Biblio VT
Series & Trilogias Literarias
Rochelle Botelli
Rochelle observou Nico, sobrecarregado de correntes enquanto era ajudado a subir na plataforma, com o Velho Nariz de Prata a sua direita. Ela se sentiu impotente, uma sensação mais aguda agora do que quando ela viu Nico na torre da Bastida, da Avi a’Parete. Na ocasião, Rochelle não teve esperanças de ajudá-lo. Agora, ele estava tão perto: longe das horríveis pedras negras da Bastida; sem corredores desconhecidos entre os dois; separados apenas pelos ténis e alguns gardai.
E, no entanto, Rochelle não podia ajudá-lo. Seria capturada e jogada no chão antes que pudesse chegar a Nico, ainda que vários deles morressem como consequência. Mas ela fracassaria. Era inevitável. Esta tinha sido outra lição de sua matarh. “Certifique-se de que as chances estão a seu favor antes de agir. Às vezes, é preciso aceitar que não se pode vencer, e sequer tentar.”
Estar tão extremamente perto dele, ver o irmão novamente e não poder ajudá-lo...
Isso doía. Machucava tanto quanto o gume de uma espada. Mas havia uma coisa que Rochelle poderia fazer hoje, se tivesse a chance. A kraljica estava ali, sua mamatarh, e embora Allesandra estivesse tão bem guardada quanto seu irmão, talvez houvesse um momento, uma chance. A mão de Rochelle segurou a adaga sob sua roupa, a adaga que roubara de seu vatarh. O juramento feito para sua matarh ardia na sua cabeça.
Se ela não podia salvar uma vida, talvez pudesse tirar uma tão importante quanto.
Na plataforma, Nico se curvou para os ca’ e co’ em sua própria plataforma elevada.
— Kraljica, conselheiros. E, especialmente, ténis. Eu vim implorar por seu perdão e compreensão.
Sua voz soou cansada, ele olhava ao redor. O olhar de Nico passou por cada um deles, Rochelle ficou na ponta dos pés, tentando enxergar melhor sobre as pessoas à volta. Então aconteceu. Os olhos de Nico encontraram os seus. Ela sentiu a conexão e o reconhecimento. Nico olhava diretamente para Rochelle, e seus lábios abriram um leve sorriso, como se ele a reconhecesse. Nico acenou com a cabeça para ela, como se dissesse que sabia o porquê de Rochelle estar ali, como se pedisse para ela ser paciente. Ela quis acenar para o irmão, berrar seu nome, mas o olhar de Nico se voltou para os dignitários no palanque, e sua voz ganhou volume e poder. Rochelle pôde ouvir enquanto avançava na multidão para se aproximar da plataforma. A voz de Nico continuou a inflamar e pulsar; era como se a luz de sol de verão caísse sobre ela. Ela ouviu umas palavras aqui e ali:
— Eu pensei que fosse a Voz de Cénzi... Lamento profundamente pelo que fiz... Eu acreditava. E ainda acredito...
Sobre a multidão, Rochelle viu Nico erguer as mãos, e o gesto chamou sua atenção. Ela parou, observando, curiosa.
— Eu permiti que o archigos e as pessoas dentro da fé concénziana acorrentassem e prendessem o meu dom com seus grilhões humanos quando, na verdade, Cénzi não coloca tais limitações nele. E isso os numetodos sabiam desde o princípio, justiça seja feita. Foi o que eu finalmente percebi e é isso o que eu demonstrarei para vocês agora.
Nico?
Ela não viu claramente o que aconteceu em seguida. Era como se Nico tivesse se envolvido em um manto negro. Rochelle ouviu pessoas gritando e gesticulando, viu o Velho Nariz de Prata recuar a mão da escuridão soltando com um xingamento, e então...
Nico sumiu, e as pessoas na praça estavam boquiabertas. Os gardai estavam agitados, como um enxame de abelhas cuja colmeia tivesse sido golpeada. Rochelle se moveu para a borda traseira da plataforma da kraljica, logo atrás de um anel de gardai. Eles pulavam sobre o palanque agora, cercando a kraljica e desembainhando suas espadas, e Rochelle recuou. Não havia esperança de chegar a Allesandra agora. Nenhuma. Mais uma vez, esta era uma das ocasiões em que ela deveria se permitir fracassar.
Rochelle voltou a penetrar na multidão, longe dos olhos desconfiados dos gardai, longe dos ténis de robes verdes, que pareciam tão irritados quanto nervosos.
Uma mão tocou seu ombro e ela se virou, com a adaga em punhos. Ela podia matar alguém nessa multidão facilmente e ainda escapar na confusão...
Mas sua mão interrompeu o golpe.
— Nico...
— Shhhh! — ele sibilou.
Nico tinha coberto a cabeça com um capuz; seu rosto estava visível apenas para quem olhasse diretamente para ele. Mas mesmo meio escondido como estava, Nico parecia incrivelmente exausto e tenso. A mão no ombro de Rochelle tremeu, e ela sentiu o irmão esmorecer, como se não conseguisse ficar de pé. Sob a sombra do capuz, havia olheiras mais escuras sob os olhos.
— Cénzi me disse que você estava aqui. Ele me mostrou você. Venha! — Ela olhou para a plataforma, e Nico balançou a cabeça. — Não. Agora não, Rochelle. Vamos! Eu preciso da sua ajuda.
Ele passou o braço pela irmã. Com o peso apoiado sobre Rochelle, ele a levou embora, através da lateral da multidão, onde havia menos gente, longe da agitação crescente e da praça, até que os dois andaram por uma rua decorada com placas de lojas e cheia de consumidores, embora poucos parecessem interessados nas mercadorias exibidas nas vitrines ou pelos ambulantes das calçadas. Suas expressões eram graves e estressadas, Rochelle se lembrou das mesmas expressões nos rostos daqueles que fugiam da cidade quando ela chegou.
Nico finalmente parou perto de um café.
— Você tem dinheiro? — ele perguntou, Rochelle assentiu. — Ótimo. Eu preciso sentar e comer; eles dificilmente vão me procurar aqui.
Os dois pegaram uma mesa na parede do café e pediram vinho, queijo, pão e algumas carnes. O garçom parecia sinceramente contente por ter um freguês; sem dúvida a clientela tinha sido bem mais rara do que o normal nas últimas semanas.
Rochelle observou Nico enquanto ele comia. O irmão tinha mudado bastante. O Nico da sua memória estava sempre ansioso e apreensivo enquanto se preparava para ir ao Templo de Brezno como um acólito. Rochelle o tinha visto mais uma vez quando ele vestiu o robe verde de téni e fez o juramento a Cénzi naquele mesmo templo, e Nico parecia tão seguro de si naquela época...
O Nico que estava diante dela agora estava mais magro; suas bochechas estavam encovadas. Os traços do rosto estavam mais marcados e mais vincados, e Rochelle pôde notar a dor da vida escrita na face do irmão. Nico sempre tinha sido intenso, uma intensidade de que ela se lembrava das primeiras memórias dele, mas isso estava mudado agora. Havia se tornado uma coisa mais rígida, mais entranhada dentro dele, e mais perigosa.
Rochelle sabia que tinha mudado também. Talvez mais do que Nico. Nenhum dos dois era mais quem tinha sido naquela época. Eles podiam ser irmão e irmã, mas o tempo os tinha afastado e ela não sabia se algum dia os dois seriam próximos novamente.
— Você está me encarando. — Nico pousou a taça e se serviu de mais vinho da garrafa.
— Eu não vejo você há anos, Nico.
Ele sorriu.
— Você cresceu e se tornou uma jovem atraente. — então seu sorriso desapareceu. — Você também assumiu o legado da matarh. Ouvi rumores de que a Pedra Branca voltou. É você?
Rochelle assentiu.
— Você também ouve as vozes?
— Não. Não sou louca, Nico.
— Ainda não — respondeu ele. — Mas você não pode fazer o que faz e continuar sã. Não pode fazer o que faz e esperar algo mais que retalhadores de almas após a sua morte. Cénzi vai considerá-la abaixo das expectativas, irmã.
Isso tinha sido tão similar ao que Sergei lhe dissera que ela quis rir.
— Você vai me dar um sermão? — Rochelle fungou desdenhosamente. — Você estava acorrentado, Nico. Quantas pessoas morreram quando você e sua gente tomaram o Velho Templo?
Ela viu o irmão ficar vermelho com a acusação.
— Desculpe, Nico — disse Rochelle, pousando sua mão sobre a dele. — Eu esqueci. Eu queria ter conhecido Liana.
Nico meneou a cabeça, e ela notou os olhos do irmão nadarem em uma umidade repentina. Ele secou os olhos, quase que com raiva.
— Eu também queria isso. Veja bem, este foi o meu castigo. Minha loucura. Cénzi sempre nos dá avisos, de uma forma ou de outra. Só que às vezes nós não prestamos atenção a eles ou vemos sua verdadeira natureza.
— Você ainda acredita, depois de tudo isso? — perguntou Rochelle. — Ainda acha que seu destino está dentro da fé concénziana?
— Sim. — Ele disse com firmeza, sem hesitação, com a força retornando à voz. — E quanto a sua própria fé, Rochelle? Você ainda acredita?
— Eu não sei. Acho que sim, mas... — Ele ergueu um ombro embaixo da tashta. — Eu não sei. Mas você acredita?
— Sim — falou Nico. — Ainda. Cénzi contém tudo, Rochelle. Ele contém tudo que é bom e contém tudo que é mau também. É por isso que os moitidi lutaram entre si e contra Cénzi; porque eram Seus filhos e, portanto, todas as possibilidades estavam contidas dentro deles. E Ele trouxe você aqui, agora, por uma razão.
Rochelle deu uma risada amarga.
— Você não faz ideia de por que eu estou aqui.
— Não faço?
Nico estendeu a mão sobre a mesa e pegou uma baguete. Ele arrancou um pedaço com a mão e enfiou na boca com o indicador. Mastigou alegremente por um momento, depois tomou um gole de vinho. Em seguida, ele se inclinou na direção da irmã, de maneira conspiratória.
— Você está aqui para matar a kraljica — sussurrou Nico, se recostando novamente.
Rochelle sentiu o rosto ruborizar, e ele riu.
— Ah, não é uma revelação tão grande assim. A matarh pediu o mesmo para mim, quando eu me tornei um téni. “Você estará perto da kraljica um dia,” ela me disse. “Quando você for um a’téni ou talvez até mesmo o archigos. Estará perto da kraljica, e quero que você a mate por mim, pelo que ela fez para arruinar minha vida.” Não foi isso o que pediu a você também?
— Foi similar — admitiu Rochelle.
— Foi o que eu pensei. Mas não é por isso que você está aqui, Rochelle. Você está aqui porque Cénzi quis que me visse. Ele queria nos reunir.
Ela sentiu uma arrepio na espinha, como se uma brisa de inverno tivesse passado por ela, para lhe acariciar nesse momento, Rochelle se perguntou de onde tinha vindo essa sensação, fazendo com que ela tremesse e se abraçasse. Ele esteve lá, depois se envolveu em escuridão e foi para outro lugar. Se eu pudesse fazer isso, ora, a Pedra Branca poderia ir a qualquer lugar. A Pedra Branca poderia matar a kraljica facilmente...
— O que você fez lá fora... consegue fazer de novo? Pode me ensinar a fazer aquilo? — perguntou Rochelle.
— Há um mês, eu teria dito não. Eu teria dito que apenas os fiéis puros podiam e deveriam usar o Ilmodo. Mas agora... — Nico acabou com o vinho diante de si. — Eu não sei. Talvez qualquer coisa seja possível.
— E por que você acredita que Cénzi queria que ficássemos juntos?
— Eu realmente não sei ainda — respondeu ele —, mas talvez nós dois descubramos.
Varina ca’Pallo
Varina pediu desculpas para a kraljica e saiu do Velho Templo às pressas, com um quarteto de gardai designado para ela. Allesandra, os conselheiros, Sergei — todos eles estavam cercados por gardai, e todos pareciam estar em pânico. Varina, no entanto, estava tomada por uma certeza assustadora. Ela correu para a Casa dos Numetodos, com o estômago ardendo e a testa franzida de preocupação.
As correntes caídas vazias na plataforma e Nico sumido...
Varina temia saber para onde ele tinha ido.
Antes mesmo que a carruagem parasse, ela já estava quase correndo na direção da porta, algo que não fazia há anos.
— A’morce... — falou Johannes quando ela entrou na casa, parecendo surpreso com a aparição de Varina e seu estado ofegante —, nós não a esperávamos de volta...
— Onde ela está? — interrompeu ela. — Serafina... onde ela está?
Sua voz soou estridente, mas Varina não se importou.
— Ora, lá em cima, com Belle, é claro. Eu acho que...
Ela passou correndo por Johannes e subiu a escada batendo os pés, com o coração disparado. Escancarou a porta. Belle, uma jovem recruta dos numetodos e também ama de leite, pois tinha acabado de dar à luz, estava sentada em uma cadeira, próxima à janela do gabinete de Varina. Assustada, Belle se cobriu; Varina se deu conta de que ela estava amamentando o bebê.
— A’morce? Está tudo bem?
Seu coração, que pareceu ter tentado sair pela garganta, se acomodou novamente no peito. As cenas terríveis que ela imaginou a caminho de casa desapareceram aos poucos de sua mente: Belle caída no piso acarpetado, a Casa dos Numetodos pegando fogo ou arruinada, os outros amigos mortos ou feridos, e a filha de Nico desaparecida.
Como o próprio Nico.
Varina fechou os olhos por um momento, com a mão na boca.
— Eu pensei... — ela começou, balançando a cabeça em seguida, para afastar a ideia.
Seu coração começava a diminuir o passo, seu fôlego estava se recuperando, e agora Varina se sentia tola por causa do pânico.
— Nada demais, Belle. Não sei no que eu estava pensando. Como está Sera?
Belle sorriu. Ela levantou o pano sobre o ombro e mostrou para Varina o bebê que mamava no peito, com sua boquinha sugando o peito de olhos fechados.
— Faminta como um filhote de lobo — respondeu a ama de leite. — Estou me perguntando se vai sobrar alguma coisa para o meu bebê.
Belle riu, acariciando a cabeça de Sera, com a coroa de cabelo dourado.
— Eu encontrei outra ama de leite para ela; minha prima, Michelle, perdeu o bebê no parto e disse que está disposta a vir dar de mamar a Sera durante as manhãs. Juntando as duas, nós manteremos a pequenina bem alimentada. Agora que os firenzcianos estão chegando, devemos estar a salvo.
Eu queria ter tanta certeza... Varina forçou um sorriso no rosto.
— Obrigada — respondeu ela. — Diga que pagarei em dobro pelo inconveniente.
— A senhora é muito generosa, a’morce.
Sera soltou o mamilo por um momento e começou a chorar, com lágrimas brilhando em seus olhos azuis, e Belle colocou o peito de volta na boca da bebê. Ela se acalmou novamente.
— Como foi...? — A ama de leite parou, procurando pelas palavras, e completou — O pedido de desculpas?
— Insatisfatório, infelizmente. Nico mostrou mais uma vez por que era o Absoluto dos morellis. Ele escapou. Desapareceu.
Varina viu Belle dar um abraço protetor em Sera — ela viu as suspeitas passarem pela cabeça da jovem.
— A’morce? Talvez a senhora devesse ficar aqui na Casa dos Numetodos hoje à noite até ter proteção. Podemos arrumar um lugar para o bebê...
— Eu posso lidar com Nico sozinha se precisar — disse Varina, torcendo para que sua voz tivesse soado mais confiante do que ela se sentia.
Agora que tinha se acalmado um pouco, agora que sabia que Serafina estava a salvo, Varina estava menos preocupada. Com certeza Nico estaria escondido em algum lugar; talvez até tivesse saído da cidade. Ela se dirigiu até a gaveta da escrivaninha e tirou a chispeira que ficava ali. Verificou se o tambor estava cheio de areia negra e se havia uma bala no cano. Ela enfiou a arma na faixa da tashta, embaixo do manto.
— Termine de amamentá-la que eu fico com ela — falou Varina.
Belle assentiu.
— Eu tenho que voltar para a casa da minha irmã, de qualquer forma. A essa altura, a minha pequena deve estar acordando da soneca e vai chorar por atenção. Essa aqui está quase acabando, eu acho.
A ama de leite se recostou; Sera deixou o mamilo sair da boca, abriu os olhos por um instante e depois os fechou. Sua respiração ficou lenta e silenciosa.
— Pronto, viu só? Já adormeceu, essa gulosinha. Eu coloquei uma xícara em sua escrivaninha com mais leite, caso a senhora precise. Mandarei Michelle vir amanhã, antes da Primeira Chamada. Aqui está, a’morce.
Belle se levantou, colocou Serafina nos braços de Varina e amarrou o laço da tashta para se cobrir novamente. Enquanto a ama de leite arrumava as coisas no gabinete, Varina olhou para o rosto adormecido: as bochechas fofas e rosadas; o sossego confiante e saciado com que o bebê dormia; os dedinhos, uma mão cerrada em um punho, a outra agarrada ao cobertor em que ela estava enrolada. Varina sentiu uma... ela não sabia definir essa emoção, mas dentro dela havia uma necessidade intensa de proteger a criança, assim como uma vez sentiu o mesmo impulso com Nico.
E você fracassou nessa época. Deixou que ele escapasse de você, e aquela louca acabou levando Nico.
Varina se debruçou e beijou a testa de Serafina. Belle sorriu para ela.
— Eu vejo a senhora amanhã, a’morce. A coitadinha não merecia perder sua matarh e vatarh desta forma.
— Não — concordou Varina. — Ela não merecia.
Belle se inclinou e beijou Sera, e fez uma mesura para Varina.
— Eu vejo a senhora de manhã com minha prima.
Assim que Belle saiu, Varina se sentou na cadeira perto da janela por um tempo, balançando para frente e para trás, vendo Sera dormir enquanto ouvia as pessoas passarem no corredor lá fora ou andarem no jardim abaixo da janela. Pensou brevemente em colocar Serafina deitada e deixá-la dormir enquanto trabalhava um pouco, mas pensou melhor. Ela enrolou mais o bebê no cobertor, pegou seu próprio manto e saiu do gabinete. Ao descer as escadas, passou por Johannes e disse.
— Desculpe a minha grosseria. Eu estava preocupada.
Ele assentiu.
— Eu ouvi o que aconteceu no Velho Templo. Eu compreendo, a’morce. A senhora está indo para casa? Por que não deixa que eu ou outra pessoa a acompanhe?
— Eu ficarei bem. Ainda é cedo, e há muitas pessoas nas ruas. Vejo você amanhã de manhã. Haverá uma reunião com Allesandra sobre nosso progresso com as chispeiras.
Johannes fez uma mesura para ela, e Varina saiu da casa, cruzando rapidamente o pátio frontal e passando pelos portões, em seguida ela virou à esquerda na Avi a’Parete em direção à casa deles, a alguns quarteirões de distância. Era assim que ela ainda pensava: a casa deles, como se Karl ainda estivesse vivo, como se ela pudesse abrir a porta da biblioteca e encontrá-lo sentado à escrivaninha, meditando sobre algum tomo antigo. Às vezes, Varina ainda ouvia um barulho e se virava, com esperança de vê-lo, mas ele nunca estava lá.
Ela abraçou Sera com mais força enquanto caminhava. As pessoas que passaram por Varina às vezes a cumprimentavam, mas a maioria estava tensa e séria: pessoas cumprindo seus próprios afazeres e preocupadas com a cidade e com o que aconteceria. A escassez do tráfego fez parecer que era bem mais tarde do que era na verdade; em geral o trânsito na Avi atingia o pico de barulho e de pessoas entre a Segunda e a Terceira Chamada, mas não hoje.
Varina virou a esquina, entrando na própria rua, descendo a alameda curva em direção ao A’Sele. Ela chegou ao portão da mansão e o destrancou, sem se preocupar em chamar um dos criados. Varina fechou o portão ao entrar.
— Varina.
A voz, que tinha surgido da esquerda, provocou um susto e fez Varina segurar Sera com tanta força que fez o bebê chorar. Ela se virou lentamente e viu duas figuras envoltas nas sombras da trepadeira enroscada no pilar de pedra do portão.
— Nico — disse Varina. — Você não deveria estar aqui.
Atrás de Nico, uma jovem a encarava atentamente. Ele sorriu.
— É possível — concordou Nico. — Mas você tem algo que preciso ver.
Varina deu um passo para trás. Ela sentiu o peso da chispeira sob o manto; sentiu a energia dos feitiços em sua mente, esperando para serem lançados. Sera se agitou em seus braços, agora acordada.
— Nico, eu estou lhe avisando. Não vou entregá-la a você. Se você tentar levá-la, eu vou lutar com você para protegê-la.
— Eu não quero tirá-la de você — ele respondeu. — Estou feliz que você tenha ficado com ela, por enquanto, já que eu sei que você faria exatamente o que acabou de dizer que faria. Eu só quero vê-la; só quero ver minha filha. Por favor, Varina?
— Eu não vou deixar você segurá-la.
— É justo.
— E diga para esta mulher ficar bem para trás.
Nico acenou com a cabeça para a companheira, que deu alguns passos para trás. Varina tirou o pano do rosto do bebê quando Nico se aproximou dela. Sera olhou para o rosto de Nico olhando para ela; o bebê viu o rosto dele abrandar, seus lábios formarem um sorriso, e Nico dar uma risadinha ao vê-la.
— O formato do rosto... eu consigo enxergar a Liana — falou ele roucamente.
Nico estendeu a mão para tocá-la, e Varina apertou o bebê contra o corpo ainda mais. Ela sentiu a energia de um feitiço fervilhar em sua cabeça. Mas Nico só acariciou a bochecha da menina com o dedo, rindo novamente quando Sera ergueu a mão e apertou seu dedo.
— Ela é forte também — ele comentou. — Isso é bom. Ei, Serafina. Eu sou seu vatarh...
Ele olhou brevemente para Varina.
— Serafina é um bom nome.
— Nico, se eles pegarem você novamente... não serão tão gentis da próxima vez.
— Então eu preciso ser cuidadoso, não é? Você vai sair de Nessântico?
Varina balançou a cabeça.
— Não? — Nico pareceu desapontado ou talvez preocupado. — Mesmo com o bebê?
— Se a situação chegar a este ponto, eu mandarei Sera embora com alguém em quem confio. — Varina fez uma pausa. — E não será você, Nico. Lamento.
Ele inclinou a cabeça. Uma tristeza acentuou as rugas em volta dos olhos.
— Eu compreendo. Mas... na sua idade, Varina, temos que ser realistas. E não é apenas a idade; olhe para você: o estudo de magia cobrou seu preço. O bebê precisa de uma matarh que seja mais jovem.
Varina pensou que Nico tivesse olhado de relance para a jovem que o acompanhava. Varina também olhou para ela. Não reconheceu seu rosto, mas havia algo na jovem, alguma coisa vagamente familiar... Varina balançou a cabeça.
— Estou ciente de que tenho idade para ser a mamatarh de Serafina e sei o que meus estudos fizeram comigo. Eu vejo meu rosto no espelho. Já fiz minhas consultas. Mas, por enquanto, Sera está sob minha responsabilidade, e eu vou protegê-la. Eu falo sério, Nico.
— E isso está claro — disse Nico. — Eu já disse que estou feliz que você tenha ficado com Serafina. Você sempre foi boa para mim, naquela época. Às vezes eu queria...
Ele olhou mais uma vez para a mulher que o acompanhava, respirando fundo.
— Mantenha Serafina a salvo. Talvez algum dia eu realmente possa ser o vatarh dela.
— Você é o vatarh dela — falou Varina. — E eu vou contar sobre você para Sera. Ela vai saber quem você é. Eu prometo.
Ele assentiu mais uma vez. Ele tirou o dedo da mão do bebê, e Sera se agitou. Nico acariciou sua bochecha de novo.
— É hora de ir — disse ele. — Adeus, pequena Serafina.
Nico se inclinou e deu um beijo na filha, ajeitando as costas a seguir. A mulher que o acompanhava já estava no portão.
— Deixe-me destrancá-lo para você — disse Varina, mas a jovem lhe lançou um olhar de desdém.
Ela retirou dois pedaços finos de aço de algum lugar do manto, se inclinou e, um momento depois, o portão estava aberto. A mulher sorriu para Varina. Nico fez uma mesura, quase como se estivesse saindo da casa após uma visita.
Um instante depois, ele e a companheira tinham ido embora. Varina fechou o portão novamente, ouvindo o clique da tranca. Sera estava chorando.
Ela abraçou a bebê e a embalou em seus braços até que se acalmasse de novo.
Brie ca’Ostheim
Os bumbos batiam em cadência enquanto o exército se aproximava da cidade. Os a’offiziers, que seguiam as ordens do starkkapitän ca’Damont conduziam o exército em direção aos campos ao norte da Avi a’Firenzcia, sem entrar na cidade em si. Os cidadãos das vilas imediatamente fora dos portões aplaudiram os batalhões que avançavam com seus estandartes negros e prateados tremulando sobre eles. E aplaudiram especialmente a hïrzgin que os acompanhava.
Brie acenou de volta para os cidadãos e abriu o sorriso aperfeiçoado com os anos de experiência em negócios de Estado, uma máscara atrás da qual ela podia esconder seus medos e incertezas, um gesto alegre para a multidão, desvinculado de qualquer sensação genuína. Nos campos mais próximos ao local onde o exército deveria acampar, uma tenda havia sido montada, com os estandartes de Nessântico e Firenzcia, azul e dourado misturados ao preto e prata. Quando a carruagem de Brie se aproximou, as abas da tenda tinham sido abertas e uma figura coroada apareceu, flanqueada por gardai da Garde Brezno com o uniforme dos Domínios, a hïrzgin viu Sergei ca’Rudka parado atrás da figura coroada. Brie reconheceu a mulher imediatamente, pelos quadros que tinha visto dela: Allesandra. A kraljica caminhou a passos largos e braços abertos em direção a ela, abrindo um sorriso largo. Sergei mancou atrás dela.
— Onde está minha filha-por-casamento? — disse Allesandra ao se aproximar da carruagem de Brie. — Onde está a hïrzgin?
Os soldados correram para abrir as portas do veículo e colocar um degrau para que ela descesse. Brie tomou a mão oferecida e saiu para o sol, piscando e mantendo o sorriso grudado no rosto. A hïrzgin deixou que a kraljica a envolvesse no abraço, levou um beijo numa bochecha, depois na outra. Allesandra cheirava a rosas e romãs; seu abraço era surpreendentemente forte e genuíno.
— Este momento deveria ter acontecido há anos — sussurrou ela no ouvido de Brie. — Eu peço desculpas por isso; a culpa foi minha. Eu queria ter conhecido você e seus filhos há tanto tempo...
Sua voz evanesceu. Brie segurou as mãos de Allesandra. Ela encarou os olhos da mulher, reparando nas dobras em volta, no pó na pele e nas sombras azuis sob as sobrancelhas pintadas e feitas. Ela podia enxergar Jan no formato dos olhos e nos traços da face; viu um reflexo de Elissa, Kriege, Caelor e Eria também. Até mesmo a voz, menos aguda...
— Eu também queria que esse momento tivesse acontecido antes — respondeu Brie. — Há mais tempo do que a senhora imagina, kraljica. Temos tanto o que conversar.
A hïrzgin sabia que Jan lhe chamaria a atenção pelo que ela diria em seguida, mas Brie não se importava. Ela olhou o rosto de Allesandra e não viu nenhum monstro ali.
— Eu quero que meus filhos vejam a mamatarh como ela é, não como Jan a descreveu.
Brie percebeu o sofrimento no rosto de Allesandra.
— Se não me engano, foi o Venerável Carin, no Toustour, que disse que o incômodo da verdade é sempre preferível ao bálsamo da mentira — disse a kraljica. — Ainda assim, há ocasiões em que eu acho que todos nós preferimos as mentiras. Estou certa de que Jan, na cabeça dele, disse o que pensava ser a verdade sobre mim. Infelizmente, eu nem sempre fui uma boa matarh para Jan, e fiz coisas...
Brie se apressou a interromper qualquer confissão que Allesandra pretendesse fazer ao apertar as mãos da mulher.
— Eu tenho certeza de que a senhora fez o que precisava fazer como kraljica. E sei que o Venerável Carin também disse que o passado não pode ser mudado, apenas o presente. Vamos nos apegar a esse momento, kraljica, a senhora e eu, e tornar bom o presente.
Allesandra sorriu novamente.
— Eu espero que meu filho dê valor a esposa e conselheira que tem.
Brie apenas devolveu o sorriso, perfeito e ensaiado.
— Ele dá o máximo valor de que é capaz — respondeu ela — e o mínimo com que consegue escapar impune.
Allesandra riu.
— É assim que as coisas são? — exclamou ela.
A kraljica abraçou a hïrzgin novamente, pegando em sua mão. Ela a ergueu e se voltou para os soldados e chevarittai ao redor.
— Esta é a hïrzgin Brie — proclamou Allesandra — e eu lhe dou boas-vindas a Nessântico como minha filha-por-casamento e como a esposa do próximo kraljiki e matarh de seus herdeiros.
Uma aclamação irrompeu nas fileiras em torno deles, Brie se curvou e acenou para o agrupamento. A hïrzgin se perguntou se eles ainda estariam aclamando em alguns dias.
— Você está com fome? — perguntou Allesandra. — Há um jantar à nossa espera na tenda...
Brie permitiu que Allesandra a acompanhasse até a tenda. Ao passar por Sergei, ela parou e fez o sinal de Cénzi para o homem.
— Hïrzgin — falou o Nariz de Prata. — É bom vê-la novamente.
O embaixador se aproximou dela, e a voz era um sussurro rouco e singelo.
— E eu tenho coisas para lhe contar também.
Dito isso, ele se afastou novamente, sorrindo para Brie e fazendo um gesto para que ela entrasse na tenda, no rastro de Allesandra.
— Você tem certeza de que a garota era Rhianna?
— Rochelle, é o verdadeiro nome; pelo menos é o que ela alega. Mas sim, era a mesma jovem. Tenho certeza.
— E ela também alega ser a filha da Pedra Branca e de Jan?
Sergei assentiu, em silêncio. Brie se recostou na cadeira e balançou a cabeça, sem saber como responder. Ela queria negar, queria chorar, queria gritar de raiva.
Isso explicava tanta coisa. Jan ainda é apaixonado por ela, depois de todos esses anos.
Allesandra tinha retornado para a cidade; Sergei tinha ficado no acampamento após o jantar, dizendo para a kraljica que ele mesmo acompanharia a hïrzgin até o palácio assim que ela estivesse pronta. A mesa onde o jantar tinha sido servido ainda permanecia entre eles, embora os criados tivessem tirado tudo, exceto uma garrafa de vinho e um pouco de pão e queijo. Brie se inclinou, virou a garrafa na taça e ficou observando o vinho espirrar no fundo. Ela se recostou novamente e bebeu.
— E eu acho que é bem possível que a jovem esteja falando a verdade — continuou Sergei. — Eu estou bastante certo disso, na verdade. Eu sei que não é o que a senhora deseja ouvir, hïrzgin, mas temos que considerar que, dada a história que ambos conhecemos, é plausível.
— Mas não é certo.
O embaixador abriu um sorriso sob o nariz de prata.
— Não, não é certo. Eu mandei um pessoal fazer uma investigação e verificar algumas das referências que ela me deu, mas levará algum tempo até que eles me informem alguma coisa, dada a situação atual, e talvez sequer saibamos o suficiente para provar os fatos, de qualquer forma. — Ele deu de ombros. — Mas é nisso que Rochelle acredita, seja isso verdade ou não.
— E ela está aqui.
— Está.
Brie ponderou. Será que ela e Jan planejaram isso? Ou é apenas coincidência?
— Jan sabe? E Allesandra?
Sergei meneou a cabeça negativamente.
— Allesandra definitivamente não sabe, nem eu falei com Jan. Queria contar para a senhora primeiro. Mas eles também precisam saber. — Sergei respirou fundo pelo nariz de metal; o som assobiou um pouco. — A garota é perigosa, hïrzgin. Ela assumiu o papel da Pedra Branca. Diz que foi ela quem matou Rance; contratada por um homem cuja filha a senhora despachou por algum motivo.
— Ah.
A declaração caiu como um golpe em seu estômago. Brie pousou o vinho, levando a mão à garganta.
— Por Cénzi, não... Mavel co’Kella; ela estava grávida. Grávida de Jan. Eu tinha que tirá-la da corte e mandá-la embora. Deve ter sido o vatarh de Mavel co’Kella. Ele estava pleiteando se tornar um chevaritt, mas depois disso... — Ela olhou para Sergei, atormentada. — Eu causei a morte de Rance. Foi por minha culpa.
— Foi o vatarh da garota — respondeu o embaixador. — Não a senhora. A senhora não é responsável pelas ações dele.
— E Rhianna, ou Rochelle... Ela esteve no palácio esse tempo todo, cuidando de mim e dos meus filhos, e Jan...
Brie se calou. Sergei não disse nada. Ela se sentiu observada pelo embaixador. A mulher no meu pesadelo. Seria ela Rochelle?
— Estou enojada — falou a hïrzgin. — Aquela garota, filha de Jan, meia-irmã dos meus próprios filhos...
— Ela é uma bastarda. Não tem direito real ao trono.
— Eu sei. Há bastardos o bastante — respondeu a hïrzgin, abrindo um sorriso sarcástico e irônico. — Mesmo assim, ela foi a primeira, e Jan...
Brie se deteve, encarando Sergei.
— Eu soube que você chegou a conhecer a Pedra Branca.
— Não — respondeu o embaixador. — Não conheci. Mas eu fui a Brezno não muito tempo depois de ela, bem, depois de ela ter assassinado o hïrzg Fynn. Pelo que eu me lembro, Rochelle deve se parecer muito com a matarh dela, na ocasião.
Brie sentiu o coração bater forte no peito. Sentiu o vinho e o jantar se revirarem no estômago. Mais uma vez, a compreensão emergiu dentro dela: Jan ainda ama Elissa, nunca deixou de amar.
— Elissa. Era como a Pedra Branca se chamava na época. Eu não conhecia a história quando Jan quis batizar nossa filha. Só pensei que fosse um nome que ele gostasse... — A hïrzgin soltou uma risada amarga. — Eu não soube por um ano ou mais, quando já era tarde demais para mudar. Nunca consegui perdoá-lo por isso.
— A senhora quer que eu conte para Allesandra e Jan sobre Rochelle?
Brie sentiu um arrepio de frio repentino.
— Você pode contar para Allesandra, mas eu quero contar para Jan. Quero ver a cara dele quando descobrir.
Sergei inclinou a cabeça e se levantou da cadeira.
— Então eu deixo o hïrzg com a senhora. Mandarei preparar sua carruagem, hïrzgin. A kraljica deve estar se perguntando o que aconteceu conosco.
— Sim — respondeu Brie. — Faça isso. Eu irei em um instante.
Sergei fez uma mesura e saiu da tenda. A hïrzgin se serviu de outra taça de vinho. Ficou sentada ali por vários instantes, encarando o líquido vermelho reluzir na superfície dourada. Eu quero ver a cara dele...
Brie se perguntou como contar para Jan.
Niente
Niente começava a acreditar que eles talvez chegassem a ver as muralhas da grande cidade incontestes.
O exército tehuantino descia as colinas de um vale verde e exuberante, exalando o cheiro das estranhas árvores da região, pontilhada por bolsões de fazendas e vinhedos entalhados na floresta. Era um terreno do qual Niente se lembrava, um terreno que Niente frequentemente revia em seus sonhos. O exército se separou em três forças, como Atl tinha visto na tigela — a força ao sul cruzou o rio, a força ao norte seguiu em direção ao alto da estrada, e o restante do exército continuou seguindo a estrada paralela ao rio.
Era lá que o tecuhtli Citlali estava abrigado; foi para lá que Atl, como nahual, e Niente seguiram.
Eles sabiam que estavam sendo acompanhados pelos orientais. Ocorreram algumas estranhas escaramuças breves com os guerreiros a cavalo, que vinham gritando, desafiando e se lançando loucamente contra as fileiras — até mesmo os guerreiros supremos estavam comentando sobre a bravura incontestável dos orientais, ao mesmo tempo em que criticavam suas táticas inúteis e imprudentes. Algumas chuvas de flechas ocasionais caíram sobre eles conforme passavam pelos vales sinuosos, mas os escudos dos guerreiros tinham aparado a maioria, e os nahualli tiraram grande proveito de seus cajados mágicos. Não havia sinal dos feiticeiros orientais, nem dos ténis-guerreiros.
Todas as tentativas orientais de impedir o avanço dos tehuantinos foram comparáveis ao zumbido de moscas importunando o exército.
Eles acompanharam a curva do rio, com vista escassa para as torres de um vilarejo sobre o topo das árvores. Passaram por uma paisagem pastoral, com seus campos cultivados esvaziados de colheitas e gado. Certamente uma tática, para que o exército tehuantino tivesse que colher alimentos mais adiante, o que eles fizeram — destacamentos de saqueadores foram enviados para longe das forças, eles roubaram o gado bovino e limparam os campos como gafanhotos, e toda a comida foi trazida de volta para alimentar os estômagos exigentes dos guerreiros. A casa de fazenda ou mansões ocasionais que os tehuantinos encontravam estavam abandonadas e silenciosas. Os sons do exército abafavam os sons que Niente imaginava que eles talvez ouvissem se estivessem cavalgando desacompanhados pela estrada: os chamados dos pássaros orientais, o vento soprando as folhas, o mugido do gado.
Mesmo assim, a paisagem parecia quieta demais. Niente começou a espiar em volta, nervoso; ele notou que Citlali e os guerreiros supremos ao redor fizeram o mesmo e se deu conta de que os cavaleiros da vanguarda, que já deveriam estar de volta, ainda estavam ausentes.
Ouviu-se um movimento nos cumes baixos em volta do exército tehuantino: sob o sol vespertino, brotos reluzentes de homens surgiram do solo.
— Atl! — gritou Niente, pegando seu cajado mágico, mas o alerta chegara tarde demais.
Bolas de fogo desenharam um arco no céu em direção aos tehuantinos, deixando um rastro de fumaça negra para trás, o ar ficou encoberto pelas hastes de flechas. Elas caíram assobiando, e os guerreiros ergueram seus escudos imediatamente para conter as flechas; mesmo assim, Niente viu vários guerreiros caírem, ao mesmo tempo em que ele lançava contrafeitiços em direção às bolas de fogo. A mais próxima explodiu muito acima deles, emitindo um estrondo que fez Niente querer tapar os ouvidos com as mãos. Atl também entoava gatilhos de feitiços, e outra bola de fogo foi desviada descontroladamente para o lado, rasgando a campina e cuspindo lama, grama e fogo líquido onde caiu. Mas outra bola de fogo veio rápido demais na direção dos estandartes do tecuhtli; Niente jogou um contrafeitiço, mas era tarde demais. Niente pôde sentir o calor do feitiço de guerra irrompendo em gotas pegajosas de fogo, e o abalo se apoderou dos tehuantinos. Niente atirado de seu cavalo, enquanto gritos eram emitidos dos guerreiros mais próximos. Niente ficou preso por um instante sob o animal enquanto o cavalo tentava se levantar novamente. A grama estava em chamas de ambos os lados da estrada de terra. Trompas orientais soaram uma sequência crescente de notas, seguidas pelo rufar de soldados em resposta e os gritos dos guerreiros supremos conforme tentaram restaurar a ordem para as fileiras assustadas e desorganizadas.
O ruído de metal retinindo soava enquanto Niente lutava para se levantar, usando o cajado mágico como bengala. Ele sentiu uma mão pegar em seu braço e o puxar: Atl, com o rosto manchado e sujo de fuligem.
Tudo em torno dele era um caos. Havia um grande número de guerreiros mortos perto da estrada, onde a bola de fogo havia caído, mas o tecuhtli Citlali e o guerreiro supremo Tototl ainda estavam vivos. Os dois gritavam e gesticulavam para a esquerda, onde uma batalha em grande escala acontecia entre as forças orientais e tehuantinas. Eu nunca tinha visto este ataque, Niente se deu conta. Isso é novo... Urrando, com a lança em riste, Citlali montou novamente no cavalo, auxiliado por dois guerreiros.
— Nahual Atl! — Niente ouviu Citlali gritar. — Comigo! Comigo!
A mão esquerda de Atl soltou o braço de Niente. Ele deu um pulo e montou em seu próprio cavalo.
— Nahualli! — chamou Atl. — Ao tecuhtli!
Citlali e Tototl já estavam galopando em direção à linha de frente da confusão, Atl agora estalava as rédeas do cavalo em perseguição. Niente procurou por seu próprio cavalo e viu o animal de cabeça baixa a alguns passos de distância. Ele caminhou até o animal — mancando, sentindo a dor de seus músculos distendidos por toda a lateral do corpo. O cavalo se afastou quando Niente se aproximou, ele notou que sua pata dianteira estava quebrada; o animal não podia apoiar peso nela. Niente praguejou. Ele começou a correr arrastando os pés e se juntou aos guerreiros seguindo em direção à linha de batalha no meio da campina. À sua frente, Niente viu os nahualli lançando seus feitiços de guerra em direção às fileiras inimigas, ele ergueu seu próprio cajado mágico para se juntar ao bombardeio enquanto corria, berrando os gatilhos.
Fogo e raios caíram de nuvens baixas e repentinas. Eles bateram no chão bem acima do cume e em meio aos orientais. Os guerreiros rugiram — um grito de guerra para Sakal, invocando a fúria do deus-sol — e avançaram. Niente viu os estandartes do Citlali subindo a encosta com os orientais em retirada diante do tecuhtli; as linhas de frente foram rompidas, e os feridos estavam sendo arrastados de maneira vergonhosa. A retirada foi humilhante e completa. Citlali deu ordem para interromper o contra-ataque enquanto os orientais sumiam nas florestas e nas faixas de área arborizada entre os campos. Trompas orientais soaram uma sequência de retirada. O estandarte do tecuhtli tremulou brevemente no topo do cume — Niente viu Atl ao lado dele —, e Citlali começou a descer o morro a meio galope em direção à estrada novamente, acompanhado por Tototl. Niente não conseguia enxergar o rosto através da águia vermelha tatuada na face e do sangue espalhado sobre ela. Ele avançou entre os guerreiros em direção ao lugar em que Citlali estava desmontando. A lâmina da espada do tecuhtli estava coberta de sangue.
Agora Niente pôde ver a expressão no rosto de Citlali: ele estava olhando para corpos dos guerreiros mortos e feridos, furioso, enquanto os curandeiros corriam para cuidar dos vivos, e os sacerdotes davam a extrema unção aos mortos. Citlali se agachou ao lado de vários guerreiros, tocando os rostos daqueles que ele e Niente conheciam há anos. O cheiro de carne queimada era forte, e a grama da campina ainda estava em chamas entre vários deles.
Atl não estava muito longe de Citlali e Tototl. O cajado mágico pendia de sua mão, como se estivesse exausto. A cabeça balançava, como se não quisesse acreditar.
— Eu não vi isso, taat — disse o jovem quando se aproximou de Niente. — Eu procurei, mas isso estava escondido. Por que eu não vi isso?
— Por que, realmente?
Uma voz o interrompeu antes que Niente pudesse responder. Citlali tinha se virado para os dois.
— Eu tenho dois nahualli que são considerados os mais poderosos na visão premonitória desde Mahri e, no entanto, nenhum deles me deu qualquer pista sobre isso. Eu não estou triste pela perda; nossos guerreiros morreram a morte boa, a morte da batalha, como deveriam. Mas você, Atl, me disse que os orientais não nos enfrentariam frontalmente até chegarmos à grande cidade. — Seu olhar colérico se virou para Niente. — E você disse que não conseguia quase nada. Por quê? Axat nos abandonou?
Niente e Atl balançaram a cabeça simultaneamente.
— Alguma coisa mudou — falou Niente. — Eu lhe disse muitas vezes antes, tecuhtli, que Axat mostra o que pode ser, não o que será. Alguma coisa mudou entre os orientais.
Citlali bufou desdenhosamente.
— Isso ficou bem claro — ele disse acenando para a fumaça e os corpos ao redor. — Descubram o que mudou e o que isso significa para nós. Descubram agora.
O círculo dourado do sol morria no oeste, e a bruma verde do futuro surgiu em volta do rosto deles. Os nahualli observavam os dois, em silêncio; o tecuhtli Citlali também os observava, com os guerreiros supremos agrupados em volta dele.
Na tigela premonitória, o presente se dividiu e rasgou, e os retalhos do futuro se esvaiam, se contorcendo e se enroscando. Niente os perseguiu na sua mente; ao lado dele, Atl fazia o mesmo. A perseguição era tão exaustiva quanto uma perseguição física. Próximo ao presente, os fios de possibilidades se embolavam e entrelaçavam. As imagens não paravam de surgir na bruma, era difícil vê-las por tempo o bastante para compreender os significados.
Ali: o rosto de um rei, ou era o que Niente tinha presumido pela faixa dourada envolvendo sua cabeça, que brandia uma espada com uma multidão vestida em preto e prata atrás dele, em vez do uniforme azul e dourado do exército da grande cidade. Niente se lembrava daquelas cores — as cores do exército que tinha vindo socorrer a cidade após ser tomada pelo tecuhtli Zolin. Niente tremeu ao ver isso...
Mas a bruma envolveu o rei, e Niente agora viu uma rainha sentada em um trono brilhante com fogo vermelho em torno de si. Uma jovem erguia uma faca reluzente sob o brilho do fogo, havia também um homem perto do trono, e as labaredas furiosas dentro da sala pareciam sair de suas mãos erguidas...
Uma bruma fria apagara o fogo e o levara embora. Niente encarava agora fileiras de gente, mas não eram soldados em armaduras reluzentes, mas pessoas comuns, elas estavam apontando instrumentos estranhos para Niente, parecidos com as garras de águia que os nahualli usavam para fazer sacrifícios. Os instrumentos cuspiram fumaça e fogo, e abelhões negros foram disparados por eles, correndo na direção de Niente...
Mas a bruma também os levou.
Um vento soprou a bruma, e ali diante de Niente, por um momento tentador, ele vislumbrou novamente o Longo Caminho. Ele havia mudado desde a última vez que Niente o tinha visto. O futuro ainda continuava tomado pelos estandartes caídos dos tehuantinos. Mais adiante no caminho, ele viu os estandartes dos tehuantinos tremulando ao lado dos estandartes azuis e dourados dos orientais, e duas pessoas sob eles, um homem com a tatuagem da águia vermelha do tecuhtli e uma mulher com as roupas dos orientais e um cetro dourado na mão. Os dois estavam juntos e sorriam um para o outro, e não havia animosidade alguma entre eles.
A bruma escondeu o Longo Caminho, mas perto de Niente, as brumas agora se abriram, e ele viu Citlali, morto, com um nahualli ao seu lado. Niente se debruçou sobre a tigela. No braço jovem e musculoso do nahualli, havia um brilho dourado: o bracelete do nahual. Ao lado dos dois, como se tivesse sido responsável pelas mortes, ele viu as costas de outro nahualli: a careca de um velho, com alguns poucos fios de cabelo e — quando o nahualli se virou — o semblante enrugado e cheio de cicatrizes, com um olho esquerdo cego.
Niente recuou e conteve um grito...
— Não... — sussurrou ele.
O sopro da negação fez a bruma mudar, de maneira que o Longo Caminho desapareceu para revelar ainda outro Longo Caminho. No fim deste rumo, Niente viu Tlaxcala, mas a cidade flutuante ardia no centro de um lago e as grandes pirâmides estavam em ruínas. Assim como na visão anterior do Longo Caminho, os meios para se chegar a ele estavam obscurecidos, mas as imagens tremularam mais perto dele. Ali o tecuhtli Citlali estava sentado em um trono brilhante sob um teto abobadado, com o estandarte azul e dourado no piso de ladrilhos diante dele e vários orientais prostrados à sua frente, como se estivessem prontos para serem sacrificados para Axat e Sakal, para que o resto de seu povo pudesse viver.
Niente respirou de novo, e os vapores frios e verdes envolveram seu rosto. Ele sentiu sua face ficar molhada e se deu conta de que tinha tocado a água da tigela premonitória. Com o toque, as visões se dissolveram e Niente encarava apenas a tigela.
Ele voltou à realidade devagar, ofegante, como se tivesse voltado de uma longa corrida. Carrancudo, o tecuhtli Citlali olhava fixamente para Niente, à sua esquerda, Atl já havia levantado o rosto de sua própria tigela. Vários nahualli de baixo escalão se aproximaram rapidamente e recolheram as tigelas e as mesas.
— Bem? — perguntou Citlali. — O que Axat mostrou para vocês?
Niente não falou nada; pelo canto de olho, ele viu Atl lançar-lhe um olhar furtivo.
— A visão ainda mostra a nossa vitória, tecuhtli — respondeu o jovem. — Eu vi o senhor no trono dos orientais.
O olhar de Citlali ainda estava fixo em Niente.
— E você, uchben nahual? Você também viu isso?
Niente ergueu a cabeça. Sentindo suas mãos tremerem, um nahualli de baixo escalão tinha corrido lhe entregar seu cajado mágico. Ele aceitou agradecidamente e se apoiou pesadamente sobre o objeto. Niente piscou para tentar limpar a mente das visões. O Longo Caminho... Axat lhe presenteou com duas escolhas...
— Eu vi a mesma coisa, tecuhtli — ele respondeu honestamente.
— Rá! — O tecuhtli Citlali se levantou e bateu o pé uma vez no chão enquanto Tototl e os outros guerreiros supremos urravam de aprovação. — Então nós seguiremos em frente e tomaremos a grande cidade dos orientais, e transformaremos suas esposas em viúvas e as crianças em órfãs, se eles resistirem a nós.
RESSURREIÇÕES
A Ameaça da Tempestade
A Fúria da Tempestade
A Passagem da Tempestade
A Aurora
A Ameaça da Tempestade
Jan fedia a cavalo, suor, fumaça e sangue. O starkkapitän ca’Damont e o comandante ca’Talin também. Não houve tempo para tomar banho ou trocar de roupa. Eles tiraram a armadura depois do confronto com os ocidentais e cavalgaram rapidamente de volta a Nessântico, deixando a retirada relutante da Garde Civile com os a’offiziers. Suas botas — sujas, cheias de lama e deslocadas — faziam barulho nos ladrilhos encerados do Palácio da Kraljica na Ilha; os gardai no salão e os criados e os cortesãos se agitando nos corredores encararam o trio com apreensão, como se tentassem medir pelos rostos e pela atitude a gravidade da ameaça à cidade.
Se conseguissem interpretar aquelas expressões corretamente, ficariam assustados.
O assistente de Allesandra, Talbot, encontrou Jan quando os três passaram pela câmara de recepção externa e os acompanhou pelo corredor privativo da criadagem até a câmara do Conselho dos Ca’. Ele gesticulou para o gardai do corredor abrir as portas quando o grupo se aproximou. O burburinho de conversa no interior parou. Allesandra esperava por eles ali, com Sergei ca’Rudka e os conselheiros; havia um mapa das cercanias aberto sobre a mesa.
Todos olharam para Jan esperançosamente.
— Se vocês estão esperando ouvir boas notícias — falou o hïrzg sem preâmbulos —, eu não tenho nenhuma.
Ele parou. Uma mulher ao lado de Allesandra parou de examinar o mapa para encará-lo.
— Brie? Eu pensei...
Brie caminhou até Jan e abraçou o marido tão abertamente como se ele estivesse em trajes de gala para um baile. Jan tentou se afastar, por causa de seu estado, mas se a hïrzgin sentiu alguma repulsa pelo cheiro ou pela aparência, não demonstrou. Brie deu um beijo na bochecha de barba rala, depois na boca de Jan, que devolveu o beijo um instante depois.
— Eu vim com seu exército, meu querido — falou ela. — As crianças estão em Brezno, mas senti que meu lugar era aqui, com meu marido na cidade que ele governará um dia.
— Você não deveria ter vindo, Brie.
— Por que eu não deveria ter vindo? — perguntou a hïrzgin com a cabeça inclinada.
Seu tom de voz era estranho — quase evasivo e ameno demais. Ele sentiu que havia uma outra pergunta nas entrelinhas, uma que ela não estava fazendo.
— Não é óbvio? — respondeu Jan. — É perigoso para você.
— Eu pensei que fosse mais perigoso eu não estar aqui — argumentou Brie.
O hïrzg pôde notar um conteúdo oculto nas palavras, mas o significado lhe escapou. A esposa sorriu para ele: novamente com a mesma estranheza.
— Eu estou aqui, meu marido, e trouxe seu exército comigo. Ora, você deveria estar feliz.
Jan assentiu — sim, havia algo mais em Brie do que existia na superfície, mas não havia tempo para descobrir agora, e tentar fazê-lo só o deixaria irritado. Ele deu um beijo em Brie, mecanicamente, depois olhou em volta para os demais no ambiente.
Concentração...
— Kraljica, embaixador, conselheiros: os ocidentais têm uma força consideravelmente maior do que a nossa, mesmo com a adição firenzciana — informou Jan.
Ele caminhou até o mapa e passou a mão pelos pontos salientes desenhados.
— Eles avançam por uma linha de frente que os fará chegar a Nessântico pela borda oeste no lado norte do A’Sele, pelas margens do A’Sele, acima da Avi a’Nostrosei ou mesmo pela Avi a’Nortegate. Isso já é bem ruim, mas nossos batedores nos dizem que eles mandaram outra força cruzar o rio para atacar a cidade ao sul. No momento, não temos mais que vinte ténis-guerreiros, todos de Nessântico; precisamos de pelo menos algumas centenas para ao menos tentar nos equiparar aos ocidentais nesse aspecto. E, julgando pelo que fizeram em Villembouchure, os tehuantinos também têm um estoque decente de areia negra, o que significa que nenhum dos prédios daqui está a salvo se eles se aproximarem. Quanto ao que fizeram em Karnmor, bem, nós só podemos torcer para que os inimigos não tenham como repetir esse horror. Se tiverem, então não há esperança alguma.
— Você faz parecer como se já tivéssemos perdido e devêssemos sair da cidade — disse sua matarh. Jan balançou a cabeça.
— Não, matarh — disse o hïrzg. — Não é o que estou dizendo. Nessântico não está perdida, mas está em perigo sério e imediato, e não podemos subestimar isso. Eu vi os ocidentais e entrei em combate com eles para testá-los. E isso fez com que percebêssemos que precisamos de todas as forças que pudermos reunir: todos os ténis-guerreiros, todo cidadão apto fisicamente, todos os recursos possíveis. Mesmo com tudo isso, também precisaremos da graça de Cénzi, ou veremos Nessântico queimar mais uma vez.
O silêncio que se seguiu durou bastante.
— Não é isso o que nenhum de nós quer. Eis o que o starkkapitän, o comandante e eu propomos — o hïrzg disse, finalmente, apontando para o mapa. — O A’Sele faz uma curva para o norte logo após Pré a’Fleuve; isso necessariamente vai comprimir as forças tehuantinas. Eu sugiro estacionar nossas tropas aqui logo depois do rio Infante, a partir da vila de Certendi, ao sul. Vamos segurá-los lá o máximo que pudermos, depois destruiremos as pontes se precisarmos recuar para o outro lado. Eu quero que barreiras de terra sejam erguidas da Avi a’Certendi para o A’Sele, seguindo a margem leste do Infante. O comandante ca’Talin, o starkkapitän ca’Damont e eu faremos os ocidentais lutarem por cada pedaço de terra entre o Infante e Nessântico, e espero que consigamos mantê-los completamente afastados da cidade na Margem Norte. Quanto à Margem Sul...
Ele acenou com a cabeça para Allesandra e Sergei.
— Eu deixo nas suas mãos.
— ...existe um Longo Caminho, Atl. Um rumo que leva a um lugar melhor para nós, embora não pareça assim inicialmente, e Citlali nunca acreditaria em mim. Mas você tem que acreditar em mim. A vitória aqui não é só uma vitória; ela significará uma derrota para nós, com o tempo. A própria Tlaxcala pode cair.
Atl balançava a cabeça enquanto ouvia a explicação de Niente.
— Eu sei que o senhor não para de dizer isso, taat, mas não é o que eu vejo. Mesmo que eu quisesse acreditar no senhor... — Ele abanou a mão em desespero, soltando um suspiro. — Eu não vejo absolutamente nada deste Longo Caminho.
— Você não está olhando suficientemente o distante. Não é algo que você consiga fazer ainda.
Isso foi um erro. Ele notou na forma como a luz da fogueira na tenda refletiu no rosto carrancudo do filho.
— Eu sou capaz de ver os caminhos de Axat, taat. Acho que posso vê-los melhor que o senhor. O senhor só não quer admitir isso. Eu vou para a minha tenda. Encha seu cajado mágico e durma um pouco, taat. Eu farei o mesmo.
Ele cumprimentou Niente com a cabeça e ia sair, mas Niente o segurou pelo braço, os seus dedos apertaram o bracelete de ouro do nahual que tinha estado em volta do próprio antebraço.
— Atl, isso é muitíssimo importante. Eu vi o Longo Caminho; eu vi com extrema nitidez em Tlaxcala e mesmo aqui, por um instante. Eu pude vê-lo desde então; há tantos elementos prejudicando as brumas, como você mesmo sabe. Mas ele está lá; tem que estar. Nós dois juntos talvez possamos encontrá-lo novamente. Se o vislumbrarmos só mais uma vez, se pudermos ver como temos que reagir...
Niente vasculhou a bolsa e tirou dois passarinhos de madeira entalhados de forma crua e pintados de vermelho intenso, com traços simples e brutos. Ele entregou um para Atl.
— Eu fiz esses aqui mais cedo hoje à noite. Coloquei um feitiço dentro deles, para que, se nos separarmos na batalha, ainda possamos mandar uma mensagem um para o outro. Se um de nós vir o rumo, então podemos contar para o outro que o Longo Caminho está aberto.
Atl olhou para o pássaro.
— Eu não preciso...
Ele ia devolvê-lo, mas Niente fechou os dedos do filho em volta da escultura.
— Por favor — disse ele para Atl. — Por favor, aceite.
Atl suspirou; como suspirava quando criança, quando seus pais insistiam que ele fizesse algo que não queria fazer.
— Está bem, eu fico com isso. Mas, taat, não existe Longo Caminho. Eu não sei aonde essa guerra nos levará, nenhum de nós sabe, mas eu sei que podemos ser vitoriosos aqui. Eu vi isso, e pretendo conduzir o tecuhtli Citlali até esse momento.
Ele olhou para Niente, e a luz da fogueira refletiu em seus olhos negros.
— Encha seu cajado mágico — disse Atl, como se se dirigisse a um nahualli de baixo escalão. — O senhor vai precisar em breve. Eu mesmo preciso usar a tigela premonitória esta noite.
Atl caminhou até a aba da tenda e a abriu. Lá fora, a lua brilhava sobre seu ombro.
— Não há um Longo Caminho, taat. Tenho certeza disso — falou ele. — O senhor está vendo o que quer ver, não o que Axat está disposta a mostrar.
Atl deixou a aba da tenda cair atrás dele sair.
— Você cruzará o rio hoje de manhã com Tototl e se juntará à força ao sul com dois punhados de nahualli sob seu comando.
Essa foi a ordem que Niente recebeu do tecuhtli Citlali. Atl e Tototl estavam ao lado do guerreiro quando ele deu o comando. O rosto do filho tinha uma expressão ilegível e atormentada, Niente ficou curioso para saber — após a conversa da noite anterior — se a ordem tinha vindo de Citlali ou de Atl. Ele tinha que admitir que fazia sentido — deixar que o antigo nahual ficasse ao lado do tecuhtli para questionar o novo nahual levaria a hesitação e contradições. Ao sul, Niente não teria rivais... nem Atl, que seguiria com a força principal. Ao sul, Niente seria um recurso poderoso para os nahualli e um líder comprovado. Se Niente ainda fosse o nahual, se estivesse procurando por uma vitória esmagadora aqui, em vez da quimera de seu Longo Caminho, ele talvez tivesse sugerido alguma coisa parecida, como mandar Atl com o braço sul do exército.
Citlatli não lhe deu chance de contestar.
— Uchben nahual, o bote com os outros nahualli está à sua espera na margem — falou ele. — Você partirá assim que recolher suas coisas. Nahual Atl, quero discutir nossa estratégia com você...
Com essa dispensa, o tecuhtli Citlali deu as costas para Niente e gesticulou para Atl segui-lo. O jovem olhou uma única vez para o antigo nahual.
— Taat — ele disse —, vejo o senhor de novo na grande cidade. Mantenha-se a salvo.
Atl acenou com a cabeça e depois seguiu Citlali.
Pouco tempo depois, Niente se viu em um bote com outros três tehuantinos cruzando o A’Sele, a água marrom se agitava e ficava momentaneamente branca com o bater dos remos dos jovens guerreiros. O cheiro de água doce entrou em seu nariz, as árvores na outra margem distante estavam obscurecidas pela névoa da visão pobre de seu olho são. Ele podia sentir os olhares dos outros nahualli que o acompanhavam sobre si, podia sentir a avaliação ao se agachar na popa da pequena embarcação.
Niente olhou para oeste, rio abaixo — os tehuantinos receberam uma mensagem do comandante da frota informando que o rio tinha sido liberado e que ele estava subindo o rio com os navios de guerra para encontrá-los. Niente não tinha visto vela alguma ainda, mas o rio fazia uma curva ali perto, e a frota talvez estivesse logo ali atrás daquela curva. O guerreiro supremo Tototl, em outro dos botes, olhava apenas à frente, na direção da outra margem.
O que eu faço agora? Esta estratégia não estava em nenhum dos caminhos que vislumbrei. Ele se perguntou se Atl tinha visto isso e se sabia para onde esse caminho levava. Niente se sentiu perdido, sendo levado pelas correntezas do presente. Será que consigo encontrar o Longo Caminho nesta situação, e se conseguir, será que arrisco segui-lo? Ele já tinha desistido do Longo Caminho uma vez devido a seu alto custo. Essa visão tinha sido nítida, como se Axat quisesse que Niente soubesse. A morte de Citlali pouco importava para ele; um guerreiro esperava, e até mesmo recebia, pela morte de braços abertos na batalha. Mas Niente também estava morto nessa visão; ele realmente faria isso, se Axat cobrasse seu preço? E se Axat exigisse a vida de Atl também, como Ela tinha dado a entender...
Suas mãos estavam tremendo, e não era por causa do frio úmido da manhã.
Será que Atl viu isso? Será que foi por isso que ele mandou você embora?
Niente queria falar desesperadamente com Atl, mas não era mais possível. Ele tocou na bolsa para sentir o pássaro entalhado. O toque não lhe deu nenhum alívio.
A margem estava se aproximando; Niente quase conseguia identificar uma árvore ou outra se aproximando em vez dos borrões verdes e vislumbrou uma meia dúzia de guerreiros reunidos sob a cobertura verdejante, prontos para escoltá-los até a estrada. A proa do bote atracou na lama da margem escondida sob os juncos, assustando Niente. Os guerreiros que os aguardavam desceram a margem correndo para ajudá-los a sair. Ele ouviu Tototl berrar ordens. Niente esperou que os guerreiros os puxassem para a terra seca. No topo da margem, ele olhou para o outro lado do rio mais uma vez. Entre a névoa da catarata, Niente pensou ter visto algumas figuras se movendo.
Ele se perguntou se uma delas era Atl.
— Por Cénzi, então é verdade...
A mão de Jan cofiou a barba. Seus olhos se arregalaram, e Brie podia jurar que havia um espanto genuíno neles, não uma surpresa fingida. Talvez ela estivesse enganada e Jan realmente não tivesse mandado a garota à frente deles para encontrá-la mais tarde na cidade.
— Eu juro, Brie, eu não sabia que ela estava aqui. Eu juro por Cénzi. Eu sei que você deve estar pensando que mandei Rhianna para cá, ou Rochelle, ou seja lá qual for seu nome verdadeiro, mas eu nunca pensei...
— Não, você não pensou — ralhou Brie.
Ela continuou observando o rosto do marido. O espanto em sua expressão pareceu genuíno o bastante quando ela deu a notícia que Sergei lhe contara.
— Ela alega ser sua filha, Jan.
— Ela também me disse isso.
— Ela disse isso para você? Quando?
— Quando tirou a faca da matarh de mim. Foi seu golpe de despedida antes de fugir. — Jan passou os dedos pelo cabelo recém-molhado do banho rápido. — Ela matou Rance. Eu sabia disso, mesmo na ocasião. Ela parece tanto com El...
Ele se deteve e olhou de relance para a esposa.
— Com a matarh dela — terminou o hïrzg.
— Então é possível que ela esteja dizendo a verdade, que seja sua filha?
Jan murchou. Agora suas mãos mexiam nervosamente no cabelo.
— Eu creio que sim. Ela tem a idade certa.
— Você chegou a... com Rhi... Rochelle?
Ele balançou a cabeça com raiva, sua mão fez um gesto de negação, movimentando o ar próximo à bochecha de Brie.
— Não! Eu juro, Brie. Ela nunca me deixou... — Jan suspirou alto. — Por um bom motivo, evidentemente.
O hïrzg andou de um lado para o outro nos aposentos que Allesandra tinha cedido a eles no palácio, enquanto abotoava a túnica acolchoada que ficava sob o uniforme da Garde Civile.
— Brie, eu lamento, mas não posso me preocupar com isso. Não agora. Eu não sei por que Sergei não a jogou na Bastida quando teve a oportunidade.
Brie caminhou até o marido e afastou suas mãos para o lado enquanto ele se atrapalhava com os laços da túnica.
— Aqui, deixe-me fazer isso. É isso o que você quer para ela? — perguntou a hïrzgin. — A Bastida? Quer que ela seja julgada pelos crimes que cometeu?
Brie sentiu o peito do marido inflar e desinflar sob suas mãos.
— Sim. E não. Eu não sei o que quero, Brie. Se ela for minha filha com a Pedra Branca...
— Ela não é sua filha. É mais uma bastarda que você gerou. — Ela terminou de dar os laços e se afastou.
— Naquela época, eu teria me casado com Elissa.
Desta vez Jan pronunciou o nome sem hesitação, Brie percebeu que doía ouvi-lo, ouvir o nome de sua própria filha atrelado àquela mulher. As palavras do marido eram dolorosas.
— Eu teria me casado com ela sem hesitação e sem a permissão de meus pais, se eles não a dessem — continuou ele. — A menina não seria uma bastarda. Eu já tinha pedido para a matarh entrar em negociação com a família de Elissa... ou pelo menos a família da qual ela alegava fazer parte. Ah, aposto que a matarh está achando essa situação uma piada maravilhosa.
Brie teve a certeza de que a intenção de Jan era magoá-la com aquelas palavras; ela se forçou a não ter reação alguma.
— Sua matarh fez o que achou que era necessário para proteger a família. Assim como eu, quando necessário.
— Sim, sem dúvida, e foi por isso que a matarh contratou a Pedra Branca para matar Fynn; para proteger a família. — Jan terminou de colocar o restante do uniforme e se sentou em uma cadeira para calçar as botas. — Brie, eu preciso encontrar com ca’Damont e ca’Talin em uma marca da ampulheta. Você precisa tomar cuidado; eu não sei do que essa Rhianna ou Rochelle pode estar atrás. Somente Cénzi sabe de quem a Pedra Branca pode estar atrás. Eu ficaria mais tranquilo se você saísse da cidade de uma vez por todas.
E assim você estaria livre para fazer o que quisesse. Brie teria ficado mais satisfeita se achasse que a preocupação dele era genuína, e não em causa própria. Como a matarh de Jan — suas vontades sempre estavam em primeiro lugar.
— Eu vou ficar, meu marido — ela disse com firmeza. — Você tem o seu dever; eu tenho o meu. Allesandra conduzirá a defesa ao sul; e eu vou ajudá-la.
— Brie... — Ele se levantou para afivelar e ajeitar o cinto da espada.
— Não, estou falando sério, Jan. Eu treinei com meus irmãos, e posso me sair bem contra eles com uma espada. Você sabe disso. Meu vatarh me educou em estratégia militar e até me consultou várias vezes no passado, quando saqueadores de Shenkurska invadiram a nossa fronteira. A própria Allesandra comandou exércitos; eu ouvi seus gritos de frustração por causa de algumas táticas e estratégias que ela usou nos últimos anos. Eu não estou menos a salvo aqui em Nessântico do que estaria viajando pelas estradas, mesmo com uma escolta.
Jan balançou a cabeça.
— Eu conheço essa sua expressão agora. Não adianta discutir com você.
— Então por que ainda está discutindo? — perguntou Brie, sem saber se ele estava irritado ou se era só estresse. — Eu não quero discutir com você, meu amor. Nós precisamos um do outro, eu só quero que você esteja o mais seguro possível. Você tem um destino, Jan: você vai ser o próximo kraljiki. Eu quero ver isso acontecer; pretendo sentar ao seu lado no Trono do Sol.
Ela limpou fios imaginários dos ombros do marido e sorriu para ele: o sorriso ensaiado, o sorriso exigido.
— Agora... vá se encontrar com o starkkapitän e o comandante. Você e eu nos preocuparemos com Rochelle mais tarde, quando os tehuantinos não forem mais uma ameaça.
— E você?
— Eu tenho a minha própria reunião com Allesandra.
— Com Sergei também?
Brie deu de ombros.
— Ele disse que tinha outros compromissos hoje à noite. — Ela ficou na ponta dos pés e beijou a bochecha de Jan. — Vá.
— Você não pode usar o robe verde — Rochelle disse para Nico.
Um sorriso indulgente tocou seus lábios e sumiu um instante depois. Seus lábios pareciam não se lembrar mais de como sorrir de verdade. A alegria parecia ter desaparecido de sua vida, quando antes ela a preenchia.
— Há uma grande diferença entre “não é permitido” e “não poder” — respondeu Nico. — Eu sou um téni, e é meu direito usar o robe. Mais do que um direito; é minha obrigação. Eu sigo Cénzi, não um idiota semimorto que se chama de archigos. Está na hora de eu me afirmar completamente e parar de me esconder como um criminoso.
— Você é um criminoso aos olhos dos Domínios e da fé concénziana. Eles matarão você, se puderem.
— Eles podem tentar. — Nico tentou sorrir novamente, mas o sorriso desvaneceu. — E há uma grande diferença entre “tentar” e “matar” também. Você não precisa ficar tão preocupada, irmãzinha.
Rochelle deu de ombros. Eles estavam no segundo andar de um dos esconderijos dos morellis no Velho Distrito; o proprietário — um vendedor de tecidos — ficou visivelmente aflito ao ver Nico ali, mas dispensou os aprendizes pelo resto do dia, mandou a família visitar primos a duas ruas dali e concordou em avisar o resto da seita dos morellis que o Absoluto desejava se encontrar com eles.
Nico também descobriu que Ancel esteve entre os capturados e executados após a invasão ao Velho Templo — outra alma a seus pés, outra morte pela qual ele devia expiar. Havia tantas, e faziam tanto peso sobre seus ombros que Nico queria cair de joelhos sob elas.
Liana, Ancel, eu lhes prometo — eu encontrarei paz para vocês...
Nico ainda podia ver a filha que teve com Liana aninhada nos braços de Varina. Sentia os dedos de Sera em volta dos seus, agarrando Nico como se soubesse que pertencia a ele. Aquela memória e a memória de Liana e Ancel e de todos aqueles que morreram por ele fizeram lágrimas se acumularem em seus olhos novamente. Nico as secou.
No andar debaixo, entre os tecidos pendurados em cabides à espera de serem arrumados em peças, Nico pôde ouvir o agito e o barulho de conversa através das tábuas do assoalho: vários ténis-guerreiros saíram de mansinho do templo para encontrá-lo; também havia, tinham dito para ele, vários ténis-guerreiros de Brezno presentes, eles tinham chegado à cidade pouco depois do comboio do exército firenzciano. Nico já tinha conversado com alguns deles — o archigos Karrol declarara que todos os ténis-guerreiros seriam enviados para o campo de batalha com o hïrzg Jan no dia seguinte.
— Nós não iremos se o senhor nos mandar, Absoluto. — Foi o que todos lhe disseram. Todos juraram que o seguiriam no lugar do archigos, se Nico pedisse. A lealdade dos ténis-guerreiros o satisfazia e, ao mesmo tempo, aumentava a culpa que ele carregava.
Como vocês podem me seguir depois do que eu fiz, depois dos meus fracassos? Como ainda podem ter fé quando eu luto com isso?
Nico ainda não sabia ao certo o que dizer para eles. Ele deixaria isso com Cénzi, mas suspeitava que já sabia o que diria. As escolhas diminuíram com a chegada dos ocidentais, Nico tinha passado a noite anterior rezando para Cénzi, pedindo por orientação enquanto Rochelle o observava, com uma expressão mais curiosa do que devota. Ela se parecia com Elle, a matarh de Rochelle, e a matarh adotiva de Nico. O que você fez com ela, Elle? Você a corrompeu além da redenção?
Mas Nico não podia se preocupar com Rochelle agora. Ainda não. Seus seguidores, aqueles que sobraram, esperavam por ele, e as palavras de Cénzi ardiam dentro de Nico.
— Vamos — ele disse para Rochelle, estendendo sua mão. — Está na hora.
Nico permitiu que a irmã descesse primeiro, acompanhando-a a seguir escada abaixo. O cheiro adstringente de corantes e fixadores no único cômodo do andar debaixo era forte, o ambiente que também funcionava como loja e mostruário para o vendedor de tecidos.
Havia pelo menos dez punhados de pessoas confinadas no espaço, tão apertados que o ar tinha se aquecido pela presença. Nenhuma saudação abrandou a atmosfera quando ele apareceu; todos pareciam tão sombrios quanto Nico. Ele fez o sinal de Cénzi e se curvou humildemente, os morellis devolveram o gesto. Algumas lâmpadas instaladas nas paredes do vendedor eram a única fonte de luz, mas Nico podia ver vários robes verdes iguais ao que ele estava usando, embora a maioria deles fossem desconhecidos para ele. Nico sentiu seus olhares observarem seu rosto machucado e com hematomas, as manchas roxas cobrindo seus antebraços, a forma como ele mancava ao descer a escada. E também notou os olhares curiosos para Rochelle.
— Que Cénzi abençoe a todos vocês — disse Nico, espalmando as mãos.
Ele sentiu o carinho de seus seguidores, e devolveu o sentimento; o cômodo estava tomado por um brilho pálido que não emanava de lugar nenhum e de todos os lugares.
— Eu não mereço que vocês tenham vindo, e menos ainda que ainda escutem o que tenho a dizer.
— O senhor ainda é a Voz de Cénzi, Absoluto — alguém disse no meio dos morellis. — Nós seguimos o senhor. Vimos Cénzi operar o milagre na praça. Vimos o senhor desaparecer sem lançar um feitiço; vimos as correntes vazias.
Os outros concordaram em meio a murmúrios, e o som fez Nico querer abraçar a todos, para tentar extinguir a tristeza e a perda no calor de sua aprovação e apoio.
Ele entrelaçou as mãos em frente ao corpo como se fosse rezar.
— Sim, Cénzi veio a mim quando eu estava diante da kraljica, e Ele me soltou dos grilhões que a vida colocou em mim. Mas... — Nico parou e balançou a cabeça. — Cénzi também me mostrou que eu deixei meu próprio orgulho me afastar de Seu caminho, e Ele me puniu por isso. Ele tomou para Si muitos daqueles que eu amava, enviou muitos outros para a dor e o sofrimento, e me encheu de tristeza e arrependimento. A dor dos morellis foi causada por sua dedicação a mim. Eu entendo agora que devo me tornar o instrumento de Cénzi, que devo me entregar completamente a Ele e devo aceitar o que Ele quiser que eu suporte. Eu entendo que não sou nada.
Nico ergueu a cabeça e abaixou as mãos, seu olhar varreu os seguidores, encarando cada um deles no cômodo.
— Vocês também devem entender isso. Esta também é a sua tarefa, como sempre foi a tarefa dos ténis: realizar a vontade de Cénzi e nada mais.
— O que Cénzi quer que façamos? — alguém perguntou. — Diga-nos, Absoluto.
Nico hesitou, embora se sentisse tomado pelas palavras. Eu estou certo desta vez, Cénzi? Estou ouvindo o Senhor, e não a mim mesmo? É isso, verdadeiramente, o que o Senhor quer que eu diga a eles? As palavras martelavam em sua mente, e Nico só poderia se livrar delas ao dizê-las.
— Nossa Fé está sendo ameaçada — falou ele. — Os ocidentais estão prestes a dominar Nessântico e os Domínios e, se isso acontecer, os fiéis sofrerão imensamente. Eu rezei, me abri para Cénzi e O escutei, e isso é o que Ele me diz.
Nico fez uma pausa e respirou várias vezes, olhando para cada um deles.
— Agora é a hora de deixarmos de lado nossas lutas com os falsos líderes da fé concénziana; não para sempre, mas por um curto período de tempo. Nós precisamos primeiro expulsar os pagãos e hereges que nos ameaçam antes que possamos olhar para a heresia dos Domínios e da Coalizão.
Ele fez outra pausa, acenando com a cabeça para eles.
— Eu disse isso naquele dia na praça e repito aqui: por enquanto, vocês devem obedecer ao archigos. Ténis-guerreiros, vão à guerra. Ténis, cumpram qualquer tarefa que recebam. O restante, façam o que for preciso. Obedeçam às autoridades que estão acima de vocês. Por enquanto.
Nico esperou. O brilho no aposento aumentou.
— Façam isso, por enquanto. E depois... depois, nós voltaremos a olhar para dentro. Voltaremos a nossa atenção para a reforma da fé concénziana. Tomaremos a glória que merecemos e moldaremos a Fé, como Cénzi deseja, como o Toustour e a Divolonté exigem, e não daremos ouvidos às ordens de ninguém, ninguém, que não esteja conosco. Isso é tudo o que tenho a dizer esta noite.
O brilho no cômodo esmaeceu, e a luz das lâmpadas agora parecia descarnada. Os seguidores se remexeram, hesitaram, se entreolharam fixamente. Então alguém abriu a porta; um a um, eles fizeram o sinal de Cénzi e saíram do cômodo arrastando os pés. Nico devolveu o sinal para cada um dos seguidores e murmurou uma bênção a cada um. Assim todos saíram, ele sentiu a mão de Rochelle pousar em seu ombro.
— Eles não ficaram satisfeitos — comentou ela. — Você não disse a eles o que eles queriam ouvir. Ficaram desapontados.
— Eu sei — respondeu Nico. — Mas era tudo o que eu tinha a dizer.
Rochelle assentiu.
— Você está cansado.
— Exausto — admitiu Nico; ele olhou para as escadas que levavam para o segundo andar. — Mas ainda há mais uma reunião antes que eu possa dormir.
— O que você quer dizer? — perguntou Rochelle.
Nico não disse nada, apenas gesticulou para que ela o seguisse. Ele subiu penosamente, sentindo seus pés pesados pisando os degraus. A luz de uma lâmpada vinha do quarto dos fundos, onde antes não havia luz. Nico ouviu a lâmina da faca de Rochelle sair da bainha e balançou a cabeça para ela.
— Você não vai precisar disso. Não ainda.
Ele andou tranquilamente pelo corredor até o quarto e empurrou a porta para abri-la.
— Você ouviu o que queria ouvir? — perguntou Nico para a pessoa no quarto.
— Você ouviu o que queria ouvir? — disse Nico, e Sergei deu de ombros.
— No geral, sim — respondeu o embaixador. — Você simplesmente salvou a si mesmo e aos ténis-guerreiros.
— Minha segurança não está em suas mãos, Nariz de Prata — disse Nico, mas a bravata soou cansada e sem ânimo.
— Ah, mas na verdade está, sim — disse Sergei.
Ele vislumbrou um movimento atrás de Nico e viu um rosto.
— Rochelle. Por favor, por que vocês dois não entram e se sentam? Não há motivo para não termos uma conversa civilizada, só nós três.
Nico deu de ombros e entrou, se sentando na beirada da cama no quarto. Sergei percebeu que o rapaz lançou um olhar furtivo para a porta do outro lado, nos fundos da casa. Sergei a tinha deixado aberta, mostrando a escada que descia até um beco atrás da casa do vendedor de tecidos. Rochelle entrou e imediatamente encostou as costas na parede lateral da porta do corredor, ficando de pé e encarando Sergei, com olhos concentrados e perigosos. O embaixador ergueu as mãos dos braços da cadeira, a direita segurava a bengala. Nico pensou ter podido sentir o feitiço de Varina escondido dentro da madeira.
— Pronto, viu só. Eu não sou ameaça para nenhum de vocês, no momento.
A boca de Nico se contorceu, dando um leve indício de um sorriso.
— E nenhum de nós acredita nisso.
— Eu não esperava que acreditassem — respondeu Sergei.
Mentalmente, o embaixador repetiu o gatilho do feitiço que Varina colocara na bengala para que ele estivesse na ponta da língua, se precisasse usá-lo. Ele se perguntou se seria eficiente contra Nico — Sergei suspeitou que não seria tanto quanto ele esperava.
— Você tem uma rede de informações melhor do que eu pensava, Sergei.
— Eu tive sorte. Alguns de seus ténis morellis tinham as consciências pesadas. Depois da disputa no Velho Templo, eles não confiam mais tanto assim em você, Nico. Eles vieram me contar onde você estaria.
— Não posso dizer que os culpo. — Nico se recostou na cama. — Eu mesmo não confio em mim. O que você teria feito se eu não tivesse mandado os ténis-guerreiros obedecerem ao archigos?
— Há gardai, ténis leais e feiticeiros numetodos suficientes nas ruas para prender o dobro de pessoas que você conseguiu reunir aqui, mesmo com os ténis-guerreiros. — Sergei fechou os olhos e imaginou a cena. — Deixe-me dizer o que teria acontecido. Eles estão esperando pelo meu sinal. Eu teria levado todos vocês imediatamente para o pátio do lado de fora do Palácio da Kraljica, conduzindo o grupo pela Avi A’Parete como uma vara de porcos ao matadouro, para que todos vissem vocês. Quando vocês chegassem ao palácio, haveria uma enorme multidão de cidadãos lá para assistir ao espetáculo, e eu colocaria você e sua gente na frente. Eu arrastaria você, Nico, com torniquetes apertados nos antebraços. Eu diria aos cidadãos que você e os ténis-guerreiros que lhe seguem preferem ver Nessântico queimar e todos eles mortos a cumprir seus juramentos a Cénzi, à fé concénziana e ao povo. Eu teria entregado o machado do carrasco para um voluntário entre os cidadãos... e haveria muitos voluntários, Nico. Eu mandaria essa pessoa arrancar as mãos dos seus braços. Seus gritos ecoariam pelas muralhas do palácio, tão alto que você acharia que Nessântico inteira poderia ouvi-los. Então eu faria com que outro cidadão puxasse a língua da sua boca e a cortasse com uma tesoura incandescente, para que a ferida fosse imediatamente cauterizada. Eu não quereria que você morresse. Não ainda. Eu diria para todos eles — os cidadãos e ténis-guerreiros assistindo — que esse era o castigo da fé concénziana, e que então eu mostraria o castigo do Trono do Sol. Eu amarraria você a um poste e mandaria um garda da Bastida abrir seu estômago e puxar um pedaço dos seus intestinos. Eu amarraria esse pedaço a um molinete e faria o garda extrair suas entranhas aos poucos, com o molinete rangendo e girando. Se você ainda estivesse vivo depois disso, então eu mandaria que você fosse esfolado, sua pele seria arrancada de seu corpo vivo. Quando você finalmente morresse, com sofrimento e tormento, seu corpo seria colocado em uma jaula e exposto, com as mãos e a língua pregados ao crânio.
Nenhum dos dois falou durante a longa história. Sergei abriu os olhos. Nico ainda estava na cama, olhando para o embaixador, mas sua expressão continha uma máscara inescrutável. Rochelle parecia horrorizada. Sua boca estava ligeiramente aberta, e ela evitava olhar diretamente para Sergei.
— Você se deleita com essa fantasia — disse Rochelle, com raiva.
— Sim, me deleito — admitiu Sergei.
O embaixador lançou um olhar breve para Rochelle antes de voltar a atenção para Nico. Ele coçou a base do nariz de metal com o indicador e continuou.
— Eu diria para os ténis-guerreiros que eles teriam duas escolhas. Uma seria renunciar você, obedecer ao archigos e servir a Nessântico, e eles talvez vivessem. A outra seria sofrer seu destino imediatamente. Eu daria essa escolha a cada um. Quantos você acha que teriam seguido você no martírio, Nico?
— Eu não sei. Nem acho que sirva para alguma coisa especular a respeito disso, já que isso não aconteceu. Eu mandei que os ténis-guerreiros obedecessem ao archigos e você os deixou partir. O que importa é o que acontece a partir de agora. — Nico mudou de posição e se sentou de costas eretas na beirada da cama. — Então, o que acontece agora, de fato, Sergei? Você vai tentar me prender de novo?
— Eu posso tentar — respondeu o embaixador, levantando a mão quando Nico começou a contestar. — Apesar da minha fantasia — ele parou e sorriu para Rochelle —, depois de seu espetáculo na praça, eu realmente duvido que eu conseguisse fazê-lo
— Eu não faço ideia de como aquilo aconteceu — disse Nico. — Aquilo foi Cénzi, não eu.
— Então talvez Cénzi, se realmente for Ele, torne ao mesmo tempo difícil e custoso prender você, e é perfeitamente possível que eu não sobreviva à tentativa. Mas há gardai e utilinos suficientes aguardando a minha ordem, estou certo de que, com o tempo, nós teríamos sucesso, mesmo com Cénzi.
— Isto é blasfêmia — disparou Nico.
— Talvez fosse, se eu realmente achasse que Cénzi seria o responsável. Mas...
— Por que você está aqui então, se não é para me prender?
— Estou aqui porque Varina é minha amiga, e ela me pediu para vir. Pessoalmente, eu considero que Varina é indulgente demais com você, mas ela acha que você merece ser salvo, que você pode na verdade se redimir, e também acha que nós precisamos de você. Eu mesmo não tenho tanta certeza. — Sergei bateu com a bengala no tapete sob a cadeira. — O que você quer, Nico?
— Isso é fácil — respondeu o jovem. — Eu quero continuar a servir Cénzi.
— E, por enquanto, o que Cénzi exige de você, na sua cabeça? Seria ajudar a defender Nessântico, como você mandou que os ténis-guerreiros fizessem?
Nico tinha entendido; Sergei pôde ver.
— Se esse fosse o caso, se por acaso eu acreditasse nisso, o que eu ganharia com isso?
— Você ainda precisa responder por muita coisa, Nico — disse o embaixador. — A morte da a’téni ca’Paim, a morte de todos os que tentaram defender o Velho Templo, a destruição, os ferimentos. Varina pode estar disposta a deixar tudo isso passar, mas não a kraljica. Não completamente. Mas... talvez possa se argumentar que a morte de ca’Paim foi acidental e não premeditada, que os gardai que morreram estavam cumprindo seu dever, e que, se os morellis e seu Absoluto servirem bem aos Domínios e jurarem trabalhar com os Domínios no futuro, então talvez grande parte do que aconteceu possa ser perdoado. Não esquecido, jamais esquecido, é claro, mas saberíamos que tudo isso foi imensamente lastimável.
— Você faz uma promessa que não tem autoridade para cumprir, Sergei, nem Varina.
— Mas eu tenho a autoridade para oferecê-la em nome de quem tem — respondeu o embaixador. — A escolha é sua, considerar ou não a promessa.
Nico fez hum baixo na garganta.
— O archigos concorda com isso?
— O archigos não tem nada a ver com isso. É uma questão puramente secular. Você e a fé concénziana terão que chegar a seu próprio acordo, mas se você servir ao Estado, ele vai cuidar para que a Fé não faça nada que, bem, comprometa as suas habilidades. — Sergei bateu a bengala novamente, com mais força desta vez. — Nessântico precisa da sua ajuda, Nico. Eu vi o que você é capaz de fazer. Você seria o mais formidável téni-guerreiro que nós teríamos.
Sergei esfregou o nariz novamente e completou.
— Se isso for o que Cénzi deseja.
— Não faça piada disso, Sergei.
— Eu lhe garanto que estou sendo completamente sério.
— Eu preciso rezar primeiro. Não posso lhe dar uma resposta agora.
O embaixador suspirou.
— E eu não posso esperar, Nico. Lamento.
Sergei gemeu ao se levantar e caminhou até a porta dos fundos. Ele ergueu a bengala; lá fora no beco, figuras se mexeram, e ele ouviu passos correndo no primeiro andar, se deslocando pela casa. Sergei se voltou para o quarto.
— Eu realmente lamen...
Ele ia dizer, mas foi atingido pelo frio do Ilmodo e viu a escuridão no meio do quarto, quando ela se dissipou, nem Nico, nem Rochelle estavam mais lá. Um garda meteu o rosto pela porta.
— Embaixador?
— Parece que o Absoluto mentiu para mim — ele disse para o homem.
Varina embalava Sera em seus braços, de um lado para o outro, em frente à janela. Lá fora, na rua após o pátio na frente da casa, uma fila aparentemente infindável de tropas em uniformes preto e prateado marchava para o oeste. Suas botas soavam uma cadência fúnebre e solene pela Avi a’Parete, como se a cidade em si fosse um tambor. Eles estavam marchando já há uma virada da ampulheta, desde a Primeira Chamada, e o barulho das cornetas que anunciavam a chegada das tropas tinha acordado Serafina. Varina aninhara a criança para sossegar sua agitação. Ela beijou a testa do bebê e sentiu a maciez sedosa do cabelo de Sera em seus lábios.
— Não fique assustada, Sera — sussurrou Varina contra o trovão baixo das botas nos paralelepípedos. — Eles estão aqui para nos proteger, querida. Estão aqui para manter você a salvo.
Ela ouviu uma batida suave na porta do quarto, seguida do rangido de dobradiças.
— A’morce, desculpe o atraso. As ruas estão uma confusão, como a senhora pode imaginar. Eu tive que vir pelos fundos... — A ama de leite, Michelle, entrou no quarto, a passos largos e soltando os laços da blusa. — A pobrezinha deve estar faminta. Aqui, deixe-me pegá-la um pouco...
Varina entregou Sera para Michelle e viu o bebê se agitar por um instante antes de a boca procurar e encontrar o mamilo e começar a sugar.
— Isso mesmo, não estamos famintas? — disse Michelle, sorrindo para Sera antes de olhar para Varina. — Parece tão...
A ama de leite se deteve, e Varina viu os olhos de Michelle ficarem úmidos.
— Desculpe — falou a jovem. — Às vezes, quando eu seguro Sera, eu penso no meu próprio...
Ela parou novamente e engoliu em seco.
— Eu não consigo imaginar a dor que você sentiu ao perder seu bebê — disse Varina. — Lamento muito, Michelle.
A ama de leite assentiu.
— A cidade inteira está em alvoroço — disse a jovem.
A mudança de assunto foi abrupta e, Varina sabia, completamente deliberada. Michelle ergueu o ombro e abaixou a cabeça para secar as lágrimas. Sera se remexeu e se ajeitou novamente em seus braços.
— Dizem que já é possível ver os ocidentais do topo da torre da Bastida. Não sei se é verdade, mas... — Michelle sentiu um arrepio, e Sera parou de mamar por um instante, seus grandes olhos azuis se abriram e se fecharam novamente, e ela voltou a se apegar ao seio. — A’morce, meu marido quer que eu vá para a casa do meu irmão em Ile Verte. Eu pensei, bem, pensei que, se a senhora quisesse... eu poderia...
Varina suspirou e acariciou a cabeça de Sera. Os olhos da criança se abriram novamente, encontrando o olhar de Varina. Sera sorriu por um momento em volta do mamilo, e uma bolha branca escapou de seus lábios antes de voltarem a mamar.
— Acho que seria uma excelente ideia, Michelle. Se você não se importar.
— De maneira alguma. Seria um prazer cuidar dela. A’morce, a senhora deveria vir também. Meu irmão tem uma casa grande lá, e tenho certeza...
Varina negou com a cabeça. Ela lançou um olhar para o exército marchando novamente: era o comboio de suprimentos da retaguarda agora — carroças e cavalos.
— Meu lugar é aqui — respondeu Varina. — Quando você pretende ir?
— Hoje à noite, depois da Terceira Chamada.
— Então por que você não vem pegar Sera na Segunda Chamada? Eu aprontarei as coisas dela para você então.
Michelle assentiu.
— Ela é linda. Foi uma pena o que aconteceu ao vatarh e à sua pobre matarh. Sera tem sorte de ter a senhora, a’morce.
Varina tentou sorrir e descobriu que não conseguia. Ela acariciou a cabeça do bebê novamente.
— Michelle, se alguma coisa acontecer comigo...
— Nada vai acontecer — respondeu a ama de leite rapidamente, sem deixar que ela terminasse.
Varina balançou a cabeça.
— Nós não sabemos disso. Caso alguma coisa aconteça, alguma coisa que signifique que eu não possa cuidar de Sera, você ficaria com ela? Belle fala tão bem de você, e talvez possa amenizar a sua perda, ao menos um pouco.
Michelle estava chorando agora, com a cabeça abaixada ao ver Serafina em seu seio.
— A’morce...
— Só diga sim. — Varina acariciou Sera mais uma vez. — Só isso.
Michelle assentiu de novo, e Varina abraçou as duas de leve.
— Ótimo — disse ela. — Isso me deixa mais tranquila.
Jan viu os offiziers posicionarem suas tropas. Ele, o starkkapitän ca’Damont e o comandante ca’Talin se posicionaram na sacada do segundo andar de uma casa de fazenda, situada em uma pequena elevação a algumas centenas de passos do rio Infante. No telhado da casa, Jan postou pajens com bandeirolas com mensagens, assim como corneteiros com trompas e zinks. Um buraco tinha sido aberto no teto do aposento atrás deles, com uma escada que levava até o telhado para que os pajens pudessem subir do posto de comando até o telhado e ordens pudessem ser dadas lá para cima. Desse ponto de observação, eles podiam ver as companhias sendo dispostas deste lado do rio, assim como os sapadores que colocavam obstáculos ao longo da margem para tentar impedir a travessia dos ocidentais.
Do outro lado do rio, mais perto de Nessântico, trabalhadores cavavam uma linha dupla de barricadas, para onde o exército — caso precisasse recuar — poderia retroceder e resistir à vontade.
Jan torcia para que as trincheiras não precisassem ser usadas, mas suspeitava que seriam.
As tropas ocidentais estavam visíveis no verzehen — um tubo com lentes, criado pelos numetodos, que permitia que a pessoa enxergasse a uma grande distância. Através da imagem circular distorcida e um pouco borrada captada pelo verzehen, Jan observou os offiziers dos tehuantinos, os guerreiros supremos, darem suas ordens. Viu o estandarte de cobra em um campo esmeralda. As tropas marchavam por campos, que antes tinham sido fazendas e bosques. As próprias árvores das florestas que cercavam os campos pareciam balançar com o passar do vasto número de ocidentais. Eles já se aproximavam da vila de Certendi.
Eram inimigos demais. Demais. Como uma colônia de formigas escarlate de Daritria, parecia que eles poderiam cruzar o Infante sobre os corpos dos mortos empilhados na água. Jan passou o verzehen para ca’Talin.
— Eles estão aqui. Chegarão à distância de uma flechada de nossas fileiras à noite. Se eu fosse o general dos tehuantinos, eu pararia ali para reunir as tropas e atacar na nova luz, mas... — O hïrzg deu de ombros. — Eles já fizeram o contrário antes. Nós talvez lutemos no escuro. Os ténis-guerreiros estão aqui?
— A maioria deles chegou ontem à noite, hïrzg — informou ca’Damont. — Praticamente todos do grupo dos Domínios, e a maioria dos nossos. Eles disseram que Nico Morel mandou que viessem.
— Então Sergei cumpriu sua palavra — respondeu Jan. — Excelente. Cénzi sabe que precisaremos de todos eles.
Ele gesticulou para um dos pajens; o menino veio correndo.
— Mande as trompas chamarem os a’offiziers de volta.
O pajem prestou continência e subiu a escada correndo; alguns instantes depois, eles ouviram o chamado nítido e estridente das cornetas.
— Estamos prontos então — falou o hïrzg. — Falaremos com os offiziers e, em seguida, vocês deverão se juntar a seus comandos e se aprontar. Veremos se estamos com as peças posicionadas onde precisam estar. Rezemos para Cénzi que este seja o caso.
Ele olhou através do verzehen mais uma vez e viu as figuras borradas dos guerreiros se aproximando. Jan duvidou que quem estivesse no comando dos tehuantinos sentisse a mesma dúvida que ele.
— Vamos detê-los ali — disse o hïrzg — precisamos fazê-lo.
A grande alameda em forma de anel da Avi a’Parete antigamente definia os limites da cidade de Nessântico, com uma muralha fortificada que percorria toda a sua extensão, exceto pela Ilha a’Kralji, adequadamente protegida pelas águas do A’Sele. Nessântico inteira cabia dentro dessa muralha — e essa muralha tinha sido imprescindível durante as guerras infindáveis entre os feudos de Nessântico e os feudos vizinhos.
Agora, a maior parte dessa muralha antiga tinha sumido, as grandes pedras tinham sido enterradas ou reutilizadas nos prédios da cidade, apenas algumas pequenas seções da construção ainda estavam de pé. Nessântico crescera para muito além dos limites da Avi a’Parete, embora bem mais em outras direções que ao sul. Próximo ao lado de fora das ruínas do velho Sutegate da cidade, ainda havia campos abertos e fazendas, e era ali que Allesandra observava o novo corpo de chispeiros treinar. Eles estavam vestindo roupas cotidianas, a maioria parecia ter sido tirada das ruas do Velho Distrito — o que era o caso, na verdade. Talbot se afastou do grupo assim que a kraljica se aproximou. Ele ajudou Allesandra a descer da carruagem, ainda vestido com o uniforme do palácio. Ela olhou para os homens no campo.
— Perdoe a aparência deles, kraljica — disse Talbot ao se dar conta do aspecto dos homens. — Eu só tive dois dias para trabalhar com eles.
— Onde está Varina? Eu pensei que estes instrumentos fossem ideia dela — perguntou Allesandra.
— Ela está resolvendo as coisas com a criança. Depois ela vai para a linha de frente ao norte com o hïrzg, juntamente com a maior parte dos numetodos. Eu pensei que a senhora soubesse. O hïrzg pediu o máximo de feiticeiros disponíveis.
Allesandra assentiu — Varina tinha lhe contado isso ou ela tinha esquecido? Alguém no grupo de chispeiros berrou a ordem para “disparar”. O estampido das chispeiras espocou, e uma fumaça branca eclodiu na ponta dos tubos de metal. Do outro lado do campo, alvos de papel presos em fardos de palha se agitaram ao serem atingidos pelas balas de chumbo.
Os cavalos levaram um susto nos tirantes da carruagem e arregalaram os olhos. O condutor puxou as rédeas e gritou seus nomes.
Allesandra notou que ela mesma deu involuntariamente um passo para trás diante da violência do som e quase caiu para trás, dentro da carruagem.
— A senhora deveria enfiar um pouco de papel nas orelhas, kraljica — sugeriu Talbot. — Esses instrumentos fazem uma algazarra infernal.
— A menos que o nosso inimigo esteja imóvel, parece que um tiro é tudo o que nosso corpo de chispeiros terá antes de os guerreiros estarem em cima deles — comentou Allesandra; todos os chispeiros estavam recarregando suas armas, e o processo parecia tomar um tempo excessivo. — Os tehuantinos estão acostumados com o barulho da areia negra; eles não vão se assustar com isso.
Talbot sorriu.
— Essa foi a minha preocupação, kraljica. Nós fizemos algumas pequenas modificações no projeto original de Varina. A carga de areia negra e balas é pré-fabricada, então não são necessárias medidas no campo. Nós também pensamos que, se estendêssemos um pouco o cano, poderíamos aumentar a distância e a precisão do tiro. E parece que isso deu resultado, embora isso tenha tornado a arma mais pesada e volumosa.
Lá fora no campo, alguns homens trocavam os alvos por novos. Os chispeiros ainda estavam recarregando suas armas.
— Preciso ou não, ainda é um só tiro. Se tudo o que eu tivesse fosse um único golpe de espada enquanto o inimigo podia atacar livremente, então a batalha acabaria rapidamente. Não faria diferença se eu tivesse a arma mais afiada.
— De fato — concordou Talbot. — Por isso eu pensei um pouco sobre a tática. Deixe-me demonstrar... Cartier, forme um esquadrão com fileiras de quatro.
Um dos homens fez uma leve mesura para eles e berrou mais ordens. Doze homens formaram três fileiras espaçadas com quatro homens, organizadas por Cartier. Talbot deu um passo na direção delas.
— Primeira fileira, ajoelhar! — gritou ele. — Primeira fileira, atirar!
Quatro chispeiras foram disparadas, e os estampidos ecoaram no campo. Os homens da primeira fileira se levantaram, cada um deu um passo para a esquerda e voltou para a retaguarda. Eles começaram a recarregar as armas.
— Segunda fileira, ajoelhar! — berrou Talbot. — Segunda fileira, atirar!
Novamente, soaram os estampidos e a fumaça branca foi levada pelo vento. Os homens se levantaram e foram para trás da primeira fileira.
— Terceira fileira, ajoelhar! — gritou ele. — Terceira fileira, atirar!
Outra série de trovões, e a terceira fileira recuou. A primeira fileira já tinha recarregado suas armas a esta altura.
— Primeira fileira, ajoelhar! Primeira fileira, atirar!
Outra saraivada, e Talbot sorriu para Allesandra.
— Alto! — berrou ele para os chispeiros, e se virou para Allesandra. — Kraljica?
Os flancos dos cavalos tremiam e puxavam as rédeas ansiosamente, e o condutor fazia um grande esforço para evitar que os animais saíssem correndo. Os ouvidos de Allesandra zumbiam com o barulho das armas.
— Isso foi impressionante, Talbot — disse a kraljica, e o sorriso dele aumentou.
— Um esquadrão com três fileiras pode disparar três saraivadas em alguns segundos e continuar atirando até acabarem as cargas de areia negra, apesar de, após vários tiros, as chispeiras ficarem quentes demais para dispararem com segurança.
— Mas uma coisa é ficar ali com nada além de fardos de palha para encarar, outra é ver o inimigo avançando com a intenção de matá-lo — continuou Allesandra. — Esses homens não são soldados, Talbot. Não são chevarittai. Sequer são numetodos. Eles parecem padeiros e doceiros, açougueiros e boticários.
— Sim, a maioria deles é composta por civis — admitiu Talbot. — Eu não sei como eles reagirão quando o momento chegar. Mas a eficácia... As armas de areia negra que usamos antes exigiam grandes quantidades de material, e não eram precisas: a explosão poderia matar várias pessoas ou ninguém, ou poderia matar os próprios aliados se a pessoa não tomasse cuidado. Os feitiços têm um alto custo em tempo e exaustão, e exigem anos de treinamento antes que se consiga usá-los bem. Usar uma espada ou lança eficazmente também exige semanas ou meses de treinamento. Estas...
Ele gesticulou para o campo e concluiu.
— As chispeiras de varina usam pouquíssima areia negra, são precisas como um feitiço e exigem apenas uma virada ou duas de treinamento para serem usadas. Elas mudam toda a equação.
— É disso que tenho medo — interrompeu Allesandra. — O poder que você deu à ralé destreinada...
— Infelizmente, a ralé é praticamente tudo que temos entre nós e os tehuantinos no momento, kraljica, a não ser que a senhora ache que a Garde Brezno pode fazer o impossível.
A kraljica franziu a testa e respondeu.
— Eu sei. Mesmo assim, alguma coisa nessa equação... — Ela deu um tapinha no ombro de Talbot. — Desculpe, Talbot. Eu só estou preocupada com o que isso pode significar no futuro: para os Domínios, para a fé concénziana, para a nossa sociedade.
Allesandra franziu os lábios e interrompeu o pensamento.
— Você fez um belo trabalho — disse ela. — Tudo que pedimos e mais. Só espero que isso funcione quando o momento chegar... e terá que funcionar.
A kraljica se empertigou e subiu no degrau da carruagem.
— Continue com o trabalho. Enquanto isso, eu preciso falar com Sergei e verificar a Garde Brezno.
Talbot fez uma mesura; ela entrou completamente na carruagem e gesticulou para o condutor. Ele estalou as rédeas no lombo dos cavalos, e com um ruído das rodas, a carruagem partiu aos solavancos.
Seus pés doíam e suas costas latejavam a cada passo. Os tehuantinos tinham passado por três vilarejos até o momento, enquanto marchavam, desertos — Tototl permitiu que os guerreiros procurassem comida e suprimentos, depois ordenou que as casas fossem queimadas. A fumaça ainda manchava o céu atrás deles.
Niente não queria nada além de se deitar e deixar que os guerreiros e nahualli o abandonassem na terra. Ficou agradecido quando Tototl mandou interromper a marcha acelerada. Ele desmoronou na grama ao lado da estrada e aceitou o pão, o queijo e a água que tinham sido oferecidos por um nahualli, sorvendo o frescor agradável. Niente viu uma sombra crescer e se aproximar dele. Tototl o observava.
— Eu vou lhe arranjar um cavalo, uchben nahual.
— Eu ficarei bem em um instante, guerreiro supremo.
— Eu vou lhe arranjar um cavalo — Tototl repetiu. — Eu preciso que o uchben nahual esteja pronto quando começarmos o ataque hoje à noite.
Niente raramente falava com Tototl, uma vez que os guerreiros supremos, com a exceção do tecuhtli com o nahual, raramente interagiam com os nahualli. Ele percebeu que estava olhando para o rosto pintado do homem se perguntando no que o guerreiro estaria pensando.
— Estamos assim tão próximos então?
— Veremos o topo das casas quando cruzarmos a próxima elevação. Os batedores me disseram que há tropas se aprontando para nos enfrentar. A batalha começará muito em breve agora.
Por alguns instantes, Tototl ficou em silêncio, e Niente ficou satisfeito em poder se sentar na margem de grama da estrada. A brisa tinha o cheiro da fragrância desta terra. Então Tototl se mexeu.
— O que você viu quando olhou na tigela premonitória, uchben nahual? Eu o observei, observei seu rosto, e não acredito que tenha dito tudo para o tecuhtli Citlali.
— Eu disse a verdade — insistiu Niente. — O nahual Atl viu a mesma coisa.
A boca de Tototl se contorceu sob a pintura da tatuagem que adornava seu rosto.
— Seu filho não é você, uchben nahual. Ele pode vir a ser um dia, mas ainda não é. Você está omitindo alguma coisa, alguma coisa que lhe assustou. Eu vi no seu rosto, Niente. Quero saber: você nos viu derrotados?
Niente balançou a cabeça. Eu vi a nossa vitória aqui e seu preço terrível. Vi que isso poderia ser evitado e que esse futuro era confuso e emaranhado demais para ser previsto.
— Não — respondeu ele.
— Eu não tenho medo de morrer. — Tototl estava olhando ao norte na estrada, como se já pudesse ver a cidade. — Morrer em batalha é um fim que todo guerreiro supremo busca. Não é o medo de morrer; estou com medo do preço que isso cobrará dos tehuantinos.
Tototl olhou novamente para Niente, e uma esperança brotou dentro dele, uma esperança de que o guerreiro pudesse entender o que Citlali não entendia.
— É disso que você também tem medo, uchben nahual?
A garganta de Niente pareceu se fechar com o olhar fixo de Tototl. Ele concordou em silêncio.
— Então você viu alguma coisa.
Dessa vez Tototl falou com convicção. Niente balançou a cabeça.
— Eu não sei — respondeu ele. — Eu vi muitos caminhos, guerreiro supremo. Vários, e todos eles incertos. Mas...
Niente respirou profunda e lentamente. Será que você pode confiar neste homem? Será que isso é uma armadilha preparada por ele, talvez até mesmo por Citlali e Atl?
— Deixe-me perguntar uma coisa: se você matasse um guerreiro em um desafio, poderia alegar que conquistou uma vitória. Mas se, ao matar esse guerreiro, você, por sua vez, enfurecesse tanto o filho dele que, quando este se tornasse um guerreiro e trouxesse um exército destruindo tudo o que você construiu, destruindo completamente tudo o que você ama, sem possibilidade de recuperação? Essa vitória inicial valeria a pena?
— Isso dependeria — respondeu Tototl —, se você pudesse dizer, sem dúvida, que o filho faria tudo isso.
Niente balançou a cabeça.
— O futuro nunca está completamente garantido. Mesmo o que acontecerá daqui a um instante pode ser mudado se Axat quiser. Mas, se eu dissesse que este era o resultado provável? Você conteria o golpe da espada?
— Se esse golpe da espada me custasse a própria vida talvez não — disse Tototl. — Nenhum guerreiro quer oferecer sua vida de graça para o inimigo. Eu acho que a mesma coisa valeria para um nahualli.
— Eu diria o mesmo no seu lugar — falou Niente.
Tototl inclinou a cabeça ligeiramente. Ele resmungou alguma coisa que pareceu ter sido um assentimento.
— Já que você diz que o futuro é sempre incerto, você apoiaria um guerreiro supremo plenamente, uchben nahual, mesmo que pensasse que esse seria o caminho errado?
— Esse é o dever de um nahualli — respondeu Niente.
Um rápido sorriso se formou no rosto de Tototl, e Niente percebeu que o guerreiro entendeu que ele não tinha respondido completamente à pergunta.
— Eu vou lhe arranjar um cavalo, uchben nahual — disse Tototl.
— Ela estava com ele? Você tem certeza de que era ela?
Sergei concordou com a cabeça.
— Era Rochelle, hïrzgin. Então ao menos essa parte da história que ela me contou parece ser verdade. Rochelle foi criada como irmã de Nico pela Pedra Branca. Se ela sabe ou não se ele é de fato seu irmão...? — Sergei ergueu um ombro cansado. — Eu não tenho certeza de que Rochelle entende isso.
Ele e Brie estavam montados em seus cavalo, olhando para os campos em volta da Avi a’Sutegate onde a Garde Kralji estava acampada. Sergei sabia que havia poucos homens — dados os relatórios que os batedores tinham informado sobre o tamanho das forças ocidentais que avançavam na direção deles. Embora os offiziers tivessem ensaiado manobras com os gardai, suas tropas pareciam morosas e confusas. Elas não tinham sido treinadas para isso: combate aberto em grande escalada contra outra força organizada e treinada. Isso tinha sido demonstrado na disputa do Velho Templo, quando até mesmo os igualmente destreinados morellis foram capazes de contê-los por um tempo considerável. A Garde Kralji era uma guarda pessoal e unidade policial, não um batalhão do exército.
A batalha não será vencida aqui, Sergei pensou consigo mesmo. Será vencida do outro lado do rio A’Sele, com o hïrzg e a Garde Civile. Só temos que nos defender aqui, detê-los por tempo suficiente para que a Garde Civile retorne e nos salve.
O embaixador estava bastante certo de que eles precisariam desse resgate e não tinha muitas esperanças de que o socorro viria.
— Eles parecem muito atrapalhados e lentos, e eu não estou nada impressionada com os offiziers — disse Brie ao lado de Sergei, como se tivesse ouvido os pensamentos do embaixador.
Ela estava vestida com uma armadura completa sobre uma tashta acolchoada e carregava uma espada na lateral, embora o elmo ainda estivesse amarrado à sela. Seu cabelo estava preso em uma trança que lhe caía pelas costas. A hïrzgin parecia estar completamente à vontade no traje marcial — assim como, pensou Sergei, Allesandra parecia quando comandava as tropas em campanha. Era uma pena, pensou o embaixador, que ambas não tivessem se conhecido há tanto tempo. O filho de Allesandra se casara com alguém muito parecida com sua matarh, consciente ou inconscientemente.
— Eu queria ter trazido a Garde Brezno também. A Garde Kralji vai precisar de uma liderança forte em campo ou vão debandar assim que o combate se torne difícil.
— Realmente — respondeu Sergei. — A kraljica e a hïrzgin estarão no comando. O comandante co’Ingres, infelizmente, ainda sofre com os ferimentos, e o a’offizier ci’Santiago é, bem, digamos apenas que ele é inexperiente.
— Onde está a kraljica?
— A caminho, eu espero. Ela deve estar chegando a qualquer momento agora.
Brie assentiu, emitindo um ruído. Sergei viu a hïrzgin se debruçar na sela e ouvir o couro ranger. Ela olhava para o sul.
— Aquele é outro de nossos batedores? Ele está cavalgando rápido...
Brie apontou, e o embaixador viu uma nuvem de poeira ao longe, na Avi. Ele já não enxergava, e não pôde distinguir o cavaleiro ou as cores de seu uniforme.
— Pode ser — respondeu Sergei. — Seja quem for, está vindo rápido. Deve estar trazendo notícias.
Os dois estalaram as rédeas dos cavalos e desceram a meio galope até a estrada para encontrar o cavaleiro. O a’offizier ci’Santiago se juntou a eles quando o cavaleiro se aproximou galopando na montaria agitada. O cavaleiro prestou continência para eles.
— Os ocidentais — disse o homem, ofegante. — Não muito longe, na estrada... Mil ou mais... Todos na estrada.
Ele parou e recuperou o fôlego.
— Algumas viradas da ampulheta e os ocidentais estarão aqui — disse o cavaleiro. — Estão vindo em marcha acelerada e têm vários feiticeiros com eles, e também peças de máquinas de fazendas. Precisamos estar prontos.
Ci’Santiago assentiu, mas não teve reação. Sergei suspirou.
— Precisamos chamar Talbot e os chispeiros; a’offizier, talvez o senhor possa dar um cavalo novo para este homem e mandar que ele passe a mensagem adiante. Hïrzgin...
— Eu assumirei o comando de campo das tropas até a kraljica chegar — disse Brie. — Embaixador, você e o comandante co’Ingres podem cuidar da estratégia principal aqui nas tendas de comando.
Sergei notou que a hïrzgin já olhava para a paisagem e decidia onde colocar as tropas para melhor proveito.
— Vou precisar de sinalizadores, corneteiros e mensageiros, e quero falar com os offiziers. A’offizier ci’Santiago, preciso que você cuide disso imediatamente. O que você está esperando? Não há tempo, homem. Ande!
Ci’Santiago olhava boquiaberto para Brie, um instante depois, ele fechou a boca e prestou continência enquanto Sergei prendia o riso. O homem virou o cavalo e foi embora a galope, seguido pelo batedor. A hïrzgin olhava para o sul, com a boca franzida. Sergei pensou ter visto fumaça surgindo no horizonte.
— Eu acho que a senhora assustou o pobre homem — disse o embaixador, e Brie soltou uma gargalhada. — A esta altura ele provavelmente já deve estar reclamando da mulher demoníaca de Firenzcia.
— Se sobrevivermos a isso, eu ficarei satisfeita em ser a demoníaca. Você acha que sobreviveremos, embaixador?
— Eu estaria aqui se não achasse? — respondeu Sergei, torcendo para que ela não percebesse a mentira.
Nico ouviu a tranca dos portões da casa ser aberta levemente por Rochelle; ela sorriu para o irmão enquanto guardava as peças finas de metal dentro do embrulho.
— Fácil — disse Rochelle ao empurrar os portões para abri-los.
Nico entrou de mansinho na frente dela, mas sentiu Rochelle colocar a mão em seu ombro quase que imediatamente. Sob o capuz que ocultava seu rosto, ele olhou para a irmã; o manto pesado escondia o robe verde.
— Tem algo errado aqui — alertou Rochelle.
— O que você quer dizer?
— Escute — respondeu ela.
A rua do lado de fora dos portões estava lotada de gente saindo da cidade. Eles ouviram as vozes: os berros, as discussões, os gritos de crianças pequenas demais para compreender o pânico dos pais e parentes. Ela ouviu o estalo e os rangidos de carroças, os pés sendo arrastados no pavimento, os apitos dos utilinos que tentavam em vão direcionar o trânsito e impedir os confrontos inevitáveis.
— Tem todo esse barulho lá fora — disse Rochelle. — Mas aqui dentro... os funcionários deveriam estar correndo, preparando as coisas para sei lá o que, mas não se ouve nada. As persianas das janelas estão todas fechadas e provavelmente trancadas, e eu não ouço nada. Está silencioso demais aqui.
— O que você quer dizer?
Nico sussurrava. Ele já sabia a resposta, e sentiu o desespero se alojar em seu estômago.
— Eu acho que ela não está aqui, Nico. Acho que já foi embora. Lamento.
Irritado, Nico empurrou Rochelle e caminhou a passos largos em direção à porta da frente da casa de Varina. Estava trancada, em vez de esperar pela irmã, ele deu um chute forte e a madeira em volta da tranca rachou. Nico deu mais um chute e a porta se abriu.
— Sutil — disse Rochelle atrás dele.
Nico a ignorou e deu um passo na entrada de mármore. Agora ele sabia que Rochelle estava certa; os criados teriam vindo correndo, prontos provavelmente para defender a casa, mas não havia ninguém visível.
— Varina? — chamou Nico.
Ele pensou ter visto um gato cruzar o corredor a sua frente. Exceto pelo gato, não houve resposta. Nico ouviu Rochelle entrar na casa atrás dele e percebeu que ela empunhava uma faca, com a lâmina exposta.
— Não vamos precisar disso — falou Nico.
— Provavelmente, não. Mas me faz sentir melhor.
Ele deu de ombros. Nico andou devagar pelo corredor e espiou as salas de visitas em ambos os lados. A mobília ali estava coberta por lençóis; o gato olhou fixamente para ele de cima de uma poltrona coberta, depois voltou a lamber as patas dianteiras. Nico continuou a percorrer a casa: o solário, a biblioteca, as cozinhas — todos estavam igualmente vazios, não parecia que Varina esperava retornar em breve. Ele ouviu o chamado de Rochelle do segundo andar e seguiu o som da voz dela. Ela havia tinha embainhado a faca e estava parada na porta do que só poderia ser o berçário. A mobília ali também estava coberta. Rochelle abriu as gavetas da cômoda em uma parede.
— Vazias — disse ela. — Eu disse: Serafina não está aqui, Nico. Os numetodos a levaram para outro lugar.
Nico balançou a cabeça.
— Varina ainda está na cidade. Eu posso sentir.
Rochelle ergueu uma sobrancelha.
— Bom, se está, não está aqui, e o bebê também não.
— Ela despachou Sera — falou Nico.
— Isso eu inferi. Então, será que Cénzi pode lhe dizer para onde?
Ele fez uma careta para Rochelle, ele ia alertá-la sobre a blasfêmia em seus lábios, mas se conteve. Ela pareceu notar também e ergueu a mão.
— Muito bem, então você não sabe. O que nós sabemos para valer? — perguntou Rochelle, mas Nico só conseguiu balançar a cabeça.
— Eu não sei.
Após o confronto com Sergei, ele esperava pegar Sera, sair da cidade com a filha e a irmã e encontrar um lugar para pensar e rezar: para saber o que Cénzi queria dele, para saber como amenizar a culpa e a dor que carregava... Nico esperava — e rezava — que Cénzi lhe desse sua filha, mas parecia que Cénzi ainda tinha planos para ele. Nico olhou para cima.
— Cénzi, o que o Senhor está tentando me dizer?
Ele prestou atenção aos sussurros em sua cabeça e coração, seu rosto ficou sério.
— Acho que chegou o momento de nos separarmos por um tempo — Nico disse para Rochelle.
A Fúria da Tempestade
O sol estava se pondo a oeste no fim da tarde, mas onde antes havia um céu claro, agora uma tempestade se anunciava do outro lado do rio Infante. Uma massa de relâmpagos e trovões se exibia alto no céu, embora houvesse nuvens espreitando perto do solo, de maneira inacreditável. O exército dos tehuantinos estava envolvido por suas sombras, e a tempestade caminhava a passos irregulares com seus raios inconstantes.
As nuvens negras e turbulentas estavam se espalhando ao sul e seguindo a linha de frente estabelecida pelos tehuantinos. O cavalo de Jan se agitou embaixo dele e bufou quando o trovão baixo rosnou como uma grande fera. Havia um odor intenso no ar que fez Jan franzir as narinas.
— Tempestade de guerra — murmurou um chevarittai ao lado de Jan. — Que covardes... eles nem ao menos nos darão a oportunidade de lutar corpo a corpo honrosamente primeiro.
Jan concordou — ele já tinha ouvido falar das tempestades de guerra dos tehuantinos, invocadas pelos feiticeiros: um feitiço cooperativo. Os ocidentais usaram as tempestades de guerra com grande efetividade da última vez que estiveram aqui, assim como durante as batalhas com os Domínios nos Hellins, mas Jan nunca tinha visto uma. Ele duvidava que fosse gostar da experiência em primeira mão.
— Alertem os ténis-guerreiros — ordenou o hïrzg dando um tapinha no pescoço do cavalo para acalmá-lo. — Vamos precisar deles. O ataque está começando.
Jan, seguido por várias companhias de tropas e chevarittai firenzcianos, estava a oeste do rio Infante, logo abaixo da vila de Certendi. A ponte sobre o rio estava às suas costas. Ao leste do rio, ele podia ver as barricadas que tinham sido construídas; o hïrzg tinha pouca esperança de que eles conseguissem dominar a margem oeste por muito tempo. O starkkapitän ca’Damont estava mais perto do leito do rio, com o restante do exército firenzciano; e o comandante ca’Talin, junto à Garde Civile dos Domínios, estava ao extremo sul da linha de frente, perto do ponto onde o Infante se reunia ao A’Sele.
— Diga aos seus homens que eles precisam resistir — disse Jan para os chevarittai.
Ele puxou as rédeas do cavalo e galopou colina abaixo através das fileiras de infantaria e arqueiros.
— Resistam! — Jan disse para todos eles. — Nós precisamos resistir aqui.
À medida que a tempestade de guerra avançava e o rugido da grande nuvem ficava mais alto e sombrio, os ténis-guerreiros avançavam. Jan gesticulou para os robes verdes.
— É aqui que vocês começam a receber seu perdão. Aquela tempestade tem que ceder.
A tempestade se aproximava a cada instante. O ar tinha cheiro de raios, mas não de chuva. À frente das tropas, no que tinha sido um campo com plantação de trigo e grãos, o hïrzg tinha mandado construir armadilhas para os guerreiros tehuantinos: espetos afiados de ferro fincados no chão, buracos encobertos com os fundos cheios de estacas de madeira, pacotes de areia negra que Varina e os numetodos tinham encantado para que explodissem quando alguém pisasse perto deles. A tempestade marchava pelo campo, mas não ainda os guerreiros ocidentais. Os raios rasgavam o solo, arrancavam os espetos e expunham os buracos, jogando terra para todos os lados e fazendo os pacotes de areia negra explodirem inofensivamente.
Jan praguejou para os ténis-guerreiros.
— Agora! — berrou ele. — Agora!
Os ténis-guerreiros começaram a entoar seus cânticos e disparar a energia do Ilmodo na direção da falsa tempestade. A cada feitiço lançado, a tempestade começava a se desmanchar, e mais abaixo, eles puderam ver os guerreiros tehuantinos escondidos, marchando gradualmente em sua direção.
— Arqueiros! — gritou Jan.
Atrás dele, as cordas dos arcos rangeram ao serem tensionadas, uma leve saraivada de flechas desenhou um arco no alto, caindo como uma chuva sobre os ocidentais. Eles ergueram seus escudos imediatamente. Jan viu vários guerreiros caírem, apesar da proteção, ainda que, sempre que um caía, outro tomava seu lugar. Ao sul, a tempestade se assomava sobre as fileiras dos Domínios, e o hïrzg ouviu gritos de dor e susto quando seus raios atacaram os soldados de lá. Mas a tempestade já começava a se desmanchar — o poder que a mantinha fora gasto. Agora Jan ouviu os berros guturais dos feiticeiros ocidentais; bolas de fogo guincharam como moitidis furiosos na direção deles. Os ténis-guerreiros entoaram os contrafeitiços; o hïrzg viu várias bolas de fogo explodirem inofensivamente no ar, mas outras passaram e colidiram contra as fileiras, cuspindo sua terrível destruição flamejante e abrindo brechas na linha de frente. O cavalo de Jan empinou, aterrorizado.
— Avancem as fileiras! Tapem as brechas! — berrou o hïrzg enquanto tentava acalmar seu cavalo.
Os offiziers gritaram instruções; as bandeirolas de sinalização foram sacudidas.
Então, com um grande grito, os guerreiros avançaram, havia pouco tempo para se pensar em qualquer coisa. Jan desembainhou a espada e esporeou o cavalo para seguir em frente. Os chevarittai soltaram um berro de fúria e seguiram o hïrzg, os gardai da infantaria avançaram como uma onda preta e prateada para encarar os ocidentais.
Eles colidiram em um turbilhão de espadas, lanças e piques.
Jan tinha lutado contra as legiões de Tennshah. Esses ocidentais eram igualmente ferozes enquanto guerreiros, mas bem mais disciplinados. O hïrzg ouviu os offiziers dos tehuantinos berrarem ordens expressas na língua deles, e os feiticeiros estavam entre eles, brandindo seus cajados estalando e brilhando com os feitiços. Dessa parte Jan se lembrava. Ele golpeou um mar de rostos marrons pintados de vermelho e preto com sua espada, e sempre que derrubava um, outro guerreiro surgia para tomar seu lugar. Eles estavam sendo repelidos aos poucos, e, mesmo assim, os ocidentais continuavam surgindo. Jan percebeu que eles não resistiriam deste lado do rio — se fossem repelidos tão próximo ao rio, não haveria uma retirada organizada; eles seriam massacrados.
— Recuar! — berrou o hïrzg. — Para a ponte! Para a ponte!
Os offiziers atenderam ao grito; os porta-estandartes sacudiram as bandeirolas de sinalização, as cornetas tocaram o sinal. As tropas firenzcianas, disciplinadas e precisas como sempre, cederam terreno, como tinham sido treinadas, a contragosto, permitindo que os arqueiros e ténis-guerreiros cobrissem a retirada e carregassem os feridos, sempre que possível.
Os mortos, eles deixaram.
Ali, havia duas pontes que cruzavam o Infante, com oitocentos metros de distância uma da outra. A ponte norte, que corria pela Avi a’Nostrosei, já tinha sido destruída. A ponte da Avi a’Certendi ainda estava em pé. O Infante podia ser cruzado, mas não seria fácil, pois a correnteza era rápida e havia poças profundas que apenas os locais conheciam. Os arqueiros e ténis-guerreiros foram os primeiros a passar pela ponte enquanto a infantaria e os chevarittai continham os ocidentais, sob as ordens dos offiziers para correr em direção às barricadas que tinham sido erguidas do outro lado. Jan permaneceu com os homens, sua armadura estava manchada de sangue e amassada, o aço cinzento da sua espada firenzciana estava sujo de sangue seco, até que a ponte estivesse liberada e os arqueiros tivessem entrado novamente em formação do outro lado.
— Fujam! — ele gritou, finalmente, quando ouviu as trompas do outro lado do Infante.
Eles correram em direção à ponte. Jan se virou ali novamente e conteve os guerreiros que o perseguiam, urrando. O chão em torno dele e dos chevarittai estava coberto de corpos. Um feiticeiro brandiu seu cajado, e o chevaritt ao lado do hïrzg caiu, emitindo um berro e emanando cheiro de enxofre, mas o feiticeiro foi abatido no momento seguinte. A maior parte da infantaria estava do outro lado.
— Cruzem a ponte! — gritou Jan. — Chevarittai, cruzem!
Eles viraram seus cavalos e fugiram. Os cascos dos cavalos de guerra bateram nas tábuas da ponte, e o hïrzg gesticulou para os ténis-guerreiros que esperavam do outro lado. Os tehuantinos os perseguiram, estavam perto demais. Os guerreiros já estavam na extremidade oeste da ponte.
— Agora! — berrou Jan ao chegar à terra firme do outro lado. — Derrubem a ponte!
— Hïrzg, não antes de estarmos atrás das barricadas — disse alguém.
Jan ficou de pé nos estribos, furioso, e rugiu.
— Derrubem a ponte agora!
Os ténis-guerreiros entoaram os cânticos e o fogo começou a subir pelas vigas de madeira. As chamas lamberam o papel que embrulhava a areia negra amarrada ali.
A explosão atirou pedaços da ponte para o alto, pedaços enormes de vigas se contorceram, os tijolos e pedras das pilastras cortaram o ar. Os guerreiros e gardai foram igualmente golpeados. Um dos tijolos bateu em Jan, e o impacto o derrubou do cavalo. Ele ouviu o cavalo relinchar também, um som horrível. Ao cair, o hïrzg viu o centro da ponte entrar em colapso e cair no Infante devolvendo um imenso espirro d’água, levando uma massa de guerreiros ocidentais com ela.
Então Jan caiu no chão. Por um momento, tudo ficou preto a sua volta. Quando recuperou a consciência, ele viu rostos e mãos sobre si.
— Hïrzg, o senhor está ferido?
Jan permitiu que o ajudassem a levantar. Seu peito doía como se o cavalo tivesse caído sobre ele, e a armadura onde o tijolo o tinha atingido estava amassada. Seu peito ardia a cada inspiração; ele teve que respirar aos poucos enquanto se livrava das mãos sobre si. O cavalo se debatia no chão, com uma tábua enterrada em seu flanco.
A ponte tinha sido destruída. O sol já tinha se posto ao nível das árvores e projetava longas sombras sobre o campo de batalha. Os ocidentais tinham recuado para o limite da água para sair do alcance das flechas. Jan mancou até o cavalo. Uma das patas dianteiras do garanhão estava quebrada, e sangue espirrava do longo ferimento em seu flanco.
— Minha espada? — pediu ele, e alguém lhe entregou a arma.
O hïrzg se ajoelhou ao lado do cavalo e acariciou seu pescoço.
— Descanse — falou Jan. — Você serviu bem.
Com um gemido de dor, ele ergueu a espada e golpeou com força, abrindo um corte profundo no pescoço do animal. O cavalo tentou se levantar uma última vez, depois ficou imóvel. O mundo parecia dançar em volta de Jan, sua visão periférica se escureceu novamente. Ele se forçou a ficar de pé, apoiado na espada.
— Formem as fileiras atrás das barricadas — disse o hïrzg para quem estava ao redor. — Cuidem dos feridos e organizem as vigias. Mandem os a’offiziers virem até mim e avisem o starkkapitän e o comandante sobre o que...
Aconteceu aqui...
As palavras estavam em sua mente, mas não pareciam sair. A escuridão tomou conta dele demais, apesar do sol ainda estar visível no céu.
Ele se sentiu cair.
Não havia nahualli suficiente com Niente para criar uma tempestade de guerra. À frente deles, sob a luz dourada do fim de tarde, os tehuantinos viram as tropas orientais dispostas nas encostas dos morros, em ambos os lados da estrada. O número de guerreiros parecia ser muito maior que a quantidade de orientais, a menos que eles tivessem tropas reserva escondidas do outro lado da encosta.
Tototl bufou desdenhosamente.
— Isso é tudo que eles têm contra nós? — comentou ele, e os guerreiros próximos riram. — Uchben nahual, chegou o momento de fazer o que conversamos.
Niente assentiu para Tototl, virou o cavalo e cavalgou de volta ao abrigo dos nahualli entre os guerreiros. Ele mandou que os nahualli enchessem seus cajados mágicos como de costume na noite anterior, para que pudessem realizar o feitiço quando fosse necessário e ainda estarem descansados para a batalha. Eles não podiam criar a tempestade de guerra, mas podiam criar uma nuvem grande o suficiente para encobri-los. Foi o que fizeram agora: o cântico em massa reuniu o poder do X’in Ka, a energia se condensou no ar e se tornou visível. Filetes de nuvem começaram a flutuar em frente aos guerreiros, da estrada até quase às margens do rio, uma bruma espessa se formou e adensou, uma muralha formada pelos nahualli para que os orientais não pudessem mais vê-los. Essa muralha não acompanharia as tropas, nem geraria os raios da tempestade de guerra. Niente gesticulou quando não conseguiu mais ver as tropas orientais à frente deles, nem os morros onde elas estavam, e os nahualli interromperam o cântico.
Niente cambaleou, como se tivesse corrido até o rio e voltado: o preço do cântico e da canalização de energia, mas ele se forçou a se manter de pé, embora muitos jovens nahualli tivessem desmoronado, ofegantes. Usar o X’in Ka desta forma — para criar um feitiço sem se dar tempo de recuperar o esforço — tinha um preço alto; Niente não compreendia por que os feiticeiros orientais geralmente faziam magia dessa forma, em vez de estocar os feitiços para serem lançados mais tarde.
— Levantem-se — falou ele. — Peguem os cajados mágicos. Ainda há uma batalha a ser travada.
Com a muralha de bruma impedindo a visão das tropas orientais, Tototl berrou ordens, gesticulou para os guerreiros de menor escalão e os guerreiros supremos responsáveis por eles. Duas companhias seguiram para a esquerda, em direção ao rio — elas contornariam os orientais que avançariam contra os inimigos em sua retaguarda e nas laterais. Tototl esperou até o braço do flanco se afastar e Niente cavalgar até ele.
— Se isto é tudo o que está entre nós e a cidade, nós chegaremos lá esta noite, uchben nahual — falou o guerreiro supremo. — Parece que seu filho enxergou bem: nos mandar cruzar o rio é o caminho para a vitória. Eles não estavam preparados para isso. Nós avançaremos até a cidade e surgiremos contra o restante do exército oriental pela retaguarda, enquanto Citlali e o nahual Atl atacam pela vanguarda. Eles serão esmagados por nós como uma noz com casca entre pedras.
O comentário só fez Niente fechar a cara. Ele tentou usar a tigela premonitória na noite anterior: tudo estava confuso, e os poderes se mexiam do lado dos orientais, de maneira que não foi possível ver claramente, e o Longo Caminho lhe escapou completamente. Tototl pareceu achar graça na irritação de Niente; ele riu.
— Não se preocupe, uchben nahual — falou o guerreiro supremo. — Eu ainda tenho fé em você. Seu cajado mágico está cheio?
Niente levantou o cajado de madeira de lei de ébano que ele tinha entalhado com tanto cuidado há décadas com seus símbolos de poder. Com os anos, suas mãos poliram o punho nodoso e o centro do cajado, deixando um acabamento acetinado e reluzente. O objeto parecia fazer parte dele; Niente sentia a energia em seu interior, esperando para pronunciar os gatilhos para provocar fúria e morte. No entanto, mesmo mostrando o cajado para Tototl, e enquanto os guerreiros e nahualli ao redor gritavam em afirmação, Niente sentiu pouca coisa além de desespero.
Não havia vida nesta vitória, se é que seria uma vitória. Nenhuma alegria. Não se ela levasse para o lugar que ele vislumbrara uma vez.
Tototl desembainhou a espada e a ergueu, juntamente com o cajado de Niente, e os gritos redobraram.
— É o momento de sangue! — declarou o guerreiro supremo. — É o momento de morte ou glória!
Ele apontou para a margem da nuvem com a espada.
— Por Sakal! — rugiu Tototl.
Os tehuantinos berraram com ele ao avançarem. Niente foi levado pela onda, mas estava calado.
Eles entraram no vazio frio e cinzento da nuvem e saíram para o sol, o calor e a batalha.
Brie havia posicionado as tropas nas duas encostas de morro que flanqueavam a estrada, com apenas uma única companhia na estrada em si, e arqueiros em posição de ambos os lados — eles ao menos teriam a vantagem da altura do terreno para começar esta batalha. Os ocidentais teriam que avançar morro acima se quisessem enfrentá-los.
Se tivessem chevarittai, eles poderiam descer a toda velocidade, como uma gigantesca lança sendo enfiada em meio aos ocidentais. Mas eles não tinham chevarittai, e tinham poucos arqueiros, apenas três numetodos — de quem Brie desconfiava ligeiramente, pois não havia numetodos em Firenzcia; pelo menos nenhum que se revelasse abertamente — e nenhum téni-guerreiro.
Allesandra tinha chegado há uma virada, ela vestiu sua armadura, e Brie cedeu o comando de campo para ela, como era apropriado, uma vez que a Garde Kralji era da kraljica.
— Vejo que você teve uma bela educação — disse Allesandra. — Eu não esperava menos de você.
Brie e a kraljica, juntamente com Sergei e o comandante co’Ingres, observavam a aproximação das tropas ocidentais, sob o estandarte de cobra com asas. A hïrzgin ficou séria ao ver o tamanho assustador da força inimiga; ficou ainda mais preocupada quando viu os feiticeiros — a salvo, fora do alcance dos arqueiros deles — colocarem uma muralha de bruma entre eles para mascarar a formação.
Brie não conseguiu conter um arrepio diante da cena.
— Kraljica, embaixador, existe algum terreno melhor e mais defensável entre o Sutegate e aqui? Talvez devêssemos tentar incomodá-los em vez de detê-los. Podemos mandar grupos menores contra os flancos, criar uma muralha defensiva na cidade...
Allesandra lançou um olhar para Sergei e co’Ingres, e nenhum dos dois falou.
— É tarde demais para isso, hïrzgin — respondeu a kraljica. — Nós temos que resistir aqui, precisamos detê-los o máximo de tempo possível, e temos que fazê-los pagar por cada passo de terreno que eles tomam.
Brie cerrou as mãos em volta das rédeas do cavalo de guerra.
— Então eu estarei ao seu lado, kraljica, na vanguarda.
— Não. — Allesandra balançou a cabeça. — Esse lugar e responsabilidade são meus, Jan jamais me perdoaria se você fosse ferida. Eu quero que você assuma o flanco do rio com os chispeiros de Talbot. Eles precisarão de uma coragem inabalável e de um comandante firme para guiá-los. Talbot pode ficar com você, mas eu preciso dos outros numetodos aqui; temos poucos, uma vez que a maioria seguiu com o comandante ca’Talin.
Brie queria discutir — em sua cabeça, a Garde Kralji também precisava de uma liderança forte ou debandaria, mas ela assentiu, a contragosto.
— Como queira, kraljica...
Relutante, ela cavalgou em direção ao oeste na estrada e subiu o morro, passando pela Garde Kralji — que olhou para a hïrzgin com preocupação — até a retaguarda, onde os chispeiros tinham sido posicionados. Brie balançou a cabeça ao vê-los, vestidos com o que quer que tivessem no corpo. Os chispeiros não vestiam nenhuma armadura, exceto por alguns, que usavam pedaços de couraça de metal enferrujado e cota de malha rasgada e mal ajustada. A não ser pelos estranhos apetrechos que cada um portava, eles estavam armados apenas com espadas antigas, instrumentos de fazenda e cutelos. Os chispeiros pareciam mais uma turba do que uma força de combate — uma turba que um simples esquadrão da Garde Brezno teria sido capaz de afugentar, fazendo-os correr aos berros.
Brie repassou as ordens da kraljica a Talbot; o homem parecia tão preocupado com os chispeiros quanto ela, mas tinha enviado seus colegas numetodos lá para baixo, para onde o estandarte da kraljica tremulava do lado leste da estrada.
— Eu sou o assistente dela — comentou ele ao observar os numetodos seguindo em direção ao estandarte da kraljica. — Eu deveria ter ido com eles. Isto é loucura.
— É por isso — disse Brie — que ela nos quer na retaguarda. Ela sabe quais são as chances. Esses chispeiros têm mesmo um propósito?
Em resposta, Talbot ensaiou os exercícios, formando os chispeiros em fileiras e recuando os homens em sequência. Brie tentou imaginar as chispeiras disparando, tentou imaginar o grupo não debandando e fugindo aterrorizado ao ver o inimigo. Enquanto Talbot berrava ordens, a hïrzgin também observou a massa inacreditável de bruma que cobria a estrada abaixo e passava ao lado do morro onde ela estava.
A muralha cinzenta estava em silêncio.
— O que acontece quando eles “atiram”? — perguntou ela.
— As chispeiras disparam. Elas são bastante eficientes, na verdade. Foram inventadas por Varina. — Ele inclinou a cabeça ligeiramente para Brie. — Não há magia alguma envolvida, hïrzgin, se é isso o que lhe preocupa. Nenhuma ostentação do “Dom de Cénzi”, como vocês da fé concénziana poderiam chamar.
Ela ia responder, mas aí...
— Talbot... — Brie apontou para o morro abaixo.
Começou como um rugido abafado atrás da nuvem: o som de armaduras batendo e guerreiros berrando. Da bruma, os tehuantinos saíram correndo em direção a eles, onda atrás de onda tomando a estrada, assim como os campos de ambos os lados. Brie, do ponto de observação, ouviu Allesandra mandar os arqueiros dispararem, e os numetodos lançarem bolas de fogo e raios estalando em direção aos tehuantinos. Os feitiços e as flechas abriram breves brechas nas fileiras, que foram imediatamente cobertas, e agora os feiticeiros ocidentais erguiam seus cajados mágicos e lançavam seus próprios raios em direção a Allesandra e às tropas. Explosões e gritos eram ouvidos em ambos os morros.
O clamor ficou mais alto; as fileiras se aproximaram...
... e colidiram, emitindo o tilintar de metal. Da altura onde os chispeiros estavam, Brie conseguiu ver a batalha exposta diante de si, a miríade dos dois exércitos sobre a paisagem parecia uma praga de insetos. Alguns chispeiros estavam visivelmente assustados com o que viam, outros recuaram morro acima — para o norte, em direção à cidade. Talbot e Brie berraram para que eles parassem, e a hïrzgin virou o cavalo para interceptá-los, como um cão pastor com seu rebanho.
— Recuem e eu mato vocês — gritou Brie para os chispeiros, com sua espada erguida e seu cavalo de guerra trotando em resposta a sua agitação. — Talbot, vamos levá-los para baixo para podermos...
Ela ia dizer, mas de repente se calou.
Brie notou que a batalha já estava sendo perdida lá embaixo. A linha de frente da Garde Kralji já tinha entrado em colapso, e o estandarte de Allesandra seguia a norte da estrada, cedendo terreno. Os ocidentais já não estavam mais encobertos pela muralha de bruma e, apesar da quantidade, parecia haver menos inimigos do que Brie se lembrava. Ela olhou para Talbot, preocupada e subitamente desconfiada.
— Fique aqui — disse a hïrzgin.
Ela fez o cavalo subir a encosta do morro em direção ao cume, permanecendo sob a cobertura das árvores. Quando chegou ao cume, Brie olhou para baixo. Ela viu a muralha cinzenta de bruma seguindo em direção à margem do rio. E ali, na outra margem...
— Ah, não... — Brie engoliu uma imprecação.
Na encosta do morro, já subindo encosta acima, se aproximava o restante do exército ocidental.
A tempestade de guerra era ao mesmo tempo assustadora e mortal, mas era apenas uma quimera: um fantasma do Segundo Mundo. Ao mesmo tempo que cortava a tempestade com o Scáth Cumhacht, Varina admirava seu poder, precisão e criação. Ela podia sentir os vários fios individuais da tempestade, como eles se entrelaçavam a partir dos feitiços de vários feiticeiros e se formavam em um único encantamento: uma presença especialmente forte, se aproximando dela.
Isso não era nada que os ténis da fé concénziana conseguissem fazer, nem os numetodos — outra habilidade que os habitantes do mundo oriental não tinham. Ao mesmo tempo em que dilacerava as nuvens e dissipava os fios mágicos que as mantinham coesas, Varina se deu conta de que estava pensando como preparar um feitiço como aquele.
Se sobreviver, isto é algo em que você deveria trabalhar, para que os numetodos aprendam a fazer também.
Se você sobreviver...
E isso, ela receava, não era uma certeza.
Ela estava junto à Garde Civile, do comandante ca’Talin, na extremidade sul da frente de batalha, no triângulo cada vez mais estreito entre o rio Infante e o rio A’Sele. Aqui, o Infante se dividia em dois braços ao se juntar com o A’Sele, e a Avi a’Sele cruzava o rio com duas pontes. Assim como o comando do starkkapitän ca’Damont, ao norte, e com o comando do hïrzg Jan, na extremidade norte da linha de frente, eles tinham se posicionado a oeste do Infante. Os tehuantinos estavam dispostos em uma longa fileira curva, se espalhando pela Avi a’Sele em direção à Avi a’Nostrosei, com cerca de três quilômetros de comprimento.
A tempestade de guerra, pelo que Varina pôde notar, podia ter coberto toda essa extensão.
Os outros numetodos também estavam cortando a tempestade de guerra juntamente com ela. Os raios evanesceram, a nuvem negra tinha sido desfiada e interrompida. Eles puderam ver alguns homens se movendo atrás dela, avançando.
— Recuem, recuem! — gritou o comandante ca’Talin para Varina e os demais. — Fiquem atrás da linha de frente. Arqueiros, disparar!
Bandeiras tremularam, cornetas soaram no ar, e por toda a extensão da linha de frente, saraivadas de flechas foram lançadas contra a tempestade de guerra. Varina viu os escudos dos guerreiros serem erguidos e a maioria das flechas ser cravada em escudos. Golpes de espada arrancaram as flechas presas nos escudos, e os tehuantinos mandaram uma chuva de flechas em resposta. Varina ouviu Mason berrar perto dela e cair com uma flecha de penas cinzas encravada em seu peito. Outra flecha acertou o chão a seus pés.
— Recuem! — berrou ca’Talin novamente.
Desta vez eles obedeceram. Johannes e Niels arrastaram Mason com eles.
Varina podia ver pouco mais que corpos colidindo à sua volta em meio à batalha, mas podia ouvir muito bem: o choque do aço contra o aço, os gritos dos soldados de ambos os lados, os toques estridentes das trompas. Também podia sentir o cheiro da fumaça dos fogos mágicos, do sangue, e de enxofre, torcendo o nariz. Mas à sua frente havia apenas uma massa agitada de soldados. Ca’Talin, a cavalo, cercado por chevarittai, se enfiou em meio ao caos e, por um momento, Varina e os outros ficaram sozinhos. Eles dispararam feitiços de fogo por cima dos gardai em direção às fileiras tehuantinas do outro lado; usaram contrafeitiços para destruir o fogo jogado pelos feiticeiros ocidentais sobre eles. A areia negra explodiu à sua direita, lançando terra e partes de corpos para o alto e a deixando ligeiramente surda.
Varina sentiu o terrível cansaço pelo uso contínuo do Scáth Cumhacht. Todos os feitiços que ela tinha preparado na noite anterior acabaram, e sua mente estava cansada e confusa demais para criar novos com facilidade. Varina estava acabada; estava vazia.
Se você sobreviver...
Ela tinha menos certeza disso agora do que nunca.
As cornetas mudaram o toque. Varina viu o comandante e os chevarittai saírem em meio à fumaça e a confusão da batalha. Atrás deles, gardai recuavam e fugiam para o leste.
— Para as pontes! — gritou ca’Talin ao passar por eles. — Para as pontes!
Varina foi levada por eles, impotente. A retirada seguiu em debandada, uma confusão. Ela estava sendo empurrada, tropeçando e quase caindo. À sua volta, as pessoas se acotovelavam, e Varina não conseguia se levantar. Seria fácil, ela pensou, se deitar ali e deixar tudo acabar. Varina sentiu que começava a cair novamente.
Uma mão a abraçou pela cintura.
— Aqui, levante-se.
Ca’Talin havia retornado. Ele puxou Varina para a sela de seu cavalo de guerra. Os braços e ombros da a’morce doíam. Ela viu as pontes à frente, lotadas de gardai fugindo em direção às barricadas do outro lado.
— Perdemos aqui — ca’Talin meio que gritou para ela enquanto eles mergulhavam na multidão de homens — Os ocidentais tomaram este lado do rio até o norte. Que Cénzi nos preserve para amanhã.
Ao ver os tehuantinos avançarem até o outro lado da colina em direção a eles, Brie virou seu cavalo e galopou duramente até os chispeiros; o animal jogava rochas e pedras a sua frente.
— Talbot! Por aqui! — gritou ela. — Traga seu pessoal e me siga!
Assim que viu a confirmação de Talbot, vendo o homem berrar ordens e empurrar os chispeiros a sua volta, a hïrzgin subiu a encosta novamente até chegar ao cume. Os tehuantinos ainda subiam o morro, com a óbvia intenção de ladear a batalha principal e atacar a Garde Kralji pelo flanco e pela retaguarda enquanto os gardai estavam concentrados no ataque principal pela estrada. O cume do morro era plano e quase sem árvores; os ocidentais avançavam por uma campina. A essa altura, Brie também tinha sido vista; ela ouviu uma flecha passar assobiando por sua cabeça e recuou levemente morro abaixo.
Talbot e os chispeiros estavam quase no topo; a hïrzgin contou para ele o que viu rapidamente. Os dois arrumaram as fileiras imediatamente abaixo do cume; os chispeiros verificaram suas armas novamente, para garantir que estavam carregadas e abriram as bolsas de couro onde carregavam, segundo Brie tinha sido informada, as pequenas recargas de areia negra para recarregar as chispeiras. Ela tinha visto as recargas; estavam longe de ser impressionantes, o que apenas aumentava suas dúvidas quanto à eficiência da chispeira enquanto arma.
Mas ela não tinha escolha. Ela só podia torcer para que Talbot não tivesse lhe contado uma mentira elaborada.
— Muito bem — falou a hïrzgin. — Ao meu comando, nós subiremos até o cume. Talbot, prepare-se para disparar assim que estiver lá; eles têm arqueiros, portanto vocês também estarão sob ataque.
Ela viu os homens empalidecerem ao ouvir isso.
— Vocês possuem o terreno elevado como vantagem. Ataquem para valer, e os arqueiros serão inúteis — disse Brie, apesar de não acreditar nisso; ela achava que os arqueiros inimigos transformariam os chispeiros em uma parede de corpos sobre o cume. — Agora, avancem!
Quase de má vontade, os homens subiram até o cume, juntamente com Brie e Talbot. Ela ouviu os chamados na estranha língua ocidental quando eles apareceram, mas Talbot já ditava a sequência antes das primeiras flechas os alcançarem.
— Primeira fileira, ajoelhar! Primeira fileira, atirar!
O barulho emitido fez o cavalo de Brie empinar, aterrorizado. Uma fumaça branca e pungente floresceu ao longo da fileira, e pelo morro abaixo... A hïrzgin mal podia acreditar no que via: os ocidentais derrubados como se uma lâmina divina tivesse ceifado as fileiras inimigas. Ela soltou um grito de surpresa, quase uma risada.
— Segunda fileira, ajoelhar! Segunda fileira, atirar!
Novamente, os estampidos das chispeiras ecoaram; novamente, mais ocidentais caíram; seus corpos rolaram morro abaixo ou se amontoaram onde estavam. Agora, algumas flechas também atingiram os chispeiros, Brie viu três ou quatro homens caírem.
— Droga, resistam, seus bastardos! — gritou Talbot para as fileiras, que fraquejaram e começaram a se desmanchar.
Brie galopou atrás deles enquanto a fileira da retaguarda titubeava e tentava debandar em vez de recarregar as armas.
— Não! — disse ela. — Fiquem e lutem, ou vocês sentirão o aço da minha espada! Fiquem!
— Terceira fileira, ajoelhar! Terceira fileira, atirar! — berrou Talbot.
Desta vez a saraivada soou mais como uma gagueira do que uma explosão coordenada, mesmo assim, mais tehuantinos caíram. Brie notou que o inimigo titubeava.
— Mais uma vez! — ela gritou para Talbot. — Rápido!
— Primeira fileira, ajoelhar! Primeira fileira, atirar!
Outra gagueira, alguns homens sequer conseguiram disparar, tentando recarregar as armas atabalhoadamente, com mãos trêmulas. Mesmo assim, mais tehuantinos caíram, e o disparo de flechas parou completamente. Morro abaixo, guerreiros feridos e moribundos gritavam em sua língua, e outros guerreiros pintados berravam em resposta.
— Segunda fileira, ajoelhar! Segunda fileira, atirar!
Mais uma vez, as chispeiras rugiram, e quando mais guerreiros caíram, os tehuantinos finalmente cederam. Os guerreiros recuaram e começaram a descer correndo o morro, apesar dos esforços dos offiziers para contê-los, subitamente eles bateram em retirada em pânico. O grupo de chispeiros soltou um grito de triunfo, alguns deles, sem que Talbot desse a ordem, dispararam as chispeiras dos inimigos, recuando. No topo do morro, havia punhos erguidos em triunfo.
Brie gritou “urra” com os chispeiros, mas então olhou para trás e a alegria morreu em sua garganta. Bem abaixo, na estrada, a Garde Kralji estava em plena fuga. Ela viu o estandarte de Allesandra balançando e ouviu as cornetas soando o toque de retirada. Atrás deles, os guerreiros tehuantinos os seguiam em perseguição: uma onda negra que se espalhava pela estrada ao longo de ambos os morros, uma onda que sobrepujaria a unidade de chispeiros se eles ficassem ali.
— Talbot! — gritou Brie. — À kraljica! Não podemos ficar aqui.
Eles podiam ter tido uma pequena vitória nessa escaramuça, mas não haveria vitória maior aqui. A hïrzgin conduziu Talbot e os chispeiros morro abaixo para se juntar à kraljica na fuga.
Niente pensou que Tototl fosse perseguir os orientais diretamente até a cidade deles ou mesmo atropelaria a retirada dos inimigos e os mataria ali. E ele talvez tivesse feito exatamente isso, se não fosse por um guerreiro supremo ter voltado, ofegante, falando sem parar a respeito de um massacre: o grupo que fora despachado para o flanco ocidental tinha sido praticamente destruído. Tototl deteve o avanço e enviou apenas alguns esquadrões em perseguição aos orientais em fuga. Tototl e Niente seguiram o guerreiro supremo e deram a volta até o outro lado do morro. Agora Niente estava vendo uma terrível carnificina na encosta à frente dele — embora ele tivesse visto coisas piores em suas longas décadas de guerra, certamente. Niente tinha testemunhado homens cortados em pedaços, tinha visto cadáveres empilhados sobre mais cadáveres. Mas aquilo: havia uma quietude assustadora ali, e os corpos estavam estranhamente inteiros. Havia pouco sangue.
Tototl pulou do cavalo e caminhou entre os corpos espalhados pela encosta coberta de grama.
— Que magia fez isso? — ele exigiu saber.
Niente balançou a cabeça.
— Uma magia que eu não nunca vi antes.
— Por que você não viu isso? — disse Tototl furioso.
Niente só podia continuar balançando a cabeça. Suas mãos tremiam. Ele sentiu o cheiro de areia negra no ar.
Areia negra.
Isso não era magia... A ideia não parava de lhe ocorrer, juntamente com o cheiro de areia negra. O fato da areia negra não ter sido criada a partir do X’in Ka era algo que Niente tinha omitido do tecuhtli e dos guerreiros. Ele queria que os guerreiros acreditassem que a areia negra era mágica. Não queria que eles soubessem que qualquer um poderia fazê-la se soubesse os ingredientes, as medidas da fórmula e o método de preparo. Niente e os poucos nahualli a quem ele confiou o segredo mantiveram o sigilo — todos eles suspeitavam que, se os guerreiros pudessem fazer a areia negra sozinhos, eles poderiam decidir que não precisavam dos nahualli.
Isso não era magia...
Niente sabia, mas não podia admitir para Tototl.
Se Atl também estiver vendo isso... O medo o regelou e ele quase pegou o pássaro entalhado, quase pronunciou a palavra que permitiria a comunicação com o filho, para avisá-lo. Mas seria tarde demais: a batalha já estaria, sem dúvida, em andamento. Tarde demais. E ainda que os orientais tivessem essa habilidade mortal, ela ainda não tinha feito a diferença nesta batalha. Os inimigos eliminaram as tropas do flanco, mas ainda assim foram derrotados.
Mas Tototl estava certo em um aspecto: ele não tinha visto isso. O que a tigela premonitória diria agora?
— Os orientais aprenderam um feitiço que nunca tinham nos mostrado antes — respondeu Niente.
Os feridos sangravam por buracos profundos e irregulares, mas quase circulares. Os mortos estavam piores — parecia que eles tinham sido atingidos por flechas invisíveis que, inacreditavelmente, vararam armaduras de metal e bambu para mergulhar profundamente em seus corpos, muitas vezes atravessando-os completamente. E no topo do morro, de onde os guerreiros sobreviventes tinham dito que a terrível saraivada viera, não havia nenhum corpo e haviam poucos sinais de sangue, embora houvesse algumas flechas tehuantinas no chão. Mas o solo estava inalterado, como não estaria se os inimigos tivessem precisado arrastar corpos. Os orientais conseguiram infligir esse dano nos tehuantinos sem perder homens de maneira substancial.
Será que eles fariam isso com as tropas principais? Será que estão escondendo esse poder, à espera de um lugar melhor para usá-lo?
Podia não ter sido magia, mas alguma coisa tão horrível quanto inacreditável tinha acontecido aqui. Eles usaram a areia negra de uma forma que Niente não conseguia compreender.
— Eu preciso usar a tigela premonitória novamente — falou ele. — Alguma coisa mudou, alguma coisa que Axat não tinha mostrado antes. Isso é importante. Estou preocupado com o tecuhtli.
O Longo Caminho: será que ainda estaria ali? Será que mudou também? Ou tudo mudou? Será que Atl viu isso? Niente tinha que saber. Tinha que descobrir. Ele não estava entendendo algo fundamental para a compreensão dessa situação — ele podia senti-lo em seu estômago revirando, uma queimação. Sentiu-se velho, gasto, inútil.
— Não há tempo — respondeu Tototl. — O tecuhtli cuidará de si mesmo, e ele está com o nahual. A cidade está aberta para nós. Tudo o que precisamos fazer é persegui-los. Eles estão fugindo. Não posso lhes dar tempo para se reagruparem.
— Então o mais breve possível, assim que chegarmos à cidade — disse Niente. — Olhe para isso! Você quer que isso aconteça conosco ou com Citlali?
Tototl franziu as sobrancelhas.
— Jogue óleo nos corpos e queime-os — ele ordenou aos guerreiros. — Depois se juntem a nós. Niente, venha comigo; a cidade nos aguarda.
Ele cuspiu no chão. Depois, franzindo a testa mais uma vez, montou em seu cavalo. Niente ainda estava olhando para o cenário, tentando entender o que tinha acontecido.
— Venha, uchben nahual — falou Tototl. — As respostas que você quer ficam mais longe de nós enquanto ficamos parados aqui.
Nisso, o guerreiro tinha razão. Niente suspirou e, em seguida, caminhou até seu próprio cavalo e — com a ajuda de um guerreiro — montou na sela.
Eles seguiram adiante, e Tototl já berrava para retomarem o avanço.
Se o dia tinha sido terrível, a noite foi odiosa. Varina estava encolhida com a Garde Civile, pressionada entre duas barricadas que tinham sido erguidas nos últimos dias, e à noite choveram fagulhas e fogo, como se se estivesse arrancando as próprias estrelas dos céus e lançando na terra. Ambos os lados agora usavam catapultas para disparar o fogo da areia negra uns nas fileiras dos outros. As explosões trovejavam de poucos em poucos instantes: às vezes ao longe, às vezes preocupantemente perto.
Não houve descanso nem sono nessa noite. Ela viu as bolas de fogo desenharem arcos no céu e caírem a oeste, e se encolheu com medo quando a saraivada em resposta bateu nas barricadas. Varina tentou bloquear os sons dos berros e lamentos sempre que um projétil dos tehuantinos os atingia.
Isso era pior que o combate aberto. Ao menos lá, ela tinha a ilusão de controle. Não havia controle aqui: a vida de Varina e de todos a sua volta estavam reféns dos caprichos do destino e do acaso. A próxima bola de fogo poderia cair sobre ela, e estaria tudo acabado, ou poderia acertar e tirar a vida de outra pessoa. Varina se sentiu impotente e indefesa, encolhida com as costas contra a sujeira fria, tentando recuperar o máximo de força possível para que pudesse repor os feitiços para o ataque que viria pela manhã.
E ele viria. Todos sabiam.
As notícias do norte eram desanimadoras. Nem o starkkapitän ca’Damont, nem o hïrzg Jan, com as tropas firenzcianas, conseguiram manter a margem oeste do Infante. Ambos foram forçados a recuar e cruzar o rio. Pior, disseram que o hïrzg Jan tinha sido ferido durante a retirada, no momento em que a ponte a’Certendi foi destruída. Os rumores eram descontrolados e variados: Varina ouviu que Jan estava morrendo; que ele tinha sido levado de volta à cidade, para os curandeiros; que o hïrzg estava comandando a defesa do leito na tenda; que Jan tinha se amarrado ao cavalo para não parecer ferido enquanto cavalgava e encorajava seus homens; e ouviu que seus ferimentos eram leves e que ele estava bem.
Varina não fazia ideia de quais rumores eram falsos e quais eram verdadeiros. O que ficou claro foi que a batalha do dia anterior tinha sido apenas um prelúdio. O Infante seria cruzado; todos eles sabiam disso. Os tehuantinos descobririam seus pontos rasos e cruzariam assim que houvesse luz.
Varina tremeu e fechou os olhos quando outra bola de fogo passou estridente acima dela, explodindo à sua esquerda. Se acreditasse em Cénzi, ela teria rezado — certamente havia preces sendo murmuradas ao seu redor. Varina quase sentiu inveja do alívio que os soldados pudessem encontrar com elas.
— Varina?
O comandante ca’Damont se ajoelhou ao lado dela. Em meio ao barulho, Varina não tinha ouvido sua aproximação. Ela ia se levantar, mas ele balançou a cabeça e fez um gesto para que ficasse abaixada.
— Desculpe — falou Varina. — Eu estava tentando descansar.
Ele sorriu palidamente.
— Não há muito descanso por aqui. Eu queria lhe contar que os curandeiros dizem que Mason, o vajiki ce’Fieur, vai se recuperar. Eles vão levá-lo de volta à cidade.
— Ótimo. Obrigada. Obrigada por me contar.
— Eu quero que você vá com ele — continuou ca’Damont. — Este não é um lugar para você.
Uma velha frágil... Varina quase podia ouvir o que não tinha sido dito.
— Não — respondeu ela. — Você precisa de mim aqui. Eu sou a a’morce dos numetodos; aqui é o meu lugar.
— Chegaram mais ténis-guerreiros. Dois punhados. E ainda há os outros numetodos que você trouxe. Você provou sua coragem mais cedo, Varina. Ninguém pode exigir mais de você. E você tem uma criança com quem se preocupar.
Varina queria concordar. Queria aceitar a oferta e voltar correndo para a cidade — mas mesmo lá ela não estaria a salvo. Ela podia fugir o quanto quisesse, podia pegar Serafina e ir para leste ou norte, mas se eles perdessem aqui — e Varina não conseguia ver uma maneira de vencer —, ela sempre se perguntaria se deveria ter ficado, se sua presença teria feito a diferença.
Karl não teria fugido. Ele teria ficado, mesmo que pensasse que a batalha estava perdida. Disso ela tinha certeza.
— A maioria dos gardai tem crianças com quem se preocupar — disse Varina, com firmeza. — É por isso que eles estão aqui.
— Mesmo assim...
— Eu não vou embora — disse ela.
O comandante assentiu. Ele se levantou e prestou continência para Varina.
— Tem certeza?
Varina deu uma risada nervosa quando outra bola de fogo passou rugindo. A luz das chamas brilhou e as sombras se mexeram quando ela explodiu.
— Não — respondeu Varina. — Mas eu vou ficar, e você está interrompendo meu descanso.
Eles ouviram o rugido baixo de outra explosão em algum lugar atrás da barricada.
— Descanso? — disse o comandante. — Eu duvido que qualquer um de nós descanse esta noite. Mas tudo bem. Fique, se quiser. Cénzi sabe que nós precisamos de toda ajuda possível.
Ele pareceu se dar conta do que disse e abriu um sorriso meio irônico.
— Desculpe, a’morce.
— Não peça desculpas. Se seu Cénzi existir, espero que Ele esteja lhe escutando.
Não era para ter sido assim. Sergei tinha rezado para Cénzi, mas Cénzi não tinha atendido — não que ele esperasse alguma ajuda desse lado. Os tehuantinos perseguiram Allesandra e a Garde Kralji até o interior da cidade. A kraljica tentou se reagrupar e resistir no Sutegate, mas os tehuantinos avançavam por uma área muito ampla agora e entravam na cidade por todos os lados ao sul. Allesandra não tinha tropas suficientes para cobrir toda a fronteira sul da cidade. Ficou imediatamente óbvio que eles não conseguiriam controlar a Margem Sul: não com a Garde Kralji, nem mesmo com os chispeiros, que se provaram estranhamente eficazes durante a retirada. Eles recuaram ainda mais e abandonaram toda a Margem Sul através da Ilha a’Kralji.
Eles podiam evitar que os tehuantinos passassem pelos gargalos das duas pontes.
Sergei tinha insistido que Allesandra destruísse a Pontica a’Brezi Veste e a Pontica a’Brezi Nippoli completamente, para que os tehuantinos não pudessem cruzar a confluência sul do A’Sele sem precisar de barcos. Ela se recusou.
— As Ponticas continuarão de pé — falou Allesandra. — Eu não abrirei mão de metade da cidade. As pontas continuarão de pé, nós as defenderemos esta noite, e amanhã nós voltaremos a cruzá-las para recuperar nossas ruas.
Sergei discutiu veementemente com ela, e o comandante co’Ingres concordara com o embaixador; nenhum dos argumentos convenceram Allesandra a mudar de ideia.
E foi na Pontica a’Brezi Veste e na Pontica a’Brezi Nippoli que os chispeiros realmente se destacaram. Com a orientação de Brie e Talbot, o grupo conseguiu controlar os pequenos espaços. Embora os ocidentais tivessem avançado onda atrás de onda contra eles durante o fim da tarde e até o anoitecer, eles deixaram ambas as pontes repletas de corpos. Após várias tentativas em vão, e com a luz do sol morrendo, os ocidentais finalmente recuaram.
Do telhado do Palácio da Kraljica, Sergei podia ver a queima de fogos na Margem Sul, onde antes os ténis acendiam lanternas ao longo da Avi a’Parete. As chamas amarelas eram um escárnio. A oeste e ao norte, do outro lado do A’Sele, mas ainda fora da cidade, rugidos constantes e clarões de explosões ainda prorrompiam, como se um temporal de relâmpagos sem chuva ou nuvens tivesse ocupado o lugar. Abaixo, além das muralhas externas dos pátios e da entrada do palácio, na Avi, Brie ainda estava acordada, sem seu cavalo agora. Sergei pôde ouvir a voz da hïrzgin no silêncio aturdido do palácio: dispondo as vigias na ponte e aconselhando os chispeiros a cuidarem de suas armas e descansarem o quanto fosse possível, mas para estarem prontos para reagir quando fosse necessário.
A hïrzgin Brie se provara tão valiosa quanto seu marido nesta luta. Talvez até mais.
Sergei sentiu Allesandra se aproximar dele. A kraljica ainda vestia a armadura, agora não mais reluzente e lustrosa: sob o luar, ele notou as marcas de arranhões e queimaduras da batalha. Seu cabelo grisalho estava grudado na cabeça. Um sexteto da Garde Kralji a acompanhava, bem como os poucos integrantes remanescentes do Conselho dos Ca’ que não tinham fugido da cidade.
— Amanhã — falou Allesandra para Sergei e os conselheiros —, retomaremos a Margem Sul.
— Tentaremos o melhor possível — respondeu Sergei, seu tom traiu seu sentimento quanto ao sucesso da empreitada.
— Nós retomaremos — respondeu Allesandra gravemente.
Os conselheiros pareciam assustados, Sergei sabia que todos achavam isso quase tão improvável quanto ele. Um clarão e — com atraso — outro rugido ecoaram a oeste. O embaixador sentiu o prédio tremer sob seus pés com o barulho. Os conselheiros olharam ao redor como se procurassem abrigo; os gardai se remexeram nervosamente, apertando suas lanças.
— Um mensageiro veio da Margem Norte — disse a kraljica. — Os tehuantinos tomaram o lado oeste do Infante, e a Garde Civile recuou para as barricadas. Eles estão a salvo, por enquanto. Os tehuantinos tentarão cruzar o rio amanhã e nós os repeliremos. Deixem o Infante e o A’Sele levarem seus corpos de volta para o mar.
— Nós tentaremos, estou certo disso — respondeu Sergei novamente. — A senhora ouviu mais notícias do hïrzg?
O rosto de Allesandra ficou tenso.
— Eu fui informada que o hïrzg Jan se recusou a voltar para a cidade. Quanto à gravidade de seus ferimentos... — Ela deu de ombros. — Ninguém disse nada. Ele é meu filho e é um soldado. Vai continuar a lutar enquanto puder.
Sergei desceu o olhar para onde Brie estava patrulhando.
— Ela sabe?
— Eu mesma contei para Brie. Eu disse que ela podia ir até ele enquanto é possível. Brie disse que seu lugar era aqui por enquanto, e que Cénzi poderia manter Jan a salvo melhor do que ela. — Allesandra quase sorriu. — Acho que ela passou a sentir um carinho por aqueles chispeiros.
Sergei grunhiu.
— Espero que ela tenha razão. Não podemos conter os tehuantinos, kraljica. Em breve, eles começarão a nos bombardear com areia negra até que não consigamos mais posicionar os chispeiros nas cabeças de ponte, e assim que os chispeiros recuarem, os tehuantinos cruzarão. Precisamos derrubar as Ponticas na Margem Sul para isolá-los. Deixe que joguem o que quiserem sobre nós, mas eles não poderão cruzar... não até que construam barcos.
Allesandra recuou, estreitando os olhos e franzindo os lábios.
— Você já disse isso vezes demais, Sergei. Eu não abrirei mão da Margem Sul. Eu não abandonarei a minha cidade. Não enquanto eu respirar. Não. — A kraljica inspirou, emitindo um som alto no silêncio da noite. — Eu pedi que o comandante ca’Talin ou o starkkapitän ca’Damont nos mandassem uma companhia ou duas de gardai para ajudar.
— Kraljica, eles não podem abrir mão desses homens. Não com a força tehuantina que os dois estão enfrentando. A senhora não pode pedir isso a eles.
— A mensagem já foi enviada. Eu disse que eles teriam que avaliar bem se podiam abrir mão das tropas ou não. Eles vão mandá-las — disse Allesandra com firmeza.
Ficou claro para Sergei que ele não convenceria a kraljica. Ele também sabia que, independentemente do reforço de gardai, a Garde Kralji não seria suficiente para retomar a Margem Sul. Se as pontes continuassem de pé, eles não seriam suficientes sequer para manter a Ilha, mesmo com a ajuda dos chispeiros. O embaixador bateu com a ponta da bengala nos ladrilhos do telhado, inquieto. A oeste, irromperam mais clarões.
— Se a senhora me dá licença, kraljica, eu preciso encontrar Talbot...
Ele deixou Allesandra ainda no telhado com os gardai e os conselheiros. Encontrou Talbot no térreo do palácio, parecendo exausto e furioso, vociferando ordens para um quarteto de funcionários do palácio. Eles saíram correndo assim que Sergei se aproximou.
— Eu não tenho gente suficiente aqui — falou Talbot. — Três quartos dos funcionários evidentemente fugiram da cidade assim que saímos daqui ontem.
— Você não pode culpá-los, meu amigo. Qualquer um com mais bom senso do que lealdade teria ido embora.
— Eu sei, mas como posso administrar o palácio sem pessoal? — Ele passou os dedos pelos cabelos. — Olhe para mim: eu acabei de correr meia Nessântico fugindo dos tehuantinos; consegui sobreviver a feitiços, flechas e espadas, e estou aqui preocupado se as camas estão feitas e se as refeições estão sendo servidas.
— É o seu trabalho.
— Não parece importante, dadas as circunstâncias. Por Cénzi, estou exausto.
— Você pode dormir depois. Nós dois podemos dormir depois. Venha comigo.
— Para onde?
Sergei esfregou o nariz.
— Você sabe onde a areia negra da Garde Kralji está guardada? Tem as chaves do paiol?
— Sim, mas...
— Então venha comigo.
Uma virada da ampulheta depois, ele e Talbot se aproximaram da Pontica a’Brevi Veste acompanhados por gardai carregando vários pacotes de areia negra. Brie os saudou e olhou para os pacotes, inclinando a cabeça.
— Eu pensei que a kraljica tivesse dito que as Ponticas deveriam ficar intactas.
Sergei ergueu o olhar na direção do telhado do palácio, para as sacadas cravadas na parede sul. Não havia ninguém ali.
— Eu consegui convencer a kraljica de que talvez fosse preciso derrubar as pontes se nosso ataque amanhã não se saísse bem. Temos que colocar a areia negra nas pilastras deste lado, para que possamos acioná-las quando for necessário. Isso é tudo.
Brie assentiu.
— Parece um bom plano para mim. Eu vou mandar os chispeiros ajudarem.
Mais uma virada da ampulheta, e Sergei e Talbot, carregando o restante da areia negra, seguiram para a Pontica a’Brezi Nippoli. O embaixador contou para o offizier no comando da Garde Kralji o mesmo que tinha contado a Brie. Assim como na ponte anterior, ele supervisionou a colocação das cargas de areia negra, cuidando para que estivessem ligadas por cordas de algodão embebidas em óleo misturado com areia negra, de maneira que o acendimento da ponta do pavio causasse a explosão de todas as cargas ao mesmo tempo.
Sergei segurou o pavio erguido na mão; uma lanterna queimava aos seus pés, na grama da margem do rio.
— Acabamos por aqui — ele disse para Talbot. — Agora, mande todos recuarem.
Sergei não conseguiu ver o rosto de Talbot, que estava mais adiante na barragem, a luz da lua batia quase diretamente nas costas dele.
— Recuar? Sergei, você ficou maluco? A kraljica deu ordens específicas...
Sergei se abaixou, enfiou a bengala debaixo do braço, pegou a lanterna e abriu sua tampa de vidro, enquanto segurava o pavio na outra mão.
— Quando um dente fica podre, não há escolha senão arrancá-lo — disse o embaixador. — Se você deixa o dente lá, ele só vai causar mais dor e sofrimento, e no fim, o dente vai apodrecer todos os outros.
— Você não pode fazer isso — protestou Talbot. — A kraljica disse...
— A kraljica e eu discordamos. Seja franco, Talbot: você acha que podemos tomar a Margem Sul dos ocidentais amanhã? A melhor defesa para a Ilha e para a cidade inteira é derrubar as Ponticas e deixar os ocidentais presos.
— Não cabe a você tomar essa decisão — respondeu Talbot.
Sergei sorriu para ele, erguendo a lanterna.
— No momento, parece que é.
O embaixador encostou a ponta do pavio na chama. Ele assobiou e soltou fagulhas, e o fogo começou a percorrer a extensão do pavio. Sergei soltou o pavio e começou a subir a margem o mais rápido possível, se apoiando em sua bengala.
— Pelos colhões de Cénzi — praguejou Talbot; ele ficou parado por um instante, como se considerando descer a margem correndo atrás do pavio, depois gesticulou para os gardai nos pivôs da ponte. — Recuem! Saiam da ponte! Abriguem-se!
Talbot desceu um pouco a barragem e puxou Sergei pelo braço. Juntos, eles fugiram enquanto o pavio assobiava e espocava e o brilho azul do fogo seguia em direção à ponte.
A explosão quase levantou Sergei do chão. A concussão atingiu o embaixador como uma parede caindo; ele sentiu o calor queimar suas costas, e o som... Sergei ouviu as vigas se romperem enquanto rochas e tábuas caíam como uma chuva intensa e perigosa e batiam no chão em volta deles. Sergei e Talbot se encolheram, cobrindo suas cabeças. Quando tudo terminou, o embaixador se virou, seus ouvidos ainda zuniam. A ponte desabou, sua extensão mergulhou inclinada nas águas do A’Sele a meio caminho do vértice. Os tocos da estacaria e das pilastras surgiam da água como dentes quebrados.
Sergei sorriu.
— Eles não cruzarão por ali tão cedo. Todos aqueles homens posicionados ali podem descansar. Agora, vamos terminar o serviço...
Talbot balançou a cabeça.
— Lamento, Sergei, mas não posso permitir. Você mentiu para mim. Você desobedeceu às ordens expressas da kraljica.
— Eu estou tentando salvar a droga da cidade — retrucou Sergei.
— Ela não é a sua droga de cidade.
Ah, mas é sim... Sergei sabia que Talbot compreendia o valor do que ele tinha feito. Sabia que Talbot concordava com ele, afinal.
— Talbot, você sabe que eu estou certo.
— O que eu sei não importa — respondeu o homem. — Eu sou o assistente da kraljica, não o kraljiki. Que os retalhadores de almas te carreguem, Sergei...
Talbot balançou a cabeça e olhou as ruínas da ponte. A Garde Brezno se aproximava da borda e encarava a destruição. Gritos e lanternas se aproximavam deles.
— Allesandra ficará furiosa.
— Ela ficará ainda mais furiosa quando derrubarmos a outra Pontica — respondeu Sergei —, mas também não poderá desfazer isso.
Mas Talbot não admitiria que o embaixador estava certo. Ele sabia antes de o assistente responder, sabia pela maneira como seu rosto magro se fechou.
— Isso não vai acontecer. — Talbot olhou para as pessoas se aproximando deles. — Sergei, você ainda pode sobreviver a esta situação: admita que desobedeceu à kraljica e colocou as cargas de areia negra, mas que fez isso no caso de termos de recuar amanhã e não haver outro jeito de impedir que os tehuantinos cruzassem a ponte para a Ilha e para a Margem Norte. Você pode dizer que isso foi um acidente, que sua lanterna acendeu o pavio. Ela não vai acreditar em você e ficará terrivelmente furiosa com o que você fez, mas não poderá provar nada. Eu o apoiarei até aí, Sergei. Mas não vou além disso. A outra ponte permanece de pé.
— Talbot...
— Não — disse o assistente com firmeza, interrompendo Sergei. — Ou isso ou eu conto exatamente o que aconteceu aqui e que você pretendia esse golpe o tempo todo. Então, a kraljica o executará como traidor, Sergei, e eu não posso culpá-la. O que vai ser? Você decide.
Talbot estava certo. Sergei sabia disso, conhecia Allesandra bem o suficiente para perceber que, mesmo que ela entendesse seu raciocínio, ele tinha ultrapassado os limites do perdoável se a kraljica soubesse toda a verdade. Morto, Sergei não poderia fazer nada pela cidade. Morto, ele não poderia fazer mais nada para expiar tudo o que fez em vida. Morto, não poderia derrubar a outra ponte.
— Está bem — respondeu o embaixador. — Eu aceito sua proposta.
Ela acompanhou Nico de volta ao labirinto do Velho Distrito, para outra casa anódina em outro beco estreito anódino. Não havia ninguém ali, ninguém respondeu à batida de Nico. A porta estava trancada, mas isso não era um problema — não para Rochelle. Ela arrombou a porta e eles entraram. Nico disse quase que imediatamente que precisava rezar. Rochelle disse que ambos precisavam comer — mas não havia nada na casa. Ela saiu para procurar por comida e encontrou pão velho em uma padaria abandonada, e queijo mofado por toda parte, e pegou água do poço mais próximo. Quando Rochelle voltou à casa, Nico estava na sala principal, de joelhos. Ele não lhe deu atenção quando ela tentou convencê-lo a comer, tentou dar-lhe água à força entre os lábios rachados e machucados, enquanto o sacudia e gritava para tentar chamar sua atenção.
O irmão estava perdido e impassível, murmurando preces ininteligíveis para Cénzi. Nico a ignorou, como se não se importasse, ou mesmo soubesse que Rochelle estava ali. Ela não conseguiu arrancar reação alguma do irmão. Ele parecia estar em transe.
Tudo bem. Rochelle estava acostumada com loucura. Ela tinha lidado bastante com isso com sua matarh.
Rochelle dormiu um pouco no chão ao lado de Nico, mas não por muito tempo. Ela acordou, escuro, com Nico ainda rezando a seu lado. A essa altura, pensou Rochelle, deviam faltar poucas viradas para a Primeira Chamada.
— Nico? Nico, fale comigo.
Não houve resposta. Ele se encontrava na mesma posição viradas a fio. Então, Nico também a abandonara — bem, Rochelle estava acostumada a ficar sozinha, a tomar suas próprias decisões. Ela não podia ajudá-lo, não podia encontrá-lo onde quer que ele estivesse, mas ainda havia o que ela poderia fazer, o que deveria fazer. Rochelle tocou o cabo da faca que tinha roubado de seu vatarh, alisando o punho adornado.
Prometa para mim que você fará o que eu não consegui. Prometa para mim...
— Eu farei — ela disse para o fantasma da matarh. — Eu farei.
Rochelle se voltou para Nico, se ajoelhando no piso de madeira nua. As pernas do irmão deviam estar dormentes há muito tempo. Suas mãos estavam entrelaçadas, fazendo o sinal de Cénzi, sua cabeça estava abaixada sobre elas, seus olhos fechados. Ela notou que ele murmurava.
— Nico? — disse Rochelle, tocando seu ombro. — Nico, eu preciso que você me responda.
Ele não respondeu. O murmúrio continuou, sem diminuir. Ela abraçou o irmão e disse.
— Então reze por mim. Reze por nós dois.
Ele não deu sinal de tê-la ouvido. Ela se levantou, observou Nico e finalmente saiu da sala. Fechou a porta atrás de si, saindo em direção às ruas do Velho Distrito. De manhã cedo, as ruas estavam escuras e desertas. A maioria dos moradores, os que puderam, tinha fugido da cidade, para o leste. Clarões estranhos irrompiam no céu a oeste, acompanhados por trovões distantes e, ao sul, nuvens de fumaça tocadas pelo brilho de fogueiras.
Sul. Rochelle seguiu nessa direção, se escondendo facilmente nas sombras provocadas pela lua.
Ela não fez ideia de quanto tempo tinha levado até chegar à Pontica Kralji, que ligava a Margem Norte à Ilha. Não havia gardai na ponte, nenhum trânsito. A lua estava se pondo, e o céu começava a clarear no leste e extinguir as estrelas no apogeu. As águas do A’Sele estavam turvas em volta da estacaria, escuras e misteriosas. O cheiro de madeira queimada se misturava ao odor da lama e da água do rio.
Alguma coisa brilhante espocou no céu a sua frente, deixando um rastro de fagulhas e pintando a correnteza do A’Sele com reflexos reluzentes. A aparição se iluminou e inchou, descendo rapidamente. Rochelle a viu cair, sentindo o impacto sob a sola das botas, vendo o fogo da explosão. Alguém gritou de dor ao longe, e o susto e o cheiro de queimado aumentaram, cobertos agora pelo fedor de enxofre. Outra bola de fogo passou guinchando no céu ao sul; esta explodiu bem acima da Ilha, mandando as sombras negras embora.
Um cavaleiro apareceu na extremidade da Pontica que saía da Ilha A’Kralji galopando em direção à Rochelle, com a capa tremulando atrás de si. Ela se encolheu nos pilares da ponte; o cavaleiro passou disparado sem olhar e fez uma curva fechada à esquerda, em direção ao Mercado do Rio. Rochelle notou a bolsa de couro em volta do corpo: um mensageiro rápido levando uma mensagem.
Isso significava que a kraljica provavelmente estava na Ilha. Allesandra. Sua mamatarh. A voz da matarh pareceu sussurrar em seu ouvido.
— Prometa para mim...
Outra bola de fogo surgiu como um sol falso e também caiu na terra, em algum lugar da Ilha. Ela ouviu as trompas do Velho Templo soarem um alarme ao longe.
Rochelle atravessou a Pontica correndo, meio que esperando que alguém berrasse para ela ou que fosse atingida por uma flecha. Nada aconteceu. Rochelle chegou à Avi a’Parete na Ilha. Ao seu redor, os grandes prédios da Ilha se erguiam, com destaque para o Palácio da Kraljica, diretamente à esquerda. Ela seguiu lentamente para lá, por uma rua cheia de prédios do governo. Mais adiante, ao sul, Rochelle pôde ouvir o som das atividades: trompas soando, pessoas gritando. Ela fez a curva e seguiu para o sul novamente; a sua frente, viu pessoas no fundo na outra extremidade da rua. Ela correu na direção do muro que envolvia o palácio. Havia uma porta da criadagem ali, na lateral. Rochelle bateu, esperou, bateu novamente. Ninguém respondeu. Ela se abaixou e pegou suas ferramentas para arrombá-la. Alguns instantes depois, Rochelle empurrou a porta e entrou em suas dependências.
Ela se viu nos jardins do palácio. O cheiro de flores era forte, e Rochelle ouviu uma fonte jorrando água por perto. Não havia ninguém nos jardins, e poucas janelas do palácio estavam acesas.
Outra bola de fogo mostrou sua cara brilhante sobre o muro do outro lado do terreno. Parecia vir na direção de Rochelle e do palácio, mas no último instante, quando parecia que acertaria o próprio palácio, ela se estilhaçou em mil fragmentos, cada um assobiando e brilhando ao cair — um contrafeitiço deve ter alcançado a bola de fogo. Rochelle se perguntou quantos incêndios essas fagulhas provocariam, e se os ténis-bombeiros viriam apagá-los.
Ela correu para a porta do palácio mais próxima. Trancada: novamente, Rochelle tirou as gazuas e manipulou as ferramentas até ouvir o clique do mecanismo se abrindo. Ela empurrou a porta apenas o suficiente para entrar sorrateiramente.
Rochelle se viu no que deveria ser o corredor da criadagem: um corredor estreito e simples, com corredores transversais se abrindo de ambos os lados e uma porta grande ao final. Se este palácio fosse como o Palácio de Brezno, como ela esperava, a maioria dessas portas estaria destrancada. Os criados precisavam ter acesso a todas as alas do palácio para servir a seus senhores e senhoras da maneira mais discreta possível. Sem dúvida, o palácio estaria cheio de passagens assim.
Mas nos corredores de serviço do Palácio de Brezno havia uma atividade frenética. Aqui estava tudo quieto, e Rochelle achou isso estranho. Ela seguiu rapidamente até a porta principal, abrindo lentamente uma fresta. Ela vislumbrou um dos principais corredores públicos do palácio; também ouviu vozes. Havia várias pessoas saindo apressadamente de outro aposento um pouco à frente. Ela reconheceu um dos homens imediatamente: Sergei ca’Rudka, com seu nariz de prata reluzindo em seu rosto enrugado e pálido, e a bengala batendo em um ritmo irregular nos ladrilhos. A mulher a seu lado falava com ele em um tom apressado e irritado.
— ...não me importo com o que você estava pensando ou quais eram as suas razões. Eu estou furiosa com você, Sergei. Absolutamente furiosa. E Talbot; por que em nome de Cénzi você não confirmou comigo? Você sabia que eu tinha mandado as ponticas permanecerem de pé.
— Eu peço mil desculpas, kraljica — disse Sergei, embora Rochelle pensasse que ele parecia mais contente que arrependido.
Então aquela era a kraljica. Mamatarh, eu estou aqui por você... Mas não agora. Não ainda. Havia muitas pessoas em volta dela: Sergei, o sujeito chamado Talbot, bem como um quarteto de gardai.
— Seu “acidente”, se é que isso foi mesmo um acidente, pode ter prejudicado nossa chance de ataque aos tehuantinos na Margem Sul. Agora só temos uma rota para cruzar o rio, então...
Suas vozes foram ficando ininteligíveis à medida que eles desciam o corredor. Rochelle arriscou abrir mais a porta. Havia dois gardai posicionados na porta de onde o grupo tinha saído. Ela recuou para o corredor de serviço e entrou no corredor que levava para o aposento em que os gardai estavam, contando os passos para calcular sua distância. Havia outra porta a alguns passos, corredor adentro. Rochelle abriu a porta.
Ela entrou no Salão do Trono do Sol. A massa cristalina do Trono do Sol sobre a plataforma dominava o salão. Muito bem. Isso serviria: a kraljica deve voltar para cá em breve, e Rochelle poderia cumprir sua promessa.
Ela viu um lampejo de luz através das janelas altas do salão, e o palácio tremeu quando um trovão rugiu. Ela pôde sentir o cheiro de fumaça de madeira das janelas do palácio ascendendo em uma alvorada de chamas.
Rochelle se acomodou para esperar.
Niente polvilhou o pó alaranjado sobre a água na tigela premonitória e entoou um feitiço para abrir sua mente para Axat. A bruma verde começava a surgir, e ele inclinou a cabeça sobre a tigela.
Os tehuantinos estavam acampados na própria cidade, os guerreiros estavam protegendo as ruas e sacando as casas e os prédios atrás de comida e suprimentos, cumprindo as ordens de Tototl, mas Niente sabia que muitos guerreiros também estavam pegando todo o tesouro que pudessem carregar. Outros estavam ocupados construindo uma catapulta, e Niente tinha ordenado que os nahualli encantassem os sacos de areia negra que a catapulta lançaria na ilha para que explodissem com o impacto. Os cânticos dos nahualli e o martelar dos guerreiros engenheiros preencheram a grande alameda do lado de fora da fortaleza na beira do rio. Dos portões do edifício, o crânio de uma criatura horrível com dentes afiados, lançava um olhar malicioso para Niente — quase como a cabeça da serpente alada que tremulava no estandarte do tecuhtli. Isso, pensou ele, era quase uma ironia. O Olho de Axat nasceu e parecia observar Niente enquanto ele realizava o ritual, com tanta intensidade quanto Tototl.
As visões apareceram rapidamente, passando por ele quase rápido demais para que ele pudesse acompanhá-las. Os caminhos do futuro se entrelaçavam e mesclavam. Niente ainda podia ver a vitória no caminho mais nítido e próximo, mas agora era uma vitória conquistada a um preço muito alto. Havia mudanças provocadas no cenário, potências emergentes que ele não tinha visto antes ou que tinham sido apenas insinuadas em remotas possibilidades: o rei de preto e prata; a velha que cheirava a areia negra; o jovem com o poder estranho e descontrolado. Esta última... a mais difícil de todas de se ver, estava envolvida em bruma e mistério. Em torno do jovem, todos os caminhos possíveis do futuro pareciam estar espiralados. Niente queria ver mais a respeito do jovem, mas as brumas continuavam a afastá-lo, não importava o quanto ele tentasse acompanhá-lo.
Na bruma, Niente também sentiu a presença de Atl, tão perto que quase pensou que o filho estivesse a seu lado, espiando a tigela ao mesmo tempo que ele. Aqui. Ele tentou lançar os pensamentos na direção de Atl. Veja o que eu vejo. Deixe-me encontrar o Longo Caminho, espero que você o veja também...
Mas não houve resposta. Niente não conseguiu mostrar o que tinha visto para Atl, nem conseguiu ver o que Atl via. Na bruma, os dois permaneciam separados.
— Eles vão derrubar a outra ponte? — perguntou Tototl. — Se fizerem isso...
— Se fizerem isso, não poderemos cruzar o rio para ajudar o tecuhtli Citlali. Eu sei. Agora, deixe-me ver...
Niente já tinha visto isso: no caminho principal, os orientais inexplicavelmente não destruíam a outra ponte. Ele não entendeu isso. Com as pontes em pé, Tototl conquistaria a Ilha, ainda que pagasse um preço terrível. As estranhas armas de areia negra dos orientais derrubariam guerreiros demais antes que eles conseguissem, inevitavelmente, sobrepujá-los. Eles alcançariam Citlali e esmagariam ainda mais orientais entre eles, mas esta já não era a vitória que Niente tinha visto em Tlaxcala. Tudo mudara.
O que significava que o Longo Caminho também tinha mudado. Isso se o Longo Caminho ainda existisse.
Niente inclinou a cabeça sobre a bruma novamente, procurando. Por favor, Axat. Mostre-me...
E Ela mostrou.
A Passagem da Tempestade
— E então? — perguntou Tototl enquanto Niente jogava a água da tigela premonitória nos paralelepípedos da alameda.
Ele limpou a tigela com a manga da camisa e olhou solenemente para o guerreiro supremo.
— Você se lembra, Tototl, da conversa que tivemos sobre uma vitória parecer uma vitória, mas não ser?
O semblante pintado do guerreiro supremo continuava impassível.
— Eu me lembro de você ter dito isso. E me lembro de ter dito que achava que você tinha visto mais coisas na tigela do que estava contando para o tecuhtli Citlali. Então, me diga agora, uchben nahual, o que você viu? Diga-me a verdade.
Niente recolocou a tigela premonitória na bolsa e sentiu a textura dos desenhos gravados na borda. Ele pegou seu cajado mágico, sentindo a energia do X’in Ka pulsando na madeira, capturada e pronta para ser solta. Os odores de madeira queimando, da água doce, do fedor de roupa usada por muito tempo invadiram suas narinas. Niente engoliu em seco e sentiu o gosto forte e persistente da bruma verde que tinha inalado. Seus sentidos pareciam estar plenos e aguçados demais. Ele ergueu seu olhar para o crânio malicioso no muro sobre si e imaginou a criatura viva, com seus dentes afiados como facas de marfim rasgando uma vítima presa em suas mandíbulas poderosas.
— Preste atenção, Tototl — falou Niente. — Eu não disse nada para o tecuhtli Citlali porque ele não vê nada além do presente e de suas próprias ambições. Você tem a imaginação para fazê-lo. Você pode se tornar um grande tecuhtli. Um tecuhtli cujo nome ecoaria por gerações.
Tototl não conseguiu esconder totalmente a ansiedade provocada por essas palavras: Niente notou no leve movimento da boca do guerreiro, na sutil abertura dos olhos cercados por tinta vermelha. O guerreiro tinha ambição.
— Você viu isso?
Niente assentiu.
— É um dos futuros. Uma possibilidade.
Ele fez uma pausa. Olhou para a catapulta, quase terminada agora. Olhou para a ponte perto deles, no fim da alameda, para o grande prédio que surgia logo atrás dela, para o domo dourado que aparecia sobre os outros telhados, no meio da ilha.
— Tototl, a vitória neste momento está por um fio. Você é o fio, Tototl, sem você, não há vitória nenhuma. Eu vi isso.
— O que eu devo fazer?
— Você deve conquistar a ilha e chegar ao outro lado, como eu disse antes. Tem de avançar com nossos guerreiros contra os orientais pela retaguarda. Se você quer a vitória, é isso o que deve fazer.
— E por que eu não faria isso? É por isso que viemos para cá: para tomar a cidade e vingar nossa derrota com o tecuhtli Zolin, para governar esta terra.
Niente se perguntou se deveria contar para ele. Certamente Citlali não teria ouvido nada disso; ele já teria interrompido Niente, e Niente — ele tinha que admitir — teria se curvado para o tecuhtli. Eu vencerei aqui... Era tudo o que Citlali queria ouvir. Ele desdenharia do Longo Caminho; não se importaria com o que acontecesse anos depois. Mas Tototl talvez pensasse da mesma forma. Niente respirou fundo. Ele viu os nahualli colocarem a primeira carga de areia negra no cesto da catapulta enquanto os guerreiros acionavam o guincho para abaixar a haste.
— A vitória de Citlali aqui terá um preço muito alto para nós no fim — falou Niente. — Ele ainda pode tomar a cidade, mas não poderá controlá-la por muito tempo. Outros exércitos orientais virão dos lugares mais distantes do império deles. Esta terra é imensa, e nós temos poucos guerreiros aqui e pouco tempo para trazer mais homens do outro lado do mar. E quando os orientais matarem a todos os que sobreviverem, eles olharão para a nossa terra natal e voltarão com um exército ainda maior do que o que levaram antes. Eles vão nos caçar até ter certeza de que nós jamais causaremos problemas outra vez.
— Você tem certeza disso?
Niente balançou a cabeça.
— Não — ele admitiu. — Mas é o futuro que vejo; o provável.
— O novo nahual também viu isso?
Niente balançou a cabeça novamente.
— Não. Mas Atl está aprendendo. Ele só vê o futuro próximo, não o Longo Caminho.
—Você viu uma vitória fácil antes. Disse isso antes mesmo de sairmos da nossa própria terra.
— Eu vi — admitiu Niente. — E nesse momento, era a verdade. Mas isso mudou. Há forças aqui que estavam ocultas de mim, situações que mudaram de figura desde que consultei Axat pela primeira vez. Nada no futuro é sólido e fixo.
— Então esse futuro que você vê também pode mudar. Também mudará.
— Pode ser. Mesmo assim... Tototl, eu diria para você pegar os guerreiros aqui e ir embora. Encontre nossos navios; a essa altura eles devem estar perto da cidade. Pegue os navios e volte para casa. Eu diria para você se tornar o tecuhtli para que, quando os orientais voltassem à nossa terra, e eles voltarão, nós ainda estivéssemos fortes o suficiente para resistir. Os orientais perceberão que, assim como nós não conseguimos conquistá-los, também não conseguirão nos conquistar, e nossos impérios terão que lidar um com o outro como iguais.
Tototl meneava a cabeça em negação.
— Eu não fugirei — falou o guerreiro supremo. — Eu não abandonarei Citlali. Não sem saber que não tenho outra escolha.
— Então, aqui estão os sinais, Tototl. Quando a magia for retirada de todos os nahualli, quando você me vir cair diante de uma arma que não deveria matar: estes são os sinais de que o que eu disse é verdade. Você recuará então, Tototl? Ouvirá o meu conselho, como o tecuhtli Citlali não ouviu?
Tototl pareceu rir.
— Você parece um pedaço de bife defumado, uchben nahual, velho e duro demais para morrer. E quem poderia retirar o poder dos nahualli?
— Se isso acontecer — implorou Niente — se você vir os sinais, você irá embora?
— Se isso acontecer — respondeu o guerreiro supremo —, eu me lembrarei do que você disse e farei o que achar que é necessário.
Enquanto Tototl dizia essas palavras, a catapulta cantava sua canção mortal, e uma bola de fogo cruzou o rio em direção à ilha. Ambos viram a bola cair e explodir, emitindo um rugido de chamas laranjas.
Jan se perguntou se esse seria seu último dia.
A fumaça manchava o céu a sudeste, emergindo dos incêndios que ardiam sem controle na Margem Sul da cidade. Mensageiros enviados por sua matarh vieram durante a noite com uma mensagem: os tehuantinos estavam na Margem Sul; eles tentariam repelir os inimigos de novo, pela manhã; envie uma companhia de gardai se puder abrir mão deles.
Mas ele não podia abrir mão dos gardai. Eles já não eram suficientes para a tarefa que tinham pela frente. A noite anterior tinha sido terrível, o chão tremera enquanto areia negra era lançada de ambos os lados. Agora o céu a leste estava rosa e laranja, e os tehuantinos recomeçariam o ataque terrestre. Jan sabia disso; ele mesmo o teria feito.
Um pajem ajudava o hïrzg com sua armadura, e Jan fez uma careta quando o menino apertou as tiras da couraça — um armeiro desamassara a mossa da armadura na noite anterior.
— Vamos — ele disse para o pajem. — Aperte bem. A armadura não pode cair no meio da batalha.
Qualquer movimento doía. Respirar doía. Jan tossiu sangue na noite anterior assim que recobrou a consciência, embora isso, ainda bem, tivesse parado. Prender o peito com a armadura na verdade fez bem a ele, mas ele se perguntou se suportaria um golpe de espada sem desmoronar. E se perguntou se poderia liderar os homens como um hïrzg deveria: na linha de frente contra o inimigo.
— Traga o meu cavalo — disse Jan.
O pajem prestou continência e saiu correndo.
Jan tinha passado a noite na tenda atrás da segunda muralha de barricadas. A maior parte da areia negra caiu bem longe do acampamento, mas ainda havia crateras de terra negra aqui e ali, e fumaças de incêndios na grama que tiveram que ser extintos. Os offiziers tinham relatado as baixas meia virada da ampulheta depois de fazerem as chamadas. O hïrzg ficou estarrecido. Ele tinha trazido quatro mil gardai e cerca de trezentos chevarittai a Nessântico. Ele e o starkkapitän ca’Damont dividiram os homens de maneira praticamente igual. Jan agora contava com menos de mil gardai e dez punhados de chevarittai; ca’Damont tinha menos.
Não, ele não podia mandar uma companhia para a kraljica. Ele teria sorte se voltasse para Nessântico com uma companhia inteira. Jan leu a mensagem de ca’Talin: Perspectiva ruim. Recomendo resistir o máximo possível, depois recuar para a cidade. Abaixo, com sua letra fina e alongada, ca’Damont adicionara um breve concordo. Jan enviou uma resposta aos dois.
Concordo. Faça o inimigo pagar por terem cruzado o rio, depois recuem para o Mercado do Rio. Reagruparemos lá e nos reuniremos com a kraljica.
O pajem voltou conduzindo um cavalo de guerra que tinha sido a montaria de um dos chevarittai mortos. O menino colocou um degrau perto do cavalo e ajudou o hïrzg a montar na sela. Ele conseguiu se sentar sem gemer alto.
— Obrigado — disse Jan para o menino, prestando continência.
O hïrzg seguiu a meio galope, fazendo careta a cada passo, sacudindo o corpo. Ele subiu a pequena elevação até o topo da segunda barricada. Esperou ali por vários instantes, examinando o cenário.
A maior parte das tropas estava reunida lá embaixo, na ampla vala entre as barricadas serpenteando ao sul e ao comando do starkkapitän ca’Damont, e pouco a frente estava o comandante ca’Talin, com sua tropa se estendendo ao norte por cerca de oitocentos metros até a Avi a’Nostrosei. Após a elevação da primeira barricada em frente a Jan, havia cerca de quatrocentos metros de terreno plano entre as barricadas e o rio Infante — o campo tinha sido revirado pelos cavalos e pelas botas dos soldados e esburacado com as crateras que o bombardeio de areia negra tinham aberto. Do outro lado do Infante, Jan pôde ver o exército dos tehuantinos. Os offiziers inimigos já estavam organizando suas formações, e o hïrzg conseguiu ver pequenas bandeiras fincadas aqui e ali ao longo da margem oposta do rio — ele presumiu que os batedores tinham marcado as partes rasas onde o rio podia ser cruzado.
Havia muitas bandeiras. O Infante não era fundo nem largo como o A’Sele; havia muitos lugares por onde os tehuantinos podiam cruzá-lo. Na noite anterior, Jan pedira para um dos gardai locais mapear os pontos por onde a infantaria poderia cruzar, e posicionou arqueiros diante desses possíveis trechos.
Faça o inimigo pagar por cruzar o rio... Ele podia não conseguir detê-los, mas podia cobrar um preço caro.
Alguns arqueiros ocidentais dispararam flechas inúteis na direção do hïrzg; eles erraram o alvo, e Jan fez um gesto obsceno para eles.
— Vamos! — berrou o hïrzg, fazendo seu peito arder com o esforço. — Vamos; estamos esperando por vocês, bastardos! Estamos prontos para transformar suas esposas em viúvas e seus filhos em órfãos!
Ele disse em voz alta, para que os gardai na trincheira entre as barricadas ouvissem; os homens ergueram seus olhares para ele e vibraram. Jan duvidava que algum ocidental tivesse realmente entendido suas palavras, ainda que tivessem entendido o tom. Ele queria se debruçar por causa da dor lancinante em seu peito quando berrou a provocação, mas, em vez disso, ele sorriu e gesticulou novamente para os tehuantinos. A algumas centenas de passos de distância, Jan viu seus estandartes, prestou continência para os homens e seguiu até onde os offiziers estavam reunidos.
— Outro nascer do sol — falou o hïrzg. — Isso é sempre um bom sinal. O sol está nas nossas costas e nos olhos dos inimigos. Vamos fazer com que esse seja o último dia que eles veem.
Allesandra desfilou sobre o cavalo de guerra diante das pessoas reunidas no pátio do palácio. Sob a luz da falsa alvorada, sua armadura brilhava, o sangue do dia anterior tinha sido lavado e o aço lustrado. Brie, Talbot e o maldito e tolo Sergei estavam atrás dela em seus próprios cavalos, observando enquanto ela percorria a fileira. A kraljica colocou sua fúria e frustração em suas palavras.
— Nós não temos escolha. É o meu dever, é o nosso dever, proteger esta cidade, e eu não permitirei que nós traiamos essa confiança. Neste momento, os ocidentais controlam a Margem Sul. Eles andam pelas ruas que deveriam ser consideradas seguras para nossos cidadãos, saqueiam nossas casas e templos, matam e estupram quem quer que tenha ficado para trás. As forças do hïrzg e nossa própria Garde Civile estão enfrentando o exército inimigo principal na Margem Norte; eles nos encarregaram de proteger a retaguarda e manter a cidade em segurança para quando voltarem. Nós temos que controlar a Margem Sul. Eu controlarei a Margem Sul.
Allesandra fez uma pausa enquanto outra bola de fogo cruzou zunindo o céu que se iluminava — todos assistiram a isso. O cavalo tremeu sob ela, que acariciou seu pescoço musculoso para acalmá-lo enquanto a bola de fogo caía no solo atrás deles, do outro lado da Avi.
— Viram só? Os tehuantinos não querem nada além da destruição dos Domínios e de Nessântico. Fiquem aqui, e todos vocês morrerão. E, se é para morrer, eu prefiro que seja com a espada na mão e o inimigo sangrando aos meus pés.
O grito ecoou alto, mas irregular. Mesmo aqueles que gritaram pareciam hesitantes. Os chispeiros, de um lado, se remexeram inquietos; Allesandra notou que Brie os encarava.
— Nós marchamos hoje para a glória — disse a kraljica, sacando a espada da bainha e a erguendo. — Nós marchamos pelos Domínios. Marchamos por Nessântico. E eu marcharei com vocês, na vanguarda.
Uma carruagem sem teto, conduzida por ténis, se aproximou chacoalhando pelas ruas através da fumaça, dando a volta devagar pelos destroços no caminho; Allesandra viu o símbolo do globo partido de Cénzi nas portas do veículo.
— Hoje, o próprio archigos marchará conosco — acrescentou ela. — Preparem-se. Começaremos o ataque em duas marcas da ampulheta e mostraremos para esses ocidentais como os Domínios reagem contra quem os ameaça.
Eles vibraram novamente porque — Allesandra sabia — era o que se esperava, porque queriam acreditar na kraljica, mesmo que o medo gelasse seus estômagos. Ela cavalgou em direção à carruagem do archigos com Brie, Talbot e Sergei a seguindo. A cabeça calva do archigos Karrol espiou sobre a lateral do veículo; ele não parecia estar contente de estar ali. Dois rostos pálidos e mais jovens podiam ser vistos atrás do homem.
— Archigos, estou feliz em vê-lo — disse a kraljica. — Por mais atrasado que esteja.
— Não vamos fingir que a senhora ou o hïrzg tenham me dado alguma escolha, kraljica — respondeu Karrol. — Mas eu estou aqui.
— E os ténis-guerreiros?
— Mais quatro chegaram hoje do leste. Eu enviei dois para o hïrzg; os outros dois estão comigo. Eles sabem das consequências se deixarem de servir.
O archigos gesticulou para os outros dois ténis na carruagem.
— Ótimo — respondeu Allesandra. — Espero que estejam bem descansados. Precisamos deles agora. Talbot, por gentileza, cuide dos ténis-guerreiros e dos arqueiros. Brie, você fica com os chispeiros.
Ela encarou Sergei, ainda com raiva pela insolência do homem em descumprir suas ordens.
— Sergei, você fica comigo e o archigos.
Eles se reuniram rapidamente. Embora Allesandra ainda estivesse furiosa com Sergei por ter destruído a ponte leste, ela tinha que admitir que um ataque em duas frentes, nas duas pontas, teria dividido e enfraquecido muito suas forças. Mesmo assim, o problema agora estava no fato de todos eles precisarem cruzar a Pontica a’Brezi Veste. E no fato de que os tehuantinos tinham mantido a ponte de pé, e não a destruíram do lado deles, Allesandra sabia que os inimigos queriam que a ponte permanecesse intacta tanto quanto ela — para que pudessem se encontrar com o restante de seu exército na Margem Norte. A insistência de Sergei para que eles recuassem para a Ilha e a Margem Norte e destruíssem as pontes que cruzavam o A’Sele ao sul — a fim de isolar esta tropa de tehuantinos — fazia sentido taticamente.
Allesandra sabia disso intelectualmente, mas emocionalmente...
Esta era a sua cidade, a sede dos Domínios. A kraljica não permitiria que Nessântico fosse tomada dela. Allesandra teve que reconstruir a cidade uma vez; não queria ter que fazer isso novamente. Preferia cair aqui e deixar que seu sucessor — quem quer que fosse — o fizesse.
O ataque começou com uma saraivada de feitiços lançados por Talbot e alguns numetodos, bem como pelos novos ténis-guerreiros e o archigos. Quase todos os feitiços foram neutralizados ou desviados pelos feiticeiros tehuantinos, mas os que passaram fizeram os inimigos se afastarem correndo da Bastida e da área imediatamente a volta da outra extremidade da ponte, na Margem Sul.
— Agora! — berrou Allesandra.
Ela liderou o ataque da Garde Kralji pela ponte, enquanto Talbot direcionava os arqueiros para darem uma cobertura com suas flechas à frente deles. Sergei estava atrás da kraljica, e a carruagem do archigos veio a seguir, se chacoalhando sobre as tábuas. Os tehuantinos dispararam sua própria chuva de flechas na direção deles, mas o archigos entoou e gesticulou em seu assento, e as flechas foram varridas por um vento mágico, caindo inofensivamente no A’Sele.
Em poucos instantes, eles cruzaram o rio. Os guerreiros avançaram berrando contra eles.
— Para a Bastida! — berrou Allesandra para os gardai.
Eles avançaram e passaram a cavalo pelos portões abertos da prisão, sem se importar em deixar a Avi cheia de tehuantinos para atrás, pois estavam cercados.
Atrás da Garde Kralji, Brie conduziu os chispeiros pela Pontica. Ao pé da ponte, eles entraram em formação e suas armas bradaram o chamado ritmado da morte. Os guerreiros na Avi começaram a cair, e nenhum deles conseguiu alcançar os chispeiros para detê-los. Dos portões da Bastida, Allesandra viu Brie, desmontada, andando atrás dos chispeiros, estimulando-os a ficarem, a manterem a formação, a andarem mais rápido. Sua voz forte dava os comandos e o rugido irregular das chispeiras ecoava pela Avi. Os tehuantinos recuaram. Allesandra e os gardai não estavam mais cercados por todos os lados.
— Sigam-me! — berrou a kraljica, liderando a Garde Kralji em um ataque furioso, saindo dos portões da Bastida.
A noite tinha sido terrível, e a aurora simplesmente brutal. Quando o sol surgiu sobre as árvores e os telhados de Nessântico, os ocidentais avançaram: entoando rugidos e gritos, brandindo suas espadas e lanças e lançando saraivadas de areia negra e feitiços violentos e estridentes. Eles se lançaram nas águas do Infante. A água lançou espirros altos e brancos em torno dos tehuantinos, enquanto as flechas da Garde Civile choviam sobre eles. A princípio, o ataque resultou em um massacre, e os gardai gritaram de alegria e alívio, mas havia mais e mais inimigos, e eles simplesmente não paravam de vir, e agora os nahualli lançavam encantamentos que transformavam as flechas em cinzas no ar.
Os ocidentais cruzaram o Infante, e mais guerreiros chegavam a cada instante. Os ténis-guerreiros e os numetodos lançaram fogo sobre eles; isso não deteve o avanço. Punhados e mais punhados de guerreiros tehuantinos caíam mortos no chão, e, mesmo assim, eles avançavam, implacáveis.
— Recuar! — os offiziers e as cornetas chamaram.
A Garde Civile saiu do meio da muralha dupla de barragens e recuou para o cume da segunda barricada. Enquanto recuavam, os gardai derramavam barris de óleo trazidos da cidade, encharcando o solo e deixando poças escuras para trás. Quando os tehuantinos chegaram ao cume da primeira barricada, eles foram recebidos novamente por disparos de flechas. Corpos rolaram para a trincheira oleosa diante deles, mas agora mais companheiros, ilesos, vieram com eles.
Os feitiços preparados martelavam na cabeça de Varina e de todos os numetodos nas barricadas.
— Esperem! — Varina ouviu a ordem de ca’Damont para os ténis-guerreiros e numetodos. — Não ainda! Esperem!
Os tehuantinos chegaram à trincheira e começaram a subir a segunda barragem, onde as tropas da Garde Civile aguardavam.
— Agora! — berrou ca’Damont.
Varina gesticulou e pronunciou o gatilho do feitiço, assim como dois numetodos a seu lado, Leovic e Niels, e os ténis-guerreiros mais adiante na linha de frente. Suas mãos lançaram arcos de fogo. O solo encharcado de óleo entre as barricadas se acendeu, criando um poço de chamas flamejantes e sibilantes. Os que caíram nesse inferno gritaram — Varina viu os guerreiros se contorcerem, em chamas. O calor lambeu sua pele quando soprou o terrível fedor de carne queimada. Abaixo dela, um guerreiro saiu cambaleando às chamas, com o corpo horrivelmente carbonizado e chamas ainda lambendo sua armadura e roupa. Varina viu seu rosto, terrivelmente jovem, sua boca aberta gritando em sua própria língua. Ela não sabia se ele berrava por ajuda, por seu deus ou simplesmente de dor. Varina podia imaginá-lo em casa, abraçando sua esposa ou segurando os filhos, rindo de alguma piada que um deles tivesse contado. Ela mal notou a espada que o guerreiro segurava ou o fato de que ele erguia a arma sobre ela.
Flechas brotaram à frente do homem, e ele desmoronou, calando-se para sempre. Varina sentiu ânsia e vomitou no chão, caída de joelhos ao lado do guerreiro morto. Enquanto cuspia sua bile, ela ficou curiosa: que estranho, eu vi centenas de pessoas morrerem nos últimos dias, e este rosto foi o que mais me abalou...
— Você tem que vir conosco, a’morce!
Leovic e Niels cercaram Varina, a levantaram e quase a arrastaram encosta abaixo, até o lado oposto. Os tehuantinos recuaram momentaneamente enquanto o fogo queimava na trincheira, mas as chamas morreram rapidamente à medida que o óleo era consumido. Eles avançaram novamente, transbordando sobre a barricada pelo outro lado. Os gardai da Garde Civile à espera sacaram suas espadas, e Varina, juntamente com os outros numetodos e os ténis-guerreiros, recuaram enquanto o combate corpo a corpo irrompia sobre o cume. Varina ouviu as cornetas berrando e viu as bandeiras tremulando, mas elas pouco significavam alguma coisa para ela agora que Leovic e Niels continuavam a ajudá-la a recuar, um em cada braço. Varina simplesmente caminhou em meio ao fluxo de pessoas em uniformes azuis e dourados: de volta à cidade, sempre de volta. A retirada foi lenta a princípio, depois ganhou ímpeto e, subitamente, eles já não estavam andando, mas correndo, dando as costas aos tehuantinos ao fugir. Ela ouviu a batida dos cascos dos cavalos dos guerreiros, viu pessoas caírem a sua volta, atingidas por flechas ou abatidas por feitiços.
Leovic e Niels quase que carregavam Varina enquanto corriam. Ela não ousou olhar para trás. Não queria fazer isso.
— Andem, andem, andem! — berrou Brie para os chispeiros ao ver a kraljica e Sergei em seus cavalos, o archigos em sua carruagem, e a Garde Kralji saírem em debandada do breve abrigo da Bastida. — Vamos! Mantenham o ritmo!
Eles transformaram a Avi em um abatedouro, na cabeça da ponte. Os chispeiros correram sobre os paralelepípedos escorregadios de sangue, e sobre corpos que ainda gemiam e se contorciam. Os rostos dos chispeiros alternavam expressões de horror e alegria diante da carnificina que tinham causado, mas Brie não lhes deu tempo para refletir ou comemorar. A hïrzgin fez com que eles avançassem em direção aos portões da Bastida.
Em campo aberto, os chispeiros ficariam vulneráveis; eles atuavam melhor defendendo um espaço confinado. E se as fileiras fossem rompidas, os chispeiros seriam rapidamente sobrepujados. Brie os orientou aos berros, não permitindo que se separassem.
O pessoal de Allesandra avançou contra um aglomerado de guerreiros em uma das extremidades das muralhas da Bastida. Mais ocidentais saíram correndo das ruas laterais, liderados por um guerreiro montado, com o rosto pintado de vermelho e o crânio totalmente raspado. Brie viu um feiticeiro com ele: um velho cujo rosto fora devastado por alguma doença, com o olho esquerdo branco e cego. No momento em que a hïrzgin alinhou os chispeiros perto do portão da Bastida para lidar com o ataque renovado, ela viu o archigos entoando e movendo as mãos encarquilhadas moldando um novo feitiço, fazendo seu robe verde e dourado balançar. O feiticeiro ocidental ergueu o cajado de madeira e berrou uma única palavra em sua língua estranha.
O feitiço dele foi lançado imediatamente.
O archigos e a carruagem foram envolvidos em chamas. O téni-condutor caiu do assento, berrando e batendo no robe em chamas com as mãos. Ela ouviu o velho guinchar de surpresa e agonia. Karrol empurrou a porta e caiu da carruagem para a rua, seu robe parecia pingar chama líquida. Ele rolou no pavimento, emitindo um longo e tênue lamento que parou subitamente, mas Brie já não conseguia ver o archigos, não em meio à confusão da batalha. Enquanto berrava para os chispeiros, para tentar alinhá-los corretamente, a hïrzgin vislumbrou o guerreiro de crânio vermelho surgir com uma lança na mão, incitando o cavalo em um galope em direção à Allesandra. A kraljica ergueu a espada, mas a estocada de lança do guerreiro pintado de vermelho foi mais rápida; horrorizada, Brie viu a ponta da arma entrar com força e atravessar a armadura de Allesandra. O guerreiro pulou do cavalo, ainda segurando a lança que empalou a kraljica, jogando-a no chão. Berrando desesperadamente para os chispeiros, a hïrzgin viu Sergei pular do cavalo como se fosse um jovem.
Eles, também, desapareceram na luta.
Os feiticeiros de ambos os lados lançavam feitiços, e ainda mais guerreiros chegavam e ocupavam as ruas. Brie podia sentir o frio do Ilmodo em volta deles.
— Fogo! — ela berrou para os chispeiros, que olhavam atônitos para a confusão. — Fogo!
Mas então tudo mudou.
Nico tinha sido abandonado. Destituído. Até mesmo Rochelle o tinha deixado em algum momento durante a noite. Ele pôde sentir sua partida, mesmo que não tivesse respondido para ela.
Nico estava orando há um dia inteiro agora, sem comer, beber ou dormir, e Cénzi permanecera em silêncio. Ou talvez Ele estivesse dizendo muito. Nico foi atormentado por visões, mas não sabia dizer se elas emanavam de Cénzi, dos sons que ele ouvia lá fora ou da própria imaginação febril. Ele estava tremendo de frio, como se estivesse envolvido por um inverno impossível, tão frio quanto o próprio Ilmodo. Sobre seus olhos fechados, Nico teve a impressão de ter visto a batalha no oeste quando o sol o tocou através da janela do casebre no Velho Distrito. Ele viu as tropas fugindo dos ocidentais, viu os chevarittai montados tentando em vão proteger a retaguarda daqueles que recuavam dos supremos guerreiros montados, com seus rostos pintados e suas armaduras estranhas. Os homens em preto e prata, os homens em azul e dourado estavam fracassando; muitos deles estavam sendo abatidos por flechas ou pelos guerreiros a cavalo.
Nico testemunhou isso ao ser levado para o campo de batalha pelos braços gelados das suas preces, olhando para a cena do alto. Ele era um pássaro, um falcão, sendo levado pelo vento frio. Ele viu o estandarte do comandante ca’Talin e, mais ao norte, os estandartes do starkkapitän e do hïrzg. Todos estavam recuando para a cidade, com o homem mais à frente deles já nas ruas perto da Avi a’Certendi, a parte mais a oeste da imensa cidade.
Nico pairava sobre tudo isso, observando...
... então ele a viu: Varina. Ela estava exausta e sendo puxada por outros dois hereges numetodos; o trio estava perigosamente separado da massa principal da Garde Civile. Os guerreiros montados se aproximavam, a apenas alguns passos de distância, e a sinistra infantaria dos tehuantinos não vinha muito atrás. Eles seriam atropelados e mortos. Em breve.
Por que o Senhor me mostra isso, Cénzi? Por que me mostra a herege com tanta clareza?
Enquanto observava Varina, Nico sentiu o abraço frio envolver seu corpo mais intensamente. Ele estava caindo, rolando na direção de Varina no momento em que viu os guerreiros montados nos cavalos de guerra avançarem contra ela. Seus companheiros se viraram para lançar feitiços inúteis contra os agressores, que cercaram Varina.
Agora Nico estava ali, no solo e não muito longe de Varina. Ele pôde ouvi-la conter um grito e chamar seu nome — “Nico?” —, mas havia tanta energia ali que ele mal podia ouvir. O Segundo Mundo pareceu se abrir no céu e jorrar um fogo frio, o poder gelado do Ilmodo. Nico podia sentir todos puxando a energia sobre eles: os ténis-guerreiros, os hereges, os feiticeiros dos tehuantinos, até mesmo quem estava do outro lado do A’Sele, na cidade. Ele podia sentir o poder guardado nos cajados mágicos dos tehuantinos, nas mentes dos numetodos.
Todos canalizavam o Ilmodo do Segundo Mundo, onde Cénzi ainda vivia.
Nico se sentiu vasto. Ele podia esticar os dedos e tocar os fios de todas as conexões com o Ilmodo; podia puxá-los e tomá-los para si...
E foi o que Nico fez.
Não foi um movimento consciente. Ele agiu como se alguém tivesse o controle de seu corpo, sem escolha. Ele ouviu a si mesmo dizer palavras que não compreendia, sentiu as mãos se mexerem em um gestual que ele nunca tinha usado antes. Cénzi? Se era Cénzi, não houve resposta.
Nico gritou as palavras finais, executando o gestual final. Ele arrancou as cordas de poder que amarravam os ocidentais ao Segundo Mundo, mas manteve as cordas dos ténis e até mesmo a dos numetodos. Nico estava parado no campo de batalha com os braços abertos, sendo tomado pelo Segundo Mundo como nunca tinha acontecido antes.
Ele nunca tinha se sentido tão cheio do poder do Ilmodo. O poder o preencheu, queimando e perigoso demais para ser manipulado por mais que um instante. Nico absorveu tudo, inspirando o dom de Cénzi e o exalando novamente, soltando um grito.
O que eu faço com isso? Ele perguntou para Cénzi, e ouviu a resposta:
Faça o que deve fazer...
A onda de energia saiu pulsando de Nico, irradiando para o norte e o oeste ao longo da linha de batalha. Onde a onda tocou, os tehuantinos foram jogados para trás, sendo atirados violentamente sobre suas próprias fileiras. Eles foram derrubados como peças de um jogo varridas por uma mão furiosa.
Os guerreiros montados prestes a matar Varina e seus companheiros foram levados pela tempestade, tanto as montarias quanto os cavaleiros foram lançados longe.
— Vão! — disse Nico para eles. — Este é o Dom de Cénzi!
Sua voz ecoava como a de Cénzi; ela rugia, um trovão que pôde ser ouvido por todas as fileiras.
— Vão!
Então, acabou. Os fios de poder se romperam; o Segundo Mundo se fechou, soltando um trovão alto. Nico foi tomado por uma exaustão terrível, tão avassaladora que não conseguiu ficar em pé. Suas pernas cederam, e ele caiu na escuridão gelada.
— Deixem que eles cruzem o rio — disse Tototl. — Assim que eles estiverem na alameda, serão alvos fáceis, vamos atacá-los por todos os lados ao mesmo tempo.
A tática tinha funcionado a princípio. Os orientais usaram seus feitiços assim que o sol nasceu; Niente mandou os nahualli deixarem seus inimigos gastarem energia, mesmo que eles pudessem ter anulado a magia inimiga facilmente com os feitiços em seus cajados mágicos. Os guerreiros recuaram, abandonando a catapulta. Niente esperou no cavalo ao lado de Tototl, ao fim da primeira grande rua transversal da grande alameda. Os arqueiros disparavam saraivadas no céu; um velho nahualli oriental andando sobre uma carruagem mostrou sua força e tornou as flechas inofensivas ao desviá-las. A tecuhtli dos orientais — a mulher vestida de aço — escoltava os guerreiros de um lado ao outro do rio.
Eles ouviram o avanço dos guerreiros escondidos próximo ao rio e no pátio, onde o crânio do monstro tinha sido posto, mas Tototl ergueu a mão quando os guerreiros atrás dele seguiram em frente, ansiosos para se juntar à batalha.
— Esperem — ele ordenou. — Ainda não.
Através do vão entre os prédios, Niente viu os orientais avançarem pela rua, e a mulher, estranhamente, levou seus homens para o interior do pátio de onde os guerreiros tinham saído. Ele se perguntou o porquê disso, então veio a resposta: o terrível barulho estridente das armas de areia negra, que, estranhamente, soavam como as garras de águia que eles usavam no sacrifício de prisioneiros. Eles ouviram os gritos a seguir e viram os guerreiros caírem como milho sendo colhido. O tecuhtli oriental berrou, e os guerreiros inimigos voltaram à alameda em debandada, repelindo os guerreiros remanescentes ali.
— Agora! — gritou Tototl.
Eles avançaram contra a confusão como uma onda. Tototl avançou diretamente contra a mulher, arrancando sua lança de cavalaria da bainha na sela; sua espada permaneceu embainhada. Niente tentou segui-lo. O feiticeiro oriental na carruagem, vestido de verde e dourado, e mais velho que Niente, estava entoando um cântico e gesticulando de um jeito conhecido. Niente sentiu o poder envolvendo o homem crescer, e ergueu o cajado mágico, gritando o gatilho do feitiço. O X’in Ka disparou uma rajada solar de seu cajado, envolvendo o feiticeiro em chamas azuis. O homem gritou, e a rajada encobriu a carruagem e o passageiro.
Tão lenta. A magia oriental era tão lenta.
Niente viu a lança de Tototl empalar a tecuhtli oriental como um pedaço de carne. O guerreiro supremo pulou do cavalo ainda segurando a lança nas mãos e arrancando a pobre mulher do cavalo para os paralelepípedos. Tototl berrou em triunfo. Niente ouviu o impacto do corpo da mulher ao cair no chão.
Ele sentiu que os feiticeiros inimigos preparavam feitiços, ouviu a mulher no comando das terríveis garras de águia berrar ordens para seus homens, com uma longa trança marrom balançando sob seu elmo. Niente ergueu seu cajado mágico, pronto para abater a mulher de trança — para ele, ela era a mais perigosa dos inimigos.
Ele gritou o gatilho do feitiço, mas nesse mesmo instante, uma força terrível o puxou, puxou todos os nahualli. O ar gelado do X’in Ka girou em volta e por cima de Niente, varrendo o feitiço — e ele soube que tinha visto isso, embora não tivesse acreditado que fosse possível.
O homem da bruma, o homem escondido — ele tinha tomado uma decisão. Tinha agido.
O Longo Caminho estava aberto.
Niente engasgou. Esta era uma força bruta que ele nunca tinha sentido antes.
Um vórtice invisível pairou sobre eles, como a boca faminta de um tornado implacável, e sugou a energia do cajado de Niente, de todos os cajados mágicos, arrancando os poderes estocados neles e deixando os cajados vazios, como se todos os feitiços preparados para serem colocados dentro dos objetos na noite anterior com tanto trabalho tivessem sido lançados. Não foram apenas os nahualli que sentiram isso: ele notou que todos pararam e olharam para o céu, à procura de alguma coisa que eles não podiam ver. Tototl tinha arrancado a lança do corpo da tecuhtli; ele se aproximou dela, posicionando a lança para golpeá-la novamente, e também hesitou.
Então o vórtice desapareceu, sumiu, e Niente agora segurava apenas um pedaço de madeira vazio. Ele viu os outros nahualli se entreolharem, surpresos, ou soltarem seus cajados, assustados.
— Niente! — gritou Tototl sobre os paralelepípedos, com a lança ainda erguida.
Niente mostrou o cajado para ele e disse, surpreso:
— Eu não tenho nada. A magia foi retirada de todos os nahualli. Tototl, eu vi isso... eu lhe disse...
— Você ainda está vivo — resmungou o guerreiro supremo. — Nós ficaremos. Nós lutaremos!
Ele ergueu a lança novamente. Niente, então, viu a estranha cena: um velho com um nariz de prata avançando contra Tototl. O homem não brandia uma espada, mas uma bengala, enquanto berrava para o guerreiro supremo, e no entanto...
Niente sentiu a ameaça do pedaço de pau. Tototl também viu o homem, mas não fez nada, apenas sorriu. Niente gritou quando o homem apontou a bengala na direção de Tototl e saltou entre os dois, tentando afastar a bengala com seu cajado, mas ele não era forte o bastante. E a bengala tocou o corpo do próprio Niente.
O impacto pareceu com o punho de Axat. Niente pensou ter visto o rosto Dela sobre ele, acenando com a cabeça enquanto Niente caía. Ele viu um pássaro entalhado voando na frente de Axat.
Uma última dádiva...
Sergei viu a estocada cruel da lança do guerreiro trespassar a armadura de Allesandra. Viu a boca da kraljica se abrir em silêncio, surpresa e abalada, viu o guerreiro usar a haste da lança para arrancar a kraljica do cavalo. O homem se aproximou dela e arrancou a lança de seu corpo, seu sangue jorrava enquanto ele se preparava para estocar novamente a figura caída. O guerreiro berrou alguma coisa para um antigo feiticeiro ocidental perto dele.
Sergei se deteve. Alguma coisa parecia estranha: um vento frio furioso varreu a Avi, e a fúria dos feitiços de todos os lados pareceu ter se esvaído.
O embaixador se remexeu. Ele mancou até Allesandra, com a bengala em uma mão e o florete na outra. Mais um ocidental se aproximou a sua esquerda, e Sergei estocou por baixo do golpe cortante do homem, a lâmina fina do florete encontrou uma brecha entre as ripas de bambu da armadura e se enfiou no abdômen. O ocidental dobrou o corpo e caiu, e o movimento arrancou a espada da mão de Sergei. Ele deixou a arma ali; não tinha força para segurá-la.
— Não! — berrou o embaixador para o guerreiro parado diante da kraljica.
Sergei brandiu a bengala para o homem, que olhou para ele e parecia quase rir.
Sergei rezou para que se lembrasse da palavra que Varina lhe tinha ensinado, para que a pronunciasse corretamente, para que o feitiço que ela disse ter colocado dentro da bengala realmente funcionasse.
— Scaoil! — berrou o embaixador, apontando a ponta de latão da bengala na direção do guerreiro.
Mas no mesmo instante, o antigo feiticeiro se moveu com uma velocidade impressionante para sua idade e se colocou entre Sergei e o guerreiro, brandindo seu cajado mágico. A bengala acertou o feiticeiro. Assim que a bengala o tocou, sua ponta de latão pareceu explodir. Um som alto e percussivo quase ensurdeceu Sergei. A rajada fez lascas da bengala saírem voando, lançando o velho feiticeiro para trás juntamente com um jato de sangue e tripas; moribundo, se é que já não estava morto. Um pássaro vermelho entalhado saiu voando da bolsa rasgada do feiticeiro, posando novamente no peito do velho. O feiticeiro segurou o pássaro, pareceu sussurrar para ele e, em seguida, sua cabeça pendeu para o lado.
O guerreiro pintado de vermelho deixou a lança cair de sua mão olhando fixamente para o corpo do feiticeiro, caído na Avi perto de Allesandra, ferida.
O tempo parou para Sergei. O guerreiro estava imóvel, com a boca contraída no rosto pela fúria da batalha. O embaixador pensou que o homem levaria a mão ao lado de seu corpo e sacaria a espada, que abateria Sergei no instante seguinte. Não havia gardai para salvá-lo, nenhum chispeiro perto o suficiente.
Ele se perguntou qual seria a sensação de morrer.
Mas o guerreiro olhou fixamente para o corpo do feiticeiro, balançando a cabeça. Ele berrou alguma coisa que Sergei não compreendeu: uma prece, uma maldição, uma pergunta. O homem deu um passo para trás e se afastou do embaixador, depois deu mais um e mais outro. Então se virou completamente e rugiu uma ordem que ecoou na rua. Os guerreiros na Avi começaram a ceder terreno, devagar a princípio, depois mais rapidamente. Sergei viu Brie e Talbot persegui-los com os chispeiros, e chamou os dois.
— Esperem! A kraljica...
Ele se ajoelhou ao lado de Allesandra.
— Sergei — ela disse. — Dói...
— Eu sei — respondeu o embaixador.
Alguns gardai se reuniram a sua volta — sangrando, exauridos e aparentemente atordoados. Todos olharam espantados para a kraljica e para o corpo destruído do feiticeiro.
— Ajudem-me — disse Sergei para os homens. — Ajudem-me a levá-la de volta para o palácio...
Jan, com os chevarittai e alguns ténis-guerreiros lutavam na retaguarda para proteger a retirada, eles enfrentaram os guerreiros montados e mantiveram a infantaria ocidental longe dos retardatários. Como comandante do exército firenzciano, Jan raramente tinha precisado coordenar uma retirada em grande escala, mas ele tinha estado do lado vencedor várias vezes, e sabia que a retirada, em geral, era o momento mais perigoso para as tropas, pois a força avançando poderia eliminar os retardatários, lançar flechas e feitiços para dizimar ou até mesmo obliterar as companhias da retaguarda. Frequentemente, o exército em progressão podia sobrepujar o inimigo exausto e desmoralizado e causar baixas terríveis.
A retirada talvez permitisse que o comandante lutasse outro dia, mas também podia levar a uma derrota completa e infame. Eles nem ao menos estavam recuando para fortificações, mas para uma cidade aberta e desprotegida.
Os feiticeiros ocidentais lançaram feitiços contra eles que os ténis-guerreiros tiveram pouco tempo e energia para desviar. Os arqueiros cobriram o céu com suas flechas. As tropas montadas — felizmente poucas — avançaram as suas costas, abatendo os gardai correndo. A vanguarda do exército inimigo avançou com tudo. Jan vislumbrou, entre a fumaça e a confusão do campo de batalha, os estandartes do comandante tehuantino: a serpente alada que voava em um evoaçante pano de tom verde intenso. A maior parte dos feitiços parecia vir do grupo à volta daquele estandarte.
Jan estava exausto e sentindo uma dor terrível. Seus dedos queriam libertar o fardo do aço firenzciano pesado, o cabo da espada já escorregadio com sangue. O hïrzg oscilou na sela, quase caindo do cavalo quando um relâmpago mágico surgiu, sibilante, explodindo diretamente à frente, fazendo seu cavalo de guerra empinar. Ele acalmou o animal.
— Hïrzg!
Jan ouviu alguém chamar, e um chevaritt à direita apontou para um quarteto de guerreiros montados prestes a atropelar um grupo de gardai.
Ele suspirou. Obrigou seus dedos a segurarem firme a espada. Jan ignorou a dor lancinante em seu peito. Ele esporeou o cavalo, galopando em direção aos guerreiros.
Você não vai sobreviver a isso. Esta será sua última batalha.
O ideia lhe ocorreu como uma certeza. Uma profecia. Ele estremeceu ao soltar um grito de encorajamento para os chevarittai, ao mesmo tempo em que eles cavalgavam em direção aos guerreiros.
Então...
Uma onda de frio intenso tomou conta dele, como se o inverno tivesse chegado mais cedo; quando a sensação se esvaiu, Jan percebeu, mesmo com a fúria de seu ataque, que a chuva constante de feitiços das forças tehuantinas tinha parado. Os guerreiros à frente também o notaram. Eles puxaram as rédeas de seus cavalos e voltaram seus olhares para suas próprias fileiras. O hïrzg ficou preocupado que os feiticeiros estivessem preparando outro feitiço em massa, como a tempestade de guerra. Mas, em vez disso, uma onda visível varreu a terra de leste a oeste, uma onda que fez Jan puxar as rédeas, espantando. Todos podiam vê-la: no ar fugidio, na poeira erguida pela onda ao passar. Onde tocou o avanço da linha de frente dos ocidentais, os guerreiros foram jogados e lançados para trás, sem tocar nos homens no próprio hïrzg. Jan ouviu gritos e gemidos, depois uma única voz, mais alta.
— Vão! Este é o Dom de Cénzi! Andem!
O grito pareceu vir de todos os lugares e de lugar nenhum.
Jan sentiu subitamente uma tênue esperança. A bola de fogo de um téni-guerreiro saiu voando sobre os tehuantinos. Não houve reação ao feitiço: nenhum desvio, nenhuma implosão impotente acima deles. A bola de fogo anunciou a morte com um som estridente, penetrando nas fileiras ocidentais e explodindo, intacta. Outra veio atrás desta, e mais outra — todas penetraram. A esperança dentro do hïrzg aumentou, seus ferimentos já não importavam.
— Virem-se! — berrou ele para as tropas, para os offiziers. — Virem-se! Sigam-me!
Jan ergueu sua espada quando os chevarittai atenderam ao chamado. Ele ouviu a ordem ecoar entre as fileiras, e a retirada parou, virando-se lentamente. O hïrzg já estava cavalgando rapidamente em direção aos tehuantinos. Por todo o campo de batalha, até o ponto ao sul onde sua visão alcançara, a retirada se voltava para ele. As cores preto e prata começaram a fluir em direção ao oeste.
Com os chevarittai em volta de si, Jan penetrou na linha de frente atordoada dos ocidentais e seguiu em direção ao estandarte da cobra alada. Os primeiros guerreiros por quem ele passou estavam espalhados no chão; se estavam mortos ou inconscientes devido ao enorme feitiço desconhecido, Jan não sabia. Então o hïrzg encontrou resistência e avançou pelo mar de lâminas reluzentes, esquecendo suas dores em meio à fúria da batalha. Os chevarittai gritavam ao mesmo tempo que derrubavam os ocidentais e seguiam em direção ao comandante inimigo, todos avançando. Eles ouviram o rugido dos gardai correndo atrás de si.
Não houve resposta da parte dos feiticeiros tehuantinos. O que quer que tenha acontecido, roubou a magia deles. Mas os guerreiros tehuantinos — ao menos aqueles distantes da onda inicial não tinham sido afetados. Eles lutaram tão ferozmente como nunca, e agora que a euforia inicial tinha passado, a exaustão e a dor se fizeram sentir novamente. O ataque diminuiu, embora os estandartes de serpente alada agora estivessem dolorosamente próximos. Cada golpe de espada na massa de guerreiros disparava um choque que subia pelo braço de Jan. Suas pernas doíam, e ele mal conseguia se manter montado no cavalo de guerra. Suas costelas o apunhalavam como adagas de marfim a cada fôlego.
Ele se perguntou onde Brie estaria. Perguntou-se quem contaria a seus filhos e o que eles diriam.
Você tem ao menos que fazer essa história valer a pena ser contada.
Gemendo, Jan ergueu a espada para proteger a lateral do corpo de uma estocada, e a lâmina desviou o ataque, cortando o pescoço do guerreiro. O hïrzg viu o homem escancarar a boca e arregalar os olhos. Algo golpeou sua coxa na esquerda, ele se virou para enfrentar o guerreiro com a lança, cuja ponta estava cravada na sua perna logo acima da couraça. Jan puxou as rédeas com força para a esquerda e o cavalo de guerra ergueu os cascos, que acertaram e pisotearam o agressor enquanto a ponta da lança era arrancada de sua coxa. Ele sentiu seu sangue jorrar, molhando o acolchoamento sob a couraça.
Jan estava mais perto. Ele podia ouvir o estandarte da cobra tremulando.
— A mim! — gritou o hïrzg para os chevarittai, mas não ouviu resposta.
Jan não sabia onde eles estavam, não tinha tempo de procurá-los. Carrancudo, ele avançou, atropelando os guerreiros à frente com seu cavalo. Jan alcançou uma pequena clareira, viu o líder tehuantino, com o crânio raspado decorado com uma águia vermelha cujas asas se abriam em suas bochechas. O homem era mais velho que Jan, volumoso na armadura ocidental e montado em seu próprio cavalo, um magnífico animal malhado. Perto do líder, havia um feiticeiro ocidental, jovem, com o cajado mágico na mão e um bracelete dourado no braço.
Jan reuniu todas as forças que ainda tinha, ergueu a espada e gritou em desafio. Ele esporeou o cavalo de guerra para seguir adiante.
Do esconderijo atrás das tapeçarias na parede dos fundos, Rochelle viu a kraljica ser carregada para o salão. A armadura de Allesandra estava manchada de vermelho, e havia um buraco aberto no peitoral de onde o sangue ainda jorrava. Seu rosto estava pálido e contraído, o cabelo grisalho desalinhado e duro como palha em volta do rosto.
— Coloquem-me no trono — ela ouviu o sussurro da kraljica.
A voz da mulher era áspera e baixa, exausta e esquelética. Os gardai que a levavam obedeceram e a colocaram no Trono do Sol. Rochelle esperava que o trono se acendesse assim a kraljica se sentasse no abraço cristalino, como diziam as histórias, mas o trono respondeu apenas com o mais pálido dos brilhos, praticamente invisível na luz do sol.
Ela se perguntou se era porque a kraljica estava à beira da morte.
— Alguém vá procurar pelos curandeiros da kraljica — ela ouviu Sergei dizer. — O restante, procurem a hïrzgin para receber suas ordens; ela está no comando. Andem!
Eles se dispersaram. Rochelle viu Sergei se ajoelhar ao lado do trono.
— O que eu posso fazer pela senhora, kraljica? — perguntou o embaixador.
— Água, Sergei — sussurrou Allesandra. — Estou com tanta sede.
Ele mancou até um balcão perto da porta de serviço; Sergei estava sem a bengala e andava devagar. Rochelle saiu de trás da tapeçaria. Com alguns passos resolutos, ela alcançou a plataforma, com a faca na mão. Sergei a ouviu e berrou seu nome — “Rochelle!” — mas ele estava muito longe e era lento demais para detê-la. A pedra branca — dentro da bolsinha em volta do pescoço de Rochelle — parecia pulsar incandescente contra sua pele.
Você vai matá-la e, enquanto ela morre, você vai contar o porquê, para que ela vá para Cénzi sabendo...
Allesandra olhou para Rochelle com um olhar confuso e sofrido.
— Olá, mamatarh — disse ela. — Eu sou Rochelle.
— Rochelle? Mamatarh?
A confusão aumentou na expressão da mulher. Ela viu a faca e franziu os olhos.
— Eu conheço essa arma — Allesandra disse, umedecendo os lábios secos.
Ela tossiu, cuspindo bolhas de espuma vermelha dos cantos da boca.
— Eu matei Mahri com isso. Onde você...?
— Do seu filho — respondeu Rochelle. — Do meu vatarh.
A kraljica estreitou os olhos novamente.
— Seu vatarh? Jan?
— Rochelle, não faça isso — disse Sergei.
Ele deu passos vacilantes em direção à plataforma, com a mão estendida na direção dela. Rochelle ignorou o embaixador. Um corte com a lâmina, e ela poderia passar por qualquer uma das portas e estar longe antes que ele pudesse fazer qualquer coisa para detê-la.
— Sim, Jan é meu vatarh — contou Rochelle para Allesandra.
Sua mão livre segurou a pequena bolsinha de couro com o seixo quase branco e chato que continha sua matarh e todas as vítimas dela.
— E minha matarh... ela era a Pedra Branca. Elissa, era assim que ela se chamava nessa época, embora esse não fosse seu nome de verdade.
— Elissa... — Os olhos de Allesandra se fecharam por um momento; sua respiração se agitou e seus olhos se abriram novamente. — Jan...
— Ela o amava — disse Rochelle ao se inclinar sobre a kraljica.
Ela aproximou a lâmina do pescoço de sua mamatarh. Allesandra pôs a mão sobre a de Rochelle, mas não havia força no aperto. Sua pele era tão enrugada quanto um pergaminho.
— Rochelle, a mulher já está morta — falou Sergei. — Você não precisa fazer isso. A Pedra Branca está morta. Deixe-a morrer em paz.
Rochelle olhou para ele.
— Por que você se importa, embaixador? Suas mãos estão bem mais ensanguentadas que as minhas.
— Eu lhe disse na carruagem: não é tarde demais para você, Rochelle. Você não é a sua matarh. Não precisa se transformar no que ela se tornou.
A faca tremeu em sua mão. Prometa para mim...
— Faça isso — continuou Sergei — e você será para sempre a Pedra Branca, a assassina odiada que matou a kraljica. Será caçada pelo resto da sua vida curta e miserável. Jamais se sentirá segura, jamais ficará à vontade. Eventualmente, você cometerá um erro e será capturada, depois será arrastada para cá acorrentada e será executada. Este é o seu destino, Rochelle, o único que terá se fizer isso.
— E se eu não fizer? Eu ainda não sou a Pedra Branca, que matou Rance e os outros?
Sergei deu de ombros.
— Eu não sei. Sua vida será um livro que você mesma escreverá. Se a Pedra Branca desaparecer, não há ninguém a ser perseguido.
A mente de Rochelle estava atormentada. A faca pressionada contra a pele de Allesandra, o gume afiado, o sangue. Tudo o que ela tinha a fazer era pressionar com um pouco mais de força. Só precisava se debruçar levemente sobre a mulher; a faca faria o resto. Os dedos de Allesandra apertavam os de Rochelle, quase como se a kraljica quisesse que ela fizesse aquilo.
— Minha matarh amava Jan — disse Rochelle para sua mamatarh, com uma voz mais trêmula do que as mãos.
— Eu sei. — Os lábios de Allesandra estavam molhados de sangue, e um longo filete escorria pelo canto da boca. — E Jan a amava. Eu sei disso também.
A kraljica gorgolejou, o cheiro de seu hálito era horrível.
— Eu lamento.
— Lamenta? — Rochelle praticamente gritou, quase enfiou a faca no pescoço de Allesandra com violência. — Você deveria ter dito isso para ela.
A kraljica não respondeu. Sua respiração ficou fraca, seu corpo se contorceu em um espasmo. Ela olhou fixamente para Rochelle, piscando muito.
— Rochelle...
Ela tirou a faca do pescoço de Allesandra e embainhou a arma. Mate-a... Rochelle ouviu o sussurro de sua matarh, mas seu som foi fraco, e ela descobriu que não tinha vontade de fazê-lo. Não mais. Toda a raiva tinha abandonado Rochelle, toda a certeza.
— Eu quero ver você morrer — ela disse para a kraljica, olhando para Sergei. — Eu preciso ver isso.
— Está bem. — Sergei subiu os degraus da plataforma pesadamente para ficar ao lado dela. — Nós assistiremos juntos.
A boca de Allesandra se abriu, como se ela fosse protestar, mas não disse nada. Os dois ouviram sua respiração se esgotar. A kraljica olhava para Sergei.
— Nessântico...
Sua voz soou quase tão fraca quanto um zéfiro. O olhar cego da kraljica se fixou em algum ponto entre os dois.
— Sergei, ela está a salvo?
— Sim — respondeu Sergei. — Ela está a salvo.
Allesandra não esboçou reação. Após um tempo, eles perceberam que ela já não respirava. Seus olhos continuavam abertos. Rochelle tirou a pedra branca da bolsinha e colocou sobre o olho direito da kraljica.
— Pronto, matarh — disse Rochelle. — Ela é sua...
Rochelle começou a descer da plataforma.
— Espere — chamou Sergei, atrás dela. — A pedra...
— Deixe aí. Guarde como lembrança. Jogue fora. Eu não me importo. Não preciso dela.
Rochelle saiu do salão no momento que os curandeiros — tarde demais — entraram.
A onda de frio, seguida do pulso que passou por eles inofensivamente, mas que colidiu contra os ocidentais...
A presença de Nico e sua voz, inacreditavelmente alta...
O silêncio que pareceu durar vários instantes, quando eles perceberam que nenhum dos ocidentais lançava feitiços em sua direção...
O que aconteceu?
Varina ainda podia sentir o Scáth Cumhacht dentro de si. Tinha sentido alguma coisa — alguém? — puxar os feitiços que ela tinha guardado na mente, como se quisesse roubá-los, mas a presença passara por Varina sem tocá-la. Bem ao norte, ela viu a bola de fogo de um téni-guerreiro cruzar o horizonte em direção ao inimigo, depois outra e mais outra, esta de um téni perto dela. Nenhum deles foi tocado.
Varina ouviu os offiziers gritando para virar os gardai para o oeste mais uma vez. A maré que os arrastou pelo caminho diminuiu, parou e depois começou a fluir para o outro lado. Eles ficaram parados em meio à correnteza. Leovic e Niels ainda seguravam seus braços, mas Varina percebeu que eles observavam.
— Vão — ela disse para os dois. — Eles precisam de vocês. Eu seguirei como puder.
— A’morce — reclamou Niels.
— Vão — repetiu Varina.
Eles a deixaram e correram na direção de um dos offiziers chevarittai. Varina viu Leovic e Niels serem levados pela multidão. Ela seguiu depois, bem mais lentamente, mancando. Uma multidão de gardai passou por Varina, gritando. Ela ouviu o barulho da batalha recomeçar adiante, mas todos os feitiços pareciam estar vindo dos ténis-guerreiros da fé concénziana e dos numetodos, não dos ocidentais.
Varina estava entre os corpos dos que caíram durante a retirada, a maioria vestindo uniforme azul e dourado. Era difícil ignorá-los. O pior era ver aqueles que não tinham morrido, mas que estavam feridos demais para andar, estendendo suas mãos, pedindo socorro enquanto ela passava ou rastejando em direção à cidade. Para esses, Varina só podia dizer que a ajuda estava chegando em breve para resgatá-los — e torcer para que fosse verdade.
Mas ela estava procurando por uma pessoa em especial.
Varina viu um corpo a sua frente, à esquerda, vestindo um robe verde de téni. Pensou que pudesse ser um dos ténis-guerreiros, mas então viu o rosto.
O rosto de Nico.
Ignorando as pernas doloridas, Varina correu até ele, se ajoelhando a seu lado. Nico parecia ileso: não havia sangue em seu robe, seu rosto sujo e escuro tinha velhos cortes e hematomas, mas tirando isso parecia incólume.
— Nico? — ela disse, rolando seu corpo sobre suas costas procurando desesperadamente por algum sinal de ferimento.
Ele abriu os olhos, e sorriu.
— Oi, Varina. Acho que dormi. Você viu minha matarh?
Era a voz de um menino. A voz de uma criança. Nico se sentou e olhou a sua volta, arregalando os olhos ao perceber os gardai correndo aos gritos e brandindo espadas; os corpos caídos ao redor; os vapores e a fumaça do campo de batalha; a terra pisoteada que um dia tinha sido o campo de um fazendeiro. Ele se ajeitou e ficou sentado com as costas eretas.
— Varina — disse Nico com a voz trêmula, obviamente com medo, ele pegou os braços dela com força. — Estou assustado, Varina. Leve-me para casa. Por favor. Eu não quero ficar aqui.
— Nico, o que você fez?
Ele parecia amedrontado com a pergunta e se afastou de Varina.
— Eu não fiz nada, juro. Só quero ir para casa. Quero ver a minha matarh. Quero ver Talis.
Varina o abraçou.
— Nico, Talis e Serafina... partiram.
— Para onde eles foram? — ele perguntou.
Não havia malícia em seus olhos, só a pergunta inocente.
— Nico...
Ela não podia responder. Varina o abraçou de novo. O que quer que Nico tivesse feito, seja lá como o fez, o esforço obviamente lhe custara a mente. Este não era mais o Absoluto dos morellis. Este não era mais Nico, o grande téni. Ele se agarrou a Varina como uma criança a sua matarh, e ela sentiu seu corpo tremer de pânico e angústia.
Gardai ainda passavam por eles; o barulho da batalha e os trovões dos feitiços dos ténis-guerreiros eram ensurdecedores.
— Nico, vamos — falou Varina. — Vamos sair daqui. Não é seguro. Você pode vir pra minha casa. Gostaria disso?
Ele assentiu urgentemente, abraçado a ela. Varina o levantou.
Juntos, eles seguiram cambaleando para leste, em direção à cidade.
Atl se sentiu nu e desprotegido, seu cajado mágico tinha sido esvaziado em poucos instantes por aquele terrível feitiço do leste, e agora a batalha tinha sido subitamente renovada, quando já deveria estar acabada.
Em vitória. Na vitória que Atl tinha visto. Na vitória que Atl tinha dito para o tecuhtli que seria dele. Atl se lembrava da visão do taat, aquela que Niente alegara ter visto, o caminho que Atl tinha sido incapaz de ver, que ele pensava que era mentira do taat. Isso não era possível.
Citlati se enfureceu com Atl enquanto bolas de fogo dos nahualli orientais caiam perto dos dois.
— Detenham-nos! — berrou o tecuhtli. — Maldito seja, nahual! Detenham-nos!
Mas tudo o que Atl pôde fazer foi balançar a cabeça.
— Eu não tenho poder, tecuhtli. Nenhum dos nahualli tem. Ele foi tirado de nós.
Os feitiços sumiram, e não havia tempo agora para preparar novos e colocá-los nos cajados mágicos.
— Você me prometeu a vitória, nahual! Você me prometeu a cidade!
Citlali choramingou como uma criança sem seu brinquedo favorito, mas não havia nenhuma resposta para essa situação. Seu rosto ficara tão vermelho de raiva que a águia vermelha pareceu se misturar a sua pele.
Não haverá uma vitória, Atl queria dizer para ele. Ou, se houver uma, não será a vitória que eu vislumbrei na tigela. Os caminhos da tigela premonitória tinham sido apagados. Tudo mudou. Eu nunca tinha visto esse caminho antes. Não sei para onde ele leva.
Como seu taat tinha avisado. Sua mão tateou a bolsa, onde o pássaro entalhado que o taat lhe dera estava aninhado. Se um de nós vir o rumo, então podemos contar para o outro que o Longo Caminho está aberto... Será que Niente estava certo: será que esse Longo Caminho existia, aquele que Atl não conseguia ver?
Ele desejou que seu taat estivesse ali.
Citlali ainda estava furioso, mas a atenção de Atl estava voltada para o pássaro entalhado na bolsa. Ele pareceu farfalhar, como se estivesse vivo e batendo as asas em pânico. Atl abriu a aba de couro e meteu a mão dentro. Sim, a coisa estava se mexendo. O pássaro ficou imóvel quando Atl o tirou para fora, e, assim que o fez, ele pôde ouvir a voz inconfundível de Niente.
— Tototl está voltando para os navios. Você tem que ir também! O Longo Caminho está aqui.
— Taat?
Não houve resposta. Atl soltou o pássaro entre seus dedos que há muito tinham perdido a força. Ele viu o objeto cair no chão, se perdendo entre os caules dos grão pisoteados na terra. A voz de seu taat soara tão fraca, tão perdida, e Atl foi tomado pela certeza de que jamais a ouviria novamente.
— Tecuhtli — chamou Atl. — Temos que recuar e encontrar os navios. Estamos sem magia. Não teremos nenhuma até que possamos descansar novamente.
— Não! — disparou Citlali. — Eu tomarei a cidade hoje.
— Não é possível agora — respondeu Atl.
— Como você sabe? — disse Citlali, com desprezo. — Nada do que você me disse era verdade. Você não é mais o nahual. Eu encontrarei outro. Farei de Niente o nahual novamente.
Citlali ergueu a espada contra Atl, como se estivesse prestes a atacá-lo, Atl ergueu seu cajado mágico inutilmente.
Alguém gritou na língua dos orientais para os dois, e um cavalo de guerra rompeu o anel em volta de Citlali e Atl, conduzindo um guerreiro coberto de sangue e terra, sem elmo e com uma espada chanfrada na mão. Ele investiu diretamente contra Citlali, e o tecuhtli deixou Atl de lado para aparar o golpe do homem. O aço retiniu em aço, e Atl viu uma lasca da lâmina de Citlali sair voando e girando. Quando os cavalos de guerra se aproximaram, Citlali empurrou o oriental, e o homem caiu do cavalo. O tecuhtli riu.
— Viu só? — disse ele. — Viu só como eles caem facilmente? E você me diz para recuar?
O oriental estava lutando para ficar de pé, meio aturdido, apoiando-se em uma perna. Parecia que ele não seria capaz sequer de erguer sua espada. A sua volta, Atl viu os uniformes pretos e prateados e azuis e dourados dos orientais, embora os três permanecessem sozinhos em um nexo tranquilo em meio ao caos. Vários guerreiros caíam sob a pressão, os feiticeiros inimigos lançavam sua magia, e os nahualli eram incapazes de reagir. Citlali pulou do cavalo; Atl viu sua bota pisar sobre o pássaro vermelho entalhado no chão revirado e lamacento. O tecuhtli ergueu a espada novamente. O golpe, Atl viu, arrancaria a cabeça do oriental.
Atl ergueu seu cajado mágico vazio novamente, e o desceu com força no crânio de Citlali. O som emitido foi estranhamento baixo, como um pau batendo em um melão maduro, mas o tecuhtli caiu inconsciente aos pés atordoados do oriental. O homem olhou para Atl, que devolveu o olhar. Por um instante, nenhum dos dois se mexeu, então, enquanto Atl observava, montado em seu cavalo, o oriental ergueu sua espada e a enfiou no pescoço de Citlali.
— Perdemos o tecuhtli! — Atl gritou alto para que os guerreiros perto dele pudessem ouvi-lo. — Perdemos o tecuhtli. Recuar! De volta para os navios!
Enquanto os guerreiros reagiam, enquanto começavam a abandonar o combate e recuar, enquanto os orientais berravam em triunfo, Atl encarava o oriental. O homem se apoiava na espada, ainda cravada no pescoço de Citlali. Atl o cumprimentou com a cabeça.
Em seguida, ele puxou as rédeas do cavalo e começou a longa fuga para o oeste.
A Aurora
Eles foram perseguidos pelo exército de azul e dourado e preto e prata, foram caçados enquanto recuavam em direção ao rio e aos navios à espera, mas não intensamente. Os retardatários tinham sido abatidos, mas os exércitos principais não foram enfrentados novamente. Ficou claro que os orientais estavam felizes em escorraçá-los de sua terra, mas não exigiriam o extermínio do inimigo se eles estivessem dispostos a ir embora.
O exército vislumbrou os mastros dos navios da frota no segundo dia, a cerca de quinze quilômetros rio acima a partir de Nessântico, os tehuantinos subiram a bordo o mais rápido possível. Tototl, que se nomeara como tecuhtli, entrou no Yaoyotl e virou a frota para oeste assim que os guerreiros sobreviventes e os nahualli subiram a bordo. Ele afundou os barcos vazios, em grande número, no meio do rio para desencorajar a perseguição por parte de qualquer embarcação da marinha dos Domínios.
Eles navegaram A’Sele abaixo, sendo levados rapidamente pela correnteza em direção ao mar.
De volta para casa.
Atl, a bordo do Yaoyotl, olhou fixamente para a bruma verde da tigela premonitória. Tototl o observava atentamente; seu crânio agora estava pintado com o desenho da águia que em breve seria permanentemente tatuado em sua pele.
A miríade de futuros se espalhou diante de Atl; eles não estavam mais encobertos e difusos como tinham estado. Era como se Axat tivesse tirado um véu diante do rosto de Atl. Ele podia ver com mais clareza agora, todas as incertezas que encobriram as possibilidades por tanto tempo tinham sido sopradas para longe como nuvens tempestuosas. Os futuros estavam abertos para o nahual, todas as possibilidades.
O que ele viu o fez ofegar. O Longo Caminho... Este era o futuro que seu taat tinha visto, que ele sempre dizia que estava lá. Atl percebeu então que Niente sabia que preço que o Longo Caminho cobraria: para alcançá-lo, ele devia morrer, e o tecuhtli Citlali também seria morto, se ele quisesse que esse futuro se concretizasse; e um grande número de guerreiros também deveria morrer. Por quanto tempo o senhor manteve esse segredo, taat? O senhor sabia antes mesmo de nós partirmos?
Atl suspeitava que sim. Isso explicava muita coisa. Explicava por que Niente nunca quis que ele usasse a tigela premonitória. Esse tinha sido o gesto de um pai protetor, não o de um nahual enciumado. Essa compreensão fez Atl lamentar as palavras duras que os dois tinham trocado.
— Eu voltarei a esta terra? — perguntou Tototl duramente, interrompendo os pensamentos de Atl e fazendo com que a bruma verde oscilasse com sua respiração a ponto de Atl quase perder a visão. — Eu vingarei nossa derrota?
Atl também pôde ver esse futuro: os navios novamente carregados com um exército, um ainda maior que o de Citlali, voltando pela terceira vez àquelas praias. Mas, dessa vez, os exércitos dos Domínios eram um só e os atacaram prematura e furiosamente; a maioria dos homens estava armada com armas terríveis, como aquelas que Tototl e Niente tinham testemunhado durante suas batalhas. Os guerreiros tehuantinos foram abatidos como trigo por uma foice e a terra bebeu seu sangue.
Era um futuro terrível, mas um futuro que poderia facilmente acontecer.
Mas o outro... aquele que se estendia até ser engolido pelas brumas. Este também era possível, se Atl direcionasse Tototl para esse caminho. Seria necessária habilidade e exigiria sacrifício, mas o futuro estava lá, e ele podia ver a mão de Niente sobre ele.
— O senhor fará mais do que isso, tecuhtli — respondeu Atl. — Um dia, o senhor promoverá a paz com os orientais. Seu nome será homenageado em todas as partes da nossa terra. Todos os tecuhtli que vierem depois serão comparados ao senhor. O senhor será eternamente conhecido como o Grande Tecuhtli.
As brumas enfraqueceram agora, Atl pegou a tigela e jogou a água em seu interior sobre a lateral do navio. Ele entregou a tigela para um nahualli de menor escalão.
— Limpe isto — ele disse para o homem — e coloque de volta na minha cabine.
Ele podia sentir o cansaço do X’in Ka martelar seu corpo, e seu olho esquerdo piscar incomodamente. Atl apertou bem os olhos e os abriu novamente. Tototl o observava.
— Paz? Como um guerreiro encontra honra na paz? Como um guerreiro se torna grande sem guerra e vitória?
Atl respirou profundamente. Olhou para o oeste, para a fumaça e os vapores de Nessântico, para o lugar onde o corpo de Niente jazeria para sempre.
— Eu vou lhe mostrar — disse o nahual. — Juntos, nós nos manteremos naquele caminho.
— Veja-me fazer — ela disse para Nico. — Aí eu quero que você tente fazer sozinho. Está vendo? Olhe só, você faz um laço com o cadarço assim, depois pega a outra ponta e passa uma vez pela base do laço, e...
Ela ouviu uma batida na porta do quarto enquanto amarrava as botas de Nico.
— A’morce?
— Entre — respondeu ela.
Michelle entrou, com Serafina no colo. O bebê estava enrolado em renda, e Michelle segurou a criança com um gesto protetor ao olhar desconfiada para Nico, que estava sentado na cama. Ele virou o rosto ingênuo para olhar para a ama de leite.
— Esta é Serafina? — Nico perguntou para Varina, com ansiedade na voz.
— Sim.
Ele baixou o olhar, quase envergonhado.
— Posso... posso segurá-la?
Michelle balançou a cabeça ligeiramente, mas Varina sorriu para ele.
— Só um pouquinho. E você precisa tomar muito cuidado com ela.
Varina acenou com a cabeça para Michelle que, ainda com a testa franzida, deu um passo para frente, colocando o bebê nos braços esticados de Nico.
— Segure bem a cabeça dela — disse Varina. — Sim, desse jeito. Muito bem...
Nico sorriu ao embalar Serafina nos braços. O bebê se agitou por um momento, mas depois se aquietou, sendo embalado por Nico até dormir. Ele encarou o rosto da criança.
— Os olhos são tão grandes — perguntou Nico com um ar de admiração. — E as mão são muito pequenininhas. Ela é mesmo minha filha?
— Sim. Sua e de Liana.
Varina acariciou a cabeça de Sera. Seu cabelo era fino como uma penugem, a pele macia e quente. Sua mãozinha se sacudiu, encontrando o dedo de Varina e o agarrando. Ela riu.
Nico balançou a cabeça, observando a interação.
— Eu não me lembro de Liana. Eu não sei como...
— Eu conto para você um dia — disse Varina. — Agora, nós temos que nos aprontar para ir ao funeral da kraljica. Aqui...
Ela estendeu as mãos, e Nico colocou Serafina ali com cuidado. Varina ouviu o suspiro audível de alívio de Michelle. Ela beijou a testa de Sera e a abraçou por alguns instantes antes de devolvê-la para a ama de leite?
— Ela está alimentada?
— Alimentada, vestida e pronta para ir — respondeu Michelle. — Eu tenho uma muda de roupas e fraldas. Eu subi para dizer para a senhora que a carruagem do palácio já chegou.
— Ótimo — disse Varina. — Vá na frente, entre com Sera e a acomode. Nico e eu desceremos em breve. Eu só tenho que terminar as botas dele.
Michelle olhou furtivamente para Nico novamente.
— A’morce, esse rapaz é perigoso. O que ele fez...
— O que ele fez com os tehuantinos nos salvou — respondeu Varina. — E ele pagou um preço mais caro do que a maioria de nós estaria disposta a pagar.
— Ele pode estar fingindo esse distúrbio ou recuperar a capacidade mental. E aí?
Nico não disse nada enquanto elas discutiam sobre ele, apenas olhava de uma mulher para a outra enquanto as duas falavam.
— Aí — falou Varina —, nós cuidaremos disso quando acontecer.
Ela já tinha ouvido essa mesma pergunta uma dezena de vezes ou mais. Havia aqueles dentro do Conselho e entre os ca’ e co’ da cidade e os ténis da Fé que queriam que Nico fosse julgado e executado pelas mortes que causou e pelo dano ao Velho Templo durante a tomada dos morellis. Quanto a isso, uma parte da própria Varina ainda estava furiosa com ele pela destruição e pelas mortes que ele tinha, assumidamente, causado a seus próprios amigos durante o funeral de Karl.
Nico, na verdade, tinha que responder por muita coisa, mas ele salvara a cidade praticamente sozinho quando ela estava prestes a cair. Também não havia como negar isso — ou o fato de que o preço pelo esforço fora alto, e talvez, talvez fosse castigo suficiente. O Nico diante de Varina não parecia se lembrar de nada desse dia ou de sua vida anterior. O Nico diante dela era um inocente — ele podia habitar o mesmo corpo, mas não era o Nico que alegava ser o Absoluto. Talvez o kraljiki exigisse um castigo por seu passado, mas Varina lutaria contra isso, com todas as forças que pudesse reunir.
— Por enquanto, ele é uma criança e precisa ser tratado como tal.
— Como a senhora mandar, a’morce — respondeu a ama de leite.
Serafina chorou, e Michelle a embalou com delicadeza.
— Eu vou acalmá-la novamente, nos vemos na carruagem.
Quando Michelle saiu do quarto, Varina se abaixou de novo para amarrar os cadarços das botas de Nico, que a observava com o cenho franzido.
— Está tudo bem Nico — disse ela. — Michelle não está chateada com você. Está apenas preocupada, como eu. Agora, veja como eu faço e vamos ver se você consegue amarrar o outro cadarço. Faça um laço assim, depois passe a outra ponta em volta dele...
Os ténis já estavam presentes no Templo do Archigos. A a’téni Valerie ca’Beranger, de Prajnoli, realizaria a cerimônia — os rumores diziam que ela provavelmente seria eleita como archigos quando o Colégio A’téni se reunisse em poucos dias. Brie conduziu os filhos pela nave ladeada por e’ténis de robe branco — a cor do luto — com bordas verdes. Os ténis a observavam, em silêncio: como fileiras de ossos brancos apontando na direção da Pedra de Cénzi, enquanto Brie e os filhos subiam à plataforma e se aproximavam do altar e da grande Pedra de Cénzi, coberta por um pano azul-celeste reluzente.
— Ali — sussurrou Brie para Elissa, Kriege, Caelor e Eria.
Sua voz soou alta sob o domo, e ela ergueu os olhos uma vez para os afrescos de Cénzi e dos moitidis bem acima delas.
— Esta é sua mamatarh, Allesandra. Ela foi uma grande mulher e me disse que queria muito ter conhecido todos vocês. Eu gostaria que vocês a tivessem conhecido quando ela estava viva.
Não era assim que Brie pretendia que os filhos conhecessem sua mamatarh. Ela tinha tido esperanças de apresentá-los à mulher, não ao corpo morto. Ela se perguntou se não teria sido melhor ter deixado as crianças em Brezno durante o funeral, mas então elas teriam perdido a coroação do vatarh.
— Aqui é feio — dissera Elissa ao desembarcar da carruagem no palácio; a menina olhou em volta para os prédios destruídos e marcados pelo fogo e pela guerra. — Tem um cheiro horrível também. Brezno é bem mais bonito, matarh. Por que nós não podemos ficar lá?
— Nessântico é nosso lar agora — respondera Brie. — E nós faremos a cidade ficar mais bonita e impressionante do que Brezno, como ela era antes. Todos nós ajudaremos seu vatarh a fazer isso.
Ela esperava que isso não fosse uma mentira.
Agora, no Templo do Archigos, eles olhavam para mais uma ruína, a da kraljica.
Eria ficou para trás, com um polegar plantado na boca. Ela se recusou a sequer se aproximar do esquife e se contentou em olhar para o corpo enquanto se agarrava à tashta de Brie. Caelor só se aproximou de maneira hesitante e se afastou rapidamente em direção a sua matarh. Kriege caminhou para a frente de mansinho, com uma expressão séria no rosto, e olhou para a face pintada de branco, dando um passo para trás em seguida, fungando como se pudesse sentir o cheiro mesmo com o escudo antiodor que os ténis tinham colocado em volta do corpo. Elissa, que tinha se aproximado com Kriege, permaneceu ali, olhando para o corpo como se tentasse memorizar cada detalhe dele: as rugas na face da mamatarh; a máscara funerária dourada que os ténis colocariam no rosto de Allesandra em apenas uma virada da ampulheta, quando as portas do Templo do Archigos seriam abertas para que o funeral pudesse começar; o cetro de ferro do kraljiki Henri VI em sua mão esquerda; o anel com o sinete dos kralji à mostra na palma direita, virada para cima, que Jan pegaria quando o ritual do funeral tivesse acabado. O pano azul sobre o altar estava coberto por coroas de flores amarelas. Sete candelabros estavam dispostos em volta da pedra, acesos não com chamas, mas com as luzes brilhantes dos ténis, banhando o corpo com uma iluminação branco-amarelada tão intensa que parecia que o domo do templo tinha sido levantado para que o sol pudesse brilhar sobre a kraljica.
Elissa tocou o braço de Allesandra com um dedo hesitante, depois olhou para sua ponta como se fosse um objeto estranho.
— Ela está fria — relatou Elissa. — E meio dura.
— É o que acontece quando alguém morre.
— Ah! — Elissa pareceu considerar aqui. — Mas o rosto está bonito.
Brie ouviu a voz de Jan, conversando com Sergei ca’Rudka, o starkkapitän ca’Damont e o comandante ca’Talin na lateral do coro. Talbot, o assistente de Allesandra, que tinha concordado em permanecer como assistente de Jan, pigarreou perto dos bancos.
— Hïrzgin, eles já estão prontos para deixar os ca’ e co’ entrarem no templo. Eu vou avisar o hïrzg e os demais; a senhora ainda tem um algum tempo, mas...
Ela assentiu, e Talbot se retirou.
— Não toque nisso — disse Brie para Elissa, que estendeu uma mão hesitante em direção ao anel; ela recolheu a mão como se a tivesse queimado.
— Eu não ia tocar — disse ela. — Esse vai ser o anel do vatarh?
— Sim, em breve — respondeu a matarh.
— E será meu algum dia?
Kriege encarou Elissa.
— Não é justo, matarh — ele gritou, ecoando sua voz estridente sob o domo.
Brie viu as fileiras de ténis se mexerem, e alguém riu, um som rápido, brevemente sufocado.
— Ela fica com tudo.
A hïrzgin podia ouvir Talbot rindo enquanto percorria a nave em direção a Jan. Ela riu também.
— Ninguém vai ficar com o anel; ao menos não por muito tempo, até que vocês todos estejam crescidos. Veremos na ocasião, então. Pode ser que nenhum de vocês dois queira.
— Então eu fico com ele — interrompeu Caelor. — É um anel bonito.
Brie riu.
— Vamos — ela falou para os filhos. — Precisamos tomar nossos lugares...
As trompas tocaram um lamento grave e fúnebre que fez os pombos irromperem em revoada do chão da praça, do lado de fora. Lá dentro, Rochelle podia sentir a parede do templo pulsar em suas costas. Ela tinha entrado no templo sorrateiramente por uma porta traseira, tinha arrombado a fechadura bem antes da aurora, deslizando pelo mezanino do coro ao longo de um canto nas sombras, atrás do arco de um dos pilares, onde poderia olhar o coro, o esquife e os bancos mais próximos.
Rochelle pensou ter sentido o cheiro de fumaça dali: não apenas o aroma pungente dos incensários no altar, mas da fumaça remanescente do bombardeio de areia negra dos tehuantinos, impregnado sob os arcos pintados do domo. Ela tinha se sentado, escondida, ali por várias viradas, esperando. Ela tinha visto os ténis de robe branco formando suas fileiras; o coro se instalando nos assentos não muito longe dela.
Ela tinha visto seu vatarh e sua família entrarem para ver o corpo no meio da manhã, tinha visto Brie conduzir as crianças à frente, depois dela e Jan prestarem sua homenagem.
Os filhos... O pensamento deveria ter sido sua matarh e ela lhe ocorreu, se ao menos as coisas tivessem sido diferentes, mas então Rochelle balançou a cabeça. Não, ela disse para si mesma, com firmeza. O relacionamento deles jamais teria sobrevivido com as mentiras e a loucura da matarh. Jamais teria acontecido. Esse nunca foi meu destino. Não minta para si mesma. Você só pode ser a filha bastarda, nunca a legítima.
Rochelle se perguntou o que seu futuro lhe reservava, e ela não tinha resposta para isso. Sua mão desceu para o cabo adornado da adaga que ela tinha roubado de seu vatarh, a adaga com a qual ela esperava matar sua mamatarh. A madeira lisa do pomo pareceu pulsar sob seus dedos.
A família se afastou do esquife. Ela os viu se acomodarem em seus bancos, ouviu as portas se abrirem assim que as trompas começaram a soar o chamado fúnebre e doloroso mais uma vez, e os ca’ e co’ entraram no templo. O coro a assustou quando começou a cantar uma das obras etéreas e fúnebres de Darkmavis. Os tons ascendentes e as harmonias opressivas ecoaram, altas e insistentes, passando por ela e se propagando para o domo do templo, e a envolveram como um manto.
Pareceu levar uma eternidade para o público do funeral entrar entre as fileiras de ténis de robe branco e se acomodar nos bancos. De seu esconderijo, Rochelle observou os bancos da frente, viu seu vatarh e seus meios-irmãos, assim como a mulher que tinha tomado o lugar de sua matarh: Brie, a quem agora chamavam de a Vitoriosa da Margem Sul e a quem a multidão saudava tão alto quanto Jan. Ela viu Sergei na fileira atrás dele, sentado ao lado da mulher numetodo, carregando uma criança nos braços.
E ao lado dela estava Nico, irrequieto como uma criança entediada. A a’morce não parava de se virar para falar com ele baixinho, e Rochelle notou que Sergei observava o jovem com atenção. Nico — ela se perguntou se era verdade o que diziam sobre seu irmão, que ele tinha perdido a sanidade mental e não era mais que uma criança. Vê-lo daquela maneira doía mais do que tudo, pensou Rochelle.
A a’téni ca’Beranger finalmente surgiu detrás do coro e começou a cerimônia, auxiliada por um grupo de ténis do alto escalão se movendo em torno dela com incensários, taças, o cajado do globo partido e os pergaminhos do Toustour e da Divolonté. Rochelle quase cochilou durante a maior parte da cerimônia e se mexeu apenas quando Jan se levantou para dar a Admoestação. Ela viu seu vatarh caminhar até o Alto Púlpito — andando como um velho, apoiado em uma bengala segurada com firmeza junto ao corpo. Talbot se mexeu para ajudá-lo, e ela notou que Jan balançou a cabeça para o homem. Lentamente, ele subiu os degraus do Alto Púlpito, se recusando a deixar que seus ferimentos o detivessem. Ela viu Jan olhar para a plateia e, em seguida, encarar o corpo de sua matarh por vários instantes antes de falar.
— É costume dizer o quanto uma matarh foi gentil e maravilhosa em vida — ele disse, finalmente, e sua voz de barítono ecoou na ótima acústica do templo. — Eu não vou dizer essa mentira. Ela talvez não tenha sido a melhor matarh que eu poderia ter. Eu era seu filho único, mas não era o filho com o qual a kraljica Allesandra mais se importava.
“Esse filho, o único filho que ela teve, era Nessântico. Os Domínios. Para Nessântico, ela foi uma excelente matarh: uma matarh forte e vigorosa, que realizou o que poucos conseguiriam. A kraljica Allesandra restaurou Nessântico quando a cidade estava em ruínas. Evitou que os Domínios se partissem quando, em mãos menos capazes, eles teriam desmoronado e se dissolvido. Ela protegeu Nessântico quando, pela segunda vez, a cidade foi atacada por invasores estrangeiros. A kraljica Allesandra deu todo o amor, energia e atenção para essa cidade e esse império, e quando foi exigido seu sacrifício, ela se dispôs a dar sua vida para Nessântico como pagamento final.
Jan fez uma pausa longa, respirando profundamente, como se falar o esgotasse. Rochelle se debruçou. Eu estava disposta a tirar a vida da kraljica. Eu teria feito isso, matarh, mas cheguei tarde demais. Sua mão ainda estava no cabo da faca. O vatarh ergueu seu olhar, como se tivesse visto um movimento ou pudesse, de alguma forma, sentir a atração da faca que Rochelle lhe tinha roubado. Ela recuou para as sombras. Seus olhos, bem abaixo, pareciam encará-la, apesar da distância.
— Celebrem Allesandra ca’Vörl — continuou Jan, voltando a olhar para a plateia. — Celebrem sua gestão dos Domínios, pois quando os Domínios estiveram à beira do abismo, ela evitou que o império caísse. Isso foi um golpe de mestre. Isso foi genial. Isso foi passional. Estas eram qualidades que minha matarh possuía em abundância. E essas eram exatamente as qualidades que Nessântico precisava, e ela chegou no exato momento em que Nessântico exigiu sua presença. Nessântico teve sorte em tê-la, com suas habilidades e nesse momento. Ainda que eu não tivesse dado valor na maior parte do tempo.
Uma risada fraca percorreu a plateia nesse momento, soando deslocada no templo.
— Nós saímos vitoriosos de uma guerra terrível — continuou Jan —, em grande parte por causa das atitudes da kraljica Allesandra. Eu só posso esperar, seguindo seus passos, que eu seja capaz de fazer o mesmo, que eu possa ser seu filho e que eu construa a partir de seu legado. Os Domínios foram unificados novamente, a Fé foi unificada novamente, mas há desafios a nossa frente que vão nos testar, a todos nós. Eu sei que ela está nos observando nos braços de Cénzi. Espero que nós possamos fazê-la sentir orgulho pelo que conquistamos.
Jan abaixou a cabeça. Rochelle pensou que ele fosse falar mais, mas ele fez o sinal de Cénzi para a plateia e saiu do Alto Púlpito — lentamente, mais uma vez, ecoando o som alto da bengala no silêncio. Ele voltou para seu lugar enquanto a a’téni e seus assistentes retornavam ao altar. Quando eles começaram a circular o esquife, entoando e balançando os incensários, Rochelle recuou para o nicho, recostando sua espinha sobre a pedra fria.
O que eu faço, vatarh? O que eu faço para o senhor ter orgulho de mim?
Ela podia sentir a pressão do cabo da adaga na lateral de seu corpo ao se agachar, se apoiando no pilar do templo. Se Nessântico passasse a ser a paixão do vatarh, como tinha sido a de Allesandra, se — o que ele disse sobre Allesandra fosse verdade — os Domínios passassem a ser seu filho único, então ela compartilharia essa paixão com Jan. A matarh de Rochelle lhe ensinara uma habilidade ímpar; e ela a usaria, então.
Eu não serei a Pedra Branca, não, eu me tornarei a Adaga de Nessântico.
Rochelle assentiu. Ela permaneceria nas sombras. Seria genuinamente a filha de Jan. Serviria aos Domínios da sua própria maneira.
Sim.
O coro começou a cantar mais uma vez, e Rochelle fechou os olhos, se permitindo mergulhar no som etéreo, tão insubstancial e misterioso quanto ela seria.
A procissão em volta do anel da alameda da Avi a’Parete foi longa e lenta e — Jan podia ver a multidão se alinhar pela Avi, esperando pela passagem da kraljica — necessária. A multidão se estendia pela alameda em várias fileiras de ambos os lados da Avi, até onde sua visão podia alcançar. Suas expressões eram solenes: muitos choravam abertamente. Jan se deu conta de que, assim como Allesandra amara a cidade, a cidade passou a amá-la e a valorizá-la em retribuição.
Jan só podia esperar que fizessem o mesmo por ele nos próximos anos.
Jan fez uma careta quando a carruagem em que estava encontrou um buraco irregular no pavimento; o impacto comprimiu suas costelas, irradiando a dor até seus ombros. Ele sentiu os cortes que os curandeiros tinham costurado há dias se repuxarem quando ele tentou se ajeitar no assento. Ele lutou para demonstrar o mínimo de incômodo possível para as multidões. Jan sorriu e acenou. Em sua mão, o anel com o sinete dos kralji reluziu.
O cortejo fúnebre de Allesandra lembrou o da grande e amada kraljica Marguerite. Nenhum dos kralji, entre Marguerite e Allesandra, tinham recebido uma manifestação tão formal. O kraljiki Justi, filho de Marguerite, tinha sido ironizado e desprezado; o povo da cidade na verdade ficou feliz com sua morte, e seu esquife saíra diretamente do Templo do Archigos para o palácio. O reinado do filho de Audric tinha sido ainda pior, embora a curta regência de Sergei tivesse mantido a cidade estável. Mas assim que a regência terminou prematuramente, a loucura de Audric e seu comportamento excêntrico prejudicaram ainda mais os Domínios, e o assassinato do kraljiki foi — muitos consideraram — uma bênção. A kraljica Sigourney, sucessora de Audric, cometera suicídio quando os tehuantinos saquearam e queimaram a cidade, e seu corpo fora profanado pelos ocidentais: Jan se lembrava disso muitíssimo bem.
Com a morte de Sigourney e a cidade em ruínas fumegantes em volta de Jan, ele poderia ter tomado o título de kraljiki para si; em vez disso, ele escolheu dar Nessântico e os Domínios para sua matarh: um gesto irônico.
E ela transformou essa ironia em uma verdadeira dádiva, Jan tinha que admitir. Isso estava claro para ele agora.
A carruagem de Jan, puxada por três cavalos brancos em um arnês de quatro cavalos, seguiu imediatamente atrás do esquife. Ele ouviu o cântico dos ténis caminhando ao lado do esquife, que parecia flutuar em uma nuvem branca. Sobre o corpo, imagens enormes da kraljica apareciam e desapareciam: exibindo suas imagens como era representada pelo quadro oficial; na inauguração do domo reconstruído do Velho Templo; sorrindo ao descer da sacada durante o Gschnas.
O cheiro das flores a acompanhava, assim como o som dos músicos na carruagem sem teto a frente do esquife, tocando Darkmavis e ce’Miella: uma fusão do antigo com o moderno.
O velho cedendo o lugar para o novo. Jan considerou aquilo fascinante.
— Olhe, eles estão aplaudindo o senhor, vatarh — disse Elissa com alegria, enquanto ela mesma apontava e acenava.
E era verdade: à medida que o esquife passava, e logo depois da carruagem sem teto, o luto virava aplausos e sorrisos.
— Eles gostam do senhor.
— Eles estão aplaudindo porque não têm escolha — respondeu Jan, e Brie franziu a testa.
— Jan...
— É verdade, e as crianças devem saber disso — respondeu ele.
Jan se inclinou na direção de onde os filhos estavam sentados, ignorando o puxão dos pontos e a pontada no peito.
— As pessoas aplaudem desde que pensem que você vai manter a comida em suas barrigas e um teto sobre a cabeça delas. Elas também aplaudem quando temem você, porque têm medo de que, se não aplaudirem, sejam punidas. Não confundam os sorrisos e aplausos com algo mais do que uma fachada.
Ele sentiu a mão de Brie apertar seu braço.
— Querido, por favor. Eles não entendem o que você está dizendo, e você apenas está assustando as crianças. E não deveria ser tão cínico. Não hoje, entre todos os dias.
Ela estava certa, e Jan sabia disso. Ele viu o cabo adornado da chispeira dentro de uma bainha de couro estampada em relevo: a linda chispeira com que Varina e os numetodos a tinham presenteado após a batalha. Os cidadãos de Nessântico estavam aplaudindo sua esposa, Jan sabia: o sucesso do grupo de chispeiros já era uma lenda na cidade, e parecia que a a’hïrzg se tornara uma favorita da cidade.
— Desculpem-me — ele disse para a esposa e os filhos. — Você está certa...
Eles continuaram a dar a volta pela alameda circular, e Jan continuou a sorrir e a acenar. Porque era o que se esperava dele. Porque era seu dever. Eles passaram ruidosamente pela Pontica a’Kralji onde, em jaulas de ferro, o esqueleto do téni-guerreiro ocidental que Sergei matou e dos tehuantinos ocidentais expunham seu triunfo sangrento. Jan mal olhou para os corpos.
A procissão terminou no pátio do Palácio da Kraljica ao anoitecer. O esquife flutuou na nuvem mágica até o pico de uma pilha de toras embebidas em óleo, colocada bem longe das alas do palácio, no centro dos jardins da kraljica: a pira mandaria a alma de Allesandra para os braços de Cénzi. Os ca’ e co’ da cidade, dos Domínios e da Coalizão, os chevarittai em seus uniformes de gala azuis e dourados e negros e prateados, Sergei ca’Rudka, o starkkapitän ca’Damont, o comandante ca’Talin da Garde Civile: todos viram Jan e sua família descer da carruagem.
Jan olhou uma última vez para o corpo de sua matarh. Ele acenou com a cabeça para Talbot, que gesticulou para os ténis-bombeiros dispostos em volta da pira. As mãos dançaram juntas um balé elaborado; as vozes se juntaram em um cântico lento. Uma chama alaranjada brotou de suas mãos enquanto os ténis-bombeiros gesticulavam, como se jogassem pétalas em direção à pira. As chamas estalaram e assobiaram furiosamente, lambendo o óleo e se inflamando rapidamente. A nuvem mágica desapareceu sob um cortina branca que se contorceu e subiu à altura do telhado do palácio até ser espalhada no céu pelo vento. As chamas tocaram o esquife; Jan viu as flores se contorcerem e se enroscarem enquanto o corpo de Allesandra se perdia em uma onda de calor e fumaça. Os furiosos estalos das chamas ecoaram nos muros do palácio e o calor insistente fez todos se afastarem a alguns passos da pira.
Um pedaço de lenha entrou em colapso na pira, disparando fagulhas frenéticas para o alto. Jan se deu conta de que tinha ficado assistindo ao fogo por mais tempo do que pensava, de que o céu estava ficando escuro.
— Podemos ir agora, kraljiki — disse Talbot; o título soou estranho para Jan. — Eles já estão no salão...
O Salão do Trono do Sol estava lotado. As janelas do longo aposento reluziam com as chamas vermelhas da pira, e a grande janela atrás do trono mostrava o céu do crepúsculo, com um tom intenso de violeta e as primeiras estrelas começando a brilhar. O Conselho dos Ca’ estava sentado à frente do trono, com outros dignitários. A a’téni ca’Beranger esperava com Talbot ao lado do Trono do Sol. Brie deixou as crianças com as babás e se aproximou da plataforma do trono, ao lado de Jan.
O Trono do Sol. A enorme cadeira esculpida a partir de um único cristal enorme que tinha a altura de mais de dois homens e um tom branco semitransparente e sarapintado. Ele se avultava diante de Jan e Brie. Enquanto olhava para o trono, ele girava o anel com o sinete na mão, sentindo a superfície lisa e fria do metal dourado e prateado na pele.
— Este é o seu destino, meu marido — sussurrou Brie.
Jan olhou para ela, percebendo que a esposa olhava para suas mãos.
— Você sabe disso — falou Brie. — E sua matarh também sabia.
— Ela demonstrou de um jeito estranho.
— Esse era o destino dela também. Esse era o problema. — Ela gesticulou para o trono. — Lá está ele. É seu, meu amor.
Jan olhou para Talbot. O assistente aquiesceu com a cabeça. Atrás de uma porta no fundo do salão, logo atrás do trono, dois ténis-luminosos entoavam um cântico. Talbot tinha lhe contado que, no último século, o Trono do Sol quase não reagia ao anel com o sinete e que agora a reação era criada por ténis-luminosos especialmente habilidosos e de confiança, que asseguravam que o trono se acendesse quando o kralji se sentava no cristal.
Jan riu ao saber da revelação — outro truque, outro espetáculo.
Ele subiu na plataforma, recebendo o sinal de Cénzi da a’téni ca’Beranger ao passar por ela. Ao chegar ao trono, Jan se virou para encarar a multidão. Todos o observavam.
Jan se sentou. O cristal a sua volta se acendeu com uma luz amarela intensa que parecia emergir das profundezas ocultas do trono. Ele ficou sentado, sendo banhado pela luz, enquanto a plateia se levantava e o aplaudia, retumbante.
— Eu sempre me pergunto o que teria sido dos Domínios se a senhora tivesse vivido — Sergei disse para o quadro da kraljica Marguerite. — Eu adoraria saber o que a senhora acha das coisas agora.
O vinho que ele bebeu estava fazendo sua cabeça girar um pouco. Lá embaixo, no palácio, a celebração do novo kraljiki ainda estava em andamento; lá fora, as brasas da pira de Allesandra lançavam um brilho vermelho na noite. Sergei saiu sorrateiramente das festividades através dos corredores de serviço para ir para lá, para os aposentos que tinham sido de Allesandra, e agora eram de Jan. Ele ainda segurava uma taça de vinho na mão, que ele ergueu para o retrato de Marguerite enquanto descansava em uma cadeira. Uma chama tênue — acesa para espantar o frio da noite — estalava na lareira sob o quadro; a chama e as velas acesas de ambos os lados davam uma iluminação agitada que animava o rosto pintado e austero de Marguerite. Sergei pensou que a kraljica tivesse se mexido e aberto a boca para falar com ele...
Era uma sensação perturbadora, que trouxe lembranças de Audric e sua loucura.
Sergei tomou um bom gole do vinho e enfiou a mão livre no bolso da bashta. Retirou um seixo liso e branco e manipulou sua superfície lustrosa entre seus dedos. Com o movimento, o vinho espirrou pela borda da taça, jogando gotículas em sua bashta. Ele não se importou.
— Marguerite, nós dois amamos tanto esta cidade e este império que estivemos dispostos a fazer qualquer coisa por ela. Eu me pergunto... Será que Nessântico nos ama por nossa paixão e fé? Será que ela se importa? A senhora às vezes se arrepende da vida que levou, como eu? Hum... De alguma forma, conhecendo a senhora como eu conheço, eu duvido. A senhora sempre foi tão segura de si.
Sergei ergueu a taça em brinde, depois a levou à boca, a virou e acabou com o vinho em um longo gole. Ele pousou a taça na mesa ao lado, pegou sua nova bengala e se levantou da cadeira, soltando um resmungo e um gemido.
— A senhora tem um novo parente para ficar olhando à noite — disse o embaixador para Marguerite. — vamos esperar que ele seja um bom governante, tão forte quanto a senhora foi.
Ele percebeu que ainda segurava a pedra. Ele a levou ao ouvido.
— Eu não ouço ninguém.
Sergei bateu com o seixo no nariz e ouviu o som de pedra no metal. Ele riu, cambaleou um pouco ao ficar em pé ali, e recolocou a pedra no bolso.
— O que acontece conosco quando morremos? — perguntou o embaixador para o quadro. — Cénzi realmente nos espera para nos julgar? Eu agradeceria um sinal, Marguerite. Realmente agradeceria.
O quadro olhou fixamente para Sergei à luz da lareira. O olhar pintado de Marguerite se recusava a deixá-lo ir. Finalmente, o embaixador esfregou o nariz e fungou.
— Sem resposta, hein? A senhora sempre manteve seus segredos. Bem, acho que eu vou descobri-los muito em breve.
Sergei fez uma mesura para o quadro e quase caiu. Ele tocou na pedra dentro do bolso. Saiu do aposento, deixando a taça sobre a mesa e, cambaleando, desceu pela escada de serviço novamente. Ao chegar ao corredor da criadagem perto do Salão do Trono do Sol, Sergei ouviu o barulho dos foliões, ainda conversando. Ele seguiu na outra direção e saiu no jardim. O ar fresco da noite pareceu arejar sua mente. Sergei podia sentir o cheiro de cinzas e madeira queimada — bem longe no jardim, criados estavam mexendo e espalhando os carvões da pira. Ele balançou a cabeça e esfregou a barba rala das bochechas. O embaixador deu a volta por esse lado do palácio em direção à Avi a’Parete, ainda apinhada de pedestres e carruagens, mesmo a altas horas. Do outro lado da Pontica a’Brezi Veste, ele viu a torre e as muralhas da Bastida.
Sergei respirou fundo. Contra as nuvens iluminadas pelo luar, a torre estava escura, e uma pequena luz brilhava em uma das janelas superiores, parecendo chamá-lo. A mão de Sergei, no bolso da bashta, tocou novamente o seixo da Pedra Branca.
Ele suspirou e começou a caminhar na direção contrária.
Epílogo: Nessântico
Havia outro kraljiki sentado no Trono do Sol, banhado pela luz dourada — mais um parente da grande kraljica Marguerite. Os Domínios estavam unificados novamente, e o novo kraljiki também sustentava o título de hïrzg de Firenzcia. Havia um novo archigos sentado no trono do Templo do Archigos, onde os archigi se sentavam por séculos, mas esta era uma fé concénziana alterada e enfraquecida, e muitos dos que andavam pelas ruas de Nessântico não eram mais fiéis.
No oeste distante, do outro lado do Strettosei, havia um novo tecuhtli, com um jovem nahual a seu lado.
Uma criança que se tornara um jovem poderoso voltou a ser pouco mais que uma criança novamente. E a Pedra Branca desapareceu mais uma vez, talvez para voltar ou para cair completamente em esquecimento.
Nessântico — a cidade, a mulher — não se importava. Tais movimentos não a incomodavam. A história não estava encerrada. Haveria mais discussões, mais conflitos. Tronos passariam. Vitórias e derrotas, os gêmeos rivais da guerra, se enfrentariam com novos jogadores.
Ela não se importava. A história não estava encerrada porque a história nunca termina. Não pode terminar.
As pessoas que andavam pelas ruas de Nessântico nasceriam e morreriam, para serem substituídas por outras. O Trono do Sol sentiria o peso de dezenas de futuros kralji ainda não nascidos, e eles seriam bons ou maus líderes, mas com o tempo, todos eles — independentemente de quão bons ou maus eles fossem — eventualmente sairiam da longa e infinita história.
Mas ela nunca sairia. Nessântico esteve na história desde o início. A história era dela, e não terminaria até que Nessântico chegasse ao seu fim, e ela...
Era imortal.
Sua sorte tinha mudado mais uma vez. De um reino estilhaçado, um novo e mais forte surgiria. O rosto que o A’Sele refletia de volta para Nessântico mudaria. Algum dia até mesmo a própria linhagem dos kralji talvez desaparecesse. Talvez.
Mas não ela. Ela nunca.
Nessântico continuaria. Ela entraria naquele longo futuro a passos largos: viva, respirando, eterna, a personagem central da história da terra. Seu rosto seria reescrito, as velhas rugas seriam arrancadas e substituídas por novas. Nessântico envelheceria; seria remoçada, sem parar.
A história não terminaria.
A história não podia terminar até que ela mesma tivesse morrido.
E isso, Nessântico dizia para si mesma, jamais poderia acontecer.
Rochelle Botelli
Rochelle observou Nico, sobrecarregado de correntes enquanto era ajudado a subir na plataforma, com o Velho Nariz de Prata a sua direita. Ela se sentiu impotente, uma sensação mais aguda agora do que quando ela viu Nico na torre da Bastida, da Avi a’Parete. Na ocasião, Rochelle não teve esperanças de ajudá-lo. Agora, ele estava tão perto: longe das horríveis pedras negras da Bastida; sem corredores desconhecidos entre os dois; separados apenas pelos ténis e alguns gardai.
E, no entanto, Rochelle não podia ajudá-lo. Seria capturada e jogada no chão antes que pudesse chegar a Nico, ainda que vários deles morressem como consequência. Mas ela fracassaria. Era inevitável. Esta tinha sido outra lição de sua matarh. “Certifique-se de que as chances estão a seu favor antes de agir. Às vezes, é preciso aceitar que não se pode vencer, e sequer tentar.”
Estar tão extremamente perto dele, ver o irmão novamente e não poder ajudá-lo...
Isso doía. Machucava tanto quanto o gume de uma espada. Mas havia uma coisa que Rochelle poderia fazer hoje, se tivesse a chance. A kraljica estava ali, sua mamatarh, e embora Allesandra estivesse tão bem guardada quanto seu irmão, talvez houvesse um momento, uma chance. A mão de Rochelle segurou a adaga sob sua roupa, a adaga que roubara de seu vatarh. O juramento feito para sua matarh ardia na sua cabeça.
Se ela não podia salvar uma vida, talvez pudesse tirar uma tão importante quanto.
Na plataforma, Nico se curvou para os ca’ e co’ em sua própria plataforma elevada.
— Kraljica, conselheiros. E, especialmente, ténis. Eu vim implorar por seu perdão e compreensão.
Sua voz soou cansada, ele olhava ao redor. O olhar de Nico passou por cada um deles, Rochelle ficou na ponta dos pés, tentando enxergar melhor sobre as pessoas à volta. Então aconteceu. Os olhos de Nico encontraram os seus. Ela sentiu a conexão e o reconhecimento. Nico olhava diretamente para Rochelle, e seus lábios abriram um leve sorriso, como se ele a reconhecesse. Nico acenou com a cabeça para ela, como se dissesse que sabia o porquê de Rochelle estar ali, como se pedisse para ela ser paciente. Ela quis acenar para o irmão, berrar seu nome, mas o olhar de Nico se voltou para os dignitários no palanque, e sua voz ganhou volume e poder. Rochelle pôde ouvir enquanto avançava na multidão para se aproximar da plataforma. A voz de Nico continuou a inflamar e pulsar; era como se a luz de sol de verão caísse sobre ela. Ela ouviu umas palavras aqui e ali:
— Eu pensei que fosse a Voz de Cénzi... Lamento profundamente pelo que fiz... Eu acreditava. E ainda acredito...
Sobre a multidão, Rochelle viu Nico erguer as mãos, e o gesto chamou sua atenção. Ela parou, observando, curiosa.
— Eu permiti que o archigos e as pessoas dentro da fé concénziana acorrentassem e prendessem o meu dom com seus grilhões humanos quando, na verdade, Cénzi não coloca tais limitações nele. E isso os numetodos sabiam desde o princípio, justiça seja feita. Foi o que eu finalmente percebi e é isso o que eu demonstrarei para vocês agora.
Nico?
Ela não viu claramente o que aconteceu em seguida. Era como se Nico tivesse se envolvido em um manto negro. Rochelle ouviu pessoas gritando e gesticulando, viu o Velho Nariz de Prata recuar a mão da escuridão soltando com um xingamento, e então...
Nico sumiu, e as pessoas na praça estavam boquiabertas. Os gardai estavam agitados, como um enxame de abelhas cuja colmeia tivesse sido golpeada. Rochelle se moveu para a borda traseira da plataforma da kraljica, logo atrás de um anel de gardai. Eles pulavam sobre o palanque agora, cercando a kraljica e desembainhando suas espadas, e Rochelle recuou. Não havia esperança de chegar a Allesandra agora. Nenhuma. Mais uma vez, esta era uma das ocasiões em que ela deveria se permitir fracassar.
Rochelle voltou a penetrar na multidão, longe dos olhos desconfiados dos gardai, longe dos ténis de robes verdes, que pareciam tão irritados quanto nervosos.
Uma mão tocou seu ombro e ela se virou, com a adaga em punhos. Ela podia matar alguém nessa multidão facilmente e ainda escapar na confusão...
Mas sua mão interrompeu o golpe.
— Nico...
— Shhhh! — ele sibilou.
Nico tinha coberto a cabeça com um capuz; seu rosto estava visível apenas para quem olhasse diretamente para ele. Mas mesmo meio escondido como estava, Nico parecia incrivelmente exausto e tenso. A mão no ombro de Rochelle tremeu, e ela sentiu o irmão esmorecer, como se não conseguisse ficar de pé. Sob a sombra do capuz, havia olheiras mais escuras sob os olhos.
— Cénzi me disse que você estava aqui. Ele me mostrou você. Venha! — Ela olhou para a plataforma, e Nico balançou a cabeça. — Não. Agora não, Rochelle. Vamos! Eu preciso da sua ajuda.
Ele passou o braço pela irmã. Com o peso apoiado sobre Rochelle, ele a levou embora, através da lateral da multidão, onde havia menos gente, longe da agitação crescente e da praça, até que os dois andaram por uma rua decorada com placas de lojas e cheia de consumidores, embora poucos parecessem interessados nas mercadorias exibidas nas vitrines ou pelos ambulantes das calçadas. Suas expressões eram graves e estressadas, Rochelle se lembrou das mesmas expressões nos rostos daqueles que fugiam da cidade quando ela chegou.
Nico finalmente parou perto de um café.
— Você tem dinheiro? — ele perguntou, Rochelle assentiu. — Ótimo. Eu preciso sentar e comer; eles dificilmente vão me procurar aqui.
Os dois pegaram uma mesa na parede do café e pediram vinho, queijo, pão e algumas carnes. O garçom parecia sinceramente contente por ter um freguês; sem dúvida a clientela tinha sido bem mais rara do que o normal nas últimas semanas.
Rochelle observou Nico enquanto ele comia. O irmão tinha mudado bastante. O Nico da sua memória estava sempre ansioso e apreensivo enquanto se preparava para ir ao Templo de Brezno como um acólito. Rochelle o tinha visto mais uma vez quando ele vestiu o robe verde de téni e fez o juramento a Cénzi naquele mesmo templo, e Nico parecia tão seguro de si naquela época...
O Nico que estava diante dela agora estava mais magro; suas bochechas estavam encovadas. Os traços do rosto estavam mais marcados e mais vincados, e Rochelle pôde notar a dor da vida escrita na face do irmão. Nico sempre tinha sido intenso, uma intensidade de que ela se lembrava das primeiras memórias dele, mas isso estava mudado agora. Havia se tornado uma coisa mais rígida, mais entranhada dentro dele, e mais perigosa.
Rochelle sabia que tinha mudado também. Talvez mais do que Nico. Nenhum dos dois era mais quem tinha sido naquela época. Eles podiam ser irmão e irmã, mas o tempo os tinha afastado e ela não sabia se algum dia os dois seriam próximos novamente.
— Você está me encarando. — Nico pousou a taça e se serviu de mais vinho da garrafa.
— Eu não vejo você há anos, Nico.
Ele sorriu.
— Você cresceu e se tornou uma jovem atraente. — então seu sorriso desapareceu. — Você também assumiu o legado da matarh. Ouvi rumores de que a Pedra Branca voltou. É você?
Rochelle assentiu.
— Você também ouve as vozes?
— Não. Não sou louca, Nico.
— Ainda não — respondeu ele. — Mas você não pode fazer o que faz e continuar sã. Não pode fazer o que faz e esperar algo mais que retalhadores de almas após a sua morte. Cénzi vai considerá-la abaixo das expectativas, irmã.
Isso tinha sido tão similar ao que Sergei lhe dissera que ela quis rir.
— Você vai me dar um sermão? — Rochelle fungou desdenhosamente. — Você estava acorrentado, Nico. Quantas pessoas morreram quando você e sua gente tomaram o Velho Templo?
Ela viu o irmão ficar vermelho com a acusação.
— Desculpe, Nico — disse Rochelle, pousando sua mão sobre a dele. — Eu esqueci. Eu queria ter conhecido Liana.
Nico meneou a cabeça, e ela notou os olhos do irmão nadarem em uma umidade repentina. Ele secou os olhos, quase que com raiva.
— Eu também queria isso. Veja bem, este foi o meu castigo. Minha loucura. Cénzi sempre nos dá avisos, de uma forma ou de outra. Só que às vezes nós não prestamos atenção a eles ou vemos sua verdadeira natureza.
— Você ainda acredita, depois de tudo isso? — perguntou Rochelle. — Ainda acha que seu destino está dentro da fé concénziana?
— Sim. — Ele disse com firmeza, sem hesitação, com a força retornando à voz. — E quanto a sua própria fé, Rochelle? Você ainda acredita?
— Eu não sei. Acho que sim, mas... — Ele ergueu um ombro embaixo da tashta. — Eu não sei. Mas você acredita?
— Sim — falou Nico. — Ainda. Cénzi contém tudo, Rochelle. Ele contém tudo que é bom e contém tudo que é mau também. É por isso que os moitidi lutaram entre si e contra Cénzi; porque eram Seus filhos e, portanto, todas as possibilidades estavam contidas dentro deles. E Ele trouxe você aqui, agora, por uma razão.
Rochelle deu uma risada amarga.
— Você não faz ideia de por que eu estou aqui.
— Não faço?
Nico estendeu a mão sobre a mesa e pegou uma baguete. Ele arrancou um pedaço com a mão e enfiou na boca com o indicador. Mastigou alegremente por um momento, depois tomou um gole de vinho. Em seguida, ele se inclinou na direção da irmã, de maneira conspiratória.
— Você está aqui para matar a kraljica — sussurrou Nico, se recostando novamente.
Rochelle sentiu o rosto ruborizar, e ele riu.
— Ah, não é uma revelação tão grande assim. A matarh pediu o mesmo para mim, quando eu me tornei um téni. “Você estará perto da kraljica um dia,” ela me disse. “Quando você for um a’téni ou talvez até mesmo o archigos. Estará perto da kraljica, e quero que você a mate por mim, pelo que ela fez para arruinar minha vida.” Não foi isso o que pediu a você também?
— Foi similar — admitiu Rochelle.
— Foi o que eu pensei. Mas não é por isso que você está aqui, Rochelle. Você está aqui porque Cénzi quis que me visse. Ele queria nos reunir.
Ela sentiu uma arrepio na espinha, como se uma brisa de inverno tivesse passado por ela, para lhe acariciar nesse momento, Rochelle se perguntou de onde tinha vindo essa sensação, fazendo com que ela tremesse e se abraçasse. Ele esteve lá, depois se envolveu em escuridão e foi para outro lugar. Se eu pudesse fazer isso, ora, a Pedra Branca poderia ir a qualquer lugar. A Pedra Branca poderia matar a kraljica facilmente...
— O que você fez lá fora... consegue fazer de novo? Pode me ensinar a fazer aquilo? — perguntou Rochelle.
— Há um mês, eu teria dito não. Eu teria dito que apenas os fiéis puros podiam e deveriam usar o Ilmodo. Mas agora... — Nico acabou com o vinho diante de si. — Eu não sei. Talvez qualquer coisa seja possível.
— E por que você acredita que Cénzi queria que ficássemos juntos?
— Eu realmente não sei ainda — respondeu ele —, mas talvez nós dois descubramos.
Varina ca’Pallo
Varina pediu desculpas para a kraljica e saiu do Velho Templo às pressas, com um quarteto de gardai designado para ela. Allesandra, os conselheiros, Sergei — todos eles estavam cercados por gardai, e todos pareciam estar em pânico. Varina, no entanto, estava tomada por uma certeza assustadora. Ela correu para a Casa dos Numetodos, com o estômago ardendo e a testa franzida de preocupação.
As correntes caídas vazias na plataforma e Nico sumido...
Varina temia saber para onde ele tinha ido.
Antes mesmo que a carruagem parasse, ela já estava quase correndo na direção da porta, algo que não fazia há anos.
— A’morce... — falou Johannes quando ela entrou na casa, parecendo surpreso com a aparição de Varina e seu estado ofegante —, nós não a esperávamos de volta...
— Onde ela está? — interrompeu ela. — Serafina... onde ela está?
Sua voz soou estridente, mas Varina não se importou.
— Ora, lá em cima, com Belle, é claro. Eu acho que...
Ela passou correndo por Johannes e subiu a escada batendo os pés, com o coração disparado. Escancarou a porta. Belle, uma jovem recruta dos numetodos e também ama de leite, pois tinha acabado de dar à luz, estava sentada em uma cadeira, próxima à janela do gabinete de Varina. Assustada, Belle se cobriu; Varina se deu conta de que ela estava amamentando o bebê.
— A’morce? Está tudo bem?
Seu coração, que pareceu ter tentado sair pela garganta, se acomodou novamente no peito. As cenas terríveis que ela imaginou a caminho de casa desapareceram aos poucos de sua mente: Belle caída no piso acarpetado, a Casa dos Numetodos pegando fogo ou arruinada, os outros amigos mortos ou feridos, e a filha de Nico desaparecida.
Como o próprio Nico.
Varina fechou os olhos por um momento, com a mão na boca.
— Eu pensei... — ela começou, balançando a cabeça em seguida, para afastar a ideia.
Seu coração começava a diminuir o passo, seu fôlego estava se recuperando, e agora Varina se sentia tola por causa do pânico.
— Nada demais, Belle. Não sei no que eu estava pensando. Como está Sera?
Belle sorriu. Ela levantou o pano sobre o ombro e mostrou para Varina o bebê que mamava no peito, com sua boquinha sugando o peito de olhos fechados.
— Faminta como um filhote de lobo — respondeu a ama de leite. — Estou me perguntando se vai sobrar alguma coisa para o meu bebê.
Belle riu, acariciando a cabeça de Sera, com a coroa de cabelo dourado.
— Eu encontrei outra ama de leite para ela; minha prima, Michelle, perdeu o bebê no parto e disse que está disposta a vir dar de mamar a Sera durante as manhãs. Juntando as duas, nós manteremos a pequenina bem alimentada. Agora que os firenzcianos estão chegando, devemos estar a salvo.
Eu queria ter tanta certeza... Varina forçou um sorriso no rosto.
— Obrigada — respondeu ela. — Diga que pagarei em dobro pelo inconveniente.
— A senhora é muito generosa, a’morce.
Sera soltou o mamilo por um momento e começou a chorar, com lágrimas brilhando em seus olhos azuis, e Belle colocou o peito de volta na boca da bebê. Ela se acalmou novamente.
— Como foi...? — A ama de leite parou, procurando pelas palavras, e completou — O pedido de desculpas?
— Insatisfatório, infelizmente. Nico mostrou mais uma vez por que era o Absoluto dos morellis. Ele escapou. Desapareceu.
Varina viu Belle dar um abraço protetor em Sera — ela viu as suspeitas passarem pela cabeça da jovem.
— A’morce? Talvez a senhora devesse ficar aqui na Casa dos Numetodos hoje à noite até ter proteção. Podemos arrumar um lugar para o bebê...
— Eu posso lidar com Nico sozinha se precisar — disse Varina, torcendo para que sua voz tivesse soado mais confiante do que ela se sentia.
Agora que tinha se acalmado um pouco, agora que sabia que Serafina estava a salvo, Varina estava menos preocupada. Com certeza Nico estaria escondido em algum lugar; talvez até tivesse saído da cidade. Ela se dirigiu até a gaveta da escrivaninha e tirou a chispeira que ficava ali. Verificou se o tambor estava cheio de areia negra e se havia uma bala no cano. Ela enfiou a arma na faixa da tashta, embaixo do manto.
— Termine de amamentá-la que eu fico com ela — falou Varina.
Belle assentiu.
— Eu tenho que voltar para a casa da minha irmã, de qualquer forma. A essa altura, a minha pequena deve estar acordando da soneca e vai chorar por atenção. Essa aqui está quase acabando, eu acho.
A ama de leite se recostou; Sera deixou o mamilo sair da boca, abriu os olhos por um instante e depois os fechou. Sua respiração ficou lenta e silenciosa.
— Pronto, viu só? Já adormeceu, essa gulosinha. Eu coloquei uma xícara em sua escrivaninha com mais leite, caso a senhora precise. Mandarei Michelle vir amanhã, antes da Primeira Chamada. Aqui está, a’morce.
Belle se levantou, colocou Serafina nos braços de Varina e amarrou o laço da tashta para se cobrir novamente. Enquanto a ama de leite arrumava as coisas no gabinete, Varina olhou para o rosto adormecido: as bochechas fofas e rosadas; o sossego confiante e saciado com que o bebê dormia; os dedinhos, uma mão cerrada em um punho, a outra agarrada ao cobertor em que ela estava enrolada. Varina sentiu uma... ela não sabia definir essa emoção, mas dentro dela havia uma necessidade intensa de proteger a criança, assim como uma vez sentiu o mesmo impulso com Nico.
E você fracassou nessa época. Deixou que ele escapasse de você, e aquela louca acabou levando Nico.
Varina se debruçou e beijou a testa de Serafina. Belle sorriu para ela.
— Eu vejo a senhora amanhã, a’morce. A coitadinha não merecia perder sua matarh e vatarh desta forma.
— Não — concordou Varina. — Ela não merecia.
Belle se inclinou e beijou Sera, e fez uma mesura para Varina.
— Eu vejo a senhora de manhã com minha prima.
Assim que Belle saiu, Varina se sentou na cadeira perto da janela por um tempo, balançando para frente e para trás, vendo Sera dormir enquanto ouvia as pessoas passarem no corredor lá fora ou andarem no jardim abaixo da janela. Pensou brevemente em colocar Serafina deitada e deixá-la dormir enquanto trabalhava um pouco, mas pensou melhor. Ela enrolou mais o bebê no cobertor, pegou seu próprio manto e saiu do gabinete. Ao descer as escadas, passou por Johannes e disse.
— Desculpe a minha grosseria. Eu estava preocupada.
Ele assentiu.
— Eu ouvi o que aconteceu no Velho Templo. Eu compreendo, a’morce. A senhora está indo para casa? Por que não deixa que eu ou outra pessoa a acompanhe?
— Eu ficarei bem. Ainda é cedo, e há muitas pessoas nas ruas. Vejo você amanhã de manhã. Haverá uma reunião com Allesandra sobre nosso progresso com as chispeiras.
Johannes fez uma mesura para ela, e Varina saiu da casa, cruzando rapidamente o pátio frontal e passando pelos portões, em seguida ela virou à esquerda na Avi a’Parete em direção à casa deles, a alguns quarteirões de distância. Era assim que ela ainda pensava: a casa deles, como se Karl ainda estivesse vivo, como se ela pudesse abrir a porta da biblioteca e encontrá-lo sentado à escrivaninha, meditando sobre algum tomo antigo. Às vezes, Varina ainda ouvia um barulho e se virava, com esperança de vê-lo, mas ele nunca estava lá.
Ela abraçou Sera com mais força enquanto caminhava. As pessoas que passaram por Varina às vezes a cumprimentavam, mas a maioria estava tensa e séria: pessoas cumprindo seus próprios afazeres e preocupadas com a cidade e com o que aconteceria. A escassez do tráfego fez parecer que era bem mais tarde do que era na verdade; em geral o trânsito na Avi atingia o pico de barulho e de pessoas entre a Segunda e a Terceira Chamada, mas não hoje.
Varina virou a esquina, entrando na própria rua, descendo a alameda curva em direção ao A’Sele. Ela chegou ao portão da mansão e o destrancou, sem se preocupar em chamar um dos criados. Varina fechou o portão ao entrar.
— Varina.
A voz, que tinha surgido da esquerda, provocou um susto e fez Varina segurar Sera com tanta força que fez o bebê chorar. Ela se virou lentamente e viu duas figuras envoltas nas sombras da trepadeira enroscada no pilar de pedra do portão.
— Nico — disse Varina. — Você não deveria estar aqui.
Atrás de Nico, uma jovem a encarava atentamente. Ele sorriu.
— É possível — concordou Nico. — Mas você tem algo que preciso ver.
Varina deu um passo para trás. Ela sentiu o peso da chispeira sob o manto; sentiu a energia dos feitiços em sua mente, esperando para serem lançados. Sera se agitou em seus braços, agora acordada.
— Nico, eu estou lhe avisando. Não vou entregá-la a você. Se você tentar levá-la, eu vou lutar com você para protegê-la.
— Eu não quero tirá-la de você — ele respondeu. — Estou feliz que você tenha ficado com ela, por enquanto, já que eu sei que você faria exatamente o que acabou de dizer que faria. Eu só quero vê-la; só quero ver minha filha. Por favor, Varina?
— Eu não vou deixar você segurá-la.
— É justo.
— E diga para esta mulher ficar bem para trás.
Nico acenou com a cabeça para a companheira, que deu alguns passos para trás. Varina tirou o pano do rosto do bebê quando Nico se aproximou dela. Sera olhou para o rosto de Nico olhando para ela; o bebê viu o rosto dele abrandar, seus lábios formarem um sorriso, e Nico dar uma risadinha ao vê-la.
— O formato do rosto... eu consigo enxergar a Liana — falou ele roucamente.
Nico estendeu a mão para tocá-la, e Varina apertou o bebê contra o corpo ainda mais. Ela sentiu a energia de um feitiço fervilhar em sua cabeça. Mas Nico só acariciou a bochecha da menina com o dedo, rindo novamente quando Sera ergueu a mão e apertou seu dedo.
— Ela é forte também — ele comentou. — Isso é bom. Ei, Serafina. Eu sou seu vatarh...
Ele olhou brevemente para Varina.
— Serafina é um bom nome.
— Nico, se eles pegarem você novamente... não serão tão gentis da próxima vez.
— Então eu preciso ser cuidadoso, não é? Você vai sair de Nessântico?
Varina balançou a cabeça.
— Não? — Nico pareceu desapontado ou talvez preocupado. — Mesmo com o bebê?
— Se a situação chegar a este ponto, eu mandarei Sera embora com alguém em quem confio. — Varina fez uma pausa. — E não será você, Nico. Lamento.
Ele inclinou a cabeça. Uma tristeza acentuou as rugas em volta dos olhos.
— Eu compreendo. Mas... na sua idade, Varina, temos que ser realistas. E não é apenas a idade; olhe para você: o estudo de magia cobrou seu preço. O bebê precisa de uma matarh que seja mais jovem.
Varina pensou que Nico tivesse olhado de relance para a jovem que o acompanhava. Varina também olhou para ela. Não reconheceu seu rosto, mas havia algo na jovem, alguma coisa vagamente familiar... Varina balançou a cabeça.
— Estou ciente de que tenho idade para ser a mamatarh de Serafina e sei o que meus estudos fizeram comigo. Eu vejo meu rosto no espelho. Já fiz minhas consultas. Mas, por enquanto, Sera está sob minha responsabilidade, e eu vou protegê-la. Eu falo sério, Nico.
— E isso está claro — disse Nico. — Eu já disse que estou feliz que você tenha ficado com Serafina. Você sempre foi boa para mim, naquela época. Às vezes eu queria...
Ele olhou mais uma vez para a mulher que o acompanhava, respirando fundo.
— Mantenha Serafina a salvo. Talvez algum dia eu realmente possa ser o vatarh dela.
— Você é o vatarh dela — falou Varina. — E eu vou contar sobre você para Sera. Ela vai saber quem você é. Eu prometo.
Ele assentiu mais uma vez. Ele tirou o dedo da mão do bebê, e Sera se agitou. Nico acariciou sua bochecha de novo.
— É hora de ir — disse ele. — Adeus, pequena Serafina.
Nico se inclinou e deu um beijo na filha, ajeitando as costas a seguir. A mulher que o acompanhava já estava no portão.
— Deixe-me destrancá-lo para você — disse Varina, mas a jovem lhe lançou um olhar de desdém.
Ela retirou dois pedaços finos de aço de algum lugar do manto, se inclinou e, um momento depois, o portão estava aberto. A mulher sorriu para Varina. Nico fez uma mesura, quase como se estivesse saindo da casa após uma visita.
Um instante depois, ele e a companheira tinham ido embora. Varina fechou o portão novamente, ouvindo o clique da tranca. Sera estava chorando.
Ela abraçou a bebê e a embalou em seus braços até que se acalmasse de novo.
Brie ca’Ostheim
Os bumbos batiam em cadência enquanto o exército se aproximava da cidade. Os a’offiziers, que seguiam as ordens do starkkapitän ca’Damont conduziam o exército em direção aos campos ao norte da Avi a’Firenzcia, sem entrar na cidade em si. Os cidadãos das vilas imediatamente fora dos portões aplaudiram os batalhões que avançavam com seus estandartes negros e prateados tremulando sobre eles. E aplaudiram especialmente a hïrzgin que os acompanhava.
Brie acenou de volta para os cidadãos e abriu o sorriso aperfeiçoado com os anos de experiência em negócios de Estado, uma máscara atrás da qual ela podia esconder seus medos e incertezas, um gesto alegre para a multidão, desvinculado de qualquer sensação genuína. Nos campos mais próximos ao local onde o exército deveria acampar, uma tenda havia sido montada, com os estandartes de Nessântico e Firenzcia, azul e dourado misturados ao preto e prata. Quando a carruagem de Brie se aproximou, as abas da tenda tinham sido abertas e uma figura coroada apareceu, flanqueada por gardai da Garde Brezno com o uniforme dos Domínios, a hïrzgin viu Sergei ca’Rudka parado atrás da figura coroada. Brie reconheceu a mulher imediatamente, pelos quadros que tinha visto dela: Allesandra. A kraljica caminhou a passos largos e braços abertos em direção a ela, abrindo um sorriso largo. Sergei mancou atrás dela.
— Onde está minha filha-por-casamento? — disse Allesandra ao se aproximar da carruagem de Brie. — Onde está a hïrzgin?
Os soldados correram para abrir as portas do veículo e colocar um degrau para que ela descesse. Brie tomou a mão oferecida e saiu para o sol, piscando e mantendo o sorriso grudado no rosto. A hïrzgin deixou que a kraljica a envolvesse no abraço, levou um beijo numa bochecha, depois na outra. Allesandra cheirava a rosas e romãs; seu abraço era surpreendentemente forte e genuíno.
— Este momento deveria ter acontecido há anos — sussurrou ela no ouvido de Brie. — Eu peço desculpas por isso; a culpa foi minha. Eu queria ter conhecido você e seus filhos há tanto tempo...
Sua voz evanesceu. Brie segurou as mãos de Allesandra. Ela encarou os olhos da mulher, reparando nas dobras em volta, no pó na pele e nas sombras azuis sob as sobrancelhas pintadas e feitas. Ela podia enxergar Jan no formato dos olhos e nos traços da face; viu um reflexo de Elissa, Kriege, Caelor e Eria também. Até mesmo a voz, menos aguda...
— Eu também queria que esse momento tivesse acontecido antes — respondeu Brie. — Há mais tempo do que a senhora imagina, kraljica. Temos tanto o que conversar.
A hïrzgin sabia que Jan lhe chamaria a atenção pelo que ela diria em seguida, mas Brie não se importava. Ela olhou o rosto de Allesandra e não viu nenhum monstro ali.
— Eu quero que meus filhos vejam a mamatarh como ela é, não como Jan a descreveu.
Brie percebeu o sofrimento no rosto de Allesandra.
— Se não me engano, foi o Venerável Carin, no Toustour, que disse que o incômodo da verdade é sempre preferível ao bálsamo da mentira — disse a kraljica. — Ainda assim, há ocasiões em que eu acho que todos nós preferimos as mentiras. Estou certa de que Jan, na cabeça dele, disse o que pensava ser a verdade sobre mim. Infelizmente, eu nem sempre fui uma boa matarh para Jan, e fiz coisas...
Brie se apressou a interromper qualquer confissão que Allesandra pretendesse fazer ao apertar as mãos da mulher.
— Eu tenho certeza de que a senhora fez o que precisava fazer como kraljica. E sei que o Venerável Carin também disse que o passado não pode ser mudado, apenas o presente. Vamos nos apegar a esse momento, kraljica, a senhora e eu, e tornar bom o presente.
Allesandra sorriu novamente.
— Eu espero que meu filho dê valor a esposa e conselheira que tem.
Brie apenas devolveu o sorriso, perfeito e ensaiado.
— Ele dá o máximo valor de que é capaz — respondeu ela — e o mínimo com que consegue escapar impune.
Allesandra riu.
— É assim que as coisas são? — exclamou ela.
A kraljica abraçou a hïrzgin novamente, pegando em sua mão. Ela a ergueu e se voltou para os soldados e chevarittai ao redor.
— Esta é a hïrzgin Brie — proclamou Allesandra — e eu lhe dou boas-vindas a Nessântico como minha filha-por-casamento e como a esposa do próximo kraljiki e matarh de seus herdeiros.
Uma aclamação irrompeu nas fileiras em torno deles, Brie se curvou e acenou para o agrupamento. A hïrzgin se perguntou se eles ainda estariam aclamando em alguns dias.
— Você está com fome? — perguntou Allesandra. — Há um jantar à nossa espera na tenda...
Brie permitiu que Allesandra a acompanhasse até a tenda. Ao passar por Sergei, ela parou e fez o sinal de Cénzi para o homem.
— Hïrzgin — falou o Nariz de Prata. — É bom vê-la novamente.
O embaixador se aproximou dela, e a voz era um sussurro rouco e singelo.
— E eu tenho coisas para lhe contar também.
Dito isso, ele se afastou novamente, sorrindo para Brie e fazendo um gesto para que ela entrasse na tenda, no rastro de Allesandra.
— Você tem certeza de que a garota era Rhianna?
— Rochelle, é o verdadeiro nome; pelo menos é o que ela alega. Mas sim, era a mesma jovem. Tenho certeza.
— E ela também alega ser a filha da Pedra Branca e de Jan?
Sergei assentiu, em silêncio. Brie se recostou na cadeira e balançou a cabeça, sem saber como responder. Ela queria negar, queria chorar, queria gritar de raiva.
Isso explicava tanta coisa. Jan ainda é apaixonado por ela, depois de todos esses anos.
Allesandra tinha retornado para a cidade; Sergei tinha ficado no acampamento após o jantar, dizendo para a kraljica que ele mesmo acompanharia a hïrzgin até o palácio assim que ela estivesse pronta. A mesa onde o jantar tinha sido servido ainda permanecia entre eles, embora os criados tivessem tirado tudo, exceto uma garrafa de vinho e um pouco de pão e queijo. Brie se inclinou, virou a garrafa na taça e ficou observando o vinho espirrar no fundo. Ela se recostou novamente e bebeu.
— E eu acho que é bem possível que a jovem esteja falando a verdade — continuou Sergei. — Eu estou bastante certo disso, na verdade. Eu sei que não é o que a senhora deseja ouvir, hïrzgin, mas temos que considerar que, dada a história que ambos conhecemos, é plausível.
— Mas não é certo.
O embaixador abriu um sorriso sob o nariz de prata.
— Não, não é certo. Eu mandei um pessoal fazer uma investigação e verificar algumas das referências que ela me deu, mas levará algum tempo até que eles me informem alguma coisa, dada a situação atual, e talvez sequer saibamos o suficiente para provar os fatos, de qualquer forma. — Ele deu de ombros. — Mas é nisso que Rochelle acredita, seja isso verdade ou não.
— E ela está aqui.
— Está.
Brie ponderou. Será que ela e Jan planejaram isso? Ou é apenas coincidência?
— Jan sabe? E Allesandra?
Sergei meneou a cabeça negativamente.
— Allesandra definitivamente não sabe, nem eu falei com Jan. Queria contar para a senhora primeiro. Mas eles também precisam saber. — Sergei respirou fundo pelo nariz de metal; o som assobiou um pouco. — A garota é perigosa, hïrzgin. Ela assumiu o papel da Pedra Branca. Diz que foi ela quem matou Rance; contratada por um homem cuja filha a senhora despachou por algum motivo.
— Ah.
A declaração caiu como um golpe em seu estômago. Brie pousou o vinho, levando a mão à garganta.
— Por Cénzi, não... Mavel co’Kella; ela estava grávida. Grávida de Jan. Eu tinha que tirá-la da corte e mandá-la embora. Deve ter sido o vatarh de Mavel co’Kella. Ele estava pleiteando se tornar um chevaritt, mas depois disso... — Ela olhou para Sergei, atormentada. — Eu causei a morte de Rance. Foi por minha culpa.
— Foi o vatarh da garota — respondeu o embaixador. — Não a senhora. A senhora não é responsável pelas ações dele.
— E Rhianna, ou Rochelle... Ela esteve no palácio esse tempo todo, cuidando de mim e dos meus filhos, e Jan...
Brie se calou. Sergei não disse nada. Ela se sentiu observada pelo embaixador. A mulher no meu pesadelo. Seria ela Rochelle?
— Estou enojada — falou a hïrzgin. — Aquela garota, filha de Jan, meia-irmã dos meus próprios filhos...
— Ela é uma bastarda. Não tem direito real ao trono.
— Eu sei. Há bastardos o bastante — respondeu a hïrzgin, abrindo um sorriso sarcástico e irônico. — Mesmo assim, ela foi a primeira, e Jan...
Brie se deteve, encarando Sergei.
— Eu soube que você chegou a conhecer a Pedra Branca.
— Não — respondeu o embaixador. — Não conheci. Mas eu fui a Brezno não muito tempo depois de ela, bem, depois de ela ter assassinado o hïrzg Fynn. Pelo que eu me lembro, Rochelle deve se parecer muito com a matarh dela, na ocasião.
Brie sentiu o coração bater forte no peito. Sentiu o vinho e o jantar se revirarem no estômago. Mais uma vez, a compreensão emergiu dentro dela: Jan ainda ama Elissa, nunca deixou de amar.
— Elissa. Era como a Pedra Branca se chamava na época. Eu não conhecia a história quando Jan quis batizar nossa filha. Só pensei que fosse um nome que ele gostasse... — A hïrzgin soltou uma risada amarga. — Eu não soube por um ano ou mais, quando já era tarde demais para mudar. Nunca consegui perdoá-lo por isso.
— A senhora quer que eu conte para Allesandra e Jan sobre Rochelle?
Brie sentiu um arrepio de frio repentino.
— Você pode contar para Allesandra, mas eu quero contar para Jan. Quero ver a cara dele quando descobrir.
Sergei inclinou a cabeça e se levantou da cadeira.
— Então eu deixo o hïrzg com a senhora. Mandarei preparar sua carruagem, hïrzgin. A kraljica deve estar se perguntando o que aconteceu conosco.
— Sim — respondeu Brie. — Faça isso. Eu irei em um instante.
Sergei fez uma mesura e saiu da tenda. A hïrzgin se serviu de outra taça de vinho. Ficou sentada ali por vários instantes, encarando o líquido vermelho reluzir na superfície dourada. Eu quero ver a cara dele...
Brie se perguntou como contar para Jan.
Niente
Niente começava a acreditar que eles talvez chegassem a ver as muralhas da grande cidade incontestes.
O exército tehuantino descia as colinas de um vale verde e exuberante, exalando o cheiro das estranhas árvores da região, pontilhada por bolsões de fazendas e vinhedos entalhados na floresta. Era um terreno do qual Niente se lembrava, um terreno que Niente frequentemente revia em seus sonhos. O exército se separou em três forças, como Atl tinha visto na tigela — a força ao sul cruzou o rio, a força ao norte seguiu em direção ao alto da estrada, e o restante do exército continuou seguindo a estrada paralela ao rio.
Era lá que o tecuhtli Citlali estava abrigado; foi para lá que Atl, como nahual, e Niente seguiram.
Eles sabiam que estavam sendo acompanhados pelos orientais. Ocorreram algumas estranhas escaramuças breves com os guerreiros a cavalo, que vinham gritando, desafiando e se lançando loucamente contra as fileiras — até mesmo os guerreiros supremos estavam comentando sobre a bravura incontestável dos orientais, ao mesmo tempo em que criticavam suas táticas inúteis e imprudentes. Algumas chuvas de flechas ocasionais caíram sobre eles conforme passavam pelos vales sinuosos, mas os escudos dos guerreiros tinham aparado a maioria, e os nahualli tiraram grande proveito de seus cajados mágicos. Não havia sinal dos feiticeiros orientais, nem dos ténis-guerreiros.
Todas as tentativas orientais de impedir o avanço dos tehuantinos foram comparáveis ao zumbido de moscas importunando o exército.
Eles acompanharam a curva do rio, com vista escassa para as torres de um vilarejo sobre o topo das árvores. Passaram por uma paisagem pastoral, com seus campos cultivados esvaziados de colheitas e gado. Certamente uma tática, para que o exército tehuantino tivesse que colher alimentos mais adiante, o que eles fizeram — destacamentos de saqueadores foram enviados para longe das forças, eles roubaram o gado bovino e limparam os campos como gafanhotos, e toda a comida foi trazida de volta para alimentar os estômagos exigentes dos guerreiros. A casa de fazenda ou mansões ocasionais que os tehuantinos encontravam estavam abandonadas e silenciosas. Os sons do exército abafavam os sons que Niente imaginava que eles talvez ouvissem se estivessem cavalgando desacompanhados pela estrada: os chamados dos pássaros orientais, o vento soprando as folhas, o mugido do gado.
Mesmo assim, a paisagem parecia quieta demais. Niente começou a espiar em volta, nervoso; ele notou que Citlali e os guerreiros supremos ao redor fizeram o mesmo e se deu conta de que os cavaleiros da vanguarda, que já deveriam estar de volta, ainda estavam ausentes.
Ouviu-se um movimento nos cumes baixos em volta do exército tehuantino: sob o sol vespertino, brotos reluzentes de homens surgiram do solo.
— Atl! — gritou Niente, pegando seu cajado mágico, mas o alerta chegara tarde demais.
Bolas de fogo desenharam um arco no céu em direção aos tehuantinos, deixando um rastro de fumaça negra para trás, o ar ficou encoberto pelas hastes de flechas. Elas caíram assobiando, e os guerreiros ergueram seus escudos imediatamente para conter as flechas; mesmo assim, Niente viu vários guerreiros caírem, ao mesmo tempo em que ele lançava contrafeitiços em direção às bolas de fogo. A mais próxima explodiu muito acima deles, emitindo um estrondo que fez Niente querer tapar os ouvidos com as mãos. Atl também entoava gatilhos de feitiços, e outra bola de fogo foi desviada descontroladamente para o lado, rasgando a campina e cuspindo lama, grama e fogo líquido onde caiu. Mas outra bola de fogo veio rápido demais na direção dos estandartes do tecuhtli; Niente jogou um contrafeitiço, mas era tarde demais. Niente pôde sentir o calor do feitiço de guerra irrompendo em gotas pegajosas de fogo, e o abalo se apoderou dos tehuantinos. Niente atirado de seu cavalo, enquanto gritos eram emitidos dos guerreiros mais próximos. Niente ficou preso por um instante sob o animal enquanto o cavalo tentava se levantar novamente. A grama estava em chamas de ambos os lados da estrada de terra. Trompas orientais soaram uma sequência crescente de notas, seguidas pelo rufar de soldados em resposta e os gritos dos guerreiros supremos conforme tentaram restaurar a ordem para as fileiras assustadas e desorganizadas.
O ruído de metal retinindo soava enquanto Niente lutava para se levantar, usando o cajado mágico como bengala. Ele sentiu uma mão pegar em seu braço e o puxar: Atl, com o rosto manchado e sujo de fuligem.
Tudo em torno dele era um caos. Havia um grande número de guerreiros mortos perto da estrada, onde a bola de fogo havia caído, mas o tecuhtli Citlali e o guerreiro supremo Tototl ainda estavam vivos. Os dois gritavam e gesticulavam para a esquerda, onde uma batalha em grande escala acontecia entre as forças orientais e tehuantinas. Eu nunca tinha visto este ataque, Niente se deu conta. Isso é novo... Urrando, com a lança em riste, Citlali montou novamente no cavalo, auxiliado por dois guerreiros.
— Nahual Atl! — Niente ouviu Citlali gritar. — Comigo! Comigo!
A mão esquerda de Atl soltou o braço de Niente. Ele deu um pulo e montou em seu próprio cavalo.
— Nahualli! — chamou Atl. — Ao tecuhtli!
Citlali e Tototl já estavam galopando em direção à linha de frente da confusão, Atl agora estalava as rédeas do cavalo em perseguição. Niente procurou por seu próprio cavalo e viu o animal de cabeça baixa a alguns passos de distância. Ele caminhou até o animal — mancando, sentindo a dor de seus músculos distendidos por toda a lateral do corpo. O cavalo se afastou quando Niente se aproximou, ele notou que sua pata dianteira estava quebrada; o animal não podia apoiar peso nela. Niente praguejou. Ele começou a correr arrastando os pés e se juntou aos guerreiros seguindo em direção à linha de batalha no meio da campina. À sua frente, Niente viu os nahualli lançando seus feitiços de guerra em direção às fileiras inimigas, ele ergueu seu próprio cajado mágico para se juntar ao bombardeio enquanto corria, berrando os gatilhos.
Fogo e raios caíram de nuvens baixas e repentinas. Eles bateram no chão bem acima do cume e em meio aos orientais. Os guerreiros rugiram — um grito de guerra para Sakal, invocando a fúria do deus-sol — e avançaram. Niente viu os estandartes do Citlali subindo a encosta com os orientais em retirada diante do tecuhtli; as linhas de frente foram rompidas, e os feridos estavam sendo arrastados de maneira vergonhosa. A retirada foi humilhante e completa. Citlali deu ordem para interromper o contra-ataque enquanto os orientais sumiam nas florestas e nas faixas de área arborizada entre os campos. Trompas orientais soaram uma sequência de retirada. O estandarte do tecuhtli tremulou brevemente no topo do cume — Niente viu Atl ao lado dele —, e Citlali começou a descer o morro a meio galope em direção à estrada novamente, acompanhado por Tototl. Niente não conseguia enxergar o rosto através da águia vermelha tatuada na face e do sangue espalhado sobre ela. Ele avançou entre os guerreiros em direção ao lugar em que Citlali estava desmontando. A lâmina da espada do tecuhtli estava coberta de sangue.
Agora Niente pôde ver a expressão no rosto de Citlali: ele estava olhando para corpos dos guerreiros mortos e feridos, furioso, enquanto os curandeiros corriam para cuidar dos vivos, e os sacerdotes davam a extrema unção aos mortos. Citlali se agachou ao lado de vários guerreiros, tocando os rostos daqueles que ele e Niente conheciam há anos. O cheiro de carne queimada era forte, e a grama da campina ainda estava em chamas entre vários deles.
Atl não estava muito longe de Citlali e Tototl. O cajado mágico pendia de sua mão, como se estivesse exausto. A cabeça balançava, como se não quisesse acreditar.
— Eu não vi isso, taat — disse o jovem quando se aproximou de Niente. — Eu procurei, mas isso estava escondido. Por que eu não vi isso?
— Por que, realmente?
Uma voz o interrompeu antes que Niente pudesse responder. Citlali tinha se virado para os dois.
— Eu tenho dois nahualli que são considerados os mais poderosos na visão premonitória desde Mahri e, no entanto, nenhum deles me deu qualquer pista sobre isso. Eu não estou triste pela perda; nossos guerreiros morreram a morte boa, a morte da batalha, como deveriam. Mas você, Atl, me disse que os orientais não nos enfrentariam frontalmente até chegarmos à grande cidade. — Seu olhar colérico se virou para Niente. — E você disse que não conseguia quase nada. Por quê? Axat nos abandonou?
Niente e Atl balançaram a cabeça simultaneamente.
— Alguma coisa mudou — falou Niente. — Eu lhe disse muitas vezes antes, tecuhtli, que Axat mostra o que pode ser, não o que será. Alguma coisa mudou entre os orientais.
Citlali bufou desdenhosamente.
— Isso ficou bem claro — ele disse acenando para a fumaça e os corpos ao redor. — Descubram o que mudou e o que isso significa para nós. Descubram agora.
O círculo dourado do sol morria no oeste, e a bruma verde do futuro surgiu em volta do rosto deles. Os nahualli observavam os dois, em silêncio; o tecuhtli Citlali também os observava, com os guerreiros supremos agrupados em volta dele.
Na tigela premonitória, o presente se dividiu e rasgou, e os retalhos do futuro se esvaiam, se contorcendo e se enroscando. Niente os perseguiu na sua mente; ao lado dele, Atl fazia o mesmo. A perseguição era tão exaustiva quanto uma perseguição física. Próximo ao presente, os fios de possibilidades se embolavam e entrelaçavam. As imagens não paravam de surgir na bruma, era difícil vê-las por tempo o bastante para compreender os significados.
Ali: o rosto de um rei, ou era o que Niente tinha presumido pela faixa dourada envolvendo sua cabeça, que brandia uma espada com uma multidão vestida em preto e prata atrás dele, em vez do uniforme azul e dourado do exército da grande cidade. Niente se lembrava daquelas cores — as cores do exército que tinha vindo socorrer a cidade após ser tomada pelo tecuhtli Zolin. Niente tremeu ao ver isso...
Mas a bruma envolveu o rei, e Niente agora viu uma rainha sentada em um trono brilhante com fogo vermelho em torno de si. Uma jovem erguia uma faca reluzente sob o brilho do fogo, havia também um homem perto do trono, e as labaredas furiosas dentro da sala pareciam sair de suas mãos erguidas...
Uma bruma fria apagara o fogo e o levara embora. Niente encarava agora fileiras de gente, mas não eram soldados em armaduras reluzentes, mas pessoas comuns, elas estavam apontando instrumentos estranhos para Niente, parecidos com as garras de águia que os nahualli usavam para fazer sacrifícios. Os instrumentos cuspiram fumaça e fogo, e abelhões negros foram disparados por eles, correndo na direção de Niente...
Mas a bruma também os levou.
Um vento soprou a bruma, e ali diante de Niente, por um momento tentador, ele vislumbrou novamente o Longo Caminho. Ele havia mudado desde a última vez que Niente o tinha visto. O futuro ainda continuava tomado pelos estandartes caídos dos tehuantinos. Mais adiante no caminho, ele viu os estandartes dos tehuantinos tremulando ao lado dos estandartes azuis e dourados dos orientais, e duas pessoas sob eles, um homem com a tatuagem da águia vermelha do tecuhtli e uma mulher com as roupas dos orientais e um cetro dourado na mão. Os dois estavam juntos e sorriam um para o outro, e não havia animosidade alguma entre eles.
A bruma escondeu o Longo Caminho, mas perto de Niente, as brumas agora se abriram, e ele viu Citlali, morto, com um nahualli ao seu lado. Niente se debruçou sobre a tigela. No braço jovem e musculoso do nahualli, havia um brilho dourado: o bracelete do nahual. Ao lado dos dois, como se tivesse sido responsável pelas mortes, ele viu as costas de outro nahualli: a careca de um velho, com alguns poucos fios de cabelo e — quando o nahualli se virou — o semblante enrugado e cheio de cicatrizes, com um olho esquerdo cego.
Niente recuou e conteve um grito...
— Não... — sussurrou ele.
O sopro da negação fez a bruma mudar, de maneira que o Longo Caminho desapareceu para revelar ainda outro Longo Caminho. No fim deste rumo, Niente viu Tlaxcala, mas a cidade flutuante ardia no centro de um lago e as grandes pirâmides estavam em ruínas. Assim como na visão anterior do Longo Caminho, os meios para se chegar a ele estavam obscurecidos, mas as imagens tremularam mais perto dele. Ali o tecuhtli Citlali estava sentado em um trono brilhante sob um teto abobadado, com o estandarte azul e dourado no piso de ladrilhos diante dele e vários orientais prostrados à sua frente, como se estivessem prontos para serem sacrificados para Axat e Sakal, para que o resto de seu povo pudesse viver.
Niente respirou de novo, e os vapores frios e verdes envolveram seu rosto. Ele sentiu sua face ficar molhada e se deu conta de que tinha tocado a água da tigela premonitória. Com o toque, as visões se dissolveram e Niente encarava apenas a tigela.
Ele voltou à realidade devagar, ofegante, como se tivesse voltado de uma longa corrida. Carrancudo, o tecuhtli Citlali olhava fixamente para Niente, à sua esquerda, Atl já havia levantado o rosto de sua própria tigela. Vários nahualli de baixo escalão se aproximaram rapidamente e recolheram as tigelas e as mesas.
— Bem? — perguntou Citlali. — O que Axat mostrou para vocês?
Niente não falou nada; pelo canto de olho, ele viu Atl lançar-lhe um olhar furtivo.
— A visão ainda mostra a nossa vitória, tecuhtli — respondeu o jovem. — Eu vi o senhor no trono dos orientais.
O olhar de Citlali ainda estava fixo em Niente.
— E você, uchben nahual? Você também viu isso?
Niente ergueu a cabeça. Sentindo suas mãos tremerem, um nahualli de baixo escalão tinha corrido lhe entregar seu cajado mágico. Ele aceitou agradecidamente e se apoiou pesadamente sobre o objeto. Niente piscou para tentar limpar a mente das visões. O Longo Caminho... Axat lhe presenteou com duas escolhas...
— Eu vi a mesma coisa, tecuhtli — ele respondeu honestamente.
— Rá! — O tecuhtli Citlali se levantou e bateu o pé uma vez no chão enquanto Tototl e os outros guerreiros supremos urravam de aprovação. — Então nós seguiremos em frente e tomaremos a grande cidade dos orientais, e transformaremos suas esposas em viúvas e as crianças em órfãs, se eles resistirem a nós.
RESSURREIÇÕES
A Ameaça da Tempestade
A Fúria da Tempestade
A Passagem da Tempestade
A Aurora
A Ameaça da Tempestade
Jan fedia a cavalo, suor, fumaça e sangue. O starkkapitän ca’Damont e o comandante ca’Talin também. Não houve tempo para tomar banho ou trocar de roupa. Eles tiraram a armadura depois do confronto com os ocidentais e cavalgaram rapidamente de volta a Nessântico, deixando a retirada relutante da Garde Civile com os a’offiziers. Suas botas — sujas, cheias de lama e deslocadas — faziam barulho nos ladrilhos encerados do Palácio da Kraljica na Ilha; os gardai no salão e os criados e os cortesãos se agitando nos corredores encararam o trio com apreensão, como se tentassem medir pelos rostos e pela atitude a gravidade da ameaça à cidade.
Se conseguissem interpretar aquelas expressões corretamente, ficariam assustados.
O assistente de Allesandra, Talbot, encontrou Jan quando os três passaram pela câmara de recepção externa e os acompanhou pelo corredor privativo da criadagem até a câmara do Conselho dos Ca’. Ele gesticulou para o gardai do corredor abrir as portas quando o grupo se aproximou. O burburinho de conversa no interior parou. Allesandra esperava por eles ali, com Sergei ca’Rudka e os conselheiros; havia um mapa das cercanias aberto sobre a mesa.
Todos olharam para Jan esperançosamente.
— Se vocês estão esperando ouvir boas notícias — falou o hïrzg sem preâmbulos —, eu não tenho nenhuma.
Ele parou. Uma mulher ao lado de Allesandra parou de examinar o mapa para encará-lo.
— Brie? Eu pensei...
Brie caminhou até Jan e abraçou o marido tão abertamente como se ele estivesse em trajes de gala para um baile. Jan tentou se afastar, por causa de seu estado, mas se a hïrzgin sentiu alguma repulsa pelo cheiro ou pela aparência, não demonstrou. Brie deu um beijo na bochecha de barba rala, depois na boca de Jan, que devolveu o beijo um instante depois.
— Eu vim com seu exército, meu querido — falou ela. — As crianças estão em Brezno, mas senti que meu lugar era aqui, com meu marido na cidade que ele governará um dia.
— Você não deveria ter vindo, Brie.
— Por que eu não deveria ter vindo? — perguntou a hïrzgin com a cabeça inclinada.
Seu tom de voz era estranho — quase evasivo e ameno demais. Ele sentiu que havia uma outra pergunta nas entrelinhas, uma que ela não estava fazendo.
— Não é óbvio? — respondeu Jan. — É perigoso para você.
— Eu pensei que fosse mais perigoso eu não estar aqui — argumentou Brie.
O hïrzg pôde notar um conteúdo oculto nas palavras, mas o significado lhe escapou. A esposa sorriu para ele: novamente com a mesma estranheza.
— Eu estou aqui, meu marido, e trouxe seu exército comigo. Ora, você deveria estar feliz.
Jan assentiu — sim, havia algo mais em Brie do que existia na superfície, mas não havia tempo para descobrir agora, e tentar fazê-lo só o deixaria irritado. Ele deu um beijo em Brie, mecanicamente, depois olhou em volta para os demais no ambiente.
Concentração...
— Kraljica, embaixador, conselheiros: os ocidentais têm uma força consideravelmente maior do que a nossa, mesmo com a adição firenzciana — informou Jan.
Ele caminhou até o mapa e passou a mão pelos pontos salientes desenhados.
— Eles avançam por uma linha de frente que os fará chegar a Nessântico pela borda oeste no lado norte do A’Sele, pelas margens do A’Sele, acima da Avi a’Nostrosei ou mesmo pela Avi a’Nortegate. Isso já é bem ruim, mas nossos batedores nos dizem que eles mandaram outra força cruzar o rio para atacar a cidade ao sul. No momento, não temos mais que vinte ténis-guerreiros, todos de Nessântico; precisamos de pelo menos algumas centenas para ao menos tentar nos equiparar aos ocidentais nesse aspecto. E, julgando pelo que fizeram em Villembouchure, os tehuantinos também têm um estoque decente de areia negra, o que significa que nenhum dos prédios daqui está a salvo se eles se aproximarem. Quanto ao que fizeram em Karnmor, bem, nós só podemos torcer para que os inimigos não tenham como repetir esse horror. Se tiverem, então não há esperança alguma.
— Você faz parecer como se já tivéssemos perdido e devêssemos sair da cidade — disse sua matarh. Jan balançou a cabeça.
— Não, matarh — disse o hïrzg. — Não é o que estou dizendo. Nessântico não está perdida, mas está em perigo sério e imediato, e não podemos subestimar isso. Eu vi os ocidentais e entrei em combate com eles para testá-los. E isso fez com que percebêssemos que precisamos de todas as forças que pudermos reunir: todos os ténis-guerreiros, todo cidadão apto fisicamente, todos os recursos possíveis. Mesmo com tudo isso, também precisaremos da graça de Cénzi, ou veremos Nessântico queimar mais uma vez.
O silêncio que se seguiu durou bastante.
— Não é isso o que nenhum de nós quer. Eis o que o starkkapitän, o comandante e eu propomos — o hïrzg disse, finalmente, apontando para o mapa. — O A’Sele faz uma curva para o norte logo após Pré a’Fleuve; isso necessariamente vai comprimir as forças tehuantinas. Eu sugiro estacionar nossas tropas aqui logo depois do rio Infante, a partir da vila de Certendi, ao sul. Vamos segurá-los lá o máximo que pudermos, depois destruiremos as pontes se precisarmos recuar para o outro lado. Eu quero que barreiras de terra sejam erguidas da Avi a’Certendi para o A’Sele, seguindo a margem leste do Infante. O comandante ca’Talin, o starkkapitän ca’Damont e eu faremos os ocidentais lutarem por cada pedaço de terra entre o Infante e Nessântico, e espero que consigamos mantê-los completamente afastados da cidade na Margem Norte. Quanto à Margem Sul...
Ele acenou com a cabeça para Allesandra e Sergei.
— Eu deixo nas suas mãos.
— ...existe um Longo Caminho, Atl. Um rumo que leva a um lugar melhor para nós, embora não pareça assim inicialmente, e Citlali nunca acreditaria em mim. Mas você tem que acreditar em mim. A vitória aqui não é só uma vitória; ela significará uma derrota para nós, com o tempo. A própria Tlaxcala pode cair.
Atl balançava a cabeça enquanto ouvia a explicação de Niente.
— Eu sei que o senhor não para de dizer isso, taat, mas não é o que eu vejo. Mesmo que eu quisesse acreditar no senhor... — Ele abanou a mão em desespero, soltando um suspiro. — Eu não vejo absolutamente nada deste Longo Caminho.
— Você não está olhando suficientemente o distante. Não é algo que você consiga fazer ainda.
Isso foi um erro. Ele notou na forma como a luz da fogueira na tenda refletiu no rosto carrancudo do filho.
— Eu sou capaz de ver os caminhos de Axat, taat. Acho que posso vê-los melhor que o senhor. O senhor só não quer admitir isso. Eu vou para a minha tenda. Encha seu cajado mágico e durma um pouco, taat. Eu farei o mesmo.
Ele cumprimentou Niente com a cabeça e ia sair, mas Niente o segurou pelo braço, os seus dedos apertaram o bracelete de ouro do nahual que tinha estado em volta do próprio antebraço.
— Atl, isso é muitíssimo importante. Eu vi o Longo Caminho; eu vi com extrema nitidez em Tlaxcala e mesmo aqui, por um instante. Eu pude vê-lo desde então; há tantos elementos prejudicando as brumas, como você mesmo sabe. Mas ele está lá; tem que estar. Nós dois juntos talvez possamos encontrá-lo novamente. Se o vislumbrarmos só mais uma vez, se pudermos ver como temos que reagir...
Niente vasculhou a bolsa e tirou dois passarinhos de madeira entalhados de forma crua e pintados de vermelho intenso, com traços simples e brutos. Ele entregou um para Atl.
— Eu fiz esses aqui mais cedo hoje à noite. Coloquei um feitiço dentro deles, para que, se nos separarmos na batalha, ainda possamos mandar uma mensagem um para o outro. Se um de nós vir o rumo, então podemos contar para o outro que o Longo Caminho está aberto.
Atl olhou para o pássaro.
— Eu não preciso...
Ele ia devolvê-lo, mas Niente fechou os dedos do filho em volta da escultura.
— Por favor — disse ele para Atl. — Por favor, aceite.
Atl suspirou; como suspirava quando criança, quando seus pais insistiam que ele fizesse algo que não queria fazer.
— Está bem, eu fico com isso. Mas, taat, não existe Longo Caminho. Eu não sei aonde essa guerra nos levará, nenhum de nós sabe, mas eu sei que podemos ser vitoriosos aqui. Eu vi isso, e pretendo conduzir o tecuhtli Citlali até esse momento.
Ele olhou para Niente, e a luz da fogueira refletiu em seus olhos negros.
— Encha seu cajado mágico — disse Atl, como se se dirigisse a um nahualli de baixo escalão. — O senhor vai precisar em breve. Eu mesmo preciso usar a tigela premonitória esta noite.
Atl caminhou até a aba da tenda e a abriu. Lá fora, a lua brilhava sobre seu ombro.
— Não há um Longo Caminho, taat. Tenho certeza disso — falou ele. — O senhor está vendo o que quer ver, não o que Axat está disposta a mostrar.
Atl deixou a aba da tenda cair atrás dele sair.
— Você cruzará o rio hoje de manhã com Tototl e se juntará à força ao sul com dois punhados de nahualli sob seu comando.
Essa foi a ordem que Niente recebeu do tecuhtli Citlali. Atl e Tototl estavam ao lado do guerreiro quando ele deu o comando. O rosto do filho tinha uma expressão ilegível e atormentada, Niente ficou curioso para saber — após a conversa da noite anterior — se a ordem tinha vindo de Citlali ou de Atl. Ele tinha que admitir que fazia sentido — deixar que o antigo nahual ficasse ao lado do tecuhtli para questionar o novo nahual levaria a hesitação e contradições. Ao sul, Niente não teria rivais... nem Atl, que seguiria com a força principal. Ao sul, Niente seria um recurso poderoso para os nahualli e um líder comprovado. Se Niente ainda fosse o nahual, se estivesse procurando por uma vitória esmagadora aqui, em vez da quimera de seu Longo Caminho, ele talvez tivesse sugerido alguma coisa parecida, como mandar Atl com o braço sul do exército.
Citlatli não lhe deu chance de contestar.
— Uchben nahual, o bote com os outros nahualli está à sua espera na margem — falou ele. — Você partirá assim que recolher suas coisas. Nahual Atl, quero discutir nossa estratégia com você...
Com essa dispensa, o tecuhtli Citlali deu as costas para Niente e gesticulou para Atl segui-lo. O jovem olhou uma única vez para o antigo nahual.
— Taat — ele disse —, vejo o senhor de novo na grande cidade. Mantenha-se a salvo.
Atl acenou com a cabeça e depois seguiu Citlali.
Pouco tempo depois, Niente se viu em um bote com outros três tehuantinos cruzando o A’Sele, a água marrom se agitava e ficava momentaneamente branca com o bater dos remos dos jovens guerreiros. O cheiro de água doce entrou em seu nariz, as árvores na outra margem distante estavam obscurecidas pela névoa da visão pobre de seu olho são. Ele podia sentir os olhares dos outros nahualli que o acompanhavam sobre si, podia sentir a avaliação ao se agachar na popa da pequena embarcação.
Niente olhou para oeste, rio abaixo — os tehuantinos receberam uma mensagem do comandante da frota informando que o rio tinha sido liberado e que ele estava subindo o rio com os navios de guerra para encontrá-los. Niente não tinha visto vela alguma ainda, mas o rio fazia uma curva ali perto, e a frota talvez estivesse logo ali atrás daquela curva. O guerreiro supremo Tototl, em outro dos botes, olhava apenas à frente, na direção da outra margem.
O que eu faço agora? Esta estratégia não estava em nenhum dos caminhos que vislumbrei. Ele se perguntou se Atl tinha visto isso e se sabia para onde esse caminho levava. Niente se sentiu perdido, sendo levado pelas correntezas do presente. Será que consigo encontrar o Longo Caminho nesta situação, e se conseguir, será que arrisco segui-lo? Ele já tinha desistido do Longo Caminho uma vez devido a seu alto custo. Essa visão tinha sido nítida, como se Axat quisesse que Niente soubesse. A morte de Citlali pouco importava para ele; um guerreiro esperava, e até mesmo recebia, pela morte de braços abertos na batalha. Mas Niente também estava morto nessa visão; ele realmente faria isso, se Axat cobrasse seu preço? E se Axat exigisse a vida de Atl também, como Ela tinha dado a entender...
Suas mãos estavam tremendo, e não era por causa do frio úmido da manhã.
Será que Atl viu isso? Será que foi por isso que ele mandou você embora?
Niente queria falar desesperadamente com Atl, mas não era mais possível. Ele tocou na bolsa para sentir o pássaro entalhado. O toque não lhe deu nenhum alívio.
A margem estava se aproximando; Niente quase conseguia identificar uma árvore ou outra se aproximando em vez dos borrões verdes e vislumbrou uma meia dúzia de guerreiros reunidos sob a cobertura verdejante, prontos para escoltá-los até a estrada. A proa do bote atracou na lama da margem escondida sob os juncos, assustando Niente. Os guerreiros que os aguardavam desceram a margem correndo para ajudá-los a sair. Ele ouviu Tototl berrar ordens. Niente esperou que os guerreiros os puxassem para a terra seca. No topo da margem, ele olhou para o outro lado do rio mais uma vez. Entre a névoa da catarata, Niente pensou ter visto algumas figuras se movendo.
Ele se perguntou se uma delas era Atl.
— Por Cénzi, então é verdade...
A mão de Jan cofiou a barba. Seus olhos se arregalaram, e Brie podia jurar que havia um espanto genuíno neles, não uma surpresa fingida. Talvez ela estivesse enganada e Jan realmente não tivesse mandado a garota à frente deles para encontrá-la mais tarde na cidade.
— Eu juro, Brie, eu não sabia que ela estava aqui. Eu juro por Cénzi. Eu sei que você deve estar pensando que mandei Rhianna para cá, ou Rochelle, ou seja lá qual for seu nome verdadeiro, mas eu nunca pensei...
— Não, você não pensou — ralhou Brie.
Ela continuou observando o rosto do marido. O espanto em sua expressão pareceu genuíno o bastante quando ela deu a notícia que Sergei lhe contara.
— Ela alega ser sua filha, Jan.
— Ela também me disse isso.
— Ela disse isso para você? Quando?
— Quando tirou a faca da matarh de mim. Foi seu golpe de despedida antes de fugir. — Jan passou os dedos pelo cabelo recém-molhado do banho rápido. — Ela matou Rance. Eu sabia disso, mesmo na ocasião. Ela parece tanto com El...
Ele se deteve e olhou de relance para a esposa.
— Com a matarh dela — terminou o hïrzg.
— Então é possível que ela esteja dizendo a verdade, que seja sua filha?
Jan murchou. Agora suas mãos mexiam nervosamente no cabelo.
— Eu creio que sim. Ela tem a idade certa.
— Você chegou a... com Rhi... Rochelle?
Ele balançou a cabeça com raiva, sua mão fez um gesto de negação, movimentando o ar próximo à bochecha de Brie.
— Não! Eu juro, Brie. Ela nunca me deixou... — Jan suspirou alto. — Por um bom motivo, evidentemente.
O hïrzg andou de um lado para o outro nos aposentos que Allesandra tinha cedido a eles no palácio, enquanto abotoava a túnica acolchoada que ficava sob o uniforme da Garde Civile.
— Brie, eu lamento, mas não posso me preocupar com isso. Não agora. Eu não sei por que Sergei não a jogou na Bastida quando teve a oportunidade.
Brie caminhou até o marido e afastou suas mãos para o lado enquanto ele se atrapalhava com os laços da túnica.
— Aqui, deixe-me fazer isso. É isso o que você quer para ela? — perguntou a hïrzgin. — A Bastida? Quer que ela seja julgada pelos crimes que cometeu?
Brie sentiu o peito do marido inflar e desinflar sob suas mãos.
— Sim. E não. Eu não sei o que quero, Brie. Se ela for minha filha com a Pedra Branca...
— Ela não é sua filha. É mais uma bastarda que você gerou. — Ela terminou de dar os laços e se afastou.
— Naquela época, eu teria me casado com Elissa.
Desta vez Jan pronunciou o nome sem hesitação, Brie percebeu que doía ouvi-lo, ouvir o nome de sua própria filha atrelado àquela mulher. As palavras do marido eram dolorosas.
— Eu teria me casado com ela sem hesitação e sem a permissão de meus pais, se eles não a dessem — continuou ele. — A menina não seria uma bastarda. Eu já tinha pedido para a matarh entrar em negociação com a família de Elissa... ou pelo menos a família da qual ela alegava fazer parte. Ah, aposto que a matarh está achando essa situação uma piada maravilhosa.
Brie teve a certeza de que a intenção de Jan era magoá-la com aquelas palavras; ela se forçou a não ter reação alguma.
— Sua matarh fez o que achou que era necessário para proteger a família. Assim como eu, quando necessário.
— Sim, sem dúvida, e foi por isso que a matarh contratou a Pedra Branca para matar Fynn; para proteger a família. — Jan terminou de colocar o restante do uniforme e se sentou em uma cadeira para calçar as botas. — Brie, eu preciso encontrar com ca’Damont e ca’Talin em uma marca da ampulheta. Você precisa tomar cuidado; eu não sei do que essa Rhianna ou Rochelle pode estar atrás. Somente Cénzi sabe de quem a Pedra Branca pode estar atrás. Eu ficaria mais tranquilo se você saísse da cidade de uma vez por todas.
E assim você estaria livre para fazer o que quisesse. Brie teria ficado mais satisfeita se achasse que a preocupação dele era genuína, e não em causa própria. Como a matarh de Jan — suas vontades sempre estavam em primeiro lugar.
— Eu vou ficar, meu marido — ela disse com firmeza. — Você tem o seu dever; eu tenho o meu. Allesandra conduzirá a defesa ao sul; e eu vou ajudá-la.
— Brie... — Ele se levantou para afivelar e ajeitar o cinto da espada.
— Não, estou falando sério, Jan. Eu treinei com meus irmãos, e posso me sair bem contra eles com uma espada. Você sabe disso. Meu vatarh me educou em estratégia militar e até me consultou várias vezes no passado, quando saqueadores de Shenkurska invadiram a nossa fronteira. A própria Allesandra comandou exércitos; eu ouvi seus gritos de frustração por causa de algumas táticas e estratégias que ela usou nos últimos anos. Eu não estou menos a salvo aqui em Nessântico do que estaria viajando pelas estradas, mesmo com uma escolta.
Jan balançou a cabeça.
— Eu conheço essa sua expressão agora. Não adianta discutir com você.
— Então por que ainda está discutindo? — perguntou Brie, sem saber se ele estava irritado ou se era só estresse. — Eu não quero discutir com você, meu amor. Nós precisamos um do outro, eu só quero que você esteja o mais seguro possível. Você tem um destino, Jan: você vai ser o próximo kraljiki. Eu quero ver isso acontecer; pretendo sentar ao seu lado no Trono do Sol.
Ela limpou fios imaginários dos ombros do marido e sorriu para ele: o sorriso ensaiado, o sorriso exigido.
— Agora... vá se encontrar com o starkkapitän e o comandante. Você e eu nos preocuparemos com Rochelle mais tarde, quando os tehuantinos não forem mais uma ameaça.
— E você?
— Eu tenho a minha própria reunião com Allesandra.
— Com Sergei também?
Brie deu de ombros.
— Ele disse que tinha outros compromissos hoje à noite. — Ela ficou na ponta dos pés e beijou a bochecha de Jan. — Vá.
— Você não pode usar o robe verde — Rochelle disse para Nico.
Um sorriso indulgente tocou seus lábios e sumiu um instante depois. Seus lábios pareciam não se lembrar mais de como sorrir de verdade. A alegria parecia ter desaparecido de sua vida, quando antes ela a preenchia.
— Há uma grande diferença entre “não é permitido” e “não poder” — respondeu Nico. — Eu sou um téni, e é meu direito usar o robe. Mais do que um direito; é minha obrigação. Eu sigo Cénzi, não um idiota semimorto que se chama de archigos. Está na hora de eu me afirmar completamente e parar de me esconder como um criminoso.
— Você é um criminoso aos olhos dos Domínios e da fé concénziana. Eles matarão você, se puderem.
— Eles podem tentar. — Nico tentou sorrir novamente, mas o sorriso desvaneceu. — E há uma grande diferença entre “tentar” e “matar” também. Você não precisa ficar tão preocupada, irmãzinha.
Rochelle deu de ombros. Eles estavam no segundo andar de um dos esconderijos dos morellis no Velho Distrito; o proprietário — um vendedor de tecidos — ficou visivelmente aflito ao ver Nico ali, mas dispensou os aprendizes pelo resto do dia, mandou a família visitar primos a duas ruas dali e concordou em avisar o resto da seita dos morellis que o Absoluto desejava se encontrar com eles.
Nico também descobriu que Ancel esteve entre os capturados e executados após a invasão ao Velho Templo — outra alma a seus pés, outra morte pela qual ele devia expiar. Havia tantas, e faziam tanto peso sobre seus ombros que Nico queria cair de joelhos sob elas.
Liana, Ancel, eu lhes prometo — eu encontrarei paz para vocês...
Nico ainda podia ver a filha que teve com Liana aninhada nos braços de Varina. Sentia os dedos de Sera em volta dos seus, agarrando Nico como se soubesse que pertencia a ele. Aquela memória e a memória de Liana e Ancel e de todos aqueles que morreram por ele fizeram lágrimas se acumularem em seus olhos novamente. Nico as secou.
No andar debaixo, entre os tecidos pendurados em cabides à espera de serem arrumados em peças, Nico pôde ouvir o agito e o barulho de conversa através das tábuas do assoalho: vários ténis-guerreiros saíram de mansinho do templo para encontrá-lo; também havia, tinham dito para ele, vários ténis-guerreiros de Brezno presentes, eles tinham chegado à cidade pouco depois do comboio do exército firenzciano. Nico já tinha conversado com alguns deles — o archigos Karrol declarara que todos os ténis-guerreiros seriam enviados para o campo de batalha com o hïrzg Jan no dia seguinte.
— Nós não iremos se o senhor nos mandar, Absoluto. — Foi o que todos lhe disseram. Todos juraram que o seguiriam no lugar do archigos, se Nico pedisse. A lealdade dos ténis-guerreiros o satisfazia e, ao mesmo tempo, aumentava a culpa que ele carregava.
Como vocês podem me seguir depois do que eu fiz, depois dos meus fracassos? Como ainda podem ter fé quando eu luto com isso?
Nico ainda não sabia ao certo o que dizer para eles. Ele deixaria isso com Cénzi, mas suspeitava que já sabia o que diria. As escolhas diminuíram com a chegada dos ocidentais, Nico tinha passado a noite anterior rezando para Cénzi, pedindo por orientação enquanto Rochelle o observava, com uma expressão mais curiosa do que devota. Ela se parecia com Elle, a matarh de Rochelle, e a matarh adotiva de Nico. O que você fez com ela, Elle? Você a corrompeu além da redenção?
Mas Nico não podia se preocupar com Rochelle agora. Ainda não. Seus seguidores, aqueles que sobraram, esperavam por ele, e as palavras de Cénzi ardiam dentro de Nico.
— Vamos — ele disse para Rochelle, estendendo sua mão. — Está na hora.
Nico permitiu que a irmã descesse primeiro, acompanhando-a a seguir escada abaixo. O cheiro adstringente de corantes e fixadores no único cômodo do andar debaixo era forte, o ambiente que também funcionava como loja e mostruário para o vendedor de tecidos.
Havia pelo menos dez punhados de pessoas confinadas no espaço, tão apertados que o ar tinha se aquecido pela presença. Nenhuma saudação abrandou a atmosfera quando ele apareceu; todos pareciam tão sombrios quanto Nico. Ele fez o sinal de Cénzi e se curvou humildemente, os morellis devolveram o gesto. Algumas lâmpadas instaladas nas paredes do vendedor eram a única fonte de luz, mas Nico podia ver vários robes verdes iguais ao que ele estava usando, embora a maioria deles fossem desconhecidos para ele. Nico sentiu seus olhares observarem seu rosto machucado e com hematomas, as manchas roxas cobrindo seus antebraços, a forma como ele mancava ao descer a escada. E também notou os olhares curiosos para Rochelle.
— Que Cénzi abençoe a todos vocês — disse Nico, espalmando as mãos.
Ele sentiu o carinho de seus seguidores, e devolveu o sentimento; o cômodo estava tomado por um brilho pálido que não emanava de lugar nenhum e de todos os lugares.
— Eu não mereço que vocês tenham vindo, e menos ainda que ainda escutem o que tenho a dizer.
— O senhor ainda é a Voz de Cénzi, Absoluto — alguém disse no meio dos morellis. — Nós seguimos o senhor. Vimos Cénzi operar o milagre na praça. Vimos o senhor desaparecer sem lançar um feitiço; vimos as correntes vazias.
Os outros concordaram em meio a murmúrios, e o som fez Nico querer abraçar a todos, para tentar extinguir a tristeza e a perda no calor de sua aprovação e apoio.
Ele entrelaçou as mãos em frente ao corpo como se fosse rezar.
— Sim, Cénzi veio a mim quando eu estava diante da kraljica, e Ele me soltou dos grilhões que a vida colocou em mim. Mas... — Nico parou e balançou a cabeça. — Cénzi também me mostrou que eu deixei meu próprio orgulho me afastar de Seu caminho, e Ele me puniu por isso. Ele tomou para Si muitos daqueles que eu amava, enviou muitos outros para a dor e o sofrimento, e me encheu de tristeza e arrependimento. A dor dos morellis foi causada por sua dedicação a mim. Eu entendo agora que devo me tornar o instrumento de Cénzi, que devo me entregar completamente a Ele e devo aceitar o que Ele quiser que eu suporte. Eu entendo que não sou nada.
Nico ergueu a cabeça e abaixou as mãos, seu olhar varreu os seguidores, encarando cada um deles no cômodo.
— Vocês também devem entender isso. Esta também é a sua tarefa, como sempre foi a tarefa dos ténis: realizar a vontade de Cénzi e nada mais.
— O que Cénzi quer que façamos? — alguém perguntou. — Diga-nos, Absoluto.
Nico hesitou, embora se sentisse tomado pelas palavras. Eu estou certo desta vez, Cénzi? Estou ouvindo o Senhor, e não a mim mesmo? É isso, verdadeiramente, o que o Senhor quer que eu diga a eles? As palavras martelavam em sua mente, e Nico só poderia se livrar delas ao dizê-las.
— Nossa Fé está sendo ameaçada — falou ele. — Os ocidentais estão prestes a dominar Nessântico e os Domínios e, se isso acontecer, os fiéis sofrerão imensamente. Eu rezei, me abri para Cénzi e O escutei, e isso é o que Ele me diz.
Nico fez uma pausa e respirou várias vezes, olhando para cada um deles.
— Agora é a hora de deixarmos de lado nossas lutas com os falsos líderes da fé concénziana; não para sempre, mas por um curto período de tempo. Nós precisamos primeiro expulsar os pagãos e hereges que nos ameaçam antes que possamos olhar para a heresia dos Domínios e da Coalizão.
Ele fez outra pausa, acenando com a cabeça para eles.
— Eu disse isso naquele dia na praça e repito aqui: por enquanto, vocês devem obedecer ao archigos. Ténis-guerreiros, vão à guerra. Ténis, cumpram qualquer tarefa que recebam. O restante, façam o que for preciso. Obedeçam às autoridades que estão acima de vocês. Por enquanto.
Nico esperou. O brilho no aposento aumentou.
— Façam isso, por enquanto. E depois... depois, nós voltaremos a olhar para dentro. Voltaremos a nossa atenção para a reforma da fé concénziana. Tomaremos a glória que merecemos e moldaremos a Fé, como Cénzi deseja, como o Toustour e a Divolonté exigem, e não daremos ouvidos às ordens de ninguém, ninguém, que não esteja conosco. Isso é tudo o que tenho a dizer esta noite.
O brilho no cômodo esmaeceu, e a luz das lâmpadas agora parecia descarnada. Os seguidores se remexeram, hesitaram, se entreolharam fixamente. Então alguém abriu a porta; um a um, eles fizeram o sinal de Cénzi e saíram do cômodo arrastando os pés. Nico devolveu o sinal para cada um dos seguidores e murmurou uma bênção a cada um. Assim todos saíram, ele sentiu a mão de Rochelle pousar em seu ombro.
— Eles não ficaram satisfeitos — comentou ela. — Você não disse a eles o que eles queriam ouvir. Ficaram desapontados.
— Eu sei — respondeu Nico. — Mas era tudo o que eu tinha a dizer.
Rochelle assentiu.
— Você está cansado.
— Exausto — admitiu Nico; ele olhou para as escadas que levavam para o segundo andar. — Mas ainda há mais uma reunião antes que eu possa dormir.
— O que você quer dizer? — perguntou Rochelle.
Nico não disse nada, apenas gesticulou para que ela o seguisse. Ele subiu penosamente, sentindo seus pés pesados pisando os degraus. A luz de uma lâmpada vinha do quarto dos fundos, onde antes não havia luz. Nico ouviu a lâmina da faca de Rochelle sair da bainha e balançou a cabeça para ela.
— Você não vai precisar disso. Não ainda.
Ele andou tranquilamente pelo corredor até o quarto e empurrou a porta para abri-la.
— Você ouviu o que queria ouvir? — perguntou Nico para a pessoa no quarto.
— Você ouviu o que queria ouvir? — disse Nico, e Sergei deu de ombros.
— No geral, sim — respondeu o embaixador. — Você simplesmente salvou a si mesmo e aos ténis-guerreiros.
— Minha segurança não está em suas mãos, Nariz de Prata — disse Nico, mas a bravata soou cansada e sem ânimo.
— Ah, mas na verdade está, sim — disse Sergei.
Ele vislumbrou um movimento atrás de Nico e viu um rosto.
— Rochelle. Por favor, por que vocês dois não entram e se sentam? Não há motivo para não termos uma conversa civilizada, só nós três.
Nico deu de ombros e entrou, se sentando na beirada da cama no quarto. Sergei percebeu que o rapaz lançou um olhar furtivo para a porta do outro lado, nos fundos da casa. Sergei a tinha deixado aberta, mostrando a escada que descia até um beco atrás da casa do vendedor de tecidos. Rochelle entrou e imediatamente encostou as costas na parede lateral da porta do corredor, ficando de pé e encarando Sergei, com olhos concentrados e perigosos. O embaixador ergueu as mãos dos braços da cadeira, a direita segurava a bengala. Nico pensou ter podido sentir o feitiço de Varina escondido dentro da madeira.
— Pronto, viu só. Eu não sou ameaça para nenhum de vocês, no momento.
A boca de Nico se contorceu, dando um leve indício de um sorriso.
— E nenhum de nós acredita nisso.
— Eu não esperava que acreditassem — respondeu Sergei.
Mentalmente, o embaixador repetiu o gatilho do feitiço que Varina colocara na bengala para que ele estivesse na ponta da língua, se precisasse usá-lo. Ele se perguntou se seria eficiente contra Nico — Sergei suspeitou que não seria tanto quanto ele esperava.
— Você tem uma rede de informações melhor do que eu pensava, Sergei.
— Eu tive sorte. Alguns de seus ténis morellis tinham as consciências pesadas. Depois da disputa no Velho Templo, eles não confiam mais tanto assim em você, Nico. Eles vieram me contar onde você estaria.
— Não posso dizer que os culpo. — Nico se recostou na cama. — Eu mesmo não confio em mim. O que você teria feito se eu não tivesse mandado os ténis-guerreiros obedecerem ao archigos?
— Há gardai, ténis leais e feiticeiros numetodos suficientes nas ruas para prender o dobro de pessoas que você conseguiu reunir aqui, mesmo com os ténis-guerreiros. — Sergei fechou os olhos e imaginou a cena. — Deixe-me dizer o que teria acontecido. Eles estão esperando pelo meu sinal. Eu teria levado todos vocês imediatamente para o pátio do lado de fora do Palácio da Kraljica, conduzindo o grupo pela Avi A’Parete como uma vara de porcos ao matadouro, para que todos vissem vocês. Quando vocês chegassem ao palácio, haveria uma enorme multidão de cidadãos lá para assistir ao espetáculo, e eu colocaria você e sua gente na frente. Eu arrastaria você, Nico, com torniquetes apertados nos antebraços. Eu diria aos cidadãos que você e os ténis-guerreiros que lhe seguem preferem ver Nessântico queimar e todos eles mortos a cumprir seus juramentos a Cénzi, à fé concénziana e ao povo. Eu teria entregado o machado do carrasco para um voluntário entre os cidadãos... e haveria muitos voluntários, Nico. Eu mandaria essa pessoa arrancar as mãos dos seus braços. Seus gritos ecoariam pelas muralhas do palácio, tão alto que você acharia que Nessântico inteira poderia ouvi-los. Então eu faria com que outro cidadão puxasse a língua da sua boca e a cortasse com uma tesoura incandescente, para que a ferida fosse imediatamente cauterizada. Eu não quereria que você morresse. Não ainda. Eu diria para todos eles — os cidadãos e ténis-guerreiros assistindo — que esse era o castigo da fé concénziana, e que então eu mostraria o castigo do Trono do Sol. Eu amarraria você a um poste e mandaria um garda da Bastida abrir seu estômago e puxar um pedaço dos seus intestinos. Eu amarraria esse pedaço a um molinete e faria o garda extrair suas entranhas aos poucos, com o molinete rangendo e girando. Se você ainda estivesse vivo depois disso, então eu mandaria que você fosse esfolado, sua pele seria arrancada de seu corpo vivo. Quando você finalmente morresse, com sofrimento e tormento, seu corpo seria colocado em uma jaula e exposto, com as mãos e a língua pregados ao crânio.
Nenhum dos dois falou durante a longa história. Sergei abriu os olhos. Nico ainda estava na cama, olhando para o embaixador, mas sua expressão continha uma máscara inescrutável. Rochelle parecia horrorizada. Sua boca estava ligeiramente aberta, e ela evitava olhar diretamente para Sergei.
— Você se deleita com essa fantasia — disse Rochelle, com raiva.
— Sim, me deleito — admitiu Sergei.
O embaixador lançou um olhar breve para Rochelle antes de voltar a atenção para Nico. Ele coçou a base do nariz de metal com o indicador e continuou.
— Eu diria para os ténis-guerreiros que eles teriam duas escolhas. Uma seria renunciar você, obedecer ao archigos e servir a Nessântico, e eles talvez vivessem. A outra seria sofrer seu destino imediatamente. Eu daria essa escolha a cada um. Quantos você acha que teriam seguido você no martírio, Nico?
— Eu não sei. Nem acho que sirva para alguma coisa especular a respeito disso, já que isso não aconteceu. Eu mandei que os ténis-guerreiros obedecessem ao archigos e você os deixou partir. O que importa é o que acontece a partir de agora. — Nico mudou de posição e se sentou de costas eretas na beirada da cama. — Então, o que acontece agora, de fato, Sergei? Você vai tentar me prender de novo?
— Eu posso tentar — respondeu o embaixador, levantando a mão quando Nico começou a contestar. — Apesar da minha fantasia — ele parou e sorriu para Rochelle —, depois de seu espetáculo na praça, eu realmente duvido que eu conseguisse fazê-lo
— Eu não faço ideia de como aquilo aconteceu — disse Nico. — Aquilo foi Cénzi, não eu.
— Então talvez Cénzi, se realmente for Ele, torne ao mesmo tempo difícil e custoso prender você, e é perfeitamente possível que eu não sobreviva à tentativa. Mas há gardai e utilinos suficientes aguardando a minha ordem, estou certo de que, com o tempo, nós teríamos sucesso, mesmo com Cénzi.
— Isto é blasfêmia — disparou Nico.
— Talvez fosse, se eu realmente achasse que Cénzi seria o responsável. Mas...
— Por que você está aqui então, se não é para me prender?
— Estou aqui porque Varina é minha amiga, e ela me pediu para vir. Pessoalmente, eu considero que Varina é indulgente demais com você, mas ela acha que você merece ser salvo, que você pode na verdade se redimir, e também acha que nós precisamos de você. Eu mesmo não tenho tanta certeza. — Sergei bateu com a bengala no tapete sob a cadeira. — O que você quer, Nico?
— Isso é fácil — respondeu o jovem. — Eu quero continuar a servir Cénzi.
— E, por enquanto, o que Cénzi exige de você, na sua cabeça? Seria ajudar a defender Nessântico, como você mandou que os ténis-guerreiros fizessem?
Nico tinha entendido; Sergei pôde ver.
— Se esse fosse o caso, se por acaso eu acreditasse nisso, o que eu ganharia com isso?
— Você ainda precisa responder por muita coisa, Nico — disse o embaixador. — A morte da a’téni ca’Paim, a morte de todos os que tentaram defender o Velho Templo, a destruição, os ferimentos. Varina pode estar disposta a deixar tudo isso passar, mas não a kraljica. Não completamente. Mas... talvez possa se argumentar que a morte de ca’Paim foi acidental e não premeditada, que os gardai que morreram estavam cumprindo seu dever, e que, se os morellis e seu Absoluto servirem bem aos Domínios e jurarem trabalhar com os Domínios no futuro, então talvez grande parte do que aconteceu possa ser perdoado. Não esquecido, jamais esquecido, é claro, mas saberíamos que tudo isso foi imensamente lastimável.
— Você faz uma promessa que não tem autoridade para cumprir, Sergei, nem Varina.
— Mas eu tenho a autoridade para oferecê-la em nome de quem tem — respondeu o embaixador. — A escolha é sua, considerar ou não a promessa.
Nico fez hum baixo na garganta.
— O archigos concorda com isso?
— O archigos não tem nada a ver com isso. É uma questão puramente secular. Você e a fé concénziana terão que chegar a seu próprio acordo, mas se você servir ao Estado, ele vai cuidar para que a Fé não faça nada que, bem, comprometa as suas habilidades. — Sergei bateu a bengala novamente, com mais força desta vez. — Nessântico precisa da sua ajuda, Nico. Eu vi o que você é capaz de fazer. Você seria o mais formidável téni-guerreiro que nós teríamos.
Sergei esfregou o nariz novamente e completou.
— Se isso for o que Cénzi deseja.
— Não faça piada disso, Sergei.
— Eu lhe garanto que estou sendo completamente sério.
— Eu preciso rezar primeiro. Não posso lhe dar uma resposta agora.
O embaixador suspirou.
— E eu não posso esperar, Nico. Lamento.
Sergei gemeu ao se levantar e caminhou até a porta dos fundos. Ele ergueu a bengala; lá fora no beco, figuras se mexeram, e ele ouviu passos correndo no primeiro andar, se deslocando pela casa. Sergei se voltou para o quarto.
— Eu realmente lamen...
Ele ia dizer, mas foi atingido pelo frio do Ilmodo e viu a escuridão no meio do quarto, quando ela se dissipou, nem Nico, nem Rochelle estavam mais lá. Um garda meteu o rosto pela porta.
— Embaixador?
— Parece que o Absoluto mentiu para mim — ele disse para o homem.
Varina embalava Sera em seus braços, de um lado para o outro, em frente à janela. Lá fora, na rua após o pátio na frente da casa, uma fila aparentemente infindável de tropas em uniformes preto e prateado marchava para o oeste. Suas botas soavam uma cadência fúnebre e solene pela Avi a’Parete, como se a cidade em si fosse um tambor. Eles estavam marchando já há uma virada da ampulheta, desde a Primeira Chamada, e o barulho das cornetas que anunciavam a chegada das tropas tinha acordado Serafina. Varina aninhara a criança para sossegar sua agitação. Ela beijou a testa do bebê e sentiu a maciez sedosa do cabelo de Sera em seus lábios.
— Não fique assustada, Sera — sussurrou Varina contra o trovão baixo das botas nos paralelepípedos. — Eles estão aqui para nos proteger, querida. Estão aqui para manter você a salvo.
Ela ouviu uma batida suave na porta do quarto, seguida do rangido de dobradiças.
— A’morce, desculpe o atraso. As ruas estão uma confusão, como a senhora pode imaginar. Eu tive que vir pelos fundos... — A ama de leite, Michelle, entrou no quarto, a passos largos e soltando os laços da blusa. — A pobrezinha deve estar faminta. Aqui, deixe-me pegá-la um pouco...
Varina entregou Sera para Michelle e viu o bebê se agitar por um instante antes de a boca procurar e encontrar o mamilo e começar a sugar.
— Isso mesmo, não estamos famintas? — disse Michelle, sorrindo para Sera antes de olhar para Varina. — Parece tão...
A ama de leite se deteve, e Varina viu os olhos de Michelle ficarem úmidos.
— Desculpe — falou a jovem. — Às vezes, quando eu seguro Sera, eu penso no meu próprio...
Ela parou novamente e engoliu em seco.
— Eu não consigo imaginar a dor que você sentiu ao perder seu bebê — disse Varina. — Lamento muito, Michelle.
A ama de leite assentiu.
— A cidade inteira está em alvoroço — disse a jovem.
A mudança de assunto foi abrupta e, Varina sabia, completamente deliberada. Michelle ergueu o ombro e abaixou a cabeça para secar as lágrimas. Sera se remexeu e se ajeitou novamente em seus braços.
— Dizem que já é possível ver os ocidentais do topo da torre da Bastida. Não sei se é verdade, mas... — Michelle sentiu um arrepio, e Sera parou de mamar por um instante, seus grandes olhos azuis se abriram e se fecharam novamente, e ela voltou a se apegar ao seio. — A’morce, meu marido quer que eu vá para a casa do meu irmão em Ile Verte. Eu pensei, bem, pensei que, se a senhora quisesse... eu poderia...
Varina suspirou e acariciou a cabeça de Sera. Os olhos da criança se abriram novamente, encontrando o olhar de Varina. Sera sorriu por um momento em volta do mamilo, e uma bolha branca escapou de seus lábios antes de voltarem a mamar.
— Acho que seria uma excelente ideia, Michelle. Se você não se importar.
— De maneira alguma. Seria um prazer cuidar dela. A’morce, a senhora deveria vir também. Meu irmão tem uma casa grande lá, e tenho certeza...
Varina negou com a cabeça. Ela lançou um olhar para o exército marchando novamente: era o comboio de suprimentos da retaguarda agora — carroças e cavalos.
— Meu lugar é aqui — respondeu Varina. — Quando você pretende ir?
— Hoje à noite, depois da Terceira Chamada.
— Então por que você não vem pegar Sera na Segunda Chamada? Eu aprontarei as coisas dela para você então.
Michelle assentiu.
— Ela é linda. Foi uma pena o que aconteceu ao vatarh e à sua pobre matarh. Sera tem sorte de ter a senhora, a’morce.
Varina tentou sorrir e descobriu que não conseguia. Ela acariciou a cabeça do bebê novamente.
— Michelle, se alguma coisa acontecer comigo...
— Nada vai acontecer — respondeu a ama de leite rapidamente, sem deixar que ela terminasse.
Varina balançou a cabeça.
— Nós não sabemos disso. Caso alguma coisa aconteça, alguma coisa que signifique que eu não possa cuidar de Sera, você ficaria com ela? Belle fala tão bem de você, e talvez possa amenizar a sua perda, ao menos um pouco.
Michelle estava chorando agora, com a cabeça abaixada ao ver Serafina em seu seio.
— A’morce...
— Só diga sim. — Varina acariciou Sera mais uma vez. — Só isso.
Michelle assentiu de novo, e Varina abraçou as duas de leve.
— Ótimo — disse ela. — Isso me deixa mais tranquila.
Jan viu os offiziers posicionarem suas tropas. Ele, o starkkapitän ca’Damont e o comandante ca’Talin se posicionaram na sacada do segundo andar de uma casa de fazenda, situada em uma pequena elevação a algumas centenas de passos do rio Infante. No telhado da casa, Jan postou pajens com bandeirolas com mensagens, assim como corneteiros com trompas e zinks. Um buraco tinha sido aberto no teto do aposento atrás deles, com uma escada que levava até o telhado para que os pajens pudessem subir do posto de comando até o telhado e ordens pudessem ser dadas lá para cima. Desse ponto de observação, eles podiam ver as companhias sendo dispostas deste lado do rio, assim como os sapadores que colocavam obstáculos ao longo da margem para tentar impedir a travessia dos ocidentais.
Do outro lado do rio, mais perto de Nessântico, trabalhadores cavavam uma linha dupla de barricadas, para onde o exército — caso precisasse recuar — poderia retroceder e resistir à vontade.
Jan torcia para que as trincheiras não precisassem ser usadas, mas suspeitava que seriam.
As tropas ocidentais estavam visíveis no verzehen — um tubo com lentes, criado pelos numetodos, que permitia que a pessoa enxergasse a uma grande distância. Através da imagem circular distorcida e um pouco borrada captada pelo verzehen, Jan observou os offiziers dos tehuantinos, os guerreiros supremos, darem suas ordens. Viu o estandarte de cobra em um campo esmeralda. As tropas marchavam por campos, que antes tinham sido fazendas e bosques. As próprias árvores das florestas que cercavam os campos pareciam balançar com o passar do vasto número de ocidentais. Eles já se aproximavam da vila de Certendi.
Eram inimigos demais. Demais. Como uma colônia de formigas escarlate de Daritria, parecia que eles poderiam cruzar o Infante sobre os corpos dos mortos empilhados na água. Jan passou o verzehen para ca’Talin.
— Eles estão aqui. Chegarão à distância de uma flechada de nossas fileiras à noite. Se eu fosse o general dos tehuantinos, eu pararia ali para reunir as tropas e atacar na nova luz, mas... — O hïrzg deu de ombros. — Eles já fizeram o contrário antes. Nós talvez lutemos no escuro. Os ténis-guerreiros estão aqui?
— A maioria deles chegou ontem à noite, hïrzg — informou ca’Damont. — Praticamente todos do grupo dos Domínios, e a maioria dos nossos. Eles disseram que Nico Morel mandou que viessem.
— Então Sergei cumpriu sua palavra — respondeu Jan. — Excelente. Cénzi sabe que precisaremos de todos eles.
Ele gesticulou para um dos pajens; o menino veio correndo.
— Mande as trompas chamarem os a’offiziers de volta.
O pajem prestou continência e subiu a escada correndo; alguns instantes depois, eles ouviram o chamado nítido e estridente das cornetas.
— Estamos prontos então — falou o hïrzg. — Falaremos com os offiziers e, em seguida, vocês deverão se juntar a seus comandos e se aprontar. Veremos se estamos com as peças posicionadas onde precisam estar. Rezemos para Cénzi que este seja o caso.
Ele olhou através do verzehen mais uma vez e viu as figuras borradas dos guerreiros se aproximando. Jan duvidou que quem estivesse no comando dos tehuantinos sentisse a mesma dúvida que ele.
— Vamos detê-los ali — disse o hïrzg — precisamos fazê-lo.
A grande alameda em forma de anel da Avi a’Parete antigamente definia os limites da cidade de Nessântico, com uma muralha fortificada que percorria toda a sua extensão, exceto pela Ilha a’Kralji, adequadamente protegida pelas águas do A’Sele. Nessântico inteira cabia dentro dessa muralha — e essa muralha tinha sido imprescindível durante as guerras infindáveis entre os feudos de Nessântico e os feudos vizinhos.
Agora, a maior parte dessa muralha antiga tinha sumido, as grandes pedras tinham sido enterradas ou reutilizadas nos prédios da cidade, apenas algumas pequenas seções da construção ainda estavam de pé. Nessântico crescera para muito além dos limites da Avi a’Parete, embora bem mais em outras direções que ao sul. Próximo ao lado de fora das ruínas do velho Sutegate da cidade, ainda havia campos abertos e fazendas, e era ali que Allesandra observava o novo corpo de chispeiros treinar. Eles estavam vestindo roupas cotidianas, a maioria parecia ter sido tirada das ruas do Velho Distrito — o que era o caso, na verdade. Talbot se afastou do grupo assim que a kraljica se aproximou. Ele ajudou Allesandra a descer da carruagem, ainda vestido com o uniforme do palácio. Ela olhou para os homens no campo.
— Perdoe a aparência deles, kraljica — disse Talbot ao se dar conta do aspecto dos homens. — Eu só tive dois dias para trabalhar com eles.
— Onde está Varina? Eu pensei que estes instrumentos fossem ideia dela — perguntou Allesandra.
— Ela está resolvendo as coisas com a criança. Depois ela vai para a linha de frente ao norte com o hïrzg, juntamente com a maior parte dos numetodos. Eu pensei que a senhora soubesse. O hïrzg pediu o máximo de feiticeiros disponíveis.
Allesandra assentiu — Varina tinha lhe contado isso ou ela tinha esquecido? Alguém no grupo de chispeiros berrou a ordem para “disparar”. O estampido das chispeiras espocou, e uma fumaça branca eclodiu na ponta dos tubos de metal. Do outro lado do campo, alvos de papel presos em fardos de palha se agitaram ao serem atingidos pelas balas de chumbo.
Os cavalos levaram um susto nos tirantes da carruagem e arregalaram os olhos. O condutor puxou as rédeas e gritou seus nomes.
Allesandra notou que ela mesma deu involuntariamente um passo para trás diante da violência do som e quase caiu para trás, dentro da carruagem.
— A senhora deveria enfiar um pouco de papel nas orelhas, kraljica — sugeriu Talbot. — Esses instrumentos fazem uma algazarra infernal.
— A menos que o nosso inimigo esteja imóvel, parece que um tiro é tudo o que nosso corpo de chispeiros terá antes de os guerreiros estarem em cima deles — comentou Allesandra; todos os chispeiros estavam recarregando suas armas, e o processo parecia tomar um tempo excessivo. — Os tehuantinos estão acostumados com o barulho da areia negra; eles não vão se assustar com isso.
Talbot sorriu.
— Essa foi a minha preocupação, kraljica. Nós fizemos algumas pequenas modificações no projeto original de Varina. A carga de areia negra e balas é pré-fabricada, então não são necessárias medidas no campo. Nós também pensamos que, se estendêssemos um pouco o cano, poderíamos aumentar a distância e a precisão do tiro. E parece que isso deu resultado, embora isso tenha tornado a arma mais pesada e volumosa.
Lá fora no campo, alguns homens trocavam os alvos por novos. Os chispeiros ainda estavam recarregando suas armas.
— Preciso ou não, ainda é um só tiro. Se tudo o que eu tivesse fosse um único golpe de espada enquanto o inimigo podia atacar livremente, então a batalha acabaria rapidamente. Não faria diferença se eu tivesse a arma mais afiada.
— De fato — concordou Talbot. — Por isso eu pensei um pouco sobre a tática. Deixe-me demonstrar... Cartier, forme um esquadrão com fileiras de quatro.
Um dos homens fez uma leve mesura para eles e berrou mais ordens. Doze homens formaram três fileiras espaçadas com quatro homens, organizadas por Cartier. Talbot deu um passo na direção delas.
— Primeira fileira, ajoelhar! — gritou ele. — Primeira fileira, atirar!
Quatro chispeiras foram disparadas, e os estampidos ecoaram no campo. Os homens da primeira fileira se levantaram, cada um deu um passo para a esquerda e voltou para a retaguarda. Eles começaram a recarregar as armas.
— Segunda fileira, ajoelhar! — berrou Talbot. — Segunda fileira, atirar!
Novamente, soaram os estampidos e a fumaça branca foi levada pelo vento. Os homens se levantaram e foram para trás da primeira fileira.
— Terceira fileira, ajoelhar! — gritou ele. — Terceira fileira, atirar!
Outra série de trovões, e a terceira fileira recuou. A primeira fileira já tinha recarregado suas armas a esta altura.
— Primeira fileira, ajoelhar! Primeira fileira, atirar!
Outra saraivada, e Talbot sorriu para Allesandra.
— Alto! — berrou ele para os chispeiros, e se virou para Allesandra. — Kraljica?
Os flancos dos cavalos tremiam e puxavam as rédeas ansiosamente, e o condutor fazia um grande esforço para evitar que os animais saíssem correndo. Os ouvidos de Allesandra zumbiam com o barulho das armas.
— Isso foi impressionante, Talbot — disse a kraljica, e o sorriso dele aumentou.
— Um esquadrão com três fileiras pode disparar três saraivadas em alguns segundos e continuar atirando até acabarem as cargas de areia negra, apesar de, após vários tiros, as chispeiras ficarem quentes demais para dispararem com segurança.
— Mas uma coisa é ficar ali com nada além de fardos de palha para encarar, outra é ver o inimigo avançando com a intenção de matá-lo — continuou Allesandra. — Esses homens não são soldados, Talbot. Não são chevarittai. Sequer são numetodos. Eles parecem padeiros e doceiros, açougueiros e boticários.
— Sim, a maioria deles é composta por civis — admitiu Talbot. — Eu não sei como eles reagirão quando o momento chegar. Mas a eficácia... As armas de areia negra que usamos antes exigiam grandes quantidades de material, e não eram precisas: a explosão poderia matar várias pessoas ou ninguém, ou poderia matar os próprios aliados se a pessoa não tomasse cuidado. Os feitiços têm um alto custo em tempo e exaustão, e exigem anos de treinamento antes que se consiga usá-los bem. Usar uma espada ou lança eficazmente também exige semanas ou meses de treinamento. Estas...
Ele gesticulou para o campo e concluiu.
— As chispeiras de varina usam pouquíssima areia negra, são precisas como um feitiço e exigem apenas uma virada ou duas de treinamento para serem usadas. Elas mudam toda a equação.
— É disso que tenho medo — interrompeu Allesandra. — O poder que você deu à ralé destreinada...
— Infelizmente, a ralé é praticamente tudo que temos entre nós e os tehuantinos no momento, kraljica, a não ser que a senhora ache que a Garde Brezno pode fazer o impossível.
A kraljica franziu a testa e respondeu.
— Eu sei. Mesmo assim, alguma coisa nessa equação... — Ela deu um tapinha no ombro de Talbot. — Desculpe, Talbot. Eu só estou preocupada com o que isso pode significar no futuro: para os Domínios, para a fé concénziana, para a nossa sociedade.
Allesandra franziu os lábios e interrompeu o pensamento.
— Você fez um belo trabalho — disse ela. — Tudo que pedimos e mais. Só espero que isso funcione quando o momento chegar... e terá que funcionar.
A kraljica se empertigou e subiu no degrau da carruagem.
— Continue com o trabalho. Enquanto isso, eu preciso falar com Sergei e verificar a Garde Brezno.
Talbot fez uma mesura; ela entrou completamente na carruagem e gesticulou para o condutor. Ele estalou as rédeas no lombo dos cavalos, e com um ruído das rodas, a carruagem partiu aos solavancos.
Seus pés doíam e suas costas latejavam a cada passo. Os tehuantinos tinham passado por três vilarejos até o momento, enquanto marchavam, desertos — Tototl permitiu que os guerreiros procurassem comida e suprimentos, depois ordenou que as casas fossem queimadas. A fumaça ainda manchava o céu atrás deles.
Niente não queria nada além de se deitar e deixar que os guerreiros e nahualli o abandonassem na terra. Ficou agradecido quando Tototl mandou interromper a marcha acelerada. Ele desmoronou na grama ao lado da estrada e aceitou o pão, o queijo e a água que tinham sido oferecidos por um nahualli, sorvendo o frescor agradável. Niente viu uma sombra crescer e se aproximar dele. Tototl o observava.
— Eu vou lhe arranjar um cavalo, uchben nahual.
— Eu ficarei bem em um instante, guerreiro supremo.
— Eu vou lhe arranjar um cavalo — Tototl repetiu. — Eu preciso que o uchben nahual esteja pronto quando começarmos o ataque hoje à noite.
Niente raramente falava com Tototl, uma vez que os guerreiros supremos, com a exceção do tecuhtli com o nahual, raramente interagiam com os nahualli. Ele percebeu que estava olhando para o rosto pintado do homem se perguntando no que o guerreiro estaria pensando.
— Estamos assim tão próximos então?
— Veremos o topo das casas quando cruzarmos a próxima elevação. Os batedores me disseram que há tropas se aprontando para nos enfrentar. A batalha começará muito em breve agora.
Por alguns instantes, Tototl ficou em silêncio, e Niente ficou satisfeito em poder se sentar na margem de grama da estrada. A brisa tinha o cheiro da fragrância desta terra. Então Tototl se mexeu.
— O que você viu quando olhou na tigela premonitória, uchben nahual? Eu o observei, observei seu rosto, e não acredito que tenha dito tudo para o tecuhtli Citlali.
— Eu disse a verdade — insistiu Niente. — O nahual Atl viu a mesma coisa.
A boca de Tototl se contorceu sob a pintura da tatuagem que adornava seu rosto.
— Seu filho não é você, uchben nahual. Ele pode vir a ser um dia, mas ainda não é. Você está omitindo alguma coisa, alguma coisa que lhe assustou. Eu vi no seu rosto, Niente. Quero saber: você nos viu derrotados?
Niente balançou a cabeça. Eu vi a nossa vitória aqui e seu preço terrível. Vi que isso poderia ser evitado e que esse futuro era confuso e emaranhado demais para ser previsto.
— Não — respondeu ele.
— Eu não tenho medo de morrer. — Tototl estava olhando ao norte na estrada, como se já pudesse ver a cidade. — Morrer em batalha é um fim que todo guerreiro supremo busca. Não é o medo de morrer; estou com medo do preço que isso cobrará dos tehuantinos.
Tototl olhou novamente para Niente, e uma esperança brotou dentro dele, uma esperança de que o guerreiro pudesse entender o que Citlali não entendia.
— É disso que você também tem medo, uchben nahual?
A garganta de Niente pareceu se fechar com o olhar fixo de Tototl. Ele concordou em silêncio.
— Então você viu alguma coisa.
Dessa vez Tototl falou com convicção. Niente balançou a cabeça.
— Eu não sei — respondeu ele. — Eu vi muitos caminhos, guerreiro supremo. Vários, e todos eles incertos. Mas...
Niente respirou profunda e lentamente. Será que você pode confiar neste homem? Será que isso é uma armadilha preparada por ele, talvez até mesmo por Citlali e Atl?
— Deixe-me perguntar uma coisa: se você matasse um guerreiro em um desafio, poderia alegar que conquistou uma vitória. Mas se, ao matar esse guerreiro, você, por sua vez, enfurecesse tanto o filho dele que, quando este se tornasse um guerreiro e trouxesse um exército destruindo tudo o que você construiu, destruindo completamente tudo o que você ama, sem possibilidade de recuperação? Essa vitória inicial valeria a pena?
— Isso dependeria — respondeu Tototl —, se você pudesse dizer, sem dúvida, que o filho faria tudo isso.
Niente balançou a cabeça.
— O futuro nunca está completamente garantido. Mesmo o que acontecerá daqui a um instante pode ser mudado se Axat quiser. Mas, se eu dissesse que este era o resultado provável? Você conteria o golpe da espada?
— Se esse golpe da espada me custasse a própria vida talvez não — disse Tototl. — Nenhum guerreiro quer oferecer sua vida de graça para o inimigo. Eu acho que a mesma coisa valeria para um nahualli.
— Eu diria o mesmo no seu lugar — falou Niente.
Tototl inclinou a cabeça ligeiramente. Ele resmungou alguma coisa que pareceu ter sido um assentimento.
— Já que você diz que o futuro é sempre incerto, você apoiaria um guerreiro supremo plenamente, uchben nahual, mesmo que pensasse que esse seria o caminho errado?
— Esse é o dever de um nahualli — respondeu Niente.
Um rápido sorriso se formou no rosto de Tototl, e Niente percebeu que o guerreiro entendeu que ele não tinha respondido completamente à pergunta.
— Eu vou lhe arranjar um cavalo, uchben nahual — disse Tototl.
— Ela estava com ele? Você tem certeza de que era ela?
Sergei concordou com a cabeça.
— Era Rochelle, hïrzgin. Então ao menos essa parte da história que ela me contou parece ser verdade. Rochelle foi criada como irmã de Nico pela Pedra Branca. Se ela sabe ou não se ele é de fato seu irmão...? — Sergei ergueu um ombro cansado. — Eu não tenho certeza de que Rochelle entende isso.
Ele e Brie estavam montados em seus cavalo, olhando para os campos em volta da Avi a’Sutegate onde a Garde Kralji estava acampada. Sergei sabia que havia poucos homens — dados os relatórios que os batedores tinham informado sobre o tamanho das forças ocidentais que avançavam na direção deles. Embora os offiziers tivessem ensaiado manobras com os gardai, suas tropas pareciam morosas e confusas. Elas não tinham sido treinadas para isso: combate aberto em grande escalada contra outra força organizada e treinada. Isso tinha sido demonstrado na disputa do Velho Templo, quando até mesmo os igualmente destreinados morellis foram capazes de contê-los por um tempo considerável. A Garde Kralji era uma guarda pessoal e unidade policial, não um batalhão do exército.
A batalha não será vencida aqui, Sergei pensou consigo mesmo. Será vencida do outro lado do rio A’Sele, com o hïrzg e a Garde Civile. Só temos que nos defender aqui, detê-los por tempo suficiente para que a Garde Civile retorne e nos salve.
O embaixador estava bastante certo de que eles precisariam desse resgate e não tinha muitas esperanças de que o socorro viria.
— Eles parecem muito atrapalhados e lentos, e eu não estou nada impressionada com os offiziers — disse Brie ao lado de Sergei, como se tivesse ouvido os pensamentos do embaixador.
Ela estava vestida com uma armadura completa sobre uma tashta acolchoada e carregava uma espada na lateral, embora o elmo ainda estivesse amarrado à sela. Seu cabelo estava preso em uma trança que lhe caía pelas costas. A hïrzgin parecia estar completamente à vontade no traje marcial — assim como, pensou Sergei, Allesandra parecia quando comandava as tropas em campanha. Era uma pena, pensou o embaixador, que ambas não tivessem se conhecido há tanto tempo. O filho de Allesandra se casara com alguém muito parecida com sua matarh, consciente ou inconscientemente.
— Eu queria ter trazido a Garde Brezno também. A Garde Kralji vai precisar de uma liderança forte em campo ou vão debandar assim que o combate se torne difícil.
— Realmente — respondeu Sergei. — A kraljica e a hïrzgin estarão no comando. O comandante co’Ingres, infelizmente, ainda sofre com os ferimentos, e o a’offizier ci’Santiago é, bem, digamos apenas que ele é inexperiente.
— Onde está a kraljica?
— A caminho, eu espero. Ela deve estar chegando a qualquer momento agora.
Brie assentiu, emitindo um ruído. Sergei viu a hïrzgin se debruçar na sela e ouvir o couro ranger. Ela olhava para o sul.
— Aquele é outro de nossos batedores? Ele está cavalgando rápido...
Brie apontou, e o embaixador viu uma nuvem de poeira ao longe, na Avi. Ele já não enxergava, e não pôde distinguir o cavaleiro ou as cores de seu uniforme.
— Pode ser — respondeu Sergei. — Seja quem for, está vindo rápido. Deve estar trazendo notícias.
Os dois estalaram as rédeas dos cavalos e desceram a meio galope até a estrada para encontrar o cavaleiro. O a’offizier ci’Santiago se juntou a eles quando o cavaleiro se aproximou galopando na montaria agitada. O cavaleiro prestou continência para eles.
— Os ocidentais — disse o homem, ofegante. — Não muito longe, na estrada... Mil ou mais... Todos na estrada.
Ele parou e recuperou o fôlego.
— Algumas viradas da ampulheta e os ocidentais estarão aqui — disse o cavaleiro. — Estão vindo em marcha acelerada e têm vários feiticeiros com eles, e também peças de máquinas de fazendas. Precisamos estar prontos.
Ci’Santiago assentiu, mas não teve reação. Sergei suspirou.
— Precisamos chamar Talbot e os chispeiros; a’offizier, talvez o senhor possa dar um cavalo novo para este homem e mandar que ele passe a mensagem adiante. Hïrzgin...
— Eu assumirei o comando de campo das tropas até a kraljica chegar — disse Brie. — Embaixador, você e o comandante co’Ingres podem cuidar da estratégia principal aqui nas tendas de comando.
Sergei notou que a hïrzgin já olhava para a paisagem e decidia onde colocar as tropas para melhor proveito.
— Vou precisar de sinalizadores, corneteiros e mensageiros, e quero falar com os offiziers. A’offizier ci’Santiago, preciso que você cuide disso imediatamente. O que você está esperando? Não há tempo, homem. Ande!
Ci’Santiago olhava boquiaberto para Brie, um instante depois, ele fechou a boca e prestou continência enquanto Sergei prendia o riso. O homem virou o cavalo e foi embora a galope, seguido pelo batedor. A hïrzgin olhava para o sul, com a boca franzida. Sergei pensou ter visto fumaça surgindo no horizonte.
— Eu acho que a senhora assustou o pobre homem — disse o embaixador, e Brie soltou uma gargalhada. — A esta altura ele provavelmente já deve estar reclamando da mulher demoníaca de Firenzcia.
— Se sobrevivermos a isso, eu ficarei satisfeita em ser a demoníaca. Você acha que sobreviveremos, embaixador?
— Eu estaria aqui se não achasse? — respondeu Sergei, torcendo para que ela não percebesse a mentira.
Nico ouviu a tranca dos portões da casa ser aberta levemente por Rochelle; ela sorriu para o irmão enquanto guardava as peças finas de metal dentro do embrulho.
— Fácil — disse Rochelle ao empurrar os portões para abri-los.
Nico entrou de mansinho na frente dela, mas sentiu Rochelle colocar a mão em seu ombro quase que imediatamente. Sob o capuz que ocultava seu rosto, ele olhou para a irmã; o manto pesado escondia o robe verde.
— Tem algo errado aqui — alertou Rochelle.
— O que você quer dizer?
— Escute — respondeu ela.
A rua do lado de fora dos portões estava lotada de gente saindo da cidade. Eles ouviram as vozes: os berros, as discussões, os gritos de crianças pequenas demais para compreender o pânico dos pais e parentes. Ela ouviu o estalo e os rangidos de carroças, os pés sendo arrastados no pavimento, os apitos dos utilinos que tentavam em vão direcionar o trânsito e impedir os confrontos inevitáveis.
— Tem todo esse barulho lá fora — disse Rochelle. — Mas aqui dentro... os funcionários deveriam estar correndo, preparando as coisas para sei lá o que, mas não se ouve nada. As persianas das janelas estão todas fechadas e provavelmente trancadas, e eu não ouço nada. Está silencioso demais aqui.
— O que você quer dizer?
Nico sussurrava. Ele já sabia a resposta, e sentiu o desespero se alojar em seu estômago.
— Eu acho que ela não está aqui, Nico. Acho que já foi embora. Lamento.
Irritado, Nico empurrou Rochelle e caminhou a passos largos em direção à porta da frente da casa de Varina. Estava trancada, em vez de esperar pela irmã, ele deu um chute forte e a madeira em volta da tranca rachou. Nico deu mais um chute e a porta se abriu.
— Sutil — disse Rochelle atrás dele.
Nico a ignorou e deu um passo na entrada de mármore. Agora ele sabia que Rochelle estava certa; os criados teriam vindo correndo, prontos provavelmente para defender a casa, mas não havia ninguém visível.
— Varina? — chamou Nico.
Ele pensou ter visto um gato cruzar o corredor a sua frente. Exceto pelo gato, não houve resposta. Nico ouviu Rochelle entrar na casa atrás dele e percebeu que ela empunhava uma faca, com a lâmina exposta.
— Não vamos precisar disso — falou Nico.
— Provavelmente, não. Mas me faz sentir melhor.
Ele deu de ombros. Nico andou devagar pelo corredor e espiou as salas de visitas em ambos os lados. A mobília ali estava coberta por lençóis; o gato olhou fixamente para ele de cima de uma poltrona coberta, depois voltou a lamber as patas dianteiras. Nico continuou a percorrer a casa: o solário, a biblioteca, as cozinhas — todos estavam igualmente vazios, não parecia que Varina esperava retornar em breve. Ele ouviu o chamado de Rochelle do segundo andar e seguiu o som da voz dela. Ela havia tinha embainhado a faca e estava parada na porta do que só poderia ser o berçário. A mobília ali também estava coberta. Rochelle abriu as gavetas da cômoda em uma parede.
— Vazias — disse ela. — Eu disse: Serafina não está aqui, Nico. Os numetodos a levaram para outro lugar.
Nico balançou a cabeça.
— Varina ainda está na cidade. Eu posso sentir.
Rochelle ergueu uma sobrancelha.
— Bom, se está, não está aqui, e o bebê também não.
— Ela despachou Sera — falou Nico.
— Isso eu inferi. Então, será que Cénzi pode lhe dizer para onde?
Ele fez uma careta para Rochelle, ele ia alertá-la sobre a blasfêmia em seus lábios, mas se conteve. Ela pareceu notar também e ergueu a mão.
— Muito bem, então você não sabe. O que nós sabemos para valer? — perguntou Rochelle, mas Nico só conseguiu balançar a cabeça.
— Eu não sei.
Após o confronto com Sergei, ele esperava pegar Sera, sair da cidade com a filha e a irmã e encontrar um lugar para pensar e rezar: para saber o que Cénzi queria dele, para saber como amenizar a culpa e a dor que carregava... Nico esperava — e rezava — que Cénzi lhe desse sua filha, mas parecia que Cénzi ainda tinha planos para ele. Nico olhou para cima.
— Cénzi, o que o Senhor está tentando me dizer?
Ele prestou atenção aos sussurros em sua cabeça e coração, seu rosto ficou sério.
— Acho que chegou o momento de nos separarmos por um tempo — Nico disse para Rochelle.
A Fúria da Tempestade
O sol estava se pondo a oeste no fim da tarde, mas onde antes havia um céu claro, agora uma tempestade se anunciava do outro lado do rio Infante. Uma massa de relâmpagos e trovões se exibia alto no céu, embora houvesse nuvens espreitando perto do solo, de maneira inacreditável. O exército dos tehuantinos estava envolvido por suas sombras, e a tempestade caminhava a passos irregulares com seus raios inconstantes.
As nuvens negras e turbulentas estavam se espalhando ao sul e seguindo a linha de frente estabelecida pelos tehuantinos. O cavalo de Jan se agitou embaixo dele e bufou quando o trovão baixo rosnou como uma grande fera. Havia um odor intenso no ar que fez Jan franzir as narinas.
— Tempestade de guerra — murmurou um chevarittai ao lado de Jan. — Que covardes... eles nem ao menos nos darão a oportunidade de lutar corpo a corpo honrosamente primeiro.
Jan concordou — ele já tinha ouvido falar das tempestades de guerra dos tehuantinos, invocadas pelos feiticeiros: um feitiço cooperativo. Os ocidentais usaram as tempestades de guerra com grande efetividade da última vez que estiveram aqui, assim como durante as batalhas com os Domínios nos Hellins, mas Jan nunca tinha visto uma. Ele duvidava que fosse gostar da experiência em primeira mão.
— Alertem os ténis-guerreiros — ordenou o hïrzg dando um tapinha no pescoço do cavalo para acalmá-lo. — Vamos precisar deles. O ataque está começando.
Jan, seguido por várias companhias de tropas e chevarittai firenzcianos, estava a oeste do rio Infante, logo abaixo da vila de Certendi. A ponte sobre o rio estava às suas costas. Ao leste do rio, ele podia ver as barricadas que tinham sido construídas; o hïrzg tinha pouca esperança de que eles conseguissem dominar a margem oeste por muito tempo. O starkkapitän ca’Damont estava mais perto do leito do rio, com o restante do exército firenzciano; e o comandante ca’Talin, junto à Garde Civile dos Domínios, estava ao extremo sul da linha de frente, perto do ponto onde o Infante se reunia ao A’Sele.
— Diga aos seus homens que eles precisam resistir — disse Jan para os chevarittai.
Ele puxou as rédeas do cavalo e galopou colina abaixo através das fileiras de infantaria e arqueiros.
— Resistam! — Jan disse para todos eles. — Nós precisamos resistir aqui.
À medida que a tempestade de guerra avançava e o rugido da grande nuvem ficava mais alto e sombrio, os ténis-guerreiros avançavam. Jan gesticulou para os robes verdes.
— É aqui que vocês começam a receber seu perdão. Aquela tempestade tem que ceder.
A tempestade se aproximava a cada instante. O ar tinha cheiro de raios, mas não de chuva. À frente das tropas, no que tinha sido um campo com plantação de trigo e grãos, o hïrzg tinha mandado construir armadilhas para os guerreiros tehuantinos: espetos afiados de ferro fincados no chão, buracos encobertos com os fundos cheios de estacas de madeira, pacotes de areia negra que Varina e os numetodos tinham encantado para que explodissem quando alguém pisasse perto deles. A tempestade marchava pelo campo, mas não ainda os guerreiros ocidentais. Os raios rasgavam o solo, arrancavam os espetos e expunham os buracos, jogando terra para todos os lados e fazendo os pacotes de areia negra explodirem inofensivamente.
Jan praguejou para os ténis-guerreiros.
— Agora! — berrou ele. — Agora!
Os ténis-guerreiros começaram a entoar seus cânticos e disparar a energia do Ilmodo na direção da falsa tempestade. A cada feitiço lançado, a tempestade começava a se desmanchar, e mais abaixo, eles puderam ver os guerreiros tehuantinos escondidos, marchando gradualmente em sua direção.
— Arqueiros! — gritou Jan.
Atrás dele, as cordas dos arcos rangeram ao serem tensionadas, uma leve saraivada de flechas desenhou um arco no alto, caindo como uma chuva sobre os ocidentais. Eles ergueram seus escudos imediatamente. Jan viu vários guerreiros caírem, apesar da proteção, ainda que, sempre que um caía, outro tomava seu lugar. Ao sul, a tempestade se assomava sobre as fileiras dos Domínios, e o hïrzg ouviu gritos de dor e susto quando seus raios atacaram os soldados de lá. Mas a tempestade já começava a se desmanchar — o poder que a mantinha fora gasto. Agora Jan ouviu os berros guturais dos feiticeiros ocidentais; bolas de fogo guincharam como moitidis furiosos na direção deles. Os ténis-guerreiros entoaram os contrafeitiços; o hïrzg viu várias bolas de fogo explodirem inofensivamente no ar, mas outras passaram e colidiram contra as fileiras, cuspindo sua terrível destruição flamejante e abrindo brechas na linha de frente. O cavalo de Jan empinou, aterrorizado.
— Avancem as fileiras! Tapem as brechas! — berrou o hïrzg enquanto tentava acalmar seu cavalo.
Os offiziers gritaram instruções; as bandeirolas de sinalização foram sacudidas.
Então, com um grande grito, os guerreiros avançaram, havia pouco tempo para se pensar em qualquer coisa. Jan desembainhou a espada e esporeou o cavalo para seguir em frente. Os chevarittai soltaram um berro de fúria e seguiram o hïrzg, os gardai da infantaria avançaram como uma onda preta e prateada para encarar os ocidentais.
Eles colidiram em um turbilhão de espadas, lanças e piques.
Jan tinha lutado contra as legiões de Tennshah. Esses ocidentais eram igualmente ferozes enquanto guerreiros, mas bem mais disciplinados. O hïrzg ouviu os offiziers dos tehuantinos berrarem ordens expressas na língua deles, e os feiticeiros estavam entre eles, brandindo seus cajados estalando e brilhando com os feitiços. Dessa parte Jan se lembrava. Ele golpeou um mar de rostos marrons pintados de vermelho e preto com sua espada, e sempre que derrubava um, outro guerreiro surgia para tomar seu lugar. Eles estavam sendo repelidos aos poucos, e, mesmo assim, os ocidentais continuavam surgindo. Jan percebeu que eles não resistiriam deste lado do rio — se fossem repelidos tão próximo ao rio, não haveria uma retirada organizada; eles seriam massacrados.
— Recuar! — berrou o hïrzg. — Para a ponte! Para a ponte!
Os offiziers atenderam ao grito; os porta-estandartes sacudiram as bandeirolas de sinalização, as cornetas tocaram o sinal. As tropas firenzcianas, disciplinadas e precisas como sempre, cederam terreno, como tinham sido treinadas, a contragosto, permitindo que os arqueiros e ténis-guerreiros cobrissem a retirada e carregassem os feridos, sempre que possível.
Os mortos, eles deixaram.
Ali, havia duas pontes que cruzavam o Infante, com oitocentos metros de distância uma da outra. A ponte norte, que corria pela Avi a’Nostrosei, já tinha sido destruída. A ponte da Avi a’Certendi ainda estava em pé. O Infante podia ser cruzado, mas não seria fácil, pois a correnteza era rápida e havia poças profundas que apenas os locais conheciam. Os arqueiros e ténis-guerreiros foram os primeiros a passar pela ponte enquanto a infantaria e os chevarittai continham os ocidentais, sob as ordens dos offiziers para correr em direção às barricadas que tinham sido erguidas do outro lado. Jan permaneceu com os homens, sua armadura estava manchada de sangue e amassada, o aço cinzento da sua espada firenzciana estava sujo de sangue seco, até que a ponte estivesse liberada e os arqueiros tivessem entrado novamente em formação do outro lado.
— Fujam! — ele gritou, finalmente, quando ouviu as trompas do outro lado do Infante.
Eles correram em direção à ponte. Jan se virou ali novamente e conteve os guerreiros que o perseguiam, urrando. O chão em torno dele e dos chevarittai estava coberto de corpos. Um feiticeiro brandiu seu cajado, e o chevaritt ao lado do hïrzg caiu, emitindo um berro e emanando cheiro de enxofre, mas o feiticeiro foi abatido no momento seguinte. A maior parte da infantaria estava do outro lado.
— Cruzem a ponte! — gritou Jan. — Chevarittai, cruzem!
Eles viraram seus cavalos e fugiram. Os cascos dos cavalos de guerra bateram nas tábuas da ponte, e o hïrzg gesticulou para os ténis-guerreiros que esperavam do outro lado. Os tehuantinos os perseguiram, estavam perto demais. Os guerreiros já estavam na extremidade oeste da ponte.
— Agora! — berrou Jan ao chegar à terra firme do outro lado. — Derrubem a ponte!
— Hïrzg, não antes de estarmos atrás das barricadas — disse alguém.
Jan ficou de pé nos estribos, furioso, e rugiu.
— Derrubem a ponte agora!
Os ténis-guerreiros entoaram os cânticos e o fogo começou a subir pelas vigas de madeira. As chamas lamberam o papel que embrulhava a areia negra amarrada ali.
A explosão atirou pedaços da ponte para o alto, pedaços enormes de vigas se contorceram, os tijolos e pedras das pilastras cortaram o ar. Os guerreiros e gardai foram igualmente golpeados. Um dos tijolos bateu em Jan, e o impacto o derrubou do cavalo. Ele ouviu o cavalo relinchar também, um som horrível. Ao cair, o hïrzg viu o centro da ponte entrar em colapso e cair no Infante devolvendo um imenso espirro d’água, levando uma massa de guerreiros ocidentais com ela.
Então Jan caiu no chão. Por um momento, tudo ficou preto a sua volta. Quando recuperou a consciência, ele viu rostos e mãos sobre si.
— Hïrzg, o senhor está ferido?
Jan permitiu que o ajudassem a levantar. Seu peito doía como se o cavalo tivesse caído sobre ele, e a armadura onde o tijolo o tinha atingido estava amassada. Seu peito ardia a cada inspiração; ele teve que respirar aos poucos enquanto se livrava das mãos sobre si. O cavalo se debatia no chão, com uma tábua enterrada em seu flanco.
A ponte tinha sido destruída. O sol já tinha se posto ao nível das árvores e projetava longas sombras sobre o campo de batalha. Os ocidentais tinham recuado para o limite da água para sair do alcance das flechas. Jan mancou até o cavalo. Uma das patas dianteiras do garanhão estava quebrada, e sangue espirrava do longo ferimento em seu flanco.
— Minha espada? — pediu ele, e alguém lhe entregou a arma.
O hïrzg se ajoelhou ao lado do cavalo e acariciou seu pescoço.
— Descanse — falou Jan. — Você serviu bem.
Com um gemido de dor, ele ergueu a espada e golpeou com força, abrindo um corte profundo no pescoço do animal. O cavalo tentou se levantar uma última vez, depois ficou imóvel. O mundo parecia dançar em volta de Jan, sua visão periférica se escureceu novamente. Ele se forçou a ficar de pé, apoiado na espada.
— Formem as fileiras atrás das barricadas — disse o hïrzg para quem estava ao redor. — Cuidem dos feridos e organizem as vigias. Mandem os a’offiziers virem até mim e avisem o starkkapitän e o comandante sobre o que...
Aconteceu aqui...
As palavras estavam em sua mente, mas não pareciam sair. A escuridão tomou conta dele demais, apesar do sol ainda estar visível no céu.
Ele se sentiu cair.
Não havia nahualli suficiente com Niente para criar uma tempestade de guerra. À frente deles, sob a luz dourada do fim de tarde, os tehuantinos viram as tropas orientais dispostas nas encostas dos morros, em ambos os lados da estrada. O número de guerreiros parecia ser muito maior que a quantidade de orientais, a menos que eles tivessem tropas reserva escondidas do outro lado da encosta.
Tototl bufou desdenhosamente.
— Isso é tudo que eles têm contra nós? — comentou ele, e os guerreiros próximos riram. — Uchben nahual, chegou o momento de fazer o que conversamos.
Niente assentiu para Tototl, virou o cavalo e cavalgou de volta ao abrigo dos nahualli entre os guerreiros. Ele mandou que os nahualli enchessem seus cajados mágicos como de costume na noite anterior, para que pudessem realizar o feitiço quando fosse necessário e ainda estarem descansados para a batalha. Eles não podiam criar a tempestade de guerra, mas podiam criar uma nuvem grande o suficiente para encobri-los. Foi o que fizeram agora: o cântico em massa reuniu o poder do X’in Ka, a energia se condensou no ar e se tornou visível. Filetes de nuvem começaram a flutuar em frente aos guerreiros, da estrada até quase às margens do rio, uma bruma espessa se formou e adensou, uma muralha formada pelos nahualli para que os orientais não pudessem mais vê-los. Essa muralha não acompanharia as tropas, nem geraria os raios da tempestade de guerra. Niente gesticulou quando não conseguiu mais ver as tropas orientais à frente deles, nem os morros onde elas estavam, e os nahualli interromperam o cântico.
Niente cambaleou, como se tivesse corrido até o rio e voltado: o preço do cântico e da canalização de energia, mas ele se forçou a se manter de pé, embora muitos jovens nahualli tivessem desmoronado, ofegantes. Usar o X’in Ka desta forma — para criar um feitiço sem se dar tempo de recuperar o esforço — tinha um preço alto; Niente não compreendia por que os feiticeiros orientais geralmente faziam magia dessa forma, em vez de estocar os feitiços para serem lançados mais tarde.
— Levantem-se — falou ele. — Peguem os cajados mágicos. Ainda há uma batalha a ser travada.
Com a muralha de bruma impedindo a visão das tropas orientais, Tototl berrou ordens, gesticulou para os guerreiros de menor escalão e os guerreiros supremos responsáveis por eles. Duas companhias seguiram para a esquerda, em direção ao rio — elas contornariam os orientais que avançariam contra os inimigos em sua retaguarda e nas laterais. Tototl esperou até o braço do flanco se afastar e Niente cavalgar até ele.
— Se isto é tudo o que está entre nós e a cidade, nós chegaremos lá esta noite, uchben nahual — falou o guerreiro supremo. — Parece que seu filho enxergou bem: nos mandar cruzar o rio é o caminho para a vitória. Eles não estavam preparados para isso. Nós avançaremos até a cidade e surgiremos contra o restante do exército oriental pela retaguarda, enquanto Citlali e o nahual Atl atacam pela vanguarda. Eles serão esmagados por nós como uma noz com casca entre pedras.
O comentário só fez Niente fechar a cara. Ele tentou usar a tigela premonitória na noite anterior: tudo estava confuso, e os poderes se mexiam do lado dos orientais, de maneira que não foi possível ver claramente, e o Longo Caminho lhe escapou completamente. Tototl pareceu achar graça na irritação de Niente; ele riu.
— Não se preocupe, uchben nahual — falou o guerreiro supremo. — Eu ainda tenho fé em você. Seu cajado mágico está cheio?
Niente levantou o cajado de madeira de lei de ébano que ele tinha entalhado com tanto cuidado há décadas com seus símbolos de poder. Com os anos, suas mãos poliram o punho nodoso e o centro do cajado, deixando um acabamento acetinado e reluzente. O objeto parecia fazer parte dele; Niente sentia a energia em seu interior, esperando para pronunciar os gatilhos para provocar fúria e morte. No entanto, mesmo mostrando o cajado para Tototl, e enquanto os guerreiros e nahualli ao redor gritavam em afirmação, Niente sentiu pouca coisa além de desespero.
Não havia vida nesta vitória, se é que seria uma vitória. Nenhuma alegria. Não se ela levasse para o lugar que ele vislumbrara uma vez.
Tototl desembainhou a espada e a ergueu, juntamente com o cajado de Niente, e os gritos redobraram.
— É o momento de sangue! — declarou o guerreiro supremo. — É o momento de morte ou glória!
Ele apontou para a margem da nuvem com a espada.
— Por Sakal! — rugiu Tototl.
Os tehuantinos berraram com ele ao avançarem. Niente foi levado pela onda, mas estava calado.
Eles entraram no vazio frio e cinzento da nuvem e saíram para o sol, o calor e a batalha.
Brie havia posicionado as tropas nas duas encostas de morro que flanqueavam a estrada, com apenas uma única companhia na estrada em si, e arqueiros em posição de ambos os lados — eles ao menos teriam a vantagem da altura do terreno para começar esta batalha. Os ocidentais teriam que avançar morro acima se quisessem enfrentá-los.
Se tivessem chevarittai, eles poderiam descer a toda velocidade, como uma gigantesca lança sendo enfiada em meio aos ocidentais. Mas eles não tinham chevarittai, e tinham poucos arqueiros, apenas três numetodos — de quem Brie desconfiava ligeiramente, pois não havia numetodos em Firenzcia; pelo menos nenhum que se revelasse abertamente — e nenhum téni-guerreiro.
Allesandra tinha chegado há uma virada, ela vestiu sua armadura, e Brie cedeu o comando de campo para ela, como era apropriado, uma vez que a Garde Kralji era da kraljica.
— Vejo que você teve uma bela educação — disse Allesandra. — Eu não esperava menos de você.
Brie e a kraljica, juntamente com Sergei e o comandante co’Ingres, observavam a aproximação das tropas ocidentais, sob o estandarte de cobra com asas. A hïrzgin ficou séria ao ver o tamanho assustador da força inimiga; ficou ainda mais preocupada quando viu os feiticeiros — a salvo, fora do alcance dos arqueiros deles — colocarem uma muralha de bruma entre eles para mascarar a formação.
Brie não conseguiu conter um arrepio diante da cena.
— Kraljica, embaixador, existe algum terreno melhor e mais defensável entre o Sutegate e aqui? Talvez devêssemos tentar incomodá-los em vez de detê-los. Podemos mandar grupos menores contra os flancos, criar uma muralha defensiva na cidade...
Allesandra lançou um olhar para Sergei e co’Ingres, e nenhum dos dois falou.
— É tarde demais para isso, hïrzgin — respondeu a kraljica. — Nós temos que resistir aqui, precisamos detê-los o máximo de tempo possível, e temos que fazê-los pagar por cada passo de terreno que eles tomam.
Brie cerrou as mãos em volta das rédeas do cavalo de guerra.
— Então eu estarei ao seu lado, kraljica, na vanguarda.
— Não. — Allesandra balançou a cabeça. — Esse lugar e responsabilidade são meus, Jan jamais me perdoaria se você fosse ferida. Eu quero que você assuma o flanco do rio com os chispeiros de Talbot. Eles precisarão de uma coragem inabalável e de um comandante firme para guiá-los. Talbot pode ficar com você, mas eu preciso dos outros numetodos aqui; temos poucos, uma vez que a maioria seguiu com o comandante ca’Talin.
Brie queria discutir — em sua cabeça, a Garde Kralji também precisava de uma liderança forte ou debandaria, mas ela assentiu, a contragosto.
— Como queira, kraljica...
Relutante, ela cavalgou em direção ao oeste na estrada e subiu o morro, passando pela Garde Kralji — que olhou para a hïrzgin com preocupação — até a retaguarda, onde os chispeiros tinham sido posicionados. Brie balançou a cabeça ao vê-los, vestidos com o que quer que tivessem no corpo. Os chispeiros não vestiam nenhuma armadura, exceto por alguns, que usavam pedaços de couraça de metal enferrujado e cota de malha rasgada e mal ajustada. A não ser pelos estranhos apetrechos que cada um portava, eles estavam armados apenas com espadas antigas, instrumentos de fazenda e cutelos. Os chispeiros pareciam mais uma turba do que uma força de combate — uma turba que um simples esquadrão da Garde Brezno teria sido capaz de afugentar, fazendo-os correr aos berros.
Brie repassou as ordens da kraljica a Talbot; o homem parecia tão preocupado com os chispeiros quanto ela, mas tinha enviado seus colegas numetodos lá para baixo, para onde o estandarte da kraljica tremulava do lado leste da estrada.
— Eu sou o assistente dela — comentou ele ao observar os numetodos seguindo em direção ao estandarte da kraljica. — Eu deveria ter ido com eles. Isto é loucura.
— É por isso — disse Brie — que ela nos quer na retaguarda. Ela sabe quais são as chances. Esses chispeiros têm mesmo um propósito?
Em resposta, Talbot ensaiou os exercícios, formando os chispeiros em fileiras e recuando os homens em sequência. Brie tentou imaginar as chispeiras disparando, tentou imaginar o grupo não debandando e fugindo aterrorizado ao ver o inimigo. Enquanto Talbot berrava ordens, a hïrzgin também observou a massa inacreditável de bruma que cobria a estrada abaixo e passava ao lado do morro onde ela estava.
A muralha cinzenta estava em silêncio.
— O que acontece quando eles “atiram”? — perguntou ela.
— As chispeiras disparam. Elas são bastante eficientes, na verdade. Foram inventadas por Varina. — Ele inclinou a cabeça ligeiramente para Brie. — Não há magia alguma envolvida, hïrzgin, se é isso o que lhe preocupa. Nenhuma ostentação do “Dom de Cénzi”, como vocês da fé concénziana poderiam chamar.
Ela ia responder, mas aí...
— Talbot... — Brie apontou para o morro abaixo.
Começou como um rugido abafado atrás da nuvem: o som de armaduras batendo e guerreiros berrando. Da bruma, os tehuantinos saíram correndo em direção a eles, onda atrás de onda tomando a estrada, assim como os campos de ambos os lados. Brie, do ponto de observação, ouviu Allesandra mandar os arqueiros dispararem, e os numetodos lançarem bolas de fogo e raios estalando em direção aos tehuantinos. Os feitiços e as flechas abriram breves brechas nas fileiras, que foram imediatamente cobertas, e agora os feiticeiros ocidentais erguiam seus cajados mágicos e lançavam seus próprios raios em direção a Allesandra e às tropas. Explosões e gritos eram ouvidos em ambos os morros.
O clamor ficou mais alto; as fileiras se aproximaram...
... e colidiram, emitindo o tilintar de metal. Da altura onde os chispeiros estavam, Brie conseguiu ver a batalha exposta diante de si, a miríade dos dois exércitos sobre a paisagem parecia uma praga de insetos. Alguns chispeiros estavam visivelmente assustados com o que viam, outros recuaram morro acima — para o norte, em direção à cidade. Talbot e Brie berraram para que eles parassem, e a hïrzgin virou o cavalo para interceptá-los, como um cão pastor com seu rebanho.
— Recuem e eu mato vocês — gritou Brie para os chispeiros, com sua espada erguida e seu cavalo de guerra trotando em resposta a sua agitação. — Talbot, vamos levá-los para baixo para podermos...
Ela ia dizer, mas de repente se calou.
Brie notou que a batalha já estava sendo perdida lá embaixo. A linha de frente da Garde Kralji já tinha entrado em colapso, e o estandarte de Allesandra seguia a norte da estrada, cedendo terreno. Os ocidentais já não estavam mais encobertos pela muralha de bruma e, apesar da quantidade, parecia haver menos inimigos do que Brie se lembrava. Ela olhou para Talbot, preocupada e subitamente desconfiada.
— Fique aqui — disse a hïrzgin.
Ela fez o cavalo subir a encosta do morro em direção ao cume, permanecendo sob a cobertura das árvores. Quando chegou ao cume, Brie olhou para baixo. Ela viu a muralha cinzenta de bruma seguindo em direção à margem do rio. E ali, na outra margem...
— Ah, não... — Brie engoliu uma imprecação.
Na encosta do morro, já subindo encosta acima, se aproximava o restante do exército ocidental.
A tempestade de guerra era ao mesmo tempo assustadora e mortal, mas era apenas uma quimera: um fantasma do Segundo Mundo. Ao mesmo tempo que cortava a tempestade com o Scáth Cumhacht, Varina admirava seu poder, precisão e criação. Ela podia sentir os vários fios individuais da tempestade, como eles se entrelaçavam a partir dos feitiços de vários feiticeiros e se formavam em um único encantamento: uma presença especialmente forte, se aproximando dela.
Isso não era nada que os ténis da fé concénziana conseguissem fazer, nem os numetodos — outra habilidade que os habitantes do mundo oriental não tinham. Ao mesmo tempo em que dilacerava as nuvens e dissipava os fios mágicos que as mantinham coesas, Varina se deu conta de que estava pensando como preparar um feitiço como aquele.
Se sobreviver, isto é algo em que você deveria trabalhar, para que os numetodos aprendam a fazer também.
Se você sobreviver...
E isso, ela receava, não era uma certeza.
Ela estava junto à Garde Civile, do comandante ca’Talin, na extremidade sul da frente de batalha, no triângulo cada vez mais estreito entre o rio Infante e o rio A’Sele. Aqui, o Infante se dividia em dois braços ao se juntar com o A’Sele, e a Avi a’Sele cruzava o rio com duas pontes. Assim como o comando do starkkapitän ca’Damont, ao norte, e com o comando do hïrzg Jan, na extremidade norte da linha de frente, eles tinham se posicionado a oeste do Infante. Os tehuantinos estavam dispostos em uma longa fileira curva, se espalhando pela Avi a’Sele em direção à Avi a’Nostrosei, com cerca de três quilômetros de comprimento.
A tempestade de guerra, pelo que Varina pôde notar, podia ter coberto toda essa extensão.
Os outros numetodos também estavam cortando a tempestade de guerra juntamente com ela. Os raios evanesceram, a nuvem negra tinha sido desfiada e interrompida. Eles puderam ver alguns homens se movendo atrás dela, avançando.
— Recuem, recuem! — gritou o comandante ca’Talin para Varina e os demais. — Fiquem atrás da linha de frente. Arqueiros, disparar!
Bandeiras tremularam, cornetas soaram no ar, e por toda a extensão da linha de frente, saraivadas de flechas foram lançadas contra a tempestade de guerra. Varina viu os escudos dos guerreiros serem erguidos e a maioria das flechas ser cravada em escudos. Golpes de espada arrancaram as flechas presas nos escudos, e os tehuantinos mandaram uma chuva de flechas em resposta. Varina ouviu Mason berrar perto dela e cair com uma flecha de penas cinzas encravada em seu peito. Outra flecha acertou o chão a seus pés.
— Recuem! — berrou ca’Talin novamente.
Desta vez eles obedeceram. Johannes e Niels arrastaram Mason com eles.
Varina podia ver pouco mais que corpos colidindo à sua volta em meio à batalha, mas podia ouvir muito bem: o choque do aço contra o aço, os gritos dos soldados de ambos os lados, os toques estridentes das trompas. Também podia sentir o cheiro da fumaça dos fogos mágicos, do sangue, e de enxofre, torcendo o nariz. Mas à sua frente havia apenas uma massa agitada de soldados. Ca’Talin, a cavalo, cercado por chevarittai, se enfiou em meio ao caos e, por um momento, Varina e os outros ficaram sozinhos. Eles dispararam feitiços de fogo por cima dos gardai em direção às fileiras tehuantinas do outro lado; usaram contrafeitiços para destruir o fogo jogado pelos feiticeiros ocidentais sobre eles. A areia negra explodiu à sua direita, lançando terra e partes de corpos para o alto e a deixando ligeiramente surda.
Varina sentiu o terrível cansaço pelo uso contínuo do Scáth Cumhacht. Todos os feitiços que ela tinha preparado na noite anterior acabaram, e sua mente estava cansada e confusa demais para criar novos com facilidade. Varina estava acabada; estava vazia.
Se você sobreviver...
Ela tinha menos certeza disso agora do que nunca.
As cornetas mudaram o toque. Varina viu o comandante e os chevarittai saírem em meio à fumaça e a confusão da batalha. Atrás deles, gardai recuavam e fugiam para o leste.
— Para as pontes! — gritou ca’Talin ao passar por eles. — Para as pontes!
Varina foi levada por eles, impotente. A retirada seguiu em debandada, uma confusão. Ela estava sendo empurrada, tropeçando e quase caindo. À sua volta, as pessoas se acotovelavam, e Varina não conseguia se levantar. Seria fácil, ela pensou, se deitar ali e deixar tudo acabar. Varina sentiu que começava a cair novamente.
Uma mão a abraçou pela cintura.
— Aqui, levante-se.
Ca’Talin havia retornado. Ele puxou Varina para a sela de seu cavalo de guerra. Os braços e ombros da a’morce doíam. Ela viu as pontes à frente, lotadas de gardai fugindo em direção às barricadas do outro lado.
— Perdemos aqui — ca’Talin meio que gritou para ela enquanto eles mergulhavam na multidão de homens — Os ocidentais tomaram este lado do rio até o norte. Que Cénzi nos preserve para amanhã.
Ao ver os tehuantinos avançarem até o outro lado da colina em direção a eles, Brie virou seu cavalo e galopou duramente até os chispeiros; o animal jogava rochas e pedras a sua frente.
— Talbot! Por aqui! — gritou ela. — Traga seu pessoal e me siga!
Assim que viu a confirmação de Talbot, vendo o homem berrar ordens e empurrar os chispeiros a sua volta, a hïrzgin subiu a encosta novamente até chegar ao cume. Os tehuantinos ainda subiam o morro, com a óbvia intenção de ladear a batalha principal e atacar a Garde Kralji pelo flanco e pela retaguarda enquanto os gardai estavam concentrados no ataque principal pela estrada. O cume do morro era plano e quase sem árvores; os ocidentais avançavam por uma campina. A essa altura, Brie também tinha sido vista; ela ouviu uma flecha passar assobiando por sua cabeça e recuou levemente morro abaixo.
Talbot e os chispeiros estavam quase no topo; a hïrzgin contou para ele o que viu rapidamente. Os dois arrumaram as fileiras imediatamente abaixo do cume; os chispeiros verificaram suas armas novamente, para garantir que estavam carregadas e abriram as bolsas de couro onde carregavam, segundo Brie tinha sido informada, as pequenas recargas de areia negra para recarregar as chispeiras. Ela tinha visto as recargas; estavam longe de ser impressionantes, o que apenas aumentava suas dúvidas quanto à eficiência da chispeira enquanto arma.
Mas ela não tinha escolha. Ela só podia torcer para que Talbot não tivesse lhe contado uma mentira elaborada.
— Muito bem — falou a hïrzgin. — Ao meu comando, nós subiremos até o cume. Talbot, prepare-se para disparar assim que estiver lá; eles têm arqueiros, portanto vocês também estarão sob ataque.
Ela viu os homens empalidecerem ao ouvir isso.
— Vocês possuem o terreno elevado como vantagem. Ataquem para valer, e os arqueiros serão inúteis — disse Brie, apesar de não acreditar nisso; ela achava que os arqueiros inimigos transformariam os chispeiros em uma parede de corpos sobre o cume. — Agora, avancem!
Quase de má vontade, os homens subiram até o cume, juntamente com Brie e Talbot. Ela ouviu os chamados na estranha língua ocidental quando eles apareceram, mas Talbot já ditava a sequência antes das primeiras flechas os alcançarem.
— Primeira fileira, ajoelhar! Primeira fileira, atirar!
O barulho emitido fez o cavalo de Brie empinar, aterrorizado. Uma fumaça branca e pungente floresceu ao longo da fileira, e pelo morro abaixo... A hïrzgin mal podia acreditar no que via: os ocidentais derrubados como se uma lâmina divina tivesse ceifado as fileiras inimigas. Ela soltou um grito de surpresa, quase uma risada.
— Segunda fileira, ajoelhar! Segunda fileira, atirar!
Novamente, os estampidos das chispeiras ecoaram; novamente, mais ocidentais caíram; seus corpos rolaram morro abaixo ou se amontoaram onde estavam. Agora, algumas flechas também atingiram os chispeiros, Brie viu três ou quatro homens caírem.
— Droga, resistam, seus bastardos! — gritou Talbot para as fileiras, que fraquejaram e começaram a se desmanchar.
Brie galopou atrás deles enquanto a fileira da retaguarda titubeava e tentava debandar em vez de recarregar as armas.
— Não! — disse ela. — Fiquem e lutem, ou vocês sentirão o aço da minha espada! Fiquem!
— Terceira fileira, ajoelhar! Terceira fileira, atirar! — berrou Talbot.
Desta vez a saraivada soou mais como uma gagueira do que uma explosão coordenada, mesmo assim, mais tehuantinos caíram. Brie notou que o inimigo titubeava.
— Mais uma vez! — ela gritou para Talbot. — Rápido!
— Primeira fileira, ajoelhar! Primeira fileira, atirar!
Outra gagueira, alguns homens sequer conseguiram disparar, tentando recarregar as armas atabalhoadamente, com mãos trêmulas. Mesmo assim, mais tehuantinos caíram, e o disparo de flechas parou completamente. Morro abaixo, guerreiros feridos e moribundos gritavam em sua língua, e outros guerreiros pintados berravam em resposta.
— Segunda fileira, ajoelhar! Segunda fileira, atirar!
Mais uma vez, as chispeiras rugiram, e quando mais guerreiros caíram, os tehuantinos finalmente cederam. Os guerreiros recuaram e começaram a descer correndo o morro, apesar dos esforços dos offiziers para contê-los, subitamente eles bateram em retirada em pânico. O grupo de chispeiros soltou um grito de triunfo, alguns deles, sem que Talbot desse a ordem, dispararam as chispeiras dos inimigos, recuando. No topo do morro, havia punhos erguidos em triunfo.
Brie gritou “urra” com os chispeiros, mas então olhou para trás e a alegria morreu em sua garganta. Bem abaixo, na estrada, a Garde Kralji estava em plena fuga. Ela viu o estandarte de Allesandra balançando e ouviu as cornetas soando o toque de retirada. Atrás deles, os guerreiros tehuantinos os seguiam em perseguição: uma onda negra que se espalhava pela estrada ao longo de ambos os morros, uma onda que sobrepujaria a unidade de chispeiros se eles ficassem ali.
— Talbot! — gritou Brie. — À kraljica! Não podemos ficar aqui.
Eles podiam ter tido uma pequena vitória nessa escaramuça, mas não haveria vitória maior aqui. A hïrzgin conduziu Talbot e os chispeiros morro abaixo para se juntar à kraljica na fuga.
Niente pensou que Tototl fosse perseguir os orientais diretamente até a cidade deles ou mesmo atropelaria a retirada dos inimigos e os mataria ali. E ele talvez tivesse feito exatamente isso, se não fosse por um guerreiro supremo ter voltado, ofegante, falando sem parar a respeito de um massacre: o grupo que fora despachado para o flanco ocidental tinha sido praticamente destruído. Tototl deteve o avanço e enviou apenas alguns esquadrões em perseguição aos orientais em fuga. Tototl e Niente seguiram o guerreiro supremo e deram a volta até o outro lado do morro. Agora Niente estava vendo uma terrível carnificina na encosta à frente dele — embora ele tivesse visto coisas piores em suas longas décadas de guerra, certamente. Niente tinha testemunhado homens cortados em pedaços, tinha visto cadáveres empilhados sobre mais cadáveres. Mas aquilo: havia uma quietude assustadora ali, e os corpos estavam estranhamente inteiros. Havia pouco sangue.
Tototl pulou do cavalo e caminhou entre os corpos espalhados pela encosta coberta de grama.
— Que magia fez isso? — ele exigiu saber.
Niente balançou a cabeça.
— Uma magia que eu não nunca vi antes.
— Por que você não viu isso? — disse Tototl furioso.
Niente só podia continuar balançando a cabeça. Suas mãos tremiam. Ele sentiu o cheiro de areia negra no ar.
Areia negra.
Isso não era magia... A ideia não parava de lhe ocorrer, juntamente com o cheiro de areia negra. O fato da areia negra não ter sido criada a partir do X’in Ka era algo que Niente tinha omitido do tecuhtli e dos guerreiros. Ele queria que os guerreiros acreditassem que a areia negra era mágica. Não queria que eles soubessem que qualquer um poderia fazê-la se soubesse os ingredientes, as medidas da fórmula e o método de preparo. Niente e os poucos nahualli a quem ele confiou o segredo mantiveram o sigilo — todos eles suspeitavam que, se os guerreiros pudessem fazer a areia negra sozinhos, eles poderiam decidir que não precisavam dos nahualli.
Isso não era magia...
Niente sabia, mas não podia admitir para Tototl.
Se Atl também estiver vendo isso... O medo o regelou e ele quase pegou o pássaro entalhado, quase pronunciou a palavra que permitiria a comunicação com o filho, para avisá-lo. Mas seria tarde demais: a batalha já estaria, sem dúvida, em andamento. Tarde demais. E ainda que os orientais tivessem essa habilidade mortal, ela ainda não tinha feito a diferença nesta batalha. Os inimigos eliminaram as tropas do flanco, mas ainda assim foram derrotados.
Mas Tototl estava certo em um aspecto: ele não tinha visto isso. O que a tigela premonitória diria agora?
— Os orientais aprenderam um feitiço que nunca tinham nos mostrado antes — respondeu Niente.
Os feridos sangravam por buracos profundos e irregulares, mas quase circulares. Os mortos estavam piores — parecia que eles tinham sido atingidos por flechas invisíveis que, inacreditavelmente, vararam armaduras de metal e bambu para mergulhar profundamente em seus corpos, muitas vezes atravessando-os completamente. E no topo do morro, de onde os guerreiros sobreviventes tinham dito que a terrível saraivada viera, não havia nenhum corpo e haviam poucos sinais de sangue, embora houvesse algumas flechas tehuantinas no chão. Mas o solo estava inalterado, como não estaria se os inimigos tivessem precisado arrastar corpos. Os orientais conseguiram infligir esse dano nos tehuantinos sem perder homens de maneira substancial.
Será que eles fariam isso com as tropas principais? Será que estão escondendo esse poder, à espera de um lugar melhor para usá-lo?
Podia não ter sido magia, mas alguma coisa tão horrível quanto inacreditável tinha acontecido aqui. Eles usaram a areia negra de uma forma que Niente não conseguia compreender.
— Eu preciso usar a tigela premonitória novamente — falou ele. — Alguma coisa mudou, alguma coisa que Axat não tinha mostrado antes. Isso é importante. Estou preocupado com o tecuhtli.
O Longo Caminho: será que ainda estaria ali? Será que mudou também? Ou tudo mudou? Será que Atl viu isso? Niente tinha que saber. Tinha que descobrir. Ele não estava entendendo algo fundamental para a compreensão dessa situação — ele podia senti-lo em seu estômago revirando, uma queimação. Sentiu-se velho, gasto, inútil.
— Não há tempo — respondeu Tototl. — O tecuhtli cuidará de si mesmo, e ele está com o nahual. A cidade está aberta para nós. Tudo o que precisamos fazer é persegui-los. Eles estão fugindo. Não posso lhes dar tempo para se reagruparem.
— Então o mais breve possível, assim que chegarmos à cidade — disse Niente. — Olhe para isso! Você quer que isso aconteça conosco ou com Citlali?
Tototl franziu as sobrancelhas.
— Jogue óleo nos corpos e queime-os — ele ordenou aos guerreiros. — Depois se juntem a nós. Niente, venha comigo; a cidade nos aguarda.
Ele cuspiu no chão. Depois, franzindo a testa mais uma vez, montou em seu cavalo. Niente ainda estava olhando para o cenário, tentando entender o que tinha acontecido.
— Venha, uchben nahual — falou Tototl. — As respostas que você quer ficam mais longe de nós enquanto ficamos parados aqui.
Nisso, o guerreiro tinha razão. Niente suspirou e, em seguida, caminhou até seu próprio cavalo e — com a ajuda de um guerreiro — montou na sela.
Eles seguiram adiante, e Tototl já berrava para retomarem o avanço.
Se o dia tinha sido terrível, a noite foi odiosa. Varina estava encolhida com a Garde Civile, pressionada entre duas barricadas que tinham sido erguidas nos últimos dias, e à noite choveram fagulhas e fogo, como se se estivesse arrancando as próprias estrelas dos céus e lançando na terra. Ambos os lados agora usavam catapultas para disparar o fogo da areia negra uns nas fileiras dos outros. As explosões trovejavam de poucos em poucos instantes: às vezes ao longe, às vezes preocupantemente perto.
Não houve descanso nem sono nessa noite. Ela viu as bolas de fogo desenharem arcos no céu e caírem a oeste, e se encolheu com medo quando a saraivada em resposta bateu nas barricadas. Varina tentou bloquear os sons dos berros e lamentos sempre que um projétil dos tehuantinos os atingia.
Isso era pior que o combate aberto. Ao menos lá, ela tinha a ilusão de controle. Não havia controle aqui: a vida de Varina e de todos a sua volta estavam reféns dos caprichos do destino e do acaso. A próxima bola de fogo poderia cair sobre ela, e estaria tudo acabado, ou poderia acertar e tirar a vida de outra pessoa. Varina se sentiu impotente e indefesa, encolhida com as costas contra a sujeira fria, tentando recuperar o máximo de força possível para que pudesse repor os feitiços para o ataque que viria pela manhã.
E ele viria. Todos sabiam.
As notícias do norte eram desanimadoras. Nem o starkkapitän ca’Damont, nem o hïrzg Jan, com as tropas firenzcianas, conseguiram manter a margem oeste do Infante. Ambos foram forçados a recuar e cruzar o rio. Pior, disseram que o hïrzg Jan tinha sido ferido durante a retirada, no momento em que a ponte a’Certendi foi destruída. Os rumores eram descontrolados e variados: Varina ouviu que Jan estava morrendo; que ele tinha sido levado de volta à cidade, para os curandeiros; que o hïrzg estava comandando a defesa do leito na tenda; que Jan tinha se amarrado ao cavalo para não parecer ferido enquanto cavalgava e encorajava seus homens; e ouviu que seus ferimentos eram leves e que ele estava bem.
Varina não fazia ideia de quais rumores eram falsos e quais eram verdadeiros. O que ficou claro foi que a batalha do dia anterior tinha sido apenas um prelúdio. O Infante seria cruzado; todos eles sabiam disso. Os tehuantinos descobririam seus pontos rasos e cruzariam assim que houvesse luz.
Varina tremeu e fechou os olhos quando outra bola de fogo passou estridente acima dela, explodindo à sua esquerda. Se acreditasse em Cénzi, ela teria rezado — certamente havia preces sendo murmuradas ao seu redor. Varina quase sentiu inveja do alívio que os soldados pudessem encontrar com elas.
— Varina?
O comandante ca’Damont se ajoelhou ao lado dela. Em meio ao barulho, Varina não tinha ouvido sua aproximação. Ela ia se levantar, mas ele balançou a cabeça e fez um gesto para que ficasse abaixada.
— Desculpe — falou Varina. — Eu estava tentando descansar.
Ele sorriu palidamente.
— Não há muito descanso por aqui. Eu queria lhe contar que os curandeiros dizem que Mason, o vajiki ce’Fieur, vai se recuperar. Eles vão levá-lo de volta à cidade.
— Ótimo. Obrigada. Obrigada por me contar.
— Eu quero que você vá com ele — continuou ca’Damont. — Este não é um lugar para você.
Uma velha frágil... Varina quase podia ouvir o que não tinha sido dito.
— Não — respondeu ela. — Você precisa de mim aqui. Eu sou a a’morce dos numetodos; aqui é o meu lugar.
— Chegaram mais ténis-guerreiros. Dois punhados. E ainda há os outros numetodos que você trouxe. Você provou sua coragem mais cedo, Varina. Ninguém pode exigir mais de você. E você tem uma criança com quem se preocupar.
Varina queria concordar. Queria aceitar a oferta e voltar correndo para a cidade — mas mesmo lá ela não estaria a salvo. Ela podia fugir o quanto quisesse, podia pegar Serafina e ir para leste ou norte, mas se eles perdessem aqui — e Varina não conseguia ver uma maneira de vencer —, ela sempre se perguntaria se deveria ter ficado, se sua presença teria feito a diferença.
Karl não teria fugido. Ele teria ficado, mesmo que pensasse que a batalha estava perdida. Disso ela tinha certeza.
— A maioria dos gardai tem crianças com quem se preocupar — disse Varina, com firmeza. — É por isso que eles estão aqui.
— Mesmo assim...
— Eu não vou embora — disse ela.
O comandante assentiu. Ele se levantou e prestou continência para Varina.
— Tem certeza?
Varina deu uma risada nervosa quando outra bola de fogo passou rugindo. A luz das chamas brilhou e as sombras se mexeram quando ela explodiu.
— Não — respondeu Varina. — Mas eu vou ficar, e você está interrompendo meu descanso.
Eles ouviram o rugido baixo de outra explosão em algum lugar atrás da barricada.
— Descanso? — disse o comandante. — Eu duvido que qualquer um de nós descanse esta noite. Mas tudo bem. Fique, se quiser. Cénzi sabe que nós precisamos de toda ajuda possível.
Ele pareceu se dar conta do que disse e abriu um sorriso meio irônico.
— Desculpe, a’morce.
— Não peça desculpas. Se seu Cénzi existir, espero que Ele esteja lhe escutando.
Não era para ter sido assim. Sergei tinha rezado para Cénzi, mas Cénzi não tinha atendido — não que ele esperasse alguma ajuda desse lado. Os tehuantinos perseguiram Allesandra e a Garde Kralji até o interior da cidade. A kraljica tentou se reagrupar e resistir no Sutegate, mas os tehuantinos avançavam por uma área muito ampla agora e entravam na cidade por todos os lados ao sul. Allesandra não tinha tropas suficientes para cobrir toda a fronteira sul da cidade. Ficou imediatamente óbvio que eles não conseguiriam controlar a Margem Sul: não com a Garde Kralji, nem mesmo com os chispeiros, que se provaram estranhamente eficazes durante a retirada. Eles recuaram ainda mais e abandonaram toda a Margem Sul através da Ilha a’Kralji.
Eles podiam evitar que os tehuantinos passassem pelos gargalos das duas pontes.
Sergei tinha insistido que Allesandra destruísse a Pontica a’Brezi Veste e a Pontica a’Brezi Nippoli completamente, para que os tehuantinos não pudessem cruzar a confluência sul do A’Sele sem precisar de barcos. Ela se recusou.
— As Ponticas continuarão de pé — falou Allesandra. — Eu não abrirei mão de metade da cidade. As pontas continuarão de pé, nós as defenderemos esta noite, e amanhã nós voltaremos a cruzá-las para recuperar nossas ruas.
Sergei discutiu veementemente com ela, e o comandante co’Ingres concordara com o embaixador; nenhum dos argumentos convenceram Allesandra a mudar de ideia.
E foi na Pontica a’Brezi Veste e na Pontica a’Brezi Nippoli que os chispeiros realmente se destacaram. Com a orientação de Brie e Talbot, o grupo conseguiu controlar os pequenos espaços. Embora os ocidentais tivessem avançado onda atrás de onda contra eles durante o fim da tarde e até o anoitecer, eles deixaram ambas as pontes repletas de corpos. Após várias tentativas em vão, e com a luz do sol morrendo, os ocidentais finalmente recuaram.
Do telhado do Palácio da Kraljica, Sergei podia ver a queima de fogos na Margem Sul, onde antes os ténis acendiam lanternas ao longo da Avi a’Parete. As chamas amarelas eram um escárnio. A oeste e ao norte, do outro lado do A’Sele, mas ainda fora da cidade, rugidos constantes e clarões de explosões ainda prorrompiam, como se um temporal de relâmpagos sem chuva ou nuvens tivesse ocupado o lugar. Abaixo, além das muralhas externas dos pátios e da entrada do palácio, na Avi, Brie ainda estava acordada, sem seu cavalo agora. Sergei pôde ouvir a voz da hïrzgin no silêncio aturdido do palácio: dispondo as vigias na ponte e aconselhando os chispeiros a cuidarem de suas armas e descansarem o quanto fosse possível, mas para estarem prontos para reagir quando fosse necessário.
A hïrzgin Brie se provara tão valiosa quanto seu marido nesta luta. Talvez até mais.
Sergei sentiu Allesandra se aproximar dele. A kraljica ainda vestia a armadura, agora não mais reluzente e lustrosa: sob o luar, ele notou as marcas de arranhões e queimaduras da batalha. Seu cabelo grisalho estava grudado na cabeça. Um sexteto da Garde Kralji a acompanhava, bem como os poucos integrantes remanescentes do Conselho dos Ca’ que não tinham fugido da cidade.
— Amanhã — falou Allesandra para Sergei e os conselheiros —, retomaremos a Margem Sul.
— Tentaremos o melhor possível — respondeu Sergei, seu tom traiu seu sentimento quanto ao sucesso da empreitada.
— Nós retomaremos — respondeu Allesandra gravemente.
Os conselheiros pareciam assustados, Sergei sabia que todos achavam isso quase tão improvável quanto ele. Um clarão e — com atraso — outro rugido ecoaram a oeste. O embaixador sentiu o prédio tremer sob seus pés com o barulho. Os conselheiros olharam ao redor como se procurassem abrigo; os gardai se remexeram nervosamente, apertando suas lanças.
— Um mensageiro veio da Margem Norte — disse a kraljica. — Os tehuantinos tomaram o lado oeste do Infante, e a Garde Civile recuou para as barricadas. Eles estão a salvo, por enquanto. Os tehuantinos tentarão cruzar o rio amanhã e nós os repeliremos. Deixem o Infante e o A’Sele levarem seus corpos de volta para o mar.
— Nós tentaremos, estou certo disso — respondeu Sergei novamente. — A senhora ouviu mais notícias do hïrzg?
O rosto de Allesandra ficou tenso.
— Eu fui informada que o hïrzg Jan se recusou a voltar para a cidade. Quanto à gravidade de seus ferimentos... — Ela deu de ombros. — Ninguém disse nada. Ele é meu filho e é um soldado. Vai continuar a lutar enquanto puder.
Sergei desceu o olhar para onde Brie estava patrulhando.
— Ela sabe?
— Eu mesma contei para Brie. Eu disse que ela podia ir até ele enquanto é possível. Brie disse que seu lugar era aqui por enquanto, e que Cénzi poderia manter Jan a salvo melhor do que ela. — Allesandra quase sorriu. — Acho que ela passou a sentir um carinho por aqueles chispeiros.
Sergei grunhiu.
— Espero que ela tenha razão. Não podemos conter os tehuantinos, kraljica. Em breve, eles começarão a nos bombardear com areia negra até que não consigamos mais posicionar os chispeiros nas cabeças de ponte, e assim que os chispeiros recuarem, os tehuantinos cruzarão. Precisamos derrubar as Ponticas na Margem Sul para isolá-los. Deixe que joguem o que quiserem sobre nós, mas eles não poderão cruzar... não até que construam barcos.
Allesandra recuou, estreitando os olhos e franzindo os lábios.
— Você já disse isso vezes demais, Sergei. Eu não abrirei mão da Margem Sul. Eu não abandonarei a minha cidade. Não enquanto eu respirar. Não. — A kraljica inspirou, emitindo um som alto no silêncio da noite. — Eu pedi que o comandante ca’Talin ou o starkkapitän ca’Damont nos mandassem uma companhia ou duas de gardai para ajudar.
— Kraljica, eles não podem abrir mão desses homens. Não com a força tehuantina que os dois estão enfrentando. A senhora não pode pedir isso a eles.
— A mensagem já foi enviada. Eu disse que eles teriam que avaliar bem se podiam abrir mão das tropas ou não. Eles vão mandá-las — disse Allesandra com firmeza.
Ficou claro para Sergei que ele não convenceria a kraljica. Ele também sabia que, independentemente do reforço de gardai, a Garde Kralji não seria suficiente para retomar a Margem Sul. Se as pontes continuassem de pé, eles não seriam suficientes sequer para manter a Ilha, mesmo com a ajuda dos chispeiros. O embaixador bateu com a ponta da bengala nos ladrilhos do telhado, inquieto. A oeste, irromperam mais clarões.
— Se a senhora me dá licença, kraljica, eu preciso encontrar Talbot...
Ele deixou Allesandra ainda no telhado com os gardai e os conselheiros. Encontrou Talbot no térreo do palácio, parecendo exausto e furioso, vociferando ordens para um quarteto de funcionários do palácio. Eles saíram correndo assim que Sergei se aproximou.
— Eu não tenho gente suficiente aqui — falou Talbot. — Três quartos dos funcionários evidentemente fugiram da cidade assim que saímos daqui ontem.
— Você não pode culpá-los, meu amigo. Qualquer um com mais bom senso do que lealdade teria ido embora.
— Eu sei, mas como posso administrar o palácio sem pessoal? — Ele passou os dedos pelos cabelos. — Olhe para mim: eu acabei de correr meia Nessântico fugindo dos tehuantinos; consegui sobreviver a feitiços, flechas e espadas, e estou aqui preocupado se as camas estão feitas e se as refeições estão sendo servidas.
— É o seu trabalho.
— Não parece importante, dadas as circunstâncias. Por Cénzi, estou exausto.
— Você pode dormir depois. Nós dois podemos dormir depois. Venha comigo.
— Para onde?
Sergei esfregou o nariz.
— Você sabe onde a areia negra da Garde Kralji está guardada? Tem as chaves do paiol?
— Sim, mas...
— Então venha comigo.
Uma virada da ampulheta depois, ele e Talbot se aproximaram da Pontica a’Brevi Veste acompanhados por gardai carregando vários pacotes de areia negra. Brie os saudou e olhou para os pacotes, inclinando a cabeça.
— Eu pensei que a kraljica tivesse dito que as Ponticas deveriam ficar intactas.
Sergei ergueu o olhar na direção do telhado do palácio, para as sacadas cravadas na parede sul. Não havia ninguém ali.
— Eu consegui convencer a kraljica de que talvez fosse preciso derrubar as pontes se nosso ataque amanhã não se saísse bem. Temos que colocar a areia negra nas pilastras deste lado, para que possamos acioná-las quando for necessário. Isso é tudo.
Brie assentiu.
— Parece um bom plano para mim. Eu vou mandar os chispeiros ajudarem.
Mais uma virada da ampulheta, e Sergei e Talbot, carregando o restante da areia negra, seguiram para a Pontica a’Brezi Nippoli. O embaixador contou para o offizier no comando da Garde Kralji o mesmo que tinha contado a Brie. Assim como na ponte anterior, ele supervisionou a colocação das cargas de areia negra, cuidando para que estivessem ligadas por cordas de algodão embebidas em óleo misturado com areia negra, de maneira que o acendimento da ponta do pavio causasse a explosão de todas as cargas ao mesmo tempo.
Sergei segurou o pavio erguido na mão; uma lanterna queimava aos seus pés, na grama da margem do rio.
— Acabamos por aqui — ele disse para Talbot. — Agora, mande todos recuarem.
Sergei não conseguiu ver o rosto de Talbot, que estava mais adiante na barragem, a luz da lua batia quase diretamente nas costas dele.
— Recuar? Sergei, você ficou maluco? A kraljica deu ordens específicas...
Sergei se abaixou, enfiou a bengala debaixo do braço, pegou a lanterna e abriu sua tampa de vidro, enquanto segurava o pavio na outra mão.
— Quando um dente fica podre, não há escolha senão arrancá-lo — disse o embaixador. — Se você deixa o dente lá, ele só vai causar mais dor e sofrimento, e no fim, o dente vai apodrecer todos os outros.
— Você não pode fazer isso — protestou Talbot. — A kraljica disse...
— A kraljica e eu discordamos. Seja franco, Talbot: você acha que podemos tomar a Margem Sul dos ocidentais amanhã? A melhor defesa para a Ilha e para a cidade inteira é derrubar as Ponticas e deixar os ocidentais presos.
— Não cabe a você tomar essa decisão — respondeu Talbot.
Sergei sorriu para ele, erguendo a lanterna.
— No momento, parece que é.
O embaixador encostou a ponta do pavio na chama. Ele assobiou e soltou fagulhas, e o fogo começou a percorrer a extensão do pavio. Sergei soltou o pavio e começou a subir a margem o mais rápido possível, se apoiando em sua bengala.
— Pelos colhões de Cénzi — praguejou Talbot; ele ficou parado por um instante, como se considerando descer a margem correndo atrás do pavio, depois gesticulou para os gardai nos pivôs da ponte. — Recuem! Saiam da ponte! Abriguem-se!
Talbot desceu um pouco a barragem e puxou Sergei pelo braço. Juntos, eles fugiram enquanto o pavio assobiava e espocava e o brilho azul do fogo seguia em direção à ponte.
A explosão quase levantou Sergei do chão. A concussão atingiu o embaixador como uma parede caindo; ele sentiu o calor queimar suas costas, e o som... Sergei ouviu as vigas se romperem enquanto rochas e tábuas caíam como uma chuva intensa e perigosa e batiam no chão em volta deles. Sergei e Talbot se encolheram, cobrindo suas cabeças. Quando tudo terminou, o embaixador se virou, seus ouvidos ainda zuniam. A ponte desabou, sua extensão mergulhou inclinada nas águas do A’Sele a meio caminho do vértice. Os tocos da estacaria e das pilastras surgiam da água como dentes quebrados.
Sergei sorriu.
— Eles não cruzarão por ali tão cedo. Todos aqueles homens posicionados ali podem descansar. Agora, vamos terminar o serviço...
Talbot balançou a cabeça.
— Lamento, Sergei, mas não posso permitir. Você mentiu para mim. Você desobedeceu às ordens expressas da kraljica.
— Eu estou tentando salvar a droga da cidade — retrucou Sergei.
— Ela não é a sua droga de cidade.
Ah, mas é sim... Sergei sabia que Talbot compreendia o valor do que ele tinha feito. Sabia que Talbot concordava com ele, afinal.
— Talbot, você sabe que eu estou certo.
— O que eu sei não importa — respondeu o homem. — Eu sou o assistente da kraljica, não o kraljiki. Que os retalhadores de almas te carreguem, Sergei...
Talbot balançou a cabeça e olhou as ruínas da ponte. A Garde Brezno se aproximava da borda e encarava a destruição. Gritos e lanternas se aproximavam deles.
— Allesandra ficará furiosa.
— Ela ficará ainda mais furiosa quando derrubarmos a outra Pontica — respondeu Sergei —, mas também não poderá desfazer isso.
Mas Talbot não admitiria que o embaixador estava certo. Ele sabia antes de o assistente responder, sabia pela maneira como seu rosto magro se fechou.
— Isso não vai acontecer. — Talbot olhou para as pessoas se aproximando deles. — Sergei, você ainda pode sobreviver a esta situação: admita que desobedeceu à kraljica e colocou as cargas de areia negra, mas que fez isso no caso de termos de recuar amanhã e não haver outro jeito de impedir que os tehuantinos cruzassem a ponte para a Ilha e para a Margem Norte. Você pode dizer que isso foi um acidente, que sua lanterna acendeu o pavio. Ela não vai acreditar em você e ficará terrivelmente furiosa com o que você fez, mas não poderá provar nada. Eu o apoiarei até aí, Sergei. Mas não vou além disso. A outra ponte permanece de pé.
— Talbot...
— Não — disse o assistente com firmeza, interrompendo Sergei. — Ou isso ou eu conto exatamente o que aconteceu aqui e que você pretendia esse golpe o tempo todo. Então, a kraljica o executará como traidor, Sergei, e eu não posso culpá-la. O que vai ser? Você decide.
Talbot estava certo. Sergei sabia disso, conhecia Allesandra bem o suficiente para perceber que, mesmo que ela entendesse seu raciocínio, ele tinha ultrapassado os limites do perdoável se a kraljica soubesse toda a verdade. Morto, Sergei não poderia fazer nada pela cidade. Morto, ele não poderia fazer mais nada para expiar tudo o que fez em vida. Morto, não poderia derrubar a outra ponte.
— Está bem — respondeu o embaixador. — Eu aceito sua proposta.
Ela acompanhou Nico de volta ao labirinto do Velho Distrito, para outra casa anódina em outro beco estreito anódino. Não havia ninguém ali, ninguém respondeu à batida de Nico. A porta estava trancada, mas isso não era um problema — não para Rochelle. Ela arrombou a porta e eles entraram. Nico disse quase que imediatamente que precisava rezar. Rochelle disse que ambos precisavam comer — mas não havia nada na casa. Ela saiu para procurar por comida e encontrou pão velho em uma padaria abandonada, e queijo mofado por toda parte, e pegou água do poço mais próximo. Quando Rochelle voltou à casa, Nico estava na sala principal, de joelhos. Ele não lhe deu atenção quando ela tentou convencê-lo a comer, tentou dar-lhe água à força entre os lábios rachados e machucados, enquanto o sacudia e gritava para tentar chamar sua atenção.
O irmão estava perdido e impassível, murmurando preces ininteligíveis para Cénzi. Nico a ignorou, como se não se importasse, ou mesmo soubesse que Rochelle estava ali. Ela não conseguiu arrancar reação alguma do irmão. Ele parecia estar em transe.
Tudo bem. Rochelle estava acostumada com loucura. Ela tinha lidado bastante com isso com sua matarh.
Rochelle dormiu um pouco no chão ao lado de Nico, mas não por muito tempo. Ela acordou, escuro, com Nico ainda rezando a seu lado. A essa altura, pensou Rochelle, deviam faltar poucas viradas para a Primeira Chamada.
— Nico? Nico, fale comigo.
Não houve resposta. Ele se encontrava na mesma posição viradas a fio. Então, Nico também a abandonara — bem, Rochelle estava acostumada a ficar sozinha, a tomar suas próprias decisões. Ela não podia ajudá-lo, não podia encontrá-lo onde quer que ele estivesse, mas ainda havia o que ela poderia fazer, o que deveria fazer. Rochelle tocou o cabo da faca que tinha roubado de seu vatarh, alisando o punho adornado.
Prometa para mim que você fará o que eu não consegui. Prometa para mim...
— Eu farei — ela disse para o fantasma da matarh. — Eu farei.
Rochelle se voltou para Nico, se ajoelhando no piso de madeira nua. As pernas do irmão deviam estar dormentes há muito tempo. Suas mãos estavam entrelaçadas, fazendo o sinal de Cénzi, sua cabeça estava abaixada sobre elas, seus olhos fechados. Ela notou que ele murmurava.
— Nico? — disse Rochelle, tocando seu ombro. — Nico, eu preciso que você me responda.
Ele não respondeu. O murmúrio continuou, sem diminuir. Ela abraçou o irmão e disse.
— Então reze por mim. Reze por nós dois.
Ele não deu sinal de tê-la ouvido. Ela se levantou, observou Nico e finalmente saiu da sala. Fechou a porta atrás de si, saindo em direção às ruas do Velho Distrito. De manhã cedo, as ruas estavam escuras e desertas. A maioria dos moradores, os que puderam, tinha fugido da cidade, para o leste. Clarões estranhos irrompiam no céu a oeste, acompanhados por trovões distantes e, ao sul, nuvens de fumaça tocadas pelo brilho de fogueiras.
Sul. Rochelle seguiu nessa direção, se escondendo facilmente nas sombras provocadas pela lua.
Ela não fez ideia de quanto tempo tinha levado até chegar à Pontica Kralji, que ligava a Margem Norte à Ilha. Não havia gardai na ponte, nenhum trânsito. A lua estava se pondo, e o céu começava a clarear no leste e extinguir as estrelas no apogeu. As águas do A’Sele estavam turvas em volta da estacaria, escuras e misteriosas. O cheiro de madeira queimada se misturava ao odor da lama e da água do rio.
Alguma coisa brilhante espocou no céu a sua frente, deixando um rastro de fagulhas e pintando a correnteza do A’Sele com reflexos reluzentes. A aparição se iluminou e inchou, descendo rapidamente. Rochelle a viu cair, sentindo o impacto sob a sola das botas, vendo o fogo da explosão. Alguém gritou de dor ao longe, e o susto e o cheiro de queimado aumentaram, cobertos agora pelo fedor de enxofre. Outra bola de fogo passou guinchando no céu ao sul; esta explodiu bem acima da Ilha, mandando as sombras negras embora.
Um cavaleiro apareceu na extremidade da Pontica que saía da Ilha A’Kralji galopando em direção à Rochelle, com a capa tremulando atrás de si. Ela se encolheu nos pilares da ponte; o cavaleiro passou disparado sem olhar e fez uma curva fechada à esquerda, em direção ao Mercado do Rio. Rochelle notou a bolsa de couro em volta do corpo: um mensageiro rápido levando uma mensagem.
Isso significava que a kraljica provavelmente estava na Ilha. Allesandra. Sua mamatarh. A voz da matarh pareceu sussurrar em seu ouvido.
— Prometa para mim...
Outra bola de fogo surgiu como um sol falso e também caiu na terra, em algum lugar da Ilha. Ela ouviu as trompas do Velho Templo soarem um alarme ao longe.
Rochelle atravessou a Pontica correndo, meio que esperando que alguém berrasse para ela ou que fosse atingida por uma flecha. Nada aconteceu. Rochelle chegou à Avi a’Parete na Ilha. Ao seu redor, os grandes prédios da Ilha se erguiam, com destaque para o Palácio da Kraljica, diretamente à esquerda. Ela seguiu lentamente para lá, por uma rua cheia de prédios do governo. Mais adiante, ao sul, Rochelle pôde ouvir o som das atividades: trompas soando, pessoas gritando. Ela fez a curva e seguiu para o sul novamente; a sua frente, viu pessoas no fundo na outra extremidade da rua. Ela correu na direção do muro que envolvia o palácio. Havia uma porta da criadagem ali, na lateral. Rochelle bateu, esperou, bateu novamente. Ninguém respondeu. Ela se abaixou e pegou suas ferramentas para arrombá-la. Alguns instantes depois, Rochelle empurrou a porta e entrou em suas dependências.
Ela se viu nos jardins do palácio. O cheiro de flores era forte, e Rochelle ouviu uma fonte jorrando água por perto. Não havia ninguém nos jardins, e poucas janelas do palácio estavam acesas.
Outra bola de fogo mostrou sua cara brilhante sobre o muro do outro lado do terreno. Parecia vir na direção de Rochelle e do palácio, mas no último instante, quando parecia que acertaria o próprio palácio, ela se estilhaçou em mil fragmentos, cada um assobiando e brilhando ao cair — um contrafeitiço deve ter alcançado a bola de fogo. Rochelle se perguntou quantos incêndios essas fagulhas provocariam, e se os ténis-bombeiros viriam apagá-los.
Ela correu para a porta do palácio mais próxima. Trancada: novamente, Rochelle tirou as gazuas e manipulou as ferramentas até ouvir o clique do mecanismo se abrindo. Ela empurrou a porta apenas o suficiente para entrar sorrateiramente.
Rochelle se viu no que deveria ser o corredor da criadagem: um corredor estreito e simples, com corredores transversais se abrindo de ambos os lados e uma porta grande ao final. Se este palácio fosse como o Palácio de Brezno, como ela esperava, a maioria dessas portas estaria destrancada. Os criados precisavam ter acesso a todas as alas do palácio para servir a seus senhores e senhoras da maneira mais discreta possível. Sem dúvida, o palácio estaria cheio de passagens assim.
Mas nos corredores de serviço do Palácio de Brezno havia uma atividade frenética. Aqui estava tudo quieto, e Rochelle achou isso estranho. Ela seguiu rapidamente até a porta principal, abrindo lentamente uma fresta. Ela vislumbrou um dos principais corredores públicos do palácio; também ouviu vozes. Havia várias pessoas saindo apressadamente de outro aposento um pouco à frente. Ela reconheceu um dos homens imediatamente: Sergei ca’Rudka, com seu nariz de prata reluzindo em seu rosto enrugado e pálido, e a bengala batendo em um ritmo irregular nos ladrilhos. A mulher a seu lado falava com ele em um tom apressado e irritado.
— ...não me importo com o que você estava pensando ou quais eram as suas razões. Eu estou furiosa com você, Sergei. Absolutamente furiosa. E Talbot; por que em nome de Cénzi você não confirmou comigo? Você sabia que eu tinha mandado as ponticas permanecerem de pé.
— Eu peço mil desculpas, kraljica — disse Sergei, embora Rochelle pensasse que ele parecia mais contente que arrependido.
Então aquela era a kraljica. Mamatarh, eu estou aqui por você... Mas não agora. Não ainda. Havia muitas pessoas em volta dela: Sergei, o sujeito chamado Talbot, bem como um quarteto de gardai.
— Seu “acidente”, se é que isso foi mesmo um acidente, pode ter prejudicado nossa chance de ataque aos tehuantinos na Margem Sul. Agora só temos uma rota para cruzar o rio, então...
Suas vozes foram ficando ininteligíveis à medida que eles desciam o corredor. Rochelle arriscou abrir mais a porta. Havia dois gardai posicionados na porta de onde o grupo tinha saído. Ela recuou para o corredor de serviço e entrou no corredor que levava para o aposento em que os gardai estavam, contando os passos para calcular sua distância. Havia outra porta a alguns passos, corredor adentro. Rochelle abriu a porta.
Ela entrou no Salão do Trono do Sol. A massa cristalina do Trono do Sol sobre a plataforma dominava o salão. Muito bem. Isso serviria: a kraljica deve voltar para cá em breve, e Rochelle poderia cumprir sua promessa.
Ela viu um lampejo de luz através das janelas altas do salão, e o palácio tremeu quando um trovão rugiu. Ela pôde sentir o cheiro de fumaça de madeira das janelas do palácio ascendendo em uma alvorada de chamas.
Rochelle se acomodou para esperar.
Niente polvilhou o pó alaranjado sobre a água na tigela premonitória e entoou um feitiço para abrir sua mente para Axat. A bruma verde começava a surgir, e ele inclinou a cabeça sobre a tigela.
Os tehuantinos estavam acampados na própria cidade, os guerreiros estavam protegendo as ruas e sacando as casas e os prédios atrás de comida e suprimentos, cumprindo as ordens de Tototl, mas Niente sabia que muitos guerreiros também estavam pegando todo o tesouro que pudessem carregar. Outros estavam ocupados construindo uma catapulta, e Niente tinha ordenado que os nahualli encantassem os sacos de areia negra que a catapulta lançaria na ilha para que explodissem com o impacto. Os cânticos dos nahualli e o martelar dos guerreiros engenheiros preencheram a grande alameda do lado de fora da fortaleza na beira do rio. Dos portões do edifício, o crânio de uma criatura horrível com dentes afiados, lançava um olhar malicioso para Niente — quase como a cabeça da serpente alada que tremulava no estandarte do tecuhtli. Isso, pensou ele, era quase uma ironia. O Olho de Axat nasceu e parecia observar Niente enquanto ele realizava o ritual, com tanta intensidade quanto Tototl.
As visões apareceram rapidamente, passando por ele quase rápido demais para que ele pudesse acompanhá-las. Os caminhos do futuro se entrelaçavam e mesclavam. Niente ainda podia ver a vitória no caminho mais nítido e próximo, mas agora era uma vitória conquistada a um preço muito alto. Havia mudanças provocadas no cenário, potências emergentes que ele não tinha visto antes ou que tinham sido apenas insinuadas em remotas possibilidades: o rei de preto e prata; a velha que cheirava a areia negra; o jovem com o poder estranho e descontrolado. Esta última... a mais difícil de todas de se ver, estava envolvida em bruma e mistério. Em torno do jovem, todos os caminhos possíveis do futuro pareciam estar espiralados. Niente queria ver mais a respeito do jovem, mas as brumas continuavam a afastá-lo, não importava o quanto ele tentasse acompanhá-lo.
Na bruma, Niente também sentiu a presença de Atl, tão perto que quase pensou que o filho estivesse a seu lado, espiando a tigela ao mesmo tempo que ele. Aqui. Ele tentou lançar os pensamentos na direção de Atl. Veja o que eu vejo. Deixe-me encontrar o Longo Caminho, espero que você o veja também...
Mas não houve resposta. Niente não conseguiu mostrar o que tinha visto para Atl, nem conseguiu ver o que Atl via. Na bruma, os dois permaneciam separados.
— Eles vão derrubar a outra ponte? — perguntou Tototl. — Se fizerem isso...
— Se fizerem isso, não poderemos cruzar o rio para ajudar o tecuhtli Citlali. Eu sei. Agora, deixe-me ver...
Niente já tinha visto isso: no caminho principal, os orientais inexplicavelmente não destruíam a outra ponte. Ele não entendeu isso. Com as pontes em pé, Tototl conquistaria a Ilha, ainda que pagasse um preço terrível. As estranhas armas de areia negra dos orientais derrubariam guerreiros demais antes que eles conseguissem, inevitavelmente, sobrepujá-los. Eles alcançariam Citlali e esmagariam ainda mais orientais entre eles, mas esta já não era a vitória que Niente tinha visto em Tlaxcala. Tudo mudara.
O que significava que o Longo Caminho também tinha mudado. Isso se o Longo Caminho ainda existisse.
Niente inclinou a cabeça sobre a bruma novamente, procurando. Por favor, Axat. Mostre-me...
E Ela mostrou.
A Passagem da Tempestade
— E então? — perguntou Tototl enquanto Niente jogava a água da tigela premonitória nos paralelepípedos da alameda.
Ele limpou a tigela com a manga da camisa e olhou solenemente para o guerreiro supremo.
— Você se lembra, Tototl, da conversa que tivemos sobre uma vitória parecer uma vitória, mas não ser?
O semblante pintado do guerreiro supremo continuava impassível.
— Eu me lembro de você ter dito isso. E me lembro de ter dito que achava que você tinha visto mais coisas na tigela do que estava contando para o tecuhtli Citlali. Então, me diga agora, uchben nahual, o que você viu? Diga-me a verdade.
Niente recolocou a tigela premonitória na bolsa e sentiu a textura dos desenhos gravados na borda. Ele pegou seu cajado mágico, sentindo a energia do X’in Ka pulsando na madeira, capturada e pronta para ser solta. Os odores de madeira queimando, da água doce, do fedor de roupa usada por muito tempo invadiram suas narinas. Niente engoliu em seco e sentiu o gosto forte e persistente da bruma verde que tinha inalado. Seus sentidos pareciam estar plenos e aguçados demais. Ele ergueu seu olhar para o crânio malicioso no muro sobre si e imaginou a criatura viva, com seus dentes afiados como facas de marfim rasgando uma vítima presa em suas mandíbulas poderosas.
— Preste atenção, Tototl — falou Niente. — Eu não disse nada para o tecuhtli Citlali porque ele não vê nada além do presente e de suas próprias ambições. Você tem a imaginação para fazê-lo. Você pode se tornar um grande tecuhtli. Um tecuhtli cujo nome ecoaria por gerações.
Tototl não conseguiu esconder totalmente a ansiedade provocada por essas palavras: Niente notou no leve movimento da boca do guerreiro, na sutil abertura dos olhos cercados por tinta vermelha. O guerreiro tinha ambição.
— Você viu isso?
Niente assentiu.
— É um dos futuros. Uma possibilidade.
Ele fez uma pausa. Olhou para a catapulta, quase terminada agora. Olhou para a ponte perto deles, no fim da alameda, para o grande prédio que surgia logo atrás dela, para o domo dourado que aparecia sobre os outros telhados, no meio da ilha.
— Tototl, a vitória neste momento está por um fio. Você é o fio, Tototl, sem você, não há vitória nenhuma. Eu vi isso.
— O que eu devo fazer?
— Você deve conquistar a ilha e chegar ao outro lado, como eu disse antes. Tem de avançar com nossos guerreiros contra os orientais pela retaguarda. Se você quer a vitória, é isso o que deve fazer.
— E por que eu não faria isso? É por isso que viemos para cá: para tomar a cidade e vingar nossa derrota com o tecuhtli Zolin, para governar esta terra.
Niente se perguntou se deveria contar para ele. Certamente Citlali não teria ouvido nada disso; ele já teria interrompido Niente, e Niente — ele tinha que admitir — teria se curvado para o tecuhtli. Eu vencerei aqui... Era tudo o que Citlali queria ouvir. Ele desdenharia do Longo Caminho; não se importaria com o que acontecesse anos depois. Mas Tototl talvez pensasse da mesma forma. Niente respirou fundo. Ele viu os nahualli colocarem a primeira carga de areia negra no cesto da catapulta enquanto os guerreiros acionavam o guincho para abaixar a haste.
— A vitória de Citlali aqui terá um preço muito alto para nós no fim — falou Niente. — Ele ainda pode tomar a cidade, mas não poderá controlá-la por muito tempo. Outros exércitos orientais virão dos lugares mais distantes do império deles. Esta terra é imensa, e nós temos poucos guerreiros aqui e pouco tempo para trazer mais homens do outro lado do mar. E quando os orientais matarem a todos os que sobreviverem, eles olharão para a nossa terra natal e voltarão com um exército ainda maior do que o que levaram antes. Eles vão nos caçar até ter certeza de que nós jamais causaremos problemas outra vez.
— Você tem certeza disso?
Niente balançou a cabeça.
— Não — ele admitiu. — Mas é o futuro que vejo; o provável.
— O novo nahual também viu isso?
Niente balançou a cabeça novamente.
— Não. Mas Atl está aprendendo. Ele só vê o futuro próximo, não o Longo Caminho.
—Você viu uma vitória fácil antes. Disse isso antes mesmo de sairmos da nossa própria terra.
— Eu vi — admitiu Niente. — E nesse momento, era a verdade. Mas isso mudou. Há forças aqui que estavam ocultas de mim, situações que mudaram de figura desde que consultei Axat pela primeira vez. Nada no futuro é sólido e fixo.
— Então esse futuro que você vê também pode mudar. Também mudará.
— Pode ser. Mesmo assim... Tototl, eu diria para você pegar os guerreiros aqui e ir embora. Encontre nossos navios; a essa altura eles devem estar perto da cidade. Pegue os navios e volte para casa. Eu diria para você se tornar o tecuhtli para que, quando os orientais voltassem à nossa terra, e eles voltarão, nós ainda estivéssemos fortes o suficiente para resistir. Os orientais perceberão que, assim como nós não conseguimos conquistá-los, também não conseguirão nos conquistar, e nossos impérios terão que lidar um com o outro como iguais.
Tototl meneava a cabeça em negação.
— Eu não fugirei — falou o guerreiro supremo. — Eu não abandonarei Citlali. Não sem saber que não tenho outra escolha.
— Então, aqui estão os sinais, Tototl. Quando a magia for retirada de todos os nahualli, quando você me vir cair diante de uma arma que não deveria matar: estes são os sinais de que o que eu disse é verdade. Você recuará então, Tototl? Ouvirá o meu conselho, como o tecuhtli Citlali não ouviu?
Tototl pareceu rir.
— Você parece um pedaço de bife defumado, uchben nahual, velho e duro demais para morrer. E quem poderia retirar o poder dos nahualli?
— Se isso acontecer — implorou Niente — se você vir os sinais, você irá embora?
— Se isso acontecer — respondeu o guerreiro supremo —, eu me lembrarei do que você disse e farei o que achar que é necessário.
Enquanto Tototl dizia essas palavras, a catapulta cantava sua canção mortal, e uma bola de fogo cruzou o rio em direção à ilha. Ambos viram a bola cair e explodir, emitindo um rugido de chamas laranjas.
Jan se perguntou se esse seria seu último dia.
A fumaça manchava o céu a sudeste, emergindo dos incêndios que ardiam sem controle na Margem Sul da cidade. Mensageiros enviados por sua matarh vieram durante a noite com uma mensagem: os tehuantinos estavam na Margem Sul; eles tentariam repelir os inimigos de novo, pela manhã; envie uma companhia de gardai se puder abrir mão deles.
Mas ele não podia abrir mão dos gardai. Eles já não eram suficientes para a tarefa que tinham pela frente. A noite anterior tinha sido terrível, o chão tremera enquanto areia negra era lançada de ambos os lados. Agora o céu a leste estava rosa e laranja, e os tehuantinos recomeçariam o ataque terrestre. Jan sabia disso; ele mesmo o teria feito.
Um pajem ajudava o hïrzg com sua armadura, e Jan fez uma careta quando o menino apertou as tiras da couraça — um armeiro desamassara a mossa da armadura na noite anterior.
— Vamos — ele disse para o pajem. — Aperte bem. A armadura não pode cair no meio da batalha.
Qualquer movimento doía. Respirar doía. Jan tossiu sangue na noite anterior assim que recobrou a consciência, embora isso, ainda bem, tivesse parado. Prender o peito com a armadura na verdade fez bem a ele, mas ele se perguntou se suportaria um golpe de espada sem desmoronar. E se perguntou se poderia liderar os homens como um hïrzg deveria: na linha de frente contra o inimigo.
— Traga o meu cavalo — disse Jan.
O pajem prestou continência e saiu correndo.
Jan tinha passado a noite na tenda atrás da segunda muralha de barricadas. A maior parte da areia negra caiu bem longe do acampamento, mas ainda havia crateras de terra negra aqui e ali, e fumaças de incêndios na grama que tiveram que ser extintos. Os offiziers tinham relatado as baixas meia virada da ampulheta depois de fazerem as chamadas. O hïrzg ficou estarrecido. Ele tinha trazido quatro mil gardai e cerca de trezentos chevarittai a Nessântico. Ele e o starkkapitän ca’Damont dividiram os homens de maneira praticamente igual. Jan agora contava com menos de mil gardai e dez punhados de chevarittai; ca’Damont tinha menos.
Não, ele não podia mandar uma companhia para a kraljica. Ele teria sorte se voltasse para Nessântico com uma companhia inteira. Jan leu a mensagem de ca’Talin: Perspectiva ruim. Recomendo resistir o máximo possível, depois recuar para a cidade. Abaixo, com sua letra fina e alongada, ca’Damont adicionara um breve concordo. Jan enviou uma resposta aos dois.
Concordo. Faça o inimigo pagar por terem cruzado o rio, depois recuem para o Mercado do Rio. Reagruparemos lá e nos reuniremos com a kraljica.
O pajem voltou conduzindo um cavalo de guerra que tinha sido a montaria de um dos chevarittai mortos. O menino colocou um degrau perto do cavalo e ajudou o hïrzg a montar na sela. Ele conseguiu se sentar sem gemer alto.
— Obrigado — disse Jan para o menino, prestando continência.
O hïrzg seguiu a meio galope, fazendo careta a cada passo, sacudindo o corpo. Ele subiu a pequena elevação até o topo da segunda barricada. Esperou ali por vários instantes, examinando o cenário.
A maior parte das tropas estava reunida lá embaixo, na ampla vala entre as barricadas serpenteando ao sul e ao comando do starkkapitän ca’Damont, e pouco a frente estava o comandante ca’Talin, com sua tropa se estendendo ao norte por cerca de oitocentos metros até a Avi a’Nostrosei. Após a elevação da primeira barricada em frente a Jan, havia cerca de quatrocentos metros de terreno plano entre as barricadas e o rio Infante — o campo tinha sido revirado pelos cavalos e pelas botas dos soldados e esburacado com as crateras que o bombardeio de areia negra tinham aberto. Do outro lado do Infante, Jan pôde ver o exército dos tehuantinos. Os offiziers inimigos já estavam organizando suas formações, e o hïrzg conseguiu ver pequenas bandeiras fincadas aqui e ali ao longo da margem oposta do rio — ele presumiu que os batedores tinham marcado as partes rasas onde o rio podia ser cruzado.
Havia muitas bandeiras. O Infante não era fundo nem largo como o A’Sele; havia muitos lugares por onde os tehuantinos podiam cruzá-lo. Na noite anterior, Jan pedira para um dos gardai locais mapear os pontos por onde a infantaria poderia cruzar, e posicionou arqueiros diante desses possíveis trechos.
Faça o inimigo pagar por cruzar o rio... Ele podia não conseguir detê-los, mas podia cobrar um preço caro.
Alguns arqueiros ocidentais dispararam flechas inúteis na direção do hïrzg; eles erraram o alvo, e Jan fez um gesto obsceno para eles.
— Vamos! — berrou o hïrzg, fazendo seu peito arder com o esforço. — Vamos; estamos esperando por vocês, bastardos! Estamos prontos para transformar suas esposas em viúvas e seus filhos em órfãos!
Ele disse em voz alta, para que os gardai na trincheira entre as barricadas ouvissem; os homens ergueram seus olhares para ele e vibraram. Jan duvidava que algum ocidental tivesse realmente entendido suas palavras, ainda que tivessem entendido o tom. Ele queria se debruçar por causa da dor lancinante em seu peito quando berrou a provocação, mas, em vez disso, ele sorriu e gesticulou novamente para os tehuantinos. A algumas centenas de passos de distância, Jan viu seus estandartes, prestou continência para os homens e seguiu até onde os offiziers estavam reunidos.
— Outro nascer do sol — falou o hïrzg. — Isso é sempre um bom sinal. O sol está nas nossas costas e nos olhos dos inimigos. Vamos fazer com que esse seja o último dia que eles veem.
Allesandra desfilou sobre o cavalo de guerra diante das pessoas reunidas no pátio do palácio. Sob a luz da falsa alvorada, sua armadura brilhava, o sangue do dia anterior tinha sido lavado e o aço lustrado. Brie, Talbot e o maldito e tolo Sergei estavam atrás dela em seus próprios cavalos, observando enquanto ela percorria a fileira. A kraljica colocou sua fúria e frustração em suas palavras.
— Nós não temos escolha. É o meu dever, é o nosso dever, proteger esta cidade, e eu não permitirei que nós traiamos essa confiança. Neste momento, os ocidentais controlam a Margem Sul. Eles andam pelas ruas que deveriam ser consideradas seguras para nossos cidadãos, saqueiam nossas casas e templos, matam e estupram quem quer que tenha ficado para trás. As forças do hïrzg e nossa própria Garde Civile estão enfrentando o exército inimigo principal na Margem Norte; eles nos encarregaram de proteger a retaguarda e manter a cidade em segurança para quando voltarem. Nós temos que controlar a Margem Sul. Eu controlarei a Margem Sul.
Allesandra fez uma pausa enquanto outra bola de fogo cruzou zunindo o céu que se iluminava — todos assistiram a isso. O cavalo tremeu sob ela, que acariciou seu pescoço musculoso para acalmá-lo enquanto a bola de fogo caía no solo atrás deles, do outro lado da Avi.
— Viram só? Os tehuantinos não querem nada além da destruição dos Domínios e de Nessântico. Fiquem aqui, e todos vocês morrerão. E, se é para morrer, eu prefiro que seja com a espada na mão e o inimigo sangrando aos meus pés.
O grito ecoou alto, mas irregular. Mesmo aqueles que gritaram pareciam hesitantes. Os chispeiros, de um lado, se remexeram inquietos; Allesandra notou que Brie os encarava.
— Nós marchamos hoje para a glória — disse a kraljica, sacando a espada da bainha e a erguendo. — Nós marchamos pelos Domínios. Marchamos por Nessântico. E eu marcharei com vocês, na vanguarda.
Uma carruagem sem teto, conduzida por ténis, se aproximou chacoalhando pelas ruas através da fumaça, dando a volta devagar pelos destroços no caminho; Allesandra viu o símbolo do globo partido de Cénzi nas portas do veículo.
— Hoje, o próprio archigos marchará conosco — acrescentou ela. — Preparem-se. Começaremos o ataque em duas marcas da ampulheta e mostraremos para esses ocidentais como os Domínios reagem contra quem os ameaça.
Eles vibraram novamente porque — Allesandra sabia — era o que se esperava, porque queriam acreditar na kraljica, mesmo que o medo gelasse seus estômagos. Ela cavalgou em direção à carruagem do archigos com Brie, Talbot e Sergei a seguindo. A cabeça calva do archigos Karrol espiou sobre a lateral do veículo; ele não parecia estar contente de estar ali. Dois rostos pálidos e mais jovens podiam ser vistos atrás do homem.
— Archigos, estou feliz em vê-lo — disse a kraljica. — Por mais atrasado que esteja.
— Não vamos fingir que a senhora ou o hïrzg tenham me dado alguma escolha, kraljica — respondeu Karrol. — Mas eu estou aqui.
— E os ténis-guerreiros?
— Mais quatro chegaram hoje do leste. Eu enviei dois para o hïrzg; os outros dois estão comigo. Eles sabem das consequências se deixarem de servir.
O archigos gesticulou para os outros dois ténis na carruagem.
— Ótimo — respondeu Allesandra. — Espero que estejam bem descansados. Precisamos deles agora. Talbot, por gentileza, cuide dos ténis-guerreiros e dos arqueiros. Brie, você fica com os chispeiros.
Ela encarou Sergei, ainda com raiva pela insolência do homem em descumprir suas ordens.
— Sergei, você fica comigo e o archigos.
Eles se reuniram rapidamente. Embora Allesandra ainda estivesse furiosa com Sergei por ter destruído a ponte leste, ela tinha que admitir que um ataque em duas frentes, nas duas pontas, teria dividido e enfraquecido muito suas forças. Mesmo assim, o problema agora estava no fato de todos eles precisarem cruzar a Pontica a’Brezi Veste. E no fato de que os tehuantinos tinham mantido a ponte de pé, e não a destruíram do lado deles, Allesandra sabia que os inimigos queriam que a ponte permanecesse intacta tanto quanto ela — para que pudessem se encontrar com o restante de seu exército na Margem Norte. A insistência de Sergei para que eles recuassem para a Ilha e a Margem Norte e destruíssem as pontes que cruzavam o A’Sele ao sul — a fim de isolar esta tropa de tehuantinos — fazia sentido taticamente.
Allesandra sabia disso intelectualmente, mas emocionalmente...
Esta era a sua cidade, a sede dos Domínios. A kraljica não permitiria que Nessântico fosse tomada dela. Allesandra teve que reconstruir a cidade uma vez; não queria ter que fazer isso novamente. Preferia cair aqui e deixar que seu sucessor — quem quer que fosse — o fizesse.
O ataque começou com uma saraivada de feitiços lançados por Talbot e alguns numetodos, bem como pelos novos ténis-guerreiros e o archigos. Quase todos os feitiços foram neutralizados ou desviados pelos feiticeiros tehuantinos, mas os que passaram fizeram os inimigos se afastarem correndo da Bastida e da área imediatamente a volta da outra extremidade da ponte, na Margem Sul.
— Agora! — berrou Allesandra.
Ela liderou o ataque da Garde Kralji pela ponte, enquanto Talbot direcionava os arqueiros para darem uma cobertura com suas flechas à frente deles. Sergei estava atrás da kraljica, e a carruagem do archigos veio a seguir, se chacoalhando sobre as tábuas. Os tehuantinos dispararam sua própria chuva de flechas na direção deles, mas o archigos entoou e gesticulou em seu assento, e as flechas foram varridas por um vento mágico, caindo inofensivamente no A’Sele.
Em poucos instantes, eles cruzaram o rio. Os guerreiros avançaram berrando contra eles.
— Para a Bastida! — berrou Allesandra para os gardai.
Eles avançaram e passaram a cavalo pelos portões abertos da prisão, sem se importar em deixar a Avi cheia de tehuantinos para atrás, pois estavam cercados.
Atrás da Garde Kralji, Brie conduziu os chispeiros pela Pontica. Ao pé da ponte, eles entraram em formação e suas armas bradaram o chamado ritmado da morte. Os guerreiros na Avi começaram a cair, e nenhum deles conseguiu alcançar os chispeiros para detê-los. Dos portões da Bastida, Allesandra viu Brie, desmontada, andando atrás dos chispeiros, estimulando-os a ficarem, a manterem a formação, a andarem mais rápido. Sua voz forte dava os comandos e o rugido irregular das chispeiras ecoava pela Avi. Os tehuantinos recuaram. Allesandra e os gardai não estavam mais cercados por todos os lados.
— Sigam-me! — berrou a kraljica, liderando a Garde Kralji em um ataque furioso, saindo dos portões da Bastida.
A noite tinha sido terrível, e a aurora simplesmente brutal. Quando o sol surgiu sobre as árvores e os telhados de Nessântico, os ocidentais avançaram: entoando rugidos e gritos, brandindo suas espadas e lanças e lançando saraivadas de areia negra e feitiços violentos e estridentes. Eles se lançaram nas águas do Infante. A água lançou espirros altos e brancos em torno dos tehuantinos, enquanto as flechas da Garde Civile choviam sobre eles. A princípio, o ataque resultou em um massacre, e os gardai gritaram de alegria e alívio, mas havia mais e mais inimigos, e eles simplesmente não paravam de vir, e agora os nahualli lançavam encantamentos que transformavam as flechas em cinzas no ar.
Os ocidentais cruzaram o Infante, e mais guerreiros chegavam a cada instante. Os ténis-guerreiros e os numetodos lançaram fogo sobre eles; isso não deteve o avanço. Punhados e mais punhados de guerreiros tehuantinos caíam mortos no chão, e, mesmo assim, eles avançavam, implacáveis.
— Recuar! — os offiziers e as cornetas chamaram.
A Garde Civile saiu do meio da muralha dupla de barragens e recuou para o cume da segunda barricada. Enquanto recuavam, os gardai derramavam barris de óleo trazidos da cidade, encharcando o solo e deixando poças escuras para trás. Quando os tehuantinos chegaram ao cume da primeira barricada, eles foram recebidos novamente por disparos de flechas. Corpos rolaram para a trincheira oleosa diante deles, mas agora mais companheiros, ilesos, vieram com eles.
Os feitiços preparados martelavam na cabeça de Varina e de todos os numetodos nas barricadas.
— Esperem! — Varina ouviu a ordem de ca’Damont para os ténis-guerreiros e numetodos. — Não ainda! Esperem!
Os tehuantinos chegaram à trincheira e começaram a subir a segunda barragem, onde as tropas da Garde Civile aguardavam.
— Agora! — berrou ca’Damont.
Varina gesticulou e pronunciou o gatilho do feitiço, assim como dois numetodos a seu lado, Leovic e Niels, e os ténis-guerreiros mais adiante na linha de frente. Suas mãos lançaram arcos de fogo. O solo encharcado de óleo entre as barricadas se acendeu, criando um poço de chamas flamejantes e sibilantes. Os que caíram nesse inferno gritaram — Varina viu os guerreiros se contorcerem, em chamas. O calor lambeu sua pele quando soprou o terrível fedor de carne queimada. Abaixo dela, um guerreiro saiu cambaleando às chamas, com o corpo horrivelmente carbonizado e chamas ainda lambendo sua armadura e roupa. Varina viu seu rosto, terrivelmente jovem, sua boca aberta gritando em sua própria língua. Ela não sabia se ele berrava por ajuda, por seu deus ou simplesmente de dor. Varina podia imaginá-lo em casa, abraçando sua esposa ou segurando os filhos, rindo de alguma piada que um deles tivesse contado. Ela mal notou a espada que o guerreiro segurava ou o fato de que ele erguia a arma sobre ela.
Flechas brotaram à frente do homem, e ele desmoronou, calando-se para sempre. Varina sentiu ânsia e vomitou no chão, caída de joelhos ao lado do guerreiro morto. Enquanto cuspia sua bile, ela ficou curiosa: que estranho, eu vi centenas de pessoas morrerem nos últimos dias, e este rosto foi o que mais me abalou...
— Você tem que vir conosco, a’morce!
Leovic e Niels cercaram Varina, a levantaram e quase a arrastaram encosta abaixo, até o lado oposto. Os tehuantinos recuaram momentaneamente enquanto o fogo queimava na trincheira, mas as chamas morreram rapidamente à medida que o óleo era consumido. Eles avançaram novamente, transbordando sobre a barricada pelo outro lado. Os gardai da Garde Civile à espera sacaram suas espadas, e Varina, juntamente com os outros numetodos e os ténis-guerreiros, recuaram enquanto o combate corpo a corpo irrompia sobre o cume. Varina ouviu as cornetas berrando e viu as bandeiras tremulando, mas elas pouco significavam alguma coisa para ela agora que Leovic e Niels continuavam a ajudá-la a recuar, um em cada braço. Varina simplesmente caminhou em meio ao fluxo de pessoas em uniformes azuis e dourados: de volta à cidade, sempre de volta. A retirada foi lenta a princípio, depois ganhou ímpeto e, subitamente, eles já não estavam andando, mas correndo, dando as costas aos tehuantinos ao fugir. Ela ouviu a batida dos cascos dos cavalos dos guerreiros, viu pessoas caírem a sua volta, atingidas por flechas ou abatidas por feitiços.
Leovic e Niels quase que carregavam Varina enquanto corriam. Ela não ousou olhar para trás. Não queria fazer isso.
— Andem, andem, andem! — berrou Brie para os chispeiros ao ver a kraljica e Sergei em seus cavalos, o archigos em sua carruagem, e a Garde Kralji saírem em debandada do breve abrigo da Bastida. — Vamos! Mantenham o ritmo!
Eles transformaram a Avi em um abatedouro, na cabeça da ponte. Os chispeiros correram sobre os paralelepípedos escorregadios de sangue, e sobre corpos que ainda gemiam e se contorciam. Os rostos dos chispeiros alternavam expressões de horror e alegria diante da carnificina que tinham causado, mas Brie não lhes deu tempo para refletir ou comemorar. A hïrzgin fez com que eles avançassem em direção aos portões da Bastida.
Em campo aberto, os chispeiros ficariam vulneráveis; eles atuavam melhor defendendo um espaço confinado. E se as fileiras fossem rompidas, os chispeiros seriam rapidamente sobrepujados. Brie os orientou aos berros, não permitindo que se separassem.
O pessoal de Allesandra avançou contra um aglomerado de guerreiros em uma das extremidades das muralhas da Bastida. Mais ocidentais saíram correndo das ruas laterais, liderados por um guerreiro montado, com o rosto pintado de vermelho e o crânio totalmente raspado. Brie viu um feiticeiro com ele: um velho cujo rosto fora devastado por alguma doença, com o olho esquerdo branco e cego. No momento em que a hïrzgin alinhou os chispeiros perto do portão da Bastida para lidar com o ataque renovado, ela viu o archigos entoando e movendo as mãos encarquilhadas moldando um novo feitiço, fazendo seu robe verde e dourado balançar. O feiticeiro ocidental ergueu o cajado de madeira e berrou uma única palavra em sua língua estranha.
O feitiço dele foi lançado imediatamente.
O archigos e a carruagem foram envolvidos em chamas. O téni-condutor caiu do assento, berrando e batendo no robe em chamas com as mãos. Ela ouviu o velho guinchar de surpresa e agonia. Karrol empurrou a porta e caiu da carruagem para a rua, seu robe parecia pingar chama líquida. Ele rolou no pavimento, emitindo um longo e tênue lamento que parou subitamente, mas Brie já não conseguia ver o archigos, não em meio à confusão da batalha. Enquanto berrava para os chispeiros, para tentar alinhá-los corretamente, a hïrzgin vislumbrou o guerreiro de crânio vermelho surgir com uma lança na mão, incitando o cavalo em um galope em direção à Allesandra. A kraljica ergueu a espada, mas a estocada de lança do guerreiro pintado de vermelho foi mais rápida; horrorizada, Brie viu a ponta da arma entrar com força e atravessar a armadura de Allesandra. O guerreiro pulou do cavalo, ainda segurando a lança que empalou a kraljica, jogando-a no chão. Berrando desesperadamente para os chispeiros, a hïrzgin viu Sergei pular do cavalo como se fosse um jovem.
Eles, também, desapareceram na luta.
Os feiticeiros de ambos os lados lançavam feitiços, e ainda mais guerreiros chegavam e ocupavam as ruas. Brie podia sentir o frio do Ilmodo em volta deles.
— Fogo! — ela berrou para os chispeiros, que olhavam atônitos para a confusão. — Fogo!
Mas então tudo mudou.
Nico tinha sido abandonado. Destituído. Até mesmo Rochelle o tinha deixado em algum momento durante a noite. Ele pôde sentir sua partida, mesmo que não tivesse respondido para ela.
Nico estava orando há um dia inteiro agora, sem comer, beber ou dormir, e Cénzi permanecera em silêncio. Ou talvez Ele estivesse dizendo muito. Nico foi atormentado por visões, mas não sabia dizer se elas emanavam de Cénzi, dos sons que ele ouvia lá fora ou da própria imaginação febril. Ele estava tremendo de frio, como se estivesse envolvido por um inverno impossível, tão frio quanto o próprio Ilmodo. Sobre seus olhos fechados, Nico teve a impressão de ter visto a batalha no oeste quando o sol o tocou através da janela do casebre no Velho Distrito. Ele viu as tropas fugindo dos ocidentais, viu os chevarittai montados tentando em vão proteger a retaguarda daqueles que recuavam dos supremos guerreiros montados, com seus rostos pintados e suas armaduras estranhas. Os homens em preto e prata, os homens em azul e dourado estavam fracassando; muitos deles estavam sendo abatidos por flechas ou pelos guerreiros a cavalo.
Nico testemunhou isso ao ser levado para o campo de batalha pelos braços gelados das suas preces, olhando para a cena do alto. Ele era um pássaro, um falcão, sendo levado pelo vento frio. Ele viu o estandarte do comandante ca’Talin e, mais ao norte, os estandartes do starkkapitän e do hïrzg. Todos estavam recuando para a cidade, com o homem mais à frente deles já nas ruas perto da Avi a’Certendi, a parte mais a oeste da imensa cidade.
Nico pairava sobre tudo isso, observando...
... então ele a viu: Varina. Ela estava exausta e sendo puxada por outros dois hereges numetodos; o trio estava perigosamente separado da massa principal da Garde Civile. Os guerreiros montados se aproximavam, a apenas alguns passos de distância, e a sinistra infantaria dos tehuantinos não vinha muito atrás. Eles seriam atropelados e mortos. Em breve.
Por que o Senhor me mostra isso, Cénzi? Por que me mostra a herege com tanta clareza?
Enquanto observava Varina, Nico sentiu o abraço frio envolver seu corpo mais intensamente. Ele estava caindo, rolando na direção de Varina no momento em que viu os guerreiros montados nos cavalos de guerra avançarem contra ela. Seus companheiros se viraram para lançar feitiços inúteis contra os agressores, que cercaram Varina.
Agora Nico estava ali, no solo e não muito longe de Varina. Ele pôde ouvi-la conter um grito e chamar seu nome — “Nico?” —, mas havia tanta energia ali que ele mal podia ouvir. O Segundo Mundo pareceu se abrir no céu e jorrar um fogo frio, o poder gelado do Ilmodo. Nico podia sentir todos puxando a energia sobre eles: os ténis-guerreiros, os hereges, os feiticeiros dos tehuantinos, até mesmo quem estava do outro lado do A’Sele, na cidade. Ele podia sentir o poder guardado nos cajados mágicos dos tehuantinos, nas mentes dos numetodos.
Todos canalizavam o Ilmodo do Segundo Mundo, onde Cénzi ainda vivia.
Nico se sentiu vasto. Ele podia esticar os dedos e tocar os fios de todas as conexões com o Ilmodo; podia puxá-los e tomá-los para si...
E foi o que Nico fez.
Não foi um movimento consciente. Ele agiu como se alguém tivesse o controle de seu corpo, sem escolha. Ele ouviu a si mesmo dizer palavras que não compreendia, sentiu as mãos se mexerem em um gestual que ele nunca tinha usado antes. Cénzi? Se era Cénzi, não houve resposta.
Nico gritou as palavras finais, executando o gestual final. Ele arrancou as cordas de poder que amarravam os ocidentais ao Segundo Mundo, mas manteve as cordas dos ténis e até mesmo a dos numetodos. Nico estava parado no campo de batalha com os braços abertos, sendo tomado pelo Segundo Mundo como nunca tinha acontecido antes.
Ele nunca tinha se sentido tão cheio do poder do Ilmodo. O poder o preencheu, queimando e perigoso demais para ser manipulado por mais que um instante. Nico absorveu tudo, inspirando o dom de Cénzi e o exalando novamente, soltando um grito.
O que eu faço com isso? Ele perguntou para Cénzi, e ouviu a resposta:
Faça o que deve fazer...
A onda de energia saiu pulsando de Nico, irradiando para o norte e o oeste ao longo da linha de batalha. Onde a onda tocou, os tehuantinos foram jogados para trás, sendo atirados violentamente sobre suas próprias fileiras. Eles foram derrubados como peças de um jogo varridas por uma mão furiosa.
Os guerreiros montados prestes a matar Varina e seus companheiros foram levados pela tempestade, tanto as montarias quanto os cavaleiros foram lançados longe.
— Vão! — disse Nico para eles. — Este é o Dom de Cénzi!
Sua voz ecoava como a de Cénzi; ela rugia, um trovão que pôde ser ouvido por todas as fileiras.
— Vão!
Então, acabou. Os fios de poder se romperam; o Segundo Mundo se fechou, soltando um trovão alto. Nico foi tomado por uma exaustão terrível, tão avassaladora que não conseguiu ficar em pé. Suas pernas cederam, e ele caiu na escuridão gelada.
— Deixem que eles cruzem o rio — disse Tototl. — Assim que eles estiverem na alameda, serão alvos fáceis, vamos atacá-los por todos os lados ao mesmo tempo.
A tática tinha funcionado a princípio. Os orientais usaram seus feitiços assim que o sol nasceu; Niente mandou os nahualli deixarem seus inimigos gastarem energia, mesmo que eles pudessem ter anulado a magia inimiga facilmente com os feitiços em seus cajados mágicos. Os guerreiros recuaram, abandonando a catapulta. Niente esperou no cavalo ao lado de Tototl, ao fim da primeira grande rua transversal da grande alameda. Os arqueiros disparavam saraivadas no céu; um velho nahualli oriental andando sobre uma carruagem mostrou sua força e tornou as flechas inofensivas ao desviá-las. A tecuhtli dos orientais — a mulher vestida de aço — escoltava os guerreiros de um lado ao outro do rio.
Eles ouviram o avanço dos guerreiros escondidos próximo ao rio e no pátio, onde o crânio do monstro tinha sido posto, mas Tototl ergueu a mão quando os guerreiros atrás dele seguiram em frente, ansiosos para se juntar à batalha.
— Esperem — ele ordenou. — Ainda não.
Através do vão entre os prédios, Niente viu os orientais avançarem pela rua, e a mulher, estranhamente, levou seus homens para o interior do pátio de onde os guerreiros tinham saído. Ele se perguntou o porquê disso, então veio a resposta: o terrível barulho estridente das armas de areia negra, que, estranhamente, soavam como as garras de águia que eles usavam no sacrifício de prisioneiros. Eles ouviram os gritos a seguir e viram os guerreiros caírem como milho sendo colhido. O tecuhtli oriental berrou, e os guerreiros inimigos voltaram à alameda em debandada, repelindo os guerreiros remanescentes ali.
— Agora! — gritou Tototl.
Eles avançaram contra a confusão como uma onda. Tototl avançou diretamente contra a mulher, arrancando sua lança de cavalaria da bainha na sela; sua espada permaneceu embainhada. Niente tentou segui-lo. O feiticeiro oriental na carruagem, vestido de verde e dourado, e mais velho que Niente, estava entoando um cântico e gesticulando de um jeito conhecido. Niente sentiu o poder envolvendo o homem crescer, e ergueu o cajado mágico, gritando o gatilho do feitiço. O X’in Ka disparou uma rajada solar de seu cajado, envolvendo o feiticeiro em chamas azuis. O homem gritou, e a rajada encobriu a carruagem e o passageiro.
Tão lenta. A magia oriental era tão lenta.
Niente viu a lança de Tototl empalar a tecuhtli oriental como um pedaço de carne. O guerreiro supremo pulou do cavalo ainda segurando a lança nas mãos e arrancando a pobre mulher do cavalo para os paralelepípedos. Tototl berrou em triunfo. Niente ouviu o impacto do corpo da mulher ao cair no chão.
Ele sentiu que os feiticeiros inimigos preparavam feitiços, ouviu a mulher no comando das terríveis garras de águia berrar ordens para seus homens, com uma longa trança marrom balançando sob seu elmo. Niente ergueu seu cajado mágico, pronto para abater a mulher de trança — para ele, ela era a mais perigosa dos inimigos.
Ele gritou o gatilho do feitiço, mas nesse mesmo instante, uma força terrível o puxou, puxou todos os nahualli. O ar gelado do X’in Ka girou em volta e por cima de Niente, varrendo o feitiço — e ele soube que tinha visto isso, embora não tivesse acreditado que fosse possível.
O homem da bruma, o homem escondido — ele tinha tomado uma decisão. Tinha agido.
O Longo Caminho estava aberto.
Niente engasgou. Esta era uma força bruta que ele nunca tinha sentido antes.
Um vórtice invisível pairou sobre eles, como a boca faminta de um tornado implacável, e sugou a energia do cajado de Niente, de todos os cajados mágicos, arrancando os poderes estocados neles e deixando os cajados vazios, como se todos os feitiços preparados para serem colocados dentro dos objetos na noite anterior com tanto trabalho tivessem sido lançados. Não foram apenas os nahualli que sentiram isso: ele notou que todos pararam e olharam para o céu, à procura de alguma coisa que eles não podiam ver. Tototl tinha arrancado a lança do corpo da tecuhtli; ele se aproximou dela, posicionando a lança para golpeá-la novamente, e também hesitou.
Então o vórtice desapareceu, sumiu, e Niente agora segurava apenas um pedaço de madeira vazio. Ele viu os outros nahualli se entreolharem, surpresos, ou soltarem seus cajados, assustados.
— Niente! — gritou Tototl sobre os paralelepípedos, com a lança ainda erguida.
Niente mostrou o cajado para ele e disse, surpreso:
— Eu não tenho nada. A magia foi retirada de todos os nahualli. Tototl, eu vi isso... eu lhe disse...
— Você ainda está vivo — resmungou o guerreiro supremo. — Nós ficaremos. Nós lutaremos!
Ele ergueu a lança novamente. Niente, então, viu a estranha cena: um velho com um nariz de prata avançando contra Tototl. O homem não brandia uma espada, mas uma bengala, enquanto berrava para o guerreiro supremo, e no entanto...
Niente sentiu a ameaça do pedaço de pau. Tototl também viu o homem, mas não fez nada, apenas sorriu. Niente gritou quando o homem apontou a bengala na direção de Tototl e saltou entre os dois, tentando afastar a bengala com seu cajado, mas ele não era forte o bastante. E a bengala tocou o corpo do próprio Niente.
O impacto pareceu com o punho de Axat. Niente pensou ter visto o rosto Dela sobre ele, acenando com a cabeça enquanto Niente caía. Ele viu um pássaro entalhado voando na frente de Axat.
Uma última dádiva...
Sergei viu a estocada cruel da lança do guerreiro trespassar a armadura de Allesandra. Viu a boca da kraljica se abrir em silêncio, surpresa e abalada, viu o guerreiro usar a haste da lança para arrancar a kraljica do cavalo. O homem se aproximou dela e arrancou a lança de seu corpo, seu sangue jorrava enquanto ele se preparava para estocar novamente a figura caída. O guerreiro berrou alguma coisa para um antigo feiticeiro ocidental perto dele.
Sergei se deteve. Alguma coisa parecia estranha: um vento frio furioso varreu a Avi, e a fúria dos feitiços de todos os lados pareceu ter se esvaído.
O embaixador se remexeu. Ele mancou até Allesandra, com a bengala em uma mão e o florete na outra. Mais um ocidental se aproximou a sua esquerda, e Sergei estocou por baixo do golpe cortante do homem, a lâmina fina do florete encontrou uma brecha entre as ripas de bambu da armadura e se enfiou no abdômen. O ocidental dobrou o corpo e caiu, e o movimento arrancou a espada da mão de Sergei. Ele deixou a arma ali; não tinha força para segurá-la.
— Não! — berrou o embaixador para o guerreiro parado diante da kraljica.
Sergei brandiu a bengala para o homem, que olhou para ele e parecia quase rir.
Sergei rezou para que se lembrasse da palavra que Varina lhe tinha ensinado, para que a pronunciasse corretamente, para que o feitiço que ela disse ter colocado dentro da bengala realmente funcionasse.
— Scaoil! — berrou o embaixador, apontando a ponta de latão da bengala na direção do guerreiro.
Mas no mesmo instante, o antigo feiticeiro se moveu com uma velocidade impressionante para sua idade e se colocou entre Sergei e o guerreiro, brandindo seu cajado mágico. A bengala acertou o feiticeiro. Assim que a bengala o tocou, sua ponta de latão pareceu explodir. Um som alto e percussivo quase ensurdeceu Sergei. A rajada fez lascas da bengala saírem voando, lançando o velho feiticeiro para trás juntamente com um jato de sangue e tripas; moribundo, se é que já não estava morto. Um pássaro vermelho entalhado saiu voando da bolsa rasgada do feiticeiro, posando novamente no peito do velho. O feiticeiro segurou o pássaro, pareceu sussurrar para ele e, em seguida, sua cabeça pendeu para o lado.
O guerreiro pintado de vermelho deixou a lança cair de sua mão olhando fixamente para o corpo do feiticeiro, caído na Avi perto de Allesandra, ferida.
O tempo parou para Sergei. O guerreiro estava imóvel, com a boca contraída no rosto pela fúria da batalha. O embaixador pensou que o homem levaria a mão ao lado de seu corpo e sacaria a espada, que abateria Sergei no instante seguinte. Não havia gardai para salvá-lo, nenhum chispeiro perto o suficiente.
Ele se perguntou qual seria a sensação de morrer.
Mas o guerreiro olhou fixamente para o corpo do feiticeiro, balançando a cabeça. Ele berrou alguma coisa que Sergei não compreendeu: uma prece, uma maldição, uma pergunta. O homem deu um passo para trás e se afastou do embaixador, depois deu mais um e mais outro. Então se virou completamente e rugiu uma ordem que ecoou na rua. Os guerreiros na Avi começaram a ceder terreno, devagar a princípio, depois mais rapidamente. Sergei viu Brie e Talbot persegui-los com os chispeiros, e chamou os dois.
— Esperem! A kraljica...
Ele se ajoelhou ao lado de Allesandra.
— Sergei — ela disse. — Dói...
— Eu sei — respondeu o embaixador.
Alguns gardai se reuniram a sua volta — sangrando, exauridos e aparentemente atordoados. Todos olharam espantados para a kraljica e para o corpo destruído do feiticeiro.
— Ajudem-me — disse Sergei para os homens. — Ajudem-me a levá-la de volta para o palácio...
Jan, com os chevarittai e alguns ténis-guerreiros lutavam na retaguarda para proteger a retirada, eles enfrentaram os guerreiros montados e mantiveram a infantaria ocidental longe dos retardatários. Como comandante do exército firenzciano, Jan raramente tinha precisado coordenar uma retirada em grande escala, mas ele tinha estado do lado vencedor várias vezes, e sabia que a retirada, em geral, era o momento mais perigoso para as tropas, pois a força avançando poderia eliminar os retardatários, lançar flechas e feitiços para dizimar ou até mesmo obliterar as companhias da retaguarda. Frequentemente, o exército em progressão podia sobrepujar o inimigo exausto e desmoralizado e causar baixas terríveis.
A retirada talvez permitisse que o comandante lutasse outro dia, mas também podia levar a uma derrota completa e infame. Eles nem ao menos estavam recuando para fortificações, mas para uma cidade aberta e desprotegida.
Os feiticeiros ocidentais lançaram feitiços contra eles que os ténis-guerreiros tiveram pouco tempo e energia para desviar. Os arqueiros cobriram o céu com suas flechas. As tropas montadas — felizmente poucas — avançaram as suas costas, abatendo os gardai correndo. A vanguarda do exército inimigo avançou com tudo. Jan vislumbrou, entre a fumaça e a confusão do campo de batalha, os estandartes do comandante tehuantino: a serpente alada que voava em um evoaçante pano de tom verde intenso. A maior parte dos feitiços parecia vir do grupo à volta daquele estandarte.
Jan estava exausto e sentindo uma dor terrível. Seus dedos queriam libertar o fardo do aço firenzciano pesado, o cabo da espada já escorregadio com sangue. O hïrzg oscilou na sela, quase caindo do cavalo quando um relâmpago mágico surgiu, sibilante, explodindo diretamente à frente, fazendo seu cavalo de guerra empinar. Ele acalmou o animal.
— Hïrzg!
Jan ouviu alguém chamar, e um chevaritt à direita apontou para um quarteto de guerreiros montados prestes a atropelar um grupo de gardai.
Ele suspirou. Obrigou seus dedos a segurarem firme a espada. Jan ignorou a dor lancinante em seu peito. Ele esporeou o cavalo, galopando em direção aos guerreiros.
Você não vai sobreviver a isso. Esta será sua última batalha.
O ideia lhe ocorreu como uma certeza. Uma profecia. Ele estremeceu ao soltar um grito de encorajamento para os chevarittai, ao mesmo tempo em que eles cavalgavam em direção aos guerreiros.
Então...
Uma onda de frio intenso tomou conta dele, como se o inverno tivesse chegado mais cedo; quando a sensação se esvaiu, Jan percebeu, mesmo com a fúria de seu ataque, que a chuva constante de feitiços das forças tehuantinas tinha parado. Os guerreiros à frente também o notaram. Eles puxaram as rédeas de seus cavalos e voltaram seus olhares para suas próprias fileiras. O hïrzg ficou preocupado que os feiticeiros estivessem preparando outro feitiço em massa, como a tempestade de guerra. Mas, em vez disso, uma onda visível varreu a terra de leste a oeste, uma onda que fez Jan puxar as rédeas, espantando. Todos podiam vê-la: no ar fugidio, na poeira erguida pela onda ao passar. Onde tocou o avanço da linha de frente dos ocidentais, os guerreiros foram jogados e lançados para trás, sem tocar nos homens no próprio hïrzg. Jan ouviu gritos e gemidos, depois uma única voz, mais alta.
— Vão! Este é o Dom de Cénzi! Andem!
O grito pareceu vir de todos os lugares e de lugar nenhum.
Jan sentiu subitamente uma tênue esperança. A bola de fogo de um téni-guerreiro saiu voando sobre os tehuantinos. Não houve reação ao feitiço: nenhum desvio, nenhuma implosão impotente acima deles. A bola de fogo anunciou a morte com um som estridente, penetrando nas fileiras ocidentais e explodindo, intacta. Outra veio atrás desta, e mais outra — todas penetraram. A esperança dentro do hïrzg aumentou, seus ferimentos já não importavam.
— Virem-se! — berrou ele para as tropas, para os offiziers. — Virem-se! Sigam-me!
Jan ergueu sua espada quando os chevarittai atenderam ao chamado. Ele ouviu a ordem ecoar entre as fileiras, e a retirada parou, virando-se lentamente. O hïrzg já estava cavalgando rapidamente em direção aos tehuantinos. Por todo o campo de batalha, até o ponto ao sul onde sua visão alcançara, a retirada se voltava para ele. As cores preto e prata começaram a fluir em direção ao oeste.
Com os chevarittai em volta de si, Jan penetrou na linha de frente atordoada dos ocidentais e seguiu em direção ao estandarte da cobra alada. Os primeiros guerreiros por quem ele passou estavam espalhados no chão; se estavam mortos ou inconscientes devido ao enorme feitiço desconhecido, Jan não sabia. Então o hïrzg encontrou resistência e avançou pelo mar de lâminas reluzentes, esquecendo suas dores em meio à fúria da batalha. Os chevarittai gritavam ao mesmo tempo que derrubavam os ocidentais e seguiam em direção ao comandante inimigo, todos avançando. Eles ouviram o rugido dos gardai correndo atrás de si.
Não houve resposta da parte dos feiticeiros tehuantinos. O que quer que tenha acontecido, roubou a magia deles. Mas os guerreiros tehuantinos — ao menos aqueles distantes da onda inicial não tinham sido afetados. Eles lutaram tão ferozmente como nunca, e agora que a euforia inicial tinha passado, a exaustão e a dor se fizeram sentir novamente. O ataque diminuiu, embora os estandartes de serpente alada agora estivessem dolorosamente próximos. Cada golpe de espada na massa de guerreiros disparava um choque que subia pelo braço de Jan. Suas pernas doíam, e ele mal conseguia se manter montado no cavalo de guerra. Suas costelas o apunhalavam como adagas de marfim a cada fôlego.
Ele se perguntou onde Brie estaria. Perguntou-se quem contaria a seus filhos e o que eles diriam.
Você tem ao menos que fazer essa história valer a pena ser contada.
Gemendo, Jan ergueu a espada para proteger a lateral do corpo de uma estocada, e a lâmina desviou o ataque, cortando o pescoço do guerreiro. O hïrzg viu o homem escancarar a boca e arregalar os olhos. Algo golpeou sua coxa na esquerda, ele se virou para enfrentar o guerreiro com a lança, cuja ponta estava cravada na sua perna logo acima da couraça. Jan puxou as rédeas com força para a esquerda e o cavalo de guerra ergueu os cascos, que acertaram e pisotearam o agressor enquanto a ponta da lança era arrancada de sua coxa. Ele sentiu seu sangue jorrar, molhando o acolchoamento sob a couraça.
Jan estava mais perto. Ele podia ouvir o estandarte da cobra tremulando.
— A mim! — gritou o hïrzg para os chevarittai, mas não ouviu resposta.
Jan não sabia onde eles estavam, não tinha tempo de procurá-los. Carrancudo, ele avançou, atropelando os guerreiros à frente com seu cavalo. Jan alcançou uma pequena clareira, viu o líder tehuantino, com o crânio raspado decorado com uma águia vermelha cujas asas se abriam em suas bochechas. O homem era mais velho que Jan, volumoso na armadura ocidental e montado em seu próprio cavalo, um magnífico animal malhado. Perto do líder, havia um feiticeiro ocidental, jovem, com o cajado mágico na mão e um bracelete dourado no braço.
Jan reuniu todas as forças que ainda tinha, ergueu a espada e gritou em desafio. Ele esporeou o cavalo de guerra para seguir adiante.
Do esconderijo atrás das tapeçarias na parede dos fundos, Rochelle viu a kraljica ser carregada para o salão. A armadura de Allesandra estava manchada de vermelho, e havia um buraco aberto no peitoral de onde o sangue ainda jorrava. Seu rosto estava pálido e contraído, o cabelo grisalho desalinhado e duro como palha em volta do rosto.
— Coloquem-me no trono — ela ouviu o sussurro da kraljica.
A voz da mulher era áspera e baixa, exausta e esquelética. Os gardai que a levavam obedeceram e a colocaram no Trono do Sol. Rochelle esperava que o trono se acendesse assim a kraljica se sentasse no abraço cristalino, como diziam as histórias, mas o trono respondeu apenas com o mais pálido dos brilhos, praticamente invisível na luz do sol.
Ela se perguntou se era porque a kraljica estava à beira da morte.
— Alguém vá procurar pelos curandeiros da kraljica — ela ouviu Sergei dizer. — O restante, procurem a hïrzgin para receber suas ordens; ela está no comando. Andem!
Eles se dispersaram. Rochelle viu Sergei se ajoelhar ao lado do trono.
— O que eu posso fazer pela senhora, kraljica? — perguntou o embaixador.
— Água, Sergei — sussurrou Allesandra. — Estou com tanta sede.
Ele mancou até um balcão perto da porta de serviço; Sergei estava sem a bengala e andava devagar. Rochelle saiu de trás da tapeçaria. Com alguns passos resolutos, ela alcançou a plataforma, com a faca na mão. Sergei a ouviu e berrou seu nome — “Rochelle!” — mas ele estava muito longe e era lento demais para detê-la. A pedra branca — dentro da bolsinha em volta do pescoço de Rochelle — parecia pulsar incandescente contra sua pele.
Você vai matá-la e, enquanto ela morre, você vai contar o porquê, para que ela vá para Cénzi sabendo...
Allesandra olhou para Rochelle com um olhar confuso e sofrido.
— Olá, mamatarh — disse ela. — Eu sou Rochelle.
— Rochelle? Mamatarh?
A confusão aumentou na expressão da mulher. Ela viu a faca e franziu os olhos.
— Eu conheço essa arma — Allesandra disse, umedecendo os lábios secos.
Ela tossiu, cuspindo bolhas de espuma vermelha dos cantos da boca.
— Eu matei Mahri com isso. Onde você...?
— Do seu filho — respondeu Rochelle. — Do meu vatarh.
A kraljica estreitou os olhos novamente.
— Seu vatarh? Jan?
— Rochelle, não faça isso — disse Sergei.
Ele deu passos vacilantes em direção à plataforma, com a mão estendida na direção dela. Rochelle ignorou o embaixador. Um corte com a lâmina, e ela poderia passar por qualquer uma das portas e estar longe antes que ele pudesse fazer qualquer coisa para detê-la.
— Sim, Jan é meu vatarh — contou Rochelle para Allesandra.
Sua mão livre segurou a pequena bolsinha de couro com o seixo quase branco e chato que continha sua matarh e todas as vítimas dela.
— E minha matarh... ela era a Pedra Branca. Elissa, era assim que ela se chamava nessa época, embora esse não fosse seu nome de verdade.
— Elissa... — Os olhos de Allesandra se fecharam por um momento; sua respiração se agitou e seus olhos se abriram novamente. — Jan...
— Ela o amava — disse Rochelle ao se inclinar sobre a kraljica.
Ela aproximou a lâmina do pescoço de sua mamatarh. Allesandra pôs a mão sobre a de Rochelle, mas não havia força no aperto. Sua pele era tão enrugada quanto um pergaminho.
— Rochelle, a mulher já está morta — falou Sergei. — Você não precisa fazer isso. A Pedra Branca está morta. Deixe-a morrer em paz.
Rochelle olhou para ele.
— Por que você se importa, embaixador? Suas mãos estão bem mais ensanguentadas que as minhas.
— Eu lhe disse na carruagem: não é tarde demais para você, Rochelle. Você não é a sua matarh. Não precisa se transformar no que ela se tornou.
A faca tremeu em sua mão. Prometa para mim...
— Faça isso — continuou Sergei — e você será para sempre a Pedra Branca, a assassina odiada que matou a kraljica. Será caçada pelo resto da sua vida curta e miserável. Jamais se sentirá segura, jamais ficará à vontade. Eventualmente, você cometerá um erro e será capturada, depois será arrastada para cá acorrentada e será executada. Este é o seu destino, Rochelle, o único que terá se fizer isso.
— E se eu não fizer? Eu ainda não sou a Pedra Branca, que matou Rance e os outros?
Sergei deu de ombros.
— Eu não sei. Sua vida será um livro que você mesma escreverá. Se a Pedra Branca desaparecer, não há ninguém a ser perseguido.
A mente de Rochelle estava atormentada. A faca pressionada contra a pele de Allesandra, o gume afiado, o sangue. Tudo o que ela tinha a fazer era pressionar com um pouco mais de força. Só precisava se debruçar levemente sobre a mulher; a faca faria o resto. Os dedos de Allesandra apertavam os de Rochelle, quase como se a kraljica quisesse que ela fizesse aquilo.
— Minha matarh amava Jan — disse Rochelle para sua mamatarh, com uma voz mais trêmula do que as mãos.
— Eu sei. — Os lábios de Allesandra estavam molhados de sangue, e um longo filete escorria pelo canto da boca. — E Jan a amava. Eu sei disso também.
A kraljica gorgolejou, o cheiro de seu hálito era horrível.
— Eu lamento.
— Lamenta? — Rochelle praticamente gritou, quase enfiou a faca no pescoço de Allesandra com violência. — Você deveria ter dito isso para ela.
A kraljica não respondeu. Sua respiração ficou fraca, seu corpo se contorceu em um espasmo. Ela olhou fixamente para Rochelle, piscando muito.
— Rochelle...
Ela tirou a faca do pescoço de Allesandra e embainhou a arma. Mate-a... Rochelle ouviu o sussurro de sua matarh, mas seu som foi fraco, e ela descobriu que não tinha vontade de fazê-lo. Não mais. Toda a raiva tinha abandonado Rochelle, toda a certeza.
— Eu quero ver você morrer — ela disse para a kraljica, olhando para Sergei. — Eu preciso ver isso.
— Está bem. — Sergei subiu os degraus da plataforma pesadamente para ficar ao lado dela. — Nós assistiremos juntos.
A boca de Allesandra se abriu, como se ela fosse protestar, mas não disse nada. Os dois ouviram sua respiração se esgotar. A kraljica olhava para Sergei.
— Nessântico...
Sua voz soou quase tão fraca quanto um zéfiro. O olhar cego da kraljica se fixou em algum ponto entre os dois.
— Sergei, ela está a salvo?
— Sim — respondeu Sergei. — Ela está a salvo.
Allesandra não esboçou reação. Após um tempo, eles perceberam que ela já não respirava. Seus olhos continuavam abertos. Rochelle tirou a pedra branca da bolsinha e colocou sobre o olho direito da kraljica.
— Pronto, matarh — disse Rochelle. — Ela é sua...
Rochelle começou a descer da plataforma.
— Espere — chamou Sergei, atrás dela. — A pedra...
— Deixe aí. Guarde como lembrança. Jogue fora. Eu não me importo. Não preciso dela.
Rochelle saiu do salão no momento que os curandeiros — tarde demais — entraram.
A onda de frio, seguida do pulso que passou por eles inofensivamente, mas que colidiu contra os ocidentais...
A presença de Nico e sua voz, inacreditavelmente alta...
O silêncio que pareceu durar vários instantes, quando eles perceberam que nenhum dos ocidentais lançava feitiços em sua direção...
O que aconteceu?
Varina ainda podia sentir o Scáth Cumhacht dentro de si. Tinha sentido alguma coisa — alguém? — puxar os feitiços que ela tinha guardado na mente, como se quisesse roubá-los, mas a presença passara por Varina sem tocá-la. Bem ao norte, ela viu a bola de fogo de um téni-guerreiro cruzar o horizonte em direção ao inimigo, depois outra e mais outra, esta de um téni perto dela. Nenhum deles foi tocado.
Varina ouviu os offiziers gritando para virar os gardai para o oeste mais uma vez. A maré que os arrastou pelo caminho diminuiu, parou e depois começou a fluir para o outro lado. Eles ficaram parados em meio à correnteza. Leovic e Niels ainda seguravam seus braços, mas Varina percebeu que eles observavam.
— Vão — ela disse para os dois. — Eles precisam de vocês. Eu seguirei como puder.
— A’morce — reclamou Niels.
— Vão — repetiu Varina.
Eles a deixaram e correram na direção de um dos offiziers chevarittai. Varina viu Leovic e Niels serem levados pela multidão. Ela seguiu depois, bem mais lentamente, mancando. Uma multidão de gardai passou por Varina, gritando. Ela ouviu o barulho da batalha recomeçar adiante, mas todos os feitiços pareciam estar vindo dos ténis-guerreiros da fé concénziana e dos numetodos, não dos ocidentais.
Varina estava entre os corpos dos que caíram durante a retirada, a maioria vestindo uniforme azul e dourado. Era difícil ignorá-los. O pior era ver aqueles que não tinham morrido, mas que estavam feridos demais para andar, estendendo suas mãos, pedindo socorro enquanto ela passava ou rastejando em direção à cidade. Para esses, Varina só podia dizer que a ajuda estava chegando em breve para resgatá-los — e torcer para que fosse verdade.
Mas ela estava procurando por uma pessoa em especial.
Varina viu um corpo a sua frente, à esquerda, vestindo um robe verde de téni. Pensou que pudesse ser um dos ténis-guerreiros, mas então viu o rosto.
O rosto de Nico.
Ignorando as pernas doloridas, Varina correu até ele, se ajoelhando a seu lado. Nico parecia ileso: não havia sangue em seu robe, seu rosto sujo e escuro tinha velhos cortes e hematomas, mas tirando isso parecia incólume.
— Nico? — ela disse, rolando seu corpo sobre suas costas procurando desesperadamente por algum sinal de ferimento.
Ele abriu os olhos, e sorriu.
— Oi, Varina. Acho que dormi. Você viu minha matarh?
Era a voz de um menino. A voz de uma criança. Nico se sentou e olhou a sua volta, arregalando os olhos ao perceber os gardai correndo aos gritos e brandindo espadas; os corpos caídos ao redor; os vapores e a fumaça do campo de batalha; a terra pisoteada que um dia tinha sido o campo de um fazendeiro. Ele se ajeitou e ficou sentado com as costas eretas.
— Varina — disse Nico com a voz trêmula, obviamente com medo, ele pegou os braços dela com força. — Estou assustado, Varina. Leve-me para casa. Por favor. Eu não quero ficar aqui.
— Nico, o que você fez?
Ele parecia amedrontado com a pergunta e se afastou de Varina.
— Eu não fiz nada, juro. Só quero ir para casa. Quero ver a minha matarh. Quero ver Talis.
Varina o abraçou.
— Nico, Talis e Serafina... partiram.
— Para onde eles foram? — ele perguntou.
Não havia malícia em seus olhos, só a pergunta inocente.
— Nico...
Ela não podia responder. Varina o abraçou de novo. O que quer que Nico tivesse feito, seja lá como o fez, o esforço obviamente lhe custara a mente. Este não era mais o Absoluto dos morellis. Este não era mais Nico, o grande téni. Ele se agarrou a Varina como uma criança a sua matarh, e ela sentiu seu corpo tremer de pânico e angústia.
Gardai ainda passavam por eles; o barulho da batalha e os trovões dos feitiços dos ténis-guerreiros eram ensurdecedores.
— Nico, vamos — falou Varina. — Vamos sair daqui. Não é seguro. Você pode vir pra minha casa. Gostaria disso?
Ele assentiu urgentemente, abraçado a ela. Varina o levantou.
Juntos, eles seguiram cambaleando para leste, em direção à cidade.
Atl se sentiu nu e desprotegido, seu cajado mágico tinha sido esvaziado em poucos instantes por aquele terrível feitiço do leste, e agora a batalha tinha sido subitamente renovada, quando já deveria estar acabada.
Em vitória. Na vitória que Atl tinha visto. Na vitória que Atl tinha dito para o tecuhtli que seria dele. Atl se lembrava da visão do taat, aquela que Niente alegara ter visto, o caminho que Atl tinha sido incapaz de ver, que ele pensava que era mentira do taat. Isso não era possível.
Citlati se enfureceu com Atl enquanto bolas de fogo dos nahualli orientais caiam perto dos dois.
— Detenham-nos! — berrou o tecuhtli. — Maldito seja, nahual! Detenham-nos!
Mas tudo o que Atl pôde fazer foi balançar a cabeça.
— Eu não tenho poder, tecuhtli. Nenhum dos nahualli tem. Ele foi tirado de nós.
Os feitiços sumiram, e não havia tempo agora para preparar novos e colocá-los nos cajados mágicos.
— Você me prometeu a vitória, nahual! Você me prometeu a cidade!
Citlali choramingou como uma criança sem seu brinquedo favorito, mas não havia nenhuma resposta para essa situação. Seu rosto ficara tão vermelho de raiva que a águia vermelha pareceu se misturar a sua pele.
Não haverá uma vitória, Atl queria dizer para ele. Ou, se houver uma, não será a vitória que eu vislumbrei na tigela. Os caminhos da tigela premonitória tinham sido apagados. Tudo mudou. Eu nunca tinha visto esse caminho antes. Não sei para onde ele leva.
Como seu taat tinha avisado. Sua mão tateou a bolsa, onde o pássaro entalhado que o taat lhe dera estava aninhado. Se um de nós vir o rumo, então podemos contar para o outro que o Longo Caminho está aberto... Será que Niente estava certo: será que esse Longo Caminho existia, aquele que Atl não conseguia ver?
Ele desejou que seu taat estivesse ali.
Citlali ainda estava furioso, mas a atenção de Atl estava voltada para o pássaro entalhado na bolsa. Ele pareceu farfalhar, como se estivesse vivo e batendo as asas em pânico. Atl abriu a aba de couro e meteu a mão dentro. Sim, a coisa estava se mexendo. O pássaro ficou imóvel quando Atl o tirou para fora, e, assim que o fez, ele pôde ouvir a voz inconfundível de Niente.
— Tototl está voltando para os navios. Você tem que ir também! O Longo Caminho está aqui.
— Taat?
Não houve resposta. Atl soltou o pássaro entre seus dedos que há muito tinham perdido a força. Ele viu o objeto cair no chão, se perdendo entre os caules dos grão pisoteados na terra. A voz de seu taat soara tão fraca, tão perdida, e Atl foi tomado pela certeza de que jamais a ouviria novamente.
— Tecuhtli — chamou Atl. — Temos que recuar e encontrar os navios. Estamos sem magia. Não teremos nenhuma até que possamos descansar novamente.
— Não! — disparou Citlali. — Eu tomarei a cidade hoje.
— Não é possível agora — respondeu Atl.
— Como você sabe? — disse Citlali, com desprezo. — Nada do que você me disse era verdade. Você não é mais o nahual. Eu encontrarei outro. Farei de Niente o nahual novamente.
Citlali ergueu a espada contra Atl, como se estivesse prestes a atacá-lo, Atl ergueu seu cajado mágico inutilmente.
Alguém gritou na língua dos orientais para os dois, e um cavalo de guerra rompeu o anel em volta de Citlali e Atl, conduzindo um guerreiro coberto de sangue e terra, sem elmo e com uma espada chanfrada na mão. Ele investiu diretamente contra Citlali, e o tecuhtli deixou Atl de lado para aparar o golpe do homem. O aço retiniu em aço, e Atl viu uma lasca da lâmina de Citlali sair voando e girando. Quando os cavalos de guerra se aproximaram, Citlali empurrou o oriental, e o homem caiu do cavalo. O tecuhtli riu.
— Viu só? — disse ele. — Viu só como eles caem facilmente? E você me diz para recuar?
O oriental estava lutando para ficar de pé, meio aturdido, apoiando-se em uma perna. Parecia que ele não seria capaz sequer de erguer sua espada. A sua volta, Atl viu os uniformes pretos e prateados e azuis e dourados dos orientais, embora os três permanecessem sozinhos em um nexo tranquilo em meio ao caos. Vários guerreiros caíam sob a pressão, os feiticeiros inimigos lançavam sua magia, e os nahualli eram incapazes de reagir. Citlali pulou do cavalo; Atl viu sua bota pisar sobre o pássaro vermelho entalhado no chão revirado e lamacento. O tecuhtli ergueu a espada novamente. O golpe, Atl viu, arrancaria a cabeça do oriental.
Atl ergueu seu cajado mágico vazio novamente, e o desceu com força no crânio de Citlali. O som emitido foi estranhamento baixo, como um pau batendo em um melão maduro, mas o tecuhtli caiu inconsciente aos pés atordoados do oriental. O homem olhou para Atl, que devolveu o olhar. Por um instante, nenhum dos dois se mexeu, então, enquanto Atl observava, montado em seu cavalo, o oriental ergueu sua espada e a enfiou no pescoço de Citlali.
— Perdemos o tecuhtli! — Atl gritou alto para que os guerreiros perto dele pudessem ouvi-lo. — Perdemos o tecuhtli. Recuar! De volta para os navios!
Enquanto os guerreiros reagiam, enquanto começavam a abandonar o combate e recuar, enquanto os orientais berravam em triunfo, Atl encarava o oriental. O homem se apoiava na espada, ainda cravada no pescoço de Citlali. Atl o cumprimentou com a cabeça.
Em seguida, ele puxou as rédeas do cavalo e começou a longa fuga para o oeste.
A Aurora
Eles foram perseguidos pelo exército de azul e dourado e preto e prata, foram caçados enquanto recuavam em direção ao rio e aos navios à espera, mas não intensamente. Os retardatários tinham sido abatidos, mas os exércitos principais não foram enfrentados novamente. Ficou claro que os orientais estavam felizes em escorraçá-los de sua terra, mas não exigiriam o extermínio do inimigo se eles estivessem dispostos a ir embora.
O exército vislumbrou os mastros dos navios da frota no segundo dia, a cerca de quinze quilômetros rio acima a partir de Nessântico, os tehuantinos subiram a bordo o mais rápido possível. Tototl, que se nomeara como tecuhtli, entrou no Yaoyotl e virou a frota para oeste assim que os guerreiros sobreviventes e os nahualli subiram a bordo. Ele afundou os barcos vazios, em grande número, no meio do rio para desencorajar a perseguição por parte de qualquer embarcação da marinha dos Domínios.
Eles navegaram A’Sele abaixo, sendo levados rapidamente pela correnteza em direção ao mar.
De volta para casa.
Atl, a bordo do Yaoyotl, olhou fixamente para a bruma verde da tigela premonitória. Tototl o observava atentamente; seu crânio agora estava pintado com o desenho da águia que em breve seria permanentemente tatuado em sua pele.
A miríade de futuros se espalhou diante de Atl; eles não estavam mais encobertos e difusos como tinham estado. Era como se Axat tivesse tirado um véu diante do rosto de Atl. Ele podia ver com mais clareza agora, todas as incertezas que encobriram as possibilidades por tanto tempo tinham sido sopradas para longe como nuvens tempestuosas. Os futuros estavam abertos para o nahual, todas as possibilidades.
O que ele viu o fez ofegar. O Longo Caminho... Este era o futuro que seu taat tinha visto, que ele sempre dizia que estava lá. Atl percebeu então que Niente sabia que preço que o Longo Caminho cobraria: para alcançá-lo, ele devia morrer, e o tecuhtli Citlali também seria morto, se ele quisesse que esse futuro se concretizasse; e um grande número de guerreiros também deveria morrer. Por quanto tempo o senhor manteve esse segredo, taat? O senhor sabia antes mesmo de nós partirmos?
Atl suspeitava que sim. Isso explicava muita coisa. Explicava por que Niente nunca quis que ele usasse a tigela premonitória. Esse tinha sido o gesto de um pai protetor, não o de um nahual enciumado. Essa compreensão fez Atl lamentar as palavras duras que os dois tinham trocado.
— Eu voltarei a esta terra? — perguntou Tototl duramente, interrompendo os pensamentos de Atl e fazendo com que a bruma verde oscilasse com sua respiração a ponto de Atl quase perder a visão. — Eu vingarei nossa derrota?
Atl também pôde ver esse futuro: os navios novamente carregados com um exército, um ainda maior que o de Citlali, voltando pela terceira vez àquelas praias. Mas, dessa vez, os exércitos dos Domínios eram um só e os atacaram prematura e furiosamente; a maioria dos homens estava armada com armas terríveis, como aquelas que Tototl e Niente tinham testemunhado durante suas batalhas. Os guerreiros tehuantinos foram abatidos como trigo por uma foice e a terra bebeu seu sangue.
Era um futuro terrível, mas um futuro que poderia facilmente acontecer.
Mas o outro... aquele que se estendia até ser engolido pelas brumas. Este também era possível, se Atl direcionasse Tototl para esse caminho. Seria necessária habilidade e exigiria sacrifício, mas o futuro estava lá, e ele podia ver a mão de Niente sobre ele.
— O senhor fará mais do que isso, tecuhtli — respondeu Atl. — Um dia, o senhor promoverá a paz com os orientais. Seu nome será homenageado em todas as partes da nossa terra. Todos os tecuhtli que vierem depois serão comparados ao senhor. O senhor será eternamente conhecido como o Grande Tecuhtli.
As brumas enfraqueceram agora, Atl pegou a tigela e jogou a água em seu interior sobre a lateral do navio. Ele entregou a tigela para um nahualli de menor escalão.
— Limpe isto — ele disse para o homem — e coloque de volta na minha cabine.
Ele podia sentir o cansaço do X’in Ka martelar seu corpo, e seu olho esquerdo piscar incomodamente. Atl apertou bem os olhos e os abriu novamente. Tototl o observava.
— Paz? Como um guerreiro encontra honra na paz? Como um guerreiro se torna grande sem guerra e vitória?
Atl respirou profundamente. Olhou para o oeste, para a fumaça e os vapores de Nessântico, para o lugar onde o corpo de Niente jazeria para sempre.
— Eu vou lhe mostrar — disse o nahual. — Juntos, nós nos manteremos naquele caminho.
— Veja-me fazer — ela disse para Nico. — Aí eu quero que você tente fazer sozinho. Está vendo? Olhe só, você faz um laço com o cadarço assim, depois pega a outra ponta e passa uma vez pela base do laço, e...
Ela ouviu uma batida na porta do quarto enquanto amarrava as botas de Nico.
— A’morce?
— Entre — respondeu ela.
Michelle entrou, com Serafina no colo. O bebê estava enrolado em renda, e Michelle segurou a criança com um gesto protetor ao olhar desconfiada para Nico, que estava sentado na cama. Ele virou o rosto ingênuo para olhar para a ama de leite.
— Esta é Serafina? — Nico perguntou para Varina, com ansiedade na voz.
— Sim.
Ele baixou o olhar, quase envergonhado.
— Posso... posso segurá-la?
Michelle balançou a cabeça ligeiramente, mas Varina sorriu para ele.
— Só um pouquinho. E você precisa tomar muito cuidado com ela.
Varina acenou com a cabeça para Michelle que, ainda com a testa franzida, deu um passo para frente, colocando o bebê nos braços esticados de Nico.
— Segure bem a cabeça dela — disse Varina. — Sim, desse jeito. Muito bem...
Nico sorriu ao embalar Serafina nos braços. O bebê se agitou por um momento, mas depois se aquietou, sendo embalado por Nico até dormir. Ele encarou o rosto da criança.
— Os olhos são tão grandes — perguntou Nico com um ar de admiração. — E as mão são muito pequenininhas. Ela é mesmo minha filha?
— Sim. Sua e de Liana.
Varina acariciou a cabeça de Sera. Seu cabelo era fino como uma penugem, a pele macia e quente. Sua mãozinha se sacudiu, encontrando o dedo de Varina e o agarrando. Ela riu.
Nico balançou a cabeça, observando a interação.
— Eu não me lembro de Liana. Eu não sei como...
— Eu conto para você um dia — disse Varina. — Agora, nós temos que nos aprontar para ir ao funeral da kraljica. Aqui...
Ela estendeu as mãos, e Nico colocou Serafina ali com cuidado. Varina ouviu o suspiro audível de alívio de Michelle. Ela beijou a testa de Sera e a abraçou por alguns instantes antes de devolvê-la para a ama de leite?
— Ela está alimentada?
— Alimentada, vestida e pronta para ir — respondeu Michelle. — Eu tenho uma muda de roupas e fraldas. Eu subi para dizer para a senhora que a carruagem do palácio já chegou.
— Ótimo — disse Varina. — Vá na frente, entre com Sera e a acomode. Nico e eu desceremos em breve. Eu só tenho que terminar as botas dele.
Michelle olhou furtivamente para Nico novamente.
— A’morce, esse rapaz é perigoso. O que ele fez...
— O que ele fez com os tehuantinos nos salvou — respondeu Varina. — E ele pagou um preço mais caro do que a maioria de nós estaria disposta a pagar.
— Ele pode estar fingindo esse distúrbio ou recuperar a capacidade mental. E aí?
Nico não disse nada enquanto elas discutiam sobre ele, apenas olhava de uma mulher para a outra enquanto as duas falavam.
— Aí — falou Varina —, nós cuidaremos disso quando acontecer.
Ela já tinha ouvido essa mesma pergunta uma dezena de vezes ou mais. Havia aqueles dentro do Conselho e entre os ca’ e co’ da cidade e os ténis da Fé que queriam que Nico fosse julgado e executado pelas mortes que causou e pelo dano ao Velho Templo durante a tomada dos morellis. Quanto a isso, uma parte da própria Varina ainda estava furiosa com ele pela destruição e pelas mortes que ele tinha, assumidamente, causado a seus próprios amigos durante o funeral de Karl.
Nico, na verdade, tinha que responder por muita coisa, mas ele salvara a cidade praticamente sozinho quando ela estava prestes a cair. Também não havia como negar isso — ou o fato de que o preço pelo esforço fora alto, e talvez, talvez fosse castigo suficiente. O Nico diante de Varina não parecia se lembrar de nada desse dia ou de sua vida anterior. O Nico diante dela era um inocente — ele podia habitar o mesmo corpo, mas não era o Nico que alegava ser o Absoluto. Talvez o kraljiki exigisse um castigo por seu passado, mas Varina lutaria contra isso, com todas as forças que pudesse reunir.
— Por enquanto, ele é uma criança e precisa ser tratado como tal.
— Como a senhora mandar, a’morce — respondeu a ama de leite.
Serafina chorou, e Michelle a embalou com delicadeza.
— Eu vou acalmá-la novamente, nos vemos na carruagem.
Quando Michelle saiu do quarto, Varina se abaixou de novo para amarrar os cadarços das botas de Nico, que a observava com o cenho franzido.
— Está tudo bem Nico — disse ela. — Michelle não está chateada com você. Está apenas preocupada, como eu. Agora, veja como eu faço e vamos ver se você consegue amarrar o outro cadarço. Faça um laço assim, depois passe a outra ponta em volta dele...
Os ténis já estavam presentes no Templo do Archigos. A a’téni Valerie ca’Beranger, de Prajnoli, realizaria a cerimônia — os rumores diziam que ela provavelmente seria eleita como archigos quando o Colégio A’téni se reunisse em poucos dias. Brie conduziu os filhos pela nave ladeada por e’ténis de robe branco — a cor do luto — com bordas verdes. Os ténis a observavam, em silêncio: como fileiras de ossos brancos apontando na direção da Pedra de Cénzi, enquanto Brie e os filhos subiam à plataforma e se aproximavam do altar e da grande Pedra de Cénzi, coberta por um pano azul-celeste reluzente.
— Ali — sussurrou Brie para Elissa, Kriege, Caelor e Eria.
Sua voz soou alta sob o domo, e ela ergueu os olhos uma vez para os afrescos de Cénzi e dos moitidis bem acima delas.
— Esta é sua mamatarh, Allesandra. Ela foi uma grande mulher e me disse que queria muito ter conhecido todos vocês. Eu gostaria que vocês a tivessem conhecido quando ela estava viva.
Não era assim que Brie pretendia que os filhos conhecessem sua mamatarh. Ela tinha tido esperanças de apresentá-los à mulher, não ao corpo morto. Ela se perguntou se não teria sido melhor ter deixado as crianças em Brezno durante o funeral, mas então elas teriam perdido a coroação do vatarh.
— Aqui é feio — dissera Elissa ao desembarcar da carruagem no palácio; a menina olhou em volta para os prédios destruídos e marcados pelo fogo e pela guerra. — Tem um cheiro horrível também. Brezno é bem mais bonito, matarh. Por que nós não podemos ficar lá?
— Nessântico é nosso lar agora — respondera Brie. — E nós faremos a cidade ficar mais bonita e impressionante do que Brezno, como ela era antes. Todos nós ajudaremos seu vatarh a fazer isso.
Ela esperava que isso não fosse uma mentira.
Agora, no Templo do Archigos, eles olhavam para mais uma ruína, a da kraljica.
Eria ficou para trás, com um polegar plantado na boca. Ela se recusou a sequer se aproximar do esquife e se contentou em olhar para o corpo enquanto se agarrava à tashta de Brie. Caelor só se aproximou de maneira hesitante e se afastou rapidamente em direção a sua matarh. Kriege caminhou para a frente de mansinho, com uma expressão séria no rosto, e olhou para a face pintada de branco, dando um passo para trás em seguida, fungando como se pudesse sentir o cheiro mesmo com o escudo antiodor que os ténis tinham colocado em volta do corpo. Elissa, que tinha se aproximado com Kriege, permaneceu ali, olhando para o corpo como se tentasse memorizar cada detalhe dele: as rugas na face da mamatarh; a máscara funerária dourada que os ténis colocariam no rosto de Allesandra em apenas uma virada da ampulheta, quando as portas do Templo do Archigos seriam abertas para que o funeral pudesse começar; o cetro de ferro do kraljiki Henri VI em sua mão esquerda; o anel com o sinete dos kralji à mostra na palma direita, virada para cima, que Jan pegaria quando o ritual do funeral tivesse acabado. O pano azul sobre o altar estava coberto por coroas de flores amarelas. Sete candelabros estavam dispostos em volta da pedra, acesos não com chamas, mas com as luzes brilhantes dos ténis, banhando o corpo com uma iluminação branco-amarelada tão intensa que parecia que o domo do templo tinha sido levantado para que o sol pudesse brilhar sobre a kraljica.
Elissa tocou o braço de Allesandra com um dedo hesitante, depois olhou para sua ponta como se fosse um objeto estranho.
— Ela está fria — relatou Elissa. — E meio dura.
— É o que acontece quando alguém morre.
— Ah! — Elissa pareceu considerar aqui. — Mas o rosto está bonito.
Brie ouviu a voz de Jan, conversando com Sergei ca’Rudka, o starkkapitän ca’Damont e o comandante ca’Talin na lateral do coro. Talbot, o assistente de Allesandra, que tinha concordado em permanecer como assistente de Jan, pigarreou perto dos bancos.
— Hïrzgin, eles já estão prontos para deixar os ca’ e co’ entrarem no templo. Eu vou avisar o hïrzg e os demais; a senhora ainda tem um algum tempo, mas...
Ela assentiu, e Talbot se retirou.
— Não toque nisso — disse Brie para Elissa, que estendeu uma mão hesitante em direção ao anel; ela recolheu a mão como se a tivesse queimado.
— Eu não ia tocar — disse ela. — Esse vai ser o anel do vatarh?
— Sim, em breve — respondeu a matarh.
— E será meu algum dia?
Kriege encarou Elissa.
— Não é justo, matarh — ele gritou, ecoando sua voz estridente sob o domo.
Brie viu as fileiras de ténis se mexerem, e alguém riu, um som rápido, brevemente sufocado.
— Ela fica com tudo.
A hïrzgin podia ouvir Talbot rindo enquanto percorria a nave em direção a Jan. Ela riu também.
— Ninguém vai ficar com o anel; ao menos não por muito tempo, até que vocês todos estejam crescidos. Veremos na ocasião, então. Pode ser que nenhum de vocês dois queira.
— Então eu fico com ele — interrompeu Caelor. — É um anel bonito.
Brie riu.
— Vamos — ela falou para os filhos. — Precisamos tomar nossos lugares...
As trompas tocaram um lamento grave e fúnebre que fez os pombos irromperem em revoada do chão da praça, do lado de fora. Lá dentro, Rochelle podia sentir a parede do templo pulsar em suas costas. Ela tinha entrado no templo sorrateiramente por uma porta traseira, tinha arrombado a fechadura bem antes da aurora, deslizando pelo mezanino do coro ao longo de um canto nas sombras, atrás do arco de um dos pilares, onde poderia olhar o coro, o esquife e os bancos mais próximos.
Rochelle pensou ter sentido o cheiro de fumaça dali: não apenas o aroma pungente dos incensários no altar, mas da fumaça remanescente do bombardeio de areia negra dos tehuantinos, impregnado sob os arcos pintados do domo. Ela tinha se sentado, escondida, ali por várias viradas, esperando. Ela tinha visto os ténis de robe branco formando suas fileiras; o coro se instalando nos assentos não muito longe dela.
Ela tinha visto seu vatarh e sua família entrarem para ver o corpo no meio da manhã, tinha visto Brie conduzir as crianças à frente, depois dela e Jan prestarem sua homenagem.
Os filhos... O pensamento deveria ter sido sua matarh e ela lhe ocorreu, se ao menos as coisas tivessem sido diferentes, mas então Rochelle balançou a cabeça. Não, ela disse para si mesma, com firmeza. O relacionamento deles jamais teria sobrevivido com as mentiras e a loucura da matarh. Jamais teria acontecido. Esse nunca foi meu destino. Não minta para si mesma. Você só pode ser a filha bastarda, nunca a legítima.
Rochelle se perguntou o que seu futuro lhe reservava, e ela não tinha resposta para isso. Sua mão desceu para o cabo adornado da adaga que ela tinha roubado de seu vatarh, a adaga com a qual ela esperava matar sua mamatarh. A madeira lisa do pomo pareceu pulsar sob seus dedos.
A família se afastou do esquife. Ela os viu se acomodarem em seus bancos, ouviu as portas se abrirem assim que as trompas começaram a soar o chamado fúnebre e doloroso mais uma vez, e os ca’ e co’ entraram no templo. O coro a assustou quando começou a cantar uma das obras etéreas e fúnebres de Darkmavis. Os tons ascendentes e as harmonias opressivas ecoaram, altas e insistentes, passando por ela e se propagando para o domo do templo, e a envolveram como um manto.
Pareceu levar uma eternidade para o público do funeral entrar entre as fileiras de ténis de robe branco e se acomodar nos bancos. De seu esconderijo, Rochelle observou os bancos da frente, viu seu vatarh e seus meios-irmãos, assim como a mulher que tinha tomado o lugar de sua matarh: Brie, a quem agora chamavam de a Vitoriosa da Margem Sul e a quem a multidão saudava tão alto quanto Jan. Ela viu Sergei na fileira atrás dele, sentado ao lado da mulher numetodo, carregando uma criança nos braços.
E ao lado dela estava Nico, irrequieto como uma criança entediada. A a’morce não parava de se virar para falar com ele baixinho, e Rochelle notou que Sergei observava o jovem com atenção. Nico — ela se perguntou se era verdade o que diziam sobre seu irmão, que ele tinha perdido a sanidade mental e não era mais que uma criança. Vê-lo daquela maneira doía mais do que tudo, pensou Rochelle.
A a’téni ca’Beranger finalmente surgiu detrás do coro e começou a cerimônia, auxiliada por um grupo de ténis do alto escalão se movendo em torno dela com incensários, taças, o cajado do globo partido e os pergaminhos do Toustour e da Divolonté. Rochelle quase cochilou durante a maior parte da cerimônia e se mexeu apenas quando Jan se levantou para dar a Admoestação. Ela viu seu vatarh caminhar até o Alto Púlpito — andando como um velho, apoiado em uma bengala segurada com firmeza junto ao corpo. Talbot se mexeu para ajudá-lo, e ela notou que Jan balançou a cabeça para o homem. Lentamente, ele subiu os degraus do Alto Púlpito, se recusando a deixar que seus ferimentos o detivessem. Ela viu Jan olhar para a plateia e, em seguida, encarar o corpo de sua matarh por vários instantes antes de falar.
— É costume dizer o quanto uma matarh foi gentil e maravilhosa em vida — ele disse, finalmente, e sua voz de barítono ecoou na ótima acústica do templo. — Eu não vou dizer essa mentira. Ela talvez não tenha sido a melhor matarh que eu poderia ter. Eu era seu filho único, mas não era o filho com o qual a kraljica Allesandra mais se importava.
“Esse filho, o único filho que ela teve, era Nessântico. Os Domínios. Para Nessântico, ela foi uma excelente matarh: uma matarh forte e vigorosa, que realizou o que poucos conseguiriam. A kraljica Allesandra restaurou Nessântico quando a cidade estava em ruínas. Evitou que os Domínios se partissem quando, em mãos menos capazes, eles teriam desmoronado e se dissolvido. Ela protegeu Nessântico quando, pela segunda vez, a cidade foi atacada por invasores estrangeiros. A kraljica Allesandra deu todo o amor, energia e atenção para essa cidade e esse império, e quando foi exigido seu sacrifício, ela se dispôs a dar sua vida para Nessântico como pagamento final.
Jan fez uma pausa longa, respirando profundamente, como se falar o esgotasse. Rochelle se debruçou. Eu estava disposta a tirar a vida da kraljica. Eu teria feito isso, matarh, mas cheguei tarde demais. Sua mão ainda estava no cabo da faca. O vatarh ergueu seu olhar, como se tivesse visto um movimento ou pudesse, de alguma forma, sentir a atração da faca que Rochelle lhe tinha roubado. Ela recuou para as sombras. Seus olhos, bem abaixo, pareciam encará-la, apesar da distância.
— Celebrem Allesandra ca’Vörl — continuou Jan, voltando a olhar para a plateia. — Celebrem sua gestão dos Domínios, pois quando os Domínios estiveram à beira do abismo, ela evitou que o império caísse. Isso foi um golpe de mestre. Isso foi genial. Isso foi passional. Estas eram qualidades que minha matarh possuía em abundância. E essas eram exatamente as qualidades que Nessântico precisava, e ela chegou no exato momento em que Nessântico exigiu sua presença. Nessântico teve sorte em tê-la, com suas habilidades e nesse momento. Ainda que eu não tivesse dado valor na maior parte do tempo.
Uma risada fraca percorreu a plateia nesse momento, soando deslocada no templo.
— Nós saímos vitoriosos de uma guerra terrível — continuou Jan —, em grande parte por causa das atitudes da kraljica Allesandra. Eu só posso esperar, seguindo seus passos, que eu seja capaz de fazer o mesmo, que eu possa ser seu filho e que eu construa a partir de seu legado. Os Domínios foram unificados novamente, a Fé foi unificada novamente, mas há desafios a nossa frente que vão nos testar, a todos nós. Eu sei que ela está nos observando nos braços de Cénzi. Espero que nós possamos fazê-la sentir orgulho pelo que conquistamos.
Jan abaixou a cabeça. Rochelle pensou que ele fosse falar mais, mas ele fez o sinal de Cénzi para a plateia e saiu do Alto Púlpito — lentamente, mais uma vez, ecoando o som alto da bengala no silêncio. Ele voltou para seu lugar enquanto a a’téni e seus assistentes retornavam ao altar. Quando eles começaram a circular o esquife, entoando e balançando os incensários, Rochelle recuou para o nicho, recostando sua espinha sobre a pedra fria.
O que eu faço, vatarh? O que eu faço para o senhor ter orgulho de mim?
Ela podia sentir a pressão do cabo da adaga na lateral de seu corpo ao se agachar, se apoiando no pilar do templo. Se Nessântico passasse a ser a paixão do vatarh, como tinha sido a de Allesandra, se — o que ele disse sobre Allesandra fosse verdade — os Domínios passassem a ser seu filho único, então ela compartilharia essa paixão com Jan. A matarh de Rochelle lhe ensinara uma habilidade ímpar; e ela a usaria, então.
Eu não serei a Pedra Branca, não, eu me tornarei a Adaga de Nessântico.
Rochelle assentiu. Ela permaneceria nas sombras. Seria genuinamente a filha de Jan. Serviria aos Domínios da sua própria maneira.
Sim.
O coro começou a cantar mais uma vez, e Rochelle fechou os olhos, se permitindo mergulhar no som etéreo, tão insubstancial e misterioso quanto ela seria.
A procissão em volta do anel da alameda da Avi a’Parete foi longa e lenta e — Jan podia ver a multidão se alinhar pela Avi, esperando pela passagem da kraljica — necessária. A multidão se estendia pela alameda em várias fileiras de ambos os lados da Avi, até onde sua visão podia alcançar. Suas expressões eram solenes: muitos choravam abertamente. Jan se deu conta de que, assim como Allesandra amara a cidade, a cidade passou a amá-la e a valorizá-la em retribuição.
Jan só podia esperar que fizessem o mesmo por ele nos próximos anos.
Jan fez uma careta quando a carruagem em que estava encontrou um buraco irregular no pavimento; o impacto comprimiu suas costelas, irradiando a dor até seus ombros. Ele sentiu os cortes que os curandeiros tinham costurado há dias se repuxarem quando ele tentou se ajeitar no assento. Ele lutou para demonstrar o mínimo de incômodo possível para as multidões. Jan sorriu e acenou. Em sua mão, o anel com o sinete dos kralji reluziu.
O cortejo fúnebre de Allesandra lembrou o da grande e amada kraljica Marguerite. Nenhum dos kralji, entre Marguerite e Allesandra, tinham recebido uma manifestação tão formal. O kraljiki Justi, filho de Marguerite, tinha sido ironizado e desprezado; o povo da cidade na verdade ficou feliz com sua morte, e seu esquife saíra diretamente do Templo do Archigos para o palácio. O reinado do filho de Audric tinha sido ainda pior, embora a curta regência de Sergei tivesse mantido a cidade estável. Mas assim que a regência terminou prematuramente, a loucura de Audric e seu comportamento excêntrico prejudicaram ainda mais os Domínios, e o assassinato do kraljiki foi — muitos consideraram — uma bênção. A kraljica Sigourney, sucessora de Audric, cometera suicídio quando os tehuantinos saquearam e queimaram a cidade, e seu corpo fora profanado pelos ocidentais: Jan se lembrava disso muitíssimo bem.
Com a morte de Sigourney e a cidade em ruínas fumegantes em volta de Jan, ele poderia ter tomado o título de kraljiki para si; em vez disso, ele escolheu dar Nessântico e os Domínios para sua matarh: um gesto irônico.
E ela transformou essa ironia em uma verdadeira dádiva, Jan tinha que admitir. Isso estava claro para ele agora.
A carruagem de Jan, puxada por três cavalos brancos em um arnês de quatro cavalos, seguiu imediatamente atrás do esquife. Ele ouviu o cântico dos ténis caminhando ao lado do esquife, que parecia flutuar em uma nuvem branca. Sobre o corpo, imagens enormes da kraljica apareciam e desapareciam: exibindo suas imagens como era representada pelo quadro oficial; na inauguração do domo reconstruído do Velho Templo; sorrindo ao descer da sacada durante o Gschnas.
O cheiro das flores a acompanhava, assim como o som dos músicos na carruagem sem teto a frente do esquife, tocando Darkmavis e ce’Miella: uma fusão do antigo com o moderno.
O velho cedendo o lugar para o novo. Jan considerou aquilo fascinante.
— Olhe, eles estão aplaudindo o senhor, vatarh — disse Elissa com alegria, enquanto ela mesma apontava e acenava.
E era verdade: à medida que o esquife passava, e logo depois da carruagem sem teto, o luto virava aplausos e sorrisos.
— Eles gostam do senhor.
— Eles estão aplaudindo porque não têm escolha — respondeu Jan, e Brie franziu a testa.
— Jan...
— É verdade, e as crianças devem saber disso — respondeu ele.
Jan se inclinou na direção de onde os filhos estavam sentados, ignorando o puxão dos pontos e a pontada no peito.
— As pessoas aplaudem desde que pensem que você vai manter a comida em suas barrigas e um teto sobre a cabeça delas. Elas também aplaudem quando temem você, porque têm medo de que, se não aplaudirem, sejam punidas. Não confundam os sorrisos e aplausos com algo mais do que uma fachada.
Ele sentiu a mão de Brie apertar seu braço.
— Querido, por favor. Eles não entendem o que você está dizendo, e você apenas está assustando as crianças. E não deveria ser tão cínico. Não hoje, entre todos os dias.
Ela estava certa, e Jan sabia disso. Ele viu o cabo adornado da chispeira dentro de uma bainha de couro estampada em relevo: a linda chispeira com que Varina e os numetodos a tinham presenteado após a batalha. Os cidadãos de Nessântico estavam aplaudindo sua esposa, Jan sabia: o sucesso do grupo de chispeiros já era uma lenda na cidade, e parecia que a a’hïrzg se tornara uma favorita da cidade.
— Desculpem-me — ele disse para a esposa e os filhos. — Você está certa...
Eles continuaram a dar a volta pela alameda circular, e Jan continuou a sorrir e a acenar. Porque era o que se esperava dele. Porque era seu dever. Eles passaram ruidosamente pela Pontica a’Kralji onde, em jaulas de ferro, o esqueleto do téni-guerreiro ocidental que Sergei matou e dos tehuantinos ocidentais expunham seu triunfo sangrento. Jan mal olhou para os corpos.
A procissão terminou no pátio do Palácio da Kraljica ao anoitecer. O esquife flutuou na nuvem mágica até o pico de uma pilha de toras embebidas em óleo, colocada bem longe das alas do palácio, no centro dos jardins da kraljica: a pira mandaria a alma de Allesandra para os braços de Cénzi. Os ca’ e co’ da cidade, dos Domínios e da Coalizão, os chevarittai em seus uniformes de gala azuis e dourados e negros e prateados, Sergei ca’Rudka, o starkkapitän ca’Damont, o comandante ca’Talin da Garde Civile: todos viram Jan e sua família descer da carruagem.
Jan olhou uma última vez para o corpo de sua matarh. Ele acenou com a cabeça para Talbot, que gesticulou para os ténis-bombeiros dispostos em volta da pira. As mãos dançaram juntas um balé elaborado; as vozes se juntaram em um cântico lento. Uma chama alaranjada brotou de suas mãos enquanto os ténis-bombeiros gesticulavam, como se jogassem pétalas em direção à pira. As chamas estalaram e assobiaram furiosamente, lambendo o óleo e se inflamando rapidamente. A nuvem mágica desapareceu sob um cortina branca que se contorceu e subiu à altura do telhado do palácio até ser espalhada no céu pelo vento. As chamas tocaram o esquife; Jan viu as flores se contorcerem e se enroscarem enquanto o corpo de Allesandra se perdia em uma onda de calor e fumaça. Os furiosos estalos das chamas ecoaram nos muros do palácio e o calor insistente fez todos se afastarem a alguns passos da pira.
Um pedaço de lenha entrou em colapso na pira, disparando fagulhas frenéticas para o alto. Jan se deu conta de que tinha ficado assistindo ao fogo por mais tempo do que pensava, de que o céu estava ficando escuro.
— Podemos ir agora, kraljiki — disse Talbot; o título soou estranho para Jan. — Eles já estão no salão...
O Salão do Trono do Sol estava lotado. As janelas do longo aposento reluziam com as chamas vermelhas da pira, e a grande janela atrás do trono mostrava o céu do crepúsculo, com um tom intenso de violeta e as primeiras estrelas começando a brilhar. O Conselho dos Ca’ estava sentado à frente do trono, com outros dignitários. A a’téni ca’Beranger esperava com Talbot ao lado do Trono do Sol. Brie deixou as crianças com as babás e se aproximou da plataforma do trono, ao lado de Jan.
O Trono do Sol. A enorme cadeira esculpida a partir de um único cristal enorme que tinha a altura de mais de dois homens e um tom branco semitransparente e sarapintado. Ele se avultava diante de Jan e Brie. Enquanto olhava para o trono, ele girava o anel com o sinete na mão, sentindo a superfície lisa e fria do metal dourado e prateado na pele.
— Este é o seu destino, meu marido — sussurrou Brie.
Jan olhou para ela, percebendo que a esposa olhava para suas mãos.
— Você sabe disso — falou Brie. — E sua matarh também sabia.
— Ela demonstrou de um jeito estranho.
— Esse era o destino dela também. Esse era o problema. — Ela gesticulou para o trono. — Lá está ele. É seu, meu amor.
Jan olhou para Talbot. O assistente aquiesceu com a cabeça. Atrás de uma porta no fundo do salão, logo atrás do trono, dois ténis-luminosos entoavam um cântico. Talbot tinha lhe contado que, no último século, o Trono do Sol quase não reagia ao anel com o sinete e que agora a reação era criada por ténis-luminosos especialmente habilidosos e de confiança, que asseguravam que o trono se acendesse quando o kralji se sentava no cristal.
Jan riu ao saber da revelação — outro truque, outro espetáculo.
Ele subiu na plataforma, recebendo o sinal de Cénzi da a’téni ca’Beranger ao passar por ela. Ao chegar ao trono, Jan se virou para encarar a multidão. Todos o observavam.
Jan se sentou. O cristal a sua volta se acendeu com uma luz amarela intensa que parecia emergir das profundezas ocultas do trono. Ele ficou sentado, sendo banhado pela luz, enquanto a plateia se levantava e o aplaudia, retumbante.
— Eu sempre me pergunto o que teria sido dos Domínios se a senhora tivesse vivido — Sergei disse para o quadro da kraljica Marguerite. — Eu adoraria saber o que a senhora acha das coisas agora.
O vinho que ele bebeu estava fazendo sua cabeça girar um pouco. Lá embaixo, no palácio, a celebração do novo kraljiki ainda estava em andamento; lá fora, as brasas da pira de Allesandra lançavam um brilho vermelho na noite. Sergei saiu sorrateiramente das festividades através dos corredores de serviço para ir para lá, para os aposentos que tinham sido de Allesandra, e agora eram de Jan. Ele ainda segurava uma taça de vinho na mão, que ele ergueu para o retrato de Marguerite enquanto descansava em uma cadeira. Uma chama tênue — acesa para espantar o frio da noite — estalava na lareira sob o quadro; a chama e as velas acesas de ambos os lados davam uma iluminação agitada que animava o rosto pintado e austero de Marguerite. Sergei pensou que a kraljica tivesse se mexido e aberto a boca para falar com ele...
Era uma sensação perturbadora, que trouxe lembranças de Audric e sua loucura.
Sergei tomou um bom gole do vinho e enfiou a mão livre no bolso da bashta. Retirou um seixo liso e branco e manipulou sua superfície lustrosa entre seus dedos. Com o movimento, o vinho espirrou pela borda da taça, jogando gotículas em sua bashta. Ele não se importou.
— Marguerite, nós dois amamos tanto esta cidade e este império que estivemos dispostos a fazer qualquer coisa por ela. Eu me pergunto... Será que Nessântico nos ama por nossa paixão e fé? Será que ela se importa? A senhora às vezes se arrepende da vida que levou, como eu? Hum... De alguma forma, conhecendo a senhora como eu conheço, eu duvido. A senhora sempre foi tão segura de si.
Sergei ergueu a taça em brinde, depois a levou à boca, a virou e acabou com o vinho em um longo gole. Ele pousou a taça na mesa ao lado, pegou sua nova bengala e se levantou da cadeira, soltando um resmungo e um gemido.
— A senhora tem um novo parente para ficar olhando à noite — disse o embaixador para Marguerite. — vamos esperar que ele seja um bom governante, tão forte quanto a senhora foi.
Ele percebeu que ainda segurava a pedra. Ele a levou ao ouvido.
— Eu não ouço ninguém.
Sergei bateu com o seixo no nariz e ouviu o som de pedra no metal. Ele riu, cambaleou um pouco ao ficar em pé ali, e recolocou a pedra no bolso.
— O que acontece conosco quando morremos? — perguntou o embaixador para o quadro. — Cénzi realmente nos espera para nos julgar? Eu agradeceria um sinal, Marguerite. Realmente agradeceria.
O quadro olhou fixamente para Sergei à luz da lareira. O olhar pintado de Marguerite se recusava a deixá-lo ir. Finalmente, o embaixador esfregou o nariz e fungou.
— Sem resposta, hein? A senhora sempre manteve seus segredos. Bem, acho que eu vou descobri-los muito em breve.
Sergei fez uma mesura para o quadro e quase caiu. Ele tocou na pedra dentro do bolso. Saiu do aposento, deixando a taça sobre a mesa e, cambaleando, desceu pela escada de serviço novamente. Ao chegar ao corredor da criadagem perto do Salão do Trono do Sol, Sergei ouviu o barulho dos foliões, ainda conversando. Ele seguiu na outra direção e saiu no jardim. O ar fresco da noite pareceu arejar sua mente. Sergei podia sentir o cheiro de cinzas e madeira queimada — bem longe no jardim, criados estavam mexendo e espalhando os carvões da pira. Ele balançou a cabeça e esfregou a barba rala das bochechas. O embaixador deu a volta por esse lado do palácio em direção à Avi a’Parete, ainda apinhada de pedestres e carruagens, mesmo a altas horas. Do outro lado da Pontica a’Brezi Veste, ele viu a torre e as muralhas da Bastida.
Sergei respirou fundo. Contra as nuvens iluminadas pelo luar, a torre estava escura, e uma pequena luz brilhava em uma das janelas superiores, parecendo chamá-lo. A mão de Sergei, no bolso da bashta, tocou novamente o seixo da Pedra Branca.
Ele suspirou e começou a caminhar na direção contrária.
Epílogo: Nessântico
Havia outro kraljiki sentado no Trono do Sol, banhado pela luz dourada — mais um parente da grande kraljica Marguerite. Os Domínios estavam unificados novamente, e o novo kraljiki também sustentava o título de hïrzg de Firenzcia. Havia um novo archigos sentado no trono do Templo do Archigos, onde os archigi se sentavam por séculos, mas esta era uma fé concénziana alterada e enfraquecida, e muitos dos que andavam pelas ruas de Nessântico não eram mais fiéis.
No oeste distante, do outro lado do Strettosei, havia um novo tecuhtli, com um jovem nahual a seu lado.
Uma criança que se tornara um jovem poderoso voltou a ser pouco mais que uma criança novamente. E a Pedra Branca desapareceu mais uma vez, talvez para voltar ou para cair completamente em esquecimento.
Nessântico — a cidade, a mulher — não se importava. Tais movimentos não a incomodavam. A história não estava encerrada. Haveria mais discussões, mais conflitos. Tronos passariam. Vitórias e derrotas, os gêmeos rivais da guerra, se enfrentariam com novos jogadores.
Ela não se importava. A história não estava encerrada porque a história nunca termina. Não pode terminar.
As pessoas que andavam pelas ruas de Nessântico nasceriam e morreriam, para serem substituídas por outras. O Trono do Sol sentiria o peso de dezenas de futuros kralji ainda não nascidos, e eles seriam bons ou maus líderes, mas com o tempo, todos eles — independentemente de quão bons ou maus eles fossem — eventualmente sairiam da longa e infinita história.
Mas ela nunca sairia. Nessântico esteve na história desde o início. A história era dela, e não terminaria até que Nessântico chegasse ao seu fim, e ela...
Era imortal.
Sua sorte tinha mudado mais uma vez. De um reino estilhaçado, um novo e mais forte surgiria. O rosto que o A’Sele refletia de volta para Nessântico mudaria. Algum dia até mesmo a própria linhagem dos kralji talvez desaparecesse. Talvez.
Mas não ela. Ela nunca.
Nessântico continuaria. Ela entraria naquele longo futuro a passos largos: viva, respirando, eterna, a personagem central da história da terra. Seu rosto seria reescrito, as velhas rugas seriam arrancadas e substituídas por novas. Nessântico envelheceria; seria remoçada, sem parar.
A história não terminaria.
A história não podia terminar até que ela mesma tivesse morrido.
E isso, Nessântico dizia para si mesma, jamais poderia acontecer.
Rochelle Botelli
Rochelle observou Nico, sobrecarregado de correntes enquanto era ajudado a subir na plataforma, com o Velho Nariz de Prata a sua direita. Ela se sentiu impotente, uma sensação mais aguda agora do que quando ela viu Nico na torre da Bastida, da Avi a’Parete. Na ocasião, Rochelle não teve esperanças de ajudá-lo. Agora, ele estava tão perto: longe das horríveis pedras negras da Bastida; sem corredores desconhecidos entre os dois; separados apenas pelos ténis e alguns gardai.
E, no entanto, Rochelle não podia ajudá-lo. Seria capturada e jogada no chão antes que pudesse chegar a Nico, ainda que vários deles morressem como consequência. Mas ela fracassaria. Era inevitável. Esta tinha sido outra lição de sua matarh. “Certifique-se de que as chances estão a seu favor antes de agir. Às vezes, é preciso aceitar que não se pode vencer, e sequer tentar.”
Estar tão extremamente perto dele, ver o irmão novamente e não poder ajudá-lo...
Isso doía. Machucava tanto quanto o gume de uma espada. Mas havia uma coisa que Rochelle poderia fazer hoje, se tivesse a chance. A kraljica estava ali, sua mamatarh, e embora Allesandra estivesse tão bem guardada quanto seu irmão, talvez houvesse um momento, uma chance. A mão de Rochelle segurou a adaga sob sua roupa, a adaga que roubara de seu vatarh. O juramento feito para sua matarh ardia na sua cabeça.
Se ela não podia salvar uma vida, talvez pudesse tirar uma tão importante quanto.
Na plataforma, Nico se curvou para os ca’ e co’ em sua própria plataforma elevada.
— Kraljica, conselheiros. E, especialmente, ténis. Eu vim implorar por seu perdão e compreensão.
Sua voz soou cansada, ele olhava ao redor. O olhar de Nico passou por cada um deles, Rochelle ficou na ponta dos pés, tentando enxergar melhor sobre as pessoas à volta. Então aconteceu. Os olhos de Nico encontraram os seus. Ela sentiu a conexão e o reconhecimento. Nico olhava diretamente para Rochelle, e seus lábios abriram um leve sorriso, como se ele a reconhecesse. Nico acenou com a cabeça para ela, como se dissesse que sabia o porquê de Rochelle estar ali, como se pedisse para ela ser paciente. Ela quis acenar para o irmão, berrar seu nome, mas o olhar de Nico se voltou para os dignitários no palanque, e sua voz ganhou volume e poder. Rochelle pôde ouvir enquanto avançava na multidão para se aproximar da plataforma. A voz de Nico continuou a inflamar e pulsar; era como se a luz de sol de verão caísse sobre ela. Ela ouviu umas palavras aqui e ali:
— Eu pensei que fosse a Voz de Cénzi... Lamento profundamente pelo que fiz... Eu acreditava. E ainda acredito...
Sobre a multidão, Rochelle viu Nico erguer as mãos, e o gesto chamou sua atenção. Ela parou, observando, curiosa.
— Eu permiti que o archigos e as pessoas dentro da fé concénziana acorrentassem e prendessem o meu dom com seus grilhões humanos quando, na verdade, Cénzi não coloca tais limitações nele. E isso os numetodos sabiam desde o princípio, justiça seja feita. Foi o que eu finalmente percebi e é isso o que eu demonstrarei para vocês agora.
Nico?
Ela não viu claramente o que aconteceu em seguida. Era como se Nico tivesse se envolvido em um manto negro. Rochelle ouviu pessoas gritando e gesticulando, viu o Velho Nariz de Prata recuar a mão da escuridão soltando com um xingamento, e então...
Nico sumiu, e as pessoas na praça estavam boquiabertas. Os gardai estavam agitados, como um enxame de abelhas cuja colmeia tivesse sido golpeada. Rochelle se moveu para a borda traseira da plataforma da kraljica, logo atrás de um anel de gardai. Eles pulavam sobre o palanque agora, cercando a kraljica e desembainhando suas espadas, e Rochelle recuou. Não havia esperança de chegar a Allesandra agora. Nenhuma. Mais uma vez, esta era uma das ocasiões em que ela deveria se permitir fracassar.
Rochelle voltou a penetrar na multidão, longe dos olhos desconfiados dos gardai, longe dos ténis de robes verdes, que pareciam tão irritados quanto nervosos.
Uma mão tocou seu ombro e ela se virou, com a adaga em punhos. Ela podia matar alguém nessa multidão facilmente e ainda escapar na confusão...
Mas sua mão interrompeu o golpe.
— Nico...
— Shhhh! — ele sibilou.
Nico tinha coberto a cabeça com um capuz; seu rosto estava visível apenas para quem olhasse diretamente para ele. Mas mesmo meio escondido como estava, Nico parecia incrivelmente exausto e tenso. A mão no ombro de Rochelle tremeu, e ela sentiu o irmão esmorecer, como se não conseguisse ficar de pé. Sob a sombra do capuz, havia olheiras mais escuras sob os olhos.
— Cénzi me disse que você estava aqui. Ele me mostrou você. Venha! — Ela olhou para a plataforma, e Nico balançou a cabeça. — Não. Agora não, Rochelle. Vamos! Eu preciso da sua ajuda.
Ele passou o braço pela irmã. Com o peso apoiado sobre Rochelle, ele a levou embora, através da lateral da multidão, onde havia menos gente, longe da agitação crescente e da praça, até que os dois andaram por uma rua decorada com placas de lojas e cheia de consumidores, embora poucos parecessem interessados nas mercadorias exibidas nas vitrines ou pelos ambulantes das calçadas. Suas expressões eram graves e estressadas, Rochelle se lembrou das mesmas expressões nos rostos daqueles que fugiam da cidade quando ela chegou.
Nico finalmente parou perto de um café.
— Você tem dinheiro? — ele perguntou, Rochelle assentiu. — Ótimo. Eu preciso sentar e comer; eles dificilmente vão me procurar aqui.
Os dois pegaram uma mesa na parede do café e pediram vinho, queijo, pão e algumas carnes. O garçom parecia sinceramente contente por ter um freguês; sem dúvida a clientela tinha sido bem mais rara do que o normal nas últimas semanas.
Rochelle observou Nico enquanto ele comia. O irmão tinha mudado bastante. O Nico da sua memória estava sempre ansioso e apreensivo enquanto se preparava para ir ao Templo de Brezno como um acólito. Rochelle o tinha visto mais uma vez quando ele vestiu o robe verde de téni e fez o juramento a Cénzi naquele mesmo templo, e Nico parecia tão seguro de si naquela época...
O Nico que estava diante dela agora estava mais magro; suas bochechas estavam encovadas. Os traços do rosto estavam mais marcados e mais vincados, e Rochelle pôde notar a dor da vida escrita na face do irmão. Nico sempre tinha sido intenso, uma intensidade de que ela se lembrava das primeiras memórias dele, mas isso estava mudado agora. Havia se tornado uma coisa mais rígida, mais entranhada dentro dele, e mais perigosa.
Rochelle sabia que tinha mudado também. Talvez mais do que Nico. Nenhum dos dois era mais quem tinha sido naquela época. Eles podiam ser irmão e irmã, mas o tempo os tinha afastado e ela não sabia se algum dia os dois seriam próximos novamente.
— Você está me encarando. — Nico pousou a taça e se serviu de mais vinho da garrafa.
— Eu não vejo você há anos, Nico.
Ele sorriu.
— Você cresceu e se tornou uma jovem atraente. — então seu sorriso desapareceu. — Você também assumiu o legado da matarh. Ouvi rumores de que a Pedra Branca voltou. É você?
Rochelle assentiu.
— Você também ouve as vozes?
— Não. Não sou louca, Nico.
— Ainda não — respondeu ele. — Mas você não pode fazer o que faz e continuar sã. Não pode fazer o que faz e esperar algo mais que retalhadores de almas após a sua morte. Cénzi vai considerá-la abaixo das expectativas, irmã.
Isso tinha sido tão similar ao que Sergei lhe dissera que ela quis rir.
— Você vai me dar um sermão? — Rochelle fungou desdenhosamente. — Você estava acorrentado, Nico. Quantas pessoas morreram quando você e sua gente tomaram o Velho Templo?
Ela viu o irmão ficar vermelho com a acusação.
— Desculpe, Nico — disse Rochelle, pousando sua mão sobre a dele. — Eu esqueci. Eu queria ter conhecido Liana.
Nico meneou a cabeça, e ela notou os olhos do irmão nadarem em uma umidade repentina. Ele secou os olhos, quase que com raiva.
— Eu também queria isso. Veja bem, este foi o meu castigo. Minha loucura. Cénzi sempre nos dá avisos, de uma forma ou de outra. Só que às vezes nós não prestamos atenção a eles ou vemos sua verdadeira natureza.
— Você ainda acredita, depois de tudo isso? — perguntou Rochelle. — Ainda acha que seu destino está dentro da fé concénziana?
— Sim. — Ele disse com firmeza, sem hesitação, com a força retornando à voz. — E quanto a sua própria fé, Rochelle? Você ainda acredita?
— Eu não sei. Acho que sim, mas... — Ele ergueu um ombro embaixo da tashta. — Eu não sei. Mas você acredita?
— Sim — falou Nico. — Ainda. Cénzi contém tudo, Rochelle. Ele contém tudo que é bom e contém tudo que é mau também. É por isso que os moitidi lutaram entre si e contra Cénzi; porque eram Seus filhos e, portanto, todas as possibilidades estavam contidas dentro deles. E Ele trouxe você aqui, agora, por uma razão.
Rochelle deu uma risada amarga.
— Você não faz ideia de por que eu estou aqui.
— Não faço?
Nico estendeu a mão sobre a mesa e pegou uma baguete. Ele arrancou um pedaço com a mão e enfiou na boca com o indicador. Mastigou alegremente por um momento, depois tomou um gole de vinho. Em seguida, ele se inclinou na direção da irmã, de maneira conspiratória.
— Você está aqui para matar a kraljica — sussurrou Nico, se recostando novamente.
Rochelle sentiu o rosto ruborizar, e ele riu.
— Ah, não é uma revelação tão grande assim. A matarh pediu o mesmo para mim, quando eu me tornei um téni. “Você estará perto da kraljica um dia,” ela me disse. “Quando você for um a’téni ou talvez até mesmo o archigos. Estará perto da kraljica, e quero que você a mate por mim, pelo que ela fez para arruinar minha vida.” Não foi isso o que pediu a você também?
— Foi similar — admitiu Rochelle.
— Foi o que eu pensei. Mas não é por isso que você está aqui, Rochelle. Você está aqui porque Cénzi quis que me visse. Ele queria nos reunir.
Ela sentiu uma arrepio na espinha, como se uma brisa de inverno tivesse passado por ela, para lhe acariciar nesse momento, Rochelle se perguntou de onde tinha vindo essa sensação, fazendo com que ela tremesse e se abraçasse. Ele esteve lá, depois se envolveu em escuridão e foi para outro lugar. Se eu pudesse fazer isso, ora, a Pedra Branca poderia ir a qualquer lugar. A Pedra Branca poderia matar a kraljica facilmente...
— O que você fez lá fora... consegue fazer de novo? Pode me ensinar a fazer aquilo? — perguntou Rochelle.
— Há um mês, eu teria dito não. Eu teria dito que apenas os fiéis puros podiam e deveriam usar o Ilmodo. Mas agora... — Nico acabou com o vinho diante de si. — Eu não sei. Talvez qualquer coisa seja possível.
— E por que você acredita que Cénzi queria que ficássemos juntos?
— Eu realmente não sei ainda — respondeu ele —, mas talvez nós dois descubramos.
Varina ca’Pallo
Varina pediu desculpas para a kraljica e saiu do Velho Templo às pressas, com um quarteto de gardai designado para ela. Allesandra, os conselheiros, Sergei — todos eles estavam cercados por gardai, e todos pareciam estar em pânico. Varina, no entanto, estava tomada por uma certeza assustadora. Ela correu para a Casa dos Numetodos, com o estômago ardendo e a testa franzida de preocupação.
As correntes caídas vazias na plataforma e Nico sumido...
Varina temia saber para onde ele tinha ido.
Antes mesmo que a carruagem parasse, ela já estava quase correndo na direção da porta, algo que não fazia há anos.
— A’morce... — falou Johannes quando ela entrou na casa, parecendo surpreso com a aparição de Varina e seu estado ofegante —, nós não a esperávamos de volta...
— Onde ela está? — interrompeu ela. — Serafina... onde ela está?
Sua voz soou estridente, mas Varina não se importou.
— Ora, lá em cima, com Belle, é claro. Eu acho que...
Ela passou correndo por Johannes e subiu a escada batendo os pés, com o coração disparado. Escancarou a porta. Belle, uma jovem recruta dos numetodos e também ama de leite, pois tinha acabado de dar à luz, estava sentada em uma cadeira, próxima à janela do gabinete de Varina. Assustada, Belle se cobriu; Varina se deu conta de que ela estava amamentando o bebê.
— A’morce? Está tudo bem?
Seu coração, que pareceu ter tentado sair pela garganta, se acomodou novamente no peito. As cenas terríveis que ela imaginou a caminho de casa desapareceram aos poucos de sua mente: Belle caída no piso acarpetado, a Casa dos Numetodos pegando fogo ou arruinada, os outros amigos mortos ou feridos, e a filha de Nico desaparecida.
Como o próprio Nico.
Varina fechou os olhos por um momento, com a mão na boca.
— Eu pensei... — ela começou, balançando a cabeça em seguida, para afastar a ideia.
Seu coração começava a diminuir o passo, seu fôlego estava se recuperando, e agora Varina se sentia tola por causa do pânico.
— Nada demais, Belle. Não sei no que eu estava pensando. Como está Sera?
Belle sorriu. Ela levantou o pano sobre o ombro e mostrou para Varina o bebê que mamava no peito, com sua boquinha sugando o peito de olhos fechados.
— Faminta como um filhote de lobo — respondeu a ama de leite. — Estou me perguntando se vai sobrar alguma coisa para o meu bebê.
Belle riu, acariciando a cabeça de Sera, com a coroa de cabelo dourado.
— Eu encontrei outra ama de leite para ela; minha prima, Michelle, perdeu o bebê no parto e disse que está disposta a vir dar de mamar a Sera durante as manhãs. Juntando as duas, nós manteremos a pequenina bem alimentada. Agora que os firenzcianos estão chegando, devemos estar a salvo.
Eu queria ter tanta certeza... Varina forçou um sorriso no rosto.
— Obrigada — respondeu ela. — Diga que pagarei em dobro pelo inconveniente.
— A senhora é muito generosa, a’morce.
Sera soltou o mamilo por um momento e começou a chorar, com lágrimas brilhando em seus olhos azuis, e Belle colocou o peito de volta na boca da bebê. Ela se acalmou novamente.
— Como foi...? — A ama de leite parou, procurando pelas palavras, e completou — O pedido de desculpas?
— Insatisfatório, infelizmente. Nico mostrou mais uma vez por que era o Absoluto dos morellis. Ele escapou. Desapareceu.
Varina viu Belle dar um abraço protetor em Sera — ela viu as suspeitas passarem pela cabeça da jovem.
— A’morce? Talvez a senhora devesse ficar aqui na Casa dos Numetodos hoje à noite até ter proteção. Podemos arrumar um lugar para o bebê...
— Eu posso lidar com Nico sozinha se precisar — disse Varina, torcendo para que sua voz tivesse soado mais confiante do que ela se sentia.
Agora que tinha se acalmado um pouco, agora que sabia que Serafina estava a salvo, Varina estava menos preocupada. Com certeza Nico estaria escondido em algum lugar; talvez até tivesse saído da cidade. Ela se dirigiu até a gaveta da escrivaninha e tirou a chispeira que ficava ali. Verificou se o tambor estava cheio de areia negra e se havia uma bala no cano. Ela enfiou a arma na faixa da tashta, embaixo do manto.
— Termine de amamentá-la que eu fico com ela — falou Varina.
Belle assentiu.
— Eu tenho que voltar para a casa da minha irmã, de qualquer forma. A essa altura, a minha pequena deve estar acordando da soneca e vai chorar por atenção. Essa aqui está quase acabando, eu acho.
A ama de leite se recostou; Sera deixou o mamilo sair da boca, abriu os olhos por um instante e depois os fechou. Sua respiração ficou lenta e silenciosa.
— Pronto, viu só? Já adormeceu, essa gulosinha. Eu coloquei uma xícara em sua escrivaninha com mais leite, caso a senhora precise. Mandarei Michelle vir amanhã, antes da Primeira Chamada. Aqui está, a’morce.
Belle se levantou, colocou Serafina nos braços de Varina e amarrou o laço da tashta para se cobrir novamente. Enquanto a ama de leite arrumava as coisas no gabinete, Varina olhou para o rosto adormecido: as bochechas fofas e rosadas; o sossego confiante e saciado com que o bebê dormia; os dedinhos, uma mão cerrada em um punho, a outra agarrada ao cobertor em que ela estava enrolada. Varina sentiu uma... ela não sabia definir essa emoção, mas dentro dela havia uma necessidade intensa de proteger a criança, assim como uma vez sentiu o mesmo impulso com Nico.
E você fracassou nessa época. Deixou que ele escapasse de você, e aquela louca acabou levando Nico.
Varina se debruçou e beijou a testa de Serafina. Belle sorriu para ela.
— Eu vejo a senhora amanhã, a’morce. A coitadinha não merecia perder sua matarh e vatarh desta forma.
— Não — concordou Varina. — Ela não merecia.
Belle se inclinou e beijou Sera, e fez uma mesura para Varina.
— Eu vejo a senhora de manhã com minha prima.
Assim que Belle saiu, Varina se sentou na cadeira perto da janela por um tempo, balançando para frente e para trás, vendo Sera dormir enquanto ouvia as pessoas passarem no corredor lá fora ou andarem no jardim abaixo da janela. Pensou brevemente em colocar Serafina deitada e deixá-la dormir enquanto trabalhava um pouco, mas pensou melhor. Ela enrolou mais o bebê no cobertor, pegou seu próprio manto e saiu do gabinete. Ao descer as escadas, passou por Johannes e disse.
— Desculpe a minha grosseria. Eu estava preocupada.
Ele assentiu.
— Eu ouvi o que aconteceu no Velho Templo. Eu compreendo, a’morce. A senhora está indo para casa? Por que não deixa que eu ou outra pessoa a acompanhe?
— Eu ficarei bem. Ainda é cedo, e há muitas pessoas nas ruas. Vejo você amanhã de manhã. Haverá uma reunião com Allesandra sobre nosso progresso com as chispeiras.
Johannes fez uma mesura para ela, e Varina saiu da casa, cruzando rapidamente o pátio frontal e passando pelos portões, em seguida ela virou à esquerda na Avi a’Parete em direção à casa deles, a alguns quarteirões de distância. Era assim que ela ainda pensava: a casa deles, como se Karl ainda estivesse vivo, como se ela pudesse abrir a porta da biblioteca e encontrá-lo sentado à escrivaninha, meditando sobre algum tomo antigo. Às vezes, Varina ainda ouvia um barulho e se virava, com esperança de vê-lo, mas ele nunca estava lá.
Ela abraçou Sera com mais força enquanto caminhava. As pessoas que passaram por Varina às vezes a cumprimentavam, mas a maioria estava tensa e séria: pessoas cumprindo seus próprios afazeres e preocupadas com a cidade e com o que aconteceria. A escassez do tráfego fez parecer que era bem mais tarde do que era na verdade; em geral o trânsito na Avi atingia o pico de barulho e de pessoas entre a Segunda e a Terceira Chamada, mas não hoje.
Varina virou a esquina, entrando na própria rua, descendo a alameda curva em direção ao A’Sele. Ela chegou ao portão da mansão e o destrancou, sem se preocupar em chamar um dos criados. Varina fechou o portão ao entrar.
— Varina.
A voz, que tinha surgido da esquerda, provocou um susto e fez Varina segurar Sera com tanta força que fez o bebê chorar. Ela se virou lentamente e viu duas figuras envoltas nas sombras da trepadeira enroscada no pilar de pedra do portão.
— Nico — disse Varina. — Você não deveria estar aqui.
Atrás de Nico, uma jovem a encarava atentamente. Ele sorriu.
— É possível — concordou Nico. — Mas você tem algo que preciso ver.
Varina deu um passo para trás. Ela sentiu o peso da chispeira sob o manto; sentiu a energia dos feitiços em sua mente, esperando para serem lançados. Sera se agitou em seus braços, agora acordada.
— Nico, eu estou lhe avisando. Não vou entregá-la a você. Se você tentar levá-la, eu vou lutar com você para protegê-la.
— Eu não quero tirá-la de você — ele respondeu. — Estou feliz que você tenha ficado com ela, por enquanto, já que eu sei que você faria exatamente o que acabou de dizer que faria. Eu só quero vê-la; só quero ver minha filha. Por favor, Varina?
— Eu não vou deixar você segurá-la.
— É justo.
— E diga para esta mulher ficar bem para trás.
Nico acenou com a cabeça para a companheira, que deu alguns passos para trás. Varina tirou o pano do rosto do bebê quando Nico se aproximou dela. Sera olhou para o rosto de Nico olhando para ela; o bebê viu o rosto dele abrandar, seus lábios formarem um sorriso, e Nico dar uma risadinha ao vê-la.
— O formato do rosto... eu consigo enxergar a Liana — falou ele roucamente.
Nico estendeu a mão para tocá-la, e Varina apertou o bebê contra o corpo ainda mais. Ela sentiu a energia de um feitiço fervilhar em sua cabeça. Mas Nico só acariciou a bochecha da menina com o dedo, rindo novamente quando Sera ergueu a mão e apertou seu dedo.
— Ela é forte também — ele comentou. — Isso é bom. Ei, Serafina. Eu sou seu vatarh...
Ele olhou brevemente para Varina.
— Serafina é um bom nome.
— Nico, se eles pegarem você novamente... não serão tão gentis da próxima vez.
— Então eu preciso ser cuidadoso, não é? Você vai sair de Nessântico?
Varina balançou a cabeça.
— Não? — Nico pareceu desapontado ou talvez preocupado. — Mesmo com o bebê?
— Se a situação chegar a este ponto, eu mandarei Sera embora com alguém em quem confio. — Varina fez uma pausa. — E não será você, Nico. Lamento.
Ele inclinou a cabeça. Uma tristeza acentuou as rugas em volta dos olhos.
— Eu compreendo. Mas... na sua idade, Varina, temos que ser realistas. E não é apenas a idade; olhe para você: o estudo de magia cobrou seu preço. O bebê precisa de uma matarh que seja mais jovem.
Varina pensou que Nico tivesse olhado de relance para a jovem que o acompanhava. Varina também olhou para ela. Não reconheceu seu rosto, mas havia algo na jovem, alguma coisa vagamente familiar... Varina balançou a cabeça.
— Estou ciente de que tenho idade para ser a mamatarh de Serafina e sei o que meus estudos fizeram comigo. Eu vejo meu rosto no espelho. Já fiz minhas consultas. Mas, por enquanto, Sera está sob minha responsabilidade, e eu vou protegê-la. Eu falo sério, Nico.
— E isso está claro — disse Nico. — Eu já disse que estou feliz que você tenha ficado com Serafina. Você sempre foi boa para mim, naquela época. Às vezes eu queria...
Ele olhou mais uma vez para a mulher que o acompanhava, respirando fundo.
— Mantenha Serafina a salvo. Talvez algum dia eu realmente possa ser o vatarh dela.
— Você é o vatarh dela — falou Varina. — E eu vou contar sobre você para Sera. Ela vai saber quem você é. Eu prometo.
Ele assentiu mais uma vez. Ele tirou o dedo da mão do bebê, e Sera se agitou. Nico acariciou sua bochecha de novo.
— É hora de ir — disse ele. — Adeus, pequena Serafina.
Nico se inclinou e deu um beijo na filha, ajeitando as costas a seguir. A mulher que o acompanhava já estava no portão.
— Deixe-me destrancá-lo para você — disse Varina, mas a jovem lhe lançou um olhar de desdém.
Ela retirou dois pedaços finos de aço de algum lugar do manto, se inclinou e, um momento depois, o portão estava aberto. A mulher sorriu para Varina. Nico fez uma mesura, quase como se estivesse saindo da casa após uma visita.
Um instante depois, ele e a companheira tinham ido embora. Varina fechou o portão novamente, ouvindo o clique da tranca. Sera estava chorando.
Ela abraçou a bebê e a embalou em seus braços até que se acalmasse de novo.
Brie ca’Ostheim
Os bumbos batiam em cadência enquanto o exército se aproximava da cidade. Os a’offiziers, que seguiam as ordens do starkkapitän ca’Damont conduziam o exército em direção aos campos ao norte da Avi a’Firenzcia, sem entrar na cidade em si. Os cidadãos das vilas imediatamente fora dos portões aplaudiram os batalhões que avançavam com seus estandartes negros e prateados tremulando sobre eles. E aplaudiram especialmente a hïrzgin que os acompanhava.
Brie acenou de volta para os cidadãos e abriu o sorriso aperfeiçoado com os anos de experiência em negócios de Estado, uma máscara atrás da qual ela podia esconder seus medos e incertezas, um gesto alegre para a multidão, desvinculado de qualquer sensação genuína. Nos campos mais próximos ao local onde o exército deveria acampar, uma tenda havia sido montada, com os estandartes de Nessântico e Firenzcia, azul e dourado misturados ao preto e prata. Quando a carruagem de Brie se aproximou, as abas da tenda tinham sido abertas e uma figura coroada apareceu, flanqueada por gardai da Garde Brezno com o uniforme dos Domínios, a hïrzgin viu Sergei ca’Rudka parado atrás da figura coroada. Brie reconheceu a mulher imediatamente, pelos quadros que tinha visto dela: Allesandra. A kraljica caminhou a passos largos e braços abertos em direção a ela, abrindo um sorriso largo. Sergei mancou atrás dela.
— Onde está minha filha-por-casamento? — disse Allesandra ao se aproximar da carruagem de Brie. — Onde está a hïrzgin?
Os soldados correram para abrir as portas do veículo e colocar um degrau para que ela descesse. Brie tomou a mão oferecida e saiu para o sol, piscando e mantendo o sorriso grudado no rosto. A hïrzgin deixou que a kraljica a envolvesse no abraço, levou um beijo numa bochecha, depois na outra. Allesandra cheirava a rosas e romãs; seu abraço era surpreendentemente forte e genuíno.
— Este momento deveria ter acontecido há anos — sussurrou ela no ouvido de Brie. — Eu peço desculpas por isso; a culpa foi minha. Eu queria ter conhecido você e seus filhos há tanto tempo...
Sua voz evanesceu. Brie segurou as mãos de Allesandra. Ela encarou os olhos da mulher, reparando nas dobras em volta, no pó na pele e nas sombras azuis sob as sobrancelhas pintadas e feitas. Ela podia enxergar Jan no formato dos olhos e nos traços da face; viu um reflexo de Elissa, Kriege, Caelor e Eria também. Até mesmo a voz, menos aguda...
— Eu também queria que esse momento tivesse acontecido antes — respondeu Brie. — Há mais tempo do que a senhora imagina, kraljica. Temos tanto o que conversar.
A hïrzgin sabia que Jan lhe chamaria a atenção pelo que ela diria em seguida, mas Brie não se importava. Ela olhou o rosto de Allesandra e não viu nenhum monstro ali.
— Eu quero que meus filhos vejam a mamatarh como ela é, não como Jan a descreveu.
Brie percebeu o sofrimento no rosto de Allesandra.
— Se não me engano, foi o Venerável Carin, no Toustour, que disse que o incômodo da verdade é sempre preferível ao bálsamo da mentira — disse a kraljica. — Ainda assim, há ocasiões em que eu acho que todos nós preferimos as mentiras. Estou certa de que Jan, na cabeça dele, disse o que pensava ser a verdade sobre mim. Infelizmente, eu nem sempre fui uma boa matarh para Jan, e fiz coisas...
Brie se apressou a interromper qualquer confissão que Allesandra pretendesse fazer ao apertar as mãos da mulher.
— Eu tenho certeza de que a senhora fez o que precisava fazer como kraljica. E sei que o Venerável Carin também disse que o passado não pode ser mudado, apenas o presente. Vamos nos apegar a esse momento, kraljica, a senhora e eu, e tornar bom o presente.
Allesandra sorriu novamente.
— Eu espero que meu filho dê valor a esposa e conselheira que tem.
Brie apenas devolveu o sorriso, perfeito e ensaiado.
— Ele dá o máximo valor de que é capaz — respondeu ela — e o mínimo com que consegue escapar impune.
Allesandra riu.
— É assim que as coisas são? — exclamou ela.
A kraljica abraçou a hïrzgin novamente, pegando em sua mão. Ela a ergueu e se voltou para os soldados e chevarittai ao redor.
— Esta é a hïrzgin Brie — proclamou Allesandra — e eu lhe dou boas-vindas a Nessântico como minha filha-por-casamento e como a esposa do próximo kraljiki e matarh de seus herdeiros.
Uma aclamação irrompeu nas fileiras em torno deles, Brie se curvou e acenou para o agrupamento. A hïrzgin se perguntou se eles ainda estariam aclamando em alguns dias.
— Você está com fome? — perguntou Allesandra. — Há um jantar à nossa espera na tenda...
Brie permitiu que Allesandra a acompanhasse até a tenda. Ao passar por Sergei, ela parou e fez o sinal de Cénzi para o homem.
— Hïrzgin — falou o Nariz de Prata. — É bom vê-la novamente.
O embaixador se aproximou dela, e a voz era um sussurro rouco e singelo.
— E eu tenho coisas para lhe contar também.
Dito isso, ele se afastou novamente, sorrindo para Brie e fazendo um gesto para que ela entrasse na tenda, no rastro de Allesandra.
— Você tem certeza de que a garota era Rhianna?
— Rochelle, é o verdadeiro nome; pelo menos é o que ela alega. Mas sim, era a mesma jovem. Tenho certeza.
— E ela também alega ser a filha da Pedra Branca e de Jan?
Sergei assentiu, em silêncio. Brie se recostou na cadeira e balançou a cabeça, sem saber como responder. Ela queria negar, queria chorar, queria gritar de raiva.
Isso explicava tanta coisa. Jan ainda é apaixonado por ela, depois de todos esses anos.
Allesandra tinha retornado para a cidade; Sergei tinha ficado no acampamento após o jantar, dizendo para a kraljica que ele mesmo acompanharia a hïrzgin até o palácio assim que ela estivesse pronta. A mesa onde o jantar tinha sido servido ainda permanecia entre eles, embora os criados tivessem tirado tudo, exceto uma garrafa de vinho e um pouco de pão e queijo. Brie se inclinou, virou a garrafa na taça e ficou observando o vinho espirrar no fundo. Ela se recostou novamente e bebeu.
— E eu acho que é bem possível que a jovem esteja falando a verdade — continuou Sergei. — Eu estou bastante certo disso, na verdade. Eu sei que não é o que a senhora deseja ouvir, hïrzgin, mas temos que considerar que, dada a história que ambos conhecemos, é plausível.
— Mas não é certo.
O embaixador abriu um sorriso sob o nariz de prata.
— Não, não é certo. Eu mandei um pessoal fazer uma investigação e verificar algumas das referências que ela me deu, mas levará algum tempo até que eles me informem alguma coisa, dada a situação atual, e talvez sequer saibamos o suficiente para provar os fatos, de qualquer forma. — Ele deu de ombros. — Mas é nisso que Rochelle acredita, seja isso verdade ou não.
— E ela está aqui.
— Está.
Brie ponderou. Será que ela e Jan planejaram isso? Ou é apenas coincidência?
— Jan sabe? E Allesandra?
Sergei meneou a cabeça negativamente.
— Allesandra definitivamente não sabe, nem eu falei com Jan. Queria contar para a senhora primeiro. Mas eles também precisam saber. — Sergei respirou fundo pelo nariz de metal; o som assobiou um pouco. — A garota é perigosa, hïrzgin. Ela assumiu o papel da Pedra Branca. Diz que foi ela quem matou Rance; contratada por um homem cuja filha a senhora despachou por algum motivo.
— Ah.
A declaração caiu como um golpe em seu estômago. Brie pousou o vinho, levando a mão à garganta.
— Por Cénzi, não... Mavel co’Kella; ela estava grávida. Grávida de Jan. Eu tinha que tirá-la da corte e mandá-la embora. Deve ter sido o vatarh de Mavel co’Kella. Ele estava pleiteando se tornar um chevaritt, mas depois disso... — Ela olhou para Sergei, atormentada. — Eu causei a morte de Rance. Foi por minha culpa.
— Foi o vatarh da garota — respondeu o embaixador. — Não a senhora. A senhora não é responsável pelas ações dele.
— E Rhianna, ou Rochelle... Ela esteve no palácio esse tempo todo, cuidando de mim e dos meus filhos, e Jan...
Brie se calou. Sergei não disse nada. Ela se sentiu observada pelo embaixador. A mulher no meu pesadelo. Seria ela Rochelle?
— Estou enojada — falou a hïrzgin. — Aquela garota, filha de Jan, meia-irmã dos meus próprios filhos...
— Ela é uma bastarda. Não tem direito real ao trono.
— Eu sei. Há bastardos o bastante — respondeu a hïrzgin, abrindo um sorriso sarcástico e irônico. — Mesmo assim, ela foi a primeira, e Jan...
Brie se deteve, encarando Sergei.
— Eu soube que você chegou a conhecer a Pedra Branca.
— Não — respondeu o embaixador. — Não conheci. Mas eu fui a Brezno não muito tempo depois de ela, bem, depois de ela ter assassinado o hïrzg Fynn. Pelo que eu me lembro, Rochelle deve se parecer muito com a matarh dela, na ocasião.
Brie sentiu o coração bater forte no peito. Sentiu o vinho e o jantar se revirarem no estômago. Mais uma vez, a compreensão emergiu dentro dela: Jan ainda ama Elissa, nunca deixou de amar.
— Elissa. Era como a Pedra Branca se chamava na época. Eu não conhecia a história quando Jan quis batizar nossa filha. Só pensei que fosse um nome que ele gostasse... — A hïrzgin soltou uma risada amarga. — Eu não soube por um ano ou mais, quando já era tarde demais para mudar. Nunca consegui perdoá-lo por isso.
— A senhora quer que eu conte para Allesandra e Jan sobre Rochelle?
Brie sentiu um arrepio de frio repentino.
— Você pode contar para Allesandra, mas eu quero contar para Jan. Quero ver a cara dele quando descobrir.
Sergei inclinou a cabeça e se levantou da cadeira.
— Então eu deixo o hïrzg com a senhora. Mandarei preparar sua carruagem, hïrzgin. A kraljica deve estar se perguntando o que aconteceu conosco.
— Sim — respondeu Brie. — Faça isso. Eu irei em um instante.
Sergei fez uma mesura e saiu da tenda. A hïrzgin se serviu de outra taça de vinho. Ficou sentada ali por vários instantes, encarando o líquido vermelho reluzir na superfície dourada. Eu quero ver a cara dele...
Brie se perguntou como contar para Jan.
Niente
Niente começava a acreditar que eles talvez chegassem a ver as muralhas da grande cidade incontestes.
O exército tehuantino descia as colinas de um vale verde e exuberante, exalando o cheiro das estranhas árvores da região, pontilhada por bolsões de fazendas e vinhedos entalhados na floresta. Era um terreno do qual Niente se lembrava, um terreno que Niente frequentemente revia em seus sonhos. O exército se separou em três forças, como Atl tinha visto na tigela — a força ao sul cruzou o rio, a força ao norte seguiu em direção ao alto da estrada, e o restante do exército continuou seguindo a estrada paralela ao rio.
Era lá que o tecuhtli Citlali estava abrigado; foi para lá que Atl, como nahual, e Niente seguiram.
Eles sabiam que estavam sendo acompanhados pelos orientais. Ocorreram algumas estranhas escaramuças breves com os guerreiros a cavalo, que vinham gritando, desafiando e se lançando loucamente contra as fileiras — até mesmo os guerreiros supremos estavam comentando sobre a bravura incontestável dos orientais, ao mesmo tempo em que criticavam suas táticas inúteis e imprudentes. Algumas chuvas de flechas ocasionais caíram sobre eles conforme passavam pelos vales sinuosos, mas os escudos dos guerreiros tinham aparado a maioria, e os nahualli tiraram grande proveito de seus cajados mágicos. Não havia sinal dos feiticeiros orientais, nem dos ténis-guerreiros.
Todas as tentativas orientais de impedir o avanço dos tehuantinos foram comparáveis ao zumbido de moscas importunando o exército.
Eles acompanharam a curva do rio, com vista escassa para as torres de um vilarejo sobre o topo das árvores. Passaram por uma paisagem pastoral, com seus campos cultivados esvaziados de colheitas e gado. Certamente uma tática, para que o exército tehuantino tivesse que colher alimentos mais adiante, o que eles fizeram — destacamentos de saqueadores foram enviados para longe das forças, eles roubaram o gado bovino e limparam os campos como gafanhotos, e toda a comida foi trazida de volta para alimentar os estômagos exigentes dos guerreiros. A casa de fazenda ou mansões ocasionais que os tehuantinos encontravam estavam abandonadas e silenciosas. Os sons do exército abafavam os sons que Niente imaginava que eles talvez ouvissem se estivessem cavalgando desacompanhados pela estrada: os chamados dos pássaros orientais, o vento soprando as folhas, o mugido do gado.
Mesmo assim, a paisagem parecia quieta demais. Niente começou a espiar em volta, nervoso; ele notou que Citlali e os guerreiros supremos ao redor fizeram o mesmo e se deu conta de que os cavaleiros da vanguarda, que já deveriam estar de volta, ainda estavam ausentes.
Ouviu-se um movimento nos cumes baixos em volta do exército tehuantino: sob o sol vespertino, brotos reluzentes de homens surgiram do solo.
— Atl! — gritou Niente, pegando seu cajado mágico, mas o alerta chegara tarde demais.
Bolas de fogo desenharam um arco no céu em direção aos tehuantinos, deixando um rastro de fumaça negra para trás, o ar ficou encoberto pelas hastes de flechas. Elas caíram assobiando, e os guerreiros ergueram seus escudos imediatamente para conter as flechas; mesmo assim, Niente viu vários guerreiros caírem, ao mesmo tempo em que ele lançava contrafeitiços em direção às bolas de fogo. A mais próxima explodiu muito acima deles, emitindo um estrondo que fez Niente querer tapar os ouvidos com as mãos. Atl também entoava gatilhos de feitiços, e outra bola de fogo foi desviada descontroladamente para o lado, rasgando a campina e cuspindo lama, grama e fogo líquido onde caiu. Mas outra bola de fogo veio rápido demais na direção dos estandartes do tecuhtli; Niente jogou um contrafeitiço, mas era tarde demais. Niente pôde sentir o calor do feitiço de guerra irrompendo em gotas pegajosas de fogo, e o abalo se apoderou dos tehuantinos. Niente atirado de seu cavalo, enquanto gritos eram emitidos dos guerreiros mais próximos. Niente ficou preso por um instante sob o animal enquanto o cavalo tentava se levantar novamente. A grama estava em chamas de ambos os lados da estrada de terra. Trompas orientais soaram uma sequência crescente de notas, seguidas pelo rufar de soldados em resposta e os gritos dos guerreiros supremos conforme tentaram restaurar a ordem para as fileiras assustadas e desorganizadas.
O ruído de metal retinindo soava enquanto Niente lutava para se levantar, usando o cajado mágico como bengala. Ele sentiu uma mão pegar em seu braço e o puxar: Atl, com o rosto manchado e sujo de fuligem.
Tudo em torno dele era um caos. Havia um grande número de guerreiros mortos perto da estrada, onde a bola de fogo havia caído, mas o tecuhtli Citlali e o guerreiro supremo Tototl ainda estavam vivos. Os dois gritavam e gesticulavam para a esquerda, onde uma batalha em grande escala acontecia entre as forças orientais e tehuantinas. Eu nunca tinha visto este ataque, Niente se deu conta. Isso é novo... Urrando, com a lança em riste, Citlali montou novamente no cavalo, auxiliado por dois guerreiros.
— Nahual Atl! — Niente ouviu Citlali gritar. — Comigo! Comigo!
A mão esquerda de Atl soltou o braço de Niente. Ele deu um pulo e montou em seu próprio cavalo.
— Nahualli! — chamou Atl. — Ao tecuhtli!
Citlali e Tototl já estavam galopando em direção à linha de frente da confusão, Atl agora estalava as rédeas do cavalo em perseguição. Niente procurou por seu próprio cavalo e viu o animal de cabeça baixa a alguns passos de distância. Ele caminhou até o animal — mancando, sentindo a dor de seus músculos distendidos por toda a lateral do corpo. O cavalo se afastou quando Niente se aproximou, ele notou que sua pata dianteira estava quebrada; o animal não podia apoiar peso nela. Niente praguejou. Ele começou a correr arrastando os pés e se juntou aos guerreiros seguindo em direção à linha de batalha no meio da campina. À sua frente, Niente viu os nahualli lançando seus feitiços de guerra em direção às fileiras inimigas, ele ergueu seu próprio cajado mágico para se juntar ao bombardeio enquanto corria, berrando os gatilhos.
Fogo e raios caíram de nuvens baixas e repentinas. Eles bateram no chão bem acima do cume e em meio aos orientais. Os guerreiros rugiram — um grito de guerra para Sakal, invocando a fúria do deus-sol — e avançaram. Niente viu os estandartes do Citlali subindo a encosta com os orientais em retirada diante do tecuhtli; as linhas de frente foram rompidas, e os feridos estavam sendo arrastados de maneira vergonhosa. A retirada foi humilhante e completa. Citlali deu ordem para interromper o contra-ataque enquanto os orientais sumiam nas florestas e nas faixas de área arborizada entre os campos. Trompas orientais soaram uma sequência de retirada. O estandarte do tecuhtli tremulou brevemente no topo do cume — Niente viu Atl ao lado dele —, e Citlali começou a descer o morro a meio galope em direção à estrada novamente, acompanhado por Tototl. Niente não conseguia enxergar o rosto através da águia vermelha tatuada na face e do sangue espalhado sobre ela. Ele avançou entre os guerreiros em direção ao lugar em que Citlali estava desmontando. A lâmina da espada do tecuhtli estava coberta de sangue.
Agora Niente pôde ver a expressão no rosto de Citlali: ele estava olhando para corpos dos guerreiros mortos e feridos, furioso, enquanto os curandeiros corriam para cuidar dos vivos, e os sacerdotes davam a extrema unção aos mortos. Citlali se agachou ao lado de vários guerreiros, tocando os rostos daqueles que ele e Niente conheciam há anos. O cheiro de carne queimada era forte, e a grama da campina ainda estava em chamas entre vários deles.
Atl não estava muito longe de Citlali e Tototl. O cajado mágico pendia de sua mão, como se estivesse exausto. A cabeça balançava, como se não quisesse acreditar.
— Eu não vi isso, taat — disse o jovem quando se aproximou de Niente. — Eu procurei, mas isso estava escondido. Por que eu não vi isso?
— Por que, realmente?
Uma voz o interrompeu antes que Niente pudesse responder. Citlali tinha se virado para os dois.
— Eu tenho dois nahualli que são considerados os mais poderosos na visão premonitória desde Mahri e, no entanto, nenhum deles me deu qualquer pista sobre isso. Eu não estou triste pela perda; nossos guerreiros morreram a morte boa, a morte da batalha, como deveriam. Mas você, Atl, me disse que os orientais não nos enfrentariam frontalmente até chegarmos à grande cidade. — Seu olhar colérico se virou para Niente. — E você disse que não conseguia quase nada. Por quê? Axat nos abandonou?
Niente e Atl balançaram a cabeça simultaneamente.
— Alguma coisa mudou — falou Niente. — Eu lhe disse muitas vezes antes, tecuhtli, que Axat mostra o que pode ser, não o que será. Alguma coisa mudou entre os orientais.
Citlali bufou desdenhosamente.
— Isso ficou bem claro — ele disse acenando para a fumaça e os corpos ao redor. — Descubram o que mudou e o que isso significa para nós. Descubram agora.
O círculo dourado do sol morria no oeste, e a bruma verde do futuro surgiu em volta do rosto deles. Os nahualli observavam os dois, em silêncio; o tecuhtli Citlali também os observava, com os guerreiros supremos agrupados em volta dele.
Na tigela premonitória, o presente se dividiu e rasgou, e os retalhos do futuro se esvaiam, se contorcendo e se enroscando. Niente os perseguiu na sua mente; ao lado dele, Atl fazia o mesmo. A perseguição era tão exaustiva quanto uma perseguição física. Próximo ao presente, os fios de possibilidades se embolavam e entrelaçavam. As imagens não paravam de surgir na bruma, era difícil vê-las por tempo o bastante para compreender os significados.
Ali: o rosto de um rei, ou era o que Niente tinha presumido pela faixa dourada envolvendo sua cabeça, que brandia uma espada com uma multidão vestida em preto e prata atrás dele, em vez do uniforme azul e dourado do exército da grande cidade. Niente se lembrava daquelas cores — as cores do exército que tinha vindo socorrer a cidade após ser tomada pelo tecuhtli Zolin. Niente tremeu ao ver isso...
Mas a bruma envolveu o rei, e Niente agora viu uma rainha sentada em um trono brilhante com fogo vermelho em torno de si. Uma jovem erguia uma faca reluzente sob o brilho do fogo, havia também um homem perto do trono, e as labaredas furiosas dentro da sala pareciam sair de suas mãos erguidas...
Uma bruma fria apagara o fogo e o levara embora. Niente encarava agora fileiras de gente, mas não eram soldados em armaduras reluzentes, mas pessoas comuns, elas estavam apontando instrumentos estranhos para Niente, parecidos com as garras de águia que os nahualli usavam para fazer sacrifícios. Os instrumentos cuspiram fumaça e fogo, e abelhões negros foram disparados por eles, correndo na direção de Niente...
Mas a bruma também os levou.
Um vento soprou a bruma, e ali diante de Niente, por um momento tentador, ele vislumbrou novamente o Longo Caminho. Ele havia mudado desde a última vez que Niente o tinha visto. O futuro ainda continuava tomado pelos estandartes caídos dos tehuantinos. Mais adiante no caminho, ele viu os estandartes dos tehuantinos tremulando ao lado dos estandartes azuis e dourados dos orientais, e duas pessoas sob eles, um homem com a tatuagem da águia vermelha do tecuhtli e uma mulher com as roupas dos orientais e um cetro dourado na mão. Os dois estavam juntos e sorriam um para o outro, e não havia animosidade alguma entre eles.
A bruma escondeu o Longo Caminho, mas perto de Niente, as brumas agora se abriram, e ele viu Citlali, morto, com um nahualli ao seu lado. Niente se debruçou sobre a tigela. No braço jovem e musculoso do nahualli, havia um brilho dourado: o bracelete do nahual. Ao lado dos dois, como se tivesse sido responsável pelas mortes, ele viu as costas de outro nahualli: a careca de um velho, com alguns poucos fios de cabelo e — quando o nahualli se virou — o semblante enrugado e cheio de cicatrizes, com um olho esquerdo cego.
Niente recuou e conteve um grito...
— Não... — sussurrou ele.
O sopro da negação fez a bruma mudar, de maneira que o Longo Caminho desapareceu para revelar ainda outro Longo Caminho. No fim deste rumo, Niente viu Tlaxcala, mas a cidade flutuante ardia no centro de um lago e as grandes pirâmides estavam em ruínas. Assim como na visão anterior do Longo Caminho, os meios para se chegar a ele estavam obscurecidos, mas as imagens tremularam mais perto dele. Ali o tecuhtli Citlali estava sentado em um trono brilhante sob um teto abobadado, com o estandarte azul e dourado no piso de ladrilhos diante dele e vários orientais prostrados à sua frente, como se estivessem prontos para serem sacrificados para Axat e Sakal, para que o resto de seu povo pudesse viver.
Niente respirou de novo, e os vapores frios e verdes envolveram seu rosto. Ele sentiu sua face ficar molhada e se deu conta de que tinha tocado a água da tigela premonitória. Com o toque, as visões se dissolveram e Niente encarava apenas a tigela.
Ele voltou à realidade devagar, ofegante, como se tivesse voltado de uma longa corrida. Carrancudo, o tecuhtli Citlali olhava fixamente para Niente, à sua esquerda, Atl já havia levantado o rosto de sua própria tigela. Vários nahualli de baixo escalão se aproximaram rapidamente e recolheram as tigelas e as mesas.
— Bem? — perguntou Citlali. — O que Axat mostrou para vocês?
Niente não falou nada; pelo canto de olho, ele viu Atl lançar-lhe um olhar furtivo.
— A visão ainda mostra a nossa vitória, tecuhtli — respondeu o jovem. — Eu vi o senhor no trono dos orientais.
O olhar de Citlali ainda estava fixo em Niente.
— E você, uchben nahual? Você também viu isso?
Niente ergueu a cabeça. Sentindo suas mãos tremerem, um nahualli de baixo escalão tinha corrido lhe entregar seu cajado mágico. Ele aceitou agradecidamente e se apoiou pesadamente sobre o objeto. Niente piscou para tentar limpar a mente das visões. O Longo Caminho... Axat lhe presenteou com duas escolhas...
— Eu vi a mesma coisa, tecuhtli — ele respondeu honestamente.
— Rá! — O tecuhtli Citlali se levantou e bateu o pé uma vez no chão enquanto Tototl e os outros guerreiros supremos urravam de aprovação. — Então nós seguiremos em frente e tomaremos a grande cidade dos orientais, e transformaremos suas esposas em viúvas e as crianças em órfãs, se eles resistirem a nós.
RESSURREIÇÕES
A Ameaça da Tempestade
A Fúria da Tempestade
A Passagem da Tempestade
A Aurora
A Ameaça da Tempestade
Jan fedia a cavalo, suor, fumaça e sangue. O starkkapitän ca’Damont e o comandante ca’Talin também. Não houve tempo para tomar banho ou trocar de roupa. Eles tiraram a armadura depois do confronto com os ocidentais e cavalgaram rapidamente de volta a Nessântico, deixando a retirada relutante da Garde Civile com os a’offiziers. Suas botas — sujas, cheias de lama e deslocadas — faziam barulho nos ladrilhos encerados do Palácio da Kraljica na Ilha; os gardai no salão e os criados e os cortesãos se agitando nos corredores encararam o trio com apreensão, como se tentassem medir pelos rostos e pela atitude a gravidade da ameaça à cidade.
Se conseguissem interpretar aquelas expressões corretamente, ficariam assustados.
O assistente de Allesandra, Talbot, encontrou Jan quando os três passaram pela câmara de recepção externa e os acompanhou pelo corredor privativo da criadagem até a câmara do Conselho dos Ca’. Ele gesticulou para o gardai do corredor abrir as portas quando o grupo se aproximou. O burburinho de conversa no interior parou. Allesandra esperava por eles ali, com Sergei ca’Rudka e os conselheiros; havia um mapa das cercanias aberto sobre a mesa.
Todos olharam para Jan esperançosamente.
— Se vocês estão esperando ouvir boas notícias — falou o hïrzg sem preâmbulos —, eu não tenho nenhuma.
Ele parou. Uma mulher ao lado de Allesandra parou de examinar o mapa para encará-lo.
— Brie? Eu pensei...
Brie caminhou até Jan e abraçou o marido tão abertamente como se ele estivesse em trajes de gala para um baile. Jan tentou se afastar, por causa de seu estado, mas se a hïrzgin sentiu alguma repulsa pelo cheiro ou pela aparência, não demonstrou. Brie deu um beijo na bochecha de barba rala, depois na boca de Jan, que devolveu o beijo um instante depois.
— Eu vim com seu exército, meu querido — falou ela. — As crianças estão em Brezno, mas senti que meu lugar era aqui, com meu marido na cidade que ele governará um dia.
— Você não deveria ter vindo, Brie.
— Por que eu não deveria ter vindo? — perguntou a hïrzgin com a cabeça inclinada.
Seu tom de voz era estranho — quase evasivo e ameno demais. Ele sentiu que havia uma outra pergunta nas entrelinhas, uma que ela não estava fazendo.
— Não é óbvio? — respondeu Jan. — É perigoso para você.
— Eu pensei que fosse mais perigoso eu não estar aqui — argumentou Brie.
O hïrzg pôde notar um conteúdo oculto nas palavras, mas o significado lhe escapou. A esposa sorriu para ele: novamente com a mesma estranheza.
— Eu estou aqui, meu marido, e trouxe seu exército comigo. Ora, você deveria estar feliz.
Jan assentiu — sim, havia algo mais em Brie do que existia na superfície, mas não havia tempo para descobrir agora, e tentar fazê-lo só o deixaria irritado. Ele deu um beijo em Brie, mecanicamente, depois olhou em volta para os demais no ambiente.
Concentração...
— Kraljica, embaixador, conselheiros: os ocidentais têm uma força consideravelmente maior do que a nossa, mesmo com a adição firenzciana — informou Jan.
Ele caminhou até o mapa e passou a mão pelos pontos salientes desenhados.
— Eles avançam por uma linha de frente que os fará chegar a Nessântico pela borda oeste no lado norte do A’Sele, pelas margens do A’Sele, acima da Avi a’Nostrosei ou mesmo pela Avi a’Nortegate. Isso já é bem ruim, mas nossos batedores nos dizem que eles mandaram outra força cruzar o rio para atacar a cidade ao sul. No momento, não temos mais que vinte ténis-guerreiros, todos de Nessântico; precisamos de pelo menos algumas centenas para ao menos tentar nos equiparar aos ocidentais nesse aspecto. E, julgando pelo que fizeram em Villembouchure, os tehuantinos também têm um estoque decente de areia negra, o que significa que nenhum dos prédios daqui está a salvo se eles se aproximarem. Quanto ao que fizeram em Karnmor, bem, nós só podemos torcer para que os inimigos não tenham como repetir esse horror. Se tiverem, então não há esperança alguma.
— Você faz parecer como se já tivéssemos perdido e devêssemos sair da cidade — disse sua matarh. Jan balançou a cabeça.
— Não, matarh — disse o hïrzg. — Não é o que estou dizendo. Nessântico não está perdida, mas está em perigo sério e imediato, e não podemos subestimar isso. Eu vi os ocidentais e entrei em combate com eles para testá-los. E isso fez com que percebêssemos que precisamos de todas as forças que pudermos reunir: todos os ténis-guerreiros, todo cidadão apto fisicamente, todos os recursos possíveis. Mesmo com tudo isso, também precisaremos da graça de Cénzi, ou veremos Nessântico queimar mais uma vez.
O silêncio que se seguiu durou bastante.
— Não é isso o que nenhum de nós quer. Eis o que o starkkapitän, o comandante e eu propomos — o hïrzg disse, finalmente, apontando para o mapa. — O A’Sele faz uma curva para o norte logo após Pré a’Fleuve; isso necessariamente vai comprimir as forças tehuantinas. Eu sugiro estacionar nossas tropas aqui logo depois do rio Infante, a partir da vila de Certendi, ao sul. Vamos segurá-los lá o máximo que pudermos, depois destruiremos as pontes se precisarmos recuar para o outro lado. Eu quero que barreiras de terra sejam erguidas da Avi a’Certendi para o A’Sele, seguindo a margem leste do Infante. O comandante ca’Talin, o starkkapitän ca’Damont e eu faremos os ocidentais lutarem por cada pedaço de terra entre o Infante e Nessântico, e espero que consigamos mantê-los completamente afastados da cidade na Margem Norte. Quanto à Margem Sul...
Ele acenou com a cabeça para Allesandra e Sergei.
— Eu deixo nas suas mãos.
— ...existe um Longo Caminho, Atl. Um rumo que leva a um lugar melhor para nós, embora não pareça assim inicialmente, e Citlali nunca acreditaria em mim. Mas você tem que acreditar em mim. A vitória aqui não é só uma vitória; ela significará uma derrota para nós, com o tempo. A própria Tlaxcala pode cair.
Atl balançava a cabeça enquanto ouvia a explicação de Niente.
— Eu sei que o senhor não para de dizer isso, taat, mas não é o que eu vejo. Mesmo que eu quisesse acreditar no senhor... — Ele abanou a mão em desespero, soltando um suspiro. — Eu não vejo absolutamente nada deste Longo Caminho.
— Você não está olhando suficientemente o distante. Não é algo que você consiga fazer ainda.
Isso foi um erro. Ele notou na forma como a luz da fogueira na tenda refletiu no rosto carrancudo do filho.
— Eu sou capaz de ver os caminhos de Axat, taat. Acho que posso vê-los melhor que o senhor. O senhor só não quer admitir isso. Eu vou para a minha tenda. Encha seu cajado mágico e durma um pouco, taat. Eu farei o mesmo.
Ele cumprimentou Niente com a cabeça e ia sair, mas Niente o segurou pelo braço, os seus dedos apertaram o bracelete de ouro do nahual que tinha estado em volta do próprio antebraço.
— Atl, isso é muitíssimo importante. Eu vi o Longo Caminho; eu vi com extrema nitidez em Tlaxcala e mesmo aqui, por um instante. Eu pude vê-lo desde então; há tantos elementos prejudicando as brumas, como você mesmo sabe. Mas ele está lá; tem que estar. Nós dois juntos talvez possamos encontrá-lo novamente. Se o vislumbrarmos só mais uma vez, se pudermos ver como temos que reagir...
Niente vasculhou a bolsa e tirou dois passarinhos de madeira entalhados de forma crua e pintados de vermelho intenso, com traços simples e brutos. Ele entregou um para Atl.
— Eu fiz esses aqui mais cedo hoje à noite. Coloquei um feitiço dentro deles, para que, se nos separarmos na batalha, ainda possamos mandar uma mensagem um para o outro. Se um de nós vir o rumo, então podemos contar para o outro que o Longo Caminho está aberto.
Atl olhou para o pássaro.
— Eu não preciso...
Ele ia devolvê-lo, mas Niente fechou os dedos do filho em volta da escultura.
— Por favor — disse ele para Atl. — Por favor, aceite.
Atl suspirou; como suspirava quando criança, quando seus pais insistiam que ele fizesse algo que não queria fazer.
— Está bem, eu fico com isso. Mas, taat, não existe Longo Caminho. Eu não sei aonde essa guerra nos levará, nenhum de nós sabe, mas eu sei que podemos ser vitoriosos aqui. Eu vi isso, e pretendo conduzir o tecuhtli Citlali até esse momento.
Ele olhou para Niente, e a luz da fogueira refletiu em seus olhos negros.
— Encha seu cajado mágico — disse Atl, como se se dirigisse a um nahualli de baixo escalão. — O senhor vai precisar em breve. Eu mesmo preciso usar a tigela premonitória esta noite.
Atl caminhou até a aba da tenda e a abriu. Lá fora, a lua brilhava sobre seu ombro.
— Não há um Longo Caminho, taat. Tenho certeza disso — falou ele. — O senhor está vendo o que quer ver, não o que Axat está disposta a mostrar.
Atl deixou a aba da tenda cair atrás dele sair.
— Você cruzará o rio hoje de manhã com Tototl e se juntará à força ao sul com dois punhados de nahualli sob seu comando.
Essa foi a ordem que Niente recebeu do tecuhtli Citlali. Atl e Tototl estavam ao lado do guerreiro quando ele deu o comando. O rosto do filho tinha uma expressão ilegível e atormentada, Niente ficou curioso para saber — após a conversa da noite anterior — se a ordem tinha vindo de Citlali ou de Atl. Ele tinha que admitir que fazia sentido — deixar que o antigo nahual ficasse ao lado do tecuhtli para questionar o novo nahual levaria a hesitação e contradições. Ao sul, Niente não teria rivais... nem Atl, que seguiria com a força principal. Ao sul, Niente seria um recurso poderoso para os nahualli e um líder comprovado. Se Niente ainda fosse o nahual, se estivesse procurando por uma vitória esmagadora aqui, em vez da quimera de seu Longo Caminho, ele talvez tivesse sugerido alguma coisa parecida, como mandar Atl com o braço sul do exército.
Citlatli não lhe deu chance de contestar.
— Uchben nahual, o bote com os outros nahualli está à sua espera na margem — falou ele. — Você partirá assim que recolher suas coisas. Nahual Atl, quero discutir nossa estratégia com você...
Com essa dispensa, o tecuhtli Citlali deu as costas para Niente e gesticulou para Atl segui-lo. O jovem olhou uma única vez para o antigo nahual.
— Taat — ele disse —, vejo o senhor de novo na grande cidade. Mantenha-se a salvo.
Atl acenou com a cabeça e depois seguiu Citlali.
Pouco tempo depois, Niente se viu em um bote com outros três tehuantinos cruzando o A’Sele, a água marrom se agitava e ficava momentaneamente branca com o bater dos remos dos jovens guerreiros. O cheiro de água doce entrou em seu nariz, as árvores na outra margem distante estavam obscurecidas pela névoa da visão pobre de seu olho são. Ele podia sentir os olhares dos outros nahualli que o acompanhavam sobre si, podia sentir a avaliação ao se agachar na popa da pequena embarcação.
Niente olhou para oeste, rio abaixo — os tehuantinos receberam uma mensagem do comandante da frota informando que o rio tinha sido liberado e que ele estava subindo o rio com os navios de guerra para encontrá-los. Niente não tinha visto vela alguma ainda, mas o rio fazia uma curva ali perto, e a frota talvez estivesse logo ali atrás daquela curva. O guerreiro supremo Tototl, em outro dos botes, olhava apenas à frente, na direção da outra margem.
O que eu faço agora? Esta estratégia não estava em nenhum dos caminhos que vislumbrei. Ele se perguntou se Atl tinha visto isso e se sabia para onde esse caminho levava. Niente se sentiu perdido, sendo levado pelas correntezas do presente. Será que consigo encontrar o Longo Caminho nesta situação, e se conseguir, será que arrisco segui-lo? Ele já tinha desistido do Longo Caminho uma vez devido a seu alto custo. Essa visão tinha sido nítida, como se Axat quisesse que Niente soubesse. A morte de Citlali pouco importava para ele; um guerreiro esperava, e até mesmo recebia, pela morte de braços abertos na batalha. Mas Niente também estava morto nessa visão; ele realmente faria isso, se Axat cobrasse seu preço? E se Axat exigisse a vida de Atl também, como Ela tinha dado a entender...
Suas mãos estavam tremendo, e não era por causa do frio úmido da manhã.
Será que Atl viu isso? Será que foi por isso que ele mandou você embora?
Niente queria falar desesperadamente com Atl, mas não era mais possível. Ele tocou na bolsa para sentir o pássaro entalhado. O toque não lhe deu nenhum alívio.
A margem estava se aproximando; Niente quase conseguia identificar uma árvore ou outra se aproximando em vez dos borrões verdes e vislumbrou uma meia dúzia de guerreiros reunidos sob a cobertura verdejante, prontos para escoltá-los até a estrada. A proa do bote atracou na lama da margem escondida sob os juncos, assustando Niente. Os guerreiros que os aguardavam desceram a margem correndo para ajudá-los a sair. Ele ouviu Tototl berrar ordens. Niente esperou que os guerreiros os puxassem para a terra seca. No topo da margem, ele olhou para o outro lado do rio mais uma vez. Entre a névoa da catarata, Niente pensou ter visto algumas figuras se movendo.
Ele se perguntou se uma delas era Atl.
— Por Cénzi, então é verdade...
A mão de Jan cofiou a barba. Seus olhos se arregalaram, e Brie podia jurar que havia um espanto genuíno neles, não uma surpresa fingida. Talvez ela estivesse enganada e Jan realmente não tivesse mandado a garota à frente deles para encontrá-la mais tarde na cidade.
— Eu juro, Brie, eu não sabia que ela estava aqui. Eu juro por Cénzi. Eu sei que você deve estar pensando que mandei Rhianna para cá, ou Rochelle, ou seja lá qual for seu nome verdadeiro, mas eu nunca pensei...
— Não, você não pensou — ralhou Brie.
Ela continuou observando o rosto do marido. O espanto em sua expressão pareceu genuíno o bastante quando ela deu a notícia que Sergei lhe contara.
— Ela alega ser sua filha, Jan.
— Ela também me disse isso.
— Ela disse isso para você? Quando?
— Quando tirou a faca da matarh de mim. Foi seu golpe de despedida antes de fugir. — Jan passou os dedos pelo cabelo recém-molhado do banho rápido. — Ela matou Rance. Eu sabia disso, mesmo na ocasião. Ela parece tanto com El...
Ele se deteve e olhou de relance para a esposa.
— Com a matarh dela — terminou o hïrzg.
— Então é possível que ela esteja dizendo a verdade, que seja sua filha?
Jan murchou. Agora suas mãos mexiam nervosamente no cabelo.
— Eu creio que sim. Ela tem a idade certa.
— Você chegou a... com Rhi... Rochelle?
Ele balançou a cabeça com raiva, sua mão fez um gesto de negação, movimentando o ar próximo à bochecha de Brie.
— Não! Eu juro, Brie. Ela nunca me deixou... — Jan suspirou alto. — Por um bom motivo, evidentemente.
O hïrzg andou de um lado para o outro nos aposentos que Allesandra tinha cedido a eles no palácio, enquanto abotoava a túnica acolchoada que ficava sob o uniforme da Garde Civile.
— Brie, eu lamento, mas não posso me preocupar com isso. Não agora. Eu não sei por que Sergei não a jogou na Bastida quando teve a oportunidade.
Brie caminhou até o marido e afastou suas mãos para o lado enquanto ele se atrapalhava com os laços da túnica.
— Aqui, deixe-me fazer isso. É isso o que você quer para ela? — perguntou a hïrzgin. — A Bastida? Quer que ela seja julgada pelos crimes que cometeu?
Brie sentiu o peito do marido inflar e desinflar sob suas mãos.
— Sim. E não. Eu não sei o que quero, Brie. Se ela for minha filha com a Pedra Branca...
— Ela não é sua filha. É mais uma bastarda que você gerou. — Ela terminou de dar os laços e se afastou.
— Naquela época, eu teria me casado com Elissa.
Desta vez Jan pronunciou o nome sem hesitação, Brie percebeu que doía ouvi-lo, ouvir o nome de sua própria filha atrelado àquela mulher. As palavras do marido eram dolorosas.
— Eu teria me casado com ela sem hesitação e sem a permissão de meus pais, se eles não a dessem — continuou ele. — A menina não seria uma bastarda. Eu já tinha pedido para a matarh entrar em negociação com a família de Elissa... ou pelo menos a família da qual ela alegava fazer parte. Ah, aposto que a matarh está achando essa situação uma piada maravilhosa.
Brie teve a certeza de que a intenção de Jan era magoá-la com aquelas palavras; ela se forçou a não ter reação alguma.
— Sua matarh fez o que achou que era necessário para proteger a família. Assim como eu, quando necessário.
— Sim, sem dúvida, e foi por isso que a matarh contratou a Pedra Branca para matar Fynn; para proteger a família. — Jan terminou de colocar o restante do uniforme e se sentou em uma cadeira para calçar as botas. — Brie, eu preciso encontrar com ca’Damont e ca’Talin em uma marca da ampulheta. Você precisa tomar cuidado; eu não sei do que essa Rhianna ou Rochelle pode estar atrás. Somente Cénzi sabe de quem a Pedra Branca pode estar atrás. Eu ficaria mais tranquilo se você saísse da cidade de uma vez por todas.
E assim você estaria livre para fazer o que quisesse. Brie teria ficado mais satisfeita se achasse que a preocupação dele era genuína, e não em causa própria. Como a matarh de Jan — suas vontades sempre estavam em primeiro lugar.
— Eu vou ficar, meu marido — ela disse com firmeza. — Você tem o seu dever; eu tenho o meu. Allesandra conduzirá a defesa ao sul; e eu vou ajudá-la.
— Brie... — Ele se levantou para afivelar e ajeitar o cinto da espada.
— Não, estou falando sério, Jan. Eu treinei com meus irmãos, e posso me sair bem contra eles com uma espada. Você sabe disso. Meu vatarh me educou em estratégia militar e até me consultou várias vezes no passado, quando saqueadores de Shenkurska invadiram a nossa fronteira. A própria Allesandra comandou exércitos; eu ouvi seus gritos de frustração por causa de algumas táticas e estratégias que ela usou nos últimos anos. Eu não estou menos a salvo aqui em Nessântico do que estaria viajando pelas estradas, mesmo com uma escolta.
Jan balançou a cabeça.
— Eu conheço essa sua expressão agora. Não adianta discutir com você.
— Então por que ainda está discutindo? — perguntou Brie, sem saber se ele estava irritado ou se era só estresse. — Eu não quero discutir com você, meu amor. Nós precisamos um do outro, eu só quero que você esteja o mais seguro possível. Você tem um destino, Jan: você vai ser o próximo kraljiki. Eu quero ver isso acontecer; pretendo sentar ao seu lado no Trono do Sol.
Ela limpou fios imaginários dos ombros do marido e sorriu para ele: o sorriso ensaiado, o sorriso exigido.
— Agora... vá se encontrar com o starkkapitän e o comandante. Você e eu nos preocuparemos com Rochelle mais tarde, quando os tehuantinos não forem mais uma ameaça.
— E você?
— Eu tenho a minha própria reunião com Allesandra.
— Com Sergei também?
Brie deu de ombros.
— Ele disse que tinha outros compromissos hoje à noite. — Ela ficou na ponta dos pés e beijou a bochecha de Jan. — Vá.
— Você não pode usar o robe verde — Rochelle disse para Nico.
Um sorriso indulgente tocou seus lábios e sumiu um instante depois. Seus lábios pareciam não se lembrar mais de como sorrir de verdade. A alegria parecia ter desaparecido de sua vida, quando antes ela a preenchia.
— Há uma grande diferença entre “não é permitido” e “não poder” — respondeu Nico. — Eu sou um téni, e é meu direito usar o robe. Mais do que um direito; é minha obrigação. Eu sigo Cénzi, não um idiota semimorto que se chama de archigos. Está na hora de eu me afirmar completamente e parar de me esconder como um criminoso.
— Você é um criminoso aos olhos dos Domínios e da fé concénziana. Eles matarão você, se puderem.
— Eles podem tentar. — Nico tentou sorrir novamente, mas o sorriso desvaneceu. — E há uma grande diferença entre “tentar” e “matar” também. Você não precisa ficar tão preocupada, irmãzinha.
Rochelle deu de ombros. Eles estavam no segundo andar de um dos esconderijos dos morellis no Velho Distrito; o proprietário — um vendedor de tecidos — ficou visivelmente aflito ao ver Nico ali, mas dispensou os aprendizes pelo resto do dia, mandou a família visitar primos a duas ruas dali e concordou em avisar o resto da seita dos morellis que o Absoluto desejava se encontrar com eles.
Nico também descobriu que Ancel esteve entre os capturados e executados após a invasão ao Velho Templo — outra alma a seus pés, outra morte pela qual ele devia expiar. Havia tantas, e faziam tanto peso sobre seus ombros que Nico queria cair de joelhos sob elas.
Liana, Ancel, eu lhes prometo — eu encontrarei paz para vocês...
Nico ainda podia ver a filha que teve com Liana aninhada nos braços de Varina. Sentia os dedos de Sera em volta dos seus, agarrando Nico como se soubesse que pertencia a ele. Aquela memória e a memória de Liana e Ancel e de todos aqueles que morreram por ele fizeram lágrimas se acumularem em seus olhos novamente. Nico as secou.
No andar debaixo, entre os tecidos pendurados em cabides à espera de serem arrumados em peças, Nico pôde ouvir o agito e o barulho de conversa através das tábuas do assoalho: vários ténis-guerreiros saíram de mansinho do templo para encontrá-lo; também havia, tinham dito para ele, vários ténis-guerreiros de Brezno presentes, eles tinham chegado à cidade pouco depois do comboio do exército firenzciano. Nico já tinha conversado com alguns deles — o archigos Karrol declarara que todos os ténis-guerreiros seriam enviados para o campo de batalha com o hïrzg Jan no dia seguinte.
— Nós não iremos se o senhor nos mandar, Absoluto. — Foi o que todos lhe disseram. Todos juraram que o seguiriam no lugar do archigos, se Nico pedisse. A lealdade dos ténis-guerreiros o satisfazia e, ao mesmo tempo, aumentava a culpa que ele carregava.
Como vocês podem me seguir depois do que eu fiz, depois dos meus fracassos? Como ainda podem ter fé quando eu luto com isso?
Nico ainda não sabia ao certo o que dizer para eles. Ele deixaria isso com Cénzi, mas suspeitava que já sabia o que diria. As escolhas diminuíram com a chegada dos ocidentais, Nico tinha passado a noite anterior rezando para Cénzi, pedindo por orientação enquanto Rochelle o observava, com uma expressão mais curiosa do que devota. Ela se parecia com Elle, a matarh de Rochelle, e a matarh adotiva de Nico. O que você fez com ela, Elle? Você a corrompeu além da redenção?
Mas Nico não podia se preocupar com Rochelle agora. Ainda não. Seus seguidores, aqueles que sobraram, esperavam por ele, e as palavras de Cénzi ardiam dentro de Nico.
— Vamos — ele disse para Rochelle, estendendo sua mão. — Está na hora.
Nico permitiu que a irmã descesse primeiro, acompanhando-a a seguir escada abaixo. O cheiro adstringente de corantes e fixadores no único cômodo do andar debaixo era forte, o ambiente que também funcionava como loja e mostruário para o vendedor de tecidos.
Havia pelo menos dez punhados de pessoas confinadas no espaço, tão apertados que o ar tinha se aquecido pela presença. Nenhuma saudação abrandou a atmosfera quando ele apareceu; todos pareciam tão sombrios quanto Nico. Ele fez o sinal de Cénzi e se curvou humildemente, os morellis devolveram o gesto. Algumas lâmpadas instaladas nas paredes do vendedor eram a única fonte de luz, mas Nico podia ver vários robes verdes iguais ao que ele estava usando, embora a maioria deles fossem desconhecidos para ele. Nico sentiu seus olhares observarem seu rosto machucado e com hematomas, as manchas roxas cobrindo seus antebraços, a forma como ele mancava ao descer a escada. E também notou os olhares curiosos para Rochelle.
— Que Cénzi abençoe a todos vocês — disse Nico, espalmando as mãos.
Ele sentiu o carinho de seus seguidores, e devolveu o sentimento; o cômodo estava tomado por um brilho pálido que não emanava de lugar nenhum e de todos os lugares.
— Eu não mereço que vocês tenham vindo, e menos ainda que ainda escutem o que tenho a dizer.
— O senhor ainda é a Voz de Cénzi, Absoluto — alguém disse no meio dos morellis. — Nós seguimos o senhor. Vimos Cénzi operar o milagre na praça. Vimos o senhor desaparecer sem lançar um feitiço; vimos as correntes vazias.
Os outros concordaram em meio a murmúrios, e o som fez Nico querer abraçar a todos, para tentar extinguir a tristeza e a perda no calor de sua aprovação e apoio.
Ele entrelaçou as mãos em frente ao corpo como se fosse rezar.
— Sim, Cénzi veio a mim quando eu estava diante da kraljica, e Ele me soltou dos grilhões que a vida colocou em mim. Mas... — Nico parou e balançou a cabeça. — Cénzi também me mostrou que eu deixei meu próprio orgulho me afastar de Seu caminho, e Ele me puniu por isso. Ele tomou para Si muitos daqueles que eu amava, enviou muitos outros para a dor e o sofrimento, e me encheu de tristeza e arrependimento. A dor dos morellis foi causada por sua dedicação a mim. Eu entendo agora que devo me tornar o instrumento de Cénzi, que devo me entregar completamente a Ele e devo aceitar o que Ele quiser que eu suporte. Eu entendo que não sou nada.
Nico ergueu a cabeça e abaixou as mãos, seu olhar varreu os seguidores, encarando cada um deles no cômodo.
— Vocês também devem entender isso. Esta também é a sua tarefa, como sempre foi a tarefa dos ténis: realizar a vontade de Cénzi e nada mais.
— O que Cénzi quer que façamos? — alguém perguntou. — Diga-nos, Absoluto.
Nico hesitou, embora se sentisse tomado pelas palavras. Eu estou certo desta vez, Cénzi? Estou ouvindo o Senhor, e não a mim mesmo? É isso, verdadeiramente, o que o Senhor quer que eu diga a eles? As palavras martelavam em sua mente, e Nico só poderia se livrar delas ao dizê-las.
— Nossa Fé está sendo ameaçada — falou ele. — Os ocidentais estão prestes a dominar Nessântico e os Domínios e, se isso acontecer, os fiéis sofrerão imensamente. Eu rezei, me abri para Cénzi e O escutei, e isso é o que Ele me diz.
Nico fez uma pausa e respirou várias vezes, olhando para cada um deles.
— Agora é a hora de deixarmos de lado nossas lutas com os falsos líderes da fé concénziana; não para sempre, mas por um curto período de tempo. Nós precisamos primeiro expulsar os pagãos e hereges que nos ameaçam antes que possamos olhar para a heresia dos Domínios e da Coalizão.
Ele fez outra pausa, acenando com a cabeça para eles.
— Eu disse isso naquele dia na praça e repito aqui: por enquanto, vocês devem obedecer ao archigos. Ténis-guerreiros, vão à guerra. Ténis, cumpram qualquer tarefa que recebam. O restante, façam o que for preciso. Obedeçam às autoridades que estão acima de vocês. Por enquanto.
Nico esperou. O brilho no aposento aumentou.
— Façam isso, por enquanto. E depois... depois, nós voltaremos a olhar para dentro. Voltaremos a nossa atenção para a reforma da fé concénziana. Tomaremos a glória que merecemos e moldaremos a Fé, como Cénzi deseja, como o Toustour e a Divolonté exigem, e não daremos ouvidos às ordens de ninguém, ninguém, que não esteja conosco. Isso é tudo o que tenho a dizer esta noite.
O brilho no cômodo esmaeceu, e a luz das lâmpadas agora parecia descarnada. Os seguidores se remexeram, hesitaram, se entreolharam fixamente. Então alguém abriu a porta; um a um, eles fizeram o sinal de Cénzi e saíram do cômodo arrastando os pés. Nico devolveu o sinal para cada um dos seguidores e murmurou uma bênção a cada um. Assim todos saíram, ele sentiu a mão de Rochelle pousar em seu ombro.
— Eles não ficaram satisfeitos — comentou ela. — Você não disse a eles o que eles queriam ouvir. Ficaram desapontados.
— Eu sei — respondeu Nico. — Mas era tudo o que eu tinha a dizer.
Rochelle assentiu.
— Você está cansado.
— Exausto — admitiu Nico; ele olhou para as escadas que levavam para o segundo andar. — Mas ainda há mais uma reunião antes que eu possa dormir.
— O que você quer dizer? — perguntou Rochelle.
Nico não disse nada, apenas gesticulou para que ela o seguisse. Ele subiu penosamente, sentindo seus pés pesados pisando os degraus. A luz de uma lâmpada vinha do quarto dos fundos, onde antes não havia luz. Nico ouviu a lâmina da faca de Rochelle sair da bainha e balançou a cabeça para ela.
— Você não vai precisar disso. Não ainda.
Ele andou tranquilamente pelo corredor até o quarto e empurrou a porta para abri-la.
— Você ouviu o que queria ouvir? — perguntou Nico para a pessoa no quarto.
— Você ouviu o que queria ouvir? — disse Nico, e Sergei deu de ombros.
— No geral, sim — respondeu o embaixador. — Você simplesmente salvou a si mesmo e aos ténis-guerreiros.
— Minha segurança não está em suas mãos, Nariz de Prata — disse Nico, mas a bravata soou cansada e sem ânimo.
— Ah, mas na verdade está, sim — disse Sergei.
Ele vislumbrou um movimento atrás de Nico e viu um rosto.
— Rochelle. Por favor, por que vocês dois não entram e se sentam? Não há motivo para não termos uma conversa civilizada, só nós três.
Nico deu de ombros e entrou, se sentando na beirada da cama no quarto. Sergei percebeu que o rapaz lançou um olhar furtivo para a porta do outro lado, nos fundos da casa. Sergei a tinha deixado aberta, mostrando a escada que descia até um beco atrás da casa do vendedor de tecidos. Rochelle entrou e imediatamente encostou as costas na parede lateral da porta do corredor, ficando de pé e encarando Sergei, com olhos concentrados e perigosos. O embaixador ergueu as mãos dos braços da cadeira, a direita segurava a bengala. Nico pensou ter podido sentir o feitiço de Varina escondido dentro da madeira.
— Pronto, viu só. Eu não sou ameaça para nenhum de vocês, no momento.
A boca de Nico se contorceu, dando um leve indício de um sorriso.
— E nenhum de nós acredita nisso.
— Eu não esperava que acreditassem — respondeu Sergei.
Mentalmente, o embaixador repetiu o gatilho do feitiço que Varina colocara na bengala para que ele estivesse na ponta da língua, se precisasse usá-lo. Ele se perguntou se seria eficiente contra Nico — Sergei suspeitou que não seria tanto quanto ele esperava.
— Você tem uma rede de informações melhor do que eu pensava, Sergei.
— Eu tive sorte. Alguns de seus ténis morellis tinham as consciências pesadas. Depois da disputa no Velho Templo, eles não confiam mais tanto assim em você, Nico. Eles vieram me contar onde você estaria.
— Não posso dizer que os culpo. — Nico se recostou na cama. — Eu mesmo não confio em mim. O que você teria feito se eu não tivesse mandado os ténis-guerreiros obedecerem ao archigos?
— Há gardai, ténis leais e feiticeiros numetodos suficientes nas ruas para prender o dobro de pessoas que você conseguiu reunir aqui, mesmo com os ténis-guerreiros. — Sergei fechou os olhos e imaginou a cena. — Deixe-me dizer o que teria acontecido. Eles estão esperando pelo meu sinal. Eu teria levado todos vocês imediatamente para o pátio do lado de fora do Palácio da Kraljica, conduzindo o grupo pela Avi A’Parete como uma vara de porcos ao matadouro, para que todos vissem vocês. Quando vocês chegassem ao palácio, haveria uma enorme multidão de cidadãos lá para assistir ao espetáculo, e eu colocaria você e sua gente na frente. Eu arrastaria você, Nico, com torniquetes apertados nos antebraços. Eu diria aos cidadãos que você e os ténis-guerreiros que lhe seguem preferem ver Nessântico queimar e todos eles mortos a cumprir seus juramentos a Cénzi, à fé concénziana e ao povo. Eu teria entregado o machado do carrasco para um voluntário entre os cidadãos... e haveria muitos voluntários, Nico. Eu mandaria essa pessoa arrancar as mãos dos seus braços. Seus gritos ecoariam pelas muralhas do palácio, tão alto que você acharia que Nessântico inteira poderia ouvi-los. Então eu faria com que outro cidadão puxasse a língua da sua boca e a cortasse com uma tesoura incandescente, para que a ferida fosse imediatamente cauterizada. Eu não quereria que você morresse. Não ainda. Eu diria para todos eles — os cidadãos e ténis-guerreiros assistindo — que esse era o castigo da fé concénziana, e que então eu mostraria o castigo do Trono do Sol. Eu amarraria você a um poste e mandaria um garda da Bastida abrir seu estômago e puxar um pedaço dos seus intestinos. Eu amarraria esse pedaço a um molinete e faria o garda extrair suas entranhas aos poucos, com o molinete rangendo e girando. Se você ainda estivesse vivo depois disso, então eu mandaria que você fosse esfolado, sua pele seria arrancada de seu corpo vivo. Quando você finalmente morresse, com sofrimento e tormento, seu corpo seria colocado em uma jaula e exposto, com as mãos e a língua pregados ao crânio.
Nenhum dos dois falou durante a longa história. Sergei abriu os olhos. Nico ainda estava na cama, olhando para o embaixador, mas sua expressão continha uma máscara inescrutável. Rochelle parecia horrorizada. Sua boca estava ligeiramente aberta, e ela evitava olhar diretamente para Sergei.
— Você se deleita com essa fantasia — disse Rochelle, com raiva.
— Sim, me deleito — admitiu Sergei.
O embaixador lançou um olhar breve para Rochelle antes de voltar a atenção para Nico. Ele coçou a base do nariz de metal com o indicador e continuou.
— Eu diria para os ténis-guerreiros que eles teriam duas escolhas. Uma seria renunciar você, obedecer ao archigos e servir a Nessântico, e eles talvez vivessem. A outra seria sofrer seu destino imediatamente. Eu daria essa escolha a cada um. Quantos você acha que teriam seguido você no martírio, Nico?
— Eu não sei. Nem acho que sirva para alguma coisa especular a respeito disso, já que isso não aconteceu. Eu mandei que os ténis-guerreiros obedecessem ao archigos e você os deixou partir. O que importa é o que acontece a partir de agora. — Nico mudou de posição e se sentou de costas eretas na beirada da cama. — Então, o que acontece agora, de fato, Sergei? Você vai tentar me prender de novo?
— Eu posso tentar — respondeu o embaixador, levantando a mão quando Nico começou a contestar. — Apesar da minha fantasia — ele parou e sorriu para Rochelle —, depois de seu espetáculo na praça, eu realmente duvido que eu conseguisse fazê-lo
— Eu não faço ideia de como aquilo aconteceu — disse Nico. — Aquilo foi Cénzi, não eu.
— Então talvez Cénzi, se realmente for Ele, torne ao mesmo tempo difícil e custoso prender você, e é perfeitamente possível que eu não sobreviva à tentativa. Mas há gardai e utilinos suficientes aguardando a minha ordem, estou certo de que, com o tempo, nós teríamos sucesso, mesmo com Cénzi.
— Isto é blasfêmia — disparou Nico.
— Talvez fosse, se eu realmente achasse que Cénzi seria o responsável. Mas...
— Por que você está aqui então, se não é para me prender?
— Estou aqui porque Varina é minha amiga, e ela me pediu para vir. Pessoalmente, eu considero que Varina é indulgente demais com você, mas ela acha que você merece ser salvo, que você pode na verdade se redimir, e também acha que nós precisamos de você. Eu mesmo não tenho tanta certeza. — Sergei bateu com a bengala no tapete sob a cadeira. — O que você quer, Nico?
— Isso é fácil — respondeu o jovem. — Eu quero continuar a servir Cénzi.
— E, por enquanto, o que Cénzi exige de você, na sua cabeça? Seria ajudar a defender Nessântico, como você mandou que os ténis-guerreiros fizessem?
Nico tinha entendido; Sergei pôde ver.
— Se esse fosse o caso, se por acaso eu acreditasse nisso, o que eu ganharia com isso?
— Você ainda precisa responder por muita coisa, Nico — disse o embaixador. — A morte da a’téni ca’Paim, a morte de todos os que tentaram defender o Velho Templo, a destruição, os ferimentos. Varina pode estar disposta a deixar tudo isso passar, mas não a kraljica. Não completamente. Mas... talvez possa se argumentar que a morte de ca’Paim foi acidental e não premeditada, que os gardai que morreram estavam cumprindo seu dever, e que, se os morellis e seu Absoluto servirem bem aos Domínios e jurarem trabalhar com os Domínios no futuro, então talvez grande parte do que aconteceu possa ser perdoado. Não esquecido, jamais esquecido, é claro, mas saberíamos que tudo isso foi imensamente lastimável.
— Você faz uma promessa que não tem autoridade para cumprir, Sergei, nem Varina.
— Mas eu tenho a autoridade para oferecê-la em nome de quem tem — respondeu o embaixador. — A escolha é sua, considerar ou não a promessa.
Nico fez hum baixo na garganta.
— O archigos concorda com isso?
— O archigos não tem nada a ver com isso. É uma questão puramente secular. Você e a fé concénziana terão que chegar a seu próprio acordo, mas se você servir ao Estado, ele vai cuidar para que a Fé não faça nada que, bem, comprometa as suas habilidades. — Sergei bateu a bengala novamente, com mais força desta vez. — Nessântico precisa da sua ajuda, Nico. Eu vi o que você é capaz de fazer. Você seria o mais formidável téni-guerreiro que nós teríamos.
Sergei esfregou o nariz novamente e completou.
— Se isso for o que Cénzi deseja.
— Não faça piada disso, Sergei.
— Eu lhe garanto que estou sendo completamente sério.
— Eu preciso rezar primeiro. Não posso lhe dar uma resposta agora.
O embaixador suspirou.
— E eu não posso esperar, Nico. Lamento.
Sergei gemeu ao se levantar e caminhou até a porta dos fundos. Ele ergueu a bengala; lá fora no beco, figuras se mexeram, e ele ouviu passos correndo no primeiro andar, se deslocando pela casa. Sergei se voltou para o quarto.
— Eu realmente lamen...
Ele ia dizer, mas foi atingido pelo frio do Ilmodo e viu a escuridão no meio do quarto, quando ela se dissipou, nem Nico, nem Rochelle estavam mais lá. Um garda meteu o rosto pela porta.
— Embaixador?
— Parece que o Absoluto mentiu para mim — ele disse para o homem.
Varina embalava Sera em seus braços, de um lado para o outro, em frente à janela. Lá fora, na rua após o pátio na frente da casa, uma fila aparentemente infindável de tropas em uniformes preto e prateado marchava para o oeste. Suas botas soavam uma cadência fúnebre e solene pela Avi a’Parete, como se a cidade em si fosse um tambor. Eles estavam marchando já há uma virada da ampulheta, desde a Primeira Chamada, e o barulho das cornetas que anunciavam a chegada das tropas tinha acordado Serafina. Varina aninhara a criança para sossegar sua agitação. Ela beijou a testa do bebê e sentiu a maciez sedosa do cabelo de Sera em seus lábios.
— Não fique assustada, Sera — sussurrou Varina contra o trovão baixo das botas nos paralelepípedos. — Eles estão aqui para nos proteger, querida. Estão aqui para manter você a salvo.
Ela ouviu uma batida suave na porta do quarto, seguida do rangido de dobradiças.
— A’morce, desculpe o atraso. As ruas estão uma confusão, como a senhora pode imaginar. Eu tive que vir pelos fundos... — A ama de leite, Michelle, entrou no quarto, a passos largos e soltando os laços da blusa. — A pobrezinha deve estar faminta. Aqui, deixe-me pegá-la um pouco...
Varina entregou Sera para Michelle e viu o bebê se agitar por um instante antes de a boca procurar e encontrar o mamilo e começar a sugar.
— Isso mesmo, não estamos famintas? — disse Michelle, sorrindo para Sera antes de olhar para Varina. — Parece tão...
A ama de leite se deteve, e Varina viu os olhos de Michelle ficarem úmidos.
— Desculpe — falou a jovem. — Às vezes, quando eu seguro Sera, eu penso no meu próprio...
Ela parou novamente e engoliu em seco.
— Eu não consigo imaginar a dor que você sentiu ao perder seu bebê — disse Varina. — Lamento muito, Michelle.
A ama de leite assentiu.
— A cidade inteira está em alvoroço — disse a jovem.
A mudança de assunto foi abrupta e, Varina sabia, completamente deliberada. Michelle ergueu o ombro e abaixou a cabeça para secar as lágrimas. Sera se remexeu e se ajeitou novamente em seus braços.
— Dizem que já é possível ver os ocidentais do topo da torre da Bastida. Não sei se é verdade, mas... — Michelle sentiu um arrepio, e Sera parou de mamar por um instante, seus grandes olhos azuis se abriram e se fecharam novamente, e ela voltou a se apegar ao seio. — A’morce, meu marido quer que eu vá para a casa do meu irmão em Ile Verte. Eu pensei, bem, pensei que, se a senhora quisesse... eu poderia...
Varina suspirou e acariciou a cabeça de Sera. Os olhos da criança se abriram novamente, encontrando o olhar de Varina. Sera sorriu por um momento em volta do mamilo, e uma bolha branca escapou de seus lábios antes de voltarem a mamar.
— Acho que seria uma excelente ideia, Michelle. Se você não se importar.
— De maneira alguma. Seria um prazer cuidar dela. A’morce, a senhora deveria vir também. Meu irmão tem uma casa grande lá, e tenho certeza...
Varina negou com a cabeça. Ela lançou um olhar para o exército marchando novamente: era o comboio de suprimentos da retaguarda agora — carroças e cavalos.
— Meu lugar é aqui — respondeu Varina. — Quando você pretende ir?
— Hoje à noite, depois da Terceira Chamada.
— Então por que você não vem pegar Sera na Segunda Chamada? Eu aprontarei as coisas dela para você então.
Michelle assentiu.
— Ela é linda. Foi uma pena o que aconteceu ao vatarh e à sua pobre matarh. Sera tem sorte de ter a senhora, a’morce.
Varina tentou sorrir e descobriu que não conseguia. Ela acariciou a cabeça do bebê novamente.
— Michelle, se alguma coisa acontecer comigo...
— Nada vai acontecer — respondeu a ama de leite rapidamente, sem deixar que ela terminasse.
Varina balançou a cabeça.
— Nós não sabemos disso. Caso alguma coisa aconteça, alguma coisa que signifique que eu não possa cuidar de Sera, você ficaria com ela? Belle fala tão bem de você, e talvez possa amenizar a sua perda, ao menos um pouco.
Michelle estava chorando agora, com a cabeça abaixada ao ver Serafina em seu seio.
— A’morce...
— Só diga sim. — Varina acariciou Sera mais uma vez. — Só isso.
Michelle assentiu de novo, e Varina abraçou as duas de leve.
— Ótimo — disse ela. — Isso me deixa mais tranquila.
Jan viu os offiziers posicionarem suas tropas. Ele, o starkkapitän ca’Damont e o comandante ca’Talin se posicionaram na sacada do segundo andar de uma casa de fazenda, situada em uma pequena elevação a algumas centenas de passos do rio Infante. No telhado da casa, Jan postou pajens com bandeirolas com mensagens, assim como corneteiros com trompas e zinks. Um buraco tinha sido aberto no teto do aposento atrás deles, com uma escada que levava até o telhado para que os pajens pudessem subir do posto de comando até o telhado e ordens pudessem ser dadas lá para cima. Desse ponto de observação, eles podiam ver as companhias sendo dispostas deste lado do rio, assim como os sapadores que colocavam obstáculos ao longo da margem para tentar impedir a travessia dos ocidentais.
Do outro lado do rio, mais perto de Nessântico, trabalhadores cavavam uma linha dupla de barricadas, para onde o exército — caso precisasse recuar — poderia retroceder e resistir à vontade.
Jan torcia para que as trincheiras não precisassem ser usadas, mas suspeitava que seriam.
As tropas ocidentais estavam visíveis no verzehen — um tubo com lentes, criado pelos numetodos, que permitia que a pessoa enxergasse a uma grande distância. Através da imagem circular distorcida e um pouco borrada captada pelo verzehen, Jan observou os offiziers dos tehuantinos, os guerreiros supremos, darem suas ordens. Viu o estandarte de cobra em um campo esmeralda. As tropas marchavam por campos, que antes tinham sido fazendas e bosques. As próprias árvores das florestas que cercavam os campos pareciam balançar com o passar do vasto número de ocidentais. Eles já se aproximavam da vila de Certendi.
Eram inimigos demais. Demais. Como uma colônia de formigas escarlate de Daritria, parecia que eles poderiam cruzar o Infante sobre os corpos dos mortos empilhados na água. Jan passou o verzehen para ca’Talin.
— Eles estão aqui. Chegarão à distância de uma flechada de nossas fileiras à noite. Se eu fosse o general dos tehuantinos, eu pararia ali para reunir as tropas e atacar na nova luz, mas... — O hïrzg deu de ombros. — Eles já fizeram o contrário antes. Nós talvez lutemos no escuro. Os ténis-guerreiros estão aqui?
— A maioria deles chegou ontem à noite, hïrzg — informou ca’Damont. — Praticamente todos do grupo dos Domínios, e a maioria dos nossos. Eles disseram que Nico Morel mandou que viessem.
— Então Sergei cumpriu sua palavra — respondeu Jan. — Excelente. Cénzi sabe que precisaremos de todos eles.
Ele gesticulou para um dos pajens; o menino veio correndo.
— Mande as trompas chamarem os a’offiziers de volta.
O pajem prestou continência e subiu a escada correndo; alguns instantes depois, eles ouviram o chamado nítido e estridente das cornetas.
— Estamos prontos então — falou o hïrzg. — Falaremos com os offiziers e, em seguida, vocês deverão se juntar a seus comandos e se aprontar. Veremos se estamos com as peças posicionadas onde precisam estar. Rezemos para Cénzi que este seja o caso.
Ele olhou através do verzehen mais uma vez e viu as figuras borradas dos guerreiros se aproximando. Jan duvidou que quem estivesse no comando dos tehuantinos sentisse a mesma dúvida que ele.
— Vamos detê-los ali — disse o hïrzg — precisamos fazê-lo.
A grande alameda em forma de anel da Avi a’Parete antigamente definia os limites da cidade de Nessântico, com uma muralha fortificada que percorria toda a sua extensão, exceto pela Ilha a’Kralji, adequadamente protegida pelas águas do A’Sele. Nessântico inteira cabia dentro dessa muralha — e essa muralha tinha sido imprescindível durante as guerras infindáveis entre os feudos de Nessântico e os feudos vizinhos.
Agora, a maior parte dessa muralha antiga tinha sumido, as grandes pedras tinham sido enterradas ou reutilizadas nos prédios da cidade, apenas algumas pequenas seções da construção ainda estavam de pé. Nessântico crescera para muito além dos limites da Avi a’Parete, embora bem mais em outras direções que ao sul. Próximo ao lado de fora das ruínas do velho Sutegate da cidade, ainda havia campos abertos e fazendas, e era ali que Allesandra observava o novo corpo de chispeiros treinar. Eles estavam vestindo roupas cotidianas, a maioria parecia ter sido tirada das ruas do Velho Distrito — o que era o caso, na verdade. Talbot se afastou do grupo assim que a kraljica se aproximou. Ele ajudou Allesandra a descer da carruagem, ainda vestido com o uniforme do palácio. Ela olhou para os homens no campo.
— Perdoe a aparência deles, kraljica — disse Talbot ao se dar conta do aspecto dos homens. — Eu só tive dois dias para trabalhar com eles.
— Onde está Varina? Eu pensei que estes instrumentos fossem ideia dela — perguntou Allesandra.
— Ela está resolvendo as coisas com a criança. Depois ela vai para a linha de frente ao norte com o hïrzg, juntamente com a maior parte dos numetodos. Eu pensei que a senhora soubesse. O hïrzg pediu o máximo de feiticeiros disponíveis.
Allesandra assentiu — Varina tinha lhe contado isso ou ela tinha esquecido? Alguém no grupo de chispeiros berrou a ordem para “disparar”. O estampido das chispeiras espocou, e uma fumaça branca eclodiu na ponta dos tubos de metal. Do outro lado do campo, alvos de papel presos em fardos de palha se agitaram ao serem atingidos pelas balas de chumbo.
Os cavalos levaram um susto nos tirantes da carruagem e arregalaram os olhos. O condutor puxou as rédeas e gritou seus nomes.
Allesandra notou que ela mesma deu involuntariamente um passo para trás diante da violência do som e quase caiu para trás, dentro da carruagem.
— A senhora deveria enfiar um pouco de papel nas orelhas, kraljica — sugeriu Talbot. — Esses instrumentos fazem uma algazarra infernal.
— A menos que o nosso inimigo esteja imóvel, parece que um tiro é tudo o que nosso corpo de chispeiros terá antes de os guerreiros estarem em cima deles — comentou Allesandra; todos os chispeiros estavam recarregando suas armas, e o processo parecia tomar um tempo excessivo. — Os tehuantinos estão acostumados com o barulho da areia negra; eles não vão se assustar com isso.
Talbot sorriu.
— Essa foi a minha preocupação, kraljica. Nós fizemos algumas pequenas modificações no projeto original de Varina. A carga de areia negra e balas é pré-fabricada, então não são necessárias medidas no campo. Nós também pensamos que, se estendêssemos um pouco o cano, poderíamos aumentar a distância e a precisão do tiro. E parece que isso deu resultado, embora isso tenha tornado a arma mais pesada e volumosa.
Lá fora no campo, alguns homens trocavam os alvos por novos. Os chispeiros ainda estavam recarregando suas armas.
— Preciso ou não, ainda é um só tiro. Se tudo o que eu tivesse fosse um único golpe de espada enquanto o inimigo podia atacar livremente, então a batalha acabaria rapidamente. Não faria diferença se eu tivesse a arma mais afiada.
— De fato — concordou Talbot. — Por isso eu pensei um pouco sobre a tática. Deixe-me demonstrar... Cartier, forme um esquadrão com fileiras de quatro.
Um dos homens fez uma leve mesura para eles e berrou mais ordens. Doze homens formaram três fileiras espaçadas com quatro homens, organizadas por Cartier. Talbot deu um passo na direção delas.
— Primeira fileira, ajoelhar! — gritou ele. — Primeira fileira, atirar!
Quatro chispeiras foram disparadas, e os estampidos ecoaram no campo. Os homens da primeira fileira se levantaram, cada um deu um passo para a esquerda e voltou para a retaguarda. Eles começaram a recarregar as armas.
— Segunda fileira, ajoelhar! — berrou Talbot. — Segunda fileira, atirar!
Novamente, soaram os estampidos e a fumaça branca foi levada pelo vento. Os homens se levantaram e foram para trás da primeira fileira.
— Terceira fileira, ajoelhar! — gritou ele. — Terceira fileira, atirar!
Outra série de trovões, e a terceira fileira recuou. A primeira fileira já tinha recarregado suas armas a esta altura.
— Primeira fileira, ajoelhar! Primeira fileira, atirar!
Outra saraivada, e Talbot sorriu para Allesandra.
— Alto! — berrou ele para os chispeiros, e se virou para Allesandra. — Kraljica?
Os flancos dos cavalos tremiam e puxavam as rédeas ansiosamente, e o condutor fazia um grande esforço para evitar que os animais saíssem correndo. Os ouvidos de Allesandra zumbiam com o barulho das armas.
— Isso foi impressionante, Talbot — disse a kraljica, e o sorriso dele aumentou.
— Um esquadrão com três fileiras pode disparar três saraivadas em alguns segundos e continuar atirando até acabarem as cargas de areia negra, apesar de, após vários tiros, as chispeiras ficarem quentes demais para dispararem com segurança.
— Mas uma coisa é ficar ali com nada além de fardos de palha para encarar, outra é ver o inimigo avançando com a intenção de matá-lo — continuou Allesandra. — Esses homens não são soldados, Talbot. Não são chevarittai. Sequer são numetodos. Eles parecem padeiros e doceiros, açougueiros e boticários.
— Sim, a maioria deles é composta por civis — admitiu Talbot. — Eu não sei como eles reagirão quando o momento chegar. Mas a eficácia... As armas de areia negra que usamos antes exigiam grandes quantidades de material, e não eram precisas: a explosão poderia matar várias pessoas ou ninguém, ou poderia matar os próprios aliados se a pessoa não tomasse cuidado. Os feitiços têm um alto custo em tempo e exaustão, e exigem anos de treinamento antes que se consiga usá-los bem. Usar uma espada ou lança eficazmente também exige semanas ou meses de treinamento. Estas...
Ele gesticulou para o campo e concluiu.
— As chispeiras de varina usam pouquíssima areia negra, são precisas como um feitiço e exigem apenas uma virada ou duas de treinamento para serem usadas. Elas mudam toda a equação.
— É disso que tenho medo — interrompeu Allesandra. — O poder que você deu à ralé destreinada...
— Infelizmente, a ralé é praticamente tudo que temos entre nós e os tehuantinos no momento, kraljica, a não ser que a senhora ache que a Garde Brezno pode fazer o impossível.
A kraljica franziu a testa e respondeu.
— Eu sei. Mesmo assim, alguma coisa nessa equação... — Ela deu um tapinha no ombro de Talbot. — Desculpe, Talbot. Eu só estou preocupada com o que isso pode significar no futuro: para os Domínios, para a fé concénziana, para a nossa sociedade.
Allesandra franziu os lábios e interrompeu o pensamento.
— Você fez um belo trabalho — disse ela. — Tudo que pedimos e mais. Só espero que isso funcione quando o momento chegar... e terá que funcionar.
A kraljica se empertigou e subiu no degrau da carruagem.
— Continue com o trabalho. Enquanto isso, eu preciso falar com Sergei e verificar a Garde Brezno.
Talbot fez uma mesura; ela entrou completamente na carruagem e gesticulou para o condutor. Ele estalou as rédeas no lombo dos cavalos, e com um ruído das rodas, a carruagem partiu aos solavancos.
Seus pés doíam e suas costas latejavam a cada passo. Os tehuantinos tinham passado por três vilarejos até o momento, enquanto marchavam, desertos — Tototl permitiu que os guerreiros procurassem comida e suprimentos, depois ordenou que as casas fossem queimadas. A fumaça ainda manchava o céu atrás deles.
Niente não queria nada além de se deitar e deixar que os guerreiros e nahualli o abandonassem na terra. Ficou agradecido quando Tototl mandou interromper a marcha acelerada. Ele desmoronou na grama ao lado da estrada e aceitou o pão, o queijo e a água que tinham sido oferecidos por um nahualli, sorvendo o frescor agradável. Niente viu uma sombra crescer e se aproximar dele. Tototl o observava.
— Eu vou lhe arranjar um cavalo, uchben nahual.
— Eu ficarei bem em um instante, guerreiro supremo.
— Eu vou lhe arranjar um cavalo — Tototl repetiu. — Eu preciso que o uchben nahual esteja pronto quando começarmos o ataque hoje à noite.
Niente raramente falava com Tototl, uma vez que os guerreiros supremos, com a exceção do tecuhtli com o nahual, raramente interagiam com os nahualli. Ele percebeu que estava olhando para o rosto pintado do homem se perguntando no que o guerreiro estaria pensando.
— Estamos assim tão próximos então?
— Veremos o topo das casas quando cruzarmos a próxima elevação. Os batedores me disseram que há tropas se aprontando para nos enfrentar. A batalha começará muito em breve agora.
Por alguns instantes, Tototl ficou em silêncio, e Niente ficou satisfeito em poder se sentar na margem de grama da estrada. A brisa tinha o cheiro da fragrância desta terra. Então Tototl se mexeu.
— O que você viu quando olhou na tigela premonitória, uchben nahual? Eu o observei, observei seu rosto, e não acredito que tenha dito tudo para o tecuhtli Citlali.
— Eu disse a verdade — insistiu Niente. — O nahual Atl viu a mesma coisa.
A boca de Tototl se contorceu sob a pintura da tatuagem que adornava seu rosto.
— Seu filho não é você, uchben nahual. Ele pode vir a ser um dia, mas ainda não é. Você está omitindo alguma coisa, alguma coisa que lhe assustou. Eu vi no seu rosto, Niente. Quero saber: você nos viu derrotados?
Niente balançou a cabeça. Eu vi a nossa vitória aqui e seu preço terrível. Vi que isso poderia ser evitado e que esse futuro era confuso e emaranhado demais para ser previsto.
— Não — respondeu ele.
— Eu não tenho medo de morrer. — Tototl estava olhando ao norte na estrada, como se já pudesse ver a cidade. — Morrer em batalha é um fim que todo guerreiro supremo busca. Não é o medo de morrer; estou com medo do preço que isso cobrará dos tehuantinos.
Tototl olhou novamente para Niente, e uma esperança brotou dentro dele, uma esperança de que o guerreiro pudesse entender o que Citlali não entendia.
— É disso que você também tem medo, uchben nahual?
A garganta de Niente pareceu se fechar com o olhar fixo de Tototl. Ele concordou em silêncio.
— Então você viu alguma coisa.
Dessa vez Tototl falou com convicção. Niente balançou a cabeça.
— Eu não sei — respondeu ele. — Eu vi muitos caminhos, guerreiro supremo. Vários, e todos eles incertos. Mas...
Niente respirou profunda e lentamente. Será que você pode confiar neste homem? Será que isso é uma armadilha preparada por ele, talvez até mesmo por Citlali e Atl?
— Deixe-me perguntar uma coisa: se você matasse um guerreiro em um desafio, poderia alegar que conquistou uma vitória. Mas se, ao matar esse guerreiro, você, por sua vez, enfurecesse tanto o filho dele que, quando este se tornasse um guerreiro e trouxesse um exército destruindo tudo o que você construiu, destruindo completamente tudo o que você ama, sem possibilidade de recuperação? Essa vitória inicial valeria a pena?
— Isso dependeria — respondeu Tototl —, se você pudesse dizer, sem dúvida, que o filho faria tudo isso.
Niente balançou a cabeça.
— O futuro nunca está completamente garantido. Mesmo o que acontecerá daqui a um instante pode ser mudado se Axat quiser. Mas, se eu dissesse que este era o resultado provável? Você conteria o golpe da espada?
— Se esse golpe da espada me custasse a própria vida talvez não — disse Tototl. — Nenhum guerreiro quer oferecer sua vida de graça para o inimigo. Eu acho que a mesma coisa valeria para um nahualli.
— Eu diria o mesmo no seu lugar — falou Niente.
Tototl inclinou a cabeça ligeiramente. Ele resmungou alguma coisa que pareceu ter sido um assentimento.
— Já que você diz que o futuro é sempre incerto, você apoiaria um guerreiro supremo plenamente, uchben nahual, mesmo que pensasse que esse seria o caminho errado?
— Esse é o dever de um nahualli — respondeu Niente.
Um rápido sorriso se formou no rosto de Tototl, e Niente percebeu que o guerreiro entendeu que ele não tinha respondido completamente à pergunta.
— Eu vou lhe arranjar um cavalo, uchben nahual — disse Tototl.
— Ela estava com ele? Você tem certeza de que era ela?
Sergei concordou com a cabeça.
— Era Rochelle, hïrzgin. Então ao menos essa parte da história que ela me contou parece ser verdade. Rochelle foi criada como irmã de Nico pela Pedra Branca. Se ela sabe ou não se ele é de fato seu irmão...? — Sergei ergueu um ombro cansado. — Eu não tenho certeza de que Rochelle entende isso.
Ele e Brie estavam montados em seus cavalo, olhando para os campos em volta da Avi a’Sutegate onde a Garde Kralji estava acampada. Sergei sabia que havia poucos homens — dados os relatórios que os batedores tinham informado sobre o tamanho das forças ocidentais que avançavam na direção deles. Embora os offiziers tivessem ensaiado manobras com os gardai, suas tropas pareciam morosas e confusas. Elas não tinham sido treinadas para isso: combate aberto em grande escalada contra outra força organizada e treinada. Isso tinha sido demonstrado na disputa do Velho Templo, quando até mesmo os igualmente destreinados morellis foram capazes de contê-los por um tempo considerável. A Garde Kralji era uma guarda pessoal e unidade policial, não um batalhão do exército.
A batalha não será vencida aqui, Sergei pensou consigo mesmo. Será vencida do outro lado do rio A’Sele, com o hïrzg e a Garde Civile. Só temos que nos defender aqui, detê-los por tempo suficiente para que a Garde Civile retorne e nos salve.
O embaixador estava bastante certo de que eles precisariam desse resgate e não tinha muitas esperanças de que o socorro viria.
— Eles parecem muito atrapalhados e lentos, e eu não estou nada impressionada com os offiziers — disse Brie ao lado de Sergei, como se tivesse ouvido os pensamentos do embaixador.
Ela estava vestida com uma armadura completa sobre uma tashta acolchoada e carregava uma espada na lateral, embora o elmo ainda estivesse amarrado à sela. Seu cabelo estava preso em uma trança que lhe caía pelas costas. A hïrzgin parecia estar completamente à vontade no traje marcial — assim como, pensou Sergei, Allesandra parecia quando comandava as tropas em campanha. Era uma pena, pensou o embaixador, que ambas não tivessem se conhecido há tanto tempo. O filho de Allesandra se casara com alguém muito parecida com sua matarh, consciente ou inconscientemente.
— Eu queria ter trazido a Garde Brezno também. A Garde Kralji vai precisar de uma liderança forte em campo ou vão debandar assim que o combate se torne difícil.
— Realmente — respondeu Sergei. — A kraljica e a hïrzgin estarão no comando. O comandante co’Ingres, infelizmente, ainda sofre com os ferimentos, e o a’offizier ci’Santiago é, bem, digamos apenas que ele é inexperiente.
— Onde está a kraljica?
— A caminho, eu espero. Ela deve estar chegando a qualquer momento agora.
Brie assentiu, emitindo um ruído. Sergei viu a hïrzgin se debruçar na sela e ouvir o couro ranger. Ela olhava para o sul.
— Aquele é outro de nossos batedores? Ele está cavalgando rápido...
Brie apontou, e o embaixador viu uma nuvem de poeira ao longe, na Avi. Ele já não enxergava, e não pôde distinguir o cavaleiro ou as cores de seu uniforme.
— Pode ser — respondeu Sergei. — Seja quem for, está vindo rápido. Deve estar trazendo notícias.
Os dois estalaram as rédeas dos cavalos e desceram a meio galope até a estrada para encontrar o cavaleiro. O a’offizier ci’Santiago se juntou a eles quando o cavaleiro se aproximou galopando na montaria agitada. O cavaleiro prestou continência para eles.
— Os ocidentais — disse o homem, ofegante. — Não muito longe, na estrada... Mil ou mais... Todos na estrada.
Ele parou e recuperou o fôlego.
— Algumas viradas da ampulheta e os ocidentais estarão aqui — disse o cavaleiro. — Estão vindo em marcha acelerada e têm vários feiticeiros com eles, e também peças de máquinas de fazendas. Precisamos estar prontos.
Ci’Santiago assentiu, mas não teve reação. Sergei suspirou.
— Precisamos chamar Talbot e os chispeiros; a’offizier, talvez o senhor possa dar um cavalo novo para este homem e mandar que ele passe a mensagem adiante. Hïrzgin...
— Eu assumirei o comando de campo das tropas até a kraljica chegar — disse Brie. — Embaixador, você e o comandante co’Ingres podem cuidar da estratégia principal aqui nas tendas de comando.
Sergei notou que a hïrzgin já olhava para a paisagem e decidia onde colocar as tropas para melhor proveito.
— Vou precisar de sinalizadores, corneteiros e mensageiros, e quero falar com os offiziers. A’offizier ci’Santiago, preciso que você cuide disso imediatamente. O que você está esperando? Não há tempo, homem. Ande!
Ci’Santiago olhava boquiaberto para Brie, um instante depois, ele fechou a boca e prestou continência enquanto Sergei prendia o riso. O homem virou o cavalo e foi embora a galope, seguido pelo batedor. A hïrzgin olhava para o sul, com a boca franzida. Sergei pensou ter visto fumaça surgindo no horizonte.
— Eu acho que a senhora assustou o pobre homem — disse o embaixador, e Brie soltou uma gargalhada. — A esta altura ele provavelmente já deve estar reclamando da mulher demoníaca de Firenzcia.
— Se sobrevivermos a isso, eu ficarei satisfeita em ser a demoníaca. Você acha que sobreviveremos, embaixador?
— Eu estaria aqui se não achasse? — respondeu Sergei, torcendo para que ela não percebesse a mentira.
Nico ouviu a tranca dos portões da casa ser aberta levemente por Rochelle; ela sorriu para o irmão enquanto guardava as peças finas de metal dentro do embrulho.
— Fácil — disse Rochelle ao empurrar os portões para abri-los.
Nico entrou de mansinho na frente dela, mas sentiu Rochelle colocar a mão em seu ombro quase que imediatamente. Sob o capuz que ocultava seu rosto, ele olhou para a irmã; o manto pesado escondia o robe verde.
— Tem algo errado aqui — alertou Rochelle.
— O que você quer dizer?
— Escute — respondeu ela.
A rua do lado de fora dos portões estava lotada de gente saindo da cidade. Eles ouviram as vozes: os berros, as discussões, os gritos de crianças pequenas demais para compreender o pânico dos pais e parentes. Ela ouviu o estalo e os rangidos de carroças, os pés sendo arrastados no pavimento, os apitos dos utilinos que tentavam em vão direcionar o trânsito e impedir os confrontos inevitáveis.
— Tem todo esse barulho lá fora — disse Rochelle. — Mas aqui dentro... os funcionários deveriam estar correndo, preparando as coisas para sei lá o que, mas não se ouve nada. As persianas das janelas estão todas fechadas e provavelmente trancadas, e eu não ouço nada. Está silencioso demais aqui.
— O que você quer dizer?
Nico sussurrava. Ele já sabia a resposta, e sentiu o desespero se alojar em seu estômago.
— Eu acho que ela não está aqui, Nico. Acho que já foi embora. Lamento.
Irritado, Nico empurrou Rochelle e caminhou a passos largos em direção à porta da frente da casa de Varina. Estava trancada, em vez de esperar pela irmã, ele deu um chute forte e a madeira em volta da tranca rachou. Nico deu mais um chute e a porta se abriu.
— Sutil — disse Rochelle atrás dele.
Nico a ignorou e deu um passo na entrada de mármore. Agora ele sabia que Rochelle estava certa; os criados teriam vindo correndo, prontos provavelmente para defender a casa, mas não havia ninguém visível.
— Varina? — chamou Nico.
Ele pensou ter visto um gato cruzar o corredor a sua frente. Exceto pelo gato, não houve resposta. Nico ouviu Rochelle entrar na casa atrás dele e percebeu que ela empunhava uma faca, com a lâmina exposta.
— Não vamos precisar disso — falou Nico.
— Provavelmente, não. Mas me faz sentir melhor.
Ele deu de ombros. Nico andou devagar pelo corredor e espiou as salas de visitas em ambos os lados. A mobília ali estava coberta por lençóis; o gato olhou fixamente para ele de cima de uma poltrona coberta, depois voltou a lamber as patas dianteiras. Nico continuou a percorrer a casa: o solário, a biblioteca, as cozinhas — todos estavam igualmente vazios, não parecia que Varina esperava retornar em breve. Ele ouviu o chamado de Rochelle do segundo andar e seguiu o som da voz dela. Ela havia tinha embainhado a faca e estava parada na porta do que só poderia ser o berçário. A mobília ali também estava coberta. Rochelle abriu as gavetas da cômoda em uma parede.
— Vazias — disse ela. — Eu disse: Serafina não está aqui, Nico. Os numetodos a levaram para outro lugar.
Nico balançou a cabeça.
— Varina ainda está na cidade. Eu posso sentir.
Rochelle ergueu uma sobrancelha.
— Bom, se está, não está aqui, e o bebê também não.
— Ela despachou Sera — falou Nico.
— Isso eu inferi. Então, será que Cénzi pode lhe dizer para onde?
Ele fez uma careta para Rochelle, ele ia alertá-la sobre a blasfêmia em seus lábios, mas se conteve. Ela pareceu notar também e ergueu a mão.
— Muito bem, então você não sabe. O que nós sabemos para valer? — perguntou Rochelle, mas Nico só conseguiu balançar a cabeça.
— Eu não sei.
Após o confronto com Sergei, ele esperava pegar Sera, sair da cidade com a filha e a irmã e encontrar um lugar para pensar e rezar: para saber o que Cénzi queria dele, para saber como amenizar a culpa e a dor que carregava... Nico esperava — e rezava — que Cénzi lhe desse sua filha, mas parecia que Cénzi ainda tinha planos para ele. Nico olhou para cima.
— Cénzi, o que o Senhor está tentando me dizer?
Ele prestou atenção aos sussurros em sua cabeça e coração, seu rosto ficou sério.
— Acho que chegou o momento de nos separarmos por um tempo — Nico disse para Rochelle.
A Fúria da Tempestade
O sol estava se pondo a oeste no fim da tarde, mas onde antes havia um céu claro, agora uma tempestade se anunciava do outro lado do rio Infante. Uma massa de relâmpagos e trovões se exibia alto no céu, embora houvesse nuvens espreitando perto do solo, de maneira inacreditável. O exército dos tehuantinos estava envolvido por suas sombras, e a tempestade caminhava a passos irregulares com seus raios inconstantes.
As nuvens negras e turbulentas estavam se espalhando ao sul e seguindo a linha de frente estabelecida pelos tehuantinos. O cavalo de Jan se agitou embaixo dele e bufou quando o trovão baixo rosnou como uma grande fera. Havia um odor intenso no ar que fez Jan franzir as narinas.
— Tempestade de guerra — murmurou um chevarittai ao lado de Jan. — Que covardes... eles nem ao menos nos darão a oportunidade de lutar corpo a corpo honrosamente primeiro.
Jan concordou — ele já tinha ouvido falar das tempestades de guerra dos tehuantinos, invocadas pelos feiticeiros: um feitiço cooperativo. Os ocidentais usaram as tempestades de guerra com grande efetividade da última vez que estiveram aqui, assim como durante as batalhas com os Domínios nos Hellins, mas Jan nunca tinha visto uma. Ele duvidava que fosse gostar da experiência em primeira mão.
— Alertem os ténis-guerreiros — ordenou o hïrzg dando um tapinha no pescoço do cavalo para acalmá-lo. — Vamos precisar deles. O ataque está começando.
Jan, seguido por várias companhias de tropas e chevarittai firenzcianos, estava a oeste do rio Infante, logo abaixo da vila de Certendi. A ponte sobre o rio estava às suas costas. Ao leste do rio, ele podia ver as barricadas que tinham sido construídas; o hïrzg tinha pouca esperança de que eles conseguissem dominar a margem oeste por muito tempo. O starkkapitän ca’Damont estava mais perto do leito do rio, com o restante do exército firenzciano; e o comandante ca’Talin, junto à Garde Civile dos Domínios, estava ao extremo sul da linha de frente, perto do ponto onde o Infante se reunia ao A’Sele.
— Diga aos seus homens que eles precisam resistir — disse Jan para os chevarittai.
Ele puxou as rédeas do cavalo e galopou colina abaixo através das fileiras de infantaria e arqueiros.
— Resistam! — Jan disse para todos eles. — Nós precisamos resistir aqui.
À medida que a tempestade de guerra avançava e o rugido da grande nuvem ficava mais alto e sombrio, os ténis-guerreiros avançavam. Jan gesticulou para os robes verdes.
— É aqui que vocês começam a receber seu perdão. Aquela tempestade tem que ceder.
A tempestade se aproximava a cada instante. O ar tinha cheiro de raios, mas não de chuva. À frente das tropas, no que tinha sido um campo com plantação de trigo e grãos, o hïrzg tinha mandado construir armadilhas para os guerreiros tehuantinos: espetos afiados de ferro fincados no chão, buracos encobertos com os fundos cheios de estacas de madeira, pacotes de areia negra que Varina e os numetodos tinham encantado para que explodissem quando alguém pisasse perto deles. A tempestade marchava pelo campo, mas não ainda os guerreiros ocidentais. Os raios rasgavam o solo, arrancavam os espetos e expunham os buracos, jogando terra para todos os lados e fazendo os pacotes de areia negra explodirem inofensivamente.
Jan praguejou para os ténis-guerreiros.
— Agora! — berrou ele. — Agora!
Os ténis-guerreiros começaram a entoar seus cânticos e disparar a energia do Ilmodo na direção da falsa tempestade. A cada feitiço lançado, a tempestade começava a se desmanchar, e mais abaixo, eles puderam ver os guerreiros tehuantinos escondidos, marchando gradualmente em sua direção.
— Arqueiros! — gritou Jan.
Atrás dele, as cordas dos arcos rangeram ao serem tensionadas, uma leve saraivada de flechas desenhou um arco no alto, caindo como uma chuva sobre os ocidentais. Eles ergueram seus escudos imediatamente. Jan viu vários guerreiros caírem, apesar da proteção, ainda que, sempre que um caía, outro tomava seu lugar. Ao sul, a tempestade se assomava sobre as fileiras dos Domínios, e o hïrzg ouviu gritos de dor e susto quando seus raios atacaram os soldados de lá. Mas a tempestade já começava a se desmanchar — o poder que a mantinha fora gasto. Agora Jan ouviu os berros guturais dos feiticeiros ocidentais; bolas de fogo guincharam como moitidis furiosos na direção deles. Os ténis-guerreiros entoaram os contrafeitiços; o hïrzg viu várias bolas de fogo explodirem inofensivamente no ar, mas outras passaram e colidiram contra as fileiras, cuspindo sua terrível destruição flamejante e abrindo brechas na linha de frente. O cavalo de Jan empinou, aterrorizado.
— Avancem as fileiras! Tapem as brechas! — berrou o hïrzg enquanto tentava acalmar seu cavalo.
Os offiziers gritaram instruções; as bandeirolas de sinalização foram sacudidas.
Então, com um grande grito, os guerreiros avançaram, havia pouco tempo para se pensar em qualquer coisa. Jan desembainhou a espada e esporeou o cavalo para seguir em frente. Os chevarittai soltaram um berro de fúria e seguiram o hïrzg, os gardai da infantaria avançaram como uma onda preta e prateada para encarar os ocidentais.
Eles colidiram em um turbilhão de espadas, lanças e piques.
Jan tinha lutado contra as legiões de Tennshah. Esses ocidentais eram igualmente ferozes enquanto guerreiros, mas bem mais disciplinados. O hïrzg ouviu os offiziers dos tehuantinos berrarem ordens expressas na língua deles, e os feiticeiros estavam entre eles, brandindo seus cajados estalando e brilhando com os feitiços. Dessa parte Jan se lembrava. Ele golpeou um mar de rostos marrons pintados de vermelho e preto com sua espada, e sempre que derrubava um, outro guerreiro surgia para tomar seu lugar. Eles estavam sendo repelidos aos poucos, e, mesmo assim, os ocidentais continuavam surgindo. Jan percebeu que eles não resistiriam deste lado do rio — se fossem repelidos tão próximo ao rio, não haveria uma retirada organizada; eles seriam massacrados.
— Recuar! — berrou o hïrzg. — Para a ponte! Para a ponte!
Os offiziers atenderam ao grito; os porta-estandartes sacudiram as bandeirolas de sinalização, as cornetas tocaram o sinal. As tropas firenzcianas, disciplinadas e precisas como sempre, cederam terreno, como tinham sido treinadas, a contragosto, permitindo que os arqueiros e ténis-guerreiros cobrissem a retirada e carregassem os feridos, sempre que possível.
Os mortos, eles deixaram.
Ali, havia duas pontes que cruzavam o Infante, com oitocentos metros de distância uma da outra. A ponte norte, que corria pela Avi a’Nostrosei, já tinha sido destruída. A ponte da Avi a’Certendi ainda estava em pé. O Infante podia ser cruzado, mas não seria fácil, pois a correnteza era rápida e havia poças profundas que apenas os locais conheciam. Os arqueiros e ténis-guerreiros foram os primeiros a passar pela ponte enquanto a infantaria e os chevarittai continham os ocidentais, sob as ordens dos offiziers para correr em direção às barricadas que tinham sido erguidas do outro lado. Jan permaneceu com os homens, sua armadura estava manchada de sangue e amassada, o aço cinzento da sua espada firenzciana estava sujo de sangue seco, até que a ponte estivesse liberada e os arqueiros tivessem entrado novamente em formação do outro lado.
— Fujam! — ele gritou, finalmente, quando ouviu as trompas do outro lado do Infante.
Eles correram em direção à ponte. Jan se virou ali novamente e conteve os guerreiros que o perseguiam, urrando. O chão em torno dele e dos chevarittai estava coberto de corpos. Um feiticeiro brandiu seu cajado, e o chevaritt ao lado do hïrzg caiu, emitindo um berro e emanando cheiro de enxofre, mas o feiticeiro foi abatido no momento seguinte. A maior parte da infantaria estava do outro lado.
— Cruzem a ponte! — gritou Jan. — Chevarittai, cruzem!
Eles viraram seus cavalos e fugiram. Os cascos dos cavalos de guerra bateram nas tábuas da ponte, e o hïrzg gesticulou para os ténis-guerreiros que esperavam do outro lado. Os tehuantinos os perseguiram, estavam perto demais. Os guerreiros já estavam na extremidade oeste da ponte.
— Agora! — berrou Jan ao chegar à terra firme do outro lado. — Derrubem a ponte!
— Hïrzg, não antes de estarmos atrás das barricadas — disse alguém.
Jan ficou de pé nos estribos, furioso, e rugiu.
— Derrubem a ponte agora!
Os ténis-guerreiros entoaram os cânticos e o fogo começou a subir pelas vigas de madeira. As chamas lamberam o papel que embrulhava a areia negra amarrada ali.
A explosão atirou pedaços da ponte para o alto, pedaços enormes de vigas se contorceram, os tijolos e pedras das pilastras cortaram o ar. Os guerreiros e gardai foram igualmente golpeados. Um dos tijolos bateu em Jan, e o impacto o derrubou do cavalo. Ele ouviu o cavalo relinchar também, um som horrível. Ao cair, o hïrzg viu o centro da ponte entrar em colapso e cair no Infante devolvendo um imenso espirro d’água, levando uma massa de guerreiros ocidentais com ela.
Então Jan caiu no chão. Por um momento, tudo ficou preto a sua volta. Quando recuperou a consciência, ele viu rostos e mãos sobre si.
— Hïrzg, o senhor está ferido?
Jan permitiu que o ajudassem a levantar. Seu peito doía como se o cavalo tivesse caído sobre ele, e a armadura onde o tijolo o tinha atingido estava amassada. Seu peito ardia a cada inspiração; ele teve que respirar aos poucos enquanto se livrava das mãos sobre si. O cavalo se debatia no chão, com uma tábua enterrada em seu flanco.
A ponte tinha sido destruída. O sol já tinha se posto ao nível das árvores e projetava longas sombras sobre o campo de batalha. Os ocidentais tinham recuado para o limite da água para sair do alcance das flechas. Jan mancou até o cavalo. Uma das patas dianteiras do garanhão estava quebrada, e sangue espirrava do longo ferimento em seu flanco.
— Minha espada? — pediu ele, e alguém lhe entregou a arma.
O hïrzg se ajoelhou ao lado do cavalo e acariciou seu pescoço.
— Descanse — falou Jan. — Você serviu bem.
Com um gemido de dor, ele ergueu a espada e golpeou com força, abrindo um corte profundo no pescoço do animal. O cavalo tentou se levantar uma última vez, depois ficou imóvel. O mundo parecia dançar em volta de Jan, sua visão periférica se escureceu novamente. Ele se forçou a ficar de pé, apoiado na espada.
— Formem as fileiras atrás das barricadas — disse o hïrzg para quem estava ao redor. — Cuidem dos feridos e organizem as vigias. Mandem os a’offiziers virem até mim e avisem o starkkapitän e o comandante sobre o que...
Aconteceu aqui...
As palavras estavam em sua mente, mas não pareciam sair. A escuridão tomou conta dele demais, apesar do sol ainda estar visível no céu.
Ele se sentiu cair.
Não havia nahualli suficiente com Niente para criar uma tempestade de guerra. À frente deles, sob a luz dourada do fim de tarde, os tehuantinos viram as tropas orientais dispostas nas encostas dos morros, em ambos os lados da estrada. O número de guerreiros parecia ser muito maior que a quantidade de orientais, a menos que eles tivessem tropas reserva escondidas do outro lado da encosta.
Tototl bufou desdenhosamente.
— Isso é tudo que eles têm contra nós? — comentou ele, e os guerreiros próximos riram. — Uchben nahual, chegou o momento de fazer o que conversamos.
Niente assentiu para Tototl, virou o cavalo e cavalgou de volta ao abrigo dos nahualli entre os guerreiros. Ele mandou que os nahualli enchessem seus cajados mágicos como de costume na noite anterior, para que pudessem realizar o feitiço quando fosse necessário e ainda estarem descansados para a batalha. Eles não podiam criar a tempestade de guerra, mas podiam criar uma nuvem grande o suficiente para encobri-los. Foi o que fizeram agora: o cântico em massa reuniu o poder do X’in Ka, a energia se condensou no ar e se tornou visível. Filetes de nuvem começaram a flutuar em frente aos guerreiros, da estrada até quase às margens do rio, uma bruma espessa se formou e adensou, uma muralha formada pelos nahualli para que os orientais não pudessem mais vê-los. Essa muralha não acompanharia as tropas, nem geraria os raios da tempestade de guerra. Niente gesticulou quando não conseguiu mais ver as tropas orientais à frente deles, nem os morros onde elas estavam, e os nahualli interromperam o cântico.
Niente cambaleou, como se tivesse corrido até o rio e voltado: o preço do cântico e da canalização de energia, mas ele se forçou a se manter de pé, embora muitos jovens nahualli tivessem desmoronado, ofegantes. Usar o X’in Ka desta forma — para criar um feitiço sem se dar tempo de recuperar o esforço — tinha um preço alto; Niente não compreendia por que os feiticeiros orientais geralmente faziam magia dessa forma, em vez de estocar os feitiços para serem lançados mais tarde.
— Levantem-se — falou ele. — Peguem os cajados mágicos. Ainda há uma batalha a ser travada.
Com a muralha de bruma impedindo a visão das tropas orientais, Tototl berrou ordens, gesticulou para os guerreiros de menor escalão e os guerreiros supremos responsáveis por eles. Duas companhias seguiram para a esquerda, em direção ao rio — elas contornariam os orientais que avançariam contra os inimigos em sua retaguarda e nas laterais. Tototl esperou até o braço do flanco se afastar e Niente cavalgar até ele.
— Se isto é tudo o que está entre nós e a cidade, nós chegaremos lá esta noite, uchben nahual — falou o guerreiro supremo. — Parece que seu filho enxergou bem: nos mandar cruzar o rio é o caminho para a vitória. Eles não estavam preparados para isso. Nós avançaremos até a cidade e surgiremos contra o restante do exército oriental pela retaguarda, enquanto Citlali e o nahual Atl atacam pela vanguarda. Eles serão esmagados por nós como uma noz com casca entre pedras.
O comentário só fez Niente fechar a cara. Ele tentou usar a tigela premonitória na noite anterior: tudo estava confuso, e os poderes se mexiam do lado dos orientais, de maneira que não foi possível ver claramente, e o Longo Caminho lhe escapou completamente. Tototl pareceu achar graça na irritação de Niente; ele riu.
— Não se preocupe, uchben nahual — falou o guerreiro supremo. — Eu ainda tenho fé em você. Seu cajado mágico está cheio?
Niente levantou o cajado de madeira de lei de ébano que ele tinha entalhado com tanto cuidado há décadas com seus símbolos de poder. Com os anos, suas mãos poliram o punho nodoso e o centro do cajado, deixando um acabamento acetinado e reluzente. O objeto parecia fazer parte dele; Niente sentia a energia em seu interior, esperando para pronunciar os gatilhos para provocar fúria e morte. No entanto, mesmo mostrando o cajado para Tototl, e enquanto os guerreiros e nahualli ao redor gritavam em afirmação, Niente sentiu pouca coisa além de desespero.
Não havia vida nesta vitória, se é que seria uma vitória. Nenhuma alegria. Não se ela levasse para o lugar que ele vislumbrara uma vez.
Tototl desembainhou a espada e a ergueu, juntamente com o cajado de Niente, e os gritos redobraram.
— É o momento de sangue! — declarou o guerreiro supremo. — É o momento de morte ou glória!
Ele apontou para a margem da nuvem com a espada.
— Por Sakal! — rugiu Tototl.
Os tehuantinos berraram com ele ao avançarem. Niente foi levado pela onda, mas estava calado.
Eles entraram no vazio frio e cinzento da nuvem e saíram para o sol, o calor e a batalha.
Brie havia posicionado as tropas nas duas encostas de morro que flanqueavam a estrada, com apenas uma única companhia na estrada em si, e arqueiros em posição de ambos os lados — eles ao menos teriam a vantagem da altura do terreno para começar esta batalha. Os ocidentais teriam que avançar morro acima se quisessem enfrentá-los.
Se tivessem chevarittai, eles poderiam descer a toda velocidade, como uma gigantesca lança sendo enfiada em meio aos ocidentais. Mas eles não tinham chevarittai, e tinham poucos arqueiros, apenas três numetodos — de quem Brie desconfiava ligeiramente, pois não havia numetodos em Firenzcia; pelo menos nenhum que se revelasse abertamente — e nenhum téni-guerreiro.
Allesandra tinha chegado há uma virada, ela vestiu sua armadura, e Brie cedeu o comando de campo para ela, como era apropriado, uma vez que a Garde Kralji era da kraljica.
— Vejo que você teve uma bela educação — disse Allesandra. — Eu não esperava menos de você.
Brie e a kraljica, juntamente com Sergei e o comandante co’Ingres, observavam a aproximação das tropas ocidentais, sob o estandarte de cobra com asas. A hïrzgin ficou séria ao ver o tamanho assustador da força inimiga; ficou ainda mais preocupada quando viu os feiticeiros — a salvo, fora do alcance dos arqueiros deles — colocarem uma muralha de bruma entre eles para mascarar a formação.
Brie não conseguiu conter um arrepio diante da cena.
— Kraljica, embaixador, existe algum terreno melhor e mais defensável entre o Sutegate e aqui? Talvez devêssemos tentar incomodá-los em vez de detê-los. Podemos mandar grupos menores contra os flancos, criar uma muralha defensiva na cidade...
Allesandra lançou um olhar para Sergei e co’Ingres, e nenhum dos dois falou.
— É tarde demais para isso, hïrzgin — respondeu a kraljica. — Nós temos que resistir aqui, precisamos detê-los o máximo de tempo possível, e temos que fazê-los pagar por cada passo de terreno que eles tomam.
Brie cerrou as mãos em volta das rédeas do cavalo de guerra.
— Então eu estarei ao seu lado, kraljica, na vanguarda.
— Não. — Allesandra balançou a cabeça. — Esse lugar e responsabilidade são meus, Jan jamais me perdoaria se você fosse ferida. Eu quero que você assuma o flanco do rio com os chispeiros de Talbot. Eles precisarão de uma coragem inabalável e de um comandante firme para guiá-los. Talbot pode ficar com você, mas eu preciso dos outros numetodos aqui; temos poucos, uma vez que a maioria seguiu com o comandante ca’Talin.
Brie queria discutir — em sua cabeça, a Garde Kralji também precisava de uma liderança forte ou debandaria, mas ela assentiu, a contragosto.
— Como queira, kraljica...
Relutante, ela cavalgou em direção ao oeste na estrada e subiu o morro, passando pela Garde Kralji — que olhou para a hïrzgin com preocupação — até a retaguarda, onde os chispeiros tinham sido posicionados. Brie balançou a cabeça ao vê-los, vestidos com o que quer que tivessem no corpo. Os chispeiros não vestiam nenhuma armadura, exceto por alguns, que usavam pedaços de couraça de metal enferrujado e cota de malha rasgada e mal ajustada. A não ser pelos estranhos apetrechos que cada um portava, eles estavam armados apenas com espadas antigas, instrumentos de fazenda e cutelos. Os chispeiros pareciam mais uma turba do que uma força de combate — uma turba que um simples esquadrão da Garde Brezno teria sido capaz de afugentar, fazendo-os correr aos berros.
Brie repassou as ordens da kraljica a Talbot; o homem parecia tão preocupado com os chispeiros quanto ela, mas tinha enviado seus colegas numetodos lá para baixo, para onde o estandarte da kraljica tremulava do lado leste da estrada.
— Eu sou o assistente dela — comentou ele ao observar os numetodos seguindo em direção ao estandarte da kraljica. — Eu deveria ter ido com eles. Isto é loucura.
— É por isso — disse Brie — que ela nos quer na retaguarda. Ela sabe quais são as chances. Esses chispeiros têm mesmo um propósito?
Em resposta, Talbot ensaiou os exercícios, formando os chispeiros em fileiras e recuando os homens em sequência. Brie tentou imaginar as chispeiras disparando, tentou imaginar o grupo não debandando e fugindo aterrorizado ao ver o inimigo. Enquanto Talbot berrava ordens, a hïrzgin também observou a massa inacreditável de bruma que cobria a estrada abaixo e passava ao lado do morro onde ela estava.
A muralha cinzenta estava em silêncio.
— O que acontece quando eles “atiram”? — perguntou ela.
— As chispeiras disparam. Elas são bastante eficientes, na verdade. Foram inventadas por Varina. — Ele inclinou a cabeça ligeiramente para Brie. — Não há magia alguma envolvida, hïrzgin, se é isso o que lhe preocupa. Nenhuma ostentação do “Dom de Cénzi”, como vocês da fé concénziana poderiam chamar.
Ela ia responder, mas aí...
— Talbot... — Brie apontou para o morro abaixo.
Começou como um rugido abafado atrás da nuvem: o som de armaduras batendo e guerreiros berrando. Da bruma, os tehuantinos saíram correndo em direção a eles, onda atrás de onda tomando a estrada, assim como os campos de ambos os lados. Brie, do ponto de observação, ouviu Allesandra mandar os arqueiros dispararem, e os numetodos lançarem bolas de fogo e raios estalando em direção aos tehuantinos. Os feitiços e as flechas abriram breves brechas nas fileiras, que foram imediatamente cobertas, e agora os feiticeiros ocidentais erguiam seus cajados mágicos e lançavam seus próprios raios em direção a Allesandra e às tropas. Explosões e gritos eram ouvidos em ambos os morros.
O clamor ficou mais alto; as fileiras se aproximaram...
... e colidiram, emitindo o tilintar de metal. Da altura onde os chispeiros estavam, Brie conseguiu ver a batalha exposta diante de si, a miríade dos dois exércitos sobre a paisagem parecia uma praga de insetos. Alguns chispeiros estavam visivelmente assustados com o que viam, outros recuaram morro acima — para o norte, em direção à cidade. Talbot e Brie berraram para que eles parassem, e a hïrzgin virou o cavalo para interceptá-los, como um cão pastor com seu rebanho.
— Recuem e eu mato vocês — gritou Brie para os chispeiros, com sua espada erguida e seu cavalo de guerra trotando em resposta a sua agitação. — Talbot, vamos levá-los para baixo para podermos...
Ela ia dizer, mas de repente se calou.
Brie notou que a batalha já estava sendo perdida lá embaixo. A linha de frente da Garde Kralji já tinha entrado em colapso, e o estandarte de Allesandra seguia a norte da estrada, cedendo terreno. Os ocidentais já não estavam mais encobertos pela muralha de bruma e, apesar da quantidade, parecia haver menos inimigos do que Brie se lembrava. Ela olhou para Talbot, preocupada e subitamente desconfiada.
— Fique aqui — disse a hïrzgin.
Ela fez o cavalo subir a encosta do morro em direção ao cume, permanecendo sob a cobertura das árvores. Quando chegou ao cume, Brie olhou para baixo. Ela viu a muralha cinzenta de bruma seguindo em direção à margem do rio. E ali, na outra margem...
— Ah, não... — Brie engoliu uma imprecação.
Na encosta do morro, já subindo encosta acima, se aproximava o restante do exército ocidental.
A tempestade de guerra era ao mesmo tempo assustadora e mortal, mas era apenas uma quimera: um fantasma do Segundo Mundo. Ao mesmo tempo que cortava a tempestade com o Scáth Cumhacht, Varina admirava seu poder, precisão e criação. Ela podia sentir os vários fios individuais da tempestade, como eles se entrelaçavam a partir dos feitiços de vários feiticeiros e se formavam em um único encantamento: uma presença especialmente forte, se aproximando dela.
Isso não era nada que os ténis da fé concénziana conseguissem fazer, nem os numetodos — outra habilidade que os habitantes do mundo oriental não tinham. Ao mesmo tempo em que dilacerava as nuvens e dissipava os fios mágicos que as mantinham coesas, Varina se deu conta de que estava pensando como preparar um feitiço como aquele.
Se sobreviver, isto é algo em que você deveria trabalhar, para que os numetodos aprendam a fazer também.
Se você sobreviver...
E isso, ela receava, não era uma certeza.
Ela estava junto à Garde Civile, do comandante ca’Talin, na extremidade sul da frente de batalha, no triângulo cada vez mais estreito entre o rio Infante e o rio A’Sele. Aqui, o Infante se dividia em dois braços ao se juntar com o A’Sele, e a Avi a’Sele cruzava o rio com duas pontes. Assim como o comando do starkkapitän ca’Damont, ao norte, e com o comando do hïrzg Jan, na extremidade norte da linha de frente, eles tinham se posicionado a oeste do Infante. Os tehuantinos estavam dispostos em uma longa fileira curva, se espalhando pela Avi a’Sele em direção à Avi a’Nostrosei, com cerca de três quilômetros de comprimento.
A tempestade de guerra, pelo que Varina pôde notar, podia ter coberto toda essa extensão.
Os outros numetodos também estavam cortando a tempestade de guerra juntamente com ela. Os raios evanesceram, a nuvem negra tinha sido desfiada e interrompida. Eles puderam ver alguns homens se movendo atrás dela, avançando.
— Recuem, recuem! — gritou o comandante ca’Talin para Varina e os demais. — Fiquem atrás da linha de frente. Arqueiros, disparar!
Bandeiras tremularam, cornetas soaram no ar, e por toda a extensão da linha de frente, saraivadas de flechas foram lançadas contra a tempestade de guerra. Varina viu os escudos dos guerreiros serem erguidos e a maioria das flechas ser cravada em escudos. Golpes de espada arrancaram as flechas presas nos escudos, e os tehuantinos mandaram uma chuva de flechas em resposta. Varina ouviu Mason berrar perto dela e cair com uma flecha de penas cinzas encravada em seu peito. Outra flecha acertou o chão a seus pés.
— Recuem! — berrou ca’Talin novamente.
Desta vez eles obedeceram. Johannes e Niels arrastaram Mason com eles.
Varina podia ver pouco mais que corpos colidindo à sua volta em meio à batalha, mas podia ouvir muito bem: o choque do aço contra o aço, os gritos dos soldados de ambos os lados, os toques estridentes das trompas. Também podia sentir o cheiro da fumaça dos fogos mágicos, do sangue, e de enxofre, torcendo o nariz. Mas à sua frente havia apenas uma massa agitada de soldados. Ca’Talin, a cavalo, cercado por chevarittai, se enfiou em meio ao caos e, por um momento, Varina e os outros ficaram sozinhos. Eles dispararam feitiços de fogo por cima dos gardai em direção às fileiras tehuantinas do outro lado; usaram contrafeitiços para destruir o fogo jogado pelos feiticeiros ocidentais sobre eles. A areia negra explodiu à sua direita, lançando terra e partes de corpos para o alto e a deixando ligeiramente surda.
Varina sentiu o terrível cansaço pelo uso contínuo do Scáth Cumhacht. Todos os feitiços que ela tinha preparado na noite anterior acabaram, e sua mente estava cansada e confusa demais para criar novos com facilidade. Varina estava acabada; estava vazia.
Se você sobreviver...
Ela tinha menos certeza disso agora do que nunca.
As cornetas mudaram o toque. Varina viu o comandante e os chevarittai saírem em meio à fumaça e a confusão da batalha. Atrás deles, gardai recuavam e fugiam para o leste.
— Para as pontes! — gritou ca’Talin ao passar por eles. — Para as pontes!
Varina foi levada por eles, impotente. A retirada seguiu em debandada, uma confusão. Ela estava sendo empurrada, tropeçando e quase caindo. À sua volta, as pessoas se acotovelavam, e Varina não conseguia se levantar. Seria fácil, ela pensou, se deitar ali e deixar tudo acabar. Varina sentiu que começava a cair novamente.
Uma mão a abraçou pela cintura.
— Aqui, levante-se.
Ca’Talin havia retornado. Ele puxou Varina para a sela de seu cavalo de guerra. Os braços e ombros da a’morce doíam. Ela viu as pontes à frente, lotadas de gardai fugindo em direção às barricadas do outro lado.
— Perdemos aqui — ca’Talin meio que gritou para ela enquanto eles mergulhavam na multidão de homens — Os ocidentais tomaram este lado do rio até o norte. Que Cénzi nos preserve para amanhã.
Ao ver os tehuantinos avançarem até o outro lado da colina em direção a eles, Brie virou seu cavalo e galopou duramente até os chispeiros; o animal jogava rochas e pedras a sua frente.
— Talbot! Por aqui! — gritou ela. — Traga seu pessoal e me siga!
Assim que viu a confirmação de Talbot, vendo o homem berrar ordens e empurrar os chispeiros a sua volta, a hïrzgin subiu a encosta novamente até chegar ao cume. Os tehuantinos ainda subiam o morro, com a óbvia intenção de ladear a batalha principal e atacar a Garde Kralji pelo flanco e pela retaguarda enquanto os gardai estavam concentrados no ataque principal pela estrada. O cume do morro era plano e quase sem árvores; os ocidentais avançavam por uma campina. A essa altura, Brie também tinha sido vista; ela ouviu uma flecha passar assobiando por sua cabeça e recuou levemente morro abaixo.
Talbot e os chispeiros estavam quase no topo; a hïrzgin contou para ele o que viu rapidamente. Os dois arrumaram as fileiras imediatamente abaixo do cume; os chispeiros verificaram suas armas novamente, para garantir que estavam carregadas e abriram as bolsas de couro onde carregavam, segundo Brie tinha sido informada, as pequenas recargas de areia negra para recarregar as chispeiras. Ela tinha visto as recargas; estavam longe de ser impressionantes, o que apenas aumentava suas dúvidas quanto à eficiência da chispeira enquanto arma.
Mas ela não tinha escolha. Ela só podia torcer para que Talbot não tivesse lhe contado uma mentira elaborada.
— Muito bem — falou a hïrzgin. — Ao meu comando, nós subiremos até o cume. Talbot, prepare-se para disparar assim que estiver lá; eles têm arqueiros, portanto vocês também estarão sob ataque.
Ela viu os homens empalidecerem ao ouvir isso.
— Vocês possuem o terreno elevado como vantagem. Ataquem para valer, e os arqueiros serão inúteis — disse Brie, apesar de não acreditar nisso; ela achava que os arqueiros inimigos transformariam os chispeiros em uma parede de corpos sobre o cume. — Agora, avancem!
Quase de má vontade, os homens subiram até o cume, juntamente com Brie e Talbot. Ela ouviu os chamados na estranha língua ocidental quando eles apareceram, mas Talbot já ditava a sequência antes das primeiras flechas os alcançarem.
— Primeira fileira, ajoelhar! Primeira fileira, atirar!
O barulho emitido fez o cavalo de Brie empinar, aterrorizado. Uma fumaça branca e pungente floresceu ao longo da fileira, e pelo morro abaixo... A hïrzgin mal podia acreditar no que via: os ocidentais derrubados como se uma lâmina divina tivesse ceifado as fileiras inimigas. Ela soltou um grito de surpresa, quase uma risada.
— Segunda fileira, ajoelhar! Segunda fileira, atirar!
Novamente, os estampidos das chispeiras ecoaram; novamente, mais ocidentais caíram; seus corpos rolaram morro abaixo ou se amontoaram onde estavam. Agora, algumas flechas também atingiram os chispeiros, Brie viu três ou quatro homens caírem.
— Droga, resistam, seus bastardos! — gritou Talbot para as fileiras, que fraquejaram e começaram a se desmanchar.
Brie galopou atrás deles enquanto a fileira da retaguarda titubeava e tentava debandar em vez de recarregar as armas.
— Não! — disse ela. — Fiquem e lutem, ou vocês sentirão o aço da minha espada! Fiquem!
— Terceira fileira, ajoelhar! Terceira fileira, atirar! — berrou Talbot.
Desta vez a saraivada soou mais como uma gagueira do que uma explosão coordenada, mesmo assim, mais tehuantinos caíram. Brie notou que o inimigo titubeava.
— Mais uma vez! — ela gritou para Talbot. — Rápido!
— Primeira fileira, ajoelhar! Primeira fileira, atirar!
Outra gagueira, alguns homens sequer conseguiram disparar, tentando recarregar as armas atabalhoadamente, com mãos trêmulas. Mesmo assim, mais tehuantinos caíram, e o disparo de flechas parou completamente. Morro abaixo, guerreiros feridos e moribundos gritavam em sua língua, e outros guerreiros pintados berravam em resposta.
— Segunda fileira, ajoelhar! Segunda fileira, atirar!
Mais uma vez, as chispeiras rugiram, e quando mais guerreiros caíram, os tehuantinos finalmente cederam. Os guerreiros recuaram e começaram a descer correndo o morro, apesar dos esforços dos offiziers para contê-los, subitamente eles bateram em retirada em pânico. O grupo de chispeiros soltou um grito de triunfo, alguns deles, sem que Talbot desse a ordem, dispararam as chispeiras dos inimigos, recuando. No topo do morro, havia punhos erguidos em triunfo.
Brie gritou “urra” com os chispeiros, mas então olhou para trás e a alegria morreu em sua garganta. Bem abaixo, na estrada, a Garde Kralji estava em plena fuga. Ela viu o estandarte de Allesandra balançando e ouviu as cornetas soando o toque de retirada. Atrás deles, os guerreiros tehuantinos os seguiam em perseguição: uma onda negra que se espalhava pela estrada ao longo de ambos os morros, uma onda que sobrepujaria a unidade de chispeiros se eles ficassem ali.
— Talbot! — gritou Brie. — À kraljica! Não podemos ficar aqui.
Eles podiam ter tido uma pequena vitória nessa escaramuça, mas não haveria vitória maior aqui. A hïrzgin conduziu Talbot e os chispeiros morro abaixo para se juntar à kraljica na fuga.
Niente pensou que Tototl fosse perseguir os orientais diretamente até a cidade deles ou mesmo atropelaria a retirada dos inimigos e os mataria ali. E ele talvez tivesse feito exatamente isso, se não fosse por um guerreiro supremo ter voltado, ofegante, falando sem parar a respeito de um massacre: o grupo que fora despachado para o flanco ocidental tinha sido praticamente destruído. Tototl deteve o avanço e enviou apenas alguns esquadrões em perseguição aos orientais em fuga. Tototl e Niente seguiram o guerreiro supremo e deram a volta até o outro lado do morro. Agora Niente estava vendo uma terrível carnificina na encosta à frente dele — embora ele tivesse visto coisas piores em suas longas décadas de guerra, certamente. Niente tinha testemunhado homens cortados em pedaços, tinha visto cadáveres empilhados sobre mais cadáveres. Mas aquilo: havia uma quietude assustadora ali, e os corpos estavam estranhamente inteiros. Havia pouco sangue.
Tototl pulou do cavalo e caminhou entre os corpos espalhados pela encosta coberta de grama.
— Que magia fez isso? — ele exigiu saber.
Niente balançou a cabeça.
— Uma magia que eu não nunca vi antes.
— Por que você não viu isso? — disse Tototl furioso.
Niente só podia continuar balançando a cabeça. Suas mãos tremiam. Ele sentiu o cheiro de areia negra no ar.
Areia negra.
Isso não era magia... A ideia não parava de lhe ocorrer, juntamente com o cheiro de areia negra. O fato da areia negra não ter sido criada a partir do X’in Ka era algo que Niente tinha omitido do tecuhtli e dos guerreiros. Ele queria que os guerreiros acreditassem que a areia negra era mágica. Não queria que eles soubessem que qualquer um poderia fazê-la se soubesse os ingredientes, as medidas da fórmula e o método de preparo. Niente e os poucos nahualli a quem ele confiou o segredo mantiveram o sigilo — todos eles suspeitavam que, se os guerreiros pudessem fazer a areia negra sozinhos, eles poderiam decidir que não precisavam dos nahualli.
Isso não era magia...
Niente sabia, mas não podia admitir para Tototl.
Se Atl também estiver vendo isso... O medo o regelou e ele quase pegou o pássaro entalhado, quase pronunciou a palavra que permitiria a comunicação com o filho, para avisá-lo. Mas seria tarde demais: a batalha já estaria, sem dúvida, em andamento. Tarde demais. E ainda que os orientais tivessem essa habilidade mortal, ela ainda não tinha feito a diferença nesta batalha. Os inimigos eliminaram as tropas do flanco, mas ainda assim foram derrotados.
Mas Tototl estava certo em um aspecto: ele não tinha visto isso. O que a tigela premonitória diria agora?
— Os orientais aprenderam um feitiço que nunca tinham nos mostrado antes — respondeu Niente.
Os feridos sangravam por buracos profundos e irregulares, mas quase circulares. Os mortos estavam piores — parecia que eles tinham sido atingidos por flechas invisíveis que, inacreditavelmente, vararam armaduras de metal e bambu para mergulhar profundamente em seus corpos, muitas vezes atravessando-os completamente. E no topo do morro, de onde os guerreiros sobreviventes tinham dito que a terrível saraivada viera, não havia nenhum corpo e haviam poucos sinais de sangue, embora houvesse algumas flechas tehuantinas no chão. Mas o solo estava inalterado, como não estaria se os inimigos tivessem precisado arrastar corpos. Os orientais conseguiram infligir esse dano nos tehuantinos sem perder homens de maneira substancial.
Será que eles fariam isso com as tropas principais? Será que estão escondendo esse poder, à espera de um lugar melhor para usá-lo?
Podia não ter sido magia, mas alguma coisa tão horrível quanto inacreditável tinha acontecido aqui. Eles usaram a areia negra de uma forma que Niente não conseguia compreender.
— Eu preciso usar a tigela premonitória novamente — falou ele. — Alguma coisa mudou, alguma coisa que Axat não tinha mostrado antes. Isso é importante. Estou preocupado com o tecuhtli.
O Longo Caminho: será que ainda estaria ali? Será que mudou também? Ou tudo mudou? Será que Atl viu isso? Niente tinha que saber. Tinha que descobrir. Ele não estava entendendo algo fundamental para a compreensão dessa situação — ele podia senti-lo em seu estômago revirando, uma queimação. Sentiu-se velho, gasto, inútil.
— Não há tempo — respondeu Tototl. — O tecuhtli cuidará de si mesmo, e ele está com o nahual. A cidade está aberta para nós. Tudo o que precisamos fazer é persegui-los. Eles estão fugindo. Não posso lhes dar tempo para se reagruparem.
— Então o mais breve possível, assim que chegarmos à cidade — disse Niente. — Olhe para isso! Você quer que isso aconteça conosco ou com Citlali?
Tototl franziu as sobrancelhas.
— Jogue óleo nos corpos e queime-os — ele ordenou aos guerreiros. — Depois se juntem a nós. Niente, venha comigo; a cidade nos aguarda.
Ele cuspiu no chão. Depois, franzindo a testa mais uma vez, montou em seu cavalo. Niente ainda estava olhando para o cenário, tentando entender o que tinha acontecido.
— Venha, uchben nahual — falou Tototl. — As respostas que você quer ficam mais longe de nós enquanto ficamos parados aqui.
Nisso, o guerreiro tinha razão. Niente suspirou e, em seguida, caminhou até seu próprio cavalo e — com a ajuda de um guerreiro — montou na sela.
Eles seguiram adiante, e Tototl já berrava para retomarem o avanço.
Se o dia tinha sido terrível, a noite foi odiosa. Varina estava encolhida com a Garde Civile, pressionada entre duas barricadas que tinham sido erguidas nos últimos dias, e à noite choveram fagulhas e fogo, como se se estivesse arrancando as próprias estrelas dos céus e lançando na terra. Ambos os lados agora usavam catapultas para disparar o fogo da areia negra uns nas fileiras dos outros. As explosões trovejavam de poucos em poucos instantes: às vezes ao longe, às vezes preocupantemente perto.
Não houve descanso nem sono nessa noite. Ela viu as bolas de fogo desenharem arcos no céu e caírem a oeste, e se encolheu com medo quando a saraivada em resposta bateu nas barricadas. Varina tentou bloquear os sons dos berros e lamentos sempre que um projétil dos tehuantinos os atingia.
Isso era pior que o combate aberto. Ao menos lá, ela tinha a ilusão de controle. Não havia controle aqui: a vida de Varina e de todos a sua volta estavam reféns dos caprichos do destino e do acaso. A próxima bola de fogo poderia cair sobre ela, e estaria tudo acabado, ou poderia acertar e tirar a vida de outra pessoa. Varina se sentiu impotente e indefesa, encolhida com as costas contra a sujeira fria, tentando recuperar o máximo de força possível para que pudesse repor os feitiços para o ataque que viria pela manhã.
E ele viria. Todos sabiam.
As notícias do norte eram desanimadoras. Nem o starkkapitän ca’Damont, nem o hïrzg Jan, com as tropas firenzcianas, conseguiram manter a margem oeste do Infante. Ambos foram forçados a recuar e cruzar o rio. Pior, disseram que o hïrzg Jan tinha sido ferido durante a retirada, no momento em que a ponte a’Certendi foi destruída. Os rumores eram descontrolados e variados: Varina ouviu que Jan estava morrendo; que ele tinha sido levado de volta à cidade, para os curandeiros; que o hïrzg estava comandando a defesa do leito na tenda; que Jan tinha se amarrado ao cavalo para não parecer ferido enquanto cavalgava e encorajava seus homens; e ouviu que seus ferimentos eram leves e que ele estava bem.
Varina não fazia ideia de quais rumores eram falsos e quais eram verdadeiros. O que ficou claro foi que a batalha do dia anterior tinha sido apenas um prelúdio. O Infante seria cruzado; todos eles sabiam disso. Os tehuantinos descobririam seus pontos rasos e cruzariam assim que houvesse luz.
Varina tremeu e fechou os olhos quando outra bola de fogo passou estridente acima dela, explodindo à sua esquerda. Se acreditasse em Cénzi, ela teria rezado — certamente havia preces sendo murmuradas ao seu redor. Varina quase sentiu inveja do alívio que os soldados pudessem encontrar com elas.
— Varina?
O comandante ca’Damont se ajoelhou ao lado dela. Em meio ao barulho, Varina não tinha ouvido sua aproximação. Ela ia se levantar, mas ele balançou a cabeça e fez um gesto para que ficasse abaixada.
— Desculpe — falou Varina. — Eu estava tentando descansar.
Ele sorriu palidamente.
— Não há muito descanso por aqui. Eu queria lhe contar que os curandeiros dizem que Mason, o vajiki ce’Fieur, vai se recuperar. Eles vão levá-lo de volta à cidade.
— Ótimo. Obrigada. Obrigada por me contar.
— Eu quero que você vá com ele — continuou ca’Damont. — Este não é um lugar para você.
Uma velha frágil... Varina quase podia ouvir o que não tinha sido dito.
— Não — respondeu ela. — Você precisa de mim aqui. Eu sou a a’morce dos numetodos; aqui é o meu lugar.
— Chegaram mais ténis-guerreiros. Dois punhados. E ainda há os outros numetodos que você trouxe. Você provou sua coragem mais cedo, Varina. Ninguém pode exigir mais de você. E você tem uma criança com quem se preocupar.
Varina queria concordar. Queria aceitar a oferta e voltar correndo para a cidade — mas mesmo lá ela não estaria a salvo. Ela podia fugir o quanto quisesse, podia pegar Serafina e ir para leste ou norte, mas se eles perdessem aqui — e Varina não conseguia ver uma maneira de vencer —, ela sempre se perguntaria se deveria ter ficado, se sua presença teria feito a diferença.
Karl não teria fugido. Ele teria ficado, mesmo que pensasse que a batalha estava perdida. Disso ela tinha certeza.
— A maioria dos gardai tem crianças com quem se preocupar — disse Varina, com firmeza. — É por isso que eles estão aqui.
— Mesmo assim...
— Eu não vou embora — disse ela.
O comandante assentiu. Ele se levantou e prestou continência para Varina.
— Tem certeza?
Varina deu uma risada nervosa quando outra bola de fogo passou rugindo. A luz das chamas brilhou e as sombras se mexeram quando ela explodiu.
— Não — respondeu Varina. — Mas eu vou ficar, e você está interrompendo meu descanso.
Eles ouviram o rugido baixo de outra explosão em algum lugar atrás da barricada.
— Descanso? — disse o comandante. — Eu duvido que qualquer um de nós descanse esta noite. Mas tudo bem. Fique, se quiser. Cénzi sabe que nós precisamos de toda ajuda possível.
Ele pareceu se dar conta do que disse e abriu um sorriso meio irônico.
— Desculpe, a’morce.
— Não peça desculpas. Se seu Cénzi existir, espero que Ele esteja lhe escutando.
Não era para ter sido assim. Sergei tinha rezado para Cénzi, mas Cénzi não tinha atendido — não que ele esperasse alguma ajuda desse lado. Os tehuantinos perseguiram Allesandra e a Garde Kralji até o interior da cidade. A kraljica tentou se reagrupar e resistir no Sutegate, mas os tehuantinos avançavam por uma área muito ampla agora e entravam na cidade por todos os lados ao sul. Allesandra não tinha tropas suficientes para cobrir toda a fronteira sul da cidade. Ficou imediatamente óbvio que eles não conseguiriam controlar a Margem Sul: não com a Garde Kralji, nem mesmo com os chispeiros, que se provaram estranhamente eficazes durante a retirada. Eles recuaram ainda mais e abandonaram toda a Margem Sul através da Ilha a’Kralji.
Eles podiam evitar que os tehuantinos passassem pelos gargalos das duas pontes.
Sergei tinha insistido que Allesandra destruísse a Pontica a’Brezi Veste e a Pontica a’Brezi Nippoli completamente, para que os tehuantinos não pudessem cruzar a confluência sul do A’Sele sem precisar de barcos. Ela se recusou.
— As Ponticas continuarão de pé — falou Allesandra. — Eu não abrirei mão de metade da cidade. As pontas continuarão de pé, nós as defenderemos esta noite, e amanhã nós voltaremos a cruzá-las para recuperar nossas ruas.
Sergei discutiu veementemente com ela, e o comandante co’Ingres concordara com o embaixador; nenhum dos argumentos convenceram Allesandra a mudar de ideia.
E foi na Pontica a’Brezi Veste e na Pontica a’Brezi Nippoli que os chispeiros realmente se destacaram. Com a orientação de Brie e Talbot, o grupo conseguiu controlar os pequenos espaços. Embora os ocidentais tivessem avançado onda atrás de onda contra eles durante o fim da tarde e até o anoitecer, eles deixaram ambas as pontes repletas de corpos. Após várias tentativas em vão, e com a luz do sol morrendo, os ocidentais finalmente recuaram.
Do telhado do Palácio da Kraljica, Sergei podia ver a queima de fogos na Margem Sul, onde antes os ténis acendiam lanternas ao longo da Avi a’Parete. As chamas amarelas eram um escárnio. A oeste e ao norte, do outro lado do A’Sele, mas ainda fora da cidade, rugidos constantes e clarões de explosões ainda prorrompiam, como se um temporal de relâmpagos sem chuva ou nuvens tivesse ocupado o lugar. Abaixo, além das muralhas externas dos pátios e da entrada do palácio, na Avi, Brie ainda estava acordada, sem seu cavalo agora. Sergei pôde ouvir a voz da hïrzgin no silêncio aturdido do palácio: dispondo as vigias na ponte e aconselhando os chispeiros a cuidarem de suas armas e descansarem o quanto fosse possível, mas para estarem prontos para reagir quando fosse necessário.
A hïrzgin Brie se provara tão valiosa quanto seu marido nesta luta. Talvez até mais.
Sergei sentiu Allesandra se aproximar dele. A kraljica ainda vestia a armadura, agora não mais reluzente e lustrosa: sob o luar, ele notou as marcas de arranhões e queimaduras da batalha. Seu cabelo grisalho estava grudado na cabeça. Um sexteto da Garde Kralji a acompanhava, bem como os poucos integrantes remanescentes do Conselho dos Ca’ que não tinham fugido da cidade.
— Amanhã — falou Allesandra para Sergei e os conselheiros —, retomaremos a Margem Sul.
— Tentaremos o melhor possível — respondeu Sergei, seu tom traiu seu sentimento quanto ao sucesso da empreitada.
— Nós retomaremos — respondeu Allesandra gravemente.
Os conselheiros pareciam assustados, Sergei sabia que todos achavam isso quase tão improvável quanto ele. Um clarão e — com atraso — outro rugido ecoaram a oeste. O embaixador sentiu o prédio tremer sob seus pés com o barulho. Os conselheiros olharam ao redor como se procurassem abrigo; os gardai se remexeram nervosamente, apertando suas lanças.
— Um mensageiro veio da Margem Norte — disse a kraljica. — Os tehuantinos tomaram o lado oeste do Infante, e a Garde Civile recuou para as barricadas. Eles estão a salvo, por enquanto. Os tehuantinos tentarão cruzar o rio amanhã e nós os repeliremos. Deixem o Infante e o A’Sele levarem seus corpos de volta para o mar.
— Nós tentaremos, estou certo disso — respondeu Sergei novamente. — A senhora ouviu mais notícias do hïrzg?
O rosto de Allesandra ficou tenso.
— Eu fui informada que o hïrzg Jan se recusou a voltar para a cidade. Quanto à gravidade de seus ferimentos... — Ela deu de ombros. — Ninguém disse nada. Ele é meu filho e é um soldado. Vai continuar a lutar enquanto puder.
Sergei desceu o olhar para onde Brie estava patrulhando.
— Ela sabe?
— Eu mesma contei para Brie. Eu disse que ela podia ir até ele enquanto é possível. Brie disse que seu lugar era aqui por enquanto, e que Cénzi poderia manter Jan a salvo melhor do que ela. — Allesandra quase sorriu. — Acho que ela passou a sentir um carinho por aqueles chispeiros.
Sergei grunhiu.
— Espero que ela tenha razão. Não podemos conter os tehuantinos, kraljica. Em breve, eles começarão a nos bombardear com areia negra até que não consigamos mais posicionar os chispeiros nas cabeças de ponte, e assim que os chispeiros recuarem, os tehuantinos cruzarão. Precisamos derrubar as Ponticas na Margem Sul para isolá-los. Deixe que joguem o que quiserem sobre nós, mas eles não poderão cruzar... não até que construam barcos.
Allesandra recuou, estreitando os olhos e franzindo os lábios.
— Você já disse isso vezes demais, Sergei. Eu não abrirei mão da Margem Sul. Eu não abandonarei a minha cidade. Não enquanto eu respirar. Não. — A kraljica inspirou, emitindo um som alto no silêncio da noite. — Eu pedi que o comandante ca’Talin ou o starkkapitän ca’Damont nos mandassem uma companhia ou duas de gardai para ajudar.
— Kraljica, eles não podem abrir mão desses homens. Não com a força tehuantina que os dois estão enfrentando. A senhora não pode pedir isso a eles.
— A mensagem já foi enviada. Eu disse que eles teriam que avaliar bem se podiam abrir mão das tropas ou não. Eles vão mandá-las — disse Allesandra com firmeza.
Ficou claro para Sergei que ele não convenceria a kraljica. Ele também sabia que, independentemente do reforço de gardai, a Garde Kralji não seria suficiente para retomar a Margem Sul. Se as pontes continuassem de pé, eles não seriam suficientes sequer para manter a Ilha, mesmo com a ajuda dos chispeiros. O embaixador bateu com a ponta da bengala nos ladrilhos do telhado, inquieto. A oeste, irromperam mais clarões.
— Se a senhora me dá licença, kraljica, eu preciso encontrar Talbot...
Ele deixou Allesandra ainda no telhado com os gardai e os conselheiros. Encontrou Talbot no térreo do palácio, parecendo exausto e furioso, vociferando ordens para um quarteto de funcionários do palácio. Eles saíram correndo assim que Sergei se aproximou.
— Eu não tenho gente suficiente aqui — falou Talbot. — Três quartos dos funcionários evidentemente fugiram da cidade assim que saímos daqui ontem.
— Você não pode culpá-los, meu amigo. Qualquer um com mais bom senso do que lealdade teria ido embora.
— Eu sei, mas como posso administrar o palácio sem pessoal? — Ele passou os dedos pelos cabelos. — Olhe para mim: eu acabei de correr meia Nessântico fugindo dos tehuantinos; consegui sobreviver a feitiços, flechas e espadas, e estou aqui preocupado se as camas estão feitas e se as refeições estão sendo servidas.
— É o seu trabalho.
— Não parece importante, dadas as circunstâncias. Por Cénzi, estou exausto.
— Você pode dormir depois. Nós dois podemos dormir depois. Venha comigo.
— Para onde?
Sergei esfregou o nariz.
— Você sabe onde a areia negra da Garde Kralji está guardada? Tem as chaves do paiol?
— Sim, mas...
— Então venha comigo.
Uma virada da ampulheta depois, ele e Talbot se aproximaram da Pontica a’Brevi Veste acompanhados por gardai carregando vários pacotes de areia negra. Brie os saudou e olhou para os pacotes, inclinando a cabeça.
— Eu pensei que a kraljica tivesse dito que as Ponticas deveriam ficar intactas.
Sergei ergueu o olhar na direção do telhado do palácio, para as sacadas cravadas na parede sul. Não havia ninguém ali.
— Eu consegui convencer a kraljica de que talvez fosse preciso derrubar as pontes se nosso ataque amanhã não se saísse bem. Temos que colocar a areia negra nas pilastras deste lado, para que possamos acioná-las quando for necessário. Isso é tudo.
Brie assentiu.
— Parece um bom plano para mim. Eu vou mandar os chispeiros ajudarem.
Mais uma virada da ampulheta, e Sergei e Talbot, carregando o restante da areia negra, seguiram para a Pontica a’Brezi Nippoli. O embaixador contou para o offizier no comando da Garde Kralji o mesmo que tinha contado a Brie. Assim como na ponte anterior, ele supervisionou a colocação das cargas de areia negra, cuidando para que estivessem ligadas por cordas de algodão embebidas em óleo misturado com areia negra, de maneira que o acendimento da ponta do pavio causasse a explosão de todas as cargas ao mesmo tempo.
Sergei segurou o pavio erguido na mão; uma lanterna queimava aos seus pés, na grama da margem do rio.
— Acabamos por aqui — ele disse para Talbot. — Agora, mande todos recuarem.
Sergei não conseguiu ver o rosto de Talbot, que estava mais adiante na barragem, a luz da lua batia quase diretamente nas costas dele.
— Recuar? Sergei, você ficou maluco? A kraljica deu ordens específicas...
Sergei se abaixou, enfiou a bengala debaixo do braço, pegou a lanterna e abriu sua tampa de vidro, enquanto segurava o pavio na outra mão.
— Quando um dente fica podre, não há escolha senão arrancá-lo — disse o embaixador. — Se você deixa o dente lá, ele só vai causar mais dor e sofrimento, e no fim, o dente vai apodrecer todos os outros.
— Você não pode fazer isso — protestou Talbot. — A kraljica disse...
— A kraljica e eu discordamos. Seja franco, Talbot: você acha que podemos tomar a Margem Sul dos ocidentais amanhã? A melhor defesa para a Ilha e para a cidade inteira é derrubar as Ponticas e deixar os ocidentais presos.
— Não cabe a você tomar essa decisão — respondeu Talbot.
Sergei sorriu para ele, erguendo a lanterna.
— No momento, parece que é.
O embaixador encostou a ponta do pavio na chama. Ele assobiou e soltou fagulhas, e o fogo começou a percorrer a extensão do pavio. Sergei soltou o pavio e começou a subir a margem o mais rápido possível, se apoiando em sua bengala.
— Pelos colhões de Cénzi — praguejou Talbot; ele ficou parado por um instante, como se considerando descer a margem correndo atrás do pavio, depois gesticulou para os gardai nos pivôs da ponte. — Recuem! Saiam da ponte! Abriguem-se!
Talbot desceu um pouco a barragem e puxou Sergei pelo braço. Juntos, eles fugiram enquanto o pavio assobiava e espocava e o brilho azul do fogo seguia em direção à ponte.
A explosão quase levantou Sergei do chão. A concussão atingiu o embaixador como uma parede caindo; ele sentiu o calor queimar suas costas, e o som... Sergei ouviu as vigas se romperem enquanto rochas e tábuas caíam como uma chuva intensa e perigosa e batiam no chão em volta deles. Sergei e Talbot se encolheram, cobrindo suas cabeças. Quando tudo terminou, o embaixador se virou, seus ouvidos ainda zuniam. A ponte desabou, sua extensão mergulhou inclinada nas águas do A’Sele a meio caminho do vértice. Os tocos da estacaria e das pilastras surgiam da água como dentes quebrados.
Sergei sorriu.
— Eles não cruzarão por ali tão cedo. Todos aqueles homens posicionados ali podem descansar. Agora, vamos terminar o serviço...
Talbot balançou a cabeça.
— Lamento, Sergei, mas não posso permitir. Você mentiu para mim. Você desobedeceu às ordens expressas da kraljica.
— Eu estou tentando salvar a droga da cidade — retrucou Sergei.
— Ela não é a sua droga de cidade.
Ah, mas é sim... Sergei sabia que Talbot compreendia o valor do que ele tinha feito. Sabia que Talbot concordava com ele, afinal.
— Talbot, você sabe que eu estou certo.
— O que eu sei não importa — respondeu o homem. — Eu sou o assistente da kraljica, não o kraljiki. Que os retalhadores de almas te carreguem, Sergei...
Talbot balançou a cabeça e olhou as ruínas da ponte. A Garde Brezno se aproximava da borda e encarava a destruição. Gritos e lanternas se aproximavam deles.
— Allesandra ficará furiosa.
— Ela ficará ainda mais furiosa quando derrubarmos a outra Pontica — respondeu Sergei —, mas também não poderá desfazer isso.
Mas Talbot não admitiria que o embaixador estava certo. Ele sabia antes de o assistente responder, sabia pela maneira como seu rosto magro se fechou.
— Isso não vai acontecer. — Talbot olhou para as pessoas se aproximando deles. — Sergei, você ainda pode sobreviver a esta situação: admita que desobedeceu à kraljica e colocou as cargas de areia negra, mas que fez isso no caso de termos de recuar amanhã e não haver outro jeito de impedir que os tehuantinos cruzassem a ponte para a Ilha e para a Margem Norte. Você pode dizer que isso foi um acidente, que sua lanterna acendeu o pavio. Ela não vai acreditar em você e ficará terrivelmente furiosa com o que você fez, mas não poderá provar nada. Eu o apoiarei até aí, Sergei. Mas não vou além disso. A outra ponte permanece de pé.
— Talbot...
— Não — disse o assistente com firmeza, interrompendo Sergei. — Ou isso ou eu conto exatamente o que aconteceu aqui e que você pretendia esse golpe o tempo todo. Então, a kraljica o executará como traidor, Sergei, e eu não posso culpá-la. O que vai ser? Você decide.
Talbot estava certo. Sergei sabia disso, conhecia Allesandra bem o suficiente para perceber que, mesmo que ela entendesse seu raciocínio, ele tinha ultrapassado os limites do perdoável se a kraljica soubesse toda a verdade. Morto, Sergei não poderia fazer nada pela cidade. Morto, ele não poderia fazer mais nada para expiar tudo o que fez em vida. Morto, não poderia derrubar a outra ponte.
— Está bem — respondeu o embaixador. — Eu aceito sua proposta.
Ela acompanhou Nico de volta ao labirinto do Velho Distrito, para outra casa anódina em outro beco estreito anódino. Não havia ninguém ali, ninguém respondeu à batida de Nico. A porta estava trancada, mas isso não era um problema — não para Rochelle. Ela arrombou a porta e eles entraram. Nico disse quase que imediatamente que precisava rezar. Rochelle disse que ambos precisavam comer — mas não havia nada na casa. Ela saiu para procurar por comida e encontrou pão velho em uma padaria abandonada, e queijo mofado por toda parte, e pegou água do poço mais próximo. Quando Rochelle voltou à casa, Nico estava na sala principal, de joelhos. Ele não lhe deu atenção quando ela tentou convencê-lo a comer, tentou dar-lhe água à força entre os lábios rachados e machucados, enquanto o sacudia e gritava para tentar chamar sua atenção.
O irmão estava perdido e impassível, murmurando preces ininteligíveis para Cénzi. Nico a ignorou, como se não se importasse, ou mesmo soubesse que Rochelle estava ali. Ela não conseguiu arrancar reação alguma do irmão. Ele parecia estar em transe.
Tudo bem. Rochelle estava acostumada com loucura. Ela tinha lidado bastante com isso com sua matarh.
Rochelle dormiu um pouco no chão ao lado de Nico, mas não por muito tempo. Ela acordou, escuro, com Nico ainda rezando a seu lado. A essa altura, pensou Rochelle, deviam faltar poucas viradas para a Primeira Chamada.
— Nico? Nico, fale comigo.
Não houve resposta. Ele se encontrava na mesma posição viradas a fio. Então, Nico também a abandonara — bem, Rochelle estava acostumada a ficar sozinha, a tomar suas próprias decisões. Ela não podia ajudá-lo, não podia encontrá-lo onde quer que ele estivesse, mas ainda havia o que ela poderia fazer, o que deveria fazer. Rochelle tocou o cabo da faca que tinha roubado de seu vatarh, alisando o punho adornado.
Prometa para mim que você fará o que eu não consegui. Prometa para mim...
— Eu farei — ela disse para o fantasma da matarh. — Eu farei.
Rochelle se voltou para Nico, se ajoelhando no piso de madeira nua. As pernas do irmão deviam estar dormentes há muito tempo. Suas mãos estavam entrelaçadas, fazendo o sinal de Cénzi, sua cabeça estava abaixada sobre elas, seus olhos fechados. Ela notou que ele murmurava.
— Nico? — disse Rochelle, tocando seu ombro. — Nico, eu preciso que você me responda.
Ele não respondeu. O murmúrio continuou, sem diminuir. Ela abraçou o irmão e disse.
— Então reze por mim. Reze por nós dois.
Ele não deu sinal de tê-la ouvido. Ela se levantou, observou Nico e finalmente saiu da sala. Fechou a porta atrás de si, saindo em direção às ruas do Velho Distrito. De manhã cedo, as ruas estavam escuras e desertas. A maioria dos moradores, os que puderam, tinha fugido da cidade, para o leste. Clarões estranhos irrompiam no céu a oeste, acompanhados por trovões distantes e, ao sul, nuvens de fumaça tocadas pelo brilho de fogueiras.
Sul. Rochelle seguiu nessa direção, se escondendo facilmente nas sombras provocadas pela lua.
Ela não fez ideia de quanto tempo tinha levado até chegar à Pontica Kralji, que ligava a Margem Norte à Ilha. Não havia gardai na ponte, nenhum trânsito. A lua estava se pondo, e o céu começava a clarear no leste e extinguir as estrelas no apogeu. As águas do A’Sele estavam turvas em volta da estacaria, escuras e misteriosas. O cheiro de madeira queimada se misturava ao odor da lama e da água do rio.
Alguma coisa brilhante espocou no céu a sua frente, deixando um rastro de fagulhas e pintando a correnteza do A’Sele com reflexos reluzentes. A aparição se iluminou e inchou, descendo rapidamente. Rochelle a viu cair, sentindo o impacto sob a sola das botas, vendo o fogo da explosão. Alguém gritou de dor ao longe, e o susto e o cheiro de queimado aumentaram, cobertos agora pelo fedor de enxofre. Outra bola de fogo passou guinchando no céu ao sul; esta explodiu bem acima da Ilha, mandando as sombras negras embora.
Um cavaleiro apareceu na extremidade da Pontica que saía da Ilha A’Kralji galopando em direção à Rochelle, com a capa tremulando atrás de si. Ela se encolheu nos pilares da ponte; o cavaleiro passou disparado sem olhar e fez uma curva fechada à esquerda, em direção ao Mercado do Rio. Rochelle notou a bolsa de couro em volta do corpo: um mensageiro rápido levando uma mensagem.
Isso significava que a kraljica provavelmente estava na Ilha. Allesandra. Sua mamatarh. A voz da matarh pareceu sussurrar em seu ouvido.
— Prometa para mim...
Outra bola de fogo surgiu como um sol falso e também caiu na terra, em algum lugar da Ilha. Ela ouviu as trompas do Velho Templo soarem um alarme ao longe.
Rochelle atravessou a Pontica correndo, meio que esperando que alguém berrasse para ela ou que fosse atingida por uma flecha. Nada aconteceu. Rochelle chegou à Avi a’Parete na Ilha. Ao seu redor, os grandes prédios da Ilha se erguiam, com destaque para o Palácio da Kraljica, diretamente à esquerda. Ela seguiu lentamente para lá, por uma rua cheia de prédios do governo. Mais adiante, ao sul, Rochelle pôde ouvir o som das atividades: trompas soando, pessoas gritando. Ela fez a curva e seguiu para o sul novamente; a sua frente, viu pessoas no fundo na outra extremidade da rua. Ela correu na direção do muro que envolvia o palácio. Havia uma porta da criadagem ali, na lateral. Rochelle bateu, esperou, bateu novamente. Ninguém respondeu. Ela se abaixou e pegou suas ferramentas para arrombá-la. Alguns instantes depois, Rochelle empurrou a porta e entrou em suas dependências.
Ela se viu nos jardins do palácio. O cheiro de flores era forte, e Rochelle ouviu uma fonte jorrando água por perto. Não havia ninguém nos jardins, e poucas janelas do palácio estavam acesas.
Outra bola de fogo mostrou sua cara brilhante sobre o muro do outro lado do terreno. Parecia vir na direção de Rochelle e do palácio, mas no último instante, quando parecia que acertaria o próprio palácio, ela se estilhaçou em mil fragmentos, cada um assobiando e brilhando ao cair — um contrafeitiço deve ter alcançado a bola de fogo. Rochelle se perguntou quantos incêndios essas fagulhas provocariam, e se os ténis-bombeiros viriam apagá-los.
Ela correu para a porta do palácio mais próxima. Trancada: novamente, Rochelle tirou as gazuas e manipulou as ferramentas até ouvir o clique do mecanismo se abrindo. Ela empurrou a porta apenas o suficiente para entrar sorrateiramente.
Rochelle se viu no que deveria ser o corredor da criadagem: um corredor estreito e simples, com corredores transversais se abrindo de ambos os lados e uma porta grande ao final. Se este palácio fosse como o Palácio de Brezno, como ela esperava, a maioria dessas portas estaria destrancada. Os criados precisavam ter acesso a todas as alas do palácio para servir a seus senhores e senhoras da maneira mais discreta possível. Sem dúvida, o palácio estaria cheio de passagens assim.
Mas nos corredores de serviço do Palácio de Brezno havia uma atividade frenética. Aqui estava tudo quieto, e Rochelle achou isso estranho. Ela seguiu rapidamente até a porta principal, abrindo lentamente uma fresta. Ela vislumbrou um dos principais corredores públicos do palácio; também ouviu vozes. Havia várias pessoas saindo apressadamente de outro aposento um pouco à frente. Ela reconheceu um dos homens imediatamente: Sergei ca’Rudka, com seu nariz de prata reluzindo em seu rosto enrugado e pálido, e a bengala batendo em um ritmo irregular nos ladrilhos. A mulher a seu lado falava com ele em um tom apressado e irritado.
— ...não me importo com o que você estava pensando ou quais eram as suas razões. Eu estou furiosa com você, Sergei. Absolutamente furiosa. E Talbot; por que em nome de Cénzi você não confirmou comigo? Você sabia que eu tinha mandado as ponticas permanecerem de pé.
— Eu peço mil desculpas, kraljica — disse Sergei, embora Rochelle pensasse que ele parecia mais contente que arrependido.
Então aquela era a kraljica. Mamatarh, eu estou aqui por você... Mas não agora. Não ainda. Havia muitas pessoas em volta dela: Sergei, o sujeito chamado Talbot, bem como um quarteto de gardai.
— Seu “acidente”, se é que isso foi mesmo um acidente, pode ter prejudicado nossa chance de ataque aos tehuantinos na Margem Sul. Agora só temos uma rota para cruzar o rio, então...
Suas vozes foram ficando ininteligíveis à medida que eles desciam o corredor. Rochelle arriscou abrir mais a porta. Havia dois gardai posicionados na porta de onde o grupo tinha saído. Ela recuou para o corredor de serviço e entrou no corredor que levava para o aposento em que os gardai estavam, contando os passos para calcular sua distância. Havia outra porta a alguns passos, corredor adentro. Rochelle abriu a porta.
Ela entrou no Salão do Trono do Sol. A massa cristalina do Trono do Sol sobre a plataforma dominava o salão. Muito bem. Isso serviria: a kraljica deve voltar para cá em breve, e Rochelle poderia cumprir sua promessa.
Ela viu um lampejo de luz através das janelas altas do salão, e o palácio tremeu quando um trovão rugiu. Ela pôde sentir o cheiro de fumaça de madeira das janelas do palácio ascendendo em uma alvorada de chamas.
Rochelle se acomodou para esperar.
Niente polvilhou o pó alaranjado sobre a água na tigela premonitória e entoou um feitiço para abrir sua mente para Axat. A bruma verde começava a surgir, e ele inclinou a cabeça sobre a tigela.
Os tehuantinos estavam acampados na própria cidade, os guerreiros estavam protegendo as ruas e sacando as casas e os prédios atrás de comida e suprimentos, cumprindo as ordens de Tototl, mas Niente sabia que muitos guerreiros também estavam pegando todo o tesouro que pudessem carregar. Outros estavam ocupados construindo uma catapulta, e Niente tinha ordenado que os nahualli encantassem os sacos de areia negra que a catapulta lançaria na ilha para que explodissem com o impacto. Os cânticos dos nahualli e o martelar dos guerreiros engenheiros preencheram a grande alameda do lado de fora da fortaleza na beira do rio. Dos portões do edifício, o crânio de uma criatura horrível com dentes afiados, lançava um olhar malicioso para Niente — quase como a cabeça da serpente alada que tremulava no estandarte do tecuhtli. Isso, pensou ele, era quase uma ironia. O Olho de Axat nasceu e parecia observar Niente enquanto ele realizava o ritual, com tanta intensidade quanto Tototl.
As visões apareceram rapidamente, passando por ele quase rápido demais para que ele pudesse acompanhá-las. Os caminhos do futuro se entrelaçavam e mesclavam. Niente ainda podia ver a vitória no caminho mais nítido e próximo, mas agora era uma vitória conquistada a um preço muito alto. Havia mudanças provocadas no cenário, potências emergentes que ele não tinha visto antes ou que tinham sido apenas insinuadas em remotas possibilidades: o rei de preto e prata; a velha que cheirava a areia negra; o jovem com o poder estranho e descontrolado. Esta última... a mais difícil de todas de se ver, estava envolvida em bruma e mistério. Em torno do jovem, todos os caminhos possíveis do futuro pareciam estar espiralados. Niente queria ver mais a respeito do jovem, mas as brumas continuavam a afastá-lo, não importava o quanto ele tentasse acompanhá-lo.
Na bruma, Niente também sentiu a presença de Atl, tão perto que quase pensou que o filho estivesse a seu lado, espiando a tigela ao mesmo tempo que ele. Aqui. Ele tentou lançar os pensamentos na direção de Atl. Veja o que eu vejo. Deixe-me encontrar o Longo Caminho, espero que você o veja também...
Mas não houve resposta. Niente não conseguiu mostrar o que tinha visto para Atl, nem conseguiu ver o que Atl via. Na bruma, os dois permaneciam separados.
— Eles vão derrubar a outra ponte? — perguntou Tototl. — Se fizerem isso...
— Se fizerem isso, não poderemos cruzar o rio para ajudar o tecuhtli Citlali. Eu sei. Agora, deixe-me ver...
Niente já tinha visto isso: no caminho principal, os orientais inexplicavelmente não destruíam a outra ponte. Ele não entendeu isso. Com as pontes em pé, Tototl conquistaria a Ilha, ainda que pagasse um preço terrível. As estranhas armas de areia negra dos orientais derrubariam guerreiros demais antes que eles conseguissem, inevitavelmente, sobrepujá-los. Eles alcançariam Citlali e esmagariam ainda mais orientais entre eles, mas esta já não era a vitória que Niente tinha visto em Tlaxcala. Tudo mudara.
O que significava que o Longo Caminho também tinha mudado. Isso se o Longo Caminho ainda existisse.
Niente inclinou a cabeça sobre a bruma novamente, procurando. Por favor, Axat. Mostre-me...
E Ela mostrou.
A Passagem da Tempestade
— E então? — perguntou Tototl enquanto Niente jogava a água da tigela premonitória nos paralelepípedos da alameda.
Ele limpou a tigela com a manga da camisa e olhou solenemente para o guerreiro supremo.
— Você se lembra, Tototl, da conversa que tivemos sobre uma vitória parecer uma vitória, mas não ser?
O semblante pintado do guerreiro supremo continuava impassível.
— Eu me lembro de você ter dito isso. E me lembro de ter dito que achava que você tinha visto mais coisas na tigela do que estava contando para o tecuhtli Citlali. Então, me diga agora, uchben nahual, o que você viu? Diga-me a verdade.
Niente recolocou a tigela premonitória na bolsa e sentiu a textura dos desenhos gravados na borda. Ele pegou seu cajado mágico, sentindo a energia do X’in Ka pulsando na madeira, capturada e pronta para ser solta. Os odores de madeira queimando, da água doce, do fedor de roupa usada por muito tempo invadiram suas narinas. Niente engoliu em seco e sentiu o gosto forte e persistente da bruma verde que tinha inalado. Seus sentidos pareciam estar plenos e aguçados demais. Ele ergueu seu olhar para o crânio malicioso no muro sobre si e imaginou a criatura viva, com seus dentes afiados como facas de marfim rasgando uma vítima presa em suas mandíbulas poderosas.
— Preste atenção, Tototl — falou Niente. — Eu não disse nada para o tecuhtli Citlali porque ele não vê nada além do presente e de suas próprias ambições. Você tem a imaginação para fazê-lo. Você pode se tornar um grande tecuhtli. Um tecuhtli cujo nome ecoaria por gerações.
Tototl não conseguiu esconder totalmente a ansiedade provocada por essas palavras: Niente notou no leve movimento da boca do guerreiro, na sutil abertura dos olhos cercados por tinta vermelha. O guerreiro tinha ambição.
— Você viu isso?
Niente assentiu.
— É um dos futuros. Uma possibilidade.
Ele fez uma pausa. Olhou para a catapulta, quase terminada agora. Olhou para a ponte perto deles, no fim da alameda, para o grande prédio que surgia logo atrás dela, para o domo dourado que aparecia sobre os outros telhados, no meio da ilha.
— Tototl, a vitória neste momento está por um fio. Você é o fio, Tototl, sem você, não há vitória nenhuma. Eu vi isso.
— O que eu devo fazer?
— Você deve conquistar a ilha e chegar ao outro lado, como eu disse antes. Tem de avançar com nossos guerreiros contra os orientais pela retaguarda. Se você quer a vitória, é isso o que deve fazer.
— E por que eu não faria isso? É por isso que viemos para cá: para tomar a cidade e vingar nossa derrota com o tecuhtli Zolin, para governar esta terra.
Niente se perguntou se deveria contar para ele. Certamente Citlali não teria ouvido nada disso; ele já teria interrompido Niente, e Niente — ele tinha que admitir — teria se curvado para o tecuhtli. Eu vencerei aqui... Era tudo o que Citlali queria ouvir. Ele desdenharia do Longo Caminho; não se importaria com o que acontecesse anos depois. Mas Tototl talvez pensasse da mesma forma. Niente respirou fundo. Ele viu os nahualli colocarem a primeira carga de areia negra no cesto da catapulta enquanto os guerreiros acionavam o guincho para abaixar a haste.
— A vitória de Citlali aqui terá um preço muito alto para nós no fim — falou Niente. — Ele ainda pode tomar a cidade, mas não poderá controlá-la por muito tempo. Outros exércitos orientais virão dos lugares mais distantes do império deles. Esta terra é imensa, e nós temos poucos guerreiros aqui e pouco tempo para trazer mais homens do outro lado do mar. E quando os orientais matarem a todos os que sobreviverem, eles olharão para a nossa terra natal e voltarão com um exército ainda maior do que o que levaram antes. Eles vão nos caçar até ter certeza de que nós jamais causaremos problemas outra vez.
— Você tem certeza disso?
Niente balançou a cabeça.
— Não — ele admitiu. — Mas é o futuro que vejo; o provável.
— O novo nahual também viu isso?
Niente balançou a cabeça novamente.
— Não. Mas Atl está aprendendo. Ele só vê o futuro próximo, não o Longo Caminho.
—Você viu uma vitória fácil antes. Disse isso antes mesmo de sairmos da nossa própria terra.
— Eu vi — admitiu Niente. — E nesse momento, era a verdade. Mas isso mudou. Há forças aqui que estavam ocultas de mim, situações que mudaram de figura desde que consultei Axat pela primeira vez. Nada no futuro é sólido e fixo.
— Então esse futuro que você vê também pode mudar. Também mudará.
— Pode ser. Mesmo assim... Tototl, eu diria para você pegar os guerreiros aqui e ir embora. Encontre nossos navios; a essa altura eles devem estar perto da cidade. Pegue os navios e volte para casa. Eu diria para você se tornar o tecuhtli para que, quando os orientais voltassem à nossa terra, e eles voltarão, nós ainda estivéssemos fortes o suficiente para resistir. Os orientais perceberão que, assim como nós não conseguimos conquistá-los, também não conseguirão nos conquistar, e nossos impérios terão que lidar um com o outro como iguais.
Tototl meneava a cabeça em negação.
— Eu não fugirei — falou o guerreiro supremo. — Eu não abandonarei Citlali. Não sem saber que não tenho outra escolha.
— Então, aqui estão os sinais, Tototl. Quando a magia for retirada de todos os nahualli, quando você me vir cair diante de uma arma que não deveria matar: estes são os sinais de que o que eu disse é verdade. Você recuará então, Tototl? Ouvirá o meu conselho, como o tecuhtli Citlali não ouviu?
Tototl pareceu rir.
— Você parece um pedaço de bife defumado, uchben nahual, velho e duro demais para morrer. E quem poderia retirar o poder dos nahualli?
— Se isso acontecer — implorou Niente — se você vir os sinais, você irá embora?
— Se isso acontecer — respondeu o guerreiro supremo —, eu me lembrarei do que você disse e farei o que achar que é necessário.
Enquanto Tototl dizia essas palavras, a catapulta cantava sua canção mortal, e uma bola de fogo cruzou o rio em direção à ilha. Ambos viram a bola cair e explodir, emitindo um rugido de chamas laranjas.
Jan se perguntou se esse seria seu último dia.
A fumaça manchava o céu a sudeste, emergindo dos incêndios que ardiam sem controle na Margem Sul da cidade. Mensageiros enviados por sua matarh vieram durante a noite com uma mensagem: os tehuantinos estavam na Margem Sul; eles tentariam repelir os inimigos de novo, pela manhã; envie uma companhia de gardai se puder abrir mão deles.
Mas ele não podia abrir mão dos gardai. Eles já não eram suficientes para a tarefa que tinham pela frente. A noite anterior tinha sido terrível, o chão tremera enquanto areia negra era lançada de ambos os lados. Agora o céu a leste estava rosa e laranja, e os tehuantinos recomeçariam o ataque terrestre. Jan sabia disso; ele mesmo o teria feito.
Um pajem ajudava o hïrzg com sua armadura, e Jan fez uma careta quando o menino apertou as tiras da couraça — um armeiro desamassara a mossa da armadura na noite anterior.
— Vamos — ele disse para o pajem. — Aperte bem. A armadura não pode cair no meio da batalha.
Qualquer movimento doía. Respirar doía. Jan tossiu sangue na noite anterior assim que recobrou a consciência, embora isso, ainda bem, tivesse parado. Prender o peito com a armadura na verdade fez bem a ele, mas ele se perguntou se suportaria um golpe de espada sem desmoronar. E se perguntou se poderia liderar os homens como um hïrzg deveria: na linha de frente contra o inimigo.
— Traga o meu cavalo — disse Jan.
O pajem prestou continência e saiu correndo.
Jan tinha passado a noite na tenda atrás da segunda muralha de barricadas. A maior parte da areia negra caiu bem longe do acampamento, mas ainda havia crateras de terra negra aqui e ali, e fumaças de incêndios na grama que tiveram que ser extintos. Os offiziers tinham relatado as baixas meia virada da ampulheta depois de fazerem as chamadas. O hïrzg ficou estarrecido. Ele tinha trazido quatro mil gardai e cerca de trezentos chevarittai a Nessântico. Ele e o starkkapitän ca’Damont dividiram os homens de maneira praticamente igual. Jan agora contava com menos de mil gardai e dez punhados de chevarittai; ca’Damont tinha menos.
Não, ele não podia mandar uma companhia para a kraljica. Ele teria sorte se voltasse para Nessântico com uma companhia inteira. Jan leu a mensagem de ca’Talin: Perspectiva ruim. Recomendo resistir o máximo possível, depois recuar para a cidade. Abaixo, com sua letra fina e alongada, ca’Damont adicionara um breve concordo. Jan enviou uma resposta aos dois.
Concordo. Faça o inimigo pagar por terem cruzado o rio, depois recuem para o Mercado do Rio. Reagruparemos lá e nos reuniremos com a kraljica.
O pajem voltou conduzindo um cavalo de guerra que tinha sido a montaria de um dos chevarittai mortos. O menino colocou um degrau perto do cavalo e ajudou o hïrzg a montar na sela. Ele conseguiu se sentar sem gemer alto.
— Obrigado — disse Jan para o menino, prestando continência.
O hïrzg seguiu a meio galope, fazendo careta a cada passo, sacudindo o corpo. Ele subiu a pequena elevação até o topo da segunda barricada. Esperou ali por vários instantes, examinando o cenário.
A maior parte das tropas estava reunida lá embaixo, na ampla vala entre as barricadas serpenteando ao sul e ao comando do starkkapitän ca’Damont, e pouco a frente estava o comandante ca’Talin, com sua tropa se estendendo ao norte por cerca de oitocentos metros até a Avi a’Nostrosei. Após a elevação da primeira barricada em frente a Jan, havia cerca de quatrocentos metros de terreno plano entre as barricadas e o rio Infante — o campo tinha sido revirado pelos cavalos e pelas botas dos soldados e esburacado com as crateras que o bombardeio de areia negra tinham aberto. Do outro lado do Infante, Jan pôde ver o exército dos tehuantinos. Os offiziers inimigos já estavam organizando suas formações, e o hïrzg conseguiu ver pequenas bandeiras fincadas aqui e ali ao longo da margem oposta do rio — ele presumiu que os batedores tinham marcado as partes rasas onde o rio podia ser cruzado.
Havia muitas bandeiras. O Infante não era fundo nem largo como o A’Sele; havia muitos lugares por onde os tehuantinos podiam cruzá-lo. Na noite anterior, Jan pedira para um dos gardai locais mapear os pontos por onde a infantaria poderia cruzar, e posicionou arqueiros diante desses possíveis trechos.
Faça o inimigo pagar por cruzar o rio... Ele podia não conseguir detê-los, mas podia cobrar um preço caro.
Alguns arqueiros ocidentais dispararam flechas inúteis na direção do hïrzg; eles erraram o alvo, e Jan fez um gesto obsceno para eles.
— Vamos! — berrou o hïrzg, fazendo seu peito arder com o esforço. — Vamos; estamos esperando por vocês, bastardos! Estamos prontos para transformar suas esposas em viúvas e seus filhos em órfãos!
Ele disse em voz alta, para que os gardai na trincheira entre as barricadas ouvissem; os homens ergueram seus olhares para ele e vibraram. Jan duvidava que algum ocidental tivesse realmente entendido suas palavras, ainda que tivessem entendido o tom. Ele queria se debruçar por causa da dor lancinante em seu peito quando berrou a provocação, mas, em vez disso, ele sorriu e gesticulou novamente para os tehuantinos. A algumas centenas de passos de distância, Jan viu seus estandartes, prestou continência para os homens e seguiu até onde os offiziers estavam reunidos.
— Outro nascer do sol — falou o hïrzg. — Isso é sempre um bom sinal. O sol está nas nossas costas e nos olhos dos inimigos. Vamos fazer com que esse seja o último dia que eles veem.
Allesandra desfilou sobre o cavalo de guerra diante das pessoas reunidas no pátio do palácio. Sob a luz da falsa alvorada, sua armadura brilhava, o sangue do dia anterior tinha sido lavado e o aço lustrado. Brie, Talbot e o maldito e tolo Sergei estavam atrás dela em seus próprios cavalos, observando enquanto ela percorria a fileira. A kraljica colocou sua fúria e frustração em suas palavras.
— Nós não temos escolha. É o meu dever, é o nosso dever, proteger esta cidade, e eu não permitirei que nós traiamos essa confiança. Neste momento, os ocidentais controlam a Margem Sul. Eles andam pelas ruas que deveriam ser consideradas seguras para nossos cidadãos, saqueiam nossas casas e templos, matam e estupram quem quer que tenha ficado para trás. As forças do hïrzg e nossa própria Garde Civile estão enfrentando o exército inimigo principal na Margem Norte; eles nos encarregaram de proteger a retaguarda e manter a cidade em segurança para quando voltarem. Nós temos que controlar a Margem Sul. Eu controlarei a Margem Sul.
Allesandra fez uma pausa enquanto outra bola de fogo cruzou zunindo o céu que se iluminava — todos assistiram a isso. O cavalo tremeu sob ela, que acariciou seu pescoço musculoso para acalmá-lo enquanto a bola de fogo caía no solo atrás deles, do outro lado da Avi.
— Viram só? Os tehuantinos não querem nada além da destruição dos Domínios e de Nessântico. Fiquem aqui, e todos vocês morrerão. E, se é para morrer, eu prefiro que seja com a espada na mão e o inimigo sangrando aos meus pés.
O grito ecoou alto, mas irregular. Mesmo aqueles que gritaram pareciam hesitantes. Os chispeiros, de um lado, se remexeram inquietos; Allesandra notou que Brie os encarava.
— Nós marchamos hoje para a glória — disse a kraljica, sacando a espada da bainha e a erguendo. — Nós marchamos pelos Domínios. Marchamos por Nessântico. E eu marcharei com vocês, na vanguarda.
Uma carruagem sem teto, conduzida por ténis, se aproximou chacoalhando pelas ruas através da fumaça, dando a volta devagar pelos destroços no caminho; Allesandra viu o símbolo do globo partido de Cénzi nas portas do veículo.
— Hoje, o próprio archigos marchará conosco — acrescentou ela. — Preparem-se. Começaremos o ataque em duas marcas da ampulheta e mostraremos para esses ocidentais como os Domínios reagem contra quem os ameaça.
Eles vibraram novamente porque — Allesandra sabia — era o que se esperava, porque queriam acreditar na kraljica, mesmo que o medo gelasse seus estômagos. Ela cavalgou em direção à carruagem do archigos com Brie, Talbot e Sergei a seguindo. A cabeça calva do archigos Karrol espiou sobre a lateral do veículo; ele não parecia estar contente de estar ali. Dois rostos pálidos e mais jovens podiam ser vistos atrás do homem.
— Archigos, estou feliz em vê-lo — disse a kraljica. — Por mais atrasado que esteja.
— Não vamos fingir que a senhora ou o hïrzg tenham me dado alguma escolha, kraljica — respondeu Karrol. — Mas eu estou aqui.
— E os ténis-guerreiros?
— Mais quatro chegaram hoje do leste. Eu enviei dois para o hïrzg; os outros dois estão comigo. Eles sabem das consequências se deixarem de servir.
O archigos gesticulou para os outros dois ténis na carruagem.
— Ótimo — respondeu Allesandra. — Espero que estejam bem descansados. Precisamos deles agora. Talbot, por gentileza, cuide dos ténis-guerreiros e dos arqueiros. Brie, você fica com os chispeiros.
Ela encarou Sergei, ainda com raiva pela insolência do homem em descumprir suas ordens.
— Sergei, você fica comigo e o archigos.
Eles se reuniram rapidamente. Embora Allesandra ainda estivesse furiosa com Sergei por ter destruído a ponte leste, ela tinha que admitir que um ataque em duas frentes, nas duas pontas, teria dividido e enfraquecido muito suas forças. Mesmo assim, o problema agora estava no fato de todos eles precisarem cruzar a Pontica a’Brezi Veste. E no fato de que os tehuantinos tinham mantido a ponte de pé, e não a destruíram do lado deles, Allesandra sabia que os inimigos queriam que a ponte permanecesse intacta tanto quanto ela — para que pudessem se encontrar com o restante de seu exército na Margem Norte. A insistência de Sergei para que eles recuassem para a Ilha e a Margem Norte e destruíssem as pontes que cruzavam o A’Sele ao sul — a fim de isolar esta tropa de tehuantinos — fazia sentido taticamente.
Allesandra sabia disso intelectualmente, mas emocionalmente...
Esta era a sua cidade, a sede dos Domínios. A kraljica não permitiria que Nessântico fosse tomada dela. Allesandra teve que reconstruir a cidade uma vez; não queria ter que fazer isso novamente. Preferia cair aqui e deixar que seu sucessor — quem quer que fosse — o fizesse.
O ataque começou com uma saraivada de feitiços lançados por Talbot e alguns numetodos, bem como pelos novos ténis-guerreiros e o archigos. Quase todos os feitiços foram neutralizados ou desviados pelos feiticeiros tehuantinos, mas os que passaram fizeram os inimigos se afastarem correndo da Bastida e da área imediatamente a volta da outra extremidade da ponte, na Margem Sul.
— Agora! — berrou Allesandra.
Ela liderou o ataque da Garde Kralji pela ponte, enquanto Talbot direcionava os arqueiros para darem uma cobertura com suas flechas à frente deles. Sergei estava atrás da kraljica, e a carruagem do archigos veio a seguir, se chacoalhando sobre as tábuas. Os tehuantinos dispararam sua própria chuva de flechas na direção deles, mas o archigos entoou e gesticulou em seu assento, e as flechas foram varridas por um vento mágico, caindo inofensivamente no A’Sele.
Em poucos instantes, eles cruzaram o rio. Os guerreiros avançaram berrando contra eles.
— Para a Bastida! — berrou Allesandra para os gardai.
Eles avançaram e passaram a cavalo pelos portões abertos da prisão, sem se importar em deixar a Avi cheia de tehuantinos para atrás, pois estavam cercados.
Atrás da Garde Kralji, Brie conduziu os chispeiros pela Pontica. Ao pé da ponte, eles entraram em formação e suas armas bradaram o chamado ritmado da morte. Os guerreiros na Avi começaram a cair, e nenhum deles conseguiu alcançar os chispeiros para detê-los. Dos portões da Bastida, Allesandra viu Brie, desmontada, andando atrás dos chispeiros, estimulando-os a ficarem, a manterem a formação, a andarem mais rápido. Sua voz forte dava os comandos e o rugido irregular das chispeiras ecoava pela Avi. Os tehuantinos recuaram. Allesandra e os gardai não estavam mais cercados por todos os lados.
— Sigam-me! — berrou a kraljica, liderando a Garde Kralji em um ataque furioso, saindo dos portões da Bastida.
A noite tinha sido terrível, e a aurora simplesmente brutal. Quando o sol surgiu sobre as árvores e os telhados de Nessântico, os ocidentais avançaram: entoando rugidos e gritos, brandindo suas espadas e lanças e lançando saraivadas de areia negra e feitiços violentos e estridentes. Eles se lançaram nas águas do Infante. A água lançou espirros altos e brancos em torno dos tehuantinos, enquanto as flechas da Garde Civile choviam sobre eles. A princípio, o ataque resultou em um massacre, e os gardai gritaram de alegria e alívio, mas havia mais e mais inimigos, e eles simplesmente não paravam de vir, e agora os nahualli lançavam encantamentos que transformavam as flechas em cinzas no ar.
Os ocidentais cruzaram o Infante, e mais guerreiros chegavam a cada instante. Os ténis-guerreiros e os numetodos lançaram fogo sobre eles; isso não deteve o avanço. Punhados e mais punhados de guerreiros tehuantinos caíam mortos no chão, e, mesmo assim, eles avançavam, implacáveis.
— Recuar! — os offiziers e as cornetas chamaram.
A Garde Civile saiu do meio da muralha dupla de barragens e recuou para o cume da segunda barricada. Enquanto recuavam, os gardai derramavam barris de óleo trazidos da cidade, encharcando o solo e deixando poças escuras para trás. Quando os tehuantinos chegaram ao cume da primeira barricada, eles foram recebidos novamente por disparos de flechas. Corpos rolaram para a trincheira oleosa diante deles, mas agora mais companheiros, ilesos, vieram com eles.
Os feitiços preparados martelavam na cabeça de Varina e de todos os numetodos nas barricadas.
— Esperem! — Varina ouviu a ordem de ca’Damont para os ténis-guerreiros e numetodos. — Não ainda! Esperem!
Os tehuantinos chegaram à trincheira e começaram a subir a segunda barragem, onde as tropas da Garde Civile aguardavam.
— Agora! — berrou ca’Damont.
Varina gesticulou e pronunciou o gatilho do feitiço, assim como dois numetodos a seu lado, Leovic e Niels, e os ténis-guerreiros mais adiante na linha de frente. Suas mãos lançaram arcos de fogo. O solo encharcado de óleo entre as barricadas se acendeu, criando um poço de chamas flamejantes e sibilantes. Os que caíram nesse inferno gritaram — Varina viu os guerreiros se contorcerem, em chamas. O calor lambeu sua pele quando soprou o terrível fedor de carne queimada. Abaixo dela, um guerreiro saiu cambaleando às chamas, com o corpo horrivelmente carbonizado e chamas ainda lambendo sua armadura e roupa. Varina viu seu rosto, terrivelmente jovem, sua boca aberta gritando em sua própria língua. Ela não sabia se ele berrava por ajuda, por seu deus ou simplesmente de dor. Varina podia imaginá-lo em casa, abraçando sua esposa ou segurando os filhos, rindo de alguma piada que um deles tivesse contado. Ela mal notou a espada que o guerreiro segurava ou o fato de que ele erguia a arma sobre ela.
Flechas brotaram à frente do homem, e ele desmoronou, calando-se para sempre. Varina sentiu ânsia e vomitou no chão, caída de joelhos ao lado do guerreiro morto. Enquanto cuspia sua bile, ela ficou curiosa: que estranho, eu vi centenas de pessoas morrerem nos últimos dias, e este rosto foi o que mais me abalou...
— Você tem que vir conosco, a’morce!
Leovic e Niels cercaram Varina, a levantaram e quase a arrastaram encosta abaixo, até o lado oposto. Os tehuantinos recuaram momentaneamente enquanto o fogo queimava na trincheira, mas as chamas morreram rapidamente à medida que o óleo era consumido. Eles avançaram novamente, transbordando sobre a barricada pelo outro lado. Os gardai da Garde Civile à espera sacaram suas espadas, e Varina, juntamente com os outros numetodos e os ténis-guerreiros, recuaram enquanto o combate corpo a corpo irrompia sobre o cume. Varina ouviu as cornetas berrando e viu as bandeiras tremulando, mas elas pouco significavam alguma coisa para ela agora que Leovic e Niels continuavam a ajudá-la a recuar, um em cada braço. Varina simplesmente caminhou em meio ao fluxo de pessoas em uniformes azuis e dourados: de volta à cidade, sempre de volta. A retirada foi lenta a princípio, depois ganhou ímpeto e, subitamente, eles já não estavam andando, mas correndo, dando as costas aos tehuantinos ao fugir. Ela ouviu a batida dos cascos dos cavalos dos guerreiros, viu pessoas caírem a sua volta, atingidas por flechas ou abatidas por feitiços.
Leovic e Niels quase que carregavam Varina enquanto corriam. Ela não ousou olhar para trás. Não queria fazer isso.
— Andem, andem, andem! — berrou Brie para os chispeiros ao ver a kraljica e Sergei em seus cavalos, o archigos em sua carruagem, e a Garde Kralji saírem em debandada do breve abrigo da Bastida. — Vamos! Mantenham o ritmo!
Eles transformaram a Avi em um abatedouro, na cabeça da ponte. Os chispeiros correram sobre os paralelepípedos escorregadios de sangue, e sobre corpos que ainda gemiam e se contorciam. Os rostos dos chispeiros alternavam expressões de horror e alegria diante da carnificina que tinham causado, mas Brie não lhes deu tempo para refletir ou comemorar. A hïrzgin fez com que eles avançassem em direção aos portões da Bastida.
Em campo aberto, os chispeiros ficariam vulneráveis; eles atuavam melhor defendendo um espaço confinado. E se as fileiras fossem rompidas, os chispeiros seriam rapidamente sobrepujados. Brie os orientou aos berros, não permitindo que se separassem.
O pessoal de Allesandra avançou contra um aglomerado de guerreiros em uma das extremidades das muralhas da Bastida. Mais ocidentais saíram correndo das ruas laterais, liderados por um guerreiro montado, com o rosto pintado de vermelho e o crânio totalmente raspado. Brie viu um feiticeiro com ele: um velho cujo rosto fora devastado por alguma doença, com o olho esquerdo branco e cego. No momento em que a hïrzgin alinhou os chispeiros perto do portão da Bastida para lidar com o ataque renovado, ela viu o archigos entoando e movendo as mãos encarquilhadas moldando um novo feitiço, fazendo seu robe verde e dourado balançar. O feiticeiro ocidental ergueu o cajado de madeira e berrou uma única palavra em sua língua estranha.
O feitiço dele foi lançado imediatamente.
O archigos e a carruagem foram envolvidos em chamas. O téni-condutor caiu do assento, berrando e batendo no robe em chamas com as mãos. Ela ouviu o velho guinchar de surpresa e agonia. Karrol empurrou a porta e caiu da carruagem para a rua, seu robe parecia pingar chama líquida. Ele rolou no pavimento, emitindo um longo e tênue lamento que parou subitamente, mas Brie já não conseguia ver o archigos, não em meio à confusão da batalha. Enquanto berrava para os chispeiros, para tentar alinhá-los corretamente, a hïrzgin vislumbrou o guerreiro de crânio vermelho surgir com uma lança na mão, incitando o cavalo em um galope em direção à Allesandra. A kraljica ergueu a espada, mas a estocada de lança do guerreiro pintado de vermelho foi mais rápida; horrorizada, Brie viu a ponta da arma entrar com força e atravessar a armadura de Allesandra. O guerreiro pulou do cavalo, ainda segurando a lança que empalou a kraljica, jogando-a no chão. Berrando desesperadamente para os chispeiros, a hïrzgin viu Sergei pular do cavalo como se fosse um jovem.
Eles, também, desapareceram na luta.
Os feiticeiros de ambos os lados lançavam feitiços, e ainda mais guerreiros chegavam e ocupavam as ruas. Brie podia sentir o frio do Ilmodo em volta deles.
— Fogo! — ela berrou para os chispeiros, que olhavam atônitos para a confusão. — Fogo!
Mas então tudo mudou.
Nico tinha sido abandonado. Destituído. Até mesmo Rochelle o tinha deixado em algum momento durante a noite. Ele pôde sentir sua partida, mesmo que não tivesse respondido para ela.
Nico estava orando há um dia inteiro agora, sem comer, beber ou dormir, e Cénzi permanecera em silêncio. Ou talvez Ele estivesse dizendo muito. Nico foi atormentado por visões, mas não sabia dizer se elas emanavam de Cénzi, dos sons que ele ouvia lá fora ou da própria imaginação febril. Ele estava tremendo de frio, como se estivesse envolvido por um inverno impossível, tão frio quanto o próprio Ilmodo. Sobre seus olhos fechados, Nico teve a impressão de ter visto a batalha no oeste quando o sol o tocou através da janela do casebre no Velho Distrito. Ele viu as tropas fugindo dos ocidentais, viu os chevarittai montados tentando em vão proteger a retaguarda daqueles que recuavam dos supremos guerreiros montados, com seus rostos pintados e suas armaduras estranhas. Os homens em preto e prata, os homens em azul e dourado estavam fracassando; muitos deles estavam sendo abatidos por flechas ou pelos guerreiros a cavalo.
Nico testemunhou isso ao ser levado para o campo de batalha pelos braços gelados das suas preces, olhando para a cena do alto. Ele era um pássaro, um falcão, sendo levado pelo vento frio. Ele viu o estandarte do comandante ca’Talin e, mais ao norte, os estandartes do starkkapitän e do hïrzg. Todos estavam recuando para a cidade, com o homem mais à frente deles já nas ruas perto da Avi a’Certendi, a parte mais a oeste da imensa cidade.
Nico pairava sobre tudo isso, observando...
... então ele a viu: Varina. Ela estava exausta e sendo puxada por outros dois hereges numetodos; o trio estava perigosamente separado da massa principal da Garde Civile. Os guerreiros montados se aproximavam, a apenas alguns passos de distância, e a sinistra infantaria dos tehuantinos não vinha muito atrás. Eles seriam atropelados e mortos. Em breve.
Por que o Senhor me mostra isso, Cénzi? Por que me mostra a herege com tanta clareza?
Enquanto observava Varina, Nico sentiu o abraço frio envolver seu corpo mais intensamente. Ele estava caindo, rolando na direção de Varina no momento em que viu os guerreiros montados nos cavalos de guerra avançarem contra ela. Seus companheiros se viraram para lançar feitiços inúteis contra os agressores, que cercaram Varina.
Agora Nico estava ali, no solo e não muito longe de Varina. Ele pôde ouvi-la conter um grito e chamar seu nome — “Nico?” —, mas havia tanta energia ali que ele mal podia ouvir. O Segundo Mundo pareceu se abrir no céu e jorrar um fogo frio, o poder gelado do Ilmodo. Nico podia sentir todos puxando a energia sobre eles: os ténis-guerreiros, os hereges, os feiticeiros dos tehuantinos, até mesmo quem estava do outro lado do A’Sele, na cidade. Ele podia sentir o poder guardado nos cajados mágicos dos tehuantinos, nas mentes dos numetodos.
Todos canalizavam o Ilmodo do Segundo Mundo, onde Cénzi ainda vivia.
Nico se sentiu vasto. Ele podia esticar os dedos e tocar os fios de todas as conexões com o Ilmodo; podia puxá-los e tomá-los para si...
E foi o que Nico fez.
Não foi um movimento consciente. Ele agiu como se alguém tivesse o controle de seu corpo, sem escolha. Ele ouviu a si mesmo dizer palavras que não compreendia, sentiu as mãos se mexerem em um gestual que ele nunca tinha usado antes. Cénzi? Se era Cénzi, não houve resposta.
Nico gritou as palavras finais, executando o gestual final. Ele arrancou as cordas de poder que amarravam os ocidentais ao Segundo Mundo, mas manteve as cordas dos ténis e até mesmo a dos numetodos. Nico estava parado no campo de batalha com os braços abertos, sendo tomado pelo Segundo Mundo como nunca tinha acontecido antes.
Ele nunca tinha se sentido tão cheio do poder do Ilmodo. O poder o preencheu, queimando e perigoso demais para ser manipulado por mais que um instante. Nico absorveu tudo, inspirando o dom de Cénzi e o exalando novamente, soltando um grito.
O que eu faço com isso? Ele perguntou para Cénzi, e ouviu a resposta:
Faça o que deve fazer...
A onda de energia saiu pulsando de Nico, irradiando para o norte e o oeste ao longo da linha de batalha. Onde a onda tocou, os tehuantinos foram jogados para trás, sendo atirados violentamente sobre suas próprias fileiras. Eles foram derrubados como peças de um jogo varridas por uma mão furiosa.
Os guerreiros montados prestes a matar Varina e seus companheiros foram levados pela tempestade, tanto as montarias quanto os cavaleiros foram lançados longe.
— Vão! — disse Nico para eles. — Este é o Dom de Cénzi!
Sua voz ecoava como a de Cénzi; ela rugia, um trovão que pôde ser ouvido por todas as fileiras.
— Vão!
Então, acabou. Os fios de poder se romperam; o Segundo Mundo se fechou, soltando um trovão alto. Nico foi tomado por uma exaustão terrível, tão avassaladora que não conseguiu ficar em pé. Suas pernas cederam, e ele caiu na escuridão gelada.
— Deixem que eles cruzem o rio — disse Tototl. — Assim que eles estiverem na alameda, serão alvos fáceis, vamos atacá-los por todos os lados ao mesmo tempo.
A tática tinha funcionado a princípio. Os orientais usaram seus feitiços assim que o sol nasceu; Niente mandou os nahualli deixarem seus inimigos gastarem energia, mesmo que eles pudessem ter anulado a magia inimiga facilmente com os feitiços em seus cajados mágicos. Os guerreiros recuaram, abandonando a catapulta. Niente esperou no cavalo ao lado de Tototl, ao fim da primeira grande rua transversal da grande alameda. Os arqueiros disparavam saraivadas no céu; um velho nahualli oriental andando sobre uma carruagem mostrou sua força e tornou as flechas inofensivas ao desviá-las. A tecuhtli dos orientais — a mulher vestida de aço — escoltava os guerreiros de um lado ao outro do rio.
Eles ouviram o avanço dos guerreiros escondidos próximo ao rio e no pátio, onde o crânio do monstro tinha sido posto, mas Tototl ergueu a mão quando os guerreiros atrás dele seguiram em frente, ansiosos para se juntar à batalha.
— Esperem — ele ordenou. — Ainda não.
Através do vão entre os prédios, Niente viu os orientais avançarem pela rua, e a mulher, estranhamente, levou seus homens para o interior do pátio de onde os guerreiros tinham saído. Ele se perguntou o porquê disso, então veio a resposta: o terrível barulho estridente das armas de areia negra, que, estranhamente, soavam como as garras de águia que eles usavam no sacrifício de prisioneiros. Eles ouviram os gritos a seguir e viram os guerreiros caírem como milho sendo colhido. O tecuhtli oriental berrou, e os guerreiros inimigos voltaram à alameda em debandada, repelindo os guerreiros remanescentes ali.
— Agora! — gritou Tototl.
Eles avançaram contra a confusão como uma onda. Tototl avançou diretamente contra a mulher, arrancando sua lança de cavalaria da bainha na sela; sua espada permaneceu embainhada. Niente tentou segui-lo. O feiticeiro oriental na carruagem, vestido de verde e dourado, e mais velho que Niente, estava entoando um cântico e gesticulando de um jeito conhecido. Niente sentiu o poder envolvendo o homem crescer, e ergueu o cajado mágico, gritando o gatilho do feitiço. O X’in Ka disparou uma rajada solar de seu cajado, envolvendo o feiticeiro em chamas azuis. O homem gritou, e a rajada encobriu a carruagem e o passageiro.
Tão lenta. A magia oriental era tão lenta.
Niente viu a lança de Tototl empalar a tecuhtli oriental como um pedaço de carne. O guerreiro supremo pulou do cavalo ainda segurando a lança nas mãos e arrancando a pobre mulher do cavalo para os paralelepípedos. Tototl berrou em triunfo. Niente ouviu o impacto do corpo da mulher ao cair no chão.
Ele sentiu que os feiticeiros inimigos preparavam feitiços, ouviu a mulher no comando das terríveis garras de águia berrar ordens para seus homens, com uma longa trança marrom balançando sob seu elmo. Niente ergueu seu cajado mágico, pronto para abater a mulher de trança — para ele, ela era a mais perigosa dos inimigos.
Ele gritou o gatilho do feitiço, mas nesse mesmo instante, uma força terrível o puxou, puxou todos os nahualli. O ar gelado do X’in Ka girou em volta e por cima de Niente, varrendo o feitiço — e ele soube que tinha visto isso, embora não tivesse acreditado que fosse possível.
O homem da bruma, o homem escondido — ele tinha tomado uma decisão. Tinha agido.
O Longo Caminho estava aberto.
Niente engasgou. Esta era uma força bruta que ele nunca tinha sentido antes.
Um vórtice invisível pairou sobre eles, como a boca faminta de um tornado implacável, e sugou a energia do cajado de Niente, de todos os cajados mágicos, arrancando os poderes estocados neles e deixando os cajados vazios, como se todos os feitiços preparados para serem colocados dentro dos objetos na noite anterior com tanto trabalho tivessem sido lançados. Não foram apenas os nahualli que sentiram isso: ele notou que todos pararam e olharam para o céu, à procura de alguma coisa que eles não podiam ver. Tototl tinha arrancado a lança do corpo da tecuhtli; ele se aproximou dela, posicionando a lança para golpeá-la novamente, e também hesitou.
Então o vórtice desapareceu, sumiu, e Niente agora segurava apenas um pedaço de madeira vazio. Ele viu os outros nahualli se entreolharem, surpresos, ou soltarem seus cajados, assustados.
— Niente! — gritou Tototl sobre os paralelepípedos, com a lança ainda erguida.
Niente mostrou o cajado para ele e disse, surpreso:
— Eu não tenho nada. A magia foi retirada de todos os nahualli. Tototl, eu vi isso... eu lhe disse...
— Você ainda está vivo — resmungou o guerreiro supremo. — Nós ficaremos. Nós lutaremos!
Ele ergueu a lança novamente. Niente, então, viu a estranha cena: um velho com um nariz de prata avançando contra Tototl. O homem não brandia uma espada, mas uma bengala, enquanto berrava para o guerreiro supremo, e no entanto...
Niente sentiu a ameaça do pedaço de pau. Tototl também viu o homem, mas não fez nada, apenas sorriu. Niente gritou quando o homem apontou a bengala na direção de Tototl e saltou entre os dois, tentando afastar a bengala com seu cajado, mas ele não era forte o bastante. E a bengala tocou o corpo do próprio Niente.
O impacto pareceu com o punho de Axat. Niente pensou ter visto o rosto Dela sobre ele, acenando com a cabeça enquanto Niente caía. Ele viu um pássaro entalhado voando na frente de Axat.
Uma última dádiva...
Sergei viu a estocada cruel da lança do guerreiro trespassar a armadura de Allesandra. Viu a boca da kraljica se abrir em silêncio, surpresa e abalada, viu o guerreiro usar a haste da lança para arrancar a kraljica do cavalo. O homem se aproximou dela e arrancou a lança de seu corpo, seu sangue jorrava enquanto ele se preparava para estocar novamente a figura caída. O guerreiro berrou alguma coisa para um antigo feiticeiro ocidental perto dele.
Sergei se deteve. Alguma coisa parecia estranha: um vento frio furioso varreu a Avi, e a fúria dos feitiços de todos os lados pareceu ter se esvaído.
O embaixador se remexeu. Ele mancou até Allesandra, com a bengala em uma mão e o florete na outra. Mais um ocidental se aproximou a sua esquerda, e Sergei estocou por baixo do golpe cortante do homem, a lâmina fina do florete encontrou uma brecha entre as ripas de bambu da armadura e se enfiou no abdômen. O ocidental dobrou o corpo e caiu, e o movimento arrancou a espada da mão de Sergei. Ele deixou a arma ali; não tinha força para segurá-la.
— Não! — berrou o embaixador para o guerreiro parado diante da kraljica.
Sergei brandiu a bengala para o homem, que olhou para ele e parecia quase rir.
Sergei rezou para que se lembrasse da palavra que Varina lhe tinha ensinado, para que a pronunciasse corretamente, para que o feitiço que ela disse ter colocado dentro da bengala realmente funcionasse.
— Scaoil! — berrou o embaixador, apontando a ponta de latão da bengala na direção do guerreiro.
Mas no mesmo instante, o antigo feiticeiro se moveu com uma velocidade impressionante para sua idade e se colocou entre Sergei e o guerreiro, brandindo seu cajado mágico. A bengala acertou o feiticeiro. Assim que a bengala o tocou, sua ponta de latão pareceu explodir. Um som alto e percussivo quase ensurdeceu Sergei. A rajada fez lascas da bengala saírem voando, lançando o velho feiticeiro para trás juntamente com um jato de sangue e tripas; moribundo, se é que já não estava morto. Um pássaro vermelho entalhado saiu voando da bolsa rasgada do feiticeiro, posando novamente no peito do velho. O feiticeiro segurou o pássaro, pareceu sussurrar para ele e, em seguida, sua cabeça pendeu para o lado.
O guerreiro pintado de vermelho deixou a lança cair de sua mão olhando fixamente para o corpo do feiticeiro, caído na Avi perto de Allesandra, ferida.
O tempo parou para Sergei. O guerreiro estava imóvel, com a boca contraída no rosto pela fúria da batalha. O embaixador pensou que o homem levaria a mão ao lado de seu corpo e sacaria a espada, que abateria Sergei no instante seguinte. Não havia gardai para salvá-lo, nenhum chispeiro perto o suficiente.
Ele se perguntou qual seria a sensação de morrer.
Mas o guerreiro olhou fixamente para o corpo do feiticeiro, balançando a cabeça. Ele berrou alguma coisa que Sergei não compreendeu: uma prece, uma maldição, uma pergunta. O homem deu um passo para trás e se afastou do embaixador, depois deu mais um e mais outro. Então se virou completamente e rugiu uma ordem que ecoou na rua. Os guerreiros na Avi começaram a ceder terreno, devagar a princípio, depois mais rapidamente. Sergei viu Brie e Talbot persegui-los com os chispeiros, e chamou os dois.
— Esperem! A kraljica...
Ele se ajoelhou ao lado de Allesandra.
— Sergei — ela disse. — Dói...
— Eu sei — respondeu o embaixador.
Alguns gardai se reuniram a sua volta — sangrando, exauridos e aparentemente atordoados. Todos olharam espantados para a kraljica e para o corpo destruído do feiticeiro.
— Ajudem-me — disse Sergei para os homens. — Ajudem-me a levá-la de volta para o palácio...
Jan, com os chevarittai e alguns ténis-guerreiros lutavam na retaguarda para proteger a retirada, eles enfrentaram os guerreiros montados e mantiveram a infantaria ocidental longe dos retardatários. Como comandante do exército firenzciano, Jan raramente tinha precisado coordenar uma retirada em grande escala, mas ele tinha estado do lado vencedor várias vezes, e sabia que a retirada, em geral, era o momento mais perigoso para as tropas, pois a força avançando poderia eliminar os retardatários, lançar flechas e feitiços para dizimar ou até mesmo obliterar as companhias da retaguarda. Frequentemente, o exército em progressão podia sobrepujar o inimigo exausto e desmoralizado e causar baixas terríveis.
A retirada talvez permitisse que o comandante lutasse outro dia, mas também podia levar a uma derrota completa e infame. Eles nem ao menos estavam recuando para fortificações, mas para uma cidade aberta e desprotegida.
Os feiticeiros ocidentais lançaram feitiços contra eles que os ténis-guerreiros tiveram pouco tempo e energia para desviar. Os arqueiros cobriram o céu com suas flechas. As tropas montadas — felizmente poucas — avançaram as suas costas, abatendo os gardai correndo. A vanguarda do exército inimigo avançou com tudo. Jan vislumbrou, entre a fumaça e a confusão do campo de batalha, os estandartes do comandante tehuantino: a serpente alada que voava em um evoaçante pano de tom verde intenso. A maior parte dos feitiços parecia vir do grupo à volta daquele estandarte.
Jan estava exausto e sentindo uma dor terrível. Seus dedos queriam libertar o fardo do aço firenzciano pesado, o cabo da espada já escorregadio com sangue. O hïrzg oscilou na sela, quase caindo do cavalo quando um relâmpago mágico surgiu, sibilante, explodindo diretamente à frente, fazendo seu cavalo de guerra empinar. Ele acalmou o animal.
— Hïrzg!
Jan ouviu alguém chamar, e um chevaritt à direita apontou para um quarteto de guerreiros montados prestes a atropelar um grupo de gardai.
Ele suspirou. Obrigou seus dedos a segurarem firme a espada. Jan ignorou a dor lancinante em seu peito. Ele esporeou o cavalo, galopando em direção aos guerreiros.
Você não vai sobreviver a isso. Esta será sua última batalha.
O ideia lhe ocorreu como uma certeza. Uma profecia. Ele estremeceu ao soltar um grito de encorajamento para os chevarittai, ao mesmo tempo em que eles cavalgavam em direção aos guerreiros.
Então...
Uma onda de frio intenso tomou conta dele, como se o inverno tivesse chegado mais cedo; quando a sensação se esvaiu, Jan percebeu, mesmo com a fúria de seu ataque, que a chuva constante de feitiços das forças tehuantinas tinha parado. Os guerreiros à frente também o notaram. Eles puxaram as rédeas de seus cavalos e voltaram seus olhares para suas próprias fileiras. O hïrzg ficou preocupado que os feiticeiros estivessem preparando outro feitiço em massa, como a tempestade de guerra. Mas, em vez disso, uma onda visível varreu a terra de leste a oeste, uma onda que fez Jan puxar as rédeas, espantando. Todos podiam vê-la: no ar fugidio, na poeira erguida pela onda ao passar. Onde tocou o avanço da linha de frente dos ocidentais, os guerreiros foram jogados e lançados para trás, sem tocar nos homens no próprio hïrzg. Jan ouviu gritos e gemidos, depois uma única voz, mais alta.
— Vão! Este é o Dom de Cénzi! Andem!
O grito pareceu vir de todos os lugares e de lugar nenhum.
Jan sentiu subitamente uma tênue esperança. A bola de fogo de um téni-guerreiro saiu voando sobre os tehuantinos. Não houve reação ao feitiço: nenhum desvio, nenhuma implosão impotente acima deles. A bola de fogo anunciou a morte com um som estridente, penetrando nas fileiras ocidentais e explodindo, intacta. Outra veio atrás desta, e mais outra — todas penetraram. A esperança dentro do hïrzg aumentou, seus ferimentos já não importavam.
— Virem-se! — berrou ele para as tropas, para os offiziers. — Virem-se! Sigam-me!
Jan ergueu sua espada quando os chevarittai atenderam ao chamado. Ele ouviu a ordem ecoar entre as fileiras, e a retirada parou, virando-se lentamente. O hïrzg já estava cavalgando rapidamente em direção aos tehuantinos. Por todo o campo de batalha, até o ponto ao sul onde sua visão alcançara, a retirada se voltava para ele. As cores preto e prata começaram a fluir em direção ao oeste.
Com os chevarittai em volta de si, Jan penetrou na linha de frente atordoada dos ocidentais e seguiu em direção ao estandarte da cobra alada. Os primeiros guerreiros por quem ele passou estavam espalhados no chão; se estavam mortos ou inconscientes devido ao enorme feitiço desconhecido, Jan não sabia. Então o hïrzg encontrou resistência e avançou pelo mar de lâminas reluzentes, esquecendo suas dores em meio à fúria da batalha. Os chevarittai gritavam ao mesmo tempo que derrubavam os ocidentais e seguiam em direção ao comandante inimigo, todos avançando. Eles ouviram o rugido dos gardai correndo atrás de si.
Não houve resposta da parte dos feiticeiros tehuantinos. O que quer que tenha acontecido, roubou a magia deles. Mas os guerreiros tehuantinos — ao menos aqueles distantes da onda inicial não tinham sido afetados. Eles lutaram tão ferozmente como nunca, e agora que a euforia inicial tinha passado, a exaustão e a dor se fizeram sentir novamente. O ataque diminuiu, embora os estandartes de serpente alada agora estivessem dolorosamente próximos. Cada golpe de espada na massa de guerreiros disparava um choque que subia pelo braço de Jan. Suas pernas doíam, e ele mal conseguia se manter montado no cavalo de guerra. Suas costelas o apunhalavam como adagas de marfim a cada fôlego.
Ele se perguntou onde Brie estaria. Perguntou-se quem contaria a seus filhos e o que eles diriam.
Você tem ao menos que fazer essa história valer a pena ser contada.
Gemendo, Jan ergueu a espada para proteger a lateral do corpo de uma estocada, e a lâmina desviou o ataque, cortando o pescoço do guerreiro. O hïrzg viu o homem escancarar a boca e arregalar os olhos. Algo golpeou sua coxa na esquerda, ele se virou para enfrentar o guerreiro com a lança, cuja ponta estava cravada na sua perna logo acima da couraça. Jan puxou as rédeas com força para a esquerda e o cavalo de guerra ergueu os cascos, que acertaram e pisotearam o agressor enquanto a ponta da lança era arrancada de sua coxa. Ele sentiu seu sangue jorrar, molhando o acolchoamento sob a couraça.
Jan estava mais perto. Ele podia ouvir o estandarte da cobra tremulando.
— A mim! — gritou o hïrzg para os chevarittai, mas não ouviu resposta.
Jan não sabia onde eles estavam, não tinha tempo de procurá-los. Carrancudo, ele avançou, atropelando os guerreiros à frente com seu cavalo. Jan alcançou uma pequena clareira, viu o líder tehuantino, com o crânio raspado decorado com uma águia vermelha cujas asas se abriam em suas bochechas. O homem era mais velho que Jan, volumoso na armadura ocidental e montado em seu próprio cavalo, um magnífico animal malhado. Perto do líder, havia um feiticeiro ocidental, jovem, com o cajado mágico na mão e um bracelete dourado no braço.
Jan reuniu todas as forças que ainda tinha, ergueu a espada e gritou em desafio. Ele esporeou o cavalo de guerra para seguir adiante.
Do esconderijo atrás das tapeçarias na parede dos fundos, Rochelle viu a kraljica ser carregada para o salão. A armadura de Allesandra estava manchada de vermelho, e havia um buraco aberto no peitoral de onde o sangue ainda jorrava. Seu rosto estava pálido e contraído, o cabelo grisalho desalinhado e duro como palha em volta do rosto.
— Coloquem-me no trono — ela ouviu o sussurro da kraljica.
A voz da mulher era áspera e baixa, exausta e esquelética. Os gardai que a levavam obedeceram e a colocaram no Trono do Sol. Rochelle esperava que o trono se acendesse assim a kraljica se sentasse no abraço cristalino, como diziam as histórias, mas o trono respondeu apenas com o mais pálido dos brilhos, praticamente invisível na luz do sol.
Ela se perguntou se era porque a kraljica estava à beira da morte.
— Alguém vá procurar pelos curandeiros da kraljica — ela ouviu Sergei dizer. — O restante, procurem a hïrzgin para receber suas ordens; ela está no comando. Andem!
Eles se dispersaram. Rochelle viu Sergei se ajoelhar ao lado do trono.
— O que eu posso fazer pela senhora, kraljica? — perguntou o embaixador.
— Água, Sergei — sussurrou Allesandra. — Estou com tanta sede.
Ele mancou até um balcão perto da porta de serviço; Sergei estava sem a bengala e andava devagar. Rochelle saiu de trás da tapeçaria. Com alguns passos resolutos, ela alcançou a plataforma, com a faca na mão. Sergei a ouviu e berrou seu nome — “Rochelle!” — mas ele estava muito longe e era lento demais para detê-la. A pedra branca — dentro da bolsinha em volta do pescoço de Rochelle — parecia pulsar incandescente contra sua pele.
Você vai matá-la e, enquanto ela morre, você vai contar o porquê, para que ela vá para Cénzi sabendo...
Allesandra olhou para Rochelle com um olhar confuso e sofrido.
— Olá, mamatarh — disse ela. — Eu sou Rochelle.
— Rochelle? Mamatarh?
A confusão aumentou na expressão da mulher. Ela viu a faca e franziu os olhos.
— Eu conheço essa arma — Allesandra disse, umedecendo os lábios secos.
Ela tossiu, cuspindo bolhas de espuma vermelha dos cantos da boca.
— Eu matei Mahri com isso. Onde você...?
— Do seu filho — respondeu Rochelle. — Do meu vatarh.
A kraljica estreitou os olhos novamente.
— Seu vatarh? Jan?
— Rochelle, não faça isso — disse Sergei.
Ele deu passos vacilantes em direção à plataforma, com a mão estendida na direção dela. Rochelle ignorou o embaixador. Um corte com a lâmina, e ela poderia passar por qualquer uma das portas e estar longe antes que ele pudesse fazer qualquer coisa para detê-la.
— Sim, Jan é meu vatarh — contou Rochelle para Allesandra.
Sua mão livre segurou a pequena bolsinha de couro com o seixo quase branco e chato que continha sua matarh e todas as vítimas dela.
— E minha matarh... ela era a Pedra Branca. Elissa, era assim que ela se chamava nessa época, embora esse não fosse seu nome de verdade.
— Elissa... — Os olhos de Allesandra se fecharam por um momento; sua respiração se agitou e seus olhos se abriram novamente. — Jan...
— Ela o amava — disse Rochelle ao se inclinar sobre a kraljica.
Ela aproximou a lâmina do pescoço de sua mamatarh. Allesandra pôs a mão sobre a de Rochelle, mas não havia força no aperto. Sua pele era tão enrugada quanto um pergaminho.
— Rochelle, a mulher já está morta — falou Sergei. — Você não precisa fazer isso. A Pedra Branca está morta. Deixe-a morrer em paz.
Rochelle olhou para ele.
— Por que você se importa, embaixador? Suas mãos estão bem mais ensanguentadas que as minhas.
— Eu lhe disse na carruagem: não é tarde demais para você, Rochelle. Você não é a sua matarh. Não precisa se transformar no que ela se tornou.
A faca tremeu em sua mão. Prometa para mim...
— Faça isso — continuou Sergei — e você será para sempre a Pedra Branca, a assassina odiada que matou a kraljica. Será caçada pelo resto da sua vida curta e miserável. Jamais se sentirá segura, jamais ficará à vontade. Eventualmente, você cometerá um erro e será capturada, depois será arrastada para cá acorrentada e será executada. Este é o seu destino, Rochelle, o único que terá se fizer isso.
— E se eu não fizer? Eu ainda não sou a Pedra Branca, que matou Rance e os outros?
Sergei deu de ombros.
— Eu não sei. Sua vida será um livro que você mesma escreverá. Se a Pedra Branca desaparecer, não há ninguém a ser perseguido.
A mente de Rochelle estava atormentada. A faca pressionada contra a pele de Allesandra, o gume afiado, o sangue. Tudo o que ela tinha a fazer era pressionar com um pouco mais de força. Só precisava se debruçar levemente sobre a mulher; a faca faria o resto. Os dedos de Allesandra apertavam os de Rochelle, quase como se a kraljica quisesse que ela fizesse aquilo.
— Minha matarh amava Jan — disse Rochelle para sua mamatarh, com uma voz mais trêmula do que as mãos.
— Eu sei. — Os lábios de Allesandra estavam molhados de sangue, e um longo filete escorria pelo canto da boca. — E Jan a amava. Eu sei disso também.
A kraljica gorgolejou, o cheiro de seu hálito era horrível.
— Eu lamento.
— Lamenta? — Rochelle praticamente gritou, quase enfiou a faca no pescoço de Allesandra com violência. — Você deveria ter dito isso para ela.
A kraljica não respondeu. Sua respiração ficou fraca, seu corpo se contorceu em um espasmo. Ela olhou fixamente para Rochelle, piscando muito.
— Rochelle...
Ela tirou a faca do pescoço de Allesandra e embainhou a arma. Mate-a... Rochelle ouviu o sussurro de sua matarh, mas seu som foi fraco, e ela descobriu que não tinha vontade de fazê-lo. Não mais. Toda a raiva tinha abandonado Rochelle, toda a certeza.
— Eu quero ver você morrer — ela disse para a kraljica, olhando para Sergei. — Eu preciso ver isso.
— Está bem. — Sergei subiu os degraus da plataforma pesadamente para ficar ao lado dela. — Nós assistiremos juntos.
A boca de Allesandra se abriu, como se ela fosse protestar, mas não disse nada. Os dois ouviram sua respiração se esgotar. A kraljica olhava para Sergei.
— Nessântico...
Sua voz soou quase tão fraca quanto um zéfiro. O olhar cego da kraljica se fixou em algum ponto entre os dois.
— Sergei, ela está a salvo?
— Sim — respondeu Sergei. — Ela está a salvo.
Allesandra não esboçou reação. Após um tempo, eles perceberam que ela já não respirava. Seus olhos continuavam abertos. Rochelle tirou a pedra branca da bolsinha e colocou sobre o olho direito da kraljica.
— Pronto, matarh — disse Rochelle. — Ela é sua...
Rochelle começou a descer da plataforma.
— Espere — chamou Sergei, atrás dela. — A pedra...
— Deixe aí. Guarde como lembrança. Jogue fora. Eu não me importo. Não preciso dela.
Rochelle saiu do salão no momento que os curandeiros — tarde demais — entraram.
A onda de frio, seguida do pulso que passou por eles inofensivamente, mas que colidiu contra os ocidentais...
A presença de Nico e sua voz, inacreditavelmente alta...
O silêncio que pareceu durar vários instantes, quando eles perceberam que nenhum dos ocidentais lançava feitiços em sua direção...
O que aconteceu?
Varina ainda podia sentir o Scáth Cumhacht dentro de si. Tinha sentido alguma coisa — alguém? — puxar os feitiços que ela tinha guardado na mente, como se quisesse roubá-los, mas a presença passara por Varina sem tocá-la. Bem ao norte, ela viu a bola de fogo de um téni-guerreiro cruzar o horizonte em direção ao inimigo, depois outra e mais outra, esta de um téni perto dela. Nenhum deles foi tocado.
Varina ouviu os offiziers gritando para virar os gardai para o oeste mais uma vez. A maré que os arrastou pelo caminho diminuiu, parou e depois começou a fluir para o outro lado. Eles ficaram parados em meio à correnteza. Leovic e Niels ainda seguravam seus braços, mas Varina percebeu que eles observavam.
— Vão — ela disse para os dois. — Eles precisam de vocês. Eu seguirei como puder.
— A’morce — reclamou Niels.
— Vão — repetiu Varina.
Eles a deixaram e correram na direção de um dos offiziers chevarittai. Varina viu Leovic e Niels serem levados pela multidão. Ela seguiu depois, bem mais lentamente, mancando. Uma multidão de gardai passou por Varina, gritando. Ela ouviu o barulho da batalha recomeçar adiante, mas todos os feitiços pareciam estar vindo dos ténis-guerreiros da fé concénziana e dos numetodos, não dos ocidentais.
Varina estava entre os corpos dos que caíram durante a retirada, a maioria vestindo uniforme azul e dourado. Era difícil ignorá-los. O pior era ver aqueles que não tinham morrido, mas que estavam feridos demais para andar, estendendo suas mãos, pedindo socorro enquanto ela passava ou rastejando em direção à cidade. Para esses, Varina só podia dizer que a ajuda estava chegando em breve para resgatá-los — e torcer para que fosse verdade.
Mas ela estava procurando por uma pessoa em especial.
Varina viu um corpo a sua frente, à esquerda, vestindo um robe verde de téni. Pensou que pudesse ser um dos ténis-guerreiros, mas então viu o rosto.
O rosto de Nico.
Ignorando as pernas doloridas, Varina correu até ele, se ajoelhando a seu lado. Nico parecia ileso: não havia sangue em seu robe, seu rosto sujo e escuro tinha velhos cortes e hematomas, mas tirando isso parecia incólume.
— Nico? — ela disse, rolando seu corpo sobre suas costas procurando desesperadamente por algum sinal de ferimento.
Ele abriu os olhos, e sorriu.
— Oi, Varina. Acho que dormi. Você viu minha matarh?
Era a voz de um menino. A voz de uma criança. Nico se sentou e olhou a sua volta, arregalando os olhos ao perceber os gardai correndo aos gritos e brandindo espadas; os corpos caídos ao redor; os vapores e a fumaça do campo de batalha; a terra pisoteada que um dia tinha sido o campo de um fazendeiro. Ele se ajeitou e ficou sentado com as costas eretas.
— Varina — disse Nico com a voz trêmula, obviamente com medo, ele pegou os braços dela com força. — Estou assustado, Varina. Leve-me para casa. Por favor. Eu não quero ficar aqui.
— Nico, o que você fez?
Ele parecia amedrontado com a pergunta e se afastou de Varina.
— Eu não fiz nada, juro. Só quero ir para casa. Quero ver a minha matarh. Quero ver Talis.
Varina o abraçou.
— Nico, Talis e Serafina... partiram.
— Para onde eles foram? — ele perguntou.
Não havia malícia em seus olhos, só a pergunta inocente.
— Nico...
Ela não podia responder. Varina o abraçou de novo. O que quer que Nico tivesse feito, seja lá como o fez, o esforço obviamente lhe custara a mente. Este não era mais o Absoluto dos morellis. Este não era mais Nico, o grande téni. Ele se agarrou a Varina como uma criança a sua matarh, e ela sentiu seu corpo tremer de pânico e angústia.
Gardai ainda passavam por eles; o barulho da batalha e os trovões dos feitiços dos ténis-guerreiros eram ensurdecedores.
— Nico, vamos — falou Varina. — Vamos sair daqui. Não é seguro. Você pode vir pra minha casa. Gostaria disso?
Ele assentiu urgentemente, abraçado a ela. Varina o levantou.
Juntos, eles seguiram cambaleando para leste, em direção à cidade.
Atl se sentiu nu e desprotegido, seu cajado mágico tinha sido esvaziado em poucos instantes por aquele terrível feitiço do leste, e agora a batalha tinha sido subitamente renovada, quando já deveria estar acabada.
Em vitória. Na vitória que Atl tinha visto. Na vitória que Atl tinha dito para o tecuhtli que seria dele. Atl se lembrava da visão do taat, aquela que Niente alegara ter visto, o caminho que Atl tinha sido incapaz de ver, que ele pensava que era mentira do taat. Isso não era possível.
Citlati se enfureceu com Atl enquanto bolas de fogo dos nahualli orientais caiam perto dos dois.
— Detenham-nos! — berrou o tecuhtli. — Maldito seja, nahual! Detenham-nos!
Mas tudo o que Atl pôde fazer foi balançar a cabeça.
— Eu não tenho poder, tecuhtli. Nenhum dos nahualli tem. Ele foi tirado de nós.
Os feitiços sumiram, e não havia tempo agora para preparar novos e colocá-los nos cajados mágicos.
— Você me prometeu a vitória, nahual! Você me prometeu a cidade!
Citlali choramingou como uma criança sem seu brinquedo favorito, mas não havia nenhuma resposta para essa situação. Seu rosto ficara tão vermelho de raiva que a águia vermelha pareceu se misturar a sua pele.
Não haverá uma vitória, Atl queria dizer para ele. Ou, se houver uma, não será a vitória que eu vislumbrei na tigela. Os caminhos da tigela premonitória tinham sido apagados. Tudo mudou. Eu nunca tinha visto esse caminho antes. Não sei para onde ele leva.
Como seu taat tinha avisado. Sua mão tateou a bolsa, onde o pássaro entalhado que o taat lhe dera estava aninhado. Se um de nós vir o rumo, então podemos contar para o outro que o Longo Caminho está aberto... Será que Niente estava certo: será que esse Longo Caminho existia, aquele que Atl não conseguia ver?
Ele desejou que seu taat estivesse ali.
Citlali ainda estava furioso, mas a atenção de Atl estava voltada para o pássaro entalhado na bolsa. Ele pareceu farfalhar, como se estivesse vivo e batendo as asas em pânico. Atl abriu a aba de couro e meteu a mão dentro. Sim, a coisa estava se mexendo. O pássaro ficou imóvel quando Atl o tirou para fora, e, assim que o fez, ele pôde ouvir a voz inconfundível de Niente.
— Tototl está voltando para os navios. Você tem que ir também! O Longo Caminho está aqui.
— Taat?
Não houve resposta. Atl soltou o pássaro entre seus dedos que há muito tinham perdido a força. Ele viu o objeto cair no chão, se perdendo entre os caules dos grão pisoteados na terra. A voz de seu taat soara tão fraca, tão perdida, e Atl foi tomado pela certeza de que jamais a ouviria novamente.
— Tecuhtli — chamou Atl. — Temos que recuar e encontrar os navios. Estamos sem magia. Não teremos nenhuma até que possamos descansar novamente.
— Não! — disparou Citlali. — Eu tomarei a cidade hoje.
— Não é possível agora — respondeu Atl.
— Como você sabe? — disse Citlali, com desprezo. — Nada do que você me disse era verdade. Você não é mais o nahual. Eu encontrarei outro. Farei de Niente o nahual novamente.
Citlali ergueu a espada contra Atl, como se estivesse prestes a atacá-lo, Atl ergueu seu cajado mágico inutilmente.
Alguém gritou na língua dos orientais para os dois, e um cavalo de guerra rompeu o anel em volta de Citlali e Atl, conduzindo um guerreiro coberto de sangue e terra, sem elmo e com uma espada chanfrada na mão. Ele investiu diretamente contra Citlali, e o tecuhtli deixou Atl de lado para aparar o golpe do homem. O aço retiniu em aço, e Atl viu uma lasca da lâmina de Citlali sair voando e girando. Quando os cavalos de guerra se aproximaram, Citlali empurrou o oriental, e o homem caiu do cavalo. O tecuhtli riu.
— Viu só? — disse ele. — Viu só como eles caem facilmente? E você me diz para recuar?
O oriental estava lutando para ficar de pé, meio aturdido, apoiando-se em uma perna. Parecia que ele não seria capaz sequer de erguer sua espada. A sua volta, Atl viu os uniformes pretos e prateados e azuis e dourados dos orientais, embora os três permanecessem sozinhos em um nexo tranquilo em meio ao caos. Vários guerreiros caíam sob a pressão, os feiticeiros inimigos lançavam sua magia, e os nahualli eram incapazes de reagir. Citlali pulou do cavalo; Atl viu sua bota pisar sobre o pássaro vermelho entalhado no chão revirado e lamacento. O tecuhtli ergueu a espada novamente. O golpe, Atl viu, arrancaria a cabeça do oriental.
Atl ergueu seu cajado mágico vazio novamente, e o desceu com força no crânio de Citlali. O som emitido foi estranhamento baixo, como um pau batendo em um melão maduro, mas o tecuhtli caiu inconsciente aos pés atordoados do oriental. O homem olhou para Atl, que devolveu o olhar. Por um instante, nenhum dos dois se mexeu, então, enquanto Atl observava, montado em seu cavalo, o oriental ergueu sua espada e a enfiou no pescoço de Citlali.
— Perdemos o tecuhtli! — Atl gritou alto para que os guerreiros perto dele pudessem ouvi-lo. — Perdemos o tecuhtli. Recuar! De volta para os navios!
Enquanto os guerreiros reagiam, enquanto começavam a abandonar o combate e recuar, enquanto os orientais berravam em triunfo, Atl encarava o oriental. O homem se apoiava na espada, ainda cravada no pescoço de Citlali. Atl o cumprimentou com a cabeça.
Em seguida, ele puxou as rédeas do cavalo e começou a longa fuga para o oeste.
A Aurora
Eles foram perseguidos pelo exército de azul e dourado e preto e prata, foram caçados enquanto recuavam em direção ao rio e aos navios à espera, mas não intensamente. Os retardatários tinham sido abatidos, mas os exércitos principais não foram enfrentados novamente. Ficou claro que os orientais estavam felizes em escorraçá-los de sua terra, mas não exigiriam o extermínio do inimigo se eles estivessem dispostos a ir embora.
O exército vislumbrou os mastros dos navios da frota no segundo dia, a cerca de quinze quilômetros rio acima a partir de Nessântico, os tehuantinos subiram a bordo o mais rápido possível. Tototl, que se nomeara como tecuhtli, entrou no Yaoyotl e virou a frota para oeste assim que os guerreiros sobreviventes e os nahualli subiram a bordo. Ele afundou os barcos vazios, em grande número, no meio do rio para desencorajar a perseguição por parte de qualquer embarcação da marinha dos Domínios.
Eles navegaram A’Sele abaixo, sendo levados rapidamente pela correnteza em direção ao mar.
De volta para casa.
Atl, a bordo do Yaoyotl, olhou fixamente para a bruma verde da tigela premonitória. Tototl o observava atentamente; seu crânio agora estava pintado com o desenho da águia que em breve seria permanentemente tatuado em sua pele.
A miríade de futuros se espalhou diante de Atl; eles não estavam mais encobertos e difusos como tinham estado. Era como se Axat tivesse tirado um véu diante do rosto de Atl. Ele podia ver com mais clareza agora, todas as incertezas que encobriram as possibilidades por tanto tempo tinham sido sopradas para longe como nuvens tempestuosas. Os futuros estavam abertos para o nahual, todas as possibilidades.
O que ele viu o fez ofegar. O Longo Caminho... Este era o futuro que seu taat tinha visto, que ele sempre dizia que estava lá. Atl percebeu então que Niente sabia que preço que o Longo Caminho cobraria: para alcançá-lo, ele devia morrer, e o tecuhtli Citlali também seria morto, se ele quisesse que esse futuro se concretizasse; e um grande número de guerreiros também deveria morrer. Por quanto tempo o senhor manteve esse segredo, taat? O senhor sabia antes mesmo de nós partirmos?
Atl suspeitava que sim. Isso explicava muita coisa. Explicava por que Niente nunca quis que ele usasse a tigela premonitória. Esse tinha sido o gesto de um pai protetor, não o de um nahual enciumado. Essa compreensão fez Atl lamentar as palavras duras que os dois tinham trocado.
— Eu voltarei a esta terra? — perguntou Tototl duramente, interrompendo os pensamentos de Atl e fazendo com que a bruma verde oscilasse com sua respiração a ponto de Atl quase perder a visão. — Eu vingarei nossa derrota?
Atl também pôde ver esse futuro: os navios novamente carregados com um exército, um ainda maior que o de Citlali, voltando pela terceira vez àquelas praias. Mas, dessa vez, os exércitos dos Domínios eram um só e os atacaram prematura e furiosamente; a maioria dos homens estava armada com armas terríveis, como aquelas que Tototl e Niente tinham testemunhado durante suas batalhas. Os guerreiros tehuantinos foram abatidos como trigo por uma foice e a terra bebeu seu sangue.
Era um futuro terrível, mas um futuro que poderia facilmente acontecer.
Mas o outro... aquele que se estendia até ser engolido pelas brumas. Este também era possível, se Atl direcionasse Tototl para esse caminho. Seria necessária habilidade e exigiria sacrifício, mas o futuro estava lá, e ele podia ver a mão de Niente sobre ele.
— O senhor fará mais do que isso, tecuhtli — respondeu Atl. — Um dia, o senhor promoverá a paz com os orientais. Seu nome será homenageado em todas as partes da nossa terra. Todos os tecuhtli que vierem depois serão comparados ao senhor. O senhor será eternamente conhecido como o Grande Tecuhtli.
As brumas enfraqueceram agora, Atl pegou a tigela e jogou a água em seu interior sobre a lateral do navio. Ele entregou a tigela para um nahualli de menor escalão.
— Limpe isto — ele disse para o homem — e coloque de volta na minha cabine.
Ele podia sentir o cansaço do X’in Ka martelar seu corpo, e seu olho esquerdo piscar incomodamente. Atl apertou bem os olhos e os abriu novamente. Tototl o observava.
— Paz? Como um guerreiro encontra honra na paz? Como um guerreiro se torna grande sem guerra e vitória?
Atl respirou profundamente. Olhou para o oeste, para a fumaça e os vapores de Nessântico, para o lugar onde o corpo de Niente jazeria para sempre.
— Eu vou lhe mostrar — disse o nahual. — Juntos, nós nos manteremos naquele caminho.
— Veja-me fazer — ela disse para Nico. — Aí eu quero que você tente fazer sozinho. Está vendo? Olhe só, você faz um laço com o cadarço assim, depois pega a outra ponta e passa uma vez pela base do laço, e...
Ela ouviu uma batida na porta do quarto enquanto amarrava as botas de Nico.
— A’morce?
— Entre — respondeu ela.
Michelle entrou, com Serafina no colo. O bebê estava enrolado em renda, e Michelle segurou a criança com um gesto protetor ao olhar desconfiada para Nico, que estava sentado na cama. Ele virou o rosto ingênuo para olhar para a ama de leite.
— Esta é Serafina? — Nico perguntou para Varina, com ansiedade na voz.
— Sim.
Ele baixou o olhar, quase envergonhado.
— Posso... posso segurá-la?
Michelle balançou a cabeça ligeiramente, mas Varina sorriu para ele.
— Só um pouquinho. E você precisa tomar muito cuidado com ela.
Varina acenou com a cabeça para Michelle que, ainda com a testa franzida, deu um passo para frente, colocando o bebê nos braços esticados de Nico.
— Segure bem a cabeça dela — disse Varina. — Sim, desse jeito. Muito bem...
Nico sorriu ao embalar Serafina nos braços. O bebê se agitou por um momento, mas depois se aquietou, sendo embalado por Nico até dormir. Ele encarou o rosto da criança.
— Os olhos são tão grandes — perguntou Nico com um ar de admiração. — E as mão são muito pequenininhas. Ela é mesmo minha filha?
— Sim. Sua e de Liana.
Varina acariciou a cabeça de Sera. Seu cabelo era fino como uma penugem, a pele macia e quente. Sua mãozinha se sacudiu, encontrando o dedo de Varina e o agarrando. Ela riu.
Nico balançou a cabeça, observando a interação.
— Eu não me lembro de Liana. Eu não sei como...
— Eu conto para você um dia — disse Varina. — Agora, nós temos que nos aprontar para ir ao funeral da kraljica. Aqui...
Ela estendeu as mãos, e Nico colocou Serafina ali com cuidado. Varina ouviu o suspiro audível de alívio de Michelle. Ela beijou a testa de Sera e a abraçou por alguns instantes antes de devolvê-la para a ama de leite?
— Ela está alimentada?
— Alimentada, vestida e pronta para ir — respondeu Michelle. — Eu tenho uma muda de roupas e fraldas. Eu subi para dizer para a senhora que a carruagem do palácio já chegou.
— Ótimo — disse Varina. — Vá na frente, entre com Sera e a acomode. Nico e eu desceremos em breve. Eu só tenho que terminar as botas dele.
Michelle olhou furtivamente para Nico novamente.
— A’morce, esse rapaz é perigoso. O que ele fez...
— O que ele fez com os tehuantinos nos salvou — respondeu Varina. — E ele pagou um preço mais caro do que a maioria de nós estaria disposta a pagar.
— Ele pode estar fingindo esse distúrbio ou recuperar a capacidade mental. E aí?
Nico não disse nada enquanto elas discutiam sobre ele, apenas olhava de uma mulher para a outra enquanto as duas falavam.
— Aí — falou Varina —, nós cuidaremos disso quando acontecer.
Ela já tinha ouvido essa mesma pergunta uma dezena de vezes ou mais. Havia aqueles dentro do Conselho e entre os ca’ e co’ da cidade e os ténis da Fé que queriam que Nico fosse julgado e executado pelas mortes que causou e pelo dano ao Velho Templo durante a tomada dos morellis. Quanto a isso, uma parte da própria Varina ainda estava furiosa com ele pela destruição e pelas mortes que ele tinha, assumidamente, causado a seus próprios amigos durante o funeral de Karl.
Nico, na verdade, tinha que responder por muita coisa, mas ele salvara a cidade praticamente sozinho quando ela estava prestes a cair. Também não havia como negar isso — ou o fato de que o preço pelo esforço fora alto, e talvez, talvez fosse castigo suficiente. O Nico diante de Varina não parecia se lembrar de nada desse dia ou de sua vida anterior. O Nico diante dela era um inocente — ele podia habitar o mesmo corpo, mas não era o Nico que alegava ser o Absoluto. Talvez o kraljiki exigisse um castigo por seu passado, mas Varina lutaria contra isso, com todas as forças que pudesse reunir.
— Por enquanto, ele é uma criança e precisa ser tratado como tal.
— Como a senhora mandar, a’morce — respondeu a ama de leite.
Serafina chorou, e Michelle a embalou com delicadeza.
— Eu vou acalmá-la novamente, nos vemos na carruagem.
Quando Michelle saiu do quarto, Varina se abaixou de novo para amarrar os cadarços das botas de Nico, que a observava com o cenho franzido.
— Está tudo bem Nico — disse ela. — Michelle não está chateada com você. Está apenas preocupada, como eu. Agora, veja como eu faço e vamos ver se você consegue amarrar o outro cadarço. Faça um laço assim, depois passe a outra ponta em volta dele...
Os ténis já estavam presentes no Templo do Archigos. A a’téni Valerie ca’Beranger, de Prajnoli, realizaria a cerimônia — os rumores diziam que ela provavelmente seria eleita como archigos quando o Colégio A’téni se reunisse em poucos dias. Brie conduziu os filhos pela nave ladeada por e’ténis de robe branco — a cor do luto — com bordas verdes. Os ténis a observavam, em silêncio: como fileiras de ossos brancos apontando na direção da Pedra de Cénzi, enquanto Brie e os filhos subiam à plataforma e se aproximavam do altar e da grande Pedra de Cénzi, coberta por um pano azul-celeste reluzente.
— Ali — sussurrou Brie para Elissa, Kriege, Caelor e Eria.
Sua voz soou alta sob o domo, e ela ergueu os olhos uma vez para os afrescos de Cénzi e dos moitidis bem acima delas.
— Esta é sua mamatarh, Allesandra. Ela foi uma grande mulher e me disse que queria muito ter conhecido todos vocês. Eu gostaria que vocês a tivessem conhecido quando ela estava viva.
Não era assim que Brie pretendia que os filhos conhecessem sua mamatarh. Ela tinha tido esperanças de apresentá-los à mulher, não ao corpo morto. Ela se perguntou se não teria sido melhor ter deixado as crianças em Brezno durante o funeral, mas então elas teriam perdido a coroação do vatarh.
— Aqui é feio — dissera Elissa ao desembarcar da carruagem no palácio; a menina olhou em volta para os prédios destruídos e marcados pelo fogo e pela guerra. — Tem um cheiro horrível também. Brezno é bem mais bonito, matarh. Por que nós não podemos ficar lá?
— Nessântico é nosso lar agora — respondera Brie. — E nós faremos a cidade ficar mais bonita e impressionante do que Brezno, como ela era antes. Todos nós ajudaremos seu vatarh a fazer isso.
Ela esperava que isso não fosse uma mentira.
Agora, no Templo do Archigos, eles olhavam para mais uma ruína, a da kraljica.
Eria ficou para trás, com um polegar plantado na boca. Ela se recusou a sequer se aproximar do esquife e se contentou em olhar para o corpo enquanto se agarrava à tashta de Brie. Caelor só se aproximou de maneira hesitante e se afastou rapidamente em direção a sua matarh. Kriege caminhou para a frente de mansinho, com uma expressão séria no rosto, e olhou para a face pintada de branco, dando um passo para trás em seguida, fungando como se pudesse sentir o cheiro mesmo com o escudo antiodor que os ténis tinham colocado em volta do corpo. Elissa, que tinha se aproximado com Kriege, permaneceu ali, olhando para o corpo como se tentasse memorizar cada detalhe dele: as rugas na face da mamatarh; a máscara funerária dourada que os ténis colocariam no rosto de Allesandra em apenas uma virada da ampulheta, quando as portas do Templo do Archigos seriam abertas para que o funeral pudesse começar; o cetro de ferro do kraljiki Henri VI em sua mão esquerda; o anel com o sinete dos kralji à mostra na palma direita, virada para cima, que Jan pegaria quando o ritual do funeral tivesse acabado. O pano azul sobre o altar estava coberto por coroas de flores amarelas. Sete candelabros estavam dispostos em volta da pedra, acesos não com chamas, mas com as luzes brilhantes dos ténis, banhando o corpo com uma iluminação branco-amarelada tão intensa que parecia que o domo do templo tinha sido levantado para que o sol pudesse brilhar sobre a kraljica.
Elissa tocou o braço de Allesandra com um dedo hesitante, depois olhou para sua ponta como se fosse um objeto estranho.
— Ela está fria — relatou Elissa. — E meio dura.
— É o que acontece quando alguém morre.
— Ah! — Elissa pareceu considerar aqui. — Mas o rosto está bonito.
Brie ouviu a voz de Jan, conversando com Sergei ca’Rudka, o starkkapitän ca’Damont e o comandante ca’Talin na lateral do coro. Talbot, o assistente de Allesandra, que tinha concordado em permanecer como assistente de Jan, pigarreou perto dos bancos.
— Hïrzgin, eles já estão prontos para deixar os ca’ e co’ entrarem no templo. Eu vou avisar o hïrzg e os demais; a senhora ainda tem um algum tempo, mas...
Ela assentiu, e Talbot se retirou.
— Não toque nisso — disse Brie para Elissa, que estendeu uma mão hesitante em direção ao anel; ela recolheu a mão como se a tivesse queimado.
— Eu não ia tocar — disse ela. — Esse vai ser o anel do vatarh?
— Sim, em breve — respondeu a matarh.
— E será meu algum dia?
Kriege encarou Elissa.
— Não é justo, matarh — ele gritou, ecoando sua voz estridente sob o domo.
Brie viu as fileiras de ténis se mexerem, e alguém riu, um som rápido, brevemente sufocado.
— Ela fica com tudo.
A hïrzgin podia ouvir Talbot rindo enquanto percorria a nave em direção a Jan. Ela riu também.
— Ninguém vai ficar com o anel; ao menos não por muito tempo, até que vocês todos estejam crescidos. Veremos na ocasião, então. Pode ser que nenhum de vocês dois queira.
— Então eu fico com ele — interrompeu Caelor. — É um anel bonito.
Brie riu.
— Vamos — ela falou para os filhos. — Precisamos tomar nossos lugares...
As trompas tocaram um lamento grave e fúnebre que fez os pombos irromperem em revoada do chão da praça, do lado de fora. Lá dentro, Rochelle podia sentir a parede do templo pulsar em suas costas. Ela tinha entrado no templo sorrateiramente por uma porta traseira, tinha arrombado a fechadura bem antes da aurora, deslizando pelo mezanino do coro ao longo de um canto nas sombras, atrás do arco de um dos pilares, onde poderia olhar o coro, o esquife e os bancos mais próximos.
Rochelle pensou ter sentido o cheiro de fumaça dali: não apenas o aroma pungente dos incensários no altar, mas da fumaça remanescente do bombardeio de areia negra dos tehuantinos, impregnado sob os arcos pintados do domo. Ela tinha se sentado, escondida, ali por várias viradas, esperando. Ela tinha visto os ténis de robe branco formando suas fileiras; o coro se instalando nos assentos não muito longe dela.
Ela tinha visto seu vatarh e sua família entrarem para ver o corpo no meio da manhã, tinha visto Brie conduzir as crianças à frente, depois dela e Jan prestarem sua homenagem.
Os filhos... O pensamento deveria ter sido sua matarh e ela lhe ocorreu, se ao menos as coisas tivessem sido diferentes, mas então Rochelle balançou a cabeça. Não, ela disse para si mesma, com firmeza. O relacionamento deles jamais teria sobrevivido com as mentiras e a loucura da matarh. Jamais teria acontecido. Esse nunca foi meu destino. Não minta para si mesma. Você só pode ser a filha bastarda, nunca a legítima.
Rochelle se perguntou o que seu futuro lhe reservava, e ela não tinha resposta para isso. Sua mão desceu para o cabo adornado da adaga que ela tinha roubado de seu vatarh, a adaga com a qual ela esperava matar sua mamatarh. A madeira lisa do pomo pareceu pulsar sob seus dedos.
A família se afastou do esquife. Ela os viu se acomodarem em seus bancos, ouviu as portas se abrirem assim que as trompas começaram a soar o chamado fúnebre e doloroso mais uma vez, e os ca’ e co’ entraram no templo. O coro a assustou quando começou a cantar uma das obras etéreas e fúnebres de Darkmavis. Os tons ascendentes e as harmonias opressivas ecoaram, altas e insistentes, passando por ela e se propagando para o domo do templo, e a envolveram como um manto.
Pareceu levar uma eternidade para o público do funeral entrar entre as fileiras de ténis de robe branco e se acomodar nos bancos. De seu esconderijo, Rochelle observou os bancos da frente, viu seu vatarh e seus meios-irmãos, assim como a mulher que tinha tomado o lugar de sua matarh: Brie, a quem agora chamavam de a Vitoriosa da Margem Sul e a quem a multidão saudava tão alto quanto Jan. Ela viu Sergei na fileira atrás dele, sentado ao lado da mulher numetodo, carregando uma criança nos braços.
E ao lado dela estava Nico, irrequieto como uma criança entediada. A a’morce não parava de se virar para falar com ele baixinho, e Rochelle notou que Sergei observava o jovem com atenção. Nico — ela se perguntou se era verdade o que diziam sobre seu irmão, que ele tinha perdido a sanidade mental e não era mais que uma criança. Vê-lo daquela maneira doía mais do que tudo, pensou Rochelle.
A a’téni ca’Beranger finalmente surgiu detrás do coro e começou a cerimônia, auxiliada por um grupo de ténis do alto escalão se movendo em torno dela com incensários, taças, o cajado do globo partido e os pergaminhos do Toustour e da Divolonté. Rochelle quase cochilou durante a maior parte da cerimônia e se mexeu apenas quando Jan se levantou para dar a Admoestação. Ela viu seu vatarh caminhar até o Alto Púlpito — andando como um velho, apoiado em uma bengala segurada com firmeza junto ao corpo. Talbot se mexeu para ajudá-lo, e ela notou que Jan balançou a cabeça para o homem. Lentamente, ele subiu os degraus do Alto Púlpito, se recusando a deixar que seus ferimentos o detivessem. Ela viu Jan olhar para a plateia e, em seguida, encarar o corpo de sua matarh por vários instantes antes de falar.
— É costume dizer o quanto uma matarh foi gentil e maravilhosa em vida — ele disse, finalmente, e sua voz de barítono ecoou na ótima acústica do templo. — Eu não vou dizer essa mentira. Ela talvez não tenha sido a melhor matarh que eu poderia ter. Eu era seu filho único, mas não era o filho com o qual a kraljica Allesandra mais se importava.
“Esse filho, o único filho que ela teve, era Nessântico. Os Domínios. Para Nessântico, ela foi uma excelente matarh: uma matarh forte e vigorosa, que realizou o que poucos conseguiriam. A kraljica Allesandra restaurou Nessântico quando a cidade estava em ruínas. Evitou que os Domínios se partissem quando, em mãos menos capazes, eles teriam desmoronado e se dissolvido. Ela protegeu Nessântico quando, pela segunda vez, a cidade foi atacada por invasores estrangeiros. A kraljica Allesandra deu todo o amor, energia e atenção para essa cidade e esse império, e quando foi exigido seu sacrifício, ela se dispôs a dar sua vida para Nessântico como pagamento final.
Jan fez uma pausa longa, respirando profundamente, como se falar o esgotasse. Rochelle se debruçou. Eu estava disposta a tirar a vida da kraljica. Eu teria feito isso, matarh, mas cheguei tarde demais. Sua mão ainda estava no cabo da faca. O vatarh ergueu seu olhar, como se tivesse visto um movimento ou pudesse, de alguma forma, sentir a atração da faca que Rochelle lhe tinha roubado. Ela recuou para as sombras. Seus olhos, bem abaixo, pareciam encará-la, apesar da distância.
— Celebrem Allesandra ca’Vörl — continuou Jan, voltando a olhar para a plateia. — Celebrem sua gestão dos Domínios, pois quando os Domínios estiveram à beira do abismo, ela evitou que o império caísse. Isso foi um golpe de mestre. Isso foi genial. Isso foi passional. Estas eram qualidades que minha matarh possuía em abundância. E essas eram exatamente as qualidades que Nessântico precisava, e ela chegou no exato momento em que Nessântico exigiu sua presença. Nessântico teve sorte em tê-la, com suas habilidades e nesse momento. Ainda que eu não tivesse dado valor na maior parte do tempo.
Uma risada fraca percorreu a plateia nesse momento, soando deslocada no templo.
— Nós saímos vitoriosos de uma guerra terrível — continuou Jan —, em grande parte por causa das atitudes da kraljica Allesandra. Eu só posso esperar, seguindo seus passos, que eu seja capaz de fazer o mesmo, que eu possa ser seu filho e que eu construa a partir de seu legado. Os Domínios foram unificados novamente, a Fé foi unificada novamente, mas há desafios a nossa frente que vão nos testar, a todos nós. Eu sei que ela está nos observando nos braços de Cénzi. Espero que nós possamos fazê-la sentir orgulho pelo que conquistamos.
Jan abaixou a cabeça. Rochelle pensou que ele fosse falar mais, mas ele fez o sinal de Cénzi para a plateia e saiu do Alto Púlpito — lentamente, mais uma vez, ecoando o som alto da bengala no silêncio. Ele voltou para seu lugar enquanto a a’téni e seus assistentes retornavam ao altar. Quando eles começaram a circular o esquife, entoando e balançando os incensários, Rochelle recuou para o nicho, recostando sua espinha sobre a pedra fria.
O que eu faço, vatarh? O que eu faço para o senhor ter orgulho de mim?
Ela podia sentir a pressão do cabo da adaga na lateral de seu corpo ao se agachar, se apoiando no pilar do templo. Se Nessântico passasse a ser a paixão do vatarh, como tinha sido a de Allesandra, se — o que ele disse sobre Allesandra fosse verdade — os Domínios passassem a ser seu filho único, então ela compartilharia essa paixão com Jan. A matarh de Rochelle lhe ensinara uma habilidade ímpar; e ela a usaria, então.
Eu não serei a Pedra Branca, não, eu me tornarei a Adaga de Nessântico.
Rochelle assentiu. Ela permaneceria nas sombras. Seria genuinamente a filha de Jan. Serviria aos Domínios da sua própria maneira.
Sim.
O coro começou a cantar mais uma vez, e Rochelle fechou os olhos, se permitindo mergulhar no som etéreo, tão insubstancial e misterioso quanto ela seria.
A procissão em volta do anel da alameda da Avi a’Parete foi longa e lenta e — Jan podia ver a multidão se alinhar pela Avi, esperando pela passagem da kraljica — necessária. A multidão se estendia pela alameda em várias fileiras de ambos os lados da Avi, até onde sua visão podia alcançar. Suas expressões eram solenes: muitos choravam abertamente. Jan se deu conta de que, assim como Allesandra amara a cidade, a cidade passou a amá-la e a valorizá-la em retribuição.
Jan só podia esperar que fizessem o mesmo por ele nos próximos anos.
Jan fez uma careta quando a carruagem em que estava encontrou um buraco irregular no pavimento; o impacto comprimiu suas costelas, irradiando a dor até seus ombros. Ele sentiu os cortes que os curandeiros tinham costurado há dias se repuxarem quando ele tentou se ajeitar no assento. Ele lutou para demonstrar o mínimo de incômodo possível para as multidões. Jan sorriu e acenou. Em sua mão, o anel com o sinete dos kralji reluziu.
O cortejo fúnebre de Allesandra lembrou o da grande e amada kraljica Marguerite. Nenhum dos kralji, entre Marguerite e Allesandra, tinham recebido uma manifestação tão formal. O kraljiki Justi, filho de Marguerite, tinha sido ironizado e desprezado; o povo da cidade na verdade ficou feliz com sua morte, e seu esquife saíra diretamente do Templo do Archigos para o palácio. O reinado do filho de Audric tinha sido ainda pior, embora a curta regência de Sergei tivesse mantido a cidade estável. Mas assim que a regência terminou prematuramente, a loucura de Audric e seu comportamento excêntrico prejudicaram ainda mais os Domínios, e o assassinato do kraljiki foi — muitos consideraram — uma bênção. A kraljica Sigourney, sucessora de Audric, cometera suicídio quando os tehuantinos saquearam e queimaram a cidade, e seu corpo fora profanado pelos ocidentais: Jan se lembrava disso muitíssimo bem.
Com a morte de Sigourney e a cidade em ruínas fumegantes em volta de Jan, ele poderia ter tomado o título de kraljiki para si; em vez disso, ele escolheu dar Nessântico e os Domínios para sua matarh: um gesto irônico.
E ela transformou essa ironia em uma verdadeira dádiva, Jan tinha que admitir. Isso estava claro para ele agora.
A carruagem de Jan, puxada por três cavalos brancos em um arnês de quatro cavalos, seguiu imediatamente atrás do esquife. Ele ouviu o cântico dos ténis caminhando ao lado do esquife, que parecia flutuar em uma nuvem branca. Sobre o corpo, imagens enormes da kraljica apareciam e desapareciam: exibindo suas imagens como era representada pelo quadro oficial; na inauguração do domo reconstruído do Velho Templo; sorrindo ao descer da sacada durante o Gschnas.
O cheiro das flores a acompanhava, assim como o som dos músicos na carruagem sem teto a frente do esquife, tocando Darkmavis e ce’Miella: uma fusão do antigo com o moderno.
O velho cedendo o lugar para o novo. Jan considerou aquilo fascinante.
— Olhe, eles estão aplaudindo o senhor, vatarh — disse Elissa com alegria, enquanto ela mesma apontava e acenava.
E era verdade: à medida que o esquife passava, e logo depois da carruagem sem teto, o luto virava aplausos e sorrisos.
— Eles gostam do senhor.
— Eles estão aplaudindo porque não têm escolha — respondeu Jan, e Brie franziu a testa.
— Jan...
— É verdade, e as crianças devem saber disso — respondeu ele.
Jan se inclinou na direção de onde os filhos estavam sentados, ignorando o puxão dos pontos e a pontada no peito.
— As pessoas aplaudem desde que pensem que você vai manter a comida em suas barrigas e um teto sobre a cabeça delas. Elas também aplaudem quando temem você, porque têm medo de que, se não aplaudirem, sejam punidas. Não confundam os sorrisos e aplausos com algo mais do que uma fachada.
Ele sentiu a mão de Brie apertar seu braço.
— Querido, por favor. Eles não entendem o que você está dizendo, e você apenas está assustando as crianças. E não deveria ser tão cínico. Não hoje, entre todos os dias.
Ela estava certa, e Jan sabia disso. Ele viu o cabo adornado da chispeira dentro de uma bainha de couro estampada em relevo: a linda chispeira com que Varina e os numetodos a tinham presenteado após a batalha. Os cidadãos de Nessântico estavam aplaudindo sua esposa, Jan sabia: o sucesso do grupo de chispeiros já era uma lenda na cidade, e parecia que a a’hïrzg se tornara uma favorita da cidade.
— Desculpem-me — ele disse para a esposa e os filhos. — Você está certa...
Eles continuaram a dar a volta pela alameda circular, e Jan continuou a sorrir e a acenar. Porque era o que se esperava dele. Porque era seu dever. Eles passaram ruidosamente pela Pontica a’Kralji onde, em jaulas de ferro, o esqueleto do téni-guerreiro ocidental que Sergei matou e dos tehuantinos ocidentais expunham seu triunfo sangrento. Jan mal olhou para os corpos.
A procissão terminou no pátio do Palácio da Kraljica ao anoitecer. O esquife flutuou na nuvem mágica até o pico de uma pilha de toras embebidas em óleo, colocada bem longe das alas do palácio, no centro dos jardins da kraljica: a pira mandaria a alma de Allesandra para os braços de Cénzi. Os ca’ e co’ da cidade, dos Domínios e da Coalizão, os chevarittai em seus uniformes de gala azuis e dourados e negros e prateados, Sergei ca’Rudka, o starkkapitän ca’Damont, o comandante ca’Talin da Garde Civile: todos viram Jan e sua família descer da carruagem.
Jan olhou uma última vez para o corpo de sua matarh. Ele acenou com a cabeça para Talbot, que gesticulou para os ténis-bombeiros dispostos em volta da pira. As mãos dançaram juntas um balé elaborado; as vozes se juntaram em um cântico lento. Uma chama alaranjada brotou de suas mãos enquanto os ténis-bombeiros gesticulavam, como se jogassem pétalas em direção à pira. As chamas estalaram e assobiaram furiosamente, lambendo o óleo e se inflamando rapidamente. A nuvem mágica desapareceu sob um cortina branca que se contorceu e subiu à altura do telhado do palácio até ser espalhada no céu pelo vento. As chamas tocaram o esquife; Jan viu as flores se contorcerem e se enroscarem enquanto o corpo de Allesandra se perdia em uma onda de calor e fumaça. Os furiosos estalos das chamas ecoaram nos muros do palácio e o calor insistente fez todos se afastarem a alguns passos da pira.
Um pedaço de lenha entrou em colapso na pira, disparando fagulhas frenéticas para o alto. Jan se deu conta de que tinha ficado assistindo ao fogo por mais tempo do que pensava, de que o céu estava ficando escuro.
— Podemos ir agora, kraljiki — disse Talbot; o título soou estranho para Jan. — Eles já estão no salão...
O Salão do Trono do Sol estava lotado. As janelas do longo aposento reluziam com as chamas vermelhas da pira, e a grande janela atrás do trono mostrava o céu do crepúsculo, com um tom intenso de violeta e as primeiras estrelas começando a brilhar. O Conselho dos Ca’ estava sentado à frente do trono, com outros dignitários. A a’téni ca’Beranger esperava com Talbot ao lado do Trono do Sol. Brie deixou as crianças com as babás e se aproximou da plataforma do trono, ao lado de Jan.
O Trono do Sol. A enorme cadeira esculpida a partir de um único cristal enorme que tinha a altura de mais de dois homens e um tom branco semitransparente e sarapintado. Ele se avultava diante de Jan e Brie. Enquanto olhava para o trono, ele girava o anel com o sinete na mão, sentindo a superfície lisa e fria do metal dourado e prateado na pele.
— Este é o seu destino, meu marido — sussurrou Brie.
Jan olhou para ela, percebendo que a esposa olhava para suas mãos.
— Você sabe disso — falou Brie. — E sua matarh também sabia.
— Ela demonstrou de um jeito estranho.
— Esse era o destino dela também. Esse era o problema. — Ela gesticulou para o trono. — Lá está ele. É seu, meu amor.
Jan olhou para Talbot. O assistente aquiesceu com a cabeça. Atrás de uma porta no fundo do salão, logo atrás do trono, dois ténis-luminosos entoavam um cântico. Talbot tinha lhe contado que, no último século, o Trono do Sol quase não reagia ao anel com o sinete e que agora a reação era criada por ténis-luminosos especialmente habilidosos e de confiança, que asseguravam que o trono se acendesse quando o kralji se sentava no cristal.
Jan riu ao saber da revelação — outro truque, outro espetáculo.
Ele subiu na plataforma, recebendo o sinal de Cénzi da a’téni ca’Beranger ao passar por ela. Ao chegar ao trono, Jan se virou para encarar a multidão. Todos o observavam.
Jan se sentou. O cristal a sua volta se acendeu com uma luz amarela intensa que parecia emergir das profundezas ocultas do trono. Ele ficou sentado, sendo banhado pela luz, enquanto a plateia se levantava e o aplaudia, retumbante.
— Eu sempre me pergunto o que teria sido dos Domínios se a senhora tivesse vivido — Sergei disse para o quadro da kraljica Marguerite. — Eu adoraria saber o que a senhora acha das coisas agora.
O vinho que ele bebeu estava fazendo sua cabeça girar um pouco. Lá embaixo, no palácio, a celebração do novo kraljiki ainda estava em andamento; lá fora, as brasas da pira de Allesandra lançavam um brilho vermelho na noite. Sergei saiu sorrateiramente das festividades através dos corredores de serviço para ir para lá, para os aposentos que tinham sido de Allesandra, e agora eram de Jan. Ele ainda segurava uma taça de vinho na mão, que ele ergueu para o retrato de Marguerite enquanto descansava em uma cadeira. Uma chama tênue — acesa para espantar o frio da noite — estalava na lareira sob o quadro; a chama e as velas acesas de ambos os lados davam uma iluminação agitada que animava o rosto pintado e austero de Marguerite. Sergei pensou que a kraljica tivesse se mexido e aberto a boca para falar com ele...
Era uma sensação perturbadora, que trouxe lembranças de Audric e sua loucura.
Sergei tomou um bom gole do vinho e enfiou a mão livre no bolso da bashta. Retirou um seixo liso e branco e manipulou sua superfície lustrosa entre seus dedos. Com o movimento, o vinho espirrou pela borda da taça, jogando gotículas em sua bashta. Ele não se importou.
— Marguerite, nós dois amamos tanto esta cidade e este império que estivemos dispostos a fazer qualquer coisa por ela. Eu me pergunto... Será que Nessântico nos ama por nossa paixão e fé? Será que ela se importa? A senhora às vezes se arrepende da vida que levou, como eu? Hum... De alguma forma, conhecendo a senhora como eu conheço, eu duvido. A senhora sempre foi tão segura de si.
Sergei ergueu a taça em brinde, depois a levou à boca, a virou e acabou com o vinho em um longo gole. Ele pousou a taça na mesa ao lado, pegou sua nova bengala e se levantou da cadeira, soltando um resmungo e um gemido.
— A senhora tem um novo parente para ficar olhando à noite — disse o embaixador para Marguerite. — vamos esperar que ele seja um bom governante, tão forte quanto a senhora foi.
Ele percebeu que ainda segurava a pedra. Ele a levou ao ouvido.
— Eu não ouço ninguém.
Sergei bateu com o seixo no nariz e ouviu o som de pedra no metal. Ele riu, cambaleou um pouco ao ficar em pé ali, e recolocou a pedra no bolso.
— O que acontece conosco quando morremos? — perguntou o embaixador para o quadro. — Cénzi realmente nos espera para nos julgar? Eu agradeceria um sinal, Marguerite. Realmente agradeceria.
O quadro olhou fixamente para Sergei à luz da lareira. O olhar pintado de Marguerite se recusava a deixá-lo ir. Finalmente, o embaixador esfregou o nariz e fungou.
— Sem resposta, hein? A senhora sempre manteve seus segredos. Bem, acho que eu vou descobri-los muito em breve.
Sergei fez uma mesura para o quadro e quase caiu. Ele tocou na pedra dentro do bolso. Saiu do aposento, deixando a taça sobre a mesa e, cambaleando, desceu pela escada de serviço novamente. Ao chegar ao corredor da criadagem perto do Salão do Trono do Sol, Sergei ouviu o barulho dos foliões, ainda conversando. Ele seguiu na outra direção e saiu no jardim. O ar fresco da noite pareceu arejar sua mente. Sergei podia sentir o cheiro de cinzas e madeira queimada — bem longe no jardim, criados estavam mexendo e espalhando os carvões da pira. Ele balançou a cabeça e esfregou a barba rala das bochechas. O embaixador deu a volta por esse lado do palácio em direção à Avi a’Parete, ainda apinhada de pedestres e carruagens, mesmo a altas horas. Do outro lado da Pontica a’Brezi Veste, ele viu a torre e as muralhas da Bastida.
Sergei respirou fundo. Contra as nuvens iluminadas pelo luar, a torre estava escura, e uma pequena luz brilhava em uma das janelas superiores, parecendo chamá-lo. A mão de Sergei, no bolso da bashta, tocou novamente o seixo da Pedra Branca.
Ele suspirou e começou a caminhar na direção contrária.
Epílogo: Nessântico
Havia outro kraljiki sentado no Trono do Sol, banhado pela luz dourada — mais um parente da grande kraljica Marguerite. Os Domínios estavam unificados novamente, e o novo kraljiki também sustentava o título de hïrzg de Firenzcia. Havia um novo archigos sentado no trono do Templo do Archigos, onde os archigi se sentavam por séculos, mas esta era uma fé concénziana alterada e enfraquecida, e muitos dos que andavam pelas ruas de Nessântico não eram mais fiéis.
No oeste distante, do outro lado do Strettosei, havia um novo tecuhtli, com um jovem nahual a seu lado.
Uma criança que se tornara um jovem poderoso voltou a ser pouco mais que uma criança novamente. E a Pedra Branca desapareceu mais uma vez, talvez para voltar ou para cair completamente em esquecimento.
Nessântico — a cidade, a mulher — não se importava. Tais movimentos não a incomodavam. A história não estava encerrada. Haveria mais discussões, mais conflitos. Tronos passariam. Vitórias e derrotas, os gêmeos rivais da guerra, se enfrentariam com novos jogadores.
Ela não se importava. A história não estava encerrada porque a história nunca termina. Não pode terminar.
As pessoas que andavam pelas ruas de Nessântico nasceriam e morreriam, para serem substituídas por outras. O Trono do Sol sentiria o peso de dezenas de futuros kralji ainda não nascidos, e eles seriam bons ou maus líderes, mas com o tempo, todos eles — independentemente de quão bons ou maus eles fossem — eventualmente sairiam da longa e infinita história.
Mas ela nunca sairia. Nessântico esteve na história desde o início. A história era dela, e não terminaria até que Nessântico chegasse ao seu fim, e ela...
Era imortal.
Sua sorte tinha mudado mais uma vez. De um reino estilhaçado, um novo e mais forte surgiria. O rosto que o A’Sele refletia de volta para Nessântico mudaria. Algum dia até mesmo a própria linhagem dos kralji talvez desaparecesse. Talvez.
Mas não ela. Ela nunca.
Nessântico continuaria. Ela entraria naquele longo futuro a passos largos: viva, respirando, eterna, a personagem central da história da terra. Seu rosto seria reescrito, as velhas rugas seriam arrancadas e substituídas por novas. Nessântico envelheceria; seria remoçada, sem parar.
A história não terminaria.
A história não podia terminar até que ela mesma tivesse morrido.
E isso, Nessântico dizia para si mesma, jamais poderia acontecer.
Rochelle Botelli
Rochelle observou Nico, sobrecarregado de correntes enquanto era ajudado a subir na plataforma, com o Velho Nariz de Prata a sua direita. Ela se sentiu impotente, uma sensação mais aguda agora do que quando ela viu Nico na torre da Bastida, da Avi a’Parete. Na ocasião, Rochelle não teve esperanças de ajudá-lo. Agora, ele estava tão perto: longe das horríveis pedras negras da Bastida; sem corredores desconhecidos entre os dois; separados apenas pelos ténis e alguns gardai.
E, no entanto, Rochelle não podia ajudá-lo. Seria capturada e jogada no chão antes que pudesse chegar a Nico, ainda que vários deles morressem como consequência. Mas ela fracassaria. Era inevitável. Esta tinha sido outra lição de sua matarh. “Certifique-se de que as chances estão a seu favor antes de agir. Às vezes, é preciso aceitar que não se pode vencer, e sequer tentar.”
Estar tão extremamente perto dele, ver o irmão novamente e não poder ajudá-lo...
Isso doía. Machucava tanto quanto o gume de uma espada. Mas havia uma coisa que Rochelle poderia fazer hoje, se tivesse a chance. A kraljica estava ali, sua mamatarh, e embora Allesandra estivesse tão bem guardada quanto seu irmão, talvez houvesse um momento, uma chance. A mão de Rochelle segurou a adaga sob sua roupa, a adaga que roubara de seu vatarh. O juramento feito para sua matarh ardia na sua cabeça.
Se ela não podia salvar uma vida, talvez pudesse tirar uma tão importante quanto.
Na plataforma, Nico se curvou para os ca’ e co’ em sua própria plataforma elevada.
— Kraljica, conselheiros. E, especialmente, ténis. Eu vim implorar por seu perdão e compreensão.
Sua voz soou cansada, ele olhava ao redor. O olhar de Nico passou por cada um deles, Rochelle ficou na ponta dos pés, tentando enxergar melhor sobre as pessoas à volta. Então aconteceu. Os olhos de Nico encontraram os seus. Ela sentiu a conexão e o reconhecimento. Nico olhava diretamente para Rochelle, e seus lábios abriram um leve sorriso, como se ele a reconhecesse. Nico acenou com a cabeça para ela, como se dissesse que sabia o porquê de Rochelle estar ali, como se pedisse para ela ser paciente. Ela quis acenar para o irmão, berrar seu nome, mas o olhar de Nico se voltou para os dignitários no palanque, e sua voz ganhou volume e poder. Rochelle pôde ouvir enquanto avançava na multidão para se aproximar da plataforma. A voz de Nico continuou a inflamar e pulsar; era como se a luz de sol de verão caísse sobre ela. Ela ouviu umas palavras aqui e ali:
— Eu pensei que fosse a Voz de Cénzi... Lamento profundamente pelo que fiz... Eu acreditava. E ainda acredito...
Sobre a multidão, Rochelle viu Nico erguer as mãos, e o gesto chamou sua atenção. Ela parou, observando, curiosa.
— Eu permiti que o archigos e as pessoas dentro da fé concénziana acorrentassem e prendessem o meu dom com seus grilhões humanos quando, na verdade, Cénzi não coloca tais limitações nele. E isso os numetodos sabiam desde o princípio, justiça seja feita. Foi o que eu finalmente percebi e é isso o que eu demonstrarei para vocês agora.
Nico?
Ela não viu claramente o que aconteceu em seguida. Era como se Nico tivesse se envolvido em um manto negro. Rochelle ouviu pessoas gritando e gesticulando, viu o Velho Nariz de Prata recuar a mão da escuridão soltando com um xingamento, e então...
Nico sumiu, e as pessoas na praça estavam boquiabertas. Os gardai estavam agitados, como um enxame de abelhas cuja colmeia tivesse sido golpeada. Rochelle se moveu para a borda traseira da plataforma da kraljica, logo atrás de um anel de gardai. Eles pulavam sobre o palanque agora, cercando a kraljica e desembainhando suas espadas, e Rochelle recuou. Não havia esperança de chegar a Allesandra agora. Nenhuma. Mais uma vez, esta era uma das ocasiões em que ela deveria se permitir fracassar.
Rochelle voltou a penetrar na multidão, longe dos olhos desconfiados dos gardai, longe dos ténis de robes verdes, que pareciam tão irritados quanto nervosos.
Uma mão tocou seu ombro e ela se virou, com a adaga em punhos. Ela podia matar alguém nessa multidão facilmente e ainda escapar na confusão...
Mas sua mão interrompeu o golpe.
— Nico...
— Shhhh! — ele sibilou.
Nico tinha coberto a cabeça com um capuz; seu rosto estava visível apenas para quem olhasse diretamente para ele. Mas mesmo meio escondido como estava, Nico parecia incrivelmente exausto e tenso. A mão no ombro de Rochelle tremeu, e ela sentiu o irmão esmorecer, como se não conseguisse ficar de pé. Sob a sombra do capuz, havia olheiras mais escuras sob os olhos.
— Cénzi me disse que você estava aqui. Ele me mostrou você. Venha! — Ela olhou para a plataforma, e Nico balançou a cabeça. — Não. Agora não, Rochelle. Vamos! Eu preciso da sua ajuda.
Ele passou o braço pela irmã. Com o peso apoiado sobre Rochelle, ele a levou embora, através da lateral da multidão, onde havia menos gente, longe da agitação crescente e da praça, até que os dois andaram por uma rua decorada com placas de lojas e cheia de consumidores, embora poucos parecessem interessados nas mercadorias exibidas nas vitrines ou pelos ambulantes das calçadas. Suas expressões eram graves e estressadas, Rochelle se lembrou das mesmas expressões nos rostos daqueles que fugiam da cidade quando ela chegou.
Nico finalmente parou perto de um café.
— Você tem dinheiro? — ele perguntou, Rochelle assentiu. — Ótimo. Eu preciso sentar e comer; eles dificilmente vão me procurar aqui.
Os dois pegaram uma mesa na parede do café e pediram vinho, queijo, pão e algumas carnes. O garçom parecia sinceramente contente por ter um freguês; sem dúvida a clientela tinha sido bem mais rara do que o normal nas últimas semanas.
Rochelle observou Nico enquanto ele comia. O irmão tinha mudado bastante. O Nico da sua memória estava sempre ansioso e apreensivo enquanto se preparava para ir ao Templo de Brezno como um acólito. Rochelle o tinha visto mais uma vez quando ele vestiu o robe verde de téni e fez o juramento a Cénzi naquele mesmo templo, e Nico parecia tão seguro de si naquela época...
O Nico que estava diante dela agora estava mais magro; suas bochechas estavam encovadas. Os traços do rosto estavam mais marcados e mais vincados, e Rochelle pôde notar a dor da vida escrita na face do irmão. Nico sempre tinha sido intenso, uma intensidade de que ela se lembrava das primeiras memórias dele, mas isso estava mudado agora. Havia se tornado uma coisa mais rígida, mais entranhada dentro dele, e mais perigosa.
Rochelle sabia que tinha mudado também. Talvez mais do que Nico. Nenhum dos dois era mais quem tinha sido naquela época. Eles podiam ser irmão e irmã, mas o tempo os tinha afastado e ela não sabia se algum dia os dois seriam próximos novamente.
— Você está me encarando. — Nico pousou a taça e se serviu de mais vinho da garrafa.
— Eu não vejo você há anos, Nico.
Ele sorriu.
— Você cresceu e se tornou uma jovem atraente. — então seu sorriso desapareceu. — Você também assumiu o legado da matarh. Ouvi rumores de que a Pedra Branca voltou. É você?
Rochelle assentiu.
— Você também ouve as vozes?
— Não. Não sou louca, Nico.
— Ainda não — respondeu ele. — Mas você não pode fazer o que faz e continuar sã. Não pode fazer o que faz e esperar algo mais que retalhadores de almas após a sua morte. Cénzi vai considerá-la abaixo das expectativas, irmã.
Isso tinha sido tão similar ao que Sergei lhe dissera que ela quis rir.
— Você vai me dar um sermão? — Rochelle fungou desdenhosamente. — Você estava acorrentado, Nico. Quantas pessoas morreram quando você e sua gente tomaram o Velho Templo?
Ela viu o irmão ficar vermelho com a acusação.
— Desculpe, Nico — disse Rochelle, pousando sua mão sobre a dele. — Eu esqueci. Eu queria ter conhecido Liana.
Nico meneou a cabeça, e ela notou os olhos do irmão nadarem em uma umidade repentina. Ele secou os olhos, quase que com raiva.
— Eu também queria isso. Veja bem, este foi o meu castigo. Minha loucura. Cénzi sempre nos dá avisos, de uma forma ou de outra. Só que às vezes nós não prestamos atenção a eles ou vemos sua verdadeira natureza.
— Você ainda acredita, depois de tudo isso? — perguntou Rochelle. — Ainda acha que seu destino está dentro da fé concénziana?
— Sim. — Ele disse com firmeza, sem hesitação, com a força retornando à voz. — E quanto a sua própria fé, Rochelle? Você ainda acredita?
— Eu não sei. Acho que sim, mas... — Ele ergueu um ombro embaixo da tashta. — Eu não sei. Mas você acredita?
— Sim — falou Nico. — Ainda. Cénzi contém tudo, Rochelle. Ele contém tudo que é bom e contém tudo que é mau também. É por isso que os moitidi lutaram entre si e contra Cénzi; porque eram Seus filhos e, portanto, todas as possibilidades estavam contidas dentro deles. E Ele trouxe você aqui, agora, por uma razão.
Rochelle deu uma risada amarga.
— Você não faz ideia de por que eu estou aqui.
— Não faço?
Nico estendeu a mão sobre a mesa e pegou uma baguete. Ele arrancou um pedaço com a mão e enfiou na boca com o indicador. Mastigou alegremente por um momento, depois tomou um gole de vinho. Em seguida, ele se inclinou na direção da irmã, de maneira conspiratória.
— Você está aqui para matar a kraljica — sussurrou Nico, se recostando novamente.
Rochelle sentiu o rosto ruborizar, e ele riu.
— Ah, não é uma revelação tão grande assim. A matarh pediu o mesmo para mim, quando eu me tornei um téni. “Você estará perto da kraljica um dia,” ela me disse. “Quando você for um a’téni ou talvez até mesmo o archigos. Estará perto da kraljica, e quero que você a mate por mim, pelo que ela fez para arruinar minha vida.” Não foi isso o que pediu a você também?
— Foi similar — admitiu Rochelle.
— Foi o que eu pensei. Mas não é por isso que você está aqui, Rochelle. Você está aqui porque Cénzi quis que me visse. Ele queria nos reunir.
Ela sentiu uma arrepio na espinha, como se uma brisa de inverno tivesse passado por ela, para lhe acariciar nesse momento, Rochelle se perguntou de onde tinha vindo essa sensação, fazendo com que ela tremesse e se abraçasse. Ele esteve lá, depois se envolveu em escuridão e foi para outro lugar. Se eu pudesse fazer isso, ora, a Pedra Branca poderia ir a qualquer lugar. A Pedra Branca poderia matar a kraljica facilmente...
— O que você fez lá fora... consegue fazer de novo? Pode me ensinar a fazer aquilo? — perguntou Rochelle.
— Há um mês, eu teria dito não. Eu teria dito que apenas os fiéis puros podiam e deveriam usar o Ilmodo. Mas agora... — Nico acabou com o vinho diante de si. — Eu não sei. Talvez qualquer coisa seja possível.
— E por que você acredita que Cénzi queria que ficássemos juntos?
— Eu realmente não sei ainda — respondeu ele —, mas talvez nós dois descubramos.
Varina ca’Pallo
Varina pediu desculpas para a kraljica e saiu do Velho Templo às pressas, com um quarteto de gardai designado para ela. Allesandra, os conselheiros, Sergei — todos eles estavam cercados por gardai, e todos pareciam estar em pânico. Varina, no entanto, estava tomada por uma certeza assustadora. Ela correu para a Casa dos Numetodos, com o estômago ardendo e a testa franzida de preocupação.
As correntes caídas vazias na plataforma e Nico sumido...
Varina temia saber para onde ele tinha ido.
Antes mesmo que a carruagem parasse, ela já estava quase correndo na direção da porta, algo que não fazia há anos.
— A’morce... — falou Johannes quando ela entrou na casa, parecendo surpreso com a aparição de Varina e seu estado ofegante —, nós não a esperávamos de volta...
— Onde ela está? — interrompeu ela. — Serafina... onde ela está?
Sua voz soou estridente, mas Varina não se importou.
— Ora, lá em cima, com Belle, é claro. Eu acho que...
Ela passou correndo por Johannes e subiu a escada batendo os pés, com o coração disparado. Escancarou a porta. Belle, uma jovem recruta dos numetodos e também ama de leite, pois tinha acabado de dar à luz, estava sentada em uma cadeira, próxima à janela do gabinete de Varina. Assustada, Belle se cobriu; Varina se deu conta de que ela estava amamentando o bebê.
— A’morce? Está tudo bem?
Seu coração, que pareceu ter tentado sair pela garganta, se acomodou novamente no peito. As cenas terríveis que ela imaginou a caminho de casa desapareceram aos poucos de sua mente: Belle caída no piso acarpetado, a Casa dos Numetodos pegando fogo ou arruinada, os outros amigos mortos ou feridos, e a filha de Nico desaparecida.
Como o próprio Nico.
Varina fechou os olhos por um momento, com a mão na boca.
— Eu pensei... — ela começou, balançando a cabeça em seguida, para afastar a ideia.
Seu coração começava a diminuir o passo, seu fôlego estava se recuperando, e agora Varina se sentia tola por causa do pânico.
— Nada demais, Belle. Não sei no que eu estava pensando. Como está Sera?
Belle sorriu. Ela levantou o pano sobre o ombro e mostrou para Varina o bebê que mamava no peito, com sua boquinha sugando o peito de olhos fechados.
— Faminta como um filhote de lobo — respondeu a ama de leite. — Estou me perguntando se vai sobrar alguma coisa para o meu bebê.
Belle riu, acariciando a cabeça de Sera, com a coroa de cabelo dourado.
— Eu encontrei outra ama de leite para ela; minha prima, Michelle, perdeu o bebê no parto e disse que está disposta a vir dar de mamar a Sera durante as manhãs. Juntando as duas, nós manteremos a pequenina bem alimentada. Agora que os firenzcianos estão chegando, devemos estar a salvo.
Eu queria ter tanta certeza... Varina forçou um sorriso no rosto.
— Obrigada — respondeu ela. — Diga que pagarei em dobro pelo inconveniente.
— A senhora é muito generosa, a’morce.
Sera soltou o mamilo por um momento e começou a chorar, com lágrimas brilhando em seus olhos azuis, e Belle colocou o peito de volta na boca da bebê. Ela se acalmou novamente.
— Como foi...? — A ama de leite parou, procurando pelas palavras, e completou — O pedido de desculpas?
— Insatisfatório, infelizmente. Nico mostrou mais uma vez por que era o Absoluto dos morellis. Ele escapou. Desapareceu.
Varina viu Belle dar um abraço protetor em Sera — ela viu as suspeitas passarem pela cabeça da jovem.
— A’morce? Talvez a senhora devesse ficar aqui na Casa dos Numetodos hoje à noite até ter proteção. Podemos arrumar um lugar para o bebê...
— Eu posso lidar com Nico sozinha se precisar — disse Varina, torcendo para que sua voz tivesse soado mais confiante do que ela se sentia.
Agora que tinha se acalmado um pouco, agora que sabia que Serafina estava a salvo, Varina estava menos preocupada. Com certeza Nico estaria escondido em algum lugar; talvez até tivesse saído da cidade. Ela se dirigiu até a gaveta da escrivaninha e tirou a chispeira que ficava ali. Verificou se o tambor estava cheio de areia negra e se havia uma bala no cano. Ela enfiou a arma na faixa da tashta, embaixo do manto.
— Termine de amamentá-la que eu fico com ela — falou Varina.
Belle assentiu.
— Eu tenho que voltar para a casa da minha irmã, de qualquer forma. A essa altura, a minha pequena deve estar acordando da soneca e vai chorar por atenção. Essa aqui está quase acabando, eu acho.
A ama de leite se recostou; Sera deixou o mamilo sair da boca, abriu os olhos por um instante e depois os fechou. Sua respiração ficou lenta e silenciosa.
— Pronto, viu só? Já adormeceu, essa gulosinha. Eu coloquei uma xícara em sua escrivaninha com mais leite, caso a senhora precise. Mandarei Michelle vir amanhã, antes da Primeira Chamada. Aqui está, a’morce.
Belle se levantou, colocou Serafina nos braços de Varina e amarrou o laço da tashta para se cobrir novamente. Enquanto a ama de leite arrumava as coisas no gabinete, Varina olhou para o rosto adormecido: as bochechas fofas e rosadas; o sossego confiante e saciado com que o bebê dormia; os dedinhos, uma mão cerrada em um punho, a outra agarrada ao cobertor em que ela estava enrolada. Varina sentiu uma... ela não sabia definir essa emoção, mas dentro dela havia uma necessidade intensa de proteger a criança, assim como uma vez sentiu o mesmo impulso com Nico.
E você fracassou nessa época. Deixou que ele escapasse de você, e aquela louca acabou levando Nico.
Varina se debruçou e beijou a testa de Serafina. Belle sorriu para ela.
— Eu vejo a senhora amanhã, a’morce. A coitadinha não merecia perder sua matarh e vatarh desta forma.
— Não — concordou Varina. — Ela não merecia.
Belle se inclinou e beijou Sera, e fez uma mesura para Varina.
— Eu vejo a senhora de manhã com minha prima.
Assim que Belle saiu, Varina se sentou na cadeira perto da janela por um tempo, balançando para frente e para trás, vendo Sera dormir enquanto ouvia as pessoas passarem no corredor lá fora ou andarem no jardim abaixo da janela. Pensou brevemente em colocar Serafina deitada e deixá-la dormir enquanto trabalhava um pouco, mas pensou melhor. Ela enrolou mais o bebê no cobertor, pegou seu próprio manto e saiu do gabinete. Ao descer as escadas, passou por Johannes e disse.
— Desculpe a minha grosseria. Eu estava preocupada.
Ele assentiu.
— Eu ouvi o que aconteceu no Velho Templo. Eu compreendo, a’morce. A senhora está indo para casa? Por que não deixa que eu ou outra pessoa a acompanhe?
— Eu ficarei bem. Ainda é cedo, e há muitas pessoas nas ruas. Vejo você amanhã de manhã. Haverá uma reunião com Allesandra sobre nosso progresso com as chispeiras.
Johannes fez uma mesura para ela, e Varina saiu da casa, cruzando rapidamente o pátio frontal e passando pelos portões, em seguida ela virou à esquerda na Avi a’Parete em direção à casa deles, a alguns quarteirões de distância. Era assim que ela ainda pensava: a casa deles, como se Karl ainda estivesse vivo, como se ela pudesse abrir a porta da biblioteca e encontrá-lo sentado à escrivaninha, meditando sobre algum tomo antigo. Às vezes, Varina ainda ouvia um barulho e se virava, com esperança de vê-lo, mas ele nunca estava lá.
Ela abraçou Sera com mais força enquanto caminhava. As pessoas que passaram por Varina às vezes a cumprimentavam, mas a maioria estava tensa e séria: pessoas cumprindo seus próprios afazeres e preocupadas com a cidade e com o que aconteceria. A escassez do tráfego fez parecer que era bem mais tarde do que era na verdade; em geral o trânsito na Avi atingia o pico de barulho e de pessoas entre a Segunda e a Terceira Chamada, mas não hoje.
Varina virou a esquina, entrando na própria rua, descendo a alameda curva em direção ao A’Sele. Ela chegou ao portão da mansão e o destrancou, sem se preocupar em chamar um dos criados. Varina fechou o portão ao entrar.
— Varina.
A voz, que tinha surgido da esquerda, provocou um susto e fez Varina segurar Sera com tanta força que fez o bebê chorar. Ela se virou lentamente e viu duas figuras envoltas nas sombras da trepadeira enroscada no pilar de pedra do portão.
— Nico — disse Varina. — Você não deveria estar aqui.
Atrás de Nico, uma jovem a encarava atentamente. Ele sorriu.
— É possível — concordou Nico. — Mas você tem algo que preciso ver.
Varina deu um passo para trás. Ela sentiu o peso da chispeira sob o manto; sentiu a energia dos feitiços em sua mente, esperando para serem lançados. Sera se agitou em seus braços, agora acordada.
— Nico, eu estou lhe avisando. Não vou entregá-la a você. Se você tentar levá-la, eu vou lutar com você para protegê-la.
— Eu não quero tirá-la de você — ele respondeu. — Estou feliz que você tenha ficado com ela, por enquanto, já que eu sei que você faria exatamente o que acabou de dizer que faria. Eu só quero vê-la; só quero ver minha filha. Por favor, Varina?
— Eu não vou deixar você segurá-la.
— É justo.
— E diga para esta mulher ficar bem para trás.
Nico acenou com a cabeça para a companheira, que deu alguns passos para trás. Varina tirou o pano do rosto do bebê quando Nico se aproximou dela. Sera olhou para o rosto de Nico olhando para ela; o bebê viu o rosto dele abrandar, seus lábios formarem um sorriso, e Nico dar uma risadinha ao vê-la.
— O formato do rosto... eu consigo enxergar a Liana — falou ele roucamente.
Nico estendeu a mão para tocá-la, e Varina apertou o bebê contra o corpo ainda mais. Ela sentiu a energia de um feitiço fervilhar em sua cabeça. Mas Nico só acariciou a bochecha da menina com o dedo, rindo novamente quando Sera ergueu a mão e apertou seu dedo.
— Ela é forte também — ele comentou. — Isso é bom. Ei, Serafina. Eu sou seu vatarh...
Ele olhou brevemente para Varina.
— Serafina é um bom nome.
— Nico, se eles pegarem você novamente... não serão tão gentis da próxima vez.
— Então eu preciso ser cuidadoso, não é? Você vai sair de Nessântico?
Varina balançou a cabeça.
— Não? — Nico pareceu desapontado ou talvez preocupado. — Mesmo com o bebê?
— Se a situação chegar a este ponto, eu mandarei Sera embora com alguém em quem confio. — Varina fez uma pausa. — E não será você, Nico. Lamento.
Ele inclinou a cabeça. Uma tristeza acentuou as rugas em volta dos olhos.
— Eu compreendo. Mas... na sua idade, Varina, temos que ser realistas. E não é apenas a idade; olhe para você: o estudo de magia cobrou seu preço. O bebê precisa de uma matarh que seja mais jovem.
Varina pensou que Nico tivesse olhado de relance para a jovem que o acompanhava. Varina também olhou para ela. Não reconheceu seu rosto, mas havia algo na jovem, alguma coisa vagamente familiar... Varina balançou a cabeça.
— Estou ciente de que tenho idade para ser a mamatarh de Serafina e sei o que meus estudos fizeram comigo. Eu vejo meu rosto no espelho. Já fiz minhas consultas. Mas, por enquanto, Sera está sob minha responsabilidade, e eu vou protegê-la. Eu falo sério, Nico.
— E isso está claro — disse Nico. — Eu já disse que estou feliz que você tenha ficado com Serafina. Você sempre foi boa para mim, naquela época. Às vezes eu queria...
Ele olhou mais uma vez para a mulher que o acompanhava, respirando fundo.
— Mantenha Serafina a salvo. Talvez algum dia eu realmente possa ser o vatarh dela.
— Você é o vatarh dela — falou Varina. — E eu vou contar sobre você para Sera. Ela vai saber quem você é. Eu prometo.
Ele assentiu mais uma vez. Ele tirou o dedo da mão do bebê, e Sera se agitou. Nico acariciou sua bochecha de novo.
— É hora de ir — disse ele. — Adeus, pequena Serafina.
Nico se inclinou e deu um beijo na filha, ajeitando as costas a seguir. A mulher que o acompanhava já estava no portão.
— Deixe-me destrancá-lo para você — disse Varina, mas a jovem lhe lançou um olhar de desdém.
Ela retirou dois pedaços finos de aço de algum lugar do manto, se inclinou e, um momento depois, o portão estava aberto. A mulher sorriu para Varina. Nico fez uma mesura, quase como se estivesse saindo da casa após uma visita.
Um instante depois, ele e a companheira tinham ido embora. Varina fechou o portão novamente, ouvindo o clique da tranca. Sera estava chorando.
Ela abraçou a bebê e a embalou em seus braços até que se acalmasse de novo.
Brie ca’Ostheim
Os bumbos batiam em cadência enquanto o exército se aproximava da cidade. Os a’offiziers, que seguiam as ordens do starkkapitän ca’Damont conduziam o exército em direção aos campos ao norte da Avi a’Firenzcia, sem entrar na cidade em si. Os cidadãos das vilas imediatamente fora dos portões aplaudiram os batalhões que avançavam com seus estandartes negros e prateados tremulando sobre eles. E aplaudiram especialmente a hïrzgin que os acompanhava.
Brie acenou de volta para os cidadãos e abriu o sorriso aperfeiçoado com os anos de experiência em negócios de Estado, uma máscara atrás da qual ela podia esconder seus medos e incertezas, um gesto alegre para a multidão, desvinculado de qualquer sensação genuína. Nos campos mais próximos ao local onde o exército deveria acampar, uma tenda havia sido montada, com os estandartes de Nessântico e Firenzcia, azul e dourado misturados ao preto e prata. Quando a carruagem de Brie se aproximou, as abas da tenda tinham sido abertas e uma figura coroada apareceu, flanqueada por gardai da Garde Brezno com o uniforme dos Domínios, a hïrzgin viu Sergei ca’Rudka parado atrás da figura coroada. Brie reconheceu a mulher imediatamente, pelos quadros que tinha visto dela: Allesandra. A kraljica caminhou a passos largos e braços abertos em direção a ela, abrindo um sorriso largo. Sergei mancou atrás dela.
— Onde está minha filha-por-casamento? — disse Allesandra ao se aproximar da carruagem de Brie. — Onde está a hïrzgin?
Os soldados correram para abrir as portas do veículo e colocar um degrau para que ela descesse. Brie tomou a mão oferecida e saiu para o sol, piscando e mantendo o sorriso grudado no rosto. A hïrzgin deixou que a kraljica a envolvesse no abraço, levou um beijo numa bochecha, depois na outra. Allesandra cheirava a rosas e romãs; seu abraço era surpreendentemente forte e genuíno.
— Este momento deveria ter acontecido há anos — sussurrou ela no ouvido de Brie. — Eu peço desculpas por isso; a culpa foi minha. Eu queria ter conhecido você e seus filhos há tanto tempo...
Sua voz evanesceu. Brie segurou as mãos de Allesandra. Ela encarou os olhos da mulher, reparando nas dobras em volta, no pó na pele e nas sombras azuis sob as sobrancelhas pintadas e feitas. Ela podia enxergar Jan no formato dos olhos e nos traços da face; viu um reflexo de Elissa, Kriege, Caelor e Eria também. Até mesmo a voz, menos aguda...
— Eu também queria que esse momento tivesse acontecido antes — respondeu Brie. — Há mais tempo do que a senhora imagina, kraljica. Temos tanto o que conversar.
A hïrzgin sabia que Jan lhe chamaria a atenção pelo que ela diria em seguida, mas Brie não se importava. Ela olhou o rosto de Allesandra e não viu nenhum monstro ali.
— Eu quero que meus filhos vejam a mamatarh como ela é, não como Jan a descreveu.
Brie percebeu o sofrimento no rosto de Allesandra.
— Se não me engano, foi o Venerável Carin, no Toustour, que disse que o incômodo da verdade é sempre preferível ao bálsamo da mentira — disse a kraljica. — Ainda assim, há ocasiões em que eu acho que todos nós preferimos as mentiras. Estou certa de que Jan, na cabeça dele, disse o que pensava ser a verdade sobre mim. Infelizmente, eu nem sempre fui uma boa matarh para Jan, e fiz coisas...
Brie se apressou a interromper qualquer confissão que Allesandra pretendesse fazer ao apertar as mãos da mulher.
— Eu tenho certeza de que a senhora fez o que precisava fazer como kraljica. E sei que o Venerável Carin também disse que o passado não pode ser mudado, apenas o presente. Vamos nos apegar a esse momento, kraljica, a senhora e eu, e tornar bom o presente.
Allesandra sorriu novamente.
— Eu espero que meu filho dê valor a esposa e conselheira que tem.
Brie apenas devolveu o sorriso, perfeito e ensaiado.
— Ele dá o máximo valor de que é capaz — respondeu ela — e o mínimo com que consegue escapar impune.
Allesandra riu.
— É assim que as coisas são? — exclamou ela.
A kraljica abraçou a hïrzgin novamente, pegando em sua mão. Ela a ergueu e se voltou para os soldados e chevarittai ao redor.
— Esta é a hïrzgin Brie — proclamou Allesandra — e eu lhe dou boas-vindas a Nessântico como minha filha-por-casamento e como a esposa do próximo kraljiki e matarh de seus herdeiros.
Uma aclamação irrompeu nas fileiras em torno deles, Brie se curvou e acenou para o agrupamento. A hïrzgin se perguntou se eles ainda estariam aclamando em alguns dias.
— Você está com fome? — perguntou Allesandra. — Há um jantar à nossa espera na tenda...
Brie permitiu que Allesandra a acompanhasse até a tenda. Ao passar por Sergei, ela parou e fez o sinal de Cénzi para o homem.
— Hïrzgin — falou o Nariz de Prata. — É bom vê-la novamente.
O embaixador se aproximou dela, e a voz era um sussurro rouco e singelo.
— E eu tenho coisas para lhe contar também.
Dito isso, ele se afastou novamente, sorrindo para Brie e fazendo um gesto para que ela entrasse na tenda, no rastro de Allesandra.
— Você tem certeza de que a garota era Rhianna?
— Rochelle, é o verdadeiro nome; pelo menos é o que ela alega. Mas sim, era a mesma jovem. Tenho certeza.
— E ela também alega ser a filha da Pedra Branca e de Jan?
Sergei assentiu, em silêncio. Brie se recostou na cadeira e balançou a cabeça, sem saber como responder. Ela queria negar, queria chorar, queria gritar de raiva.
Isso explicava tanta coisa. Jan ainda é apaixonado por ela, depois de todos esses anos.
Allesandra tinha retornado para a cidade; Sergei tinha ficado no acampamento após o jantar, dizendo para a kraljica que ele mesmo acompanharia a hïrzgin até o palácio assim que ela estivesse pronta. A mesa onde o jantar tinha sido servido ainda permanecia entre eles, embora os criados tivessem tirado tudo, exceto uma garrafa de vinho e um pouco de pão e queijo. Brie se inclinou, virou a garrafa na taça e ficou observando o vinho espirrar no fundo. Ela se recostou novamente e bebeu.
— E eu acho que é bem possível que a jovem esteja falando a verdade — continuou Sergei. — Eu estou bastante certo disso, na verdade. Eu sei que não é o que a senhora deseja ouvir, hïrzgin, mas temos que considerar que, dada a história que ambos conhecemos, é plausível.
— Mas não é certo.
O embaixador abriu um sorriso sob o nariz de prata.
— Não, não é certo. Eu mandei um pessoal fazer uma investigação e verificar algumas das referências que ela me deu, mas levará algum tempo até que eles me informem alguma coisa, dada a situação atual, e talvez sequer saibamos o suficiente para provar os fatos, de qualquer forma. — Ele deu de ombros. — Mas é nisso que Rochelle acredita, seja isso verdade ou não.
— E ela está aqui.
— Está.
Brie ponderou. Será que ela e Jan planejaram isso? Ou é apenas coincidência?
— Jan sabe? E Allesandra?
Sergei meneou a cabeça negativamente.
— Allesandra definitivamente não sabe, nem eu falei com Jan. Queria contar para a senhora primeiro. Mas eles também precisam saber. — Sergei respirou fundo pelo nariz de metal; o som assobiou um pouco. — A garota é perigosa, hïrzgin. Ela assumiu o papel da Pedra Branca. Diz que foi ela quem matou Rance; contratada por um homem cuja filha a senhora despachou por algum motivo.
— Ah.
A declaração caiu como um golpe em seu estômago. Brie pousou o vinho, levando a mão à garganta.
— Por Cénzi, não... Mavel co’Kella; ela estava grávida. Grávida de Jan. Eu tinha que tirá-la da corte e mandá-la embora. Deve ter sido o vatarh de Mavel co’Kella. Ele estava pleiteando se tornar um chevaritt, mas depois disso... — Ela olhou para Sergei, atormentada. — Eu causei a morte de Rance. Foi por minha culpa.
— Foi o vatarh da garota — respondeu o embaixador. — Não a senhora. A senhora não é responsável pelas ações dele.
— E Rhianna, ou Rochelle... Ela esteve no palácio esse tempo todo, cuidando de mim e dos meus filhos, e Jan...
Brie se calou. Sergei não disse nada. Ela se sentiu observada pelo embaixador. A mulher no meu pesadelo. Seria ela Rochelle?
— Estou enojada — falou a hïrzgin. — Aquela garota, filha de Jan, meia-irmã dos meus próprios filhos...
— Ela é uma bastarda. Não tem direito real ao trono.
— Eu sei. Há bastardos o bastante — respondeu a hïrzgin, abrindo um sorriso sarcástico e irônico. — Mesmo assim, ela foi a primeira, e Jan...
Brie se deteve, encarando Sergei.
— Eu soube que você chegou a conhecer a Pedra Branca.
— Não — respondeu o embaixador. — Não conheci. Mas eu fui a Brezno não muito tempo depois de ela, bem, depois de ela ter assassinado o hïrzg Fynn. Pelo que eu me lembro, Rochelle deve se parecer muito com a matarh dela, na ocasião.
Brie sentiu o coração bater forte no peito. Sentiu o vinho e o jantar se revirarem no estômago. Mais uma vez, a compreensão emergiu dentro dela: Jan ainda ama Elissa, nunca deixou de amar.
— Elissa. Era como a Pedra Branca se chamava na época. Eu não conhecia a história quando Jan quis batizar nossa filha. Só pensei que fosse um nome que ele gostasse... — A hïrzgin soltou uma risada amarga. — Eu não soube por um ano ou mais, quando já era tarde demais para mudar. Nunca consegui perdoá-lo por isso.
— A senhora quer que eu conte para Allesandra e Jan sobre Rochelle?
Brie sentiu um arrepio de frio repentino.
— Você pode contar para Allesandra, mas eu quero contar para Jan. Quero ver a cara dele quando descobrir.
Sergei inclinou a cabeça e se levantou da cadeira.
— Então eu deixo o hïrzg com a senhora. Mandarei preparar sua carruagem, hïrzgin. A kraljica deve estar se perguntando o que aconteceu conosco.
— Sim — respondeu Brie. — Faça isso. Eu irei em um instante.
Sergei fez uma mesura e saiu da tenda. A hïrzgin se serviu de outra taça de vinho. Ficou sentada ali por vários instantes, encarando o líquido vermelho reluzir na superfície dourada. Eu quero ver a cara dele...
Brie se perguntou como contar para Jan.
Niente
Niente começava a acreditar que eles talvez chegassem a ver as muralhas da grande cidade incontestes.
O exército tehuantino descia as colinas de um vale verde e exuberante, exalando o cheiro das estranhas árvores da região, pontilhada por bolsões de fazendas e vinhedos entalhados na floresta. Era um terreno do qual Niente se lembrava, um terreno que Niente frequentemente revia em seus sonhos. O exército se separou em três forças, como Atl tinha visto na tigela — a força ao sul cruzou o rio, a força ao norte seguiu em direção ao alto da estrada, e o restante do exército continuou seguindo a estrada paralela ao rio.
Era lá que o tecuhtli Citlali estava abrigado; foi para lá que Atl, como nahual, e Niente seguiram.
Eles sabiam que estavam sendo acompanhados pelos orientais. Ocorreram algumas estranhas escaramuças breves com os guerreiros a cavalo, que vinham gritando, desafiando e se lançando loucamente contra as fileiras — até mesmo os guerreiros supremos estavam comentando sobre a bravura incontestável dos orientais, ao mesmo tempo em que criticavam suas táticas inúteis e imprudentes. Algumas chuvas de flechas ocasionais caíram sobre eles conforme passavam pelos vales sinuosos, mas os escudos dos guerreiros tinham aparado a maioria, e os nahualli tiraram grande proveito de seus cajados mágicos. Não havia sinal dos feiticeiros orientais, nem dos ténis-guerreiros.
Todas as tentativas orientais de impedir o avanço dos tehuantinos foram comparáveis ao zumbido de moscas importunando o exército.
Eles acompanharam a curva do rio, com vista escassa para as torres de um vilarejo sobre o topo das árvores. Passaram por uma paisagem pastoral, com seus campos cultivados esvaziados de colheitas e gado. Certamente uma tática, para que o exército tehuantino tivesse que colher alimentos mais adiante, o que eles fizeram — destacamentos de saqueadores foram enviados para longe das forças, eles roubaram o gado bovino e limparam os campos como gafanhotos, e toda a comida foi trazida de volta para alimentar os estômagos exigentes dos guerreiros. A casa de fazenda ou mansões ocasionais que os tehuantinos encontravam estavam abandonadas e silenciosas. Os sons do exército abafavam os sons que Niente imaginava que eles talvez ouvissem se estivessem cavalgando desacompanhados pela estrada: os chamados dos pássaros orientais, o vento soprando as folhas, o mugido do gado.
Mesmo assim, a paisagem parecia quieta demais. Niente começou a espiar em volta, nervoso; ele notou que Citlali e os guerreiros supremos ao redor fizeram o mesmo e se deu conta de que os cavaleiros da vanguarda, que já deveriam estar de volta, ainda estavam ausentes.
Ouviu-se um movimento nos cumes baixos em volta do exército tehuantino: sob o sol vespertino, brotos reluzentes de homens surgiram do solo.
— Atl! — gritou Niente, pegando seu cajado mágico, mas o alerta chegara tarde demais.
Bolas de fogo desenharam um arco no céu em direção aos tehuantinos, deixando um rastro de fumaça negra para trás, o ar ficou encoberto pelas hastes de flechas. Elas caíram assobiando, e os guerreiros ergueram seus escudos imediatamente para conter as flechas; mesmo assim, Niente viu vários guerreiros caírem, ao mesmo tempo em que ele lançava contrafeitiços em direção às bolas de fogo. A mais próxima explodiu muito acima deles, emitindo um estrondo que fez Niente querer tapar os ouvidos com as mãos. Atl também entoava gatilhos de feitiços, e outra bola de fogo foi desviada descontroladamente para o lado, rasgando a campina e cuspindo lama, grama e fogo líquido onde caiu. Mas outra bola de fogo veio rápido demais na direção dos estandartes do tecuhtli; Niente jogou um contrafeitiço, mas era tarde demais. Niente pôde sentir o calor do feitiço de guerra irrompendo em gotas pegajosas de fogo, e o abalo se apoderou dos tehuantinos. Niente atirado de seu cavalo, enquanto gritos eram emitidos dos guerreiros mais próximos. Niente ficou preso por um instante sob o animal enquanto o cavalo tentava se levantar novamente. A grama estava em chamas de ambos os lados da estrada de terra. Trompas orientais soaram uma sequência crescente de notas, seguidas pelo rufar de soldados em resposta e os gritos dos guerreiros supremos conforme tentaram restaurar a ordem para as fileiras assustadas e desorganizadas.
O ruído de metal retinindo soava enquanto Niente lutava para se levantar, usando o cajado mágico como bengala. Ele sentiu uma mão pegar em seu braço e o puxar: Atl, com o rosto manchado e sujo de fuligem.
Tudo em torno dele era um caos. Havia um grande número de guerreiros mortos perto da estrada, onde a bola de fogo havia caído, mas o tecuhtli Citlali e o guerreiro supremo Tototl ainda estavam vivos. Os dois gritavam e gesticulavam para a esquerda, onde uma batalha em grande escala acontecia entre as forças orientais e tehuantinas. Eu nunca tinha visto este ataque, Niente se deu conta. Isso é novo... Urrando, com a lança em riste, Citlali montou novamente no cavalo, auxiliado por dois guerreiros.
— Nahual Atl! — Niente ouviu Citlali gritar. — Comigo! Comigo!
A mão esquerda de Atl soltou o braço de Niente. Ele deu um pulo e montou em seu próprio cavalo.
— Nahualli! — chamou Atl. — Ao tecuhtli!
Citlali e Tototl já estavam galopando em direção à linha de frente da confusão, Atl agora estalava as rédeas do cavalo em perseguição. Niente procurou por seu próprio cavalo e viu o animal de cabeça baixa a alguns passos de distância. Ele caminhou até o animal — mancando, sentindo a dor de seus músculos distendidos por toda a lateral do corpo. O cavalo se afastou quando Niente se aproximou, ele notou que sua pata dianteira estava quebrada; o animal não podia apoiar peso nela. Niente praguejou. Ele começou a correr arrastando os pés e se juntou aos guerreiros seguindo em direção à linha de batalha no meio da campina. À sua frente, Niente viu os nahualli lançando seus feitiços de guerra em direção às fileiras inimigas, ele ergueu seu próprio cajado mágico para se juntar ao bombardeio enquanto corria, berrando os gatilhos.
Fogo e raios caíram de nuvens baixas e repentinas. Eles bateram no chão bem acima do cume e em meio aos orientais. Os guerreiros rugiram — um grito de guerra para Sakal, invocando a fúria do deus-sol — e avançaram. Niente viu os estandartes do Citlali subindo a encosta com os orientais em retirada diante do tecuhtli; as linhas de frente foram rompidas, e os feridos estavam sendo arrastados de maneira vergonhosa. A retirada foi humilhante e completa. Citlali deu ordem para interromper o contra-ataque enquanto os orientais sumiam nas florestas e nas faixas de área arborizada entre os campos. Trompas orientais soaram uma sequência de retirada. O estandarte do tecuhtli tremulou brevemente no topo do cume — Niente viu Atl ao lado dele —, e Citlali começou a descer o morro a meio galope em direção à estrada novamente, acompanhado por Tototl. Niente não conseguia enxergar o rosto através da águia vermelha tatuada na face e do sangue espalhado sobre ela. Ele avançou entre os guerreiros em direção ao lugar em que Citlali estava desmontando. A lâmina da espada do tecuhtli estava coberta de sangue.
Agora Niente pôde ver a expressão no rosto de Citlali: ele estava olhando para corpos dos guerreiros mortos e feridos, furioso, enquanto os curandeiros corriam para cuidar dos vivos, e os sacerdotes davam a extrema unção aos mortos. Citlali se agachou ao lado de vários guerreiros, tocando os rostos daqueles que ele e Niente conheciam há anos. O cheiro de carne queimada era forte, e a grama da campina ainda estava em chamas entre vários deles.
Atl não estava muito longe de Citlali e Tototl. O cajado mágico pendia de sua mão, como se estivesse exausto. A cabeça balançava, como se não quisesse acreditar.
— Eu não vi isso, taat — disse o jovem quando se aproximou de Niente. — Eu procurei, mas isso estava escondido. Por que eu não vi isso?
— Por que, realmente?
Uma voz o interrompeu antes que Niente pudesse responder. Citlali tinha se virado para os dois.
— Eu tenho dois nahualli que são considerados os mais poderosos na visão premonitória desde Mahri e, no entanto, nenhum deles me deu qualquer pista sobre isso. Eu não estou triste pela perda; nossos guerreiros morreram a morte boa, a morte da batalha, como deveriam. Mas você, Atl, me disse que os orientais não nos enfrentariam frontalmente até chegarmos à grande cidade. — Seu olhar colérico se virou para Niente. — E você disse que não conseguia quase nada. Por quê? Axat nos abandonou?
Niente e Atl balançaram a cabeça simultaneamente.
— Alguma coisa mudou — falou Niente. — Eu lhe disse muitas vezes antes, tecuhtli, que Axat mostra o que pode ser, não o que será. Alguma coisa mudou entre os orientais.
Citlali bufou desdenhosamente.
— Isso ficou bem claro — ele disse acenando para a fumaça e os corpos ao redor. — Descubram o que mudou e o que isso significa para nós. Descubram agora.
O círculo dourado do sol morria no oeste, e a bruma verde do futuro surgiu em volta do rosto deles. Os nahualli observavam os dois, em silêncio; o tecuhtli Citlali também os observava, com os guerreiros supremos agrupados em volta dele.
Na tigela premonitória, o presente se dividiu e rasgou, e os retalhos do futuro se esvaiam, se contorcendo e se enroscando. Niente os perseguiu na sua mente; ao lado dele, Atl fazia o mesmo. A perseguição era tão exaustiva quanto uma perseguição física. Próximo ao presente, os fios de possibilidades se embolavam e entrelaçavam. As imagens não paravam de surgir na bruma, era difícil vê-las por tempo o bastante para compreender os significados.
Ali: o rosto de um rei, ou era o que Niente tinha presumido pela faixa dourada envolvendo sua cabeça, que brandia uma espada com uma multidão vestida em preto e prata atrás dele, em vez do uniforme azul e dourado do exército da grande cidade. Niente se lembrava daquelas cores — as cores do exército que tinha vindo socorrer a cidade após ser tomada pelo tecuhtli Zolin. Niente tremeu ao ver isso...
Mas a bruma envolveu o rei, e Niente agora viu uma rainha sentada em um trono brilhante com fogo vermelho em torno de si. Uma jovem erguia uma faca reluzente sob o brilho do fogo, havia também um homem perto do trono, e as labaredas furiosas dentro da sala pareciam sair de suas mãos erguidas...
Uma bruma fria apagara o fogo e o levara embora. Niente encarava agora fileiras de gente, mas não eram soldados em armaduras reluzentes, mas pessoas comuns, elas estavam apontando instrumentos estranhos para Niente, parecidos com as garras de águia que os nahualli usavam para fazer sacrifícios. Os instrumentos cuspiram fumaça e fogo, e abelhões negros foram disparados por eles, correndo na direção de Niente...
Mas a bruma também os levou.
Um vento soprou a bruma, e ali diante de Niente, por um momento tentador, ele vislumbrou novamente o Longo Caminho. Ele havia mudado desde a última vez que Niente o tinha visto. O futuro ainda continuava tomado pelos estandartes caídos dos tehuantinos. Mais adiante no caminho, ele viu os estandartes dos tehuantinos tremulando ao lado dos estandartes azuis e dourados dos orientais, e duas pessoas sob eles, um homem com a tatuagem da águia vermelha do tecuhtli e uma mulher com as roupas dos orientais e um cetro dourado na mão. Os dois estavam juntos e sorriam um para o outro, e não havia animosidade alguma entre eles.
A bruma escondeu o Longo Caminho, mas perto de Niente, as brumas agora se abriram, e ele viu Citlali, morto, com um nahualli ao seu lado. Niente se debruçou sobre a tigela. No braço jovem e musculoso do nahualli, havia um brilho dourado: o bracelete do nahual. Ao lado dos dois, como se tivesse sido responsável pelas mortes, ele viu as costas de outro nahualli: a careca de um velho, com alguns poucos fios de cabelo e — quando o nahualli se virou — o semblante enrugado e cheio de cicatrizes, com um olho esquerdo cego.
Niente recuou e conteve um grito...
— Não... — sussurrou ele.
O sopro da negação fez a bruma mudar, de maneira que o Longo Caminho desapareceu para revelar ainda outro Longo Caminho. No fim deste rumo, Niente viu Tlaxcala, mas a cidade flutuante ardia no centro de um lago e as grandes pirâmides estavam em ruínas. Assim como na visão anterior do Longo Caminho, os meios para se chegar a ele estavam obscurecidos, mas as imagens tremularam mais perto dele. Ali o tecuhtli Citlali estava sentado em um trono brilhante sob um teto abobadado, com o estandarte azul e dourado no piso de ladrilhos diante dele e vários orientais prostrados à sua frente, como se estivessem prontos para serem sacrificados para Axat e Sakal, para que o resto de seu povo pudesse viver.
Niente respirou de novo, e os vapores frios e verdes envolveram seu rosto. Ele sentiu sua face ficar molhada e se deu conta de que tinha tocado a água da tigela premonitória. Com o toque, as visões se dissolveram e Niente encarava apenas a tigela.
Ele voltou à realidade devagar, ofegante, como se tivesse voltado de uma longa corrida. Carrancudo, o tecuhtli Citlali olhava fixamente para Niente, à sua esquerda, Atl já havia levantado o rosto de sua própria tigela. Vários nahualli de baixo escalão se aproximaram rapidamente e recolheram as tigelas e as mesas.
— Bem? — perguntou Citlali. — O que Axat mostrou para vocês?
Niente não falou nada; pelo canto de olho, ele viu Atl lançar-lhe um olhar furtivo.
— A visão ainda mostra a nossa vitória, tecuhtli — respondeu o jovem. — Eu vi o senhor no trono dos orientais.
O olhar de Citlali ainda estava fixo em Niente.
— E você, uchben nahual? Você também viu isso?
Niente ergueu a cabeça. Sentindo suas mãos tremerem, um nahualli de baixo escalão tinha corrido lhe entregar seu cajado mágico. Ele aceitou agradecidamente e se apoiou pesadamente sobre o objeto. Niente piscou para tentar limpar a mente das visões. O Longo Caminho... Axat lhe presenteou com duas escolhas...
— Eu vi a mesma coisa, tecuhtli — ele respondeu honestamente.
— Rá! — O tecuhtli Citlali se levantou e bateu o pé uma vez no chão enquanto Tototl e os outros guerreiros supremos urravam de aprovação. — Então nós seguiremos em frente e tomaremos a grande cidade dos orientais, e transformaremos suas esposas em viúvas e as crianças em órfãs, se eles resistirem a nós.
RESSURREIÇÕES
A Ameaça da Tempestade
A Fúria da Tempestade
A Passagem da Tempestade
A Aurora
A Ameaça da Tempestade
Jan fedia a cavalo, suor, fumaça e sangue. O starkkapitän ca’Damont e o comandante ca’Talin também. Não houve tempo para tomar banho ou trocar de roupa. Eles tiraram a armadura depois do confronto com os ocidentais e cavalgaram rapidamente de volta a Nessântico, deixando a retirada relutante da Garde Civile com os a’offiziers. Suas botas — sujas, cheias de lama e deslocadas — faziam barulho nos ladrilhos encerados do Palácio da Kraljica na Ilha; os gardai no salão e os criados e os cortesãos se agitando nos corredores encararam o trio com apreensão, como se tentassem medir pelos rostos e pela atitude a gravidade da ameaça à cidade.
Se conseguissem interpretar aquelas expressões corretamente, ficariam assustados.
O assistente de Allesandra, Talbot, encontrou Jan quando os três passaram pela câmara de recepção externa e os acompanhou pelo corredor privativo da criadagem até a câmara do Conselho dos Ca’. Ele gesticulou para o gardai do corredor abrir as portas quando o grupo se aproximou. O burburinho de conversa no interior parou. Allesandra esperava por eles ali, com Sergei ca’Rudka e os conselheiros; havia um mapa das cercanias aberto sobre a mesa.
Todos olharam para Jan esperançosamente.
— Se vocês estão esperando ouvir boas notícias — falou o hïrzg sem preâmbulos —, eu não tenho nenhuma.
Ele parou. Uma mulher ao lado de Allesandra parou de examinar o mapa para encará-lo.
— Brie? Eu pensei...
Brie caminhou até Jan e abraçou o marido tão abertamente como se ele estivesse em trajes de gala para um baile. Jan tentou se afastar, por causa de seu estado, mas se a hïrzgin sentiu alguma repulsa pelo cheiro ou pela aparência, não demonstrou. Brie deu um beijo na bochecha de barba rala, depois na boca de Jan, que devolveu o beijo um instante depois.
— Eu vim com seu exército, meu querido — falou ela. — As crianças estão em Brezno, mas senti que meu lugar era aqui, com meu marido na cidade que ele governará um dia.
— Você não deveria ter vindo, Brie.
— Por que eu não deveria ter vindo? — perguntou a hïrzgin com a cabeça inclinada.
Seu tom de voz era estranho — quase evasivo e ameno demais. Ele sentiu que havia uma outra pergunta nas entrelinhas, uma que ela não estava fazendo.
— Não é óbvio? — respondeu Jan. — É perigoso para você.
— Eu pensei que fosse mais perigoso eu não estar aqui — argumentou Brie.
O hïrzg pôde notar um conteúdo oculto nas palavras, mas o significado lhe escapou. A esposa sorriu para ele: novamente com a mesma estranheza.
— Eu estou aqui, meu marido, e trouxe seu exército comigo. Ora, você deveria estar feliz.
Jan assentiu — sim, havia algo mais em Brie do que existia na superfície, mas não havia tempo para descobrir agora, e tentar fazê-lo só o deixaria irritado. Ele deu um beijo em Brie, mecanicamente, depois olhou em volta para os demais no ambiente.
Concentração...
— Kraljica, embaixador, conselheiros: os ocidentais têm uma força consideravelmente maior do que a nossa, mesmo com a adição firenzciana — informou Jan.
Ele caminhou até o mapa e passou a mão pelos pontos salientes desenhados.
— Eles avançam por uma linha de frente que os fará chegar a Nessântico pela borda oeste no lado norte do A’Sele, pelas margens do A’Sele, acima da Avi a’Nostrosei ou mesmo pela Avi a’Nortegate. Isso já é bem ruim, mas nossos batedores nos dizem que eles mandaram outra força cruzar o rio para atacar a cidade ao sul. No momento, não temos mais que vinte ténis-guerreiros, todos de Nessântico; precisamos de pelo menos algumas centenas para ao menos tentar nos equiparar aos ocidentais nesse aspecto. E, julgando pelo que fizeram em Villembouchure, os tehuantinos também têm um estoque decente de areia negra, o que significa que nenhum dos prédios daqui está a salvo se eles se aproximarem. Quanto ao que fizeram em Karnmor, bem, nós só podemos torcer para que os inimigos não tenham como repetir esse horror. Se tiverem, então não há esperança alguma.
— Você faz parecer como se já tivéssemos perdido e devêssemos sair da cidade — disse sua matarh. Jan balançou a cabeça.
— Não, matarh — disse o hïrzg. — Não é o que estou dizendo. Nessântico não está perdida, mas está em perigo sério e imediato, e não podemos subestimar isso. Eu vi os ocidentais e entrei em combate com eles para testá-los. E isso fez com que percebêssemos que precisamos de todas as forças que pudermos reunir: todos os ténis-guerreiros, todo cidadão apto fisicamente, todos os recursos possíveis. Mesmo com tudo isso, também precisaremos da graça de Cénzi, ou veremos Nessântico queimar mais uma vez.
O silêncio que se seguiu durou bastante.
— Não é isso o que nenhum de nós quer. Eis o que o starkkapitän, o comandante e eu propomos — o hïrzg disse, finalmente, apontando para o mapa. — O A’Sele faz uma curva para o norte logo após Pré a’Fleuve; isso necessariamente vai comprimir as forças tehuantinas. Eu sugiro estacionar nossas tropas aqui logo depois do rio Infante, a partir da vila de Certendi, ao sul. Vamos segurá-los lá o máximo que pudermos, depois destruiremos as pontes se precisarmos recuar para o outro lado. Eu quero que barreiras de terra sejam erguidas da Avi a’Certendi para o A’Sele, seguindo a margem leste do Infante. O comandante ca’Talin, o starkkapitän ca’Damont e eu faremos os ocidentais lutarem por cada pedaço de terra entre o Infante e Nessântico, e espero que consigamos mantê-los completamente afastados da cidade na Margem Norte. Quanto à Margem Sul...
Ele acenou com a cabeça para Allesandra e Sergei.
— Eu deixo nas suas mãos.
— ...existe um Longo Caminho, Atl. Um rumo que leva a um lugar melhor para nós, embora não pareça assim inicialmente, e Citlali nunca acreditaria em mim. Mas você tem que acreditar em mim. A vitória aqui não é só uma vitória; ela significará uma derrota para nós, com o tempo. A própria Tlaxcala pode cair.
Atl balançava a cabeça enquanto ouvia a explicação de Niente.
— Eu sei que o senhor não para de dizer isso, taat, mas não é o que eu vejo. Mesmo que eu quisesse acreditar no senhor... — Ele abanou a mão em desespero, soltando um suspiro. — Eu não vejo absolutamente nada deste Longo Caminho.
— Você não está olhando suficientemente o distante. Não é algo que você consiga fazer ainda.
Isso foi um erro. Ele notou na forma como a luz da fogueira na tenda refletiu no rosto carrancudo do filho.
— Eu sou capaz de ver os caminhos de Axat, taat. Acho que posso vê-los melhor que o senhor. O senhor só não quer admitir isso. Eu vou para a minha tenda. Encha seu cajado mágico e durma um pouco, taat. Eu farei o mesmo.
Ele cumprimentou Niente com a cabeça e ia sair, mas Niente o segurou pelo braço, os seus dedos apertaram o bracelete de ouro do nahual que tinha estado em volta do próprio antebraço.
— Atl, isso é muitíssimo importante. Eu vi o Longo Caminho; eu vi com extrema nitidez em Tlaxcala e mesmo aqui, por um instante. Eu pude vê-lo desde então; há tantos elementos prejudicando as brumas, como você mesmo sabe. Mas ele está lá; tem que estar. Nós dois juntos talvez possamos encontrá-lo novamente. Se o vislumbrarmos só mais uma vez, se pudermos ver como temos que reagir...
Niente vasculhou a bolsa e tirou dois passarinhos de madeira entalhados de forma crua e pintados de vermelho intenso, com traços simples e brutos. Ele entregou um para Atl.
— Eu fiz esses aqui mais cedo hoje à noite. Coloquei um feitiço dentro deles, para que, se nos separarmos na batalha, ainda possamos mandar uma mensagem um para o outro. Se um de nós vir o rumo, então podemos contar para o outro que o Longo Caminho está aberto.
Atl olhou para o pássaro.
— Eu não preciso...
Ele ia devolvê-lo, mas Niente fechou os dedos do filho em volta da escultura.
— Por favor — disse ele para Atl. — Por favor, aceite.
Atl suspirou; como suspirava quando criança, quando seus pais insistiam que ele fizesse algo que não queria fazer.
— Está bem, eu fico com isso. Mas, taat, não existe Longo Caminho. Eu não sei aonde essa guerra nos levará, nenhum de nós sabe, mas eu sei que podemos ser vitoriosos aqui. Eu vi isso, e pretendo conduzir o tecuhtli Citlali até esse momento.
Ele olhou para Niente, e a luz da fogueira refletiu em seus olhos negros.
— Encha seu cajado mágico — disse Atl, como se se dirigisse a um nahualli de baixo escalão. — O senhor vai precisar em breve. Eu mesmo preciso usar a tigela premonitória esta noite.
Atl caminhou até a aba da tenda e a abriu. Lá fora, a lua brilhava sobre seu ombro.
— Não há um Longo Caminho, taat. Tenho certeza disso — falou ele. — O senhor está vendo o que quer ver, não o que Axat está disposta a mostrar.
Atl deixou a aba da tenda cair atrás dele sair.
— Você cruzará o rio hoje de manhã com Tototl e se juntará à força ao sul com dois punhados de nahualli sob seu comando.
Essa foi a ordem que Niente recebeu do tecuhtli Citlali. Atl e Tototl estavam ao lado do guerreiro quando ele deu o comando. O rosto do filho tinha uma expressão ilegível e atormentada, Niente ficou curioso para saber — após a conversa da noite anterior — se a ordem tinha vindo de Citlali ou de Atl. Ele tinha que admitir que fazia sentido — deixar que o antigo nahual ficasse ao lado do tecuhtli para questionar o novo nahual levaria a hesitação e contradições. Ao sul, Niente não teria rivais... nem Atl, que seguiria com a força principal. Ao sul, Niente seria um recurso poderoso para os nahualli e um líder comprovado. Se Niente ainda fosse o nahual, se estivesse procurando por uma vitória esmagadora aqui, em vez da quimera de seu Longo Caminho, ele talvez tivesse sugerido alguma coisa parecida, como mandar Atl com o braço sul do exército.
Citlatli não lhe deu chance de contestar.
— Uchben nahual, o bote com os outros nahualli está à sua espera na margem — falou ele. — Você partirá assim que recolher suas coisas. Nahual Atl, quero discutir nossa estratégia com você...
Com essa dispensa, o tecuhtli Citlali deu as costas para Niente e gesticulou para Atl segui-lo. O jovem olhou uma única vez para o antigo nahual.
— Taat — ele disse —, vejo o senhor de novo na grande cidade. Mantenha-se a salvo.
Atl acenou com a cabeça e depois seguiu Citlali.
Pouco tempo depois, Niente se viu em um bote com outros três tehuantinos cruzando o A’Sele, a água marrom se agitava e ficava momentaneamente branca com o bater dos remos dos jovens guerreiros. O cheiro de água doce entrou em seu nariz, as árvores na outra margem distante estavam obscurecidas pela névoa da visão pobre de seu olho são. Ele podia sentir os olhares dos outros nahualli que o acompanhavam sobre si, podia sentir a avaliação ao se agachar na popa da pequena embarcação.
Niente olhou para oeste, rio abaixo — os tehuantinos receberam uma mensagem do comandante da frota informando que o rio tinha sido liberado e que ele estava subindo o rio com os navios de guerra para encontrá-los. Niente não tinha visto vela alguma ainda, mas o rio fazia uma curva ali perto, e a frota talvez estivesse logo ali atrás daquela curva. O guerreiro supremo Tototl, em outro dos botes, olhava apenas à frente, na direção da outra margem.
O que eu faço agora? Esta estratégia não estava em nenhum dos caminhos que vislumbrei. Ele se perguntou se Atl tinha visto isso e se sabia para onde esse caminho levava. Niente se sentiu perdido, sendo levado pelas correntezas do presente. Será que consigo encontrar o Longo Caminho nesta situação, e se conseguir, será que arrisco segui-lo? Ele já tinha desistido do Longo Caminho uma vez devido a seu alto custo. Essa visão tinha sido nítida, como se Axat quisesse que Niente soubesse. A morte de Citlali pouco importava para ele; um guerreiro esperava, e até mesmo recebia, pela morte de braços abertos na batalha. Mas Niente também estava morto nessa visão; ele realmente faria isso, se Axat cobrasse seu preço? E se Axat exigisse a vida de Atl também, como Ela tinha dado a entender...
Suas mãos estavam tremendo, e não era por causa do frio úmido da manhã.
Será que Atl viu isso? Será que foi por isso que ele mandou você embora?
Niente queria falar desesperadamente com Atl, mas não era mais possível. Ele tocou na bolsa para sentir o pássaro entalhado. O toque não lhe deu nenhum alívio.
A margem estava se aproximando; Niente quase conseguia identificar uma árvore ou outra se aproximando em vez dos borrões verdes e vislumbrou uma meia dúzia de guerreiros reunidos sob a cobertura verdejante, prontos para escoltá-los até a estrada. A proa do bote atracou na lama da margem escondida sob os juncos, assustando Niente. Os guerreiros que os aguardavam desceram a margem correndo para ajudá-los a sair. Ele ouviu Tototl berrar ordens. Niente esperou que os guerreiros os puxassem para a terra seca. No topo da margem, ele olhou para o outro lado do rio mais uma vez. Entre a névoa da catarata, Niente pensou ter visto algumas figuras se movendo.
Ele se perguntou se uma delas era Atl.
— Por Cénzi, então é verdade...
A mão de Jan cofiou a barba. Seus olhos se arregalaram, e Brie podia jurar que havia um espanto genuíno neles, não uma surpresa fingida. Talvez ela estivesse enganada e Jan realmente não tivesse mandado a garota à frente deles para encontrá-la mais tarde na cidade.
— Eu juro, Brie, eu não sabia que ela estava aqui. Eu juro por Cénzi. Eu sei que você deve estar pensando que mandei Rhianna para cá, ou Rochelle, ou seja lá qual for seu nome verdadeiro, mas eu nunca pensei...
— Não, você não pensou — ralhou Brie.
Ela continuou observando o rosto do marido. O espanto em sua expressão pareceu genuíno o bastante quando ela deu a notícia que Sergei lhe contara.
— Ela alega ser sua filha, Jan.
— Ela também me disse isso.
— Ela disse isso para você? Quando?
— Quando tirou a faca da matarh de mim. Foi seu golpe de despedida antes de fugir. — Jan passou os dedos pelo cabelo recém-molhado do banho rápido. — Ela matou Rance. Eu sabia disso, mesmo na ocasião. Ela parece tanto com El...
Ele se deteve e olhou de relance para a esposa.
— Com a matarh dela — terminou o hïrzg.
— Então é possível que ela esteja dizendo a verdade, que seja sua filha?
Jan murchou. Agora suas mãos mexiam nervosamente no cabelo.
— Eu creio que sim. Ela tem a idade certa.
— Você chegou a... com Rhi... Rochelle?
Ele balançou a cabeça com raiva, sua mão fez um gesto de negação, movimentando o ar próximo à bochecha de Brie.
— Não! Eu juro, Brie. Ela nunca me deixou... — Jan suspirou alto. — Por um bom motivo, evidentemente.
O hïrzg andou de um lado para o outro nos aposentos que Allesandra tinha cedido a eles no palácio, enquanto abotoava a túnica acolchoada que ficava sob o uniforme da Garde Civile.
— Brie, eu lamento, mas não posso me preocupar com isso. Não agora. Eu não sei por que Sergei não a jogou na Bastida quando teve a oportunidade.
Brie caminhou até o marido e afastou suas mãos para o lado enquanto ele se atrapalhava com os laços da túnica.
— Aqui, deixe-me fazer isso. É isso o que você quer para ela? — perguntou a hïrzgin. — A Bastida? Quer que ela seja julgada pelos crimes que cometeu?
Brie sentiu o peito do marido inflar e desinflar sob suas mãos.
— Sim. E não. Eu não sei o que quero, Brie. Se ela for minha filha com a Pedra Branca...
— Ela não é sua filha. É mais uma bastarda que você gerou. — Ela terminou de dar os laços e se afastou.
— Naquela época, eu teria me casado com Elissa.
Desta vez Jan pronunciou o nome sem hesitação, Brie percebeu que doía ouvi-lo, ouvir o nome de sua própria filha atrelado àquela mulher. As palavras do marido eram dolorosas.
— Eu teria me casado com ela sem hesitação e sem a permissão de meus pais, se eles não a dessem — continuou ele. — A menina não seria uma bastarda. Eu já tinha pedido para a matarh entrar em negociação com a família de Elissa... ou pelo menos a família da qual ela alegava fazer parte. Ah, aposto que a matarh está achando essa situação uma piada maravilhosa.
Brie teve a certeza de que a intenção de Jan era magoá-la com aquelas palavras; ela se forçou a não ter reação alguma.
— Sua matarh fez o que achou que era necessário para proteger a família. Assim como eu, quando necessário.
— Sim, sem dúvida, e foi por isso que a matarh contratou a Pedra Branca para matar Fynn; para proteger a família. — Jan terminou de colocar o restante do uniforme e se sentou em uma cadeira para calçar as botas. — Brie, eu preciso encontrar com ca’Damont e ca’Talin em uma marca da ampulheta. Você precisa tomar cuidado; eu não sei do que essa Rhianna ou Rochelle pode estar atrás. Somente Cénzi sabe de quem a Pedra Branca pode estar atrás. Eu ficaria mais tranquilo se você saísse da cidade de uma vez por todas.
E assim você estaria livre para fazer o que quisesse. Brie teria ficado mais satisfeita se achasse que a preocupação dele era genuína, e não em causa própria. Como a matarh de Jan — suas vontades sempre estavam em primeiro lugar.
— Eu vou ficar, meu marido — ela disse com firmeza. — Você tem o seu dever; eu tenho o meu. Allesandra conduzirá a defesa ao sul; e eu vou ajudá-la.
— Brie... — Ele se levantou para afivelar e ajeitar o cinto da espada.
— Não, estou falando sério, Jan. Eu treinei com meus irmãos, e posso me sair bem contra eles com uma espada. Você sabe disso. Meu vatarh me educou em estratégia militar e até me consultou várias vezes no passado, quando saqueadores de Shenkurska invadiram a nossa fronteira. A própria Allesandra comandou exércitos; eu ouvi seus gritos de frustração por causa de algumas táticas e estratégias que ela usou nos últimos anos. Eu não estou menos a salvo aqui em Nessântico do que estaria viajando pelas estradas, mesmo com uma escolta.
Jan balançou a cabeça.
— Eu conheço essa sua expressão agora. Não adianta discutir com você.
— Então por que ainda está discutindo? — perguntou Brie, sem saber se ele estava irritado ou se era só estresse. — Eu não quero discutir com você, meu amor. Nós precisamos um do outro, eu só quero que você esteja o mais seguro possível. Você tem um destino, Jan: você vai ser o próximo kraljiki. Eu quero ver isso acontecer; pretendo sentar ao seu lado no Trono do Sol.
Ela limpou fios imaginários dos ombros do marido e sorriu para ele: o sorriso ensaiado, o sorriso exigido.
— Agora... vá se encontrar com o starkkapitän e o comandante. Você e eu nos preocuparemos com Rochelle mais tarde, quando os tehuantinos não forem mais uma ameaça.
— E você?
— Eu tenho a minha própria reunião com Allesandra.
— Com Sergei também?
Brie deu de ombros.
— Ele disse que tinha outros compromissos hoje à noite. — Ela ficou na ponta dos pés e beijou a bochecha de Jan. — Vá.
— Você não pode usar o robe verde — Rochelle disse para Nico.
Um sorriso indulgente tocou seus lábios e sumiu um instante depois. Seus lábios pareciam não se lembrar mais de como sorrir de verdade. A alegria parecia ter desaparecido de sua vida, quando antes ela a preenchia.
— Há uma grande diferença entre “não é permitido” e “não poder” — respondeu Nico. — Eu sou um téni, e é meu direito usar o robe. Mais do que um direito; é minha obrigação. Eu sigo Cénzi, não um idiota semimorto que se chama de archigos. Está na hora de eu me afirmar completamente e parar de me esconder como um criminoso.
— Você é um criminoso aos olhos dos Domínios e da fé concénziana. Eles matarão você, se puderem.
— Eles podem tentar. — Nico tentou sorrir novamente, mas o sorriso desvaneceu. — E há uma grande diferença entre “tentar” e “matar” também. Você não precisa ficar tão preocupada, irmãzinha.
Rochelle deu de ombros. Eles estavam no segundo andar de um dos esconderijos dos morellis no Velho Distrito; o proprietário — um vendedor de tecidos — ficou visivelmente aflito ao ver Nico ali, mas dispensou os aprendizes pelo resto do dia, mandou a família visitar primos a duas ruas dali e concordou em avisar o resto da seita dos morellis que o Absoluto desejava se encontrar com eles.
Nico também descobriu que Ancel esteve entre os capturados e executados após a invasão ao Velho Templo — outra alma a seus pés, outra morte pela qual ele devia expiar. Havia tantas, e faziam tanto peso sobre seus ombros que Nico queria cair de joelhos sob elas.
Liana, Ancel, eu lhes prometo — eu encontrarei paz para vocês...
Nico ainda podia ver a filha que teve com Liana aninhada nos braços de Varina. Sentia os dedos de Sera em volta dos seus, agarrando Nico como se soubesse que pertencia a ele. Aquela memória e a memória de Liana e Ancel e de todos aqueles que morreram por ele fizeram lágrimas se acumularem em seus olhos novamente. Nico as secou.
No andar debaixo, entre os tecidos pendurados em cabides à espera de serem arrumados em peças, Nico pôde ouvir o agito e o barulho de conversa através das tábuas do assoalho: vários ténis-guerreiros saíram de mansinho do templo para encontrá-lo; também havia, tinham dito para ele, vários ténis-guerreiros de Brezno presentes, eles tinham chegado à cidade pouco depois do comboio do exército firenzciano. Nico já tinha conversado com alguns deles — o archigos Karrol declarara que todos os ténis-guerreiros seriam enviados para o campo de batalha com o hïrzg Jan no dia seguinte.
— Nós não iremos se o senhor nos mandar, Absoluto. — Foi o que todos lhe disseram. Todos juraram que o seguiriam no lugar do archigos, se Nico pedisse. A lealdade dos ténis-guerreiros o satisfazia e, ao mesmo tempo, aumentava a culpa que ele carregava.
Como vocês podem me seguir depois do que eu fiz, depois dos meus fracassos? Como ainda podem ter fé quando eu luto com isso?
Nico ainda não sabia ao certo o que dizer para eles. Ele deixaria isso com Cénzi, mas suspeitava que já sabia o que diria. As escolhas diminuíram com a chegada dos ocidentais, Nico tinha passado a noite anterior rezando para Cénzi, pedindo por orientação enquanto Rochelle o observava, com uma expressão mais curiosa do que devota. Ela se parecia com Elle, a matarh de Rochelle, e a matarh adotiva de Nico. O que você fez com ela, Elle? Você a corrompeu além da redenção?
Mas Nico não podia se preocupar com Rochelle agora. Ainda não. Seus seguidores, aqueles que sobraram, esperavam por ele, e as palavras de Cénzi ardiam dentro de Nico.
— Vamos — ele disse para Rochelle, estendendo sua mão. — Está na hora.
Nico permitiu que a irmã descesse primeiro, acompanhando-a a seguir escada abaixo. O cheiro adstringente de corantes e fixadores no único cômodo do andar debaixo era forte, o ambiente que também funcionava como loja e mostruário para o vendedor de tecidos.
Havia pelo menos dez punhados de pessoas confinadas no espaço, tão apertados que o ar tinha se aquecido pela presença. Nenhuma saudação abrandou a atmosfera quando ele apareceu; todos pareciam tão sombrios quanto Nico. Ele fez o sinal de Cénzi e se curvou humildemente, os morellis devolveram o gesto. Algumas lâmpadas instaladas nas paredes do vendedor eram a única fonte de luz, mas Nico podia ver vários robes verdes iguais ao que ele estava usando, embora a maioria deles fossem desconhecidos para ele. Nico sentiu seus olhares observarem seu rosto machucado e com hematomas, as manchas roxas cobrindo seus antebraços, a forma como ele mancava ao descer a escada. E também notou os olhares curiosos para Rochelle.
— Que Cénzi abençoe a todos vocês — disse Nico, espalmando as mãos.
Ele sentiu o carinho de seus seguidores, e devolveu o sentimento; o cômodo estava tomado por um brilho pálido que não emanava de lugar nenhum e de todos os lugares.
— Eu não mereço que vocês tenham vindo, e menos ainda que ainda escutem o que tenho a dizer.
— O senhor ainda é a Voz de Cénzi, Absoluto — alguém disse no meio dos morellis. — Nós seguimos o senhor. Vimos Cénzi operar o milagre na praça. Vimos o senhor desaparecer sem lançar um feitiço; vimos as correntes vazias.
Os outros concordaram em meio a murmúrios, e o som fez Nico querer abraçar a todos, para tentar extinguir a tristeza e a perda no calor de sua aprovação e apoio.
Ele entrelaçou as mãos em frente ao corpo como se fosse rezar.
— Sim, Cénzi veio a mim quando eu estava diante da kraljica, e Ele me soltou dos grilhões que a vida colocou em mim. Mas... — Nico parou e balançou a cabeça. — Cénzi também me mostrou que eu deixei meu próprio orgulho me afastar de Seu caminho, e Ele me puniu por isso. Ele tomou para Si muitos daqueles que eu amava, enviou muitos outros para a dor e o sofrimento, e me encheu de tristeza e arrependimento. A dor dos morellis foi causada por sua dedicação a mim. Eu entendo agora que devo me tornar o instrumento de Cénzi, que devo me entregar completamente a Ele e devo aceitar o que Ele quiser que eu suporte. Eu entendo que não sou nada.
Nico ergueu a cabeça e abaixou as mãos, seu olhar varreu os seguidores, encarando cada um deles no cômodo.
— Vocês também devem entender isso. Esta também é a sua tarefa, como sempre foi a tarefa dos ténis: realizar a vontade de Cénzi e nada mais.
— O que Cénzi quer que façamos? — alguém perguntou. — Diga-nos, Absoluto.
Nico hesitou, embora se sentisse tomado pelas palavras. Eu estou certo desta vez, Cénzi? Estou ouvindo o Senhor, e não a mim mesmo? É isso, verdadeiramente, o que o Senhor quer que eu diga a eles? As palavras martelavam em sua mente, e Nico só poderia se livrar delas ao dizê-las.
— Nossa Fé está sendo ameaçada — falou ele. — Os ocidentais estão prestes a dominar Nessântico e os Domínios e, se isso acontecer, os fiéis sofrerão imensamente. Eu rezei, me abri para Cénzi e O escutei, e isso é o que Ele me diz.
Nico fez uma pausa e respirou várias vezes, olhando para cada um deles.
— Agora é a hora de deixarmos de lado nossas lutas com os falsos líderes da fé concénziana; não para sempre, mas por um curto período de tempo. Nós precisamos primeiro expulsar os pagãos e hereges que nos ameaçam antes que possamos olhar para a heresia dos Domínios e da Coalizão.
Ele fez outra pausa, acenando com a cabeça para eles.
— Eu disse isso naquele dia na praça e repito aqui: por enquanto, vocês devem obedecer ao archigos. Ténis-guerreiros, vão à guerra. Ténis, cumpram qualquer tarefa que recebam. O restante, façam o que for preciso. Obedeçam às autoridades que estão acima de vocês. Por enquanto.
Nico esperou. O brilho no aposento aumentou.
— Façam isso, por enquanto. E depois... depois, nós voltaremos a olhar para dentro. Voltaremos a nossa atenção para a reforma da fé concénziana. Tomaremos a glória que merecemos e moldaremos a Fé, como Cénzi deseja, como o Toustour e a Divolonté exigem, e não daremos ouvidos às ordens de ninguém, ninguém, que não esteja conosco. Isso é tudo o que tenho a dizer esta noite.
O brilho no cômodo esmaeceu, e a luz das lâmpadas agora parecia descarnada. Os seguidores se remexeram, hesitaram, se entreolharam fixamente. Então alguém abriu a porta; um a um, eles fizeram o sinal de Cénzi e saíram do cômodo arrastando os pés. Nico devolveu o sinal para cada um dos seguidores e murmurou uma bênção a cada um. Assim todos saíram, ele sentiu a mão de Rochelle pousar em seu ombro.
— Eles não ficaram satisfeitos — comentou ela. — Você não disse a eles o que eles queriam ouvir. Ficaram desapontados.
— Eu sei — respondeu Nico. — Mas era tudo o que eu tinha a dizer.
Rochelle assentiu.
— Você está cansado.
— Exausto — admitiu Nico; ele olhou para as escadas que levavam para o segundo andar. — Mas ainda há mais uma reunião antes que eu possa dormir.
— O que você quer dizer? — perguntou Rochelle.
Nico não disse nada, apenas gesticulou para que ela o seguisse. Ele subiu penosamente, sentindo seus pés pesados pisando os degraus. A luz de uma lâmpada vinha do quarto dos fundos, onde antes não havia luz. Nico ouviu a lâmina da faca de Rochelle sair da bainha e balançou a cabeça para ela.
— Você não vai precisar disso. Não ainda.
Ele andou tranquilamente pelo corredor até o quarto e empurrou a porta para abri-la.
— Você ouviu o que queria ouvir? — perguntou Nico para a pessoa no quarto.
— Você ouviu o que queria ouvir? — disse Nico, e Sergei deu de ombros.
— No geral, sim — respondeu o embaixador. — Você simplesmente salvou a si mesmo e aos ténis-guerreiros.
— Minha segurança não está em suas mãos, Nariz de Prata — disse Nico, mas a bravata soou cansada e sem ânimo.
— Ah, mas na verdade está, sim — disse Sergei.
Ele vislumbrou um movimento atrás de Nico e viu um rosto.
— Rochelle. Por favor, por que vocês dois não entram e se sentam? Não há motivo para não termos uma conversa civilizada, só nós três.
Nico deu de ombros e entrou, se sentando na beirada da cama no quarto. Sergei percebeu que o rapaz lançou um olhar furtivo para a porta do outro lado, nos fundos da casa. Sergei a tinha deixado aberta, mostrando a escada que descia até um beco atrás da casa do vendedor de tecidos. Rochelle entrou e imediatamente encostou as costas na parede lateral da porta do corredor, ficando de pé e encarando Sergei, com olhos concentrados e perigosos. O embaixador ergueu as mãos dos braços da cadeira, a direita segurava a bengala. Nico pensou ter podido sentir o feitiço de Varina escondido dentro da madeira.
— Pronto, viu só. Eu não sou ameaça para nenhum de vocês, no momento.
A boca de Nico se contorceu, dando um leve indício de um sorriso.
— E nenhum de nós acredita nisso.
— Eu não esperava que acreditassem — respondeu Sergei.
Mentalmente, o embaixador repetiu o gatilho do feitiço que Varina colocara na bengala para que ele estivesse na ponta da língua, se precisasse usá-lo. Ele se perguntou se seria eficiente contra Nico — Sergei suspeitou que não seria tanto quanto ele esperava.
— Você tem uma rede de informações melhor do que eu pensava, Sergei.
— Eu tive sorte. Alguns de seus ténis morellis tinham as consciências pesadas. Depois da disputa no Velho Templo, eles não confiam mais tanto assim em você, Nico. Eles vieram me contar onde você estaria.
— Não posso dizer que os culpo. — Nico se recostou na cama. — Eu mesmo não confio em mim. O que você teria feito se eu não tivesse mandado os ténis-guerreiros obedecerem ao archigos?
— Há gardai, ténis leais e feiticeiros numetodos suficientes nas ruas para prender o dobro de pessoas que você conseguiu reunir aqui, mesmo com os ténis-guerreiros. — Sergei fechou os olhos e imaginou a cena. — Deixe-me dizer o que teria acontecido. Eles estão esperando pelo meu sinal. Eu teria levado todos vocês imediatamente para o pátio do lado de fora do Palácio da Kraljica, conduzindo o grupo pela Avi A’Parete como uma vara de porcos ao matadouro, para que todos vissem vocês. Quando vocês chegassem ao palácio, haveria uma enorme multidão de cidadãos lá para assistir ao espetáculo, e eu colocaria você e sua gente na frente. Eu arrastaria você, Nico, com torniquetes apertados nos antebraços. Eu diria aos cidadãos que você e os ténis-guerreiros que lhe seguem preferem ver Nessântico queimar e todos eles mortos a cumprir seus juramentos a Cénzi, à fé concénziana e ao povo. Eu teria entregado o machado do carrasco para um voluntário entre os cidadãos... e haveria muitos voluntários, Nico. Eu mandaria essa pessoa arrancar as mãos dos seus braços. Seus gritos ecoariam pelas muralhas do palácio, tão alto que você acharia que Nessântico inteira poderia ouvi-los. Então eu faria com que outro cidadão puxasse a língua da sua boca e a cortasse com uma tesoura incandescente, para que a ferida fosse imediatamente cauterizada. Eu não quereria que você morresse. Não ainda. Eu diria para todos eles — os cidadãos e ténis-guerreiros assistindo — que esse era o castigo da fé concénziana, e que então eu mostraria o castigo do Trono do Sol. Eu amarraria você a um poste e mandaria um garda da Bastida abrir seu estômago e puxar um pedaço dos seus intestinos. Eu amarraria esse pedaço a um molinete e faria o garda extrair suas entranhas aos poucos, com o molinete rangendo e girando. Se você ainda estivesse vivo depois disso, então eu mandaria que você fosse esfolado, sua pele seria arrancada de seu corpo vivo. Quando você finalmente morresse, com sofrimento e tormento, seu corpo seria colocado em uma jaula e exposto, com as mãos e a língua pregados ao crânio.
Nenhum dos dois falou durante a longa história. Sergei abriu os olhos. Nico ainda estava na cama, olhando para o embaixador, mas sua expressão continha uma máscara inescrutável. Rochelle parecia horrorizada. Sua boca estava ligeiramente aberta, e ela evitava olhar diretamente para Sergei.
— Você se deleita com essa fantasia — disse Rochelle, com raiva.
— Sim, me deleito — admitiu Sergei.
O embaixador lançou um olhar breve para Rochelle antes de voltar a atenção para Nico. Ele coçou a base do nariz de metal com o indicador e continuou.
— Eu diria para os ténis-guerreiros que eles teriam duas escolhas. Uma seria renunciar você, obedecer ao archigos e servir a Nessântico, e eles talvez vivessem. A outra seria sofrer seu destino imediatamente. Eu daria essa escolha a cada um. Quantos você acha que teriam seguido você no martírio, Nico?
— Eu não sei. Nem acho que sirva para alguma coisa especular a respeito disso, já que isso não aconteceu. Eu mandei que os ténis-guerreiros obedecessem ao archigos e você os deixou partir. O que importa é o que acontece a partir de agora. — Nico mudou de posição e se sentou de costas eretas na beirada da cama. — Então, o que acontece agora, de fato, Sergei? Você vai tentar me prender de novo?
— Eu posso tentar — respondeu o embaixador, levantando a mão quando Nico começou a contestar. — Apesar da minha fantasia — ele parou e sorriu para Rochelle —, depois de seu espetáculo na praça, eu realmente duvido que eu conseguisse fazê-lo
— Eu não faço ideia de como aquilo aconteceu — disse Nico. — Aquilo foi Cénzi, não eu.
— Então talvez Cénzi, se realmente for Ele, torne ao mesmo tempo difícil e custoso prender você, e é perfeitamente possível que eu não sobreviva à tentativa. Mas há gardai e utilinos suficientes aguardando a minha ordem, estou certo de que, com o tempo, nós teríamos sucesso, mesmo com Cénzi.
— Isto é blasfêmia — disparou Nico.
— Talvez fosse, se eu realmente achasse que Cénzi seria o responsável. Mas...
— Por que você está aqui então, se não é para me prender?
— Estou aqui porque Varina é minha amiga, e ela me pediu para vir. Pessoalmente, eu considero que Varina é indulgente demais com você, mas ela acha que você merece ser salvo, que você pode na verdade se redimir, e também acha que nós precisamos de você. Eu mesmo não tenho tanta certeza. — Sergei bateu com a bengala no tapete sob a cadeira. — O que você quer, Nico?
— Isso é fácil — respondeu o jovem. — Eu quero continuar a servir Cénzi.
— E, por enquanto, o que Cénzi exige de você, na sua cabeça? Seria ajudar a defender Nessântico, como você mandou que os ténis-guerreiros fizessem?
Nico tinha entendido; Sergei pôde ver.
— Se esse fosse o caso, se por acaso eu acreditasse nisso, o que eu ganharia com isso?
— Você ainda precisa responder por muita coisa, Nico — disse o embaixador. — A morte da a’téni ca’Paim, a morte de todos os que tentaram defender o Velho Templo, a destruição, os ferimentos. Varina pode estar disposta a deixar tudo isso passar, mas não a kraljica. Não completamente. Mas... talvez possa se argumentar que a morte de ca’Paim foi acidental e não premeditada, que os gardai que morreram estavam cumprindo seu dever, e que, se os morellis e seu Absoluto servirem bem aos Domínios e jurarem trabalhar com os Domínios no futuro, então talvez grande parte do que aconteceu possa ser perdoado. Não esquecido, jamais esquecido, é claro, mas saberíamos que tudo isso foi imensamente lastimável.
— Você faz uma promessa que não tem autoridade para cumprir, Sergei, nem Varina.
— Mas eu tenho a autoridade para oferecê-la em nome de quem tem — respondeu o embaixador. — A escolha é sua, considerar ou não a promessa.
Nico fez hum baixo na garganta.
— O archigos concorda com isso?
— O archigos não tem nada a ver com isso. É uma questão puramente secular. Você e a fé concénziana terão que chegar a seu próprio acordo, mas se você servir ao Estado, ele vai cuidar para que a Fé não faça nada que, bem, comprometa as suas habilidades. — Sergei bateu a bengala novamente, com mais força desta vez. — Nessântico precisa da sua ajuda, Nico. Eu vi o que você é capaz de fazer. Você seria o mais formidável téni-guerreiro que nós teríamos.
Sergei esfregou o nariz novamente e completou.
— Se isso for o que Cénzi deseja.
— Não faça piada disso, Sergei.
— Eu lhe garanto que estou sendo completamente sério.
— Eu preciso rezar primeiro. Não posso lhe dar uma resposta agora.
O embaixador suspirou.
— E eu não posso esperar, Nico. Lamento.
Sergei gemeu ao se levantar e caminhou até a porta dos fundos. Ele ergueu a bengala; lá fora no beco, figuras se mexeram, e ele ouviu passos correndo no primeiro andar, se deslocando pela casa. Sergei se voltou para o quarto.
— Eu realmente lamen...
Ele ia dizer, mas foi atingido pelo frio do Ilmodo e viu a escuridão no meio do quarto, quando ela se dissipou, nem Nico, nem Rochelle estavam mais lá. Um garda meteu o rosto pela porta.
— Embaixador?
— Parece que o Absoluto mentiu para mim — ele disse para o homem.
Varina embalava Sera em seus braços, de um lado para o outro, em frente à janela. Lá fora, na rua após o pátio na frente da casa, uma fila aparentemente infindável de tropas em uniformes preto e prateado marchava para o oeste. Suas botas soavam uma cadência fúnebre e solene pela Avi a’Parete, como se a cidade em si fosse um tambor. Eles estavam marchando já há uma virada da ampulheta, desde a Primeira Chamada, e o barulho das cornetas que anunciavam a chegada das tropas tinha acordado Serafina. Varina aninhara a criança para sossegar sua agitação. Ela beijou a testa do bebê e sentiu a maciez sedosa do cabelo de Sera em seus lábios.
— Não fique assustada, Sera — sussurrou Varina contra o trovão baixo das botas nos paralelepípedos. — Eles estão aqui para nos proteger, querida. Estão aqui para manter você a salvo.
Ela ouviu uma batida suave na porta do quarto, seguida do rangido de dobradiças.
— A’morce, desculpe o atraso. As ruas estão uma confusão, como a senhora pode imaginar. Eu tive que vir pelos fundos... — A ama de leite, Michelle, entrou no quarto, a passos largos e soltando os laços da blusa. — A pobrezinha deve estar faminta. Aqui, deixe-me pegá-la um pouco...
Varina entregou Sera para Michelle e viu o bebê se agitar por um instante antes de a boca procurar e encontrar o mamilo e começar a sugar.
— Isso mesmo, não estamos famintas? — disse Michelle, sorrindo para Sera antes de olhar para Varina. — Parece tão...
A ama de leite se deteve, e Varina viu os olhos de Michelle ficarem úmidos.
— Desculpe — falou a jovem. — Às vezes, quando eu seguro Sera, eu penso no meu próprio...
Ela parou novamente e engoliu em seco.
— Eu não consigo imaginar a dor que você sentiu ao perder seu bebê — disse Varina. — Lamento muito, Michelle.
A ama de leite assentiu.
— A cidade inteira está em alvoroço — disse a jovem.
A mudança de assunto foi abrupta e, Varina sabia, completamente deliberada. Michelle ergueu o ombro e abaixou a cabeça para secar as lágrimas. Sera se remexeu e se ajeitou novamente em seus braços.
— Dizem que já é possível ver os ocidentais do topo da torre da Bastida. Não sei se é verdade, mas... — Michelle sentiu um arrepio, e Sera parou de mamar por um instante, seus grandes olhos azuis se abriram e se fecharam novamente, e ela voltou a se apegar ao seio. — A’morce, meu marido quer que eu vá para a casa do meu irmão em Ile Verte. Eu pensei, bem, pensei que, se a senhora quisesse... eu poderia...
Varina suspirou e acariciou a cabeça de Sera. Os olhos da criança se abriram novamente, encontrando o olhar de Varina. Sera sorriu por um momento em volta do mamilo, e uma bolha branca escapou de seus lábios antes de voltarem a mamar.
— Acho que seria uma excelente ideia, Michelle. Se você não se importar.
— De maneira alguma. Seria um prazer cuidar dela. A’morce, a senhora deveria vir também. Meu irmão tem uma casa grande lá, e tenho certeza...
Varina negou com a cabeça. Ela lançou um olhar para o exército marchando novamente: era o comboio de suprimentos da retaguarda agora — carroças e cavalos.
— Meu lugar é aqui — respondeu Varina. — Quando você pretende ir?
— Hoje à noite, depois da Terceira Chamada.
— Então por que você não vem pegar Sera na Segunda Chamada? Eu aprontarei as coisas dela para você então.
Michelle assentiu.
— Ela é linda. Foi uma pena o que aconteceu ao vatarh e à sua pobre matarh. Sera tem sorte de ter a senhora, a’morce.
Varina tentou sorrir e descobriu que não conseguia. Ela acariciou a cabeça do bebê novamente.
— Michelle, se alguma coisa acontecer comigo...
— Nada vai acontecer — respondeu a ama de leite rapidamente, sem deixar que ela terminasse.
Varina balançou a cabeça.
— Nós não sabemos disso. Caso alguma coisa aconteça, alguma coisa que signifique que eu não possa cuidar de Sera, você ficaria com ela? Belle fala tão bem de você, e talvez possa amenizar a sua perda, ao menos um pouco.
Michelle estava chorando agora, com a cabeça abaixada ao ver Serafina em seu seio.
— A’morce...
— Só diga sim. — Varina acariciou Sera mais uma vez. — Só isso.
Michelle assentiu de novo, e Varina abraçou as duas de leve.
— Ótimo — disse ela. — Isso me deixa mais tranquila.
Jan viu os offiziers posicionarem suas tropas. Ele, o starkkapitän ca’Damont e o comandante ca’Talin se posicionaram na sacada do segundo andar de uma casa de fazenda, situada em uma pequena elevação a algumas centenas de passos do rio Infante. No telhado da casa, Jan postou pajens com bandeirolas com mensagens, assim como corneteiros com trompas e zinks. Um buraco tinha sido aberto no teto do aposento atrás deles, com uma escada que levava até o telhado para que os pajens pudessem subir do posto de comando até o telhado e ordens pudessem ser dadas lá para cima. Desse ponto de observação, eles podiam ver as companhias sendo dispostas deste lado do rio, assim como os sapadores que colocavam obstáculos ao longo da margem para tentar impedir a travessia dos ocidentais.
Do outro lado do rio, mais perto de Nessântico, trabalhadores cavavam uma linha dupla de barricadas, para onde o exército — caso precisasse recuar — poderia retroceder e resistir à vontade.
Jan torcia para que as trincheiras não precisassem ser usadas, mas suspeitava que seriam.
As tropas ocidentais estavam visíveis no verzehen — um tubo com lentes, criado pelos numetodos, que permitia que a pessoa enxergasse a uma grande distância. Através da imagem circular distorcida e um pouco borrada captada pelo verzehen, Jan observou os offiziers dos tehuantinos, os guerreiros supremos, darem suas ordens. Viu o estandarte de cobra em um campo esmeralda. As tropas marchavam por campos, que antes tinham sido fazendas e bosques. As próprias árvores das florestas que cercavam os campos pareciam balançar com o passar do vasto número de ocidentais. Eles já se aproximavam da vila de Certendi.
Eram inimigos demais. Demais. Como uma colônia de formigas escarlate de Daritria, parecia que eles poderiam cruzar o Infante sobre os corpos dos mortos empilhados na água. Jan passou o verzehen para ca’Talin.
— Eles estão aqui. Chegarão à distância de uma flechada de nossas fileiras à noite. Se eu fosse o general dos tehuantinos, eu pararia ali para reunir as tropas e atacar na nova luz, mas... — O hïrzg deu de ombros. — Eles já fizeram o contrário antes. Nós talvez lutemos no escuro. Os ténis-guerreiros estão aqui?
— A maioria deles chegou ontem à noite, hïrzg — informou ca’Damont. — Praticamente todos do grupo dos Domínios, e a maioria dos nossos. Eles disseram que Nico Morel mandou que viessem.
— Então Sergei cumpriu sua palavra — respondeu Jan. — Excelente. Cénzi sabe que precisaremos de todos eles.
Ele gesticulou para um dos pajens; o menino veio correndo.
— Mande as trompas chamarem os a’offiziers de volta.
O pajem prestou continência e subiu a escada correndo; alguns instantes depois, eles ouviram o chamado nítido e estridente das cornetas.
— Estamos prontos então — falou o hïrzg. — Falaremos com os offiziers e, em seguida, vocês deverão se juntar a seus comandos e se aprontar. Veremos se estamos com as peças posicionadas onde precisam estar. Rezemos para Cénzi que este seja o caso.
Ele olhou através do verzehen mais uma vez e viu as figuras borradas dos guerreiros se aproximando. Jan duvidou que quem estivesse no comando dos tehuantinos sentisse a mesma dúvida que ele.
— Vamos detê-los ali — disse o hïrzg — precisamos fazê-lo.
A grande alameda em forma de anel da Avi a’Parete antigamente definia os limites da cidade de Nessântico, com uma muralha fortificada que percorria toda a sua extensão, exceto pela Ilha a’Kralji, adequadamente protegida pelas águas do A’Sele. Nessântico inteira cabia dentro dessa muralha — e essa muralha tinha sido imprescindível durante as guerras infindáveis entre os feudos de Nessântico e os feudos vizinhos.
Agora, a maior parte dessa muralha antiga tinha sumido, as grandes pedras tinham sido enterradas ou reutilizadas nos prédios da cidade, apenas algumas pequenas seções da construção ainda estavam de pé. Nessântico crescera para muito além dos limites da Avi a’Parete, embora bem mais em outras direções que ao sul. Próximo ao lado de fora das ruínas do velho Sutegate da cidade, ainda havia campos abertos e fazendas, e era ali que Allesandra observava o novo corpo de chispeiros treinar. Eles estavam vestindo roupas cotidianas, a maioria parecia ter sido tirada das ruas do Velho Distrito — o que era o caso, na verdade. Talbot se afastou do grupo assim que a kraljica se aproximou. Ele ajudou Allesandra a descer da carruagem, ainda vestido com o uniforme do palácio. Ela olhou para os homens no campo.
— Perdoe a aparência deles, kraljica — disse Talbot ao se dar conta do aspecto dos homens. — Eu só tive dois dias para trabalhar com eles.
— Onde está Varina? Eu pensei que estes instrumentos fossem ideia dela — perguntou Allesandra.
— Ela está resolvendo as coisas com a criança. Depois ela vai para a linha de frente ao norte com o hïrzg, juntamente com a maior parte dos numetodos. Eu pensei que a senhora soubesse. O hïrzg pediu o máximo de feiticeiros disponíveis.
Allesandra assentiu — Varina tinha lhe contado isso ou ela tinha esquecido? Alguém no grupo de chispeiros berrou a ordem para “disparar”. O estampido das chispeiras espocou, e uma fumaça branca eclodiu na ponta dos tubos de metal. Do outro lado do campo, alvos de papel presos em fardos de palha se agitaram ao serem atingidos pelas balas de chumbo.
Os cavalos levaram um susto nos tirantes da carruagem e arregalaram os olhos. O condutor puxou as rédeas e gritou seus nomes.
Allesandra notou que ela mesma deu involuntariamente um passo para trás diante da violência do som e quase caiu para trás, dentro da carruagem.
— A senhora deveria enfiar um pouco de papel nas orelhas, kraljica — sugeriu Talbot. — Esses instrumentos fazem uma algazarra infernal.
— A menos que o nosso inimigo esteja imóvel, parece que um tiro é tudo o que nosso corpo de chispeiros terá antes de os guerreiros estarem em cima deles — comentou Allesandra; todos os chispeiros estavam recarregando suas armas, e o processo parecia tomar um tempo excessivo. — Os tehuantinos estão acostumados com o barulho da areia negra; eles não vão se assustar com isso.
Talbot sorriu.
— Essa foi a minha preocupação, kraljica. Nós fizemos algumas pequenas modificações no projeto original de Varina. A carga de areia negra e balas é pré-fabricada, então não são necessárias medidas no campo. Nós também pensamos que, se estendêssemos um pouco o cano, poderíamos aumentar a distância e a precisão do tiro. E parece que isso deu resultado, embora isso tenha tornado a arma mais pesada e volumosa.
Lá fora no campo, alguns homens trocavam os alvos por novos. Os chispeiros ainda estavam recarregando suas armas.
— Preciso ou não, ainda é um só tiro. Se tudo o que eu tivesse fosse um único golpe de espada enquanto o inimigo podia atacar livremente, então a batalha acabaria rapidamente. Não faria diferença se eu tivesse a arma mais afiada.
— De fato — concordou Talbot. — Por isso eu pensei um pouco sobre a tática. Deixe-me demonstrar... Cartier, forme um esquadrão com fileiras de quatro.
Um dos homens fez uma leve mesura para eles e berrou mais ordens. Doze homens formaram três fileiras espaçadas com quatro homens, organizadas por Cartier. Talbot deu um passo na direção delas.
— Primeira fileira, ajoelhar! — gritou ele. — Primeira fileira, atirar!
Quatro chispeiras foram disparadas, e os estampidos ecoaram no campo. Os homens da primeira fileira se levantaram, cada um deu um passo para a esquerda e voltou para a retaguarda. Eles começaram a recarregar as armas.
— Segunda fileira, ajoelhar! — berrou Talbot. — Segunda fileira, atirar!
Novamente, soaram os estampidos e a fumaça branca foi levada pelo vento. Os homens se levantaram e foram para trás da primeira fileira.
— Terceira fileira, ajoelhar! — gritou ele. — Terceira fileira, atirar!
Outra série de trovões, e a terceira fileira recuou. A primeira fileira já tinha recarregado suas armas a esta altura.
— Primeira fileira, ajoelhar! Primeira fileira, atirar!
Outra saraivada, e Talbot sorriu para Allesandra.
— Alto! — berrou ele para os chispeiros, e se virou para Allesandra. — Kraljica?
Os flancos dos cavalos tremiam e puxavam as rédeas ansiosamente, e o condutor fazia um grande esforço para evitar que os animais saíssem correndo. Os ouvidos de Allesandra zumbiam com o barulho das armas.
— Isso foi impressionante, Talbot — disse a kraljica, e o sorriso dele aumentou.
— Um esquadrão com três fileiras pode disparar três saraivadas em alguns segundos e continuar atirando até acabarem as cargas de areia negra, apesar de, após vários tiros, as chispeiras ficarem quentes demais para dispararem com segurança.
— Mas uma coisa é ficar ali com nada além de fardos de palha para encarar, outra é ver o inimigo avançando com a intenção de matá-lo — continuou Allesandra. — Esses homens não são soldados, Talbot. Não são chevarittai. Sequer são numetodos. Eles parecem padeiros e doceiros, açougueiros e boticários.
— Sim, a maioria deles é composta por civis — admitiu Talbot. — Eu não sei como eles reagirão quando o momento chegar. Mas a eficácia... As armas de areia negra que usamos antes exigiam grandes quantidades de material, e não eram precisas: a explosão poderia matar várias pessoas ou ninguém, ou poderia matar os próprios aliados se a pessoa não tomasse cuidado. Os feitiços têm um alto custo em tempo e exaustão, e exigem anos de treinamento antes que se consiga usá-los bem. Usar uma espada ou lança eficazmente também exige semanas ou meses de treinamento. Estas...
Ele gesticulou para o campo e concluiu.
— As chispeiras de varina usam pouquíssima areia negra, são precisas como um feitiço e exigem apenas uma virada ou duas de treinamento para serem usadas. Elas mudam toda a equação.
— É disso que tenho medo — interrompeu Allesandra. — O poder que você deu à ralé destreinada...
— Infelizmente, a ralé é praticamente tudo que temos entre nós e os tehuantinos no momento, kraljica, a não ser que a senhora ache que a Garde Brezno pode fazer o impossível.
A kraljica franziu a testa e respondeu.
— Eu sei. Mesmo assim, alguma coisa nessa equação... — Ela deu um tapinha no ombro de Talbot. — Desculpe, Talbot. Eu só estou preocupada com o que isso pode significar no futuro: para os Domínios, para a fé concénziana, para a nossa sociedade.
Allesandra franziu os lábios e interrompeu o pensamento.
— Você fez um belo trabalho — disse ela. — Tudo que pedimos e mais. Só espero que isso funcione quando o momento chegar... e terá que funcionar.
A kraljica se empertigou e subiu no degrau da carruagem.
— Continue com o trabalho. Enquanto isso, eu preciso falar com Sergei e verificar a Garde Brezno.
Talbot fez uma mesura; ela entrou completamente na carruagem e gesticulou para o condutor. Ele estalou as rédeas no lombo dos cavalos, e com um ruído das rodas, a carruagem partiu aos solavancos.
Seus pés doíam e suas costas latejavam a cada passo. Os tehuantinos tinham passado por três vilarejos até o momento, enquanto marchavam, desertos — Tototl permitiu que os guerreiros procurassem comida e suprimentos, depois ordenou que as casas fossem queimadas. A fumaça ainda manchava o céu atrás deles.
Niente não queria nada além de se deitar e deixar que os guerreiros e nahualli o abandonassem na terra. Ficou agradecido quando Tototl mandou interromper a marcha acelerada. Ele desmoronou na grama ao lado da estrada e aceitou o pão, o queijo e a água que tinham sido oferecidos por um nahualli, sorvendo o frescor agradável. Niente viu uma sombra crescer e se aproximar dele. Tototl o observava.
— Eu vou lhe arranjar um cavalo, uchben nahual.
— Eu ficarei bem em um instante, guerreiro supremo.
— Eu vou lhe arranjar um cavalo — Tototl repetiu. — Eu preciso que o uchben nahual esteja pronto quando começarmos o ataque hoje à noite.
Niente raramente falava com Tototl, uma vez que os guerreiros supremos, com a exceção do tecuhtli com o nahual, raramente interagiam com os nahualli. Ele percebeu que estava olhando para o rosto pintado do homem se perguntando no que o guerreiro estaria pensando.
— Estamos assim tão próximos então?
— Veremos o topo das casas quando cruzarmos a próxima elevação. Os batedores me disseram que há tropas se aprontando para nos enfrentar. A batalha começará muito em breve agora.
Por alguns instantes, Tototl ficou em silêncio, e Niente ficou satisfeito em poder se sentar na margem de grama da estrada. A brisa tinha o cheiro da fragrância desta terra. Então Tototl se mexeu.
— O que você viu quando olhou na tigela premonitória, uchben nahual? Eu o observei, observei seu rosto, e não acredito que tenha dito tudo para o tecuhtli Citlali.
— Eu disse a verdade — insistiu Niente. — O nahual Atl viu a mesma coisa.
A boca de Tototl se contorceu sob a pintura da tatuagem que adornava seu rosto.
— Seu filho não é você, uchben nahual. Ele pode vir a ser um dia, mas ainda não é. Você está omitindo alguma coisa, alguma coisa que lhe assustou. Eu vi no seu rosto, Niente. Quero saber: você nos viu derrotados?
Niente balançou a cabeça. Eu vi a nossa vitória aqui e seu preço terrível. Vi que isso poderia ser evitado e que esse futuro era confuso e emaranhado demais para ser previsto.
— Não — respondeu ele.
— Eu não tenho medo de morrer. — Tototl estava olhando ao norte na estrada, como se já pudesse ver a cidade. — Morrer em batalha é um fim que todo guerreiro supremo busca. Não é o medo de morrer; estou com medo do preço que isso cobrará dos tehuantinos.
Tototl olhou novamente para Niente, e uma esperança brotou dentro dele, uma esperança de que o guerreiro pudesse entender o que Citlali não entendia.
— É disso que você também tem medo, uchben nahual?
A garganta de Niente pareceu se fechar com o olhar fixo de Tototl. Ele concordou em silêncio.
— Então você viu alguma coisa.
Dessa vez Tototl falou com convicção. Niente balançou a cabeça.
— Eu não sei — respondeu ele. — Eu vi muitos caminhos, guerreiro supremo. Vários, e todos eles incertos. Mas...
Niente respirou profunda e lentamente. Será que você pode confiar neste homem? Será que isso é uma armadilha preparada por ele, talvez até mesmo por Citlali e Atl?
— Deixe-me perguntar uma coisa: se você matasse um guerreiro em um desafio, poderia alegar que conquistou uma vitória. Mas se, ao matar esse guerreiro, você, por sua vez, enfurecesse tanto o filho dele que, quando este se tornasse um guerreiro e trouxesse um exército destruindo tudo o que você construiu, destruindo completamente tudo o que você ama, sem possibilidade de recuperação? Essa vitória inicial valeria a pena?
— Isso dependeria — respondeu Tototl —, se você pudesse dizer, sem dúvida, que o filho faria tudo isso.
Niente balançou a cabeça.
— O futuro nunca está completamente garantido. Mesmo o que acontecerá daqui a um instante pode ser mudado se Axat quiser. Mas, se eu dissesse que este era o resultado provável? Você conteria o golpe da espada?
— Se esse golpe da espada me custasse a própria vida talvez não — disse Tototl. — Nenhum guerreiro quer oferecer sua vida de graça para o inimigo. Eu acho que a mesma coisa valeria para um nahualli.
— Eu diria o mesmo no seu lugar — falou Niente.
Tototl inclinou a cabeça ligeiramente. Ele resmungou alguma coisa que pareceu ter sido um assentimento.
— Já que você diz que o futuro é sempre incerto, você apoiaria um guerreiro supremo plenamente, uchben nahual, mesmo que pensasse que esse seria o caminho errado?
— Esse é o dever de um nahualli — respondeu Niente.
Um rápido sorriso se formou no rosto de Tototl, e Niente percebeu que o guerreiro entendeu que ele não tinha respondido completamente à pergunta.
— Eu vou lhe arranjar um cavalo, uchben nahual — disse Tototl.
— Ela estava com ele? Você tem certeza de que era ela?
Sergei concordou com a cabeça.
— Era Rochelle, hïrzgin. Então ao menos essa parte da história que ela me contou parece ser verdade. Rochelle foi criada como irmã de Nico pela Pedra Branca. Se ela sabe ou não se ele é de fato seu irmão...? — Sergei ergueu um ombro cansado. — Eu não tenho certeza de que Rochelle entende isso.
Ele e Brie estavam montados em seus cavalo, olhando para os campos em volta da Avi a’Sutegate onde a Garde Kralji estava acampada. Sergei sabia que havia poucos homens — dados os relatórios que os batedores tinham informado sobre o tamanho das forças ocidentais que avançavam na direção deles. Embora os offiziers tivessem ensaiado manobras com os gardai, suas tropas pareciam morosas e confusas. Elas não tinham sido treinadas para isso: combate aberto em grande escalada contra outra força organizada e treinada. Isso tinha sido demonstrado na disputa do Velho Templo, quando até mesmo os igualmente destreinados morellis foram capazes de contê-los por um tempo considerável. A Garde Kralji era uma guarda pessoal e unidade policial, não um batalhão do exército.
A batalha não será vencida aqui, Sergei pensou consigo mesmo. Será vencida do outro lado do rio A’Sele, com o hïrzg e a Garde Civile. Só temos que nos defender aqui, detê-los por tempo suficiente para que a Garde Civile retorne e nos salve.
O embaixador estava bastante certo de que eles precisariam desse resgate e não tinha muitas esperanças de que o socorro viria.
— Eles parecem muito atrapalhados e lentos, e eu não estou nada impressionada com os offiziers — disse Brie ao lado de Sergei, como se tivesse ouvido os pensamentos do embaixador.
Ela estava vestida com uma armadura completa sobre uma tashta acolchoada e carregava uma espada na lateral, embora o elmo ainda estivesse amarrado à sela. Seu cabelo estava preso em uma trança que lhe caía pelas costas. A hïrzgin parecia estar completamente à vontade no traje marcial — assim como, pensou Sergei, Allesandra parecia quando comandava as tropas em campanha. Era uma pena, pensou o embaixador, que ambas não tivessem se conhecido há tanto tempo. O filho de Allesandra se casara com alguém muito parecida com sua matarh, consciente ou inconscientemente.
— Eu queria ter trazido a Garde Brezno também. A Garde Kralji vai precisar de uma liderança forte em campo ou vão debandar assim que o combate se torne difícil.
— Realmente — respondeu Sergei. — A kraljica e a hïrzgin estarão no comando. O comandante co’Ingres, infelizmente, ainda sofre com os ferimentos, e o a’offizier ci’Santiago é, bem, digamos apenas que ele é inexperiente.
— Onde está a kraljica?
— A caminho, eu espero. Ela deve estar chegando a qualquer momento agora.
Brie assentiu, emitindo um ruído. Sergei viu a hïrzgin se debruçar na sela e ouvir o couro ranger. Ela olhava para o sul.
— Aquele é outro de nossos batedores? Ele está cavalgando rápido...
Brie apontou, e o embaixador viu uma nuvem de poeira ao longe, na Avi. Ele já não enxergava, e não pôde distinguir o cavaleiro ou as cores de seu uniforme.
— Pode ser — respondeu Sergei. — Seja quem for, está vindo rápido. Deve estar trazendo notícias.
Os dois estalaram as rédeas dos cavalos e desceram a meio galope até a estrada para encontrar o cavaleiro. O a’offizier ci’Santiago se juntou a eles quando o cavaleiro se aproximou galopando na montaria agitada. O cavaleiro prestou continência para eles.
— Os ocidentais — disse o homem, ofegante. — Não muito longe, na estrada... Mil ou mais... Todos na estrada.
Ele parou e recuperou o fôlego.
— Algumas viradas da ampulheta e os ocidentais estarão aqui — disse o cavaleiro. — Estão vindo em marcha acelerada e têm vários feiticeiros com eles, e também peças de máquinas de fazendas. Precisamos estar prontos.
Ci’Santiago assentiu, mas não teve reação. Sergei suspirou.
— Precisamos chamar Talbot e os chispeiros; a’offizier, talvez o senhor possa dar um cavalo novo para este homem e mandar que ele passe a mensagem adiante. Hïrzgin...
— Eu assumirei o comando de campo das tropas até a kraljica chegar — disse Brie. — Embaixador, você e o comandante co’Ingres podem cuidar da estratégia principal aqui nas tendas de comando.
Sergei notou que a hïrzgin já olhava para a paisagem e decidia onde colocar as tropas para melhor proveito.
— Vou precisar de sinalizadores, corneteiros e mensageiros, e quero falar com os offiziers. A’offizier ci’Santiago, preciso que você cuide disso imediatamente. O que você está esperando? Não há tempo, homem. Ande!
Ci’Santiago olhava boquiaberto para Brie, um instante depois, ele fechou a boca e prestou continência enquanto Sergei prendia o riso. O homem virou o cavalo e foi embora a galope, seguido pelo batedor. A hïrzgin olhava para o sul, com a boca franzida. Sergei pensou ter visto fumaça surgindo no horizonte.
— Eu acho que a senhora assustou o pobre homem — disse o embaixador, e Brie soltou uma gargalhada. — A esta altura ele provavelmente já deve estar reclamando da mulher demoníaca de Firenzcia.
— Se sobrevivermos a isso, eu ficarei satisfeita em ser a demoníaca. Você acha que sobreviveremos, embaixador?
— Eu estaria aqui se não achasse? — respondeu Sergei, torcendo para que ela não percebesse a mentira.
Nico ouviu a tranca dos portões da casa ser aberta levemente por Rochelle; ela sorriu para o irmão enquanto guardava as peças finas de metal dentro do embrulho.
— Fácil — disse Rochelle ao empurrar os portões para abri-los.
Nico entrou de mansinho na frente dela, mas sentiu Rochelle colocar a mão em seu ombro quase que imediatamente. Sob o capuz que ocultava seu rosto, ele olhou para a irmã; o manto pesado escondia o robe verde.
— Tem algo errado aqui — alertou Rochelle.
— O que você quer dizer?
— Escute — respondeu ela.
A rua do lado de fora dos portões estava lotada de gente saindo da cidade. Eles ouviram as vozes: os berros, as discussões, os gritos de crianças pequenas demais para compreender o pânico dos pais e parentes. Ela ouviu o estalo e os rangidos de carroças, os pés sendo arrastados no pavimento, os apitos dos utilinos que tentavam em vão direcionar o trânsito e impedir os confrontos inevitáveis.
— Tem todo esse barulho lá fora — disse Rochelle. — Mas aqui dentro... os funcionários deveriam estar correndo, preparando as coisas para sei lá o que, mas não se ouve nada. As persianas das janelas estão todas fechadas e provavelmente trancadas, e eu não ouço nada. Está silencioso demais aqui.
— O que você quer dizer?
Nico sussurrava. Ele já sabia a resposta, e sentiu o desespero se alojar em seu estômago.
— Eu acho que ela não está aqui, Nico. Acho que já foi embora. Lamento.
Irritado, Nico empurrou Rochelle e caminhou a passos largos em direção à porta da frente da casa de Varina. Estava trancada, em vez de esperar pela irmã, ele deu um chute forte e a madeira em volta da tranca rachou. Nico deu mais um chute e a porta se abriu.
— Sutil — disse Rochelle atrás dele.
Nico a ignorou e deu um passo na entrada de mármore. Agora ele sabia que Rochelle estava certa; os criados teriam vindo correndo, prontos provavelmente para defender a casa, mas não havia ninguém visível.
— Varina? — chamou Nico.
Ele pensou ter visto um gato cruzar o corredor a sua frente. Exceto pelo gato, não houve resposta. Nico ouviu Rochelle entrar na casa atrás dele e percebeu que ela empunhava uma faca, com a lâmina exposta.
— Não vamos precisar disso — falou Nico.
— Provavelmente, não. Mas me faz sentir melhor.
Ele deu de ombros. Nico andou devagar pelo corredor e espiou as salas de visitas em ambos os lados. A mobília ali estava coberta por lençóis; o gato olhou fixamente para ele de cima de uma poltrona coberta, depois voltou a lamber as patas dianteiras. Nico continuou a percorrer a casa: o solário, a biblioteca, as cozinhas — todos estavam igualmente vazios, não parecia que Varina esperava retornar em breve. Ele ouviu o chamado de Rochelle do segundo andar e seguiu o som da voz dela. Ela havia tinha embainhado a faca e estava parada na porta do que só poderia ser o berçário. A mobília ali também estava coberta. Rochelle abriu as gavetas da cômoda em uma parede.
— Vazias — disse ela. — Eu disse: Serafina não está aqui, Nico. Os numetodos a levaram para outro lugar.
Nico balançou a cabeça.
— Varina ainda está na cidade. Eu posso sentir.
Rochelle ergueu uma sobrancelha.
— Bom, se está, não está aqui, e o bebê também não.
— Ela despachou Sera — falou Nico.
— Isso eu inferi. Então, será que Cénzi pode lhe dizer para onde?
Ele fez uma careta para Rochelle, ele ia alertá-la sobre a blasfêmia em seus lábios, mas se conteve. Ela pareceu notar também e ergueu a mão.
— Muito bem, então você não sabe. O que nós sabemos para valer? — perguntou Rochelle, mas Nico só conseguiu balançar a cabeça.
— Eu não sei.
Após o confronto com Sergei, ele esperava pegar Sera, sair da cidade com a filha e a irmã e encontrar um lugar para pensar e rezar: para saber o que Cénzi queria dele, para saber como amenizar a culpa e a dor que carregava... Nico esperava — e rezava — que Cénzi lhe desse sua filha, mas parecia que Cénzi ainda tinha planos para ele. Nico olhou para cima.
— Cénzi, o que o Senhor está tentando me dizer?
Ele prestou atenção aos sussurros em sua cabeça e coração, seu rosto ficou sério.
— Acho que chegou o momento de nos separarmos por um tempo — Nico disse para Rochelle.
A Fúria da Tempestade
O sol estava se pondo a oeste no fim da tarde, mas onde antes havia um céu claro, agora uma tempestade se anunciava do outro lado do rio Infante. Uma massa de relâmpagos e trovões se exibia alto no céu, embora houvesse nuvens espreitando perto do solo, de maneira inacreditável. O exército dos tehuantinos estava envolvido por suas sombras, e a tempestade caminhava a passos irregulares com seus raios inconstantes.
As nuvens negras e turbulentas estavam se espalhando ao sul e seguindo a linha de frente estabelecida pelos tehuantinos. O cavalo de Jan se agitou embaixo dele e bufou quando o trovão baixo rosnou como uma grande fera. Havia um odor intenso no ar que fez Jan franzir as narinas.
— Tempestade de guerra — murmurou um chevarittai ao lado de Jan. — Que covardes... eles nem ao menos nos darão a oportunidade de lutar corpo a corpo honrosamente primeiro.
Jan concordou — ele já tinha ouvido falar das tempestades de guerra dos tehuantinos, invocadas pelos feiticeiros: um feitiço cooperativo. Os ocidentais usaram as tempestades de guerra com grande efetividade da última vez que estiveram aqui, assim como durante as batalhas com os Domínios nos Hellins, mas Jan nunca tinha visto uma. Ele duvidava que fosse gostar da experiência em primeira mão.
— Alertem os ténis-guerreiros — ordenou o hïrzg dando um tapinha no pescoço do cavalo para acalmá-lo. — Vamos precisar deles. O ataque está começando.
Jan, seguido por várias companhias de tropas e chevarittai firenzcianos, estava a oeste do rio Infante, logo abaixo da vila de Certendi. A ponte sobre o rio estava às suas costas. Ao leste do rio, ele podia ver as barricadas que tinham sido construídas; o hïrzg tinha pouca esperança de que eles conseguissem dominar a margem oeste por muito tempo. O starkkapitän ca’Damont estava mais perto do leito do rio, com o restante do exército firenzciano; e o comandante ca’Talin, junto à Garde Civile dos Domínios, estava ao extremo sul da linha de frente, perto do ponto onde o Infante se reunia ao A’Sele.
— Diga aos seus homens que eles precisam resistir — disse Jan para os chevarittai.
Ele puxou as rédeas do cavalo e galopou colina abaixo através das fileiras de infantaria e arqueiros.
— Resistam! — Jan disse para todos eles. — Nós precisamos resistir aqui.
À medida que a tempestade de guerra avançava e o rugido da grande nuvem ficava mais alto e sombrio, os ténis-guerreiros avançavam. Jan gesticulou para os robes verdes.
— É aqui que vocês começam a receber seu perdão. Aquela tempestade tem que ceder.
A tempestade se aproximava a cada instante. O ar tinha cheiro de raios, mas não de chuva. À frente das tropas, no que tinha sido um campo com plantação de trigo e grãos, o hïrzg tinha mandado construir armadilhas para os guerreiros tehuantinos: espetos afiados de ferro fincados no chão, buracos encobertos com os fundos cheios de estacas de madeira, pacotes de areia negra que Varina e os numetodos tinham encantado para que explodissem quando alguém pisasse perto deles. A tempestade marchava pelo campo, mas não ainda os guerreiros ocidentais. Os raios rasgavam o solo, arrancavam os espetos e expunham os buracos, jogando terra para todos os lados e fazendo os pacotes de areia negra explodirem inofensivamente.
Jan praguejou para os ténis-guerreiros.
— Agora! — berrou ele. — Agora!
Os ténis-guerreiros começaram a entoar seus cânticos e disparar a energia do Ilmodo na direção da falsa tempestade. A cada feitiço lançado, a tempestade começava a se desmanchar, e mais abaixo, eles puderam ver os guerreiros tehuantinos escondidos, marchando gradualmente em sua direção.
— Arqueiros! — gritou Jan.
Atrás dele, as cordas dos arcos rangeram ao serem tensionadas, uma leve saraivada de flechas desenhou um arco no alto, caindo como uma chuva sobre os ocidentais. Eles ergueram seus escudos imediatamente. Jan viu vários guerreiros caírem, apesar da proteção, ainda que, sempre que um caía, outro tomava seu lugar. Ao sul, a tempestade se assomava sobre as fileiras dos Domínios, e o hïrzg ouviu gritos de dor e susto quando seus raios atacaram os soldados de lá. Mas a tempestade já começava a se desmanchar — o poder que a mantinha fora gasto. Agora Jan ouviu os berros guturais dos feiticeiros ocidentais; bolas de fogo guincharam como moitidis furiosos na direção deles. Os ténis-guerreiros entoaram os contrafeitiços; o hïrzg viu várias bolas de fogo explodirem inofensivamente no ar, mas outras passaram e colidiram contra as fileiras, cuspindo sua terrível destruição flamejante e abrindo brechas na linha de frente. O cavalo de Jan empinou, aterrorizado.
— Avancem as fileiras! Tapem as brechas! — berrou o hïrzg enquanto tentava acalmar seu cavalo.
Os offiziers gritaram instruções; as bandeirolas de sinalização foram sacudidas.
Então, com um grande grito, os guerreiros avançaram, havia pouco tempo para se pensar em qualquer coisa. Jan desembainhou a espada e esporeou o cavalo para seguir em frente. Os chevarittai soltaram um berro de fúria e seguiram o hïrzg, os gardai da infantaria avançaram como uma onda preta e prateada para encarar os ocidentais.
Eles colidiram em um turbilhão de espadas, lanças e piques.
Jan tinha lutado contra as legiões de Tennshah. Esses ocidentais eram igualmente ferozes enquanto guerreiros, mas bem mais disciplinados. O hïrzg ouviu os offiziers dos tehuantinos berrarem ordens expressas na língua deles, e os feiticeiros estavam entre eles, brandindo seus cajados estalando e brilhando com os feitiços. Dessa parte Jan se lembrava. Ele golpeou um mar de rostos marrons pintados de vermelho e preto com sua espada, e sempre que derrubava um, outro guerreiro surgia para tomar seu lugar. Eles estavam sendo repelidos aos poucos, e, mesmo assim, os ocidentais continuavam surgindo. Jan percebeu que eles não resistiriam deste lado do rio — se fossem repelidos tão próximo ao rio, não haveria uma retirada organizada; eles seriam massacrados.
— Recuar! — berrou o hïrzg. — Para a ponte! Para a ponte!
Os offiziers atenderam ao grito; os porta-estandartes sacudiram as bandeirolas de sinalização, as cornetas tocaram o sinal. As tropas firenzcianas, disciplinadas e precisas como sempre, cederam terreno, como tinham sido treinadas, a contragosto, permitindo que os arqueiros e ténis-guerreiros cobrissem a retirada e carregassem os feridos, sempre que possível.
Os mortos, eles deixaram.
Ali, havia duas pontes que cruzavam o Infante, com oitocentos metros de distância uma da outra. A ponte norte, que corria pela Avi a’Nostrosei, já tinha sido destruída. A ponte da Avi a’Certendi ainda estava em pé. O Infante podia ser cruzado, mas não seria fácil, pois a correnteza era rápida e havia poças profundas que apenas os locais conheciam. Os arqueiros e ténis-guerreiros foram os primeiros a passar pela ponte enquanto a infantaria e os chevarittai continham os ocidentais, sob as ordens dos offiziers para correr em direção às barricadas que tinham sido erguidas do outro lado. Jan permaneceu com os homens, sua armadura estava manchada de sangue e amassada, o aço cinzento da sua espada firenzciana estava sujo de sangue seco, até que a ponte estivesse liberada e os arqueiros tivessem entrado novamente em formação do outro lado.
— Fujam! — ele gritou, finalmente, quando ouviu as trompas do outro lado do Infante.
Eles correram em direção à ponte. Jan se virou ali novamente e conteve os guerreiros que o perseguiam, urrando. O chão em torno dele e dos chevarittai estava coberto de corpos. Um feiticeiro brandiu seu cajado, e o chevaritt ao lado do hïrzg caiu, emitindo um berro e emanando cheiro de enxofre, mas o feiticeiro foi abatido no momento seguinte. A maior parte da infantaria estava do outro lado.
— Cruzem a ponte! — gritou Jan. — Chevarittai, cruzem!
Eles viraram seus cavalos e fugiram. Os cascos dos cavalos de guerra bateram nas tábuas da ponte, e o hïrzg gesticulou para os ténis-guerreiros que esperavam do outro lado. Os tehuantinos os perseguiram, estavam perto demais. Os guerreiros já estavam na extremidade oeste da ponte.
— Agora! — berrou Jan ao chegar à terra firme do outro lado. — Derrubem a ponte!
— Hïrzg, não antes de estarmos atrás das barricadas — disse alguém.
Jan ficou de pé nos estribos, furioso, e rugiu.
— Derrubem a ponte agora!
Os ténis-guerreiros entoaram os cânticos e o fogo começou a subir pelas vigas de madeira. As chamas lamberam o papel que embrulhava a areia negra amarrada ali.
A explosão atirou pedaços da ponte para o alto, pedaços enormes de vigas se contorceram, os tijolos e pedras das pilastras cortaram o ar. Os guerreiros e gardai foram igualmente golpeados. Um dos tijolos bateu em Jan, e o impacto o derrubou do cavalo. Ele ouviu o cavalo relinchar também, um som horrível. Ao cair, o hïrzg viu o centro da ponte entrar em colapso e cair no Infante devolvendo um imenso espirro d’água, levando uma massa de guerreiros ocidentais com ela.
Então Jan caiu no chão. Por um momento, tudo ficou preto a sua volta. Quando recuperou a consciência, ele viu rostos e mãos sobre si.
— Hïrzg, o senhor está ferido?
Jan permitiu que o ajudassem a levantar. Seu peito doía como se o cavalo tivesse caído sobre ele, e a armadura onde o tijolo o tinha atingido estava amassada. Seu peito ardia a cada inspiração; ele teve que respirar aos poucos enquanto se livrava das mãos sobre si. O cavalo se debatia no chão, com uma tábua enterrada em seu flanco.
A ponte tinha sido destruída. O sol já tinha se posto ao nível das árvores e projetava longas sombras sobre o campo de batalha. Os ocidentais tinham recuado para o limite da água para sair do alcance das flechas. Jan mancou até o cavalo. Uma das patas dianteiras do garanhão estava quebrada, e sangue espirrava do longo ferimento em seu flanco.
— Minha espada? — pediu ele, e alguém lhe entregou a arma.
O hïrzg se ajoelhou ao lado do cavalo e acariciou seu pescoço.
— Descanse — falou Jan. — Você serviu bem.
Com um gemido de dor, ele ergueu a espada e golpeou com força, abrindo um corte profundo no pescoço do animal. O cavalo tentou se levantar uma última vez, depois ficou imóvel. O mundo parecia dançar em volta de Jan, sua visão periférica se escureceu novamente. Ele se forçou a ficar de pé, apoiado na espada.
— Formem as fileiras atrás das barricadas — disse o hïrzg para quem estava ao redor. — Cuidem dos feridos e organizem as vigias. Mandem os a’offiziers virem até mim e avisem o starkkapitän e o comandante sobre o que...
Aconteceu aqui...
As palavras estavam em sua mente, mas não pareciam sair. A escuridão tomou conta dele demais, apesar do sol ainda estar visível no céu.
Ele se sentiu cair.
Não havia nahualli suficiente com Niente para criar uma tempestade de guerra. À frente deles, sob a luz dourada do fim de tarde, os tehuantinos viram as tropas orientais dispostas nas encostas dos morros, em ambos os lados da estrada. O número de guerreiros parecia ser muito maior que a quantidade de orientais, a menos que eles tivessem tropas reserva escondidas do outro lado da encosta.
Tototl bufou desdenhosamente.
— Isso é tudo que eles têm contra nós? — comentou ele, e os guerreiros próximos riram. — Uchben nahual, chegou o momento de fazer o que conversamos.
Niente assentiu para Tototl, virou o cavalo e cavalgou de volta ao abrigo dos nahualli entre os guerreiros. Ele mandou que os nahualli enchessem seus cajados mágicos como de costume na noite anterior, para que pudessem realizar o feitiço quando fosse necessário e ainda estarem descansados para a batalha. Eles não podiam criar a tempestade de guerra, mas podiam criar uma nuvem grande o suficiente para encobri-los. Foi o que fizeram agora: o cântico em massa reuniu o poder do X’in Ka, a energia se condensou no ar e se tornou visível. Filetes de nuvem começaram a flutuar em frente aos guerreiros, da estrada até quase às margens do rio, uma bruma espessa se formou e adensou, uma muralha formada pelos nahualli para que os orientais não pudessem mais vê-los. Essa muralha não acompanharia as tropas, nem geraria os raios da tempestade de guerra. Niente gesticulou quando não conseguiu mais ver as tropas orientais à frente deles, nem os morros onde elas estavam, e os nahualli interromperam o cântico.
Niente cambaleou, como se tivesse corrido até o rio e voltado: o preço do cântico e da canalização de energia, mas ele se forçou a se manter de pé, embora muitos jovens nahualli tivessem desmoronado, ofegantes. Usar o X’in Ka desta forma — para criar um feitiço sem se dar tempo de recuperar o esforço — tinha um preço alto; Niente não compreendia por que os feiticeiros orientais geralmente faziam magia dessa forma, em vez de estocar os feitiços para serem lançados mais tarde.
— Levantem-se — falou ele. — Peguem os cajados mágicos. Ainda há uma batalha a ser travada.
Com a muralha de bruma impedindo a visão das tropas orientais, Tototl berrou ordens, gesticulou para os guerreiros de menor escalão e os guerreiros supremos responsáveis por eles. Duas companhias seguiram para a esquerda, em direção ao rio — elas contornariam os orientais que avançariam contra os inimigos em sua retaguarda e nas laterais. Tototl esperou até o braço do flanco se afastar e Niente cavalgar até ele.
— Se isto é tudo o que está entre nós e a cidade, nós chegaremos lá esta noite, uchben nahual — falou o guerreiro supremo. — Parece que seu filho enxergou bem: nos mandar cruzar o rio é o caminho para a vitória. Eles não estavam preparados para isso. Nós avançaremos até a cidade e surgiremos contra o restante do exército oriental pela retaguarda, enquanto Citlali e o nahual Atl atacam pela vanguarda. Eles serão esmagados por nós como uma noz com casca entre pedras.
O comentário só fez Niente fechar a cara. Ele tentou usar a tigela premonitória na noite anterior: tudo estava confuso, e os poderes se mexiam do lado dos orientais, de maneira que não foi possível ver claramente, e o Longo Caminho lhe escapou completamente. Tototl pareceu achar graça na irritação de Niente; ele riu.
— Não se preocupe, uchben nahual — falou o guerreiro supremo. — Eu ainda tenho fé em você. Seu cajado mágico está cheio?
Niente levantou o cajado de madeira de lei de ébano que ele tinha entalhado com tanto cuidado há décadas com seus símbolos de poder. Com os anos, suas mãos poliram o punho nodoso e o centro do cajado, deixando um acabamento acetinado e reluzente. O objeto parecia fazer parte dele; Niente sentia a energia em seu interior, esperando para pronunciar os gatilhos para provocar fúria e morte. No entanto, mesmo mostrando o cajado para Tototl, e enquanto os guerreiros e nahualli ao redor gritavam em afirmação, Niente sentiu pouca coisa além de desespero.
Não havia vida nesta vitória, se é que seria uma vitória. Nenhuma alegria. Não se ela levasse para o lugar que ele vislumbrara uma vez.
Tototl desembainhou a espada e a ergueu, juntamente com o cajado de Niente, e os gritos redobraram.
— É o momento de sangue! — declarou o guerreiro supremo. — É o momento de morte ou glória!
Ele apontou para a margem da nuvem com a espada.
— Por Sakal! — rugiu Tototl.
Os tehuantinos berraram com ele ao avançarem. Niente foi levado pela onda, mas estava calado.
Eles entraram no vazio frio e cinzento da nuvem e saíram para o sol, o calor e a batalha.
Brie havia posicionado as tropas nas duas encostas de morro que flanqueavam a estrada, com apenas uma única companhia na estrada em si, e arqueiros em posição de ambos os lados — eles ao menos teriam a vantagem da altura do terreno para começar esta batalha. Os ocidentais teriam que avançar morro acima se quisessem enfrentá-los.
Se tivessem chevarittai, eles poderiam descer a toda velocidade, como uma gigantesca lança sendo enfiada em meio aos ocidentais. Mas eles não tinham chevarittai, e tinham poucos arqueiros, apenas três numetodos — de quem Brie desconfiava ligeiramente, pois não havia numetodos em Firenzcia; pelo menos nenhum que se revelasse abertamente — e nenhum téni-guerreiro.
Allesandra tinha chegado há uma virada, ela vestiu sua armadura, e Brie cedeu o comando de campo para ela, como era apropriado, uma vez que a Garde Kralji era da kraljica.
— Vejo que você teve uma bela educação — disse Allesandra. — Eu não esperava menos de você.
Brie e a kraljica, juntamente com Sergei e o comandante co’Ingres, observavam a aproximação das tropas ocidentais, sob o estandarte de cobra com asas. A hïrzgin ficou séria ao ver o tamanho assustador da força inimiga; ficou ainda mais preocupada quando viu os feiticeiros — a salvo, fora do alcance dos arqueiros deles — colocarem uma muralha de bruma entre eles para mascarar a formação.
Brie não conseguiu conter um arrepio diante da cena.
— Kraljica, embaixador, existe algum terreno melhor e mais defensável entre o Sutegate e aqui? Talvez devêssemos tentar incomodá-los em vez de detê-los. Podemos mandar grupos menores contra os flancos, criar uma muralha defensiva na cidade...
Allesandra lançou um olhar para Sergei e co’Ingres, e nenhum dos dois falou.
— É tarde demais para isso, hïrzgin — respondeu a kraljica. — Nós temos que resistir aqui, precisamos detê-los o máximo de tempo possível, e temos que fazê-los pagar por cada passo de terreno que eles tomam.
Brie cerrou as mãos em volta das rédeas do cavalo de guerra.
— Então eu estarei ao seu lado, kraljica, na vanguarda.
— Não. — Allesandra balançou a cabeça. — Esse lugar e responsabilidade são meus, Jan jamais me perdoaria se você fosse ferida. Eu quero que você assuma o flanco do rio com os chispeiros de Talbot. Eles precisarão de uma coragem inabalável e de um comandante firme para guiá-los. Talbot pode ficar com você, mas eu preciso dos outros numetodos aqui; temos poucos, uma vez que a maioria seguiu com o comandante ca’Talin.
Brie queria discutir — em sua cabeça, a Garde Kralji também precisava de uma liderança forte ou debandaria, mas ela assentiu, a contragosto.
— Como queira, kraljica...
Relutante, ela cavalgou em direção ao oeste na estrada e subiu o morro, passando pela Garde Kralji — que olhou para a hïrzgin com preocupação — até a retaguarda, onde os chispeiros tinham sido posicionados. Brie balançou a cabeça ao vê-los, vestidos com o que quer que tivessem no corpo. Os chispeiros não vestiam nenhuma armadura, exceto por alguns, que usavam pedaços de couraça de metal enferrujado e cota de malha rasgada e mal ajustada. A não ser pelos estranhos apetrechos que cada um portava, eles estavam armados apenas com espadas antigas, instrumentos de fazenda e cutelos. Os chispeiros pareciam mais uma turba do que uma força de combate — uma turba que um simples esquadrão da Garde Brezno teria sido capaz de afugentar, fazendo-os correr aos berros.
Brie repassou as ordens da kraljica a Talbot; o homem parecia tão preocupado com os chispeiros quanto ela, mas tinha enviado seus colegas numetodos lá para baixo, para onde o estandarte da kraljica tremulava do lado leste da estrada.
— Eu sou o assistente dela — comentou ele ao observar os numetodos seguindo em direção ao estandarte da kraljica. — Eu deveria ter ido com eles. Isto é loucura.
— É por isso — disse Brie — que ela nos quer na retaguarda. Ela sabe quais são as chances. Esses chispeiros têm mesmo um propósito?
Em resposta, Talbot ensaiou os exercícios, formando os chispeiros em fileiras e recuando os homens em sequência. Brie tentou imaginar as chispeiras disparando, tentou imaginar o grupo não debandando e fugindo aterrorizado ao ver o inimigo. Enquanto Talbot berrava ordens, a hïrzgin também observou a massa inacreditável de bruma que cobria a estrada abaixo e passava ao lado do morro onde ela estava.
A muralha cinzenta estava em silêncio.
— O que acontece quando eles “atiram”? — perguntou ela.
— As chispeiras disparam. Elas são bastante eficientes, na verdade. Foram inventadas por Varina. — Ele inclinou a cabeça ligeiramente para Brie. — Não há magia alguma envolvida, hïrzgin, se é isso o que lhe preocupa. Nenhuma ostentação do “Dom de Cénzi”, como vocês da fé concénziana poderiam chamar.
Ela ia responder, mas aí...
— Talbot... — Brie apontou para o morro abaixo.
Começou como um rugido abafado atrás da nuvem: o som de armaduras batendo e guerreiros berrando. Da bruma, os tehuantinos saíram correndo em direção a eles, onda atrás de onda tomando a estrada, assim como os campos de ambos os lados. Brie, do ponto de observação, ouviu Allesandra mandar os arqueiros dispararem, e os numetodos lançarem bolas de fogo e raios estalando em direção aos tehuantinos. Os feitiços e as flechas abriram breves brechas nas fileiras, que foram imediatamente cobertas, e agora os feiticeiros ocidentais erguiam seus cajados mágicos e lançavam seus próprios raios em direção a Allesandra e às tropas. Explosões e gritos eram ouvidos em ambos os morros.
O clamor ficou mais alto; as fileiras se aproximaram...
... e colidiram, emitindo o tilintar de metal. Da altura onde os chispeiros estavam, Brie conseguiu ver a batalha exposta diante de si, a miríade dos dois exércitos sobre a paisagem parecia uma praga de insetos. Alguns chispeiros estavam visivelmente assustados com o que viam, outros recuaram morro acima — para o norte, em direção à cidade. Talbot e Brie berraram para que eles parassem, e a hïrzgin virou o cavalo para interceptá-los, como um cão pastor com seu rebanho.
— Recuem e eu mato vocês — gritou Brie para os chispeiros, com sua espada erguida e seu cavalo de guerra trotando em resposta a sua agitação. — Talbot, vamos levá-los para baixo para podermos...
Ela ia dizer, mas de repente se calou.
Brie notou que a batalha já estava sendo perdida lá embaixo. A linha de frente da Garde Kralji já tinha entrado em colapso, e o estandarte de Allesandra seguia a norte da estrada, cedendo terreno. Os ocidentais já não estavam mais encobertos pela muralha de bruma e, apesar da quantidade, parecia haver menos inimigos do que Brie se lembrava. Ela olhou para Talbot, preocupada e subitamente desconfiada.
— Fique aqui — disse a hïrzgin.
Ela fez o cavalo subir a encosta do morro em direção ao cume, permanecendo sob a cobertura das árvores. Quando chegou ao cume, Brie olhou para baixo. Ela viu a muralha cinzenta de bruma seguindo em direção à margem do rio. E ali, na outra margem...
— Ah, não... — Brie engoliu uma imprecação.
Na encosta do morro, já subindo encosta acima, se aproximava o restante do exército ocidental.
A tempestade de guerra era ao mesmo tempo assustadora e mortal, mas era apenas uma quimera: um fantasma do Segundo Mundo. Ao mesmo tempo que cortava a tempestade com o Scáth Cumhacht, Varina admirava seu poder, precisão e criação. Ela podia sentir os vários fios individuais da tempestade, como eles se entrelaçavam a partir dos feitiços de vários feiticeiros e se formavam em um único encantamento: uma presença especialmente forte, se aproximando dela.
Isso não era nada que os ténis da fé concénziana conseguissem fazer, nem os numetodos — outra habilidade que os habitantes do mundo oriental não tinham. Ao mesmo tempo em que dilacerava as nuvens e dissipava os fios mágicos que as mantinham coesas, Varina se deu conta de que estava pensando como preparar um feitiço como aquele.
Se sobreviver, isto é algo em que você deveria trabalhar, para que os numetodos aprendam a fazer também.
Se você sobreviver...
E isso, ela receava, não era uma certeza.
Ela estava junto à Garde Civile, do comandante ca’Talin, na extremidade sul da frente de batalha, no triângulo cada vez mais estreito entre o rio Infante e o rio A’Sele. Aqui, o Infante se dividia em dois braços ao se juntar com o A’Sele, e a Avi a’Sele cruzava o rio com duas pontes. Assim como o comando do starkkapitän ca’Damont, ao norte, e com o comando do hïrzg Jan, na extremidade norte da linha de frente, eles tinham se posicionado a oeste do Infante. Os tehuantinos estavam dispostos em uma longa fileira curva, se espalhando pela Avi a’Sele em direção à Avi a’Nostrosei, com cerca de três quilômetros de comprimento.
A tempestade de guerra, pelo que Varina pôde notar, podia ter coberto toda essa extensão.
Os outros numetodos também estavam cortando a tempestade de guerra juntamente com ela. Os raios evanesceram, a nuvem negra tinha sido desfiada e interrompida. Eles puderam ver alguns homens se movendo atrás dela, avançando.
— Recuem, recuem! — gritou o comandante ca’Talin para Varina e os demais. — Fiquem atrás da linha de frente. Arqueiros, disparar!
Bandeiras tremularam, cornetas soaram no ar, e por toda a extensão da linha de frente, saraivadas de flechas foram lançadas contra a tempestade de guerra. Varina viu os escudos dos guerreiros serem erguidos e a maioria das flechas ser cravada em escudos. Golpes de espada arrancaram as flechas presas nos escudos, e os tehuantinos mandaram uma chuva de flechas em resposta. Varina ouviu Mason berrar perto dela e cair com uma flecha de penas cinzas encravada em seu peito. Outra flecha acertou o chão a seus pés.
— Recuem! — berrou ca’Talin novamente.
Desta vez eles obedeceram. Johannes e Niels arrastaram Mason com eles.
Varina podia ver pouco mais que corpos colidindo à sua volta em meio à batalha, mas podia ouvir muito bem: o choque do aço contra o aço, os gritos dos soldados de ambos os lados, os toques estridentes das trompas. Também podia sentir o cheiro da fumaça dos fogos mágicos, do sangue, e de enxofre, torcendo o nariz. Mas à sua frente havia apenas uma massa agitada de soldados. Ca’Talin, a cavalo, cercado por chevarittai, se enfiou em meio ao caos e, por um momento, Varina e os outros ficaram sozinhos. Eles dispararam feitiços de fogo por cima dos gardai em direção às fileiras tehuantinas do outro lado; usaram contrafeitiços para destruir o fogo jogado pelos feiticeiros ocidentais sobre eles. A areia negra explodiu à sua direita, lançando terra e partes de corpos para o alto e a deixando ligeiramente surda.
Varina sentiu o terrível cansaço pelo uso contínuo do Scáth Cumhacht. Todos os feitiços que ela tinha preparado na noite anterior acabaram, e sua mente estava cansada e confusa demais para criar novos com facilidade. Varina estava acabada; estava vazia.
Se você sobreviver...
Ela tinha menos certeza disso agora do que nunca.
As cornetas mudaram o toque. Varina viu o comandante e os chevarittai saírem em meio à fumaça e a confusão da batalha. Atrás deles, gardai recuavam e fugiam para o leste.
— Para as pontes! — gritou ca’Talin ao passar por eles. — Para as pontes!
Varina foi levada por eles, impotente. A retirada seguiu em debandada, uma confusão. Ela estava sendo empurrada, tropeçando e quase caindo. À sua volta, as pessoas se acotovelavam, e Varina não conseguia se levantar. Seria fácil, ela pensou, se deitar ali e deixar tudo acabar. Varina sentiu que começava a cair novamente.
Uma mão a abraçou pela cintura.
— Aqui, levante-se.
Ca’Talin havia retornado. Ele puxou Varina para a sela de seu cavalo de guerra. Os braços e ombros da a’morce doíam. Ela viu as pontes à frente, lotadas de gardai fugindo em direção às barricadas do outro lado.
— Perdemos aqui — ca’Talin meio que gritou para ela enquanto eles mergulhavam na multidão de homens — Os ocidentais tomaram este lado do rio até o norte. Que Cénzi nos preserve para amanhã.
Ao ver os tehuantinos avançarem até o outro lado da colina em direção a eles, Brie virou seu cavalo e galopou duramente até os chispeiros; o animal jogava rochas e pedras a sua frente.
— Talbot! Por aqui! — gritou ela. — Traga seu pessoal e me siga!
Assim que viu a confirmação de Talbot, vendo o homem berrar ordens e empurrar os chispeiros a sua volta, a hïrzgin subiu a encosta novamente até chegar ao cume. Os tehuantinos ainda subiam o morro, com a óbvia intenção de ladear a batalha principal e atacar a Garde Kralji pelo flanco e pela retaguarda enquanto os gardai estavam concentrados no ataque principal pela estrada. O cume do morro era plano e quase sem árvores; os ocidentais avançavam por uma campina. A essa altura, Brie também tinha sido vista; ela ouviu uma flecha passar assobiando por sua cabeça e recuou levemente morro abaixo.
Talbot e os chispeiros estavam quase no topo; a hïrzgin contou para ele o que viu rapidamente. Os dois arrumaram as fileiras imediatamente abaixo do cume; os chispeiros verificaram suas armas novamente, para garantir que estavam carregadas e abriram as bolsas de couro onde carregavam, segundo Brie tinha sido informada, as pequenas recargas de areia negra para recarregar as chispeiras. Ela tinha visto as recargas; estavam longe de ser impressionantes, o que apenas aumentava suas dúvidas quanto à eficiência da chispeira enquanto arma.
Mas ela não tinha escolha. Ela só podia torcer para que Talbot não tivesse lhe contado uma mentira elaborada.
— Muito bem — falou a hïrzgin. — Ao meu comando, nós subiremos até o cume. Talbot, prepare-se para disparar assim que estiver lá; eles têm arqueiros, portanto vocês também estarão sob ataque.
Ela viu os homens empalidecerem ao ouvir isso.
— Vocês possuem o terreno elevado como vantagem. Ataquem para valer, e os arqueiros serão inúteis — disse Brie, apesar de não acreditar nisso; ela achava que os arqueiros inimigos transformariam os chispeiros em uma parede de corpos sobre o cume. — Agora, avancem!
Quase de má vontade, os homens subiram até o cume, juntamente com Brie e Talbot. Ela ouviu os chamados na estranha língua ocidental quando eles apareceram, mas Talbot já ditava a sequência antes das primeiras flechas os alcançarem.
— Primeira fileira, ajoelhar! Primeira fileira, atirar!
O barulho emitido fez o cavalo de Brie empinar, aterrorizado. Uma fumaça branca e pungente floresceu ao longo da fileira, e pelo morro abaixo... A hïrzgin mal podia acreditar no que via: os ocidentais derrubados como se uma lâmina divina tivesse ceifado as fileiras inimigas. Ela soltou um grito de surpresa, quase uma risada.
— Segunda fileira, ajoelhar! Segunda fileira, atirar!
Novamente, os estampidos das chispeiras ecoaram; novamente, mais ocidentais caíram; seus corpos rolaram morro abaixo ou se amontoaram onde estavam. Agora, algumas flechas também atingiram os chispeiros, Brie viu três ou quatro homens caírem.
— Droga, resistam, seus bastardos! — gritou Talbot para as fileiras, que fraquejaram e começaram a se desmanchar.
Brie galopou atrás deles enquanto a fileira da retaguarda titubeava e tentava debandar em vez de recarregar as armas.
— Não! — disse ela. — Fiquem e lutem, ou vocês sentirão o aço da minha espada! Fiquem!
— Terceira fileira, ajoelhar! Terceira fileira, atirar! — berrou Talbot.
Desta vez a saraivada soou mais como uma gagueira do que uma explosão coordenada, mesmo assim, mais tehuantinos caíram. Brie notou que o inimigo titubeava.
— Mais uma vez! — ela gritou para Talbot. — Rápido!
— Primeira fileira, ajoelhar! Primeira fileira, atirar!
Outra gagueira, alguns homens sequer conseguiram disparar, tentando recarregar as armas atabalhoadamente, com mãos trêmulas. Mesmo assim, mais tehuantinos caíram, e o disparo de flechas parou completamente. Morro abaixo, guerreiros feridos e moribundos gritavam em sua língua, e outros guerreiros pintados berravam em resposta.
— Segunda fileira, ajoelhar! Segunda fileira, atirar!
Mais uma vez, as chispeiras rugiram, e quando mais guerreiros caíram, os tehuantinos finalmente cederam. Os guerreiros recuaram e começaram a descer correndo o morro, apesar dos esforços dos offiziers para contê-los, subitamente eles bateram em retirada em pânico. O grupo de chispeiros soltou um grito de triunfo, alguns deles, sem que Talbot desse a ordem, dispararam as chispeiras dos inimigos, recuando. No topo do morro, havia punhos erguidos em triunfo.
Brie gritou “urra” com os chispeiros, mas então olhou para trás e a alegria morreu em sua garganta. Bem abaixo, na estrada, a Garde Kralji estava em plena fuga. Ela viu o estandarte de Allesandra balançando e ouviu as cornetas soando o toque de retirada. Atrás deles, os guerreiros tehuantinos os seguiam em perseguição: uma onda negra que se espalhava pela estrada ao longo de ambos os morros, uma onda que sobrepujaria a unidade de chispeiros se eles ficassem ali.
— Talbot! — gritou Brie. — À kraljica! Não podemos ficar aqui.
Eles podiam ter tido uma pequena vitória nessa escaramuça, mas não haveria vitória maior aqui. A hïrzgin conduziu Talbot e os chispeiros morro abaixo para se juntar à kraljica na fuga.
Niente pensou que Tototl fosse perseguir os orientais diretamente até a cidade deles ou mesmo atropelaria a retirada dos inimigos e os mataria ali. E ele talvez tivesse feito exatamente isso, se não fosse por um guerreiro supremo ter voltado, ofegante, falando sem parar a respeito de um massacre: o grupo que fora despachado para o flanco ocidental tinha sido praticamente destruído. Tototl deteve o avanço e enviou apenas alguns esquadrões em perseguição aos orientais em fuga. Tototl e Niente seguiram o guerreiro supremo e deram a volta até o outro lado do morro. Agora Niente estava vendo uma terrível carnificina na encosta à frente dele — embora ele tivesse visto coisas piores em suas longas décadas de guerra, certamente. Niente tinha testemunhado homens cortados em pedaços, tinha visto cadáveres empilhados sobre mais cadáveres. Mas aquilo: havia uma quietude assustadora ali, e os corpos estavam estranhamente inteiros. Havia pouco sangue.
Tototl pulou do cavalo e caminhou entre os corpos espalhados pela encosta coberta de grama.
— Que magia fez isso? — ele exigiu saber.
Niente balançou a cabeça.
— Uma magia que eu não nunca vi antes.
— Por que você não viu isso? — disse Tototl furioso.
Niente só podia continuar balançando a cabeça. Suas mãos tremiam. Ele sentiu o cheiro de areia negra no ar.
Areia negra.
Isso não era magia... A ideia não parava de lhe ocorrer, juntamente com o cheiro de areia negra. O fato da areia negra não ter sido criada a partir do X’in Ka era algo que Niente tinha omitido do tecuhtli e dos guerreiros. Ele queria que os guerreiros acreditassem que a areia negra era mágica. Não queria que eles soubessem que qualquer um poderia fazê-la se soubesse os ingredientes, as medidas da fórmula e o método de preparo. Niente e os poucos nahualli a quem ele confiou o segredo mantiveram o sigilo — todos eles suspeitavam que, se os guerreiros pudessem fazer a areia negra sozinhos, eles poderiam decidir que não precisavam dos nahualli.
Isso não era magia...
Niente sabia, mas não podia admitir para Tototl.
Se Atl também estiver vendo isso... O medo o regelou e ele quase pegou o pássaro entalhado, quase pronunciou a palavra que permitiria a comunicação com o filho, para avisá-lo. Mas seria tarde demais: a batalha já estaria, sem dúvida, em andamento. Tarde demais. E ainda que os orientais tivessem essa habilidade mortal, ela ainda não tinha feito a diferença nesta batalha. Os inimigos eliminaram as tropas do flanco, mas ainda assim foram derrotados.
Mas Tototl estava certo em um aspecto: ele não tinha visto isso. O que a tigela premonitória diria agora?
— Os orientais aprenderam um feitiço que nunca tinham nos mostrado antes — respondeu Niente.
Os feridos sangravam por buracos profundos e irregulares, mas quase circulares. Os mortos estavam piores — parecia que eles tinham sido atingidos por flechas invisíveis que, inacreditavelmente, vararam armaduras de metal e bambu para mergulhar profundamente em seus corpos, muitas vezes atravessando-os completamente. E no topo do morro, de onde os guerreiros sobreviventes tinham dito que a terrível saraivada viera, não havia nenhum corpo e haviam poucos sinais de sangue, embora houvesse algumas flechas tehuantinas no chão. Mas o solo estava inalterado, como não estaria se os inimigos tivessem precisado arrastar corpos. Os orientais conseguiram infligir esse dano nos tehuantinos sem perder homens de maneira substancial.
Será que eles fariam isso com as tropas principais? Será que estão escondendo esse poder, à espera de um lugar melhor para usá-lo?
Podia não ter sido magia, mas alguma coisa tão horrível quanto inacreditável tinha acontecido aqui. Eles usaram a areia negra de uma forma que Niente não conseguia compreender.
— Eu preciso usar a tigela premonitória novamente — falou ele. — Alguma coisa mudou, alguma coisa que Axat não tinha mostrado antes. Isso é importante. Estou preocupado com o tecuhtli.
O Longo Caminho: será que ainda estaria ali? Será que mudou também? Ou tudo mudou? Será que Atl viu isso? Niente tinha que saber. Tinha que descobrir. Ele não estava entendendo algo fundamental para a compreensão dessa situação — ele podia senti-lo em seu estômago revirando, uma queimação. Sentiu-se velho, gasto, inútil.
— Não há tempo — respondeu Tototl. — O tecuhtli cuidará de si mesmo, e ele está com o nahual. A cidade está aberta para nós. Tudo o que precisamos fazer é persegui-los. Eles estão fugindo. Não posso lhes dar tempo para se reagruparem.
— Então o mais breve possível, assim que chegarmos à cidade — disse Niente. — Olhe para isso! Você quer que isso aconteça conosco ou com Citlali?
Tototl franziu as sobrancelhas.
— Jogue óleo nos corpos e queime-os — ele ordenou aos guerreiros. — Depois se juntem a nós. Niente, venha comigo; a cidade nos aguarda.
Ele cuspiu no chão. Depois, franzindo a testa mais uma vez, montou em seu cavalo. Niente ainda estava olhando para o cenário, tentando entender o que tinha acontecido.
— Venha, uchben nahual — falou Tototl. — As respostas que você quer ficam mais longe de nós enquanto ficamos parados aqui.
Nisso, o guerreiro tinha razão. Niente suspirou e, em seguida, caminhou até seu próprio cavalo e — com a ajuda de um guerreiro — montou na sela.
Eles seguiram adiante, e Tototl já berrava para retomarem o avanço.
Se o dia tinha sido terrível, a noite foi odiosa. Varina estava encolhida com a Garde Civile, pressionada entre duas barricadas que tinham sido erguidas nos últimos dias, e à noite choveram fagulhas e fogo, como se se estivesse arrancando as próprias estrelas dos céus e lançando na terra. Ambos os lados agora usavam catapultas para disparar o fogo da areia negra uns nas fileiras dos outros. As explosões trovejavam de poucos em poucos instantes: às vezes ao longe, às vezes preocupantemente perto.
Não houve descanso nem sono nessa noite. Ela viu as bolas de fogo desenharem arcos no céu e caírem a oeste, e se encolheu com medo quando a saraivada em resposta bateu nas barricadas. Varina tentou bloquear os sons dos berros e lamentos sempre que um projétil dos tehuantinos os atingia.
Isso era pior que o combate aberto. Ao menos lá, ela tinha a ilusão de controle. Não havia controle aqui: a vida de Varina e de todos a sua volta estavam reféns dos caprichos do destino e do acaso. A próxima bola de fogo poderia cair sobre ela, e estaria tudo acabado, ou poderia acertar e tirar a vida de outra pessoa. Varina se sentiu impotente e indefesa, encolhida com as costas contra a sujeira fria, tentando recuperar o máximo de força possível para que pudesse repor os feitiços para o ataque que viria pela manhã.
E ele viria. Todos sabiam.
As notícias do norte eram desanimadoras. Nem o starkkapitän ca’Damont, nem o hïrzg Jan, com as tropas firenzcianas, conseguiram manter a margem oeste do Infante. Ambos foram forçados a recuar e cruzar o rio. Pior, disseram que o hïrzg Jan tinha sido ferido durante a retirada, no momento em que a ponte a’Certendi foi destruída. Os rumores eram descontrolados e variados: Varina ouviu que Jan estava morrendo; que ele tinha sido levado de volta à cidade, para os curandeiros; que o hïrzg estava comandando a defesa do leito na tenda; que Jan tinha se amarrado ao cavalo para não parecer ferido enquanto cavalgava e encorajava seus homens; e ouviu que seus ferimentos eram leves e que ele estava bem.
Varina não fazia ideia de quais rumores eram falsos e quais eram verdadeiros. O que ficou claro foi que a batalha do dia anterior tinha sido apenas um prelúdio. O Infante seria cruzado; todos eles sabiam disso. Os tehuantinos descobririam seus pontos rasos e cruzariam assim que houvesse luz.
Varina tremeu e fechou os olhos quando outra bola de fogo passou estridente acima dela, explodindo à sua esquerda. Se acreditasse em Cénzi, ela teria rezado — certamente havia preces sendo murmuradas ao seu redor. Varina quase sentiu inveja do alívio que os soldados pudessem encontrar com elas.
— Varina?
O comandante ca’Damont se ajoelhou ao lado dela. Em meio ao barulho, Varina não tinha ouvido sua aproximação. Ela ia se levantar, mas ele balançou a cabeça e fez um gesto para que ficasse abaixada.
— Desculpe — falou Varina. — Eu estava tentando descansar.
Ele sorriu palidamente.
— Não há muito descanso por aqui. Eu queria lhe contar que os curandeiros dizem que Mason, o vajiki ce’Fieur, vai se recuperar. Eles vão levá-lo de volta à cidade.
— Ótimo. Obrigada. Obrigada por me contar.
— Eu quero que você vá com ele — continuou ca’Damont. — Este não é um lugar para você.
Uma velha frágil... Varina quase podia ouvir o que não tinha sido dito.
— Não — respondeu ela. — Você precisa de mim aqui. Eu sou a a’morce dos numetodos; aqui é o meu lugar.
— Chegaram mais ténis-guerreiros. Dois punhados. E ainda há os outros numetodos que você trouxe. Você provou sua coragem mais cedo, Varina. Ninguém pode exigir mais de você. E você tem uma criança com quem se preocupar.
Varina queria concordar. Queria aceitar a oferta e voltar correndo para a cidade — mas mesmo lá ela não estaria a salvo. Ela podia fugir o quanto quisesse, podia pegar Serafina e ir para leste ou norte, mas se eles perdessem aqui — e Varina não conseguia ver uma maneira de vencer —, ela sempre se perguntaria se deveria ter ficado, se sua presença teria feito a diferença.
Karl não teria fugido. Ele teria ficado, mesmo que pensasse que a batalha estava perdida. Disso ela tinha certeza.
— A maioria dos gardai tem crianças com quem se preocupar — disse Varina, com firmeza. — É por isso que eles estão aqui.
— Mesmo assim...
— Eu não vou embora — disse ela.
O comandante assentiu. Ele se levantou e prestou continência para Varina.
— Tem certeza?
Varina deu uma risada nervosa quando outra bola de fogo passou rugindo. A luz das chamas brilhou e as sombras se mexeram quando ela explodiu.
— Não — respondeu Varina. — Mas eu vou ficar, e você está interrompendo meu descanso.
Eles ouviram o rugido baixo de outra explosão em algum lugar atrás da barricada.
— Descanso? — disse o comandante. — Eu duvido que qualquer um de nós descanse esta noite. Mas tudo bem. Fique, se quiser. Cénzi sabe que nós precisamos de toda ajuda possível.
Ele pareceu se dar conta do que disse e abriu um sorriso meio irônico.
— Desculpe, a’morce.
— Não peça desculpas. Se seu Cénzi existir, espero que Ele esteja lhe escutando.
Não era para ter sido assim. Sergei tinha rezado para Cénzi, mas Cénzi não tinha atendido — não que ele esperasse alguma ajuda desse lado. Os tehuantinos perseguiram Allesandra e a Garde Kralji até o interior da cidade. A kraljica tentou se reagrupar e resistir no Sutegate, mas os tehuantinos avançavam por uma área muito ampla agora e entravam na cidade por todos os lados ao sul. Allesandra não tinha tropas suficientes para cobrir toda a fronteira sul da cidade. Ficou imediatamente óbvio que eles não conseguiriam controlar a Margem Sul: não com a Garde Kralji, nem mesmo com os chispeiros, que se provaram estranhamente eficazes durante a retirada. Eles recuaram ainda mais e abandonaram toda a Margem Sul através da Ilha a’Kralji.
Eles podiam evitar que os tehuantinos passassem pelos gargalos das duas pontes.
Sergei tinha insistido que Allesandra destruísse a Pontica a’Brezi Veste e a Pontica a’Brezi Nippoli completamente, para que os tehuantinos não pudessem cruzar a confluência sul do A’Sele sem precisar de barcos. Ela se recusou.
— As Ponticas continuarão de pé — falou Allesandra. — Eu não abrirei mão de metade da cidade. As pontas continuarão de pé, nós as defenderemos esta noite, e amanhã nós voltaremos a cruzá-las para recuperar nossas ruas.
Sergei discutiu veementemente com ela, e o comandante co’Ingres concordara com o embaixador; nenhum dos argumentos convenceram Allesandra a mudar de ideia.
E foi na Pontica a’Brezi Veste e na Pontica a’Brezi Nippoli que os chispeiros realmente se destacaram. Com a orientação de Brie e Talbot, o grupo conseguiu controlar os pequenos espaços. Embora os ocidentais tivessem avançado onda atrás de onda contra eles durante o fim da tarde e até o anoitecer, eles deixaram ambas as pontes repletas de corpos. Após várias tentativas em vão, e com a luz do sol morrendo, os ocidentais finalmente recuaram.
Do telhado do Palácio da Kraljica, Sergei podia ver a queima de fogos na Margem Sul, onde antes os ténis acendiam lanternas ao longo da Avi a’Parete. As chamas amarelas eram um escárnio. A oeste e ao norte, do outro lado do A’Sele, mas ainda fora da cidade, rugidos constantes e clarões de explosões ainda prorrompiam, como se um temporal de relâmpagos sem chuva ou nuvens tivesse ocupado o lugar. Abaixo, além das muralhas externas dos pátios e da entrada do palácio, na Avi, Brie ainda estava acordada, sem seu cavalo agora. Sergei pôde ouvir a voz da hïrzgin no silêncio aturdido do palácio: dispondo as vigias na ponte e aconselhando os chispeiros a cuidarem de suas armas e descansarem o quanto fosse possível, mas para estarem prontos para reagir quando fosse necessário.
A hïrzgin Brie se provara tão valiosa quanto seu marido nesta luta. Talvez até mais.
Sergei sentiu Allesandra se aproximar dele. A kraljica ainda vestia a armadura, agora não mais reluzente e lustrosa: sob o luar, ele notou as marcas de arranhões e queimaduras da batalha. Seu cabelo grisalho estava grudado na cabeça. Um sexteto da Garde Kralji a acompanhava, bem como os poucos integrantes remanescentes do Conselho dos Ca’ que não tinham fugido da cidade.
— Amanhã — falou Allesandra para Sergei e os conselheiros —, retomaremos a Margem Sul.
— Tentaremos o melhor possível — respondeu Sergei, seu tom traiu seu sentimento quanto ao sucesso da empreitada.
— Nós retomaremos — respondeu Allesandra gravemente.
Os conselheiros pareciam assustados, Sergei sabia que todos achavam isso quase tão improvável quanto ele. Um clarão e — com atraso — outro rugido ecoaram a oeste. O embaixador sentiu o prédio tremer sob seus pés com o barulho. Os conselheiros olharam ao redor como se procurassem abrigo; os gardai se remexeram nervosamente, apertando suas lanças.
— Um mensageiro veio da Margem Norte — disse a kraljica. — Os tehuantinos tomaram o lado oeste do Infante, e a Garde Civile recuou para as barricadas. Eles estão a salvo, por enquanto. Os tehuantinos tentarão cruzar o rio amanhã e nós os repeliremos. Deixem o Infante e o A’Sele levarem seus corpos de volta para o mar.
— Nós tentaremos, estou certo disso — respondeu Sergei novamente. — A senhora ouviu mais notícias do hïrzg?
O rosto de Allesandra ficou tenso.
— Eu fui informada que o hïrzg Jan se recusou a voltar para a cidade. Quanto à gravidade de seus ferimentos... — Ela deu de ombros. — Ninguém disse nada. Ele é meu filho e é um soldado. Vai continuar a lutar enquanto puder.
Sergei desceu o olhar para onde Brie estava patrulhando.
— Ela sabe?
— Eu mesma contei para Brie. Eu disse que ela podia ir até ele enquanto é possível. Brie disse que seu lugar era aqui por enquanto, e que Cénzi poderia manter Jan a salvo melhor do que ela. — Allesandra quase sorriu. — Acho que ela passou a sentir um carinho por aqueles chispeiros.
Sergei grunhiu.
— Espero que ela tenha razão. Não podemos conter os tehuantinos, kraljica. Em breve, eles começarão a nos bombardear com areia negra até que não consigamos mais posicionar os chispeiros nas cabeças de ponte, e assim que os chispeiros recuarem, os tehuantinos cruzarão. Precisamos derrubar as Ponticas na Margem Sul para isolá-los. Deixe que joguem o que quiserem sobre nós, mas eles não poderão cruzar... não até que construam barcos.
Allesandra recuou, estreitando os olhos e franzindo os lábios.
— Você já disse isso vezes demais, Sergei. Eu não abrirei mão da Margem Sul. Eu não abandonarei a minha cidade. Não enquanto eu respirar. Não. — A kraljica inspirou, emitindo um som alto no silêncio da noite. — Eu pedi que o comandante ca’Talin ou o starkkapitän ca’Damont nos mandassem uma companhia ou duas de gardai para ajudar.
— Kraljica, eles não podem abrir mão desses homens. Não com a força tehuantina que os dois estão enfrentando. A senhora não pode pedir isso a eles.
— A mensagem já foi enviada. Eu disse que eles teriam que avaliar bem se podiam abrir mão das tropas ou não. Eles vão mandá-las — disse Allesandra com firmeza.
Ficou claro para Sergei que ele não convenceria a kraljica. Ele também sabia que, independentemente do reforço de gardai, a Garde Kralji não seria suficiente para retomar a Margem Sul. Se as pontes continuassem de pé, eles não seriam suficientes sequer para manter a Ilha, mesmo com a ajuda dos chispeiros. O embaixador bateu com a ponta da bengala nos ladrilhos do telhado, inquieto. A oeste, irromperam mais clarões.
— Se a senhora me dá licença, kraljica, eu preciso encontrar Talbot...
Ele deixou Allesandra ainda no telhado com os gardai e os conselheiros. Encontrou Talbot no térreo do palácio, parecendo exausto e furioso, vociferando ordens para um quarteto de funcionários do palácio. Eles saíram correndo assim que Sergei se aproximou.
— Eu não tenho gente suficiente aqui — falou Talbot. — Três quartos dos funcionários evidentemente fugiram da cidade assim que saímos daqui ontem.
— Você não pode culpá-los, meu amigo. Qualquer um com mais bom senso do que lealdade teria ido embora.
— Eu sei, mas como posso administrar o palácio sem pessoal? — Ele passou os dedos pelos cabelos. — Olhe para mim: eu acabei de correr meia Nessântico fugindo dos tehuantinos; consegui sobreviver a feitiços, flechas e espadas, e estou aqui preocupado se as camas estão feitas e se as refeições estão sendo servidas.
— É o seu trabalho.
— Não parece importante, dadas as circunstâncias. Por Cénzi, estou exausto.
— Você pode dormir depois. Nós dois podemos dormir depois. Venha comigo.
— Para onde?
Sergei esfregou o nariz.
— Você sabe onde a areia negra da Garde Kralji está guardada? Tem as chaves do paiol?
— Sim, mas...
— Então venha comigo.
Uma virada da ampulheta depois, ele e Talbot se aproximaram da Pontica a’Brevi Veste acompanhados por gardai carregando vários pacotes de areia negra. Brie os saudou e olhou para os pacotes, inclinando a cabeça.
— Eu pensei que a kraljica tivesse dito que as Ponticas deveriam ficar intactas.
Sergei ergueu o olhar na direção do telhado do palácio, para as sacadas cravadas na parede sul. Não havia ninguém ali.
— Eu consegui convencer a kraljica de que talvez fosse preciso derrubar as pontes se nosso ataque amanhã não se saísse bem. Temos que colocar a areia negra nas pilastras deste lado, para que possamos acioná-las quando for necessário. Isso é tudo.
Brie assentiu.
— Parece um bom plano para mim. Eu vou mandar os chispeiros ajudarem.
Mais uma virada da ampulheta, e Sergei e Talbot, carregando o restante da areia negra, seguiram para a Pontica a’Brezi Nippoli. O embaixador contou para o offizier no comando da Garde Kralji o mesmo que tinha contado a Brie. Assim como na ponte anterior, ele supervisionou a colocação das cargas de areia negra, cuidando para que estivessem ligadas por cordas de algodão embebidas em óleo misturado com areia negra, de maneira que o acendimento da ponta do pavio causasse a explosão de todas as cargas ao mesmo tempo.
Sergei segurou o pavio erguido na mão; uma lanterna queimava aos seus pés, na grama da margem do rio.
— Acabamos por aqui — ele disse para Talbot. — Agora, mande todos recuarem.
Sergei não conseguiu ver o rosto de Talbot, que estava mais adiante na barragem, a luz da lua batia quase diretamente nas costas dele.
— Recuar? Sergei, você ficou maluco? A kraljica deu ordens específicas...
Sergei se abaixou, enfiou a bengala debaixo do braço, pegou a lanterna e abriu sua tampa de vidro, enquanto segurava o pavio na outra mão.
— Quando um dente fica podre, não há escolha senão arrancá-lo — disse o embaixador. — Se você deixa o dente lá, ele só vai causar mais dor e sofrimento, e no fim, o dente vai apodrecer todos os outros.
— Você não pode fazer isso — protestou Talbot. — A kraljica disse...
— A kraljica e eu discordamos. Seja franco, Talbot: você acha que podemos tomar a Margem Sul dos ocidentais amanhã? A melhor defesa para a Ilha e para a cidade inteira é derrubar as Ponticas e deixar os ocidentais presos.
— Não cabe a você tomar essa decisão — respondeu Talbot.
Sergei sorriu para ele, erguendo a lanterna.
— No momento, parece que é.
O embaixador encostou a ponta do pavio na chama. Ele assobiou e soltou fagulhas, e o fogo começou a percorrer a extensão do pavio. Sergei soltou o pavio e começou a subir a margem o mais rápido possível, se apoiando em sua bengala.
— Pelos colhões de Cénzi — praguejou Talbot; ele ficou parado por um instante, como se considerando descer a margem correndo atrás do pavio, depois gesticulou para os gardai nos pivôs da ponte. — Recuem! Saiam da ponte! Abriguem-se!
Talbot desceu um pouco a barragem e puxou Sergei pelo braço. Juntos, eles fugiram enquanto o pavio assobiava e espocava e o brilho azul do fogo seguia em direção à ponte.
A explosão quase levantou Sergei do chão. A concussão atingiu o embaixador como uma parede caindo; ele sentiu o calor queimar suas costas, e o som... Sergei ouviu as vigas se romperem enquanto rochas e tábuas caíam como uma chuva intensa e perigosa e batiam no chão em volta deles. Sergei e Talbot se encolheram, cobrindo suas cabeças. Quando tudo terminou, o embaixador se virou, seus ouvidos ainda zuniam. A ponte desabou, sua extensão mergulhou inclinada nas águas do A’Sele a meio caminho do vértice. Os tocos da estacaria e das pilastras surgiam da água como dentes quebrados.
Sergei sorriu.
— Eles não cruzarão por ali tão cedo. Todos aqueles homens posicionados ali podem descansar. Agora, vamos terminar o serviço...
Talbot balançou a cabeça.
— Lamento, Sergei, mas não posso permitir. Você mentiu para mim. Você desobedeceu às ordens expressas da kraljica.
— Eu estou tentando salvar a droga da cidade — retrucou Sergei.
— Ela não é a sua droga de cidade.
Ah, mas é sim... Sergei sabia que Talbot compreendia o valor do que ele tinha feito. Sabia que Talbot concordava com ele, afinal.
— Talbot, você sabe que eu estou certo.
— O que eu sei não importa — respondeu o homem. — Eu sou o assistente da kraljica, não o kraljiki. Que os retalhadores de almas te carreguem, Sergei...
Talbot balançou a cabeça e olhou as ruínas da ponte. A Garde Brezno se aproximava da borda e encarava a destruição. Gritos e lanternas se aproximavam deles.
— Allesandra ficará furiosa.
— Ela ficará ainda mais furiosa quando derrubarmos a outra Pontica — respondeu Sergei —, mas também não poderá desfazer isso.
Mas Talbot não admitiria que o embaixador estava certo. Ele sabia antes de o assistente responder, sabia pela maneira como seu rosto magro se fechou.
— Isso não vai acontecer. — Talbot olhou para as pessoas se aproximando deles. — Sergei, você ainda pode sobreviver a esta situação: admita que desobedeceu à kraljica e colocou as cargas de areia negra, mas que fez isso no caso de termos de recuar amanhã e não haver outro jeito de impedir que os tehuantinos cruzassem a ponte para a Ilha e para a Margem Norte. Você pode dizer que isso foi um acidente, que sua lanterna acendeu o pavio. Ela não vai acreditar em você e ficará terrivelmente furiosa com o que você fez, mas não poderá provar nada. Eu o apoiarei até aí, Sergei. Mas não vou além disso. A outra ponte permanece de pé.
— Talbot...
— Não — disse o assistente com firmeza, interrompendo Sergei. — Ou isso ou eu conto exatamente o que aconteceu aqui e que você pretendia esse golpe o tempo todo. Então, a kraljica o executará como traidor, Sergei, e eu não posso culpá-la. O que vai ser? Você decide.
Talbot estava certo. Sergei sabia disso, conhecia Allesandra bem o suficiente para perceber que, mesmo que ela entendesse seu raciocínio, ele tinha ultrapassado os limites do perdoável se a kraljica soubesse toda a verdade. Morto, Sergei não poderia fazer nada pela cidade. Morto, ele não poderia fazer mais nada para expiar tudo o que fez em vida. Morto, não poderia derrubar a outra ponte.
— Está bem — respondeu o embaixador. — Eu aceito sua proposta.
Ela acompanhou Nico de volta ao labirinto do Velho Distrito, para outra casa anódina em outro beco estreito anódino. Não havia ninguém ali, ninguém respondeu à batida de Nico. A porta estava trancada, mas isso não era um problema — não para Rochelle. Ela arrombou a porta e eles entraram. Nico disse quase que imediatamente que precisava rezar. Rochelle disse que ambos precisavam comer — mas não havia nada na casa. Ela saiu para procurar por comida e encontrou pão velho em uma padaria abandonada, e queijo mofado por toda parte, e pegou água do poço mais próximo. Quando Rochelle voltou à casa, Nico estava na sala principal, de joelhos. Ele não lhe deu atenção quando ela tentou convencê-lo a comer, tentou dar-lhe água à força entre os lábios rachados e machucados, enquanto o sacudia e gritava para tentar chamar sua atenção.
O irmão estava perdido e impassível, murmurando preces ininteligíveis para Cénzi. Nico a ignorou, como se não se importasse, ou mesmo soubesse que Rochelle estava ali. Ela não conseguiu arrancar reação alguma do irmão. Ele parecia estar em transe.
Tudo bem. Rochelle estava acostumada com loucura. Ela tinha lidado bastante com isso com sua matarh.
Rochelle dormiu um pouco no chão ao lado de Nico, mas não por muito tempo. Ela acordou, escuro, com Nico ainda rezando a seu lado. A essa altura, pensou Rochelle, deviam faltar poucas viradas para a Primeira Chamada.
— Nico? Nico, fale comigo.
Não houve resposta. Ele se encontrava na mesma posição viradas a fio. Então, Nico também a abandonara — bem, Rochelle estava acostumada a ficar sozinha, a tomar suas próprias decisões. Ela não podia ajudá-lo, não podia encontrá-lo onde quer que ele estivesse, mas ainda havia o que ela poderia fazer, o que deveria fazer. Rochelle tocou o cabo da faca que tinha roubado de seu vatarh, alisando o punho adornado.
Prometa para mim que você fará o que eu não consegui. Prometa para mim...
— Eu farei — ela disse para o fantasma da matarh. — Eu farei.
Rochelle se voltou para Nico, se ajoelhando no piso de madeira nua. As pernas do irmão deviam estar dormentes há muito tempo. Suas mãos estavam entrelaçadas, fazendo o sinal de Cénzi, sua cabeça estava abaixada sobre elas, seus olhos fechados. Ela notou que ele murmurava.
— Nico? — disse Rochelle, tocando seu ombro. — Nico, eu preciso que você me responda.
Ele não respondeu. O murmúrio continuou, sem diminuir. Ela abraçou o irmão e disse.
— Então reze por mim. Reze por nós dois.
Ele não deu sinal de tê-la ouvido. Ela se levantou, observou Nico e finalmente saiu da sala. Fechou a porta atrás de si, saindo em direção às ruas do Velho Distrito. De manhã cedo, as ruas estavam escuras e desertas. A maioria dos moradores, os que puderam, tinha fugido da cidade, para o leste. Clarões estranhos irrompiam no céu a oeste, acompanhados por trovões distantes e, ao sul, nuvens de fumaça tocadas pelo brilho de fogueiras.
Sul. Rochelle seguiu nessa direção, se escondendo facilmente nas sombras provocadas pela lua.
Ela não fez ideia de quanto tempo tinha levado até chegar à Pontica Kralji, que ligava a Margem Norte à Ilha. Não havia gardai na ponte, nenhum trânsito. A lua estava se pondo, e o céu começava a clarear no leste e extinguir as estrelas no apogeu. As águas do A’Sele estavam turvas em volta da estacaria, escuras e misteriosas. O cheiro de madeira queimada se misturava ao odor da lama e da água do rio.
Alguma coisa brilhante espocou no céu a sua frente, deixando um rastro de fagulhas e pintando a correnteza do A’Sele com reflexos reluzentes. A aparição se iluminou e inchou, descendo rapidamente. Rochelle a viu cair, sentindo o impacto sob a sola das botas, vendo o fogo da explosão. Alguém gritou de dor ao longe, e o susto e o cheiro de queimado aumentaram, cobertos agora pelo fedor de enxofre. Outra bola de fogo passou guinchando no céu ao sul; esta explodiu bem acima da Ilha, mandando as sombras negras embora.
Um cavaleiro apareceu na extremidade da Pontica que saía da Ilha A’Kralji galopando em direção à Rochelle, com a capa tremulando atrás de si. Ela se encolheu nos pilares da ponte; o cavaleiro passou disparado sem olhar e fez uma curva fechada à esquerda, em direção ao Mercado do Rio. Rochelle notou a bolsa de couro em volta do corpo: um mensageiro rápido levando uma mensagem.
Isso significava que a kraljica provavelmente estava na Ilha. Allesandra. Sua mamatarh. A voz da matarh pareceu sussurrar em seu ouvido.
— Prometa para mim...
Outra bola de fogo surgiu como um sol falso e também caiu na terra, em algum lugar da Ilha. Ela ouviu as trompas do Velho Templo soarem um alarme ao longe.
Rochelle atravessou a Pontica correndo, meio que esperando que alguém berrasse para ela ou que fosse atingida por uma flecha. Nada aconteceu. Rochelle chegou à Avi a’Parete na Ilha. Ao seu redor, os grandes prédios da Ilha se erguiam, com destaque para o Palácio da Kraljica, diretamente à esquerda. Ela seguiu lentamente para lá, por uma rua cheia de prédios do governo. Mais adiante, ao sul, Rochelle pôde ouvir o som das atividades: trompas soando, pessoas gritando. Ela fez a curva e seguiu para o sul novamente; a sua frente, viu pessoas no fundo na outra extremidade da rua. Ela correu na direção do muro que envolvia o palácio. Havia uma porta da criadagem ali, na lateral. Rochelle bateu, esperou, bateu novamente. Ninguém respondeu. Ela se abaixou e pegou suas ferramentas para arrombá-la. Alguns instantes depois, Rochelle empurrou a porta e entrou em suas dependências.
Ela se viu nos jardins do palácio. O cheiro de flores era forte, e Rochelle ouviu uma fonte jorrando água por perto. Não havia ninguém nos jardins, e poucas janelas do palácio estavam acesas.
Outra bola de fogo mostrou sua cara brilhante sobre o muro do outro lado do terreno. Parecia vir na direção de Rochelle e do palácio, mas no último instante, quando parecia que acertaria o próprio palácio, ela se estilhaçou em mil fragmentos, cada um assobiando e brilhando ao cair — um contrafeitiço deve ter alcançado a bola de fogo. Rochelle se perguntou quantos incêndios essas fagulhas provocariam, e se os ténis-bombeiros viriam apagá-los.
Ela correu para a porta do palácio mais próxima. Trancada: novamente, Rochelle tirou as gazuas e manipulou as ferramentas até ouvir o clique do mecanismo se abrindo. Ela empurrou a porta apenas o suficiente para entrar sorrateiramente.
Rochelle se viu no que deveria ser o corredor da criadagem: um corredor estreito e simples, com corredores transversais se abrindo de ambos os lados e uma porta grande ao final. Se este palácio fosse como o Palácio de Brezno, como ela esperava, a maioria dessas portas estaria destrancada. Os criados precisavam ter acesso a todas as alas do palácio para servir a seus senhores e senhoras da maneira mais discreta possível. Sem dúvida, o palácio estaria cheio de passagens assim.
Mas nos corredores de serviço do Palácio de Brezno havia uma atividade frenética. Aqui estava tudo quieto, e Rochelle achou isso estranho. Ela seguiu rapidamente até a porta principal, abrindo lentamente uma fresta. Ela vislumbrou um dos principais corredores públicos do palácio; também ouviu vozes. Havia várias pessoas saindo apressadamente de outro aposento um pouco à frente. Ela reconheceu um dos homens imediatamente: Sergei ca’Rudka, com seu nariz de prata reluzindo em seu rosto enrugado e pálido, e a bengala batendo em um ritmo irregular nos ladrilhos. A mulher a seu lado falava com ele em um tom apressado e irritado.
— ...não me importo com o que você estava pensando ou quais eram as suas razões. Eu estou furiosa com você, Sergei. Absolutamente furiosa. E Talbot; por que em nome de Cénzi você não confirmou comigo? Você sabia que eu tinha mandado as ponticas permanecerem de pé.
— Eu peço mil desculpas, kraljica — disse Sergei, embora Rochelle pensasse que ele parecia mais contente que arrependido.
Então aquela era a kraljica. Mamatarh, eu estou aqui por você... Mas não agora. Não ainda. Havia muitas pessoas em volta dela: Sergei, o sujeito chamado Talbot, bem como um quarteto de gardai.
— Seu “acidente”, se é que isso foi mesmo um acidente, pode ter prejudicado nossa chance de ataque aos tehuantinos na Margem Sul. Agora só temos uma rota para cruzar o rio, então...
Suas vozes foram ficando ininteligíveis à medida que eles desciam o corredor. Rochelle arriscou abrir mais a porta. Havia dois gardai posicionados na porta de onde o grupo tinha saído. Ela recuou para o corredor de serviço e entrou no corredor que levava para o aposento em que os gardai estavam, contando os passos para calcular sua distância. Havia outra porta a alguns passos, corredor adentro. Rochelle abriu a porta.
Ela entrou no Salão do Trono do Sol. A massa cristalina do Trono do Sol sobre a plataforma dominava o salão. Muito bem. Isso serviria: a kraljica deve voltar para cá em breve, e Rochelle poderia cumprir sua promessa.
Ela viu um lampejo de luz através das janelas altas do salão, e o palácio tremeu quando um trovão rugiu. Ela pôde sentir o cheiro de fumaça de madeira das janelas do palácio ascendendo em uma alvorada de chamas.
Rochelle se acomodou para esperar.
Niente polvilhou o pó alaranjado sobre a água na tigela premonitória e entoou um feitiço para abrir sua mente para Axat. A bruma verde começava a surgir, e ele inclinou a cabeça sobre a tigela.
Os tehuantinos estavam acampados na própria cidade, os guerreiros estavam protegendo as ruas e sacando as casas e os prédios atrás de comida e suprimentos, cumprindo as ordens de Tototl, mas Niente sabia que muitos guerreiros também estavam pegando todo o tesouro que pudessem carregar. Outros estavam ocupados construindo uma catapulta, e Niente tinha ordenado que os nahualli encantassem os sacos de areia negra que a catapulta lançaria na ilha para que explodissem com o impacto. Os cânticos dos nahualli e o martelar dos guerreiros engenheiros preencheram a grande alameda do lado de fora da fortaleza na beira do rio. Dos portões do edifício, o crânio de uma criatura horrível com dentes afiados, lançava um olhar malicioso para Niente — quase como a cabeça da serpente alada que tremulava no estandarte do tecuhtli. Isso, pensou ele, era quase uma ironia. O Olho de Axat nasceu e parecia observar Niente enquanto ele realizava o ritual, com tanta intensidade quanto Tototl.
As visões apareceram rapidamente, passando por ele quase rápido demais para que ele pudesse acompanhá-las. Os caminhos do futuro se entrelaçavam e mesclavam. Niente ainda podia ver a vitória no caminho mais nítido e próximo, mas agora era uma vitória conquistada a um preço muito alto. Havia mudanças provocadas no cenário, potências emergentes que ele não tinha visto antes ou que tinham sido apenas insinuadas em remotas possibilidades: o rei de preto e prata; a velha que cheirava a areia negra; o jovem com o poder estranho e descontrolado. Esta última... a mais difícil de todas de se ver, estava envolvida em bruma e mistério. Em torno do jovem, todos os caminhos possíveis do futuro pareciam estar espiralados. Niente queria ver mais a respeito do jovem, mas as brumas continuavam a afastá-lo, não importava o quanto ele tentasse acompanhá-lo.
Na bruma, Niente também sentiu a presença de Atl, tão perto que quase pensou que o filho estivesse a seu lado, espiando a tigela ao mesmo tempo que ele. Aqui. Ele tentou lançar os pensamentos na direção de Atl. Veja o que eu vejo. Deixe-me encontrar o Longo Caminho, espero que você o veja também...
Mas não houve resposta. Niente não conseguiu mostrar o que tinha visto para Atl, nem conseguiu ver o que Atl via. Na bruma, os dois permaneciam separados.
— Eles vão derrubar a outra ponte? — perguntou Tototl. — Se fizerem isso...
— Se fizerem isso, não poderemos cruzar o rio para ajudar o tecuhtli Citlali. Eu sei. Agora, deixe-me ver...
Niente já tinha visto isso: no caminho principal, os orientais inexplicavelmente não destruíam a outra ponte. Ele não entendeu isso. Com as pontes em pé, Tototl conquistaria a Ilha, ainda que pagasse um preço terrível. As estranhas armas de areia negra dos orientais derrubariam guerreiros demais antes que eles conseguissem, inevitavelmente, sobrepujá-los. Eles alcançariam Citlali e esmagariam ainda mais orientais entre eles, mas esta já não era a vitória que Niente tinha visto em Tlaxcala. Tudo mudara.
O que significava que o Longo Caminho também tinha mudado. Isso se o Longo Caminho ainda existisse.
Niente inclinou a cabeça sobre a bruma novamente, procurando. Por favor, Axat. Mostre-me...
E Ela mostrou.
A Passagem da Tempestade
— E então? — perguntou Tototl enquanto Niente jogava a água da tigela premonitória nos paralelepípedos da alameda.
Ele limpou a tigela com a manga da camisa e olhou solenemente para o guerreiro supremo.
— Você se lembra, Tototl, da conversa que tivemos sobre uma vitória parecer uma vitória, mas não ser?
O semblante pintado do guerreiro supremo continuava impassível.
— Eu me lembro de você ter dito isso. E me lembro de ter dito que achava que você tinha visto mais coisas na tigela do que estava contando para o tecuhtli Citlali. Então, me diga agora, uchben nahual, o que você viu? Diga-me a verdade.
Niente recolocou a tigela premonitória na bolsa e sentiu a textura dos desenhos gravados na borda. Ele pegou seu cajado mágico, sentindo a energia do X’in Ka pulsando na madeira, capturada e pronta para ser solta. Os odores de madeira queimando, da água doce, do fedor de roupa usada por muito tempo invadiram suas narinas. Niente engoliu em seco e sentiu o gosto forte e persistente da bruma verde que tinha inalado. Seus sentidos pareciam estar plenos e aguçados demais. Ele ergueu seu olhar para o crânio malicioso no muro sobre si e imaginou a criatura viva, com seus dentes afiados como facas de marfim rasgando uma vítima presa em suas mandíbulas poderosas.
— Preste atenção, Tototl — falou Niente. — Eu não disse nada para o tecuhtli Citlali porque ele não vê nada além do presente e de suas próprias ambições. Você tem a imaginação para fazê-lo. Você pode se tornar um grande tecuhtli. Um tecuhtli cujo nome ecoaria por gerações.
Tototl não conseguiu esconder totalmente a ansiedade provocada por essas palavras: Niente notou no leve movimento da boca do guerreiro, na sutil abertura dos olhos cercados por tinta vermelha. O guerreiro tinha ambição.
— Você viu isso?
Niente assentiu.
— É um dos futuros. Uma possibilidade.
Ele fez uma pausa. Olhou para a catapulta, quase terminada agora. Olhou para a ponte perto deles, no fim da alameda, para o grande prédio que surgia logo atrás dela, para o domo dourado que aparecia sobre os outros telhados, no meio da ilha.
— Tototl, a vitória neste momento está por um fio. Você é o fio, Tototl, sem você, não há vitória nenhuma. Eu vi isso.
— O que eu devo fazer?
— Você deve conquistar a ilha e chegar ao outro lado, como eu disse antes. Tem de avançar com nossos guerreiros contra os orientais pela retaguarda. Se você quer a vitória, é isso o que deve fazer.
— E por que eu não faria isso? É por isso que viemos para cá: para tomar a cidade e vingar nossa derrota com o tecuhtli Zolin, para governar esta terra.
Niente se perguntou se deveria contar para ele. Certamente Citlali não teria ouvido nada disso; ele já teria interrompido Niente, e Niente — ele tinha que admitir — teria se curvado para o tecuhtli. Eu vencerei aqui... Era tudo o que Citlali queria ouvir. Ele desdenharia do Longo Caminho; não se importaria com o que acontecesse anos depois. Mas Tototl talvez pensasse da mesma forma. Niente respirou fundo. Ele viu os nahualli colocarem a primeira carga de areia negra no cesto da catapulta enquanto os guerreiros acionavam o guincho para abaixar a haste.
— A vitória de Citlali aqui terá um preço muito alto para nós no fim — falou Niente. — Ele ainda pode tomar a cidade, mas não poderá controlá-la por muito tempo. Outros exércitos orientais virão dos lugares mais distantes do império deles. Esta terra é imensa, e nós temos poucos guerreiros aqui e pouco tempo para trazer mais homens do outro lado do mar. E quando os orientais matarem a todos os que sobreviverem, eles olharão para a nossa terra natal e voltarão com um exército ainda maior do que o que levaram antes. Eles vão nos caçar até ter certeza de que nós jamais causaremos problemas outra vez.
— Você tem certeza disso?
Niente balançou a cabeça.
— Não — ele admitiu. — Mas é o futuro que vejo; o provável.
— O novo nahual também viu isso?
Niente balançou a cabeça novamente.
— Não. Mas Atl está aprendendo. Ele só vê o futuro próximo, não o Longo Caminho.
—Você viu uma vitória fácil antes. Disse isso antes mesmo de sairmos da nossa própria terra.
— Eu vi — admitiu Niente. — E nesse momento, era a verdade. Mas isso mudou. Há forças aqui que estavam ocultas de mim, situações que mudaram de figura desde que consultei Axat pela primeira vez. Nada no futuro é sólido e fixo.
— Então esse futuro que você vê também pode mudar. Também mudará.
— Pode ser. Mesmo assim... Tototl, eu diria para você pegar os guerreiros aqui e ir embora. Encontre nossos navios; a essa altura eles devem estar perto da cidade. Pegue os navios e volte para casa. Eu diria para você se tornar o tecuhtli para que, quando os orientais voltassem à nossa terra, e eles voltarão, nós ainda estivéssemos fortes o suficiente para resistir. Os orientais perceberão que, assim como nós não conseguimos conquistá-los, também não conseguirão nos conquistar, e nossos impérios terão que lidar um com o outro como iguais.
Tototl meneava a cabeça em negação.
— Eu não fugirei — falou o guerreiro supremo. — Eu não abandonarei Citlali. Não sem saber que não tenho outra escolha.
— Então, aqui estão os sinais, Tototl. Quando a magia for retirada de todos os nahualli, quando você me vir cair diante de uma arma que não deveria matar: estes são os sinais de que o que eu disse é verdade. Você recuará então, Tototl? Ouvirá o meu conselho, como o tecuhtli Citlali não ouviu?
Tototl pareceu rir.
— Você parece um pedaço de bife defumado, uchben nahual, velho e duro demais para morrer. E quem poderia retirar o poder dos nahualli?
— Se isso acontecer — implorou Niente — se você vir os sinais, você irá embora?
— Se isso acontecer — respondeu o guerreiro supremo —, eu me lembrarei do que você disse e farei o que achar que é necessário.
Enquanto Tototl dizia essas palavras, a catapulta cantava sua canção mortal, e uma bola de fogo cruzou o rio em direção à ilha. Ambos viram a bola cair e explodir, emitindo um rugido de chamas laranjas.
Jan se perguntou se esse seria seu último dia.
A fumaça manchava o céu a sudeste, emergindo dos incêndios que ardiam sem controle na Margem Sul da cidade. Mensageiros enviados por sua matarh vieram durante a noite com uma mensagem: os tehuantinos estavam na Margem Sul; eles tentariam repelir os inimigos de novo, pela manhã; envie uma companhia de gardai se puder abrir mão deles.
Mas ele não podia abrir mão dos gardai. Eles já não eram suficientes para a tarefa que tinham pela frente. A noite anterior tinha sido terrível, o chão tremera enquanto areia negra era lançada de ambos os lados. Agora o céu a leste estava rosa e laranja, e os tehuantinos recomeçariam o ataque terrestre. Jan sabia disso; ele mesmo o teria feito.
Um pajem ajudava o hïrzg com sua armadura, e Jan fez uma careta quando o menino apertou as tiras da couraça — um armeiro desamassara a mossa da armadura na noite anterior.
— Vamos — ele disse para o pajem. — Aperte bem. A armadura não pode cair no meio da batalha.
Qualquer movimento doía. Respirar doía. Jan tossiu sangue na noite anterior assim que recobrou a consciência, embora isso, ainda bem, tivesse parado. Prender o peito com a armadura na verdade fez bem a ele, mas ele se perguntou se suportaria um golpe de espada sem desmoronar. E se perguntou se poderia liderar os homens como um hïrzg deveria: na linha de frente contra o inimigo.
— Traga o meu cavalo — disse Jan.
O pajem prestou continência e saiu correndo.
Jan tinha passado a noite na tenda atrás da segunda muralha de barricadas. A maior parte da areia negra caiu bem longe do acampamento, mas ainda havia crateras de terra negra aqui e ali, e fumaças de incêndios na grama que tiveram que ser extintos. Os offiziers tinham relatado as baixas meia virada da ampulheta depois de fazerem as chamadas. O hïrzg ficou estarrecido. Ele tinha trazido quatro mil gardai e cerca de trezentos chevarittai a Nessântico. Ele e o starkkapitän ca’Damont dividiram os homens de maneira praticamente igual. Jan agora contava com menos de mil gardai e dez punhados de chevarittai; ca’Damont tinha menos.
Não, ele não podia mandar uma companhia para a kraljica. Ele teria sorte se voltasse para Nessântico com uma companhia inteira. Jan leu a mensagem de ca’Talin: Perspectiva ruim. Recomendo resistir o máximo possível, depois recuar para a cidade. Abaixo, com sua letra fina e alongada, ca’Damont adicionara um breve concordo. Jan enviou uma resposta aos dois.
Concordo. Faça o inimigo pagar por terem cruzado o rio, depois recuem para o Mercado do Rio. Reagruparemos lá e nos reuniremos com a kraljica.
O pajem voltou conduzindo um cavalo de guerra que tinha sido a montaria de um dos chevarittai mortos. O menino colocou um degrau perto do cavalo e ajudou o hïrzg a montar na sela. Ele conseguiu se sentar sem gemer alto.
— Obrigado — disse Jan para o menino, prestando continência.
O hïrzg seguiu a meio galope, fazendo careta a cada passo, sacudindo o corpo. Ele subiu a pequena elevação até o topo da segunda barricada. Esperou ali por vários instantes, examinando o cenário.
A maior parte das tropas estava reunida lá embaixo, na ampla vala entre as barricadas serpenteando ao sul e ao comando do starkkapitän ca’Damont, e pouco a frente estava o comandante ca’Talin, com sua tropa se estendendo ao norte por cerca de oitocentos metros até a Avi a’Nostrosei. Após a elevação da primeira barricada em frente a Jan, havia cerca de quatrocentos metros de terreno plano entre as barricadas e o rio Infante — o campo tinha sido revirado pelos cavalos e pelas botas dos soldados e esburacado com as crateras que o bombardeio de areia negra tinham aberto. Do outro lado do Infante, Jan pôde ver o exército dos tehuantinos. Os offiziers inimigos já estavam organizando suas formações, e o hïrzg conseguiu ver pequenas bandeiras fincadas aqui e ali ao longo da margem oposta do rio — ele presumiu que os batedores tinham marcado as partes rasas onde o rio podia ser cruzado.
Havia muitas bandeiras. O Infante não era fundo nem largo como o A’Sele; havia muitos lugares por onde os tehuantinos podiam cruzá-lo. Na noite anterior, Jan pedira para um dos gardai locais mapear os pontos por onde a infantaria poderia cruzar, e posicionou arqueiros diante desses possíveis trechos.
Faça o inimigo pagar por cruzar o rio... Ele podia não conseguir detê-los, mas podia cobrar um preço caro.
Alguns arqueiros ocidentais dispararam flechas inúteis na direção do hïrzg; eles erraram o alvo, e Jan fez um gesto obsceno para eles.
— Vamos! — berrou o hïrzg, fazendo seu peito arder com o esforço. — Vamos; estamos esperando por vocês, bastardos! Estamos prontos para transformar suas esposas em viúvas e seus filhos em órfãos!
Ele disse em voz alta, para que os gardai na trincheira entre as barricadas ouvissem; os homens ergueram seus olhares para ele e vibraram. Jan duvidava que algum ocidental tivesse realmente entendido suas palavras, ainda que tivessem entendido o tom. Ele queria se debruçar por causa da dor lancinante em seu peito quando berrou a provocação, mas, em vez disso, ele sorriu e gesticulou novamente para os tehuantinos. A algumas centenas de passos de distância, Jan viu seus estandartes, prestou continência para os homens e seguiu até onde os offiziers estavam reunidos.
— Outro nascer do sol — falou o hïrzg. — Isso é sempre um bom sinal. O sol está nas nossas costas e nos olhos dos inimigos. Vamos fazer com que esse seja o último dia que eles veem.
Allesandra desfilou sobre o cavalo de guerra diante das pessoas reunidas no pátio do palácio. Sob a luz da falsa alvorada, sua armadura brilhava, o sangue do dia anterior tinha sido lavado e o aço lustrado. Brie, Talbot e o maldito e tolo Sergei estavam atrás dela em seus próprios cavalos, observando enquanto ela percorria a fileira. A kraljica colocou sua fúria e frustração em suas palavras.
— Nós não temos escolha. É o meu dever, é o nosso dever, proteger esta cidade, e eu não permitirei que nós traiamos essa confiança. Neste momento, os ocidentais controlam a Margem Sul. Eles andam pelas ruas que deveriam ser consideradas seguras para nossos cidadãos, saqueiam nossas casas e templos, matam e estupram quem quer que tenha ficado para trás. As forças do hïrzg e nossa própria Garde Civile estão enfrentando o exército inimigo principal na Margem Norte; eles nos encarregaram de proteger a retaguarda e manter a cidade em segurança para quando voltarem. Nós temos que controlar a Margem Sul. Eu controlarei a Margem Sul.
Allesandra fez uma pausa enquanto outra bola de fogo cruzou zunindo o céu que se iluminava — todos assistiram a isso. O cavalo tremeu sob ela, que acariciou seu pescoço musculoso para acalmá-lo enquanto a bola de fogo caía no solo atrás deles, do outro lado da Avi.
— Viram só? Os tehuantinos não querem nada além da destruição dos Domínios e de Nessântico. Fiquem aqui, e todos vocês morrerão. E, se é para morrer, eu prefiro que seja com a espada na mão e o inimigo sangrando aos meus pés.
O grito ecoou alto, mas irregular. Mesmo aqueles que gritaram pareciam hesitantes. Os chispeiros, de um lado, se remexeram inquietos; Allesandra notou que Brie os encarava.
— Nós marchamos hoje para a glória — disse a kraljica, sacando a espada da bainha e a erguendo. — Nós marchamos pelos Domínios. Marchamos por Nessântico. E eu marcharei com vocês, na vanguarda.
Uma carruagem sem teto, conduzida por ténis, se aproximou chacoalhando pelas ruas através da fumaça, dando a volta devagar pelos destroços no caminho; Allesandra viu o símbolo do globo partido de Cénzi nas portas do veículo.
— Hoje, o próprio archigos marchará conosco — acrescentou ela. — Preparem-se. Começaremos o ataque em duas marcas da ampulheta e mostraremos para esses ocidentais como os Domínios reagem contra quem os ameaça.
Eles vibraram novamente porque — Allesandra sabia — era o que se esperava, porque queriam acreditar na kraljica, mesmo que o medo gelasse seus estômagos. Ela cavalgou em direção à carruagem do archigos com Brie, Talbot e Sergei a seguindo. A cabeça calva do archigos Karrol espiou sobre a lateral do veículo; ele não parecia estar contente de estar ali. Dois rostos pálidos e mais jovens podiam ser vistos atrás do homem.
— Archigos, estou feliz em vê-lo — disse a kraljica. — Por mais atrasado que esteja.
— Não vamos fingir que a senhora ou o hïrzg tenham me dado alguma escolha, kraljica — respondeu Karrol. — Mas eu estou aqui.
— E os ténis-guerreiros?
— Mais quatro chegaram hoje do leste. Eu enviei dois para o hïrzg; os outros dois estão comigo. Eles sabem das consequências se deixarem de servir.
O archigos gesticulou para os outros dois ténis na carruagem.
— Ótimo — respondeu Allesandra. — Espero que estejam bem descansados. Precisamos deles agora. Talbot, por gentileza, cuide dos ténis-guerreiros e dos arqueiros. Brie, você fica com os chispeiros.
Ela encarou Sergei, ainda com raiva pela insolência do homem em descumprir suas ordens.
— Sergei, você fica comigo e o archigos.
Eles se reuniram rapidamente. Embora Allesandra ainda estivesse furiosa com Sergei por ter destruído a ponte leste, ela tinha que admitir que um ataque em duas frentes, nas duas pontas, teria dividido e enfraquecido muito suas forças. Mesmo assim, o problema agora estava no fato de todos eles precisarem cruzar a Pontica a’Brezi Veste. E no fato de que os tehuantinos tinham mantido a ponte de pé, e não a destruíram do lado deles, Allesandra sabia que os inimigos queriam que a ponte permanecesse intacta tanto quanto ela — para que pudessem se encontrar com o restante de seu exército na Margem Norte. A insistência de Sergei para que eles recuassem para a Ilha e a Margem Norte e destruíssem as pontes que cruzavam o A’Sele ao sul — a fim de isolar esta tropa de tehuantinos — fazia sentido taticamente.
Allesandra sabia disso intelectualmente, mas emocionalmente...
Esta era a sua cidade, a sede dos Domínios. A kraljica não permitiria que Nessântico fosse tomada dela. Allesandra teve que reconstruir a cidade uma vez; não queria ter que fazer isso novamente. Preferia cair aqui e deixar que seu sucessor — quem quer que fosse — o fizesse.
O ataque começou com uma saraivada de feitiços lançados por Talbot e alguns numetodos, bem como pelos novos ténis-guerreiros e o archigos. Quase todos os feitiços foram neutralizados ou desviados pelos feiticeiros tehuantinos, mas os que passaram fizeram os inimigos se afastarem correndo da Bastida e da área imediatamente a volta da outra extremidade da ponte, na Margem Sul.
— Agora! — berrou Allesandra.
Ela liderou o ataque da Garde Kralji pela ponte, enquanto Talbot direcionava os arqueiros para darem uma cobertura com suas flechas à frente deles. Sergei estava atrás da kraljica, e a carruagem do archigos veio a seguir, se chacoalhando sobre as tábuas. Os tehuantinos dispararam sua própria chuva de flechas na direção deles, mas o archigos entoou e gesticulou em seu assento, e as flechas foram varridas por um vento mágico, caindo inofensivamente no A’Sele.
Em poucos instantes, eles cruzaram o rio. Os guerreiros avançaram berrando contra eles.
— Para a Bastida! — berrou Allesandra para os gardai.
Eles avançaram e passaram a cavalo pelos portões abertos da prisão, sem se importar em deixar a Avi cheia de tehuantinos para atrás, pois estavam cercados.
Atrás da Garde Kralji, Brie conduziu os chispeiros pela Pontica. Ao pé da ponte, eles entraram em formação e suas armas bradaram o chamado ritmado da morte. Os guerreiros na Avi começaram a cair, e nenhum deles conseguiu alcançar os chispeiros para detê-los. Dos portões da Bastida, Allesandra viu Brie, desmontada, andando atrás dos chispeiros, estimulando-os a ficarem, a manterem a formação, a andarem mais rápido. Sua voz forte dava os comandos e o rugido irregular das chispeiras ecoava pela Avi. Os tehuantinos recuaram. Allesandra e os gardai não estavam mais cercados por todos os lados.
— Sigam-me! — berrou a kraljica, liderando a Garde Kralji em um ataque furioso, saindo dos portões da Bastida.
A noite tinha sido terrível, e a aurora simplesmente brutal. Quando o sol surgiu sobre as árvores e os telhados de Nessântico, os ocidentais avançaram: entoando rugidos e gritos, brandindo suas espadas e lanças e lançando saraivadas de areia negra e feitiços violentos e estridentes. Eles se lançaram nas águas do Infante. A água lançou espirros altos e brancos em torno dos tehuantinos, enquanto as flechas da Garde Civile choviam sobre eles. A princípio, o ataque resultou em um massacre, e os gardai gritaram de alegria e alívio, mas havia mais e mais inimigos, e eles simplesmente não paravam de vir, e agora os nahualli lançavam encantamentos que transformavam as flechas em cinzas no ar.
Os ocidentais cruzaram o Infante, e mais guerreiros chegavam a cada instante. Os ténis-guerreiros e os numetodos lançaram fogo sobre eles; isso não deteve o avanço. Punhados e mais punhados de guerreiros tehuantinos caíam mortos no chão, e, mesmo assim, eles avançavam, implacáveis.
— Recuar! — os offiziers e as cornetas chamaram.
A Garde Civile saiu do meio da muralha dupla de barragens e recuou para o cume da segunda barricada. Enquanto recuavam, os gardai derramavam barris de óleo trazidos da cidade, encharcando o solo e deixando poças escuras para trás. Quando os tehuantinos chegaram ao cume da primeira barricada, eles foram recebidos novamente por disparos de flechas. Corpos rolaram para a trincheira oleosa diante deles, mas agora mais companheiros, ilesos, vieram com eles.
Os feitiços preparados martelavam na cabeça de Varina e de todos os numetodos nas barricadas.
— Esperem! — Varina ouviu a ordem de ca’Damont para os ténis-guerreiros e numetodos. — Não ainda! Esperem!
Os tehuantinos chegaram à trincheira e começaram a subir a segunda barragem, onde as tropas da Garde Civile aguardavam.
— Agora! — berrou ca’Damont.
Varina gesticulou e pronunciou o gatilho do feitiço, assim como dois numetodos a seu lado, Leovic e Niels, e os ténis-guerreiros mais adiante na linha de frente. Suas mãos lançaram arcos de fogo. O solo encharcado de óleo entre as barricadas se acendeu, criando um poço de chamas flamejantes e sibilantes. Os que caíram nesse inferno gritaram — Varina viu os guerreiros se contorcerem, em chamas. O calor lambeu sua pele quando soprou o terrível fedor de carne queimada. Abaixo dela, um guerreiro saiu cambaleando às chamas, com o corpo horrivelmente carbonizado e chamas ainda lambendo sua armadura e roupa. Varina viu seu rosto, terrivelmente jovem, sua boca aberta gritando em sua própria língua. Ela não sabia se ele berrava por ajuda, por seu deus ou simplesmente de dor. Varina podia imaginá-lo em casa, abraçando sua esposa ou segurando os filhos, rindo de alguma piada que um deles tivesse contado. Ela mal notou a espada que o guerreiro segurava ou o fato de que ele erguia a arma sobre ela.
Flechas brotaram à frente do homem, e ele desmoronou, calando-se para sempre. Varina sentiu ânsia e vomitou no chão, caída de joelhos ao lado do guerreiro morto. Enquanto cuspia sua bile, ela ficou curiosa: que estranho, eu vi centenas de pessoas morrerem nos últimos dias, e este rosto foi o que mais me abalou...
— Você tem que vir conosco, a’morce!
Leovic e Niels cercaram Varina, a levantaram e quase a arrastaram encosta abaixo, até o lado oposto. Os tehuantinos recuaram momentaneamente enquanto o fogo queimava na trincheira, mas as chamas morreram rapidamente à medida que o óleo era consumido. Eles avançaram novamente, transbordando sobre a barricada pelo outro lado. Os gardai da Garde Civile à espera sacaram suas espadas, e Varina, juntamente com os outros numetodos e os ténis-guerreiros, recuaram enquanto o combate corpo a corpo irrompia sobre o cume. Varina ouviu as cornetas berrando e viu as bandeiras tremulando, mas elas pouco significavam alguma coisa para ela agora que Leovic e Niels continuavam a ajudá-la a recuar, um em cada braço. Varina simplesmente caminhou em meio ao fluxo de pessoas em uniformes azuis e dourados: de volta à cidade, sempre de volta. A retirada foi lenta a princípio, depois ganhou ímpeto e, subitamente, eles já não estavam andando, mas correndo, dando as costas aos tehuantinos ao fugir. Ela ouviu a batida dos cascos dos cavalos dos guerreiros, viu pessoas caírem a sua volta, atingidas por flechas ou abatidas por feitiços.
Leovic e Niels quase que carregavam Varina enquanto corriam. Ela não ousou olhar para trás. Não queria fazer isso.
— Andem, andem, andem! — berrou Brie para os chispeiros ao ver a kraljica e Sergei em seus cavalos, o archigos em sua carruagem, e a Garde Kralji saírem em debandada do breve abrigo da Bastida. — Vamos! Mantenham o ritmo!
Eles transformaram a Avi em um abatedouro, na cabeça da ponte. Os chispeiros correram sobre os paralelepípedos escorregadios de sangue, e sobre corpos que ainda gemiam e se contorciam. Os rostos dos chispeiros alternavam expressões de horror e alegria diante da carnificina que tinham causado, mas Brie não lhes deu tempo para refletir ou comemorar. A hïrzgin fez com que eles avançassem em direção aos portões da Bastida.
Em campo aberto, os chispeiros ficariam vulneráveis; eles atuavam melhor defendendo um espaço confinado. E se as fileiras fossem rompidas, os chispeiros seriam rapidamente sobrepujados. Brie os orientou aos berros, não permitindo que se separassem.
O pessoal de Allesandra avançou contra um aglomerado de guerreiros em uma das extremidades das muralhas da Bastida. Mais ocidentais saíram correndo das ruas laterais, liderados por um guerreiro montado, com o rosto pintado de vermelho e o crânio totalmente raspado. Brie viu um feiticeiro com ele: um velho cujo rosto fora devastado por alguma doença, com o olho esquerdo branco e cego. No momento em que a hïrzgin alinhou os chispeiros perto do portão da Bastida para lidar com o ataque renovado, ela viu o archigos entoando e movendo as mãos encarquilhadas moldando um novo feitiço, fazendo seu robe verde e dourado balançar. O feiticeiro ocidental ergueu o cajado de madeira e berrou uma única palavra em sua língua estranha.
O feitiço dele foi lançado imediatamente.
O archigos e a carruagem foram envolvidos em chamas. O téni-condutor caiu do assento, berrando e batendo no robe em chamas com as mãos. Ela ouviu o velho guinchar de surpresa e agonia. Karrol empurrou a porta e caiu da carruagem para a rua, seu robe parecia pingar chama líquida. Ele rolou no pavimento, emitindo um longo e tênue lamento que parou subitamente, mas Brie já não conseguia ver o archigos, não em meio à confusão da batalha. Enquanto berrava para os chispeiros, para tentar alinhá-los corretamente, a hïrzgin vislumbrou o guerreiro de crânio vermelho surgir com uma lança na mão, incitando o cavalo em um galope em direção à Allesandra. A kraljica ergueu a espada, mas a estocada de lança do guerreiro pintado de vermelho foi mais rápida; horrorizada, Brie viu a ponta da arma entrar com força e atravessar a armadura de Allesandra. O guerreiro pulou do cavalo, ainda segurando a lança que empalou a kraljica, jogando-a no chão. Berrando desesperadamente para os chispeiros, a hïrzgin viu Sergei pular do cavalo como se fosse um jovem.
Eles, também, desapareceram na luta.
Os feiticeiros de ambos os lados lançavam feitiços, e ainda mais guerreiros chegavam e ocupavam as ruas. Brie podia sentir o frio do Ilmodo em volta deles.
— Fogo! — ela berrou para os chispeiros, que olhavam atônitos para a confusão. — Fogo!
Mas então tudo mudou.
Nico tinha sido abandonado. Destituído. Até mesmo Rochelle o tinha deixado em algum momento durante a noite. Ele pôde sentir sua partida, mesmo que não tivesse respondido para ela.
Nico estava orando há um dia inteiro agora, sem comer, beber ou dormir, e Cénzi permanecera em silêncio. Ou talvez Ele estivesse dizendo muito. Nico foi atormentado por visões, mas não sabia dizer se elas emanavam de Cénzi, dos sons que ele ouvia lá fora ou da própria imaginação febril. Ele estava tremendo de frio, como se estivesse envolvido por um inverno impossível, tão frio quanto o próprio Ilmodo. Sobre seus olhos fechados, Nico teve a impressão de ter visto a batalha no oeste quando o sol o tocou através da janela do casebre no Velho Distrito. Ele viu as tropas fugindo dos ocidentais, viu os chevarittai montados tentando em vão proteger a retaguarda daqueles que recuavam dos supremos guerreiros montados, com seus rostos pintados e suas armaduras estranhas. Os homens em preto e prata, os homens em azul e dourado estavam fracassando; muitos deles estavam sendo abatidos por flechas ou pelos guerreiros a cavalo.
Nico testemunhou isso ao ser levado para o campo de batalha pelos braços gelados das suas preces, olhando para a cena do alto. Ele era um pássaro, um falcão, sendo levado pelo vento frio. Ele viu o estandarte do comandante ca’Talin e, mais ao norte, os estandartes do starkkapitän e do hïrzg. Todos estavam recuando para a cidade, com o homem mais à frente deles já nas ruas perto da Avi a’Certendi, a parte mais a oeste da imensa cidade.
Nico pairava sobre tudo isso, observando...
... então ele a viu: Varina. Ela estava exausta e sendo puxada por outros dois hereges numetodos; o trio estava perigosamente separado da massa principal da Garde Civile. Os guerreiros montados se aproximavam, a apenas alguns passos de distância, e a sinistra infantaria dos tehuantinos não vinha muito atrás. Eles seriam atropelados e mortos. Em breve.
Por que o Senhor me mostra isso, Cénzi? Por que me mostra a herege com tanta clareza?
Enquanto observava Varina, Nico sentiu o abraço frio envolver seu corpo mais intensamente. Ele estava caindo, rolando na direção de Varina no momento em que viu os guerreiros montados nos cavalos de guerra avançarem contra ela. Seus companheiros se viraram para lançar feitiços inúteis contra os agressores, que cercaram Varina.
Agora Nico estava ali, no solo e não muito longe de Varina. Ele pôde ouvi-la conter um grito e chamar seu nome — “Nico?” —, mas havia tanta energia ali que ele mal podia ouvir. O Segundo Mundo pareceu se abrir no céu e jorrar um fogo frio, o poder gelado do Ilmodo. Nico podia sentir todos puxando a energia sobre eles: os ténis-guerreiros, os hereges, os feiticeiros dos tehuantinos, até mesmo quem estava do outro lado do A’Sele, na cidade. Ele podia sentir o poder guardado nos cajados mágicos dos tehuantinos, nas mentes dos numetodos.
Todos canalizavam o Ilmodo do Segundo Mundo, onde Cénzi ainda vivia.
Nico se sentiu vasto. Ele podia esticar os dedos e tocar os fios de todas as conexões com o Ilmodo; podia puxá-los e tomá-los para si...
E foi o que Nico fez.
Não foi um movimento consciente. Ele agiu como se alguém tivesse o controle de seu corpo, sem escolha. Ele ouviu a si mesmo dizer palavras que não compreendia, sentiu as mãos se mexerem em um gestual que ele nunca tinha usado antes. Cénzi? Se era Cénzi, não houve resposta.
Nico gritou as palavras finais, executando o gestual final. Ele arrancou as cordas de poder que amarravam os ocidentais ao Segundo Mundo, mas manteve as cordas dos ténis e até mesmo a dos numetodos. Nico estava parado no campo de batalha com os braços abertos, sendo tomado pelo Segundo Mundo como nunca tinha acontecido antes.
Ele nunca tinha se sentido tão cheio do poder do Ilmodo. O poder o preencheu, queimando e perigoso demais para ser manipulado por mais que um instante. Nico absorveu tudo, inspirando o dom de Cénzi e o exalando novamente, soltando um grito.
O que eu faço com isso? Ele perguntou para Cénzi, e ouviu a resposta:
Faça o que deve fazer...
A onda de energia saiu pulsando de Nico, irradiando para o norte e o oeste ao longo da linha de batalha. Onde a onda tocou, os tehuantinos foram jogados para trás, sendo atirados violentamente sobre suas próprias fileiras. Eles foram derrubados como peças de um jogo varridas por uma mão furiosa.
Os guerreiros montados prestes a matar Varina e seus companheiros foram levados pela tempestade, tanto as montarias quanto os cavaleiros foram lançados longe.
— Vão! — disse Nico para eles. — Este é o Dom de Cénzi!
Sua voz ecoava como a de Cénzi; ela rugia, um trovão que pôde ser ouvido por todas as fileiras.
— Vão!
Então, acabou. Os fios de poder se romperam; o Segundo Mundo se fechou, soltando um trovão alto. Nico foi tomado por uma exaustão terrível, tão avassaladora que não conseguiu ficar em pé. Suas pernas cederam, e ele caiu na escuridão gelada.
— Deixem que eles cruzem o rio — disse Tototl. — Assim que eles estiverem na alameda, serão alvos fáceis, vamos atacá-los por todos os lados ao mesmo tempo.
A tática tinha funcionado a princípio. Os orientais usaram seus feitiços assim que o sol nasceu; Niente mandou os nahualli deixarem seus inimigos gastarem energia, mesmo que eles pudessem ter anulado a magia inimiga facilmente com os feitiços em seus cajados mágicos. Os guerreiros recuaram, abandonando a catapulta. Niente esperou no cavalo ao lado de Tototl, ao fim da primeira grande rua transversal da grande alameda. Os arqueiros disparavam saraivadas no céu; um velho nahualli oriental andando sobre uma carruagem mostrou sua força e tornou as flechas inofensivas ao desviá-las. A tecuhtli dos orientais — a mulher vestida de aço — escoltava os guerreiros de um lado ao outro do rio.
Eles ouviram o avanço dos guerreiros escondidos próximo ao rio e no pátio, onde o crânio do monstro tinha sido posto, mas Tototl ergueu a mão quando os guerreiros atrás dele seguiram em frente, ansiosos para se juntar à batalha.
— Esperem — ele ordenou. — Ainda não.
Através do vão entre os prédios, Niente viu os orientais avançarem pela rua, e a mulher, estranhamente, levou seus homens para o interior do pátio de onde os guerreiros tinham saído. Ele se perguntou o porquê disso, então veio a resposta: o terrível barulho estridente das armas de areia negra, que, estranhamente, soavam como as garras de águia que eles usavam no sacrifício de prisioneiros. Eles ouviram os gritos a seguir e viram os guerreiros caírem como milho sendo colhido. O tecuhtli oriental berrou, e os guerreiros inimigos voltaram à alameda em debandada, repelindo os guerreiros remanescentes ali.
— Agora! — gritou Tototl.
Eles avançaram contra a confusão como uma onda. Tototl avançou diretamente contra a mulher, arrancando sua lança de cavalaria da bainha na sela; sua espada permaneceu embainhada. Niente tentou segui-lo. O feiticeiro oriental na carruagem, vestido de verde e dourado, e mais velho que Niente, estava entoando um cântico e gesticulando de um jeito conhecido. Niente sentiu o poder envolvendo o homem crescer, e ergueu o cajado mágico, gritando o gatilho do feitiço. O X’in Ka disparou uma rajada solar de seu cajado, envolvendo o feiticeiro em chamas azuis. O homem gritou, e a rajada encobriu a carruagem e o passageiro.
Tão lenta. A magia oriental era tão lenta.
Niente viu a lança de Tototl empalar a tecuhtli oriental como um pedaço de carne. O guerreiro supremo pulou do cavalo ainda segurando a lança nas mãos e arrancando a pobre mulher do cavalo para os paralelepípedos. Tototl berrou em triunfo. Niente ouviu o impacto do corpo da mulher ao cair no chão.
Ele sentiu que os feiticeiros inimigos preparavam feitiços, ouviu a mulher no comando das terríveis garras de águia berrar ordens para seus homens, com uma longa trança marrom balançando sob seu elmo. Niente ergueu seu cajado mágico, pronto para abater a mulher de trança — para ele, ela era a mais perigosa dos inimigos.
Ele gritou o gatilho do feitiço, mas nesse mesmo instante, uma força terrível o puxou, puxou todos os nahualli. O ar gelado do X’in Ka girou em volta e por cima de Niente, varrendo o feitiço — e ele soube que tinha visto isso, embora não tivesse acreditado que fosse possível.
O homem da bruma, o homem escondido — ele tinha tomado uma decisão. Tinha agido.
O Longo Caminho estava aberto.
Niente engasgou. Esta era uma força bruta que ele nunca tinha sentido antes.
Um vórtice invisível pairou sobre eles, como a boca faminta de um tornado implacável, e sugou a energia do cajado de Niente, de todos os cajados mágicos, arrancando os poderes estocados neles e deixando os cajados vazios, como se todos os feitiços preparados para serem colocados dentro dos objetos na noite anterior com tanto trabalho tivessem sido lançados. Não foram apenas os nahualli que sentiram isso: ele notou que todos pararam e olharam para o céu, à procura de alguma coisa que eles não podiam ver. Tototl tinha arrancado a lança do corpo da tecuhtli; ele se aproximou dela, posicionando a lança para golpeá-la novamente, e também hesitou.
Então o vórtice desapareceu, sumiu, e Niente agora segurava apenas um pedaço de madeira vazio. Ele viu os outros nahualli se entreolharem, surpresos, ou soltarem seus cajados, assustados.
— Niente! — gritou Tototl sobre os paralelepípedos, com a lança ainda erguida.
Niente mostrou o cajado para ele e disse, surpreso:
— Eu não tenho nada. A magia foi retirada de todos os nahualli. Tototl, eu vi isso... eu lhe disse...
— Você ainda está vivo — resmungou o guerreiro supremo. — Nós ficaremos. Nós lutaremos!
Ele ergueu a lança novamente. Niente, então, viu a estranha cena: um velho com um nariz de prata avançando contra Tototl. O homem não brandia uma espada, mas uma bengala, enquanto berrava para o guerreiro supremo, e no entanto...
Niente sentiu a ameaça do pedaço de pau. Tototl também viu o homem, mas não fez nada, apenas sorriu. Niente gritou quando o homem apontou a bengala na direção de Tototl e saltou entre os dois, tentando afastar a bengala com seu cajado, mas ele não era forte o bastante. E a bengala tocou o corpo do próprio Niente.
O impacto pareceu com o punho de Axat. Niente pensou ter visto o rosto Dela sobre ele, acenando com a cabeça enquanto Niente caía. Ele viu um pássaro entalhado voando na frente de Axat.
Uma última dádiva...
Sergei viu a estocada cruel da lança do guerreiro trespassar a armadura de Allesandra. Viu a boca da kraljica se abrir em silêncio, surpresa e abalada, viu o guerreiro usar a haste da lança para arrancar a kraljica do cavalo. O homem se aproximou dela e arrancou a lança de seu corpo, seu sangue jorrava enquanto ele se preparava para estocar novamente a figura caída. O guerreiro berrou alguma coisa para um antigo feiticeiro ocidental perto dele.
Sergei se deteve. Alguma coisa parecia estranha: um vento frio furioso varreu a Avi, e a fúria dos feitiços de todos os lados pareceu ter se esvaído.
O embaixador se remexeu. Ele mancou até Allesandra, com a bengala em uma mão e o florete na outra. Mais um ocidental se aproximou a sua esquerda, e Sergei estocou por baixo do golpe cortante do homem, a lâmina fina do florete encontrou uma brecha entre as ripas de bambu da armadura e se enfiou no abdômen. O ocidental dobrou o corpo e caiu, e o movimento arrancou a espada da mão de Sergei. Ele deixou a arma ali; não tinha força para segurá-la.
— Não! — berrou o embaixador para o guerreiro parado diante da kraljica.
Sergei brandiu a bengala para o homem, que olhou para ele e parecia quase rir.
Sergei rezou para que se lembrasse da palavra que Varina lhe tinha ensinado, para que a pronunciasse corretamente, para que o feitiço que ela disse ter colocado dentro da bengala realmente funcionasse.
— Scaoil! — berrou o embaixador, apontando a ponta de latão da bengala na direção do guerreiro.
Mas no mesmo instante, o antigo feiticeiro se moveu com uma velocidade impressionante para sua idade e se colocou entre Sergei e o guerreiro, brandindo seu cajado mágico. A bengala acertou o feiticeiro. Assim que a bengala o tocou, sua ponta de latão pareceu explodir. Um som alto e percussivo quase ensurdeceu Sergei. A rajada fez lascas da bengala saírem voando, lançando o velho feiticeiro para trás juntamente com um jato de sangue e tripas; moribundo, se é que já não estava morto. Um pássaro vermelho entalhado saiu voando da bolsa rasgada do feiticeiro, posando novamente no peito do velho. O feiticeiro segurou o pássaro, pareceu sussurrar para ele e, em seguida, sua cabeça pendeu para o lado.
O guerreiro pintado de vermelho deixou a lança cair de sua mão olhando fixamente para o corpo do feiticeiro, caído na Avi perto de Allesandra, ferida.
O tempo parou para Sergei. O guerreiro estava imóvel, com a boca contraída no rosto pela fúria da batalha. O embaixador pensou que o homem levaria a mão ao lado de seu corpo e sacaria a espada, que abateria Sergei no instante seguinte. Não havia gardai para salvá-lo, nenhum chispeiro perto o suficiente.
Ele se perguntou qual seria a sensação de morrer.
Mas o guerreiro olhou fixamente para o corpo do feiticeiro, balançando a cabeça. Ele berrou alguma coisa que Sergei não compreendeu: uma prece, uma maldição, uma pergunta. O homem deu um passo para trás e se afastou do embaixador, depois deu mais um e mais outro. Então se virou completamente e rugiu uma ordem que ecoou na rua. Os guerreiros na Avi começaram a ceder terreno, devagar a princípio, depois mais rapidamente. Sergei viu Brie e Talbot persegui-los com os chispeiros, e chamou os dois.
— Esperem! A kraljica...
Ele se ajoelhou ao lado de Allesandra.
— Sergei — ela disse. — Dói...
— Eu sei — respondeu o embaixador.
Alguns gardai se reuniram a sua volta — sangrando, exauridos e aparentemente atordoados. Todos olharam espantados para a kraljica e para o corpo destruído do feiticeiro.
— Ajudem-me — disse Sergei para os homens. — Ajudem-me a levá-la de volta para o palácio...
Jan, com os chevarittai e alguns ténis-guerreiros lutavam na retaguarda para proteger a retirada, eles enfrentaram os guerreiros montados e mantiveram a infantaria ocidental longe dos retardatários. Como comandante do exército firenzciano, Jan raramente tinha precisado coordenar uma retirada em grande escala, mas ele tinha estado do lado vencedor várias vezes, e sabia que a retirada, em geral, era o momento mais perigoso para as tropas, pois a força avançando poderia eliminar os retardatários, lançar flechas e feitiços para dizimar ou até mesmo obliterar as companhias da retaguarda. Frequentemente, o exército em progressão podia sobrepujar o inimigo exausto e desmoralizado e causar baixas terríveis.
A retirada talvez permitisse que o comandante lutasse outro dia, mas também podia levar a uma derrota completa e infame. Eles nem ao menos estavam recuando para fortificações, mas para uma cidade aberta e desprotegida.
Os feiticeiros ocidentais lançaram feitiços contra eles que os ténis-guerreiros tiveram pouco tempo e energia para desviar. Os arqueiros cobriram o céu com suas flechas. As tropas montadas — felizmente poucas — avançaram as suas costas, abatendo os gardai correndo. A vanguarda do exército inimigo avançou com tudo. Jan vislumbrou, entre a fumaça e a confusão do campo de batalha, os estandartes do comandante tehuantino: a serpente alada que voava em um evoaçante pano de tom verde intenso. A maior parte dos feitiços parecia vir do grupo à volta daquele estandarte.
Jan estava exausto e sentindo uma dor terrível. Seus dedos queriam libertar o fardo do aço firenzciano pesado, o cabo da espada já escorregadio com sangue. O hïrzg oscilou na sela, quase caindo do cavalo quando um relâmpago mágico surgiu, sibilante, explodindo diretamente à frente, fazendo seu cavalo de guerra empinar. Ele acalmou o animal.
— Hïrzg!
Jan ouviu alguém chamar, e um chevaritt à direita apontou para um quarteto de guerreiros montados prestes a atropelar um grupo de gardai.
Ele suspirou. Obrigou seus dedos a segurarem firme a espada. Jan ignorou a dor lancinante em seu peito. Ele esporeou o cavalo, galopando em direção aos guerreiros.
Você não vai sobreviver a isso. Esta será sua última batalha.
O ideia lhe ocorreu como uma certeza. Uma profecia. Ele estremeceu ao soltar um grito de encorajamento para os chevarittai, ao mesmo tempo em que eles cavalgavam em direção aos guerreiros.
Então...
Uma onda de frio intenso tomou conta dele, como se o inverno tivesse chegado mais cedo; quando a sensação se esvaiu, Jan percebeu, mesmo com a fúria de seu ataque, que a chuva constante de feitiços das forças tehuantinas tinha parado. Os guerreiros à frente também o notaram. Eles puxaram as rédeas de seus cavalos e voltaram seus olhares para suas próprias fileiras. O hïrzg ficou preocupado que os feiticeiros estivessem preparando outro feitiço em massa, como a tempestade de guerra. Mas, em vez disso, uma onda visível varreu a terra de leste a oeste, uma onda que fez Jan puxar as rédeas, espantando. Todos podiam vê-la: no ar fugidio, na poeira erguida pela onda ao passar. Onde tocou o avanço da linha de frente dos ocidentais, os guerreiros foram jogados e lançados para trás, sem tocar nos homens no próprio hïrzg. Jan ouviu gritos e gemidos, depois uma única voz, mais alta.
— Vão! Este é o Dom de Cénzi! Andem!
O grito pareceu vir de todos os lugares e de lugar nenhum.
Jan sentiu subitamente uma tênue esperança. A bola de fogo de um téni-guerreiro saiu voando sobre os tehuantinos. Não houve reação ao feitiço: nenhum desvio, nenhuma implosão impotente acima deles. A bola de fogo anunciou a morte com um som estridente, penetrando nas fileiras ocidentais e explodindo, intacta. Outra veio atrás desta, e mais outra — todas penetraram. A esperança dentro do hïrzg aumentou, seus ferimentos já não importavam.
— Virem-se! — berrou ele para as tropas, para os offiziers. — Virem-se! Sigam-me!
Jan ergueu sua espada quando os chevarittai atenderam ao chamado. Ele ouviu a ordem ecoar entre as fileiras, e a retirada parou, virando-se lentamente. O hïrzg já estava cavalgando rapidamente em direção aos tehuantinos. Por todo o campo de batalha, até o ponto ao sul onde sua visão alcançara, a retirada se voltava para ele. As cores preto e prata começaram a fluir em direção ao oeste.
Com os chevarittai em volta de si, Jan penetrou na linha de frente atordoada dos ocidentais e seguiu em direção ao estandarte da cobra alada. Os primeiros guerreiros por quem ele passou estavam espalhados no chão; se estavam mortos ou inconscientes devido ao enorme feitiço desconhecido, Jan não sabia. Então o hïrzg encontrou resistência e avançou pelo mar de lâminas reluzentes, esquecendo suas dores em meio à fúria da batalha. Os chevarittai gritavam ao mesmo tempo que derrubavam os ocidentais e seguiam em direção ao comandante inimigo, todos avançando. Eles ouviram o rugido dos gardai correndo atrás de si.
Não houve resposta da parte dos feiticeiros tehuantinos. O que quer que tenha acontecido, roubou a magia deles. Mas os guerreiros tehuantinos — ao menos aqueles distantes da onda inicial não tinham sido afetados. Eles lutaram tão ferozmente como nunca, e agora que a euforia inicial tinha passado, a exaustão e a dor se fizeram sentir novamente. O ataque diminuiu, embora os estandartes de serpente alada agora estivessem dolorosamente próximos. Cada golpe de espada na massa de guerreiros disparava um choque que subia pelo braço de Jan. Suas pernas doíam, e ele mal conseguia se manter montado no cavalo de guerra. Suas costelas o apunhalavam como adagas de marfim a cada fôlego.
Ele se perguntou onde Brie estaria. Perguntou-se quem contaria a seus filhos e o que eles diriam.
Você tem ao menos que fazer essa história valer a pena ser contada.
Gemendo, Jan ergueu a espada para proteger a lateral do corpo de uma estocada, e a lâmina desviou o ataque, cortando o pescoço do guerreiro. O hïrzg viu o homem escancarar a boca e arregalar os olhos. Algo golpeou sua coxa na esquerda, ele se virou para enfrentar o guerreiro com a lança, cuja ponta estava cravada na sua perna logo acima da couraça. Jan puxou as rédeas com força para a esquerda e o cavalo de guerra ergueu os cascos, que acertaram e pisotearam o agressor enquanto a ponta da lança era arrancada de sua coxa. Ele sentiu seu sangue jorrar, molhando o acolchoamento sob a couraça.
Jan estava mais perto. Ele podia ouvir o estandarte da cobra tremulando.
— A mim! — gritou o hïrzg para os chevarittai, mas não ouviu resposta.
Jan não sabia onde eles estavam, não tinha tempo de procurá-los. Carrancudo, ele avançou, atropelando os guerreiros à frente com seu cavalo. Jan alcançou uma pequena clareira, viu o líder tehuantino, com o crânio raspado decorado com uma águia vermelha cujas asas se abriam em suas bochechas. O homem era mais velho que Jan, volumoso na armadura ocidental e montado em seu próprio cavalo, um magnífico animal malhado. Perto do líder, havia um feiticeiro ocidental, jovem, com o cajado mágico na mão e um bracelete dourado no braço.
Jan reuniu todas as forças que ainda tinha, ergueu a espada e gritou em desafio. Ele esporeou o cavalo de guerra para seguir adiante.
Do esconderijo atrás das tapeçarias na parede dos fundos, Rochelle viu a kraljica ser carregada para o salão. A armadura de Allesandra estava manchada de vermelho, e havia um buraco aberto no peitoral de onde o sangue ainda jorrava. Seu rosto estava pálido e contraído, o cabelo grisalho desalinhado e duro como palha em volta do rosto.
— Coloquem-me no trono — ela ouviu o sussurro da kraljica.
A voz da mulher era áspera e baixa, exausta e esquelética. Os gardai que a levavam obedeceram e a colocaram no Trono do Sol. Rochelle esperava que o trono se acendesse assim a kraljica se sentasse no abraço cristalino, como diziam as histórias, mas o trono respondeu apenas com o mais pálido dos brilhos, praticamente invisível na luz do sol.
Ela se perguntou se era porque a kraljica estava à beira da morte.
— Alguém vá procurar pelos curandeiros da kraljica — ela ouviu Sergei dizer. — O restante, procurem a hïrzgin para receber suas ordens; ela está no comando. Andem!
Eles se dispersaram. Rochelle viu Sergei se ajoelhar ao lado do trono.
— O que eu posso fazer pela senhora, kraljica? — perguntou o embaixador.
— Água, Sergei — sussurrou Allesandra. — Estou com tanta sede.
Ele mancou até um balcão perto da porta de serviço; Sergei estava sem a bengala e andava devagar. Rochelle saiu de trás da tapeçaria. Com alguns passos resolutos, ela alcançou a plataforma, com a faca na mão. Sergei a ouviu e berrou seu nome — “Rochelle!” — mas ele estava muito longe e era lento demais para detê-la. A pedra branca — dentro da bolsinha em volta do pescoço de Rochelle — parecia pulsar incandescente contra sua pele.
Você vai matá-la e, enquanto ela morre, você vai contar o porquê, para que ela vá para Cénzi sabendo...
Allesandra olhou para Rochelle com um olhar confuso e sofrido.
— Olá, mamatarh — disse ela. — Eu sou Rochelle.
— Rochelle? Mamatarh?
A confusão aumentou na expressão da mulher. Ela viu a faca e franziu os olhos.
— Eu conheço essa arma — Allesandra disse, umedecendo os lábios secos.
Ela tossiu, cuspindo bolhas de espuma vermelha dos cantos da boca.
— Eu matei Mahri com isso. Onde você...?
— Do seu filho — respondeu Rochelle. — Do meu vatarh.
A kraljica estreitou os olhos novamente.
— Seu vatarh? Jan?
— Rochelle, não faça isso — disse Sergei.
Ele deu passos vacilantes em direção à plataforma, com a mão estendida na direção dela. Rochelle ignorou o embaixador. Um corte com a lâmina, e ela poderia passar por qualquer uma das portas e estar longe antes que ele pudesse fazer qualquer coisa para detê-la.
— Sim, Jan é meu vatarh — contou Rochelle para Allesandra.
Sua mão livre segurou a pequena bolsinha de couro com o seixo quase branco e chato que continha sua matarh e todas as vítimas dela.
— E minha matarh... ela era a Pedra Branca. Elissa, era assim que ela se chamava nessa época, embora esse não fosse seu nome de verdade.
— Elissa... — Os olhos de Allesandra se fecharam por um momento; sua respiração se agitou e seus olhos se abriram novamente. — Jan...
— Ela o amava — disse Rochelle ao se inclinar sobre a kraljica.
Ela aproximou a lâmina do pescoço de sua mamatarh. Allesandra pôs a mão sobre a de Rochelle, mas não havia força no aperto. Sua pele era tão enrugada quanto um pergaminho.
— Rochelle, a mulher já está morta — falou Sergei. — Você não precisa fazer isso. A Pedra Branca está morta. Deixe-a morrer em paz.
Rochelle olhou para ele.
— Por que você se importa, embaixador? Suas mãos estão bem mais ensanguentadas que as minhas.
— Eu lhe disse na carruagem: não é tarde demais para você, Rochelle. Você não é a sua matarh. Não precisa se transformar no que ela se tornou.
A faca tremeu em sua mão. Prometa para mim...
— Faça isso — continuou Sergei — e você será para sempre a Pedra Branca, a assassina odiada que matou a kraljica. Será caçada pelo resto da sua vida curta e miserável. Jamais se sentirá segura, jamais ficará à vontade. Eventualmente, você cometerá um erro e será capturada, depois será arrastada para cá acorrentada e será executada. Este é o seu destino, Rochelle, o único que terá se fizer isso.
— E se eu não fizer? Eu ainda não sou a Pedra Branca, que matou Rance e os outros?
Sergei deu de ombros.
— Eu não sei. Sua vida será um livro que você mesma escreverá. Se a Pedra Branca desaparecer, não há ninguém a ser perseguido.
A mente de Rochelle estava atormentada. A faca pressionada contra a pele de Allesandra, o gume afiado, o sangue. Tudo o que ela tinha a fazer era pressionar com um pouco mais de força. Só precisava se debruçar levemente sobre a mulher; a faca faria o resto. Os dedos de Allesandra apertavam os de Rochelle, quase como se a kraljica quisesse que ela fizesse aquilo.
— Minha matarh amava Jan — disse Rochelle para sua mamatarh, com uma voz mais trêmula do que as mãos.
— Eu sei. — Os lábios de Allesandra estavam molhados de sangue, e um longo filete escorria pelo canto da boca. — E Jan a amava. Eu sei disso também.
A kraljica gorgolejou, o cheiro de seu hálito era horrível.
— Eu lamento.
— Lamenta? — Rochelle praticamente gritou, quase enfiou a faca no pescoço de Allesandra com violência. — Você deveria ter dito isso para ela.
A kraljica não respondeu. Sua respiração ficou fraca, seu corpo se contorceu em um espasmo. Ela olhou fixamente para Rochelle, piscando muito.
— Rochelle...
Ela tirou a faca do pescoço de Allesandra e embainhou a arma. Mate-a... Rochelle ouviu o sussurro de sua matarh, mas seu som foi fraco, e ela descobriu que não tinha vontade de fazê-lo. Não mais. Toda a raiva tinha abandonado Rochelle, toda a certeza.
— Eu quero ver você morrer — ela disse para a kraljica, olhando para Sergei. — Eu preciso ver isso.
— Está bem. — Sergei subiu os degraus da plataforma pesadamente para ficar ao lado dela. — Nós assistiremos juntos.
A boca de Allesandra se abriu, como se ela fosse protestar, mas não disse nada. Os dois ouviram sua respiração se esgotar. A kraljica olhava para Sergei.
— Nessântico...
Sua voz soou quase tão fraca quanto um zéfiro. O olhar cego da kraljica se fixou em algum ponto entre os dois.
— Sergei, ela está a salvo?
— Sim — respondeu Sergei. — Ela está a salvo.
Allesandra não esboçou reação. Após um tempo, eles perceberam que ela já não respirava. Seus olhos continuavam abertos. Rochelle tirou a pedra branca da bolsinha e colocou sobre o olho direito da kraljica.
— Pronto, matarh — disse Rochelle. — Ela é sua...
Rochelle começou a descer da plataforma.
— Espere — chamou Sergei, atrás dela. — A pedra...
— Deixe aí. Guarde como lembrança. Jogue fora. Eu não me importo. Não preciso dela.
Rochelle saiu do salão no momento que os curandeiros — tarde demais — entraram.
A onda de frio, seguida do pulso que passou por eles inofensivamente, mas que colidiu contra os ocidentais...
A presença de Nico e sua voz, inacreditavelmente alta...
O silêncio que pareceu durar vários instantes, quando eles perceberam que nenhum dos ocidentais lançava feitiços em sua direção...
O que aconteceu?
Varina ainda podia sentir o Scáth Cumhacht dentro de si. Tinha sentido alguma coisa — alguém? — puxar os feitiços que ela tinha guardado na mente, como se quisesse roubá-los, mas a presença passara por Varina sem tocá-la. Bem ao norte, ela viu a bola de fogo de um téni-guerreiro cruzar o horizonte em direção ao inimigo, depois outra e mais outra, esta de um téni perto dela. Nenhum deles foi tocado.
Varina ouviu os offiziers gritando para virar os gardai para o oeste mais uma vez. A maré que os arrastou pelo caminho diminuiu, parou e depois começou a fluir para o outro lado. Eles ficaram parados em meio à correnteza. Leovic e Niels ainda seguravam seus braços, mas Varina percebeu que eles observavam.
— Vão — ela disse para os dois. — Eles precisam de vocês. Eu seguirei como puder.
— A’morce — reclamou Niels.
— Vão — repetiu Varina.
Eles a deixaram e correram na direção de um dos offiziers chevarittai. Varina viu Leovic e Niels serem levados pela multidão. Ela seguiu depois, bem mais lentamente, mancando. Uma multidão de gardai passou por Varina, gritando. Ela ouviu o barulho da batalha recomeçar adiante, mas todos os feitiços pareciam estar vindo dos ténis-guerreiros da fé concénziana e dos numetodos, não dos ocidentais.
Varina estava entre os corpos dos que caíram durante a retirada, a maioria vestindo uniforme azul e dourado. Era difícil ignorá-los. O pior era ver aqueles que não tinham morrido, mas que estavam feridos demais para andar, estendendo suas mãos, pedindo socorro enquanto ela passava ou rastejando em direção à cidade. Para esses, Varina só podia dizer que a ajuda estava chegando em breve para resgatá-los — e torcer para que fosse verdade.
Mas ela estava procurando por uma pessoa em especial.
Varina viu um corpo a sua frente, à esquerda, vestindo um robe verde de téni. Pensou que pudesse ser um dos ténis-guerreiros, mas então viu o rosto.
O rosto de Nico.
Ignorando as pernas doloridas, Varina correu até ele, se ajoelhando a seu lado. Nico parecia ileso: não havia sangue em seu robe, seu rosto sujo e escuro tinha velhos cortes e hematomas, mas tirando isso parecia incólume.
— Nico? — ela disse, rolando seu corpo sobre suas costas procurando desesperadamente por algum sinal de ferimento.
Ele abriu os olhos, e sorriu.
— Oi, Varina. Acho que dormi. Você viu minha matarh?
Era a voz de um menino. A voz de uma criança. Nico se sentou e olhou a sua volta, arregalando os olhos ao perceber os gardai correndo aos gritos e brandindo espadas; os corpos caídos ao redor; os vapores e a fumaça do campo de batalha; a terra pisoteada que um dia tinha sido o campo de um fazendeiro. Ele se ajeitou e ficou sentado com as costas eretas.
— Varina — disse Nico com a voz trêmula, obviamente com medo, ele pegou os braços dela com força. — Estou assustado, Varina. Leve-me para casa. Por favor. Eu não quero ficar aqui.
— Nico, o que você fez?
Ele parecia amedrontado com a pergunta e se afastou de Varina.
— Eu não fiz nada, juro. Só quero ir para casa. Quero ver a minha matarh. Quero ver Talis.
Varina o abraçou.
— Nico, Talis e Serafina... partiram.
— Para onde eles foram? — ele perguntou.
Não havia malícia em seus olhos, só a pergunta inocente.
— Nico...
Ela não podia responder. Varina o abraçou de novo. O que quer que Nico tivesse feito, seja lá como o fez, o esforço obviamente lhe custara a mente. Este não era mais o Absoluto dos morellis. Este não era mais Nico, o grande téni. Ele se agarrou a Varina como uma criança a sua matarh, e ela sentiu seu corpo tremer de pânico e angústia.
Gardai ainda passavam por eles; o barulho da batalha e os trovões dos feitiços dos ténis-guerreiros eram ensurdecedores.
— Nico, vamos — falou Varina. — Vamos sair daqui. Não é seguro. Você pode vir pra minha casa. Gostaria disso?
Ele assentiu urgentemente, abraçado a ela. Varina o levantou.
Juntos, eles seguiram cambaleando para leste, em direção à cidade.
Atl se sentiu nu e desprotegido, seu cajado mágico tinha sido esvaziado em poucos instantes por aquele terrível feitiço do leste, e agora a batalha tinha sido subitamente renovada, quando já deveria estar acabada.
Em vitória. Na vitória que Atl tinha visto. Na vitória que Atl tinha dito para o tecuhtli que seria dele. Atl se lembrava da visão do taat, aquela que Niente alegara ter visto, o caminho que Atl tinha sido incapaz de ver, que ele pensava que era mentira do taat. Isso não era possível.
Citlati se enfureceu com Atl enquanto bolas de fogo dos nahualli orientais caiam perto dos dois.
— Detenham-nos! — berrou o tecuhtli. — Maldito seja, nahual! Detenham-nos!
Mas tudo o que Atl pôde fazer foi balançar a cabeça.
— Eu não tenho poder, tecuhtli. Nenhum dos nahualli tem. Ele foi tirado de nós.
Os feitiços sumiram, e não havia tempo agora para preparar novos e colocá-los nos cajados mágicos.
— Você me prometeu a vitória, nahual! Você me prometeu a cidade!
Citlali choramingou como uma criança sem seu brinquedo favorito, mas não havia nenhuma resposta para essa situação. Seu rosto ficara tão vermelho de raiva que a águia vermelha pareceu se misturar a sua pele.
Não haverá uma vitória, Atl queria dizer para ele. Ou, se houver uma, não será a vitória que eu vislumbrei na tigela. Os caminhos da tigela premonitória tinham sido apagados. Tudo mudou. Eu nunca tinha visto esse caminho antes. Não sei para onde ele leva.
Como seu taat tinha avisado. Sua mão tateou a bolsa, onde o pássaro entalhado que o taat lhe dera estava aninhado. Se um de nós vir o rumo, então podemos contar para o outro que o Longo Caminho está aberto... Será que Niente estava certo: será que esse Longo Caminho existia, aquele que Atl não conseguia ver?
Ele desejou que seu taat estivesse ali.
Citlali ainda estava furioso, mas a atenção de Atl estava voltada para o pássaro entalhado na bolsa. Ele pareceu farfalhar, como se estivesse vivo e batendo as asas em pânico. Atl abriu a aba de couro e meteu a mão dentro. Sim, a coisa estava se mexendo. O pássaro ficou imóvel quando Atl o tirou para fora, e, assim que o fez, ele pôde ouvir a voz inconfundível de Niente.
— Tototl está voltando para os navios. Você tem que ir também! O Longo Caminho está aqui.
— Taat?
Não houve resposta. Atl soltou o pássaro entre seus dedos que há muito tinham perdido a força. Ele viu o objeto cair no chão, se perdendo entre os caules dos grão pisoteados na terra. A voz de seu taat soara tão fraca, tão perdida, e Atl foi tomado pela certeza de que jamais a ouviria novamente.
— Tecuhtli — chamou Atl. — Temos que recuar e encontrar os navios. Estamos sem magia. Não teremos nenhuma até que possamos descansar novamente.
— Não! — disparou Citlali. — Eu tomarei a cidade hoje.
— Não é possível agora — respondeu Atl.
— Como você sabe? — disse Citlali, com desprezo. — Nada do que você me disse era verdade. Você não é mais o nahual. Eu encontrarei outro. Farei de Niente o nahual novamente.
Citlali ergueu a espada contra Atl, como se estivesse prestes a atacá-lo, Atl ergueu seu cajado mágico inutilmente.
Alguém gritou na língua dos orientais para os dois, e um cavalo de guerra rompeu o anel em volta de Citlali e Atl, conduzindo um guerreiro coberto de sangue e terra, sem elmo e com uma espada chanfrada na mão. Ele investiu diretamente contra Citlali, e o tecuhtli deixou Atl de lado para aparar o golpe do homem. O aço retiniu em aço, e Atl viu uma lasca da lâmina de Citlali sair voando e girando. Quando os cavalos de guerra se aproximaram, Citlali empurrou o oriental, e o homem caiu do cavalo. O tecuhtli riu.
— Viu só? — disse ele. — Viu só como eles caem facilmente? E você me diz para recuar?
O oriental estava lutando para ficar de pé, meio aturdido, apoiando-se em uma perna. Parecia que ele não seria capaz sequer de erguer sua espada. A sua volta, Atl viu os uniformes pretos e prateados e azuis e dourados dos orientais, embora os três permanecessem sozinhos em um nexo tranquilo em meio ao caos. Vários guerreiros caíam sob a pressão, os feiticeiros inimigos lançavam sua magia, e os nahualli eram incapazes de reagir. Citlali pulou do cavalo; Atl viu sua bota pisar sobre o pássaro vermelho entalhado no chão revirado e lamacento. O tecuhtli ergueu a espada novamente. O golpe, Atl viu, arrancaria a cabeça do oriental.
Atl ergueu seu cajado mágico vazio novamente, e o desceu com força no crânio de Citlali. O som emitido foi estranhamento baixo, como um pau batendo em um melão maduro, mas o tecuhtli caiu inconsciente aos pés atordoados do oriental. O homem olhou para Atl, que devolveu o olhar. Por um instante, nenhum dos dois se mexeu, então, enquanto Atl observava, montado em seu cavalo, o oriental ergueu sua espada e a enfiou no pescoço de Citlali.
— Perdemos o tecuhtli! — Atl gritou alto para que os guerreiros perto dele pudessem ouvi-lo. — Perdemos o tecuhtli. Recuar! De volta para os navios!
Enquanto os guerreiros reagiam, enquanto começavam a abandonar o combate e recuar, enquanto os orientais berravam em triunfo, Atl encarava o oriental. O homem se apoiava na espada, ainda cravada no pescoço de Citlali. Atl o cumprimentou com a cabeça.
Em seguida, ele puxou as rédeas do cavalo e começou a longa fuga para o oeste.
A Aurora
Eles foram perseguidos pelo exército de azul e dourado e preto e prata, foram caçados enquanto recuavam em direção ao rio e aos navios à espera, mas não intensamente. Os retardatários tinham sido abatidos, mas os exércitos principais não foram enfrentados novamente. Ficou claro que os orientais estavam felizes em escorraçá-los de sua terra, mas não exigiriam o extermínio do inimigo se eles estivessem dispostos a ir embora.
O exército vislumbrou os mastros dos navios da frota no segundo dia, a cerca de quinze quilômetros rio acima a partir de Nessântico, os tehuantinos subiram a bordo o mais rápido possível. Tototl, que se nomeara como tecuhtli, entrou no Yaoyotl e virou a frota para oeste assim que os guerreiros sobreviventes e os nahualli subiram a bordo. Ele afundou os barcos vazios, em grande número, no meio do rio para desencorajar a perseguição por parte de qualquer embarcação da marinha dos Domínios.
Eles navegaram A’Sele abaixo, sendo levados rapidamente pela correnteza em direção ao mar.
De volta para casa.
Atl, a bordo do Yaoyotl, olhou fixamente para a bruma verde da tigela premonitória. Tototl o observava atentamente; seu crânio agora estava pintado com o desenho da águia que em breve seria permanentemente tatuado em sua pele.
A miríade de futuros se espalhou diante de Atl; eles não estavam mais encobertos e difusos como tinham estado. Era como se Axat tivesse tirado um véu diante do rosto de Atl. Ele podia ver com mais clareza agora, todas as incertezas que encobriram as possibilidades por tanto tempo tinham sido sopradas para longe como nuvens tempestuosas. Os futuros estavam abertos para o nahual, todas as possibilidades.
O que ele viu o fez ofegar. O Longo Caminho... Este era o futuro que seu taat tinha visto, que ele sempre dizia que estava lá. Atl percebeu então que Niente sabia que preço que o Longo Caminho cobraria: para alcançá-lo, ele devia morrer, e o tecuhtli Citlali também seria morto, se ele quisesse que esse futuro se concretizasse; e um grande número de guerreiros também deveria morrer. Por quanto tempo o senhor manteve esse segredo, taat? O senhor sabia antes mesmo de nós partirmos?
Atl suspeitava que sim. Isso explicava muita coisa. Explicava por que Niente nunca quis que ele usasse a tigela premonitória. Esse tinha sido o gesto de um pai protetor, não o de um nahual enciumado. Essa compreensão fez Atl lamentar as palavras duras que os dois tinham trocado.
— Eu voltarei a esta terra? — perguntou Tototl duramente, interrompendo os pensamentos de Atl e fazendo com que a bruma verde oscilasse com sua respiração a ponto de Atl quase perder a visão. — Eu vingarei nossa derrota?
Atl também pôde ver esse futuro: os navios novamente carregados com um exército, um ainda maior que o de Citlali, voltando pela terceira vez àquelas praias. Mas, dessa vez, os exércitos dos Domínios eram um só e os atacaram prematura e furiosamente; a maioria dos homens estava armada com armas terríveis, como aquelas que Tototl e Niente tinham testemunhado durante suas batalhas. Os guerreiros tehuantinos foram abatidos como trigo por uma foice e a terra bebeu seu sangue.
Era um futuro terrível, mas um futuro que poderia facilmente acontecer.
Mas o outro... aquele que se estendia até ser engolido pelas brumas. Este também era possível, se Atl direcionasse Tototl para esse caminho. Seria necessária habilidade e exigiria sacrifício, mas o futuro estava lá, e ele podia ver a mão de Niente sobre ele.
— O senhor fará mais do que isso, tecuhtli — respondeu Atl. — Um dia, o senhor promoverá a paz com os orientais. Seu nome será homenageado em todas as partes da nossa terra. Todos os tecuhtli que vierem depois serão comparados ao senhor. O senhor será eternamente conhecido como o Grande Tecuhtli.
As brumas enfraqueceram agora, Atl pegou a tigela e jogou a água em seu interior sobre a lateral do navio. Ele entregou a tigela para um nahualli de menor escalão.
— Limpe isto — ele disse para o homem — e coloque de volta na minha cabine.
Ele podia sentir o cansaço do X’in Ka martelar seu corpo, e seu olho esquerdo piscar incomodamente. Atl apertou bem os olhos e os abriu novamente. Tototl o observava.
— Paz? Como um guerreiro encontra honra na paz? Como um guerreiro se torna grande sem guerra e vitória?
Atl respirou profundamente. Olhou para o oeste, para a fumaça e os vapores de Nessântico, para o lugar onde o corpo de Niente jazeria para sempre.
— Eu vou lhe mostrar — disse o nahual. — Juntos, nós nos manteremos naquele caminho.
— Veja-me fazer — ela disse para Nico. — Aí eu quero que você tente fazer sozinho. Está vendo? Olhe só, você faz um laço com o cadarço assim, depois pega a outra ponta e passa uma vez pela base do laço, e...
Ela ouviu uma batida na porta do quarto enquanto amarrava as botas de Nico.
— A’morce?
— Entre — respondeu ela.
Michelle entrou, com Serafina no colo. O bebê estava enrolado em renda, e Michelle segurou a criança com um gesto protetor ao olhar desconfiada para Nico, que estava sentado na cama. Ele virou o rosto ingênuo para olhar para a ama de leite.
— Esta é Serafina? — Nico perguntou para Varina, com ansiedade na voz.
— Sim.
Ele baixou o olhar, quase envergonhado.
— Posso... posso segurá-la?
Michelle balançou a cabeça ligeiramente, mas Varina sorriu para ele.
— Só um pouquinho. E você precisa tomar muito cuidado com ela.
Varina acenou com a cabeça para Michelle que, ainda com a testa franzida, deu um passo para frente, colocando o bebê nos braços esticados de Nico.
— Segure bem a cabeça dela — disse Varina. — Sim, desse jeito. Muito bem...
Nico sorriu ao embalar Serafina nos braços. O bebê se agitou por um momento, mas depois se aquietou, sendo embalado por Nico até dormir. Ele encarou o rosto da criança.
— Os olhos são tão grandes — perguntou Nico com um ar de admiração. — E as mão são muito pequenininhas. Ela é mesmo minha filha?
— Sim. Sua e de Liana.
Varina acariciou a cabeça de Sera. Seu cabelo era fino como uma penugem, a pele macia e quente. Sua mãozinha se sacudiu, encontrando o dedo de Varina e o agarrando. Ela riu.
Nico balançou a cabeça, observando a interação.
— Eu não me lembro de Liana. Eu não sei como...
— Eu conto para você um dia — disse Varina. — Agora, nós temos que nos aprontar para ir ao funeral da kraljica. Aqui...
Ela estendeu as mãos, e Nico colocou Serafina ali com cuidado. Varina ouviu o suspiro audível de alívio de Michelle. Ela beijou a testa de Sera e a abraçou por alguns instantes antes de devolvê-la para a ama de leite?
— Ela está alimentada?
— Alimentada, vestida e pronta para ir — respondeu Michelle. — Eu tenho uma muda de roupas e fraldas. Eu subi para dizer para a senhora que a carruagem do palácio já chegou.
— Ótimo — disse Varina. — Vá na frente, entre com Sera e a acomode. Nico e eu desceremos em breve. Eu só tenho que terminar as botas dele.
Michelle olhou furtivamente para Nico novamente.
— A’morce, esse rapaz é perigoso. O que ele fez...
— O que ele fez com os tehuantinos nos salvou — respondeu Varina. — E ele pagou um preço mais caro do que a maioria de nós estaria disposta a pagar.
— Ele pode estar fingindo esse distúrbio ou recuperar a capacidade mental. E aí?
Nico não disse nada enquanto elas discutiam sobre ele, apenas olhava de uma mulher para a outra enquanto as duas falavam.
— Aí — falou Varina —, nós cuidaremos disso quando acontecer.
Ela já tinha ouvido essa mesma pergunta uma dezena de vezes ou mais. Havia aqueles dentro do Conselho e entre os ca’ e co’ da cidade e os ténis da Fé que queriam que Nico fosse julgado e executado pelas mortes que causou e pelo dano ao Velho Templo durante a tomada dos morellis. Quanto a isso, uma parte da própria Varina ainda estava furiosa com ele pela destruição e pelas mortes que ele tinha, assumidamente, causado a seus próprios amigos durante o funeral de Karl.
Nico, na verdade, tinha que responder por muita coisa, mas ele salvara a cidade praticamente sozinho quando ela estava prestes a cair. Também não havia como negar isso — ou o fato de que o preço pelo esforço fora alto, e talvez, talvez fosse castigo suficiente. O Nico diante de Varina não parecia se lembrar de nada desse dia ou de sua vida anterior. O Nico diante dela era um inocente — ele podia habitar o mesmo corpo, mas não era o Nico que alegava ser o Absoluto. Talvez o kraljiki exigisse um castigo por seu passado, mas Varina lutaria contra isso, com todas as forças que pudesse reunir.
— Por enquanto, ele é uma criança e precisa ser tratado como tal.
— Como a senhora mandar, a’morce — respondeu a ama de leite.
Serafina chorou, e Michelle a embalou com delicadeza.
— Eu vou acalmá-la novamente, nos vemos na carruagem.
Quando Michelle saiu do quarto, Varina se abaixou de novo para amarrar os cadarços das botas de Nico, que a observava com o cenho franzido.
— Está tudo bem Nico — disse ela. — Michelle não está chateada com você. Está apenas preocupada, como eu. Agora, veja como eu faço e vamos ver se você consegue amarrar o outro cadarço. Faça um laço assim, depois passe a outra ponta em volta dele...
Os ténis já estavam presentes no Templo do Archigos. A a’téni Valerie ca’Beranger, de Prajnoli, realizaria a cerimônia — os rumores diziam que ela provavelmente seria eleita como archigos quando o Colégio A’téni se reunisse em poucos dias. Brie conduziu os filhos pela nave ladeada por e’ténis de robe branco — a cor do luto — com bordas verdes. Os ténis a observavam, em silêncio: como fileiras de ossos brancos apontando na direção da Pedra de Cénzi, enquanto Brie e os filhos subiam à plataforma e se aproximavam do altar e da grande Pedra de Cénzi, coberta por um pano azul-celeste reluzente.
— Ali — sussurrou Brie para Elissa, Kriege, Caelor e Eria.
Sua voz soou alta sob o domo, e ela ergueu os olhos uma vez para os afrescos de Cénzi e dos moitidis bem acima delas.
— Esta é sua mamatarh, Allesandra. Ela foi uma grande mulher e me disse que queria muito ter conhecido todos vocês. Eu gostaria que vocês a tivessem conhecido quando ela estava viva.
Não era assim que Brie pretendia que os filhos conhecessem sua mamatarh. Ela tinha tido esperanças de apresentá-los à mulher, não ao corpo morto. Ela se perguntou se não teria sido melhor ter deixado as crianças em Brezno durante o funeral, mas então elas teriam perdido a coroação do vatarh.
— Aqui é feio — dissera Elissa ao desembarcar da carruagem no palácio; a menina olhou em volta para os prédios destruídos e marcados pelo fogo e pela guerra. — Tem um cheiro horrível também. Brezno é bem mais bonito, matarh. Por que nós não podemos ficar lá?
— Nessântico é nosso lar agora — respondera Brie. — E nós faremos a cidade ficar mais bonita e impressionante do que Brezno, como ela era antes. Todos nós ajudaremos seu vatarh a fazer isso.
Ela esperava que isso não fosse uma mentira.
Agora, no Templo do Archigos, eles olhavam para mais uma ruína, a da kraljica.
Eria ficou para trás, com um polegar plantado na boca. Ela se recusou a sequer se aproximar do esquife e se contentou em olhar para o corpo enquanto se agarrava à tashta de Brie. Caelor só se aproximou de maneira hesitante e se afastou rapidamente em direção a sua matarh. Kriege caminhou para a frente de mansinho, com uma expressão séria no rosto, e olhou para a face pintada de branco, dando um passo para trás em seguida, fungando como se pudesse sentir o cheiro mesmo com o escudo antiodor que os ténis tinham colocado em volta do corpo. Elissa, que tinha se aproximado com Kriege, permaneceu ali, olhando para o corpo como se tentasse memorizar cada detalhe dele: as rugas na face da mamatarh; a máscara funerária dourada que os ténis colocariam no rosto de Allesandra em apenas uma virada da ampulheta, quando as portas do Templo do Archigos seriam abertas para que o funeral pudesse começar; o cetro de ferro do kraljiki Henri VI em sua mão esquerda; o anel com o sinete dos kralji à mostra na palma direita, virada para cima, que Jan pegaria quando o ritual do funeral tivesse acabado. O pano azul sobre o altar estava coberto por coroas de flores amarelas. Sete candelabros estavam dispostos em volta da pedra, acesos não com chamas, mas com as luzes brilhantes dos ténis, banhando o corpo com uma iluminação branco-amarelada tão intensa que parecia que o domo do templo tinha sido levantado para que o sol pudesse brilhar sobre a kraljica.
Elissa tocou o braço de Allesandra com um dedo hesitante, depois olhou para sua ponta como se fosse um objeto estranho.
— Ela está fria — relatou Elissa. — E meio dura.
— É o que acontece quando alguém morre.
— Ah! — Elissa pareceu considerar aqui. — Mas o rosto está bonito.
Brie ouviu a voz de Jan, conversando com Sergei ca’Rudka, o starkkapitän ca’Damont e o comandante ca’Talin na lateral do coro. Talbot, o assistente de Allesandra, que tinha concordado em permanecer como assistente de Jan, pigarreou perto dos bancos.
— Hïrzgin, eles já estão prontos para deixar os ca’ e co’ entrarem no templo. Eu vou avisar o hïrzg e os demais; a senhora ainda tem um algum tempo, mas...
Ela assentiu, e Talbot se retirou.
— Não toque nisso — disse Brie para Elissa, que estendeu uma mão hesitante em direção ao anel; ela recolheu a mão como se a tivesse queimado.
— Eu não ia tocar — disse ela. — Esse vai ser o anel do vatarh?
— Sim, em breve — respondeu a matarh.
— E será meu algum dia?
Kriege encarou Elissa.
— Não é justo, matarh — ele gritou, ecoando sua voz estridente sob o domo.
Brie viu as fileiras de ténis se mexerem, e alguém riu, um som rápido, brevemente sufocado.
— Ela fica com tudo.
A hïrzgin podia ouvir Talbot rindo enquanto percorria a nave em direção a Jan. Ela riu também.
— Ninguém vai ficar com o anel; ao menos não por muito tempo, até que vocês todos estejam crescidos. Veremos na ocasião, então. Pode ser que nenhum de vocês dois queira.
— Então eu fico com ele — interrompeu Caelor. — É um anel bonito.
Brie riu.
— Vamos — ela falou para os filhos. — Precisamos tomar nossos lugares...
As trompas tocaram um lamento grave e fúnebre que fez os pombos irromperem em revoada do chão da praça, do lado de fora. Lá dentro, Rochelle podia sentir a parede do templo pulsar em suas costas. Ela tinha entrado no templo sorrateiramente por uma porta traseira, tinha arrombado a fechadura bem antes da aurora, deslizando pelo mezanino do coro ao longo de um canto nas sombras, atrás do arco de um dos pilares, onde poderia olhar o coro, o esquife e os bancos mais próximos.
Rochelle pensou ter sentido o cheiro de fumaça dali: não apenas o aroma pungente dos incensários no altar, mas da fumaça remanescente do bombardeio de areia negra dos tehuantinos, impregnado sob os arcos pintados do domo. Ela tinha se sentado, escondida, ali por várias viradas, esperando. Ela tinha visto os ténis de robe branco formando suas fileiras; o coro se instalando nos assentos não muito longe dela.
Ela tinha visto seu vatarh e sua família entrarem para ver o corpo no meio da manhã, tinha visto Brie conduzir as crianças à frente, depois dela e Jan prestarem sua homenagem.
Os filhos... O pensamento deveria ter sido sua matarh e ela lhe ocorreu, se ao menos as coisas tivessem sido diferentes, mas então Rochelle balançou a cabeça. Não, ela disse para si mesma, com firmeza. O relacionamento deles jamais teria sobrevivido com as mentiras e a loucura da matarh. Jamais teria acontecido. Esse nunca foi meu destino. Não minta para si mesma. Você só pode ser a filha bastarda, nunca a legítima.
Rochelle se perguntou o que seu futuro lhe reservava, e ela não tinha resposta para isso. Sua mão desceu para o cabo adornado da adaga que ela tinha roubado de seu vatarh, a adaga com a qual ela esperava matar sua mamatarh. A madeira lisa do pomo pareceu pulsar sob seus dedos.
A família se afastou do esquife. Ela os viu se acomodarem em seus bancos, ouviu as portas se abrirem assim que as trompas começaram a soar o chamado fúnebre e doloroso mais uma vez, e os ca’ e co’ entraram no templo. O coro a assustou quando começou a cantar uma das obras etéreas e fúnebres de Darkmavis. Os tons ascendentes e as harmonias opressivas ecoaram, altas e insistentes, passando por ela e se propagando para o domo do templo, e a envolveram como um manto.
Pareceu levar uma eternidade para o público do funeral entrar entre as fileiras de ténis de robe branco e se acomodar nos bancos. De seu esconderijo, Rochelle observou os bancos da frente, viu seu vatarh e seus meios-irmãos, assim como a mulher que tinha tomado o lugar de sua matarh: Brie, a quem agora chamavam de a Vitoriosa da Margem Sul e a quem a multidão saudava tão alto quanto Jan. Ela viu Sergei na fileira atrás dele, sentado ao lado da mulher numetodo, carregando uma criança nos braços.
E ao lado dela estava Nico, irrequieto como uma criança entediada. A a’morce não parava de se virar para falar com ele baixinho, e Rochelle notou que Sergei observava o jovem com atenção. Nico — ela se perguntou se era verdade o que diziam sobre seu irmão, que ele tinha perdido a sanidade mental e não era mais que uma criança. Vê-lo daquela maneira doía mais do que tudo, pensou Rochelle.
A a’téni ca’Beranger finalmente surgiu detrás do coro e começou a cerimônia, auxiliada por um grupo de ténis do alto escalão se movendo em torno dela com incensários, taças, o cajado do globo partido e os pergaminhos do Toustour e da Divolonté. Rochelle quase cochilou durante a maior parte da cerimônia e se mexeu apenas quando Jan se levantou para dar a Admoestação. Ela viu seu vatarh caminhar até o Alto Púlpito — andando como um velho, apoiado em uma bengala segurada com firmeza junto ao corpo. Talbot se mexeu para ajudá-lo, e ela notou que Jan balançou a cabeça para o homem. Lentamente, ele subiu os degraus do Alto Púlpito, se recusando a deixar que seus ferimentos o detivessem. Ela viu Jan olhar para a plateia e, em seguida, encarar o corpo de sua matarh por vários instantes antes de falar.
— É costume dizer o quanto uma matarh foi gentil e maravilhosa em vida — ele disse, finalmente, e sua voz de barítono ecoou na ótima acústica do templo. — Eu não vou dizer essa mentira. Ela talvez não tenha sido a melhor matarh que eu poderia ter. Eu era seu filho único, mas não era o filho com o qual a kraljica Allesandra mais se importava.
“Esse filho, o único filho que ela teve, era Nessântico. Os Domínios. Para Nessântico, ela foi uma excelente matarh: uma matarh forte e vigorosa, que realizou o que poucos conseguiriam. A kraljica Allesandra restaurou Nessântico quando a cidade estava em ruínas. Evitou que os Domínios se partissem quando, em mãos menos capazes, eles teriam desmoronado e se dissolvido. Ela protegeu Nessântico quando, pela segunda vez, a cidade foi atacada por invasores estrangeiros. A kraljica Allesandra deu todo o amor, energia e atenção para essa cidade e esse império, e quando foi exigido seu sacrifício, ela se dispôs a dar sua vida para Nessântico como pagamento final.
Jan fez uma pausa longa, respirando profundamente, como se falar o esgotasse. Rochelle se debruçou. Eu estava disposta a tirar a vida da kraljica. Eu teria feito isso, matarh, mas cheguei tarde demais. Sua mão ainda estava no cabo da faca. O vatarh ergueu seu olhar, como se tivesse visto um movimento ou pudesse, de alguma forma, sentir a atração da faca que Rochelle lhe tinha roubado. Ela recuou para as sombras. Seus olhos, bem abaixo, pareciam encará-la, apesar da distância.
— Celebrem Allesandra ca’Vörl — continuou Jan, voltando a olhar para a plateia. — Celebrem sua gestão dos Domínios, pois quando os Domínios estiveram à beira do abismo, ela evitou que o império caísse. Isso foi um golpe de mestre. Isso foi genial. Isso foi passional. Estas eram qualidades que minha matarh possuía em abundância. E essas eram exatamente as qualidades que Nessântico precisava, e ela chegou no exato momento em que Nessântico exigiu sua presença. Nessântico teve sorte em tê-la, com suas habilidades e nesse momento. Ainda que eu não tivesse dado valor na maior parte do tempo.
Uma risada fraca percorreu a plateia nesse momento, soando deslocada no templo.
— Nós saímos vitoriosos de uma guerra terrível — continuou Jan —, em grande parte por causa das atitudes da kraljica Allesandra. Eu só posso esperar, seguindo seus passos, que eu seja capaz de fazer o mesmo, que eu possa ser seu filho e que eu construa a partir de seu legado. Os Domínios foram unificados novamente, a Fé foi unificada novamente, mas há desafios a nossa frente que vão nos testar, a todos nós. Eu sei que ela está nos observando nos braços de Cénzi. Espero que nós possamos fazê-la sentir orgulho pelo que conquistamos.
Jan abaixou a cabeça. Rochelle pensou que ele fosse falar mais, mas ele fez o sinal de Cénzi para a plateia e saiu do Alto Púlpito — lentamente, mais uma vez, ecoando o som alto da bengala no silêncio. Ele voltou para seu lugar enquanto a a’téni e seus assistentes retornavam ao altar. Quando eles começaram a circular o esquife, entoando e balançando os incensários, Rochelle recuou para o nicho, recostando sua espinha sobre a pedra fria.
O que eu faço, vatarh? O que eu faço para o senhor ter orgulho de mim?
Ela podia sentir a pressão do cabo da adaga na lateral de seu corpo ao se agachar, se apoiando no pilar do templo. Se Nessântico passasse a ser a paixão do vatarh, como tinha sido a de Allesandra, se — o que ele disse sobre Allesandra fosse verdade — os Domínios passassem a ser seu filho único, então ela compartilharia essa paixão com Jan. A matarh de Rochelle lhe ensinara uma habilidade ímpar; e ela a usaria, então.
Eu não serei a Pedra Branca, não, eu me tornarei a Adaga de Nessântico.
Rochelle assentiu. Ela permaneceria nas sombras. Seria genuinamente a filha de Jan. Serviria aos Domínios da sua própria maneira.
Sim.
O coro começou a cantar mais uma vez, e Rochelle fechou os olhos, se permitindo mergulhar no som etéreo, tão insubstancial e misterioso quanto ela seria.
A procissão em volta do anel da alameda da Avi a’Parete foi longa e lenta e — Jan podia ver a multidão se alinhar pela Avi, esperando pela passagem da kraljica — necessária. A multidão se estendia pela alameda em várias fileiras de ambos os lados da Avi, até onde sua visão podia alcançar. Suas expressões eram solenes: muitos choravam abertamente. Jan se deu conta de que, assim como Allesandra amara a cidade, a cidade passou a amá-la e a valorizá-la em retribuição.
Jan só podia esperar que fizessem o mesmo por ele nos próximos anos.
Jan fez uma careta quando a carruagem em que estava encontrou um buraco irregular no pavimento; o impacto comprimiu suas costelas, irradiando a dor até seus ombros. Ele sentiu os cortes que os curandeiros tinham costurado há dias se repuxarem quando ele tentou se ajeitar no assento. Ele lutou para demonstrar o mínimo de incômodo possível para as multidões. Jan sorriu e acenou. Em sua mão, o anel com o sinete dos kralji reluziu.
O cortejo fúnebre de Allesandra lembrou o da grande e amada kraljica Marguerite. Nenhum dos kralji, entre Marguerite e Allesandra, tinham recebido uma manifestação tão formal. O kraljiki Justi, filho de Marguerite, tinha sido ironizado e desprezado; o povo da cidade na verdade ficou feliz com sua morte, e seu esquife saíra diretamente do Templo do Archigos para o palácio. O reinado do filho de Audric tinha sido ainda pior, embora a curta regência de Sergei tivesse mantido a cidade estável. Mas assim que a regência terminou prematuramente, a loucura de Audric e seu comportamento excêntrico prejudicaram ainda mais os Domínios, e o assassinato do kraljiki foi — muitos consideraram — uma bênção. A kraljica Sigourney, sucessora de Audric, cometera suicídio quando os tehuantinos saquearam e queimaram a cidade, e seu corpo fora profanado pelos ocidentais: Jan se lembrava disso muitíssimo bem.
Com a morte de Sigourney e a cidade em ruínas fumegantes em volta de Jan, ele poderia ter tomado o título de kraljiki para si; em vez disso, ele escolheu dar Nessântico e os Domínios para sua matarh: um gesto irônico.
E ela transformou essa ironia em uma verdadeira dádiva, Jan tinha que admitir. Isso estava claro para ele agora.
A carruagem de Jan, puxada por três cavalos brancos em um arnês de quatro cavalos, seguiu imediatamente atrás do esquife. Ele ouviu o cântico dos ténis caminhando ao lado do esquife, que parecia flutuar em uma nuvem branca. Sobre o corpo, imagens enormes da kraljica apareciam e desapareciam: exibindo suas imagens como era representada pelo quadro oficial; na inauguração do domo reconstruído do Velho Templo; sorrindo ao descer da sacada durante o Gschnas.
O cheiro das flores a acompanhava, assim como o som dos músicos na carruagem sem teto a frente do esquife, tocando Darkmavis e ce’Miella: uma fusão do antigo com o moderno.
O velho cedendo o lugar para o novo. Jan considerou aquilo fascinante.
— Olhe, eles estão aplaudindo o senhor, vatarh — disse Elissa com alegria, enquanto ela mesma apontava e acenava.
E era verdade: à medida que o esquife passava, e logo depois da carruagem sem teto, o luto virava aplausos e sorrisos.
— Eles gostam do senhor.
— Eles estão aplaudindo porque não têm escolha — respondeu Jan, e Brie franziu a testa.
— Jan...
— É verdade, e as crianças devem saber disso — respondeu ele.
Jan se inclinou na direção de onde os filhos estavam sentados, ignorando o puxão dos pontos e a pontada no peito.
— As pessoas aplaudem desde que pensem que você vai manter a comida em suas barrigas e um teto sobre a cabeça delas. Elas também aplaudem quando temem você, porque têm medo de que, se não aplaudirem, sejam punidas. Não confundam os sorrisos e aplausos com algo mais do que uma fachada.
Ele sentiu a mão de Brie apertar seu braço.
— Querido, por favor. Eles não entendem o que você está dizendo, e você apenas está assustando as crianças. E não deveria ser tão cínico. Não hoje, entre todos os dias.
Ela estava certa, e Jan sabia disso. Ele viu o cabo adornado da chispeira dentro de uma bainha de couro estampada em relevo: a linda chispeira com que Varina e os numetodos a tinham presenteado após a batalha. Os cidadãos de Nessântico estavam aplaudindo sua esposa, Jan sabia: o sucesso do grupo de chispeiros já era uma lenda na cidade, e parecia que a a’hïrzg se tornara uma favorita da cidade.
— Desculpem-me — ele disse para a esposa e os filhos. — Você está certa...
Eles continuaram a dar a volta pela alameda circular, e Jan continuou a sorrir e a acenar. Porque era o que se esperava dele. Porque era seu dever. Eles passaram ruidosamente pela Pontica a’Kralji onde, em jaulas de ferro, o esqueleto do téni-guerreiro ocidental que Sergei matou e dos tehuantinos ocidentais expunham seu triunfo sangrento. Jan mal olhou para os corpos.
A procissão terminou no pátio do Palácio da Kraljica ao anoitecer. O esquife flutuou na nuvem mágica até o pico de uma pilha de toras embebidas em óleo, colocada bem longe das alas do palácio, no centro dos jardins da kraljica: a pira mandaria a alma de Allesandra para os braços de Cénzi. Os ca’ e co’ da cidade, dos Domínios e da Coalizão, os chevarittai em seus uniformes de gala azuis e dourados e negros e prateados, Sergei ca’Rudka, o starkkapitän ca’Damont, o comandante ca’Talin da Garde Civile: todos viram Jan e sua família descer da carruagem.
Jan olhou uma última vez para o corpo de sua matarh. Ele acenou com a cabeça para Talbot, que gesticulou para os ténis-bombeiros dispostos em volta da pira. As mãos dançaram juntas um balé elaborado; as vozes se juntaram em um cântico lento. Uma chama alaranjada brotou de suas mãos enquanto os ténis-bombeiros gesticulavam, como se jogassem pétalas em direção à pira. As chamas estalaram e assobiaram furiosamente, lambendo o óleo e se inflamando rapidamente. A nuvem mágica desapareceu sob um cortina branca que se contorceu e subiu à altura do telhado do palácio até ser espalhada no céu pelo vento. As chamas tocaram o esquife; Jan viu as flores se contorcerem e se enroscarem enquanto o corpo de Allesandra se perdia em uma onda de calor e fumaça. Os furiosos estalos das chamas ecoaram nos muros do palácio e o calor insistente fez todos se afastarem a alguns passos da pira.
Um pedaço de lenha entrou em colapso na pira, disparando fagulhas frenéticas para o alto. Jan se deu conta de que tinha ficado assistindo ao fogo por mais tempo do que pensava, de que o céu estava ficando escuro.
— Podemos ir agora, kraljiki — disse Talbot; o título soou estranho para Jan. — Eles já estão no salão...
O Salão do Trono do Sol estava lotado. As janelas do longo aposento reluziam com as chamas vermelhas da pira, e a grande janela atrás do trono mostrava o céu do crepúsculo, com um tom intenso de violeta e as primeiras estrelas começando a brilhar. O Conselho dos Ca’ estava sentado à frente do trono, com outros dignitários. A a’téni ca’Beranger esperava com Talbot ao lado do Trono do Sol. Brie deixou as crianças com as babás e se aproximou da plataforma do trono, ao lado de Jan.
O Trono do Sol. A enorme cadeira esculpida a partir de um único cristal enorme que tinha a altura de mais de dois homens e um tom branco semitransparente e sarapintado. Ele se avultava diante de Jan e Brie. Enquanto olhava para o trono, ele girava o anel com o sinete na mão, sentindo a superfície lisa e fria do metal dourado e prateado na pele.
— Este é o seu destino, meu marido — sussurrou Brie.
Jan olhou para ela, percebendo que a esposa olhava para suas mãos.
— Você sabe disso — falou Brie. — E sua matarh também sabia.
— Ela demonstrou de um jeito estranho.
— Esse era o destino dela também. Esse era o problema. — Ela gesticulou para o trono. — Lá está ele. É seu, meu amor.
Jan olhou para Talbot. O assistente aquiesceu com a cabeça. Atrás de uma porta no fundo do salão, logo atrás do trono, dois ténis-luminosos entoavam um cântico. Talbot tinha lhe contado que, no último século, o Trono do Sol quase não reagia ao anel com o sinete e que agora a reação era criada por ténis-luminosos especialmente habilidosos e de confiança, que asseguravam que o trono se acendesse quando o kralji se sentava no cristal.
Jan riu ao saber da revelação — outro truque, outro espetáculo.
Ele subiu na plataforma, recebendo o sinal de Cénzi da a’téni ca’Beranger ao passar por ela. Ao chegar ao trono, Jan se virou para encarar a multidão. Todos o observavam.
Jan se sentou. O cristal a sua volta se acendeu com uma luz amarela intensa que parecia emergir das profundezas ocultas do trono. Ele ficou sentado, sendo banhado pela luz, enquanto a plateia se levantava e o aplaudia, retumbante.
— Eu sempre me pergunto o que teria sido dos Domínios se a senhora tivesse vivido — Sergei disse para o quadro da kraljica Marguerite. — Eu adoraria saber o que a senhora acha das coisas agora.
O vinho que ele bebeu estava fazendo sua cabeça girar um pouco. Lá embaixo, no palácio, a celebração do novo kraljiki ainda estava em andamento; lá fora, as brasas da pira de Allesandra lançavam um brilho vermelho na noite. Sergei saiu sorrateiramente das festividades através dos corredores de serviço para ir para lá, para os aposentos que tinham sido de Allesandra, e agora eram de Jan. Ele ainda segurava uma taça de vinho na mão, que ele ergueu para o retrato de Marguerite enquanto descansava em uma cadeira. Uma chama tênue — acesa para espantar o frio da noite — estalava na lareira sob o quadro; a chama e as velas acesas de ambos os lados davam uma iluminação agitada que animava o rosto pintado e austero de Marguerite. Sergei pensou que a kraljica tivesse se mexido e aberto a boca para falar com ele...
Era uma sensação perturbadora, que trouxe lembranças de Audric e sua loucura.
Sergei tomou um bom gole do vinho e enfiou a mão livre no bolso da bashta. Retirou um seixo liso e branco e manipulou sua superfície lustrosa entre seus dedos. Com o movimento, o vinho espirrou pela borda da taça, jogando gotículas em sua bashta. Ele não se importou.
— Marguerite, nós dois amamos tanto esta cidade e este império que estivemos dispostos a fazer qualquer coisa por ela. Eu me pergunto... Será que Nessântico nos ama por nossa paixão e fé? Será que ela se importa? A senhora às vezes se arrepende da vida que levou, como eu? Hum... De alguma forma, conhecendo a senhora como eu conheço, eu duvido. A senhora sempre foi tão segura de si.
Sergei ergueu a taça em brinde, depois a levou à boca, a virou e acabou com o vinho em um longo gole. Ele pousou a taça na mesa ao lado, pegou sua nova bengala e se levantou da cadeira, soltando um resmungo e um gemido.
— A senhora tem um novo parente para ficar olhando à noite — disse o embaixador para Marguerite. — vamos esperar que ele seja um bom governante, tão forte quanto a senhora foi.
Ele percebeu que ainda segurava a pedra. Ele a levou ao ouvido.
— Eu não ouço ninguém.
Sergei bateu com o seixo no nariz e ouviu o som de pedra no metal. Ele riu, cambaleou um pouco ao ficar em pé ali, e recolocou a pedra no bolso.
— O que acontece conosco quando morremos? — perguntou o embaixador para o quadro. — Cénzi realmente nos espera para nos julgar? Eu agradeceria um sinal, Marguerite. Realmente agradeceria.
O quadro olhou fixamente para Sergei à luz da lareira. O olhar pintado de Marguerite se recusava a deixá-lo ir. Finalmente, o embaixador esfregou o nariz e fungou.
— Sem resposta, hein? A senhora sempre manteve seus segredos. Bem, acho que eu vou descobri-los muito em breve.
Sergei fez uma mesura para o quadro e quase caiu. Ele tocou na pedra dentro do bolso. Saiu do aposento, deixando a taça sobre a mesa e, cambaleando, desceu pela escada de serviço novamente. Ao chegar ao corredor da criadagem perto do Salão do Trono do Sol, Sergei ouviu o barulho dos foliões, ainda conversando. Ele seguiu na outra direção e saiu no jardim. O ar fresco da noite pareceu arejar sua mente. Sergei podia sentir o cheiro de cinzas e madeira queimada — bem longe no jardim, criados estavam mexendo e espalhando os carvões da pira. Ele balançou a cabeça e esfregou a barba rala das bochechas. O embaixador deu a volta por esse lado do palácio em direção à Avi a’Parete, ainda apinhada de pedestres e carruagens, mesmo a altas horas. Do outro lado da Pontica a’Brezi Veste, ele viu a torre e as muralhas da Bastida.
Sergei respirou fundo. Contra as nuvens iluminadas pelo luar, a torre estava escura, e uma pequena luz brilhava em uma das janelas superiores, parecendo chamá-lo. A mão de Sergei, no bolso da bashta, tocou novamente o seixo da Pedra Branca.
Ele suspirou e começou a caminhar na direção contrária.
Epílogo: Nessântico
Havia outro kraljiki sentado no Trono do Sol, banhado pela luz dourada — mais um parente da grande kraljica Marguerite. Os Domínios estavam unificados novamente, e o novo kraljiki também sustentava o título de hïrzg de Firenzcia. Havia um novo archigos sentado no trono do Templo do Archigos, onde os archigi se sentavam por séculos, mas esta era uma fé concénziana alterada e enfraquecida, e muitos dos que andavam pelas ruas de Nessântico não eram mais fiéis.
No oeste distante, do outro lado do Strettosei, havia um novo tecuhtli, com um jovem nahual a seu lado.
Uma criança que se tornara um jovem poderoso voltou a ser pouco mais que uma criança novamente. E a Pedra Branca desapareceu mais uma vez, talvez para voltar ou para cair completamente em esquecimento.
Nessântico — a cidade, a mulher — não se importava. Tais movimentos não a incomodavam. A história não estava encerrada. Haveria mais discussões, mais conflitos. Tronos passariam. Vitórias e derrotas, os gêmeos rivais da guerra, se enfrentariam com novos jogadores.
Ela não se importava. A história não estava encerrada porque a história nunca termina. Não pode terminar.
As pessoas que andavam pelas ruas de Nessântico nasceriam e morreriam, para serem substituídas por outras. O Trono do Sol sentiria o peso de dezenas de futuros kralji ainda não nascidos, e eles seriam bons ou maus líderes, mas com o tempo, todos eles — independentemente de quão bons ou maus eles fossem — eventualmente sairiam da longa e infinita história.
Mas ela nunca sairia. Nessântico esteve na história desde o início. A história era dela, e não terminaria até que Nessântico chegasse ao seu fim, e ela...
Era imortal.
Sua sorte tinha mudado mais uma vez. De um reino estilhaçado, um novo e mais forte surgiria. O rosto que o A’Sele refletia de volta para Nessântico mudaria. Algum dia até mesmo a própria linhagem dos kralji talvez desaparecesse. Talvez.
Mas não ela. Ela nunca.
Nessântico continuaria. Ela entraria naquele longo futuro a passos largos: viva, respirando, eterna, a personagem central da história da terra. Seu rosto seria reescrito, as velhas rugas seriam arrancadas e substituídas por novas. Nessântico envelheceria; seria remoçada, sem parar.
A história não terminaria.
A história não podia terminar até que ela mesma tivesse morrido.
E isso, Nessântico dizia para si mesma, jamais poderia acontecer.
Rochelle Botelli
Rochelle observou Nico, sobrecarregado de correntes enquanto era ajudado a subir na plataforma, com o Velho Nariz de Prata a sua direita. Ela se sentiu impotente, uma sensação mais aguda agora do que quando ela viu Nico na torre da Bastida, da Avi a’Parete. Na ocasião, Rochelle não teve esperanças de ajudá-lo. Agora, ele estava tão perto: longe das horríveis pedras negras da Bastida; sem corredores desconhecidos entre os dois; separados apenas pelos ténis e alguns gardai.
E, no entanto, Rochelle não podia ajudá-lo. Seria capturada e jogada no chão antes que pudesse chegar a Nico, ainda que vários deles morressem como consequência. Mas ela fracassaria. Era inevitável. Esta tinha sido outra lição de sua matarh. “Certifique-se de que as chances estão a seu favor antes de agir. Às vezes, é preciso aceitar que não se pode vencer, e sequer tentar.”
Estar tão extremamente perto dele, ver o irmão novamente e não poder ajudá-lo...
Isso doía. Machucava tanto quanto o gume de uma espada. Mas havia uma coisa que Rochelle poderia fazer hoje, se tivesse a chance. A kraljica estava ali, sua mamatarh, e embora Allesandra estivesse tão bem guardada quanto seu irmão, talvez houvesse um momento, uma chance. A mão de Rochelle segurou a adaga sob sua roupa, a adaga que roubara de seu vatarh. O juramento feito para sua matarh ardia na sua cabeça.
Se ela não podia salvar uma vida, talvez pudesse tirar uma tão importante quanto.
Na plataforma, Nico se curvou para os ca’ e co’ em sua própria plataforma elevada.
— Kraljica, conselheiros. E, especialmente, ténis. Eu vim implorar por seu perdão e compreensão.
Sua voz soou cansada, ele olhava ao redor. O olhar de Nico passou por cada um deles, Rochelle ficou na ponta dos pés, tentando enxergar melhor sobre as pessoas à volta. Então aconteceu. Os olhos de Nico encontraram os seus. Ela sentiu a conexão e o reconhecimento. Nico olhava diretamente para Rochelle, e seus lábios abriram um leve sorriso, como se ele a reconhecesse. Nico acenou com a cabeça para ela, como se dissesse que sabia o porquê de Rochelle estar ali, como se pedisse para ela ser paciente. Ela quis acenar para o irmão, berrar seu nome, mas o olhar de Nico se voltou para os dignitários no palanque, e sua voz ganhou volume e poder. Rochelle pôde ouvir enquanto avançava na multidão para se aproximar da plataforma. A voz de Nico continuou a inflamar e pulsar; era como se a luz de sol de verão caísse sobre ela. Ela ouviu umas palavras aqui e ali:
— Eu pensei que fosse a Voz de Cénzi... Lamento profundamente pelo que fiz... Eu acreditava. E ainda acredito...
Sobre a multidão, Rochelle viu Nico erguer as mãos, e o gesto chamou sua atenção. Ela parou, observando, curiosa.
— Eu permiti que o archigos e as pessoas dentro da fé concénziana acorrentassem e prendessem o meu dom com seus grilhões humanos quando, na verdade, Cénzi não coloca tais limitações nele. E isso os numetodos sabiam desde o princípio, justiça seja feita. Foi o que eu finalmente percebi e é isso o que eu demonstrarei para vocês agora.
Nico?
Ela não viu claramente o que aconteceu em seguida. Era como se Nico tivesse se envolvido em um manto negro. Rochelle ouviu pessoas gritando e gesticulando, viu o Velho Nariz de Prata recuar a mão da escuridão soltando com um xingamento, e então...
Nico sumiu, e as pessoas na praça estavam boquiabertas. Os gardai estavam agitados, como um enxame de abelhas cuja colmeia tivesse sido golpeada. Rochelle se moveu para a borda traseira da plataforma da kraljica, logo atrás de um anel de gardai. Eles pulavam sobre o palanque agora, cercando a kraljica e desembainhando suas espadas, e Rochelle recuou. Não havia esperança de chegar a Allesandra agora. Nenhuma. Mais uma vez, esta era uma das ocasiões em que ela deveria se permitir fracassar.
Rochelle voltou a penetrar na multidão, longe dos olhos desconfiados dos gardai, longe dos ténis de robes verdes, que pareciam tão irritados quanto nervosos.
Uma mão tocou seu ombro e ela se virou, com a adaga em punhos. Ela podia matar alguém nessa multidão facilmente e ainda escapar na confusão...
Mas sua mão interrompeu o golpe.
— Nico...
— Shhhh! — ele sibilou.
Nico tinha coberto a cabeça com um capuz; seu rosto estava visível apenas para quem olhasse diretamente para ele. Mas mesmo meio escondido como estava, Nico parecia incrivelmente exausto e tenso. A mão no ombro de Rochelle tremeu, e ela sentiu o irmão esmorecer, como se não conseguisse ficar de pé. Sob a sombra do capuz, havia olheiras mais escuras sob os olhos.
— Cénzi me disse que você estava aqui. Ele me mostrou você. Venha! — Ela olhou para a plataforma, e Nico balançou a cabeça. — Não. Agora não, Rochelle. Vamos! Eu preciso da sua ajuda.
Ele passou o braço pela irmã. Com o peso apoiado sobre Rochelle, ele a levou embora, através da lateral da multidão, onde havia menos gente, longe da agitação crescente e da praça, até que os dois andaram por uma rua decorada com placas de lojas e cheia de consumidores, embora poucos parecessem interessados nas mercadorias exibidas nas vitrines ou pelos ambulantes das calçadas. Suas expressões eram graves e estressadas, Rochelle se lembrou das mesmas expressões nos rostos daqueles que fugiam da cidade quando ela chegou.
Nico finalmente parou perto de um café.
— Você tem dinheiro? — ele perguntou, Rochelle assentiu. — Ótimo. Eu preciso sentar e comer; eles dificilmente vão me procurar aqui.
Os dois pegaram uma mesa na parede do café e pediram vinho, queijo, pão e algumas carnes. O garçom parecia sinceramente contente por ter um freguês; sem dúvida a clientela tinha sido bem mais rara do que o normal nas últimas semanas.
Rochelle observou Nico enquanto ele comia. O irmão tinha mudado bastante. O Nico da sua memória estava sempre ansioso e apreensivo enquanto se preparava para ir ao Templo de Brezno como um acólito. Rochelle o tinha visto mais uma vez quando ele vestiu o robe verde de téni e fez o juramento a Cénzi naquele mesmo templo, e Nico parecia tão seguro de si naquela época...
O Nico que estava diante dela agora estava mais magro; suas bochechas estavam encovadas. Os traços do rosto estavam mais marcados e mais vincados, e Rochelle pôde notar a dor da vida escrita na face do irmão. Nico sempre tinha sido intenso, uma intensidade de que ela se lembrava das primeiras memórias dele, mas isso estava mudado agora. Havia se tornado uma coisa mais rígida, mais entranhada dentro dele, e mais perigosa.
Rochelle sabia que tinha mudado também. Talvez mais do que Nico. Nenhum dos dois era mais quem tinha sido naquela época. Eles podiam ser irmão e irmã, mas o tempo os tinha afastado e ela não sabia se algum dia os dois seriam próximos novamente.
— Você está me encarando. — Nico pousou a taça e se serviu de mais vinho da garrafa.
— Eu não vejo você há anos, Nico.
Ele sorriu.
— Você cresceu e se tornou uma jovem atraente. — então seu sorriso desapareceu. — Você também assumiu o legado da matarh. Ouvi rumores de que a Pedra Branca voltou. É você?
Rochelle assentiu.
— Você também ouve as vozes?
— Não. Não sou louca, Nico.
— Ainda não — respondeu ele. — Mas você não pode fazer o que faz e continuar sã. Não pode fazer o que faz e esperar algo mais que retalhadores de almas após a sua morte. Cénzi vai considerá-la abaixo das expectativas, irmã.
Isso tinha sido tão similar ao que Sergei lhe dissera que ela quis rir.
— Você vai me dar um sermão? — Rochelle fungou desdenhosamente. — Você estava acorrentado, Nico. Quantas pessoas morreram quando você e sua gente tomaram o Velho Templo?
Ela viu o irmão ficar vermelho com a acusação.
— Desculpe, Nico — disse Rochelle, pousando sua mão sobre a dele. — Eu esqueci. Eu queria ter conhecido Liana.
Nico meneou a cabeça, e ela notou os olhos do irmão nadarem em uma umidade repentina. Ele secou os olhos, quase que com raiva.
— Eu também queria isso. Veja bem, este foi o meu castigo. Minha loucura. Cénzi sempre nos dá avisos, de uma forma ou de outra. Só que às vezes nós não prestamos atenção a eles ou vemos sua verdadeira natureza.
— Você ainda acredita, depois de tudo isso? — perguntou Rochelle. — Ainda acha que seu destino está dentro da fé concénziana?
— Sim. — Ele disse com firmeza, sem hesitação, com a força retornando à voz. — E quanto a sua própria fé, Rochelle? Você ainda acredita?
— Eu não sei. Acho que sim, mas... — Ele ergueu um ombro embaixo da tashta. — Eu não sei. Mas você acredita?
— Sim — falou Nico. — Ainda. Cénzi contém tudo, Rochelle. Ele contém tudo que é bom e contém tudo que é mau também. É por isso que os moitidi lutaram entre si e contra Cénzi; porque eram Seus filhos e, portanto, todas as possibilidades estavam contidas dentro deles. E Ele trouxe você aqui, agora, por uma razão.
Rochelle deu uma risada amarga.
— Você não faz ideia de por que eu estou aqui.
— Não faço?
Nico estendeu a mão sobre a mesa e pegou uma baguete. Ele arrancou um pedaço com a mão e enfiou na boca com o indicador. Mastigou alegremente por um momento, depois tomou um gole de vinho. Em seguida, ele se inclinou na direção da irmã, de maneira conspiratória.
— Você está aqui para matar a kraljica — sussurrou Nico, se recostando novamente.
Rochelle sentiu o rosto ruborizar, e ele riu.
— Ah, não é uma revelação tão grande assim. A matarh pediu o mesmo para mim, quando eu me tornei um téni. “Você estará perto da kraljica um dia,” ela me disse. “Quando você for um a’téni ou talvez até mesmo o archigos. Estará perto da kraljica, e quero que você a mate por mim, pelo que ela fez para arruinar minha vida.” Não foi isso o que pediu a você também?
— Foi similar — admitiu Rochelle.
— Foi o que eu pensei. Mas não é por isso que você está aqui, Rochelle. Você está aqui porque Cénzi quis que me visse. Ele queria nos reunir.
Ela sentiu uma arrepio na espinha, como se uma brisa de inverno tivesse passado por ela, para lhe acariciar nesse momento, Rochelle se perguntou de onde tinha vindo essa sensação, fazendo com que ela tremesse e se abraçasse. Ele esteve lá, depois se envolveu em escuridão e foi para outro lugar. Se eu pudesse fazer isso, ora, a Pedra Branca poderia ir a qualquer lugar. A Pedra Branca poderia matar a kraljica facilmente...
— O que você fez lá fora... consegue fazer de novo? Pode me ensinar a fazer aquilo? — perguntou Rochelle.
— Há um mês, eu teria dito não. Eu teria dito que apenas os fiéis puros podiam e deveriam usar o Ilmodo. Mas agora... — Nico acabou com o vinho diante de si. — Eu não sei. Talvez qualquer coisa seja possível.
— E por que você acredita que Cénzi queria que ficássemos juntos?
— Eu realmente não sei ainda — respondeu ele —, mas talvez nós dois descubramos.
Varina ca’Pallo
Varina pediu desculpas para a kraljica e saiu do Velho Templo às pressas, com um quarteto de gardai designado para ela. Allesandra, os conselheiros, Sergei — todos eles estavam cercados por gardai, e todos pareciam estar em pânico. Varina, no entanto, estava tomada por uma certeza assustadora. Ela correu para a Casa dos Numetodos, com o estômago ardendo e a testa franzida de preocupação.
As correntes caídas vazias na plataforma e Nico sumido...
Varina temia saber para onde ele tinha ido.
Antes mesmo que a carruagem parasse, ela já estava quase correndo na direção da porta, algo que não fazia há anos.
— A’morce... — falou Johannes quando ela entrou na casa, parecendo surpreso com a aparição de Varina e seu estado ofegante —, nós não a esperávamos de volta...
— Onde ela está? — interrompeu ela. — Serafina... onde ela está?
Sua voz soou estridente, mas Varina não se importou.
— Ora, lá em cima, com Belle, é claro. Eu acho que...
Ela passou correndo por Johannes e subiu a escada batendo os pés, com o coração disparado. Escancarou a porta. Belle, uma jovem recruta dos numetodos e também ama de leite, pois tinha acabado de dar à luz, estava sentada em uma cadeira, próxima à janela do gabinete de Varina. Assustada, Belle se cobriu; Varina se deu conta de que ela estava amamentando o bebê.
— A’morce? Está tudo bem?
Seu coração, que pareceu ter tentado sair pela garganta, se acomodou novamente no peito. As cenas terríveis que ela imaginou a caminho de casa desapareceram aos poucos de sua mente: Belle caída no piso acarpetado, a Casa dos Numetodos pegando fogo ou arruinada, os outros amigos mortos ou feridos, e a filha de Nico desaparecida.
Como o próprio Nico.
Varina fechou os olhos por um momento, com a mão na boca.
— Eu pensei... — ela começou, balançando a cabeça em seguida, para afastar a ideia.
Seu coração começava a diminuir o passo, seu fôlego estava se recuperando, e agora Varina se sentia tola por causa do pânico.
— Nada demais, Belle. Não sei no que eu estava pensando. Como está Sera?
Belle sorriu. Ela levantou o pano sobre o ombro e mostrou para Varina o bebê que mamava no peito, com sua boquinha sugando o peito de olhos fechados.
— Faminta como um filhote de lobo — respondeu a ama de leite. — Estou me perguntando se vai sobrar alguma coisa para o meu bebê.
Belle riu, acariciando a cabeça de Sera, com a coroa de cabelo dourado.
— Eu encontrei outra ama de leite para ela; minha prima, Michelle, perdeu o bebê no parto e disse que está disposta a vir dar de mamar a Sera durante as manhãs. Juntando as duas, nós manteremos a pequenina bem alimentada. Agora que os firenzcianos estão chegando, devemos estar a salvo.
Eu queria ter tanta certeza... Varina forçou um sorriso no rosto.
— Obrigada — respondeu ela. — Diga que pagarei em dobro pelo inconveniente.
— A senhora é muito generosa, a’morce.
Sera soltou o mamilo por um momento e começou a chorar, com lágrimas brilhando em seus olhos azuis, e Belle colocou o peito de volta na boca da bebê. Ela se acalmou novamente.
— Como foi...? — A ama de leite parou, procurando pelas palavras, e completou — O pedido de desculpas?
— Insatisfatório, infelizmente. Nico mostrou mais uma vez por que era o Absoluto dos morellis. Ele escapou. Desapareceu.
Varina viu Belle dar um abraço protetor em Sera — ela viu as suspeitas passarem pela cabeça da jovem.
— A’morce? Talvez a senhora devesse ficar aqui na Casa dos Numetodos hoje à noite até ter proteção. Podemos arrumar um lugar para o bebê...
— Eu posso lidar com Nico sozinha se precisar — disse Varina, torcendo para que sua voz tivesse soado mais confiante do que ela se sentia.
Agora que tinha se acalmado um pouco, agora que sabia que Serafina estava a salvo, Varina estava menos preocupada. Com certeza Nico estaria escondido em algum lugar; talvez até tivesse saído da cidade. Ela se dirigiu até a gaveta da escrivaninha e tirou a chispeira que ficava ali. Verificou se o tambor estava cheio de areia negra e se havia uma bala no cano. Ela enfiou a arma na faixa da tashta, embaixo do manto.
— Termine de amamentá-la que eu fico com ela — falou Varina.
Belle assentiu.
— Eu tenho que voltar para a casa da minha irmã, de qualquer forma. A essa altura, a minha pequena deve estar acordando da soneca e vai chorar por atenção. Essa aqui está quase acabando, eu acho.
A ama de leite se recostou; Sera deixou o mamilo sair da boca, abriu os olhos por um instante e depois os fechou. Sua respiração ficou lenta e silenciosa.
— Pronto, viu só? Já adormeceu, essa gulosinha. Eu coloquei uma xícara em sua escrivaninha com mais leite, caso a senhora precise. Mandarei Michelle vir amanhã, antes da Primeira Chamada. Aqui está, a’morce.
Belle se levantou, colocou Serafina nos braços de Varina e amarrou o laço da tashta para se cobrir novamente. Enquanto a ama de leite arrumava as coisas no gabinete, Varina olhou para o rosto adormecido: as bochechas fofas e rosadas; o sossego confiante e saciado com que o bebê dormia; os dedinhos, uma mão cerrada em um punho, a outra agarrada ao cobertor em que ela estava enrolada. Varina sentiu uma... ela não sabia definir essa emoção, mas dentro dela havia uma necessidade intensa de proteger a criança, assim como uma vez sentiu o mesmo impulso com Nico.
E você fracassou nessa época. Deixou que ele escapasse de você, e aquela louca acabou levando Nico.
Varina se debruçou e beijou a testa de Serafina. Belle sorriu para ela.
— Eu vejo a senhora amanhã, a’morce. A coitadinha não merecia perder sua matarh e vatarh desta forma.
— Não — concordou Varina. — Ela não merecia.
Belle se inclinou e beijou Sera, e fez uma mesura para Varina.
— Eu vejo a senhora de manhã com minha prima.
Assim que Belle saiu, Varina se sentou na cadeira perto da janela por um tempo, balançando para frente e para trás, vendo Sera dormir enquanto ouvia as pessoas passarem no corredor lá fora ou andarem no jardim abaixo da janela. Pensou brevemente em colocar Serafina deitada e deixá-la dormir enquanto trabalhava um pouco, mas pensou melhor. Ela enrolou mais o bebê no cobertor, pegou seu próprio manto e saiu do gabinete. Ao descer as escadas, passou por Johannes e disse.
— Desculpe a minha grosseria. Eu estava preocupada.
Ele assentiu.
— Eu ouvi o que aconteceu no Velho Templo. Eu compreendo, a’morce. A senhora está indo para casa? Por que não deixa que eu ou outra pessoa a acompanhe?
— Eu ficarei bem. Ainda é cedo, e há muitas pessoas nas ruas. Vejo você amanhã de manhã. Haverá uma reunião com Allesandra sobre nosso progresso com as chispeiras.
Johannes fez uma mesura para ela, e Varina saiu da casa, cruzando rapidamente o pátio frontal e passando pelos portões, em seguida ela virou à esquerda na Avi a’Parete em direção à casa deles, a alguns quarteirões de distância. Era assim que ela ainda pensava: a casa deles, como se Karl ainda estivesse vivo, como se ela pudesse abrir a porta da biblioteca e encontrá-lo sentado à escrivaninha, meditando sobre algum tomo antigo. Às vezes, Varina ainda ouvia um barulho e se virava, com esperança de vê-lo, mas ele nunca estava lá.
Ela abraçou Sera com mais força enquanto caminhava. As pessoas que passaram por Varina às vezes a cumprimentavam, mas a maioria estava tensa e séria: pessoas cumprindo seus próprios afazeres e preocupadas com a cidade e com o que aconteceria. A escassez do tráfego fez parecer que era bem mais tarde do que era na verdade; em geral o trânsito na Avi atingia o pico de barulho e de pessoas entre a Segunda e a Terceira Chamada, mas não hoje.
Varina virou a esquina, entrando na própria rua, descendo a alameda curva em direção ao A’Sele. Ela chegou ao portão da mansão e o destrancou, sem se preocupar em chamar um dos criados. Varina fechou o portão ao entrar.
— Varina.
A voz, que tinha surgido da esquerda, provocou um susto e fez Varina segurar Sera com tanta força que fez o bebê chorar. Ela se virou lentamente e viu duas figuras envoltas nas sombras da trepadeira enroscada no pilar de pedra do portão.
— Nico — disse Varina. — Você não deveria estar aqui.
Atrás de Nico, uma jovem a encarava atentamente. Ele sorriu.
— É possível — concordou Nico. — Mas você tem algo que preciso ver.
Varina deu um passo para trás. Ela sentiu o peso da chispeira sob o manto; sentiu a energia dos feitiços em sua mente, esperando para serem lançados. Sera se agitou em seus braços, agora acordada.
— Nico, eu estou lhe avisando. Não vou entregá-la a você. Se você tentar levá-la, eu vou lutar com você para protegê-la.
— Eu não quero tirá-la de você — ele respondeu. — Estou feliz que você tenha ficado com ela, por enquanto, já que eu sei que você faria exatamente o que acabou de dizer que faria. Eu só quero vê-la; só quero ver minha filha. Por favor, Varina?
— Eu não vou deixar você segurá-la.
— É justo.
— E diga para esta mulher ficar bem para trás.
Nico acenou com a cabeça para a companheira, que deu alguns passos para trás. Varina tirou o pano do rosto do bebê quando Nico se aproximou dela. Sera olhou para o rosto de Nico olhando para ela; o bebê viu o rosto dele abrandar, seus lábios formarem um sorriso, e Nico dar uma risadinha ao vê-la.
— O formato do rosto... eu consigo enxergar a Liana — falou ele roucamente.
Nico estendeu a mão para tocá-la, e Varina apertou o bebê contra o corpo ainda mais. Ela sentiu a energia de um feitiço fervilhar em sua cabeça. Mas Nico só acariciou a bochecha da menina com o dedo, rindo novamente quando Sera ergueu a mão e apertou seu dedo.
— Ela é forte também — ele comentou. — Isso é bom. Ei, Serafina. Eu sou seu vatarh...
Ele olhou brevemente para Varina.
— Serafina é um bom nome.
— Nico, se eles pegarem você novamente... não serão tão gentis da próxima vez.
— Então eu preciso ser cuidadoso, não é? Você vai sair de Nessântico?
Varina balançou a cabeça.
— Não? — Nico pareceu desapontado ou talvez preocupado. — Mesmo com o bebê?
— Se a situação chegar a este ponto, eu mandarei Sera embora com alguém em quem confio. — Varina fez uma pausa. — E não será você, Nico. Lamento.
Ele inclinou a cabeça. Uma tristeza acentuou as rugas em volta dos olhos.
— Eu compreendo. Mas... na sua idade, Varina, temos que ser realistas. E não é apenas a idade; olhe para você: o estudo de magia cobrou seu preço. O bebê precisa de uma matarh que seja mais jovem.
Varina pensou que Nico tivesse olhado de relance para a jovem que o acompanhava. Varina também olhou para ela. Não reconheceu seu rosto, mas havia algo na jovem, alguma coisa vagamente familiar... Varina balançou a cabeça.
— Estou ciente de que tenho idade para ser a mamatarh de Serafina e sei o que meus estudos fizeram comigo. Eu vejo meu rosto no espelho. Já fiz minhas consultas. Mas, por enquanto, Sera está sob minha responsabilidade, e eu vou protegê-la. Eu falo sério, Nico.
— E isso está claro — disse Nico. — Eu já disse que estou feliz que você tenha ficado com Serafina. Você sempre foi boa para mim, naquela época. Às vezes eu queria...
Ele olhou mais uma vez para a mulher que o acompanhava, respirando fundo.
— Mantenha Serafina a salvo. Talvez algum dia eu realmente possa ser o vatarh dela.
— Você é o vatarh dela — falou Varina. — E eu vou contar sobre você para Sera. Ela vai saber quem você é. Eu prometo.
Ele assentiu mais uma vez. Ele tirou o dedo da mão do bebê, e Sera se agitou. Nico acariciou sua bochecha de novo.
— É hora de ir — disse ele. — Adeus, pequena Serafina.
Nico se inclinou e deu um beijo na filha, ajeitando as costas a seguir. A mulher que o acompanhava já estava no portão.
— Deixe-me destrancá-lo para você — disse Varina, mas a jovem lhe lançou um olhar de desdém.
Ela retirou dois pedaços finos de aço de algum lugar do manto, se inclinou e, um momento depois, o portão estava aberto. A mulher sorriu para Varina. Nico fez uma mesura, quase como se estivesse saindo da casa após uma visita.
Um instante depois, ele e a companheira tinham ido embora. Varina fechou o portão novamente, ouvindo o clique da tranca. Sera estava chorando.
Ela abraçou a bebê e a embalou em seus braços até que se acalmasse de novo.
Brie ca’Ostheim
Os bumbos batiam em cadência enquanto o exército se aproximava da cidade. Os a’offiziers, que seguiam as ordens do starkkapitän ca’Damont conduziam o exército em direção aos campos ao norte da Avi a’Firenzcia, sem entrar na cidade em si. Os cidadãos das vilas imediatamente fora dos portões aplaudiram os batalhões que avançavam com seus estandartes negros e prateados tremulando sobre eles. E aplaudiram especialmente a hïrzgin que os acompanhava.
Brie acenou de volta para os cidadãos e abriu o sorriso aperfeiçoado com os anos de experiência em negócios de Estado, uma máscara atrás da qual ela podia esconder seus medos e incertezas, um gesto alegre para a multidão, desvinculado de qualquer sensação genuína. Nos campos mais próximos ao local onde o exército deveria acampar, uma tenda havia sido montada, com os estandartes de Nessântico e Firenzcia, azul e dourado misturados ao preto e prata. Quando a carruagem de Brie se aproximou, as abas da tenda tinham sido abertas e uma figura coroada apareceu, flanqueada por gardai da Garde Brezno com o uniforme dos Domínios, a hïrzgin viu Sergei ca’Rudka parado atrás da figura coroada. Brie reconheceu a mulher imediatamente, pelos quadros que tinha visto dela: Allesandra. A kraljica caminhou a passos largos e braços abertos em direção a ela, abrindo um sorriso largo. Sergei mancou atrás dela.
— Onde está minha filha-por-casamento? — disse Allesandra ao se aproximar da carruagem de Brie. — Onde está a hïrzgin?
Os soldados correram para abrir as portas do veículo e colocar um degrau para que ela descesse. Brie tomou a mão oferecida e saiu para o sol, piscando e mantendo o sorriso grudado no rosto. A hïrzgin deixou que a kraljica a envolvesse no abraço, levou um beijo numa bochecha, depois na outra. Allesandra cheirava a rosas e romãs; seu abraço era surpreendentemente forte e genuíno.
— Este momento deveria ter acontecido há anos — sussurrou ela no ouvido de Brie. — Eu peço desculpas por isso; a culpa foi minha. Eu queria ter conhecido você e seus filhos há tanto tempo...
Sua voz evanesceu. Brie segurou as mãos de Allesandra. Ela encarou os olhos da mulher, reparando nas dobras em volta, no pó na pele e nas sombras azuis sob as sobrancelhas pintadas e feitas. Ela podia enxergar Jan no formato dos olhos e nos traços da face; viu um reflexo de Elissa, Kriege, Caelor e Eria também. Até mesmo a voz, menos aguda...
— Eu também queria que esse momento tivesse acontecido antes — respondeu Brie. — Há mais tempo do que a senhora imagina, kraljica. Temos tanto o que conversar.
A hïrzgin sabia que Jan lhe chamaria a atenção pelo que ela diria em seguida, mas Brie não se importava. Ela olhou o rosto de Allesandra e não viu nenhum monstro ali.
— Eu quero que meus filhos vejam a mamatarh como ela é, não como Jan a descreveu.
Brie percebeu o sofrimento no rosto de Allesandra.
— Se não me engano, foi o Venerável Carin, no Toustour, que disse que o incômodo da verdade é sempre preferível ao bálsamo da mentira — disse a kraljica. — Ainda assim, há ocasiões em que eu acho que todos nós preferimos as mentiras. Estou certa de que Jan, na cabeça dele, disse o que pensava ser a verdade sobre mim. Infelizmente, eu nem sempre fui uma boa matarh para Jan, e fiz coisas...
Brie se apressou a interromper qualquer confissão que Allesandra pretendesse fazer ao apertar as mãos da mulher.
— Eu tenho certeza de que a senhora fez o que precisava fazer como kraljica. E sei que o Venerável Carin também disse que o passado não pode ser mudado, apenas o presente. Vamos nos apegar a esse momento, kraljica, a senhora e eu, e tornar bom o presente.
Allesandra sorriu novamente.
— Eu espero que meu filho dê valor a esposa e conselheira que tem.
Brie apenas devolveu o sorriso, perfeito e ensaiado.
— Ele dá o máximo valor de que é capaz — respondeu ela — e o mínimo com que consegue escapar impune.
Allesandra riu.
— É assim que as coisas são? — exclamou ela.
A kraljica abraçou a hïrzgin novamente, pegando em sua mão. Ela a ergueu e se voltou para os soldados e chevarittai ao redor.
— Esta é a hïrzgin Brie — proclamou Allesandra — e eu lhe dou boas-vindas a Nessântico como minha filha-por-casamento e como a esposa do próximo kraljiki e matarh de seus herdeiros.
Uma aclamação irrompeu nas fileiras em torno deles, Brie se curvou e acenou para o agrupamento. A hïrzgin se perguntou se eles ainda estariam aclamando em alguns dias.
— Você está com fome? — perguntou Allesandra. — Há um jantar à nossa espera na tenda...
Brie permitiu que Allesandra a acompanhasse até a tenda. Ao passar por Sergei, ela parou e fez o sinal de Cénzi para o homem.
— Hïrzgin — falou o Nariz de Prata. — É bom vê-la novamente.
O embaixador se aproximou dela, e a voz era um sussurro rouco e singelo.
— E eu tenho coisas para lhe contar também.
Dito isso, ele se afastou novamente, sorrindo para Brie e fazendo um gesto para que ela entrasse na tenda, no rastro de Allesandra.
— Você tem certeza de que a garota era Rhianna?
— Rochelle, é o verdadeiro nome; pelo menos é o que ela alega. Mas sim, era a mesma jovem. Tenho certeza.
— E ela também alega ser a filha da Pedra Branca e de Jan?
Sergei assentiu, em silêncio. Brie se recostou na cadeira e balançou a cabeça, sem saber como responder. Ela queria negar, queria chorar, queria gritar de raiva.
Isso explicava tanta coisa. Jan ainda é apaixonado por ela, depois de todos esses anos.
Allesandra tinha retornado para a cidade; Sergei tinha ficado no acampamento após o jantar, dizendo para a kraljica que ele mesmo acompanharia a hïrzgin até o palácio assim que ela estivesse pronta. A mesa onde o jantar tinha sido servido ainda permanecia entre eles, embora os criados tivessem tirado tudo, exceto uma garrafa de vinho e um pouco de pão e queijo. Brie se inclinou, virou a garrafa na taça e ficou observando o vinho espirrar no fundo. Ela se recostou novamente e bebeu.
— E eu acho que é bem possível que a jovem esteja falando a verdade — continuou Sergei. — Eu estou bastante certo disso, na verdade. Eu sei que não é o que a senhora deseja ouvir, hïrzgin, mas temos que considerar que, dada a história que ambos conhecemos, é plausível.
— Mas não é certo.
O embaixador abriu um sorriso sob o nariz de prata.
— Não, não é certo. Eu mandei um pessoal fazer uma investigação e verificar algumas das referências que ela me deu, mas levará algum tempo até que eles me informem alguma coisa, dada a situação atual, e talvez sequer saibamos o suficiente para provar os fatos, de qualquer forma. — Ele deu de ombros. — Mas é nisso que Rochelle acredita, seja isso verdade ou não.
— E ela está aqui.
— Está.
Brie ponderou. Será que ela e Jan planejaram isso? Ou é apenas coincidência?
— Jan sabe? E Allesandra?
Sergei meneou a cabeça negativamente.
— Allesandra definitivamente não sabe, nem eu falei com Jan. Queria contar para a senhora primeiro. Mas eles também precisam saber. — Sergei respirou fundo pelo nariz de metal; o som assobiou um pouco. — A garota é perigosa, hïrzgin. Ela assumiu o papel da Pedra Branca. Diz que foi ela quem matou Rance; contratada por um homem cuja filha a senhora despachou por algum motivo.
— Ah.
A declaração caiu como um golpe em seu estômago. Brie pousou o vinho, levando a mão à garganta.
— Por Cénzi, não... Mavel co’Kella; ela estava grávida. Grávida de Jan. Eu tinha que tirá-la da corte e mandá-la embora. Deve ter sido o vatarh de Mavel co’Kella. Ele estava pleiteando se tornar um chevaritt, mas depois disso... — Ela olhou para Sergei, atormentada. — Eu causei a morte de Rance. Foi por minha culpa.
— Foi o vatarh da garota — respondeu o embaixador. — Não a senhora. A senhora não é responsável pelas ações dele.
— E Rhianna, ou Rochelle... Ela esteve no palácio esse tempo todo, cuidando de mim e dos meus filhos, e Jan...
Brie se calou. Sergei não disse nada. Ela se sentiu observada pelo embaixador. A mulher no meu pesadelo. Seria ela Rochelle?
— Estou enojada — falou a hïrzgin. — Aquela garota, filha de Jan, meia-irmã dos meus próprios filhos...
— Ela é uma bastarda. Não tem direito real ao trono.
— Eu sei. Há bastardos o bastante — respondeu a hïrzgin, abrindo um sorriso sarcástico e irônico. — Mesmo assim, ela foi a primeira, e Jan...
Brie se deteve, encarando Sergei.
— Eu soube que você chegou a conhecer a Pedra Branca.
— Não — respondeu o embaixador. — Não conheci. Mas eu fui a Brezno não muito tempo depois de ela, bem, depois de ela ter assassinado o hïrzg Fynn. Pelo que eu me lembro, Rochelle deve se parecer muito com a matarh dela, na ocasião.
Brie sentiu o coração bater forte no peito. Sentiu o vinho e o jantar se revirarem no estômago. Mais uma vez, a compreensão emergiu dentro dela: Jan ainda ama Elissa, nunca deixou de amar.
— Elissa. Era como a Pedra Branca se chamava na época. Eu não conhecia a história quando Jan quis batizar nossa filha. Só pensei que fosse um nome que ele gostasse... — A hïrzgin soltou uma risada amarga. — Eu não soube por um ano ou mais, quando já era tarde demais para mudar. Nunca consegui perdoá-lo por isso.
— A senhora quer que eu conte para Allesandra e Jan sobre Rochelle?
Brie sentiu um arrepio de frio repentino.
— Você pode contar para Allesandra, mas eu quero contar para Jan. Quero ver a cara dele quando descobrir.
Sergei inclinou a cabeça e se levantou da cadeira.
— Então eu deixo o hïrzg com a senhora. Mandarei preparar sua carruagem, hïrzgin. A kraljica deve estar se perguntando o que aconteceu conosco.
— Sim — respondeu Brie. — Faça isso. Eu irei em um instante.
Sergei fez uma mesura e saiu da tenda. A hïrzgin se serviu de outra taça de vinho. Ficou sentada ali por vários instantes, encarando o líquido vermelho reluzir na superfície dourada. Eu quero ver a cara dele...
Brie se perguntou como contar para Jan.
Niente
Niente começava a acreditar que eles talvez chegassem a ver as muralhas da grande cidade incontestes.
O exército tehuantino descia as colinas de um vale verde e exuberante, exalando o cheiro das estranhas árvores da região, pontilhada por bolsões de fazendas e vinhedos entalhados na floresta. Era um terreno do qual Niente se lembrava, um terreno que Niente frequentemente revia em seus sonhos. O exército se separou em três forças, como Atl tinha visto na tigela — a força ao sul cruzou o rio, a força ao norte seguiu em direção ao alto da estrada, e o restante do exército continuou seguindo a estrada paralela ao rio.
Era lá que o tecuhtli Citlali estava abrigado; foi para lá que Atl, como nahual, e Niente seguiram.
Eles sabiam que estavam sendo acompanhados pelos orientais. Ocorreram algumas estranhas escaramuças breves com os guerreiros a cavalo, que vinham gritando, desafiando e se lançando loucamente contra as fileiras — até mesmo os guerreiros supremos estavam comentando sobre a bravura incontestável dos orientais, ao mesmo tempo em que criticavam suas táticas inúteis e imprudentes. Algumas chuvas de flechas ocasionais caíram sobre eles conforme passavam pelos vales sinuosos, mas os escudos dos guerreiros tinham aparado a maioria, e os nahualli tiraram grande proveito de seus cajados mágicos. Não havia sinal dos feiticeiros orientais, nem dos ténis-guerreiros.
Todas as tentativas orientais de impedir o avanço dos tehuantinos foram comparáveis ao zumbido de moscas importunando o exército.
Eles acompanharam a curva do rio, com vista escassa para as torres de um vilarejo sobre o topo das árvores. Passaram por uma paisagem pastoral, com seus campos cultivados esvaziados de colheitas e gado. Certamente uma tática, para que o exército tehuantino tivesse que colher alimentos mais adiante, o que eles fizeram — destacamentos de saqueadores foram enviados para longe das forças, eles roubaram o gado bovino e limparam os campos como gafanhotos, e toda a comida foi trazida de volta para alimentar os estômagos exigentes dos guerreiros. A casa de fazenda ou mansões ocasionais que os tehuantinos encontravam estavam abandonadas e silenciosas. Os sons do exército abafavam os sons que Niente imaginava que eles talvez ouvissem se estivessem cavalgando desacompanhados pela estrada: os chamados dos pássaros orientais, o vento soprando as folhas, o mugido do gado.
Mesmo assim, a paisagem parecia quieta demais. Niente começou a espiar em volta, nervoso; ele notou que Citlali e os guerreiros supremos ao redor fizeram o mesmo e se deu conta de que os cavaleiros da vanguarda, que já deveriam estar de volta, ainda estavam ausentes.
Ouviu-se um movimento nos cumes baixos em volta do exército tehuantino: sob o sol vespertino, brotos reluzentes de homens surgiram do solo.
— Atl! — gritou Niente, pegando seu cajado mágico, mas o alerta chegara tarde demais.
Bolas de fogo desenharam um arco no céu em direção aos tehuantinos, deixando um rastro de fumaça negra para trás, o ar ficou encoberto pelas hastes de flechas. Elas caíram assobiando, e os guerreiros ergueram seus escudos imediatamente para conter as flechas; mesmo assim, Niente viu vários guerreiros caírem, ao mesmo tempo em que ele lançava contrafeitiços em direção às bolas de fogo. A mais próxima explodiu muito acima deles, emitindo um estrondo que fez Niente querer tapar os ouvidos com as mãos. Atl também entoava gatilhos de feitiços, e outra bola de fogo foi desviada descontroladamente para o lado, rasgando a campina e cuspindo lama, grama e fogo líquido onde caiu. Mas outra bola de fogo veio rápido demais na direção dos estandartes do tecuhtli; Niente jogou um contrafeitiço, mas era tarde demais. Niente pôde sentir o calor do feitiço de guerra irrompendo em gotas pegajosas de fogo, e o abalo se apoderou dos tehuantinos. Niente atirado de seu cavalo, enquanto gritos eram emitidos dos guerreiros mais próximos. Niente ficou preso por um instante sob o animal enquanto o cavalo tentava se levantar novamente. A grama estava em chamas de ambos os lados da estrada de terra. Trompas orientais soaram uma sequência crescente de notas, seguidas pelo rufar de soldados em resposta e os gritos dos guerreiros supremos conforme tentaram restaurar a ordem para as fileiras assustadas e desorganizadas.
O ruído de metal retinindo soava enquanto Niente lutava para se levantar, usando o cajado mágico como bengala. Ele sentiu uma mão pegar em seu braço e o puxar: Atl, com o rosto manchado e sujo de fuligem.
Tudo em torno dele era um caos. Havia um grande número de guerreiros mortos perto da estrada, onde a bola de fogo havia caído, mas o tecuhtli Citlali e o guerreiro supremo Tototl ainda estavam vivos. Os dois gritavam e gesticulavam para a esquerda, onde uma batalha em grande escala acontecia entre as forças orientais e tehuantinas. Eu nunca tinha visto este ataque, Niente se deu conta. Isso é novo... Urrando, com a lança em riste, Citlali montou novamente no cavalo, auxiliado por dois guerreiros.
— Nahual Atl! — Niente ouviu Citlali gritar. — Comigo! Comigo!
A mão esquerda de Atl soltou o braço de Niente. Ele deu um pulo e montou em seu próprio cavalo.
— Nahualli! — chamou Atl. — Ao tecuhtli!
Citlali e Tototl já estavam galopando em direção à linha de frente da confusão, Atl agora estalava as rédeas do cavalo em perseguição. Niente procurou por seu próprio cavalo e viu o animal de cabeça baixa a alguns passos de distância. Ele caminhou até o animal — mancando, sentindo a dor de seus músculos distendidos por toda a lateral do corpo. O cavalo se afastou quando Niente se aproximou, ele notou que sua pata dianteira estava quebrada; o animal não podia apoiar peso nela. Niente praguejou. Ele começou a correr arrastando os pés e se juntou aos guerreiros seguindo em direção à linha de batalha no meio da campina. À sua frente, Niente viu os nahualli lançando seus feitiços de guerra em direção às fileiras inimigas, ele ergueu seu próprio cajado mágico para se juntar ao bombardeio enquanto corria, berrando os gatilhos.
Fogo e raios caíram de nuvens baixas e repentinas. Eles bateram no chão bem acima do cume e em meio aos orientais. Os guerreiros rugiram — um grito de guerra para Sakal, invocando a fúria do deus-sol — e avançaram. Niente viu os estandartes do Citlali subindo a encosta com os orientais em retirada diante do tecuhtli; as linhas de frente foram rompidas, e os feridos estavam sendo arrastados de maneira vergonhosa. A retirada foi humilhante e completa. Citlali deu ordem para interromper o contra-ataque enquanto os orientais sumiam nas florestas e nas faixas de área arborizada entre os campos. Trompas orientais soaram uma sequência de retirada. O estandarte do tecuhtli tremulou brevemente no topo do cume — Niente viu Atl ao lado dele —, e Citlali começou a descer o morro a meio galope em direção à estrada novamente, acompanhado por Tototl. Niente não conseguia enxergar o rosto através da águia vermelha tatuada na face e do sangue espalhado sobre ela. Ele avançou entre os guerreiros em direção ao lugar em que Citlali estava desmontando. A lâmina da espada do tecuhtli estava coberta de sangue.
Agora Niente pôde ver a expressão no rosto de Citlali: ele estava olhando para corpos dos guerreiros mortos e feridos, furioso, enquanto os curandeiros corriam para cuidar dos vivos, e os sacerdotes davam a extrema unção aos mortos. Citlali se agachou ao lado de vários guerreiros, tocando os rostos daqueles que ele e Niente conheciam há anos. O cheiro de carne queimada era forte, e a grama da campina ainda estava em chamas entre vários deles.
Atl não estava muito longe de Citlali e Tototl. O cajado mágico pendia de sua mão, como se estivesse exausto. A cabeça balançava, como se não quisesse acreditar.
— Eu não vi isso, taat — disse o jovem quando se aproximou de Niente. — Eu procurei, mas isso estava escondido. Por que eu não vi isso?
— Por que, realmente?
Uma voz o interrompeu antes que Niente pudesse responder. Citlali tinha se virado para os dois.
— Eu tenho dois nahualli que são considerados os mais poderosos na visão premonitória desde Mahri e, no entanto, nenhum deles me deu qualquer pista sobre isso. Eu não estou triste pela perda; nossos guerreiros morreram a morte boa, a morte da batalha, como deveriam. Mas você, Atl, me disse que os orientais não nos enfrentariam frontalmente até chegarmos à grande cidade. — Seu olhar colérico se virou para Niente. — E você disse que não conseguia quase nada. Por quê? Axat nos abandonou?
Niente e Atl balançaram a cabeça simultaneamente.
— Alguma coisa mudou — falou Niente. — Eu lhe disse muitas vezes antes, tecuhtli, que Axat mostra o que pode ser, não o que será. Alguma coisa mudou entre os orientais.
Citlali bufou desdenhosamente.
— Isso ficou bem claro — ele disse acenando para a fumaça e os corpos ao redor. — Descubram o que mudou e o que isso significa para nós. Descubram agora.
O círculo dourado do sol morria no oeste, e a bruma verde do futuro surgiu em volta do rosto deles. Os nahualli observavam os dois, em silêncio; o tecuhtli Citlali também os observava, com os guerreiros supremos agrupados em volta dele.
Na tigela premonitória, o presente se dividiu e rasgou, e os retalhos do futuro se esvaiam, se contorcendo e se enroscando. Niente os perseguiu na sua mente; ao lado dele, Atl fazia o mesmo. A perseguição era tão exaustiva quanto uma perseguição física. Próximo ao presente, os fios de possibilidades se embolavam e entrelaçavam. As imagens não paravam de surgir na bruma, era difícil vê-las por tempo o bastante para compreender os significados.
Ali: o rosto de um rei, ou era o que Niente tinha presumido pela faixa dourada envolvendo sua cabeça, que brandia uma espada com uma multidão vestida em preto e prata atrás dele, em vez do uniforme azul e dourado do exército da grande cidade. Niente se lembrava daquelas cores — as cores do exército que tinha vindo socorrer a cidade após ser tomada pelo tecuhtli Zolin. Niente tremeu ao ver isso...
Mas a bruma envolveu o rei, e Niente agora viu uma rainha sentada em um trono brilhante com fogo vermelho em torno de si. Uma jovem erguia uma faca reluzente sob o brilho do fogo, havia também um homem perto do trono, e as labaredas furiosas dentro da sala pareciam sair de suas mãos erguidas...
Uma bruma fria apagara o fogo e o levara embora. Niente encarava agora fileiras de gente, mas não eram soldados em armaduras reluzentes, mas pessoas comuns, elas estavam apontando instrumentos estranhos para Niente, parecidos com as garras de águia que os nahualli usavam para fazer sacrifícios. Os instrumentos cuspiram fumaça e fogo, e abelhões negros foram disparados por eles, correndo na direção de Niente...
Mas a bruma também os levou.
Um vento soprou a bruma, e ali diante de Niente, por um momento tentador, ele vislumbrou novamente o Longo Caminho. Ele havia mudado desde a última vez que Niente o tinha visto. O futuro ainda continuava tomado pelos estandartes caídos dos tehuantinos. Mais adiante no caminho, ele viu os estandartes dos tehuantinos tremulando ao lado dos estandartes azuis e dourados dos orientais, e duas pessoas sob eles, um homem com a tatuagem da águia vermelha do tecuhtli e uma mulher com as roupas dos orientais e um cetro dourado na mão. Os dois estavam juntos e sorriam um para o outro, e não havia animosidade alguma entre eles.
A bruma escondeu o Longo Caminho, mas perto de Niente, as brumas agora se abriram, e ele viu Citlali, morto, com um nahualli ao seu lado. Niente se debruçou sobre a tigela. No braço jovem e musculoso do nahualli, havia um brilho dourado: o bracelete do nahual. Ao lado dos dois, como se tivesse sido responsável pelas mortes, ele viu as costas de outro nahualli: a careca de um velho, com alguns poucos fios de cabelo e — quando o nahualli se virou — o semblante enrugado e cheio de cicatrizes, com um olho esquerdo cego.
Niente recuou e conteve um grito...
— Não... — sussurrou ele.
O sopro da negação fez a bruma mudar, de maneira que o Longo Caminho desapareceu para revelar ainda outro Longo Caminho. No fim deste rumo, Niente viu Tlaxcala, mas a cidade flutuante ardia no centro de um lago e as grandes pirâmides estavam em ruínas. Assim como na visão anterior do Longo Caminho, os meios para se chegar a ele estavam obscurecidos, mas as imagens tremularam mais perto dele. Ali o tecuhtli Citlali estava sentado em um trono brilhante sob um teto abobadado, com o estandarte azul e dourado no piso de ladrilhos diante dele e vários orientais prostrados à sua frente, como se estivessem prontos para serem sacrificados para Axat e Sakal, para que o resto de seu povo pudesse viver.
Niente respirou de novo, e os vapores frios e verdes envolveram seu rosto. Ele sentiu sua face ficar molhada e se deu conta de que tinha tocado a água da tigela premonitória. Com o toque, as visões se dissolveram e Niente encarava apenas a tigela.
Ele voltou à realidade devagar, ofegante, como se tivesse voltado de uma longa corrida. Carrancudo, o tecuhtli Citlali olhava fixamente para Niente, à sua esquerda, Atl já havia levantado o rosto de sua própria tigela. Vários nahualli de baixo escalão se aproximaram rapidamente e recolheram as tigelas e as mesas.
— Bem? — perguntou Citlali. — O que Axat mostrou para vocês?
Niente não falou nada; pelo canto de olho, ele viu Atl lançar-lhe um olhar furtivo.
— A visão ainda mostra a nossa vitória, tecuhtli — respondeu o jovem. — Eu vi o senhor no trono dos orientais.
O olhar de Citlali ainda estava fixo em Niente.
— E você, uchben nahual? Você também viu isso?
Niente ergueu a cabeça. Sentindo suas mãos tremerem, um nahualli de baixo escalão tinha corrido lhe entregar seu cajado mágico. Ele aceitou agradecidamente e se apoiou pesadamente sobre o objeto. Niente piscou para tentar limpar a mente das visões. O Longo Caminho... Axat lhe presenteou com duas escolhas...
— Eu vi a mesma coisa, tecuhtli — ele respondeu honestamente.
— Rá! — O tecuhtli Citlali se levantou e bateu o pé uma vez no chão enquanto Tototl e os outros guerreiros supremos urravam de aprovação. — Então nós seguiremos em frente e tomaremos a grande cidade dos orientais, e transformaremos suas esposas em viúvas e as crianças em órfãs, se eles resistirem a nós.
RESSURREIÇÕES
A Ameaça da Tempestade
A Fúria da Tempestade
A Passagem da Tempestade
A Aurora
A Ameaça da Tempestade
Jan fedia a cavalo, suor, fumaça e sangue. O starkkapitän ca’Damont e o comandante ca’Talin também. Não houve tempo para tomar banho ou trocar de roupa. Eles tiraram a armadura depois do confronto com os ocidentais e cavalgaram rapidamente de volta a Nessântico, deixando a retirada relutante da Garde Civile com os a’offiziers. Suas botas — sujas, cheias de lama e deslocadas — faziam barulho nos ladrilhos encerados do Palácio da Kraljica na Ilha; os gardai no salão e os criados e os cortesãos se agitando nos corredores encararam o trio com apreensão, como se tentassem medir pelos rostos e pela atitude a gravidade da ameaça à cidade.
Se conseguissem interpretar aquelas expressões corretamente, ficariam assustados.
O assistente de Allesandra, Talbot, encontrou Jan quando os três passaram pela câmara de recepção externa e os acompanhou pelo corredor privativo da criadagem até a câmara do Conselho dos Ca’. Ele gesticulou para o gardai do corredor abrir as portas quando o grupo se aproximou. O burburinho de conversa no interior parou. Allesandra esperava por eles ali, com Sergei ca’Rudka e os conselheiros; havia um mapa das cercanias aberto sobre a mesa.
Todos olharam para Jan esperançosamente.
— Se vocês estão esperando ouvir boas notícias — falou o hïrzg sem preâmbulos —, eu não tenho nenhuma.
Ele parou. Uma mulher ao lado de Allesandra parou de examinar o mapa para encará-lo.
— Brie? Eu pensei...
Brie caminhou até Jan e abraçou o marido tão abertamente como se ele estivesse em trajes de gala para um baile. Jan tentou se afastar, por causa de seu estado, mas se a hïrzgin sentiu alguma repulsa pelo cheiro ou pela aparência, não demonstrou. Brie deu um beijo na bochecha de barba rala, depois na boca de Jan, que devolveu o beijo um instante depois.
— Eu vim com seu exército, meu querido — falou ela. — As crianças estão em Brezno, mas senti que meu lugar era aqui, com meu marido na cidade que ele governará um dia.
— Você não deveria ter vindo, Brie.
— Por que eu não deveria ter vindo? — perguntou a hïrzgin com a cabeça inclinada.
Seu tom de voz era estranho — quase evasivo e ameno demais. Ele sentiu que havia uma outra pergunta nas entrelinhas, uma que ela não estava fazendo.
— Não é óbvio? — respondeu Jan. — É perigoso para você.
— Eu pensei que fosse mais perigoso eu não estar aqui — argumentou Brie.
O hïrzg pôde notar um conteúdo oculto nas palavras, mas o significado lhe escapou. A esposa sorriu para ele: novamente com a mesma estranheza.
— Eu estou aqui, meu marido, e trouxe seu exército comigo. Ora, você deveria estar feliz.
Jan assentiu — sim, havia algo mais em Brie do que existia na superfície, mas não havia tempo para descobrir agora, e tentar fazê-lo só o deixaria irritado. Ele deu um beijo em Brie, mecanicamente, depois olhou em volta para os demais no ambiente.
Concentração...
— Kraljica, embaixador, conselheiros: os ocidentais têm uma força consideravelmente maior do que a nossa, mesmo com a adição firenzciana — informou Jan.
Ele caminhou até o mapa e passou a mão pelos pontos salientes desenhados.
— Eles avançam por uma linha de frente que os fará chegar a Nessântico pela borda oeste no lado norte do A’Sele, pelas margens do A’Sele, acima da Avi a’Nostrosei ou mesmo pela Avi a’Nortegate. Isso já é bem ruim, mas nossos batedores nos dizem que eles mandaram outra força cruzar o rio para atacar a cidade ao sul. No momento, não temos mais que vinte ténis-guerreiros, todos de Nessântico; precisamos de pelo menos algumas centenas para ao menos tentar nos equiparar aos ocidentais nesse aspecto. E, julgando pelo que fizeram em Villembouchure, os tehuantinos também têm um estoque decente de areia negra, o que significa que nenhum dos prédios daqui está a salvo se eles se aproximarem. Quanto ao que fizeram em Karnmor, bem, nós só podemos torcer para que os inimigos não tenham como repetir esse horror. Se tiverem, então não há esperança alguma.
— Você faz parecer como se já tivéssemos perdido e devêssemos sair da cidade — disse sua matarh. Jan balançou a cabeça.
— Não, matarh — disse o hïrzg. — Não é o que estou dizendo. Nessântico não está perdida, mas está em perigo sério e imediato, e não podemos subestimar isso. Eu vi os ocidentais e entrei em combate com eles para testá-los. E isso fez com que percebêssemos que precisamos de todas as forças que pudermos reunir: todos os ténis-guerreiros, todo cidadão apto fisicamente, todos os recursos possíveis. Mesmo com tudo isso, também precisaremos da graça de Cénzi, ou veremos Nessântico queimar mais uma vez.
O silêncio que se seguiu durou bastante.
— Não é isso o que nenhum de nós quer. Eis o que o starkkapitän, o comandante e eu propomos — o hïrzg disse, finalmente, apontando para o mapa. — O A’Sele faz uma curva para o norte logo após Pré a’Fleuve; isso necessariamente vai comprimir as forças tehuantinas. Eu sugiro estacionar nossas tropas aqui logo depois do rio Infante, a partir da vila de Certendi, ao sul. Vamos segurá-los lá o máximo que pudermos, depois destruiremos as pontes se precisarmos recuar para o outro lado. Eu quero que barreiras de terra sejam erguidas da Avi a’Certendi para o A’Sele, seguindo a margem leste do Infante. O comandante ca’Talin, o starkkapitän ca’Damont e eu faremos os ocidentais lutarem por cada pedaço de terra entre o Infante e Nessântico, e espero que consigamos mantê-los completamente afastados da cidade na Margem Norte. Quanto à Margem Sul...
Ele acenou com a cabeça para Allesandra e Sergei.
— Eu deixo nas suas mãos.
— ...existe um Longo Caminho, Atl. Um rumo que leva a um lugar melhor para nós, embora não pareça assim inicialmente, e Citlali nunca acreditaria em mim. Mas você tem que acreditar em mim. A vitória aqui não é só uma vitória; ela significará uma derrota para nós, com o tempo. A própria Tlaxcala pode cair.
Atl balançava a cabeça enquanto ouvia a explicação de Niente.
— Eu sei que o senhor não para de dizer isso, taat, mas não é o que eu vejo. Mesmo que eu quisesse acreditar no senhor... — Ele abanou a mão em desespero, soltando um suspiro. — Eu não vejo absolutamente nada deste Longo Caminho.
— Você não está olhando suficientemente o distante. Não é algo que você consiga fazer ainda.
Isso foi um erro. Ele notou na forma como a luz da fogueira na tenda refletiu no rosto carrancudo do filho.
— Eu sou capaz de ver os caminhos de Axat, taat. Acho que posso vê-los melhor que o senhor. O senhor só não quer admitir isso. Eu vou para a minha tenda. Encha seu cajado mágico e durma um pouco, taat. Eu farei o mesmo.
Ele cumprimentou Niente com a cabeça e ia sair, mas Niente o segurou pelo braço, os seus dedos apertaram o bracelete de ouro do nahual que tinha estado em volta do próprio antebraço.
— Atl, isso é muitíssimo importante. Eu vi o Longo Caminho; eu vi com extrema nitidez em Tlaxcala e mesmo aqui, por um instante. Eu pude vê-lo desde então; há tantos elementos prejudicando as brumas, como você mesmo sabe. Mas ele está lá; tem que estar. Nós dois juntos talvez possamos encontrá-lo novamente. Se o vislumbrarmos só mais uma vez, se pudermos ver como temos que reagir...
Niente vasculhou a bolsa e tirou dois passarinhos de madeira entalhados de forma crua e pintados de vermelho intenso, com traços simples e brutos. Ele entregou um para Atl.
— Eu fiz esses aqui mais cedo hoje à noite. Coloquei um feitiço dentro deles, para que, se nos separarmos na batalha, ainda possamos mandar uma mensagem um para o outro. Se um de nós vir o rumo, então podemos contar para o outro que o Longo Caminho está aberto.
Atl olhou para o pássaro.
— Eu não preciso...
Ele ia devolvê-lo, mas Niente fechou os dedos do filho em volta da escultura.
— Por favor — disse ele para Atl. — Por favor, aceite.
Atl suspirou; como suspirava quando criança, quando seus pais insistiam que ele fizesse algo que não queria fazer.
— Está bem, eu fico com isso. Mas, taat, não existe Longo Caminho. Eu não sei aonde essa guerra nos levará, nenhum de nós sabe, mas eu sei que podemos ser vitoriosos aqui. Eu vi isso, e pretendo conduzir o tecuhtli Citlali até esse momento.
Ele olhou para Niente, e a luz da fogueira refletiu em seus olhos negros.
— Encha seu cajado mágico — disse Atl, como se se dirigisse a um nahualli de baixo escalão. — O senhor vai precisar em breve. Eu mesmo preciso usar a tigela premonitória esta noite.
Atl caminhou até a aba da tenda e a abriu. Lá fora, a lua brilhava sobre seu ombro.
— Não há um Longo Caminho, taat. Tenho certeza disso — falou ele. — O senhor está vendo o que quer ver, não o que Axat está disposta a mostrar.
Atl deixou a aba da tenda cair atrás dele sair.
— Você cruzará o rio hoje de manhã com Tototl e se juntará à força ao sul com dois punhados de nahualli sob seu comando.
Essa foi a ordem que Niente recebeu do tecuhtli Citlali. Atl e Tototl estavam ao lado do guerreiro quando ele deu o comando. O rosto do filho tinha uma expressão ilegível e atormentada, Niente ficou curioso para saber — após a conversa da noite anterior — se a ordem tinha vindo de Citlali ou de Atl. Ele tinha que admitir que fazia sentido — deixar que o antigo nahual ficasse ao lado do tecuhtli para questionar o novo nahual levaria a hesitação e contradições. Ao sul, Niente não teria rivais... nem Atl, que seguiria com a força principal. Ao sul, Niente seria um recurso poderoso para os nahualli e um líder comprovado. Se Niente ainda fosse o nahual, se estivesse procurando por uma vitória esmagadora aqui, em vez da quimera de seu Longo Caminho, ele talvez tivesse sugerido alguma coisa parecida, como mandar Atl com o braço sul do exército.
Citlatli não lhe deu chance de contestar.
— Uchben nahual, o bote com os outros nahualli está à sua espera na margem — falou ele. — Você partirá assim que recolher suas coisas. Nahual Atl, quero discutir nossa estratégia com você...
Com essa dispensa, o tecuhtli Citlali deu as costas para Niente e gesticulou para Atl segui-lo. O jovem olhou uma única vez para o antigo nahual.
— Taat — ele disse —, vejo o senhor de novo na grande cidade. Mantenha-se a salvo.
Atl acenou com a cabeça e depois seguiu Citlali.
Pouco tempo depois, Niente se viu em um bote com outros três tehuantinos cruzando o A’Sele, a água marrom se agitava e ficava momentaneamente branca com o bater dos remos dos jovens guerreiros. O cheiro de água doce entrou em seu nariz, as árvores na outra margem distante estavam obscurecidas pela névoa da visão pobre de seu olho são. Ele podia sentir os olhares dos outros nahualli que o acompanhavam sobre si, podia sentir a avaliação ao se agachar na popa da pequena embarcação.
Niente olhou para oeste, rio abaixo — os tehuantinos receberam uma mensagem do comandante da frota informando que o rio tinha sido liberado e que ele estava subindo o rio com os navios de guerra para encontrá-los. Niente não tinha visto vela alguma ainda, mas o rio fazia uma curva ali perto, e a frota talvez estivesse logo ali atrás daquela curva. O guerreiro supremo Tototl, em outro dos botes, olhava apenas à frente, na direção da outra margem.
O que eu faço agora? Esta estratégia não estava em nenhum dos caminhos que vislumbrei. Ele se perguntou se Atl tinha visto isso e se sabia para onde esse caminho levava. Niente se sentiu perdido, sendo levado pelas correntezas do presente. Será que consigo encontrar o Longo Caminho nesta situação, e se conseguir, será que arrisco segui-lo? Ele já tinha desistido do Longo Caminho uma vez devido a seu alto custo. Essa visão tinha sido nítida, como se Axat quisesse que Niente soubesse. A morte de Citlali pouco importava para ele; um guerreiro esperava, e até mesmo recebia, pela morte de braços abertos na batalha. Mas Niente também estava morto nessa visão; ele realmente faria isso, se Axat cobrasse seu preço? E se Axat exigisse a vida de Atl também, como Ela tinha dado a entender...
Suas mãos estavam tremendo, e não era por causa do frio úmido da manhã.
Será que Atl viu isso? Será que foi por isso que ele mandou você embora?
Niente queria falar desesperadamente com Atl, mas não era mais possível. Ele tocou na bolsa para sentir o pássaro entalhado. O toque não lhe deu nenhum alívio.
A margem estava se aproximando; Niente quase conseguia identificar uma árvore ou outra se aproximando em vez dos borrões verdes e vislumbrou uma meia dúzia de guerreiros reunidos sob a cobertura verdejante, prontos para escoltá-los até a estrada. A proa do bote atracou na lama da margem escondida sob os juncos, assustando Niente. Os guerreiros que os aguardavam desceram a margem correndo para ajudá-los a sair. Ele ouviu Tototl berrar ordens. Niente esperou que os guerreiros os puxassem para a terra seca. No topo da margem, ele olhou para o outro lado do rio mais uma vez. Entre a névoa da catarata, Niente pensou ter visto algumas figuras se movendo.
Ele se perguntou se uma delas era Atl.
— Por Cénzi, então é verdade...
A mão de Jan cofiou a barba. Seus olhos se arregalaram, e Brie podia jurar que havia um espanto genuíno neles, não uma surpresa fingida. Talvez ela estivesse enganada e Jan realmente não tivesse mandado a garota à frente deles para encontrá-la mais tarde na cidade.
— Eu juro, Brie, eu não sabia que ela estava aqui. Eu juro por Cénzi. Eu sei que você deve estar pensando que mandei Rhianna para cá, ou Rochelle, ou seja lá qual for seu nome verdadeiro, mas eu nunca pensei...
— Não, você não pensou — ralhou Brie.
Ela continuou observando o rosto do marido. O espanto em sua expressão pareceu genuíno o bastante quando ela deu a notícia que Sergei lhe contara.
— Ela alega ser sua filha, Jan.
— Ela também me disse isso.
— Ela disse isso para você? Quando?
— Quando tirou a faca da matarh de mim. Foi seu golpe de despedida antes de fugir. — Jan passou os dedos pelo cabelo recém-molhado do banho rápido. — Ela matou Rance. Eu sabia disso, mesmo na ocasião. Ela parece tanto com El...
Ele se deteve e olhou de relance para a esposa.
— Com a matarh dela — terminou o hïrzg.
— Então é possível que ela esteja dizendo a verdade, que seja sua filha?
Jan murchou. Agora suas mãos mexiam nervosamente no cabelo.
— Eu creio que sim. Ela tem a idade certa.
— Você chegou a... com Rhi... Rochelle?
Ele balançou a cabeça com raiva, sua mão fez um gesto de negação, movimentando o ar próximo à bochecha de Brie.
— Não! Eu juro, Brie. Ela nunca me deixou... — Jan suspirou alto. — Por um bom motivo, evidentemente.
O hïrzg andou de um lado para o outro nos aposentos que Allesandra tinha cedido a eles no palácio, enquanto abotoava a túnica acolchoada que ficava sob o uniforme da Garde Civile.
— Brie, eu lamento, mas não posso me preocupar com isso. Não agora. Eu não sei por que Sergei não a jogou na Bastida quando teve a oportunidade.
Brie caminhou até o marido e afastou suas mãos para o lado enquanto ele se atrapalhava com os laços da túnica.
— Aqui, deixe-me fazer isso. É isso o que você quer para ela? — perguntou a hïrzgin. — A Bastida? Quer que ela seja julgada pelos crimes que cometeu?
Brie sentiu o peito do marido inflar e desinflar sob suas mãos.
— Sim. E não. Eu não sei o que quero, Brie. Se ela for minha filha com a Pedra Branca...
— Ela não é sua filha. É mais uma bastarda que você gerou. — Ela terminou de dar os laços e se afastou.
— Naquela época, eu teria me casado com Elissa.
Desta vez Jan pronunciou o nome sem hesitação, Brie percebeu que doía ouvi-lo, ouvir o nome de sua própria filha atrelado àquela mulher. As palavras do marido eram dolorosas.
— Eu teria me casado com ela sem hesitação e sem a permissão de meus pais, se eles não a dessem — continuou ele. — A menina não seria uma bastarda. Eu já tinha pedido para a matarh entrar em negociação com a família de Elissa... ou pelo menos a família da qual ela alegava fazer parte. Ah, aposto que a matarh está achando essa situação uma piada maravilhosa.
Brie teve a certeza de que a intenção de Jan era magoá-la com aquelas palavras; ela se forçou a não ter reação alguma.
— Sua matarh fez o que achou que era necessário para proteger a família. Assim como eu, quando necessário.
— Sim, sem dúvida, e foi por isso que a matarh contratou a Pedra Branca para matar Fynn; para proteger a família. — Jan terminou de colocar o restante do uniforme e se sentou em uma cadeira para calçar as botas. — Brie, eu preciso encontrar com ca’Damont e ca’Talin em uma marca da ampulheta. Você precisa tomar cuidado; eu não sei do que essa Rhianna ou Rochelle pode estar atrás. Somente Cénzi sabe de quem a Pedra Branca pode estar atrás. Eu ficaria mais tranquilo se você saísse da cidade de uma vez por todas.
E assim você estaria livre para fazer o que quisesse. Brie teria ficado mais satisfeita se achasse que a preocupação dele era genuína, e não em causa própria. Como a matarh de Jan — suas vontades sempre estavam em primeiro lugar.
— Eu vou ficar, meu marido — ela disse com firmeza. — Você tem o seu dever; eu tenho o meu. Allesandra conduzirá a defesa ao sul; e eu vou ajudá-la.
— Brie... — Ele se levantou para afivelar e ajeitar o cinto da espada.
— Não, estou falando sério, Jan. Eu treinei com meus irmãos, e posso me sair bem contra eles com uma espada. Você sabe disso. Meu vatarh me educou em estratégia militar e até me consultou várias vezes no passado, quando saqueadores de Shenkurska invadiram a nossa fronteira. A própria Allesandra comandou exércitos; eu ouvi seus gritos de frustração por causa de algumas táticas e estratégias que ela usou nos últimos anos. Eu não estou menos a salvo aqui em Nessântico do que estaria viajando pelas estradas, mesmo com uma escolta.
Jan balançou a cabeça.
— Eu conheço essa sua expressão agora. Não adianta discutir com você.
— Então por que ainda está discutindo? — perguntou Brie, sem saber se ele estava irritado ou se era só estresse. — Eu não quero discutir com você, meu amor. Nós precisamos um do outro, eu só quero que você esteja o mais seguro possível. Você tem um destino, Jan: você vai ser o próximo kraljiki. Eu quero ver isso acontecer; pretendo sentar ao seu lado no Trono do Sol.
Ela limpou fios imaginários dos ombros do marido e sorriu para ele: o sorriso ensaiado, o sorriso exigido.
— Agora... vá se encontrar com o starkkapitän e o comandante. Você e eu nos preocuparemos com Rochelle mais tarde, quando os tehuantinos não forem mais uma ameaça.
— E você?
— Eu tenho a minha própria reunião com Allesandra.
— Com Sergei também?
Brie deu de ombros.
— Ele disse que tinha outros compromissos hoje à noite. — Ela ficou na ponta dos pés e beijou a bochecha de Jan. — Vá.
— Você não pode usar o robe verde — Rochelle disse para Nico.
Um sorriso indulgente tocou seus lábios e sumiu um instante depois. Seus lábios pareciam não se lembrar mais de como sorrir de verdade. A alegria parecia ter desaparecido de sua vida, quando antes ela a preenchia.
— Há uma grande diferença entre “não é permitido” e “não poder” — respondeu Nico. — Eu sou um téni, e é meu direito usar o robe. Mais do que um direito; é minha obrigação. Eu sigo Cénzi, não um idiota semimorto que se chama de archigos. Está na hora de eu me afirmar completamente e parar de me esconder como um criminoso.
— Você é um criminoso aos olhos dos Domínios e da fé concénziana. Eles matarão você, se puderem.
— Eles podem tentar. — Nico tentou sorrir novamente, mas o sorriso desvaneceu. — E há uma grande diferença entre “tentar” e “matar” também. Você não precisa ficar tão preocupada, irmãzinha.
Rochelle deu de ombros. Eles estavam no segundo andar de um dos esconderijos dos morellis no Velho Distrito; o proprietário — um vendedor de tecidos — ficou visivelmente aflito ao ver Nico ali, mas dispensou os aprendizes pelo resto do dia, mandou a família visitar primos a duas ruas dali e concordou em avisar o resto da seita dos morellis que o Absoluto desejava se encontrar com eles.
Nico também descobriu que Ancel esteve entre os capturados e executados após a invasão ao Velho Templo — outra alma a seus pés, outra morte pela qual ele devia expiar. Havia tantas, e faziam tanto peso sobre seus ombros que Nico queria cair de joelhos sob elas.
Liana, Ancel, eu lhes prometo — eu encontrarei paz para vocês...
Nico ainda podia ver a filha que teve com Liana aninhada nos braços de Varina. Sentia os dedos de Sera em volta dos seus, agarrando Nico como se soubesse que pertencia a ele. Aquela memória e a memória de Liana e Ancel e de todos aqueles que morreram por ele fizeram lágrimas se acumularem em seus olhos novamente. Nico as secou.
No andar debaixo, entre os tecidos pendurados em cabides à espera de serem arrumados em peças, Nico pôde ouvir o agito e o barulho de conversa através das tábuas do assoalho: vários ténis-guerreiros saíram de mansinho do templo para encontrá-lo; também havia, tinham dito para ele, vários ténis-guerreiros de Brezno presentes, eles tinham chegado à cidade pouco depois do comboio do exército firenzciano. Nico já tinha conversado com alguns deles — o archigos Karrol declarara que todos os ténis-guerreiros seriam enviados para o campo de batalha com o hïrzg Jan no dia seguinte.
— Nós não iremos se o senhor nos mandar, Absoluto. — Foi o que todos lhe disseram. Todos juraram que o seguiriam no lugar do archigos, se Nico pedisse. A lealdade dos ténis-guerreiros o satisfazia e, ao mesmo tempo, aumentava a culpa que ele carregava.
Como vocês podem me seguir depois do que eu fiz, depois dos meus fracassos? Como ainda podem ter fé quando eu luto com isso?
Nico ainda não sabia ao certo o que dizer para eles. Ele deixaria isso com Cénzi, mas suspeitava que já sabia o que diria. As escolhas diminuíram com a chegada dos ocidentais, Nico tinha passado a noite anterior rezando para Cénzi, pedindo por orientação enquanto Rochelle o observava, com uma expressão mais curiosa do que devota. Ela se parecia com Elle, a matarh de Rochelle, e a matarh adotiva de Nico. O que você fez com ela, Elle? Você a corrompeu além da redenção?
Mas Nico não podia se preocupar com Rochelle agora. Ainda não. Seus seguidores, aqueles que sobraram, esperavam por ele, e as palavras de Cénzi ardiam dentro de Nico.
— Vamos — ele disse para Rochelle, estendendo sua mão. — Está na hora.
Nico permitiu que a irmã descesse primeiro, acompanhando-a a seguir escada abaixo. O cheiro adstringente de corantes e fixadores no único cômodo do andar debaixo era forte, o ambiente que também funcionava como loja e mostruário para o vendedor de tecidos.
Havia pelo menos dez punhados de pessoas confinadas no espaço, tão apertados que o ar tinha se aquecido pela presença. Nenhuma saudação abrandou a atmosfera quando ele apareceu; todos pareciam tão sombrios quanto Nico. Ele fez o sinal de Cénzi e se curvou humildemente, os morellis devolveram o gesto. Algumas lâmpadas instaladas nas paredes do vendedor eram a única fonte de luz, mas Nico podia ver vários robes verdes iguais ao que ele estava usando, embora a maioria deles fossem desconhecidos para ele. Nico sentiu seus olhares observarem seu rosto machucado e com hematomas, as manchas roxas cobrindo seus antebraços, a forma como ele mancava ao descer a escada. E também notou os olhares curiosos para Rochelle.
— Que Cénzi abençoe a todos vocês — disse Nico, espalmando as mãos.
Ele sentiu o carinho de seus seguidores, e devolveu o sentimento; o cômodo estava tomado por um brilho pálido que não emanava de lugar nenhum e de todos os lugares.
— Eu não mereço que vocês tenham vindo, e menos ainda que ainda escutem o que tenho a dizer.
— O senhor ainda é a Voz de Cénzi, Absoluto — alguém disse no meio dos morellis. — Nós seguimos o senhor. Vimos Cénzi operar o milagre na praça. Vimos o senhor desaparecer sem lançar um feitiço; vimos as correntes vazias.
Os outros concordaram em meio a murmúrios, e o som fez Nico querer abraçar a todos, para tentar extinguir a tristeza e a perda no calor de sua aprovação e apoio.
Ele entrelaçou as mãos em frente ao corpo como se fosse rezar.
— Sim, Cénzi veio a mim quando eu estava diante da kraljica, e Ele me soltou dos grilhões que a vida colocou em mim. Mas... — Nico parou e balançou a cabeça. — Cénzi também me mostrou que eu deixei meu próprio orgulho me afastar de Seu caminho, e Ele me puniu por isso. Ele tomou para Si muitos daqueles que eu amava, enviou muitos outros para a dor e o sofrimento, e me encheu de tristeza e arrependimento. A dor dos morellis foi causada por sua dedicação a mim. Eu entendo agora que devo me tornar o instrumento de Cénzi, que devo me entregar completamente a Ele e devo aceitar o que Ele quiser que eu suporte. Eu entendo que não sou nada.
Nico ergueu a cabeça e abaixou as mãos, seu olhar varreu os seguidores, encarando cada um deles no cômodo.
— Vocês também devem entender isso. Esta também é a sua tarefa, como sempre foi a tarefa dos ténis: realizar a vontade de Cénzi e nada mais.
— O que Cénzi quer que façamos? — alguém perguntou. — Diga-nos, Absoluto.
Nico hesitou, embora se sentisse tomado pelas palavras. Eu estou certo desta vez, Cénzi? Estou ouvindo o Senhor, e não a mim mesmo? É isso, verdadeiramente, o que o Senhor quer que eu diga a eles? As palavras martelavam em sua mente, e Nico só poderia se livrar delas ao dizê-las.
— Nossa Fé está sendo ameaçada — falou ele. — Os ocidentais estão prestes a dominar Nessântico e os Domínios e, se isso acontecer, os fiéis sofrerão imensamente. Eu rezei, me abri para Cénzi e O escutei, e isso é o que Ele me diz.
Nico fez uma pausa e respirou várias vezes, olhando para cada um deles.
— Agora é a hora de deixarmos de lado nossas lutas com os falsos líderes da fé concénziana; não para sempre, mas por um curto período de tempo. Nós precisamos primeiro expulsar os pagãos e hereges que nos ameaçam antes que possamos olhar para a heresia dos Domínios e da Coalizão.
Ele fez outra pausa, acenando com a cabeça para eles.
— Eu disse isso naquele dia na praça e repito aqui: por enquanto, vocês devem obedecer ao archigos. Ténis-guerreiros, vão à guerra. Ténis, cumpram qualquer tarefa que recebam. O restante, façam o que for preciso. Obedeçam às autoridades que estão acima de vocês. Por enquanto.
Nico esperou. O brilho no aposento aumentou.
— Façam isso, por enquanto. E depois... depois, nós voltaremos a olhar para dentro. Voltaremos a nossa atenção para a reforma da fé concénziana. Tomaremos a glória que merecemos e moldaremos a Fé, como Cénzi deseja, como o Toustour e a Divolonté exigem, e não daremos ouvidos às ordens de ninguém, ninguém, que não esteja conosco. Isso é tudo o que tenho a dizer esta noite.
O brilho no cômodo esmaeceu, e a luz das lâmpadas agora parecia descarnada. Os seguidores se remexeram, hesitaram, se entreolharam fixamente. Então alguém abriu a porta; um a um, eles fizeram o sinal de Cénzi e saíram do cômodo arrastando os pés. Nico devolveu o sinal para cada um dos seguidores e murmurou uma bênção a cada um. Assim todos saíram, ele sentiu a mão de Rochelle pousar em seu ombro.
— Eles não ficaram satisfeitos — comentou ela. — Você não disse a eles o que eles queriam ouvir. Ficaram desapontados.
— Eu sei — respondeu Nico. — Mas era tudo o que eu tinha a dizer.
Rochelle assentiu.
— Você está cansado.
— Exausto — admitiu Nico; ele olhou para as escadas que levavam para o segundo andar. — Mas ainda há mais uma reunião antes que eu possa dormir.
— O que você quer dizer? — perguntou Rochelle.
Nico não disse nada, apenas gesticulou para que ela o seguisse. Ele subiu penosamente, sentindo seus pés pesados pisando os degraus. A luz de uma lâmpada vinha do quarto dos fundos, onde antes não havia luz. Nico ouviu a lâmina da faca de Rochelle sair da bainha e balançou a cabeça para ela.
— Você não vai precisar disso. Não ainda.
Ele andou tranquilamente pelo corredor até o quarto e empurrou a porta para abri-la.
— Você ouviu o que queria ouvir? — perguntou Nico para a pessoa no quarto.
— Você ouviu o que queria ouvir? — disse Nico, e Sergei deu de ombros.
— No geral, sim — respondeu o embaixador. — Você simplesmente salvou a si mesmo e aos ténis-guerreiros.
— Minha segurança não está em suas mãos, Nariz de Prata — disse Nico, mas a bravata soou cansada e sem ânimo.
— Ah, mas na verdade está, sim — disse Sergei.
Ele vislumbrou um movimento atrás de Nico e viu um rosto.
— Rochelle. Por favor, por que vocês dois não entram e se sentam? Não há motivo para não termos uma conversa civilizada, só nós três.
Nico deu de ombros e entrou, se sentando na beirada da cama no quarto. Sergei percebeu que o rapaz lançou um olhar furtivo para a porta do outro lado, nos fundos da casa. Sergei a tinha deixado aberta, mostrando a escada que descia até um beco atrás da casa do vendedor de tecidos. Rochelle entrou e imediatamente encostou as costas na parede lateral da porta do corredor, ficando de pé e encarando Sergei, com olhos concentrados e perigosos. O embaixador ergueu as mãos dos braços da cadeira, a direita segurava a bengala. Nico pensou ter podido sentir o feitiço de Varina escondido dentro da madeira.
— Pronto, viu só. Eu não sou ameaça para nenhum de vocês, no momento.
A boca de Nico se contorceu, dando um leve indício de um sorriso.
— E nenhum de nós acredita nisso.
— Eu não esperava que acreditassem — respondeu Sergei.
Mentalmente, o embaixador repetiu o gatilho do feitiço que Varina colocara na bengala para que ele estivesse na ponta da língua, se precisasse usá-lo. Ele se perguntou se seria eficiente contra Nico — Sergei suspeitou que não seria tanto quanto ele esperava.
— Você tem uma rede de informações melhor do que eu pensava, Sergei.
— Eu tive sorte. Alguns de seus ténis morellis tinham as consciências pesadas. Depois da disputa no Velho Templo, eles não confiam mais tanto assim em você, Nico. Eles vieram me contar onde você estaria.
— Não posso dizer que os culpo. — Nico se recostou na cama. — Eu mesmo não confio em mim. O que você teria feito se eu não tivesse mandado os ténis-guerreiros obedecerem ao archigos?
— Há gardai, ténis leais e feiticeiros numetodos suficientes nas ruas para prender o dobro de pessoas que você conseguiu reunir aqui, mesmo com os ténis-guerreiros. — Sergei fechou os olhos e imaginou a cena. — Deixe-me dizer o que teria acontecido. Eles estão esperando pelo meu sinal. Eu teria levado todos vocês imediatamente para o pátio do lado de fora do Palácio da Kraljica, conduzindo o grupo pela Avi A’Parete como uma vara de porcos ao matadouro, para que todos vissem vocês. Quando vocês chegassem ao palácio, haveria uma enorme multidão de cidadãos lá para assistir ao espetáculo, e eu colocaria você e sua gente na frente. Eu arrastaria você, Nico, com torniquetes apertados nos antebraços. Eu diria aos cidadãos que você e os ténis-guerreiros que lhe seguem preferem ver Nessântico queimar e todos eles mortos a cumprir seus juramentos a Cénzi, à fé concénziana e ao povo. Eu teria entregado o machado do carrasco para um voluntário entre os cidadãos... e haveria muitos voluntários, Nico. Eu mandaria essa pessoa arrancar as mãos dos seus braços. Seus gritos ecoariam pelas muralhas do palácio, tão alto que você acharia que Nessântico inteira poderia ouvi-los. Então eu faria com que outro cidadão puxasse a língua da sua boca e a cortasse com uma tesoura incandescente, para que a ferida fosse imediatamente cauterizada. Eu não quereria que você morresse. Não ainda. Eu diria para todos eles — os cidadãos e ténis-guerreiros assistindo — que esse era o castigo da fé concénziana, e que então eu mostraria o castigo do Trono do Sol. Eu amarraria você a um poste e mandaria um garda da Bastida abrir seu estômago e puxar um pedaço dos seus intestinos. Eu amarraria esse pedaço a um molinete e faria o garda extrair suas entranhas aos poucos, com o molinete rangendo e girando. Se você ainda estivesse vivo depois disso, então eu mandaria que você fosse esfolado, sua pele seria arrancada de seu corpo vivo. Quando você finalmente morresse, com sofrimento e tormento, seu corpo seria colocado em uma jaula e exposto, com as mãos e a língua pregados ao crânio.
Nenhum dos dois falou durante a longa história. Sergei abriu os olhos. Nico ainda estava na cama, olhando para o embaixador, mas sua expressão continha uma máscara inescrutável. Rochelle parecia horrorizada. Sua boca estava ligeiramente aberta, e ela evitava olhar diretamente para Sergei.
— Você se deleita com essa fantasia — disse Rochelle, com raiva.
— Sim, me deleito — admitiu Sergei.
O embaixador lançou um olhar breve para Rochelle antes de voltar a atenção para Nico. Ele coçou a base do nariz de metal com o indicador e continuou.
— Eu diria para os ténis-guerreiros que eles teriam duas escolhas. Uma seria renunciar você, obedecer ao archigos e servir a Nessântico, e eles talvez vivessem. A outra seria sofrer seu destino imediatamente. Eu daria essa escolha a cada um. Quantos você acha que teriam seguido você no martírio, Nico?
— Eu não sei. Nem acho que sirva para alguma coisa especular a respeito disso, já que isso não aconteceu. Eu mandei que os ténis-guerreiros obedecessem ao archigos e você os deixou partir. O que importa é o que acontece a partir de agora. — Nico mudou de posição e se sentou de costas eretas na beirada da cama. — Então, o que acontece agora, de fato, Sergei? Você vai tentar me prender de novo?
— Eu posso tentar — respondeu o embaixador, levantando a mão quando Nico começou a contestar. — Apesar da minha fantasia — ele parou e sorriu para Rochelle —, depois de seu espetáculo na praça, eu realmente duvido que eu conseguisse fazê-lo
— Eu não faço ideia de como aquilo aconteceu — disse Nico. — Aquilo foi Cénzi, não eu.
— Então talvez Cénzi, se realmente for Ele, torne ao mesmo tempo difícil e custoso prender você, e é perfeitamente possível que eu não sobreviva à tentativa. Mas há gardai e utilinos suficientes aguardando a minha ordem, estou certo de que, com o tempo, nós teríamos sucesso, mesmo com Cénzi.
— Isto é blasfêmia — disparou Nico.
— Talvez fosse, se eu realmente achasse que Cénzi seria o responsável. Mas...
— Por que você está aqui então, se não é para me prender?
— Estou aqui porque Varina é minha amiga, e ela me pediu para vir. Pessoalmente, eu considero que Varina é indulgente demais com você, mas ela acha que você merece ser salvo, que você pode na verdade se redimir, e também acha que nós precisamos de você. Eu mesmo não tenho tanta certeza. — Sergei bateu com a bengala no tapete sob a cadeira. — O que você quer, Nico?
— Isso é fácil — respondeu o jovem. — Eu quero continuar a servir Cénzi.
— E, por enquanto, o que Cénzi exige de você, na sua cabeça? Seria ajudar a defender Nessântico, como você mandou que os ténis-guerreiros fizessem?
Nico tinha entendido; Sergei pôde ver.
— Se esse fosse o caso, se por acaso eu acreditasse nisso, o que eu ganharia com isso?
— Você ainda precisa responder por muita coisa, Nico — disse o embaixador. — A morte da a’téni ca’Paim, a morte de todos os que tentaram defender o Velho Templo, a destruição, os ferimentos. Varina pode estar disposta a deixar tudo isso passar, mas não a kraljica. Não completamente. Mas... talvez possa se argumentar que a morte de ca’Paim foi acidental e não premeditada, que os gardai que morreram estavam cumprindo seu dever, e que, se os morellis e seu Absoluto servirem bem aos Domínios e jurarem trabalhar com os Domínios no futuro, então talvez grande parte do que aconteceu possa ser perdoado. Não esquecido, jamais esquecido, é claro, mas saberíamos que tudo isso foi imensamente lastimável.
— Você faz uma promessa que não tem autoridade para cumprir, Sergei, nem Varina.
— Mas eu tenho a autoridade para oferecê-la em nome de quem tem — respondeu o embaixador. — A escolha é sua, considerar ou não a promessa.
Nico fez hum baixo na garganta.
— O archigos concorda com isso?
— O archigos não tem nada a ver com isso. É uma questão puramente secular. Você e a fé concénziana terão que chegar a seu próprio acordo, mas se você servir ao Estado, ele vai cuidar para que a Fé não faça nada que, bem, comprometa as suas habilidades. — Sergei bateu a bengala novamente, com mais força desta vez. — Nessântico precisa da sua ajuda, Nico. Eu vi o que você é capaz de fazer. Você seria o mais formidável téni-guerreiro que nós teríamos.
Sergei esfregou o nariz novamente e completou.
— Se isso for o que Cénzi deseja.
— Não faça piada disso, Sergei.
— Eu lhe garanto que estou sendo completamente sério.
— Eu preciso rezar primeiro. Não posso lhe dar uma resposta agora.
O embaixador suspirou.
— E eu não posso esperar, Nico. Lamento.
Sergei gemeu ao se levantar e caminhou até a porta dos fundos. Ele ergueu a bengala; lá fora no beco, figuras se mexeram, e ele ouviu passos correndo no primeiro andar, se deslocando pela casa. Sergei se voltou para o quarto.
— Eu realmente lamen...
Ele ia dizer, mas foi atingido pelo frio do Ilmodo e viu a escuridão no meio do quarto, quando ela se dissipou, nem Nico, nem Rochelle estavam mais lá. Um garda meteu o rosto pela porta.
— Embaixador?
— Parece que o Absoluto mentiu para mim — ele disse para o homem.
Varina embalava Sera em seus braços, de um lado para o outro, em frente à janela. Lá fora, na rua após o pátio na frente da casa, uma fila aparentemente infindável de tropas em uniformes preto e prateado marchava para o oeste. Suas botas soavam uma cadência fúnebre e solene pela Avi a’Parete, como se a cidade em si fosse um tambor. Eles estavam marchando já há uma virada da ampulheta, desde a Primeira Chamada, e o barulho das cornetas que anunciavam a chegada das tropas tinha acordado Serafina. Varina aninhara a criança para sossegar sua agitação. Ela beijou a testa do bebê e sentiu a maciez sedosa do cabelo de Sera em seus lábios.
— Não fique assustada, Sera — sussurrou Varina contra o trovão baixo das botas nos paralelepípedos. — Eles estão aqui para nos proteger, querida. Estão aqui para manter você a salvo.
Ela ouviu uma batida suave na porta do quarto, seguida do rangido de dobradiças.
— A’morce, desculpe o atraso. As ruas estão uma confusão, como a senhora pode imaginar. Eu tive que vir pelos fundos... — A ama de leite, Michelle, entrou no quarto, a passos largos e soltando os laços da blusa. — A pobrezinha deve estar faminta. Aqui, deixe-me pegá-la um pouco...
Varina entregou Sera para Michelle e viu o bebê se agitar por um instante antes de a boca procurar e encontrar o mamilo e começar a sugar.
— Isso mesmo, não estamos famintas? — disse Michelle, sorrindo para Sera antes de olhar para Varina. — Parece tão...
A ama de leite se deteve, e Varina viu os olhos de Michelle ficarem úmidos.
— Desculpe — falou a jovem. — Às vezes, quando eu seguro Sera, eu penso no meu próprio...
Ela parou novamente e engoliu em seco.
— Eu não consigo imaginar a dor que você sentiu ao perder seu bebê — disse Varina. — Lamento muito, Michelle.
A ama de leite assentiu.
— A cidade inteira está em alvoroço — disse a jovem.
A mudança de assunto foi abrupta e, Varina sabia, completamente deliberada. Michelle ergueu o ombro e abaixou a cabeça para secar as lágrimas. Sera se remexeu e se ajeitou novamente em seus braços.
— Dizem que já é possível ver os ocidentais do topo da torre da Bastida. Não sei se é verdade, mas... — Michelle sentiu um arrepio, e Sera parou de mamar por um instante, seus grandes olhos azuis se abriram e se fecharam novamente, e ela voltou a se apegar ao seio. — A’morce, meu marido quer que eu vá para a casa do meu irmão em Ile Verte. Eu pensei, bem, pensei que, se a senhora quisesse... eu poderia...
Varina suspirou e acariciou a cabeça de Sera. Os olhos da criança se abriram novamente, encontrando o olhar de Varina. Sera sorriu por um momento em volta do mamilo, e uma bolha branca escapou de seus lábios antes de voltarem a mamar.
— Acho que seria uma excelente ideia, Michelle. Se você não se importar.
— De maneira alguma. Seria um prazer cuidar dela. A’morce, a senhora deveria vir também. Meu irmão tem uma casa grande lá, e tenho certeza...
Varina negou com a cabeça. Ela lançou um olhar para o exército marchando novamente: era o comboio de suprimentos da retaguarda agora — carroças e cavalos.
— Meu lugar é aqui — respondeu Varina. — Quando você pretende ir?
— Hoje à noite, depois da Terceira Chamada.
— Então por que você não vem pegar Sera na Segunda Chamada? Eu aprontarei as coisas dela para você então.
Michelle assentiu.
— Ela é linda. Foi uma pena o que aconteceu ao vatarh e à sua pobre matarh. Sera tem sorte de ter a senhora, a’morce.
Varina tentou sorrir e descobriu que não conseguia. Ela acariciou a cabeça do bebê novamente.
— Michelle, se alguma coisa acontecer comigo...
— Nada vai acontecer — respondeu a ama de leite rapidamente, sem deixar que ela terminasse.
Varina balançou a cabeça.
— Nós não sabemos disso. Caso alguma coisa aconteça, alguma coisa que signifique que eu não possa cuidar de Sera, você ficaria com ela? Belle fala tão bem de você, e talvez possa amenizar a sua perda, ao menos um pouco.
Michelle estava chorando agora, com a cabeça abaixada ao ver Serafina em seu seio.
— A’morce...
— Só diga sim. — Varina acariciou Sera mais uma vez. — Só isso.
Michelle assentiu de novo, e Varina abraçou as duas de leve.
— Ótimo — disse ela. — Isso me deixa mais tranquila.
Jan viu os offiziers posicionarem suas tropas. Ele, o starkkapitän ca’Damont e o comandante ca’Talin se posicionaram na sacada do segundo andar de uma casa de fazenda, situada em uma pequena elevação a algumas centenas de passos do rio Infante. No telhado da casa, Jan postou pajens com bandeirolas com mensagens, assim como corneteiros com trompas e zinks. Um buraco tinha sido aberto no teto do aposento atrás deles, com uma escada que levava até o telhado para que os pajens pudessem subir do posto de comando até o telhado e ordens pudessem ser dadas lá para cima. Desse ponto de observação, eles podiam ver as companhias sendo dispostas deste lado do rio, assim como os sapadores que colocavam obstáculos ao longo da margem para tentar impedir a travessia dos ocidentais.
Do outro lado do rio, mais perto de Nessântico, trabalhadores cavavam uma linha dupla de barricadas, para onde o exército — caso precisasse recuar — poderia retroceder e resistir à vontade.
Jan torcia para que as trincheiras não precisassem ser usadas, mas suspeitava que seriam.
As tropas ocidentais estavam visíveis no verzehen — um tubo com lentes, criado pelos numetodos, que permitia que a pessoa enxergasse a uma grande distância. Através da imagem circular distorcida e um pouco borrada captada pelo verzehen, Jan observou os offiziers dos tehuantinos, os guerreiros supremos, darem suas ordens. Viu o estandarte de cobra em um campo esmeralda. As tropas marchavam por campos, que antes tinham sido fazendas e bosques. As próprias árvores das florestas que cercavam os campos pareciam balançar com o passar do vasto número de ocidentais. Eles já se aproximavam da vila de Certendi.
Eram inimigos demais. Demais. Como uma colônia de formigas escarlate de Daritria, parecia que eles poderiam cruzar o Infante sobre os corpos dos mortos empilhados na água. Jan passou o verzehen para ca’Talin.
— Eles estão aqui. Chegarão à distância de uma flechada de nossas fileiras à noite. Se eu fosse o general dos tehuantinos, eu pararia ali para reunir as tropas e atacar na nova luz, mas... — O hïrzg deu de ombros. — Eles já fizeram o contrário antes. Nós talvez lutemos no escuro. Os ténis-guerreiros estão aqui?
— A maioria deles chegou ontem à noite, hïrzg — informou ca’Damont. — Praticamente todos do grupo dos Domínios, e a maioria dos nossos. Eles disseram que Nico Morel mandou que viessem.
— Então Sergei cumpriu sua palavra — respondeu Jan. — Excelente. Cénzi sabe que precisaremos de todos eles.
Ele gesticulou para um dos pajens; o menino veio correndo.
— Mande as trompas chamarem os a’offiziers de volta.
O pajem prestou continência e subiu a escada correndo; alguns instantes depois, eles ouviram o chamado nítido e estridente das cornetas.
— Estamos prontos então — falou o hïrzg. — Falaremos com os offiziers e, em seguida, vocês deverão se juntar a seus comandos e se aprontar. Veremos se estamos com as peças posicionadas onde precisam estar. Rezemos para Cénzi que este seja o caso.
Ele olhou através do verzehen mais uma vez e viu as figuras borradas dos guerreiros se aproximando. Jan duvidou que quem estivesse no comando dos tehuantinos sentisse a mesma dúvida que ele.
— Vamos detê-los ali — disse o hïrzg — precisamos fazê-lo.
A grande alameda em forma de anel da Avi a’Parete antigamente definia os limites da cidade de Nessântico, com uma muralha fortificada que percorria toda a sua extensão, exceto pela Ilha a’Kralji, adequadamente protegida pelas águas do A’Sele. Nessântico inteira cabia dentro dessa muralha — e essa muralha tinha sido imprescindível durante as guerras infindáveis entre os feudos de Nessântico e os feudos vizinhos.
Agora, a maior parte dessa muralha antiga tinha sumido, as grandes pedras tinham sido enterradas ou reutilizadas nos prédios da cidade, apenas algumas pequenas seções da construção ainda estavam de pé. Nessântico crescera para muito além dos limites da Avi a’Parete, embora bem mais em outras direções que ao sul. Próximo ao lado de fora das ruínas do velho Sutegate da cidade, ainda havia campos abertos e fazendas, e era ali que Allesandra observava o novo corpo de chispeiros treinar. Eles estavam vestindo roupas cotidianas, a maioria parecia ter sido tirada das ruas do Velho Distrito — o que era o caso, na verdade. Talbot se afastou do grupo assim que a kraljica se aproximou. Ele ajudou Allesandra a descer da carruagem, ainda vestido com o uniforme do palácio. Ela olhou para os homens no campo.
— Perdoe a aparência deles, kraljica — disse Talbot ao se dar conta do aspecto dos homens. — Eu só tive dois dias para trabalhar com eles.
— Onde está Varina? Eu pensei que estes instrumentos fossem ideia dela — perguntou Allesandra.
— Ela está resolvendo as coisas com a criança. Depois ela vai para a linha de frente ao norte com o hïrzg, juntamente com a maior parte dos numetodos. Eu pensei que a senhora soubesse. O hïrzg pediu o máximo de feiticeiros disponíveis.
Allesandra assentiu — Varina tinha lhe contado isso ou ela tinha esquecido? Alguém no grupo de chispeiros berrou a ordem para “disparar”. O estampido das chispeiras espocou, e uma fumaça branca eclodiu na ponta dos tubos de metal. Do outro lado do campo, alvos de papel presos em fardos de palha se agitaram ao serem atingidos pelas balas de chumbo.
Os cavalos levaram um susto nos tirantes da carruagem e arregalaram os olhos. O condutor puxou as rédeas e gritou seus nomes.
Allesandra notou que ela mesma deu involuntariamente um passo para trás diante da violência do som e quase caiu para trás, dentro da carruagem.
— A senhora deveria enfiar um pouco de papel nas orelhas, kraljica — sugeriu Talbot. — Esses instrumentos fazem uma algazarra infernal.
— A menos que o nosso inimigo esteja imóvel, parece que um tiro é tudo o que nosso corpo de chispeiros terá antes de os guerreiros estarem em cima deles — comentou Allesandra; todos os chispeiros estavam recarregando suas armas, e o processo parecia tomar um tempo excessivo. — Os tehuantinos estão acostumados com o barulho da areia negra; eles não vão se assustar com isso.
Talbot sorriu.
— Essa foi a minha preocupação, kraljica. Nós fizemos algumas pequenas modificações no projeto original de Varina. A carga de areia negra e balas é pré-fabricada, então não são necessárias medidas no campo. Nós também pensamos que, se estendêssemos um pouco o cano, poderíamos aumentar a distância e a precisão do tiro. E parece que isso deu resultado, embora isso tenha tornado a arma mais pesada e volumosa.
Lá fora no campo, alguns homens trocavam os alvos por novos. Os chispeiros ainda estavam recarregando suas armas.
— Preciso ou não, ainda é um só tiro. Se tudo o que eu tivesse fosse um único golpe de espada enquanto o inimigo podia atacar livremente, então a batalha acabaria rapidamente. Não faria diferença se eu tivesse a arma mais afiada.
— De fato — concordou Talbot. — Por isso eu pensei um pouco sobre a tática. Deixe-me demonstrar... Cartier, forme um esquadrão com fileiras de quatro.
Um dos homens fez uma leve mesura para eles e berrou mais ordens. Doze homens formaram três fileiras espaçadas com quatro homens, organizadas por Cartier. Talbot deu um passo na direção delas.
— Primeira fileira, ajoelhar! — gritou ele. — Primeira fileira, atirar!
Quatro chispeiras foram disparadas, e os estampidos ecoaram no campo. Os homens da primeira fileira se levantaram, cada um deu um passo para a esquerda e voltou para a retaguarda. Eles começaram a recarregar as armas.
— Segunda fileira, ajoelhar! — berrou Talbot. — Segunda fileira, atirar!
Novamente, soaram os estampidos e a fumaça branca foi levada pelo vento. Os homens se levantaram e foram para trás da primeira fileira.
— Terceira fileira, ajoelhar! — gritou ele. — Terceira fileira, atirar!
Outra série de trovões, e a terceira fileira recuou. A primeira fileira já tinha recarregado suas armas a esta altura.
— Primeira fileira, ajoelhar! Primeira fileira, atirar!
Outra saraivada, e Talbot sorriu para Allesandra.
— Alto! — berrou ele para os chispeiros, e se virou para Allesandra. — Kraljica?
Os flancos dos cavalos tremiam e puxavam as rédeas ansiosamente, e o condutor fazia um grande esforço para evitar que os animais saíssem correndo. Os ouvidos de Allesandra zumbiam com o barulho das armas.
— Isso foi impressionante, Talbot — disse a kraljica, e o sorriso dele aumentou.
— Um esquadrão com três fileiras pode disparar três saraivadas em alguns segundos e continuar atirando até acabarem as cargas de areia negra, apesar de, após vários tiros, as chispeiras ficarem quentes demais para dispararem com segurança.
— Mas uma coisa é ficar ali com nada além de fardos de palha para encarar, outra é ver o inimigo avançando com a intenção de matá-lo — continuou Allesandra. — Esses homens não são soldados, Talbot. Não são chevarittai. Sequer são numetodos. Eles parecem padeiros e doceiros, açougueiros e boticários.
— Sim, a maioria deles é composta por civis — admitiu Talbot. — Eu não sei como eles reagirão quando o momento chegar. Mas a eficácia... As armas de areia negra que usamos antes exigiam grandes quantidades de material, e não eram precisas: a explosão poderia matar várias pessoas ou ninguém, ou poderia matar os próprios aliados se a pessoa não tomasse cuidado. Os feitiços têm um alto custo em tempo e exaustão, e exigem anos de treinamento antes que se consiga usá-los bem. Usar uma espada ou lança eficazmente também exige semanas ou meses de treinamento. Estas...
Ele gesticulou para o campo e concluiu.
— As chispeiras de varina usam pouquíssima areia negra, são precisas como um feitiço e exigem apenas uma virada ou duas de treinamento para serem usadas. Elas mudam toda a equação.
— É disso que tenho medo — interrompeu Allesandra. — O poder que você deu à ralé destreinada...
— Infelizmente, a ralé é praticamente tudo que temos entre nós e os tehuantinos no momento, kraljica, a não ser que a senhora ache que a Garde Brezno pode fazer o impossível.
A kraljica franziu a testa e respondeu.
— Eu sei. Mesmo assim, alguma coisa nessa equação... — Ela deu um tapinha no ombro de Talbot. — Desculpe, Talbot. Eu só estou preocupada com o que isso pode significar no futuro: para os Domínios, para a fé concénziana, para a nossa sociedade.
Allesandra franziu os lábios e interrompeu o pensamento.
— Você fez um belo trabalho — disse ela. — Tudo que pedimos e mais. Só espero que isso funcione quando o momento chegar... e terá que funcionar.
A kraljica se empertigou e subiu no degrau da carruagem.
— Continue com o trabalho. Enquanto isso, eu preciso falar com Sergei e verificar a Garde Brezno.
Talbot fez uma mesura; ela entrou completamente na carruagem e gesticulou para o condutor. Ele estalou as rédeas no lombo dos cavalos, e com um ruído das rodas, a carruagem partiu aos solavancos.
Seus pés doíam e suas costas latejavam a cada passo. Os tehuantinos tinham passado por três vilarejos até o momento, enquanto marchavam, desertos — Tototl permitiu que os guerreiros procurassem comida e suprimentos, depois ordenou que as casas fossem queimadas. A fumaça ainda manchava o céu atrás deles.
Niente não queria nada além de se deitar e deixar que os guerreiros e nahualli o abandonassem na terra. Ficou agradecido quando Tototl mandou interromper a marcha acelerada. Ele desmoronou na grama ao lado da estrada e aceitou o pão, o queijo e a água que tinham sido oferecidos por um nahualli, sorvendo o frescor agradável. Niente viu uma sombra crescer e se aproximar dele. Tototl o observava.
— Eu vou lhe arranjar um cavalo, uchben nahual.
— Eu ficarei bem em um instante, guerreiro supremo.
— Eu vou lhe arranjar um cavalo — Tototl repetiu. — Eu preciso que o uchben nahual esteja pronto quando começarmos o ataque hoje à noite.
Niente raramente falava com Tototl, uma vez que os guerreiros supremos, com a exceção do tecuhtli com o nahual, raramente interagiam com os nahualli. Ele percebeu que estava olhando para o rosto pintado do homem se perguntando no que o guerreiro estaria pensando.
— Estamos assim tão próximos então?
— Veremos o topo das casas quando cruzarmos a próxima elevação. Os batedores me disseram que há tropas se aprontando para nos enfrentar. A batalha começará muito em breve agora.
Por alguns instantes, Tototl ficou em silêncio, e Niente ficou satisfeito em poder se sentar na margem de grama da estrada. A brisa tinha o cheiro da fragrância desta terra. Então Tototl se mexeu.
— O que você viu quando olhou na tigela premonitória, uchben nahual? Eu o observei, observei seu rosto, e não acredito que tenha dito tudo para o tecuhtli Citlali.
— Eu disse a verdade — insistiu Niente. — O nahual Atl viu a mesma coisa.
A boca de Tototl se contorceu sob a pintura da tatuagem que adornava seu rosto.
— Seu filho não é você, uchben nahual. Ele pode vir a ser um dia, mas ainda não é. Você está omitindo alguma coisa, alguma coisa que lhe assustou. Eu vi no seu rosto, Niente. Quero saber: você nos viu derrotados?
Niente balançou a cabeça. Eu vi a nossa vitória aqui e seu preço terrível. Vi que isso poderia ser evitado e que esse futuro era confuso e emaranhado demais para ser previsto.
— Não — respondeu ele.
— Eu não tenho medo de morrer. — Tototl estava olhando ao norte na estrada, como se já pudesse ver a cidade. — Morrer em batalha é um fim que todo guerreiro supremo busca. Não é o medo de morrer; estou com medo do preço que isso cobrará dos tehuantinos.
Tototl olhou novamente para Niente, e uma esperança brotou dentro dele, uma esperança de que o guerreiro pudesse entender o que Citlali não entendia.
— É disso que você também tem medo, uchben nahual?
A garganta de Niente pareceu se fechar com o olhar fixo de Tototl. Ele concordou em silêncio.
— Então você viu alguma coisa.
Dessa vez Tototl falou com convicção. Niente balançou a cabeça.
— Eu não sei — respondeu ele. — Eu vi muitos caminhos, guerreiro supremo. Vários, e todos eles incertos. Mas...
Niente respirou profunda e lentamente. Será que você pode confiar neste homem? Será que isso é uma armadilha preparada por ele, talvez até mesmo por Citlali e Atl?
— Deixe-me perguntar uma coisa: se você matasse um guerreiro em um desafio, poderia alegar que conquistou uma vitória. Mas se, ao matar esse guerreiro, você, por sua vez, enfurecesse tanto o filho dele que, quando este se tornasse um guerreiro e trouxesse um exército destruindo tudo o que você construiu, destruindo completamente tudo o que você ama, sem possibilidade de recuperação? Essa vitória inicial valeria a pena?
— Isso dependeria — respondeu Tototl —, se você pudesse dizer, sem dúvida, que o filho faria tudo isso.
Niente balançou a cabeça.
— O futuro nunca está completamente garantido. Mesmo o que acontecerá daqui a um instante pode ser mudado se Axat quiser. Mas, se eu dissesse que este era o resultado provável? Você conteria o golpe da espada?
— Se esse golpe da espada me custasse a própria vida talvez não — disse Tototl. — Nenhum guerreiro quer oferecer sua vida de graça para o inimigo. Eu acho que a mesma coisa valeria para um nahualli.
— Eu diria o mesmo no seu lugar — falou Niente.
Tototl inclinou a cabeça ligeiramente. Ele resmungou alguma coisa que pareceu ter sido um assentimento.
— Já que você diz que o futuro é sempre incerto, você apoiaria um guerreiro supremo plenamente, uchben nahual, mesmo que pensasse que esse seria o caminho errado?
— Esse é o dever de um nahualli — respondeu Niente.
Um rápido sorriso se formou no rosto de Tototl, e Niente percebeu que o guerreiro entendeu que ele não tinha respondido completamente à pergunta.
— Eu vou lhe arranjar um cavalo, uchben nahual — disse Tototl.
— Ela estava com ele? Você tem certeza de que era ela?
Sergei concordou com a cabeça.
— Era Rochelle, hïrzgin. Então ao menos essa parte da história que ela me contou parece ser verdade. Rochelle foi criada como irmã de Nico pela Pedra Branca. Se ela sabe ou não se ele é de fato seu irmão...? — Sergei ergueu um ombro cansado. — Eu não tenho certeza de que Rochelle entende isso.
Ele e Brie estavam montados em seus cavalo, olhando para os campos em volta da Avi a’Sutegate onde a Garde Kralji estava acampada. Sergei sabia que havia poucos homens — dados os relatórios que os batedores tinham informado sobre o tamanho das forças ocidentais que avançavam na direção deles. Embora os offiziers tivessem ensaiado manobras com os gardai, suas tropas pareciam morosas e confusas. Elas não tinham sido treinadas para isso: combate aberto em grande escalada contra outra força organizada e treinada. Isso tinha sido demonstrado na disputa do Velho Templo, quando até mesmo os igualmente destreinados morellis foram capazes de contê-los por um tempo considerável. A Garde Kralji era uma guarda pessoal e unidade policial, não um batalhão do exército.
A batalha não será vencida aqui, Sergei pensou consigo mesmo. Será vencida do outro lado do rio A’Sele, com o hïrzg e a Garde Civile. Só temos que nos defender aqui, detê-los por tempo suficiente para que a Garde Civile retorne e nos salve.
O embaixador estava bastante certo de que eles precisariam desse resgate e não tinha muitas esperanças de que o socorro viria.
— Eles parecem muito atrapalhados e lentos, e eu não estou nada impressionada com os offiziers — disse Brie ao lado de Sergei, como se tivesse ouvido os pensamentos do embaixador.
Ela estava vestida com uma armadura completa sobre uma tashta acolchoada e carregava uma espada na lateral, embora o elmo ainda estivesse amarrado à sela. Seu cabelo estava preso em uma trança que lhe caía pelas costas. A hïrzgin parecia estar completamente à vontade no traje marcial — assim como, pensou Sergei, Allesandra parecia quando comandava as tropas em campanha. Era uma pena, pensou o embaixador, que ambas não tivessem se conhecido há tanto tempo. O filho de Allesandra se casara com alguém muito parecida com sua matarh, consciente ou inconscientemente.
— Eu queria ter trazido a Garde Brezno também. A Garde Kralji vai precisar de uma liderança forte em campo ou vão debandar assim que o combate se torne difícil.
— Realmente — respondeu Sergei. — A kraljica e a hïrzgin estarão no comando. O comandante co’Ingres, infelizmente, ainda sofre com os ferimentos, e o a’offizier ci’Santiago é, bem, digamos apenas que ele é inexperiente.
— Onde está a kraljica?
— A caminho, eu espero. Ela deve estar chegando a qualquer momento agora.
Brie assentiu, emitindo um ruído. Sergei viu a hïrzgin se debruçar na sela e ouvir o couro ranger. Ela olhava para o sul.
— Aquele é outro de nossos batedores? Ele está cavalgando rápido...
Brie apontou, e o embaixador viu uma nuvem de poeira ao longe, na Avi. Ele já não enxergava, e não pôde distinguir o cavaleiro ou as cores de seu uniforme.
— Pode ser — respondeu Sergei. — Seja quem for, está vindo rápido. Deve estar trazendo notícias.
Os dois estalaram as rédeas dos cavalos e desceram a meio galope até a estrada para encontrar o cavaleiro. O a’offizier ci’Santiago se juntou a eles quando o cavaleiro se aproximou galopando na montaria agitada. O cavaleiro prestou continência para eles.
— Os ocidentais — disse o homem, ofegante. — Não muito longe, na estrada... Mil ou mais... Todos na estrada.
Ele parou e recuperou o fôlego.
— Algumas viradas da ampulheta e os ocidentais estarão aqui — disse o cavaleiro. — Estão vindo em marcha acelerada e têm vários feiticeiros com eles, e também peças de máquinas de fazendas. Precisamos estar prontos.
Ci’Santiago assentiu, mas não teve reação. Sergei suspirou.
— Precisamos chamar Talbot e os chispeiros; a’offizier, talvez o senhor possa dar um cavalo novo para este homem e mandar que ele passe a mensagem adiante. Hïrzgin...
— Eu assumirei o comando de campo das tropas até a kraljica chegar — disse Brie. — Embaixador, você e o comandante co’Ingres podem cuidar da estratégia principal aqui nas tendas de comando.
Sergei notou que a hïrzgin já olhava para a paisagem e decidia onde colocar as tropas para melhor proveito.
— Vou precisar de sinalizadores, corneteiros e mensageiros, e quero falar com os offiziers. A’offizier ci’Santiago, preciso que você cuide disso imediatamente. O que você está esperando? Não há tempo, homem. Ande!
Ci’Santiago olhava boquiaberto para Brie, um instante depois, ele fechou a boca e prestou continência enquanto Sergei prendia o riso. O homem virou o cavalo e foi embora a galope, seguido pelo batedor. A hïrzgin olhava para o sul, com a boca franzida. Sergei pensou ter visto fumaça surgindo no horizonte.
— Eu acho que a senhora assustou o pobre homem — disse o embaixador, e Brie soltou uma gargalhada. — A esta altura ele provavelmente já deve estar reclamando da mulher demoníaca de Firenzcia.
— Se sobrevivermos a isso, eu ficarei satisfeita em ser a demoníaca. Você acha que sobreviveremos, embaixador?
— Eu estaria aqui se não achasse? — respondeu Sergei, torcendo para que ela não percebesse a mentira.
Nico ouviu a tranca dos portões da casa ser aberta levemente por Rochelle; ela sorriu para o irmão enquanto guardava as peças finas de metal dentro do embrulho.
— Fácil — disse Rochelle ao empurrar os portões para abri-los.
Nico entrou de mansinho na frente dela, mas sentiu Rochelle colocar a mão em seu ombro quase que imediatamente. Sob o capuz que ocultava seu rosto, ele olhou para a irmã; o manto pesado escondia o robe verde.
— Tem algo errado aqui — alertou Rochelle.
— O que você quer dizer?
— Escute — respondeu ela.
A rua do lado de fora dos portões estava lotada de gente saindo da cidade. Eles ouviram as vozes: os berros, as discussões, os gritos de crianças pequenas demais para compreender o pânico dos pais e parentes. Ela ouviu o estalo e os rangidos de carroças, os pés sendo arrastados no pavimento, os apitos dos utilinos que tentavam em vão direcionar o trânsito e impedir os confrontos inevitáveis.
— Tem todo esse barulho lá fora — disse Rochelle. — Mas aqui dentro... os funcionários deveriam estar correndo, preparando as coisas para sei lá o que, mas não se ouve nada. As persianas das janelas estão todas fechadas e provavelmente trancadas, e eu não ouço nada. Está silencioso demais aqui.
— O que você quer dizer?
Nico sussurrava. Ele já sabia a resposta, e sentiu o desespero se alojar em seu estômago.
— Eu acho que ela não está aqui, Nico. Acho que já foi embora. Lamento.
Irritado, Nico empurrou Rochelle e caminhou a passos largos em direção à porta da frente da casa de Varina. Estava trancada, em vez de esperar pela irmã, ele deu um chute forte e a madeira em volta da tranca rachou. Nico deu mais um chute e a porta se abriu.
— Sutil — disse Rochelle atrás dele.
Nico a ignorou e deu um passo na entrada de mármore. Agora ele sabia que Rochelle estava certa; os criados teriam vindo correndo, prontos provavelmente para defender a casa, mas não havia ninguém visível.
— Varina? — chamou Nico.
Ele pensou ter visto um gato cruzar o corredor a sua frente. Exceto pelo gato, não houve resposta. Nico ouviu Rochelle entrar na casa atrás dele e percebeu que ela empunhava uma faca, com a lâmina exposta.
— Não vamos precisar disso — falou Nico.
— Provavelmente, não. Mas me faz sentir melhor.
Ele deu de ombros. Nico andou devagar pelo corredor e espiou as salas de visitas em ambos os lados. A mobília ali estava coberta por lençóis; o gato olhou fixamente para ele de cima de uma poltrona coberta, depois voltou a lamber as patas dianteiras. Nico continuou a percorrer a casa: o solário, a biblioteca, as cozinhas — todos estavam igualmente vazios, não parecia que Varina esperava retornar em breve. Ele ouviu o chamado de Rochelle do segundo andar e seguiu o som da voz dela. Ela havia tinha embainhado a faca e estava parada na porta do que só poderia ser o berçário. A mobília ali também estava coberta. Rochelle abriu as gavetas da cômoda em uma parede.
— Vazias — disse ela. — Eu disse: Serafina não está aqui, Nico. Os numetodos a levaram para outro lugar.
Nico balançou a cabeça.
— Varina ainda está na cidade. Eu posso sentir.
Rochelle ergueu uma sobrancelha.
— Bom, se está, não está aqui, e o bebê também não.
— Ela despachou Sera — falou Nico.
— Isso eu inferi. Então, será que Cénzi pode lhe dizer para onde?
Ele fez uma careta para Rochelle, ele ia alertá-la sobre a blasfêmia em seus lábios, mas se conteve. Ela pareceu notar também e ergueu a mão.
— Muito bem, então você não sabe. O que nós sabemos para valer? — perguntou Rochelle, mas Nico só conseguiu balançar a cabeça.
— Eu não sei.
Após o confronto com Sergei, ele esperava pegar Sera, sair da cidade com a filha e a irmã e encontrar um lugar para pensar e rezar: para saber o que Cénzi queria dele, para saber como amenizar a culpa e a dor que carregava... Nico esperava — e rezava — que Cénzi lhe desse sua filha, mas parecia que Cénzi ainda tinha planos para ele. Nico olhou para cima.
— Cénzi, o que o Senhor está tentando me dizer?
Ele prestou atenção aos sussurros em sua cabeça e coração, seu rosto ficou sério.
— Acho que chegou o momento de nos separarmos por um tempo — Nico disse para Rochelle.
A Fúria da Tempestade
O sol estava se pondo a oeste no fim da tarde, mas onde antes havia um céu claro, agora uma tempestade se anunciava do outro lado do rio Infante. Uma massa de relâmpagos e trovões se exibia alto no céu, embora houvesse nuvens espreitando perto do solo, de maneira inacreditável. O exército dos tehuantinos estava envolvido por suas sombras, e a tempestade caminhava a passos irregulares com seus raios inconstantes.
As nuvens negras e turbulentas estavam se espalhando ao sul e seguindo a linha de frente estabelecida pelos tehuantinos. O cavalo de Jan se agitou embaixo dele e bufou quando o trovão baixo rosnou como uma grande fera. Havia um odor intenso no ar que fez Jan franzir as narinas.
— Tempestade de guerra — murmurou um chevarittai ao lado de Jan. — Que covardes... eles nem ao menos nos darão a oportunidade de lutar corpo a corpo honrosamente primeiro.
Jan concordou — ele já tinha ouvido falar das tempestades de guerra dos tehuantinos, invocadas pelos feiticeiros: um feitiço cooperativo. Os ocidentais usaram as tempestades de guerra com grande efetividade da última vez que estiveram aqui, assim como durante as batalhas com os Domínios nos Hellins, mas Jan nunca tinha visto uma. Ele duvidava que fosse gostar da experiência em primeira mão.
— Alertem os ténis-guerreiros — ordenou o hïrzg dando um tapinha no pescoço do cavalo para acalmá-lo. — Vamos precisar deles. O ataque está começando.
Jan, seguido por várias companhias de tropas e chevarittai firenzcianos, estava a oeste do rio Infante, logo abaixo da vila de Certendi. A ponte sobre o rio estava às suas costas. Ao leste do rio, ele podia ver as barricadas que tinham sido construídas; o hïrzg tinha pouca esperança de que eles conseguissem dominar a margem oeste por muito tempo. O starkkapitän ca’Damont estava mais perto do leito do rio, com o restante do exército firenzciano; e o comandante ca’Talin, junto à Garde Civile dos Domínios, estava ao extremo sul da linha de frente, perto do ponto onde o Infante se reunia ao A’Sele.
— Diga aos seus homens que eles precisam resistir — disse Jan para os chevarittai.
Ele puxou as rédeas do cavalo e galopou colina abaixo através das fileiras de infantaria e arqueiros.
— Resistam! — Jan disse para todos eles. — Nós precisamos resistir aqui.
À medida que a tempestade de guerra avançava e o rugido da grande nuvem ficava mais alto e sombrio, os ténis-guerreiros avançavam. Jan gesticulou para os robes verdes.
— É aqui que vocês começam a receber seu perdão. Aquela tempestade tem que ceder.
A tempestade se aproximava a cada instante. O ar tinha cheiro de raios, mas não de chuva. À frente das tropas, no que tinha sido um campo com plantação de trigo e grãos, o hïrzg tinha mandado construir armadilhas para os guerreiros tehuantinos: espetos afiados de ferro fincados no chão, buracos encobertos com os fundos cheios de estacas de madeira, pacotes de areia negra que Varina e os numetodos tinham encantado para que explodissem quando alguém pisasse perto deles. A tempestade marchava pelo campo, mas não ainda os guerreiros ocidentais. Os raios rasgavam o solo, arrancavam os espetos e expunham os buracos, jogando terra para todos os lados e fazendo os pacotes de areia negra explodirem inofensivamente.
Jan praguejou para os ténis-guerreiros.
— Agora! — berrou ele. — Agora!
Os ténis-guerreiros começaram a entoar seus cânticos e disparar a energia do Ilmodo na direção da falsa tempestade. A cada feitiço lançado, a tempestade começava a se desmanchar, e mais abaixo, eles puderam ver os guerreiros tehuantinos escondidos, marchando gradualmente em sua direção.
— Arqueiros! — gritou Jan.
Atrás dele, as cordas dos arcos rangeram ao serem tensionadas, uma leve saraivada de flechas desenhou um arco no alto, caindo como uma chuva sobre os ocidentais. Eles ergueram seus escudos imediatamente. Jan viu vários guerreiros caírem, apesar da proteção, ainda que, sempre que um caía, outro tomava seu lugar. Ao sul, a tempestade se assomava sobre as fileiras dos Domínios, e o hïrzg ouviu gritos de dor e susto quando seus raios atacaram os soldados de lá. Mas a tempestade já começava a se desmanchar — o poder que a mantinha fora gasto. Agora Jan ouviu os berros guturais dos feiticeiros ocidentais; bolas de fogo guincharam como moitidis furiosos na direção deles. Os ténis-guerreiros entoaram os contrafeitiços; o hïrzg viu várias bolas de fogo explodirem inofensivamente no ar, mas outras passaram e colidiram contra as fileiras, cuspindo sua terrível destruição flamejante e abrindo brechas na linha de frente. O cavalo de Jan empinou, aterrorizado.
— Avancem as fileiras! Tapem as brechas! — berrou o hïrzg enquanto tentava acalmar seu cavalo.
Os offiziers gritaram instruções; as bandeirolas de sinalização foram sacudidas.
Então, com um grande grito, os guerreiros avançaram, havia pouco tempo para se pensar em qualquer coisa. Jan desembainhou a espada e esporeou o cavalo para seguir em frente. Os chevarittai soltaram um berro de fúria e seguiram o hïrzg, os gardai da infantaria avançaram como uma onda preta e prateada para encarar os ocidentais.
Eles colidiram em um turbilhão de espadas, lanças e piques.
Jan tinha lutado contra as legiões de Tennshah. Esses ocidentais eram igualmente ferozes enquanto guerreiros, mas bem mais disciplinados. O hïrzg ouviu os offiziers dos tehuantinos berrarem ordens expressas na língua deles, e os feiticeiros estavam entre eles, brandindo seus cajados estalando e brilhando com os feitiços. Dessa parte Jan se lembrava. Ele golpeou um mar de rostos marrons pintados de vermelho e preto com sua espada, e sempre que derrubava um, outro guerreiro surgia para tomar seu lugar. Eles estavam sendo repelidos aos poucos, e, mesmo assim, os ocidentais continuavam surgindo. Jan percebeu que eles não resistiriam deste lado do rio — se fossem repelidos tão próximo ao rio, não haveria uma retirada organizada; eles seriam massacrados.
— Recuar! — berrou o hïrzg. — Para a ponte! Para a ponte!
Os offiziers atenderam ao grito; os porta-estandartes sacudiram as bandeirolas de sinalização, as cornetas tocaram o sinal. As tropas firenzcianas, disciplinadas e precisas como sempre, cederam terreno, como tinham sido treinadas, a contragosto, permitindo que os arqueiros e ténis-guerreiros cobrissem a retirada e carregassem os feridos, sempre que possível.
Os mortos, eles deixaram.
Ali, havia duas pontes que cruzavam o Infante, com oitocentos metros de distância uma da outra. A ponte norte, que corria pela Avi a’Nostrosei, já tinha sido destruída. A ponte da Avi a’Certendi ainda estava em pé. O Infante podia ser cruzado, mas não seria fácil, pois a correnteza era rápida e havia poças profundas que apenas os locais conheciam. Os arqueiros e ténis-guerreiros foram os primeiros a passar pela ponte enquanto a infantaria e os chevarittai continham os ocidentais, sob as ordens dos offiziers para correr em direção às barricadas que tinham sido erguidas do outro lado. Jan permaneceu com os homens, sua armadura estava manchada de sangue e amassada, o aço cinzento da sua espada firenzciana estava sujo de sangue seco, até que a ponte estivesse liberada e os arqueiros tivessem entrado novamente em formação do outro lado.
— Fujam! — ele gritou, finalmente, quando ouviu as trompas do outro lado do Infante.
Eles correram em direção à ponte. Jan se virou ali novamente e conteve os guerreiros que o perseguiam, urrando. O chão em torno dele e dos chevarittai estava coberto de corpos. Um feiticeiro brandiu seu cajado, e o chevaritt ao lado do hïrzg caiu, emitindo um berro e emanando cheiro de enxofre, mas o feiticeiro foi abatido no momento seguinte. A maior parte da infantaria estava do outro lado.
— Cruzem a ponte! — gritou Jan. — Chevarittai, cruzem!
Eles viraram seus cavalos e fugiram. Os cascos dos cavalos de guerra bateram nas tábuas da ponte, e o hïrzg gesticulou para os ténis-guerreiros que esperavam do outro lado. Os tehuantinos os perseguiram, estavam perto demais. Os guerreiros já estavam na extremidade oeste da ponte.
— Agora! — berrou Jan ao chegar à terra firme do outro lado. — Derrubem a ponte!
— Hïrzg, não antes de estarmos atrás das barricadas — disse alguém.
Jan ficou de pé nos estribos, furioso, e rugiu.
— Derrubem a ponte agora!
Os ténis-guerreiros entoaram os cânticos e o fogo começou a subir pelas vigas de madeira. As chamas lamberam o papel que embrulhava a areia negra amarrada ali.
A explosão atirou pedaços da ponte para o alto, pedaços enormes de vigas se contorceram, os tijolos e pedras das pilastras cortaram o ar. Os guerreiros e gardai foram igualmente golpeados. Um dos tijolos bateu em Jan, e o impacto o derrubou do cavalo. Ele ouviu o cavalo relinchar também, um som horrível. Ao cair, o hïrzg viu o centro da ponte entrar em colapso e cair no Infante devolvendo um imenso espirro d’água, levando uma massa de guerreiros ocidentais com ela.
Então Jan caiu no chão. Por um momento, tudo ficou preto a sua volta. Quando recuperou a consciência, ele viu rostos e mãos sobre si.
— Hïrzg, o senhor está ferido?
Jan permitiu que o ajudassem a levantar. Seu peito doía como se o cavalo tivesse caído sobre ele, e a armadura onde o tijolo o tinha atingido estava amassada. Seu peito ardia a cada inspiração; ele teve que respirar aos poucos enquanto se livrava das mãos sobre si. O cavalo se debatia no chão, com uma tábua enterrada em seu flanco.
A ponte tinha sido destruída. O sol já tinha se posto ao nível das árvores e projetava longas sombras sobre o campo de batalha. Os ocidentais tinham recuado para o limite da água para sair do alcance das flechas. Jan mancou até o cavalo. Uma das patas dianteiras do garanhão estava quebrada, e sangue espirrava do longo ferimento em seu flanco.
— Minha espada? — pediu ele, e alguém lhe entregou a arma.
O hïrzg se ajoelhou ao lado do cavalo e acariciou seu pescoço.
— Descanse — falou Jan. — Você serviu bem.
Com um gemido de dor, ele ergueu a espada e golpeou com força, abrindo um corte profundo no pescoço do animal. O cavalo tentou se levantar uma última vez, depois ficou imóvel. O mundo parecia dançar em volta de Jan, sua visão periférica se escureceu novamente. Ele se forçou a ficar de pé, apoiado na espada.
— Formem as fileiras atrás das barricadas — disse o hïrzg para quem estava ao redor. — Cuidem dos feridos e organizem as vigias. Mandem os a’offiziers virem até mim e avisem o starkkapitän e o comandante sobre o que...
Aconteceu aqui...
As palavras estavam em sua mente, mas não pareciam sair. A escuridão tomou conta dele demais, apesar do sol ainda estar visível no céu.
Ele se sentiu cair.
Não havia nahualli suficiente com Niente para criar uma tempestade de guerra. À frente deles, sob a luz dourada do fim de tarde, os tehuantinos viram as tropas orientais dispostas nas encostas dos morros, em ambos os lados da estrada. O número de guerreiros parecia ser muito maior que a quantidade de orientais, a menos que eles tivessem tropas reserva escondidas do outro lado da encosta.
Tototl bufou desdenhosamente.
— Isso é tudo que eles têm contra nós? — comentou ele, e os guerreiros próximos riram. — Uchben nahual, chegou o momento de fazer o que conversamos.
Niente assentiu para Tototl, virou o cavalo e cavalgou de volta ao abrigo dos nahualli entre os guerreiros. Ele mandou que os nahualli enchessem seus cajados mágicos como de costume na noite anterior, para que pudessem realizar o feitiço quando fosse necessário e ainda estarem descansados para a batalha. Eles não podiam criar a tempestade de guerra, mas podiam criar uma nuvem grande o suficiente para encobri-los. Foi o que fizeram agora: o cântico em massa reuniu o poder do X’in Ka, a energia se condensou no ar e se tornou visível. Filetes de nuvem começaram a flutuar em frente aos guerreiros, da estrada até quase às margens do rio, uma bruma espessa se formou e adensou, uma muralha formada pelos nahualli para que os orientais não pudessem mais vê-los. Essa muralha não acompanharia as tropas, nem geraria os raios da tempestade de guerra. Niente gesticulou quando não conseguiu mais ver as tropas orientais à frente deles, nem os morros onde elas estavam, e os nahualli interromperam o cântico.
Niente cambaleou, como se tivesse corrido até o rio e voltado: o preço do cântico e da canalização de energia, mas ele se forçou a se manter de pé, embora muitos jovens nahualli tivessem desmoronado, ofegantes. Usar o X’in Ka desta forma — para criar um feitiço sem se dar tempo de recuperar o esforço — tinha um preço alto; Niente não compreendia por que os feiticeiros orientais geralmente faziam magia dessa forma, em vez de estocar os feitiços para serem lançados mais tarde.
— Levantem-se — falou ele. — Peguem os cajados mágicos. Ainda há uma batalha a ser travada.
Com a muralha de bruma impedindo a visão das tropas orientais, Tototl berrou ordens, gesticulou para os guerreiros de menor escalão e os guerreiros supremos responsáveis por eles. Duas companhias seguiram para a esquerda, em direção ao rio — elas contornariam os orientais que avançariam contra os inimigos em sua retaguarda e nas laterais. Tototl esperou até o braço do flanco se afastar e Niente cavalgar até ele.
— Se isto é tudo o que está entre nós e a cidade, nós chegaremos lá esta noite, uchben nahual — falou o guerreiro supremo. — Parece que seu filho enxergou bem: nos mandar cruzar o rio é o caminho para a vitória. Eles não estavam preparados para isso. Nós avançaremos até a cidade e surgiremos contra o restante do exército oriental pela retaguarda, enquanto Citlali e o nahual Atl atacam pela vanguarda. Eles serão esmagados por nós como uma noz com casca entre pedras.
O comentário só fez Niente fechar a cara. Ele tentou usar a tigela premonitória na noite anterior: tudo estava confuso, e os poderes se mexiam do lado dos orientais, de maneira que não foi possível ver claramente, e o Longo Caminho lhe escapou completamente. Tototl pareceu achar graça na irritação de Niente; ele riu.
— Não se preocupe, uchben nahual — falou o guerreiro supremo. — Eu ainda tenho fé em você. Seu cajado mágico está cheio?
Niente levantou o cajado de madeira de lei de ébano que ele tinha entalhado com tanto cuidado há décadas com seus símbolos de poder. Com os anos, suas mãos poliram o punho nodoso e o centro do cajado, deixando um acabamento acetinado e reluzente. O objeto parecia fazer parte dele; Niente sentia a energia em seu interior, esperando para pronunciar os gatilhos para provocar fúria e morte. No entanto, mesmo mostrando o cajado para Tototl, e enquanto os guerreiros e nahualli ao redor gritavam em afirmação, Niente sentiu pouca coisa além de desespero.
Não havia vida nesta vitória, se é que seria uma vitória. Nenhuma alegria. Não se ela levasse para o lugar que ele vislumbrara uma vez.
Tototl desembainhou a espada e a ergueu, juntamente com o cajado de Niente, e os gritos redobraram.
— É o momento de sangue! — declarou o guerreiro supremo. — É o momento de morte ou glória!
Ele apontou para a margem da nuvem com a espada.
— Por Sakal! — rugiu Tototl.
Os tehuantinos berraram com ele ao avançarem. Niente foi levado pela onda, mas estava calado.
Eles entraram no vazio frio e cinzento da nuvem e saíram para o sol, o calor e a batalha.
Brie havia posicionado as tropas nas duas encostas de morro que flanqueavam a estrada, com apenas uma única companhia na estrada em si, e arqueiros em posição de ambos os lados — eles ao menos teriam a vantagem da altura do terreno para começar esta batalha. Os ocidentais teriam que avançar morro acima se quisessem enfrentá-los.
Se tivessem chevarittai, eles poderiam descer a toda velocidade, como uma gigantesca lança sendo enfiada em meio aos ocidentais. Mas eles não tinham chevarittai, e tinham poucos arqueiros, apenas três numetodos — de quem Brie desconfiava ligeiramente, pois não havia numetodos em Firenzcia; pelo menos nenhum que se revelasse abertamente — e nenhum téni-guerreiro.
Allesandra tinha chegado há uma virada, ela vestiu sua armadura, e Brie cedeu o comando de campo para ela, como era apropriado, uma vez que a Garde Kralji era da kraljica.
— Vejo que você teve uma bela educação — disse Allesandra. — Eu não esperava menos de você.
Brie e a kraljica, juntamente com Sergei e o comandante co’Ingres, observavam a aproximação das tropas ocidentais, sob o estandarte de cobra com asas. A hïrzgin ficou séria ao ver o tamanho assustador da força inimiga; ficou ainda mais preocupada quando viu os feiticeiros — a salvo, fora do alcance dos arqueiros deles — colocarem uma muralha de bruma entre eles para mascarar a formação.
Brie não conseguiu conter um arrepio diante da cena.
— Kraljica, embaixador, existe algum terreno melhor e mais defensável entre o Sutegate e aqui? Talvez devêssemos tentar incomodá-los em vez de detê-los. Podemos mandar grupos menores contra os flancos, criar uma muralha defensiva na cidade...
Allesandra lançou um olhar para Sergei e co’Ingres, e nenhum dos dois falou.
— É tarde demais para isso, hïrzgin — respondeu a kraljica. — Nós temos que resistir aqui, precisamos detê-los o máximo de tempo possível, e temos que fazê-los pagar por cada passo de terreno que eles tomam.
Brie cerrou as mãos em volta das rédeas do cavalo de guerra.
— Então eu estarei ao seu lado, kraljica, na vanguarda.
— Não. — Allesandra balançou a cabeça. — Esse lugar e responsabilidade são meus, Jan jamais me perdoaria se você fosse ferida. Eu quero que você assuma o flanco do rio com os chispeiros de Talbot. Eles precisarão de uma coragem inabalável e de um comandante firme para guiá-los. Talbot pode ficar com você, mas eu preciso dos outros numetodos aqui; temos poucos, uma vez que a maioria seguiu com o comandante ca’Talin.
Brie queria discutir — em sua cabeça, a Garde Kralji também precisava de uma liderança forte ou debandaria, mas ela assentiu, a contragosto.
— Como queira, kraljica...
Relutante, ela cavalgou em direção ao oeste na estrada e subiu o morro, passando pela Garde Kralji — que olhou para a hïrzgin com preocupação — até a retaguarda, onde os chispeiros tinham sido posicionados. Brie balançou a cabeça ao vê-los, vestidos com o que quer que tivessem no corpo. Os chispeiros não vestiam nenhuma armadura, exceto por alguns, que usavam pedaços de couraça de metal enferrujado e cota de malha rasgada e mal ajustada. A não ser pelos estranhos apetrechos que cada um portava, eles estavam armados apenas com espadas antigas, instrumentos de fazenda e cutelos. Os chispeiros pareciam mais uma turba do que uma força de combate — uma turba que um simples esquadrão da Garde Brezno teria sido capaz de afugentar, fazendo-os correr aos berros.
Brie repassou as ordens da kraljica a Talbot; o homem parecia tão preocupado com os chispeiros quanto ela, mas tinha enviado seus colegas numetodos lá para baixo, para onde o estandarte da kraljica tremulava do lado leste da estrada.
— Eu sou o assistente dela — comentou ele ao observar os numetodos seguindo em direção ao estandarte da kraljica. — Eu deveria ter ido com eles. Isto é loucura.
— É por isso — disse Brie — que ela nos quer na retaguarda. Ela sabe quais são as chances. Esses chispeiros têm mesmo um propósito?
Em resposta, Talbot ensaiou os exercícios, formando os chispeiros em fileiras e recuando os homens em sequência. Brie tentou imaginar as chispeiras disparando, tentou imaginar o grupo não debandando e fugindo aterrorizado ao ver o inimigo. Enquanto Talbot berrava ordens, a hïrzgin também observou a massa inacreditável de bruma que cobria a estrada abaixo e passava ao lado do morro onde ela estava.
A muralha cinzenta estava em silêncio.
— O que acontece quando eles “atiram”? — perguntou ela.
— As chispeiras disparam. Elas são bastante eficientes, na verdade. Foram inventadas por Varina. — Ele inclinou a cabeça ligeiramente para Brie. — Não há magia alguma envolvida, hïrzgin, se é isso o que lhe preocupa. Nenhuma ostentação do “Dom de Cénzi”, como vocês da fé concénziana poderiam chamar.
Ela ia responder, mas aí...
— Talbot... — Brie apontou para o morro abaixo.
Começou como um rugido abafado atrás da nuvem: o som de armaduras batendo e guerreiros berrando. Da bruma, os tehuantinos saíram correndo em direção a eles, onda atrás de onda tomando a estrada, assim como os campos de ambos os lados. Brie, do ponto de observação, ouviu Allesandra mandar os arqueiros dispararem, e os numetodos lançarem bolas de fogo e raios estalando em direção aos tehuantinos. Os feitiços e as flechas abriram breves brechas nas fileiras, que foram imediatamente cobertas, e agora os feiticeiros ocidentais erguiam seus cajados mágicos e lançavam seus próprios raios em direção a Allesandra e às tropas. Explosões e gritos eram ouvidos em ambos os morros.
O clamor ficou mais alto; as fileiras se aproximaram...
... e colidiram, emitindo o tilintar de metal. Da altura onde os chispeiros estavam, Brie conseguiu ver a batalha exposta diante de si, a miríade dos dois exércitos sobre a paisagem parecia uma praga de insetos. Alguns chispeiros estavam visivelmente assustados com o que viam, outros recuaram morro acima — para o norte, em direção à cidade. Talbot e Brie berraram para que eles parassem, e a hïrzgin virou o cavalo para interceptá-los, como um cão pastor com seu rebanho.
— Recuem e eu mato vocês — gritou Brie para os chispeiros, com sua espada erguida e seu cavalo de guerra trotando em resposta a sua agitação. — Talbot, vamos levá-los para baixo para podermos...
Ela ia dizer, mas de repente se calou.
Brie notou que a batalha já estava sendo perdida lá embaixo. A linha de frente da Garde Kralji já tinha entrado em colapso, e o estandarte de Allesandra seguia a norte da estrada, cedendo terreno. Os ocidentais já não estavam mais encobertos pela muralha de bruma e, apesar da quantidade, parecia haver menos inimigos do que Brie se lembrava. Ela olhou para Talbot, preocupada e subitamente desconfiada.
— Fique aqui — disse a hïrzgin.
Ela fez o cavalo subir a encosta do morro em direção ao cume, permanecendo sob a cobertura das árvores. Quando chegou ao cume, Brie olhou para baixo. Ela viu a muralha cinzenta de bruma seguindo em direção à margem do rio. E ali, na outra margem...
— Ah, não... — Brie engoliu uma imprecação.
Na encosta do morro, já subindo encosta acima, se aproximava o restante do exército ocidental.
A tempestade de guerra era ao mesmo tempo assustadora e mortal, mas era apenas uma quimera: um fantasma do Segundo Mundo. Ao mesmo tempo que cortava a tempestade com o Scáth Cumhacht, Varina admirava seu poder, precisão e criação. Ela podia sentir os vários fios individuais da tempestade, como eles se entrelaçavam a partir dos feitiços de vários feiticeiros e se formavam em um único encantamento: uma presença especialmente forte, se aproximando dela.
Isso não era nada que os ténis da fé concénziana conseguissem fazer, nem os numetodos — outra habilidade que os habitantes do mundo oriental não tinham. Ao mesmo tempo em que dilacerava as nuvens e dissipava os fios mágicos que as mantinham coesas, Varina se deu conta de que estava pensando como preparar um feitiço como aquele.
Se sobreviver, isto é algo em que você deveria trabalhar, para que os numetodos aprendam a fazer também.
Se você sobreviver...
E isso, ela receava, não era uma certeza.
Ela estava junto à Garde Civile, do comandante ca’Talin, na extremidade sul da frente de batalha, no triângulo cada vez mais estreito entre o rio Infante e o rio A’Sele. Aqui, o Infante se dividia em dois braços ao se juntar com o A’Sele, e a Avi a’Sele cruzava o rio com duas pontes. Assim como o comando do starkkapitän ca’Damont, ao norte, e com o comando do hïrzg Jan, na extremidade norte da linha de frente, eles tinham se posicionado a oeste do Infante. Os tehuantinos estavam dispostos em uma longa fileira curva, se espalhando pela Avi a’Sele em direção à Avi a’Nostrosei, com cerca de três quilômetros de comprimento.
A tempestade de guerra, pelo que Varina pôde notar, podia ter coberto toda essa extensão.
Os outros numetodos também estavam cortando a tempestade de guerra juntamente com ela. Os raios evanesceram, a nuvem negra tinha sido desfiada e interrompida. Eles puderam ver alguns homens se movendo atrás dela, avançando.
— Recuem, recuem! — gritou o comandante ca’Talin para Varina e os demais. — Fiquem atrás da linha de frente. Arqueiros, disparar!
Bandeiras tremularam, cornetas soaram no ar, e por toda a extensão da linha de frente, saraivadas de flechas foram lançadas contra a tempestade de guerra. Varina viu os escudos dos guerreiros serem erguidos e a maioria das flechas ser cravada em escudos. Golpes de espada arrancaram as flechas presas nos escudos, e os tehuantinos mandaram uma chuva de flechas em resposta. Varina ouviu Mason berrar perto dela e cair com uma flecha de penas cinzas encravada em seu peito. Outra flecha acertou o chão a seus pés.
— Recuem! — berrou ca’Talin novamente.
Desta vez eles obedeceram. Johannes e Niels arrastaram Mason com eles.
Varina podia ver pouco mais que corpos colidindo à sua volta em meio à batalha, mas podia ouvir muito bem: o choque do aço contra o aço, os gritos dos soldados de ambos os lados, os toques estridentes das trompas. Também podia sentir o cheiro da fumaça dos fogos mágicos, do sangue, e de enxofre, torcendo o nariz. Mas à sua frente havia apenas uma massa agitada de soldados. Ca’Talin, a cavalo, cercado por chevarittai, se enfiou em meio ao caos e, por um momento, Varina e os outros ficaram sozinhos. Eles dispararam feitiços de fogo por cima dos gardai em direção às fileiras tehuantinas do outro lado; usaram contrafeitiços para destruir o fogo jogado pelos feiticeiros ocidentais sobre eles. A areia negra explodiu à sua direita, lançando terra e partes de corpos para o alto e a deixando ligeiramente surda.
Varina sentiu o terrível cansaço pelo uso contínuo do Scáth Cumhacht. Todos os feitiços que ela tinha preparado na noite anterior acabaram, e sua mente estava cansada e confusa demais para criar novos com facilidade. Varina estava acabada; estava vazia.
Se você sobreviver...
Ela tinha menos certeza disso agora do que nunca.
As cornetas mudaram o toque. Varina viu o comandante e os chevarittai saírem em meio à fumaça e a confusão da batalha. Atrás deles, gardai recuavam e fugiam para o leste.
— Para as pontes! — gritou ca’Talin ao passar por eles. — Para as pontes!
Varina foi levada por eles, impotente. A retirada seguiu em debandada, uma confusão. Ela estava sendo empurrada, tropeçando e quase caindo. À sua volta, as pessoas se acotovelavam, e Varina não conseguia se levantar. Seria fácil, ela pensou, se deitar ali e deixar tudo acabar. Varina sentiu que começava a cair novamente.
Uma mão a abraçou pela cintura.
— Aqui, levante-se.
Ca’Talin havia retornado. Ele puxou Varina para a sela de seu cavalo de guerra. Os braços e ombros da a’morce doíam. Ela viu as pontes à frente, lotadas de gardai fugindo em direção às barricadas do outro lado.
— Perdemos aqui — ca’Talin meio que gritou para ela enquanto eles mergulhavam na multidão de homens — Os ocidentais tomaram este lado do rio até o norte. Que Cénzi nos preserve para amanhã.
Ao ver os tehuantinos avançarem até o outro lado da colina em direção a eles, Brie virou seu cavalo e galopou duramente até os chispeiros; o animal jogava rochas e pedras a sua frente.
— Talbot! Por aqui! — gritou ela. — Traga seu pessoal e me siga!
Assim que viu a confirmação de Talbot, vendo o homem berrar ordens e empurrar os chispeiros a sua volta, a hïrzgin subiu a encosta novamente até chegar ao cume. Os tehuantinos ainda subiam o morro, com a óbvia intenção de ladear a batalha principal e atacar a Garde Kralji pelo flanco e pela retaguarda enquanto os gardai estavam concentrados no ataque principal pela estrada. O cume do morro era plano e quase sem árvores; os ocidentais avançavam por uma campina. A essa altura, Brie também tinha sido vista; ela ouviu uma flecha passar assobiando por sua cabeça e recuou levemente morro abaixo.
Talbot e os chispeiros estavam quase no topo; a hïrzgin contou para ele o que viu rapidamente. Os dois arrumaram as fileiras imediatamente abaixo do cume; os chispeiros verificaram suas armas novamente, para garantir que estavam carregadas e abriram as bolsas de couro onde carregavam, segundo Brie tinha sido informada, as pequenas recargas de areia negra para recarregar as chispeiras. Ela tinha visto as recargas; estavam longe de ser impressionantes, o que apenas aumentava suas dúvidas quanto à eficiência da chispeira enquanto arma.
Mas ela não tinha escolha. Ela só podia torcer para que Talbot não tivesse lhe contado uma mentira elaborada.
— Muito bem — falou a hïrzgin. — Ao meu comando, nós subiremos até o cume. Talbot, prepare-se para disparar assim que estiver lá; eles têm arqueiros, portanto vocês também estarão sob ataque.
Ela viu os homens empalidecerem ao ouvir isso.
— Vocês possuem o terreno elevado como vantagem. Ataquem para valer, e os arqueiros serão inúteis — disse Brie, apesar de não acreditar nisso; ela achava que os arqueiros inimigos transformariam os chispeiros em uma parede de corpos sobre o cume. — Agora, avancem!
Quase de má vontade, os homens subiram até o cume, juntamente com Brie e Talbot. Ela ouviu os chamados na estranha língua ocidental quando eles apareceram, mas Talbot já ditava a sequência antes das primeiras flechas os alcançarem.
— Primeira fileira, ajoelhar! Primeira fileira, atirar!
O barulho emitido fez o cavalo de Brie empinar, aterrorizado. Uma fumaça branca e pungente floresceu ao longo da fileira, e pelo morro abaixo... A hïrzgin mal podia acreditar no que via: os ocidentais derrubados como se uma lâmina divina tivesse ceifado as fileiras inimigas. Ela soltou um grito de surpresa, quase uma risada.
— Segunda fileira, ajoelhar! Segunda fileira, atirar!
Novamente, os estampidos das chispeiras ecoaram; novamente, mais ocidentais caíram; seus corpos rolaram morro abaixo ou se amontoaram onde estavam. Agora, algumas flechas também atingiram os chispeiros, Brie viu três ou quatro homens caírem.
— Droga, resistam, seus bastardos! — gritou Talbot para as fileiras, que fraquejaram e começaram a se desmanchar.
Brie galopou atrás deles enquanto a fileira da retaguarda titubeava e tentava debandar em vez de recarregar as armas.
— Não! — disse ela. — Fiquem e lutem, ou vocês sentirão o aço da minha espada! Fiquem!
— Terceira fileira, ajoelhar! Terceira fileira, atirar! — berrou Talbot.
Desta vez a saraivada soou mais como uma gagueira do que uma explosão coordenada, mesmo assim, mais tehuantinos caíram. Brie notou que o inimigo titubeava.
— Mais uma vez! — ela gritou para Talbot. — Rápido!
— Primeira fileira, ajoelhar! Primeira fileira, atirar!
Outra gagueira, alguns homens sequer conseguiram disparar, tentando recarregar as armas atabalhoadamente, com mãos trêmulas. Mesmo assim, mais tehuantinos caíram, e o disparo de flechas parou completamente. Morro abaixo, guerreiros feridos e moribundos gritavam em sua língua, e outros guerreiros pintados berravam em resposta.
— Segunda fileira, ajoelhar! Segunda fileira, atirar!
Mais uma vez, as chispeiras rugiram, e quando mais guerreiros caíram, os tehuantinos finalmente cederam. Os guerreiros recuaram e começaram a descer correndo o morro, apesar dos esforços dos offiziers para contê-los, subitamente eles bateram em retirada em pânico. O grupo de chispeiros soltou um grito de triunfo, alguns deles, sem que Talbot desse a ordem, dispararam as chispeiras dos inimigos, recuando. No topo do morro, havia punhos erguidos em triunfo.
Brie gritou “urra” com os chispeiros, mas então olhou para trás e a alegria morreu em sua garganta. Bem abaixo, na estrada, a Garde Kralji estava em plena fuga. Ela viu o estandarte de Allesandra balançando e ouviu as cornetas soando o toque de retirada. Atrás deles, os guerreiros tehuantinos os seguiam em perseguição: uma onda negra que se espalhava pela estrada ao longo de ambos os morros, uma onda que sobrepujaria a unidade de chispeiros se eles ficassem ali.
— Talbot! — gritou Brie. — À kraljica! Não podemos ficar aqui.
Eles podiam ter tido uma pequena vitória nessa escaramuça, mas não haveria vitória maior aqui. A hïrzgin conduziu Talbot e os chispeiros morro abaixo para se juntar à kraljica na fuga.
Niente pensou que Tototl fosse perseguir os orientais diretamente até a cidade deles ou mesmo atropelaria a retirada dos inimigos e os mataria ali. E ele talvez tivesse feito exatamente isso, se não fosse por um guerreiro supremo ter voltado, ofegante, falando sem parar a respeito de um massacre: o grupo que fora despachado para o flanco ocidental tinha sido praticamente destruído. Tototl deteve o avanço e enviou apenas alguns esquadrões em perseguição aos orientais em fuga. Tototl e Niente seguiram o guerreiro supremo e deram a volta até o outro lado do morro. Agora Niente estava vendo uma terrível carnificina na encosta à frente dele — embora ele tivesse visto coisas piores em suas longas décadas de guerra, certamente. Niente tinha testemunhado homens cortados em pedaços, tinha visto cadáveres empilhados sobre mais cadáveres. Mas aquilo: havia uma quietude assustadora ali, e os corpos estavam estranhamente inteiros. Havia pouco sangue.
Tototl pulou do cavalo e caminhou entre os corpos espalhados pela encosta coberta de grama.
— Que magia fez isso? — ele exigiu saber.
Niente balançou a cabeça.
— Uma magia que eu não nunca vi antes.
— Por que você não viu isso? — disse Tototl furioso.
Niente só podia continuar balançando a cabeça. Suas mãos tremiam. Ele sentiu o cheiro de areia negra no ar.
Areia negra.
Isso não era magia... A ideia não parava de lhe ocorrer, juntamente com o cheiro de areia negra. O fato da areia negra não ter sido criada a partir do X’in Ka era algo que Niente tinha omitido do tecuhtli e dos guerreiros. Ele queria que os guerreiros acreditassem que a areia negra era mágica. Não queria que eles soubessem que qualquer um poderia fazê-la se soubesse os ingredientes, as medidas da fórmula e o método de preparo. Niente e os poucos nahualli a quem ele confiou o segredo mantiveram o sigilo — todos eles suspeitavam que, se os guerreiros pudessem fazer a areia negra sozinhos, eles poderiam decidir que não precisavam dos nahualli.
Isso não era magia...
Niente sabia, mas não podia admitir para Tototl.
Se Atl também estiver vendo isso... O medo o regelou e ele quase pegou o pássaro entalhado, quase pronunciou a palavra que permitiria a comunicação com o filho, para avisá-lo. Mas seria tarde demais: a batalha já estaria, sem dúvida, em andamento. Tarde demais. E ainda que os orientais tivessem essa habilidade mortal, ela ainda não tinha feito a diferença nesta batalha. Os inimigos eliminaram as tropas do flanco, mas ainda assim foram derrotados.
Mas Tototl estava certo em um aspecto: ele não tinha visto isso. O que a tigela premonitória diria agora?
— Os orientais aprenderam um feitiço que nunca tinham nos mostrado antes — respondeu Niente.
Os feridos sangravam por buracos profundos e irregulares, mas quase circulares. Os mortos estavam piores — parecia que eles tinham sido atingidos por flechas invisíveis que, inacreditavelmente, vararam armaduras de metal e bambu para mergulhar profundamente em seus corpos, muitas vezes atravessando-os completamente. E no topo do morro, de onde os guerreiros sobreviventes tinham dito que a terrível saraivada viera, não havia nenhum corpo e haviam poucos sinais de sangue, embora houvesse algumas flechas tehuantinas no chão. Mas o solo estava inalterado, como não estaria se os inimigos tivessem precisado arrastar corpos. Os orientais conseguiram infligir esse dano nos tehuantinos sem perder homens de maneira substancial.
Será que eles fariam isso com as tropas principais? Será que estão escondendo esse poder, à espera de um lugar melhor para usá-lo?
Podia não ter sido magia, mas alguma coisa tão horrível quanto inacreditável tinha acontecido aqui. Eles usaram a areia negra de uma forma que Niente não conseguia compreender.
— Eu preciso usar a tigela premonitória novamente — falou ele. — Alguma coisa mudou, alguma coisa que Axat não tinha mostrado antes. Isso é importante. Estou preocupado com o tecuhtli.
O Longo Caminho: será que ainda estaria ali? Será que mudou também? Ou tudo mudou? Será que Atl viu isso? Niente tinha que saber. Tinha que descobrir. Ele não estava entendendo algo fundamental para a compreensão dessa situação — ele podia senti-lo em seu estômago revirando, uma queimação. Sentiu-se velho, gasto, inútil.
— Não há tempo — respondeu Tototl. — O tecuhtli cuidará de si mesmo, e ele está com o nahual. A cidade está aberta para nós. Tudo o que precisamos fazer é persegui-los. Eles estão fugindo. Não posso lhes dar tempo para se reagruparem.
— Então o mais breve possível, assim que chegarmos à cidade — disse Niente. — Olhe para isso! Você quer que isso aconteça conosco ou com Citlali?
Tototl franziu as sobrancelhas.
— Jogue óleo nos corpos e queime-os — ele ordenou aos guerreiros. — Depois se juntem a nós. Niente, venha comigo; a cidade nos aguarda.
Ele cuspiu no chão. Depois, franzindo a testa mais uma vez, montou em seu cavalo. Niente ainda estava olhando para o cenário, tentando entender o que tinha acontecido.
— Venha, uchben nahual — falou Tototl. — As respostas que você quer ficam mais longe de nós enquanto ficamos parados aqui.
Nisso, o guerreiro tinha razão. Niente suspirou e, em seguida, caminhou até seu próprio cavalo e — com a ajuda de um guerreiro — montou na sela.
Eles seguiram adiante, e Tototl já berrava para retomarem o avanço.
Se o dia tinha sido terrível, a noite foi odiosa. Varina estava encolhida com a Garde Civile, pressionada entre duas barricadas que tinham sido erguidas nos últimos dias, e à noite choveram fagulhas e fogo, como se se estivesse arrancando as próprias estrelas dos céus e lançando na terra. Ambos os lados agora usavam catapultas para disparar o fogo da areia negra uns nas fileiras dos outros. As explosões trovejavam de poucos em poucos instantes: às vezes ao longe, às vezes preocupantemente perto.
Não houve descanso nem sono nessa noite. Ela viu as bolas de fogo desenharem arcos no céu e caírem a oeste, e se encolheu com medo quando a saraivada em resposta bateu nas barricadas. Varina tentou bloquear os sons dos berros e lamentos sempre que um projétil dos tehuantinos os atingia.
Isso era pior que o combate aberto. Ao menos lá, ela tinha a ilusão de controle. Não havia controle aqui: a vida de Varina e de todos a sua volta estavam reféns dos caprichos do destino e do acaso. A próxima bola de fogo poderia cair sobre ela, e estaria tudo acabado, ou poderia acertar e tirar a vida de outra pessoa. Varina se sentiu impotente e indefesa, encolhida com as costas contra a sujeira fria, tentando recuperar o máximo de força possível para que pudesse repor os feitiços para o ataque que viria pela manhã.
E ele viria. Todos sabiam.
As notícias do norte eram desanimadoras. Nem o starkkapitän ca’Damont, nem o hïrzg Jan, com as tropas firenzcianas, conseguiram manter a margem oeste do Infante. Ambos foram forçados a recuar e cruzar o rio. Pior, disseram que o hïrzg Jan tinha sido ferido durante a retirada, no momento em que a ponte a’Certendi foi destruída. Os rumores eram descontrolados e variados: Varina ouviu que Jan estava morrendo; que ele tinha sido levado de volta à cidade, para os curandeiros; que o hïrzg estava comandando a defesa do leito na tenda; que Jan tinha se amarrado ao cavalo para não parecer ferido enquanto cavalgava e encorajava seus homens; e ouviu que seus ferimentos eram leves e que ele estava bem.
Varina não fazia ideia de quais rumores eram falsos e quais eram verdadeiros. O que ficou claro foi que a batalha do dia anterior tinha sido apenas um prelúdio. O Infante seria cruzado; todos eles sabiam disso. Os tehuantinos descobririam seus pontos rasos e cruzariam assim que houvesse luz.
Varina tremeu e fechou os olhos quando outra bola de fogo passou estridente acima dela, explodindo à sua esquerda. Se acreditasse em Cénzi, ela teria rezado — certamente havia preces sendo murmuradas ao seu redor. Varina quase sentiu inveja do alívio que os soldados pudessem encontrar com elas.
— Varina?
O comandante ca’Damont se ajoelhou ao lado dela. Em meio ao barulho, Varina não tinha ouvido sua aproximação. Ela ia se levantar, mas ele balançou a cabeça e fez um gesto para que ficasse abaixada.
— Desculpe — falou Varina. — Eu estava tentando descansar.
Ele sorriu palidamente.
— Não há muito descanso por aqui. Eu queria lhe contar que os curandeiros dizem que Mason, o vajiki ce’Fieur, vai se recuperar. Eles vão levá-lo de volta à cidade.
— Ótimo. Obrigada. Obrigada por me contar.
— Eu quero que você vá com ele — continuou ca’Damont. — Este não é um lugar para você.
Uma velha frágil... Varina quase podia ouvir o que não tinha sido dito.
— Não — respondeu ela. — Você precisa de mim aqui. Eu sou a a’morce dos numetodos; aqui é o meu lugar.
— Chegaram mais ténis-guerreiros. Dois punhados. E ainda há os outros numetodos que você trouxe. Você provou sua coragem mais cedo, Varina. Ninguém pode exigir mais de você. E você tem uma criança com quem se preocupar.
Varina queria concordar. Queria aceitar a oferta e voltar correndo para a cidade — mas mesmo lá ela não estaria a salvo. Ela podia fugir o quanto quisesse, podia pegar Serafina e ir para leste ou norte, mas se eles perdessem aqui — e Varina não conseguia ver uma maneira de vencer —, ela sempre se perguntaria se deveria ter ficado, se sua presença teria feito a diferença.
Karl não teria fugido. Ele teria ficado, mesmo que pensasse que a batalha estava perdida. Disso ela tinha certeza.
— A maioria dos gardai tem crianças com quem se preocupar — disse Varina, com firmeza. — É por isso que eles estão aqui.
— Mesmo assim...
— Eu não vou embora — disse ela.
O comandante assentiu. Ele se levantou e prestou continência para Varina.
— Tem certeza?
Varina deu uma risada nervosa quando outra bola de fogo passou rugindo. A luz das chamas brilhou e as sombras se mexeram quando ela explodiu.
— Não — respondeu Varina. — Mas eu vou ficar, e você está interrompendo meu descanso.
Eles ouviram o rugido baixo de outra explosão em algum lugar atrás da barricada.
— Descanso? — disse o comandante. — Eu duvido que qualquer um de nós descanse esta noite. Mas tudo bem. Fique, se quiser. Cénzi sabe que nós precisamos de toda ajuda possível.
Ele pareceu se dar conta do que disse e abriu um sorriso meio irônico.
— Desculpe, a’morce.
— Não peça desculpas. Se seu Cénzi existir, espero que Ele esteja lhe escutando.
Não era para ter sido assim. Sergei tinha rezado para Cénzi, mas Cénzi não tinha atendido — não que ele esperasse alguma ajuda desse lado. Os tehuantinos perseguiram Allesandra e a Garde Kralji até o interior da cidade. A kraljica tentou se reagrupar e resistir no Sutegate, mas os tehuantinos avançavam por uma área muito ampla agora e entravam na cidade por todos os lados ao sul. Allesandra não tinha tropas suficientes para cobrir toda a fronteira sul da cidade. Ficou imediatamente óbvio que eles não conseguiriam controlar a Margem Sul: não com a Garde Kralji, nem mesmo com os chispeiros, que se provaram estranhamente eficazes durante a retirada. Eles recuaram ainda mais e abandonaram toda a Margem Sul através da Ilha a’Kralji.
Eles podiam evitar que os tehuantinos passassem pelos gargalos das duas pontes.
Sergei tinha insistido que Allesandra destruísse a Pontica a’Brezi Veste e a Pontica a’Brezi Nippoli completamente, para que os tehuantinos não pudessem cruzar a confluência sul do A’Sele sem precisar de barcos. Ela se recusou.
— As Ponticas continuarão de pé — falou Allesandra. — Eu não abrirei mão de metade da cidade. As pontas continuarão de pé, nós as defenderemos esta noite, e amanhã nós voltaremos a cruzá-las para recuperar nossas ruas.
Sergei discutiu veementemente com ela, e o comandante co’Ingres concordara com o embaixador; nenhum dos argumentos convenceram Allesandra a mudar de ideia.
E foi na Pontica a’Brezi Veste e na Pontica a’Brezi Nippoli que os chispeiros realmente se destacaram. Com a orientação de Brie e Talbot, o grupo conseguiu controlar os pequenos espaços. Embora os ocidentais tivessem avançado onda atrás de onda contra eles durante o fim da tarde e até o anoitecer, eles deixaram ambas as pontes repletas de corpos. Após várias tentativas em vão, e com a luz do sol morrendo, os ocidentais finalmente recuaram.
Do telhado do Palácio da Kraljica, Sergei podia ver a queima de fogos na Margem Sul, onde antes os ténis acendiam lanternas ao longo da Avi a’Parete. As chamas amarelas eram um escárnio. A oeste e ao norte, do outro lado do A’Sele, mas ainda fora da cidade, rugidos constantes e clarões de explosões ainda prorrompiam, como se um temporal de relâmpagos sem chuva ou nuvens tivesse ocupado o lugar. Abaixo, além das muralhas externas dos pátios e da entrada do palácio, na Avi, Brie ainda estava acordada, sem seu cavalo agora. Sergei pôde ouvir a voz da hïrzgin no silêncio aturdido do palácio: dispondo as vigias na ponte e aconselhando os chispeiros a cuidarem de suas armas e descansarem o quanto fosse possível, mas para estarem prontos para reagir quando fosse necessário.
A hïrzgin Brie se provara tão valiosa quanto seu marido nesta luta. Talvez até mais.
Sergei sentiu Allesandra se aproximar dele. A kraljica ainda vestia a armadura, agora não mais reluzente e lustrosa: sob o luar, ele notou as marcas de arranhões e queimaduras da batalha. Seu cabelo grisalho estava grudado na cabeça. Um sexteto da Garde Kralji a acompanhava, bem como os poucos integrantes remanescentes do Conselho dos Ca’ que não tinham fugido da cidade.
— Amanhã — falou Allesandra para Sergei e os conselheiros —, retomaremos a Margem Sul.
— Tentaremos o melhor possível — respondeu Sergei, seu tom traiu seu sentimento quanto ao sucesso da empreitada.
— Nós retomaremos — respondeu Allesandra gravemente.
Os conselheiros pareciam assustados, Sergei sabia que todos achavam isso quase tão improvável quanto ele. Um clarão e — com atraso — outro rugido ecoaram a oeste. O embaixador sentiu o prédio tremer sob seus pés com o barulho. Os conselheiros olharam ao redor como se procurassem abrigo; os gardai se remexeram nervosamente, apertando suas lanças.
— Um mensageiro veio da Margem Norte — disse a kraljica. — Os tehuantinos tomaram o lado oeste do Infante, e a Garde Civile recuou para as barricadas. Eles estão a salvo, por enquanto. Os tehuantinos tentarão cruzar o rio amanhã e nós os repeliremos. Deixem o Infante e o A’Sele levarem seus corpos de volta para o mar.
— Nós tentaremos, estou certo disso — respondeu Sergei novamente. — A senhora ouviu mais notícias do hïrzg?
O rosto de Allesandra ficou tenso.
— Eu fui informada que o hïrzg Jan se recusou a voltar para a cidade. Quanto à gravidade de seus ferimentos... — Ela deu de ombros. — Ninguém disse nada. Ele é meu filho e é um soldado. Vai continuar a lutar enquanto puder.
Sergei desceu o olhar para onde Brie estava patrulhando.
— Ela sabe?
— Eu mesma contei para Brie. Eu disse que ela podia ir até ele enquanto é possível. Brie disse que seu lugar era aqui por enquanto, e que Cénzi poderia manter Jan a salvo melhor do que ela. — Allesandra quase sorriu. — Acho que ela passou a sentir um carinho por aqueles chispeiros.
Sergei grunhiu.
— Espero que ela tenha razão. Não podemos conter os tehuantinos, kraljica. Em breve, eles começarão a nos bombardear com areia negra até que não consigamos mais posicionar os chispeiros nas cabeças de ponte, e assim que os chispeiros recuarem, os tehuantinos cruzarão. Precisamos derrubar as Ponticas na Margem Sul para isolá-los. Deixe que joguem o que quiserem sobre nós, mas eles não poderão cruzar... não até que construam barcos.
Allesandra recuou, estreitando os olhos e franzindo os lábios.
— Você já disse isso vezes demais, Sergei. Eu não abrirei mão da Margem Sul. Eu não abandonarei a minha cidade. Não enquanto eu respirar. Não. — A kraljica inspirou, emitindo um som alto no silêncio da noite. — Eu pedi que o comandante ca’Talin ou o starkkapitän ca’Damont nos mandassem uma companhia ou duas de gardai para ajudar.
— Kraljica, eles não podem abrir mão desses homens. Não com a força tehuantina que os dois estão enfrentando. A senhora não pode pedir isso a eles.
— A mensagem já foi enviada. Eu disse que eles teriam que avaliar bem se podiam abrir mão das tropas ou não. Eles vão mandá-las — disse Allesandra com firmeza.
Ficou claro para Sergei que ele não convenceria a kraljica. Ele também sabia que, independentemente do reforço de gardai, a Garde Kralji não seria suficiente para retomar a Margem Sul. Se as pontes continuassem de pé, eles não seriam suficientes sequer para manter a Ilha, mesmo com a ajuda dos chispeiros. O embaixador bateu com a ponta da bengala nos ladrilhos do telhado, inquieto. A oeste, irromperam mais clarões.
— Se a senhora me dá licença, kraljica, eu preciso encontrar Talbot...
Ele deixou Allesandra ainda no telhado com os gardai e os conselheiros. Encontrou Talbot no térreo do palácio, parecendo exausto e furioso, vociferando ordens para um quarteto de funcionários do palácio. Eles saíram correndo assim que Sergei se aproximou.
— Eu não tenho gente suficiente aqui — falou Talbot. — Três quartos dos funcionários evidentemente fugiram da cidade assim que saímos daqui ontem.
— Você não pode culpá-los, meu amigo. Qualquer um com mais bom senso do que lealdade teria ido embora.
— Eu sei, mas como posso administrar o palácio sem pessoal? — Ele passou os dedos pelos cabelos. — Olhe para mim: eu acabei de correr meia Nessântico fugindo dos tehuantinos; consegui sobreviver a feitiços, flechas e espadas, e estou aqui preocupado se as camas estão feitas e se as refeições estão sendo servidas.
— É o seu trabalho.
— Não parece importante, dadas as circunstâncias. Por Cénzi, estou exausto.
— Você pode dormir depois. Nós dois podemos dormir depois. Venha comigo.
— Para onde?
Sergei esfregou o nariz.
— Você sabe onde a areia negra da Garde Kralji está guardada? Tem as chaves do paiol?
— Sim, mas...
— Então venha comigo.
Uma virada da ampulheta depois, ele e Talbot se aproximaram da Pontica a’Brevi Veste acompanhados por gardai carregando vários pacotes de areia negra. Brie os saudou e olhou para os pacotes, inclinando a cabeça.
— Eu pensei que a kraljica tivesse dito que as Ponticas deveriam ficar intactas.
Sergei ergueu o olhar na direção do telhado do palácio, para as sacadas cravadas na parede sul. Não havia ninguém ali.
— Eu consegui convencer a kraljica de que talvez fosse preciso derrubar as pontes se nosso ataque amanhã não se saísse bem. Temos que colocar a areia negra nas pilastras deste lado, para que possamos acioná-las quando for necessário. Isso é tudo.
Brie assentiu.
— Parece um bom plano para mim. Eu vou mandar os chispeiros ajudarem.
Mais uma virada da ampulheta, e Sergei e Talbot, carregando o restante da areia negra, seguiram para a Pontica a’Brezi Nippoli. O embaixador contou para o offizier no comando da Garde Kralji o mesmo que tinha contado a Brie. Assim como na ponte anterior, ele supervisionou a colocação das cargas de areia negra, cuidando para que estivessem ligadas por cordas de algodão embebidas em óleo misturado com areia negra, de maneira que o acendimento da ponta do pavio causasse a explosão de todas as cargas ao mesmo tempo.
Sergei segurou o pavio erguido na mão; uma lanterna queimava aos seus pés, na grama da margem do rio.
— Acabamos por aqui — ele disse para Talbot. — Agora, mande todos recuarem.
Sergei não conseguiu ver o rosto de Talbot, que estava mais adiante na barragem, a luz da lua batia quase diretamente nas costas dele.
— Recuar? Sergei, você ficou maluco? A kraljica deu ordens específicas...
Sergei se abaixou, enfiou a bengala debaixo do braço, pegou a lanterna e abriu sua tampa de vidro, enquanto segurava o pavio na outra mão.
— Quando um dente fica podre, não há escolha senão arrancá-lo — disse o embaixador. — Se você deixa o dente lá, ele só vai causar mais dor e sofrimento, e no fim, o dente vai apodrecer todos os outros.
— Você não pode fazer isso — protestou Talbot. — A kraljica disse...
— A kraljica e eu discordamos. Seja franco, Talbot: você acha que podemos tomar a Margem Sul dos ocidentais amanhã? A melhor defesa para a Ilha e para a cidade inteira é derrubar as Ponticas e deixar os ocidentais presos.
— Não cabe a você tomar essa decisão — respondeu Talbot.
Sergei sorriu para ele, erguendo a lanterna.
— No momento, parece que é.
O embaixador encostou a ponta do pavio na chama. Ele assobiou e soltou fagulhas, e o fogo começou a percorrer a extensão do pavio. Sergei soltou o pavio e começou a subir a margem o mais rápido possível, se apoiando em sua bengala.
— Pelos colhões de Cénzi — praguejou Talbot; ele ficou parado por um instante, como se considerando descer a margem correndo atrás do pavio, depois gesticulou para os gardai nos pivôs da ponte. — Recuem! Saiam da ponte! Abriguem-se!
Talbot desceu um pouco a barragem e puxou Sergei pelo braço. Juntos, eles fugiram enquanto o pavio assobiava e espocava e o brilho azul do fogo seguia em direção à ponte.
A explosão quase levantou Sergei do chão. A concussão atingiu o embaixador como uma parede caindo; ele sentiu o calor queimar suas costas, e o som... Sergei ouviu as vigas se romperem enquanto rochas e tábuas caíam como uma chuva intensa e perigosa e batiam no chão em volta deles. Sergei e Talbot se encolheram, cobrindo suas cabeças. Quando tudo terminou, o embaixador se virou, seus ouvidos ainda zuniam. A ponte desabou, sua extensão mergulhou inclinada nas águas do A’Sele a meio caminho do vértice. Os tocos da estacaria e das pilastras surgiam da água como dentes quebrados.
Sergei sorriu.
— Eles não cruzarão por ali tão cedo. Todos aqueles homens posicionados ali podem descansar. Agora, vamos terminar o serviço...
Talbot balançou a cabeça.
— Lamento, Sergei, mas não posso permitir. Você mentiu para mim. Você desobedeceu às ordens expressas da kraljica.
— Eu estou tentando salvar a droga da cidade — retrucou Sergei.
— Ela não é a sua droga de cidade.
Ah, mas é sim... Sergei sabia que Talbot compreendia o valor do que ele tinha feito. Sabia que Talbot concordava com ele, afinal.
— Talbot, você sabe que eu estou certo.
— O que eu sei não importa — respondeu o homem. — Eu sou o assistente da kraljica, não o kraljiki. Que os retalhadores de almas te carreguem, Sergei...
Talbot balançou a cabeça e olhou as ruínas da ponte. A Garde Brezno se aproximava da borda e encarava a destruição. Gritos e lanternas se aproximavam deles.
— Allesandra ficará furiosa.
— Ela ficará ainda mais furiosa quando derrubarmos a outra Pontica — respondeu Sergei —, mas também não poderá desfazer isso.
Mas Talbot não admitiria que o embaixador estava certo. Ele sabia antes de o assistente responder, sabia pela maneira como seu rosto magro se fechou.
— Isso não vai acontecer. — Talbot olhou para as pessoas se aproximando deles. — Sergei, você ainda pode sobreviver a esta situação: admita que desobedeceu à kraljica e colocou as cargas de areia negra, mas que fez isso no caso de termos de recuar amanhã e não haver outro jeito de impedir que os tehuantinos cruzassem a ponte para a Ilha e para a Margem Norte. Você pode dizer que isso foi um acidente, que sua lanterna acendeu o pavio. Ela não vai acreditar em você e ficará terrivelmente furiosa com o que você fez, mas não poderá provar nada. Eu o apoiarei até aí, Sergei. Mas não vou além disso. A outra ponte permanece de pé.
— Talbot...
— Não — disse o assistente com firmeza, interrompendo Sergei. — Ou isso ou eu conto exatamente o que aconteceu aqui e que você pretendia esse golpe o tempo todo. Então, a kraljica o executará como traidor, Sergei, e eu não posso culpá-la. O que vai ser? Você decide.
Talbot estava certo. Sergei sabia disso, conhecia Allesandra bem o suficiente para perceber que, mesmo que ela entendesse seu raciocínio, ele tinha ultrapassado os limites do perdoável se a kraljica soubesse toda a verdade. Morto, Sergei não poderia fazer nada pela cidade. Morto, ele não poderia fazer mais nada para expiar tudo o que fez em vida. Morto, não poderia derrubar a outra ponte.
— Está bem — respondeu o embaixador. — Eu aceito sua proposta.
Ela acompanhou Nico de volta ao labirinto do Velho Distrito, para outra casa anódina em outro beco estreito anódino. Não havia ninguém ali, ninguém respondeu à batida de Nico. A porta estava trancada, mas isso não era um problema — não para Rochelle. Ela arrombou a porta e eles entraram. Nico disse quase que imediatamente que precisava rezar. Rochelle disse que ambos precisavam comer — mas não havia nada na casa. Ela saiu para procurar por comida e encontrou pão velho em uma padaria abandonada, e queijo mofado por toda parte, e pegou água do poço mais próximo. Quando Rochelle voltou à casa, Nico estava na sala principal, de joelhos. Ele não lhe deu atenção quando ela tentou convencê-lo a comer, tentou dar-lhe água à força entre os lábios rachados e machucados, enquanto o sacudia e gritava para tentar chamar sua atenção.
O irmão estava perdido e impassível, murmurando preces ininteligíveis para Cénzi. Nico a ignorou, como se não se importasse, ou mesmo soubesse que Rochelle estava ali. Ela não conseguiu arrancar reação alguma do irmão. Ele parecia estar em transe.
Tudo bem. Rochelle estava acostumada com loucura. Ela tinha lidado bastante com isso com sua matarh.
Rochelle dormiu um pouco no chão ao lado de Nico, mas não por muito tempo. Ela acordou, escuro, com Nico ainda rezando a seu lado. A essa altura, pensou Rochelle, deviam faltar poucas viradas para a Primeira Chamada.
— Nico? Nico, fale comigo.
Não houve resposta. Ele se encontrava na mesma posição viradas a fio. Então, Nico também a abandonara — bem, Rochelle estava acostumada a ficar sozinha, a tomar suas próprias decisões. Ela não podia ajudá-lo, não podia encontrá-lo onde quer que ele estivesse, mas ainda havia o que ela poderia fazer, o que deveria fazer. Rochelle tocou o cabo da faca que tinha roubado de seu vatarh, alisando o punho adornado.
Prometa para mim que você fará o que eu não consegui. Prometa para mim...
— Eu farei — ela disse para o fantasma da matarh. — Eu farei.
Rochelle se voltou para Nico, se ajoelhando no piso de madeira nua. As pernas do irmão deviam estar dormentes há muito tempo. Suas mãos estavam entrelaçadas, fazendo o sinal de Cénzi, sua cabeça estava abaixada sobre elas, seus olhos fechados. Ela notou que ele murmurava.
— Nico? — disse Rochelle, tocando seu ombro. — Nico, eu preciso que você me responda.
Ele não respondeu. O murmúrio continuou, sem diminuir. Ela abraçou o irmão e disse.
— Então reze por mim. Reze por nós dois.
Ele não deu sinal de tê-la ouvido. Ela se levantou, observou Nico e finalmente saiu da sala. Fechou a porta atrás de si, saindo em direção às ruas do Velho Distrito. De manhã cedo, as ruas estavam escuras e desertas. A maioria dos moradores, os que puderam, tinha fugido da cidade, para o leste. Clarões estranhos irrompiam no céu a oeste, acompanhados por trovões distantes e, ao sul, nuvens de fumaça tocadas pelo brilho de fogueiras.
Sul. Rochelle seguiu nessa direção, se escondendo facilmente nas sombras provocadas pela lua.
Ela não fez ideia de quanto tempo tinha levado até chegar à Pontica Kralji, que ligava a Margem Norte à Ilha. Não havia gardai na ponte, nenhum trânsito. A lua estava se pondo, e o céu começava a clarear no leste e extinguir as estrelas no apogeu. As águas do A’Sele estavam turvas em volta da estacaria, escuras e misteriosas. O cheiro de madeira queimada se misturava ao odor da lama e da água do rio.
Alguma coisa brilhante espocou no céu a sua frente, deixando um rastro de fagulhas e pintando a correnteza do A’Sele com reflexos reluzentes. A aparição se iluminou e inchou, descendo rapidamente. Rochelle a viu cair, sentindo o impacto sob a sola das botas, vendo o fogo da explosão. Alguém gritou de dor ao longe, e o susto e o cheiro de queimado aumentaram, cobertos agora pelo fedor de enxofre. Outra bola de fogo passou guinchando no céu ao sul; esta explodiu bem acima da Ilha, mandando as sombras negras embora.
Um cavaleiro apareceu na extremidade da Pontica que saía da Ilha A’Kralji galopando em direção à Rochelle, com a capa tremulando atrás de si. Ela se encolheu nos pilares da ponte; o cavaleiro passou disparado sem olhar e fez uma curva fechada à esquerda, em direção ao Mercado do Rio. Rochelle notou a bolsa de couro em volta do corpo: um mensageiro rápido levando uma mensagem.
Isso significava que a kraljica provavelmente estava na Ilha. Allesandra. Sua mamatarh. A voz da matarh pareceu sussurrar em seu ouvido.
— Prometa para mim...
Outra bola de fogo surgiu como um sol falso e também caiu na terra, em algum lugar da Ilha. Ela ouviu as trompas do Velho Templo soarem um alarme ao longe.
Rochelle atravessou a Pontica correndo, meio que esperando que alguém berrasse para ela ou que fosse atingida por uma flecha. Nada aconteceu. Rochelle chegou à Avi a’Parete na Ilha. Ao seu redor, os grandes prédios da Ilha se erguiam, com destaque para o Palácio da Kraljica, diretamente à esquerda. Ela seguiu lentamente para lá, por uma rua cheia de prédios do governo. Mais adiante, ao sul, Rochelle pôde ouvir o som das atividades: trompas soando, pessoas gritando. Ela fez a curva e seguiu para o sul novamente; a sua frente, viu pessoas no fundo na outra extremidade da rua. Ela correu na direção do muro que envolvia o palácio. Havia uma porta da criadagem ali, na lateral. Rochelle bateu, esperou, bateu novamente. Ninguém respondeu. Ela se abaixou e pegou suas ferramentas para arrombá-la. Alguns instantes depois, Rochelle empurrou a porta e entrou em suas dependências.
Ela se viu nos jardins do palácio. O cheiro de flores era forte, e Rochelle ouviu uma fonte jorrando água por perto. Não havia ninguém nos jardins, e poucas janelas do palácio estavam acesas.
Outra bola de fogo mostrou sua cara brilhante sobre o muro do outro lado do terreno. Parecia vir na direção de Rochelle e do palácio, mas no último instante, quando parecia que acertaria o próprio palácio, ela se estilhaçou em mil fragmentos, cada um assobiando e brilhando ao cair — um contrafeitiço deve ter alcançado a bola de fogo. Rochelle se perguntou quantos incêndios essas fagulhas provocariam, e se os ténis-bombeiros viriam apagá-los.
Ela correu para a porta do palácio mais próxima. Trancada: novamente, Rochelle tirou as gazuas e manipulou as ferramentas até ouvir o clique do mecanismo se abrindo. Ela empurrou a porta apenas o suficiente para entrar sorrateiramente.
Rochelle se viu no que deveria ser o corredor da criadagem: um corredor estreito e simples, com corredores transversais se abrindo de ambos os lados e uma porta grande ao final. Se este palácio fosse como o Palácio de Brezno, como ela esperava, a maioria dessas portas estaria destrancada. Os criados precisavam ter acesso a todas as alas do palácio para servir a seus senhores e senhoras da maneira mais discreta possível. Sem dúvida, o palácio estaria cheio de passagens assim.
Mas nos corredores de serviço do Palácio de Brezno havia uma atividade frenética. Aqui estava tudo quieto, e Rochelle achou isso estranho. Ela seguiu rapidamente até a porta principal, abrindo lentamente uma fresta. Ela vislumbrou um dos principais corredores públicos do palácio; também ouviu vozes. Havia várias pessoas saindo apressadamente de outro aposento um pouco à frente. Ela reconheceu um dos homens imediatamente: Sergei ca’Rudka, com seu nariz de prata reluzindo em seu rosto enrugado e pálido, e a bengala batendo em um ritmo irregular nos ladrilhos. A mulher a seu lado falava com ele em um tom apressado e irritado.
— ...não me importo com o que você estava pensando ou quais eram as suas razões. Eu estou furiosa com você, Sergei. Absolutamente furiosa. E Talbot; por que em nome de Cénzi você não confirmou comigo? Você sabia que eu tinha mandado as ponticas permanecerem de pé.
— Eu peço mil desculpas, kraljica — disse Sergei, embora Rochelle pensasse que ele parecia mais contente que arrependido.
Então aquela era a kraljica. Mamatarh, eu estou aqui por você... Mas não agora. Não ainda. Havia muitas pessoas em volta dela: Sergei, o sujeito chamado Talbot, bem como um quarteto de gardai.
— Seu “acidente”, se é que isso foi mesmo um acidente, pode ter prejudicado nossa chance de ataque aos tehuantinos na Margem Sul. Agora só temos uma rota para cruzar o rio, então...
Suas vozes foram ficando ininteligíveis à medida que eles desciam o corredor. Rochelle arriscou abrir mais a porta. Havia dois gardai posicionados na porta de onde o grupo tinha saído. Ela recuou para o corredor de serviço e entrou no corredor que levava para o aposento em que os gardai estavam, contando os passos para calcular sua distância. Havia outra porta a alguns passos, corredor adentro. Rochelle abriu a porta.
Ela entrou no Salão do Trono do Sol. A massa cristalina do Trono do Sol sobre a plataforma dominava o salão. Muito bem. Isso serviria: a kraljica deve voltar para cá em breve, e Rochelle poderia cumprir sua promessa.
Ela viu um lampejo de luz através das janelas altas do salão, e o palácio tremeu quando um trovão rugiu. Ela pôde sentir o cheiro de fumaça de madeira das janelas do palácio ascendendo em uma alvorada de chamas.
Rochelle se acomodou para esperar.
Niente polvilhou o pó alaranjado sobre a água na tigela premonitória e entoou um feitiço para abrir sua mente para Axat. A bruma verde começava a surgir, e ele inclinou a cabeça sobre a tigela.
Os tehuantinos estavam acampados na própria cidade, os guerreiros estavam protegendo as ruas e sacando as casas e os prédios atrás de comida e suprimentos, cumprindo as ordens de Tototl, mas Niente sabia que muitos guerreiros também estavam pegando todo o tesouro que pudessem carregar. Outros estavam ocupados construindo uma catapulta, e Niente tinha ordenado que os nahualli encantassem os sacos de areia negra que a catapulta lançaria na ilha para que explodissem com o impacto. Os cânticos dos nahualli e o martelar dos guerreiros engenheiros preencheram a grande alameda do lado de fora da fortaleza na beira do rio. Dos portões do edifício, o crânio de uma criatura horrível com dentes afiados, lançava um olhar malicioso para Niente — quase como a cabeça da serpente alada que tremulava no estandarte do tecuhtli. Isso, pensou ele, era quase uma ironia. O Olho de Axat nasceu e parecia observar Niente enquanto ele realizava o ritual, com tanta intensidade quanto Tototl.
As visões apareceram rapidamente, passando por ele quase rápido demais para que ele pudesse acompanhá-las. Os caminhos do futuro se entrelaçavam e mesclavam. Niente ainda podia ver a vitória no caminho mais nítido e próximo, mas agora era uma vitória conquistada a um preço muito alto. Havia mudanças provocadas no cenário, potências emergentes que ele não tinha visto antes ou que tinham sido apenas insinuadas em remotas possibilidades: o rei de preto e prata; a velha que cheirava a areia negra; o jovem com o poder estranho e descontrolado. Esta última... a mais difícil de todas de se ver, estava envolvida em bruma e mistério. Em torno do jovem, todos os caminhos possíveis do futuro pareciam estar espiralados. Niente queria ver mais a respeito do jovem, mas as brumas continuavam a afastá-lo, não importava o quanto ele tentasse acompanhá-lo.
Na bruma, Niente também sentiu a presença de Atl, tão perto que quase pensou que o filho estivesse a seu lado, espiando a tigela ao mesmo tempo que ele. Aqui. Ele tentou lançar os pensamentos na direção de Atl. Veja o que eu vejo. Deixe-me encontrar o Longo Caminho, espero que você o veja também...
Mas não houve resposta. Niente não conseguiu mostrar o que tinha visto para Atl, nem conseguiu ver o que Atl via. Na bruma, os dois permaneciam separados.
— Eles vão derrubar a outra ponte? — perguntou Tototl. — Se fizerem isso...
— Se fizerem isso, não poderemos cruzar o rio para ajudar o tecuhtli Citlali. Eu sei. Agora, deixe-me ver...
Niente já tinha visto isso: no caminho principal, os orientais inexplicavelmente não destruíam a outra ponte. Ele não entendeu isso. Com as pontes em pé, Tototl conquistaria a Ilha, ainda que pagasse um preço terrível. As estranhas armas de areia negra dos orientais derrubariam guerreiros demais antes que eles conseguissem, inevitavelmente, sobrepujá-los. Eles alcançariam Citlali e esmagariam ainda mais orientais entre eles, mas esta já não era a vitória que Niente tinha visto em Tlaxcala. Tudo mudara.
O que significava que o Longo Caminho também tinha mudado. Isso se o Longo Caminho ainda existisse.
Niente inclinou a cabeça sobre a bruma novamente, procurando. Por favor, Axat. Mostre-me...
E Ela mostrou.
A Passagem da Tempestade
— E então? — perguntou Tototl enquanto Niente jogava a água da tigela premonitória nos paralelepípedos da alameda.
Ele limpou a tigela com a manga da camisa e olhou solenemente para o guerreiro supremo.
— Você se lembra, Tototl, da conversa que tivemos sobre uma vitória parecer uma vitória, mas não ser?
O semblante pintado do guerreiro supremo continuava impassível.
— Eu me lembro de você ter dito isso. E me lembro de ter dito que achava que você tinha visto mais coisas na tigela do que estava contando para o tecuhtli Citlali. Então, me diga agora, uchben nahual, o que você viu? Diga-me a verdade.
Niente recolocou a tigela premonitória na bolsa e sentiu a textura dos desenhos gravados na borda. Ele pegou seu cajado mágico, sentindo a energia do X’in Ka pulsando na madeira, capturada e pronta para ser solta. Os odores de madeira queimando, da água doce, do fedor de roupa usada por muito tempo invadiram suas narinas. Niente engoliu em seco e sentiu o gosto forte e persistente da bruma verde que tinha inalado. Seus sentidos pareciam estar plenos e aguçados demais. Ele ergueu seu olhar para o crânio malicioso no muro sobre si e imaginou a criatura viva, com seus dentes afiados como facas de marfim rasgando uma vítima presa em suas mandíbulas poderosas.
— Preste atenção, Tototl — falou Niente. — Eu não disse nada para o tecuhtli Citlali porque ele não vê nada além do presente e de suas próprias ambições. Você tem a imaginação para fazê-lo. Você pode se tornar um grande tecuhtli. Um tecuhtli cujo nome ecoaria por gerações.
Tototl não conseguiu esconder totalmente a ansiedade provocada por essas palavras: Niente notou no leve movimento da boca do guerreiro, na sutil abertura dos olhos cercados por tinta vermelha. O guerreiro tinha ambição.
— Você viu isso?
Niente assentiu.
— É um dos futuros. Uma possibilidade.
Ele fez uma pausa. Olhou para a catapulta, quase terminada agora. Olhou para a ponte perto deles, no fim da alameda, para o grande prédio que surgia logo atrás dela, para o domo dourado que aparecia sobre os outros telhados, no meio da ilha.
— Tototl, a vitória neste momento está por um fio. Você é o fio, Tototl, sem você, não há vitória nenhuma. Eu vi isso.
— O que eu devo fazer?
— Você deve conquistar a ilha e chegar ao outro lado, como eu disse antes. Tem de avançar com nossos guerreiros contra os orientais pela retaguarda. Se você quer a vitória, é isso o que deve fazer.
— E por que eu não faria isso? É por isso que viemos para cá: para tomar a cidade e vingar nossa derrota com o tecuhtli Zolin, para governar esta terra.
Niente se perguntou se deveria contar para ele. Certamente Citlali não teria ouvido nada disso; ele já teria interrompido Niente, e Niente — ele tinha que admitir — teria se curvado para o tecuhtli. Eu vencerei aqui... Era tudo o que Citlali queria ouvir. Ele desdenharia do Longo Caminho; não se importaria com o que acontecesse anos depois. Mas Tototl talvez pensasse da mesma forma. Niente respirou fundo. Ele viu os nahualli colocarem a primeira carga de areia negra no cesto da catapulta enquanto os guerreiros acionavam o guincho para abaixar a haste.
— A vitória de Citlali aqui terá um preço muito alto para nós no fim — falou Niente. — Ele ainda pode tomar a cidade, mas não poderá controlá-la por muito tempo. Outros exércitos orientais virão dos lugares mais distantes do império deles. Esta terra é imensa, e nós temos poucos guerreiros aqui e pouco tempo para trazer mais homens do outro lado do mar. E quando os orientais matarem a todos os que sobreviverem, eles olharão para a nossa terra natal e voltarão com um exército ainda maior do que o que levaram antes. Eles vão nos caçar até ter certeza de que nós jamais causaremos problemas outra vez.
— Você tem certeza disso?
Niente balançou a cabeça.
— Não — ele admitiu. — Mas é o futuro que vejo; o provável.
— O novo nahual também viu isso?
Niente balançou a cabeça novamente.
— Não. Mas Atl está aprendendo. Ele só vê o futuro próximo, não o Longo Caminho.
—Você viu uma vitória fácil antes. Disse isso antes mesmo de sairmos da nossa própria terra.
— Eu vi — admitiu Niente. — E nesse momento, era a verdade. Mas isso mudou. Há forças aqui que estavam ocultas de mim, situações que mudaram de figura desde que consultei Axat pela primeira vez. Nada no futuro é sólido e fixo.
— Então esse futuro que você vê também pode mudar. Também mudará.
— Pode ser. Mesmo assim... Tototl, eu diria para você pegar os guerreiros aqui e ir embora. Encontre nossos navios; a essa altura eles devem estar perto da cidade. Pegue os navios e volte para casa. Eu diria para você se tornar o tecuhtli para que, quando os orientais voltassem à nossa terra, e eles voltarão, nós ainda estivéssemos fortes o suficiente para resistir. Os orientais perceberão que, assim como nós não conseguimos conquistá-los, também não conseguirão nos conquistar, e nossos impérios terão que lidar um com o outro como iguais.
Tototl meneava a cabeça em negação.
— Eu não fugirei — falou o guerreiro supremo. — Eu não abandonarei Citlali. Não sem saber que não tenho outra escolha.
— Então, aqui estão os sinais, Tototl. Quando a magia for retirada de todos os nahualli, quando você me vir cair diante de uma arma que não deveria matar: estes são os sinais de que o que eu disse é verdade. Você recuará então, Tototl? Ouvirá o meu conselho, como o tecuhtli Citlali não ouviu?
Tototl pareceu rir.
— Você parece um pedaço de bife defumado, uchben nahual, velho e duro demais para morrer. E quem poderia retirar o poder dos nahualli?
— Se isso acontecer — implorou Niente — se você vir os sinais, você irá embora?
— Se isso acontecer — respondeu o guerreiro supremo —, eu me lembrarei do que você disse e farei o que achar que é necessário.
Enquanto Tototl dizia essas palavras, a catapulta cantava sua canção mortal, e uma bola de fogo cruzou o rio em direção à ilha. Ambos viram a bola cair e explodir, emitindo um rugido de chamas laranjas.
Jan se perguntou se esse seria seu último dia.
A fumaça manchava o céu a sudeste, emergindo dos incêndios que ardiam sem controle na Margem Sul da cidade. Mensageiros enviados por sua matarh vieram durante a noite com uma mensagem: os tehuantinos estavam na Margem Sul; eles tentariam repelir os inimigos de novo, pela manhã; envie uma companhia de gardai se puder abrir mão deles.
Mas ele não podia abrir mão dos gardai. Eles já não eram suficientes para a tarefa que tinham pela frente. A noite anterior tinha sido terrível, o chão tremera enquanto areia negra era lançada de ambos os lados. Agora o céu a leste estava rosa e laranja, e os tehuantinos recomeçariam o ataque terrestre. Jan sabia disso; ele mesmo o teria feito.
Um pajem ajudava o hïrzg com sua armadura, e Jan fez uma careta quando o menino apertou as tiras da couraça — um armeiro desamassara a mossa da armadura na noite anterior.
— Vamos — ele disse para o pajem. — Aperte bem. A armadura não pode cair no meio da batalha.
Qualquer movimento doía. Respirar doía. Jan tossiu sangue na noite anterior assim que recobrou a consciência, embora isso, ainda bem, tivesse parado. Prender o peito com a armadura na verdade fez bem a ele, mas ele se perguntou se suportaria um golpe de espada sem desmoronar. E se perguntou se poderia liderar os homens como um hïrzg deveria: na linha de frente contra o inimigo.
— Traga o meu cavalo — disse Jan.
O pajem prestou continência e saiu correndo.
Jan tinha passado a noite na tenda atrás da segunda muralha de barricadas. A maior parte da areia negra caiu bem longe do acampamento, mas ainda havia crateras de terra negra aqui e ali, e fumaças de incêndios na grama que tiveram que ser extintos. Os offiziers tinham relatado as baixas meia virada da ampulheta depois de fazerem as chamadas. O hïrzg ficou estarrecido. Ele tinha trazido quatro mil gardai e cerca de trezentos chevarittai a Nessântico. Ele e o starkkapitän ca’Damont dividiram os homens de maneira praticamente igual. Jan agora contava com menos de mil gardai e dez punhados de chevarittai; ca’Damont tinha menos.
Não, ele não podia mandar uma companhia para a kraljica. Ele teria sorte se voltasse para Nessântico com uma companhia inteira. Jan leu a mensagem de ca’Talin: Perspectiva ruim. Recomendo resistir o máximo possível, depois recuar para a cidade. Abaixo, com sua letra fina e alongada, ca’Damont adicionara um breve concordo. Jan enviou uma resposta aos dois.
Concordo. Faça o inimigo pagar por terem cruzado o rio, depois recuem para o Mercado do Rio. Reagruparemos lá e nos reuniremos com a kraljica.
O pajem voltou conduzindo um cavalo de guerra que tinha sido a montaria de um dos chevarittai mortos. O menino colocou um degrau perto do cavalo e ajudou o hïrzg a montar na sela. Ele conseguiu se sentar sem gemer alto.
— Obrigado — disse Jan para o menino, prestando continência.
O hïrzg seguiu a meio galope, fazendo careta a cada passo, sacudindo o corpo. Ele subiu a pequena elevação até o topo da segunda barricada. Esperou ali por vários instantes, examinando o cenário.
A maior parte das tropas estava reunida lá embaixo, na ampla vala entre as barricadas serpenteando ao sul e ao comando do starkkapitän ca’Damont, e pouco a frente estava o comandante ca’Talin, com sua tropa se estendendo ao norte por cerca de oitocentos metros até a Avi a’Nostrosei. Após a elevação da primeira barricada em frente a Jan, havia cerca de quatrocentos metros de terreno plano entre as barricadas e o rio Infante — o campo tinha sido revirado pelos cavalos e pelas botas dos soldados e esburacado com as crateras que o bombardeio de areia negra tinham aberto. Do outro lado do Infante, Jan pôde ver o exército dos tehuantinos. Os offiziers inimigos já estavam organizando suas formações, e o hïrzg conseguiu ver pequenas bandeiras fincadas aqui e ali ao longo da margem oposta do rio — ele presumiu que os batedores tinham marcado as partes rasas onde o rio podia ser cruzado.
Havia muitas bandeiras. O Infante não era fundo nem largo como o A’Sele; havia muitos lugares por onde os tehuantinos podiam cruzá-lo. Na noite anterior, Jan pedira para um dos gardai locais mapear os pontos por onde a infantaria poderia cruzar, e posicionou arqueiros diante desses possíveis trechos.
Faça o inimigo pagar por cruzar o rio... Ele podia não conseguir detê-los, mas podia cobrar um preço caro.
Alguns arqueiros ocidentais dispararam flechas inúteis na direção do hïrzg; eles erraram o alvo, e Jan fez um gesto obsceno para eles.
— Vamos! — berrou o hïrzg, fazendo seu peito arder com o esforço. — Vamos; estamos esperando por vocês, bastardos! Estamos prontos para transformar suas esposas em viúvas e seus filhos em órfãos!
Ele disse em voz alta, para que os gardai na trincheira entre as barricadas ouvissem; os homens ergueram seus olhares para ele e vibraram. Jan duvidava que algum ocidental tivesse realmente entendido suas palavras, ainda que tivessem entendido o tom. Ele queria se debruçar por causa da dor lancinante em seu peito quando berrou a provocação, mas, em vez disso, ele sorriu e gesticulou novamente para os tehuantinos. A algumas centenas de passos de distância, Jan viu seus estandartes, prestou continência para os homens e seguiu até onde os offiziers estavam reunidos.
— Outro nascer do sol — falou o hïrzg. — Isso é sempre um bom sinal. O sol está nas nossas costas e nos olhos dos inimigos. Vamos fazer com que esse seja o último dia que eles veem.
Allesandra desfilou sobre o cavalo de guerra diante das pessoas reunidas no pátio do palácio. Sob a luz da falsa alvorada, sua armadura brilhava, o sangue do dia anterior tinha sido lavado e o aço lustrado. Brie, Talbot e o maldito e tolo Sergei estavam atrás dela em seus próprios cavalos, observando enquanto ela percorria a fileira. A kraljica colocou sua fúria e frustração em suas palavras.
— Nós não temos escolha. É o meu dever, é o nosso dever, proteger esta cidade, e eu não permitirei que nós traiamos essa confiança. Neste momento, os ocidentais controlam a Margem Sul. Eles andam pelas ruas que deveriam ser consideradas seguras para nossos cidadãos, saqueiam nossas casas e templos, matam e estupram quem quer que tenha ficado para trás. As forças do hïrzg e nossa própria Garde Civile estão enfrentando o exército inimigo principal na Margem Norte; eles nos encarregaram de proteger a retaguarda e manter a cidade em segurança para quando voltarem. Nós temos que controlar a Margem Sul. Eu controlarei a Margem Sul.
Allesandra fez uma pausa enquanto outra bola de fogo cruzou zunindo o céu que se iluminava — todos assistiram a isso. O cavalo tremeu sob ela, que acariciou seu pescoço musculoso para acalmá-lo enquanto a bola de fogo caía no solo atrás deles, do outro lado da Avi.
— Viram só? Os tehuantinos não querem nada além da destruição dos Domínios e de Nessântico. Fiquem aqui, e todos vocês morrerão. E, se é para morrer, eu prefiro que seja com a espada na mão e o inimigo sangrando aos meus pés.
O grito ecoou alto, mas irregular. Mesmo aqueles que gritaram pareciam hesitantes. Os chispeiros, de um lado, se remexeram inquietos; Allesandra notou que Brie os encarava.
— Nós marchamos hoje para a glória — disse a kraljica, sacando a espada da bainha e a erguendo. — Nós marchamos pelos Domínios. Marchamos por Nessântico. E eu marcharei com vocês, na vanguarda.
Uma carruagem sem teto, conduzida por ténis, se aproximou chacoalhando pelas ruas através da fumaça, dando a volta devagar pelos destroços no caminho; Allesandra viu o símbolo do globo partido de Cénzi nas portas do veículo.
— Hoje, o próprio archigos marchará conosco — acrescentou ela. — Preparem-se. Começaremos o ataque em duas marcas da ampulheta e mostraremos para esses ocidentais como os Domínios reagem contra quem os ameaça.
Eles vibraram novamente porque — Allesandra sabia — era o que se esperava, porque queriam acreditar na kraljica, mesmo que o medo gelasse seus estômagos. Ela cavalgou em direção à carruagem do archigos com Brie, Talbot e Sergei a seguindo. A cabeça calva do archigos Karrol espiou sobre a lateral do veículo; ele não parecia estar contente de estar ali. Dois rostos pálidos e mais jovens podiam ser vistos atrás do homem.
— Archigos, estou feliz em vê-lo — disse a kraljica. — Por mais atrasado que esteja.
— Não vamos fingir que a senhora ou o hïrzg tenham me dado alguma escolha, kraljica — respondeu Karrol. — Mas eu estou aqui.
— E os ténis-guerreiros?
— Mais quatro chegaram hoje do leste. Eu enviei dois para o hïrzg; os outros dois estão comigo. Eles sabem das consequências se deixarem de servir.
O archigos gesticulou para os outros dois ténis na carruagem.
— Ótimo — respondeu Allesandra. — Espero que estejam bem descansados. Precisamos deles agora. Talbot, por gentileza, cuide dos ténis-guerreiros e dos arqueiros. Brie, você fica com os chispeiros.
Ela encarou Sergei, ainda com raiva pela insolência do homem em descumprir suas ordens.
— Sergei, você fica comigo e o archigos.
Eles se reuniram rapidamente. Embora Allesandra ainda estivesse furiosa com Sergei por ter destruído a ponte leste, ela tinha que admitir que um ataque em duas frentes, nas duas pontas, teria dividido e enfraquecido muito suas forças. Mesmo assim, o problema agora estava no fato de todos eles precisarem cruzar a Pontica a’Brezi Veste. E no fato de que os tehuantinos tinham mantido a ponte de pé, e não a destruíram do lado deles, Allesandra sabia que os inimigos queriam que a ponte permanecesse intacta tanto quanto ela — para que pudessem se encontrar com o restante de seu exército na Margem Norte. A insistência de Sergei para que eles recuassem para a Ilha e a Margem Norte e destruíssem as pontes que cruzavam o A’Sele ao sul — a fim de isolar esta tropa de tehuantinos — fazia sentido taticamente.
Allesandra sabia disso intelectualmente, mas emocionalmente...
Esta era a sua cidade, a sede dos Domínios. A kraljica não permitiria que Nessântico fosse tomada dela. Allesandra teve que reconstruir a cidade uma vez; não queria ter que fazer isso novamente. Preferia cair aqui e deixar que seu sucessor — quem quer que fosse — o fizesse.
O ataque começou com uma saraivada de feitiços lançados por Talbot e alguns numetodos, bem como pelos novos ténis-guerreiros e o archigos. Quase todos os feitiços foram neutralizados ou desviados pelos feiticeiros tehuantinos, mas os que passaram fizeram os inimigos se afastarem correndo da Bastida e da área imediatamente a volta da outra extremidade da ponte, na Margem Sul.
— Agora! — berrou Allesandra.
Ela liderou o ataque da Garde Kralji pela ponte, enquanto Talbot direcionava os arqueiros para darem uma cobertura com suas flechas à frente deles. Sergei estava atrás da kraljica, e a carruagem do archigos veio a seguir, se chacoalhando sobre as tábuas. Os tehuantinos dispararam sua própria chuva de flechas na direção deles, mas o archigos entoou e gesticulou em seu assento, e as flechas foram varridas por um vento mágico, caindo inofensivamente no A’Sele.
Em poucos instantes, eles cruzaram o rio. Os guerreiros avançaram berrando contra eles.
— Para a Bastida! — berrou Allesandra para os gardai.
Eles avançaram e passaram a cavalo pelos portões abertos da prisão, sem se importar em deixar a Avi cheia de tehuantinos para atrás, pois estavam cercados.
Atrás da Garde Kralji, Brie conduziu os chispeiros pela Pontica. Ao pé da ponte, eles entraram em formação e suas armas bradaram o chamado ritmado da morte. Os guerreiros na Avi começaram a cair, e nenhum deles conseguiu alcançar os chispeiros para detê-los. Dos portões da Bastida, Allesandra viu Brie, desmontada, andando atrás dos chispeiros, estimulando-os a ficarem, a manterem a formação, a andarem mais rápido. Sua voz forte dava os comandos e o rugido irregular das chispeiras ecoava pela Avi. Os tehuantinos recuaram. Allesandra e os gardai não estavam mais cercados por todos os lados.
— Sigam-me! — berrou a kraljica, liderando a Garde Kralji em um ataque furioso, saindo dos portões da Bastida.
A noite tinha sido terrível, e a aurora simplesmente brutal. Quando o sol surgiu sobre as árvores e os telhados de Nessântico, os ocidentais avançaram: entoando rugidos e gritos, brandindo suas espadas e lanças e lançando saraivadas de areia negra e feitiços violentos e estridentes. Eles se lançaram nas águas do Infante. A água lançou espirros altos e brancos em torno dos tehuantinos, enquanto as flechas da Garde Civile choviam sobre eles. A princípio, o ataque resultou em um massacre, e os gardai gritaram de alegria e alívio, mas havia mais e mais inimigos, e eles simplesmente não paravam de vir, e agora os nahualli lançavam encantamentos que transformavam as flechas em cinzas no ar.
Os ocidentais cruzaram o Infante, e mais guerreiros chegavam a cada instante. Os ténis-guerreiros e os numetodos lançaram fogo sobre eles; isso não deteve o avanço. Punhados e mais punhados de guerreiros tehuantinos caíam mortos no chão, e, mesmo assim, eles avançavam, implacáveis.
— Recuar! — os offiziers e as cornetas chamaram.
A Garde Civile saiu do meio da muralha dupla de barragens e recuou para o cume da segunda barricada. Enquanto recuavam, os gardai derramavam barris de óleo trazidos da cidade, encharcando o solo e deixando poças escuras para trás. Quando os tehuantinos chegaram ao cume da primeira barricada, eles foram recebidos novamente por disparos de flechas. Corpos rolaram para a trincheira oleosa diante deles, mas agora mais companheiros, ilesos, vieram com eles.
Os feitiços preparados martelavam na cabeça de Varina e de todos os numetodos nas barricadas.
— Esperem! — Varina ouviu a ordem de ca’Damont para os ténis-guerreiros e numetodos. — Não ainda! Esperem!
Os tehuantinos chegaram à trincheira e começaram a subir a segunda barragem, onde as tropas da Garde Civile aguardavam.
— Agora! — berrou ca’Damont.
Varina gesticulou e pronunciou o gatilho do feitiço, assim como dois numetodos a seu lado, Leovic e Niels, e os ténis-guerreiros mais adiante na linha de frente. Suas mãos lançaram arcos de fogo. O solo encharcado de óleo entre as barricadas se acendeu, criando um poço de chamas flamejantes e sibilantes. Os que caíram nesse inferno gritaram — Varina viu os guerreiros se contorcerem, em chamas. O calor lambeu sua pele quando soprou o terrível fedor de carne queimada. Abaixo dela, um guerreiro saiu cambaleando às chamas, com o corpo horrivelmente carbonizado e chamas ainda lambendo sua armadura e roupa. Varina viu seu rosto, terrivelmente jovem, sua boca aberta gritando em sua própria língua. Ela não sabia se ele berrava por ajuda, por seu deus ou simplesmente de dor. Varina podia imaginá-lo em casa, abraçando sua esposa ou segurando os filhos, rindo de alguma piada que um deles tivesse contado. Ela mal notou a espada que o guerreiro segurava ou o fato de que ele erguia a arma sobre ela.
Flechas brotaram à frente do homem, e ele desmoronou, calando-se para sempre. Varina sentiu ânsia e vomitou no chão, caída de joelhos ao lado do guerreiro morto. Enquanto cuspia sua bile, ela ficou curiosa: que estranho, eu vi centenas de pessoas morrerem nos últimos dias, e este rosto foi o que mais me abalou...
— Você tem que vir conosco, a’morce!
Leovic e Niels cercaram Varina, a levantaram e quase a arrastaram encosta abaixo, até o lado oposto. Os tehuantinos recuaram momentaneamente enquanto o fogo queimava na trincheira, mas as chamas morreram rapidamente à medida que o óleo era consumido. Eles avançaram novamente, transbordando sobre a barricada pelo outro lado. Os gardai da Garde Civile à espera sacaram suas espadas, e Varina, juntamente com os outros numetodos e os ténis-guerreiros, recuaram enquanto o combate corpo a corpo irrompia sobre o cume. Varina ouviu as cornetas berrando e viu as bandeiras tremulando, mas elas pouco significavam alguma coisa para ela agora que Leovic e Niels continuavam a ajudá-la a recuar, um em cada braço. Varina simplesmente caminhou em meio ao fluxo de pessoas em uniformes azuis e dourados: de volta à cidade, sempre de volta. A retirada foi lenta a princípio, depois ganhou ímpeto e, subitamente, eles já não estavam andando, mas correndo, dando as costas aos tehuantinos ao fugir. Ela ouviu a batida dos cascos dos cavalos dos guerreiros, viu pessoas caírem a sua volta, atingidas por flechas ou abatidas por feitiços.
Leovic e Niels quase que carregavam Varina enquanto corriam. Ela não ousou olhar para trás. Não queria fazer isso.
— Andem, andem, andem! — berrou Brie para os chispeiros ao ver a kraljica e Sergei em seus cavalos, o archigos em sua carruagem, e a Garde Kralji saírem em debandada do breve abrigo da Bastida. — Vamos! Mantenham o ritmo!
Eles transformaram a Avi em um abatedouro, na cabeça da ponte. Os chispeiros correram sobre os paralelepípedos escorregadios de sangue, e sobre corpos que ainda gemiam e se contorciam. Os rostos dos chispeiros alternavam expressões de horror e alegria diante da carnificina que tinham causado, mas Brie não lhes deu tempo para refletir ou comemorar. A hïrzgin fez com que eles avançassem em direção aos portões da Bastida.
Em campo aberto, os chispeiros ficariam vulneráveis; eles atuavam melhor defendendo um espaço confinado. E se as fileiras fossem rompidas, os chispeiros seriam rapidamente sobrepujados. Brie os orientou aos berros, não permitindo que se separassem.
O pessoal de Allesandra avançou contra um aglomerado de guerreiros em uma das extremidades das muralhas da Bastida. Mais ocidentais saíram correndo das ruas laterais, liderados por um guerreiro montado, com o rosto pintado de vermelho e o crânio totalmente raspado. Brie viu um feiticeiro com ele: um velho cujo rosto fora devastado por alguma doença, com o olho esquerdo branco e cego. No momento em que a hïrzgin alinhou os chispeiros perto do portão da Bastida para lidar com o ataque renovado, ela viu o archigos entoando e movendo as mãos encarquilhadas moldando um novo feitiço, fazendo seu robe verde e dourado balançar. O feiticeiro ocidental ergueu o cajado de madeira e berrou uma única palavra em sua língua estranha.
O feitiço dele foi lançado imediatamente.
O archigos e a carruagem foram envolvidos em chamas. O téni-condutor caiu do assento, berrando e batendo no robe em chamas com as mãos. Ela ouviu o velho guinchar de surpresa e agonia. Karrol empurrou a porta e caiu da carruagem para a rua, seu robe parecia pingar chama líquida. Ele rolou no pavimento, emitindo um longo e tênue lamento que parou subitamente, mas Brie já não conseguia ver o archigos, não em meio à confusão da batalha. Enquanto berrava para os chispeiros, para tentar alinhá-los corretamente, a hïrzgin vislumbrou o guerreiro de crânio vermelho surgir com uma lança na mão, incitando o cavalo em um galope em direção à Allesandra. A kraljica ergueu a espada, mas a estocada de lança do guerreiro pintado de vermelho foi mais rápida; horrorizada, Brie viu a ponta da arma entrar com força e atravessar a armadura de Allesandra. O guerreiro pulou do cavalo, ainda segurando a lança que empalou a kraljica, jogando-a no chão. Berrando desesperadamente para os chispeiros, a hïrzgin viu Sergei pular do cavalo como se fosse um jovem.
Eles, também, desapareceram na luta.
Os feiticeiros de ambos os lados lançavam feitiços, e ainda mais guerreiros chegavam e ocupavam as ruas. Brie podia sentir o frio do Ilmodo em volta deles.
— Fogo! — ela berrou para os chispeiros, que olhavam atônitos para a confusão. — Fogo!
Mas então tudo mudou.
Nico tinha sido abandonado. Destituído. Até mesmo Rochelle o tinha deixado em algum momento durante a noite. Ele pôde sentir sua partida, mesmo que não tivesse respondido para ela.
Nico estava orando há um dia inteiro agora, sem comer, beber ou dormir, e Cénzi permanecera em silêncio. Ou talvez Ele estivesse dizendo muito. Nico foi atormentado por visões, mas não sabia dizer se elas emanavam de Cénzi, dos sons que ele ouvia lá fora ou da própria imaginação febril. Ele estava tremendo de frio, como se estivesse envolvido por um inverno impossível, tão frio quanto o próprio Ilmodo. Sobre seus olhos fechados, Nico teve a impressão de ter visto a batalha no oeste quando o sol o tocou através da janela do casebre no Velho Distrito. Ele viu as tropas fugindo dos ocidentais, viu os chevarittai montados tentando em vão proteger a retaguarda daqueles que recuavam dos supremos guerreiros montados, com seus rostos pintados e suas armaduras estranhas. Os homens em preto e prata, os homens em azul e dourado estavam fracassando; muitos deles estavam sendo abatidos por flechas ou pelos guerreiros a cavalo.
Nico testemunhou isso ao ser levado para o campo de batalha pelos braços gelados das suas preces, olhando para a cena do alto. Ele era um pássaro, um falcão, sendo levado pelo vento frio. Ele viu o estandarte do comandante ca’Talin e, mais ao norte, os estandartes do starkkapitän e do hïrzg. Todos estavam recuando para a cidade, com o homem mais à frente deles já nas ruas perto da Avi a’Certendi, a parte mais a oeste da imensa cidade.
Nico pairava sobre tudo isso, observando...
... então ele a viu: Varina. Ela estava exausta e sendo puxada por outros dois hereges numetodos; o trio estava perigosamente separado da massa principal da Garde Civile. Os guerreiros montados se aproximavam, a apenas alguns passos de distância, e a sinistra infantaria dos tehuantinos não vinha muito atrás. Eles seriam atropelados e mortos. Em breve.
Por que o Senhor me mostra isso, Cénzi? Por que me mostra a herege com tanta clareza?
Enquanto observava Varina, Nico sentiu o abraço frio envolver seu corpo mais intensamente. Ele estava caindo, rolando na direção de Varina no momento em que viu os guerreiros montados nos cavalos de guerra avançarem contra ela. Seus companheiros se viraram para lançar feitiços inúteis contra os agressores, que cercaram Varina.
Agora Nico estava ali, no solo e não muito longe de Varina. Ele pôde ouvi-la conter um grito e chamar seu nome — “Nico?” —, mas havia tanta energia ali que ele mal podia ouvir. O Segundo Mundo pareceu se abrir no céu e jorrar um fogo frio, o poder gelado do Ilmodo. Nico podia sentir todos puxando a energia sobre eles: os ténis-guerreiros, os hereges, os feiticeiros dos tehuantinos, até mesmo quem estava do outro lado do A’Sele, na cidade. Ele podia sentir o poder guardado nos cajados mágicos dos tehuantinos, nas mentes dos numetodos.
Todos canalizavam o Ilmodo do Segundo Mundo, onde Cénzi ainda vivia.
Nico se sentiu vasto. Ele podia esticar os dedos e tocar os fios de todas as conexões com o Ilmodo; podia puxá-los e tomá-los para si...
E foi o que Nico fez.
Não foi um movimento consciente. Ele agiu como se alguém tivesse o controle de seu corpo, sem escolha. Ele ouviu a si mesmo dizer palavras que não compreendia, sentiu as mãos se mexerem em um gestual que ele nunca tinha usado antes. Cénzi? Se era Cénzi, não houve resposta.
Nico gritou as palavras finais, executando o gestual final. Ele arrancou as cordas de poder que amarravam os ocidentais ao Segundo Mundo, mas manteve as cordas dos ténis e até mesmo a dos numetodos. Nico estava parado no campo de batalha com os braços abertos, sendo tomado pelo Segundo Mundo como nunca tinha acontecido antes.
Ele nunca tinha se sentido tão cheio do poder do Ilmodo. O poder o preencheu, queimando e perigoso demais para ser manipulado por mais que um instante. Nico absorveu tudo, inspirando o dom de Cénzi e o exalando novamente, soltando um grito.
O que eu faço com isso? Ele perguntou para Cénzi, e ouviu a resposta:
Faça o que deve fazer...
A onda de energia saiu pulsando de Nico, irradiando para o norte e o oeste ao longo da linha de batalha. Onde a onda tocou, os tehuantinos foram jogados para trás, sendo atirados violentamente sobre suas próprias fileiras. Eles foram derrubados como peças de um jogo varridas por uma mão furiosa.
Os guerreiros montados prestes a matar Varina e seus companheiros foram levados pela tempestade, tanto as montarias quanto os cavaleiros foram lançados longe.
— Vão! — disse Nico para eles. — Este é o Dom de Cénzi!
Sua voz ecoava como a de Cénzi; ela rugia, um trovão que pôde ser ouvido por todas as fileiras.
— Vão!
Então, acabou. Os fios de poder se romperam; o Segundo Mundo se fechou, soltando um trovão alto. Nico foi tomado por uma exaustão terrível, tão avassaladora que não conseguiu ficar em pé. Suas pernas cederam, e ele caiu na escuridão gelada.
— Deixem que eles cruzem o rio — disse Tototl. — Assim que eles estiverem na alameda, serão alvos fáceis, vamos atacá-los por todos os lados ao mesmo tempo.
A tática tinha funcionado a princípio. Os orientais usaram seus feitiços assim que o sol nasceu; Niente mandou os nahualli deixarem seus inimigos gastarem energia, mesmo que eles pudessem ter anulado a magia inimiga facilmente com os feitiços em seus cajados mágicos. Os guerreiros recuaram, abandonando a catapulta. Niente esperou no cavalo ao lado de Tototl, ao fim da primeira grande rua transversal da grande alameda. Os arqueiros disparavam saraivadas no céu; um velho nahualli oriental andando sobre uma carruagem mostrou sua força e tornou as flechas inofensivas ao desviá-las. A tecuhtli dos orientais — a mulher vestida de aço — escoltava os guerreiros de um lado ao outro do rio.
Eles ouviram o avanço dos guerreiros escondidos próximo ao rio e no pátio, onde o crânio do monstro tinha sido posto, mas Tototl ergueu a mão quando os guerreiros atrás dele seguiram em frente, ansiosos para se juntar à batalha.
— Esperem — ele ordenou. — Ainda não.
Através do vão entre os prédios, Niente viu os orientais avançarem pela rua, e a mulher, estranhamente, levou seus homens para o interior do pátio de onde os guerreiros tinham saído. Ele se perguntou o porquê disso, então veio a resposta: o terrível barulho estridente das armas de areia negra, que, estranhamente, soavam como as garras de águia que eles usavam no sacrifício de prisioneiros. Eles ouviram os gritos a seguir e viram os guerreiros caírem como milho sendo colhido. O tecuhtli oriental berrou, e os guerreiros inimigos voltaram à alameda em debandada, repelindo os guerreiros remanescentes ali.
— Agora! — gritou Tototl.
Eles avançaram contra a confusão como uma onda. Tototl avançou diretamente contra a mulher, arrancando sua lança de cavalaria da bainha na sela; sua espada permaneceu embainhada. Niente tentou segui-lo. O feiticeiro oriental na carruagem, vestido de verde e dourado, e mais velho que Niente, estava entoando um cântico e gesticulando de um jeito conhecido. Niente sentiu o poder envolvendo o homem crescer, e ergueu o cajado mágico, gritando o gatilho do feitiço. O X’in Ka disparou uma rajada solar de seu cajado, envolvendo o feiticeiro em chamas azuis. O homem gritou, e a rajada encobriu a carruagem e o passageiro.
Tão lenta. A magia oriental era tão lenta.
Niente viu a lança de Tototl empalar a tecuhtli oriental como um pedaço de carne. O guerreiro supremo pulou do cavalo ainda segurando a lança nas mãos e arrancando a pobre mulher do cavalo para os paralelepípedos. Tototl berrou em triunfo. Niente ouviu o impacto do corpo da mulher ao cair no chão.
Ele sentiu que os feiticeiros inimigos preparavam feitiços, ouviu a mulher no comando das terríveis garras de águia berrar ordens para seus homens, com uma longa trança marrom balançando sob seu elmo. Niente ergueu seu cajado mágico, pronto para abater a mulher de trança — para ele, ela era a mais perigosa dos inimigos.
Ele gritou o gatilho do feitiço, mas nesse mesmo instante, uma força terrível o puxou, puxou todos os nahualli. O ar gelado do X’in Ka girou em volta e por cima de Niente, varrendo o feitiço — e ele soube que tinha visto isso, embora não tivesse acreditado que fosse possível.
O homem da bruma, o homem escondido — ele tinha tomado uma decisão. Tinha agido.
O Longo Caminho estava aberto.
Niente engasgou. Esta era uma força bruta que ele nunca tinha sentido antes.
Um vórtice invisível pairou sobre eles, como a boca faminta de um tornado implacável, e sugou a energia do cajado de Niente, de todos os cajados mágicos, arrancando os poderes estocados neles e deixando os cajados vazios, como se todos os feitiços preparados para serem colocados dentro dos objetos na noite anterior com tanto trabalho tivessem sido lançados. Não foram apenas os nahualli que sentiram isso: ele notou que todos pararam e olharam para o céu, à procura de alguma coisa que eles não podiam ver. Tototl tinha arrancado a lança do corpo da tecuhtli; ele se aproximou dela, posicionando a lança para golpeá-la novamente, e também hesitou.
Então o vórtice desapareceu, sumiu, e Niente agora segurava apenas um pedaço de madeira vazio. Ele viu os outros nahualli se entreolharem, surpresos, ou soltarem seus cajados, assustados.
— Niente! — gritou Tototl sobre os paralelepípedos, com a lança ainda erguida.
Niente mostrou o cajado para ele e disse, surpreso:
— Eu não tenho nada. A magia foi retirada de todos os nahualli. Tototl, eu vi isso... eu lhe disse...
— Você ainda está vivo — resmungou o guerreiro supremo. — Nós ficaremos. Nós lutaremos!
Ele ergueu a lança novamente. Niente, então, viu a estranha cena: um velho com um nariz de prata avançando contra Tototl. O homem não brandia uma espada, mas uma bengala, enquanto berrava para o guerreiro supremo, e no entanto...
Niente sentiu a ameaça do pedaço de pau. Tototl também viu o homem, mas não fez nada, apenas sorriu. Niente gritou quando o homem apontou a bengala na direção de Tototl e saltou entre os dois, tentando afastar a bengala com seu cajado, mas ele não era forte o bastante. E a bengala tocou o corpo do próprio Niente.
O impacto pareceu com o punho de Axat. Niente pensou ter visto o rosto Dela sobre ele, acenando com a cabeça enquanto Niente caía. Ele viu um pássaro entalhado voando na frente de Axat.
Uma última dádiva...
Sergei viu a estocada cruel da lança do guerreiro trespassar a armadura de Allesandra. Viu a boca da kraljica se abrir em silêncio, surpresa e abalada, viu o guerreiro usar a haste da lança para arrancar a kraljica do cavalo. O homem se aproximou dela e arrancou a lança de seu corpo, seu sangue jorrava enquanto ele se preparava para estocar novamente a figura caída. O guerreiro berrou alguma coisa para um antigo feiticeiro ocidental perto dele.
Sergei se deteve. Alguma coisa parecia estranha: um vento frio furioso varreu a Avi, e a fúria dos feitiços de todos os lados pareceu ter se esvaído.
O embaixador se remexeu. Ele mancou até Allesandra, com a bengala em uma mão e o florete na outra. Mais um ocidental se aproximou a sua esquerda, e Sergei estocou por baixo do golpe cortante do homem, a lâmina fina do florete encontrou uma brecha entre as ripas de bambu da armadura e se enfiou no abdômen. O ocidental dobrou o corpo e caiu, e o movimento arrancou a espada da mão de Sergei. Ele deixou a arma ali; não tinha força para segurá-la.
— Não! — berrou o embaixador para o guerreiro parado diante da kraljica.
Sergei brandiu a bengala para o homem, que olhou para ele e parecia quase rir.
Sergei rezou para que se lembrasse da palavra que Varina lhe tinha ensinado, para que a pronunciasse corretamente, para que o feitiço que ela disse ter colocado dentro da bengala realmente funcionasse.
— Scaoil! — berrou o embaixador, apontando a ponta de latão da bengala na direção do guerreiro.
Mas no mesmo instante, o antigo feiticeiro se moveu com uma velocidade impressionante para sua idade e se colocou entre Sergei e o guerreiro, brandindo seu cajado mágico. A bengala acertou o feiticeiro. Assim que a bengala o tocou, sua ponta de latão pareceu explodir. Um som alto e percussivo quase ensurdeceu Sergei. A rajada fez lascas da bengala saírem voando, lançando o velho feiticeiro para trás juntamente com um jato de sangue e tripas; moribundo, se é que já não estava morto. Um pássaro vermelho entalhado saiu voando da bolsa rasgada do feiticeiro, posando novamente no peito do velho. O feiticeiro segurou o pássaro, pareceu sussurrar para ele e, em seguida, sua cabeça pendeu para o lado.
O guerreiro pintado de vermelho deixou a lança cair de sua mão olhando fixamente para o corpo do feiticeiro, caído na Avi perto de Allesandra, ferida.
O tempo parou para Sergei. O guerreiro estava imóvel, com a boca contraída no rosto pela fúria da batalha. O embaixador pensou que o homem levaria a mão ao lado de seu corpo e sacaria a espada, que abateria Sergei no instante seguinte. Não havia gardai para salvá-lo, nenhum chispeiro perto o suficiente.
Ele se perguntou qual seria a sensação de morrer.
Mas o guerreiro olhou fixamente para o corpo do feiticeiro, balançando a cabeça. Ele berrou alguma coisa que Sergei não compreendeu: uma prece, uma maldição, uma pergunta. O homem deu um passo para trás e se afastou do embaixador, depois deu mais um e mais outro. Então se virou completamente e rugiu uma ordem que ecoou na rua. Os guerreiros na Avi começaram a ceder terreno, devagar a princípio, depois mais rapidamente. Sergei viu Brie e Talbot persegui-los com os chispeiros, e chamou os dois.
— Esperem! A kraljica...
Ele se ajoelhou ao lado de Allesandra.
— Sergei — ela disse. — Dói...
— Eu sei — respondeu o embaixador.
Alguns gardai se reuniram a sua volta — sangrando, exauridos e aparentemente atordoados. Todos olharam espantados para a kraljica e para o corpo destruído do feiticeiro.
— Ajudem-me — disse Sergei para os homens. — Ajudem-me a levá-la de volta para o palácio...
Jan, com os chevarittai e alguns ténis-guerreiros lutavam na retaguarda para proteger a retirada, eles enfrentaram os guerreiros montados e mantiveram a infantaria ocidental longe dos retardatários. Como comandante do exército firenzciano, Jan raramente tinha precisado coordenar uma retirada em grande escala, mas ele tinha estado do lado vencedor várias vezes, e sabia que a retirada, em geral, era o momento mais perigoso para as tropas, pois a força avançando poderia eliminar os retardatários, lançar flechas e feitiços para dizimar ou até mesmo obliterar as companhias da retaguarda. Frequentemente, o exército em progressão podia sobrepujar o inimigo exausto e desmoralizado e causar baixas terríveis.
A retirada talvez permitisse que o comandante lutasse outro dia, mas também podia levar a uma derrota completa e infame. Eles nem ao menos estavam recuando para fortificações, mas para uma cidade aberta e desprotegida.
Os feiticeiros ocidentais lançaram feitiços contra eles que os ténis-guerreiros tiveram pouco tempo e energia para desviar. Os arqueiros cobriram o céu com suas flechas. As tropas montadas — felizmente poucas — avançaram as suas costas, abatendo os gardai correndo. A vanguarda do exército inimigo avançou com tudo. Jan vislumbrou, entre a fumaça e a confusão do campo de batalha, os estandartes do comandante tehuantino: a serpente alada que voava em um evoaçante pano de tom verde intenso. A maior parte dos feitiços parecia vir do grupo à volta daquele estandarte.
Jan estava exausto e sentindo uma dor terrível. Seus dedos queriam libertar o fardo do aço firenzciano pesado, o cabo da espada já escorregadio com sangue. O hïrzg oscilou na sela, quase caindo do cavalo quando um relâmpago mágico surgiu, sibilante, explodindo diretamente à frente, fazendo seu cavalo de guerra empinar. Ele acalmou o animal.
— Hïrzg!
Jan ouviu alguém chamar, e um chevaritt à direita apontou para um quarteto de guerreiros montados prestes a atropelar um grupo de gardai.
Ele suspirou. Obrigou seus dedos a segurarem firme a espada. Jan ignorou a dor lancinante em seu peito. Ele esporeou o cavalo, galopando em direção aos guerreiros.
Você não vai sobreviver a isso. Esta será sua última batalha.
O ideia lhe ocorreu como uma certeza. Uma profecia. Ele estremeceu ao soltar um grito de encorajamento para os chevarittai, ao mesmo tempo em que eles cavalgavam em direção aos guerreiros.
Então...
Uma onda de frio intenso tomou conta dele, como se o inverno tivesse chegado mais cedo; quando a sensação se esvaiu, Jan percebeu, mesmo com a fúria de seu ataque, que a chuva constante de feitiços das forças tehuantinas tinha parado. Os guerreiros à frente também o notaram. Eles puxaram as rédeas de seus cavalos e voltaram seus olhares para suas próprias fileiras. O hïrzg ficou preocupado que os feiticeiros estivessem preparando outro feitiço em massa, como a tempestade de guerra. Mas, em vez disso, uma onda visível varreu a terra de leste a oeste, uma onda que fez Jan puxar as rédeas, espantando. Todos podiam vê-la: no ar fugidio, na poeira erguida pela onda ao passar. Onde tocou o avanço da linha de frente dos ocidentais, os guerreiros foram jogados e lançados para trás, sem tocar nos homens no próprio hïrzg. Jan ouviu gritos e gemidos, depois uma única voz, mais alta.
— Vão! Este é o Dom de Cénzi! Andem!
O grito pareceu vir de todos os lugares e de lugar nenhum.
Jan sentiu subitamente uma tênue esperança. A bola de fogo de um téni-guerreiro saiu voando sobre os tehuantinos. Não houve reação ao feitiço: nenhum desvio, nenhuma implosão impotente acima deles. A bola de fogo anunciou a morte com um som estridente, penetrando nas fileiras ocidentais e explodindo, intacta. Outra veio atrás desta, e mais outra — todas penetraram. A esperança dentro do hïrzg aumentou, seus ferimentos já não importavam.
— Virem-se! — berrou ele para as tropas, para os offiziers. — Virem-se! Sigam-me!
Jan ergueu sua espada quando os chevarittai atenderam ao chamado. Ele ouviu a ordem ecoar entre as fileiras, e a retirada parou, virando-se lentamente. O hïrzg já estava cavalgando rapidamente em direção aos tehuantinos. Por todo o campo de batalha, até o ponto ao sul onde sua visão alcançara, a retirada se voltava para ele. As cores preto e prata começaram a fluir em direção ao oeste.
Com os chevarittai em volta de si, Jan penetrou na linha de frente atordoada dos ocidentais e seguiu em direção ao estandarte da cobra alada. Os primeiros guerreiros por quem ele passou estavam espalhados no chão; se estavam mortos ou inconscientes devido ao enorme feitiço desconhecido, Jan não sabia. Então o hïrzg encontrou resistência e avançou pelo mar de lâminas reluzentes, esquecendo suas dores em meio à fúria da batalha. Os chevarittai gritavam ao mesmo tempo que derrubavam os ocidentais e seguiam em direção ao comandante inimigo, todos avançando. Eles ouviram o rugido dos gardai correndo atrás de si.
Não houve resposta da parte dos feiticeiros tehuantinos. O que quer que tenha acontecido, roubou a magia deles. Mas os guerreiros tehuantinos — ao menos aqueles distantes da onda inicial não tinham sido afetados. Eles lutaram tão ferozmente como nunca, e agora que a euforia inicial tinha passado, a exaustão e a dor se fizeram sentir novamente. O ataque diminuiu, embora os estandartes de serpente alada agora estivessem dolorosamente próximos. Cada golpe de espada na massa de guerreiros disparava um choque que subia pelo braço de Jan. Suas pernas doíam, e ele mal conseguia se manter montado no cavalo de guerra. Suas costelas o apunhalavam como adagas de marfim a cada fôlego.
Ele se perguntou onde Brie estaria. Perguntou-se quem contaria a seus filhos e o que eles diriam.
Você tem ao menos que fazer essa história valer a pena ser contada.
Gemendo, Jan ergueu a espada para proteger a lateral do corpo de uma estocada, e a lâmina desviou o ataque, cortando o pescoço do guerreiro. O hïrzg viu o homem escancarar a boca e arregalar os olhos. Algo golpeou sua coxa na esquerda, ele se virou para enfrentar o guerreiro com a lança, cuja ponta estava cravada na sua perna logo acima da couraça. Jan puxou as rédeas com força para a esquerda e o cavalo de guerra ergueu os cascos, que acertaram e pisotearam o agressor enquanto a ponta da lança era arrancada de sua coxa. Ele sentiu seu sangue jorrar, molhando o acolchoamento sob a couraça.
Jan estava mais perto. Ele podia ouvir o estandarte da cobra tremulando.
— A mim! — gritou o hïrzg para os chevarittai, mas não ouviu resposta.
Jan não sabia onde eles estavam, não tinha tempo de procurá-los. Carrancudo, ele avançou, atropelando os guerreiros à frente com seu cavalo. Jan alcançou uma pequena clareira, viu o líder tehuantino, com o crânio raspado decorado com uma águia vermelha cujas asas se abriam em suas bochechas. O homem era mais velho que Jan, volumoso na armadura ocidental e montado em seu próprio cavalo, um magnífico animal malhado. Perto do líder, havia um feiticeiro ocidental, jovem, com o cajado mágico na mão e um bracelete dourado no braço.
Jan reuniu todas as forças que ainda tinha, ergueu a espada e gritou em desafio. Ele esporeou o cavalo de guerra para seguir adiante.
Do esconderijo atrás das tapeçarias na parede dos fundos, Rochelle viu a kraljica ser carregada para o salão. A armadura de Allesandra estava manchada de vermelho, e havia um buraco aberto no peitoral de onde o sangue ainda jorrava. Seu rosto estava pálido e contraído, o cabelo grisalho desalinhado e duro como palha em volta do rosto.
— Coloquem-me no trono — ela ouviu o sussurro da kraljica.
A voz da mulher era áspera e baixa, exausta e esquelética. Os gardai que a levavam obedeceram e a colocaram no Trono do Sol. Rochelle esperava que o trono se acendesse assim a kraljica se sentasse no abraço cristalino, como diziam as histórias, mas o trono respondeu apenas com o mais pálido dos brilhos, praticamente invisível na luz do sol.
Ela se perguntou se era porque a kraljica estava à beira da morte.
— Alguém vá procurar pelos curandeiros da kraljica — ela ouviu Sergei dizer. — O restante, procurem a hïrzgin para receber suas ordens; ela está no comando. Andem!
Eles se dispersaram. Rochelle viu Sergei se ajoelhar ao lado do trono.
— O que eu posso fazer pela senhora, kraljica? — perguntou o embaixador.
— Água, Sergei — sussurrou Allesandra. — Estou com tanta sede.
Ele mancou até um balcão perto da porta de serviço; Sergei estava sem a bengala e andava devagar. Rochelle saiu de trás da tapeçaria. Com alguns passos resolutos, ela alcançou a plataforma, com a faca na mão. Sergei a ouviu e berrou seu nome — “Rochelle!” — mas ele estava muito longe e era lento demais para detê-la. A pedra branca — dentro da bolsinha em volta do pescoço de Rochelle — parecia pulsar incandescente contra sua pele.
Você vai matá-la e, enquanto ela morre, você vai contar o porquê, para que ela vá para Cénzi sabendo...
Allesandra olhou para Rochelle com um olhar confuso e sofrido.
— Olá, mamatarh — disse ela. — Eu sou Rochelle.
— Rochelle? Mamatarh?
A confusão aumentou na expressão da mulher. Ela viu a faca e franziu os olhos.
— Eu conheço essa arma — Allesandra disse, umedecendo os lábios secos.
Ela tossiu, cuspindo bolhas de espuma vermelha dos cantos da boca.
— Eu matei Mahri com isso. Onde você...?
— Do seu filho — respondeu Rochelle. — Do meu vatarh.
A kraljica estreitou os olhos novamente.
— Seu vatarh? Jan?
— Rochelle, não faça isso — disse Sergei.
Ele deu passos vacilantes em direção à plataforma, com a mão estendida na direção dela. Rochelle ignorou o embaixador. Um corte com a lâmina, e ela poderia passar por qualquer uma das portas e estar longe antes que ele pudesse fazer qualquer coisa para detê-la.
— Sim, Jan é meu vatarh — contou Rochelle para Allesandra.
Sua mão livre segurou a pequena bolsinha de couro com o seixo quase branco e chato que continha sua matarh e todas as vítimas dela.
— E minha matarh... ela era a Pedra Branca. Elissa, era assim que ela se chamava nessa época, embora esse não fosse seu nome de verdade.
— Elissa... — Os olhos de Allesandra se fecharam por um momento; sua respiração se agitou e seus olhos se abriram novamente. — Jan...
— Ela o amava — disse Rochelle ao se inclinar sobre a kraljica.
Ela aproximou a lâmina do pescoço de sua mamatarh. Allesandra pôs a mão sobre a de Rochelle, mas não havia força no aperto. Sua pele era tão enrugada quanto um pergaminho.
— Rochelle, a mulher já está morta — falou Sergei. — Você não precisa fazer isso. A Pedra Branca está morta. Deixe-a morrer em paz.
Rochelle olhou para ele.
— Por que você se importa, embaixador? Suas mãos estão bem mais ensanguentadas que as minhas.
— Eu lhe disse na carruagem: não é tarde demais para você, Rochelle. Você não é a sua matarh. Não precisa se transformar no que ela se tornou.
A faca tremeu em sua mão. Prometa para mim...
— Faça isso — continuou Sergei — e você será para sempre a Pedra Branca, a assassina odiada que matou a kraljica. Será caçada pelo resto da sua vida curta e miserável. Jamais se sentirá segura, jamais ficará à vontade. Eventualmente, você cometerá um erro e será capturada, depois será arrastada para cá acorrentada e será executada. Este é o seu destino, Rochelle, o único que terá se fizer isso.
— E se eu não fizer? Eu ainda não sou a Pedra Branca, que matou Rance e os outros?
Sergei deu de ombros.
— Eu não sei. Sua vida será um livro que você mesma escreverá. Se a Pedra Branca desaparecer, não há ninguém a ser perseguido.
A mente de Rochelle estava atormentada. A faca pressionada contra a pele de Allesandra, o gume afiado, o sangue. Tudo o que ela tinha a fazer era pressionar com um pouco mais de força. Só precisava se debruçar levemente sobre a mulher; a faca faria o resto. Os dedos de Allesandra apertavam os de Rochelle, quase como se a kraljica quisesse que ela fizesse aquilo.
— Minha matarh amava Jan — disse Rochelle para sua mamatarh, com uma voz mais trêmula do que as mãos.
— Eu sei. — Os lábios de Allesandra estavam molhados de sangue, e um longo filete escorria pelo canto da boca. — E Jan a amava. Eu sei disso também.
A kraljica gorgolejou, o cheiro de seu hálito era horrível.
— Eu lamento.
— Lamenta? — Rochelle praticamente gritou, quase enfiou a faca no pescoço de Allesandra com violência. — Você deveria ter dito isso para ela.
A kraljica não respondeu. Sua respiração ficou fraca, seu corpo se contorceu em um espasmo. Ela olhou fixamente para Rochelle, piscando muito.
— Rochelle...
Ela tirou a faca do pescoço de Allesandra e embainhou a arma. Mate-a... Rochelle ouviu o sussurro de sua matarh, mas seu som foi fraco, e ela descobriu que não tinha vontade de fazê-lo. Não mais. Toda a raiva tinha abandonado Rochelle, toda a certeza.
— Eu quero ver você morrer — ela disse para a kraljica, olhando para Sergei. — Eu preciso ver isso.
— Está bem. — Sergei subiu os degraus da plataforma pesadamente para ficar ao lado dela. — Nós assistiremos juntos.
A boca de Allesandra se abriu, como se ela fosse protestar, mas não disse nada. Os dois ouviram sua respiração se esgotar. A kraljica olhava para Sergei.
— Nessântico...
Sua voz soou quase tão fraca quanto um zéfiro. O olhar cego da kraljica se fixou em algum ponto entre os dois.
— Sergei, ela está a salvo?
— Sim — respondeu Sergei. — Ela está a salvo.
Allesandra não esboçou reação. Após um tempo, eles perceberam que ela já não respirava. Seus olhos continuavam abertos. Rochelle tirou a pedra branca da bolsinha e colocou sobre o olho direito da kraljica.
— Pronto, matarh — disse Rochelle. — Ela é sua...
Rochelle começou a descer da plataforma.
— Espere — chamou Sergei, atrás dela. — A pedra...
— Deixe aí. Guarde como lembrança. Jogue fora. Eu não me importo. Não preciso dela.
Rochelle saiu do salão no momento que os curandeiros — tarde demais — entraram.
A onda de frio, seguida do pulso que passou por eles inofensivamente, mas que colidiu contra os ocidentais...
A presença de Nico e sua voz, inacreditavelmente alta...
O silêncio que pareceu durar vários instantes, quando eles perceberam que nenhum dos ocidentais lançava feitiços em sua direção...
O que aconteceu?
Varina ainda podia sentir o Scáth Cumhacht dentro de si. Tinha sentido alguma coisa — alguém? — puxar os feitiços que ela tinha guardado na mente, como se quisesse roubá-los, mas a presença passara por Varina sem tocá-la. Bem ao norte, ela viu a bola de fogo de um téni-guerreiro cruzar o horizonte em direção ao inimigo, depois outra e mais outra, esta de um téni perto dela. Nenhum deles foi tocado.
Varina ouviu os offiziers gritando para virar os gardai para o oeste mais uma vez. A maré que os arrastou pelo caminho diminuiu, parou e depois começou a fluir para o outro lado. Eles ficaram parados em meio à correnteza. Leovic e Niels ainda seguravam seus braços, mas Varina percebeu que eles observavam.
— Vão — ela disse para os dois. — Eles precisam de vocês. Eu seguirei como puder.
— A’morce — reclamou Niels.
— Vão — repetiu Varina.
Eles a deixaram e correram na direção de um dos offiziers chevarittai. Varina viu Leovic e Niels serem levados pela multidão. Ela seguiu depois, bem mais lentamente, mancando. Uma multidão de gardai passou por Varina, gritando. Ela ouviu o barulho da batalha recomeçar adiante, mas todos os feitiços pareciam estar vindo dos ténis-guerreiros da fé concénziana e dos numetodos, não dos ocidentais.
Varina estava entre os corpos dos que caíram durante a retirada, a maioria vestindo uniforme azul e dourado. Era difícil ignorá-los. O pior era ver aqueles que não tinham morrido, mas que estavam feridos demais para andar, estendendo suas mãos, pedindo socorro enquanto ela passava ou rastejando em direção à cidade. Para esses, Varina só podia dizer que a ajuda estava chegando em breve para resgatá-los — e torcer para que fosse verdade.
Mas ela estava procurando por uma pessoa em especial.
Varina viu um corpo a sua frente, à esquerda, vestindo um robe verde de téni. Pensou que pudesse ser um dos ténis-guerreiros, mas então viu o rosto.
O rosto de Nico.
Ignorando as pernas doloridas, Varina correu até ele, se ajoelhando a seu lado. Nico parecia ileso: não havia sangue em seu robe, seu rosto sujo e escuro tinha velhos cortes e hematomas, mas tirando isso parecia incólume.
— Nico? — ela disse, rolando seu corpo sobre suas costas procurando desesperadamente por algum sinal de ferimento.
Ele abriu os olhos, e sorriu.
— Oi, Varina. Acho que dormi. Você viu minha matarh?
Era a voz de um menino. A voz de uma criança. Nico se sentou e olhou a sua volta, arregalando os olhos ao perceber os gardai correndo aos gritos e brandindo espadas; os corpos caídos ao redor; os vapores e a fumaça do campo de batalha; a terra pisoteada que um dia tinha sido o campo de um fazendeiro. Ele se ajeitou e ficou sentado com as costas eretas.
— Varina — disse Nico com a voz trêmula, obviamente com medo, ele pegou os braços dela com força. — Estou assustado, Varina. Leve-me para casa. Por favor. Eu não quero ficar aqui.
— Nico, o que você fez?
Ele parecia amedrontado com a pergunta e se afastou de Varina.
— Eu não fiz nada, juro. Só quero ir para casa. Quero ver a minha matarh. Quero ver Talis.
Varina o abraçou.
— Nico, Talis e Serafina... partiram.
— Para onde eles foram? — ele perguntou.
Não havia malícia em seus olhos, só a pergunta inocente.
— Nico...
Ela não podia responder. Varina o abraçou de novo. O que quer que Nico tivesse feito, seja lá como o fez, o esforço obviamente lhe custara a mente. Este não era mais o Absoluto dos morellis. Este não era mais Nico, o grande téni. Ele se agarrou a Varina como uma criança a sua matarh, e ela sentiu seu corpo tremer de pânico e angústia.
Gardai ainda passavam por eles; o barulho da batalha e os trovões dos feitiços dos ténis-guerreiros eram ensurdecedores.
— Nico, vamos — falou Varina. — Vamos sair daqui. Não é seguro. Você pode vir pra minha casa. Gostaria disso?
Ele assentiu urgentemente, abraçado a ela. Varina o levantou.
Juntos, eles seguiram cambaleando para leste, em direção à cidade.
Atl se sentiu nu e desprotegido, seu cajado mágico tinha sido esvaziado em poucos instantes por aquele terrível feitiço do leste, e agora a batalha tinha sido subitamente renovada, quando já deveria estar acabada.
Em vitória. Na vitória que Atl tinha visto. Na vitória que Atl tinha dito para o tecuhtli que seria dele. Atl se lembrava da visão do taat, aquela que Niente alegara ter visto, o caminho que Atl tinha sido incapaz de ver, que ele pensava que era mentira do taat. Isso não era possível.
Citlati se enfureceu com Atl enquanto bolas de fogo dos nahualli orientais caiam perto dos dois.
— Detenham-nos! — berrou o tecuhtli. — Maldito seja, nahual! Detenham-nos!
Mas tudo o que Atl pôde fazer foi balançar a cabeça.
— Eu não tenho poder, tecuhtli. Nenhum dos nahualli tem. Ele foi tirado de nós.
Os feitiços sumiram, e não havia tempo agora para preparar novos e colocá-los nos cajados mágicos.
— Você me prometeu a vitória, nahual! Você me prometeu a cidade!
Citlali choramingou como uma criança sem seu brinquedo favorito, mas não havia nenhuma resposta para essa situação. Seu rosto ficara tão vermelho de raiva que a águia vermelha pareceu se misturar a sua pele.
Não haverá uma vitória, Atl queria dizer para ele. Ou, se houver uma, não será a vitória que eu vislumbrei na tigela. Os caminhos da tigela premonitória tinham sido apagados. Tudo mudou. Eu nunca tinha visto esse caminho antes. Não sei para onde ele leva.
Como seu taat tinha avisado. Sua mão tateou a bolsa, onde o pássaro entalhado que o taat lhe dera estava aninhado. Se um de nós vir o rumo, então podemos contar para o outro que o Longo Caminho está aberto... Será que Niente estava certo: será que esse Longo Caminho existia, aquele que Atl não conseguia ver?
Ele desejou que seu taat estivesse ali.
Citlali ainda estava furioso, mas a atenção de Atl estava voltada para o pássaro entalhado na bolsa. Ele pareceu farfalhar, como se estivesse vivo e batendo as asas em pânico. Atl abriu a aba de couro e meteu a mão dentro. Sim, a coisa estava se mexendo. O pássaro ficou imóvel quando Atl o tirou para fora, e, assim que o fez, ele pôde ouvir a voz inconfundível de Niente.
— Tototl está voltando para os navios. Você tem que ir também! O Longo Caminho está aqui.
— Taat?
Não houve resposta. Atl soltou o pássaro entre seus dedos que há muito tinham perdido a força. Ele viu o objeto cair no chão, se perdendo entre os caules dos grão pisoteados na terra. A voz de seu taat soara tão fraca, tão perdida, e Atl foi tomado pela certeza de que jamais a ouviria novamente.
— Tecuhtli — chamou Atl. — Temos que recuar e encontrar os navios. Estamos sem magia. Não teremos nenhuma até que possamos descansar novamente.
— Não! — disparou Citlali. — Eu tomarei a cidade hoje.
— Não é possível agora — respondeu Atl.
— Como você sabe? — disse Citlali, com desprezo. — Nada do que você me disse era verdade. Você não é mais o nahual. Eu encontrarei outro. Farei de Niente o nahual novamente.
Citlali ergueu a espada contra Atl, como se estivesse prestes a atacá-lo, Atl ergueu seu cajado mágico inutilmente.
Alguém gritou na língua dos orientais para os dois, e um cavalo de guerra rompeu o anel em volta de Citlali e Atl, conduzindo um guerreiro coberto de sangue e terra, sem elmo e com uma espada chanfrada na mão. Ele investiu diretamente contra Citlali, e o tecuhtli deixou Atl de lado para aparar o golpe do homem. O aço retiniu em aço, e Atl viu uma lasca da lâmina de Citlali sair voando e girando. Quando os cavalos de guerra se aproximaram, Citlali empurrou o oriental, e o homem caiu do cavalo. O tecuhtli riu.
— Viu só? — disse ele. — Viu só como eles caem facilmente? E você me diz para recuar?
O oriental estava lutando para ficar de pé, meio aturdido, apoiando-se em uma perna. Parecia que ele não seria capaz sequer de erguer sua espada. A sua volta, Atl viu os uniformes pretos e prateados e azuis e dourados dos orientais, embora os três permanecessem sozinhos em um nexo tranquilo em meio ao caos. Vários guerreiros caíam sob a pressão, os feiticeiros inimigos lançavam sua magia, e os nahualli eram incapazes de reagir. Citlali pulou do cavalo; Atl viu sua bota pisar sobre o pássaro vermelho entalhado no chão revirado e lamacento. O tecuhtli ergueu a espada novamente. O golpe, Atl viu, arrancaria a cabeça do oriental.
Atl ergueu seu cajado mágico vazio novamente, e o desceu com força no crânio de Citlali. O som emitido foi estranhamento baixo, como um pau batendo em um melão maduro, mas o tecuhtli caiu inconsciente aos pés atordoados do oriental. O homem olhou para Atl, que devolveu o olhar. Por um instante, nenhum dos dois se mexeu, então, enquanto Atl observava, montado em seu cavalo, o oriental ergueu sua espada e a enfiou no pescoço de Citlali.
— Perdemos o tecuhtli! — Atl gritou alto para que os guerreiros perto dele pudessem ouvi-lo. — Perdemos o tecuhtli. Recuar! De volta para os navios!
Enquanto os guerreiros reagiam, enquanto começavam a abandonar o combate e recuar, enquanto os orientais berravam em triunfo, Atl encarava o oriental. O homem se apoiava na espada, ainda cravada no pescoço de Citlali. Atl o cumprimentou com a cabeça.
Em seguida, ele puxou as rédeas do cavalo e começou a longa fuga para o oeste.
A Aurora
Eles foram perseguidos pelo exército de azul e dourado e preto e prata, foram caçados enquanto recuavam em direção ao rio e aos navios à espera, mas não intensamente. Os retardatários tinham sido abatidos, mas os exércitos principais não foram enfrentados novamente. Ficou claro que os orientais estavam felizes em escorraçá-los de sua terra, mas não exigiriam o extermínio do inimigo se eles estivessem dispostos a ir embora.
O exército vislumbrou os mastros dos navios da frota no segundo dia, a cerca de quinze quilômetros rio acima a partir de Nessântico, os tehuantinos subiram a bordo o mais rápido possível. Tototl, que se nomeara como tecuhtli, entrou no Yaoyotl e virou a frota para oeste assim que os guerreiros sobreviventes e os nahualli subiram a bordo. Ele afundou os barcos vazios, em grande número, no meio do rio para desencorajar a perseguição por parte de qualquer embarcação da marinha dos Domínios.
Eles navegaram A’Sele abaixo, sendo levados rapidamente pela correnteza em direção ao mar.
De volta para casa.
Atl, a bordo do Yaoyotl, olhou fixamente para a bruma verde da tigela premonitória. Tototl o observava atentamente; seu crânio agora estava pintado com o desenho da águia que em breve seria permanentemente tatuado em sua pele.
A miríade de futuros se espalhou diante de Atl; eles não estavam mais encobertos e difusos como tinham estado. Era como se Axat tivesse tirado um véu diante do rosto de Atl. Ele podia ver com mais clareza agora, todas as incertezas que encobriram as possibilidades por tanto tempo tinham sido sopradas para longe como nuvens tempestuosas. Os futuros estavam abertos para o nahual, todas as possibilidades.
O que ele viu o fez ofegar. O Longo Caminho... Este era o futuro que seu taat tinha visto, que ele sempre dizia que estava lá. Atl percebeu então que Niente sabia que preço que o Longo Caminho cobraria: para alcançá-lo, ele devia morrer, e o tecuhtli Citlali também seria morto, se ele quisesse que esse futuro se concretizasse; e um grande número de guerreiros também deveria morrer. Por quanto tempo o senhor manteve esse segredo, taat? O senhor sabia antes mesmo de nós partirmos?
Atl suspeitava que sim. Isso explicava muita coisa. Explicava por que Niente nunca quis que ele usasse a tigela premonitória. Esse tinha sido o gesto de um pai protetor, não o de um nahual enciumado. Essa compreensão fez Atl lamentar as palavras duras que os dois tinham trocado.
— Eu voltarei a esta terra? — perguntou Tototl duramente, interrompendo os pensamentos de Atl e fazendo com que a bruma verde oscilasse com sua respiração a ponto de Atl quase perder a visão. — Eu vingarei nossa derrota?
Atl também pôde ver esse futuro: os navios novamente carregados com um exército, um ainda maior que o de Citlali, voltando pela terceira vez àquelas praias. Mas, dessa vez, os exércitos dos Domínios eram um só e os atacaram prematura e furiosamente; a maioria dos homens estava armada com armas terríveis, como aquelas que Tototl e Niente tinham testemunhado durante suas batalhas. Os guerreiros tehuantinos foram abatidos como trigo por uma foice e a terra bebeu seu sangue.
Era um futuro terrível, mas um futuro que poderia facilmente acontecer.
Mas o outro... aquele que se estendia até ser engolido pelas brumas. Este também era possível, se Atl direcionasse Tototl para esse caminho. Seria necessária habilidade e exigiria sacrifício, mas o futuro estava lá, e ele podia ver a mão de Niente sobre ele.
— O senhor fará mais do que isso, tecuhtli — respondeu Atl. — Um dia, o senhor promoverá a paz com os orientais. Seu nome será homenageado em todas as partes da nossa terra. Todos os tecuhtli que vierem depois serão comparados ao senhor. O senhor será eternamente conhecido como o Grande Tecuhtli.
As brumas enfraqueceram agora, Atl pegou a tigela e jogou a água em seu interior sobre a lateral do navio. Ele entregou a tigela para um nahualli de menor escalão.
— Limpe isto — ele disse para o homem — e coloque de volta na minha cabine.
Ele podia sentir o cansaço do X’in Ka martelar seu corpo, e seu olho esquerdo piscar incomodamente. Atl apertou bem os olhos e os abriu novamente. Tototl o observava.
— Paz? Como um guerreiro encontra honra na paz? Como um guerreiro se torna grande sem guerra e vitória?
Atl respirou profundamente. Olhou para o oeste, para a fumaça e os vapores de Nessântico, para o lugar onde o corpo de Niente jazeria para sempre.
— Eu vou lhe mostrar — disse o nahual. — Juntos, nós nos manteremos naquele caminho.
— Veja-me fazer — ela disse para Nico. — Aí eu quero que você tente fazer sozinho. Está vendo? Olhe só, você faz um laço com o cadarço assim, depois pega a outra ponta e passa uma vez pela base do laço, e...
Ela ouviu uma batida na porta do quarto enquanto amarrava as botas de Nico.
— A’morce?
— Entre — respondeu ela.
Michelle entrou, com Serafina no colo. O bebê estava enrolado em renda, e Michelle segurou a criança com um gesto protetor ao olhar desconfiada para Nico, que estava sentado na cama. Ele virou o rosto ingênuo para olhar para a ama de leite.
— Esta é Serafina? — Nico perguntou para Varina, com ansiedade na voz.
— Sim.
Ele baixou o olhar, quase envergonhado.
— Posso... posso segurá-la?
Michelle balançou a cabeça ligeiramente, mas Varina sorriu para ele.
— Só um pouquinho. E você precisa tomar muito cuidado com ela.
Varina acenou com a cabeça para Michelle que, ainda com a testa franzida, deu um passo para frente, colocando o bebê nos braços esticados de Nico.
— Segure bem a cabeça dela — disse Varina. — Sim, desse jeito. Muito bem...
Nico sorriu ao embalar Serafina nos braços. O bebê se agitou por um momento, mas depois se aquietou, sendo embalado por Nico até dormir. Ele encarou o rosto da criança.
— Os olhos são tão grandes — perguntou Nico com um ar de admiração. — E as mão são muito pequenininhas. Ela é mesmo minha filha?
— Sim. Sua e de Liana.
Varina acariciou a cabeça de Sera. Seu cabelo era fino como uma penugem, a pele macia e quente. Sua mãozinha se sacudiu, encontrando o dedo de Varina e o agarrando. Ela riu.
Nico balançou a cabeça, observando a interação.
— Eu não me lembro de Liana. Eu não sei como...
— Eu conto para você um dia — disse Varina. — Agora, nós temos que nos aprontar para ir ao funeral da kraljica. Aqui...
Ela estendeu as mãos, e Nico colocou Serafina ali com cuidado. Varina ouviu o suspiro audível de alívio de Michelle. Ela beijou a testa de Sera e a abraçou por alguns instantes antes de devolvê-la para a ama de leite?
— Ela está alimentada?
— Alimentada, vestida e pronta para ir — respondeu Michelle. — Eu tenho uma muda de roupas e fraldas. Eu subi para dizer para a senhora que a carruagem do palácio já chegou.
— Ótimo — disse Varina. — Vá na frente, entre com Sera e a acomode. Nico e eu desceremos em breve. Eu só tenho que terminar as botas dele.
Michelle olhou furtivamente para Nico novamente.
— A’morce, esse rapaz é perigoso. O que ele fez...
— O que ele fez com os tehuantinos nos salvou — respondeu Varina. — E ele pagou um preço mais caro do que a maioria de nós estaria disposta a pagar.
— Ele pode estar fingindo esse distúrbio ou recuperar a capacidade mental. E aí?
Nico não disse nada enquanto elas discutiam sobre ele, apenas olhava de uma mulher para a outra enquanto as duas falavam.
— Aí — falou Varina —, nós cuidaremos disso quando acontecer.
Ela já tinha ouvido essa mesma pergunta uma dezena de vezes ou mais. Havia aqueles dentro do Conselho e entre os ca’ e co’ da cidade e os ténis da Fé que queriam que Nico fosse julgado e executado pelas mortes que causou e pelo dano ao Velho Templo durante a tomada dos morellis. Quanto a isso, uma parte da própria Varina ainda estava furiosa com ele pela destruição e pelas mortes que ele tinha, assumidamente, causado a seus próprios amigos durante o funeral de Karl.
Nico, na verdade, tinha que responder por muita coisa, mas ele salvara a cidade praticamente sozinho quando ela estava prestes a cair. Também não havia como negar isso — ou o fato de que o preço pelo esforço fora alto, e talvez, talvez fosse castigo suficiente. O Nico diante de Varina não parecia se lembrar de nada desse dia ou de sua vida anterior. O Nico diante dela era um inocente — ele podia habitar o mesmo corpo, mas não era o Nico que alegava ser o Absoluto. Talvez o kraljiki exigisse um castigo por seu passado, mas Varina lutaria contra isso, com todas as forças que pudesse reunir.
— Por enquanto, ele é uma criança e precisa ser tratado como tal.
— Como a senhora mandar, a’morce — respondeu a ama de leite.
Serafina chorou, e Michelle a embalou com delicadeza.
— Eu vou acalmá-la novamente, nos vemos na carruagem.
Quando Michelle saiu do quarto, Varina se abaixou de novo para amarrar os cadarços das botas de Nico, que a observava com o cenho franzido.
— Está tudo bem Nico — disse ela. — Michelle não está chateada com você. Está apenas preocupada, como eu. Agora, veja como eu faço e vamos ver se você consegue amarrar o outro cadarço. Faça um laço assim, depois passe a outra ponta em volta dele...
Os ténis já estavam presentes no Templo do Archigos. A a’téni Valerie ca’Beranger, de Prajnoli, realizaria a cerimônia — os rumores diziam que ela provavelmente seria eleita como archigos quando o Colégio A’téni se reunisse em poucos dias. Brie conduziu os filhos pela nave ladeada por e’ténis de robe branco — a cor do luto — com bordas verdes. Os ténis a observavam, em silêncio: como fileiras de ossos brancos apontando na direção da Pedra de Cénzi, enquanto Brie e os filhos subiam à plataforma e se aproximavam do altar e da grande Pedra de Cénzi, coberta por um pano azul-celeste reluzente.
— Ali — sussurrou Brie para Elissa, Kriege, Caelor e Eria.
Sua voz soou alta sob o domo, e ela ergueu os olhos uma vez para os afrescos de Cénzi e dos moitidis bem acima delas.
— Esta é sua mamatarh, Allesandra. Ela foi uma grande mulher e me disse que queria muito ter conhecido todos vocês. Eu gostaria que vocês a tivessem conhecido quando ela estava viva.
Não era assim que Brie pretendia que os filhos conhecessem sua mamatarh. Ela tinha tido esperanças de apresentá-los à mulher, não ao corpo morto. Ela se perguntou se não teria sido melhor ter deixado as crianças em Brezno durante o funeral, mas então elas teriam perdido a coroação do vatarh.
— Aqui é feio — dissera Elissa ao desembarcar da carruagem no palácio; a menina olhou em volta para os prédios destruídos e marcados pelo fogo e pela guerra. — Tem um cheiro horrível também. Brezno é bem mais bonito, matarh. Por que nós não podemos ficar lá?
— Nessântico é nosso lar agora — respondera Brie. — E nós faremos a cidade ficar mais bonita e impressionante do que Brezno, como ela era antes. Todos nós ajudaremos seu vatarh a fazer isso.
Ela esperava que isso não fosse uma mentira.
Agora, no Templo do Archigos, eles olhavam para mais uma ruína, a da kraljica.
Eria ficou para trás, com um polegar plantado na boca. Ela se recusou a sequer se aproximar do esquife e se contentou em olhar para o corpo enquanto se agarrava à tashta de Brie. Caelor só se aproximou de maneira hesitante e se afastou rapidamente em direção a sua matarh. Kriege caminhou para a frente de mansinho, com uma expressão séria no rosto, e olhou para a face pintada de branco, dando um passo para trás em seguida, fungando como se pudesse sentir o cheiro mesmo com o escudo antiodor que os ténis tinham colocado em volta do corpo. Elissa, que tinha se aproximado com Kriege, permaneceu ali, olhando para o corpo como se tentasse memorizar cada detalhe dele: as rugas na face da mamatarh; a máscara funerária dourada que os ténis colocariam no rosto de Allesandra em apenas uma virada da ampulheta, quando as portas do Templo do Archigos seriam abertas para que o funeral pudesse começar; o cetro de ferro do kraljiki Henri VI em sua mão esquerda; o anel com o sinete dos kralji à mostra na palma direita, virada para cima, que Jan pegaria quando o ritual do funeral tivesse acabado. O pano azul sobre o altar estava coberto por coroas de flores amarelas. Sete candelabros estavam dispostos em volta da pedra, acesos não com chamas, mas com as luzes brilhantes dos ténis, banhando o corpo com uma iluminação branco-amarelada tão intensa que parecia que o domo do templo tinha sido levantado para que o sol pudesse brilhar sobre a kraljica.
Elissa tocou o braço de Allesandra com um dedo hesitante, depois olhou para sua ponta como se fosse um objeto estranho.
— Ela está fria — relatou Elissa. — E meio dura.
— É o que acontece quando alguém morre.
— Ah! — Elissa pareceu considerar aqui. — Mas o rosto está bonito.
Brie ouviu a voz de Jan, conversando com Sergei ca’Rudka, o starkkapitän ca’Damont e o comandante ca’Talin na lateral do coro. Talbot, o assistente de Allesandra, que tinha concordado em permanecer como assistente de Jan, pigarreou perto dos bancos.
— Hïrzgin, eles já estão prontos para deixar os ca’ e co’ entrarem no templo. Eu vou avisar o hïrzg e os demais; a senhora ainda tem um algum tempo, mas...
Ela assentiu, e Talbot se retirou.
— Não toque nisso — disse Brie para Elissa, que estendeu uma mão hesitante em direção ao anel; ela recolheu a mão como se a tivesse queimado.
— Eu não ia tocar — disse ela. — Esse vai ser o anel do vatarh?
— Sim, em breve — respondeu a matarh.
— E será meu algum dia?
Kriege encarou Elissa.
— Não é justo, matarh — ele gritou, ecoando sua voz estridente sob o domo.
Brie viu as fileiras de ténis se mexerem, e alguém riu, um som rápido, brevemente sufocado.
— Ela fica com tudo.
A hïrzgin podia ouvir Talbot rindo enquanto percorria a nave em direção a Jan. Ela riu também.
— Ninguém vai ficar com o anel; ao menos não por muito tempo, até que vocês todos estejam crescidos. Veremos na ocasião, então. Pode ser que nenhum de vocês dois queira.
— Então eu fico com ele — interrompeu Caelor. — É um anel bonito.
Brie riu.
— Vamos — ela falou para os filhos. — Precisamos tomar nossos lugares...
As trompas tocaram um lamento grave e fúnebre que fez os pombos irromperem em revoada do chão da praça, do lado de fora. Lá dentro, Rochelle podia sentir a parede do templo pulsar em suas costas. Ela tinha entrado no templo sorrateiramente por uma porta traseira, tinha arrombado a fechadura bem antes da aurora, deslizando pelo mezanino do coro ao longo de um canto nas sombras, atrás do arco de um dos pilares, onde poderia olhar o coro, o esquife e os bancos mais próximos.
Rochelle pensou ter sentido o cheiro de fumaça dali: não apenas o aroma pungente dos incensários no altar, mas da fumaça remanescente do bombardeio de areia negra dos tehuantinos, impregnado sob os arcos pintados do domo. Ela tinha se sentado, escondida, ali por várias viradas, esperando. Ela tinha visto os ténis de robe branco formando suas fileiras; o coro se instalando nos assentos não muito longe dela.
Ela tinha visto seu vatarh e sua família entrarem para ver o corpo no meio da manhã, tinha visto Brie conduzir as crianças à frente, depois dela e Jan prestarem sua homenagem.
Os filhos... O pensamento deveria ter sido sua matarh e ela lhe ocorreu, se ao menos as coisas tivessem sido diferentes, mas então Rochelle balançou a cabeça. Não, ela disse para si mesma, com firmeza. O relacionamento deles jamais teria sobrevivido com as mentiras e a loucura da matarh. Jamais teria acontecido. Esse nunca foi meu destino. Não minta para si mesma. Você só pode ser a filha bastarda, nunca a legítima.
Rochelle se perguntou o que seu futuro lhe reservava, e ela não tinha resposta para isso. Sua mão desceu para o cabo adornado da adaga que ela tinha roubado de seu vatarh, a adaga com a qual ela esperava matar sua mamatarh. A madeira lisa do pomo pareceu pulsar sob seus dedos.
A família se afastou do esquife. Ela os viu se acomodarem em seus bancos, ouviu as portas se abrirem assim que as trompas começaram a soar o chamado fúnebre e doloroso mais uma vez, e os ca’ e co’ entraram no templo. O coro a assustou quando começou a cantar uma das obras etéreas e fúnebres de Darkmavis. Os tons ascendentes e as harmonias opressivas ecoaram, altas e insistentes, passando por ela e se propagando para o domo do templo, e a envolveram como um manto.
Pareceu levar uma eternidade para o público do funeral entrar entre as fileiras de ténis de robe branco e se acomodar nos bancos. De seu esconderijo, Rochelle observou os bancos da frente, viu seu vatarh e seus meios-irmãos, assim como a mulher que tinha tomado o lugar de sua matarh: Brie, a quem agora chamavam de a Vitoriosa da Margem Sul e a quem a multidão saudava tão alto quanto Jan. Ela viu Sergei na fileira atrás dele, sentado ao lado da mulher numetodo, carregando uma criança nos braços.
E ao lado dela estava Nico, irrequieto como uma criança entediada. A a’morce não parava de se virar para falar com ele baixinho, e Rochelle notou que Sergei observava o jovem com atenção. Nico — ela se perguntou se era verdade o que diziam sobre seu irmão, que ele tinha perdido a sanidade mental e não era mais que uma criança. Vê-lo daquela maneira doía mais do que tudo, pensou Rochelle.
A a’téni ca’Beranger finalmente surgiu detrás do coro e começou a cerimônia, auxiliada por um grupo de ténis do alto escalão se movendo em torno dela com incensários, taças, o cajado do globo partido e os pergaminhos do Toustour e da Divolonté. Rochelle quase cochilou durante a maior parte da cerimônia e se mexeu apenas quando Jan se levantou para dar a Admoestação. Ela viu seu vatarh caminhar até o Alto Púlpito — andando como um velho, apoiado em uma bengala segurada com firmeza junto ao corpo. Talbot se mexeu para ajudá-lo, e ela notou que Jan balançou a cabeça para o homem. Lentamente, ele subiu os degraus do Alto Púlpito, se recusando a deixar que seus ferimentos o detivessem. Ela viu Jan olhar para a plateia e, em seguida, encarar o corpo de sua matarh por vários instantes antes de falar.
— É costume dizer o quanto uma matarh foi gentil e maravilhosa em vida — ele disse, finalmente, e sua voz de barítono ecoou na ótima acústica do templo. — Eu não vou dizer essa mentira. Ela talvez não tenha sido a melhor matarh que eu poderia ter. Eu era seu filho único, mas não era o filho com o qual a kraljica Allesandra mais se importava.
“Esse filho, o único filho que ela teve, era Nessântico. Os Domínios. Para Nessântico, ela foi uma excelente matarh: uma matarh forte e vigorosa, que realizou o que poucos conseguiriam. A kraljica Allesandra restaurou Nessântico quando a cidade estava em ruínas. Evitou que os Domínios se partissem quando, em mãos menos capazes, eles teriam desmoronado e se dissolvido. Ela protegeu Nessântico quando, pela segunda vez, a cidade foi atacada por invasores estrangeiros. A kraljica Allesandra deu todo o amor, energia e atenção para essa cidade e esse império, e quando foi exigido seu sacrifício, ela se dispôs a dar sua vida para Nessântico como pagamento final.
Jan fez uma pausa longa, respirando profundamente, como se falar o esgotasse. Rochelle se debruçou. Eu estava disposta a tirar a vida da kraljica. Eu teria feito isso, matarh, mas cheguei tarde demais. Sua mão ainda estava no cabo da faca. O vatarh ergueu seu olhar, como se tivesse visto um movimento ou pudesse, de alguma forma, sentir a atração da faca que Rochelle lhe tinha roubado. Ela recuou para as sombras. Seus olhos, bem abaixo, pareciam encará-la, apesar da distância.
— Celebrem Allesandra ca’Vörl — continuou Jan, voltando a olhar para a plateia. — Celebrem sua gestão dos Domínios, pois quando os Domínios estiveram à beira do abismo, ela evitou que o império caísse. Isso foi um golpe de mestre. Isso foi genial. Isso foi passional. Estas eram qualidades que minha matarh possuía em abundância. E essas eram exatamente as qualidades que Nessântico precisava, e ela chegou no exato momento em que Nessântico exigiu sua presença. Nessântico teve sorte em tê-la, com suas habilidades e nesse momento. Ainda que eu não tivesse dado valor na maior parte do tempo.
Uma risada fraca percorreu a plateia nesse momento, soando deslocada no templo.
— Nós saímos vitoriosos de uma guerra terrível — continuou Jan —, em grande parte por causa das atitudes da kraljica Allesandra. Eu só posso esperar, seguindo seus passos, que eu seja capaz de fazer o mesmo, que eu possa ser seu filho e que eu construa a partir de seu legado. Os Domínios foram unificados novamente, a Fé foi unificada novamente, mas há desafios a nossa frente que vão nos testar, a todos nós. Eu sei que ela está nos observando nos braços de Cénzi. Espero que nós possamos fazê-la sentir orgulho pelo que conquistamos.
Jan abaixou a cabeça. Rochelle pensou que ele fosse falar mais, mas ele fez o sinal de Cénzi para a plateia e saiu do Alto Púlpito — lentamente, mais uma vez, ecoando o som alto da bengala no silêncio. Ele voltou para seu lugar enquanto a a’téni e seus assistentes retornavam ao altar. Quando eles começaram a circular o esquife, entoando e balançando os incensários, Rochelle recuou para o nicho, recostando sua espinha sobre a pedra fria.
O que eu faço, vatarh? O que eu faço para o senhor ter orgulho de mim?
Ela podia sentir a pressão do cabo da adaga na lateral de seu corpo ao se agachar, se apoiando no pilar do templo. Se Nessântico passasse a ser a paixão do vatarh, como tinha sido a de Allesandra, se — o que ele disse sobre Allesandra fosse verdade — os Domínios passassem a ser seu filho único, então ela compartilharia essa paixão com Jan. A matarh de Rochelle lhe ensinara uma habilidade ímpar; e ela a usaria, então.
Eu não serei a Pedra Branca, não, eu me tornarei a Adaga de Nessântico.
Rochelle assentiu. Ela permaneceria nas sombras. Seria genuinamente a filha de Jan. Serviria aos Domínios da sua própria maneira.
Sim.
O coro começou a cantar mais uma vez, e Rochelle fechou os olhos, se permitindo mergulhar no som etéreo, tão insubstancial e misterioso quanto ela seria.
A procissão em volta do anel da alameda da Avi a’Parete foi longa e lenta e — Jan podia ver a multidão se alinhar pela Avi, esperando pela passagem da kraljica — necessária. A multidão se estendia pela alameda em várias fileiras de ambos os lados da Avi, até onde sua visão podia alcançar. Suas expressões eram solenes: muitos choravam abertamente. Jan se deu conta de que, assim como Allesandra amara a cidade, a cidade passou a amá-la e a valorizá-la em retribuição.
Jan só podia esperar que fizessem o mesmo por ele nos próximos anos.
Jan fez uma careta quando a carruagem em que estava encontrou um buraco irregular no pavimento; o impacto comprimiu suas costelas, irradiando a dor até seus ombros. Ele sentiu os cortes que os curandeiros tinham costurado há dias se repuxarem quando ele tentou se ajeitar no assento. Ele lutou para demonstrar o mínimo de incômodo possível para as multidões. Jan sorriu e acenou. Em sua mão, o anel com o sinete dos kralji reluziu.
O cortejo fúnebre de Allesandra lembrou o da grande e amada kraljica Marguerite. Nenhum dos kralji, entre Marguerite e Allesandra, tinham recebido uma manifestação tão formal. O kraljiki Justi, filho de Marguerite, tinha sido ironizado e desprezado; o povo da cidade na verdade ficou feliz com sua morte, e seu esquife saíra diretamente do Templo do Archigos para o palácio. O reinado do filho de Audric tinha sido ainda pior, embora a curta regência de Sergei tivesse mantido a cidade estável. Mas assim que a regência terminou prematuramente, a loucura de Audric e seu comportamento excêntrico prejudicaram ainda mais os Domínios, e o assassinato do kraljiki foi — muitos consideraram — uma bênção. A kraljica Sigourney, sucessora de Audric, cometera suicídio quando os tehuantinos saquearam e queimaram a cidade, e seu corpo fora profanado pelos ocidentais: Jan se lembrava disso muitíssimo bem.
Com a morte de Sigourney e a cidade em ruínas fumegantes em volta de Jan, ele poderia ter tomado o título de kraljiki para si; em vez disso, ele escolheu dar Nessântico e os Domínios para sua matarh: um gesto irônico.
E ela transformou essa ironia em uma verdadeira dádiva, Jan tinha que admitir. Isso estava claro para ele agora.
A carruagem de Jan, puxada por três cavalos brancos em um arnês de quatro cavalos, seguiu imediatamente atrás do esquife. Ele ouviu o cântico dos ténis caminhando ao lado do esquife, que parecia flutuar em uma nuvem branca. Sobre o corpo, imagens enormes da kraljica apareciam e desapareciam: exibindo suas imagens como era representada pelo quadro oficial; na inauguração do domo reconstruído do Velho Templo; sorrindo ao descer da sacada durante o Gschnas.
O cheiro das flores a acompanhava, assim como o som dos músicos na carruagem sem teto a frente do esquife, tocando Darkmavis e ce’Miella: uma fusão do antigo com o moderno.
O velho cedendo o lugar para o novo. Jan considerou aquilo fascinante.
— Olhe, eles estão aplaudindo o senhor, vatarh — disse Elissa com alegria, enquanto ela mesma apontava e acenava.
E era verdade: à medida que o esquife passava, e logo depois da carruagem sem teto, o luto virava aplausos e sorrisos.
— Eles gostam do senhor.
— Eles estão aplaudindo porque não têm escolha — respondeu Jan, e Brie franziu a testa.
— Jan...
— É verdade, e as crianças devem saber disso — respondeu ele.
Jan se inclinou na direção de onde os filhos estavam sentados, ignorando o puxão dos pontos e a pontada no peito.
— As pessoas aplaudem desde que pensem que você vai manter a comida em suas barrigas e um teto sobre a cabeça delas. Elas também aplaudem quando temem você, porque têm medo de que, se não aplaudirem, sejam punidas. Não confundam os sorrisos e aplausos com algo mais do que uma fachada.
Ele sentiu a mão de Brie apertar seu braço.
— Querido, por favor. Eles não entendem o que você está dizendo, e você apenas está assustando as crianças. E não deveria ser tão cínico. Não hoje, entre todos os dias.
Ela estava certa, e Jan sabia disso. Ele viu o cabo adornado da chispeira dentro de uma bainha de couro estampada em relevo: a linda chispeira com que Varina e os numetodos a tinham presenteado após a batalha. Os cidadãos de Nessântico estavam aplaudindo sua esposa, Jan sabia: o sucesso do grupo de chispeiros já era uma lenda na cidade, e parecia que a a’hïrzg se tornara uma favorita da cidade.
— Desculpem-me — ele disse para a esposa e os filhos. — Você está certa...
Eles continuaram a dar a volta pela alameda circular, e Jan continuou a sorrir e a acenar. Porque era o que se esperava dele. Porque era seu dever. Eles passaram ruidosamente pela Pontica a’Kralji onde, em jaulas de ferro, o esqueleto do téni-guerreiro ocidental que Sergei matou e dos tehuantinos ocidentais expunham seu triunfo sangrento. Jan mal olhou para os corpos.
A procissão terminou no pátio do Palácio da Kraljica ao anoitecer. O esquife flutuou na nuvem mágica até o pico de uma pilha de toras embebidas em óleo, colocada bem longe das alas do palácio, no centro dos jardins da kraljica: a pira mandaria a alma de Allesandra para os braços de Cénzi. Os ca’ e co’ da cidade, dos Domínios e da Coalizão, os chevarittai em seus uniformes de gala azuis e dourados e negros e prateados, Sergei ca’Rudka, o starkkapitän ca’Damont, o comandante ca’Talin da Garde Civile: todos viram Jan e sua família descer da carruagem.
Jan olhou uma última vez para o corpo de sua matarh. Ele acenou com a cabeça para Talbot, que gesticulou para os ténis-bombeiros dispostos em volta da pira. As mãos dançaram juntas um balé elaborado; as vozes se juntaram em um cântico lento. Uma chama alaranjada brotou de suas mãos enquanto os ténis-bombeiros gesticulavam, como se jogassem pétalas em direção à pira. As chamas estalaram e assobiaram furiosamente, lambendo o óleo e se inflamando rapidamente. A nuvem mágica desapareceu sob um cortina branca que se contorceu e subiu à altura do telhado do palácio até ser espalhada no céu pelo vento. As chamas tocaram o esquife; Jan viu as flores se contorcerem e se enroscarem enquanto o corpo de Allesandra se perdia em uma onda de calor e fumaça. Os furiosos estalos das chamas ecoaram nos muros do palácio e o calor insistente fez todos se afastarem a alguns passos da pira.
Um pedaço de lenha entrou em colapso na pira, disparando fagulhas frenéticas para o alto. Jan se deu conta de que tinha ficado assistindo ao fogo por mais tempo do que pensava, de que o céu estava ficando escuro.
— Podemos ir agora, kraljiki — disse Talbot; o título soou estranho para Jan. — Eles já estão no salão...
O Salão do Trono do Sol estava lotado. As janelas do longo aposento reluziam com as chamas vermelhas da pira, e a grande janela atrás do trono mostrava o céu do crepúsculo, com um tom intenso de violeta e as primeiras estrelas começando a brilhar. O Conselho dos Ca’ estava sentado à frente do trono, com outros dignitários. A a’téni ca’Beranger esperava com Talbot ao lado do Trono do Sol. Brie deixou as crianças com as babás e se aproximou da plataforma do trono, ao lado de Jan.
O Trono do Sol. A enorme cadeira esculpida a partir de um único cristal enorme que tinha a altura de mais de dois homens e um tom branco semitransparente e sarapintado. Ele se avultava diante de Jan e Brie. Enquanto olhava para o trono, ele girava o anel com o sinete na mão, sentindo a superfície lisa e fria do metal dourado e prateado na pele.
— Este é o seu destino, meu marido — sussurrou Brie.
Jan olhou para ela, percebendo que a esposa olhava para suas mãos.
— Você sabe disso — falou Brie. — E sua matarh também sabia.
— Ela demonstrou de um jeito estranho.
— Esse era o destino dela também. Esse era o problema. — Ela gesticulou para o trono. — Lá está ele. É seu, meu amor.
Jan olhou para Talbot. O assistente aquiesceu com a cabeça. Atrás de uma porta no fundo do salão, logo atrás do trono, dois ténis-luminosos entoavam um cântico. Talbot tinha lhe contado que, no último século, o Trono do Sol quase não reagia ao anel com o sinete e que agora a reação era criada por ténis-luminosos especialmente habilidosos e de confiança, que asseguravam que o trono se acendesse quando o kralji se sentava no cristal.
Jan riu ao saber da revelação — outro truque, outro espetáculo.
Ele subiu na plataforma, recebendo o sinal de Cénzi da a’téni ca’Beranger ao passar por ela. Ao chegar ao trono, Jan se virou para encarar a multidão. Todos o observavam.
Jan se sentou. O cristal a sua volta se acendeu com uma luz amarela intensa que parecia emergir das profundezas ocultas do trono. Ele ficou sentado, sendo banhado pela luz, enquanto a plateia se levantava e o aplaudia, retumbante.
— Eu sempre me pergunto o que teria sido dos Domínios se a senhora tivesse vivido — Sergei disse para o quadro da kraljica Marguerite. — Eu adoraria saber o que a senhora acha das coisas agora.
O vinho que ele bebeu estava fazendo sua cabeça girar um pouco. Lá embaixo, no palácio, a celebração do novo kraljiki ainda estava em andamento; lá fora, as brasas da pira de Allesandra lançavam um brilho vermelho na noite. Sergei saiu sorrateiramente das festividades através dos corredores de serviço para ir para lá, para os aposentos que tinham sido de Allesandra, e agora eram de Jan. Ele ainda segurava uma taça de vinho na mão, que ele ergueu para o retrato de Marguerite enquanto descansava em uma cadeira. Uma chama tênue — acesa para espantar o frio da noite — estalava na lareira sob o quadro; a chama e as velas acesas de ambos os lados davam uma iluminação agitada que animava o rosto pintado e austero de Marguerite. Sergei pensou que a kraljica tivesse se mexido e aberto a boca para falar com ele...
Era uma sensação perturbadora, que trouxe lembranças de Audric e sua loucura.
Sergei tomou um bom gole do vinho e enfiou a mão livre no bolso da bashta. Retirou um seixo liso e branco e manipulou sua superfície lustrosa entre seus dedos. Com o movimento, o vinho espirrou pela borda da taça, jogando gotículas em sua bashta. Ele não se importou.
— Marguerite, nós dois amamos tanto esta cidade e este império que estivemos dispostos a fazer qualquer coisa por ela. Eu me pergunto... Será que Nessântico nos ama por nossa paixão e fé? Será que ela se importa? A senhora às vezes se arrepende da vida que levou, como eu? Hum... De alguma forma, conhecendo a senhora como eu conheço, eu duvido. A senhora sempre foi tão segura de si.
Sergei ergueu a taça em brinde, depois a levou à boca, a virou e acabou com o vinho em um longo gole. Ele pousou a taça na mesa ao lado, pegou sua nova bengala e se levantou da cadeira, soltando um resmungo e um gemido.
— A senhora tem um novo parente para ficar olhando à noite — disse o embaixador para Marguerite. — vamos esperar que ele seja um bom governante, tão forte quanto a senhora foi.
Ele percebeu que ainda segurava a pedra. Ele a levou ao ouvido.
— Eu não ouço ninguém.
Sergei bateu com o seixo no nariz e ouviu o som de pedra no metal. Ele riu, cambaleou um pouco ao ficar em pé ali, e recolocou a pedra no bolso.
— O que acontece conosco quando morremos? — perguntou o embaixador para o quadro. — Cénzi realmente nos espera para nos julgar? Eu agradeceria um sinal, Marguerite. Realmente agradeceria.
O quadro olhou fixamente para Sergei à luz da lareira. O olhar pintado de Marguerite se recusava a deixá-lo ir. Finalmente, o embaixador esfregou o nariz e fungou.
— Sem resposta, hein? A senhora sempre manteve seus segredos. Bem, acho que eu vou descobri-los muito em breve.
Sergei fez uma mesura para o quadro e quase caiu. Ele tocou na pedra dentro do bolso. Saiu do aposento, deixando a taça sobre a mesa e, cambaleando, desceu pela escada de serviço novamente. Ao chegar ao corredor da criadagem perto do Salão do Trono do Sol, Sergei ouviu o barulho dos foliões, ainda conversando. Ele seguiu na outra direção e saiu no jardim. O ar fresco da noite pareceu arejar sua mente. Sergei podia sentir o cheiro de cinzas e madeira queimada — bem longe no jardim, criados estavam mexendo e espalhando os carvões da pira. Ele balançou a cabeça e esfregou a barba rala das bochechas. O embaixador deu a volta por esse lado do palácio em direção à Avi a’Parete, ainda apinhada de pedestres e carruagens, mesmo a altas horas. Do outro lado da Pontica a’Brezi Veste, ele viu a torre e as muralhas da Bastida.
Sergei respirou fundo. Contra as nuvens iluminadas pelo luar, a torre estava escura, e uma pequena luz brilhava em uma das janelas superiores, parecendo chamá-lo. A mão de Sergei, no bolso da bashta, tocou novamente o seixo da Pedra Branca.
Ele suspirou e começou a caminhar na direção contrária.
Epílogo: Nessântico
Havia outro kraljiki sentado no Trono do Sol, banhado pela luz dourada — mais um parente da grande kraljica Marguerite. Os Domínios estavam unificados novamente, e o novo kraljiki também sustentava o título de hïrzg de Firenzcia. Havia um novo archigos sentado no trono do Templo do Archigos, onde os archigi se sentavam por séculos, mas esta era uma fé concénziana alterada e enfraquecida, e muitos dos que andavam pelas ruas de Nessântico não eram mais fiéis.
No oeste distante, do outro lado do Strettosei, havia um novo tecuhtli, com um jovem nahual a seu lado.
Uma criança que se tornara um jovem poderoso voltou a ser pouco mais que uma criança novamente. E a Pedra Branca desapareceu mais uma vez, talvez para voltar ou para cair completamente em esquecimento.
Nessântico — a cidade, a mulher — não se importava. Tais movimentos não a incomodavam. A história não estava encerrada. Haveria mais discussões, mais conflitos. Tronos passariam. Vitórias e derrotas, os gêmeos rivais da guerra, se enfrentariam com novos jogadores.
Ela não se importava. A história não estava encerrada porque a história nunca termina. Não pode terminar.
As pessoas que andavam pelas ruas de Nessântico nasceriam e morreriam, para serem substituídas por outras. O Trono do Sol sentiria o peso de dezenas de futuros kralji ainda não nascidos, e eles seriam bons ou maus líderes, mas com o tempo, todos eles — independentemente de quão bons ou maus eles fossem — eventualmente sairiam da longa e infinita história.
Mas ela nunca sairia. Nessântico esteve na história desde o início. A história era dela, e não terminaria até que Nessântico chegasse ao seu fim, e ela...
Era imortal.
Sua sorte tinha mudado mais uma vez. De um reino estilhaçado, um novo e mais forte surgiria. O rosto que o A’Sele refletia de volta para Nessântico mudaria. Algum dia até mesmo a própria linhagem dos kralji talvez desaparecesse. Talvez.
Mas não ela. Ela nunca.
Nessântico continuaria. Ela entraria naquele longo futuro a passos largos: viva, respirando, eterna, a personagem central da história da terra. Seu rosto seria reescrito, as velhas rugas seriam arrancadas e substituídas por novas. Nessântico envelheceria; seria remoçada, sem parar.
A história não terminaria.
A história não podia terminar até que ela mesma tivesse morrido.
E isso, Nessântico dizia para si mesma, jamais poderia acontecer.
Rochelle Botelli
Rochelle observou Nico, sobrecarregado de correntes enquanto era ajudado a subir na plataforma, com o Velho Nariz de Prata a sua direita. Ela se sentiu impotente, uma sensação mais aguda agora do que quando ela viu Nico na torre da Bastida, da Avi a’Parete. Na ocasião, Rochelle não teve esperanças de ajudá-lo. Agora, ele estava tão perto: longe das horríveis pedras negras da Bastida; sem corredores desconhecidos entre os dois; separados apenas pelos ténis e alguns gardai.
E, no entanto, Rochelle não podia ajudá-lo. Seria capturada e jogada no chão antes que pudesse chegar a Nico, ainda que vários deles morressem como consequência. Mas ela fracassaria. Era inevitável. Esta tinha sido outra lição de sua matarh. “Certifique-se de que as chances estão a seu favor antes de agir. Às vezes, é preciso aceitar que não se pode vencer, e sequer tentar.”
Estar tão extremamente perto dele, ver o irmão novamente e não poder ajudá-lo...
Isso doía. Machucava tanto quanto o gume de uma espada. Mas havia uma coisa que Rochelle poderia fazer hoje, se tivesse a chance. A kraljica estava ali, sua mamatarh, e embora Allesandra estivesse tão bem guardada quanto seu irmão, talvez houvesse um momento, uma chance. A mão de Rochelle segurou a adaga sob sua roupa, a adaga que roubara de seu vatarh. O juramento feito para sua matarh ardia na sua cabeça.
Se ela não podia salvar uma vida, talvez pudesse tirar uma tão importante quanto.
Na plataforma, Nico se curvou para os ca’ e co’ em sua própria plataforma elevada.
— Kraljica, conselheiros. E, especialmente, ténis. Eu vim implorar por seu perdão e compreensão.
Sua voz soou cansada, ele olhava ao redor. O olhar de Nico passou por cada um deles, Rochelle ficou na ponta dos pés, tentando enxergar melhor sobre as pessoas à volta. Então aconteceu. Os olhos de Nico encontraram os seus. Ela sentiu a conexão e o reconhecimento. Nico olhava diretamente para Rochelle, e seus lábios abriram um leve sorriso, como se ele a reconhecesse. Nico acenou com a cabeça para ela, como se dissesse que sabia o porquê de Rochelle estar ali, como se pedisse para ela ser paciente. Ela quis acenar para o irmão, berrar seu nome, mas o olhar de Nico se voltou para os dignitários no palanque, e sua voz ganhou volume e poder. Rochelle pôde ouvir enquanto avançava na multidão para se aproximar da plataforma. A voz de Nico continuou a inflamar e pulsar; era como se a luz de sol de verão caísse sobre ela. Ela ouviu umas palavras aqui e ali:
— Eu pensei que fosse a Voz de Cénzi... Lamento profundamente pelo que fiz... Eu acreditava. E ainda acredito...
Sobre a multidão, Rochelle viu Nico erguer as mãos, e o gesto chamou sua atenção. Ela parou, observando, curiosa.
— Eu permiti que o archigos e as pessoas dentro da fé concénziana acorrentassem e prendessem o meu dom com seus grilhões humanos quando, na verdade, Cénzi não coloca tais limitações nele. E isso os numetodos sabiam desde o princípio, justiça seja feita. Foi o que eu finalmente percebi e é isso o que eu demonstrarei para vocês agora.
Nico?
Ela não viu claramente o que aconteceu em seguida. Era como se Nico tivesse se envolvido em um manto negro. Rochelle ouviu pessoas gritando e gesticulando, viu o Velho Nariz de Prata recuar a mão da escuridão soltando com um xingamento, e então...
Nico sumiu, e as pessoas na praça estavam boquiabertas. Os gardai estavam agitados, como um enxame de abelhas cuja colmeia tivesse sido golpeada. Rochelle se moveu para a borda traseira da plataforma da kraljica, logo atrás de um anel de gardai. Eles pulavam sobre o palanque agora, cercando a kraljica e desembainhando suas espadas, e Rochelle recuou. Não havia esperança de chegar a Allesandra agora. Nenhuma. Mais uma vez, esta era uma das ocasiões em que ela deveria se permitir fracassar.
Rochelle voltou a penetrar na multidão, longe dos olhos desconfiados dos gardai, longe dos ténis de robes verdes, que pareciam tão irritados quanto nervosos.
Uma mão tocou seu ombro e ela se virou, com a adaga em punhos. Ela podia matar alguém nessa multidão facilmente e ainda escapar na confusão...
Mas sua mão interrompeu o golpe.
— Nico...
— Shhhh! — ele sibilou.
Nico tinha coberto a cabeça com um capuz; seu rosto estava visível apenas para quem olhasse diretamente para ele. Mas mesmo meio escondido como estava, Nico parecia incrivelmente exausto e tenso. A mão no ombro de Rochelle tremeu, e ela sentiu o irmão esmorecer, como se não conseguisse ficar de pé. Sob a sombra do capuz, havia olheiras mais escuras sob os olhos.
— Cénzi me disse que você estava aqui. Ele me mostrou você. Venha! — Ela olhou para a plataforma, e Nico balançou a cabeça. — Não. Agora não, Rochelle. Vamos! Eu preciso da sua ajuda.
Ele passou o braço pela irmã. Com o peso apoiado sobre Rochelle, ele a levou embora, através da lateral da multidão, onde havia menos gente, longe da agitação crescente e da praça, até que os dois andaram por uma rua decorada com placas de lojas e cheia de consumidores, embora poucos parecessem interessados nas mercadorias exibidas nas vitrines ou pelos ambulantes das calçadas. Suas expressões eram graves e estressadas, Rochelle se lembrou das mesmas expressões nos rostos daqueles que fugiam da cidade quando ela chegou.
Nico finalmente parou perto de um café.
— Você tem dinheiro? — ele perguntou, Rochelle assentiu. — Ótimo. Eu preciso sentar e comer; eles dificilmente vão me procurar aqui.
Os dois pegaram uma mesa na parede do café e pediram vinho, queijo, pão e algumas carnes. O garçom parecia sinceramente contente por ter um freguês; sem dúvida a clientela tinha sido bem mais rara do que o normal nas últimas semanas.
Rochelle observou Nico enquanto ele comia. O irmão tinha mudado bastante. O Nico da sua memória estava sempre ansioso e apreensivo enquanto se preparava para ir ao Templo de Brezno como um acólito. Rochelle o tinha visto mais uma vez quando ele vestiu o robe verde de téni e fez o juramento a Cénzi naquele mesmo templo, e Nico parecia tão seguro de si naquela época...
O Nico que estava diante dela agora estava mais magro; suas bochechas estavam encovadas. Os traços do rosto estavam mais marcados e mais vincados, e Rochelle pôde notar a dor da vida escrita na face do irmão. Nico sempre tinha sido intenso, uma intensidade de que ela se lembrava das primeiras memórias dele, mas isso estava mudado agora. Havia se tornado uma coisa mais rígida, mais entranhada dentro dele, e mais perigosa.
Rochelle sabia que tinha mudado também. Talvez mais do que Nico. Nenhum dos dois era mais quem tinha sido naquela época. Eles podiam ser irmão e irmã, mas o tempo os tinha afastado e ela não sabia se algum dia os dois seriam próximos novamente.
— Você está me encarando. — Nico pousou a taça e se serviu de mais vinho da garrafa.
— Eu não vejo você há anos, Nico.
Ele sorriu.
— Você cresceu e se tornou uma jovem atraente. — então seu sorriso desapareceu. — Você também assumiu o legado da matarh. Ouvi rumores de que a Pedra Branca voltou. É você?
Rochelle assentiu.
— Você também ouve as vozes?
— Não. Não sou louca, Nico.
— Ainda não — respondeu ele. — Mas você não pode fazer o que faz e continuar sã. Não pode fazer o que faz e esperar algo mais que retalhadores de almas após a sua morte. Cénzi vai considerá-la abaixo das expectativas, irmã.
Isso tinha sido tão similar ao que Sergei lhe dissera que ela quis rir.
— Você vai me dar um sermão? — Rochelle fungou desdenhosamente. — Você estava acorrentado, Nico. Quantas pessoas morreram quando você e sua gente tomaram o Velho Templo?
Ela viu o irmão ficar vermelho com a acusação.
— Desculpe, Nico — disse Rochelle, pousando sua mão sobre a dele. — Eu esqueci. Eu queria ter conhecido Liana.
Nico meneou a cabeça, e ela notou os olhos do irmão nadarem em uma umidade repentina. Ele secou os olhos, quase que com raiva.
— Eu também queria isso. Veja bem, este foi o meu castigo. Minha loucura. Cénzi sempre nos dá avisos, de uma forma ou de outra. Só que às vezes nós não prestamos atenção a eles ou vemos sua verdadeira natureza.
— Você ainda acredita, depois de tudo isso? — perguntou Rochelle. — Ainda acha que seu destino está dentro da fé concénziana?
— Sim. — Ele disse com firmeza, sem hesitação, com a força retornando à voz. — E quanto a sua própria fé, Rochelle? Você ainda acredita?
— Eu não sei. Acho que sim, mas... — Ele ergueu um ombro embaixo da tashta. — Eu não sei. Mas você acredita?
— Sim — falou Nico. — Ainda. Cénzi contém tudo, Rochelle. Ele contém tudo que é bom e contém tudo que é mau também. É por isso que os moitidi lutaram entre si e contra Cénzi; porque eram Seus filhos e, portanto, todas as possibilidades estavam contidas dentro deles. E Ele trouxe você aqui, agora, por uma razão.
Rochelle deu uma risada amarga.
— Você não faz ideia de por que eu estou aqui.
— Não faço?
Nico estendeu a mão sobre a mesa e pegou uma baguete. Ele arrancou um pedaço com a mão e enfiou na boca com o indicador. Mastigou alegremente por um momento, depois tomou um gole de vinho. Em seguida, ele se inclinou na direção da irmã, de maneira conspiratória.
— Você está aqui para matar a kraljica — sussurrou Nico, se recostando novamente.
Rochelle sentiu o rosto ruborizar, e ele riu.
— Ah, não é uma revelação tão grande assim. A matarh pediu o mesmo para mim, quando eu me tornei um téni. “Você estará perto da kraljica um dia,” ela me disse. “Quando você for um a’téni ou talvez até mesmo o archigos. Estará perto da kraljica, e quero que você a mate por mim, pelo que ela fez para arruinar minha vida.” Não foi isso o que pediu a você também?
— Foi similar — admitiu Rochelle.
— Foi o que eu pensei. Mas não é por isso que você está aqui, Rochelle. Você está aqui porque Cénzi quis que me visse. Ele queria nos reunir.
Ela sentiu uma arrepio na espinha, como se uma brisa de inverno tivesse passado por ela, para lhe acariciar nesse momento, Rochelle se perguntou de onde tinha vindo essa sensação, fazendo com que ela tremesse e se abraçasse. Ele esteve lá, depois se envolveu em escuridão e foi para outro lugar. Se eu pudesse fazer isso, ora, a Pedra Branca poderia ir a qualquer lugar. A Pedra Branca poderia matar a kraljica facilmente...
— O que você fez lá fora... consegue fazer de novo? Pode me ensinar a fazer aquilo? — perguntou Rochelle.
— Há um mês, eu teria dito não. Eu teria dito que apenas os fiéis puros podiam e deveriam usar o Ilmodo. Mas agora... — Nico acabou com o vinho diante de si. — Eu não sei. Talvez qualquer coisa seja possível.
— E por que você acredita que Cénzi queria que ficássemos juntos?
— Eu realmente não sei ainda — respondeu ele —, mas talvez nós dois descubramos.
Varina ca’Pallo
Varina pediu desculpas para a kraljica e saiu do Velho Templo às pressas, com um quarteto de gardai designado para ela. Allesandra, os conselheiros, Sergei — todos eles estavam cercados por gardai, e todos pareciam estar em pânico. Varina, no entanto, estava tomada por uma certeza assustadora. Ela correu para a Casa dos Numetodos, com o estômago ardendo e a testa franzida de preocupação.
As correntes caídas vazias na plataforma e Nico sumido...
Varina temia saber para onde ele tinha ido.
Antes mesmo que a carruagem parasse, ela já estava quase correndo na direção da porta, algo que não fazia há anos.
— A’morce... — falou Johannes quando ela entrou na casa, parecendo surpreso com a aparição de Varina e seu estado ofegante —, nós não a esperávamos de volta...
— Onde ela está? — interrompeu ela. — Serafina... onde ela está?
Sua voz soou estridente, mas Varina não se importou.
— Ora, lá em cima, com Belle, é claro. Eu acho que...
Ela passou correndo por Johannes e subiu a escada batendo os pés, com o coração disparado. Escancarou a porta. Belle, uma jovem recruta dos numetodos e também ama de leite, pois tinha acabado de dar à luz, estava sentada em uma cadeira, próxima à janela do gabinete de Varina. Assustada, Belle se cobriu; Varina se deu conta de que ela estava amamentando o bebê.
— A’morce? Está tudo bem?
Seu coração, que pareceu ter tentado sair pela garganta, se acomodou novamente no peito. As cenas terríveis que ela imaginou a caminho de casa desapareceram aos poucos de sua mente: Belle caída no piso acarpetado, a Casa dos Numetodos pegando fogo ou arruinada, os outros amigos mortos ou feridos, e a filha de Nico desaparecida.
Como o próprio Nico.
Varina fechou os olhos por um momento, com a mão na boca.
— Eu pensei... — ela começou, balançando a cabeça em seguida, para afastar a ideia.
Seu coração começava a diminuir o passo, seu fôlego estava se recuperando, e agora Varina se sentia tola por causa do pânico.
— Nada demais, Belle. Não sei no que eu estava pensando. Como está Sera?
Belle sorriu. Ela levantou o pano sobre o ombro e mostrou para Varina o bebê que mamava no peito, com sua boquinha sugando o peito de olhos fechados.
— Faminta como um filhote de lobo — respondeu a ama de leite. — Estou me perguntando se vai sobrar alguma coisa para o meu bebê.
Belle riu, acariciando a cabeça de Sera, com a coroa de cabelo dourado.
— Eu encontrei outra ama de leite para ela; minha prima, Michelle, perdeu o bebê no parto e disse que está disposta a vir dar de mamar a Sera durante as manhãs. Juntando as duas, nós manteremos a pequenina bem alimentada. Agora que os firenzcianos estão chegando, devemos estar a salvo.
Eu queria ter tanta certeza... Varina forçou um sorriso no rosto.
— Obrigada — respondeu ela. — Diga que pagarei em dobro pelo inconveniente.
— A senhora é muito generosa, a’morce.
Sera soltou o mamilo por um momento e começou a chorar, com lágrimas brilhando em seus olhos azuis, e Belle colocou o peito de volta na boca da bebê. Ela se acalmou novamente.
— Como foi...? — A ama de leite parou, procurando pelas palavras, e completou — O pedido de desculpas?
— Insatisfatório, infelizmente. Nico mostrou mais uma vez por que era o Absoluto dos morellis. Ele escapou. Desapareceu.
Varina viu Belle dar um abraço protetor em Sera — ela viu as suspeitas passarem pela cabeça da jovem.
— A’morce? Talvez a senhora devesse ficar aqui na Casa dos Numetodos hoje à noite até ter proteção. Podemos arrumar um lugar para o bebê...
— Eu posso lidar com Nico sozinha se precisar — disse Varina, torcendo para que sua voz tivesse soado mais confiante do que ela se sentia.
Agora que tinha se acalmado um pouco, agora que sabia que Serafina estava a salvo, Varina estava menos preocupada. Com certeza Nico estaria escondido em algum lugar; talvez até tivesse saído da cidade. Ela se dirigiu até a gaveta da escrivaninha e tirou a chispeira que ficava ali. Verificou se o tambor estava cheio de areia negra e se havia uma bala no cano. Ela enfiou a arma na faixa da tashta, embaixo do manto.
— Termine de amamentá-la que eu fico com ela — falou Varina.
Belle assentiu.
— Eu tenho que voltar para a casa da minha irmã, de qualquer forma. A essa altura, a minha pequena deve estar acordando da soneca e vai chorar por atenção. Essa aqui está quase acabando, eu acho.
A ama de leite se recostou; Sera deixou o mamilo sair da boca, abriu os olhos por um instante e depois os fechou. Sua respiração ficou lenta e silenciosa.
— Pronto, viu só? Já adormeceu, essa gulosinha. Eu coloquei uma xícara em sua escrivaninha com mais leite, caso a senhora precise. Mandarei Michelle vir amanhã, antes da Primeira Chamada. Aqui está, a’morce.
Belle se levantou, colocou Serafina nos braços de Varina e amarrou o laço da tashta para se cobrir novamente. Enquanto a ama de leite arrumava as coisas no gabinete, Varina olhou para o rosto adormecido: as bochechas fofas e rosadas; o sossego confiante e saciado com que o bebê dormia; os dedinhos, uma mão cerrada em um punho, a outra agarrada ao cobertor em que ela estava enrolada. Varina sentiu uma... ela não sabia definir essa emoção, mas dentro dela havia uma necessidade intensa de proteger a criança, assim como uma vez sentiu o mesmo impulso com Nico.
E você fracassou nessa época. Deixou que ele escapasse de você, e aquela louca acabou levando Nico.
Varina se debruçou e beijou a testa de Serafina. Belle sorriu para ela.
— Eu vejo a senhora amanhã, a’morce. A coitadinha não merecia perder sua matarh e vatarh desta forma.
— Não — concordou Varina. — Ela não merecia.
Belle se inclinou e beijou Sera, e fez uma mesura para Varina.
— Eu vejo a senhora de manhã com minha prima.
Assim que Belle saiu, Varina se sentou na cadeira perto da janela por um tempo, balançando para frente e para trás, vendo Sera dormir enquanto ouvia as pessoas passarem no corredor lá fora ou andarem no jardim abaixo da janela. Pensou brevemente em colocar Serafina deitada e deixá-la dormir enquanto trabalhava um pouco, mas pensou melhor. Ela enrolou mais o bebê no cobertor, pegou seu próprio manto e saiu do gabinete. Ao descer as escadas, passou por Johannes e disse.
— Desculpe a minha grosseria. Eu estava preocupada.
Ele assentiu.
— Eu ouvi o que aconteceu no Velho Templo. Eu compreendo, a’morce. A senhora está indo para casa? Por que não deixa que eu ou outra pessoa a acompanhe?
— Eu ficarei bem. Ainda é cedo, e há muitas pessoas nas ruas. Vejo você amanhã de manhã. Haverá uma reunião com Allesandra sobre nosso progresso com as chispeiras.
Johannes fez uma mesura para ela, e Varina saiu da casa, cruzando rapidamente o pátio frontal e passando pelos portões, em seguida ela virou à esquerda na Avi a’Parete em direção à casa deles, a alguns quarteirões de distância. Era assim que ela ainda pensava: a casa deles, como se Karl ainda estivesse vivo, como se ela pudesse abrir a porta da biblioteca e encontrá-lo sentado à escrivaninha, meditando sobre algum tomo antigo. Às vezes, Varina ainda ouvia um barulho e se virava, com esperança de vê-lo, mas ele nunca estava lá.
Ela abraçou Sera com mais força enquanto caminhava. As pessoas que passaram por Varina às vezes a cumprimentavam, mas a maioria estava tensa e séria: pessoas cumprindo seus próprios afazeres e preocupadas com a cidade e com o que aconteceria. A escassez do tráfego fez parecer que era bem mais tarde do que era na verdade; em geral o trânsito na Avi atingia o pico de barulho e de pessoas entre a Segunda e a Terceira Chamada, mas não hoje.
Varina virou a esquina, entrando na própria rua, descendo a alameda curva em direção ao A’Sele. Ela chegou ao portão da mansão e o destrancou, sem se preocupar em chamar um dos criados. Varina fechou o portão ao entrar.
— Varina.
A voz, que tinha surgido da esquerda, provocou um susto e fez Varina segurar Sera com tanta força que fez o bebê chorar. Ela se virou lentamente e viu duas figuras envoltas nas sombras da trepadeira enroscada no pilar de pedra do portão.
— Nico — disse Varina. — Você não deveria estar aqui.
Atrás de Nico, uma jovem a encarava atentamente. Ele sorriu.
— É possível — concordou Nico. — Mas você tem algo que preciso ver.
Varina deu um passo para trás. Ela sentiu o peso da chispeira sob o manto; sentiu a energia dos feitiços em sua mente, esperando para serem lançados. Sera se agitou em seus braços, agora acordada.
— Nico, eu estou lhe avisando. Não vou entregá-la a você. Se você tentar levá-la, eu vou lutar com você para protegê-la.
— Eu não quero tirá-la de você — ele respondeu. — Estou feliz que você tenha ficado com ela, por enquanto, já que eu sei que você faria exatamente o que acabou de dizer que faria. Eu só quero vê-la; só quero ver minha filha. Por favor, Varina?
— Eu não vou deixar você segurá-la.
— É justo.
— E diga para esta mulher ficar bem para trás.
Nico acenou com a cabeça para a companheira, que deu alguns passos para trás. Varina tirou o pano do rosto do bebê quando Nico se aproximou dela. Sera olhou para o rosto de Nico olhando para ela; o bebê viu o rosto dele abrandar, seus lábios formarem um sorriso, e Nico dar uma risadinha ao vê-la.
— O formato do rosto... eu consigo enxergar a Liana — falou ele roucamente.
Nico estendeu a mão para tocá-la, e Varina apertou o bebê contra o corpo ainda mais. Ela sentiu a energia de um feitiço fervilhar em sua cabeça. Mas Nico só acariciou a bochecha da menina com o dedo, rindo novamente quando Sera ergueu a mão e apertou seu dedo.
— Ela é forte também — ele comentou. — Isso é bom. Ei, Serafina. Eu sou seu vatarh...
Ele olhou brevemente para Varina.
— Serafina é um bom nome.
— Nico, se eles pegarem você novamente... não serão tão gentis da próxima vez.
— Então eu preciso ser cuidadoso, não é? Você vai sair de Nessântico?
Varina balançou a cabeça.
— Não? — Nico pareceu desapontado ou talvez preocupado. — Mesmo com o bebê?
— Se a situação chegar a este ponto, eu mandarei Sera embora com alguém em quem confio. — Varina fez uma pausa. — E não será você, Nico. Lamento.
Ele inclinou a cabeça. Uma tristeza acentuou as rugas em volta dos olhos.
— Eu compreendo. Mas... na sua idade, Varina, temos que ser realistas. E não é apenas a idade; olhe para você: o estudo de magia cobrou seu preço. O bebê precisa de uma matarh que seja mais jovem.
Varina pensou que Nico tivesse olhado de relance para a jovem que o acompanhava. Varina também olhou para ela. Não reconheceu seu rosto, mas havia algo na jovem, alguma coisa vagamente familiar... Varina balançou a cabeça.
— Estou ciente de que tenho idade para ser a mamatarh de Serafina e sei o que meus estudos fizeram comigo. Eu vejo meu rosto no espelho. Já fiz minhas consultas. Mas, por enquanto, Sera está sob minha responsabilidade, e eu vou protegê-la. Eu falo sério, Nico.
— E isso está claro — disse Nico. — Eu já disse que estou feliz que você tenha ficado com Serafina. Você sempre foi boa para mim, naquela época. Às vezes eu queria...
Ele olhou mais uma vez para a mulher que o acompanhava, respirando fundo.
— Mantenha Serafina a salvo. Talvez algum dia eu realmente possa ser o vatarh dela.
— Você é o vatarh dela — falou Varina. — E eu vou contar sobre você para Sera. Ela vai saber quem você é. Eu prometo.
Ele assentiu mais uma vez. Ele tirou o dedo da mão do bebê, e Sera se agitou. Nico acariciou sua bochecha de novo.
— É hora de ir — disse ele. — Adeus, pequena Serafina.
Nico se inclinou e deu um beijo na filha, ajeitando as costas a seguir. A mulher que o acompanhava já estava no portão.
— Deixe-me destrancá-lo para você — disse Varina, mas a jovem lhe lançou um olhar de desdém.
Ela retirou dois pedaços finos de aço de algum lugar do manto, se inclinou e, um momento depois, o portão estava aberto. A mulher sorriu para Varina. Nico fez uma mesura, quase como se estivesse saindo da casa após uma visita.
Um instante depois, ele e a companheira tinham ido embora. Varina fechou o portão novamente, ouvindo o clique da tranca. Sera estava chorando.
Ela abraçou a bebê e a embalou em seus braços até que se acalmasse de novo.
Brie ca’Ostheim
Os bumbos batiam em cadência enquanto o exército se aproximava da cidade. Os a’offiziers, que seguiam as ordens do starkkapitän ca’Damont conduziam o exército em direção aos campos ao norte da Avi a’Firenzcia, sem entrar na cidade em si. Os cidadãos das vilas imediatamente fora dos portões aplaudiram os batalhões que avançavam com seus estandartes negros e prateados tremulando sobre eles. E aplaudiram especialmente a hïrzgin que os acompanhava.
Brie acenou de volta para os cidadãos e abriu o sorriso aperfeiçoado com os anos de experiência em negócios de Estado, uma máscara atrás da qual ela podia esconder seus medos e incertezas, um gesto alegre para a multidão, desvinculado de qualquer sensação genuína. Nos campos mais próximos ao local onde o exército deveria acampar, uma tenda havia sido montada, com os estandartes de Nessântico e Firenzcia, azul e dourado misturados ao preto e prata. Quando a carruagem de Brie se aproximou, as abas da tenda tinham sido abertas e uma figura coroada apareceu, flanqueada por gardai da Garde Brezno com o uniforme dos Domínios, a hïrzgin viu Sergei ca’Rudka parado atrás da figura coroada. Brie reconheceu a mulher imediatamente, pelos quadros que tinha visto dela: Allesandra. A kraljica caminhou a passos largos e braços abertos em direção a ela, abrindo um sorriso largo. Sergei mancou atrás dela.
— Onde está minha filha-por-casamento? — disse Allesandra ao se aproximar da carruagem de Brie. — Onde está a hïrzgin?
Os soldados correram para abrir as portas do veículo e colocar um degrau para que ela descesse. Brie tomou a mão oferecida e saiu para o sol, piscando e mantendo o sorriso grudado no rosto. A hïrzgin deixou que a kraljica a envolvesse no abraço, levou um beijo numa bochecha, depois na outra. Allesandra cheirava a rosas e romãs; seu abraço era surpreendentemente forte e genuíno.
— Este momento deveria ter acontecido há anos — sussurrou ela no ouvido de Brie. — Eu peço desculpas por isso; a culpa foi minha. Eu queria ter conhecido você e seus filhos há tanto tempo...
Sua voz evanesceu. Brie segurou as mãos de Allesandra. Ela encarou os olhos da mulher, reparando nas dobras em volta, no pó na pele e nas sombras azuis sob as sobrancelhas pintadas e feitas. Ela podia enxergar Jan no formato dos olhos e nos traços da face; viu um reflexo de Elissa, Kriege, Caelor e Eria também. Até mesmo a voz, menos aguda...
— Eu também queria que esse momento tivesse acontecido antes — respondeu Brie. — Há mais tempo do que a senhora imagina, kraljica. Temos tanto o que conversar.
A hïrzgin sabia que Jan lhe chamaria a atenção pelo que ela diria em seguida, mas Brie não se importava. Ela olhou o rosto de Allesandra e não viu nenhum monstro ali.
— Eu quero que meus filhos vejam a mamatarh como ela é, não como Jan a descreveu.
Brie percebeu o sofrimento no rosto de Allesandra.
— Se não me engano, foi o Venerável Carin, no Toustour, que disse que o incômodo da verdade é sempre preferível ao bálsamo da mentira — disse a kraljica. — Ainda assim, há ocasiões em que eu acho que todos nós preferimos as mentiras. Estou certa de que Jan, na cabeça dele, disse o que pensava ser a verdade sobre mim. Infelizmente, eu nem sempre fui uma boa matarh para Jan, e fiz coisas...
Brie se apressou a interromper qualquer confissão que Allesandra pretendesse fazer ao apertar as mãos da mulher.
— Eu tenho certeza de que a senhora fez o que precisava fazer como kraljica. E sei que o Venerável Carin também disse que o passado não pode ser mudado, apenas o presente. Vamos nos apegar a esse momento, kraljica, a senhora e eu, e tornar bom o presente.
Allesandra sorriu novamente.
— Eu espero que meu filho dê valor a esposa e conselheira que tem.
Brie apenas devolveu o sorriso, perfeito e ensaiado.
— Ele dá o máximo valor de que é capaz — respondeu ela — e o mínimo com que consegue escapar impune.
Allesandra riu.
— É assim que as coisas são? — exclamou ela.
A kraljica abraçou a hïrzgin novamente, pegando em sua mão. Ela a ergueu e se voltou para os soldados e chevarittai ao redor.
— Esta é a hïrzgin Brie — proclamou Allesandra — e eu lhe dou boas-vindas a Nessântico como minha filha-por-casamento e como a esposa do próximo kraljiki e matarh de seus herdeiros.
Uma aclamação irrompeu nas fileiras em torno deles, Brie se curvou e acenou para o agrupamento. A hïrzgin se perguntou se eles ainda estariam aclamando em alguns dias.
— Você está com fome? — perguntou Allesandra. — Há um jantar à nossa espera na tenda...
Brie permitiu que Allesandra a acompanhasse até a tenda. Ao passar por Sergei, ela parou e fez o sinal de Cénzi para o homem.
— Hïrzgin — falou o Nariz de Prata. — É bom vê-la novamente.
O embaixador se aproximou dela, e a voz era um sussurro rouco e singelo.
— E eu tenho coisas para lhe contar também.
Dito isso, ele se afastou novamente, sorrindo para Brie e fazendo um gesto para que ela entrasse na tenda, no rastro de Allesandra.
— Você tem certeza de que a garota era Rhianna?
— Rochelle, é o verdadeiro nome; pelo menos é o que ela alega. Mas sim, era a mesma jovem. Tenho certeza.
— E ela também alega ser a filha da Pedra Branca e de Jan?
Sergei assentiu, em silêncio. Brie se recostou na cadeira e balançou a cabeça, sem saber como responder. Ela queria negar, queria chorar, queria gritar de raiva.
Isso explicava tanta coisa. Jan ainda é apaixonado por ela, depois de todos esses anos.
Allesandra tinha retornado para a cidade; Sergei tinha ficado no acampamento após o jantar, dizendo para a kraljica que ele mesmo acompanharia a hïrzgin até o palácio assim que ela estivesse pronta. A mesa onde o jantar tinha sido servido ainda permanecia entre eles, embora os criados tivessem tirado tudo, exceto uma garrafa de vinho e um pouco de pão e queijo. Brie se inclinou, virou a garrafa na taça e ficou observando o vinho espirrar no fundo. Ela se recostou novamente e bebeu.
— E eu acho que é bem possível que a jovem esteja falando a verdade — continuou Sergei. — Eu estou bastante certo disso, na verdade. Eu sei que não é o que a senhora deseja ouvir, hïrzgin, mas temos que considerar que, dada a história que ambos conhecemos, é plausível.
— Mas não é certo.
O embaixador abriu um sorriso sob o nariz de prata.
— Não, não é certo. Eu mandei um pessoal fazer uma investigação e verificar algumas das referências que ela me deu, mas levará algum tempo até que eles me informem alguma coisa, dada a situação atual, e talvez sequer saibamos o suficiente para provar os fatos, de qualquer forma. — Ele deu de ombros. — Mas é nisso que Rochelle acredita, seja isso verdade ou não.
— E ela está aqui.
— Está.
Brie ponderou. Será que ela e Jan planejaram isso? Ou é apenas coincidência?
— Jan sabe? E Allesandra?
Sergei meneou a cabeça negativamente.
— Allesandra definitivamente não sabe, nem eu falei com Jan. Queria contar para a senhora primeiro. Mas eles também precisam saber. — Sergei respirou fundo pelo nariz de metal; o som assobiou um pouco. — A garota é perigosa, hïrzgin. Ela assumiu o papel da Pedra Branca. Diz que foi ela quem matou Rance; contratada por um homem cuja filha a senhora despachou por algum motivo.
— Ah.
A declaração caiu como um golpe em seu estômago. Brie pousou o vinho, levando a mão à garganta.
— Por Cénzi, não... Mavel co’Kella; ela estava grávida. Grávida de Jan. Eu tinha que tirá-la da corte e mandá-la embora. Deve ter sido o vatarh de Mavel co’Kella. Ele estava pleiteando se tornar um chevaritt, mas depois disso... — Ela olhou para Sergei, atormentada. — Eu causei a morte de Rance. Foi por minha culpa.
— Foi o vatarh da garota — respondeu o embaixador. — Não a senhora. A senhora não é responsável pelas ações dele.
— E Rhianna, ou Rochelle... Ela esteve no palácio esse tempo todo, cuidando de mim e dos meus filhos, e Jan...
Brie se calou. Sergei não disse nada. Ela se sentiu observada pelo embaixador. A mulher no meu pesadelo. Seria ela Rochelle?
— Estou enojada — falou a hïrzgin. — Aquela garota, filha de Jan, meia-irmã dos meus próprios filhos...
— Ela é uma bastarda. Não tem direito real ao trono.
— Eu sei. Há bastardos o bastante — respondeu a hïrzgin, abrindo um sorriso sarcástico e irônico. — Mesmo assim, ela foi a primeira, e Jan...
Brie se deteve, encarando Sergei.
— Eu soube que você chegou a conhecer a Pedra Branca.
— Não — respondeu o embaixador. — Não conheci. Mas eu fui a Brezno não muito tempo depois de ela, bem, depois de ela ter assassinado o hïrzg Fynn. Pelo que eu me lembro, Rochelle deve se parecer muito com a matarh dela, na ocasião.
Brie sentiu o coração bater forte no peito. Sentiu o vinho e o jantar se revirarem no estômago. Mais uma vez, a compreensão emergiu dentro dela: Jan ainda ama Elissa, nunca deixou de amar.
— Elissa. Era como a Pedra Branca se chamava na época. Eu não conhecia a história quando Jan quis batizar nossa filha. Só pensei que fosse um nome que ele gostasse... — A hïrzgin soltou uma risada amarga. — Eu não soube por um ano ou mais, quando já era tarde demais para mudar. Nunca consegui perdoá-lo por isso.
— A senhora quer que eu conte para Allesandra e Jan sobre Rochelle?
Brie sentiu um arrepio de frio repentino.
— Você pode contar para Allesandra, mas eu quero contar para Jan. Quero ver a cara dele quando descobrir.
Sergei inclinou a cabeça e se levantou da cadeira.
— Então eu deixo o hïrzg com a senhora. Mandarei preparar sua carruagem, hïrzgin. A kraljica deve estar se perguntando o que aconteceu conosco.
— Sim — respondeu Brie. — Faça isso. Eu irei em um instante.
Sergei fez uma mesura e saiu da tenda. A hïrzgin se serviu de outra taça de vinho. Ficou sentada ali por vários instantes, encarando o líquido vermelho reluzir na superfície dourada. Eu quero ver a cara dele...
Brie se perguntou como contar para Jan.
Niente
Niente começava a acreditar que eles talvez chegassem a ver as muralhas da grande cidade incontestes.
O exército tehuantino descia as colinas de um vale verde e exuberante, exalando o cheiro das estranhas árvores da região, pontilhada por bolsões de fazendas e vinhedos entalhados na floresta. Era um terreno do qual Niente se lembrava, um terreno que Niente frequentemente revia em seus sonhos. O exército se separou em três forças, como Atl tinha visto na tigela — a força ao sul cruzou o rio, a força ao norte seguiu em direção ao alto da estrada, e o restante do exército continuou seguindo a estrada paralela ao rio.
Era lá que o tecuhtli Citlali estava abrigado; foi para lá que Atl, como nahual, e Niente seguiram.
Eles sabiam que estavam sendo acompanhados pelos orientais. Ocorreram algumas estranhas escaramuças breves com os guerreiros a cavalo, que vinham gritando, desafiando e se lançando loucamente contra as fileiras — até mesmo os guerreiros supremos estavam comentando sobre a bravura incontestável dos orientais, ao mesmo tempo em que criticavam suas táticas inúteis e imprudentes. Algumas chuvas de flechas ocasionais caíram sobre eles conforme passavam pelos vales sinuosos, mas os escudos dos guerreiros tinham aparado a maioria, e os nahualli tiraram grande proveito de seus cajados mágicos. Não havia sinal dos feiticeiros orientais, nem dos ténis-guerreiros.
Todas as tentativas orientais de impedir o avanço dos tehuantinos foram comparáveis ao zumbido de moscas importunando o exército.
Eles acompanharam a curva do rio, com vista escassa para as torres de um vilarejo sobre o topo das árvores. Passaram por uma paisagem pastoral, com seus campos cultivados esvaziados de colheitas e gado. Certamente uma tática, para que o exército tehuantino tivesse que colher alimentos mais adiante, o que eles fizeram — destacamentos de saqueadores foram enviados para longe das forças, eles roubaram o gado bovino e limparam os campos como gafanhotos, e toda a comida foi trazida de volta para alimentar os estômagos exigentes dos guerreiros. A casa de fazenda ou mansões ocasionais que os tehuantinos encontravam estavam abandonadas e silenciosas. Os sons do exército abafavam os sons que Niente imaginava que eles talvez ouvissem se estivessem cavalgando desacompanhados pela estrada: os chamados dos pássaros orientais, o vento soprando as folhas, o mugido do gado.
Mesmo assim, a paisagem parecia quieta demais. Niente começou a espiar em volta, nervoso; ele notou que Citlali e os guerreiros supremos ao redor fizeram o mesmo e se deu conta de que os cavaleiros da vanguarda, que já deveriam estar de volta, ainda estavam ausentes.
Ouviu-se um movimento nos cumes baixos em volta do exército tehuantino: sob o sol vespertino, brotos reluzentes de homens surgiram do solo.
— Atl! — gritou Niente, pegando seu cajado mágico, mas o alerta chegara tarde demais.
Bolas de fogo desenharam um arco no céu em direção aos tehuantinos, deixando um rastro de fumaça negra para trás, o ar ficou encoberto pelas hastes de flechas. Elas caíram assobiando, e os guerreiros ergueram seus escudos imediatamente para conter as flechas; mesmo assim, Niente viu vários guerreiros caírem, ao mesmo tempo em que ele lançava contrafeitiços em direção às bolas de fogo. A mais próxima explodiu muito acima deles, emitindo um estrondo que fez Niente querer tapar os ouvidos com as mãos. Atl também entoava gatilhos de feitiços, e outra bola de fogo foi desviada descontroladamente para o lado, rasgando a campina e cuspindo lama, grama e fogo líquido onde caiu. Mas outra bola de fogo veio rápido demais na direção dos estandartes do tecuhtli; Niente jogou um contrafeitiço, mas era tarde demais. Niente pôde sentir o calor do feitiço de guerra irrompendo em gotas pegajosas de fogo, e o abalo se apoderou dos tehuantinos. Niente atirado de seu cavalo, enquanto gritos eram emitidos dos guerreiros mais próximos. Niente ficou preso por um instante sob o animal enquanto o cavalo tentava se levantar novamente. A grama estava em chamas de ambos os lados da estrada de terra. Trompas orientais soaram uma sequência crescente de notas, seguidas pelo rufar de soldados em resposta e os gritos dos guerreiros supremos conforme tentaram restaurar a ordem para as fileiras assustadas e desorganizadas.
O ruído de metal retinindo soava enquanto Niente lutava para se levantar, usando o cajado mágico como bengala. Ele sentiu uma mão pegar em seu braço e o puxar: Atl, com o rosto manchado e sujo de fuligem.
Tudo em torno dele era um caos. Havia um grande número de guerreiros mortos perto da estrada, onde a bola de fogo havia caído, mas o tecuhtli Citlali e o guerreiro supremo Tototl ainda estavam vivos. Os dois gritavam e gesticulavam para a esquerda, onde uma batalha em grande escala acontecia entre as forças orientais e tehuantinas. Eu nunca tinha visto este ataque, Niente se deu conta. Isso é novo... Urrando, com a lança em riste, Citlali montou novamente no cavalo, auxiliado por dois guerreiros.
— Nahual Atl! — Niente ouviu Citlali gritar. — Comigo! Comigo!
A mão esquerda de Atl soltou o braço de Niente. Ele deu um pulo e montou em seu próprio cavalo.
— Nahualli! — chamou Atl. — Ao tecuhtli!
Citlali e Tototl já estavam galopando em direção à linha de frente da confusão, Atl agora estalava as rédeas do cavalo em perseguição. Niente procurou por seu próprio cavalo e viu o animal de cabeça baixa a alguns passos de distância. Ele caminhou até o animal — mancando, sentindo a dor de seus músculos distendidos por toda a lateral do corpo. O cavalo se afastou quando Niente se aproximou, ele notou que sua pata dianteira estava quebrada; o animal não podia apoiar peso nela. Niente praguejou. Ele começou a correr arrastando os pés e se juntou aos guerreiros seguindo em direção à linha de batalha no meio da campina. À sua frente, Niente viu os nahualli lançando seus feitiços de guerra em direção às fileiras inimigas, ele ergueu seu próprio cajado mágico para se juntar ao bombardeio enquanto corria, berrando os gatilhos.
Fogo e raios caíram de nuvens baixas e repentinas. Eles bateram no chão bem acima do cume e em meio aos orientais. Os guerreiros rugiram — um grito de guerra para Sakal, invocando a fúria do deus-sol — e avançaram. Niente viu os estandartes do Citlali subindo a encosta com os orientais em retirada diante do tecuhtli; as linhas de frente foram rompidas, e os feridos estavam sendo arrastados de maneira vergonhosa. A retirada foi humilhante e completa. Citlali deu ordem para interromper o contra-ataque enquanto os orientais sumiam nas florestas e nas faixas de área arborizada entre os campos. Trompas orientais soaram uma sequência de retirada. O estandarte do tecuhtli tremulou brevemente no topo do cume — Niente viu Atl ao lado dele —, e Citlali começou a descer o morro a meio galope em direção à estrada novamente, acompanhado por Tototl. Niente não conseguia enxergar o rosto através da águia vermelha tatuada na face e do sangue espalhado sobre ela. Ele avançou entre os guerreiros em direção ao lugar em que Citlali estava desmontando. A lâmina da espada do tecuhtli estava coberta de sangue.
Agora Niente pôde ver a expressão no rosto de Citlali: ele estava olhando para corpos dos guerreiros mortos e feridos, furioso, enquanto os curandeiros corriam para cuidar dos vivos, e os sacerdotes davam a extrema unção aos mortos. Citlali se agachou ao lado de vários guerreiros, tocando os rostos daqueles que ele e Niente conheciam há anos. O cheiro de carne queimada era forte, e a grama da campina ainda estava em chamas entre vários deles.
Atl não estava muito longe de Citlali e Tototl. O cajado mágico pendia de sua mão, como se estivesse exausto. A cabeça balançava, como se não quisesse acreditar.
— Eu não vi isso, taat — disse o jovem quando se aproximou de Niente. — Eu procurei, mas isso estava escondido. Por que eu não vi isso?
— Por que, realmente?
Uma voz o interrompeu antes que Niente pudesse responder. Citlali tinha se virado para os dois.
— Eu tenho dois nahualli que são considerados os mais poderosos na visão premonitória desde Mahri e, no entanto, nenhum deles me deu qualquer pista sobre isso. Eu não estou triste pela perda; nossos guerreiros morreram a morte boa, a morte da batalha, como deveriam. Mas você, Atl, me disse que os orientais não nos enfrentariam frontalmente até chegarmos à grande cidade. — Seu olhar colérico se virou para Niente. — E você disse que não conseguia quase nada. Por quê? Axat nos abandonou?
Niente e Atl balançaram a cabeça simultaneamente.
— Alguma coisa mudou — falou Niente. — Eu lhe disse muitas vezes antes, tecuhtli, que Axat mostra o que pode ser, não o que será. Alguma coisa mudou entre os orientais.
Citlali bufou desdenhosamente.
— Isso ficou bem claro — ele disse acenando para a fumaça e os corpos ao redor. — Descubram o que mudou e o que isso significa para nós. Descubram agora.
O círculo dourado do sol morria no oeste, e a bruma verde do futuro surgiu em volta do rosto deles. Os nahualli observavam os dois, em silêncio; o tecuhtli Citlali também os observava, com os guerreiros supremos agrupados em volta dele.
Na tigela premonitória, o presente se dividiu e rasgou, e os retalhos do futuro se esvaiam, se contorcendo e se enroscando. Niente os perseguiu na sua mente; ao lado dele, Atl fazia o mesmo. A perseguição era tão exaustiva quanto uma perseguição física. Próximo ao presente, os fios de possibilidades se embolavam e entrelaçavam. As imagens não paravam de surgir na bruma, era difícil vê-las por tempo o bastante para compreender os significados.
Ali: o rosto de um rei, ou era o que Niente tinha presumido pela faixa dourada envolvendo sua cabeça, que brandia uma espada com uma multidão vestida em preto e prata atrás dele, em vez do uniforme azul e dourado do exército da grande cidade. Niente se lembrava daquelas cores — as cores do exército que tinha vindo socorrer a cidade após ser tomada pelo tecuhtli Zolin. Niente tremeu ao ver isso...
Mas a bruma envolveu o rei, e Niente agora viu uma rainha sentada em um trono brilhante com fogo vermelho em torno de si. Uma jovem erguia uma faca reluzente sob o brilho do fogo, havia também um homem perto do trono, e as labaredas furiosas dentro da sala pareciam sair de suas mãos erguidas...
Uma bruma fria apagara o fogo e o levara embora. Niente encarava agora fileiras de gente, mas não eram soldados em armaduras reluzentes, mas pessoas comuns, elas estavam apontando instrumentos estranhos para Niente, parecidos com as garras de águia que os nahualli usavam para fazer sacrifícios. Os instrumentos cuspiram fumaça e fogo, e abelhões negros foram disparados por eles, correndo na direção de Niente...
Mas a bruma também os levou.
Um vento soprou a bruma, e ali diante de Niente, por um momento tentador, ele vislumbrou novamente o Longo Caminho. Ele havia mudado desde a última vez que Niente o tinha visto. O futuro ainda continuava tomado pelos estandartes caídos dos tehuantinos. Mais adiante no caminho, ele viu os estandartes dos tehuantinos tremulando ao lado dos estandartes azuis e dourados dos orientais, e duas pessoas sob eles, um homem com a tatuagem da águia vermelha do tecuhtli e uma mulher com as roupas dos orientais e um cetro dourado na mão. Os dois estavam juntos e sorriam um para o outro, e não havia animosidade alguma entre eles.
A bruma escondeu o Longo Caminho, mas perto de Niente, as brumas agora se abriram, e ele viu Citlali, morto, com um nahualli ao seu lado. Niente se debruçou sobre a tigela. No braço jovem e musculoso do nahualli, havia um brilho dourado: o bracelete do nahual. Ao lado dos dois, como se tivesse sido responsável pelas mortes, ele viu as costas de outro nahualli: a careca de um velho, com alguns poucos fios de cabelo e — quando o nahualli se virou — o semblante enrugado e cheio de cicatrizes, com um olho esquerdo cego.
Niente recuou e conteve um grito...
— Não... — sussurrou ele.
O sopro da negação fez a bruma mudar, de maneira que o Longo Caminho desapareceu para revelar ainda outro Longo Caminho. No fim deste rumo, Niente viu Tlaxcala, mas a cidade flutuante ardia no centro de um lago e as grandes pirâmides estavam em ruínas. Assim como na visão anterior do Longo Caminho, os meios para se chegar a ele estavam obscurecidos, mas as imagens tremularam mais perto dele. Ali o tecuhtli Citlali estava sentado em um trono brilhante sob um teto abobadado, com o estandarte azul e dourado no piso de ladrilhos diante dele e vários orientais prostrados à sua frente, como se estivessem prontos para serem sacrificados para Axat e Sakal, para que o resto de seu povo pudesse viver.
Niente respirou de novo, e os vapores frios e verdes envolveram seu rosto. Ele sentiu sua face ficar molhada e se deu conta de que tinha tocado a água da tigela premonitória. Com o toque, as visões se dissolveram e Niente encarava apenas a tigela.
Ele voltou à realidade devagar, ofegante, como se tivesse voltado de uma longa corrida. Carrancudo, o tecuhtli Citlali olhava fixamente para Niente, à sua esquerda, Atl já havia levantado o rosto de sua própria tigela. Vários nahualli de baixo escalão se aproximaram rapidamente e recolheram as tigelas e as mesas.
— Bem? — perguntou Citlali. — O que Axat mostrou para vocês?
Niente não falou nada; pelo canto de olho, ele viu Atl lançar-lhe um olhar furtivo.
— A visão ainda mostra a nossa vitória, tecuhtli — respondeu o jovem. — Eu vi o senhor no trono dos orientais.
O olhar de Citlali ainda estava fixo em Niente.
— E você, uchben nahual? Você também viu isso?
Niente ergueu a cabeça. Sentindo suas mãos tremerem, um nahualli de baixo escalão tinha corrido lhe entregar seu cajado mágico. Ele aceitou agradecidamente e se apoiou pesadamente sobre o objeto. Niente piscou para tentar limpar a mente das visões. O Longo Caminho... Axat lhe presenteou com duas escolhas...
— Eu vi a mesma coisa, tecuhtli — ele respondeu honestamente.
— Rá! — O tecuhtli Citlali se levantou e bateu o pé uma vez no chão enquanto Tototl e os outros guerreiros supremos urravam de aprovação. — Então nós seguiremos em frente e tomaremos a grande cidade dos orientais, e transformaremos suas esposas em viúvas e as crianças em órfãs, se eles resistirem a nós.
RESSURREIÇÕES
A Ameaça da Tempestade
A Fúria da Tempestade
A Passagem da Tempestade
A Aurora
A Ameaça da Tempestade
Jan fedia a cavalo, suor, fumaça e sangue. O starkkapitän ca’Damont e o comandante ca’Talin também. Não houve tempo para tomar banho ou trocar de roupa. Eles tiraram a armadura depois do confronto com os ocidentais e cavalgaram rapidamente de volta a Nessântico, deixando a retirada relutante da Garde Civile com os a’offiziers. Suas botas — sujas, cheias de lama e deslocadas — faziam barulho nos ladrilhos encerados do Palácio da Kraljica na Ilha; os gardai no salão e os criados e os cortesãos se agitando nos corredores encararam o trio com apreensão, como se tentassem medir pelos rostos e pela atitude a gravidade da ameaça à cidade.
Se conseguissem interpretar aquelas expressões corretamente, ficariam assustados.
O assistente de Allesandra, Talbot, encontrou Jan quando os três passaram pela câmara de recepção externa e os acompanhou pelo corredor privativo da criadagem até a câmara do Conselho dos Ca’. Ele gesticulou para o gardai do corredor abrir as portas quando o grupo se aproximou. O burburinho de conversa no interior parou. Allesandra esperava por eles ali, com Sergei ca’Rudka e os conselheiros; havia um mapa das cercanias aberto sobre a mesa.
Todos olharam para Jan esperançosamente.
— Se vocês estão esperando ouvir boas notícias — falou o hïrzg sem preâmbulos —, eu não tenho nenhuma.
Ele parou. Uma mulher ao lado de Allesandra parou de examinar o mapa para encará-lo.
— Brie? Eu pensei...
Brie caminhou até Jan e abraçou o marido tão abertamente como se ele estivesse em trajes de gala para um baile. Jan tentou se afastar, por causa de seu estado, mas se a hïrzgin sentiu alguma repulsa pelo cheiro ou pela aparência, não demonstrou. Brie deu um beijo na bochecha de barba rala, depois na boca de Jan, que devolveu o beijo um instante depois.
— Eu vim com seu exército, meu querido — falou ela. — As crianças estão em Brezno, mas senti que meu lugar era aqui, com meu marido na cidade que ele governará um dia.
— Você não deveria ter vindo, Brie.
— Por que eu não deveria ter vindo? — perguntou a hïrzgin com a cabeça inclinada.
Seu tom de voz era estranho — quase evasivo e ameno demais. Ele sentiu que havia uma outra pergunta nas entrelinhas, uma que ela não estava fazendo.
— Não é óbvio? — respondeu Jan. — É perigoso para você.
— Eu pensei que fosse mais perigoso eu não estar aqui — argumentou Brie.
O hïrzg pôde notar um conteúdo oculto nas palavras, mas o significado lhe escapou. A esposa sorriu para ele: novamente com a mesma estranheza.
— Eu estou aqui, meu marido, e trouxe seu exército comigo. Ora, você deveria estar feliz.
Jan assentiu — sim, havia algo mais em Brie do que existia na superfície, mas não havia tempo para descobrir agora, e tentar fazê-lo só o deixaria irritado. Ele deu um beijo em Brie, mecanicamente, depois olhou em volta para os demais no ambiente.
Concentração...
— Kraljica, embaixador, conselheiros: os ocidentais têm uma força consideravelmente maior do que a nossa, mesmo com a adição firenzciana — informou Jan.
Ele caminhou até o mapa e passou a mão pelos pontos salientes desenhados.
— Eles avançam por uma linha de frente que os fará chegar a Nessântico pela borda oeste no lado norte do A’Sele, pelas margens do A’Sele, acima da Avi a’Nostrosei ou mesmo pela Avi a’Nortegate. Isso já é bem ruim, mas nossos batedores nos dizem que eles mandaram outra força cruzar o rio para atacar a cidade ao sul. No momento, não temos mais que vinte ténis-guerreiros, todos de Nessântico; precisamos de pelo menos algumas centenas para ao menos tentar nos equiparar aos ocidentais nesse aspecto. E, julgando pelo que fizeram em Villembouchure, os tehuantinos também têm um estoque decente de areia negra, o que significa que nenhum dos prédios daqui está a salvo se eles se aproximarem. Quanto ao que fizeram em Karnmor, bem, nós só podemos torcer para que os inimigos não tenham como repetir esse horror. Se tiverem, então não há esperança alguma.
— Você faz parecer como se já tivéssemos perdido e devêssemos sair da cidade — disse sua matarh. Jan balançou a cabeça.
— Não, matarh — disse o hïrzg. — Não é o que estou dizendo. Nessântico não está perdida, mas está em perigo sério e imediato, e não podemos subestimar isso. Eu vi os ocidentais e entrei em combate com eles para testá-los. E isso fez com que percebêssemos que precisamos de todas as forças que pudermos reunir: todos os ténis-guerreiros, todo cidadão apto fisicamente, todos os recursos possíveis. Mesmo com tudo isso, também precisaremos da graça de Cénzi, ou veremos Nessântico queimar mais uma vez.
O silêncio que se seguiu durou bastante.
— Não é isso o que nenhum de nós quer. Eis o que o starkkapitän, o comandante e eu propomos — o hïrzg disse, finalmente, apontando para o mapa. — O A’Sele faz uma curva para o norte logo após Pré a’Fleuve; isso necessariamente vai comprimir as forças tehuantinas. Eu sugiro estacionar nossas tropas aqui logo depois do rio Infante, a partir da vila de Certendi, ao sul. Vamos segurá-los lá o máximo que pudermos, depois destruiremos as pontes se precisarmos recuar para o outro lado. Eu quero que barreiras de terra sejam erguidas da Avi a’Certendi para o A’Sele, seguindo a margem leste do Infante. O comandante ca’Talin, o starkkapitän ca’Damont e eu faremos os ocidentais lutarem por cada pedaço de terra entre o Infante e Nessântico, e espero que consigamos mantê-los completamente afastados da cidade na Margem Norte. Quanto à Margem Sul...
Ele acenou com a cabeça para Allesandra e Sergei.
— Eu deixo nas suas mãos.
— ...existe um Longo Caminho, Atl. Um rumo que leva a um lugar melhor para nós, embora não pareça assim inicialmente, e Citlali nunca acreditaria em mim. Mas você tem que acreditar em mim. A vitória aqui não é só uma vitória; ela significará uma derrota para nós, com o tempo. A própria Tlaxcala pode cair.
Atl balançava a cabeça enquanto ouvia a explicação de Niente.
— Eu sei que o senhor não para de dizer isso, taat, mas não é o que eu vejo. Mesmo que eu quisesse acreditar no senhor... — Ele abanou a mão em desespero, soltando um suspiro. — Eu não vejo absolutamente nada deste Longo Caminho.
— Você não está olhando suficientemente o distante. Não é algo que você consiga fazer ainda.
Isso foi um erro. Ele notou na forma como a luz da fogueira na tenda refletiu no rosto carrancudo do filho.
— Eu sou capaz de ver os caminhos de Axat, taat. Acho que posso vê-los melhor que o senhor. O senhor só não quer admitir isso. Eu vou para a minha tenda. Encha seu cajado mágico e durma um pouco, taat. Eu farei o mesmo.
Ele cumprimentou Niente com a cabeça e ia sair, mas Niente o segurou pelo braço, os seus dedos apertaram o bracelete de ouro do nahual que tinha estado em volta do próprio antebraço.
— Atl, isso é muitíssimo importante. Eu vi o Longo Caminho; eu vi com extrema nitidez em Tlaxcala e mesmo aqui, por um instante. Eu pude vê-lo desde então; há tantos elementos prejudicando as brumas, como você mesmo sabe. Mas ele está lá; tem que estar. Nós dois juntos talvez possamos encontrá-lo novamente. Se o vislumbrarmos só mais uma vez, se pudermos ver como temos que reagir...
Niente vasculhou a bolsa e tirou dois passarinhos de madeira entalhados de forma crua e pintados de vermelho intenso, com traços simples e brutos. Ele entregou um para Atl.
— Eu fiz esses aqui mais cedo hoje à noite. Coloquei um feitiço dentro deles, para que, se nos separarmos na batalha, ainda possamos mandar uma mensagem um para o outro. Se um de nós vir o rumo, então podemos contar para o outro que o Longo Caminho está aberto.
Atl olhou para o pássaro.
— Eu não preciso...
Ele ia devolvê-lo, mas Niente fechou os dedos do filho em volta da escultura.
— Por favor — disse ele para Atl. — Por favor, aceite.
Atl suspirou; como suspirava quando criança, quando seus pais insistiam que ele fizesse algo que não queria fazer.
— Está bem, eu fico com isso. Mas, taat, não existe Longo Caminho. Eu não sei aonde essa guerra nos levará, nenhum de nós sabe, mas eu sei que podemos ser vitoriosos aqui. Eu vi isso, e pretendo conduzir o tecuhtli Citlali até esse momento.
Ele olhou para Niente, e a luz da fogueira refletiu em seus olhos negros.
— Encha seu cajado mágico — disse Atl, como se se dirigisse a um nahualli de baixo escalão. — O senhor vai precisar em breve. Eu mesmo preciso usar a tigela premonitória esta noite.
Atl caminhou até a aba da tenda e a abriu. Lá fora, a lua brilhava sobre seu ombro.
— Não há um Longo Caminho, taat. Tenho certeza disso — falou ele. — O senhor está vendo o que quer ver, não o que Axat está disposta a mostrar.
Atl deixou a aba da tenda cair atrás dele sair.
— Você cruzará o rio hoje de manhã com Tototl e se juntará à força ao sul com dois punhados de nahualli sob seu comando.
Essa foi a ordem que Niente recebeu do tecuhtli Citlali. Atl e Tototl estavam ao lado do guerreiro quando ele deu o comando. O rosto do filho tinha uma expressão ilegível e atormentada, Niente ficou curioso para saber — após a conversa da noite anterior — se a ordem tinha vindo de Citlali ou de Atl. Ele tinha que admitir que fazia sentido — deixar que o antigo nahual ficasse ao lado do tecuhtli para questionar o novo nahual levaria a hesitação e contradições. Ao sul, Niente não teria rivais... nem Atl, que seguiria com a força principal. Ao sul, Niente seria um recurso poderoso para os nahualli e um líder comprovado. Se Niente ainda fosse o nahual, se estivesse procurando por uma vitória esmagadora aqui, em vez da quimera de seu Longo Caminho, ele talvez tivesse sugerido alguma coisa parecida, como mandar Atl com o braço sul do exército.
Citlatli não lhe deu chance de contestar.
— Uchben nahual, o bote com os outros nahualli está à sua espera na margem — falou ele. — Você partirá assim que recolher suas coisas. Nahual Atl, quero discutir nossa estratégia com você...
Com essa dispensa, o tecuhtli Citlali deu as costas para Niente e gesticulou para Atl segui-lo. O jovem olhou uma única vez para o antigo nahual.
— Taat — ele disse —, vejo o senhor de novo na grande cidade. Mantenha-se a salvo.
Atl acenou com a cabeça e depois seguiu Citlali.
Pouco tempo depois, Niente se viu em um bote com outros três tehuantinos cruzando o A’Sele, a água marrom se agitava e ficava momentaneamente branca com o bater dos remos dos jovens guerreiros. O cheiro de água doce entrou em seu nariz, as árvores na outra margem distante estavam obscurecidas pela névoa da visão pobre de seu olho são. Ele podia sentir os olhares dos outros nahualli que o acompanhavam sobre si, podia sentir a avaliação ao se agachar na popa da pequena embarcação.
Niente olhou para oeste, rio abaixo — os tehuantinos receberam uma mensagem do comandante da frota informando que o rio tinha sido liberado e que ele estava subindo o rio com os navios de guerra para encontrá-los. Niente não tinha visto vela alguma ainda, mas o rio fazia uma curva ali perto, e a frota talvez estivesse logo ali atrás daquela curva. O guerreiro supremo Tototl, em outro dos botes, olhava apenas à frente, na direção da outra margem.
O que eu faço agora? Esta estratégia não estava em nenhum dos caminhos que vislumbrei. Ele se perguntou se Atl tinha visto isso e se sabia para onde esse caminho levava. Niente se sentiu perdido, sendo levado pelas correntezas do presente. Será que consigo encontrar o Longo Caminho nesta situação, e se conseguir, será que arrisco segui-lo? Ele já tinha desistido do Longo Caminho uma vez devido a seu alto custo. Essa visão tinha sido nítida, como se Axat quisesse que Niente soubesse. A morte de Citlali pouco importava para ele; um guerreiro esperava, e até mesmo recebia, pela morte de braços abertos na batalha. Mas Niente também estava morto nessa visão; ele realmente faria isso, se Axat cobrasse seu preço? E se Axat exigisse a vida de Atl também, como Ela tinha dado a entender...
Suas mãos estavam tremendo, e não era por causa do frio úmido da manhã.
Será que Atl viu isso? Será que foi por isso que ele mandou você embora?
Niente queria falar desesperadamente com Atl, mas não era mais possível. Ele tocou na bolsa para sentir o pássaro entalhado. O toque não lhe deu nenhum alívio.
A margem estava se aproximando; Niente quase conseguia identificar uma árvore ou outra se aproximando em vez dos borrões verdes e vislumbrou uma meia dúzia de guerreiros reunidos sob a cobertura verdejante, prontos para escoltá-los até a estrada. A proa do bote atracou na lama da margem escondida sob os juncos, assustando Niente. Os guerreiros que os aguardavam desceram a margem correndo para ajudá-los a sair. Ele ouviu Tototl berrar ordens. Niente esperou que os guerreiros os puxassem para a terra seca. No topo da margem, ele olhou para o outro lado do rio mais uma vez. Entre a névoa da catarata, Niente pensou ter visto algumas figuras se movendo.
Ele se perguntou se uma delas era Atl.
— Por Cénzi, então é verdade...
A mão de Jan cofiou a barba. Seus olhos se arregalaram, e Brie podia jurar que havia um espanto genuíno neles, não uma surpresa fingida. Talvez ela estivesse enganada e Jan realmente não tivesse mandado a garota à frente deles para encontrá-la mais tarde na cidade.
— Eu juro, Brie, eu não sabia que ela estava aqui. Eu juro por Cénzi. Eu sei que você deve estar pensando que mandei Rhianna para cá, ou Rochelle, ou seja lá qual for seu nome verdadeiro, mas eu nunca pensei...
— Não, você não pensou — ralhou Brie.
Ela continuou observando o rosto do marido. O espanto em sua expressão pareceu genuíno o bastante quando ela deu a notícia que Sergei lhe contara.
— Ela alega ser sua filha, Jan.
— Ela também me disse isso.
— Ela disse isso para você? Quando?
— Quando tirou a faca da matarh de mim. Foi seu golpe de despedida antes de fugir. — Jan passou os dedos pelo cabelo recém-molhado do banho rápido. — Ela matou Rance. Eu sabia disso, mesmo na ocasião. Ela parece tanto com El...
Ele se deteve e olhou de relance para a esposa.
— Com a matarh dela — terminou o hïrzg.
— Então é possível que ela esteja dizendo a verdade, que seja sua filha?
Jan murchou. Agora suas mãos mexiam nervosamente no cabelo.
— Eu creio que sim. Ela tem a idade certa.
— Você chegou a... com Rhi... Rochelle?
Ele balançou a cabeça com raiva, sua mão fez um gesto de negação, movimentando o ar próximo à bochecha de Brie.
— Não! Eu juro, Brie. Ela nunca me deixou... — Jan suspirou alto. — Por um bom motivo, evidentemente.
O hïrzg andou de um lado para o outro nos aposentos que Allesandra tinha cedido a eles no palácio, enquanto abotoava a túnica acolchoada que ficava sob o uniforme da Garde Civile.
— Brie, eu lamento, mas não posso me preocupar com isso. Não agora. Eu não sei por que Sergei não a jogou na Bastida quando teve a oportunidade.
Brie caminhou até o marido e afastou suas mãos para o lado enquanto ele se atrapalhava com os laços da túnica.
— Aqui, deixe-me fazer isso. É isso o que você quer para ela? — perguntou a hïrzgin. — A Bastida? Quer que ela seja julgada pelos crimes que cometeu?
Brie sentiu o peito do marido inflar e desinflar sob suas mãos.
— Sim. E não. Eu não sei o que quero, Brie. Se ela for minha filha com a Pedra Branca...
— Ela não é sua filha. É mais uma bastarda que você gerou. — Ela terminou de dar os laços e se afastou.
— Naquela época, eu teria me casado com Elissa.
Desta vez Jan pronunciou o nome sem hesitação, Brie percebeu que doía ouvi-lo, ouvir o nome de sua própria filha atrelado àquela mulher. As palavras do marido eram dolorosas.
— Eu teria me casado com ela sem hesitação e sem a permissão de meus pais, se eles não a dessem — continuou ele. — A menina não seria uma bastarda. Eu já tinha pedido para a matarh entrar em negociação com a família de Elissa... ou pelo menos a família da qual ela alegava fazer parte. Ah, aposto que a matarh está achando essa situação uma piada maravilhosa.
Brie teve a certeza de que a intenção de Jan era magoá-la com aquelas palavras; ela se forçou a não ter reação alguma.
— Sua matarh fez o que achou que era necessário para proteger a família. Assim como eu, quando necessário.
— Sim, sem dúvida, e foi por isso que a matarh contratou a Pedra Branca para matar Fynn; para proteger a família. — Jan terminou de colocar o restante do uniforme e se sentou em uma cadeira para calçar as botas. — Brie, eu preciso encontrar com ca’Damont e ca’Talin em uma marca da ampulheta. Você precisa tomar cuidado; eu não sei do que essa Rhianna ou Rochelle pode estar atrás. Somente Cénzi sabe de quem a Pedra Branca pode estar atrás. Eu ficaria mais tranquilo se você saísse da cidade de uma vez por todas.
E assim você estaria livre para fazer o que quisesse. Brie teria ficado mais satisfeita se achasse que a preocupação dele era genuína, e não em causa própria. Como a matarh de Jan — suas vontades sempre estavam em primeiro lugar.
— Eu vou ficar, meu marido — ela disse com firmeza. — Você tem o seu dever; eu tenho o meu. Allesandra conduzirá a defesa ao sul; e eu vou ajudá-la.
— Brie... — Ele se levantou para afivelar e ajeitar o cinto da espada.
— Não, estou falando sério, Jan. Eu treinei com meus irmãos, e posso me sair bem contra eles com uma espada. Você sabe disso. Meu vatarh me educou em estratégia militar e até me consultou várias vezes no passado, quando saqueadores de Shenkurska invadiram a nossa fronteira. A própria Allesandra comandou exércitos; eu ouvi seus gritos de frustração por causa de algumas táticas e estratégias que ela usou nos últimos anos. Eu não estou menos a salvo aqui em Nessântico do que estaria viajando pelas estradas, mesmo com uma escolta.
Jan balançou a cabeça.
— Eu conheço essa sua expressão agora. Não adianta discutir com você.
— Então por que ainda está discutindo? — perguntou Brie, sem saber se ele estava irritado ou se era só estresse. — Eu não quero discutir com você, meu amor. Nós precisamos um do outro, eu só quero que você esteja o mais seguro possível. Você tem um destino, Jan: você vai ser o próximo kraljiki. Eu quero ver isso acontecer; pretendo sentar ao seu lado no Trono do Sol.
Ela limpou fios imaginários dos ombros do marido e sorriu para ele: o sorriso ensaiado, o sorriso exigido.
— Agora... vá se encontrar com o starkkapitän e o comandante. Você e eu nos preocuparemos com Rochelle mais tarde, quando os tehuantinos não forem mais uma ameaça.
— E você?
— Eu tenho a minha própria reunião com Allesandra.
— Com Sergei também?
Brie deu de ombros.
— Ele disse que tinha outros compromissos hoje à noite. — Ela ficou na ponta dos pés e beijou a bochecha de Jan. — Vá.
— Você não pode usar o robe verde — Rochelle disse para Nico.
Um sorriso indulgente tocou seus lábios e sumiu um instante depois. Seus lábios pareciam não se lembrar mais de como sorrir de verdade. A alegria parecia ter desaparecido de sua vida, quando antes ela a preenchia.
— Há uma grande diferença entre “não é permitido” e “não poder” — respondeu Nico. — Eu sou um téni, e é meu direito usar o robe. Mais do que um direito; é minha obrigação. Eu sigo Cénzi, não um idiota semimorto que se chama de archigos. Está na hora de eu me afirmar completamente e parar de me esconder como um criminoso.
— Você é um criminoso aos olhos dos Domínios e da fé concénziana. Eles matarão você, se puderem.
— Eles podem tentar. — Nico tentou sorrir novamente, mas o sorriso desvaneceu. — E há uma grande diferença entre “tentar” e “matar” também. Você não precisa ficar tão preocupada, irmãzinha.
Rochelle deu de ombros. Eles estavam no segundo andar de um dos esconderijos dos morellis no Velho Distrito; o proprietário — um vendedor de tecidos — ficou visivelmente aflito ao ver Nico ali, mas dispensou os aprendizes pelo resto do dia, mandou a família visitar primos a duas ruas dali e concordou em avisar o resto da seita dos morellis que o Absoluto desejava se encontrar com eles.
Nico também descobriu que Ancel esteve entre os capturados e executados após a invasão ao Velho Templo — outra alma a seus pés, outra morte pela qual ele devia expiar. Havia tantas, e faziam tanto peso sobre seus ombros que Nico queria cair de joelhos sob elas.
Liana, Ancel, eu lhes prometo — eu encontrarei paz para vocês...
Nico ainda podia ver a filha que teve com Liana aninhada nos braços de Varina. Sentia os dedos de Sera em volta dos seus, agarrando Nico como se soubesse que pertencia a ele. Aquela memória e a memória de Liana e Ancel e de todos aqueles que morreram por ele fizeram lágrimas se acumularem em seus olhos novamente. Nico as secou.
No andar debaixo, entre os tecidos pendurados em cabides à espera de serem arrumados em peças, Nico pôde ouvir o agito e o barulho de conversa através das tábuas do assoalho: vários ténis-guerreiros saíram de mansinho do templo para encontrá-lo; também havia, tinham dito para ele, vários ténis-guerreiros de Brezno presentes, eles tinham chegado à cidade pouco depois do comboio do exército firenzciano. Nico já tinha conversado com alguns deles — o archigos Karrol declarara que todos os ténis-guerreiros seriam enviados para o campo de batalha com o hïrzg Jan no dia seguinte.
— Nós não iremos se o senhor nos mandar, Absoluto. — Foi o que todos lhe disseram. Todos juraram que o seguiriam no lugar do archigos, se Nico pedisse. A lealdade dos ténis-guerreiros o satisfazia e, ao mesmo tempo, aumentava a culpa que ele carregava.
Como vocês podem me seguir depois do que eu fiz, depois dos meus fracassos? Como ainda podem ter fé quando eu luto com isso?
Nico ainda não sabia ao certo o que dizer para eles. Ele deixaria isso com Cénzi, mas suspeitava que já sabia o que diria. As escolhas diminuíram com a chegada dos ocidentais, Nico tinha passado a noite anterior rezando para Cénzi, pedindo por orientação enquanto Rochelle o observava, com uma expressão mais curiosa do que devota. Ela se parecia com Elle, a matarh de Rochelle, e a matarh adotiva de Nico. O que você fez com ela, Elle? Você a corrompeu além da redenção?
Mas Nico não podia se preocupar com Rochelle agora. Ainda não. Seus seguidores, aqueles que sobraram, esperavam por ele, e as palavras de Cénzi ardiam dentro de Nico.
— Vamos — ele disse para Rochelle, estendendo sua mão. — Está na hora.
Nico permitiu que a irmã descesse primeiro, acompanhando-a a seguir escada abaixo. O cheiro adstringente de corantes e fixadores no único cômodo do andar debaixo era forte, o ambiente que também funcionava como loja e mostruário para o vendedor de tecidos.
Havia pelo menos dez punhados de pessoas confinadas no espaço, tão apertados que o ar tinha se aquecido pela presença. Nenhuma saudação abrandou a atmosfera quando ele apareceu; todos pareciam tão sombrios quanto Nico. Ele fez o sinal de Cénzi e se curvou humildemente, os morellis devolveram o gesto. Algumas lâmpadas instaladas nas paredes do vendedor eram a única fonte de luz, mas Nico podia ver vários robes verdes iguais ao que ele estava usando, embora a maioria deles fossem desconhecidos para ele. Nico sentiu seus olhares observarem seu rosto machucado e com hematomas, as manchas roxas cobrindo seus antebraços, a forma como ele mancava ao descer a escada. E também notou os olhares curiosos para Rochelle.
— Que Cénzi abençoe a todos vocês — disse Nico, espalmando as mãos.
Ele sentiu o carinho de seus seguidores, e devolveu o sentimento; o cômodo estava tomado por um brilho pálido que não emanava de lugar nenhum e de todos os lugares.
— Eu não mereço que vocês tenham vindo, e menos ainda que ainda escutem o que tenho a dizer.
— O senhor ainda é a Voz de Cénzi, Absoluto — alguém disse no meio dos morellis. — Nós seguimos o senhor. Vimos Cénzi operar o milagre na praça. Vimos o senhor desaparecer sem lançar um feitiço; vimos as correntes vazias.
Os outros concordaram em meio a murmúrios, e o som fez Nico querer abraçar a todos, para tentar extinguir a tristeza e a perda no calor de sua aprovação e apoio.
Ele entrelaçou as mãos em frente ao corpo como se fosse rezar.
— Sim, Cénzi veio a mim quando eu estava diante da kraljica, e Ele me soltou dos grilhões que a vida colocou em mim. Mas... — Nico parou e balançou a cabeça. — Cénzi também me mostrou que eu deixei meu próprio orgulho me afastar de Seu caminho, e Ele me puniu por isso. Ele tomou para Si muitos daqueles que eu amava, enviou muitos outros para a dor e o sofrimento, e me encheu de tristeza e arrependimento. A dor dos morellis foi causada por sua dedicação a mim. Eu entendo agora que devo me tornar o instrumento de Cénzi, que devo me entregar completamente a Ele e devo aceitar o que Ele quiser que eu suporte. Eu entendo que não sou nada.
Nico ergueu a cabeça e abaixou as mãos, seu olhar varreu os seguidores, encarando cada um deles no cômodo.
— Vocês também devem entender isso. Esta também é a sua tarefa, como sempre foi a tarefa dos ténis: realizar a vontade de Cénzi e nada mais.
— O que Cénzi quer que façamos? — alguém perguntou. — Diga-nos, Absoluto.
Nico hesitou, embora se sentisse tomado pelas palavras. Eu estou certo desta vez, Cénzi? Estou ouvindo o Senhor, e não a mim mesmo? É isso, verdadeiramente, o que o Senhor quer que eu diga a eles? As palavras martelavam em sua mente, e Nico só poderia se livrar delas ao dizê-las.
— Nossa Fé está sendo ameaçada — falou ele. — Os ocidentais estão prestes a dominar Nessântico e os Domínios e, se isso acontecer, os fiéis sofrerão imensamente. Eu rezei, me abri para Cénzi e O escutei, e isso é o que Ele me diz.
Nico fez uma pausa e respirou várias vezes, olhando para cada um deles.
— Agora é a hora de deixarmos de lado nossas lutas com os falsos líderes da fé concénziana; não para sempre, mas por um curto período de tempo. Nós precisamos primeiro expulsar os pagãos e hereges que nos ameaçam antes que possamos olhar para a heresia dos Domínios e da Coalizão.
Ele fez outra pausa, acenando com a cabeça para eles.
— Eu disse isso naquele dia na praça e repito aqui: por enquanto, vocês devem obedecer ao archigos. Ténis-guerreiros, vão à guerra. Ténis, cumpram qualquer tarefa que recebam. O restante, façam o que for preciso. Obedeçam às autoridades que estão acima de vocês. Por enquanto.
Nico esperou. O brilho no aposento aumentou.
— Façam isso, por enquanto. E depois... depois, nós voltaremos a olhar para dentro. Voltaremos a nossa atenção para a reforma da fé concénziana. Tomaremos a glória que merecemos e moldaremos a Fé, como Cénzi deseja, como o Toustour e a Divolonté exigem, e não daremos ouvidos às ordens de ninguém, ninguém, que não esteja conosco. Isso é tudo o que tenho a dizer esta noite.
O brilho no cômodo esmaeceu, e a luz das lâmpadas agora parecia descarnada. Os seguidores se remexeram, hesitaram, se entreolharam fixamente. Então alguém abriu a porta; um a um, eles fizeram o sinal de Cénzi e saíram do cômodo arrastando os pés. Nico devolveu o sinal para cada um dos seguidores e murmurou uma bênção a cada um. Assim todos saíram, ele sentiu a mão de Rochelle pousar em seu ombro.
— Eles não ficaram satisfeitos — comentou ela. — Você não disse a eles o que eles queriam ouvir. Ficaram desapontados.
— Eu sei — respondeu Nico. — Mas era tudo o que eu tinha a dizer.
Rochelle assentiu.
— Você está cansado.
— Exausto — admitiu Nico; ele olhou para as escadas que levavam para o segundo andar. — Mas ainda há mais uma reunião antes que eu possa dormir.
— O que você quer dizer? — perguntou Rochelle.
Nico não disse nada, apenas gesticulou para que ela o seguisse. Ele subiu penosamente, sentindo seus pés pesados pisando os degraus. A luz de uma lâmpada vinha do quarto dos fundos, onde antes não havia luz. Nico ouviu a lâmina da faca de Rochelle sair da bainha e balançou a cabeça para ela.
— Você não vai precisar disso. Não ainda.
Ele andou tranquilamente pelo corredor até o quarto e empurrou a porta para abri-la.
— Você ouviu o que queria ouvir? — perguntou Nico para a pessoa no quarto.
— Você ouviu o que queria ouvir? — disse Nico, e Sergei deu de ombros.
— No geral, sim — respondeu o embaixador. — Você simplesmente salvou a si mesmo e aos ténis-guerreiros.
— Minha segurança não está em suas mãos, Nariz de Prata — disse Nico, mas a bravata soou cansada e sem ânimo.
— Ah, mas na verdade está, sim — disse Sergei.
Ele vislumbrou um movimento atrás de Nico e viu um rosto.
— Rochelle. Por favor, por que vocês dois não entram e se sentam? Não há motivo para não termos uma conversa civilizada, só nós três.
Nico deu de ombros e entrou, se sentando na beirada da cama no quarto. Sergei percebeu que o rapaz lançou um olhar furtivo para a porta do outro lado, nos fundos da casa. Sergei a tinha deixado aberta, mostrando a escada que descia até um beco atrás da casa do vendedor de tecidos. Rochelle entrou e imediatamente encostou as costas na parede lateral da porta do corredor, ficando de pé e encarando Sergei, com olhos concentrados e perigosos. O embaixador ergueu as mãos dos braços da cadeira, a direita segurava a bengala. Nico pensou ter podido sentir o feitiço de Varina escondido dentro da madeira.
— Pronto, viu só. Eu não sou ameaça para nenhum de vocês, no momento.
A boca de Nico se contorceu, dando um leve indício de um sorriso.
— E nenhum de nós acredita nisso.
— Eu não esperava que acreditassem — respondeu Sergei.
Mentalmente, o embaixador repetiu o gatilho do feitiço que Varina colocara na bengala para que ele estivesse na ponta da língua, se precisasse usá-lo. Ele se perguntou se seria eficiente contra Nico — Sergei suspeitou que não seria tanto quanto ele esperava.
— Você tem uma rede de informações melhor do que eu pensava, Sergei.
— Eu tive sorte. Alguns de seus ténis morellis tinham as consciências pesadas. Depois da disputa no Velho Templo, eles não confiam mais tanto assim em você, Nico. Eles vieram me contar onde você estaria.
— Não posso dizer que os culpo. — Nico se recostou na cama. — Eu mesmo não confio em mim. O que você teria feito se eu não tivesse mandado os ténis-guerreiros obedecerem ao archigos?
— Há gardai, ténis leais e feiticeiros numetodos suficientes nas ruas para prender o dobro de pessoas que você conseguiu reunir aqui, mesmo com os ténis-guerreiros. — Sergei fechou os olhos e imaginou a cena. — Deixe-me dizer o que teria acontecido. Eles estão esperando pelo meu sinal. Eu teria levado todos vocês imediatamente para o pátio do lado de fora do Palácio da Kraljica, conduzindo o grupo pela Avi A’Parete como uma vara de porcos ao matadouro, para que todos vissem vocês. Quando vocês chegassem ao palácio, haveria uma enorme multidão de cidadãos lá para assistir ao espetáculo, e eu colocaria você e sua gente na frente. Eu arrastaria você, Nico, com torniquetes apertados nos antebraços. Eu diria aos cidadãos que você e os ténis-guerreiros que lhe seguem preferem ver Nessântico queimar e todos eles mortos a cumprir seus juramentos a Cénzi, à fé concénziana e ao povo. Eu teria entregado o machado do carrasco para um voluntário entre os cidadãos... e haveria muitos voluntários, Nico. Eu mandaria essa pessoa arrancar as mãos dos seus braços. Seus gritos ecoariam pelas muralhas do palácio, tão alto que você acharia que Nessântico inteira poderia ouvi-los. Então eu faria com que outro cidadão puxasse a língua da sua boca e a cortasse com uma tesoura incandescente, para que a ferida fosse imediatamente cauterizada. Eu não quereria que você morresse. Não ainda. Eu diria para todos eles — os cidadãos e ténis-guerreiros assistindo — que esse era o castigo da fé concénziana, e que então eu mostraria o castigo do Trono do Sol. Eu amarraria você a um poste e mandaria um garda da Bastida abrir seu estômago e puxar um pedaço dos seus intestinos. Eu amarraria esse pedaço a um molinete e faria o garda extrair suas entranhas aos poucos, com o molinete rangendo e girando. Se você ainda estivesse vivo depois disso, então eu mandaria que você fosse esfolado, sua pele seria arrancada de seu corpo vivo. Quando você finalmente morresse, com sofrimento e tormento, seu corpo seria colocado em uma jaula e exposto, com as mãos e a língua pregados ao crânio.
Nenhum dos dois falou durante a longa história. Sergei abriu os olhos. Nico ainda estava na cama, olhando para o embaixador, mas sua expressão continha uma máscara inescrutável. Rochelle parecia horrorizada. Sua boca estava ligeiramente aberta, e ela evitava olhar diretamente para Sergei.
— Você se deleita com essa fantasia — disse Rochelle, com raiva.
— Sim, me deleito — admitiu Sergei.
O embaixador lançou um olhar breve para Rochelle antes de voltar a atenção para Nico. Ele coçou a base do nariz de metal com o indicador e continuou.
— Eu diria para os ténis-guerreiros que eles teriam duas escolhas. Uma seria renunciar você, obedecer ao archigos e servir a Nessântico, e eles talvez vivessem. A outra seria sofrer seu destino imediatamente. Eu daria essa escolha a cada um. Quantos você acha que teriam seguido você no martírio, Nico?
— Eu não sei. Nem acho que sirva para alguma coisa especular a respeito disso, já que isso não aconteceu. Eu mandei que os ténis-guerreiros obedecessem ao archigos e você os deixou partir. O que importa é o que acontece a partir de agora. — Nico mudou de posição e se sentou de costas eretas na beirada da cama. — Então, o que acontece agora, de fato, Sergei? Você vai tentar me prender de novo?
— Eu posso tentar — respondeu o embaixador, levantando a mão quando Nico começou a contestar. — Apesar da minha fantasia — ele parou e sorriu para Rochelle —, depois de seu espetáculo na praça, eu realmente duvido que eu conseguisse fazê-lo
— Eu não faço ideia de como aquilo aconteceu — disse Nico. — Aquilo foi Cénzi, não eu.
— Então talvez Cénzi, se realmente for Ele, torne ao mesmo tempo difícil e custoso prender você, e é perfeitamente possível que eu não sobreviva à tentativa. Mas há gardai e utilinos suficientes aguardando a minha ordem, estou certo de que, com o tempo, nós teríamos sucesso, mesmo com Cénzi.
— Isto é blasfêmia — disparou Nico.
— Talvez fosse, se eu realmente achasse que Cénzi seria o responsável. Mas...
— Por que você está aqui então, se não é para me prender?
— Estou aqui porque Varina é minha amiga, e ela me pediu para vir. Pessoalmente, eu considero que Varina é indulgente demais com você, mas ela acha que você merece ser salvo, que você pode na verdade se redimir, e também acha que nós precisamos de você. Eu mesmo não tenho tanta certeza. — Sergei bateu com a bengala no tapete sob a cadeira. — O que você quer, Nico?
— Isso é fácil — respondeu o jovem. — Eu quero continuar a servir Cénzi.
— E, por enquanto, o que Cénzi exige de você, na sua cabeça? Seria ajudar a defender Nessântico, como você mandou que os ténis-guerreiros fizessem?
Nico tinha entendido; Sergei pôde ver.
— Se esse fosse o caso, se por acaso eu acreditasse nisso, o que eu ganharia com isso?
— Você ainda precisa responder por muita coisa, Nico — disse o embaixador. — A morte da a’téni ca’Paim, a morte de todos os que tentaram defender o Velho Templo, a destruição, os ferimentos. Varina pode estar disposta a deixar tudo isso passar, mas não a kraljica. Não completamente. Mas... talvez possa se argumentar que a morte de ca’Paim foi acidental e não premeditada, que os gardai que morreram estavam cumprindo seu dever, e que, se os morellis e seu Absoluto servirem bem aos Domínios e jurarem trabalhar com os Domínios no futuro, então talvez grande parte do que aconteceu possa ser perdoado. Não esquecido, jamais esquecido, é claro, mas saberíamos que tudo isso foi imensamente lastimável.
— Você faz uma promessa que não tem autoridade para cumprir, Sergei, nem Varina.
— Mas eu tenho a autoridade para oferecê-la em nome de quem tem — respondeu o embaixador. — A escolha é sua, considerar ou não a promessa.
Nico fez hum baixo na garganta.
— O archigos concorda com isso?
— O archigos não tem nada a ver com isso. É uma questão puramente secular. Você e a fé concénziana terão que chegar a seu próprio acordo, mas se você servir ao Estado, ele vai cuidar para que a Fé não faça nada que, bem, comprometa as suas habilidades. — Sergei bateu a bengala novamente, com mais força desta vez. — Nessântico precisa da sua ajuda, Nico. Eu vi o que você é capaz de fazer. Você seria o mais formidável téni-guerreiro que nós teríamos.
Sergei esfregou o nariz novamente e completou.
— Se isso for o que Cénzi deseja.
— Não faça piada disso, Sergei.
— Eu lhe garanto que estou sendo completamente sério.
— Eu preciso rezar primeiro. Não posso lhe dar uma resposta agora.
O embaixador suspirou.
— E eu não posso esperar, Nico. Lamento.
Sergei gemeu ao se levantar e caminhou até a porta dos fundos. Ele ergueu a bengala; lá fora no beco, figuras se mexeram, e ele ouviu passos correndo no primeiro andar, se deslocando pela casa. Sergei se voltou para o quarto.
— Eu realmente lamen...
Ele ia dizer, mas foi atingido pelo frio do Ilmodo e viu a escuridão no meio do quarto, quando ela se dissipou, nem Nico, nem Rochelle estavam mais lá. Um garda meteu o rosto pela porta.
— Embaixador?
— Parece que o Absoluto mentiu para mim — ele disse para o homem.
Varina embalava Sera em seus braços, de um lado para o outro, em frente à janela. Lá fora, na rua após o pátio na frente da casa, uma fila aparentemente infindável de tropas em uniformes preto e prateado marchava para o oeste. Suas botas soavam uma cadência fúnebre e solene pela Avi a’Parete, como se a cidade em si fosse um tambor. Eles estavam marchando já há uma virada da ampulheta, desde a Primeira Chamada, e o barulho das cornetas que anunciavam a chegada das tropas tinha acordado Serafina. Varina aninhara a criança para sossegar sua agitação. Ela beijou a testa do bebê e sentiu a maciez sedosa do cabelo de Sera em seus lábios.
— Não fique assustada, Sera — sussurrou Varina contra o trovão baixo das botas nos paralelepípedos. — Eles estão aqui para nos proteger, querida. Estão aqui para manter você a salvo.
Ela ouviu uma batida suave na porta do quarto, seguida do rangido de dobradiças.
— A’morce, desculpe o atraso. As ruas estão uma confusão, como a senhora pode imaginar. Eu tive que vir pelos fundos... — A ama de leite, Michelle, entrou no quarto, a passos largos e soltando os laços da blusa. — A pobrezinha deve estar faminta. Aqui, deixe-me pegá-la um pouco...
Varina entregou Sera para Michelle e viu o bebê se agitar por um instante antes de a boca procurar e encontrar o mamilo e começar a sugar.
— Isso mesmo, não estamos famintas? — disse Michelle, sorrindo para Sera antes de olhar para Varina. — Parece tão...
A ama de leite se deteve, e Varina viu os olhos de Michelle ficarem úmidos.
— Desculpe — falou a jovem. — Às vezes, quando eu seguro Sera, eu penso no meu próprio...
Ela parou novamente e engoliu em seco.
— Eu não consigo imaginar a dor que você sentiu ao perder seu bebê — disse Varina. — Lamento muito, Michelle.
A ama de leite assentiu.
— A cidade inteira está em alvoroço — disse a jovem.
A mudança de assunto foi abrupta e, Varina sabia, completamente deliberada. Michelle ergueu o ombro e abaixou a cabeça para secar as lágrimas. Sera se remexeu e se ajeitou novamente em seus braços.
— Dizem que já é possível ver os ocidentais do topo da torre da Bastida. Não sei se é verdade, mas... — Michelle sentiu um arrepio, e Sera parou de mamar por um instante, seus grandes olhos azuis se abriram e se fecharam novamente, e ela voltou a se apegar ao seio. — A’morce, meu marido quer que eu vá para a casa do meu irmão em Ile Verte. Eu pensei, bem, pensei que, se a senhora quisesse... eu poderia...
Varina suspirou e acariciou a cabeça de Sera. Os olhos da criança se abriram novamente, encontrando o olhar de Varina. Sera sorriu por um momento em volta do mamilo, e uma bolha branca escapou de seus lábios antes de voltarem a mamar.
— Acho que seria uma excelente ideia, Michelle. Se você não se importar.
— De maneira alguma. Seria um prazer cuidar dela. A’morce, a senhora deveria vir também. Meu irmão tem uma casa grande lá, e tenho certeza...
Varina negou com a cabeça. Ela lançou um olhar para o exército marchando novamente: era o comboio de suprimentos da retaguarda agora — carroças e cavalos.
— Meu lugar é aqui — respondeu Varina. — Quando você pretende ir?
— Hoje à noite, depois da Terceira Chamada.
— Então por que você não vem pegar Sera na Segunda Chamada? Eu aprontarei as coisas dela para você então.
Michelle assentiu.
— Ela é linda. Foi uma pena o que aconteceu ao vatarh e à sua pobre matarh. Sera tem sorte de ter a senhora, a’morce.
Varina tentou sorrir e descobriu que não conseguia. Ela acariciou a cabeça do bebê novamente.
— Michelle, se alguma coisa acontecer comigo...
— Nada vai acontecer — respondeu a ama de leite rapidamente, sem deixar que ela terminasse.
Varina balançou a cabeça.
— Nós não sabemos disso. Caso alguma coisa aconteça, alguma coisa que signifique que eu não possa cuidar de Sera, você ficaria com ela? Belle fala tão bem de você, e talvez possa amenizar a sua perda, ao menos um pouco.
Michelle estava chorando agora, com a cabeça abaixada ao ver Serafina em seu seio.
— A’morce...
— Só diga sim. — Varina acariciou Sera mais uma vez. — Só isso.
Michelle assentiu de novo, e Varina abraçou as duas de leve.
— Ótimo — disse ela. — Isso me deixa mais tranquila.
Jan viu os offiziers posicionarem suas tropas. Ele, o starkkapitän ca’Damont e o comandante ca’Talin se posicionaram na sacada do segundo andar de uma casa de fazenda, situada em uma pequena elevação a algumas centenas de passos do rio Infante. No telhado da casa, Jan postou pajens com bandeirolas com mensagens, assim como corneteiros com trompas e zinks. Um buraco tinha sido aberto no teto do aposento atrás deles, com uma escada que levava até o telhado para que os pajens pudessem subir do posto de comando até o telhado e ordens pudessem ser dadas lá para cima. Desse ponto de observação, eles podiam ver as companhias sendo dispostas deste lado do rio, assim como os sapadores que colocavam obstáculos ao longo da margem para tentar impedir a travessia dos ocidentais.
Do outro lado do rio, mais perto de Nessântico, trabalhadores cavavam uma linha dupla de barricadas, para onde o exército — caso precisasse recuar — poderia retroceder e resistir à vontade.
Jan torcia para que as trincheiras não precisassem ser usadas, mas suspeitava que seriam.
As tropas ocidentais estavam visíveis no verzehen — um tubo com lentes, criado pelos numetodos, que permitia que a pessoa enxergasse a uma grande distância. Através da imagem circular distorcida e um pouco borrada captada pelo verzehen, Jan observou os offiziers dos tehuantinos, os guerreiros supremos, darem suas ordens. Viu o estandarte de cobra em um campo esmeralda. As tropas marchavam por campos, que antes tinham sido fazendas e bosques. As próprias árvores das florestas que cercavam os campos pareciam balançar com o passar do vasto número de ocidentais. Eles já se aproximavam da vila de Certendi.
Eram inimigos demais. Demais. Como uma colônia de formigas escarlate de Daritria, parecia que eles poderiam cruzar o Infante sobre os corpos dos mortos empilhados na água. Jan passou o verzehen para ca’Talin.
— Eles estão aqui. Chegarão à distância de uma flechada de nossas fileiras à noite. Se eu fosse o general dos tehuantinos, eu pararia ali para reunir as tropas e atacar na nova luz, mas... — O hïrzg deu de ombros. — Eles já fizeram o contrário antes. Nós talvez lutemos no escuro. Os ténis-guerreiros estão aqui?
— A maioria deles chegou ontem à noite, hïrzg — informou ca’Damont. — Praticamente todos do grupo dos Domínios, e a maioria dos nossos. Eles disseram que Nico Morel mandou que viessem.
— Então Sergei cumpriu sua palavra — respondeu Jan. — Excelente. Cénzi sabe que precisaremos de todos eles.
Ele gesticulou para um dos pajens; o menino veio correndo.
— Mande as trompas chamarem os a’offiziers de volta.
O pajem prestou continência e subiu a escada correndo; alguns instantes depois, eles ouviram o chamado nítido e estridente das cornetas.
— Estamos prontos então — falou o hïrzg. — Falaremos com os offiziers e, em seguida, vocês deverão se juntar a seus comandos e se aprontar. Veremos se estamos com as peças posicionadas onde precisam estar. Rezemos para Cénzi que este seja o caso.
Ele olhou através do verzehen mais uma vez e viu as figuras borradas dos guerreiros se aproximando. Jan duvidou que quem estivesse no comando dos tehuantinos sentisse a mesma dúvida que ele.
— Vamos detê-los ali — disse o hïrzg — precisamos fazê-lo.
A grande alameda em forma de anel da Avi a’Parete antigamente definia os limites da cidade de Nessântico, com uma muralha fortificada que percorria toda a sua extensão, exceto pela Ilha a’Kralji, adequadamente protegida pelas águas do A’Sele. Nessântico inteira cabia dentro dessa muralha — e essa muralha tinha sido imprescindível durante as guerras infindáveis entre os feudos de Nessântico e os feudos vizinhos.
Agora, a maior parte dessa muralha antiga tinha sumido, as grandes pedras tinham sido enterradas ou reutilizadas nos prédios da cidade, apenas algumas pequenas seções da construção ainda estavam de pé. Nessântico crescera para muito além dos limites da Avi a’Parete, embora bem mais em outras direções que ao sul. Próximo ao lado de fora das ruínas do velho Sutegate da cidade, ainda havia campos abertos e fazendas, e era ali que Allesandra observava o novo corpo de chispeiros treinar. Eles estavam vestindo roupas cotidianas, a maioria parecia ter sido tirada das ruas do Velho Distrito — o que era o caso, na verdade. Talbot se afastou do grupo assim que a kraljica se aproximou. Ele ajudou Allesandra a descer da carruagem, ainda vestido com o uniforme do palácio. Ela olhou para os homens no campo.
— Perdoe a aparência deles, kraljica — disse Talbot ao se dar conta do aspecto dos homens. — Eu só tive dois dias para trabalhar com eles.
— Onde está Varina? Eu pensei que estes instrumentos fossem ideia dela — perguntou Allesandra.
— Ela está resolvendo as coisas com a criança. Depois ela vai para a linha de frente ao norte com o hïrzg, juntamente com a maior parte dos numetodos. Eu pensei que a senhora soubesse. O hïrzg pediu o máximo de feiticeiros disponíveis.
Allesandra assentiu — Varina tinha lhe contado isso ou ela tinha esquecido? Alguém no grupo de chispeiros berrou a ordem para “disparar”. O estampido das chispeiras espocou, e uma fumaça branca eclodiu na ponta dos tubos de metal. Do outro lado do campo, alvos de papel presos em fardos de palha se agitaram ao serem atingidos pelas balas de chumbo.
Os cavalos levaram um susto nos tirantes da carruagem e arregalaram os olhos. O condutor puxou as rédeas e gritou seus nomes.
Allesandra notou que ela mesma deu involuntariamente um passo para trás diante da violência do som e quase caiu para trás, dentro da carruagem.
— A senhora deveria enfiar um pouco de papel nas orelhas, kraljica — sugeriu Talbot. — Esses instrumentos fazem uma algazarra infernal.
— A menos que o nosso inimigo esteja imóvel, parece que um tiro é tudo o que nosso corpo de chispeiros terá antes de os guerreiros estarem em cima deles — comentou Allesandra; todos os chispeiros estavam recarregando suas armas, e o processo parecia tomar um tempo excessivo. — Os tehuantinos estão acostumados com o barulho da areia negra; eles não vão se assustar com isso.
Talbot sorriu.
— Essa foi a minha preocupação, kraljica. Nós fizemos algumas pequenas modificações no projeto original de Varina. A carga de areia negra e balas é pré-fabricada, então não são necessárias medidas no campo. Nós também pensamos que, se estendêssemos um pouco o cano, poderíamos aumentar a distância e a precisão do tiro. E parece que isso deu resultado, embora isso tenha tornado a arma mais pesada e volumosa.
Lá fora no campo, alguns homens trocavam os alvos por novos. Os chispeiros ainda estavam recarregando suas armas.
— Preciso ou não, ainda é um só tiro. Se tudo o que eu tivesse fosse um único golpe de espada enquanto o inimigo podia atacar livremente, então a batalha acabaria rapidamente. Não faria diferença se eu tivesse a arma mais afiada.
— De fato — concordou Talbot. — Por isso eu pensei um pouco sobre a tática. Deixe-me demonstrar... Cartier, forme um esquadrão com fileiras de quatro.
Um dos homens fez uma leve mesura para eles e berrou mais ordens. Doze homens formaram três fileiras espaçadas com quatro homens, organizadas por Cartier. Talbot deu um passo na direção delas.
— Primeira fileira, ajoelhar! — gritou ele. — Primeira fileira, atirar!
Quatro chispeiras foram disparadas, e os estampidos ecoaram no campo. Os homens da primeira fileira se levantaram, cada um deu um passo para a esquerda e voltou para a retaguarda. Eles começaram a recarregar as armas.
— Segunda fileira, ajoelhar! — berrou Talbot. — Segunda fileira, atirar!
Novamente, soaram os estampidos e a fumaça branca foi levada pelo vento. Os homens se levantaram e foram para trás da primeira fileira.
— Terceira fileira, ajoelhar! — gritou ele. — Terceira fileira, atirar!
Outra série de trovões, e a terceira fileira recuou. A primeira fileira já tinha recarregado suas armas a esta altura.
— Primeira fileira, ajoelhar! Primeira fileira, atirar!
Outra saraivada, e Talbot sorriu para Allesandra.
— Alto! — berrou ele para os chispeiros, e se virou para Allesandra. — Kraljica?
Os flancos dos cavalos tremiam e puxavam as rédeas ansiosamente, e o condutor fazia um grande esforço para evitar que os animais saíssem correndo. Os ouvidos de Allesandra zumbiam com o barulho das armas.
— Isso foi impressionante, Talbot — disse a kraljica, e o sorriso dele aumentou.
— Um esquadrão com três fileiras pode disparar três saraivadas em alguns segundos e continuar atirando até acabarem as cargas de areia negra, apesar de, após vários tiros, as chispeiras ficarem quentes demais para dispararem com segurança.
— Mas uma coisa é ficar ali com nada além de fardos de palha para encarar, outra é ver o inimigo avançando com a intenção de matá-lo — continuou Allesandra. — Esses homens não são soldados, Talbot. Não são chevarittai. Sequer são numetodos. Eles parecem padeiros e doceiros, açougueiros e boticários.
— Sim, a maioria deles é composta por civis — admitiu Talbot. — Eu não sei como eles reagirão quando o momento chegar. Mas a eficácia... As armas de areia negra que usamos antes exigiam grandes quantidades de material, e não eram precisas: a explosão poderia matar várias pessoas ou ninguém, ou poderia matar os próprios aliados se a pessoa não tomasse cuidado. Os feitiços têm um alto custo em tempo e exaustão, e exigem anos de treinamento antes que se consiga usá-los bem. Usar uma espada ou lança eficazmente também exige semanas ou meses de treinamento. Estas...
Ele gesticulou para o campo e concluiu.
— As chispeiras de varina usam pouquíssima areia negra, são precisas como um feitiço e exigem apenas uma virada ou duas de treinamento para serem usadas. Elas mudam toda a equação.
— É disso que tenho medo — interrompeu Allesandra. — O poder que você deu à ralé destreinada...
— Infelizmente, a ralé é praticamente tudo que temos entre nós e os tehuantinos no momento, kraljica, a não ser que a senhora ache que a Garde Brezno pode fazer o impossível.
A kraljica franziu a testa e respondeu.
— Eu sei. Mesmo assim, alguma coisa nessa equação... — Ela deu um tapinha no ombro de Talbot. — Desculpe, Talbot. Eu só estou preocupada com o que isso pode significar no futuro: para os Domínios, para a fé concénziana, para a nossa sociedade.
Allesandra franziu os lábios e interrompeu o pensamento.
— Você fez um belo trabalho — disse ela. — Tudo que pedimos e mais. Só espero que isso funcione quando o momento chegar... e terá que funcionar.
A kraljica se empertigou e subiu no degrau da carruagem.
— Continue com o trabalho. Enquanto isso, eu preciso falar com Sergei e verificar a Garde Brezno.
Talbot fez uma mesura; ela entrou completamente na carruagem e gesticulou para o condutor. Ele estalou as rédeas no lombo dos cavalos, e com um ruído das rodas, a carruagem partiu aos solavancos.
Seus pés doíam e suas costas latejavam a cada passo. Os tehuantinos tinham passado por três vilarejos até o momento, enquanto marchavam, desertos — Tototl permitiu que os guerreiros procurassem comida e suprimentos, depois ordenou que as casas fossem queimadas. A fumaça ainda manchava o céu atrás deles.
Niente não queria nada além de se deitar e deixar que os guerreiros e nahualli o abandonassem na terra. Ficou agradecido quando Tototl mandou interromper a marcha acelerada. Ele desmoronou na grama ao lado da estrada e aceitou o pão, o queijo e a água que tinham sido oferecidos por um nahualli, sorvendo o frescor agradável. Niente viu uma sombra crescer e se aproximar dele. Tototl o observava.
— Eu vou lhe arranjar um cavalo, uchben nahual.
— Eu ficarei bem em um instante, guerreiro supremo.
— Eu vou lhe arranjar um cavalo — Tototl repetiu. — Eu preciso que o uchben nahual esteja pronto quando começarmos o ataque hoje à noite.
Niente raramente falava com Tototl, uma vez que os guerreiros supremos, com a exceção do tecuhtli com o nahual, raramente interagiam com os nahualli. Ele percebeu que estava olhando para o rosto pintado do homem se perguntando no que o guerreiro estaria pensando.
— Estamos assim tão próximos então?
— Veremos o topo das casas quando cruzarmos a próxima elevação. Os batedores me disseram que há tropas se aprontando para nos enfrentar. A batalha começará muito em breve agora.
Por alguns instantes, Tototl ficou em silêncio, e Niente ficou satisfeito em poder se sentar na margem de grama da estrada. A brisa tinha o cheiro da fragrância desta terra. Então Tototl se mexeu.
— O que você viu quando olhou na tigela premonitória, uchben nahual? Eu o observei, observei seu rosto, e não acredito que tenha dito tudo para o tecuhtli Citlali.
— Eu disse a verdade — insistiu Niente. — O nahual Atl viu a mesma coisa.
A boca de Tototl se contorceu sob a pintura da tatuagem que adornava seu rosto.
— Seu filho não é você, uchben nahual. Ele pode vir a ser um dia, mas ainda não é. Você está omitindo alguma coisa, alguma coisa que lhe assustou. Eu vi no seu rosto, Niente. Quero saber: você nos viu derrotados?
Niente balançou a cabeça. Eu vi a nossa vitória aqui e seu preço terrível. Vi que isso poderia ser evitado e que esse futuro era confuso e emaranhado demais para ser previsto.
— Não — respondeu ele.
— Eu não tenho medo de morrer. — Tototl estava olhando ao norte na estrada, como se já pudesse ver a cidade. — Morrer em batalha é um fim que todo guerreiro supremo busca. Não é o medo de morrer; estou com medo do preço que isso cobrará dos tehuantinos.
Tototl olhou novamente para Niente, e uma esperança brotou dentro dele, uma esperança de que o guerreiro pudesse entender o que Citlali não entendia.
— É disso que você também tem medo, uchben nahual?
A garganta de Niente pareceu se fechar com o olhar fixo de Tototl. Ele concordou em silêncio.
— Então você viu alguma coisa.
Dessa vez Tototl falou com convicção. Niente balançou a cabeça.
— Eu não sei — respondeu ele. — Eu vi muitos caminhos, guerreiro supremo. Vários, e todos eles incertos. Mas...
Niente respirou profunda e lentamente. Será que você pode confiar neste homem? Será que isso é uma armadilha preparada por ele, talvez até mesmo por Citlali e Atl?
— Deixe-me perguntar uma coisa: se você matasse um guerreiro em um desafio, poderia alegar que conquistou uma vitória. Mas se, ao matar esse guerreiro, você, por sua vez, enfurecesse tanto o filho dele que, quando este se tornasse um guerreiro e trouxesse um exército destruindo tudo o que você construiu, destruindo completamente tudo o que você ama, sem possibilidade de recuperação? Essa vitória inicial valeria a pena?
— Isso dependeria — respondeu Tototl —, se você pudesse dizer, sem dúvida, que o filho faria tudo isso.
Niente balançou a cabeça.
— O futuro nunca está completamente garantido. Mesmo o que acontecerá daqui a um instante pode ser mudado se Axat quiser. Mas, se eu dissesse que este era o resultado provável? Você conteria o golpe da espada?
— Se esse golpe da espada me custasse a própria vida talvez não — disse Tototl. — Nenhum guerreiro quer oferecer sua vida de graça para o inimigo. Eu acho que a mesma coisa valeria para um nahualli.
— Eu diria o mesmo no seu lugar — falou Niente.
Tototl inclinou a cabeça ligeiramente. Ele resmungou alguma coisa que pareceu ter sido um assentimento.
— Já que você diz que o futuro é sempre incerto, você apoiaria um guerreiro supremo plenamente, uchben nahual, mesmo que pensasse que esse seria o caminho errado?
— Esse é o dever de um nahualli — respondeu Niente.
Um rápido sorriso se formou no rosto de Tototl, e Niente percebeu que o guerreiro entendeu que ele não tinha respondido completamente à pergunta.
— Eu vou lhe arranjar um cavalo, uchben nahual — disse Tototl.
— Ela estava com ele? Você tem certeza de que era ela?
Sergei concordou com a cabeça.
— Era Rochelle, hïrzgin. Então ao menos essa parte da história que ela me contou parece ser verdade. Rochelle foi criada como irmã de Nico pela Pedra Branca. Se ela sabe ou não se ele é de fato seu irmão...? — Sergei ergueu um ombro cansado. — Eu não tenho certeza de que Rochelle entende isso.
Ele e Brie estavam montados em seus cavalo, olhando para os campos em volta da Avi a’Sutegate onde a Garde Kralji estava acampada. Sergei sabia que havia poucos homens — dados os relatórios que os batedores tinham informado sobre o tamanho das forças ocidentais que avançavam na direção deles. Embora os offiziers tivessem ensaiado manobras com os gardai, suas tropas pareciam morosas e confusas. Elas não tinham sido treinadas para isso: combate aberto em grande escalada contra outra força organizada e treinada. Isso tinha sido demonstrado na disputa do Velho Templo, quando até mesmo os igualmente destreinados morellis foram capazes de contê-los por um tempo considerável. A Garde Kralji era uma guarda pessoal e unidade policial, não um batalhão do exército.
A batalha não será vencida aqui, Sergei pensou consigo mesmo. Será vencida do outro lado do rio A’Sele, com o hïrzg e a Garde Civile. Só temos que nos defender aqui, detê-los por tempo suficiente para que a Garde Civile retorne e nos salve.
O embaixador estava bastante certo de que eles precisariam desse resgate e não tinha muitas esperanças de que o socorro viria.
— Eles parecem muito atrapalhados e lentos, e eu não estou nada impressionada com os offiziers — disse Brie ao lado de Sergei, como se tivesse ouvido os pensamentos do embaixador.
Ela estava vestida com uma armadura completa sobre uma tashta acolchoada e carregava uma espada na lateral, embora o elmo ainda estivesse amarrado à sela. Seu cabelo estava preso em uma trança que lhe caía pelas costas. A hïrzgin parecia estar completamente à vontade no traje marcial — assim como, pensou Sergei, Allesandra parecia quando comandava as tropas em campanha. Era uma pena, pensou o embaixador, que ambas não tivessem se conhecido há tanto tempo. O filho de Allesandra se casara com alguém muito parecida com sua matarh, consciente ou inconscientemente.
— Eu queria ter trazido a Garde Brezno também. A Garde Kralji vai precisar de uma liderança forte em campo ou vão debandar assim que o combate se torne difícil.
— Realmente — respondeu Sergei. — A kraljica e a hïrzgin estarão no comando. O comandante co’Ingres, infelizmente, ainda sofre com os ferimentos, e o a’offizier ci’Santiago é, bem, digamos apenas que ele é inexperiente.
— Onde está a kraljica?
— A caminho, eu espero. Ela deve estar chegando a qualquer momento agora.
Brie assentiu, emitindo um ruído. Sergei viu a hïrzgin se debruçar na sela e ouvir o couro ranger. Ela olhava para o sul.
— Aquele é outro de nossos batedores? Ele está cavalgando rápido...
Brie apontou, e o embaixador viu uma nuvem de poeira ao longe, na Avi. Ele já não enxergava, e não pôde distinguir o cavaleiro ou as cores de seu uniforme.
— Pode ser — respondeu Sergei. — Seja quem for, está vindo rápido. Deve estar trazendo notícias.
Os dois estalaram as rédeas dos cavalos e desceram a meio galope até a estrada para encontrar o cavaleiro. O a’offizier ci’Santiago se juntou a eles quando o cavaleiro se aproximou galopando na montaria agitada. O cavaleiro prestou continência para eles.
— Os ocidentais — disse o homem, ofegante. — Não muito longe, na estrada... Mil ou mais... Todos na estrada.
Ele parou e recuperou o fôlego.
— Algumas viradas da ampulheta e os ocidentais estarão aqui — disse o cavaleiro. — Estão vindo em marcha acelerada e têm vários feiticeiros com eles, e também peças de máquinas de fazendas. Precisamos estar prontos.
Ci’Santiago assentiu, mas não teve reação. Sergei suspirou.
— Precisamos chamar Talbot e os chispeiros; a’offizier, talvez o senhor possa dar um cavalo novo para este homem e mandar que ele passe a mensagem adiante. Hïrzgin...
— Eu assumirei o comando de campo das tropas até a kraljica chegar — disse Brie. — Embaixador, você e o comandante co’Ingres podem cuidar da estratégia principal aqui nas tendas de comando.
Sergei notou que a hïrzgin já olhava para a paisagem e decidia onde colocar as tropas para melhor proveito.
— Vou precisar de sinalizadores, corneteiros e mensageiros, e quero falar com os offiziers. A’offizier ci’Santiago, preciso que você cuide disso imediatamente. O que você está esperando? Não há tempo, homem. Ande!
Ci’Santiago olhava boquiaberto para Brie, um instante depois, ele fechou a boca e prestou continência enquanto Sergei prendia o riso. O homem virou o cavalo e foi embora a galope, seguido pelo batedor. A hïrzgin olhava para o sul, com a boca franzida. Sergei pensou ter visto fumaça surgindo no horizonte.
— Eu acho que a senhora assustou o pobre homem — disse o embaixador, e Brie soltou uma gargalhada. — A esta altura ele provavelmente já deve estar reclamando da mulher demoníaca de Firenzcia.
— Se sobrevivermos a isso, eu ficarei satisfeita em ser a demoníaca. Você acha que sobreviveremos, embaixador?
— Eu estaria aqui se não achasse? — respondeu Sergei, torcendo para que ela não percebesse a mentira.
Nico ouviu a tranca dos portões da casa ser aberta levemente por Rochelle; ela sorriu para o irmão enquanto guardava as peças finas de metal dentro do embrulho.
— Fácil — disse Rochelle ao empurrar os portões para abri-los.
Nico entrou de mansinho na frente dela, mas sentiu Rochelle colocar a mão em seu ombro quase que imediatamente. Sob o capuz que ocultava seu rosto, ele olhou para a irmã; o manto pesado escondia o robe verde.
— Tem algo errado aqui — alertou Rochelle.
— O que você quer dizer?
— Escute — respondeu ela.
A rua do lado de fora dos portões estava lotada de gente saindo da cidade. Eles ouviram as vozes: os berros, as discussões, os gritos de crianças pequenas demais para compreender o pânico dos pais e parentes. Ela ouviu o estalo e os rangidos de carroças, os pés sendo arrastados no pavimento, os apitos dos utilinos que tentavam em vão direcionar o trânsito e impedir os confrontos inevitáveis.
— Tem todo esse barulho lá fora — disse Rochelle. — Mas aqui dentro... os funcionários deveriam estar correndo, preparando as coisas para sei lá o que, mas não se ouve nada. As persianas das janelas estão todas fechadas e provavelmente trancadas, e eu não ouço nada. Está silencioso demais aqui.
— O que você quer dizer?
Nico sussurrava. Ele já sabia a resposta, e sentiu o desespero se alojar em seu estômago.
— Eu acho que ela não está aqui, Nico. Acho que já foi embora. Lamento.
Irritado, Nico empurrou Rochelle e caminhou a passos largos em direção à porta da frente da casa de Varina. Estava trancada, em vez de esperar pela irmã, ele deu um chute forte e a madeira em volta da tranca rachou. Nico deu mais um chute e a porta se abriu.
— Sutil — disse Rochelle atrás dele.
Nico a ignorou e deu um passo na entrada de mármore. Agora ele sabia que Rochelle estava certa; os criados teriam vindo correndo, prontos provavelmente para defender a casa, mas não havia ninguém visível.
— Varina? — chamou Nico.
Ele pensou ter visto um gato cruzar o corredor a sua frente. Exceto pelo gato, não houve resposta. Nico ouviu Rochelle entrar na casa atrás dele e percebeu que ela empunhava uma faca, com a lâmina exposta.
— Não vamos precisar disso — falou Nico.
— Provavelmente, não. Mas me faz sentir melhor.
Ele deu de ombros. Nico andou devagar pelo corredor e espiou as salas de visitas em ambos os lados. A mobília ali estava coberta por lençóis; o gato olhou fixamente para ele de cima de uma poltrona coberta, depois voltou a lamber as patas dianteiras. Nico continuou a percorrer a casa: o solário, a biblioteca, as cozinhas — todos estavam igualmente vazios, não parecia que Varina esperava retornar em breve. Ele ouviu o chamado de Rochelle do segundo andar e seguiu o som da voz dela. Ela havia tinha embainhado a faca e estava parada na porta do que só poderia ser o berçário. A mobília ali também estava coberta. Rochelle abriu as gavetas da cômoda em uma parede.
— Vazias — disse ela. — Eu disse: Serafina não está aqui, Nico. Os numetodos a levaram para outro lugar.
Nico balançou a cabeça.
— Varina ainda está na cidade. Eu posso sentir.
Rochelle ergueu uma sobrancelha.
— Bom, se está, não está aqui, e o bebê também não.
— Ela despachou Sera — falou Nico.
— Isso eu inferi. Então, será que Cénzi pode lhe dizer para onde?
Ele fez uma careta para Rochelle, ele ia alertá-la sobre a blasfêmia em seus lábios, mas se conteve. Ela pareceu notar também e ergueu a mão.
— Muito bem, então você não sabe. O que nós sabemos para valer? — perguntou Rochelle, mas Nico só conseguiu balançar a cabeça.
— Eu não sei.
Após o confronto com Sergei, ele esperava pegar Sera, sair da cidade com a filha e a irmã e encontrar um lugar para pensar e rezar: para saber o que Cénzi queria dele, para saber como amenizar a culpa e a dor que carregava... Nico esperava — e rezava — que Cénzi lhe desse sua filha, mas parecia que Cénzi ainda tinha planos para ele. Nico olhou para cima.
— Cénzi, o que o Senhor está tentando me dizer?
Ele prestou atenção aos sussurros em sua cabeça e coração, seu rosto ficou sério.
— Acho que chegou o momento de nos separarmos por um tempo — Nico disse para Rochelle.
A Fúria da Tempestade
O sol estava se pondo a oeste no fim da tarde, mas onde antes havia um céu claro, agora uma tempestade se anunciava do outro lado do rio Infante. Uma massa de relâmpagos e trovões se exibia alto no céu, embora houvesse nuvens espreitando perto do solo, de maneira inacreditável. O exército dos tehuantinos estava envolvido por suas sombras, e a tempestade caminhava a passos irregulares com seus raios inconstantes.
As nuvens negras e turbulentas estavam se espalhando ao sul e seguindo a linha de frente estabelecida pelos tehuantinos. O cavalo de Jan se agitou embaixo dele e bufou quando o trovão baixo rosnou como uma grande fera. Havia um odor intenso no ar que fez Jan franzir as narinas.
— Tempestade de guerra — murmurou um chevarittai ao lado de Jan. — Que covardes... eles nem ao menos nos darão a oportunidade de lutar corpo a corpo honrosamente primeiro.
Jan concordou — ele já tinha ouvido falar das tempestades de guerra dos tehuantinos, invocadas pelos feiticeiros: um feitiço cooperativo. Os ocidentais usaram as tempestades de guerra com grande efetividade da última vez que estiveram aqui, assim como durante as batalhas com os Domínios nos Hellins, mas Jan nunca tinha visto uma. Ele duvidava que fosse gostar da experiência em primeira mão.
— Alertem os ténis-guerreiros — ordenou o hïrzg dando um tapinha no pescoço do cavalo para acalmá-lo. — Vamos precisar deles. O ataque está começando.
Jan, seguido por várias companhias de tropas e chevarittai firenzcianos, estava a oeste do rio Infante, logo abaixo da vila de Certendi. A ponte sobre o rio estava às suas costas. Ao leste do rio, ele podia ver as barricadas que tinham sido construídas; o hïrzg tinha pouca esperança de que eles conseguissem dominar a margem oeste por muito tempo. O starkkapitän ca’Damont estava mais perto do leito do rio, com o restante do exército firenzciano; e o comandante ca’Talin, junto à Garde Civile dos Domínios, estava ao extremo sul da linha de frente, perto do ponto onde o Infante se reunia ao A’Sele.
— Diga aos seus homens que eles precisam resistir — disse Jan para os chevarittai.
Ele puxou as rédeas do cavalo e galopou colina abaixo através das fileiras de infantaria e arqueiros.
— Resistam! — Jan disse para todos eles. — Nós precisamos resistir aqui.
À medida que a tempestade de guerra avançava e o rugido da grande nuvem ficava mais alto e sombrio, os ténis-guerreiros avançavam. Jan gesticulou para os robes verdes.
— É aqui que vocês começam a receber seu perdão. Aquela tempestade tem que ceder.
A tempestade se aproximava a cada instante. O ar tinha cheiro de raios, mas não de chuva. À frente das tropas, no que tinha sido um campo com plantação de trigo e grãos, o hïrzg tinha mandado construir armadilhas para os guerreiros tehuantinos: espetos afiados de ferro fincados no chão, buracos encobertos com os fundos cheios de estacas de madeira, pacotes de areia negra que Varina e os numetodos tinham encantado para que explodissem quando alguém pisasse perto deles. A tempestade marchava pelo campo, mas não ainda os guerreiros ocidentais. Os raios rasgavam o solo, arrancavam os espetos e expunham os buracos, jogando terra para todos os lados e fazendo os pacotes de areia negra explodirem inofensivamente.
Jan praguejou para os ténis-guerreiros.
— Agora! — berrou ele. — Agora!
Os ténis-guerreiros começaram a entoar seus cânticos e disparar a energia do Ilmodo na direção da falsa tempestade. A cada feitiço lançado, a tempestade começava a se desmanchar, e mais abaixo, eles puderam ver os guerreiros tehuantinos escondidos, marchando gradualmente em sua direção.
— Arqueiros! — gritou Jan.
Atrás dele, as cordas dos arcos rangeram ao serem tensionadas, uma leve saraivada de flechas desenhou um arco no alto, caindo como uma chuva sobre os ocidentais. Eles ergueram seus escudos imediatamente. Jan viu vários guerreiros caírem, apesar da proteção, ainda que, sempre que um caía, outro tomava seu lugar. Ao sul, a tempestade se assomava sobre as fileiras dos Domínios, e o hïrzg ouviu gritos de dor e susto quando seus raios atacaram os soldados de lá. Mas a tempestade já começava a se desmanchar — o poder que a mantinha fora gasto. Agora Jan ouviu os berros guturais dos feiticeiros ocidentais; bolas de fogo guincharam como moitidis furiosos na direção deles. Os ténis-guerreiros entoaram os contrafeitiços; o hïrzg viu várias bolas de fogo explodirem inofensivamente no ar, mas outras passaram e colidiram contra as fileiras, cuspindo sua terrível destruição flamejante e abrindo brechas na linha de frente. O cavalo de Jan empinou, aterrorizado.
— Avancem as fileiras! Tapem as brechas! — berrou o hïrzg enquanto tentava acalmar seu cavalo.
Os offiziers gritaram instruções; as bandeirolas de sinalização foram sacudidas.
Então, com um grande grito, os guerreiros avançaram, havia pouco tempo para se pensar em qualquer coisa. Jan desembainhou a espada e esporeou o cavalo para seguir em frente. Os chevarittai soltaram um berro de fúria e seguiram o hïrzg, os gardai da infantaria avançaram como uma onda preta e prateada para encarar os ocidentais.
Eles colidiram em um turbilhão de espadas, lanças e piques.
Jan tinha lutado contra as legiões de Tennshah. Esses ocidentais eram igualmente ferozes enquanto guerreiros, mas bem mais disciplinados. O hïrzg ouviu os offiziers dos tehuantinos berrarem ordens expressas na língua deles, e os feiticeiros estavam entre eles, brandindo seus cajados estalando e brilhando com os feitiços. Dessa parte Jan se lembrava. Ele golpeou um mar de rostos marrons pintados de vermelho e preto com sua espada, e sempre que derrubava um, outro guerreiro surgia para tomar seu lugar. Eles estavam sendo repelidos aos poucos, e, mesmo assim, os ocidentais continuavam surgindo. Jan percebeu que eles não resistiriam deste lado do rio — se fossem repelidos tão próximo ao rio, não haveria uma retirada organizada; eles seriam massacrados.
— Recuar! — berrou o hïrzg. — Para a ponte! Para a ponte!
Os offiziers atenderam ao grito; os porta-estandartes sacudiram as bandeirolas de sinalização, as cornetas tocaram o sinal. As tropas firenzcianas, disciplinadas e precisas como sempre, cederam terreno, como tinham sido treinadas, a contragosto, permitindo que os arqueiros e ténis-guerreiros cobrissem a retirada e carregassem os feridos, sempre que possível.
Os mortos, eles deixaram.
Ali, havia duas pontes que cruzavam o Infante, com oitocentos metros de distância uma da outra. A ponte norte, que corria pela Avi a’Nostrosei, já tinha sido destruída. A ponte da Avi a’Certendi ainda estava em pé. O Infante podia ser cruzado, mas não seria fácil, pois a correnteza era rápida e havia poças profundas que apenas os locais conheciam. Os arqueiros e ténis-guerreiros foram os primeiros a passar pela ponte enquanto a infantaria e os chevarittai continham os ocidentais, sob as ordens dos offiziers para correr em direção às barricadas que tinham sido erguidas do outro lado. Jan permaneceu com os homens, sua armadura estava manchada de sangue e amassada, o aço cinzento da sua espada firenzciana estava sujo de sangue seco, até que a ponte estivesse liberada e os arqueiros tivessem entrado novamente em formação do outro lado.
— Fujam! — ele gritou, finalmente, quando ouviu as trompas do outro lado do Infante.
Eles correram em direção à ponte. Jan se virou ali novamente e conteve os guerreiros que o perseguiam, urrando. O chão em torno dele e dos chevarittai estava coberto de corpos. Um feiticeiro brandiu seu cajado, e o chevaritt ao lado do hïrzg caiu, emitindo um berro e emanando cheiro de enxofre, mas o feiticeiro foi abatido no momento seguinte. A maior parte da infantaria estava do outro lado.
— Cruzem a ponte! — gritou Jan. — Chevarittai, cruzem!
Eles viraram seus cavalos e fugiram. Os cascos dos cavalos de guerra bateram nas tábuas da ponte, e o hïrzg gesticulou para os ténis-guerreiros que esperavam do outro lado. Os tehuantinos os perseguiram, estavam perto demais. Os guerreiros já estavam na extremidade oeste da ponte.
— Agora! — berrou Jan ao chegar à terra firme do outro lado. — Derrubem a ponte!
— Hïrzg, não antes de estarmos atrás das barricadas — disse alguém.
Jan ficou de pé nos estribos, furioso, e rugiu.
— Derrubem a ponte agora!
Os ténis-guerreiros entoaram os cânticos e o fogo começou a subir pelas vigas de madeira. As chamas lamberam o papel que embrulhava a areia negra amarrada ali.
A explosão atirou pedaços da ponte para o alto, pedaços enormes de vigas se contorceram, os tijolos e pedras das pilastras cortaram o ar. Os guerreiros e gardai foram igualmente golpeados. Um dos tijolos bateu em Jan, e o impacto o derrubou do cavalo. Ele ouviu o cavalo relinchar também, um som horrível. Ao cair, o hïrzg viu o centro da ponte entrar em colapso e cair no Infante devolvendo um imenso espirro d’água, levando uma massa de guerreiros ocidentais com ela.
Então Jan caiu no chão. Por um momento, tudo ficou preto a sua volta. Quando recuperou a consciência, ele viu rostos e mãos sobre si.
— Hïrzg, o senhor está ferido?
Jan permitiu que o ajudassem a levantar. Seu peito doía como se o cavalo tivesse caído sobre ele, e a armadura onde o tijolo o tinha atingido estava amassada. Seu peito ardia a cada inspiração; ele teve que respirar aos poucos enquanto se livrava das mãos sobre si. O cavalo se debatia no chão, com uma tábua enterrada em seu flanco.
A ponte tinha sido destruída. O sol já tinha se posto ao nível das árvores e projetava longas sombras sobre o campo de batalha. Os ocidentais tinham recuado para o limite da água para sair do alcance das flechas. Jan mancou até o cavalo. Uma das patas dianteiras do garanhão estava quebrada, e sangue espirrava do longo ferimento em seu flanco.
— Minha espada? — pediu ele, e alguém lhe entregou a arma.
O hïrzg se ajoelhou ao lado do cavalo e acariciou seu pescoço.
— Descanse — falou Jan. — Você serviu bem.
Com um gemido de dor, ele ergueu a espada e golpeou com força, abrindo um corte profundo no pescoço do animal. O cavalo tentou se levantar uma última vez, depois ficou imóvel. O mundo parecia dançar em volta de Jan, sua visão periférica se escureceu novamente. Ele se forçou a ficar de pé, apoiado na espada.
— Formem as fileiras atrás das barricadas — disse o hïrzg para quem estava ao redor. — Cuidem dos feridos e organizem as vigias. Mandem os a’offiziers virem até mim e avisem o starkkapitän e o comandante sobre o que...
Aconteceu aqui...
As palavras estavam em sua mente, mas não pareciam sair. A escuridão tomou conta dele demais, apesar do sol ainda estar visível no céu.
Ele se sentiu cair.
Não havia nahualli suficiente com Niente para criar uma tempestade de guerra. À frente deles, sob a luz dourada do fim de tarde, os tehuantinos viram as tropas orientais dispostas nas encostas dos morros, em ambos os lados da estrada. O número de guerreiros parecia ser muito maior que a quantidade de orientais, a menos que eles tivessem tropas reserva escondidas do outro lado da encosta.
Tototl bufou desdenhosamente.
— Isso é tudo que eles têm contra nós? — comentou ele, e os guerreiros próximos riram. — Uchben nahual, chegou o momento de fazer o que conversamos.
Niente assentiu para Tototl, virou o cavalo e cavalgou de volta ao abrigo dos nahualli entre os guerreiros. Ele mandou que os nahualli enchessem seus cajados mágicos como de costume na noite anterior, para que pudessem realizar o feitiço quando fosse necessário e ainda estarem descansados para a batalha. Eles não podiam criar a tempestade de guerra, mas podiam criar uma nuvem grande o suficiente para encobri-los. Foi o que fizeram agora: o cântico em massa reuniu o poder do X’in Ka, a energia se condensou no ar e se tornou visível. Filetes de nuvem começaram a flutuar em frente aos guerreiros, da estrada até quase às margens do rio, uma bruma espessa se formou e adensou, uma muralha formada pelos nahualli para que os orientais não pudessem mais vê-los. Essa muralha não acompanharia as tropas, nem geraria os raios da tempestade de guerra. Niente gesticulou quando não conseguiu mais ver as tropas orientais à frente deles, nem os morros onde elas estavam, e os nahualli interromperam o cântico.
Niente cambaleou, como se tivesse corrido até o rio e voltado: o preço do cântico e da canalização de energia, mas ele se forçou a se manter de pé, embora muitos jovens nahualli tivessem desmoronado, ofegantes. Usar o X’in Ka desta forma — para criar um feitiço sem se dar tempo de recuperar o esforço — tinha um preço alto; Niente não compreendia por que os feiticeiros orientais geralmente faziam magia dessa forma, em vez de estocar os feitiços para serem lançados mais tarde.
— Levantem-se — falou ele. — Peguem os cajados mágicos. Ainda há uma batalha a ser travada.
Com a muralha de bruma impedindo a visão das tropas orientais, Tototl berrou ordens, gesticulou para os guerreiros de menor escalão e os guerreiros supremos responsáveis por eles. Duas companhias seguiram para a esquerda, em direção ao rio — elas contornariam os orientais que avançariam contra os inimigos em sua retaguarda e nas laterais. Tototl esperou até o braço do flanco se afastar e Niente cavalgar até ele.
— Se isto é tudo o que está entre nós e a cidade, nós chegaremos lá esta noite, uchben nahual — falou o guerreiro supremo. — Parece que seu filho enxergou bem: nos mandar cruzar o rio é o caminho para a vitória. Eles não estavam preparados para isso. Nós avançaremos até a cidade e surgiremos contra o restante do exército oriental pela retaguarda, enquanto Citlali e o nahual Atl atacam pela vanguarda. Eles serão esmagados por nós como uma noz com casca entre pedras.
O comentário só fez Niente fechar a cara. Ele tentou usar a tigela premonitória na noite anterior: tudo estava confuso, e os poderes se mexiam do lado dos orientais, de maneira que não foi possível ver claramente, e o Longo Caminho lhe escapou completamente. Tototl pareceu achar graça na irritação de Niente; ele riu.
— Não se preocupe, uchben nahual — falou o guerreiro supremo. — Eu ainda tenho fé em você. Seu cajado mágico está cheio?
Niente levantou o cajado de madeira de lei de ébano que ele tinha entalhado com tanto cuidado há décadas com seus símbolos de poder. Com os anos, suas mãos poliram o punho nodoso e o centro do cajado, deixando um acabamento acetinado e reluzente. O objeto parecia fazer parte dele; Niente sentia a energia em seu interior, esperando para pronunciar os gatilhos para provocar fúria e morte. No entanto, mesmo mostrando o cajado para Tototl, e enquanto os guerreiros e nahualli ao redor gritavam em afirmação, Niente sentiu pouca coisa além de desespero.
Não havia vida nesta vitória, se é que seria uma vitória. Nenhuma alegria. Não se ela levasse para o lugar que ele vislumbrara uma vez.
Tototl desembainhou a espada e a ergueu, juntamente com o cajado de Niente, e os gritos redobraram.
— É o momento de sangue! — declarou o guerreiro supremo. — É o momento de morte ou glória!
Ele apontou para a margem da nuvem com a espada.
— Por Sakal! — rugiu Tototl.
Os tehuantinos berraram com ele ao avançarem. Niente foi levado pela onda, mas estava calado.
Eles entraram no vazio frio e cinzento da nuvem e saíram para o sol, o calor e a batalha.
Brie havia posicionado as tropas nas duas encostas de morro que flanqueavam a estrada, com apenas uma única companhia na estrada em si, e arqueiros em posição de ambos os lados — eles ao menos teriam a vantagem da altura do terreno para começar esta batalha. Os ocidentais teriam que avançar morro acima se quisessem enfrentá-los.
Se tivessem chevarittai, eles poderiam descer a toda velocidade, como uma gigantesca lança sendo enfiada em meio aos ocidentais. Mas eles não tinham chevarittai, e tinham poucos arqueiros, apenas três numetodos — de quem Brie desconfiava ligeiramente, pois não havia numetodos em Firenzcia; pelo menos nenhum que se revelasse abertamente — e nenhum téni-guerreiro.
Allesandra tinha chegado há uma virada, ela vestiu sua armadura, e Brie cedeu o comando de campo para ela, como era apropriado, uma vez que a Garde Kralji era da kraljica.
— Vejo que você teve uma bela educação — disse Allesandra. — Eu não esperava menos de você.
Brie e a kraljica, juntamente com Sergei e o comandante co’Ingres, observavam a aproximação das tropas ocidentais, sob o estandarte de cobra com asas. A hïrzgin ficou séria ao ver o tamanho assustador da força inimiga; ficou ainda mais preocupada quando viu os feiticeiros — a salvo, fora do alcance dos arqueiros deles — colocarem uma muralha de bruma entre eles para mascarar a formação.
Brie não conseguiu conter um arrepio diante da cena.
— Kraljica, embaixador, existe algum terreno melhor e mais defensável entre o Sutegate e aqui? Talvez devêssemos tentar incomodá-los em vez de detê-los. Podemos mandar grupos menores contra os flancos, criar uma muralha defensiva na cidade...
Allesandra lançou um olhar para Sergei e co’Ingres, e nenhum dos dois falou.
— É tarde demais para isso, hïrzgin — respondeu a kraljica. — Nós temos que resistir aqui, precisamos detê-los o máximo de tempo possível, e temos que fazê-los pagar por cada passo de terreno que eles tomam.
Brie cerrou as mãos em volta das rédeas do cavalo de guerra.
— Então eu estarei ao seu lado, kraljica, na vanguarda.
— Não. — Allesandra balançou a cabeça. — Esse lugar e responsabilidade são meus, Jan jamais me perdoaria se você fosse ferida. Eu quero que você assuma o flanco do rio com os chispeiros de Talbot. Eles precisarão de uma coragem inabalável e de um comandante firme para guiá-los. Talbot pode ficar com você, mas eu preciso dos outros numetodos aqui; temos poucos, uma vez que a maioria seguiu com o comandante ca’Talin.
Brie queria discutir — em sua cabeça, a Garde Kralji também precisava de uma liderança forte ou debandaria, mas ela assentiu, a contragosto.
— Como queira, kraljica...
Relutante, ela cavalgou em direção ao oeste na estrada e subiu o morro, passando pela Garde Kralji — que olhou para a hïrzgin com preocupação — até a retaguarda, onde os chispeiros tinham sido posicionados. Brie balançou a cabeça ao vê-los, vestidos com o que quer que tivessem no corpo. Os chispeiros não vestiam nenhuma armadura, exceto por alguns, que usavam pedaços de couraça de metal enferrujado e cota de malha rasgada e mal ajustada. A não ser pelos estranhos apetrechos que cada um portava, eles estavam armados apenas com espadas antigas, instrumentos de fazenda e cutelos. Os chispeiros pareciam mais uma turba do que uma força de combate — uma turba que um simples esquadrão da Garde Brezno teria sido capaz de afugentar, fazendo-os correr aos berros.
Brie repassou as ordens da kraljica a Talbot; o homem parecia tão preocupado com os chispeiros quanto ela, mas tinha enviado seus colegas numetodos lá para baixo, para onde o estandarte da kraljica tremulava do lado leste da estrada.
— Eu sou o assistente dela — comentou ele ao observar os numetodos seguindo em direção ao estandarte da kraljica. — Eu deveria ter ido com eles. Isto é loucura.
— É por isso — disse Brie — que ela nos quer na retaguarda. Ela sabe quais são as chances. Esses chispeiros têm mesmo um propósito?
Em resposta, Talbot ensaiou os exercícios, formando os chispeiros em fileiras e recuando os homens em sequência. Brie tentou imaginar as chispeiras disparando, tentou imaginar o grupo não debandando e fugindo aterrorizado ao ver o inimigo. Enquanto Talbot berrava ordens, a hïrzgin também observou a massa inacreditável de bruma que cobria a estrada abaixo e passava ao lado do morro onde ela estava.
A muralha cinzenta estava em silêncio.
— O que acontece quando eles “atiram”? — perguntou ela.
— As chispeiras disparam. Elas são bastante eficientes, na verdade. Foram inventadas por Varina. — Ele inclinou a cabeça ligeiramente para Brie. — Não há magia alguma envolvida, hïrzgin, se é isso o que lhe preocupa. Nenhuma ostentação do “Dom de Cénzi”, como vocês da fé concénziana poderiam chamar.
Ela ia responder, mas aí...
— Talbot... — Brie apontou para o morro abaixo.
Começou como um rugido abafado atrás da nuvem: o som de armaduras batendo e guerreiros berrando. Da bruma, os tehuantinos saíram correndo em direção a eles, onda atrás de onda tomando a estrada, assim como os campos de ambos os lados. Brie, do ponto de observação, ouviu Allesandra mandar os arqueiros dispararem, e os numetodos lançarem bolas de fogo e raios estalando em direção aos tehuantinos. Os feitiços e as flechas abriram breves brechas nas fileiras, que foram imediatamente cobertas, e agora os feiticeiros ocidentais erguiam seus cajados mágicos e lançavam seus próprios raios em direção a Allesandra e às tropas. Explosões e gritos eram ouvidos em ambos os morros.
O clamor ficou mais alto; as fileiras se aproximaram...
... e colidiram, emitindo o tilintar de metal. Da altura onde os chispeiros estavam, Brie conseguiu ver a batalha exposta diante de si, a miríade dos dois exércitos sobre a paisagem parecia uma praga de insetos. Alguns chispeiros estavam visivelmente assustados com o que viam, outros recuaram morro acima — para o norte, em direção à cidade. Talbot e Brie berraram para que eles parassem, e a hïrzgin virou o cavalo para interceptá-los, como um cão pastor com seu rebanho.
— Recuem e eu mato vocês — gritou Brie para os chispeiros, com sua espada erguida e seu cavalo de guerra trotando em resposta a sua agitação. — Talbot, vamos levá-los para baixo para podermos...
Ela ia dizer, mas de repente se calou.
Brie notou que a batalha já estava sendo perdida lá embaixo. A linha de frente da Garde Kralji já tinha entrado em colapso, e o estandarte de Allesandra seguia a norte da estrada, cedendo terreno. Os ocidentais já não estavam mais encobertos pela muralha de bruma e, apesar da quantidade, parecia haver menos inimigos do que Brie se lembrava. Ela olhou para Talbot, preocupada e subitamente desconfiada.
— Fique aqui — disse a hïrzgin.
Ela fez o cavalo subir a encosta do morro em direção ao cume, permanecendo sob a cobertura das árvores. Quando chegou ao cume, Brie olhou para baixo. Ela viu a muralha cinzenta de bruma seguindo em direção à margem do rio. E ali, na outra margem...
— Ah, não... — Brie engoliu uma imprecação.
Na encosta do morro, já subindo encosta acima, se aproximava o restante do exército ocidental.
A tempestade de guerra era ao mesmo tempo assustadora e mortal, mas era apenas uma quimera: um fantasma do Segundo Mundo. Ao mesmo tempo que cortava a tempestade com o Scáth Cumhacht, Varina admirava seu poder, precisão e criação. Ela podia sentir os vários fios individuais da tempestade, como eles se entrelaçavam a partir dos feitiços de vários feiticeiros e se formavam em um único encantamento: uma presença especialmente forte, se aproximando dela.
Isso não era nada que os ténis da fé concénziana conseguissem fazer, nem os numetodos — outra habilidade que os habitantes do mundo oriental não tinham. Ao mesmo tempo em que dilacerava as nuvens e dissipava os fios mágicos que as mantinham coesas, Varina se deu conta de que estava pensando como preparar um feitiço como aquele.
Se sobreviver, isto é algo em que você deveria trabalhar, para que os numetodos aprendam a fazer também.
Se você sobreviver...
E isso, ela receava, não era uma certeza.
Ela estava junto à Garde Civile, do comandante ca’Talin, na extremidade sul da frente de batalha, no triângulo cada vez mais estreito entre o rio Infante e o rio A’Sele. Aqui, o Infante se dividia em dois braços ao se juntar com o A’Sele, e a Avi a’Sele cruzava o rio com duas pontes. Assim como o comando do starkkapitän ca’Damont, ao norte, e com o comando do hïrzg Jan, na extremidade norte da linha de frente, eles tinham se posicionado a oeste do Infante. Os tehuantinos estavam dispostos em uma longa fileira curva, se espalhando pela Avi a’Sele em direção à Avi a’Nostrosei, com cerca de três quilômetros de comprimento.
A tempestade de guerra, pelo que Varina pôde notar, podia ter coberto toda essa extensão.
Os outros numetodos também estavam cortando a tempestade de guerra juntamente com ela. Os raios evanesceram, a nuvem negra tinha sido desfiada e interrompida. Eles puderam ver alguns homens se movendo atrás dela, avançando.
— Recuem, recuem! — gritou o comandante ca’Talin para Varina e os demais. — Fiquem atrás da linha de frente. Arqueiros, disparar!
Bandeiras tremularam, cornetas soaram no ar, e por toda a extensão da linha de frente, saraivadas de flechas foram lançadas contra a tempestade de guerra. Varina viu os escudos dos guerreiros serem erguidos e a maioria das flechas ser cravada em escudos. Golpes de espada arrancaram as flechas presas nos escudos, e os tehuantinos mandaram uma chuva de flechas em resposta. Varina ouviu Mason berrar perto dela e cair com uma flecha de penas cinzas encravada em seu peito. Outra flecha acertou o chão a seus pés.
— Recuem! — berrou ca’Talin novamente.
Desta vez eles obedeceram. Johannes e Niels arrastaram Mason com eles.
Varina podia ver pouco mais que corpos colidindo à sua volta em meio à batalha, mas podia ouvir muito bem: o choque do aço contra o aço, os gritos dos soldados de ambos os lados, os toques estridentes das trompas. Também podia sentir o cheiro da fumaça dos fogos mágicos, do sangue, e de enxofre, torcendo o nariz. Mas à sua frente havia apenas uma massa agitada de soldados. Ca’Talin, a cavalo, cercado por chevarittai, se enfiou em meio ao caos e, por um momento, Varina e os outros ficaram sozinhos. Eles dispararam feitiços de fogo por cima dos gardai em direção às fileiras tehuantinas do outro lado; usaram contrafeitiços para destruir o fogo jogado pelos feiticeiros ocidentais sobre eles. A areia negra explodiu à sua direita, lançando terra e partes de corpos para o alto e a deixando ligeiramente surda.
Varina sentiu o terrível cansaço pelo uso contínuo do Scáth Cumhacht. Todos os feitiços que ela tinha preparado na noite anterior acabaram, e sua mente estava cansada e confusa demais para criar novos com facilidade. Varina estava acabada; estava vazia.
Se você sobreviver...
Ela tinha menos certeza disso agora do que nunca.
As cornetas mudaram o toque. Varina viu o comandante e os chevarittai saírem em meio à fumaça e a confusão da batalha. Atrás deles, gardai recuavam e fugiam para o leste.
— Para as pontes! — gritou ca’Talin ao passar por eles. — Para as pontes!
Varina foi levada por eles, impotente. A retirada seguiu em debandada, uma confusão. Ela estava sendo empurrada, tropeçando e quase caindo. À sua volta, as pessoas se acotovelavam, e Varina não conseguia se levantar. Seria fácil, ela pensou, se deitar ali e deixar tudo acabar. Varina sentiu que começava a cair novamente.
Uma mão a abraçou pela cintura.
— Aqui, levante-se.
Ca’Talin havia retornado. Ele puxou Varina para a sela de seu cavalo de guerra. Os braços e ombros da a’morce doíam. Ela viu as pontes à frente, lotadas de gardai fugindo em direção às barricadas do outro lado.
— Perdemos aqui — ca’Talin meio que gritou para ela enquanto eles mergulhavam na multidão de homens — Os ocidentais tomaram este lado do rio até o norte. Que Cénzi nos preserve para amanhã.
Ao ver os tehuantinos avançarem até o outro lado da colina em direção a eles, Brie virou seu cavalo e galopou duramente até os chispeiros; o animal jogava rochas e pedras a sua frente.
— Talbot! Por aqui! — gritou ela. — Traga seu pessoal e me siga!
Assim que viu a confirmação de Talbot, vendo o homem berrar ordens e empurrar os chispeiros a sua volta, a hïrzgin subiu a encosta novamente até chegar ao cume. Os tehuantinos ainda subiam o morro, com a óbvia intenção de ladear a batalha principal e atacar a Garde Kralji pelo flanco e pela retaguarda enquanto os gardai estavam concentrados no ataque principal pela estrada. O cume do morro era plano e quase sem árvores; os ocidentais avançavam por uma campina. A essa altura, Brie também tinha sido vista; ela ouviu uma flecha passar assobiando por sua cabeça e recuou levemente morro abaixo.
Talbot e os chispeiros estavam quase no topo; a hïrzgin contou para ele o que viu rapidamente. Os dois arrumaram as fileiras imediatamente abaixo do cume; os chispeiros verificaram suas armas novamente, para garantir que estavam carregadas e abriram as bolsas de couro onde carregavam, segundo Brie tinha sido informada, as pequenas recargas de areia negra para recarregar as chispeiras. Ela tinha visto as recargas; estavam longe de ser impressionantes, o que apenas aumentava suas dúvidas quanto à eficiência da chispeira enquanto arma.
Mas ela não tinha escolha. Ela só podia torcer para que Talbot não tivesse lhe contado uma mentira elaborada.
— Muito bem — falou a hïrzgin. — Ao meu comando, nós subiremos até o cume. Talbot, prepare-se para disparar assim que estiver lá; eles têm arqueiros, portanto vocês também estarão sob ataque.
Ela viu os homens empalidecerem ao ouvir isso.
— Vocês possuem o terreno elevado como vantagem. Ataquem para valer, e os arqueiros serão inúteis — disse Brie, apesar de não acreditar nisso; ela achava que os arqueiros inimigos transformariam os chispeiros em uma parede de corpos sobre o cume. — Agora, avancem!
Quase de má vontade, os homens subiram até o cume, juntamente com Brie e Talbot. Ela ouviu os chamados na estranha língua ocidental quando eles apareceram, mas Talbot já ditava a sequência antes das primeiras flechas os alcançarem.
— Primeira fileira, ajoelhar! Primeira fileira, atirar!
O barulho emitido fez o cavalo de Brie empinar, aterrorizado. Uma fumaça branca e pungente floresceu ao longo da fileira, e pelo morro abaixo... A hïrzgin mal podia acreditar no que via: os ocidentais derrubados como se uma lâmina divina tivesse ceifado as fileiras inimigas. Ela soltou um grito de surpresa, quase uma risada.
— Segunda fileira, ajoelhar! Segunda fileira, atirar!
Novamente, os estampidos das chispeiras ecoaram; novamente, mais ocidentais caíram; seus corpos rolaram morro abaixo ou se amontoaram onde estavam. Agora, algumas flechas também atingiram os chispeiros, Brie viu três ou quatro homens caírem.
— Droga, resistam, seus bastardos! — gritou Talbot para as fileiras, que fraquejaram e começaram a se desmanchar.
Brie galopou atrás deles enquanto a fileira da retaguarda titubeava e tentava debandar em vez de recarregar as armas.
— Não! — disse ela. — Fiquem e lutem, ou vocês sentirão o aço da minha espada! Fiquem!
— Terceira fileira, ajoelhar! Terceira fileira, atirar! — berrou Talbot.
Desta vez a saraivada soou mais como uma gagueira do que uma explosão coordenada, mesmo assim, mais tehuantinos caíram. Brie notou que o inimigo titubeava.
— Mais uma vez! — ela gritou para Talbot. — Rápido!
— Primeira fileira, ajoelhar! Primeira fileira, atirar!
Outra gagueira, alguns homens sequer conseguiram disparar, tentando recarregar as armas atabalhoadamente, com mãos trêmulas. Mesmo assim, mais tehuantinos caíram, e o disparo de flechas parou completamente. Morro abaixo, guerreiros feridos e moribundos gritavam em sua língua, e outros guerreiros pintados berravam em resposta.
— Segunda fileira, ajoelhar! Segunda fileira, atirar!
Mais uma vez, as chispeiras rugiram, e quando mais guerreiros caíram, os tehuantinos finalmente cederam. Os guerreiros recuaram e começaram a descer correndo o morro, apesar dos esforços dos offiziers para contê-los, subitamente eles bateram em retirada em pânico. O grupo de chispeiros soltou um grito de triunfo, alguns deles, sem que Talbot desse a ordem, dispararam as chispeiras dos inimigos, recuando. No topo do morro, havia punhos erguidos em triunfo.
Brie gritou “urra” com os chispeiros, mas então olhou para trás e a alegria morreu em sua garganta. Bem abaixo, na estrada, a Garde Kralji estava em plena fuga. Ela viu o estandarte de Allesandra balançando e ouviu as cornetas soando o toque de retirada. Atrás deles, os guerreiros tehuantinos os seguiam em perseguição: uma onda negra que se espalhava pela estrada ao longo de ambos os morros, uma onda que sobrepujaria a unidade de chispeiros se eles ficassem ali.
— Talbot! — gritou Brie. — À kraljica! Não podemos ficar aqui.
Eles podiam ter tido uma pequena vitória nessa escaramuça, mas não haveria vitória maior aqui. A hïrzgin conduziu Talbot e os chispeiros morro abaixo para se juntar à kraljica na fuga.
Niente pensou que Tototl fosse perseguir os orientais diretamente até a cidade deles ou mesmo atropelaria a retirada dos inimigos e os mataria ali. E ele talvez tivesse feito exatamente isso, se não fosse por um guerreiro supremo ter voltado, ofegante, falando sem parar a respeito de um massacre: o grupo que fora despachado para o flanco ocidental tinha sido praticamente destruído. Tototl deteve o avanço e enviou apenas alguns esquadrões em perseguição aos orientais em fuga. Tototl e Niente seguiram o guerreiro supremo e deram a volta até o outro lado do morro. Agora Niente estava vendo uma terrível carnificina na encosta à frente dele — embora ele tivesse visto coisas piores em suas longas décadas de guerra, certamente. Niente tinha testemunhado homens cortados em pedaços, tinha visto cadáveres empilhados sobre mais cadáveres. Mas aquilo: havia uma quietude assustadora ali, e os corpos estavam estranhamente inteiros. Havia pouco sangue.
Tototl pulou do cavalo e caminhou entre os corpos espalhados pela encosta coberta de grama.
— Que magia fez isso? — ele exigiu saber.
Niente balançou a cabeça.
— Uma magia que eu não nunca vi antes.
— Por que você não viu isso? — disse Tototl furioso.
Niente só podia continuar balançando a cabeça. Suas mãos tremiam. Ele sentiu o cheiro de areia negra no ar.
Areia negra.
Isso não era magia... A ideia não parava de lhe ocorrer, juntamente com o cheiro de areia negra. O fato da areia negra não ter sido criada a partir do X’in Ka era algo que Niente tinha omitido do tecuhtli e dos guerreiros. Ele queria que os guerreiros acreditassem que a areia negra era mágica. Não queria que eles soubessem que qualquer um poderia fazê-la se soubesse os ingredientes, as medidas da fórmula e o método de preparo. Niente e os poucos nahualli a quem ele confiou o segredo mantiveram o sigilo — todos eles suspeitavam que, se os guerreiros pudessem fazer a areia negra sozinhos, eles poderiam decidir que não precisavam dos nahualli.
Isso não era magia...
Niente sabia, mas não podia admitir para Tototl.
Se Atl também estiver vendo isso... O medo o regelou e ele quase pegou o pássaro entalhado, quase pronunciou a palavra que permitiria a comunicação com o filho, para avisá-lo. Mas seria tarde demais: a batalha já estaria, sem dúvida, em andamento. Tarde demais. E ainda que os orientais tivessem essa habilidade mortal, ela ainda não tinha feito a diferença nesta batalha. Os inimigos eliminaram as tropas do flanco, mas ainda assim foram derrotados.
Mas Tototl estava certo em um aspecto: ele não tinha visto isso. O que a tigela premonitória diria agora?
— Os orientais aprenderam um feitiço que nunca tinham nos mostrado antes — respondeu Niente.
Os feridos sangravam por buracos profundos e irregulares, mas quase circulares. Os mortos estavam piores — parecia que eles tinham sido atingidos por flechas invisíveis que, inacreditavelmente, vararam armaduras de metal e bambu para mergulhar profundamente em seus corpos, muitas vezes atravessando-os completamente. E no topo do morro, de onde os guerreiros sobreviventes tinham dito que a terrível saraivada viera, não havia nenhum corpo e haviam poucos sinais de sangue, embora houvesse algumas flechas tehuantinas no chão. Mas o solo estava inalterado, como não estaria se os inimigos tivessem precisado arrastar corpos. Os orientais conseguiram infligir esse dano nos tehuantinos sem perder homens de maneira substancial.
Será que eles fariam isso com as tropas principais? Será que estão escondendo esse poder, à espera de um lugar melhor para usá-lo?
Podia não ter sido magia, mas alguma coisa tão horrível quanto inacreditável tinha acontecido aqui. Eles usaram a areia negra de uma forma que Niente não conseguia compreender.
— Eu preciso usar a tigela premonitória novamente — falou ele. — Alguma coisa mudou, alguma coisa que Axat não tinha mostrado antes. Isso é importante. Estou preocupado com o tecuhtli.
O Longo Caminho: será que ainda estaria ali? Será que mudou também? Ou tudo mudou? Será que Atl viu isso? Niente tinha que saber. Tinha que descobrir. Ele não estava entendendo algo fundamental para a compreensão dessa situação — ele podia senti-lo em seu estômago revirando, uma queimação. Sentiu-se velho, gasto, inútil.
— Não há tempo — respondeu Tototl. — O tecuhtli cuidará de si mesmo, e ele está com o nahual. A cidade está aberta para nós. Tudo o que precisamos fazer é persegui-los. Eles estão fugindo. Não posso lhes dar tempo para se reagruparem.
— Então o mais breve possível, assim que chegarmos à cidade — disse Niente. — Olhe para isso! Você quer que isso aconteça conosco ou com Citlali?
Tototl franziu as sobrancelhas.
— Jogue óleo nos corpos e queime-os — ele ordenou aos guerreiros. — Depois se juntem a nós. Niente, venha comigo; a cidade nos aguarda.
Ele cuspiu no chão. Depois, franzindo a testa mais uma vez, montou em seu cavalo. Niente ainda estava olhando para o cenário, tentando entender o que tinha acontecido.
— Venha, uchben nahual — falou Tototl. — As respostas que você quer ficam mais longe de nós enquanto ficamos parados aqui.
Nisso, o guerreiro tinha razão. Niente suspirou e, em seguida, caminhou até seu próprio cavalo e — com a ajuda de um guerreiro — montou na sela.
Eles seguiram adiante, e Tototl já berrava para retomarem o avanço.
Se o dia tinha sido terrível, a noite foi odiosa. Varina estava encolhida com a Garde Civile, pressionada entre duas barricadas que tinham sido erguidas nos últimos dias, e à noite choveram fagulhas e fogo, como se se estivesse arrancando as próprias estrelas dos céus e lançando na terra. Ambos os lados agora usavam catapultas para disparar o fogo da areia negra uns nas fileiras dos outros. As explosões trovejavam de poucos em poucos instantes: às vezes ao longe, às vezes preocupantemente perto.
Não houve descanso nem sono nessa noite. Ela viu as bolas de fogo desenharem arcos no céu e caírem a oeste, e se encolheu com medo quando a saraivada em resposta bateu nas barricadas. Varina tentou bloquear os sons dos berros e lamentos sempre que um projétil dos tehuantinos os atingia.
Isso era pior que o combate aberto. Ao menos lá, ela tinha a ilusão de controle. Não havia controle aqui: a vida de Varina e de todos a sua volta estavam reféns dos caprichos do destino e do acaso. A próxima bola de fogo poderia cair sobre ela, e estaria tudo acabado, ou poderia acertar e tirar a vida de outra pessoa. Varina se sentiu impotente e indefesa, encolhida com as costas contra a sujeira fria, tentando recuperar o máximo de força possível para que pudesse repor os feitiços para o ataque que viria pela manhã.
E ele viria. Todos sabiam.
As notícias do norte eram desanimadoras. Nem o starkkapitän ca’Damont, nem o hïrzg Jan, com as tropas firenzcianas, conseguiram manter a margem oeste do Infante. Ambos foram forçados a recuar e cruzar o rio. Pior, disseram que o hïrzg Jan tinha sido ferido durante a retirada, no momento em que a ponte a’Certendi foi destruída. Os rumores eram descontrolados e variados: Varina ouviu que Jan estava morrendo; que ele tinha sido levado de volta à cidade, para os curandeiros; que o hïrzg estava comandando a defesa do leito na tenda; que Jan tinha se amarrado ao cavalo para não parecer ferido enquanto cavalgava e encorajava seus homens; e ouviu que seus ferimentos eram leves e que ele estava bem.
Varina não fazia ideia de quais rumores eram falsos e quais eram verdadeiros. O que ficou claro foi que a batalha do dia anterior tinha sido apenas um prelúdio. O Infante seria cruzado; todos eles sabiam disso. Os tehuantinos descobririam seus pontos rasos e cruzariam assim que houvesse luz.
Varina tremeu e fechou os olhos quando outra bola de fogo passou estridente acima dela, explodindo à sua esquerda. Se acreditasse em Cénzi, ela teria rezado — certamente havia preces sendo murmuradas ao seu redor. Varina quase sentiu inveja do alívio que os soldados pudessem encontrar com elas.
— Varina?
O comandante ca’Damont se ajoelhou ao lado dela. Em meio ao barulho, Varina não tinha ouvido sua aproximação. Ela ia se levantar, mas ele balançou a cabeça e fez um gesto para que ficasse abaixada.
— Desculpe — falou Varina. — Eu estava tentando descansar.
Ele sorriu palidamente.
— Não há muito descanso por aqui. Eu queria lhe contar que os curandeiros dizem que Mason, o vajiki ce’Fieur, vai se recuperar. Eles vão levá-lo de volta à cidade.
— Ótimo. Obrigada. Obrigada por me contar.
— Eu quero que você vá com ele — continuou ca’Damont. — Este não é um lugar para você.
Uma velha frágil... Varina quase podia ouvir o que não tinha sido dito.
— Não — respondeu ela. — Você precisa de mim aqui. Eu sou a a’morce dos numetodos; aqui é o meu lugar.
— Chegaram mais ténis-guerreiros. Dois punhados. E ainda há os outros numetodos que você trouxe. Você provou sua coragem mais cedo, Varina. Ninguém pode exigir mais de você. E você tem uma criança com quem se preocupar.
Varina queria concordar. Queria aceitar a oferta e voltar correndo para a cidade — mas mesmo lá ela não estaria a salvo. Ela podia fugir o quanto quisesse, podia pegar Serafina e ir para leste ou norte, mas se eles perdessem aqui — e Varina não conseguia ver uma maneira de vencer —, ela sempre se perguntaria se deveria ter ficado, se sua presença teria feito a diferença.
Karl não teria fugido. Ele teria ficado, mesmo que pensasse que a batalha estava perdida. Disso ela tinha certeza.
— A maioria dos gardai tem crianças com quem se preocupar — disse Varina, com firmeza. — É por isso que eles estão aqui.
— Mesmo assim...
— Eu não vou embora — disse ela.
O comandante assentiu. Ele se levantou e prestou continência para Varina.
— Tem certeza?
Varina deu uma risada nervosa quando outra bola de fogo passou rugindo. A luz das chamas brilhou e as sombras se mexeram quando ela explodiu.
— Não — respondeu Varina. — Mas eu vou ficar, e você está interrompendo meu descanso.
Eles ouviram o rugido baixo de outra explosão em algum lugar atrás da barricada.
— Descanso? — disse o comandante. — Eu duvido que qualquer um de nós descanse esta noite. Mas tudo bem. Fique, se quiser. Cénzi sabe que nós precisamos de toda ajuda possível.
Ele pareceu se dar conta do que disse e abriu um sorriso meio irônico.
— Desculpe, a’morce.
— Não peça desculpas. Se seu Cénzi existir, espero que Ele esteja lhe escutando.
Não era para ter sido assim. Sergei tinha rezado para Cénzi, mas Cénzi não tinha atendido — não que ele esperasse alguma ajuda desse lado. Os tehuantinos perseguiram Allesandra e a Garde Kralji até o interior da cidade. A kraljica tentou se reagrupar e resistir no Sutegate, mas os tehuantinos avançavam por uma área muito ampla agora e entravam na cidade por todos os lados ao sul. Allesandra não tinha tropas suficientes para cobrir toda a fronteira sul da cidade. Ficou imediatamente óbvio que eles não conseguiriam controlar a Margem Sul: não com a Garde Kralji, nem mesmo com os chispeiros, que se provaram estranhamente eficazes durante a retirada. Eles recuaram ainda mais e abandonaram toda a Margem Sul através da Ilha a’Kralji.
Eles podiam evitar que os tehuantinos passassem pelos gargalos das duas pontes.
Sergei tinha insistido que Allesandra destruísse a Pontica a’Brezi Veste e a Pontica a’Brezi Nippoli completamente, para que os tehuantinos não pudessem cruzar a confluência sul do A’Sele sem precisar de barcos. Ela se recusou.
— As Ponticas continuarão de pé — falou Allesandra. — Eu não abrirei mão de metade da cidade. As pontas continuarão de pé, nós as defenderemos esta noite, e amanhã nós voltaremos a cruzá-las para recuperar nossas ruas.
Sergei discutiu veementemente com ela, e o comandante co’Ingres concordara com o embaixador; nenhum dos argumentos convenceram Allesandra a mudar de ideia.
E foi na Pontica a’Brezi Veste e na Pontica a’Brezi Nippoli que os chispeiros realmente se destacaram. Com a orientação de Brie e Talbot, o grupo conseguiu controlar os pequenos espaços. Embora os ocidentais tivessem avançado onda atrás de onda contra eles durante o fim da tarde e até o anoitecer, eles deixaram ambas as pontes repletas de corpos. Após várias tentativas em vão, e com a luz do sol morrendo, os ocidentais finalmente recuaram.
Do telhado do Palácio da Kraljica, Sergei podia ver a queima de fogos na Margem Sul, onde antes os ténis acendiam lanternas ao longo da Avi a’Parete. As chamas amarelas eram um escárnio. A oeste e ao norte, do outro lado do A’Sele, mas ainda fora da cidade, rugidos constantes e clarões de explosões ainda prorrompiam, como se um temporal de relâmpagos sem chuva ou nuvens tivesse ocupado o lugar. Abaixo, além das muralhas externas dos pátios e da entrada do palácio, na Avi, Brie ainda estava acordada, sem seu cavalo agora. Sergei pôde ouvir a voz da hïrzgin no silêncio aturdido do palácio: dispondo as vigias na ponte e aconselhando os chispeiros a cuidarem de suas armas e descansarem o quanto fosse possível, mas para estarem prontos para reagir quando fosse necessário.
A hïrzgin Brie se provara tão valiosa quanto seu marido nesta luta. Talvez até mais.
Sergei sentiu Allesandra se aproximar dele. A kraljica ainda vestia a armadura, agora não mais reluzente e lustrosa: sob o luar, ele notou as marcas de arranhões e queimaduras da batalha. Seu cabelo grisalho estava grudado na cabeça. Um sexteto da Garde Kralji a acompanhava, bem como os poucos integrantes remanescentes do Conselho dos Ca’ que não tinham fugido da cidade.
— Amanhã — falou Allesandra para Sergei e os conselheiros —, retomaremos a Margem Sul.
— Tentaremos o melhor possível — respondeu Sergei, seu tom traiu seu sentimento quanto ao sucesso da empreitada.
— Nós retomaremos — respondeu Allesandra gravemente.
Os conselheiros pareciam assustados, Sergei sabia que todos achavam isso quase tão improvável quanto ele. Um clarão e — com atraso — outro rugido ecoaram a oeste. O embaixador sentiu o prédio tremer sob seus pés com o barulho. Os conselheiros olharam ao redor como se procurassem abrigo; os gardai se remexeram nervosamente, apertando suas lanças.
— Um mensageiro veio da Margem Norte — disse a kraljica. — Os tehuantinos tomaram o lado oeste do Infante, e a Garde Civile recuou para as barricadas. Eles estão a salvo, por enquanto. Os tehuantinos tentarão cruzar o rio amanhã e nós os repeliremos. Deixem o Infante e o A’Sele levarem seus corpos de volta para o mar.
— Nós tentaremos, estou certo disso — respondeu Sergei novamente. — A senhora ouviu mais notícias do hïrzg?
O rosto de Allesandra ficou tenso.
— Eu fui informada que o hïrzg Jan se recusou a voltar para a cidade. Quanto à gravidade de seus ferimentos... — Ela deu de ombros. — Ninguém disse nada. Ele é meu filho e é um soldado. Vai continuar a lutar enquanto puder.
Sergei desceu o olhar para onde Brie estava patrulhando.
— Ela sabe?
— Eu mesma contei para Brie. Eu disse que ela podia ir até ele enquanto é possível. Brie disse que seu lugar era aqui por enquanto, e que Cénzi poderia manter Jan a salvo melhor do que ela. — Allesandra quase sorriu. — Acho que ela passou a sentir um carinho por aqueles chispeiros.
Sergei grunhiu.
— Espero que ela tenha razão. Não podemos conter os tehuantinos, kraljica. Em breve, eles começarão a nos bombardear com areia negra até que não consigamos mais posicionar os chispeiros nas cabeças de ponte, e assim que os chispeiros recuarem, os tehuantinos cruzarão. Precisamos derrubar as Ponticas na Margem Sul para isolá-los. Deixe que joguem o que quiserem sobre nós, mas eles não poderão cruzar... não até que construam barcos.
Allesandra recuou, estreitando os olhos e franzindo os lábios.
— Você já disse isso vezes demais, Sergei. Eu não abrirei mão da Margem Sul. Eu não abandonarei a minha cidade. Não enquanto eu respirar. Não. — A kraljica inspirou, emitindo um som alto no silêncio da noite. — Eu pedi que o comandante ca’Talin ou o starkkapitän ca’Damont nos mandassem uma companhia ou duas de gardai para ajudar.
— Kraljica, eles não podem abrir mão desses homens. Não com a força tehuantina que os dois estão enfrentando. A senhora não pode pedir isso a eles.
— A mensagem já foi enviada. Eu disse que eles teriam que avaliar bem se podiam abrir mão das tropas ou não. Eles vão mandá-las — disse Allesandra com firmeza.
Ficou claro para Sergei que ele não convenceria a kraljica. Ele também sabia que, independentemente do reforço de gardai, a Garde Kralji não seria suficiente para retomar a Margem Sul. Se as pontes continuassem de pé, eles não seriam suficientes sequer para manter a Ilha, mesmo com a ajuda dos chispeiros. O embaixador bateu com a ponta da bengala nos ladrilhos do telhado, inquieto. A oeste, irromperam mais clarões.
— Se a senhora me dá licença, kraljica, eu preciso encontrar Talbot...
Ele deixou Allesandra ainda no telhado com os gardai e os conselheiros. Encontrou Talbot no térreo do palácio, parecendo exausto e furioso, vociferando ordens para um quarteto de funcionários do palácio. Eles saíram correndo assim que Sergei se aproximou.
— Eu não tenho gente suficiente aqui — falou Talbot. — Três quartos dos funcionários evidentemente fugiram da cidade assim que saímos daqui ontem.
— Você não pode culpá-los, meu amigo. Qualquer um com mais bom senso do que lealdade teria ido embora.
— Eu sei, mas como posso administrar o palácio sem pessoal? — Ele passou os dedos pelos cabelos. — Olhe para mim: eu acabei de correr meia Nessântico fugindo dos tehuantinos; consegui sobreviver a feitiços, flechas e espadas, e estou aqui preocupado se as camas estão feitas e se as refeições estão sendo servidas.
— É o seu trabalho.
— Não parece importante, dadas as circunstâncias. Por Cénzi, estou exausto.
— Você pode dormir depois. Nós dois podemos dormir depois. Venha comigo.
— Para onde?
Sergei esfregou o nariz.
— Você sabe onde a areia negra da Garde Kralji está guardada? Tem as chaves do paiol?
— Sim, mas...
— Então venha comigo.
Uma virada da ampulheta depois, ele e Talbot se aproximaram da Pontica a’Brevi Veste acompanhados por gardai carregando vários pacotes de areia negra. Brie os saudou e olhou para os pacotes, inclinando a cabeça.
— Eu pensei que a kraljica tivesse dito que as Ponticas deveriam ficar intactas.
Sergei ergueu o olhar na direção do telhado do palácio, para as sacadas cravadas na parede sul. Não havia ninguém ali.
— Eu consegui convencer a kraljica de que talvez fosse preciso derrubar as pontes se nosso ataque amanhã não se saísse bem. Temos que colocar a areia negra nas pilastras deste lado, para que possamos acioná-las quando for necessário. Isso é tudo.
Brie assentiu.
— Parece um bom plano para mim. Eu vou mandar os chispeiros ajudarem.
Mais uma virada da ampulheta, e Sergei e Talbot, carregando o restante da areia negra, seguiram para a Pontica a’Brezi Nippoli. O embaixador contou para o offizier no comando da Garde Kralji o mesmo que tinha contado a Brie. Assim como na ponte anterior, ele supervisionou a colocação das cargas de areia negra, cuidando para que estivessem ligadas por cordas de algodão embebidas em óleo misturado com areia negra, de maneira que o acendimento da ponta do pavio causasse a explosão de todas as cargas ao mesmo tempo.
Sergei segurou o pavio erguido na mão; uma lanterna queimava aos seus pés, na grama da margem do rio.
— Acabamos por aqui — ele disse para Talbot. — Agora, mande todos recuarem.
Sergei não conseguiu ver o rosto de Talbot, que estava mais adiante na barragem, a luz da lua batia quase diretamente nas costas dele.
— Recuar? Sergei, você ficou maluco? A kraljica deu ordens específicas...
Sergei se abaixou, enfiou a bengala debaixo do braço, pegou a lanterna e abriu sua tampa de vidro, enquanto segurava o pavio na outra mão.
— Quando um dente fica podre, não há escolha senão arrancá-lo — disse o embaixador. — Se você deixa o dente lá, ele só vai causar mais dor e sofrimento, e no fim, o dente vai apodrecer todos os outros.
— Você não pode fazer isso — protestou Talbot. — A kraljica disse...
— A kraljica e eu discordamos. Seja franco, Talbot: você acha que podemos tomar a Margem Sul dos ocidentais amanhã? A melhor defesa para a Ilha e para a cidade inteira é derrubar as Ponticas e deixar os ocidentais presos.
— Não cabe a você tomar essa decisão — respondeu Talbot.
Sergei sorriu para ele, erguendo a lanterna.
— No momento, parece que é.
O embaixador encostou a ponta do pavio na chama. Ele assobiou e soltou fagulhas, e o fogo começou a percorrer a extensão do pavio. Sergei soltou o pavio e começou a subir a margem o mais rápido possível, se apoiando em sua bengala.
— Pelos colhões de Cénzi — praguejou Talbot; ele ficou parado por um instante, como se considerando descer a margem correndo atrás do pavio, depois gesticulou para os gardai nos pivôs da ponte. — Recuem! Saiam da ponte! Abriguem-se!
Talbot desceu um pouco a barragem e puxou Sergei pelo braço. Juntos, eles fugiram enquanto o pavio assobiava e espocava e o brilho azul do fogo seguia em direção à ponte.
A explosão quase levantou Sergei do chão. A concussão atingiu o embaixador como uma parede caindo; ele sentiu o calor queimar suas costas, e o som... Sergei ouviu as vigas se romperem enquanto rochas e tábuas caíam como uma chuva intensa e perigosa e batiam no chão em volta deles. Sergei e Talbot se encolheram, cobrindo suas cabeças. Quando tudo terminou, o embaixador se virou, seus ouvidos ainda zuniam. A ponte desabou, sua extensão mergulhou inclinada nas águas do A’Sele a meio caminho do vértice. Os tocos da estacaria e das pilastras surgiam da água como dentes quebrados.
Sergei sorriu.
— Eles não cruzarão por ali tão cedo. Todos aqueles homens posicionados ali podem descansar. Agora, vamos terminar o serviço...
Talbot balançou a cabeça.
— Lamento, Sergei, mas não posso permitir. Você mentiu para mim. Você desobedeceu às ordens expressas da kraljica.
— Eu estou tentando salvar a droga da cidade — retrucou Sergei.
— Ela não é a sua droga de cidade.
Ah, mas é sim... Sergei sabia que Talbot compreendia o valor do que ele tinha feito. Sabia que Talbot concordava com ele, afinal.
— Talbot, você sabe que eu estou certo.
— O que eu sei não importa — respondeu o homem. — Eu sou o assistente da kraljica, não o kraljiki. Que os retalhadores de almas te carreguem, Sergei...
Talbot balançou a cabeça e olhou as ruínas da ponte. A Garde Brezno se aproximava da borda e encarava a destruição. Gritos e lanternas se aproximavam deles.
— Allesandra ficará furiosa.
— Ela ficará ainda mais furiosa quando derrubarmos a outra Pontica — respondeu Sergei —, mas também não poderá desfazer isso.
Mas Talbot não admitiria que o embaixador estava certo. Ele sabia antes de o assistente responder, sabia pela maneira como seu rosto magro se fechou.
— Isso não vai acontecer. — Talbot olhou para as pessoas se aproximando deles. — Sergei, você ainda pode sobreviver a esta situação: admita que desobedeceu à kraljica e colocou as cargas de areia negra, mas que fez isso no caso de termos de recuar amanhã e não haver outro jeito de impedir que os tehuantinos cruzassem a ponte para a Ilha e para a Margem Norte. Você pode dizer que isso foi um acidente, que sua lanterna acendeu o pavio. Ela não vai acreditar em você e ficará terrivelmente furiosa com o que você fez, mas não poderá provar nada. Eu o apoiarei até aí, Sergei. Mas não vou além disso. A outra ponte permanece de pé.
— Talbot...
— Não — disse o assistente com firmeza, interrompendo Sergei. — Ou isso ou eu conto exatamente o que aconteceu aqui e que você pretendia esse golpe o tempo todo. Então, a kraljica o executará como traidor, Sergei, e eu não posso culpá-la. O que vai ser? Você decide.
Talbot estava certo. Sergei sabia disso, conhecia Allesandra bem o suficiente para perceber que, mesmo que ela entendesse seu raciocínio, ele tinha ultrapassado os limites do perdoável se a kraljica soubesse toda a verdade. Morto, Sergei não poderia fazer nada pela cidade. Morto, ele não poderia fazer mais nada para expiar tudo o que fez em vida. Morto, não poderia derrubar a outra ponte.
— Está bem — respondeu o embaixador. — Eu aceito sua proposta.
Ela acompanhou Nico de volta ao labirinto do Velho Distrito, para outra casa anódina em outro beco estreito anódino. Não havia ninguém ali, ninguém respondeu à batida de Nico. A porta estava trancada, mas isso não era um problema — não para Rochelle. Ela arrombou a porta e eles entraram. Nico disse quase que imediatamente que precisava rezar. Rochelle disse que ambos precisavam comer — mas não havia nada na casa. Ela saiu para procurar por comida e encontrou pão velho em uma padaria abandonada, e queijo mofado por toda parte, e pegou água do poço mais próximo. Quando Rochelle voltou à casa, Nico estava na sala principal, de joelhos. Ele não lhe deu atenção quando ela tentou convencê-lo a comer, tentou dar-lhe água à força entre os lábios rachados e machucados, enquanto o sacudia e gritava para tentar chamar sua atenção.
O irmão estava perdido e impassível, murmurando preces ininteligíveis para Cénzi. Nico a ignorou, como se não se importasse, ou mesmo soubesse que Rochelle estava ali. Ela não conseguiu arrancar reação alguma do irmão. Ele parecia estar em transe.
Tudo bem. Rochelle estava acostumada com loucura. Ela tinha lidado bastante com isso com sua matarh.
Rochelle dormiu um pouco no chão ao lado de Nico, mas não por muito tempo. Ela acordou, escuro, com Nico ainda rezando a seu lado. A essa altura, pensou Rochelle, deviam faltar poucas viradas para a Primeira Chamada.
— Nico? Nico, fale comigo.
Não houve resposta. Ele se encontrava na mesma posição viradas a fio. Então, Nico também a abandonara — bem, Rochelle estava acostumada a ficar sozinha, a tomar suas próprias decisões. Ela não podia ajudá-lo, não podia encontrá-lo onde quer que ele estivesse, mas ainda havia o que ela poderia fazer, o que deveria fazer. Rochelle tocou o cabo da faca que tinha roubado de seu vatarh, alisando o punho adornado.
Prometa para mim que você fará o que eu não consegui. Prometa para mim...
— Eu farei — ela disse para o fantasma da matarh. — Eu farei.
Rochelle se voltou para Nico, se ajoelhando no piso de madeira nua. As pernas do irmão deviam estar dormentes há muito tempo. Suas mãos estavam entrelaçadas, fazendo o sinal de Cénzi, sua cabeça estava abaixada sobre elas, seus olhos fechados. Ela notou que ele murmurava.
— Nico? — disse Rochelle, tocando seu ombro. — Nico, eu preciso que você me responda.
Ele não respondeu. O murmúrio continuou, sem diminuir. Ela abraçou o irmão e disse.
— Então reze por mim. Reze por nós dois.
Ele não deu sinal de tê-la ouvido. Ela se levantou, observou Nico e finalmente saiu da sala. Fechou a porta atrás de si, saindo em direção às ruas do Velho Distrito. De manhã cedo, as ruas estavam escuras e desertas. A maioria dos moradores, os que puderam, tinha fugido da cidade, para o leste. Clarões estranhos irrompiam no céu a oeste, acompanhados por trovões distantes e, ao sul, nuvens de fumaça tocadas pelo brilho de fogueiras.
Sul. Rochelle seguiu nessa direção, se escondendo facilmente nas sombras provocadas pela lua.
Ela não fez ideia de quanto tempo tinha levado até chegar à Pontica Kralji, que ligava a Margem Norte à Ilha. Não havia gardai na ponte, nenhum trânsito. A lua estava se pondo, e o céu começava a clarear no leste e extinguir as estrelas no apogeu. As águas do A’Sele estavam turvas em volta da estacaria, escuras e misteriosas. O cheiro de madeira queimada se misturava ao odor da lama e da água do rio.
Alguma coisa brilhante espocou no céu a sua frente, deixando um rastro de fagulhas e pintando a correnteza do A’Sele com reflexos reluzentes. A aparição se iluminou e inchou, descendo rapidamente. Rochelle a viu cair, sentindo o impacto sob a sola das botas, vendo o fogo da explosão. Alguém gritou de dor ao longe, e o susto e o cheiro de queimado aumentaram, cobertos agora pelo fedor de enxofre. Outra bola de fogo passou guinchando no céu ao sul; esta explodiu bem acima da Ilha, mandando as sombras negras embora.
Um cavaleiro apareceu na extremidade da Pontica que saía da Ilha A’Kralji galopando em direção à Rochelle, com a capa tremulando atrás de si. Ela se encolheu nos pilares da ponte; o cavaleiro passou disparado sem olhar e fez uma curva fechada à esquerda, em direção ao Mercado do Rio. Rochelle notou a bolsa de couro em volta do corpo: um mensageiro rápido levando uma mensagem.
Isso significava que a kraljica provavelmente estava na Ilha. Allesandra. Sua mamatarh. A voz da matarh pareceu sussurrar em seu ouvido.
— Prometa para mim...
Outra bola de fogo surgiu como um sol falso e também caiu na terra, em algum lugar da Ilha. Ela ouviu as trompas do Velho Templo soarem um alarme ao longe.
Rochelle atravessou a Pontica correndo, meio que esperando que alguém berrasse para ela ou que fosse atingida por uma flecha. Nada aconteceu. Rochelle chegou à Avi a’Parete na Ilha. Ao seu redor, os grandes prédios da Ilha se erguiam, com destaque para o Palácio da Kraljica, diretamente à esquerda. Ela seguiu lentamente para lá, por uma rua cheia de prédios do governo. Mais adiante, ao sul, Rochelle pôde ouvir o som das atividades: trompas soando, pessoas gritando. Ela fez a curva e seguiu para o sul novamente; a sua frente, viu pessoas no fundo na outra extremidade da rua. Ela correu na direção do muro que envolvia o palácio. Havia uma porta da criadagem ali, na lateral. Rochelle bateu, esperou, bateu novamente. Ninguém respondeu. Ela se abaixou e pegou suas ferramentas para arrombá-la. Alguns instantes depois, Rochelle empurrou a porta e entrou em suas dependências.
Ela se viu nos jardins do palácio. O cheiro de flores era forte, e Rochelle ouviu uma fonte jorrando água por perto. Não havia ninguém nos jardins, e poucas janelas do palácio estavam acesas.
Outra bola de fogo mostrou sua cara brilhante sobre o muro do outro lado do terreno. Parecia vir na direção de Rochelle e do palácio, mas no último instante, quando parecia que acertaria o próprio palácio, ela se estilhaçou em mil fragmentos, cada um assobiando e brilhando ao cair — um contrafeitiço deve ter alcançado a bola de fogo. Rochelle se perguntou quantos incêndios essas fagulhas provocariam, e se os ténis-bombeiros viriam apagá-los.
Ela correu para a porta do palácio mais próxima. Trancada: novamente, Rochelle tirou as gazuas e manipulou as ferramentas até ouvir o clique do mecanismo se abrindo. Ela empurrou a porta apenas o suficiente para entrar sorrateiramente.
Rochelle se viu no que deveria ser o corredor da criadagem: um corredor estreito e simples, com corredores transversais se abrindo de ambos os lados e uma porta grande ao final. Se este palácio fosse como o Palácio de Brezno, como ela esperava, a maioria dessas portas estaria destrancada. Os criados precisavam ter acesso a todas as alas do palácio para servir a seus senhores e senhoras da maneira mais discreta possível. Sem dúvida, o palácio estaria cheio de passagens assim.
Mas nos corredores de serviço do Palácio de Brezno havia uma atividade frenética. Aqui estava tudo quieto, e Rochelle achou isso estranho. Ela seguiu rapidamente até a porta principal, abrindo lentamente uma fresta. Ela vislumbrou um dos principais corredores públicos do palácio; também ouviu vozes. Havia várias pessoas saindo apressadamente de outro aposento um pouco à frente. Ela reconheceu um dos homens imediatamente: Sergei ca’Rudka, com seu nariz de prata reluzindo em seu rosto enrugado e pálido, e a bengala batendo em um ritmo irregular nos ladrilhos. A mulher a seu lado falava com ele em um tom apressado e irritado.
— ...não me importo com o que você estava pensando ou quais eram as suas razões. Eu estou furiosa com você, Sergei. Absolutamente furiosa. E Talbot; por que em nome de Cénzi você não confirmou comigo? Você sabia que eu tinha mandado as ponticas permanecerem de pé.
— Eu peço mil desculpas, kraljica — disse Sergei, embora Rochelle pensasse que ele parecia mais contente que arrependido.
Então aquela era a kraljica. Mamatarh, eu estou aqui por você... Mas não agora. Não ainda. Havia muitas pessoas em volta dela: Sergei, o sujeito chamado Talbot, bem como um quarteto de gardai.
— Seu “acidente”, se é que isso foi mesmo um acidente, pode ter prejudicado nossa chance de ataque aos tehuantinos na Margem Sul. Agora só temos uma rota para cruzar o rio, então...
Suas vozes foram ficando ininteligíveis à medida que eles desciam o corredor. Rochelle arriscou abrir mais a porta. Havia dois gardai posicionados na porta de onde o grupo tinha saído. Ela recuou para o corredor de serviço e entrou no corredor que levava para o aposento em que os gardai estavam, contando os passos para calcular sua distância. Havia outra porta a alguns passos, corredor adentro. Rochelle abriu a porta.
Ela entrou no Salão do Trono do Sol. A massa cristalina do Trono do Sol sobre a plataforma dominava o salão. Muito bem. Isso serviria: a kraljica deve voltar para cá em breve, e Rochelle poderia cumprir sua promessa.
Ela viu um lampejo de luz através das janelas altas do salão, e o palácio tremeu quando um trovão rugiu. Ela pôde sentir o cheiro de fumaça de madeira das janelas do palácio ascendendo em uma alvorada de chamas.
Rochelle se acomodou para esperar.
Niente polvilhou o pó alaranjado sobre a água na tigela premonitória e entoou um feitiço para abrir sua mente para Axat. A bruma verde começava a surgir, e ele inclinou a cabeça sobre a tigela.
Os tehuantinos estavam acampados na própria cidade, os guerreiros estavam protegendo as ruas e sacando as casas e os prédios atrás de comida e suprimentos, cumprindo as ordens de Tototl, mas Niente sabia que muitos guerreiros também estavam pegando todo o tesouro que pudessem carregar. Outros estavam ocupados construindo uma catapulta, e Niente tinha ordenado que os nahualli encantassem os sacos de areia negra que a catapulta lançaria na ilha para que explodissem com o impacto. Os cânticos dos nahualli e o martelar dos guerreiros engenheiros preencheram a grande alameda do lado de fora da fortaleza na beira do rio. Dos portões do edifício, o crânio de uma criatura horrível com dentes afiados, lançava um olhar malicioso para Niente — quase como a cabeça da serpente alada que tremulava no estandarte do tecuhtli. Isso, pensou ele, era quase uma ironia. O Olho de Axat nasceu e parecia observar Niente enquanto ele realizava o ritual, com tanta intensidade quanto Tototl.
As visões apareceram rapidamente, passando por ele quase rápido demais para que ele pudesse acompanhá-las. Os caminhos do futuro se entrelaçavam e mesclavam. Niente ainda podia ver a vitória no caminho mais nítido e próximo, mas agora era uma vitória conquistada a um preço muito alto. Havia mudanças provocadas no cenário, potências emergentes que ele não tinha visto antes ou que tinham sido apenas insinuadas em remotas possibilidades: o rei de preto e prata; a velha que cheirava a areia negra; o jovem com o poder estranho e descontrolado. Esta última... a mais difícil de todas de se ver, estava envolvida em bruma e mistério. Em torno do jovem, todos os caminhos possíveis do futuro pareciam estar espiralados. Niente queria ver mais a respeito do jovem, mas as brumas continuavam a afastá-lo, não importava o quanto ele tentasse acompanhá-lo.
Na bruma, Niente também sentiu a presença de Atl, tão perto que quase pensou que o filho estivesse a seu lado, espiando a tigela ao mesmo tempo que ele. Aqui. Ele tentou lançar os pensamentos na direção de Atl. Veja o que eu vejo. Deixe-me encontrar o Longo Caminho, espero que você o veja também...
Mas não houve resposta. Niente não conseguiu mostrar o que tinha visto para Atl, nem conseguiu ver o que Atl via. Na bruma, os dois permaneciam separados.
— Eles vão derrubar a outra ponte? — perguntou Tototl. — Se fizerem isso...
— Se fizerem isso, não poderemos cruzar o rio para ajudar o tecuhtli Citlali. Eu sei. Agora, deixe-me ver...
Niente já tinha visto isso: no caminho principal, os orientais inexplicavelmente não destruíam a outra ponte. Ele não entendeu isso. Com as pontes em pé, Tototl conquistaria a Ilha, ainda que pagasse um preço terrível. As estranhas armas de areia negra dos orientais derrubariam guerreiros demais antes que eles conseguissem, inevitavelmente, sobrepujá-los. Eles alcançariam Citlali e esmagariam ainda mais orientais entre eles, mas esta já não era a vitória que Niente tinha visto em Tlaxcala. Tudo mudara.
O que significava que o Longo Caminho também tinha mudado. Isso se o Longo Caminho ainda existisse.
Niente inclinou a cabeça sobre a bruma novamente, procurando. Por favor, Axat. Mostre-me...
E Ela mostrou.
A Passagem da Tempestade
— E então? — perguntou Tototl enquanto Niente jogava a água da tigela premonitória nos paralelepípedos da alameda.
Ele limpou a tigela com a manga da camisa e olhou solenemente para o guerreiro supremo.
— Você se lembra, Tototl, da conversa que tivemos sobre uma vitória parecer uma vitória, mas não ser?
O semblante pintado do guerreiro supremo continuava impassível.
— Eu me lembro de você ter dito isso. E me lembro de ter dito que achava que você tinha visto mais coisas na tigela do que estava contando para o tecuhtli Citlali. Então, me diga agora, uchben nahual, o que você viu? Diga-me a verdade.
Niente recolocou a tigela premonitória na bolsa e sentiu a textura dos desenhos gravados na borda. Ele pegou seu cajado mágico, sentindo a energia do X’in Ka pulsando na madeira, capturada e pronta para ser solta. Os odores de madeira queimando, da água doce, do fedor de roupa usada por muito tempo invadiram suas narinas. Niente engoliu em seco e sentiu o gosto forte e persistente da bruma verde que tinha inalado. Seus sentidos pareciam estar plenos e aguçados demais. Ele ergueu seu olhar para o crânio malicioso no muro sobre si e imaginou a criatura viva, com seus dentes afiados como facas de marfim rasgando uma vítima presa em suas mandíbulas poderosas.
— Preste atenção, Tototl — falou Niente. — Eu não disse nada para o tecuhtli Citlali porque ele não vê nada além do presente e de suas próprias ambições. Você tem a imaginação para fazê-lo. Você pode se tornar um grande tecuhtli. Um tecuhtli cujo nome ecoaria por gerações.
Tototl não conseguiu esconder totalmente a ansiedade provocada por essas palavras: Niente notou no leve movimento da boca do guerreiro, na sutil abertura dos olhos cercados por tinta vermelha. O guerreiro tinha ambição.
— Você viu isso?
Niente assentiu.
— É um dos futuros. Uma possibilidade.
Ele fez uma pausa. Olhou para a catapulta, quase terminada agora. Olhou para a ponte perto deles, no fim da alameda, para o grande prédio que surgia logo atrás dela, para o domo dourado que aparecia sobre os outros telhados, no meio da ilha.
— Tototl, a vitória neste momento está por um fio. Você é o fio, Tototl, sem você, não há vitória nenhuma. Eu vi isso.
— O que eu devo fazer?
— Você deve conquistar a ilha e chegar ao outro lado, como eu disse antes. Tem de avançar com nossos guerreiros contra os orientais pela retaguarda. Se você quer a vitória, é isso o que deve fazer.
— E por que eu não faria isso? É por isso que viemos para cá: para tomar a cidade e vingar nossa derrota com o tecuhtli Zolin, para governar esta terra.
Niente se perguntou se deveria contar para ele. Certamente Citlali não teria ouvido nada disso; ele já teria interrompido Niente, e Niente — ele tinha que admitir — teria se curvado para o tecuhtli. Eu vencerei aqui... Era tudo o que Citlali queria ouvir. Ele desdenharia do Longo Caminho; não se importaria com o que acontecesse anos depois. Mas Tototl talvez pensasse da mesma forma. Niente respirou fundo. Ele viu os nahualli colocarem a primeira carga de areia negra no cesto da catapulta enquanto os guerreiros acionavam o guincho para abaixar a haste.
— A vitória de Citlali aqui terá um preço muito alto para nós no fim — falou Niente. — Ele ainda pode tomar a cidade, mas não poderá controlá-la por muito tempo. Outros exércitos orientais virão dos lugares mais distantes do império deles. Esta terra é imensa, e nós temos poucos guerreiros aqui e pouco tempo para trazer mais homens do outro lado do mar. E quando os orientais matarem a todos os que sobreviverem, eles olharão para a nossa terra natal e voltarão com um exército ainda maior do que o que levaram antes. Eles vão nos caçar até ter certeza de que nós jamais causaremos problemas outra vez.
— Você tem certeza disso?
Niente balançou a cabeça.
— Não — ele admitiu. — Mas é o futuro que vejo; o provável.
— O novo nahual também viu isso?
Niente balançou a cabeça novamente.
— Não. Mas Atl está aprendendo. Ele só vê o futuro próximo, não o Longo Caminho.
—Você viu uma vitória fácil antes. Disse isso antes mesmo de sairmos da nossa própria terra.
— Eu vi — admitiu Niente. — E nesse momento, era a verdade. Mas isso mudou. Há forças aqui que estavam ocultas de mim, situações que mudaram de figura desde que consultei Axat pela primeira vez. Nada no futuro é sólido e fixo.
— Então esse futuro que você vê também pode mudar. Também mudará.
— Pode ser. Mesmo assim... Tototl, eu diria para você pegar os guerreiros aqui e ir embora. Encontre nossos navios; a essa altura eles devem estar perto da cidade. Pegue os navios e volte para casa. Eu diria para você se tornar o tecuhtli para que, quando os orientais voltassem à nossa terra, e eles voltarão, nós ainda estivéssemos fortes o suficiente para resistir. Os orientais perceberão que, assim como nós não conseguimos conquistá-los, também não conseguirão nos conquistar, e nossos impérios terão que lidar um com o outro como iguais.
Tototl meneava a cabeça em negação.
— Eu não fugirei — falou o guerreiro supremo. — Eu não abandonarei Citlali. Não sem saber que não tenho outra escolha.
— Então, aqui estão os sinais, Tototl. Quando a magia for retirada de todos os nahualli, quando você me vir cair diante de uma arma que não deveria matar: estes são os sinais de que o que eu disse é verdade. Você recuará então, Tototl? Ouvirá o meu conselho, como o tecuhtli Citlali não ouviu?
Tototl pareceu rir.
— Você parece um pedaço de bife defumado, uchben nahual, velho e duro demais para morrer. E quem poderia retirar o poder dos nahualli?
— Se isso acontecer — implorou Niente — se você vir os sinais, você irá embora?
— Se isso acontecer — respondeu o guerreiro supremo —, eu me lembrarei do que você disse e farei o que achar que é necessário.
Enquanto Tototl dizia essas palavras, a catapulta cantava sua canção mortal, e uma bola de fogo cruzou o rio em direção à ilha. Ambos viram a bola cair e explodir, emitindo um rugido de chamas laranjas.
Jan se perguntou se esse seria seu último dia.
A fumaça manchava o céu a sudeste, emergindo dos incêndios que ardiam sem controle na Margem Sul da cidade. Mensageiros enviados por sua matarh vieram durante a noite com uma mensagem: os tehuantinos estavam na Margem Sul; eles tentariam repelir os inimigos de novo, pela manhã; envie uma companhia de gardai se puder abrir mão deles.
Mas ele não podia abrir mão dos gardai. Eles já não eram suficientes para a tarefa que tinham pela frente. A noite anterior tinha sido terrível, o chão tremera enquanto areia negra era lançada de ambos os lados. Agora o céu a leste estava rosa e laranja, e os tehuantinos recomeçariam o ataque terrestre. Jan sabia disso; ele mesmo o teria feito.
Um pajem ajudava o hïrzg com sua armadura, e Jan fez uma careta quando o menino apertou as tiras da couraça — um armeiro desamassara a mossa da armadura na noite anterior.
— Vamos — ele disse para o pajem. — Aperte bem. A armadura não pode cair no meio da batalha.
Qualquer movimento doía. Respirar doía. Jan tossiu sangue na noite anterior assim que recobrou a consciência, embora isso, ainda bem, tivesse parado. Prender o peito com a armadura na verdade fez bem a ele, mas ele se perguntou se suportaria um golpe de espada sem desmoronar. E se perguntou se poderia liderar os homens como um hïrzg deveria: na linha de frente contra o inimigo.
— Traga o meu cavalo — disse Jan.
O pajem prestou continência e saiu correndo.
Jan tinha passado a noite na tenda atrás da segunda muralha de barricadas. A maior parte da areia negra caiu bem longe do acampamento, mas ainda havia crateras de terra negra aqui e ali, e fumaças de incêndios na grama que tiveram que ser extintos. Os offiziers tinham relatado as baixas meia virada da ampulheta depois de fazerem as chamadas. O hïrzg ficou estarrecido. Ele tinha trazido quatro mil gardai e cerca de trezentos chevarittai a Nessântico. Ele e o starkkapitän ca’Damont dividiram os homens de maneira praticamente igual. Jan agora contava com menos de mil gardai e dez punhados de chevarittai; ca’Damont tinha menos.
Não, ele não podia mandar uma companhia para a kraljica. Ele teria sorte se voltasse para Nessântico com uma companhia inteira. Jan leu a mensagem de ca’Talin: Perspectiva ruim. Recomendo resistir o máximo possível, depois recuar para a cidade. Abaixo, com sua letra fina e alongada, ca’Damont adicionara um breve concordo. Jan enviou uma resposta aos dois.
Concordo. Faça o inimigo pagar por terem cruzado o rio, depois recuem para o Mercado do Rio. Reagruparemos lá e nos reuniremos com a kraljica.
O pajem voltou conduzindo um cavalo de guerra que tinha sido a montaria de um dos chevarittai mortos. O menino colocou um degrau perto do cavalo e ajudou o hïrzg a montar na sela. Ele conseguiu se sentar sem gemer alto.
— Obrigado — disse Jan para o menino, prestando continência.
O hïrzg seguiu a meio galope, fazendo careta a cada passo, sacudindo o corpo. Ele subiu a pequena elevação até o topo da segunda barricada. Esperou ali por vários instantes, examinando o cenário.
A maior parte das tropas estava reunida lá embaixo, na ampla vala entre as barricadas serpenteando ao sul e ao comando do starkkapitän ca’Damont, e pouco a frente estava o comandante ca’Talin, com sua tropa se estendendo ao norte por cerca de oitocentos metros até a Avi a’Nostrosei. Após a elevação da primeira barricada em frente a Jan, havia cerca de quatrocentos metros de terreno plano entre as barricadas e o rio Infante — o campo tinha sido revirado pelos cavalos e pelas botas dos soldados e esburacado com as crateras que o bombardeio de areia negra tinham aberto. Do outro lado do Infante, Jan pôde ver o exército dos tehuantinos. Os offiziers inimigos já estavam organizando suas formações, e o hïrzg conseguiu ver pequenas bandeiras fincadas aqui e ali ao longo da margem oposta do rio — ele presumiu que os batedores tinham marcado as partes rasas onde o rio podia ser cruzado.
Havia muitas bandeiras. O Infante não era fundo nem largo como o A’Sele; havia muitos lugares por onde os tehuantinos podiam cruzá-lo. Na noite anterior, Jan pedira para um dos gardai locais mapear os pontos por onde a infantaria poderia cruzar, e posicionou arqueiros diante desses possíveis trechos.
Faça o inimigo pagar por cruzar o rio... Ele podia não conseguir detê-los, mas podia cobrar um preço caro.
Alguns arqueiros ocidentais dispararam flechas inúteis na direção do hïrzg; eles erraram o alvo, e Jan fez um gesto obsceno para eles.
— Vamos! — berrou o hïrzg, fazendo seu peito arder com o esforço. — Vamos; estamos esperando por vocês, bastardos! Estamos prontos para transformar suas esposas em viúvas e seus filhos em órfãos!
Ele disse em voz alta, para que os gardai na trincheira entre as barricadas ouvissem; os homens ergueram seus olhares para ele e vibraram. Jan duvidava que algum ocidental tivesse realmente entendido suas palavras, ainda que tivessem entendido o tom. Ele queria se debruçar por causa da dor lancinante em seu peito quando berrou a provocação, mas, em vez disso, ele sorriu e gesticulou novamente para os tehuantinos. A algumas centenas de passos de distância, Jan viu seus estandartes, prestou continência para os homens e seguiu até onde os offiziers estavam reunidos.
— Outro nascer do sol — falou o hïrzg. — Isso é sempre um bom sinal. O sol está nas nossas costas e nos olhos dos inimigos. Vamos fazer com que esse seja o último dia que eles veem.
Allesandra desfilou sobre o cavalo de guerra diante das pessoas reunidas no pátio do palácio. Sob a luz da falsa alvorada, sua armadura brilhava, o sangue do dia anterior tinha sido lavado e o aço lustrado. Brie, Talbot e o maldito e tolo Sergei estavam atrás dela em seus próprios cavalos, observando enquanto ela percorria a fileira. A kraljica colocou sua fúria e frustração em suas palavras.
— Nós não temos escolha. É o meu dever, é o nosso dever, proteger esta cidade, e eu não permitirei que nós traiamos essa confiança. Neste momento, os ocidentais controlam a Margem Sul. Eles andam pelas ruas que deveriam ser consideradas seguras para nossos cidadãos, saqueiam nossas casas e templos, matam e estupram quem quer que tenha ficado para trás. As forças do hïrzg e nossa própria Garde Civile estão enfrentando o exército inimigo principal na Margem Norte; eles nos encarregaram de proteger a retaguarda e manter a cidade em segurança para quando voltarem. Nós temos que controlar a Margem Sul. Eu controlarei a Margem Sul.
Allesandra fez uma pausa enquanto outra bola de fogo cruzou zunindo o céu que se iluminava — todos assistiram a isso. O cavalo tremeu sob ela, que acariciou seu pescoço musculoso para acalmá-lo enquanto a bola de fogo caía no solo atrás deles, do outro lado da Avi.
— Viram só? Os tehuantinos não querem nada além da destruição dos Domínios e de Nessântico. Fiquem aqui, e todos vocês morrerão. E, se é para morrer, eu prefiro que seja com a espada na mão e o inimigo sangrando aos meus pés.
O grito ecoou alto, mas irregular. Mesmo aqueles que gritaram pareciam hesitantes. Os chispeiros, de um lado, se remexeram inquietos; Allesandra notou que Brie os encarava.
— Nós marchamos hoje para a glória — disse a kraljica, sacando a espada da bainha e a erguendo. — Nós marchamos pelos Domínios. Marchamos por Nessântico. E eu marcharei com vocês, na vanguarda.
Uma carruagem sem teto, conduzida por ténis, se aproximou chacoalhando pelas ruas através da fumaça, dando a volta devagar pelos destroços no caminho; Allesandra viu o símbolo do globo partido de Cénzi nas portas do veículo.
— Hoje, o próprio archigos marchará conosco — acrescentou ela. — Preparem-se. Começaremos o ataque em duas marcas da ampulheta e mostraremos para esses ocidentais como os Domínios reagem contra quem os ameaça.
Eles vibraram novamente porque — Allesandra sabia — era o que se esperava, porque queriam acreditar na kraljica, mesmo que o medo gelasse seus estômagos. Ela cavalgou em direção à carruagem do archigos com Brie, Talbot e Sergei a seguindo. A cabeça calva do archigos Karrol espiou sobre a lateral do veículo; ele não parecia estar contente de estar ali. Dois rostos pálidos e mais jovens podiam ser vistos atrás do homem.
— Archigos, estou feliz em vê-lo — disse a kraljica. — Por mais atrasado que esteja.
— Não vamos fingir que a senhora ou o hïrzg tenham me dado alguma escolha, kraljica — respondeu Karrol. — Mas eu estou aqui.
— E os ténis-guerreiros?
— Mais quatro chegaram hoje do leste. Eu enviei dois para o hïrzg; os outros dois estão comigo. Eles sabem das consequências se deixarem de servir.
O archigos gesticulou para os outros dois ténis na carruagem.
— Ótimo — respondeu Allesandra. — Espero que estejam bem descansados. Precisamos deles agora. Talbot, por gentileza, cuide dos ténis-guerreiros e dos arqueiros. Brie, você fica com os chispeiros.
Ela encarou Sergei, ainda com raiva pela insolência do homem em descumprir suas ordens.
— Sergei, você fica comigo e o archigos.
Eles se reuniram rapidamente. Embora Allesandra ainda estivesse furiosa com Sergei por ter destruído a ponte leste, ela tinha que admitir que um ataque em duas frentes, nas duas pontas, teria dividido e enfraquecido muito suas forças. Mesmo assim, o problema agora estava no fato de todos eles precisarem cruzar a Pontica a’Brezi Veste. E no fato de que os tehuantinos tinham mantido a ponte de pé, e não a destruíram do lado deles, Allesandra sabia que os inimigos queriam que a ponte permanecesse intacta tanto quanto ela — para que pudessem se encontrar com o restante de seu exército na Margem Norte. A insistência de Sergei para que eles recuassem para a Ilha e a Margem Norte e destruíssem as pontes que cruzavam o A’Sele ao sul — a fim de isolar esta tropa de tehuantinos — fazia sentido taticamente.
Allesandra sabia disso intelectualmente, mas emocionalmente...
Esta era a sua cidade, a sede dos Domínios. A kraljica não permitiria que Nessântico fosse tomada dela. Allesandra teve que reconstruir a cidade uma vez; não queria ter que fazer isso novamente. Preferia cair aqui e deixar que seu sucessor — quem quer que fosse — o fizesse.
O ataque começou com uma saraivada de feitiços lançados por Talbot e alguns numetodos, bem como pelos novos ténis-guerreiros e o archigos. Quase todos os feitiços foram neutralizados ou desviados pelos feiticeiros tehuantinos, mas os que passaram fizeram os inimigos se afastarem correndo da Bastida e da área imediatamente a volta da outra extremidade da ponte, na Margem Sul.
— Agora! — berrou Allesandra.
Ela liderou o ataque da Garde Kralji pela ponte, enquanto Talbot direcionava os arqueiros para darem uma cobertura com suas flechas à frente deles. Sergei estava atrás da kraljica, e a carruagem do archigos veio a seguir, se chacoalhando sobre as tábuas. Os tehuantinos dispararam sua própria chuva de flechas na direção deles, mas o archigos entoou e gesticulou em seu assento, e as flechas foram varridas por um vento mágico, caindo inofensivamente no A’Sele.
Em poucos instantes, eles cruzaram o rio. Os guerreiros avançaram berrando contra eles.
— Para a Bastida! — berrou Allesandra para os gardai.
Eles avançaram e passaram a cavalo pelos portões abertos da prisão, sem se importar em deixar a Avi cheia de tehuantinos para atrás, pois estavam cercados.
Atrás da Garde Kralji, Brie conduziu os chispeiros pela Pontica. Ao pé da ponte, eles entraram em formação e suas armas bradaram o chamado ritmado da morte. Os guerreiros na Avi começaram a cair, e nenhum deles conseguiu alcançar os chispeiros para detê-los. Dos portões da Bastida, Allesandra viu Brie, desmontada, andando atrás dos chispeiros, estimulando-os a ficarem, a manterem a formação, a andarem mais rápido. Sua voz forte dava os comandos e o rugido irregular das chispeiras ecoava pela Avi. Os tehuantinos recuaram. Allesandra e os gardai não estavam mais cercados por todos os lados.
— Sigam-me! — berrou a kraljica, liderando a Garde Kralji em um ataque furioso, saindo dos portões da Bastida.
A noite tinha sido terrível, e a aurora simplesmente brutal. Quando o sol surgiu sobre as árvores e os telhados de Nessântico, os ocidentais avançaram: entoando rugidos e gritos, brandindo suas espadas e lanças e lançando saraivadas de areia negra e feitiços violentos e estridentes. Eles se lançaram nas águas do Infante. A água lançou espirros altos e brancos em torno dos tehuantinos, enquanto as flechas da Garde Civile choviam sobre eles. A princípio, o ataque resultou em um massacre, e os gardai gritaram de alegria e alívio, mas havia mais e mais inimigos, e eles simplesmente não paravam de vir, e agora os nahualli lançavam encantamentos que transformavam as flechas em cinzas no ar.
Os ocidentais cruzaram o Infante, e mais guerreiros chegavam a cada instante. Os ténis-guerreiros e os numetodos lançaram fogo sobre eles; isso não deteve o avanço. Punhados e mais punhados de guerreiros tehuantinos caíam mortos no chão, e, mesmo assim, eles avançavam, implacáveis.
— Recuar! — os offiziers e as cornetas chamaram.
A Garde Civile saiu do meio da muralha dupla de barragens e recuou para o cume da segunda barricada. Enquanto recuavam, os gardai derramavam barris de óleo trazidos da cidade, encharcando o solo e deixando poças escuras para trás. Quando os tehuantinos chegaram ao cume da primeira barricada, eles foram recebidos novamente por disparos de flechas. Corpos rolaram para a trincheira oleosa diante deles, mas agora mais companheiros, ilesos, vieram com eles.
Os feitiços preparados martelavam na cabeça de Varina e de todos os numetodos nas barricadas.
— Esperem! — Varina ouviu a ordem de ca’Damont para os ténis-guerreiros e numetodos. — Não ainda! Esperem!
Os tehuantinos chegaram à trincheira e começaram a subir a segunda barragem, onde as tropas da Garde Civile aguardavam.
— Agora! — berrou ca’Damont.
Varina gesticulou e pronunciou o gatilho do feitiço, assim como dois numetodos a seu lado, Leovic e Niels, e os ténis-guerreiros mais adiante na linha de frente. Suas mãos lançaram arcos de fogo. O solo encharcado de óleo entre as barricadas se acendeu, criando um poço de chamas flamejantes e sibilantes. Os que caíram nesse inferno gritaram — Varina viu os guerreiros se contorcerem, em chamas. O calor lambeu sua pele quando soprou o terrível fedor de carne queimada. Abaixo dela, um guerreiro saiu cambaleando às chamas, com o corpo horrivelmente carbonizado e chamas ainda lambendo sua armadura e roupa. Varina viu seu rosto, terrivelmente jovem, sua boca aberta gritando em sua própria língua. Ela não sabia se ele berrava por ajuda, por seu deus ou simplesmente de dor. Varina podia imaginá-lo em casa, abraçando sua esposa ou segurando os filhos, rindo de alguma piada que um deles tivesse contado. Ela mal notou a espada que o guerreiro segurava ou o fato de que ele erguia a arma sobre ela.
Flechas brotaram à frente do homem, e ele desmoronou, calando-se para sempre. Varina sentiu ânsia e vomitou no chão, caída de joelhos ao lado do guerreiro morto. Enquanto cuspia sua bile, ela ficou curiosa: que estranho, eu vi centenas de pessoas morrerem nos últimos dias, e este rosto foi o que mais me abalou...
— Você tem que vir conosco, a’morce!
Leovic e Niels cercaram Varina, a levantaram e quase a arrastaram encosta abaixo, até o lado oposto. Os tehuantinos recuaram momentaneamente enquanto o fogo queimava na trincheira, mas as chamas morreram rapidamente à medida que o óleo era consumido. Eles avançaram novamente, transbordando sobre a barricada pelo outro lado. Os gardai da Garde Civile à espera sacaram suas espadas, e Varina, juntamente com os outros numetodos e os ténis-guerreiros, recuaram enquanto o combate corpo a corpo irrompia sobre o cume. Varina ouviu as cornetas berrando e viu as bandeiras tremulando, mas elas pouco significavam alguma coisa para ela agora que Leovic e Niels continuavam a ajudá-la a recuar, um em cada braço. Varina simplesmente caminhou em meio ao fluxo de pessoas em uniformes azuis e dourados: de volta à cidade, sempre de volta. A retirada foi lenta a princípio, depois ganhou ímpeto e, subitamente, eles já não estavam andando, mas correndo, dando as costas aos tehuantinos ao fugir. Ela ouviu a batida dos cascos dos cavalos dos guerreiros, viu pessoas caírem a sua volta, atingidas por flechas ou abatidas por feitiços.
Leovic e Niels quase que carregavam Varina enquanto corriam. Ela não ousou olhar para trás. Não queria fazer isso.
— Andem, andem, andem! — berrou Brie para os chispeiros ao ver a kraljica e Sergei em seus cavalos, o archigos em sua carruagem, e a Garde Kralji saírem em debandada do breve abrigo da Bastida. — Vamos! Mantenham o ritmo!
Eles transformaram a Avi em um abatedouro, na cabeça da ponte. Os chispeiros correram sobre os paralelepípedos escorregadios de sangue, e sobre corpos que ainda gemiam e se contorciam. Os rostos dos chispeiros alternavam expressões de horror e alegria diante da carnificina que tinham causado, mas Brie não lhes deu tempo para refletir ou comemorar. A hïrzgin fez com que eles avançassem em direção aos portões da Bastida.
Em campo aberto, os chispeiros ficariam vulneráveis; eles atuavam melhor defendendo um espaço confinado. E se as fileiras fossem rompidas, os chispeiros seriam rapidamente sobrepujados. Brie os orientou aos berros, não permitindo que se separassem.
O pessoal de Allesandra avançou contra um aglomerado de guerreiros em uma das extremidades das muralhas da Bastida. Mais ocidentais saíram correndo das ruas laterais, liderados por um guerreiro montado, com o rosto pintado de vermelho e o crânio totalmente raspado. Brie viu um feiticeiro com ele: um velho cujo rosto fora devastado por alguma doença, com o olho esquerdo branco e cego. No momento em que a hïrzgin alinhou os chispeiros perto do portão da Bastida para lidar com o ataque renovado, ela viu o archigos entoando e movendo as mãos encarquilhadas moldando um novo feitiço, fazendo seu robe verde e dourado balançar. O feiticeiro ocidental ergueu o cajado de madeira e berrou uma única palavra em sua língua estranha.
O feitiço dele foi lançado imediatamente.
O archigos e a carruagem foram envolvidos em chamas. O téni-condutor caiu do assento, berrando e batendo no robe em chamas com as mãos. Ela ouviu o velho guinchar de surpresa e agonia. Karrol empurrou a porta e caiu da carruagem para a rua, seu robe parecia pingar chama líquida. Ele rolou no pavimento, emitindo um longo e tênue lamento que parou subitamente, mas Brie já não conseguia ver o archigos, não em meio à confusão da batalha. Enquanto berrava para os chispeiros, para tentar alinhá-los corretamente, a hïrzgin vislumbrou o guerreiro de crânio vermelho surgir com uma lança na mão, incitando o cavalo em um galope em direção à Allesandra. A kraljica ergueu a espada, mas a estocada de lança do guerreiro pintado de vermelho foi mais rápida; horrorizada, Brie viu a ponta da arma entrar com força e atravessar a armadura de Allesandra. O guerreiro pulou do cavalo, ainda segurando a lança que empalou a kraljica, jogando-a no chão. Berrando desesperadamente para os chispeiros, a hïrzgin viu Sergei pular do cavalo como se fosse um jovem.
Eles, também, desapareceram na luta.
Os feiticeiros de ambos os lados lançavam feitiços, e ainda mais guerreiros chegavam e ocupavam as ruas. Brie podia sentir o frio do Ilmodo em volta deles.
— Fogo! — ela berrou para os chispeiros, que olhavam atônitos para a confusão. — Fogo!
Mas então tudo mudou.
Nico tinha sido abandonado. Destituído. Até mesmo Rochelle o tinha deixado em algum momento durante a noite. Ele pôde sentir sua partida, mesmo que não tivesse respondido para ela.
Nico estava orando há um dia inteiro agora, sem comer, beber ou dormir, e Cénzi permanecera em silêncio. Ou talvez Ele estivesse dizendo muito. Nico foi atormentado por visões, mas não sabia dizer se elas emanavam de Cénzi, dos sons que ele ouvia lá fora ou da própria imaginação febril. Ele estava tremendo de frio, como se estivesse envolvido por um inverno impossível, tão frio quanto o próprio Ilmodo. Sobre seus olhos fechados, Nico teve a impressão de ter visto a batalha no oeste quando o sol o tocou através da janela do casebre no Velho Distrito. Ele viu as tropas fugindo dos ocidentais, viu os chevarittai montados tentando em vão proteger a retaguarda daqueles que recuavam dos supremos guerreiros montados, com seus rostos pintados e suas armaduras estranhas. Os homens em preto e prata, os homens em azul e dourado estavam fracassando; muitos deles estavam sendo abatidos por flechas ou pelos guerreiros a cavalo.
Nico testemunhou isso ao ser levado para o campo de batalha pelos braços gelados das suas preces, olhando para a cena do alto. Ele era um pássaro, um falcão, sendo levado pelo vento frio. Ele viu o estandarte do comandante ca’Talin e, mais ao norte, os estandartes do starkkapitän e do hïrzg. Todos estavam recuando para a cidade, com o homem mais à frente deles já nas ruas perto da Avi a’Certendi, a parte mais a oeste da imensa cidade.
Nico pairava sobre tudo isso, observando...
... então ele a viu: Varina. Ela estava exausta e sendo puxada por outros dois hereges numetodos; o trio estava perigosamente separado da massa principal da Garde Civile. Os guerreiros montados se aproximavam, a apenas alguns passos de distância, e a sinistra infantaria dos tehuantinos não vinha muito atrás. Eles seriam atropelados e mortos. Em breve.
Por que o Senhor me mostra isso, Cénzi? Por que me mostra a herege com tanta clareza?
Enquanto observava Varina, Nico sentiu o abraço frio envolver seu corpo mais intensamente. Ele estava caindo, rolando na direção de Varina no momento em que viu os guerreiros montados nos cavalos de guerra avançarem contra ela. Seus companheiros se viraram para lançar feitiços inúteis contra os agressores, que cercaram Varina.
Agora Nico estava ali, no solo e não muito longe de Varina. Ele pôde ouvi-la conter um grito e chamar seu nome — “Nico?” —, mas havia tanta energia ali que ele mal podia ouvir. O Segundo Mundo pareceu se abrir no céu e jorrar um fogo frio, o poder gelado do Ilmodo. Nico podia sentir todos puxando a energia sobre eles: os ténis-guerreiros, os hereges, os feiticeiros dos tehuantinos, até mesmo quem estava do outro lado do A’Sele, na cidade. Ele podia sentir o poder guardado nos cajados mágicos dos tehuantinos, nas mentes dos numetodos.
Todos canalizavam o Ilmodo do Segundo Mundo, onde Cénzi ainda vivia.
Nico se sentiu vasto. Ele podia esticar os dedos e tocar os fios de todas as conexões com o Ilmodo; podia puxá-los e tomá-los para si...
E foi o que Nico fez.
Não foi um movimento consciente. Ele agiu como se alguém tivesse o controle de seu corpo, sem escolha. Ele ouviu a si mesmo dizer palavras que não compreendia, sentiu as mãos se mexerem em um gestual que ele nunca tinha usado antes. Cénzi? Se era Cénzi, não houve resposta.
Nico gritou as palavras finais, executando o gestual final. Ele arrancou as cordas de poder que amarravam os ocidentais ao Segundo Mundo, mas manteve as cordas dos ténis e até mesmo a dos numetodos. Nico estava parado no campo de batalha com os braços abertos, sendo tomado pelo Segundo Mundo como nunca tinha acontecido antes.
Ele nunca tinha se sentido tão cheio do poder do Ilmodo. O poder o preencheu, queimando e perigoso demais para ser manipulado por mais que um instante. Nico absorveu tudo, inspirando o dom de Cénzi e o exalando novamente, soltando um grito.
O que eu faço com isso? Ele perguntou para Cénzi, e ouviu a resposta:
Faça o que deve fazer...
A onda de energia saiu pulsando de Nico, irradiando para o norte e o oeste ao longo da linha de batalha. Onde a onda tocou, os tehuantinos foram jogados para trás, sendo atirados violentamente sobre suas próprias fileiras. Eles foram derrubados como peças de um jogo varridas por uma mão furiosa.
Os guerreiros montados prestes a matar Varina e seus companheiros foram levados pela tempestade, tanto as montarias quanto os cavaleiros foram lançados longe.
— Vão! — disse Nico para eles. — Este é o Dom de Cénzi!
Sua voz ecoava como a de Cénzi; ela rugia, um trovão que pôde ser ouvido por todas as fileiras.
— Vão!
Então, acabou. Os fios de poder se romperam; o Segundo Mundo se fechou, soltando um trovão alto. Nico foi tomado por uma exaustão terrível, tão avassaladora que não conseguiu ficar em pé. Suas pernas cederam, e ele caiu na escuridão gelada.
— Deixem que eles cruzem o rio — disse Tototl. — Assim que eles estiverem na alameda, serão alvos fáceis, vamos atacá-los por todos os lados ao mesmo tempo.
A tática tinha funcionado a princípio. Os orientais usaram seus feitiços assim que o sol nasceu; Niente mandou os nahualli deixarem seus inimigos gastarem energia, mesmo que eles pudessem ter anulado a magia inimiga facilmente com os feitiços em seus cajados mágicos. Os guerreiros recuaram, abandonando a catapulta. Niente esperou no cavalo ao lado de Tototl, ao fim da primeira grande rua transversal da grande alameda. Os arqueiros disparavam saraivadas no céu; um velho nahualli oriental andando sobre uma carruagem mostrou sua força e tornou as flechas inofensivas ao desviá-las. A tecuhtli dos orientais — a mulher vestida de aço — escoltava os guerreiros de um lado ao outro do rio.
Eles ouviram o avanço dos guerreiros escondidos próximo ao rio e no pátio, onde o crânio do monstro tinha sido posto, mas Tototl ergueu a mão quando os guerreiros atrás dele seguiram em frente, ansiosos para se juntar à batalha.
— Esperem — ele ordenou. — Ainda não.
Através do vão entre os prédios, Niente viu os orientais avançarem pela rua, e a mulher, estranhamente, levou seus homens para o interior do pátio de onde os guerreiros tinham saído. Ele se perguntou o porquê disso, então veio a resposta: o terrível barulho estridente das armas de areia negra, que, estranhamente, soavam como as garras de águia que eles usavam no sacrifício de prisioneiros. Eles ouviram os gritos a seguir e viram os guerreiros caírem como milho sendo colhido. O tecuhtli oriental berrou, e os guerreiros inimigos voltaram à alameda em debandada, repelindo os guerreiros remanescentes ali.
— Agora! — gritou Tototl.
Eles avançaram contra a confusão como uma onda. Tototl avançou diretamente contra a mulher, arrancando sua lança de cavalaria da bainha na sela; sua espada permaneceu embainhada. Niente tentou segui-lo. O feiticeiro oriental na carruagem, vestido de verde e dourado, e mais velho que Niente, estava entoando um cântico e gesticulando de um jeito conhecido. Niente sentiu o poder envolvendo o homem crescer, e ergueu o cajado mágico, gritando o gatilho do feitiço. O X’in Ka disparou uma rajada solar de seu cajado, envolvendo o feiticeiro em chamas azuis. O homem gritou, e a rajada encobriu a carruagem e o passageiro.
Tão lenta. A magia oriental era tão lenta.
Niente viu a lança de Tototl empalar a tecuhtli oriental como um pedaço de carne. O guerreiro supremo pulou do cavalo ainda segurando a lança nas mãos e arrancando a pobre mulher do cavalo para os paralelepípedos. Tototl berrou em triunfo. Niente ouviu o impacto do corpo da mulher ao cair no chão.
Ele sentiu que os feiticeiros inimigos preparavam feitiços, ouviu a mulher no comando das terríveis garras de águia berrar ordens para seus homens, com uma longa trança marrom balançando sob seu elmo. Niente ergueu seu cajado mágico, pronto para abater a mulher de trança — para ele, ela era a mais perigosa dos inimigos.
Ele gritou o gatilho do feitiço, mas nesse mesmo instante, uma força terrível o puxou, puxou todos os nahualli. O ar gelado do X’in Ka girou em volta e por cima de Niente, varrendo o feitiço — e ele soube que tinha visto isso, embora não tivesse acreditado que fosse possível.
O homem da bruma, o homem escondido — ele tinha tomado uma decisão. Tinha agido.
O Longo Caminho estava aberto.
Niente engasgou. Esta era uma força bruta que ele nunca tinha sentido antes.
Um vórtice invisível pairou sobre eles, como a boca faminta de um tornado implacável, e sugou a energia do cajado de Niente, de todos os cajados mágicos, arrancando os poderes estocados neles e deixando os cajados vazios, como se todos os feitiços preparados para serem colocados dentro dos objetos na noite anterior com tanto trabalho tivessem sido lançados. Não foram apenas os nahualli que sentiram isso: ele notou que todos pararam e olharam para o céu, à procura de alguma coisa que eles não podiam ver. Tototl tinha arrancado a lança do corpo da tecuhtli; ele se aproximou dela, posicionando a lança para golpeá-la novamente, e também hesitou.
Então o vórtice desapareceu, sumiu, e Niente agora segurava apenas um pedaço de madeira vazio. Ele viu os outros nahualli se entreolharem, surpresos, ou soltarem seus cajados, assustados.
— Niente! — gritou Tototl sobre os paralelepípedos, com a lança ainda erguida.
Niente mostrou o cajado para ele e disse, surpreso:
— Eu não tenho nada. A magia foi retirada de todos os nahualli. Tototl, eu vi isso... eu lhe disse...
— Você ainda está vivo — resmungou o guerreiro supremo. — Nós ficaremos. Nós lutaremos!
Ele ergueu a lança novamente. Niente, então, viu a estranha cena: um velho com um nariz de prata avançando contra Tototl. O homem não brandia uma espada, mas uma bengala, enquanto berrava para o guerreiro supremo, e no entanto...
Niente sentiu a ameaça do pedaço de pau. Tototl também viu o homem, mas não fez nada, apenas sorriu. Niente gritou quando o homem apontou a bengala na direção de Tototl e saltou entre os dois, tentando afastar a bengala com seu cajado, mas ele não era forte o bastante. E a bengala tocou o corpo do próprio Niente.
O impacto pareceu com o punho de Axat. Niente pensou ter visto o rosto Dela sobre ele, acenando com a cabeça enquanto Niente caía. Ele viu um pássaro entalhado voando na frente de Axat.
Uma última dádiva...
Sergei viu a estocada cruel da lança do guerreiro trespassar a armadura de Allesandra. Viu a boca da kraljica se abrir em silêncio, surpresa e abalada, viu o guerreiro usar a haste da lança para arrancar a kraljica do cavalo. O homem se aproximou dela e arrancou a lança de seu corpo, seu sangue jorrava enquanto ele se preparava para estocar novamente a figura caída. O guerreiro berrou alguma coisa para um antigo feiticeiro ocidental perto dele.
Sergei se deteve. Alguma coisa parecia estranha: um vento frio furioso varreu a Avi, e a fúria dos feitiços de todos os lados pareceu ter se esvaído.
O embaixador se remexeu. Ele mancou até Allesandra, com a bengala em uma mão e o florete na outra. Mais um ocidental se aproximou a sua esquerda, e Sergei estocou por baixo do golpe cortante do homem, a lâmina fina do florete encontrou uma brecha entre as ripas de bambu da armadura e se enfiou no abdômen. O ocidental dobrou o corpo e caiu, e o movimento arrancou a espada da mão de Sergei. Ele deixou a arma ali; não tinha força para segurá-la.
— Não! — berrou o embaixador para o guerreiro parado diante da kraljica.
Sergei brandiu a bengala para o homem, que olhou para ele e parecia quase rir.
Sergei rezou para que se lembrasse da palavra que Varina lhe tinha ensinado, para que a pronunciasse corretamente, para que o feitiço que ela disse ter colocado dentro da bengala realmente funcionasse.
— Scaoil! — berrou o embaixador, apontando a ponta de latão da bengala na direção do guerreiro.
Mas no mesmo instante, o antigo feiticeiro se moveu com uma velocidade impressionante para sua idade e se colocou entre Sergei e o guerreiro, brandindo seu cajado mágico. A bengala acertou o feiticeiro. Assim que a bengala o tocou, sua ponta de latão pareceu explodir. Um som alto e percussivo quase ensurdeceu Sergei. A rajada fez lascas da bengala saírem voando, lançando o velho feiticeiro para trás juntamente com um jato de sangue e tripas; moribundo, se é que já não estava morto. Um pássaro vermelho entalhado saiu voando da bolsa rasgada do feiticeiro, posando novamente no peito do velho. O feiticeiro segurou o pássaro, pareceu sussurrar para ele e, em seguida, sua cabeça pendeu para o lado.
O guerreiro pintado de vermelho deixou a lança cair de sua mão olhando fixamente para o corpo do feiticeiro, caído na Avi perto de Allesandra, ferida.
O tempo parou para Sergei. O guerreiro estava imóvel, com a boca contraída no rosto pela fúria da batalha. O embaixador pensou que o homem levaria a mão ao lado de seu corpo e sacaria a espada, que abateria Sergei no instante seguinte. Não havia gardai para salvá-lo, nenhum chispeiro perto o suficiente.
Ele se perguntou qual seria a sensação de morrer.
Mas o guerreiro olhou fixamente para o corpo do feiticeiro, balançando a cabeça. Ele berrou alguma coisa que Sergei não compreendeu: uma prece, uma maldição, uma pergunta. O homem deu um passo para trás e se afastou do embaixador, depois deu mais um e mais outro. Então se virou completamente e rugiu uma ordem que ecoou na rua. Os guerreiros na Avi começaram a ceder terreno, devagar a princípio, depois mais rapidamente. Sergei viu Brie e Talbot persegui-los com os chispeiros, e chamou os dois.
— Esperem! A kraljica...
Ele se ajoelhou ao lado de Allesandra.
— Sergei — ela disse. — Dói...
— Eu sei — respondeu o embaixador.
Alguns gardai se reuniram a sua volta — sangrando, exauridos e aparentemente atordoados. Todos olharam espantados para a kraljica e para o corpo destruído do feiticeiro.
— Ajudem-me — disse Sergei para os homens. — Ajudem-me a levá-la de volta para o palácio...
Jan, com os chevarittai e alguns ténis-guerreiros lutavam na retaguarda para proteger a retirada, eles enfrentaram os guerreiros montados e mantiveram a infantaria ocidental longe dos retardatários. Como comandante do exército firenzciano, Jan raramente tinha precisado coordenar uma retirada em grande escala, mas ele tinha estado do lado vencedor várias vezes, e sabia que a retirada, em geral, era o momento mais perigoso para as tropas, pois a força avançando poderia eliminar os retardatários, lançar flechas e feitiços para dizimar ou até mesmo obliterar as companhias da retaguarda. Frequentemente, o exército em progressão podia sobrepujar o inimigo exausto e desmoralizado e causar baixas terríveis.
A retirada talvez permitisse que o comandante lutasse outro dia, mas também podia levar a uma derrota completa e infame. Eles nem ao menos estavam recuando para fortificações, mas para uma cidade aberta e desprotegida.
Os feiticeiros ocidentais lançaram feitiços contra eles que os ténis-guerreiros tiveram pouco tempo e energia para desviar. Os arqueiros cobriram o céu com suas flechas. As tropas montadas — felizmente poucas — avançaram as suas costas, abatendo os gardai correndo. A vanguarda do exército inimigo avançou com tudo. Jan vislumbrou, entre a fumaça e a confusão do campo de batalha, os estandartes do comandante tehuantino: a serpente alada que voava em um evoaçante pano de tom verde intenso. A maior parte dos feitiços parecia vir do grupo à volta daquele estandarte.
Jan estava exausto e sentindo uma dor terrível. Seus dedos queriam libertar o fardo do aço firenzciano pesado, o cabo da espada já escorregadio com sangue. O hïrzg oscilou na sela, quase caindo do cavalo quando um relâmpago mágico surgiu, sibilante, explodindo diretamente à frente, fazendo seu cavalo de guerra empinar. Ele acalmou o animal.
— Hïrzg!
Jan ouviu alguém chamar, e um chevaritt à direita apontou para um quarteto de guerreiros montados prestes a atropelar um grupo de gardai.
Ele suspirou. Obrigou seus dedos a segurarem firme a espada. Jan ignorou a dor lancinante em seu peito. Ele esporeou o cavalo, galopando em direção aos guerreiros.
Você não vai sobreviver a isso. Esta será sua última batalha.
O ideia lhe ocorreu como uma certeza. Uma profecia. Ele estremeceu ao soltar um grito de encorajamento para os chevarittai, ao mesmo tempo em que eles cavalgavam em direção aos guerreiros.
Então...
Uma onda de frio intenso tomou conta dele, como se o inverno tivesse chegado mais cedo; quando a sensação se esvaiu, Jan percebeu, mesmo com a fúria de seu ataque, que a chuva constante de feitiços das forças tehuantinas tinha parado. Os guerreiros à frente também o notaram. Eles puxaram as rédeas de seus cavalos e voltaram seus olhares para suas próprias fileiras. O hïrzg ficou preocupado que os feiticeiros estivessem preparando outro feitiço em massa, como a tempestade de guerra. Mas, em vez disso, uma onda visível varreu a terra de leste a oeste, uma onda que fez Jan puxar as rédeas, espantando. Todos podiam vê-la: no ar fugidio, na poeira erguida pela onda ao passar. Onde tocou o avanço da linha de frente dos ocidentais, os guerreiros foram jogados e lançados para trás, sem tocar nos homens no próprio hïrzg. Jan ouviu gritos e gemidos, depois uma única voz, mais alta.
— Vão! Este é o Dom de Cénzi! Andem!
O grito pareceu vir de todos os lugares e de lugar nenhum.
Jan sentiu subitamente uma tênue esperança. A bola de fogo de um téni-guerreiro saiu voando sobre os tehuantinos. Não houve reação ao feitiço: nenhum desvio, nenhuma implosão impotente acima deles. A bola de fogo anunciou a morte com um som estridente, penetrando nas fileiras ocidentais e explodindo, intacta. Outra veio atrás desta, e mais outra — todas penetraram. A esperança dentro do hïrzg aumentou, seus ferimentos já não importavam.
— Virem-se! — berrou ele para as tropas, para os offiziers. — Virem-se! Sigam-me!
Jan ergueu sua espada quando os chevarittai atenderam ao chamado. Ele ouviu a ordem ecoar entre as fileiras, e a retirada parou, virando-se lentamente. O hïrzg já estava cavalgando rapidamente em direção aos tehuantinos. Por todo o campo de batalha, até o ponto ao sul onde sua visão alcançara, a retirada se voltava para ele. As cores preto e prata começaram a fluir em direção ao oeste.
Com os chevarittai em volta de si, Jan penetrou na linha de frente atordoada dos ocidentais e seguiu em direção ao estandarte da cobra alada. Os primeiros guerreiros por quem ele passou estavam espalhados no chão; se estavam mortos ou inconscientes devido ao enorme feitiço desconhecido, Jan não sabia. Então o hïrzg encontrou resistência e avançou pelo mar de lâminas reluzentes, esquecendo suas dores em meio à fúria da batalha. Os chevarittai gritavam ao mesmo tempo que derrubavam os ocidentais e seguiam em direção ao comandante inimigo, todos avançando. Eles ouviram o rugido dos gardai correndo atrás de si.
Não houve resposta da parte dos feiticeiros tehuantinos. O que quer que tenha acontecido, roubou a magia deles. Mas os guerreiros tehuantinos — ao menos aqueles distantes da onda inicial não tinham sido afetados. Eles lutaram tão ferozmente como nunca, e agora que a euforia inicial tinha passado, a exaustão e a dor se fizeram sentir novamente. O ataque diminuiu, embora os estandartes de serpente alada agora estivessem dolorosamente próximos. Cada golpe de espada na massa de guerreiros disparava um choque que subia pelo braço de Jan. Suas pernas doíam, e ele mal conseguia se manter montado no cavalo de guerra. Suas costelas o apunhalavam como adagas de marfim a cada fôlego.
Ele se perguntou onde Brie estaria. Perguntou-se quem contaria a seus filhos e o que eles diriam.
Você tem ao menos que fazer essa história valer a pena ser contada.
Gemendo, Jan ergueu a espada para proteger a lateral do corpo de uma estocada, e a lâmina desviou o ataque, cortando o pescoço do guerreiro. O hïrzg viu o homem escancarar a boca e arregalar os olhos. Algo golpeou sua coxa na esquerda, ele se virou para enfrentar o guerreiro com a lança, cuja ponta estava cravada na sua perna logo acima da couraça. Jan puxou as rédeas com força para a esquerda e o cavalo de guerra ergueu os cascos, que acertaram e pisotearam o agressor enquanto a ponta da lança era arrancada de sua coxa. Ele sentiu seu sangue jorrar, molhando o acolchoamento sob a couraça.
Jan estava mais perto. Ele podia ouvir o estandarte da cobra tremulando.
— A mim! — gritou o hïrzg para os chevarittai, mas não ouviu resposta.
Jan não sabia onde eles estavam, não tinha tempo de procurá-los. Carrancudo, ele avançou, atropelando os guerreiros à frente com seu cavalo. Jan alcançou uma pequena clareira, viu o líder tehuantino, com o crânio raspado decorado com uma águia vermelha cujas asas se abriam em suas bochechas. O homem era mais velho que Jan, volumoso na armadura ocidental e montado em seu próprio cavalo, um magnífico animal malhado. Perto do líder, havia um feiticeiro ocidental, jovem, com o cajado mágico na mão e um bracelete dourado no braço.
Jan reuniu todas as forças que ainda tinha, ergueu a espada e gritou em desafio. Ele esporeou o cavalo de guerra para seguir adiante.
Do esconderijo atrás das tapeçarias na parede dos fundos, Rochelle viu a kraljica ser carregada para o salão. A armadura de Allesandra estava manchada de vermelho, e havia um buraco aberto no peitoral de onde o sangue ainda jorrava. Seu rosto estava pálido e contraído, o cabelo grisalho desalinhado e duro como palha em volta do rosto.
— Coloquem-me no trono — ela ouviu o sussurro da kraljica.
A voz da mulher era áspera e baixa, exausta e esquelética. Os gardai que a levavam obedeceram e a colocaram no Trono do Sol. Rochelle esperava que o trono se acendesse assim a kraljica se sentasse no abraço cristalino, como diziam as histórias, mas o trono respondeu apenas com o mais pálido dos brilhos, praticamente invisível na luz do sol.
Ela se perguntou se era porque a kraljica estava à beira da morte.
— Alguém vá procurar pelos curandeiros da kraljica — ela ouviu Sergei dizer. — O restante, procurem a hïrzgin para receber suas ordens; ela está no comando. Andem!
Eles se dispersaram. Rochelle viu Sergei se ajoelhar ao lado do trono.
— O que eu posso fazer pela senhora, kraljica? — perguntou o embaixador.
— Água, Sergei — sussurrou Allesandra. — Estou com tanta sede.
Ele mancou até um balcão perto da porta de serviço; Sergei estava sem a bengala e andava devagar. Rochelle saiu de trás da tapeçaria. Com alguns passos resolutos, ela alcançou a plataforma, com a faca na mão. Sergei a ouviu e berrou seu nome — “Rochelle!” — mas ele estava muito longe e era lento demais para detê-la. A pedra branca — dentro da bolsinha em volta do pescoço de Rochelle — parecia pulsar incandescente contra sua pele.
Você vai matá-la e, enquanto ela morre, você vai contar o porquê, para que ela vá para Cénzi sabendo...
Allesandra olhou para Rochelle com um olhar confuso e sofrido.
— Olá, mamatarh — disse ela. — Eu sou Rochelle.
— Rochelle? Mamatarh?
A confusão aumentou na expressão da mulher. Ela viu a faca e franziu os olhos.
— Eu conheço essa arma — Allesandra disse, umedecendo os lábios secos.
Ela tossiu, cuspindo bolhas de espuma vermelha dos cantos da boca.
— Eu matei Mahri com isso. Onde você...?
— Do seu filho — respondeu Rochelle. — Do meu vatarh.
A kraljica estreitou os olhos novamente.
— Seu vatarh? Jan?
— Rochelle, não faça isso — disse Sergei.
Ele deu passos vacilantes em direção à plataforma, com a mão estendida na direção dela. Rochelle ignorou o embaixador. Um corte com a lâmina, e ela poderia passar por qualquer uma das portas e estar longe antes que ele pudesse fazer qualquer coisa para detê-la.
— Sim, Jan é meu vatarh — contou Rochelle para Allesandra.
Sua mão livre segurou a pequena bolsinha de couro com o seixo quase branco e chato que continha sua matarh e todas as vítimas dela.
— E minha matarh... ela era a Pedra Branca. Elissa, era assim que ela se chamava nessa época, embora esse não fosse seu nome de verdade.
— Elissa... — Os olhos de Allesandra se fecharam por um momento; sua respiração se agitou e seus olhos se abriram novamente. — Jan...
— Ela o amava — disse Rochelle ao se inclinar sobre a kraljica.
Ela aproximou a lâmina do pescoço de sua mamatarh. Allesandra pôs a mão sobre a de Rochelle, mas não havia força no aperto. Sua pele era tão enrugada quanto um pergaminho.
— Rochelle, a mulher já está morta — falou Sergei. — Você não precisa fazer isso. A Pedra Branca está morta. Deixe-a morrer em paz.
Rochelle olhou para ele.
— Por que você se importa, embaixador? Suas mãos estão bem mais ensanguentadas que as minhas.
— Eu lhe disse na carruagem: não é tarde demais para você, Rochelle. Você não é a sua matarh. Não precisa se transformar no que ela se tornou.
A faca tremeu em sua mão. Prometa para mim...
— Faça isso — continuou Sergei — e você será para sempre a Pedra Branca, a assassina odiada que matou a kraljica. Será caçada pelo resto da sua vida curta e miserável. Jamais se sentirá segura, jamais ficará à vontade. Eventualmente, você cometerá um erro e será capturada, depois será arrastada para cá acorrentada e será executada. Este é o seu destino, Rochelle, o único que terá se fizer isso.
— E se eu não fizer? Eu ainda não sou a Pedra Branca, que matou Rance e os outros?
Sergei deu de ombros.
— Eu não sei. Sua vida será um livro que você mesma escreverá. Se a Pedra Branca desaparecer, não há ninguém a ser perseguido.
A mente de Rochelle estava atormentada. A faca pressionada contra a pele de Allesandra, o gume afiado, o sangue. Tudo o que ela tinha a fazer era pressionar com um pouco mais de força. Só precisava se debruçar levemente sobre a mulher; a faca faria o resto. Os dedos de Allesandra apertavam os de Rochelle, quase como se a kraljica quisesse que ela fizesse aquilo.
— Minha matarh amava Jan — disse Rochelle para sua mamatarh, com uma voz mais trêmula do que as mãos.
— Eu sei. — Os lábios de Allesandra estavam molhados de sangue, e um longo filete escorria pelo canto da boca. — E Jan a amava. Eu sei disso também.
A kraljica gorgolejou, o cheiro de seu hálito era horrível.
— Eu lamento.
— Lamenta? — Rochelle praticamente gritou, quase enfiou a faca no pescoço de Allesandra com violência. — Você deveria ter dito isso para ela.
A kraljica não respondeu. Sua respiração ficou fraca, seu corpo se contorceu em um espasmo. Ela olhou fixamente para Rochelle, piscando muito.
— Rochelle...
Ela tirou a faca do pescoço de Allesandra e embainhou a arma. Mate-a... Rochelle ouviu o sussurro de sua matarh, mas seu som foi fraco, e ela descobriu que não tinha vontade de fazê-lo. Não mais. Toda a raiva tinha abandonado Rochelle, toda a certeza.
— Eu quero ver você morrer — ela disse para a kraljica, olhando para Sergei. — Eu preciso ver isso.
— Está bem. — Sergei subiu os degraus da plataforma pesadamente para ficar ao lado dela. — Nós assistiremos juntos.
A boca de Allesandra se abriu, como se ela fosse protestar, mas não disse nada. Os dois ouviram sua respiração se esgotar. A kraljica olhava para Sergei.
— Nessântico...
Sua voz soou quase tão fraca quanto um zéfiro. O olhar cego da kraljica se fixou em algum ponto entre os dois.
— Sergei, ela está a salvo?
— Sim — respondeu Sergei. — Ela está a salvo.
Allesandra não esboçou reação. Após um tempo, eles perceberam que ela já não respirava. Seus olhos continuavam abertos. Rochelle tirou a pedra branca da bolsinha e colocou sobre o olho direito da kraljica.
— Pronto, matarh — disse Rochelle. — Ela é sua...
Rochelle começou a descer da plataforma.
— Espere — chamou Sergei, atrás dela. — A pedra...
— Deixe aí. Guarde como lembrança. Jogue fora. Eu não me importo. Não preciso dela.
Rochelle saiu do salão no momento que os curandeiros — tarde demais — entraram.
A onda de frio, seguida do pulso que passou por eles inofensivamente, mas que colidiu contra os ocidentais...
A presença de Nico e sua voz, inacreditavelmente alta...
O silêncio que pareceu durar vários instantes, quando eles perceberam que nenhum dos ocidentais lançava feitiços em sua direção...
O que aconteceu?
Varina ainda podia sentir o Scáth Cumhacht dentro de si. Tinha sentido alguma coisa — alguém? — puxar os feitiços que ela tinha guardado na mente, como se quisesse roubá-los, mas a presença passara por Varina sem tocá-la. Bem ao norte, ela viu a bola de fogo de um téni-guerreiro cruzar o horizonte em direção ao inimigo, depois outra e mais outra, esta de um téni perto dela. Nenhum deles foi tocado.
Varina ouviu os offiziers gritando para virar os gardai para o oeste mais uma vez. A maré que os arrastou pelo caminho diminuiu, parou e depois começou a fluir para o outro lado. Eles ficaram parados em meio à correnteza. Leovic e Niels ainda seguravam seus braços, mas Varina percebeu que eles observavam.
— Vão — ela disse para os dois. — Eles precisam de vocês. Eu seguirei como puder.
— A’morce — reclamou Niels.
— Vão — repetiu Varina.
Eles a deixaram e correram na direção de um dos offiziers chevarittai. Varina viu Leovic e Niels serem levados pela multidão. Ela seguiu depois, bem mais lentamente, mancando. Uma multidão de gardai passou por Varina, gritando. Ela ouviu o barulho da batalha recomeçar adiante, mas todos os feitiços pareciam estar vindo dos ténis-guerreiros da fé concénziana e dos numetodos, não dos ocidentais.
Varina estava entre os corpos dos que caíram durante a retirada, a maioria vestindo uniforme azul e dourado. Era difícil ignorá-los. O pior era ver aqueles que não tinham morrido, mas que estavam feridos demais para andar, estendendo suas mãos, pedindo socorro enquanto ela passava ou rastejando em direção à cidade. Para esses, Varina só podia dizer que a ajuda estava chegando em breve para resgatá-los — e torcer para que fosse verdade.
Mas ela estava procurando por uma pessoa em especial.
Varina viu um corpo a sua frente, à esquerda, vestindo um robe verde de téni. Pensou que pudesse ser um dos ténis-guerreiros, mas então viu o rosto.
O rosto de Nico.
Ignorando as pernas doloridas, Varina correu até ele, se ajoelhando a seu lado. Nico parecia ileso: não havia sangue em seu robe, seu rosto sujo e escuro tinha velhos cortes e hematomas, mas tirando isso parecia incólume.
— Nico? — ela disse, rolando seu corpo sobre suas costas procurando desesperadamente por algum sinal de ferimento.
Ele abriu os olhos, e sorriu.
— Oi, Varina. Acho que dormi. Você viu minha matarh?
Era a voz de um menino. A voz de uma criança. Nico se sentou e olhou a sua volta, arregalando os olhos ao perceber os gardai correndo aos gritos e brandindo espadas; os corpos caídos ao redor; os vapores e a fumaça do campo de batalha; a terra pisoteada que um dia tinha sido o campo de um fazendeiro. Ele se ajeitou e ficou sentado com as costas eretas.
— Varina — disse Nico com a voz trêmula, obviamente com medo, ele pegou os braços dela com força. — Estou assustado, Varina. Leve-me para casa. Por favor. Eu não quero ficar aqui.
— Nico, o que você fez?
Ele parecia amedrontado com a pergunta e se afastou de Varina.
— Eu não fiz nada, juro. Só quero ir para casa. Quero ver a minha matarh. Quero ver Talis.
Varina o abraçou.
— Nico, Talis e Serafina... partiram.
— Para onde eles foram? — ele perguntou.
Não havia malícia em seus olhos, só a pergunta inocente.
— Nico...
Ela não podia responder. Varina o abraçou de novo. O que quer que Nico tivesse feito, seja lá como o fez, o esforço obviamente lhe custara a mente. Este não era mais o Absoluto dos morellis. Este não era mais Nico, o grande téni. Ele se agarrou a Varina como uma criança a sua matarh, e ela sentiu seu corpo tremer de pânico e angústia.
Gardai ainda passavam por eles; o barulho da batalha e os trovões dos feitiços dos ténis-guerreiros eram ensurdecedores.
— Nico, vamos — falou Varina. — Vamos sair daqui. Não é seguro. Você pode vir pra minha casa. Gostaria disso?
Ele assentiu urgentemente, abraçado a ela. Varina o levantou.
Juntos, eles seguiram cambaleando para leste, em direção à cidade.
Atl se sentiu nu e desprotegido, seu cajado mágico tinha sido esvaziado em poucos instantes por aquele terrível feitiço do leste, e agora a batalha tinha sido subitamente renovada, quando já deveria estar acabada.
Em vitória. Na vitória que Atl tinha visto. Na vitória que Atl tinha dito para o tecuhtli que seria dele. Atl se lembrava da visão do taat, aquela que Niente alegara ter visto, o caminho que Atl tinha sido incapaz de ver, que ele pensava que era mentira do taat. Isso não era possível.
Citlati se enfureceu com Atl enquanto bolas de fogo dos nahualli orientais caiam perto dos dois.
— Detenham-nos! — berrou o tecuhtli. — Maldito seja, nahual! Detenham-nos!
Mas tudo o que Atl pôde fazer foi balançar a cabeça.
— Eu não tenho poder, tecuhtli. Nenhum dos nahualli tem. Ele foi tirado de nós.
Os feitiços sumiram, e não havia tempo agora para preparar novos e colocá-los nos cajados mágicos.
— Você me prometeu a vitória, nahual! Você me prometeu a cidade!
Citlali choramingou como uma criança sem seu brinquedo favorito, mas não havia nenhuma resposta para essa situação. Seu rosto ficara tão vermelho de raiva que a águia vermelha pareceu se misturar a sua pele.
Não haverá uma vitória, Atl queria dizer para ele. Ou, se houver uma, não será a vitória que eu vislumbrei na tigela. Os caminhos da tigela premonitória tinham sido apagados. Tudo mudou. Eu nunca tinha visto esse caminho antes. Não sei para onde ele leva.
Como seu taat tinha avisado. Sua mão tateou a bolsa, onde o pássaro entalhado que o taat lhe dera estava aninhado. Se um de nós vir o rumo, então podemos contar para o outro que o Longo Caminho está aberto... Será que Niente estava certo: será que esse Longo Caminho existia, aquele que Atl não conseguia ver?
Ele desejou que seu taat estivesse ali.
Citlali ainda estava furioso, mas a atenção de Atl estava voltada para o pássaro entalhado na bolsa. Ele pareceu farfalhar, como se estivesse vivo e batendo as asas em pânico. Atl abriu a aba de couro e meteu a mão dentro. Sim, a coisa estava se mexendo. O pássaro ficou imóvel quando Atl o tirou para fora, e, assim que o fez, ele pôde ouvir a voz inconfundível de Niente.
— Tototl está voltando para os navios. Você tem que ir também! O Longo Caminho está aqui.
— Taat?
Não houve resposta. Atl soltou o pássaro entre seus dedos que há muito tinham perdido a força. Ele viu o objeto cair no chão, se perdendo entre os caules dos grão pisoteados na terra. A voz de seu taat soara tão fraca, tão perdida, e Atl foi tomado pela certeza de que jamais a ouviria novamente.
— Tecuhtli — chamou Atl. — Temos que recuar e encontrar os navios. Estamos sem magia. Não teremos nenhuma até que possamos descansar novamente.
— Não! — disparou Citlali. — Eu tomarei a cidade hoje.
— Não é possível agora — respondeu Atl.
— Como você sabe? — disse Citlali, com desprezo. — Nada do que você me disse era verdade. Você não é mais o nahual. Eu encontrarei outro. Farei de Niente o nahual novamente.
Citlali ergueu a espada contra Atl, como se estivesse prestes a atacá-lo, Atl ergueu seu cajado mágico inutilmente.
Alguém gritou na língua dos orientais para os dois, e um cavalo de guerra rompeu o anel em volta de Citlali e Atl, conduzindo um guerreiro coberto de sangue e terra, sem elmo e com uma espada chanfrada na mão. Ele investiu diretamente contra Citlali, e o tecuhtli deixou Atl de lado para aparar o golpe do homem. O aço retiniu em aço, e Atl viu uma lasca da lâmina de Citlali sair voando e girando. Quando os cavalos de guerra se aproximaram, Citlali empurrou o oriental, e o homem caiu do cavalo. O tecuhtli riu.
— Viu só? — disse ele. — Viu só como eles caem facilmente? E você me diz para recuar?
O oriental estava lutando para ficar de pé, meio aturdido, apoiando-se em uma perna. Parecia que ele não seria capaz sequer de erguer sua espada. A sua volta, Atl viu os uniformes pretos e prateados e azuis e dourados dos orientais, embora os três permanecessem sozinhos em um nexo tranquilo em meio ao caos. Vários guerreiros caíam sob a pressão, os feiticeiros inimigos lançavam sua magia, e os nahualli eram incapazes de reagir. Citlali pulou do cavalo; Atl viu sua bota pisar sobre o pássaro vermelho entalhado no chão revirado e lamacento. O tecuhtli ergueu a espada novamente. O golpe, Atl viu, arrancaria a cabeça do oriental.
Atl ergueu seu cajado mágico vazio novamente, e o desceu com força no crânio de Citlali. O som emitido foi estranhamento baixo, como um pau batendo em um melão maduro, mas o tecuhtli caiu inconsciente aos pés atordoados do oriental. O homem olhou para Atl, que devolveu o olhar. Por um instante, nenhum dos dois se mexeu, então, enquanto Atl observava, montado em seu cavalo, o oriental ergueu sua espada e a enfiou no pescoço de Citlali.
— Perdemos o tecuhtli! — Atl gritou alto para que os guerreiros perto dele pudessem ouvi-lo. — Perdemos o tecuhtli. Recuar! De volta para os navios!
Enquanto os guerreiros reagiam, enquanto começavam a abandonar o combate e recuar, enquanto os orientais berravam em triunfo, Atl encarava o oriental. O homem se apoiava na espada, ainda cravada no pescoço de Citlali. Atl o cumprimentou com a cabeça.
Em seguida, ele puxou as rédeas do cavalo e começou a longa fuga para o oeste.
A Aurora
Eles foram perseguidos pelo exército de azul e dourado e preto e prata, foram caçados enquanto recuavam em direção ao rio e aos navios à espera, mas não intensamente. Os retardatários tinham sido abatidos, mas os exércitos principais não foram enfrentados novamente. Ficou claro que os orientais estavam felizes em escorraçá-los de sua terra, mas não exigiriam o extermínio do inimigo se eles estivessem dispostos a ir embora.
O exército vislumbrou os mastros dos navios da frota no segundo dia, a cerca de quinze quilômetros rio acima a partir de Nessântico, os tehuantinos subiram a bordo o mais rápido possível. Tototl, que se nomeara como tecuhtli, entrou no Yaoyotl e virou a frota para oeste assim que os guerreiros sobreviventes e os nahualli subiram a bordo. Ele afundou os barcos vazios, em grande número, no meio do rio para desencorajar a perseguição por parte de qualquer embarcação da marinha dos Domínios.
Eles navegaram A’Sele abaixo, sendo levados rapidamente pela correnteza em direção ao mar.
De volta para casa.
Atl, a bordo do Yaoyotl, olhou fixamente para a bruma verde da tigela premonitória. Tototl o observava atentamente; seu crânio agora estava pintado com o desenho da águia que em breve seria permanentemente tatuado em sua pele.
A miríade de futuros se espalhou diante de Atl; eles não estavam mais encobertos e difusos como tinham estado. Era como se Axat tivesse tirado um véu diante do rosto de Atl. Ele podia ver com mais clareza agora, todas as incertezas que encobriram as possibilidades por tanto tempo tinham sido sopradas para longe como nuvens tempestuosas. Os futuros estavam abertos para o nahual, todas as possibilidades.
O que ele viu o fez ofegar. O Longo Caminho... Este era o futuro que seu taat tinha visto, que ele sempre dizia que estava lá. Atl percebeu então que Niente sabia que preço que o Longo Caminho cobraria: para alcançá-lo, ele devia morrer, e o tecuhtli Citlali também seria morto, se ele quisesse que esse futuro se concretizasse; e um grande número de guerreiros também deveria morrer. Por quanto tempo o senhor manteve esse segredo, taat? O senhor sabia antes mesmo de nós partirmos?
Atl suspeitava que sim. Isso explicava muita coisa. Explicava por que Niente nunca quis que ele usasse a tigela premonitória. Esse tinha sido o gesto de um pai protetor, não o de um nahual enciumado. Essa compreensão fez Atl lamentar as palavras duras que os dois tinham trocado.
— Eu voltarei a esta terra? — perguntou Tototl duramente, interrompendo os pensamentos de Atl e fazendo com que a bruma verde oscilasse com sua respiração a ponto de Atl quase perder a visão. — Eu vingarei nossa derrota?
Atl também pôde ver esse futuro: os navios novamente carregados com um exército, um ainda maior que o de Citlali, voltando pela terceira vez àquelas praias. Mas, dessa vez, os exércitos dos Domínios eram um só e os atacaram prematura e furiosamente; a maioria dos homens estava armada com armas terríveis, como aquelas que Tototl e Niente tinham testemunhado durante suas batalhas. Os guerreiros tehuantinos foram abatidos como trigo por uma foice e a terra bebeu seu sangue.
Era um futuro terrível, mas um futuro que poderia facilmente acontecer.
Mas o outro... aquele que se estendia até ser engolido pelas brumas. Este também era possível, se Atl direcionasse Tototl para esse caminho. Seria necessária habilidade e exigiria sacrifício, mas o futuro estava lá, e ele podia ver a mão de Niente sobre ele.
— O senhor fará mais do que isso, tecuhtli — respondeu Atl. — Um dia, o senhor promoverá a paz com os orientais. Seu nome será homenageado em todas as partes da nossa terra. Todos os tecuhtli que vierem depois serão comparados ao senhor. O senhor será eternamente conhecido como o Grande Tecuhtli.
As brumas enfraqueceram agora, Atl pegou a tigela e jogou a água em seu interior sobre a lateral do navio. Ele entregou a tigela para um nahualli de menor escalão.
— Limpe isto — ele disse para o homem — e coloque de volta na minha cabine.
Ele podia sentir o cansaço do X’in Ka martelar seu corpo, e seu olho esquerdo piscar incomodamente. Atl apertou bem os olhos e os abriu novamente. Tototl o observava.
— Paz? Como um guerreiro encontra honra na paz? Como um guerreiro se torna grande sem guerra e vitória?
Atl respirou profundamente. Olhou para o oeste, para a fumaça e os vapores de Nessântico, para o lugar onde o corpo de Niente jazeria para sempre.
— Eu vou lhe mostrar — disse o nahual. — Juntos, nós nos manteremos naquele caminho.
— Veja-me fazer — ela disse para Nico. — Aí eu quero que você tente fazer sozinho. Está vendo? Olhe só, você faz um laço com o cadarço assim, depois pega a outra ponta e passa uma vez pela base do laço, e...
Ela ouviu uma batida na porta do quarto enquanto amarrava as botas de Nico.
— A’morce?
— Entre — respondeu ela.
Michelle entrou, com Serafina no colo. O bebê estava enrolado em renda, e Michelle segurou a criança com um gesto protetor ao olhar desconfiada para Nico, que estava sentado na cama. Ele virou o rosto ingênuo para olhar para a ama de leite.
— Esta é Serafina? — Nico perguntou para Varina, com ansiedade na voz.
— Sim.
Ele baixou o olhar, quase envergonhado.
— Posso... posso segurá-la?
Michelle balançou a cabeça ligeiramente, mas Varina sorriu para ele.
— Só um pouquinho. E você precisa tomar muito cuidado com ela.
Varina acenou com a cabeça para Michelle que, ainda com a testa franzida, deu um passo para frente, colocando o bebê nos braços esticados de Nico.
— Segure bem a cabeça dela — disse Varina. — Sim, desse jeito. Muito bem...
Nico sorriu ao embalar Serafina nos braços. O bebê se agitou por um momento, mas depois se aquietou, sendo embalado por Nico até dormir. Ele encarou o rosto da criança.
— Os olhos são tão grandes — perguntou Nico com um ar de admiração. — E as mão são muito pequenininhas. Ela é mesmo minha filha?
— Sim. Sua e de Liana.
Varina acariciou a cabeça de Sera. Seu cabelo era fino como uma penugem, a pele macia e quente. Sua mãozinha se sacudiu, encontrando o dedo de Varina e o agarrando. Ela riu.
Nico balançou a cabeça, observando a interação.
— Eu não me lembro de Liana. Eu não sei como...
— Eu conto para você um dia — disse Varina. — Agora, nós temos que nos aprontar para ir ao funeral da kraljica. Aqui...
Ela estendeu as mãos, e Nico colocou Serafina ali com cuidado. Varina ouviu o suspiro audível de alívio de Michelle. Ela beijou a testa de Sera e a abraçou por alguns instantes antes de devolvê-la para a ama de leite?
— Ela está alimentada?
— Alimentada, vestida e pronta para ir — respondeu Michelle. — Eu tenho uma muda de roupas e fraldas. Eu subi para dizer para a senhora que a carruagem do palácio já chegou.
— Ótimo — disse Varina. — Vá na frente, entre com Sera e a acomode. Nico e eu desceremos em breve. Eu só tenho que terminar as botas dele.
Michelle olhou furtivamente para Nico novamente.
— A’morce, esse rapaz é perigoso. O que ele fez...
— O que ele fez com os tehuantinos nos salvou — respondeu Varina. — E ele pagou um preço mais caro do que a maioria de nós estaria disposta a pagar.
— Ele pode estar fingindo esse distúrbio ou recuperar a capacidade mental. E aí?
Nico não disse nada enquanto elas discutiam sobre ele, apenas olhava de uma mulher para a outra enquanto as duas falavam.
— Aí — falou Varina —, nós cuidaremos disso quando acontecer.
Ela já tinha ouvido essa mesma pergunta uma dezena de vezes ou mais. Havia aqueles dentro do Conselho e entre os ca’ e co’ da cidade e os ténis da Fé que queriam que Nico fosse julgado e executado pelas mortes que causou e pelo dano ao Velho Templo durante a tomada dos morellis. Quanto a isso, uma parte da própria Varina ainda estava furiosa com ele pela destruição e pelas mortes que ele tinha, assumidamente, causado a seus próprios amigos durante o funeral de Karl.
Nico, na verdade, tinha que responder por muita coisa, mas ele salvara a cidade praticamente sozinho quando ela estava prestes a cair. Também não havia como negar isso — ou o fato de que o preço pelo esforço fora alto, e talvez, talvez fosse castigo suficiente. O Nico diante de Varina não parecia se lembrar de nada desse dia ou de sua vida anterior. O Nico diante dela era um inocente — ele podia habitar o mesmo corpo, mas não era o Nico que alegava ser o Absoluto. Talvez o kraljiki exigisse um castigo por seu passado, mas Varina lutaria contra isso, com todas as forças que pudesse reunir.
— Por enquanto, ele é uma criança e precisa ser tratado como tal.
— Como a senhora mandar, a’morce — respondeu a ama de leite.
Serafina chorou, e Michelle a embalou com delicadeza.
— Eu vou acalmá-la novamente, nos vemos na carruagem.
Quando Michelle saiu do quarto, Varina se abaixou de novo para amarrar os cadarços das botas de Nico, que a observava com o cenho franzido.
— Está tudo bem Nico — disse ela. — Michelle não está chateada com você. Está apenas preocupada, como eu. Agora, veja como eu faço e vamos ver se você consegue amarrar o outro cadarço. Faça um laço assim, depois passe a outra ponta em volta dele...
Os ténis já estavam presentes no Templo do Archigos. A a’téni Valerie ca’Beranger, de Prajnoli, realizaria a cerimônia — os rumores diziam que ela provavelmente seria eleita como archigos quando o Colégio A’téni se reunisse em poucos dias. Brie conduziu os filhos pela nave ladeada por e’ténis de robe branco — a cor do luto — com bordas verdes. Os ténis a observavam, em silêncio: como fileiras de ossos brancos apontando na direção da Pedra de Cénzi, enquanto Brie e os filhos subiam à plataforma e se aproximavam do altar e da grande Pedra de Cénzi, coberta por um pano azul-celeste reluzente.
— Ali — sussurrou Brie para Elissa, Kriege, Caelor e Eria.
Sua voz soou alta sob o domo, e ela ergueu os olhos uma vez para os afrescos de Cénzi e dos moitidis bem acima delas.
— Esta é sua mamatarh, Allesandra. Ela foi uma grande mulher e me disse que queria muito ter conhecido todos vocês. Eu gostaria que vocês a tivessem conhecido quando ela estava viva.
Não era assim que Brie pretendia que os filhos conhecessem sua mamatarh. Ela tinha tido esperanças de apresentá-los à mulher, não ao corpo morto. Ela se perguntou se não teria sido melhor ter deixado as crianças em Brezno durante o funeral, mas então elas teriam perdido a coroação do vatarh.
— Aqui é feio — dissera Elissa ao desembarcar da carruagem no palácio; a menina olhou em volta para os prédios destruídos e marcados pelo fogo e pela guerra. — Tem um cheiro horrível também. Brezno é bem mais bonito, matarh. Por que nós não podemos ficar lá?
— Nessântico é nosso lar agora — respondera Brie. — E nós faremos a cidade ficar mais bonita e impressionante do que Brezno, como ela era antes. Todos nós ajudaremos seu vatarh a fazer isso.
Ela esperava que isso não fosse uma mentira.
Agora, no Templo do Archigos, eles olhavam para mais uma ruína, a da kraljica.
Eria ficou para trás, com um polegar plantado na boca. Ela se recusou a sequer se aproximar do esquife e se contentou em olhar para o corpo enquanto se agarrava à tashta de Brie. Caelor só se aproximou de maneira hesitante e se afastou rapidamente em direção a sua matarh. Kriege caminhou para a frente de mansinho, com uma expressão séria no rosto, e olhou para a face pintada de branco, dando um passo para trás em seguida, fungando como se pudesse sentir o cheiro mesmo com o escudo antiodor que os ténis tinham colocado em volta do corpo. Elissa, que tinha se aproximado com Kriege, permaneceu ali, olhando para o corpo como se tentasse memorizar cada detalhe dele: as rugas na face da mamatarh; a máscara funerária dourada que os ténis colocariam no rosto de Allesandra em apenas uma virada da ampulheta, quando as portas do Templo do Archigos seriam abertas para que o funeral pudesse começar; o cetro de ferro do kraljiki Henri VI em sua mão esquerda; o anel com o sinete dos kralji à mostra na palma direita, virada para cima, que Jan pegaria quando o ritual do funeral tivesse acabado. O pano azul sobre o altar estava coberto por coroas de flores amarelas. Sete candelabros estavam dispostos em volta da pedra, acesos não com chamas, mas com as luzes brilhantes dos ténis, banhando o corpo com uma iluminação branco-amarelada tão intensa que parecia que o domo do templo tinha sido levantado para que o sol pudesse brilhar sobre a kraljica.
Elissa tocou o braço de Allesandra com um dedo hesitante, depois olhou para sua ponta como se fosse um objeto estranho.
— Ela está fria — relatou Elissa. — E meio dura.
— É o que acontece quando alguém morre.
— Ah! — Elissa pareceu considerar aqui. — Mas o rosto está bonito.
Brie ouviu a voz de Jan, conversando com Sergei ca’Rudka, o starkkapitän ca’Damont e o comandante ca’Talin na lateral do coro. Talbot, o assistente de Allesandra, que tinha concordado em permanecer como assistente de Jan, pigarreou perto dos bancos.
— Hïrzgin, eles já estão prontos para deixar os ca’ e co’ entrarem no templo. Eu vou avisar o hïrzg e os demais; a senhora ainda tem um algum tempo, mas...
Ela assentiu, e Talbot se retirou.
— Não toque nisso — disse Brie para Elissa, que estendeu uma mão hesitante em direção ao anel; ela recolheu a mão como se a tivesse queimado.
— Eu não ia tocar — disse ela. — Esse vai ser o anel do vatarh?
— Sim, em breve — respondeu a matarh.
— E será meu algum dia?
Kriege encarou Elissa.
— Não é justo, matarh — ele gritou, ecoando sua voz estridente sob o domo.
Brie viu as fileiras de ténis se mexerem, e alguém riu, um som rápido, brevemente sufocado.
— Ela fica com tudo.
A hïrzgin podia ouvir Talbot rindo enquanto percorria a nave em direção a Jan. Ela riu também.
— Ninguém vai ficar com o anel; ao menos não por muito tempo, até que vocês todos estejam crescidos. Veremos na ocasião, então. Pode ser que nenhum de vocês dois queira.
— Então eu fico com ele — interrompeu Caelor. — É um anel bonito.
Brie riu.
— Vamos — ela falou para os filhos. — Precisamos tomar nossos lugares...
As trompas tocaram um lamento grave e fúnebre que fez os pombos irromperem em revoada do chão da praça, do lado de fora. Lá dentro, Rochelle podia sentir a parede do templo pulsar em suas costas. Ela tinha entrado no templo sorrateiramente por uma porta traseira, tinha arrombado a fechadura bem antes da aurora, deslizando pelo mezanino do coro ao longo de um canto nas sombras, atrás do arco de um dos pilares, onde poderia olhar o coro, o esquife e os bancos mais próximos.
Rochelle pensou ter sentido o cheiro de fumaça dali: não apenas o aroma pungente dos incensários no altar, mas da fumaça remanescente do bombardeio de areia negra dos tehuantinos, impregnado sob os arcos pintados do domo. Ela tinha se sentado, escondida, ali por várias viradas, esperando. Ela tinha visto os ténis de robe branco formando suas fileiras; o coro se instalando nos assentos não muito longe dela.
Ela tinha visto seu vatarh e sua família entrarem para ver o corpo no meio da manhã, tinha visto Brie conduzir as crianças à frente, depois dela e Jan prestarem sua homenagem.
Os filhos... O pensamento deveria ter sido sua matarh e ela lhe ocorreu, se ao menos as coisas tivessem sido diferentes, mas então Rochelle balançou a cabeça. Não, ela disse para si mesma, com firmeza. O relacionamento deles jamais teria sobrevivido com as mentiras e a loucura da matarh. Jamais teria acontecido. Esse nunca foi meu destino. Não minta para si mesma. Você só pode ser a filha bastarda, nunca a legítima.
Rochelle se perguntou o que seu futuro lhe reservava, e ela não tinha resposta para isso. Sua mão desceu para o cabo adornado da adaga que ela tinha roubado de seu vatarh, a adaga com a qual ela esperava matar sua mamatarh. A madeira lisa do pomo pareceu pulsar sob seus dedos.
A família se afastou do esquife. Ela os viu se acomodarem em seus bancos, ouviu as portas se abrirem assim que as trompas começaram a soar o chamado fúnebre e doloroso mais uma vez, e os ca’ e co’ entraram no templo. O coro a assustou quando começou a cantar uma das obras etéreas e fúnebres de Darkmavis. Os tons ascendentes e as harmonias opressivas ecoaram, altas e insistentes, passando por ela e se propagando para o domo do templo, e a envolveram como um manto.
Pareceu levar uma eternidade para o público do funeral entrar entre as fileiras de ténis de robe branco e se acomodar nos bancos. De seu esconderijo, Rochelle observou os bancos da frente, viu seu vatarh e seus meios-irmãos, assim como a mulher que tinha tomado o lugar de sua matarh: Brie, a quem agora chamavam de a Vitoriosa da Margem Sul e a quem a multidão saudava tão alto quanto Jan. Ela viu Sergei na fileira atrás dele, sentado ao lado da mulher numetodo, carregando uma criança nos braços.
E ao lado dela estava Nico, irrequieto como uma criança entediada. A a’morce não parava de se virar para falar com ele baixinho, e Rochelle notou que Sergei observava o jovem com atenção. Nico — ela se perguntou se era verdade o que diziam sobre seu irmão, que ele tinha perdido a sanidade mental e não era mais que uma criança. Vê-lo daquela maneira doía mais do que tudo, pensou Rochelle.
A a’téni ca’Beranger finalmente surgiu detrás do coro e começou a cerimônia, auxiliada por um grupo de ténis do alto escalão se movendo em torno dela com incensários, taças, o cajado do globo partido e os pergaminhos do Toustour e da Divolonté. Rochelle quase cochilou durante a maior parte da cerimônia e se mexeu apenas quando Jan se levantou para dar a Admoestação. Ela viu seu vatarh caminhar até o Alto Púlpito — andando como um velho, apoiado em uma bengala segurada com firmeza junto ao corpo. Talbot se mexeu para ajudá-lo, e ela notou que Jan balançou a cabeça para o homem. Lentamente, ele subiu os degraus do Alto Púlpito, se recusando a deixar que seus ferimentos o detivessem. Ela viu Jan olhar para a plateia e, em seguida, encarar o corpo de sua matarh por vários instantes antes de falar.
— É costume dizer o quanto uma matarh foi gentil e maravilhosa em vida — ele disse, finalmente, e sua voz de barítono ecoou na ótima acústica do templo. — Eu não vou dizer essa mentira. Ela talvez não tenha sido a melhor matarh que eu poderia ter. Eu era seu filho único, mas não era o filho com o qual a kraljica Allesandra mais se importava.
“Esse filho, o único filho que ela teve, era Nessântico. Os Domínios. Para Nessântico, ela foi uma excelente matarh: uma matarh forte e vigorosa, que realizou o que poucos conseguiriam. A kraljica Allesandra restaurou Nessântico quando a cidade estava em ruínas. Evitou que os Domínios se partissem quando, em mãos menos capazes, eles teriam desmoronado e se dissolvido. Ela protegeu Nessântico quando, pela segunda vez, a cidade foi atacada por invasores estrangeiros. A kraljica Allesandra deu todo o amor, energia e atenção para essa cidade e esse império, e quando foi exigido seu sacrifício, ela se dispôs a dar sua vida para Nessântico como pagamento final.
Jan fez uma pausa longa, respirando profundamente, como se falar o esgotasse. Rochelle se debruçou. Eu estava disposta a tirar a vida da kraljica. Eu teria feito isso, matarh, mas cheguei tarde demais. Sua mão ainda estava no cabo da faca. O vatarh ergueu seu olhar, como se tivesse visto um movimento ou pudesse, de alguma forma, sentir a atração da faca que Rochelle lhe tinha roubado. Ela recuou para as sombras. Seus olhos, bem abaixo, pareciam encará-la, apesar da distância.
— Celebrem Allesandra ca’Vörl — continuou Jan, voltando a olhar para a plateia. — Celebrem sua gestão dos Domínios, pois quando os Domínios estiveram à beira do abismo, ela evitou que o império caísse. Isso foi um golpe de mestre. Isso foi genial. Isso foi passional. Estas eram qualidades que minha matarh possuía em abundância. E essas eram exatamente as qualidades que Nessântico precisava, e ela chegou no exato momento em que Nessântico exigiu sua presença. Nessântico teve sorte em tê-la, com suas habilidades e nesse momento. Ainda que eu não tivesse dado valor na maior parte do tempo.
Uma risada fraca percorreu a plateia nesse momento, soando deslocada no templo.
— Nós saímos vitoriosos de uma guerra terrível — continuou Jan —, em grande parte por causa das atitudes da kraljica Allesandra. Eu só posso esperar, seguindo seus passos, que eu seja capaz de fazer o mesmo, que eu possa ser seu filho e que eu construa a partir de seu legado. Os Domínios foram unificados novamente, a Fé foi unificada novamente, mas há desafios a nossa frente que vão nos testar, a todos nós. Eu sei que ela está nos observando nos braços de Cénzi. Espero que nós possamos fazê-la sentir orgulho pelo que conquistamos.
Jan abaixou a cabeça. Rochelle pensou que ele fosse falar mais, mas ele fez o sinal de Cénzi para a plateia e saiu do Alto Púlpito — lentamente, mais uma vez, ecoando o som alto da bengala no silêncio. Ele voltou para seu lugar enquanto a a’téni e seus assistentes retornavam ao altar. Quando eles começaram a circular o esquife, entoando e balançando os incensários, Rochelle recuou para o nicho, recostando sua espinha sobre a pedra fria.
O que eu faço, vatarh? O que eu faço para o senhor ter orgulho de mim?
Ela podia sentir a pressão do cabo da adaga na lateral de seu corpo ao se agachar, se apoiando no pilar do templo. Se Nessântico passasse a ser a paixão do vatarh, como tinha sido a de Allesandra, se — o que ele disse sobre Allesandra fosse verdade — os Domínios passassem a ser seu filho único, então ela compartilharia essa paixão com Jan. A matarh de Rochelle lhe ensinara uma habilidade ímpar; e ela a usaria, então.
Eu não serei a Pedra Branca, não, eu me tornarei a Adaga de Nessântico.
Rochelle assentiu. Ela permaneceria nas sombras. Seria genuinamente a filha de Jan. Serviria aos Domínios da sua própria maneira.
Sim.
O coro começou a cantar mais uma vez, e Rochelle fechou os olhos, se permitindo mergulhar no som etéreo, tão insubstancial e misterioso quanto ela seria.
A procissão em volta do anel da alameda da Avi a’Parete foi longa e lenta e — Jan podia ver a multidão se alinhar pela Avi, esperando pela passagem da kraljica — necessária. A multidão se estendia pela alameda em várias fileiras de ambos os lados da Avi, até onde sua visão podia alcançar. Suas expressões eram solenes: muitos choravam abertamente. Jan se deu conta de que, assim como Allesandra amara a cidade, a cidade passou a amá-la e a valorizá-la em retribuição.
Jan só podia esperar que fizessem o mesmo por ele nos próximos anos.
Jan fez uma careta quando a carruagem em que estava encontrou um buraco irregular no pavimento; o impacto comprimiu suas costelas, irradiando a dor até seus ombros. Ele sentiu os cortes que os curandeiros tinham costurado há dias se repuxarem quando ele tentou se ajeitar no assento. Ele lutou para demonstrar o mínimo de incômodo possível para as multidões. Jan sorriu e acenou. Em sua mão, o anel com o sinete dos kralji reluziu.
O cortejo fúnebre de Allesandra lembrou o da grande e amada kraljica Marguerite. Nenhum dos kralji, entre Marguerite e Allesandra, tinham recebido uma manifestação tão formal. O kraljiki Justi, filho de Marguerite, tinha sido ironizado e desprezado; o povo da cidade na verdade ficou feliz com sua morte, e seu esquife saíra diretamente do Templo do Archigos para o palácio. O reinado do filho de Audric tinha sido ainda pior, embora a curta regência de Sergei tivesse mantido a cidade estável. Mas assim que a regência terminou prematuramente, a loucura de Audric e seu comportamento excêntrico prejudicaram ainda mais os Domínios, e o assassinato do kraljiki foi — muitos consideraram — uma bênção. A kraljica Sigourney, sucessora de Audric, cometera suicídio quando os tehuantinos saquearam e queimaram a cidade, e seu corpo fora profanado pelos ocidentais: Jan se lembrava disso muitíssimo bem.
Com a morte de Sigourney e a cidade em ruínas fumegantes em volta de Jan, ele poderia ter tomado o título de kraljiki para si; em vez disso, ele escolheu dar Nessântico e os Domínios para sua matarh: um gesto irônico.
E ela transformou essa ironia em uma verdadeira dádiva, Jan tinha que admitir. Isso estava claro para ele agora.
A carruagem de Jan, puxada por três cavalos brancos em um arnês de quatro cavalos, seguiu imediatamente atrás do esquife. Ele ouviu o cântico dos ténis caminhando ao lado do esquife, que parecia flutuar em uma nuvem branca. Sobre o corpo, imagens enormes da kraljica apareciam e desapareciam: exibindo suas imagens como era representada pelo quadro oficial; na inauguração do domo reconstruído do Velho Templo; sorrindo ao descer da sacada durante o Gschnas.
O cheiro das flores a acompanhava, assim como o som dos músicos na carruagem sem teto a frente do esquife, tocando Darkmavis e ce’Miella: uma fusão do antigo com o moderno.
O velho cedendo o lugar para o novo. Jan considerou aquilo fascinante.
— Olhe, eles estão aplaudindo o senhor, vatarh — disse Elissa com alegria, enquanto ela mesma apontava e acenava.
E era verdade: à medida que o esquife passava, e logo depois da carruagem sem teto, o luto virava aplausos e sorrisos.
— Eles gostam do senhor.
— Eles estão aplaudindo porque não têm escolha — respondeu Jan, e Brie franziu a testa.
— Jan...
— É verdade, e as crianças devem saber disso — respondeu ele.
Jan se inclinou na direção de onde os filhos estavam sentados, ignorando o puxão dos pontos e a pontada no peito.
— As pessoas aplaudem desde que pensem que você vai manter a comida em suas barrigas e um teto sobre a cabeça delas. Elas também aplaudem quando temem você, porque têm medo de que, se não aplaudirem, sejam punidas. Não confundam os sorrisos e aplausos com algo mais do que uma fachada.
Ele sentiu a mão de Brie apertar seu braço.
— Querido, por favor. Eles não entendem o que você está dizendo, e você apenas está assustando as crianças. E não deveria ser tão cínico. Não hoje, entre todos os dias.
Ela estava certa, e Jan sabia disso. Ele viu o cabo adornado da chispeira dentro de uma bainha de couro estampada em relevo: a linda chispeira com que Varina e os numetodos a tinham presenteado após a batalha. Os cidadãos de Nessântico estavam aplaudindo sua esposa, Jan sabia: o sucesso do grupo de chispeiros já era uma lenda na cidade, e parecia que a a’hïrzg se tornara uma favorita da cidade.
— Desculpem-me — ele disse para a esposa e os filhos. — Você está certa...
Eles continuaram a dar a volta pela alameda circular, e Jan continuou a sorrir e a acenar. Porque era o que se esperava dele. Porque era seu dever. Eles passaram ruidosamente pela Pontica a’Kralji onde, em jaulas de ferro, o esqueleto do téni-guerreiro ocidental que Sergei matou e dos tehuantinos ocidentais expunham seu triunfo sangrento. Jan mal olhou para os corpos.
A procissão terminou no pátio do Palácio da Kraljica ao anoitecer. O esquife flutuou na nuvem mágica até o pico de uma pilha de toras embebidas em óleo, colocada bem longe das alas do palácio, no centro dos jardins da kraljica: a pira mandaria a alma de Allesandra para os braços de Cénzi. Os ca’ e co’ da cidade, dos Domínios e da Coalizão, os chevarittai em seus uniformes de gala azuis e dourados e negros e prateados, Sergei ca’Rudka, o starkkapitän ca’Damont, o comandante ca’Talin da Garde Civile: todos viram Jan e sua família descer da carruagem.
Jan olhou uma última vez para o corpo de sua matarh. Ele acenou com a cabeça para Talbot, que gesticulou para os ténis-bombeiros dispostos em volta da pira. As mãos dançaram juntas um balé elaborado; as vozes se juntaram em um cântico lento. Uma chama alaranjada brotou de suas mãos enquanto os ténis-bombeiros gesticulavam, como se jogassem pétalas em direção à pira. As chamas estalaram e assobiaram furiosamente, lambendo o óleo e se inflamando rapidamente. A nuvem mágica desapareceu sob um cortina branca que se contorceu e subiu à altura do telhado do palácio até ser espalhada no céu pelo vento. As chamas tocaram o esquife; Jan viu as flores se contorcerem e se enroscarem enquanto o corpo de Allesandra se perdia em uma onda de calor e fumaça. Os furiosos estalos das chamas ecoaram nos muros do palácio e o calor insistente fez todos se afastarem a alguns passos da pira.
Um pedaço de lenha entrou em colapso na pira, disparando fagulhas frenéticas para o alto. Jan se deu conta de que tinha ficado assistindo ao fogo por mais tempo do que pensava, de que o céu estava ficando escuro.
— Podemos ir agora, kraljiki — disse Talbot; o título soou estranho para Jan. — Eles já estão no salão...
O Salão do Trono do Sol estava lotado. As janelas do longo aposento reluziam com as chamas vermelhas da pira, e a grande janela atrás do trono mostrava o céu do crepúsculo, com um tom intenso de violeta e as primeiras estrelas começando a brilhar. O Conselho dos Ca’ estava sentado à frente do trono, com outros dignitários. A a’téni ca’Beranger esperava com Talbot ao lado do Trono do Sol. Brie deixou as crianças com as babás e se aproximou da plataforma do trono, ao lado de Jan.
O Trono do Sol. A enorme cadeira esculpida a partir de um único cristal enorme que tinha a altura de mais de dois homens e um tom branco semitransparente e sarapintado. Ele se avultava diante de Jan e Brie. Enquanto olhava para o trono, ele girava o anel com o sinete na mão, sentindo a superfície lisa e fria do metal dourado e prateado na pele.
— Este é o seu destino, meu marido — sussurrou Brie.
Jan olhou para ela, percebendo que a esposa olhava para suas mãos.
— Você sabe disso — falou Brie. — E sua matarh também sabia.
— Ela demonstrou de um jeito estranho.
— Esse era o destino dela também. Esse era o problema. — Ela gesticulou para o trono. — Lá está ele. É seu, meu amor.
Jan olhou para Talbot. O assistente aquiesceu com a cabeça. Atrás de uma porta no fundo do salão, logo atrás do trono, dois ténis-luminosos entoavam um cântico. Talbot tinha lhe contado que, no último século, o Trono do Sol quase não reagia ao anel com o sinete e que agora a reação era criada por ténis-luminosos especialmente habilidosos e de confiança, que asseguravam que o trono se acendesse quando o kralji se sentava no cristal.
Jan riu ao saber da revelação — outro truque, outro espetáculo.
Ele subiu na plataforma, recebendo o sinal de Cénzi da a’téni ca’Beranger ao passar por ela. Ao chegar ao trono, Jan se virou para encarar a multidão. Todos o observavam.
Jan se sentou. O cristal a sua volta se acendeu com uma luz amarela intensa que parecia emergir das profundezas ocultas do trono. Ele ficou sentado, sendo banhado pela luz, enquanto a plateia se levantava e o aplaudia, retumbante.
— Eu sempre me pergunto o que teria sido dos Domínios se a senhora tivesse vivido — Sergei disse para o quadro da kraljica Marguerite. — Eu adoraria saber o que a senhora acha das coisas agora.
O vinho que ele bebeu estava fazendo sua cabeça girar um pouco. Lá embaixo, no palácio, a celebração do novo kraljiki ainda estava em andamento; lá fora, as brasas da pira de Allesandra lançavam um brilho vermelho na noite. Sergei saiu sorrateiramente das festividades através dos corredores de serviço para ir para lá, para os aposentos que tinham sido de Allesandra, e agora eram de Jan. Ele ainda segurava uma taça de vinho na mão, que ele ergueu para o retrato de Marguerite enquanto descansava em uma cadeira. Uma chama tênue — acesa para espantar o frio da noite — estalava na lareira sob o quadro; a chama e as velas acesas de ambos os lados davam uma iluminação agitada que animava o rosto pintado e austero de Marguerite. Sergei pensou que a kraljica tivesse se mexido e aberto a boca para falar com ele...
Era uma sensação perturbadora, que trouxe lembranças de Audric e sua loucura.
Sergei tomou um bom gole do vinho e enfiou a mão livre no bolso da bashta. Retirou um seixo liso e branco e manipulou sua superfície lustrosa entre seus dedos. Com o movimento, o vinho espirrou pela borda da taça, jogando gotículas em sua bashta. Ele não se importou.
— Marguerite, nós dois amamos tanto esta cidade e este império que estivemos dispostos a fazer qualquer coisa por ela. Eu me pergunto... Será que Nessântico nos ama por nossa paixão e fé? Será que ela se importa? A senhora às vezes se arrepende da vida que levou, como eu? Hum... De alguma forma, conhecendo a senhora como eu conheço, eu duvido. A senhora sempre foi tão segura de si.
Sergei ergueu a taça em brinde, depois a levou à boca, a virou e acabou com o vinho em um longo gole. Ele pousou a taça na mesa ao lado, pegou sua nova bengala e se levantou da cadeira, soltando um resmungo e um gemido.
— A senhora tem um novo parente para ficar olhando à noite — disse o embaixador para Marguerite. — vamos esperar que ele seja um bom governante, tão forte quanto a senhora foi.
Ele percebeu que ainda segurava a pedra. Ele a levou ao ouvido.
— Eu não ouço ninguém.
Sergei bateu com o seixo no nariz e ouviu o som de pedra no metal. Ele riu, cambaleou um pouco ao ficar em pé ali, e recolocou a pedra no bolso.
— O que acontece conosco quando morremos? — perguntou o embaixador para o quadro. — Cénzi realmente nos espera para nos julgar? Eu agradeceria um sinal, Marguerite. Realmente agradeceria.
O quadro olhou fixamente para Sergei à luz da lareira. O olhar pintado de Marguerite se recusava a deixá-lo ir. Finalmente, o embaixador esfregou o nariz e fungou.
— Sem resposta, hein? A senhora sempre manteve seus segredos. Bem, acho que eu vou descobri-los muito em breve.
Sergei fez uma mesura para o quadro e quase caiu. Ele tocou na pedra dentro do bolso. Saiu do aposento, deixando a taça sobre a mesa e, cambaleando, desceu pela escada de serviço novamente. Ao chegar ao corredor da criadagem perto do Salão do Trono do Sol, Sergei ouviu o barulho dos foliões, ainda conversando. Ele seguiu na outra direção e saiu no jardim. O ar fresco da noite pareceu arejar sua mente. Sergei podia sentir o cheiro de cinzas e madeira queimada — bem longe no jardim, criados estavam mexendo e espalhando os carvões da pira. Ele balançou a cabeça e esfregou a barba rala das bochechas. O embaixador deu a volta por esse lado do palácio em direção à Avi a’Parete, ainda apinhada de pedestres e carruagens, mesmo a altas horas. Do outro lado da Pontica a’Brezi Veste, ele viu a torre e as muralhas da Bastida.
Sergei respirou fundo. Contra as nuvens iluminadas pelo luar, a torre estava escura, e uma pequena luz brilhava em uma das janelas superiores, parecendo chamá-lo. A mão de Sergei, no bolso da bashta, tocou novamente o seixo da Pedra Branca.
Ele suspirou e começou a caminhar na direção contrária.
Epílogo: Nessântico
Havia outro kraljiki sentado no Trono do Sol, banhado pela luz dourada — mais um parente da grande kraljica Marguerite. Os Domínios estavam unificados novamente, e o novo kraljiki também sustentava o título de hïrzg de Firenzcia. Havia um novo archigos sentado no trono do Templo do Archigos, onde os archigi se sentavam por séculos, mas esta era uma fé concénziana alterada e enfraquecida, e muitos dos que andavam pelas ruas de Nessântico não eram mais fiéis.
No oeste distante, do outro lado do Strettosei, havia um novo tecuhtli, com um jovem nahual a seu lado.
Uma criança que se tornara um jovem poderoso voltou a ser pouco mais que uma criança novamente. E a Pedra Branca desapareceu mais uma vez, talvez para voltar ou para cair completamente em esquecimento.
Nessântico — a cidade, a mulher — não se importava. Tais movimentos não a incomodavam. A história não estava encerrada. Haveria mais discussões, mais conflitos. Tronos passariam. Vitórias e derrotas, os gêmeos rivais da guerra, se enfrentariam com novos jogadores.
Ela não se importava. A história não estava encerrada porque a história nunca termina. Não pode terminar.
As pessoas que andavam pelas ruas de Nessântico nasceriam e morreriam, para serem substituídas por outras. O Trono do Sol sentiria o peso de dezenas de futuros kralji ainda não nascidos, e eles seriam bons ou maus líderes, mas com o tempo, todos eles — independentemente de quão bons ou maus eles fossem — eventualmente sairiam da longa e infinita história.
Mas ela nunca sairia. Nessântico esteve na história desde o início. A história era dela, e não terminaria até que Nessântico chegasse ao seu fim, e ela...
Era imortal.
Sua sorte tinha mudado mais uma vez. De um reino estilhaçado, um novo e mais forte surgiria. O rosto que o A’Sele refletia de volta para Nessântico mudaria. Algum dia até mesmo a própria linhagem dos kralji talvez desaparecesse. Talvez.
Mas não ela. Ela nunca.
Nessântico continuaria. Ela entraria naquele longo futuro a passos largos: viva, respirando, eterna, a personagem central da história da terra. Seu rosto seria reescrito, as velhas rugas seriam arrancadas e substituídas por novas. Nessântico envelheceria; seria remoçada, sem parar.
A história não terminaria.
A história não podia terminar até que ela mesma tivesse morrido.
E isso, Nessântico dizia para si mesma, jamais poderia acontecer.
O melhor da literatura para todos os gostos e idades