal desejava mudar-se para o Lar Novo e viver no Monte do Urso. Não me agrada. Não há lá nada. Tem de ser tudo feito ou construído, nem o nosso abrigo está terminado. Também não têm Zelandoni. Estou grávida e teria de ir a outra caverna para ter o bebé. Agora nem sequer tenho Jacharal. Eu disse-lhe que não subisse à Rocha Alta.

- Já falaste com a mãe de Jacharal? De certeza que poderias ficar na Sétima Caverna.

- Não quero ficar lá. Também não conheço ninguém ali, e alguns não me trataram bem porque venho do Sul.

- Podias ir para a Segunda Caverna. Beladora é do Sul- aconselhou a Primeira.

- Ela é do Sul, mas mais para oeste, e é a companheira do líder. Não a conheço bem. E só quero ir para casa. Quero ter o meu filho lá- disse Amelana, e desatou a chorar.

- De quanto tempo estás? - perguntou a Zelandoni.

- Deixei de sangrar há mais de três luas- explicou, a fungar.

- Bem, se tens a certeza de que queres ir, podemos levar-te- acedeu a Zelandoni.

- Obrigada! Oh, obrigada- agradeceu a jovem, com um sorriso.

- Sabes onde fica a tua caverna?

- Fica no centro das Terras Altas, um pouco para leste, não muito longe do mar do Sul.

- Somos capazes de não ir diretamente. Temos de parar em alguns locais pelo caminho.

- Não faz mal- replicou Amelana, e depois acrescentou num tom hesitante:

- Mas gostaria de chegar a casa antes de o bebé nascer.

- Creio que será possível- disse Aquela Que Era a Primeira.

Assim que Amelana virou costas, a Zelandoni murmurou:

- O atraente forasteiro visita a tua caverna e parece tão romântico fugir com ele para fundar um novo lar. De certeza que implorou à mãe com o mesmo empenho de há pouco que a deixasse unir-se e abalar com ele. Mas uma vez aqui, descobre que este lugar não é assim tão diferente do outro, com a agravante de que não conhece ninguém. Para cúmulo, o teu novo e excitante companheiro decide juntar-se a um grupo que deseja criar outra caverna. Esperam que ela fique tão excitada com o novo lugar quanto eles, mas não se afastam muito da antiga caverna e estão com gente que conhecem.

“Amelana é uma forasteira, com uma maneira de falar um pouco diferente, e acostumada a mais mimos, que foi viver para um lugar novo onde os costumes e as expectativas são outros. Não precisa da emoção de criar um lugar novo; acabou de se mudar. Necessita de se estabelecer e conhecer o seu novo povo. Mas o companheiro, que já demonstrou gostar do risco, está disposto a iniciar a aventura de criar uma nova caverna com pessoas que são amigos e parentes seus, mas não dela.

“Provavelmente já começavam os dois a arrepender-se da sua união precipitada, a discutir por causa das diferenças, e depois ela descobre que está grávida e não tem ninguém que se preocupe com ela. A mãe, as tias, as irmãs, as primas e as amigas estão na terra que ela abandonou. E um dia o companheiro, amante do perigo, expõe-se a um risco maior e morre. Talvez seja melhor para todos que ela volte ao seu lar. Não tem aqui ninguém com quem possa estabelecer um vínculo mais direto.

- Eu não tinha ninguém quando aqui cheguei- disse Ayla.

- Claro que tinhas. Tinhas o Jondalar- corrigiu a Zelandoni.

- Disseste que o companheiro tinha já demonstrado que gostava de riscos. Conheci Jondalar na sua viagem. Não o convertia isso num homem que gostava do risco?

- Não era ele o amante do perigo; era o irmão. Ele foi para acompanhar Thonolan, para o proteger, sabendo da sua tendência para se meter em situações precárias. E aqui não tinha ninguém que o prendesse. A verdade era que Marona não tinha nada para lhe oferecer. Ele gostava mais do irmão do que dela, e talvez desejasse acabar com a promessa que ela dava por garantida, e ele não, mas não era capaz de dizer-lho. Ele andava à procura de algo especial. Por algum tempo pensou que o encontrara em mim, e reconheço que me senti tentada, mas sabia que nunca iria dar certo. Ainda bem que encontrou o que procurava em ti, Ayla- disse a corpulenta mulher. - A tua situação, embora superficialmente semelhante, não se parece em nada com a de Amelana.

Ayla percebeu como a Zelandoni era sábia; mas logo deu por si a interrogar-se quantas pessoas iriam naquela viagem para sul. A Do-nier, Jondalar, ela e Jonayla, claro. Foi dizendo as palavras de contar em voz baixa e tocando na perna com os dedos para calcular o número. Já eram quatro. Willamar e os dois ajudantes também iam: sete. Ele dissera que queria transmitir-lhes toda a sua experiência e acrescentou que provavelmente aquela seria a sua última missão comercial a grande distância, que estava farto de viajar. Por certo estaria, pensou Ayla, mas questionou-se se a sua decisão não se devia em parte à fraca saúde de Marthona, com quem desejaria passar mais tempo.

Agora que Amelana também ia, seriam oito. E se somasse Jonokol, nove: oito adultos e uma criança. Ayla tinha a sensação de que seriam pessoas a mais. Quase como se lhe tivessem adivinhado o pensamento, Kimeran e Beladora, com os seus gémeos de cinco anos, apareceram à procura da Zelandoni. Também eles desejavam viajar para sul e levar os filhos a conhecer o povo da mãe. Esta tinha a certeza de que a Primeira não se importaria de visitar a sua caverna. Ficava perto de um dos locais sagrados mais bonitos e antigos da região. Todavia, não queriam fazer toda a viagem que a Donier planeara. Preferiam reunir-se com ela pelo caminho.

- Onde querem encontrar-se? - perguntou a Zelandoni.

- Talvez na caverna da irmã de Jondecam- sugeriu Beladora.

- Camora não é sua irmã, mas ele considera-a como tal.

Ayla sorriu à bonita mulher de cabelo escuro e ondulado e formas curvilíneas, que também falava com sotaque. Sentia um vínculo especial com ela: outra forasteira que se unira a um zelandoni e regressara com ele. Ayla conhecia as circunstâncias especiais de Kimeran e da sua irmã mais velha, que cuidou dele e dos seus próprios filhos após a morte da mãe. O seu companheiro também morrera jovem. Ela tornou-se uma zelandoni quando os filhos e o irmão estavam já crescidos.

- Para ir diretamente à caverna de Beladora temos de atravessar terras montanhosas- explicou Kimeran. - E um bom local para caçar íbexes e camurças, mas com subidas difíceis em alguns pontos, mesmo quando se segue o caudal dos rios. Pensei que podíamos viajar primeiro para sul e depois para leste. Creio que assim será mais fácil para Gioneran e Ginadela, e para nós quando tivermos de carregar com eles. Ainda têm as pernas curtas. - Kimeran sorriu. - Não como as minhas e as tuas, Jondalar. - Um sentimento cálido unia Jondalar ao outro homem alto e loiro.

- Vão viajar sozinhos? - inquiriu a Zelandoni. - Não é prudente se levam as crianças.

- Pensámos perguntar a Jondecam, a Levela e ao filho se queriam acompanhar-nos, mas preferíamos propor-te a ti primeiro, Zelandoni- respondeu Beladora.

- Creio que seriam bons companheiros de viagem- declarou a Primeira.

Ayla voltou a tocar na perna com os dedos. “Se Jonokol vier, serão dezasseis pessoas”, pensou.

- Iremos à Reunião de verão? - quis saber Jondalar.

- Apenas alguns dias, creio- replicou a Zelandoni. - Pedirei à Décima Quarta e ao Quinto que assumam as minhas responsabilidades. Tenho a certeza de que darão conta do recado. Enviarei um mensageiro a Jonokol antes de irmos à Reunião, para ver se quer acompanhar-nos.

O dia em que a Nona Caverna partiu em direção à Reunião de verão amanheceu claro e soalheiro. Nos dias anteriores chovera de forma intermitente, mas naquela manhã o céu estava limpo e resplandecia com uma luminosidade cristalina que conferia às montanhas distantes uma nitidez intensa. Naquele ano viajariam para sudoeste.

A Reunião de verão celebrava-se num local mais afastado do que noutros anos, e por isso levariam mais tempo de viagem.

Quando chegaram, Ayla reparou que havia ali membros das cavernas mais ocidentais que ainda não conhecia. Miraram boquiabertos ao vê-la com os três cavalos e o lobo, para já não falar do atrelado que os cavalos arrastavam, um dos quais transportava a Primeira. Instalou-se uma certa deceção quando se soube que a Primeira e a sua acólita não se demorariam muitos dias. Ayla pensou que gostaria de ficar e conversar com alguns dos Zelandoni que ainda não tivera o prazer de conhecer, mas também estava ansiosa por empreender a viagem de verão que a Primeira planeara.

Jonokol decidiu juntar-se a eles. Nunca fizera uma Viagem da Donier muito extensa, em parte porque ao princípio não tinha a intenção de se converter num Zelandoni; desejava apenas fazer imagens e pinturas e a Primeira não o pressionara.

Ayla ficou satisfeita. Ele recebera-a bem desde o início e poderia ser uma boa companhia. Ficaram apenas quatro dias na Reunião de verão, mas quase todos assistiram à despedida. Foi um espetáculo ver pôr-se em marcha um grupo de viajantes quase tão numeroso quanto uma caverna, em especial por causa dos animais e da carga, mas também porque se haviam juntado mais pessoas. Vários habitantes das cavernas a oeste, que não conheciam Ayla, uniram-se a eles, com o objetivo de mudar de direção mais à frente. Também viajava gente das cavernas vizinhas, sobretudo da Décima Primeira, incluindo Kareja, a sua líder.

A Primeira queria ir em direção ao sul seguindo o curso do Rio até chegaram à sua foz no Grande Rio. Uma vez ali, teriam de atravessar o caudal maior, mais profundo e largo do que o Rio, com uma corrente mais rápida. Podiam atravessar o rio já conhecido pelo Local de Passagem, uma secção larga e menos funda, passando por cima das pedras colocadas no caudal ou a vau- às vezes, dependendo da estação, com água até à cintura- , mas atravessar o Grande Rio seria mais complicado. Para resolver esse problema, a Primeira e Willamar haviam-se dirigido a Kareja e a alguns membros da Décima Primeira Caverna, famosa pela construção de balsas, para lhes pedirem que levassem os viajantes e o equipamento rio abaixo até à desembocadura e depois até à outra margem do Grande Rio.

Na primeira etapa, refizeram o caminho como se fossem para a Nona Caverna. Como eram apenas adultos- à exceção de Jonayla- , acompanhados pelos cavalos, o seu passo foi mais rápido. A maioria dos viajantes era jovem e saudável, e embora a Primeira fosse uma mulher corpulenta, possuía força e desenvoltura.

Nessa noite, quando acamparam, a Primeira e o Mestre do Comércio iniciaram as conversações com Kareja e alguns dos balseiros mais experientes, capazes de calcular o número de embarcações e tripulantes necessários para transportar os viajantes na segunda etapa da viagem. Depois havia que ultimar os pormenores da troca de bens e serviços pelo uso das balsas.

Como parte da troca, Kareja, da Décima Primeira Caverna, pediu um favor futuro a Jondalar. Ele estivera presente durante as negociações juntamente com a Primeira, mas desejara que Joharran ali estivesse. Promessas não anunciadas a respeito de serviços futuros podiam ser problemáticas e exigir mais do que algumas pessoas estavam dispostas a satisfazer.

- Creio que não tenho o direito de contrair esse tipo de compromisso em nome da Nona Caverna- disse Jondalar. - Não sou o líder. Talvez Willamar ou a Zelandoni possam.

Kareja esperara pelo momento oportuno nas negociações para pedir a Jondalar um serviço em particular.

- Mas podes fazer um compromisso em nome pessoal, Jondalar- argumentou Kareja. - Conheço uma jovem que promete muito como talhadora de sílex. Se a aceitares como aprendiza, considero este assunto encerrado.

A Zelandoni observou-o, perguntando-se o que responderia. Sabia que eram muitos os que lhe haviam pedido que formasse um ou outro jovem, mas ele era muito seletivo. Tinha já três aprendizes e não podia aceitar todos os que lhe pedissem. Mas aquela era a Viagem da Donier da sua companheira e devia contribuir com algo para a facilitar.

- Uma rapariga? Duvido que uma mulher possa chegar a ser uma boa talhadora de sílex- comentou um homem das cavernas ocidentais. Viajara com eles desde o acampamento da Reunião de verão. - Sei algo sobre o trabalho com pedernal e exige força e precisão para fazer bons utensílios. Todos conhecemos a fama e o bom-nome de Jondalar como talhador. Porque haveria de gastar o seu tempo com uma rapariga?

Ayla começara a interessar-se pela conversa. Não estava de acordo com aquele homem. Por experiência própria, sabia que uma mulher era capaz de talhar sílex tão bem quanto um homem, mas se Jondalar aceitasse uma aprendiza, onde iriam alojá-la? Não podia ficar com os rapazes, principalmente quando sangrasse. Embora os Zelandoni não fossem tão severos nisso quanto o Clã, para os quais uma mulher nem sequer podia olhar para um homem durante esses dias, uma mulher necessitava de privacidade. Isso significava que teria de viver com eles ou arranjarem outra solução.

Obviamente, Jondalar pensara no mesmo.

- Não creio que possa aceitar uma jovem, Kareja- disse ele.

- Estás a dizer que uma mulher não pode aprender a talhar sílex? - questionou Kareja. - As mulheres estão constantemente a fazer utensílios. Uma mulher não vai a correr ao talhador de pedernal de cada vez que uma ferramenta se parte quando está a raspar uma pele ou a cortar carne. Conserta-a ou faz uma nova.

Kareja parecia calma, porém, a Primeira sabia que se esforçava por se controlar. Desejava dizer àquele homem como era absurda a sua atitude, mas tinha a impressão de que Jondalar estava de acordo com ela. A Zelandoni escutava a conversa com interesse.

- Sim, eu sei que uma mulher consegue fazer utensílios para seu próprio uso, um raspador ou uma faca, mas poderá fazer uma arma de caça? As pontas das lanças e dos dardos têm de voar direitas e bem, ou falhas o alvo- argumentou o homem. - Não censuro o talhador de sílex se não aceitar uma mulher como aprendiza.

Kareja indignou-se.

- Jondalar! Ele tem razão? Achas que as mulheres não podem aprender a talhar sílex tão bem quanto os homens?

- Isso não tem nada que ver- contrapôs Jondalar. - Claro que as mulheres podem talhar sílex. Quando vivia com Dalanar e era seu aprendiz, ele ensinou ao mesmo tempo a minha prima, Joplaya. Competíamos os dois, e quando era jovem ter-me-ia negado a reconhecê-lo diante dela, mas agora não hesitaria em afirmar que em certos aspetos ela é melhor do que eu. O único problema é que não sei onde alojaríamos uma rapariga. Não posso instalá-la com os três aprendizes que tenho. São homens, e uma rapariga necessita de alguma privacidade. Podia acolhê-la no nosso abrigo, mas um aprendiz precisa de um local onde guardar as suas ferramentas e amostras, e as lascas de sílex são afiadas. Ayla fica furiosa quando entro em casa com um pedaço preso na roupa. Não os quer perto de Jonayla, e não a censuro. Se aceitasse a jovem, teríamos de acrescentar um anexo ao abrigo dos aprendizes, ou fazer um abrigo separado.

Kareja acalmou-se de imediato. Pareceu-lhe um argumento sensato. Com uma companheira como Ayla, que era uma caçadora famosa além de acólita da Primeira, deveria saber que Jondalar não partilharia da ridícula opinião daquele homem do Oeste. Além disso, a mãe de Jondalar fora líder. Mas tinha razão no seu argumento, pensou a mulher alta e magra.

- Penso que um abrigo separado seria melhor- disse Kareja.

- E a Décima Primeira caverna pode ajudar-te a construí-lo, ou, se me disseres onde o queres, podemos construí-lo enquanto vocês viajavam.

- Espera lá! - exclamou Jondalar, olhando para Kareja com os olhos esbugalhados pela sua rápida resposta. A Zelandoni, sorrindo, olhou de soslaio para Ayla, que se esforçava por conter o riso. - Não disse que a aceitava. Ponho sempre à prova os aspirantes a aprendizes. Nem sequer a conheço.

- Conheces pois. É Norava. Vi-te a trabalhar com ela no verão passado- explicou Kareja.

Jondalar relaxou e sorriu.

- Sim, conheço-a. Penso que será uma excelente talhadora de sílex. Durante a caçada de auroques, partiu-se-lhe um par de pontas. Estava a repará-las quando me aproximei. Detive-me por momentos a observá-la e pediu-me ajuda. Ensinei-lhe uma ou outra coisa e captou-as de imediato. Aprende depressa e tem boas mãos. Sim, se te assegurares de que ela tem onde ficar, Kareja, aceitarei Norava como aprendiza.

 

Quase todos os habitantes das cavernas vizinhas que não tinham ido à Reunião de verão encontravam-se na Nona Caverna quando chegaram os viajantes. Esperavam-nos, avisados previamente por um mensageiro. Havia uma refeição preparada para todos. Uns quantos caçadores haviam saído e regressado com um megacero.

Na manhã seguinte, aqueles que viajavam com a Primeira reuniram os seus pertences e um pouco mais de carne para a viagem, e percorreram a curta distância até à Passagem. Atravessaram o Rio e chegaram ao embarcadouro de madeira frente ao refúgio conhecido como Sítio do Rio, a Décima Primeira Caverna dos Zelandoni. Várias jangadas, construídas com pequenas árvores, desramadas e reduzidas a troncos atados entre si, permaneciam amarradas ao embarcadouro, uma simples estrutura de madeira que se projetava sobre o rio.

Os cavalos haviam puxado os atrelados até à Décima Primeira Caverna com quase toda a carga dos viajantes, mas agora era preciso trasladá-la para as balsas. Felizmente, os Zelandoni sabiam viajar com pouca carga. Levavam apenas o que conseguiam transportar eles mesmos. O único peso extra eram as varas dos atrelados. Com exceção de Ayla e de Jondalar, mais ninguém dependia dos cavalos e dos atrelados para transportar as suas coisas.

Os membros da Décima Primeira Caverna, que guiariam as jangadas rio abaixo, dirigiam a operação de carga. Esta tinha de estar bem equilibrada ou seria mais difícil controlar as jangadas. Jondalar e Ayla ajudaram a carregar as compridas varas na balsa que seguiria primeiro, a que levaria a Primeira, Willamar e Jonokol. O atrelado mais pesado, com o assento, teve de ser desmontado e carregado na segunda balsa. Esta levaria Amelana e os dois jovens aprendizes de Willamar, Tivonan e Palidar.

Ayla, Jondalar e Jonayla seguiriam a cavalo pela margem, se fosse transitável, ou passariam a vau ou a nado ou, em alguns casos, contornariam por terra, mais pelo interior.

Enquanto esperavam, uma mulher desceu do refúgio de pedra e aproximou-se para falar com a Primeira. Queria que a curandeira fosse ver a filha, acometida por grandes dores de dentes. Ayla pediu a Jondalar que ficasse com Jonayla e seguiu a Primeira. A mulher conduziu-as até uma pequena morada sob a saliência de pedra. Lá dentro, uma jovem que devia ter uns dezasseis anos revoltava-se nas suas peles de dormir, suando profusamente. Tinha uma das bochechas muito vermelha e inchada. Padecia obviamente de uma atroz dor de dentes.

- Tenho alguma experiência com dores de dentes- disse Ayla à jovem, recordando-se da altura em que ajudara Iza a arrancar um dos dentes de Creb. - Deixas-me dar uma vista de olhos?

A jovem sentou-se e abanou a cabeça.

- Não! - exclamou numa voz abafada. Levantou-se, dirigiu-se à Primeira e tocou na bochecha. - Tira-me a dor.

- O nosso Zelandoni deu-nos algo para a dor antes de abalar, mas agora está muito pior; e o remédio não parece fazer efeito- explicou a mãe.

Ayla observou a Zelandoni. A corpulenta mulher franziu a testa e abanou a cabeça.

- Vou dar-lhe um remédio mais forte que a fará dormir- disse a Primeira à mãe da jovem. - E deixar-te-ei um pouco mais para que continues a dar-lhe.

- Obrigada. Muito obrigada- agradeceu a mulher.

Enquanto Ayla e a Zelandoni regressavam à margem do rio, Ayla virou-se para a sua mentora com uma expressão interrogativa.

- Sabes o que se passa com o dente?

- Ela tem este problema desde que começaram a nascer-lhe os dentes. Tem demasiados, uma segunda fila- respondeu a Primeira. Ao ver o olhar de perplexidade de Ayla, explicou:

- Cresceram-lhe duas séries de dentes no mesmo espaço ao mesmo tempo, e ficaram amontoados. Em bebé sofreu terríveis dores com a primeira dentição, e voltou a padecê-las na segunda dentição. Depois esteve bem por um tempo. Não lhe doeram os dentes durante vários anos, mas, ao crescerem os de trás, voltaram as dores.

- Não se poderiam arrancar uns quantos dentes? - sugeriu Ayla.

- A Zelandoni da Décima Primeira já tentou, mas estão tão apertados que foi impossível. A própria jovem tentou fazê-lo há algumas luas e acabou partindo alguns. Desde então a dor tem aumentado. E possível que haja inflamação e supuração, mas ela não deixa ninguém ver. Não creio que chegue a curar-se. É provável que um dia morra por causa dos dentes. Talvez o mais bondoso fosse dar-lhe demasiado remédio para as dores e deixá-la ir placidamente para o outro mundo- disse a Primeira. - Mas essa decisão cabe à mãe.

- Mas é tão jovem e parece forte e saudável- argumentou Ayla.

- Sim, e é uma pena que tenha de sofrer tanto, mas temo que o sofrimento só irá acabar quando a Mãe a levar- ditou a Donier- , principalmente se não deixar ninguém ajudá-la.

Quando chegaram ao Rio, as balsas estavam quase carregadas. Os seis viajantes que navegariam rio abaixo iriam repartir-se em duas balsas, juntamente com o material dos atrelados. Ayla e Jondalar, a cavalo, levariam as suas bolsas e objetos pessoais. Kareja aconselhara-os a levar três jangadas, mas naquele momento só dispunham de tripulação suficiente para manejar duas. Teriam de mandar chamar mais gente e esperar que chegassem, por isso decidiram que duas chegariam. Nunca empreendiam viagens tão longas, e eventualmente perigosas, com menos de duas jangadas.

As embarcações eram impulsionadas rio acima mediante uma ou mais varas compridas empurradas contra o leito do rio, e quando seguiam rio abaixo, deixavam-se arrastar pela corrente. Como essa era a sua direção, assim que a corda que prendia a balsa ao embarcadouro foi solta, o rio facilitou o trabalho. A favor da corrente, a vara era usada apenas para dirigir a balsa e evitar as rochas. Também usavam remos, feitos dos chifres dos veados, para manobrar e impulsionar as plataformas flutuantes, tarefa que exigia a estreita colaboração de três pessoas.

Ayla colocou as mantas de montar no lombo de Whinney, de Racer e de Gray, depois atou uma corda à jovem égua, mas sentou Jonayla à frente dela, sobre Whinney. Haveria tempo para deixar Jonayla montar sozinha. Assim que a primeira jangada saiu do embarcadouro, Ayla procurou Lobo e assobiou-lhe. Este apareceu de imediato. Ayla e Jondalar entraram com os cavalos na água e, quando chegaram à parte mais profunda no centro do caudal, os animais nadaram atrás das balsas durante um bocado antes de saírem na margem oposta.

As jangadas desceram para sul a uma boa velocidade. Quando as paredes de rocha se estreitaram, voltaram a meter-se no rio e deixaram que os cavalos nadassem nas águas rápidas e profundas. A segunda balsa utilizou os remos para abrandar a velocidade, de modo a que os cavalos os alcançassem. Quando estes se aproximaram, Shenora, a mulher que manejava o leme da primeira jangada, gritou:

- Depois da próxima curva há uma margem acessível. É melhor saírem do rio lá e contornarem as paredes rochosas. Vamos encontrar alguns rápidos. É um vão turbulento e não creio que seja seguro para os cavalos.

- E é seguro para vocês? - indagou Jondalar.

- Já o percorremos antes- replicou a mulher. - Passaremos sem problemas.

Jondalar guiou os cavalos em direção à margem e Ayla, segurando Jonayla, seguiu-o. Lobo nadava logo atrás deles.

Amelana e os dois aprendizes de Willamar viajavam na última balsa, a que estava mais perto deles. Amelana parecia preocupada, contudo, não se mostrava disposta a sair da jangada. Os dois jovens pairavam em volta dela; era sempre agradável estar perto de uma jovem atraente, principalmente se estava grávida. A Zelandoni, Jonokol e Willamar seguiam na primeira balsa e já não ouviriam Jondalar mesmo se este levantasse a voz. Era com eles que estava mais preocupado, mas se a Primeira não pedira para sair, era porque considerava a jangada segura.

Mais adiante o rio era uma massa furiosa de espuma. A água assomava entre os troncos e salpicava tudo. O rugido do impetuoso rio aumentava à medida que a poderosa corrente os arrastava por entre as paredes rochosas que se elevavam de ambos os lados.

Num instante estavam no centro do redemoinho. A água saltava por cima das rochas desgastadas pela erosão. A Primeira soltou uma exclamação ao sentir um salpico de água fria na cara quando a proa da balsa se afundou na água turbulenta e veloz.

A Zelandoni sentia medo, mas também emoção, e, ao ver os balseiros da Décima Primeira Caverna controlar tão bem a embarcação impulsionada a tal velocidade por entre as rochas, cresceu ainda mais o apreço que sentia por eles.

Ao deixarem o leito rochoso, desceram por uma pequena cascata situada a um lado e foram parar a uma entrada na parede rochosa à esquerda, ficando ali imobilizados num redemoinho. Flutuavam, mas estavam presos, incapazes de seguir rio abaixo.

- Isto às vezes acontece- disse a mulher que controlava o leme.

- Temos de nos afastar da parede, mas não vai ser fácil. Sair daqui a nado também não será fácil. Temos de nos libertar deste remoinho. A segunda jangada não tardará a chegar, talvez nos possam ajudar, a menos que fiquem também presos.

O homem com a pírtiga pôs os pés descalços nos interstícios por entre os troncos da balsa para maior tração e empurrou a parede contra a vara, num esforço para mover a jangada.

- Creio que precisam de mais uma vara ou duas- sugeriu Willamar, aproximando-se do homem com uma das varas compridas do atrelado de Ayla. Logo atrás, Jonokol empunhava outra.

Mesmo com três homens a empurrar, não foi fácil sair do redemoinho. Assim que se viram a flutuar livremente, o homem da pírtiga guiou-os até uma rocha saliente e aí os balseiros mantiveram a balsa imóvel.

- É melhor esperarmos aqui para vermos como a segunda balsa supera esse troço- sugeriu ele. - Está mais traiçoeiro do que o habitual.

- Boa ideia- concordou Willamar. - Tenho um par de jovens comerciantes nessa jangada e preferia não os perder.

Enquanto falavam, a segunda balsa apareceu na curva e a sua velocidade abrandou pela fricção com o leito rochoso, como acontecera à primeira, mas a corrente tinha-os empurrado um pouco para mais longe da parede rochosa, evitando o redemoinho. Assim que viram que a segunda balsa seguia sem problemas, a primeira retomou a marcha. Mais à frente, as águas do Rio acalmaram de súbito e na margem esquerda apareceu uma agradável praia arenosa e plana e algo parecido a um embarcadouro. A jangada seguiu nessa direção e quando se aproximaram um dos remadores pegou numa corda com um dos extremos atados à embarcação e atirou a outra extremidade, com a forma de um laço, a um poste cravado firmemente na terra na margem do rio. O segundo remador atirou outra corda e os dois aproximaram a balsa do pequeno embarcadouro.

- E melhor sairmos aqui e esperarmos pelos outros. Preciso de descansar- disse o homem da pírtiga.

- Sim, e nós também- concordou a Primeira.

A segunda jangada não tardou a aparecer e a fazer o mesmo. Um pouco mais tarde, foi a vez de Ayla e de Jondalar surgirem por trás da elevação de rocha.

Cumprimentaram-se com entusiasmo depois de verem que estavam todos sãos e salvos. Depois, o homem da Décima Primeira Caverna acendeu uma fogueira num buraco que obviamente já havia sido usado para esse fim.

Viajar de balsa era mais rápido, mas não lhes permitia recoletar comida, por isso tinham de consumir a que levavam. Fizeram uma refeição ligeira e comeram-na rapidamente, para poderem voltar às jangadas e terminar a viagem fluvial antes do anoitecer.

Perto da desembocadura do Rio, apesar dos muito pequenos afluentes que vertiam as suas águas, aumentando o caudal e a turbulência, a corrente não voltou a ser tão impetuosa como nos rápidos. Continuaram a navegar junto à margem esquerda até avistarem o Grande Rio.

Os cavalos e o lobo atravessaram a nado, traçando uma linha reta. Continuaram pela margem, sem perder de vista as jangadas conforme faziam a sua trajetória oblíqua em direção a terra. Enquanto cavalgavam rio abaixo, Jondalar recordou com carinho as embarcações utilizadas pelos sharamudoi que habitavam junto ao rio da Grande Mãe. Viviam perto do final do caudal dessa larga e importante via fluvial, num troço largo e rápido, mas as suas embarcações sulcavam agilmente as águas. As mais pequenas podiam ser controladas apenas por uma pessoa mediante um remo com duas extremidades. As maiores eram utilizadas para transportar mercadorias e pessoas, embora precisassem de mais um tripulante para impulsionar com os remos; não obstante, o controlo era maior.

A corrente arrastou as balsas rio abaixo até que chegaram à margem oposta. Por essa altura, o Sol já se punha a oeste, e todos ficaram aliviados quando desembarcaram. Enquanto montavam o acampamento os dois aprendizes de Willamar, juntamente com Jondalar e Lobo, foram ver se conseguiam caçar alguma coisa. Ainda tinham carne, mas já não duraria muito, e preferiam carne fresca.

Pouco depois de partirem, avistaram um bisonte macho solitário, mas ele viu-os primeiro e fugiu tão depressa que foi impossível segui-lo. Lobo espantou um par de perdizes escondidas no seu ninho. Jondalar abateu uma com o seu atirador de lanças; Tivonan, que também levava o seu, falhou, e Palidar não conseguiu prepará-lo a tempo. Embora uma perdiz-branca não desse de comer a muita gente, Jondalar foi buscá-la. Não tardaria a anoitecer, e já não tinham tempo para procurar outra coisa.

Nesse instante, Jondalar escutou um ganido. Virou-se rapidamente e viu Lobo tentando manter na linha um jovem bisonte macho. Era mais pequeno do aquele que haviam visto e provavelmente teria abandonado a manada materna pouco tempo antes. Jondalar armou o atirador de lanças num instante, mas desta vez Palidar foi mais rápido. Enquanto os homens se aproximavam da presa, Tivonan conseguiu também preparar o atirador de lanças.

O bisonte jovem e inexperiente concentrara-se no lobo, que temia de forma instintiva, e não prestava muita atenção aos predadores bípedes, para os quais não possuía reação instintiva, porque não os conhecia, mas, rodeado pelos três, tinha poucas hipóteses. Jondalar, o mais hábil, atirou o seu dardo já montado. Os outros dois homens necessitaram de um pouco mais de tempo para fazer pontaria. Palidar foi o primeiro a lançar, logo seguido por Tivonan. As três lanças acertaram em cheio e abateram o animal. Os jovens deixaram escapar um grito de alegria e arrastaram o bisonte até ao acampamento. O animal proporcionaria carne para várias refeições aos catorze adultos e ao lobo, que sem dúvida merecia parte dela pela sua intervenção na caçada.

Olocal sagrado que a Primeira queria ver era uma caverna pintada que ficava a vários dias de viagem em direção a este e a sul. E a Décima Primeira Caverna teria de enfrentar novamente a corrente impetuosa do Grande Rio. Tinham de iniciar a travessia a uma certa distância dali, se queriam chegar à margem oposta perto da desembocadura do Rio, que os levaria de regresso a casa. Ambos os grupos se dirigiam para uma caverna que, segundo explicaram a Ayla, se encontrava perto do lugar onde um pequeno curso de água confluía com o Grande Rio. Esse caudal de menor tamanho nascia numas montanhas a sul, junto do local sagrado que a Primeira queria mostrar a Ayla. Na manhã seguinte, dirigiram-se para leste, subindo o Grande Rio pela margem.

A Décima Primeira era a única caverna dos Zelandoni que utilizava balsas para viajar pelos rios do seu território. Muitas gerações antes, alguns descendentes dos mesmos navegantes fluviais que haviam fundado a Décima Primeira Caverna decidiram estabelecer uma caverna nova do outro lado do Grande Rio, perto do sítio onde normalmente iniciavam o caminho de regresso. Acampavam nos arredores com frequência, e procuravam cavernas e refúgios de pedra quando o mau tempo ameaçava; além disso, exploravam essa zona sempre que caçavam e recoletavam comida. Acabaram por conhecer muito bem a região.

Mais tarde, pelas razões habituais- a caverna inicial tinha muita gente, ou alguém tivera uma discussão com a companheira do irmão ou com o tio- , um pequeno grupo separou-se e formou uma nova caverna. Ainda havia mais terra desabitada do que pessoas para a ocupar. Para a caverna original, era uma clara vantagem dispor de um lugar onde havia amigos, comida e espaço para dormir. As duas cavernas estreitamente ligadas arranjavam forma de trocar serviços e bens, e a nova caverna prosperou. Acabou por se chamar Primeira Caverna dos Zelandoni a sul do Grande Rio, nome que com o tempo se abreviou para Primeira Caverna dos Zelandoni das Terras do Sul.

A Donier queria estabelecer um acordo com eles para cruzar o rio no caminho de regresso e avisá-los com antecedência que outro grupo, com o qual os viajantes haviam previsto reunir-se mais à frente, atravessaria o Grande Rio. Também desejava falar com a sua Zelandoni, uma mulher que conhecia antes de ser acólita. Depois o grupo iria separar-se. Dali, os balseiros da Décima Primeira Caverna atravessariam de novo o Grande Rio e os participantes na Viagem da Donier subiriam o pequeno curso de água até à caverna pintada.

Nas deslocações pelo rio, às vezes era necessário carregar a balsa para ultrapassar obstáculos ou águas impetuosas ou pouco profundas. Desta vez os viajantes ajudaram e a tarefa tornou-se mais fácil. Colocaram os remos, os lemes e as pírtigas nos atrelados puxados pelos cavalos, juntamente com as tendas de viagem e outros pertences.

Avançaram para leste, para montante, pela margem sul da caudalosa via fluvial que descia para oeste, e ao ver o primeiro dos dois grandes meandros do Grande Rio souberam que estavam próximos da desembocadura do Rio. Quando chegaram ao extremo superior do primeiro meandro, o extremo sul, os viajantes afastaram-se da margem do rio. Seguir toda a curva do meandro teria representado uma enorme caminhada, e podiam atalhar caminho. Percorreram um caminho que outrora fora uma senda de animais e que se alargara pelo uso humano. Ali, onde se bifurcava, um caminho seguia para norte, paralelo ao rio, e o outro desviava-se para leste terra, adentro, de longe o mais transitado.

Chegaram ao extremo superior do segundo meandro e ali acompanharam o curso do rio, que nesse ponto voltava a dirigir-se para norte. Encaminhando-se para leste a corta-mato, chegaram de novo ao rio e dali seguiram para sudeste. O caudal do Grande Rio era muito menor antes do local onde o Rio vertia as suas águas. Foi aí que decidiram acampar para passar a noite.

O acampamento da Primeira Caverna dos Zelandoni das Terras do Sul ficava a um dia dali. Chegaram ao fim da tarde, e Ayla pensou que era bem mais cómodo ter um lugar onde estender as peles de dormir sem ter de montar as tendas e encontrar a comida já feita. Os habitantes desta caverna também viajavam e caçavam na estação quente e por isso naquele momento residiam ali menos pessoas.

Convenceram os viajantes a passar mais alguns dias com os Zelandoni das Terras do Sul, que haviam ouvido falar de um lobo e de uns cavalos que se submetiam à vontade de uma forasteira e de um zelandoni que regressara de uma longa viagem. Ficaram surpreendidos ao descobrir que a maioria das coisas que tinham considerado um exagero eram de facto verdadeiras. Também se sentiram honrados por terem com eles a Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Grande Mãe Terra. Todos os Zelandoni, incluindo os que raramente a viam, reconheciam-na como a Primeira, mas alguém mencionou outra mulher que vivia perto de uma gruta mais a sul, igualmente respeitada e honrada. A Primeira sorriu: essa mulher era uma pessoa que ela conhecia e esperava ver.

Aqueles que a Caverna das Terras do Sul melhor conheciam eram os balseiros da Décima Primeira Caverna e o Mestre do Comércio da Nona. Willamar passara por ali muitas vezes durante as suas viagens.

Os membros das duas cavernas dos Zelandoni que construíam e manejavam as balsas tinham histórias para contar, habilidades para compartilhar e aptidões para ensinar, não apenas entre si, mas também a qualquer pessoa que estivesse interessada. Explicaram algumas das técnicas que utilizavam para construir as suas embarcações, e Jonda-lar escutou com atenção.

Depois foi a vez de ele falar dos barcos dos Sharamudoi, mas não entrou em grandes detalhes, pois decidira construir um para lhes mostrar. O seu prestígio como talhador de sílex era amplamente conhecido e, quando lhe pediram, foi com gosto que deu a conhecer as suas técnicas. Também falou da invenção do atirador de lanças, cujo uso se difundira rapidamente, e com Ayla fez uma demonstração de alguns dos aspetos mais subtis para um controlo eficaz daquela arma de caça. Ayla exibiu também a sua destreza com a funda.

Willamar contou anedotas e aventuras das suas viagens como Mestre do Comércio, e era um bom narrador, pois cativava o seu público. A Zelandoni aproveitou para ensinar e, com a sua impressionante voz, recitou e cantou algumas das Histórias e Lendas dos Anciãos. Uma noite conseguiu convencer Ayla a demonstrar o seu virtuosismo na imitação de aves e de vozes de animais. Depois de contar uma anedota sobre o Clã, Ayla ensinou-lhes algumas das formas de comunicar através da linguagem gestual. Passado um bocado, já todos mantinham simples conversas sem emitir um único som.

Jonayla era uma criatura adorável e, como era a única criança entre os viajantes, recebia muita atenção. O Lobo também, porque se deixava tocar e mimar, mas ainda mais porque respondia aos pedidos daqueles que conhecia. Era evidente que obedecia mais a Ayla, a Jondalar e a Jonayla. As pessoas também se sentiam curiosas em relação aos três cavalos. A égua maior, Whinney, que parecia mais dócil, sentia-se mais unida a Ayla. Jondalar era quem melhor controlava o corcel, altivo, e ao qual haviam dado o nome de Racer, mas mais surpreendente era a maneira como a pequena Jonayla montava e se ocupava da jovem égua, Gray, embora ainda não fosse capaz de subir para o dorso do animal.

Por causa dos dias que haviam passado juntos, o grupo da Viagem da Donier e os balseiros da Décima Primeira Caverna ficaram tristes quando chegou a altura de se separarem. Tinham compartilhado momentos difíceis. Cada um encontrara a sua função ao montar o acampamento, ao caçar e recoletar alimentos, e ao contribuir para as tarefas da vida quotidiana. Tinham partilhado histórias e conhecimentos, e sabiam que haviam feito amizades especiais que esperavam renovar mais tarde. Quando retomaram o caminho para sul, Ayla experimentou uma sensação de perda. Começara a sentir que as pessoas da Décima Primeira Caverna faziam parte da sua família.

 

Seguir viagem com metade das pessoas tinha as suas vantagens. Agora tinham a sensação de que avançavam mais depressa e com maior facilidade. Havia menos coisas com as quais se ocuparem, não tinham balsas para transportar, e era necessária menos comida e lenha. Também já não era preciso encher tantos odres, e ocupavam menos espaço para acampar.

O pequeno rio proporcionava-lhes um fornecimento contínuo de água e era bordeado por um caminho fácil de seguir, embora fosse sempre inclinado.

As pessoas que viviam perto do local sagrado seguinte que a Primeira desejava mostrar a Ayla eram uma extensão da Primeira Caverna das Terras do Sul. A Primeira apontou para um refúgio ao passarem pela frente.

- Esta é a entrada da caverna pintada que te quero mostrar- disse.

- Sendo um local sagrado, não podemos entrar assim sem mais? - indagou Ayla.

- Fica em território da Quarta Caverna dos Zelandoni das Terras do Sul, e consideram que a caverna é deles e que têm o direito de a usar e de a mostrar- explicou a Primeira. - Também são eles quem normalmente acrescenta as pinturas novas. Se Jonokol sentisse o impulso de pintar nas paredes, o mais provável era que o permitissem, mas o ideal seria que os informasse primeiro. Um dos seus podia sentir a necessidade de pintar no mesmo sítio.

Prosseguiu explicando que era sempre conveniente mostrar reconhecimento pelo território que uma caverna considerava seu. Desconheciam o conceito de propriedade privada, e não ocorria a ninguém que a terra pudesse ter dono. A terra era a encarnação da Grande Mãe, oferecida aos filhos para que todos a usassem, mas os habitantes de uma região viam o seu território como lar. Todos podiam viajar livremente, atravessar qualquer região por mais afastada que fosse, sempre que o fizessem com consideração e respeitassem as regras de cortesia comummente aceites.

Qualquer pessoa podia caçar, pescar ou recoletar os alimentos necessários, porém, era considerada boa educação apresentar-se à caverna local. Isso aplicava-se aos vizinhos e aos que estavam de passagem, para que não estragassem os planos que algum grupo local pudesse ter. Se, por exemplo, um vigia residente havia estado a observar uma manada e os caçadores planeavam uma caçada para encherem a despensa de carne para a estação fria, podia provocar uma certa indignação que uns quantos viajantes, por perseguirem apenas um animal, espantassem a manada. Se avisassem da sua presença à caverna local, o mais provável era serem convidados a participar na caçada e ficarem com uma parte.

A maioria das cavernas contava com vigias que permaneciam sempre atentos, sobretudo à passagem de manadas migratórias, mas também a qualquer atividade pouco usual, e ver pessoas a viajar com um lobo e três cavalos era sem dúvida invulgar. E ainda mais se um dos cavalos arrastava um artefacto no qual ia sentada uma mulher corpulenta. Quando os visitantes avistaram o lar da Quarta Caverna dos Zelandoni das Terras do Sul, esperava-os um pequeno grupo. Depois de a mulher corpulenta se apear, um homem com tatuagens na cara que afirmou ser o Zelandoni deu um passo em frente para a saudar e aos restantes. Reconhecera as tatuagens faciais da Primeira.

- Saúdo Aquela Que E a Primeira Entre Aqueles Que Servem a Grande Mãe Terra- disse, aproximando-se com as duas mãos abertas e estendidas. - Em nome da Doni, a Primeira Grande e Benfeitora Mãe Que Nos Provê a Todos, sejam bem-vindos.

- Em nome de Doni, a Mãe Original e Mais Generosa, saúdo-te, Zelandoni da Quarta Caverna dos Zelandoni das Terras do Sul- cumprimentou a Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Grande Mãe Terra.

- O que vos traz tão a sul? - perguntou ele.

- A Viagem da Donier da minha acólita- explicou Aquela Que era a Primeira.

O homem viu aproximar-se uma jovem atraente com uma menina especialmente bonita. O Zelandoni sorriu e dirigiu-se à jovem com as mãos estendidas; não tardou a reparar no lobo e olhou em redor, nervoso.

- Ayla, da Nona Caverna dos Zelandoni... - começou a dizer a Primeira, enumerando os laços e títulos mais importantes.

- Bem-vinda, Ayla da Nona Caverna dos Zelandoni- disse ele, embora estranhasse todos aqueles títulos e laços com nomes de animais.

Ayla deu um passo em frente com as mãos abertas.

- Em nome de Doni, Mãe de Todos, saúdo-te, Zelandoni da Quarta Caverna dos Zelandoni das Terras do Sul- disse a jovem.

O homem esforçou-se por esconder a sua surpresa pela maneira como ela falara. Era óbvio que vinha de um lugar afastado. Era pouco comum um forasteiro ser aceite na zelandonia; porém, aquela mulher de outras terras era acólita da Primeira.

Com a sua perspicácia para detetar todos os matizes em gestos e expressões, Ayla percebeu a sua surpresa e a tentativa de a ocultar. A Primeira também o notou e reprimiu um sorriso. “Aquela ia ser uma viagem interessante”, cogitou. Com os cavalos, um lobo e uma acólita estrangeira, toda a gente falaria dos seus visitantes durante um tempo. A Primeira pensou que deveria informar melhor o Zelandoni sobre o estatuto de Ayla e apresentar-lhe o resto do grupo. Apontou para Jondalar, que também notara a reação do Zelandoni e a resposta da Primeira.

- Jondalar, cumprimenta o Zelandoni da Quarta Caverna das Terras do Sul. - Virou-se para o homem. - Apresento-te Jondalar da Nona Caverna dos Zelandoni, mestre talhador de sílex da Nona Caverna dos Zelandoni, irmão de Joharran, líder da Nona Caverna, filho de Marthona, antiga líder da Nona Caverna, nascido no lar de Dalanar, líder e fundador dos Lanzadoni- explicou- , e companheiro de Ayla da Nona Caverna, acólita da Primeira, e mãe de Jonayla, Abençoada de Doni.

Os dois homens apertaram as mãos e saudaram-se formalmente. As escassas pessoas que se haviam juntado para os receber estavam espantadas com todos aqueles títulos e laços de elevada posição. A própria Nona Caverna desfrutava de uma posição elevada. Raras vezes se utilizava tanta formalidade em encontros normais, e a Primeira tinha a impressão de que o Zelandoni não hesitaria em contar histórias sobre aquele encontro. A Primeira desejara levar Ayla numa Viagem da Donier não apenas para lhe mostrar os locais sagrados do território dos Zelandoni, mas também para a apresentar em muitas das cavernas. Tinha planos para Ayla que mais ninguém conhecia, nem sequer a própria. Em seguida apontou para Jonokol.

- Já que íamos fazer esta viagem, pensei que devia incluir o meu anterior acólito. Nunca o levei numa viagem quando era apenas Jonokol, o meu acólito com inclinações artísticas. Agora é não só um pintor de grande talento, como também um Zelandoni importante e inteligente- referiu a Primeira.

As tatuagens do lado esquerdo da cara de Jonokol anunciavam que já não era um acólito. As tatuagens dos zelandonia eram feitas sempre no lado esquerdo da cara, geralmente na frente ou na bochecha, e às vezes eram bastante elaboradas. Os líderes exibiam as tatuagens no lado direito, e outras pessoas destacadas, como o Mestre do Comércio, exibiam símbolos a meio na frente, habitualmente mais pequenos.

Jonokol deu um passo em frente e apresentou-se ele mesmo.

- Sou o Zelandoni da Décima Nona Caverna dos Zelandoni e saúdo-te, Zelandoni da Quarta Caverna dos Zelandoni que vivem a sul do Grande Rio- disse, e estendeu as mãos.

- Saudações, e bem-vindo, Zelandoni da Décima Nona- foi a resposta.

Depois foi a vez de Willamar.

- Sou Willamar dos Zelandoni, companheiro de Marthona, antiga líder da Nona Caverna, mãe de Jondalar. Sou conhecido como Mestre do Comércio da Nona Caverna, e trouxe os meus dois aprendizes, Tivonan e Palidar.

O Zelandoni deu as boas-vindas ao Mestre do Comércio. Quando reparou na tatuagem à frente, supôs que o homem ostentava uma posição importante, mas só quando as viu mais de perto constatou que, de facto, era um comerciante. Depois deu as boas-vindas aos dois jovens, que o cumprimentaram também formalmente.

- Já passei por aqui antes e vi o vosso extraordinário lugar sagrado. No entanto, esta é a minha última missão de comércio. Serão estes jovens que irás provavelmente ver daqui em diante. Conheci o Zelandoni anterior. Ainda é Zelandoni? - Aquela pergunta era a maneira escolhida por Willamar para averiguar com o maior tato possível se ainda estava vivo. O antigo Zelandoni era da idade de Willamar, ou um pouco mais velho.

- Sim, está na Reunião de verão, mas não lhe foi fácil ir. Não se encontra bem. Tal como tu, planeia abandonar o seu ofício. Disse que esta será a sua última Reunião de verão. No ano que vem ficará aqui para ajudar os que não podem ir. Mas tu pareces gozar de boa saúde. Porque vais transmitir o teu ofício a estes dois jovens? - perguntou o novo Zelandoni.

- Uma pessoa pode continuar no ofício se anda na mesma região, mas um mestre do comércio viaja muito e, para ser franco, já começo a ficar cansado de andar de um lado para o outro. Quero passar mais tempo com a minha companheira e a sua família. - Apontou para Jondalar e prosseguiu:

- Este jovem não nasceu no meu lar, mas para mim é como se lá pertencesse. Viveu comigo desde que começou a gatinhar. Durante um tempo, pensei que nunca deixaria de crescer. - Willamar sorriu para o homem alto e loiro. - Também Ayla, a sua companheira, é como uma filha do meu lar. Marthona, a mãe de Jondalar, é avó e tem uns netos maravilhosos, entre eles esta menina tão bonita- disse Willamar, apontando para Jonayla. - Marthona tem também uma filha, que é do meu lar. Está em idade de arranjar companheiro. Marthona será avó e eu quero ser avô. Está na hora de parar de viajar.

Ayla escutou com interesse a explicação de Willamar. Tinha adivinhado que ele desejava passar mais tempo com Marthona, mas nunca se dera conta de como eram profundos os sentimentos em relação aos filhos da sua companheira, e aos filhos destes, e em relação a Folara, a filha do seu próprio lar. Foi então que compreendeu as saudades que devia sentir de Thonolan, o filho do seu lar que morrera na viagem feita com Jondalar.

A Primeira prosseguiu com as últimas apresentações.

- Também está aqui uma jovem que viaja connosco de regresso à sua caverna. O companheiro vivia perto da nossa caverna. Conheceu-a numa viagem e trouxe-a consigo. Infelizmente agora caminha pelo outro mundo. Chama-se Amelana, dos Zelandoni do Sul- explicou a Primeira.

O Zelandoni olhou para a jovem e sorriu. “E muito bonita”, pensou, e supôs que devia estar grávida, não que se notasse muito, mas ele achava que tinha intuição para essas coisas. Que pena ter perdido o companheiro tão cedo. Estendeu-lhe os braços.

- Em nome de Doni, bem-vinda sejas, Amelana dos Zelandoni do Sul.

Aquele sorriso afetuoso de boas-vindas não passou despercebido a Amelana. Respondeu cortesmente e dirigiu-lhe um sorriso amável.

O zelandoni queria indicar-lhe um sítio para que se sentasse, mas pensou que o melhor seria concluir as apresentações, e deu a conhecer as pessoas da sua caverna que não tinham ido à Reunião de verão.

- A nossa líder não está. Foi à Reunião de verão- informou o Zelandoni.

- Foi o que pensei- disse a Primeira. - Onde é a vossa Reunião de verão?

- A uns três ou quatro dias para sul, na confluência de três rios- informou um dos caçadores que ali ficaram para ajudar os que não podiam ir. - Posso levá-los lá, ou ir buscá-la. Sei que irá lamentar não vos ter visto.

- Lamento, mas não podemos ficar muito tempo. Planeei uma longa Viagem da Donier para a minha acólita e para o Zelandoni da Décima Nona Caverna- explicou a Primeira. - Queremos visitar a vossa caverna sagrada, que é muito importante, mas temos outras para ver. Talvez no caminho de volta... Um momento, disseste na confluência de três rios? Não há um importante lugar sagrado ali perto, uma caverna grande com bastantes pinturas?

- Sim, claro- respondeu o caçador.

- Então, creio que iremos ver a vossa líder. Tinha planeado ir ali depois- anunciou a Primeira, pensando como era oportuno que umas quantas cavernas das Terras do Sul tivessem decidido celebrar ali a Reunião de verão desse ano. Isso dar-lhe-ia oportunidade de apresentar Ayla a mais cavernas, e a chegada à Reunião de tantas pessoas importantes a norte do Grande Rio, acompanhadas por um lobo e cavalos, causaria sensação.

- Podem comer connosco e espero que passem a noite aqui- convidou o Zelandoni.

- Sim, sim, e obrigada por nos convidares. Vai saber bem depois de um longo dia de viagem. Onde queres que montemos o acampamento? - indagou a Primeira.

- Temos um alojamento para visitantes, mas antes gostaria de ir ver como está.

- Porque não nos mostras? De certeza que podemos limpá-lo e aproveitá-lo tal como está- propôs Willamar. - Temos montado tendas todas as noites. O simples facto de termos um abrigo já é uma boa mudança.

- Deixem-me ao menos verificar se há combustível suficiente para uma fogueira- pediu o Zelandoni local, e encaminhou-se para o alojamento.

Os viajantes seguiram-no. Depois de acomodados, foram à zona onde viviam as pessoas que não tinham ido à Reunião de verão. Receber visitas era geralmente um acontecimento bem-vindo, salvo para aqueles que estavam doentes ou doridos e não podiam sair das suas camas.

Estava a ser preparada uma refeição comunal. Os visitantes levaram a sua contribuição e ajudaram a cozinhá-la. Aproximavam-se os dias mais longos do ano e, depois de comer, a Primeira propôs a Ayla e ao Zelandoni da Décima Nona Caverna, a quem Ayla ainda chamava Jonokol, que aproveitassem as horas de claridade para visitarem os que estavam enfermos. Ayla deixou Jonayla com Jondalar e seguiu-os, e o Lobo foi com ela. Ninguém tinha qualquer problema que não tivesse sido já tratado.

Quando iam a sair da estrutura sob a saliência de rocha, Lobo afastou-se de Ayla e começou a farejar uma estrutura a uma esquina. Ayla escutou um grito de medo de uma mulher. Separou-se dos outros e foi de imediato ver o que se passava. Encontrou, encolhida a um canto, uma mulher com a cabeça e os ombros cobertos por uma suave pele de camurça. Era a mulher queimada que se escondera dos visitantes. O Lobo, estendido, gania um pouco e tentava aproximar-se. Ayla ajoelhou-se junto dele e esperou um momento antes de começar a falar com a mulher assustada.

- Este é o Lobo- disse Ayla. Tinha usado a palavra “lobo” na língua dos Mamutoi, de modo que a mulher ouviu apenas um som estranho. Tentou esconder-se mais e tapou a cabeça por completo. - Não te fará mal. - Ayla rodeou o Lobo com o braço. - Encontrei-o quando era cachorro, mas foi criado com as crianças do Acampamento do Leão dos Mamutoi.

A mulher percebeu o sotaque de Ayla e sentiu curiosidade. Ayla notou que a sua respiração estava mais calma.

- Com eles vivia um menino adotado pela companheira do líder- prosseguiu Ayla. - Algumas pessoas diziam que era uma abominação, resultado da mistura entre o Clã, a que alguns chamam Cabeças-Chatas, e aqueles que são como nós, mas Nezzie era uma mulher carinhosa. Estava a amamentar o seu filho e, quando morreu a mulher do Clã que deu à luz esse menino, Nezzie deu de mamar ao pequeno. Era incapaz de deixar que fosse também para o outro mundo, mas Rydag estava fraco e não sabia falar como nós.

“No Clã, as pessoas falam sobretudo com movimentos das mãos. Têm palavras, mas não tantas como nós. Eu perdi a minha família num terramoto, mas tive sorte, porque fui encontrada pelo Clã. Aprendi a falar como eles. As palavras deles não soam como as nossas, mas foram essas que aprendi em pequena. Por isso tenho este sotaque. Por mais que me esforce, sou incapaz de reproduzir certos sons.

Embora o canto tivesse pouca luz, Ayla reparou que a mulher destapara a cabeça e escutava atentamente a história. Lobo continuava a ganir baixinho e a tentar alcançá-la.

- Quando levei o Lobo para o abrigo do Acampamento do Leão, desenvolveu um laço especial com aquele menino débil. Não sei porquê, mas o Lobo também gosta dos bebés e das crianças pequenas. Deixa que lhe espetem os dedos e lhe puxem o pelo, e nunca se queixa. E como se soubesse que não o fazem por mal, e tem uma atitude muito protetora para com eles. Podes pensar que é uma maneira estranha de atuar, mas é assim que se comportam com as crias da matilha. O Lobo sentiu uma necessidade especial de proteger aquele menino débil. - Ayla aproximou-se da mulher e o Lobo também.

- Creio que sente o mesmo por ti. Sabe que estás ferida, e quer proteger-te. Olha, tenta aproximar-se de ti, mas fá-lo com cuidado. Já alguma vez tocaste num lobo? Tem o pelo muito suave. Se me deres a tua mão, posso mostrar-te como é.

Ayla pegou na mão da mulher antes que esta pudesse escondê-la. Em seguida, colocou-a na cabeça do Lobo, que a apoiara na perna da mulher.

- Está quente, não é? E ele gosta que o cocem atrás das orelhas.

Notou que ela afagava a cabeça do lobo, mas depois tirou a mão.

Ainda assim, Ayla conseguiu ver as cicatrizes, e ela parecia poder usar a mão.

- Como foi que aconteceu? As queimaduras? - indagou Ayla.

- Enchi uma cesta de cozinhar com pedras quentes e acrescentei umas quantas mais até que a água ferveu; depois tentei movê-la. Ras-gou-se e a água quente derramou-se para cima de mim- respondeu.

- Foi uma estupidez! Eu sabia que a cesta estava gasta. Devia ter deixado de a usar, mas só queria preparar uma infusão e estava ali à mão.

Ayla anuiu.

- Às vezes não paramos para pensar. Tens companheiro? Ou filhos?

- Sim, tenho companheiro e filhos, um rapaz e uma rapariga. Disse-lhes que fossem à Reunião de verão. Não faz sentido que paguem pela minha estupidez. É culpa minha se já não posso ir.

- E não podes ir porquê? Consegues andar, não consegues? Não queimaste as pernas nem os pés.

- Não quero que as pessoas olhem para mim com pena- replicou a mulher, com os olhos cheios de lágrimas, e voltou a tapar a cabeça com a manta.

- Sim, alguns irão olhar-te com pena, mas todos temos acidentes, e há quem nasça com problemas piores. Não deves permitir que isso te impeça de viver. A tua cara não está assim tão mal, e com o tempo as cicatrizes acabarão por se notar menos. As das mãos, e provavelmente as dos braços, são piores, mas consegues usar as mãos, não consegues?

- Um pouco. Não tão bem quanto antes.

- Também irão melhorar.

- Como sabes tanto? Quem és tu? - quis saber a mulher.

- Sou Ayla da Nona Caverna dos Zelandoni- replicou ela, estendendo as mãos no cumprimento formal ao mesmo tempo que começava a recitar os seus títulos e laços. - Acólita Daquela Que E a Primeira Entre Aqueles Que Servem a Grande Mãe... - Repetiu todos os títulos e laços habituais porque lhe proporcionavam algo para dizer. E acabou assim:

- Amiga dos cavalos Whinney, Racer e Gray e do caçador de quatro patas Lobo. Saúdo-te em nome de Doni, Mãe de Todos.

- És a acólita da Primeira? A sua primeira acólita? - perguntou a mulher, esquecendo por momentos os seus modos.

- A sua única acólita, embora o seu acólito anterior também tenha vindo connosco. É agora o Zelandoni da Décima Nona Caverna- explicou Ayla. - Estamos aqui para ver o vosso local sagrado.

A mulher percebeu de imediato que teria de estender as mãos e pegar nas da jovem para se apresentar formalmente à acólita da Primeira, que obviamente fizera uma longa viagem e parecia acumular grandes méritos. Essa era uma das razões pelas quais não fora à Reunião de verão. Teria de mostrar não apenas a cara, mas também as mãos queimadas a toda a gente que conhecesse ou que lhe fosse apresentada. Baixou a cabeça e pensou em escondê-las por baixo da pele e dizer que era incapaz de a saudar devidamente, mas a acólita já lhe tocara na mão e sabia que isso não era verdade. Respirou fundo, afastou as mãos da pele e estendeu-as, muito queimadas.

- Sou Dulana da Quarta Caverna dos Zelandoni das Terras do Sul- disse, começando a recitar os seus títulos e laços.

Ayla pegou-lhe nas mãos e observou-as. Estavam rígidas com a pele retesada e irregular e provavelmente ainda um pouco doridas.

- ... em nome de Doni, bem-vinda sejas, Ayla da Nona Caverna dos Zelandoni.

- As mãos ainda te doem, Dulana? - inquiriu Ayla. - A infusão de casca de salgueiro pode ajudar. Tenho um pouco comigo, se precisares.

- Posso pedi-la ao nosso Zelandoni, mas não sabia se devia continuar a tomá-la- disse Dulana.

- Se te dói, podes tomar. Também alivia o calor e a vermelhidão. E estava a pensar que poderias curtir umas peles macias, de coelho, por exemplo, e confecionar umas luvas, mas com dedos. Assim, quando estiveres com pessoas, estas não notarão a aspereza das tuas mãos. E tens um pouco de banha limpa? Posso preparar-te um creme para suavizar as mãos. Talvez acrescente um pouco de cera de abelha e pétalas de rosa para que cheire bem. Tenho ambos comigo. Podias aplicá-lo durante o dia, tanto nas mãos como na cara- disse Ayla, pensando em tudo o que podia fazer para ajudar a mulher.

De súbito, Dulana começou a chorar.

- O que foi, Dulana? - perguntou Ayla. - Disse alguma coisa que não devia?

- Não. É a primeira vez que alguém me dá esperança- respondeu Dulana, por entre soluços. - Pensava que isto me tinha arruinado a vida, que tudo iria mudar, mas ao ouvir-te fico com a impressão de que as queimaduras e as cicatrizes não são nada, e ainda me falas de todas essas coisas que podem ajudar-me. O nosso Zelandoni esforça-se, mas é jovem, e não se destaca como curandeiro. - A mulher calou-se e olhou fixamente para Ayla. - Creio que já sei porque foi que a Primeira te escolheu como acólita, embora não tenhas nascido entre os Zelandoni. Ela é a Primeira, e tu és a Primeira Acólita. Devo chamar-te assim?

Ayla fez um sorriso de esguelha.

I- Sei que algum dia terei de renunciar ao meu nome e serei chamada “Zelandoni da Nona Caverna”, mas espero que esse dia demore a chegar. Gosto que me chamem Ayla. É o meu nome, o nome que a minha mãe verdadeira me deu. É a única coisa que me resta dela.

- Ayla, então, e como dizes o nome deste lobo? - Ele voltara a pousar a cabeça na perna da mulher e ela parecia gostar.

- Lobo- pronunciou Ayla.

Dulana tentou repetir o nome, e Lobo levantou a cabeça e mirou-a, em reconhecimento do esforço.

- Porque não vens conhecer os outros? - propôs Ayla. - Acompanha-nos o Mestre do Comércio e conta sempre umas anedotas fantásticas das suas viagens. E pode ser que a Primeira cante algumas das Lendas dos Anciãos. Ela tem uma bela voz. Não devias perder.

- Estou capaz de ir- concordou Dulana.

Sentira-se sozinha, enclausurada no seu abrigo enquanto os outros desfrutavam da companhia dos visitantes. Quando se levantou e saiu, Lobo permaneceu perto dela. Na caverna, todos se surpreenderam ao vê-la, em especial o Zelandoni, e ainda mais ao reparar que o caçador de quatro patas parecia ter desenvolvido uma relação de proteção para com ela. Ao invés de se sentar com Ayla ou com Jonayla, o lobo sentou-se junto de Dulana. A Primeira olhou de soslaio para a sua acólita e dirigiu-lhe um gesto de aprovação quase impercetível.

De manhã, os visitantes e uns quantos membros da caverna prepararam-se para ir à gruta pintada ali próxima. O grupo que ia visitar o local sagrado era composto por oito adultos participantes na Viagem da Donier, mais cinco pessoas alojadas na Quarta Caverna dos Zelandoni das Terras do Sul, incluindo dois caçadores que viviam normalmente no refúgio próximo. Dulana oferecera-se para cuidar de Jonayla, já que, segundo Ayla suspeitava, sentia falta dos filhos. Como Jonayla se mostrou disposta a ficar com a mulher e Lobo permanecia com ambas, Ayla aceitou. Embora a menina já andasse bem, tinha apenas quatro anos.

Chegaram ao pequeno refúgio de pedra que a Primeira apontara a Ayla no caminho para ali. A abertura estava orientada para leste e era evidente que o lugar fora utilizado como habitação mais do que uma vez. O círculo escuro de carvão de uma fogueira continuava parcialmente circundado de pedras, embora faltassem algumas. Havia umas quantas rochas que deviam ser usadas como assentos e uma manta de couro já gasta e rota. A entrada da caverna ficava no extremo norte do refúgio.

O Zelandoni havia colocado lenha, mechas, uma vara de fricção e uma pequena plataforma juntamente com algumas candeias numa bolsa que tirou das costas perto da fogueira apagada. Quando viu o que ele fazia, Ayla levou a mão à bolsa de couro que trazia à cintura e tirou de lá duas pedras. Uma era um grosso pedaço de sílex e a outra uma pedra do tamanho de uma noz com um brilho prateado. A pedra reluzente exibia um sulco, formado à força de a golpear repetidamente com a pedra de sílex.

- Permites que acenda o fogo? - pediu Ayla.

- Sou bastante bom. Não irá demorar- disse o Zelandoni enquanto começava a cortar um entalhe na plataforma para introduzir o extremo pontiagudo da vara de fricção que posteriormente faria girar entre as mãos.

- Ela é mais rápida- argumentou Willamar com um sorriso.

- Pareces muito confiante- contrapôs o jovem Zelandoni, que começava a sentir uma certa rivalidade. Era muito orgulhoso da sua habilidade para fazer fogo.

- Porque não permites que ela te mostre? - sugeriu Jonokol.

- Está bem- concordou o jovem, e recuou.

Ayla ajoelhou-se junto da fogueira apagada e depois olhou para cima

- Posso usar a tua mecha e a tua lenha, já que estão aqui? - pediu ela.

- Claro- respondeu o Zelandoni.

Depois de fazer uma pilha com a mecha seca, Ayla inclinou-se para o lado. Golpeou o sílex contra a pirite de ferro, e o jovem Zelandoni pensou ter visto um lampejo de luz. Ayla voltou a golpear, desta vez produzindo uma faísca maior, que foi cair no material seco e facilmente inflamável. Começou a elevar-se um pouco de fumo, e ela soprou. Passado um instante já havia chama, que se avivou ainda mais com fragmentos um pouco maiores de mecha e depois com lenha pequena e, finalmente, com ramos maiores. Uma vez consolidado o fogo, inclinou-se para trás. O jovem Zelandoni estava boquiaberto.

- Se não fechas a boca ainda entram moscas- disse o Mestre do Comércio, com um sorriso.

- Como fizeste isso? - quis saber o Zelandoni.

- E fácil quando se usa uma pedra de fogo- replicou Ayla. - Se quiseres, depois ensino-te.

A Primeira interveio.

- Acendamos as candeias. Vejo que trouxeste algumas. Há mais no interior da caverna?

- Isso depende de quem esteve aqui pela última vez- retorquiu o jovem, tirando do seu bornal três tigelas pouco fundas feitas de pedra calcária- , mas nunca conto com isso. Também trazia algumas tochas.

- É uma caverna grande? - perguntou Amelana. As cavernas profundas deixavam-na inquieta, principalmente se o acesso fosse difícil.

- Não- garantiu o Zelandoni local. - Há apenas uma sala principal à qual se chega por um corredor, uma sala adjacente mais pequena à esquerda e uma passagem secundária à direita. Os sítios mais sagrados encontram-se na sala principal.

Deitou um pouco de gordura derretida nas candeias de pedra, acrescentou mechas confecionadas com cogumelos e acendeu-as, acendendo também uma tocha. Encabeçando o grupo, entrou na caverna com a tocha levantada, e um dos caçadores posicionou-se na retaguarda para se assegurar de que ninguém se via em dificuldades ou se perdia. Era um grupo numeroso, e se não fosse uma caverna de acesso fácil, a Primeira não teria permitido a entrada de tanta gente. Ayla ia quase à frente, seguida da Primeira e de Jondalar.

- À esquerda há um pequeno túnel estreito- disse o jovem Zelandoni. - Para a direita vai-se para a passagem secundária. Nós continuamos em frente.

Manteve a tocha alta e avançaram. Depois de se alargar ligeiramente, o corredor voltava a estreitar-se. O Zelandoni parou e virou a tocha para a parede da esquerda. Ayla viu marcas de garras.

- Os ursos devem hibernar nesta caverna, mas eu nunca os vi- disse o jovem. - A esquerda fica a sala mais pequena, mas não tem nada de especial- acrescentou.

Seguiram em frente e, depois de uma pequena curva à direita, deteve-se diante de um painel que continha traços vermelhos feitos com os dedos. O painel seguinte era mais complexo. O jovem elevou a tocha enquanto toda a gente se reunia em redor. Ali pareciam distinguir-se figuras humanas, mas eram imprecisas, quase fantasmagóricas, e havia também cervos e pontos intercalados. Era tudo enigmático, espiritual, e Ayla sentiu um calafrio. Não foi a única. Abateu-se um silêncio absoluto. Até que todos se calaram, Ayla não se dera conta de que falavam em voz baixa.

Na parede da esquerda via-se uma pequena projeção, uma proeminência. Por trás havia um espaço que alojava um painel. A primeira coisa que lhe chamou a atenção foram dois magníficos megaceros perfilados a negro e sobrepostos. O que aparecia em primeiro plano era um macho com uma imponente galhada. Tinha o pescoço grosso por causa da musculatura necessária para segurar uma carga tão pesada. A cabeça era pequena em comparação com o poderoso pescoço. O megacero pintado atrás exibia o mesmo pescoço grosso, mas não tinha armação. Ayla pensou que talvez fosse uma fêmea, mas também podia ser um macho que tivesse mudado a galhada depois do cio de outono. Passada a época de acasalamento, já não havia necessidade para aquela exibição majestosa.

Ayla contemplou os dois megaceros durante um bocado, até que viu o mamute. Encontrava-se no corpo do primeiro cervo gigante, e não era um mamute completo, apenas a linha do lombo e da cabeça, mas essa forma tão característica bastava para o reconhecer. Perguntou-se qual dos dois teria sido pintado primeiro, o mamute ou o megacero. Ao vê-lo, decidiu examinar com mais atenção o resto da parede. Por cima do lombo do primeiro megacero e frente à cabeça do segundo, estavam outros dois animais parcialmente desenhados. Um era uma imagem lateral da cabeça e do pescoço de uma cabra-montesa, com os seus dois chifres enrolados para trás, e uma vista frontal dos chifres de outro animal semelhante à cabra-montesa mas distinto, talvez um íbex ou uma camurça.

Um pouco mais à frente chegaram a outra secção de animais pintados a negro que incluía outro megacero com a sua colossal galhada.

Via-se ainda parte de um cervo mais pequeno, uma cabra-montesa e, apenas insinuado, um cavalo com a crina eriçada e o início do lombo, assim como outra figura mais surpreendente e aterradora: era uma silhueta parcial, apenas as pernas e a parte inferior de um corpo que aparentava ser humano, com três traços que lhe penetravam ou saíam do traseiro. Seriam lanças? Indicava alguém que um humano tinha sido caçado com lanças? Mas porquê pintar uma coisa assim na parede? Tentou recordar se alguma vez vira um animal representado com lanças cravadas. Ou poderia o desenho significar outra coisa, algo que saía do corpo? A parte inferior do lombo não era o sítio mais lógico onde apontar para caçar algo. Uma lança nas nalgas, ou até na zona lombar, dificilmente seria fatal. Quiçá se pretendesse expressar dor, uma dor nas costas tão intensa quanto uma ferida de uma lança.

Abanou a cabeça. Podia especular à vontade, que isso não a aproximaria da verdadeira razão.

- O que significam as linhas nessa figura? - perguntou ao Zelandoni, apontando para o desenho que parecia uma figura humana.

- Toda a gente pergunta o mesmo- disse ele. - Mas ninguém sabe. Foi feito pelos antepassados. - Depois virou-se para a Primeira. - Sabes do que se trata?

- Não aparece nada de concreto nem nas Histórias nem nas Lendas dos Antigos- respondeu a Primeira. - Mas posso dizer uma coisa: o significado de qualquer das imagens presentes num local sagrado raramente é evidente. Tu próprio sabes que, quando viajas pelo mundo dos espíritos, as coisas raras vezes são o que parecem. O feroz pode ser dócil, e o mais delicado pode ser o mais violento. Não é necessário saber o que significam as imagens pintadas; basta saber que foram importantes para quem as desenhou, ou não estariam aqui.

Ayla voltou a centrar a sua atenção na parede. O jovem Zelandoni retomara a marcha e iluminava agora a secção seguinte, que exibia um par de cabras e uns quantos pontos. Mais à frente havia outras duas cabras, uns pontos e algumas linhas curvas. Estavam a entrar numa pequena antecâmara onde havia cinco pontos negros e vermelhos e ao fundo uns quantos pontos e linhas vermelhos. Voltaram a sair da concavidade e dobraram uma esquina. Na parede em frente havia outra figura de aspeto humano na qual entravam ou saíam várias linhas, sete, que apontavam em todas as direções. Era uma figura rudimentar, apenas reconhecível como humana, mas que não podia ser outra coisa. Insinuados, distinguiam-se duas pernas, dois braços muito curtos e uma cabeça disforme com o contorno pintado a negro. Desejou perguntar à Primeira o que significava; mas ela também não devia saber. Essa secção incluía quatro mamutes pintados, muito simplificados, às vezes um simples esboço.

O Zelandoni conduziu-os para a saída, mostrando uns quantos lugares com pontos e sinais nas paredes. A luz que penetrava pela abertura da caverna conferia uma aparência mais luminosa ao interior. Semicerraram os olhos à espera que estes se habituassem à luz. Ayla demorou um pouco a notar a presença de Lobo e outro tanto a reparar na sua agitação. O animal soltou um ganido e encaminhou-se para o refúgio.

Ayla olhou para Jondalar.

- Algo se passa- disse.

 

Jondalar e Ayla voltaram a correr para a caverna, seguindo Lobo. A alguma distância, avistaram várias pessoas diante do refúgio, no prado onde pastavam os cavalos. E já mais perto viram uma cena que poderia ser engraçada se não fosse tão aterradora. Jonayla encontrava-se frente a Gray com os braços estendidos, como se para proteger a jovem égua, enfrentando seis ou sete homens armados com lanças. Whinney e Racer, atrás delas, observavam os homens.

- O que estão a fazer? - gritou Ayla, deitando mão à funda, porque não levava o atirador de lanças.

- O que fazemos? Caçamos cavalos- respondeu um dos homens. Notou o estranho sotaque de Ayla e acrescentou:

- Quem quer saber?

- Sou Ayla da Nona Caverna dos Zelandoni- disse ela. - E vocês não vão caçar estes cavalos. Não percebem que são cavalos especiais?

- E o que têm de especial? Parecem-me cavalos normais.

- Abre os olhos e vê- interveio Jondalar- Quantas vezes viste um cavalo que fique quieto atrás de uma menina? Porque achas que não fogem?

- Porque devem ser palermas.

- Suspeito que o único palerma aqui és tu, e nem sequer entendes o que vês- retorquiu Jondalar, enfurecido pela insolência do jovem que parecia falar em nome do grupo. Lançou um penetrante assobio com vários tons. Os caçadores viram que o corcel se voltava para o homem alto e loiro e que troteava na sua direção. Jondalar ficou parado frente a Racer e armou o atirador de lanças, embora não o apontasse aos homens.

Ayla posicionou-se entre a filha e o grupo. Indicou a Lobo que ficasse a seu lado e que protegesse os cavalos. O lobo mostrou os dentes e rosnou aos homens, que começaram a recuar. Ayla pegou em Jonayla e colocou-a no lombo de Gray. Depois agarrou a crina eriçada de Whinney e montou de um salto. A cada movimento, os caçadores reagiam com crescente surpresa.

- Como fizeste isso? - indagou o rapaz.

- Eu disse-te que eram cavalos especiais- repetiu Ayla.

- És uma Zelandoni?

- É acólita da Zelandoni Que É a Primeira Entre Aqueles Que Servem a Grande Mãe Terra, que não tardará a chegar- declarou Jondalar.

- Aquela Que É a Primeira está aqui?

- Sim- respondeu Jondalar, e mirou os homens mais atentamente. Eram todos jovens, recém-iniciados na virilidade e instalados num alojamento afastado de uma Reunião de verão, talvez a que se realizava perto da caverna sagrada que visitariam em seguida. - Não estão um bocadinho longe do alojamento da Reunião de verão? - perguntou.

- Como sabes isso- indagou o jovem. - Não nos conheces.

- Mas não é difícil de adivinhar. É a época das reuniões de verão, vocês estão na idade em que os jovens deixam o acampamento das mães e ficam nos alojamentos afastados e, para mostrar que são independentes, decidiram ir caçar. Mas não têm tido muita sorte, não é? E agora têm fome.

- Como sabes? Também és Zelandoni? - inquiriu o jovem.

- Foi só um palpite- disse Jondalar; e reparou que a Primeira chegava, seguida do resto do grupo.

A Que Era a Primeira sabia caminhar depressa quando era necessário, e sabia que se o lobo procurara Ayla era porque algo de errado se passava. Interpretou rapidamente o sucedido: rapazes com lanças, demasiado jovens; o lobo em posição defensiva à frente dos cavalos, com a menina e a mãe montadas nas éguas e sem nenhum dos arreios que costumavam usar, uma funda na mão de Ayla, Jondalar com o atirador de lanças armado frente ao garanhão. Teria Jonayla enviado o lobo para buscar a sua mãe enquanto ela tentava proteger os cavalos de uns aspirantes a caçadores?

- Há algum problema? - perguntou a Donier.

Os jovens reconheceram-na apesar de nunca a terem visto. Tinham escutado descrições da Primeira e entendiam o significado das tatuagens na cara, dos colares e das roupas que vestia.

- Já não, mas estes homens tinham a intenção de caçar os nossos cavalos, até que Jonayla os impediu- explicou Jondalar, contendo um sorriso.

“É uma menina valente”, cogitou a Donier, ao ver confirmada a sua avaliação inicial.

- Sois da Sétima Caverna dos Zelandoni das Terras do Sul? - perguntou a Primeira aos jovens. A Sétima Caverna, a que tinham previsto visitar em seguida, era a mais importante dessa zona.

- Sim, Zelandoni Que és a Primeira- respondeu o jovem porta-voz, embora num tom mais respeitoso.

Entretanto chegou também o jovem Zelandoni da caverna local, com a maioria dos demais visitantes. Detiveram-se para ver como reagia a poderosa mulher aos jovens que haviam ameaçado os cavalos.

A Primeira virou-se para os caçadores da caverna local.

- Parece que agora há mais sete bocas para alimentar. Isso reduzirá consideravelmente as provisões. Creio que teremos de ficar mais alguns dias até que possa ser organizada uma expedição de caça. Felizmente contareis com ajuda. Temos vários caçadores experientes no nosso grupo e, com a devida orientação, até estes jovens serão capazes de caçar algo. Não tenho dúvidas de que estarão mais do que dispostos a ajudar, dadas as circunstâncias- declarou, e lançou um olhar severo ao jovem que parecia falar em nome do grupo.

- Sim, claro- concordou ele. - Estávamos precisamente a caçar.

- Mas não muito bem- salientou alguém entre os que observavam. Alguns dos jovens enrubesceram e desviaram o olhar.

- Alguém viu uma manada recentemente? - perguntou Jondalar, dirigindo a pergunta aos caçadores da caverna. - Temo que teremos de caçar mais do que um animal.

- Não, mas nesta estação passam por aqui cervos nas suas rotas migratórias, principalmente as fêmeas com as crias. Alguém podia ir explorar, mas isso levaria vários dias- informou um dos caçadores da caverna.

- De que direção viriam? - indagou Jondalar. - Posso ir esta tarde, com Racer. Ele anda mais depressa do que qualquer um de nós. Se encontrar alguma coisa, posso voltar lá com Ayla e tentar atraí-los até aqui. O lobo também pode ajudar.

- Podem fazer isso? - gaguejou o jovem.

- Já te disse que os cavalos são especiais- respondeu Jondalar.

A carne de cervo ficou toda a noite estendida sobre um varal de corda disposto em cima de umas brasas fumegantes. Enquanto Ayla a guardava no seu recipiente de couro, lamentou não ter tido mais tempo para a secar, mas já tinham ficado mais dois dias do que o previsto.

O grupo que se formara para a Viagem da Donier voltou a aumentar, já que os sete jovens iriam com eles. Ayla também convencera Dulana a acompanhá-los e a apreciar parte da Reunião de verão. Esta sentia falta do companheiro e dos filhos e queria vê-los, embora ainda a preocupassem as cicatrizes das mãos e da cara.

A meio da manhã do dia da partida, quando o calor começava a apertar, Ayla sentiu um delicioso aroma. “Morangos! Devemos estar a atravessar um morangal”, pensou. Não foi a única que sentiu a presença dessa fruta, a preferida de muita gente, e todos se alegraram ao fazerem uma paragem para prepararem uma infusão e encherem algumas cestas com aquelas pequenas bagas de um vermelho intenso. Jonayla nem se preocupou em levar uma cesta: metia-os diretamente na boca. Ayla sorriu, e depois olhou para Jondalar, que colhia morangos ao lado dela.

Quando acabaram de encher a segunda cesta de morangos, Ayla reparou noutras plantas que cresciam por ali e que podiam acrescentar-se à refeição dessa noite, e pediu a Amelana e a Dulana que a ajudassem a apanhar umas quantas.

Todos apreciaram a refeição dessa noite. Geralmente, na primavera escasseavam os alimentos- encontravam apenas umas quantas verduras, um ou outro broto novo- e, por isso, agradeciam a variedade e abundância de plantas comestíveis que o verão trazia.

No segundo dia, pouco depois de terem começado a andar, encontraram algumas dificuldades. O rio que seguiam tornara-se mais largo e as margens estavam cada vez mais encharcadas e cobertas de vegetação, pelo que não era fácil caminhar perto da água. A manhã já ia a meio e levavam um bom tempo a subir a inclinada ladeira de um monte. Por fim, chegaram ao cimo da colina e contemplaram o vale. Montes altos circundavam uma franja larga de terra plana dominada por uma proeminência de ladeiras escarpadas com vista para a confluência de três rios. Mesmo à frente deles, num plano entre dois dos rios viam-se inúmeros refúgios, alojamentos e tendas de verão. Tinham chegado ao acampamento da Reunião de verão dos Zelandoni que viviam nas Terras do Sul do Grande Rio, no território da Sétima Caverna.

Um dos vigias entrou a correr no alojamento da zelandonia.

- Esperem até ver o que vem aí! - despejou.

- O quê? - quis saber o Zelandoni da Sétima Caverna.

- Pessoas, mas não é tudo.

- Mas já aqui estão todas as cavernas- argumentou outro Zelandoni.

- Então só podem ser visitas- concluiu o Sétimo.

- Esperávamos visitas este ano? - indagou o Zelandoni mais velho da Quarta Caverna dos Zelandoni das Terras do Sul enquanto se levantavam e se dirigiam para a saída.

- Não, mas com as visitas já se sabe- disse o Sétimo.

Quando os zelandonia saíram, a primeira coisa que viram aproximar-se não foi o grupo de pessoas, mas sim os três cavalos que arrastavam uma espécie de veículos, em dois deles iam montadas pessoas, um homem e uma menina. Uma mulher caminhava diante de um cavalo e, quando se aproximaram, algo que se movia junto à mulher assumiu a forma de lobo. De imediato, o Sétimo recordou as histórias contadas por algumas pessoas que haviam parado ali. Falavam de uma forasteira com uns cavalos e um lobo.

- Se não estou enganado- disse o homem alto, barbudo e de cabelo castanho, levantando a voz o suficiente para que os demais zelandonia o ouvissem- , visita-nos a Primeira Entre Aqueles Que Servem a Grande Mãe Terra e a sua acólita. - Dirigindo-se a um acólito que tinha ao lado, pediu:

- Reúne o máximo de líderes possível e trá-los aqui.

O jovem saiu a correr.

- Ouvi dizer que era uma mulher corpulenta e imponente. Mas para uma mulher assim seria uma viagem demasiado longa- comentou uma Zelandoni um pouco gorducha.

- Já veremos- respondeu o Sétimo. Como o local mais sagrado dessa região se situava perto da Sétima Caverna, geralmente, embora nem sempre, reconhecia-se o Zelandoni da Sétima como chefe da zelandonia local.

Juntara-se mais gente, e os líderes das diversas cavernas começaram a chegar. Apareceu a líder da Sétima, que se deteve ao lado do Zelandoni.

“Têm bons vigias”, cogitou a Primeira quando se aproximaram de um amplo alojamento, que, imaginou, fosse para os zelandonia. Pareciam ter reunido um comité de receção numeroso. Ayla ordenou a Whinney que parasse e, quando a Primeira se assegurou de que não haveria sacudidelas de último minuto, pôs-se de pé e, com agilidade e elegância, apeou-se do atrelado. “Por isso pode viajar para tão longe”, pensou a Zelandoni mais rechonchuda.

Os zelandonia, os líderes e os visitantes trocaram saudações formais e identificaram-se. Os líderes das cavernas às quais pertenciam os jovens caçadores também se alegraram de os ver.

- Dulana! - gritou uma voz.

- Mãe! Vieste! - exclamaram em coro duas vozes infantis e felizes.

Planearam de imediato uma grande celebração para dar as boas-vindas aos visitantes e à Primeira e, quando se soube que desejavam visitar o local sagrado, o Zelandoni da Sétima começou de imediato a organizar tudo.

O banquete prolongou-se até ao início da noite, mas Ayla estava cansada e, assim que viu organizada a visita ao lugar sagrado, retirou-se discretamente para a sua tenda de viagem com Jonayla e Lobo. Jondalar conheceu outro talhador de sílex e embrenhou-se numa conversa sobre as virtudes do sílex de diferentes lugares. Disse a Ayla que não tardaria a juntar-se a ela, mas, quando entrou na tenda, Ayla e Jonayla dormiam profundamente. Nessa noite, a Primeira ficou no alojamento dos zelandonia. Também tinham convidado Ayla, e embora ela soubesse que a sua Zelandoni teria gostado que ela se relacionasse mais com os restantes doniers, preferiu ficar com a sua família, e a Primeira não insistiu.

Os que desejavam ver a caverna pintada partiram logo de manhã. O grupo era composto pela Primeira, Jonokol, Ayla, Jondalar e Willamar. Vários zelandonia presentes na Reunião de verão também queriam voltar a ver o local, para mais guiados pelo Sétimo, que conhecia aquele lugar melhor do que ninguém.

Havia na região dez cavernas-satélite, cada uma com a sua própria caverna pintada como local sagrado complementar da mais importante, a que se situava nas imediações da Sétima Caverna, mas em comparação a maioria das pinturas e gravuras dessas outras cavernas era rudimentar. A Quarta Caverna dos Zelandoni das Terras do Sul, que tinham visitado, era uma das melhores. O grupo começou a subir pela escarpada do monte que haviam visto ao avistarem o vale pela primeira vez.

- É conhecido como o monte do Melro- explicou o Sétimo. - Às vezes chamam-lhe monte do Melro Pescador. Há sempre quem pergunte porquê, mas não sei.

Finalmente chegaram a uma abertura na parede de pedra calcária a uma altura considerável por cima do vale. A entrada não era nada de excecional, e se o caminho não tivesse conduzido até ali, dificilmente a teriam visto. A boca da caverna, relativamente alta, permitia entrar sem terem de se agachar e tinha uma largura equivalente a duas ou três pessoas; porém, devido a um grande arbusto que crescia à frente, teria sido difícil encontrá-la se não soubessem exatamente onde procurar. Um acólito afastou uma pequena pilha de escombros que tinham caído e estavam junto à entrada. Ayla demonstrou a sua habilidade para fazer fogo e depois prometeu ensinar ao Sétimo como se fazia. Em seguida, acenderam as candeias e as tochas.

O Zelandoni da Sétima Caverna das Terras do Sul entrou à frente, seguido pela Primeira, depois Jonokol, Ayla, Jondalar e Willamar. Atrás deles entraram os zelandonia locais que queriam acompanhá-los, incluindo um par de acólitos. Eram doze ao todo. Na entrada havia um corredor que obrigava a virar à direita ou à esquerda. Optaram pelo caminho da direita e um pouco mais à frente o corredor bifurcou-se em dois túneis. Entraram numa sala que tinha um bloco de pedra no centro com uma passagem estreita a um lado e outra mais larga do lado oposto.

- Podíamos ir por qualquer dos lados, que acabaríamos no mesmo sítio, frente a uma pilha de rochas ao fundo sem mais saída que o sítio por onde entrámos, mas há coisas interessantes para ver- explicou o Sétimo.

Tomaram o corredor da direita, o mais estreito, e encontraram uns pequenos pontos vermelhos na parede da direita. Havia outros na parede da esquerda, e um pouco mais à frente pararam a contemplar um cavalo pintado e mais pontos. Ali perto estava um leão com uma cauda fantástica, ao lado mas enroscado sobre o lombo. Ayla perguntou-se se o autor teria por acaso visto um leão com a cauda partida que havia soldado de uma maneira estranha.

Uns passos mais à frente, chegaram a um painel na parede da direita que o Sétimo descreveu como um cervo. Ao ver o desenho, Ayla pensou que parecia mais um megacero fêmea, e recordou que haviam visto o cervo gigante na caverna sagrada próxima da Quarta Caverna das Terras do Sul. À esquerda, mesmo em frente, viu dois grandes pontos vermelhos. Havia mais pontos daqueles na parede depois do cervo, e no teto abobadado também se viam várias fileiras de pontos grandes.

Ayla estava curiosa, mas temia fazer perguntas. Por fim, lá se atreveu.

- Sabes o que representam?

O homem alto da cerrada barba castanha sorriu para a atraente acólita.

- Não significam o mesmo para todos, mas eu, quando estou no estado de espírito certo, tenho a impressão de que guiam para o outro mundo e, mais importante, mostram o caminho de volta.

Ela anuiu e depois sorriu.

Percorreram alguma distância por um túnel largo, permanecendo perto da parede da direita. Só quando chegaram a uma abertura desse lado viram mais sinais: no teto baixo e abobadado do corredor havia quatro impressões vermelhas de mãos em negativo, um pouco esborratadas, três pontos vermelhos e umas marcas negras. Em frente da abertura viram uma série de onze pontos negros grandes e duas impressões de mãos em negativo, que se faziam apoiando a mão na parede e borrifando tinta vermelha por cima e em redor. Ao retirar-se a mão, ficava uma impressão em negativo rodeada de vermelho. O Sétimo virou à direita e entrou pela abertura do corredor abobadado.

Onde a superfície era relativamente mais dura havia mais signos e pontos pintados a vermelho e negro, mas, excetuando pelos me-gaceros, Ayla teve a sensação de que a sala estava repleta de marcas desorganizadas. Começava a perceber que ninguém sabia o que significavam todos os elementos das cavernas pintadas. O mais provável era ninguém saber para além do seu autor, e quiçá nem sequer ele. Se algo pintado nas paredes de uma caverna inspirava algum sentimento, esse sentimento era o próprio significado. Podia depender do estado de alma, que era variável, ou de quão recetiva uma pessoa estivesse. As cavernas eram lugares sagrados, mas ela começava a pensar que o seu caráter sagrado era pessoal e individual. Talvez fosse essa a sua lição naquela viagem.

Quando abandonaram a pequena sala, o Sétimo atravessou o corredor pelo qual haviam ido até ali e aproximou-se da parede da esquerda. Nesse ponto, o túnel virava para a esquerda, e avançaram junto à parede durante um pedaço. Depois o Sétimo levantou a candeia, iluminando um painel com animais pintados a negro; eram muitos e estavam sobrepostos. Ayla viu primeiro os mamutes, muitos, e depois os cavalos, os bisontes e os auroques. Um dos mamutes aparecia coberto de marcas negras. O Sétimo não fez o menor comentário, limitando-se a permanecer ali o tempo suficiente para que todos vissem o que desejavam. Quando percebeu que a maioria perdia o interesse, seguiu em frente. Em seguida mostrou-lhes uma cornija com bisontes e mamutes.

Avançaram lentamente, e o Sétimo ia assinalando outras marcas e alguns animais. Contudo, o local seguinte onde pararam era de facto extraordinário. Num painel enorme viam-se dois cavalos a negro, lombo com lombo, com grandes pontos negros pintados junto à linha de contorno interior. Além disso, havia mais pontos e impressões de mãos em redor dos cavalos, mas o elemento mais insólito era a cabeça do cavalo orientada para a direita. A cabeça pintada era um tanto pequena, mas estava feita sobre uma protuberância natural da rocha que parecia a cabeça de um cavalo e enquadrava a pintura. A própria forma da rocha indicara ao artista que ali devia pintar-se um cavalo. Ficaram impressionados. A Primeira, que já vira o painel, sorriu para o Sétimo.

- Sabes quem pintou isto? - inquiriu Jonokol.

- Um antepassado nosso, mas não distante. Permitam-me que vos mostre umas quantas coisas que talvez não sejam óbvias à primeira vista- disse o Sétimo, aproximando-se do painel de pedra. Levantou a mão esquerda por cima do lombo do cavalo orientado nessa direção e dobrou o polegar. Quando manteve a mão junto ao contorno vermelho de uma mão, saltou à vista que o espaço em negativo não era a impressão exata de uma mão, mas sim de uma mão com o polegar dobrado. Agora que sabiam, viram vários contornos iguais, com os polegares dobrados, ao longo do lombo do cavalo situado à esquerda.

- Isto foi feito porquê? - indagou uma jovem acólita.

- Terias de perguntar ao autor, que era Zelandoni- respondeu o Sétimo.

- Mas disseste que foi um antepassado.

- Sim- confirmou o Zelandoni.

- Então esse antepassado caminha agora pelo outro mundo.

- Sim.

- E como posso perguntar-lhe?

O Sétimo limitou-se a sorrir para a jovem, que franziu o sobrolho. Escutaram-se algumas risadas, o que fez a jovem acólita corar.

- Não posso perguntar, pois não?

- Talvez quando aprenderes a caminhar pelo outro mundo- disse a Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Mãe. - Alguns zelandonia são capazes de o fazer, como sabes. Mas é muito perigoso.

O Sétimo mostrou-lhes muitas outras marcas e pinturas, incluindo uma figura humana com linhas que saíam ou entravam no corpo, parecidas com as que haviam visto no local sagrado da Quarta Caverna das Terras do Sul, mas depois daqueles insólitos cavalos nada parecia equiparável, exceto algumas formações rochosas muito mais antigas do que qualquer das pinturas.

Depois da visita ao local sagrado, a Primeira estava impaciente e queria pôr-se de novo em marcha, todavia, pensou que devia ficar um pouco mais para cumprir a sua função de Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Grande Mãe, sobretudo junto da zelandonia. Tinham poucas ocasiões para estar com ela.

Durante a refeição da noite, o Sétimo foi procurar os visitantes. Sentou-se ao lado da Primeira e sorriu; depois falou em voz baixa. Não era um sussurro de cumplicidade, mas Ayla teve a certeza de que não ouviria se não estivesse sentada ao lado da Primeira.

- Estivemos a falar de celebrar uma cerimónia especial na caverna sagrada esta noite, e gostaria que a tua acólita e tu nos acompanhassem, se quiserem.

A Primeira dirigiu-lhe um sorriso de aprovação. “Isso poderia dar maior interesse à decisão de prolongar a sua estada ali”, pensou,

- Ayla, gostarias de assistir a essa cerimónia especial? - Gostaria muito- respondeu Ayla.

- Virei buscar-vos mais tarde- disse o Sétimo. - Agasalhem-se bem. À noite refresca.

O Sétimo trouxera umas tochas que acendeu na pequena fogueira. Quando partiram, precedeu a Primeira e Ayla, cada uma com a respetiva tocha. Jondalar viu-os seguir pelo caminho que conduzia à caverna sagrada. Sentiu-se tentado a segui-los, mas prometera tomar conta de Jonayla.

Pelos vistos, Lobo sentiu a mesma inclinação e foi com eles; contudo, pouco depois regressou ao acampamento.

- Também te mandou embora? - disse Jondalar. O Lobo deixou escapar um suave ganido.

 

O Sétimo levou as duas mulheres pelo caminho até à caverna sagrada. Tinham espetado umas quantas tochas na terra junto ao carreiro para se orientarem, e Ayla recordou-se de quando, seguindo as tochas e as candeias, se adentrara na caverna sinuosa, durante a Reunião do Clã, até dar de caras com os Mog-urs. Sabia que não devia estar ali e escondeu-se atrás de uma enorme estalagmite. Agora fazia parte do grupo convidado a participar no encontro.

Para subir à caverna sagrada era necessário percorrer um bom caminho e quando chegaram iam todos a ofegar. Souberam que estavam próximos quando viram uma fogueira em frente e, pouco depois, notaram a presença de várias pessoas de pé e outras sentadas em redor do fogo.

Os que estavam ali reunidos receberam-nos com entusiasmo. Em seguida, ficaram à conversa enquanto esperavam a chegada de outros. Logo apareceu um grupo de três, Jonokol entre eles. Fora visitar o acampamento de outra caverna cujo Zelandoni também se dedicava a desenhar imagens. Deram-lhes as boas-vindas e o Sétimo dirigiu-se a todos:

- Temos a sorte de contar com a presença da Primeira Entre Aqueles Que Servem a Grande Mãe. Não creio que alguma vez tenha participado numa das nossas reuniões de verão e, graças à sua presença, esta é uma ocasião memorável. Acompanham-na a sua acólita e o Zelandoni que foi antes o seu acólito, e também a eles queremos dar as boas-vindas.

Seguiram-se palavras e gestos de saudação e o Sétimo continuou:

- Acomodemo-nos em redor da fogueira. Preparei uma infusão especial e quem quiser pode prová-la. As ervas foram-me dadas por uma Zelandoni de terras mais a sul. Foi durante muitos anos guardiã de uma caverna sagrada que há ali. Todas as cavernas sagradas são úteros da Grande Mãe, contudo, em algumas a sua presença é tão profunda que uma pessoa sente-se excecionalmente perto d’Ela; e a da dita Zelandoni é um desses casos.

Alguém pusera pedras de cozinhar no fogo e agora tirava-as com pinças de madeira para as deitar num recipiente com água. Em seguida, o Sétimo acrescentou o conteúdo de uma bolsa de pele à água fumegante. O aroma propagou-se e Ayla tentou identificar os ingredientes. Pareceu-lhe uma mistura, metade familiar e a outra metade não. Predominava um intenso odor a menta, que sabia ser acrescentada para dissimular outro ingrediente ou para mascarar um odor ou sabor desagradável. Depois de deixar repousar a infusão, o Sétimo serviu um pouco em dois copos, um maior do que o outro.

- Esta é uma bebida poderosa- explicou. - Pode levar-nos muito próximo do mundo dos espíritos. Por isso, creio que devem prová-la com moderação. Uma das minhas acólitas ofereceu-se para beber uma dose maior e atuar como caminho de acesso para todos nós.

Ocopo maior passou de mão em mão e cada um deu um gole pequeno. Quando chegou a vez da Primeira, esta cheirou a infusão, bebeu um pouco e limpou a boca, tentando distinguir os componentes. Depois bebeu um pouco mais e passou o copo a Ayla. Esta havia observado a Primeira com atenção e imitou-a. Aquela bebida era muito potente. O aroma por si só era tão forte que ficou um pouco tonta. Sentiu um sabor intenso que não era de todo desagradável, mas tão-pouco era algo que desejava beber diariamente. Desejou saber quais eram os ingredientes.

Quando todos tinham provado, observaram a acólita do Sétimo a beber. Pouco depois pôs-se de pé e, cambaleante, encaminhou-se para a entrada da caverna sagrada. O Sétimo apressou-se a erguer-se e a ajudá-la a manter o equilíbrio. Os demais zelandonia seguiram-nos para o interior da caverna, vários com tochas acesas nas mãos. A acólita dirigiu-se quase diretamente à zona da caverna onde estavam os cavalos cujo contorno incluía pontos grandes. Vários dos que levavam candeias aproximaram-se da parede para a iluminar.

Ayla ainda sentia os efeitos da bebida e perguntou-se que sensações estaria a experimentar a acólita. A jovem aproximou-se do painel e apoiou as mãos na parede; depois encostou a bochecha à pedra áspera como se a tentasse penetrar. Em seguida, começou a chorar. O seu Zelandoni colocou-lhe o braço por cima dos ombros para a tranquilizar. A Primeira deu um passo em frente e começou a ! entoar o Cântico à Mãe. Quando a Primeira terminou, a acólita estava sentada no chão frente ao painel pintado. Alguns dos outros também se haviam sentado, um tanto aturdidos. A Primeira regressou para junto de Ayla, e o Sétimo seguiu-a. Em voz muito baixa, disse:

- Foi incrível a forma como se acalmaram com o teu canto. - Apontando para os que estavam sentados, acrescentou:

- Creio que tomaram mais do que apenas um sorvo. Alguns são capazes de ficar aqui ainda um bocado. É melhor eu permanecer até que estejam em condições de regressar, mas vocês não têm de esperar.

- Ficaremos um pouco mais- disse a Primeira, vendo que havia outros a sentar-se.

Ayla sentou-se também.

- Creio que o efeito da infusão vai aumentando- comentou.

- Acho que tens razão- concordou a corpulenta mulher. - Tens mais? - perguntou ao Sétimo. - Gostaria de voltar a prová-la quando regressarmos a casa.

- Posso dar-te um pouco para levares- retorquiu ele.

Ayla voltou a olhar para o painel. Parecia quase transparente, como se pudesse ver através dela. Tinha a impressão de que atrás havia mais animais prontos para sair, preparando-se para viver naquele mundo. Enquanto observava, sentiu-se cada vez mais atraída pelo mundo do outro lado da parede, e por fim pareceu-lhe estar dentro dele, ou melhor, em cima dele.

Ao princípio, não lhe parecia muito diferente do seu mundo. Havia rios que cruzavam estepes e pradarias, árvores e bosques. Muitos animais de todas as espécies deambulavam pela terra. Mais do que vê-los, Ayla sabia que estavam ali, mas notava certas diferenças. As coisas pareciam estranhamente invertidas. Os bisontes, os cavalos e os cervos não fugiam dos leões, permanecendo junto deles. A paisagem era luminosa, mas quando olhou para o céu viu a Lua e o Sol, e a Lua colocou-se frente ao Sol, enegrecendo-o. Depois sentiu que alguém a abanava.

- Parece-me que adormeceste- disse a Primeira.

- É possível, mas tenho a sensação de ter estado noutro sítio- argumentou Ayla. - Vi o Sol ficar negro.

- Acredito, mas está na hora de irmos. Lá fora já amanhece.

Quando saíram da caverna havia várias pessoas em volta da fogueira a aquecer-se. Um Zelandoni deu-lhes um copo com um líquido quente.

- É só uma bebida matutina- disse, sorridente. - Para mim foi uma experiência nova- acrescentou. - Muito poderosa.

- Para mim também- concordou Ayla.

As duas mulheres regressaram ao acampamento.

O grupo de viajantes partiu no dia seguinte bordeando um dos três rios que confluíam próximo da Sétima Caverna dos Zelandoni das Terras do Sul. Atravessaram-no numa passagem pouco profunda e começaram a seguir o sinuoso curso do rio.

Era território desconhecido para Ayla e para Jondalar, embora este soubesse que passara ali com Willamar e a mãe, e os outros filhos de Marthona. Jonokol não viajara muito e também era novo para ele, bem como para Amelana. Era o Mestre do Comércio quem melhor conhecia a zona.

Enquanto avançavam, a paisagem mudava subtilmente. Ganhavam altitude e o terreno ia ficando mais escarpado. Caçavam animais quando com eles se cruzavam e apanhavam verduras, que tão abundantes eram naquela época do ano.

Já viajavam há alguns dias, em direção a sudeste, quando, uma manhã, Willamar começou a guiá-los para leste, por vezes um pouco para norte, quase como se seguisse um carreiro. Subiram um monte e atrás havia um caminho, mas sem largura suficiente para o atrelado da Primeira.

- Talvez fosse melhor seguires a pé, Zelandoni- sugeriu Willamar.

- Não estamos longe.

- Sim, farei isso- concordou ela. - Se ainda me lembro, mais em cima o caminho estreita-se.

- Passada a próxima curva, há um pedaço mais largo. Podemos deixar o atrelado aqui, Ayla- propôs o Mestre do Comércio.

Continuaram a subir, com Willamar à frente. Ayla, Jondalar e Jonayla fechavam o grupo com os animais. Percorreram uns quantos troços em ziguezague, subiram uma encosta íngreme e desembocaram numa planície ampla e coberta de erva. No extremo oposto, entre o fumo das fogueiras, via-se uma série de refúgios sólidos, de madeira e peles, com telhados de palha. Havia um grupo de pessoas frente às habitações que mirava os visitantes que se aproximavam, e Ayla reparou que não se mostravam muito satisfeitas. Pareciam na defensiva, ninguém sorria e alguns empunhavam lanças, embora não as tivessem apontadas a ninguém.

Ayla já assistira àquele tipo de receção e discretamente fez um sinal ao lobo para que ficasse por perto. Escutou o leve rosnado gutural do animal quando se pôs diante dela numa atitude protetora.

- Willamar! - gritou uma voz. - És tu?

- Farnadal! Claro que sou eu, e uns amigos da Nona Caverna. Pensei que nos esperavam. Kimeran e Jondecam não estão aqui? - indagou Willamar.

- Não, não estão- respondeu Farnadal. - Deviam estar?

- Eles vêm? - perguntou uma entusiasmada voz feminina.

- Pensávamos que já tinham chegado. Não admira que estivesses tão surpreendido- comentou Willamar.

- Não eram vocês que me surpreendiam- retorquiu Farnadal, com um olhar irónico.

- Creio que está na hora das apresentações- disse Willamar.

- Começo pela Primeira Entre Aqueles Que Servem a Grande Mãe Terra.

Farnadal ficou boquiaberto. Recuperando a compostura, deu uns passos em frente. Quando a observou com mais atenção, reconheceu a Primeira tanto pela sua descrição geral como pelas tatuagens. Já a vira uma vez, mas há muito, e os dois tinham já mudado.

- Em nome de Doni, bem-vinda sejas, Zelandoni Que És a Primeira- cumprimentou. Apresentaram-lhe o resto dos viajantes, acabando em Jondalar e em Ayla.

- Este é Jondalar da Nona Caverna dos Zelandoni, mestre talhador de sílex... - começou o Mestre do Comércio, e continuou:

- Esta é Ayla da Nona Caverna dos Zelandoni, antes do Acampamento do Leão dos Mamutoi... Notou que a expressão de Farnadal mudava à medida que recitava os títulos e laços, e mais ainda quando ela o saudou e a ouviu falar.

Recordou-se então de ter passado por ali uma companhia ambulante de Contadores de Histórias que narrava umas histórias

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fantasiosas sobre uns cavalos que carregavam pessoas e um lobo que amava uma mulher, mas jamais supôs que pudessem ser verdadeiras. De qualquer forma, ali estavam eles.

Uma mulher alta, que Ayla pensou ter algo familiar, aproximou-se de Willamar:

- Disseste que esperavas encontrar aqui Jondecam e Kimeran?

- Já há muito tempo que não os vês, não é, Camora? - indagou Willamar.

- Sim, é verdade- respondeu ela.

- Es parecida com os teus parentes, sobretudo com o teu irmão, Jondecam, mas também com Kimeran- observou Willamar.

- Porque pensavas que Kimeran e Jondecam estariam aqui? - preguntou Farnadal.

- Ficaram de sair pouco depois de nós e vir diretamente, e nós fomos parando pelo caminho- respondeu a Primeira. - Acompanho Ayla na sua Viagem da Donier, e também Jonokol, embora devesse chamar-lhe Zelandoni da Décima Nona. Nunca chegámos a fazer uma verdadeira Viagem quando ele era acólito e precisa de visitar alguns lugares sagrados. Daqui iríamos viajar juntos para ver uma das cavernas pintadas mais importantes. Fica a sudeste do território zelandoni, e depois visitaremos os parentes da companheira de Kimeran, Beladora. Ela pertence aos Giornadoni, o povo que vive na península larga que se destaca no mar do Sul, a sul do território oriental dos Zelandoni.

Camora olhou para a Zelandoni Que Era a Primeira.

- Achas que sucedeu algo a Kimeran e a Jondecam? - perguntou, com cara de preocupação. - Os acidentes acontecem.

- Sim, acontecem, Camora, mas também é possível que se tenham atrasado ou passado qualquer coisa na sua caverna que os fizesse mudar de ideias. Não teriam maneira de nos avisar. Se Farnadal não se importar, esperaremos aqui uns dias. - Fitou-o e ele fez um gesto afirmativo e sorriu. - Para lhes dar tempo de nos alcançarem.

- Talvez possamos fazer outra coisa- propôs Jondalar. - Os cavalos viajam mais depressa do que as pessoas. Podemos voltar pelo caminho que deviam fazer e ver se os encontramos. Se não estiverem longe, acabaremos por nos cruzar com eles.

- E uma boa ideia, Jondalar- disse Ayla.

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- Então sempre é verdade que vos levam no lombo, como disseram os Contadores de Histórias- referiu Farnadal.

- Eles passaram por aqui recentemente? - perguntou Ayla.

- Estiveram aqui há mais ou menos um ano. Mas pensei que tinham inventado as histórias. Não sabia que eram verdadeiras- respondeu.

- Sairemos pela manhã- anunciou Jondalar. - Agora já é tarde.

Os membros da caverna congregaram-se ao pé da encosta que dava para a subida de onde tinham vindo. Ayla e Jondalar haviam colocado mantas de montar e cestos com o seu material de acampar nos três cavalos, e cabrestos no corcel e na jovem égua. Depois, Jondalar pegou em Jonayla e sentou-a no lombo de Gray.

“Esta menina também controla um cavalo?”, perguntou-se Farnadal. “Ela sozinha? É muito pequena e o cavalo é um animal grande e poderoso. E os cavalos deviam ter medo do lobo.”

Viu-os partir, o homem à frente, a menina no meio e a mulher atrás. Ele era grande para o compacto cavalo, ao qual chamava Racer, quase arrastava os pés pelo chão quando ia sentado no garanhão castanho-escuro. Mas quando os animais iniciaram um trote rápido, o homem inclinou-se para trás, sentando-se sobre a garupa, dobrou os joelhos e encostou as pernas contra o corpo do cavalo. A menina inclinou-se para a frente e cavalgou quase sobre o pescoço da jovem égua cinzenta.

Não muito depois, o trote rápido converteu-se em galope. Sem o incómodo dos atrelados, os cavalos podiam esticar as pernas. Ayla inclinou-se sobre o pescoço de Whinney, sinal de que podia aumentar a velocidade. Lobo soltou um ganido e acompanhou o grupo.

Quando se sentiram todos mais relaxados, começaram a galopar mais brandamente. Ayla fez um sinal a Lobo e disse “busca”, ordem que, como o animal sabia, significava procurar pessoas.

Naquele tempo havia pouca população humana na Terra. Eram amplamente superados pelos milhões de criaturas de outras espécies, desde as muito grandes às muito pequenas, e os humanos tendiam a agrupar-se. Quando o Lobo cheirou todos os odores presentes no ar, identificou muitos animais diferentes em diversas etapas da vida. Raras vezes detetava o rasto de um humano no ar, mas quando o captava, reconhecia-o de imediato.

Os restantes também procuraram, perscrutando a paisagem para detetar qualquer indício de que passara por ali pessoas recentemente. Não esperavam encontrar ninguém tão perto. Sem dúvida que o outro grupo mandaria um mensageiro à frente se tivessem algum problema.

Por volta do meio-dia, resolveram descansar, comer qualquer coisa e deixar pastar os cavalos. Quando reiniciaram a marcha, rastrearam a zona atentamente. Descobriram uma espécie de carreiro e seguiram os sinais: riscos nas árvores, ramos de arbustos torcidos de uma determinada maneira, às vezes umas quantas pedras amontoadas em forma de flecha, e muito raramente uma marca numa rocha com uma pintura em ocre vermelho. Procuraram até o Sol se pôr, e montaram acampamento, instalando as tendas junto a um curso de água.

Ayla tirou alguns bolos de viagem feitos com arandos secos, banha derretida e carne seca triturada. Pô-los em água a ferver e depois acrescentou um pouco mais de carne seca à sopa. Jondalar e Jonayla deram um passeio por um prado plano ali perto e a menina regressou carregada de cebolas que encontrara apenas pelo cheiro.

No dia seguinte puseram-se a caminho depois de acabarem a sopa preparada na véspera, à qual Ayla acrescentou mais raízes e verduras, colhidas numa rápida exploração pelas imediações. O segundo dia foi tão dececionante como o primeiro; não avistaram o menor sinal de que tivesse passado por ali alguém recentemente. No terceiro dia, quando se detiveram para a refeição do meio-dia, tanto Jondalar como Ayla começaram a preocupar-se. Sabiam o muito que Kimeran e Jondecam queriam ver Camora, e Beladora estava desejosa de visitar a família.

Teriam eles iniciado a viagem? Teria surgido alguma complicação que os levara a adiá-la? Ou teriam sofrido algum acidente pelo caminho?

- Uma possibilidade seria voltar ao Grande Rio e à Primeira Caverna dos Zelandoni das Terras do Sul para ver se o atravessaram- propôs Ayla.

- Tu e a Jonayla não precisam de fazer uma viagem tão longa. Posso ir sozinho, e vocês regressam e informam os outros. Se demorarmos muitos dias, vão ficar preocupados- disse Jondalar.

- És capaz de ter razão- concordou Ayla. - Mas continuemos a procurar, pelo menos até amanhã, e depois decidiremos.

Montaram acampamento já tarde e preferiram não falar da decisão que teriam de tomar. De manhã notaram humidade no ar e viram formar-se nuvens a norte. O vento começou por ser errático, soprando depois de norte com rajadas fortes que inquietaram tanto as pessoas como os cavalos.

Os glaciares, que nasciam no longínquo norte e se estendiam como uma enorme massa sobre a superfície curva da Terra, apresentavam paredes de gelo sólido com mais de três quilómetros de grossura a apenas algumas centenas de quilómetros dali. Mesmo nos períodos mais quentes do verão, a noite podia ser fresca e o tempo alterava-se bruscamente. O vento norte trazia frio e recordava que, até no verão, o inverno governava aquele território.

Naquele momento, o vento norte trouxe também outra coisa. Atarefados a levantar o acampamento e a preparar a refeição, ninguém notou uma mudança de atitude em Lobo. Todavia, um sonoro ganido, quase um latido, chamou a atenção de Ayla. O animal estava de pé, quase inclinado contra o vento, com o focinho para cima. Havia detetado um odor. De cada vez que deixavam um acampamento, ela fazia-lhe sinal para que procurasse pessoas. O lobo, com o seu olfato apurado, notara algo, um leve tufo arrastado pelo vento.

- Olha, mãe! Olha o Lobo! - exclamou Jonayla, que também reparara no seu comportamento.

- Detetou qualquer coisa- disse Jondalar. - Acabemos de arrumar, depressa.

Guardaram tudo nos cestos com menos cuidado do que o habitual e colocaram nos cavalos juntamente com as mantas de montar. De seguida, puseram os cabrestos em Racer e em Cray, apagaram o fogo e montaram.

- Busca, Lobo- ordenou Ayla. - Mostra o caminho. - Ao dar a ordem, acompanhou-a com sinais do Clã.

O lobo encaminhou-se para norte, mas por uma direção mais a leste do que a que tinham seguido até ali. Se o rasto era o do grupo com o qual deviam reunir-se, pareciam ter-se desviado do caminho. Lobo avançou com determinação, adotando a postura baixa própria da sua espécie, e foi seguido por Whinney e pelos restantes cavalos. Viajaram toda a manhã e para lá da hora em que teriam parado para a refeição do meio-dia.

Ayla pareceu notar um leve odor a queimado e Jondalar, levantando a voz, perguntou-lhe:

- Ayla, vês fumo?

Viu, ao longe, uma ténue coluna de fumo que se elevava até ao céu e incitou Whinney a acelerar o passo. Olhou para trás, para a filha, montada na jovem égua, para se assegurar de que estava preparada para galopar mais depressa. A menina sorriu para a mãe, indicando-lhe que sim.

Quando viram um acampamento e várias pessoas, reduziram a marcha. Não sabiam quem eram. Podiam ser outros viajantes, e irromper num acampamento de desconhecidos a cavalo podia causar uma grande agitação.

Víu um homem loiro e tão alto quanto Jondalar. Ele também a viu.

- Kimeran! Andávamos à vossa procura! Que bom ver-vos! - exclamou Ayla, com alívio.

- Ayla! - disse Kimeran. - És tu?

- Como nos encontraram? - acrescentou Jondecam. - Como sabiam onde procurar?

- Foi graças ao Lobo. Tem bom olfato- respondeu Ayla.

- Fomos à caverna de Camora, esperando encontrar-vos, mas ficaram surpreendidos por nos ver- explicou Jondalar. - Começaram a ficar preocupados, principalmente a tua irmã, Jondecam. E eu sugeri pegar nos cavalos e vir procurar-vos.

- É que as crianças ficaram doentes e abandonámos o caminho para procurar um lugar para acampar- disse Levela.

- Dizes que as crianças estão doentes? - perguntou Ayla.

- Sim, e Beladora também- acrescentou Kimeran. - Se calhar é melhor não se aproximarem. A primeira a ficar doente foi Ginedela. Tinha febre. Depois foi o filho de Levela, Jonlevan, e em seguida Beladora. Pensei que Gioneran se livrasse, mas quando começaram a aparecer manchas vermelhas por todo o corpo de Ginedela, a ele subiu a febre.

- Não sabíamos o que fazer, excetuando deixá-los descansar, dar-lhes muita água e tentar fazer baixar a febre com compressas húmidas.

- Fizeram o mais acertado- disse Ayla. - Já vi algo parecido, na Reunião de verão dos Mamutoi. Nessa altura eu passava muito tempo com os Mamuti. Chegou um acampamento com várias pessoas doentes, sobretudo as crianças. Os Mamuti obrigaram-nos a instalar-se num extremo do acampamento principal da reunião, e impediram as pessoas de se aproximarem. Temiam que os restantes contraíssem a doença.

- Nesse caso deves assegurar-te de que Jonayla não brinca com os miúdos- recomendou Levela. - E tu deves manter-te longe.

- Ainda têm febre? - perguntou Ayla.

- Pouca, mas estão cobertos de manchas vermelhas.

- Irei vê-los, mas se já não têm febre, não será grave. Os Mamutoi pensam que é uma doença própria da infância e dizem que é melhor apanhá-la em pequeno. As crianças recuperam com maior facilidade. Para os adultos é pior.

- É o caso de Beladora. Creio que esteve mais doente do que as crianças- observou Kimeran. - Continua fraca.

- Leva-me a ver Beladora e os miúdos.

A tenda tinha dois espaços, cada um com o seu telhado. A entrada era baixa, e Ayla agachou-se para passar. Beladora estava deitada numas peles de dormir na zona complementar e as três crianças permaneciam sentadas nas suas peles, pouco ativas. Kimeran entrou atrás de Ayla. Esta examinou primeiro as crianças. A mais nova, Jonlevan, parecia ter superado a febre, embora ainda continuasse apática e cheia de manchas vermelhas, que pelos vistos davam comichão. Sorriu ao ver Ayla.

- Onde está Jonayla? - perguntou.

Ayla recordou-se que a filha gostava de brincar com ele.

- Está lá fora- respondeu enquanto tocava na testa do menino com as costas da mão. Não notou que a temperatura estivesse muito alta, nem lhe viu os olhos vítreos, próprios da febre. - Já estás melhor, não é? Já não estás tão quente.

- Quero brincar com a Jonayla.

- Ainda não, talvez mais tarde- disse Ayla.

Em seguida foi ver Ginadela. Parecia recuperada, embora as manchas vermelhas ainda fossem muito visíveis.

- Também quero brincar com a Jonayla- pediu.

Quando Ayla lhe apalpou a testa, sentiu que ainda estava quente. As manchas estavam a sair com violência e pareciam indefinidas.

- Daqui a pouco dou-te algo para te sentires melhor- disse ao menino. - Queres um pouco de água? Depois devias deitar-te.

- Está bem- concordou, com um sorriso débil.

Ayla pegou no odre, deitou água num copo e ajudou a criança a beber.

Por fim, Ayla aproximou-se de Beladora.

- Como te sentes? - inquiriu Ayla.

- Já estive melhor- replicou. Tinha os olhos vítreos e fungava.

- Que bom estares aqui, mas como nos encontraste?

- Como não estavam na caverna de Camora, pensámos que deviam ter-se atrasado. Jondalar sugeriu que pegássemos nos cavalos e viéssemos à vossa procura. Eles andam mais depressa do que as pessoas, mas foi o Lobo que encontrou o vosso rasto e nos trouxe até aqui- explicou Ayla.

- Não me tinha dado conta de como os teus animais podiam ser úteis- comentou Beladora. - Espero que não contraias esta enfermidade. E terrível e agora tenho comichão em todo o corpo. Será que estas manchas desaparecem?

- Em breve- respondeu Ayla- , embora possam demorar a desaparecer por completo. Preparar-te-ei algo para aliviar a comichão e baixar a febre.

Por essa altura já se encontravam todos no interior da tenda, Jondalar e Kimeran de pé junto ao poste mais alto e os restantes em volta deles.

- Pergunto-me porque é que Beladora e os meninos ficaram doentes e nós não- disse Levela- , pelo menos até agora.

- Se não apanharam, o mais provável é que já não apanhem- retorquiu Ayla.

- Preocupava-me que alguém nos tivesse mandado maus espíritos por inveja ao ver que íamos fazer uma viagem- declarou Beladora.

- Sabes se alguém visitou a Primeira Caverna dos Zelandoni das Terras do Sul antes de vocês? Ou se ficou alguém doente enquanto lá estavam?

- Agora que falas nisso, umas pessoas atravessaram o rio antes de nós e parece-me que o seu Zelandoni cuidava de alguém que estava doente- disse Kimeran. - Mas não perguntei.

- Se havia maus espíritos presentes, não foram dirigidos contra vocês- explicou Ayla. - Devem ter sido vestígios deixados por pessoas que estiveram ali antes de vós. Beladora, algumas doenças aparecem sem que ninguém te deseje mal: contagiam-se simplesmente. Esta febre com manchas vermelhas deve ser algo assim. Se a apanhas em pequena, normalmente não acontece nada de mal. Foi o que me disse um mamut. Atrever-me-ia a dizer que vocês a tiveram em crianças, ou estariam também doentes.

- Creio recordar que uma vez, numa Reunião de verão, muitos de nós estivemos doentes- disse Jondecam. - Juntaram-nos a todos numa tenda. Se a memória não me falha, também nos apareceram manchas. Vocês não se lembram?

- Eu devia ser demasiado pequena para me recordar- respondeu Levela.

- E eu tinha uma idade em que não ligava aos miúdos mais pequenos- declarou Jondalar. - Se não tive nessa altura, então devia ser tão pequeno que não me lembro. E tu, Ayla?

- Recordo-me ter estado doente e com febre algumas vezes em pequena, mas não sei se tive manchas vermelhas- replicou Ayla.

- Na verdade, não fiquei doente quando fui com um mamut ao acampamento dos Mamutoi onde se espalhara a doença, para aprender como era e como tratá-la. E falando disso, quero sair e ver o que encontro para te aliviar, Beladora. Tenho uns quantos medicamentos comigo, mas as plantas que necessito crescem em quase todo o lado, e prefiro-as o mais frescas possível.

Saíram todos da tenda, exceto Kimeran, que ficou a cuidar de Beladora e dos filhos, assim como do filho de Levela.

- Não posso ficar aqui, mãe? Com eles? - perguntou Jonayla, apontando para as restantes crianças.

- Eles agora não podem brincar, Jonayla- argumentou Ayla

- Têm de descansar e quero que me ajudes a apanhar umas plantas que se sintam melhor.

- O que procuras? - indagou Levela quando saíram. - Posso ajudar-te?

- Conheces o milefólio ou a tussilagem-comum? Também preciso de casca de salgueiro, mas sei onde encontrar. Vi alguns antes de virmos para aqui.

- O milefólio tem umas flores brancas e pequenas que crescem como em raminhos? - perguntou Levela. - Mais ou menos como as cenouras, mas com o odor mais forte?

- E uma descrição excelente- elogiou Ayla. - E a tussilagem?

- Tem umas folhas verdes, grandes e arredondadas, que por baixo são pegajosas, brancas e suaves.

- Essa também conheces. Ótimo. Vamos procurá-las- disse Ayla. Jondalar e Jondecam estavam junto da fogueira diante da tenda, conversando, e Jonayla, ao seu lado, escutava-os. - Beladora e Gioneran ainda têm um pouco de febre. Vamos apanhar umas plantas para baixar a febre e também algo para aliviar a comichão. Levo a Jonayla e o Lobo.

- Estávamos a dizer que é preciso mais lenha- informou Jondalar. - E eu pensei em ir buscar mais umas quantas árvores que possamos usar como varas para construir um par de atrelados. Embora Beladora e as crianças estejam melhores, é possível que não se sintam em condições de fazer uma longa caminhada, e devíamos voltar à caverna de Camora antes que comecem a preocupar-se connosco.

- Crês que Beladora estaria disposta a andar num atrelado? - inquiriu Ayla.

- Já todos vimos a Primeira montada num. Parecia gostar- comentou Levela. - Podemos perguntar a Beladora o que acha da ideia.

- De qualquer maneira, também preciso de ir buscar o meu cesto- disse Ayla.

- Eu também vou buscar o meu e devíamos dizer a Kimeran e a Beladora onde vamos- sugeriu Levela.

Na noite antes de retomarem a marcha, organizaram tudo para saírem logo cedo. Ayla, Jondalar, Jonayla e Lobo dormiram na sua tenda de viagem. De manhã prepararam uma infusão rápida com as sobras da noite anterior, carregaram tudo nos atrelados, incluindo as bolsas que utilizavam para transportar o essencial: a tenda, a roupa e a comida. Embora os adultos estivessem habituados a viajar com as coisas às costas, era mais fácil caminhar sem tanto peso. Avançaram a bom ritmo e percorreram uma distância maior do que a habitual, e ao entardecer estavam quase todos cansados.

Enquanto preparavam a infusão da tarde, Kimeran e Jondecam propuseram fazer uma pausa para irem caçar e assim levar alguma comida aos parentes de Camora. Ayla estava preocupada. Até àquele momento o tempo colaborara. Tinham caído apenas alguns chuviscos no dia em que Ayla e Jondalar encontraram os viajantes; depois o céu aclarou. Ayla duvidava que ficasse assim durante muito tempo. Jondalar sabia que ela tinha “olfato” para o tempo, e conseguia adivinhar quando chovia.

Não era exatamente um odor que anunciava a chuva; Ayla notava um certo sabor especial no ar e às vezes uma sensação de humidade.

Ayla acordou estava ainda escuro. Levantou-se com a ideia de usar o cesto da noite, mas preferiu sair. As brasas da fogueira situada frente à tenda davam luz suficiente para permitir ir aliviar a bexiga atrás de um arbusto. O ar era frio mas tonificante, e quando regressou à tenda notou que a escuridão profunda da noite começava a dar lugar ao azul noturno que tingia o céu antes de amanhecer. Ficou a contemplar o horizonte durante um bocado enquanto um vermelho intenso assomava a leste e punha em relevo umas nuvens dispersas de cor violeta-escuro. Pouco a pouco, uma luz resplandecente banhou o céu de um vermelho ainda mais vivo e propagou-se pelas nuvens em forma de tiras de cores vibrantes.

- Tenho a certeza de que não tardará a chover- disse para Jondalar quando regressou à tenda- , e será uma grande tempestade. Sei que não querem aparecer de mãos vazias, mas se continuarmos talvez consigamos chegar antes que chova. Não covinha que Beladora se molhasse ou apanhasse frio, nem me agrada a ideia de ficar com tudo enlameado quando podemos evitá-lo.

Os restantes acordaram cedo com a ideia de se porem ao caminho assim que o Sol nascesse. Avistaram aquelas nuvens escuras no horizonte e Ayla não tinha dúvidas de que se aproximava uma chuva torrencial.

- Ayla diz que se avizinha uma grande tempestade- anunciou Jondalar aos outros homens quando falaram de ir caçar. - Acha melhor caçarmos depois.

- Notei que há nuvens no horizonte- respondeu Kimeran- , mas isso não significa que vá chover aqui. Parecem bastante longe.

- Ayla tem bom faro para a chuva- insistiu Jondalar. - Não me apetece ficar com a roupa encharcada e o calçado cheio de lama.

- Mas só conhecemos essas pessoas da cerimónia matrimonial- replicou Jondecam. - Não quero pedir-lhes hospitalidade sem dar nada em troca.

- Só lá estivemos meio dia antes de virmos à vossa procura, mas percebi que não conhecem o atirador de lanças. Podemos pedir-lhes que venham caçar connosco e ensinamo-los a usá-lo. Pode ser um presente melhor do que levar-lhes simplesmente carne- propôs Jondalar.

- Sim... achas mesmo que vai chover em breve? - perguntou Kimeran.

- Confio no “nariz” de Ayla. Raras vezes se engana- respondeu Jondalar. - Ayla não quer sequer parar para a refeição do meio-dia. Segundo ela, podemos beber água e comer os bolos de viagem pelo caminho. Também não vais querer que Beladora se molhe agora que começa a melhorar. - Foi então que lhe ocorreu uma ideia. - Chegaríamos mais depressa se fôssemos a cavalo.

l- E como podemos ir todos em três cavalos? - questionou Kimeran.

- Alguns podem ir nos atrelados e outros dois a dois no lombo dos cavalos. Podia ir na garupa com Jonayla.

- Outro que monte o cavalo; eu tenho as pernas compridas e corro depressa- argumentou Kimeran.

- Não tanto como um cavalo- contrapôs Jondalar.

- Estou a ver que tens pensado nisso- disse Jondecam.

- Só desde que Ayla me transmitiu as suas preocupações- replicou Jondalar. - O que te parece, Levela?

- Prefiro não me molhar- respondeu ela. - Se Ayla diz que vai chover, acredito. Irei num atrelado com Jonlevan, como Beladora, se isso nos fizer chegar mais cedo.

Enquanto a água para a infusão aquecia, reacomodaram a carga dos atrelados e Ayla e Jondalar instalaram toda a gente. Lobo, sentado a um lado, observava com a cabeça de lado, como se sentisse curiosidade. Ayla viu-o e sorriu. Ao princípio avançaram devagar; passado um bocado, Jondalar olhou para Ayla, dirigiu-lhe um sinal e gritou:

- Preparem-se, e segurem-se bem.

Ayla inclinou-se para a frente e deu à sua égua o sinal para correr. Whinney iniciou um trote rápido e logo começou a galopar. Os restantes cavalos avivaram o passo. Lobo corria ao lado. Era uma experiência emocionante para Jondecam e Kimeran. Ayla permanecia atenta à sua égua, e quando Whinney começou a dar sinais de cansaço por causa do esforço, obrigou-a a desacelerar o passo.

- Ena! Que emocionante! - exclamou Beladora.

- Foi muito divertido! - disseram os gémeos em uníssono.

- Voltaremos a fazê-lo, mas agora Whinney tem de descansar- explicou Ayla. Estava satisfeita com a distância percorrida naquele breve arranque, mas ainda lhes faltava um bom pedaço.

Aqueles três cavalos-selvagens, domados mas não domesticados, eram fortes e ágeis. Os seus cascos não necessitavam de proteção contra o solo pedregoso, podiam carregar ou arrastar grandes cargas e a sua resistência era superior à esperada.

Ao fim da tarde, Ayla e Jondalar reconheceram a paisagem, embora não estivessem muito seguros e não quisessem passar ao lado do caminho que desviava para a caverna de Camora. Como avançavam mais devagar, notaram a mudança no tempo. Havia humidade no ar e levantara-se algum vento. Viram um relâmpago e logo depois escutaram o ribombar de um trovão. Sabiam que se aproximava uma grande tempestade.

Por pouco não viam o desvio, mas Willamar e outros estavam há alguns dias de atalaia. Jondalar sentiu um profundo alívio ao distinguir a familiar silhueta que lhe acenava. O Mestre do Comércio vira ao longe os cavalos a aproximar-se e enviara um dos homens à caverna avisar do seu regresso. De onde estava, Willamar não viu ninguém caminhar ao lado dos cavalos e temeu que Ayla e Jondalar não tivessem encontrado os amigos, mas quando se aproximaram avistou mais do que uma cabeça no lombo dos animais e compreendeu que os montavam aos pares. Depois reparou nos atrelados.

Os habitantes da caverna corriam pelo carreiro. Quando Camora viu o irmão e o tio, não sabia para qual correr primeiro. Eles resolveram-lhe o dilema e precipitaram-se ambos simultaneamente para ela.

- Depressa, está a começar a chover- urgiu Willamar.

Os viajantes ficaram mais dias do que os previstos, em parte para que Camora passasse mais tempo com os parentes. Os habitantes da caverna viviam isolados, e embora assistissem às reuniões de verão, não tinham vizinhos nas imediações. Jondecam e Levela puseram a possibilidade de ficar com a irmã de Jondecam. Ela parecia querer companhia e notícias das pessoas que conhecia. Kimeran e Beladora tinham a intenção de partir com a Primeira. A família de Beladora aguardava-a no final da viagem.

A Primeira planeara retomar a viagem dali a poucos dias, mas Jonayla contraiu a doença e isso demorou a sua partida.

A Zelandoni e Willamar sabiam da existência de locais sagrados na região e falaram deles com Farnadal e a sua Donier. A Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Mãe tinha ouvido falar deles, mas não os visitara. Os locais estavam vinculados à grande caverna pintada próxima da Sétima Caverna dos Zelandoni das Terras do Sul, como estava a que se situava próximo da Quarta Caverna das Terras do Sul, e eram lugares sagrados, mas, pelas descrições, não havia muito para ver, apenas umas quantas pinturas toscas nas paredes.

Já se haviam atrasado tanto que a Primeira decidiu prescindir desses locais naquela Viagem da Donier, para ter tempo de visitar outros. Interessava-lhe mais ver o importantíssimo lugar sagrado que ficava a curta distância da caverna de Amelana. E ainda tinham de ir visitar os vizinhos Giornadoni e a caverna de Beladora.

Apesar da camaradagem, os visitantes estavam ansiosos por retomar o seu caminho, e os da caverna sentiram algum alívio ao vê-los partir. Ao contrário da Nona Caverna, situada no meio de uma região muito povoada, não tinham o costume de receber visitas.

Uma vez em marcha, os viajantes levaram uns dias a habituar-se de novo à itinerância. A composição do grupo era muito diferente da inicial, eram mais, e incluía um maior número de crianças, o que aumentava o tempo de viagem entre um lugar e outro.

Conforme avançava a estação e seguiam viagem em direção a sul, os dias eram cada vez mais quentes. Em geral, o tempo era agradável, salvo por uma ou outra tempestade de verão.

A Zelandoni começava a habituar-se a caminhar e a Ayla parecia que estava mais magra. Não lhe custava manter o ritmo, mas pouco antes de chegar aos sítios insistia em subir para o atrelado. Achava que isso aumentava o misticismo da sua posição como a Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Grande Mãe Terra.

A sua rota, traçada pela Zelandoni e por Willamar, levou-os até ao Sul através de bosques e pradarias, bordeando a vertente ocidental de um maciço montanhoso, vestígio de uma antiga cordilheira erodida pela passagem do tempo, com vulcões que formavam novos montes em cima dos anteriores. Passados alguns dias, viraram para leste, permanecendo junto ao sopé da zona central do maciço, e depois seguiram viagem para este, entre o extremo sul das montanhas e a costa setentrional do mar do Sul. Pelo caminho, ocasionalmente, viam animais de caça, aves e mamíferos de muitas espécies, mas não se cruzavam com outros humanos, exceto quando paravam para visitar alguns locais.

Ayla descobriu que gostava da companhia de Levela, de Beladora e de Amelana. Faziam coisas juntas com os filhos. A gravidez de Ame-lana começava a notar-se, mas já não tinha náuseas e parecia apreciar as caminhadas e a atenção que lhe davam.

No seu avanço para leste, às vezes encontravam alguns rios que desciam do maciço e desembocavam no mar do Sul. Como nenhum era demasiado grande, os viajantes converteram-se em peritos a atravessar caudais. Finalmente chegaram a um rio que sulcava um grande vale de norte a sul e que os obrigou a bordeá-lo para norte até um afluente que vertia as suas águas a noroeste, e seguiram-no.

Um pouco mais à frente, o grupo encontrou um agradável bosque pouco denso na margem de um lago. Apesar de a tarde ainda ir no início, pararam e montaram acampamento entre os arbustos e a erva. As crianças descobriram uma zona repleta de uvas-do-monte e apanharam algumas para dividir com os adultos antes da refeição da noite. As mulheres viram juncos perto da água e os caçadores encontraram marcas frescas de patas com cascos fendidos.

- Aproximamo-nos do lar daqueles que vivem perto da caverna mais importante do território zelandoni- anunciou Willamar depois de acender a fogueira e relaxar com uma infusão. - Somos um grupo demasiado numeroso para nos apresentarmos de visita e pedir hospitalidade sem levar algo para dividir equivalente ao nosso tamanho.

- Parece que uma manada de auroques ou bisontes parou aqui recentemente, a julgar por essas marcas- observou Kimeran.

- E possível que venham aqui beber com regularidade. Se ficarmos um pouco, podemos caçá-los- acrescentou Jonokol.

- Nesta época, com dois machos jovens teríamos carne fresca e também para secar, e banha para preparar bolos de viagem e usar como combustível nas candeias, além das peles- disse Ayla. - Podemos fazer calçado com o couro. O meu está a ficar gasto.

- E olha só para aqueles juncos- apontou Beladora. - Com isso também podes fazer calçado e confecionar esteiras novas e cestos e outras coisas que necessitamos.

- E até presentes para a caverna que vamos visitar- acrescentou Levela.

- Espero que não demore muito tempo. Já estamos tão perto de casa que começo a ficar nervosa- comentou Amelana. - Estou cheia de saudades da minha mãe.

- Mas não vais querer aparecer com as mãos vazias, pois não? - perguntou a Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Grande Mãe Terra. - Não gostarias de levar um presente à tua mãe? E um pouco de carne para a tua caverna?

- Tens razão! - concordou Amelana.

 

Decidiram que era o momento de dedicar alguns dias à caça, à recoleção de comida para abastecer a despensa de viagem e repor o equipamento que começava a apresentar sinais de desgaste. Estavam entusiasmados por terem encontrado um lugar com tanta abundância.

As mulheres passaram a tarde a apanhar plantas e a escavar raízes na margem do lago. Os juncos, com as suas extremidades em forma de penacho, eram mais altos do que Jondalar e Kimeran. As raízes e a parte inferior do talo podiam comer-se, cruas ou cozinhadas. Mas de igual importância eram as partes não comestíveis. Com essas podiam fazer-se cestos, esteiras, painéis e muitas outras coisas.

Durante o resto da tarde, as mulheres teceram cestos para apanhar uvas-do-monte. Os homens passaram o tempo a falar de caça e da quantidade de árvores jovens necessárias para construir os atiradores de lanças que iriam substituir os que estavam partidos. Jondalar montou Racer e seguiu o rasto de uma manada de bisontes e auroques.

Mais tarde, embora Jondalar ainda não tivesse regressado, interromperam as suas tarefas para a refeição da noite. Todos riam e falavam quando Jondalar apareceu no acampamento com um enorme sorriso.

- Encontrei uma numerosa manada de bisontes- informou.

- E também descobri um pouco de pedernal que parece de boa qualidade e dará para fazer lanças novas.

Desmontou e tirou várias pedras grandes das cestas de transporte que levava atadas à garupa de Racer, uma de cada lado para equilibrar a carga. Jondalar juntou-se aos restantes em redor da fogueira e Ayla serviu-lhe uma tigela de comida. Sorriu-lhe.

- E também avistei galinhas-do-mato. É a ave de que te falei, que se parece com a perdiz, mas não fica branca no inverno. Se as caçarmos, podemos usar as plumas nas lanças.

Ayla devolveu-lhe o sorriso.

- Queres ir caçá-los amanhã de manhã? - perguntou Jondalar.

- Sim, era boa ideia- respondeu Ayla.

Na manhã seguinte, pôs uns calções de camurça, parecidos com a roupa interior masculina de inverno, e calçou uma espécie de mocassins. Vestiu-se depressa, com uma certa agitação. Não se dera conta do muito que desejava ir caçar. Pegou na manta de montar, saiu da tenda e chamou Whinney com um assobio.

Os dois afastaram-se a cavalo, seguidos por Lobo. Jondalar guiou-os para o oeste, até uma zona que recordava do dia anterior. Deteve-se e mostrou a Ayla onde encontrara o sílex; depois olhou em redor e seguiu noutra direção. Chegaram a um páramo, uma franja de terra coberta de fetos, urze- a vegetação preferida da galinha-do-mato- e erva áspera não muito longe da margem ocidental do Rio. Ayla sorriu. Aquilo era parecido com a tundra onde a perdiz tinha o seu habitat, e não estranhava que uma variedade meridional dessas aves vivesse na região. Deixaram os cavalos junto de uma árvore.

Ayla apercebeu-se de que Lobo notara a presença de algo mais à frente. Estava alerta e concentrado.

- Vai, Lobo, busca- ordenou Ayla.

Quando Lobo saiu disparado, Ayla pegou na funda, tirou duas pedras da bolsa, colocou uma na concavidade de couro e puxou os dois extremos. Não teve de esperar muito. Com um esvoaçar repentino, cinco galinhas-do-mato levantaram voo, espantadas por Lobo. Ayla lançou uma pedra quando viu a primeira ave, e a segunda antes que a primeira caísse no solo. Escutou um zumbido e viu que a lança de Jondalar tinha abatido uma terceira galinha-do-mato.

Se fossem só eles, aquelas três aves bastariam, mas o grupo ascendia a dezasseis pessoas, incluindo quatro crianças.

Ayla chamou Lobo com um assobio. O animal acudiu a trote. Era evidente que se divertia a perseguir aves.

- Lobo, busca. Busca as aves.

O lobo largou de novo a correr e Ayla seguiu-o. Jondalar foi atrás. Não tardou a elevar-se outra ave e, embora a distância fosse considerável, Jondalar atirou um dardo com o seu atirador de lanças e abateu-a. De repente, enquanto Jondalar procurava a ave que caçara, quatro machos levantaram voo. Ayla lançou mais duas pedras com a funda; raramente falhava.

- Com esta já são suficientes- disse Ayla.

Com a ajuda do Lobo tinham caçado sete aves.

Quando voltaram ao acampamento, os caçadores falavam de ir caçar bisontes enquanto desbastavam os paus das lanças. Jondalar reuniu-se com eles para acabar de fazer as lanças de que necessitavam. Entretanto, Ayla começou a depenar as galinhas-do-mato. Quase todos acudiram a ajudar Ayla, e as penas mais fortes e maiores foram dadas aos que preparavam as lanças. Jondalar fizera lanças também para Ayla e deu-lhas, para que as marcasse com o seu símbolo. Contou-as. Havia duas vezes dez: vinte. Traçou quatro linhas juntas em cada haste. Esse era o seu símbolo pessoal. Como não era zelandoni de nascimento, escolhera o seu símbolo: umas marcas que coincidiam com as cicatrizes que tinha na perna devido ao ataque de um leão das cavernas quando era pequena.

As marcas seriam depois úteis para identificar o caçador que abatia uma presa em particular e permitia uma distribuição equitativa da carne. Não que a pessoa que matava o animal ficasse com toda a carne, mas seria a primeira a escolher as partes melhores.

A refeição foi um verdadeiro festim. A carne das galinhas-do-mato tinha um gosto diferente da carne seca e cozinhadas no forno da terra haviam ficado muito tenras.

Percebia-se também um grande entusiasmo antes da caçada prevista para o dia seguinte. Jondalar e Willamar começaram a falar do tema com os restantes, mas não podiam decidir que estratégia usar até verem onde estavam os bisontes. Como ainda era de dia, Jondalar decidiu percorrer de novo o carreiro para ver se localizava a manada.

Jondalar e Ayla puxaram os cavalos, ao invés de os montar, para não deixarem os outros para trás. Jondalar localizou os enormes bisontes- de um metro e oitenta de altura, com uns cornos gigantescos e uma pelagem vermelha-escura muito longe de onde os vira pela última vez. Era uma manada de tamanho médio, mas eles não queriam tantos animais, pois constituíam um grupo pequeno. Discutiram a melhor forma de caçar os bisontes e ficou decidido que contornariam cautelosamente a manada para não os assustar e ver a disposição do terreno nas imediações. Não havia desfiladeiro para os conduzir até lá, mas existia um rio seco com as margens elevadas de ambos os lados.

- Isto é capaz de servir- disse Jondalar. - Temos de acender uma fogueira no extremo inferior, mas só quando a manada se aproximar. Terei a lenha preparada e acendê-la-ei com uma tocha enquanto os conduzem para ali.

- Achas que dará resultado? Como vamos obrigá-los a mover-se?

- Com os cavalos e o Lobo- respondeu Jondalar. - E quando entrarem na zona mais estreita, alguém pode acender o fogo no extremo oposto para os obrigar a reduzir a marcha. Outros podem esperar no alto das margens, de preferência deitados no chão, e quando os animais estiverem frente a vocês, levantam-se e usam os atiradores de lanças. Temos de reunir lenha e empilhá-la. E arranjar uma mecha que arda com facilidade.

- Parece-me um bom plano- comentou Willamar.

Ayla e Jondalar juntaram-se ao grupo quando este se dispersou para apanhar lenha e outros materiais combustíveis. Depois montaram nos seus cavalos, fizeram um sinal a Lobo e começaram a rodear a manada. Willamar ordenou então aos seus aprendizes, Palidar e Tivonan, que acendessem o fogo.

- Enquanto a lenha pega fogo podem ocupar a vossa posição para utilizar os atiradores de lanças- disse Willamar. Os jovens anuíram e todos se colocaram nos seus postos.

E esperaram.

Cada caçador ocupava o seu espaço silencioso e escutava à sua maneira. Os dois jovens estavam nervosos, expectantes, e aguçavam o ouvido, alertas para os sons de Ayla e Jondalar, que já rodeavam a manada.

Osom estrondoso dos cascos a aproximar-se captou a atenção. Nesse momento, Willamar deu o sinal. Palidar foi o primeiro a golpear a pedra, e a faísca pegou fogo. Agachou-se para avivar a chama soprando. Os restantes caçadores estavam prontos. O fogo parara os bisontes, que bramavam no seu estado de confusão. Não queriam precipitar-se para o fogo, mas os que encerravam a debandada empurravam-nos para a frente.

As lanças começaram a voar.

O ar encheu-se de hastes de madeira com afiadas pontas de sílex. Cada caçador escolhera um animal diferente ao qual apontar e observava-o com atenção. Quando atiraram uma segunda lança, a maioria apontou ao mesmo bisonte. Tinham caçado todo o verão e revelavam destreza.

Num instante tudo estava terminado.

Os caçadores foram ver as presas abatidas: nove bisontes salpicavam de sangue o leito do rio. Quando examinaram as lanças, comprovaram que Willamar, Palidar, Tivonan, Jonokol, Kimeran e Jondecam tinham matado um animal cada. Jondalar e Ayla haviam matado três entre os dois.

- Nunca pensei que corresse tão bem- comentou Jonokol.

- Mas temos aqui demasiada carne.

- E verdade. Não precisamos de tanta- concordou Willamar- , mas isso significa que teremos mais para dividir com outros.

Nesse instante, Ayla deu-se conta de como estavam perto do seu destino. Não tardariam a entregar Amelana na sua caverna, e depois iriam ver o antiquíssimo lugar sagrado que a Primeira tinha tanto interesse em mostrar a Ayla. Segundo Willamar, faltariam apenas dois dias para a caverna de Beladora. E finalmente voltariam para casa.

O caminho de regresso era tão longo quanto o da ida, mas quando Ayla mirou em redor teve a impressão de que a Mãe lhes fornecera meios mais do que suficientes para satisfazer as suas necessidades. Tinham o material necessário para substituir o equipamento gasto, as armas e a roupa. Havia carne de sobra para secar, e para preparar os bolos de viagem. Também tinham raízes e talos de plantas e cogumelos secos.

- Já estive aqui! Conheço este lugar! - exclamou Amelana. Emocionou-se tanto ao ver um lugar que lhe era familiar, e depois outro, que surgiu um sorriso no seu rosto que não voltou a desaparecer. Estava tão impaciente para chegar a casa que não queria parar nem para descansar, grávida ou não.

O pequeno grupo chegou a um caminho bem marcado que seguia uma inesperada curva do rio. Uma antiga planície alagadiça deixara um amplo campo de erva, situado um pouco acima das águas em rápido movimento, e no seu extremo erguia-se uma escarpada parede rochosa.

O largo caminho subia pouco a pouco pelo lado da parede rochosa, em redor de arbustos e pequenas árvores.

O carreiro nivelou-se, obra de humanos, pensou Ayla, quando os viajantes se encontravam já ao abrigo de uma saliência na rocha numa zona habitada. Muitas das pessoas, entregues a diversas atividades, pararam e contemplaram a estranha procissão que avançava naquela direção, e que incluía pessoas e cavalos surpreendentemente dóceis.

Quando a jovem que chegava com eles, obviamente grávida, se separou dos visitantes, suscitou a atenção de todos.

- Mãe! Mãe! Sou eu! - gritou enquanto corria para uma mulher de consideráveis proporções.

- Amelana? Amelana? Es tu? Que fazes aqui? - perguntou a mulher.

- Voltei para casa, e estou muito feliz por te ver- exclamou Amelana. Rodeou a mulher com os braços, porém, o seu ventre dilatado não lhe permitiu estreitá-la. A mulher devolveu-lhe o abraço e, pegando-lhe pelos ombros, afastou a filha que não esperava voltar a ver.

- Estás grávida! Onde está o teu companheiro? Porque voltaste? Fizeste alguma coisa de mal? - indagou a mãe.

Não imaginava qualquer razão para que uma mulher, em plena gravidez, percorresse uma distância tão grande. Sabia que a filha podia ser impetuosa, e esperava que não tivesse quebrado nenhum costume social ou transgredido um tabu tão gravemente que a mandassem de volta para casa.

- Não, claro que não fiz nada de mal. Se tivesse feito, a Primeira Entre Aqueles Que Servem a Grande Mãe não me teria trazido para casa. O meu companheiro caminha agora pelo outro mundo e eu estou grávida e queria ter o meu filho perto de ti- explicou Amelana.

- A Primeira está aqui? A Primeira trouxe-te a casa? - indagou a mulher.

Voltou-se para observar os visitantes. Uma mulher saía de uma espécie de veículo puxado por um cavalo. Era corpulenta, até mais do que ela, e supôs, pela tatuagem no lado esquerdo da cara, que era uma Zelandoni. A mulher caminhou para ela com grande dignidade e uma presença que transmitia autoridade. Vendo de perto a sua tatuagem, além dos desenhos na sua roupa e dos colares, a mãe de Amelana compreendeu que se tratava de facto da Primeira.

- Porque não me apresentas a tua mãe, Amelana? - pediu a Primeira.

- Mãe, saúda, por favor, a Que é a Primeira Entre Aqueles Que Servem a Grande Mãe Terra- começou Amelana. - Zelandoni, esta é Syralana da Terceira Caverna dos Zelandoni Que Guardam o Lugar Sagrado Mais Antigo, companheira de Demoryn, líder da Terceira Caverna.

- Bem-vinda sejas, Primeira Entre Aqueles Que Servem a Grande Mãe- saudou Syralana, estendendo as mãos e aproximando-se dela.

- E uma grande honra ter-te aqui.

A Primeira pegou-lhe nas mãos e disse:

- Em nome da Grande Mãe, saúdo-te, Syralana da Terceira Caverna Que Guarda o Lugar Sagrado Mais Antigo.

- Viajaste aqui só para trazer a minha filha? - Syralana não conseguiu evitar perguntar.

- Venho com a minha acólita na sua Viagem da Donier. Os cavalos são dela. Viemos visitar o vosso Lugar Sagrado Mais Antigo. Já o conhecemos, apesar de vivermos bem a norte.

 

Syralana observou com receio a mulher alta que segurava as cordas dos cavalos.

- Apresentar-vos-ei mais tarde- propôs a Zelandoni. - Disseste que o teu companheiro é o líder desta caverna?

- Sim- respondeu Syralana. - O nosso líder chama-se Demoryn.

- Viemos pedir a vossa ajuda, embora também possam beneficiar dela- continuou a Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Grande Mãe Terra.

Um homem postou-se junto da mulher.

- Este é o meu companheiro- disse Syralana. - Demoryn, líder da Terceira Caverna dos Zelandoni Que Guardam o Lugar Sagrado Mais Antigo, por favor, dá as boas-vindas à Primeira Entre Aqueles Que Servem a Grande Mãe.

- Zelandoni Que És a Primeira, a nossa caverna tem o prazer de te dar as boas-vindas, a ti e aos teus amigos- declarou.

- Permite-me que te apresente o nosso Mestre do Comércio. Willamar, saúda Demoryn, líder da Terceira Caverna dos Zelandoni Que Guardam o Lugar Sagrado Mais Antigo.

- Saúdo-te, Demoryn- começou Willamar, estendendo as duas mãos, e prosseguiu com os cumprimentos formais. Depois explicou:

- Parámos uns quantos dias antes de chegar aqui para caçar e nos reabastecermos, e trazermos de oferta um pouco de carne.

- Viu que o líder e outros assentiam num gesto de compreensão. Eles teriam feito o mesmo. - Pelos vistos, acumulámos uma sobrecarga de riquezas. Encontrámos uma manada de bisontes e os nossos caçadores tiveram uma sorte excecional. No final, abatemos nove bisontes. É demasiada carne para nós, e, mesmo com a ajuda dos cavalos, será impossível transportar tal quantidade, mas não queremos desperdiçar os dons da Mãe. Se pudessem mandar uns quantos membros desta caverna para nos ajudar a transportar a carne, seria com muito gosto que a dividiríamos com vocês.

- Sim, claro que vos ajudaremos- afirmou Demoryn e, ao mirar mais atentamente Willamar, viu a tatuagem na sua cara. - Mestre do Comércio, creio que já estiveste aqui.

Willamar sorriu.

- Não na tua caverna em concreto, mas sim, já visitei antes esta região. A Primeira trouxe a sua acólita, a mulher que controla os cavalos, na sua Viagem da Donier. Está emparelhada com o filho da minha companheira. Ele ficou no acampamento a vigiar a carne, juntamente com os meus ajudantes. Creio que Amelana teve sorte que tivéssemos planeado empreender esta viagem quando decidiu vir. Sentia um grande desejo de voltar a casa e dar à luz aqui, perto da mãe.

- É com satisfação que a recebemos de volta. Suponho que ireis à Primeira Caverna para assistir à reunião com a zelandonia- observou o líder.

- Não sabia de nenhuma reunião- disse Willamar.

- Pensava que a Primeira tinha vindo por causa disso- replicou Demoryn.

- Não estava ao corrente, mas, claro, não sei tudo o que sabe a Primeira. - Os dois voltaram-se para a corpulenta mulher. - Sabias que havia uma reunião da zelandonia? - perguntou Willamar.

- Tenho todo o interesse em estar presente- respondeu a Zelandoni, com um sorriso enigmático.

Enquanto ajudava a Zelandoni a descarregar os seus pertences, Ayla perguntou:

- Sabias que ia celebrar-se uma reunião da zelandonia aqui perto?

- Não tinha a certeza, geralmente as reuniões decorrem conforme uma determinada sequência de anos e pensava que este podia ser o ano correspondente a esta reunião. Não o referi antes porque não queria criar falsas expectativas caso estivesse enganada ou não chegássemos a tempo.

- Parece que tinhas razão- observou Ayla.

Foram precisas duas viagens para transportar toda a carne para a caverna. Depois de dividida e acondicionada, resolveram ir visitar o local da reunião da zelandonia.

Os visitantes e quase todos os membros da Terceira Caverna dos Zelandoni Que Guardavam o Lugar Sagrado Mais Antigo avançaram ao longo do rio sinuoso que havia aberto um profundo desfiladeiro por onde agora corriam as suas águas. Ayla notou que os habitantes da caverna olhavam uns para os outros e sorriam como se partilhassem um segredo ou uma surpresa. Ao fazer uma curva apertada, os visitantes, assombrados, viram sobre as suas cabeças um arco de pedra, uma ponte natural que atravessava o rio. Aqueles que o viam pela primeira vez pararam para contemplar aquela maravilhosa formação criada pela Grande Mãe. Nunca antes tinham visto nada igual.

- Tem nome? - perguntou Ayla.

- Tem muitos nomes- respondeu Demoryn. - Alguns dão-lhe o nome da Mãe ou de espíritos do outro mundo. Nós chamamos-lhe simplesmente Arco ou Ponte.

Uns quatrocentos mil anos antes, as impetuosas águas de um rio subterrâneo talharam a pedra calcária, desgastando a rocha e criando cavernas e passagens. Com o passar do tempo, o nível da água baixou e elevou-se o nível do solo, e o canal que antes atravessava a parede de pedra converteu-se num arco natural. O rio atual corria através do que fora uma barreira, convertida agora numa ponte sobre o rio, mas tão alta que apenas se usava como tal. O arco de pedra elevado que cruzava o rio era uma formação imponente. Não existia nada parecido em nenhum outro sítio.

O campo entre o refúgio de pedra da Caverna dos Guardiães e o rio tinha uma forma circular e ficava delimitado pelas paredes rochosas do profundo desfiladeiro. Há milhões de anos fora um lago formado num alargamento do rio e agora o antigo leito albergava uma pradaria com diversas ervas aromáticas e arbustos que davam pequenas sementes comestíveis.

A Primeira Caverna dos Zelandoni Que Guardavam o Lugar Sagrado Mais Antigo situava-se sob uma saliência de pedra calcária num terraço por cima das terras de aluvião. Os zelandonia haviam-se reunido no prado para celebrar o seu encontro.

A chegada dos visitantes e dos membros da Terceira Caverna causou um grande rebuliço. Os zelandonia haviam instalado uma espécie de pavilhão, uma estrutura semelhante a uma tenda, coberta, mas com poucos painéis laterais; o teto dava sombra e os painéis laterais resguardavam do vento que varria o desfiladeiro. Uma acólita viu a procissão e entrou a toda a pressa, interrompendo a reunião. Por um momento, um par de importantes zelandonia reagiu com uma certa irritação, até que voltaram a olhar e sentiram um calafrio, que tentaram esconder.

Ayla encabeçava o grupo, montada em Whinney. A Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Mãe vinha logo atrás, sentada no atrelado. Os dois líderes do Sul reconheceram-na de imediato pelas tatuagens faciais e pelas vestimentas e colares, e mal podiam acreditar que a Primeira viera à sua reunião. Tinham-na visto tão poucas vezes que chegava a ser uma figura mítica. Ver a Primeira em carne e osso era um pouco assustador, mas ainda mais ao vê-la chegar daquela forma. O controlo dos cavalos não tinha precedentes. Devia possuir um poder extraordinário.

Aproximaram-se com deferência, saudaram-na estendendo as mãos e deram-lhe as boas-vindas. Ela devolveu os cumprimentos e prosseguiu apresentando os companheiros de viagem: Ayla e Jonokol, Willamar e Jondalar, e depois o resto dos viajantes, deixando os ajudantes de Willamar e as crianças para o fim.

- Estamos aqui porque acompanho a minha acólita na sua Viagem da Donier. Espero que alguém nos guie no vosso Lugar Sagrado. Só o vi uma vez, mas nunca o esqueci. Não só é o mais antigo, como também é de uma beleza extraordinária, tanto a própria caverna como as pinturas nas paredes. Honram a Grande Mãe- disse a Primeira com tal sentimento que a sua convicção era evidente.

- Claro. Temos uma Guardiã no Lugar Sagrado que vos guiará com todo o gosto- retorquiu uma Zelandoni.

Ayla foi ajudar Jondalar a desenganchar os atrelados dos cavalos. Tinha visto uma zona com erva abundante, agradável e longe das pessoas, mas decidiu perguntar se havia algum inconveniente em levar os cavalos para ali. Nunca convinha dar nada como garantido no que se referia ao território das outras cavernas. Primeiro perguntou a Demoryn, o líder da caverna de Amelana.

- Este ano não fizemos aqui a Reunião de verão, pelo que não está pisada, creio, mas podes perguntar à Zelandoni se quiseres ter a certeza- retorquiu.

- A Zelandoni Primeira? - perguntou Ayla. - Estás a falar da Primeira Caverna dos Guardiães?

- Sim, mas não se chama Zelandoni Primeira por isso, mas sim porque é a nossa Primeira”- explicou. - É simples casualidade que além disso seja Zelandoni dessa caverna. E, agora que me lembro, tenho de lhe dizer que enviei um mensageiro a avisar outras cavernas da vossa chegada. É possível que venha mais gente.

Ayla e Jondalar consultaram o resto dos viajantes e decidiram procurar um bom sítio para montar acampamento, tal como faziam em quase todas as cavernas quando chegavam antecipadamente a uma Reunião de verão. A Primeira confirmou a Ayla que chegaria mais gente do que previam.

No dia seguinte chegou outra caverna e, à noite, mais duas. A Primeira foi falar com Ayla no outro dia de manhã.

- Temos de falar com eles sobre a tua visita ao Lugar Sagrado. Esta caverna irá impressionar-te. Já a vi uma vez e penso voltar a vê-la. Há umas quantas partes difíceis, mas não terei outra oportunidade, e não vou perdê-la- disse a Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Mãe.

Isso intrigou Ayla e despertou a sua curiosidade. Parecia que, com tanto caminhar durante aquela viagem, a mulher melhorara a sua saúde, mas ainda tinha problemas e necessitava de ajuda quando o terreno era mais pedregoso. Apesar das caminhadas, continuava de proporções mais do que generosas que, às vezes, lhe dificultavam o movimento em lugares estreitos.

Quando as duas mulheres saíram da tenda, não havia ninguém no exterior. O resto do grupo tinha ido ver o que se passava na Reunião de verão improvisada, e ajudar na preparação das refeições ou em qualquer outra tarefa.

Chegava cada vez mais gente, e o prado enchia-se. Todavia, a maior surpresa aconteceu ao fim da tarde. Ayla e a Primeira conversavam no alojamento dos zelandonia quando Jonayla as interrompeu, entrando a correr.

- Mãe, mãe! - exclamou a menina. - Kimeran pediu-me que viesse dizer-te.

- Dizer-me o quê, Jonayla? - perguntou Ayla, com uma voz severa.

- Chegou a família de Beladora. E acompanha-os uma pessoa muito estranha.

- Vivem muito longe. Como conseguiram chegar aqui tão depressa? - indagou Ayla. Voltou-se para os restantes. - Tenho de ir.

- E eu deveria ir contigo- disse a Primeira. - Desculpem-nos, por favor.

- Não vivem assim tão longe- explicou a Zelandoni Primeira, acompanhando-as à saída- , e às vezes visitam-nos. Pelo menos uma vez em cada dois anos. São tão zelandoni como giornadoni, mas não creio que tenham vindo por causa do mensageiro que enviaram. Provavelmente já tinham a intenção de nos visitar. Vão ficar tão surpreendidos por ver a sua parente como ela a eles.

Kimeran estava na entrada e escutara a Zelandoni Primeira.

- Não é bem assim- corrigiu. - Foram à Reunião de verão dos Giornadoni, e depois decidiram participar na vossa. Estavam no acampamento da Reunião de verão quando chegou o mensageiro, e por ele souberam que estávamos aqui.

- Disseste que traziam uma pessoa estranha? - perguntou a Primeira.

- Sim, mas já verás por ti mesma.

Ayla e a Primeira foram apresentadas formalmente aos parentes de Beladora. Depois a Primeira perguntou-lhes se já tinham montado acampamento.

- Não, acabámos de chegar- respondeu a mulher que, segundo lhes disseram, era a mãe de Beladora, Ginedora.

- E possível que haja espaço ao lado do nosso acampamento- lembrou a Primeira. - Podem ocupá-lo, se quiserem.

Quando chegaram ao acampamento, fizeram-se mais apresentações formais. Ginedora não tardou a ver um menino que, pelo seu aspeto, bem podia ser seu filho. Olhou para Beladora com uma expressão inquisitiva. Esta pegou no filho com uma mão e na filha com a outra.

- Venham conhecer a avó- anunciou ela.

- Tiveste os dois de uma vez? E os dois com saúde? - perguntou. Beladora anuiu. - Que maravilha!

- Este é Gioneran- apresentou a jovem mãe, levantando a mão do menino de cinco anos com o cabelo castanho-escuro e olhos esverdeados como os da mãe.

- Será alto, como Kimeran- comentou Ginedora.

- E esta é Ginedela- disse Beladora, levantando a mão da sua filha loira.

- Tem o cabelo e a pele de Kimeran, e é linda- afirmou a mulher. - São tímidos? Querem vir dar-me um abraço?

- Ide cumprimentar a avó. Percorremos um longo caminho para a vermos- disse Beladora, instando-os a aproximar-se.

Um pouco hesitantes, as crianças abraçaram-na por segundos. Ginedora abraçou cada um deles enquanto as lágrimas lhe corriam pelo rosto.

- Não sabia que tinha netos. É o mal de viveres tão longe- comentou ela. - Quanto tempo ficarás aqui?

- Ainda não sabemos- respondeu Beladora.

- Virás à nossa caverna? - indagou Ginedora.

- Essa era a nossa intenção- respondeu.

- Tens de vir, mas não só por uns dias. Fizeste uma viagem tão longa; volta connosco e fica um ano- propôs a mãe.

- Teríamos de pensar- disse Beladora. - Kimeran é o líder da nossa caverna. É difícil ausentar-se um ano inteiro. - Quando viu as lágrimas assomarem aos olhos da mãe, acrescentou:

- Mas vamos pensar.

Ayla observou as restantes pessoas enquanto começavam a montar acampamento. Reparou num homem que levava uma pessoa aos ombros. Nesse momento inclinou-se e ajudou-a a sair. Ao princípio, Ayla pensou tratar-se de uma criança, mas examinou-o com mais atenção. Era um ser pequeno, mas de uma forma estranha, com as pernas e os braços demasiado curtos. Tocou na mão da Primeira e apontou discretamente com o queixo.

A mulher corpulenta voltou-se para ele e observou-o demoradamente. Entendeu por que razão Ayla lhe apontara aquele indivíduo. Nunca tinha visto alguém tão pequeno, mas já ouvira falar da existência desse tipo de pessoas.

- A mãe de Beladora parecia tão aliviada por ver que os dois filhos da sua filha, nascidos ao mesmo tempo, eram normais. Aquela pessoa é um acidente da natureza. Também há árvores cujo crescimento para. Creio que esse é um homem anão- comentou a Zelandoni.

 

Ayla levantara-se cedo e já pusera os alforges de Whinney e os cestos de recoleção. Disse a Jondalar que ia apanhar verduras e raízes e o que mais encontrasse para o banquete dessa noite.

Mal clareara quando Ayla se pôs a cavalo em Whinney e chamou Lobo com um assobio. Percorreu a margem do rio examinando a vegetação. Sabia que as plantas que procurava cresciam no lugar onde tinham acampado antes, mas esperava não precisar de ir tão longe. Não encontrou o que buscava até chegar perto do lugar onde tinham acampado. A água calma onde o rio formava quase um lago constituía o habitat ideal para aquelas plantas. Parou o cavalo e desmontou agilmente. Encheu os cestos e voltou a montar, cavalgando a galope parte do caminho. Quando chegou, as pessoas já preparavam a refeição da manhã.

Embora tivessem previsto celebrar a reunião quando o Sol alcançasse o seu zénite, as pessoas haviam começado a congregar-se antes da hora para encontrarem um sítio onde sentar-se e assim verem e ouvirem melhor. Respirava-se um ambiente de festa porque o facto de estarem juntos os predispunha à cordialidade, sobretudo porque o encontro não fora planeado.

Quando o Sol estava já bem alto, a zona de reunião transbordava de gente. A Zelandoni iniciou a sessão dando as boas-vindas à Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Grande Mãe Terra e a todos os outros visitantes. Explicou que a Primeira acompanhava a sua acólita na Viagem da Donier, e que trazia também o seu anterior acólito, que era já Zelandoni, e que estavam ali para visitar o Lugar Sagrado Mais Antigo. Saudaram a Primeira e logo deram início às festividades, que duraram todo o dia.

Os membros das cavernas vizinhas ficaram mais uns dias e depois começaram aos poucos a partir. Tinham muitas histórias para contar sobre os visitantes, sobre o homem anão e sobre a Primeira e a sua acólita, que controlava um lobo e três cavalos.

Ayla estava cada vez mais inquieta e impaciente para ir embora. Decidiu que era um bom momento para acabar de secar a carne de bisonte. Como Jonayla também queria ajudar, Ayla ensinou-a a cortar a carne. Entretanto, Willamar e os dois ajudantes chegaram ao acampamento muito animados.

- Estava aqui a pensar que seria boa ideia seguir o Grande Rio até ao mar do Sul- propôs Willamar. - Depois de uma viagem tão longa, seria uma pena não o ver, e disseram-nos que esta é a melhor época para trocar conchas. Podíamos ficar com umas quantas e trocar outras com a Quinta Caverna.

- E o que temos para lhes oferecer em troca? - indagou Jondalar.

- Era disso que queria falar contigo. Achas que conseguirias encontrar um bom sílex e fazer umas lâminas e pontas para trocar pelas conchas? E talvez pudéssemos acrescentar parte da carne que está a secar.

- Como sabes que é a época de troca? - perguntou Levela.

- Acaba de chegar um homem do Norte. Têm de o conhecer. E comerciante e traz umas peças de marfim magníficas- respondeu Willamar.

- Conheci um homem que talhava marfim- disse Ayla, com uma certa nostalgia.

Jondalar aguçou o ouvido. Conhecia esse talhador de marfim. Era um artista extraordinário, e o homem para o qual quase perdera Ayla. Ainda sentia um nó na garganta ao recordá-lo.

- Gostaria de conhecer esse homem e ver os seus trabalhos, e não me importaria de ver o mar do Sul. Que mais poderíamos trocar? - indagou Jondalar.

- Qualquer coisa que esteja bem feita e seja útil- replicou Willamar. - Então estamos todos de acordo. Iremos ver o mar do Sul no regresso a casa.

- Quando vamos conhecer esse homem? - quis saber Jondecam.

- Se este for um bom momento para fazer uma pausa e comer, podem conhecê-lo agora- respondeu Willamar.

- Só me falta cortar uns pedaços de carne- disse Levela.

- Podemos levar um pouco de carne de bisonte e assá-la para nós ou levá-la para a refeição comunitária- propôs Jondalar.

Pegou em Jonayla e acompanharam Willamar até ao refúgio dos zelandonia. Demoryn falava com um desconhecido, e Amelana, visivelmente grávida e consciente de como isso a tornava atraente, sorria-lhe. Ele devolvia-lhe o sorriso. Era bastante alto e robusto, com o cabelo castanho e os olhos azuis, e Ayla notou algo de familiar nele.

- Trouxe o resto do nosso grupo- declarou Willamar, e iniciou as apresentações. Quando começou com “Jondalar da Nona Caverna dos Zelandoni”, o homem pareceu desconcertado ao ver que Jondalar pousava Jonayla no chão para lhe apertar as mãos. - E esta é a sua companheira, Ayla da Nova Caverna dos Zelandoni, antes do Acampamento do Leão dos Mamutoi, Filha do Lar de Mamut...

- Eu conheço-te- disse o homem. - Ou ouvi falar de ti. Sou Conardi, dos Losadunai, e vocês os dois estiveram com os Losadunai há uns anos.

- Sim, estivemos na caverna de Laduni quando regressámos da nossa viagem- respondeu Jondalar, com sincero entusiasmo.

- Todos ficaram a saber de vocês na seguinte Reunião de verão. Causaram sensação com os cavalos e o lobo- comentou Conardi.

- E esta preciosidade deve ser um acrescento à família. E parecida contigo- disse Conardi para o homem alto e loiro. Parecia falar zelandoni com pequenas diferenças de construção e um sotaque um pouco diferente, mas, como Ayla recordava, as suas línguas eram parecidas. Na realidade falava zelandoni intercalando alguns rasgos do losadunai, a sua própria língua.

- Willamar diz que trouxeste esculturas- referiu Jondalar.

- Sim. Tenho aqui algumas- respondeu Conardi.

Desatou uma bolsa presa à cintura, abriu-a e colocou umas quantas figurinhas de marfim de mamute numa bandeja vazia. Ayla pegou numa. Era um mamute que tinha desenhadas várias incisões, mais do que o costume, e o seu sentido não era claro, assim, perguntou-lhe do que se tratava.

- Não sei- replicou ele- , são todas assim. Estas imitam os desenhos dos antigos e são obra de jovens aprendizes.

Em seguida, Ayla pegou numa figura esbelta e alargada, e ao observá-la com atenção viu que era uma ave, algo como um ganso voando. A figura seguinte parecia um leão erguido sobre as patas traseiras. A última figura era sem dúvida uma mulher, mas não tinha cabeça, apenas um orifício pelo qual passar um cordel. Os seios eram enormes e estavam situados muito acima.

- Tens essas peças para troca? - perguntou Willamar.

- Não, estas são minhas. Mas se quiserem alguma pode talhar-se- respondeu Conardi.

- Es mestre do comércio, Conardi? - Notara que o homem não exibia a tatuagem de comerciante.

- Gosto de viajar, e faço um pouco de comércio, mas não sou mestre do comércio- respondeu Conardi. - Toda a gente troca, mas essa ocupação não é a nossa especialidade.

- Se gostas de viajar, podes vir connosco e especializar-te nisso- sugeriu Willamar.

- Quando partem? - indagou Conardi.

- Em breve, mas primeiro vamos ao Lugar Sagrado Mais Antigo- respondeu Willamar.

- Fazem bem. É uma caverna muito bonita, com umas pinturas extraordinárias, mas já a vi várias vezes. Irei à frente e anunciarei a vossa visita- garantiu Conardi.

 

A entrada da caverna era bastante ampla, mas não simétrica, e mais larga do que alta. O lado direito tinha mais altura e por cima de uma parte da secção esquerda, a mais baixa, uma cornija proporcionava uma zona resguardada da chuva e da ocasional queda de seixos que se desprendiam da parede rochosa.

Devido à ampla abertura, a luz penetrava na caverna até bem ao interior. Ayla pensou que daria uma boa zona de habitação, mas obviamente não se utilizava como tal. Com exceção de uma fogueira acesa num canto sob a cornija frente a uma pequena construção para dormir, não se via mais nenhum dos elementos que as pessoas usavam para desfrutar de uma vida mais cómoda. Quando se aproximaram, uma Zelandoni saiu da construção e saudou-os.

- Em nome da Grande Mãe Terra, dou-te as boas-vindas ao seu Lugar Sagrado Mais Antigo, Primeira Entre Aqueles Que A Servem- disse, estendendo as mãos.

- Saúdo-te, Guardiã do Seu Lugar Sagrado Mais Antigo- respondeu a Primeira.

Depois foi a vez de Jonokol.

- Sou o Zelandoni da Décima Nona Caverna dos Zelandoni e saúdo-te, Guardiã do Seu Lugar Sagrado Mais Antigo. Disseram-me que as imagens deste Lugar Sagrado são assombrosas. Eu também crio imagens, e é uma honra ter sido convidado para ver este lugar- disse.

A Guardiã sorriu.

- Então és um Zelandoni criador de imagens- comentou. - Irás ficar surpreendido com esta caverna e talvez saibas apreciar o seu valor artístico mais do que a maioria das pessoas. Os Antigos que trabalharam aqui eram muito hábeis.

- Todas as imagens que existem nesta caverna foram obra dos Antigos? - perguntou o Décimo Nono.

A Guardiã percebeu o pedido tácito na voz de Jonokol. Já o ouvira de outros artistas que tinham ido de visita. Desejavam saber se podiam acrescentar algo à obra, e ela já sabia o que responder.

- Quase todas, embora existam umas quantas mais recentes. Se consideras que estás à altura, e sentires o impulso para o fazer, tens plena liberdade para deixar aqui a tua marca. Não impomos restrições a ninguém. A Mãe escolhe. E tu saberás se fores eleito- respondeu a Guardiã. Embora muitos perguntassem, poucos eram os que se consideravam à altura para contribuir para a extraordinária obra do interior.

A seguinte foi Ayla.

- Em nome da Grande Mãe de Todos, saúdo-te, Guardiã do Lugar Sagrado Mais Antigo- cumprimentou. - Chamo-me Ayla e sou acólita da Primeira Entre Aqueles Que Servem a Grande Mãe Terra.

- Dou-te as boas-vindas ao Lugar Sagrado Mais Antigo, Ayla, acólita da Primeira- disse a Zelandoni. - Suspeito que para veres este lugar percorreste uma distância maior do que qualquer outra pessoa.

Ao ver o sorriso da mulher, Ayla entendeu as suas palavras. Era o seu sotaque. A Guardiã referia-se à distância percorrida na sua viagem com Jondalar, e talvez até antes.

Em seguida todos se apresentaram formalmente.

Primeiro entrariam na caverna cinco visitantes. O resto iria noutro momento, pois as responsáveis pela guarda do Lugar Sagrado não gostavam que fosse demasiada gente de uma só vez. Pegaram em tochas e em candeias para alumiar o caminho e a Guardiã foi a primeira a entrar.

Na câmara situada perto da entrada chegava luz suficiente para se ter uma ideia do enorme tamanho da cavidade e da sua disposição caótica. Uma desordenada paisagem de formações rochosas enchia o espaço.

A Guardiã começou a murmurar enquanto os conduzia para a esquerda, permanecendo junto à parede. Atrás dela ia a Primeira, seguida de Ayla, Jonokol e Willamar, em fila; Jondalar fechava o grupo.

A Guardiã, que não tinha parado de murmurar, aumentou o volume do seu canto até que a intensidade do arrulho alcançou um nível que Ayla, de pé ao seu lado, nunca acreditara ser possível num ser humano, e mesmo assim não havia eco. A imensidade do espaço vazio no interior da parede rochosa absorvia o som. A caverna dizia-lhes que não era um lugar para seres humanos. Aquele espaço pertencia aos ursos das cavernas que ali hibernavam.

A Guardiã conduziu-os pela direita. Passaram ante uma pequena abertura que levava a outra câmara e, um pouco mais à frente, chegaram a uma abertura mais larga. Avistaram um amplo painel, desenhado numa parede quase vertical, coberto de grandes pontos vermelhos e diversos sinais.

- Como acham que foram feitos estes pontos? - perguntou a Guardiã.

- Suponho que usaram um pedaço de couro ou musgo, ou algo parecido- aventurou Jonokol.

- Creio que o Zelandoni da Décima Nona deveria prestar um pouco mais de atenção- disse a Primeira.

A Guardiã levantou a mão e, com os dedos estendidos, aproximou-a de um ponto. Era quase do mesmo tamanho que a palma da sua mão.

Jonokol deixou descair o queixo de espanto e a Guardiã sorriu.

Um pouco mais à frente havia um recanto. Na entrada leste, aparecia uma saliência arredondada coberta de grandes pontos vermelhos. A abertura continha mais pontos vermelhos numa das paredes, enquanto na parede da frente se observava um grupo de pontos, umas quantas linhas e outras marcas, além de três cabeças de cavalo, duas delas amarelas.

- Há mais imagens- declarou a Guardiã- , mas temos de voltar por onde viemos.

Começou de novo a murmurar enquanto os conduzia a uma pequena câmara no interior das solidificações centrais. Ali, na parte da frente, havia um grande desenho de um cervo, provavelmente um megacero jovem. Enquanto ali permaneciam, a Guardiã cantou em voz mais alta. A câmara ressoou, devolvendo-lhe o arrulho. Jonokol uniu-se a ela, cantando escalas que harmonizavam suavemente os tons da Guardiã. Ayla começou a imitar os trinados das aves para complementar a música. A Primeira entoou versos do Cântico à Mãe, atenuando a sua poderosa voz de contralto até obter um tom intenso, grave e vibrante.

- Foi maravilhoso- comentou Jondalar. - Simplesmente maravilhoso.

- Sim. Soava muito bem- concordou Willamar. - De certeza que a Mãe gostou tanto quanto nós.

A Guardiã levou-os ao interior da pequena câmara e depois a outra abertura. Logo à entrada via-se a cabeça de um urso pintada a vermelho. Quando se agacharam para passar por um corredor de escassa altura, distinguiram uma parte maior do urso, e apareceu na obscuridade a cabeça de um segundo animal. Quando atravessaram a passagem e se ergueram, avistaram a cabeça de um terceiro urso desenhada por baixo da cabeça do primeiro. Haviam aproveitado habilmente a forma da parede para dar profundidade ao primeiro urso, e embora o segundo parecesse acabado, o que criava essa impressão era uma concavidade onde deveriam ter estado os quartos traseiros. Era quase como se o urso surgisse do mundo dos espíritos através da parede.

Não muito longe da entrada da caverna, sobre um enorme pilar de rocha que separava as duas câmaras, frente às outras pinturas da sala repleta de caóticas formações rochosas, havia um painel com uns sete metros de largura por três de altura cheio de grandes pontos vermelhos. Entre outras marcas, incluía-se o traço vertical reto com uma barra transversal próxima do extremo superior.

A Guardiã, sem nunca se desviar da parede esquerda, guiou-os de novo até à sala de hibernação dos ursos e deteve-se um pouco antes da entrada.

- Aqui dentro há muitas coisas, mas queria que visses algumas em particular- disse a Zelandoni, olhando diretamente para Ayla. Levantando a tocha, acrescentou:

- Primeiro isto.

Na parede viam-se umas marcas vermelhas que pareciam traçadas ao acaso. De imediato, na sua mente, Ayla, preencheu os espaços vazios e distinguiu a cabeça de um rinoceronte. Surpreendeu-a a simplicidade do desenho, e, quando conseguiu discernir o animal, a imagem era inquestionável.

- É um rinoceronte! - exclamou Ayla.

- Sim, e não verás mais nenhum nesta sala- disse a Guardiã.

Mais para o interior da galeria havia um painel pintado a preto:

a cabeça de um leão, um enorme mamute e, por último, uma figura feita a grande altura numa estalactite, um enorme urso vermelho com o contorno do lombo a negro. O mistério encontrava-se na forma como tinha sido pintado. Via-se facilmente do solo, mas o autor tivera de subir às solidificações.

- Notaram como todos os animais estão orientados para a saída exceto o mamute? - observou Jonokol. - É como se entrassem neste mundo vindos do mundo dos espíritos.

O grupo continuou.

Desta vez a Guardiã levou-os pelo lado esquerdo da caverna, à parte mais profunda do espaço de hibernação dos ursos. Do outro lado das estalagmites e dos blocos de pedra, projetava-se do teto uma enorme rocha afiada.

Quando chegaram à pedra pendente, a Guardiã levantou a tocha para que os visitantes vissem a superfície do painel. Próximo da base, olhando para a esquerda, via-se um leopardo, pintado de vermelho. Nem Ayla nem Jondalar nem Jonokol haviam alguma vez visto um leopardo pintado na parede de um Lugar Sagrado. Pela cauda larga, Ayla pensou tratar-se de um leopardo-das-neves. Do outro lado da cauda havia um enorme ponto vermelho. Ninguém entendia a razão daqueles pontos, nem o que significava o leopardo, mas sem dúvida que era um leopardo.

Não podia dizer-se o mesmo do animal situado por cima, orientado para a direita. Pelos descomunais ombros e pela forma da cabeça, podia tomar-se por um urso, mas o corpo delgado e as pernas largas, assim como as manchas na parte superior do corpo, levaram Ayla a pensar que era quase com toda a certeza uma hiena das cavernas.

À medida que avançavam, a decoração da parede era cada vez mais exígua. A Guardiã começou de novo a cantar suavemente. Produziu-se uma certa ressonância, mas pouca, até que chegaram a uma zona com rochas pendentes. Ali estavam desenhados grupos de pontos vermelhos. Depois aparecia um friso com cinco rinocerontes e, não muito longe, mais animais, sete cabeças e um animal inteiro de aspeto felino, talvez leões, além de um cavalo, um mamute e outro rinoceronte. Várias imagens em positivo de impressões de mãos e, mais à frente, encontraram um rinoceronte esboçado a negro.

Enquanto caminhavam pela sala, Ayla viu um cavalo maravilhosamente desenhado e atrás dois mamutes, sobrepostos, com a linha do ventre desenhada como um arco alto, o que levou Ayla a pensar no enorme arco exterior. Representaria o arco por acaso um mamute? A maioria dos animais daquela câmara pareciam mamutes, mas havia também rinocerontes, e um em concreto captou a atenção de Ayla. Só a metade dianteira estava gravada, e parecia surgir de uma abertura na parede, do mundo existente atrás da parede. Havia ainda uns quantos cavalos, auroques e bisontes, mas nenhum felino, nem cervos. E ao passo que todas as imagens na primeira parte da caverna estavam desenhadas a vermelho, naquela zona eram brancas, gravadas com os dedos ou com outros objetos duros, exceto algumas traçadas a negro na parede da direita, ao fundo, que incluíam um magnífico urso-negro.

Ayla estava tão absorta que não se deu conta de que a Guardiã, a Zelandoni Primeira e o Zelandoni da Décima Nona Caverna haviam começado a cantar até que escutou a Primeira juntar a sua voz à dos outros.

De súbito, algo chamou a atenção de Ayla, que a fez estremecer, não de medo, mas de reconhecimento. Viu o crânio de um urso das cavernas, sozinho, no alto da superfície horizontal de uma rocha. Não sabia como chegara a rocha ao centro da sala. Havia outras mais pequenas por perto e supôs que tinham caído do teto; mas adivinhava como chegara o crânio até ali. Fora ali colocado por mão humana!

Ao aproximar-se da rocha, Ayla recordou o crânio que Creb encontrara com um osso introduzido à força na abertura formada pela órbita do olho e pela maçã do rosto. Esse crânio possuía um grande significado para o Mogur do Clã do Urso das Cavernas, e Ayla perguntou-se se algum membro do Clã estivera naquela caverna.

Ao examinar o crânio do urso da caverna empoleirado na rocha plana, teve a firme convicção de que o antigo que o colocara ali pertencia ao Clã. Jondalar viu-a tremer e aproximou-se. Quando chegou à rocha e viu o crânio do urso, compreendeu a sua reação.

- Estás bem, Ayla? - perguntou.

- Esta caverna devia ter um grande significado para o Clã- comentou. - Não consigo deixar de pensar que eles a conheciam. Na sua memória, talvez ainda a conheçam.

Os restantes reuniram-se em torno da rocha com o crânio.

- Vejo que já encontraram o crânio. Tinha intenção de o mostrar- disse a Guardiã.

- Esteve aqui alguém do Clã? - indagou Ayla.

- Alguém do Clã? - repetiu a Guardiã.

- Os que vocês chamam de Cabeças-Chatas- explicou Ayla.

- O outro povo.

- É curioso que perguntes- disse a Guardiã. - Às vezes vemos Cabeças-Chatas por aqui, mas só em certas épocas do ano. Assustam as crianças, mas chegámos a uma espécie de acordo: eles mantêm-se longe de nós, e nós não os incomodamos, se a única coisa que querem é entrar na caverna.

Enquanto Ayla pensava no crânio do urso sobre a rocha, a Guardiã tinha mostrado aos restantes outra parte da secção onde se encontravam.

- Devo advertir-te, Zelandoni Que és a Primeira- disse a Guardiã- , o acesso a esta câmara é bastante difícil. E não há muito para ver, além de uns signos, um cavalo amarelo e uns mamutes.

- Sim, recordo-me- afirmou a Primeira. - Não preciso de ver isso de novo.

- Eu esperarei aqui contigo- ofereceu-se Willamar. - Também já vi isso.

A Guardiã começou a cantar e os visitantes perceberam a resposta da caverna.

 

Inicialmente, as imagens que mais atraíram Ayla foram os cavalos. Tinha visto arte muito bonita desde que conhecia a existência das representações visuais, mas nunca vira nada como o painel dos cavalos naquela parede.

Havia quatro cabeças de cavalo, pintadas em perspetiva, uma em cima da outra, mas a parede atrás deles estava alisada, o que permitira ao artista mostrar os pormenores e as diferenças próprias de cada animal. A característica crina eriçada, a linha da queixada, a forma do focinho, uma boca aberta ou fechada, um olhar altivo, todos os pormenores estavam representados com tanta precisão que aqueles cavalos se assemelhavam a animais vivos.

Ayla voltou-se para o homem alto que era seu companheiro a fim de partilhar aquele momento com ele.

- Jondalar, olha para estes cavalos! Já alguma vez tinhas visto algo parecido? Parece que estão vivos.

Ele colocou-se atrás dela e rodeou-a com os braços.

- Já vi pinturas de cavalos muito bonitas, mas nada como isto. E tu, o que achas, Jonokol?

Jonokol virou-se para a Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Grande Mãe.

- Obrigado por me ter trazido. Só por isto a viagem valeu a pena. - Voltou-se para a parede pintada. - E não só pelos cavalos. Vejam estes auroques e os rinocerontes.

A Guardiã não pôde conter um sorriso de satisfação. Aquilo era o melhor de ser Guardiã: não ver a obra ela mesma- já a vira muitas vezes- , mas como reagiam as pessoas às imagens.

Depois de contemplarem pausadamente os cavalos, Ayla pôde dedicar-se ao resto, e havia muito mais para ver: os três auroques à esquerda dos cavalos, misturados com pequenos rinocerontes, um cervo e, por baixo dos rinocerontes, um bisonte. A direita dos cavalos havia uma entrada, com espaço apenas para uma pessoa. Continha mais cavalos, um urso ou quiçá um felino enorme, um auroque e um bisonte com muitas patas.

- Olha para este bisonte- apontou Ayla. - Está a correr e a respirar com força, e os leões- acrescentou, primeiro a sorrir e depois às gargalhadas.

- O que achas assim tão engraçado? - perguntou Jondalar.

- Vês estes dois leões? A fêmea está com o cio, e o macho está muito interessado, mas ela não. Não é com ele que ela deseja partilhar prazeres, por isso se senta e não o deixa aproximar-se. O artista pintou-os tão bem que se percebe o desdém na expressão da fêmea, apesar de o macho tentar mostrar-se grande e forte... vês como arreganha os dentes? Porque sabe que a leoa não o considera digno dela, e tem um pouco de medo- explicou Ayla. - Como pode um artista conseguir tal coisa? Mostrar essa expressão com tamanha exatidão...

- Como sabes tudo isso? - perguntou a Guardiã. Ninguém dera aquela explicação, mas parecia acertada: era verdade que exibiam essas expressões.

- Quando aprendi a caçar sozinha, tinha de observar os leões- respondeu Ayla.

A Guardiã aproximou-se de uma abertura à direita que levava a uma passagem estreita. A direita havia um desenho a negro de um megacero inteiro, o cervo gigante cuja característica mais representativa era a corcova, juntamente com a cabeça pequena e um pescoço sinuoso. Ayla questionou-se o que levaria aqueles artistas a representá-los sem cornos, já que para ela esses eram a característica principal.

Também lhe interessou os restos de fogueiras ao longo da passagem, utilizadas provavelmente para obter o carvão com que faziam os desenhos. O fogo enegrecera as paredes. Seriam aquelas fogueiras dos Antigos, dos artistas que haviam criado todas aquelas pinturas? Isso conferia-lhes uma aparência mais real, de pessoas, e não de espíritos do outro mundo.

O último painel pintado do corredor ficava no nível mais inferior. A direita viam-se quatro rinocerontes parcialmente pintados e gravados. Um era difícil de distinguir; dois eram pequenos e tinham bandas negras em torno do ventre e as peculiares orelhas. O último era muito maior, mas estava incompleto. Numa rocha pendente estava um grande íbex macho pintado a negro que, da sua posição elevada, contemplava o outro grupo de animais. No lado esquerdo, a parede tinha sido raspada em preparação para vários animais: seis cavalos inteiros ou parciais, dois bisontes e dois megaceros- em ambos os casos, um completo e um inacabado- , dois rinocerontes pequenos e várias linhas e marcas.

A Guardiã retomou o seu canto e a Primeira uniu a sua voz à dela; depois foi a vez de Jonokol. Ayla esperou. Então a caverna devolveu-lhes o canto com claridade.

A primeira vista notava-se que a primeira parte da parede esquerda estava dividida em três grandes secções. Muito perto do princípio desse espaço viram três leões juntos olhando para a direita, mostrados em perspetiva mediante a linha do lombo. O maior, e também o mais afastado, pintado a negro, media quase três metros e mostrava o escroto, por isso, não havia dúvida alguma quanto ao sexo. O do centro estava desenhado a vermelho, e era igualmente um macho. O que se encontrava mais perto era mais pequeno, uma fêmea. Ao contemplar o desenho, Ayla teve as suas dúvidas sobre o do meio. Não se via uma terceira cabeça, e talvez estivesse ali só para criar curiosidade e se tratasse na realidade de um par de leões. Apesar da sua simplicidade, as linhas eram muito expressivas. Por cima dos lombos, distinguiu apenas três mamutes gravados com o dedo. Nessa parte da caverna predominavam os leões. À direita dos leões havia um rinoceronte, e à direita deste, outros três leões olhando para a esquerda e que pareciam observar os dois rinocerontes, o que conferia um certo equilíbrio ao painel.

Na secção do centro havia uma concavidade. A esquerda viram leões vermelhos desbotados e pontos com leões negros sobrepostos. Depois vinha uma secção com um rinoceronte adornado com vários cornos, oito em perspetiva, de modo que pareciam oito rinocerontes, um ao lado do outro, assim como muitos outros mais. A direita do painel dos rinocerontes, ficava o nicho, e lá dentro encontraram o desenho de um cavalo. Por cima tinham pintado dois rinocerontes negros e um mamute, e animais insinuados saindo das profundidades das rochas: um cavalo saía da cavidade, um bisonte enorme assomava de uma fenda, como se vindo do outro mundo, depois uns mamutes e um rinoceronte.

A secção à direita da cavidade mostrava duas espécies de animais: leões e bisontes, leões caçando bisontes. Os bisontes agrupavam-se em forma de manada à esquerda, e os leões espreitavam à direita, como se aguardassem um sinal para se lançar sobre eles. Os leões eram de uma ferocidade cativante, “como devia ser”, pensou Ayla; na verdade, o Leão das Cavernas era o seu totem. Para Ayla, aquela era a câmara mais espetacular da caverna. Eram tantas as imagens que não conseguia assimilá-las todas, por mais que o desejasse. O enorme painel terminava numa saliência que formava uma espécie de segunda concavidade, pouco profunda, com um rinoceronte negro completo a sair do mundo dos espíritos. Do outro lado desse espaço havia um bisonte com a cabeça desenhada de frente e o corpo de perfil, perpendicular à cabeça, um recurso pictórico muito eficaz.

- Há um par de salas pequenas com umas quantas pinturas interessantes- disse a Guardiã. - Se quiseres, posso mostrar-tas.

- Sim. Gostaria de ver tudo antes de partir- concordou Ayla.

- Verás que aqui, atrás desta rocha pendente com forma de membro viril, existem três leões, e depois do rinoceronte que sangra há um pequeno corredor que conduz a um bonito cavalo- explicou a Guardiã, retomando a marcha para a guiar. - E aqui, no fim do painel, está o grande bisonte. Perto verás um enorme leão e uns pequenos cavalos.

Ayla voltou ao princípio da câmara onde a Primeira estava sentada numa pedra. Os restantes encontravam-se ao lado dela.

- O que te pareceu, Ayla? - perguntou a Zelandoni.

- Não sabes o quanto me alegro com teres-me trazido até aqui. Creio que esta é a caverna mais bonita que já vi. É mais do que uma caverna, mas não sei o que lhe chamar. - Fez uma pausa e continuou. - Nesta viagem, e em outras anteriores, vimos pinturas e desenhos muito bonitos e alguns não tão interessantes mas igualmente incríveis. Não sei como os artistas o fazem, nem consigo perceber porque o fazem. Creio que a sua intenção é agradar à Mãe, e não tenho dúvidas de que o conseguem, e talvez queiram contar a Sua História, ou outras histórias. Ou talvez pintem apenas os que são capazes de o fazer. Como a Jonokol, a alguém ocorre desenhar algo e desenha-o. É o mesmo quando tu cantas, Zelandoni. A maioria das pessoas sabe cantar, mais ou menos, mas ninguém o faz como tu. Quando te oiço, só quero escutar-te. Sinto-me bem por dentro. Acontece-me o mesmo quando vejo estas cavernas pintadas, ou quando Jondalar me olha com os olhos cheios de amor. Tenho a sensação de que aqueles que criaram estas imagens me olham com olhos cheios de amor. - Baixou a cabeça para conter as lágrimas. - Acredito que a Mãe também deve sentir-se assim- concluiu, com os olhos a brilhar.

Começaram todos a entoar o Cântico à Mãe.

Quando acabaram, reinou um silêncio sepulcral. Todos ali presentes sentiram, mais do que nunca, o poder da Mãe e do Cântico à Mãe. Voltaram a contemplar as pinturas e aperceberam-se ainda mais dos animais que pareciam sair das fendas e das sombras da caverna, como se a Mãe estivesse a criá-los, a dar-lhes vida, a trazê-los do outro mundo, do mundo dos espíritos.

Depois empreenderam o caminho de volta. Ninguém dizia grande coisa, limitando-se a contemplar os animais. Antes de chegarem à entrada, repararam na quantidade de luz que penetrava a grande profundidade na caverna, e Jonokol parou.

- Podes levar-me ao espaço amplo daquela outra sala?

- Claro- respondeu a Guardiã, sem perguntar o motivo. Já o conhecia.

- Gostaria de te acompanhar, Zelandoni da Décima Nona Caverna- disse Ayla.

- Será um prazer. Podes segurar a minha tocha- replicou ele, com um sorriso.

Foi Ayla quem encontrou a Caverna Branca, e Jonokol o primeiro a quem ela a mostrou. Ayla sabia que ele ia pintar nessas bonitas paredes, embora talvez precisasse de ajudantes. Os três regressaram à segunda sala da Caverna dos Ursos enquanto os restantes saíam. A Guardiã levou-os por um atalho, e sabia onde devia ir, ao lugar onde ele se fixara ao entrar nessa parte da caverna. Jonokol encontrou a cavidade isolada e a solidificação antiga que tinham visto.

Depois de tirar uma faca de sílex, aproximou-se da estalagmite com a parte superior em forma de vasilha e gravou na base, com movimentos hábeis, o cachaço, o olhar, a boca e a queixada de um cavalo, depois dois traços mais enérgicos para a crina e para o lombo. Observou-o por momentos e gravou, por cima do primeiro cavalo, a cabeça de um segundo orientado em sentido contrário. Ali a pedra era um pouco mais dura, pelo que lhe foi mais difícil fazer as incisões, e a linha do cachaço não ficou tão precisa, mas continuou a desenhar os pelos individuais de uma crina eriçada. Por fim deu um passo atrás e contemplou a sua obra.

- Queria trazer algo a esta caverna, mas não sabia se devia até que a Primeira entoou o Cântico à Mãe nas profundezas da caverna- disse o Zelandoni da Décima Nona Caverna.

- Tinha-te dito que era decisão da Mãe, e chegado o momento tu próprio o saberias. Agora também eu o sei: foi o mais acertado- disse a Guardiã.

- Fizeste bem- concordou Ayla. - E talvez esteja na altura de deixar de te chamar Jonokol e começar a usar o nome Zelandoni da Décima Nona Caverna.

- Talvez em público, mas entre nós espero ser sempre Jonokol, e tu, Ayla- respondeu ele.

- Também gostaria- disse Ayla, e voltou-se para a Guardiã.

- Para mim tu és a Guardiã, aquela que guarda algo, mas, se não te importas, gostaria de saber o nome com que nasceste.

- Chamava-me Dominica- revelou a mulher- , e sempre pensarei em ti como Ayla, mesmo que um dia te convertas na Primeira.

Ayla abanou a cabeça.

- É pouco provável. Sou uma forasteira com um estranho sotaque.

- Isso não importa- argumentou Dominica. - Nós reconhecemos a Primeira ou o Primeiro, embora não o conheçamos pessoalmente. E gosto do teu sotaque. Creio que com ele te distingues dos restantes, como é próprio Daquela Que É a Primeira.

Depois conduziu-os até ao exterior.

Ayla passou o resto do dia a pensar naquela extraordinária caverna. Era tanto o que havia para ver e assimilar, que desejou visitá-la de novo.

No dia seguinte, ao fim da manhã, Ayla pediu a Levela que cuidasse de Jonayla e vigiasse a carne que deixara a secar. Colocara mais carne de bisonte a secar e pensou que era um bom momento para satisfazer o desejo de voltar a ver o Lugar Sagrado Mais Antigo.

- Vou voltar a entrar na caverna, Lobo. Quero vê-la novamente antes de irmos embora. Quem sabe quando regressarei aqui, se é que regresso.

Haviam planeado partir logo cedo, mas Amelana entrou em trabalho de parto de madrugada, pelo que os zelandonia de visita não podiam partir. Ao fim da tarde, deu à luz um rapaz saudável e a mãe dela ofereceu uma refeição. Só empreenderam a viagem na manhã seguinte e as despedidas tiveram algo de anticlímax.

A composição do grupo voltara a mudar. Depois de abalarem Kimeran, Beladora e os gémeos, e já sem Amelana, eram apenas onze, e tiveram de se organizar de maneira diferente. As únicas mulheres eram Ayla, Levela e a Primeira, e sentiam a falta de Beladora e dos caprichos juvenis de Amelana. Demoraram um tempo até voltarem a acomodar-se à rotina da viagem.

Seguiram o rio para jusante e, quando este desembocou no Grande Rio, bordearam-no em direção a sul. Avistaram o vasto mar do Sul um dia antes de lá chegarem, mas a paisagem oferecia algo mais do que aquela imensidão de água. Viram manadas de renas e de me-gaceros, um grupo de mamutes-lanudos junto com as suas crias de todas as idades.

Encontraram os comerciantes de que Conardi falara e o próprio Conardi. Este ocupou-se das apresentações e ficou demonstrado que os cestos de Ayla eram um artigo desejável. As pontas e as ferramentas de sílex de Jondalar também foram bem acolhidas. A habilidade e experiência de Willamar como comerciante impuseram-se a todos. Agrupou-os, incluindo Conardi, e encarregou-se da organização.

Uma vez concluída a operação comercial, iniciaram a viagem de regresso. Avançaram mais rápido do que à ida. Conheciam o caminho e já não se detinham a visitar cavernas ou grutas pintadas. E a mudança na meteorologia obrigava-os a acelerar o passo.

Quando chegaram ao Grande Rio, tiveram de esperar, porque uma tempestade tornara as águas difíceis de atravessar. Foi um momento de desassossego, porque não queriam ficar isolados naquela margem durante toda a estação. Por fim, as condições melhoraram e, embora as águas ainda estivessem bravias, lá conseguiram passar.

Quando avistaram o enorme refúgio de pedra que era a Nona Caverna, de bom grado desatariam a correr, mas não foi necessário. Havia vigias à espreita e acenderam uma fogueira de sinais quando os viram. Quase toda a comunidade saiu para os receber e lhes dar as boas-vindas no seu regresso a casa.

 

Ayla subiu pelo inclinado caminho até ao alto da parede rochosa. Transportava às costas uma carga de lenha. Deixou-a junto à coluna de basalto erodido que sobressaía da beira da parede de pedra calcária num ângulo de aparência pouco estável. Deteve-se a contemplar a paisagem. Por muito que a tivesse visto ao longo do último ano, durante o qual estivera a registar o nascimento e o pôr do Sol e da Lua, a desafogada vista nunca deixava de a comover.

Quando chegou ao seu refúgio por baixo da saliência de pedra, encontrou-o frio e vazio. “Jondalar e Jonayla devem ter ido ao refúgio de Proleva para a refeição da noite”, pensou Ayla. Sentiu-se tentada a ir buscá-los, mas de que lhe serviria se tinha de voltar a sair?

Acendeu uma fogueira e, quando já ardia bem, acrescentou umas quantas pedras de cozinhar; depois foi espreitar o odre e alegrou-se que estivesse cheio. Deitou um pouco de água numa tigela de madeira com a ideia de preparar uma infusão.

Juntou um pouco mais de lenha ao fogo e, sentada de pernas cruzadas, esperou com os olhos fechados que as pedras aquecessem para poder servir a água da infusão. Estava cansada. O último ano havia sido difícil, pelo tempo que devia passar acordada de noite. Quase a venceu o sono, mas despertou bruscamente ao sentir a cabeça descair.

Pôs uma manta de pele em volta dos ombros- à noite fazia sempre frio-, pegou no copo com a infusão e abandonou o seu lar. Uma vez mais encaminhou-se para o caminho ascendente ao fundo do refúgio e começou a subir, perguntando-se onde estaria Lobo. As vezes ele era a sua única companhia naquelas longas noites de vigília, deitado no chão aos seus pés, enquanto ela, bem abrigada, permanecia sentada no alto da parede de rocha. Levava quase um ano a observar o nascer e o pôr do Sol e da Lua e, embora não apreciasse ter de se separar de Jondalar e de Jonayla, como lhe exigia a observação dos corpos celestes, fascinava-a os conhecimentos que adquirira. Todavia, naquela noite sentia um certo mal-estar. Queria voltar ao seu refúgio, meter-se entre as peles junto de Jondalar, para que a abraçasse e tocasse como só ele sabia fazer. Procurou uma posição mais cómoda, tentando preparar-se para a interminável noite de solidão.

Para matar o tempo e manter-se acordada, concentrou-se em repetir em voz baixa algumas das numerosas canções, histórias e lendas, muitas rimadas, que decorara.

Todavia, nem isso parecia funcionar. Resolveu regressar ao refúgio.

- És tu, Ayla? - perguntou Jondalar, com uma voz sonolenta.

- Já é dia?

- Não, Jondalar. Esta noite vim mais cedo- respondeu ela enquanto deitava a filha na sua cama. Quando chegou ao leito que dividia, este estava desperto, apoiado num cotovelo.

- Porque decidiste regressar mais cedo?

- Não conseguia concentrar-me. - Dirigiu-lhe um sorriso sensual e, depois de se despir, deitou-se ao seu lado e beijou-o longamente...

Ayla olhou para Jondalar. Tinha os olhos fechados e um sorriso relaxado e satisfeito na cara. Ela fechou também os olhos. “Porque esperara tanto?”, pensou. Tentou recordar-se de quanto tempo havia passado. De repente abriu os olhos de par em par. As ervas! Quando fora a última vez que tomara as ervas? Enquanto dava de mamar não tivera de se preocupar com isso; sabia que era pouco provável engravidar nessas circunstâncias, mas já desmamara Jonayla há alguns anos. Preparar a infusão de ervas anticoncetivas era um hábito, mas ultimamente descuidara-se. Esquecera-se umas quantas vezes; contudo, estava convencida de que não se iniciaria nenhuma nova vida sem um homem, e como passava as noites no cimo da parede rochosa, não dividira prazeres com Jondalar assim tantas vezes, por isso não estava preocupada.

Como acólita, a sua formação exigira-lhe um grande esforço: períodos de jejum, privação do sono e outras restrições às suas atividades, incluindo a abstinência dos prazeres durante um tempo. Todavia, o rigoroso treino estava quase a terminar. O ano de estudo do céu culminaria em breve, com a chegada do Dia Longo de verão. Então seria considerada uma acólita de pleno direito. Era já uma curandeira experimentada, mas nunca deixaria de aprender.

Depois, a qualquer momento, podia transformar-se em Zelandoni, embora não soubesse muito bem como. Devia sentir o “chamamento”, um misterioso processo que ninguém sabia explicar, mas pelo qual todos os zelandonia haviam passado. Quando um acólito declarava que ouvira o “chamamento”, o aspirante a donier era submetido a um interrogatório pelos outros zelandonia, que aceitavam ou recusavam a sua afirmação.

Ayla sorriu para a Zelandoni.

- É possível que esteja à espera de outra.

Falavam de crianças, embora o tema tivesse sido iniciado pela Primeira.

- Já suspeitava. Não que estejas mais gorda, mas noto-te um pouco mais cheia em algumas partes. Há quantas luas não te vem?

- Apenas uma, deveria ter vindo há uns dias. E ainda não tenho náuseas, mas sinto-me um pouco enjoada de manhã- explicou Ayla.

- Se queres saber a minha opinião, juraria que vais ter outro filho. Estás contente? - perguntou a Zelandoni.

- Sim, muito. Quero outro, embora mal tenha tempo para me ocupar da que já tenho. Fico satisfeita por Jondalar ser tão bom com a Jonayla.

- Já lhe contaste?

- Não, creio que ainda é cedo. Nunca se sabe, às vezes acontecem coisas. Sei que gostaria de ter outro filho no seu lar, e não quero que se encha de expectativas e depois apanhe uma desilusão.

Todos os habitantes da Nona Caverna se encontravam numa agitação expectante. No dia seguinte partiriam para a Reunião de verão e estavam ocupados a preparar o equipamento. Ayla ajudava Jondalar e Jonayla com a carga, dizendo o que deixar e o que levar, em parte porque desejava passar mais tempo com eles. Marthona também estava ali. Era a primeira vez que não ia com a sua caverna a uma Reunião de verão; já mal conseguia caminhar. Desejava estar presente enquanto aprontavam o equipamento para não se sentir excluída por completo. Ayla lamentava não poder ir à reunião, mas Marthona preocupava-a e gostava de ficar ali para cuidar dela.

Na manhã seguinte, Ayla acompanhou a Nona Caverna durante parte do caminho, a cavalo em Whinney.

- Quando achas que poderás reunir-te connosco? - quis saber Jondalar.

- Só depois do Dia Longo de verão, mas não sei exatamente quando- respondeu Ayla. - Estou um pouco preocupada com Marthona. Dependerá de como se encontre.

- Tentarei visitar-te, mas vou estar ocupado. Tenho de pensar na ampliação da nossa morada para que Marthona e Willamar possam vir viver connosco no outono.

Ayla voltou-se para a filha e ambas despediram-se com um abraço.

- Porta-te bem, Jonayla. Cuida de Jondalar e ajuda Proleva- instou.

- Assim farei, mãe.

Nesse ano, a Reunião de verão celebrava-se no mesmo sítio onde Ayla participara pela primeira vez. Gostara do lugar e esperava que Joharran escolhesse o mesmo local onde a Nona Caverna acampara. Seguiu os seus com os olhos durante um bocado, até que por fim obrigou Whinney a voltar e fez um sinal a Lobo, e juntos regressaram à Nona Caverna.

Ayla pedira a Marthona que se mudasse para o seu refúgio. Desejava estar próxima da mãe de Jondalar caso necessitasse de ajuda, sobretudo durante a noite, e a mulher concordara de imediato. Como Willamar e ela tinham previsto instalar-se com eles no outono, isso permitia-lhe decidir que coisas guardar e quais dar, já que não podia guardar tudo num alojamento mais reduzido. Conversaram durante algum tempo e Marthona ficou feliz ao saber que Ayla estava novamente grávida.

Grande parte do tempo, Ayla não se afastava do refúgio. Aqueles que permaneciam ali repartiam a refeição da noite. Quando se juntavam todos em redor da fogueira, aquele amplo espaço já não parecia tão vazio. Os anciãos e os doentes alegravam-se com a presença de uma curandeira que cuidava deles. Isso proporcionava-lhes uma sensação de segurança pouco habitual.

Ayla organizou uma rotina. Levantava-se de manhã e à tarde ia visitar toda a gente, escutava as suas queixas, administrava ou preparava cataplasmas, ou fazia o que fosse necessário para aliviar as suas dores. Isso ajudava-a a passar o tempo. Todos estabeleceram uma relação mais estreita. Ayla falava ainda com o seu peculiar sotaque, mas eles já estavam acostumados e, na realidade, nem notavam. De facto, isso conferia-lhe um certo ar de mistério e de exotismo. Haviam-na aceitado plenamente como um deles, mas adoravam contar aos outros histórias sobre Ayla, por ser tão pouco comum, e assim eles, por associação, sentiam-se também especiais.

Todas as noites antes de o Sol se pôr, Ayla subia ao alto da parede rochosa e registava o seu posicionamento. Agora tinha o costume de deixar Lobo com Marthona depois de lhe ensinar como mandar o animal buscá-la se necessitasse de ajuda. Ayla observava o deslocamento diário quase impercetível do Sol, que cada noite se ocultava um pouco mais à direita no horizonte de poente.

Na realidade, até a Zelandoni a incumbir daquela tarefa, nunca prestara grande atenção a esse tipo de movimentos celestes. Fixara apenas que o Sol nascia algures a este e se punha a oeste, e que a Lua atravessava fases desde que estava cheia até que escurecia, voltando depois a encher-se.

Agora sabia muito mais.

 

Mal pôde esperar que Marthona acordasse na manhã seguinte para lhe anunciar que parecia que chegara o Dia Longo de verão. A mulher reagiu com sentimentos contraditórios. Alegrou-se por Ayla, mas também sabia que ela não tardaria a partir para a Reunião de verão, e ficaria sozinha. Não sozinha na realidade, como bem sabia; os outros continuariam ali. Mas Ayla fora uma companhia extraordinária.

Dava a impressão de que o deslocamento do Sol tinha parado, que se punha quase no mesmo ponto durante sete dias, mas só em três teve a certeza de que assim era. Pareceu-lhe observar um certo movimento nos dois anteriores e nos dois posteriores, embora menos do que o habitual, e logo, para seu espanto, viu que o lugar onde o Sol se punha tinha sem dúvida invertido a direção. Foi apaixonante dar-se conta dessa mudança de sentido, e perceber que continuaria a recuar até chegar o Dia Curto de inverno.

Esse Dia Longo de verão era vital para Ayla. Tinha-o visto e verificado ela mesma, e experimentava uma sensação de sucesso e alívio. Também significava que o seu ano de observação se concluíra e pensava já em partir para a Reunião de verão.

Na noite seguinte, depois de comprovar que o Sol invertera o sentido de deslocamento, Ayla sentia-se inquieta no alto da parede rochosa. Passara o dia nervosa e pensou que talvez se devesse à gravidez. Tentou acalmar-se e, para isso, começou a repetir as estrofes do Cântico à Mãe. Continuava a ser o seu preferido, contudo, a sua tensão aumentava enquanto sussurrava os versos.

Decidiu preparar uma infusão, algo suave que a ajudasse a relaxar. Deitando umas quantas ervas na palma da mão, acrescentou-as à água fumegante e, depois de esperar um pouco, serviu um copo. Bebeu-o todo, em parte porque tinha sede, e depois encheu mais um para ir beberricando. Tentou controlar a respiração, mas deu por si a olhar para a Lua e sentiu-se a ser puxada para ela, cada vez mais depressa. Desviou o olhar e levantou-se. A pedra em frente parecia brilhar! “Não, é só o luar”, pensou. Fechou os olhos novamente. Quando voltou a abri-los, a Lua chamava-a. Olhou em redor e reparou que estava a voar! A voar sem vento nem som.

Ayla desatou a correr em direção ao Rio, sentia-se cheia de energia, e corria não apenas pelo prazer que sentia mas porque havia algo que exercia sobre ela uma estranha atração, que a puxava. Aproximava-se de um penhasco alto, familiar e ao mesmo tempo desconhecido. Subiu por um caminho inclinado e no cimo ficava o buraco negro de uma caverna. Correu para lá, para uma escuridão tão densa que quase conseguia senti-la com as mãos. Depois tropeçou no solo irregular e caiu no chão, batendo com a cabeça na parede de rocha.

Quando acordou, não havia luz; encontrava-se num túnel negro, mas estranhamente conseguia ver. A humidade brilhava. Quando se sentou, doía-lhe a cabeça e as paredes pareciam deslocar-se a grande velocidade. As paredes rochosas brilhavam com cores misteriosas: verdes fluorescentes, vermelhos incandescentes, azuis lustrosos, brancos pálidos. Levantou-se e aproximou-se da parede. Mas já não era uma parede, era uma fenda num glaciar, e o azul feria-lhe os olhos. Depois entrou num remoinho e ficou tudo negro. A escuridão envolvia-a, e estava novamente no rio e a corrente puxava-a. Estava exausta, o rio puxava-a na sua corrente e levava-a na direção do mar, o mar quente. Sentiu uma dor forte no ventre. Mas não era água, era lama, e Ayla estava de novo na caverna. Lutou para se libertar, rastejou, encostou-se à rocha húmida. As paredes respiravam, expandiam-se, contraíam-se, e percebeu que se encontrava num útero, um enorme útero negro nas profundezas da Terra. Mas não estava sozinha.

Via contornos imprecisos, transparentes; passado um momento, essas silhuetas fundiram-se até adquirirem formas reconhecíveis. Eram animais, todos os animais que vira na vida, e aves, e peixes, e insetos, e havia também alguns que não conhecia. Avançavam em procissão, sem ordem, fundindo-se em aparência com o seguinte. Depois escutou um som rítmico e percebeu que eram os tambores dos Mamutoi!

O instrumento, de osso de mamute, oferecia grande ressonância e diversidade tonal ao bater-se com uma baqueta de chifre; o rápido repicar em zonas diferentes produzia um som semelhante a uma voz a pronunciar palavras.

Sentada no interior da caverna, Ayla notou que tinha o rosto banhado em lágrimas. O som do tambor intensificou-se. Ayla reconheceu os sons, distinguiu as palavras.

No caos do tempo, na escuridão tenebrosa,

O remoinho deu à luz a Mãe gloriosa.

Despertou já consciente do grande valor da vida,

O escuro vazio era para a Grande Mãe uma ferida.

A Mãe sentia-se sozinha, mais ninguém tinha.

Era o Cântico à Mãe! Cantado como até então nunca o tinha ouvido.

A Mãe ficou satisfeita com o par que havia criado,

Ensinou-os a amar-se e a respeitar-se no lar formado.

E a desejar e a buscar sempre a mútua companhia,

Sem esquecer que o dom do prazer da Mãe provinha.

Antes do seu último estertor, os filhos conheciam o amor.

Mas quando Ayla já não previa mais nenhum verso, a voz continuou a cantar.

Anunciar que o homem participa, esse foi seu último ensejo:

Para se iniciar uma nova vida, ele deve ter desejo.

A Mãe sente-se honrada quando os vê fazer,

Porque a mulher concebe quando dividem o prazer.

Depois de os filhos abençoar. A Mãe pode descansar.

Os versos foram um dom, uma graça que lhe aliviou a dor. Com eles, a Mãe confirmava que estava certa, que sempre estivera. Ayla sabia-o desde o início e agora via-o corroborado. Soluçou de novo, ainda dorida, mas também satisfeita. Chorava de aflição e de felicidade enquanto as palavras se repetiam na sua mente, uma e outra vez.

Ayla saiu da caverna a cambalear. Lobo aproximou-se dela. Quando por fim conseguiu ver, ficou surpreendida por o Sol estar tão alto no céu. Havia várias pessoas que a observavam. Ajudaram-na a sentar-se e quando Ayla notou as suas expressões de preocupação, sentiu um grande alívio.

- Água- disse. - Sede.

- Aqui tens- disse Jeviva, uma das mulheres da Nona. Viu sangue entre as pernas de Ayla, mas não disse nada.

- Como sabiam onde eu estava? E que sairia? - perguntou Ayla.

- Vi o lobo correr para aqui- respondeu Forason, um dos caçadores que não tinham ido à Reunião de verão-, e quando o disse a Marthona, ela supôs que estivesses na caverna. Pediu-nos que ficássemos à tua espera.

- Já vi vários zelandonia regressarem do seu “chamamento”. Alguns estavam tão extenuados que nem conseguiam andar. Outros não regressaram- explicou Jeviva. - Como te sentes?

- Muito cansada- retorquiu Ayla. - E continuo com sede.

Ayla tentou levantar-se, mas foi assaltada por uma tontura. Por momentos ficou tudo escuro e caiu para trás. Lobo ganiu e lambeu-lhe a cara.

- Fica quieta- aconselhou o caçador mais velho. - Lorigan, é melhor fazermos uma padiola para a levarmos.

- Ayla? Ayla? Estás acordada?

Ayla abriu os olhos e viu que Marthona a olhava com preocupação.

- Como te sentes?

- Dói-me o corpo todo- respondeu, num sussurro rouco.

- Espero não te ter acordado. Ouvi-te falar. Se calhar sonhavas. A Zelandoni avisou-me que isto podia acontecer, embora não pensasse que fosse tão cedo. Disse-me que não te impedisse. Além disso, deu-me uma infusão para preparar quando regressasses. - Segurava um copo fumegante nas mãos e pousou-o para ajudar Ayla a sentar-se.

- Como cheguei aqui? - perguntou. - Não me lembro de nada desde que saí da caverna.

- Os caçadores trouxeram-te numa padiola. Disseram que tentaste andar e desmaiaste.

Ayla bebeu a infusão e voltou a fechar os olhos. Quando os abriu novamente, Lobo estava ao seu lado. Sorriu-lhe e estendeu o braço para lhe fazer uma festa na cabeça. Deixou escapar um gemido de dor.

- Ayla! O que se passa? - inquiriu Marthona.

- Não sabia que podiam doer-me tantas partes do corpo ao mesmo tempo- retorquiu Ayla.

- Estás cheia de arranhões e esfoladelas, mas creio que não tens nada partido- explicou Marthona.

- Dói-me o ventre- queixou-se Ayla.

- Imagino que sim- disse Marthona, e baixou a cabeça. - Estás a sangrar, Ayla. É provável que tenhas cãibras.

- Estou a sangrar? Mas como é isso possível? Há três luas que não sangro, estou grávida... Oh, não! - exclamou Ayla. - Perdi o bebé, não foi?

- Creio que sim, Ayla. Mas não sou perita nessas coisas. Qualquer mulher sabe que não pode estar grávida e sangrar ao mesmo tempo, pelo menos não tanto como tu. Vai demorar um bocadinho até recuperares as forças. Lamento, Ayla. Sei que desejavas esse filho- disse Marthona.

- A Mãe desejou-o mais do que eu- retorquiu Ayla, num tom seco causado pela tristeza. Voltou a deitar-se e fixou o olhar no teto de pedra. Adormeceu de novo sem se dar conta.

Quando acordou, sentia fome, e Marthona serviu-lhe um pouco de carne.

- Disseste que a Zelandoni previa já a possibilidade de eu fazer algo? - indagou Ayla.

- Na realidade não o previa. Apenas pensou que podia acontecer.

- E o que podia acontecer? Na verdade, não entendo o que se passou- disse Ayla.

- Creio que a Zelandoni poderá explicar-te melhor. Oxalá estivesse aqui, mas parece-me que já és Zelandoni, que recebeste o “chamamento”.

Durante vários dias, Ayla fez pouco mais do que dormir, até que uma manhã acordou famélica, e passou um par de dias com uma sensação de fome permanente. Quando por fim saiu do seu refúgio e se reuniu ao pequeno grupo, todos a olharam com renovado respeito, alguns até mesmo com assombro e uma certa apreensão. Sabiam que Ayla passara por uma dura prova e que isso a mudara.

Ayla sentiu vontade de nadar e dirigiu-se para o rio. Estava um belo dia de sol e estendeu a sua pele de camurça para secar enquanto se penteava. Pensou em Jondalar e sentiu crescer o seu desejo por ele. Nem sequer lhe dissera que esperava um filho; agora não tinha nenhum filho de que lhe falar. Sentiu uma pontada no peito. “Eu queria o bebé, mas a Mãe desejava-o mais”, pensou, franzindo o sobrolho. “Ela sabia que eu desejava outro filho, mas não creio que a Mãe quisesse levar um bebé que eu não desejasse.”

Pela primeira vez desde a sua dura prova, pensou no Cântico à Mãe e, com um calafrio de reconhecimento, recordou a estrofe, a estrofe nova, a que lhe proporcionou o novo dom, o dom do conhecimento, da sabedoria de que os homens eram necessários para dar início a uma nova vida.

Anunciar que o homem participa, esse foi seu último ensejo:

Para se iniciar uma nova vida, ele deve ter desejo.

A Mãe sente-se honrada quando os vê fazer,

Porque a mulher concebe quando dividem o prazer.

Depois de os filhos abençoar. A Mãe pode descansar.

“Já o sabia há muito tempo, e agora Ela confirmou-o. Porque me deu este dom? Para que o transmita aos outros? Por isso quis ficar com o meu filho! Comunicou-mo em primeiro lugar, comunicou-me o seu último grande dom, mas eu tinha de o merecer. O custo foi alto, talvez inevitável. A Mãe tinha de levar algo de muito valioso para que eu soubesse apreciar o dom. Não se concedem dons sem receber nada em troca.

“Terei recebido o chamamento? Serei já uma Zelandoni? Como entreguei o meu filho em sacrifício, a Grande Mãe falou-me e deu-me a conhecer o resto do Cântico para que eu o compartilhe, para que transmita este dom maravilhoso aos seus Filhos. Agora Jondalar saberá com certeza que Jonayla é tanto dele como minha. E saberemos como criar um novo bebé quando quisermos. Agora os homens saberão que fazem parte dos seus filhos, eles, a sua essência, não apenas o seu espírito.

“Mas, e se uma mulher não quer outro filho? Ou não deve ter outro porque está muito débil? Agora saberá como evitá-lo. Agora uma mulher saberá o que fazer para evitar uma gravidez se não estiver preparada. Já não necessita de o pedir à Mãe, nem precisa de tomar infusões, basta que deixe de partilhar prazeres para não conceber mais filhos. Pela primeira vez, uma mulher pode controlar o seu próprio corpo. Este é um conhecimento muito poderoso...

“Recebi o “chamamento”. Já sou Zelandoni! E devo dizê-lo ao resto dos zelandonia. A Mãe não só me chamou, como me concedeu um grande dom. Um dom para todos. Devo ir comunicar a todos os Zelandoni o novo e maravilhoso dom da Mãe. E dizê-lo a Jondalar, e talvez criar um novo filho.”

 

Ayla levantou-se rapidamente, vestiu roupa limpa e pegou na suja e na pele de camurça. Enquanto regressava a toda a pressa pelo caminho, chamou Lobo com um assobio. A mudança de roupa fê-la pensar no dia em que Marona e as suas amigas lhe ofereceram roupa nova. Não suportava aquela mulher e não fazia ideia do que a levara a pensar nela. Tirou Marona da cabeça e concentrou-se em Jondalar. “Que bom poder ir à Reunião de verão”, cogitou. “Levo Whinney e não demorarei mais do que um dia, se não parar no caminho.”

A jovem entrou no seu refúgio cheia de vigor e entusiasmo e começou a escolher as roupas e os pertences que iria levar. Cantarolava quando Marthona chegou.

- Estás muito animada- comentou a mulher mais velha.

- Vou à Reunião de verão. Já completei o meu treino e não há qualquer razão para não ir- retorquiu Ayla.

- De certeza que te sentes com forças? - Na voz de Marthona notava-se um tom de pesar.

- Cuidaste bem de mim- disse Ayla. - Sinto-me bem e tenho muitas saudades de Jondalar e de Jonayla.

Depois das despedidas e das instruções de última hora a Jeviva, Jeralda e a Marthona, Ayla partiu. Gostava de viajar sozinha montada em Whinney, com Lobo a correr ao lado, e os animais também pareciam gostar.

Cavalgou até ao pôr do Sol; depois parou e acampou junto ao Rio. Ao deitar-se sozinha na pequena tenda, pensou de novo em Jondalar. Meteu-se entre as peles e fechou os olhos, imaginando o homem alto de espetaculares olhos azuis, desejando que estivesse ali, desejando sentir o contacto do seu corpo, dos seus lábios.

De manhã, comeu um bolo de viagem e pôs-se a caminho. Foi direita ao pequeno vale rodeado de árvores. Ao ver o simples curral de madeira, sorriu. Os cavalos saudaram-na com um relincho. Alguns dos membros da Nona Caverna tinham-na visto chegar e antes que conseguisse descarregar já estava rodeada de amigos e parentes que a queriam saudar. Joharran foi o primeiro e Proleva vinha logo atrás. Perguntaram pela saúde dos que tinham ficado para trás e alegraram-se com as notícias.

- Mãe! Mãe! Vieste! Por fim vieste! - exclamou uma voz infantil.

Virou-se e sorriu, e iluminaram-se-lhe os olhos quando estendeu os braços para a menina que corria para ela.

- Tive tantas saudades tuas- disse Ayla, abraçando-a.

A Zelandoni seguira a menina, a um passo mais lento, e sorriu afetuosamente para Ayla quando se aproximou. Depois de a saudar com um abraço, perguntou-lhe:

- Terminaste a observação?

- Sim. Foi apaixonante ver o Sol deter-se e voltar para trás, e marquei-o- explicou Ayla.

A Zelandoni observou atentamente a jovem. Notava algo diferente nela: Ayla tinha mudado. Tentou identificar. “Perdeu peso. Terá estado doente? A gravidez já devia notar-se, mas tem a cintura estreita e os seios mais pequenos”, matutou. “Oh, Doni, já não está grávida. Por certo abortou.”

Mas notava-se algo mais, uma nova atitude, a aceitação da tragédia, uma segurança em si própria. Agora sabia quem era: era uma Zelandoni. Recebera o “chamamento”. Devia ter perdido o bebé nesse momento.

- Temos de falar, não é, Ayla? - perguntou a Zelandoni Que Era a Primeira, pronunciando o seu nome com ênfase. Podia chamar-se Ayla, mas já não era Ayla.

- Sim- respondeu a jovem. Não teve de dizer mais nada. Supôs que a Primeira entendia.

- Deveria ser o quanto antes.

- Sim.

- E... Ayla, lamento. Sei que desejavas esse filho- disse em voz baixa.

Quase todos os seus amigos íntimos e familiares vieram ao acampamento saudá-la. Toda a gente parecia estar presente, exceto Jondalar, e ninguém sabia onde se encontrava.

Jonayla abalou com a Zelandoni e Lobo para regressar ao espaço dos zelandonia e ultimar os pormenores da noite especial que tinham planeado. Ayla decidiu que, depois da cavalgada e da poeira, lhe saberia bem tomar um banho e nadar um pouco.

Quando se aproximou da margem do rio, escutou um chapinhar e vozes, e por pouco não deu meia volta. “Parece que mais alguém encontrou este sítio”, pensou. “Não quero incomodar um par que deseja estar sozinho. Mas talvez seja um grupo de pessoas que veio nadar.” Quando se aproximou, ouviu uma voz feminina e em seguida a de um homem. Não distinguiu as palavras, mas algo nessa voz a inquietou.

Moveu-se discretamente. Ouviu de novo as vozes e depois uma risada. Conhecia aquele riso, embora há algum tempo não o escutasse. Depois chegou-lhe a voz da mulher e reconheceu-a. Experimentou uma estranha sensação na boca do estômago quando espreitou por entre os arbustos que bordeavam a pequena praia.

 

Jondalar e Marona saíram da água quando Ayla espreitou por entre os arbustos. Com uma pontada de angústia, viu Marona voltar-se para Jondalar, rodeá-lo com os braços e apertar o seu corpo desnudo contra o dele, para depois o beijar. Jondalar baixou a cabeça para receber os seus lábios. Com horror, Ayla observou as suas mãos enquanto lhe acariciava o corpo. Quantas vezes sentira ela o contacto daquelas mãos hábeis?

Ayla desejou largar a correr, mas não conseguia mexer-se. Foi um suplício vê-lo com ela. Mal respirava, sentia uma dor no estômago e um latejar na cabeça. Nunca antes se sentira assim. Encheram-se-lhe os olhos de lágrimas. Não aguentava, tinha de sair dali. Virou-se e começou a correr às cegas pelo arvoredo, mas tropeçou numa raíz e caiu.

- Quem está aí? - Era a voz de Jondalar. Ayla apressou-se a levantar-se e começou de novo a correr. - Ayla? Ayla! - exclamou, atónito. - O que fazes aqui?

Ela deu meia volta e reparou que ele a seguia.

- Não queria incomodar- disse Ayla, tentando recuperar a compostura. - Tens o direito de te deitares com quem quiseres, Jondalar. Até com Marona.

Marona atravessou a cortina de arbustos e colocou-se junto de Jondalar.

- É isso mesmo, Ayla- confirmou ela, lançando uma gargalhada exultante. - Ele pode deitar-se com quem quiser. O que esperavas de um homem cuja companheira está demasiado ocupada para ele? Deitámo-nos muitas vezes, e não apenas este verão. Porque achas que voltei para a Nona Caverna? Ele não queria dizer-te, mas agora que descobriste, mais vale que saibas de tudo.

Ayla reuniu toda a dignidade de que foi capaz e afastou-se apressadamente.

Jondalar seguiu-a.

- Ayla, espera, por favor! Deixa-me explicar!

- Não há nada para explicar. Marona tem razão. Como podia eu esperar outra coisa? Estavas ocupado, Jondalar. - Retomou a marcha. - De certeza que Marona conseguirá excitar-te outra vez.

- Não quero a Marona, não se posso ter-te a ti, Ayla- argumentou Jondalar, temendo perdê-la.

Marona fitou-o surpreendida. Compreendeu que não significava nada para ele. Oferecera-se de bandeja e ele considerara-a uma maneira fácil de aliviar os seus impulsos. Fitou-os aos dois com ira, mas Jondalar nem se deu conta.

- Deverias alegrar-te por ela estar disposta a satisfazer as tuas necessidades, Jondalar- disse Ayla, ainda dorida, mas tentando escondê-lo. - A partir de agora estarei mais ocupada. Recebi o “chamamento”. Farei o que Ela deseja. Serei como uma filha da Grande Mãe Terra. Sou uma Zelandoni.

- Recebeste o “chamamento”? Quando, Ayla? - perguntou ele, com inquietude na voz. Havia visto alguns zelandonia regressarem do seu chamamento e sabia que outros nem sequer voltavam. - Eu deveria ter estado presente, podia ajudar-te.

- Não, Jondalar. Ninguém pode. E uma coisa que tem de se enfrentar sozinho. Sobrevivi, e a Mãe deu-me um grande dom, mas em troca tive de me sacrificar. Ela queria o nosso filho, Jondalar. Perdi-o na caverna- anunciou Ayla, com toda a dignidade possível.

- O nosso filho? Que filho? Jonayla estava comigo.

- O filho que foi gerado quando desci da parede rochosa antes do tempo. Suponho que devo considerar uma sorte naquela hora não estares com Marona, ou não teria tido o filho para oferecer em sacrifício- disse Ayla, com profunda amargura.

- Estavas grávida quando recebeste o “chamamento”? Oh, Grande Mãe! - Começava a ser invadido pelo pânico. Não queria deixá-la ir-se embora assim. - Ayla, já sei que acreditas que é assim que começa uma nova vida, mas não podes ter a certeza.

- Sim, Jondalar, tenho. Foi a Grande Mãe que me disse. Esse foi o dom que obtive em troca da vida do meu filho. - Afirmou-o com uma certeza tão grande que não havia lugar para dúvidas. – Pensava que podíamos dar início a outra, mas vejo que estás demasiado ocupado para mim.

Ela afastou-se e Jondalar permaneceu ali, imóvel, estupefacto.

- Oh, Doni, Grande Mãe, o que foi que eu fiz? - gritou Jondalar, angustiado.

Recordou a amarga dor e a desolação que sentira quando ela escolhera Ranec. “Sei como deve ter-se sentido ao ver-me com Marona”, pensou. “Tal como me senti quando Ranec a convidou para a sua cama e ela aceitou, mas ela nessa altura não sabia. Pensava que devia ir com ele. Como me sentiria agora se ela escolhesse outro?”

Ayla correu como uma louca. Como podia voltar para o acampamento e enfrentar toda a gente? Precisava de ficar sozinha. Parou no cercado dos cavalos e deixou sair Whinney. Colocou-lhe a manta e montou. Depois saiu a galope em direção à pradaria.

Já escurecia quando regressou.

- Ayla, andava toda a gente à tua procura- disse Proleva. - Jonayla também.

- Fui montar- respondeu Ayla.

- Jondalar já apareceu- informou Joharran. - Disse-lhe que andavas atrás dele, mas murmurou umas incoerências.

Ayla tinha os olhos vidrados ao entrar no acampamento. Passou junto à Zelandoni e nem sequer a viu. Para a Zelandoni era evidente que Ayla tinha a cabeça noutro lado e que algo se passava. Observou-a atentamente e viu algo mais do que o sofrimento resultante da caverna. Viu dor, a dor aguda e arrepiante dos ciúmes, juntamente com todos os sentimentos que os acompanhavam: traição, ira, dúvida e medo. “Ama-o demasiado, o que não é difícil”, recordou a mulher que outrora se chamara Zolena. Nos últimos anos, a Primeira perguntara-se como podia uma mulher que amava tanto um homem ser também Zelandoni, mas Ayla possuía um talento extraordinário, e isso, apesar do seu amor por aquele homem, não podia ser ignorado. E os sentimentos dele para com ela eram ainda mais profundos.

Mas, por muito que a amasse, Jondalar era um homem com impulsos poderosos. E era-lhe difícil permanecer indiferente a eles, sobretudo porque não estavam sujeitos às restrições sociais, e uma pessoa que o conhecia tão intimamente como Marona era capaz de empregar todas as suas artes para o incitar. Era mais fácil cair no costume de a procurar a ela do que incomodar Ayla quando estava ocupada.

A Zelandoni sabia que Jondalar não comentara nada com Ayla acerca da sua relação, e as restantes pessoas amigas haviam tentado protegê-la. Confiavam que Ayla nunca descobrisse, mas, como a Donier sabia, essa era uma esperança vã. O próprio Jondalar deveria sabê-lo.

Ayla aprendera bem os costumes dos Zelandoni, não nascera neles, mas não lhe eram naturais. A Zelandoni quase desejou que a Reunião de verão terminasse logo. Observando a jovem, tentou discernir o alcance da sua dor depois de descobrir os encontros entre Jondalar e Marona, e deduzir os efeitos que poderia ter.

Ayla sabia que os Zelandoni não aprovavam os ciúmes, embora ignorasse que a conduta que os provocava era ainda menos aceitável. As pessoas reconheciam a existência dos ciúmes e entendiam bem as suas causas e, sobretudo, os seus efeitos por vezes danosos. Mas numa terra dura, afetada por longos invernos glaciais, a sobrevivência dependia da cooperação e das ajudas mútuas. As restrições tácitas sobre qualquer conduta capaz de minar a boa vontade necessária para preservar a unanimidade e o bom entendimento viam-se muito reforçadas pelos costumes sociais.

Embora as famílias se iniciassem com um homem e uma mulher, podiam ampliar-se de muitas maneiras. Não incluíam apenas os avós, os tios e os primos; sempre e quando todos os implicados estivessem de acordo, uma mulher podia escolher mais do que um homem, um homem podia eleger duas ou mais mulheres, e ainda havia o caso dos pares múltiplos. A única proibição era a união entre membros próximos da mesma família. Desaprovavam-se outras relações, se bem que não estavam expressamente proibidas, como a de um jovem com a sua mulher-doni.

Uma vez constituída a família, desenrolavam-se costumes e práticas para propiciar a sua continuidade. Os ciúmes não contribuíam para consolidar os vínculos a longo prazo e estabeleciam-se diversas medidas para conter os seus efeitos prejudiciais.

Ayla conteve as lágrimas. “Não chorarei”, pensou. Aprendera a reprimir o choro fazia muito tempo, quando vivia com o Clã. “Ninguém saberá como me sinto”, disse para si. “Atuarei como se nada se tivesse passado. Visitarei os meus amigos. Participarei nas atividades e nas reuniões com os demais acólitos. Farei tudo o que devo fazer.”

Os que dividiam a tenda com eles deram-se conta de que algo se passara entre Jondalar e Ayla.

Quando Ayla se levantou, no exterior, várias pessoas tomavam a refeição da manhã sentadas em redor da fogueira. Ainda era cedo. Ayla juntou-se ao grupo.

- Proleva, sabes onde está Jonayla? - indagou Ayla.

- Jonayla foi ver Levela. Tem passado muito tempo lá, e Levela adora-a- explicou Proleva. - A Zelandoni pediu-me que te dissesse que quer ver-te o quanto antes e que estará disponível toda a manhã.

- Irei depois de comer, e de caminho passarei a cumprimentar Marsheval e Levela- disse Ayla.

- Vão ficar muito contentes- declarou Proleva.

 

A Zelandoni e Ayla estavam sentadas na grande estrutura que a zelandonia utilizava para várias atividades.

Vários zelandonia haviam entrado no refúgio enquanto elas falavam, incluídos os chegados do Sul, que ainda permaneciam ali. Sentiam curiosidade e fascínio pelas semelhanças e diferenças que a distância criara entre eles. Conversaram com naturalidade até que todos estivessem presentes, e então a corpulenta mulher levantou-se, foi à entrada e falou com um par de zelandonia recém-iniciados que montavam guarda frente ao alojamento para que ninguém se aproximasse com a intenção de escutar.

A Zelandoni fechou a cortina da entrada e atou-a. Depois sentou-se num tamborete alto no centro do grupo.

- A decisão é tua, Ayla. Queres submeter-te primeiro a um interrogatório informal? Ou preferes uma prova formal completa? - indagou a Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Grande Mãe Terra.

Ayla fechou os olhos e baixou a cabeça.

- Se falarmos de maneira informal, depois terei de repetir tudo, não é? - quis saber.

- Sim, é isso mesmo.

Pensou no filho que perdera, e sentiu uma pontada de dor. A verdade era que não queria falar disso.

- Foi... duro- declarou. - Não quero falar disso uma e outra vez. Creio que recebi o chamamento. Se não, estou tão interessada em sabê-lo quanto vocês. Podemos continuar?

A Que Era a Primeira tirou de uma tigela uma pitada considerável de uma planta verde seca e pulverizada e deitou-a na água a ferver, depois acrescentou mais três pitadas. Para Ayla, o odor um tanto desagradável que emanou juntamente com o vapor de água era familiar. A erva era estramónio e era não só utilizada por Iza, a curandeira do

Clã, como também pelos Mog-urs nas cerimónias especiais. Ayla conhecia bem os seus efeitos. Sabia que não abundava nas imediações e devia ser proveniente de algum lugar afastado, o que o convertia em algo pouco comum e valioso.

- Como se chama isso em zelandoni? - perguntou Ayla, apontando para a matéria vegetal seca.

- Não tem nome em zelandoni. Chamamos-lhe simplesmente infusão de sudeste. - Foi-me dada pelas doniers da Caverna do Sul que vieram de visita, a Vigésima Quarta; em concreto, a pessoa que te deu as ervas que tínhamos pensado experimentar juntas. Nem sequer sei como é esta planta, ou se é mais do que uma- explicou a Primeira.

Ayla sorriu.

- Eu sei. É uma das primeiras plantas que Iza me mostrou. Já ouvi chamar-lhe várias coisas, estramónio, figueira-do-diabo... Os Mamutoi usam um termo que pode traduzir-se como “maçã espinhosa”. É alta, bastante áspera, com folhas grandes de odor intenso. Tem umas flores enormes brancas e um fruto redondo com espinhos. Todas as partes da planta são úteis, incluindo as raízes. Mal utilizada, pode induzir as pessoas a comportar-se de maneira estranha, e pode até ser venenosa com efeitos mortais.

Os zelandonia reunidos ficaram muito interessados, sobretudo os visitantes. Surpreendia-os que a jovem que haviam conhecido no início do verão soubesse tanto.

- Já a viste por aqui? - perguntou o Zelandoni da Décima Primeira.

- Não- respondeu Ayla-, e já procurei. Trazia um pouco quando cheguei, mas acabou-se e gostaria de a repor. É muito útil.

- E que utilização lhe dás? - quis saber a Donier visitante.

- É soporífera; preparada de determinada maneira, pode servir de anestésico, e de outra forma, ajuda as pessoas a relaxar. Mas pode ser muito perigosa. Os Mog-urs do Clã usavam-na em cerimónias sagradas- explicou Ayla.

- Creio que devemos deixar essas perguntas para outra altura- interrompeu a Primeira. - Estamos aqui com outro fim.

A Primeira encheu um copo com aquele líquido em ebulição e deixou-o arrefecer. Quando achou que já se podia beber, entregou-o a Ayla.

- Esta prova podia realizar-se sem a bebida, recorrendo à meditação, mas levaria mais tempo- explicou a Zelandoni.

Ayla bebeu a tisana, adotou a postura mais propícia para a meditação e esperou. Os efeitos eram subtis. Não se deu conta quando a sua mente começou a vagar e quase se assustou ao perceber que a Primeira lhe falava em voz baixa e suave.

- Tens sono, Ayla? Melhor assim. Relaxa, deixa-te levar. Tens muito sono. Esvazia a mente e descansa. Não penses em nada, escuta apenas a minha voz. Só a minha voz- disse a Zelandoni num tom monótono. - E agora diz-me, Ayla, onde estavas quando decidiste entrar na caverna?

- No alto da parede de rocha- começou Ayla, e depois calou-

-se.

- Continua, Ayla. Demora o tempo que precisares. Podes contar tudo à tua maneira. Não há pressa.

Ayla assim fez e os zelandonia ali reunidos escutaram fascinados. Quando terminou, a Primeira deu-lhe mais chá e Ayla levantou-se para aliviar a bexiga.

- Creio que devemos deixá-la descansar- Ayla escutou a Primeira dizer aos outros. - Passou um mau bocado, mas penso que não há dúvidas de que será a próxima.

- Acho que tens razão- ouviu outra voz concordar.

O que queriam eles dizer. Não sabia se gostava de os ouvir falar na “próxima Primeira”.

Quando regressou, a Zelandoni da Nona Caverna disse:

- Gostaríamos de te fazer umas perguntas. Sentes-te com forças para responder, ou queres descansar mais um pouco?

- Posso responder, mas primeiro gostaria de beber qualquer coisa. Tenho a boca seca- disse Ayla. Alguém encheu-lhe novamente o copo.

- Creio que a pergunta mais importante é a que temos estado todos a evitar- disse a Primeira. - O Cântico à Mãe. Podias recitá-lo, Ayla? Não todo, apenas a última parte.

Ayla anuiu, fechou os olhos e começou:

Anunciar que o homem participa, esse foi seu último ensejo:

Para se iniciar uma nova vida, ele deve ter desejo.

A Mãe sente-se honrada quando os vê fazer,

Porque a mulher concebe quando dividem o prazer.

Depois de os filhos abençoar. A Mãe pode descansar.

Quando acabou, instalou-se um silêncio incómodo. Ninguém sabia o que dizer. Por fim, falou a Zelandoni da Décima Quarta Caverna.

- Nunca tinha ouvido essa estrofe.

- Eu também não- disse a Primeira. - Mas o mais importante é perceber o seu significado.

- E qual pensas tu que é? - indagou a Décima Quarta.

- Para mim, isso significa que a nova vida não é criada só pela mulher- respondeu a Primeira.

- Não, claro que não. Sempre soubemos que o espírito de um homem se mistura com o de uma mulher para criar uma nova vida- argumentou a Décima Primeira.

Ayla interveio.

- A estrofe não menciona nenhum espírito. Diz que a mulher concebe quando divide o prazer- explicou. - Uma criança é tanto de um homem como de uma mulher, filha tanto do corpo dele como do corpo dela. E a união do homem com a mulher que dá início a uma nova vida.

- Queres dizer que a união não é apenas pelos prazeres? - perguntou o Zelandoni da Terceira Caverna, com um tom de incredulidade.

- Ninguém põe em dúvida que a união é um prazer- disse a Primeira, com um sorriso irónico. - Na minha opinião, significa que o dom de Doni vai mais além do dom do prazer. E um dom da vida. Parece-me que é isso que significa a estrofe. A Grande Mãe não criou os homens só para partilharem prazeres com as mulheres e para as proverem e aos filhos. Uma mulher é abençoada pela Doni porque traz uma nova vida, mas também o homem é abençoado. Sem ele não pode iniciar-se uma nova vida. Sem os homens e sem os prazeres, a vida deixaria de existir.

Escutaram-se vozes agitadas.

- De certeza que existem outras interpretações- disse a Zelandoni visitante. - Isso parece-me um tanto excessivo.

- Dá-me tu outra- contrapôs a Primeira. - Ouviste as palavras. Qual é a tua explicação?

Hesitante, a Zelandoni ficou em silêncio por momentos.

- Teria de pensar. Algo assim exige um tempo de reflexão.

- Podes pensar durante um dia ou durante um ano, que a interpretação não mudará. Ayla recebeu um dom juntamente com o seu chamamento. Foi escolhida para nos trazer este novo dom do conhecimento da vida concedido pela Mãe- disse a Que Era a Primeira.

Novo alvoroço de vozes.

- Mas os dons são sempre fruto de um intercâmbio. Ninguém recebe um dom sem a obrigação de entregar algo em troca, de igual valor- disse o Zelandoni da Segunda Caverna. Era a primeira vez que intervinha. - Que dom de igual valor pode Ayla dar à Mãe?

Fez-se silêncio e todos olharam para Ayla.

- Dei-lhe o meu filho- respondeu ela. - Era um filho que eu desejava, que desejava tanto que não conseguia expressá-lo por palavras.

- De certeza que estavas grávida? - indagou a Décima Primeira.

- Não sangrei durante três luas e tinha todos os sintomas- respondeu Ayla.

- E eu confirmo- corroborou a Primeira. - Sabia que ela estava grávida quando parti para a Reunião de verão.

- Lamento- disse o Zelandoni da Segunda Caverna. - Perder um filho pode ser uma coisa terrível. - Pronunciou aquelas palavras com uma convicção que não passou despercebida a Ayla

- Se não há objeções, creio que chegou o momento da cerimónia- anunciou Aquela Que Era a Primeira. Todos expressaram a sua concordância. - Estás pronta, Ayla?

A jovem enrugou a testa e olhou em redor. Pronta para quê? Parecia-lhe tudo muito repentino. A Donier percebeu a sua angústia.

- Disseste que querias realizar a prova formal. Isso significa que, se os zelandonia dão a sua aprovação, passas ao nível seguinte. Deixas de ser acólita, sais daqui Zelandoni- explicou a Primeira.

- Queres dizer agora mesmo? - inquiriu Ayla.

- Sim, com a primeira marca de aceitação- respondeu a Primeira ao mesmo tempo que pegava numa afiada faca de sílex.

 

Celebraremos uma cerimónia mais pública quando te apresentar-mos como Zelandoni, mas as marcas fazem-se no momento da aceitação, em privado- explicou a Zelandoni Que Era a Primeira. Depois perguntou:

- Estás pronta?

- Sim- respondeu, confiando que assim fosse.

A Primeira olhou para os que ali estavam reunidos e começou.

- Esta mulher está plenamente preparada para levar a cabo todos os deveres da zelandonia, e é a Primeira Entre Aqueles Que A Servem quem garante os seus conhecimentos.

Todos acenaram afirmativamente com a cabeça.

- Recebeu o chamamento e foi posta à prova. Há alguém entre nós que duvide do seu chamamento? - perguntou a Zelandoni.

Ninguém disse nada. Não havia a menor dúvida.

- Todos aceitam esta mulher como Zelandoni entre os zelandonia?

- Aceitamos! - Foi a resposta unânime.

A Zelandoni Que Era a Primeira virou-se para a jovem e elevou a afiada lâmina de sílex.

- A marca que vais receber nunca poderá ser eliminada. Anunciará a todos que reconheces e aceitas a função de Zelandoni. Estás pronta para assumir essa responsabilidade?

Ayla respirou fundo e, consciente do que a esperava, viu aproximar-se a mulher com a faca. Sentiu um pouco de medo, engoliu a saliva e fechou os olhos. Sabia que ia doer, mas não era esse o seu temor. Uma vez realizada a marca, não poderia voltar atrás. Aquela era a sua última oportunidade para mudar de ideias. Quantas marcas haviam sido feitas no seu corpo ao longo da vida?

Fitou a corpulenta mulher nos olhos.

- Aceito! Serei Zelandoni- afirmou Ayla, procurando falar com firmeza e convicção.

- Ai! - gritou sem querer ao sentir o corte rápido de uma lâmina afiada.

No segundo corte, e depois no terceiro, esforçou-se por conter as exclamações.

- Já podes abrir os olhos, Ayla. Está terminado- disse a Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Grande Mãe Terra.

Ayla abriu os olhos e viu uma imagem que apenas reconheceu. Levou um momento a compreender o que via. Para que se visse, alguém segurava uma candeia acesa e um refletor. Raras vezes usava refletores, nem sequer tinha um no refúgio, e ficava sempre surpreendida ao ver a sua própria cara. As marcas na frente captaram de imediato a sua atenção.

Na parte da frente da têmpora direita tinha uma linha horizontal com dois traços verticais nos dois extremos, mais ou menos do mesmo comprimento, como um quadrado sem linha superior ou uma caixa aberta. As três linhas eram negras, e ainda vertiam um pouco de sangue. Eram tão visíveis que pareciam eclipsar tudo o resto.

A Que Era a Primeira falou:

- Vieste de longe, pertenceste a muitos povos, mas os teus pés sempre te levaram pelo caminho da Grande Mãe Terra, que te escolheu. Era teu destino perder os teus em tão tenra idade e depois ser acolhida por uma curandeira e por um homem que viajava pelo mundo dos espíritos, pessoas a quem chamas o Clã. Quando Mamut dos Mamutoi te adotou no Lar do Mamute que honra a Mãe, quem guiou os teus passos foi Aquela da Qual Tudo Nasceu. O teu destino sempre foi servi-la.

“Ayla da Nona Caverna dos Zelandoni, unida a Jondalar da Nona Caverna, filho de Marthona, antiga líder da Nona Caverna dos Zelandoni; mãe de Jonayla, abençoada de Doni, da Nona Caverna dos Zelandoni, que nasceu no lar de Jondalar; Ayla dos Mamutoi, membro do Acampamento do Leão dos caçadores de mamutes que vivem a leste. Filha do Lar de Mamut, a zelandonia dos Mamutoi; Ayla, escolhida pelo Espírito do Leão das Cavernas e Protegida pelo Urso das Cavernas do Clã, os teus nomes e laços são muitos. Agora já não precisas deles. O teu novo nome abarca-os a todos. O teu nome é uno com toda a criação da Mãe. O teu nome é Zelandoni!

- O teu nome é uno com toda a criação da Mãe. Bem-vinda, Zelandoni! - entoou em uníssono o grupo ali reunido.

- Vamos, recita connosco o Cântico à Mãe, Zelandoni da Nona Caverna- pediu a Primeira, e os presentes começaram a cantar em coro.

O grupo acabou de entoar o último verso e permaneceu em silêncio por momentos. Depois, relaxando, cada um pegou no seu copo e foi servir-se de uma infusão.

- Agora a questão é como anunciar aos Zelandoni o último dom- disse a Primeira enquanto se sentava.

As suas palavras provocaram um rebuliço.

- Anunciá-lo?

- Não podemos fazer isso!

- Seria demasiado para eles.

- Pensa no transtorno que provocaria.

A Primeira esperou que a comoção acalmasse e depois lançou um olhar feroz aos zelandonia.

- Acreditam que Doni nos deu a conhecer este dom para vocês o esconderem dos seus filhos? Acham que Ayla padeceu tais tormentos e sacrificou o seu filho para que os zelandonia tivessem um tema de conversa? Os zelandonia são Aqueles Que Servem a Mãe. Não nos compete dizer o que podem saber os Seus Filhos. A nossa função é decidir como anunciá-lo.

Seguiu-se um momento de silêncio e em seguida a Zelandoni da Décima Quarta Caverna disse:

- Levará algum tempo a preparar uma cerimónia adequada. Quiçá devêssemos esperar pelo ano que vem. A estação está a terminar e as pessoas preparam-se para regressar às suas cavernas.

- A cerimónia irá celebrar-se dentro de três dias, e o anúncio será feito por Ayla- declarou a Primeira, de maneira inequívoca.

- Foi Ayla quem recebeu o dom. Cabe-lhe transmiti-lo aos outros. Foi chamada este verão e enviada a esta reunião por esse motivo.

- A Primeira lançou um olhar severo aos outros doniers. Segundos depois, a sua expressão suavizou-se e adotou um tom mais lisonjeiro. - Não seria melhor resolver o assunto já? Com a estação tão perto do fim, não haverá tempo para que surjam complicações antes de partirmos, e podem ter a certeza de que isto acarretará consequências. Assim teremos todo o inverno para conseguir que as nossas cavernas se habituem à ideia. Quando chegar o próximo verão, não deverá haver já qualquer problema.

Os zelandonia começavam a fazer planos. “Ótimo”, pensou a Primeira enquanto escutava a conversa. “Começam a planear a cerimónia, ao invés de colocar objeções.”

- Podíamos ter tambores a acompanhar o Cântico à Mãe.

Conforme se expressavam novas sugestões para a sua participação na cerimónia e se via convertida cada vez mais no centro das atenções, Ayla pareceu ficar desconcertada, mas passado um momento já estava envolvida nos preparativos.

- Os dois jovens visitantes mamutoi, Danug e Druwez, sabem tocar tambor de tal maneira que soa como uma voz a falar. É um pouco inquietante, mas muito misterioso. Creio que seriam capazes de recitar a última estrofe com os tambores.

Quando a ideia da cerimónia começou a tomar forma, e a maioria dos zelandonia mostrava um claro interesse pelo acontecimento, a Zelandoni Que Era a Primeira saiu-lhes com outra surpresa.

Ao levantar-se para se servir de mais tisana, deixou cair um comentário com manifesta despreocupação:

- Imagino que também teremos de planear uma reunião de todo o acampamento uns dias depois da cerimónia para responder a todas as perguntas que forem surgindo. Nessa altura podemos anunciar o nome da relação entre um homem e os seus filhos e dizer-lhes que, daqui em diante, os homens darão o nome aos filhos varões.

A consternação entre os zelandonia foi imediata. Quase ninguém tivera tempo de pensar que mudanças traria esse novo conhecimento.

- Mas sempre foi a mãe a dar o nome aos seus filhos! - protestou um deles.

A Zelandoni notou uns quantos olhares penetrantes. Era isso que temia: alguns iam começar a pensar. Não era bom subestimar a zelandonia como grupo.

- Como vão os homens dar-se conta de que são essenciais se não lhes permitimos participar de alguma maneira? - indagou a Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Mãe.

- No Clã, os Mog-urs punham o nome tanto aos rapazes como às raparigas- mencionou Ayla. Toda a gente se calou e olhou para ela. - Eu fiquei muito contente por poder pôr o nome à minha filha. Senti-me importante.

- Creio que os homens sentirão o mesmo- assegurou a Primeira, agradecendo o apoio espontâneo de Ayla.

Os presentes reagiram com gestos e sons de aprovação. Ninguém pôs mais objeções.

- E o que dizias do nome da relação? Já pensaste em algum? - inquiriu a Zelandoni da Vigésima Nona.

- Tenho de meditar sobre isso, a ver se me ocorre uma palavra apropriada para as crianças se dirigirem aos homens que participaram no momento da sua criação e assim diferenciá-los dos outros homens. Quiçá todos devêssemos pensar nisso- retorquiu Aquela Que Era a Primeira.

Ainda antes de falar com Ayla, Aquela Que Era a Primeira suspeitava já da verdadeira causa da conceção. A convicção de Ayla, assim como as suas explicações, era o último dado que necessitava para ter a certeza, e acreditava que todos, as mulheres em particular, deviam saber como se iniciava uma nova vida.

O conhecimento era poder. Se uma mulher sabia o que levava um bebé a crescer dentro dela, podia adquirir controlo sobre a sua própria vida. Tinha escolha, ao invés de simplesmente descobrir que estava grávida. Se a causa de uma gravidez era o contacto com um homem, e não algo externo e que escapava ao controlo da mulher, esta podia decidir não ter um filho, negando-se a partilhar prazeres com um homem. Claro que nem sempre seria fácil para uma mulher dizer algo assim, e a Zelandoni não sabia muito bem como reagiriam os homens.

Embora, com toda a certeza, houvesse repercussões desconhecidas, tinha outro motivo para desejar que o seu povo soubesse que os filhos eram o resultado da união entre um homem e uma mulher, sendo esta a razão mais importante: era a verdade. E os homens também precisavam de a saber. Durante demasiado tempo havia-se considerado que o papel dos homens no processo de procriação era acessório. Era uma questão de justiça elementar que os homens soubessem que desempenhavam uma função essencial na criação da vida.     

Quando a Primeira considerou que tudo estava em marcha, anunciou:

- Já é tarde. Foi uma reunião muito longa. Creio que está na hora de terminar.

- Mãe! Mãe! Já voltaste? Proleva avisou-me que estavas aqui. Disseste que hoje íamos montar e fiquei à tua espera- disse Jonayla.

- Desculpa, Jonayla- pediu Ayla. - Não fazia ideia de que a reunião com os zelandonia ia demorar tanto.

- Não faz mal. Já sei como são os zelandonia. - Isso dói, mãe? - indagou Jonayla, apontando para as marcas.

Ayla ficou surpreendida que a sua filha tivesse notado.

- Já não. Esta marca tem um significado especial...

- Eu sei- disse a menina. - Significa que já és uma Zelandoni.

- E isso mesmo, Jonayla.

- Jondy disse que com a marca de Zelandoni já não terás de passar tanto tempo fora. Isso é verdade, mãe?

Ayla não se dera conta do muito que a filha sentira a sua falta, e foi invadida por uma profunda sensação de gratidão ao pensar que Jondalar estivera lá para cuidar dela e explicar-lhe as coisas. Abriu os braços para abraçar a filha.

- Sim, é verdade. Agora não ficarei longe tanto tempo.

Talvez Jondalar também tivesse sentido a sua falta, mas porque

tivera de recorrer a Marona? Assegurara que gostava dela, mesmo depois de os ter surpreendido juntos, mas se isso era verdade porque se mantinha afastado?

- Já quase me esquecia. Esta noite vamos visitar o acampamento dos Lanzadoni.

- Com Dalanar e Bokovan?

- Sim, e com Echozar e Joplaya, e com Jerika, e todos os outros.

- Jondy também vem?

- Não sei, mas não creio. Tinha de ir a outro sítio. - Ayla virou-se. Não queria que a filha a visse chorar.

 

- Mãe! Mãe! Thona chegou! A avó veio! - gritou Jonayla, entrando a correr no alojamento para dar a notícia e saindo

logo em seguida. Lobo entrou e saiu atrás dela.

Ayla deteve-se a pensar no número de dias que haviam passado desde que pedira que alguém fosse buscar Marthona. Somou-os tocando na perna com um dedo e contou até quatro. Como Ayla previra, Marthona tinha vontade de ir à Reunião de verão, e concordara de imediato assim que fora encontrada uma maneira de a transportar. Saiu do alojamento quando os quatro jovens quase todos da mesma altura puseram no chão a liteira que carregavam aos ombros e onde Marthona ia sentada. Dois eram aprendizes de Jondalar, e os outros dois eram amigos seus que rondavam por ali quando se pediram voluntários para carregar a liteira.

Quando os aprendizes de Jondalar meteram a padiola no alojamento, Ayla pensou que talvez ainda voltasse a precisar dos seus serviços.

- Hartaman, estariam dispostos a levar Marthona de um lado para o outro do acampamento caso fosse necessário? E possível que a caminhada daqui até ao alojamento dos zelandonia e para outros acampamentos seja demasiado para ela- explicou Ayla.

- Basta que nos avises quando precisares- replicou Hartaman.

- Nós andamos sempre por aqui.

- É muito amável da vossa parte- disse Marthona. Tinha ouvido o que Ayla lhes pedia ao entrar no acampamento-, mas não quero privar-vos das vossas atividades.

- Aqui não há grande coisa para fazer- argumentou Hartaman.

Folara entrou ofegante no alojamento.

- Mãe! Estás aqui! Acabaram de me dizer que tinhas chegado. Nem sequer sabia que vinhas. - Saudaram-se com um abraço.

- Podes agradecer a Ayla.

- Mas como chegaste até aqui?

- Isso também foi ideia dela. Disse a Dalanar e a Joharran que não havia razão para que eu não viesse se alguns jovens fortes pudessem trazer-me numa liteira. E assim foram uns quantos buscar-me. Ayla queria que eu viesse com ela, montada em Whinney, mas, apesar de gostar muito dos cavalos, tenho medo de os montar.

Folara abraçou a companheira do seu irmão.

- Obrigada, Ayla. Queria que a minha mãe viesse, mas duvidava que a sua saúde o permitisse, e sabia que não podia viajar a pé.

Finalmente, Marthona voltou-se para Ayla.

- Onde está o meu filho?

Ayla abanou a cabeça.

- Não sei- respondeu, tentando conter a emoção repentina que a invadiu. - Tenho estado muito ocupada com a zelandonia.

Marthona deu-se conta de que algo se passava. Ao partir, Ayla só falava de Jondalar, e agora nem sequer sabia onde ele estava?

- Esta manhã vi Jondy a passear na margem do Rio- informou Jonayla-, mas não sei onde vai dormir. Nem sei porque já não dorme connosco. Gosto de o ter por perto.

Embora ruborizada, Ayla ficou em silêncio, e Marthona ficou com a certeza de que algo muito grave se passava. Teria de averiguar o que era.

- Folara, podes cuidar de Jonayla e de Marthona? Preciso de falar com Danug e com Druwez, e talvez tenha de os levar ao alojamento dos zelandonia.

- Sim, claro. Vai descansada- respondeu Folara.

Ayla foi ter com os dois jovens e falou com eles em mamutoi.

- Recordando-me dos “tambores falantes”, mencionei-os à Primeira. Algum de vocês, ou quiçá os dois, sabe fazer falar os tambores? - indagou Ayla.

- Sim- replicou Danug. - Sabemos os dois, mas não trouxemos nenhum. Os tambores não fazem parte do equipamento necessário quando se viaja.

- Quanto tempo demorariam a fazer um par? De certeza que alguém vos ajudaria, caso fosse preciso. E estariam dispostos a tocar umas quantas estrofes? Como parte de uma cerimónia que estamos a planear? - inquiriu Ayla.

Os dois jovens entreolharam-se e encolheram os ombros.

- Se encontrarmos o material, não demoramos muito a fazê-los. Talvez um dia ou dois- explicou Druwez. - São tambores pequenos e tocam-se com os dedos.

- Estariam dispostos a tocá-los na cerimónia? - perguntou Ayla.

- Claro- retorquiram em uníssono.

- Nesse caso, venham comigo- pediu, e dirigiu-se para o acampamento principal.

Quando chegaram ao grande alojamento no centro do acampamento, duas jovens acólitas aproximaram-se deles.

- Queria assegurar-me de que temos todos os ingredientes para essa bebida cerimonial especial de que nos falaste- disse uma delas.

- Falaste em seiva de bétula, sumo de várias frutas, tudo aromatizado com aspérula, e umas quantas ervas, não é?

- Sim, sobretudo artemísia- respondeu Ayla.

As pessoas começaram cedo a amontoar-se em torno da zona cerimonial. A agitação no ar era palpável. A cerimónia fora preparada por fases e reinava um ambiente de grande expectativa. Ia ser um acontecimento especial e único. Todos o sabiam, mas ignoravam o motivo. A ansiedade aumentou à medida que o Sol se punha. Os zelandoni presentes na Reunião de verão nunca haviam desejado tanto que o Sol se escondesse. Queriam que desaparecesse do céu.

Finalmente, quando o Sol se pôs no horizonte e escureceu o suficiente para ser necessário o resplendor do fogo, as pessoas começaram a acomodar-se à espera que se acendessem as fogueiras cerimoniais. No centro da zona cerimonial havia um anfiteatro natural amplo bastante para acolher as duas mil pessoas do acampamento.

Acomodaram-se na relva ou estenderam esteiras, almofadas ou peles. Pouco depois escutou-se, num volume muito baixo, entre os murmúrios das conversas, o som característico de umas vozes infantis cantando. Uns mandaram calar os outros para ouvir melhor o canto. Então, uma procissão formada por quase todas as crianças do acampamento dirigiu-se para a zona central entoando uma canção rítmica cuja letra consistia nas palavras de contar. Quando chegaram à zona central, o público guardava silêncio.

Existiam duas razões para começar com as crianças a cantar. A primeira era que assim mostravam aos mais velhos o que aprendiam com os zelandonia. A segunda era porque com isso se dava a entender tacitamente que, juntamente com o banquete e a diversão geral, se celebraria uma Festividade da Mãe.

Quando as crianças acabaram de cantar, levaram-nas para onde estava o público. Em seguida, dois homens vestidos de bisonte com pesados chifres na cabeça apareceram por lados opostos e correram um contra o outro. Depois, umas quantas pessoas vestidas com peles e cornos de auroque começaram a dar voltas como uma manada. Apareceu um leão, grunhindo, e atacou os bovinos com um rugido tão autêntico que várias pessoas estremeceram.

- Foi Ayla- sussurrou Folara a Aldanor. - Ninguém imita um leão tão bem quanto ela.

A manada dispersou-se e o leão seguiu-a. Logo depois apareceram cavalos, relinchando. Seguiram-se mais umas quantas demonstrações que representavam animais e descreviam um acontecimento ou uma história.

Os zelandonia tinham-se preparado bem, empregando todos os recursos que conheciam para captar e reter a atenção da multidão. Quando Ayla, que exibia o rosto pintado com os desenhos de uma zelandoni se colocou diante do grupo, as duas mil pessoas sustiveram a respiração, dispostas a não perder nenhuma das suas palavras e nem um dos seus gestos.

Soaram tambores, e o toque agudo das flautas misturou-se com aquele som grave, lento, constante e inexorável: pum, pum, pum. A cadência mudou de ritmo, até coincidir com o compasso de uma estrofe familiar, e juntaram as suas vozes para cantar ou recitar o início do Cântico à Mãe.

A Primeira, com a sua voz espetacular, poderosa e vibrante, também começou a cantar. Quando a Primeira chegou ao último verso, calou-se e ficou apenas o som dos tambores tocados pelos parentes de Ayla.

Mas às pessoas parecia que escutavam a letra. O tamborilar soava como palavras recitadas com voz palpitante, como se alguém cantasse variando rapidamente a intensidade da respiração, só que não era a respiração de uma pessoas, eram tambores!. Os tambores pronunciavam palavras!

Aaaa Mãaaae ficoooou saaatisfeeeita...

Reinava um silêncio profundo entre o público, que aguçava o ouvido para escutar o falar dos tambores. Quando estes chegaram ao final da estrofe, ao invés de se calarem, prosseguiram com palavras desconhecidas.

Anunciaaar que o hooomeeem...

As pessoas escutavam com atenção, mas continuavam sem saber bem o que ouviam. Nesse momento, Ayla, sozinha ali no meio, repetiu a estrofe lentamente,

Anunciar que o homem participa, esse foi seu último ensejo:

Para se iniciar uma nova vida, ele deve ter desejo.

A Mãe sente-se honrada quando os vê fazer,

Porque a mulher concebe quando dividem o prazer.

Depois de os filhos abençoar. A Mãe pode descansar.

Aquilo não fazia parte do cântico! Aquilo era novo! Nunca tinham ouvido aqueles versos. O que significavam? Sentiram um certo desassossego. Desde que o conheciam, e desde tempos imemoriais, que o Cântico à Mãe fora sempre igual, exceto por algumas variações insignificantes. Porque era agora diferente? Ainda não tinham assimilado o significado daquelas palavras novas. Já era bastante inquietante que acrescentassem outra estrofe, que o Cântico à Mãe tivesse mudado.

Apagou-se a última fogueira. Estava tudo tão escuro que ninguém se atreveu a mexer-se.

- O que significa isso? - perguntou alguém em voz alta.

- Sim, o que significa? - repetiu outro.

Mas Jondalar não precisava de perguntar. Já sabia. “Então é verdade”, pensou. Ayla sempre dissera que não sabia bem como se passava, sabia apenas que o início de uma vida se devia à união entre um homem e uma mulher. A Mãe concedera aos Seus filhos o dom dos prazeres para criar vida. Não era lógico que fosse um prazer a dar início a uma nova vida? Seria por isso que o desejo de Jondalar de verter a sua essência numa mulher era tão forte? Porque a Mãe queria que os Seus filhos criassem os seus próprios filhos?

Pareceu-lhe que o seu corpo tinha um novo sentido, que de certa maneira ganhara vida. Os homens eram necessários. Ele era necessário!

Sem ele, Jonayla não existiria. Sem o homem, não se podia criar uma nova vida.

Em redor começaram a acender-se tochas e as pessoas levantaram-se. Faziam perguntas umas às outras enquanto se dirigiam para as mesas repletas de comida e bebida.

- Vamos, Jondalar- disse Joharran.

Jondalar não o ouviu. Estava tão absorto nos seus pensamentos que para ele a multidão nem sequer existia.

- Jondalar! - repetiu Joharran, e sacudiu-o pelo ombro.

- O que foi? - inquiriu Jondalar.

- Vamos, já estão a servir a comida. - O que achas que significa aquilo? - indagou Joharran quando começaram a andar.

- Significa o que diziam os versos “o homem participa”. Não pode iniciar-se uma nova vida sem um homem.

- A sério que acreditas nisso?

Jondalar sorriu.

- Tenho a certeza.

Quando se aproximaram do lugar onde a Nona Caverna se havia congregado para o banquete, serviam já uma bebida forte. Alguém colocou dois copos nas mãos de Jondalar e de Joharran. Provaram o conteúdo, mas não era o que esperavam.

- O que é isto? - perguntou Joharran. - Pensava que seria a beberagem de Laramar. Não é má, embora seja um pouco suave.

- Esta é a bebida que os Losadunai servem nas festividades da Mãe. Tem um sabor suave, mas não a subestimes- alertou Jondalar.

- É muito forte. De certeza que foi Ayla quem a preparou. Viste para onde foi depois da cerimónia?

- Olha, está ali, onde servem a bebida nova.

Jondalar encaminhou-se na direção de um grupo que se amontoava em torno de uma grande caixa de madeira. Quando viu Ayla, esta encontrava-se ao lado de Laramar e entregava-lhe um copo que acabara de encher. Ele disse qualquer coisa e ela soltou uma gargalhada. Laramar, surpreendido, lançou-lhe um olhar lascivo. “É possível que esta festividade acabe por ser interessante.” Logo apareceu Jondalar. Sentindo-se defraudado, Laramar franziu o sobrolho.

- Ayla- disse Jondalar-, preciso de falar contigo a sós.

- Tiveste oportunidades de sobra para falar comigo a sós, mas não te dignaste. Porquê agora? Esta é a Festividade da Mãe. Vou ficar aqui e divertir-me- declarou, e voltou a sorrir para Laramar de modo insinuante.

Jondalar empalideceu e afastou-se, meio dobrado como se tivesse levado um murro no estômago. Alguém pôs-lhe um copo na mão e bebeu-o sem pensar. Outra pessoa voltou a enchê-lo. Aturdido e ensimesmado, começou a cambalear. Um grupo de homens passou por ele com um odre cheio de bebida e, vendo-o de copo vazio, encheram-no. Não comera nada, e as bebidas que circulavam em abundância começavam a afetá-lo. A sua cabeça parecia dar voltas e tinha a visão turva, mas a sua mente, enredada ainda em pensamentos, permanecia alheia a tudo. Ouviu música de baile e os pés levaram-no em direção ao som. Viu vagamente os bailarinos moverem-se em círculo à luz da fogueira.

Uma mulher passou a dançar ao lado dele. Era Ayla. Observou-a a dançar com vários homens. Ria-se como se estivesse alcoolizada. Com um passo vacilante, afastou-se do círculo. Foi seguida por três homens que lhe puxavam a roupa. Ayla perdeu o equilíbrio e caiu juntamente com os homens, formando todos uma pilha. Um deles colocou-se em cima dela, separou-lhe as pernas bruscamente e pene-trou-a com o seu membro inchado. Jondalar reconheceu-o.

Era Laramar!

Paralisado, incapaz de se mexer, Jondalar viu-o mexer-se para cima e para baixo, para dentro e para fora. Laramar! Aquele bêbedo preguiçoso e sujo! Ayla nem sequer se dignava a dirigir-lhe a palavra, e agora estava com ele. Quando não permitia a Jondalar amá-la, dividir prazeres. Não lhe permitia criar um filho com ela.

O sangue subiu-lhe à cabeça. A única pessoa que via naquela pilha era Laramar, em cima de Ayla, em cima da sua companheira.

Foi possuído por uma fúria aterradora e gritou:

- Estás a criar o meu filho!

Jondalar avançou e separou Laramar de Ayla. Quando o outro homem virou a cabeça, assentou-lhe um murro na cara. Laramar caiu ao chão, quase inconsciente. Não sabia quem lhe batera, nem o que se passara.

Jondalar lançou-se sobre ele. Num acesso feroz e brutal de ciúmes e indignação, começou a bater em Laramar, incapaz de se deter.

Uns quantos homens tentaram separá-los, mas não foram capazes. Prisioneiro daquela cólera enlouquecida, possuía uma força quase sobre-humana.

Subitamente, no instante em que Jondalar puxava o punho atrás para uma vez mais o abater sobre aquela massa ensanguentada e já quase irreconhecível que era o rosto de Laramar, uma mão enorme agarrou-o pelo pulso.

Tentou soltar-se daqueles braços enormes e fortes que o imobilizavam, mas foi-lhe impossível.

Enquanto Danug o segurava, a Zelandoni gritava:

- Jondalar! Jondalar! Já chega! Vais matá-lo!

Quando os zelandonia correram para ajudar Laramar, o musculoso e gigante ruivo pegou em Jondalar ao colo como se fosse um bebé e levou-o dali.

 

Zelandoni e Ayla encontravam-se no grande alojamento dos

zelandonia. Ao lado delas jazia um homem inconsciente com o rosto envolto em cataplasmas.

- Nunca o tinha visto assim- comentou Ayla. - Porque terá feito tal coisa, Zelandoni?

- Porque estavas com Laramar.

- Mas era uma Festividade da Mãe. Agora sou Zelandoni. Devo partilhar o dom da Mãe nas festividades em sua honra, não é? - disse Ayla.

- Toda a gente deve honrar a Mãe nas suas festividades, e tu sempre o fizeste, mas só com Jondalar- respondeu a corpulenta mulher.

- Que nunca o fiz com mais ninguém não deveria ter a menor importância. Pelos vistos ele andava a deitar-se com Marona- observou Ayla.

A Zelandoni notou o tom defensivo na sua voz.

- Sim, mas tu nessa altura não estavas disponível. Já sabes que às vezes os homens dividem os prazeres da Mãe com outras mulheres quando as suas companheiras não estão à mão, não é? - perguntou Aquela Que Era a Primeira.

- Sim, claro- disse Ayla, e baixou a cabeça.

- Aborrece-te que Jondalar tenha escolhido outra mulher, Ayla?

- Bem, é que ele nunca escolhera ninguém, não desde que o conheço- respondeu Ayla, e fitou a mulher com sincera preocupação.

- Como é possível que o conheça tão pouco? Custa-me a crer que o tenha feito. Não acreditaria se não tivesse visto. Primeiro anda por aí às escondidas com Marona... e fico a saber que já se passa há algum tempo. Depois vai e... porquê Marona?

- Como te sentirias se tivesse sido com outra mulher?

Ayla voltou a baixar a cabeça.

- Não sei. - Olhou para a Zelandoni. - Porque não me procurou se queria satisfazer as suas necessidades? Nunca o recusei. Nunca.

- Talvez fosse por isso. Talvez soubesse que estavas cansada, ou imersa na tua aprendizagem, e não queria impor a sua vontade sabendo que não o recusarias- explicou a Zelandoni.

Ayla fechou os olhos, pensativa. Por fim abriu-os e disse:

- Jondalar estava tão... furioso, tão violento... - Encheram-se-lhe os olhos de lágrimas.

- A violência sempre esteve presente nele, Ayla. Como está na maioria dos homens.

- Quase matou Laramar. Porquê?

- Porque tu o escolheste, Ayla. Porquê Laramar?

Ayla baixou a cabeça e começou a soluçar.

- Porque Jondalar escolheu Marona. - As lágrimas caíam-lhe em catadupa. - Zelandoni, não sabia o que eram os ciúmes até os ver juntos. Acabava de perder o meu filho, não parava de pensar em Jondalar e tinha muita vontade de o ver, e talvez de criar outro filho com ele. Foi tão doloroso vê-lo com Marona. Senti tanta raiva que desejei devolver-lhe a dor.

A Primeira estendeu os braços para Ayla e embalou-a.

- Já imaginava que seria algo assim- disse.

A Zelandoni observou a sucessão de emoções refletidas no rosto de Ayla, mas não conseguiu decifrá-las completamente. “Esta mulher sempre teve algo de insondável”, pensou. “Sem dúvida que um dia será a Primeira.”

- Se te sentes melhor, Ayla... Zelandoni da Nona Caverna... devíamos ir. Não convém que cheguemos atrasadas à reunião. Devem ter muitas perguntas para fazer- disse Aquela Que Era a Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Grande Mãe Terra.

A Zelandoni abriu ligeiramente a cortina que dava acesso ao alojamento dos zelandonia. Assomando a cabeça, esquadrinhou a zona de reunião. Estava quase cheia.

Como ela suspeitava, as pessoas tinham muitas perguntas. Começavam a compreender o significado da cerimónia e da estrofe nova no Cântico à Mãe, mas albergavam dúvidas.

Foi Joharran quem formulou a primeira pergunta, mas era algo que todos desejavam saber.

- Essa estrofe nova significa que Jaradal e Sethona são meus filhos, não apenas de Proleva?

- Sim, é isso mesmo- respondeu a Zelandoni Que Era a Primeira. - Jaradal é teu filho, e Sethona tua filha, tanto como são de Proleva.

- E é o dom do prazer da Grande Mãe Terra que faz iniciar a vida dentro de uma mulher? - indagou Brameval, o líder da Décima Quarta Caverna.

- O dom que nos foi concedido por Doni não é apenas o dom do prazer, mas também o dom da vida.

- Mas muitas vezes compartilham-se prazeres e as mulheres não ficam grávidas- interveio outra voz, incapaz de esperar.

- A Grande Mãe Terra é quem tem a última palavra. Doni não cedeu todo o Seu conhecimento, todas as Suas prerrogativas. Ainda é ela quem decide quando uma mulher é abençoada com uma nova vida- explicou a Primeira.

Depois as perguntas foram-se tornando mais delicadas e pessoais.

- A minha companheira foi mulher-doni durante o verão posterior à nossa união- começou o homem a explicar. - Teve um filho, e outros três desde então. Mas agora pergunto-me se algum desses filhos saiu de mim.

- Todos os bebés nascidos da tua companheira são teus filhos- retorquiu.

- Mas, como sei se os iniciei eu, ou outro homem?

- Diz-me uma coisa, Willadan, que idade tem o teu primeiro filho?

- Conta doze anos. É quase um homem- respondeu, com orgulho.

- Ficaste contente quando a tua companheira engravidou e quando ele nasceu?

- Sim, desejávamos ter filhos no nosso lar.

- Gostas dele, então.

- Claro que gosto dele.

- Então, aí tens. Cuidaste deles, gostas deles, são as crianças do teu lar, e isso significa que são teus filhos, Willadan.

- E se quiser que as crianças do meu lar sejam meus? - perguntou outra voz.

- Queres que as crianças do teu lar sejam tuas, Jemoral- disse, olhando nos olhos o jovem que fizera a pergunta. - Como a tua roupa, as tuas ferramentas, ou as tuas contas? É isso que queres dizer? Queres ser o seu dono?

- Ah, não. Não... não queria dizer isso- gaguejou o jovem.

- Alegra-me ouvi-lo, porque as crianças não são propriedade de ninguém. Não podem ser tuas nem da tua companheira. As crianças são nossas para amar e cuidar, prover e ensinar, tal como a Mãe faz connosco, e isso está ao teu alcance tanto se viessem da tua essência como da de outro homem. Somos todos filhos da Grande Mãe Terra.

De imediato uma jovem levantou a voz.

- E o que se passa com o que acontecia antes? Sabemos quem são as nossas mães e as nossas avós. Sou filha da minha mãe. O que se passa a respeito dos homens?

A Zelandoni não reconheceu a jovem de imediato, mas, com a sua astúcia natural, tentou deduzir. Encontrava-se sentada na companhia da Vigésima Terceira Caverna, e os desenhos e motivos da sua túnica e o colar indicavam que pertencia a essa caverna. Se bem que o traje que vestia revelava que era uma mulher, não uma jovem, saltava à vista que era muito jovem. A líder da Vigésima Terceira Caverna era uma mulher chamada Dinara. A Zelandoni recordou então que a filha mais velha de Dinara se encontrava esse ano entre as que haviam celebrado os Primeiros Ritos e notou que Dinara sorria para a jovem. Nesse momento, lembrou-se do seu nome.

- Não mudou nada, Diresa- respondeu a Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Grande Mãe. - As crianças sempre foram o resultado da união entre um homem e uma mulher. Que antes não o soubéssemos não significa que não fosse sempre assim. A Doni apenas decidiu dizer-nos agora. Deve ter considerado que já estamos preparados para saber. Sabes quem era o companheiro da tua mãe quando nasceste?

- Sim, toda a gente sabe quem é o seu companheiro. É Joncoran - respondeu Diresa.

- Nesse caso, Joncoran é o teu pai- afirmou a Zelandoni. Estivera à espera da oportunidade para dar a conhecer a palavra escolhida. - “Pai” é a palavra que se dá ao homem que tem filhos. O homem é necessário para que se inicie uma vida, mas não carrega o bebé dentro de si, não o dá à luz nem o amamenta, mas pode gostar tanto dele como uma mãe, e participa em tudo como a mãe, participa, é um pai. Também se escolheu esta palavra para indicar que assim como as mulheres são as Abençoadas de Doni, agora os homens podem considerar-se os Favorecidos de Doni.

A multidão irrompeu de imediato em conversas. Ayla ouviu o público repetir uma e outra vez a nova palavra, como se estivessem a habituar-se a ela. A Zelandoni esperou que todos se calassem.

- Tu, Diresa, és filha da tua mãe, Dinara, e és a filha do teu pai, Joncoran. A tua mãe tem filhos e filhas, e o teu pai tem filhos e filhas. Esses filhos podem chamar-lhe “pai”, tal como chamam “mãe” à mulher que os trouxe ao mundo.

Aquela Que Era a Primeira queria anunciar algo mais.

- Esta parece-me ser uma boa ocasião para mencionar outro assunto. Os zelandonia pensaram que os homens devem ser incluídos em alguns dos rituais e costumes relacionados com a chegada de um bebé, para que sintam e entendam de uma maneira mais profunda a sua participação na criação de uma nova vida. De agora em diante, os homens darão o nome aos filhos varões nascidos nos seus lares. As mulheres continuam a dar o nome às filhas.

O anúncio foi recebido com sentimentos contraditórios. Os homens ficaram surpreendidos, mas alguns sorriam. Pelas expressões de algumas mulheres, a Zelandoni viu que não queriam renunciar à sua prerrogativa de pôr o nome aos filhos. As pessoas preferiram não dar muita importância ao assunto nesse momento, e ninguém perguntou nada, mas a Zelandoni supôs que a questão não estava resolvida. Surgiriam complicações mais tarde, disso não havia dúvida.

 

Depois, Aquela Que Era a Primeira disse:

- Chegou o momento de dar por concluída a reunião. Temos muita coisa em que pensar, e podem prosseguir a discussão com os vossos zelandonia.

Ayla levantou-se; não queria continuar ali sentada. O alojamento sem janelas estava escuro e sombrio e a chama da candeia começava a apagar-se, o que tornava a penumbra ainda maior. Queria estar ao ar livre, fazer outra coisa que não fosse pensar.

Acelerou o passo, sem pensar para onde se dirigia. Levantou a cabeça quando escutou um relincho suave e descobriu que se encontrava no cercado dos cavalos. Estivera tão ocupada nos últimos dias que mal tinha visto os cavalos e, quando escutou o relincho de boas-vindas da sua égua, os seus olhos encheram-se de lágrimas. Aproximou-se e abraçou o pescoço robusto da sua amiga.

- Oh, Whinney] Que bom ver-te! - exclamou, falando na estranha língua que usava com a égua, a que inventara no vale, antes de Jondalar chegar e lhe ensinar o seu idioma. - Ao menos tu ainda gostas de mim- continuou, desfeita em lágrimas-, embora também devesses odiar-me por te ter ignorado tanto. Mas fico satisfeita que não seja assim. Sempre foste minha amiga, Whinney. - Pronunciou o nome tal como o aprendera da égua, uma imitação incrível do relincho de um cavalo. - Quando não tinha mais ninguém, ali estavas tu. Talvez o melhor fosse ir-me embora contigo. Podíamos encontrar um vale e viver juntas, como antes.

Enquanto soluçava contra o pelo espesso do cavalo, a jovem égua cinzenta e o garanhão aproximaram-se delas. Gray tentou meter o focinho por baixo da mão de Ayla, enquanto Racer se encostava a ela para que soubesse que estava ali. Depois apoiou-se em Ayla, tal como fizera tantas vezes, e ela ficou entre ele e a sua mãe. Ayla abraçou, acariciou e coçou os três, e em seguida começou a sacudir e a desembaraçar a crina de Whinney.

Limpar e ocupar-se dos cavalos sempre havia sido uma atividade relaxante para ela, e quando terminou de escovar Whinney e começou a tratar do impaciente Racer, que não parara de a empurrar para reclamar a sua parte de atenção, já deixara de chorar e sentia-se melhor. Enquanto tratava de Gray, Joharran e Echozar apareceram à sua procura.

- Andavam todos à tua procura, Ayla- disse Echozar, sorrindo ao encontrá-la ali de pé entre os três cavalos. Ainda se surpreendia ao vê-la com os animais.

- Ultimamente tenho passado pouco tempo com os cavalos, e precisavam de uma boa limpeza. Já começam a criar a pelagem para o inverno- explicou Ayla.

- Proleva tentou manter-te a comida quente, mas diz que está a secar- informou Joharran. - É melhor vires comer qualquer coisa.

- Estou quase a acabar. Já tratei de Whinney e de Racer; só me falta acabar Gray. Depois terei de ir lavar as mãos- retorquiu Ayla, e levantou-as para mostrar as palmas enegrecidas pelo suor untuoso e sujidade dos cavalos.

- Nós esperamos- disse Joharran, que recebera instruções precisas para não regressar sem ela.

Quando Ayla chegou, as pessoas terminavam de comer e começavam a abandonar o acampamento lanzadoni para as diversas atividades da tarde. Ayla sentiu-se dececionada ao ver que Jondalar não fora ao grande festim, mas ninguém conseguia tirá-lo do alojamento afastado. Ayla alegrou-se de ter ido. Depois de aceitar o prato cheio que lhe haviam guardado, apreciou ter um pouco de tempo para conversar com Danug e Druwez e ter oportunidade de conhecer Aldanor melhor, se bem que haveria tempo para isso.

Folara e Aldanor iam unir-se na última cerimónia matrimonial, mesmo antes de acabar a Reunião de verão, e ele seria Zelandoni e membro da Nona Caverna, para grande alegria de Marthona. Danug e Druwez prometeram visitar o acampamento de Aldanor a caminho de casa para comunicar a união ao seu povo, mas isso só aconteceria no verão seguinte. Pensavam passar o inverno com os Zelandoni, e Willamar prometera levá-los, e a uns quantos mais, a ver as Grandes Aguas do Oeste pouco depois de regressar à Nona Caverna.

- Ayla, queres acompanhar-me ao alojamento dos zelandonia? - propôs a Primeira. - Há algumas coisas que gostaria de falar contigo.

- Sim, claro, Zelandoni- respondeu Ayla. - Mas antes deixa-me falar com Jonayla.

Encontrou a filha com Marthona e, claro, com o Lobo.

- Sabes que Thona é minha avó? Minha avó paterna? - disse Jonayla quando Ayla se aproximou.

- Sim, sei- afirmou Ayla. - Gostaste de saber?

Estendeu a mão para acariciar o animal, que ficara muito contente de a ver. Lobo mal se separara de Jonayla desde a sua chegada ao acampamento, como se tentasse compensar a longa separação prévia, mas não cabia em si de alegria de cada vez que via Ayla, e procurava avidamente o seu afeto e aprovação. Viam-no mais alegre quando estava com as duas, o que geralmente só acontecia à noite.

- Embora sempre me tenha sentido como se o fosse, é uma grande satisfação ver-me agora reconhecida como avó dos filhos dos meus filhos varões- disse Marthona. - E apesar de há muito tempo te considerar como uma filha, Ayla, alegra-me saber que finalmente Folara encontrou um homem aceitável ao qual se unir, e ainda pode dar-me um neto antes que caminhe pelo outro mundo.

Pegou na mão de Ayla e fitou-a.

- Quero agradecer-te uma vez mais por teres pedido a esses rapazes que me fossem buscar. - Sorriu para Hartaman e para alguns dos outros jovens que a haviam ido buscar na liteira e transportado de um lado para o outro do acampamento. - Tenho a certeza de que os restantes se preocupavam com a minha saúde e tinham as melhores intenções, mas só uma mulher pode entender que uma mãe precisa de estar ao lado da filha quando esta pensa na sua cerimónia matrimonial.

- Ficaram todos satisfeitos por o teu estado de saúde te ter permitido vir. Toda a gente sentia a tua falta, Marthona- disse Ayla.

Marthona absteve-se de mencionar a óbvia ausência de Jondalar, assim como a razão mais provável, e angustiava-a pensar que o filho perdera uma vez mais o controlo e causara graves danos físicos a outra pessoa. Também estava preocupada com Ayla. Já a conhecia bem e sabia como sofria, apesar de manter dignamente a compostura.

- A Zelandoni pediu-me que fosse ter com ela ao alojamento dos zelandonia- explicou Ayla. - Disse-me que precisava de falar comigo sobre uns assuntos. Podes levar Jonayla de volta a casa, Marthona?

- Será um prazer. Senti muita falta desta pequena, embora provavelmente o Lobo seja melhor guardião do que eu.

- Vens dormir comigo esta noite, mãe? - perguntou Jonayla, com cara de preocupação.

- Claro. Vou só falar com a Zelandoni- respondeu Ayla.

- E Jondy, dormirá connosco esta noite?

- Não sei, Jonayla. É possível que esteja muito ocupado.

- Não sei o que ocupa tanto os homens do alojamento distante para que ele não possa dormir connosco- afirmou a pequena.

- Às vezes os homens estão muito ocupados- interveio Marthona, reparando no esforço de Ayla para não perder o controlo.

- Vai tranquila, Ayla, vemo-nos mais tarde. Vamos, Jonayla. Temos de ir agradecer a todos pelo magnífico banquete, e depois, se quiseres, poderás ir comigo na liteira quando me levarem de volta.

- Posso? - exclamou Jonayla. Estava muito impressionada que houvesse sempre um par de jovens por perto para transportar Marthona onde desejasse ir, sobretudo se o local fosse um pouco mais afastado.

 

Enquanto se dirigiam para o alojamento dos zelandonia, conversando acerca da reunião e o que convinha fazer para criar um ambiente mais positivo, a Zelandoni notou que Ayla estava muito abatida, embora, como sempre, o escondesse bem.

Quando chegaram ao alojamento, a Zelandoni pôs água a ferver para uma infusão. Viram que Laramar já não estava ali: deviam-no ter levado para o acampamento da Quinta Caverna. Uma vez preparada a infusão, a Zelandoni conduziu Ayla a um canto tranquilo onde havia uns quantos tamboretes e uma mesa baixa. Tinha pensado em perguntar a Ayla o que a inquietava, mas mudou de ideias. A Primeira acreditava conhecer a causa da angústia, embora não tivesse escutado Jonayla interrogar a mãe sobre a ausência de Jondalar e não sabia em que medida isso a afetava. A Donier decidiu que seria melhor falar de outras coisas para distrair Ayla das suas preocupações.

- Não sei se percebi bem no outro dia, Ayla... embora devesse chamar-te Zelandoni da Nona Caverna... se bem me lembro, comentaste que ainda tinhas um pedaço das raízes das cerimónias especiais. Estou certa? - Aquelas raízes deviam ter despertado a sua curiosidade desde que Ayla as mencionara pela primeira vez. - Ainda fariam efeito depois de tantos anos?

- Nesta região o Clã chama-lhe mogor, mas nós dizíamos sempre mog-ur. E sim, ainda tinha um pouco dessas raízes. Se forem bem guardadas, com o tempo, tornam-se mais fortes e potentes. Sei que Iza guardava as suas durante os sete anos que decorriam entre as reuniões do Clã, e às vezes até mais tempo- respondeu Ayla.

- Pareceu-me interessante o que contaste sobre elas. Embora entenda que possam ser perigosas, talvez seja proveitoso fazermos uma pequena experiência.

- Não sei- disse Ayla. - É arriscado tomá-las, e não sei até que ponto seria capaz de fazer experiências com elas. Só conheço uma maneira de as preparar. - A ideia preocupava-a.

- Se acreditas que não devemos experimentar as raízes, não te preocupes. - A Zelandoni não queria angustiá-la mais. Tomou um gole da infusão para se conceder um momento de reflexão. - Ainda tens a bolsa com aquela mistura de ervas que íamos provar juntas, as que te deu a Zelandoni de uma caverna longínqua que veio de visita?

- Sim, vou buscá-las- respondeu Ayla, e levantou-se para ir buscar a bolsa de ervas medicinais que guardava num lugar especial no alojamento dos zelandonia. Ela considerava-a a sua bolsa de ervas da zelandonia, embora não fosse parecida com a sua outra bolsa de ervas, a do Clã.

Uns anos antes confecionara uma bolsa nova ao estilo do Clã, com uma pele inteira, mas essa guardava-a no refúgio do acampamento da Nona Caverna. Distinguia-se pela sua originalidade. A que Ayla tinha no alojamento dos zelandonia assemelhava-se às que usavam todos os doniers: era um simples recetáculo do couro não curtido, uma versão mais pequena da usada para transportar carne. Na verdade, os adornos estavam longe de ser simples. Cada bolsa de ervas era única, desenhada e confecionada pelo próprio curandeiro, e continha tanto os ingredientes básicos como os escolhidos pelo utilizador.

Ayla levou a sua bolsa ao canto onde a esperava a Zelandoni bebendo a infusão. A jovem abriu a bolsa de couro e olhou para o interior. Franziu o sobrolho. Depois despejou o conteúdo na mesa baixa entre as duas, mas só restava metade.

- Parece que já as provaste- salientou a Zelandoni.

- Não entendo- respondeu Ayla. - Não me lembro de ter aberto esta bolsa. Como é possível que se tenha consumido? - Colocou uma pequena quantidade na palma da mão e aproximou-a do nariz. - Cheira a menta.

- Se estou lembrada, a Zelandoni que tas deu disse que acrescentavam menta para identificar a mistura. Ela nunca levava menta neste tipo de bolsas, mas em recetáculos tecidos e maiores, e assim, se uma bolsa cheirava a menta, sabia que continha esta mistura- explicou a Zelandoni.

Ayla inclinou a cabeça para trás e olhou para o teto com profundas rugas na testa, esforçando-se por se recordar. De súbito endirei-tou-se.

- Parece-me que bebi isto na noite em que observava o nascimento da Lua e o pôr do Sol, a noite em que recebi o chamamento. Pensava que era uma infusão de menta. - De repente levou uma mão à boca. - Oh, Grande Mãe! Zelandoni, é possível que não tenha recebido o chamamento. É possível que tudo se tenha ficado a dever a esta mistura! - exclamou Ayla, horrorizada.

A Zelandoni inclinou-se para a frente, deu umas palmadinhas na mão de Ayla e sorriu.

- Fica tranquila, Ayla. Não deves preocupar-te com isso. Recebeste o chamamento; és a Zelandoni da Nona Caverna. Muitos zelandonia usaram ervas e misturas parecidas para os ajudar a encontrar o mundo dos espíritos. Uma pessoa pode ficar num lugar diferente depois de as tomar, mas só recebe o chamamento se estiver preparada para tal. Não há dúvidas de que a tua experiência foi um autêntico chamamento, e embora não esperasse que ocorresse tão cedo, reconheço-o como verdadeiro. É possível que esta mistura te tenha levado a recebê-lo antes do que eu previa, mas isso não torna o chamamento menos válido.

- Sabes o que compõe a mistura? - perguntou Ayla.

- Aquela Zelandoni disse-me os ingredientes, mas não as quantidades. Embora estejamos dispostos a compartilhar os nossos conhecimentos, a maioria dos zelandonia também gosta de manter certas coisas em segredo. - Aquela Que Era a Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Grande Mãe sorriu. - Porque perguntas?

- De certeza que era muito forte- comentou Ayla, e baixou o olhar para o copo de infusão que tinha entre as mãos. - Pergunto-me se o aborto foi provocado por algo que continha.

- Ayla, não te culpes- disse a Zelandoni, inclinando-se e pegando-lhe na mão. - Sei que perder um filho é uma experiência muito dolorosa, mas isso não estava sob o teu controlo. Foi o sacrifício que a Mãe te exigiu, talvez porque teve de te aproximar do outro mundo para te transmitir a sua mensagem. É provável que esta mistura tivesse algo que pudesse provocar o aborto, mas talvez essa fosse a única maneira. Possivelmente, Ela mesma te fez beber a mistura para que tudo ocorresse conforme os Seus desejos.

- Nunca cometi um erro assim com os medicamentos da minha bolsa. Fui descuidada, tanto que perdi o meu filho- argumentou Ayla, como se nem sequer tivesse ouvido a Primeira.

- Como tu nunca cometes esse tipo de erros, mais me leva a crer que foi a vontade da Mãe. Quando Ela chama alguém para a servir, é sempre inesperado, e a primeira vez que alguém vai sozinho ao mundo dos espíritos é especialmente perigoso. Muitos não encontram o caminho de regresso. Alguns entregam alguma coisa, como aconteceu contigo. Mesmo que vás muitas vezes, nunca sabes se da próxima voltarás.

Ayla soluçava baixinho e as lágrimas brilhavam nas suas bochechas.

- É bom que chores. Guardaste tudo aí dentro demasiado tempo, e deves chorar a perda do teu filho- afirmou a Donier. Levantou-se, pegou nos dois copos e foi até ao fundo do alojamento onde guardavam os lenços feitos de pele. Quando voltou, serviu mais infusão. - Toma- disse, entregando-lhe uma suave pele de animal e deixando a infusão sobre a mesa.

Ayla secou as lágrimas e assoou o nariz, respirou fundo para se acalmar e bebeu um gole da infusão quente, procurando recuperar o controlo. As lágrimas não se deviam apenas à perda do filho, mas fora o que desencadeara tudo. Tinha a impressão de que não fazia nada como devia ser. Jondalar já não a queria; as pessoas odiavam-na, e perdera o seu filho por causa de um descuido. Escutara as palavras da Zelandoni, mas não as entendera, nem haviam mudado os seus sentimentos.

- Talvez agora compreendas porque me interessam tanto essas raízes de que falas- disse a Primeira quando lhe pareceu que Ayla se sentia melhor. - Se conseguirmos vigiar e controlar bem a experiência, talvez tenhamos acesso a outra maneira de chegar ao outro mundo quando for necessário, como mediante essa mistura da bolsa, e de outras ervas.

Ao princípio, Ayla não a ouviu. Quando por fim lhe chegaram as palavras da Zelandoni, recordou que nunca mais queria voltar a experimentar aquelas raízes. Embora o Mog-ur pudesse controlar os efeitos da poderosa substância, tinha a certeza de que ela nunca conseguiria. Na sua opinião, apenas uma mente do Clã, com as suas características únicas e as recordações do Clã, podia controlá-la. Não acreditava que uma pessoa nascida no seio dos Outros fosse capaz de dominar aquele vazio negro, por muito que a vigiassem.

Sabia que a Primeira estava fascinada. Mamut também sentira curiosidade pelas plantas especiais usadas apenas pelos Mog-urs do Clã, mas ele, depois da sua perigosa experiência juntos, dissera que nunca mais as tomaria. Explicou-lhe que temia perder o seu espírito nesse vazio negro e paralisante e aconselhara-a a não voltar a tomá-las. A recordação tornou-se mais nítida e perturbadora ao reviver a aterrorizante viagem até esse lugar desconhecido e ameaçador quando estava nas profundezas da caverna e, depois, ao recordá-la vividamente durante a sua iniciação. E sabia que até essa inquietante evocação era apenas um fragmento da experiência real.

Na verdade, no negro desespero do seu estado de alma atual, não pensava com clareza. Tivera tempo para recuperar o equilíbrio, mas logo haviam sucedido demasiadas coisas, e depressa. A sua experiência na caverna ao receber o chamamento, incluindo o aborto, debilitara-a tanto física como emocionalmente. A dor e os ciúmes, e a deceção ao encontrar Jondalar com outra mulher, foram mais intensos devido ao episódio da caverna e à sua perda. Ansiara pelo contacto das mãos hábeis de Jondalar e pela proximidade do seu corpo, a ideia de substituir o filho perdido, o consolo curativo do seu amor.

Ao invés, encontrou-o com outra mulher, e não uma qualquer, mas a que tentara prejudicar. Em circunstâncias normais, encararia com calma a indiscrição de Jondalar, e ainda mais se tivesse sido com outra pessoa. Talvez até nem se tivesse importado. Os dois estavam muito unidos. Mas entendia os costumes dos Zelandoni. Não eram muito diferentes das dos homens do Clã, que possuíam o direito de escolher quantas mulheres desejassem.

Apercebera-se dos intensos ciúmes de Jondalar em relação a ela e Ranec quando viviam com os Mamutoi, apesar de nessa altura ignorar a causa da violência contida da reação de Jondalar. Ranec pedira a Ayla que partisse com ele, e, como ela fora criada pelo Clã, nessa altura ainda ignorava que entre os Outros uma mulher tinha direito a dizer que não.

Quando resolveram o problema e partiu com Jondalar, decidiu não voltar a dar-lhe motivo para sentir ciúmes. Nunca mais escolhera outro homem, embora soubesse que era aceitável, e ele também não, que ela soubesse. Ou pelo menos não o fizera abertamente, como os outros homens. Quando Ayla enfrentou o facto de ele não só ter escolhido outra, mas aquela mulher em particular, e às escondidas, e o fazia há bastante tempo, sentiu-se profundamente atraiçoada.

Mas Jondalar não agira com a intenção de a atraiçoar. Não queria que ela soubesse, para não a magoar. Ele sabia que ela nunca escolheria mais ninguém, e de certa forma também conhecia o motivo: sabia os ciúmes que sentiria se Ayla escolhesse outro homem, por mais que, caso acontecesse, tivesse feito um esforço para se controlar. Não queria que ela sentisse uma dor tão intensa como a que ele sentira. Quando Ayla os surpreendeu juntos, Jondalar ficara fora de si. Simplesmente não sabia o que fazer, nunca aprendera.

Jondalar era um homem de um metro e noventa e cinco de estatura, bem constituído, incrivelmente atraente, com um carisma inconsciente realçado por uns olhos azuis de uma intensidade extrema. A sua inteligência, a sua destreza manual inata e a sua habilidade manifestaram-se numa tenra idade, e incentivaram-no a aplicá-las em diversas áreas, até que descobriu a paixão pelo sílex e pela manufatura de ferramentas. Mas os seus sentimentos também eram mais fortes do que os da maioria, demasiado intensos, e a mãe e as pessoas que o amavam fizeram tudo o que puderam para o ensinar a controlá-los. Até em pequeno desejava em excesso, preocupava-se em excesso: consumia-se de desejo, roía-se de ódio e ardia de amor. Recebera dons em excesso e poucos entendiam a carga que isso representava.

Em jovem, haviam ensinado a Jondalar como agradar a uma mulher, uma prática normal na sua cultura. Era algo que se ensinava a todos os jovens. O facto de ter aprendido tão bem devia-se ao ter sido bem ensinado e à sua aptidão natural. Descobriu cedo que gostava de agradar às mulheres, mas nunca tivera de aprender a despertar o seu interesse.

Ao invés da maioria dos homens, jamais tivera de procurar maneira de chamar a atenção das mulheres; às vezes tinha até de descobrir uma forma de se safar. Nunca se vira na necessidade de pensar como poderia conhecer uma mulher; as mulheres desviavam-se do seu caminho para o conhecer, algumas até se atiravam nos seus braços. Nunca tivera de convencer nenhuma a passar um momento com ele; as mulheres jamais se cansavam dele. E nunca se vira obrigado a aprender a lidar com uma perda, nem com a ira de uma mulher, nem com o peso dos seus próprios erros. Ninguém imaginava que um homem com os seus evidentes dons fosse incapaz de tudo isso.

A reação de Jondalar quando algo não corria bem era retrair-se, tentar controlar os seus sentimentos e confiar que tudo se resolveria por si só. Esperava que os outros o perdoassem pelos seus enormes erros, e habitualmente era isso que acontecia. Daí que não soubesse o que fazer quando Ayla o surpreendeu com Marona, e Ayla também não sabia muito bem lidar com essas situações.

Desde que o Clã a encontrara, quando tinha cinco anos, que Ayla se esforçava por se encaixar, por parecer aceitável, para que não a expulsassem. O Clã não derramava lágrimas por causa das emoções e as suas perturbavam-nos, por isso aprendera a contê-las. O Clã não manifestava ira nem dor nem sentimentos intensos, porque não era bem-visto, e aprendeu a não mostrar os seus. Para ser uma boa mulher do Clã, aprendeu o que se esperava dela, e tentou comportar-se como se esperava. Entre os Zelandoni tentara o mesmo.

Mas agora sentia-se desconcertada. A seu ver, era evidente que não aprendera a ser uma boa mulher zelandoni. As pessoas estavam desgostosas com ela, alguns até a odiavam, e Jondalar não a queria. Estivera dias sem lhe ligar, e antes disso tentara provocá-lo para que respondesse, mas o brutal ataque a Laramar fora inesperado. Ayla sentia, sem a menor sombra de dúvida, que a culpa fora unicamente dela. Tinha provas de sobra da compaixão de Jondalar e do seu amor, e vira-o controlar os seus intensos sentimentos quando viviam com os Mamutoi. Acreditava conhecê-lo. Agora tinha a certeza de que o conhecia realmente e em absoluto. Procurara aparentar normalidade, mas estava cansada de passar as noites em branco, demasiado preocupada, dorida e furiosa para adormecer, e o que necessitava era de descanso e de tranquilidade.

Talvez a Zelandoni, deixando-se arrastar pelo seu interesse na raíz do Clã, tivesse sido pouco perspicaz, mas a verdade era que Ayla sempre fora um caso à parte. Não tinham suficientes pontos de referência em comum. Eram provenientes de locais distintos. Mesmo quando acreditava que entendia a jovem, descobria que o que considerava aplicável, para Ayla não o era.

- Não quero insistir, se acreditas que não o devemos fazer, Ayla, mas se puderes explicar-me como se prepara essa raíz, poderíamos levar a cabo uma pequena experiência. Só para ver se pode ser útil. E unicamente para os zelandonia, claro está. O que te parece? - perguntou a Zelandoni.

No turbulento estado de Ayla, até o aterrorizante vazio negro lhe pareceu um bom lugar de repouso, um lugar para onde fugir da confusão que a envolvia. E se não voltasse, que importância tinha? Jondalar já não queria saber dela. Sentiria a falta da filha- Ayla sentiu um aperto no estômago-, mas logo em seguida pensou que Jonayla estaria melhor sem ela. A menina tinha saudades de Jondalar. Se ela desaparecesse, ele regressaria e ocupar-se-ia novamente dela. E eram tantas as pessoas que lhe queriam bem que nunca lhe faltaria nada.

- Não é complicado, Zelandoni- respondeu Ayla. - Na verdade, basta mastigar bem as raízes até se transformarem numa polpa e depois cospem-se para uma tigela com água. Mas quando se está a mastigá-las, a pessoa que o faz não deve engolir o sumo. É possível que o sumo que se acumula na boca seja um ingrediente necessário.

- Só isso? Eu diria que se tomarmos uma quantidade pequena, como se faz quando se prova qualquer coisa nova, não deverá haver grande perigo- comentou a Zelandoni.

-Além disso, o Clã cumpre uns rituais. A curandeira que prepara a raíz para os Mog-urs deve purificar-se antes, banhar-se num rio, e não deve estar vestida. Iza explicou-me que o faziam dessa maneira para que a mulher estivesse imaculada e a descoberto, sem esconder nada; assim não contaminava os homens santos, os Mog-urs. O Mog-ur, Creb, fez-me desenhos no corpo, em especial círculos em volta das partes íntimas- contou Ayla. - Para o Clã, é uma cerimónia muito sagrada.

- Poderíamos usar a caverna nova que encontraste. É um lugar muito sagrado e íntimo. Seria uma boa maneira de a utilizar- propôs a Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Grande Mãe Terra.

- Mais alguma coisa?

- Não, mas quando provei a raíz com Mamut, assegurou-se de que a gente do Acampamento do Leão não deixasse de cantar para que tivéssemos algo a que nos apegarmos, algo que nos mantivesse em contacto com este mundo e nos ajudasse a encontrar o caminho de volta. - Vacilou, baixou o olhar para o copo vazio e acrescentou num sussurro:

- Segundo Mamut, é possível que Jondalar nos ajude a voltar, não sei como.

- Garantiremos que todos os zelandonia lá estejam. São muito bons a cantar em conjunto. É preciso cantar alguma coisa em concreto? - quis saber a Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Mãe.

- Não creio. Basta que seja algo conhecido- respondeu Ayla.

- Quando deveria fazer-se? - perguntou a Zelandoni, com mais entusiasmo do que se esperava.

- Não penso que isso importe.

- Amanhã de manhã? Quando tivermos tudo pronto?

Ayla encolheu os ombros, como se lhe fosse igual, e nesse momento assim era.

- Suponho que é um dia tão bom como qualquer outro- declarou.

 

Jondalar estava tão angustiado quanto Ayla. Enganara toda a gente na medida do possível desde a grande cerimónia celebrada para comunicar aos Zelandoni a função dos homens e a razão pela qual haviam sido criados. Guardava apenas vagas recordações de alguns momentos dessa noite. Lembrava-se que destruíra a cara de Laramar ao murro, e não conseguia tirar da sua memória a imagem daquele homem agitando-se em cima de Ayla. Quando acordou no dia seguinte, sentia a cabeça a ponto de explodir, tinha tonturas e náuseas. Não se recordava de alguma vez se ter sentido tão mal, e perguntou-se o que conteria a bebida que consumira.

Danug encontrava-se a seu lado, e Jondalar tinha a sensação de que não confiava nele, mas não entendia porquê. Fez-lhe algumas perguntas, tentando descobrir o que se passava. Quando Jondalar descobriu o que fizera, começou a recordar o sucedido e ficou horrorizado, enchendo-se de vergonha e embaraço. Nunca gostara particularmente de Laramar, mas nada do que esse homem lhe fizera podia ser tão terrível como o que Jondalar lhe tinha feito a ele. Achava-se tão odioso que era incapaz de pensar noutra coisa. Tinha a certeza de que os restantes sentiam o mesmo e não tinha dúvidas de que Ayla já não gostava dele. Como podia gostar de uma pessoa tão desprezível?

Parte dele desejava deixar tudo para trás e ir-se embora, o mais longe possível, mas algo o segurava. Disse para si mesmo que devia esperar pelo seu castigo, saber qual seria e reparar de algum modo o dano causado, mas era mais a sensação de ter uma tarefa pendente e não poder ir deixando as coisas assim, por resolver. E no mais fundo do seu ser não sabia até que ponto seria capaz de abandonar Ayla e Jonayla. Não suportava a ideia de nunca mais as ver. No pior dos casos, conformar-se-ia em vê-las de longe.

A dor, a culpa e o desespero rodopiavam na sua cabeça. Não lhe ocorria nenhum caminho para voltar a endireitar a sua vida, e de cada vez que via alguém, tinha a certeza de que o mirava com o mesmo asco e desprezo que sentia por si mesmo. Parte desse descrédito devia-se ao facto de, apesar do deplorável que fora o seu comportamento e o muito que se envergonhava, cada vez que fechava os olhos e tentava dormir, que via Laramar em cima de Ayla e era tomado pela mesma fúria e frustração que se haviam apoderado dele nessa altura. No fundo, sabia que, nas mesmas circunstâncias, voltaria a agir da mesma forma.

Jondalar não fazia mais do que remoer os seus problemas. Era uma marca permanente, como quando se arranca a crosta de um pequeno corte, sem o deixar cicatrizar, piorando-o cada vez mais, até que se converte numa infeção supurante. No seu empenho em iludir toda a gente, começou a dar longos passeios, normalmente junto à margem do Rio. Cada vez ia um pouco mais longe, demorava um pouco mais, mas chegava sempre o momento em que já não podia continuar e tinha de dar meia volta e regressar. Às vezes ia buscar Racer e, ao invés de bordear o rio, atravessava a pradaria a cavalo. Resistia a fazê-lo com demasiada frequência porque era nessa altura que se sentia mais tentado a seguir em frente, mas nesse dia apetecia-lhe montar e afastar-se do acampamento.

Assim que acordou, Ayla levantou-se e foi ao Rio. Não dormira bem; ao princípio estava demasiado tensa e inquieta, e depois foi perseguida por pesadelos que lhe deixaram uma sensação de desassossego. Pensou no que devia fazer para reproduzir a cerimónia do Clã da maneira mais precisa e fiel possível. Enquanto procurava saboeira para se purificar, também permanecia atenta para ver se via um pedaço generoso de sílex. Queria confecionar uma ferramenta de corte como as do Clã para recortar um pedaço de couro e confecionar um amuleto do Clã.

Quando chegou à desembocadura do riacho no Rio, virou para seguir o seu curso, ao invés de o bordear. Teve de caminhar um bom bocado para montante até encontrar umas plantas saboeiras no bosque atrás do acampamento da Nona Caverna. Era o final da estação e já as haviam arrancado quase todas. A variedade que encontrou não era a mesma que o Clã usava, e queria celebrar o ritual como devia ser. Embora sendo ela mulher, nunca equivaleria a uma cerimónia do Clã. Só os homens do Clã consumiam as raízes. A função da mulher consistia unicamente em prepará-las. Ao agachar-se para arrancar as plantas, pareceu-lhe vislumbrar Jondalar no bosque, bordeando o riacho, mas quando se ergueu já não o viu e perguntou-se se o vira mesmo ou se teria sido imaginação sua.

O garanhão ficou satisfeito ao ver Jondalar. Os restantes cavalos também, mas ele preferiu não os levar. Apetecia-lhe uma boa e longa cavalgada a sós. Quando chegaram à pradaria, Jondalar picou o cavalo para que empreendesse um galope veloz pelos campos. Racer parecia desejoso de estar à altura do seu nome. A Jondalar era indiferente para onde iam ou onde se encontravam. De súbito, viu-se literalmente arrancado dos seus sombrios pensamentos por um relincho poderoso e agressivo, somado a um som de cascos, e notou que a sua montada se erguia nas patas traseiras. Encontravam-se numa pradaria, no meio de uma manada de cavalos. Só graças aos seus anos de experiência como ginete e à rapidez dos seus reflexos conseguiu evitar cair ao chão. Deitou-se para a frente e, agarrando-se com uma mão à crina eriçada do cavalo das estepes, segurou-se com toda a força numa tentativa de tranquilizar o corcel e recuperar o controlo. Embora Racer fosse um animal sadio, na flor da vida, nunca a experiência de conviver com a manada auxiliar de machos que permanecia em torno da manada principal, formada pelas fêmeas e suas crias, feito que obrigava o semental da manada a estar sempre de guarda e pronto para defender os seus. Também nunca participara nas lutas fingidas com outros machos jovens nos seus primeiros anos, embora por instinto estivesse pronto para enfrentar os machos de uma manada.

A primeira coisa que Jondalar pensou foi que devia afastar o seu cavalo, e o mais depressa possível, mas sentiu grandes dificuldades em obrigá-lo a virar e a dirigir-se para o acampamento. Quando Racer se acalmou e por fim já cavalgavam de regresso num passo uniforme, Jondalar começou a interrogar-se se era justo manter o viril garanhão afastado dos outros cavalos e, pela primeira vez, pôs a hipótese de o deixar em liberdade. Mas ainda não estava pronto para renunciar ao seu cavalo, principalmente quando se recordava dos longos e prazenteiros passeios que dava com o seu garanhão zaino.

No caminho de regresso, voltou a sentir-se taciturno e introspe-tivo. Recordou o dia da grande reunião e quando viu Ayla sentada rigidamente enquanto Brukeval a insultava. O seu desejo imediato foi consolá-la, obrigar Brukeval a calar-se, dizer-lhe que estava enganado. Entendera na perfeição as explicações da Zelandoni, que tinha já escutado quase integralmente pela boca de Ayla, e estava mais predisposto do que a maioria a aceitá-las. O que era novo para ele era o nome dado à relação, “pai”, e pensou nas últimas palavras da Zelandoni: que os homens deviam pôr o nome aos filhos, dar o nome aos filhos varões. Repetiu a palavra para si mesmo. Pai. Ele era um pai. Era o pai de Jonayla.

Não era digno de ser o pai de Jonayla! Seria uma desonra para ela dizer que ele era o seu pai. Por pouco não matara um homem com as próprias mãos. Se não fosse Danug, teria acabado com ele. Ayla perdera um filho permanecendo nos túneis profundos da Caverna da Rocha da Fonte, e ele não estava lá para a ajudar. E se a criança que perdera fosse varão? Se não o tivesse perdido e fosse varão, ter-lhe-ia posto o nome? O que se sentia quando se decidia o nome de um filho?

E o que importava isso? Nunca poderia pôr o nome a uma criança. Nunca mais teria filhos. Perdera a sua companheira e ver-se-ia obrigado a sair do seu lar. Quando a Zelandoni deu por concluída a reunião, ele já escapara às perguntas e dúvidas dos restantes e regressara a toda a pressa ao alojamento afastado para não ter de ver Ayla, nem Jonayla.

Sentia-se na mesma quando no dia seguinte os demais ocupantes do acampamento afastado abalaram para o acampamento dos Lanzadoni, para o grande banquete, mas uma vez a sós não conseguia deixar de pensar nos seus erros. No final, já não suportava ficar no alojamento, dando voltas e mais voltas ao mesmo, culpando-se, recriminando-se, castigando-se. Saiu e dirigiu-se ao Rio para dar outro passeio demorado. Desde que estivera prestes a dar de caras com um semental ao cruzar-se com a manada de éguas, Racer parecia mais excitável e Jondalar decidiu não o montar. Quando começou a caminhar rio acima, ficou surpreendido por ver Lobo. Jondalar alegrou-se e deteve-se para o saudar, rodeando-lhe o pescoço, agora com a pelagem mais espessa e exuberante.

- Lobo! O que te traz aqui? Também te cansaste de tanto barulho e comoção? - disse, com entusiasmo. O animal respondeu com um suave ganido de prazer.

Lobo permanecera todos aqueles dias perto de Jonayla, depois de ter ficado longe dela durante tanto tempo, e dependente também de Ayla, que havia sido o seu foco de atenção desde o dia em que ela tirara o cachorro assustado de quatro semanas da sua toca fria e solitária e, por conseguinte, não passara muito tempo na companhia do terceiro humano que considerava membro essencial da sua matilha. Depois de comer as sobras do banquete, Lobo, já de caminho para o acampamento da Nona Caverna, viu Jondalar, que se dirigia para o Rio, e lançou-se a correr para ele, à frente de Jonayla. Virou-se para olhar para ela e ganiu.

- Vai, Lobo- disse a menina, fazendo-lhe sinal para que continuasse. - Vai ter com Jondalar.

Jonayla reparara na profunda tristeza de Jondalar, e estava mais do que consciente que a mãe se sentia da mesma forma, embora tentasse a todo o custo dissimulá-lo. Não sabia o que era, apesar de se dar conta de que algo terrível se passava e sentindo um aperto terrível no estômago. O seu maior desejo era que a sua família voltasse a estar junta, e isso incluía Thona e Wimar, e também Lobo e os cavalos. “Talvez Jondy precise de te ver, Lobo, e de estar contigo, como se fosse eu”, disse Jonayla para si própria.

Ayla estivera a pensar em Jondalar ou, mais exatamente, no pequeno charco no riacho, para aí tomar o seu banho cerimonial, e isso levou-a a pensar em Jondalar. Desejava a quietude e a intimidade desse lugar isolado para a limpeza purificadora, mas fora incapaz de voltar ali desde que surpreendera Jondalar com Marona. Constava-lhe que nessa zona havia sílex- Jondalar encontrara-o-, mas não o viu, e duvidava que tivesse tempo de o procurar mais longe. Sabia que Jondalar guardava sempre uns quantos pedaços, mas nem sequer contemplou ir pedir-lhe. Ele não queria falar com ela. Teria de arranjar-se com uma faca zelandoni para cortar o couro e abrir os buracos na beira para passar o cordão, embora também isso implicasse desviar-se dos costumes do Clã.

Encontrou uma rocha plana, aproximou-a do charco no riacho e depois, com outra pedra mais arredondada, esmagou os ingredientes espumosos da planta, misturados com um pouco de água. Em seguida, entrou nas serenas águas do charco e verteu a espuma sobre a pele. A parte inferior do corpo aclarou-se quando se afastou da margem para se enxaguar. Mergulhou a cabeça, nadou um pouco e logo voltou para a margem, para lavar o cabelo. Enquanto tomava banho, pensou no Clã.

Recordava a sua infância no clã de Brun como um período de paz e segurança, com Iza e Creb ali para a protegerem e cuidarem dela. Todos sabiam desde o seu nascimento o que se esperava deles, e não se fazia a menor concessão aos desvios. Os papéis definiam-se claramente. Todos sabiam onde encaixavam, qual era o seu posto, a sua função e o seu lugar. A vida era estável e segura. Não tinham de se preocupar com ideias novas.

Porque tivera de ser ela a introduzir as mudanças que afetavam toda a gente? Mudanças que haviam levado algumas pessoas a odiá-la. Em retrospetiva, a sua vida com o Clã parecia-lhe tranquilizadora; perguntou-se porque lutara tanto contra as restrições. Agora, a ordem na vida do Clã parecia-lhe atraente. Uma vida estritamente regulada proporcionava uma certa segurança.

Apesar de tudo, alegrava-se de ter aprendido a caçar, embora fosse contra as tradições do Clã. Era mulher, e as mulheres do Clã não caçavam, mas se não tivesse aprendido a fazê-lo, naquele momento nem estaria viva; e, quando o descobriram, por pouco não morria precisamente por causa disso. A primeira vez foi amaldiçoada, e Brun expulsou-a do Clã pelo período de uma lua. Era o início do inverno e acreditaram que morreria. Todavia, aquilo que provocara a sua expulsão, a caça, também lhe salvara a vida. “Talvez devesse ter morrido nessa altura”, pensou.

Voltou a desafiar os costumes do Clã quando se juntou com Dure, mas não podia expor o filho recém-nascido aos elementos e aos carnívoros só porque eles acreditavam que era disforme. Brun, apesar da oposição de Broud, perdoou-lhes. Broud nunca lhe facilitara a vida. Quando se converteu em líder e a expulsou, foi para sempre e sem qualquer razão, e então viu-se obrigada a abandonar definitivamente o Clã. Também nessa ocasião fora a caça que a salvara. Jamais sobreviveria no vale se não soubesse caçar e se não soubesse que podia viver sozinha se fosse necessário.

Ao voltar ao acampamento, Ayla continuava a pensar no Clã e em como preparar os rituais relacionados com as raízes. Viu Jonayla sentada com Proleva e Marthona. Estas saudaram-na com um aceno e fizeram-lhe sinal para que se aproximasse.

- Vem comer qualquer coisa- convidou Proleva.

Lobo, cansado de passear com o homem melancólico, que mais não fazia do que arrastar-se de um lado para o outro, tinha regressado à procura de Jonayla. Deitado do outro lado da fogueira a roer um osso, levantou a cabeça. Ayla encaminhou-se na direção delas. Abraçou a filha, afastou-a por momentos, contemplou-a com uma estranha tristeza e voltou a abraçá-la, quase com demasiada força.

- Tens o cabelo molhado, mãe- disse Jonayla, contorcendo-se para se libertar do abraço apertado.

- Acabei de o lavar- respondeu Ayla, acariciando o lobo, que se aproximara para a saudar. Emoldurou a bonita cabeça do animal com ambas as mãos, olhou-o nos olhos e abraçou-o com fervor. Quando se levantou, o lobo alçou a cabeça e mirou-a como se esperasse algo dela. Ayla deu umas quantas palmadas no peito, quase à altura dos ombros. Lobo ergueu-se sobre as patas traseiras, apoiou as dianteiras nos ombros de Ayla, lambeu-lhe o pescoço e a cara e rodeou-lhe delicadamente o queixo com os dentes, retendo-a ali por instantes. Quando a soltou, Ayla devolveu-lhe o sinal de pertença à matilha, envolvendo-lhe o focinho com os dentes por momentos. Há algum tempo que não o fazia e pareceu-lhe que Lobo ficou bastante satisfeito.

Quando Lobo voltou a pôr as patas dianteiras no solo, Proleva, que sustinha a respiração, deixou escapar um suspiro. Por muito que já a tivesse visto, aquele tipo de conduta por parte de Ayla parecia-lhe inquietante. Ver a mulher oferecer o pescoço aos dentes do enorme lobo deixava-a nervosa, e tomava consciência de que aquele animal amigável e bem-educado era um poderoso carnívoro que podia matar sem a menor dificuldade qualquer dos humanos com os quais se cruzava tão livremente.

Depois de voltar a respirar tranquilamente e a esquecer os seus temores, Proleva disse:

- Serve-te, Ayla. Há comida em abundância. A desta manhã foi fácil de preparar. Havia bastantes sobras de ontem. Alegra-me que tivéssemos decidido organizar um banquete com os lanzadoni. Foi um prazer trabalhar com Jerika e Joplaya, e outras mulheres. Agora tenho a impressão de que as conheço um pouco melhor.

Ayla sentiu uma pontada de pesar. Lamentou ter estado tão ocupada com a zelandonia. Teria gostado de participar nos preparativos do banquete. Uma boa maneira de conhecer as pessoas era trabalhar com elas. Outro obstáculo havia sido o facto de estar tão concentrada nos seus problemas; ao fim e ao cabo, poderia ter ido antes, pensou enquanto pegava num dos copos à disposição daqueles que se esqueciam dos seus e o mergulhava na grande caixa de madeira para se servir de uma infusão. A primeira coisa que se preparava pela manhã era sempre uma infusão.

- O auroque está especialmente bom e suculento, Ayla. Os animais já começaram a acumular a gordura de inverno, e Proleva acaba de o reaquecer. Tens de o provar- instou Marthona ao ver que Ayla não pegava na comida. - Os pratos estão ali. - Apontou para uma pilha de objetos de diferentes tamanhos mas quase todos planos, feitos de madeira, osso e marfim, que se usavam como pratos.

As árvores caídas ou abatidas para lenha por vezes deixavam grandes lascas que podiam recortar-se e desbastar-se com facilidade para confecionar pratos; os ossos de diversos cervos, bisontes e auroques, mais concretamente as omoplatas e as pélvis, reduziam-se toscamente a um tamanho razoável com o mesmo fim. Os dentes de mamute podiam fragmentar-se, como o sílex pedernal, mas extraindo pedaços muito maiores, empregues também como pratos.

Além disso, ao marfim de mamute podia dar-se forma previamente gravando um sulco circular com um cinzel. Depois, valendo-se do extremo maciço de uma haste ou de um chifre, aplicavam a ponta deste no ângulo mais conveniente sobre o sulco circular; com prática e um pouco de sorte, golpeavam um lado rombo do corno com um maço de pedra até este desprender um círculo de marfim a partir do sulco previamente gravado. Estes círculos de marfim, com uma superfície exterior lisa e um pouco côncava, podiam usar-se para mais coisas além de pratos, e às vezes gravavam-se neles imagens decorativas.

- Obrigada, Marthona, mas tenho de ir buscar umas quantas coisas e ir ter com a Zelandoni- disse Ayla. Em seguida agachou-se diante da mulher mais velha que estava sentada num pequeno tamborete de junco e ramos flexíveis tecidos. - Quero agradecer-te, com toda a sinceridade, por me tratares com tanta amabilidade desde o dia que cheguei. Não me recordo da minha mãe, apenas de Iza, a mulher do Clã que me criou, mas gosto de pensar que a minha verdadeira mãe seria parecida contigo.

- Tu és como uma filha para mim, Ayla- retorquiu Marthona, mais comovida do que teria esperado. - O meu filho teve sorte em te encontrar. - Anuiu ligeiramente. - Às vezes gostava que fosse mais parecido contigo.

Ayla abraçou-a e voltou-se para Proleva.

- Também te agradeço, Proleva. Tens sido uma boa amiga, e agradeço-te mais do que consigo expressar o muito que cuidaste de Jonayla quando tive de ficar na Nona Caverna, e quando estive ocupada nestes últimos dias. - Também abraçou Proleva. - Quem me dera que Folara estivesse aqui, mas sei o que exigem os preparativos de uma cerimónia matrimonial. Creio que Aldanor é um bom homem, e fico contente por ela. Agora tenho de ir- disse logo em seguida. Voltou-se para abraçar de novo a filha e abalou a toda a pressa com os olhos marejados.

- E a que propósito foi isto? - perguntou Proleva.

- Se não fosse tão absurdo, quase diria que estava a despedir-se- respondeu Marthona.

- A minha mãe vai a algum lado, Marthona? - quis saber Jonayla.

- Não creio. Pelo menos não me disse nada a esse respeito.

Ayla permaneceu por momentos no alojamento de verão preparando tudo. Primeiro recortou uma forma circular numa pele procedente do ventre de um cervo vermelho que levara à Reunião de verão. Encontrara a suave camurça no dia anterior, dobrada entre as suas peles de dormir. Quando perguntou a Jonayla quem curtira o couro, ela respondera: “Toda gente.”

O cordame- as cordas de fibras, os cordéis, os resistentes tendões e as tiras de couro, todos de diversos tamanhos- era sempre útil e fácil de fazer, sem pensar muito nisso, quando se conhecia a técnica. A maioria das pessoas confecionava essas coisas enquanto falava ou escutava histórias, utilizando materiais que reunia à medida que os encontrava. Dessa forma, havia sempre cordame à mão e à disposição de todos. Ayla pegou numa tira de couro e numa corda larga, fina e flexível, que pendiam de umas estacas cravadas nos postes junto à entrada. Depois de recortar a forma circular na zona do ventre, dobrou o resto do couro, enrolou a corda e pô-la por cima.

Colocou a tira de couro em redor do couro para medir o comprimento necessário, acrescentou um pouco mais, e em seguida passou-a pelos orifícios que fizera na borda do círculo de pele.

Já quase nunca usava o seu amuleto, nem sequer o mais recente. A maioria dos Zelandoni usava colares, e era um pouco incómodo colocar simultaneamente em volta do pescoço uma bolsa de couro volumosa e um colar. Assim, levava o amuleto na bolsa dos medicamentos, que tinha o hábito de prender à cintura. Não era uma bolsa de ervas do Clã. Pensara várias vezes em fazer outra, mas nunca encontrara o momento certo. Depois de desatar o cordão que fechava a bolsa dos medicamentos, procurou no interior e tirou a pequena bolsa decorada, o seu amuleto, que continha objetos com formas estranhas. Desatou os nós e despejou para a mão a peculiar coleção de objetos. Eram os signos do seu totem, que representavam momentos transcendentais da sua vida. A maioria havia-lhe sido entregue pelo espírito do Grande Leão das Cavernas depois de tomar uma decisão vital, mas não todos.

O fragmento de ocre vermelho, o primeiro objeto guardado na bolsa, estava alisado pelo desgaste. Dera-lho Iza quando o Clã a aceitou. Ayla guardou-o no amuleto novo. O pedaço de dióxido de manganês negro que recebeu ao converter-se em curandeira também estava desgastado depois de tanto tempo na pequena bolsa. O material vermelho e negro utilizado para colorir deixara resíduos nos restantes objetos da bolsa. Os minerais podiam limpar-se com uma escova, como o fóssil de concha, o signo do seu totem que indicava que a decisão de aprender a caçar, apesar de ser mulher, havia sido correta.

“Já devia saber que necessitaria de caçar para sobreviver”, cogitou. “O meu Leão das Cavernas até disse a Brun que devia deixar-me caçar, embora apenas com a funda.” O disco de marfim de mamute, o talismã de caça que lhe entregaram ao declará-la a Mulher Que Caça, estava impregnado de cores e não podia escovar-se, principalmente o vermelho do ocre.

Pegou no pedaço de pirite de ferro e esfregou-o contra a túnica. Era o seu signo preferido: assinalava que fizera bem em fugir com Dure. Caso contrário, o pequeno teria ficado exposto a todo o tipo de perigos e ninguém se importaria porque o consideravam disforme. Quando levou a criança e a escondeu, sabendo que também ela poderia morrer, obrigou Brun e Creb a pensar.

O pó colorido agarrara-se ao cristal de quartzo transparente mas não o tingira; esse era o signo que encontrara e que lhe revelara que fizera bem em não procurar mais o seu povo e em ter ficado algum tempo no vale dos Cavalos. Inquietava-se sempre ao ver a pedra negra. Voltou a pegar-lhe e segurou-a na mão fechada. Continha o espírito de todos os membros do Clã. Ayla dera uma parte do seu espírito em troca daquela pedra; desse modo, quando salvava a vida a alguém, essa pessoa não contraía uma dívida com ela porque ela já tinha uma parte do espírito de todos.

Quando Iza faleceu, Creb, o Mog-ur, ficara com a sua pedra de curandeira antes de a enterrar para que Iza não levasse consigo todo o Clã para o mundo dos espíritos, mas ninguém lhe retirou a pedra a ela quando Broud a amaldiçoou, condenando-a à morte. Goov ocupava o cargo de Mog-ur há pouco tempo, e ficaram todos tão atónitos com aquela maldição que ninguém se recordou de a reclamar, e ela esqueceu-se de a devolver. O que aconteceria ao Clã se ela ainda conservasse a pedra quando passasse para o outro mundo?

Guardou todos os seus símbolos do totem na bolsa nova, e supôs que a partir daquele momento os guardaria sempre ali. Parecia-lhe adequado que os seus símbolos do totem do Clã permanecessem numa bolsa-amuleto do clã. Enquanto apertava a tira, perguntou-se, como tantas vezes, porque nunca recebera um sinal do seu totem ao decidir deixar os Mamutoi e partir com Jondalar. Ter-se-ia já convertido em filha da Grande Mãe? Teria a Mãe dito ao seu totem que não necessitava de um símbolo? Ter-lhe-iam dado um sinal mais subtil que não reconheceu? Foi assaltada por uma ideia nova e mais aterradora: ter-se-ia enganado na sua decisão? Sentiu um calafrio. Pela primeira vez em muito tempo, Ayla fechou a mão em torno do amuleto e em silêncio suplicou proteção ao Espírito do Grande Leão das Cavernas.

Quando saiu do alojamento provisório, Ayla levava uma pele de camurça dobrada, um saco de couro no qual sobressaíam numerosos objetos e a sua bolsa de medicamentos do Clã. Já havia mais pessoas em volta da fogueira do acampamento e Ayla saudou-as com a mão, mas não recorreu ao gesto habitual de despedida, o gesto de “já volto”, com a palma da mão para dentro, virada para si, empregue para indicar uma separação temporária e dar a entender que não tardaria a regressar. Levantara a mão, com a palma para fora, e movera-a ligeiramente de um lado para o outro. Marthona franziu o sobrolho ao aperceber-se do sinal.

Quando Ayla se encaminhou para montante pela margem do riacho, tomando um atalho para ir à caverna que descobrira há uns anos, questionou-se se devia seguir em frente com aquela cerimónia. Sim, defraudaria a Zelandoni, e também os restantes zelandonia que se preparavam para assistir, mas aquilo era mais perigoso do que pensavam. Quando acedeu a celebrar a cerimónia no dia anterior, estava tão deprimida que pouco se importava se se perdia no vazio negro, mas naquela manhã sentia-se melhor, sobretudo depois do banho, e de Jonayla e Lobo, para além de Marthona e de Proleva. Agora já não estava tão disposta a enfrentar o vazio negro e aterrador. Talvez devesse dizer à Zelandoni que mudara de ideias.

Não pensara no perigo que a esperava enquanto se ocupava dos preparativos preliminares, mas ficara aborrecida com a impossibilidade de levar a cabo todos os rituais. Esse era um aspeto muito importante nas cerimónias do Clã, diferente das que os Zelandoni celebravam, mais tolerantes com os desvios e alterações. Até a letra do Cântico à Mãe apresentava ligeiras variações, o que era um dos temas de conversa preferidos entre os zelandonia, e isso tratando-se da Lenda dos Anciãos mais importante de todas.

Se essa lenda tivesse feito parte das cerimónias sagradas do Clã, estes tê-la-iam memorizado e recitado exatamente da mesma maneira de cada vez, ou pelo menos assim teria sido entre os clãs que mantinham contacto direto com uma certa regularidade. Até os clãs de regiões mais afastadas teriam uma versão muito parecida. Era por isso que ela podia comunicar-se com a linguagem sagrada dos gestos do Clã com os clãs dessas regiões, apesar de ficar a um ano de viagem do Clã que a criara. Havia pequenas diferenças, mas era incrivelmente semelhante.

Como se dispunha a celebrar uma cerimónia usando potentes raízes preparadas segundo o procedimento do Clã, pensou que tudo devia realizar-se da maneira mais parecida possível com a tradição do Clã. Acreditava que só assim podia aspirar a manter algum controlo, e começava a pensar que nem sequer isso a ajudaria.

Quando atravessava a zona de bosque, absorta nos seus pensamentos, por pouco não esbarrava em alguém que saía de trás de uma árvore. Ficou atónita ao ver-se praticamente nos braços de Jondalar.

Ele ficou ainda mais surpreendido e não soube o que fazer. O seu primeiro impulso foi acabar o que o acaso iniciara e abraçá-la. Esse era o seu desejo desde há muito tempo, mas ao ver a cara de assombro de Ayla, deu um salto para trás, interpretando a sua surpresa como repulsa, como asco a que lhe tocasse. A reação de Ayla quando Jondalar se afastou foi a de pensar que não queria estar perto dela, que nem sequer suportava a sua presença.

Olharam um para o outro durante algum tempo. Não haviam estado assim tão perto desde que Ayla o surpreendera com Marona, e no fundo do seu coração desejavam ambos prolongar aquele momento, encurtar a distância emocional que os separava. Mas foram distraídos por uma criança que passou a correr pelo caminho onde se encontravam. Afastaram o olhar por um instante e já não conseguiram voltar a mirar-se.

- Hmm... desculpa- disse Jondalar, desejando estreitá-la nos seus braços, mas temendo que ela o recusasse. No seu profundo desconcerto, olhava em redor desesperadamente, como um animal apanhado numa armadilha.

- Não faz mal- respondeu Ayla, baixando o olhar, para ocultar as lágrimas que começavam a querer irromper nos seus olhos. Não queria que Jondalar visse o seu mal-estar ao descobrir que ele não suportava estar perto dela. Sem levantar a cabeça, apressou-se a retomar a marcha antes que os olhos lacrimosos a delatassem. Jondalar teve de conter as lágrimas ao vê-la quase a correr, na sua pressa de se afastar dele.

Ayla seguiu pelo que parecia um início de caminho até à nova caverna. Embora o mais provável fosse que todos os membros da família zelandoni tivessem entrado naquela caverna ao menos uma vez, a verdade era que não se utilizava muito. Como era tão bonita e tão pouco comum, com as suas paredes de pedra quase branca, considerava-se um lugar muito espiritual, muito sagrado, e até um pouco inviolável. Os zelandonia e os líderes das cavernas ainda procuravam os meios e as ocasiões mais adequadas para a usar. Era tão nova que ainda não se haviam desenvolvido as tradições.

Quando se aproximou da base da pequena colina que albergava a caverna, notou que a entrada já não estava obstruída pelo arbusto e pela árvore caída, cujas raízes, ao serem arrancadas, haviam deixado à vista naquele dia a abertura de acesso às câmaras subterrâneas. Também se tinham retirado as pedras e a terra em torno da entrada, pelo que agora parecia mais ampla.

Embora não a entusiasmasse a ideia de celebrar a cerimónia que estivera a preparar, ansiava por ver de novo a caverna, ainda que já não sentisse o mesmo estado de alma mais otimista que quase a levara a renunciar àquela perigosa cerimónia. A sua desdita era equiparável ao vazio negro que a esperava. Que importância tinha se acabasse por se perder ali? Não haveria de ser pior do que o mal-estar que a invadia. Esforçou-se por recuperar o controlo de si própria, coisa que nesse dia tanto lhe custava. Tinha a sensação de estar à beira das lágrimas desde que acordara.

Tirou da sacola de couro uma tigela de pedra pouco profunda e um fardo envolto em pele. Este continha uma bolsa impermeável cheia de gordura com uma tampa na extremidade, e a pele, atada, servia para que a gordura filtrada não manchasse nada. Encontrou o pacote com as mechas de líquen, deitou um pouco de gordura na tigela, acendeu a mecha durante uns segundos, para a empapar, e por fim colocou-a na borda da candeia em forma de tigela. Quando se preparava para acender uma pequena fogueira com a sua pedra de fogo, viu as outras duas zelandonia subirem pelo carreiro.

Ayla recuperou a compostura. A sua aceitação na zelandonia ainda era recente, e desejava conservar o respeito dos outros. Cumprimentaram-se e falaram de trivialidades; em seguida, uma delas segurou na candeia enquanto observava Ayla a acender a pequena fogueira no chão com a sua pedra de fogo. Enquanto segurava a candeia, apagou o fogo com terra e as três entraram na caverna.

Depois de deixarem o calor da zona de entrada, e já na escuridão do interior, a temperatura baixou consideravelmente até alcançar a de quase todas as cavernas, cerca de doze graus. Não conversaram muito enquanto se deslocavam por entre as rochas que afloravam e a argila que escorregava, sem mais iluminação do que a candeia. Quando chegaram a uma câmara mais ampla, tinham já a vista tão habituada à escuridão que a luz de tantas candeias por pouco não as cegou. Já tinham chegado quase todos os zelandonia e esperavam Ayla.

- Ah, aí estás tu, Zelandoni da Nona Caverna- disse a Primeira. - Fizeste todos os preparativos que consideravas necessários?

- Não exatamente- respondeu Ayla. - Ainda tenho de mudar de roupa. Numa cerimónia do Clã, teria de preparar a bebida sem roupa, apenas com o meu amuleto e uns desenhos pintados no meu corpo pelo Mog-ur. Mas dentro da caverna faz demasiado frio para ficar despida durante muito tempo; além disso, os Mog-urs que bebem o líquido vão vestidos, por isso farei o mesmo. Creio que é importante seguir o máximo possível a cerimónia do Clã e, portanto, decidi envolver-me numa pele ao estilo das mulheres do Clã. Fiz um amuleto do Clã para os meus símbolos do totem e, para demonstrar que sou uma curandeira, levarei a minha bolsa de medicamentos do Clã, embora o que importe sejam os objetos no interior do amuleto. Graças a eles, os espíritos irão reconhecer-me como mulher do Clã, e também como curandeira.

Observada com grande curiosidade por todos os zelandonia, Ayla tirou a roupa e envolveu-se com a pele de camurça suave e flexível, fechando-a com um cordel comprido de modo que a pele formasse bolsas e pregas onde guardar coisas. Pensou em todos os pormenores dos costumes do Clã, começando pela própria preparação da bebida, para ela e não para os Mog-urs. Ela não era Mog-ur, nenhuma mulher do Clã podia sê-lo, e desconhecia os rituais prévios à cerimónia, mas era uma Zelandoni e esperava que isso tivesse algum valor quando chegasse ao mundo dos espíritos.

Tirou um saquito da sua bolsa de medicamentos. A luz das numerosas candeias bastava para que pudesse apreciar-se a sua viva cor de ocre vermelho, a mais sagrada para o Clã. Depois tirou uma tigela de madeira da bolsa de couro. Havia confecionado aquela tigela já há algum tempo, era ao estilo do Clã, para a mostrar a Marthona, que, com o seu sentido de estética, saberia valorizar a sua simplicidade e boa feitura. Ayla pensara em oferecer-lha, mas agora alegrava-se de a ter conservado. Embora não fosse a tigela especial usada apenas para essa função por gerações e gerações de antepassados de Iza, ao menos era uma tigela de madeira lavrada com a mesma meticulosidade com que a faria o Clã.

- Vou precisar de um pouco de água- disse Ayla enquanto desatava os nós da bolsinha vermelha. Despejou o conteúdo de raízes para a mão.

- Posso vê-las? - perguntou a Zelandoni.

Ayla estendeu a mão, mas não tinham nada de especial. Eram apenas raízes secas.

- Não sei bem quantas pôr- comentou, e pegou em dois pedaços pequenos, confiando que essa fosse a quantidade adequada.

- Só fiz isto duas vezes, e não tenho as recordações de Iza.

Uns quantos dos zelandonia ali presentes tinham-na já ouvido falar das recordações do Clã, mas na sua maioria ignoravam ao que se referia. Ayla tentara explicá-lo à Zelandoni Que Era a Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Grande Mãe Terra, mas como ela mesma também não sabia exatamente o que era, não podia explaná-lo a ninguém.

Deitaram água na sua tigela de madeira e Ayla bebeu um pouco para humedecer a boca. Recordava-se de como as raízes eram secas e difíceis de mastigar.

- Estou pronta- anunciou, e levou as raízes à boca e começou a mastigá-las.

Levou algum tempo a amaciá-las o suficiente para conseguir mordê-las, e embora procurasse não engolir a saliva, não foi fácil, e pensou que, já que ia bebê-lo ela, talvez isso não fizesse grande diferença. Mastigou e mastigou e mastigou. Dava a impressão de que não terminaria nunca, mas finalmente lá ficou com uma pasta húmida na boca que cuspiu para a tigela. Mexeu-a com o dedo e observou como o líquido ganhava uma cor branca e leitosa.

A Zelandoni olhava por cima do ombro de Ayla.

- Isso deve ficar assim? - Parecia querer identificar o odor.

- Sim- respondeu Ayla. Notava o sabor primigénio na boca.

- Queres cheirá-lo?

- Cheira a antigo- replicou a mulher-, como um bosque denso, fresco e húmido, cheio de musgo e fungos. Posso provar?

Ayla por pouco não recusou. Aquilo era tão sagrado para o Clã que Iza nem sequer pudera preparar um pouco para lhe mostrar como se fazia e, por um momento, Ayla horrorizou-se com o pedido da Zelandoni. Mas logo em seguida compreendeu que aquela experiência era em si tão diferente de qualquer coisa que o Clã pudesse fazer que com toda a certeza era indiferente que a Zelandoni bebesse um pouco. Ayla aproximou-lhe a tigela dos lábios e, vendo que bebia mais do que um sorvo, retirou-lha, para que não se excedesse.

Depois encostou-a à sua própria boca e bebeu o líquido rapidamente, certificando-se de que não sobrava nada para mais ninguém provar. Não queria cometer o mesmo descuido. Iza insistira que não devia sobrar nada, mas preparara uma quantidade excessiva e o Mog-ur, depois de o provar uma primeira vez, dissera que estava demasiado forte. Controlou, assim, a quantidade que cada homem bebia, e deixou um pouco no fundo da tigela. Ayla encontrou o líquido, depois de ter ingerido já uma quantidade desmedida enquanto mastigava a raíz, e de se ter excedido, para cúmulo, com a bebida das mulheres. Encontrava-se em tal estado de confusão que bebeu o resto para que não sobrasse nada. Desta vez iria assegurar-se de que mais ninguém sentia a tentação de provar o líquido.

- Quando devemos começar a cantar? - indagou a Primeira.

Ayla quase se esquecera desse pormenor.

- Provavelmente já deviam ter começado- respondeu, com a voz já um pouco pastosa.

Aquela Que Era a Primeira começava já a notar os efeitos da bebida e esforçava-se por manter o controlo enquanto indicava com um gesto aos zelandonia que iniciassem o canto. “É sem dúvida uma raíz potente”, cogitou, “e só bebi um trago. Como se sentirá Ayla depois de ter bebido a tigela toda?”

Ayla recordava bem esse sabor a antigo e invocou nela sentimentos que nunca esqueceria, recordações e associações das outras vezes que provara a bebida, e de tempos passados. Notou a frescura e a humidade de um denso bosque, como se estivesse nele, rodeada de árvores tão grandes que era difícil circundá-las e passar por entre elas enquanto subia pela inclinada encosta de uma montanha seguida por um cavalo. Líquen de cor verde-acinzentada e uma película de humidade pendiam das árvores, e o musgo cobria o solo e as rochas e os troncos das árvores mortas tombadas do chão formando um tapete infinito de tons que oscilavam entre o verde brilhante e puro, um intenso verde pinho, um cálido verde-acastanhado e todos os matizes intermédios.

Ayla apercebeu-se do odor dos fungos, cogumelos de todas as cores e tamanhos: frágeis asas brancas que brotavam de árvores caídas, grossas plataformas lenhosas coladas a cepos velhos com grandes chapéus castanhos, densos e esponjosos, e pequenos talos, finos e delicados. Havia cogumelos cor de mel agrupados, outros eram esféricos e compactos, outros ainda exibiam uma brilhante cor vermelha com bolas brancas, ou chapéus altos e lisos que ressumavam uma substância negra, ou perfeitos chapéus mortais, de um branco fantasmagórico, e outros mais. Conhecia-os a todos, provara-os a todos, via-os a todos.

Encontrava-se no grande delta de um rio enorme, arrastada por uma corrente de águas castanhas e lodosas, a atravessar densos e altos matagais de juncos, e ilhas flutuantes com árvores e lobos que as trepavam, girando e girando num pequeno barco em forma de tigela revestido de couro, elevando-se e flutuando numa almofada de ar.

Não se deu conta de que lhe faltavam as forças e que os joelhos começavam a ceder, e caiu ao chão. Levantaram-na vários zelandonia e levaram-na para uma zona de descanso que a Zelandoni instalara na caverna de propósito para Ayla. A Primeira quase desejou ter preparado um para si também quando estendeu o braço para o seu sólido tamborete de vime coberto com uma almofada. Tentava manter-se lúcida, observar Ayla, e uma pontada de preocupação começou a tomar forma no fundo da sua mente.

Ayla sentia-se serena, tranquila, enquanto se fundia numa suave bruma que a atraía para o seu interior e finalmente a rodeava por completo. A bruma tornou-se mais densa até se converter numa névoa que a impediu de ver, e de imediato adquiriu a forma de uma nuvem húmida e espessa. Sentiu que a absorvia. Parecia estar a afogar-se, tinha dificuldade em respirar, esbracejava, até que nesse instante notou que começava a mover-se.

Movia-se cada vez mais rápido, apanhada na sua nuvem asfixiante, avançava a tal velocidade que deixou de conseguir respirar e ficou sem ar. A nuvem envolveu-a, espremeu-a, pressionando por todos os lados, contraindo-se, expandindo-se e contraindo-se outra vez, como um ser vivo. Obrigou-a a mover-se ainda mais depressa, até que se precipitou num vazio negro e profundo, um espaço tão escuro como o interior de uma caverna, sem nenhum sentido, aterrador.

A experiência seria menos assustadora se tivesse adormecido, se tivesse perdido os sentidos, como acreditavam aqueles que a observavam, mas não era assim. Não conseguia mexer-se, na realidade não desejava mover-se, mas quando concentrava a sua vontade em mover algo, ainda que fosse apenas um dedo, era incapaz. Nem sequer sentia o dedo, nem parte alguma do seu corpo. Não podia abrir os olhos, nem virar a cabeça; carecia de volição, de vontade, mas ouvia. A um determinado nível, estava consciente. Ouvia o cantarolar dos zelandonia, como um som longínquo e às vezes muito nítido; escutava um ligeiro murmúrio de vozes procedentes de um canto, embora não distinguisse as palavras; escutava até os batimentos do próprio coração.

Cada Donier escolheu um som, procurando um tom e um timbre que pudessem manter comodamente de maneira prolongada. Quando desejavam manter um cântico contínuo, vários doniers começavam a emitir o seu tom. A combinação podia não ser muito harmoniosa, mas isso não era importante. Antes que o primeiro Zelandoni ficasse sem fôlego, acrescentava-se outro, e depois outro e outro, em intervalos regulares. O resultado era uma fuga monótona de tons entrelaçados que podiam prolongar-se indefinidamente se houvesse pessoas suficientes para permitir descansar os que necessitavam de parar de vez em quando.

Para Ayla, era um som reconfortante, que estava ali, mas tendia a esfumar-se num segundo plano, enquanto a sua mente observava cenas que só ela podia ver atrás das pálpebras fechadas, visões dotadas da incoerência lúcida dos sonhos vívidos. Era como se sonhasse acordada. Ao princípio, caiu no espaço negro cada vez a maior velocidade; sabia-o apesar de o vazio permanecer inalterável. Sentia-se aterrorizada e sozinha. Tremendamente sozinha. Não existiam os sentidos, nem o paladar, nem a audição, nem o olfato, nem a vista, nem o tato, e era como se nunca tivessem existido e nunca fossem existir: ali estava apenas a sua mente consciente, gritando.

Passou uma eternidade. Depois, de muito longe, e apenas percetível, viu um resplendor ténue. Estendeu a mão para ele, tentou alcançá-lo. Qualquer coisa, o que fosse, era melhor do que nada. Com o esforço, a sua velocidade aumentou, e a luz expandiu-se até se converter numa mancha amorfa apenas visível e, por um instante, perguntou-se se a sua mente poderia exercer algum outro efeito no estado em que se encontrava. A vaga luz tornou-se mais densa, até formar uma nuvem, e encheu-se de cores, cores que lhe eram estranhas, com nomes desconhecidos.

Afundou-se na nuvem, caindo através dela, cada vez mais depressa, e depois saiu pela parte de baixo. Uma paisagem estranhamente familiar, constituída por formas geométricas repetitivas, surgiu por baixo dela: quadrados e ângulos agudos, brilhantes, resplandecentes, plenos de luz, que se repetiam, que se elevavam. No seu mundo natural conhecido não existiam formas tão retas e definidas. Ali, naquele peculiar e extenso lugar, onde ao longe corriam animais estranhos, havia umas fitas brancas que pareciam ondear junto ao solo.

Ao aproximar-se, viu gente, uma multidão que oscilava e se agitava, e apontavam-na com o dedo. “Tuuu, tuuu, tuuuu”, diziam, quase numa cantoria. Viu uma figura de pé, sozinha. Era um homem, um homem de espíritos mistos. Já mais perto, pareceu-lhe que lhe fazia lembrar alguém, mas não o reconhecia. Ao princípio pensou que era Echozar, mas depois recordou-lhe Brukeval, e as pessoas diziam:

- Tuuu, tuuu és a causadora, tuuu trouxeste o Conhecimento, foste tu.

- Não! - gritou a sua mente. - Foi a Mãe. Foi ela quem me deu o Conhecimento. Onde está a Mãe?

- A Mãe foi-se embora. Ficou apenas o Filho- responderam as pessoas. - Tu és a causadora. Foste tu.

Ayla mirou o homem e de imediato supôs quem fosse, embora o rosto estivesse entre as sombras e não conseguisse vê-lo bem.

- Não pude evitá-lo. Amaldiçoaram-me. Tive de abandonar o meu filho. Broud obrigou-me a ir embora- disse aos gritos a sua voz insonora.

- A Mãe foi-se embora. Ficou apenas o Filho.

No mais profundo da sua mente, Ayla franziu o sobrolho. O que significava aquilo? Depois, o mundo por baixo dela adquiriu outra dimensão, mas continuava ameaçador e ultratérreo. A multidão tinha desaparecido, e o mesmo acontecera às estranhas formas geométricas. Agora era uma pradaria vazia, deserta, açoitada pelo vento. Apareceram dois homens, dois irmãos que ninguém diria que eram irmãos. Um era alto e loiro como Jondalar; o outro, o mais velho, supôs Ayla, era Dure, embora o seu rosto permanecesse entre as sombras. Os dois irmãos dirigiam-se um para o outro, avançando de direções opostas, e ela sentiu-se assaltada por uma enorme angústia, como se estivesse prestes a acontecer qualquer coisa de grave, algo que devia evitar. Com um terror repentino, pensou que um dos seus filhos ia matar o outro. Levantando o braço, continuaram a aproximar-se. Com um enorme esforço, Ayla estendeu as mãos na direção deles.

Em seguida apareceu Mamut e segurou-a.

- Não é o que pensas- disse. - É um símbolo, uma mensagem. Observa e espera.

Um terceiro homem apareceu na estepe açoitada pelo vento. Era Broud, que a olhava com ódio. Os primeiros dois homens juntaram-se e voltaram-se para Broud.

- Maldito seja, maldito seja, maldito seja, que a morte recaia sobre ele- instou Dure, na sua linguagem gestual.

“Mas é teu pai, Dure”, pensou Ayla, com muda apreensão. “Não deverias ser tu a amaldiçoá-lo.”

- Já foi amaldiçoado- lembrou o outro filho. - Amaldiçoaste-o tu, tu que ficaste com a pedra negra. Todos foram amaldiçoados.

- Não! Não! - vociferou Ayla. - Eu devolvo-a. Ainda posso devolvê-la.

- Não podes fazer nada, Ayla. É o teu destino- interveio Mamut.

Quando Ayla se voltou para Mamut, Creb encontrava-se ao seu lado.

- Deste-nos Dure - disse o velho Mog-ur, através de sinais.

- Esse também foi o teu destino. Dure pertence aos Outros, mas também é do Clã. O Clã está condenado, deixará de existir; apenas irão sobreviver aqueles que são como tu e os que são como Dure, os filhos dos espíritos mistos. Não muito, quiçá, mas suficientes. Não será o mesmo, ele acabará por ser como os Outros. Dure é filho do Clã, Ayla. É o único filho do Clã.

Ayla ouviu uma mulher a chorar, e quando se virou para lá a cena voltara a mudar. Estava tudo às escuras, e encontravam-se nas profundezas de uma caverna. Em seguida acenderam umas candeias e viu uma mulher que segurava um homem nos braços. O homem era o seu filho, o alto e loiro, e quando a mulher levantou a cabeça, Ayla, para sua grande surpresa, viu-se a si própria, mas não claramente. Parecia a sua imagem refletida. Um homem aproximou-se e observou-os. Ela olhou e reparou que era Jondalar.

- Onde está o meu filho? - perguntou ele. - Onde está o meu filho?

- Dei-o à Mãe- respondeu o reflexo de Ayla. - A Grande Mãe Terra pediu-mo. É poderosa. Tirou-mo.

Depois Ayla ouviu a multidão e viu de novo aquelas estranhas formas geométricas.

- A Grande Mãe Terra está debilitada- cantarolaram as vozes.

- Os seus filhos não querem saber. Quando deixarem de a honrar, será aniquilada.

- Não- gemeu o reflexo de Ayla. - Se não a honramos, quem irá alimentar-nos? Quem cuidará de nós? Quem irá proteger-nos?

- A Mãe foi-se embora. Ficou apenas o Filho. Os Filhos da Grande Mãe já não são seus filhos. Deixaram a Mãe para trás. Possuem o Conhecimento, alcançaram a maioridade, como Ela sabia que aconteceria. - A mulher continuou a chorar, mas já não era Ayla. Era a Mãe, que chorava porque os seus filhos se tinham ido embora.

Ayla sentiu que estava a ser puxada para fora da caverna; também ela soluçava. As vozes apagaram-se, como se cantarolassem de muito longe. Começou a mover-se de novo, voava por cima de uma ampla pradaria salpicada com extensas manadas. Um grupo de auroques desatou a correr, e uns cavalos galoparam para os acompanhar. Corriam bisontes e cervos. Ayla aproximou-se e começou a distinguir os animais em separado, os que vira quando recebera o chamamento da Grande Mãe e os disfarces que vestiam na cerimónia ao apresentar o novo dom da Mãe para os seus Filhos, quando recitou a última estrofe do Cântico à Mãe.

Dois bisontes machos que corriam a toda a velocidade, dois grandes auroques que avançavam um para o outro, uma enorme fêmea que quase voava, e outra que dava à luz, um cavalo no fim da passagem que terminava no precipício, muitos cavalos, a maioria castanhos, vermelhos e negros, e Whinney com o pelo manchado no lombo e o focinho e dois cornos semelhantes a chifres.

 

AZelandoni não acompanhava Ayla na sua viagem interior, mas entendia-a e sentia-se arrastada para ela. Se tivesse bebido mais, talvez pudesse ter sido transportada juntamente com Ayla e perder-se na enigmática paisagem induzida pela raíz. Ainda assim, perdeu o controlo das suas faculdades durante algum tempo.

Os zelandonia não percebiam bem o que acontecia. Ayla parecia-lhes inconsciente, e dava a impressão de que a Primeira se encontrava num estado muito diferente. Não dormitava, mas às tantas ficava como que ausente, com os olhos vítreos e fixos como se contemplasse algo invisível ao longe. Logo em seguida, erguia-se e dizia coisas sem sentido. Não parecia exercer o menor controlo sobre a experiência, o que em si era anormal, e também não tinha qualquer controlo sobre si mesma, o que os deixava muito nervosos. Os que melhor a conheciam assustaram-se, mas preferiram não transmitir as suas preocupações.

A Primeira acordou com um safanão, como se por um ato de vontade.

- Frio... frio... - disse, e ficou de novo desmaiada e vidraram-se-lhe os olhos. Quando voltou a despertar, vociferou repentinamente. - Tapem... pele... tapem Ayla... frio... muito frio. Deem-lhe calor... - E voltou a apagar-se.

Tinham levado umas quantas cobertas, porque os interiores das cavernas eram sempre frios. E já haviam tapado Ayla com uma, porém, a Décima Primeira decidiu acrescentar outra. Quando, sem querer, tocou na jovem, ficou surpreendida.

- Está fria, quase tanto como a morte- comentou.

- Respira? - perguntou a Terceira.

A Décima Primeira inclinou-se e examinou-a atentamente, percebendo um leve movimento no peito e um ligeiríssimo bafo na boca entreaberta.

- Sim, respira. Mas é uma respiração muito superficial.

- Não devíamos preparar uma infusão quente? - indagou o Quinto.

- Sim, creio que sim, para as duas- respondeu a Terceira.

- Uma infusão para estimular ou para sedar? - quis saber o Quinto.

- Não sei. Qualquer das duas pode provocar uma reação inesperada com a raíz- retorquiu a Terceira.

- Tentemos perguntar à Primeira. É ela quem deve decidir - propôs a Décima Primeira.

Os seus companheiros assentiram. Os três rodearam a mulher corpulenta sentada no tamborete, encurvada para a frente. A Terceira apoiou a mão no seu ombro e abanou-a com delicadeza, e depois um pouco mais bruscamente. A Zelandoni acordou de imediato.

- Queres uma infusão quente? - inquiriu a Terceira.

- Sim! Sim! - respondeu a Primeira, outra vez em voz alta, como se gritar a ajudasse a manter-se desperta.

- Damos também a Ayla?

- Sim. Quente!

- Uma infusão para estimular ou para sedar? - perguntou a Décima Primeira, também em voz alta. A Zelandoni da Décima Quarta Caverna aproximou-se com rugas de preocupação na testa.

- Estimu... Não! - A Primeira interrompeu-se, fazendo um esforço para se concentrar. - Água! Só água quente! - disse. Voltou a abanar-se, tentando manter-se acordada. - Ajuda-me a levantar!

- De certeza que consegues pôr-te de pé? - indagou a Terceira.

- Não caias.

- Ajuda-me a levantar! Tenho de ficar acordada. Ayla precisa... ajuda. - Começou uma vez mais a ausentar-se, e abanou-se violentamente. - Ajudem-me a levantar. Aqueçam... água. Nada de infusões.

A Terceira, a Décima Primeira e a Décima Quarta colocaram-se em redor da corpulenta mulher Que Era a Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Grande Mãe Terra e, com algum esforço, puseram-na de pé. Esta cambaleou e apoiou todo o seu peso em duas das zelandonia e sacudiu a cabeça. Fechou os olhos e o seu rosto adquiriu uma expressão de concentração intensa. Quando os abriu, tinha os dentes cerrados num gesto de determinação, mas já não cambaleava.

- Ayla está em apuros- declarou. - A culpa é minha. Devia ter percebido. - Todavia, custava-lhe concentrar-se, pensar com clareza, mas estar de pé e movimentar-se ajudava-a, como também a água quente, embora fosse apenas porque lhe dava calor. Sentia frio, um frio intenso, tiritava e supôs que não se devia apenas à caverna.

- Demasiado frio. Movam-na. Necessita de uma fogueira. De calor.

- Queres que tiremos Ayla da caverna? - inquiriu a Décima Quarta.

- Sim. Está demasiado frio.

- Devemos acordá-la? - perguntou a Décima Primeira.

- Não creio que consigam- retorquiu a Primeira-, mas podem tentar.

Primeiro tentaram abaná-la com delicadeza, depois com mais força e determinação. Ayla nem se moveu. Tentaram falar-lhe, depois gritar-lhe, mas não foram capazes de a acordar.

A Zelandoni da Terceira Caverna perguntou à Primeira:

- Continuamos a cantar?

- Sim! Cantem! Não parem! É a única coisa que tem! - exclamou a Zelandoni Que Era a Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Grande Mãe.

Os zelandonia mais velhos e experientes deram instruções. Logo se iniciou uma atividade febril. Várias pessoas saíram da caverna a toda a velocidade e correram até ao alojamento da zelandonia, alguns para avivar o fogo e assim aquecer água, outros para buscar uma liteira e tirar a jovem da caverna. Os restantes retomaram o canto com fervor.

Havia várias pessoas perto do alojamento da zelandonia. Um pouco mais tarde, nesse mesmo dia, estava prevista uma reunião dos pares que pensavam atar o nó na segunda cerimónia matrimonial, e umas quantas haviam-se começado a agregar ali. Folara e Aldanor encontravam-se entre eles. Quando vários zelandonia chegaram ao alojamento a correr, Folara e Aldanor entreolharam-se, preocupados.

- O que se passa? Para quê tanta pressa? - quis saber Folara.

- É a nova Zelandoni- respondeu um jovem, um dos acólitos mais recentes.

- Estás a falar de Ayla? A Zelandoni da Nona? - indagou Folara.

- Sim. Preparou uma bebida especial com uma raíz, e a Primeira disse que devíamos tirá-la da caverna porque faz demasiado frio. Não acorda- replicou o acólito.

Escutaram uma agitação e voltaram-se para ver o que se passava. Um par de doniers jovens e fortes ajudavam a Primeira a regressar da caverna. Custava-lhe a manter o equilíbrio e a caminhar sem cambalear. Folara nunca vira a Zelandoni andar com um passo tão instável. Foi invadida por uma súbita apreensão. Aquela Que Era a Primeira mostrava-se sempre segura de si mesma, imperturbável. Apesar da sua corpulência, normalmente movia-se com aprumo e desenvoltura. Para a jovem já era bastante duro ver a mãe cada vez mais débil. Agora aterrava-a ver alguém a quem sempre considerara uma força inquebrável, um baluarte de segurança e força, mostrar tão de súbito tamanha debilidade.

Quando a Primeira chegou ao alojamento, outro grupo de Zelandonia começou a descer pelo caminho da caverna transportando uma liteira coberta com uma pilha de peles. Ao aproximar-se a procissão, Folara e Aldanor escutaram o peculiar som do cantarolar alternado dos zelandonia. Quando passaram ao seu lado, Folara viu a jovem que conhecia, de quem gostava, a companheira do seu irmão. Ayla tinha o rosto pálido e a respiração superficial, e não se mexia.

Folara horrorizou-se, e Aldanor apercebeu-se do seu sobressalto.

- Temos de ir buscar a minha mãe, Proleva e Joharran- disse.

- E Jondalar.

Embora tivesse sido difícil, e até um pouco mareante, o percurso da caverna até ao alojamento ajudara a Zelandoni a despertar. Agradecida, deixou-se cair no seu tamborete amplo e cómodo, e bebeu um copo de água quente, que a reconfortou. Não se atrevera a propor uma erva ou um medicamento para contrariar a ação da raíz num momento em que não pensava com clareza, por temer que a reação pudesse agravar a situação. Agora que tinha a cabeça mais concentrada, apesar de o seu corpo continuar sob os efeitos da poderosa raíz, decidiu experimentar consigo mesma. Acrescentou umas ervas estimulantes a um segundo copo de água quente e bebeu o líquido com goles lentos, avaliando se sentia alguma coisa ou não. Não conseguiu determinar a sua eficácia, mas ao menos não pareceram piorar as coisas.

Pôs-se de pé e, com um pouco de ajuda, voltou à cama que Lara-mar acabara de desocupar, onde tinham deitado Ayla.

- Já tentaram dar-lhe água quente? - perguntou.

- Não conseguimos abrir-lhe a boca- respondeu um jovem acólito que estava de pé ao seu lado.

A Primeira tentou abrir a boca de Ayla à força, mas esta tinha as mandíbulas firmemente apertadas, como se lutasse contra algo com toda a sua alma. A Donier afastou os cobertores e reparou que Ayla tinha o corpo rígido. Estava fria como o gelo, apesar das numerosas peles que a cobriam, e pegajosa ao tato.

- Deita água quente nesse recipiente grande- ordenou ao jovem. Vários zelandonia que estavam ali perto apressaram-se a ajudá-lo.

A Primeira não conseguira abrir a boca de Ayla. Se não podia introduzir calor dentro dela, teria de aplicá-lo por fora. Pegou em vários pedaços de ligaduras que haviam ficado junto à cama e deitou-as no recipiente de água fumegante. Com cuidado, escorreu-os e colocou-os no braço de Ayla, à laia de emplastros. Quando lhe aplicou o segundo no outro braço, o primeiro emplastro já estava frio.

- Continuem a aquecer a água- pediu.

Desatou o nó que atava a roupa de Ayla. Com a ajuda de vários zelandonia, sentou Ayla e tirou o cordel, notando o engenho com que a jovem prendera a pele de camurça. Não estava totalmente sem roupa, observou a Primeira. Exibia umas quantas correias que seguravam uma compressa absorvente entre as pernas.

“Ou está no período lunar ou continua a sangrar depois do aborto”, pensou a Zelandoni. “Ao menos assim sabemos que Laramar não iniciou uma nova vida dentro dela.” Com toda a naturalidade, a Donier comprovou que precisava de ser mudada, mas pelos vistos Ayla aproximava-se do fim do período. Tinha apenas a compressa manchada e não lhe tocou.

Depois, com a ajuda de outros doniers, começou a aplicar peles e ligaduras húmidas e quentes no corpo de Ayla com a intenção de afastar o frio intenso que a assolava. Ela mesma experimentara uma ínfima parte desse frio, mas bastara-lhe para saber que era devastador. Finalmente, depois de aplicar mais e mais ligaduras e peles quentes, o corpo rígido de Ayla pareceu começar a relaxar, ou pelo menos deixou abrir a boca. A Zelandoni confiou que isso fosse um bom sinal, mas era impossível sabê-lo com toda a certeza. Cobriu ela mesma a jovem amiga e Zelandoni com peles grossas. Naquele momento não podia fazer mais nada.

Aproximaram-lhe o seu grande e sólido tamborete e Aquela Que Era a Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Grande Mãe sentou-se à cabeceira da mais recente Zelandoni e, preocupada, começou a velá-la. Pela primeira vez, apercebeu-se do cantarolar, ininterrupto desde o início, juntando-se uns e retirando-se outros.

“É possível que tenhamos de trazer mais gente para mantê-lo, se esta espera se prolongar.” A Zelandoni não queria nem pensar noutra coisa para além da espera. Quando isso acontecia, agarrava-se à ideia de que Ayla acabaria por acordar e recuperar. Qualquer outra possibilidade era demasiado dolorosa para poder ser contemplada. “Teria sido mais perspicaz se não me tivesse deixado arrastar pela curiosidade?”, questionou-se a Primeira. Ao chegar à caverna, Ayla parecia alterada e nervosa, mas já estavam ali todos os zelandonia, desejosos de celebrar essa cerimónia única na nova caverna. A Primeira observara Ayla a mastigar as raízes durante algum tempo, até as cuspir finalmente na tigela com água, e depois decidira prová-las.

Esse foi o primeiro aviso. Os efeitos que sentiu com esse único trago foram maiores do que havia previsto. Apesar de ter atravessado momentos difíceis, agora estava satisfeita por tê-lo tomado. Assim podia ter uma ideia do estado de Ayla. Quem poderia adivinhar que umas raízes de aspeto tão inócuo podiam ser tão potentes? O que eram? Cresceria a planta nalgum lugar perto dali? Obviamente que possuía propriedades únicas, algumas delas talvez benéficas para usos concretos, mas se levasse a cabo mais experiências, teria de ser em circunstâncias mais controladas e com cuidado. Era uma raíz muito perigosa.

Ainda mal entrara no estado de meditação que adotava sempre em vigílias longas, quando um membro da zelandonia se aproximou dela. Marthona e Proleva, juntamente com Folara, tinham chegado e perguntavam se podiam entrar.

- Claro que podem entrar- respondeu. - Talvez a sua presença seja uma boa ajuda, e é provável que precisemos delas ante que isto acabe.

Ao entrarem, as três mulheres viram ao fundo vários zelandonia a cantarolar junto à cama e a Zelandoni sentada a seu lado.

- O que se passou com Ayla? - perguntou Marthona quando a viu pálida e imóvel na cama.

- Oxalá soubesse com toda a certeza- replicou a Zelandoni.

- E temo que grande parte da culpa seja minha. Ao longo dos anos, Ayla mencionou várias vezes uma raíz utilizada pelos... pelos Mog-urs, creio que é assim que lhes chama, aos homens do Clã que conhecem o mundo dos espíritos. Usavam-na para aceder a esse mundo, embora apenas em cerimónias especiais, ou assim entendi. Pelo modo como Ayla falava da raíz, eu tinha a certeza de que ela também a tomara, mas sempre se mostrou muito enigmática a esse respeito. Disse que os efeitos eram muito poderosos. Eu estava intrigada e curiosa, claro. Qualquer coisa que possa ajudar os zelandonia a comunicar com o outro mundo é sempre de grande interesse.

Trouxeram bancos para as três mulheres e copos com uma infusão de camomila. Quando se acomodaram, a Primeira prosseguiu:

- Há pouco tempo fiquei a saber que Ayla tinha dessas raízes e, segundo ela acreditava, conservavam as suas propriedades. Francamente, duvidei. A maioria das ervas e medicamentos perde eficácia com o passar do tempo. Na opinião de Ayla, se fossem bem acondicionadas, tornavam-se mais concentradas e adquiriam cada vez mais intensidade. Pensei que talvez uma pequena experiência a distraísse um pouco das suas preocupações. Sabia que estava angustiada por causa de Jondalar, e por aquele lamentável incidente na noite da festividade, sobretudo porque pouco antes, ao receber o chamamento, abortara...

- Não podes imaginar como passou mal- comentou Marthona.

- Sei que nunca é fácil receber o chamamento, não o é para ninguém, suponho, mas com o aborto houve momentos em que cheguei a pensar que não iria superá-lo. Perdeu tanto sangue que temi que morresse exaurida. Estive prestes a mandar chamar-te. Se aquilo tivesse continuado durante mais tempo, fá-lo-ia, embora possivelmente chegasses demasiado tarde.

A Zelandoni assentiu.

- Talvez não devesses ter permitido que viesse tão cedo- argumentou.

- Era impossível impedi-la. Já sabes como ela é quando mete uma ideia na cabeça- contrapôs Marthona. A Zelandoni anuiu, reconhecendo que tinha razão. - Estava cheia de saudades de Jondalar e de Jonayla. Depois de perder o filho, desejava ver a filha, e creio que queria iniciar outro. E estava convencida de que sabia como. Penso que essa é uma das razões pelas quais tinha tanta vontade de ver Jondalar.

- E bem o viu- interveio Proleva-, com Marona.

- Às vezes não entendo Jondalar- disse Folara. - Havendo tantas mulheres, porque teve de escolher logo essa?

- Provavelmente porque ela não o largava- respondeu Proleva.

- Jondalar sempre teve necessidades muito prementes e ela não se fazia de difícil.

- E o que faz ele quando, na festividade, Ayla decide que chegou a sua vez? - disse Folara. - Como se não estivesse no seu direito.

- Estivesse ou não no seu direito, não o fez porque quisesse honrar a Mãe na festividade- explicou a Zelandoni. - Fê-lo por despeito e ira, por isso escolheu aquele homem. Não desejava Laramar; desejava vingar-se de Jondalar. E assim não se honra a Mãe, e ela sabe-o. Nenhum dos dois está livre de culpa, mas creio que os dois se sentem responsáveis pelo que aconteceu, e isso não os ajuda.

- Independentemente de quem seja a culpa, Jondalar ainda irá sofrer um severo castigo- assinalou Marthona.

- Entendo que Laramar prefira não voltar à Nona Caverna, e alegro-me que a Quinta esteja disposta a aceitá-lo, mas a sua companheira não quer ir- comentou Proleva. - Diz que a Nona Caverna é o seu lar. É verdade que o seu alojamento ali está bem situado, mas sem um companheiro, quem irá sustentar a sua prole?

- E quem lhe fornecerá a barma que bebe diariamente? - acrescentou Folara.

- Talvez isso a anime a abalar para a Quinta Caverna- observou a Zelandoni.

- A não ser que o filho mais velho assuma as funções de Laramar- disse Proleva. - Já há alguns anos que está a aprender a preparar barma. Alguns dizem que é melhor do que a de Laramar, e na nossa parte do Rio há pessoas mais do que suficientes a desejar ter um fornecedor por perto.

- Bem, tu não lhe proponhas isso- disse Marthona.

- É igual. Se nos ocorreu a nós, o mais certo é ocorrer a outra pessoa- replicou Proleva.

Zelandoni viu que outras duas pessoas se juntavam às que estavam a cantarolar e que uma se ia embora. Mexeu a cabeça num gesto de aprovação e depois observou Ayla. Tinha a pele mais acinzentada? Não se mexera, mas por alguma razão parecia mais afundada na cama. A Donier não gostou do aspeto dela. Prosseguiu com as suas explicações.

- Como dizia, queria ajudar Ayla a deixar de pensar nos seus problemas, obrigá-la a falar de outras coisas interessantes. Por essa razão, perguntei-lhe pela raíz do Clã, não estou livre de culpa. Deixei-me arrastar por um interesse excessivo. Devia ter prestado mais atenção a Ayla e aperceber-me do mal que se sentia na realidade. E deveria ter acreditado nela quando assegurou que a raíz do Clã era muito forte. Só bebi um gole e vi-me e desejei-me para não perder o controlo. É muito mais forte do que poderia imaginar- declarou a Zelandoni. - Temo que Ayla se tenha perdido no mundo dos espíritos. Mas recordo que, segundo ela, o cantarolar seria o laço que a manteria unida a este mundo, e eu mesma senti a atração das vozes quando estava um pouco perdida por causa desse único gole. Vou ser sincera com vocês: já não sei que mais fazer excetuando mantê-la quente, cantarolar e esperar que os efeitos passem depressa.

- A raíz do Clã... também me falou disso- recordou Marthona.

- Aquele homem a quem ela chama Mamut disse-lhe que nunca mais voltaria a tomá-la, que sentia medo de se perder para sempre. Segundo ela, era demasiado potente, e avisou Ayla que não voltasse a tomá-la.

A Primeira enrugou a testa.

- Porque não me disse que Mamut a aconselhara a não voltar a tomá-la? Ele era Um Que Serve, por isso devia falar com conhecimento de causa. Ao princípio, Ayla mostrou-se um pouco renitente a tomá-la, mas não me explicou o motivo. E depois parecia muito disposta, e até celebrou os correspondentes rituais do Clã. Não me falou do aviso de Mamut- afirmou a Zelandoni, consternada.

A Primeira levantou-se e voltou a examinar Ayla. Continuava fria e suada, e a sua respiração era apenas percetível. Se a Donier a tivesse examinado apenas com a vista e com o tato, teria pensado que Ayla estava morta. Levantou-lhe uma pálpebra. A resposta foi mínima. A Zelandoni pensara e confiara que a única coisa que Ayla precisava era de tempo para que passassem os efeitos. Agora começava a perguntar-se se havia alguma coisa que a pudesse tirar daquele estado.

Olhou em redor e fez sinal a uma acólita.

- Faz-lhe uma massagem, com delicadeza. Procura que a pele recupere a cor, e vamos tentar introduzir-lhe uma infusão quente, algo. - E depois disse em voz mais alta, para que todos a escutassem:

- Alguém sabe onde está Jondalar?

- Nestes últimos dias tem dado longos passeios, quase sempre pela margem do Rio.

- Esta manhã, vi-o dirigir-se para lá, quase a correr- respondeu uma acólita.

A Zelandoni pôs-se de pé e bateu palmas para chamar a atenção de todos.

- O espírito de Ayla está perdido no vazio e não encontra o caminho de volta. É possível que nem sequer consiga chegar à Mãe. É preciso ir buscar Jondalar. Se não o conseguirmos trazer, pode ser que ela nunca encontre o caminho de regresso, ou nem sequer tenha vontade de o iniciar. Procurem por todo o acampamento, em todas as tendas, peçam a toda a gente que vos ajude a procurá-lo. Procurem no bosque, no Rio, para montante e para jusante, até mesmo dentro do Rio se for necessário. Mas tragam-no. O mais depressa possível. - Poucos haviam visto a Zelandoni tão agitada e nervosa.

Todos, exceto os zelandonia necessários para o cantarolar, saíram a toda a pressa do alojamento e dispersaram-se. Quando saíra, Aquela Que Era a Primeira a Servir a Grande Mãe voltou a examinar Ayla. Continuava fria, e a pele adquiria uma coloração cada vez mais cinzenta. “Está a entregar-se, a render-se”, pensou a Donier. “Creio que não quer viver. É possível que Jondalar chegue demasiado tarde.”

Um dos acólitos irrompeu pelo alojamento afastado onde se instalara Jondalar e os dois visitantes mamutoi. Willamar e Dalanar também ali estavam, à procura de Jondalar. O jovem acólito só tinha visto o homem alto de longe e não se dera conta de quem era na realidade. Sentiu-se um pouco sobressaltado.

- Sabem onde está Jondalar? - perguntou o jovem.

- Não. Não o vejo desde esta manhã- respondeu Danug.

- Porquê?

- É por causa da nova Zelandoni. Bebeu um líquido preparado com uma raíz e agora o seu espírito está num vazio escuro. A Primeira pediu-nos que encontrássemos Jondalar e o levássemos de imediato, ou ela morrerá e o seu espírito ficará perdido para sempre- despejou, sem parar para recuperar o fôlego. Depois inspirou. - Temos de o procurar em todo o lado e pedir a toda a gente que nos ajude- explicou o acólito.

- Será essa a raíz que tomou com Mamut? - perguntou Danug, olhando para Druwez com visível compreensão.

- Que raíz? - inquiriu Dalanar, reparando de imediato no alarme dos mamutoi.

- Ayla tinha uma raíz que lhe sobrara do tempo em que vivera com o Clã- explicou Danug. - Pelos vistos, era usada para se comunicarem com o mundo dos espíritos. Mamut quis prová-la, e Ayla preparou-a como lhe haviam ensinado. Não sei o que se passou exatamente, mas ninguém conseguiu despertá-los. Estava toda a gente preocupada e viram-se obrigados a cantarolar. No final, apareceu Jondalar e implorou a Ayla que voltasse, confessando o muito que gostava dela. Os dois haviam enfrentado alguns problemas, um pouco como neste momento. Não entendo como duas pessoas que gostam tanto uma da outra podem estar tão cegas para os sentimentos da outra.

- Ele sempre teve esse tipo de conflitos com as mulheres. Não sei se é por orgulho ou por falta de perspicácia- comentou Willamar, abanando a cabeça. - Quando trouxe Ayla para casa, pensei que já o superara. Se não tem grandes sentimentos por uma mulher, sabe comportar-se, mas se gosta dela, parece perder o norte. Mas isso agora não importa. E depois o que se passou?

- Jondalar repetiu-lhe uma e outra vez que a amava e implorou-lhe que voltasse. No final, Ayla acordou, e Mamut também. Depois Mamut contou-nos que teriam ficado perdidos para sempre numa espécie de vazio negro se o amor de Jondalar não tivesse sido tão forte, porque não teria chegado até ela; Jondalar trouxe-a de volta, e a Mamut. Segundo ele, as raízes eram tão poderosas que não podia controlá-las, e jurou que nunca mais as tomaria. Temia que o seu espírito se perdesse para sempre naquele lugar horrível, e também preveniu Ayla. - Danug sentiu-se empalidecer. - Voltou a fazê-lo- lamentou-se enquanto saía a correr do alojamento. Naquele instante não sabia para onde ir. Por fim, ocorreu-lhe uma ideia e dirigiu-se a toda a pressa para o acampamento da Nona Caverna.

Havia várias pessoas aglomeradas em torno da grande fogueira de cozinhar, e Danug sentiu um profundo alívio ao ver Jonayla. Era óbvio que estivera a chorar, e Lobo gania e tentava lamber-lhe as lágrimas do rosto. Marthona e Folara também tentavam consolá-la. Responderam ao cumprimento do corpulento mamutoi quando este se baixou frente à menina. Acariciou a cabeça de Lobo quando o animal aproximou o focinho do homem que já conhecia.

- Como estás, Jonayla? - perguntou.

- Quero a minha mãe, Danug- disse, e desatou a chorar. - Está doente. Não acorda.

- Eu sei. Mas penso saber como ajudá-la- argumentou Danug.

- Como? - indagou ela, fitando-o com os olhos muito abertos.

- Ela já ficou assim doente uma vez, quando vivia connosco no Acampamento do Leão. Jondalar talvez seja capaz de a fazer voltar. Foi ele quem a acordou daquela vez. Sabes onde está Jondalar, Jonayla?

A menina abanou a cabeça.

- Já há algum tempo que vejo pouco Jondy. Anda por aí, às vezes todo o dia.

- Sabes para onde costuma ir?

- Às vezes sobe o rio.

- Ele costuma levar o Lobo?

- Sim, mas hoje não levou.

- Achas que o Lobo seria capaz de o encontrar se tu o ordenasses?

Jonayla olhou para o seu amigo carnívoro de quatro patas e logo depois para Danug.

- É possível- respondeu. Em seguida, com um sorriso trémulo, acrescentou:

- Sim, acredito que sim.

- Se disseres ao Lobo que procure Jondalar, eu posso segui-lo e pedir a Jondalar que volte e acorde a tua mãe- propôs Danug.

- A minha mãe e Jondy não se têm falado muito ultimamente. Se calhar não vai querer voltar- retorquiu Jonayla, com rugas de preocupação na testa.

Danug pensou que era idêntica a Jondalar quando este franzia assim o sobrolho.

- Não te preocupes com isso, Jonayla. Jondalar gosta muito da tua mãe, e ela dele. Se soubesse que ela está em apuros, viria a correr. Tenho a certeza- disse Danug.

- Se gosta tanto dela, porque não lhe fala, Danug?

- Porque às vezes, quando gostas de uma pessoa, nem sempre a entendes. As vezes uma pessoa nem se entende a si mesma. Dizes a Lobo que busque Jondalar?

- Lobo, vem cá- ordenou a pequena. Pôs-se de pé e envolveu a cabeça do animal com as suas mãozitas, tal como a sua mãe teria feito. Parecia uma Ayla em ponto pequeno, e era de tal modo parecida que Danug teve de dissimular um sorriso. Não foi o único. - A minha mãe está doente e Jondalar tem de vir ajudá-la, Lobo. Deves encontrá-lo. - Afastou as mãos e apontou para o Rio. - Busca Jondalar, Lobo. Vai procurar Jondalar.

Não era a primeira vez que o animal escutava essa ordem. Lobo e Ayla tinham já seguido o rasto de Jondalar numa outra ocasião, na viagem de volta, quando fora capturado pelas caçadoras de Attaroa. O aflito animal lambeu a cara de Jonayla e logo partiu em direção ao Rio.

Deu a volta e fez tenção de regressar para junto de Jonayla, mas esta repetiu a ordem:

- Vai, Lobo! Busca Jondalar!

O animal olhou para trás e, quando Danug se pôs em marcha atrás dele, seguiu em frente com um trote rápido, farejando o solo.

Depois do seu encontro com Ayla, Jondalar desejava afastar-se o mais possível do acampamento. Quando chegou ao Rio e começou a caminhar para montante, não conseguia tirá-lo da cabeça: estivera quase a fazê-lo, por pouco não a abraçara. E o seu desejo era abraçá-la. Porque não o fizera? Qual seria a sua reação? Tê-lo-ia afastado? Ou não? Estava tão surpreendida, tão emocionada, mas não se surpreendera tanto quanto ela?

“Porque não o fizera? Qual era a pior coisa que podia acontecer? Se tivesse ficado zangada e o tivesse afastado, por acaso as coisas podiam ter piorado? Ao menos assim ficaria a saber que ela já não o queria mais a seu lado. Não queres saber? Como não? Esta situação não pode ficar assim. Chorava quando se afastou a correr? Ou seria imaginação minha? Porque haveria de chorar? Porque está desgostosa, claro. Mas o que a pode ter desgostado tanto? O mero facto de me ver? Mas porque haveria isso de a transtornar? Já me disse o que sentia na noite da Festividade. Ficou bem demonstrado, ou não? Já não quer saber de mim, mas então porque chorava?”

Normalmente, quando Jondalar ia passear ao longo da margem do rio, começava a dar meia volta para empreender o caminho de regresso mais ou menos por volta do meio-dia, no momento em que o Sol alcançava o seu zénite. Mas, naquele dia, estava de tal forma absorto nos pensamentos, confirmando uma e outra vez cada pequena variação, cada pormenor na sua memória, que nem se deu conta do passar do tempo.

Dando largas passadas para não perder de vista o Lobo, Danug começou a questionar-se se o animal estaria a seguir o rasto corretamente. Seria possível que Jondalar se tivesse afastado tanto? Já passava bastante do meio-dia e Danug parou para beber água rapidamente antes de continuar. Quando se ergueu na margem do Rio, numa parte bastante reta do sinuoso caudal, pareceu-lhe ver alguém ao longe. Encostou a mão à testa para proteger os olhos do sol, mas não conseguiu ver para lá da curva seguinte do rio. Também não via o lobo, que largara a correr enquanto ele se detinha a beber. Danug pôs-se de novo em marcha, acelerando o passo com a esperança de o alcançar.

Jondalar saiu por fim das suas profundas meditações ao perceber movimento por entre o mato junto à água. Voltou a reparar que algo se movia. “E um lobo! Pergunto-me se tem vindo a espreitar-me”, e levou a mão ao atirador de lanças, porém, deu-se conta de que não levava nem a arma nem as lanças. Procurou no chão algo com que se defender, um ramo pesado, uma galhada grande caída durante a muda, uma pedra de bom tamanho. Mas quando o enorme animal saiu por fim do meio do mato, Jondalar não conseguiu fazer mais nada do que tapar a cara com o braço enquanto caía derrubado por uma investida.

Mas o animal não lhe mordeu; na verdade, lambia-o. De imediato, Jondalar reparou na sua orelha caída num ângulo estranho. Não era um lobo-selvagem, compreendeu nesse instante.

- Lobo. Lobo. És tu? O que fazes aqui? - Sentou-se e foi obrigado a conter os cumprimentos entusiasmados do animal exaltado. Ficou um momento ali sentado, acariciando o lobo e coçando-o atrás das orelhas numa tentativa de o tranquilizar. - Porque não estás com Jonayla, ou com Ayla? Porque me seguiste até aqui? - perguntou Jondalar, começando a suspeitar que algo se passava.

Quando se levantou e retomou a marcha, o Lobo brincou nervosamente diante dele e logo depois encaminhou-se na direção de onde viera.

- Queres regressar, Lobo? Pois então vai, podes regressar. - Mas quando Jondalar seguiu em frente, o carnívoro de quatro patas cortou-lhe novamente o caminho com um salto. - O que se passa, Lobo? Jondalar levantou a cabeça para o céu e de imediato deu conta de que o Sol já há um tempo que ultrapassara o ponto mais alto da sua trajetória. - Queres que regresse contigo?

- Sim, é isso mesmo que ele quer, Jondalar- confirmou Danug.

- Danug! O que fazes aqui? - perguntou Jondalar.

- Andava à tua procura.

- A minha procura? Porquê?

- Por causa de Ayla, Jondalar. Deves regressar imediatamente.

- Ayla? O que aconteceu, Danug?

- Recordas-te daquela raíz, a que transformou em sumo para ela e para Mamut? Voltou a fazê-lo, para mostrar à Zelandoni, mas desta vez bebeu-o ela sozinha. Ninguém consegue acordá-la, nem sequer Jonayla. A Donier pediu que fosses o mais rapidamente possível ou Ayla morrerá e o seu espírito acabará perdido para sempre- explicou Danug.

Jondalar empalideceu.

- Não! Essa raíz, não! Grande Mãe, não permitas que morra! Por favor, não permitas que morra- implorou, e desatou a correr a toda a velocidade.

Se na ida estava preocupado, isso não era nada em comparação com a intensidade que se apoderou dele enquanto regressava a toda a pressa. Bordeou o Rio como uma flecha, abrindo caminho por entre o mato, que lhe arranhava a cara e as pernas e os braços descobertos. Não se apercebeu dos arranhões. Correu até ficar sem fôlego e a garganta lhe secar de tal forma que parecia em carne viva, até sentir nas costas uma pontada semelhante à ferida de uma faca quente e se lhe retesarem os músculos das pernas e começarem a doer. Mas não sentia nada, tal era a dor da sua mente. Até deixou Danug para trás; apenas o Lobo conseguiu acompanhá-lo.

Não podia acreditar no quanto se afastara, nem, mais grave, no muito que tardava em chegar. Abrandou o passo uma ou outra vez para recuperar o fôlego, mas não se deteve, e acelerou já perto do acampamento, quando o mato e os arbustos eram menos densos.

- Onde está ela? - perguntou à primeira pessoa que encontrou.

- No alojamento da zelandonia- responderam.

Todos os participantes na Reunião de verão andavam à sua procura, e quando o viram correr na direção do alojamento houve até quem desse vivas. Jondalar não as escutou, nem sequer se deteve até que irrompeu pelo alojamento através da cortina da entrada e viu Ayla deitada na cama e rodeada de candeias. E nesse momento não conseguiu fazer mais nada para além de pronunciar o seu nome com um grito abafado:

- Ayla!

 

Jondalar mal conseguia respirar, e de cada vez que respirava, sentia a garganta em carne viva. Suava copiosamente. Dobrado pela cintura, por causa da dor nas costas, com as pernas a tremer, mal conseguindo segurar-se de pé, aproximou-se da cama situada ao fundo do alojamento. Lobo entrara ao mesmo tempo, e também ofegava, com a língua de fora.

- Vem, Jondalar, senta-te aqui- disse a Zelandoni, e pôs-se de pé para lhe ceder o seu tamborete. Notou o estado em que Jondalar chegara, o esforço que fizera, e deduziu que viera a correr de muito longe. - Traz-lhe água- pediu à acólita que estava mais perto. - E para o lobo também.

Quando Jondalar se aproximou, viu a palidez acinzentada da morte na pele de Ayla.

- Ayla, Ayla, porque voltaste a fazê-lo? - perguntou, com uma voz rouca, quase incapaz de falar. - Já não te lembravas que da última vez estiveste quase a morrer? - Num ato reflexo, bebeu o líquido do copo que lhe tinham estendido, consciente apenas de que lho haviam dado. Depois meteu-se na cama. Afastou as peles, sentou Ayla e segurou-a nos braços, horrorizando-se ao notar como estava fria. - Está gelada- disse, com um soluço. Não se dava conta de que as lágrimas lhe corriam pelo rosto, e se o soubesse tão-pouco se importaria.

O lobo olhou para as duas pessoas que jaziam na cama, alçou o focinho para o teto e soltou um uivo demorado e inquietante que provocou um arrepio aos zelandonia ali presentes e aos que se encontravam no exterior. Os que cantavam ficaram tão atónitos que perderam o compasso e tiveram de parar o seu canto contínuo por um instante. Apenas nesse momento Jondalar tomou consciência do canto dos zelandonia. Lobo apoiou as patas dianteiras na cama e gemeu para chamar a atenção.

- Ayla, Ayla, imploro-te! Volta para mim- suplicou Jondalar.

- Não podes morrer. Quem me dará um filho? Não, o que estou eu para aqui a dizer? É-me indiferente se me dás um filho ou não, Ayla. É a ti que eu quero. Amo-te. Nem sequer me importo se nunca mais voltares a falar comigo; fico satisfeito em ver-te de vez em quando. Volta para mim, por favor. Grande Mãe, devolve-ma. Devolve-ma, por favor. Farei o que desejares, mas, por favor, não a leves.

A Zelandoni observou o homem alto e atraente, com arranhões e feridas que sangravam na cara, no peito, nos braços e nas pernas, sentado na cama, segurando nos braços a mulher quase inerte como se segurasse um bebé, embalando-a, com o rosto banhado em lágrimas, implorando-lhe por tudo que voltasse. Não o via chorar desde que era criança. Jondalar não chorava. Lutava por controlar as suas emoções, por guardá-las para si próprio. Poucas eram as pessoas que haviam mantido uma relação próxima e estreita com ele, com exceção da sua família e dela mesma, e quando chegou à idade adulta, até com eles manteve sempre uma certa distância, uma certa reserva.

No seu regresso, depois de ter passado um tempo com Dalanar, a Zelandoni perguntara-se muitas vezes se Jondalar voltaria a amar uma mulher, culpando-se a si mesma. Sabia que ainda gostava dela, e ela, em mais do que uma ocasião, sentira a tentação de renunciar à zelandonia e unir-se a ele, mas com o passar do tempo, e vendo que não engravidava, supôs que fizera bem. Estava segura de que ele acabaria por encontrar uma companheira. Se bem que amiúde a Zelandoni tivesse duvidado que Jondalar fosse capaz de se entregar por completo a uma mulher, necessitava de filhos no seu lar. As crianças podiam amar-se livremente, por completo, sem reservas, e ele precisava de amar assim.

Ficara sinceramente feliz quando ele regressou da sua viagem com uma mulher que parecia amar, uma mulher digna do seu amor. Mas até àquele momento nunca se dera conta do muito que ele a amava. A Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Grande Mãe sentiu uma leve pontada de culpa. Talvez não devesse ter pressionado tanto Ayla para se juntar à zelandonia. Talvez devesse tê-los deixado em paz. Mas, na verdade, fora um desígnio da Mãe.

- Está tão fria. Porque está assim? - indagou Jondalar.

Estendeu-a de novo na cama, e deitou-se, cobrindo-lhe o corpo despido com o seu e puxando as peles para cima, para os tapar a ambos. O lobo trepou para a cama e encostou-se a Ayla do outro lado. O calor do corpo de Jondalar não tardou a propagar-se, e lobo, com o seu, contribuiu para o conservar. Jondalar estreitou-a nos seus braços durante um bocado, ao mesmo tempo que a observava, lhe beijava o rosto imóvel, lhe falava, lhe implorava, intercedia por ela junto da Mãe, até que finalmente a sua voz, as suas lágrimas e o seu calor, unido ao de Lobo, começaram a penetrar nas profundezas mais frias de Ayla.

Ayla chorava em silêncio.

- Tu és a culpada! Tu és a culpada! - cantarolavam as pessoas, acusando-a.

Depois só ali estava Jondalar e escutou o uivo de um lobo por perto.

- Desculpa, Jondalar- pediu, num tom choroso. - Lamento ter-te magoado.

Ele estendeu os braços para ela.

- Ayla- disse num grito abafado. - Dá-me um filho. Amo-te.

Dirigiu-se para Jondalar, que se encontrava de pé ao lado de Lobo, e passou por entre os dois; nesse momento sentiu que algo a puxava. De repente começou a mover-se, mais rápido, muito mais rápido do que antes, embora se sentisse cravada no mesmo sítio. Voltaram as misteriosas e estranhas nuvens de outrora, que desapareceram passado um momento, embora lhe tivesse parecido uma eternidade. Em seguida, viu-se envolvida num vazio profundo e escuro, uma escuridão sobrenatural e infinita. Precipitou-se para a bruma, e por um instante viu-se a si mesma, com Jondalar, numa cama rodeada de candeias. Não tardou a descobrir que se encontrava no interior de uma concha pegajosa e gélida. Debateu-se tentando mover-se, mas estava rígida, gelada. Finalmente pestanejou. Abriu os olhos e viu o rosto coberto de lágrimas do homem que amava e, pouco depois, sentiu as lambidelas da língua quente do lobo.

- Ayla! Ayla! Voltaste! Zelandoni! Ela acordou! Doni, Grande Mãe, obrigado! Obrigado por ma teres devolvido! - exclamou Jondalar por entre um pranto convulsivo. Segurava-a entre os braços, chorando de alívio e de amor, temeroso de a abraçar com excessiva força, receando magoá-la, mas não querendo afastar-se dela nunca mais. E Ayla também não queria afastar-se dele.

Por fim, Jondalar parou de a estreitar contra o peito e afastou-se para que a Donier pudesse vê-la.

- Salta da cama, Lobo- ordenou Jondalar, e empurrou o animal para o chão. - Já a ajudaste; agora deixa que a Zelandoni a examine.

O lobo saltou da cama, mas ficou sentado no chão a observá-los.

A Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Grande Mãe Terra inclinou-se sobre Ayla e viu-a abrir os seus olhos de um cinzento-azulado e esboçar um débil sorriso. Assombrada, abanou a cabeça.

- Não acreditava que isto fosse possível. Tinha a certeza de que Ayla nos deixara, que se perdera para sempre num lugar escuro e inacessível, ao qual nem sequer eu poderia ir buscá-la para a conduzir até à Grande Mãe. Temia que o cantarolar fosse inútil. Começava a pensar que nada a traria de volta, nem a minha mais fervente esperança, nem o desejo ilimitado de todos os Zelandoni, nem sequer o teu amor, Jondalar. Toda a zelandonia junta não conseguiria o que tu acabaste de conseguir. Quase estou disposta a acreditar que serias capaz de a tirar do mundo ultraterreno mais profundo de Doni. Sempre te disse que a Grande Mãe Terra nunca te negaria nada que lhe pedisses. Creio que isto é a prova.

A notícia correu por todo o acampamento. Jondalar trouxera Ayla de volta. Jondalar conseguira o que para a zelandonia fora impossível. Em todo o acampamento não havia uma única mulher que, no fundo do seu coração, não desejasse ser amada assim, nem havia um único homem que não desejasse conhecer uma mulher a quem pudesse amar tanto. Já circulavam relatos, relatos que se contariam em volta das fogueiras dos lares durante muitos anos, sobre o amor de Jondalar, tão grande que resgatou Ayla do mundo dos mortos.

Jondalar pensou no que a Zelandoni dissera. Já o escutara antes, embora não soubesse bem o que significava, mas originou-lhe um certo mal-estar ouvir que tinha sido tão favorecido pela Mãe que nenhuma mulher podia repeli-lo, nem sequer a própria Doni; tão favorecido que, se alguma vez pedisse qualquer coisa à Grande Mãe, Ela lha concederia. Também o haviam alertado que tivesse cuidado com o que pedia, porque podiam dar-lho, embora também nem isso tivesse entendido muito bem.

Nos primeiros dias depois do sucedido, Ayla sentiu-se completamente esgotada; mal conseguia mexer-se e estava muito débil. Havia momentos em que a Donier se perguntava se iria recuperar. Dormia muito e, às vezes, permanecia tão imóvel que tinham de verificar se ainda respirava. Todavia, o seu sono nem sempre era pacífico. Em determinadas ocasiões, era acometida por delírios, e começava a agitar-se e a falar enquanto dormia, mas, de cada vez que abria os olhos, Jondalar estava ao seu lado. Não se separara dela desde que acordara, salvo para se ocupar das suas necessidades básicas. Dormia nas peles de dormir estendidas no chão junto à cama.

Quando Ayla parecia fraquejar, a Zelandoni interrogava-se se ele não era o único que a mantinha no mundo dos vivos. Na realidade, assim era, para além da sua própria vontade inata de viver, e os anos de caça e exercício físico que lhe haviam proporcionado um corpo forte e saudável, capaz de se recuperar de experiências devastadoras, incluindo aquelas que a aproximavam da morte.

Lobo também permaneceu a seu lado quase todo o tempo, parecendo adivinhar quando Ayla estava prestes a despertar. Jondalar já não o deixava saltar e pôr as patas sujas na cama, mas o animal descobriu que a cama tinha a altura exata para poder apoiar a cabeça nela, estando de pé, e observar Ayla mesmo antes de esta abrir os olhos. Jondalar e a Zelandoni chegavam a saber quando ia abrir os olhos pelos movimentos do carnívoro de quatro patas.

Jonayla sentia-se tão feliz por a mãe ter acordado, e por Jondy e a mãe voltarem a estar juntos, que ia frequentemente ao alojamento da zelandonia para passar umas horas com eles. Embora não dormisse ali, às vezes ficava, se estavam os dois despertos, sentada no colo de Jondalar, ou deitada junto da mãe, e até dormia a sesta com ela. Noutras ocasiões entrava a correr e ficava apenas um momento, como para se convencer de que tudo continuava bem. Quando se recuperou o suficiente, Ayla ordenava a Lobo que fosse com Jonayla, embora ao princípio o animal se sentisse dividido e não soubesse se devia ficar com a mulher ou abalar com a menina.

Também Aquela Que Era a Primeira andava ali por perto. Sentia-se culpada por não ter prestado mais atenção ao estado de Ayla desde a sua chegada. Todavia, as reuniões de verão exigiam-lhe muito tempo e dedicação, e o comportamento de Ayla sempre fora difícil de interpretar. Raras eram as vezes em que falava de si própria ou dos seus problemas, e ocultava demasiado bem os seus sentimentos. Era fácil não notar os sintomas de angústia.

Ayla abriu os olhos e sorriu para o gigante barbudo de denso cabelo ruivo que a mirava. Embora ainda não tivesse recuperado totalmente, tinham acabado de a mudar para o acampamento da Nona Caverna. Uns momentos antes, quando estava acordada, Jondalar havia-lhe anunciado que Danug desejava visitá-la, mas adormecera por alguns minutos antes de ouvir pronunciar o seu nome em voz baixa. Jondalar, sentado junto dela, segurava-lhe a mão. Jonayla encontrava-se sentada ao seu colo. Lobo, ao lado da cama, batia com a cauda no chão, saudando o jovem mamutoi.

- Pediram-me que te dissesse, Jonayla, que Bokovan e várias outras crianças vão brincar e comer ao alojamento de Levela. Também guardaram uns ossos para o Lobo- disse Danug.

- Porque não vais também, Jonayla, e levas o Lobo? - propôs Ayla, sentando-se. - De certeza que gostariam de te ver, e esta Reunião de verão está quase a acabar. Quando regressarmos a casa, provavelmente só os voltarás a ver no próximo verão.

- Está bem, mãe. Já começo a ter fome, e se calhar o Lobo também. - A menina abraçou o pai e a mãe e encaminhou-se para a entrada, seguida pelo carnívoro. Antes de seguir Jonayla, este olhou para Ayla e ganiu.

- Senta-te, Danug- ofereceu Ayla, apontando para um tamborete. Depois olhou em redor. - Onde está Druwez?

Danug sentou-se ao lado de Ayla.

- Aldanor precisava de um amigo varão que não fosse parente para algum assunto relacionado com a cerimónia matrimonial. Druwez aceitou, porque eu tenho de participar como parente adotivo- respondeu Danug.

Jondalar assentiu num gesto de compreensão.

- É difícil aprender todo um conjunto de costumes novos. Lembro-me de quando Thonolan decidiu unir-se a Jetamio. Como eu era seu irmão, também estabelecia um laço de parentesco com os Sharamudoi, e por ser o único membro da sua família presente, tive de participar nas cerimónias.

Embora agora a Jondalar custasse menos falar do irmão que perdera, Ayla notou a sua expressão de pesar. Sabia que isso lhe causava sempre alguma dor.

Jondalar aproximou-se de Ayla e rodeou-lhe os ombros com o braço. Danug sorriu para os dois.

- Antes de mais nada, quero dizer-vos uma coisa- começou ele, com severidade simulada. - Quando vão deixar de causar problemas um ao outro e ter de uma vez por todas a certeza de quem amam? Escutem-me bem: Ayla ama Jondalar e mais nenhum homem; Jondalar ama Ayla e nenhuma outra mulher. Acham que são capazes de memorizar isto? Nunca houve nem nunca haverá mais ninguém para qualquer dos dois. Vou impor-vos uma regra que têm de acatar para o resto das vossas vidas. Pouco me importa que os outros se deitem com quem quer que lhes dê na gana; vocês só podem deitar-se um com o outro. Se alguma vez souber do contrário, voltarei para vos atar um ao outro. Entendido?

- Sim, Danug- responderam Jondalar e Ayla em uníssono. Ela voltou-se para sorrir a Jondalar, que sorria para ela, e os dois olharam para Danug com uma expressão de felicidade.

- Vou contar-te um segredo- disse Ayla. - Assim que pudermos, iniciaremos um bebé juntos.

- Mas não é para já- contrapôs Jondalar. - Só quando a Zelandoni disser que estás totalmente recuperada. Mas logo verás quando o estiveres, mulher!

- Não sei qual dos dons é melhor- comentou Danug, com um sorriso. - O dom do Prazer ou o dom do Conhecimento. A Grande Mãe deve gostar mesmo muito de nós para ter disposto as coisas de tal forma que seja tão prazeiroso iniciar uma nova vida.

- Isso é verdade- concordou Jondalar.

- Tentei traduzir o Cântico à Mãe de zelandoni para mamutoi, para o dar a conhecer a todos, e, quando regressar, procurarei uma companheira para iniciar um filho varão- disse Danug.

- E que mal tem uma filha? - perguntou Ayla.

- Não tem mal nenhum, só que assim não poderei dar-lhe o nome. Quero um filho varão por isso. Nunca pus o nome a um filho- argumentou Danug.

- Nunca tiveste um filho ao qual pôr o nome- observou Ayla, com uma gargalhada.

- Bem, isso é verdade- admitiu Danug, com um certo pesar.

- Pelo menos que eu saiba, mas tu entendes. Nunca tive oportunidade.

- Entendo como ele se sente. É-me indiferente ter um rapaz ou uma rapariga, mas pergunto-me o que se sente ao pôr o nome num filho- comentou Jondalar. - Mas, diz-me, Danug, e se os Mamutoi não aceitam a ideia de que os homens devem pôr o nome nos rapazes?

- Basta que a minha futura companheira esteja de acordo- retorquiu Danug.

- Isso é verdade- disse Ayla. - Mas porque tens de regressar para encontrar uma companheira, Danug? Porque não ficas aqui, como Aldanor? De certeza que encontrarias uma mulher zelandoni que ficasse encantada ao unir-se a ti.

- É verdade que as mulheres zelandoni são atraentes, mas em muitas coisas sou parecido com Jondalar. Viajar pode ser emocionante, mas necessito de voltar para a minha gente, para me estabelecer. Além disso, aqui só há uma mulher que me faria ficar, Ayla- declarou Danug, piscando o olho a Jondalar-, e essa gosta de outro.

Jondalar soltou uma gargalhada, mas algo no olhar de Danug, e no seu tom de voz, levou Ayla a questionar-se se o comentário jocoso seria mesmo uma brincadeira.

- Eu já fiquei muito contente que ela estivesse disposta a acompanhar-me até casa no meu regresso- disse Jondalar. Fitou-a com os seus olhos de um azul vivo, e ela sentiu um formigueiro no mais fundo do seu ser. - Danug tem razão. Doni deve mesmo gostar muito de nós para dispor as coisas de tal forma que criar filhos seja tão prazenteiro.

- Para uma mulher não é tudo prazer, Jondalar. Dar à luz pode ser muito doloroso- lembrou Ayla.

- Mas tu mesma disseste que o parto de Jonayla foi fácil, Ayla- disse Jondalar, enrugando a testa no seu gesto habitual.

- Até um parto fácil é doloroso, Jondalar. O que se passou foi que não passei tão mal como esperava- explicou Ayla.

- Não quero causar-te dor- declarou Jondalar, voltando-se para ela. - De certeza que devíamos ter outro? - Recordou-se de imediato que a companheira de Thonolan morrera no parto.

- Não sejas tonto, Jondalar. Claro que vamos ter outro filho. Eu também quero ter outro, sabes? Não és só tu. Mas se não quiseres iniciar um, posso sempre encontrar outro homem disposto a isso- afirmou, com um sorriso de gozo.

- Nem pensar- contrariou Jondalar, dando-lhe um apertão no ombro. - Danug acaba de te dizer que não podes deitar-te com mais ninguém, apenas comigo. Estás recordada?

- Nunca desejei deitar-me com outro homem além de ti, Jondalar. Foste tu que me ensinaste o dom do prazer da Mãe. Ninguém seria capaz de me dar mais, talvez pelo muito que te amo- afirmou Ayla.

Jondalar virou o rosto para ocultar as lágrimas que afloravam aos seus olhos, mas Danug olhava noutra direção, fingindo não se aperceber. Quando Jondalar voltou outra vez a cabeça, fitou Ayla muito sério:

- Nunca te disse o quanto lamento o sucedido com Marona. A verdade é que não a desejava por aí além, mas ela era fácil e estava sempre disponível. Não quis dizer-te, para não te magoar. A partir do momento em que nos descobriste juntos, não parava de pensar no muito que devias odiar-me. Quero que saibas que só te amo a ti.

- Eu sei que me amas, Jondalar- replicou Ayla. - Toda a gente nesta Reunião de verão sabe que me amas. Eu não estaria aqui se não me amasses. Apesar do que disse Danug, se alguma vez tiveres necessidade, ou até se simplesmente te apetecer, podes deitar-te com quem quiseres, Jondalar. Já nem sequer odeio Marona. Não a culpo por te desejar. Quem não te desejaria? O amor não se cria apenas por se partilhar o dom do prazer. Assim criam-se os bebés, mas não o amor. Com amor, os Prazeres são maiores, mas se amas alguém, que importância tem se essa pessoa se deita com outra de vez em quando? Isso dura pouco, mas como pode ser isso mais importante do que toda uma vida de amor? Mesmo no Clã, as pessoas deitavam-se apenas para aliviar as necessidades de um homem. Não esperarás que quebre o nosso vínculo só porque te deitaste com outra, pois não?

Danug riu-se.

- Se essa fosse uma razão, toda a gente tinha de quebrar o seu vínculo. As pessoas esperam ansiosamente pelas festividades para honrar a Mãe e compartilhar os prazeres com outra pessoa de vez em quando. Ouvi dizer que, nas festividades, Talut ainda consegue deitar-se com seis mulheres seguidas. A minha mãe sempre me disse que isso lhe permitia ver se algum outro homem era capaz de o igualar. E ninguém conseguiu.

- Talut supera-me- assinalou Jondalar. - Antes, quiçá, mas agora já não tenho a mesma resistência. E, para te ser sincero, nem sequer o desejo.

- Pode ser que sejam apenas histórias- disse Danug. - A verdade é que nunca o vi com nenhuma mulher além da minha mãe. Passa muito tempo com outros líderes, e nas reuniões está quase sempre a visitar parentes e amigos. Na minha opinião, as pessoas gostam de inventar histórias.

Fez-se uma pausa na conversa e os três olharam uns para os outros. Depois, Danug prosseguiu:

- Eu não terminaria o vínculo de uma união por uma coisa assim, mas, para dizer a verdade, preferiria que a minha companheira não dividisse os prazeres com ninguém além de mim.

- E o que seria das festividades para honrar a Grande Mãe Terra?. - perguntou Jondalar.

- Sei que todos deveríamos honrar a Grande Mãe nas festividades, e não só, mas como posso saber que os filhos que a minha companheira traz para o lar são meus se dividiu prazeres com outros? - indagou Danug.

Ayla fitou os dois homens e recordou as palavras da Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Mãe.

- Se até agora um homem sempre acarinhou as crianças que uma mulher levava para o seu lar, porquê o facto de saber quem os iniciou havia de mudar as coisas?

- Talvez não devesse mudá-las, mas preferiria que fossem meus- respondeu Danug.

- Se dás início a uma criança, isso converte-a em teu filho? Serias o seu dono, como se se tratasse de um bem pessoal? - inquiriu Ayla. - Não gostarias de uma criança que não fosse propriedade tua, Danug?

- Quando digo meu, não me refiro a que seja propriedade minha, mas meu no sentido de que o bebé tivesse vindo de mim- tentou explicar Danug. - Provavelmente, acabaria por sentir afeto por qualquer criança do meu lar, mesmo que a criança não viesse de mim ou até mesmo se não viesse da minha companheira. Gostava de Rydag como de um irmão, mais do que um irmão, e ele não era de Talut nem de Nezzie, mas se algum dia tiver um filho no meu lar, gostaria de saber que foi iniciado por mim. Uma mulher não tem de se preocupar com essas coisas. Sabe sempre.

- Entendo o que Danug sente, Ayla. Sinto-me feliz por saber que Jonayla veio de mim. E toda a gente o sabe porque tu nunca escolheste outro homem. Nós honramos sempre a Mãe nas festividades, mas escolhemo-nos um ao outro.

- Pergunto-me se estarias tão disposto a ter os teus próprios filhos se tivesses de suportar a dor juntamente com a tua companheira- argumentou Ayla. - Seria com alegria que algumas mulheres se livravam de ter filhos, se pudessem. Não muitas, mas algumas.

Os dois homens entreolharam-se, mas nenhum se voltou para Ayla, sentindo-se um pouco envergonhados por expressarem ideias pessoais que pareciam contradizer as crenças dos seus povos.

- Por certo, já deveis saber que Marona vai unir-se outra vez- disse Danug, mudando de assunto.

- Ai, sim? - inquiriu Jondalar. - Não, não sabia. Quando?

- Dentro de alguns dias, na segunda cerimónia matrimonial, quando Folara e Aldanor se unirem- respondeu Proleva, que entrava nesse instante. Vinha acompanhada por Joharran.

- Foi o que Aldanor me disse- acrescentou Danug.

Trocaram cumprimentos, as mulheres abraçaram-se e o líder da Nona Caverna agachou-se e tocou na bochecha de Ayla com a sua. Aproximaram tamboretes da cama.

- E vai unir-se a quem? - quis saber Ayla quando estavam já todos acomodados, e retomando o fio da recente revelação.

- Com um amigo de Laramar que vivia com ele e com todo aquele grupo no alojamento afastado, aquele que já não usam- respondeu Proleva. - E zelandoni, mas não daqui perto, segundo entendi.

- É de um grupo de cavernas nas margens do Grande Rio, a oeste daqui. Ouvi dizer que veio à nossa Reunião de verão para trazer uma mensagem a alguém e decidiu ficar. Não sei se já conhecia Laramar e os outros, mas ficaram grandes amigos- comentou Joharran.

- Creio que sei quem é- disse Jondalar.

- Vive no acampamento da Quinta Caverna desde que o grupo abandonou o alojamento afastado, e Marona também se instalou aí. Conheceram-se no acampamento- explicou Proleva.

- Pensava que Marona não queria voltar a unir-se, e ele parece bastante jovem. Pergunto-me porque o terá escolhido- disse Jondalar.

- Se calhar não teve outro remédio- conjeturou Proleva.

- Toda a gente diz que é tão bonita que poderia ter quem quisesse- disse Ayla.

- Para uma noite, sim, mas não como companheira- respondeu Danug. - Eu oiço o que se diz por aí: os antigos companheiros não falam muito bem dela.

- E nunca teve filhos- acrescentou Proleva. - Há quem diga que não pode tê-los. Quiçá alguns homens a desejem menos por causa disso, mas pelos vistos ao seu pretendente isso não importa. Marona pensa ir com ele para a sua caverna.

- Creio que o conheci uma noite quando voltava do acampamento lanzadoni com Echozar- disse Ayla. - Não posso dizer que me entusiasmasse. Porque saiu do alojamento afastado?

- Saíram todos quando alguém se apropriou dos objetos pessoais de alguns deles- respondeu Joharran.

- Ouvi falar disso, mas na altura não prestei muita atenção- comentou Jondalar.

- Alguém se apropriou de alguma coisa? - indagou Ayla, com interesse.

- Alguém levou objetos pessoais de quase todos os que estavam ali alojados- respondeu Joharran.

- E porque se lembraria alguém de fazer tal coisa? - inquiriu Ayla.

- Não sei, mas Laramar apanhou um desgosto quando descobriu que desaparecera um traje novo de inverno que acabara de trocar, além da sua bolsa e quase toda a barma. A outro tiraram umas luvas novas, e a um terceiro uma faca, e também levaram quase toda a comida- explicou Joharran.

- Alguém sabe quem foi o responsável? - quis saber Jondalar.

- Desapareceram duas pessoas: Brukeval e Madroman- respondeu Joharran. - Brukeval foi-se embora sem nada, pelo menos que saibamos. Segundo os restantes homens que viviam no alojamento afastado, os seus pertences continuavam lá depois de ter abalado, mas mais tarde desapareceram quase todos, e os de Madroman também.

- Ouvi a Zelandoni comentar com alguém que Madroman, depois de expulso da zelandonia, não devolveu os objetos sagrados que recebeu como acólito- comentou Proleva.

- Eu vi Madroman quando se ia embora! - exclamou Ayla, recordando-se de imediato.

- Quando? - perguntou Joharran.

- Foi no dia em que a Nona Caverna repartiu um banquete com os lanzadoni. Eu era a única no acampamento, e acabava de sair do abrigo. Ele fitou-me com tanto ódio que até me assustei, mas pareceu-me que estava cheio de pressa. Recordo que notei algo de estranho nele. Até que me dei conta de que nunca o tinha visto sem a sua túnica de acólito, e nesse dia andava vestido com uma roupa normal, mas estranhei que a roupa estivesse decorada com os símbolos da Nona Caverna, não da Quinta.

- Agora já sabemos o que aconteceu ao traje novo de Laramar- disse Joharran. - Já tinha pensado se não teria sido ele.

- Acreditas que foi Madroman quem o levou? - inquiriu Ayla.

- Sim, isso e tudo o resto que desapareceu.

- Acho que tens razão, Joharran- concordou Jondalar.

- Suponho que não se atrevia a enfrentar as pessoas depois da vergonha de ter sido expulso pela zelandonia, pelo menos as pessoas que o conheciam- declarou Danug.

- Para onde terá ido? - perguntou Proleva.

- Provavelmente tentará procurar outros com quem viver- retorquiu Joharran. - Por isso levou as coisas, porque sabe que em breve chegará o inverno e não tem um lugar onde ficar.

- Como conseguirá que um grupo desconhecido o aceite? Não tem ofício, e nunca foi um grande caçador. Ouvi dizer que já não caçava desde que se juntou à zelandonia, nem sequer acompanhava as caçadas- disse Jondalar.

- Mas isso qualquer pessoa pode fazer, e fá-lo qualquer um. As crianças adoram sacudir os arbustos e fazer muito barulho para assustar os coelhos e outros animais e depois persegui-los em direção aos caçadores ou a uma rede- comentou Proleva.

- Madroman tem um ofício. Por isso não devolveu os objetos sagrados que recebeu da zelandonia - lembrou Joharran. - É isso que fará. Será um Zelandoni.

- Mas ele não é um Zelandoni! - exclamou Ayla, indignada.

- Mentiu acerca do seu chamamento.

- Mas nenhum grupo de desconhecidos saberá disso- contrapôs Danug.

- Esteve tantos anos na companhia dos zelandonia que aprendeu a comportar-se como se fosse um deles. Voltará a mentir- vaticinou Proleva.

- Achas mesmo que o fará? - perguntou Ayla, horrorizada só de pensar em tal coisa.

- Deverias dizer à Zelandoni que o viste ir-se embora, Ayla- recomendou Proleva.

- E os restantes líderes também devem sabê-lo- acrescentou Joharran. - Talvez possamos mencioná-lo antes da tua reunião amanhã de manhã, Jondalar. Ao menos assim as pessoas terão outro tema de conversa para além da tua situação.

Ayla abriu os olhos desmesuradamente.

- Já? - indagou. - Proleva, eu penso ir.

Encontravam-se no exterior, ao nível do chão, frente às encostas que formavam o grande anfiteatro natural. Laramar estava ali sentado e, embora ainda tivesse a cara um pouco inchada, muitas cicatrizes e o nariz maltratado, parecia bastante recuperado da tareia dada pelo homem que se encontrava de pé à sua frente. Jondalar procurou não estremecer quando a brilhante luz do Sol vespertina iluminou o rosto daquele homem. Nem pessoas chegadas o teriam reconhecido se não soubessem quem ele era. Ao princípio temeram que perdesse um olho, e Jondalar ficou satisfeito que isso não tivesse acontecido.

Em teoria, era uma reunião da Nona e da Quinta Cavernas, com os zelandonia como mediadores, mas, dado que qualquer parte interessada podia assistir, quase todos os presentes na Reunião de verão sentiram curiosidade e se declararam como “interessados”. Embora a Nona Caverna tivesse preferido adiar a acareação até depois daquele encontro estival dos Zelandoni, a Quinta Caverna insistira em executá-la o quanto antes. Como tinham pedido à Quinta Caverna que aceitasse Laramar, os seus membros queriam saber que tipo de compensação podiam esperar, tanto eles como Laramar, por parte de Jondalar e da Nona Caverna.

Jondalar e Laramar haviam-se visto pela primeira vez depois do incidente um pouco antes da reunião pública, no alojamento da ze-landonia, na presença de Joharran, Kemordan- o líder da Quinta Caverna-, os zelandonia de ambas as cavernas e vários outros líderes e zelandonia. Sabiam que Marthona não estava bem, e disseram-lhe que não precisava de assistir à reunião, sobretudo porque a mãe de Laramar já não estava no mundo dos vivos, mas ela nem quis ouvir falar em tal coisa. Jondalar era seu filho e ela não pensava faltar. Não participaram na primeira reunião as companheiras dos dois implicados porque ambas representavam complicações: Ayla porque desempenhara um papel crucial no incidente; e a companheira de Laramar porque não desejava mudar-se para a Quinta Caverna com ele, sendo esse outro assunto pendente.

Jondalar apressara-se a dizer o muito que lamentava e se arrependia dos seus atos, mas Laramar limitou-se a mostrar desprezo pelo irmão alto e corpulento do líder da Nona Caverna. Por uma vez na vida, Laramar tinha a autoridade moral do seu lado; tinha razão, não fizera nada de mal e, por isso, não ia renunciar à sua vantagem.

Quando os participantes saíram do alojamento, escutava-se entre o público um murmúrio de conversações depois de circular a notícia de que Ayla vira Madroman abandonar o acampamento com roupa roubada a Laramar. A isso seguiram-se os mais diversos comentários acerca das inúmeras circunstâncias do caso: os conflitos passados de Jondalar e da Primeira com Madroman, a expulsão deste da zelandonia e o papel desempenhado por Ayla, e porque foi ela a única a vê-lo partir. Em atitude expectante, as pessoas acomodaram-se, dispostas a presenciar os acontecimentos. Não era com frequência que podiam testemunhar atos tão dramáticos. Todo aquele verão fora emocionante, e haveria temas de sobra nos longos e lentos dias de inverno.

- Hoje temos de resolver assuntos graves- começou a Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Grande Mãe Terra. - Não são assuntos do mundo dos espíritos, mas sim problemas entre os filhos de Doni, e pedimos-lhe que observe as nossas deliberações e nos ajude a decidir a verdade, a pensar com clareza e a tomar decisões justas.

Tirou uma pequena escultura e levantou-a. Era uma figura de mulher, com as pernas estreitando-se até terminarem em dois pés apenas insinuados. Apesar de não verem bem o objeto que segurava na mão, todos sabiam que se tratava de uma doni, um recetáculo para o espírito da Grande Mãe Terra, que tudo abarcava, pelo menos aqueles que residissem numa parte essencial da Sua natureza. No centro do anfiteatro tinham um marco de pedras, quase um pilar, provido de uma ampla base, formada por rochas relativamente grandes, que se estreitavam até se truncarem a uma determinada altura numa superfície plana de cascalho arenoso.

Com um gesto decidido, a Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Grande Mãe Terra espetou os pés da doni no cascalho miúdo e segurou-a para que todos a vissem. A principal função da donii nesse contexto era impedir as mentiras intencionais, e nesse aspeto a Mãe era uma grande dissuasora. Quando se invocava expressamente o espírito da Mãe para que observasse qualquer coisa, todos sabiam que Ela de-tetaria toda e qualquer mentira e dá-la-ia a saber; embora uma pessoa pudesse mentir e safar-se momentaneamente, no final acabaria por se saber a verdade, e geralmente com repercussões muito piores. Embora nesse dia o perigo de que alguém mentisse fosse mínimo, a doni podia exercer a sua influência limitando a propensão para o exagero.

- Se estiverem todos de acordo, sugiro que comecemos- anunciou a Primeira. - Houve muitas testemunhas, por isso não creio que seja necessário entrar em pormenores acerca das circunstâncias. Na última festividade, para honrar a Grande Mãe, Jondalar encontrou a sua companheira Ayla a dividir o dom dos Prazeres da Mãe com Laramar. Tanto Ayla como Laramar deitaram-se por vontade própria. Não houve uso da força nem coação. Não é assim, Ayla?

Ayla não esperava ser interrogada tão cedo, converter-se de repente no foco de todas as atenções por parte do público. Na verdade, nem sendo apanhada desprevenida saberia mentir, por mais que tivesse tentado.

- Sim, Zelandoni. É verdade.

- Foi assim, Laramar?

- Sim, ela estava mais do que disposta. Perseguiu-me- respondeu ele.

A Primeira conteve um ligeiro impulso de o alertar para que não exagerasse, e continuou.

- E o que se passou em seguida? - Decidia entre perguntá-lo a Ayla ou a Jondalar, mas Laramar adiantou-se.

- O que aconteceu está bem à vista. Quando me apercebi, tinha Jondalar em cima de mim a dar-me murros na cara.

- Jondalar?

O homem alto baixou a cabeça e engoliu a saliva.

- Sim, foi isso que sucedeu. Quando o vi com Ayla, arranquei-o de cima dela e comecei a bater-lhe. Agi muito mal e não tenho desculpa- respondeu Jondalar, sabendo no fundo do seu coração, mesmo enquanto o dizia, que voltaria a agir da mesma forma.

- Sabes o que te levou a bater-lhe, Jondalar? - perguntou a Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Mãe.

- Estava enciumado- murmurou ele.

- Estavas com ciúmes. Foi isso que disseste?

- Foi sim, Zelandoni.

- Se necessitavas de expressar os teus ciúmes, Jondalar, não bastava tê-los simplesmente separado? Tinhas mesmo de lhe bater?

- Não consegui evitá-lo. E quando comecei... - Jondalar abanou a cabeça.

- E quando começou, ninguém conseguia detê-lo. Até me atingiu a mim! - interveio o líder da Quinta Caverna. - Estava fora de si, como se vítima de um arroubo de fúria. Não sei o que teríamos feito se aquele mamutoi enorme não o tivesse agarrado.

- Por isso está tão disposto a acolher Laramar- sussurrou Folara a Proleva, mas em voz suficientemente alta para quem estava mais perto a ouvisse. - Ficou furioso porque não conseguiu deter Jondalar e ainda levou um murro ao tentar.

- Além disso, gosta da barma de Laramar, mas talvez descubra que ele não é flor que se cheire- disse Proleva. - Não seria a primeira pessoa que eu convidaria para fazer parte da minha caverna. - Voltou a dirigir a sua atenção para o centro do anfiteatro.

- Por isso tentamos mostrar como os ciúmes são absurdos- explicava a Zelandoni. - Podem facilmente escapar-se-nos das mãos. Entendes, Jondalar?

- Sim, Zelandoni, entendo. Foi uma estupidez da minha parte, e lamento muito. Farei o que me mandares para o compensar. Quero reparar os danos.

- Não podes repará-los- argumentou Laramar. - Não podes dar-me uma cara nova, da mesma forma que não podes devolver os dentes a Madroman.

A Primeira fitou Laramar com profunda irritação. O assunto não vinha a propósito. Não era necessário abordá-lo. Aquele homem não fazia a menor ideia até que ponto Jondalar fora provocado nessa situação em particular, mas nada disse.

- Já foi paga a devida compensação- declarou Marthona em voz alta.

- E espero que agora se pague outra! - replicou Laramar.

- O que esperas? - perguntou a Primeira. - Que reparação exiges? O que queres, Laramar?

- O que quero é esmurrar aquela cara bonita- contestou Laramar.

A assistência soltou uma exclamação.

- Não duvido, mas essa não é uma solução autorizada pela Grande Mãe. Ocorre-te alguma outra possibilidade de reparar o dano causado? - inquiriu a Donier.

A companheira de Laramar pôs-se de pé.

- Jondalar passa a vida a aumentar o refúgio da família dele. Porque não lhe pedes que construa um abrigo maior para a tua família? - propôs em voz alta.

- Essa é uma boa opção, Tremeda- afirmou Aquela Que Era a Primeira. - E onde preferias que fosse, Laramar? Na Nona Caverna ou na Quinta?

- Isso não é compensação para mim- contrapôs Laramar.

- Quero lá saber em que tipo de abrigo ela vive. De qualquer maneira, acabará por se transformar numa pocilga.

- É-te indiferente em que condições vivem os teus filhos, Laramar?

- quis saber a Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Mãe.

- Os meus filhos? Se o que dizes é verdade, eles não são meus. Se as crianças se iniciam tendo as pessoas que se deitar umas com as outras, então eu não iniciei nenhum deles... com exceção do primeiro. Há anos que não tenho nenhuma ligação com ela, já para não falar de dividir “prazeres”. Acredita, com essa mulher não há “prazer” possível. Não sei de onde saíram essas crianças, talvez das festividades da Grande Mãe. Se deres bebida suficiente a um homem, até mesmo ela pode parecer atraente. Não sei quem iniciou os meus filhos, mas sei que não fui eu. Essa mulher, a única coisa que sabe fazer é beber a minha barma- disse Laramar num tom desdenhoso.

- Ainda assim, Laramar, são os filhos do teu lar. E responsabilidade tua cuidar deles e alimentá-los- disse Aquela Que Era a Primeira. - Não podes dizer assim sem mais nem menos que não queres saber deles para nada.

- Porque não? Não quero saber deles para nada. Nunca significaram nada para mim. Se nem sequer ela se preocupa com eles, porque haveria eu de me preocupar?

O líder da Quinta Caverna estava tão horrorizado quanto os restantes com a atitude cruel de Laramar para com as crianças do seu lar. Entre a assistência, Proleva sussurrou:

- Eu bem disse que ele não era flor que se cheirasse.

- Sendo assim, quem esperas que cuide das crianças do teu lar, Laramar? - perguntou a Zelandoni.

O homem calou-se e franziu o sobrolho.

- Por mim, pode muito bem ser Jondalar. Não pode dar-me nada do que eu queira realmente. Não pode devolver-me a cara, e eu não posso ter a satisfação de lhe dar o que ele me deu a mim. Se está tão desejoso de me compensar, de reparar os danos causados, então que tome a seu cargo essa harpia, essa mulher manipuladora, e a sua prole de esfomeados- replicou Laramar.

- Jondalar pode estar em dívida para contigo, Laramar, mas isso é pedir muito a um homem que tem a sua própria família: assumir a responsabilidade de uma família do tamanho da tua- interveio Joharran.

- Não faz mal, Joharran, é isso que farei- interrompeu Jondalar. - Se é isso que ele deseja, é isso que farei. Se ele não vai assumir a responsabilidade do seu próprio lar, alguém tem de o fazer. Essas crianças precisam de uma pessoa que se ocupe delas.

- Não achas que deverias consultar Ayla primeiro? - inquiriu Proleva, sentada entre a assistência. - Semelhante responsabilidade irá tirar-lhe tempo para dedicar à sua própria família. - “Se bem que eles os dois já se ocupam mais dessa família do que Laramar ou Tremeda”, pensou, mas não o disse em voz alta.

- Não, Proleva, Jondalar tem razão- afirmou Ayla. - Eu também sou responsável. Não pensei nas consequências, sou igualmente culpada. Se Laramar fica satisfeito que assumamos a responsabilidade de cuidar da sua família, então devemos fazê-lo.

- Muito bem, Laramar, é isso mesmo que desejas? - inquiriu a Primeira.

- Sim, se com isso me deixarem em paz, porque não? - respondeu Laramar, e soltou uma gargalhada bem sonora. - Cedo-te Tremeda com todo o gosto, Jondalar.

- E tu o que dizes, Tremeda? Consideras esta solução satisfatória? - perguntou a Zelandoni.

- E ele constrói-me um abrigo novo como o que está a fazer para ela? - quis saber a mulher, apontando para Ayla.

- Sim, garantirei que terás um abrigo novo- retorquiu Jondalar.

- Queres que o construa na Nona Caverna ou na Quinta?

- Bem, se vou ser a tua segunda mulher, Jondalar- respondeu ela com um tom coquete-, será melhor que fique na Nona Caverna.

Além disso, é o meu lar.

- Escuta-me bem, Tremeda- disse Jondalar, olhando-a fixamente. - Não vou assumir-te como segunda mulher. Disse que assumirei a responsabilidade de cuidar de ti e dos teus filhos. Garanti que te construía um abrigo novo. É só até aí que se estendem as minhas obrigações. Faço-o para reparar os danos que infligi ao teu companheiro. Não serás de maneira nenhuma uma segunda mulher para mim, Tremeda. Estamos entendidos?

Laramar riu-se.

- Não digas que não te avisei, Jondalar. Disse-te que ela era uma harpia manipuladora. Irá usar-te de todas as maneiras possíveis e imaginárias. - Soltou outra gargalhada. - Sabes uma coisa? Talvez o arranjo não seja assim tão mau. Vai dar-me uma certa satisfação ver como a aguentas.

- De certeza que queres ir a nadar para ali, Ayla? - inquiriu Jondalar.

- Era o nosso sítio antes de levares Marona para lá, e continua a ser o melhor lugar para nadar, sobretudo agora que para jusante as águas estão tão agitadas e cheias de lama. Não pude nadar como devia desde que cheguei, e não tardaremos a ir embora- respondeu Ayla.

- Mas de certeza que estás em condições de nadar?

- Sim, claro. Mas não te preocupes: penso passar quase todo o tempo deitada ao sol, na margem. Só quero é sair deste alojamento e estar um pouco a sós contigo, longe das pessoas, agora que por fim consegui convencer a Zelandoni de que já estou bem- respondeu Ayla. - Em qualquer dos casos, não tardaria a montar Whinney e a ir dar uma volta. Sei que a Zelandoni continua preocupada, mas sinto-me bem. Preciso apenas de sair e mexer-me um pouco.

A Zelandoni sentia-se culpada por não ter prestado a devida atenção a Ayla e havia adotado uma atitude superprotetora pouco própria dela. Carregava com a responsabilidade de ter estado ao ponto de perder a jovem, e não ia permitir que isso voltasse a acontecer. Jondalar concordava e, durante algum tempo, Ayla recebeu mais atenção da parte deles do que era habitual. Mas, à medida que ia recuperando as forças, começou a fartar-se de tanto mimo. Ayla tentara convencer a Donier de que já descansara o suficiente e que as forças já lhe permitiam voltar a montar e a nadar, mas a Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Grande Mãe não lhe deu autorização até que se viu na necessidade de tirar Lobo de cima dela durante um tempo.

Jonayla e as outras crianças da sua idade iam participar numa atividade, sob a supervisão da zelandonia, para as cerimónias de encerramento da Reunião de verão. O Lobo não só representava uma distração para as crianças quando estavam todas juntas, impedindo-as de se concentrarem, como para Jonayla era difícil controlar o animal e ao mesmo tempo aprender o que tinha de fazer. Quando a Zelandoni insinuou a Ayla que, apesar de o lobo ser bem-vindo, talvez fosse melhor ficar junto dela, Ayla encontrou a desculpa perfeita para convencer a Donier de que tinha de tirar o Lobo e os cavalos do acampamento para fazerem exercício.

Na manhã seguinte, Ayla queria sair logo cedo, com medo de que a Zelandoni mudasse de ideias. Jondalar tinha dado de beber e escovado os cavalos antes da refeição da manhã, e quando colocou as mantas de montar a Whinney e Racer, e os cabrestos a Racer e a Cray, os cavalos perceberam que iam sair e, excitados, começaram a brincar. Embora não pensassem montar Gray, Ayla preferiu não a deixar para trás. Estava certa de que a jovem égua se sentiria sozinha: os cavalos gostavam de companhia, sobretudo a dos outros animais da sua espécie, e Gray também precisava de fazer exercício.

O lobo levantou a cabeça em expectativa quando Jondalar pegou num par de cestos de transporte concebidos para colocar na garupa de um cavalo. Os cestos estavam repletos de diversos utensílios e de misteriosos embrulhos envoltos em tela castanha-clara tecida com fibras de linho, um dos vários exemplos que Ayla havia confecionado para praticar e matar o tempo durante a convalescença. Marthona pedira que lhe fizessem um pequeno tear e estava a ensinar-lhe a tecer. Um dos cestos estava coberto por uma pele de couro para estender no chão e o outro pelas suaves peles amarelas, oferta dos Sharamudoi, que seriam utilizadas como toalhas.

Lobo adiantou-se a eles troteando alegremente quando Jondalar, ao sair do alojamento, lhe fez sinal que podia acompanhá-los. A poucos passos do cercado dos cavalos, Ayla parou para colher umas bagas maduras que pendiam de um arbusto de caule vermelho. Esfregou na túnica o fruto azul, redondo e empoeirado, contemplou a pele, agora de um azul mais intenso, colocou-o na boca e, com um sorriso de satisfação, saboreou a polpa doce e sumarenta. Quando trepou a um toco para montar Whinney, sentiu-se feliz só por se encontrar ao ar livre e saber que não tinha de voltar ao alojamento de imediato. Por essa altura já conhecia de cor todas e cada uma das fendas nos desenhos pintados ou gravados nos sólidos postes de madeira que seguravam o telhado, todas as manchas de fuligem que enegreciam o contorno da saída de fumo. Queria ver o céu e as árvores, e uma paisagem desimpedida, livre de alojamentos.

Quando se puseram em marcha, Racer começou a comportar-se de uma forma anormalmente ruidosa e um tanto rebelde, e contagiou alguma dessa indisciplina às duas éguas, dificultando o seu manejo. Depois de atravessar a zona florestada, Ayla tirou o cabresto a Gray para que pudesse seguir ao passo que desejasse, e Ayla e Jondalar, como por acordo tácito, incitaram as suas montadas para que galopassem à sua vontade. Quando os animais afrouxaram a marcha por desejo próprio, tinham já queimado o excesso de energia e pareciam mais relaxados, mas Ayla não. Estava excitada. Sempre gostara de cavalgar a pleno galope, e, depois do seu período de reclusão, aquilo provocou-lhe um estado de euforia especial.

Seguiram a um passo mais tranquilo por uma paisagem de marcado relevo entre montes altos e paredes de pedra calcária e através de desfiladeiros abertos por rios. Embora o sol do meio-dia continuasse a aquecer, aproximava-se a mudança de estação. As manhãs podiam ser frescas e límpidas, e os entardeceres nublados e chuvosos. A exuberante verdura estival das folhas começava a dar lugar aos amarelos e a um ou outro vermelho próprios do outono. A erva dos prados passava do intenso dourado e do brilhante castanho ao amarelo pálido e ao cinzento do feno natural, que permaneceria nos campos grande parte do inverno; por outro lado, as folhas das outras herbáceas tinham adquirido tons avermelhados. Para deleite de Ayla, plantas isoladas ou pequenos grupos de arbustos apareciam à sua frente em forma de manchas de cor resplandecentes, mas aquilo que de facto a fez ficar de boca aberta foi o deslumbrante espetáculo das colinas arborizadas orientadas a sul. De longe, os vistosos matagais e árvores assemelhavam-se a grandes ramos de flores luminosas.

Gray, seguindo-os alegremente sem cavaleiro, ia parando de vez em quando para pastar, e Lobo farejava os montículos, os arbustos e as pequenas acumulações de erva alta, investigando o seu próprio caminho composto por aromas invisíveis e sons secretos. Traçaram um círculo largo que no final os levaria novamente até ao Rio e dali, seguindo a margem para jusante, até ao acampamento da Reunião de verão. Mas não regressaram ao acampamento. Viraram para bordear o sinuoso riacho que atravessava o bosque a norte do acampamento da Nona Caverna e, quando o Sol se aproximava do seu zénite, chegaram ao profundo charco formado numa fechada curva desse rio menor. As árvores projetavam uma sombra manchada sobre a distante praia de cascalho arenoso.

O calor do Sol era agradável quando Ayla passou a perna por cima do lombo de Whinney e desmontou. Desapertou os cestos de transporte e retirou a manta de montar e, enquanto Jondalar estendia a grande pele, ela abriu uma bolsa de couro fechada com um cordel e deu de comer à égua de cor amarela, uma mistura granulosa, sobretudo à base de aveia, e depois acariciou-a e coçou-a afetuosamente. Depois de lhe dar mais uns quantos punhados, repetiu o processo com Gray, que, durante todo esse tempo, havia reclamado a sua atenção, empurrando-a suavemente com o focinho.

Jondalar deu de comer a Racer e acariciou-o. O garanhão estava mais incontrolável do que o costume, e embora tivesse ficado mais tranquilo com a comida e o contacto, Jondalar não queria ver-se obrigado a correr atrás dele se decidisse afastar-se. Assim, atou-o a uma árvore pequena com uma corda presa ao cabresto. Jondalar recordou-se então que pensara deixar o garanhão partir em liberdade para que pudesse procurar um lugar onde viver com os outros cavalos, e perguntou-se se deveria fazê-lo. Todavia, ainda não estava preparado para renunciar à companhia do magnífico animal.

Lobo, que andara de um lado para o outro a seu bel-prazer, saiu de trás de uma cortina de arbustos. Ayla levara-lhe um osso com carne, mas antes de o tirar do cesto, decidiu dedicar-lhe também um pouco de atenção. Deu umas palmadas no seu peito quase à altura do ombro, e preparou-se para receber o peso do enorme carnívoro, que se ergueu sobre as patas traseiras e apoiou as dianteiras nos ombros de Ayla. Lambeu-lhe o pescoço e rodeou-lhe o queixo delicadamente com os dentes. Ela devolveu-lhe o gesto, fez-lhe sinal para que tirasse as patas e, emoldurando-lhe a cabeça com as mãos, agachou-se frente a ele. Acariciou-o e coçou-o atrás das orelhas e alvoroçou-lhe o pelo, já mais espesso em redor do pescoço; em seguida, sentou-se no chão e abraçou-o. Sabia que também o lobo permanecera ao seu lado, à semelhança de Jondalar, enquanto se recuperava da sua perigosa viagem ao mundo dos espíritos.

Apesar de já o ter visto centenas de vezes, Jondalar continuava a maravilhar-se com a relação entre Ayla e o lobo e, por mais cómodo que se sentisse na presença do animal, nunca se esquecia de que Lobo era um animal caçador. Um animal capaz de matar. Outros da sua espécie perseguiam, caçavam e comiam animais bem maiores do que eles. Lobo podia rasgar a garganta de Ayla com a mesma facilidade com que a acariciava com os dentes, e, ainda assim, era com toda a tranquilidade que Jondalar deixava a sua companheira e a sua filha nas mãos do animal. Sabia o amor que Lobo sentia pelas duas, e, embora no fundo de si lhe parecesse inconcebível, a um nível básico compreendia-o. Estava convencido de que Lobo sentia por ele algo muito parecido ao que ele sentia pelo animal. O lobo deixava a mulher e a menina que amava nas suas mãos com igual tranquilidade, mas Jondalar não tinha a menor dúvida de que, se alguma vez Lobo pensasse que o homem podia fazer mal a qualquer uma das duas, não hesitaria em detê-lo fosse como fosse, ainda que isso implicasse matá-lo. Ele faria o mesmo.

Jondalar gostava de observar Ayla com o Lobo. Mas também gostava de a observar enquanto fazia outra coisa qualquer, sobretudo agora que voltava a ser a mesma de sempre e estavam novamente juntos. Não lhe agradara a ideia de a deixar sozinha e abalar com a Nona Caverna para a Reunião de verão, e sentira a falta dela, apesar das escapadelas com Marona. Depois de pensar que a tinha perdido, primeiro por culpa dos seus próprios atos e em seguida, mais desesperadamente, por causa do sumo de raízes que ela bebera, mal podia acreditar que voltariam a estar juntos. Tivera tánta certeza que ela respondera às suas fervorosas súplicas, que lhe tinha concedido o que ele queria, o que ansiava, o que pedira, e no seu íntimo voltou a agradecer com ardor. Mas nesse momento compreendeu que a Mãe também lhe outorgara o pedido expresso na cerimónia especial com Losaduna. Sabia que Jonayla era sua filha, a menina da sua essência, e isso deixava-o exultante.

Sabia que todas as crianças nascidas de Ayla seriam do seu espírito, da sua essência, por ela ser quem era, porque o amava apenas a ele, e ele alegrava-se que assim fosse. E tinha a certeza de que ele só a amaria a ela, acontecesse o que acontecesse. Mas estava consciente de que aquele novo Dom do Conhecimento mudaria as coisas e só podia perguntar-se em que medida.

E não era o único. Todos pensavam nisso, e em particular uma pessoa: a mulher Que Era a Primeira Entre Aqueles Que Serviam a Grande Mãe Terra, que, sentada calmamente no alojamento da zelandonia, pensava no novo Dom do Conhecimento sabendo que iria mudar o mundo.

 

 

                                                                                                    J. M. Auel

 

 

 

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