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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MAGIA DA ALVORADA - P.2 / S. L. Farrell
A MAGIA DA ALVORADA - P.2 / S. L. Farrell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

FRANCESCA VIROU O ROSTO e olhou para ele ao entrarem no templo. Orlandi notou pela expressão que ela estava nervosa e aborrecida, mas não havia nada que pudesse fazer pela filha a não ser franzir a testa em solida­riedade e indicar o a'kralj com a cabeça, em cujo braço ela estava pendurada.

Preste atenção nele. Fique com ele, disse Orlandi com aquele olhar. E o que você precisa fazer agora. Ele pediu que o acompanhasse, e essa é uma grande honra pública. Não perdemos coisa alguma ainda...

 

 

 

 

Ele acreditava que tinha o a'kralj sob firme controle através de Francesca. A manhã de hoje mostrou que estava errado. A lição disparou uma dúvida que dava voltas dentro da cabeça de Orlandi. Ele parecia com um daqueles malabaristas de rua ao longo da Avi, com bolas demais no ar em volta, cada uma com uma trajetória própria. Havia o hirzg, já em marcha na direção da fronteira de Nessântico, tão perigoso de manipular quanto carvões em brasa. Orlandi ainda não ouvira de co'Belli a respeito de Estraven, embora tivesse ordenado ao homem que mandasse um mensageiro imediatamente. E agora o archigos parecia ter posto o próprio peão bem no caminho de Francesca, e o a'kralj não deixou que Orlandi varresse a mulher para o lado.

Ele tinha que continuar equilibrando as bolas. Não podia considerar nada garantido ainda.

Orlandi rezou ao andar, mas a prece não era para a kraljica, de cujo corpo eles chegavam perto lentamente. A procissão era longa: o archigos, seguido pelo a'kralj, depois mais ou menos meia dúzia de aténis que, como Orlandi, vieram à cidade pelo jubileu, a seguir os muitos parentes da kraljica - todos andando entre os ténis de robes brancos que ficaram de plantão diante do corpo da kraljica desde que ele chegou aqui, todos andando sob o esplendor das luzes mágicas do templo.

Cénzi, fiz tudo pela Sua glória, por Seus objetivos. Mostre para mim, Seu servo, que não perdi Sua graça... Orlandi rezou e olhou para trás do a'kralj, para o maldito anão e sua vadia feiosa, e o estômago ardeu.

Eu mereço a equipe e a coroa. Mereço ser archigos; eu deveria ter sido archigos em vez dele. Sou o verdadeiro protetor da Divolonté, o verdadeiro guardião da Fé. A Divolonté, o Ilmodo e os ténis mantêm coesa a própria essência de Nessântico, que eu protejo em nome do Senhor contra Seus inimigos que querem destruir essa essência...

Quando eles entraram no templo, o maestro do coral moveu as mãos em cima de sua galeria e o coral começou a cantar Réquiem para um kraljiki, de Darkmavis. As harmonias fúnebres rodopiaram e circularam, reverberaram pela extensão do templo, foram ampliadas e moldadas pelo feitiço do maestro téni, a melodia delicada ia de tenores a barítonos e voltava, a cadência dos graves era incessante por baixo. Orlandi observou quando o archigos virou-se e sussurrou para sua vadia, depois notou o movimento das mãos dela no gestual de criação de luz. Porém os gestos eram hesitantes, e Orlandi percebeu que ela errou e recomeçou; quando a luz surgiu entre suas mãos, ela era fraca e pálida comparada à luz dos outros ténis que rezavam de ambos os lados da nave do templo.

Orlandi se viu franzindo os olhos. Esse é o Seu sinal, Cénzi? O Se­nhor me respondeu assim tão rápido? A o'téni havia dançado com aquele numetodo asqueroso durante o Gschnas, afinal de contas - e agora ela queria conversar com o a'kralj a respeito dos numetodos aprisionados pelo comandante. Sem dúvida, seu ponto de vista seria conciliatório e frouxo, um reflexo do ponto de vista do archigos. Ela não tinha o poder da ver­dadeira Fé, não importa o tamanho do Dom dado por Cénzi. Orlandi tinha certeza de que ela também tinha usado o Dom inapropriadamente - certamente essa era a explicação mais simples para ela ter visitado tanto a kraljica nos momentos finais da doença: sob a orientação do anão, ela usou o Ilmodo contra as leis da Divolonté para tentar curar a kraljica. Isso certamente fez sentido para ca'Millac, uma vez que foi o apoio da kraljica que o ajudou a se manter como archigos.

Mas talvez... talvez houvesse algo mais aqui, uma coisa que ele não notou. Será que Cénzi retirou o Dom de co'Seranta? Pronto, o anão franziu a testa para sua o'téni, e ela abandonou completamente o feitiço ruim. As mãos ficaram escuras e vazias. Orlandi viu co'Seranta sussurrar em tom de descul­pas para o archigos, sem dúvidas alegou cansaço, como parecia indicar a pele escura e empapuçada debaixo dos olhos.

Orlandi registrou na mente que tinha que falar com o comandante. Talvez o homem soubesse de alguma coisa, embora ele fosse aliado da kraljica, não de Orlandi...

O a'kralj chegou ao corpo de sua matarh, o archigos e a o'téni co'Seranta foram para o lado. O rosto da kraljica permanecia coberto pela máscara mortuária: boca e pálpebras fechadas e pintadas, o cabelo grisalho ao redor do ouro como uma espuma branca. O a'kralj ficou diante da mão direita da matarh com Francesca ainda ao lado, olhando para ela. Enquanto Orlandi observava, o a'kralj esticou o braço e passou os dedos não na mão da matarh, mas sim no cetro do kralji, que estaria em sua própria mão na manhã do dia seguinte. Orlandi abaixou a cabeça e fechou os olhos assim que a procissão parou para que o a'kralj tivesse um tempo com sua matarh, e Francesca foi educadamente para o lado para permitir que o a'kralj gozasse de privacidade, mas Orlandi duvidou que o homem fosse rezar. Em vez disso, ele provavel­mente estaria pensando no dia de amanhã, quando seria declarado kraljiki, quando se sentaria no Trono do Sol, banhado pelo esplendor do cargo.

Você tem que escolher...

Talvez o hirzg realmente fosse sua melhor escolha. Jan ca'Vörl certamente seria um forte kraljiki, e suas afinidades claramente estavam em sintonia com as de Orlandi, que já tinha em mãos o pedido do hirzg pela mão de Francesca para consolidar a aliança. Embora o a'kralj fosse o amante de Francesca, em­bora ele insinuasse que tal casamento o interessaria, também não anunciou nenhum noivado formal. Se o a'kralj fosse impor sua vontade, se considerasse desprezar Francesca em favor daquela vadia sem graça do anão, que não era melhor do que uma das grandes horizontales, então, talvez...

Orlandi suspirou. As têmporas doeram, e ele não queria outra coisa a não ser se afundar na banheira quente com um bálsamo de menta na testa. Mas isso levaria algum tempo para acontecer, não até que os intermináveis parentes da kraljica tivessem um instante com ela.

O a'kralj finalmente se mexeu, ergueu a cabeça e fez o sinal de Cénzi so­bre sua matarh. Ele inclinou-se para a frente e deu o último beijo cerimonial, as máscaras fizeram um som metálico com o toque. O archigos foi à frente como uma pata-choca enquanto Francesca tomou o braço do a'kralj mais uma vez. O archigos abençoou o a'kralj, a voz soou alta no templo. Orlandi achou que o anão parecia ridículo, como um bebê encarquilhado falando com um adulto - não apenas Orlandi seria um archigos segundo as exigências da Fé, como também tinha a aparência de um archigos. Ele não seria um insulto ao cargo como esse aí.

Em breve, se for a Sua vontade...

O âkralj, conforme o canto fúnebre do coral aumentou outra vez, foi em­bora altivamente com Francesca ao lado e com o archigos, a o'téni co'Seranta e sua equipe atrás. Eles saíram do templo pela porta lateral, e Orlandi ouviu ao longe a multidão que lotava a praça do templo saudar o a'kralj.

Orlandi avançou. Ele e os outros a'ténis ficaram em volta do corpo. Com satisfação, notou que nenhum dos a'ténis contestou seu direito de ficar na cabeça da kraljica. Os a'ténis... a maioria ficaria ao seu lado, ele tinha certeza, quando chegasse a hora. Um Colégio Aténi votaria para depor o odiado anão ca'Millac quando Orlandi apresentasse acusações, e a seguir ele seria promo­vido a archigos...

O primeiro do grande número de sobrinhos e sobrinhas da kraljica aproximou-se com a família, vindo de uma fila que ia até os fundos do tem­plo, e Orlandi suspirou novamente.

Enquanto os parentes de luto passavam lentamente, ele contentou-se com idéias do que faria quando fosse o archigos, quando este fosse seu templo...

 

O SOL DO MEIO-DIA derramou ouro sobre as paredes da Bastida, mas na prática parecia evitar tocar as pedras escuras e sujas. Karl estava em uma sacada no alto da torre, protegido apenas por um frágil peitoril de ma­deira vazada. Desse mirante, ao olhar para o leste, ele conseguia ver os domos dourados do Templo do Archigos. Entre os telhados dos prédios, Karl vis­lumbrou a enorme multidão reunida ao redor do templo enquanto a cidade esperava pela kraljica começar sua última e lenta procissão pelo anel da Avi a'Parete: ao anoitecer, as lâmpadas de Nessântico foram acesas.

Espero que não esteja considerando pular, vajiki. Isso seria uma vergonha, embora alguns dos habitantes desse aposento tenham ficado, ah, desapontados com a nossa hospitalidade a ponto de preferir a morte ao confinamento.

Karl olhou para trás e viu o interior pequeno e sombrio da cela em que fora colocado, mobiliada com uma cadeira e mesa toscas e uma pequena cama com colchão de palha. A porta de metal permaneceu aberta. Ele viu o coman­dante meio sentado sobre a mesa, com uma perna apoiada nela e a outra no chão. O homem estava com o uniforme de gala, botas lustradas e reluzentes. Atrás dele, no corredor atrás das grades, Karl notou dois gardai apoiados nas paredes de pedra. Uma tocha tremeluzia no suporte entre eles. - Embora não tenha sido o caso com o chevaritt ca'Gafeldi, como me lembro - disse ca'Rudka. - Sua mente ficou perturbada após alguns meses aqui, e ele insistiu que era capaz de se transformar em uma pomba e sair voando. Ele pareceu um tanto ridículo ao bater os braços até lá embaixo.

Os gardai no corredor riram. Karl não disse nada - ele não podia dizer nada, não com a barra de metal coberta por um pano que segurava a língua e era presa por correias fechadas atrás da cabeça. As correntes que prendiam as mãos bem juntas fizeram barulho quando ele se virou completamente, embo­ra o enviado permanecesse na sacada.

Você deveria se sentir honrado - continuou ca Rudka, que falava como se eles estivessem conversando casualmente durante o jantar. - Essa era origi­nalmente a cela de Levo ca'Niomi, há séculos. Imaginaram que a linda vista seria um castigo adequado para ca'Niomi, que poderia contemplar a cidade que governou por três curtos dias, ainda bem, e saberia que jamais andaria por ela como um homem livre. Ele também era um homem teimoso: viveu aqui por trinta anos e escreveu a poesia que finalmente ofuscou sua crueldade. Eu soube que o kraljiki que o colocou aqui mandava exibir ca'Niomi em todo aniversário de sua disposição. Ele era acorrentado totalmente nu à sacada para que cada um que passasse pela Avi pudesse vê-lo ao olhar para cima: uma lição sobre o que acontece com aqueles que não sabem o seu lugar. Se você olhar, acho que dá para ver as braçadeiras para as correntes ali nas pedras.

Karl olhou de relance para as argolas de metal enferrujado presas na bei­rada da sacada, logo antes da longa queda para o pátio lá embaixo onde a ca­beça de dragão olhava feio para os portões da Bastida. Ele estremeceu e engo­liu em seco com dificuldade com a mordaça na língua. - Mais recentemente, a kraljica mandou colocar aqui seu primo Marcus ca'Gerodi por traição, no início de seu reinado - falou ca'Rudka mas ele não era nem tão longevo, nem tão teimoso como ca'Niomi, ou artístico. Jamais conseguimos alguma poesia do pobre ca'Gerodi.

Ca'Rudka suspirou e ficou de pé. - Conversas unilaterais são chatas, infelizmente. Para nós dois. Creio que seja um homem honrado, enviado ci'Vliomani. Eu aceitaria remover seu silenciador. Suas mãos, infelizmente, terão que permanecer presas, mas pelo menos podemos conversar. Tenho sua palavra?

Karl concordou com a cabeça ao se voltar para o quarto úmido, incapaz de esconder a gratidão no olhar. — Se fizer a gentileza de se virar, enviado... - Assim que Karl obedeceu, ele ouviu o tilintar de chaves e um clique que reverberou pelas correias presas com força ao crânio. Um momento depois, ca'Rudka retirou o horrível dispositivo da boca de Karl. O enviado suspirou agradecido, alongou o maxilar e engoliu para tirar da boca o gosto de metal e pano sujo. - Eu sei que é desconfortável - disse o comandante. - Mas é, digamos assim, uma solução menos definitiva que cortar suas mãos e arrancar sua língua.

O homem foi capaz de dizer isso com um sorriso, como se os dois estives­sem contando piadas. Novamente, os gardai no corredor riram baixinho. Karl esforçou-se para evitar uma expressão chocada, mas o sorriso cada vez maior no rosto de ca'Rudka fez com que suspeitasse que não conseguiu.

É uma alternativa preferível, comandante - falou Karl. O maxilar doía com o movimento, e as palavras saíram pastosas. - Eu admito. Embora nós numetodos não sejamos a ameaça à Nessântico que vocês acreditam.

Ah, você acha que sou um monstro.

Karl fez que não. — Um monstro já teria feito essas coisas comigo. Um monstro não teria... — Ele olhou de relance para os gardai no corredor e abai­xou a voz até virar um sussurro. - ... teria me avisado a deixar a cidade.

Outro sorriso. - Ah, sim. Um homem discreto, mesmo nessas circunstâncias. Veja bem, eu realmente gosto de você, enviado. Eu gostei de você desde o momento em que conversamos nos jardins da kraljica. É raro encon­trar pessoas que são honestas em relação ao que acreditam, e mais raro ainda quando insistem diante de perseguição.

Eu não matei a kraljica, comandante. Não tive nada a ver com isso.

Eu acredito nisso completamente - falou ca'Rudka. - Realmente acredito.

Então me solte.

O que eu acredito tem pouco impacto no que tenho que fazer, enviado - respondeu o homem. - Diga-me, você conhecia o pintor ci'Recroix?

Eu o vi uma ou duas vezes ao andar pela cidade. Eu sabia que estava pintando o retrato da kraljica, mas isso todo mundo também sabia.

Ele era um numetodo?

Karl balançou a cabeça com força. - Eu saberia disso, comandante. O homem era facilmente reconhecível, e alguém com a reputação dele... Bem, eu teria ouvido falar de ci'Recroix mesmo antes de eu vir à Nessântico caso ele fosse um de nós. Não ouvi. Por que me pergunta sobre o pintor? Se acha que ele teve algo a ver com a morte da kraljica, então por que eu estou aqui?

O a'kralj ordenou sua prisão, assim como de todos os numetodos na cidade.

Karl viu-se com o fôlego preso na garganta. - Todos...

O comandante concordou com a cabeça. — Aqueles que suspeitamos, de qualquer maneira. Eles estão aqui na Bastida, embora não... - ele deixou o olhar vagar pelo quartinho pequeno e austero - ... em instalações tão pala­cianas quanto você. Todos silenciados e presos, porém, até que o kraljiki me diga o que devo fazer.

Karl fechou a cara. Nas algemas, ele cerrou os punhos. - Dado que o krajiki já deixou claro que prefere ca'Cellibrecca ao archigos, então veremos uma repetição de Brezno, ou pior. Você vai gostar disso, comandante? Será seu dever supervisionar as mutilações e execuções, afinal de contas.

Ca'Rudka não respondeu a princípio. As sobrancelhas ergueram-se ligei­ramente. - Se chegarmos a isso, enviado ci'Vliomani - disse ele finalmente -, eu prometo que seu fim será rápido.

Karl não conseguiu esconder a amargura da voz. — Isso me dá grande alívio.

Se ca'Rudka notou o sarcasmo na voz do enviado, ele não respondeu. - Vocês numetodos não entendem o que é obedecer. - Ca'Rudka falou sem empolgação, sem nenhum sentimento aparente. - Cada um de vocês acredita no que quiser. São como cavalos selvagens. Apesar de todos os poderes que possam ter, vocês são inúteis porque não sabem o que é o cabresto. - O co­mandante foi para a janela da cela e contemplou a cidade do lado de fora. - O que você vê lá fora é a obediência a uma autoridade maior que criou tudo, enviado. Tudo. Tudo em Nessântico, tudo nos Domínios. Sem obediência a Cénzi, à Divolonté, às leis do kralji, às regras da sociedade, não existe nada além de caos.

Você nasceu aqui, comandante? Na cidade, quero dizer.

O homem olhou para trás para Karl. - Nasci.

Jamais foi para outro lugar?

Eu servi na Garde Civile quando era jovem. Participei da guerra ao lon­go da fronteira de Magyaria Oriental, quando o cabasan de Daritria cruzou o Gereshki com seu exército, em violação do Tratado de Otavi. - Ele tocou o nariz de prata. - Eu perdi o meu de verdade lá, em uma briga estúpida com um de nossos próprios homens. Depois, voltei aqui como um chevaritt, com uma recomendação dos meus superiores, e entrei para a Garde Kralji.

- Você nunca esteve nas fronteiras do oeste? Jamais cruzou o Strettosei para Hellin ou para a Ilha de Paeti? - Ca'Rudka fez que não. - Se tivesse - continuou Karl então poderia entender. Ah, a ilha... Não existe uma terra mais verdejante, exuberante e variada no mundo. E lá, comandante, onde uma dezena de culturas surgiu e sumiu, nós entendemos que "diferente" não é sinônimo para "errado". Existem maneiras de aprender a verdade de como o mundo funciona, comandante. A fé concénziana é apenas uma, só que não é a única maneira. Eu vi coisas... - Ele parou e balançou a cabeça. O movimento chacoalhou as correntes em volta das mãos e fez com que os guardas olhassem de relance para a cela novamente. - Você provavelmente me mandaria ser açoitado por lhe contar.

Ca'Rudka voltou para o quarto e encostou-se na parede ao lado da sacada. - Se eu quisesse açoitar você, vajiki, já teria feito isso, e por causa de uma provocação menor. Conte.

Karl umedeceu os lábios. - Meus pais viviam na costa leste da ilha. Seguiam a fé concénziana e foram criados para acreditar em Cénzi. Eles leram o Toustour para mim; seguiam os preceitos da Divolonté. Quando me tornei um jovem, porém, senti vontade de conhecer o mundo e viajei com uma companhia de mercadores. Saí da ilha e fui para o que você chama de Terras Ocidentais, além das montanhas verdejantes das fronteiras de Hellin. Aquela viagem abriu meus olhos e a mente. Lá, em uma campina que se estendia como um oceano ondulante de horizonte a horizonte, eu vi uma cidade em que caberiam facilmente três Nessânticos, grandiosa e gloriosa com prédios enormes como montanhas escarpadas, em cujo topo seus sacerdotes realiza­vam cerimônias, eram prédios de blocos de pedra que reluziam ao sol, enquanto canais brilhavam com água doce ao lado de avenidas mais largas que a Avi. As pessoas usavam roupas de um tecido que eu nunca tinha visto antes, claro e macio ao toque, um pano que deixava a brisa passar para manter a pessoa refrescada no calor. E à noite, comandante, a cidade brilhava com um fogo mágico mais intenso que o da Avi. Eles usavam o Ilmodo também, em­bora não o chamassem de "Ilmodo" ou "Scáth Cumhatch", nem cultuassem

Cénzi, a quem consideravam apenas outro deus entre muitos. Mas eles eram capazes de moldar o Segundo Mundo tão bem quanto qualquer téni. Foi aí, comandante, que minha própria fé foi abalada.

Talvez tenha sido um teste - respondeu ca'Rudka sem emoção. - Um que você falhou.

Foi o que os ténis da ilha me disseram depois. - Karl deu de ombros. — Os mercadores com quem viajei falaram que havia cidades ainda maiores, mais ao oeste e sul, até o litoral do Mar Ocidental há duzentos dias ou mais de marcha do ponto onde estávamos. Eles disseram que faziam parte de um império maior, mais rico e mais poderoso do que os Domínios. Eu não acredito obrigatoriamente nessas histórias, sei tanto quanto você que os relatos dos viajantes crescem a cada vez que são contados, e é da nossa natureza fazer com que nós pareçamos mais como grandes aventureiros do que simples turistas. Mas essa cidade... eu vi com meus próprios olhos, e jamais vi igual em qualquer outro lugar. Eu sei de uma coisa, comandan­te: há mais mistérios no mundo do que a fé concénziana permite que as pessoas acreditem.

Ca'Rudka deu um sorriso tolerante diante do longo discurso.

Às vezes, aos olhos de um jovem, o pequeno parece maior do que é. Acho que se um império tão grande assim existisse além das montanhas de Hellin, nós teríamos encontrado seus exércitos ou pelo menos seus enviados quando fomos aos hellinianos. Eu posso não ter estado lá em pessoa, mas conheci o governador dos hellinianos da última vez em que esteve em Nessân­tico, e ele disse que os nativos de lá não passavam de selvagens.

Ele os enxerga com olhos errados, então - respondeu Karl. - Como se olhasse pelo vitral do templo e não visse as verdadeiras cores por trás.

E você enxerga? Eu acho isso um pouco arrogante, enviado ci'Vliomani. Fico surpreso ao descobrir essa característica em você.

Todos nós vemos o mundo através de um vidro colorido, comandante. Nossa sociedade, criação e experiências colocam esse vitral na nossa frente. Com os numetodos a situação não é diferente da fé concénziana. Não nego isso. Mas acho que nós numetodos temos mais tons de cores para escolher e, como conseqüência, estamos mais próximos da verdade.

Ca'Rudka riu novamente, embora desta vez os guardas permaneceram quietos. - Você é uma criatura fascinante, enviado ci'Vliomani. - Ele respirou fundo. — Eu gosto de ouvir você, e com certeza teremos muitas oportunidades de continuar nossa conversa. Mas, por enquanto... - O comandante pegou o silenciador sobre a mesa, e as fivelas de metal tilintaram. Karl sentiu o gosto de couro sujo na boca só de vê-lo.

Comandante, eu dou-lhe a minha palavra...

E eu aceitaria - respondeu ca'Rudka antes que Karl terminasse. O silenciador balançou em sua mão. - O kraljiki vai querer uma confissão do as­sassino da kraljica. Você está pronto para dar essa confissão para ele, enviado?

Não posso confessar aquilo que não fiz - respondeu Karl, e ca'Rudka sorriu ao ouvir isso, com a expressão tolerante de um adulto que ouve uma criança pequena.

Não pode? Infelizmente isso acontece o tempo todo aqui na Basti­da, enviado. Acho que ficará surpreso com que uma pessoa fica disposta a admitir sob o incentivo adequado. Ora, dê-me seis linhas escritas pela mão do mais honesto dos homens, e eu sou capaz de encontrar nelas algo para enforcá-lo.

Karl ficou sem ar. Ele sentiu um frio repentino. - Abra a boca, en­viado - falou ca'Rudka. - Prometo que volto amanhã e todo dia até que o kraljiki me diga o que fazer com você. E, desde que me dê sua palavra, eu retiro o silenciador para que possamos conversar mais. Vou guardar essas ocasiões no coração, de verdade. Agora... preciso que abra a boca ou mandarei os gardai entrarem e colocarem o silenciador ao modo deles. O que você prefere?

Não havia nada além de desespero no coração de Karl agora. Ele sabia que morreria aqui e que não havia nada que pudesse fazer a não ser tornar aquela morte a mais indolor possível. Karl abriu a boca e deixou que ca'Rudka afivelasse o dispositivo na cabeça. Sentiu lágrimas serem formadas enquanto ca'Rudka foi até suas costas para apertar as correias e pestanejou muito para segurar o choro.

 

COMANDANTE, quero ver Karl ci'Vliomani.

Sergei endireitou o potinho de nanquim na mesa e arrumou as penas no suporte. Depois olhou novamente para a jovem diante dele, vestida com o robe verde dos ténis. — Fico surpreso que faça tal pedido, o'téni co'Seranta, especialmente dado que você esteve com o numetodo quando eu o prendi. - Ele ergueu as sobrancelhas. - Duvido que o archigos fique satisfeito ao vê-la aqui depois daquela coincidência.

Na verdade, eu estou aqui para resolver um assunto do archigos. - A pequena hesitação e a maneira como ela desviou o olhar antes de falar foram suficientes para indicar a Sergei que ela não estava dizendo a verdade. Men­tiras de todos os tipos era uma coisa que ele conhecia intimamente, e a o'téni estava longe de ser uma boa mentirosa.

Entendi - respondeu o comandante. Ele esfregou o metal frio do nariz. - A energia de nosso archigos nunca deixa de me impressionar, especialmen­te em um dia como hoje, quando deve haver uma centena de detalhes que ele tem que cuidar para o funeral da kraljica e para a procissão hoje à noite. Você tem uma carta para mim, quem sabe, descrevendo esse "assunto" que ele mandou que resolvesse? - Ela fez que não, seu olhar vagou para um ponto nas paredes de pedra nua atrás de Sergei. - Ah, entendi. Uma gafe lamentá­vel da parte dele. O archigos devia saber, depois de todos esses anos aqui em Nessântico, como as engrenagens dos Domínios são movidas a papelada e lubrificadas por tinta. Mas talvez você seja capaz de me falar sobre esse... - ele fez uma pausa proposital — ... assunto.

As mãos do comandante estavam dobradas sobre a mesa e a o'téni olhou para elas. Talvez estivesse esperando ver sangue ali. Ela não tinha preparado a mentira; ficou assustada com a última palavra, como uma pomba flagrada em um peitoril. - Eu... o archigos... nós sabemos que o enviado ci'Yliomani queria encontrar a kraljica... e... e...

O'téni. - Sergei ergueu uma mão e ela ficou calada e ruborizada. - Não precisamos fingir. Não aqui. A Bastida não é um lugar para dissimulação. Vocês dois são amantes?

O rubor ficou mais intenso. - Não - respondeu rapidamente. Essa era a verdade, ele percebeu, embora fosse capaz de adivinhar o resto: ci'Vliomani era bastante atraente e inteligente e, dado o aspecto comum da o'téni e o status de sua família antes da recente promoção, o comandante duvidava que ela tivesse sido muito cortejada por pretendentes no passado. Sergei podia imaginar a atração que ci'Vliomani despertaria nela; também era capaz de imaginar que Ana seria um alvo fácil para sedução, caso ci'Vliomani quisesse usá-la. O comandante viu o medo que ela sentiu no apartamento pelo destino do enviado quando ele prendeu o homem, ouviu o temor nos sussurros urgentes que os dois trocaram quando levou ci'Vliomani embora. Se não eram amantes, ainda havia uma ligação entre eles. Sergei torceu, pelo bem dela, que a ligação fosse recíproca.

Ela estava atraída pelo encanto do estrangeiro, do diferente, do proibido. Sergei sabia disso. Ele também sentia. Ele compreendia. Portanto, sorriu para a jovem.

Não - repetiu Sergei, apenas para ver o rubor surgir novamente nas bochechas dela. - Então qual é o seu interesse nele?

Ele... — A o'téni engoliu em seco. Seus olhos encontraram o rosto de Sergei e desviaram novamente. Então ela respirou fundo pelo nariz e olhou o comandante fixamente. — Ele é um amigo. Não creio que aqueles que pos­suem uma fé de verdade tenham algo a temer por aprender sobre outras cren­ças. Não traremos os numetodos de volta para a Fé através de tormento e morte, comandante. Vamos trazê-los através de compreensão.

Ela falou com tanta empolgação e sinceridade que Sergei recostou-se na cadeira e bateu palmas de leve. — Bravo, o'téni. Bem dito, embora essa não pareça ser uma posição que a maioria dos a tênis ou o a'kralj fosse tomar, nem mesmo o próprio archigos. E infelizmente... - ele abriu bem os braços - ... esses são os senhores a quem sirvo.

Ele percebeu o medo no rosto da jovem, quase sentiu no ar um gosto doce. — O enviado ci'Vliomani... ele está...

Algemado e silenciado, como deve ficar para não abusar do Ilmodo. Mas, fora isso, está sendo bem tratado e goza de boa saúde. - O comandante notou que ela relaxou um pouco. — Até agora - acrescentou, e a palidez do medo voltou ao rosto da jovem. - Você compreende que não posso fazer promessas.

Se fosse possível... se eu pudesse vê-lo, comandante... - Ela umedeceu os lábios secos. - Eu ficaria agradecida e talvez pudesse devolver tal favor.

Está me oferecendo suborno, o'téni? — ele perguntou e sorriu para ate­nuar o golpe.

Ela não disse nada. Não fez nada.

O comandante fez que sim finalmente. - Você participará da última procissão da kraljica hoje à noite? - Ela deu uma resposta muda com a cabeça. - Eu também. Depois, talvez eu possa lhe acompanhar quando for embora. O archigos entenderá que eu tenha algumas perguntas a fazer para você sobre o enviado ci'Vliomani. Se eu tiver que lhe acompanhar até aqui, nem o archigos ou o a'kralj ficariam surpresos, e talvez eu pudesse ser persuadido a deixar que você veja o enviado ci'Vliomani por alguns momentos. Como um... favor.

Eu ficaria lhe devendo, comandante.

Sim - respondeu Sergei solenemente. - Você ficaria me devendo realmen­te, o'téni co'Seranta. - O comandante notou como ela recuou um passo diante de sua declaração e a maneira furtiva como ajeitou o robe no corpo por puro reflexo. A imagem provocou uma pequena satisfação. - Hoje à noite, então.

Ela concordou com a cabeça e puxou o capuz sobre a cabeça. Quando chegou à porta, o comandante chamou Ana. — Nós dois acreditamos que o enviado ci'Vliomani é inocente, o'téni. Mas o que nós acreditamos pode não significar nada.

 

AS DUAS CABEÇAS ENORMES de dois antigos kraljiki, colocadas em ambos os lados do Portão Norte, brilhavam de maneira assustadora com o fogo mágico. À noite, as feições eram iluminadas por dentro da pedra oca de maneira que pareciam quase demoníacas, só que em vez de estarem voltadas para fora como de costume e olharem feio para possíveis invasores, o e'téni res­ponsável pelas cabeças usou o poder do Ilmodo para virar as pesadas esculturas para dentro, de modo que as feições enormes e carrancudas contemplassem o leste: na direção da procissão da kraljica que vinha lentamente pela reluzente Avi a'Parete a caminho da Pontica Kralji e da Ilha A'Kralj, onde aconteceria a última cerimônia. As cabeças pareciam irritadas, talvez furiosas que a kraljica tenha sido levada da cidade no meio da comemoração de seu jubileu.

A procissão enroscou-se pela Avi como uma cobra grossa e dourada sob as famosas luzes mágicas, que hoje à noite tinham o dobro do brilho. Primeiro veio uma falange da Garde Kralji em uniformes de gala, liderada pelo coman­dante ca'Rudka. Os rostos austeros e ameaçadores abriram espaço na Avi, empurraram os pedestres errantes de volta para a multidão de espectadores perfilados pela Avi e que lotavam as entradas das ruas laterais. Mais soldados da Garde Kralji, em uniformes comuns e empunhando alabardas, marchavam lentamente nos dois lados da Avi, conduziam a multidão e observavam qual­quer sinal de confusão.

Dada a reputação de crueldade e eficiência da Garde Kralji, não era surpresa que não houvesse nenhum distúrbio.

A seguir vieram os chevarittai da cidade, montados em cavalos e armadu­ras de campanha, polidas e reluzentes. No meio deles veio um cavalo branco sem cavaleiro, protegido pelas lanças e espadas dos chevarittai. Eles desfilaram com rostos solenes e carrancudos, os cascos dos cavalos de guerra ecoaram alto nos paralelepípedos da Avi.

Então veio o Trono do Sol, de onde a kraljica governou por cinco décadas, flutuando levemente sobre as pedras graças ao esforço de vários ténis que o acompanhavam entoando cânticos. A luz eterna do interior das facetas cristalinas estava viva e reluzia em um tom sóbrio e triste de azul-marinho, como se o próprio trono entendesse a importância do momento. Duas deze­nas de músicos da corte vestidos de branco-sujo seguiam atrás do trono, suas trompas e flautas infligiam uma música fúnebre interminável aos espectadores que ecoava atrasada nos prédios de ambos os lados. A carruagem do archigos seguia os músicos a uma distância cautelosa da cacofonia e levava não só o archigos como também vários dos a'ténis mais velhos (e com menor capaci­dade de locomoção) que atualmente moravam em Nessântico, com o a'téni ca'Cellibrecca entre eles.

Atrás do archigos vinha uma longa fila dupla de a'ténis e u'ténis em robes verdes, todos entoavam e gesticulavam feitiços. No ar acima dos ténis pisca­vam imagens da kraljica como ela tinha sido quando viva: não eram ilusões sólidas, mas fantasmas diáfanos que tremeluziam no ar, bem maiores que o tamanho real e que se agigantavam sobre os espectadores em luto na rua lá embaixo.

A carruagem da kraljica veio a seguir. Ela foi colocada em um caixão de vidro, e um quarteto de tênis entoava em cada canto e moldava o Ilmodo para que a carruagem em si não fosse vista e o caixão parecesse flutuar em um brilho dourado e esfumaçado que cheirava a trombetas e erva-doce, e de onde saía o som de vozes agudas de um coral de lamentação. Uma chuva de pétalas de trombetas caía de uma nuvem debaixo do caixão e formava uma cobertura amarela e aromática sobre a Avi e os espectadores nas primeiras fileiras.

As rodas da carruagem do a'kralj esmagaram as pétalas de trombeta. Diretamente atrás do caixão de sua matarh e flanqueado por uma margem auste­ra de homens da Garde Kralji que encaravam intensamente os espectadores, o a'kralj estava sentado sozinho e solene, envolto por peles espessas, com o rosto coberto por uma máscara dourada de luto em cujas bochechas havia dois ru­bis em forma de lágrima, apesar de visivelmente não ter nenhum enfeite nos dedos. Sua carruagem não era conduzida por ténis, mas sim puxada por um trio de cavalos em um arreio para quatro animais.

Finalmente, as famílias ca' e co' seguiam por ordem de status social, vestidas luxuosamente de branco com as cabeças abaixadas em respeito. Um es­quadrão da Garde Civile da guarnição local protegia as famílias dos plebeus que fechavam a procissão quando ela passava, novamente enchendo a Avi.

Toda Nessântico, ao que parecia, compareceu para assistir à última procissão da kraljica pelo anel da Avi: jovens, velhos, desde os ca' descendo até os ce', e quem não era de família registrada. Muitos seguravam velas acesas, de maneira que parecia que as estrelas caíram do céu e aterrissaram aqui. Para a grande maioria, a kraljica tinha sido a única governante de Nessântico que eles conheceram a vida inteira. Em se tratando dos kralji, o reinado dela foi calmo, especialmente nas últimas décadas. Agora eles assistiam ao último passeio da kraljica pela cidade que foi a casa dela e imaginavam o que o futuro traria.

Mahri também se perguntava isso. Ele assistia da lateral interna da avenida, perto da lateral do prédio de Registros. Mesmo no meio da multidão compacta do Velho Distrito, Mahri era deixado no próprio espaço. A massa de gente em sua volta suspirava, mas o deixava em paz, um cisco escuro no esplendor mágico da procissão do funeral.

Mahri observou a lenta procissão solene passar pela Pontica a Brezi Nippoli há algum tempo e correu pelo labirinto do Velho Distrito para vê-la aqui novamente no Portão Norte. Ele queria ter certeza de uma coisa.

Assim que o canto fúnebre dos músicos começou a diminuir, a carruagem do archigos passou pela praça do Portão Norte. Juntamente com a car­ruagem do archigos andavam várias pessoas de sua equipe, entre elas a o'téni co'Seranta. Foi ela que fez Mahri inclinar o corpo para a frente a fim de enxergar.

Ele tinha preparado o feitiço antes de vir para cá, depois que imagens da o'téni co'Seranta dominaram vários presságios que Mahri executou. Ele falou uma palavra gutural (o que fez com que aqueles mais próximos do mendigo olhassem por causa do som estranho) e fez um gesto como se estivesse afas­tando uma mosca insistente. Ele viu o X'in Ka - o que os tênis chamavam de Ilmodo e os numetodos, de Scáth Cumhacht - se contorcendo em resposta, embora soubesse que o movimento era invisível a qualquer outra pessoa ali. Esse era o dom de Mahri, que ele era capaz de enxergar: tentáculos de energia que davam a volta pela carruagem do archigos como raios de sol que caíam sobre um lago plácido. Ninguém ali reagiu. Mas a o'téni co'Seranta...

A cabeça dela estava abaixada como se estivesse rezando. Ele pensou por um momento que nada aconteceria, depois viu a o'téni erguer o olhar lenta­mente, embora os olhos estivessem vivos e desconfiados, e os dedos ficaram crispados como se ela quisesse fazer uma proteção. Foi o suficiente; Mahri soltou o feitiço, deixou que evaporasse como se jamais estivesse estado ali. A reação de co'Seranta foi lenta; ele tinha esperado uma resposta mais forte e imediata, mas era possível que a o'téni estivesse perdida nas preces para a kral­jica e na tristeza, distraída pelo barulho e pela multidão.

Mas ela sentiu o feitiço. Foi capaz de sentir os próprios movimentos do X'in Ka, não apenas manipulá-los. Uma coisa Mahri sabia: foi mais do que o numetodo ci'Vliomani era capaz de fazer. Ela ainda continuava olhando em volta, como se procurasse pela fonte da energia que sentiu. Ele recuou para as sombras dos Registros a fim de não ser visto pela o'téni.

Talvez pudesse ser ela. Talvez. Se as circunstâncias não interferissem. Se os deuses sorrissem. Se ele interpretasse corretamente as imagens na tigela premonitória. Se ele não estivesse simplesmente errado...

Havia muitas hipóteses...

Mas talvez...

A carruagem do archigos e a o'téni co'Seranta passaram por ele agora, em direção à Pontica Kralji e à cerimônia final. As cabeças esculpidas que flanqueavam o Portão Norte giraram conforme a kraljica passava, o olhares intensos acompanhavam a carruagem com o corpo dela. O caixão ainda flu­tuava na nuvem dourada - os ténis que criaram a ilusão eram substituídos quando o esforço do feitiço tornava-se muito exaustivo. Os quatro ali agora não eram os quatro que Mahri vira quando a procissão passou pela Pontica a Brezi Nippoli. E ele já podia sentir o enfraquecimento no X'in Ka - os qua­tro estavam fraquejando e logo também seriam substituídos.

Os ténis eram tão fracos.

As cabeças olharam para a kraljica e também captaram Mahri com sua intensa carranca, como se estivessem criticando o mendigo por sua arrogân­cia. Ele deu as costas para as esculturas, saiu da Avi e ignorou os comentários da multidão ao abrir caminho entre as pessoas. A um quarteirão ao sul da Avi, a multidão sumiu e o som de cânticos e a música desapareceram, foram substituídos pelo clamor costumeiro do Velho Distrito.

Se ele chegasse à Pontica Kralji antes da procissão da kraljica, ele poderia cruzar até a ilha e observar a kraljica deixar a vida para entrar para a história.

Mahri perguntou-se com que rapidez o novo kraljiki poderia segui-la.

 

A TORRE FEDIA a mofo, urina e medo, e as tochas nos candeeiros aumentavam a escuridão em vez de bani-la. A longa subida deixou os mús­culos das pernas doloridos, mas ela não daria o gostinho de sua dor para o comandante.

Ana ficou triste quando Karl virou-se ao ouvir o som de passos do lado de fora da cela e ela viu as mãos acorrentadas e aquele terrível dispositivo preso em volta da cabeça do enviado. O comandante acenou com a cabeça para o garda do lado de fora da porta, que pegou as chaves do cinto e abriu a cela.

Você pode ir jantar, e'garda - ca'Rudka disse e inclinou a cabeça na direção da escada de pedra em espiral. O homem prestou continência e foi embora correndo. O comandante foi para o lado e gesticulou para Ana entrar; ele seguiu atrás da o'téni.

Enviado ci'Vliomani, eu trouxe alguém para ver você. Presumo que tenho sua palavra de que não irá usar o Ilmodo, como antes.

Um aceno de cabeça. O comandante foi para trás de Karl e retirou o silenciador da cabeça. O enviado fez uma careta e passou a manga sobre a boca cheia de saliva. — Você não deveria ter vindo — Karl falou com Ana, e por um momento ela pensou que ele realmente estivesse irritado. - Mas estou feliz que tenha vindo. Pude ver as chamas da pira da kraljica daqui. - Karl indicou com a cabeça as portas abertas para a sacada, onde uma luz amarela cintilante ainda banhava as pedras. - Você esteve lá?

Ana fez que sim. - Eu assisti ao a'kralj pegar o cetro e o anel das mãos dela. O archigos acendeu a pira com o Ilmodo. O calor era quase insuportá­vel. Nunca senti um fogo tão intenso... - Ela parou quando se deu conta de que estava falando apenas para afastar o silêncio. Ana ouviu o som de metal batendo em metal e viu o comandante segurar um par de algemas pesadas, com os anéis grossos de metal abertos.

Eu deixaria vocês dois sozinhos para conversar - falou ca'Rudka -, mas não estaria cumprindo meu dever se fizesse isso sem garantir que você não possa usar o Ilmodo, o'téni co'Seranta.

Eu dou-lhe a minha palavra, comandante - disse Ana. Ela olhava mais para as algemas do que para ele.

E eu aceitaria, exceto que se você quebrasse a promessa e ajudasse o enviado a escapar, seria eu quem estaria sentado nesta cela. Como já falei para o enviado, eu conheço muito bem a Bastida e fiz inimigos na minha carreira que sem dúvida teriam grande prazer com meu sofrimento. Este não é um ris­co que estou disposto a correr. Portanto... - Ele sorriu e balançou as algemas. - Eu aceito sua palavra, o'téni, mas também prenderei suas mãos enquanto estiver aqui para que eu saiba que vai mantê-la. Eu dou a minha palavra que voltarei em uma virada da ampulheta para lhe soltar. Quer dizer, se minha palavra for uma coisa que você esteja disposta a aceitar...

O comandante ergueu as sobrancelhas e ofereceu as algemas. Relutantemente, Ana estendeu as mãos para ele. O aço era coberto por couro com manchas escuras que Ana tentou ignorar. As algemas beliscaram a pele quan­do o comandante fechou as duas metades em seus pulsos. O clique cruel da fechadura provocou uma onda de pânico em Ana: ele poderia mantê-la ali; poderia levá-la para uma das celas da Bastida e fazer o que quisesse com ela - torturá-la, estuprá-la, matá-la.

O comandante deve ter sentido o pânico crescente de Ana. Ele deu um passo para trás. - Minha palavra é lei aqui, o'téni, e não faço promessas que não posso cumprir. Uma virada da ampulheta e eu retiro isso aqui de você.

Ana fez que sim com a cabeça. O olhar de ca'Rudka foi de Ana para Karl. - E eu confio em sua palavra também, enviado. — Dito isso, ele saiu da cela e trancou a porta. Os dois ouviram os passos do comandante na escada.

Ana - disse Karl, e ela afastou o olhar da porta trancada e barrada. — Eu não tive nada a ver com a morte da kraljica. Nada. Eu juro para você.

Eu acredito. Apenas Cénzi sabe por que, mas eu acredito em você.

Como você está? O archigos sabe que estava comigo quando fui preso?

O comandante contou para ele, tenho certeza. O archigos parece principalmente, sei lá, desapontado. Deprimido. Mas ele tem assuntos mais importantes.

E você? Conseguiu achar o Scáth Cumhacht, o Ilmodo, como fazia antes?

Ana só foi capaz de balançar a cabeça, não confiou na voz. - Sinto mui­to - falou Karl. Ela sentiu o toque das mãos algemadas do enviado nas suas. Os dedos ficaram entrelaçados. — Eu gostaria de poder lhe mostrar - disse o enviado baixinho. - Gostaria de poder lhe ensinar.

Eu também gostaria disso - disse Ana. A cabeça do enviado inclinou-se na direção dela. Os lábios tocaram seu cabelo, a testa. Ana lembrou-se quando o vatarh fez a mesma coisa, à noite, no escuro. Com o vatarh, ela tremeu e virou o rosto. Com ele, Ana suportou o abraço e o toque. Com ele, ela não sentiu nada além de gelo e medo.

Não foi o que Ana sentiu agora. Ela ergueu o rosto para se juntar ao de Karl. Sentiu os lábios tremerem ao tocar nos dele. Fechou os olhos e sentiu apenas o beijo. Apenas o beijo.

Ela afastou-se de Karl. - Ana? — perguntou ele.

Não diga nada - falou ela. Suas mãos ainda seguravam as de Karl. Ana apoiou a cabeça no ombro dele. Sentiu Karl começar a se mexer para abraçá-la, mas houve apenas o som das correntes e um xingamento baixinho. - Tudo desmoronou. Tudo o que eu pensei que tinha. Tudo que eu poderia querer.

Eu sinto muito, Ana.

Não sinta. A culpa não é sua. É minha... eu perdi a minha fé.

Eu também perdi a minha, uma vez - falou Karl. Seu hálito era quente na orelha de Ana. - E encontrei uma nova. Uma melhor.

Fico feliz que tenha conseguido. Eu não consigo.

Ele então se afastou de Ana, embora não soltasse suas mãos. O ferro tiniu com um som dissonante em resposta. - Primeiro, você tem que ter fé em si mesma - disse o enviado. Ana deu um muxoxo de desdém e virou o rosto. A luz amarela do funeral da kraljica rondava as pedras da torre. Ela soltou as mãos de Karl e foi para a passagem da sacada. Sentiu uma onda momentânea de vertigem ao olhar para a saliência de pedra e a longa queda lá embaixo. Ela ficou na lateral da sacada e contemplou o horizonte em vez de olhar para baixo. A Avi era um anel de pérolas brilhantes em volta da cidade, e as águas do A'Sele cintilavam e refletiam as luzes mágicas. O palácio da kraljica - não, do kraljiki - na ilha estava brilhando, todas as janelas vivas com luzes mágicas ou candelabros, e os telhados dourados dos templos cintilavam com brilho próprio. Entre o Velho Templo e o palácio, as brasas da pira da kraljica ainda disparavam línguas de chamas e fagulhas rodopiando para as estrelas.

Lá fora, os ténis trabalhavam para manter Nessântico viva e animada. Nessântico mantinha a noite afastada e recusava-se a ser dominada por ela. Como um dia sua fé fez por você, pensou Ana.

É lindo, não? - disse Karl atrás dela. Ana fez que sim.

Meu vatarh... - Ana começou a contar para Karl que seu vatarh conseguiu ver a cidade de longe, mas se deteve. Ana não queria falar sobre ele. O vatarh estava morto, no que dizia respeito a ela. - Fale-me sobre você. Fale mais sobre os numetodos. Por favor. Vamos nos sentar aqui, onde possamos contemplar a cidade... - Ela pediu porque não queria pensar, não queria falar. Queria apenas se sentar ao lado de Karl, sentir o calor dele ao lado e ouvir sua voz. As palavras não importavam, apenas a presença dele.

Ana perguntou-se se Karl tinha noção disso.

Eles sentaram-se, Karl falou, e Ana não prestou muita atenção, seus próprios pensamentos ficaram se chocando na mente tão alto que quase abafaram a voz dele.

 

DO CUME ARBORIZADO da elevação, o exército espalhou-se pelo vale como uma horda de formigas em marcha. A poeira envolvia os soldados como um nebuloso manto marrom-claro enquanto eles avançavam com difi­culdade pela terra sulcada e batida por botas da Avi a Firenzcia. O horizonte a oeste prometia chuva, e os estandartes pendiam frouxos no ar sem brisa, sujos com a mesma terra marrom-claro que se acumulava nas botas dos soldados da infantaria e nos cascos dos cavalos dos chevarittai. Ao longe, Jan conseguiu ouvir o som do ritmo dos tambores.

Jan viu quando um cavaleiro solitário saiu da força principal e galopou na direção da crista onde ele, o starkkapitän ca'Staunton, Allesandra e Markell observavam. Markell gesticulou para um dos offiziers do starkkapitän, que estava prudentemente com seus próprios cavalos no declive abaixo em relação ao grupo; eles trocaram umas palavras e um pacote. O offizier apontou para cima do morro. - Com sua licença, meu hirzg - falou Markell. Ele cutucou a lateral do cavalo com o calcanhar da bota, desceu e falou por alguns minutos com o cavaleiro antes de voltar à crista.

Chegaram notícias de Nessântico, meu hirzg - disse Markell assim que ficou lado a lado de Jan. Ele franziu a testa ao entregar a bolsa de couro do mensageiro. - Há uma carta do a'téni ca'Cellibrecca dentro.

E? - perguntou Jan.

Markell franziu mais a testa e respondeu - O mensageiro diz que a kraljica está morta. Assassinada. Justi ca'Mazzak foi empossado como o novo kraljiki.

Jan ficou empertigado na sela ao ouvir essas palavras. Isso não é possível, ele queria discutir com Markell. Tinha que ser um engano. Jan olhou para seu exército, o exército usado tantas vezes pelos kralji quando eles queriam esma­gar uma rebelião ou conquistar um território, o exército que a Garde Civile achava que comandava em vez do hirzg. O exército que ia forçar a mão da kraljica, uma mão que agora estava morta e imóvel.

Vatarh? Qual é o problema? - perguntou Allesandra.

Ele ignorou a filha.

Assassinada por quem? — rosnou Jan para Markell.

O rumor é que foi um numetodo, de acordo com o mensageiro - disse Markell. - O kraljiki Justi ordenou a prisão de todos os numetodos na cidade.

Jan trincou o maxilar e olhou para a bolsa na mão enluvada. Ele abriu e viu a carta com o selo do a'téni ca'Cellibrecca ainda intacto. Uma suspeita começou a tomar forma. Tudo que fiz por ele, todo o planejamento... - Starkkapitän - falou Jan com ca'Staunton, que esperava pacientemente e em silêncio, com uma expressão feita com cuidado para não demonstrar coisa alguma acamparemos aqui por hoje. Mande seus homens prepara­rem minha tenda. Encontre aquele mensageiro; se ele ainda não espalhou a notícia sobre a kraljica, garanta que continue assim. Essa é uma notícia que preciso ponderar, e não quero que rumores sejam espalhados entre as fileiras.

Ca'Staunton prestou continência e foi embora a cavalo. O starkkapitän chamou seus offiziers, vociferou ordens e eles dispersaram-se, os cascos dos cavalos levantaram poeira enquanto os offiziers galopavam em direção à força principal do exército.

Duas viradas da ampulheta mais tarde, Jan chamou Markell para sua ten­da. Quando o homem entrou, o hirzg foi até Allesandra, que brincava com os soldados, e deu um abraço rápido. — Vá lá fora um pouquinho. Encontre seu Georgi ou coma alguma coisa.

Eu quero ficar, vatarh. Quero escutar.

Não. — A palavra única e firme fez com que ela fechasse bem a boca. Allesandra prestou uma reverência irônica como um offizier comum e saiu da tenda. Jan viu a aba se fechar quando a filha saiu, pegou a papelada sobre a mesa de viagem e jogou na direção de Markell. - Ca'Cellibrecca vai acabar com as bolas apertadas em um torno que ele mesmo arrumou se não tomar cuidado. Quando isso acontecer, vou gostar de ouvi-lo guinchar como o por­co que ele é.

Hirzg?

Jan fez um gesto de desdém. — O homem joga dos dois lados, Markell. Ca'Cellibrecca fez com que nós nos livrássemos do marido inconveniente de sua filha para que ela ficasse livre para se casar, e nós caímos na conversa dele. Agora a mulher está livre, certo, mas também está livre para se casar com o kraljiki.

Markell pestanejou. - Fazer com que o kraljiki se case com... - Ele parou.

Jan acenou com a cabeça. - Sim, meu amigo - falou secamente. - Você entende também. Um kraljiki casado com a filha do archigos seria um casa­mento perfeito entre o poder secular e religioso. E por acaso existe um kraljiki solteiro. - Ele apontou para o papel na mão de Markell. - Com o marido morto, a filha de ca'Cellibrecca agora está convenientemente disponível para Justi. E o novo kraljiki certamente vai querer casar logo para consolidar sua posição. Que feliz acaso, não acha? - Jan recostou-se na cadeira. — Kraljiki Justi ca'Cellibrecca. Tenho certeza que o a'téni caCellibrecca acha que esse seria um nome excelente. Na verdade, isso me leva a suspeitar que nosso Orlandi tenha sido a pessoa por trás do assassinato da kraljica, embora seja claro que ele só fala dos numetodos na carta e como eles têm que ser exterminados. É maravilhoso ter uma desculpa tão conveniente e politicamente vantajosa como os numetodos. Ele também nos diz que "é urgente que abandonemos nosso presente modo de ação por enquanto". Ele diz que nossos planos agora devem esperar "até que tenhamos a chance de examinar plenamente as con­seqüências da atual situação". Embora, é claro, o a'téni ca'Cellibrecca agora esteja preso em Nessântico enquanto a situação perdurar e não saiba quando vai retornar a Brezno. Aquele ardiloso desgraçado...

O hirzg levantou-se da cadeira e arrancou a carta da mão de Markell. Ele examinou o texto de novo, com as narinas franzidas. Jan atirou o pergaminho no pequeno aquecedor no centro da tenda e viu as pontas encresparem, escurecerem e finalmente pegarem fogo. - Começo a acreditar que o aténi ca'Cellibrecca sempre nos considerou uma estratégia secundária, algo para ser usado caso a trama para matar a kraljica falhasse e ele não conse­guisse manipular aquele pobre arremedo de filho de Marguerite. Agora tudo deu certo para ele. Só falta nosso exército abaixar as armas e ele tem tudo o que quer. A próxima notícia de Nessântico dirá que o anão ca'Millac morreu e que ca'Cellibrecca foi empossado como o novo archigos, e que o kraljiki casou-se com Francesca. Como archigos, ele ameaçaria retirar de Firenzcia o apoio da Fé se eu não me submetesse, e o u'téni co'Kohnle, que serviu com ca'Cellibrecca, por acaso é o nosso principal téni-guerreiro.

Co'Kohnle é um firenzciano, ao contrário de ca'Cellibrecca - disse Markell. - Ele é mais leal ao senhor do que ao aténi ca'Cellibrecca.

Talvez - resmungou Jan. - Mas quando o âténi for o archigos Orlandi, isso talvez mude. O novo kraljiki também insistirá que eu continue casado com Greta, aquela vaca carola. Sem dúvida a notícia chegou a Brezno agora; aposto que ela está de joelhos rezando para Cénzi em gratidão por sua salvação. Eu me pergunto se ela e ca'Cellibrecca não estavam tramando isso o tempo todo.

Jan andou de um lado para o outro no pequeno perímetro da tenda e sentou-se novamente. Lá fora, ele pôde ouvir os sons do acampamento: conversa baixa, um ataque de riso, os barulhos e a agitação da comida sendo preparada. Markell esperou pacientemente, aqueceu as mãos nos carvões onde a carta de ca'Cellibrecca agora era cinza.

Vatarh? - Era Allesandra, parada na aba da tenda. Ela deixou a aba cair ao entrar. - Vatarh, o senhor disse para mim que um bom general tem que saber quais batalhas pode vencer e quais não pode. Essa é uma batalha que o senhor pode vencer?

Ele olhou fixamente para a filha e balançou a cabeça. - Você estava escutando?

O senhor disse para ir lá fora e encontrar Georgi. Eu procurei e não o encontrei. O senhor não me disse para não escutar.

Markell ergueu as sobrancelhas. Jan suspirou. - Então você escutou e sabe.- Sendo assim, o que acha?

Em todas as histórias que o senhor contou, e em todas que Georgi sabe, o hirzg nunca desiste. Eu acho que o a'téni ca'Cellibrecca não conhece ou não escutou direito essas histórias.

Jan riu, e Markell juntou-se a ele. - A sabedoria de uma criança - disse Jan. Ele fez que sim e aplaudiu de leve. - Esta tem sido uma batalha sem exércitos, como vem sendo desde que começamos esse modo de ação. Mas nós temos um exército conosco. Se recuarmos agora, perdemos a vantagem do campo.

Meu hirzg? - perguntou Markell.

-Justi tem o título. Apenas isso. Ele não tem mais nada. E ca'Cellibrecca ainda não é o archigos. Estamos a apenas dois dias da fronteira e a uma quinzena dos portões de Nessântico em si. Ca'Cellibrecca aconselha-nos a esperar, mas ele tem os interesses de Orlandi ca'Cellibrecca em mente, não do hirzg de Firenzcia. Como minha filha acabou de dizer, ele não conhece as histórias de Firenzcia.

Jan viu a sombra de um sorriso passar pelos lábios finos de Markell. - Devo informar o starkkapitän que continuaremos nosso avanço de manhã?

Diga para ele que pretendo fazer uma visita pessoal ao novo kraljiki - fa­lou Jan. - E chame o u'téni co'Kohnle; quero saber a quem ele é realmente leal.

Como quiser, meu hirzg - respondeu Markell com uma rápida reverência. Ele abriu as abas da tenda, e Jan ouviu o ajudante de ordens falar rapidamente com um dos gardai e depois o chacoalhar da armadura conforme o homem foi embora depressa.

Um bom general não evita riscos - disse Jan para Allesandra. - E ele não hesita porque os ventos mudaram. Em vez disso, ele usa os ventos.

 

DEIXE-ME PEGAR SEU MANTO, o'téni Ana. Disseram que o tempo vai mudar em breve.

Onde está o vatarh? - perguntou Ana para Sala. A criada balançou a cabeça.

Ele não está aqui, o'téni Ana. Foi para Prajnoli a negócios. Ele fica ausente quase todo o tempo, desde... - Ela hesitou, e Ana viu o rubor crescendo nas bochechas de Sala.

Eu entendo. Não se preocupe, Sala. E a matarh?

Ela está esperando pela senhorita no solário. Vou avisar que está aqui.

Não se incomode. Vou até os fundos surpreendê-la.

A casa não pareceria mais familiar para Ana - mudou ainda mais desde que ela esteve aqui pela última vez. O vestíbulo cheirava a tinta e argamassa novas, um odor de culpa. O corredor depois da porta da frente agora tinha um tom de azul-claro em vez do amarelo que Ana se lembrava, e quando ela chegou à arcada que dava para o solário não havia mais os panos pretos da época em que sua matarh esteve doente, mas sim estava cheia de flores e plantas, e havia um jovem criado que Ana não conhecia ali com Tari. E a mu­lher de costas para Ana, que cuidava de um vaso de flores-do-céu de pétalas brancas e azuis...

Ana não conseguiu respirar. Depois da discussão que elas tiveram da últi­ma vez que se encontraram, Ana ficou surpresa quando sua matarh mandou um pedido para que ela visitasse. Por favor, Cénzi, não deixe que ela ainda me odeie...

O'téni Ana! - exclamou Tari ao vê-la, e a mulher virou-se das flores-do-céu.

Ana. Estou contente que tenha vindo. - A matarh deu um sorriso gentil, e Ana sentiu a tensão interior ser dissolvida com a saudação. Abini pousou a pequena pá e abriu os braços. Ana foi até ela e deixou-se cair no abraço, foi envolvida pelos braços da matarh com carinho. Ana viu-se chorando lágrimas espontâneas; a matarh continuou a abraçá-la com força. - Calma, criança. Calma...

Ana fungou e limpou as lágrimas traidoras, depois se afastou um pouco. Tari e o jovem estavam enfaticamente olhando para longe das duas. - A se­nhora arrumou um novo criado - falou Ana.

Este é Jacques, que trabalha na casa e nos jardins, e temos um novo cozinheiro também, que faz sopas maravilhosas. Ambos foram indicados pela vajica co'Meredi. Você se lembra dela? Co'Meredi costumava nos visitar an­tes... - por um momento a velha dor passou pelo rosto da matarh - ... quan­do seus irmãos eram vivos e antes de eu ficar doente. Ela visitou várias vezes desde que você recebeu sua Marca. Tudo isso... - a matarh franziu os lábios e pequenas rugas apareceram - ... tudo isso é por sua causa, Ana. Todo mundo sabe que o archigos escolheu você pessoalmente, e que você cuidou da pobre kraljica... - Ela parou então. - Tari, por que você não manda o cozinheiro preparar alguma coisa para Ana? Jacques, se fizesse a gentileza de cuidar dos arbustos no jardim dos fundos...

Eles abaixaram as cabeças e foram embora. Abini continuou segurando Ana. — Você parece tão triste. Tem alguma coisa errada?

Ana só foi capaz de fazer que sim. Não confiava na voz.

E a kraljica? A morte dela foi um choque para todos nós, e agora veio aquela terrível notícia de Firenzcia sobre o pobre uténi Estraven ca'Cellibrecca ter sido assassinado; eu gostava de suas Admoestações. Espero que matem todos os numetodos na cidade pelo que fizeram.

A imagem de Karl, algemado e silenciado na torre da Bastida, veio à mente de Ana. Assim como a memória de ter ido vê-lo, do único beijo breve entre eles... - Matarh - interrompeu Ana. - Pare. Por favor.

Abini arregalou os olhos, e Ana beijou sua bochecha para amenizar o im­pacto das palavras. - Eu devia ter visitado a senhora antes, matarh. Eu queria, mas... — Eu não podia porque estava com medo que ele estivesse aqui. Não podia por conta do que eu e você dissemos na última vez...

Havia sofrimento nos olhos da matarh. - Ana, eu pensei no que você me disse e por muito tempo fiquei furiosa.

Furiosa comigo, matarh?

Abini fez que não. Ela soltou os braços de Ana e voltou a atenção para as flores-do-céu. Os dedos roçaram as pétalas vagarosamente. - Tomas contou o que aconteceu naquela vez em que você veio aqui, quando... - Ela parou e suspirou. - Tomas disse que falou uma coisa que lhe irritou e que houve um acidente. Ele disse que o Ilmodo é forte em você, que é por isso que foi esco­lhida pelo archigos, e que você não consegue controlá-lo.

Não, matarh. Não foi por isso. O vatarh...

Silêncio, filha! - disse Abini com rispidez ao se virar para Ana. Seus olhos estavam novamente arregalados. Os dedos trêmulos tocaram a boca de Ana. - Não diga nada, Ana. Por favor. Tomas... podia ter me largado depois que fiquei doente, mas não fez isso. Não importa o que pense a respeito dele, não importa... - Ela fez uma pausa e franziu os lábios antes de recomeçar. - Ele não é um homem horrível. Tem defeitos, sim, mas perdeu os filhos e pensou ter perdido a esposa, e a luta que encarou para manter nossa família como co'... No fundo de seu coração, eu realmente acredito que ele não tinha intenção de magoar ninguém, Ana.

E isso o perdoa? - Ana não conseguiu evitar a raiva na voz. - Isso torna tudo certo para a senhora?

Não - respondeu Abini. Ela endureceu o olhar. - Não torna. E por isso... é por isso que ele não está mais aqui. Ele jamais poderá voltar aqui. - Abini abraçou a filha mais uma vez; Ana resistiu por um instante, depois se deixou abraçar com o corpo tenso. - Eu o confrontei, Ana. Falei para ele o que você me disse. Ele negou a princípio, mas... não conseguiu me encarar. - A própria Abini afastou o olhar, pestanejou para conter as lágrimas, depois abra­çou Ana com força novamente. - Eu sei e sinto muitíssimo pelo que ele fez com você, mas não quero falar sobre isso, Ana. Não quando você finalmente está aqui. - A voz de Abini sussurrou em seu ouvido. - Vamos falar sobre você. Diga-me como vão as coisas.

Falar sobre o vatarh é falar sobre mim, ela queria dizer para a matarh. Ele faz parte do motivo de eu ser como sou. Mas Ana não podia dizer isso. Ela sus­pirou. Você guardou isso dentro de si por tanto tempo. Se esse é o preço a ser pago para ter a matarh de volta, pague. Pague e agradeça.

Ana não sabia o que dizer. Muitas coisas a atormentavam, mas ela tinha medo de falar de Karl e, se não podia falar do vatarh... - Amanhã eu vou al­moçar com o kraljiki Justi - disse Ana finalmente. - O archigos acha que eu...

— Ela parou quando Tari entrou no solário novamente e pousou uma bandeja em uma mesa baixa. Um vapor cheiroso saiu das duas tigelas ali e havia duas taças de vinho. Tari fez uma mesura para as duas e foi embora. Abini apontou para as cadeiras.

Sente-se - disse ela. - Vamos conversar enquanto comemos. - Abini olhou a filha com curiosidade enquanto se sentaram e Ana tomou uma colherada de sopa. - O kraljiki vai procurar uma esposa. É o que todo mundo está falando. Até mesmo a vajica co'Meredi tocou no assunto... e falou a seu respeito. Você está presente em grande parte das fofocas que eu escuto, Ana.

Não é o que eu gostaria, matarh. - Ana pousou a colher, que bateu muito alto na porcelana.

Abini deu um sorriso triste. - Ana, desde quando você acredita que o casamento é algo que alguém de uma família ca' e co' "gostaria" que fosse? - perguntou a matarh com delicadeza. - Nós não somos pessoas sem status, que podem se casar com quem quiserem porque isso não importa. Amor não é um elemento necessário para um casamento, Ana; você sabe disso. O amor vem depois, isso se vier. Se Cénzi quiser.

O amor veio para você, matarh?

O sorriso desapareceu. - Não. Eu sempre respeitei seu vatarh, e ele sempre me respeitou. - Ela franziu mais a testa. - Pelo menos até a minha doença. Até o que ele fez com você.

Por que se casou com ele? A senhora nunca me contou.

Eu nunca contei porque, primeiro, você era muito jovem, depois porque fui levada pela febre do sul quando eu poderia ter me sentado com você e explicado como são as coisas para uma jovem moça. - Abini sorriu nova­mente. - Mas agora posso contar. A família de Tomas veio até meu vatarh e minha matarh. Eles pagaram um preço substancial pelo casamento; o nome co'Seranta era considerado em ascensão; certa vez seu vavatarh até chegou a pensar que a Gardes a'Liste poderia nos designar como ca', embora isso tenha virado uma vã esperança depois que meu vatarh morreu, apenas dois anos depois do meu casamento. Ainda assim, Tomas cumpriu as exigências de nosso contrato. O casamento foi o que era necessário que fosse. Mas se nós acabamos por nos amar? - A cabeça foi de um lado para o outro. Ela olhou fixamente para a sopa. - Não.

A senhora algum dia amou alguém?

O sorriso de Abini voltou tênue e hesitante. — Amou sim - falou Ana. Ao se dar conta disso, ela sentiu uma repentina união com sua matarh. - A senhora amou alguém. E se entregou a esse amor?

Abini contemplou os jardins. - Sim - falou tão baixinho que Ana teve que se inclinar para a frente a fim de ouvir. - Uma vez.

Quem? Conte para mim, matarh. Quem era, e vocês...?

Você jamais pode contar para seu vatarh.

Ana torceu o nariz. - Essa é uma promessa fácil. Não pretendo vê-lo outra vez jamais.

O rosto de Abini ficou vermelho, e Ana não soube dizer se foi por causa do que ela disse ou pela memória da aventura. — Eu não vou contar quem foi. Você reconheceria o nome. Mas... — Abini recostou-se na cadeira. Fechou os olhos. Abriu a boca ligeiramente. - O que me atraiu foi o cheiro dele: cheiro de amêndoas. O perfume era tão diferente nele, e quando me virei para olhar, ele estava me olhando diretamente. É disso que me lembro melhor: o choque do encontro dos nossos olhares pela primeira vez. Eu era bem mais jovem na ocasião, é claro, e tinha acabado de recuperar a forma depois do nascimen­to de Estravi. — Ela abriu os olhos. — Você me odeia por saber que eu já era casada, que já era uma matarh?

Ana fez que não. — Não, matarh. Eu não odeio a senhora. Eu compreendo.

Abini acenou com a cabeça e fechou os olhos novamente. — Nós não dissemos nada um para o outro, não da primeira vez. Mas eu notei que nossos caminhos continuavam se cruzando, como se o próprio Cénzi estivesse que­rendo nos juntar, e seu vatarh estava sempre ausente por conta do trabalho, e, portanto... bem, nós começamos a conversar. A esposa dele tinha morrido no ano anterior ao dar à luz, e a criança não sobreviveu à virada do ano. Nós conversamos sobre isso e outras coisas, e...

Abini fez uma pausa. Ana notou os olhos da matarh agitados debaixo das pálpebras fechadas e que a sombra de um sorriso passou pelos lábios com a lembrança. — Eu adorava o som da voz dele — continuou Abini - e o jeito como olhava nos meus olhos enquanto conversávamos. Ele escutava, ele real­mente me escutava como Tomas jamais escutou. E o toque: era tão macio. Tão gentil. Estar com ele era como eu tinha esperado que as coisas fossem com Tomas.

Ela soltou um suspiro. Endireitou o corpo na cadeira e abriu os olhos de novo. - O que aconteceu então? - perguntou Ana. - O vatarh...?

Abini balançou a cabeça. - Não, ele nunca descobriu. Terminou porque tinha que terminar. Nós ficamos juntos por alguns anos, sempre que conse­guíamos, mas ele... a família tinha pretendentes para ele. Finalmente tivemos que terminar, ou na verdade eu tive que terminar, para dar à nova esposa dele a chance que ela merecia. Se tivéssemos continuado, nosso relacionamento sempre seria uma parede entre ele e a esposa, e eu também a conhecia. Ela era jovem e gostava dele, e eu sabia que a esposa queria que ele a amasse, e eu... bem, eu simplesmente não podia.

Ele casou com ela?

O aceno foi tão sutil que Ana não teve certeza que viu. - Vê-lo... vê-lo pela cidade foi difícil para nós dois, creio eu. Mas torço, torço que ele tenha passado a amá-la. Eu sei que ela o ama, ainda o ama.

Matarh...

Abini esticou o braço sobre a mesa e tocou na mão de Ana. - Você agora está na família da Fé, Ana, e deve fazer o que a Fé deseja. O que quer que aconteça será a vontade de Cénzi. Lembre-se disso. - Ana sentiu o olhar in­quisidor de Abini. - Você já tem um amante, querida? É por isso que está angustiada?

Não - disse ela, depois se corrigiu. -Talvez. Não sei. É tudo tão confuso.

Diga-me. Quem é?

Eu... eu não posso, matarh. Desculpe. Não posso. Eu gostaria que pudesse.

Abini fez que sim. — Ana, se você se casar, então tem que dar uma chance ao seu marido. O respeito entre vocês pode florescer em algo maior, e você tem que dar essa oportunidade. Mas, se não acontecer... você é capaz de encontrar alguém com quem possa dividir essa parte, se for cuidadosa e discreta. As pessoas em Nessântico vão desviar os olhos se você não forçá-las a ver. Eu sei.

Seus dedos apertaram os de Ana. Elas não disseram nada. Finalmente, Abini soltou a mão da filha e recostou-se novamente.

Eu fiquei falando e sua sopa está parada aí - falou ela. - Você realmente deve prová-la antes que esfrie.

 

O PACOTE CHEGOU na manhã do gostidi: na manhã do velório de Estraven, um dia tão sombrio quanto as nuvens que prometiam chuva. Kenne, que trouxera o envelope, olhou para o fogo apagado na lareira. - A manhã está fria, archigos. Quer que eu mande um e'téni para cuidar do fogo?

Não, obrigado, Kenne - falou Dhosti. — Eu posso oferecer um pouco de incômodo para louvar Cénzi, hein? Se puder fazer a gentileza, cuide para que a equipe esteja pronta para ir ao Velho Templo assim que eu descer. Ah, e Ana deve estar a caminho daqui. Traga-a aqui em cima assim que ela chegar.

Kenne concordou com a cabeça e fez o sinal de Cénzi antes de sair do aposento e fechar as portas. Dhosti olhou novamente para o papel duro e cor de creme do envelope na mão, para a letra rebuscada que se dirigia a ele, e para a insígnia pressionada na cera vermelha do lacre: uma trombeta. A flor da kraljica. O selo estava intacto - Dhosti certificou-se disso antes de abrir o envelope e retirou os pergaminhos dobrados do interior. Ele tremeu no robe ao ir até as janelas onde a luz era um pouquinho melhor. A carta tinha a as­sinatura de Greta ca'Vörl e a letrinha meticulosa era dela - ou uma excelente imitação do exemplo que a kraljica dera para ele. Dhosti fez um pequeno gestual firme com a mão esquerda, fechou os olhos e invocou um feitiço curto ao mesmo tempo. O archigos sentiu o Ilmodo crescer com ele e soltou-o na direção do papel. No canto inferior esquerdo da primeira página, onde não havia nada antes, brilharam cinco pequenas trombetas que gradativamente voltaram a ficar invisíveis.

Dhosti começou a ler devagar, prestando atenção apenas a cada quinta palavra.

Archigos: eu escrevo como a kraljica mandou caso eu soubesse que ela esta­va morta. As notícias que devo relatar não são boas. O hirzg levou o exército, e creio que ele tenha a intenção de ameaçar Nessântico. Ele está tramando com ca'Cellibrecca. Você está em perigo. Se eu descobrir mais coisas, escreverei de novo, mas estou sendo vigiada de perto em Brezno. Tenha cuidado.

Dhosti suspirou. Alguém bateu na porta e ele dobrou os papéis. — Entre - falou. A porta abriu e Kenne deixou Ana entrar antes de fechá-la. Ela fez uma reverência maior do que precisava, e o archigos sorriu, porém isso não apagou a expressão preocupada de Ana. - Bom-dia, Ana. Você está pronta?

Para o funeral do u'téni ca'Cellibrecca? Sim.

E para o almoço com o kraljiki depois?

Ela deu de ombros. - Como devo me preparar para isso, archigos?

Eu não sei, honestamente, mas acho que podemos discutir umas possibilidades. - Ele tremeu de novo. - Está frio demais hoje de manhã. Você pode acender o fogo para mim, Ana? — Dhosti notou a olhadela que ela deu para a lareira, depois viu Ana pegar as ferramentas ao lado para atiçar as brasas. - Não com isso. Com o Ilmodo.

Ana encarou Dhosti com um olhar quase tão frio quanto a brisa que esvoaçava as cortinas atrás do archigos. Ele notou que ela considerava dar uma resposta, depois virou o rosto. - Não sei se consigo fazer isso - respondeu Ana.

O archigos concordou com a cabeça, feliz com a honestidade. Ele passou por Ana, foi até a lareira e jogou a carta nas brasas. Os papéis encresparam, escureceram e soltaram fumaça até finalmente pegarem fogo. Ambos ficaram olhando. Dhosti voltou-se para Ana.

Dê-me suas mãos - disse o archigos. Ela hesitou e recuou meio passo. - Eu não vou machucar você, Ana. Não sou seu vatarh.

Ana fez uma cara feia, mas esticou as mãos. O archigos pegou-as com as próprias mãos miúdas e enrugadas e ficou admirando a pele lisa de Ana contra a sua. Você é um velho e não tem muito tempo... Ele tirou o pensamen­to da cabeça e abriu a mente para o Ilmodo, os lábios mexeram-se em uma seqüência muda de palavras. Dhosti soltou Ana e fez um gestual no espaço entre eles. O Ilmodo surgiu novamente, muito mais forte dessa vez, e ele deixou a energia envolver as mãos estendidas de Ana. Quando o Ilmodo brilhou intensamente, o archigos pegou as mãos de Ana outra vez, as mãos dos dois foram banhadas pelo poder de Cénzi. Ele deixou a concentração sair de si mesmo e descer pelas mãos para as de Ana. Com os olhos fechados, Dhosti contemplou o exterior com a luminosidade do Ilmodo. A luz foi refletida pela alma de Ana, e o archigos foi tomado por uma pequena inveja do que viu ali.

Dhosti soltou as mãos de Ana. A luz sumiu. Ele sentiu-se subitamente tonto e sentou-se na cadeira mais próxima. - Tão cansativo. O Ilmodo fica mais fácil de ser moldado à medida que a pessoa envelhece, mas as exigências sobre o corpo são piores. — Ana observava o archigos, mas suas mãos conti­nuavam estendidas. Ela pareceu ter demorado a notar e deixou que as mãos caíssem ao lado do corpo.

Eu senti o senhor. Como se estivesse olhando para mim de dentro.

Eu estava — respondeu Dhosti. — E posso afirmar que Cénzi não tirou Seu poder de você, mesmo que tenha perdido o caminho para encontrá-lo. Ele realmente abençoou você, Ana. E Suas bênçãos permanecem. Ainda estão aí. Ainda.

Ela mordeu o lábio superior enquanto ele falava, e Dhosti notou que os olhos de Ana estavam ficando úmidos nos cantos.

-Archigos...

Ele ergueu a mão com cansaço e desmoronou contra as almofadas da cadeira. — Não diga nada. Eu sei. Sei que você foi ver o enviado ci'Vliomani depois do Gschnas. Sei que estava com ele quando o enviado foi preso e que foi vê-lo na Bastida. Vocês talvez sejam amantes. Ca'Rudka me contou.

Não somos amantes — disse Ana rapidamente, depois abaixou cabeça novamente. - Não...

Não ainda. - O archigos terminou por ela. - Você sente atração por ele?

Ela fez que sim.

Ele é bem bonito, bem charmoso e bem inteligente - falou Dhosti.

Eu fiquei impressionado com o enviado nas poucas vezes em que o encon­trei, e os numetodos escolheram bem quando o mandaram para representá-los junto à kraljica, mesmo que jamais tenha tido a oportunidade de defen­der sua causa com ela. Também me disseram que ele é noivo de uma mulher lá na Ilha de Paeti. O enviado lhe contou isso?

Ela arregalou os olhos.

Eu achei que ele talvez tivesse omitido essa informação — continuou o archigos. — O nome dela é Kaitlin Mallaghan, mais do que isso eu não sei nada sobre ela; afinal de contas, não tem um sobrenome de status, então é óbvio quem ganharia a vantagem se eles se casassem. Mas esse nome deve ser suficiente para você, hein? Para mencioná-lo ao enviado ci'Vliomani da pró­xima vez que o vir. — Dhosti parou e puxou a cadeira do lado para que ficasse voltada para ele. Bateu nas almofadas. - Sente-se, Ana. Você parece pálida.

Ela obedeceu e andou como se tivesse levado um golpe do archigos. - O senhor acha... - Ana engoliu em seco com dificuldade - ... que o enviado matou a kraljica?

Dhosti balançou a cabeça. - Não, não acho, não importa o que ca'Cellibrecca diga ou que badulaque dos numetodos foi encontrado no corpo de ci'Recroix. Não acredito nisso da mesma forma que não creio que o u'téni Estraven ca'Cellibrecca também foi morto pelos numetodos, como o a'téni está alegando.

Ana respirou fundo; o archigos notou que ela queria acreditar nele.

Então quem foi?

Agora foi a vez de Dhosti dar de ombros. - Eu não sei. Só sei que acho conveniente que a filha de ca'Cellibrecca esteja sem marido bem no momento em que o kraljiki sobe ao trono sem uma esposa. Sei que Justi e ca'Cellibrecca têm opiniões em comum em relação à Fé e à Divolonté. - Ela estava olhando para longe, como se estivesse perdida nos próprios pensamentos. - Ana - fa­lou Dhosti rispidamente, e ela virou o rosto para o archigos. - Você está no meio disso tudo, quer goste ou não, e as escolhas que fizer agora serão im­portantes: para você, para a Fé e para Nessântico. Tem que se dar conta disso. Preciso de você aqui comigo.

Eu não queria fazer parte disso.

Eu sei que você não queria, mas foi a decisão de Cénzi lhe dar esse fardo, e você tem que carregá-lo.

Como? - perguntou ela. - Como, quando até mesmo os feitiços mais simples são difíceis para mim?

Você ainda tem o dom, Ana. Recupere sua fé, e o resto voltará.

Os numetodos... eu os vi, archigos. Eles podem fazer coisas com o Ilmodo que nós não podemos, não com toda a nossa fé. Eles criam os feitiços com antecedência e lançam depois com uma única palavra ou gesto; nenhum de nós consegue fazer isso. Ka... o enviado ci'Vliomani disse que poderia me mostrar como fazer isso, que qualquer um que consiga achar o Segundo Mun­do é capaz de fazer. Ele disse que usar o Ilmodo não tem completamente nada a ver com fé ou com Cénzi.

E você se perguntou como Cénzi podia permitir isso, não foi? E, depois, o que aconteceu?

Ana abaixou a cabeça novamente. Ela fez o sinal de Cénzi, um gesto involuntário. - Desde então, eu não tenho conseguido usar o Ilmodo. Não como antigamente.

Dhosti esticou a mão para tocá-la; ela não se encolheu desta vez ao ser tocada no rosto, no pescoço. - Olhe para mim, Ana - disse ele, com os dedos embaixo do queixo de Ana como se ela fosse uma criança, e Ana ergueu a cabeça devagar. - Eu já vi essa situação antes, com outros ténis que entraram em contato com os numetodos e também tiveram a fé abalada. Isso não é nada novo e nada permanente. Agora você sabe o que acontece quando a fé fcaqueja. É um teste que Cénzi lhe deu. Cénzi fez isso para que você veja Seu poder e para que retorne a Ele mais forte do que antes. É tudo que se exige de você: tem que acreditar Nele de verdade.

Mas os numetodos não acreditam em Cénzi de maneira alguma, e o que eu vi... Nenhum deles possuía qualquer treinamento como téni...

-Truques e dissimulação - explicou o archigos. — Eu sei, eu antigamente era do circo e também vi "magia" lá. - Ele fechou os olhos e falou com uma voz rascante, sibilante, e ergueu o punho fechado ao mesmo tempo. Dhosti abriu os olhos e a mão; ali, balançando pendurado nos dedos, estava um ele­gante cordão de prata de onde pendia uma concha de pedra.

Ana soltou um suspiro de susto e levou a mão à gola do robe como se procurasse por algo escondido embaixo. - Truques — repetiu Dhosti. — E mãos que foram treinadas para dissimular. Sim, eu peguei seu cordão, mas não foi com mágica, nem com o Ilmodo. É fantástico como a pessoa realmente nunca perde a habilidade. Você não deveria acreditar tanto nos olhos, Ana, mas em sua alma. - O archigos ofereceu o cordão para ela e deixou que a correntinha caísse na palma de Ana sobre a concha. — Esse não é um símbolo que uma téni deva usar. Deixe-me lhe dar um melhor.

Dhosti colocou as mãos no próprio pescoço e retirou o pingente do globo partido que usava, feito de ouro e jóias. Ele ofereceu para Ana. - Guarde a concha que o enviado lhe deu. Deixe que seja uma lembrança daquilo que viu com os numetodos. Mas use esse aqui em seu lugar, perto do coração.

Eu não posso - sussurrou ela.

Eu insisto.

Ela fechou a mão com a concha de pedra, depois guardou o cordão no bolso do robe. Pegou o pingente com o símbolo de Cénzi da mão de Dhosti e colocou no pescoço. O globo reluziu sobre o tecido verde do vale entre os seios.

Dhosti sorriu. - Ora, isso fica melhor em você do que em mim. - Ele suspirou. - Agora, vamos falar sobre seu almoço com o kraljiki. Tem uma coisa que você deve falar para ele. Será um presente seu para o kraljiki. Não temos muito tempo...

 

- AQUELES QUE QUEREM derrubar a fé concénziana não têm qualquer limite ou remorso e querem derrubar a própria Nessântico. - Orlandi trovejou do Alto Púlpito no Velho Templo: o templo de Estraven. Os ténis que serviram ao u'téni Estraven estavam lá, todos solenes de robes verdes nas primeiras fileiras, e os ca' e co' que vieram à missa vestidos na maior elegân­cia estavam dispostos atrás deles. Francesca estava sentada com a família à esquerda de Orlandi, todos em luto de branco, ela com o rosto encoberto por um véu pesado que escondia suas feições. O archigos também estava lá, senta­do com sua vadia no balcão à direita. Orlandi olhou feio para o anão com as sobrancelhas grossas e grisalhas abaixadas.

Orlandi gesticulou novamente para o caixão diante do altar onde estava Estraven ca'Cellibrecca, que se encontrava fechado por causa do estado de­teriorado do corpo. - Olhem ali - vociferou Orlandi. A voz estava ótima na manhã de hoje; abençoada por Cénzi naquele instante, ela rugia como um trovão pelo templo. - Os inimigos do estado e da Fé mataram outro de nossos mais distintos irmãos, o marido da minha própria filha, alguém que um dia podia ter vestido o robe de archigos.

Não houve chance de isso acontecer, Orlandi sabia. Estraven fora um seguidor competente, apenas isso. Ainda assim, ele viu ca'Millac franzir os lábios diante do comentário, e isso já foi prazer suficiente. Orlandi recuperou a compostura e respirou fundo. Ajude-me aqui, Cénzi. Ajude-me a fazê-los entender Sua vontade. — Deve ser óbvio a qualquer pessoa de fé verdadeira que nós toleramos aqueles que riem de Cénzi por tempo demais. Deve ser óbvio a qualquer pessoa de fé verdadeira que o único modo de ação que temos é destruí-los antes que eles nos destruam. A Divolonté diz: "quando ameaçado, proteja-se e não tema usar a espada, porque apenas Cénzi julgará aqueles en­fados a Ele". Bem, nós sabemos quem matou Estraven. Nós sabemos, porém eles permanecem sem castigo. Eu digo que é hora de essa tolerância acabar. Eu digo que é hora de seguirmos a Divolonté, que é oriunda da lei de Cénzi. Eu digo que é hora de a Fé mostrar sua plena força e plena fúria. Eu digo para encontrarmos aqueles que desdenham de nós e atacarmos!

Com essa última palavra, Orlandi ergueu a mão e desceu o punho com força no púlpito. O som do golpe ecoou pelo Velho Templo, e ele ouviu o murmúrio de aprovação correr pela platéia. Foi necessária toda a sua força de vontade para resistir a olhar para o archigos com um sorriso de triunfo. Agora Orlandi debruçou-se sobre o púlpito e baixou a voz; ele viu a congregação inclinar-se para a frente a fim de ouvi-lo.

- Escutem - falou Orlandi para a platéia quase em um sussurro. - Escutem. - Fez uma pausa com a mão no ouvido. - Se escutarmos os nossos corações e preces, nós ouviremos Estraven ca'Cellibrecca e a kraljica Marguerite, ambos nos chamando dos braços de Cénzi e Vucta. Escutem: eles nos chamam com as vozes de todos que foram assassinados ao longo dos anos. Eles clamam por justiça. E nós precisamos... - Orlandi fez uma pausa, olhou da congregação para o caixão, para Francesca e a família, e de novo para a multidão no Velho Templo. Ele rugiu novamente. — Nós temos que escutar suas súplicas e dar a Estraven e à kraljica Marguerite o que eles pedem. Se não fizermos nada, se nos recusarmos a escutá-los, então será a fúria de Cénzi que enfrentaremos a seguir. Eu não vou deixar que isso aconteça. Esta tem que ser uma tarefa para todos nós: não deixarmos que isso aconteça.

Não houve aplauso, não aqui neste lugar sagrado debaixo da abóbada pintada, mas Orlandi sabia que eles queriam gritar e bater palmas. Dava para sentir. Orlandi franziu os lábios, olhou para a congregação e acenou com a cabeça apenas uma vez, devagar. Depois ele saiu do púlpito, e os uténis que conduziam a missa cantaram os recitativos enquanto o coral começou a acom­panhar do alto da galeria.

Orlandi sentou-se ao lado de Francesca. Ele pegou a mão da filha e colocou no colo.

O senhor deveria ter visto o archigos, vatarh - sussurrou Francesca ao se apoiar no ombro dele. - Pensei que o homem fosse entrar em colapso ali mesmo, de tanto que o rosto estava vermelho.

Se ao menos isso realmente fosse a vontade de Cénzi - disse Orlandi. O lamento do coral abafava as vozes dos dois. Ele deu tapinhas na mão da filha. - O fato de Cénzi ter chamado Estraven para o Seu lado vai ter que ser suficiente. Isso basta.

Ele foi chamado, vatarh, ou foi enviado?

Orlandi olhou para Francesca diante do som estranho de sua voz, mas o véu funerário escondia as feições. Por um momento, ele ficou na dúvida, en­tão os dedos da filha apertaram os seus. Orlandi recostou-se, fechou os olhos e acompanhou o coral.

Depois da missa, enquanto o corpo de Estraven era colocado em uma carruagem coberta de branco a fim de ser levado ao crematório para a disso­lução final, o archigos aproximou-se dos dois após evitar uma longa fila de ca' e co' preparados para dar os pêsames à nova viúva. Uma chuva caía de nuvens baixas e passageiras no momento em que eles saíram do Velho Tempo. Capu­zes e echarpes foram colocados, mas a cabeça do archigos estava nua, o cocu­ruto careca reluzia com a umidade. O tempo também ficou mais frio, como se a primavera tivesse decidido recuar para o inverno, e a respiração do archigos formou uma nuvem ao redor dele. Sua equipe ficara para trás no abrigo da alcova do templo, e a vadia não estava entre eles. Isso provocou uma careta de desdém em Orlandi, debaixo da cobertura azul e dourada levada por quatro de seus e'ténis - hoje era gostidi, e co'Seranta certamente estaria correndo para se encontrar com o kraljiki. Ele teria que ir ao palácio em pessoa, assim que conseguisse escapar educadamente.

Vajica ca'Cellibrecca - disse o archigos para Francesca, que também estava protegida debaixo da cobertura de Orlandi. Ela abaixou a cabeça e fez o sinal de Cénzi, como mandava a etiqueta. - Ofereço minhas preces para você e seu marido. A o'téni co'Seranta me pediu para oferecer sua solidariedade também; infelizmente, ela teve que correr para seu almoço com o kraljiki. Nós sentiremos falta do u'téni Estraven aqui em Nessântico. - Aí o archigos inclinou a cabeça e olhou para Orlandi. - A perda dele é uma grande tragédia para a Fé. Mas não devemos permitir que isso nos leve a ações imprudentes, especialmente em tempos como esse.

Você acha que defender nossa Fé é imprudente, archigos? - Orlandi falou alto o suficiente para cabeças se voltarem para o trio. Os e'ténis que seguravam a lona sobre eles fizeram um esforço para fingir que não estavam escutando.

O archigos sorriu tranqüilamente. - De maneira alguma, Orlandi. Porém, foi uma tragédia e coincidência tão grandes que Estraven tenha sido assassinado apenas poucos dias depois da kraljica. Espero que não esteia se sentindo culpado de tê-lo despachado para Brezno. - O sorriso do anão au­mentou levemente, como se tivesse achado graça na escolha de palavras. De­pois o rosto voltou a ficar sério. - É uma perda horrível para você, vajica, nestes tempos turbulentos e incertos. Eu continuo com a certeza, porém, que Cénzi fará a verdade vir à tona e, como seu vatarh falou com tanta eloqüência, os responsáveis serão trazidos à justiça.

Dito isso, o anão deu o sinal de Cénzi para os dois e foi embora como uma pata-choca, de volta para sua equipe, aparentemente sem se importar em ser castigado pela chuva. Orlandi olhou feio para ele.

Cénzi vai mandar esse homenzinho horrível para os retalhadores de almas - disse Orlandi, sem se importar que os e'ténis ouvissem. - Ele é uma vergonha para o título, e Cénzi vai chamá-lo para repreendê-lo pelo estrago que fez à Fé.

Pode ser, mas ele não é tolo, vatarh. Não cometa o erro de subestimá-lo.

Francesca tremeu. - Está frio, vatarh, e eu realmente estou me sentindo mal.

Desculpe, minha querida - falou Orlandi e depois gesticulou para os e'ténis na carruagem funerária de Estraven. - Minha filha foi abalada pela dor - disse para as pessoas que davam pêsames. — Se nos dão licença...

Houve murmúrios de concordância e gritos de condolências. Ninguém foi contra a redução da cerimônia, não com o tempo assim. - O senhor falou a verdade durante sua Admoestação, a'téni - disse um dos ca' ali na multidão com o punho erguido. - É hora de punirmos os numetodos pelo que fizeram. Devíamos ver seus corpos pendurados das pontes do A'Sele. — Houve gritos de aprovação e mais punhos, e ca'Cellibrecca viu que o archigos olhava para eles do meio do bolo de gente de sua equipe.

Eles pagarão - respondeu Orlandi em voz alta. - Cénzi me prometeu isso, e eu não falharei com Ele.

Eles gritaram e protestaram. Na entrada do Velho Templo, o archigos fez uma cara feia e começou a ir embora rapidamente com a equipe ao redor do homenzinho, escondido.

Enquanto Orlandi fazia uma mesura e o sinal de Cénzi para a multidão, os e'ténis entoaram e as rodas da carruagem funerária começaram a girar. A congregação dispersou-se com mais gritos de apoio e solidariedade e deixou a família em sua caminhada lenta e ritual atrás do veículo.

A chuva castigava a lona acima deles. Orlandi ergueu os olhos e falou - As lágrimas dos moitidis. Eu sei, Cénzi, rezou. Eu sei que o Senhor está furioso que nós tratamos bem aqueles que Lhe renegam e prometo que farei Sua vontade. Obrigado por me mostrar o caminho. Obrigado por permitir o sacrifício desse homem para salvar muitos. Eu não falharei com o Senhor.

Vatarh?

A morte de Estraven não foi em vão. Cénzi vai garantir isso. - Orlandi pegou a mão de Francesca. - Eu tenho certeza. Eu sei.

 

A CHUVA CASTIGAVA as paredes e batia no telhado, mas dentro da sala do Grande Palácio, o rugido da grande lareira mantinha longe o frio en­quanto criados trabalhavam depressa para encher a mesa com opções. - Aqui, o'téni - disse o novo kraljiki. — Isto é polpa gelada de frutas com especiarias de jraubundi; você realmente deve provar. - Ana ainda não estava acostumada à voz, era a voz de um menino em um corpo de homem. Ela sorriu para ele do outro lado da mesinha com uma fina toalha de linho, colocada próxima à la­reira e dominada pela imensidão da sala. As vozes dos dois ecoavam apesar das rortinas pesadas recolhidas nas janelas altas de vitral, das cadeiras acolchoadas e dos tapetes com desenhos hipnotizantes.

Ele pareceu notar os olhares de Ana pela sala, já bem diferente do que ela se lembrava do palácio nas vezes em que visitou a kraljica. O kraljiki tomou um grande gole do vinho diante dele e gesticulou com a taça para a sala. - O gosto da matarh era muito sóbrio, antiquado e, bem, chato, tenho que admitir. Eu prefiro estímulos mais visuais. Os Domínios, afinal de contas, são compostos de árias nações e várias culturas, e nós devemos aproveitar todas, não acha?

Eu concordo, kraljiki, que é possível encontrar muitas coisas interessantes em outros costumes se nos importarmos em olhar, até mesmo em cren­ças que talvez consideremos antiéticas em relação aos nossos pontos de vista.

Ele pousou a taça. - Ah, bem dito. Então talvez você até pudesse ver algo válido nas crenças, digamos, dos numetodos?

Eu vejo. Na verdade, eu conheço.

O kraljiki olhou para o presente do archigos sobre o robe de Ana, depois oltou ao rosto dela. — Essa não é uma crença herege para uma téni? O a'téni ca'Cellibrecca, por exemplo, jamais diria tal coisa.

O a'téni ca'Cellibrecca, como a sua matarh, é mais sóbrio, antiquado e chato do que eu, kraljiki - respondeu Ana. Ela torceu que tivesse julgado o homem corretamente. O kraljiki olhou para ela com seus olhos escuros por um momento, e Ana perguntou-se se tinha calculado mal, mas então ele jo­gou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada aguda. Ela viu o criado que tra­zia uma terrina de ensopado erguer as sobrancelhas diante do som repentino.

É verdade - disse o kraljiki. - E, por favor, enquanto estamos aqui sozinhos, poderíamos ser simplesmente Justi e Ana? A formalidade é tão... - ele sorriu para ela — ... sóbria.

"A matarh dele era majestosa e sempre teve noção do cargo que ocupava, e por causa disso algumas pessoas achavam Marguerite um pouco fria e distante", dissera o archigos. "Quem acreditava nisso estava errado. O kraljiki é o oposto. Ele pode ser irresistivelmente charmoso e franco, mas aqueles que acreditam que essas qualidades o definem também estão errados. Justi usa esses atributos apenas quan­do quer alguma coisa. Ê o encanto de uma cobra, e tão perigoso quanto." Ana lembrou-se do alerta. Ela devolveu o sorriso. - Se lhe agrada, então sim, Justi.

Obrigado, Ana. Viu só, já não é melhor assim? - Ele acenou com a cabeça. A luz do candelabro no meio da mesa, seus olhos reluziram como vidro fumê. — Então... você realmente acredita que os numetodos não são as criaturas malignas que a Divolonté diz que são?

Nem o Toustour ou a Divolonté dizem algo diretamente a respeito dos numetodos. Eles são novos demais no mundo. Portanto, qualquer interpreta­ção do Toustour ou da Divolonté é exatamente isso: interpretação, não fato.

Novamente, isso não é o que o a'téni ca'Cellibrecca diria. Na verdade, Ana, ele diria que eu não deveria escutar alguém que notoriamente se associa aos numetodos.

Ana sentiu o rosto ficar vermelho; ela sabia que o kraljiki saberia, mas isso não tornou a exposição do fato menos chocante. - Eu conheço o enviado ci'Vliomani pessoalmente, sim. E é porque eu o conheço de verdade que tam­bém sei que não é o responsável pela morte de sua matarh, kraljiki.

- Justi - ele corrigiu Ana. - E isso é o que você sabe ou a sua interpretação?

Ana obrigou-se a sorrir ao ouvir a palavra. - Apenas Cénzi sabe, mas, sim, eu confio no que digo.

Você apostaria sua vida nisso, Ana? - Justi falou com o mesmo sorriso estranho e inclinou-se para a frente. Ana respirou lentamente.

O kraljiki tem a minha vida em suas mãos. Eu confio em sua capacidade de julgamento para fazer o que é melhor por Nessântico e pela Concénzia, as­sim como confio na minha crença na inocência do enviado ci'Vliomani.

Ele riu, recostou-se levemente e tomou outro gole de vinho. - Isso também foi bem dito. Começo a desconfiar que minha matarh talvez tenha estado certa sobre você, Ana. — O kraljiki esticou o braço sobre a mesa até onde a mão de Ana estava pousada na toalha. Ela fez um esforço para não se mexer quando Justi pegou sua mão. Ele tinha uma pegada forte. - Nós podemos fazer uma bela equipe, nós dois. Não acha?

Ela forçou outro sorriso e torceu que nenhum deles parecesse falso. O estômago contraiu-se; Ana sentiu o nó de tensão bem no fundo. - Você me deixa lisonjeada, Justi.

O kraljiki apertou os dedos de Ana. - Não - falou em tom sério. - Eu não faço isso. Falsos elogios são algo que não pratico. Jamais. — Ele apertou seus dedos. - Por exemplo, não vou insultar nenhum de nós ao dizer como você é bonita. A matarh usava o casamento da forma que outro kralji usaria a Garde Civile: como uma arma. A protegida do archigos, alguém que foi muito abençoada por Cénzi, uma pessoa inteligente... isso poderia se tornar uma boa arma para mim, assim como eu poderia ser para você em troca, com gente como o a1téni ca'Cellibrecca. É isso que estou querendo dizer, Ana. Eu entendo como alguém estaria disposto a fazer o que fosse necessário para che­gar a um objetivo. Eu concordo com isso.

Ana viu a porta da sala se abrir atrás do kraljiki enquanto ele falava e Renard entrou para ficar discretamente a poucos passos da mesa, bem no limite da visão periférica de Justi. O kraljiki sustentou o olhar de Ana por um momento, depois deu uma olhadela para Renard nitidamente aborreci­do. - Sim? - Sua mão não largou a de Ana; Renard foi muito incisivo ao não desviar o olhar do rosto de Justi.

- Desculpe interromper, kraljiki, mas o a'téni ca'Cellibrecca está aqui... insistindo muito que precisa falar com o senhor imediatamente.

Justi estava olhando para Ana quando respondeu. Ana lembrou-se do que o archigos dissera ao ouvir a menção a ca'Cellibrecca e quis botar para fora. Justi manteve o olhar em seu rosto enquanto falou com Renard. — Não duvido que ele precise. - Ele gesticulou com a mão livre para o homem, ainda sem olhar para ele. — Diga ao a'téni que eu novamente ofereço minhas con­dolências pela morte do u'téni Estraven e que tenho certeza de que é a dor da perda, e não uma evidente grosseria, que o faria pensar que me esqueci do en­contro marcado com ele em breve. Estarei com o a'téni ca'Cellibrecca quando terminar meu almoço. Não antes disso. Ficou claro, Renard?

Tão cristalino quanto o Trono do Sol, meu kraljiki - respondeu Renard. Ana pensou ter visto um ligeiro sorriso no rosto do assistente. — Será um prazer levar sua mensagem ao a'téni. - Renard fez uma mesura para o kraljiki, depois fez o sinal de Cénzi para Ana. Ele saiu rapidamente e estalou os dedos para os gardai abrirem a porta ao se aproximar. Quando as portas foram fe­chadas com a saída de Renard, os dedos de Justi novamente apertaram a mão de Ana.

Quando Renard mencionou ca'Cellibrecca, você quase começou a falar.

Você é muito perceptivo, Justi. Tenho notícias para lhe dar, kraljiki. Do archigos.

Justi concordou com a cabeça. - Quando eu encontrar com ele depois de nosso almoço, o a'téni ca'Cellibrecca me aconselhará a fazer aqui em Nessân­tico o que ele fez em Brezno. Ca'Cellibrecca quer que os numetodos da Bas­tida sejam torturados até que confessem seus crimes, depois quer que sejam mutilados, executados publicamente e exibidos como um alerta. Ele insistirá muito nessa questão e dará argumentos convincentes tirados do Toustour e da Divolonté, pelos quais ele sabe que tenho o maior dos respeitos. Ele apelará à minha fé e ao meu dever como kraljiki.

Ana começou a interromper, mas Justi ergueu um dedo e ela engoliu as palavras. — Minha fé é genuína, Ana. Tenho pouca simpatia pelos numetodos. Meu senso de dever para com Nessântico também é forte; eu acredito que mi­nha matarh fez um desserviço aos Domínios ao desprezar a Garde Civile e os chevarittai. Nós não estamos tão fortes como deveríamos estar e consequen­temente demos força demais para Firenzcia. Agora... ca'Cellibrecca, como eu disse, apelará ao meu papel como Protetor dos Domínios e à minha própria segurança. O fato que a o'téni co'Seranta não acredita na culpa dos numeto­dos terá pouca influência sobre ele. O que você acredita não terá influência alguma se Orlandi descobrisse que você conhece o enviado ci'Vliomani ou que na verdade esteve com ele quando foi preso. Eu também sei que Orlandi me oferece outro casamento-arma que posso usar: a própria filha, a recente viúva ca'Cellibrecca. Como qualquer bom espadachim, eu prefiro treinar com a minha própria arma e conhecê-la muito bem antes de usá-la em combate.

O olhar de Justi não a soltava. Seu sorriso sumiu agora, e a mão parecia pesar tanto quanto o próprio Trono do Sol. - Eu sou uma pessoa muito mais forte e independente do que o a'téni ca'Cellibrecca acha que sou. Ele acha que ainda sou o a'kralj, preso à vontade da matarh. Ele está errado; sou mais como a própria matarh, mesmo que ela não tenha percebido. Eu não teria dificuldade alguma em dizer ao a'téni ca'Cellibrecca que soltarei todos os numetodos ou talvez escolher um deles apenas, o menos importante, para atuar como um símbolo e soltar todo o resto, inclusive o enviado ci'Vliomani. É o que você quer, não é, Ana? Não precisa responder. Vejo em seu rosto. Eu posso fazer isso, Ana. Eu farei isso: se parecer que é do meu interesse.

Justi retirou a mão de repente, e Ana sentiu o ar frio na pele. - Então, quais são as notícias do archigos?

Ela não conseguiu responder imediatamente. Respirou fundo, fingiu tomar um gole do vinho enquanto assimilou o que Justi estava dizendo. - O archigos... Ele recebeu uma carta, kraljiki, de sua prima, a hirzgin. Ela acredita que o hirzg Jan tem a intenção de entrar em Nessântico com o exército. Ela acredita que ele e o a'téni ca'Cellibrecca estão tramando tomar o Trono do Sol de você.

Justi arregalou os olhos ao ouvir isso. — Eu sou capaz de acreditar que o hirzg seria tolo a esse ponto; Jan ca'Vörl é meio bárbaro e não é famoso pela sutileza de sua estratégia. Eu adoraria vê-lo apodrecer na Bastida. Mas é mais difícil pensar que ca'Cellibrecca esteja disposto a participar de uma aliança assim quando o preço do fracasso é tão grande. O archigos realmente acredita que isso seja verdade?

Ana deu de ombros. — Ele sabe que a hirzgin acredita que seja verdade.

- Então eu terei que fazer a minha própria investigação. E depressa. A hirzg e ca'Cellibrecca deram um passo maior do que as pernas se pensam que posso ser facilmente intimidado. — Ele fez que sim, como se para si mesmo. Não falou nada por alguns momentos com uma cara feia. Depois, abrupta­mente, sorriu novamente. — De qualquer forma, essa notícia significa que o a'téni ca'Cellibrecca não terá uma decisão minha na tarde de hoje. Na verda­de, farei com que espere bem mais enquanto tomo providências. Sinto que o a'téni tenha decidido interromper nosso almoço, Ana. Eu compensarei se você vier à noite para uma ceia, nos meus aposentos particulares, sim? Se fizer isso, então eu farei ca'Cellibrecca esperar alguns dias pela resposta sobre os numetodos.

Ana sabia o que Justi pedia; sabia o que ele ameaçava. "Ele vai tentar prender você, Ana", dissera o archigos. "Você tem que se lembrar de uma coi­sa: não há decisões sem conseqüências, e quanto mais crítica a decisão, piores serão as conseqüências. Na esfera em que o kraljiki opera, também não existem recompensas sem pagamentos. Quanto a isso, a situação é como o nosso uso do Ilmodo: os feitiços nos dão poder, mas sempre precisamos pagar por eles. " Ela sentiu as barras se fechando. Por um instante, a memória do rosto do vatarh sobre ela surgiu na mente, e Ana tremeu. A mão que o kraljiki pegou estava cerrada sobre a toalha adamascada. O cheiro da comida diante dela deixou-a enojada.

Ele esperava a resposta com uma única sobrancelha erguida e o queixo proeminente empinado.

Eu tenho a missa com o archigos na Terceira Chamada, kraljiki...

Justi não deixou que ela terminasse. Ele pulou como um gato sobre um rato à espreita em uma parede. - Então eu lhe espero imediatamente depois da missa. - Não foi uma pergunta. - Eu mandarei uma carruagem aguardar por você no Templo do Archigos.

Ela fez que sim. O nó no estômago ficou mais apertado.

Ótimo. - O kraljiki gesticulou para os criados encostados na parede. - Eu tenho que ir embora, Ana. O que você me contou exige minha atenção. Por favor, fique à vontade e termine seu almoço, Ana. Sem pressa e com a consciência de que o a'téni ca'Cellibrecca ficará mais furioso a cada mordida enquanto pensa em nós dois juntos. Isso vai acrescentar um tempero especial aos pratos, não acha?

 

A CHUVA FEZ os residentes de Nessântico correrem de porta em porta enquanto olhavam com raiva para o céu e deixou as ruas sem tráfego, a não ser por carruagens que passavam ocasionalmente com o pobre condutor en­colhido debaixo do casacão de linóleo. O tempo, no entanto, incomodava pouquíssimo Mahri. A chuva fria ensopava os farrapos escuros que enfaixavam seu corpo cheio de cicatrizes, mas a umidade aliviava a pele arruinada. Ele andou sem pressa pelas margens do rio A'Sele perto da Bastida e parou ao se aproximar da Avi a'Parete e da Pontica a'Brezi Veste. Mahri conseguiu ver a torre onde Karl ci'Vliomani estava preso surgir de uma maneira sombria sobre os muros ao redor da prisão, muros que um dia fizeram parte da antiga mu­ralha da cidade que Nessântico abandonou há muito tempo quando cresceu. Ele escolheu esse ponto com cuidado, em que poderia ver a torre facilmente e, no entanto, onde haveria poucos transeuntes para interferir ou notá-lo; a chuva só ajudaria.

Ele desmoronou sobre a grama úmida do declive da margem do rio. Dava para sentir o cheiro da água — o fedor podre de sujeira, dejetos humanos e peixes podres. Mahri fez uma careta e tentou tirar o odor da cabeça. Ele puxou um pergaminho de linóleo do bolso do robe e colocou no colo. Olhou para a torre e começou a entoar, as mãos e os dedos dançaram uma complica­da gavota diante dele.

Mahri fechou os olhos.

Ele sentiu-se sendo levado como se não estivesse mais preso ao corpo, embora fosse capaz de perceber a corda mental que o unia ao corpo. Ela fica­va esticada conforme Mahri flutuava, tornava-se mais tesa e resistente com a distância. A sensação era desconcertante, e por um momento a náusea amea­çou devolvê-lo rolando ao corpo, mas ele forçou a consciência a continuar flutuando para fora. Sentiu a torre se aproximando; Mahri passou por cima da muralha em ruínas e subiu até a sacada aberta, onde tinha visto o numetodo e a escuridão do interior. A conexão com o corpo estava quase na distância extrema; ele teve que lutar mentalmente para ficar ali, para não voltar rolando para o corpo abandonado. Notou uma figura sentada à uma mesa tosca no centro da cela, com a cabeça presa por um aparato estranho, as mãos algema­das bem unidas: o enviado. Ele olhava diretamente para Mahri, com olhos arregalados como se visse um fantasma - o que, Mahri sabia, de certa forma era o caso. Mahri tinha observado outros fazerem esse feitiço antes; tinha visto a silhueta translúcida que resultava da pessoa: incorpórea, intocável, espectral. E frágil. Ele sabia que tinha pouco tempo.

Ci'Vliomani resmungou alguma coisa que o objeto enfiado à força entre os lábios tornou ininteligível; Mahri levou um dedo à boca como alerta. Ele fez um esforço para deslizar até a porta contra a resistência crescente do corpo, sentiu o frio do metal ao passar completamente por ela. Ao fundo, um garda roncava encostado na parede com os olhos fechados. Mahri falou uma palavra e gesticulou; o homem desmoronou no chão, os roncos aumentaram. Ele dei­xou o corpo puxá-lo de volta para a cela e parou novamente em seu interior após um esforço da consciência, embora sentisse uma vontade desesperada de voltar.

- Eu não tenho tempo, enviado ci'Vliomani - disse Mahri, que ouviu a própria voz sussurrante e vazia como se falasse através de um longo tubo. — Eles têm a intenção de matar você como um exemplo para todos os nume­todos. Eu lhe ofereço uma fuga, mas você tem que confiar em mim, e temos que agir agora. Está disposto?

Por um momento, ci'Vliomani não fez nada, e Mahri ficou preparado para se deixar voltar para o próprio corpo novamente. Então o homem deu um aceno dos mais sutis com a cabeça, e Mahri lutou para manter a consciên­cia na cela. Ele não arriscava mais se mexer; se fizesse isso, a conexão seria quebrada e ele voltaria rolando. Sim. Foi assim que vi na tigela premonitória...

- Você sabe ler? - perguntou Mahri para o homem, que concordou novamen­te. - Ótimo. Então temos que correr. Venha aqui. Pise no espaço onde estou...

Devagar demais para o gosto de Mahri, ci'Vliomani levantou-se e arrastou os pés até ele. O enviado hesitou ao ficar na frente do mendigo, que pensou que o homem mudaria de idéia. Então ci'Vliomani deu um último passo, e a consciência de Mahri foi dobrada.

... O que é isso? O que você está fazendo comigo?

... Confie em mim...

Mahri falou a última palavra do feitiço, e o mundo mudou. Seu ponto de vista foi trocado; ele não olhava mais pelos próprios olhos, mas sim através dos olhos de ci'Vliomani. Ouviu um lamento e um grito, e o fantasma cintilante fugiu da cela como se fosse um fiapo de névoa soprado pelos ventos de um tornado invisível.

O grito do espectro sumiu na noite...

 

ELE ESTAVA SENTADO na grama da margem do A'Sele sendo castigado pela chuva. Por um momento, isso foi o suficiente porque não havia força em seu corpo. Estava completamente exausto, esgotado como se tivesse usado muito o Scáth Cumhacht e precisasse pagar o preço caro. Devagar, como se acordasse de um sonho profundo, ele permitiu-se voltar à vida.

Tudo estava errado. Tudo.

Ele não conseguia ver direito. A visão estava estranhamente unidimensional; apenas o olho direito parecia estar funcionando. Havia um odor estra­nho nele, de ervas e fragrâncias que não conseguia identificar. Ele ergueu as mãos, e as mãos que surgiram das mangas pretas e puídas não eram de ma­neira alguma as suas. A respiração era difícil e, quando virou a cabeça, a pele foi repuxada com força no lado esquerdo do rosto e resistiu ao movimento. A língua encontrou gengivas vazias e apenas alguns dentes, e o gosto na boca era ruim e desagradável. Ao olhar para baixo, viu um corpo envolto em trapos e farrapos escuros.

Era o corpo de Mahri, ele de repente se deu conta. Karl perdeu o fôlego e virou a cabeça a fim de olhar para a torre da Bastida, a cem ou mais passos de distância. Viu uma figura minúscula lá, parada na sacada alta de sua cela: ele próprio, com as mãos presas e algemadas, a cabeça enclausurada na máscara silenciadora. A figura olhou para ele através da chuva e, enquanto Karl assis­tia, as mãos presas ergueram-se como se fosse uma saudação e o prisioneiro virou-se para voltar à cela.

Karl tentou ficar de pé. Não conseguiu; o corpo não obedecia. Músculos gritaram e sentiram cãibras; parecia que ele tentava levantar o peso da própria Nessântico. - O que você fez comigo? - gritou Karl. A voz não era a dele: era tomada por catarro e mais grave que a sua própria, as palavras saíram indis­tintas pela boca desdentada. O eco dos prédios mais próximos fez com que ele fechasse a boca. Com o movimento, um rolo de pergaminho de linóleo caiu da roupa para a grama. Ele esticou a mão para pegar. "Você sabe ler?", perguntou Mahri. Karl desenrolou o pergaminho com dedos desajeitados que eram curtos e duros demais e sentiu uma onda gelada de pânico. As palavras fizeram o sangue latejar na cabeça.

Enviado ci'Vliomani, você sem dúvida está confuso e com medo, e isso é de se esperar. Eu pedi que confiasse em mim e peço que continue a agir assim. Confie em mim. Se tudo der certo, você não permanecerá neste corpo por muito tempo. Se o plano falhar, então o seu próprio corpo será destruído e eu com ele, mas pelo menos você sobreviverá. Todos nós somos mais do que os corpos que habitamos - lembre-se disso se o pior acontecer. Vá para meus aposentos na rua a'Jeunesse, 12; eu me encontro lá com você no devido tempo, espero, e podemos voltar aos corpos que conhecemos bem. Cuide da minha pobre jaula mortal da melhor maneira possível; eu tentarei fazer o mesmo com a sua.

Karl leu o bilhete duas vezes. A chuva caiu sobre o pergaminho e borrou a tinta, apesar do óleo. Ele ergueu a cabeça para as nuvens; a sensação da chuva no rosto era boa, como se esfriasse um calor ali presente. Olhou novamente rara a Bastida; viu apenas as pedras e o buraco negro da abertura de sua cela. Ele perguntou-se se Mahri estava lá, observando.

Ele perguntou-se se de alguma forma estava sonhando com tudo isso.

Karl tentou levantar o (seu) corpo de Mahri. Desta vez ele conseguiu, mas cambaleou e quase caiu. Ele tinha altura errada e tudo parecia errado. Karl deu um passo vacilante, arrastou o pé pela grama úmida e escorregadia, e apoiou-se no declive que levava à correnteza marrom do A'Sele. Ele quase caiu de novo, mas se forçou a dar novo passo, depois outro, e voltou para as ruas de Nessântico. Qualquer um que o visse imaginaria que estava bêbado. Karl olhou de novo para a Bastida e balançou uma cabeça que parecia pesada demais.

Enquanto andava, Karl viu as pessoas olharem para ele com nojo antes de virarem o rosto. Ele prosseguiu e permaneceu nas sombras como Mahri fazia antes, voltou ao Velho Distrito e ao endereço escrito no pergaminho.

 

A CARRUAGEM estava lá à espera assim que ela saiu do Templo do Archigos, como o kraljiki prometera. Uma nova insígnia fora colocada na lateral do veículo, não era mais a trombeta da kraljica, mas sim um punho em uma manopla. A carruagem era puxada por um par de garanhões brancos. Os reflexos dos animais cintilavam nas poças deixadas pela chuva vespertina.

O archigos surgiu ao lado de Ana enquanto ela contemplava a carruagem, assim que o condutor pulou do assento para abrir a porta. Sensatos, Kenne e o resto da equipe mantinham a congregação que saía da igreja longe dos dois. - Espero que saiba o que está fazendo, Ana - falou o archigos baixi­nho. - Justi não é alguém com quem se possa brincar.

— Eu sei disso. Foi o senhor que me colocou nesse caminho, lembra? Eu prometi ao kraljiki que o encontraria para jantar.

O olhar do archigos procurou o de Ana. - Não deve haver mentiras entre nós.

Ela fez uma cara feia e franziu os lábios. Não, o senhor não vai abusar de mim como meu vatarh; apenas vai me vender para outro. - Não, não deve. É por isso que não vou falar mais nada.

Ana pensou que ele fosse reclamar, mas o anão suspirou e tocou em sua mão. - Então tenha cuidado, Ana. E não corra riscos. - O archigos fez o sinal de Cénzi para ela, reuniu a equipe ao seu redor e entrou na multidão, já se dirigindo aos ca' e co' que esperavam. Ana foi até a carruagem e acenou com a cabeça para o condutor, que a ajudou a entrar e fechou a porta. Ela sentou-se nas almofadas de couro enquanto o condutor gritava para os cavalos, e eles foram embora.

Eles não foram para a entrada principal do Grande Palácio na Avi a'Parete, mas sim para uma das entradas laterais voltadas para os jardins de­limitados pelas alas do palácio. Renard esperava por ela na porta enquanto o condutor ajudava Ana a descer. - O kraljiki está nos aposentos externos, o'téni co'Seranta - disse ele. O que quer que o homem pudesse estar pensando es­tava cuidadosamente escondido. Ele deu um sorriso neutro; o olhar jamais se demorava sobre ela. Renard conduziu Ana por um dos corredores acarpetados e sem criados dos fundos até uma porta indistinta. Renard bateu, girou a ma­çaneta e abriu a porta, depois fez um gesto para ela. - Por favor, o'téni - falou ele. Ana aproximou-se e deu uma olhadela para o interior. - Basta bater nessa porta - disse Renard enquanto ela olhava para o aposento depois da passagem. As palavras eram um sussurro discreto. - A qualquer momento. Estarei aqui para lhe acompanhar com segurança até a saída, sem perguntas.

Ana olhou para ele. Renard empinou levemente o queixo, e havia uma preocupação sincera nos velhos olhos. - Obrigada, Renard.

O assistente respondeu com um aceno de cabeça. - Ele espera pela senhorita.

Ela entrou; Renard fechou a porta.

A sala onde Ana se encontrava era ricamente decorada. Cortinas pesadas recobriam as janelas e traziam a noite mais cedo para o aposento, que era ilu­minado por várias dezenas de candelabros dispostos em mesas e sobre o con­solo da lareira e por um fogo que tremeluzia convidativo na própria lareira. Uma mesa fora posta para dois no centro da sala, com vários pratos cobertos e vinho já nas taças. Ela não viu ninguém ali, embora uma porta aberta levasse para outros aposentos. Uma tora de lenha caiu na lareira e levantou um chafariz de fagulhas, o que atraiu o olhar de Ana. Ela respirou fundo. Sobre o consolo, banhado pela luz de velas, estava o quadro que ci'Recroix pintou da kraljica Marguerite, realista de uma maneira assustadora. A kraljica parecia devolver o olhar de Ana quase com tristeza, com a boca aberta como se esti­vesse prestes a falar.

- Espantoso, não é? Acho que são os olhos que mais me fascinam; a pessoa quase consegue ver a luz da lareira brilhando neles.

Com o som da voz aguda, Ana deu meia-volta e viu o kraljiki parado ao lado da mesa. Ele estava vestido de forma casual, com uma bashta de seda amarela. Ana tentou sorrir, mas não conseguiu. — Este quadro... kraljiki, ele foi enfeitiçado, foi o responsável pela morte de sua matarh. Tenho certeza dis­so. Você pode perguntar ao archigos se não acredita em mim. Esse... esse foi o instrumento da morte de sua matarh.

O gesto de desdém com os ombros do kraljiki calou a boca de Ana. - Talvez - respondeu ele com a voz aguda. - Ou talvez não. Não muda nada, porém. O quadro é lindo, independente disso. Ci'Recroix era um verdadeiro gênio, embora também fosse um assassino.

- Você ficaria com o quadro sabendo o que eu acabei de contar?

- Eu jogaria fora a espada cerimonial do kralji porque ela matou antes? Não é a espada que mata, mas a pessoa, Ana. — Ela tremeu com o uso de seu nome por ele. - Eu tomei a liberdade de já mandar servir a comida. Sente-se. O chefe garantiu que o carneiro assado está delicioso e tão macio que vai se desmanchar em sua boca. E, se o quadro lhe incomoda, então se sente aqui, onde o fogo vai aquecer suas costas... - Ela ouviu uma cadeira ser arrastada pelo chão e deu as costas para o quadro com uma última olhadela demorada. Ana deixou que o kraljiki puxasse a cadeira para ela. A mão dele demorou-se sobre o ombro de Ana por um instante antes que o kraljiki fosse se sentar na cadeira do outro lado da mesa.

Ela então pensou, durante certo tempo, que talvez o kraljiki a tivesse con­vidado simplesmente para comer com ele. Enquanto comiam, o kraljiki falou sobre Nessântico, sobre como esperava dar continuidade ao crescimento dos Domínios, como pretendia visitar cada uma das nações dos Domínios como parte de uma Grande Turnê para celebrar sua coroação, viajar até mesmo para os Hellins do outro lado do Strettosei. Falou de sua devoção a Cénzi, como acreditava que a fé concénziana era a pedra fundamental dos Domínios, mas como eles deveriam estar preparados para receber em suas fronteiras aqueles que ainda não descobriram a verdade da Fé.

O archigos sabe disso, é claro - disse Justi ao arrancar um pedaço de pão, mergulhá-lo no molho em seu prato e enfiá-lo na boca. - Ele serviu bem à matarh, e espero que faça o mesmo por mim até a hora em que Cénzi chamá-lo. E depois disso... bem, ele certamente fala muito bem de você e de suas habilidades. Apenas seis mulheres foram archigos em todos os tempos. Talvez seja a hora de uma sétima?

Ana pensou na fé abalada, no dom perdido, na incerteza, e balançou a cabeça ao beber o vinho. - Você me deixa lisonjeada, kraljiki, mas não estou pronta para esse fardo. Não sei se um dia estarei.

Você preferia que o a'téni ca'Cellibrecca fosse elevado ao título?

Não - disse Ana rapidamente. Depois se deu conta de como a resposta pareceu direta enquanto Justi ria.

Sua franqueza é um charme - falou o kraljiki. - A maioria das pessoas tem medo de falar o que pensa na minha frente. Mas não você... — Ele pousou a taça. - Então me diga, Ana: este numetodo, Karl ci'Vliomani, lhe satisfaz como amante?

O choque da pergunta tão franca e direta assustou Ana. A taça bateu na porcelana e prataria quando ela pousou rápido. - O enviado e eu não somos amantes, kraljiki. - Ela engoliu em seco e fez um esforço para devolver o olhar desafiador e cheio de graça de Justi. — Se esse é o tipo de informação que o comandante ca'Rudka lhe fornece, então eu entendo por que os numetodos foram injustamente presos.

-Ah, o comandante é muito cauteloso e só me informa fatos verificáveis.

O dedo de Justi passou pela borda dourada da taça e o aro de metal tilintou.

Eu sei que você esteve com o enviado quando ele foi preso; sei que o visitou na Bastida. Eu fiz uma suposição natural.

Seria melhor para os Domínios se o kraljiki tomasse suas decisões não a partir de suposições, mas de conhecimento concreto.

Ana pensou por um momento que tinha ido longe demais. O rosto de Justi ficou sério e a testa alta enrugou-se debaixo do cabelo ralo. Então ele sorriu novamente. - Você está coberta de razão, Ana. Então me passe esse conhecimento. Você foi visitar ci'Vliomani sozinha, mais de uma vez. Se não são amantes de fato, então qual é o seu interesse no enviado, um interesse tão forte que fez com que viesse a mim para interceder por ele? — O kraljiki fez uma pausa, mas antes que Ana pudesse responder, ele ergueu uma mão. - Não importa, eu vejo em seu rosto. Existe "conhecimento concreto" nos rostos, se a pessoa souber onde olhar, Ana, e eu tive muita prática com isso ao longo dos anos e uma professora rigorosa na figura da matarh para me ensinar. Vocês podem não ser amantes, mas existe uma atração aí.

As palavras foram mais difíceis de dizer do que ela pensou que seriam.

Existe - admitiu Ana. — Mas atração não quer dizer que haverá algo mais.

"O amor raramente respeita a ordem da vida, mas o amor não é um pré-requisito para o casamento." Esse é um ditado da matarh. Ela tirava isso da manga sempre que mandava um dos sobrinhos ou sobrinhas se casar pelo bem de Nessântico. Usou comigo quando arranjou meu primeiro casamento.

Justi levantou-se da cadeira, que se arrastou pelo parquete. Ana observou o kraljiki dar a volta na mesa e parar atrás de sua cadeira. As mãos de Justi pegaram em seu pescoço, levantaram o cabelo e ele abaixou-se para sussurrar no ouvido. — A pessoa com quem eu casar tem que entender que não serei um marido fiel. Meu apetite é... grande, e apesar de eu certamente continuar a cumprir meu dever com minha esposa, também sei que ela não seria suficien­te para mim. Mas não sou um homem injusto. Eu também não esperaria fide­lidade da parte dela, caso encontrasse alento nos braços de outro. Desde que houvesse discrição suficiente para eu não passar vergonha. - Os dedos de Justi desceram pela gola frouxa do robe de téni para a nuca e depois para o declive dos seios. Ela prendeu a respiração com o toque, - Você me entende, Ana?

Ana encarou o assento vazio do kraljiki do outro lado da mesa sem pres­tar atenção. Ela notou que as mãos estavam crispadas, que prendeu a respi­ração, que queria fugir. Ele não é o seu vatarh. Você não tem que fazer isto. A escolha é sua desta vez, não dele.

Ela fez que sim em silêncio.

Ótimo - disse Justi. As mãos subiram e pegaram o rosto de Ana. Ela ficou surpresa com a maciez das mãos do kraljiki, que tinham cheiro de óleo de lavanda. Eu costumava adorar essa fragrância...

As mãos soltaram Ana e viraram a cadeira abruptamente. Justi levantou-a neste momento, com os olhos nos dela. Havia fogo no olhar, mas nenhum afeto. O beijo foi bruto e rápido, mas ela abriu a boca para a língua do kraljiki entrar enquanto ele dava um abraço em Ana para puxá-la. Ela sentiu o pelo da barba e do bigode espetar a pele. Ana afastou o rosto arfando, passou os próprios braços por ele e encostou a cabeça em seu ombro. Viu o quadro da kraljica Marguerite sobre a lareira; ela quase parecia olhar com aprovação para Ana. As mãos do kraljiki desceram pelas costas até as nádegas e apertaram Ana contra ele para que ela sentisse sua excitação.

É isto que você quer? Não houve resposta dentro dela.

Espero que eu não seja apenas um dever para você, Ana - falou Justi em seu ouvido. Ele soltou Ana e pegou sua mão. Ela seguiu o kraljiki e manteve os olhos no quadro em vez dele. O olhar da kraljica parecia acompanhá-la ao sair da sala para o quarto de dormir do outro lado.

Ana perguntou-se o que Renard estava pensando quando a acompanhou ao sair dos aposentos do kraljiki na manhã seguinte, bem depois da Primeira Chamada. Ele não disse nada ao andar alguns passos na frente dela, sem ja­mais olhar para trás. Renard guiou Ana pelos corredores dos fundos e por uma porta até os corredores mais públicos do palácio.

Justi saiu da cama bem mais cedo e deu um beijo por obrigação na testa de Ana. - O dever dos Domínios chama - disse ele. - Renard estará aqui para você em uma virada da ampulheta. Se quiser tomar o café da manhã aqui, diga para ele e Renard irá providenciar. Talvez eu mande buscar você mais tarde. - Ele parecia distraído, frio e distante.

Ana cobriu-se e observou o kraljiki sair e fechar a porta. Através dos painéis de madeira entalhada, ela ouviu criados entrarem no quarto de vestir para ajudá-lo.

A agitação normal do dia já começara, com os cortesãos reunidos perto da porta do salão de recepção e os ca' e co' que tinham compromissos no palá­cio chegavam à entrada principal em suas carruagens. - Eu tomei a liberdade de mandar que suas criadas enviassem uma carruagem para a senhorita - disse Renard ao parar perto das portas do salão. - Ela está lhe esperando agora.

Obrigada, Renard. Eu sei achar a saída sozinha.

Ele fez uma mesura com as mãos entrelaçadas na testa e foi embora. Ana respirou fundo, puxou o capuz do manto sobre a cabeça e começou a ir em direção à entrada principal e à multidão presente lá.

O'téni co'Seranta! - Ela ouviu seu nome ser chamado por uma voz feminina e viu Francesca ca'Cellibrecca acabando de sair do salão. Ela deixou uma aglomeração de cortesãos após se despedir e veio na direção de Ana. A mulher parecia avaliar Ana com o rosto ligeiramente inclinado.

Yajica ca'Cellibrecca - falou Ana ao levar as mãos entrelaçadas à testa. - Quero lhe dizer que sinto muito pela perda de seu marido.

Francesca dispensou o comentário com um gesto. Ela franziu os lábios antes de falar, como se estivesse reprimindo um pensamento. - É uma surpre­sa ver você aqui no palácio tão cedo. Não estava com o archigos no templo para a Primeira Chamada?

Normalmente eu estaria, vajica, mas o archigos me mandou aqui para entregar uma mensagem.

Ah... - Francesca sorriu. - A mensagem deve ter sido importante para ele ter a necessidade de fazer sua o'téni favorita de mensageira. - Ela parou. Cheirou o ar. - Lavanda. É uma fragrância requintada, não acha? - As sobran­celhas ficaram arqueadas ao perguntar.

Ana notou que ficou ruborizada e torceu que o capuz escondesse o rosto de maneira suficiente. - Realmente. Sinto muito, vajica, eu realmente preciso voltar. Tenho um condutor me esperando.

Ela começou a passar correndo pela mulher, mas ca'Cellibrecca esticou o mão e pegou o braço de Ana. Francesca enfiou os dedos em seu bíceps ao puxá-la para perto. - Você fodeu com ele, não foi, o'téni? - sussurrou ela, e a obscenidade crua fez com que Ana virasse o rosto de supetão para olhar feio para a mulher. — Sim, fodeu sim - ronronou Francesca com uma voz que soa­va estranhamente satisfeita. - Bem, eu também. Interessante. Bem, eu sabia que não seria a única a dividir a cama com ele. Eu imagino qual de nós ele prefere, o'téni?

Ana puxou o braço. Cortesãos, chevarittai e suplicantes olhavam fixamente para elas do fundo do saguão, os ca' e co' sussurravam e apontavam. - Eu não tenho nada para lhe dizer, vajica - falou Ana. — Você não sabe o que está dizendo.

Francesca riu, como se elas estivessem contando uma piada. - Ah, nós duas sabemos que sim, embora eu tenha que admitir que estou um pouco surpresa. Certamente não pode ser beleza o que ele vê em você, apenas a pos­sibilidade de ganhar poder. É só isso que ele quer de nós, afinal de contas; a vantagem que podemos dar para ele. O fato de que abrimos as pernas para ele como se fôssemos grandes horizontales é apenas uma vantagem extra.

Ana conteve um gritinho como se a mulher tivesse dado um tapa em sua cara. - Vajica, eu não vou ouvir essa grosseria. - Ela começou a ir embora, mas foi detida pela voz de Francesca, quase alta o suficiente para ser ouvida pelos demais que observavam as duas.

-Você fede a ele, o'téni. Eu sugeriria um banho demorado e um perfume forte. É o que eu faço depois. E se já não tomou precauções, eu recomendaria uma boa parteira com poções para que possa tomar e evitar... conseqüências.

Ana ficou meio de lado para ela. — Não temos mais nada a dizer uma para a outra, vajica. Cansei dessa conversa.

Então ouça isso como uma despedida: eu não serei substituída por você, o'téni. Não serei.

Ninguém quer substituir uma pilha de estrume, vajica. A pessoa só quer se livrar dela o mais rápido possível. - Francesca arregalou os olhos en­quanto Ana fez o sinal de Cénzi mais uma vez e foi embora.

Eu vou encontrar o kraljiki e meu vatarh depois do almoço, o'téni co'Seranta — falou Francesca quando Ana deu as costas, alto agora, para que fosse ouvida claramente por todos no salão. - Farei questão de mencionar para ele que você e eu tivemos uma conversa absolutamente agradável.

Ana ignorou Francesca e continuou a andar em direção às portas abertas do palácio. Sentiu os olhares dos cortesãos e as especulações sussurradas às costas enquanto se encaminhava para a carruagem.

 

O MENSAGEIRO - um batedor, um e'offízier chamado ci'Baden - estava sujo de lama e exausto. Ele ficou grato por beber do garrafão de água que recebeu de Jan, mas se recusou a se sentar no banco que foi oferecido. — Meu hirzg, eu vim o mais rápido que pude. Avistei um pelotão da Garde Civile. Eles estão dentro de nossas fronteiras e vindo em nossa direção. São trinta nomens; também tem um único téni-guerreiro com eles e vários pombos-correios em jaulas.

Eles estavam do lado de fora da tenda de Jan, sob o sol do início da manhã. Jan olhou para Markell e o starkkapitän ca'Staunton; Allesandra estava sentada no banco da mesa de campanha do hirzg e prestava atenção quieta com o tutor Georgi, o o'offizier ci'Arndt, ao lado. O exército estava acampado em um vale íngreme de pastoreio. Carneiros e cabras perambulavam pelas en­costas e pastavam na urze. À volta, os homens desmanchavam as tendas como preparativo para o dia de marcha. - Você sabe onde eles estão agora?

O batedor fez que sim ao beber a água. - Eu posso achá-los facilmente outra vez; o pelotão está a menos de uma manhã de cavalgada agora, seguindo a estrada Clario.

— Ótimo. Vá e coma alguma coisa. O starkkapitän lhe dará um novo cavalo e uma tropa de dez homens para partir o quanto antes. E'offizier ci'Baden, eu quero que você encontre aquele pelotão da Garde Civile. Você vai levar o estandarte da Terceira Chevarittai e usar a armadura com nossas co­res proeminentes. Deixe que vejam você e o estandarte. Não faça contato com eles e não chegue perto o suficiente a ponto de ser alcançado pelos feitiços do téni-guerreiro. Assim que você souber que foi visto, volte aqui como se tivesse ficado assustado ao vê-los e estivesse voltando correndo para relatar; mas não tão rápido que eles não consigam seguir, nem tão devagar que percebam que estão sendo atraídos. Vê aquela colina lá? - Jan apontou para uma pequena elevação no vale, com um grupo de carvalhos no cume. Ci'Baden fez que sim. - Vou esperar por você ali. Consegue fazer isso?

Ci'Baden fez uma reverência para Jan, que respondeu com um aceno de cabeça por obrigação. - Traga-os por volta do anoitecer, e'offizier. - Ci'Baden fez uma reverência novamente e saiu correndo enquanto Jan voltava-se para ca'Staunton. - Starkkapitãn, leve o exército por aquela garganta em marcha acelerada e espere. Deixe aqui comigo uma companhia de homens, assim como o u'téni co'Kohnle e mais dois ténis-guerreiros. Isso deve ser mais do que o suficiente.

Allesandra cutucou a manga da bashta de Jan. - Eu quero ficar com o senhor, vatarh. Quero ver.

Não - falou Jan com firmeza. - Você irá com o starkkapitän. O o'offizier ci'Arndt irá lhe acompanhar para que continue estudando. - Ao olhar para ci'Arndt, o hirzg viu a decepção claramente estampada no rosto do homem. - Tem algum problema, o'offizier? Pode falar abertamente.

Meu hirzg, eu preferia estar com o senhor, onde minha espada pode ajudar - disse ci'Arndt. Jan viu o rosto de Allesandra ficar radiante ao ouvir isso.

E eu também, vatarh - falou ela.

A ansiedade da filha momentaneamente dissolveu a irritação de Jan; a reação fez com que se lembrasse de como reagiu quando o próprio vatarh o deixou para trás para ir à guerra. Jan não queria mais nada a não ser estar com ele... - Haverá ocasião e oportunidade para você, o'offizier — respon­deu para ci'Arndt. - Prometo. Por enquanto, leve a a'hirzg até a encosta da garganta para que ela consiga ver o vale. Fique com ela e responda às suas perguntas.

O o'offizier ci'Arndt prestou continência, Allesandra fez beicinho. O starkkapitãn ca'Staunton mudou de posição, sua cota de malha fez barulho. - Meu hirzg, eu preferia que o senhor permitisse que eu deixasse um dos meus a'offiziers no comando aqui. O senhor deve ficar com o exército, onde possa estar protegido.

O choramingo de ca'Staunton reacendeu a irritação de Jan. - Você não acha que sou competente suficiente para estar no comando, starkkapitän?

O rosto de ca'Staunton ficou pálido. - Não, meu hirzg, é claro que não. Eu apenas...

Jan interrompeu o homem com um gesto cortante no ar fresco e disparou - Você fará o que eu ordenei, starkkapitän. Sugiro que verifique que essas ordens sejam cumpridas. Agora.

Ca'Staunton parecia que ia reclamar mais. Ele franziu os olhos e apertou os dedos no punho cravejado de jóias da espada da patente. Então fez uma mesura tão curta para Jan quanto a educação permitia e foi embora. O hirzg ouviu-o vociferar ordens enquanto andava.

Os offiziers do starkkapitän vão ficar insatisfeitos - comentou Markell. - CaStaunton vai descontar a frustração neles. Parece que o kraljiki ouviu rumores de seu avanço.

Provavelmente foi minha querida esposa que mandou o aviso para o kraljiki - respondeu Jan. — E se eu descobrir que esse foi o caso, não vou precisar de uma anulação do archigos para me livrar dela. - Markell rolou os olhos na direção de Allesandra, e Jan suspirou. - Allesandra, talvez seja melhor você ir embora...

Eu também não gosto da matarh, vatarh. Já disse para o senhor, eu gosto mais de Mara.

Jan teria rido em outra ocasião. Em vez disso, ele fez uma cara feia e falou em tom severo com a filha - Vá. E, desta vez, sem ficar escutando. O'offizier ci'Arndt, se puder ir com ela...

Allesandra suspirou dramaticamente. Ela pulou do banco e saiu da tenda seguida por ci'Arndt. O rosto de Markell não mudou de expressão, mas pelo jeito com que seus ombros estavam recolhidos, Jan soube que o homem estava pensando, assim como ele, na arrogância insultante do kraljiki em mandar tropas além da fronteira de Firenzcia. - Eu farei minha própria investigação em relação à hirzgin e voltarei com a informação para o senhor - disse Markell. - O téni da equipe do palácio em Brezno pode ter alguma coisa para nos contar. Mas se o kraljiki mandou a Garde Civile para verificar rumores de nosso avanço, o silêncio de um de seus offiziers não será uma confirmação? Os pombos-correios indicam que ele espera relatórios regulares.

Na hora em que o silêncio for crucial, nós estaremos na Avi a'Firenzcia e quase sendo vistos da cidade. Ele não terá tempo para reagir. Além disso, Markell, quem disse que esse offizier não irá levar a informação ao kraljiki como tem que ser? - Jan riu e deu um tapinha nas costas do homem magro.

É um belo dia, creio eu, para a primeira batalha desta guerra...

O sol havia descido quase ao topo da cadeia de montanhas a oeste quando Jan viu os cavaleiros: primeiro os animais a galope do pequeno grupo de ci'Baden que rasgavam a terra fofa do vale enquanto o estandarte de Firenzcia tremulava nas mãos do cavaleiro da dianteira. Atrás deles, a mais ou menos um quilômetro, o pelotão da Garde Civile, com as cotas de malha cobertas pelo azul e dourado de Nessântico, cavalgava vale adentro rapidamente, porém com mais cautela. Ci'Baden fez sua tropa subir estron­dosamente a pequena elevação até o topo da colina onde Jan, Markell e u'téni co'Kohnle esperavam nos próprios cavalos. Jan estava vestido em sua armadura de batalha: a couraça gravada com filigranas de prata e coberta com o branco e vermelho de Firenzcia. Ele usava uma coroa fina de ouro.

Meu hirzg - disse ci'Baden ofegante ao prestar continência e debruçar-se sobre a sela. - Eles estão vindo.

Como prometido - falou Jan. - Bom trabalho, e'offizier; você será recompensado por isso, prometo. Agora, se você e seus homens ficarem ao meu lado... - Os soldados viraram os cavalos e esperaram na colina, as narinas dos animais bufaram nuvens de respiração quente enquanto observavam a aproximação dos intrusos.

Eles não estavam a mais de 400 metros agora. Jan notou que o offizier no comando estava preocupado. Ele fez um sinal para seus homens para­rem e olhou para Jan na colina e para as laterais do vale em volta. Jan viu o offizier conversar rapidamente com os soldados, e dois cavalos viraram e voltaram correndo pelo caminho de onde vieram. Eles não tinham avançado mais do que 100 metros quando uma saraivada de flechas de um arvoredo

Dróximo abateu os cavaleiros e as montarias. Do alto da colina, Jan ouviu o grito de um dos cavalos machucados até que uma segunda saraivada inter­rompeu o som.

Os cavaleiros também se viraram diante do grito e agora sacaram as armas, enquanto os soldados que Jan colocara em volta do vale saíram dos abrigos. Jan mandou o cavalo descer a colina trotando e foi seguido pelos demais.

O téni-guerreiro começou a entoar, mas já era tarde demais: co'Kohnle dera início ao próprio feitiço assim que Jan começara a andar e agora o lançou. O chão explodiu debaixo do téni, um chafariz de rocha e terra que jogou o homem no ar, quebrado e gritando. Ele caiu de volta com força e derrubou meia dúzia dos cavaleiros ao seu lado. Uma das jaulas dos pombos-correios quebrou-se e abriu com o impacto. Um trio de pom­bos brancos e castanhos sobrevoou o massacre; os arqueiros rapidamente abateram as aves. O offizier vociferou ordens, mas a voz de Jan saiu bem mais alta.

Chega! Abaixem as armas! Rendam-se e ninguém do resto de vocês precisa morrer.

Rendição? - perguntou o offizier com uma voz que parecia fraca comparada à de Jan. Ele sangrava por causa de uma das rochas arrancadas do chão, escorria sangue da lateral do rosto para o pescoço. - Então Firenzcia está em guerra com os Domínios?

Eu diria que parece que Nessântico está em guerra com Firenzcia - respondeu Jan. - O kraljiki manda a Garde Civile para o meu país, contra as leis dos Domínios e de Firenzcia. Eu sou o hirzg Jan ca'Vörl e mando aqui. Abaixem as armas. Vocês foram enviados em uma missão inútil e não têm chance aqui. Nenhuma.

Ele notou que o homem hesitava e olhava ao redor enquanto os soldados de Jan chegavam perto. Com uma cara de indignação, o offizier jogou a arma no chão. - Abaixem as armas e desmontem! - rosnou ele para os homens — Obedeçam!

O aço bateu na grama conforme os homens desciam dos cavalos. Jan ergueu a mão; co'Kohnle parou de conjurar um novo feitiço. Markell gesticu­lou para os homens da infantaria recolherem as armas rendidas, pegarem os pássaros enjaulados e levarem os cavalos embora. Outros soldados amarraram as mãos dos cativos. - Isso foi prudente — disse Jan. Agora ele estava próximo o suficiente para ver as faixas da patente do homem nos ombros. - Diga-me, o'offizier, quem mandou você aqui e quais eram suas ordens? O que você estava procurando?

A ordem veio do meu a offizier - respondeu o homem. - Quem deu a ordem para ele, eu não sei. Quanto ao que nós procurávamos... - O o'offizier limpou o sangue no rosto. - Parece que nós encontramos.

Jan torceu o nariz. - Acharam mesmo. - Ele virou-se para ci'Baden. — Deixo você no comando. Esses homens são espiões que invadiram Firenzcia contra nossas leis, as leis dos Domínios e a lei da Divolonté. Execute-os.

A cara de ci'Baden ficou pálida, mas ele prestou continência. O o'offizier de Nessântico gritou para o hirzg, soltou-se do soldado que amarrou suas mãos e avançou contra Jan. Ci'Baden pulou da sela e empurrou o homem de volta enquanto o o'offizier disparou injúrias contra Jan. - Não! Você não pode fazer isso! É isso que vale a palavra do hirzg? O kraljiki vai enfiar sua cabeça em uma lança na Pontica Kralji. Você é um covarde sem colhão e um mentiroso!

Ci'Baden deu um passo à frente e bateu com o punho da espada na cara do offizier. Jan ouviu dentes e ossos quebrarem enquanto o homem desmoronava.

Execute-os - repetiu Jan para ci'Baden. - Como mandam as leis. Todos menos o o'offizier; precisaremos dele vivo por um tempo. Markell, nós nos juntaremos novamente ao starkkapitän e à a'hirzg, e talvez mandemos um pombo para Nessântico. - Ele virou o cavalo e afastou-se ao som dos gritos e xingamentos dos cativos de Nessântico.

 

- ANA!

Ana virou-se, assustada com o som da voz e o uso íntimo demais de seu nome. Notou Mahri agachado na esquina do prédio. O mendigo em trapos chamava Ana. - Como você ousa se dirigir a mim de tal maneira? - disparou a'téni para ele. - Saia daqui agora ou chamo um utilino e mando lhe prender.

Ela virou-se rapidamente para sair correndo.

Por favor - implorou a voz rouca. O rosto caolho e arruinado olhou em volta da praça cheia, como se estivesse prestes a fugir caso fosse notado.

Tenho novidades para você. Do ci'Vliomani.

Ana hesitou. Ela estava saindo da missa da Segunda Chamada e corria para seus aposentos a fim de se trocar antes de encontrar com o kraljiki nova­mente. Havia muita gente na praça; se gritasse, as pessoas correriam para ela. Ana mordeu o lábio sem saber o que fazer, depois foi até ele e seguiu-o por alguns passos entre a lateral do templo e a sacristia ao lado. - Fale depressa - exigiu. - Eu não tenho muito tempo. O que tem o enviado ci'Vliomani?

Mahri respirou com dificuldade. Ele bateu com o dedo no peito. — Eu... - Parou e engoliu em seco. - Eu não sou Mahri. Sou Karl. Sou Karl, Ana.

Ana não conseguiu evitar o riso de descrença. - Eu não sei qual é o seu jogo aqui, mas não farei parte dele. Tenha um bom dia.

Não! - disparou Mahri. - Ouça. Você me visitou na cela na Bastida. O comandante ca'Rudka trouxe você. Ele algemou nossas mãos juntas. Você me disse que perdeu a habilidade de usar o Scáth Cumhacht, o Ilmodo. Disse que perdeu a fé...

Como você sabe disso? — A suspeita fez com que Ana franzisse os olhos. - Você tem espiões na Bastida ou sabe usar o Ilmodo...

Ele sabe, realmente. E mais do que você pensa. Mahri mandou a presença dele até minha cela, de alguma forma, e trocou nossos lugares. É ele que está no meu corpo, Ana, sentado na cela. E eu estou preso nesse corpo.

Ana balançou a cabeça. — Ninguém pode fazer isso. Não existe feitiço que permita tal coisa. O próprio Cénzi não permitiria...

Eu teria dito praticamente a mesma coisa há alguns dias. Mas é a verdade. Eu posso provar para você.

Como? - A insistência dele prendeu Ana ali, enquanto o bom-senso gritava para que ela fosse embora, para se recusar a acreditar nisso, para parar de dar ouvidos ao que só podia ser tolices de um louco.

Vá até a Bastida. Peça ao comandante para me ver... vê-lo... novamente. Olhe para a pessoa no corpo que antes foi meu e pergunte a ele se é verdade.

Ana já estava fazendo que não. Ela começou a se afastar do mendigo, e o pingente que o archigos deu balançou na corrente. - Eu lhe dei uma concha de pedra - disse Mahri. - Você parou de usá-la? - Ana colocou a mão no glo­bo partido e cravejado de jóias que o archigos lhe dera. Ela deu um passo para trás. - Sou eu, Ana - insistiu Mahri.

Ela recuou novamente. O mendigo começou a persegui-la, mas Ana fez uma cara feia e isso pareceu detê-lo. - O que você quer de mim? O que procura?

Quero que venha comigo aos aposentos de Mahri no Velho Distrito.

Isso não vai acontecer.

Ele queria que eu lhe ensinasse a usar o Ilmodo novamente. Eu posso começar o processo. E tem coisas lá que você deveria ver. Que ambos preci­samos ver.

Você não é Karl. Eu não acredito nisso. - Não pode ser verdade. Não quero que seja verdade. E ela sabia que não era apenas pelo horror de pensar em Karl preso no corpo de Mahri. Era porque isso significava que o sacrifício de seu corpo para o kraljiki foi desnecessário.

É a verdade, de qualquer maneira. Mas caso você acredite ou não, eu ainda posso ajudar. Deixe-me tentar, Ana. Por favor.

A recusa forçou mais um passo para trás. Ana estava na esquina do prédio, com uma mão na quina de mármore. Sentiu a luz do sol nas costas. Mais um passo e poderia correr. - Rua a'Jeunesse, 12 - disse Mahri. - Eu estarei lá. Hoje à noite.

Hoje à noite, não. É impossível.

Então amanhã à noite - insistiu ele. - Ana, é muito importante.

Ela não respondeu. Deu outro passo para trás, depois se virou e saiu correndo. Ana não olhou para trás a fim de ver se estava sendo perseguida por ele, não até estar a salvo na multidão da praça. Quando olhou, não viu sinal dele.

Em seus aposentos, Ana deixou que Watha e Sunna a ajudassem a vestir um robe de gala e penteassem e ajeitassem o cabelo. Ela tentou não pensar em Mahri ou Karl enquanto as criadas se agitavam ao arrumá-la, quando Beida entrou para anunciar que a carruagem do kraljiki tinha chegado, enquanto foi levada novamente pela Pontica a'Brezi Nippoli ao palácio na Ilha A'Kralji, conforme foi conduzida por Renard pelos corredores dos fundos até os apo­sentos do kraljiki.

Ana foi ao kraljiki e beijou-o, como sabia que ele esperava. Justi deixou claro que queria que suas amantes fossem prontamente afetuosas entre quatro paredes, que ele não fingia ter decência e não esperava por isso da parte delas. Havia um cheiro leve e intenso em volta dele, e a resposta do kraljiki foi um mero toque automático dos lábios. - Tem algo errado, Justi? - perguntou Ana. Francesca foi sua suspeita imediata. Ela fez alguma coisa, disse algo... .Ana estava esperando por isso. Após o encontro com Francesca fora do salão de recepção, ela sabia que a vajica não abriria mão facilmente do relaciona­mento com Justi, e esse não era um assunto que poderia ser abordado com ele. Não com segurança. A presença de Francesca fez parte do pano de fundo de todas as conversas entre eles desde então, mas Justi jamais a mencionava diretamente.

Mas Justi colocou os dedos nas têmporas e fechou os olhos, e Ana percebeu que sentia o cheiro de cravo-da-índia. - Você está com dor de cabeça?

Uma horrível dor de cabeça. Parece que um ferreiro está batendo o malho dentro do meu crânio. Não consigo me livrar dela, e as poções do curandeiro foram piores que inúteis. Sinto muito, Ana.

Não fique assim. Aqui, sente-se e deixe-me massagear suas têmporas. Eu fazia isso com a minha matarh quando ela tinha dor de cabeça, e ela fazia o mesmo por mim.

Justi deixou que Ana o conduzisse até uma das cadeiras do aposento, e ela ficou atrás dele massageando a testa e o cocoruto. Ana esperava que o kraljiki estivesse tenso, mas ele parecia relaxado e à vontade.

Você não está entoando - disse Justi após alguns momentos.

Ela parou. — Kraljiki?

Ana, você e o archigos visitaram minha matarh todas as noites após o Gschnas. Você a manteve viva quando ela deveria ter morrido imediatamente após ci'Recroix ter cometido aquele ato desprezível. Você, não o archigos. A matarh falou um dia que você tinha o "toque da cura", e ambos sabemos o que ela realmente quis dizer com isso.

Kraljiki, a Divolonté... - começou Ana. Suas mãos caíram ao lado do corpo, e Justi virou-se na cadeira para encará-la.

Eu sei o que a Divolonté diz. Também sei que o archigos às vezes faz vista grossa quando um téni usa este poder. Não tem ninguém aqui além de nós dois, Ana. Quem ficaria sabendo?

Ela tremeu. Olhou para o chão ao invés de encará-lo. O estômago ardia. As paredes do aposento pareciam próximas demais e fechavam-se em uma armadilha. - Eu não posso...

O kraljiki ergueu as sobrancelhas, o queixo que já era proeminente foi ainda mais para a frente. - Você recusaria isso para mim?

Você não pode recusar. Tem que tentar... — Não, Justi... Mas... estou tão cansada, e não sei...

Tente - falou ele, uma única palavra que ardeu nos ouvidos de Ana. O kraljiki virou-se novamente e recostou-se na cadeira, obviamente esperava que ela obedecesse.

Ana respirou fundo. Fechou os olhos. Cénzi, eu rezo para que o Senhor me ajude agora. Por favor. Não posso fazer isso sem o Senhor. Eu sei... Ela falou a prece calmante e preparatória que o u'téni co'Dosteau ensinou há tanto tempo, deixou que as frases abrissem a mente para o Ilmodo. Ana sentiu a energia pulsar em volta depois que terminou a prece, mas o Ilmodo pareceu estar exatamente fora do alcance do toque da mente, quase ria de Ana com sua proximidade. Ela ignorou a sensação crescente de fracasso, a impressão de que foi abandonada por Cénzi por causa do interesse nos numetodos. Ana rermitiu-se encontrar as palavras de cura, as sílabas em palavras que ela não conhecia, e as mãos moveram-se enquanto entoava, seguiram o caminho exi­bido pelas palavras que lançavam o feitiço. O Ilmodo contorceu-se e agitou-se em volta de Ana, porém continuava a fugir do alcance. Ela começou a entoar novamente, quase soluçou pela frustração. Cénzi, eu Lhe imploro. Desculpe por meus fracassos. Sou fraca e peço ao Senhor que perdoe minha fraqueza e torne-me seu instrumento novamente...

O Ilmodo deu outra volta por ela, e desta vez Ana sentiu o frio choque do contato. Ela gemeu de alívio e pegou o Ilmodo com a mente antes que ele pudesse ir embora dançando novamente. As palavras e as mãos molda­ram o poder. Ana pegou o Dom e moveu sua consciência para o homem diante de si, colocou as mãos na cabeça dele novamente e deixou-se cair dentro de Justi, procurou pela dor nele, ficou a postos para soltar o Ilmodo e apagá-la...

Obrigada, Cénzi.

... e não sentiu nada. Não havia dor na cabeça de Justi. Nenhuma agonia latejando nas têmporas ou no pescoço. Ana andou pelo corpo dele, a procura... Havia uma rigidez incômoda nos joelhos e na região lombar pelos anos de uso intenso na sela e na arena de esgrima e uma aglomeração de tecido de cicatrização na lateral do corpo, por conta dos ferimentos que recebeu em uma das campanhas da Garde Civile. Mais nada. O Ilmodo ardia dentro dela, Ana não conseguia mais contê-lo, então soltou a energia: nos joelhos, na espinha, nas cicatrizes. Conforme o Ilmodo fluía de Ana, ela ofegou e desmoronou no chão, exausta.

Ele não tem dor de cabeça... Cénzi, o que foi que eu fiz?

Ana mais sentiu do que viu as mãos de Justi em volta dela, estava fraca demais para resistir quando foi levantada por ele, levada ao quarto e deitada ali. - Obrigado, Ana. Estou me sentindo muito melhor agora...

 

BEM, EU ESTAVA CERTA, Justi? - perguntou Francesca. - A putinha do archigos agiu como eu disse?

Justi considerou mentir para ela, apenas para ver como responderia, mas pegou um dos seios na mão e beijou a pele macia dali. - Foi como você disse - respondeu Justi. - Ela usou o Ilmodo contra as leis da Divolonté. - Ele viu Francesca tentar esconder um sorriso convencido e feliz, mas ela não conse­guiu. Francesca é implacável, porém previsível. Essas eram, na opinião de Justi, boas qualidades para a esposa de um kraljiki.

É como meu vatarh disse - Francesca corrigiu-o com delicadeza.

Aquela vadia e o archigos usam o Ilmodo contra a Divolonté. Ambos me­recem ser expulsos da fé concénziana. Ambos merecem o destino que você também deve dar aos numetodos que estão na Bastida. Sabe que é por isso que ela se entregou para você: para salvar seu amante numetodo. Ela não é nada mais do que uma rampeira.

E por que você me deu o seu corpo quando já era casada? Ele brincou com a idéia de fazer essa pergunta para Francesca, apenas pela graça de ver a reação. Em vez disso, franziu os lábios como se estivesse matutando. - Pode ser, mas confesso que após os cuidados de Ana eu me sinto melhor do que já estive nos últimos anos. Entendo por que a matarh pensou que ela seria um bom partido para mim.

Como Justi sabia que aconteceria, isso fez sumir o sorriso dos lábios pintados de Francesca. As pequenas rugas no canto dos olhos aumentaram quando Francesca apertou a vista e franziu a boca. Aí ela pareceu perceber a transparência de suas emoções e passou a mão pelo peito de Justi até abaixo da cintura. Deu uma alisada enquanto se aninhava ao lado dele na cama. - Eu sou um partido melhor para você, Justi - disse ela faceira. - Posso provar para você novamente, se quiser.

Tenho certeza de que pode - falou Justi ao beijá-la. Ele começou a se mover para cima de Francesca, mas um sino tocou baixinho na outra sala e ambos suspiraram.

Não vá - suspirou ela enquanto abraçava Justi com mais força.

Renard sabe que não deve me interromper sem uma boa razão. Isto pode esperar. - Relutantemente, ele rolou da cama e colocou um roupão e chinelos. Foi para a outra sala e fechou a porta. Justi sentou-se na cadeira mais perto da lareira e serviu-se de vinho do garrafão na mesinha lateral. Tomou um longo gole. - Entre.

A porta foi aberta e Renard entrou depressa. - Minhas desculpas pela intrusão, kraljiki, mas o senhor pediu que eu viesse se houvesse notícias de Firenzcia. Um dos pombos-correios veio há meia virada da ampulheta. Isto estava preso à pata. — Renard ofereceu um rolo de papel para Justi.

A mensagem era uma das frases que Justi, Renard e Sergei combinaram. Há um sol brilhando em Firenzcia. - Então não há ameaça do exército do hirzg - falou Justi. Ele achou a notícia quase decepcionante.

Exceto que existe uma palavra adicional de verificação que o comandante ca'Rudka mandou anexar à mensagem. Essa palavra está faltando. E o comandante mandou o o'offizier ce'Kalti escrever todas as frases antes de partir para que ele pudesse compará-las com a letra de qualquer mensagem que recebesse. De acordo com o comandante, isso não foi escrito pela mão do o'offizier ce'Kalti.

-Talvez ce'Kalti tenha sofrido um acidente ou mandado o treinador dos pombos escrever a mensagem.

Ou talvez essa não seja uma mensagem genuína ou alguma outra pessoa que não seja ce'Kalti foi responsável por ela e quer nos enganar.

Ahh... - Justi recostou-se e olhou novamente para o pergaminho.

Interessante, não é, que o a'téni ca'Cellibrecca tenha insistido tanto que não mandássemos a Garde Civile para Firenzcia. Ele falou que estava convencido de que o hirzg não seria tão tolo a ponto de trazer o exército a um dia de mar­cha da fronteira.

Justi ouviu o clique da porta do quarto e viu Francesca entrar de pés descalços na sala, vestida com outro de seus roupões.

O vatarh conhece o hirzg melhor do que ninguém em Nessântico - disse ela. - Brezno é responsabilidade dele, afinal de contas, e ele e o hirzg conversam freqüentemente. Eu acho que a opinião do vatarh merece muita atenção. Sempre. — Renard agiu como se a presença de Francesca fosse total­mente previsível e reagiu como se ela estivesse vestida com os trajes elegantes de uma vajica em vez de um dos robes de Justi.

A opinião do a'téni realmente é valiosa, vajica ca'Cellibrecca - respondeu Renard, embora Justi tenha notado que o homem manteve o olhar no pergaminho em sua mão em vez de Francesca. - Mas o hirzg é famoso por suas decisões precipitadas. Olhe o que ele fez na guerra com Tennshah. Sem a provocação do hirzg, a guerra poderia ter acabado com as negociações da kraljica em Jablunkov.

O hirzg cooperou com meu vatarh no passado - insistiu Francesca. - Ele dá ouvidos ao vatarh, quase como se ele fosse o archigos. - Ela colocou-se atrás da cadeira de Justi e pousou uma mão no ombro dele, em um gesto possessivo.

Verdade, vajica — disse Renard. Ele olhou para Francesca agora. - A kraljica conhecia bem o relacionamento entre o hirzg e seu vatarh. E suas conseqüências.

Justi sentiu a mão de Francesca apertar seu ombro com raiva. Ele levantou-se da cadeira antes que ela pudesse abrir a boca. - Eu quero falar com o comandante ca'Rudka em uma virada da ampulheta, Renard. Por fa­vor, faça com que ele esteja aqui. - Ele apontou para o pergaminho mais uma vez. - E obrigado por ter trazido isso para mim tão depressa. - Renard fez uma mesura para Justi, depois fez outra bem mais curta para Francesca. Ele foi rápido até as portas e saiu.

A insolência daquele homem é insuportável — sibilou Francesca antes que as portas tivessem sido fechadas completamente. - Ele era o criado da kraljica, não o seu. Você deveria se livrar dele.

Ele era indispensável para a minha matarh e, por enquanto, para mim. Então eu preferia que você evitasse fazer de Renard um inimigo, minha cara. Ele seria um inimigo muito ruim, creio eu; Renard está aqui há tempo sufi­ciente para conhecer todos os esqueletos nos armários e saber quem os colo­cou lá. Seria prudente da sua parte lembrar-se disso.

Justi notou o esforço de Francesca para afastar a raiva enquanto bebia o resto do vinho. Ele pousou o pergaminho sobre a mesa. - Eu torço para que reu vatarh esteja certo quanto ao hirzg. Se não estiver, então contarei com o ipoio dele contra o hirzg e contra seu país.

Meu vatarh apoiaria seu genro incondicionalmente. E seu genro me caria o que eu peço. Também incondicionalmente.

Sua falta de sutileza é extraordinária, Francesca.

E? — perguntou ela. Francesca sorriu. Abriu o robe e deixou que caísse dos ombros para o chão. Os dedos roçaram os pelos entre as pernas. — Você realmente acha?

Ele riu. - Uma falta de sutileza muito charmosa - disse Justi, que depois foi até ela.

 

A DECISÃO DO KRALJIKI incomodava Sergei, mas o homem estava inflexível. "Por falar nisso, comandante" dissera o kraljiki no fim da reunião, quase como se fosse algo que não havia pensado antes. "Eu acho que precisamos de­monstrar para os Domínios, e para Firenzcia, como iremos encarar com seriedade as ameaças à nossa segurança. Os numetodos têm que confessar seu papel no assas­sinato da kraljica Marguerite. Aqueles que se encontram agora na Bastida, mesmo que não estejam diretamente envolvidos, têm que receber o castigo adequado de acordo com a Divolonté para evitar que voltem a abusar do Ilmodo algum dia. Os líderes, começando pelo enviado ci'Vliomani, serão preparados para execução pública. Amanhã. "O a'téni ca'Cellibrecca, sentado à mesa com Sergei e o kral­jiki, concordou com a cabeça, e era óbvio que nenhum argumento que Sergei apressentasse iria mudar a ordem.

Sergei perguntou-se por que o a'téni ca'Cellibrecca fora convidado para a reunião, e não o archigos. Ele também tinha o bom senso de saber que não devia perguntar.

"Farei o que kraljiki ordenar" dissera Sergei ao esfregar o metal luzidio do nariz, "mas é meu dever como comandante lembrar ao kraljiki que os nume­todos não são uma ameaça a ninguém enquanto estiverem na Bastida. Parece bem mais importante que nossa atenção continue voltada para a ameaça bem real do hirzg".

Mas o kraljiki, com ca'Cellibrecca concordando enfaticamente atrás dele, insistiu que não havia ameaça de Firenzcia, e era óbvio que o kraljiki já tinha tomado sua decisão. As objeções de Sergei não foram a lugar algum. Ele sabia que também era dever do comandante da Garde Kralji cumprir as ordens sem hesitação ou mudanças de idéia assim que a decisão era tomada.

Ele cumpriria as ordens, mas falaria com ci'Vliomani primeiro, para que o homem soubesse o que enfrentaria e pudesse se preparar. Sergei entrou na Bastida com passos largos, saudou os gardai ali, ergueu os olhos para a sinistra cabeça de dragão, e entrou no gabinete do capitão ci'Doulor.

Capitão, vim visitar o prisioneiro ci'Vliomani.

Sergei parou no meio da frase. O capitão ci'Doulor ficou pálido com a declaração do comandante. A mão pegou uma folha de papel sobre a mesa, amassou e virou o pote de nanquim que estava na ponta. O homem pareceu não notar a bagunça. - Comandante ca'Rudka — gaguejou o capitão. - O senhor deve saber...

Saber o quê, capitão?

O homem arregalou os olhos. A boca ficou escancarada como a de uma carpa do rio. - Eu estava escrevendo uma mensagem urgente para o senhor neste momento. Há apenas uma virada da ampulheta, enquanto o senhor esteve no palácio... o prisioneiro... o numetodo...

Sergei não queria ouvir mais nada. O comandante deu meia-volta e saiu correndo do gabinete do capitão, com ci'Doulor em sua cola. Ele cruzou o Dátio sob o olhar feio do dragão de pedra e entrou na torre, subiu dois de­graus de cada vez da antiga escada de pedra em espiral. Havia um garda no patamar da cela de ci'Vliomani, mas a porta estava aberta. Havia manchas le sangue nos ombros do garda. Muito ofegante por causa da subida, Sergei entrou na cela e deu uma volta.

A cela estava vazia.

Ele ouviu a entrada ofegante de ci'Doulor alguns momentos depois.

Onde está ele? - disparou Sergei com raiva, e a pergunta pareceu atingir ci'Doulor como um soco. O capitão balançou a cabeça como se negasse a realidade do que Sergei via ali. O garda, com o rosto virado, encostou-se na parede do patamar.

Não sei como explicar, comandante.

Eu sugiro que tente, capitão. Sugiro que se esforce muito e imediatamente.

Em vez de responder, o olhar do capitão ci'Doulor foi de Sergei para o garda. Sergei acompanhou o movimento. — Você! - disparou o comandante.

Diga-me o que aconteceu aqui.

O homem prestou continência e entrou na cela. Ele ficou em posição de sentido diante de Sergei. Os olhos estavam mais focados no nariz de prata do comandante do que em seu olhar. - O prisioneiro não comeu por dois dias, comandante. Não desde a noite que encontramos o e'offizier ce'Naddia inconsciente em seu posto.

Sergei franziu a testa. - O quê? Não me contaram isso. O capitão ci'Doulor estava ciente do ocorrido?

O homem fez que sim. — Nós contamos para ele, senhor.

Ce'Naddia dormiu em seu posto, comandante - disse ci'Doulor. - Apenas isso. Ele foi severamente disciplinado.

Sergei acenou com a cabeça. - Sem dúvida. Você disse que ci'Vliomani não estava comendo? - perguntou ele para o garda.

Não, senhor, não comia desde aquela noite. O prisioneiro só ficava sen­tado na cama, de olhos fechados. Não respondia a nenhuma pergunta ou rea­gia se... bem, se a gente tentasse fazer com que reagisse. Ficou dois dias assim.

O que aconteceu hoje à noite?

O garda olhou de relance para o capitão, como se esperasse que ele respondesse. O homem respirou fundo e continuou - Há uma virada da ampulheta, eu notei que estava frio aqui, tão frio como se fosse pleno inverno. Meus dentes batiam, senhor, e eu mal conseguia segurar a espada quando saquei. Eu vi ci'Vliomani no meio da cela, e tinha um vento girando ao redor dele e um brilho por toda parte. Eu berrei para os gardai lá embaixo chamarem o capitão, e quando ele veio...

Sergei olhou para a insígnia no uniforme do homem.

Qual é o seu nome, e'offizier?

Aubri ce'Ulcai, comandante.

E'offizier ce'Ulcai, quanto tempo o capitão ci'Doulor levou para chegar? - perguntou Sergei ao garda.

Ce'Ulcai deu uma olhadela de rabo de olho para o capitão. - Tenho certeza que ele veio o mais rápido possível, comandante.

Não foi isso que eu perguntei.

O homem franziu a boca diante do tom de Sergei. - Os gardai lá debaixo disseram que o capitão subiria assim que terminasse a ceia. Não sei quanto tempo isso levou, senhor. Não com certeza.

Sergei acenou com a cabeça. - Capitão? - disse o comandante, e os olhos de ci'Doulor retornaram para ele. - O que aconteceu quando o senhor final­mente chegou?

Ci'Doulor umedeceu os lábios. - Eu olhei a cela e vi ci'Vliomani.

Assim como o e'offizier ce'Ulcai descreveu?

Sim, comandante. Senti o frio e o vento e vi o brilho.

E o senhor não mandou me chamar ou um dos ténis?

Eu pensei... Afinal de contas, o homem ainda estava acorrentado e silenciado. Não. Não, senhor, não mandei.

Sergei voltou a olhar para ce'Ulcai. - Você abriu a porta da cela?

Eu não queria, comandante. Falei para o capitão, mas ele mandou abrir.

Sergei concordou com a cabeça. - Você fez o que deveria, então, e'offizier. O capitão entrou? Você viu o que aconteceu a seguir?

O garda fez que sim. - O capitão entrou. Ele foi ao prisioneiro e gritou rara que ele parasse. Eu vi o capitão pegar o porrete e bater no homem. Assim que fez isso, bem no momento em que o capitão tocou nele... - Ce'Ulcai tre­meu. - O frio ficou pior do que qualquer coisa que eu jamais senti, e o brilho era tão intenso que não consegui enxergar nada. Eu ouvi o capitão gritar e comecei a entrar na cela, mas o vento me jogou contra a parede, bem ali onde o senhor pode ver as marcas. - Ele apontou para o patamar fora da cela, onde algumas das pedras tinham arranhões claros na superfície escura. O garda to­cou a parte detrás da cabeça, e Sergei viu sangue na ponta dos dedos quando o homem recolheu a mão. - Eu bati com força na parede. Quando consegui ricar de pé novamente, o frio e a luz tinham sumido, e a única pessoa na cela era o capitão. O prisioneiro havia desaparecido. Eu fui até a sacada, pensei que ele tinha pulado, mas não havia corpo no pátio, e até mesmo os numetodos não sabem voar. Nenhum dos gardai lá embaixo diz que ouviu ou viu alguém nas escadas. - O homem abaixou a cabeça. - Sinto muito, senhor.

Sergei ignorou o pedido de desculpa. — Capitão, a história desse homem é verdadeira?

Ci'Doulor concordou com a cabeça. - Sim, comandante. Houve feitiçaria aqui. Trabalho de numetodo.

O senhor teve um garda que caiu inconsciente há dois dias e desde então o prisioneiro ficou impassível, e o senhor não me informou. Quando soube que acontecia algo estranho aqui mais cedo, o senhor decidiu que ter­minar sua ceia era mais importante. Ao ver feitiçaria dentro da cela, em vez de me informar ou chamar alguém da equipe do kraljiki ou do archigos, o senhor mandou que esse e'offizier abrisse a cela. O senhor entrou. Sozinho. E agora o prisioneiro... sumiu. Algum desses fatos está essencialmente incorreto, capitão?

Arrasado, ci'Doulor fez que não. - Era simplesmente impossível que ele escapasse, comandante. Nós dois sabemos disso.

Então ele ainda está aqui, hein? Tenho certeza de que o senhor tem razão. Então vou deixar que vasculhe a cela de cabo a rabo.

O sarcasmo acertou ci'Doulor como uma chicotada na cabeça. - Comandante, eu sinto muito. Eu deveria...

Sergei ergueu a mão e balançou a cabeça ao mesmo tempo para calar o homem. - Não, capitão. A responsabilidade é toda minha, e eu aceito a culpa. Foi minha decisão deixar o senhor no comando da Bastida quando claramente não tem competência para exercer tal função. Portanto, eu perdi o prisioneiro, não o senhor. Mas pelo menos posso retificar meu erro para que não se repita. Eu lhe retiro do comando.

Sergei gesticulou para ce'Ulcai sair primeiro, depois foi para a porta da cela. Ci'Doulor ainda estava no centro da cela com o corpo curvado e neste momento começou a segui-los. Sergei fechou a porta na cara do homem. - Comandante! O que o senhor está fazendo? — Enquanto ci'Doulor berrava assustado, o comandante virou uma chave na fechadura e fechou a portinhola no centro da porta. Saíram gritos e soluços abafados da cela e punhos bateram na porta. Sergei entregou um molho de chaves para ce'Ulcai.

Sua patente agora é o'offizier - disse o comandante para ele. — Eu mandarei outro garda da Bastida lhe substituir em seu posto imediatamente. Mande o curandeiro da Bastida examinar a ferida em sua cabeça; amanhã de manhã, depois da Primeira Chamada, apresente-se diretamente a mim na sede da Garde Civile. Eu preciso de competência por lá.

Sergei fez o sinal de Cénzi para o homem e desceu pela longa escadaria. Imaginou como contaria o que aconteceu para o kraljiki e o a'téni ca' Cellibrecca e perguntou-se por que se sentia mais aliviado do que furioso.

 

VOCÊ TEM CERTEZA DISSO? - perguntou Dhosti para Kenne. u secretário fez que sim.

A mensagem veio diretamente de nossa fonte na Bastida, archigos. Acabei de recebê-la.

Então o kraljiki ordenou a execução dos numetodos, apesar da influência de Ana. E ci'Vliomani desapareceu de alguma forma. Isso só irá inflamá-los ainda mais. Imagino se Ana já sabe...? O princípio de uma dor de cabeça latejou nas têmporas, e seus ombros caíram. De repente ele sentiu-se muito cansado e muito velho.

Eu vou ter que falar com o kraljiki - disse Dhosti. - Imediatamente. Rezo para que não seja verdade, embora eu fique contente se ci'Vliomani realmente escapou, porém duvido que o pobre homem consiga escapar do comandante ca'Rudka. Deixe-me apenas terminar esta carta e...

Ele não teve tempo para terminar. Dhosti ouviu a confusão do lado de rora do escritório: um dos integrantes de sua equipe reclamou alto que o archigos não podia ser perturbado. Então as duas portas altas foram abertas e o a'téni ca'Cellibrecca entrou a passos largos com o robe esvoaçante. Havia um quarteto de gardai da Garde Kralji com ele. O recepcionista e'téni de Dhosti veio na cola deles, ainda reclamando.

A expressão no rosto de ca'Cellibrecca disse para Dhosti tudo o que ele precisava saber.

E'téni - falou o archigos -, o a'téni ca'Cellibrecca é sempre bem-vindo ao meu gabinete. Por favor, retorne aos seus afazeres. — Ele olhou para Ken­ne, que encarava ca'Cellibrecca com raiva. — Kenne, por que você não en­trega o pacote que lhe dei mais cedo enquanto eu e o a'téni ca'Cellibrecca conversamos?

Kenne virou o rosto imeditamente. — Archigos? Tem certeza? Posso ficar aqui, caso precise de mim.

Vá. Você deve entregar o pacote. Por favor. E diga ao téni no gabinete que não devemos ser interrompidos. Por qualquer motivo.

Kenne arregalou os olhos, mas deu o sinal de Cénzi para o archigos e, por obrigação, para ca'Cellibrecca, depois fechou a porta ao sair. Dhosti recolocou a pena que esteve usando no suporte e fechou o potinho de nanquim. Passou o mata-borrão no papel à sua frente, depois dobrou as mãos sobre ele. - Or­landi, esta parece ser mais do que uma visita social. Espero que não vá cometer um erro tolo.

O erro foi seu, Dhosti, quando ignorou a Divolonté de propósito. Nem mesmo o archigos pode fazer isso. - Ca'Cellibrecca parecia incapaz de conter um meio sorriso presunçoso no rosto.

Você tem provas disso? Eu gostaria de vê-las.

E verá, quando for levado diante dos Guardiões da Fé e do Colégio A'téni.

E você, como téte dos guardiões, com certeza me dará um julgamento justo.

O sorriso de Ca'Cellibrecca ficou maior. - Garanto que seguirei os preceitos da Divolonté, como jurei fazer.

Sem dúvida. - Dhosti perguntou-se quanto tempo conseguiria ganhar aqui antes de ter que se submeter ao inevitável. Você teve o trono do archigos por quase 18 anos, mais do que a maioria. Dezoito bons anos, e ajudou a kraljica a se tornar a Généra a'Pace, a grande criadora da paz. Você sabia que isto poderia acontecer quando a kraljica foi assassinada... — E sem dúvida você tomará o trono como o novo archigos antes mesmo que o assento esfrie.

Essa decisão ficará a cargo do conclave, como sempre.

Eu sou um velho, Orlandi. Tudo que você precisava era paciência e poderia ter se tornado o archigos em alguns anos de qualquer maneira. Talvez menos. Cénzi virá me buscar em breve.

Acha que eu podia esperar enquanto você colocava seu próprio herdeiro em posição? - Ca'Cellibrecca torceu o nariz. — Com certeza você não me considera assim tão estúpido. Cénzi irá lhe mandar para as bruxas por seus pecados contra Ele, archigos, e pela sua arrogância. Se eu fosse você, isso não seria uma coisa que eu aguardaria com prazer. Mas os guardiões deixarão com Cénzi a decisão de quando irá visitar as bruxas.

Dhosti já tinha visto os pobres coitados condenados pelos guardiões, os ténis que violaram seus votos e foram expulsos da fé concénziana, que tiveram as mãos cortadas e as línguas arrancadas para que não pudessem mais usar o Ilmodo. Os terríveis ferimentos sempre eram cauterizados para não causarem a morte dos condenados. Eles podiam vagar por anos como exemplos visíveis do que a Fé faria aos seus traidores. Dhosti imaginou-se naquele estado e sen­tiu um nó nas entranhas. - Quem me acusa, Orlandi? Seus comparsas dentro da Concénzia? Tem certeza de que possui a'ténis suficientes no seu bolso?

- É o próprio kraljiki que faz a acusação, archigos. Justi testemunhará em pessoa aos guardiões contra você e a o'téni co'Seranta. Tenho certeza de que, quando os a'ténis ouvirem o kraljiki falar, aqueles que hesitarem serão convencidos. Eu já falei com ca'Fountaine e ca'Sevini; eles concordam comigo que o Colégio deve ser convocado imediatamente.

As palavras vieram com a determinação de um golpe de espada em um pescoço exposto. Acabou, então. Não há esperança. - Honestamente, eu prefe­ria que você me matasse de uma vez, Orlandi. Agora, se possível. Eu aceito o golpe. Isso seria mais caridoso do que o que os guardiões farão, e nós dois sa­bemos disso. Nunca fomos amigos, mas até mesmo você reconheceria que eu me importo tanto com a Fé quanto você. Tudo que fiz, fiz porque realmente acreditava que meu modo era o correto, e eu diria o mesmo de você, Orlandi, embora não concordemos. Mate-me agora, se é o que tem que ser. Não vou implorar, mas peço que tenha pena de mim.

Ca'Cellibrecca riu. - Você quer que eu desobedeça à Divolonté? Não, Dhosti, eu já chamei os guardiões para a câmara. Primeiro, você será levado à Bastida, onde o comandante câRudka supervisionará a tomada da sua confis­são e a entrega de quaisquer outros nomes para que possamos interrogá-los. Depois, será levado diante do Colégio A'téni e dos guardiões, e o castigo corre­to será aplicado. Sua desobediência às leis será tornada pública, para que todo mundo conheça a sua vergonha quando for expulso do Templo do Archigos sem a língua ou mãos.

Uma tempestade de inverno forte e gelada alojou-se no estômago de Dhosti. Seu rosto estava pálido e sério quando ele se levantou detrás da mesa. Os gardai em volta de ca'Cellibrecca ficaram rapidamente de prontidão, com as mãos nos punhos das armas. Dhosti sabia que se começasse a chamar o Ilmodo, se movesse as mãos no gestual de um feitiço, eles atacariam. Por um instante ele considerou se isso não seria melhor, mas desconfiou que apenas acabaria ferido, não morto. Essa batalha não poderia ser vencida realisticamente. Não conseguiria prevalecer aqui: não agora. Não com o kraljiki como aliado de ca' Cellibrecca.

Não, havia apenas uma tênue esperança aqui: fugir para que pudesse lutar em outra hora e lugar, quando as chances fossem melhores. O kraljiki logo perceberia que colocou uma cobra perigosa no trono do archigos.

Se Dhosti quisesse estar lá quando isso acontecesse, ele teria que se entocar agora. Teria que se esconder com aqueles que permanecessem solidários a ele. Dhosti torcia que tivesse dado tempo suficiente para Kenne.

Dhosti abriu bem as mãos ao se afastar da mesa. Antigamente, você era capaz de fazer isto facilmente. Antigamente, você nem precisaria pensar a respeito.

Mas aquilo tinha sido há tantos anos. Muitos anos...

As portas da sacada que iam do chão ao teto estavam abertas para deixar entrar a brisa da praça, a três andares lá embaixo. Havia outras sacadas abaixo, na parede externa do prédio, e à direita um mastro onde estava pendurado o estandarte do globo partido da fé concénziana, meio andar abaixo. Dhosti ficou na sacada ao longo dos anos e viu a possibilidade que encarava agora: dê uma corrida e pule no parapeito para ganhar velocidade, depois um salto de cabeça no mastro. Passe por cima e pegue o mastro com as mãos trocadas, para deixar o impulso girar o corpo. Largue o mastro assim que acertar o estandarte - a queda dali seria meio às cegas por causa da bandeira, mas seria possível alcançar a sacada embaixo dessa aqui. Corra pelos aposentos dali até o corredor principal e depois desça pela escadaria nordeste. Eles vão pensar que você está indo para a praça, mas continue em direção aos túneis debaixo da praça. Você mapeou uma rota de fuga pelos túneis há meses, um caminho que você torce que os perseguidores não conheçam.

Você podia fazer isso. Antigamente. Só tem que fazer mais uma vez. Mais uma vez: por Ana, por Kenne, pela kraljica, por aqueles que pensam como você. Mas não pode hesitar. Tem que ter fé. Fé, Dhosti.

Ele sentiu a dúvida — você está velho demais, Dhosti, e mesmo naquela época você usava o Ilmodo, apesar de não perceber. Toda a meditação que costumava fazer antes da apresentação, o gestual no meio da coreografia...

Dhosti fez um esforço para suprimir o pessimismo.

Ele tomou fôlego. Sorriu para ca'Cellibrecca.

Depois ele virou-se e correu.

Dhosti ouviu gritos pelas costas: quando pulou sem jeito, gemendo, para o parapeito de mármore da sacada, quando dobrou os joelhos e tentou não olhar para a longa queda para os ladrilhos lá embaixo, quando franziu os olhos para ver apenas o mastro abaixo e para o lado.

Ele pulou.

Dhosti tinha se esquecido da estranha sensação de liberdade ao cair, a im­pressão que havia se entregado às mãos de Cénzi. O vento tremulou seu robe, tentou arrancar os poucos cabelos, provocou lágrimas nos olhos. Ele parecia se mover em câmera lenta - como fazia antigamente, o corpo lembrou-se das posições necessárias. Dhosti viu o mastro e esticou os braços, os dedos peque­ninos agarraram o metal frio, o choque do impacto tremeu os velhos múscu­los flácidos dos braços. O peso do corpo e a força do movimento arrancaram a mão direita do mastro, as perninhas balançaram para um dos lados. Dhosti agarrou o mastro desesperadamente com a mão esquerda, mas agora o ângulo torto jogou seu corpo para o lado e para fora.

Os dedos escorregaram. Ele tentou agarrar o estandarte desesperadamen­te e pegou o pano. Enfiou os dedos nele ao recomeçar a cair.

Dhosti ouviu o som de pano se rasgando. Ainda segurava o estandarte, mas o pedaço que pegou se rasgou. Ele viu as cores do pano na mão fechada e estava em queda livre.

Dhosti só teve tempo para rezar a Cénzi para não sentir dor por muito tempo.

 

SAIA DA FRENTE, mulher!

Ana ouviu o berro abafado do lado de fora das portas enquanto elas tremiam nas molduras e foram escancaradas. Kenne entrou correndo com Watha atrás dele em pânico, de olhos arregalados. O rosto de Kenne estava vermelho, o cabelo fora desgrenhado pelo vento. Ele ofegou ao levar as mãos entrelaçadas à testa. - O'téni - falou o homem, depois teve que parar para tomar fôlego. - Você tem que ir embora. Agora. — O pânico na voz de Kenne era palpável.

Ir embora? - Ana franziu a testa, - Kenne, o que aconteceu?

Ele balançou a cabeça, - Não há tempo para explicar. Ca'Cellibrecca acabou de ir ao gabinete do archigos com a Garde Kralji. O archigos falou uma... - outra pausa, outra tomada rápida de pouco fôlego - ... uma frase em código que me dera não tem muito tempo, só por precaução. Você tem que ir embora, tem que se esconder. Eu também.

Ana pestanejou diante da corrente de palavras inacreditáveis. - Eu irei ao kraljiki... - ela começou a falar, mas Kenne interrompeu o protesto.

Ca'Cellibrecca não iria contra o archigos sem que o kraljiki soubesse. Não existe esperança lá. Ana, eles mandaram executar todos os numetodos.

A mão de Ana foi para o pescoço, mas a concha de pedra não estava lá, apenas o globo de Cénzi. - Karl... - sussurrou.

Ci'Vliomani desapareceu — informou Kenne. - A Bastida está em alvoroço. Mas ca'Cellibrecca chegou para levar o archigos diante dos Guardiões da Fé e do conclave. Pegue o que puder e fuja, Ana. Eles virão atrás de nós a eguir. Já estão vindo. Não temos tempo algum.

Fugir? Para onde? — Ana não conseguia sair do lugar. Ela gaguejou, ensinamentos frenéticos corriam uns atrás dos outros dentro da cabeça. Você deve ir ao kraljiki. Com certeza isso é um erro. Ele lhe prometeu. Você deu seu corpo a ele. — Preciso falar com o archigos.

Você não pode. - As mãos de Kenne agarraram os ombros de Ana. O rosto estava bem próximo ao dela. - Não pode, Ana — repetiu com delica­deza. - Eles levaram o archigos agora, ou talvez ele tenha conseguido fugir de alguma maneira. De qualquer forma, o archigos foi embora. Ele deu um :empinho para nós nos salvarmos, e é isso que temos que fazer.

Para onde você vai?

Para amigos que conheço. Fora da cidade. Não posso levar você comigo, Ana; já é perigoso demais para eles me abrigarem. Você tem que dar o próprio jeito, mas seja lá o que faça ou para onde vá, tem que ser agora. - Kenne soltou-a. Sobre o ombro dele, Ana viu Watha levar as mãos à boca e sair correndo da sala. - Estou indo embora, Ana. Prometi ao archigos que avisaria você, e foi o que fiz. Saia daqui. Leve apenas o que puder pegar. Eles virão atrás de você a qualquer momento.

Ana não tinha resposta. Kenne fez o sinal de Cénzi, tocou no ombro dela com delicadeza novamente e saiu. Ana ouviu seus passos acelerados. Em algum lugar nos aposentos, alguém gritou com uma voz aguda. O som tirou Ana da impassividade. Ela correu para o quarto ao mesmo tempo em que arrancava o robe verde de téni. Ana vestiu uma tashta simples às pressas e en­cheu uma bolsa de viagem com algumas de suas roupas velhas e uma bolsinha com um punhado de siqils de prata e algumas solas de ouro. Não conseguiu pensar em mais nada para levar; tudo nos aposentos já estava lá quando eles foram dados para Ana.

Ela saiu pela escadaria dos fundos. Não viu nenhum dos criados. O baque da porta de madeira parecia definitivo, como um martelo fechando a tampa de um caixão. Ao pé da escada, Ana abriu um pouquinho a porta para a rua e deu uma olhadela. A entrada dava para uma das pequenas ruas laterais a leste da praça do templo; apenas um gato à procura de comida na sarjeta central olhou para Ana quando ela saiu e começou a se afastar rapidamente. Ana ouviu o som de uma grande confusão na praça: gritos e berros, e no fim da rua ela viu gente correndo naquela direção. O lamento grave e retumbante das trompas nos domos do templo começou a soar simultaneamente e fez Ana tremer. Ainda faltavam umas boas duas viradas da ampulheta antes da Tercei­ra Chamada, porém alguém mandou os tênis soarem as trompas.

O som assustou Ana, o lamento espectral passou por ela.

Ana deu meia-volta e fugiu do barulho.

Enquanto dava uma corridinha com a bolsa batendo nas pernas, Ana perguntou-se aonde estava indo. Não para a antiga casa; ela não podia envol­ver a matarh nesta situação.

Mahri... O nome veio à cabeça quando ela corria pelas ruas em direção à Pontica a Brezi Nippoli, de olho na Garde e pronta para se abaixar em um vão de porta se visse robes verdes ou qualquer rosto conhecido. Toda aquela conversa maluca de ele ser Karl, e, no entanto...

Ela não conhecia outro lugar para ir. Iria para o Velho Distrito. Suas ruas estreitas e tortuosas seriam um lugar tão bom para se esconder quanto " qualquer outro.

Rua a'jeunesse, 12, era um prédio estreito de dois andares com um sinistro pátio de entrada. O edifício estava enfiado entre duas estruturas maiores que pareciam ser tudo que mantinha o velho prédio frágil de pé. Uma taverna ocupava o andar de baixo; uma escada bamba levava a um patamar estreito com uma porta externa no segundo andar. Ana fez uma prece de proteção ao subir os degraus, um simples feitiço de guarda, mas o toque do Ilmodo foi confortante.

Assim que o pé de Ana tocou o patamar no topo da escada, a porta foi aberta. - Rápido! - sussurrou uma voz, e na escuridão à luz de velas do inte­rior ela vislumbrou Mahri, que mantinha a porta aberta.

- Como você sabia?

Ele sabia. Ele sentiu você usar o Ilmodo - sussurrou Mahri em resposta. - Entre, antes que alguém que não devia veja você.

Ana imaginou quem seria o "ele" a quem Mahri se referiu, mas ela passou pelo mendigo (um cheiro de roupas velhas e suor) e entrou no aposento. Ou­tra pessoa estava ali na salinha decrépita. Ana soltou um grito de alegria; sem pensar, deixou cair a bolsa no chão, correu até ele e o abraçou. - Karl!

O homem deu uma risada cruel e não devolveu o abraço. — Você está confundindo o papel de embrulho com o presente, O enviado ci'Vliomani está ali. — Ele apontou para Mahri. - Pelo menos por enquanto - acrescentou.

Ana deu um passo para trás. Mahri (ou era realmente Karl?) fechou a porta e apoiou-se contra ela. A luz das velas deu um tom amarelado às cicatri­zes do rosto, e o único olho reluziu debaixo do capuz negro do manto. - Eu disse para você - falou o mendigo. - Mahri, dá para fazer agora? Não que eu não seja grato a você...

Karl — Mahri? — torceu o nariz. — Isso levará alguns minutos e você ficará desorientado. Nós dois precisaremos descansar depois. — Ele respirou fundo. - Sente-se aqui - falou ao apontar para uma cadeira perto da janela. - Fique bem parado.

Karl fechou os olhos; a figura encapuzada de Mahri foi até a cadeira. Karl mexeu as mãos e começou a entoar um cântico em uma língua que Ana não conhecia, embora a cadência e o sotaque fossem estranhamente similares à língua do Ilmodo. O corpo de Karl começou a emitir um brilho fraco em tom amarelo esverdeado, e daquela luz saíram filetes em direção a Mahri como uma gota de nanquim que se espalhava na água. Quando a luz tocou no mendigo, a boca deformada por cicatrizes abriu-se e Mahri gemeu.

Karl falou uma última palavra e abriu bem os braços. A luz emitiu um clarão. Mahri gemeu de novo e desmoronou de lado no chão; os joelhos de Karl cederam e ele começou a cair. Ana correu para pegá-lo antes que caísse completamente.

Karl...

Seus olhos foram abertos. - Ana - falou ele. Uma mão tocou no próprio rosto. — Sou eu. Estou de volta...

 

VOCÊ NÃO GOSTOU do meu corpo? Estou desapontado.

Ana e Karl viraram os rostos na direção dele. Mahri conseguiu ficar de pé, embora o cansaço curvasse o mendigo como se tivesse uma bigorna nos ombros. Todas as velhas dores estavam presentes; depois de alguns dias no corpo mais jovem e bem mais saudável de ci'Vliomani, ele podia imaginar o alívio que o homem deveria sentir com a libertação.

Você podia ter ficado...

Ele quase sorriu com a idéia. Isso teria sido um sacrifício maior do que ci'Vliomani poderia imaginar. - Obrigado - falou o enviado agora. - Eu pensei...

Eu sei o que você pensou - disse Mahri. - E estava errado. Não tenho uso para o seu corpo. Na verdade, prefiro esse aqui. - Mahri viu a careta de descrença no rosto de ci'Vliomani, mas tirando isso o homem não falou nada.

- Afinal de contas - continuou Mahri -, eu não estou sendo caçado pela Garde Kralji por ter escapado da Bastida. Eles iam matar você. A ordem veio do kraljiki.

Não - disse a mulher enquanto balançava a cabeça. - Ele não faria isso. Ele me prometeu... Eu... - Ela parou.

Sim — falou Mahri. Ele sabia o que causou a queda dos ombros da mulher, as lágrimas que surgiram nos olhos. O capitão falou dos rumores. "Sabe a téni que veio ver você, que não parava de perguntar a seu respeito? Ela é a amante do kraljiki agora, ouvi dizer. Apenas mais uma das grandes horizontales. Não posso dizer que a culpo, o futuro dela está melhor com o kraljiki do que com você, hein?"

Mahri também desconfiava do que a mulher pensou ter trocado pelo corpo. Ele torcia que ci'Vliomani fosse capaz de reconhecer o gesto quando soubesse o que ela fez. - O kraljiki mentiu - disse Mahri para ela com deli­cadeza. — Eu desconfio que ele é bem talentoso nesse aspecto. Você não é a primeira que ele engana. - O mendigo parou. - Um momento...

Houve uma batida suave na porta. Ci'Vliomani olhou fixamente, co'Seranta começou a conjurar um feitiço, mas Mahri balançou a cabeça para a o'téni. Ele foi até a porta e falou com o homem ali: um dos mendigos que formava sua rede de informações. Quando fechou a porta, Mahri respirou fundo antes de se voltar para eles.

As notícias são piores do que eu pensei - disse ele para os dois. — O archigos está morto.

Co'Seranta conteve um grito com as mãos. Ela fechou os olhos, fez o sinal de Cénzi e perguntou - Como?

Ele caiu da sacada de sua residência. Pulou, dizem alguns. Ou foi empurrado, de acordo com outros. O a'téni ca'Cellibrecca foi visto na mesma sacada imediatamente depois, ao que parece. A notícia está correndo a cidade. O Colégio A'téni já se reuniu em uma sessão de emergência; ca'Cellibrecca foi nomeado archigos em exercício até que todos os a'ténis tenham sido informa­dos e ocorra uma votação formal. Eles se reunirão aqui em um mês.

E ca'Cellibrecca será o archigos de fato nessa ocasião - disse ci'Vliomani.

Ele tem o apoio do kraljiki - respondeu Mahri calmamente.

Ci'Vliomani bufou de desdém. - E a filha dele divide a cama com o kraljiki. - Mahri viu co'Seranta ficar surpresa ao ouvir isso e se virar para encarar o numetodo.

Você sabia disso? - perguntou co'Seranta para o enviado.

Ci'Vliomani fez que sim e apontou para Mahri. — Ele mostrou para nós.

Enquanto a kraljica estava viva, nós poderíamos ter usado essa informação. Agora que ela morreu... — O enviado suspirou. - Com ca'Cellibrecca como archigos, o kraljiki se casará com ela. E a escolha óbvia.


Mahri viu o rosto de co'Seranta ficar vermelho, e ela ficou calada. Sim, co'Seranta foi seduzida ou se deixou ser seduzida também pelo kraljiki. E ci'Vliomani... aquela testa franzida me diz que ele também suspeita.

Há mais notícias, e piores ainda - informou Mahri. - Parece que vários integrantes da equipe do archigos fugiram exatamente antes de sua morte. Eles sáo suspeitos de flagrantes violações da Divolonté, bem como cumplici­dade na morte do archigos.

Isso não é verdade! - gritou co'Seranta, e Karl fez que não para ela com o dedo perto dos lábios indicando cautela.

Verdade ou não - continuou Mahri -, a Garde Kralji e a Garde Civile receberam ordens de encontrar esses ténis da antiga equipe do archigos e levá-los perante os guardiões para serem julgados.

Então eu não posso ficar aqui - falou co'Seranta. Cansaço e medo deixaram seu rosto pálido. - Eu tenho que encontrar outro lugar.

Este é um lugar tão bom quanto qualquer outro - disse Mahri para ela. — Ninguém vem aqui que eu não permita, e há coisas que posso ensinar para você. - Ele incluiu ci'Vliomani no gesto com a cabeça. - Que eu posso ensinar para vocês dois.

Mahri viu a descrença e a incerteza em ambos. Achou divertido. Ele res­pirou fundo, ajeitou os ombros e estufou o peito, mais uma vez se acomodou completamente no próprio corpo que conhecia. - Mas isso fica para depois. Por enquanto, todos nós precisamos de comida e depois de um pouco de descanso. O mundo lá fora vai se ajeitar sozinho...

 

A BATALHA FOI uma completa debandada. - O starkkapitän ca'Staunton franziu as narinas, estufou o peito e empinou o nariz ao falar. O a'offizier co'Linnett, ao lado de seu superior imediato, cheirava levemente a fogo e cinzas; quando Jan deu uma olhadela para ele, o offizier estava prestan­do atenção aos fundos da tenda, sem olhar para o starkkapitân, e sim atento ao conjunto de soldadinhos de brinquedo que Allesandra colocara sobre o ta­pete como preparativo para a aula com Georgi ci'Arndt. Ela parou de brincar com eles para ouvir o relatório do starkkapitän.

Havia aproximadamente quinhentos soldados da Garde Civile protegendo a fronteira acima de Ville Colhelm - continuou ca'Staunton - e eles atravessaram a ponte do rio Clario na primeira virada da ampulheta. A tropa inimiga viu a divisão do a offizier co'Linnett e saiu correndo como besouros assustados enquanto os offiziers gritavam para que eles mantivessem a forma­ção. Quando veio o primeiro bombardeio dos ténis-guerreiros, até mesmo os offiziers e os poucos chevarittai com eles fugiram.

Jan olhou novamente para o offizier, que continuava prestando atenção aos soldados de Allesandra. — E foi o a'offizier co'Linnett que comandou as nossas tropas?

Foi sim, meu hirzg.

Jan acenou com a cabeça. - Quantas baixas? — perguntou ao starkkapitän. Ele estava sentado à mesa de campanha, cujo tampo era decorado com pinturas de seu vavatarh homônimo, o hirzg Jan ca'Silanta, em combate com as hordas de Magyaria Oriental com armaduras de bambu. Jan dobrou as mãos no colo.

Das nossas tropas, muito poucas, meu hirzg. O a'offizier co'Linnett foi capaz de usar efetivamente seus ténis-guerreiros e arqueiros, e assim infligir a maior parte do estrago a distância.

Que conveniente - comentou Jan em tom jocoso. - E as baixas da Garde Civile de Nessântico?

Pelo menos 150 mortos, talvez duzentos.

Então trezentos escaparam, talvez mais. É o que está me dizendo, starkkapitän?

Jan ouviu Markell, parado logo atrás da cadeira do hirzg, prender o fôlego. Allesandra abafou um riso. Ca'Staunton pareceu notar o tom na voz de Jan pela primeira vez. O peito pendeu quando exalou, o queixo caiu e os om­bros tombaram. - Meu hirzg... - começou ele, mas Jan cortou o starkkapitän abruptamente.

Eu me pergunto, starkkapitän... Será que não fui claro ao dar minhas ordens? Porque eu me lembro nitidamente de dizer para você, após captu­rarmos os espiões do kraljiki, que era vital, vital, que Nessântico permane­cesse sem saber que cruzamos a fronteira. Eu me lembro de dizer para você que queria cercar Ville Colhelm e qualquer Garde Civile postada ali antes de iniciarmos qualquer ataque, para que ninguém conseguisse escapar e infor­mar o kraljiki em Nessântico. Você está dizendo, starkkapitän, que trezentos ou mais soldados agora estão correndo para a cidade com as notícias de que o exército de Firenzcia está a caminho; soldados que incluem offiziers e chevarittai; soldados que com certeza encontraremos'novamente, talvez diante dos portões de Nessântico?

Com as mãos atrás das costas, co'Linnett olhou ainda mais fixamente para os soldados de brinquedo de Allesandra, pintados de preto e prata. O starkkapitän ca'Staunton ficou visivelmente pálido. - Meu hirzg, claro que foi minha intenção fazer exatamente o que o senhor ordenou. A terceira di­visão já havia sido enviada para o outro lado do Clario, bem abaixo de Ville Colhelm, mas demos de cara com as tropas da Garde Civile de surpresa e o a'offizier co'Linnett não teve escolha a não ser enfrentá-las imediatamente. Não houve tempo para coordenar o ataque.

Aoffizier - disparou Jan, e a cabeça de co'Linnett ameaçou se romper completamente do pescoço ao ser virada para encarar o hirzg. — Você não mandou batedores para explorar o terreno adiante das tropas? Foi surpreendi­do pela Garde Civile? Eles iniciaram o contato?

Não, meu hirzg — respondeu o homem. A voz era firme e sólida, e Jan notou uma leve careta quando o a'offizier deu um olhadela ligeira para caStaunton. - O starkkapitân foi um tanto quanto vago na avaliação de nos­sa situação. Nossa vanguarda relatou para mim que uma força de talvez mil soldados da Garde Civile protegia a ponte do Clario em Ville Colhelm, sob o comando do a'offizier e chevaritt Elia ca'Montmorte.

Eu conheço ca'Montmorte - disse Jan. - Um dos poucos chevarittai competentes, na minha opinião. O que você fez quando recebeu essa infor­mação, a'offizier?

Eu imediatamente despachei mensageiros com a notícia para o starkkapitän.

Ah - falou Jan. - Como deveria. E a resposta do starkkapitän?

Os soldados de brinquedo de Allesandra ressoaram baixinho quando ela passou a mão por eles para derrubar um batalhão. Co'Linnett endureceu o olhar e manteve a atenção apenas em Jan. — Eu recebi a ordem de enfrentar o inimigo pois tínhamos uma força muito superior. Eu obedeci essa ordem. Mandei meus ténis-guerreiros adiante pelo caminho da Avi, com o apoio dos arqueiros e da infantaria, e despachei dois esquadrões de chevarittai para flanquear a Garde Civile pelo leste e oeste do Clario e tentar conter o inimigo. Infelizmente, o Clario não é transponível naquele ponto, então as forças da Garde Civile puderam recuar pela ponte assim que os offiziers perceberam que estavam cercados e eram muito inferiores numericamente; o starkkapitän deu ordens específicas para que a ponte não fosse destruída.

E ca'Montmorte?

Ele ordenou a retirada e estava entre os defensores da ponte. Ele mesmo só recuou quando era óbvio que havia perdido. Eu persegui o chevaritt ca'Montmorte por Ville Colhelm, mas achei que, se fosse mais adiante, eu deixaria meus homens expostos e isolados demais de nossa força principal. Ordenei uma parada e permaneci em Ville Colhelm para defender a ponte e a cidade. Talvez eu devesse ter questionado as ordens do starkkapitän ou pedido um esclarecimento sobre como ele desejava que eu procedesse, mas não fiz.

Se isso foi um erro, meu hirzg, qualquer culpa é toda minha e não dos meus offiziers e homens.

Então você aceita toda a responsabilidade sobre suas táticas, a'offizier?

Jan notou o homem engolir em seco. - Aceito, meu hirzg. Levando-se em conta a rapidez do ataque e a disposição do terreno, eu fiz o que achei ser o melhor.

Você cumpriu com seu dever de maneira admirável. Um offizier sempre deve obedecer seu superior, e eu admiro sua disposição em aceitar a res­ponsabilidade por suas ações. - Jan acenou com a cabeça para o homem, que relaxou visivelmente. Allesandra começou a arrumar os soldadinhos no­vamente. Jan voltou a atenção para ca'Staunton. - Uma lição que o próprio starkkapitän deveria ter aprendido - acrescentou.

Ca'Staunton ficou ainda mais vermelho. — Meu hirzg, isso é injusto. - A papada tremeu enquanto ele respondeu. - Eu sempre me esforcei em cumprir suas ordens da melhor maneira possível.

É a sua maneira de cumprir ordens que está em discussão - disparou Jan. - Porém não mais. Markell?

Markell deu então um passo à frente e parou ao lado da cadeira de Jan. Ele retirou um pergaminho de uma gaveta lateral e entregou para ca'Staunton. A voz era formal e sem emoção. - Ahren ca'Staunton, você foi considerado culpado de traição pela Corte dos Chevarittai de Firenzcia por desobediência intencional das ordens de seu hirzg, por colocar Firenzcia, seu povo e seu hirzg em perigo com suas ações. Por meio desta, seus títulos de chevarittai e starkkapitän estão revogados. O julgamento da corte é que o senhor seja executado por seu crime e que o castigo deve ser aplicado ime­diatamente. A ordem da corte foi revista e assinada pelo hirzg; seu selo está firmado, como pode ver.

Não! - O berro de ca'Staunton empurrou a espinha de Jan contra a cadeira. — Você não pode fazer isso! — vociferou o homem. — Você... seu vatarh sempre disse para mim que você era um imprudente e um tolo. - Com um único movimento, ele jogou o pergaminho para o lado e sacou a espada. Jan ouviu o assobio da lâmina contra a bainha como um vento estridante que passava pelos galhos de abeto. O homem avançou contra o hirzg.

Ele deu apenas um passo. Co'Linnett moveu-se ao mesmo tempo, sa­cou a espada e girou o corpo. A arma do a'offizier cortou o protuberante estômago de ca'Staunton, e o ímpeto do starkkapitãn enterrou a ponta mais fundo no abdômen. CaStaunton dobrou o corpo no ponto de impacto, com os olhos arregalados, e gemeu como um animal. Co'Linnett completou o giro e puxou a espada. O sangue espirrou em uma linha diagonal pelo pano da tenda bem próximo a Allesandra, que olhou fixamente, boquiaber­ta e com um soldado pintado na mão. Ca'Staunton permaneceu de pé por um instante, com o corpo dobrado e a espada ainda apontada para Jan em tom de ameaça.

A espada caiu da mão do homem. Uma onda de vermelho jorrou da boca.

Ele desmoronou.

Jan continuava sentado na cadeira com as mãos dobradas no colo. A pró­pria espada de Markell estava sacada, a lâmina de dois gumes reluzia na frente de Jan para protegê-lo. Markell embainhou a arma enquanto Jan levantou-se lentamente e deu a volta até a frente ensangüentada da mesa de campanha. O corpo de ca'Staunton estremeceu, os olhos estavam arregalados e assustados, o sangue ainda fluía da boca e das narinas enquanto as mãos tentavam enfiar de volta entranhas rosadas na ferida escancarada. Co'Linnett estava em pé diante dele com a ponta da espada no pescoço de ca Staunton e o pé no peito do starkkapitän. - Meu hirzg? — perguntou. — Posso? O homem está sofrendo.

Jan não respondeu a princípio. - Allesandra? - perguntou ao olhar para a filha. Ela olhou fixamente para o sangue, mas agora virou a cabeça para Jan. O rosto estava sério e pálido.

Eu estou bem, vatarh. - Ela engoliu em seco de forma audível antes de falar novamente. - Ele era um mau starkkapitän.

Era sim - disse Jan. Ele acenou com a cabeça para co'Linnett. O homem estocou com a espada, e ca'Staunton ficou imóvel. Jan abaixou-se ao lado do corpo e arrancou a insígnia da patente do blusão do uniforme de ca'Staunton, sem se importar com o sangue que manchou a mão. Ele cuspiu no corpo enquanto levantou o peso da águia de prata e latão do starkkapitän na palma da mão. Markell acenou com a cabeça uma vez atrás da mesa, como se adivinhasse o pensamento de Jan. Allesandra observou o vatarh do tapete. Ele ofereceu a insígnia para co'Linnett.

Starkkapitän ca'Linnett - disse Jan. A dupla mudança de título e nome fez o homem erguer a cabeça imediatamente. - Eu agradeço-lhe pela defesa de seu hirzg. E ofereço minhas congratulações por sua vitória hoje. Que tenha muitas como starkkapitän. Você demonstrou que é um belo exemplo dos che­varittai de Firenzcia. Como recompensa, nomeio-lhe comté da cidade de Ville Colhelm. Mande seus offiziers levarem o exército para o outro lado do Clario e tome a sua cidade; eu mesmo cruzarei o Clario hoje à noite e lhe encontrarei lá para discutirmos nossa estratégia futura.

Jan estendeu a mão com a insígnia para o homem, que finalmente em- bainhou a espada e a pegou. - Você pode ir, starkkapitän - disse o hirzg enquanto ca'Linnett olhava fixamente para a águia na mão. - Tem muito o que fazer antes do fim do dia. - Ca'Linnett olhou de relance para o corpo de ca'Staunton. - Você deve olhar para ele - falou Jan. - Olhe bem. Memorize o que vê.

Meu hirzg?

Você pode pensar que fez isso, mas não foi você. Esse era o destino de câStaunton, não importa a mão que segurava a espada. Isso é o que acontece com aqueles que não conseguem corresponder às minhas expectativas, stark­kapitân. Espero que não me considere imprudente e tolo.

Ca'Linnett engoliu em seco visivelmente outra vez. Prestou continência. - Ótimo — falou Jan. — Fico contente que tenhamos nos entendido. Até a noite então, starkkapitän. Ah, e se puder mandar alguém para remover a carcaça...

Outra continência e ca'Linnett foi embora. Jan foi até Allesandra e pegou a filha nos braços. Juntos, os dois olharam para o corpo. - Sua mesa está arruinada, vatarh — disse Allesandra. Manchas de marrom avermelhado sujavam a superfície do rosto pintado do vavatarh Jan e pingavam da frente da mesa.

Vai ficar limpo - falou Jan.

 

ANA CHOROU EM SILÊNCIO na escuridão com a cara na parede. Pelo menos ela torceu que fosse em silêncio. Não sabia onde Mahri estava - ele tinha saído do apartamento para as ruas há algumas viradas da ampulheta e não havia retornado, mas Karl estava encolhido em um ninho de cobertores do outro lado do quarto, e ela não queria acordá-lo.

Não em silêncio suficiente... Ana percebeu que não escutava mais o ronco baixo de Karl quando ouviu os passos dele por trás, depois sentiu o movimen­to do colchão de palha onde estava deitada. — Ana... — A mão de Karl tocou em seu ombro com o sussurro. - Desculpe. Por tudo o que ocorreu com você.

Ana limpou os olhos discretamente, grata pela escuridão. Não se achava capaz de falar. Ela permaneceu encolhida ali, calada, como se pudesse conter por pura força de vontade a tristeza pelo passado e os medos do futuro. Ana ouviu Karl falar a palavra de um feitiço e surgiu uma luz suave, não mais do que a claridade de uma vela. Ela viu a própria sombra na parede na ilumina­ção constante.

Pensei ter ouvido você - disse Karl. - Pensei... - Ana sentiu Karl mudar de posição. A mão saiu do ombro para mexer em seu cabelo. — Quer que eu deixe você em paz?

Ela fez que não. A luz sumiu, e Ana sentiu o calor de Karl nas costas quando ele ficou deitado ao seu lado. - Você tem que saber que sua visita na Bastida foi o que me manteve vivo e são - falou Karl. - Fiquei com medo de morrer ali, com medo de que jamais veria você, Nessântico ou a Ilha de Paeti novamente. De jamais sentir o cheiro do oceano ou a chuva fina de uma nuvem passageira enquanto o sol ainda brilhava na campina. De jamais sentir o poder do Scáth Cumhacht em mim novamente... — Ele parou. Sua mão desceu pelo braço de Ana até encontrar a mão dela. Karl entrelaçou seus dedos com os de Ana. - Mas sempre podia me lembrar de você, bem depois de ter ido embora, Ana. Não sei o que você fez para me manter vivo e são, e tanto faz para mim. Não importa. Eu sempre estarei em dívida com você.

Ana não conseguiu mais conter os soluços. As emoções afloraram e ator­mentaram até ficar ofegante. Os dedos de Karl apertaram os dela. Após um momento, Ana devolveu a pressão, e isso acalmou-a um pouco. Karl soltou sua mão para abraçá-la e aninhá-la contra o corpo. Ele deixou que ela cho­rasse, não falou nada, apenas permitiu que a tristeza e a vergonha fluíssem de Ana. A cabeça de Karl aninhou-se em seu pescoço; ela sentiu os lábios dele ali e um beijo delicado.

Você está a salvo agora - sussurrou Karl. - É tudo o que importa.

Ela balançou a cabeça. - Não. O archigos... Kenne... — Ana respirou, o som saiu vacilante. - O que eu fiz com minha matarh? O que vai acontecer com ela agora? Seria melhor ter morrido com o archigos.

Não - falou Karl com firmeza no ouvido dela. - Você não pode dizer isso. Não vou permitir.

Ela virou-se nos braços de Karl para encará-lo. Ele era uma sombra contra o ambiente mais escuro do quarto. - Eu dormi com ele - falou Ana, a confissão saiu espontânea. — Com o kraljiki. Foi a barganha que fiz por você, Karl. Até mesmo o archigos me empurrou para o kraljiki e disse que era o que ele achava que eu deveria fazer. O kraljiki falou que manteria você a salvo se eu fosse amante dele. Falou que... - Ela teve que parar. - Ele falou que po­deria se casar comigo, disse que a favorita do archigos seria um bom partido. - Ana deu uma risada amarga. Karl não falou nada. As mãos dele pararam de se mexer. — Isso não foi uma mentira, creio eu. Não mesmo, agora que ca'Cellibrecca será o novo archigos.

Francesca... - A palavra foi um sussurro e uma facada.

Sim. Francesca.

As mãos de Karl encontraram a bochecha de Ana. - Ele usou você, Ana. Ele e Francesca. Os dois manipularam e usaram você até conseguirem o que queriam.

Eu estava usando o kraljiki em contrapartida. Isso não me torna melhor do que ele. - Ela respirou fundo e não sentiu tristeza. - Eu gostaria que você fosse embora. Deixe-me sozinha.

Ana... - Karl passou o braço por ela e começou a puxá-la para ele. Ana queria deixar que isso acontecesse. Queria esquecer da vida no calor, no gosto e no cheiro de Karl, mas depois... Ela não sabia como os dois se sentiriam depois e não era capaz de encarar outra perda. Ana colocou a mão no peito de Karl e empurrou-o.

Não - falou Ana, e essa única palavra deteve Karl. Por um instante, a cena ficou paralisada. Ela sentiu a respiração dele tão próxima dos lábios antes de Karl rolar para o lado e sair da cama. No escuro, Ana ouviu Karl cruzar o quarto até a pilha de cobertores que servia de cama para ele.

Ela fez um esforço para não chorar novamente. Em vez disso, rezou para Cénzi e perguntou-se se Ele podia ouvi-la ou se Ele importaria.

Quando Ana acordou na manhã seguinte, Mahri havia retornado. Ele estava sentado perto da lareira, e uma chaleira fervia no suporte sobre o fogo. O cheiro forte e agradável de menta tomou o quarto. Karl roncava em seu canto. - Chá? - perguntou Mahri. Ana fez que sim, depois tremeu quando ele esticou a mão e tirou o suporte do fogo; ele devia estar pelando, mas Mahri não pareceu reagir ao calor.

Ele tirou a chaleira do suporte e serviu o líquido em duas canecas de bor­das lascadas, depois misturou mel de uma jarra em cada uma delas. Ana andou pesadamente até Mahri, ainda envolta no lençol, e ele ofereceu uma das cane­cas. O rosto horrível e mutilado do homem encarou-a, o olho que restava fitou Ana fixamente. Ela abaixou o olhar rapidamente, soprou o líquido fumegante e tomou um gole. A doçura desceu queimando pela garganta, e o calor da caneca obrigou Ana a pousá-la na beirada da mesa onde Mahri estava sentado, perto da única janela do aposento. - Está bom - disse ela. - Obrigada.

Há rumores pela cidade inteira - falou Mahri como se não a tivesse ouvido. A caneca dele permaneceu intocada no tampo riscado da mesa bam­ba. As persianas da janela estavam abertas, e ela ouviu as pessoas andarem na rua lá fora e viu a claridade do início da manhã. Soou a Primeira Chamada, as trompas do Templo do Parque mais altas do que todas. Ana fechou os olhos e ficou apoiada em um joelho só, recitou as preces da Primeira Cha­mada em silêncio para si, os lábios mexeram-se com as palavras conhecidas e reconfortantes.

Você crê? Ainda? Depois de tudo isso?

A pergunta de Mahri fez com que Ana levantasse a cabeça novamente. Ela concordou com a cabeça enquanto ficava de pé. — Eu creio sim. Nova­mente, depois que pensei ter perdido a fé. E você, Mahri? Você reza para alguém ou não acredita em deuses como Karl?

Eu creio que há várias maneiras de usar o X'in Ka, que vocês chamam de Ilmodo. Porque nós, como vocês, invocamos os nossos deuses, mas parece que os numetodos mostraram outro caminho para nós dois. - Ele podia estar sorrindo; com o rosto desfigurado, era difícil dizer. - Até mesmo o meu povo tem coisas a aprender, coisas que vocês ou os numetodos podem nos ensinar. Mas eu creio sim. De onde venho, nós cultuamos Axat, aquele que vive na lua, e Sakal, cujo lar é o sol. Seu Cénzi nós não conhecemos.

De onde você vem?

De bem longe daqui, no oeste. Mas não tão longe a ponto de não termos ouvido falar de Nessântico, embora até agora tenhamos conseguido evitar seus exércitos. Mas esse dia virá.

Por que você está qui?

Mahri realmente sorriu então. E não respondeu. Ele tomou um gole do chá.

A cidade é como um cão nervoso pronto para morder qualquer um que se aproxime - falou Mahri finalmente. — Primeiro o assassinato da kraljica, depois o archigos morto sob circunstâncias suspeitas. Agora falam que o exército de Firenzcia está marchando; o kraljiki ampliou os poderes do co­mandante ca'Rudka para incluir a Garde Civile assim como a Garde Kralji, e o comandante convocou todos os homens fortes e saudáveis a se alistarem na Garde Civile. Alguns dizem que esquadrões de alistamento forçado percor­rerão a cidade em breve. O kraljiki mandou mensageiros para o norte, sul e oeste ontem à noite, supostamente para convocar as guarnições mais próximas da Garde Civile para virem aqui. Houve um pedido de palha e qualquer es­toque de trigo que os fazendeiros locais tenham. O archigos Orlandi mandou ténis-trabalhadores adicionais para os ferreiros e as forjas.

Mahri olhou para Karl. - Os numetodos que ainda estavam na Bastida foram executados - continuou. - Os corpos, com as mãos cortadas e a línguas arrancadas, foram pendurados na manhã de hoje na Pontica Kralji. Mas não havia tantos nas celas quanto se imaginava. A maioria dos numetodos escapou de alguma forma na noite de ontem através de uma magia negra qualquer.

Mesmo ao se retrair com as notícias, Ana notou o cansaço no corpo de Mahri: a maneira como o corpo estava apoiado na mesa, o peso na sobrance­lha do único olho. - As fugas foram coisa sua?

Novamente, ele não deu uma resposta direta. Mahri inclinou a cabeça na direção do adormecido Karl. - Ele vai precisar de apoio quando souber disso. Nem todos na Bastida escaparam, e os assassinados eram companheiros de Karl.

Por que você está aqui? — insistiu Ana. — De que lado você está?

Não estou de lado algum. - Mahri tomou a caneca inteira do chá ain­da fumegante. Ela tocou a própria caneca; ainda estava quente demais para segurar. - Eu preciso dormir agora. Foi uma noite longa e cansativa. Tome mais chá, se quiser. Tem pão e queijo no armário. Se me der licença... - Ele levantou-se da mesa.

E se alguém vier? - perguntou Ana. - O que devo fazer?

Ninguém virá. E desde que fique aqui, você está a salvo, pelo menos por hoje. Se sair para a rua... — As dobras do manto mexeram-se quando ele deu de ombros. - Aí eu não posso dizer. Isso estaria nas mãos do seu Cénzi.

Dito isso, Mahri arrastou os pés até a outra ponta do quarto, fechou o manto em volta do corpo e sentou-se. Ana ouviu a respiração do mendigo diminuir o ritmo e ficar mais alta quase que instantaneamente.

Ela ficou sentada na cadeira e provou o chá enquanto contemplava a rua a Jeunesse e imaginava o que diria a Karl quando ele acordasse.

 

DEZ corpos de numetodos estavam pendurados nos postes da Pontica Kralji. Deveriam ser vinte, o suficiente para decorar a Pontica Mordei tam­bém. O fato de esses corpos não estarem lá deixava Sergei ao mesmo tempo aborrecido e satisfeito.

Ele ficou satisfeito... porque estava convencido de que os numetodos não tinham nada a ver com a morte da kraljica ou a traição herege do archigos e sua equipe. Sergei tinha supervisionado pessoalmente os interrogatórios dos numetodos que permaneceram na Bastida e que agora estavam pendurados acima do comandante para os corvos. Ele já tinha ouvido e visto muitos ho­mens sob tortura a ponto de saber ver e ouvir a diferença entre a verdade ex­traída e as mentiras confessadas aos gritos na esperança de parar o tormento. Todos os numetodos acabaram "confessando" antes da execução; todos eles, Sergei tinha certeza, disseram apenas o que esperavam que seus captores que­riam ouvir - as histórias não batiam, não faziam sentido, não comprovavam umas às outras. Ele estava contente que ci'Vliomani tinha escapado daquele tormento e humilhação, contente que tantos outros escaparam também. Não lhe agradava ver tanta morte desnecessária.

Mas Sergei ficou aborrecido com as fugas... porque foi magia que esteve em ação na Bastida na noite de ontem: a bruma que surgiu tão rapidamente e espessa do A'Sele para envolver a Bastida; os gardai que caíram inconscientes; o desaparecimento de muitos dos prisioneiros antes que vários ténis chegas­sem do Templo do Archigos e dispersassem a falsa névoa com seus próprios feitiços. Àquela altura já era tarde demais, mas ele sabia que, se o kraljiki Justi ou o archigos Orlandi precisassem de um bode expiatório de alto nível, os dois poderiam encontrar em Sergei. Se todos os numetodos tivessem escapa­do, esse certamente teria sido o caso.

Sim, ele ficou aborrecido com as fugas... porque Sergei suspeitava que a verdade estava em outro lugar e que, se ousasse dar voz às próprias suspeitas, o seu corpo seria o próximo a estar pendurado na Pontica depois de alguns dias de tortura na Bastida.

Comandante?

A chamada tirou Sergei do devaneio. As botas chapinharam na lama da margem do rio ao se virar.

Sim, o'offizier ce'Ulcai?

O homem entregou uma carta selada para ca'Rudka. O olhar foi rapidamente do comandante para os corpos que balançavam acima deles na Pontica, depois voltou para Sergei. - Seu ajudante de ordens disse para entregar isso para o senhor imediatamente.

Obrigado - disse Sergei. Ele examinou o selo, depois enfiou os dedos debaixo da aba para quebrar a cera vermelha do papel grosso. Desdobrou a carta e leu rapidamente.

Comandante, eu investiguei o assunto que o senhor me pediu. Peço descul­pas por ter demorado a responder, mas a apuração exigiu mais viagens e correspondências do que eu esperava. Aqui estão os fatos, como os apurei:

 

O artista Edouard ci'Recroix nasceu aqui em Il Trebbio em um vilarejo no rio Loi, perto de nossa fronteira com Sforzia e Firenzcia. Não há provas que ele tivesse tendências de numetodo; na verdade, na juventude ele passou dois anos como téni-aprendiz do a'téni ca'Sevini de Chivasso, embora não tenha recebido sua Marca. Ainda assim, ao que tudo indica ele era um fiel devoto da Concénzia. Suas primeiras pinturas, antes de ser téni-aprendiz, não são dignas de nota, eu vi várias, e há pouca indicação do talento futuro. Porém, após ser dispensado dos estudos pelo a'téni, sua reputação (e técnica, evidentemente) começou a crescer, e naquele época ele começou a receber encomendas de várias cidades dos Domínios. O fato de que ci'Recroix fora treinado pelos ténis com certeza gerou rumores constantes de que ele se conectava ao Ilmodo para obter o intenso realismo das pinturas recentes. Uma vergonha que ninguém tenha se dado conta de como isso era verdade.

Uma curiosidade - que eu admito não teria notado se o senhor não tivesse alertado para procurar por estranhas correlações - é que a maioria dos modelos dos quadros, especialmente aqueles considerados suas obras-primas, está morta. Pelo menos três deles morreram poucos dias depois da entrega do quadro pronto, quando ci'Recroix geralmente tinha ido embora da cidade, não que houvesse suspeita alguma sobre ele. Levando-se em consideração a distância entre as cidades e a demora da circulação de notícias entre elas, o fato de que a maioria dos modelos era composta por velhos, e o constante nomadismo de ci'Recroix, ninguém parecia ver nada de sinistro na situação. Eu mesmo hesito em comentar a respeito. Isso pode ser nada além de uma estranha série de coincidências. Não há provas de uma correlação definiti­va, especialmente uma vez que nem todos os modelos do pintor morreram.

No entanto, o senhor pediu para descobrir quem contratou ci'Recroix para pintar o retrato da kraljica. O contato com ci'Recroix foi feito aqui em Prajnoli pelo chevaritt coVarisi, um diplomata ligado ao gabinete da kraljica. Com o advento da morte da kraljica, coVarisi foi dispensado do cargo e está em prisão domiciliar até que a questão seja esclarecida. Eu falei com o chevaritt; ele disse que o contato veio do Grande Palácio: um tal de Gilles ce'Guischard, que tem ligação com a equipe palaciana do akralj. Chevaritt co'Varisi conduziu uma rápida apuração sobre as qualificações de ci Recroix antes de encomendar o quadro; ele sabia dos rumores do Ilmodo, mas não os levou em consideração, algo de que se arrepende agora. Ele permitiu que eu visse suas anotações daquela investigação e insiste que não encontrou conexão entre ci'Recroix e os hereges numetodos.

Isso é tudo que eu tenho para o senhor neste momento, comandante. Conti­nuarei a investigar o caso, e caso eu descubra mais coisas que considere que o senhor deva saber, escreverei novamente.

Sempre seu leal e agradecido criado,

A'offizier Bernado co'Montague, Garde Civile,

 

Sergei suspirou ao dobrar a carta novamente e guardá-la dentro do blusão do uniforme. - Preciso que o senhor se apresente ao o'offizier ce'Falla - disse o comandante para ce'Ulcai. - Há duas ordens que quero passar para ele e outra que quero que o senhor execute pessoalmente...

Foi à noite que chegou a notícia para Sergei de que tudo estava feito. Ele entrou na cela na Bastida com uma lona enrolada debaixo do braço. Olhou para o homem sentado no banquinho no centro do diminuto aposento, com as mãos e os pés acorrentados: Remy ce'Nimoni, o administrador de olhos verdes do castelo Pré a'Fleuve. A cela cheirava a tochas que pingavam e urina velha. Sergei acenou com a cabeça para o garda. — Deixe-nos — disse. O garda prestou continência, olhou atravessado uma vez para o prisioneiro e saiu.

Comandante - o homem começou a choramingar quase que imediatamente. - Com certeza isso é um engano. Afinal de contas, fui eu que contei para o senhor onde encontrar o corpo do pintor numetodo que matou a kraljica.

Sim, você fez isso, vajiki ce'Nimoni — falou Sergei. — Você também colocou isso aqui no pescoço dele antes de me levar até o pintor. - Ele abriu a mão que segurava a lona enrolada, e um cordão com uma concha de pedra polida pendeu dos dedos do comandante. O homem fez que não com a cabe­ça, mas Sergei ignorou-o.

O comandante ajoelhou-se em frente ao homem, pousou a lona enrolada no chão da cela e abriu. Dentro havia vários instrumentos grandes de metal manchados com sangue velho e presos em anéis de pano: tenazes, tesouras, atiçadores com as pontas enegrecidas pelo fogo, martelos, placas de metal com aros que pareciam capazes de prender uma cabeça ou um braço ou perna. — Oh, Cénzi, nãããão... - gemeu ce'Nimoni, e a última palavra transformou-se em um lamento de estremecer. O chevaritt cambaleou no banco e vomitou de repente no chão perto dos pés de Sergei. O comandante olhou para a poça nojenta, mas não se mexeu.

- Existe verdade na dor - falou Sergei para o homem, palavras que dissera muitas vezes antes. — Foi o que me ensinaram uma vez. Com dor suficiente, adequadamente aplicada, a verdade sempre surge. Poucas pessoas conseguem resistir à compulsão. Você acha que é uma delas...?

Menos de uma virada da ampulheta depois, Sergei deixou a cela de ce'Nimoni e foi para o antigo gabinete do capitão ci'Doulor. Lá o o'offizier ce'Falla esperava com outro homem vestido com as cores da equipe do kral­jiki. - Vajiki ce'Guischard - falou Sergei ao cumprimentar o homem com a cabeça. - Perdoe-me por não fazer o sinal de Cénzi, mas... - Ele foi até uma bacia atrás da mesa, jogou água de um jarro e lavou os braços sujos de sangue até o pulso.

Ce'Guischard observou Sergei enxugar as mãos em uma toalha e depois fazer o sinal de Cénzi de maneira pomposa para ele. — Obrigado por vir - disse Sergei enquanto se sentava na cadeira atrás da mesa de ci'Doulor. O o'offizier ce'Falla permaneceu um pouco atrás e à esquerda de ce'Guischard; o homem olhava para trás nervosamente. Sergei dobrou as mãos sobre a mesa e olhou para ce'Guischard.

Ele tinha visto Gilles ce'Guischard dezenas de vezes ao longo dos anos, sempre em segundo plano, um dos funcionários onipresentes que resolviam assuntos para o a'kralj ou que guiavam os ca' e co' pelos labirintos protocolares do palácio. Ce'Guischard era magro, com bigode e barba muitíssimo aparados que imitavam o estilo do novo kraljiki, mas que tinham pelos grisalhos aqui e ali. A pele do homem era amarelada e marcada por cicatrizes e buracos da catapora infantil. Os olhos tinham a cor de um mar agitado por uma tem­pestade e não ficavam quietos. As mãos contorciam-se no colo e cutucavam a capa e as calças como se procurasse por migalhas.

Você parece nervoso, vajiki - comentou Sergei.

Ah - falou o homem. Um espasmo. Uma tremida. - É apenas que estou aqui há uma virada da ampulheta, esperando, e esse lugar... - Um calafrio. - Desculpe-me, comandante, mas a Bastida está longe de ser um lugar que deixe alguém à vontade.

Creio que não deixe mesmo. - Sergei tomou um longo fôlego. Ele coçou debaixo da narina esquerda metálica, onde o adesivo que mantinha o nariz colado ao rosto irritava a pele. - Você deve estar se perguntando por que eu pedi que me encontrasse aqui.

Um aceno de cabeça. O homem umedeceu os lábios secos. Mudou de posição na cadeira. Sergei meteu a mão na bolsinha do cinto e retirou o cor­dão com a concha. Colocou com cuidado sobre a mesa e ajeitou os elos de prata. Os olhos de ce'Guischard pareciam capturados pelo movimento. - Você reconhece isso, vajiki? — perguntou Sergei.

Ele hesitou apenas por um instante a mais. - Não, comandante.

Sergei fez que sim como se esperasse essa resposta. — É uma coisa que um numetodo usaria. Foi encontrado no pescoço do pintor ci'Recroix, o pintor que eu soube que você pessoalmente pediu que o vajiki co'Varisi de Prajnoli contratasse para o retrato da kraljica.

Outra passada de língua nos lábios. - Comandante, o a'kralj disse que era meu dever contratar um pintor para o quadro do jubileu da kraljica, e quando sondei na comunidade, o nome de ci'Recroix sempre teve destaque dentro das recomendações. Eu não tinha idéia de que o homem era um perigoso numetodo, comandante. Convivo com a culpa desde que... — Ele parou. Con­tinuou. - O chevaritt co'Varisi na verdade conhecia o homem, pois ci'Recroix morava em Prajnoli na época. O chevaritt nos garantiu que tinha investigado a confiabilidade do pintor e não havia encontrado nada de suspeito. Eu con­fiei em sua palavra; ele é um co', afinal de contas, e serve a kraljica há décadas.

Ci'Recroix não era um numetodo. Pelo menos eu não acredito nisso. Eu acredito que o cordão foi colocado nele para culpar os numetodos. Gilles - o uso do nome quase fez o homem pular na cadeira você conhece o administrador do castelo Pré a'Fleuve? Remy ce'Nimoni?

O olhar permanecia no cordão. - Não... - falou ce'Guischard lentamente. - Creio que não.

Estranho. Ce'Nimoni acabou de me contar como o kraljiki, então a'kralj, geralmente mandava você cuidar de assuntos para seu bom amigo che­varitt Bella ca'Nephri, dono do castelo. Também mencionou que lhe conhece muito bem, que você foi ao castelo no dia seguinte ao Gschnas e disse que ele deveria ir às margens do A'Sele no outro dia e que encontraria ci'Recroix lá. - Sergei fez uma pausa. - E que você mandou ce'Nimoni matar o homem e colocar esse cordão no corpo.

Ele está mentindo! - disparou ce'Guischard indignado. - Eu estive no Grande Palácio, comandante, cuidando dos meus afazeres e não poderia ter ido ao castelo...

Não - interrompeu Sergei. — Eu fiz Renard checar os registros dos funcionários do palácio, embora ele lembrasse muito bem por conta própria. Você não esteve lá no dia seguinte ao Gschnas, Gilles. De maneira alguma. Você pediu licença para cuidar de sua matarh. Eu também falei com ela: sua matarh de forma alguma se lembra de sua visita, nem qualquer um dos cria­dos dela.

Ce'Guischard contorceu-se. - Ah, isso. Eu me... eu me esqueci, comandante. É... bem, é um tanto embaraçoso, na verdade. — Ele deu um sorriso rá­pido e hesitante para Sergei. - Eu pedi licença dos meus deveres naquele dia e usei minha matarh como desculpa. Na verdade, existe uma mulher com quem estou saindo, uma co' casada. Certamente o senhor pode compreender como, han, essa situação pode ser delicada, comandante. O marido dela foi manda­do para fora da cidade a negócios por alguns dias e... bem... - Outro sorriso que repuxou o bigode e a barba. Ele ergueu e abaixou as mãos. — Mas esse administrador ce'Nimoni... eu tenho certeza de que o vi em minhas visitas ao castelo, comandante, mas não sei nada a respeito... disso. - Ce'Guischard gesticulou para o cordão da concha. — O senhor tem a minha palavra de que o que estou dizendo é a verdade.

Sem dúvida a vajica também confirmaria a sua história para mim. Em particular.

Tenho certeza de que ela seria convencida a fazer isso, comandante, se for absolutamente necessário.

Será.

Sergei notou que o homem pensava desesperadamente. — Então me per­mita entrar em contato com ela primeiro, para que eu possa prepará-la e ga­rantir que não haverá escândalo.

Sergei puxou o cordão da mesa e recolocou-o na bolsinha do cinto. Ele levantou-se da cadeira. - Obrigado pelo seu tempo e cooperação, vajiki. Espe­ro ouvir de você com o nome da vajica e farei os preparativos para me encon­trar com ela e confirmar sua história. Discretamente, é claro.

Ce'Guischard fez um sinal de Cénzi às pressas para Sergei, depois levou as mãos entrelaçadas à testa rapidamente para ce'Falla. Ele foi embora cor­rendo do escritório. Sergei sorriu para ce'Falla, que olhava fixamente para a porta por onde ce'Guischard desapareceu. - Diga - falou o comandante. - O senhor pode falar livremente.

O homem está mentindo, comandante - disse ce'Falla. - Ele sabe de ci'Recroix e do assassinato da kraljica. Mas o senhor deixou que ele fosse embora.

Ele estava mentindo, e eu realmente o deixei ir embora — admitiu Ser­gei. - E o senhor quer saber por quê?

Ce'Falia fez que sim.

- Porque às vezes existe dor demais na verdade - respondeu Sergei. Ce'Falla franziu a testa e balançou a cabeça de leve. - O senhor agiu bem, o'offizier - falou o comandante. - Coma alguma coisa e descanse; o senhor merece. Está dispensado pelo resto da noite. Ah, e se puder jogar isto fora quando sair. - Ele gesticulou para a bacia de água com sangue. - Sangue de carneiro - disse Sergei ao notar o olhar do homem. — Da cozinha. Eu não sou totalmente um açougueiro como diz a minha reputação.

Ce'Falla deu um leve sorriso, prestou continência, depois pegou a bacia e saiu. Sergei foi até a porta do escritório. Contemplou o pátio da Bastida, onde a cabeça do dragão olhava feio para Nessântico, e observou ce'Falla prestar con­tinência para os guardas no portão. O ferro gemeu e ecoou pela noite enquanto ce'Falla entrava na intensamente iluminada Avi aParete e ia na direção da multi­dão sob o brilho criado pelos ténis. Em algum lugar lá fora, Gilles ce'Guischard também estava correndo para casa, sem dúvida perseguido pelo medo.

Se a suposição de Sergei estivesse correta, então ce'Guischard não perde­ria tempo e falaria logo com a pessoa que lhe dera as ordens. Na verdade, eu sinto pena pelo pobre Gilles. Ele estava apenas cumprindo ordens e agora é perigo­so. Provavelmente perigoso demais...

Se a suposição de Sergei estivesse correta, então ele descobriria que essa investigação chegou ao fim abruptamente e que continuar a se intrometer na questão de ci'Recroix também seria perigoso demais para Sergei.

 

"NÃO SE PREOCUPE, GILLES. Eu vou cuidar disto..."

Gilles virou a esquina da rua a'Colombes com a rua a'Petit Marché, a vários quarteirões de distância do agito da Avi a Parete. Ali, a feira livre estava começando a se preparar para o dia, os fazendeiros armavam as barracas e arrumavam os produtos agrícolas e mercadorias em exibição. Havia alguns clientes por perto, na tentativa de escolher os melhores produtos enquanto o sol ainda permanecia baixo no céu e antes de a multidão da manhã chegar. A respiração condensava-se diante de Gilles, pois foi uma longa caminhada ao palácio, mas agora ele estava perto do seu destino. Olhou para a lateral do prédio mais próximo, à procura da placa da rua. Sim, lá estava ela: travessa a'Chats...

"Vá a este endereço amanhã de manhã, depois de uma virada da ampulheta da Primeira Chamada. Haverá uma mulher lá: Sylva co'Pajoli. Ela é casada, mas saberá o que precisa dizer para o comandante; hoje à noite eu mandarei um bilhete para que ela espere por você. Explique para a mulher tudo o que você já contou para o comandante; ela combinará com você para garantir que as histórias batam. Depois volte para o comandante e dê o nome e o endereço da vajica co'Pajoli para que ele fale com ela."

Tudo daria certo. Ele estava a salvo. A tensão no estômago de Gilles amainou quando ele virou a travessa a'Chats, um beco entre os fundos das casas voltadas para as ruas paralelas. Gilles viu o fim da travessa a cem passos de distância, embora a proximidade das casas tornasse o beco em si escuro e sombrio.

Ah, bom-dia para você, vajiki - disse a voz de um homem, e Gilles viu um utilino sair da parede mais próxima com o cacetete balançando casual­mente pela alça; a lanterna, com a luz mágica apagada, estava pousada no chão perto de onde ele se encontrava. — Você chegou bem na hora. Está sendo esperado.

Você vai me levar até a vajica co'Pajoli? — perguntou Gilles para o homem, que sorria abertamente sem os dentes da frente. O utilino passou o braço pelo ombro de Gilles.

Nós recebemos ordens para garantir que você seja levado para onde precisa ir.

Nós? O que quer dizer... - gaguejou Gilles, de repente inseguro a respeito da situação. Mais dois homens apareceram, um de cada ponta da peque­na alameda. O braço do utilino fez mais força em volta do ombro de Gilles quando ele começou a recuar, e Gilles sentiu o homem que vinha por trás pressionar a ponta de uma adaga em suas costas.

Eu não tentaria correr, meu amigo — sussurrou o homem. — Não vai adiantar de nada. Vamos acompanhar o bom utilino agora, pode ser?

Vocês não sabem quem eu sou — reclamou Gilles. Ele arrastou os pés enquanto era puxado mais para o interior da alameda, conforme o homem da outra ponta se aproximava. - Vocês não sabem para quem eu trabalho.

Ah, mas sabemos, sim, Gilles ce'Guischard - falou o utilino. - Não sabemos?

Ao ouvir seu nome, Gilles sentiu medo de verdade pela primeira vez. Isto não era um ataque aleatório; isso não era um assalto. Se sabiam seu nome, se foram avisados que estaria aqui, então... Gilles começou a gritar por ajuda, mas o homem atrás dele meteu a mão sobre sua boca e puxou a cabeça e pes­coço para trás com força. - Shh... - disse o sujeito, e a faca fez mais pressão contra as costas de Gilles enquanto ele debatia-se contra a imobilização. - Não vai adiantar para ninguém que você faça barulho, ora, vai?

O homem do fim da travessa agora estava a um passo, e Gilles viu o sujeito fazer o gestual de um téni e ouviu as palavras de um cântico. O téni, se é que era um realmente, pois não usava robe verde, acenou com a cabeça ao terminar o último gesto, e o homem com a faca retirou a mão da boca de Gilles. - Socorro! Preciso de ajuda! - gritou Gilles, mas as palavras pareceram estranhamente abafadas, como se estivesse berrando com a cara enfiada em um travesseiro.

Você pode gritar o quanto quiser agora - falou o feiticeiro com uma voz que parecia cansada. - Eles não podem mais ouvir você. - Ele acenou com a cabeça para o utilino. - Segure-o - disse o téni, que recomeçou a entoar enquanto as mãos dançavam na escuridão do beco. Gilles debateu-se para se soltar, mas o homem com a adaga pressionou a arma contra a lateral de seu pescoço.

Continue se mexendo e eu uso isso aqui. É o que você quer: uma morte sufocante e sangrenta com o pescoço sorrindo com uma boca nova aberta nele? Fique parado ou, por Cénzi, eu farei isso. - Gilles parou de se debater. Ele desmoronou nos braços dos agressores. Vai dar tudo certo. Ele não teria mandado me matar. Não depois do que fiz para ele, de toda a ajuda que eu dei. Isso é outra coisa. Gilles viu o téni completar o feitiço.

As mãos do homem brilharam; raios estalavam entre os pólos dos dedos. O téni deu um passo à frente e colocou as mãos no peito de Gilles. O toque não era parecido com nada que Gilles havia sentido antes, era como se uma tempestade intensa tivesse surgido dentro dele, toda feita de raios, granizo e rajadas de vento. Ele gritou com o toque. O téni recolheu as mãos, mas a tempestade continuou, cresceu em tamanho e intensidade de maneira que sua voz foi perdida contra o trovejar dentro da cabeça. Gilles sentiu que foi solto pelas mãos que o prendiam e tentou dar um passo, mas os paralelepípedos molhados da travessa a'Chats ergueram-se para encontrá-lo, e ele debateu-se no chão, indefeso. Gilles sentiu o gosto de sangue, viu as pedras da pavimen­tação em frente aos olhos, mas mesmo esse cenário estava escurecendo.

Ele ouviu vozes que ficavam cada vez mais fracas contra a tempestade. - ... morto por nenhuma mão além da mão de Cénzi... o utilino vai jurar que ele desmaiou... — Mas então o trovão voltou e levou embora as vozes, sua visão e o próprio Gilles com a frente de tempestade em disparada.

 

JUSTI IRROMPEU NO gabinete do archigos como um tornado, com o offizier da Garde Civile e o comandante ca'Rudka correndo para acompanhá-lo. Alguns dos tênis do templo levantaram-se para interceptar o trio de intrusos evidementemente furiosos, mas pararam no meio do caminho e dos feitiços quando reconheceram o kraljiki. — Ca'Cellibrecca! - rugiu Justi. Ele escancarou as portas do escritório do archigos com um baque e fez um quadro cair da parede. Ca'Cellibrecca, atrás da mesa com vários o'ténis encolhidos em volta, encarava de olhos arregalados.

Fora! — berrou Justi para os o'ténis e apontou para a porta. - Todos vocês. Agora!

Eles recolheram papéis e pergaminhos e passaram correndo por Jus­ti. O comandante fechou calmamente a porta quando os o'ténis saíram. Ca'Cellibrecca permaneceu sentado atrás da mesa. Justi notou que o archigos avaliava com o olhar o offizier desgrenhado e com a barba por fazer. - Kraljiki - falou cá Cellibrecca em tom confortador você está claramente perturba­do. O que aconteceu? Como posso lhe ajudar?

O offizier olhou de relance para caRudka, que fez que sim. - Conte para ele - falou o comandante para o offizier. - Conte para ele o que você contou para mim e para o kraljiki.

O homem concordou com a cabeça. Justi viu ca'Cellibrecca perceber a roupa suja do offizier, a lama nas botas e o cansaço na postura quando ele passou inutilmente a mão pela barba rala no rosto.

Eu vim de Ville Colhelm na fronteira, cavalguei em ritmo acelera­do, sem parar, por um punhado de dias quase sem dormir. Não sei quantas montarias eu matei para chegar aqui tão rápido assim... — Ele parou. Umedeceu os lábios. - O exército de Firenzcia cruzou o rio Clario em massa e tomou Ville Colhelm. Agora mesmo estão vindo para Nessântico. A Garde Civile foi afugentada na ponte, em grande inferioridade numérica. Perdemos um terço de nossos homens ao tentar manter a ponte antes que o a'offizier ca'Montmorte ordenasse a retirada. Ele mandou que eu desse a notícia para o kraljiki; o restante da tropa com o a'offizier ca'Montmorte está recuando para Passe a'Fiume e planeja ficar ali para esperar ordens e reforços.

Você diz que o hirzg está com eles? — indagou Justi. — E os ténis- -guerreiros também?

A divisão que encontramos levava o estandarte do hirzg, meu kral­jiki — respondeu o soldado. - Temos certeza de que ele está com a tropa, embora não tenhamos visto o hírzg durante a batalha. E eles tinham muitos ténis-guerreiros; foram devastadores. Não tínhamos nada para neutralizá-los. Nada.

Justi acenou com a cabeça. - Quero lhe agradecer imensamente pelo seu serviço - disse o kraljiki para o homem. - Vá. Coma alguma coisa e descanse. Vamos precisar de você mais tarde.

O homem prestou continência para Justi e o comandante, depois fez o sinal de Cénzi para o archigos. Ca'Rudka abriu e fechou a porta quando o offizier saiu. Assim que ela foi fechada, Justi voltou-se para ca Cellibrecca. Não havia cor no rosto do archigos. Ele parecia anos mais velho ao olhar para Justi. - Mas os pombos-correios que recebemos...

... foram para nos enganar, como o comandante suspeitava o tempo todo. Se eu não tivesse enviado tropas para a fronteira, contra o seu conselho explícito, como deve se lembrar, archigos, então nós talvez jamais saberíamos a intenção de ca'Vörl até seu exército cruzar o A'Sele. Então, archigos... - A raiva ardia em Justi, que fechou a cara.

Foi ca'Rudka quem falou: calmamente, ele disse as palavras que também estavam na mente de Justi. - Eu me pergunto, archigos, como é que o hirzg tem ténis-guerreiros no exército dele; ténis-guerreiros que teriam sido treina­dos em Brezno, no seu templo, sob o seu u'téni co'Kohnle.

Comandante, você não está sugerindo... - A voz de ca'Cellibrecca foi sumindo, seu olhar dirigiu-se para Justi como se procurasse apoio. O kraljiki simplesmente encarou o archigos, cuja mão apertava a base da garganta como se tentasse deter as palavras. O homem ficou ainda mais pálido; a pele parecia ser do tom do alabastro das estátuas dos corredores. - Certamente eu sabia a respeito das manobras, comandante, kraljiki - continuou ca'Cellibrecca. - Assim como a sua matarh. Mas isso era tudo o que elas deveriam ser: mano­bras. Eu certamente não conhecia as intenções do hirzg quando dei permissão para que os ténis-guerreiros o acompanhassem. Os ténis-guerreiros deveriam ter retornado a Brezno quando ficou claro que o hirzg ameaçava a paz nos Domínios; agir de outra forma foi uma gritante desobediência das ordens de batalha, e o u'téni co'Kohnle terá um castigo adequado caso isso seja verdade. Co'Kohnle deve ter se rebelado ou talvez coisa pior aconteceu com ele.

Realmente - disse Justi. - Eu odiaria acreditar que ele estava cumprindo ordens dadas por você.

Kraljiki... — Ca'Cellibrecca levantou-se agora e ficou visivelmente cal­mo. Justi quase torceu o nariz diante do gesto óbvio. O archigos fez uma pose de orgulho ferido, com a mão direita aberta e pressionada contra o peito. - Se está me acusando de traição, então me pergunto por que em vez disso não olha para o homem ao seu lado. Não fui eu quem perdeu tantos dos numeto­dos inimigos de estado, incluindo o líder deles.

Está tentando desviar a atenção, não é, archigos? - perguntou ca'Rudka. O comandante falou em um tom despreocupado, apoiado na parede perto da porta com uma postura casual. Ele esfregou o nariz de prata esculpido. - Eu já pedi desculpas ao kraljiki e aceitei a culpa pelo fracasso. Mas algumas dezenas de hereges escondidos com medo nas sombras do Ve­lho Distrito estão longe de ser a mesma coisa que um exército que se reúne às portas de Nessântico.

Calem a boca vocês dois. - Justi fechou a cara para os dois homens. Ca Rudka fez uma reverência, e ca Cellibrecca voltou a se sentar. - Archigos, eu vim aqui fazer uma pergunta simples: você está comigo?

Se não estiver - interrompeu ca'Rudka —, então talvez o archigos apre­ciaria uma das celas que os numetodos vagaram tão recentemente.

Comandante! - disparou Justi, e ca Rudka deu de ombros. - Archigos, uma resposta, por favor.

Ca'Cellibrecca abriu os braços como se desse uma bênção. - Eu posso assegurar ao kraljiki que ele tem a minha completa devoção. — Ca Cellibrecca pareceu tentar dar um sorriso conspiratório; ele falhou completamente e o sorriso virou uma careta de incerteza. - Afinal de contas, minha Francesca...

Sua filha não tem nada a ver com a situação - falou Justi. - Tenho certeza de que seria tão fácil convencê-la a se casar com o hirzg quanto comigo. Afinal de contas, ca'Vörl pode ter o atual casamento anulado. O archigos pode fazer tais favores, não é? Pelo menos é o que um certo comerciante no Velho Distrito fala à boca miúda... Cario co'Belli, que esteve em Brezno a mando do a'téni ca'Cellibrecca muitas vezes.

Justi viu o archigos visivelmente hesitar. — E óbvio que alguém anda en­chendo seus ouvidos com insinuações e mentiras, kraljiki - disse ca' Cellibrecca.

Eu não fiz nada, nada, que não tenha sido pelo bem de Nessântico e por você especialmente, kraljiki. Eu fui o a'téni de Brezno por anos, sim, e é verda­de que eu conheço bem o hirzg e trabalhei com ele várias vezes, mas não sou um traidor: não da Concénzia e não do trono do kralji.

Então eu tenho a sua resposta? - perguntou Justi. Ca'Cellibrecca fez que sim e deu uma rápida olhadela para o relaxado comandante. - Ótimo. Então você vai se preparar para partir comigo hoje à noite.

Partir, kraljiki?

O kraljiki mandou um pedido de negociação ao hirzg - falou o coman­dante ca'Rudka. - Ele quer encontrar ca'Vörl antes que o seu exército chegue a Passe a'Fiume. Juntamente com a Garde Civile da cidade, nós vamos pegar os remanescentes da Garde Civile de Ville Colhelm, bem como as guarnições de Passe a'Fiume, Ile Verte e Chiari. Há esquadrões de alistamento forçado pela cidade neste exato momento, e pajens foram mandados a todas as casas dos ca' e co' para convocar os chevarittai. Você cuidará para que os ténis-guerreiros da Garde Civile nos acompanhem. Nós teremos uma força capaz de manter Passe a'Fiume, se a situação chegar a esse ponto.

Ca'Cellibrecca ficou boquiaberto, depois pareceu se sacudir e reclamou

Kraljiki, não é o papel da Fé interferir em questões políticas. Essa é a sua arena, assim como cuidar dos fiéis de Cénzi é a minha. Creio que eu lhe servi­ria melhor aqui, onde posso ajudar a acalmar o medo do populacho e garantir que os numetodos não tirem vantagem de sua ausência. Afinal de contas, eu mesmo não sou um téni-guerreiro.

E dessa forma o archigos pode aparentar ter sido neutro, caso o hirzg vença - disse caRudka em poucas palavras. Ca'Cellibrecca disparou outro olhar para o comandante.

Apesar das rudes insinuações do comandante, eu farei o que o kraljiki deseja, é claro — falou o archigos. — Mas peço que considere o que aconteceria se o hirzg ca'Vörl escolher ignorar as regras da negociação como fez com as leis de Nessântico e decidir capturar o kraljiki, o novo comandante da Garde Civile e o archigos da fé concénziana, todos de uma vez só. O poder que isso daria a ele, os resgates que poderia exigir, as concessões que poderia forçar...

Você não declararia o hirzg imediatamente como um herege se ele fizesse isso, archigos? - perguntou Justi. - Não citaria a Divolonté para ele? Não retiraria o auxílio da Fé ou mandaria os tênis do hirzg interromperem as missas para os firenzcianos? Não diria aos ténis-guerreiros ao lado de ca'Vörl que eles não poderiam mais invocar Cénzi para lançar seus feitiços de destrui­ção e, caso fizessem isso, você cortaria suas mãos, arrancaria as línguas e os expulsaria da Fé? Na verdade, tudo isso é exatamente o que quero que você diga para ca'Vörl quando nos encontrarmos: ele tem que dar meia-volta com o exército; tem que entregar o controle militar das tropas dos Domínios em Firenzcia e, como garantia, vai enviar sua filha Allesandra para Nessântico como refém. Ele fará isso ou será declarado inimigo da Fé e dos Domínios e irá sofrer as conseqüências.

Kraljiki...

Presumo que eu esteja sendo suficientemente claro nessa questão, archigos - vociferou Justi, sem dar tempo para o homem reclamar. - Eu não sou minha matarh. Não evitarei confrontos distribuindo casamentos e alianças de um lado para o outro; não ficarei sentado no Trono do Sol tecendo teias de intrigas para prender e confundir meus inimigos. Ninguém irá me chamar de "Généri a'Pace", e isso não me incomoda de forma alguma. Quando for amea­çado, eu tratarei da ameaça diretamente e com uma força plena e terrível. Eu joguei o seu joguinho que envolveu o archigos Dhosti e os numetodos, e isso colocou você na posição que tanto cobiçava. Agora é a hora de devolver os favores que lhe fiz: por completo, sem ressalvas, e com juros. Se não puder fa­zer isso, archigos, então, como eu disse, tratarei da questão de maneira direta. Considerarei sua recusa como uma ameaça. Nós partiremos em 36 viradas da impulheta, archigos. Eu verei você com sua carruagem e quaisquer assistentes que queira levar nas muralhas da Pontica Mordei naquele momento, assim como todos os ténis-guerreiros que conseguir reunir na cidade... ou farei com que balance da Pontica como um alerta ao novo archigos.

Ca'Cellibrecca pestanejou. Sentou-se. O corpo tombou como uma massa de pão não assada. - Kraljiki, você me magoa até o fundo do coração. Eu estava apenas tentando garantir que você tinha levado em consideração todos os aspectos da situação, como é a obrigação de qualquer bom conselheiro. Você tem minha total lealdade. Estarei lá ao seu lado, como deseja.

Não é o que eu desejo — falou Justi. — É o que exijo.

 

TRINTA E SEIS VIRADAS da ampulheta... O que aquele homem está pensando? Ele não tem como reunir soldados suficientes até então. Mes­mo com as fundições trabalhando em plena capacidade, os homens não terão a quantidade de espadas ou armaduras que precisam. A impaciência dele é incontrolável para ter esta guerra.

Francesca ouviu do corredor os murmúrios irritados de seu vatarh enquanto era conduzida aos aposentos do archigos pelo secretário dele. O tem­plo inteiro estava em um frenético alvoroço com os preparativos precipita­dos, ténis e funcionários corriam de um lado para o outro como um vespeiro que alguém mexeu. — Archigos - falou o secretário ao pigarrear -, a vajica Francesca ca'Cellibrecca está aqui, como o senhor pediu.

Ah... - Orlandi olhou para trás. Ela raramente tinha visto o vatarh tão obviamente agitado e preocupado. As bolsas debaixo dos olhos estavam escu­ras; o cabelo, desgrenhado; havia manchas na parte da frente do robe. Ele ges­ticulou freneticamente para os criados. - Não se esqueçam do novo robe que o alfaiate trouxe no último parladi - falou Orlandi para os serviçais. - Quero que esteja à disposição. E verifiquem que o vinho esteja empacotado cuidadosamente com palha. Ah, e não podemos nos esquecer dos itens da sacristia. Francesca, sem dúvida você ouviu... - O archigos pegou a filha pelo braço e acompanhou-a à sacada de seus aposentos, depois fechou a porta e deixou o caos para trás. Ali, ele abraçou Francesca.

Vatarh, o senhor está tremendo. — Ela o soltou e deu um passo para trás.

Eu sei, eu sei. - Orlandi foi para o parapeito e contemplou a praça, onde dezenas de pessoas preparavam o comboio de carruagens do archigos. O templo em si estava brilhando. A linha da Avi a'Parete era uma fileira de pérolas resplandecentes que serpenteava pela cidade. - Francesca, eu não sei o que irá acontecer. O kraljiki Justi... o homem está me forçando a agir antes de eu estar pronto. Ele sabe. De alguma forma, o kraljiki sabe que o hirzg ca'Vörl e eu estivemos em contato. Ele não sabe até onde vai o contato ou não estarí­amos aqui conversando, mas o conhecimento em si é perigoso.

Pela primeira vez, Francesca sentiu uma ardência de medo no próprio estômago. Justi podia estar sinceramente atraído por ela, mas se o vatarh dei­xasse de ser um aliado político ou se o kraljiki o considerasse como um sério inimigo, então a atração por ela também se dissolveria. Justi não desejava pes­soas ou objetos que falharam em glorificá-lo ou servi-lo e descartava tais coisas inúteis sem se arrepender ou pensar duas vezes. A herege Ana co'Seranta de­monstrou isso para Francesca muitíssimo bem. Talvez essa situação explicasse por que Justi estivera tão distraído e bruto durante o ato de amor na tarde de hoje. Ela sentiu os hematomas nos braços e seios incharem. - O que o senhor vai fazer, vatarh?

Eu não sei. - A resposta foi quase um gemido. Ele rolou os olhos de um lado para o outro no reflexo das luzes mágicas que vinham da praça. - Eu não sei. Estou preso entre duas forças.

Vatarh, Justi se casaria comigo. Eu posso forçar o caso. Na verdade, firmar esse compromisso não amainaria as suspeitas dele?

E de que isso serviria para qualquer um de nós se Justi morrer ou for deposto como kraljiki? - Ele balançou a cabeça com tanta intensidade que moveu mechas grisalhas cheias de suor. - Não, minha querida, temos que manter o máximo possível de opções em jogo. Não tenho como saber mais até nos encontrarmos com o hirzg e até eu enxergar como é a verdadeira situação com meus próprios olhos. Enquanto isso, você tem que sair de Nessântico. .Assim que eu sair da cidade com o kraljiki, vá para o templo principal em Prajnoli e espere lá por notícias minhas. Eu já deixei instruções com o a'téni ca'Marvolli, e ele avisou seus u'ténis para esperarem por você. Talvez seja pos­sível que você precise ir embora completamente de Nessântico, Francesca. Você será capaz de chegar à fronteira de Firenzcia em dois dias de Prajnoli se for necessário ou retornar à Nessântico. Tem o disco de código que lhe dei? Mantenha com você, vai precisar para quaisquer mensagens que eu envie.

- Vatarh...

Ele balançou a cabeça novamente. - Eu não tenho nada melhor para lhe oferecer, Francesca. Não a esta altura. Está tudo nas mãos de Cénzi. - Ele pegou as mãos da filha. - Eu sei de uma coisa. Cénzi nos vê com bons olhos Dorque sou o Defensor de Sua Palavra e da Divolonté. Ele não irá me abando­nar. Ele não falhará conosco, não importa o resultado desta situação.

 

A PROCISSÃO SEGUIU para o sul pela Pontica a'Brezi Nippoli e para o norte até os portões da Avi a Firenzcia. Ana não conseguia estimar o nú­mero de soldados que escoltavam o kraljiki: vários milhares ou mais, muitos deles recrutados à força nos últimos dias quando esquadrões da Garde Civile passaram pela cidade pegando homens fortes e saudáveis. O Velho Distrito foi especialmente varrido; a taverna debaixo do apartamento de Mahri foi invadida duas vezes, embora os esquadrões tenham ignorado os aposentos acima por alguma razão. O passo em uníssono das botas das fileiras inchadas da Garde Civile fez o chão tremer como um terremoto, as lanças eram grossas como capim-navalha acima dos soldados. Ana encolheu-se ao lado de Karl em um telhado do outro lado da Avi e da antiga muralha da cidade. Mahri estava com eles e mexia em uma engenhoca qualquer perto da beirada do telhado.

Aquele é o comandante ca'Rudka - disse Ana. - Lá... está vendo, no cavalo de guerra branco? Ele está olhando para cá, para o telhado...

Ele não irá nos ver ou reconhecer — falou Mahri. - Não hoje. Não comigo aqui. — O mendigo falou com pura confiança, e se Karl fez uma careta de incerteza, Ana acreditava em Mahri sem entender o motivo. Ela segurou o braço de Karl e observou a procissão passar pela cidade e sair.

Olhe, lá está o kraljiki - disse Karl. Ana apertou mais seu braço assim que a carruagem de Justi apareceu na ponta norte da Pontica. Estandartes azuis e dourados com o punho cerrado do kraljiki segurando o globo partido de Cénzi tremulavam dos acompanhantes ao redor dele e da própria carrua­gem. As enormes cabeças de pedra dos antigos governantes retumbaram nos portões quando giraram para acompanhar o avanço do atual kraljiki. Ana ouviu o cântico dos ténis, sentiu o cheiro do perfume e viu o brilho das luzes mágicas ao redor de Justi, visível mesmo sob a luz do sol. Os chevarittai ca' e co' amontoavam-se em volta dele em suas montarias, usavam armaduras cobertas com as cores das famílias e os brasões das patentes como offiziers da Garde Civile nas vestes. A multidão em volta vibrou ao vê-los, e o kraljiki ergueu os braços radiantes e musculosos para o povo, vestido com um robe enfeitado sobre a armadura de placas reluzentes. Ana viu o queixo proemi­nente empinar-se diante da aclamação, notou a satisfação contida nos lábios. Algumas esposas da corte e grandes horizontales estavam entre os cortesãos e pajens que acompanhavam o comboio do kraljiki, mas Francesca não estava em lugar algum; esse era um pequeno consolo. Ana perguntou-se o que acon­teceu com a mulher e por que não estava acompanhando o kraljiki.

Aqui - falou Mahri. Ele afastou-se do dispositivo que montou e gesticulou para Ana e Karl. - Venham olhar através disso aqui. Ponha o olho aqui, Ana. - Mahri apontou para um pequeno tubo. Ana fechou um olho e colocou o outro na ponta do tubo de osso liso. Notou que havia vidro montado no tubo quando abaixou a cabeça.

Lá estava o kraljiki, tão perto dela que dava para ver a barba por fazer no rosto e cada jóia costurada na gola do robe. Tão perto quanto esteve quando fez amor com ele... Os olhos da cor de terra arada tão próximos e penetrantes que Justi poderia estar ao lado dela, a cena inteira parecia vibrar ligeiramente, como se o pisar forte das botas da Garde Civile estivesse sacudindo o próprio mundo...

Ela conteve um gritinho e deu um passo para trás. Mahri riu. - Um feitiço? - perguntou Ana. Karl colocou o olho no aparelho; ele também sufocou um grito e afastou-se um instante depois.

- Não é um feitiço - falou Mahri. - Apenas vidro e metal. Olhem... - Ele foi até uma poça d'água no telhado e enfiou a mão. Estendeu a outra mão e deixou uma única gota cair da ponta dos dedos sobre a pele. - Viram como a gota aumenta a pele embaixo? O vidro ali no tubo tem o mesmo formato; ele dobra a luz e aproxima a visão de coisas que estão distantes. Mas isso não é magia, não é o X'in Ka ou o Ilmodo. É apenas um aparelho que qualquer pessoa pode usar; é chamado de "verzehen", a visão além do alcance.

Karl colocou o olho no aparato óptico novamente. - Se eu pudesse chegar assim tão perto, sem que ele soubesse... não sei como ele não consegue sentir meu olhar, como se eu estivesse exatamente ao lado dele. - Ele endirei­tou o corpo outra vez. - Ana, vá em frente e dê outra olhada.

Ela fez que não para Karl. - Prefiro esta distância - disse Ana ao olhar a carruagem do telhado, em segurança por estar pequena e afastada. Ela viu o veículo do archigos aparecer no fim da Pontica, cercado por ténis de robes verdes. Ver ca'Cellibrecca vestido com os brocados dourados e enfeitados que Dhosti ca'Millac usou tão recentemente, com o globo dourado de Cénzi no peito, fez a boca de Ana se contorcer em um cara feia.

Mahri tocou o dispositivo e ele virou facilmente, a ponta mais grossa foi apontada para os portões da cidade. - Olhe aqui. Diga-me o que você vê.

Ana dobrou-se sobre o verzehen novamente. Conforme o olho ajustava-se ao mundo circular que o dispositivo revelava, ela viu as pedras do imenso portão que foi formado pelas enormes rochas da antiga muralha da cidade. Lá, preso entre as pedras no meio da coluna alta ao sul do portão, havia um cilindro que parecia ser feito de vidro. Ela conseguiu ver apenas uma ponta do objeto, que estava bem enfiado em uma fenda na argamassa. - Uma ampola fechada com cera marrom em uma ponta - disse Ana. - Tem algo dentro, mas não consigo ver bem. Uma substância vermelha?

— Eu coloquei a ampola ali - falou Mahri. — Como o verzehen, não há nada de mágico a respeito. Ela contém duas substâncias químicas diferentes, separadas por uma camada de cera. Juntas, elas não fazem nada. Mas se al­guém quebrar a ampola ou a cera derreter e as substâncias entrarem em conta­to... bem, elas são violentamente incompatíveis entre si. Cada uma procuraria destruir a outra e elas entrariam em erupção como um dos grandes vulcões de Il Trebbio, cuspiriam chamas e fumaça, e derrubariam as pedras dos portões em quem estivesse embaixo.

Ana endireitou o corpo novamente. Lá fora na Avi, a carruagem do kral­jiki deslocava-se vagarosa e inexoravelmente em direção aos portões da cidade. O único olho de Mahri encarou Ana. - Mas nada acontecerá a não ser que a ampola seja quebrada ou aquecida, uma coisa que alguém que conhece o Ilmodo pode fazer facilmente, tenho certeza. Só bastariam alguns instantes de cânticos e o lançamento adequado, perfeitamente alcançável daqui. - A aclamação da rua aumentou conforme a carruagem do kraljiki passou por de­baixo do prédio deles e começou a fazer a curva para o portão. Mahri ergueu a sobrancelha. O sol banhou as cicatrizes do rosto; para Ana, a face parecia uma carranca. - As pedras esmagariam completamente quem estivesse embaixo, e o pânico que viria a seguir mataria mais gente. Um acontecimento assim, adequadamente sincronizado, acabaria com a vida do kraljiki ou do archigos - continuou o mendigo. - Não tenho dúvidas quanto a isso.

Ana parou de olhar para Mahri. Ela contemplou o kraljiki, depois olhou para ca'Cellibrecca rua abaixo, cujas carruagens saíam da Pontica neste mo­mento. — Eu farei. - Ana ouviu Karl dizer, quase que com ansiedade, mas Mahri ergueu a mão. - Não - disse o mendigo. - Você não vai. Não vou permitir. A escolha é de Ana. Somente dela.

Quem levará a culpa? — insistiu Karl. - Os numetodos. E sempre assim com eles. Por que não torná-la a verdade literal desta vez?

Não vou permitir - repetiu Mahri. - Ana?

Por que não? Qualquer um dos dois tiraria a sua vida sem remorso ou arre­pendimento. Justi nunca amou você, nem por um momento; ele pegou o que você ofereceu e usou para trair o verdadeiro archigos. E ca'Cellibrecca teria feito com você o que fez com o pobre Dhosti. Foi apenas o alerta de Dhosti que lhe salvou. Você apenas faria com eles o que fariam com você, ou com Karl, ou com Mahri...

- Ana?

A carruagem do kraljiki virou. A Garde Civile ao redor dele estava no portão, a carruagem em si estava próxima agora. Por que não? Será que o hirzg seria um governante pior? Será que poderiam lhe magoar mais do que o kraljiki e ca'Cellibrecca já fizeram? Cénzi perdoaria você — a própria Divolonté diz: "Aque­les que desafiam e subvertem a vontade de Cénzi serão mandados ao Seu encontro e receberão a plena justiça". Você pode fazê-los pagar por Dhosti, pelos numetodos que eles mataram, pelo tormento que deram a Karl, pela maneira com que lhe trataram. Seria apenas justo...

A carruagem do kraljiki estava quase no portão. Tudo que ela precisava fazer era falar as palavras. Um simples feitiço de fogo — uma coisa que o uténi co'Dosteau ensinou para a turma do primeiro ano. Ana balbuciou as palavras do Ilmodo, sentiu as mãos começarem a moldar o feitiço.

A carruagem entrou no portão. A multidão amontoou-se ao redor do veículo, o povo vibrava e acenava enquanto o kraljiki devolvia os gestos. Eles acenariam e vibrariam da mesma forma se fosse o hirzg ca'Võrl que passasse por aqueles portões porque vibrar era seguro. Fingir estar do lado do vitorioso era seguro, mesmo quando o vitorioso não era melhor do que a pessoa que ele substituiu.

O fogo queimando carne, grandes pedras voando no ar, os gritos... a morte de Justi ou do archigos, sim, mas outros morreriam com eles, todos aqueles lá embaixo que vibravam e gritavam apenas para se protegerem e que não pediram por nada disso...

Ana fechou a boca. As mãos pararam de se mexer.

- Não posso - disse ela.

- Ana. - Ela ouviu Karl dizer, mas olhava para o rosto impassível de Mahri.

- Eu simplesmente... não posso - repetiu Ana, ainda sem saber para quem queria falar. - Não dessa maneira. O que acontece se eu fizer? - pergun­tou para o vento, para o sol, para o céu. - Estou ajudando ou simplesmente causando mais sofrimento, confusão e morte? Não sei...

Ela levantou as mãos e deixou que caíssem. A carruagem do kraljiki atra­vessou os portões; o veículo do archigos passou por eles. A multidão rugiu, um som como a respiração vibrante do próprio Cénzi. Ana sentiu lágrimas arderem nos olhos. - Não posso fazer isso. Não sem saber. Não sem alguma esperança de que estou mudando as coisas para melhor.

Mahri simplesmente concordou com a cabeça. Ela sentiu o abraço de Karl pelas costas. — Eu compreendo - sussurrou ele no seu ouvido. — Com­preendo sim.

Eles assistiram à passagem da carruagem do archigos pelo portão. O veículo acompanhou o kraljiki para fora de Nessântico e entrou na Avi a Firenzcia na direção do hirzg, que estava à espera.

 

EU ACHO BEM bonito, vatarh. Deveria ser um quadro.

Eu gostaria de poder enxergar com os seus olhos — disse Jan para sua filha. — Tudo que vejo é um campo de batalha. - Ele pousou o braço nos om­bros de Allesandra e abraçou-a.

As montanhas cobertas por pinheiros da cordilheira Cavasiana envolviam Passe a Fiume em suas longas encostas íngremes. Lá, o rio Clario fluía branco e rápido ao descer dos planaltos Sigar no extremo oriente de Nessântico. A cidade ficava empoleirada na margem ocidental do Clario; uma longa ponte cruzava o rio a partir do portão de Passe a Fiume: a Pontica Avi a Firenzcia, o único ponto seguro para cruzar o bravio Clario por vários quilômetros nas duas direções até que o rio se acalmava e ficava mais largo ao se preparar para desembocar no grande A'Sele.

A cidade sabia de sua importância - era a maior da região leste de Nessântico, ainda residia quase que inteiramente dentro das muralhas fortificadas de três séculos de idade que foram erigidas sob as ordens do kraljiki Sveria I durante a interminável Guerra de Secessão, quando Nessântico buscou colo­car Firenzcia completamente sob seu controle. As muralhas grossas de granito repeliram meia dúzia de sítios desde a época do kraljiki Sveria.

Agora o populacho contemplava das janelas com jardineiras e das torres com ameias e imaginava se sobreviveriam a um sétimo ataque.

Os ténis-guerreiros podem realmente romper essas muralhas, vatarh? Elas parecem tão grossas.

Podem sim. Eles romperão, caso o kraljiki não aceite nossos termos.

Ele não vai aceitar - falou Allesandra com certeza. - Se ele for como o senhor, vatarh, ele não vai se submeter.

Jan riu ao ouvir isso. A alegria parecia deslocada.

O hirzg havia disposto o exército nas encostas ao longo do Clario — a alguns quilômetros da cidade, mas no alto das escarpas voltadas para Passe a Fiume. Ele sabia que os cidadãos veriam as tendas e fogueiras, os estandartes que tremulavam e a massa escura em movimento dos soldados que cobria as encostas como uma horda de insetos vorazes prestes a descer e devorar a cidade. Eles viram o exército se reunir nos últimos dois dias; podiam notar os soldados através dos filetes de bruma matinal até mesmo agora. Jan conhecia o medo que os cidadãos sentiriam e sabia que as forças que o kraljiki trouxe com ele seriam de pouco alento para a população de Passe a'Fiume.

Mesmo que o kraljiki conseguisse manter a cidade, um sítio significaria a morte de muitos moradores. Dificilmente uma vitória tão cara seria distinguível de uma derrota.

Desta posição privilegiada, Jan podia enxergar através da bruma as tendas de negociação montadas no campo logo depois do Clario, em frente a Passe âFiume: eram como flores brancas na grama diante das sombrias mura­lhas da cidade e da faixa marrom-esverdeada do rio. O estandarte do kraljiki tremulava no poste central da tenda maior. Havia algumas centenas de ho­mens da Garde Civile lá, mas o kraljiki mantinha a maior parte dos soldados escondidos atrás do baluarte cinzento, austero e impassível das muralhas da cidade. Não importava: os espiões de Jan, enviados bem à frente do exército, relataram o número de tropas para ele.

Talvez metade das forças que estiveram em Ville Colhelm sob o comando de ca'Montmorte, alguns milhares vindo devagar de Chiari e Prajnoli, e talvez cinco mil que marcharam com o kraljiki e o archigos de Nessântico. Muitos dos cidadãos estão fugindo pelos portões orientais, desesperados para deixar a cidade, mas os esquadrões de alistamento forçado estão trabalhando lá e não deixam os homens saírem.

O kraljiki comandava uma força menor do que o exército às costas de Jan, porém mais do que o suficiente para tornar difícil um sítio a Passe a'Fiume. No entanto, havia ações em andamento que Jan duvidava de que o kraljiki estivesse ciente. Como em um jogo de cartas, saber a mão que o opo­nente recebeu dava uma enorme vantagem no processo de apostas. Jan deu um sorriso cruel ao olhar para as tendas de negociação que esperavam pela reunião naquela tarde.

O kraljiki vai montar sua resistência aqui, mas não tem certeza do resultado; é por isso que ele quer negociar - disse a voz de Markell.

Jan riu novamente ao soltar a filha para olhar para Markell. A figura magra como um palito do ajudante de ordens parecia estranhamente deslo­cada em uma cota de malha. Markell também contemplava Passe a'Fiume através da bruma fina da manhã. - E, como sempre, você sabe exatamente o que estou pensando - disse Jan para ele. — Assim como Allesandra. Pareço ser completamente transparente para vocês dois.

E o meu trabalho antever o que o senhor quer, meu hirzg - respondeu Markell em tom sombrio. - Eu sei que esta situação não é a que esperáva­mos; a estupidez do starkkapitän ca'Staunton em Ville Colhelm custou-nos uma travessia fácil do Clario e muitas vidas se tivermos que tomar a cidade à força. Ainda assim, com um sítio de uma semana, bem possivelmente menos do que isso, o senhor terá a rendição que quer, creio eu. O kraljiki está procurando uma solução diplomática, não uma militar. Como a matarh dele faria.

Jan fez uma cara feia. A avaliação de Markell era bem verdadeira: se câStaunton tivesse seguido as ordens em Ville Colhelm, o kraljiki ainda esta­ria em Nessântico com a Garde Civile em seus quartéis, e os portões de Passe a'Fiume já estariam abertos para Jan, assim como a estrada para Nessântico. Agora a estupidez teria que ser paga em sangue. Muito sangue... — Você parece ter certeza, Markell. Infelizmente, eu não.

Foi Allesandra quem respondeu. - O kraljiki Justi nunca lhe enfrentou em batalha, vatarh.

Eu agradeço a confiança — respondeu Jan com um sorriso para a filha -, mas o rosto de Markell está solene demais. O que foi, Markell?

O u'téni co'Kohnle requisitou uma audiência. Ele está esperando em sua tenda. Diz que está... preocupado com os ténis-guerreiros, uma vez que sabemos que o archigos está com o kraljiki em Passe a'Fiume.

Jan suspirou alto. Esfregou os braços para combater o frio da manhã. - Ah, eu esperava por isso. Nós temos notícias de ca'Cellibrecca?

Não, hirzg. Porém, em defesa do archigos, seria bem difícil para ele entrar em contato conosco no momento.

Jan torceu o nariz. — Ca'Cellibrecca não pode mais ficar em cima do muro. É melhor que ele se dê conta disso. É bom que não me traia, ou se trair, terá que rezar para Cénzi e pedir que o kraljiki vença porque eu farei pior do que tirar sua vida caso ele fique no meu caminho. - Jan tomou um longo fôlego e soltou o ar abruptamente.

Sim, meu hirzg - falou Markell. - E o u'téni co'Kohnle?

Eu irei falar com ele. Venha, ande comigo e Allesandra de volta à tenda. - Jan colocou o braço sobre os ombros da filha novamente enquanto dava uma última olhadela para o campo e as tendas que aguardavam fora das muralhas...

Semini - disse ele ao entrar. — Você queria me ver.

Co'Kohnle fez o sinal de Cénzi e uma grande mesura para Jan, um gesto que deixou à mostra o cabelo negro espesso e com fios grisalhos da cabeça. A barba nas bochechas e queixo tinha os mesmos fios grisalhos do cabelo. Braços musculosos flexionaram-se por baixo do robe verde, e Jan notou os anéis de aço da cota de malha por baixo. O globo partido de Cénzi estava pendurado de maneira proeminente em seu pescoço. - Meu hirzg, obrigado pelo seu tempo.

Eu sei o que lhe preocupa, Semini - falou Jan. - Certamente você sabia que a situação poderia chegar a este ponto.

Co'Kohnle deu um sorriso curto. - Se me perdoa, a distância entre "poderia chegar" e "chegou" é a mesma do Strettosei inteiro, meu hirzg. Já não é mais o caso de "poderia", e por conta disso, muitos dos ténis-guerreiros estão preocupados. Vim falar em nome deles.

Jan tinha certeza de que havia outros motivos em jogo aqui. Ele conhecia co'Kohnle bem o suficiente para saber que o homem era um devoto fanático; também o conhecia bem o suficiente para saber que sua devoção era dedicada a Cénzi, e não necessariamente àqueles que alegavam falar pelo deus. Havia uma ambição e ego brutos no homem... e isso significava que ele podia ser manipulado. Jan gesticulou para a mesa onde os pajens colocaram pão e vi­nho. - Por favor, sirva-se - disse ele. - E quanto a você, Semini? Você está preocupado?

Estou tão preocupado quanto qualquer pessoa de fé estaria - respondeu co'Kohnle. Ele pegou um pão, arrancou um pedaço da outra ponta da bisnaga e virou nos dedos. — A fé concénziana é o que nos sustenta, e o archi­gos é a pessoa a quem juramos ser leais. Não ao kraljiki. Nem mesmo, com seu perdão, ao hirzg. Portanto, sim, eu estou preocupado, porque o archigos está aqui em Passe a'Fiume e com o kraljiki, e não é uma conseqüência trivial para um téni ser expulso da Fé. — Ele abaixou o olhar para as mãos fortes e ergueu-as para Jan. - O senhor sabe o que acontece com um téni que é expulso, caso um dia volte a usar o Ilmodo novamente.

Aqui está, então. Jan observou co'Kohnle enfiar o pão com cuidado na boca, mastigar por um momento, e engolir. - Continue, Semini, estou ouvindo.

Eu sou um homem prático, como sabe, meu hirzg. Eu nasci em Firenz­cia. Dentro da Fé, eu servi o archigos Orlandi em toda a sua gestão como a'téni de Brezno. Sempre fui mais leal a ele do que àquele anão Dhosti, e tam­bém sempre fui mais leal ao hirzg do que à kraljica Marguerite, e certamente mais leal ao senhor do que ao kraljiki Justi. Minhas afinidades seguem os obje­tivos declarados pelo novo archigos, como sabe. Eu adoraria ajudar a expulsar os numetodos dos Domínios e acabar com a heresia deles. O Ilmodo tem que permanecer nas mãos da Concénzia, por várias razões. Sei que o senhor também compartilha dessas opiniões, e é por isso que o senhor e o archigos combinam tão bem um com o outro. Eu também lhe dei a minha palavra que lhe serviria em seu posto como líder do éxercito de Firenzcia, assim como os outros ténis-guerreiros aqui. Eu sou firenzciano, mas...

Ele arrancou outro pedaço do pão. - Se o archigos declarar que nós ténis-guerreiros que lutamos com o senhor estamos desafiando a Divolonté, então eu não sei. Alguns ainda lutarão; outros, não. O mesmo é verdade para os chevarittai e os soldados; existem aqueles que ficarão com medo de lutar se pensarem que estão fazendo algo que ameace seu relacionamento com Cénzi.

Jan concordou com a cabeça. E você não estaria me dizendo isso se já não tivesse a solução na cabeça e se não procurasse por alguma coisa. Ele serviu vinho em uma das taças e ofereceu para co'Kohnle, depois se serviu. - Eu agradeço sua cautela e suas considerações, Semini - falou o hirzg. — Ocorreu-me que, uma vez que o pobre Estraven ca'Cellibrecca jamais chegou a Brezno, o pos­to de a'téni de Brezno está vago, e que você, como a pessoa que lidera meus ténis-guerreiros e como confidente do archigos quando ele estava em Brezno, é agora o téni de mais alta patente em toda Firenzcia. Eu suspeito, e aqui vai apenas uma especulação minha, Semini, que o archigos pode ser persuadido, se vencermos, a nomear você como a'téni de Brezno.

Jan notou o espasmo de pequenos músculos no maxilar de co'Kohnle enquanto o homem ponderava sua meia promessa. Sim. Era isso! — Falando nisso — continuou o hirzg —, caso o archigos cometa o terrível erro de me trair aqui, um erro que ele bem pode cometer, então depois de nossa vitória eu estaria em uma posição capaz de influenciar todos os a'ténis da Fé a nomear um novo archigos, um cuja lealdade seja inquestionável. Eu recompenso bem aqueles que ficam ao meu lado, Semini. Eu recompenso muito bem, espe­cialmente se demonstram como podem ser líderes efetivos. Garanto-lhe que os soldados de Firenzcia não deixarão de lutar mesmo que um falso archigos ameace suas almas, porque aqueles que os comandam não permitirão. Porque eu não permitirei. O starkkapitän ca'Staunton não compreendeu isso, mas o starkkapitän ca'Linnett parece ter entendido o conceito. Você me entende, Semini?

O homem concordou lentamente com a cabeça. — Sim. Creio que sim, meu hirzg.

Jan deu um passo à frente na direção dele, tão próximo que podia ver os pelos nas narinas do sujeito. — Então lhe pergunto, u'téni co'Kohnle, como comandante dos ténis-guerreiros, você acha que aqueles sob seu co­mando entenderiam que um archigos que traiu sua palavra para mim é um falso archigos que não merece o título? Acha que entenderiam que um homem assim não fala mais por Cénzi, não importa o título que possa ter no momento?

O homem franziu os olhos. Ele encarava Jan, mas o olhar estava em outro lugar, perdido na imaginação. - Eu acho que posso persuadi-los a enxergar seu ponto de vista, meu hirzg, caso seja necessário. Sim.

Jan ergueu o vinho e bateu com a borda da taça na de co'Kohnle. — Óti­mo. Bebamos então ao nosso entendimento.

 

NESSÂNTICO SEM um kralji sacolejava como um barco sem uma mão no timão. A Concénzia sem um archigos no templo engasgava e vacilava. A cidade estava ansiosa, dava pulos ao ouvir qualquer barulho e encolhia-se de medo com qualquer nuvem escura. Rumores voavam pela cidade como assustadores e furiosos morcegos negros que batiam as asas.

A Garde Kralji estava especialmente nervosa, e a Bastida estava lotada por pessoas presas por declarações traiçoeiras. O sistema judicial ficou rapida­mente sobrecarregado; juízes ofereciam a muitos dos presos a chance de pro­var a lealdade (e retomar a liberdade) caso se juntassem à Garde Civile; muitos aceitavam. Somado a isso, os esquadrões de alistamento forçado da Garde Civile percorriam diariamente a cidade e as vilas e fazendas ao seu redor para pegar quaisquer homens desavisados que encontrassem e jogá-los no acampa­mento cada vez maior do lado de fora das muralhas da cidade, ao longo da Avi a'Parete. Lá, esquadrões cansados e apavorados podiam ser vistos marchando e treinando durante o dia. Guarnições de Villembouchure e Vouziers chegaram poucos dias depois da saída do kraljiki e incharam tanto o acampamento que as Avis ao norte e oeste da cidade ficaram lotadas de soldados, da estrada até as margens do rio Vaghian. Centenas, se não milhares de soldados inundavam a cidade à noite: nos restaurantes, bares e tavernas, nos bordéis. Mesmo du­rante o dia, grupos de soldados com espadas à cintura eram vistos em todas as praças públicas.

A crise afetava a Concénzia também. Sem o archigos e os ténis mais experientes e graduados, a infra-estrutura de Nessântico vacilava. Havia rumores de que os a'ténis, cuja maioria ficou para trás a fim de cuidar dos assuntos da Concénzia na ausência do archigos, procuravam por desculpas para voltar às cidades de origem e planejavam suas partidas. Como conseqüência, os tênis da cidade eram mal direcionados, e as preocupações e incertezas deixavam seus feitiços do Ilmodo fracos e ineficazes. O esgoto fluía sem tratamento para o A'Sele e tornava o rio um valáo ainda pior do que o usual, o fedor ia muito além das margens. A iluminação noturna da Avi a'Parete era irregular — às ve­zes longos trechos da Avi, especialmente na zona leste do Velho Distrito, fica­vam às escuras simplesmente pouco depois de algumas viradas da ampulheta e as lâmpadas terem sido acesas. As fundições que utilizavam ténis para acender os grandes fornos e as forjas descobriram que o fogo do Ilmodo às vezes era fraco demais para derreter o minério sem usar mais carvão do que o normal. As carruagens conduzidas por ténis eram uma visão rara mesmo para aqueles da Concénzia, e uma vez que o exército cada vez maior levou a maioria dos cavalos, as pessoas andavam ou ficavam em casa. A maior preocupação era a falta de ténis para as brigadas de incêndio, e havia o medo de que uma fagulha qualquer pudesse destruir quarteirões e casas, especialmente no Velho Distri­to, antes que ténis suficientes pudessem ser chamados para apagar as chamas.

As grandes cabeças de pedra em cada um dos vários portões da cidade não giravam mais com o sol; não havia tênis disponíveis para dar mobilidade. As trompas nos templos ainda anunciavam as chamadas, as missas continua­vam - e os u'ténis e o'ténis que realizavam os rituais viam mais pessoas nos bancos do que era normal, porém menos folias, siqils e solas nas caixinhas de doações.

A guerra era uma sombra no pensamento de todos, nas atividades de todo mundo. A própria Nessântico não passava por um sítio ou mesmo uma batalha próxima há séculos. Essa não era uma situação que tivesse um equi­valente para as muitas gerações de famílias que viviam entre as muralhas há muito tempo rompidas da capital. A guerra era algo que acontecia nos limites e fronteiras dos Domínios - em Tennshah, Daritria, Shenkurska, na fria Boail ou nas distantes Terras Ocidentais sempre lá, sempre facilmente à dispo­sição para aqueles que procuravam fama e glória através de suas sangrentas circunstâncias, mas sempre a uma distância segura.

Nunca mais. A guerra pairava bem ali ao leste, uma nuvem escura no horizonte com raios estalando debaixo da base negra. As feiras estavam lotadas todos os dias, mas as barracas ficavam vazias por conta do inchaço da cidade e do desvio dos produtos agrícolas para alimentar o exército, as pechinchas eram desanimadas, as conversas não envolviam a qualidade das verduras e car­nes, mas sim o que poderia acontecer se as negociações do kraljiki falhassem. Na margem sul, ficou ainda mais caro comer nos restaurantes da moda con­forme os suprimentos ficavam escassos e os preços dos cardápios subiam como resposta. Na margem norte, para os moradores pobres, o preço do pão que era congelado há décadas em uma d'folia triplicou de uma noite para outra após a partida do kraljiki e continuava a aumentar; havia relatos de serragem misturada à farinha ou de pães bem menores do que o padrão mínimo - ambas práticas ilegais, mas que também não eram surpreendentes. Lojistas abriam as portas todas as manhãs, mas poucos fregueses entravam, e aqueles que en­travam queriam conversar sobre política, não a respeito das mercadorias em exposição. Os artífices descobriram que os clientes ricos que os contratavam para construir ou remodelar, para emassar ou decorar, para tocar música nas festas ou pintar retratos combinavam poucos serviços. "A guerra, você sabe..." era sempre a resposta, acompanhada por um rolar de olhos para o leste.

A guerra...

A guerra era uma sombra sobre Ana também. Os esquadrões de alistamento invadiram a taverna embaixo da moradia de Mahri duas vezes na sema­na seguinte à partida do kraljiki. A confusão acordou Ana e Karl às altas horas, embora novamente os esquadrões jamais tenham subido para seus aposentos, um fato que ela já não achava mais tão estranho assim. Na terceira vez que eles vieram, a invasão começou com os mesmos gritos abafados ouvidos através do chão do apartamento, gritos que interromperam e depois afastaram o sonho em que ela conversava com o archigos Dhosti no Velho Templo. No sonho, o archigos estava mandando que ela curasse sua matarh, mas a matarh parecia possuída, falava em vozes que não eram dela, berrava alto...

- Ana?

Estou ouvindo. — Ela abriu os olhos e conseguiu enxergar Karl de ma­neira turva sob o pouco de luar que entrava pelas palhetas das persianas. Ele estava diante de uma das janelas, com a persiana um pouco aberta para ver o pátio lá embaixo. Mahri tinha saído. Ana ouviu barulho de vidro se quebrar lá embaixo e mais gritos.

Lá vão eles - disse Karl da janela. - Estão arrastando quatro pobres desgraçados que não voltarão para as esposas ou famílias hoje à noite ou tão cedo. Daqui a pouco eles só terão crianças para levar.

Ana levantou-se dos cobertores e foi até ele. A proximidade de Karl era uma sensação boa, um calor pelo corpo. Ele passou o braço por Ana enquanto os dois observavam o esquadrão de alistamento levar os homens rua abaixo. Ela sentiu Karl tirar o braço e ouviu quando ele começou a falar em sua estra­nha versão da língua do Ilmodo.

Você não pode, Karl. Eles saberiam que esteve aqui, levariam você de volta para a Bastida.

As mãos de Karl pararam de se mexer, a voz ficou quieta. Ana notou outros rostos nas janelas pela rua: pessoas que perguntavam quem fora le­vado desta vez. Uma mulher saiu correndo e gritando de uma das portas, tentou puxar um dos homens para longe do esquadrão, e foi empurrada por eles. - Falina, eu voltarei. Cuide de Saddasi. Eu voltarei... - eles ou­viram o homem berrar ao ser levado pela rua até a próxima esquina. A mulher encolheu-se no chão aos prantos enquanto os vizinhos saíram para confortá-la.

O braço de Karl apertou os ombros de Ana. Ela apoiou-se no abraço.

Eu odeio isto. - Ana ouviu Karl dizer. - Odeio tudo isso: ficar escondido, o medo constante, a maneira como a cidade inteira se sente.

Eu sei. Também estou cansada disso.

Nós deveríamos ir embora - falou Karl. - Ir para outro lugar qualquer. Voltar para a Ilha, talvez. Tem coisas que eu adoraria mostrar para você lá, se fosse comigo.

Como a mulher que você deixou lá com a promessa de noivá-la? Ela tinha medo de dizer isso, medo de que houvesse muita amargura na voz e muita vulnerabilidade no coração. - Não posso ir embora — falou Ana. — Aqui é o meu lar. Minha matarh está aqui, o Templo do Archigos está aqui, assim como qualquer esperança que eu tenha de derrubar as mentiras que têm sido espalhadas sobre mim e o archigos Dhosti. Se fugirmos, Karl, todos pensarão que é tudo verdade, e... — Ela parou. Fungou. — Fumaça - disse Ana com difi­culdade. - Algo queimando. - Ela virou-se e olhou para o quarto. Pensou ter visto uma bruma escura entrar na escuridão do quarto, como um névoa negra que se infiltrava pelas tábuas do assoalho do outro lado do quarto. Havia luz também, um brilho vermelho que penetrava pelas frestas das tábuas gastas de ébano.

Fogo - murmurou Ana. - A taverna...

Vamos — falou Karl. Ele pegou Ana pelo braço. - Temos que sair daqui. Rápido...

Eles fugiram dos aposentos e desceram a escada externa. As chamas já lambiam as persianas do primeiro andar e a fumaça saía da frente do prédio. O alarme começava a se espalhar através de gritos e berros dos prédios próxi­mos conforme os vizinhos alertavam uns aos outros. - Encontrem o utilino! - berrou alguém. - Precisamos dos ténis-bombeiros ou o quarteirão inteiro será perdido!

Karl ficou puxando o braço de Ana enquanto ela permanecia no centro da alameda e olhava fixamente o prédio. A porta da taverna estava delineada pelo fogo. — Temos que ir embora. Você não pode estar aqui quando eles vierem.

Eles não chegarão a tempo — reclamou Ana. — Você sabe disso. Nós podemos apagar o fogo. Eu sei o feitiço.

Eu não sei, e aquele incêndio exigiria uma dezena de ténis-bombeiros, Ana. O prédio foi perdido, e logo vai acontecer com todos ao redor; não dá para determos isso.

Ela afastou a mão de Karl em seu braço. — Ana...

Ana fechou os olhos diante do apelo. Começou a entoar, tentou lembrar-se das palavras ensinadas pelo u'téni co'Dosteau. Um gestual mais amplo desta vez; maior até do que antes... As palavras vieram devagar, mas aí ela pegou o ritmo do cântico e as palavras fluíram com facilidade, as mãos moldaram o poder que ela sentiu crescer ao redor com o cântico. A forma que o u'téni co'Dosteau ensinou era truncada, um pequeno feitiço de treino, mas Ana improvisou e deixou que a mente encontrasse caminhos que expandissem o feitiço. Não pensou em nada, apenas deixou a mente aberta para o Ilmodo, deixou as mãos se moverem inconscientemente. O poder continuou a aumen­tar, uma tempestade invisível de chuva e vento ao redor de Ana que apenas ela era capaz de sentir, uma tempestade que se debatia, resistia e lutava contra Ana. Quando ficou tão forte que ela temeu não conseguir mais conter, Ana parou de entoar e manteve a palavra de lançamento do feitiço na mente: outra vez era uma palavra que ela não conhecia, uma palavra que Cénzi deve ter colocado em sua cabeça.

Ela abriu os olhos e, a distância, colocou as mãos em concha em volta da taverna. Notou os dedos tremerem e brilharem com um tom frio de azul.

Ana falou.

O próprio ar respondeu a ela.

O feitiço disparou, uma explosão invisível e gelada que reduziu a lascas as portas e persianas da taverna. O vento uivou e soltou um grito agudo que obrigou as pessoas por perto a colocar as mãos nos ouvidos. A fumaça que saía do prédio aumentou tremendamente, mas ganhou um estranho tom branco que parecia brilhar sob a luz do luar e sobrepujou as chamas vermelhas. Um rápido UOMP reverberou pela rua e foi seguido por silêncio.

Assim ficou o prédio: o primeiro andar escurecido em volta dos buracos abertos das janelas e da porta, com filetes de fumaça ainda subindo. Mas não havia chamas visíveis. Ana viu a cena, mas aí bateu o cansaço do Ilmodo, tão forte quanto jamais tinha sentido. Os joelhos cederam, e ela ouviu os gritos da multidão e uma voz perto que disse - Ana, você é mais perigosa do que qual­quer um pensou. - A voz era de Mahri, e Ana vislumbrou o rosto machucado e encapuzado no túnel estreito de sua visão.

Mahri - falou ela. - Eu precisava...

Não, não precisava, mas não fico surpreso que tenha pensado que precisava. E agora nós temos que tirar você daqui.

Ana sentiu-se sendo erguida. - Karl? - Ela viu os prédios passarem e ouviu as pessoas gritarem em volta... porém era mais fácil cair no sono do que se preocupar a respeito da situação, e Karl e Mahri estavam lá para protegê-la, portanto ela permitiu-se despencar por um tempo. Nunca chegou exatamente à inconsciência. Esteve ciente do movimento, das vozes, de ser levada para algum lugar. Ela devia ter dormido um pouquinho; acordou sentindo o cheiro de pão quente e chá. Ana abriu os olhos para a luz do dia em um quarto que não reconheceu.

Já não era sem tempo - ouviu Karl dizer. Ele veio de outra sala com um prato e uma caneca que colocou no chão, ao lado do colchão de Ana, depois sentou-se ao lado. — Quatro viradas da ampulheta, eu diria, se tivéssemos uma ampulheta para virar. É de manhã. - Karl sorriu. - Eu trouxe o café. Sabia que estaria faminta.

Karl ofereceu o pão com uma única fina passada de valiosa manteiga por cima. Bastou o cheiro para deixar Ana esfomeada, e ela pegou uma das fatias e avançou vorazmente. - Mahri? - conseguiu dizer entre as mordidas.

Ele trouxe a gente aqui, depois desapareceu. Não o vi desde que amanheceu. O homem não deve dormir como as pessoas normais. - Ana sentiu o olhar de Karl enquanto pegava outra fatia e tomava um gole da caneca de chá fumegante. - Aquela foi uma demonstração impressionante do Ilmodo. Qua­se me fez querer acreditar em Cénzi. Acho que também impressionou Mahri. Ele ficou murmurando sozinho o tempo todo em que carregamos você.

O incêndio teria destruído tantas casas. Todas aquelas pessoas...

Eu sei. Eu entendo por que você não me ouviu. Só não compreendo como fez tudo aquilo.

Eu também não compreendo como você faz - falou Ana. - Por um tempo, isso me fez duvidar de tudo. Inclusive de mim mesma.

Karl sorriu novamente. - Evidentemente, você reencontrou-se. - A mão dele fez carinho no rosto de Ana; o toque provocou um calafrio nela.

Não - disse Ana, e ele recolheu a mão.

O que foi?

Qual é o nome dela? A mulher em Paeti. Sua noiva.

Ela não tinha certeza por que disse aquilo: as palavras escaparam como se estivessem à espreita na mente, à espera. Houve um longo silêncio. Karl olhou fixamente para Ana. - Como você soube?

Faz diferença? - Ela ficou incomodada que Karl parecia mais irritado do que envergonhado. - O que importa é que você jamais falou dela para mim. Qual é o nome dela?

Ana viu Karl tomar folêgo, depois outro. - Kaitlin - falou finalmente. - Ana, eu estou há dois anos longe de casa agora. Não sei quando retornarei ou se retornarei. Kaitlin e eu... nós prometemos que seríamos fiéis. Mas acho que ambos sabíamos que eu poderia encontrar outra pessoa ou que ela poderia...

Isso aconteceu?

Ele abaixou a cabeça. Concordou. - Comigo, aconteceu. Acho que você sabe disso.

E com ela?

Não sei.

Você devia saber, Karl.

Ele não falou nada. O chá fumegava na caneca nas mãos de Ana. — Acon­teceu com você? - perguntou Karl finalmente. - Comigo?

Talvez. Não sei. Muitas coisas aconteceram, e eu não tenho certeza de nada neste momento. Mas não sei se estou pronta para o que você quer.

Por causa de Kaitlin.

Ana não era capaz de decidir se isso foi uma declaração ou uma pergunta. Ela concordou com a cabeça. - Sim. E... outras coisas. Karl, eu talvez nunca esteja pronta.

Caso ele tivesse ido embora, caso tivesse simplesmente feito que sim e aceitado aquilo, ela saberia que tudo estaria terminado entre os dois. Ana sabia que essa atitude teria matado seja lá o que foi que os aproximou. Teria mudado as coisas entre eles para sempre.

Karl não fez isso. Ele ajoelhou-se na frente de Ana e pegou em suas mãos enquanto segurava a caneca e disse — Então eu posso esperar.

 

A BRUMA DA MANHÁ foi embora há várias viradas da ampulheta, e o céu estava cheio de nuvens cinza que vinham vagarosamente na direção deles. Justi gesticulou, e o grande portão de Passe a'Fiume gemeu e reclamou ao ser erguido enquanto os grossos portões de carvalho foram abertos. A comitiva de Justi era pequena: não mais do que vinte chevarittai ca' e co' que cuidavam dele, o comandante ca'Rudka acompanhado por dois duplas mãos[1] da Garde Civile, o archigos ca'Cellibrecca com o u'téni co'Bachiga de Passe a'Fiume e meia dúzia de ténis-guerreiros do Templo do Archigos.

Das muralhas da cidade, Justi tinha observado o séquito do hirzg ca'Vörl entrar ostensivamente no campo exatamente além do alcance de flechadas (embora não fora do alcance dos ténis-guerreiros). Os arqueiros permanece­ram dispostos nas muralhas enquanto a pequena força de Justi avançou do portão para a ponte do rio Clario. Um pajem com o uniforme do kraljiki es­perava do outro lado da ponte segurando uma espada embainhada nos braços. Ele fez uma mesura quando Justi foi lentamente a cavalo até o pajem.

Meu kraljiki, o hirzg Jan ca'Vörl aceitou sua espada de mim e pediu que lhe desse isso em retorno - disse o pajem. A voz do jovem tremeu um pouco ao apresentar a espada pelo cabo. Justi inclinou-se para pegar a arma enquan­to o pajem, ainda curvo, recuou. A espada era simples, mas obviamente bem usada: a espada de alguém que usou a arma como ferramenta de guerra, não em tediosas cerimônias. As tiras que envolviam o cabo estavam manchadas, e a sensação era de solidez. As iniciais do hirzg foram gravadas no pomo, as linhas fundas e elaboradas foram preenchidas com reluzente lápis-lazúli, o único toque de ostentação na arma. Justi sacou a espada; ela tinha uma bela estabilidade na mão, dois gumes polidos e afiados com uma ligeira curva que era a marca registrada do sabre firenzciano. O aço era acetinado e quase escuro e retiniu uma nota aguda ao sair da bainha.

A espada era uma mensagem, ele sabia. A espada de apresentação que Justi deu para ca'Vörl foi uma das espadas cerimoniais que sua matarh man­dou fazer como presente para os embaixadores e representantes: mais obra de arte do que arma, mais joia do que gume.

Aço firenzciano — comentou o comandante ca'Rudka ao surgir ao lado de Justi. O nariz de prata reluzia sob a luz do sol; Justi notou o próprio reflexo distorcido em uma narina. - Lindo, se a pessoa gosta de coisas letais. - Pelas sobrancelhas erguidas de ca'Rudka, Justi percebeu que o homem entendeu o significado do presente. Justi embainhou a arma, prendeu a alça da bainha no cinto e cutucou gentilmente o cavalo para seguir adiante de novo enquanto o pajem foi para o lado. A comitiva começou a andar, os cascos batiam alto nas tábuas de madeira da ponte. Justi ergueu o olhar na direção das tendas que desciam a Avi, com as laterais abertas para que a brisa entrasse e para que Justi visse que não havia engodo. Ele viu a comitiva do hirzg nas sombras debaixo da cobertura de linho.

Em breve saberemos se o aço será necessário — falou Justi para ca'Rudka.

- Acha que é uma possibilidade, kraljiki? - CaRudka estava olhando além das tendas para as montanhas e o exército que esperava lá.

Justi estava se perguntando a mesma coisa, mas não respondeu à pergun­ta e o comandante não insistiu. O kraljiki gesticulou para os demais, e eles continuaram a caminho das tendas. Os pajens correram à frente quando o grupo chegou ao gramado: pegaram as rédeas dos cavalos, trouxeram escadinhas para ajudar Justi e os demais a apear das montarias. Criados levaram os cavalos embora para pastar, e outros chegaram para oferecer bebidas à comiti­va. Justi dispensou-os com um gesto, pois não queria colocar nada na caldeira que era seu estômago. - Por aqui, kraljiki, o hirzg está à sua espera.

Uma mesa comprida fora montada no meio da tenda, com duas cadei­ras ornamentadas em cada ponta. Assentos menos decorados e confortáveis foram dispostos ao redor das duas pontas para que o kraljiki e o hirzg pudes­sem cada um consultar seus conselheiros à vontade. Dois escribas estavam ao lado de mesinhas dobráveis com pergaminhos, penas e potinhos cheios de nanquim, preparados para documentar os trabalhos. Pajens e criados ficaram ao longo de ambos os lados, prontos para servir comidas e bebidas ou levar documentos de um lado para o outro, ou simplesmente para afastar insetos chatos.

Quando Justi entrou na penumbra fresca da tenda, o hirzg ca'Vörl levantou-se devagar e quase de má vontade da cadeira na ponta da mesa, embora sua comitiva já estivesse de pé. Justi reconheceu alguns deles de suas viagens cerimoniais a Brezno: o magricelo Markell, o conselheiro e secretário do hirzg; o u'téni co'Kohnle, o líder dos ténis-guerreiros firenzcianos. Mas a pessoa que estava usando a águia de starkkapitän não era Ahren ca'Staunton, mas um jovem offizier qualquer cujo rosto Justi não conhecia.

Todos, exceto ca'Yörl, abaixaram a cabeça por reflexo quando ele aproximou-se da mesa com o archigos e ca Rudka, um de cada lado, mas Justi sentiu que era encarado como se eles tentassem enxergá-lo por dentro - todos, menos o próprio ca'Vörl. O hirzg simplesmente observava, como se estivesse levemente entediado pelos trabalhos. Justi ficou atrás da cadeira e devolveu o olhar, e finalmente ca'Vörl fez um mínimo movimento com a cabeça para o kraljiki, a sombra de um aceno.

Eu esperava encontrá-lo novamente em... circunstâncias mais agradáveis, hirzg Jan — disse Justi. Um pajem puxou a cadeira pesada, e ele sentou-se. O kraljiki acenou com a cabeça para os demais reunidos; o hirzg sentou-se em frente a Justi, e houve um farfalhar de tecido e um ruído mais alto de cota de malha e placas de metal quando os outros sentaram-se ao redor deles. Justi olhou de relance para uma pasta grossa de couro colocada diante dele sobre a mesa, marcada com a insígnia do garanhão rampante de Firenzcia. - O que é isso?

Estes são os meus termos para a sua rendição, kraljiki - respondeu ca'Vörl facilmente. - Deixe-me resumi-los para você. Você abdicará do seu título em meu favor e passará o controle da Garde Civile para o starkkapitân ca'Linnett. Meu exército seguirá através de Passe a'Fiume para a cidade de Nessântico a fim de manter a ordem durante a transição do governo. O ar­chigos ca'Cellibrecca retornará comigo; ele terá permissão de manter o título de archigos desde que eu perceba que está cooperando. Da sua parte, kraljiki, eu permitirei que mantenha seu status ca', seu título de chevaritt, e as terras das propriedades de ca'Ludovici no norte de Nessântico, mas ficará ausente de todos os assuntos dos Domínios sob risco de perder a fortuna e a vida. Há, é claro, muito mais detalhes no acordo, mas essas são as linhas gerais. Tudo o que eu exijo é a sua assinatura e podemos encerrar por aqui.

Justi abaixou o olhar rapidamente para a pasta e resistiu à vontade de cuspir nela. O homem sempre foi arrogante, mas isso vai além da arrogância... Alguns dos integrantes da comitiva do hirzg sorriam de maneira cautelosa e achavam graça do embaraço de Justi; seus próprios acompanhantes estavam sentados mudos e chocados. Ele sabia o que eu planejei? O kraljiki gesticulou, e um dos pajens correu à frente para colocar uma pasta diante do hirzg.

Esses são os meus termos - falou Justi para o hirzg. — Seu exército recuará imediatamente para além das fronteiras de Nessântico. Seu starkka­pitän e todos os a'offiziers entregarão suas armas e postos para o comandante ca'Rudka. Você, hirzg ca'Vörl, será levado para Nessântico como meu refém até que o resgate que eu exigir seja pago pela sua família, ocasião em que você será trocado por sua filha como refém. Firenzcia também pagará por prejuízos à cidade de Ville Colhelm e pelo saque às terras de Nessântico. Aqueles que desobedecerem a qualquer dos decretos desses termos serão declarados fora da lei pelos Domínios e também pelo archigos da fé concénziana. De agora em diante, Firenzcia não terá mais um hirzg, mas estará sob controle direto de um representante dos Domínios.

Os sorrisos sumiram da comitiva do hirzg agora, e Justi recostou-se na cadeira ao jogar a pasta do hirzg no chão com desdém e empinar o famoso queixo ainda mais, - Tudo o que eu exijo é a sua assinatura, hirzg ca'Vörl - disse de propósito -, e podemos encerrar por aqui.

Ca'Vörl olhou feio e ficou com a cara vermelha. Justi pensou que o homem fosse babar de raiva, mas em vez disso o hirzg bateu as mãos com as pal­mas abertas sobre a pasta e soltou uma gargalhada que se tornou mais alta por causa do silêncio ao redor. — Kraljiki Justi, eu subestimei você. Quando lhe encontrei no passado... bem, confesso que pensei que fosse completamente desprovido de humor. Percebo que eu estava errado. - O sorriso desapareceu tão rápido quanto surgiu. Ele abaixou as pálpebras e encarou Justi. — Mas isso não muda o fato de que eu tenho um exército empoleirado diante de Passe a'Fiume, que é o degrau da porta de Nessântico, e não acredito que você tenha as forças ou a vontade para me impedir de sair por aquela porta. A Garde Ci­vile é nada mais do que uma força adjunta ao exército de Firenzcia há mais de dois séculos; foi Firenzcia que lutou as batalhas dos Domínios pelos kralji, não a Garde Civile. Então... falemos sobre realidades aqui, não sonhos. Ambos sabemos o que cada um quer; nenhum vai conseguir sem derramamento de sangue. - Ele pegou a pasta de Justi e deixou cair na grama ao lado da cadeira. - O que você realmente oferece, kraljiki? O que realmente está na mesa para nós considerarmos?

Justi torceu o nariz. Estava doido para sacar a espada dada por ca'Vörl e matar o homem - Justi tinha certeza de que era capaz de fazer isso antes que o sujeito pudesse reagir ou qualquer um respondesse. Ele queria a luta; dava para sentir. Seria uma boa sensação, melhor do que a esgrima com espadas sem fio e sem ponta. A luta aliviaria a fúria crescente no peito e o fogo na barriga. Sua matarh podia ter gostado desta dança de palavras, mas ele, não. Você tem que continuar... Precisa de mais tempo para se preparar, tempo que pode conseguir aqui.

Primeiro, vamos definir a verdadeira situação - falou Justi finalmente. Ele ouviu ca'Rudka relaxar ao seu lado; o homem tinha ficado tenso, a pos­tos para defendê-lo, como percebeu Justi. Ca'Cellibrecca deu um sinal óbvio de alívio. - Passe a'Fiume jamais foi capturada durante um sítio quando era guardada por um efetivo completo da Garde Civile; agora a cidade tem mais do que um efetivo completo. Você não pode sitiar a cidade sem controlar os desfiladeiros ocidentais do outro lado do Clario, e seu exército, não importa quão forte seja, não dispõe por perto de um ponto fácil para cruzar o rio. Caso de alguma maneira você consiga fazer a travessia e continuar o ataque em Nessântico, então o archigos ca'Cellibrecca irá declarar que suas tropas e seus ténis-guerreiros estão violando a Divolonté. A Marca de todos os seus ténis serão imediatamente revogadas e qualquer missa realizada por eles será considerada vazia e sem valor. As bênçãos de Cénzi serão retiradas de suas tropas; aqueles que morrerem ficarão nas mãos das bruxas. E qualquer téni-guerreiro que for capturado sofrerá o destino daqueles que usam o Ilmodo contra a vontade de Cénzi.

Justi fez uma pausa e olhou intensamente para ca'Cellibrecca. O homem parecia se sentir mal. Ele olhava para algum ponto além de ca'Vörl. - Archigos - disparou Justi, e o homem estremeceu, a papada balançou dos dois lados do maxilar. Ele fez uma mesura e concordou com a cabeça, o olhar passou rápido pelo rosto de Justi.

Sim - disse ca'Cellibrecca. - E exatamente isso, kraljiki.

Justi pestanejou com raiva diante da resposta lenta e desanimada, mas não podia dizer nada para ca'Cellibrecca, não aqui quando precisavam mos­trar que estavam unidos. — Eu estou disposto a deixar que você e seu exército voltem em segurança para Firenzcia. Permitirei que você mantenha seu título de hirzg e suas propriedades, mas o tributo que Firenzcia paga a Nessântico será triplicado pelos próximos três anos para pagar pelos prejuízos que cau­sou. O comando das guarnições do exército firenzciano será passado para o comandante ca'Rudka e offiziers que serão nomeados por mim dentre os che­varittai de Nessântico. Isso é o que está na mesa para você, hirzg. Isso ou você pode tentar sitiar Passe âFiume e perder seu exército aqui.

Ca'Vörl bocejou de maneira dramática. — Uma bela demonstração de fanfarronice, kraljiki, mas você olhou para fora das muralhas antes de vir aqui? Deixou de notar o número de fogueiras, ou o chevaritt ca'Montmorte e os homens da Garde Civile que fugiram gritando de Ville Colhelm não conta­ram como meus Firenzcianos lutam bem e bravamente? Será que o kusah de Namarro está mandando tropas para ajudá-lo, ou fjath de Sforzia, ou o tamila de Il Trebbio? Ou será que esses governantes estão lhe enviando promessas va­zias de apoio enquanto tremem nos próprios tronos e esperam para ver quem finalmente toma o Trono do Sol em Nessântico? Ora, eu não vi nenhum dos estandartes deles nas muralhas de Passe a'Fiume ... e nem verei, não é? Quanto ao archigos...

Justi viu o olhar do hirzg demorar-se por um instante em ca'Cellibrecca.

O Toustour - continuou ele - diz que Cénzi ouve todos os que rezam para Ele, e que se as preces forem sinceras e genuínas, Ele responderá. Também sei que nós dois conhecemos a Divolonté. O archigos pode se lembrar das Admoestações, que dizem: "kralji, preocupe-se com as vidas dos fiéis antes da morte, pois este é o seu papel; archigos, preocupe-se com a vida dos fiéis de­pois da morte, pois este é o seu dever." Portanto, eu darei ouvidos ao archigos quando ele falar comigo sobre minha Fé, não sobre política. Enquanto isso, eu prefiro ouvir ao próprio Cénzi, em vez daqueles que alegam falar por Ele. Se Cénzi estiver descontente comigo, então peço a Ele que retire o poder do Il­modo de meus ténis-guerreiros. Do contrário... - O hirzg ergueu um ombro.

Talvez o Ilmodo nos diga as preces de quem Cénzi prefere: as do archigos ou as dos meus ténis-guerreiros.

 

- TALVEZ O ILMODO nos diga as preces de quem Cénzi prefere.

Ca'Vörl encarou Orlandi fixamente com um olhar que o archigos só conseguiu retribuir com um grande esforço. Da mesma forma, sentiu o olhar feio do kraljiki ao lado e também foi encarado pelo u'téni co'Kohnle com uma intensidade que fez Orlandi se perguntar quanto o hirzg prometera ao téni-guerreiro. Orlandi queria limpar as gotas de suor que surgiram no topo da testa, mas não se arriscaria. Sabia que o kraljiki esperava que respondesse ao desafio do hirzg; também sabia que ca'Vörl dera um alerta. O hirzg não tinha a intenção de ceder a um acordo; a negociação estava quase encerrada. Orlandi sabia disso, quer o kraljiki Justi soubesse ou não.

Ele está dizendo que você tem que escolher. Você tem que tomar sua decisão. Cénzi, o que eu devo fazer?

Cénzi não se dignou a responder de qualquer forma que Orlandi pudesse perceber. Ele abriu a boca e rezou que Cénzi lhe enviasse as palavras para dizer. - Eu sou a Voz de Cénzi aqui neste mundo - falou com toda a firmeza que conseguiu reunir. — Esse é e sempre foi o papel do archigos.

Ca'Vörl franziu os lábios ao achar graça; o kraljiki resmungou. - Pronto. Aí está a sua resposta, hirzg... - falou Justi, mas Orlandi não estava ouvindo realmente. Não mais. Toda a sua atenção estava voltada para os pensamentos que martelavam o crânio.

Ele viu o exército nas encostas e espalhado ao longo da Avi. Contemplou de cima das muralhas de Passe a'Fiume e vislumbrou o futuro. Pensou em Francesca à espera em Prajnoli; pensou no trono do archigos em Nessântico e por quanto tempo o cobiçou, pensou como o trono passou a ser seu e que não queria perdê-lo; considerou como deveria ser a vontade de Cénzi que Orlandi se tornasse o archigos, agora e pelo resto da vida. Ele sentiu o ar frio e o cheiro ruim de medo que subiu dos esgotos de Passe âFiume, um odor que só ficaria mais forte e mais urgente se a cidade fosse fechada e cercada.

Ele não queria estar aqui se isso ocorresse.

Ele especialmente não queria morrer aqui.

É culpa do anão. Ele trouxe aquela tal co'Seranta que quase destruiu meus planos para Francesca, depois morreu antes que eu pudesse levá-lo a julgamento e mostrasse para todo mundo como ele tinha levado a Concénzia para longe dos desígnios de Cénzi. Até mesmo na morte ele me passa para trás...

Tudo pareceu simples quando Orlandi falou com o hirzg em Brezno há tantos meses, quando o Jan ca'Vörl levantou a idéia da aliança entre eles e de depor a kraljica. Mas o archigos escolheu co'Seranta como favorita e saiu de um longo sono, os numetodos rebelaram-se, a kraljica foi assassinada, e tudo tornou-se confuso e complicado. Ele não deveria estar aqui sentado deste lado da mesa com o kraljiki. Deveria entrar triunfante em Nessântico ao lado do hirzg. Agora ele não tinha certeza de que lado ganharia.

Orlandi realmente não sabia, e Cénzi não contava para ele.

Orlandi levantou o olhar triste para além do hirzg, na direção das encostas íngremes depois das tendas. Jan ca'Vörl falava novamente, respondia a alguma coisa que Justi disse, mas Orlandi não ouviu nada. Enquanto contem­plava o cenário, as nuvens abriram-se momentaneamente e raios de intensa luz do sol banharam o acampamento firenzciano. Armaduras reluziram e bri­lharam, as tendas resplandeceram, os estandartes tremularam.

Não sobre a cidade, porém, como Orlandi percebeu ao olhar para trás. A cidade permaneceu nas sombras. Aí as nuvens fecharam-se por cima do sol novamente, e a penumbra retornou. Orlandi sorriu.

Obrigado, Cénzi.

Orlandi ficou sentado na cadeira sentindo o alívio e a certeza tomarem conta de si. Ele sabia o que tinha que fazer. Sabia. Mandaria notícias para Francesca hoje à noite e depois agiria. Houve movimento à frente e só depois ele se deu conta de que todo mundo estava de pé. Ele levantou-se do próprio assento e gemeu pelo esforço. — Eu mandarei a minha resposta amanhã, kral­jiki - dizia o hirzg.

- Então eu espero que você chegue à decisão correta, hirzg. Nós dois compreendemos as conseqüências de ambos os casos.

É verdade. - O hirzg fez uma ligeira mesura com as mãos entrelaçadas na testa; os assistentes fizeram reverências mais acentuadas em volta dele, e ao redor de Orlandi houve um farfalhar conforme o kraljiki e aqueles em volta de Justi devolveram o gesto. Criados e pajens correram para pegar cavalos e capas enquanto os grupos saíam da tenda em direções opostas.

Justi não falou nada até eles cavalgarem de volta para Passe a'Fiume. O kraljiki gesticulou para ca'Rudka cavalgar ao lado dele e para a carruagem de Orlandi se aproximar. - Haverá guerra — falou Justi sem preâmbulos. - Nós podemos esperar que a resposta do hirzg venha na forma de um ataque.

Eu concordo, kraljiki - disse ca'Rudka.

Nós continuaremos os preparativos dentro das muralhas - falou Jus­ti. - Mandarei pombos-correios a Prajnoli para que esvaziem a guarnição de lá. Melhor armarmos nossa resistência aqui do que em Nessântico. Archigos, você preparará sua declaração contra o hirzg, seus ténis-guerreiros, e aqueles que lutam com ele.

Orlandi sorriu e abaixou a cabeça dentro da carruagem. A satisfação fluía por ele; nada que o kraljiki dissesse o aborreceria. - Como quiser, kraljiki.

Ótimo. O hirzg deu um passo maior do que as pernas e pagará por sua ambição. Ele fez a cama, agora que se deite nela. - Justi olhou para trás e viu a comitiva do hirzg subir a Avi em direção ao acampamento deles. As encostas estavam sombrias com as nuvens cinzentas acima, mas Orlandi não se importou.

Ele tinha visto o sol ali. Tinha recebido sua resposta.

 

ELES NÃO PODEM REALMENTE SITIAR a cidade até que fe­chem todos os desfiladeiros a oeste. Isso quer dizer que: ou o hirzg tem uma força escondida que se aproxima de nós pelo desfiladeiro de Montbataille, o que não me surpreenderia, ou ele tem a intenção de mandar pelo menos dois batalhões cruzar o Clario ao norte ou sul da cidade. Minha aposta seria o sul, pois o rio é menos bravio ali, mas não podemos descartar uma travessia pelo norte. Nós precisaremos de forças aqui e aqui, e possivelmente aqui também.

Comandante?

Sergei tirou os olhos dos mapas de Passe a'Fiume e das redondezas para ver seu ajudante de ordens ce'Falla na porta. Ca'Montmorte e os demais offiziers e chevarittai na sala continuaram a olhar para os mapas.

Você chamou o archigos para mim, Aris? - perguntou ca'Rudka, com o indicador ainda tocando no pergaminho amarelo. — Eu começava a me perguntar. Nós realmente precisamos das informações do archigos sobre os ténis-guerreiros.

Eu não consegui encontrá-lo, comandante - disse ce'Falla. - Não creio... - Ele parou. Engoliu em seco. — Não creio que ele esteja dentro das muralhas. Nenhum dos e'ténis de sua comitiva sabe onde ele está, seus u'ténis estão sumidos também e há relatos de que o portão do templo na muralha externa foi encontrado destrancado.

De repente Sergei sentiu como se tivesse engolido um carvão em brasa.

Mande os outros procurarem - falou o comandante com os demais - Pre­cisamos saber o que aconteceu.

Uma virada da ampulheta depois, ficou claro que ca'Cellibrecca fugiu de Passe a'Fiume, e Sergei relutantemente informou ao kraljiki.

O archigos provavelmente está com o hirzg ca'Vörl neste momento - disse Sergei para o kraljiki, que contemplava a noite de uma janela. Seus pen­samentos eram impossíveis de adivinhar. Justi instalou-se na vila do comté de Passe a'Fiume; da torre que era bem mais alta do que a maioria dos prédios da cidade, Sergei era capaz de vislumbrar as fogueiras nas encostas mais além do kraljiki. Uma mesa no meio da sala estava repleta de cópias dos mapas que decoravam o gabinete de Sergei. - Aqueles que guarnecem as muralhas perto do templo ouviram cânticos do Ilmodo - continuou o comandante - e houve estranhos clarões de luz das janelas, há cerca de uma virada da ampu­lheta após a ceia, de acordo com os criados.

Ca'Cellibrecca não perde a ceia nem mesmo por traição — murmurou Justi. Sergei não conseguiu ver a cara de desprezo, mas ouviu o tom. O kraljiki balançou a cabeça. - Ele nunca mais sentará no trono do archigos em Nessân­tico. Eu juro. Não me importo com o que eu tenha que fazer. Ca'Cellibrecca não lucrará com esta situação.

Eu vou lhe ajudar a garantir isso - disse Sergei.

Vai? - Justi virou-se da janela. Ele parou diante da mesa no meio da sala, cheia de papéis e mapas. — E como conseguirá fazer isso, comandante? Por mais que eu odeie admitir, nós perdemos um dos gumes de nossa espada e o hirzg sabe disso. Agora não há esperança de que ele aceite meus termos de negociação.

Posso falar francamente, kraljiki?

Justi deu um muxoxo e ergueu as mãos como um convite. - Por favor.

Sergei fez uma pausa e perguntou-se se realmente queria fazer isso. Ele tomou um longo fôlego. — Kraljiki, eu sei quem matou sua matarh.

Ele observou o rosto do kraljiki endurecer, depois o homem fez um gesto de desdém. — Claro. O pintor ci'Recroix...

Eu sei quem contratou o pintor, kraljiki.

Justi fechou a boca de modo audível. - Prossiga, comandante - falou. Foi quase um grunhido. - Mas, se eu fosse você, eu procederia com muito cuidado.

Eu sou leal, kraljiki, â Nessântico. Sempre. Não a uma pessoa qualquer, mas à própria Nessântico: ao império. Eu vejo uma Nessântico que um dia se estenderá pelo mundo, da boca do Grande Rio Oriental em Tennshah até o distante litoral das Terras Ocidentais. Eu vejo uma Nessântico cujos cidadãos prosperam, onde maravilhas que sequer podemos imaginar são vislumbradas todos os dias. É isso que eu gostaria que as futuras gerações vivenciassem. Eu também sou um realista, kraljiki. Sei que não há caminho fácil para o futu­ro e sei que às vezes uma árvore tem que ser podada para poder continuar a crescer. A morte da kraljica... bem, eu amava a kraljica Marguerite como qualquer outra pessoa e servi tão bem e fielmente quanto pude. Ela trouxe paz a Nessântico por um longo tempo, e nós crescemos imensuravelmente sob seu reinado. Mas...

Sergei fez uma pausa e inclinou levemente a cabeça para o lado. É melhor você rezar que tenha julgado o homem corretamente. — Eu fiquei de luto pela morte da kraljica em gratidão pelo que ela fez, mas, na verdade, a kraljica era um galho morto e o que ela criou já estava começando a desmoronar. A kraljica Marguerite estava dormindo no Trono do Sol, assim como o archigos Dhosti estava dormindo no templo. Nessântico precisava de uma mão nova e mais firme; nesse sentido, a perda da kraljica foi necessária.

Sergei esperou. O kraljiki não disse nada. - Eu fiz ou mandei fazer mui­tas coisas terríveis na Bastida quando fui ordenado - continuou o comandan­te. — Eu feri, mutilei e matei; vi homens e mulheres berrarem de sofrimento à minha frente e imaginei o que Cénzi poderia pensar ou como Ele me julgaria. Mas o sofrimento foi necessário. Eu cometi essas transgressões pelo bem de Nessântico. Eu acho que foi isso que aconteceu com a kraljica também: uma transgressão pelo bem maior de Nessântico. - Ele esperou. O kraljiki perma­neceu encarando em silêncio. - Caso a kraljica não tivesse morrido, ela estaria no trono neste exato momento aproveitando o jubileu e nós não teríamos sa­bido nada sobre essa situação. — Sergei apontou para a janela, para as fogueiras cintilantes nas montanhas como estrelas cadentes do céu. - Nós não teríamos sabido nada até que o hirzg e seu exército estivessem quase nos portões de Nessântico, e seria tarde demais para detê-lo. O hirzg é alguém que eu jamais quero ver sentado no Trono do Sol.

E eu sou? - perguntou o kraljiki de repente. - Falando francamente, comandante?

Eu admiro aqueles que sabem quando esperar, quando agir, quando sacrificar e quando recuar. O senhor esperou muito tempo, kraljiki. - E aí agiu. Sergei não falou isso, mas as palavras ficaram no ar entre eles.

O kraljiki respirou fundo várias vezes antes de falar. Sergei imaginou o que ele estava pensando, o que estava ponderando na mente. Músculos fica­ram retesados ao longo do maxilar, debaixo da linha bem modelada do bigode e barba. — Você ainda não respondeu à minha pergunta sobre ca'Cellibrecca - disse ele finalmente.

Nem sobre você, pensou Sergei. — Eu disse que admiro aqueles que sabem quando sacrificar e recuar assim como agir. O senhor precisa voltar para Nes­sântico, kraljiki. Precisa ir embora.

E deixar Passe a'Fiume cair no dia seguinte? As tropas do hirzg estariam em nossos calcanhares se corrermos de volta para Nessântico. Como isso pode ser uma vitória?

Sergei balançou a cabeça. — Eu não es.tou dizendo que todos nós devemos voltar para Nessântico. Apenas o senhor, kraljiki. O senhor tem que ir embora. Eu ficarei aqui em Passe a Fiume com metade da Garde Civile e defenderemos a cidade o quanto for possível. O senhor, a corte e a maioria dos chevarittai devem retornar à cidade. Nós ganharemos o máximo possível de dias para o senhor: para que chame as guarnições, para mobilizar o interior, para alistar até o último homem forte e saudável. O senhor precisa se preparar para a batalha, nomear um archigos em Nessântico para substituir o traidor de ma­neira que quaisquer declarações que ca'Cellibrecca faça tenham menos peso. É isso que o senhor precisa fazer, kraljiki. E enquanto faz isso, deixe-me atra­palhar o avanço de ca'Vörl. Deixe-me reduzir o tamanho do exército dele para o senhor. Se o hirzg tentar cruzar a ponte, ele será contido pelas muralhas. Se tentar atravessar o Clario ao norte ou sul, nós seguimos ca'Vörl por este lado e o enfrentamos. Enquanto isso, o senhor prepara Nessântico.

E você? O que ganha com isso? Eu não acredito em altruísmo, comandante. Eu especialmente não acredito em altruísmo vindo de você.

Sergei sorriu. - Caso eu sobreviva, e farei todos os esforços para isso, kraljiki, eu espero ser bem recompensado pelos meus serviços. Espero ser pre­miado com o título permanente de comandante da Garde Civile e manter meu título de chevaritt de Nessântico, e devolverei a Garde Civile ao que um dia foi: o verdadeiro braço forte do kraljiki. Como comandante, também comandarei o exército de Firenzcia em vez do próximo hirzg, para que eu possa garantir que isso nunca mais se repita. O senhor me nomeará comté de Brezno. Como o archigos controla a Concénzia, eu controlaria os militares, para toda a glória do kraljiki e de Nessântico. - Seu sorriso aumentou. - Não, kraljiki, eu não sou um altruísta. Prefiro pensar nas recompensas nesta vida do que na possibilidade de recebê-las na próxima. Que Cénzi me perdoe por isso.

Os músculos no rosto do kraljiki relaxaram. Ele também sorriu, um gesto cauteloso, e Sergei relaxou. Pode ser que as coisas ocorram do jeito que você quer. Pelo menos deste lado...

Imagino que tenha táticas específicas para essa sua estratégia, comandante?

Tenho sim.

O kraljiki concordou com a cabeça e foi até a cômoda; a espada do hirzg tinha sido colocada ali. Ele pegou a arma e puxou até metade sair da bainha, virou a lâmina e examinou-a de perto sob a luz das velas. Justi fez que sim como se estivesse satisfeito e disse - Tenho que dar o braço a torcer ao desgra­çado por entender de aço. Essa é uma arma que implora para ser usada. — Ele enfiou a espada de novo na bainha, depois jogou o conjunto para Sergei. O comandante pegou com uma mão só. - Uma pena. Eu teria gostado de usar essa espada, mas acho que você deve ficar com ela, comandante. Use o presen­te do hirzg contra ele; eu ficarei satisfeito com a ironia.

Sergei fez uma reverência. - Eu farei isso, kraljiki. - O comandante pegou a própria espada e colocou na mesa ao lado dos mapas. - O senhor ainda pode precisar de uma arma, meu kraljiki. Não é igual a do hirzg, mas vai servir.

O kraljiki concordou novamente com a cabeça e pegou a arma oferecida. - Tenho certeza de que servirá. Agora, comandante, vamos repassar essas táticas em detalhes e veremos em que pontos concordamos.

Sergei debruçou-se sobre os mapas enquanto o kraljiki chegava para ficar ao lado dele. - O hirzg espera que nós enviemos tropas para o sul ao longo da Avi para nos protegermos contra uma travessia dos firenzcianos — disse ele enquanto acompanhava as curvas do rio com o dedo. - Minha idéia é que o senhor e os cortesãos possam cavalgar com eles vestidos como soldados comuns. Assim que estiver bem ao sul de Passe a'Fiume, o senhor pode conti­nuar para Nessântico sem ser visto. O hirzg vai presumir que o senhor ainda está aqui, que é o que queremos que ele acredite. Então, assim que estiver de volta em Nessântico...

 

A CIDADE FOI ABALADA pela notícia de que as negociações falha­ram e que era provável que Passe aFiume já estivesse sob sítio. Nessântico esteve apenas preocupada antes; agora estava verdadeiramente assustada, um sentimento que cresceu quando o kraljiki Justi triplicou os esquadrões de alis­tamento forçado; à medida que a Garde Kralji patrulhava os portões da cidade para que ninguém saísse sem documentos de viagem com o selo do kraljiki; conforme os cortesãos saíam da cidade por todas as direções com ordens ur­gentes do kraljiki; à medida que o acampamento da Garde Civile do lado de fora das muralhas continuava a inchar. As fazendas ao redor de Nessântico foram varridas como se passasse uma praga de gafanhotos vorazes. Toda a comida foi levada de volta para a cidade: se houvesse guerra, então haveria o mínimo possível para as tropas do hirzg saquear enquanto se deslocavam para Nessântico.

Agentes da Garde Kralji também passaram pelo Velho Distrito fazendo perguntas diretas sobre os numetodos e especialmente sobre a ex-o'téni Ana co'Seranta e o antigo enviado Karl ci'Vliomani. Várias das pessoas interrogadas foram levadas embora e não voltaram, embora a Pontica permanecesse sem novos corpos para se juntar aos esqueletos dos numetodos já em exibição ali.

O pior de tudo era a notícia de que o archigos tinha traído o kraljiki. Ele mandou prender os ténis que eram mais próximos de ca'Cellibrecca no Templo do Archigos. Os aténis ca'Marvolli, ca'Xana, ca'Miccord e ca Seiffel - que apoiaram mais abertamente ca'Cellibrecca nos últimos anos - viram-se morando na Bastida, e os a'ténis que sobraram foram obrigados a assinar uma declaração de obediência ao kraljiki com risco de perder a vida caso a descumprissem. Agora realmente sem liderança, a Concénzia patinava; os serviços prestados pelos ténis na cidade, que já eram irregulares, ficaram ainda mais espaçados e ineficientes.

Nessântico pulsava e tremia com medo, e Justi observava a cidade dos vitrais da sala do Trono do Sol no Grande Palácio. Não dava para culpá-lo por olhar mais para leste do que para qualquer outra direção com o rosto tenso de preocupação.

- Eles amavam a kraljica. Eles apenas temem você. É por isso que estão assustados.

Justi fechou a cara e soltou uma imprecação gutural ao ouvir as palavras. Ele tentou se virar e sacar sua espada - a espada de Sergei - da bainha, mas sentiu uma dificuldade estranha, como se o ar tivesse se solidificado em volta. Justi parou com a arma sacada pela metade.

Ele ficou boquiaberto.

O mendigo conhecido como Mahri estava parado a alguns passos de Justi, no tablado onde o kraljiki estava próximo ao Trono do Sol. Ele viu o rosto caolho e desfigurado debaixo do capuz, banhado pelas cores do vitral. Mas não foi o rosto do homem que deteve Justi: o aposento atrás do mendi­go parecia... errado. As únicas coisas em movimento eram Mahri e o próprio kraljiki. Nada mais se mexia. Uma mosca estava parada no ar à esquerda. Mais ou menos uma dezena de cortesãos, assim como requerentes ca' e co' sentados em pequenos grupos ou reunidos conversando foram interrompi­dos em plenos gestos. Criados pareciam congelados enquanto corriam para suas tarefas. O silêncio envolvia todos eles; o ar estava parado, apesar da brisa que soprava das sacadas abertas há um momento. Era como se Justi olhasse para um quadro da sala do trono, com ele e Mahri dentro da pintura de alguma forma.

A cena trouxe uma lembrança desagradável de ci'Recroix.

Mahri Maluco... então você é um numetodo — falou Justi. A mão per­maneceu no cabo da espada. Ele perguntou-se se conseguiria sacá-la rápido o suficiente nesse ar meio sólido.

Mahri balançou a cabeça e deu um sorriso grostesco desfigurado pelas cicatrizes brancas do rosto. - Nenhum numetodo conseguiria fazer isso - disse ele ao gesticular para a multidão imóvel ao redor. — E eu não posso manter as­sim por muito tempo, então não vou gastá-lo com conversa, kraljiki. Você está procurando por Ana co'Seranta e Karl ci'Vliomani. Eu sei onde os dois estão.

E o que você quer em troca? - perguntou Justi. A própria voz soava pouco sonora, como se o próprio ar em volta deles não quisesse se mover para permitir que as palavras saíssem de sua boca. Os dedos relaxaram um pouco no cabo da espada.

Eu não quero nada que você possa me dar — respondeu Mahri.

Riqueza, então. Mil solas...

Mahri riu. - Fique com seu dinheiro. Apenas mande sua Garde Kralji ao centro do Velho Distrito amanhã, uma virada da ampulheta após a Primeira Chamada. Procure por mim; os dois que você procura estarão comigo. Seus homens terão que agir rapidamente e com violência; a o'téni é especialmente perigosa se tiver a chance de usar o Ilmodo. - O ar tremulou entre eles; as fi­guras em volta da sala começaram a se mexer. — Depois da Primeira Chamada, no centro do Velho Distrito - repetiu Mahri.

Houve um clarão no ar, como se um raio tivesse caído entre os dois, e a espada de Justi deu a impressão de pular da bainha por conta própria. O mun­do pareceu dar um solavanco. Justi pestanejou involuntariamente. Quando voltou a enxergar, as pessoas em volta da sala estavam novamente em movi­mento e o ambiente foi tomado pelas conversas altas. Os cortesãos olhavam fixamente para ele, parado ao lado do Trono do Sol com a espada em um gesto ameaçador diante do corpo.

A mosca passou zumbindo pelo kraljiki. Justi viu o inseto bater contra um painel do vi trai preso por tiras de chumbo preto, quicar com raiva, depois encontrar uma abertura entre as janelas e fugir para a luz do sol.

 

MAHRI TINHA PROMETIDO que eles estariam a salvo. Não havia motivo para não acreditar nele. Depois do incêndio na taverna, eles mudaram-se para outros aposentos bem no interior do Velho Distrito, e foram para outro canto alguns dias depois. Para Ana, isso não importava. Nada importa­va. Ela passava os dias envolta em uma bruma escura. Karl tentou tirá-la da depressão; como prometera, ele começou a ensinar alguns feitiços numetodos. Ana descobriu que algumas palavras eram parecidas com as que ela própria usava e que podia começar a aprender a conter o feitiço na cabeça. Era uma sensação estranha ter o Ilmodo contido e confinado na mente, uma presença insistente que se debatia contra a jaula de feitiços que a continha, doida para ser solta.

Cénzi não a castigou pelo aprendizado. Na verdade, Ana descobriu que era capaz de entrar em contato com o Segundo Mundo com mais facilidade do que antes.

No quarto dia, após as preces da Primeira Chamada e a necessária ablução, Ana, Karl e Mahri tomaram o café da manhã com pão velho e chá fraco. - Não há mais nada para comer - falou o mendigo. — Assim que estiverem prontos, nós iremos ao centro do Velho Distrito e à feira de lá.

Todos nós? - perguntou Karl. - As ruas não são seguras, não para nós. Ana deve ficar aqui. Nós sabemos que estão procurando por ela, especialmen­te depois do incêndio.

Ana deu um muxoxo de desdém. - Na verdade, Karl, era você que deveria ficar aqui. Os esquadrões de alistamento não adorariam meter as mãos em você? Sou eu que devo ir; eles não estão capturando mulheres à força na rua.

Todos nós podemos ir - respondeu Mahri. - O ar fará bem a todos nós, e vocês não serão notados por quem não é preciso; isso eu prometo.

Ana concordou enfaticamente com a cabeça ao abaixar a casca de pão que estava roendo. - Eu cansei de me esconder e de não ver o sol. Vou ficar maluca se permanecer aqui por mais tempo.

Karl franziu a testa, mas Mahri riu. — Aí está a sua resposta. Eu soube que os fazendeiros trouxeram mercadorias frescas; fiz uma reserva para nós com um deles. E um dos padeiros prometeu pães frescos, sem serragem; ele mora perto dos velhos aposentos em cima da taverna e ficou grato pelo que você fez, Ana. E conheço um fazendeiro que trouxe manteiga fresca para colocarmos no pão.

A boca de Ana já estava salivando involuntariamente ao pensar nisso. A depressão que a prendia amainou um pouco, e ela falou - Então vamos agora antes que vendam tudo.

Eles saíram rapidamente dos aposentos e cruzaram as ruas de manhã cedo. O número de pessoas aumentou gradativamente conforme os três che­garam perto do centro do Velho Distrito e da feira armada ao redor da praça aberta, mas a multidão era diferente daquela de meses atrás. Havia poucos homens na rua, e aqueles que Ana viu eram em sua maioria velhos ou visi­velmente aleijados. Mahri manteve a promessa: Karl estava muito apoiado em uma muleta que o mendigo deu para ele, e quando Ana olhou para seu rosto, Karl era a imagem enrugada de um velho vavatarh, com tufos de cabelo branco como nuvens brancas sobre uma cabeça com manchas de idade. Ana perguntou-se se Mahri tinha feito algo parecido com seu rosto, pois ninguém parecia prestar atenção a ela, os olhares das pessoas por quem eles passavam desviavam-se sem curiosidade.

O mercado estava agitado com o movimento, o som ambiente era alto com as negociações dos clientes que examinavam as ofertas com olhares críti­cos. As bancas em frente aos vendedores estavam muito vazias, e as mercado­rias em exibição pareciam ter sido colhidas cedo demais ou murchas e velhas. Ainda assim, a cidade estava faminta, as barganhas eram poucas, e Ana sabia que tudo que era oferecido seria vendido. A visão da feira e o desespero que ela percebeu ali dissiparam qualquer alegria que Ana sentiu por estar na rua outra vez. Apesar do sol, apesar do calor, ela sentiu-se enojada e com frio. Sabia que a fome que corroía o estômago era compartilhada pela maioria das pessoas ali.

O pão, Mahri - falou Ana. - Vamos pegar o pão primeiro. Mas ape­nas uma bisnaga. O resto... deixe o padeiro vender para eles, - Ela apontou com o queixo para as pessoas. - Eles precisam tanto quanto a gente. Mais até.

Mahri resmungou. O único olho encarou Ana. - Por aqui, então - disse ele. Os dois seguiram o mendigo pela praça em direção aos prédios do outro lado. Quando se aproximaram das bancas e da fachada de loja que ficavam ali, Karl diminuiu o passo, pegou Ana pela mão e puxou-a um pouco para trás. - Olhe - sussurrou o enviado.

A frente havia um esquadrão da Garde Kralji com homens bem armados e obviamente olhando na direção dos três. Um o'offizier, com a insígnia do crânio de dragão da Bastida no uniforme, liderava os gardai. - Mahri - disse Ana em tom de alerta, o mais baixo que conseguiu.

Ele balançou a cabeça e falou — Não se preocupem. Eu falei que vocês estariam a salvo. Não façam nada que levante suspeita. Nada.

O mendigo continuou a andar na direção da Garde Kralji. Ana seguiu, relutantemente. Ela sorriu na direção deles como se desejasse um bom-dia. O o'offizier devolveu o sorriso. A mão fez um gesto curto, e os gardai em volta dele espalharam-se para deixar o trio passar. Eles andaram entre os gardai. Ana manteve a cabeça baixa e olhou de relance para Karl: o rosto voltou a ser o dele, a máscara do feitiço sumiu. - Mahri... - falou Ana assustada, mas já era tarde demais. Mãos agarraram Ana, agarraram Karl, e embora ela tenha tentado começar um cântico, os gardai pegaram com força. Ana ouviu Karl dizer o gatilho de um feitiço, um dos gardai caiu gritando, mas aí os demais derrubaram o enviado no chão e colocaram uma mordaça à força em sua boca. Os olhos de Karl estavam arregalados e furiosos, e um garda bateu nele com o cabo da espada.

Mahri! - gritou Ana nas mãos dos gardai. Ela debateu-se enquanto os homens seguravam seus braços e tentavam enfiar uma mordaça em sua boca também. — O que você fez?

Mas Mahri não estava ali. Ele tinha desaparecido.

 

A BATALHA DE Passe a'Fiume começou devagar. No mesmo dia em que o kraljiki foi embora discretamente da cidade para retornar à Nessântico, o hirzg saiu do acampamento nas encostas e liderou o exército para o cam­po onde acontecera a negociação. Lá, à plena vista daqueles que assistiam das muralhas da cidade, eles erigiram as tendas: milhares delas como gordos cogumelos reunidos na grama. Uma força de algumas dezenas de chevarittai firenzcianos, vestidos em armaduras douradas e sentados em cavalos de guerra negros, cavalgou até a outra extremidade da ponte, liderada pelo starkkapitän ca'Linnett. Sergei, que observava da muralha, viu um dos chevarittai seguir adiante do grupo com um lenço branco na ponta da lança. Ele galopou pela ponte até ficar diretamente embaixo de Sergei. Brandiu um pergaminho an­tes de deixá-lo cair na poeira da estrada diante do portão. O homem saudou Sergei com as mãos entrelaçadas, depois virou o cavalo e cavalgou de volta pela ponte.

Sergei sabia o que o pergaminho diria, mesmo antes de ser entregue. A mensagem exigia um duelo individual: para o kraljiki (que não podia respon­der) e para Sergei, que podia. - Nós vamos sair, comandante? - Sergei notou a ansiedade na voz de Elia ca'Montmorte. - Ou, se o senhor não quiser aceitar o desafio, eu posso ir no seu lugar: eu devo a ca'Linnett pelo que ele fez conosco em Ville Colhelm. Nada me daria mais prazer do que ver a grama de Nessân­tico crescer com o sangue dele.

O senhor não pode responder ao desafio, comandante. — Bahik co'Garret, a'offizier da Garde Civile em Passe a'Fiume, mas apenas um vaji­ki, não um chevaritt, balançou a cabeça, assim como o u'téni co'Bachiga. - Não pode deixar que o destino de Passe a'Fiume dependa de um duelo entre chevarittai.

Por que não? - Ca'Montmorte deu um muxoxo de desdém. - Há hon­ra no duelo. E Passe a'Fiume ainda estará de pé depois, com o estandarte de Nessântico tremulando acima dela.

O código dos chevarittai foi abandonado há gerações - respondeu co'Bachiga. - Olhe Jablunkov, a Batalha dos Ermos ou os Campos Partidos; há mais de uma dezena de exemplos. Por que esse caso seria diferente? É pura pose, nada mais, e o hirzg sabe disso. São os chevarittai brincando de guerra, e mesmo que por acaso o senhor ganhe, chevaritt ca'Montmorte, o hirzg não levará seu exército embora.

Então ele se desonra enquanto chevaritt - retrucou ca'Montmorte.

Ele é hirzg e quer ser kraljiki - co'Garret deu um muxoxo de desdém. — O senhor acha que sua "desonra" sequer o incomoda?

Sergei ouviu a discussão dos homens enquanto esfregava o metal liso do nariz. — Chega! - falou com firmeza. — Elia, infelizmente eu concordo com o a offizier co'Garret: não importa o resultado do duelo, o hirzg dificilmente re­tirará seu exército depois de ter vindo tão longe. Eu acho que é mais provável que isso seja um ardil. Nossa tarefa aqui é atrasar o avanço do hirzg para dar tempo ao kraljiki para preparar a defesa de Nessântico. O senhor quer que eu abra os portões de Passe a Fiume porque um campeão dos chevarittai perdeu um duelo? - Ca'Montmorte fez uma cara feia, mas não respondeu. - Eu não posso fazer isso. Chevaritt, eu adoraria cavalgar pela ponte com o senhor e responder ao desafio de ca Linnett em nome do kraljiki, mas não posso. Não farei.

Então o senhor condena Passe a Fiume a uma lenta tortura, comandan­te - respondeu ca'Montmorte. - Eu espero que o a offizier co'Garret e o u'téni co'Bachiga tenham plena noção disso, porque eles estarão aqui conosco para passar pela tortura, ao lado de muitos inocentes.

Sergei encerrou a conversa não muito tempo depois e mandou um dos arqueiros amarrar o desafio em uma flecha e dispará-la sobre a ponte. O pró­prio ca'Linnett foi a cavalo para arrancar a flecha do chão e ler a recusa de Ser­gei. Vaias, risadas e deboche partiram dos chevarittai firenzcianos para atacar as muralhas de Passe a'Fiume, mas a zombaria e as provocações não derruba­ram as ameias.

Sergei ficou satisfeito com isso, ainda que os chevarittai da cidade não tenham ficado.

Notícias piores vieram naquela noite. Retardatários das tropas que ele en­viara pela margem norte do Clario voltaram correndo para a cidade em plena retirada. Dois batalhões de firenzcianos, usando ténis-guerreiros para cobrir a travessia, cruzaram o Clario na escuridão, atacaram as tropas de Nessântico e invadiram o acampamento. Sergei mandou fechar todos os portões da cidade; na primeira luz da alvorada, eles viram as muralhas de Passe a Fiume serem completamente cercadas pelas cores de Firenzcia.

Na alvorada do dia seguinte, o ataque começou para valer.

Ele começou com os ténis-guerreiros. Uma dezena de grandes esferas de fogo encantado voou na alvorada, elas cruzaram o céu em um arco e rugiam como enormes meteoros. Os tênis de Passe a'Fiume, juntamente com os ténis-guerreiros deixados para trás pelo archigos ca'Cellibrecca, esperavam nas muralhas. Os cânticos começaram assim que eles viram o fogo encantado ganhar vida, suas mãos moveram-se em contra-feitiços e feitiços de devolução, mudaram a trajetória de um punhado de esferas e devolveram-as para o ponto de origem - seus esforços foram recompensados por gritos ao longe e pela fumaça negra que subiu do acampamento firenzciano. Mas muitas das bolas de fogo passaram voando pelas muralhas em ondas de calor causticante e luz ofuscante; elas caíram sobre casas ou nas ruas, onde rolaram, abriram-se e soltaram chamas intensas no ar. Agora os gritos foram próximos e frenéticos atrás de Sergei e aqueles que estavam nas muralhas, conforme os moradores corriam para ajudar os feridos, apagar os incêndios e retirar os mortos dos escombros.

Não houve tempo para descansar. Armas de cerco no acampamento firenzciano jogaram pedregulhos nas muralhas, cujos impactos tremeram o chão e arrancaram grandes pedaços de pedra dos baluartes e das ameias. A apenas alguns passos de onde ele estava, Sergei viu um soldado com o uni­forme da Garde Civile berrar quando um enorme pedregulho arrancou por completo um braço de seu corpo antes de acertar a rua lá atrás e matar três homens e um cavalo. Agora veio a chuva de flechas dos arqueiros que se mo­viam sob a cobertura do bombardeio até a outra margem do Clario, enquanto as armas de cerco continuavam a martelar as muralhas e as bolas de fogo dos ténis reluziam no céu.

Através da fumaça e do barulho do ataque, Sergei vislumbrou movimen­to: soldados se concentrando na ponte e empurrando um aríete em sua eslinga; outros colocavam jangadas no rio. - Arqueiros! - gritou o comandante, e saiu uma chuva de flechas das muralhas, uma tempestade densa e furiosa. O Clario espumou com a queda dos homens em suas águas, que se debateram em pânico ou caíram imóveis, mortos antes de serem levados pela água. O es­quadrão do aríete estava mais bem protegido com os escudos formando uma tartaruga acima deles; o aríete continuou a avançar lenta e gradativamente pela ponte, e mais soldados vieram atrás para substituir os caídos.

— Chevarittai, aos portões! - convocou Sergei, e ele próprio desceu as muralhas correndo. Seu cavalo estava lá, nervoso e batendo as patas enquanto um pajem segurava o animal. Sergei acalmou o garanhão ao colocar o elmo e ajustar a cota de malha. O pajem ajudou o comandante a montar no cavalo de guerra. Montado, Sergei sacou a espada do hirzg da bainha conforme os outros chevarittai concentravam-se diante dos portões. O peso da arma era grande e reconfortante na mão. - Rechacem os inimigos na ponte! - berrou Sergei. - O'offizier ce'Ulcai, o senhor levará um esquadrão da Garde Civile e jogará aquele aríete no rio assim que liberarmos a ponte. Arqueiros, mante­nham a ponte livre. Entenderam? - Houve continências e gritos de concor­dância. - Abram os portões! - gritou o comandante. Soldados correram para puxar as grandes toras que escoravam as portas grossas de madeira e abrir os portões enquanto subiam a grade.

Sergei ergueu a espada bem no alto. - Pela glória de Nessântico e do kraljiki!

Os chevarittai e a Garde Civile em volta dele ecoaram o grito, um desafio gutural. Eles cavalgaram estrondosamente.

Os cavalos de guerra, cobertos por armaduras e treinados em combate corpo-a-corpo, rasgaram as fileiras inimigas concentradas em volta do aríete. Sergei desceu a espada em uma lança que o estocava, quebrou a arma ao meio e ouviu o grito do homem pisoteado por sua montaria. Ele golpeou uma vez, e mais outra, sem pensar, apenas reagiu aos corpos em volta. Ouviu gritos e berros; sentiu a ponta de uma lança varar a cota de malha e penetrar fundo na coxa, a vara foi quebrada com o avanço de seu cavalo. Ele mesmo gritou então, pegou a dor e a raiva e deixou que fluísse através do braço.

Recuem! Recuem! - o comandante escutou alguém gritar, e de repente os soldados firenzcianos não estavam mais resistindo, e sim fugindo. Sergei tinha passado pelo aríete e cruzado a ponte inteiramente. Ele atacava os soldados em retirada e pisoteava com as patas do cavalo de guerra. Os ou­tros chevarittai irromperam em volta do comandante, selvagens e implacáveis. Sergei puxou as rédeas do cavalo e olhou para trás: na ponte, soldados de azul e dourado saíam da cidade e empurravam o aríete. Flechas passavam voando em uma massa tão espessa que parecia diminuir o sol. A coxa ferida lajetou quando ele apertou a sela com as pernas para controlar a montaria.

Entrem em formação! - gritou Sergei para os chevarittai. - Guarneçam esta posição! - A maioria obedeceu, mas não todos: alguns continuaram além da ponte e perseguiram os soldados. No campo adiante, ele notou que os che­varittai firenzcianos preparavam a carga: os Lanceiros Vermelhos. - Voltem para a cidade! - ordenou o comandante.

Houve protestos entre os chevarittai, e Sergei fechou a cara. — Eu sou o comandante aqui. Para dentro! Haverá tempo suficiente para lutar. Para den­tro! — Ele deu meia-volta no cavalo; relutantemente, os chevarittai seguiram. A ponte foi liberada; soldados da cidade recolheram os próprios mortos e feridos.

Sergei desceu do cavalo ao passar pelos portões e entregou as rédeas para um dos pajens à espera. A perna cedeu pelo impacto de pisar no chão; ele fez um esforço para ficar de pé, mas pertimitiu que o pajem que correu para ajudá-lo amarrasse um torniquete na perna para estancar o sangramento. O comandante observou a passagem dos chevarittai, depois do restante da Garde Civile na ponte. Gesticulou para aqueles ao redor do portão; a grade soltou um ruído metálico ao descer, as dobradiças rangeram quando os homens em­purraram os portões para fechá-los e recolocaram as escoras. Sergei mancou até a muralha. Havia fumaça, destruição e corpos pela cidade. Corvos já desciam ao chão. Um chevaritt solitário cavalgou vindo do fim da ponte com uma bandeira branca na lança.

O hirzg pede uma breve trégua para termos tempo para recuperar nos­sos mortos - o homem chamou Sergei.

Diga ao hirzg que ele tem a permissão do kraljiki para fazer isso, se quiser — respondeu Sergei.

O chevaritt fez uma saudação e foi embora cavalgando. Com o tempo, soldados aproximaram-se das muralhas do acampamento com carroças e co­meçaram a levar embora os mortos. Tanto em Passe a'Fiume quanto nos cam­pos do lado de fora, as chamas das piras iluminaram o céu da noite.

O segundo dia do sítio de Passe a'Fiume terminou.

No terceiro dia, os ténis redobraram o ataque à cidade, atacaram de todos os lados da muralha, não somente detrás do Clario. A maior parte do fogo dos tênis passou pelas defesas dos poucos e exaustos ténis-guerreiros de Passe a Fiume e alcançou até mesmo o centro da cidade. Havia poucos prédios com telhados que não foram tocados ou que não mostravam algum estrago; as baixas, civis e militares, cresceram rapidamente conforme as armas de cerco recomeçaram o bombardeio implacável, também por todos os lados. Todos os cinco portões da cidade estavam sob ataque, não apenas o portão Clario, e Sergei direcionou os chevarittai em investidas contra os firenzcianos, mas eles tinham poucos homens agora, e os aríetes inimigos martelavam os portões. Choviam flechas nos sitiantes; os ténis-guerreiros que ainda podiam lançavam feitiços; óleo quente jorrava das ameias e pegava fogo.

O cheiro de fumaça e sangue era intenso no ar de manhã até o anoitecer.

Quando o dia finalmente terminou com a descida do sol atrás de uma centena de colunas de fumaça e cinzas, as muralhas da cidade estavam esbura­cadas e marcadas, os portões ficaram rachados, os incêndios queimavam sem controle, mas a cidade resistiu.

Sergei sabia que ela não poderia resistir a outro dia sob o ataque feroz.

Duzentos mortos ou mais na Garde Civile; metade da força foi tão ferida que não consegue lutar. - Ca'Montmorte leu os registros em uma voz sem emoção enquanto Sergei, o u'téni co'Bachiga e o a'offizier co'Garret es­cutavam. - Dos chevarittai, três duplas mãos morreram, a maioria está ferida, e três quartos perderam os cavalos. Fui informado que a muralha do portão ocidental está quase rompida. Há incêndios por toda parte, e ninguém é capaz de dizer quantos cidadãos que ficaram para trás foram mortos ou feridos.

Sergei fez uma careta ao mancar até a mesa para servir vinho enquanto a perna ferida reclamava. Ela tinha inchado, e o sangue vazava através das bandagens. - Passe âFiume jamais foi tomada - falou co'Garret obstinadamente, e ca'Montmorte deu um olhar de aversão.

Bem, isso pode mudar amanhã, a não ser que Cénzi nos dê um milagre

respondeu ca'Montmorte.

O u'téni co'Bachiga olhou feio para ele e murmurou alguma coisa; a úni­ca palavra que Sergei entendeu foi "blasfêmia".

Infelizmente, eu tenho que concordar com o chevaritt ca'Montmorte — disse Sergei ao tomar um gole do vinho. O gosto era como se o vinho tivesse sido exposto à fumaça gordurosa, ou talvez fosse apenas o ar na sala. Todos estavam imundos, com as roupas sujas de terra, sangue e coisas piores, e o cheiro na sala era horrível. Sergei pousou a taça e esfregou o nariz, que estava frio e duro demais. — A cidade pode muito bem cair amanhã, e o hirzg tem noção disso. Nós fizemos tudo o que era possível aqui.

Então devemos nos render e torcer que o hirzg tenha piedade de nós?

perguntou ca'Montmorte.

Essa é uma opção que devemos considerar - falou Sergei. - Nós podemos mandar um chevaritt com uma petição de manhã e render nossas armas ao hirzg, depois ele pode soltar aqueles que quiser e manter o resto de nós para pedir resgate.

- Ou?

Nós lutamos até que as muralhas desmoronem e a cidade inteira queime e deixamos nossos corpos aqui enquanto retornamos a Cénzi. Talvez con­sigamos dar mais um dia ao kraljiki para ele preparar Nessântico para o hirzg.

Sergei deu de ombros. Ele olhou para cada um dos rostos e viu o fatalismo amargo e cansado ali.

O comandante acrescentou - Ou nos lembramos que a batalha decisiva desta guerra não será travada em Passe a'Fiume, mas sim em Nessântico, e re­conhecemos que é para onde devemos ir agora. Aqueles de nós que quiserem fazer isso cavalgarão à primeira luz do dia; todos que quiserem tentar. As for­ças do hirzg são menores perto do portão sudoeste. Podemos tentar atravessar aquela linha para chegar à Avi e recuar para Nessântico; alguns de nós talvez consigam. Aqueles que não quiserem juntar-se à investida podem ficar aqui para entregar a cidade ao hirzg e à sua misericórdia.

Ca'Montmorte já concordava com a cabeça enquanto o punho socava de leve a coxa. Co'Garret olhava fixamente para a mesa entre eles. Co'Bachiga, em seu robe verde, esfregou as mãos. - Eu liderarei a investida. Quanto ao resto dos senhores... não me importo com que escolha façam - falou Sergei.

Isso é entre os senhores e Cénzi. Nós fizemos tudo que foi possível aqui e cumprimos a promessa feita ao kraljiki de agüentar o máximo de tempo que deu.

Mesmo que possamos abrir caminho lutando, nós seremos seguidos pelo exército firenzciano... e a maioria estará a pé - disse co'Garret. - Nós seríamos fustigados pelo caminho inteiro até Nessântico.

Sergei balançou a cabeça. - Se conseguirmos cruzar as fileiras inimigas, eu não acredito que seremos perseguidos pelo hirzg; ele precisa atravessar o Clario com o exército inteiro e reagrupar-se antes de avançar até Nessântico, e não irá acreditar que mais alguns chevarittai e homens da Garde Civile em Nessântico farão a diferença.

O senhor está apostando a sua vida nessa suposição, e a de todo mundo.

Sergei conseguiu sorrir. - Estou. Mas todos nós temos que morrer um dia. Por que não agora? - Ele tomou o resto do vinho em um gole só, limpou a boca nas mangas e jogou a taça pela sala. A cerâmica estilhaçou-se contra a parede. - Não há mais nada a discutir aqui. A'offizier ca'Montmorte, avise todos os chevarittai; a'offizier co'Garret, o senhor fará o mesmo com a Garde Civile; u'téni co'Bachiga, se o senhor ou qualquer um dos ténis-guerreiros quiserem se juntar a nós, a ajuda será bem-vinda. Mas, lembrem-se, ninguém que escolher ficar e render-se com a cidade será punido. - Ele tomou fôlego, foi até a janela aberta e contemplou a ruína de Passe a'Fiume.

- Eu sugiro que os senhores descansem o máximo que puderem hoje à noite - falou Sergei. - E façam suas pazes com Cénzi.

O a'offizier co'Garret decidiu permanecer na cidade e negociar a rendição. - Passe aFiume é minha responsabilidade assim como Nessântico é sua - falou ele para Sergei - e eu cumprirei-a até o fim. - Sergei apenas se limitou a concordar com a cabeça e dar um tapinha nas costas do homem. Quase toda a guarnição da Garde Civile da cidade permaneceu com co'Garret. Aqueles chevarittai ou integrantes da Garde Civile feridos demais para cavalgar ou andar ficariam para trás por necessidade, assim como o uténi co'Bachiga e a maioria de seus ténis.

No portão sudoeste, sob a luz fraca do momento anterior à alvorada, Sergei contemplou o pátio e viu os chevarittai de rostos carrancudos que ainda conseguiam cavalgar. Em volta deles estava a Garde Civile de outras guarnições e um pequeno punhado de ténis-guerreiros de Nessântico. Trezentos. Talvez menos. Certamente menos do que ele esperava.

Eles aguardaram, e Sergei sabia que a tensão estava cantando tão alto nos ouvidos dos homens quanto nos seus. O comandante verificou se a perna ferida estava bem presa à sela, depois pegou firme a espada do hirzg e sacou-a da bainha. Em volta, ele ouviu o retinir de espadas muito usadas saindo das bainhas de couro quando os demais fizeram a mesma coisa.

Ele esperou. Ao longo do quadrante noroeste da muralha de Passe a'Fiume, no portão da Avi a Firenzcia, o fogo dos tênis surgiu e saiu da cidade em um arco. Eles ouviram, ao longe, o clangor de espadas contra escudos e gritos roucos, como se aqueles portões estivessem prestes a se abrir e expelir uma força de ataque. Sergei ergueu o olhar para o ponto alto destruído da mu­ralha. Um homem acenou lá de cima para ele. - O inimigo está se deslocando, comandante, ao norte - disse ele.

Sergei concordou com a cabeça e gesticulou para os homens no portão. As barricadas já tinham sido removidas. Agora os portões estavam abertos e a grade, subida. Sergei instigou o cavalo e começou a galopar, seguido pelos che­varittai montados. Eles saíram da cidade com os homens a pé correndo atrás.

As fileiras de sitiantes firenzcianos eram menos numerosas aqui, onde o solo era pantanoso e infestado por mosquitos. Caso a distração tenha funcio­nado, muitos dos soldados inimigos estariam a caminho da comoção no pró­ximo portão. Um bom número dos homens restantes ainda estaria dormindo, à espera do sol e do ataque final à cidade. O plano era que os chevarittai agis­sem como uma cunha para quebrar a linha Firenzciana, depois mantivessem a brecha aberta para que a infantaria da Garde Civile pudesse ir até Avi, e fi­nalmente agissem como retaguarda caso os firenzcianos decidissem perseguir.

Eles percorreram a terra argilosa da margem do rio, os cascos dos cavalos de guerra levantaram montes de barro. Sergei já era capaz de ver as tendas lá e uma figura que apontava para eles e dava o alarme. Bolas de fogo fizeram um arco no ar ao sair da carroça que levava os ténis-guerreiros e acertaram o acampamento firenzciano. A comoção espalhou-se rapidamente pela linha inimiga, mas naquela altura Sergei e os chevarittai já estavam entre as tendas. O comandante atacou qualquer coisa que se movesse, não parou e sim insti­gou a montaria a avançar, sempre abrindo caminho à força mesmo com os sol­dados que se amontoavam contra ele. Um o'offizier, seminu e sem armadura, gritou ao brandir a espada, e Sergei abateu o homem com um único golpe. De cada lado, ele ouviu o som de batalha e uma vez o grito horrível de um cavalo ferido. Então o comandante e a maioria dos outros cavaleiros atravessaram o acampamento; não havia nada além do campo arruinado de um fazendeiro entre Sergei e a Avi ladeada por árvores. A carroça dos ténis-guerreiros passou chacoalhando, sendo puxada por cavalos assustados e de olhos arregalados. Sergei puxou as rédeas da própria montaria e virou o cavalo para ver a Garde Civile correr através da abertura feita pelos chevarittai, uma brecha que se fechava rapidamente.

-Vamos! Corram! - berrou o comandante para todos eles. - Chevarittai, mantenham a posição! - Ele galopou de volta, fez pressão contra os firenzcianos, a espada do hirzg estava ensangüentada e ficava pesada a cada golpe até que os músculos reclamaram. A maior parte da Garde Civile passou, o primeiro grupo alcançou os ténis-guerreiros que já estavam na estrada. Estan­dartes de preto e prata corriam na direção deles, e as trompas dos chevarittai firenzcianos soaram o alarme.

- Agora! - berrou Sergei, e os chevarittai pararam de lutar e saíram. A brecha na linha fechou-se rapidamente. Sergei manteve a posição, à espera enquanto os demais passavam correndo por ele, à espera enquanto os firen­zcianos atiravam lanças e perseguiam. O comandante chutou as costelas do cavalo com a perna boa para instigá-lo a galopar quando o último dos cheva­rittai passou por ele, conforme as flechas começaram a cair à sua volta, na hora em que o fogo dos ténis irrompeu no meio da Garde Civile em fuga no campo e uma dezena de homens caiu gritando. Sergei ficou para trás dos chevarittai enquanto eles galopavam pelo campo em direção ao arvoredo e passaram pe­los últimos retardatários sobreviventes da Garde Civile.

Sergei estava quase no limite do campo quando sentiu flechas baterem e caírem contra as costas protegidas pela malha. Ele pensou que estava a salvo, mas uma estocada repentina e terrível no pescoço quase o derrubou da sela apesar das correias de couro que prendiam a perna. Sergei levou a mão ao pescoço e sentiu a haste grossa de uma seta de besta. Sentiu o sangue quente que jorrava da ferida.

O comandante ouviu o sinistro baque de bestas novamente, e uma seta penetrou a armadura perto da espinha, a força do impacto empurrou-o contra o pescoço do cavalo. Ele segurou-se desesperadamente no cavalo enquanto apanhava dos galhos das árvores, conforme ouvia os cascos da montaria sobre a terra batida da Avi...

... conforme o mundo escurecia à sua volta embora o sol tivesse finalmente tocado o horizonte...

... enquanto gemia e ficava perdido na escuridão...

 

SINTO QUE tenha sido assim, Ana.

Sentada na pequena cama da cela, a cabeça de Ana virou-se ao ouvir a voz de tenor que ela conhecia. O kraljiki Justi estava parado na porta da cela na torre da Bastida - a mesma cela que Karl ocupou anteriormente. Ana estava presa como ele esteve, com o terrível silenciador na boca e as mãos atadas por correntes; o cabelo estava emaranhado, sujo e preso nas correias da mordaça.

Eles trouxeram Ana aqui diretamente do Velho Distrito em uma carrua­gem fechada que quase virou ao disparar pelas ruas. Ela não tinha idéia de onde Karl estava, nem Mahri, que os traiu.

Mas agora Ana sabia quem estava atrás dela. E perguntou-se quanto tem­po de vida ela tinha.

O kraljiki olhou em volta da cela. - Fui informado que seu amante numetodo vivia aqui até fugir. O pobre capitão ci'Doulor esteve aqui durante um tempo, até ser transferido para, ah, acomodações menos palacianas. E agora você... - Ele deu um passo à frente com a graça e agilidade atlética que Ana lembrava. O kraljiki sentou-se à mesa e encarou-a.

Eu não admito facilmente os meus erros, Ana. Mas cometi um ao me aliar a ca'Cellibrecca e à víbora da filha dele, um erro pior do que eu tinha imaginado, quando a melhor opção para mim era aquela que minha matarh já havia sugerido, o que me dói admitir. Espero que não seja tarde demais para retificar essa situação. - Ele gesticulou para os gardai do lado de fora da cela e disse - Removam os grilhões. - Justi observou os gardai soltarem as mãos de Ana e liberarem as amarras da mordaça. Eles deram um passo para trás, porém, como Ana notou, não saíram. Ela esfregou os pulsos e mexeu a mandíbula.

Desculpe por tê-la trazido presa como uma herege condenada, Ana - disse Justi. - Mas você teria vindo se eu simplesmente chamasse?

Não - respondeu Ana duramente, sem se importar com a grosseria. - Onde está Karl?

Em uma cela abaixo da sua. Ileso.

Ela acenou com a cabeça. - Você me tem diante de si agora, kraljiki. O que você quer?

Ao que parece, eu preciso de um archigos. Ca'Cellibrecca abandonou Nessântico para ficar do lado do hirzg; eu colocarei uma nova cabeça no corpo da fé concénziana, para que todos saibam que a voz de ca'Cellibrecca é falsa.

Escolher o archigos não é o papel do kraljiki - falou Ana. - O Colégio A'téni tem que fazer isso.

Justi deu um sorriso que sumiu no momento seguinte. — Os a'ténis que ainda ficaram aqui estão com medo do exército que se aproxima de Nessântico. Ca'Cellibrecca abandonou-os; eles temem que ca'Cellibrecca perma­neça como archigos caso o hirzg vença, da mesma forma que temem que ca'Cellibrecca caia com o hirzg. Eu já falei com eles, e eles... bem, digamos que eu convenci os âténis de que, desde que permaneçam em Nessântico, seria de seu interesse seguir as minhas preferências.

E qual dos a'ténis você escolheu, e por que eu me importaria com isso?

Justi sorriu. Era um sorriso estranho, arrependido. - Eu não escolhi nenhum deles — falou com a voz fina e alta. - Eu decidi promover uma jovem o'téni ao posto.

Ana levou um momento para compreender a importância das palavras. Ela começou a reclamar, chocada e sem conseguir acreditar, mas Justi fez um gesto para calá-la. - Um instante. Escolher um dos a'ténis existentes simples­mente não teria o simbolismo e importância de que eu preciso. O archigos Dhosti escolheu você, promoveu e obviamente favoreceu você. Seu talento com o Ilmodo é inquestionável. Não posso trazer o anão de volta, então esco­lho a favorita dele, em nome da mensagem que essa escolha passará ao resto dos Domínios.

Você não pode estar falando sério. Eu sou apenas uma o'téni e jovem demais. E a Concénzia já me expulsou.

Jovem demais? — O sorriso estranho surgiu novamente. — Você é quase da mesma idade da minha matarh quando ela tornou-se kraljica; na verdade, eu acho que isso aumenta o simbolismo, não acha? E foi ca' Cellibrecca que lhe expulsou, e ele já demonstrou a quem é leal.

Ana ainda balançava a cabeça, mas Justi continuou falando enquanto ela não acreditava. - Eu ofereço duas opções, Ana. Se quiser, você pode permane­cer aqui na Bastida e assistir da sacada se Nessântico cairá nas mãos do hirzg e de seu archigos de estimação; gostaria de lhe lembrar que ca'Cellibrecca já demonstrou o que pensa sobre você e os numetodos. Ouso dizer que ele fica­ria contente de encontrar você e ci'Vliomani convenientemente presos para que possa fazer o que gosta com os numetodos. E se eu vencer, bem, precisarei mostrar aos Domínios o que faço com quem me trai. Até mesmo com quem um dia foi minha amante.

Ana não sentiu nada além de desprezo pelo homem e perguntou — Ou?

Justi soltou uma gargalhada alta. - Ou você pode escolher a minha segunda opção: pode se tornar archigos e ca' em vez de co' e me ajudar a enterrar o homem que enterraria você. Pode fazer justiça com o homem que assassinou o archigos Dhosti.

Ele era tão presunçoso, tão confiante. Ana esfregou as mãos irritadas pelas algemas. Queria cuspir nele, recusar só pela satisfação momentânea que teria. Mas não recusou. Não podia recusar. - Você tramou com ca'Cellibrecca contra o archigos, você e Francesca. Você me usou, kraljiki, e agora quer usar de novo.

Justi fez um gesto de desdém. - Tudo verdade. Assim como você tentou me usar pelo bem de ci'Vliomani e pelo bem do archigos Dhosti também. Bem, nenhum de nós conseguiu o que queria, não foi? Então vamos nos usar de novo, Ana, desta vez com um resultado melhor. Você ainda quer se casar com o kraljiki? Se quiser, eu chamo um a'téni aqui imediatamente e resolvo a questão. Eu me tornarei Justi ca'Seranta. O que você quiser. Mas eu preciso de um archigos e preciso rapidamente, e você é a melhor opção que eu tenho.

Ana deu um muxoxo de desdém. - Casar com você? Eu preferia cortar as próprias mãos e arrancar a língua do que isso. Eu sei o que você faz quando aqueles ao seu redor não são mais convenientes. Eu vi a kraljica morrer. Vi sua matarh dar o último suspiro. Casar com você? - Ela deu uma única risada áspera. - Creio que não.

Se ficou ofendido, Justi não demonstrou no belo rosto. - Eu passei a acreditar que é melhor escolher a própria vez do que esperar, Ana. Eu penei sobre o jugo de minha matarh por décadas, fiquei esperando pela minha vez, e finalmente me dei conta de que poderia esperar eternamente, de que poderia morrer antes de a vez chegar. Eu entendi que Cénzi queria que eu escolhesse. Então eu escolhi e não me arrependo disso. Este é o seu momento de escolher, Ana. Você não gosta de tudo que o poder lhe traz? Que pena. Cénzi julgou conveniente lhe oferecer, através de mim, a chance de pegar o globo do ar­chigos e usá-lo. Você pode aceitar o que Ele oferece ou pode recusar e rezar para Ele enquanto Nessântico afunda à nossa volta. O que Cénzi preferiria que você fizesse? O que lhe diria o archigos Dhosti? O que falaria o enviado ci'Vliomani?

Ana sabia. Ela já sabia, mas balançou a cabeça. - Eu não me casarei com você, kraljiki, e não farei necessariamente o que você pede. Entenda que, se eu for a archigos, eu serei a archigos. Plenamente. Completamente. Você tem que entender isso. A Concénzia interpretará a Divolonté como eu a interpreto, como o archigos Dhosti a interpretaria. Eu serei a sua aliada hoje, kraljiki, mas não concordo em ser seu joguete. Falarei com a minha voz, não com a sua.

Justi tomou fôlego. Concordou com a cabeça. - Eu não esperaria nada diferente de você. Aceito essas condições.

Ana fez que sim. O medo estava diminuindo, mas foi substituído por um novo medo, mais sinistro. Que essa seja a escolha certa, Cénzi. Não me deixe falhar com o Senhor. — Então nós desceremos e liberaremos Karl ci'Vliomani, kraljiki. Agora. Qualquer outro numetodo na Bastida também será imediata­mente solto. Quando eu vir que isso foi feito, nós conversaremos mais.

Outra tomada de fôlego. Outro gesto com a cabeça. Justi gesticulou na direção da porta da cela. - Depois de você, archigos Ana ca'Seranta. Eu tomei a liberdade de ordenar a reunião do Colégio A'téni, e eles aguardam ansiosos por nós.

 

- ONDE ESTÁ GEORGI, vatarh? Eu quero que ele me mostre como se sitia uma cidade.

A voz de Allesandra ecoou na imensidão do palácio do comté de Passe a'Fiume. O vestíbulo aberto debaixo do telhado quebrado e calcinado esta­va lotado de leitos dos mortos e feridos, e o que sobrou da estrutura fedia a sangue e fumaça. Jan olhou para a filha e suspirou. Ele tinha permitido que ela entrasse em Passe a'Tiume pelo acampamento de retaguarda na ma­nhã de hoje. Agora estava seguro o suficiente: o u'téni co'Bachiga, o a'offizier co'Garret e aqueles chevarittai de Nessântico feridos que não conseguiram fugir foram encarcerados no templo, que era um dos prédios menos danifica­dos na cidade. Os corpos executados dos offiziers de patentes mais baixas da Garde Civile - cujas famílias provavelmente não tinham dinheiro suficiente para pagar resgate ou para fazer a cobrança valer a pena - foram expostos ao longo das muralhas da cidade. Os ténis-guerreiros, sob a orientação de ca'Cellibrecca, tornaram-se ténis-bombeiros por pouco tempo, para apagar as chamas que seus feitiços provocaram. Apesar dos seus esforços, Passe a'Fiume queimava: uma mortalha de fumaça fina e cinzenta envolvia os prédios; as paredes estavam rachadas e arruinadas perto dos portões principais. Corvos alimentavam-se dos corpos abandonados nas ruas ou meio soterrados nos es­combros ou espalhados nos campos do lado de fora, enquanto soldados vi­giavam os cidadãos coagidos a remover os corpos, empilhá-los em carrinhos e levá-los para a pira construída do outro lado do Clario. Os carrinhos com os mortos lutavam contra o fluxo constante de soldados firenzcianos que cruzavam o rio para entrar e passar por Passe a'Fiume. Exceto pelos gritos e risadas dos soldados firenzcianos que festejavam nas tavernas e bordéis ainda abertos de Passe a'Fiume, a cidade cuidava de suas tristes obrigações em silêncio, em um sofrimento e choque enormes.

Jan tinha esperança de que isso seria o pior que Allesandra precisaria ver, mas a esperança - como dizia o Toustour - era uma amante volúvel. O hirzg estudou os relatórios dados por Markell sobre as próprias baixas. Ele olhou para seu ajudante neste momento, parado atrás de Allesandra com a cabeça baixa.

Foi por isso que pedi a Markell para trazer você aqui - falou Jan para a filha. - Venha comigo, meu amor. Tenho que lhe mostrar uma coisa. - Ele ofereceu a mão para a menina. Ela pegou, e Jan novamente ficou admirado com a maciez da mão da filha e como não era mais tão pequena assim. Os dois percorreram o corredor principal entre os leitos, e Jan parou ocasionalmente para reconfortar um dos soldados firenzcianos feridos. Ele notou os olhos de Allesandra ficarem arregalados ao ver o sangue e a carne em decomposição, os braços e pernas perdidos e as terríveis feridas abertas. Ela respirava rápido e agarrou-se com força ao vatarh.

Os dois finalmente pararam diante de um leito no meio do quarto. - Não... - Jan ouviu Allesandra suspirar, depois um soluço interrompeu a voz. Ela tirou a mão de Jan com força, ajoelhou-se ao lado do leito e do corpo imó­vel e ensangüentado deitado ali. Allesandra ergueu olhos lacrimejantes para o vatarh e falou — Não pode ser. Não vou deixar que seja assim.

Eu gostaria que fosse assim tão fácil, meu passarinho — respondeu Jan, que se ajoelhou ao lado dela. - Allesandra, seu Georgi era um soldado. Um o'offizier. Ele pediu para participar do cerco e teve um desempenho valente, mas quando os chevarittai de Nessântico fugiram ontem, foi o acampamento de Georgi que eles atravessaram. Ele lutou para contê-los, mas morreu.

Jan esticou o braço para o lençol e começou a puxá-lo sobre a cabeça de Georgi; Allesandra tocou em sua mão. - Não, deixe comigo, vatarh. Ele era meu amigo.

Jan deixou que a filha pegasse o lençol, e Allesandra puxou delicadamen­te o pano sobre o rosto de Georgi. Ela tocou o rosto escondido do o'offizer.

Jan falou baixinho - Allesandra, a guerra pode parecer um jogo, mas um starkkapitän ou um hirzg tem que entender que as peças não são de chumbo e tinta; são de carne e osso, e quando elas caem, não dá para pegá-las e colocá-las novamente. Olhe em sua volta; esta é a realidade da guerra, e você precisa entendê-la se quiser ser a hirzgin. Georgi estava lhe ensinando a mexer as peças; agora ele ensina o que significa ser uma daquelas peças.

Allesandra voltou a olhar para Jan, e embora as bochechas estivessem manchadas por rastros de umidade, os olhos estavam secos. - Prometa que iremos para Nessântico agora, vatarh - falou a menina com uma voz mais tomada pela raiva do que tristeza. - Prometa.

Jan ajoelhou-se e pegou a filha nos braços, e a raiva voltou novamente às lágrimas. Ela soluçou intensamente no peito do vatarh, inconsolável. O hirzg fez carinho no cabelo de Allesandra e deu um abraço com força.

Nós iremos a Nessântico, Allesandra. Eu prometo. Você andará em suas ruas muito em breve.

Mais uma semana, talvez um pouco mais, e este será o destino de Nessântico. Cénzi realmente nos abençoou - falou ca'Cellibrecca com uma voz tão rouca quanto a dos corvos carniceiros. - Que vitória maravilhosa, meu hirzg!

Jan virou-se da janela quebrada em uma torre cupulada do templo. Ele deixou Allesandra sob os cuidados de Markell antes de sair para encontrar o archigos. Ca'Cellibrecca fez uma expressão radiante para o hirzg, o rosto rotundo contente acima do robe ornamentado de archigos. Jan devolveu com uma cara feia.

Você é um tolo, ca'Cellibrecca - rosnou ele. Jan apontou para a ianela quebrada. Cacos de vitral estavam presos na moldura de chumbo, e o peitoril estava escurecido com a fumaça. - É uma vitória o que você vê lá fora? - ralhou o hirzg. Ca'Cellibrecca encolheu-se contra a porta como se procurasse escapar. — Você vai me dizer que o kraljiki Justi está entre os prisioneiros? Foi o kraljiki ou mesmo o comandante ca'Rudka quem en­tregou a cidade a nós ou algum offizier local sem importância? Não notou quantos homens nós perdemos aqui, e quantos dias perdemos enquanto Nessântico preparou suas defesas? - Jan cuspiu pela janela e observou a massa de saliva fazer um arco no ar antes de cair nas telhas rachadas lá embaixo. Ele voltou-se para ca'Cellibrecca. - O kraljiki manipulou-nos aqui, ca'Cellibrecca, melhor do que a matarh dele teria feito. Ele ofereceu uma negociação para ganhar dias, depois fugiu e deixou seu comandante aqui para nos segurar. Então os próprios chevarittai fugiram antes que pudessem ser capturados.

Eu tenho noção disso - falou câCellibrecca. - O starkkapitân ca'Linnett devia ter ordenado que seus homens perseguissem os chevarittai. Eu disse isso para o homem, mas ele não me escutou. - Ca'Cellibrecca balançou a cabe­ça. - Agora temos que lutar contra eles em Nessântico. Eu andei pensando a respeito disso, meu hirzg. Se pegarmos nossas tropas e dividirmos os homens para que possamos vir pelo norte e oeste, assim como pelo leste...

Jan interrompeu o homem com um rosnado. - Venha aqui um instante, archigos. Eu preciso mostrar uma coisa para você.

Ca'Cellibrecca cruzou a sala até ele; Jan deu um passo para o lado a fim de deixá-lo ficar diante da janela e franziu o nariz ao sentir o cheiro de incenso do robe do homem. - O que é que o senhor quer que eu veja? - perguntou ca'Cellibrecca, e Jan pegou seu robe verde e empurrou o archigos com força para frente. Ca'Cellibrecca urrou de medo, mas as mãos apenas se debateram no ar frio. Jan viu os cacos de vidro penetrarem nas dobras da cintura do ho­mem. Desequilibrado, câCellibrecca era mais pesado do que o hirzg esperava; Jan teve que se apoiar para evitar soltá-lo completamente.

Você sabe voar, archigos? — perguntou Jan enquanto o homem berrava de susto. - Será que Cénzi pode lhe dar asas como um pássaro?

Meu hirzg... me puxe!

Cale a boca. Você parece mais com uma vaca do que um pássaro para mim, archigos. Isso é o que você é agora, archigos: uma vaca. Enquanto der o leite de Cénzi para mim, eu fico com você. Se não puder ser minha vaca, então mandarei que o uténi co'Kohnle seja. Francamente, eu realmente não me importo qual de vocês seja a minha vaca, desde que me deem o que quero. Eu não preciso que você seja um pássaro e que me fale sobre os problemas dos pássaros, a não ser que demonstre como voa bem. Eu já tenho um stark­kapitän, mas talvez você se considere um estrategista melhor, hein? Podemos descobrir isso agora. Então me diga, archigos, porque meus braços estão fi­cando cansados e não consigo segurar por mais tempo: você é uma vaca ou um pássaro?

Ele balançou o homem e ouviu o som de pano rasgando. Ca'Cellibrecca berrou — Sou uma vaca! Uma vaca! — Jan viu o archigos debater os braços. As pessoas olhavam para cima e apontavam para o archigos. - Mais alto - ele gritou para o archigos e sacudiu-o novamente. — Eu não consigo ouvir você. Eles não conseguem ouvir você.

Eu sou uma vaca! — berrou o homem. Ele ouviu a gritaria reverberar nas ruas lá embaixo. - Eu sou uma vaca, meu hirzg!

Muja para mim, vaca - disse Jan. - Deixe-nos ouvir seu mugido.

Ca'Cellibrecca engoliu em seco. Ele mugiu um lamento melancólico que não tinha fim, como se o archigos fosse uma das trompas do templo. Jan ou­viu as risadas nas ruas lá embaixo.

Assim está bom — o hirzg falou e puxou o homem para dentro. O cabelo do archigos estava desgrenhado e sangue manchava o robe onde o vidro cortou o pano e entrou na carne embaixo. — Eu aconselho a cuidar de seus problemas de vaca, archigos. Nós sairemos de Passe a'Fiume de manhã.

 

A BOLSINHA DE COURO no cinto estava pesada sobre a coxa de Mahri, com uma bola de vidro do tamanho do punho de uma criança dentro. Colocar o X'in Ka dentro da bola custou uma noite inteira de sono ao men­digo, mas ele ainda era atormentado por dúvidas.

Os sinais não são claros o suficiente. Os sinais nunca são quando têm a ver com ela...

Soaram as trompas do Templo de Cénzi, e veio a resposta das trompas de todos os templos e também dos sinos do Palácio do Kraljiki. Com o clamor, a nova archigos apareceu na tradicional janela da torre do meio para acenar para as multidões de fiéis... embora as multidões fossem bem menores do que aquelas que geralmente saudavam um novo archigos. A população de Nes­sântico foi dizimada: a maioria dos homens estava ausente enquanto servia no exército cada vez maior do lado de fora dos portões orientais, e muitos cidadãos decidiram que visitar parentes nas cidades no oeste seria uma idéia excelente. A praça do templo estava cheia e a aclamação foi dirigida à nova archigos, mas a multidão não transbordou para a Avi a Parete, a vibração foi menos do que ensurdecedora e mais ensaiada do que autêntica. Os arautos já tinham anunciado que, por causa da crise atual, a archigos Ana I dispensaria a tradicional procissão ao redor da cidade; após alguns minutos e uma bênção dada aos espectadores com uma voz fina e nervosa, a multidão dispersou-se rapidamente, exceto pelos ca' e co' que encheram o Templo da Archigos para testemunhar a primeira missa de Ana.

Conforme os cidadãos voltavam para casa e para o trabalho, a fofoca tomou conta do ambiente, e Mahri captou alguns trechos enquanto as pessoas passavam por ele.

... ouvi dizer que ela já concordou em se casar com o kraljiki. A archigos podia muito bem ser uma das grandes horizontales...

... parece que quando os desejos do kraljiki não forem atendidos, ele simplesmente vai criar a própria Concénzia...

... que os numetodos serão bem-vindos na cidade. Pelo que ouvi, o título de enviado de ci'Vliomani foi restaurado...

Mahri deu um sorriso cruel. Ele tocou a bola de vidro mais uma vez e envolveu-se no manto. Protegido na lateral de um dos prédios do outro lado da praça, Mahri invocou um rápido feitiço, e o ar tremulou em volta dele como se estivesse imerso em água. O mendigo cruzou o pátio e entrou no templo, ciente que olhares casuais veriam apenas uma onda de calor no ar se o vissem de relance. Dentro do templo, ele encontrou um nicho escuro na lateral da nave. Mahri instalou-se ali para ver Ana e um séquito de a' e u'ténis realizarem os rituais da Suprema Adoração. Ouviu a inexperiente Admoestação de Ana do Alto Púlpito. Sua Admoestação foi em grande parte um tributo à memória do archigos Dhosti e um apelo por tolerância.

... lembrem-se que o archigos Dhosti percebeu que há mais coisas no mundo do que podemos imaginar e que até mesmo Nessântico tem que mudar. Com a kraljica Marguerite, nós fomos ninados pela paz por muito tempo, e quando acordamos, descobrimos que há mudanças em andamento que não vimos porque não queríamos vê-las. Nós tínhamos medo. Não po­demos mais ter medo; não podemos mais fechar os olhos e fingir que tudo é como desejamos que seja. Temos que abraçar aqueles que podem nos ajudar porque, sem a ajuda deles, não podemos sobreviver. Meu... — Mahri ouviu a pausa e viu a careta quase achando graça que acompanhou a hesitação - ... antecessor como archigos gostava de citar a Divolonté. Garanto que eu te­nho tanto respeito por essas leis quanto ele. Deixem-me citar: "assim como a criança cresce e torna-se adulta, também a Divolonté precisa crescer". Nós não temos escolha a não ser aceitar tal mudança agora. A fé concénziana está saindo de uma longa e pacata infância; dos braços acolhedores da família para um mundo que é perigoso e desagradável. Nós somos Nessântico. Nós somos os Domínios, somos grandes e somos vastos, mas existem aqueles que querem destruir nossa grandeza com seus interesses mesquinhos e tacanhos. Eu digo para vocês: para encarar o resto do mundo, também precisamos estar dispostos a aprender com ele.

Houve um silêncio no templo quando Ana terminou de falar, depois veio um burburinho entre os ca' e co' reunidos ali. Mahri viu os ca' e co' inclinarem-se na direção uns dos outros com rostos sérios e testas franzidas; viu os lábios formarem a palavra "numetodo" mesmo que não conseguisse ouvir. Se Ana teve esperança de convencê-los, a postura dos ca' e co' indicava que não conseguiu. Mesmo o kraljiki, presente na alcova real à esquerda do Alto Púlpito, parecia incomodado com as palavras da archigos, e nenhum dos a'ténis no tablado com ela estava sorrindo. Karl também estava presente, em uma alcova nos fundos do templo com gente que Mahri sabia estar entre os remanescentes dos numetodos locais. Eles também estavam sérios enquanto assistiam à reação.

O restante da missa andou rápido. Quando Ana deu a Bênção de Cénzi aos presentes, eles saíram rapidamente enquanto ela e os a'ténis foram para os fundos do prédio.

Em seu nicho, Mahri suspirou e fechou os olhos. A mão tocou a bola de vidro na bolsinha. Ela iria querer isso agora. Ele tinha certeza. Mahri correu para a sacristia e parou nas sombras da borda da nave. Vários dos e' e o'ténis presentes esperavam por sua superior surgir e falavam baixinho entre si. Ana e os outros a'ténis do conclave estavam atrás das portas fechadas.

Ele sentiu o X'in Ka rodopiar em sua volta e abaixou as defesas da mente para trazê-lo para dentro. Falou baixinho para que os ténis não ouvissem; as mãos balançaram, viraram-se e pegaram o ar. O feitiço era longo e compli­cado, iria deixá-lo completamente esgotado depois. Também custaria alguns anos de vida. Mas por outro lado era necessário, como fora necessário no passado.

Ele tinha noção dos sacrifícios que eram exigidos de sua parte. Mahri concordou com eles há muito, muito tempo.

O mundo mudou à sua volta. O próprio ar fez silêncio. O som das vozes dos e' e o'ténis ficou baixo e quase inaudível. Mahri andou, e a impressão é de que forçava o corpo através de areia. Cada passo era um parto, parecia que ele levaria dias para chegar às portas da sacristia a uma dezena de passos de distância e para passar pelas estátuas vivas dos ténis. Foi necessária quase toda a sua força para empurrar as portas e fechá-las novamente.

Ao seu redor, Ana e os a'ténis estavam congelados, paralisados no meio da retirada das vestimentas douradas da missa. A coroa de archigos estava sobre o assento da cadeira ao lado de Ana; ela ainda estava debruçada sobre a coroa, com as mãos abertas como se tivesse acabado de pousar a tiara dourada.

Mahri foi até Ana e colocou o dedo ao lado do pescoço dela. Pegou sua presença com a mente e prendeu-a. Sentiu Ana cambalear ao recuperar os movimentos e ouviu seu ofego.

É apenas o meu dedo — falou Mahri com sua voz fraca e rouca. - Poderia muito bem ser uma faca.

Ana endireitou o corpo e deu um passo cambaleante para trás. Ela olhou rapidamente em volta da sacristia e viu os outros ténis presos em meio aos movimentos. Ana franziu os olhos e os lábios. - Você me traiu, Mahri. Você me entregou ao kraljiki.

Sim - respondeu ele calmamente. - Eu entreguei você ao kraljiki. E olhe onde você está agora.

Você não sabia que isso iria acontecer.

De longe, era o cenário mais provável. Diga-me, Ana, se eu tivesse aconselhado você e Karl a se entregarem ao kraljiki, você teria feito isso? Não precisa responder; eu já sei. E você também.

Ela começou a reclamar, mas Mahri interrompeu Ana. O X'in Ka queimava por dentro enquanto ele mantinha ambos sob o feitiço; Mahri que­ria gritar de dor. Quase sentiu as novas cicatrizes rasgando seu já destruído rosto. Ele tinha que soltá-la rapidamente ou o fogo começaria a consumi-la também. - Não há muito tempo - disse Mahri. - Eu vim dar isto para você. — Ele soltou a bolsinha do cinto e deu para Ana. Parecia mais pesada do que antes quando Mahri colocou na palma da mão dela. - Dentro dessa bola está esse mesmo feitiço - falou enquanto gesticulava para os ténis imóveis ao re­dor. — Ele retira a pessoa das restrições do tempo. Diga meu nome enquanto segura a bola na mão, e o feitiço será lançado.

Por quê? - A pergunta ficou no ar enquanto Ana olhava para a bolsinha e via a esfera reluzente lá dentro, que cintilava com uma suave luz laranja.

Você precisará do feitiço. Pense, Ana: podia ter sido uma faca na sua garganta e não o meu dedo. Eu dou para você o mesmo poder de parar o tem­po e fazer o que for necessário. Também digo um ditado que temos nas Terras Ocidentais: uma cobra sem a cabeça não pode atacar a pessoa.

Ana balançou a cabeça, mas Mahri fechou os olhos e liberou-a do feitiço. Ela foi paralisada em meio à reclamação, e Mahri andou com esforço até a porta, tão rápido quanto foi possível no ar gélido. Assim que saiu do templo, ele cancelou o feitiço completamente e quase caiu nos paralelepípedos do pátio quando o X'in Ka deixou seu corpo e o mundo voltou a se movimentar de supetão. Mahri correu na direção do Velho Distrito, em direção da cama onde iria desabar pelos próximos dias.

 

... UMA COBRA SEM a cabeça não pode atacar a pessoa - falou Mahri.

Ana balançou a cabeça. - Eu não sei o que você quer dizer - ela começou a falar, mas foi tomada por uma súbita desorientação naquele momento, e Mahri desapareceu enquanto os ténis na sacristia ganharam vida de supetão. A desorientação pareceu estranhamente familiar. Ela não conseguiu decidir exatamente por quê.

Ela segurava a bolsinha na mão. O couro era maleável e gasto; o objeto no interior era pesado, Ana lembrava-se do brilho, de que era da cor de um sol morrendo atrás de nuvens. Ela enfiou a bolsinha rapidamente em um bolso do robe verde. Nenhum dos a'ténis notou; nenhum deles olhava para Ana. Nenhum deles tinha olhado para ela desde que Ana saiu do Alto Púlpito. Colin ca'Cille, Alain ca'Fountaine, Joca ca'Sevini, todos os demais: eram velhos, todos eles. Pelo menos alguns dos a'ténis nutriram aspirações de ser o archigos, e todos eles preferiam estar em suas próprias cidades do que presos aqui em Nessântico com o exército do hirzg se aproximando. Ela era capaz de sentir o palpável ressentimento dos a'ténis.

Vocês são todos cegos - falou Ana para eles. Os a'ténis agora olharam para ela, assustados. - Estão tão envolvidos consigo mesmos que não conse­guem enxergar. — As mãos de Ana tremiam como se estivesse exausta por um feitiço. - Preciso que vocês todos vão embora agora. Mandem Kenne entrar quando saírem.

Archigos - disse um deles: ca'Sevini de Chivasso. Pela expressão do homem, o título de Ana parecia ter gosto de óleo de peixe. - A senhorita já cometeu um erro terrível hoje com a Admoestação que deu aos ca' e co'. Está cometendo outro agora. O kraljiki pode ter conseguido nos impingir a sua ascensão nesta hora terrível, mas se a senhorita tem alguma esperança de ser mais do que archigos em título apenas, então precisa de nossa cooperação. Demonstrar arrogância não é a maneira de consegui-la, não quando outra pessoa ainda detém o título de archigos. A senhorita não pode nos dispensar como se fôssemos e'ténis inconvenientes.

Ana não tinha resposta para ele, ou melhor, tinha várias. Pessoas como você vêm dizendo o que eu tenho que fazer a minha vida inteira, do meu vatarh ao kraljiki. Ela queria devolver o rancor para o a'téni. Mas, tirando a raiva, Ana sabia que ca'Sevini estava parcialmente certo, não importava o quanto ela qui­sesse negar. Ana não poderia ser archigos sem o apoio deles. Não sobreviveria à futura batalha sem os a'ténis; ela especialmente não podia arriscar que eles desertassem para ca'Cellibrecca.

Haverá uma hora para se afirmar. Esse não é o momento. Ela quase conse­guiu imaginar a voz de Dhosti dizendo as palavras.

Se não foi capaz de sorrir, ao menos ela conseguiu não franzir a testa. - Você está certo, e peço desculpas, a'téni ca'Sevini. Cénzi sabe que mereço a bronca, e agradeço por ter a coragem de falar francamente. Por favor, peço perdão a todos vocês: sei que temos que trabalhar juntos, especialmente agora.

Ela não sabia se isso acalmaria os a'ténis. Alguns concordaram com a cabeça; ca'Sevini até mostrou os poucos dentes que sobraram em um breve sorriso. Ana pôs de lado as vestes da missa e saiu da sacristia o mais rápido possível. Chamou Kenne, que voltara à cidade recentemente. - Você não viu ninguém lá fora, Kenne? Mahri?

Kenne balançou a cabeça, um pouco surpreso. — Não, archigos. Não havia ninguém no salão além de nós. Por quê?

Ela fez que não. - Deixe para lá. Eu preciso que faça algo para mim...

Karl abraçou Ana assim que Kenne fechou a porta ao sair e perguntou - Você tem certeza de que é bom que um numetodo seja visto indo ao gabinete da archigos? As pessoas podem falar, especialmente depois de sua Admoestação hoje.

A essa altura eu já passei do ponto de me importar.

Ele soltou uma gargalhada rouca e puxou Ana para si. Ela permitiu-se afundar no abraço dele. Os braços de Karl apertaram Ana, que fechou os olhos para que só houvesse aquele abraço, aquele carinho, aquele momento. Karl finalmente afastou-se, e Ana abriu os olhos novamente e notou que ele observava a sala: a enorme mesa que Dhosti ocupou por muitos anos, que ca'Cellibrecca maculou com sua presença mais recentemente; a cadeira-trono em uma ponta da grande sala onde Dhosti ficava sentado para receber visitas formais; as imagens douradas dos moitidis gravadas nas sancas; o gigantesco globo partido, dourado, ornamentado e seguro por nuvens de madeira acima das portas principais.

Impressionante - disse Karl. - Você já experimentou o trono?

Ana balançou a cabeça. — Esta não é hora para brincadeiras, Karl. Agora eu preciso que você seja o enviado dos numetodos. - Ela pegou as mãos dele. - Mahri veio até mim depois da missa.

Karl fechou a cara. Suas mãos apertaram as de Ana. - Traidor desgraçado. Entregar a gente daquela forma...

Ana fez que não com a cabeça. Ela tocou na bolsinha de couro amarrada ao cinto do robe e sentiu o latejar do Ilmodo preso ali dentro. Mas não contou para Karl ou mostrou o pequeno globo. Ela escondeu o fato e ficou pensando nisso. — Eu não tenho tanta certeza. Pensei a mesma coisa depois que ele nos entregou aos gardai, mas agora... - Ana sentiu um arrepio e afastou-se de Karl. - Eu não sei o que Mahri quer ou por que faz o que faz, mas acho que ele sabia que nenhum de nós ficaria muito tempo aprisionado.

Karl mexeu a mandíbula como se lembrasse da dor do silenciador. - O que ele queria?

Ana deu de ombros e abaixou as mãos. - Não sei realmente. Ele... me deu uma coisa, mas o que ela faz... - Ana balançou a cabeça e mordeu o lábio superior momentaneamente. - Eu não durarei como archigos, Karl. Acho que Mahri sabe disso, e o kraljiki Justi, ca'Cellibrecca e o restante dos aténis. Eu recebi o título porque nenhum dos a'ténis queria pegar no momento, não com a forte possibilidade de o ca'Cellibrecca voltar a ser o archigos quando tudo isso acabar. Eu sou apenas a falsa archigos, a archigos do kraljiki.

Não é possível que todos eles pensem assim.

Ela concordou com a cabeça enfaticamente. - Quase todos os a'ténis pen­sam dessa forma. Sim, existem alguns tênis que me apoiam: u'téni co'Dosteau, e eu tenho que promovê-lo, isso seria uma pequena ajuda; Kenne; a maioria dos e'ténis e o'ténis que fazia parte da equipe do archigos Dhosti; até mesmo alguns dos u'ténis. Mas os a'ténis... - Ana tomou fôlego. - Na melhor das hi­póteses, eles não farão mais do que o absolutamente necessário somente caso o kraljiki realmente vença. Eles vão esperar e ver o que acontece quando o exército do hirzg chegar. Eu tenho um título, Karl: apenas isso.

E você quer mais do que isso.

Um sorriso surgiu momentaneamente. - Você me conhece melhor do que eu imaginava. Sim. Eu quero mais.

O que eu posso fazer?

Você começou a me ensinar. Eu quero que você me mostre tudo que consegue fazer e preciso que desvirtue as regras da Divolonté comigo...

Os ténis-guerreiros foram reunidos, como ordenado pela nova archigos, no Stadia aSute. Com uma exceção, nenhum dos a'ténis foi convocado; na verdade, os poucos que tentaram entrar foram expulsos à força pela equipe da archigos e pela Garde Kraljiki, que patrulhavam as entradas. Os ténis-guerreiros sentaram-se na ala norte do stadia; no campo de atletismo abaixo, eles podiam ver um pequeno palco erigido na grama e o trono da archigos posto ao lado dele. Quando as trompas anunciaram a Segunda Chamada, as portas do stadia foram fechadas ao mesmo tempo em que os tênis faziam suas preces. Alguns instantes depois, a própria archigos surgiu de uma das portas do campo, acompanhada pelo recém-promovido aténi co'Dosteau e algumas outras pessoas, uma das quais rapidamente reconhecível pelos ténis que eram da cidade.

Aquele é o enviado ci'Vliomani, o numetodo... — A fofoca espalhou-se rapidamente pelas fileiras de ténis-guerreiros enquanto a archigos fazia uma mesura e o sinal de Cénzi para eles. Depois ela sentou-se no trono e gesticu­lou, e ci'Vliomani e outro homem subiram ao palco.

Um de seus deveres — disse a archigos Ana ao se dirigir aos ténis- -guerreiros - é proteger aqueles à sua volta dos feitiços dos ténis-guerreiros do falso archigos. O que eu quero que vocês façam agora é mostrar como são capazes de cumprir com esse dever. Acho que alguns de vocês já devem ter reconhecido o enviado ci'Vliomani, que veio a Nessântico para representar os numetodos de todas as partes dos Domínios. Eu pedi que ele viesse aqui hoje interpretar o papel do inimigo. Ao meu comando, ele me atacará; o feitiço em si será inofensivo, eu garanto, mas a tarefa de vocês será deter o ataque antes que ele sequer me toque. Vamos ver como se saem. Ouçam: eu sei que vocês foram ensinados pelo aténi co'Dosteau, assim como um dia ele me ensinou. Vamos, podem preparar seus contrafeitiços agora.

Os ténis-guerreiros entreolharam-se, depois vários deles começaram a entoar e mexer as mãos, embora estivessem obviamente confusos pelo fato de a archigos ainda não ter dado nenhuma ordem para o enviado ci'Vliomani começar o próprio feitiço. Finalmente, vários instantes depois, ela virou-se para o homem e disse — Enviado, se fizer a gentileza de começar seu ataque...

O que aconteceu a seguir deixou todos os ténis-guerreiros estupefatos. Ci'Vliomani falou uma única palavra gutural que parecia com a língua do Ilmodo, mas não era nenhuma palavra de feitiço que eles conheciam, e fez um gesto casual com a mão. A palavra trovejou no Stadia. De maneira impossível, um fogo mais intenso que o sol brilhou na mão do enviado e cruzou o ar em linha reta na direção da archigos.

Mas um momento após ci'Vliomani começar seu feitiço inexplicavelmente rápido, a archigos Ana também falou: novamente, uma única palavra de feitiço ao erguer a mão. O clarão de luz espocou e explodiu como se tivesse batido em uma barreira invisível. A fúria brilhante fez com que muitos dos ténis-guerreiros erguessem as mãos, e a bola de fogo guinchou como um ani­mal moribundo ao se expirar.

Um silêncio estupefato tomou conta do Stadia enquanto os ténis- guerreiros permaneciam imóveis, com seus próprios contrafeitiços — faltando apenas um quarto para serem concluídos — esquecidos.

Rápido demais: toda a troca de feitiços ocorreu rápido demais.

- Vocês todos agiram tarde demais. Vocês todos teriam falhado com seu dever - falou a archigos Ana em meio ao silêncio. Ela levantou-se facilmente da cadeira; nem ci'Vliomani, nem a archigos pareciam excessivamente can­sados pela invocação dos feitiços, e isso também era estranho. Ana subiu no palco e falou - Eu sei o que vocês estão pensando. Quando eu vi pela primeira vez o que os numetodos são capazes de fazer com o Ilmodo, fiquei abalada até o fundo da minha alma. Durante o tempo em que fiquei sem fé, eu fui punida por Cénzi e perdi o meu próprio caminho para o Ilmodo, até que Ele falou comigo novamente. - Ana deu um breve sorriso. - Ou, para ser honesta, até eu estar disposta a escutá-Lo. Eu afirmo agora o que acabei entendendo: o Ilmodo foi criado por Cénzi, sim, e nosso caminho para o Ilmodo permanece sendo o mais poderoso. Eu sei do fundo do coração que esse é o caminho de Cénzi. Eu afirmo, e o enviado ci'Vliomani há de concordar comigo: os numetodos podem ter a vantagem da velocidade, mas não a da força. Nenhum numetodo pode se equiparar ao mínimo que vocês conseguem fazer no campo de batalha com seus feitiços de guerra. Mas... - ela fez uma pausa e andou de um lado para outro por um momento - ... nosso caminho não é o único que Cénzi criou, e somos tolos se não estivermos dispostos a aprender com esses outros caminhos.

Ana deu passos largos até ficar na beirada do palco e inclinou-se na dire­ção dos ténis-guerreiros nas arquibancadas. Seu olhar percorreu cada um dos rostos. — Eu afirmo: os numetodos são uma ameaça à Concénzia apenas se a nossa própria fé for fraca.

Isso não é o que o archigos Orlandi acredita.

O desafio foi alto, de um téni que ficou abruptamente de pé. Vários dos ténis-guerreiros em volta do homem também se levantaram e colocaram as mãos no manifestante. - Não! - gritou Ana para eles. - Deixem que ele fale!

A ira na voz de Ana afrouxou as mãos que pegaram o téni-guerreiro, e o homem livrou-se delas. Ele apontou para Ana e para Karl. - Você é a falsa archigos. Olhe com quem anda. Os numetodos riem da Divolonté. Eles riem do Toustour. Eles negam Cénzi. Como você pode ficar parada aí e dizer que precisamos aprender com eles?

Qual é o seu nome? - perguntou Ana.

Eu sou o u'téni Georgi co'Vlanti.

Eu conheço a sua família, u'téni. Eles são boa gente, são devotos, e não me surpreendo ao ver que pelo menos um deles escolheu servir a Concénzia. Se você pensa que sou a falsa archigos, u'téni co'Vlanti, então é o seu dever perante Cénzi e a Divolonté me matar. Eu lhe dou essa oportunidade agora. Reze para Cénzi guiar suas mãos e fortalecer seu feitiço, assim como eu rezarei para Ele guiar as minhas. — Ana abriu bem os braços. - Comece seu feitiço - Ana disse e olhou devagar ao redor do Stadia, especialmente para aqueles no palco com ela. - Eu prometo a você que ninguém aqui irá lhe deter.

Ana... - começou Karl, e ela fez que não para o enviado.

- Ninguém aqui irá detê-lo - repetiu Ana tanto para Karl quanto para o téni-guerreiro. - A Divolonté é clara quanto a essa questão: arranque as línguas e destrua as mãos daqueles que afirmam em falso que falam com a voz de Cénzi, pois você arrisca a própria alma se ouvi-los. Eu faço essa afirmação, u'téni co'Vlanti. Eu afirmo que Cénzi fala através de mim, assim como Ele faz através de cada archigos. Eu afirmo que o falso archigos está lá fora com o hirzg. Mas se você pensa diferente, então a Divolonté exige que você me mate. Mate-me, u'téni. Mate-me se você pensa que Cénzi irá falhar ao me proteger. Mate-me se você acredita que ca'Cellibrecca deveria usar o globo partido em volta do pescoço e que Jan ca'Vörl de Firenzcia deveria se sentar no Trono do Sol e encerrar o longo reinado da linhagem ca'Ludovici.

O homem estava em silêncio e olhava feio para Ana com as mãos ao lado do corpo. — Mate-me! - vociferou ela, e o u'téni co'Vlanti quase deu um pulo.

As mãos dele começaram a se mexer; ele iniciou um cântico. A luz inten­sa brilhou entre as mãos. Ana não fez nada, ficou esperando, e o burburinho dos outros ténis-guerreiros cresceu. Co'Vlanti terminou o feitiço rapidamente e abriu as mãos enquanto Ana falou uma palavra e gesticulou — tarde demais. Fogo irrompeu no palco, uma conflagração intensa e rápida que envolveu todos os presentes ali em chamas, de maneira que não podiam ser vistos das arquibancadas onde estavam os ténis-guerreiros. Eles sabiam o estrago que um feitiço de guerra pleno causaria, e houve gritos de alarme, surpresa e horror dos ténis sentados.

O fogo de guerra deixou para trás apenas as carcaças enegrecidas dos corpos calcinados.

As chamas sumiram quando a fúria passou. As tábuas do palco ardiam com grandes bolhas de cinzas negras; pingavam fagulhas dos galhardetes aci­ma conforme o pano queimado caía. Mas onde o numetodo ci'Vliomani e a archigos estavam a madeira ficou intocada. A archigos Ana estava parada com as mãos esticadas em um feitiço de proteção - lançado com uma velocidade impossível.

De repente, Karl ci'Vliomani interrompeu a cena estática ao pular, soltar um palavrão e começar a bater nas dobras do lado esquerdo de sua bashta. Fumaça e pequenas chamas enroscavam-se onde as mãos batiam. Ele deu um olhar de reprovação para Ana enquanto apagava o fogo e falou — Você foi um pouco lenta aí, archigos. E um pouco econômica com o escudo.

Alguém nas arquibancadas riu, e a risada espalhou-se devagar. A própria Ana sorriu. O u'téni co'Vlanti desmoronou no assento, exausto, mas Ana per­manecia de pé como se o feitiço não tivesse custado nada.

- Cénzi permitiu que eu fizesse isso — falou Ana para os ténis-guerreiros. - E os numetodos me ajudaram ao mostrar como era possível. Nos dias de hoje, não podemos nos dar ao luxo de expulsar aqueles que se oferecem para ser nossos aliados. Eu peço a vocês que deixem os numetodos ficarem do nos­so lado. Eu peço a vocês que, como eu, aprendam com os numetodos o que eles podem nos ensinar.

Não houve aclamação. Não houve sequer uma resposta audível ao ape­lo de Ana. Mas ela notou alguns acenos de cabeça a contragosto entre os rostos dos ténis-guerreiros.

Isso teria que servir.

 

O MUNDO ACENDEU-SE e apagou-se como se fosse iluminado por raios letárgicos e inconstantes.

... alguém (ele pensou que poderia ser ca'Montmorte) ajudou-o a descer do cavalo e reclamou em tom de preocupação. - Chamem um curandeiro... — Sergei ouviu ca'Montmorte falar, surgiram mãos em sua volta, e ele berrou ao ser levantado.

... acordar e sentir dor e luz de fogo. Um rosto passou pelo campo de visão. Ele tentou falar através de lábios rachados e secos. - Onde...?

Na Avi - Ele ouviu alguém responder. - Talvez a dois dias de Nessântico. Por favor, tente não se mexer, comandante.

Sergei começou a rir diante da idéia de se mexer, mas a risada virou uma tosse, a tosse tirou seu fôlego e ele abandonou o mundo novamente.

...a insistente sensação salgada de sopa de carne na língua. O gosto era tão maravilhoso que ele agarrou as mãos que levaram a caneca aos seus lábios en­quanto tomava a sopa. - Com delicadeza, comandante — falou a voz. - Tem mais para o senhor. Não tenha pressa.

Sergei tentou ficar sentado e descobriu que só era capaz com grande dificuldade. Parecia que era noite. O corpo estava bem enfaixado, e a pele repuxava nas costas inteiras. A visão era opaca, ele não conseguia ver clara­mente, mas notou a luz trêmula de uma fogueira por perto e corpos sentados ao redor dela. Cavalos relinchavam baixinho em algum lugar por perto. Ele sentiu frio, o corpo tremia incontrolavelmente. - Cuidado - disse a voz. - O senhor está ferido.

- Tão frio...

O senhor está com febre, comandante. Aqui, tome um pouco mais de sopa...

Sergei tomou e dormiu novamente.

... eles estavam falando a respeito dele, como se Sergei não pudesse ouvi-los. - ... vai morrer?

Isso está nas mãos de Cénzi. Eu não posso fazer mais nada por ele. A infecção tomou conta.

Quanto tempo ele tem?

Mais um dia. Talvez dois.

Nós chegaremos a Nessântico de manhã. Talvez alguém lá? O curandeiro do kraljiki?

Ele está fora do alcance da capacidade de qualquer curandeiro, a' offizier ca'Montmorte. Agora só resta a vontade de Cénzi.

Espere, Sergei queria gritar. Há uma coisa que tenho que dizer ao kraljiki, algo que ele tem que saber... mas o comandante não conseguiu abrir os olhos nem a boca, e mesmo o esforço de pensar a respeito fez Sergei cair na escuridão.

... alguém estava entoando e ele sentiu mãos tocarem o peito, o pescoço. As mãos eram frias, e o calor que queimava Sergei por dentro fluiu para seu coração e para aquelas mãos, saiu correndo do corpo. Ele tomou um longo fôlego e estremeceu. Ao longo da espinha, agulhas apunhalavam e repuxavam a pele conforme Sergei arqueava as costas ao berrar de dor pela agonia da sensação, mas mesmo a dor estava saindo correndo na direção daquelas mãos e da voz que falava palavras que ele não conseguia entender. Ele abriu as pálpebras de supetão e encarou o rosto de Ana co'Seranta. Os olhos dela estavam fechados, e eram de Ana a voz que ele ou­viu e as mãos em seu peito nu. A presença dela era o único refúgio em um mundo que estava em chamas, e Ana estava absorvendo o fogo. Sergei quase engasgou diante do milagre e suspirou quando ela recolheu as mãos.

Bem-vindo de volta, comandante - disse ela antes de revirar os olhos e os joelhos cederem. Um homem correu para acudi-la e colocou Ana em uma cadeira ao lado da cama. Era o enviado ci'Vliomani, Sergei percebeu. O co­mandante apoiou-se nos cotovelos: ele conseguiu se mexer, embora as juntas estivessem doloridas e latejassem e a pele das costas ainda repuxasse de modo estranho, porém sem dor agora. A perna ferida estava imobilizada e enfaixada também. Sergei teve tempo para captar o ambiente: um grande quarto de dor­mir, paredes pintadas com afrescos dos moitidis acima das janelas enormes, vi trais que quebravam a luz com a insígnia do kraljiki.

O Grande Palácio... - falou o comandante.

O senhor está em um dos quartos de hóspedes - disse Renard. - E, se me dá licença, comandante, o kraljiki pediu para ser informado quando o senhor acordasse.

Enquanto Renard foi embora depressa, Sergei virou-se para Ana. Ele viu o globo partido na corrente de elos largos no pescoço; ficou contente que o kraljiki tenha seguido pelo menos um de seus conselhos. - Você não está preocupada que possa ter sido a vontade de Cénzi que eu morresse, archigos? - perguntou o comandante.

Ana tomou um longo fôlego de olhos fechados enquanto Karl fazia carinho em seu cabelo suado e solto. — Se Cénzi quissesse que você morresse, comandante, Ele teria lhe matado antes que viesse até mim - disse ela.

Seu antecessor lhe mandaria para a Bastida exatamente por causa dessas opiniões.

Onde você teria me torturado para obter minha confissão completa.

Sergei deu de ombros. Ele sustentou o olhar da archigos, sem piscar.

Sim. Teria sido meu dever, que eu teria cumprido.

O comandante sempre cumpre o seu dever. — A voz aguda do kral­jiki Justi soou alta quando ele entrou no quarto e foi a passos largos para o lado da cama de Sergei. Relutantemente, Sergei tirou os olhos de Ana para Justi. - Como você cumpriu em Passe a'Fiume - concluiu o kraljiki. O ros­to barbudo parecia excessivamente satisfeito. - Eu acabei de encontrar com ca Montmorte. Ele contou o que aconteceu lá. Estamos tão prontos quanto é possível, e você tem a nossa gratidão por isso, comandante. - Ele olhou para Ana do outro lado da cama. — E estamos gratos por suas... preces pelo coman­dante, archigos. Parece que Cénzi ouviu suas súplicas.

Ana deu um muxoxo audível. - Eu curei o homem, kraljiki. Curei com o Ilmodo, da mesma forma que tentei curar sua matarh, mas falhei porque era muito fraca na ocasião e muito medrosa. Se isso vai contra a Divolonté, então eu instruirei o Colégio A'Téni a mudar a Divolonté, porque não ficarei calada nem mentirei. Não mais.

O queixo do kraljiki pareceu se projetar ainda mais, e o bigode fino fez um arco quando ele torceu a boca. - A archigos está cansada. Ela deve descansar.

A archigos não é o cãozinho de estimação do kraljiki para receber ordens - respondeu Ana. Os dedos estavam entrelaçados com os do enviado.

Você me escolheu, kraljiki Justi; agora agüente essa escolha. A não ser que prefira o archigos que está lá fora. - Ela apontou para a janela, para o sol no céu a leste. - Tenho certeza de que o hirzg ficará contente em deixá-lo voltar para Nessântico.

Kraljiki, archigos - falou Sergei, e isso trouxe a atenção dos dois de volta para ele. - Há inimigos suficientes sem precisarmos fazer novos aqui. Archigos, estou em dívida para sempre e não me esquecerei disso; kraljiki, eu gostaria de ver as defesas daqui, tão logo eu possa.

Sim - respondeu Justi rapidamente. — Precisamos de sua orientação para garantirmos a vitória.

Sergei balançou a cabeça. - Vitória? - Ele repetiu o gesto. - Eu lutei contra eles, kraljiki, e não vejo vitória. Passe a'Fiume jamais havia caído em toda a história de Nessântico, e no entanto o hirzg passou por seus portões destruídos em quatro dias. - Ele fez uma careta ao se sentar mais alto na cama. - O hirzg Jan já olha para Nessântico e considera a cidade dele. Não sei se conseguiremos provar que ele está errado.

 

É COMO UMA JÓIA, vatarh. Como uma coisa que eu poderia usar. Veja, lá está um colar de luzes...

Jan deu um sorriso tolerante para Allesandra. Atrás dela, ele aninhou a filha nos braços, o corpo de Allesandra era quente no ar da noite. Diante dos dois, bem mais à frente da linha invisível da Avi a'Firenzcia, as luzes cintilan­tes da grande cidade reluziam na noite e riam das estrelas que ousavam espiar entre as nuvens prateadas pelo luar. - E eu lhe darei a jóia - disse Jan para a filha. — Você poderá usar o colar em breve, meu passarinho, será todo seu.

Não seja bobo, vatarh. Eu não posso usar uma cidade inteira. - Ela esticou o braço para a noite e tocou o indicador no polegar, como se pudesse arrancar as luzes da paisagem. - Mas é bonito. Quando o senhor for o kraljiki, tem que garantir que os tênis ainda acendam as lâmpadas.

Eu mandarei o archigos ca'Cellibrecca executar seu pedido - respondeu Jan rindo.

Eles estavam acampados no topo de um morro fora de Carrefour; amanhã, Jan sabia, os firenzcianos teriam o primeiro contato com os defensores de Nessântico. Seu exército estava espalhado pela paisagem, era o crescente de uma foice prestes a atacar a capital e arrancar a cabeça do trono.

Alguém que olhasse em cima do que restava das velhas muralhas de Nes­sântico veria as luzes dos firenzcianos reluzindo no escuro e não acharia nem um pouco bonito. A idéia agradava a Jan.

Quanto tempo vai levar, vatarh? - perguntou Allesandra. - O u'téni co'Kohnle disse que acha que vai levar menos tempo do que Passe a'Fiume. Disse que o senhor já abalou o moral deles.

Eu não sei, meu doce. Quanto tempo você acha que vai levar?

Um dia. Os ténis-guerreiros começarão os feitiços. Eles destruirão os soldados e os chevarittai, que morrerão gritando enquanto todos nós rimos da cara deles. O resto dos chevarittai sairá correndo como fez antes, depois o restante dos soldados soltará as armas e fugirá correndo também, e desta vez será o kraljiki que sairá da cidade com a bandeira branca.

Tudo isso em um dia? - perguntou Jan.

A voz da menina saiu quase como um rosnado. - É o que eu gostaria pelo que eles fizeram com Georgi.

Eu queria que estivesse certa, mas acho que você e o u'téni co'Kohnle estão errados. Lembra-se do gato que você teve, como ele lutou quando foi acuado em um canto pelos cachorros?

Allesandra concordou com a cabeça. - Eu me lembro. Era uma coisinha pequenina, mas arranhou o nariz do Pata Branca com tanta força que ele saiu correndo com o rabo entre as pernas. Foi sangue para todo o lado, e o curandeiro teve que suturar o nariz do Pata Branca. E o gatinho fez o Arisco ganir e sangrar também, antes de ser mordido e sacudido até a morte. - Allesandra olhou para a jóia da cidade na paisagem noturna. - Ah, entendi o que o se­nhor quer dizer, vatarh. Entendi, sim.

 

DA SACADA da residência da archigos, era possível acreditar que não havia guerra no horizonte. Daquele ponto alto, as luzes da Avi faziam a curva atrás do domo aceso do Templo da Archigos. A brisa de noroeste era fresca e mexia as pontas das samambaias nos vasos. A própria Nessântico estava estra­nhamente silenciosa.

Karl sabia reconhecer que a tranqüilidade era uma quimera. Ele es­teve reunindo os numetodos no Velho Distrito; e na margem norte, onde ocorreria a primeira investida do ataque Firenzciano, não havia tranqüi­lidade alguma. Dos arredores do Velho Distrito era possível ver não so­mente as fogueiras da Garde Civile, mas os fogos distantes do exército do hirzg. Lá os cidadãos estavam visivelmente em pânico. Duas vezes durante o dia, Karl testemunhou tumultos nas ruas principais, ambos sufocados com violência pela Garde Kralji quando os cidadãos invadiram açougues e padarias atrás de comida (e convenientemente invadiram qualquer taverna adjacente também). Cabeças foram quebradas, os paralelepípedos ficaram escorregadios com sangue e o clima ficou feio quando o próprio sol recolheu-se no oeste.

Um fluxo constante de pessoas e carroças lotava a Avi aParete: solda­dos, a Garde Civile, vários chevarittai e o ocasional téni-guerreiro, todos indo para leste, e o restante indo para oeste. Pelo que disseram para Karl, tanto a Avi a'Nostrosei e a Avi a'Certendi quanto a Avi A'Sele estavam lo­tadas de refugiados da cidade, que carregavam o máximo de pertences que conseguiam.

Apenas aqui, na margem sul, a cidade parecia manter algum semblante de normalidade, e mesmo assim era uma aparência das mais frágeis. Debaixo da plácida superfície, havia uma energia nervosa em ebulição.

Karl estava ao lado de Ana, ambos debruçados no parapeito da sacada. Ele sentiu o calor de Ana ao lado do corpo, porém embora quisesse fazer mais, não fez. O fantasma de Kaitlin ficou entre os dois enquanto contemplavam a noite. - Eu gostaria que você saísse da cidade, Ana — falou ele.

E eu gostaria que você fizesse o mesmo. E você sabe que nenhum de nós pode fazer isso.

Tudo vai mudar nos próximos dias. Há seis meses, eu teria saído da cidade e não teria me importado com quem vivesse ou morresse aqui. Agora a situação me assusta, Ana, por sua causa. Por nossa causa.

Ana deu um aceno praticamente imperceptível com a cabeça. Fora isso, ela não respondeu, não se mexeu.

Não houve tempo suficiente para seus ténis-guerreiros aprenderem o suficiente. Podemos torcer que eles consigam usar o Ilmodo mais rápido do que antes. Só isso.

Se eles não falharem completamente nos feitiços do jeito que falharam - falou Ana. Karl sentiu seu arrepio. - Eu fico preocupada com isso também. As falhas abalaram a fé dos ténis-guerreiros. De que adianta a velocidade se eles deixarem de ser efetivos? Eu imagino se, na verdade, prejudiquei mais as defesas da cidade do que ajudei.

Eles têm você como um exemplo, e os numetodos da cidade estarão lá para ajudar - respondeu Karl. — Nós faremos o possível para proteger os ténis-guerreiros, e eles sempre podem usar o Ilmodo como usavam antes. Ana, fique comigo hoje à noite... - começou ele, mas Ana virou-se e encarou Karl com um olhar que deteve suas palavras.

Não, não ficarei. Você fez uma promessa para outra; eu não lhe ajudarei a quebrá-la.

Então, depois... eu escreverei para ela, contarei... - Karl percebeu que estava evitando dizer o nome de Kaitlin em voz alta de propósito e perguntou-se por quê.

Não fale de "depois", Karl. Não sabemos se haverá um "depois." Só existe o agora. Este momento, a seguir o próximo e o próximo. E tudo o que temos agora. Se exister um depois, nós veremos então o que ele pode significar para nós, ou mesmo se existirá um "nós." Por enquanto, eu só consigo pensar em como sobreviver amanhã.

Ana voltou para os aposentos. Karl não a seguiu. Ele ficou no parapeito da sacada e ouviu a cidade e a sua consciência.

 

A BATALHA COMEÇOU com feitiços de fogo e um golpe de espada na barriga da cidade.

Pela manhã inteira o exército Firenzciano aproximou-se: um avanço constante que chegava cada vez mais perto, um grande arco que comprimia lentamente as forças posicionadas por Sergei ao redor da cidade, das proximi­dades do Portão Norte às margens do A'Sele.

A linha de defesa era perigosamente fina. Sergei não tinha homens suficientes; apesar dos pedidos insistentes do comandante, o kraljiki Justi recusou-se a permitir que todos os ténis-guerreiros e a Garde Civile avançassem. Em vez disso, o kraljiki colocou batalhões da Garde Civile e seus mais leais che­varittai em sua volta como um casulo de proteção: dentro das muralhas da cidade. Sergei recebeu ordens do kraljiki para não enfrentar o inimigo a não ser que fosse necessário e, portanto, as forças de defesa cederam terreno a contragosto às fileiras que avançavam. Houve escaramuças ocasionais, breves estouros de combate pontuados por desafios por parte dos chevarittai firenz­cianos. Alguns dos chevarittai da cidade não resistiram aos desafios e saíram para encontrar seus primos - alguns ca' e co' de ambos os lados verteram san­gue no solo antes da hora como conseqüência.

Na Segunda Chamada, a tensão tornou-se praticamente insuportável. O exército de Firenzcia era uma frente de tempestade próxima da cidade, como um bando de nuvens negras e prateadas que lançava raios e rosnava com tro­vões, acompanhada por um vento frio e cruel que ficava mais forte.

A tempestade inevitavelmente caiu.

Sergei estava montado no cavalo em uma pequena colina a um quilôme­tro e meio das velhas muralhas da cidade, mais adiante na Avi a Firenzcia ao longo do rio Vaghian. A perna latejava e as costas doíam, mas ele obrigou-se a ignorar as dores incômodas. Vários pajens com trompas e bandeiras esperavam perto do comandante para repassar ordens, e o a'offizier ca'Montmorte estava ao seu lado. De cima da colina, Sergei conseguia enxergar as primeiras fileiras da força inimiga. O estandarte do hirzg e dos Lanceiros Vermelhos tremulava em destaque: Jan ca'Vörl estava lá fora, em algum lugar próximo. Na frente de Sergei, os dois exércitos estavam separados por um campo enlameado, uma plantação de trigo que esteve amadurecendo e foi prematuramente colhido, cujo restante da safra foi pisoteado pelos cascos dos chevarittai, pelas botas da Garde Civile e dos recrutados quando eles recuaram para a atual posição no limite do arvoredo a oeste.

Sergei parou a relutante recuada - se eles continuassem retrocedendo mais na direção da cidade, a luta aconteceria entre as casas e os prédios que cresceram do lado de fora das muralhas originais. As costas do comandante estavam voltadas para os arredores de Nessântico; os offiziers reformaram as linhas de frente. Ao vê-los esperando, o exército Firenzciano parou, mas Sergei não acreditava que eles fossem permanecer ali por muito tempo.

O sol caía diretamente sobre o campo. A luz não os aqueceu em nada.

Se eu fosse o hirzg Jan, eu esperaria - disse ca'Montmorte. - Já passou da Segunda Chamada. Ele deveria estabelecer suas linhas de frente, reunir seus offiziers para consultá-los e acomodar as tropas para a noite. Eu conti­nuaria a avançar na Primeira Chamada amanhã. - Ca'Montmorte concordou com a cabeça diante do próprio conselho. - Isso nos daria tempo para trazer mais recrutados da cidade e faria com que a archigos enviasse o restante dos ténis-guerreiros. O hirzg não sabe que não temos a Garde Civile inteira espe­rando na reserva.

Sergei balançou a cabeça. - Eu conheço o homem, Elia. O hirzg é um tático decente, mas um estrategista medíocre. Se existe alguma estratégia aqui, será a do starkkapitän. Ca'Vörl é mais perigoso no meio de uma luta, mas ele não tem paciência. E também sabe que tem a vantagem. Não, isso é o que o hirzg quer e ele vai querer pegar agora. Aposto que ca'Vörl pretende dormir dentro de Nessântico hoje, e estamos no caminho dele. O hirzg vai atacar. Não vai esperar.

Ca'Montmorte balançou a cabeça. - Isso seria uma idiotice.

Espere - falou Sergei. - Eu conheço o homem...


Eles esperaram menos do que um quarto de virada da ampulheta. Sem aviso, surgiu uma meia dúzia de bolas de fogo que brilhavam mesmo sob a luz do sol. Elas voaram sobre o campo, formaram um arco de uma altura não maior do que meia dúzia de homens a partir do solo, e saíram do arvoredo distante, atrás dos grupos de chevarittai firenzcianos que iam de um lado ao outro e das fileiras impassíveis de infantaria. - Tênis! - gritou Sergei, e os pajens pegaram as trompas e bandeiras para dar o alarme, mas os poucos ténis-guerreiros com o comandante já responderam. Os contrafeitiços eram curiosamente rápidos, como Sergei notou agradecido; sem dúvida o enviado ci'Vliomani, que estava com um punhado de numetodos ao lado dos ténis-guerreiros, foi o responsável por isso. Dada a falta de aviso, o comandante esperou que a resposta dos ténis viesse tarde demais, mas dois dos sóis em disparada estalaram e morreram antes de alcançar as primeiras fileiras dos defensores, e mais dois perderam a direção e voltaram para o outro lado do campo, onde explodiram na frente das fileiras inimigas.

A Garde Civile vibrou.

Mas os feitiços de fogo remanescentes permaneceram intocados. Eles bateram com força nas fileiras, explodiram em jorros de fogo líquido, e a vibração virou gritos. Aqueles que foram acertados diretamente morreram de forma instantânea e seus corpos foram destruídos; quem estava próximo foi envolvido na fúria azul do Ilmodo que grudou na pele e nas roupas. Eles berraram de agonia, rolaram no chão para tentar apagar as chamas insistentes. Aqueles que correram para ajudar os companheiros descobriram que o fogo mágico aderiu às próprias mãos. Onde o fogo de guerra ardia, as fileiras estre­meceram e ameaçaram se romper, os recrutados entraram em pânico. Sergei gritou ao lado dos outros offiziers e chevarittai. - Mantenham a formação! Droga, façam com que mantenham a formação! - Alguns pajens agitaram bandeiras amarelas desesperadamente; os outros soaram um chamado impe­rativo de duas notas com as cometas e zinkes.

Mais fogo mágico veio; novamente, a maioria foi impedida e algumas bolas de fogo foram devolvidas ao inimigo, mas nem todas puderam ser de­tidas. As árvores do lado oeste da campina estavam em chamas agora, e o pânico começou a se espalhar pelas fileiras. Os offiziers sacaram as espadas e mantiveram os homens sob controle. As cometas dos pajens pareciam perdi­das no barulho crescente.

Mas a formação, de maneira tênue, permaneceu coesa.

Sergei acenou com a cabeça - se o hirzg teve a intenção de fazê-lo fugir sob o bombardeio dos ténis-guerreiros, aquele plano falhou.

Os ténis-guerreiros da archigos merecem elogios - disse ca'Montmorte. — Por enquanto, estamos agüentando firme, mas se eles mantiverem o bom­bardeio, teremos que ceder terreno.

O hirzg não é tão paciente assim - repetiu Sergei. - Aquela será a última saraivada dos ténis-guerreiros. Ele mandará os chevarittai e o exército agora.

Novamente eles não tiveram que esperar muito. Com um um grito de mil vozes, os firenzcianos avançaram. Os cascos dos chevarittai espancaram o solo; atrás deles, a infantaria espalhou-se como uma horda de formigas. - Arqueiros! - berrou Sergei. Os pajens largaram as bandeiras amarelas para pegar as azuis, as cometas soaram e os offiziers repetiram o grito. Com um assobio sibilante e sem palavras, as flechas encheram o céu, subiram e desceram em um arco sobre as forças em disparada. Houve contrafeitiços da parte dos ténis-guerreiros firenzcianos, flechas viraram nuvens inofensivas de cinzas e as pon­tas caíram como uma chuva de metal sobre a lama, mas alguns dos chevarittai e cavalos foram abatidos, assim como muitos soldados. Porém havia muitos atrás deles, e mais continuavam a fluir das árvores.

A carga acertou a linha de frente com um baque de metal. Um caos espumante espalhou-se, a espuma furiosa da onda de um mar tempestuoso que se quebrou sobre uma terra inflexível.

Sergei teve que se obrigar a ficar atrás e não correr para a luta com sua es­pada - a espada do hirzg - erguida. Mas já era difícil o suficiente ficar apenas sentado no cavalo enquanto as feridas cicatrizavam, e lutar não era o papel do comandante.

Não ainda. Não hoje. Por uma virada de ampulheta, talvez mais, a linha de Nessântico aguentou firme, enquanto Sergei instruía os offiziers através dos pajens agitados e dos sinais das bandeiras e cometas.

Mas eles não conseguiriam agüentar para sempre.

A linha cedeu na direção da posição de Sergei quando a campina ficou cheia dos uniformes negros e prateados de Firenzcia. Os ténis-guerreiros lan­çaram feitiços e contra-feitiços no campo e sobre a retaguarda; fogo explodiu em fagulhas coloridas no céu, e os gritos dos feridos e moribundos foram abafados pela fumaça e confusão.

Ao longe, Sergei viu um trecho da ponta ao norte da linha ceder comple­tamente. Os firenzcianos jorraram pela brecha, os estandartes dos chevarittai tremulavam enquanto avançavam para dentro das fileiras de Nessântico. Os pajens com bandeiras em volta de Sergei olharam nervosos. O comandante contemplou o campo de batalha com uma cara feia.

- Acabou, comandante - falou ca Montmorte. — Eles penetraram as defesas. Não podemos mais contê-los aqui.

Sergei não esperava vencer, mas também não esperava ser afugentado tão rapidamente. - Eu sei - ele quase berrou para a'Montmorte. As palavras fu­riosas tinham um gosto amargo de erva moura verde. — Diga aos offiziers para recuar - resmungou o comandante, e os pajens pegaram bandeiras vermelhas no chão e começaram a sacudir freneticamente, as cometas mudaram o aviso. O grito correu o campo.

Os ténis-guerreiros de Nessântico mudaram para feitiços diferentes; ago­ra eles cobriram o campo com uma névoa espessa para confudir o avanço dos firenzcianos e cobrir a recuada. Os chevarittai deram uma meia-volta hesi­tante com as montarias; a infantaria abriu caminho e os arqueiros tentaram retardar as tropas inimigas que ocuparam o espaço vazio.

Ao longe, Sergei ouviu as trompas firenzcianas. Ele esperou que o hirzg deixasse que eles recuassem para que Jan ca'Vörl pudesse lamber as próprias feridas e preparar o exército para a investida final contra Nessântico. Essa era a tradição da guerra cortês: quando o resultado da batalha estava decidido, então o lado vitorioso permitia que o perdedor recuasse, talvez para trocar prisioneiros ou recuperar os corpos de qualquer ca' ou co' que tivesse morrido.

Mas as trompas do outro lado do campo não anunciavam uma parada, mas sim perseguição.

Ca'Montmorte cuspiu na grama. - Aquele desgraçado... — Sergei balançou a cabeça. Ele puxou as rédeas do cavalo e disse - Reúna os chevarittai com as tropas do kraljiki perto dos Brejos. Mande um mensageiro à archigos; precisamos que todos os ténis-guerreiros tentem detê-los lá. Diga ao kraljiki para ficar pronto. O hirzg quer a cidade dele hoje.

Sergei deu uma nova olhadela para o campo de batalha coberto pela névoa mágica. Ele balançou a cabeça e cutucou com o pé os flancos do cavalo de batalha.

 

OS PAJENS CORRIAM DE UM LADO AO OUTRO, levavam notícias da frente de batalha e transmitiam ordens de Jan e do starkkapitän ca Linnett quando o ataque começou. Protegida bem atrás da linha de frente, Allesandra estava com Jan, assim como o archigos a'Cellibrecca e o starkkapi­tän ca'Linnett. Da proteção das árvores, eles viram o fogo mágico partir dos ténis-guerreiros em direção aos defensores de Nessântico. Mas a sensação de inevitabilidade e poder sumiu quase que imediatamente. Jan praguejou e o archigos ca'Cellibrecca ficou boquiaberto e chocado quando o fogo mágico foi repelido, quando os sóis ardentes foram apagados ou muito, muito pior, foram devolvidos para as próprias fileiras. - Eles estão usando os numetodos... — balbuciou o archigos. Ele fez o sinal de Cénzi, como se fosse repelir o mal.

Jan estava meramente furioso. - Archigos, eu gostaria de lhe lembrar que você e o uténi co'Kohnle garantiram que nossos ténis-guerreiros fariam os inimigos correr de volta para a cidade. Ao que parece, nada disso aconteceu, e na verdade você acabou de causar a morte de muitos dos meus homens.

A rapidez dos contrafeitiços foi impossível, meu hirzg - respondeu ca'Cellibrecca nervoso.

Impossível, archigos? Eu vi os contrafeitiços. Ou está dizendo que estou enganado?

Ca'Cellibrecca abaixou a cabeça. - Eu peço desculpas, meu hirzg. Mas é óbvio que o kraljiki e a herege co'Seranta fizeram um pacto com os numeto­dos. - Ca'Cellibrecca crispou as mãos e fez o sinal de Cénzi. - Os dois mere­cem todo o destino que Cénzi reservou para eles. Todo.

Allesandra respondeu com sarcasmo — Meu vatarh é o responsável pelo destino do kraljiki. - A ênfase foi óbvia. A fúria de Jan não passou, mas ele deu um sorriso cruel diante da admoestação da filha, assim como ca'Linnett.

Cuidaremos desse fracasso mais tarde, archigos - disse o hirzg. - Com ou sem numetodos, e apesar do desempenho de seus ténis-guerreiros, nós venceremos aqui. Starkkapitän, mande nossas tropas à frente. Vamos ver como a Garde Civile se sai contra a verdadeira fúria Firenzciana.

Ca'Linnett fez uma mesura e vociferou ordens: cometas soaram e, com um enorme grito, o exército irrompeu das árvores com os chevarittai à frente, que levavam os estandartes pretos e prateados.

Mas a resistência foi dura e apresentou uma tática mais astuta do que Jan esperava. A enxurrada de pajens continuou a vir na próxima virada da ampulheta, e as notícias nunca eram aquelas que Jan queria ouvir. - Aquilo é coisa de ca'Rudka - resmungou Jan. - Ca'Montmorte não tem esse estilo; Nunca deviam ter deixado o desgraçado escapar de Passe a Fiume.

Ao ouvir isso, ca Linnett olhou constrangido para Jan. — Eles estão em menor número, e nossa estratégia fez com que formassem uma linha de frente longa demais para ser bem defendida - insistiu o starkkapitän. — Nós temos mais ténis-guerreiros e mais chevarittai. Eles não conseguirão agüentar por muito tempo, meu hirzg.

Jan ergueu as sobrancelhas e falou — E melhor que não, starkkapitän. Pelo seu bem. - Ao lado dele, Allesandra deu risinhos diante da cara que ca'Linnett fez.

Jan rondava o arvoredo sem parar e olhava feio para o campo com a espa­da na mão. Estava doido para estar lá, mesmo sabendo que não era seu lugar. A adrenalina da batalha ecoava nos ouvidos, e ele não conseguia ficar parado. Allesandra observou o vatarh andar de um lado para o outro, seu olhar estava sempre nele.

Mas o starkkapitän provou ser profético. Um dos pajens chegou a cavalo, sem fôlego, com um sorriso no rosto sujo. - A linha deles foi rompida, meu hirzg - berrou ele. - Estamos atrás deles agora. - Assim que o menino falou, Jan ouviu as trompas de Nessântico do outro lado da campina dar ordens de retirada e viu a névoa mágica surgir perto das árvores do outro lado da clareira.

Excelente. - O starkkapitän caLinnett acenou com a cabeça para o pajem. O alívio era óbvio no rosto. — Foi apenas uma questão de persistência. Diga aos offiziers para deixá-los fugir. Mande as trompas soarem a ordem de parada e...

Não - interrompeu Jan enquanto chegava até os dois. - Nós os perseguiremos.

Jan viu ca'Linnett lutar para não deixar o alívio virar irritação. Ca' Cellibrecca simplesmente falou de modo arrogante - Meu hirzg, já passou muito tempo desde a Segunda Chamada, e aqui é um ponto excelente para consolidarmos nossas forças. Devemos planejar o ataque final. Não devemos ser imprudentes...

Imprudentes? - interrompeu Jan, e ca'Cellibrecca fechou a boca como se tivesse levado um soco na ponta do queixo. - Allesandra merece sua coroa de luzes hoje à noite. Nós iremos persegui-los. - Ele mexeu no cabelo da menina, e ela sorriu para o vatarh. - Starkkapitän ca'Linnett? Acredito que confie no poder de nossas forças e na sua capacidade de liderá-las, mesmo que o archigos não tenha?

Ca'Linnett curvou-se bastante para Jan, o que escondeu qualquer expres­são que tenha feito. - O hirzg deu suas ordens - falou ele para o pajem. - Avi­se os offiziers e mande as trompas soarem a ordem de perseguição.

Jan viu o pajem ir embora a cavalo com o rosto sério e exausto. Ele abra­çou Allesandra quando as trompas começaram a soar. A filha deu um sorriso radiante para o vatarh. - Nós descansaremos hoje à noite dentro das muralhas de Nessântico - falou Jan para ela.

 

OS CORTESÃOS, os bajuladores, os chevarittai, os ca' e co' estavam reunidos em volta de Justi. O kraljiki estava cercado por eles, que ofereciam palavras gentis de apoio e encorajamento. Justi envolveu-se naquele aconche­go, embora vislumbrasse a incerteza nos rostos quando eles pensavam que o kraljiki não olhava.

Os pajens voltaram dos campos de batalha em três pontos separados em volta da cidade; as notícias não eram boas de qualquer parte: a divisão ao norte foi completamente afugentada e as forças firenzcianas aproximavam-se dos trechos da cidade do lado de fora das muralhas; os informes não eram me­lhores no sul, embora os brejos e pântanos ao longo do rio agissem como alia­dos ali. Mas havia um raio de esperança: no centro, o comandante ca'Rudka manteve seus homens em ordem e ainda continha a principal força inimiga. Parecia que os firenzcianos não conseguiam passar por ele.

- Kraljiki - falaram os cortesãos em tom meloso -, todo mundo sabia que não seria uma batalha rápida, e quanto mais próximo de Nessântico o hirzg chegar, menos espaço ele terá para manobrar e mais dura ficará a nossa resistência. O comandante já está demonstrando isso. O hirzg ca'Vörl não vai conseguir tomar a cidade, não enquanto o seu braço segurar a espada...

Se Justi notou que as palavras estavam salpicadas por desespero, como se os cortesãos também tentassem se convencer, o kraljiki fingiu não perceber. Em vez disso, ele concordou com a cabeça e contemplou com um olhar inten­so sobre a muralha da Avi a Firenzcia. Atrás de Justi, Nessântico parecia estra­nhamente quieta e deserta; à frente, a estrada e os campos depois das últimas casas da cidade estavam repletos de soldados de azul e dourado.

Aos milhares, um baluarte contra o hirzg, os soldados confortaram Justi.

O senhor nunca foi derrotado, kraljiki - falou alto Bella ca'Nephri, e os ca' e co' murmuraram de acordo, todos os chevarittai que há décadas eram seus amigos e camaradas. - O senhor nunca será derrotado.

Mas quando eu fui para a guerra, era o exército do hirzg que eu tinha atrás de mim. Jamais cavalguei contra uma força que era equivalente à nossa, e eu contava com offiziers firenzcianos treinados no comando da Garde Civile, e tropas firenzcianas reforçavam a infantaria, e ténis-guerreiros firenzcianos...

Ele fechou a mente para as dúvidas. Franziu mais a testa e agarrou o pomo da espada com mais força. — Nós nunca seremos derrotados - con­cordou Justi. - Onde está a archigos? - perguntou para Renard que, como sempre, estava ao seu lado. - Pensei que ela estaria aqui comigo.

A archigos pediu para lhe informar que ela avançou com os ténis- guerreiros que sobraram e os numetodos, kraljiki - respondeu Renard.

Justi franziu a testa. - Ela fez isso sem... - começou ele, mas houve uma confusão perto do portão. As fileiras da Garde Civile abriram espaço para dar passagem a um mensageiro: um pajem coberto de poeira sobre um cavalo que pingava suor. O menino quase caiu do cavalo, cambaleou até Justi e ficou de joelhos diante dele. — Kraljiki - falou o pajem ofegante. - O comandante... não conseguiu deter os firenzcianos... Recuaram para os Brejos... a Garde Ci­vile tem que vir... e o restante dos chevarittai...

Justi olhou fixamente para o menino. Os sussurros já se espalhavam pela multidão e corriam para a cidade. Ca'Nephri e os demais ca' e co' observa­vam Justi com as máscaras momentaneamente arrancadas do rosto. Ele quase conseguiu ouvir seus pensamentos. Eles estavam preparados para dizer o que o kraljiki queria escutar e estariam igualmente preparados para dizer o que o hirzg quisesse escutar, caso ele tirasse o Trono do Sol de Justi.

Havia menos lealdade nos ca' e co' do que entre os cães do palácio.

Desde que eles pensassem que Justi permaneceria como kraljiki, os ca' e co' fariam o que ele mandasse. Mas se eles pensassem que Justi estava prestes a cair, os ca' e co' avançariam contra ele, rosnando e com violência...

Se você sair agora, pelo menos eles lembrarão. Pelo menos dirão: "ele morreu bravamente".

Justi riu para o menino, como se o relatório fosse engraçado. — Renard, por favor, dê alguma comida e bebida para esse menino. Ele passou por uma cavalgada difícil e cumpriu bem seu dever. Ao que parece eu tenho que ir resgatar nosso comandante.

Justi sacou sua espada, e a multidão vibrou. - Nós avançaremos e mostraremos ao hirzg o que acontece quando ele desperta a ira de Nessântico - gritou o kraljiki.

A vibração aumentou quando Justi fez o cavalo avançar, os chevarittai cercaram o kraljiki e as tropas da Garde Civile irromperam pelos portões de Nessântico ao som das trompas retumbantes.

A multidão vibrou. Justi mostrou um rosto severo para eles e perguntou-se se um dia voltaria a passar a cavalo por esses portões novamente.

 

ANA MANDOU mais ou menos uma dúzia dos mais eficientes ténis- guerreiros à frente com o comandante ca'Rudka e Karl. Os demais... ela não tinha muita certeza a respeito deles - em mais de um aspecto.

O treinamento com os numetodos foi irregular, na melhor das hipóteses. Ana viu que não podia culpar os ténis-guerreiros, dada a maneira como ela reagiu quando viu a magia dos numetodos. Muitos resistiram ao treinamento, desdenharam, hesitaram e discutiram com Karl, Mika e os outros numetodos que tentaram mostrar maneiras de acelerar os feitiços ou guardá-los para uso futuro. Vários, como Ana, viram a fé ser testada a tal ponto que se tornaram menos efetivos em vez de mais.

Para piorar, ela perguntou-se se, na hora em que chegasse o momento - que ela sabia que viria - em que ca Cellibrecca exigesse ser obedecido pelos ténis-guerreiros como archigos em vez de Ana, eles se manteriam leais a ela.

Porém... um punhado de ténis-guerreiros dedicou-se ao treinamento com entusiasmo. E muitos dos numetodos deixaram de lado as suspeitas e o histó­rico recente e juraram apoiar Nessântico. — Dos males, o menor — falou Karl quando trouxe a notícia para Ana. - Nós sabemos bem como ca Cellibrecca nos trataria.

É isso o que o Senhor quer, Cénzi? Quer mesmo que eu defenda um homem que matou a própria matarh e que me sacrificaria sem pensar duas vezes se acre­ditasse que isso o salvaria? Alguém que me usou da mesma maneira que o vatarh? Eu sei que ca'Cellibrecca e o hirzg não são melhores, talvez até sejam piores, mas eu poderia fugir em vez de defendê-lo. Eu poderia fugir com Karl, talvez para a terra dele ou além, para as Terras Ocidentais de Mahri. O Senhor está mesmo me pedindo para morrer aqui? Está dizendo que eu tenho que estar disposta a verter Seu sangue e o sangue dos ténis que Lhe seguem por isso? Essa é a Sua vontade? É por isso que me trouxe aqui? Por favor, eu Lhe imploro, diga...

- Archigos! - A voz de Kenne interrompeu sua prece. Ana, com a cabeça abaixada e as mãos entrelaçadas à frente, ergueu o rosto. - Olhe!

Talvez a mais ou menos um quilômetro depois dos velhos portões da cidade, a Avi aTirenzcia fazia uma curva para leste. Vários prédios ficavam ali, nos arredores da cidade, com campos em volta e o rio Vaghian murmurando atrás. Os campos foram, há apenas um século, um pântano infestado de mos­quitos freqüentemente alagado quando o Vaghian transbordava por causa das chuvas. Porém, durante o reinado da kraljica, o Vaghian foi controlado por aterros nas margens do leste, e os brejos viraram terras cultiváveis.

Ana requisitou a sacada do segundo andar de uma estalagem ali, na curva da estrada. Daquele ponto alto, ela podia ver para onde Kenne apontava. Os campos, como toda terra cultivável a leste da cidade, foram colhidos mais cedo. As campinas agora eram acampamentos enlameados. Na extremidade leste do campo, soldados com as cores de Nessântico jorravam de um peque­no bosque à margem das campinas, e Ana conseguiu ouvir os gritos abafados pela distância.

A linha externa do comandante deve ter sido rompida - disse Kenne, e Ana sentiu uma pontada de medo por Karl. - Eles estão recuando. Sim, olhe, lá estão os chevarittai, e aquele é o estandarte pessoal do comandante.

Ana já tinha se virado. A mão roçou a massa pesada e dura da bola de vi­dro dada por Mahri, guardada na bolsinha de couro que estava enfiada em um bolso do robe verde, e ela sentiu o formigamento de poder dentro do objeto através do tecido. — Reúna os ténis-guerreiros — falou Ana para Kenne. — Nós iremos até eles...

A cavalgada entre as tropas de Nessântico pareceu levar uma virada da ampulheta, embora Ana soubesse que foi bem menos. A agitação espalhava-se pelo exército reunido: os recrutados e os soldados da Garde Civile pegavam nas armas e armaduras com nervosismo, os offiziers gritavam e reuniam os homens. Pajens corriam de um lado a outro, e cometas e zinkes soavam as ordens.

Quando eles alcançaram o estandarte do comandante, o caos parecia mais ordenado, mas não menos frenético. — Archigos — falou ca' Rudka com uma voz que quase soou aliviada. — Estou contente que esteja aqui. Precisa­mos de mais ténis-guerreiros. Se você puder comandá-los, os estandartes dos tênis estão lá... você, pajem, acompanhe a archigos.

O enviado? — disse Ana, quase com medo de perguntar.

Ca'Rudka deu um aceno tolerante mesmo no meio da correria. - Ele está bem. E demonstrou muito o seu valor. Vá aos ténis-guerreiros e irá encontrá-lo. Eu avisarei o que nós precisamos que vocês façam. Depressa, archigos. Veja como estão os ténis-guerreiros para mim, depois volte aqui. Eu preciso me reunir com os a offiziers.

Ana fez o sinal de Cénzi para o comandante e seguiu o pajem ao sul, na direção da Avi a Firenzcia, exatamente atrás das linhas que acabaram de se re­formar. Entre as árvores e ao longo da estrada, ela ouviu o som das cometas e o chamado de offiziers com sotaques estranhos - os firenzcianos. Um estrondo baixo parecia sacudir a terra.

Ana viu o enviado. - Karl! - Ele virou-se. O rosto estava sujo de fuligem e terra, as roupas estavam imundas, e ele parecia exausto. Os ténis-guerreiros com o enviado não tinham um aspecto diferente. - Eu trouxe o resto dos ténis-guerreiros. Você pode descansar e recuperar sua força.

Karl balançou a cabeça e disse - Não há tempo. Eles estão na nossa cola. Posicione os ténis-guerreiros, mas eles têm tantos... — Ele deu de ombros. - Feitiços de guerra não serão suficientes.

Então temos que fazer algo diferente - falou Ana.

 

O SENHOR NÃO ESTEVE LÁ conosco, archigos - falou u'téni co'Kohnle com um desdém bastante óbvio na voz. Eles cavalgavam rapida­mente pela Avi a Firenzcia logo atrás da comitiva do hirzg, com um mar de soldados carrancudos em volta. - Eu afirmo que meus ténis-guerreiros fize­ram tudo que foi possível e mais além. Não deveria ter havido tempo de res­posta para a primeira saraivada de feitiços, archigos. Nenhum tempo. Mas eles responderam, e a resposta foi forte. Esta falsa archigos e seus ténis-guerreiros estão usando os numetodos. Só pode ser. É uma vergonha, archigos, que a praga dos numetodos não tenha sido completamente removida de Nessânti­co, como lhe sugeriu o hirzg.

Orlandi fez uma cara feia diante da bronca nada sutil, tanto pela sur­ra que o traseiro levava apesar do acolchoamento do assento da carruagem, quanto pelas palavras de co'Kohnle. - Lidaremos com a falsa archigos e com os numetodos também: assim que eu voltar a sentar no trono do Templo do Archigos. Isso eu lhe garanto, u'téni.

Orlandi não se importava com a atitude do homem ou com o fato de que co'Kohnle se considerava um igual, ou pior, superior a ele. Eu não recebo ordens de você, archigos. Era isso que a expressão do sujeito parecia dizer - isso, e a impaciência com que ele mexia nas rédeas do cavalo, pronto para avançar até o hirzg como se falar com Orlandi fosse uma perda de tempo. Mais preo­cupante era que o hirzg dava a impressão de admirar o homem; certamente a sugestão de Orlandi de que o archigos, e não co'Kohnle, deveria comandar os ténis-guerreiros foi recebida por uma recusa inflexível do hirzg.

"O u'téni co'Kohnle me serviu muito bem até agora, e ele conhece minhas táticas e meu exército. Você não, archigos."

Orlandi começava a temer que a única razão para estar sendo levado pelo hirzg era devido ao título que ele possuía.

Bem, ele mostraria ao hirzg assim que voltasse ao trono. Provaria ao homem que a Concénzia era independente de Nessântico e dos Domínios, que ele governava a Concénzia, não o hirzg. Os numetodos ficariam pendurados nas pontes como um bando de pombos, com a falsa archigos entre eles. E o u'téni co'Kohnle, com sua arrogância, poderia se descobrir servindo nos Hellins. - Pfff para os numetodos - disse Orlandi ao cuspir sobre a lateral da carruagem. - Nossos ténis-guerreiros são mais fortes. Temos Cénzi do nosso lado.

Co'Kohnle fez o sinal de Cénzi à menção do nome Dele, mas torceu o nariz comprido ao mesmo tempo. — Meus ténis-guerreiros estão meio exaus­tos, archigos. E nós estaremos completamente exaustos quando o dia acabar, ao que parece. Eu não descanso enquanto troco palavras aqui. O senhor pediu o meu relatório; eu dei. Agora preciso consultar o hirzg para que ele direcione a batalha. Com sua licença, archigos.

— Um momento mesmo assim, u'téni... — começou Orlandi, mas co'Kohnle não esperou ou escutou. Ele cutucou o cavalo com o pé e come­çou a galopar, os cascos levantaram montinhos de terra dos sulcos da Avi que bateram nas laterais da carruagem e respingaram lama na manga e ombro de Orlandi.

O téni-condutor da carruagem entoava, talvez um pouco alto demais. Os e'téni que andavam ao longo da estrada ao lado do veículo olharam para o chão com cautela. Orlandi passou a mão no robe sujo.

O archigos afundou no assento quando a carruagem deu um solavanco ao passar por um buraco na Avi. Por uma brecha no arvoredo, ele pensou ter vislumbrado os telhados dos prédios mais altos na margem norte. Come­çou a imaginar a vingança contra tudo e contra todos que o colocaram nesta posição.

Aquela vingança, em sua imaginação, era agradavelmente lenta, detalha­da e criativa.

 

OS A'OFFIZIERS DA Garde Civile estavam reunidos em volta de Sergei. Uma porta quebrada apoiada sobre duas pedras servia como mesa, e havia um mapa aberto na madeira bruta e lascada. Sergei deu ordens corri­das. - Co'Simone, quero que cuide dos campos do rio; impeça o inimigo de seguir o A'Sele até a cidade. Co'Baria, leve seus homens para o norte; o hirzg pode tentar mandar alguns batalhões dar a volta pela nossa força principal; se isso acontecer, impeça-os o quanto puder e mande um pajem para pedir reforços. Co'Helfier e co'Malachi; espalhem-se de ambos os lados da Avi. Ahh, archigos, já voltou? Ótimo. Eis o que eu quero que faça: posicione seus ténis-guerreiros juntamente com o batalhão do a'offizier co'Helfier; é de lá que estamos esperando que venha a investida principal. O enviado ci'Vliomani e seus ténis-guerreiros ficarão com o a'offizier co'Malachi, em­bora eu suspeite que eles estejam quase exaustos do primeiro ataque. É esse o caso, archigos?

— É sim — respondeu a mulher. - Eles não conseguirão guardar muitos feitiços de guerra, comandante, e aqueles comigo... - Ela balançou a cabeça. - Também não sei o quão efetivos eles serão.

É melhor que sejam efetivos para cacete - disse Sergei. - Não temos escolha. Se não forem, os ténis-guerreiros inimigos destruirão nossas fileiras antes mesmo que tenhamos a chance de sacar as espadas novamente. Eles irão nos atropelar.

Entendi. - A archigos apontou para o mapa. - Em que lugar você está colocando nossas principais defesas e onde espera que os ténis-guerreiros ini­migos estejam?

Aqui e aqui - respondeu o comandante ao apontar. - E por isso que quero seus ténis-guerreiros com co'Helfier.

Mas a archigos balançava a cabeça e falou — Não. Coloque os batalhões... aqui. - Ela indicou um ponto mais a oeste ao longo da Avi, bem mais perto de Nessântico. - E os chevarittai, se eles conseguirem ficar próximos a essa curva na Avi...

Sergei não conseguiu segurar a gargalhada; os a offiziers riram também. Se os batalhões fossem postos aonde a archigos sugeriu, o exército Firenzciano dominaria os Brejos e, pouco tempo depois, os portões de Nessântico. - Com todo respeito, archigos - interrompeu o comandante —, você não tem expe­riência em batalha ou com táticas, como bem demonstra.

Com todo respeito - respondeu ela —, você sequer estaria aqui, coman­dante, com sua grande experiência, se eu não lhe tivesse curado. Acho que você deveria fazer a gentileza de me escutar sem interrupção, como gratidão.

Ana encarou-o com um olhar de desafio. Sergei suspirou e falou - Rápido, então. Não temos muito tempo. E o que quer que façamos será decisão minha.

Concordo. Comandante, o hirzg tem mais ténis-guerreiros do que nós, e eles são mais habilidosos com sua magia do que aqueles que eu consegui reunir. Você concordaria com essa avaliação?

Sergei deu de ombros e disse - O enviado ci'Vliomani saiu-se surpreendentemente bem. Eu não teria acreditado se não visse com meus próprios olhos. Mas, sim, concordo.

Então, como você já sugeriu, nós perderemos essa batalha se lutarmos do jeito que eles esperam.

Que outra coisa você sugere, archigos? - Foi difícil para Sergei evitar o tom condescendente na voz.

Os ténis-guerreiros inimigos já usaram muito do poder no primeiro ataque, e nesse aspecto eles não são melhores do que qualquer outro téni. Se usarem o Ilmodo, eles ficarão exaustos. Então eu sugiro que deixemos os ténis-guerreiros inimigos usarem seus feitiços... mas não em nós.

Sergei franziu os olhos, o que causou dobras na pele em volta do nariz falso. Uma suspeita começou a ganhar forma na mente. - E como você sugere que façamos isso?

A archigos deu de ombros. — Você já disse, comandante: você só acredita no que vê com os próprios olhos.

 

AS TROMPAS DERAM O COMANDO de parada, e um pajem veio correndo como um louco pela fileira na direção da carruagem de Jan. - A Garde Civile controla a estrada e os campos à frente - disse ele. — Eles estão em formação de batalha, são pelo menos três batalhões completos.

Assim tão longe das muralhas? - falou Jan. - Se eu fosse o comandante, eu teria colocado os batalhões mais perto da cidade. Mas... - Ele deu de om­bros. - U'téni co'Kohnle! Você cavalgará à frente comigo e com o starkkapitän para ver isso.

Meu hirzg - chamou ca'Cellibrecca de sua carruagem, atrás do veículo de Jan. - Eu irei com o senhor.

Ca'Cellibrecca já estava lutando para se levantar, e Jan ouviu o suspiro de co'Kohnle. Ele quase suspirou com o u'téni. Jan gesticulou para o archigos permanecer. - Fique aqui, archigos - ordenou o hirzg. - Você pode... rezar pelo resultado da batalha.

Vatarh, posso ir também? - pediu Allesandra. - Eu também gostaria de ver. De que outra forma eu posso aprender, agora que Georgi se foi?

Jan deu um aceno tolerante de cabeça para a filha e fez carinho no cabelo dela. - Tragam nossos cavalos - falou o hirzg para os ajudantes. - Cavalgare­mos sem os estandartes.

O sol descia para o oeste e o tempo tinha piorado, nuvens de tempestade aglomeravam-se atrás de Nessântico. A luz era fraca e havia uma névoa estranha rente ao solo — os Brejos eram conhecidos por serem assombrados e a névoa era comum aqui, embora geralmente não à tarde. Eles subiram uma pequena elevação na direção da frente da coluna Firenzciana e pararam com o intuito de olhar para baixo.

A linha de frente parou em uma curva da Avi. Lá, depois da longa curva, havia um campo onde fileiras de homens de uniformes azuis e dourados esperavam, protegidos por lanças. Os estandartes dos chevarittai tremulavam logo atrás do soldados e andavam pelas fileiras como se os chevarittai estives­sem impacientes para a batalha começar, prontos para realizar uma investida.

Há mais deles do que antes - falou Jan. - O kraljiki esvaziou a cidade de tropas. Ótimo. Isso tornará as coisas mais fáceis. Semini, como estão seus ténis-guerreiros?

Cansados do último ataque, meu hirzg, mas estamos prontos — respondeu o u'téni. Um pequeno sorriso contorceu os lábios debaixo da barba.

Aqueles tolos corrompidos pelos numetodos estarão bem mais exaustos do que nós, eu creio.

Jan riu. - Starkkapitän?

As tropas deles estão mal posicionadas, meu hirzg — disse ca'Linnett.

É difícil dizer nesta maldita bruma, mas não acho que as fileiras tenham muitos homens. Eles estão muito longe do arvoredo e o rio irá confiná-los mais adiante. Deixe os ténis-guerreiros e os arqueiros abaterem quantos ini­migos eles conseguirem, e concentre o fogo no meio da linha ao longo da Avi. Eu soltarei os chevarittai lá. - Ele apontou para o norte da Avi, onde o arvo­redo era mais denso. - Eles podem se posicionar enquanto os ténis-guerreiros atacam. Então eu levarei a nossa infantaria aonde nós enfraquecermos os ini­migos, ali na Avi, enquanto os Lanceiros Vermelhos atacam o flanco. Avance com força e rapidez suficientes, e nós talvez ainda consigamos chegar aos portões da cidade antes do pôr do sol. Se ca'Rudka ou o kraljiki tiverem algum bom-senso, eles não vão tentar manter toda a margem norte da cidade; eles recuarão perto das ponticas.

Allesandra? - perguntou Jan para a filha, sentada à sua frente. Ela virou a cabeça para trás e encarou-o.

Posso assistir daqui, vatarh, onde eu posso ver tudo?

Ele mexeu nos cachos da menina. - Nós dois assistiremos daqui. Starkkapitän, é com você. Mande meus assistentes e pajens até mim. U'téni co'Kohnle, pode começar o ataque quando seus ténis-guerreiros estiverem prontos.

Ca'Linnett e co'Kohnle fizeram reverências e foram embora depressa. Ordens percorreram as fileiras, trompas soaram e bandeiras tremularam, e a linha de frente espalhou-se devagar pelos dois lados da estrada. Meia virada da ampulheta depois, eles ouviram os estrondos dos feitiços de fogo que foram disparados logo detrás da linha de frente, seguidos pelo assobio de revoadas de flechas. Os clarões faiscantes — uma dúzia deles - trovejaram e deixaram um rastro de fumaça sobre os campos entre os exércitos. Jan observou as bolas de fogo e esperou para ver se os feitiços de defesa dos ténis-guerreiros de Nessân­tico iriam abater algumas, mas elas continuaram sem resistência, e os homens gritaram em triunfo quando as bolas de fogo atingiram as linhas inimigas e abriram enormes buracos. Os firenzcianos ouviram os berros de susto e dor, mas exceto pelos pontos onde foram atingidas pelas bolas de fogo, as fileiras de Nessântico mantiveram a formação.

Vatarh?

Os ténis-guerreiros mandaram outro bombardeio, maior do que o primeiro, e esse também seguiu sem resistência pelo campo até penetrar nas fileiras do outro lado. Mais homens caíram. Os gritos redobraram, mas outros homens de amarelo e azul cobriram as brechas. Jan franziu a testa; os ténis-guerreiros inimigos podiam estar exaustos, mas ele duvidava que não tives­sem algum poder sobrando para combater os feitiços. Por que eles esperavam enquanto sua gente morria? Isso era massacre, não batalha. Ele perguntou-se como era possível que mantivessem a formação...

Vatarh!

Quando uma terceira saraivada de bolas de fogo cruzou a paisagem, Jan olhou para Allesandra. — O que foi, passarinho?

Olhe para eles - falou Allesandra. - Olhe mesmo para eles. Aqueles próximos aos pontos onde nosso fogo mágico acerta; eles não estão se mexen­do. De maneira alguma.

Quando a próxima onda de sóis destruidores voou sobre o campo, Jan olhou mesmo - não para onde eles acertaram, mas para os lados. Era difícil enxergar atráves da fumaça e névoa, através da escuridão crescente debaixo das nuvens cada vez mais espessas, mas Jan percebeu que Allesandra estava certa. Havia uma rigidez artificial nos soldados ao lado das rajadas dos ténis-guerreiros. Eles não recuavam, não se encolhiam de medo, não corriam. Os homens permaneciam eretos, sempre olhando para a frente, as cabeças não vi­ravam de maneira alguma enquanto os companheiros eram consumidos pelo fogo.

As bolas de fogo atravessaram os soldados como se fossem pedras atiradas em um quadro.

Nós fomos enganados... — murmurou Jan, mas já era tarde demais. As fileiras inimigas da Garde Civile sumiram completamente, como fumaça le­vada por um furacão. Os feitiços de fogo agora partiram dos numetodos: não das fileiras fantasmagóricas diante deles, mas do flanco sul, de onde vieram bolas de fogo que rasgaram as linhas de frente firenzcianas. Não muito distan­te dali surgiu o clangor de armas e o estrondo de cascos, e Jan viu os chevarit­tai de Nessântico liderarem a carga e soldados de amarelo e azul jorrarem do lado da Avi que acompanhava o rio. — Lá! - berrou e apontou o hirzg para os ajudanes. — Soem as trompas! Rápido!

Quando as trompas começaram a gritar, conforme o clamor da batalha aumentava debaixo dele, Jan desceu Allesandra de seu cavalo e falou - Volte para o archigos. Depressa! Você, pajem, leve-a!

Jan então sacou a espada, sem olhar para trás, e cutucou o cavalo de guer­ra com o pé para que se movesse.

 

KARL SENTIU ANA tremer com o esforço e a exaustão. - Pare - falou para ela. - Pode parar agora... — Com um suspiro e um grito, Ana desmoro­nou nos braços do enviado. Ele abraçou-a com força. Em volta de Ana, o chão estava coberto por corpos de homens e mulheres em robes verdes; aqueles que a ajudaram, que pegaram o Ilmodo e transmitiram para ela criar a ilusão.

Karl nunca tinha visto algo assim antes. Não tinha sequer imaginado que fosse possível. Ele suspeitava que Ana também não.

Agora - gritou Karl para os ténis-guerreiros que sobraram. - Comecem o ataque!

O enviado ouviu o cântico rápido, e falsos sóis floresceram acima deles e partiram guinchando em direção aos firenzcianos. Em volta, a Garde Civile soltou um grito de triunfo e disparou. Um nó de chevarittai fechou a Avi com seus cavalos de guerra e gritou desafios para os chevarittai firenzcianos. Assim que o assobio e o estrondo do fogo de guerra passaram, o clangor de aço con­tra aço começou a crescer.

Karl? - sussurrou Ana de olhos fechados. - Funcionou?

Funcionou. Não sei como, mas funcionou.

Ótimo... - A palavra saiu mais como um suspiro. - Eu preciso dormir...

Durma então. Você merece. - Karl afastou o cabelo de Ana do rosto e beijou sua testa, depois a deitou no chão. Outra saraivada de fogo de guerra ir­rompeu acima deles e seguiu guinchando na direção da linha de frente Firenzciana. As bolas de fogo iluminaram a campina com um furioso clarão amare­lo, mas esse seria o último bombardeio, notou Karl: tanto os ténis-guerreiros quanto os numetodos estavam exaustos. Todos eles precisariam de tempo para se recuperar; a batalha seria decidida pelo aço agora, não por feitiços.

Karl gesticulou para Kenne e falou — Cuide de sua archigos. Preciso ir ao comandante.

Ele fez um carinho no rosto de Ana pela última vez e subiu no cavalo que um dos e'ténis segurava. Ao ir embora cavalgando, Karl pensou no que tinha visto, ainda maravilhado.

— Eu preciso que todos vocês entoem o cântico de Abertura — disse Ana ao reunir vários dos e' e o'ténis do Templo da Archigos em volta dela enquanto os ténis-guerreiros e os colegas numetodos de Karl assistiam. - Assim como todos vocês aprenderam nas primeiras aulas: abram-se para o Ilmodo, mas não o moldem. É tudo que vocês precisam fazer. Agora!

Eles fizeram o que ela pediu, enquanto a própria Ana entoou. Karl sentiu o poder crescer em volta deles. Pensou que era quase capaz de vê-lo como se fosse uma bruma no canto do olho que sumia se ele tentasse olhar diretamente para a névoa.

Vários dos tênis gritaram enquanto Ana continuava a entoar, conforme ela reunia o poder que eles abriram para a archigos. — Agora! — gritou ela. — Deixem o Ilmodo aberto. Deixem-me tirá-lo de vocês...

E ela tirou. Agora mesmo eles conseguiram ver a ilusão que se formava nos campos e do outro lado da Avi em frente a eles: homens fantasmagóricos no uni­forme da Garde Civile, envoltos em bruma e névoa que a brisa fresca não tocava, voltados para o ponto onde o exército Firenzciano apareceria. Os soldados ficaram parados ali: imóveis, à espera.

Karl viu Ana: mãos e lábios que se mexiam como se controlasse o feitiço que criou, as palavras perdidas no grito de surpresa que surgiu de todos em volta. Ser­gei, que observava, riu efalou com os offiziers e chevarittai — A archigos fez a parte dela. Agora, vamos fazer a nossa... — Ele foi embora cavalgando e dando ordens.

Ana continuou a entoar, e os soldados fantasmas ficaram sólidos e mais nu­merosos enquanto ela continuava a puxar a energia dos outros ténis. Era mara­vilhoso assistir. Quase fez Karl querer acreditar como Ana acreditava que a fé em Cénzi pudesse dar tanto poder assim para ela.

Pela primeira vez, Karl ousou pensar que o plano poderia funcionar...

O som agudo de trompas tirou Karl do devaneio. Ele viu o estandarte do comandante à frente no meio dos soldados, mas o barulho vinha detrás e anunciava o chamado do kraljiki.

Justi, sem ser anunciado e chamado, entrou no campo de batalha.

 

KRALJIKI! - Ca'Rudka fez uma reverência por obrigação. - Eu achei que o senhor pretendia permanecer na cidade. - Justi pensou ter visto irrita­ção no rosto desfigurado do homem, na maneira como a pele dobrou-se em volta do nariz de prata colado em sua pele. O kraljiki viu o enviado numetodo ao lado de ca'Rudka e do a offizier ca'Montmorte. Não conseguiu ver a archi­gos por ali e imaginou onde ela se encontrava.

A batalha é aqui - falou Justi para o comandante - e eu pretendo lutar desta vez. Chegou até mim a notícia de que você estava recuando. Eu não quero que nós recuemos, comandante.

Eu recuei por necessidade, kraljiki - respondeu ca'Rudka, sem tentar esconder a cara feia agora. — Mas nós demos meia-volta outra vez.

Então estamos perdendo nosso tempo aqui, comandante. Eu trouxe os chevarittai comigo, e eles estão prontos. - Os cavaleiros com Justi concorda­ram aos gritos, os cavalos bateram os cascos com impaciência.

Kraljiki, o senhor deve permanecer aqui para que possamos colocar seus homens onde serão mais úteis. Os pajens trarão notícias.

Notícias? - vociferou Justi. - Você quer me fazer esperar aqui como uma velha covarde? Eu mandei que fosse à frente para deter o hirzg; você não deteve. Agora eu farei isso por conta própria.

Kraljiki...

Não! — berrou Justi. O homem queria estragar seu momento de glória, e ele não aceitaria isso. Melhor morrer no campo de batalha do que na Bastida. Melhor morrer como kraljiki do que como um prisioneiro. - Você pode perma­necer aqui se quiser, comandante, mas eu seguirei em frente para liderar meus homens na defesa da cidade deles. Eu dei ouvidos a você em Passe a Fiume, e você entregou a cidade rapidamente. Se tem coragem, então siga-me; de outra forma, fique aqui. Quem está no comando aqui?

O senhor, kraljiki — respondeu o comandante. À menção de Passe a'Fiume, o rosto de ca'Rudka ficou vermelho e a expressão de irritação contorceu a boca debaixo do nariz de prata. Justi viu o comandante dar uma olhadela para ca'Montmorte, para os numetodos, para os offiziers e pajens à volta e dizer - Tragam meu cavalo. Nós cavalgaremos com o kraljiki.

Justi concordou com uma expressão carrancuda. Ele sacou a espada, apontou para a Avi, onde o som da batalha era mais alto e gritou - Caval­guem, então! Cavalguem!

Eles partiram em velocidade, com os chevarittai em volta e o estandarte do kraljiki estalando furiosamente ao vento, sem esperar pelo comandante e os demais. A Garde Civile soltou gritos de incentivo ao passar a galope pelas fileiras, e a empolgação dos soldados fez Justi avançar mais ainda. Adiante, ele viu a briga na longa linha de frente e mergulhou nela com os chevarittai, quebrou a linha de infantaria e avançou fileiras adentro.

A fúria da batalha espantou qualquer outro pensamento.

Justi atacou uma lança que foi estocada contra ele e arrancou a mão que empunhava a arma. O sangue do homem jorrou enquanto ele gritava e caía debaixo das patas do cavalo de Justi. O kraljiki começou a golpear às cegas, a atacar qualquer coisa que se mexesse e vestisse prateado e preto. Em volta dele, seus chevarittai avançaram pelos firenzcianos como um arado na terra e deixaram um rastro de sangue e morte. Estavam bem fundo nas linhas inimigas agora, e os chevarittai firenzcianos notaram o estandarte do kraljiki e abriram caminho na direção deles. - Kraljiki! - Justi ouviu Sergei berrar atrás dele. — O senhor está isolado demais aí! Temos que recuar até a nossa própria linha!

Não! - gritou Justi para trás. — Eu não serei chamado de covarde!

Ele atacou o homem mais próximo e ouviu um rosnado quando um jorro vermelho atingiu o seu braço da espada. O kraljiki avançou. Ouviu os desafios dos chevarittai inimigos e devolveu os gritos de provocação.

Eles vieram.

Justi conseguiu matar o primeiro chevarittai que o alcançou — um homem cujo rosto era vagamente familiar, um ca que talvez tenha estado na corte ou a quem Justi fora apresentado certa vez em uma de suas estadias em Brezno. Ele não sabia o nome do sujeito, apenas sabia que sua própria espada estava ficando pesada na hora em que as lâminas bateram e ele enfiou a arma com força no espaço entre o capacete e o peitoral, onde encontrou carne acima da gola da veste do homem. Justi tentou arrancar a espada enquanto o sangue jorrava sobre o brasão bordado na veste, mas ela ficou presa em osso ou armadura. Não havia tempo para pensar; outro chevaritt chegou em cima de Justi, que não podia se defender. Ele soltou a espada (o chevaritt caiu da sela) e ergueu um pobre braço, na esperança de que o aço da braceleira pudesse defletir o golpe... mas o cavalo de ca'Rudka bateu com força contra a montaria do oponente de Justi, e a espada do comandante atravessou a cota de escamas do Firenzciano. O chevaritt caiu gritando debaixo das patas dos cavalos dos dois.

Kraljiki... - Sergei começou a dizer, mas não havia tempo. Eles foram envolvidos pela massa de infantes e chevarittai. O jovem chevaritt que segu­rava o estandarte de Justi morreu. A esquerda, Justi viu ca'Montmorte ser derrubado, varado por uma lança, com a veste e a cota de escamas cheias de flechas. Perto de ca'Montmorte, o numetodo ci'Vliomani gesticulou e fogo explodiu, mas seu fogo de guerra saiu fraco e ineficiente. Tudo era um caos: gritos, berros e movimentos. Justi sentiu uma dor lancinante na perna direita e gritou em choque, abaixou os olhos e viu a greva partida e sangue jorrar de uma fenda no metal. Mãos agarraram o kraljiki e ameaçaram derrubá-lo.

Justi sabia que estava prestes a ser capturado ou até mesmo morto imediatamente. Se qualquer uma das hipóteses acontecesse, essa guerra estava aca­bada. Qualquer negociação para soltá-lo envolveria sua abdicação. Ele atacou as mãos com uma adaga que sacou do cinto e cutucou o cavalo de guerra com os pés. Mas o animal estava cercado, e embora Justi tenha visto Sergei ainda lutando desesperadamente ao seu lado, eles estavam envolvidos agora por um mar de preto e prata.

Justi gritou de fúria.

 

ELE NÃO TINHA MAIS NADA. Os feitiços que havia preparado tão cuidadosamente antes da batalha tinham acabado. Levaria tempo demais e ele estava muito exausto para invocar novos. O braço já estava exaurido por usar a espada - e luta de espada estava longe de ser sua especialidade, de qualquer maneira.

Karl perguntou-se como seria a morte. Pensou — brevemente - no que diria para Cénzi se Ele estivesse lá no além.

Ele ouviu o kraljiki gritar e viu o homem cercado, prestes a ser derrubado.

Mas a terra respondeu ao berro do kraljiki.

O chão estourou como se algum demônio dos moitidis tivesse surgido das profundezas: uma explosão de lama e trigo pisoteado que jogou para longe deles todo mundo de preto e prata, embora tenha deixado intactos o kraljiki, o comandante e os chevarittai de Nessântico que sobraram.

E Karl.

Por um instante, houve silêncio.

Isso foi um feitiço. Ana? Onde ela encontrou forças?

Karl viu o comandante pegar as rédeas do cavalo do kraljiki; o próprio Justi cambaleava na sela e apertava a perna. - Recuem! - berrou ca'Rudka para os demais. - Recuem enquanto temos chance!

Ca'Rudka deu um puxão nas rédeas da montaria do kraljiki. Karl cutucou o próprio cavalo com os pés para que andasse e deixou a espada inútil cair para segurar melhor as rédeas. Eles galoparam de volta às linhas de Nessântico através dos corpos derrubados.

O preto e prata viraram azul e dourado: eles atravessaram as linhas quan­do os sons de batalha voltaram a surgir lá atrás. — Precisamos de um curandeiro! — berrou Sergei para um pajem assim que eles pararam. O comandante estava ajudando o kraljiki a descer da sela; Sergei apeou do próprio cavalo para auxiliá-lo, mas quase caiu por conta da perna ferida. O kraljiki gemia e debatia-se nas mãos deles; Sergei viu sangue sair pulsando da ferida na coxa do homem. Karl e ca'Rudka trocaram olhares ao deitar o kraljiki na grama e lama. Sergei já começou a arrancar sua veste, rasgou o pano e enfiou na ferida.

Tire a greva dele para que possamos atar a ferida — falou o comandante para Karl. - Rápido.

Karl cortou as correias da placa de metal com a adaga e soltou-a dos anéis rompidos da calça de cota de malha que ficava por baixo. Mais sangue jorrou nas mãos. A lança, ele viu, tinha vindo por cima da placa e penetrado fundo no músculo. Karl vislumbrou osso branco antes de Sergei enfiar o pano na ferida e amarrar outra tira sobre ela. O fluxo de sangue aos poucos diminuiu, embora o rosto do kraljiki estivesse pálido e ele tivesse caído inconsciente.

- Ele pode perder aquela perna ou até mesmo a vida — falou o comandante para Karl quando o curandeiro chegou. Ca'Rudka ficou de pé e ob­servou o homem dar atenção a Justi. - Isso foi tão desnecessário. A archigos, contudo, pode ser capaz de ajudar.

Karl fez que não. - Ana não tem mais forças. O kraljiki está nas mãos dos curandeiros por enquanto.

O comandante acenou com a cabeça. Ele olhava para trás, na direção da linha de batalha. A penumbra do crepúsculo começava a aumentar, reforça­da pela massa negra de uma frente de tempestade. Alguns pingos grossos de chuva começaram a cair e o vento aumentou. - Fizemos tudo que foi possível - falou o comandante ao olhar para cima. - A cidade está a salvo por mais um dia, pelo menos. - Ele gesticulou para um pajem próximo. — Encontre as trompas. Mande que soem a ordem de cessar combate. Diga aos aoffiziers para recuar para a cidade. Eu duvido que o hirzg siga desta vez.

Sergei abaixou o olhar para o kraljiki. Karl viu o comandante balançar a cabeça.

 

- ELES ESTÃO RECUANDO toda a linha de frente - disse ca'Linnett para Jan. O rosto do starkkapitän, como o do hirzg, estava sujo de lama e sangue, borrado pela chuva torrencial, e o gume da espada estava bem lascado. - Se pressionarmos, eles vão dar meia-volta e lutar; se deixarmos, vão recuar.

Jan resmungou. Ele limpou os olhos encharcados. Ficou surpreso que a chuva não evaporasse como água sobre aço aquecido ao cair sobre ele, pois estava ardendo de fúria.

As carruagens avançaram conforme a linha de batalha foi empurrada na direção da cidade. Allesandra, envolta em linóleo contra a chuva, estava ao lado do vatarh novamente e olhava para ele enquanto ca'Linnett fazia o relatório. O u'téni co'Kohnle estava ao lado de caLinnett, com o cabelo emplastrado no crânio e pingando de chuva; ele parecia que não dormia há uma semana, exaurido pelos esforços dos feitiços. Ca'Cellibrecca também estava presente - limpo, intacto, protegido por um guarda-chuva enorme nas mãos de um e'téni, e no entanto de alguma forma parecia que tinha sofrido o pior.

Isto não foi uma vitória. No máximo, um empate. Jan olhou fixamente para os homens de preto e prata caídos e imóveis no campo enquanto eram castigados pela chuva. Isso foi uma derrota. Ele sabia. A ilusão dos numetodos desperdiçou os esforços dos ténis-guerreiros, que não foram capazes de repelir o fogo de guerra lançado contra eles. A Garde Civile lutou como loucos em vez de homens recrutados sem entusiasmo, e os chevarittai de Nessântico pro­varam seu valor. Jan sentiu alguma esperança quando vislumbrou o tolo avan­ço do kraljiki diante das próprias linhas, mas um feitiço fora do comum - será que foram os numetodos novamente ou a falsa archigos? — salvou o idiota.

Agora a escuridão ameaçava chegar e a chuva caía torrencialmente sobre eles.

Persiga-os - falou Jan furioso. - Eu não me importo. Vou descansar dentro das muralhas hoje à noite.

Hirzg - insistiu ca'Linnett —, eles não estão fugindo em pânico. A retirada é ordenada e lenta, e eles lutarão durante todo o caminho de volta se os pressionarmos, em um terreno que conhecem melhor do que nós. Quem sabe o que esses numetodos ainda podem fazer? Nossos ténis-guerreiros pre­cisam descansar, e nós podíamos usar o tempo para preparar nossas armas de cerco.

Jan balançava a cabeça diante do argumento. Co'Kohnle entrou na conversa. - Hirzg, o starkkapitán está certo. Meus ténis-guerreiros estão exaustos; não temos mais nada. Dê-nos a noite, contudo, e nós estaremos prontos para a investida final de manhã.

Vocês não estão me escutando? - disparou Jan. - Eu quero essa cidade. Eu vou possuí-la. Se vocês não me ajudarem a tomá-la, então encontrarei offi­ziers e ténis que me ajudem. - O hirzg olhou feio para eles e ficou satisfeito quando ca Linnett e co'Kohnle abaixaram as cabeças. Ca'Cellibrecca, em seu elegante robe debaixo do guarda-chuva, olhava para outro lado, como se esti­vesse fascinado pela Avi atrás deles.

Vatarh. - Allesandra puxou a capa de Jan. Ele olhou para o rosto da filha, que pestanejava contra os pingos de chuva que caíam sobre eles.

O starkkapitán e o uténi estão certos. Eles farão o que o senhor mandar porque lhe respeitam, mas estão certos. Eu sei que o senhor quer a cidade e que vai me dar Nessântico como prometeu. Mas não hoje à noite, vatarh. Amanhã. - Ela sorriu para Jan, e a fúria dentro dele amainou um pouco.

Ou mesmo depois de amanhã. Não importa. O exército firenzciano é forte, e o senhor é o seu líder. O senhor tomará a cidade, mas não precisa ser hoje.

Eu prometi para você, Allesandra - disse Jan. Com o indicador, ele afastou cachos molhados das bochechas da filha.

Eu posso esperar, vatarh. Posso usar as luzes da cidade pelo resto da vida. Mais um dia não vai fazer diferença. Eu posso esperar.

Jan tomou fôlego. O trovão rugiu no céu, mas a chuva estava diminuindo, e os raios piscavam a leste deles, na direção de Firenzcia.

Nós acamparemos aqui - falou ele. - U'téni co'Kohnle, certifique-se que os ténis-guerreiros durmam e fiquem prontos para amanhã. Starkkapitán, prepare seus offiziers e tropas para o ataque final. Eu encontrarei vocês dois mais tarde na noite de hoje. Nós avançaremos assim que surgir a primeira luz amanhã.

Ele abraçou Allesandra e disse - Amanhã você terá sua cidade de jóias.

 

ANA ESTAVA COCHILANDO na cadeira, mas deve ter sentido a presença dele. Seus olhos piscaram e abriram-se. Se Ana ficou surpresa ao vê-lo em seus aposentos próximos ao Templo da Archigos, ela não demonstrou.

Você não concorda com meu conselho? - Mahri repreendeu-a com delicadeza. - Não vai usar o presente que lhe dei?

Ele viu Ana tocar o robe no lado direito. Notou como o pano ficou arredondado ali sobre o vidro encantado que dera para ela. Ana não disse nada. - Eu ouvi as fofocas pela cidade, archigos. Dizem que você salvou a vida do kraljiki com um feitiço - continuou Mahri.

Não fui eu. Eu não sei... - Então os olhos de Ana arregalaram-se um pouco.

Sim. Eu não deveria ter interferido, mas se não tivesse, o presente que lhe dei seria desperdiçado.

Ana mudou de posição e endireitou as costas na cadeira onde havia ador­mecido. A mão retirou a bola do bolso. Mahri notou as cores brilhantes dentro dela; sentiu o poder que colocou no interior do vidro para Ana. - Aqui está então - disse a archigos. - Eu devolvo. Use você mesmo se tem tanta certeza.

Não posso. - Ele manteve as mãos ao lado do corpo e recusou-se a pegá-la. Após um instante, Ana colocou a bola na mesinha ao lado da cadeira, sobre a bandeja do jantar que não tocou.

Por que não?

Como resposta, ele tirou uma tigela rasa de latão de uma sacola que trazia debaixo do manto, que tinha a borda decorada com filigranas de esmalte colorido. Mahri foi até a mesa e pousou a tigela ali, depois colocou água de um jarro deixado pelos criados. De uma bolsinha de couro, ele polvilhou um pó escuro na água e mexeu enquanto entoava palavras na língua do ocidente. Mahri notou que Ana observava com a cabeça inclinada de lado enquanto prestava atenção e sabia que a archigos percebia a semelhança entre a língua do ocidente e a do Ilmodo: as mesmas cadências e ritmos, o mesmo tom sibilante e vocais aspiradas. Uma bruma surgiu sobre a tigela.

Olhe dentro da tigela - disse ele.

Ana deu um longo olhar avaliador para Mahri. Então finalmente se levantou da cadeira (Mahri notou seu cansaço pelas caretas e pela maneira como ela alongou os braços e pernas) e ficou diante da tigela, do outro lado da mesa de onde estava ele. Ana olhou para baixo.

Mahri sabia o que ela viu porque ele mesmo já tinha visto mais de uma dezena de vezes nos últimos meses.

Nas brumas, o rosto de Ana e a figura de Jan ca'Vörl. Ela segura uma faca com a lâmina ensaguentada. As brumas passam, e lá está Cellibrecca, esparrama­do no chão ao lado do hirzg e com sangue espalhado pelo peito imóvel. O rosto de Ana está impassível enquanto ela olha fixamente com olhos frios e cruéis. A faca cai da mão, as brumas passam novamente, e lá está Nessântico, intocada, e no Trono do Sol está Justi...

Mahri sabia o que ela viu. Ele esticou a mão cheia de cicatrizes entre o rosto arrebatado de Ana e a tigela e afastou a bruma.

Mahri não deixou que ela visse o que vinha a seguir. Isso era apenas para ele.

Ana ergueu os olhos para o mendigo, com os punhos cerrados sobre o tampo da mesa, e perguntou - Isso é o futuro?

Ele fez que sim. - É um vislumbre de um dos caminhos que o futuro pode tomar. Um caminho que é incerto e às vezes difícil de decifrar. Mas quando vejo a morte do hirzg, quando vejo Nessântico a salvo e Justi no trono, é sempre você a responsável por isso, Ana. Não eu. Foi por isso que lhe dei o vidro encantado, porque sei que, se eu matá-los, Nessântico ainda cai. Inevitavelmente.

Ele perguntou-se se Ana daria ouvidos a uma meia verdade.

Eu não consigo matar pessoas enquanto elas estão indefesas... - disse a archigos.

Mahri sorriu e notou que Ana retraiu ao ver a expressão.

Que maneira melhor de matar alguém? Meu povo tem um ditado: "em tempo de guerra, todas as leis se calam". Quantos morreram hoje, desnecessa­riamente, porque você não fez o que eu sugeri?

O olhar de Ana endureceu, e Mahri notou que foi longe demais. - Você culpa a mim?

Mahri correu a responder ao balançar a cabeça. Não poderia dar tempo para ela pensar ou seria tarde demais. - Não, Ana. Eu não culpo você; na verdade, a culpa é minha por não ter deixado a situação clara o suficiente. Você pode seguir as regras da guerra "civilizada" se quiser, Ana, mas perderá se fizer isso. Pergunte ao comandante ca'Rudka se ele acredita mesmo que vocês vencerão o hirzg; pergunte aos seus ténis-guerreiros se eles acreditam que são mais poderosos que os outros do lado inimigo. Você já deturpou as regras de sua fé e da Divolonté. Deturpe mais. Você tem a noite de hoje para fazer isso. Apenas a noite de hoje. Amanhã será tarde demais, porque o hirzg jantará no Grande Palácio e ca Cellibrecca estará onde você está agora. Tanto você quan­to Justi estarão mortos ou coisa pior.

Por quê? — perguntou Ana. - Por que você se importa com quem é o kralkiji ou o archigos?

Eu não me importo com isso, e sim com o que é melhor para o meu povo, assim como você. E, portanto, eu quero Justi como kraljiki e você como archigos.

Você viu isso ali? - perguntou Ana ao apontar para a tigela.

Por um momento, Mahri perguntou-se se Ana tinha adivinhado ou visto mais na tigela do que ele pretendeu que ela visse. - Sim - disse Mahri com hesitação. - Vislumbres, como você viu. E espero que estejam corretos.

Mahri ficou aliviado quando ela fez que sim com a cabeça. Ele tirou a bola de vidro da travessa do jantar. — Hoje à noite - repetiu enquanto segurava a bola. - É a sua única chance.

Ana olhou fixamente para Mahri. Ele tinha medo que ela fosse recusar, medo de que aquilo que ele viu na tigela fosse se perder para sempre. Mas finalmente Ana ergueu as mãos com as palmas voltadas para cima.

Mahri colocou a bola nas mãos de Ana e fechou os dedos da archigos em volta do brilho.

 

ANA ESTAVA MAIS ASSUSTADA do que conseguia lembrar-se. As mãos tremiam, e ela sentiu um frio fora do comum.

Kenne trouxe a carruagem conduzida por um e'téni de confiança. Quan­do Ana disse para ele que queria sair da cidade pela Avi a'Firenzcia, que queria se aproximar o máximo possível do acampamento do exército do hirzg (ten­tou desesperadamente evitar que a voz tremesse), o homem concordou com a cabeça como se ela tivesse pedido para dar uma volta pela Avi a'Parete. - E o enviado ci'Vliomani? Nós o pegaremos também?

Deixe Karl dormir. Isso é algo que devo fazer sozinha, mas preciso de sua ajuda.

Kenne fez que sim e não revelou as opiniões que poderia ter. Isso agradou Ana; ela não sabia se teria conseguido responder às perguntas dele. A archigos contemplou pelas cortinas enquanto eles passavam chacoalhando pela cidade. A Avi a'Parete estava estranhamente escura, as lâmpadas mágicas apagadas pela primeira vez em gerações. A frente de tempestade foi para leste e deixou poças prateadas pelo luar nos ladrilhos dos pátios e da Avi. As ruas estavam desertas, exceto pela presença da Garde Civile (embora as tavernas por onde eles passaram estivessem lotadas e ruidosas), e foi apenas o globo partido de Cénzi na carruagem que os poupou de serem parados e interrogados várias ve­zes. O A'Sele fluía escuro e sombrio por baixo da Pontica Mordei, e as cabeças em ambos os lados dos portões da Avi a Firenzcia estavam apagadas e imóveis, paralisadas enquanto olhavam para fora da cidade e enxergavam sem ver o ponto onde o exército de Firenzcia dormia.

A carruagem foi saudada quando chegou às barricadas no portão; Kenne debruçou-se para fora do veículo e respondeu ao chamado. Diante da insis­tência de que estavam em missão para a archigos, eles foram liberados. Passa­ram por incontáveis tendas da Garde Civile ao longo da Avi.

O mundo parecia calmo, apesar do cataclismo que abalou Nessântico, apesar dos próprios temores de Ana. Ela pegou a bola de vidro que estava den­tro do bolso, deixou a energia do Ilmodo presa ali formigar os dedos e rezou para Cénzi dizer que ela estava fazendo a coisa certa.

Não houve resposta. Apenas uma incerteza dolorosa no coração e um medo do que ela planejava fazer.

Ana sentiu a carruagem parar quando o condutor interrompeu o cântico. - Archigos - ela ouviu o condutor dizer. - Não posso ir adiante...

Kenne abriu a porta da carruagem e Ana espiou. À frente, a Avi estava completamente bloqueada: as tropas de retaguarda da linha de defesa de Nes­sântico. Um esquadrão da Garde Civile aproximou-se da carruagem; quando os soldados viram Ana e Kenne descer, todos eles fizeram o sinal de Cénzi correndo. — Archigos, uténi — falou o e'offizer do esquadrão. - Avisarei o co­mandante ca Rudka que a senhorita veio. - Ele começou a gesticular para um dos homens, mas Ana deteve o homem.

Não, e'offizier. Deixe o comandante descansar. Vim dar uma olhada nas linhas, apenas isso. Eu não conseguia dormir, então pensei em ver onde deveríamos colocar os ténis-guerreiros.

Ele concordou com a cabeça e deu um sorriso ligeiro, quase tímido. - Eu entendo. Agora, porém, as coisas estão calmas.

Onde estão as tropas firenzcianas?

O homem apontou para a estrada acima. — Não mais do que a 400 metros de nossas linhas. É possível vislumbrar as fogueiras através das árvores.

Eu gostaria de ver.

Nós levaremos a senhorita...

Ana andou com Kenne, o e'offizer e seu esquadrão pelas linhas de defesa em silêncio, onde a maioria da Garde Civile dormia no chão ou em pequenas tendas e descansava o quanto era possível antes de o sol e a inevitável batalha chegarem. A própria Avi estava bloqueada por uma barreira de árvores que foram rapidamente derrubadas, mas não havia nada além de campo, árvores e uma ocasional casa de fazenda abandonada entre as duas forças de cada lado da estrada. O e'offizier conduziu-os para um lado da Avi até um pequeno conjunto de macieiras. Ela notou alguns dos vigias postados ao longo da li­nha, mas tirando isso não havia ninguém perto deles. — Isso é o máximo que devemos ir - falou o e'offizier. - Mais adiante fora da proteção das árvores seria muito perigoso. — Chamas amarelas piscavam como vagalumes distantes em uma linha irregular na frente de Ana, cintilavam através da folhagem que balançava nas árvores e nos arbustos. Ela contemplou a escuridão.

A senhorita salvou-nos mais cedo, archigos - falou o e'offizier atrás de Ana. - Quero que saiba que estamos gratos, todos nós.

Ela concordou com a cabeça e falou — Obrigada, e'offizier. Agora, se pu­der nos deixar sozinhos por um tempinho, por favor. Para rezarmos...

Ana fez o sinal de Cénzi mais uma vez. O homem gesticulou para o esquadrão e eles afastaram-se, deixaram Ana e Kenne sozinhos no pequeno bosque. Ela tirou o presente de Mahri do bolso e manteve na palma da mão. - Archigos? - disse Kenne ao ver o fogo vermelho na mão de Ana.

- Eu preciso que você me esconda, Kenne. Um feitiço de proteção para que ninguém me veja ou ouça andando na noite. Preciso chegar o mais pró­ximo possível.

Ela pensou ter visto Kenne erguer as sobrancelhas no luar, mas ele concordou com a cabeça. Kenne começou a entoar, as mãos gesticularam sob a luz da lua. O ar tremulou em volta de Ana — ela não ficou invisível, mas a não ser que alguém olhasse com cuidado, era possível confundi-la com uma sombra de árvore ou uma nuvem sobre a lua.

Isso era o melhor que Ana podia esperar.

Ela tomou um longo fôlego, depois saiu da proteção das árvores para o campo aberto. Ana aguardou, meio que esperando ouvir o assobio de flechas ou um chamado de alerta. Porém, não ouviu nada a não ser o cântico de Ken­ne atrás. Ana continuou a andar: um passo, depois outro, a cada um ela lutou contra a tentação de correr.

Ana quase chegou ao arvoredo e às fogueiras entre as árvores quando a vibração do ar diminuiu: Kenne estava ficando cansado. Ela levantou a bola de vidro na mão.

Fale meu nome, dissera ele. — Mahri - sussurrou Ana. Ela sentiu o poder dentro do vidro aumentar. Na mente, o poder espalhou-se à sua volta, e Ana viu a forma do feitiço contido nos padrões do Ilmodo. Ficou maravilhada com a complexidade do feitiço e perguntou-se se teria conseguido engendrar algo assim. Mas Ana tinha pouco tempo; ela lembrou-se que Mahri disse que o feitiço era difícil de conter, e já era possível sentir sua fúria na mente.

Ela olhou em volta. No céu, as nuvens que se moviam rapidamente pararam. Não havia som além do rugido do poder na mente. Uma andorinha pairava bem acima de Ana, capturada no meio de uma curva, asas travadas em plena batida. Ela começou a andar o mais rápido possível na direção das fogueiras - mas neste momento viu que a movimentação era difícil e lenta. Sentiu como se estivesse atravessando águas profundas. Ao alcançar as linhas inimigas, o coração disparou ao ver um homem que olhava diretamente para ela, parado ao lado da árvore mais próxima. Ana reuniu forças para correr ou preparar um feitiço, mas então percebeu que ele estava tão impassível quanto uma escultura e que as chamas da fogueira que delineavam o homem com luz pareciam pintadas no ar.

Ela passou correndo pelo soldado, sentiu um calafrio enquanto ele conti­nuava ali, ainda olhando para a frente. Mate a cabeça e a cobra morre...

Foi fácil localizar a tenda do hirzg com o estandarte acima, parado ao tremular. Ana andou sem ser incomodada pelo acampamento e passou pelos gardai do lado de fora. Ela levantou a aba - a lona tão dura e inflexível como se estivesse congelada - e entrou na tenda.

Ana parou e respirou pesadamente pelo esforço de simplesmente andar no ar gélido. O interior da tenda era ornamentado: um tapete espesso cobria o chão, uma mesa de campanha feita de madeira de um lado, um braseiro que soltava um filete imóvel de incenso, e lâmpadas mágicas acesas para iluminar o ambiente. Havia várias pessoas na tenda, reunidas ao redor de uma mesa com comida: ca'Cellibrecca ela reconheceu instantaneamente, com a mão que levava um garfo cheio de carne à boca escancarada. Havia outro homem de preto e prata com a insígnia de starkkapitän nas mangas; um sujeito magro que estava sentado ao meio da mesa; um téni de robe verde com as faixas de um u'téni - esse só poderia ser co'Kohnle.

O hirzg estava sentado à cabeceira da mesa... e no colo, de maneira ines­perada, havia uma jovem menina. A cena intrigou Ana por um momento, mas depois se deu conta de que era a filha do hirzg, Allesandra. Tinha que ser ela; dava para ver a semelhança nos rostos.

Todos eles eram estátuas criadas por um artista perfeito. Ana foi até o hirzg com o poder rosnando na mente e sacou a faca da bainha.

Tão fácil... Passe afaça bem fundo e com força, e ele morrerá, depois faça o mesmo com ca'Cellibrecca e co'Kohnle, e também com o starkkapitän...

Mas Ana ficou ali parada olhando a cena, com o poder do feitiço de Mahri zumbindo insistentemente nos ouvidos. Allesandra olhava para seu vatarh com a boca semi-aberta, e havia tanto amor e afeição no olhar que a expressão deteve a mão de Ana.

Antigamente foi assim comigo, antes de a matarh ficar doente. O vatarh me amava, e eu o amava de volta, ele me colocava nos joelhos, brincava comigo e eu jamais, jamais queria ir embora...

Ela quase conseguia ouvir a risada da menina. Viu a mão do hirzg, pron­ta para afastar um cacho solto da testa da filha, e havia a mesma afeição, o mesmo amor nos olhos dele.

A mão de Ana tremeu. A ponta da faca oscilou bem acima da carne do hirzg. O Ilmodo fervia e estalava em volta dela, como se o próprio Cénzi risse.

Você não tem tempo. Mahri falou para você. Mate-o. Deixe... Ela imaginou o resultado e como seria para a menina: um momento rindo com o vatarh, depois um instante, um tremor, e aí o sangue jorraria de Jan e o vatarh desa­baria sobre ela, morto instantaneamente. Levado de uma maneira impossível.

Um instante, um tremor... um breve momento de desorientação e a realidade seria dissolvida em volta dela. Como Ana sentiu quando Mahri foi até ela com a bola de vidro. — É apenas o meu dedo. Poderia muito bem ser uma faca...

O breve momento de desorientação...

A dissolução da realidade...

Tão familiar...

Ana conteve um gritinho.

Ela soube. Naquele momento, ela soube. Isto era o que Mahri precisava. Não o que ela precisava.

Ana vislumbrou outra solução. Uma solução melhor, ela torceu.

Havia pouco tempo sobrando. O Ilmodo gritou em sua mente, um lamento crescente, e Ana não conseguiria conter o feitiço por muito tempo. Ela guardou a faca na bainha e foi para a mesinha de campanha, abriu um pedaço de papel grosso que parecia lutar contra a sua mão, pegou uma pena e mergu­lhou no potinho de nanquim.

Até mesmo escrever foi uma luta, como se a própria tinta brigasse com ela. Ana rabiscou uma breve mensagem e assinou. Ao voltar para a mesa, ela afastou os braços do hirzg de Allesandra - eles moveram-se relutantemente, como se fossem contrários a permitir isso. Ana enfiou a mensagem na mão de Jan e fechou o punho em volta do papel.

Ao final, ela pegou a garota desavisada nos braços.

Ana fugiu e torceu que conseguiria sair do acampamento antes que não conseguisse conter mais o feitiço. Carregar o corpo rígido de Allesandra era como nadar correnteza acima. Ela foi cambaleando acampamento afora com o peso da jovem menina, passou pela fogueira e pela linha de guardas, e saiu para o campo aberto entre os dois exércitos. Parou algumas vezes para descan­sar e recuperar o fôlego.

As fogueiras dos defensores de Nessântico ficaram próximas.

Havia um homem entre ela e as fogueiras, porém, em um ponto onde não existia ninguém antes. - Kenne? - sussurrou Ana, na esperança de que fosse verdade, mas sabia que não era. — Karl?

Não - respondeu a aparição, e a surpresa da voz do homem foi o suficiente para arrancar os resquícios do feitiço. O mundo voltou a se movimentar em volta de Ana, e o impacto fez com que ela deixasse Allesandra cair no chão.

Foi você, não foi, Mahri? - falou Ana.

 

VOCÊ É MEU PASSARINHO, e eu amo... - disse seu vatarh, mas então o mundo deu um solavanco ao redor de Allesandra e ela não estava mais no colo dele, mas sim de alguma forma caída no chão frio e úmido, lá fora na noite. Alguém, com a voz de uma mulher, vociferava para uma figura escura no meio de uma campina. Allesandra tentou ficar de pé, mas estava desorien­tada e conseguiu apenas ficar de joelhos com sacrifício.

Foi você, não foi, Mahri? A kraljica não morreu por causa do feitiço de ci'Recroix; foi você que a matou.

Tonta, com náuseas pela estranheza, Allesandra encarou a mulher que falava. Era difícil enxergar no luar fraco e passageiro, mas ela estava vestida com o robe de um téni - robe que parecia similar àquele usado pelo archigos gordo. A mulher falava com um homem: ele era pouco mais do que um men­digo. O rosto, quando o luar caiu debaixo do capuz do manto, era horrível: todo deformado e machucado, sem um olho, e o sorriso que ele deu para a mulher era abominável.

Sim, fui eu — admitiu o sujeito. — Essa solução não serve, Ana. Não pos­so permitir que leve a garota para cobrar resgate. Isso deixaria o hirzg vivo... - Ele sorriu de novo, e a frieza da expressão provocou um calafrio em Allesandra. Ela teria gritado, mas estava sendo ignorada por ambos. Permaneceu imóvel, mas os dedos foram de mansinho para o lugar onde a faca de seu vatarh estava escondida debaixo da tashta. - Mas eu posso remediar esse problema. Afinal, encontrar você aqui fora com o corpo da garota vai dizer para todo mundo quem matou o hirzg; isso vai funcionar quase tão bem para os meus objetivos, creio eu. Ainda há tempo. Na verdade, há todo o tempo que preciso.

Ele ergueu uma mão; nela havia uma pequena bola de vidro. O homem fechou os olhos e falou uma palavra; mas a mulher fez o mesmo - gesticulou intensamente com uma mão e falou uma frase que retumbou no ar. A bola de vidro estilhaçou-se na mão do homem. Luzes verdes e amarelas dispararam pelo ar e fizeram as sombras correr pelo chão. O homem gritou e cambaleou para trás.

Eu não vim completamente despreparada, Mahri - disse a mulher para o homem. Será que era realmente Ana, a falsa archigos? - E eu aprendi com Karl, também.

Você não aprendeu o suficiente - falou o homem de manto enquanto protegia o braço. - Não o suficiente...

Ele ergueu as duas mãos, varreu o ar e falou uma seqüência de palavras em uma língua estranha. O ataque veio tão rápido que Allesandra teve certeza de que a mulher seria consumida por ele: fogo azul crepitante jorrou dos ges­tos do homem para envolvê-la. Mas Ana ergueu as próprias mãos no mesmo instante e o fogo azul foi dividido em dois jatos bem à frente dela, que caíram assobiando e fumegando no chão de ambos os lados da archigos.

Mas o fogo continuou a jorrar na direção dela, e Allesandra ouviu a mulher arfar ao manter as mãos formando um escudo diante de si. A boca mexia-se, mas as palavras eram inaudíveis por causa da fúria do feitiço; os olhos estavam fechados e rugas de esforço marcavam o rosto. O jato de fogo dividido começou a se fechar e ameaçava afogá-la nas chamas azuis.

Allesandra queria acreditar que isso era um pesadelo, que simplesmente tinha caído no sono de repente no colo do vatarh, mas não podia ser um sonho. E Allesandra sabia que, quando o homem de manto matasse Ana, ele olharia a seguir para ela...

Georgi dissera que um starkkapitân tem que saber quando fazer alianças, mesmo com aqueles que amanhã possam ser seus inimigos. O vatarh mostrara a mesma coisa.

Allesandra fechou os dedos em volta da faca que ganhou do vatarh. Soltou a lâmina da bainha. Ela reuniu toda a força, afastou a tontura e avançou gritando na direção do homem. O olhar dele desviou-se para Allesandra e os jatos de fogo começaram a se enrolar, mas ela já estava ao lado do homem e enfiou a faca no manto às cegas.

O jato de fogo quase tocou em Allesandra, mas no momento em que pensou que sentiria o toque, a chama mudou de direção como se alguém ti­vesse pegado a rajada, e em vez disso as chamas envolveram o próprio Mahri. Ele gritou, e Allesandra pulou para longe do homem e deixou a faca cair. Ela caiu no chão com força e perdeu o fôlego. Ao tentar respirar e mexer-se, Allesandra viu os jatos de fogo crepitarem e brilharem. O corpo foi inteira­mente coberto e atirado a uma dezena de passos. O fogo mágico sumiu então, mas chamas reais - amarelas e fracas em comparação - irromperam em suas roupas.

Ele não se mexeu.

 

Allesandra ouviu pessoas gritarem por perto e darem o alarme. Fogo má­gico começou a brilhar de ambos os lados da menina e de Ana.

Ana estava de joelhos na lama com a respiração pesada. Allesandra viu a mulher ficar de pé, e ela mesma tentou levantar e correr, mas não sabia para que direção ir, estava assustada e dolorida, e Ana já se encontrava sobre ela. - Você está bem? - A voz de Ana era rouca e cansada.

Allesandra concordou com a cabeça em silêncio e fungou para impedir as lágrimas, e quando Ana estendeu a mão para ela, a menina pegou. - Temos que correr - falou Ana.

Eu quero voltar para o meu vatarh.

Ana fez que sim. - Você voltará. Eu prometo. No devido tempo, você voltará.

Homens chegaram perto das duas, e eles usavam azul e dourado em vez de preto e prata. Allesandra choramingou assustada e tentou escapar da mu­lher mais velha, mas Ana abraçou-a com força. - Eles não machucarão você - sussurrou ela para a menina. - Eu prometo. Eles não machucarão você. Não permitirei.

O vatarh prometeu a cidade para mim.

E eu mostrarei a cidade para você - disse Ana. - Mas Nessântico pertence a si mesma.

 

                                    FLUXO E REFLUXO...

Nessântico inteira respirou aliviada quando o exército de Firenzcia foi embora como uma tempestade de gelo passageira na primavera. O hirzg vol­tou para Firenzcia e seu trono em Brezno, voltou para a esposa que era, afinal de contas, parente do kraljiki e portanto ainda útil.

Allesandra, a filha do hirzg, ficou para trás, em prisão palaciana no Tem­plo da Archigos onde esperava pelo resgate ser pago para ser solta - ela espe­raria bem mais do que imaginava. A hirzgin Greta daria um filho saudável para o hirzg não muito tempo depois de seu retorno a Brezno; ter um novo herdeiro à mão faria o hirzg demorar a pagar o resgate.

Um descendente da linhagem ca'Ludovici estava sentado no Trono do Sol e governava como kraljiki - mas Justi, o Perneta, não governaria por tanto tempo quanto sua matarh, nem seu reinado seria lembrado como alguma coisa além de um desastre.

A archigos Ana I reinou no templo, embora outra pessoa que reivindica­va o título de archigos morasse em Brezno. A fé concénziana estava dividida pela primeira vez, e alguns eram leais a Nessântico e outros a Brezno. As duas ramificações da Fé iriam se afastar cada vez mais, tanto em crença quanto em temperamento.

Em Nessântico, os numetodos ganharam aceitação e até mesmo algum destaque, e aqueles que diziam fazer parte do movimento acabaram se tornan­do ca' e co'. Havia até rumores de que a archigos tinha um amante numetodo, embora ela nunca se casaria.

Os outros países dos Domínios se lembrariam de como Firenzcia quase acabou com o jugo de Nessântico e imaginariam se talvez um dia pudessem obter êxito onde Firenzcia falhou. Ninguém tentaria, porém.

Não ainda.

Fluxo e refluxo...

Nessântico: a cidade, a mulher.

Antigamente não havia cidade que pudesse rivalizar com ela. Ela imaginava se isso sempre seria verdade. Ela escapou do estupro de invasores, mas as reverberações do ataque abalaram o império, do centro às fronteiras distantes, e os ecos durariam por décadas.

Ela sabia que com a idade e destaque inevitavelmente viriam o ciúme e o risco. Ela não era mais invulnerável, e havia rivais no mundo que queriam o que ela sempre teve.

Havia trevas e forças reunidas naquela escuridão: no oeste, ela notou, bem como no leste...

Após o crepúsculo, inevitavelmente viria o anoitecer.

Ela não conseguiria contê-lo para sempre.

 

 

[1] Dupla mão é um termo de cavalaria para o oficial que tanto pode comandar um esquadrão quanto um batalhão. Também é o caso do soldado que luta com um mosquete e um sabre ao mesmo tempo, que não é aplicável aqui. (N. do T.) 

 

                                                                                S. L. Farrell 

 

 

                                         

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