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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MAGIA DE HOLYWOOD / Terry Pratchett
A MAGIA DE HOLYWOOD / Terry Pratchett

 

 

                                                                                                                                   

 

 

 

 

 

OBSERVE...

este é o espaço. Às vezes, é chamado de a última fronteira.

(Só que obviamente não pode haver uma última fronteira, porque ela seria uma fronteira com nada. Mas, tratando-se de fronteiras, esta e realmente a penúltima...).

Sobre a fina camada de estrelas de uma nebulosa vasta e negra, uma gigante avermelhada brilha como a loucura dos deuses...

Seu brilho parece uma faísca no olho de um gigante e desaparece como num piscar de olhos. A escuridão desvenda uma nadadeira em movimento, é a Grande A'Tuin, a tartaruga estelar, segue nadando pelo vazio.

Sobre suas costas, quatro elefantes gigantes. Sobre os ombros deles, cercado de água, cintilando sob seu pequeno Sol orbitante e girando majestosamente em torno das montanhas de seu Centro congelado, está o Disco, mundo e espelho dos mundos.

Quase irreal.

 

 

A realidade não e digital, algo que se liga e se desliga, mas analógica. Gradual. em outras palavras, a realidade e uma qualidade que as coisas possuem, da mesma forma como possuem, digamos, peso. Algumas pessoas são mais reais que outras, por exemplo. estima-se que existam apenas cerca de 500 pessoas reais em cada planeta, motivo pelo qual elas vivem se encontrando inesperadamente o tempo todo.

O Disco é tão irreal quanto possível e ao mesmo tempo real o suficiente para existir.

É real o suficiente para ter problemas de verdade.

A cerca de 50 quilômetros no sentido contrário ao de Ankh-Morpork, a espuma batia na porção de terra coberta de dunas onde o vento balança as gramíneas e o Mar Círculo encontra o Oceano Periférico.

A colina era visível a quilômetros de distância. Coberta por arbustos, não era muito alta, mas ficava entre as dunas feito um barco virado ou uma baleia muito azarada. Ali a chuva não caía, a menos que não conseguisse desviar. embora o vento esculpisse as dunas que a cercavam, o baixo cume da colina permanecia numa eterna e estrondosa calmaria.

Nada, a não ser a areia, havia se modificado por ali durante centenas de anos.

Até agora.

Uma cabana tosca, feita com pedaços de lenha, tinha sido construída na longa curva da praia, embora usar o termo “construído” seja uma ofensa a todos os construtores de cabanas toscas ao longo dos tempos. Se apenas deixassem que o mar empilhasse a madeira, o trabalho talvez saísse melhor.

Lá dentro, um velho acabara de morrer.

— Oh! — ele disse. Abriu os olhos e viu o interior da cabana. Não via nada com muita clareza havia dez anos.

Depois balançou, se não as pernas, pelo menos a memória delas para fora da pobre cama de sisal e se levantou. Saiu de encontro à manhã, que brilhava como um diamante. ele achou interessante o fato de ainda usar uma imagem espectral do seu manto cerimonial — manchado e esfiapado, mas que podia ser reconhecido como algo originalmente felpudo e vermelho escuro com alamar dourado — mesmo depois de morto. "Ou as roupas morrem com a pessoa", pensou, "ou as pessoas se vestem mentalmente, por força do hábito.”.

Também foi a força do hábito que o levou até a pilha de lenha ao lado da cabana. No entanto, quando tentou juntar alguns gravetos, suas mãos passaram através deles.

Soltou um palavrão.

Foi então que notou o vulto parado à beira da água, olhando para o mar. Apoiava-se numa foice. O vento chicoteava seu manto negro.

Saiu mancando em direção ao vulto, mas se lembrou de que estava morto e começou a andar com passos firmes. Não andava com passos firmes havia décadas. Impressionante como tudo voltava tão facilmente.

Antes que ele chegasse à metade do caminho, o vulto obscuro disse:

—    DeCCAN RIBOBe.

—    Sou eu.  

—    O ÚLTIMO GUARDIÃO DA PORTA.

—    Bom, imagino que sim. Morte hesitou.

—    OU VOCÊ e OU VOCÊ NÃO e.

Deccan esfregou o nariz. "e claro", pensou, "que depois de morto você consegue tocar o próprio corpo. Caso contrário, você cairia aos pedaços.”.

—    Tecnicamente o Guarda tem que ser empossado pela Suma Sacerdotisa — respondeu. — e não existe uma Suma Sacerdotisa há milhares de anos. Olha, eu aprendi tudo com o velho Tento, que morava aqui antes de mim. ele só chegou e me disse: "Deccan, parece que eu tô morrendo, então agora depende de você. Porque, se não sobrar ninguém que se lembre direito, vai começar tudo de novo, e você sabe o que isso significa". "Bom, está bem. Mas isso não e exatamente o que se pode chamar de cerimônia de posse", eu respondi. — ele olhou para a colina arenosa. — Éramos só eu e ele. Mais tarde eu me tornei a única pessoa que se lembrava da Holy Wood, a Madeira Sagrada. e agora... — ele pôs a mão na boca. e disse: — Xiiii...

—    SIM — concordou Morte.

Seria um equívoco dizer que havia uma expressão de pânico no rosto de Deccan Ribobe porque, naquele momento, seu rosto estava a vários metros de distância e tinha uma espécie de sorriso amarelo, como se ele finalmente tivesse entendido a piada. Mas seu espírito estava definitivamente preocupado.

—    Olha, o negócio é o seguinte — começou, com pressa —, ninguém jamais vem aqui, sabe, a não ser os pescadores da baía ao lado, e eles só deixa os peixe e sai correndo por causa da superstição. e eu não pude, tipo, ir atrás de um aprendiz ou algo assim porque tinha que cuidar das fogueiras a noite toda e entoar os cânticos...

—    SIM.

—    ... é uma responsabilidade tremenda ser o único capaz de realizar um trabalho...

—SIM.

—    Bom, e claro que não estou dizendo nada que você não saiba...

—NÃO.

—... quer dizer, eu tinha esperança de que alguém naufragasse ou algo do tipo, ou que viesse procurando um tesouro e eu pudesse explicar tudo, como o velho Tento explicou pra mim. eu ensinaria os cânticos, resolveria tudo antes de morrer...

—    SIM?

—    Acho que não tem nenhuma chance de eu meio que...

—NÃO.

—    Achei que não — conformou—se Deccan, desanimado. — ele olhou para as ondas batendo na praia. — Isso aqui era uma cidade grande milhares de anos atrás. Onde agora e o mar. Quando ele tá violento, dá pra ouvir os veios sinos do templo tocando no fundo do mar.

—    EU SEI.

—    eu costumava sentar aqui fora, nas noites de vento, e ficava ouvindo. Ficava imaginando todas as pessoas mortas lá embaixo, tocando os sinos.

—    AGORA TEMOS QUE IR.

—    O veio Tento disse que tinha uma coisa debaixo daquela colina com o poder de levar as pessoas a fazer coisas. Colocava fantasias estranhas na cabeça delas — disse Deccan, seguindo, relutante, o vulto de andar pomposo. — eu nunca tive nenhuma fantasia estranha.

—    MAS VOCÊ ESTAVA ENTOANDO OS CÂNTICOS – observou Morte. e estalou os dedos.

Um cavalo parou de tentar pastar na grama rala das dunas e foi trotando até Morte. Deccan ficou surpreso ao ver que ele havia deixado marcas de casco na areia. esperava faíscas ou, pelo menos, pedra fundida.

—    e... — começou — você pode me dizer, e... o que vai acontecer agora?

Morte contou a ele.

—    eu imaginava — disse Deccan, abatido.

Sobre a colina baixa, a fogueira que havia ardido a noite toda se desintegrou, formando uma chuva de cinzas. Algumas brasas ainda estavam incandescentes.

Logo elas se apagariam.

elas se apagaram.

Nada aconteceu durante um dia inteiro. Depois, numa pequena cavidade na ponta da colina sombria, alguns grãos de areia se deslocaram e deixaram um minúsculo buraco.

Algo saiu dali. Algo invisível. Algo alegre, egoísta e maravilhoso. Tão intangível quanto uma idéia — exatamente o que aquilo era. Uma idéia extravagante.

era tão antiga que não podia ser medida por nenhum calendário conhecido pelo homem. O que ela possuía, naquele exato momento, eram lembranças e necessidades. Lembrava—se da vida em outras épocas e em outros universos. Precisava de pessoas.

ela subiu até as estrelas, mudando de forma, movendo—se em espiral, como fumaça.

Havia luzes no horizonte.

ela gostava de luzes.

Observou—as com atenção por alguns segundos e, em seguida, como uma seta invisível, alongou—se em direção à cidade e acelerou.

Também gostava de ação... e várias semanas se passaram.

Existe um dito popular que afirma que todos os caminhos levam a Ankh-Morpork, a maior cidade do Disco.

Pelo menos e dito por aí que existe um dito popular que afirma que todos os caminhos levam a Ankh-Morpork.

E ele está errado. Todos os caminhos levam para longe de Ankh-Morpork, mas às vezes as pessoas simplesmente pegam a estrada na direção contrária.

Os poetas há muito desistiram de tentar descrever a cidade. Os mais espertos disfarçam. Dizem que... bem... talvez ela seja malcheirosa, talvez ela seja superpovoada, talvez ela seja um pouco como o Inferno seria se controlassem o fogo que queima por lá e formassem um curral cheio de vacas com problemas intestinais durante um ano. Mas e preciso admitir que ela e cheia de vida pura, dinâmica e vibrante. e é verdade, apesar de serem os poetas quem dizem isso. e as pessoas que não são poetas dizem: e daí? Os colchões também tendem a ser cheios de vida, mas ninguém escreve odes a eles. Os cidadãos odeiam morar lá e, se são obrigados a mudar para outra cidade por causa do trabalho, por aventura ou, o que e mais comum, para esperar que algum estatuto de limitações expire, não vêem a hora de voltar para que possam sentir um pouco mais o prazer de odiar viver lá. eles colocam adesivos na parte de trás da carroça dizendo: "Ankh-Morpork — Odeie—a ou deixe—a". Chamam—na de "A Grande Wahooni", por causa da fruta1 com esse nome.

De vez em quando, um governante da cidade constrói um muro ao redor de Ankh-Morpork para manter ostensivamente os inimigos do lado de fora. Mas Ankh-Morpork não teme os inimigos.

 

  1. esta e que dá apenas em algumas partes da Howondalândia paga. Tem seis metros de comprimento, e coberta de espinhos da cor da cera de ouvido e tem o cheiro de um tamanduá que comeu uma formiga muito estragada.

 

Na verdade, ela os recebe bem, desde que sejam inimigos com dinheiro para gastar.2 ela sobreviveu a enchentes, incêndios, multidões, revoluções e dragões. Às vezes por acidente, e preciso admitir, mas sobreviveu. O espírito animado e irrecuperavelmente mercenário da cidade tornou—a resistente a qualquer coisa... Até agora.

Bum!

A explosão arrancou as janelas, a porta e grande parte da chaminé.

era o tipo de coisa já esperada na rua dos Alquimistas. Os vizinhos preferiam as explosões, que ao menos eram identificáveis e acabavam logo. eram preferíveis aos cheiros, que se arrastavam aos poucos.

As explosões faziam parte do cenário. Pelo menos do que restara dele.

e essa tinha sido muito boa, até mesmo para os padrões dos especialistas locais. Havia um núcleo vermelho profundo na fumaça preta encrespada, o que não se via sempre. Os pedaços de cimento meio derretidos estavam mais derretidos que de costume. ela foi considerada bem impressionante.

Bum!

Um ou dois minutos após a explosão, um vulto saiu discretamente do buraco irregular onde antes ficava a porta. Não tinha cabelo, e as poucas roupas que ainda vestia estavam em chamas ele cambaleou até uma aglomeração de pessoas que admiravam a devastação e, sem querer, apoiou a mão coberta de fuligem num vendedor de torta de carne e salsicha quente no pão chamado Dibbler Cava-a-própria-Cova, que possuía a habilidade quase mágica de surgir em qualquer lugar onde pudesse vender alguma coisa.

 

  1. Na verdade, a famosa publicação do Grêmio dos Mercadores, Bem—vindos a Ankh-Morpork, a Cidade de Mil Surpresas, tem agora uma seção inteira intitulada então você e um Invasor Bárbaro?”“, que traz comentários sobre a vida noturna, promoções de artigos folclóricos no bazar e, sob o título "Circulando por aí", uma lista de restaurantes onde se pode encontrar leite de égua e um pudim de iaque confiáveis. e não foram raras as vezes em que um vândalo de capacete pontudo voltou trotando para sua terra congelada perguntando—se por que parecia estar muito mais pobre, já que era o dono legítimo de um tapete malfeito, de um litro de vinho intragável e de um jumento roxo empalhado com um chapéu de palha.

—    Tô procurando — começou, num tom de voz inebriado e maravilhado — u'a palavra. Na ponta da língua.

—    Bolha? — sugeriu Cova. — e imediatamente recuperou seus sentidos de comerciante. — Após uma experiência como essa — acrescentou, oferecendo uma caixa de salgados cheia de fragmentos orgânicos tão reaproveitados que eram quase sábios —, o que você precisa e colocar pra dentro uma torta de carne quente...

—    Nãonaonão. Num e bolha. e o que a gente diz quando descobre uma coisa. Cê sai pela rua gritando — explicou a figura fumegante, com pressa. – e uma palavra especial — acrescentou, com a sobrancelha enrugada sob a fuligem.

A multidão, satisfeita e relutante porque não haveria mais nenhuma explosão, juntou—se ao redor deles. Aquilo poderia ser muito interessante.

—    e, isso mesmo — interrompeu um senhor de idade, enchendo o cachimbo. — Cê sai correndo gritando "Fogo! Fogo!" — ele tinha um ar triunfante.

—    Num e isso...

—    Ou "Socorro!" ou...

—    Não, ele tem razão — disse uma mulher com um cesto de peixes na cabeça. — Tem uma palavra especial. e estrangeira.

—    Isso mesmo, isso mesmo — concordou seu vizinho. — Palavra estrangeira especial para pessoas que descobriram alguma coisa. Foi inventada por um maluco estrangeiro na banheira...

—    Bom — começou o homem do cachimbo, acendendo—o no chapéu incandescente do alquimista —, da minha parte não vejo por que as pessoas desta cidade têm que andar por aí gritando dialetos bárbaros só porque tomaram um banho de banheira. Aliás, olha pra ele. ele não tomou banho. ele está precisando de um banho, isso sim, mas não tomou. Pra que ele vai querer sair por aí gritando palavras estrangeiras? Nós temos palavras perfeitamente satisfatórias para serem gritadas.

—    Qual, por exemplo? — perguntou Cava-a-própria-Cova.

O que fumava o cachimbo hesitou.

—    Bom, por exemplo... "eu descobri uma coisa"... ou... "Viva!"...

—    Não, estou pensando no maluco lá de Tsort ou algum lugar desses. ele estava na banheira e teve uma idéia para alguma coisa e saiu correndo pela rua gritando.

—    Gritando o quê?

—    Num sei. Talvez "Me dá uma toalha!"

—    Aposto que ele ia gritar mesmo se tentasse fazer esse tipo de coisa por aqui — disse Cova, animado. — Agora, senhoras e senhores, eu tenho aqui umas salsichas no pão que fariam o seu...

—    eureca — disse o vulto da cor da fuligem, oscilando para frente e para trás.

—    O que e que tem? — perguntou Cova.

—    Não, essa e a palavra. eureca. — Um sorriso preocupado se espalhou pelas feições enegrecidas. — Significa "encontrei".

—    encontrei o quê? — insistiu Cova.

—    encontrei. Pelo menos, eu tinha encontrado. Octocelulose. Uma coisa incrível. estava em minhas mãos. Mas segurei perto demais do fogo — disse o vulto, com o tom perplexo dos que escaparam por pouco de uma concussão. — Um fato muit'importante. Tenho que fazer uma anotação a respeito. Não deixe esquentar. Muit' importante. Tenho que anotar fato muit'portante.

e voltou correndo para as ruínas fumegantes. Dibbler ficou olhando para ele.

—    O que será que foi tudo isso? — perguntou. Depois deu de ombros e ergueu a voz para gritar: — Torta de carne! Salsicha quente! No pão! Tão frescas que o porco inda nem notou que já era!

A idéia cintilante e espiralada da colina assistiu a tudo isso. O alquimista nem sequer sabia que ela estava lá. Sabia apenas que se sentia excepcionalmente inventivo naquele dia.

Agora ela localizara a mente do vendedor de tortas.

Conhecia aquele tipo de mente. Adorava mentes como aquela. Uma mente capaz de vender tortas que pareciam um pesadelo era capaz de vender sonhos.

Ela deu um salto.

Numa colina distante, a brisa agitava a cinza fria.

Mais abaixo na colina, numa rachadura no vão entre duas pedras, onde um arbusto acanhado de zimbro lutava para sobreviver, um pequeno punhado de areia começou a se mover.

Bum!

Uma camada fina de pó de gesso desceu até a mesa de Mustrum Ridcully, o novo arqui-reitor da Universidade Invisível, bem na hora em que tentava prender uma mosca especialmente difícil.

Olhou através do vitral da janela. Uma nuvem de fumaça subia na área residencial de Morpork.

—    Tesoureeeeiro!

O tesoureiro chegou há alguns segundos, sem fôlego. Barulhos altos sempre o perturbavam.

—    São os alquimistas, mestre — explicou, ofegante.

—    e a terceira vez nesta semana. Malditos comerciantes de fogos de artifício — resmungou o arqui-reitor.

—    Infelizmente, mestre — concordou o tesoureiro.

—    O que eles pensam que estão fazendo?

—    eu realmente não saberia dizer, mestre — respondeu o tesoureiro, recuperando o fôlego. — Nunca me interessei pela alquimia. ela e mesmo muito... muito...

—    Perigosa — completou o arqui-reitor, com firmeza. — Muita porcaria misturada, um tal de dizer "ei, o que aconteceria se a gente adicionasse uma gota dessa coisa amarela?" e depois andar por aí sem as sobrancelhas por duas semanas.

—    eu ia dizer insensata — disse o tesoureiro. — Tentar fazer as coisas da forma mais difícil, enquanto temos a magia cotidiana perfeitamente simples à disposição.

—    Pensei que estivessem tentando achar a cura para as pedras filosofais ou algo do tipo — disse o arqui-reitor. — Um amontoado de absurdos, isso sim. De qualquer maneira, estou indo embora.

Quando o arqui-reitor começou a sair discretamente da sala, o tesoureiro acenou para ele, apressado, com um punhado de papeis na mão.

—    Antes que o senhor se vá, arqui-reitor — começou, desesperado —, eu gostaria de saber se o senhor pode fazer o favor de assinar alguns...

—    Agora não, homem — gritou o arqui-reitor. — Tenho que tirar água do joelho.

—    O quê?

—    Certo. — A porta se fechou.

O tesoureiro ficou olhando para ela e suspirou.

A Universidade Invisível tivera muitos tipos diferentes de arqui-reitores ao longo dos anos. Grandes, pequenos, astutos, levemente dementes, extremamente dementes. eles vinham, serviam — em alguns casos não por tempo suficiente para a conclusão da pintura oficial a ser pendurada no Grande Salão — e morriam. O mago de cargo mais elevado do mundo da magia tinha a mesma probabilidade de se manter no emprego por um longo período que um piloto de testes de pula—pula num campo minado.

Porém, do ponto de vista do tesoureiro, isso realmente não importava. O nome podia mudar de vez em quando, mas o que importava de verdade era que havia sempre um arqui-reitor, e o trabalho mais importante do arqui-reitor, na visão do tesoureiro, era assinar coisas — de preferência, do ponto de vista do tesoureiro, sem ler antes.

Mas esse era diferente. Para começar, quase nunca estava presente, exceto para trocar as roupas sujas de lama. e gritava com as pessoas. Geralmente com o tesoureiro.

Ainda assim, na época pareceu uma ótima idéia eleger um arqui-reitor que não colocava os pés na Universidade havia 40 anos.

Tantas brigas internas entre as várias ordens de magia haviam ocorrido nos últimos anos que, apenas uma vez, os magos mais experientes concordaram que a Universidade precisava de um período de estabilidade para que pudessem seguir em paz com suas conspirações e intrigas durante alguns meses. Uma busca nos registros revelou Ridcully o Castanho, que, depois de se tornar um mago do Sétimo Nível na idade incrivelmente prematura de 27 anos, largou a Universidade para cuidar das terras da família no interior.

Ele parecia ideal.

—    e o cara certo — todos diziam. — e de menino que se torce a vassoura. Um mago do interior. Um retorno àquela coisa toda, às raízes da magia. O bom garoto feliz, de cachimbo e olhos brilhantes. O tipo de cara que conhece todas as ervas. Que perambula pelo mato com seus irmãos, os animais. Dorme sob as estrelas, como se não fosse nada. Sabe o que o vento está dizendo, não se admirem. Dá nome a todas as árvores, pode contar com isso. Fala com os passarinhos também.

Uma mensagem foi enviada. Ridcully Castanho suspirou, praguejou um pouco, encontrou seu cajado no jardim da cozinha, onde servia de apoio a um espantalho, e partiu.

—    e, se ele der algum problema — os magos acrescentaram, no espaço privado de sua mente —, uma pessoa que conversa com as árvores não deve dar nenhum trabalho para ser eliminada.

Depois ele chegou e viu-se que Ridcully o Castanho realmente falava com os passarinhos. Na verdade gritava com eles. e o que geralmente gritava era: "Acertei você, seu desgraçado!"

Os animais do campo e as aves do ar realmente conheciam Ridcully o Castanho. eles ficaram tão bons em reconhecer seus contornos que, num raio de cerca de 30 quilômetros ao redor das terras de Ridcully, corriam, se escondiam ou, em casos de puro desespero, atacavam violentamente diante da mera visão de um chapéu pontudo.

Doze horas após sua chegada, Ridcully havia acomodado um bando de dragões de caça na copa onde ficava o mordomo, disparado sua terrível besta contra corvos na antiga Torre de Arte, bebido uma dúzia de garrafas de vinho tinto e ido para a cama às duas da madrugada, cantando uma música cuja letra tinha palavras que obrigariam alguns dos magos mais velhos e esquecidos a consultar um dicionário.

Ele acordava às cinco horas para caçar patos nos charcos do estuário. e voltava reclamando do fato de não haver nenhum rio para pescar trutas num raio de quilômetros. (Não era possível pescar no rio Ankh. Seria preciso pular várias vezes em cima do anzol para fazê-lo afundar.).

 

Pedia cerveja no café-da-manhã.

E contava piadas.

"Por outro lado", pensava o tesoureiro, "pelo menos ele não interfere no verdadeiro comando da Universidade." Ridcully o Castanho não tinha o mínimo interesse em comandar nada, a não ser talvez uma fileira de cães de caça. em situações em que não era possível atirar flechas, caçar ou fisgar, ele não via muito sentido na coisa.

"Cerveja no café-da-manhã!" O tesoureiro sentiu um arrepio. Os magos não estavam no seu melhor estado ao meio-dia, e o café-da-manhã no Grande Salão era uma ocasião tranqüila e delicada, interrompida apenas por tosses, o arrastar de pés discreto dos empregados e eventuais suspiros. Gente gritando para pedir fígado, chouriço e cerveja era um fenômeno novo.

A única pessoa que não se sentia aterrorizada com aquele homem assustador era o velho Windle Poons, que tinha 130 anos, era surdo e, embora especialista em textos sobre magia antiga, necessitava de orientações adequadas e de uma preparação na véspera para lidar com o dia presente. ele havia conseguido assimilar o fato de que o novo arqui-reitor seria um daqueles sujeitinhos que gostavam de cerca de madeira e passarinhos, mas levaria uma ou duas semanas para compreender qual era realmente o caso. enquanto isso, conversava de forma educada e civilizada acerca das poucas coisas que conseguia se lembrar sobre a natureza e coisas do tipo.

Coisas como as seguintes:

—    Imagino que deva ser uma, mm, mudança para o senhor, mm, dormir numa cama de verdade, em vez de dormir debaixo das, mm, estrelas?

E:

—    essas coisas, mm, aqui se chamam garfos e facas, mm. e:

—    esta, mm, coisa verde nos ovos mexidos, mm, seria salsinha? Mas, como o arqui-reitor nunca prestava atenção a nada que qualquer um dissesse enquanto estivesse comendo e Poons nunca notava quando não recebia resposta, eles se davam muito bem.

De todo modo, o tesoureiro tinha outros problemas.

Os alquimistas, para começar. Não dava para confiar nos alquimistas. eles levavam as coisas muito a Sério.

Bum!

E aquela foi a última. Dias inteiros se passaram sem ser pontuados por pequenas explosões. A cidade sossegou novamente, o que era algo no mínimo imprudente.

O que o tesoureiro não levou em consideração foi o fato de que a ausência das explosões não significava que eles haviam parado de fazer o que quer que fosse. Significava apenas que estavam fazendo certo.

Era meia-noite. A espuma estourava na praia e gerava um brilho fosforescente na noite. Ao redor da colina antiga, no entanto, o som parece ser fraquíssimo, como se estivesse chegando através de várias camadas de veludo.

O buraco na areia estava bem grande agora.

Se alguém pudesse colocar o ouvido perto dele, poderia imaginar ouvir aplausos.

Ainda era meia-noite. Uma lua cheia deslizava acima da fumaça e dos vapores de Ankh-Morpork, agradecendo o fato de haver milhares de quilômetros de céu entre eles.

A sede do Grêmio dos Alquimistas era nova. era sempre nova. Havia sido demolida por explosões e reconstruída quatro vezes nos últimos dois anos — da última vez sem uma sala de leitura e demonstrações, na esperança de que fosse uma decisão útil.

Naquela noite, diversos vultos encapotados entraram no prédio de modo furtivo. Alguns minutos depois, as luzes de uma janela no andar de cima ficaram mais fracas e se apagaram.

Bom, quase se apagaram.

Alguma coisa estava acontecendo lá em cima. Uma estranha luz trêmula preencheu a janela por um curto instante, seguida por uma comemoração desarmônica.

e houve um barulho. Não um estrondo, mas um estranho ronrom mecânico, como se houvesse um gato feliz dentro de um barril de lata.

ele fez clicaclicaclicaclica... clique.

Prosseguiu durante alguns minutos, com palmas e vivas ao fundo. Depois uma voz disse:

—    Por hoje e só, pessoal.

_ Por hoje e só o quê? — perguntou o Patrício de Ankh-Morpork na manhã seguinte.

O homem diante dele tremeu de medo.

—    Não sei, milorde — respondeu. — eles não queriam me deixar entrar. e me fizeram esperar do lado de fora, milorde.

ele retorcia os dedos, nervoso. O olhar fixo do Patrício o imobilizava. era um ótimo olhar, e um de seus efeitos consistia em fazer com que as pessoas continuassem falando mesmo quando achavam que já tinham terminado.

Somente o Patrício sabia quantos espiões possuía na cidade. Aquele ali era um empregado do Grêmio dos Alquimistas. Certa vez caiu na desgraça de ser apresentado ao Patrício acusado de embromação maliciosa, e foi naquele momento que decidiu se tornar um espião, por livre e espontânea vontade.3

—    e só isso, milorde — choramingou. — Houve apenas esse som de clique e essa espécie de brilho tremeluzente embaixo da porta. e... e... eles disseram que a luz do dia aqui era ruim.

—    Ruim? Como assim?

—    e... Não sei, senhor. Ruim, só disseram isso. Devem ir a algum lugar onde a luz e melhor, segundo eles. Ah, e me pediram para ir buscar comida para eles.

O Patrício bocejou. Havia alguma coisa infinitamente entediante no jeito de ser dos alquimistas.

—    Certo — ele disse.

—    Mas fazia só 15 minutos que eles tinham jantado — deixou escapar o empregado.

—    Talvez o que estavam fazendo, o que quer que fosse, deixe as pessoas com fome — comentou o Patrício.

—    Sim, e a cozinha já tinha fechado. eu tive que ir comprar uma bandeja de salsichas quentes no pão com o Dibbler Cova.

 

  1. A alternativa a isso era decidir por livre e espontânea vontade ser atirado num covil de escorpiões.

 

—    Certo. — O Patrício olhou para os papeis sobre sua mesa. — Obrigado. Pode sair.

—    e sabe o que mais, milorde? eles gostaram. eles ainda por cima gostaram!

Só o fato de os Alquimistas possuírem um grêmio já era notável. Os magos também não eram nada cooperativos. eram hierárquicos e competitivos por natureza. Precisavam da organização. Que graça teria ser um mago do Sétimo Nível se não houvesse seis outros níveis para desprezar e o Oitavo Nível para almejar? era preciso haver outros magos para odiar e rejeitar.

Os alquimistas, por outro lado, atuavam sozinhos, trabalhavam em salas escuras ou em porões escondidos, eternamente à procura do grande cassino — a Pedra Filosofal, o elixir da Vida. Geralmente eram homens magros, de olhos vermelhos, com barbas que não chegavam a ser barbas, mas algo como grupos de pêlos individuais que se aglomeravam para proteção mútua. Muitos deles tinham aquela expressão vaga e desapegada que se obtém depois de ficar muito tempo na presença de mercúrio em ebulição.

Não que os alquimistas odiassem os outros alquimistas. Geralmente não os notavam ou achavam que eram morsas.

Assim seu Grêmio minúsculo e desprezado nunca havia aspirado ao status, digamos, poderoso dos Grêmios dos Ladrões, dos Mendigos ou dos Assassinos. em vez disso, se dedicava a auxiliar viúvas e famílias de alquimistas que, por exemplo, tivessem se portado de forma excessivamente relaxada com o cianureto de potássio ou que tivessem destilado algum fungo interessante, bebido o resultado e depois caminhado pelo telhado para brincar com as fadas. Na verdade, não havia muitas viúvas nem muitos órfãos, o que era bastante óbvio, porque os alquimistas tinham dificuldade de se relacionar com outras pessoas por tempo suficiente para se casar e, quando conseguiam, era apenas para ter alguém para segurar seu cadinho.

De modo geral, a única habilidade que os alquimistas de Ankh-Morpork haviam descoberto até então era a capacidade de transformar ouro em menos ouro.

Até agora...

Agora eles estavam cheios daquela ansiedade nervosa de quem descobriu uma fortuna inesperada na conta bancária e não sabe se chama a atenção das pessoas para o fato ou simplesmente pega a bolada e some logo dali.

—    Os magos não vão gostar — observou um deles, um homem magro e hesitante chamado Lully. — eles vão dizer que isso e magia. Vocês sabem como ficam irritados quando pensam que você está fazendo magia e não e mago.

—    Não há nenhuma magia envolvida — respondeu Thomas Silverfish, o presidente do Grêmio.

—    Tem os diabretes.

—    Isso não e magia. e apenas ocultismo comum.

—    Bom, tem as salamandras.

—    História natural, perfeitamente normal. Nada de errado com isso.

—    Bom, está bem. Mas eles vão dizer que e magia. Vocês sabem como eles são.

Os alquimistas concordaram, desanimados.

—    eles são reacionários — disse Sendivoge, o secretário do Grêmio. — Malditos taumocratas. e os outros Grêmios também. O que eles sabem da marcha do progresso? eles por acaso se importam? Poderiam fazer algo assim há anos, mas fizeram alguma coisa? Não! Imaginem só em como poderíamos tornar a vida das pessoas tão... bem, melhor. As possibilidades são imensas.

—    educacionais — observou Silverfish.

—    Históricas — emendou Lully.

—    e, e claro, tem o entretenimento — disse Peavie, o caixa do Grêmio. era um homem pequeno e nervoso. De qualquer modo, quase todo alquimista era nervoso — conseqüência de não saber, a cada experimento, o que o cadinho de ingredientes borbulhantes iria fazer no minuto seguinte.

—    Bom, sim. Obviamente algum entretenimento — concordou Silverfish.

—    Alguns dos maiores dramas históricos — disse Peavie. — Imaginem só a cena! Você junta alguns atores, eles encenam apenas uma vez, e as pessoas em todas as partes do Disco poderão assistir quantas vezes quiserem! Uma grande economia com salários, aliás — acrescentou.

—    Mas com discernimento — interrompeu Silverfish. — Temos a imensa responsabilidade de zelar para que nada seja feito de qualquer forma que possa ser... — sua voz falhou — vocês entendem... vulgar.

—    eles não vão deixar — disse Lully, pessimista. — eu conheço aqueles magos.

—    eu venho pensando nisso — começou Silverfish. — De todo modo, a luz aqui e ruim demais. Nisso nós concordamos. Precisamos de céu azul. e precisamos ficar num lugar bem distante. Acho que conheço um lugar perfeito.

—    Quer saber, não consigo acreditar que estamos fazendo isso —disse Peavie. — Um mês atrás, não passava de uma idéia maluca. e agora está tudo desenvolvido! Parece magia! Mas não mágica, se e que vocês me entendem — acrescentou rapidamente.

—    Não apenas ilusão, mas ilusão de verdade — concordou Lully.

—    Não sei se alguém já pensou nisso — ponderou Peavie —, mas bem que podia render um pouco de dinheiro para a gente. Hein?

—    Isso não e o importante — disse Silverfish.

—    Não. Não, claro que não — murmurou Peavie. ele olhou rapidamente para os outros.

— Vamos assistir mais uma vez? — perguntou timidamente.

—    Não me importo de virar a manivela. e, e... bom, sei que não contribuí muito para este projeto, mas fui eu que inventei esta... e... esta coisa.

ele tirou um saco enorme do bolso do manto e largou-o sobre a mesa. O saco virou, e bolinhas brancas, leves e disformes rolaram para fora.

Os alquimistas ficaram olhando para aquilo.

—    O que e isso? — perguntou Lully.

—    Bom — começou Peavie, sem jeito —, e preciso pegar um pouco de milho e colocar dentro, digamos, de um cadinho número 3, com um pouco de óleo de cozinha, sabe, e depois pôr um prato ou algo do tipo em cima. Quando você aquece, faz um estouro. Quer dizer, não um estouro grave. Quando pára de estourar, você tira o prato, e o milho se metamorfoseou nessas... e... coisas... — ele olhou para os rostos que não entendiam nada. — Dá pra comer — murmurou, tentando se justificar. — Se você colocar manteiga e sal, fica com gosto de manteiga salgada.

Silverfish estendeu a mão manchada de produtos químicos e escolheu um punhado das coisas fofinhas com cuidado. Mastigou com um ar pensativo.

—    Não sei mesmo por que fiz isso — disse Peavie, corado. — Só tive uma sensação de que estava certo.

Silverfish continuou mastigando.

—    Tem gosto de papelão — observou depois de algum tempo.

—    Desculpe — disse Peavie, tentando puxar com a mão o resto do monte para dentro do saco. Silverfish pôs a mão no seu braço com um movimento suave.

—    Veja bem — começou, escolhendo mais um punhado das coisas fofinhas —, elas realmente têm seu charme, não? Realmente parecem ter algo de bom. Como e que se chamam mesmo?

—    Não têm um nome, na verdade. eu chamo apenas de grãos estourados.

Silverfish pegou mais uma.

—    engraçado como dá vontade de continuar comendo. Têm um gosto de "quero-mais". Grãos estourados? Certo. Como eu ia dizendo... Senhores, viremos a manivela mais uma vez.

Lully começou a enrolar o filme de volta na lanterna não-mágica.

—    Você estava dizendo que conhecia um lugar onde poderíamos realmente desenvolver o projeto e onde os magos não nos perturbariam.

Silverfish pegou um punhado de grãos estourados.

—    e na costa, longe daqui. e agradável e ensolarado, e ninguém aparece mais por lá hoje em dia. Não tem nada, a não ser uma velha floresta onde venta muito e um templo, areia e dunas.

—    Um templo? Os deuses podem ficar muito irritados se você... — começou Peavie.

—    Olha — interrompeu Silverfish —, a área toda está abandonada há séculos. Não tem nada por lá. Nem gente, nem deuses, nem nada. Apenas muita luz do sol e terra esperando por nós. e a nossa chance, rapazes. Não temos permissão para praticar magia, não conseguimos fazer ouro, não conseguimos sequer nos sustentar... então vamos produzir imagens animadas. Vamos entrar para a história!

Os alquimistas relaxaram e pareciam mais animados.

—    e isso aí — disse Lully.

—    Oh. está bem — concordou Peavie.

—    Um brinde às imagens animadas — disse Sendivoge, erguendo a mão cheia de grãos estourados. — Como cê ficou sabendo desse lugar?

—    Ah, eu... — Silverfish parou. ele parecia confuso. — Não sei. Não consigo... me lembrar direito. Devo ter ouvido falar dele uma vez e esqueci, e depois simplesmente surgiu na minha cabeça. Sabe como essas coisas acontecem.

—    e — concordou Lully. — Como eu e o filme. era como se eu estivesse me lembrando de como fazer. engraçados os velhos truques que a mente sabe pregar.

—e.

—Quando chega a vez daquela idéia, acontece.

—e.

—e

—    Deve ser isso.

Um silêncio levemente preocupado se instalou à mesa. era o som das mentes tentando tocar algo que os incomodava com seus dedos mentais.

O ar parecia brilhar.

—    Como e que chama esse lugar? — perguntou Lully, por fim.

—    Não sei como se chamava nos velhos tempos — disse Silverfish, recostando-se e puxando os grãos estourados na sua direção.

— Hoje em dia e chamado de Holy Wood.

—    Holy Wood — disse Lully. — Parece... familiar.

Houve outro silêncio, enquanto pensavam sobre isso.

O silêncio foi interrompido por Sendivoge.

—    Ora, ora — disse num tom animado. — Holy Wood, aí vamos nós.

—    e — animou—se Silverfish, chacoalhando a cabeça como se afastasse um pensamento perturbador. — e engraçado mesmo. estou com uma sensação... de que nós temos ido até lá... durante todo esse tempo.

Milhares de quilômetros abaixo de Silverfish, a Grande A'Tuin, a tartaruga estelar, seguia remando e sonhando pela noite estrelada.

A realidade e uma curva.

esse não e o problema. O problema e que não há tanta realidade quanto deveria haver. De acordo com alguns dos textos mais místicos das estantes da Biblioteca da Universidade Invisível — "A faculdade de magia e grandes jantares do Disco", coleção de livros tão pesada que distorce o espaço e Tempo —, ao menos nove décimos de toda a realidade original já criada se encontra do lado de fora do multiverso. Uma vez que o multiverso, por definição, inclui absolutamente tudo o que existe, isso deixa as coisas um pouco complicadas.

Alem das fronteiras dos universos estão as matérias-primas da realidade — os poderiam—ter—sido, os podem—ser, os nunca—foram, as idéias descabidas —, tudo sendo criado e "descriado" de forma caótica, como fenômenos atmosféricos de supernovas agitadas.

Somente uma vez ou outra, nos locais em que as paredes dos mundos se tornam um pouco gastas, tudo isso pode vazar para dentro.

E a realidade vaza para fora.

O efeito e semelhante àqueles gêiseres de água quente no fundo do mar, em torno dos quais estranhas criaturas submarinas encontram calor e alimento suficientes para formar um pequeno e transitório oásis de existência num ambiente em que não deveria haver absolutamente nenhuma existência.

A idéia de Holy Wood vazou inocente e alegremente para dentro do Discworld.

e a realidade vazou para fora.

e foi encontrada. Porque há Coisas do lado de fora cuja habilidade de farejar pequenas e frágeis aglomerações de realidade faz com que aquela relação entre tubarões e vestígios de sangue pareça muito sem graça.

elas começaram a se juntar.

Uma tempestade deslizou sobre as dunas de areia, mas, ao se aproximar da colina baixa, as nuvens pareciam fazer uma curva para se esquivar. Apenas algumas gotas de chuva bateram no solo ressecado, e o temporal se transformou em nada alem de uma brisa suave.

e soprou areia sobre os restos muito antigos de uma fogueira.

Mais abaixo, no morro, perto de um buraco agora grande o suficiente para, digamos, um texugo passar, uma pequena pedra se deslocou e saiu rolando.

Um mês passou rapidamente. ele não queria ficar andando à toa.

O tesoureiro bateu respeitosamente à porta do arqui-reitor e depois a abriu.

A seta de uma besta prendeu seu chapéu no batente de madeira da porta.

O arqui-reitor baixou o arco e olhou fixamente para ele.

—    Que coisa perigosa pra se fazer, hein? — ele disse. — Você poderia ter causado um acidente horrível.

O tesoureiro não teria chegado onde estava — ou melhor, onde estivera dez segundos antes, um local em que havia uma personalidade calma e segura que agora não existia mais, já que estava à beira de um leve ataque cardíaco —, se não possuísse tremenda habilidade de se recuperar de situações perturbadoras inesperadas.

ele desprendeu o chapéu do alvo desenhado a giz na madeira antiga.

—    Não houve nenhum estrago — observou. Voz nenhuma conseguiria parecer tão calma como aquela sem um esforço tremendo. — Mal se percebe o buraco. Por que... é... o senhor está atirando na porta, mestre?

—   Use o bom senso, homem! está escuro lá fora, e as malditas paredes são feitas de pedra. Você não esperava que eu atirasse nas paredes, não é?

—    Ah — disse o tesoureiro. — esta porta tem... é ... 500 anos, sabe — acrescentou, com um tom de reprovação bem afinado.

—    Percebe-se— concordou o arqui-reitor asperamente. — Maldita coisa grande e preta. O que precisamos aqui e de menos pedra e madeira e mais alegria, homem. Algumas gravuras de esporte, sabe. Um ou dois enfeites.

—    Providenciarei o mais rápido possível — mentiu calmamente o tesoureiro. ele se lembrou do feixe de papeis que trazia debaixo do braço. — enquanto isso, mestre, talvez o senhor pudesse...

—    Certo — disse o arqui-reitor, afundando o chapéu pontudo na cabeça. — Bom sujeito. Agora tenho um dragão doente pra cuidar... O danadinho não toca no óleo de alcatrão há dias.

—    Sua assinatura em um ou dois desses... — balbuciou o tesoureiro rapidamente.

—    Não posso cuidar de toda essa coisa — negou o arqui-reitor, fazendo um gesto para que ele se afastasse. — Tem papel demais por aqui. e... — ele olhou através do tesoureiro, como se tivesse acabado de se lembrar de alguma coisa. — Vi uma coisa engraçada hoje de manhã. Vi um macaco no pátio. Todo atrevido.

—    Ah, sim — disse o tesoureiro num tom de animação. — e o bibliotecário.

—    ele tem um animal de estimação, e?

—    Não, o senhor me entendeu mal, arqui-reitor — corrigiu o tesoureiro. — Aquele e o bibliotecário.

O arqui-reitor o olhou fixamente.

O sorriso do tesoureiro começou a congelar.

—    O bibliotecário e um macaco?

O tesoureiro levou algum tempo para explicar as coisas de forma clara. Depois o arqui-reitor disse:

—    então o que você está me dizendo e que esse sujeito se transformou em macaco através da magia?

—    Um acidente na Biblioteca. explosão mágica. Num minuto, homem; no minuto seguinte, um orangotango. e o senhor não pode chamá-lo de macaco, mestre. ele e um símio.

—   Não e tudo a mesma porcaria?

—    Aparentemente não. ele fica muito... e... agressivo quando alguém o chama de macaco.

—    ele não mostra o traseiro para as pessoas, mostra? O tesoureiro fechou os olhos e estremeceu.

—    Não, mestre. esses são os babuínos.

—    Ah — o arqui-reitor parou para pensar. — Não tem nenhum desses trabalhando aqui, não e?

—    Não, mestre. Apenas o bibliotecário, mestre.

—    Não posso tolerar. Não posso tolerar, sabe. Não posso tolerar essas malditas coisas grandes e peludas rebolando por todo lado — disse o arqui-reitor com firmeza. — Livre-se dele.

—    Credo, não! ele e o melhor bibliotecário que já tivemos. e representa uma economia tremenda em dinheiro.

—    Por quê? O que pagamos a ele?

— Amendoim — respondeu de pronto o tesoureiro. —Alem disso, ele e o único que sabe como a Biblioteca realmente funciona.

—    Faça ele se transformar de novo então. Isso não e vida para homem nenhum... ser um macaco...

—    Símio, arqui-reitor. e parece que ele prefere viver assim, infelizmente.

—    Como e que cê sabe? — perguntou o arqui-reitor, desconfiado. — ele fala, e?

O tesoureiro hesitou. Sempre tinha esse problema com o bibliotecário. Todo mundo estava tão acostumado com ele que era difícil se lembrar do tempo em que a Biblioteca não era administrada por um símio de dentes amarelos e a força de três homens. Se o anormal existe por tempo suficiente, passa a ser normal. Acontece que, quando era preciso explicar isso a uma terceira pessoa, soava esquisito. ele tossiu de nervoso.

—    ele diz "oook", arqui-reitor.

—    e isso significa o quê?

—    Significa "não", arqui-reitor.

—    e como ele diz "sim" ?

O tesoureiro estava com muito medo de que isso acontecesse.

—   “Oook", arqui-reitor.

—    esse "oook" foi igual ao outro "oook"!

—    Ah, não. Não. Posso lhe garantir. A entonação e diferente... Quer dizer, quando você se acostuma com... — o tesoureiro deu de ombros. — Acho que nós simplesmente aprendemos a entendê-lo, arqui-reitor.

—    Bom, pelo menos ele se mantém em forma — observou o arqui-reitor num tom malcriado. — Diferente do resto de vocês. eu entrei na Sala Incomum hoje de manhã e ela estava cheia de homens roncando!

—    esses deviam ser os mestres sêniores, mestre — disse o tesoureiro. — eu diria que eles estão em excelente forma.

—    excelente forma? O decano parece um homem que engoliu uma cama!

—    Ah, mas, mestre — começou o Tesoureiro com um sorriso tolerante —, a expressão "em forma", do jeito que a entendo, significa "em conformidade, nos devidos termos". e eu diria que o corpo do decano está em perfeita conformidade com o propósito de ficar sentado o dia todo fazendo refeições pesadas. — O tesoureiro se permitiu um breve sorriso.

O arqui-reitor lhe lançou um olhar tão antiquado que devia ter pertencido a um amonite.

—    Isso foi uma piada? — perguntou no tom desconfiado de quem realmente não entenderia a expressão "senso de humor" mesmo se você o fizesse se sentar durante uma hora e desse uma explicação usando diagramas.

—    Foi apenas uma observação — respondeu o tesoureiro, cauteloso.

O arqui-reitor balançou a cabeça.

—    Não suporto piadas. Não suporto gente que anda por aí tentando ser engraçada o tempo todo. e o que dá passar tanto tempo sentado em locais fechados. Umas corridas de 30 quilômetros, e o decano seria um homem diferente.

—    Bom, sim — concordou o tesoureiro. — Seria um homem morto.

—    Seria saudável.

—   e, mas, ainda assim, morto.

O arqui-reitor remexeu nos papeis sobre a mesa com irritação.

—    Sedentarismo — murmurou. — e isso o que existe demais por aqui. este lugar inteiro está falido. Pessoas dormindo o dia todo e se transformando em macaco a toda hora. Nós nem sequer pensávamos em nos transformar em macacos na minha época de estudante. — ele ergueu a cabeça, irritado.

—    O que e que você queria? — gritou.

—    O quê? — perguntou o tesoureiro, sem forças.

—Você queria que eu fizesse alguma coisa, né? Provavelmente porque eu sou o único sujeito aqui que não está dormindo profundamente nem está sentado numa árvore gritando todas as manhãs — acrescentou o arqui-reitor.

—    e... Acho que são os gibões que fazem isso, arqui-reitor.

—    O quê? O quê? Tente falar coisa com coisa, homem!

O tesoureiro se recompôs. Não entendia por que tinha que ser tratado daquele jeito.

—    Na verdade eu queria ter uma conversa com o senhor a respeito de um dos alunos, mestre — disse friamente.

—    Alunos? — vociferou o arqui-reitor.

—    Sim, mestre. Sabe? Os mais magros, de rosto pálido? Porque nós somos uma universidade... eles vêm com todas as tralhas, feito ratos...

—    eu achei que pagávamos pessoas para lidar com eles.

—    O corpo docente. Sim. Mas às vezes... bem... Será que o senhor poderia fazer o favor, arqui-reitor, de ver esses resultados de provas...

era meia-noite — não a mesma meia-noite de antes, mas uma meia-noite muito semelhante. O velho Tom, o sino sem badalo da torre do sino da Universidade, acabara de bater seus 12 silêncios sonoros.

Nuvens densas e cinzentas espremiam suas últimas gotas sobre a cidade. Ankh-Morpork se esparramava sob algumas estrelas umedecidas, tão real quanto um tijolo.

Ponder Stibbons, estudante de magia, fechou seu livro e esfregou o rosto.

—    está bem — disse. — Me pergunte qualquer coisa. Anda.

Qualquer coisa mesmo.

Victor Tugelband, estudante de magia, pegou sua cópia surrada de Necrotelicomnicon Analisado para estudantes com experimentos Práticos e virou as páginas aleatoriamente. estava deitado na cama de Ponder. Pelo menos seus ombros estavam. Seu corpo se estendia pela parede. essa e uma posição perfeitamente normal para um estudante que se sinta à vontade.

—    Ok. Certo. Ok? Qual, certo, qual e o nome do monstro exterior à dimensão cujo grito característico e "Oquêoquêoquêoquêoquê"?

—    Yob Soddoth — respondeu Ponder de pronto.

—    Isso. Como e que o monstro Tshup Aklathep, Sapo estelar Infernal com Um Milhão de Girinos, tortura suas vítimas até a morte?

—    ele... não fala... ele as prende no chão e mostra fotos de seus filhos até o cérebro delas implodir.

—    Sim. Sempre me perguntei como e que isso acontece — comentou Victor, virando as páginas com o polegar. — Imagino que, depois de dizer "e, ele tem os seus olhos" pela milésima vez, você já está meio que pronto para cometer suicídio de qualquer maneira.

—    Você sabe muito, Victor — disse Ponder com um tom de admiração. — Fico surpreso por você ainda ser um aluno.

—    e... e. e... Apenas falta de sorte nas provas, acho.

—    Continua — disse Ponder. — Pergunta mais uma.

Victor abriu o livro novamente.

Houve um momento de silêncio.

então disse:

—Onde fica Holy Wood?

Ponder fechou os olhos e bateu na testa.

—    espera aí, espera aí... não fala... — ele abriu os olhos. — Como assim, onde fica Holy Wood? — acrescentou, incisivo. — Não me lembro de nada sobre Holy Wood nenhuma.

Victor olhou para a página com os olhos arregalados. Não havia nada sobre Holy Wood nenhuma ali.

—   eu podia jurar que ouvi... Acho que devo estar distraído — desculpou—se, pouco convincente. — Deve ter sido essa revisão toda.

—    e. Chega uma hora em que cansa. Mas vai valer a pena, você será um mago.

—    e — concordou Victor. — Não vejo a hora.

Ponder fechou o livro.

—    A chuva parou. Vamos dar uma saída. A gente merece uma bebida.

Victor balançou o dedo.

— Só uma então. Tenho que ficar sóbrio. Tem prova final amanhã. Tenho que manter a mente atenta.

—    Uhhh! — disse Ponder.

e claro que e muito importante estar sóbrio quando se presta um exame. Muitas carreiras valorosas no ramo de limpeza de rua, colheita de frutas e performances de violão no metrô se iniciaram graças à falta de conhecimento desse simples fato.

Mas Victor tinha um motivo especial para se manter alerta.

ele poderia cometer um erro e passar.

Seu falecido tio havia lhe deixado uma pequena fortuna para que ele não se tornasse um mago. O velho não percebeu isso ao redigir o testamento, mas foi o que acabou fazendo. ele achou que estivesse ajudando o sobrinho a terminar a faculdade, mas Victor Tugelbend era um jovem muito inteligente, de um modo um tanto distorcido, e havia raciocinado da seguinte maneira: quais são as vantagens e desvantagens de ser um mago? Bem, você possui certa dose de prestígio, mas geralmente acaba em situações de perigo e com certeza sempre corre o risco de ser morto por outro mago.

ele não via futuro em ser um cadáver respeitado.

Por outro lado...

Quais são as vantagens e desvantagens de ser um estudante de magia? Você tem muito tempo livre, alguma liberdade de ação em assuntos como beber muita cerveja e cantar músicas obscenas, ninguém tentava muito matá-lo, exceto da maneira corriqueira e comum no dia-a-dia em Ankh-Morpork e, graças à herança, também era possível levar um estilo de vida confortável. e claro que não se ganhava muito em termos de prestígio, mas pelo menos você ficava vivo para saber disso.

então Victor dedicou uma quantidade de energia considerável antes de tudo, para estudar os termos do testamento, as regras bizantinas dos exames da Universidade Invisível e todos os exames dos últimos 50 anos.

A nota mínima para a aprovação nos exames finais era 88.

Ser reprovado seria fácil. Qualquer imbecil consegue ser reprovado.

Mas o tio de Victor não era nenhum idiota. Uma das condições da herança era que, caso Victor tirasse uma nota menor que 80, o suprimento de dinheiro secaria como um cuspe ralo num forno quente.

ele havia vencido, de certa forma. Poucos alunos haviam estudado tanto quanto Victor. Diziam por aí que seu conhecimento em magia se igualava ao de alguns dos magos mais importantes. ele passava horas numa cadeira confortável da Biblioteca lendo grimórios. Pesquisava estilos de respostas e técnicas de exames. Ouvia palestras até ser capaz de citá-las de cor. De modo geral, era considerado pelo corpo docente o aluno mais inteligente e certamente o mais ocupado das últimas décadas. e, em todas as provas finais, com cuidado e competência, conseguia a nota 84.

era fantástico.

O arqui-reitor chegou à última página. Finalmente disse: —Ah. entendi. está com pena do garoto, não e?

—    Acho que o senhor não entendeu exatamente o que quero dizer — observou o tesoureiro.

—    e bastante óbvio para mim — discordou o arqui-reitor. — O rapaz e sempre reprovado por um fio de cabelo. — ele puxou um dos papeis. — De qualquer modo, aqui diz que ele passou. Tirou 91.

—    Sim, arqui-reitor. Mas ele recorreu.

—    Recorreu? Para não passar?

—    Achou que os examinadores não notaram seu erro nos alótropos de octírio da questão seis. Disse que não conseguiria suportar o peso na consciência. Disse ainda que isso o perseguiria pelo resto de sua vida, por ter passado de forma injusta, se comparado a alunos melhores e mais merecedores que ele. O senhor pode notar que ele tirou apenas 82 e 83 nos dois exames seguintes.

—    Por que isso?

—    Nós achamos que ele não queria correr riscos, mestre.

O arqui-reitor bateu os dedos na mesa.

—    Não posso aceitar uma coisa dessas. Não posso aceitar que alguém continue sendo quase um mago e rindo da gente por, por... por onde mesmo as pessoas riem da gente?

—    Sinto exatamente o mesmo — murmurou o tesoureiro.

—    Nós deveríamos jogá-lo para o alto — disse o arqui-reitor com firmeza.

—    Para baixo, Mestre — corrigiu o Tesoureiro. — Jogá-lo para o alto seria desprezá-lo, deixá-lo de lado.

—    Sim. Isso mesmo. Vamos fazer isso — animou-se o Arqui-reitor.

—    Não, mestre — disse o Tesoureiro, paciente. — Assim ele fica por cima. Temos que Jogá-lo para baixo.

—    Certo. encontre um equilíbrio — sugeriu o arqui-reitor. O tesoureiro revirou os olhos. — Ou não — acrescentou o arqui-reitor. — então você quer que eu o mande passear, né? e só mandá-lo vir aqui de manhã e...

—    Não, arqui-reitor. Não podemos fazer as coisas assim.

—    Não podemos? Achei que estivéssemos no comando aqui!

—    Sim, mas e preciso ser extremamente cuidadoso ao lidar com o mestre Tugelbend. ele e especialista em procedimentos legais. O que eu pensei foi em dar a ele esta prova no exame final de amanhã.

O arqui-reitor pegou o documento mencionado. Seus lábios se moveram em silêncio enquanto o lia.

—    Apenas uma questão.

—    Sim. Ou ele passa, ou e reprovado. Quero ver ele acertar 84 por cento disso.

De um modo que seus instrutores não conseguiam definir muito bem, muito por causa do aborrecimento que isso lhes causava Victor Tugelbend era a pessoa mais preguiçosa da história do mundo.

Não de uma forma comum, simples. A preguiça comum e simplesmente a falta de esforço. Victor tinha superado isso havia muito tempo, tinha passado direto pelo ócio trivial e chegado ao seu extremo. ele se esforçava mais para evitar o trabalho do que a maioria das pessoas precisava se esforçar para pegar no pesado.

Nunca quis ser um mago. Nunca quis muita coisa, exceto talvez ser deixado em paz e não ser acordado até o meio-dia. Quando era pequeno, as pessoas diziam coisas como "e você, o que quer ser quando crescer, rapazinho?", e ele respondia "Não sei. O que você tem pra oferecer?"

As pessoas não o deixaram continuar embromando por muito tempo. Não bastava ser o que você era, era preciso se esforçar para vir a ser alguma outra coisa.

ele tentou. Durante um bom tempo, tentou ao querer ser ferreiro, porque parecia ser interessante e romântico. Mas também envolvia trabalho árduo e pedaços de metal obstinados. Depois tentou ao querer ser um assassino, o que parecia ser elegante e romântico. Mas também envolvia trabalho árduo e, de vez em quando, na hora da verdade, ter que matar alguém. Depois tentou ao querer ser ator, o que parecia ser dramático e romântico, mas envolvia usar calças de malha justas e empoeiradas, alojamentos apertados e, para seu espanto, trabalho árduo.

No fim, ele se deixou ser enviado para a Universidade porque era mais fácil do que não ir.

Tinha a tendência de sorrir muito, de modo levemente intrigado. Isso dava às pessoas a impressão de que ele era um pouco mais inteligente do que elas. Na verdade, ele geralmente estava tentando entender o que elas tinham acabado de dizer.

e tinha um bigode fino que, sob certa luz, o fazia parecer bondoso e, sob outra, fazia parecer que ele tinha acabado de beber um milk-shake de chocolate bem grosso.

Orgulhava-se muito do bigode. Quando você se torna um mago, espera-se que pare de fazer a barba e deixe-a crescer, como um arbusto de tojo. Os magos muito antigos davam a impressão de ser capazes de capturar seu alimento por meio dos bigodes, como as baleias.

era uma e meia. ele vinha a passos lentos, voltando do Tambor Remendado, a taverna mais eloqüentemente desqualificada da cidade. Victor Tugelbend sempre dava a impressão de andar devagar, mesmo quando corria.

ele estava razoavelmente sóbrio, e portanto um pouco surpreso por se encontrar na Praça das Luas Partidas. Seguia para o pequeno beco atrás da Universidade, na direção do muro com os tijolos removíveis e espaçados de forma conveniente através do qual, havia centenas e centenas de anos, estudantes de magia silenciosos burlavam ou, mais precisamente, passavam por cima do toque de recolher da Universidade Invisível.

A praça não fazia parte do trajeto.

ele se virou para voltar vagarosamente pelo caminho que tomara e depois parou. Algo estranho estava acontecendo.

Normalmente haveria um contador de histórias ali, ou alguns músicos, ou um empreendedor à procura de possíveis compradores para alguns pontos de referência excedentes de Ankh-Morpork, como a Torre de Arte ou a Ponte de Latão.

Naquele momento, havia apenas algumas pessoas montando uma tela grande, que parecia um lençol esticado entre postes.

ele chegou até aquelas pessoas como quem não queria nada.

—    O que vocês estão fazendo? — perguntou num tom amigável.

—    Vai haver uma apresentação.

—    Ah. Teatro — disse Victor sem muito interesse.

ele vagou de volta para a penumbra úmida, mas parou quando ouviu uma voz proveniente da escuridão entre dois prédios.

A voz disse: "Socorro", bem discretamente.

Outra voz disse: "Me entrega logo isso, está bem?"

Victor se aproximou devagar e tentou enxergar por entre as sombras.

—   Olá? está tudo bem?

Houve uma pausa e depois uma voz grave disse: "Você vai ver o que e bom pra tosse, garoto".

"ele tem uma faca", pensou Victor. "está vindo na minha direção com uma faca. Isso significa que ou eu serei esfaqueado, ou terei que sair correndo, o que e um verdadeiro desperdício de energia."

As pessoas que não atentassem para os fatos apresentados poderiam pensar que Victor Tugelbend fosse um rapaz gordo e de saúde frágil. Mas na verdade ele era incontestavelmente o aluno com mais inclinações atléticas da Universidade. Ter que arrastar quilos extras por todos os lados representaria um esforço excessivo, então ele cuidava para nunca engordar e se mantinha em boas condições físicas. Afinal fazer as coisas com os músculos em ordem representava um esforço muito menor do que tentar fazê-las carregando bolsas de flacidez.

ele girou a mão e desferiu um soco desajeitado, que não apenas acertou como ergueu o assaltante do chão.

Depois olhou para a possível vítima, que ainda se encolhia contra o muro.

—    espero que não esteja ferido — disse.

—    Não se mexa!

—    eu não ia me mexer.

O vulto saiu da penumbra. Tinha um pacote debaixo do braço e as mãos estendidas diante do rosto num gesto esquisito, com os indicadores e os polegares formando um ângulo de noventa graus e fixos de modo que os olhinhos de furão do homem pareciam olhar através de uma moldura.

“ele provavelmente está espantando o mal-olhado”, pensou Victor. "Parece um mago, com todos esses símbolos na roupa."

—    Impressionante! — exclamou o homem, espremendo os olhos por trás dos dedos. — Vire só um pouquinho a cabeça, por gentileza. Ótimo! e uma pena esse nariz, mas imagino que dê para fazer algo quanto a isso.

ele se aproximou e tentou colocar o braço sobre os ombros de Victor.

—   Sorte sua — começou — ter me encontrado.

—    É? — surpreendeu—se Victor, que imaginava justamente o contrário.

—    Você e exatamente o tipo que estou procurando.

—    Desculpe — disse Victor. — Achei que você estivesse sendo assaltado.

—    ele estava atrás disso — mostrou o homem, batendo no pacote que trazia debaixo do braço, que ressoou como um gongo. — Mas não teria servido de nada para ele.

—    Não vale nada? — perguntou Victor.

—    Não tem preço.

—    está certo então.

O homem desistiu de tentar alcançar os dois ombros de Victor, largos demais, e se contentou com apenas um deles.

—    Mas muita gente ficaria decepcionada — continuou. — Olha, você tem um bom porte. Bom perfil. Ouça, rapaz, o que você acharia de entrar no ramo de imagens animadas?

—    eu?... Não. Acho que não.

O homem o olhou com espanto.

—    Você ouviu o que eu disse, não? Imagens animadas?

—    Sim.

—    Todo mundo quer entrar para o ramo de imagens animadas!

—    Não, obrigado — insistiu Victor, com educação. — Tenho certeza de que e um trabalho vantajoso, mas o ramo de imagens animadas não me parece algo muito interessante.

—    eu estou falando de imagens animadas

—    Sim — concordou Victor, num tom suave. — eu ouvi.

O homem balançou a cabeça.

—    Bom, você salvou o meu dia. É a primeira vez em semanas que encontro alguém que não esteja desesperado para entrar para o ramo de imagens animadas. Achei que todo mundo quisesse entrar para o ramo de imagens animadas. Assim que vi você, eu pensei: "ele deve estar querendo conseguir uma vaga no ramo de imagens animadas esta noite".

— Obrigado assim mesmo — disse Victor. — Mas não acho que me daria bem nisso.

— Bom, eu lhe devo uma. — O homenzinho remexeu no bolso e retirou um cartão. Victor o pegou. estava escrito:

—   Isso é para o caso de você mudar de idéia. Todo mundo em Holy Wood me conhece.

Victor ficou olhando para o cartão.

—    Obrigado — disse com um tom vago. — e... Você é mago? Silverfish olhou para ele, espantado.

—    O que fez você pensar isso? — perguntou rispidamente.

—    Você está usando um vestido com símbolos mágicos...

—    Símbolos mágicos? Olhe direito, garoto! estes certamente não são símbolos ingênuos de um conjunto de crenças ridículo e ultrapassado! esses são os emblemas de uma arte esclarecida, cujo despertar claro w novo está apenas... e... despertando! Símbolos mágicos! — terminou num tom de desprezo. — e isto é um manto, não um vestido — acrescentou.

Victor examinou o conjunto de estrelas, luas crescentes e coisas do tipo. Para ele, os emblemas de uma arte esclarecida, cujo novo despertar estava apenas despertando, eram idênticos aos símbolos ingênuos de um conjunto de crenças ridículo e ultrapassado, mas aquele provavelmente não era o momento certo para dizer isso.

—    Desculpe. Não estava conseguindo ver direito.

—    eu sou um alquimista — explicou Silverfish, apenas um pouco mais sereno.

—    Ah, fazer chumbo virar ouro, esse tipo de coisa.

—    Chumbo, não, rapaz. Luz. Com chumbo não funciona. Fazer luz virar ouro...

—    É mesmo? — perguntou Victor educadamente, enquanto Silverfish começava a montar um tripé no meio da praça.

Uma pequena multidão começava a se juntar. era muito fácil uma pequena multidão se juntar em Ankh-Morpork. A cidade tinha os espectadores mais talentosos do universo. eles observavam qualquer coisa, especialmente se houvesse alguma possibilidade de alguém se machucar de forma divertida.

—    Por que você não fica para a apresentação? — perguntou Silverfish, e saiu de perto apressadamente.

"Um alquimista. Bom, todo mundo sabe que os alquimistas são meio loucos", pensou Victor. "Isso é perfeitamente normal."

Quem iria querer perder tempo movimentando as imagens? Grande parte delas estava bem do jeito que estava.

—    Salsicha no pão! Comprem enquanto está quente! — alguém gritou perto da sua orelha. ele se virou.

—    Oh, olá, senhor Dibbler.

—    Noite, rapaz. Quer mandar uma bela salsicha quente pra dentro?

Victor encarou os tubos reluzentes na bandeja pendurada no pescoço de Dibbler. O cheiro era tentador. Sempre era. Aí você mordia e descobria mais uma vez que Dibbler Cava-a-própria-Cova sabia encontrar uma utilidade para alguns pedaços de carne que o próprio animal desconhecia possuir. Dibbler havia decidido que, com a quantidade certa de cebolas fritas e mostarda, as pessoas comiam qualquer coisa.

—    Preço especial para estudantes — Dibbler sussurrou num tom de conspiração. — Quinze centavos, e eu tô cavando a minha própria cova com isso. ele abriu a tampa da frigideira de modo estratégico, deixando subir uma nuvem de vapor.

O aroma picante das cebolas fritas fez seu trabalho perverso.

_ Só uma então — concordou Victor, cauteloso. Dibbler jogou uma salsicha para fora da frigideira e a colocou dentro de um pão com a habilidade de uma rã que pega uma mosca.

—    Você não vai ter tempo de se arrepender — disse, brincalhão.

Victor mordiscou um pedaço de cebola. Até ali ainda era confiável.

—    O que e toda essa coisa? — perguntou, apontando o polegar em direção à tela oscilante.

—    Algum tipo de entretenimento. Salsicha quente! Tá uma delícia! — ele baixou o volume da voz, voltando ao seu sussurro normal de conspiração. — É moda nas outras cidades, ouvi dizer —     acrescentou. — Uma espécie de imagem em movimento. eles estavam tentando fazer a coisa toda funcionar direito antes de vir para Ankh-Morpork.

eles observaram Silverfish e alguns de seus colegas fuçar tecnicamente na caixa sobre o tripé. Uma luz branca surgiu de repente num orifício circular na frente da caixa e iluminou a tela. Houve um aplauso receoso por parte da multidão.

—    Oh — começou Victor. — entendi. É só isso? Mas é só a boa e velha brincadeira das sombras. Só isso. Meu tio fazia isso para me distrair. Você conhece? Você meio que mexe a mão na frente da luz e as sombras formam uma espécie de imagem de silhueta.

—Ah, sim — disse Dibbler, incerto. — Tipo o "Grande elefante" ou a "Águia Careca". Meu avô fazia essas coisas.

—    O que o meu tio mais fazia era o "Coelho Deformado" — lembrou Victor. — ele não era muito bom nisso, sabe. era muito constrangedor. Todo mundo sentava ao seu redor, tentando desesperadamente adivinhar o que era a imagem, dizendo coisas como "Porco espinho Assustado" ou "Arminho Furioso", e ele ia para a cama chateado porque a gente não tinha conseguido adivinhar que na verdade era "Lorde Henry Skipps e Seus Homens Derrotando os Trolls na Batalha de Pseudópolis". Não consigo ver nada de especial em sombras numa tela.

—    Pelo que eu ouvi, não é isso — corrigiu Dibbler. — eu vendi um especial com Salsicha Gigante para um dos homens agora a pouco, e ele disse que a coisa toda e basicamente mostrar imagens muito rápido. Colar um monte de imagens lado a lado e mostrá-las uma depois da outra. Muito, muito rápido.

—    Mas não rápido demais — disse Victor seriamente. — Não daria para vê-las se estiverem passando rápido demais.

—    ele disse que esse era o grande segredo: não vê-las passando. Você tem que ver todas de uma vez ou algo do tipo.

—    elas ficariam todas borradas — argumentou Victor. — Você não perguntou isso para ele?

—    e... não. Acontece que ele teve que sair correndo bem nessa hora. Disse que estava se sentindo meio estranho.

Victor olhou com um ar pensativo para o resto de sua salsicha no pão e, ao fazê-lo, sentiu que alguém, por sua vez, olhava fixamente para ele. ele olhou para baixo. Havia um cachorro sentado aos seus pés.

era pequeno, magro, tinha as patas tortas e era basicamente cinza com manchas marrons, brancas e pretas nas extremidades. e não parava de olhar para ele.

Aquele era certamente o olhar mais penetrante que Victor já tinha visto. Não era ameaçador nem servil. era apenas muito demorado e persistente, como se o cachorro estivesse memorizando detalhes para depois dar uma descrição completa às autoridades.

Quando teve certeza de que Victor prestava total atenção nele, transferiu o olhar para a salsicha.

Sentindo-se péssimo por ser tão cruel com um pobre animal irracional, Victor jogou a salsicha para baixo. O cachorro a pegou e engoliu com um movimento econômico.

Mais pessoas se amontoavam na praça. Dibbler Cava-a-própria-Cova se afastara e fazia negócio sem parar com aqueles farristas que chegam mais tarde, bêbados demais para impedir que o otimismo triunfe sobre a experiência. Qualquer pessoa que compre uma refeição depois de uma noite de farra, à uma da madrugada, provavelmente iria passar terrivelmente mal de qualquer jeito, então poderia até tirar algum proveito daquilo.

Victor foi aos poucos sendo cercado por uma grande multidão. ela não era composta exclusivamente de humanos. Reconheceu, a alguns metros de distância, o grande contorno espaçoso de Detritus um velho troll, conhecido entre os estudantes por conseguir emprego em qualquer lugar onde precisassem pagar alguém para atirar pessoas para fora. O troll notou sua presença e tentou piscar para ele. Isso significava fechar os dois olhos, porque Detritus não era bom em coisas complicadas. Muitos acreditavam que, se pudessem ensinar Detritus a ler e escrever o suficiente para que pudesse se sentar e fazer um teste, ele demonstraria ser menos inteligente que a cadeira.

Silverfish pegou o megafone.

—    Senhoras e senhores — começou —, vocês têm o privilegio, nesta noite, de testemunhar um momento decisivo na história do Século do... — ele baixou o megafone e Victor o ouviu sussurrar, apressado, para um de seus assistentes "em que século estamos? É mesmo?" Depois ergueu novamente o megafone e continuou no tom pomposo e otimista do início: — ... Século do Morcego-de-Frutas! Nada menos que o nascimento da Kinematographia! Imagens que se movem sem o auxílio de magia!

ele esperou os aplausos. Não houve nenhum. A multidão apenas olhava para ele. era preciso mais do que simplesmente terminar suas frases com um ponto de exclamação para conseguir uma salva de palmas de uma multidão de Ankh-Morpork.

Levemente abatido, ele prosseguiu:

—    Dizem que e preciso Ver para Crer! Porém, senhoras e senhores, vocês não Acreditarão nos Seus Próprios Olhos! O que estão prestes a testemunhar e o Triunfo das Ciências Naturais! A Maravilha de uma era! A Descoberta do Mundo, não, ouso dizer, de Dimensões capazes de Abalar o Universo!...

—    Tem que ser melhor do que aquela maldita salsicha, pelo menos — disse uma voz discreta perto do joelho de Victor.

—    ... Mecanismos Naturais combinados com equipamentos Profissionais para criar Ilusão! Ilusão, Senhoras e Senhores, sem o recurso da Magia!...

Victor baixou lentamente a direção do seu olhar. Não havia nada ali alem do cachorrinho, se coçando, compenetrado. ele ergueu a cabeça devagar e disse:

—Au au?

—    ... Potencial educativo! As Artes! História! Agradeço-lhes, Senhoras e Senhores! Senhoras e Senhores, Vocês Ainda Não Viram Nada!

Houve rnais uma pausa esperançosa para os aplausos. Alguém à frente da multidão disse:

—    É verdade. Não vimos mesmo.

—    É — concordou a mulher ao lado dele. — Quando é que você vai parar de falar e começar a brincadeira das sombras?

—    É isso mesmo — gritou uma segunda mulher. — Faz o "Coelho Deformado". Meus filhos adoram.

Victor olhou para o outro lado por algum tempo, para desviar a atenção do cachorro, e depois olhou bem para ele.

ele observava a multidão com um ar afável e aparentemente nem o notava.

Victor cutucou o ouvido, explorando-o com o dedo. Deve ter sido uma ilusão causada por um eco ou algo do tipo. Não que o cachorro tivesse feito "au au!", embora isso por si só já seja algo singular. A maioria dos cachorros do universo nunca faz "au au" eles latem coisas complicadas, como "ahhuuuh!" e "uauuhh!". Não, o cachorro realmente não tinha latido. ele tinha dito "au au".

Victor balançou a cabeça e voltou a olhar para Silverfish, que descia da frente da tela e fazia um sinal para que um de seus assistentes começasse a girar a manivela ao lado da caixa. Houve um rangido que depois se transformou num clique contínuo. Sombras indefinidas dançaram na tela, e depois...

Uma das últimas coisas de que se lembrou foi uma voz ao lado do seu joelho dizendo:

—    Poderia ter sido pior, senhor. eu poderia ter dito "miau".

Sonhos de Holy Wood...

e agora oito horas haviam se passado.

Ponder Stibbons, com o corpo pendente, olhou com culpa para a carteira vazia ao seu lado. Não era típico de Victor faltar em dia de prova. ele sempre dizia que gostava do desafio.

—    Preparem-se para virar a folha de prova — disse o fiscal no final do corredor. Sessenta peitos de 60 futuros magos em potencial ficaram apertados com uma tensão carregada, insuportável. Ponder mexia sua caneta da sorte com ansiedade.

O mago no estrado virou a ampulheta.

— Podem começar.

Alguns dos alunos mais convencidos viraram a folha estalando os dedos. Ponder os odiou de imediato.

ele estendeu o braço para pegar seu tinteiro da sorte, errou feio o movimento por causa do nervosismo e o derrubou. Um pequeno lago negro invadiu sua folha de perguntas.

O pânico e a vergonha tomaram conta dele. esfregou a tinta com a barra do manto, espalhando-a de modo uniforme sobre a carteira. Sua rã desidratada da sorte tinha sido carregada pelo fluxo.

Vermelho de constrangimento, respingando tinta preta, lançou um olhar de súplica para o mago responsável, e depois um olhar de imploração para a carteira vazia ao seu lado.

O mago consentiu com a cabeça. Ponder, agradecido, passou para a fileira ao lado, esperou seu coração desacelerar e, em seguida, com muito cuidado, virou a folha que estava sobre a carteira.

Dez segundos depois, e sem nenhuma razão lógica, virou a folha de novo, imaginando que houvera algum engano e que o resto das perguntas estaria de alguma forma do outro lado.

Ao seu redor, havia o silêncio intenso de 59 mentes rachando com o esforço incessante.

Ponder virou a folha novamente.

Talvez fosse algum engano. Não... o selo da Universidade e a assinatura do arqui-reitor estavam lá. Poderia ser uma espécie de prova especial. Talvez o estivessem observando para ver o que iria fazer...

ele espiou ao redor disfarçadamente. Os outros alunos pareciam estar se esforçando muito. Talvez fosse mesmo um engano. Sim. Quanto mais ele pensava, mais lógico parecia. O arqui-reitor provavelmente tinha assinado as folhas, e depois, quando os copistas faziam as cópias, um deles copiou a importantíssima primeira pergunta, se distraiu com alguma coisa e ninguém notou que ele não tinha acabado. então ela foi colocada sobre a carteira de Victor, mas agora ele não estava presente, e Ponder a recebeu. "Isso significa", ele pensou num ataque repentino de fé cega, "que os deuses provavelmente querem que eu a receba." Afinal, não era sua culpa receber por engano uma folha daquele jeito. Provavelmente seria um sacrilégio ou algo do tipo desprezar aquela oportunidade.

eles tinham que aceitar o que você escrevesse. Ponder não tinha dividido o quarto com a maior autoridade em regras de exames do mundo sem aprender uma coisinha ou outra.

Olhou de novo para a pergunta: "Qual é o seu nome?"

ele respondeu.

Após algum tempo, sublinhou a resposta várias vezes com sua régua da sorte.

Depois de mais algum tempo, para demonstrar disposição, escreveu acima dela: "A resposta à pergunta um é:".

Mais dez minutos depois, arriscou um "Que é o meu nome" na linha de baixo e o sublinhou.

"Pobre Victor, vai lamentar muito ter perdido esta", pensou. "Onde será que ele está?"

Ainda não havia estrada para Holy Wood. Qualquer um que tentasse chegar lá teria que pegar a rodovia para Quirm e, em algum ponto sem qualquer indicação no meio da paisagem atrofiada, fazer um brusco desvio de rota e seguir na direção das dunas. Os barrancos eram repletos de lavandas e alecrins selvagens. Não havia nenhum som, a não ser o zumbido das abelhas e o canto distante de uma cotovia, que apenas tornavam o silêncio ainda mais evidente.

Victor Tugelbend saiu da estrada no ponto em que o barranco havia sido derrubado e aplanado pela passagem de muitas carroças e, pelo jeito, por um número incrível de pessoas.

Ainda havia muitos quilômetros pela frente. ele seguiu arrastando os pés.

Ouvia vagamente uma voz dizendo coisas como "Onde estou? Por que estou fazendo isso?" Outra parte dele sabia que realmente não precisava fazer aquilo. Como a vítima do hipnotizador que sabe que não está sendo hipnotizada de verdade e pode sair do transe na hora que quiser mas não está com vontade de fazê-lo naquele exato momento, ele deixou seus pés serem conduzidos.

Não sabia ao certo por quê. Sabia apenas que havia algo do qual ele tinha que fazer parte. Algo que talvez jamais fosse acontecer de novo.

Um pouco atrás, mas ganhando terreno rapidamente, estava Dibbler Cava-a-própria-Cova, tentando montar um cavalo. ele não tinha muita aptidão para cavaleiro, e de vez em quando tomava um tombo ou outro. essa era uma das razões pelas quais ainda não ultrapassara Victor. A outra era que ele havia feito uma parada, antes de sair da cidade, para vender, a um preço promocional, sua salsicha no pão para um anão que não acreditou na sorte que teve (mesmo depois de provar as salsichas, ainda não conseguia acreditar na própria sorte).

Alguma coisa chamava Dibbler, e essa coisa tinha uma voz de ouro.

Muito atrás de Cova, com as juntas dos dedos arrastando na areia, vinha Detritus, o troll. e difícil saber ao certo em que ele estava pensando. Seria como tentar saber no que uma pomba estaria pensando. ele apenas sabia que o local onde deveria estar não era aquele onde estava.

Finalmente, ainda mais atrás, na mesma estrada, vinha uma carroça de oito cavalos que levava uma carga de madeira para Holy Wood. Seu condutor não estava pensando muito em coisa nenhuma, embora estivesse levemente intrigado com um incidente que ocorrera bem na hora em que saía de Ankh-Morpork, na escuridão da madrugada. Uma voz na penumbra ao lado da estrada gritara "Pare em nome da guarda municipal!", e ele parou, mas nada mais aconteceu. ele olhou ao redor e não havia ninguém ali.

A carroça passou fazendo um estrondo, revelando, aos olhos do observador imaginativo, o pequeno vulto de Gaspode o Cão Prodígio, tentando se aconchegar entre as toras de madeira na parte traseira. ele também estava indo a Holy Wood.

E também não sabia por quê.

Mas estava determinado a descobrir.

Ninguém teria acreditado que nos últimos anos do Século do Morcego-de-Frutas, os acontecimentos do Disco eram observados de modo impaciente e cheio de interesse por inteligências maiores que a do Homem — ou pelo menos muito mais imorais —, que suas questões eram inspecionadas e estudadas da maneira como um homem com um apetite de três dias estudaria o cardápio intitulado Tudo o que Você Puder Comer Por Um Dólar na entrada da Casa das Costelas de Harga...

Bem, na verdade... a maioria dos magos teria acreditado, se alguém tivesse contado a eles.

E o bibliotecário certamente teria acreditado.

E a senhora Marietta Cosmopilite, da rua Quirm, número três, Ankh-Morpork, também teria acreditado. Mas ela acreditava que o mundo era redondo, que uma cabeça de alho na sua gaveta de roupas íntimas afastava os vampiros, que fazia bem sair e dar umas risadas de vez em quando, que havia bondade em todo mundo, desde que se soubesse para onde olhar, e que três anõezinhos terríveis a espiavam enquanto ela se despia todas as noites.4

Holy Wood!...

... ainda não era grande coisa. Apenas uma colina perto do mar e, do outro lado, muitas dunas. Uma área com um tipo especial de beleza, que só e bela se você puder sair logo dali ir a algum outro lugar que ofereça banhos quentes e bebidas geladas. Na verdade, ficar ali durante qualquer período era uma penitência.

No entanto, havia uma cidade ali... é verdade. Cabanas eram construídas em qualquer lugar onde largassem uma carga de madeira. eram toscas, como se os construtores se ressentissem pelo tempo gasto com aquilo, um tempo que poderiam ter usado para algo muito mais importante, algo que realmente tinham vontade de fazer. eram caixas quadradas de tábuas. Exceto pela fachada.

Para entender Holy Wood — Victor diria anos depois —, era necessário entender suas construções.

Você via uma caixa sobre a areia. ela possuía um telhado pontudo e mal acabado, mas isso não importava, porque nunca chovia em Holy Wood. Havia rachaduras nas paredes, tapadas com panos velhos. As janelas eram buracos — o vidro era frágil demais para ser carregado de Ankh-Morpok até lá. e, na frente de tudo, a fachada era como um enorme outdoor de madeira sustentado por uma rede de escoras.

Vista de frente, era uma extravagância arquitetônica barroca com detalhes entrelaçados, esculpidos, pintados e ornados. em Ankh-Morpork, chamar muito a atenção, e deixavam a decoração para o interior. Mas Holy Wood fazia casas do avesso.

 

  1. ela estava certa quanto a isso, mas era apenas uma coincidência.

 

Victor andou pelo que parecia uma avenida principal entorpecida. ele havia acordado cedo no meio das dunas. Por quê? Havia decidido ir a Holy Wood, mas por quê? Não conseguia se lembrar. Tudo o que conseguia se lembrar era que, no momento da decisão, parecera ser o mais óbvio a fazer. Havia centenas de bons motivos.

Se ao menos pudesse se lembrar de um deles...

Não que em sua mente houvesse algum espaço para lembranças. ela estava ocupada demais se conscientizando de que ele estava com muita fome e uma sede intensa. Seus bolsos carregavam um total de sete centavos. Isso não pagaria nem uma tigela de sopa, quanto mais uma boa refeição.

Precisava de uma boa refeição. Tudo ficaria muito mais claro após uma boa refeição.

Ele andou entre a multidão. A maior parte das pessoas parecia carpinteiros, mas havia outras, carregando galões ou caixas misteriosas. Todo mundo se movia de modo muito rápido e decidido, entregue a algum objetivo importante.

exceto ele.

Seguiu pela avenida improvisada, olhando pasmado para as casas, sentindo-se um gafanhoto perdido num formigueiro. e não parecia haver...

— Vê se olha por onde anda!

Bateu num muro. Quando retomou o equilíbrio, a pessoa em quem havia esbarrado já tinha sumido no meio da multidão, ele ficou olhando por um momento e depois saiu correndo atrás dela.

—    Ei! — gritou. — Desculpe! Por favor? Moça?

ela parou e esperou, impaciente, até que ele a alcançasse.

—    Então? — era 30 centímetros mais baixa que ele, e tinha formas indefiníveis, já que a maior parte de seu corpo estava escondida por um vestido ridiculamente cheio de babados, ainda que menos cômico que a enorme peruca loira cheia de cachos que usava. Seu rosto estava branco de tanta maquiagem, com exceção dos olhos, que tinham um forte contorno preto. O efeito geral era o de um abajur que não tinha uma boa noite de sono havia muito tempo. — então? — ela repetiu. — Anda logo! Tenho que entrar em cena daqui a cinco minutos!

—É... ela se soltou um pouco.

—Não, não me diga. Você acabou de chegar. É tudo novo para você. Não sabe o que fazer. está com fome. Não tem dinheiro. Acertei?

—    Sim! Como você sabia?.

—    Todo mundo começa assim. e agora você quer invadir os cliques, certo?

—    Os cliques?

ela revirou os olhos até desaparecerem os círculos pretos.

—    As imagens animadas!

—    Ah... — "eu realmente quero", pensou. "eu não sabia, mas quero. Sim. Foi por isso que vim para cá. Por que não pensei nisso antes?" — Sim. Sim, é isso o que eu quero fazer. eu quero... é... invadir. e como se faz isso?

—    espera-se uma eternidade. Até ser notado. — A garota o olhou de cima a baixo com um desprezo explícito.

—    Por que não aprende a mexer com carpintaria? Holy Wood sempre precisa de bons assassinos de florestas.

Então ela deu uma volta e desapareceu, perdida na multidão de pessoas atarefadas.

—    E... obrigado! — Victor gritou para ela. — Obrigado. — ele ergueu a voz e acrescentou: — espero que seus olhos melhorem!

Victor balançou as moedas que tinha no bolso.

Bem, carpintaria estava fora de cogitação. Parecia muito trabalho pesado. Havia tentado uma vez, e a madeira e ele logo chegaram a um acordo: ele não a tocaria, e ela não racharia.

esperar uma eternidade até parecia interessante, mas era preciso dinheiro para fazê-lo.

Seus dedos se fecharam em torno de um pequeno e inesperado retângulo. ele o retirou do bolso para ver o que era.

O cartão de Silverfish.

O endereço no cartão, Holy Wood, nº. 1, era na verdade um conjunto de barracos delimitado por uma cerca alta. Havia uma fila diante do portão. era formada por trolls, anões e humanos. Pareciam estar por ali havia algum tempo. Na verdade, alguns deles tinham uma postura de desânimo tão natural ao ficarem parados de pé que davam a entender que tinham evoluído a partir dos formadores de fila pré-históricos.

Ao lado do portão havia um homem grande e corpulento, que observava a fila com o olhar arrogante dos detentores de pequenos poderes.

—    Com licença... — começou Victor.

—    O senhor Silverfish não vai contratar mais ninguém esta manhã — disse o homem pelo canto da boca. — então cai fora.

—    Mas ele disse que se algum dia eu viesse para...

—    eu não acabei de dizer cai fora, amigo?

—    Sim, mas...

A porta que havia na cerca se abriu um pouco. Um rosto pequeno e pálido apareceu.

—    Precisamos de um troll e de alguns humanos. Um dia, o valor de sempre. — O portão se fechou novamente.

O homem se esticou e colocou as mãos cheias de cicatrizes ao redor da boca.

—    Vamos lá, bando de horrorosos! — gritou. — Vocês ouviram o homem! — ele passou os olhos pela fila com a naturalidade de um criador de gado. — Você, você e você — escolheu, apontando.

—    Com licença — insistiu Victor, querendo ser prestativo —, mas acho que aquele homem ali estava na frente...

ele foi empurrado para o lado. Os três sortudos entraram. Victor ficou com a impressão de ter visto o brilho de moedas trocando de mãos. em seguida, o porteiro virou o rosto vermelho de raiva na direção dele.

—    Você, vai pro fim da fila. e fica por lá!

Victor olhou bem para ele. Olhou para o portão. Olhou para a longa fila de pessoas abatidas.

—    Hum, não. Acho que não. Obrigado assim mesmo.

—    então se manda!

Victor deu um sorriso amigável. Andou até o fim da cerca e percorreu toda sua extensão. em seu outro extremo, ela entrava num beco estreito.

Victor vasculhou os entulhos, comuns em qualquer beco, até encontrar um pedaço de papel. Depois arregaçou as mangas e somente então examinou cuidadosamente a cerca até achar algumas tábuas soltas que, com um pouco de esforço, lhe deram passagem.

Isso o levou a uma área cheia de pilhas de madeira para construção e montes de tecidos. Não havia ninguém por perto.

Com o andar determinado, consciente de que alguém com as mangas arregaçadas, andando com determinação e segurando um pedaço de papel facilmente visível jamais seria incomodado, seguiu pelo mundo maravilhoso de madeira e lona da Interessante e Instrutiva Kinematographia.

Havia prédios pintados na parte de trás de outros prédios. Havia árvores que de frente eram árvores e por atrás, apenas um monte de escoras. Havia uma agitação de pessoas em atividade, embora, pelo que Victor pôde ver, ninguém estivesse realmente produzindo nada.

ele viu um homem com uma longa capa e um chapéu pretos e um bigode que parecia uma piaçava amarrar uma garota a uma das árvores. Ninguém parecia querer impedi-lo, ainda que ela estivesse se debatendo. Algumas pessoas, na verdade, assistiam sem muito interesse, e havia um homem atrás de uma caixa grande sobre um tripé girando uma manivela.

ela esticava os braços, suplicando, e abria e fechava a boca sem emitir nenhum som.

Uma das pessoas que assistiam se levantou, mexeu em uma pilha de placas ao seu lado e segurou uma delas diante da caixa.

Era preta. em branco, estava escrito: "Não! Não!"

Ele saiu de perto. O vilão retorceu o bigode. O homem voltou com uma placa. Desta vez, estava escrito: "Ahá! Minha bhela orghulhosa!"

Outro observador, que permanecia sentado, pegou um megafone.

—    Ótimo. Ótimo. está bem, façam um intervalo de cinco minutos e depois, todos aqui de volta para a grande cena de luta.

O vilão desamarrou a garota. eles saíram andando. O homem parou de girar a manivela, acendeu um cigarro e abriu a parte de cima da caixa.

—    Todo mundo entendeu o que ele disse? — perguntou.

Houve um couro de gritos impacientes.

Victor foi até o homem do megafone e deu um tapinha em seu ombro.

—    Recado urgente para o senhor Silverfish!

—    Ele está lá nos escritórios — disse o homem, apontando para trás com o polegar, sem olhar à sua volta.

—    Obrigado.

O primeiro galpão em que ele pôs a cabeça não continha nada alem de fileiras de pequenas jaulas que se estendiam na escuridão. Vultos indefinidos se atiravam contra as grades e guinchavam para ele. ele bateu a porta correndo.

A porta seguinte revelou Silverfish, parado diante de uma mesa coberta de cacos de vidro e montes de papel. ele não se virou.

—    Coloque ali, por favor — ordenou distraidamente.

—    Sou eu, senhor Silverfish — disse Victor.

Silverfish se virou e olhou com uma expressão vaga para ele, como se fosse culpa de Victor que seu nome não significasse nada. —Sim?

—    Vim por causa daquele emprego. Sabe?

—   Que emprego? O que eu devo saber? Como é que você conseguiu entrar aqui?

—    Eu invadi as imagens animadas — disse Victor. — Mas não é nada que um martelo e uns pregos não dêem jeito. — O pânico tomou conta da expressão de Silverfish. Victor sacou o cartão e acenou com ele de uma forma que esperava ser tranqüilizadora. — em Ankh-Morpork? Algumas noites atrás? O senhor estava sendo ameaçado...

O mistério foi elucidado.

—    Ah, sim — disse Silverfish quase para si mesmo. — e você é o rapaz que deu uma ajuda.

—    E o senhor me disse para procurá-lo se eu quisesse animar imagens. Naquela hora eu não queria. Mas agora eu quero. — ele abriu um sorriso radiante para Silverfish.

Mas pensou: "ele vai tentar se livrar dessa. está lamentando a oferta. Vai me mandar de volta para a fila".

—    Bem, claro, muita gente talentosa quer entrar para o ramo das imagens animadas. em breve teremos som. então, você é carpinteiro? Alguma experiência alquímica? Já treinou diabretes? Alguma habilidade manual de qualquer tipo?

—    Não — admitiu Victor.

—    Sabe cantar?

—    Um pouco. No banheiro. Mas não muito bem — Reconheceu Victor.

—    Sabe dançar?

—Não.

—    Espadas? Sabe manejar uma espada?

—    Um pouco — disse Victor. ele havia usado espadas algumas vezes na academia. Nunca chegara a lutar contra um oponente, uma vez que os magos em geral abominam exercícios, e o único outro residente da Universidade que chegara a entrar no local havia sido o bibliotecário, e apenas para usar as cordas e os aros. Mas Victor havia praticado uma técnica vigorosa e idiossincrática na frente do espelho, e não havia sido derrotado nenhuma vez.

—    Entendi — disse Silverfish, desanimado. — Não sabe cantar. Não sabe dançar. Sabe manejar a espada um pouco.

—    Mas salvei sua vida duas vezes.

—    Duas? — questionou Silverfish.

—    Sim — respondeu Victor. ele respirou fundo. Aquilo seria arriscado. — Aquela vez e agora.

Houve uma longa pausa. Depois Silverfish disse:

—    eu realmente acho que não há nenhuma necessidade disso.

—    Me desculpe, senhor Silverfish — pediu Victor. — eu realmente não sou esse tipo de pessoa, mas o senhor fez a oferta, e eu andei até aqui, não tenho dinheiro, estou com fome e farei qualquer trabalho que o senhor me der. Qualquer um mesmo. Por favor.

Silverfish olhou para ele, desconfiado.

—    Até de ator?

—    Perdão?

—    Andar de um lado para o outro e fingir que está fazendo coisas — explicou Silverfish, tentando ajudar.

—Sim!

—    É uma pena, um rapaz inteligente e educado como você. O que é que você faz?

—    estou estudando para ser m... — Victor começou. ele se lembrou da antipatia de Silverfish pela magia e se corrigiu —... balconista.

—    Malconista? — perguntou Silverfish

—    Mas não sei se conseguiria ser ator — confessou Victor.

Silverfish ficou surpreso.

—Ah, você vai se sair bem. e muito difícil ser um mau ator em imagens animadas. — ele remexeu nos bolsos e tirou uma moeda de um dólar. — Toma. Vai comprar alguma coisa para comer.

ele olhou Victor de cima a baixo.

—    Está esperando alguma coisa? — perguntou.

—    Bem, espero que o senhor possa me dizer o que está acontecendo.

—    Como assim?

—Algumas noites atrás, eu assisti ao seu, seu clique — ele sentiu um leve orgulho por ter se lembrado do termo — lá na cidade, e de repente quis estar aqui mais do que qualquer outra coisa. eu nunca quis alguma coisa de verdade na minha vida antes!

A expressão de Silverfish se abriu num sorriso aliviado.

—Ah, é isso. Isso é apenas a magia de Holy Wood. Não magia de magos — acrescentou rapidamente —, que não passa de superstição sem pé nem cabeça. Não. e uma magia para pessoas comuns. Sua mente está efervescendo com todas as possibilidades. eu sei como é. A minha também estava.

—    Sim — concordou Victor, ainda meio em dúvida. — Mas como é que funciona?

O rosto de Silverfish se iluminou.

—    Você quer saber? Você quer saber como as coisas funcionam?

—    Sim, eu...

—    Sabe, a maioria das pessoas e tão decepcionante. Você lhes mostra algo realmente maravilhoso, como a caixa de imagens, e elas só dizem "oh". Nunca perguntam como funciona. Senhor Bird!

A última palavra foi gritada. Depois de algum tempo, uma porta se abriu do outro lado do barracão, e um homem apareceu.

Ele tinha uma caixa de imagens presa com uma tira no pescoço. Havia ferramentas variadas penduradas no seu cinto. Suas mãos eram manchadas de substâncias químicas, e ele não tinha sobrancelhas, o que Victor veio a saber mais tarde que era um sinal de que a pessoa andou mexendo com octocelulose. Também estava com o boné virado para trás.

—    Este é Gaffer Bird5 — apresentou Silverfish, sorrindo. — Nosso operador—chefe. Gaffer, este e Victor. ele vai atuar para nós.

—    Ah — disse Gaffer, olhando para Victor da mesma forma como um açougueiro olharia para uma carcaça. — Vai mesmo?

—    e ele quer saber como as coisas funcionam!

Gaffer olhou para Victor com mais uma expressão pessimista.

—    Barbante — começou, desanimado. — Tudo funciona com barbante. Você ficaria impressionado ao ver como as coisas cairiam aos pedaços por aqui se não fôssemos eu e meu rolo de barbante.

Houve uma agitação repentina na caixa pendurada em seu pescoço. ele bateu nela com a palma da mão.

—    Podem parar com isso, vocês — disse. ele balançou a cabeça para Victor. — eles ficam rebeldes quando a rotina e interrompida.

—    O que tem na caixa? — perguntou Victor. Gaffer piscou para Silverfish.

—    Aposto que você gostaria de saber.

Victor se lembrou das coisas enjauladas que vira no outro barracão.

—    O som parece o de demônios comuns — observou, cauteloso.

Gaffer fez uma expressão de aprovação, como a que poderia ser feita para um cachorro que tivesse acabado de fazer um truque difícil.

—    É, isso mesmo — Reconheceu.

—    Mas como faz para eles não escaparem? — perguntou Victor. Gaffer lançou-lhe um olhar malicioso.

—    É uma coisa impressionante, o barbante.

Dibbler Cava-a-própria-Cova era uma daquelas raras pessoas com a habilidade para pensar em linha reta.

 

  1. Gaffer significa eletricista-chefe no mundo da televisão e do cinema. (N. T.)

 

A maioria das pessoas pensa em curvas e ziguezagues. Por exemplo, começam com um pensamento como "Como será que posso ficar muito rico?" Depois prosseguem por uma direção incerta que inclui pensamentos como "O que será que tem pro jantar?" e "Quem será que eu conheço que pode me empresar cinco dólares?"

Ao passo que Cova era uma daquelas pessoas que têm a capacidade de identificar o pensamento no outro extremo do processo — neste caso "Sou muito rico agora" —, traçar uma linha entre os dois e depois pensar em como percorrê-la, de forma lenta e paciente, até chegar ao outro extremo.

Não que desse certo. Sempre havia, ele descobriu, alguma falha, pequena, porém vital, no processo. Geralmente envolvia uma estranha relutância por parte das pessoas em comprar o que ele tinha que vender.

Mas as economias da sua vida estavam agora guardadas num saco de couro dentro do seu colete. ele já havia ficado em Holy Wood por um dia. Tinha visto a sua organização periclitante, se e que chegava a tanto, com o olhar de um eterno vendedor. Parecia não haver lugar para ele ali, mas isso não era problema. Sempre havia espaço em cima.

Um dia, pedindo informações e observando com atenção, foi parar na Interessante e Instrutiva Kinematographia. Agora permanecia do outro lado da rua, observando com cautela.

Ele observou a fila. Observou o homem do portão. E tomou uma decisão.

Caminhou ao lado da fila. ele tinha cérebro. Sabia que tinha cérebro. Só precisava de músculos. em algum lugar aqui deve haver...

—    Tarde, senhor Dibbler.

Aquela cabeça achatada, aqueles braços compridos, aquele lábio inferior ondulado, aquela voz coaxante que anunciava um Q.I. do tamanho de uma noz. O resultado era...

—    Sou eu, Detritus. Quem diria, você aqui, hein?

ele abriu um sorriso para Dibbler que parecia uma rachadura surgindo no apoio vital de uma ponte.

—    Olá, Detritus. Tá trabalhando nos filmes? — perguntou Dibbler.

—    Não exatamente trabalhando — respondeu Detritus, envergonhado.

Dibbler olhou calmamente para o troll, cujos punhos calejados geralmente davam a última palavra em qualquer briga de rua.

—    Eu acho isso repugnante — disse. Pegou seu saco de dinheiro e separou cinco dólares. — Você gostaria de trabalhar para mim, Detritus?

Com um ar respeitoso, Detritus passou a mão na sobrancelha arqueada.

—    Está certo, seu Dibbler.

—    Venha por aqui.     

Dibbler caminhou de volta ao início da fila. O homem ao lado da porta estendeu o braço para barrar sua passagem.

—    Aonde pensa que vai, colega?

—    Tenho um horário marcado com o senhor Silverfish — informou Dibbler.

—    e ele sabe disso? — perguntou o guarda com um tom de voz que sugeria que ele pessoalmente não acreditaria naquilo mesmo se visse por escrito, num documento oficial.

—    Não, ainda não.

—    Bom, meu amigo, nesse caso você só vai conseguir... —Detritus?

—    Sim, seu Dibbler?

—    Bata neste homem.

—    Está certo, seu Dibbler.

O braço de Detritus girou num arco de 180 graus. O guarda saiu do chão e atravessou a porta, indo parar entre seus escombros, a vários metros dali. Houve uma comemoração na fila.

Dibbler lançou um olhar de aprovação para o troll. Detritus não estava usando nada alem de uma tanga esfarrapada que cobria o que quer que os trolls achassem necessário esconder.

—    Muito bem, Detritus.

—    está certo, seu Dibbler.

—    Mas precisamos providenciar um traje para você. Agora, por favor, vigie o portão. Não deixe ninguém entrar.

—    está certo, seu Dibbler.

Dois minutos depois, um cachorrinho cinzento passou correndo entre as pernas curtas e arqueadas do troll e saltou sobre os restos do portão, mas Detritus não fez nada a respeito porque todo mundo sabe que cachorros não são ninguém.

— Senhor Silverfish? — disse Dibbler.

Silverfish, que atravessava o estúdio trazendo uma caixa com um novo estoque de filmes, hesitou diante da visão da figura esquelética que vinha em sua direção como uma doninha perdida. A expressão de Dibbler era a de algo longo, liso e branco que vinha nadando do mar aberto para as águas rasas onde ficam as crianças.

—    Sim? — respondeu Silverfish. — Quem e você? Como é que conseguiu...

—    Dibbler é o meu nome. Mas gostaria que me chamasse de Cova. ele apertou a mão de Silverfish, que não ofereceu resistência, e depois colocou a outra mão no ombro do homem e deu um passo à frente, apertando com força a primeira mão. O efeito era uma afabilidade aguda, e queria dizer que, se Silverfish recuasse, deslocaria o próprio cotovelo.

—    E só gostaria que soubesse — prosseguiu Dibbler — que estamos todos incrivelmente impressionados com o que vocês, rapazes, estão fazendo aqui.

Silverfish notou que sua mão estava sendo ardorosamente amigável com o outro e sorriu de modo incerto.

—    Ah, é? — arriscou.

—    Tudo isto... — Dibbler soltou o ombro de Silverfish apenas pelo tempo suficiente para indicar, num gesto expansivo, o caos energético que os cercava. — Fantástico! Maravilhoso! e aquela sua última coisa, como e que chama mesmo...?

—    Dhiabruras na Loja — disse Silverfish. — Aquele em que o ladrão rouba as salsichas e o vendedor vai atrás dele?

—    Sim — confirmou Dibbler, com um sorriso amarelo congelando por apenas um ou dois segundos até voltar a ser sincero de verdade. — Sim. esse mesmo. Impressionante! Realmente genial! Uma metáfora que se sustenta de forma belíssima!

—    Esse nos custou quase 20 dólares, sabe — disse Silverfish, com orgulho modesto. — Mais 40 centavos para as salsichas, e claro.

—    Impressionante! e deve ter sido visto por centenas de pessoas, não?

—    Milhares.

Agora não seria possível fazer nenhuma analogia ao sorriso de Dibbler. Se ele conseguisse ser um pouco mais largo, o topo da sua cabeça teria caído.

—    Milhares? — repetiu. — Sério? Tantas assim? e é claro que elas lhe pagam... e... quanto...?

—    Ah, no momento apenas fazemos uma coleta de contribuições — disse Silverfish. — Apenas para cobrir os custos enquanto estamos na fase experimental, entende? — ele olhou para baixo. _ Por favor — acrescentou —, poderia soltar a minha mão agora?

Dibbler seguiu a direção do seu olhar.

_ É claro! — disse, e soltou. A mão de Silverfish continuou subindo e descendo sozinha por algum tempo, por efeito de puro espasmo muscular.

Dibbler ficou em silêncio por um momento, com a expressão de um homem em comunhão profunda com algum deus interno. em seguida, disse:

—    Sabe, Thomas... Posso chamá-lo de Thomas? Quando vi aquela obra—prima, pensei, "Dibbler, por trás de tudo isso existe um artista criativo..."

—    ... como sabia que meu nome era...

—    “... um artista criativo", pensei, "que deveria ser livre para seguir sua inspiração em vez de ser sobrecarregado com todos os complicados detalhes administrativos." estou certo?

—    Bem... é verdade que toda essa papelada é um pouquinho...

—    Exatamente o que pensei. e eu disse: "Dibbler, você deveria ir lá agora mesmo e oferecer a ele os seus serviços. Sabe como e. Administrar. Tirar o peso dos ombros dele. Deixar que ele avance no que faz melhor". estou certo? Tom?

—    Eu, eu, eu, sim, claro, e verdade que o meu forte está realmente mais em...

—    está bem! está bem! Tom, eu aceito!

Os olhos de Silverfish estavam vidrados.

—e...

Dibbler deu um soquinho amigável no ombro dele.

—    É só me mostrar a papelada. Depois você pode ir lá pra fora e fazer o que quer que seja que você faz tão bem.

—    É... Sim — disse Silverfish.

Dibbler o segurou pelos dois braços e lhe transmitiu mil watts de honestidade.

—    Este é um momento de orgulho para mim — disse, com a voz rouca. — Não consigo lhe dizer o quanto isso significa para mim. Posso afirmar de todo o coração que este é o dia mais feliz da minha vida. Quero que saiba disso. Tommy. Sinceramente.

O silêncio respeitoso foi quebrado por uma contida risada de deboche.

Dibbler olhou vagarosamente ao redor. Não havia ninguém atrás deles, a não ser um pequeno vira-lata cinzento sentado à sombra de uma pilha de tábuas. O cão notou a expressão dele e colocou a cabeça para o lado.

—    Au? — ele disse.

Dibbler Cava-a-própria-Cova olhou ao redor por um momento, procurando alguma coisa para atirar nele, mas percebeu que assim sairia do personagem e voltou ao aprisionado Silverfish.

—    Sabe — disse com sinceridade —, foi realmente uma sorte para mim ter conhecido você.

O almoço numa taverna custou o dólar e mais alguns centavos para Victor. Foi uma tigela de sopa. Todas as coisas custavam muito caro, dissera o taberneiro, porque tudo tinha que ser trazido de longe. Não havia nenhuma fazenda perto de Holy Wood. Afinal, quem iria querer plantar coisas se podia fazer filmes?

Então ele se apresentou a Gaffer para o teste de tela.

O teste consistia em ficar parado durante um minuto enquanto o operador de manivela o observava feito uma coruja através de uma caixa de imagens. Depois que o minuto passou, Gaffer disse:

—    Certo. Você é um talento nato, garoto.

—    Mas eu não fiz nada — contestou Victor. — Você só me pediu para não me mexer.

—    É. Isso mesmo. e disso que precisamos. Pessoas que saibam ficar paradas Sem nada da atuação extravagante do teatro.

—    Mas você ainda não me disse o que os demônios fazem dentro da caixa — disse Victor.

—    eles fazem isto — começou Gaffer, abrindo alguns fechos. Uma fileira de olhinhos malévolos encarou Victor. — estes seis demônios aqui — disse, apontando com cuidado para evitar as garras — olham através do pequeno buraco na frente da caixa e pintam um quadro do que vêem. Tem que haver seis deles, certo? Dois para pintar, e quatro para soprar e secar a pintura. Por causa do próximo quadro, que vem em seguida, entende? Isso porque, transparente gira um grau para baixo e dá espaço para a próxima pintura. — ele girou a manivela. ela fez cliqueclique, e os diabretes começaram a falar numa linguagem confusa.

—    Por que eles fizeram isso?

—    Ah, isso e porque a manivela também faz girar esta rodinha com chicotes. e a única maneira de fazer com que eles trabalhem rápido o suficiente. ele e um danadinho preguiçoso, o típico diabrete. e tudo por feedback, de qualquer modo. Quanto mais rápido você gira a manivela, mais rápido o filme passa, mais rápido eles têm que pintar. Você tem que acertar bem a velocidade. Muito importante esse trabalho de operador de manivela.

—    Mas não e tudo muito, bem, cruel.

Gaffer pareceu surpreso.

—    Oh, não. Na verdade, não. eu tenho descanso a cada meia hora. Normas do Grêmio dos Operadores de Manivela. — ele andou um pouco ao lado da bancada, onde havia outra caixa com o painel de trás aberto. Dessa vez era uma gaiola cheia de lagartos com ar preguiçoso, que olharam surpresos e tristes para Victor. — Não ficamos muito felizes com essa, mas e o melhor que podemos fazer. A salamandra comum, sabe, fica deitada no deserto o dia todo, absorvendo luz e, quando fica assustada, expele a luz de volta. Mecanismo de autodefesa e o nome disso. então, enquanto o filme passa e este dispositivo aqui abre e fecha, a luz delas sai através do filme e destas lentes aqui e vai para a tela. Basicamente muito simples.

—    Como você faz para elas se assustarem? — perguntou Victor.

—    está vendo esta manivela?

—Oh.

Victor cutucou a caixa de imagens, pensativo.

—    Bom, está bem. então você faz um monte de imagenzinhas. e as gira bem rápido. Deveríamos ver um borrão, mas não vemos.

—    Ah — disse Gaffer, apertando a lateral do nariz. — Segredo do Grêmio de Operadores de Manivela, isso sim. Passado de iniciado para iniciado — acrescentou num tom Sério.

—   Achei que as pessoas só fizessem filmes há alguns meses.

Gaffer ainda teve a decência de fazer uma cara de cínico.

—    Bem, sim, no momento estamos passando mais de colega para colega — admitiu. — Mas nos dê alguns anos e logo estaremos passando de iniciado para iniciado... não mexe nisso!

Victor fez um movimento repentino, com sentimento de culpa, tirando a mão de uma pilha de latas sobre a bancada.

—    Tem filme de verdade aí dentro — alertou Gaffer, empurrando-os com cuidado para o lado. — Tem que ter muito cuidado com isso. ele num pode ficar quente demais porque e feito de octocelulose e também num gosta de batidas bruscas.

—    O que acontece com ele nesse caso? — perguntou Victor, olhando fixamente para as latas.

—    Vai saber... Ninguém viveu por tempo suficiente para contar.

—    Gaffer olhou para a expressão de Victor e abriu um sorriso largo.

—    Não se preocupe com isso. Você vai ficar na frente da caixa de imagens animadas.

—    Só que eu não sei atuar.

—    Você sabe fazer o que lhe pedem?

—    O quê? Bom. Sim. Acho que sim.

—    e tudo o que precisa, rapaz. e tudo o que precisa. Isso e grandes músculos.

eles saíram à luz do sol escaldante e seguiram para o barracão de Silverfish.

Que estava ocupado.

Dibbler Cava-a-própria-Cova estava conhecendo o cinema.

—    O que eu imaginei — começou Dibbler — e que, bem, olha.

Alguma coisa assim.

ele ergueu um cartaz.

estava escrito, com uma letra tremida:

Depois desta apresenthação, Por que Não Vhisitar A Casa das Costhelas de Harga, Para o Melhor da Hawt Cuisyne

—   O que e hawt cuisyne? — perguntou Victor.

—    e estrangeiro — respondeu Dibbler. ele olhou, aborrecido, para Victor. Ter alguém como ele debaixo do mesmo teto não fazia parte dos planos. esperava o momento de poder ficar sozinho com Silverfish. — Significa comida — acrescentou.

Silverfish ficou olhando para o cartaz.

—    O que e que tem? — perguntou.

—    Por que você — disse Dibbler, falando com muito cuidado

—    não ergue este cartaz ao final da performance?

—    Por que faríamos isso?

—    Porque alguém como Sham Harga pode te pagar mui... algum dinheiro para isso.

eles ficaram olhando para o cartaz.

—    eu comi na Casa das Costelas de Harga — observou Victor.

—    eu não diria que e a melhor. A melhor, não. Muito longe de ser a melhor. — ele parou para pensar um pouco. — O mais distante de ser a melhor que se possa imaginar, na verdade.

—    Isso não importa — disse Dibbler rispidamente. — Isso não e importante.

—    Mas — começou Silverfish —, se ficássemos dizendo para todos os lados que a Casa das Costelas de Harga e a melhor da cidade, o que todos os outros restaurantes iriam pensar?

Dibbler se debruçou sobre a mesa.

—    eles pensariam "Por que não pensamos nisso antes?"

ele se recostou. Silverfish lhe lançou um olhar radiante de incompreensão.

—    Segure o cartaz na minha frente só mais uma vez, por favor —  pediu. —        eles vão fazer exatamente a mesma coisa! — exclamou Dibbler.

—    e mesmo — concordou Victor. — eles vão querer que a gente mostre cartazes com coisas como "Harga Não e o Melhor Restaurante da Cidade. O Nosso e que e".

—    Algo do tipo, algo do tipo — disse Dibbler, impaciente, lançando um olhar penetrante para ele. — Talvez a gente tenha que pensar melhor nas palavras, mas algo do tipo.

—    Mas, mas — Silverfish lutava para se adiantar na conversa — Harga não vai gostar disso, vai? Se ele nos pagar para dizer que o seu estabelecimento e o melhor, e recebermos dinheiro de outras pessoas para dizer que o estabelecimento delas e o melhor, ele fatalmente vai...

—    Nos dar mais dinheiro — interrompeu Dibbler — para dizer a mesma coisa de antes, só que em letras maiores.

eles olharam fixamente para ele.

—    Você acha mesmo que isso vai funcionar? — perguntou Silverfish.

—    Sim — disse Dibbler num tom categórico. — Vocês ouvem os feirantes todas as manhãs. eles não gritam "Laranjas quase fresquinhas, só um pouco amassadas, preço razoável", gritam? Não, eles gritam "Compra a laranja, aproveita que tá bunita". Bom senso comercial. ele se debruçou sobre a mesa novamente. — Me parece que você precisa de algo assim por aqui.

—    Parece que sim — concordou Silverfish, hesitante.

—    e, com o dinheiro — disse Dibbler, sua voz parecendo um pé-de-cabra fincado nas rachaduras da realidade —, você realmente poderia continuar aperfeiçoando sua arte.

Silverfish se animou um pouco.

—    e verdade. Por exemplo, uma forma de colocar som no...

Dibbler não estava ouvindo. Apontou para uma pilha de

tábuas encostadas na parede.

—    O que e aquilo?

—    Ah. Aquilo foi idéia minha. Achamos que seria... e... bom

senso comercial — saboreou as palavras como se fossem algum

novo doce raro — informar às pessoas sobre as outras imagens

animadas que estamos fazendo.

Dibbler pegou uma das tábuas e a segurou à distância de um braço, com olhar crítico. Estava escrito:

 

Na Próxima Semana Apresentharemos

Pelias e Melisande,

Uma Thragedia Rhomântica em Dois Rolos

Obrigado

 

—    Ah — disse, desinteressado.

—    Não está bom? — perguntou Silverfish, agora totalmente abatido. — Quer dizer, aí está tudo o que é preciso saber, não?

—    Me permite? — perguntou Dibbler, pegando um pedaço de giz da mesa de Silverfish. ele rabiscou concentradamente nas costas do cartaz durante algum tempo e depois o virou.

Agora estava escrito:

 

Os Debuxes e os Homens Dhisseram Que Não era Para Aconthecer, Mas eles Não Quiseram Ouvir!

Pelias e Melisande, Uma esthória de Um Amor Proibido!

Uma Saga Ardhente de Paixão que Superou Thempo e espaço!

Você ficará athordoado!

Com 1.000 elefhantes!

 

Victor e Silverfish leram com atenção, como quem lê um cardápio de restaurante escrito numa língua estrangeira. Aquela era uma língua estrangeira e, para piorar as coisas, era também a língua deles.

—    Bem — começou Silverfish. — O que posso dizer... Não sei se teve algo proibido. E... foi apenas muito histórico. Achei que ajudaria, entende, as crianças e coisas assim. A aprender história. Eles nunca chegaram a ficar juntos, sabe, e isso foi trágico. Tudo muito... é... triste. — Ficou olhando para o cartaz. — embora eu deva dizer que você conseguiu algo impressionante aí. e... — ele pareceu incomodar-se com algo. — Na verdade, não me lembro de nenhum elefante — observou, como se a culpa fosse dele. — estive lá a tarde toda em que o fizemos, e não me lembro de mil elefantes em nenhum momento. Tenho certeza de que teria notado.

Dibbler manteve o olhar fixo. Ele não sabia de onde vinham, mas, agora que tinha se envolvido com a situação, tinha idéias muito claras sobre o que deveria ser colocado nos filmes. Mil elefantes era um bom começo.

—    Nenhum elefante? — perguntou.

—   Acho que não.

—    Bom, tem alguma garota dançando?

—    Hum... não.

—    Alguma perseguição violenta e pessoas penduradas pelas pontas dos dedos à beira de um precipício?

O rosto de Silverfish se iluminou um pouco.

—    Acho que tem uma sacada em algum momento. Acho que Melisande se debruça sobre ela.

—    Sim, mas o público vai prender a respiração com medo de que ela caia?

—    Espero que estejam prestando atenção na fala de Pelias —       disse Silverfish, impaciente. — Tivemos que usar cinco cartazes. Com letras miúdas.

Dibbler suspirou.

—    Acho que eu sei o que as pessoas querem, e elas não querem ficar lendo um monte de coisa escrita em letras miúdas. elas querem espetáculo!

—    Gente caindo da sacada? — perguntou Victor, sarcástico.

—    Querem dançarinas! Querem emoção! Querem elefantes! Querem pessoas caindo do telhado! Querem sonhos! O mundo está cheio de pessoas pequenas com grandes sonhos!

—    O quê? Você quer dizer anões, gnomos e coisas assim? —perguntou Victor.

—    Não!

—    Diga-me, senhor Dibbler — começou Silverfish —, qual é exatamente a sua profissão?

—    Eu vendo mercadorias.

—    Principalmente salsichas — disse Victor voluntariamente.

—    E mercadorias — Dibbler acrescentou rapidamente. — Só vendo salsichas quando o negócio de mercadorias fica meio devagar.

—    E a venda de salsichas o leva a acreditar que pode produzir imagens animadas melhores que as minhas? — questionou Silverfish. — Qualquer um pode vender salsichas! Não é mesmo, Victor?

— Bom... — começou Victor, relutante. — Ninguém a não ser senhor Dibbler conseguiria vender as salsichas do Dibbler.

—    Aí está, então — disse Silverfish.

— A questão é — continuou Victor — que o senhor Dibbler consegue até vender salsichas para pessoas que já compraram dele antes.

—    Isso mesmo! — concordou Dibbler, abrindo um sorriso para Victor.

—    E um homem que consegue vender as salsichas do senhor Dibbler duas vezes consegue vender qualquer coisa.

A manhã seguinte estava clara e radiante, como todos os dias em Holy Wood, e eles começaram As Aventhuras Intheressantes e Curiosas de Cohen o Bárbaro. Dibbler havia trabalhado a noite toda na história, segundo ele.

O título, Porém, era idéia de Silverfish. Apesar de Dibbler ter lhe garantido que Cohen o Bárbaro consistia basicamente num tema histórico e certamente educativo, Silverfish se recusou a aceitar O Vhale de Sangue!

Victor recebeu o que parecia ser uma bolsa de couro, mas descobriu ser o seu figurino. Ele se trocou atrás de duas pedras.

Também recebeu uma espada grande e cega.

—    Agora — disse Dibbler, que estava sentado numa cadeira de lona — o que você tem que fazer e lutar com os trolls, sair correndo e desamarrar a garota da estaca, lutar com os outros trolls e depois correr para trás daquela outra pedra ali. A minha idéia e essa. O que você acha, Tommy?

—    Bom, eu... — começou Silverfish.

—    Ótimo. Ok. Sim, Victor?

—    Você falou em trolls. Que trolls?

As duas pedras se desdobraram.

—    Não se preocupe com nada, meu senhor — disse o troll mais próximo. — eu e o véio Galena ali já ensaiamo tudo.

—    Troll! — exclamou Victor, afastando-se.

—    Isso mesmo — disse Galena. Ele exibiu uma clava com um prego na ponta.

—   Mas, mas... — começou Victor.

—    Sim? — perguntou o outro troll.

O que Victor gostaria de ter dito era: "Mas vocês são trolls, pedras ambulantes e ferozes que vivem nas montanhas e atacam os viajantes com clavas enormes, muito parecidas com as que seguram agora, e eu pensei, quando disseram trolls, que estavam se referindo a homens comuns vestindo, ah, sei lá, sacos pintados de cinza ou algo do tipo".

—    Que bom — disse sem firmeza. — e...

—    E não dê ouvidos a essas histórias de que a gente come gente —disse Galena. Isso e calúnia, isso sim. Quer dizer, a gente e feito de pedra, pra que a gente ia querer comer gente...

—    Ingulir — corrigiu o outro troll. — Você quer dizer ingulir.

—    e. Pra que a gente ia querer ingulir gente? A gente sempre cospe o bagaço. e, mesmo assim, a gente já parou com essas coisa agora — acrescentou rapidamente. — e a gente nem fazia. — ele cutucou Victor com o cotovelo de um jeito amigável, quase quebrando uma de suas costelas. — e legal aqui — disse num tom conspirador.

—    A gente ganha três dólares por dia, mais um dólar extra para o protetor solar, por estar trabalhando durante o dia.

—    Caso contrário, a gente vira pedra e fica assim até escurecer, o que e um problema — observou o seu companheiro.

—    e, atrasa a filmagem, e as pessoas ficam acendendo palito de fósforo na gente.

—    Alem disso, nosso contrato diz que recebemos mais cinco centavos por usar a nossa própria clava — disse o outro troll.

—    Será que podemos começar?... — começou Silverfish.

—    Por que só tem dois trolls? — reclamou Dibbler. — Que heroísmo existe em lutar com apenas dois trolls? eu pedi 20, não pedi?

—    Dois está bom para mim! — gritou Victor.

—    Ouça, senhor Dibbler — começou Silverfish —, sei que está tentando ajudar, mas a economia básica...

Silverfish e Dibbler começaram a discutir. Gaffer, o operador de manivela, suspirou e tirou a parte de trás da caixa de imagens animadas para dar comida e água para os demônios, que estavam reclamando.

Victor se apoiou na espada.

_ Vocês fazem muito esse tipo de coisa, é? — perguntou aos trolls.

_ É — respondeu Galena. — O tempo todo. Tipo, em O Rei na Bharriga, eu faço o papel de um troll que saiu correndo e bateu nas pessoas. e em A Florestha Negra, eu faço o papel de um troll que saiu correndo e bateu nas pessoas. e, em Montanha Mistheriosa, eu faço o papel de um troll que saiu correndo e pulou pra cima e pra baixo em cima das pessoas. Não vale a pena ficar estereotipado. —    e você, faz a mesma coisa? — Victor perguntou ao outro troll.

—    Ah, o Morraine é um ator que representa tipos, não é, Morraine? — disse Galena. — O melhor no ramo.

—    Que tipos ele representa?

—    Pedras.

Victor ficou olhando fixamente para eles.

—    Por causa das feições escarpadas dele — continuou Galena. — Não apenas pedras. Você tem que ver ele fazendo um monólito antigo. Você ficaria pasmado. Vai, Morry, mostra pra ele a sua inscrição.

—    Nãão... — disse Morraine, sorrindo encabulado.

—    estou pensando em mudar o meu nome para trabalhar nas imagens animadas — prosseguiu Galena. — Algo com um pouco de classe. Pensei em Sílex. — ele lançou um olhar de preocupação para Victor, como se ele fosse um especialista na variedade de expressões possíveis para um rosto que parecia ter saído de um bloco de granito depois de um chute com uma bota de bico de aço. — O que e que cê acha?

—    Ê... Muito legal.

—    Mais dinâmico, eu achei — disse o futuro Sílex. Victor se ouviu dizer:

—    Ou Rocha. Rocha é um nome legal.

O troll ficou olhando para ele, mexendo os lábios sem emitir som, experimentando o pseudônimo.

—    Nossa. Nunca pensei nisso. Rocha. Gostei. Acho que eu devia receber mais de três dólar por dia com um nome que nem Rocha.

—    Podemos começar? — perguntou Dibbler num tom severo.

—    Talvez seja possível ter mais trolls se este filme for um sucesso. Mas não será um sucesso se extrapolarmos o orçamento, o que significa que temos que terminá-lo antes do almoço. Agora, Morry e Galena...

—    Rocha — corrigiu Rocha.

—    Sério? Bom, de qualquer modo, vocês dois saiam correndo e ataquem Victor, ok? Certo... vire...

O operador de manivela virou a manivela da caixa de imagens. Houve um barulho fraco de cliques e um coro de pequenos gemidos dos demônios. Victor ficou olhando com uma postura alerta.

—    Isso significa que você pode começar — disse Silverfish, paciente. — Os trolls saem correndo de trás das pedras e você se defende com valentia.

—    Mas eu não sei como lutar contra trolls! — reclamou Victor.

—    Vou te dizer uma coisa — observou o recém-batizado Rocha. —Você finge que se defende, e a gente meio que dá um jeito de não acertar você.

A luz baixou.

—    Quer dizer que é tudo fingimento?

Os trolls trocaram um olhar breve, mas que conseguiu expressar: "Impressionante, não é?, que criaturas como esta aparentemente governem o mundo?"

—    É — disse Rocha. — É isso aí. Nada é real.

—    Não temos permissão para matá-lo — reiterou Morraine de modo tranqüilizador.

—    Isso mesmo. A gente não ia matar você— concordou Rocha.

—    eles pára de pagar o nosso dinheiro se a gente faz coisas do tipo — explicou Morraine, com tristeza.

Do lado de fora da falha na realidade, eles se aglomeravam e espiavam o que acontecia lá dentro com coisas que se assemelhavam a olhos, analisando a luz e o calor. Havia uma multidão deles agora.

Já houve uma passagem de entrada um dia. Dizer que se lembravam disso seria errado porque não possuíam nada tão sofisticado quanto a memória. eles mal tinham algo tão sofisticado quanto uma cabeça. Mas tinham, sim, instintos e emoções.

Precisavam de uma passagem para dentro.

eles a encontraram.

Funcionou muito bem na sexta vez. O problema principal era o entusiasmo dos trolls para bater um no outro, no chão, no ar e, com muita freqüência, em si mesmos. No final, Victor apenas se concentrou em tentar acertar as clavas quando elas passavam zunindo por ele.

Dibbler parecia muito feliz com isso. Gaffer não estava.

—    Eles se mexiam muito de um lado para o outro. Ficaram fora de enquadramento metade do tempo.

—    Era uma batalha — disse Silverfish.

—    É, mas eu não consigo mexer a caixa de imagens de um lado para o outro — disse o operador de manivela. — Os diabretes caem.

—    Você não poderia prendê-los com uma correia ou algo do tipo? — perguntou Dibbler.

Gaffer cocou o queixo.

—    Acho que eu poderia pregar os pés deles no chão.

—    De todo modo, por enquanto não será necessário — disse Silverfish. — Faremos as cenas em que você salva a garota. Onde está a garota? eu a instruí claramente para estar aqui. Por que ela não está aqui? Por que ninguém nunca faz o que eu mando?

O operador de manivela tirou o toco de cigarro da boca.

—    Ela está filmando A Avhentureira Loura lá do outro lado da colina — informou.

—    Mas esse tinha que ter sido terminado ontem! — gritou Silverfish.

—    O filme explodiu — explicou o operador.

—    Droga! Bem, acho que podemos fazer a próxima luta. ela não precisa estar presente — disse Silverfish, irritado. — Certo, pessoal. Faremos a parte em que Victor luta contra o terrível Balgrog.

—   O que e um Balgrog? — perguntou Victor.

Uma mão amigável, Porém pesada, bateu em seu ombro.

—    É um monstro malvado tradicional. Basicamente é o Morry pintado de verde com asas grudadas — disse Rocha. — eu só tenho que ir lá ajudar ele com a pintura.

Rocha saiu arrastando os pés.

Ninguém parecia precisar de Victor no momento.

ele enfiou a espada ridícula na areia, andou sem destino e encontrou um pouco de sombra debaixo de algumas oliveiras secas. Havia algumas rochas ali. Bateu nelas de leve. Não pareciam ser alguém.

O chão formava um pequeno vale fresco que quase chegava a ser agradável para os padrões secos da colina de Holy Wood.

Havia até uma corrente de ar proveniente de algum lugar. Quando se recostou nas pedras, sentiu uma brisa fresca saindo delas. "Deve estar cheio de cavernas aqui embaixo", pensou.

... longe dali, na Universidade Invisível, numa pequena corrente de ar, num corredor cheio de pilares, um aparelhinho em que ninguém prestava muita atenção havia anos começou afazer um barulho...

Então isso era Holy Wood. ela não parecia ser assim na tela grande. As imagens animadas envolviam muito mais espera e, se estava ouvindo bem, uma confusão com horários. As coisas aconteciam antes das coisas que lhes sucediam. Os monstros eram apenas Morry pintado de verde com asas grudadas. Nada era de verdade.

O engraçado era o fato de isso ser empolgante.

—    Já estou quase farta disto — disse uma voz ao seu lado.

Ele olhou para cima. Uma garota vinha pelo outro caminho. Seu rosto estava vermelho de esforço sob uma maquiagem pálida, seus cabelos caíam sobre o rosto em cachinhos ridículos, e ela usava um vestido que, embora claramente feito para o seu tamanho, tinha sido criado para alguém dez anos mais jovem e fanático por fitas com rendas.

Era muito bonita, embora esse fato não fosse notado de imediato.

—   E sabe o que dizem quando você reclama? — ela perguntou. Não se dirigia a Victor, na verdade. ele era apenas um oportuno par de ouvidos.

— Não consigo imaginar — respondeu Victor, por educação.

—    Dizem "Tem muita gente por aí só esperando uma chance para entrar para o ramo das imagens animadas". Isso é o que eles dizem.

Ela se encostou-se a uma árvore retorcida e se abanou com um chapéu de palha.

—    Está quente demais — reclamou. — Agora eu tenho que fazer um filme ridículo de um rolo para Silverfish, que não tem a mínima idéia do que está fazendo. E algum garoto, provavelmente com mau hálito, feno no cabelo e uma testa em que daria para colocar uma mesa.

—    E trolls — completou Victor num tom suave.

—    Oh, deuses. Morry e Galena, não!

—    Sim. Só que Galena agora quer ser chamado de Rocha.

—    Achei que ia ser Sílex.

—    Ele gostou de Rocha.

De trás das rochas, veio o berro queixoso de Silverfish, perguntando aonde havia ido todo mundo justamente quando precisava deles. A garota revirou os olhos.

—    Oh, deuses. Por causa disso estou perdendo o almoço?

—    Não se esqueça de que pode comer na minha testa — disse Victor, levantando-se.

Ele teve a satisfação de sentir na nuca o olhar pensativo dela enquanto pegava sua espada e fazia com ela alguns movimentos experimentais, com muito mais força que o necessário.

—    Você é o garoto da rua, não é? —perguntou.

—    Isso mesmo. E você é a garota que ia entrar em cena dali a cinco minutos.

Ela o olhou com curiosidade.

—    Como você conseguiu um emprego tão rápido ? A maioria das pessoas tem que esperar semanas para ter uma chance.

—    As chances estão onde você as encontra, eu sempre digo.

—Mas como...

Victor já havia saído de perto com um ar de indiferença e satisfação. ela o seguiu de cara fechada e fazendo um beicinho petulante.

—    Ah — disse Silverfish num tom sarcástico, erguendo o rosto. — O que eu posso dizer? Todo mundo está onde deveria. Muito bem. Vamos começar da parte em que ele a encontra amarrada a uma estaca. O que você tem que fazer — disse para Victor — é desamarrá-la, depois arrastá-la para longe e lutar com Balgrog. E você— apontou para a garota — você... você... você apenas o segue e tenta parecer o mais salva que puder, certo?

—    Sou boa nisso — ela disse, conformada.

—    Não, não, não — interrompeu Dibbler, pondo a cabeça entre as mãos. — De novo não!

—    Não e isso o que você queria? Lutas e salvamentos?

—    Tem que ser mais do que isso! — disse Dibbler.

—    O quê, por exemplo? — perguntou Silverfish.

—    Ah, não sei. Zástrás. Bang. O velho ratatatá.

—    Barulhos esquisitos? Nós não temos som.

—    Todo mundo faz filmes sobre gente correndo, lutando e caindo. Devia ter algo mais. Tenho visto as coisas que você faz por aqui, e todas parecem iguais para mim.

—    Bom, todas as salsichas parecem iguais para mim — gritou Silverfish.

—    Elas têm que ser! é isso o que as pessoas esperam!

—    Eu também estou dando a elas o que esperam. As pessoas gostam de ver mais daquilo que esperam ver. Lutas e perseguições, esse tipo de coisa...

—    Licença, senhor Silverfish — interrompeu o operador de manivela por cima da falação dos demônios.

—    Sim? — gritou Dibbler.

—    Licença, senhor Dibbler, mas eu tenho que dar comida pra eles daqui a 15 minutos.

Dibbler suspirou.

Pensando em retrospectiva, Victor estava sempre um pouco incerto sobre esses minutos que vinham a seguir. As coisas são assim. Os momentos que mudam a nossa vida são aqueles que acontecem de repente, como o momento em que morremos.

Mais uma batalha estilizada tinha acontecido, isso ele sabia, com Morry e o que teria sido um chicote terrível caso o troll não o tivesse enrascado entre as pernas. e, depois que o temível Balgrog foi derrotado e saiu de cena fazendo caretas horríveis, tentando segurar as asas com uma mão, ele se virou e cortou as cordas que prendiam a garota à estaca. então ele deveria tê-la arrastado rapidamente para a direita quando...

... começou um zumbido.

Não havia palavras, mas algo que era a alma das palavras entrava direto pelos seus ouvidos e descia pela espinha sem se dar ao trabalho de fazer uma parada no cérebro.

Ele olhou nos olhos da garota e se perguntou se ela também estaria ouvindo.

Muito longe dali havia palavras. Havia Silverfish dizendo:

—    Andem logo, vamos com isso, por que está olhando para ela desse jeito?

E o operador de manivela dizendo:

—    Eles fica muito mal-humorado quando perde uma refeição.

E Dibbler dizendo, com uma voz que sibilava feito uma faca cortando o ar:

—    Não pára de girar essa manivela!

Sua visão ficou nebulosa nos cantos e havia formas nas nuvens que se transformavam e desapareciam antes que ele tivesse a chance de examiná-las. Tão sem ação quanto uma mosca numa torrente de âmbar, tão no controle do seu destino quanto uma bolha de sabão num furacão, ele se inclinou e a beijou.

Havia mais palavras alem do zumbido nos seus ouvidos.

—    Por que ele está fazendo isso? eu mandei ele fazer isso? Ninguém mandou ele fazer isso!

—    ...E depois eu tenho que limpar eles e, vou te contar, não é nada...

—    Gire a manivela! Gire a manivela! — gritou Dibbler.

—    Por que ele está olhando com essa cara?

—Uau!

—Se você parar de girar essa manivela, nunca mais vai trabalhar nesta cidade!

—    Escuta aqui, meu senhor, acontece que eu faço parte do Grêmio dos Operadores de Manivela...

—    Não pára! Não pára!

Victor voltou a si. O zumbido parou e foi substituído pelo estrondo distante das britadeiras. O mundo real estava de volta, quente e voraz, e o sol fixo no céu parecia uma medalha concedida por ser um belo dia.

A garota respirou fundo.

—    Eu, nossa, eu sinto muito mesmo — balbuciou Victor, recuando. — eu realmente não sei o que aconteceu...

Dibbler não parava de pular.

—    É isso, é isso! — gritava. — Quando é que vai estar tudo pronto?

—    Bom, é como eu disse, tenho que alimentar os diabretes, limpar eles...

—    Está bem, está bem. Isso vai me dar tempo para desenhar alguns cartazes — disse Dibbler.

—    Eu já tenho alguns — observou Silverfish num tom desinteressado.

—    Tenho certeza de que sim, tenho certeza de que sim — disse Dibbler, animado. — Tenho certeza de que sim. E com certeza neles estão escritas coisas como "Pode ser que você goste de ver uma Imagem Animada Bem Interessante"!

—    Qual é o problema nisso? — perguntou Silverfish. — é muito melhor que uma maldita salsicha quente!

—    eu já te disse, quando você vende salsicha, não fica por aí esperando que as pessoas queiram salsicha. Você vai lá e faz as pessoas ficarem com fome. e você coloca mostarda nela. Foi isso o que o seu garoto aqui fez.

Ele pôs a mão no ombro de Silverfish e acenou com a outra de modo expansivo.

—    Você não está vendo? — perguntou. ele hesitou. Idéias estranhas invadiam sua mente mais rápido do que ele conseguia processar. Sentiu uma tontura diante da empolgação e das possibilidades. — espadha da Paixão. e assim que vai se chamar. Não vai ser um nome inventado por algum velho doido que nem deve estar mais vivo. espadha da Paixão. Sim. Uma Saga Conturbada de... de Desejo e Puro, Puro, Puro aquele negócio no Calor Primitivo de um Continente Atormentado! Romance! Glamour! em três Ardentes Rolos de Filme! emocione-se com a Luta Fatal com Monstros Vorazes! Grite quando mil elefantes...

—    É apenas um rolo — murmurou Silverfish, irritado.

—    Filme um pouco mais hoje à tarde! — gritou Dibbler, revirando os olhos. — Você só precisa de mais lutas e mais monstros!

—    e certamente não tem elefante nenhum — disse Silverfish num tom ríspido.

Rocha ergueu o braço áspero.

—    Sim? — perguntou Silverfish.

—    Se você tiver um pouco de tinta cinza e material pra fazer as orelhas, tenho certeza de que eu e o Morry poderíamos...

—    Ninguém jamais fez um filme de três rolos — disse Gaffer, pensativo. — Poderia ser muito complicado. Quer dizer, teria quase dez minutos de duração. — ele parecia refletir sobre algo. — Acho que se eu fizesse um carretel maior...

Silverfish sabia que estava encurralado.

—    Olha aqui — começou.

Victor olhou fixamente para a garota. Todos os outros os ignoravam.

—    È... Acho que não fomos apresentados formalmente.

—    Parece que você não deixou que isso o atrapalhasse.

—    eu normalmente não faria algo do tipo. eu devo ter... passado mal. Ou algo assim.

—    Ah, ótimo. está dizendo isso para que eu me sinta melhor?

—    Vamos sentar à sombra? está muito quente aqui fora.

—    Seus olhos ficaram meio... incandescentes.

—    Sério?

—    Ficaram muito esquisitos.

—    eu me senti muito esquisito.

—    eu sei. È este lugar. ele mexe com a gente. Sabia — ela disse, sentando-se na areia — que existe um monte de regras para os diabinhos? eles não podem se cansar demais, que tipo de alimento recebem, essas coisas. Mas ninguém se preocupa com a gente. Até os trolls recebem tratamento melhor.

—    Deve ser por causa do jeito como eles andam por aí, com seus 2,15 m de altura e 400 kg — observou Victor.

—    Meu nome é Theda Withel, mas meus amigos me chamam de Ginger.

—    Meu nome e Victor Tugelbend. e... meus amigos me chamam de Victor.

—    Este é o seu primeiro clique, não é ?

—    Como você sabe?

—    Você parecia gostar do que estava fazendo.

—    Bom, é melhor do que trabalhar, não e?

—    espere até estar nisto por tanto tempo quanto eu — ela disse num tom amargo.

—    Há quanto tempo você faz isto?

—    Praticamente desde o começo. Cinco semanas.

—    Nossa. Tudo aconteceu tão rápido.

—    É a melhor coisa que já aconteceu — disse Ginger sem entusiasmo.

—    Acho que sim... e... nós temos permissão para ir comer? — perguntou Victor.

—    Não. eles vão começar a gritar por nós a qualquer momento.

Victor concordou. Tinha, de modo geral, levado sua vida bastante satisfeito fazendo o que queria de maneira firme, porém despreocupada, e não achava que deveria ser diferente nem mesmo em Holy Wood.

—    então eles vão ter que gritar bem alto. eu quero comer alguma coisa e beber algo gelado. Talvez tenha tomado sol demais.

Ginger pareceu incerta.

—    Bom, tem o armazém, mas...

—    Ótimo. Você pode me mostrar onde fica.

—    eles demitem as pessoas como se não fosse nada...

—    O quê, antes do terceiro rolo de filme?

—    eles dizem "Tem muita gente que está morrendo de vontade de entrar para o ramo das imagens animadas", sabe...

—    Ótimo. Isso significa que terão a tarde toda para encontrar duas que sejam igualzinhas a nós. — ele passou por Morry, que também tentava se manter a sombra de uma rocha. — Se alguém precisar da gente, estamos almoçando.

—    O quê, bem agora? — perguntou o troll.

—    Sim — disse Victor com firmeza, e saiu andando a passos

largos.

Atrás dele, viu Dibbler e Silverfish concentrados numa discussão acalorada, com eventuais interrupções do operador de manivela, que falava no tom vagaroso de quem sabe que irá receber seis dólares pelo dia de trabalho independentemente de qualquer coisa.

—    ... vamos fazer dele um épico. As pessoas vão falar sobre isso durante séculos.

—    Sim, vão dizer que fomos à falência!

—    Olha, eu sei onde podemos conseguir umas estampas coloridas feitas com gravuras em madeira a um custo praticamente...

—    ... eu tava pensando, talvez se eu usar uns barbantes e amarrar a caixa de imagens animadas a umas rodas, pra ela poder ser movimentada...

—    As pessoas vão dizer "Aquele Silverfish, esse sim era um artista das imagens animadas, com coragem para dar às pessoas o que elas querem". e o que vão dizer. "Um homem que revolucionou a coisa dos meios de..."

—    ... talvez, se eu fizesse uma espécie de arranjo com uma vara

e um suporte giratório, a. gente pudesse deixar a caixa de imagens

bem perto do...

—    O quê? Você acha que vão dizer isso?

—    Confie em mim, Tommy.

—    Bem... está bem. está bem. Mas nada de elefantes. Quero

deixar isso absolutamente claro. Nada de elefantes.

— Parece esquisito para mim — disse o arqui-reitor. — Parece um bando de elefantes de cerâmica. Achei que você tivesse dito que era uma máquina. —        e mais... mais um aparelho — corrigiu o tesoureiro, incerto.

ele lhe deu um cutucão. Vários dos elefantes de cerâmica oscilaram.

— Riktor o Consertador, o construiu, acho. Foi antes da minha

época.

A peça parecia um vaso grande e decorado, quase da altura de um homem da altura de um vaso grande. Ao redor da borda, havia oito elefantes de cerâmica pendurados em pequenas correntes de bronze. Um deles balançou para frente e para trás com o toque do tesoureiro.

O arqui-reitor olhou dentro da peça.

—    e cheio de alavancas e foles — observou, com repugnância. O tesoureiro se virou para a zeladora da Universidade.

—    Bem, então, senhora Whitlow, o que aconteceu exatamente? A senhora Whitlow, enorme, rosada e com uma cinta de cima

a baixo, deu um tapinha na sua peruca ruiva e cutucou a pequena criada que pairava ao seu lado feito um barco rebocador.

—    Conte a sua senhoria, Ksandra — ordenou.

A expressão de Ksandra dizia que ela estava arrependida de ter começado aquilo.

—    Bem, senhor, por favor, senhor, eu estava tirando o pó, sabe...

—    ela estava tirando o pó — repetiu a senhora Whitlow, tentando ser útil. Quando a senhora Whitlow estava sob o domínio da consciência de classes, conseguia dobrar os erres que a natureza nem sequer pensou em dobrar.

—    ... e aí ele começou a fazer um baruio...

—    ele fez um barrrulho — repetiu a senhora Whitlow. — então, ela veio me contar, excelência, conforme as minhas instrrruções.

—    Que tipo de barulho, Ksandra? — perguntou o tesoureiro da forma mais gentil que pôde.

—    Por favor, senhor, era meio... — ela apertou os olhos — "whumm... whumm... whumm... whumm... whummwhummwhumm WHUMMWHUMMplib senhor.

—    Plib — repetiu o tesoureiro, num tom solene.

—    Sim, senhor.

—    Prrrim — ecoou a senhora Whitlow.

—    Foi então que ele cuspiu em mim, senhor — completou Ksandra.

—    expectorrrou — corrigiu a senhora Whiltow.

—    Parece que um dos elefantes lançou uma pequena bolinha de chumbo, mestre — observou o tesoureiro. — Isso foi o... e... oplib.

—    Foi? Caramba — disse o arqui-reitor. — Não dá para tolerar vasos escarrando em cima das pessoas.

A senhora Whitlow se contorceu.

—    Por que ele faria isso? — acrescentou Ridcully.

—    eu realmente não saberia dizer, mestre. Achei que talvez o senhor soubesse. Acredito que Riktor era professor aqui quando o senhor era aluno. A senhora Whitlow está muito preocupada — acrescentou, com uma entonação que deixava claro que, quando a senhora Whitlow estava preocupada com alguma coisa, seria imprudente que o arqui-reitor a ignorasse — com a intromissão da magia na vida dos empregados.

O arqui-reitor bateu no vaso com os nós dos dedos.

—    O quê, o velho Riktor dos "Números"? e esse mesmo o sujeito?

—    Parece que sim, arqui-reitor.

—    Totalmente louco. Achava que era possível medir tudo. Não apenas comprimentos e pesos, mas tudo. "Se algo existe," ele dizia, "deve ser possível medir." — Os olhos de Ridcully marejaram com a lembrança. — Fazia todo tipo de troço esquisito. Acreditava que era possível medir a verdade, a beleza, os sonhos e coisas assim. então esse e um dos brinquedinhos do velho Riktor? O que será que mede?

—    eu acho — arriscou a senhora Whitlow — que deve ser

guarrrdado em algum lugar fora do caminho dos brrraços, se

vocês não se importarrrem.

—    Sim, sim, sim, claro — se apressou em concordar o tesoureiro.

era difícil manter os empregados na Universidade Invisível.

—    Livre-se dele — ordenou o arqui-reitor.

O Tesoureiro ficou horrorizado.

—    Oh, não, senhor. Nós nunca jogamos nada fora. Alem disso, provavelmente e muito valioso.

—    Humm — ponderou Ridcully. — Valioso?

—    e possível que seja um artefato de importância histórica, mestre.

—    Deixe no meu escritório então. eu disse que o lugar precisava ficar mais agradável. Isso vai dar pano pra manga ainda, não? Agora tenho que ir. Tenho que resolver um assunto. Um homem que vai treinar um grifo. Tenham um bom dia, senhoras...

—    e... arqui-reitor, será que o senhor poderia apenas assinar... — começou o tesoureiro, mas diante de uma porta fechada.

Ninguém perguntou a Ksandra qual dos elefantes de cerâmica havia cuspido a bola, e a direção não teria significado nada para eles, de todo modo.

Naquela tarde, dois carregadores levaram o único resógrafo6 do universo ainda em funcionamento para o escritório do arqui-reitor.

Ninguém tinha encontrado uma forma de adicionar som às imagens animadas, mas havia um som particularmente associado a Holy Wood. O de pregos sendo martelados.

Holy Wood se tornara um lugar crítico. Casas novas, ruas novas e bairros novos apareciam da noite para o dia. e, naquelas áreas onde os aprendizes de alquimia mal orientados ainda não estavam totalmente a par dos estágios mais complicados da produção de octocelulose, desapareciam mais rápido ainda. Não que isso fizesse muita diferença. A fumaça mal se dissipava e alguém já estava martelando novamente.

Holy Wood crescia por meio de fissão. Só era preciso um rapaz com a mão firme, não—fumante e que soubesse ler símbolos químicos, um operador de manivelas, um saco de demônios e muita luz do sol. Ah, e algumas pessoas. Mas isso havia aos montes. Se não desse para criar demônios, misturar elementos químicos ou girar uma manivela com ritmo, ainda era possível segurar cavalos, servir mesas ou parecer interessante enquanto mantinha as esperanças. Ou, se tudo isso falhasse, martelar pregos. Prédios e mais prédios sem nenhuma firmeza margeavam a colina antiga,

 

  1. Lit.: "escritor de estados da existência objetiva", ou aparelho para detectar e medir perturbações na estrutura da realidade

.

suas tábuas já empenadas e desbotadas pelo sol impiedoso. Mas já havia demanda urgente por mais.

Porque Holy Wood chamava. Mais pessoas chegavam todos os dias. elas não vinham para trabalhar na estrebaria nem para ser empregadas de tavernas ou carpinteiros freelances. Vinham para fazer filmes.

e não sabiam por quê.

Conforme Dibbler Cava-a-própria-Cova sabia do fundo do seu coração, sempre que duas ou mais pessoas se reunissem, alguém tentaria vender a elas uma salsicha suspeita num pão.

Agora que Dibbler estava envolvido com outras coisas, outros haviam surgido para preencher essa função.

Um deles era Nodar Borgle, o klatchiano, cujo enorme galpão cheio de eco não era exatamente um restaurante, mas uma fábrica de alimentação. Grandes sopeiras fumegantes ocupavam um dos cantos. O resto era ocupado por mesas, e às mesas havia...

Victor ficou perplexo.

... havia trolls, humanos e anões. e alguns gnomos. e talvez até alguns elfos, a mais arisca das raças do Disco. e muitas outras coisas que Victor teve que torcer para que fossem trolls fantasiados, porque se não fossem estariam todos em sérios apuros. e todos comiam, e o mais incrível: não estavam comendo uns aos outros.

—    Você pega um prato, entra na fila e depois paga — explicou

Ginger. — Chama-se self-servo.

—    A gente paga antes de comer? e se a comida for horrorosa? Ginger concordou com a cara fechada.

—    e justamente por isso.

Victor deu de ombros e se inclinou para falar com o anão que estava atrás do balcão com a comida.

—    eu gostaria de...

—    Ê cuzido — disse o anão.

—    Que tipo de cozido?

 

—    Não existe mais de um tipo. Por isso e que e cuzido — respondeu o anão, impaciente. — Cuzido e cuzido.

—    O que eu quis dizer foi: o que tem nele?

—    Se você precisa perguntar, não está com fome suficiente

— disse Ginger. — Dois cozidos, Fruntkin.

Victor ficou olhando para a coisa marrom acinzentada que escorreu para o seu prato. Caroços estranhos, levados à superfície por misteriosas correntes de convecção, se agitaram por um momento e depois afundaram de volta — esperava—se que para sempre.

Borgle pertencia à escola gastronômica de Dibbler.

—    e cuzido ou nada, garoto. — Disse o cozinheiro com olhar

malicioso. — Meio dólar. Barato pela metade do preço.

Victor entregou o dinheiro com relutância e olhou ao redor, procurando Ginger.

—    Aqui — chamou Ginger, sentando—se a uma das mesas longas. — Olá, Thunderfoot. Oi, Breccia, tudo bom? este e o Vic. Garoto novo. Oi, Sniddin, não te vi aí.

Victor se viu apertado entre Ginger e um troll da montanha que usava algo parecido com um colete de malha de ferro, mas que na verdade era apenas o colete de malha de ferro de Holy Wood, ou seja, barbante tricotado e pintado de prateado.

Ginger começou a conversar animadamente com um gnomo de dez centímetros de altura e um anão que usava metade de uma fantasia de urso, deixando Victor um pouco isolado.

O troll acenou para ele com a cabeça e depois fez uma careta para o próprio prato.

—    Chamam isto de pedra-pomes. eles nem se dão ao trabalho de tirar a lava. e nem dá pra sentir o gosto da areia.

Victor olhou fixamente para o prato do troll.

—    eu não sabia que os trolls comiam pedra — disse, antes que pudesse se controlar.

—    Por que não?

—    Vocês não são feitos disso?

—    É, mas você é feito de carne, e o que você come? Victor olhou para o próprio prato.

—    Boa pergunta.

—    O Vic está fazendo um clique para Silverfish — disse Ginger, olhando ao redor. — Parece que eles vão fazer um de três rolos.

Houve um murmúrio geral de interesse.

Victor colocou, com cuidado, uma coisa amarela e trêmula ao lado do seu prato.

—    Digam uma coisa — começou, pensativo. — enquanto filmavam, algum de vocês teve um... ouviu uma espécie de... sentiu que estava... — ele hesitou. Todos olhavam para ele. — Vocês já sentiram que alguma coisa estava atravessando vocês? Não consigo pensar em nenhuma outra forma de dizer isso.

Seus companheiros de jantar relaxaram.

—    Isso e apenas Holy Wood — disse o troll. — ela mexe com a gente. É essa criatividade toda espirrando pra todos os lados.

—    Mas o que você teve foi um ataque bem sério — observou Ginger.

—    Acontece o tempo todo — disse o anão, pensativo. — É Holy Wood. Na semana passada, eu e os rapazes estávamos trabalhando em Contos dos Anões e, de repente, nós todos começamos a cantar. Sem mais nem menos. Uma música veio a nossa mente ao mesmo tempo. O que vocês acham disso?

—    Que música?

—    Sei lá. Nós a chamamos apenas de a música do "eu vou". era só isso. eu vou, eu vou. eu vou, eu vou.

—    Parece com todas as outras músicas de anão que já ouvi — resmungou o troll.

Passava das duas horas quando voltaram ao local onde se faziam imagens animadas. O operador de manivela havia retirado a parte de trás da caixa de imagens e raspava o fundo com uma pá pequena.

Dibbler estava dormindo na sua cadeira de lona com um lenço sobre o rosto. Mas Silverfish estava bem desperto.

—    Onde estavam vocês dois? — gritou.

—    eu estava com fome — disse Victor.

—    e você vai ficar com bastante fome, meu rapaz, por que... Dibbler ergueu a ponta do lenço.

—    Vamos começar — murmurou.

—    Mas não podemos aceitar que os atores nos digam...

—    Termina o clique e depois demite ele.

—    Certo! — Silverfish balançou um dedo ameaçador para Victor e Ginger. — Vocês nunca mais vão trabalhar nesta cidade!

De algum modo, conseguiram terminar a tarde de trabalho. Dibbler fez com que trouxessem um cavalo e xingou o operador de manivela porque a caixa de imagens ainda não podia ser movida de um lado para o outro. Os demônios reclamaram. então colocaram o cavalo de frente para a caixa, e Victor pulava para cima e para baixo na sela. Como disse Dibbler, para as imagens animadas, estava muito bom.

Depois Silverfish pagou dois dólares com muita má vontade a cada um deles e os demitiu.

—    ele vai contar para todos os alquimistas — disse Ginger, desanimada. — São muito unidos. Parecem colados com cola.

—    Notei que só recebemos dois dólares por dia, e os trolls recebem três — observou Victor. — Por que é assim?

—    Porque não tem tantos trolls querendo fazer imagens animadas. e um bom operador de manivela consegue receber seis ou sete dólares por dia. Atores não são importantes.

ela se virou e o encarou.

—    eu estava indo bem. Nada de especial, mas bem. Tinha bastante trabalho. As pessoas me consideravam confiável. eu estava construindo uma carreira...

—    Não dá para construir uma carreira em Holy Wood — disse Victor. — e como construir uma casa num pântano. Nada é real.

—    eu gostava daqui! e agora você estragou tudo! Provavelmente terei que voltar para uma aldeiazinha horrorosa de que você nunca sequer ouviu falar! Voltar para a maldita ordenha! Muito obrigada! Toda vez que eu vir o traseiro de uma vaca, vou me lembrar de você!

ela saiu com raiva em direção à cidade, deixando Victor com os trolls. Depois de algum tempo, Rocha limpou a garganta.

—    Você tem onde ficar? — perguntou.

—    Acho que não — respondeu Victor, vacilante.

—    Nunca tem lugar suficiente para passar a noite — disse Morry.

— eu estava pensando em dormir na praia — ponderou Victor. está bem quente, afinal. Acho que realmente preciso de um bom descanso. Boa noite.

ele saiu cambaleando naquela direção.

O sol estava se pondo, e uma brisa do mar esfriara um pouco coisas. Ao redor do vulto escuro da colina, as luzes de Holy Wood se acendiam. Holy Wood só relaxava na escuridão. Quando sua matéria-prima é a luz do dia, você não a desperdiça.

estava bastante agradável na praia. Ninguém ia muito lá. A madeira que boiava na praia, com fendas e coberta de sal, não era nada boa para a construção. ela ficava amontoada, formando uma longa linha branca na altura da maré.

Victor juntou o suficiente para fazer uma fogueira, deitou-se e ficou observando a arrebentação.

Do alto da duna mais próxima, escondido atrás de uma moita de grama seca, Gaspode o Cão Prodígio o observava com ar pensativo.

eram duas da madrugada.

ela os tinha agora, e se lançou com alegria para fora da colina, lançando seu brilho para o mundo.

Holy Wood sonha...

ela sonha por todos.

Na escuridão abafada de um galpão de tábuas, Ginger Withel sonhava com tapetes vermelhos e multidões alvoroçadas. e com uma grade de ferro. Sempre no seu sonho havia a imagem de uma grade através da qual um sopro de ar quente levantava a sua saia...

Na escuridão não muito mais fresca de um galpão um pouco mais caro, Silverfish, o artista das imagens animadas, sonhava com multidões alvoroçadas e com alguém lhe entregando um prêmio pela melhor imagem animada já feita. era uma grande estátua imponente.

Lá nas dunas de areia, Rocha e Morry dormiam um cochilo irrequieto, porque os trolls são criaturas noturnas por natureza e dormir no escuro era uma ofensa a seus instintos ancestrais. eles sonhavam com montanhas.

Na praia, sob as estrelas, Victor sonhava com cascos de cavalo batendo no chão, mantos esvoaçantes, navios piratas, lutas de espada, candelabros...

Na duna mais próxima, Gaspode o Cão Prodígio dormia com um olho aberto e sonhava com lobos.

Mas Dibbler Cava-a-própria-Cova não sonhava, porque não estava dormindo.

A viagem até Ankh-Morpork tinha sido longa, e ele preferia vender cavalos a montá-los. Mas estava lá agora.

As tempestades que desviaram de Holy Wood com tanto cuidado não se preocuparam com Ankh-Morpork, e ela se encontrava sob um pé d'água. Mas isso não atrapalhava a vida noturna da cidade — só a tornava mais abafada.

Não havia nada que não pudesse ser comprado em Ankh-Morpork, até mesmo no meio da madrugada. e Dibbler tinha que comprar muitas coisas. Precisava pintar cartazes. Precisava de todo tipo de coisa. Muitas envolviam idéias que ele havia concebido durante a longa viagem e agora tinha que explicar com muita cautela para outras pessoas. e rápido.

A chuva formava uma cortina compacta quando ele finalmente chegou cambaleando diante da luz cinzenta do amanhecer. As sarjetas transbordavam. Ao longo dos telhados, as gárgulas — calhas com carrancas — vomitavam com habilidade sobre os transeuntes, embora, como eram cinco da madrugada, as multidões haviam se dissipado um pouco.

Cova respirou fundo o ar carregado da cidade. Ar de verdade. era preciso ir muito longe para encontrar um ar mais real que o de Ankh-Morpork. Só de respirá-lo era possível perceber que outras pessoas faziam o mesmo havia milhares de anos.

Pela primeira vez após vários dias, sentiu que pensava com clareza. era estranho em Holy Wood. Quando você estava lá, tudo parecia natural, tudo parecia fazer parte da vida. Mas, quando você se afastava e se lembrava de como era lá, parecia olhar para uma grande bolha de sabão cintilante. era como se em Holy Wood você não fosse a mesma pessoa.

Bom, Holy Wood era Holy Wood, e Ankh era Ankh. e Ankh era concreta e resistente, na opinião de Cova, à esquisitice de Holy Wood.

ele chapinhou pelas poças, escutando a chuva.

Após algum tempo notou, pela primeira vez na vida, que ela tinha um ritmo.

engraçado. Você podia viver numa cidade a vida toda, mas era preciso sair dela e voltar para notar que o modo como a chuva gotejava das calhas tinha um ritmo todo próprio: DUM di—dum—dum, dumdi, dumdi, Dum—Dum...

Alguns minutos depois, o sargento Colon e o cabo Nobbs, da Guarda Noturna, compartilhavam um cigarro de palha cordialmente sob o abrigo do vão da porta e faziam o que os integrantes da Guarda Noturna sabiam fazer melhor, ou seja, manter-se aquecidos, secos e longe dos problemas.

eles foram as únicas testemunhas da figura esquisita que chapinhou pela rua encharcada, deu piruetas sobre as poças, segurou—se num tubo de escoamento para dar uma volta na esquina e, batendo um calcanhar no outro alegremente, desapareceu do campo de visão.

O sargento Colon passou o toco de cigarro empapado para seu companheiro.

—    Aquilo era o velho Dibbler Cova? — perguntou depois de algum tempo.

—    era — respondeu Nobby.

—    ele parecia feliz, não?

—    Deve estar doidão, eu acho. Pra ficar dançando na chuva desse jeito.

Whumm... whumm...

O arqui-reitor, que atualizava o seu registro de pedigrees de dragões enquanto apreciava um drinque noturno diante da lareira, ergueu a cabeça.

... whumm... whumm... whumm...

—    Caramba... — murmurou, e foi devagar até o grande vaso, que chegava a oscilar de um lado para o outro, como se o prédio estivesse tremendo.

O arqui-reitor ficou observando, fascinado.

... whumm... whummwhummivhummWHUMM.

O vaso oscilou até parar e ficou em silêncio.

—    esquisito — comentou o arqui-reitor. — esquisito pra danar.

Plib.

Do outro lado da sala, sua garrafa de conhaque se despedaçou. Ridcully o Castanho respirou fundo.

—    Tesoureiro?

Moscas da areia despertaram Victor. O ar já estava quente. Seria mais um belo dia.

ele andou pela água rasa para lavar e esvaziar a cabeça

Vejamos... ainda tinha dois dólares do dia anterior, mais um punhado de moedas. Possuía dinheiro para ficar mais um pouco, especialmente se dormisse na praia. e o "cuzido" do Borgle, ainda que só pudesse ser considerado comida no sentido técnico, era bem barato — embora, pensando bem, comer lá poderia significar encontros constrangedores com Ginger.

ele deu mais um passo e afundou.

Victor nunca havia nadado no mar. Voltou à tona, quase se afogando, batendo os pés com fúria. A praia estava a apenas alguns metros de distância.

ele relaxou, retomou o fôlego e seguiu num nado crawl vagaroso até transpor a arrebentação. A água era cristalina. Dava pra ver o fundo num declive brusco até — ele subiu para respirar um pouco — se tornar um azul turvo, no qual somente era possível ver, através dos cardumes, o contorno de rochas pálidas e retangulares espalhadas pela areia.

Tentou um mergulho, esforçando-se para descer até os ouvidos começarem a zunir. A maior lagosta que já vira abanou as antenas para ele, de cima de um cone rochoso, e arrancou para as profundezas.

Victor voltou à tona novamente, ofegante, e nadou até a margem.

Bom, se não conseguisse se dar bem no cinema, havia uma chance como pescador, isso era certo.

Um sem-teto também se daria bem por ali. Havia lenha seca empilhada ao lado das dunas em quantidade suficiente para manter lareiras de Ankh-Morpork abastecidas durante anos. Ninguém em Holy Wood sonharia acender uma fogueira se não fosse para cozinhar ou para ter companhia.

e alguém estava fazendo exatamente isso. enquanto andava até a areia, Victor percebeu que a madeira ao longo da praia havia sido empilhada, não de forma casual, mas aparentemente planejada, em pilhas bem arrumadas. Mais adiante, pedras tinham sido ajeitadas para formar uma lareira rústica.

ela estava cheia de areia. Talvez alguém estivesse morando na praia, esperando pela grande chance nas imagens animadas. Olhando bem, a madeira atrás das pedras semi-enterradas parecia ter sido arrastada até lá. era possível imaginar, vendo a partir do mar, que várias vigas de madeira tinham sido montadas para formar um vão de porta.

Talvez ainda houvesse alguém lá. Talvez tivessem algo para beber.

Realmente havia gente lá. Mas não precisava de bebida havia meses.

eram oito da manhã. Uma batida ensurdecedora à porta acordou Bezam Planter, o dono do Odium, um dos frutos da semente das imagens animadas em Ankh-Morpork.

ele tivera uma noite ruim. O povo de Ankh-Morpork gostava de novidades. O problema era que não gostavam de novidades por muito tempo. O Odium havia feito ótimos negócios durante uma semana, não teve prejuízos na segunda semana e agora estava definhando. A última sessão da noite passada havia sido prestigiada por um anão surdo e um orangotango que levara os amendoins de casa. Bezam contava com a venda de amendoins e grãos estourados para obter algum lucro, e não estava de bom humor.

ele abriu a porta e olhou para fora com a visão embaçada.

— estamos fechados até as duas horas. Matinê. Voltem nesse horário. Assentos liberados em todas as áreas.

ele bateu a porta. ela ricocheteou na bota de Dibbler Cova e atingiu Bezam no nariz.

—    eu vim para a sessão especial de espadha da Paixão —disse Cova.

—    Sessão especial? Que sessão especial?

—    A sessão especial sobre a qual vou falar com você agora.

—    Não teremos sessão de nenhuma espada especial apaixonada. Vamos apresentar O emocionante...

—    O seu Dibbler tá dizendo que cê vai passar espadha da Paixão — soou uma voz grossa.

Cova se recostou no batente da porta. Atrás dele havia uma laje de pedra. Dava a impressão de que alguém havia atirado bolas de aço nela durante 30 anos.

ela formou uma dobra no meio e se inclinou em direção a Bezam.

ele reconheceu Detritus. Todo mundo reconhecia Detritus. Não era um troll que podia ser facilmente esquecido.

—    Mas eu nem sequer ouvi falar de... — começou Bezam.

Cova retirou uma lata grande de baixo do casaco e abriu

um sorriso.

—    e aqui estão alguns cartazes — acrescentou, puxando um rolo branco e grosso.

—    O seu Dibbler me deixou colar alguns nos muros — disse Detritus, com orgulho.

Bezam abriu um cartaz. As cores eram de arder os olhos. Mostrava uma foto do que poderia ser Ginger fazendo beicinho com uma blusa pequena demais para ela e Victor prestes a jogá-la sobre o ombro ao mesmo tempo em que lutava contra alguns monstros com a outra mão. Ao fundo, vulcões entravam em erupção, dragões atravessavam os céus e cidades pegavam fogo.

—    “A Imagem Animada Que Não Conseguiram Proibir!"

— leu Bezam, hesitante. — "Uma Aventura escaldante no Despertar

Fervoroso de um Novo Continente! Um Homem e uma Mulher

se encontrão no Redemoinho de um Mundo enlouquecido!!

eSTReLANDO **Dolores dos Pecados**, no papel de A Mulher, e **Victor Marasquino**, como Cohen o Bárbaro!!! eMOÇÕeS!

AVeNTURA!! eLeFANTeS!!! em Breve numa Sala perto de Você"

ele leu mais uma vez.

— A Dolores dos Pecados vai dar uma estrela? — perguntou, desconfiado.

—    Ela é uma estrela. Por isso colocamos estrelas ao lado do nome deles, está vendo? — ele se inclinou mais perto e baixou o volume da voz para um sussurro agudo. — Há quem diga que ela e a filha de um pirata klatchiano e de sua louca e obstinada prisioneira. ele e o filho de... o filho de... um mago fraudulento e de uma dançarina flamenca cigana e sem juízo.

—    Nossa! — disse Bezam, sem conseguir controlar o choque. Dibbler se permitiu um tapinha mental nas próprias costas. ele mesmo havia ficado bastante impressionado.

—    Acho que você deveria começar a apresentá-lo daqui a mais ou menos uma hora.

—    A esta hora da manhã? — disse Bezam. O clique que havia adquirido para o dia era Um esthudo Intheressante da Arte de Fazer Cerâmica, que o estava deixando preocupado. essa proposta parecia ser muito melhor.

—    Sim. Porque muita gente vai querer assistir.

—    Isso eu não sei. O público tem diminuído ultimamente.

—    Eles vão querer assistir a este — disse Cova. — Confie em mim. Já menti pra você alguma vez?

Bezam cocou a cabeça.

—    Bom, uma noite, no mês passado, você me vendeu uma salsicha no pão e disse que...

—    Foi uma pergunta retórica — interrompeu Cova de maneira brusca.

—    É — confirmou Detritus. Bezam fraquejou.

—    Ah, bom. Eu não conheço as normas da retórica.

—    Certo — disse Cova, com o sorriso aberto de uma abóbora maquiavélica. — Apenas abra. Depois e só relaxar e nadar no dinheiro.

—    Ah. Ótimo — aprovou Bezam, hesitante.

Cova pôs um braço amigável sobre o ombro do homem.

—    E agora vamos discutir os percentuais.

—    Que percentuais?

—    Pegue um charuto — ofereceu Cova.

Victor caminhava devagar pela rua principal sem nome de Holy Wood. Suas unhas estavam cheias de areia.

Não estava seguro de ter feito a coisa certa.

O homem provavelmente era apenas um mendigo da praia que simplesmente foi dormir num dia e não acordou mais, embora o casaco vermelho e dourado não fosse uma peça de roupa típica de um mendigo. era difícil dizer há quanto tempo ele estaria morto. O ar salgado e seco havia ajudado a preservá-lo. Tinha aparência semelhante à que devia ter quando vivo, ou seja, a de alguém que parecia morto.

A julgar por sua cabana, ele costumava catar coisas esquisitas pela praia.

Victor pensou que alguém deveria ser informado, mas provavelmente em Holy Wood não haveria ninguém interessado. Provavelmente apenas uma pessoa no mundo tinha se interessado em saber se ele estava vivo ou não, e tinha sido a primeira a saber.

Victor enterrou o corpo na areia perto da cabana feita com restos de madeira.

Ele viu o restaurante do Borgle à sua frente. Havia decidido se arriscar a tomar o café-da-manhã por lá. Alem disso, precisava de um lugar para sentar e ler o livro.

Não era o tipo de coisa que se esperava encontrar numa praia, numa cabana de madeira, na mão de um homem morto.

Na capa havia as palavras O Livro do Fhilme.

Na primeira página, na letra redonda caprichada de alguém que não tinha muita facilidade para escrever, estavam as seguintes palavras: "esta é a Crônica dos Guardadores da ParaMontanha copiada por mim Deccan Porque a Anthiga estava Caindo aos Pedaços".

Ele virou com cuidado as páginas enrijecidas. Pareciam cheias de anotações quase idênticas. Nenhuma tinha data, mas isso não era muito importante, já que cada dia se parecia muito com o outro.

Acorddei. Fui ao lavatório. Acendi o fogo, anunciei a Seção da Matinê. Quebrei jejum. Apanhei madheira. Acendi o fogo. Procurei alimento na colina. Celebrei a Seção Nocturna. Jantar. entoei o hino da Última Seção. Fui ao lavatório. Cama.

Acorddei. Fui ao lavatório. Acendi o fogo, entoei Seção da Matinê. Quebrei jejum. Crullet o pescador da Angra dejowser deixou 2 percas bhonitas. Apanhei madheira. Anunciei a Seção da Tarde, acendi o fogo. Cuidar da casa. Jantar. Louvei a Ultima Seção Nocturna. Cama. Acordei a Meia-noite, fui ao lavatório e verifiquei a fogueira, mas ela não precisava de madheira.

Ele viu a garçonete pelo canto do olho.

—    Eu queria um ovo cozido.

—    É cozido. Cozido de peixe.

Ele ergueu o rosto e viu os olhos brilhantes de Ginger.

—    Eu não sabia que você era garçonete.

Ela fingiu tirar o pó do saleiro.

—    Nem eu, até ontem. Sorte minha que a menina que trabalha de manhã pro Borgle conseguiu uma chance na nova imagem animada que a Alquimistas Desatados está fazendo, não e? — ela deu de ombros. — Se eu realmente tiver sorte, quem sabe? Posso conseguir pegar o turno da tarde também.

—    Olha, eu não queria...

—    É cozido. É pegar ou largar. Três clientes hoje já fizeram os dois.

—    Vou pegar. Olha, você não vai acreditar, mas eu encontrei isto na mão de um...

—    Não tenho permissão para ficar de brincadeira com fregueses. este não é o melhor emprego da cidade, mas você não vai me fazer perdê-lo — interrompeu Ginger num tom ríspido. — Cozido de peixe, certo?

—    Ah. Certo. Desculpa.

Ele voltou algumas páginas. Antes de Deccan, havia Tento, que também entoava os cânticos três vezes por dia, que também recebia, às vezes, peixes de presente e que também ia ao lavatório, embora ou ele não era tão assíduo a esse respeito quanto Deccan, ou não achava que valesse a pena registrar todas as vezes. Antes disso, alguém chamado Meggelin havia sido o entoador. Toda uma seqüência de pessoas havia morado na praia e, se você voltasse no tempo, havia um grupo delas. Voltando mais ainda, as anotações davam a impressão de ser mais oficiais. era difícil saber. Pareciam escritas em código, linhas e mais linhas de pequenas figuras complexas...

Uma tigela de sopa primitiva foi largada diante dele.

—    Olha — ele disse. — A que horas você sai...

—    Nunca.

—    Eu só estava pensando se você sabia onde... — Não.

Victor ficou olhando para a superfície sombria do ensopado. Borgle trabalhava com o princípio de que, se algo tivesse sido encontrado na água, era peixe. Havia alguma coisa roxa lá dentro que tinha pelo menos dez pernas.

Ele comeu assim mesmo. Tinha lhe custado 30 centavos.

Depois, Ginger se mantinha ocupada ao balcão de forma decidida, voltando as costas para ele como se fosse um farol. Por mais que ele tentasse atrair sua atenção, ela ainda ficava com as costas voltadas para ele, sem parecer se mexer. Sendo assim, Victor saiu para procurar outro emprego.

Ele nunca havia trabalhado por nada na vida. De acordo com sua experiência, emprego era uma coisa que acontecia com os outros.

Bezam Planter ajeitou a bandeja ao redor do pescoço de sua mulher.

—    Está bem. Pegou tudo?

—    Os grãos estourados ficaram murchos — ela disse. — e não tem nenhum jeito de manter a salsicha quente.

—    Vai estar escuro, amor. Ninguém vai notar. — ele puxou a alça e se afastou. — Certo, você sabe o que fazer. Na metade da sessão, eu paro de passar o filme e mostro o cartaz que diz:

"Por que não Provar uma Bebida Gelada e Refrescante e Uns Grãos estourados?", e aí você sai por aquela porta e vai até o corredor.

—    Você não quer mencionar as salsichas geladas e refrescantes também? — disse a senhora Planter.

—    E eu acho que é melhor você parar de usar a tocha para mostrar os lugares para as pessoas — aconselhou Bezam. — está provocando acidentes demais.

—    Só assim eu consigo enxergar no escuro.

—    è, mas ontem à noite eu tive que devolver o dinheiro daquele anão. Você sabe como eles são sensíveis em relação à própria barba. Sabe de uma coisa, amor, vou lhe dar uma salamandra na gaiola. elas estão no telhado desde a manhã, já devem estar prontinhas.

E estavam. As criaturas, deitadas, cochilavam no fundo de suas gaiolas, com os corpos vibrando levemente enquanto absorviam a luz. Bezam selecionou seis das que estavam no ponto, desceu com dificuldade de volta para a sala de projeção e as tombou para dentro da caixa de projeção. enrolou o filme de Dibbler Cova num carretel e depois saiu andando na escuridão.

"Bem... Poderia ver se tem alguém lá fora." Ele foi até a porta da frente arrastando os pés e bocejando. Ele ergueu o braço e empurrou a barra de ferro da tranca. Ele se abaixou e empurrou a outra barra. Ele empurrou as portas.

—    Está bem, está bem — murmurou. — Pode entrar...

Ele acordou na sala de projeção, com a senhora Planter abanando-o desesperadamente com o avental.

—    O que aconteceu? — sussurrou, tentando afastar da sua mente a lembrança de ter sido pisoteado.

—    A casa está lotada! e ainda estão fazendo fila lá fora! estão todos na rua. São esses cartazes asquerosos!

Bezam se levantou sem firmeza, mas com determinação.

—    Mulher, cala a boca e vá até a cozinha estourar mais alguns grãos! — gritou. — Depois vem me ajudar a consertar as placas! Se estão fazendo fila para as poltronas de cinco centavos, com certeza vão fazer fila para as de dez!

Ele arregaçou as mangas e pegou na manivela.

Na primeira fileira, o bibliotecário estava sentado com um saco de amendoins no colo. Depois de alguns minutos, parou de mastigai e ficou sentado com a boca aberta, olhando com os olhos fixos para as imagens tremeluzentes.

—Quer que eu segure o cavalo, senhor? Senhora?

—Não!

Ao meio-dia, Victor havia ganhado dois centavos. Não que as pessoas não tivessem cavalos que precisassem ser segurados... elas apenas não pareciam querer que ele os segurasse.

Finalmente um homenzinho torto que ficava mais adiante, na mesma rua, se aproximou dele, puxando quatro cavalos. Victor observara esse mesmo homem durante horas e se espantara de verdade diante do fato de as pessoas darem ao homúnculo magrelo sorrisos sinceros, quanto mais um cavalo.

—    Você e novo nisso, não e? — perguntou o homenzinho.

—    Sim.

—    Ah. Logo vi. esperando a sua grande chance nos cliques, certo? — disse, abrindo um sorriso encorajador.

—    Não. eu já tive a minha grande chance, na verdade.

—    Por que tá aqui então?

Victor encolheu os ombros.

—    Eu a desperdicei.

—Ah, e mesmo? Sinsenhor, brigadossenhor, deuslhepagues—senhor, tácertossenhor — disse o homem, aceitando mais uma serie de rédeas.

—    Você não precisa de um ajudante? — perguntou Victor, esperançoso.

Bezam Planter ficou olhando para a pilha de moedas à sua frente. Dibbler Cova mexeu as mãos, e a pilha ficou menor, mas ainda era a maior pilha de moedas que Bezam já havia visto acordado.

—    E nós ainda estamos fazendo sessões a cada 15 minutos! —sussurrou Bezam. — Tive que contratar um garoto para girar manivela! Não sei... O que eu deveria fazer com todo este dinheiro?

Cova deu um tapinha nas suas costas.

_ Compre um lugar maior.

—    estive pensando nisso. e. Algo com pilares luxuosos na entrada. e a minha filha Calíope toca órgão muito bem, seria um bom acompanhamento. e tem que ter muita tinta dourada e coisinhas onduladas... Seus olhos ficaram vidrados.

Ela havia encontrado mais uma mente.

Holy Wood sonha.

—    ... e fazer um palácio, como o fabuloso Rhoxie de Klatch, ou o maior templo que já existiu, com escravas vendendo grãos estourados e amendoins e Bezam Planter andando de um lado para o outro com um ar de proprietário, com um casaco de Veludo vermelho com correntes douradas... Hum? — murmurou, enquanto o suor pingava da sua testa.

—    Eu disse que estou fora — disse Cova. — Tenho que seguir no negócio das imagens animadas, sabe.

—    A senhora Planter disse que você precisa fazer mais filmes com aquele jovem. A cidade toda está falando nele. ela disse que várias senhoras desmaiaram quando ele as olhou com aquela expressão ardente. ela assistiu cinco vezes — acrescentou, e sua voz ficou cheia de uma desconfiança repentina. — e aquela garota! Uau!

—    Não se preocupe com nada — disse Cova num tom grandioso. — eles estão sob contr... — Uma dúvida repentina pairou sobre o seu rosto. — Até mais — disse brevemente, e saiu correndo do prédio.

Bezam ficou parado, sozinho, e olhou para o interior coberto de teias de aranha do Odium, com a imaginação acelerada povoando os cantos escuros do lugar com palmeiras em vasos, folhagens douradas e querubins rechonchudos. Cascas de amendoim e grãos estourados estalavam sob seus pés. "Temos que limpar tudo antes da próxima sessão", pensou. "Acho que aquele macaco vai ser o primeiro da fila de novo."

Então ele avistou o cartaz de espadha da Paixão. Impressionante, realmente. Não havia muita coisa em matéria de elefantes e vulcões, e os monstros eram trolls com coisas presas neles, mas naquele close... bom... todos os homens suspiraram, e depois todas as mulheres suspiraram... era como mágica. Ele abriu um sorriso diante da imagem de Victor e Ginger.

"O que será que aqueles dois estão fazendo agora?", pensou. "Provavelmente comendo caviar em pratos de ouro e relaxando com almofadas de veludo até os joelhos, pode ter certeza."

— Você não parece ter jeito para a coisa, rapaz — observou o segurador de cavalos.

—    Infelizmente não consigo pegar o jeito para segurar o cavalo dos outros — disse Victor.

—    EE, esse negócio é difícil, segurar cavalos. Tem que aprender a ser servil na medida certa, e os gracejos alegres de segurador de cavalos têm que ser irreverentes, mas não abusados demais. As pessoas não querem só que você segure os cavalos, entende? elas querem uma experiência que envolva segurar cavalos.

—    Como assim?

—    elas querem um encontro casual e alegre, e uma resposta rápida e inventiva. Não é só uma questão de segurar rédeas.

Victor começou a entender.

—    É uma performance — ele disse.

O "sigurador" de cavalos deu um tapinha na lateral do seu nariz em forma de morango.

—    Isso mesmo!

Tochas ardiam em Holy Wood. Victor passou com dificuldade no meio da multidão da rua principal. Todos os bares, todas as tavernas e todas as lojas ficavam com as portas escancaradas. Um mar de gente fluía e refluía por elas. ele teve que dar alguns pulos para examinar a aglomeração de rostos.

Estava sozinho, perdido e com fome. Precisava de alguém para conversar, e ela não estava lá.

—    Victor!

Ele se virou. Rocha caiu sobre ele feito uma avalanche.

—    Victor! Meu amigo! — Um punho com o tamanho e a dureza de uma pedra bateu no seu ombro de um jeito amigável.

—    Ah, oi — respondeu Victor, vacilante. — e... Como vai, Rocha....

— Ótimo! Ótimo! Amanhã vamos filmar Ameaça Hostil no Vale dos Trolls!

—    Fico muito feliz por você.

—    Você meu humano da sorte! — exclamou Rocha. — Rocha! Que nome! Vem tomar alguma coisa!

Victor aceitou. Realmente não tinha muita escolha, porque Rocha o segurou pelo braço e, abrindo caminho pela multidão como um navio quebra—gelo, meio guiou, meio arrastou Victor na direção da porta mais próxima.

Uma luz azul iluminou uma placa. A maioria dos morporkianos sabia ler trollês, que não era uma língua difícil. As runas diziam com clareza O Calcário Azul.

Era um bar de trolls.

A incandescência esfumaçada das fornalhas atrás dos balcões de laje era a única iluminação. Iluminava três trolls tocando... bem, alguma coisa de percussão, mas que Victor não conseguia identificar porque os decibéis estavam num nível em que o som se tornava uma força sólida e fazia os seus globos oculares vibrar. A fumaça da fornalha escondia o teto.

—    O que cê vai tomar? — estrondeou Rocha.

—    Não vou ter que beber metal derretido, né? — Victor perguntou com a voz trêmula. Teve que usar o volume máximo de sua voz para ser ouvido.

—    A gente tem todos os tipos de bebida! — gritou a troll fêmea atrás do balcão do bar. Tinha que ser fêmea. Não havia dúvidas, lembrava um pouco as estátuas das deusas da fertilidade que os homens das cavernas esculpiam milhares de anos atrás, mas lembrava mais ainda uma cadeia de montanhas. — Gente muito cosmopolita.

—    Quero uma cerveja, então!

—   E um flores de enxofre no gelo, Ruby! — acrescentou Rocha.

Victor aproveitou a oportunidade e olhou para o bar, agora que se acostumara com a escuridão e seu tímpano ficara piedosamente dormente.

Percebeu que havia um número enorme de trolls sentados diante de mesas compridas, com um anão aqui e ali, o que era surpreendente. Anões e trolls normalmente brigavam feito... bem... anões e trolls. Nas montanhas de que eram provenientes, havia um estado de vingança ininterrupto. Holy Wood realmente modificava as coisas.

—    Posso falar uma coisa pra você? — Victor gritou na orelha pontuda de Rocha.

—    Claro! — Rocha pôs o seu copo no balcão. ele tinha um guarda—chuva roxo de papel, chamuscado com o calor.

—    Você viu a Ginger? Sabe? A Ginger?

—    Tá trabalhando no Borgle!

—    Só de manhã! Acabei de ir lá! Aonde ela vai quando não está trabalhando?

—    Vai saber aonde as pessoas vão!

A banda de jazz envolta pela fumaça fez silêncio de repente. Um dos trolls pegou uma pedra pequena e começou a dar batidas suaves, produzindo um ritmo lento e grudento, que se pregava às paredes feito fumaça. Da fumaça, Ruby surgiu como um galeão saindo da neblina, com um boá de plumas ridículo em volta do pescoço.

Era uma placa tectônica com curvas.

Começou a cantar.

Os trolls fizeram um silêncio respeitoso. Depois de algum tempo, Victor ouviu um soluço. Lágrimas rolavam pelo rosto de Rocha.

—    O que diz a letra da música? — sussurrou.

Rocha se curvou.

—    É música do folclore troll antigo. e sobre Amber e Jasper. eles eram... — hesitou e balançou a mão num gesto vago. — Amigos. Bons amigos?

—    Acho que entendo o que você quer dizer.

—    Um dia, Amber leva o seu jantar de troll pra caverna e encontra ele... — Rocha balançou as mãos com movimentos vagos, porem completamente descritivos. — ... com outra moça troll.

então ela foi para casa, pegou a sua clava, voltou e bateu nele até ele morrer, tum, tum, tum. Porque ele era troll dela e enganou ela. É música muito romântica.

Victor ficou olhando fixamente. Ruby desceu ondulando do palco minúsculo e deslizou entre os fregueses: uma pequena montanha sobre uma armação de madeira com quatro rodas. "ela deve pesar duas toneladas", pensou. "Se sentar no meu colo, vão ter que me desenrolar do chão como se eu fosse um carpete."

—    O que ela acabou de dizer àquele troll? — perguntou, enquanto uma onda de risos varria o salão.

Rocha cocou o nariz.

—    É jogo de palavras. Muito difícil traduzir. Mas basicamente ela disse: "Isso aí e o lendário Cetro de Magma, que foi Rei da Montanha, que Impressiona Milhares, Sim, Até Dezenas de Milhares, Senhor do Rio Dourado, Mestre das Pontes, explorador de Locais Misteriosos, Triturador de Muitos Inimigos" — respirou fundo — "no seu bolso ou você só está feliz em me ver?"

Victor franziu a testa.

—    Não entendi.

—    Talvez eu não tenha traduzido direito — disse Rocha. ele bebeu um gole de enxofre derretido. — Ouvi dizer que a Alquimistas Desatados está formando elenco para...

—    Rocha, tem alguma coisa muito estranha neste lugar — observou Victor, ansioso. — Você consegue sentir?

—    Estranha como?

—    Tudo parece, bem, efervescer. Ninguém age como deveria. Você sabia que um dia existiu uma grande cidade aqui? Onde é o mar. Uma grande cidade. E ela simplesmente desapareceu!

Rocha esfregou o nariz com ar pensativo. Parecia a primeira tentativa do Homem de Neanderthal de fazer um machado.

—    E tem o jeito como todas as pessoas agem! — continuou Victor. — Como se o que elas são e o que elas querem fossem as coisas mais importantes do mundo!

—    Eu fico pensando... — começou Rocha.

—Sim?

—    Eu fico pensando se valeria a pena tirar meio centímetro do meu nariz. Meu primo Breccia conhece um pedreiro que deixou as orelha dele uma beleza. Que que cê acha?

Victor ficou olhando para ele com ar de tédio.

—    Sabe, por um lado, é grande demais, mas, por outro lado, é definitivamente um nariz do estereótipo de troll, né? Quer dizer, talvez eu fique com uma aparência melhor, mas neste ramo talvez seja melhor parecer um troll o máximo que eu puder. Tipo, o Morry fez um retoque no dele com cimento, agora tá com uma cara que ninguém ia querer encontrar numa noite escura. Que que cê acha? eu considero muito sua opinião porque você é um humano que tem idéias.

Ele deu um sorriso brilhante de silício para Victor. Finalmente ele respondeu:

—    É um ótimo nariz, Rocha. Com você atrás dele, pode ir longe.

Rocha abriu um grande sorriso e deu mais um trago do enxofre. Retirou um pequeno palito de aço do coquetel e chupou a ametista que estava na ponta.

—    Você acha mesmo... — começou, e depois percebeu a pequena área de espaço vazio. Victor tinha ido embora.

— Eu num sei nada sobre ninguém — disse o segurador de cavalos, com um olhar malicioso, diante da presença volumosa de Detritus.

Dibbler mordeu seu charuto. A viagem de Ankh até lá tinha sido cheia de solavancos, mesmo com sua carroça nova, e ele não tinha almoçado.

—    Rapaz alto, meio avoado, bigode fino. Ele estava trabalhando para você, não estava?

O segurador de cavalos cedeu.

—    Nunca vai ser um bom sigurador de cavalo mesmo — disse. — Deixa o trabalho montar nele. Acho que foi comer alguma coisa.

Victor se sentou no beco escuro, com as costas encostadas no muro, e tentou pensar.

Lembrou-se de que uma vez havia ficado muito tempo debaixo do sol, quando era menino. A sensação que teve depois era algo parecido com o que sentia agora.

Ouviu um barulho pesado na areia batida ao lado dos seus pés.

Alguém havia deixado cair um chapéu na sua frente. Ele olhou para o chapéu.

Depois alguém começou a tocar gaita. Alguém que não sabia tocar muito bem. A maioria das notas estava errada, e as corretas eram estridentes. Havia uma melodia em algum lugar, do mesmo modo em que sempre há um pouco de carne num moedor de carne.

Victor suspirou e procurou moedas no bolso. Jogou-as dentro do chapéu.

—    Tá, tá. Muito bom. Agora, vá embora.

Ele sentiu um cheiro esquisito. Era difícil identificar, mas poderia ser um tapete muito velho e um pouco úmido. Ele ergueu a cabeça.

—    Au, au, caramba — disse Gaspode o Cão Prodígio.

O encarregado do restaurante de Borgle havia decidido fazer experimentos com saladas naquela noite. A cidade mais próxima que cultivava verduras ficava a demorados 50 quilômetros dali.

—    Que que isso? — perguntou um troll, mostrando uma coisa mole e marrom.

Fruntkin, o chef do prato feito, arriscou um palpite.

—    Aipo? — disse. ele examinou de perto. — É, aipo.

—    É marrom.

—    Isso mesmo. Isso mesmo! Aipo maduro tem que ser marrom — confirmou Fruntkin, rapidamente. — Assim dá pra ver que tá maduro — acrescentou.

—    Tinha que ser verde.

—    Nã... Você tá pensando em tomate.

—    e, e o que e essa coisa escorrendo? — perguntou um homem na fila.

Fruntkin se esticou em sua altura máxima.

—    Isso é a maionesia. eu que fiz. Olhei num livro — acrescentou com orgulho.

—    É, imagino que sim — disse um homem, cutucando-a. — Nota-se que óleo, ovos e vinagre não foram incluídos, certo?

—    Especialitê de lar mayson.

—    Tá bom, tá bom — aceitou o homem. — Só que ela está atacando a minha alface.

Fruntkin pegou a concha com raiva.

—    Olha... — começou.

—    Não, tudo bem — disse o freguês em potencial. — As lesmas formaram um cordão de isolamento.

Havia uma comoção à porta. Detritus, o troll, passou entre os clientes, com Dibbler Cava-a-própria-Cova andando com ar pomposo atrás dele.

O troll empurrou a fila com o ombro e encarou Fruntkin.

—    O seu Dibbler quer falar — começou, esticando o braço por cima do balcão, levantando o anão pela camisa incrustada de comida e deixando-o pendurado diante de Cova.

—    Alguém viu Victor Tugelbend? — perguntou Cova. — Ou aquela menina, a Ginger?

Fruntkin abriu a boca para xingar e pensou melhor.

—    O garoto esteve aqui uma hora atrás — disse com a voz esganiçada. — Ginger trabalha aqui de manhã. Não sei aonde ela vai depois.

—Aonde o Victor foi? — perguntou Cova. ele tirou do bolso um saco que tilintava. Os olhos de Fruntkin giraram na direção do saco como se fossem rolamentos de aço, é ele, um ímã poderoso.

—    Num sei, senhor Cova. ele foi embora de novo quando viu que ela não estava aqui.

—    Certo. Bom, se você encontrá-lo novamente, diga que estou procurando por ele e que vou fazer dele um astro, certo?

—    Astro. Certo.

Cova pôs a mão na sua sacola de dinheiro e tirou uma nota de dez dólares.

—    E eu quero pedir jantar para mais tarde — acrescentou.

—    Jantar. Certo — concordou Fruntkin com a voz trêmula.

—    Bife com pitus, acho. e uma opção de verduras douradas da estação... e depois morangos com creme.

Fruntkin encarou-o com os olhos arregalados. — e... — começou.

Detritus deu um peteleco no anão que o fez balançar para a frente e para trás.

—    E eu vô querer... é... um basalto bem temperado com um acompanhamento de conglomerados de arenito recém-arrancados. Certo?

—    É... Sim.

—    Põe ele no chão, Detritus. ele não quer ficar pendurado — ordenou Cova. — e devagar. — Ele olhou para os rostos fascinados ao redor.

—    Lembrem-se, estou procurando Victor Tugelbend e vou fazer dele um astro. Se alguém encontrá-lo, tem que dizer isso. Ah, e o meu bife é mal passado, Fruntkin.

Ele andou com passos largos até a porta. Depois que foi embora, a falação voltou a fluir como uma maré.

—    Fazer dele um astro? Pra que ele vai servir?

—    Eu não sabia que dava para fazer um astro... achava que eles ficassem assim, sabe, presos no céu...

—    Acho que ele quis dizer fazer dele um astro. Sabe, ele, ele mesmo. Transformar ele num astro.

—    Como é que se pode transformar alguém em astro?

—    Sei lá. Acho que você comprime bem a pessoa, e ela explode em forma de uma massa de hidrogênio em chamas...

—    Nossa mãe!

—    É! Aquele troll é malvado mesmo.

Victor olhou bem para o cachorro.

Não era possível que tivesse falado com ele. Devia ter sido a sua imaginação. Mas ele havia dito o seu sobrenome, não havia?

—    Qual será o seu nome? — disse Victor, afagando sua cabeça.

—    Gaspode — respondeu Gaspode.

A mão de Victor congelou no meio do afago.

—    Doicentavo — pediu o cachorro, vacilante. — Único cachorro que toca gaita no mundo. Doicentavo.

"É o sol", pensou Victor. "eu não tenho usado chapéu. Daqui a um minuto vou acordar e sentir os lençóis fresquinhos."

—    Bom, você não tocou muito bem. Não consegui reconhecer a melodia — reclamou, esticando os lábios num sorriso horrível.

—    Cê num tem que reconhecer a maldita melodia — protestou Gaspode, sentando-se com todo o seu peso e concentrando-se em cocar a orelha com a pata traseira. — eu sou um cachorro. Cê tinha que ficar muito impressionado com o fato deu conseguir tirar um maldito guincho deste troço.

"Como eu devo dizer?", pensou Victor. "Digo simplesmente: desculpe, mas parece que você está fal... Não, melhor não."

—    e... — começou. "ei, você e bastante tagarela para um... não."

—    Pulgas — comentou Gaspode, mudando de pata e de orelha. — Tão me perturbando.

—    Ai, não.

—    E esses trolls todos. Não suporto eles. Têm um cheiro muito esquisito. Malditas pedras ambulantes. Cê tenta morder eles e, quando vê, tá cuspindo um dente. Não é normal.

"Por falar em normal, não posso deixar de notar que..."

—    Maldito deserto, este lugar — continuou Gaspode.

"Você é um cachorro falante."

—    Imagino que você tá se perguntando — disse Gaspode, voltando o seu olhar penetrante para Victor mais uma vez — como é que eu posso tá falando.

—    Nem pensei nisso.

—    Nem eu. Até umas duas semanas atrás. Na minha vida toda nunca disse uma maldita palavra. Trabalhava prum sujeito lá na cidade. Truques e tal. equilibrava a bola no focinho. Andava com as patas de trás. Pulava no meio do laço. Carregava o chapéu na boca no meio das pessoas. Sabe como e. Show business. Aí uma mulher passa a mão na minha cabeça e diz: "Ai, que gracinha de cachorrinho, parece que entende tudo o que a gente fala". E eu penso: "Ho, ho, nem me preocupo mais em me esforçar pra isso, moça". Foi aí que percebi que eu entendo as palavras, e elas saem pela minha própria boca. Aí eu peguei o chapéu e o peguei com as minhas patas bem rapidinho, enquanto eles ainda tavam olhando admirados.

—    Por quê?

Gaspode revirou os olhos.

—    Que vida cê acha que vai ter um autêntico cachorro falante? Não devia ter aberto a droga da boca.

—    Mas você está falando comigo.

Gaspode lançou um olhar dissimulado, olhando de rabo de olho.

—    É, mas tenta contar pra todo mundo pra ver. De todo modo, cê é legal. Cê tem aquele jeito. eu percebo a um quilômetro.

—    Que diabos você está querendo dizer?

—    Cê acha que não consegue se reconhecer, certo? — disse o cachorro. — Cê já teve aquela sensação de que alguma outra coisa tá pensando por você?

—    Nossa.

—    Te deixa com um jeito meio cismado — prosseguiu Gaspode. ele pegou o chapéu com a boca. — Doicentavo — disse, num tom vago. — Quer dizer, não que eu conheça algum jeito de gastar isso, mas... doicentavo. — ele deu uma encolhida de ombros canina.

—    O que você quer dizer com jeito cismado?

—    Cês todos têm esse jeito. Do tipo "muitos são chamados e poucos são escolhidos".

—    Que jeito?

—    Como se tivesse sido chamado pra vir aqui e não sabe por quê. — Gaspode tentou cocar a orelha novamente. — Vi cê fazendo Cohen o Bárbaro.

—    E... O que você achou? — perguntou Victor.

—    Eu acho que, desde que o velho Cohen nunca fique sabendo, você está seguro.

 

— Eu disse: há quanto tempo ele esteve aqui? — gritou Dibbler. Num palco minúsculo, Ruby cantava alguma coisa com uma voz melosa que lembrava um navio numa neblina espessa e com problemas sérios.

—    GrooOOoivwonnogghrhhooOOo.7

—    ele acabou de sair! — berrou Rocha. — estou tentando ouvir esta música, está bem?

—    ... OowoowgrhhffrghooOOo...8

Cava-a-própria-Cova cutucou Detritus, que havia se sentado para tirar o peso dos nós dos dedos e assistia à apresentação de boca aberta.

A vida do velho troll havia sido, até o momento, bastante simples e direta. As pessoas pagavam, e ele batia em outras pessoas.

Agora ela estava começando a ficar complicada. Ruby havia piscado para ele.

 

  1. LeGeNDA: "Mai zuma vez tô apaxonada (lit., sentindo a sensação agradável de ser atingida com uma pedra na cabeça por Chondrodite, o deus troll do amor)". Nota: Chondrodite não deve ser confundido com Gigalite, o deus troll que dá sabedoria aos trolls acertando—os com uma pedra na cabeça, ou Silícaro, o deus troll que dá sorte aos trolls acertando—os com uma pedra na cabeça, ou com o herói folclórico Monólito, que foi o primeiro a deturpar o significado do segredo das pedras dos deuses.

 

  1. LeGeNDA: "Por que e que eu tô azul agora?"

 

Emoções estranhas e desconhecidas se agitavam no coração surrado de Detritus.

—    ... groooOOOooohoofooOOoo..9

—    Vamos — gritou Cova.

Detritus ficou de pé com dificuldade deu o último olhar demorado na direção do palco.

—    ... ooOOgooOOmoo. OOhhbooo.10

Ruby soprou um beijo para ele. Detritus ficou da cor da granada recém-extraída.

Gaspode liderou o caminho para fora do beco e pela região afastada e escura de arbustos atrofiados e areia de praia que havia por trás da cidade.

—    Definitivamente tem algo de errado com este lugar —murmurou.

—    É diferente — disse Victor. — Como assim, errado?

Gaspode deu a impressão de que ia cuspir.

—    Olha, veja eu, por exemplo — começou, ignorando a interrupção. — Um cachorro. Nunca sonhei com nada na vida a não ser correr atrás das coisas. e sexo, é claro. De repente, comecei a ter esses sonhos. em cores. Fiquei apavorado. Nunca tinha visto cores antes, certo? Os cachorros vêem em preto-e-branco, como cê deve saber, já que é um grande leitor. O vermelho é um maldito choque, vou te contar. Cê acha que o seu jantar e só aquele osso branco com tons de cinza, de repente, cê descobre que há anos tem comido essa coisa medonha vermelha e roxa.

—    Que tipo de sonho? — perguntou Victor.

—    É embaraçoso pra caramba. Tipo, num deles tem uma ponte que foi levada pelas águas, e eu tenho que correr e dar um alerta latindo, sabe? e tem outro em que uma casa está pegando fogo, e eu arrasto umas crianças para fora. e tem um em que umas crianças estão perdidas numas cavernas, e eu acho elas e guio as pessoas que tão procurando elas até onde elas tão... e eu odeio crianças.

 

  1. LeGeNDA: "Que atitude devo tomar nesta hora?"

 

  1. LeGeNDA: "... não posso evitar. Alô, garotão".

 

Parece que ultimamente não consigo descansar a cabeça sem resgatar ou salvar pessoas, ou despistar assaltantes e coisas assim. Poxa, eu tenho sete anos, calo nas patas, descamação na pele, pulgas a dar com pau. Não preciso ser herói toda vez que vou dormir.

—    Nossa. A vida não é interessante quando você a enxerga pelos olhos de outra pessoa...?

Gaspode virou o olhar corajoso na direção do céu.

—    Ê. Aonde estamos indo? — perguntou Victor.

—    Nós vamos falar com um pessoal de Holy Wood. Porque tem alguma coisa esquisita acontecendo.

—    No alto da colina? Não sabia que havia pessoas na colina.

—    Não são pessoas.

Uma pequena fogueira de gravetos queimava no declive da Colina de Holy Wood. Victor a acendera porque... bem... porque era reconfortante. Porque era o tipo de coisa que os humanos faziam.

Ele sentiu necessidade de lembrar que era humano e que provavelmente não estava louco.

Não que ele estivesse falando com um cachorro. As pessoas costumam falar com cachorros. A mesma coisa se aplicava a gatos. e talvez até a coelhos. A conversa com ratos e patos é que deveria ser considerada estranha.

—    Você acha que nós queríamos falar? — perguntou o coelho num tom brusco. — Num minuto sou apenas mais um coelho, e contente com isso; no minuto seguinte, shazaam, estou pensando. Isso é uma grande desvantagem pra quem quer ser feliz como coelho, pra dizer a verdade. A gente quer grama e sexo, e não pensamentos do tipo "O que é que realmente importa quando chega a hora da verdade?"

—    É, mas pelo menos cês come grama — comentou Gaspode. — A grama não responde quando cês fala. A última coisa que cê precisa quando tá com fome e de um maldito enigma ético no prato.

—    Vocês acham que eshtão com problemas? — disse o gato, aparentemente lendo a mente dele. — eu eshtou limitado a comer peixe. Quando você põe a pata em cima do jantar e ele grita "Socorro!", você eshtá em maus lençóis.

Houve um silêncio. eles olharam para Victor. Inclusive o rato. e o pato. O pato parecia especialmente hostil. Provavelmente tinha ouvido falar em molho de laranja.

—    É. Veja a gente — começou o rato. — estou sendo perseguido por isto — ele apontou para o gato, crescendo diante dele — por toda a cozinha. Arranha, arranha, gritos, pânico. Aí a minha cabeça faz um ruído borbulhante, e eu vejo uma frigideira. entenderam? Um segundo atrás, eu nem sabia o que era fritar. Agora eu seguro o cabo, o gato aparece no canto da parede, bang. Aí ele sai cambaleando e perguntando: "O que foi que me atingiu?". e eu digo: "eu". Foi quando nós dois percebemos. estamos falando.

—    Consheitualisando — corrigiu o gato. era um gato preto, com patas brancas, orelhas que pareciam alvos de espingarda e a expressão assustada de quem já perdeu seis vidas.

—    Conta pra ele, garoto — disse o rato.

—    Conta o que cê fez depois — insistiu Gaspode.

—    Viemos pra cá — disse o gato.

—   De Ankh-Morpork? — perguntou Victor.

— é.

—    São quase 50 quilômetros!

—    é, e vai por mim — continuou o gato —, é duro pedir carona quando você e um gato.

—    Tá vendo ? — disse Gaspode. — Tá acontecendo o tempo todo. Todo tipo de coisa tá vindo pra Holy Wood. eles não sabem por que vieram, só que é importante estar aqui. e não agem assim em nenhum outro lugar do mundo. Tenho observado. Algo esquisito tá acontecendo.

O pato grasnou. Havia palavras ali, em algum lugar, mas tão mutiladas pela incompatibilidade do bico e da laringe que Victor não conseguiu entender nada.

Os animais prestaram atenção nele por solidariedade.

—    Como é, Pato? — perguntou o coelho.

—    O pato tá dizendo — traduziu Gaspode — que é como uma coisa migratória. O mesmo sentimento da migração.

—    é? eu não tive que vir de longe — informou o coelho. — A gente morava nas dunas mesmo. — ele suspirou. — Durante três anos felizes e quatro dias terríveis — acrescentou.

Um pensamento ocorreu a Victor.

—    então você sabe sobre o velho da praia?

—    Ah, ele. Sim. ele. ele sempre vinha aqui pra cima.

—    Que tipo de pessoa era ele?

—    Olha, meu filho, até quatro dias atrás, eu tinha um vocabulário que consistia em dois verbos e um substantivo. O que você acha que eu pensava dele? Tudo o que eu sei e que ele não incomodava a gente. A gente provavelmente achava que ele fosse uma pedra com pernas ou algo do tipo.

Victor pensou no livro em seu bolso. entoar cantos e acender fogueiras. Que tipo de pessoa fazia isso?

—    Não sei o que está acontecendo — disse. — eu gostaria de descobrir. Olha, vocês não têm nomes? eu me sinto sem jeito ao conversar com as pessoas sem saber os nomes.

—    Só eu — respondeu Gaspode. — Por ser cachorro. Meu nome é uma homenagem ao famoso Gaspode, sabe.

—Um menino, uma vez, me chamou de Chana — disse o gato, um pouco incerto.

—Achei que vocês tivessem nomes na sua própria língua. Sabe, tipo "Patas Poderosas" ou... ou "Caçador Veloz". Ou algo assim.

ele sorriu, querendo encorajá-los.

Os outros ficaram olhando com expressão de vácuo.

—    ele lê livros — explicou Gaspode. — Veja bem, o negócio é o seguinte — acrescentou, coçando-‘se com força —, os animais geralmente não se preocupam com nomes. Nós sabemos quem somos.

—    eu gosto de "Caçador Veloz" — disse o rato.

—    Acho que e um nome mais apropriado para um gato — observou Victor, começando a suar. — Os ratos têm nomezinhos simpáticos, como... como Guincho.

—    Guincho? — repetiu o rato friamente.

O coelho abriu um sorriso.

—    É... e eu sempre achei que os coelhos eram chamados de Flofy. Ou Seu Tampinha — Victor não conseguia parar de falar.

O coelho parou de sorrir e contraiu as orelhas.

—    Olha aqui, meu amigo... — começou.

—    Quer saber — interrompeu Gaspode, entusiasmado, numa tentativa de reanimar a conversa — ouvi dizer que tem uma lenda que diz que as duas primeiras pessoas do mundo deram nomes a todos os animais. Faz a gente parar pra pensar, não?

Victor pegou o livro para esconder o seu constrangimento. entoar cantos e acender fogueiras. Três vezes ao dia.

—    esse velho... — começou.

—    O que ele tem de tão importante? — perguntou o coelho.

—    ele só costumava subir a colina e fazer uns barulhos algumas vezes por dia. Dava pra acertar o... o — hesitou. — era sempre nos mesmos horários. Muitas vezes por dia.

—    Três vezes. Três apresentações. Como uma espécie de teatro? —questionou Victor, passando o dedo pela página.

—    Não sabemos contar até três — observou o coelho num tom azedo. — É assim: um... muitos. Muitas vezes. — ele olhou para Victor. — Seu Tampinha — disse num tom agressivo.

—    e pessoas de outros lugares traziam peixes para ele — continuou Victor. — Não tem mais ninguém que more perto daqui. Deviam vir de lugares a quilômetros de distância. As pessoas navegavam por quilômetros só para trazer peixes para ele. era como se ele não quisesse comer peixe desta baía aqui. e ela está pululando deles. Quando eu fui nadar, vi lagostas que vocês não iam acreditar.

—    Que nome você deu a elas? — perguntou Seu Tampinha, que era do tipo de coelho que guardava rancor. — Dona esbelta?

—    e, eu quero esclarecer isto agora mesmo — chiou o rato. — Lá de onde eu venho, eu era o rato principal. Conseguia derrotar qualquer outro rato da casa. Quero um nome apropriado, garoto. Quem me chamar de Bolinha de Queijo — olhou para Victor — tá pedindo pra ficar com a cabeça em forma de frigideira, estou sendo claro?

O pato grasnou longamente.

—    Pera aí — interrompeu Gaspode. — O negócio e o seguinte, o pato disse que tudo isso faz parte da mesma coisa. Humanos, trolls e tudo o que tem vindo aqui. Animais falando de repente. O pato acha que essas coisas são causadas por algo daqui.

—    Como é que o pato sabe disso? — perguntou Victor.

—    Olha, meu amigo — disse o coelho —, quando você conseguir voar para atravessar todo o oceano até encontrar o mesmo maldito continente, aí vai poder falar mal dos patos.

—    Ah! Você está se referindo aos sentidos misteriosos dos animais?

eles o encararam longamente.

—    De qualquer modo, isso tem que parar — continuou Gaspode. — Toda essa cogitação e falação vai bem pra vocês humanos. Cês tão acostumados com isso. A questão é que alguém tem que descobrir o que está causando toda esta...

eles continuaram olhando para ele.

—    Bem — disse num tom vago —, talvez o livro possa ajudar? As primeiras partes estão numa espécie de linguagem antiga. eu não posso... — ele parou. Os magos não eram bem-vindos em Holy Wood. Provavelmente não seria uma boa idéia mencionar a Universidade ou a sua pequena participação nela. — Quer dizer — continuou, escolhendo as palavras com cuidado —, acho que conheço alguém em Ankh-Morpork que possa ser capaz de ler essa linguagem. É um animal também. Um símio.

—    Como ele se sai no quesito sentidos misteriosos? — perguntou Gaspode.

—    ele é o melhor em sentidos misteriosos.

—    Nesse caso... — disse o coelho.

—    Pera aí — interrompeu Gaspode. — Alguém está vindo.

Uma tocha em movimento era visível na subida da colina.

O pato decolou desajeitadamente e saiu deslizando no ar. Os outros desapareceram nas sombras. Apenas o cachorro não saiu do lugar.

—    Você não vai se afastar? — sussurrou Victor. Gaspode ergueu uma sobrancelha.

—    Au, au?

A tocha ziguezagueava de modo irregular entre os arbustos, feito um vaga-lume. Às vezes parava por um momento e depois saía vagando em alguma direção totalmente nova. era muito brilhante.

—    O que é? — perguntou Victor.

Gaspode fungou.

—    Humano. Fêmea. Usando perfume barato. — Seu focinho se contraiu de novo. — Chama-se Brinquedo da Paixão — fungou mais uma vez. — Roupas recém-lavadas e passadas sem goma. Sapatos velhos. Muita maquiagem de estúdio. esteve no restaurante do Borgle e comeu... — o focinho se contraiu — cuzido. Prato não muito grande.

—    Acho que você consegue dizer qual é a altura dela, não?

—    ela cheira a 1,57, 1,59 — arriscou Gaspode.

—    Ah, pára com isso!

—    Ande um quilômetro sobre estas patas e, aí sim, me chame de mentiroso.

Victor chutou areia sobre a sua pequena fogueira e foi descendo a colina.

A luz parou de se mover quando se aproximou. Por um instante, ele viu de relance um vulto feminino apertando um xale em volta de si e segurando a tocha com uma das mãos acima da cabeça. em seguida, a luz desapareceu tão rapidamente que deixou pós-imagens azuis e roxas dançando no campo de visão dele. Atrás delas, um pequeno vulto formou uma sombra mais escura sobre a penumbra.

ela disse:

—    O que você está fazendo na minha... o que eu estou... por que você está na... onde... — e depois, como se finalmente tivesse compreendido a situação, mudou de marcha e, num tom de voz muito mais familiar, perguntou: — O que você está fazendo aqui?

—    Ginger?

—Sim?

Victor parou. O que se deveria dizer em circunstâncias como esta?

—    e...É legal aqui em cima à noite, você não acha?

ela olhou fixamente para Gaspode.

—    esse não e aquele cachorro horroroso que tem aparecido lá no estúdio? Não suporto cachorros pequenos.

—    Late, late — disse Gaspode. Ginger olhou fixamente para ele.

Victor quase pôde ler o pensamento dela: "ele disse late, late".

e ele é um cachorro, e é isso o que os cachorros fazem, certo?

—    eu gosto de gatos — disse ela, num tom vago. Uma voz em volume baixo disse:

—    É? É? Cê se lava com a própria saliva, é?

—    O que foi isso?

Victor se afastou, balançando as mãos num gesto frenético.

—    Não olhe para mim! eu não disse isso!

—    Ah, é? Imagino que tenha sido o cachorro então?

—    Quem, eu? — disse Gaspode.

Ginger ficou paralisada. Seus olhos viraram para o lado e para baixo, onde Gaspode cocava a orelha sem se preocupar com nada.

—   Au, au?

—    esse cachorro falou... — começou Ginger, apontando o dedo trêmulo para ele.

—    eu sei. Isso significa que ele gosta de você. — ele olhou atrás dela. Outra luz estava subindo a colina.

—    Você trouxe alguém com você? — ele perguntou.

—    eu? — Ginger se virou.

Agora a luz estava acompanhada pelo estalo de gravetos secos, e Dibbler saiu da escuridão com Detritus logo atrás, como uma sombra especialmente assustadora.

—    Ahá! — disse. — Os pombinhos ficaram surpresos, hein?

Victor olhou para ele de boca aberta.

—    Os o quê? — ele disse.

—    Os o quê? — disse Ginger.

—    Procurei por vocês por toda a parte — continuou Dibbler.

—    Alguém disse que tinha visto vocês subirem aqui. Muito romântico. Poderia fazer algo com isso. Fica bem nos cartazes. Certo.

—    Pôs os braços ao redor deles. — Vamos.

—    Pra quê? — perguntou Victor.

—    Vamos filmar amanhã cedo.

—    Mas o senhor Silverfish disse que eu não ia mais trabalhar nesta cidade... — começou Victor.

Dibbler abriu a boca e hesitou por apenas um instante.

—    Ah. Sim. Mas eu vou dar mais uma chance a vocês — disse, falando bem devagar pela primeira vez. — Sim. Uma chance. Sabe, vocês são jovens. Obstinados. Já fui jovem também. "Dibbler", eu pensei, "mesmo se isso significar que está cavando a própria cova, dê uma chance a eles." Salários mais baixos, é claro. Um dólar por dia, que tal?

Victor viu a expressão de esperança repentina no rosto de Ginger.

ele abriu a boca.

—    Quinze dólares — disse uma voz. Não era a dele. ele fechou a boca.

—    O quê? — espantou—se Dibbler. Victor abriu a boca.

_ Quinze dólares. Renegociável depois de uma semana. Quinze dólares ou nada.

Victor fechou a boca, revirando os olhos.

Dibbler balançou o dedo sob o nariz dele e depois hesitou.

—    Gostei! — disse finalmente. — Grande negociador! Ok. Três dólares.

—    Quinze.

—    Cinco é a minha última oferta, garoto. Há milhares de pessoas por aí que aceitariam correndo, certo?

—    Cite duas, senhor Dibbler.

Dibbler olhou para Detritus, perdido num devaneio relacionado a Ruby, e depois olhou fixamente para Ginger.

—    Ok. Dez. Porque eu gosto de você. Mas estou cavando a minha própria cova.

—    Fechado.

Cova estendeu a mão. Victor ficou olhando para a própria mão como se a estivesse vendo pela primeira vez, e depois apertou a mão dele.

—    e agora vamos voltar lá pra baixo. Tem muita coisa pra organizar.

ele saiu andando entre as árvores. Victor e Ginger seguiram atrás, de maneira submissa e em estado de choque.

—    Você está louco? — Ginger sussurrou. — Recusando ofertas desse jeito! Poderíamos ter perdido a nossa chance!

—    eu não disse nada! Achei que tivesse sido você! — disse Victor.

—    Foi você! — insistiu Ginger. Seus olhares se encontraram. eles olharam para baixo.

—    Late, late — disse Gaspode o Cão Prodígio. Dibbler virou para trás.

—    Que barulho foi esse? — perguntou.

—    Ah, e... é só um cachorro que encontramos — respondeu Victor rapidamente. — ele se chama Gaspode. Como o famoso Gaspode, sabe?

—    ele faz truques — disse Ginger, num tom malicioso.

—   Um cão performático? — Dibbler se inclinou e passou a mão na cabeça em forma de bala de Gaspode.

—    Rosna, rosna.

—    Você ficaria impressionado com as coisas que ele sabe fazer — observou Victor.

—    Impressionado — ecoou Ginger.

—    Mas é feio pra diabo — disse Dibbler. ele lançou um olhar demorado e lento para Gaspode, o que era o equivalente a desafiar uma centopéia para uma competição de chute no traseiro. Gaspode era capaz de encarar até um espelho sem medo.

Dibbler parecia ruminar uma idéia na cabeça.

—    Veja bem... Leve-o com você amanhã de manhã. As pessoas gostam de dar uma boa risada — disse Dibbler.

—    Ah, dá pra rir com ele mesmo — concordou Victor. — Gargalhar.

Quando eles seguiram andando, Victor ouviu uma voz calma atrás dele dizer:

—    Você me paga por essa. está me devendo um dólar, de qualquer maneira.

—    Por quê?

—    Comissão do empresário — explicou Gaspode o Cão Prodígio.

Sobre Holy Wood, apareciam as estrelas. eram enormes bolas de hidrogênio aquecidas a milhões de graus — tão quentes que não conseguiam pegar fogo. Muitas inchariam consideravelmente antes de morrer e depois encolheriam até se tornar anãs minúsculas e rancorosas, lembradas apenas por astrônomos sentimentais. enquanto isso, brilhavam graças a metamorfoses que estavam alem do alcance dos alquimistas e transformavam meros elementos sem graça em pura luz.

Sobre Ankh-Morpork apenas chovia.

Os magos mais experientes se amontoaram ao redor do vaso dos elefantes. ele havia sido devolvido ao corredor por ordem expressa de Ridcully.

—    eu me lembro de Riktor — comentou o Decano. — Homem muito magro. Mente um pouco tacanha. Mas esperto.

—   He, he. eu me lembro do seu contador de ratos — disse Windle Poons em sua cadeira de rodas antiga. — Costumava contar ratos.

—    O vaso em si e bastante... — começou o tesoureiro, mas mudou de assunto — Como assim, contar ratos? eles eram colocados no aparelho por uma correia ou algo do tipo?

—    Ah, não. era só dar corda, sabe, e ele ficava lá, fazendo um zumbido e contando todos os ratos do predio. Mm, e umas rodinhas com números iam subindo.

—    Por quê?

—    Mm?. Acho que ele só queria contar os ratos.

O tesoureiro deu de ombros.

—    este vaso — começou, examinando de perto — e na verdade

um vaso Ming bastante antigo.

ele aguardou, com expectativa.

—    Por que se chama Ming? — perguntou o arqui-reitor, aproveitando a deixa.

O tesoureiro deu um tapinha no vaso. ele fez "ming".

—    e eles cospem balas de chumbo nas pessoas, e? — perguntou Ridcully.

—    Não, mestre. ele apenas utilizava isso para colocar o... mecanismo dentro. Qualquer que seja ele. O que quer que esteja fazendo.

... whumm...

—    espere! ele oscilou — observou o Decano.

... whumm... whumm...

Os magos se encararam num pânico súbito...

—    O que está acontecendo? O que está acontecendo? — perguntou Windle Poons. — Por que ninguém, mm, me diz o que está acontecendo?

... whumm... whumm...

—    Corram! — exclamou o Decano.

—    Pra que lado? — perguntou o Tesoureiro com a voz trêmula.

... whummWHUMM...

—    eu sou um homem idoso e exijo que alguém me diga o que está...

Silêncio.

—    Abaixem—se! — gritou o arqui-reitor.

Plib.

Uma lasca de pedra foi arrancada do pilar atrás dele. ele ergueu a cabeça.

—    Caramba, foi por pura sorte que es...

Plib.

A segunda bolinha de chumbo arrancou a ponta do seu chapéu.

Os magos ficaram tremendo sobre as pedras do pavimento durante alguns minutos. Depois de algum tempo, ouviram a voz abafada do decano:

—    Vocês acham que já acabou?

O arqui-reitor ergueu a cabeça. Seu rosto, sempre vermelho, agora estava incandescente.

—    Tesoureiro?

—    Isso é o que eu chamo de disparo!

Victor se virou.

—    Wzstf— ele disse.

—    São seis da manhã, levante-se e brilhe, o seu Dibbler disse — disse Detritus, agarrando as roupas de cama com uma mão e arrastando-as para o chão.

—    Seis horas? (Mas ainda é madrugada). — gemeu Victor.

—    Vai ser um longo dia, o seu Dibbler disse — continuou o troll. — O senhor Dibbler disse que você tem que estar no set às seis e meia. Isso vai acontecer.

Victor vestiu a calça.

—    Imagino que eu consiga tomar café — disse, num tom sarcástico.

—    O seu Dibbler está providenciando comida, o seu Dibbler disse.

Havia um barulho de respiração ofegante debaixo da cama. Gaspode surgiu de um tapete velho e deu a primeira cocada do dia.

_ O qu... — ele começou, mas viu o troll. — Late, late — ele se corrigiu.

—    Oh. Um cachorrinho. eu gosto de cachorrinhos — disse Detritus.

—    Au, au.

—    Passa — acrescentou o troll. Mas ele não conseguiu colocar a quantidade certa de maldade permitida na voz. Visões de Ruby com o seu boá de plumas e três acres de veludo vermelho passavam ondulando pela sua mente.

Gaspode cocou a orelha com força.

—    Au — disse com calma. — em tom de pouca ameaça — acrescentou, depois que Detritus tinha ido embora.

O declive da colina já estava cheio de gente quando Victor chegou. Algumas tendas haviam sido montadas. Alguém segurava um camelo. Várias gaiolas de demônios faziam algazarra à sombra de um espinheiro.

No meio de tudo isso, Dibbler e Silverfish discutiam. Dibbler estava com o braço sobre o ombro de Silverfish.

—    Uma grande traição, e isso — disse uma voz na altura dos joelhos de Victor. — Quer dizer que algum pobre coitado vai pro brejo.

—    Vai ser uma evolução para você, Tom! — Dibbler dizia. — Sabe, quantas pessoas em Holy Wood podem se denominar Vice-Presidente encarregado de Assuntos executivos?

—    Sim, mas a empresa e minha! — protestou Silverfish.

—    Certo! Certo! e isso o que o nome Vice-Presidente encarregado de Assuntos executivos significa.

—    Sério?

—    eu já menti pra você alguma vez? Silverfish franziu a testa.

—    Bem, ontem você disse...

—    Quero dizer metaforicamente — emendou Dibbler rapidamente.

—    Ah. Bem. Metaforicamente? Acho que não...

—Aí está, então. Bom, onde está aquele artista? — Dibbler deu um giro, dando a impressão de que Silverfish tinha sido desligado.

Um homem subiu correndo com uma pasta debaixo do braço.

—    Sim, senhor, senhor Dibbler!

Cova tirou um pedaço de papel do bolso.

—    eu quero o cartaz pronto hoje à noite, entendeu? Toma. este e o nome do clique.

—    Sobras do Dheserto — leu o artista. ele franziu a sobrancelha. ele tinha estudado mais do que Holy Wood exigia. — e sobre comida? — perguntou.

Mas Dibbler não estava ouvindo. ele partia para cima de Victor.

—    Victor! Meu querido!

—    ele foi afetado — observou Gaspode calmamente. — Foi afetado mais do que qualquer um, eu acho.

—    O que o afetou? Como e que você sabe? — Victor sussurrou.

—    em parte por causa dos sinais sutis que você não parece conseguir reconhecer, em parte porque ele tem agido como um grande idiota.

—    Que ótimo ver você! — entusiasmou—se Dibbler, com um brilho louco no olhar. — ele pôs o braço sobre o ombro de Victor e meio andou, meio o arrastou em direção às tendas. — este vai ser um filme excelente!

—    Ah, ótimo — disse Victor, vacilante.

—    Você faz o papel de um chefe de bandoleiros, só que e um cara legal também, gentil com as mulheres e assim por diante. Você invade uma aldeia e leva uma escrava, mas quando olha nos olhos dela, sabe, você se apaixona, aí tem uma invasão com centenas de homens montados em elefantes, que atacam...

—    Camelos — corrigiu um jovem magrelo atrás de Dibbler. — São camelos.

—    eu pedi elefantes!

—    Mas recebeu camelos.

_ Camelos, elefantes — continuou Dibbler com desprezo. _ estamos falando de coisas exóticas, certo? e... _ e só temos um — interrompeu o jovem.

—    Um o quê?

—    Camelo. Só conseguimos encontrar um camelo.

—    Mas estou com dezenas de homens com lençóis na cabeça esperando pelos camelos! — gritou Dibbler, balançando as mãos para cima. — Muitos camelos, certo?

—    Só temos um camelo porque só tem um camelo em Holy Wood, e isso porque um cara de Klatch veio de lá até aqui montado nele.

—    Você devia ter mandado vir mais! — gritou Dibbler.

—    O senhor Silverfish disse que não era pra fazer isso.

Dibbler rosnou.

—    Talvez, se ele se mexer bastante, possa parecer que tem mais de um camelo — disse o jovem com otimismo.

—    Por que você não manda um dos homens passar com o camelo na frente da caixa de imagens, pede pro operador de ma—nivela parar os demônios e depois volta com o camelo pra colocar um homem diferente em cima dele? Aí faz a caixa funcionar novamente e passa com ele de novo — sugeriu Victor. — Será que funciona?

Dibbler olhou para ele com a boca aberta.

—    O que foi que eu disse? — começou, olhando para o céu. —O rapaz e um gênio! Desse jeito conseguimos 100 camelos pelo preço de um, certo?

—    Mas isso significa que os bandidos do deserto andam em fila única — observou o jovem. — Não e bem um ataque em massa, sabe?

—    Claro, claro — concordou Dibbler, sem dar importância.

—    Faz sentido. e só a gente colocar um cartaz em que o líder diz...

—    ele pensou por um segundo. — ele diz: "Sigam-me numa única fileira, bwanas, para enganar o odioso inimigo", certo?

e balançou a cabeça para Victor.

—    Já conhece o meu sobrinho Soll? — perguntou. — Rapaz esperto. Quase foi pra escola e tudo o mais. Trouxe ele pra cá ontem. É Vice-Presidente encarregado de Fazer Filmes.

Soll e Victor se cumprimentaram com um aceno de cabeça.

—    Acho que "bwanas" não é a palavra certa, tio — disse Soll.

—    É klatchiano, não e?

—    Bom, tecnicamente, sim. Mas acho que e a parte errada de Klatch e, talvez, "efêndi" ou algo assim...

—    Desde que seja estrangeiro — disse Dibbler, sugerindo que a questão estava resolvida. ele deu outro tapinha nas costas de Victor. — Ok, garoto, põe o figurino. — Deu uma risadinha. — Cem camelos! Que cabeça!

—    Com licença, senhor Dibbler — interrompeu o artista do cartaz, que ficara andando de um lado para o outro, inquieto —, não entendi esta parte aqui...

Dibbler arrancou o papel da mão dele.

—    Que parte? — perguntou bruscamente.

—    A que você descreve a senhorita Dos Pecados...

—    É óbvio. Queremos evocar aqui o romance fascinante e exótico, ainda que distante, de uma Klatch salpicada de pirâmides, certo? então naturalmente temos que usar o símbolo de um continente misterioso e impenetrável, entende? eu tenho que explicar tudo para todo mundo todas as vezes?

—    e que eu achei... — começou o artista.

—    Faça o que e pra fazer!

O artista olhou para o papel na sua mão.

—    “Ela possui o rosto" — leu — "de uma Finge".

—    Certo. Certo!

—    Creio que talvez seja esfinge...

—    está ouvindo esse homem? — disse Dibbler, falando com o céu mais uma vez. ele encarou o artista. — ela não se parece com uma Finge que já deixou de ser Finge, certo? e uma Finge, e não ex-Finge. Agora anda com isso. eu quero esses cartazes por toda a cidade amanhã cedo.

O artista olhou para Victor com uma expressão agoniada que o quase mago começava a reconhecer. Todo mundo que permanecia perto de Dibbler ficava assim após algum tempo.

—    O senhor está certo, senhor Dibbler.

—   Certo. — Dibbler voltou a falar com Victor. — Por que ainda não se trocou? — perguntou.

Victor entrou rapidamente na tenda. Uma pequena velhinha11 com o formato de uma broa de milho o ajudou a vestir um figurino aparentemente feito de lençóis tingidos de preto por alguém que não sabia muito bem o que estava fazendo — ainda que, dadas as atuais condições de hospedagem em Holy Wood, eram apenas lençóis retirados de uma cama qualquer. Depois ela lhe passou uma espada curva.

—    Por que ela está torta? — ele perguntou.

—    Acho que é assim mesmo, querido — ela respondeu, meio em dúvida.

—    Achei que as espadas tivessem que ser retas — argumentou Victor. ele conseguiu ouvir Dibbler, do lado de fora, perguntando para os céus por que todo mundo era tão burro.

—    Talvez elas sejam retas no começo e entortem com o uso — arriscou a senhora, dando um tapinha na mão dele. — Muitas coisas ficam assim.

ela abriu um sorriso radiante para ele.

—    Se estiver tudo bem com você, querido, é melhor eu ir ajudar a mocinha e ver se algum anãozinho está espiando ela.

A velha saiu da tenda com dificuldade. Da tenda ao lado veio um barulho de metal rachando e o som da voz alta de Ginger reclamando.

Victor fez alguns movimentos experimentais com a espada.

Gaspode o observava com a cabeça inclinada para o lado.

 

  1. Dona Marietta Cosmopilite, antiga costureira de Ankh-Morpork até que seus sonhos a levaram a Holy Wood, onde descobriu que sua habilidade com a agulha era altamente apreciada. Um dia uma cerzideira de meias comuns; agora tricota cotas de malha de ferro falsas para trolls e é capaz de fazer uma calça de odalisca num abrir e fechar de olhos.

 

—   O que você é, afinal? — perguntou finalmente.

—    Um líder de um bando de ladrões do deserto, ao que parece. Romântico e elegante.

—    elegante onde?

—    Apenas elegante de modo geral, acho. Gaspode, o que você estava querendo dizer quando disse que algo havia afetado Dibbler?

O cachorro roeu uma pata.

—    Olhe para os olhos dele. estão piores que os seus.

—    Os meus? O que há de errado com os meus? Detritus, o troll, colocou a cabeça para dentro da tenda.

—    O seu Dibbler tá dizendo que quer você agora.

—    Olhos? — continuou Victor. — Alguma coisa com os meus olhos?

—    Au, au.

—    O seu Dibbler tá dizendo... — começou Detritus.

—    está bem, está bem! estou indo!

Victor saiu da sua tenda ao mesmo tempo em que Ginger saiu da dela. ele fechou os olhos.

—    Nossa, me desculpe — balbuciou. — Vou voltar e esperar você se vestir...

—    eu estou vestida.

—    O seu Dibbler tá dizendo... — recomeçou Detritus, atrás deles.

—    Vamos — disse Ginger, segurando o seu braço. — Não devemos deixar todo mundo esperando.

—    Mas você está... o seu... — Victor baixou o olhar, o que não ajudava muito. — Você tem um umbigo no diamante — arriscou.

—    eu já resolvi aceitar isso — disse Ginger, flexionando os ombros um esforço para fazer as coisas ficarem no lugar. — essas duas tampas de frigideira e que estão me dando problema. Fazem você entender como aquelas pobres meninas nos haréns devem sofrer.

—    e você não se importa que as pessoas a vejam desse jeito? perguntou Victor, impressionado.

—    Por que deveria? estamos nas imagens animadas. Não e nada real. Mesmo assim, você ficaria impressionado com o que as meninas têm que fazer por muito menos de dez dólares por dia.

—    Nove — corrigiu Gaspode, que ainda arrastava atrás dos calcanhares de Victor.

—    Certo! Juntem—se, pessoal! — gritou Dibbler num megafone.

—    Filhos do Deserto ali, por favor. As escravas... onde estão as escravas? Certo. Operador de manivela?...

—    Nunca vi tanta gente num clique — sussurrou Ginger. — Deve custar mais de 100 dólares!

Victor observou os Filhos do Deserto. Parecia que Dibbler havia aparecido no restaurante do Borgle e contratado as 20 pessoas mais próximas da porta, sem levar em consideração se seriam apropriadas ou não, e dado a cada uma delas o que imaginava ser o enfeite de cabeça dos bandidos do deserto. Havia Filhos do Deserto trolls — Rocha o Reconheceu e acenou discretamente —, Filhos do Deserto anões e, arrastando—se até o fim da fila, um Filho pequeno e peludo com um enfeite de cabeça que ia até as patas que se cocava furiosamente.

—    ... agarre ela, fique extasiado com sua beleza e depois atire ela por cima da sua maçaneta — a voz de Dibbler penetrou a sua consciência.

Victor repassou desesperadamente na cabeça as instruções ouvidas pela metade.

—    Minha o quê?

—    e a parte da frente da sua sela — sussurrou Ginger.

—Ah.

—    Aí você sai cavalgando noite adentro, com todos os Filhos atrás de você, cantando músicas estimulantes de bandidos do deserto...

—    Ninguém vai ouvir — observou Soll, tentando ajudar. — Mas, se eles abrirem e fecharem a boca, vai ajudar a criar uma... sabe... ambiência.

—    Mas não e de noite — disse Ginger. — e a mais clara luz do dia.

Dibbler olhou fixamente para ela.

A boca dele se abriu uma ou duas vezes.

—    Soll! — gritou.

—    Não podemos filmar à noite, tio — apressou—se em esclarecer o sobrinho. — Os demônios não conseguiriam enxergar. Não vejo por que não colocar um cartaz escrito "Noite" no começo da cena, para que...

—    Mas isso não e a magia das imagens animadas! — vociferou Dibbler. — Isso e fazer besteira!

—   Com licença — interrompeu Victor. — Desculpe, mas certamente isso não importa, porque com certeza os demônios podem pintar um céu preto com estrelas...

Houve um momento de silêncio. Depois Dibbler olhou para Gaffer.

—    Podem? — perguntou.

—    Nah — disse o operador de manivelas. — Já e um sacrifício fazer com que pintem o que estão vendo, imagine o que não estão vendo.

Dibbler esfregou o nariz.

—    Pode ser que eu esteja disposto a negociar — disse.

O operador de manivela deu de ombros.

—    O senhor não está entendendo, senhor Dibbler. Pra que eles iam querer dinheiro? Iam apenas comê-lo. Se a gente começa a dizer para eles pintarem o que não está lá, a gente começa a ter todo tipo de...

—    Talvez a lua cheia esteja brilhando muito — arriscou Ginger.

—    e uma boa maneira de ver a coisa — concordou Dibbler. — Faremos um cartaz em que Victor diz a Ginger algo como: "Como a lua está brilhante esta noite, bwana".

—    Algo assim — concordou Soll, diplomático.

era meio-dia. Holy Wood reluzia sob o sol como uma jujuba sabor champanhe mastigada. Os operadores de manivela giravam suas manivelas, os figurantes corriam de um lado para o outro com entusiasmo, Dibbler se enfurecia com todo mundo, e a história da cinematografia se fez com uma cena em que três anões, quatro homens, dois trolls e um cão montavam o mesmo camelo e gritavam aterrorizados para que ele parasse.

Victor foi apresentado ao camelo, que piscou seus longos cílios para ele e parecia estar mastigando uma sopa. estava de joelhos, e era possível perceber que tivera uma longa manhã e não estava disposto a engolir sapo. Até aquele momento, já tinha dado coice em três pessoas.

—    Como ele se chama? — perguntou, com cuidado.

—    Nós o chamamos de Filho de uma Cadela Perverso— respondeu o recém—nomeado Vice-Presidente encarregado dos Camelos.

—    Isso não parece um nome.

—    e um ótimo nome para este camelo — insistiu o treinador com veemência.

—    Não há nada de errado em ser um filho de uma cadela — disse uma voz atrás dele. — eu sou um filho de uma cadela. Meu pai era um filho de uma cadela, seu desgraçado de pijama sujo.

O treinador deu um sorriso nervoso para Victor e se virou. Não havia ninguém atrás dele. ele olhou para baixo.

—    Au, au — disse Gaspode, e balançou o que era quase um rabo.

—    Você acabou de ouvir alguém dizer alguma coisa?

—    Não — respondeu Victor. ele se inclinou para perto de uma das orelhas do camelo e sussurrou, caso fosse um camelo especial de Holy Wood: — Olha, eu sou amigo, está bem?

Filho de uma Cadela Perverso balançou uma orelha da gros—sura de um carpete.12

—    Como e que se monta nele? — perguntou.

—    Quando você quiser ir para a frente, você xinga ele e bate nele com uma vara e, quando quiser parar, xinga ele e bate pra valer com a vara.

—    e quando quiser que ele vire?

—    Bom, aí você já está indo pro Manual Avançado. A melhor coisa a fazer e descer e o fazer virar puxando com a mão.

—    Quando vocês estiverem prontos! — berrou Dibbler pelo megafone. — Agora você monta, vai até a tenda, pula para fora do camelo, luta com eunucos enormes, invade a tenda, sai arrastando a garota, sobe de volta no camelo e vai embora. entendeu? Acha que dá pra fazer?

— Que eunucos enormes? — perguntou Victor, enquanto o camelo ficava de pé.

Um dos eunucos enormes levantou a mão timidamente.

—    Sou eu. Morry.

—    Ah. Oi, Morry.

 

  • Os camelos são inteligentes demais para admitir que são inteligentes.

 

—    Oi, Vic.

—    e eu, Rocha — disse o segundo eunuco enorme.

—    Oi, Rocha.

—    Oi, Vic.

—    Aos seus lugares, pessoal! — gritou Dibbler. — Nós vamos... O que foi, Rocha?

—    e... e que eu tava pensando, seu Dibbler... Qual e a minha motivação para esta cena?

—    Motivação?

—    e. e... Tenho que saber, sabe.

—    Que tal: eu demito você se não fizer a cena direito? Rocha sorriu.

—    Certo, seu Dibbler.

—    OK — prosseguiu Dibbler. — Todo mundo pronto... roda! Filho de uma Cadela Perverso se virou de modo desajeitado,

sacudindo as pernas em ângulos esquisitos de camelos, e depois começou um trote complicado.

A manivela girou...

O ar brilhou.

e Victor acordou. era como sair lentamente de uma nuvem cor—de—rosa ou de um sonho grandioso que, por mais que você tente se lembrar, desaparece de sua mente à medida que a luz do dia se aproxima, deixando uma terrível sensação de perda. Nada — você sabe de modo instintivo —, nada que você viva durante o resto do dia chegará perto de ser tão bom quanto aquele sonho.

ele piscou os olhos. As imagens se apagaram aos poucos. ele sentiu uma dor nos músculos, como se tivesse se esforçado muito para fazer algo.

—    O que aconteceu? — murmurou.

ele olhou para baixo.

—    Uau — exclamou. Uma extensão de traseiro seminu ocupava um espaço que há pouco tempo era ocupado pelo pescoço do camelo. era uma melhoria.

—    Nossa — disse Ginger com indiferença. — estou em cima de um camelo?

—    Sei lá. Não era isso o que queria fazer?

ela deslizou até a areia e tentou arrumar o figurino.

Naquele momento, os dois perceberam que estavam sendo observados.

Lá estava Dibbler. Lá estava o sobrinho de Dibbler. Lá estava o operador de manivela. Lá estavam os figurantes. Lá estavam os vários vice—presidentes e outras pessoas que aparentemente passam a existir por meio da mera presença da criação de cenas animadas.13 Lá estava Gaspode o Cão Prodígio.

e todos eles, exceto o cachorro, que dava uma risadinha, estavam de boca aberta.

A mão do operador de manivela ainda girava a manivela. ele olhou para a mão, como se sua presença fosse uma novidade, e parou.

Dibbler pareceu sair da espécie de transe em que estava.

—    Whuuhuu — disse. — Caramba.

—    Magia — suspirou Soll. — Magia de verdade. Dibbler cutucou o operador de manivelas.

—    Você pegou tudo isso?

—    Isso o quê? — disseram Ginger e Victor ao mesmo tempo.

então Victor notou Morry sentado na areia. Uma lasca consideravelmente grande de seu braço havia se desprendido. Rocha estava colocando uma espécie de reboco no local. O troll notou a expressão de Victor e deu um sorriso murcho para ele.

—    Tá achando que e Cohen o Bárbaro, e?

—    e — concordou Rocha. — Não tinha necessidade de chamar ele do que você chamou. e, se você sair fazendo acrobacias com a espada de novo, vamos pedir mais um dólar por dia, por Risco de Arrancarem Pedaço.

A espada de Victor tinha alguns talhos na lâmina. ele poderia jurar pela sua vida que não conseguia imaginar como foram parar ali.

—    Olha — ele começou, desesperado —, eu não estou entendendo. eu não chamei ninguém de nada. Já começamos a filmar?

—    Num minuto estou sentada numa tenda, no outro sinto cheiro de camelo — disse Ginger, atrevida. — e demais perguntar 0 que está acontecendo?

 

  • Algumas delas carregam pranchetas.

 

Ninguém parecia ouvir os dois.

—    Porque não conseguimos encontrar um jeito de colocar som nisso? — perguntou Dibbler. — O diálogo foi bom pra caramba. Não entendi uma palavra, mas eu reconheço um bom diálogo quando ouço.

—    Papagaios — sugeriu o operador de manivela num tom trivial. — O Howondalândia Verde comum. Pássaro impressionante. Memória de elefante. Pega algumas dúzias deles, de tamanhos diferentes, e você consegue um voca...

Aquilo deu início a uma detalhada discussão técnica. Victor escorregou do lombo do camelo e desviou do seu pescoço para chegar perto de Ginger.

—    Ouça — ele disse num tom de urgência —, foi igual à última vez. Só que mais forte. Como uma espécie de sonho. O operador de manivela começou a pegar as cenas, e tudo foi como um sonho.

—    Sim, mas o que nós fizemos realmente?

—    O que você fez — explicou Rocha — foi galopar no camelo até a tenda, pular dele, vir pra cima da gente feito um moinho de vento...

—    ... pisando nas pedras e rindo... — completou Morry.

—    e, e você disse pro Morry: "Toma isso, seu Guarda Imundo". Depois deu uma pancada bem no braço dele, fez um buraco na tenda...

—    Mas manejou bem a espada — observou Morry, fazendo a sua avaliação. — Um pouco exibido, mas muito bom.

—    Mas eu não sei como... — começou Victor.

—    ... e ela estava lá deitada, toda lambida — disse Rocha. — e você pegou ela, e ela disse...

—    Lambida? — perguntou Ginger, num tom vago.

 

—    Lânguida — corrigiu Victor. — Acho que ele quis dizer lânguida.

—    ... ela disse: "Oh, e o Ladrão de... o Ladrão de..." — Rocha hesitou. — "Da Bago", acho que você disse.

—    Bagui Dá — corrigiu Morry, esfregando o braço.

—    e, e depois ela disse: "Você corre grande perigo, porque meu pai jurou que vai matá-lo", e você disse: "Mas agora, ó bela rosa, posso revelar—te que na verdade sou a Sobra do Deserto"...

—    O que significa lânguida? — perguntou Ginger, desconfiada.

—    e também disse: "Agora voe comigo pro meu casbah", ou algo assim. Depois deu nela um... um... negócio que os humanos fazem com os lábios...

—    Assobio? — arriscou Victor, com pouca esperança.

—    Não, a outra coisa. Tem o som de uma rolha saindo da garrafa — explicou Rocha.

—    Beijo — disse Ginger com indiferença.

—    e. Não que eu tenha condições de julgar — continuou Rocha —, mas pareceu durar um bom tempo. Definitivamente muito, sabe, com cara de beijo mesmo.

—    Achei que a gente ia precisar do balde d'água — interrompeu uma calma voz canina atrás de Victor. ele deu um chute para trás, mas não conseguiu acertar.

—    Aí você subiu no camelo de novo e puxou ela pra cima, e o senhor Dibbler gritou: "Pára, pára, que diabos está acontecendo, por que ninguém me diz o que está acontecendo, caramba"

—    continuou Rocha. — e aí você disse: "O que aconteceu?"

—    Não sei quando foi a última vez que vi alguém manejando a espada daquele jeito — observou Morry.

—    Oh. Bem... Obrigado.

—    Toda aquela gritaria: "Há!" e "Tome isso, seu cachorro". Muito profissional.

—    entendi — disse Victor. ele esticou a mão para o lado e pegou o braço de Ginger. — Temos que conversar — sussurrou.

—    em algum lugar sossegado. Atrás da tenda.

—    Se você acha que vou para algum lugar sozinha com você...

—    ela começou.

—    Olha, agora não e o momento para começar a agir como...

Uma mão pesada pousou sobre o ombro de Victor. ele se

virou e viu o contorno de Detritus eclipsando o mundo.

—    O seu Dibbler não quer ninguém fugindo. Todo mundo tem que ficar aqui até quando o seu Dibbler mandar.

—    Você e um pé-no-saco mesmo, sabia? — disse Victor. Detritus deu um grande sorriso para ele, cravejado de pedras preciosas.14

 

  • Os dentes dos trolls são feitos de diamantes.

 

—O seu Dibbler disse que eu posso ser um vice—presidente

—    ele disse com orgulho.

—    encarregado de quê? — perguntou Victor.

—    Dos vice—presidentes — respondeu Detritus.

Gaspode o Cão Maravilha fez um leve som de rosnado no fundo da garganta. O camelo, que ficara ociosamente olhando para o céu, se aproximou em silêncio e, de repente, deu um coice que acertou o troll na lombar. Detritus uivou. Gaspode deu ao mundo um olhar de satisfação inocente.

—    Vamos lá — disse Victor num tom rígido. — enquanto ele procura alguma coisa pra jogar no camelo.

Eles se sentaram na sombra atrás da tenda.

—    Só quero que você saiba — começou Ginger friamente — que nunca na minha vida tentei parecer lânguida.

—    Poderia valer a pena tentar — disse Victor distraidamente.

—    O quê?

—    Desculpe. Olha, algo nos fez agir daquele jeito. eu não sei usar uma espada. eu sempre mexia ela só de um lado pro outro. Como você se sentiu?

—    Sabe como você se sente quando ouve alguém dizer algo e percebe que estava sonhando acordado?

—    Era como se a minha própria vida ficasse distante e alguma outra coisa preenchesse o seu espaço.

Eles refletiram sobre isso em silêncio.

—    Você acha que isso tem algo a ver com Holy Wood? — ela perguntou.

Victor concordou com a cabeça. Depois, se jogou de lado e caiu em cima de Gaspode, que ouvia tudo com atenção.

—    Caim — disse Gaspode.

—    Agora ouça — Victor sussurrou na sua orelha. — Chega de ficar falando indiretamente. O que foi que você notou em nós? Se não responder, vai pro Detritus. Com mostarda.

O cachorro se contorceu entre as mãos dele.

—    Ou poderíamos fazer você usar uma focinheira — sugeriu Ginger.

—    Eu num sou perigoso! — reclamou Gaspode, raspando as patas na areia.

—    Um cachorro falante parece bastante perigoso pra mim —observou Victor.

—    Terrivelmente — concordou Ginger. — Você nunca sabe o que ele pode dizer.

—    Tá vendo? Tá vendo? — disse Gaspode, pesaroso. — Sabia que só ia dar problema mostrar que consigo falar. Isso não deveria acontecer com um cachorro.

—    Mas vai — insistiu Victor.

—    Ah, tá bom. Tá bom. Se é que vai adiantar alguma coisa —murmurou Gaspode.

Victor relaxou. O cachorro ficou em pé e sacudiu a poeira do corpo.

—    Vocês não vão entender mesmo — resmungou. — Outro cachorro entenderia, mas vocês não. É uma questão de experiência da espécie, sabe. É como o beijo. Vocês sabem como e, mas eu não. Não é uma experiência canina. — ele notou a expressão de advertência no rosto de Victor e se apressou. — é o jeito que cês ficam, como se seu lugar fosse aqui. — ele os observou por um momento. — Tá vendo? Tá vendo? eu falei que cês num iam entender. e... é território, entendem? Vocês têm todos os sinais de estar exatamente onde deveriam estar. Quase todo mundo aqui é de fora, menos vocês. e... Tipo, cês já devem ter notado como os cachorros latem pra você quando cê é novo num lugar. Não e só olfato, a gente tem um senso de deslocamento incrível. Tipo... não tem humano que se sente desconfortável quando vê um quadro pendurado torto? é tipo isso, só que pior. e como se o único lugar em que cê deveria estar agora fosse aqui. — ele olhou para eles mais uma vez e, em seguida, cocou a orelha compenetradamente.

—    Que diabo! O problema é que eu consigo explicar em língua de cachorro, mas cês só entendem a língua dos humanos.

—    Pra mim, isso soa meio místico — disse Ginger.

—    Você disse alguma coisa em relação ao meu olhar — lembrou Victor.

—    É, pois é. Cê já viu o seu olhar? — Gaspode balançou a cabeça afirmativamente para Ginger. — O seu também, moça.

—    Não seja idiota — reclamou Victor. — Como é que podemos ver o nosso próprio olhar?

Gaspode encolheu os ombros.

—    Cês poderiam olhar um prós olhos do outro — sugeriu. Eles automaticamente se viraram e encararam um ao outro.

Houve um momento muito prolongado. Gaspode o utilizou para urinar ruidosamente sobre uma estaca da tenda. Finalmente Victor disse:

—    Uau!

Ginger disse:

—    O meu também?

—    Sim. Dói?

—    Você deveria saber.

—    Aí está, então — disse Gaspode. — e olhem para o Dibbler na próxima vez que o virem. Quero dizer, olhem mesmo.

Victor esfregou os olhos, que começavam a lacrimejar.

—    Era como se Holy Wood tivesse nos chamado aqui, feito alguma coisa conosco agora e tivesse, tivesse...

—    ... nos marcado — completou Ginger num tom amargo.

—    Foi isso o que ela fez.

—    Fica... é... fica bastante atraente, na verdade — observou Victor num tom gentil. — Dá uma espécie de brilho.

Uma sombra surgiu sobre a areia.

—    Ah, aqui estão vocês — disse Dibbler. ele pôs o braço sobre o ombro deles quando se levantaram e deu uma espécie de abraço. — Vocês, jovens, sempre saindo de perto para ficar juntos —  observou num tom malicioso. — Grande lance. Grande lance. Muito romântico. Mas temos um clique a fazer, e estou com um monte de gente esperando por vocês. Então vamos lá.

—    Entenderam o que eu quis dizer? — murmurou Gaspode calmamente. Quando você sabe o que está procurando, não dá para não encontrar.

No centro de cada olho de Dibbler havia uma estrelinha dourada.

Na região central do grande e obscuro continente de Klatch, o ar estava pesado e impregnado da promessa da próxima monção.

Sapos-bois coaxavam entre os juncos15 perto do rio lento e marrom. Crocodilos cochilavam no terreno alagadiço.

A natureza prendia a respiração.

Um gemido irrompeu no pombal de Azhural Nchoate, criador de animais. ele despertou do cochilo na varanda e foi até lá para descobrir o que causara a agitação.

Nos amplos currais atrás da choupana, alguns animais silvestres maltratados — mais baratos para vender mais depressa —, bocejando e ruminando no calor, olharam assustados quando N'choate pulou os degraus da varanda num único salto e correu em direção a eles.

Ele contornou o cercado das zebras e viu seu assistente M'Bu, que limpava calmamente o estábulo dos avestruzes.

—    Quantos... — ele parou e começou a ofegar.

M'Bu, que tinha 12 anos, largou a pá e deu um tapa forte nas costas dele.

—    Quantos... — tentou mais uma vez.

—    Tá exagerando de novo, chefe? — perguntou M'Bu com uma voz preocupada.

—    Quantos elefantes nós temos?

—    Acabei de vir de lá. Temos três.

—    Tem certeza?

—    Sim, chefe — respondeu M'Bu calmamente. — e fácil ter certeza com elefantes.

Azhural se agachou na poeira vermelha e começou a rabiscar apressadamente alguns números com um graveto.

—    O velho Muluccai deve ter meia dúzia — murmurou. — E Tazikel geralmente tem uns 20 ou mais. e tem o pessoal do delta, que geralmente tem uns...

—    Alguém tá precisando de elefantes, chefe?

—    ... tem 15 cabeças, ele me contou. e também tem um monte no serviço de corte e transporte de árvores, que provavelmente vai ficar barato, digamos duas dúzias...

—    Alguém tá precisando de muitos elefantes, chefe?

 

  1. Mas foram cortados na edição final da produção.

 

—    ... estava dizendo que tem uma manada lá prós lados de Tetse, não deve ser problema. Depois tem todos os vales na direção de...

M'Bu se debruçou na cerca e esperou.

—    Talvez 200, no máximo dez a mais ou a menos que isso — disse Azhural, jogando o graveto no chão. — Nem chega perto.

—    Não dá pra aproximar dez elefantes, chefe — comentou M'Bu com firmeza. ele sabia que contar elefantes era um trabalho de precisão. Um homem poderia não ter certeza de quantas esposas possuía, mas nunca em relação a elefantes. Ou você tinha ou você não tinha.

—    Nosso agente em Klatch tem um pedido de — Azhural engoliu seco — mil elefantes. Mil! Imediatamente! Pagamento no ato da entrega.

Azhural deixou o papel cair no chão.

—    Para um lugar chamado Ankh-Morpork — disse, desanimado. Ele suspirou. — Teria sido bom.

M'Bu cocou a cabeça e olhou fixamente para as nuvens em formato de cabeça de martelo que se amontoavam sobre o monte FWangi. A estepe seca logo estremeceria ao som do trovão das chuvas.

Ele se abaixou e pegou o graveto.

—    O que você está fazendo? — perguntou Azhural.

—    Desenhando um mapa, chefe.

Azhural balançou a cabeça.

—    Não adianta, garoto. São mais de 4 mil quilômetros até Ankh, acho. eu me empolgo, às vezes. Muitos quilômetros, sem elefantes suficientes.

—    Poderíamos atravessar a campina, chefe — sugeriu M'Bu. — Tem muitos elefantes nas campinas. Manda os mensageiros na frente. Poderíamos conseguir muito mais elefantes no caminho, sem problemas. Aquela campina e quase toda coberta de malditos elefantes.

—    Não, nós teríamos que dar a volta pela costa — disse o criador, desenhando uma linha longa e curva na areia — porque existe uma floresta bem aqui — ele bateu no solo ressecado — e aqui — bateu novamente, fazendo sacudir de leve um broto de árvore que começava a se desenvolver e havia confundido, por otimismo, a primeira batida com o início das chuvas. — Não tem estrada na floresta.

M'Bu pegou o graveto e desenhou uma linha reta atravessando a floresta.

—    No caminho por onde mil elefantes querem ir, chefe, não precisa de estrada nenhuma.

Azhural pensou nisso. Depois pegou o graveto e desenhou uma linha recortada ao lado da floresta.

—    Mas tem as Montanhas do Sol. Muito altas. Muitos desfiladeiros profundos. e nenhuma ponte.

M'Bu pegou o graveto, marcou a floresta e sorriu.

—    Eu sei onde tem muita madeira de qualidade que acabou de ser arrancada, chefe.

—    É? Ok, garoto, mas ainda temos que passar pelas montanhas.

—    Acontece que mil elefantes realmente fortes irão nessa direção, chefe.

M'Bu sorriu novamente. Sua tribo havia começado a afiar as pontas dos dentes.16 ele devolveu o graveto. Azhural abriu a boca devagar.

—    Pelas sete luas de Nasreem — sussurrou. — Nós poderíamos fazer isso, sim. São apenas... ah!... 2 mil... 2 mil e cem quilômetros por esse caminho. Talvez menos até. Sim. Poderíamos realmente fazer isso.

—    Sim, chefe.

—    Sabe, eu sempre quis fazer uma coisa grandiosa na minha vida. Alguma coisa de verdade — disse Azhural. — Sabe como e, um avestruz aqui, uma girafa ali... Não e o tipo de coisa que faz as pessoas se lembrarem de você... — ele olhou fixamente para o horizonte roxo acinzentado. — Nós poderíamos fazer isso, não?

—    Claro, chefe.

—    Atravessando as montanhas!

—    Claro, chefe.

Se você olhasse com bastante atenção, daria para ver que o roxo acinzentado estava coberto de branco.

—    São montanhas bem altas — insistiu Azhural, com uma ponta de dúvida na voz.

  1. Não por algum motivo religioso em particular. eles apenas gostavam bastante do efeito quando sorriam.

—    A ladeira que sobe também desce — disse M'Bu, como se estivesse dizendo um provérbio — é verdade. Tipo assim... na média, e tudo plano.

Ele olhou bem para as montanhas novamente.

—    Mil elefantes — murmurou. — Você sabia, garoto, que, quando construíram o túmulo do rei Leonid de Ephebe, usaram 100 elefantes para transportar as pedras? e 200 elefantes, segundo diz a história, foram empregados na construção do Rhoxie, o palácio do império de Klatch.

Um trovão foi ouvido à distância.

—    Mil elefantes — repetiu Azhural. — Mil elefantes. Pra que será que eles querem tudo isso?

Victor passou o resto do dia num estado de transe.

Houve mais galopes e lutas, e mais reorganização do tempo. ele ainda achava isso difícil de entender. Notou que o filme podia ser cortado e depois grudado novamente mais tarde, para que as coisas acontecessem na ordem certa. e algumas coisas nem precisavam acontecer. ele viu o artista desenhar um cartaz que dizia: "No Palácio do Rei, Uma Hora Depois".

Uma hora do Tempo havia desaparecido, do nada. e claro que ele sabia que ela não havia sido removida cirurgicamente de sua vida. era o tipo de coisa que acontecia o tempo todo nos livros. e no palco também. ele viu um grupo de artistas de rua uma vez, e a apresentação pulou como num passe de mágica da "Batalha em Tsort" para "A Fortaleza de ephebe, Na Mesma Noite" sem nada alem de uma breve descida da cortina de pano de saco e muitas colisões e palavrões abafados enquanto o cenário era trocado.

Mas isso era diferente. Dez minutos depois de fazerem uma cena, faziam outra que acontecia um dia antes, em outro lugar, porque Dibbler havia alugado as tendas para as duas cenas e não queria pagar mais aluguel do que o necessário. Só era preciso esquecer tudo o que não fosse o Agora, e isso era difícil quando se esperava a cada momento por aquela sensação de desaparecimento gradual...

Mas ela não veio. Logo após mais uma cena de luta sem entusiasmo, Dibbler anunciou que estava tudo terminado.

—    Não vamos fazer o final? — perguntou Ginger.

—    Vocês fizeram hoje de manhã — respondeu Soll. —Ah.

Houve um burburinho quando os demônios foram soltos de sua caixa e se sentaram, balançando as perninhas na beira da tampa e passando um cigarrinho de mão em mão. Os figurantes formaram fila para receber o pagamento. O camelo deu um coice no Vice-Presidente encarregado dos Camelos. O operador de manivelas desenrolou os enormes rolos de filmes para fora das caixas e partiu para qualquer que fosse a atividade enigmática de corte e colagem em que o operador de manivela se envolvia durante a madrugada. A senhora Cosmopilite, Vice-Presidente encarregada do Guarda—Roupa, juntou todos os figurinos e saiu logo dali, provavelmente para colocá-los de volta sobre as camas.

Alguns hectares de terreno com vegetação atrofiada deixaram de ser as dunas onduladas do deserto do Grande Nef e voltaram a ser terreno com vegetação atrofiada. Victor sentiu que a mesma coisa acontecia com ele.

Sozinhos ou aos pares, os artífices da magia das cenas animadas iam embora, rindo, brincando e combinando de se encontrar no Borgle mais tarde.

Ginger e Victor foram deixados a sós num círculo vazio e cada vez mais amplo.

—    Eu me senti assim na primeira vez em que o circo foi embora —lembrou—se Ginger.

—    O senhor Dibbler disse que faremos mais um amanhã —    disse Victor. — Tenho certeza de que ele vai inventando tudo enquanto faz. Ainda assim, temos dez dólares cada um. Menos o que devemos a Gaspode — acrescentou de forma conscienciosa. ele deu um sorriso bobo para ela. — Anime-se. Você está fazendo o que sempre quis fazer.

—    Não seja bobo. eu nem sabia que as imagens animadas

existiam até poucos meses atrás. Aliás elas nem existiam.

eles caminharam sem saber aonde ir, em direção à cidade.

—    O que você queria ser? — ele arriscou perguntar. ela deu de ombros.

—    Eu não sabia. Só sabia que não queria ser ordenhadora. Havia ordenhadoras em sua família. Victor tentou se lembrar de alguma coisa em relação a elas.

—    Sempre me pareceu um trabalho muito interessante, ordenhar vacas — observou num tom vago. — Tem aquelas florzinhas, os ranúnculos, sabe. E o ar puro.

—    E frio e úmido, e quando você acaba o serviço a maldita vaca chuta o balde e derrama tudo. Não me venha falar sobre ordenha. Ou sobre ser pastora. Ou pastora de gansos. eu realmente odiava a nossa fazenda.

— Oh.

— E eles queriam que eu me casasse com o meu primo quando eu tinha 15 anos.

—    Isso é permitido?

—    Ah, sim. Todo mundo se casa com um primo no lugar de onde venho.

—    Por quê?

—    Acho que elimina a preocupação sobre o que fazer no sábado à noite.

—Ah.

—    E você, não queria ser alguma coisa? — perguntou Ginger, colocando todo o desprezo de uma frase em meras quatro letras.

—    Sinceramente não. Tudo parece interessante até a hora em que você faz. Aí você descobre que não passa de mais um emprego. Aposto que até pessoas como Cohen o Bárbaro acordam de manhã pensando: "Oh, não, mais um dia esmagando os tronos cravejados de jóias pelo mundo com sandálias nos pés".

—   É isso o que ele faz? — perguntou Ginger, sem conseguir conter o interesse.

—    De acordo com as histórias, sim.

—    Por quê?

—    Sei lá. É só um emprego, acho.

Ginger pegou um punhado de areia. Havia conchinhas brancas no meio, que ficaram em sua mão quando a areia escorreu entre seus dedos.

—    Eu me lembro quando o circo veio para a nossa aldeia. eu tinha 10 anos. Tinha uma menina com uma malha de ginástica cheia de lantejoulas. ela andava na corda bamba. Dava cambalhotas em cima da corda. Todo mundo aplaudia e gritava. Não deixavam que eu subisse numa árvore, mas ela eles aplaudiam. Foi quando eu decidi.

—    Ah — começou Victor, tentando acompanhar a psicologia da coisa. — Você decidiu que queria ser alguém?

—    Não seja bobo. Foi quando decidi que seria muito mais do que simplesmente alguém.

Ela atirou as conchas na direção do pôr do sol e riu.

—    Serei a pessoa mais famosa do mundo. Todos se apaixonarão por mim, e viverei para sempre.

—    É sempre bom saber o que quer — comentou Victor num tom diplomático.

—    Sabe qual e a maior tragédia no mundo todo? — perguntou Ginger, sem prestar a mínima atenção a ele. — São todas essas pessoas que nunca descobrem o que realmente querem fazer ou no que são realmente boas. São todos os filhos que se tornam ferreiros porque seus pais eram ferreiros. Todas as pessoas que poderiam ter sido flautistas fantásticas, mas envelhecem sem nunca ter visto um instrumento musical e acabam se tornando péssimas agricultoras. Todas as pessoas com talentos que nem sequer descobrem que os têm. Talvez nunca nasçam numa época em que seja possível descobrir.

Ela respirou fundo.

—    São todas as pessoas que nunca chegam a saber o que realmente podem ser. São todas as chances desperdiçadas. Bom, Holy Wood e a minha chance, entende? Esta é a minha hora!

Victor concordou com a cabeça.

—    Sim. Magia para pessoas comuns, segundo Silverfish. Um homem gira uma manivela, e a sua vida é transformada.

—    E não apenas para mim — continuou Ginger. — É uma chance para todos nós. Para quem não é mago, rei ou herói. Holy Wood e como um grande cozido borbulhante, mas desta vez ingredientes diferentes sobem à tona. De repente, existem todas essas coisas novas para as pessoas fazerem. Você sabia que os teatros não permitem que as mulheres trabalhem como atrizes? Mas Holy Wood permite. E em Holy Wood há empregos para trolls que não envolvem apenas bater nas pessoas. e o que os operadores de manivela faziam quando não tinham manivelas para girar? — ela acenou vagamente na direção do brilho distante de Ankh-Morpork. —Agora estão procurando um jeito de acrescentar som às imagens animadas, e lá fora existem pessoas que serão extremamente boas para fazer, fazer... fazer sonzinhos. elas ainda nem sabem disso, mas estão lá. Consigo até senti-las. Estão lá.

Os olhos dela brilhavam feito ouro. "Pode ser apenas o pôr do sol", pensou Victor, "mas..."

—    Graças a Holy Wood, centenas de pessoas estão descobrindo o que realmente querem ser — continuou Ginger. — e milhares e milhares têm a chance de esquecer quem são durante uma hora ou mais. Toda esta droga de mundo está sendo sacudida.

—    É isso... — começou Victor — É isso o que me preocupa. É como se fôssemos encaixados nisso tudo. Você acha que estamos usando Holy Wood, mas Holy Wood está nos usando. Todos nós.

—    Como? Por quê?

—    Não sei, mas...

—    Olhe para os magos — continuou Ginger, vibrando de indignação. — Que bem a magia deles já fez para alguém?

—    Acho que ela meio que mantém o mundo unido... — começou Victor.

—    Eles são muito bons em chamas mágicas e coisas do tipo, mas sabem fazer pão? — Ginger não estava disposta a ouvir ninguém.

—   Não por muito tempo — respondeu Victor, tentando ajudar.

—    Como assim?

—    Algo real como o pão contém muita... bem... acho que chamam isso de energia. É necessária uma quantidade de força tremenda para criar essa energia. Teria que ser um mago muito bom para fazer um pão que durasse neste mundo mais do que uma mínima fração de segundo. Mas, na verdade, não e para isso que serve a magia, sabe — acrescentou rapidamente —, porque o mundo é...

—    Quem se importa? — interrompeu Ginger. — Holy Wood está realmente ajudando as pessoas comuns. É a magia da tela grande.

—    O que deu em você? Ontem à noite...

—    Aquilo foi naquela hora — disse Ginger, impaciente. — Não está vendo? Poderíamos chegar a algum lugar. Poderíamos nos tornar alguém. Graças a Holy Wood. O mundo é a nossa...

—    Carroça — completou Victor.

Ela balançou a mão num gesto de irritação.

—    Que seja. Eu estava pensando em casa, na verdade.

—    Sério? eu estava pensando em carroça.

—    Tesoureiro!

"Eu não deveria ter que correr de um lado para o outro desse jeito na minha idade", pensou o tesoureiro, passando com pressa pelo corredor para atender ao grito do arqui-reitor. Por que será que ele está tão interessado naquela porcaria? Vaso infeliz!”“

—    Estou indo, mestre — respondeu com a voz trêmula.

A mesa do arqui-reitor estava coberta de documentos antigos.

Quando um mago morria, todos os seus documentos eram guardados numa das áreas mais afastadas da Biblioteca. Prateleiras e mais prateleiras de papeis que se deterioravam em silêncio —   servindo de retiro para besouros misteriosos e traças secas — e se estendiam por uma distância incalculável. Todo mundo dizia para todo mundo que ali havia uma riqueza de material para Pesquisadores, se alguém conseguisse encontrar tempo para se dedicar àquilo.

O tesoureiro estava irritado. Ele não conseguia encontrar o bibliotecário em lugar nenhum. O símio nunca parecia estar por perto ultimamente. Ele teve que mexer nas coisas sozinho.

—    Acho que estes são os últimos, arqui-reitor — disse, tombando uma avalanche de documentos empoeirados sobre a mesa. Ridcully abanou as mãos numa nuvem de traças.

—    Papéis, papéis, papéis — resmungou. — Quantos papéis entre as coisas dele, hein?

—    É... 23.813, arqui-reitor. Ele contava e registrava.

—    Olhe para isso — começou o arqui-reitor. — "enumerador de estrelas"... "Contador de Reverendos para uso em Áreas eclesiásticas"... "Medidor de Pântanos"... Medidor de Pântanos! O homem era louco!

—    ele tinha uma mente muito organizada.

—    Dá no mesmo.

—    Isso e... e... realmente importante, arqui-reitor? — arriscou o tesoureiro.

—    O maldito negócio atirou bolas de chumbo em mim — disse Ridcully. — Duas vezes!

—    Tenho certeza de que não foi... e... de propósito...

—    Quero saber como ele foi feito, homem! Já imaginou as

possibilidades esportivas?

O tesoureiro tentou pensar nas possibilidades.

—    Tenho certeza de que Riktor não teve a intenção de fazer nenhum tipo de invenção agressiva — arriscou, sem esperanças.

—    Quem está preocupado com á intenção dele? Onde está o troço?

—    Pedi para alguns empregados que colocassem sacos de areia em volta dele.

—    Boa idéia. e...

... whumm... whumm...

era um som abafado que vinha do corredor. Os dois magos trocaram um olhar significativo. ... whumm... whummWHUMM. O Tesoureiro prendeu a respiração. Plib. Plib. Plib.

O arqui-reitor olhou para a ampulheta acima da lareira.

—    ele está fazendo isso a cada cinco minutos agora.

—    e chega a dar três tiros — emendou o tesoureiro. — Terei que mandar trazer mais sacos de areia.

ele folheou um monte de papel. Uma palavra chamou sua atenção.

Realidade.

Passou os olhos pela caligrafia que fluía sobre a página. Parecia muito pequena, apertada e cautelosa. Alguém havia lhe dito que isso ocorria porque Riktor Números tinha retenção anal. O tesoureiro não sabia o que aquilo significava e esperava nunca descobrir.

Outra palavra era: Medição. Seu olhar deslizou para cima e percebeu o título sublinhado: Algumas Anotações Sobre a Medição Objetiva da Realidade.

No alto da página havia um diagrama. O tesoureiro o observou com atenção.

—    encontrou alguma coisa? — perguntou o arqui-reitor, sem

erguer a cabeça.

O tesoureiro enfiou o papel na manga do manto.

—    Nada importante.

Lá embaixo, a espuma das ondas estourava na areia. (... e, abaixo da superfície, as lagostas andavam para trás em ruas profundas e submersas...)

Victor atirou mais um pedaço de madeira* na fogueira. ela ficou azul ao queimar o sal.

—    eu não entendo ela — disse. Ontem parecia muito normal. Hoje todas essas coisas tomaram conta dela.

—    Cadelas! — comentou Gaspode num tom solidário.

—    Ah, eu não chegaria a dizer isso dela. ela só e desinteressada.

—    Desinteressadas!

—    e isso o que a inteligência faz com a sua vida sexual — observou Não—Me—Chame—de—Seu—Tampinha. — Os coelhos nunca tem esse tipo de problema. O negócio e "Vai, semeia e agradece à colheita".

154     A Magia de Holy Wood

—    Você poderia oferecer uma ratashana pra ela — sugeriu o gato. — Eshetuando-se os preshentes, é claro — acrescentou com sentimento de culpa, evitando o olhar de Definitivamente-Não-Guincho.

—    Ser inteligente não trouxe nenhuma melhora para a minha vida social também — disse Seu Tampinha num tom amargo.

—    Uma semana atrás, tudo bem. Agora, sem mais nem menos, eu quero conversar, e tudo o que eles fazem e sentar ali, franzindo o focinho pra mim. eu me sinto um verdadeiro idiota.

eles ouviram um grasnido sufocado.

—    O pato está dizendo: "Vocês fizeram alguma coisa em relação ao livro?" — traduziu Gaspode.

—    eu dei uma olhada nele quando fizemos a pausa pro almoço

—    disse Victor.

Houve mais um grasnido impaciente.

—    O pato disse: "e, mas o que você fez em relação a isso?"

—    Olha, não posso ir até Ankh-Morpork de uma hora pra outra — defendeu—se Victor, irritado. — Leva horas! Alem disso, nós filmamos o dia todo!

—    Peça um dia de folga — sugeriu Seu Tampinha

—    Ninguém pede um dia de folga em Holy Wood! Já fui demitido uma vez, obrigado.

—    e ele te aceitou de volta pagando mais — lembrou Gaspode.

—    engraçado, isso. — ele cocou a orelha. — Diga a ele que o seu contrato prevê que você pode ter um dia de folga.

—    eu não tenho contrato. Você sabe disso. A gente trabalha, a gente recebe. Simples.

—    e. e. e? Contrato verbal. e simples. Gostei.

Quando a noite estava acabando, Detritus, o troll, espreitava com movimentos desajeitados nas sombras perto da porta dos fundos do Calcário Azul. estranhas emoções haviam acabado com seu corpo durante todo o dia. Toda vez que fechava os olhos, via uma figura no formato de um morrinho.

ele tinha que enfrentar a situação com coragem.

Detritus estava apaixonado.

Sim, havia passado muitos anos em Ankh-Morpork batendo nas pessoas por dinheiro. Sim, era uma vida embrutecida e sem amigos. e solitária também. ele havia se conformado com uma velhice em que estaria solteiro, amargo. e agora, sem mais nem menos, Holy Wood lhe dava uma chance com a qual nunca sonhara.

ele tinha sido criado com rigidez e se lembrava vagamente do sermão que seu pai lhe deu quando era um jovem troll. "Se você vir uma garota e gostar dela, não vá logo para cima. existem maneiras apropriadas para fazer as coisas."

Havia ido até a praia e encontrado uma rocha. Não uma rocha qualquer. ele havia procurado com cuidado e encontrado uma rocha grande e alisada pelo mar, com traços de quartzo rosa e branco. Garotas gostam dessas coisas.

Naquele momento esperava, timidamente, que ela terminasse seu trabalho.

Tentava pensar no que dizer. Ninguém jamais havia lhe dito o que dizer. ele não era um troll esperto, como Rock ou Morry, que levavam jeito com as palavras. Basicamente nunca precisou muito do que se pode chamar de vocabulário. Chutou a areia com desânimo. Que chances teria com uma moça fina como ela?

Houve um baque surdo de pés pesados, e a porta se abriu. O objeto de seu desejo saiu no meio da noite e respirou fundo, o que teve em Detritus o mesmo efeito de uma pedra de gelo descendo pela nuca.

ele olhou em pânico para sua rocha. estava longe de parecer grande o suficiente, agora que via o tamanho dela. Mas talvez o que importaria era o que ele fizesse com a rocha.

Bem, o momento era aquele. Dizem que a gente nunca esquece a primeira vez...

ele ergueu o braço com a rocha na mão e a acertou em cheio entre os olhos.

Foi então que tudo começou a dar errado.

A tradição dizia que a garota, quando fosse capaz de focalizar a visão novamente, e se a rocha fosse de um padrão aceitável, ficaria imediatamente submissa a tudo o que o troll sugerisse — por exemplo, um humano a luz de velas para dois, embora não se fizesse mais esse tipo de coisa, e claro, pelo menos se houvesse qualquer chance de ser flagrado.

ela não deveria apertar os olhos e dar uma paulada na orelha dele, fazendo seus globos oculares chacoalharem.

—    Seu troll idiota! — ela gritou, enquanto Detritus cambaleava em círculos. — Pra que cê fez isso? Cê acha que eu sou uma garota qualquer que veio da montanha? Por que não faz direito?

—    Mas, mas... — começou Detritus, aterrorizado com a demonstração de fúria — eu não poder pedir pai permissão para bater em você, não saber onde ele morar...

Ruby se recompôs com orgulho.

—    Toda essa coisa antiga muito bruta agora — ela desdenhou.

—    Não e o jeito moderno. eu não interessada em troll nenhum —        acrescentou — que não atualizado. Uma rocha na cabeça pode muito sentimental — continuou, com a certeza escapando de sua voz enquanto avaliava a frase que vinha pela frente —, mas os diamantes são os melhores amigos de uma garota. — ela hesitou. Aquilo não tinha soado bem, nem para ela.

Detritus com certeza ficou confuso.

—    O quê? Você quer eu arranque meus dentes?

—    Bom, está bem, não diamantes — admitiu Ruby. — Mas

tem maneiras modernas adequadas agora. Você tem que cortejar a garota.

Detritus se animou.

—    Ah, mas eu... — começou.

—    e cortejar, não apedrejar — interrompeu Ruby, demonstrando cansaço. — Você tem que, que, que... — ela fez uma pausa.

ela não tinha tanta certeza do que era preciso fazer. Mas Ruby havia passado algumas semanas em Holy Wood e, se havia uma coisa que Holy Wood fazia, era mudar as coisas. em Holy Wood, ela se enturmou com uma vasta comunidade de fêmeas de diferentes espécies, de cuja existência nem sequer suspeitava. e estava aprendendo rápido. Teve longas conversas com garotas humanas solidárias. e anãs. Até os anões tinham rituais de conquista melhores, pelo amor dos deuses.17 e o que os humanos inventavam era impressionante.

 

  1. Todos os anões têm barba e usam muitas camadas de roupas. Seus rituais de conquista têm como preocupação principal descobrir, de maneira delicada e discreta, qual e o sexo do outro anão.

 

Por sua vez, tudo o que uma troll fêmea podia esperar era uma pancada rápida na cabeça e o resto da vida domesticando e cozinhando tudo o que o macho arrastava para dentro da caverna.

Bem, as coisas iam mudar. Da próxima vez que Ruby fosse para casa, as montanhas dos trolls sentiriam o maior tremor desde a última colisão continental. enquanto isso, começaria pela própria vida.

ela levantou a mão gigantesca num gesto vago.

—    Você tem que... que cantar embaixo da janela da garota e... e você tem que dar a ela oograah.

—    Oograah?

—    Sim. Oograah bonito!* Detritus cocou a cabeça.

—    Por quê?

Ruby pareceu entrar em pânico por um momento. ela também não podia, por nada no mundo, imaginar por que a entrega de vegetais não comestíveis seria tão importante, mas não estava disposta a admitir isso.

—    estranho você não saber — disse, sarcástica.

Detritus não percebeu a crítica. ele não percebia a maior parte das coisas.

—    Certo. eu não tão bruto quanto você pensa — acrescentou.

— eu dou pancada moderna. espere pra ver.

O som de marteladas enchia o ar. Prédios se espalhavam para trás da rua principal sem nome até as dunas. Ninguém era dono de nenhum terreno em Holy Wood. Se estivesse vazio, construía—se nele.

Dibbler tinha dois escritórios agora. Um em que gritava com as pessoas, e outro, maior, bem em frente ao primeiro, onde as pessoas gritavam umas com as outras. Soll gritava com os operadores de manivela. Os operadores de manivela gritavam com os alquimistas. Os demônios perambulavam sobre toda a superfície

 

  1. Os trolls possuem 5.400 palavras para rochas e uma para vegetais. "Oograah" significa desde musgo até sequóia gigante. Do ponto de vista dos trolls, se não dá para comer, não vale a pena dar um nome.

plana, mergulhavam nas xícaras de café e gritavam uns com os outros. Alguns papagaios com os quais se faziam algumas experiências gritavam consigo mesmos. Pessoas usando partes esquisitas de figurinos entravam apenas para gritar. Silverfish gritava porque não conseguia entender por que ele agora tinha uma mesa no escritório externo, embora fosse o dono do estúdio.

Gaspode permanecia sentado, impassível, ao lado da porta do escritório interno. Durante os últimos cinco minutos, havia atraído um chute desanimado, um biscoito murcho e um tapinha na cabeça. Considerava que estava ganhando o jogo, do ponto de vista dos cachorros.

ele tentava ouvir todas as conversas ao mesmo tempo. Foi extremamente instrutivo. Para começar, algumas das pessoas que entravam e gritavam carregavam sacolas de dinheiro...

—    Você o quê?

O grito vinha do escritório interno. Gaspode empinou a outra orelha.

—    eu... e... quero um dia de folga, senhor Dibbler — disse Victor.

—    Um dia de folga? Você não quer trabalhar?

—    Só um dia, senhor Dibbler.

—    Mas você não acha que eu vou sair por aí pagando as pessoas para tirarem dias de folga, acha? eu não sou feito de dinheiro, sabe. A gente nem está lucrando. Por que não aponta uma besta pra minha cabeça logo de uma vez?

Gaspode olhou para as sacolas na frente de Soll, que estava furioso, somando pilhas de moedas. ele ergueu uma sobrancelha com cinismo.

Houve uma pausa. "Oh, não", pensou Gaspode. "O jovem idiota está esquecendo suas falas."

—    eu não quero pagamento, senhor Dibbler. Gaspode relaxou.

—    Você não quer pagamento?

—    Não, senhor Dibbler.

—    Mas vai querer trabalho quando voltar, imagino — disse

Dibbler com sarcasmo.

Gaspode ficou tenso. Victor havia recebido muitas instruções.

—    Bom, espero que sim, senhor Dibbler. Mas estava pensando

em ver o que a Alquimistas Desatados tinha a oferecer.

Houve um som similar ao do encosto de uma cadeira batendo na parede. Gaspode deu um sorriso maldoso.

Mais uma sacola de dinheiro foi largada na frente de Soll.

—    Alquimistas Desatados!

—    Parece que eles realmente estão tendo progressos com os sonzinhos, senhor Dibbler — disse Victor num tom humilde.

—    Mas são amadores! e trapaceiros!

Gaspode franziu a sobrancelha. ele não conseguira treinar Victor a partir daquele estágio.

—    Bem, isso e um alívio, senhor Dibbler.

—    e por quê?

—    Seria horrível se eles fossem trapaceiros e profissionais.

Gaspode concordou com a cabeça. "Boa. Boa."

Houve o som de passos correndo ao redor de uma mesa. Quando Dibbler falou de novo, daria para cavar um poço na sua voz e vendê-la a dez dólares o barril.

—    Victor! Vic! Não tenho sido como um tio para você?

"Ah, sim", pensou Gaspode. “ele é como um tio para a maio”.

ria das pessoas aqui. “Isso porque são seus sobrinhos.”

ele parou de escutar, em parte porque Victor tiraria o seu dia de folga e muito provavelmente receberia por ele também, mas principalmente porque outro cachorro havia sido levado para dentro do escritório.

era enorme e tinha o pêlo lustroso. Brilhava feito mel.

Gaspode notou que era um cão de caça Ramtop puro—sangue. Quando ele se sentou ao seu lado, foi como se um belo e imponente iate tivesse atracado ao lado de um velho barco de pesca.

ele ouviu Soll dizer:

—    então essa e a última idéia do Tio, e? Como se chama?

—    Laddie — respondeu o treinador.

—    Quanto custa?

—    Sessenta dólares.

—    Por um cachorro? estamos no ramo errado.

—    ele sabe fazer todos os tipos de truques — argumentou o criador. — esperto como uma raposa. exatamente o que o senhor Dibbler está procurando.

—    Bem, amarra ele lá. e, se esse outro vira—lata começar a brigar, chuta ele pra fora.

Gaspode examinou Soll prestando atenção aos detalhes. Depois, quando a atenção não estava mais sobre eles, aproximou—se em silêncio do recém—chegado, olhou para cima e para baixo e falou com calma, pelo canto da boca.

—    Pra que cê tá aqui? — O cachorro olhou para ele com uma

expressão de ampla incompreensão. — Assim... cê pertence a alguém ou o quê?

O cachorro gemeu de leve.

Gaspode tentou o caninês básico, que é uma combinação de gemidos e fungadas.

—    Alô? — arriscou. — Tem alguém aí? — O rabo do cachorro bateu no chão de modo incerto. — O rango aqui e uma coisa horrorosa — disse Gaspode.

O cachorro ergueu seu focinho com pedigree.

—    Que lugar é este? — perguntou.

—    Aqui é Holy Wood — respondeu Gaspode num tom sociável. — eu sou Gaspode. em homenagem ao famoso Gaspode, sabe. Qualquer coisa que quiser saber, é só...

—    Todos esses duas-pernas aqui. Grr... Que lugar é este?

Gaspode olhou com os olhos arregalados.

Naquele momento, a porta de Dibbler se abriu. Victor surgiu, tossindo, na ponta de um charuto.

—    Ótimo, ótimo — disse Dibbler atrás dele. — Sabia que dava para resolvermos. Não desperdice, garoto, não desperdice. Eles custam um dólar a caixa. Ah, estou vendo que trouxe o seu cachorrinho.

—    Au — disse Gaspode, irritado.

O outro cachorro deu um latido curto e agudo e se sentou com uma vigilância obediente que irradiava de todos os pêlos.

—    Ah — começou Dibbler —, e estou vendo que conseguimos o nosso cão prodígio.

O remedo de cauda de Gaspode se contraiu uma ou duas vezes. Então a verdade se revelou.

Ele olhou fixamente para o cachorro maior e abriu a boca para falar, mas conseguiu se segurar em cima da hora e transformar a fala num:

—    Late?

—    Eu tive a idéia naquela noite, quando vi o seu cachorro —  disse Dibbler. — Pensei: "As pessoas gostam de animais. Eu, eu gosto de cachorro. Boa imagem, o cachorro. Salva vidas, o melhor amigo do homem, esse tipo de coisa".

Victor olhou para a expressão furiosa de Gaspode.

—    Gaspode é bastante inteligente.

—    Ah, imagino que você pense que sim — disse Dibbler. — Mas é só olhar para os dois. De um lado está esse animal elegante, alerta, inteligente e, do outro, esta bola de pêlo de ressaca. Quer dizer, não dá pra comparar, estou certo?

O cão prodígio deu um latido forte.

—    Que lugar é este? Bom garoto Laddie!

Gaspode revirou os olhos.

—    Está vendo o que quero dizer? — continuou Dibbler. — Dê a ele o nome certo, um pouco de treino, e nasce uma estrela. — Ele deu mais um tapa nas costas de Victor. — Bom te ver, bom te ver, apareça de novo qualquer hora, mas não sempre. Vamos almoçar juntos qualquer dia. Agora pode sair. Soll.

—    Tô indo, tio.

Victor ficou sozinho de repente, sem contar os cachorros e o escritório cheio de gente. Ele tirou o charuto da boca, cuspiu na ponta incandescente e o escondeu com cuidado num vaso de plantas.

—    Deram cria a uma estrela — disse uma voz curta e seca, vinda de baixo.

—    O que ele disse? Que lugar é este?

—    Não olhe para mim — disse Victor. — Não tenho nada com isso.

—    Olha só pra ele! Isso aqui e a Cidade dos Imbecis por acaso? —        perguntou Gaspode com desprezo.

—    Bom garoto Laddie!

—   Vamos — disse Victor. — eu tenho que estar no set em cinco minutos.

Gaspode foi atrás dele, resmungando baixinho. Victor entendeu um "tapete velho", "melhor amigo do homem" e "maldito cão prodígio maldito" aqui e ali. Por fim, não conseguiu mais suportar.

—    Você só está com ciúme.

—    O quê, de um filhote gigante com Q.I. de um dígito? — disse Gaspode com desprezo.

—    E pêlos brilhantes, focinho gelado e provavelmente um pedigree tão longo quanto o seu br... quanto o meu braço.

—    Pedigree? Pedigree? O que é pedigree? é só a criação. Eu tive um pai também, sabe. E dois avós. E quatro tataravôs. Muitos deles eram o mesmo cachorro, até. Então não venha me dizer que não tenho nenhum pedigree.

Ele parou para erguer uma pata na frente de um dos suportes da placa de "Lar das Imagens Animadas do Século do Morcego-de-Frutas".

Isso era outra coisa que havia deixado Thomas Silverfish perplexo. Quando chegou, de manhã, a placa pintada à mão em que estava escrito "Filmes Interessantes e Instrutivos" havia desaparecido e sido substituída por aquele outdoor enorme. Ele permanecia sentado no seu escritório, recostado para trás, com a cabeça nas mãos, tentando se convencer de que a idéia tinha sido sua.

—    Fui eu que fui chamado por Holy Wood — murmurou Gaspode, num tom de autopiedade. — Eu vim até aqui, e aí eles escolhem aquela coisa peluda enorme. Ele provavelmente vai trabalhar por um prato de carne por dia também.

—    Bem, olha, talvez você não tenha sido chamado para Holy Wood para ser um cão prodígio — sugeriu Victor. — Talvez ela tenha outra coisa em mente para você.

"Isto e ridículo", pensou. "Por que estamos falando dela desse jeito? Os lugares não têm mente. eles não podem chamar as pessoas para virem até eles... Bem, a menos que se considere coisas como a saudade da sua terra natal. Mas ninguém pode ter saudade de um lugar em que nunca esteve. A última vez em que pessoas estiveram aqui deve ter sido há milhares de anos."

Gaspode cheirou um muro.

—    Você disse ao Dibbler tudo o que eu te disse? — perguntou.

—    Sim. ele ficou muito perturbado quando eu disse que ia para a Alquimistas Desatados.

Gaspode deu um risinho preso na garganta.

—    E cê disse pra ele o que eu te falei sobre um contrato verbal não valer o papel em que é impresso?

—    Sim. e ele disse que não entendeu o que eu quis dizer. Mas me deu um charuto. E disse que pagaria para eu e a Ginger irmos a Ankh-Morpork em breve. Ele disse que tem planos para uma cena muito grande.

—    Qual? — disse Gaspode, desconfiado.

—    Ele não disse.

—    Ouça, rapaz, Dibbler está fazendo fortuna. Eu contei. Tinha 5.273,52 dólares na mesa do Soll. E você ganhou esse dinheiro. Bom, você e a Ginger ganharam.

—    Nossa!

—    Agora tem umas palavras novas que eu quero que você aprenda — disse Gaspode. —Acha que consegue?

—    Espero que sim.

—    “Por-cen-ta-gem do bruto." Isso. Acha que dá pra lembrar disso?

—    “Por-cen-ta-gem do bruto" — repetiu Victor.

—    Bom menino.

—    O que significa?

—    Não se preocupe com isso. Você só tem que dizer que é isso o que você quer, ok? Na hora certa.

—    Mas quando vai ser a hora certa?

Gaspode deu um sorriso malvado.

—    Ah, acho que quando Dibbler estiver com a boca cheia de comida será o melhor momento.

A Colina de Holy Wood parecia um formigueiro de tão alvoroçada. No lado do mar, os estúdios Madeira de Pinheiro produziam O Terceiro Gnomo. O Cenas Microlíticas, dirigido em sua maior parte pelos anões, trabalhava pesado em Os Caçadhores de Ouro de 1457, que seria seguido por A Corridha do Ouro. O Cenas da Bexiga Flutuante dava duro no Coxas de Peru. E o restaurante do Borgle estava lotado.

—    Não sei como se chama, mas estamos fazendo um que fala sobre uma visita a um mago. Algo sobre seguir na caçada de cacos amarelos — explicava um homem vestido com metade de uma fantasia de leão a um companheiro na fila.

—    Achei que não tivesse mago em Holy Wood.

—    Ah, mas esse é legal. Não é muito bom em magia.

—    Então qual e a novidade?

O som! esse era o problema. Os alquimistas labutavam em galpões por todos os cantos de Holy Wood, gritando com papagaios, suplicando a mainás, construindo garrafas complexas que aprisionavam o som e o chacoalhavam de um lado para o outro, de forma inofensiva, até chegar a hora em que era solto. Ao estouro esporádico da octocelulose explodindo, somava-se o eventual bufar de exaustão ou o grito de desespero quando um papagaio enraivecido confundia um dedão descuidado com uma noz.

Os papagaios não foram o sucesso que se esperava. era verdade que conseguiam lembrar o que ouviam e repetir de um certo modo, mas não havia modo de desligá-los, e eles tinham o hábito de improvisar com outros sons que tinham ouvido ou, como Dibbler desconfiava, aprendido com operadores de manivela mais maliciosos. Dessa forma, curtos pedaços de diálogos românticos eram pontuados por gritos de "Waaaarrrk! Mostraacalcinha!", e Dibbler não tinha nenhuma intenção de fazer aquele tipo de filme, pelo menos no momento.

Som! Quem conseguisse o som dominaria Holy Wood, diziam. As pessoas corriam em bandos para os cliques, mas eram volúveis. Com a cor era diferente. A cor era apenas uma questão de criar demônios que conseguissem pintar rápido o suficiente. O som e que representaria algo novo.

Enquanto isso, havia medidas provisórias. O estúdio dos anões abandonou o procedimento de colocar diálogos em cartazes entre uma cena e outra e inventou as legendas, que funcionavam bem desde que os atores se lembrassem de não andar muito para a frente, para não derrubar as letras.

Mas, se faltava o som, a tela tinha que ser preenchida por inteiro com um banquete para os olhos. O ruído das marteladas sempre foi o som de fundo de Holy Wood, mas agora havia redobrado...

As cidades do mundo eram reconstruídas em Holy Wood.

A Alquimistas Desatados começou o processo, com uma replica de um para dez, em madeira e tela, da Grande Pirâmide de Tsort. Nos terrenos logo brotaram ruas inteiras de Ankh-Morpork, palácios de Pseudópolis, castelos das Terras Centrais. em alguns casos, as ruas eram pintadas na parte de trás dos palácios, para que os príncipes e os camponeses fossem separados pela espessura de um pano de saco pintado.

Victor passou o resto da manhã trabalhando em um filme de um rolo. Ginger quase não disse uma palavra a ele, mesmo após o beijo obrigatório, quando ele a salvou do que quer que Morry representasse naquele dia. Qualquer que fosse a magia que Holy Wood operava neles, não estava funcionando naquele dia. ele estava contente por escapar dela.

Depois atravessou o terreno dos bastidores para ver Laddie o Cão Prodígio ser testado em suas habilidades.

Não havia dúvidas — diante da imagem da figura graciosa correndo feito uma flecha sobre os obstáculos e agarrando o braço bem protegido do treinador — de que lá estava um cão praticamente projetado pela Natureza para as imagens animadas. Até seu latido era fotogênico.

—    E cê sabe o que ele tá dizendo? — perguntou uma voz entediada ao lado de Victor. Era Gaspode, a imagem do sofrimento de pernas tortas.

—Não. O quê?

—Mim Laddie. Mim bom garoto. Bom garoto Laddie— traduziu Gaspode. — Dá vontade de vomitar, não?

—    É, mas você conseguiria pular uma barreira de quase dois metros?

—    Isso é inteligência, é? — perguntou Gaspode. — eu sempre dou a volta em vez de pular... O que estão fazendo agora?

—    Dando o almoço para ele, acho.

—   Eles chamam aquilo de almoço, é?

Victor ficou olhando enquanto Gaspode examinava o prato do cachorro. Laddie o olhou de rabo de olho. Gaspode latiu com calma. Laddie gemeu. Gaspode latiu novamente.

Houve uma longa troca de latidos.

Então Gaspode voltou e se sentou ao lado de Victor.

—    Veja isso — disse.

Laddie pegou o prato de comida com a boca e o virou para baixo.

—    Coisa nojenta — observou Gaspode. — Só canais e vísceras. Eu não daria isso prum cachorro, e eu sou cachorro.

—    Você fez ele virar o próprio jantar? — perguntou Victor, horrorizado.

—    Muito obediente esse rapaz, eu achei — disse Gaspode, satisfeito consigo mesmo.

—    Que maldade fazer uma coisa dessas!

—    Ah, não. Eu dou uns conselhos a ele também.

Laddie latiu de modo categórico para as pessoas que se aglomeraram ao seu redor. Victor ouviu o murmurinho.

—    O cachorro não come jantar — era a voz de Detritus —, o cachorro fica com fome.

—    Não seja idiota. O senhor Dibbler disse que ele vale mais do que a gente!

—    Talvez não seja o que ele está acostumado. Quer dizer, um cão chique como ele e tal. Isso é meio asqueroso, não?

—    É comida de cachorro! é o que cachorro tem que comer!

—    é, mas é comida de cão prodígio? Cão prodígio come o quê? — O senhor Dibbler vai dar você pra ele comer se acontecer algum problema.

—    Está bem, está bem. Detritus, vai até o Borgle. Vê o que ele tem. Não as coisas que ele dá prós clientes de sempre, veja bem.

—    Isto é o que ele dá prós clientes de sempre.

—    Foi o que eu quis dizer.

Cinco minutos depois, Detritus voltou se arrastando e carregando cerca de quatro quilos de carne crua. O bife foi jogado no prato do cachorro. Os treinadores olharam para Laddie.

Laddie ergueu um olho na direção de Gaspode, que acenou com a cabeça de modo quase imperceptível.

O cachorro grande pôs uma pata numa ponta do bife, pegou a outra ponta com a boca e arrancou um pedaço. Depois atravessou a área cercada sem fazer barulho e largou o pedaço de carne, de modo respeitoso, diante de Gaspode, que olhava fixamente para ele, como se calculasse algo.

—    Bem, sei não — disse, por fim. — Isso parece dez por cento pra você, Victor?

—    Você negociou o jantar dele?

A voz de Gaspode foi abafada pela carne.

—    Acho que dez por cento é mucho justo. Mucho justo, nas atuais circunstâncias.

—    Sabia que você realmente é um filho de uma cadela?

—    Me orgulho disso — comentou Gaspode, num tom vago. Ele mastigou o resto do bife com pressa. — O que faremos agora?

—    Eu tenho que dormir cedo. Partimos para Ankh muito cedo amanhã — disse Victor, meio em dúvida.

—    Ainda não teve nenhum progresso com o livro?

—Não.

—    Deixa eu dar uma olhada então.

—    Você sabe ler?

—    Sei lá. Nunca tentei.

Victor olhou em volta deles. Ninguém prestava atenção nele. Nunca prestavam. Assim que as manivelas paravam de girar, ninguém se preocupava com os artistas. Era como ser temporariamente invisível.

Ele se sentou sobre uma pilha de tábuas, abriu o livro de forma aleatória numa das primeiras páginas e o segurou diante do olhar crítico de Gaspode.

Por fim, o cachorro disse:

—    Está cheio de sinais nele. Victor suspirou.

—    Isso é escrita. Gaspode apertou os olhos.

—    O quê, todos esses desenhinhos?

—A escrita antiga era assim. As pessoas desenhavam pequenas imagens para representar idéias.

—    Então... Se tiver muitas vezes uma mesma imagem, significa que e uma idéia importante?

—    O quê? Bem, sim. Imagino que sim.

—    Como o homem morto? Victor estava perdido.

—    O homem morto na praia?

—    Não. O homem morto nas páginas. está vendo? em todo o lugar está o homem morto.

Victor olhou para ele com uma expressão de estranheza. Então virou o livro e o examinou.

—    Onde? Não estou vendo nenhum homem morto.

Gaspode bufou.

—    Olha, na página toda. Ele parece aquelas tumbas de templos antigos e coisas assim. Sabe? Onde eles fazem uma estauta do cadáver deitado em cima do túmulo, com os braços cruzados e segurando a espada. Aristocrata morto.

—    Nossa mãe! Você está certo! ele parece mesmo meio... morto...

—    Provavelmente toda a escrita é sobre como ele foi um ótimo homem quando vivo — sugeriu Gaspode, com ares de bem informado. — Sabe aquela coisa de "Assassino de milhares" ? ele provavelmente deixou um monte de dinheiro para padres rezarem, acenderem velas e sacrificarem bodes e coisas do tipo. Antigamente tinha muito esse tipo de coisa. Sabe, tinha esses caras que se pervertiam, bebiam, passavam a vida toda indiferentes e, quando o Velho Carrasco Inflexível começava a afiar a sua foice, eles de repente ficavam todos virtuosos e pagavam um monte de padres para dar uma geral na alma deles e ficar dizendo aos deuses que caras decentes eles eram.

—    Gaspode? — chamou Victor com firmeza.

—    O quê?

—    Você era um cão amestrado. Como é que sabe todas essas coisas?

—    Não sou só um rostinho bonito.

—    Você não é nem um rostinho bonito, Gaspode.

O cachorrinho deu de ombros.

—    Eu sempre tive olhos e orelhas. Você ficaria impressionado com as coisas que vê e ouve quando e um cachorro. Na época, eu num sabia o que significavam, claro. Agora eu sei.

Victor olhou bem para as páginas mais uma vez. Certamente havia uma figura que, se você deixasse os olhos entreabertos, parecia muito uma estátua de um cavaleiro com as mãos apoiadas sobre a espada.

—    Pode ser que não signifique um homem. A escrita pictográfica não funciona dessa maneira. e tudo uma questão de contexto, sabe. — ele queimou os miolos para se lembrar de alguns dos livros que havia visto. — Por exemplo, na linguagem agateana, os sinais para "mulher" e "escravo" escritos juntos significam "esposa".

Ele olhou mais de perto para a página. O homem morto — Ou o homem dormindo, ou o homem de pé apoiando as mãos na espada, a figura era tão estilizada que ficava difícil ter certeza —      parecia estar sempre ao lado de outra imagem comum. ele passou o dedo pela linha de pictogramas.

—    Está vendo, pode ser que a figura do homem seja apenas parte de uma palavra. Está vendo? está sempre à direita deste outro desenho, que se parece um pouco com... com uma porta ou algo assim. então ele pode significar, na verdade... — ele hesitou.

—    Porta/homem — arriscou. Ele virou o livro de leve.

—    Poderia ser algum rei antigo — disse Gaspode. — Poderia significar algo tipo: O Homem da espada está Preso. Ou algo assim. Ou talvez signifique: Cuidado, Tem um Homem com uma espada atrás da Porta. Poderia significar qualquer coisa, na verdade.

Victor olhou para o livro mais uma vez, apertando os olhos.

—    Engraçado. ele não parece estar morto. Apenas... não vivo. Esperando para estar vivo? Um homem que espera com uma espada.

Victor examinou a pequena figura de homem. Ela quase não tinha feições, mas ainda assim conseguia parecer familiar.

—    Quer saber, ele se parece muito com o meu tio Osric...

Cliquecliqueclique. Clique.

O filme foi girando até parar. Houve um estrondo de aplausos, pés batendo no chão e um mar de sacos de grãos estourados vazios.

Bem na primeira fileira do Odium, o bibliotecário olhava fixamente para o alto, para a tela em branco. era a quarta vez naquela tarde que assistia a Sobras do Dheserto. Afinal, um orangotango de 130 kg tem alguma coisa que não encoraja as pessoas a mandá-lo sair da platéia entre as sessões. Havia um amontoado de cascas de amendoim e sacos de papel amassados em volta dos seus pés.

O bibliotecário amava os cliques. eles tocavam algum sentimento na sua alma. Até havia começado a escrever uma história que achava dar uma imagem animada muito boa.19 Todo mundo para quem mostrava a história dizia que era uma maravilha, geralmente até mesmo antes de lê-la.

Mas alguma coisa naquele clique o deixava preocupado. ele assistira a tudo quatro vezes e ainda estava preocupado.

Saiu devagar dos três assentos que ocupava, caminhou pelo corredor com o apoio das juntas dos dedos e entrou na salinha onde Bezam voltava o filme.

Bezam ergueu a cabeça quando a porta se abriu.

— Saia... — começou, depois deu um sorriso desesperado e disse: — Olá, senhor. Muito bom o clique, hein? Vamos passá-lo mais uma vez a qualquer momento e... que diabos está fazendo? Você não pode fazer isso!

O bibliotecário arrancou o enorme rolo de filme do projetor e puxou o filme entre seus dedos de couro, segurando-o contra a luz. Bezam tentou pegá-lo de volta e recebeu um tapa no peito que o deixou sentado no chão, onde grandes espirais de filme se acumularam em cima dele.

Ele assistiu, horrorizado, ao grande símio grunhir, agarrar um pedaço de filme com as duas mãos e, com duas mordidas, editá-lo. em seguida, o bibliotecário o ergueu, tirou a poeira de cima dele, passou a mão em sua cabeça, atirou a grande pilha de clique desenrolado em seus braços impotentes e saiu às pressas da sala com alguns quadros de filme pendurados em uma das mãos.

Bezam ficou olhando para ele, sem ação.

—    Você está proibido de voltar aqui! — gritou, quando achou que o símio estava seguramente fora do alcance da voz.

Depois olhou para baixo, para as duas pontas cortadas.

Cortes nos filmes não eram pouco comuns. Bezam havia passado alguns minutos cortando e colando fervorosamente enquanto o público batia os pés no chão animadamente e, com muita empolgação, atirava amendoins, facas e machados de duas cabeças na tela.

 

  1. era sobre um jovem símio que é abandonado na cidade grande, cresce e se torna capaz de falar a língua dos humanos.

 

Ele deixou as espirais caírem ao seu redor e pegou a tesoura e a cola. Pelo menos — descobriu depois de segurar as duas pontas contra a luz — o bibliotecário não havia tirado uma parte muito interessante. Estranho, aquilo. ela não estranharia que o símio tirasse um pedaço em que a garota definitivamente mostrasse demais o peito ou uma das cenas de luta. Mas tudo o que ele queria era um pedaço que mostrava os Filhos descendo a fortaleza da montanha galopando, numa única fila, em camelos idênticos.

—    Pra que será que ele quis aquilo — murmurou, tirando a tampa do pote de cola. — Só aparece um monte de rochas.

Victor e Gaspode permaneciam parados entre as dunas de areia perto da praia.

—    Ali está a cabana de tábuas de madeira — mostrou Victor, apontando. — Se você olhar bem, dá para ver que tem uma espécie de estrada apontando direto para a colina. Mas não há nada na colina a não ser as árvores velhas.

Gaspode olhou para trás, para a Baía de Holy Wood.

—    Engraçado que ela seja circular.

—    Também achei — concordou Victor.

—    Ouvi dizer que tinha uma cidade tão perversa que os deuses a transformaram numa poça de vidro derretido — comentou Gaspode, a troco de nada. — e a única pessoa que a viu se transformava num monte de sal de dia e num pote de queijo à noite.

—    Nossa. O que as pessoas faziam?

—    Sei lá. Provavelmente, nada de mais. Não e preciso muito para irritar os deuses.

—    Bom garoto! Bom garoto Laddie!

O cachorro veio correndo pelas dunas, um cometa de pêlos dourados e alaranjados. Ele derrapou antes de parar na frente de Gaspode e depois começou a dançar de um lado para o outro, agitado, latindo.

—    Ele fugiu e quer que eu brinque com ele — disse Gaspode, desanimado. — Ridículo, não? Laddie, finge de morto.

Laddie rolou, obediente, com as quatro patas para cima.

—    Está vendo? ele entende cada palavra que eu digo — resmungou Gaspode.

—    Ele gosta de você.

—    Há — fungou Gaspode. — Como é que os cachorros podem algum dia valer alguma coisa se saem por aí idolatrando as pessoas só porque deram um prato de comida pra eles? O que ele quer que eu faça com isso?

Laddie havia largado um graveto na frente de Gaspode e olhava para ele com muita expectativa.

—    Ele quer que você jogue.

—    Pra quê?

—    Para que ele possa trazer de volta.

—    O que eu não entendo — começou Gaspode, enquanto Victor pegava o graveto e o arremessava e Laddie corria atrás dele — é como e possível que a gente seja descendente dos lobos. Sabe, o lobo normal é um cara esperto, entende o que eu quero dizer? Cheio de manha e tal. Estamos falando de patas acinzentadas correndo pela tundra virgem, é o que eu tô querendo dizer.

Gaspode olhou para as montanhas distantes com uma expressão saudosa.

—    E, de repente, algumas gerações depois, temos Percy o Filhote aqui com o nariz gelado, olhos brilhantes, pêlo sedoso e o cérebro de um bagre bêbado.

—    E você — completou Victor. Laddie voltou rodopiando numa tempestade de areia e largou o graveto úmido na frente dele. Victor o pegou e atirou novamente. Laddie saiu pulando, latindo até ficar enjoado de tanta excitação.

—   Bem, é — concordou Gaspode, andando de modo afetado com as patas tortas. — Só que eu sei cuidar de mim mesmo. O mundo é um lugar em que cachorro come cachorro. Você acha que Chapado, o vira-lata aí, duraria cinco minutos em Ankh-Morpork? Se ele coloca uma pata numa das ruas de lá, vira três pares de luvas de pele e Fritura Crocante número 27 pra viagem na lanchonete klatchiana 24-horas mais próxima.

Victor atirou o graveto mais uma vez.

—    Me diz uma coisa. Quem era o famoso Gaspode de quem tiraram o seu nome?

—    Você nunca ouviu falar nele?

—Não.

—    Ele era muito famoso.

—    Era cachorro?

—    Sim. Foi há muitos e muitos anos. Tinha um sujeito em Ankh que morreu. Era de uma dessas religiões em que enterram a pessoa depois que ela morre. E foi o que fizeram. ele tinha um cachorro véio...

—    ... chamado Gaspode...?

—    É, e esse cachorro veio tinha sido a única companhia dele. Depois que enterraram o homem, ele se deitou sobre o túmulo e uivou, uivou durante semanas. Rosnava pra todo mundo que se aproximava. Depois morreu.

Victor parou no momento em que ia atirar o graveto mais uma vez.

—    Isso é muito triste — disse. Ele atirou. Laddie correu acompanhando o movimento e desapareceu entre um grupo de árvores atrofiadas no declive.

—    É. Todo mundo diz que essa história demonstra o amor inocente e eterno do cão pelo seu mestre — observou Gaspode, cuspindo as palavras como se fossem cinzas.

—    Você não acredita nisso então?

—    Na verdade, não. Acredito que qualquer cachorro fica parado e uiva quando alguém baixa a lápide do túmulo em cima do rabo dele.

Houve um latido feroz.

— Não se preocupe. Ele provavelmente encontrou uma pedra ameaçadora ou algo do tipo — disse Gaspode.

Ele tinha encontrado Ginger.

O bibliotecário passou com determinação, apoiando-se nas juntas dos dedos, pelo labirinto da biblioteca da Universidade Invisível e desceu os degraus em direção às prateleiras de segurança máxima.

Quase todos os livros da Biblioteca eram — por serem mágicos — consideravelmente mais perigosos do que os livros normais. A maioria ficava acorrentada à estante para evitar que saísse batendo as páginas.

Mas os níveis mais baixos...

... lá eram guardados os livros malandros, cujo comportamento ou o mero conteúdo exigia uma prateleira inteira, uma sala inteira para eles. Livros canibais que, se deixados numa prateleira com seus colegas mais fracos, seriam encontrados consideravelmente mais gordos e presunçosos, entre as cinzas fumegantes, na manhã seguinte. Livros cujas meras páginas do índice seriam capazes de reduzir uma mente desprotegida a um queijo suíço. Livros que não eram apenas livros de magia, mas livros mágicos.

Existem muitas idéias equivocadas sobre magia. As pessoas saem por aí falando em harmonias místicas, equilíbrios cósmicos e unicórnios, tudo o que está para a magia verdadeira assim como uma marionete feita com uma luva está para a Companhia Real de Shakespeare.

A magia de verdade é a mão em volta da serra, a faísca atirada no barril de pólvora, a deformação na dimensão que liga você diretamente ao centro de uma estrela, a espada flamejante que queima inteira até a bainha. Melhor fazer malabarismos com tochas num poço de piche do que mexer com a magia verdadeira. Melhor se deitar diante de mil elefantes.

Pelo menos e o que dizem os magos — motivo pelo qual cobram taxas imensamente altas para se meterem com isso.

Mas ali embaixo, nos túneis escuros, não havia como se esconder atrás de amuletos, mantos estrelados e chapéus pontudos.

Ali embaixo, ou você dominava o assunto ou não dominava. e, se você não dominasse, não agüentaria muito tempo.

O bibliotecário ouviu sons atrás das portas pesadas de tantas trancas quando se aproximou arrastando os pés. Uma ou duas vezes, alguma coisa pesada se atirava contra a porta, fazendo as dobradiças rangerem.

Ele ouviu ruídos.

O orangotango parou em frente a um vão em forma de arco bloqueado por uma porta feita não de madeira, mas de pedra, equilibrada de forma a ser aberta por fora com facilidade, mas resistir a pressões intensas do lado de dentro.

Ele parou por um momento e depois esticou o braço para pegar, dentro de uma pequena alcova, uma máscara de ferro e vidro escurecido, a qual colocou sobre o rosto, e um par de luvas pesadas de couro, reforçadas com malha de aço. Havia também uma tocha feita com trapos encharcados em óleo. ele a acendeu em um dos braseiros tremeluzentes do túnel.

No fundo da alcova havia uma chave de bronze.

Ele a pegou e, em seguida, respirou fundo.

Todos os Livros do Poder tinham sua própria natureza. O Octavo era ríspido e tirânico. O Grimório da Diversão Abundante praticava pegadinhas mortais. O encanto do Sexo Tântrico tinha que ficar dentro da água gelada. O bibliotecário conhecia todos e sabia como lidar com eles.

Este era diferente. As pessoas geralmente viam cópias de 10a ou 12a mão que representavam a coisa real da mesma forma que uma pintura de uma explosão seria igual a, bem, uma explosão. este livro havia absorvido o mal puro e cinzento da cor do grafite que constituía seu assunto.

Seu título estava entalhado acima do arco para que homens e símios não se esquecessem.

NeCROTeLICOMNICON.

ele pôs a chave na fechadura e ofereceu uma reza aos deuses.

— Oook — disse com fervor. — Oook.

A porta se abriu.

Na escuridão do interior, uma corrente fez um leve tinido.

 

—    Ela ainda está respirando — disse Victor. Laddie saltava em volta deles, latindo furiosamente.

—    Talvez seja melhor você afrouxar as roupas dela ou algo do tipo —        sugeriu Gaspode. — É só uma idéia — acrescentou. — Não precisa me olhar com essa cara. Eu sou um cachorro, não sei de nada.

—    Ela parece estar bem, mas... olhe para as suas mãos. Que diabos ela estava tentando fazer?

—    Abrir aquela porta — respondeu Gaspode.

—    Que porta?

—    Aquela porta ali.

Parte da colina havia se movido. Enormes blocos de concreto se projetavam para fora da areia. Lá estavam as pontas de pilares antigos, sobressaindo feito dentes fluorados.

Entre dois deles havia uma passagem em forma de arco três vezes mais alta que Victor. Possuía portas de um cinza pálido ou de madeira que tivesse se tornado rígida como pedra ao longo dos anos. Uma delas estava levemente aberta, mas era impedida de se abrir mais pelos montes de areia na sua frente. Vários sulcos haviam sido escavados de modo frenético no fundo da areia. Ginger tentara deslocá-los com as próprias mãos.

—    Uma estupidez fazer isso neste calor — observou Victor, num tom vago. ele olhou da porta para o mar e depois para Gaspode.

Laddie revirava a areia e latia, agitado, para o vão entre as portas.

—    Pra que ele está fazendo isso? — perguntou Victor, sentindo-se assustado de repente. — Seus pêlos estão todos eriçados. Você não acha que ele está tendo uma daquelas misteriosas premonições do mal que os animais têm, acha?

—    Eu acho que ele é um imbecil — respondeu Gaspode. — Laddie, cala a boca!

Houve um latido. Laddie se afastou da porta, perdeu o equilíbrio na areia escorregadia e rolou ladeira abaixo. Ele deu um pulo para se levantar e recomeçou a latir. Não era um latido idiota comum de cachorro desta vez, mas a variação genuína do gato preso na árvore.

Victor se inclinou para a frente e tocou a porta. Ela estava muito gelada, apesar do calor perpétuo de Holy Wood, e havia a leve suspeita de uma vibração.

Ele passou os dedos sobre a superfície. Havia um pedaço áspero, como se alguém tivesse entalhado algo que foi ficando gasto até se tornar obscuro com o passar dos anos.

—    Uma porta como essa... — começou Gaspode, atrás dele —uma porta como essa, se quer saber minha opinião, uma porta como essa... Uma porta como essa — ele respirou fundo — é um presságio.

—    Hmm? O quê? Presságio de quê?

—    Num tem que ser presságio de nada. Só o pressagiar básico já é ruim o suficiente, vai por mim.

—    Ela deve ter sido importante. Tem um ar de entrada de templo. Por que ela queria abri-la?

—    Pedaços de um despenhadeiro rolando para baixo e portas misteriosas aparecendo — comentou Gaspode, balançando a cabeça. — é presságio demais. Vamos a algum lugar longe daqui para pensar direito sobre isso, sim?

Ginger soltou um gemido. Victor se agachou.

—    O que ela disse?

—    Sei lá.

—    Parecia algo como "eu quero ficar só linha", achei.

—    Loucura. Efeito do sol, isso aí, imagino — disse Gaspode, com ar de bem instruído.

—    Talvez você esteja certo. A cabeça dela com certeza está quente. — ele a ergueu, vacilando um pouco por causa do peso.

—    Vem — conseguiu dizer. — Vamos descer até a cidade. Logo vai escurecer. — Ele olhou ao redor, para as árvores raquíticas. A porta ficava numa espécie de vale que, presumivelmente, tomava orvalho suficiente para tornar o cultivo um pouco menos árido do que nos outros lugares. — Sabe que este lugar parece familiar? Fizemos o nosso primeiro clique aqui. Foi onde a vi pela primeira vez.

—    Muito romântico — comentou Gaspode num tom distante, afastando-se com pressa, com Laddie saltitando contente em volta dele. — Se sair alguma coisa horrível dessa porta, você pode pensar nela como o Nosso Monstro.

—    Ei! espera!

—    Vem logo então.

—    O que ela quis dizer com "ficar só linha", o que você acha?

—    Não faço idéia...20

Depois que se foram, o silêncio se derramou novamente sobre o vale.

Um pouco mais tarde, o sol se pôs. Sua longa luz bateu na porta, transformando meros rabiscos em relevos destacados. Com o auxílio da imaginação, poderiam até ter formado a figura de um homem.

Com uma espada.

Houve um ruído muito fraco, como se, grão por grão, a areia escoasse para fora da porta. A meia-noite, ela já tinha se aberto pelo menos alguns milímetros.

Holy Wood sonhava.

Sonhava que estava acordando.

 

  1. Ginger repetia a famosa frase da atriz Greta Garbo: "Quero ficar sozinha". (N. T.)

 

Ruby abafou o fogo sob os barris, pôs os bancos sobre as mesas e se preparou para fechar o Calcário Azul. Pouco antes de soprar a última vela, ela hesitou diante do espelho.

Ele estava esperando lá fora novamente, aquela noite. Assim como todas as outras noites. Ele estava lá dentro, no fim da tarde, rindo sozinho. Planejava alguma coisa.

Ruby vinha recebendo conselhos de algumas das garotas que trabalhavam nos cliques e, alem do seu boá de plumas, agora investia num chapéu de aba larga, com um tipo de oograah que achava que se chamava cereja. Garantiram a ela que o efeito era avassalador.

O problema, tinha ela que admitir, e que ele era, bem, um troll muito vigoroso. Durante milhões de anos, as mulheres trolls tinham sentido atração natural por trolls com uma constituição semelhante à de um monólito com uma maçã no topo. Os instintos traiçoeiros de Ruby atiravam mensagens por sua espinha, repetindo de modo desleal que, naquelas longas presas e pernas curvas, havia tudo o que uma garota troll poderia desejar de um companheiro.

Trolls como Rocha e Morry, é claro, eram muito mais modernos e sabiam fazer coisas como usar garfo e faca. Mas havia algo... bem... tranqüilizador em Detritus. Talvez fosse o jeito com que as juntas dos dedos tocavam o solo com tanto dinamismo. e, à parte todas as outras coisas, ela tinha certeza de que era mais inteligente do que ele. Havia uma imbecilidade incontrolável nele que ela achava fascinante. Isso eram os instintos em funcionamento — a inteligência nunca tinha sido uma característica particularmente valiosa num troll.

E ela tinha que admitir que, por mais que pudesse experimentar coisas como boas de plumas e chapéus luxuosos, chegava aos 140 anos e estava 180 kg acima do peso considerado ideal.

Se pelo menos ele fosse mais animado para fazer as coisas.

Ou se ele fosse mais animado para fazer uma coisa.

Talvez valesse a pena tentar essa maquiagem de que as garotas vinham falando.

Ela suspirou, apagou a vela, abriu a porta, saiu e se viu no meio de um labirinto de raízes.

Uma árvore gigantesca se espalhava por toda a extensão do beco. Ele deve tê-la arrastado por quilômetros. Os poucos galhos que sobreviveram entravam por janelas ou balançavam solitários no ar.

No meio de tudo aquilo, Detritus se empoleirava no tronco com orgulho, com o rosto dividido por um sorriso de melancia e os braços escancarados.

— Tralaa! — disse.

Ruby soltou um suspiro gigantesco. O romance não é nada fácil quando você é um troll.

O bibliotecário forçou a página para que ela se abrisse e acorrentou-a ao chão. O livro tentou dar um tapa nele.

Seus conteúdos fizeram dele o que era. Malvado e traiçoeiro.

Ele continha um conhecimento proibido.

Bem, não proibido, na verdade. Ninguém jamais havia chegado tão longe a ponto de proibi-lo. Mais que qualquer outra coisa, para proibi-lo era necessário conhecê-lo, o que era proibido. Mas definitivamente continha o tipo de informação que, uma vez que você conhecia, desejava não ter conhecido.21

Dizia a lenda que qualquer homem mortal que lesse mais que algumas linhas do original morreria louco.

Isso certamente era verdade.

 

  1. O Necrotelicomnicon foi escrito por um necromancista klatchiano conhecido pelo mundo como Achmed o Louco, embora preferisse ser chamado de Achmed o eu Só Tenho Umas Dores de Cabeça. Dizem que o livro foi escrito em um dia, depois que Achmed bebeu demais do estranho café forte klatchiano, que não apenas deixa a pessoa sóbria, mas faz com que atravesse a sobriedade e vá até o outro lado, de modo que tenha um vislumbre do universo real alem das nuvens de auto—ilusão confortável que a vida sapiente geralmente gera em torno de si para evitar que se transforme num bolo de nozes. Pouco se sabe sobre a sua vida antes desse acontecimento, porque a página intitulada "Sobre o Autor" sofreu combustão espontânea logo após sua morte. No entanto, a seção intitulada "Outros Livros do Mesmo Autor" indica que sua obra publicada anteriormente foi O Livro de Histórias Humorísticas sobre Gatos de Achmed o eu Só Tenho Umas Dores de Cabeça, o que talvez explique muita coisa.

 

A lenda também dizia que o livro continha ilustrações que fariam o cérebro de um homem forte escorrer para fora dos ouvidos.

Isso provavelmente também era verdade.

A lenda prosseguia dizendo que o mero gesto de abrir o Necrotelicomnicon faria a carne de um homem rastejar para fora da sua mão e subir pelo braço.

Na verdade, ninguém sabia se isso era verdade, mas soava terrível o suficiente para ser verdade, e ninguém estava disposto a pagar para ver.

A lenda tinha muito a dizer sobre o Necrotelicomnicon, mas absolutamente nada sobre orangotangos, que poderiam rasgar o livro em pedacinhos e mastigá-lo que a lenda não daria a mínima. O pior que já acontecera ao bibliotecário depois de olhar para o livro fora uma leve enxaqueca e um toque de eczema, mas aquilo não justificava correr riscos. ele ajustou o visor de vidro escurecido e passou o dedo de couro preto pelo índice. As palavras se ergueram quando o dedo deslizou sobre elas e tentaram mordê-lo.

De vez em quando, segurava o pedaço de filme contra a luz trêmula da tocha.

O vento e a areia o deixaram manchado, mas não havia dúvidas de que as rochas tinham partes entalhadas. e o bibliotecário já havia visto desenhos como aqueles antes.

Ele encontrou a referência que procurava e, após uma luta rápida em que teve que ameaçar o Necrotelicomnicon com a tocha, forçou o livro a virar até a página.

Examinou mais de perto.

Grande Achmed o eu Só Tenho Umas Dores de Cabeça...

"... e naquela colina, diz-se, uma Porta para fora do Mundo foi encontrada, e as pessoas da cidade observaram O que foi Visto naquele lugar, sem saber que o Pavor aguardava entre os universos..."

A ponta dos dedos do bibliotecário se arrastaram da direita para a esquerda sobre as imagens e pularam para o parágrafo seguinte.

"... porque Outros encontraram o Portão de Holy Wood e caíram sobre o Mundo, e numa noite Toda espécie de Loucura sucedeu, o Caos vigorou, a Cidade afundou sob o Mar, e tudo se transformou numa coisa só, com os peixes e as lagostas, salvo pelos poucos que fugiram..."

ele envergou o beiço e olhou mais para baixo, na mesma página.

"... um Cavalheiro Dourado, que levou o Inimigo de volta e salvou o Mundo, e disse: 'Onde o Portão estiver, Lá estarei eu Também. Sou Aquele que Nasceu de Holy Wood para vigiar a Idéia Desvairada'. e eles disseram: 'O que temos que fazer para Destruir o Portão para Sempre'. e ele respondeu a eles: 'Isto vocês Não podem Fazer, por Não ser isto uma Coisa, mas eu Vigiarei o Portão para vocês'. e eles, como não tinham Nascido ontem, e temendo a Cura mais do que a Doença, disseram a ele: 'O que você Levará de Nós para Vigiar a Porta'. e ele cresceu até ficar da altura de uma árvore e disse: Apenas a sua Lembrança, assim eu Não Durmo. Três vezes por dia vocês se lembrarão de Holy Wood. Senão As Cidades do Mundo Tremerão e Cairão, e vocês Verão a Maior delas Toda em Chamas'. e, com isso, o Homem Dourado pegou sua espada dourada e seguiu até a Colina e ficou diante do Portão para sempre. e as Pessoas disseram umas às outras: engraçado, ele se parece tanto com o meu tio Osberto...'"

O bibliotecário virou a página.

"... Mas havia entre eles, humanos e animais também, aqueles que tinham sido tocados pela magia de Holy Wood. ela e passada através das gerações, como uma maldição antiga, até que os sacerdotes interrompam sua Lembrança e o Homem Dourado adormeça. então, que o mundo tome Cuidado..."

O bibliotecário deixou o livro se fechar de uma vez.

Não era uma lenda incomum. ele a havia lido antes — pelo menos a maior parte dela — em livros consideravelmente menos perigosos que aquele. era possível encontrar variações em todas as cidades da Planície Sto Lat. Houve uma vez uma cidade, nos tempos obscuros da pré-história — maior que Ankh-Morpork, se isso fosse possível. e os habitantes haviam feito uma coisa, uma espécie de crime inenarrável não apenas contra a Humanidade ou os deuses, mas contra a própria natureza do universo, que tinha sido tão horrível que ela afundou sob o mar numa noite de tempestade. Apenas algumas pessoas sobreviveram para transmitir aos povos bárbaros das partes menos avançadas do Disco todas as artes e ofícios da civilização, tais como a usura e o macramê.

Ninguém jamais a levou a Sério, na verdade. era apenas um daqueles mitos comuns, do tipo "Se você não parar com isso, vai ficar cego", que as civilizações tendiam a passar a seus descendentes. Afinal, Ankh-Morpork era considerada, de modo geral, a cidade mais perversa que se poderia encontrar em um ano navegação pelo Disco, e parecia ter conseguido evitar qualquer tipo de vingança sobrenatural, embora seja possível que ela tenha acontecido e ninguém tenha notado.

A lenda também havia colocado a cidade sem nome bem longe, e muito tempo atrás.

Ninguém sabia onde ela ficava ou se havia existido.

O bibliotecário olhou para os símbolos mais uma vez.

eram muito familiares. estavam nas velhas ruínas, por toda a parte, em Holy Wood.

Azhural permanecia de pé sobre um monte baixo, observando o mar de elefantes se mover abaixo dele. Aqui e ali, um carro de entrega passava sacudindo entre os corpos cinza empoeirados feito um barco desgovernado. Um quilômetro e meio de savana era pisoteado e transformado num chafurdeiro empapado de lama, sem nada de grama — embora, a julgar pelo cheiro, seria o pedaço de terra mais verde do Disco depois das chuvas.

Ele esfregou os olhos de leve, com a ponta do manto.

Trezentos e sessenta e três! Quem diria?

O ar estava sólido com o barrito irritado de 363 elefantes. e, com os grupos de caça e apreensão já seguindo na frente, haveria muitos mais. Pelo menos de acordo com M'Bu. e ele não ia discutir.

engraçado, isso. Durante anos, pensou em M'Bu como uma espécie de sorriso ambulante. Um rapaz habilidoso com um pincel e uma pá, mas não o que se poderia chamar de um grande empreendedor.

então, de repente, alguém em algum lugar quis mil elefantes, e o garoto ergueu a cabeça e um brilho surgiu em seu olhar. Dava para ver que por baixo daquele sorriso largo havia um habilidoso kilopaquidermatologista pronto para atender ao chamado. engraçado. era possível conhecer alguém a vida inteira e não perceber que os deuses o colocaram neste mundo para movimentar mil elefantes de um lado para o outro.

Azhural não tinha filhos. ele já se decidira a deixar tudo para seu assistente. Tudo o que tinha, àquela altura, consistia em 363 elefantes e... a—há—há... um mamute como garantia de credito, mas o que valia era a intenção.

M'Bu veio correndo pelo caminho que ia até ele, segurando a prancheta com firmeza debaixo do braço.

— Tudo pronto, chefe. e só o senhor mandar.

Azhural se esticou. Olhou para a planície oscilante, os baobás distantes e as montanhas purpúreas. Ah, sim. As montanhas. Ficara apreensivo em relação às montanhas. ele as mencionara a M'Bu, que disse "A gente atravessa aquelas pontes quando chegar lá, chefe" e, quando Azhural observou que não havia nenhuma ponte, ele o olhou com sinceridade e disse com firmeza: "Primeiro a gente constrói as pontes, depois atravessa elas".

Muito alem das montanhas estava o Mar Círculo, Ankh-Morpork e aquela tal de Holy Wood. Lugares distantes, com nomes esquisitos.

Um vento soprou pela savana, carregando leves sussurros, até mesmo aqui.

Azhural ergueu a bengala.

—    São 2.400 quilômetros até Ankh-Morpork. Nós temos 363 elefantes, 50 carroças de forragem, a monção está prestes a começar, e nós estamos usando... estamos usando... uma espécie de coisa, tipo óculos, só que escuros... coisas de vidro escuro nos olhos... — Sua voz falhou. ele franziu a sobrancelha, como se tivesse escutado a própria voz e não entendesse.

O ar parecia cintilar. Ele viu M'Bu olhando fixamente para ele. E deu de ombros.

—    Vamos — disse.

M'Bu fez uma concha com as mãos na frente da boca. ele passara a noite toda pensando na ordem da marcha.

—    Seção Azul pertencente Tio N'Gru, avante! — gritou. — Seção Amarela pertencente Tia Googool, avante! Seção Verde pertencente Primo de segundo grau! Kck! Avante...

Uma hora mais tarde, a savana em frente ao monte baixo estava deserta, com exceção de um bilhão de moscas e um besouro rola-bosta que não acreditava na própria sorte.

Alguma coisa fez "plop" na poeira vermelha, fazendo se abrir uma pequena cratera. E mais uma, e mais outra.

Um raio dividiu o tronco de um baobá próximo.

As chuvas começaram.

As costas de Victor começavam a doer. Carregar mocinhas para lugares seguros parecia uma boa idéia no papel, mas apresentava grandes empecilhos depois dos primeiros 100 m.

—    Você tem alguma idéia de onde ela mora? e é em algum lugar perto daqui?

—    Não faço idéia — respondeu Gaspode.

—   Uma vez, ela disse algo sobre ser em cima de uma loja de roupas.

—    Então fica no beco ao lado do restaurante do Borgle —disse Gaspode.

Gaspode e Laddie mostraram o caminho através dos becos e por uma frágil escada externa. Talvez tivessem farejado o quarto de Ginger. Victor não questionaria os sentidos misteriosos de animais.

Ele subiu as escadas dos fundos fazendo o menor barulho possível. estava vagamente consciente de que o lugar em que as pessoas ficavam era geralmente assolado pela Proprietária Comum ou Altamente Desconfiada, e sentia que já tinha problemas suficientes.

Ele usou os pés de Ginger para empurrar a porta.

O quarto era pequeno, de pé direito baixo e mobiliado com os infelizes móveis desbotados encontrados em quartos alugados por todo o multiverso. Pelo menos a princípio era assim.

Agora era decorado com Ginger.

Ela havia guardado todos os cartazes. Até mesmo os dos primeiros cliques, em que aparecia apenas em letras miúdas como Uma Garota. estavam pregados à parede com tachinhas. O rosto de Ginger — e o dele próprio — olhava fixamente para ele de todos os ângulos.

Havia um espelho grande numa extremidade do quarto apertado e duas velas queimadas até a metade, na frente dele.

Victor colocou a garota com cuidado na cama estreita e depois olhou ao redor. Seu sexto, sétimo e oitavo sentidos gritavam para ele. Estava num local cheio de magia.

—    É como uma espécie de templo — disse. — Um templo para... ela mesma.

—    Me dá arrepios — comentou Gaspode.

Victor ficou olhando. Talvez tenha conseguido evitar com sucesso o recebimento do chapéu pontudo e do grande cajado, mas adquirira instintos de mago. ele teve uma visão súbita de uma cidade sob o mar, com polvos enrolando—se furtivamente em portais submersos e lagostas olhando para as ruas.

—   O destino não gosta quando as pessoas ocupam mais espaço do que deveriam. Todo mundo sabe disso.

"Eu serei a pessoa mais famosa do mundo", pensou Victor. "Foi o que ela disse." ele balançou a cabeça.

—    Não — disse, em voz alta. — ela só gosta de cartazes. É apenas uma simples vaidade.

Aquilo não soou convincente nem mesmo para ele. O quarto estava pululando de...

... do quê? ele nunca sentira nada como aquilo antes. Alguma espécie de poder, com certeza. Alguma coisa que mexia com seus sentidos de forma provocadora. Não exatamente magia. Pelo menos não do tipo com a qual estava acostumado. Algo que parecia similar sem ser a mesma coisa, como o açúcar comparado ao sal. Da mesma forma e da mesma cor, mas...

A ambição não era mágica. Poderosa, sim, mas não mágica... certamente?

A magia não era difícil. esse era o grande segredo sobre o qual todo o extravagante edifício da magia havia sido montado para esconder. Qualquer um com um pouco de inteligência e perseverança poderia fazer magia, motivo pelo qual os magos a encobriam com rituais e toda essa coisa do chapéu pontudo.

O truque consistia em fazer magia e sair impune.

Porque era como se a raça humana fosse um milharal e a magia ajudasse seus praticantes a ficar um pouco mais altos para que se sobressaíssem. Isso atraía a atenção dos deuses e — Victor hesitou — de outras Coisas de outro mundo. As pessoas que usavam a magia sem saber o que faziam geralmente acabavam numa situação complicada.

Às vezes, num quarto como esse.

Ele se lembrou de Ginger lá na praia. "eu quero ser a pessoa mais famosa do mundo." Pensando bem, talvez aquilo fosse algo novo. Ambição não por ouro, poder, terra ou todas as coisas conhecidas do mundo humano. Apenas ambição de ser você mesmo da maior forma possível. Não ambição por algo, mas ambição de ser algo.

Ele balançou a cabeça. Estava apenas num quarto qualquer, num predio qualquer, numa cidade qualquer, que era mais ou menos tão real quanto... quanto... quanto... bem... quanto um clique. Não parecia o lugar para ter pensamentos daquele tipo.

Importante era lembrar que Holy Wood não era um lugar real de jeito nenhum.

Ele ficou olhando para os cartazes mais uma vez. "Você só consegue uma chance", ela disse. "Você vive talvez por 70 anos e, se tiver sorte, consegue uma chance. Pense em todos os esquiadores natos que nascem em desertos. Pense em todos os ferreiros geniais que nasceram centenas de anos antes de alguém inventar o cavalo. Todos os talentos que nunca são usados. Todas as chances desperdiçadas."

"Que sorte a minha", ele pensou, de um jeito sombrio, "estar vivo nesta época."

Ginger se virou em seu sono. Pelo menos sua respiração parecia mais regular.

—    Vamos — disse Gaspode. — Não é certo ficar sozinho no buduá de uma dama.

—    Não estou sozinho. Ela está comigo.

—    Essa é a questão — insistiu Gaspode.

—    Au, au — acrescentou Laddie, por lealdade.

—    Sabe de uma coisa — começou Victor, seguindo os cachorros na escada —, estou começando a sentir que tem alguma coisa errada aqui. Alguma coisa está acontecendo, e eu não sei o que e. Por que ela estava tentando entrar na colina?

—    Provavelmente em pacto com Poderes terríveis — sugeriu Gaspode.

—    A cidade, a colina, o livro e tudo o mais — disse Victor, ignorando aquilo. — Tudo isso faria sentido se ao menos eu soubesse o que liga essas coisas umas às outras.

Ele saiu e se deparou com o fim da tarde, com as luzes e os ruídos de Holy Wood.

—    Amanhã nós vamos até lá, à luz do dia, e resolvemos isso de uma vez por todas.

—   Não vamos, não — interferiu Gaspode. — E o motivo e que amanhã iremos a Ankh-Morpork, lembra?

—    Nós? Ginger e eu vamos. Não sabia sobre você.

—    Laddie vai também — disse Gaspode. — Eu...

—    Bom garoto Laddie!

—    É, é. Eu ouvi os treinadores falando. Então tenho que ir pra garantir que não aconteça nada de errado com ele, esse tipo de coisa.

Victor bocejou.

—    Bom, eu vou para a cama. Provavelmente vamos ter que começar cedo.

Gaspode olhou para um lado e para o outro do beco com um olhar inocente. Em algum lugar, uma porta se abriu, e eles ouviram o som de uma risada bêbada.

—    Eu tava pensando em dar uma volta antes de dormir — disse.

—    Mostrar pro Laddie...

—    Laddie bom garoto!

—    ... os pontos turísticos e tal.

Victor fez uma expressão de dúvida.

—    Não fique com ele até muito tarde. As pessoas vão ficar preocupadas.

—    É, tá bom — concordou Gaspode. — Boa noite.

Ele se sentou e ficou olhando. Victor saiu andando.

—    Sei — disse baixinho. — Vai ver se tem alguém se preocupando comigo. — ele ergueu a cabeça para olhar para Laddie, que se curvou para prestar atenção com obediência. — Certo, jovem filhote companheiro. Desta vez você foi educado. Lição Um: Como Pegar Bebidas de Graça nos Bares. Sorte sua — acrescentou —que você me encontrou.

Duas silhuetas caninas cambaleavam de modo incerto pelas ruas de madrugada.

—    Somos pobres cordeirinhos — uivou Gaspode — que ficaram perdidos...

—Au! Au! Au!

— Somos pobres ovelhinhas que... que... — Gaspode desabou e cocou uma orelha, ou pelo menos o local onde ele pensava que ela estaria. Sua pata balançava de modo incerto no ar. Laddie olhou para ele com olhar solidário.

A noite tinha sido incrivelmente bem—sucedida. Gaspode sempre conseguia suas bebidas de graça simplesmente sentando e olhando de modo intenso para as pessoas até que elas ficassem desconfortáveis e derramassem um pouco de cerveja para ele, num pires, na esperança de que beberia e iria embora. era demorado e tedioso, mas, como técnica, servia muito bem. enquanto Laddie...

Laddie fazia truques. Laddie sabia beber de garrafas. Laddie sabia latir o número de dedos que as pessoas mostravam. Gaspode também sabia, é claro, mas nunca havia lhe passado pela cabeça que tal atividade pudesse ser recompensada.

Laddie conseguia avistar moças que saíam para passar a noite com um pretendente esperançoso, colocar a cabeça no colo delas e lançar um olhar tão comovente que o pretendente comprava um pires de cerveja e um pacote de biscoitos em forma de peixinho só para impressionar a futura amada. Gaspode nunca tinha sido capaz de fazer aquilo porque era muito baixo para os colos e, de todo o modo, mesmo se tentasse, só conseguiria gritos de aversão.

Ele se sentou embaixo da mesa, num estado de desaprovação perplexa no começo, e depois num estado de desaprovação perplexa alcoolizada, porque Laddie era a generosidade em cachorro quando se tratava de dividir pires de cerveja.

Agora, depois que os dois tinham sido botados para fora, Gaspode decidiu que era hora de um sermão sobre o verdadeiro cachorrismo.

—Você não deve ficar se humolhando. Umiliando. Humilhando para os humano — disse. — Isso deixa todo mundo mal. Nós nuca vamos jogar fora as correntes da dependência da humanidade se cães como você ficarem felizes toda vez que virem gente. Fiquei pessoalmente enojado quando você fez aquela serie Deitar de costas e fingir de morto, vou te contar.

—Au!

—    Você não passa de mais um cachorro do imperialismo humano — disse Gaspode num tom severo.

Laddie pôs as patas sobre o focinho.

Gaspode tentou se levantar, tropeçou nas próprias patas e se sentou com todo o seu peso. Depois de algum tempo, duas lágrimas enormes correram pelo seu pêlo.

—    É claro que eu nunca tive uma oportunidade, sabe. — ele conseguiu ficar novamente sobre as quatro patas. — Sabe, olha o começo que eu tive na vida. Jogado num rio drento dum saco.Num saco de verdade. O pequeno cachorrinho gracioso abre os olhos, olha para o mundo com admiração, esse tipo de coisa, ele está dentro de um saco. — As lágrimas pingaram do seu focinho.

—    Durante duas semanas eu achei que o tijolo fosse a minha mãe.

—    Au — disse Laddie, com solidariedade e sem compreender.

—    Minha sorte foi que me jogaram no rio Ankh — continuou Gaspode. — em qualquer outro rio, eu teria me afogado e ido pro céu dos cachorrinhos. Ouvi dizer que um cachorrão preto fantasmagórico chega pra você quando você morre e diz: "Sua hora jegou. Zegou. Chegou".

Gaspode ficou olhando para o nada.

—    Mas não dá pra afundar no Ankh — continuou, pensativo. — é um rio muito duro, o Ankh.

—Au.

—    Isso não deveria acontecer nem com um cachorro. Metaforicamente.

—Au.

Gaspode observou o rosto de Laddie com os olhos embaçados. era um rosto vivo, alerta e irrevogavelmente burro.

—    Você não entendeu uma maldita palavra do que eu disse, não e? — murmurou.

—Au!— respondeu Laddie, implorando.

—    Sujeitinho sortudo — suspirou Gaspode.

Havia uma agitação na outra ponta do beco. ele ouviu uma voz dizer:

—    Lá está ele! Aqui, Laddie! Aqui, garoto! — As palavras estavam cheias de alívio.

—    É o Homem — resmungou Gaspode. — Você não precisa ir.

—    Bom garoto Laddie! Laddie bom garoto!— latiu Laddie, trotando em frente com obediência, talvez um pouco oscilante.

—    Procuramos você por toda parte! — murmurou um dos treinadores, erguendo um graveto.

—    Não bata nele! — disse o outro treinador. — Você vai estragar tudo. — ele olhou para o beco, e seu olhar encontrou o de Gaspode.

—    Aquele é o saco de pulgas que tem ficado por perto. Me dá arrepios.

—    Atira alguma coisa nele — sugeriu o outro homem.

O treinador se abaixou e pegou uma pedra. Quando se levantou novamente, o beco, estava vazio. Bêbado ou sóbrio, Gaspode tinha reflexos perfeitos em determinadas circunstâncias.

—    Está vendo? — disse o treinador, olhando de modo fixo para as sombras. — e como se fosse um tipo de adivinho.

—    É só um vira—lata — observou o seu companheiro. — Não se preocupe com ele. Vamos, pegue a coleira deste aqui e vamos levá-lo de volta antes que o senhor Dibbler descubra.

Laddie os seguiu de modo obediente de volta às instalações da Século do Morcego-de-Frutas e permitiu que o acorrentassem no seu canil. era possível que não gostasse da idéia, mas era difícil ter alguma certeza em meio à rede de deveres, obrigações e sombras emocionais vagas que formavam o que, por falta de palavra melhor, tinha que ser chamado de sua mente.

Ele deu um ou dois puxões experimentais na corrente e depois se deitou, à espera de acontecimentos.

Após algum tempo, uma vozinha rouca do outro lado da cerca disse:

—    Eu poderia lhe mandar um osso com um alicate dentro, só que você o comeria.

Laddie se reanimou.

—    Bom garoto Laddie! Bom garoto Gaspode!

—    Ssh! Ssh! Pelo menos eles têm que deixar você falar com um advogado — continuou Gaspode. — Acorrentar alguém é contra os direitos humanos.

—Au!

— De todo modo, eu dei o troco. Segui o horroroso até a casa dele e mijei na porta da frente.

—Au!

Gaspode suspirou e saiu andando com seu gingado. Às vezes, no fundo do seu coração, ele se perguntava se, afinal de contas, não seria legal pertencer a alguém. Não apenas ter um dono ou ser acorrentado por ele, vaus pertencer de verdade e ficar contente ao vê-lo, carregar seus chinelos na boca, se consumir de desgosto quando morresse etc.

Laddie gostava daquele tipo de coisa, se e que era possível chamar aquilo de "gostar". era mais algo que estava no seu sangue. Gaspode se perguntou, com melancolia, se aquilo era o verdadeiro cachorrismo e uivou do fundo da garganta. Se ele tinha realmente alguma coisa a ver com aquilo tudo, certamente não era. Porque o verdadeiro cachorrismo não tinha a ver com chinelos, passeios e se consumir pelas pessoas, disso Gaspode tinha certeza. O cachorrismo tinha a ver com ser durão, independente e egoísta.

É isso aí.

Gaspode ouvira dizer que todos os caninos poderiam acasalar entre si, até com os lobos de verdade. então isso devia significar que, lá no fundo, todo cachorro era um lobo. era até possível que um lobo virasse um cachorro, mas não era possível eliminar o lobo que existia no cachorro. Quando a doença do coxim duro atacava, as pulgas ficavam de mau humor e todas rechonchudas, e essa idéia era reconfortante.

Gaspode se perguntou como e que se saía por aí acasalando com lobas, e o que acontecia quando se parava.

Bem, isso não importava. O que importava era que os cães de verdade não saíam por aí enlouquecendo de prazer só porque um humano disse alguma coisa para eles.

É isso aí.

Ele rosnou para um monte de lixo e o desafiou a discordar.

Uma parte do monte se moveu, e um rosto felino com um peixe morto na boca apareceu diante dele. estava a ponto de dar um latido desanimado para ele, apenas para manter a tradição, quando o gato cuspiu o peixe para fora e falou com ele.

—    Olá, Gashpode. Gaspode relaxou.

—    Oh. Olá, gato. Não quis ofender. Não sabia que era você.

—    Odeio peixshe, mash pelo menosh elesh não reshpondem com grossheria.

Uma outra parte do lixo se mexeu, e Guincho, o rato, emergiu.

—    O que cês dois tão fazendo aqui embaixo? — perguntou Gaspode. — Achei que cês tivessem dito que era mais seguro na colina.

—    Não maish — disse o gato. — eshtá ficando asshombrado.

Gaspode franziu a testa.

—    Você é um gato — disse, num tom de desaprovação. — Você está lado a lado com a idéia de assombração.

—    É, mash isso não se estende a ter faíscas douradas estalando no pêlo e o chão tremendo o tempo todo. E vozes eshtranhas que parechem vir da própria cabeçsha — disse gato. — está ficando sinishtro lá em cima.

—    Então nós todos descemos — disse Guincho. — Seu Tampinha e o pato estão escondidos lá nas dunas...

Outro gato caiu da cerca ao lado deles. Era grande e ruivo, e não tinha sido abençoado com a inteligência de Holy Wood. Ele ficou assustado ao ver o rato com uma aparência tranqüila na presença de um gato.

Guincho cutucou o gato na pata.

—    Manda ele embora daqui. Gato encarou o recém-chegado.

—    Some — disse. — Anda, cai fora. Deuses, ishto é tão humilhante.

—    Não apenas pra você — observou Gaspode, quando o novo gato saiu correndo, balançando a cabeça. — Se alguns dos cachorros desta cidade me virem batendo papo com um gato, minha reputação nas ruas vai cair muito.

—    Nósh eshtávamos penshando — disse o gato, com o olhar nervoso na direção de Guincho, de vez em quando — que talvez deveríamos ceder e ver... ver... ver...

—    Ele está tentando dizer que talvez haja um lugar para nós nas imagens animadas — completou Guincho. — O que você acha?

—   Como uma dupla? — perguntou Gaspode. Eles responderam que sim com a cabeça.

—    Sem chance. Quem vai pagar algum dinheiro para ver gatos e ratos perseguindo um ao outro? Até se for cachorro, eles só se interessam se servir para satisfazer os humanos o tempo todo, então com certeza não vão assistir a perseguições de gato e rato. Vai por mim. eu entendo de imagens animadas.

—    Então já está mais que na hora de seus humanos resolverem isso pra que a gente possa voltar pra casa — irritou-se o rato. — O garoto não está fazendo nada. ele não serve pra nada.

—    Ele está apaixonado — disse Gaspode. — É muito complicado.

—    É, eu shei como é — concordou o gato, num tom solidário.

—    As pessoas jogam botas velhas e outras coisas em você.

—    Botas velhas? — espantou-se o rato.

—    Issho é o que sempre aconteceu comigo quando me apaixonei -explicou o gato, saudoso.

—    É diferente com os humanos — disse Gaspode, incerto. — As pessoas não jogam tantas botas e baldes de água em você. É mais assim... e... flores, discussões e coisas assim.

Os animais se entreolharam com ares de mau humor.

—    Eu já vi aqueles dois — disse Guincho. — ela acha que ele é um idiota.

—    Isso tudo faz parte — acrescentou Gaspode. — eles chamam de romance.

O gato deu de ombros.

—    É só me dar uma bota. Você sabe onde está pisando com a bota.

O espírito radiante de Holy Wood se derramou pelo mundo, deixando de ser uma gota para se tornar uma enchente. ele borbulhava nas veias das pessoas e até dos animais. Quando os operadores de manivela giravam suas manivelas, lá estava ele. Quando os carpinteiros martelavam seus pregos, martelavam por Holy Wood. Holy Wood estava no cozido do Borgle, na areia, no ar. Estava crescendo. E ia florescer...

Dibbler Cava-a-própria-Cova, ou C.A.P.C., como gostava de ser chamado, sentou-se na cama e ficou olhando para a escuridão.

Na sua cabeça, uma cidade pegava fogo.

Ele tateou com pressa ao lado da cama para encontrar os fósforos, conseguiu acender a vela e finalmente localizou a caneta.

Não havia papel. ele fora bem específico quando disse a todo mundo que tinha que haver papel ao lado da sua cama para o caso de acordar com uma idéia. As melhores idéias apareciam quando estava dormindo.

Pelo menos havia uma caneta e tinta...

As imagens vinham como uma chuva de granizo passando diante de seus olhos. Pegue-as agora ou deixe-as escapar para sempre...

Ele apanhou a caneta e começou a escrever às pressas nos lençóis.

Um Homem e Uma Mulher Radiantes de Paixão Numa Cidade Assolada pela Guerra Civil!

A caneta rangia e estalava ao percorrer seu caminho sobre o tecido branco e áspero.

Isso! Isso! era isso mesmo!

Ele mostraria a eles, com suas tolas pirâmides de gesso e palácios de moedinhas. Este seria um que eles teriam que respeitar! Quando a história de Holy Wood fosse escrita, este seria aquele para o qual apontariam e diriam: "essa foi a Imagem Animada para Acabar com todas as Imagens Animadas!"

Trolls! Batalhas! Romance! Pessoas com bigodes finos! Mercenários! e a luta de uma mulher para proteger o... — Dibbler hesitou — alguma coisa que ela ama, pensaremos nisso depois, num mundo enlouquecido!

A caneta dava trancos, se agitava e seguia adiante.

Irmão contra irmão! Mulheres usando vestidos com anáguas dando tapas na cara das pessoas! Uma dinastia poderosa em decadência!

Uma grande cidade ardendo! Não de paixão, ele fez uma nota na margem, mas em chamas.

Possivelmente até mesmo... ele mordeu o lábio.

Sim. esperava por isso! Sim!

Mil elefantes!

(Mais tarde, Soll Dibbler diria:

—    Olha, tio, a guerra civil de Ankh-Morpork é uma grande idéia. Sem problemas. Acontecimento histórico conhecido, sem problemas. É que nenhum dos historiadores mencionou ter visto algum elefante.

—    Foi uma guerra grande — disse Dibbler num tom defensivo. — Sempre se deixa passar alguma coisa.

—    Mil elefantes, acho que não.

—    Quem é o diretor deste estúdio?

—    É só que...

—    Ouça. Talvez não houvesse mil elefantes, mas nós teremos mil elefantes. Porque mil elefantes é mais real, ok?)

O lençol aos poucos foi ficando cheio dos rabiscos agitados de Dibbler. ele chegou à ponta e continuou sobre a madeira da cama.

Pelos deuses, aquilo era a idéia de verdade! Nada de pequenas batalhas trabalhosas. Seriam necessários quase todos os operadores de manivela de Holy Wood!

Ele se recostou, ofegante com o esgotamento causado pela empolgação.

Podia ver agora. Estava melhor do que a encomenda.

Só faltava o título. Algo que soasse bem. Algo que as pessoas lembrassem. Algo — ele cocou o queixo com a caneta — que mostrasse que as questões das pessoas comuns ficaram desprezadas nas grandes tempestades da história. Tempestades, era isso. Boa imagem, uma tempestade. Tem o trovão. Relâmpago. Chuva. Vento.

Vento. era isso!

Ele engatinhou até a outra ponta do lençol e, com muito cuidado, escreveu:

E O SOPRO CARREGOU.

Victor se agitava e virava na cama estreita, tentando dormir. As imagens marchavam por sua mente semi-adormecida. Havia corridas de carruagens, navios piratas e outras coisas que ele não conseguia identificar e, no meio de tudo isso, essa coisa escalando uma torre. Algo enorme e terrível com um sorriso desafiador para o mundo. E alguma coisa gritando...

Ele se sentou, encharcado de suor.

Depois de alguns minutos, jogou as pernas para fora da cama e foi até a janela.

Acima das luzes da cidade, a colina de Holy Wood recebia a primeira luz tênue da manhã. Mais um belo dia estava por vir.

Os sonhos de Holy Wood se lançavam pelas ruas em grandes ondas douradas invisíveis.

E Algo veio com eles.

Algo que nunca, nunca sonhava. Algo que nunca adormecia.

Ginger saiu da cama e também olhou na direção da colina, embora se pudesse duvidar de que a tivesse visto. Movendo-se como uma pessoa sem visão num quarto que lhe e familiar, caminhou até a porta, desceu a escada e saiu no final da noite.

Um cachorro pequeno, um gato e um rato observavam nas sombras quando ela passou pelo beco em silêncio e seguiu em direção à colina.

—    Vocês viram os olhos dela? — perguntou Gaspode.

—    Incandescentes — disse o gato. — Irck!

—    Ela está indo para a colina — observou Gaspode. — Não gosto disso.

—    E daí? — começou Guincho. — Ela está sempre por perto. Sobe lá toda noite e fica andando distraída com uma atitude dramática.

—    O quê?

—    Toda noite. Nós achamos que fosse essa coisa de romance.

—    Mas dá pra ver, pelo jeito como ela se move, que alguma coisa não tá certa — disse Gaspode, desesperado. — Isso num é andar, é oscilar. Como se estivesse sendo puxada por uma voz interior ou algo do tipo.

—    Pra mim não parece isso — discordou Guincho. — Andar com as duas pernas é que é oscilar, no meu manual.

—    Ê só olhar pro rosto dela que a gente vê que tem alguma coisa errada!

—    É claro que tem alguma coisa errada. Ela é humana — disse Guincho.

Gaspode considerou as opções. Não havia muitas. A mais óbvia era encontrar Victor e fazê-lo ir até lá. Ele rejeitou essa. Soava muito como o tipo de coisa tola e alegre que Laddie faria. Sugeria que o melhor que um cão poderia fazer quando enfrentava um dilema era encontrar um humano para resolvê-lo.

Ele correu e agarrou firme entre as mandíbulas a bainha rastejante da camisola da sonâmbula. Ela continuou andando, derrubando-o no chão. O gato riu de modo sarcástico demais para o gosto de Gaspode.

—    Hora de acordar, moça — rosnou, soltando a camisola. Ginger seguiu a passos firmes.

—    Está vendo? — começou o gato. — Dê um polegar opositor a eles, e eles acham que são eshpeciais.

—    Eu vou segui-la — disse Gaspode. — Uma garota sozinha à noite pode se machucar.

—    Os cachorros são assim — o gato explicou para Guincho. — Shempre sacudindo o rabo para as pessoas. A próxima vai ser uma coleira de diamante e um prato com o nome dele, eshtou te falando.

—    Se você tá querendo perder um monte de pêlo numa mordida só, você veio pro lugar certo, bichano — rosnou Gaspode, deixando os dentes podres à mostra mais uma vez.

—    Não tenho que tolerar esse tipo de coisa — disse o gato, erguendo o focinho com arrogância. — Vamos, Guincho. Vamos logo para um monte de lixo que não tenha tanta imundície.

Gaspode fez uma careta para as costas deles.

—    Bichano! — gritou.

Depois correu atrás de Ginger, sentindo ódio de si mesmo. "Se eu fosse um lobo, o que, em termos técnicos, eu sou", pensou, "certamente haveria um arranca-rabo ou algo semelhante. Qualquer garota vagando sozinha por aí estaria em sérios apuros. eu poderia atacar, eu. poderia atacar na hora que quisesse, estou apenas escolhendo não fazê-lo. Uma coisa eu não vou fazer. Não vou ficar assim, de olho nela. Sei que Victor me disse pra ficar de olho nela mas eu não fico por aí fazendo o que os humanos mandam. Gostaria de encontrar um humano que possa dar ordens a mim. Corto a garganta dele, assim. Há. E, se alguma coisa acontecesse com ela, ele ficaria andando por aí com a cabeça na lua durante dias e provavelmente esqueceria de me dar comida. Não que cães como eu precisem de humanos para conseguir comida. eu poderia derrubar uma rena só de saltar nas costas dela e morder a jugular, mas e conveniente pra caramba receber tudo num prato."

Ela estava andando bem rápido. A língua de Gaspode ficou pendurada para fora enquanto ele se esforçava para acompanhar o seu passo. A cabeça dele doía.

Ele arriscou algumas olhadelas de lado para ver se algum outro cachorro estava vendo. "Se estivesse", pensou, "poderia fingir que estava correndo atrás dela." Que era o que ele estava fazendo de fato. O problema era que ele nunca teve muito fôlego, nem nos seus melhores momentos, e ficava difícil manter o ritmo. ela deveria ter a decência de ir um pouco mais devagar.

Ginger começou a subir as ladeiras mais baixas da colina.

Gaspode pensou em latir alto e, se alguém chamasse atenção para isso mais tarde, ele poderia dizer que tinha sido para assustá-la. O problema era que tinha fôlego suficiente apenas para ofegar de forma ameaçadora.

Ginger chegou a um patamar e desceu até um pequeno vale entre as árvores.

Gaspode foi cambaleando atrás dela, se endireitou, abriu a boca para choramingar um aviso e quase engoliu a língua.

A porta tinha se aberto mais alguns centímetros. Mais areia rolou para o monte sob o olhar de Gaspode.

E ele ouviu vozes. Não pareciam dizer palavras, mas a essência das palavras, significados sem disfarces. elas zumbiam por sua cabeça pontuda feito mosquitos, implorando, induzindo e...

... ele era o cachorro mais famoso do mundo. Os nós de seus pêlos se desfizeram, das partes puídas brotaram cachos brilhantes, sua pelagem cresceu no corpo repentinamente dócil e se afastou de seus dentes. Pratos surgiram na sua frente, não carregados dos órgãos misteriosos e multicoloridos que normalmente esperavam que ele comesse, mas com um bife vermelho—escuro. Havia água doce... não... havia cerveja numa tigela com o nome dele. Odores torturantes no ar sugeriam que diversas damas cadelas ficariam felizes em conhecê-lo depois que bebesse e jantasse. Milhares de pessoas achavam que ele era maravilhoso. ele tinha uma coleira com o seu nome e...

Não, aquilo não estava certo. Uma coleira, não. Depois disso viria um brinquedinho que soltava um guincho quando apertado se não impusesse limites quanto à coleira.

A imagem desmoronou na confusão e agora...

... a matilha saltava entre as árvores escuras e cobertas de neve, ficando para trás dele, bocas vermelhas abertas, longas pernas correndo pela estrada. Os humanos que fugiam de trenó não tinham chances. Um deles foi atirado de lado quando uma das lâminas bateu num galho e ficou gritando na estrada quando Gaspode e os lobos encontraram...

"Não, não está certo", ele pensou com tristeza. Na verdade, você não come humanos. "eles enchem a sua paciência — isso e certo e os deuses sabem —, mas você não pode comê-los"

Uma confusão de instintos ameaçou dar um curto—circuito em sua mente esquizofrênica canina.

As vozes desistiram de seu ataque com desgosto e voltaram sua atenção para Ginger, que tentava de forma sistemática remover mais areia.

Uma das pulgas de Gaspode lhe deu uma mordida dolorida. ela provavelmente sonhava ser a maior pulga do mundo. A pata subiu automaticamente para cocar, e o encanto desapareceu.

ele piscou.

— Que inferno — gemeu.

"e isso o que está acontecendo com os humanos! O que está fazendo ela sonhar?"

Os pêlos das costas de Gaspode se eriçaram.

Não era necessário nenhum instinto animal especial ali. Os instintos perfeitamente comuns do dia-a-dia foram suficientes para horrorizá-lo. Havia algo terrível do outro lado da porta.

e ela tentava deixar sair.

ele tinha que acordá-la.

Morder não era uma boa idéia. Seus dentes não andavam muito bons ultimamente. ele duvidava muito de que latir seria melhor. Isso deixava uma alternativa...

A areia se moveu de modo sinistro sob suas patas. Talvez ela estivesse sonhando em ser rocha. As árvores esqueléticas em torno do vale estavam ocupadas com fantasias de se tornar sequóias. Até o ar que se espiralava ao redor da cabeça pontuda de Gaspode se movia lentamente, embora ninguém possa adivinhar o que o ar sonha.

Gaspode correu até Ginger e pressionou o focinho contra a sua perna.

O universo contem uma certa quantidade de formas horríveis de acordar alguém, como o ruído da multidão derrubando a porta da frente, a sirene dos carros de bombeiros ou a percepção de que hoje e segunda-feira que, na sexta-feira à noite, se encontrava confortavelmente longe. O focinho úmido de um cachorro não e, estritamente falando, a pior forma de todas essas, mas tem seu pavor peculiar, que especialistas nas coisas desagradáveis e donos de cachorros de toda parte conhecem e temem. e como sentir um pequeno pedaço de fígado descongelado encostando-se a você de modo carinhoso.

Ginger piscou. O brilho incandescente desapareceu de seus olhos. ela olhou para baixo, e sua expressão de horror se transformou em perplexidade, mas, quando viu Gaspode olhando de soslaio para ela, retornou a um horror mais mundano.

—    Olá — disse Gaspode, insinuando—se.

ela se afastou, erguendo as mãos num gesto de proteção. A areia escorreu entre seus dedos. Seus olhos tremularam sobre seu próprio corpo com espanto e depois voltaram a Gaspode.

—    Deuses, isso e horrível. O que está acontecendo? Por que

estou aqui!. — Suas mãos voaram para a sua boca. — Oh, não — sussurrou —, de novo, não!

ela olhou intensamente para o cão por um momento, olhou com raiva para a porta, depois se virou, ergueu a camisola e voltou correndo para a cidade em meio à neblina da manhã.

Gaspode se arrastou atrás dela, consciente da raiva que pairava no ar, tentando desesperadamente aumentar o máximo possível a distância entre ele e a porta.

"Tem alguma coisa terrível lá dentro", pensou. "Provavelmente dedos em forma de tentáculo que arrancam a sua cara. Tipo, quando cê encontra portas misteriosas em colinas antigas, faz sentido que o que sair dali num fique feliz em te ver. Criaturas malignas que o Homem num deveria conhecer, e aqui está um cachorro que também num quer saber delas. Por que ela num pôde..."

ele seguiu murmurando em direção à cidade.

Atrás dele, a porta se deslocou uma mínima fração de centímetro.

Holy Wood despertou muito antes de Victor, e as marteladas nas instalações do Século do Morcego-de-Frutas ecoavam pelo céu. Cargas de madeira eram enfileiradas para passar pela arcada. ele foi atropelado e empurrado de lado por um fluxo apressado de gesseiros e carpinteiros. Do lado de dentro, multidões de operários passavam correndo pelos vultos de Silverfish e Dibbler C.A.P.C. discutindo.

Victor se aproximou deles no exato momento em que Silverfish dizia, em tom de perplexidade:

—    A cidade inteira?

—    Você pode deixar de fora uma coisa ou outra dos arredores — respondeu Dibbler. — Mas eu quero toda a área central. O palácio, a Universidade, os Grêmios, tudo o que faz dela uma cidade de verdade, entende? Tem que dar certo!

Seu rosto estava vermelho. Atrás dele, revelava—se Detritus, o troll, paciente, segurando com sua mão enorme o que parecia ser uma cama acima da sua cabeça, como um garçom com uma bandeja. Dibbler tinha os lençóis em suas mãos. então Victor percebeu que a cama inteira, e não apenas o lençol, estava repleta de textos escritos.

—    Mas o custo... — protestou Silverfish.

—    Conseguiremos o dinheiro de algum modo — disse Dibbler calmamente.

Silverfish não ficaria mais horrorizado se Dibbler estivesse usando um vestido. ele tentou chegar a um acordo.

—    Bem, se você estiver determinado, Cova...

—Certo!

—... suponho, pensando melhor, que talvez pudéssemos amortizar o custo de vários cliques, talvez até alugá-la depois...

—    Do que está falando? — perguntou Dibbler. — Nós vamos construí-la para e O Sopro Carregou.

—    Sim, sim, claro — tranqüilizou—o Silverfish. — e depois nós podemos...

—    Depois? Não vai ter nenhum depois! Você não leu o roteiro? Detritus, mostra o roteiro pra ele!

Detritus largou a cama com obediência entre os dois.

—    e a sua cama, Cova.

—    Roteiro, cama, qual a diferença? Olha... aqui... bem acima do entalhe...

Houve uma pausa enquanto Silverfish lia. era uma pausa bem longa. Silverfish não estava acostumado a ler coisas que não viessem em colunas e com o total embaixo.

Finalmente disse:

—Você... vai... botar fogo nela?

—    e histórico. Não se pode discutir com a história — argumentou Dibbler, tentando convencê-lo. — A cidade foi incendiada na guerra civil, todo mundo sabe disso.

Silverfish se endireitou.

—    A cidade pode ter sido — começou com firmeza —, mas eu não tive que conseguir dinheiro para que isso acontecesse! Isso e uma extravagância irresponsável!

—    eu vou pagar de alguma forma — disse Dibbler com calma.

—    Só tenho uma palavra: impossível!

—    Isso são duas palavras.

—    Não tem como eu trabalhar em algo desse tipo — disse Silverfish, ignorando a interrupção. — Tentei ver o seu ponto de vista, não tentei? Mas você pegou as imagens animadas e está tentando transformá-las em... em... em sonhos. eu nunca quis que elas fossem assim! Me inclua fora disso!

—    Ok — Dibbler ergueu a cabeça para olhar para o troll. — O senhor Silverfish já está de saída — disse. Detritus confirmou com a cabeça e, em seguida, ergueu Silverfish devagar e com firmeza pela gola.

Silverfish ficou pálido.

—    Você não pode se livrar de mim desse jeito.

—    Quer apostar?

—    Não haverá um alquimista em Holy Wood que trabalhará para você! Pegaremos o operador de manivela para nós! Você está acabado!

—    Ouça uma coisa! Depois deste clique, toda a cidade de Holy Wood virá me procurar para conseguir um emprego! Detritus, jogue esse imprestável para fora!

—    Certo, seu Dibbler — murmurou o troll, agarrando a gola de Silverfish.

—    Você ainda vai ouvir, seu... seu megalomaníaco manipulador e desonesto!

Dibbler tirou o charuto da boca.

—    Pra você e senhor Megalomaníaco.

ele pôs o charuto de volta e deu um aceno significativo para o troll, que, com delicadeza, mas com firmeza, segurou Silverfish pela perna também.

—    encoste um dedo em mim e você nunca mais vai trabalhar nesta cidade! — gritou Silverfish.

—    eu já tenho emprego mesmo, seu Silverfish — disse Detritus, com calma, carregando Silverfish em direção ao portão. — Sou Vice-Presidente de Atirar Para Fora Pessoas De Quem O Seu Dibbler Não Vai Com a Cara.

—    então vai ter que arranjar um assistente! — rosnou Silverfish.

—    Tenho um sobrinho procurando emprego. Tenha um bom dia.

—    Certo — disse Dibbler, esfregando as mãos com força. — Soll!

Soll apareceu de trás de um cavalete cheio de projetos enrolados e tirou um lápis da boca.

—    Sim, tio?

—    Quanto tempo vai demorar?

—    Uns quatro dias, tio.

—    e tempo demais. Contrate mais gente. Quero que fique pronto amanha, certo?

—    Mas, tio...

—    Ou então está demitido — completou Dibbler. Soll pareceu amedrontado.

—    Sou seu sobrinho, tio — protestou. — Não se pode demitir sobrinhos.

Dibbler olhou ao redor e pareceu notar Victor pela primeira vez.

—    Ah, Victor. Você e bom com as palavras. eu posso demitir um sobrinho?

—    e... Acho que não. Acho que você pode deserdá-lo ou algo do tipo — arriscou Victor, pouco convincente. — Mas...

—    Certo! Certo! Bom rapaz. Sabia que era algum tipo de palavra assim. Posso deserdar você. Ouviu isso, Soll?

—    Sim, tio — disse Soll, abatido. — Vou ver se consigo encontrar mais carpinteiros então, está bem?

—    Certo. — Soll lançou um olhar de espanto amedrontado para Victor ao passar com pressa. Dibbler começou a fazer um discurso enfadonho para um grupo de operadores de manivela. As instruções jorravam do homem como as águas de uma fonte.

—    Acho que ninguém vai a Ankh-Morpok hoje de manhã então — disse uma voz na altura dos joelhos de Victor.

—    ele com certeza está... e... muito ambicioso hoje — comentou Victor. — Totalmente diferente do que costuma ser.

Gaspode cocou uma orelha.

—    Tinha uma coisa que eu precisava falar. O que era mesmo?

Ah , sim. Lembrei. Sua namorada e agente de poderes demoníacos.

Aquela noite em que vimos ela na colina, ela provavelmente tava

indo comungar com o mal. O que cê acha disso, hein?

ele sorriu. Ficou bastante orgulhoso do modo como introduzira o assunto.

—   Que bom — respondeu Victor, distraído. Dibbler com certeza estava agindo de forma mais estranha que o normal. Mais estranho que o normal inclusive para Holy Wood...

—    e — continuou Gaspode, levemente irritado com aquela recepção. — Pulando por aí à noite com Inteligências ocultas e sinistras do Outro Lado, eu não deveria me surpreender.

—    Ótimo — concordou Victor. Não era comum queimar coisas em Holy Wood. elas eram guardadas e depois pintadas do outro lado. Sem querer, começou a ficar interessado.

—    ... um elenco de milhares — Dibbler ia dizendo. — Não importa onde vocês vão achar gente, vamos contratar todo mundo em Holy Wood se for necessário, certo? e eu quero...

—    Ajudando eles nas suas tentativas maléficas de dominar o mundo todo, se e que sou capaz de julgar alguma coisa — disse Gaspode.

—    ela ajuda? — perguntou Victor. Dibbler conversava com dois aprendizes de alquimista. O que era isso? Um filme de 20 rolos? Mas ninguém jamais havia sonhado passar de cinco!

—    e, cavoucando sem parar para despertá-los do seu estado de inatividade antigo exalando o cheiro da destruição, esse tipo de coisa. Provavelmente com o auxílio dos gatos, ouça o que estou...

—    Olha, cala a boca só um minuto, por favor! — pediu Victor, irritado. — estou tentando ouvir o que eles estão dizendo.

—    Bom, desculpa aí. estava só tentando salvar o mundo — resmungou Gaspode. — Se criaturas fantasmagóricas de Antes do Alvorecer começarem a acenar pra você debaixo da sua cama, só não venha reclamar comigo.

—    Do que você está falando sem parar? — perguntou Victor.

—    Ah, nada. Nada.

Dibbler levantou a cabeça, avistou Victor de pescoço esticado e acenou para ele.

—    Você, rapaz! Vem aqui! Tenho um papel pra você?

—    Tem? — perguntou Victor, abrindo passagem no meio das pessoas.

—    Foi o que eu disse!

—    Não, você perguntou se... — Victor começou e desistiu.

—    e será que posso perguntar onde está à senhorita Ginger? — disse Dibbler. — Atrasada mais uma vez?

—    ... provavelmente dormindo em... — rosnou uma voz mal—humorada e totalmente ignorada que vinha de baixo, do mar de pernas. — ... a pessoa deve ficar fora de si, mexendo com o oculto...

—    Soll, manda alguém trazer ela aqui...

—    Sim, tio.

—    ... o que se pode esperar... ha... pessoas que gostam de gatos são capazes de qualquer coisa, não dá pra confiar nelas...

—    e encontre alguém para transcrever a cama.

—    Sim, tio.

—... mas eles ouvem? eles, não. Aposto que, se eu tivesse um pêlo brilhante e ficasse correndo e latindo, eles ouviriam... tá legal...

Dibbler abriu a boca para falar, depois franziu a testa e levantou a mão.

—    De onde está vindo este murmúrio?

—    ... provavelmente salvei o mundo todo pra eles. Por direito eu ganharia uma estátua do meu focinho, mas não, oh, não, não pra você, senhor Gaspode, por você não ser o tipo certo de pessoa, então...

O lamento parou. A multidão se afastou, revelando um cachorrinho cinza, de pernas tortas, que ergueu a cabeça para olhar com indiferença para Dibbler.

—    Late? — disse, num tom inocente.

Os eventos sempre aconteciam com rapidez em Holy Wood, mas o trabalho em e O Sopro Carregou seguia acelerado como um cometa. Os outros cliques da Morcego-de-Frutas estavam parados. Assim como a maioria dos outros da cidade, porque Dibbler contratava atores e operadores de manivela pelo dobro do que qualquer pessoa ia querer pagar.

e uma espécie de Ankh-Morpork foi erguida entre as dunas. Poderia ter sido mais barato, reclamou Soll, poderiam ter arriscado sentir a ira dos magos, feito algumas filmagens escondidas em Ankh-Morpork mesmo e depois passado um punhado de dólares para que alguém jogasse um fósforo no lugar.

Dibbler discordou.

—    Acima de qualquer outra coisa — declarou —, não ficaria bom.

—    Mas seria a verdadeira Ankh-Morpork, tio. Tem que ficar exatamente bom. Como pode não ficar bom?

—    Ankh-Morpok não parece tão genuína assim, sabe — disse Dibbler, pensativo.

—    e claro que e genuína, caramba! — gritou Soll, com os laços de parentesco se esticando a ponto de quase se romperem. — ela está lá de verdade! ela e ela mesma! Não tem como ser mais genuína! e o mais genuína que se pode ser.

Dibbler tirou o charuto da boca.

—    Não e, não. Você vai ver.

Ginger apareceu por volta da hora do almoço, tão pálida que Dibbler nem gritou com ela. ela ficou encarando Gaspode, que tentou não ficar no caminho.

De todo modo, Dibbler estava preocupado. estava em seu escritório, explicando O enredo.

era basicamente muito simples, mais ou menos na linha conhecida de Garoto Conhece Garota, Garota Conhece Outro Garoto, Garoto Perde Garota, exceto que dessa vez havia uma guerra civil no meio de tudo isso...

As origens da Guerra Civil de Ankh-Morpork (20h32, 3 de grunho de 432 — 10h45, 4 de grunho de 432) sempre foram tema de debates acalorados entre historiadores. existem duas teorias principais: 1. As pessoas comuns, depois de pagarem muito imposto a um rei burro e desagradável, decidiram dar um basta e resolveram que era hora de abolir o conceito ultrapassado de monarquia e substituí-lo por, como acabou acontecendo, uma serie de chefes supremos déspotas que continuavam cobrando muitos impostos, mas pelo menos tinham a decência de não fingir que os deuses haviam lhe dado o direito de fazê-lo, o que fez todo mundo se sentir um pouco melhor; ou 2. Um dos jogadores de uma partida de Aleije o senhor Cebola numa taverna acusou o outro de esconder na palma da mão um número de ases maior que o de costume, e facas foram sacadas. Depois alguém acertou alguém com um banco, outra pessoa apunhalou mais alguém, flechas começaram a voar e alguém se pendurou no candelabro.

Um machado arremessado com descuido atingiu alguém na rua, então a Guarda foi chamada, alguém pôs fogo na taverna, alguém acertou muita gente com uma mesa e depois todo mundo perdeu a calma e começou a brigar.

enfim, tudo isso causou uma guerra civil, que e algo que toda civilização madura tem que ter tido...22

—    Da forma como eu vejo a coisa — começou Dibbler —, lá está a menina bem—nascida, morando totalmente sozinha numa casa grande, certo, e o rapaz de quem ela gosta vai embora para lutar ao lado dos rebeldes, entende? ela conhece outro homem e acontece uma química entre eles...

—    eles explodem? — perguntou Victor.

—    ele quis dizer que se apaixonam — explicou Ginger friamente.

—    e, esse tipo de coisa — Dibbler balançou a cabeça, concordando. — Olhares se cruzam num salão cheio de gente. e ela está totalmente sozinha no mundo, com exceção dos criados e... vejamos... talvez do seu cão de estimação...

—    Que vai ser o Laddie? — perguntou Ginger.

—    Certo. e é claro que ela vai fazer tudo o que puder para preservar a mina da família. então ela meio que fica flertando com os dois — os homens, não o cachorro —, e depois um deles morre na guerra e o outro a abandona, mas tudo bem, porque ela tem um coração forte. — ele se recostou na cadeira. — O que vocês acham? — perguntou.

As pessoas sentadas na sala se entreolharam com desconforto. Houve um silêncio nervoso.

—    está ótimo, tio — disse Soll, que não queria mais problemas

naquele dia.

—    Muito desafiador em termos técnicos — disse Gaffer. Houve um coro de aceitação aliviada do resto do grupo.

—    Não sei — começou Victor lentamente.

Os olhares de todas as outras pessoas se voltaram para ele da mesma maneira como os espectadores na cova dos leões veem

 

  1. Acima de tudo, ela dá ao irmão uma desculpa muito melhor para brigar com o irmão do que a desculpa normal, a saber, o que a esposa dele disse sobre a nossa mãe no funeral da tia Vera.

o primeiro criminoso condenado ser empurrado pelo portão de ferro. ele prosseguiu:

—    Tipo, e só isso? Não parece... bem... muito complicado

para um clique tão longo. As pessoas se apaixonando enquanto a

guerra civil está acontecendo no fundo... não vejo como se pode

fazer uma imagem animada tão boa com isso.

Houve mais um silêncio perturbado. Algumas pessoas que estavam próximas de Victor foram para outro lado. Dibbler olhava fixamente para ele.

Victor conseguiu ouvir uma vozinha quase inaudível debaixo da sua cadeira.

—    ... ah, e claro, tem sempre um papel pro Laddie... o que ele tem que eu não tenho, e isso o que eu gostaria de...

Dibbler ainda encarava Victor. então ele disse:

—    Você está certo. Você está certo. O Victor está certo. Por que ninguém mais percebeu isso?

—    era exatamente o que eu estava pensando, tio — disse Soll, apressado. — Precisamos incrementar um pouco.

Dibbler balançava o charuto num gesto vago.

—    Podemos pensar em mais alguma coisa, não tem problema. Tipo... tipo... que tal uma corrida de carruagens? As pessoas sempre gostam de corridas de carruagem. Prende a atenção. Será que ele vai cair, será que as rodas vão se soltar? e. Uma corrida de carruagens.

—    eu tenho... e... lido sobre a Guerra Civil — começou Soll, ' cauteloso — e acho que não há nenhuma menção a...

—    A não haver corridas de carruagens, estou certo? — interrompeu Dibbler, no tom escorregadio que contem a navalha da ameaça. Soll desistiu.

—    Já que está colocando dessa maneira, tio, está certo.

—    e... — Dibbler fez uma expressão de reflexão —... poderíamos tentar... um tubarão enorme? — Até Dibbler pareceu levemente surpreso com a própria sugestão.

Soll olhou para Victor com alguma esperança.

—    Tenho quase certeza de que os tubarões não lutaram na Guerra Civil — disse Victor.

—    Tem certeza?

—    Tenho certeza de que as pessoas teriam notado.

—    eles teriam sido pisoteados pelos elefantes — murmurou Soll.

— e — concordou Dibbler, desiludido. — Foi só uma idéia.

Não sei por que eu disse isso na verdade.

ele ficou olhando para o nada durante algum tempo, depois sacudiu a cabeça com força.

"Um tubarão", pensou Victor. "Todos os peixinhos dourados dos nossos próprios pensamentos vão nadando contentes, e aí as águas se movem e um tubarão enorme de um pensamento vem de fora para dentro. Como se alguém estivesse pensando em nosso lugar."

—    Você simplesmente não sabe se comportar — Victor disse a Gaspode quando estavam sozinhos. — eu ouvi você resmungando debaixo da cadeira o tempo todo.

—    Posso não saber como me comportar, mas pelo menos não fico todo triste por causa de uma garota que está deixando terríveis Criaturas da Noite entrarem no mundo — disse Gaspode.

—    espero que não — concordou Victor, e depois: — O que você está querendo dizer?

—    A—há! Agora ele ouve! A sua namorada...

—    ela não e minha namorada!

—    Suposta namorada — corrigiu Gaspode — tem saído todas as noites pra tentar abrir aquela porta na colina. ela tentou de novo ontem à noite, depois que você foi embora. eu vi ela. eu parei ela —     acrescentou num tom provocador. — Não que eu espere algum reconhecimento, claro. Tem alguma coisa horrível lá dentro, e ela está tentando deixar sair. Por isso está sempre atrasada e cansada de manhã. Pudera. Passando a noite toda cavando...

—    Como e que você sabe que e uma coisa horrível? — perguntou Victor, vacilante.

—    Vamos dizer assim: se alguma coisa e empurrada pra dentro duma caverna, debaixo de uma colina, atrás de portas enormes, não é porque as pessoas querem que saia toda noite pra lavar os pratos, é? Claro — acrescentou, por caridade — que eu num tô dizendo que ela sabe que está fazendo isso. Provavelmente estão controlando a mente fraca e delicada de amante de gatos feminina dela e induzindo que ela aceite um propósito maquiavélico.

—    Você realmente fala um monte de besteira às vezes — comentou Victor, mas não pareceu muito convincente nem para si mesmo.

—    Pergunte a ela, então — sugeriu o cachorro, com ares de convencimento.

—    Vou perguntar!

—    Ótimo!

"Mas como exatamente?", pensou Victor, enquanto se arrastavam na direção dos raios de sol. "Com licença, moça, meu cachorro disse que você... não. eu digo: Ginger, fiquei sabendo que você tem saído e... não. ei, Ginger, por que foi que o meu cachorro viu... não. Talvez devesse puxar uma conversa esperar até que surgisse naturalmente o tema de monstruosidades de Além do Infinito."

Mas aquilo teria que esperar, graças à agitação que havia ali.

Já haviam discutido a terceira grande parte de e O Sopro Carregou. Victor era, e claro, o herói enérgico, Porém perigoso. Ginger era a única escolha possível para a personagem principal feminina, mas o segundo papel masculino — o chato, Porém dedicado — estava causando problemas.

Victor nunca tinha visto alguém bater o pé no chão de raiva antes. ele sempre pensou que fosse uma coisa que só se fazia nos livros. Mas Ginger estava fazendo isso.

—    Porque eu iria parecer uma idiota, por isso! — dizia.

Soll, que a essa altura se sentia um pára—raios num dia de tempestade, balançava a mão de modo frenético.

—    Mas ele e ideal para o papel! O papel pede uma personalidade sólida...

—    Sólida? e claro que ele e sólido! e feito de pedra!' — gritou Ginger. — ele pode ter uma roupa de malha de ferro e um bigode falso, mas não deixa de ser um troll!

Rocha, surgindo como um vulto monolítico acima dos dois, pigarreou ruidosamente.

—    Com licença, espero que a gente não dê uma de elementarista nessa questão.

Agora era a vez de Ginger balançar as mãos.

—    eu gosto dos trolls. Isto é, como trolls. Mas você não pode estar falando Sério quando quer que eu faça uma cena romântica com uma... uma... uma face de penhasco.

—    Olha aqui — começou Rocha, elevando a voz como se ela fosse o braço de um arremessador de beisebol. — O que você está dizendo é que... é que tudo bem um troll ser mostrado dando surra nas pessoas com clavas, e não tudo bem mostrar trolls tendo sentimentos mais admiráveis como os humanos molengas?

—    Isso não é o que ela está dizendo, de jeito nenhum — interrompeu Soll, desesperado. — ela não está...

—    Se você me cortar, eu não sangro? — perguntou Rocha.

—    Não, não sangra — respondeu Soll —, mas...

— Ah, sim, mas eu sangraria. Se eu tivesse sangue, eu sangraria tudo isso aqui.

—    e tem mais uma coisa — começou um anão, cutucando o joelho de Soll. — No roteiro está escrito que ela tem uma mina cheia de anões felizes, sorridentes, cantando, certo?

—Ah, sim — respondeu Soll, deixando o problema do troll de lado. — O que tem isso?

—    e meio estereotipado, não? Quer dizer, é meio anões igual a mineradores. Não sei por que a gente tem que fazer sempre os mesmos papeis.

—    Mas a maioria dos anões é composta por mineradores — argumentou Soll desesperadamente.

—    Bem, pode ser, mas eles não estão satisfeitos com isso —outro anão. — e não ficam cantando o tempo todo.

—    Isso mesmo — concordou um terceiro anão. — É questão de segurança, sabe? Você pode fazer o teto inteiro cair em cima de você se ficar cantando.

—    e não tem nenhuma mina perto de Ankh-Morpork — disse possivelmente o primeiro anão, embora todos parecessem idênticos para Soll. — Todo mundo sabe disso. e tudo argila. A gente seria motivo de riso se o nosso pessoal visse a gente trabalhando em minas em qualquer lugar perto de Ankh-Morpork.

—   eu não diria que tenho uma face de penhasco — murmurou Rocha, que às vezes levava um pouco de tempo para digerir as coisas. — escarpado, talvez. Mas não de penhasco.

—    O fato é que — continuou um dos anões — não entendemos por que os humanos conseguem todos os papeis bons e a gente fica com as participações minúsculas.

Soll deu a risadinha de alguém em apuros que espera que uma piada alegre um pouco a atmosfera.

—    Ah, isso é porque vocês...

—    O quê? — perguntaram os anões, em uníssono.

—    Hum — disse Soll, e rapidamente mudou de assunto. — Na verdade, a questão, do meu ponto de vista, é que Ginger fará qualquer coisa para manter a mansão, a mina e...

—    espero que a gente consiga continuar — interrompeu Gaffer —, só que eu tenho que limpar a sujeira dos diabinhos daqui a uma hora.

—    Ah, entendi — disse Rocha. — eu sou absolutamente qualquer coisa, é?

—    Não se pode manter uma mina — continuou um dos anões. — A mina e que mantém você. Você tira o tesouro de dentro. Você não coloca ele lá. Isso e fundamental para todo o negócio das minas.

—    Bom, talvez já tenham usado essa mina — sugeriu Soll rapidamente. — então ela...

—    Bom, nesse caso, você não mantém a mina — disse outro anão, com um jeito expansivo de quem está prestes a dar uma explicação boa e longa. — Você tem que abandoná-la, colocando apoios e escoras onde for necessário e afundando outra coluna em alinhamento com a fenda principal...

—    Deixando espaço para escarpas de imperfeições geológicas e estruturas anticlinais — emendou outro anão.

—    É claro, deixando espaço para escarpas de imperfeições geológicas e estruturas anticlinais, e depois...

—    e deslocamentos gerais da crosta.

—    Isso mesmo, e depois...

—    A menos que você esteja apenas talhando e preenchendo, e claro.

—    Confere, mas...

—    Não vejo por que — começou Rocha — meu rosto poderia ser chamado de...

—    Calem A BOCA! — gritou Soll. — Todo mundo, cala a boca! Calem A BOCA! A próxima pessoa que não calar a boca nunca mais vai conseguir trabalho nesta cidade! entenderam? Fui CLARO? Certo. — ele tossiu e continuou, com a voz mais normal: — Muito bem. Quero que fique entendido que este e um filme Romântico, empolgante e Campeão de Bilheteria. e sobre a luta de uma mulher para salvar o... — consultou a prancheta e prosseguiu corajosamente —... tudo o que ela ama, com o pano de fundo de um Mundo enlouquecido, e eu não quero que ninguém mais cause problemas.

Um anão arriscou levantar a mão.

—    Licença?

—    Pois não?

—    Por que e que todos os filmes do senhor Dibbler se passam com o pano de fundo de um mundo enlouquecido?

Soll apertou os olhos.

—    Porque o senhor Dibbler — resmungou — é um homem muito observador.

Dibbler tinha razão. A cidade nova era a cidade antiga refinada. Os becos estreitos eram mais estreitos, os prédios altos, mais altos. As carrancas de goteira eram mais assustadoras, os telhados, mais pontudos. A altíssima Torre da Arte da Universidade Invisível era, aqui, ainda mais alta e se elevava de forma mais precária, ainda que ao mesmo tempo tivesse apenas um quarto do tamanho da outra. A Universidade Invisível era mais barroca e tinha mais pilastras de apoio. O Palácio do Patrício tinha mais pilares. Os carpinteiros fervilhavam numa construção que, quando terminasse, faria Ankh-Morpork parecer uma cópia bastante razoável de si mesma, exceto pelo fato de os prédios da cidade original não serem, de modo geral, pintados em telas estendidas sobre madeira e de sua sujeira não ter sido borrifada neles de forma cuidadosa.

Os prédios de Ankh-Morpok tinham que arrumar sua sujeira sem a ajuda de ninguém.

ela se parecia muito mais com Ankh-Morpork do que Ankh-Morpork jamais se pareceu.

Ginger foi conduzida às tendas para se trocar antes que Victor tivesse a chance de falar com ela. Depois as tomadas de cena começaram, e era tarde demais.

A Século do Morcego-de-Frutas (e agora estava escrito na placa, em letras um pouco menores: Mais estrelas do que Há nos Céus23) acreditava que um clique deveria ser feito em menos de dez vezes o tempo necessário para assisti-lo. Mas O Sopro Carregou seria diferente. Havia batalhas. Havia cenas noturnas, com os diabretes pintando furiosamente à luz das tochas. Os anões trabalhavam felizes numa mina nunca antes vista, onde falsas pepitas de ouro do tamanho de uma galinha tinham sido fixadas em paredes de gesso. Como Soll disse que tinham que ver seus lábios mexendo, cantaram uma versão picante da canção "eu vou", que fazia bastante sucesso entre a população de anões de Holy Wood.

era bem possível que Soll soubesse como tudo se encaixaria. Victor não sabia. era sempre melhor, ele havia aprendido, nunca tentar seguir o enredo de nenhum clique de que estivesse participando e, de todo modo, Soll não filmava apenas de trás para a frente, mas das beiras para o centro também. era totalmente confuso, assim como a vida real.

Quando finalmente conseguiu uma chance de falar com Ginger, dois operadores de manivela e todas as pessoas do elenco que não tinham nada para fazer naquele momento estavam olhando para eles.

— Ok, pessoal — disse Soll. — esta é a cena, perto do final, em que Victor encontra Ginger depois de tudo o que passaram juntos, e no cartaz ele vai dizer... — ele ficou olhando fixamente para o retângulo grande e preto que lhe entregaram. — Sim, ele vai dizer: "Francamente, minha querida, eu daria qualquer coisa, 23.049.873, de acordo com o enumerador Celestial automático de Riktor, por uma daquelas... costelas... de porco... de primeira... com... molho... curry... especial..."

A voz de Soll foi ficando mais lenta até parar. Quando aspirou o ar, foi como uma baleia vindo à tona.

—    Quem escreveu ISTO?

Um dos artistas levantou a mão com cautela.

—    O senhor Dibbler mandou — respondeu rapidamente.

Soll folheou a grande pilha de cartazes que representavam o diálogo de uma boa parte do clique. ele contraiu os lábios. Acenou com a cabeça para uma das pessoas com prancheta e disse:

—    Você poderia correr até o escritório e pedir para o meu tio dar um pulinho aqui se ele tiver um minuto?

Soll tirou um cartaz da pilha e leu:

—    “Com certeza vou sentir falta da velha mina, mas, para provar uma comida caseira de verdade, eu sempre... vou... à... Casa... de... Harga." entendi.

ele pegou mais uma de modo aleatório.

—    Ah, estou vendo aqui que as últimas palavras de um soldado monarquista ferido são: "O que eu não daria, neste exato momento, por uma promoção especial Coma Até Doer por um dólar na... Casa... das... Costelas... de Harga... Mãe!"

—    eu acho muito comovente — disse Dibbler atrás dele. — Não vai ter um olho seco na platéia, você vai ver.

—    Tio... — começou Soll.

Dibbler levantou as mãos.

—    eu disse que conseguiria o dinheiro de alguma forma, e Sam Harga está até nos ajudando com a comida para a cena do churrasco.

—    Você disse que não iria interferir no roteiro!

—    Isso não e interferir — disse Dibbler, impassível. — Não vejo como isso pode ser considerado interferência. eu só dei uma arrematada aqui e ali. Acho que, na verdade, e uma melhora. Alem disso, a promoção Tudo o Que Você Puder engolir Por Um Dólar do Harga tem uma importância impressionante hoje em dia.

—    Mas o clique se passa centenas de anos atrás! — gritou Soll.

—   Beeem. Acho que alguém pode dizer: "Será que a comida da Casa das Costelas de Harga ainda será tão boa daqui a centenas de anos?..."

—    Isso não e uma imagem animada. e comercio grosseiro!

—    espero que sim. estaremos em verdadeiros apuros se não for.

—    Olha aqui... — começou Soll, num tom ameaçador.

Ginger se virou para Victor.

—    Podemos ir a algum lugar para conversar? — ela disse num tom reservado. — Sem o seu cachorro — acrescentou com sua voz normal. — Definitivamente sem o seu cachorro.

—    Você quer falar comigo? — perguntou Victor.

—    Não tivemos muita chance, né?

—    Certo. Certamente. Gaspode,y?íV2. Bom cachorro. — Victor sentiu uma satisfação silenciosa ao ver o breve olhar de puro ódio no rosto de Gaspode.

Atrás deles, a eterna discussão de Holy Wood havia evoluído rapidamente, com Soll e C.A.P.C. encostando nariz com nariz e brigando dentro de um círculo de funcionários interessados e entretidos.

—    eu não sou obrigado a tolerar isso, sabe! Posso pedir demissão!

—    Não, não pode! Você e meu sobrinho! Não pode se demitir de ser sobrinho de alguém...!

Victor e Ginger se sentaram nos degraus de uma mansão de tela e madeira. eles tinham privacidade total. Ninguém se incomodaria em olhar para eles com uma briga vigorosa acontecendo a alguns metros dali.

—    e... — começou Ginger, entrelaçando os dedos. Victor não pôde deixar de notar que suas unhas estavam gastas.

—    e... — ela disse novamente. Seu rosto era o retrato da angústia e estava pálido sob a maquiagem. "ela não e bonita", Victor se pegou pensando, mas você poderia ter muita dificuldade para acreditar nisso.

—    eu... e... não sei como dizer isso, mas... e... alguém me viu andando enquanto dormia?

—Até a colina?

A cabeça dela virou rápido como uma cobra.

—    Você sabe? Como e que você sabe? Você anda me espionando? — perguntou com rispidez. era a velha Ginger novamente, cheia de fogo, veneno e agressividade paranóica.

—    Laddie a encontrou... dormindo ontem à tarde — começou Victor, afastando—se dela.

—    Durante o dia?

—    Sim.

ela pôs as mãos sobre a boca.

—    e pior do que eu pensava — sussurrou. — está ficando pior! Sabe quando você me encontrou lá na colina? Um pouco antes de Dibbler nos achar e pensar que estávamos... namorando — ela corou. — Bom, eu não sabia nem como tinha ido parar lá!

—    e você voltou ontem à noite.

—    O cachorro contou pra você, foi? — ela disse, com ar de idiota.

—    Sim. Desculpe.

—    Agora e toda noite — lamentou—se Ginger. — eu sei por que, mesmo quando eu volto para a cama, tem areia por todo o chão, e as minhas unhas estão quebradas! eu vou para lá todas as noites e não sei por quê!

—    Você está tentando abrir a porta. Tem uma porta grande e antiga onde uma parte da colina foi deslizando e...

—    Sim, eu já vi, mas por quê?

—    Bom, eu tenho algumas idéias — disse Victor, cauteloso.

—    Conte!

—    Hum. Bem, você já ouviu falar numa coisa chamada genius?

—    Não. — ela franziu a testa. — é inteligente?

—    É tipo a alma de um lugar. Ela pode ser muito forte. Pode ficar forte por meio de adoração, amor ou ódio se durar por tempo suficiente. eu queria saber se o espírito de um lugar pode chamar as pessoas. e animais também. Quer dizer, Holy Wood e um lugar diferente, não é? As pessoas agem de maneira diferente por aqui. em qualquer outro lugar, as coisas mais importantes são deuses, dinheiro ou gado. Aqui a coisa mais importante e ser importante.

Ela prestava total atenção nele.

—   E daí? — disse, num tom encorajador. — Até agora não parece tão ruim.

—    Vou chegar à parte ruim.

—Oh.

Victor engoliu em seco. Seu cérebro borbulhava como um caldo de carne. Fatos lembrados de forma incompleta vinham à tona de forma excitante e afundavam novamente. Velhos professores severos em salas velhas e agitadas disseram a ele coisas velhas e chatas que eram, no momento, tão urgentes quanto uma faca, e ele tentava pescá-las desesperadamente.

—    Eu não tenho... — começou, em voz baixa. e pigarreou. — Não tenho certeza se está certo — conseguiu dizer. — Vem de um outro lugar. Isso pode acontecer. Já ouviu falar de idéias que esperam a sua hora?

—    Sim.

—    Bom, essas são as mansas. existem outras. Idéias tão cheias de vigor que nem esperam sua hora chegar. Idéias selvagens. Idéias que escapam. e o problema e que, quando acontece algo assim, você fica com um buraco...

Ele olhou para a expressão educada e pasmada dela. As analogias borbulhavam na superfície como crótons empapados. Imagine que todos os mundos que já existiram estejam de alguma forma prensados como um sanduíche... um baralho... um livro... um papel dobrado... nas condições certas, as coisas podem passar através, em vez de passarem ao lado... mas, se abrirem um portão entre mundos, há perigos terríveis, como...

Como...

Como...

Como o quê?

A resposta veio à tona na sua memória como o pedaço de tentáculo suspeito que e descoberto de repente no exato momento em que você decidiu que era seguro comer a paella.

—    Pode ser que alguma outra coisa esteja querendo passar pelo mesmo caminho — arriscou. — No... ãh... lugar nenhum em meio aos lugares existem criaturas que, no conjunto, eu preferia não descrever para você.

—   Já descreveu — disse Ginger com uma voz tensa.

—    É.. ãh... elas geralmente são bastante ávidas para entrar nos mundos reais e talvez estejam de algum modo fazendo contato enquanto você dorme e... — ele desistiu. Não conseguia mais suportar a expressão dela. — eu poderia estar totalmente errado.

—    Você tem que me impedir de abrir aquela porta — ela sussurrou. — eu poderia ser um Deles.

—    Ah, acho que não — disse Victor, num tom imponente. — eles geralmente têm braços demais, acho.

—    Tentei colocar tachinhas no chão para me acordar.

—    Que coisa horrível. Funcionou?

—    Não. Na manhã seguinte, estavam todas no saco de novo. Devo ter recolhido elas depois.

Victor franziu os lábios.

—    Isso pode ser um bom sinal.

—    Por quê?

—    Se você tivesse sido chamada por... ãh... coisas desagradáveis, acho que elas não se importariam se você pisasse nas tachinhas.

—Urgh.

—    Você não tem nenhuma suspeita do porquê de tudo isso estar acontecendo, tem? — perguntou Victor.

—    Não! Mas eu sempre tenho o mesmo sonho. — ela apertou os olhos. — ei, como é que você sabe todas essas coisas?

—    Eu... um mago me contou uma vez.

—    Você não é mago?

—    Claro que não. Não tem nenhum mago em Holy Wood. e esse sonho?

—    Ah, é estranho demais para ter algum significado. Mesmo assim, eu sonhava com isso quando ainda era pequena. Começa com uma montanha, só que não e uma montanha normal por que...

Detritus, o troll, foi surgindo aos poucos acima deles.

—    O jovem senhor Dibbler está dizendo que é hora de recomeçar as tomadas — disse com voz grossa.

—    Você pode ir até o meu quarto hoje à noite? — sussurrou Ginger. — Por favor? Você pode me acordar se eu começar a andar dormindo de novo.

—   Bem... é... sim, mas a dona da pensão pode não gostar... —começou Victor.

—    Ah, a senhora Cosmopilite tem uma mente muito aberta.

—    Tem?

—    Ela só vai achar que estamos fazendo sexo.

—    Ah — disse Victor, sem sinceridade. — está bom, então.

—    O jovem senhor Dibbler não gosta de ficar esperando —insistiu Detritus.

—    Ah, cala a boca — disse Ginger. Ela se levantou e tirou a poeira do vestido. Detritus ficou surpreso. As pessoas normalmente não o mandavam calar a boca. Algumas linhas-fendas de preocupação apareceram em sua testa. ele se virou e tentou mais um aparecimento gradual, desta vez para Victor.

—    O jovem senhor Dibbler não gosta...

—    Ah, sai daqui — disse Victor, irritado, e foi andando atrás dela.

Detritus ficou parado sozinho e apertou os olhos num esforço para pensar.

É claro que, de vez em quando, as pessoas diziam coisas como "Sai daqui" e "Cala a boca" para ele, mas sempre com o tremor da intimidação apavorada na voz, e de modo muito natural ele sempre revidava com um "hur, hur" e batia nelas. Mas ninguém jamais havia falado com ele como se sua existência fosse a última coisa do mundo com a qual poderiam ser persuadidos a se preocupar. Seus ombros enormes ficaram caídos. Talvez toda essa coisa de passar o tempo com Ruby estivesse fazendo mal a ele.

Soll estava de pé atrás do artista que escrevia os cartazes. Ele ergueu a cabeça quando Victor e Ginger se aproximaram.

—    Certo. Aos seus lugares, pessoal. Vamos direto para a cena do salão de baile. — ele parecia satisfeito consigo mesmo.

—    As palavras já foram todas arrumadas? — perguntou Victor.

—    Sem problemas — disse Soll, orgulhoso. ele olhou rápido para o Sol. — Perdemos muito tempo — acrescentou —, então não vamos perder mais.

—    Quem diria que você seria capaz de fazer C.A.P.C. ceder desse jeito — comentou Victor.

—   Ele não tinha absolutamente nenhum argumento. Voltou para o escritório para se lamentar, imagino — disse Soll num tom imponente. — Ok, pessoal, vamos todos voltar...

O artista que fazia as letras o puxou pela manga.

—    Eu estava pensando em perguntar, senhor Soll, o que o senhor queria que eu colocasse na grande cena agora que Victor não menciona mais as costelas...

—    Não me aborreça agora, homem!

—    Mas se o senhor pudesse pelo menos me dar uma idéia...

Soll soltou a mão do homem da sua manga com firmeza.

—    Francamente eu não ligo a mínima — e saiu andando a passos largos até o cenário.

O artista foi deixado sozinho. ele pegou o pincel. Seus lábios se moveram em silêncio, moldando-se ao redor das palavras. Depois ele disse:

—    Humm. Ótimo.

Banana N'Vectif, o caçador mais habilidoso dos grandes prados amarelos de Klatch, prendeu a respiração ao colocar, com a pinça, o último pedaço no lugar. A chuva tamborilava no telhado da sua cabana.

Pronto. Era isso.

Ele nunca tinha feito nada assim antes, mas sabia que estava fazendo o certo.

Na sua época, prendia tudo nas suas armadilhas, de zebras a thargas, e o que ele tinha para mostrar? Mas ontem, quando foi levar um carregamento de peles para N'kouf, ouviu um comerciante dizer que, se algum homem chegasse a construir uma ratoeira mais eficaz, o mundo correria em peso para sua porta.

Ele ficou acordado a noite toda pensando nisso. Então, na primeira luz do amanhecer, rabiscou alguns projetos com um graveto na parede da cabana e foi trabalhar. Aproveitara para ver algumas ratoeiras enquanto estava na cidade, e elas definitivamente estavam longe da perfeição. Não tinham sido construídas por caçadores.

Pegou um galho fino e o empurrou lentamente para dentro do mecanismo.

Snap.

Perfeito.

Agora tudo o que ele tinha a fazer era levá-la para N'kouf e ver se o mercador...

A chuva estava muito forte mesmo. Na verdade, soava mais como...

Quando Banana acordou, estava deitado entre as ruínas da sua cabana, e elas estavam numa faixa de um quilômetro de largura de lama pisoteada.

Ele olhou com a vista embaçada para o que restara de sua casa. Olhou para a mancha marrom que se estendia de horizonte a horizonte. Olhou para a nuvem escura e desarrumada, visível apenas numa de suas pontas.

Depois olhou para baixo. A ratoeira mais eficaz se tornara um projeto bidimensional bastante interessante, esmagada no meio de uma enorme pegada.

Ele disse:

—    Eu não sabia que ela era tão boa.

De acordo com os livros de história, a batalha decisiva que pôs fim à Guerra Civil de Ankh-Morpork foi travada entre dois punhados de homens estropiados num pântano numa manha nebulosa e, embora um dos lados reivindique a vitória, terminou com um placar simples de Humanos 0, corvos 1.000, que e o que ocorre na maioria das batalhas.

Uma coisa sobre a qual ambos os Dibblers concordavam era que, se estivessem no comando, ninguém teria sido capaz de ir até o fim com uma guerra tão simplória. era um crime que alguém encenasse um momento crucial da história da cidade sem usar milhares de pessoas e camelos, trincheiras, fortificações, cercos, catapultas, cavalos e estandartes.

—    E numa maldita neblina também — disse Gaffer. — Não querem nem saber de níveis de luminosidade.

Ele inspecionou o campo de batalhas proposto, protegendo do sol os olhos com a mão. Haveria 11 operadores de manivela trabalhando desta vez, de todos os ângulos concebíveis. Um por um, levantaram o polegar.

Gaffer deu um tapa na caixa de imagens à sua frente.

—    Prontos, rapazes?

Houve um coro de xingamentos.

—    Bons rapazes. Acertem esta e vós podereis ganhar um lagarto extra para vosso chá.

Ele segurou a manivela com uma das mãos e pegou um megafone com a outra.

—    Quando quiser, senhor Dibbler! — gritou.

C.A.P.C. acenou com a cabeça e estava prestes a levantar a mão quando Soll estendeu o braço rapidamente e a segurou. O sobrinho olhava atentamente para as fileiras alinhadas de cavaleiros.

—    Só um momento — disse com firmeza. Depois pôs as mãos em forma de concha e ergueu a voz para gritar. — ei, você aí! Décimo quinto cavaleiro da frente para trás. E, você! Poderia esticar o seu estandarte, por favor? Obrigado. Poderia pedir um novo para a senhora Cosmopilite? Obrigado.

Soll se voltou para o tio com as sobrancelhas arqueadas.

—    Aquilo é... é um desenho heráldico — disse Dibbler rapidamente.

—    Costelas magras com uma cruz num manto de alface?

—    Muito apaixonados por sua comida, aqueles cavaleiros...

—    É gostei da divisa — disse Soll. — "Todo cavaleiro que se preze leva a sua dama para a Noite Gourmet Na Casa das Costelas de Harga." Se tivéssemos som, qual seria o grito de batalha dele, eu me pergunto.

—    Você tem o mesmo sangue que eu — começou Dibbler, balançando a cabeça. — Como é que pode fazer isso comigo?

—    Porque tenho o mesmo sangue que você.

Dibbler se animou. É claro, quando se via a coisa desse ângulo, não parecia tão ruim.

Isso é Holy Wood. Para que o tempo passe rápido, é só filmar os ponteiros do relógio se mexendo rápido...

Na Universidade Invisível, o resógrafo já está registrando sete plibs por minuto.

E, perto do fim da tarde, eles botaram fogo em Ankh-Morpork.

A cidade real havia sido incendiada muitas vezes na sua longa história — por vingança, descuido, ódio ou até mesmo só pelo seguro. A maioria dos grandes prédios de pedra que realmente faziam dela uma cidade, em oposição a um monte de choupanas no mesmo lugar, sobreviveu aos incêndios intacta, e muitas pessoas24 achavam que um bom incêndio a cada 100 anos ou mais era essencial para a saúde da cidade, uma vez que ajudava no controle dos ratos, baratas, pulgas e, é claro, das pessoas que não eram suficientemente ricas para morar em casas de pedra.

O famoso incêndio durante a Guerra Civil tinha sido digno de nota simplesmente porque fora provocado pelos dois lados ao mesmo tempo, com o objetivo de impedir que a cidade caísse nas mãos do inimigo.

Por outro lado, de acordo com os livros de história, ele não foi muito impressionante. O nível do Ankh estava particularmente alto naquele verão, e a maior parte da cidade estava úmida demais para pegar fogo.

Desta vez foi muito melhor.

As chamas se expandiam pelo céu. Como se tratava de Holy Wood, tudo pegou fogo, porque a única diferença entre os prédios de pedra e os prédios de madeira era o que estava pintado nas telas. A Universidade Invisível bidimensional pegou fogo. O palácio sem fundos do Patrício pegou fogo. Até o modelo em escala da Torre de Arte expeliu chamas que pareciam fogos de artifício.

Dibbler assistia preocupado.

Depois de algum tempo, Soll, atrás dele, disse:

—    Esperando alguma coisa, tio?

—    Humm? Ah, não. espero que Gaffer esteja se concentrando na torre, só isso — disse Dibbler. — Marco simbólico muito importante.

 

  1. Pelo menos as que moravam em prédios de pedra.

-- Certamente — concordou Soll. — Muito importante. Tão importante, na verdade, que mandei alguns rapazes até lá no intervalo do almoço só para verificar se estava tudo ok.

—    Mandou? — perguntou Dibbler, sentindo-se acuado.

—    Sim. E sabe o que descobriram? Descobriram que alguém havia pregado fogos de artifício do lado de fora. Montes e montes de fogos de artifício com detonadores. Ainda bem que descobriram porque, se as coisas tivessem estourado, teriam arruinado a tomada e nunca seríamos capaz de fazê-la de novo. EW você sabia que eles disseram que parecia que os fogos iam escrever palavras no céu? — acrescentou Soll.

—    Que palavras?

—    Nem passou pela minha cabeça perguntar a eles. Nem passou pela minha cabeça.

Ele enfiou as mãos no bolso e começou a assobiar baixinho. Depois de algum tempo, olhou enviesado para o tio.

—    “As costelas mais quentes da cidade" — murmurou. — Francamente!

Dibbler ficou mal-humorado.

—    Teria provocado uma boa risada pelo menos.

—    Olha, tio, isso não pode continuar. Chega dessas patacoadas comerciais, está bem?

—    Ah, está bem.

—    Tem certeza?

Dibbler confirmou com a cabeça.

—    Eu disse está bem, não disse?

—    Quero um pouco mais que isso, tio.

—    eu juro solenemente não me intrometer mais, de nenhuma forma, no clique — disse Dibbler num tom grave. — Sou seu tio. Sou da família. Assim está bom o suficiente para você?

—    Certo. está bem.

Quando o fogo diminuiu, eles juntaram as brasas com ancinhos para fazer um churrasco na festa do fim das tomadas, sob as estrelas.

O lençol de veludo da noite cobre a gaiola de papagaio que é Holy Wood, e em noites quentes como esta há muitas pessoas com assuntos pessoais para resolver.

Um casal de jovens, passeando de mãos dadas pelas dunas, ficou assustado a ponto de quase ficar inconsciente quando um troll enorme pulou na sua frente, saindo de trás de uma rocha, balançando os braços e gritando: "Aaaargh!"

—    Assustei vocês, foi? — perguntou Detritus, esperançoso. Eles confirmaram balançando a cabeça, pálidos.

—    Bom, isso é um alívio — disse o troll. Ele deu uma tapinha na cabeça deles, enterrando seus pés um pouco mais na areia.

—    Muito obrigado. Muito agradecido. Tenham uma boa noite — acrescentou, arrependido.

Ele observou o casal sair andando de mãos dadas e caiu no choro.

No galpão dos operadores de manivela, Dibbler C.A.P.C. observava de pé e pensativo, enquanto Gaffer colava pedaços das cenas do dia. O operador de manivela se sentia muito satisfeito. O senhor Dibbler nunca havia demonstrado interesse nas verdadeiras técnicas de tratamento do filme até então. Isso pode explicar por que ele estava um pouco mais acessível do que de costume em relação aos segredos do Grêmio que foram passados lateralmente de uma geração para a mesma geração.

—    Por que todas as imagenzinhas são iguais? — perguntou Dibbler enquanto o operador de manivelas enrolava o filme no carretel. — Pra mim parece desperdício de dinheiro.

—    Na verdade, elas não são iguais. Cada uma é um pouquinho diferente da outra, está vendo? Assim as pessoas vêem um monte de imagenzinhas levemente diferentes muito rápido, e os olhos delas acham que estão vendo algo em movimento.

Dibbler tirou o charuto da boca.

—    Quer dizer que é tudo um truque? — perguntou, surpreso.

—    É, isso mesmo. — O operador de manivela deu um risinho preso e estendeu o braço para o pote de cola.

Dibbler observava, fascinado.

— Eu achei que fosse tudo um tipo especial de magia —comentou, meio decepcionado. —Agora você me diz que não passa de uma grande brincadeira de tirar moedas da orelha?

— Mais ou menos. Veja, as pessoas na verdade não vêem nenhuma das imagens. Elas vêem um monte delas de uma vez, percebe o que eu quero dizer?

—    Ei, eu fiquei perdido com esse monte de "ver" aí.

—    Cada imagem contribui para o efeito geral. As pessoas não vêem, desculpa, cada uma das imagens, elas só vêem o efeito causado por um monte delas passando muito rápido.

—    É mesmo? Isso e muito interessante. Muito interessante mesmo. — ele bateu a cinza do charuto em cima dos diabretes. Um deles pegou-a e comeu.

—    Então o que aconteceria — começou, devagar — se, digamos, apenas uma imagem no clique inteiro fosse diferente.

—    Engraçado você perguntar isso. Isso aconteceu outro dia, quando estávamos remendando Alem do Vale dos Trolls. Um dos aprendizes havia colado apenas uma imagem de A Corridha do Ouro e todos nós ficamos a manhã inteira pensando em ouro sem saber por quê. Foi como se ela tivesse entrado direto na nossa cabeça sem que os nossos olhos vissem. e claro que eu levei a minha parte para o rapaz assim que localizamos a falha, mas nunca teríamos descoberto se eu não tivesse olhado para o clique devagar, por acaso.

Ele pegou o pincel de cola mais uma vez, alinhou duas tiras de filme e as prendeu. Depois de certo tempo, sentiu que havia ficado tudo muito silencioso atrás dele.

—    Está tudo bem, senhor Dibbler?

—    Hum? Oh. — Dibbler estava mergulhado em pensamentos. — Apenas uma imagem teve todo esse efeito?

—    Ah, sim. O senhor está bem, seu Dibbler?

—    Nunca estive melhor, rapaz. Nunca estive melhor - ele esfregou as mãos.

—    Vamos ter uma conversinha, você e eu, de homem pra homem — acrescentou. — Porque, sabe... — Ele pôs a mão no ombro de Gaffer, num gesto amigável. — ... estou com a sensação de que hoje pode ser o seu dia de sorte.

E, numa outra passagem estreita, Gaspode estava sentado, murmurando consigo mesmo.

—    Hã. Parado, ele disse. Me dando ordens. Só pra namorada dele não ter que ter um cachorro horroroso e fedido no quarto dela. então aqui estou eu, o melhor amigo do homem, sentado na chuva. Se estivesse chovendo, em todo caso. Talvez não esteja chovendo, mas, se estivesse chovendo, eu estaria encharcado a essa altura. Seria bem feito pra ele se eu me levantasse e fosse embora. eu poderia fazer isso também. Na hora que eu quisesse. Não tenho que ficar sentado aqui. espero que ninguém pense que estou sentado aqui porque me mandaram sentar aqui. Tô pra ver um humano que vá me dar ordens. Tô sentado aqui porque quero. É.

Depois ganiu um pouco e foi se arrastando pelas sombras, onde havia menos chance de ser visto.

No quarto acima, Victor estava de pé e virado para a parede. Isso era humilhante. Já tinha sido ruim o suficiente esbarrar com a senhora Cosmopilite com um sorriso enorme na escada. ela deu um sorriso escancarado para ele e mexeu o cotovelo num gesto complicado que, ele tinha certeza, doces senhoras de idade não deveriam conhecer.

Ele ouviu tinidos e ruídos de tecidos roçando atrás de si enquanto Ginger se preparava para ir para a cama.

—    Ela é realmente muito legal. Ontem me contou que já teve quatro maridos — disse Ginger.

—    O que ela fez com os ossos?

—    Tenho certeza de que não entendi o que você quis dizer — disse Ginger, torcendo o nariz. — Tudo bem, pode virar agora. estou na cama.

Victor relaxou e virou. Ginger tinha puxado as cobertas até o pescoço e estava segurando a ponta com a tensão de uma tropa militar sitiada, mandando os soldados para as trincheiras.

—    Você tem que me prometer que, aconteça o que acontecer, você não vai tentar se aproveitar da situação.

Victor suspirou.

—    Prometo.

—    É que eu tenho uma carreira a zelar, só isso.

—    Sim, eu entendo.

Victor se sentou ao lado do abajur e tirou o livro do bolso

—    Não estou querendo ser ingrata nem nada do tipo — continuou Ginger.

Victor folheou rapidamente as páginas amareladas, procurando a parte em que havia parado. Enormes quantidades de pessoas haviam passado a vida ao redor da colina de Holy Wood, aparentemente, apenas para manter uma fogueira acesa e entoar um canto três vezes por dia. Por quê?

—    O que você está lendo? — perguntou Ginger, depois de certo tempo.

—    É um livro velho que eu achei — respondeu Victor, em poucas palavras. — É sobre Holy Wood.

—Oh.

—    Eu dormiria um pouco se fosse você — ele disse, curvando-se para conseguir entender a letra horrível à luz do abajur.

Ele a ouviu bocejar.

—    Eu terminei de te contar o sonho?

—    Acho que não — respondeu Victor, com o que ele esperava ser uma voz educadamente dissuasiva.

—    Começa sempre com uma montanha...

—    Olha, você não deveria ficar conversando...

—... e tem estrelas em volta dela, sabe, no céu, mas uma delas cai e não é uma estrela, não, e uma mulher segurando uma tocha acima da cabeça...

Victor voltou lentamente para a folha de rosto do livro.

—    Sim? — disse, atento.

—    e ela fica tentando me dizer alguma coisa. Alguma coisa que eu não consigo entender, sobre andar sobre alguma coisa, e depois tem um monte de luzes e um rugido, como se fosse de um leão ou tigre ou algo do tipo, sabe? e aí eu acordo.

Sem perceber, Victor passou o dedo sobre o contorno da montanha sob as estrelas.

—    Provavelmente é só um sonho — ele disse. — Provavelmente não significa nada.

É claro que a colina de Holy Wood não era pontuda. Mas talvez já tivesse sido, na época em que havia uma cidade onde agora havia uma baía. Nossa. Alguma coisa deve ter odiado este lugar de verdade.

— Você não se lembra de mais nada do sonho por acaso? — perguntou, com uma casualidade disfarçada.

Não houve resposta. Ele se aproximou lentamente da cama. Ela estava dormindo.

Victor voltou para a cadeira, que prometia se tornar irritantemente desconfortável dentro de meia hora, e apagou o abajur.

Alguma coisa na colina. Esse era o perigo.

O perigo mais imediato era que ele também ia cair no sono.

Ficou sentado no escuro, preocupado. Como é que se acordava uma sonâmbula? Lembrava-se vagamente de ter ouvido dizer que era uma coisa muito perigosa. Havia histórias de pessoas que sonhavam que eram executadas e aí, quando alguém as tocava no ombro para acordá-las, a cabeça delas caía. Como chegaram a saber o que uma pessoa morta sonhava não foi revelado. Talvez o fantasma tenha voltado depois e ficado na cabeceira da cama, reclamando.

A cadeira fez um rangido alarmante quando ele mudou de posição. Talvez, se esticasse uma perna deste jeito, ele pudesse apoiá-la na beira da cama, de modo que, mesmo se caísse no sono, ela não conseguiria passar sem acordá-lo.

Engraçado, realmente. Durante semanas ele passara os dias carregando-a no colo, defendendo-a com coragem do que quer que Morry estivesse fantasiado no dia, beijando-a e geralmente cavalgando na direção do pôr do sol para viver feliz, e possivelmente até em êxtase, para sempre. Era provável que não houvesse ninguém que assistisse a um dos cliques e acreditasse que ele passaria a noite sentado no quarto dela numa cadeira feita de lascas de madeira. Até o próprio Victor achava difícil acreditar, e lá estava ele. Esse tipo de coisa não acontecia nos cliques. Os cliques eram só sobre Paixões num Mundo enlouquecido. Se aquilo fosse um clique, ele certamente não estaria sentado no escuro numa cadeira dura. Ele estaria... bem, ele não estaria sentado numa cadeira dura, isso era certo.

O tesoureiro trancou a porta do escritório. Era preciso fazer isso. O arqui-reitor achava que bater na porta era algo que só acontecia com os outros.

Pelo menos o homem horrível parecia ter perdido o interesse no resógrafo, ou seja lá como Rektor o chamava. O tesoureiro tivera um dia terrível, tentando resolver os assuntos da Universidade sabendo que o documento estava escondido naquela sala.

Ele o tirou de debaixo do tapete, virou a luminária para cima e começou a ler.

Ele seria o primeiro a admitir que não era nada bom em coisas mecânicas. Desistiu rapidamente da parte sobre pinos, pêndulos de octiron e ar comprimido em foles.

Recomeçou o parágrafo que dizia: "então, se perturbações no tecido da realidade fizerem as ondulações se espalharem a partir do epicentro, o pêndulo vai balançar, comprimir o ar nos foles apropriados e fazer com que o elefante decorativo mais próximo do epicentro lance uma bolinha de chumbo para dentro de um copo. e assim a direção da perturbação..."

... whumm... whumm...

Ele conseguia ouvi-lo mesmo lá de cima. Tinham acabado de colocar mais sacos de areia ao seu redor. Ninguém ousava tocá-lo agora. O tesoureiro tentou se concentrar na leitura.

"... pode ser estimada pelo número e força..."

...whumm... whummWHUMMWHUMM.

O tesoureiro percebeu que estava prendendo a respiração.

"... das balas expelidas, as quais estimo, em perturbações sérias..."

Plib.

“... podem muito bem exceder duas balas..."

Plib. ... expelidas a alguns centímetros..."

Plib.

"... durante o..."

Plib.

"... curso..." Plib.

... de...         Plib.

... um... Plib.

... mês. Plib.

 

Gaspode despertou e rapidamente se colocou no que esperava parecer uma posição de alerta.

Alguém estava gritando, mas de forma educada, como se quisesse ajuda, mas apenas se não fosse incomodar muito.

Ele subiu os degraus correndo. A porta estava entreaberta. Ele a empurrou com a cabeça.

Victor estava deitado de costas, amarrado numa cadeira. Gaspode se sentou e o observou atentamente, para ver se ele faria alguma coisa interessante.

—    Estamos bem aí? — perguntou após algum tempo.

—    Não fique sentado aí, idiota! Desfaça esses nós — ordenou Victor.

—    Idiota eu posso ser, mas amarrado eu não tô — respondeu Gaspode, sem se abalar. —Ela foi mais rápida que você, foi?

—    Eu devo ter cochilado por um momento.

—    Por tempo suficiente para que ela se levantasse, rasgasse um lençol e amarrasse você nessa cadeira.

—    É, está bem, está bem. Você não pode roer o lençol ou algo assim?

—    Com estes dentes? Mas eu poderia chamar alguém — disse Gaspode, e sorriu mostrando os dentes.

—    É... não sei se seria uma idéia muito...

—    Não se preocupe. Já volto — prometeu Gaspode, e saiu andando em silêncio.

—    Pode ser um pouco difícil de explicar... — gritou Victor, mas o cachorro já tinha descido as escadas e avançava entre o labirinto de cenários e becos, rumo aos fundos da Século do Morcego-de-Frutas.

Ele foi até a cerca alta e ouviu o tinido leve de uma corrente.

—    Laddie? — sussurrou com a voz rouca, ele ouviu um latido cheio de alegria.

—    Bom garoto Laddie!

—    É. — ele suspirou. Será que ele já tinha sido assim? Se tinha, ainda bem que não sabia.

—    Mim bom garoto!

—    Claro, claro. Laddie, fica quieto — Gaspode murmurou e espremeu o corpo artrítico por debaixo da cerca. Laddie lambeu seu rosto enquanto se levantava.

—    Estou velho demais pra esse tipo de coisa — resmungou e examinou o canil. — Um enforcador. Um maldito enforcador. Pára de puxar, seu idiota maluco. Pra trás. Pra trás. Isso.

Gaspode enfiou uma pata dentro do laço e o passou devagar por cima da cabeça de Laddie.

—    Pronto. Se todos nós soubéssemos fazer isso, governaríamos o mundo. Agora pára de brincadeira. Precisamos de você.

Laddie mudou de repente para a posição de atenção com a língua de fora. Se os cães soubessem bater continência, ele teria batido.

Gaspode se arrastou por baixo da cerca novamente e esperou. ele pôde ouvir os passos de Laddie do outro lado, mas o cachorro grande parecia se afastar da cerca.

—    Não! — sussurrou Gaspode. — Me siga!

Houve um barulho de patas correndo, um zunido, e Laddie saltou por cima da cerca alta sem tocá-la e fez uma aterrissagem com as quatro patas na frente dele.

Gaspode desgrudou a língua do fundo da garganta.

—    Bom garoto — murmurou. — Bom garoto.

Victor se sentou, esfregando a cabeça.

—    Eu sofri um belo corte quando a cadeira caiu para trás.

Laddie ficou sentado com um olhar cheio de expectativa, com os restos do lençol na boca.

—   O que ele está esperando? — perguntou Victor.

—    Você tem que dizer que ele é um bom garoto — suspirou Gaspode.

—    Ele não está esperando um pedaço de carne, um doce ou coisa do tipo?

Gaspode balançou a cabeça.

—    É só dizer pra ele que é um bom garoto. É melhor que moeda forte, prós cachorros.

—Ah, é? então: bom garoto, Laddie.

Laddie saltou de um lado para o outro, excitado. Gaspode disse palavrões em voz baixa.

—    Desculpe por isso. Patético, não?

—    Bom garoto, encontre a Ginger — pediu Victor.

—    Olha, eu posso fazer isso — começou Gaspode, desesperado, quando Laddie começou a farejar o chão. — Nós todos sabemos pra onde ela está indo. Você não tem que...

Laddie saiu disparado pela porta, mas com graça. Parou depois do último degrau da escada e deu um latido ansioso de "sigam-me".

—    Patético — disse Gaspode, sentindo-se infeliz.

As estrelas sempre pareciam brilhar com mais intensidade sobre Holy Wood. É claro que o ar era mais limpo que em Ankh e não havia muita fumaça, mas mesmo assim... pareciam maiores também, e mais próximas, como se o céu fosse uma lente imensa.

Laddie voava pelas dunas, parando de vez em quando para que Victor o alcançasse. Gaspode vinha atrás por algum outro caminho, rolando de um lado para o outro e arfando. A trilha levava ao vale, que estava vazio.

A porta se abrira cerca de 30 centímetros. A areia arrastada ao redor indicava que não se sabia se algo havia ou não saído, mas Ginger havia entrado.

Victor ficou olhando para a porta.

Laddie se sentou ao lado dela, com um olhar esperançoso voltado para Victor.

—   Ele está esperando — disse Gaspode.

—    O quê? — perguntou Victor, num tom apreensivo. Gaspode suspirou.

—    O que você acha? — perguntou.

—    Ah. Sim. Isso é que é um bom garoto, Laddie. Laddie latiu e tentou virar uma cambalhota.

—    O que vamos fazer agora? — perguntou Victor. — Acho que vamos entrar, não?

—    Pode ser — concordou Gaspode.

—    É ... Ou poderíamos esperar até ela sair. O fato é que eu nunca fiquei muito à vontade com a escuridão. Sabe, o escuro da noite, tudo bem, mas breu total...

—    Aposto que Cohen o Bárbaro não tem medo de escuro — comentou Gaspode.

—    Bem, sim...

—    E o Sombra Negra do Deserto também não tem medo do escuro.

—    Ok, mas...

—    E Howondalândia Smith, o caçador de Balgrog, praticamente come o escuro na hora do chá.

—    É, mas eu não sou essas pessoas! — reclamou Victor.

—    Vai dizer isso pra todas as pessoas que entregaram seus centavos para ver você sendo eles — disse Gaspode. Ele cocou uma pulga insone. — Nossa, seria hilário se tivesse um operador de manivela aqui, não? — começou, animado. — Que longa metragem de comédia seria. O Senhor Herói que Não Vai pro escuro poderia ser o nome. Seria melhor do que Coxas de Peru. Seria mais interessante do que Uma Noite na Arena. Acho que as pessoas iam fazer fila pr...

—    Está bem, está bem. Vou entrar um pouco talvez. — ele olhou desesperadamente para as árvores ressecadas ao redor do vale. — e vou fazer uma tocha — acrescentou.

—    está bem, está bem. Vou entrar um pouco talvez. — ele olhou desesperadamente para as árvores ressecadas ao redor do

vale. — e vou fazer uma tocha — acrescentou.

 

Ele esperava aranhas, umidade e possíveis cobras ou coisa pior...

Em vez disso, havia apenas um corredor seco, mais ou menos quadrado, com um leve declive. O ar tinha um cheiro de sal, indicando que, em algum lugar, o túnel se ligava ao mar.

Victor deu alguns passos e parou.

—    Espere. Se a tocha apagar, podemos ficar terrivelmente perdidos.

—    Não, não podemos — discordou Gaspode. — Olfato, entende?

—    Uau, que esperteza.— Victor seguiu um pouco mais. As paredes estavam cobertas por grandes versões dos ideogramas quadrados que apareciam no livro. — Sabe — começou, parando para passar os dedos num dos ideogramas —, na verdade, isso não parece uma linguagem escrita. É mais como um...

—    Continua andando e pára de inventar desculpas — disse Gaspode, atrás dele.

Victor chutou alguma coisa que saiu rolando no escuro.

—    O que era isso? — perguntou com a voz trêmula. Gaspode saiu fungando no escuro e voltou.

—    Não se preocupe com aquilo.

—Hã?

—    É só um crânio.

—    De quem?

—    Ele num disse.

—    Fica quieto!

Alguma coisa fez um ruído debaixo da sandália de Victor.

—    E isso... — começou Gaspode.

—    Não quero saber!

—    Era uma concha do mar na verdade.

Victor observou atentamente o bloco de escuridão em movimento na frente deles. A tocha improvisada tremeluzia na corrente de ar e, aguçando bem os ouvidos, ele conseguia ouvir um som rítmico. Ou era uma fera rugindo à distância, ou o som do mar em movimento em algum túnel subterrâneo. Ele optou pela segunda hipótese.

—    Alguma coisa tem chamado ela. Nos sonhos. Alguém que quer ser solto. Tenho medo de que ela se machuque.

—   Não vale a pena se preocupar com ela. Mexer com garotas que são escravas de Criaturas do Vazio nunca dá certo, vai por mim. Você nunca saberia do lado de quem ia acordar.

—    Gaspode!

—    Você vai ver que estou certo.

A tocha se apagou.

Victor a balançou desesperadamente e a soprou numa última tentativa de reacendê-la. Algumas fagulhas cintilaram e apagaram. Simplesmente não havia sobrado tocha suficiente.

A escuridão se espalhou novamente. Victor nunca estivera numa escuridão como aquela. Não importava por quanto tempo você olhasse para ela, a vista não se acostumaria aos poucos. Não havia nada com que se acostumar. Era a escuridão e a mãe da escuridão, escuridão absoluta, a escuridão sob a terra, uma escuridão tão densa a ponto de ser quase tangível, como Veludo frio.

—    Tá escuro pra caramba — disse Gaspode, sem ninguém ter perguntado nada.

"Eu comecei a fazer o que chamam de suar frio", pensou Victor. "então é assim que a gente se sente. Eu sempre quis saber." ele se movimentou devagar e de lado até tocar a parede.

—    É melhor voltarmos — sugeriu, no que esperava ser um tom de voz trivial. — Pode haver qualquer coisa na nossa frente. Desfiladeiros, qualquer coisa assim. Poderíamos pegar mais tochas, mais pessoas e voltar.

Houve um baque surdo mais à frente, na passagem.

Whoomph.

Ele foi seguido por uma luz tão forte que projetava a imagem dos globos oculares de Victor no fundo de seu crânio. Ela diminuiu após alguns segundos, mas ainda estava dolorosamente brilhante. Laddie choramingou.

—    Aí está — disse Gaspode com a voz rouca. — Agora você tem luz, então está tudo bem.

—    É, mas o que está produzindo ela?

—    Eu é que vou saber?

Victor avançou mais um pouco, com a sua sombra dançando atrás dele.

Depois de uns 100 metros, a passagem se abriu no que talvez tenha sido um dia uma caverna natural. A luz vinha de uma abóbada alta de um dos lados, mas era forte o suficiente para revelar cada detalhe, era maior até que o Grande Salão da Universidade, e devia ter sido ainda mais impressionante um dia. A luz refletia nos ornamentos barrocos dourados e nas estalactites que enfeitavam o teto. Uma escada grande o suficiente para passar uma tropa subia de um buraco amplo e sombrio no chão. Uma batida e um estrondo que se repetiam e um cheiro de sal indicavam que o mar havia encontrado uma entrada em algum lugar lá embaixo. O ar era frio e úmido.

—    Uma espécie de templo? — murmurou Victor.

Gaspode farejou uma cortina vermelho-escura pendurada de um lado da entrada. Com o toque dele, ela desabou num monte de lodo.

—    Eca. O lugar inteiro está mofado! — Algo cheio de pernas passou correndo pelo chão e caiu no poço da escada.

Victor esticou o braço com cuidado e cutucou uma corda grossa e vermelha, amarrada em duas colunas revestidas de ouro. Ela se desintegrou.

A escada rachada seguia até a distante abóbada iluminada. eles subiram, esbarrando nos montes de algas marinhas caindo aos pedaços e lascas de madeira levadas por alguma maré alta.

A abóbada se abria para outra caverna ampla, que parecia um anfiteatro. Fileiras de cadeiras se estendiam na direção de uma... uma parede? ela cintilava como mercúrio. Se desse para encher uma piscina alongada do tamanho de uma casa com mercúrio e depois virá-la de lado sem derramar nada, ficaria parecida com aquilo.

Só que não tão malévola. Era plana e estava vazia, mas de repente Victor sentiu que estava sendo observado, como se estivesse debaixo de uma lente.

Laddie choramingou.

Então Victor percebeu o que o deixava inquieto.

Aquilo não era uma parede. Uma parede estaria presa a algo. Aquilo não estava preso a nada. Apenas pairava no ar, se ondulando e se agitando, como uma imagem num espelho, mas sem o espelho.

A luz vinha de algum lugar do outro lado. Victor conseguia ver agora uma ponta minúscula dando voltas na sombra, no outro extremo da câmara.

Ele desceu o corredor inclinado entre as fileiras de cadeiras de pedra e os cachorros foram se arrastando ao lado dele, com as orelhas caídas e o rabo entre as pernas. eles andaram com dificuldade sobre algo que um dia deve ter sido um carpete e que se rasgava, molhado, se desintegrando sob seus pés.

Depois que tinham percorrido alguns metros, Gaspode disse:

—    Não sei se você notou, mas algumas das...

—    eu sei — disse Victor, Sério.

—    ... cadeiras, elas ainda estão...

—    eu sei.

—... ocupadas.

—    eu sei.

Todas essas pessoas — essas coisas que tinham sido pessoas — sentadas em fileiras. Era como se estivessem assistindo a um clique.

Ele estava quase chegando lá agora. Notou um brilho fraco acima dele, um retângulo com comprimento e altura, mas sem espessura.

Logo adiante, quase embaixo da tela prateada, havia um pequeno lance de escadas, que o levou a um poço circular cheio de entulhos até a metade. Depois de andar por cima deles, pôde ver a parte de trás da tela, onde estava a luz.

Era Ginger. Ela permanecia parada com a mão acima da cabeça. A tocha que segurava queimava como fósforo.

Olhava para cima, para um corpo sobre uma placa de pedra. Era um gigante. Ou, pelo menos, algo que parecia um gigante. Poderia ser uma armadura com uma espada em cima, meio enterrada na poeira e na areia.

—   É aquela coisa do livro! — sussurrou. — Deuses, o que ela pensa que está fazendo?

—    Acho que ela não está pensando nada — observou Gaspode.

Ginger se virou um pouco, e Victor viu seu rosto. ela sorria.

Atrás da placa de pedra, ele conseguiu distinguir uma espécie de disco grande e corroído. Pelo menos estava pendurado no teto por meio de correntes apropriadas, e não desafiando a gravidade de maneira desconcertante.

—    Certo, vou pôr um fim nisso agora mesmo. Ginger!

Sua voz foi lançada de volta contra ele, vinda das paredes distantes. Pôde ouvi-la rebatendo em cavernas e corredores: "er, er, er” Houve um baque de rocha caindo bem longe, atrás dele.

—    Fique quieto! — disse Gaspode. — Você vai fazer o lugar inteiro desabar em cima da gente!

—    Ginger! — sussurrou Victor. — Sou eu! — ela se virou e olhou para ele, ou através dele, ou para dentro dele. — Victor — ele insistiu, com uma voz doce.

— Vá embora. Para longe. Vá embora agora ou um grande mal acontecerá.

—    Um grande mal acontecerá — resmungou Gaspode. — Isso sim e um presságio.

—    Você não sabe o que está fazendo. Você me pediu para detê-la! Volte. Volte comigo agora.

Ele tentou subir...

... E algo afundou sob seu pé. Houve um som distante de murmúrio, uma vibração metálica, e depois uma nota musical aquosa cresceu ao seu redor, ecoando pela caverna. ele mexeu os pés rapidamente, mas foi para uma outra parte da borda, que afundou assim como a outra, produzindo uma nota diferente.

Agora havia também um som de algo raspando. Victor percebeu que estava em um pequeno poço submerso que, para seu horror, subia aos poucos, acompanhado pelas notas metálicas estridentes, o chiado e o zumbido de mecanismos antigos. Ele estendeu as mãos e bateu numa alavanca corroída, que produziu um acorde diferente e depois parou de repente. Laddie uivava. Victor viu Ginger soltar a tocha e tapar os ouvidos com as mãos.

Um bloco de concreto foi tombando lentamente para fora da parede e se espatifou nas cadeiras. Fragmentos de rocha saíram rolando, e um estrondo, em contraponto com o clangor, indicava que o ruído reordenava a forma de toda a caverna.

E depois parou, com um gargarejo longo e abafado e um suspiro final. Uma serie de sacudidas e rangidos indicou que, qualquer que tenha sido o mecanismo pré-histórico ativado por Victor, ele deu tudo de si antes de desabar.

O silêncio retornou.

Victor saiu devagar e com cuidado do poço da orquestra, que agora estava alguns metros acima do chão, e correu até Ginger. Ela estava de joelhos, soluçando.

—    Venha. Vamos sair daqui.

—    Onde estou? O que está acontecendo?

—    Eu não saberia nem por onde começar a explicar.

A tocha estava quase apagando no chão. Não era mais um fogo actínico, era apenas um pedaço de madeira chamuscado e quase apagado. Victor a apanhou e a balançou no ar até que aparecesse uma chama amarela e sem brilho.

—    Gaspode — chamou de repente.

—    Quê?

—    Vocês dois, cachorros, vão na frente.

—    Oh, muito obrigado.

Ginger se agarrou a ele enquanto atravessavam o corredor com dificuldade. Apesar do terror que começava a sentir, Victor teve que admitir que a sensação era muito agradável. Ele olhou ao redor, para os eventuais ocupantes dos assentos, e sentiu um arrepio.

—    É como se tivessem morrido assistindo a um clique.

—    É . Uma comedia — disse Gaspode, correndo na frente dele.

—    Por que você diz isso?

—    Estão todos sorrindo.

—    Gaspode!

—    Bom, você tem que ver pelo lado positivo, não? — zombou o cachorro. — Não pode ficar sofrendo só porque está num túmulo subterrâneo com uma amante de gatos louca e uma tocha que vai apagar a qualquer momento...

—    Não pára! Não pára!

Eles meio caíram, meio desceram os degraus correndo, derraparam de modo desagradável nas algas no final da descida e seguiram na direção da pequena arcada que levava à maravilhosa perspectiva de ar natural e da luz do dia. A tocha estava começando a queimar a mão de Victor. Ele a largou. Pelo menos na passagem eles não tinham tido nenhum problema. Se ficassem perto de uma das paredes e não fizessem nenhuma burrice, não tinha como não chegar à porta. E a essa altura já deveria estar amanhecendo, o que significava que logo veriam a luz.

Victor se esticou. Aquilo era realmente muito heróico. Não teve nenhum monstro para combater, mas provavelmente até os monstros teriam apodrecido havia muitos séculos. É claro que havia sido assustador, mas na verdade fora apenas... bem... arqueológico. Agora que tinha ficado tudo para trás, não parecia tão ruim afinal...

Laddie, que corria na frente deles, deu um latido brusco.

—    O que ele está dizendo? — perguntou Victor.

—    Ele está dizendo — traduziu Gaspode — que o túnel está bloqueado.

—    Oh, não!

—    Foi provavelmente o seu recital de órgão que causou isso.

—    Bloqueado mesmo?

Bloqueado mesmo. Victor rastejou sobre o monte de entulho. Várias placas grandes do teto tinham desabado, levando junto toneladas de pedras quebradas. Ele empurrou e puxou um ou dois pedaços, mas isso produziu ainda mais desabamentos.

—    Será que tem outra saída? Talvez vocês, cachorros, poderiam...

—    Esqueça, colega — interrompeu Gaspode. — Seja como for, o único outro caminho deve ser seguindo aqueles degraus. Eles se ligam ao mar, certo? Tudo o que você precisa fazer é nadar até lá e torcer pra que seus pulmões agüentem.

Laddie latiu.

—    Você, não. eu não estava falando com você. Nunca se ofereça pra nada.

Victor continuou sua escavação entre as rochas.

—    Não sei — ele disse depois de algum tempo —, mas está parecendo que dá para ver um pouco de luz aqui. O que você acha?

Ele ouviu Gaspode andar sobre as pedras.

—    Pode ser, pode ser — disse o cachorro, relutante. — Parece que algumas das pedras ficaram entaladas e deixaram um espaço.

—    Grande o suficiente para alguém pequeno passar de quatro? — perguntou Victor num tom encorajador.

—    Sabia que você ia dizer isso — retrucou Gaspode.

Victor ouviu o som de patas raspando pedras soltas. Finalmente uma voz abafada disse:

— Abre um pouco... bem apertado aqui... caramba... Houve um silêncio.

—    Gaspode? — perguntou Victor, apreensivo.

—    Tá tudo bem. Passei. E dá pra ver a porta.

—    Ótimo!

Victor sentiu o ar se mover e ouviu um barulho de algo raspando. Ele estendeu o braço com cuidado, e sua mão encontrou um corpo tremendamente peludo.

—    Laddie está tentando ir atrás de você!

—    Ele é grande demais. Vai ficar preso! Houve um grunhido canino, chutes frenéticos que deram um banho de cascalhos em Victor e um latido curto de triunfo.

—    Claro, ele é um pouquinho mais magro que eu — observou Gaspode, depois de algum tempo.

—Agora, vocês dois, corram para trazer ajuda. E... Nós vamos esperar aqui.

Ele os ouviu desaparecer na distância. O latido distante de Laddie indicava que haviam alcançado o ar externo.

Victor se sentou.

—    Agora nós só precisamos esperar.

—    Nós estamos na colina, não estamos? — era a voz de Ginger na escuridão.

—Sim.

—    Como chegamos aqui?

—    Eu segui você.

—    Eu disse para você me deter.

—    É e, mas depois me amarrou.

—    Eu não fiz nada disso!

—    Você me amarrou — repetiu Victor. — e depois você veio até aqui, abriu a porta, fez uma espécie de tocha e entrou lá naquele... naquele lugar. Tenho pavor de pensar no que teria feito se eu não tivesse acordado você.

Houve uma pausa.

—    Eu realmente fiz tudo isso? — perguntou Ginger, incerta.

—    Realmente fez.

—    Mas não me lembro de nada disso!

—    Eu acredito em você. Mesmo assim, você fez.

—    Que... que lugar era aquele afinal?

Victor se mexeu no escuro, tentando encontrar uma posição confortável.

—    Não sei — confessou. — No começo achei que fosse um templo. e parecia que era usado pelas pessoas para assistirem a imagens animadas.

—    Mas parecia ter centenas de anos!

—    Milhares, imagino.

—    Mas, olha, isso não pode estar certo — disse Ginger, no tom de voz baixo de quem está tentando ser racional enquanto a loucura derruba a porta com um machado. — Os alquimistas só tiveram a idéia alguns meses atrás.

—    É . É algo para se pensar. — ele estendeu o braço e a encontrou. O corpo dela estava rígido e se retraiu ao toque dele. — estamos bem seguros aqui — ele acrescentou. — O Gaspode logo vai trazer ajuda. Não se preocupe com isso.

Ele tentou não pensar no mar batendo com força na escada e nas coisas de muitas pernas que corriam pelo chão sombrio. Tentou tirar da cabeça a idéia de polvos deslizando em silêncio sobre os assentos em frente àquela tela viva e mutável. Tentou esquecer os clientes que ficaram sentados no escuro enquanto, acima deles, séculos se passavam. Talvez estivessem esperando passar a moça com os grãos estourados e as salsichas quentes.

"Toda a vida é como assistir a um clique", pensou. "Só que é como se você sempre chegasse dez minutos depois que a longa história começou, e ninguém quisesse contar o que aconteceu, de modo que você tem que descobrir tudo sozinho, a partir dos indícios. E você nunca, nunca tem a chance de ficar na sua poltrona para a sessão seguinte."

 

Uma luz de vela tremulava no corredor da Universidade.

O tesoureiro não se achava um homem corajoso. O máximo que se orgulhava de ter enfrentado era uma coluna de números, e ser bom com números o havia feito progredir na hierarquia da Universidade Invisível mais do que a magia jamais fizera. Mas ele não poderia deixar isso passar.

... whumm... whumm... whummwhummwhumm— WHUMM WHUMM.

Ele se agachou atrás de uma pilastra e contou 11 balas de chumbo. Pequenos jatos de areia saíam dos sacos. Eram expelidas a intervalos de dois minutos agora.

Ele correu até a pilha de sacos de areia e os puxou com força.

A realidade não era a mesma em todo lugar. Bem, é claro que todo mago sabia disso. A realidade não era muito densa em nenhum lugar do Disco. em alguns lugares, era realmente muito tênue. Por isso a magia funcionava. O que Riktor pensava que podia medir eram as mudanças na realidade, lugares em que o real estava rapidamente se tornando irreal. E todo mago sabia o que poderia acontecer se as coisas se tornassem irreais o suficiente para formar um buraco.

“Mas", ele pensou enquanto rasgava os sacos, "seriam necessárias quantidades imensas de magia. Seria muito difícil não localizarmos essa quantidade de magia. Ela chamaria tanta atenção quanto... bem, quanto muita magia junta."

Devo ter levado pelo menos uns 50 segundos até agora.", ele observou o vaso na casamata.

Oh. - ele esperava que estivesse errado.

Todas as balas tinham sido lançadas na mesma direção. Meia dúzia de sacos de areia estavam cheios de buracos. E Números Riktor achava que duas balas em um mês indicavam um acúmulo perigoso de irrealidade...

O tesoureiro traçou mentalmente uma linha que saía do vaso, atravessava os sacos de areia danificados, e ia até o final do corredor.

... whumm... whumm...

ele levou um susto, e depois percebeu que não havia motivo para se preocupar. Todas as balas eram atiradas pela cabeça do elefante ornamental na sua frente. Ele relaxou.

... whumm... whumm...

O vaso balançou violentamente quando um mecanismo misterioso se sacudiu dentro dele. O tesoureiro pôs a cabeça mais perto dele. Sim, definitivamente havia um som sibilante, como de ar sendo comprimido...

Onze balas de chumbo bateram nos sacos de areia em alta velocidade.

O vaso deu um tranco para trás, de acordo com o famoso princípio da reação. Em vez de atingir um saco de areia, atingiu o tesoureiro.

Ming—ng—ng.

Ele pestanejou e deu um passo para trás. E caiu.

Como as perturbações da realidade de Holy Wood já conseguiam estender seus tentáculos fracos, porém oportunistas, até Ankh-Morpork, dois passarinhos azuis voaram ao redor da sua cabeça por um momento e fizeram "piu-piu-piu" antes de desaparecer.

Gaspode se deitou na areia, ofegante. Laddie dançou em volta dele, latindo com insistência.

—    Nós escapamos dessa — conseguiu dizer, e depois se levantou e se sacudiu.

Laddie latia e parecia incrivelmente fotogênico.

—    Está bem, está bem — suspirou Gaspode. — e se a gente procurar algum café-da-manhã, talvez tirar o atraso do sono e depois a gente...

Laddie latiu de novo. Gaspode suspirou.

—    Ah, está bem. Vamos fazer do seu jeito. Mas fique sabendo que ninguém vai agradecer você.

O cachorro saiu arfando pelas areias. Gaspode seguiu num ritmo mais lento e ficou bastante surpreso quando Laddie voltou atrás, levantou-o com delicadeza pelo cangote e saiu saltitando novamente.

—    Cê só tá fazendo isso comigo porque eu sou pequeno — reclamou Gaspode, balançando de um lado para o outro. — Não, por aí, não! Os humanos não serão nada bonzinhos a esta hora da manhã. Precisamos de trolls. Eles ainda estão bem dispostos e manjam muito de coisa subterrânea. Vire a próxima à direita. Precisamos ir ao Calcário Azul e... oh, droga. Ele se deu conta, de repente, de que a situação exigiria que ele falasse. E em público.

Você consegue passar séculos escondendo das pessoas suas habilidades vocais e, de repente, pronto, está em apuros e é obrigado a falar. Caso contrário, o jovem Victor e a Mulher Gato ficariam esfarelando lá embaixo para sempre. O Jovem Laddie ia largá-lo na frente de alguém e ficar na expectativa e teria que explicar. E depois passaria o resto da vida como uma espécie de aberração.

Laddie subiu a rua e passou pelos portais esfumaçados do Calcário Azul, que estava lotado. Ele seguiu costurando um labirinto de pernas de tronco de árvore até chegar ao bar, latiu com força e largou Gaspode no chão. Ele ficou na expectativa.

O murmurinho de conversas parou.

—    Esse aí e o Laddie? — perguntou um troll. — O que ele quer?

Gaspode cambaleou até o troll mais próximo e puxou com educação uma tira de sua cota de malha de ferro enferrujada.

—    Licença — ele disse.

—    Ele cachorro inteligente pra caramba — comentou um outro troll, chutando Gaspode para o lado sem prestar atenção nele.

— Eu ver ele em clique ontem. Ele sabe fingir de morto e contar até cinco.

—    Dois números a mais que você então. — Isso provocou muitas risadas.25

—    Não, cala a boca. Eu acho — começou o primeiro troll — que ele tentando dizer alguma coisa pra gente.

—    ... licença...

—    É só olhar pro jeito que ele tá pulando e latindo.

—    Isso mesmo. Eu vi ele num clique, mostrando pras pessoas onde encontrar crianças perdidas em cavernas.

—    ... licença...

Um troll franziu a testa.

—    Pra comer elas, cê quer dizer?

—    Não, pra trazer elas pro lado de fora.

—    O quê, prum churrasco, esse tipo de coisa?

—    ... licença...

Mais um pé acertou Gaspode na lateral de sua cabeça pontuda.

—    Pode ser que ele achou mais alguma. Olha o jeito que ele corre, indo pra porta e voltando. Esse é cachorro esperto.

—    A gente podia ir ver — sugeriu o primeiro troll.

—    Boa idéia. Parece que faz séculos que fiz meu lanche.

—    Olha, você proibido de comer gente em Holy Wood. A gente fica com má fama! A Liga Antidifamação de Silício também ia cair pra cima de você feito uma tonelada de coisas retangulares de construção.

  1. Para o padrão dos trolls, isso era Oscar Wilde no seu auge.

—    É, mas podia ser uma recompensa ou algo assim.

—... LICENÇA...

—    Isso mesmo! Também melhora da imagem dos trolls para relações públicas se a gente encontrar crianças perdidas.

—    É, mesmo se não encontrar, a gente pode comer os cachorros, certo?

O bar esvaziou, ficando apenas as nuvens de fumaça de costume, os caldeirões de bebidas derretidas de trolls, Ruby raspando a lava grudada nas canecas sem prestar atenção em nada e um cachorrinho exausto e roído pelas traças.

O cachorrinho exausto e roído pelas traças pensou seriamente na diferença entre parecer e agir como um cão prodígio e simplesmente ser um.

Ele disse:

—    Droga.

Victor se lembrava de que tinha medo de tigre quando era mais novo. As pessoas argumentavam, em vão, que o tigre mais próximo estava a 5 mil quilômetros de distância. ele dizia: "Tem algum mar entre o lugar em que eles moram e aqui?" e as pessoas diziam: "Bem, não, mas..." e ele dizia: "então, e só uma questão de distância".

Com a escuridão era a mesma coisa. Todos os lugares escuros assustadores eram conectados entre si pela natureza da própria escuridão. A escuridão estava em toda parte, o tempo todo, só esperando as luzes se apagarem. Assim como o Calabouço das Dimensões, na verdade. Só esperando a realidade se romper.

Ele se agarrou a Ginger com força.

—    Não precisa — ela disse. — Já estou conseguindo me controlar agora.

—    Ah, ótimo — ele disse, vacilante.

—    O problema é que você também está... me controlando. ele relaxou.

—    Está com frio? — ela perguntou.

—    Um pouco. É muito úmido aqui embaixo.

—    São os seus dentes que estou ouvindo bater?

—    E de quem mais seria? Não — ele se corrigiu rápido —, nem pense isso.

—    Sabe — ela disse, depois de algum tempo —, eu não me lembro de ter amarrado você. Eu nem sou muito boa em dar nós.

—    Aqueles nós eram muito bons.

—    Só me lembro do sonho. Tinha uma voz me dizendo que eu tinha que acordar o... o homem adormecido?

Victor pensou na figura com armadura sobre a placa de pedra.

—    Você olhou bem para ele? — perguntou. — Como ele era?

—   Não sei esta noite — respondeu Ginger, cautelosa. — Mas nos meus sonhos ele sempre se parece um pouco com o meu tio Osvaldo.

Victor pensou numa espada maior que ele. Não era possível aparar um golpe de uma coisa daquela. Ela cortaria qualquer coisa. Por algum motivo, era difícil imaginar que alguém parecesse um Osvaldo empunhando uma espada como aquela.

—    Por que ele lembra o seu tio Osvaldo?

—    Porque o meu tio Osvaldo se deitava bem parado daquele jeito. Veja bem, eu só o vi uma vez. E foi no velório dele.

Victor abriu a boca — e ouviu vozes distantes e indistintas. Algumas pedras se moveram. Uma voz, um pouco mais próxima agora, cantarolou:

—    Olá, criancinhas. Por aqui, criancinhas.

—    É o Rocha! — exclamou Ginger.

—    Eu reconheceria essa voz em qualquer lugar — concordou Victor. — Ei! Rocha! Sou eu! Victor!

Houve uma pausa de preocupação. Depois Rocha berrou:

—    É o meu amigo Victor!

—    Isso quer dizer que a gente não podemos comer ele?

—    Ninguém vai comer meu amigo Victor! A gente escava e tira ele rápido daí!

Houve um som de algo sendo triturado. Depois outra voz de troll reclamou:

—    Eles chamam isso de calcário? eu chamo de sem gosto.

Eles ouviram um pouco mais de raspagem. Uma terceira voz disse:

—    Não vejo por que não podemos comer ele. Quem ia ficar sabendo?

—    Seu troll selvagem — brigou Rocha. — O que é que cê tá pensando? Você come gente, todo mundo ri de você e vai dizer: "ele troll muito defeituoso, não sabe se comportar na sociedade educada". Vai parar de pagar três dólares por dia e te mandar de volta pras montanhas.

Victor deu o que esperava ser uma risadinha de leve.

—    eles são muito engraçados, não?

—   Demais — concordou Ginger.

—    É claro que toda essa coisa de comer gente é só fanfarronice. Eles quase nunca fazem isso. Não precisa se preocupar.

—    Não estou preocupada. Estou preocupada porque fico andando por aí enquanto durmo e não sei por quê. Você fala como se eu fosse acordar aquela criatura adormecida. É uma idéia horrível. Tem alguma coisa dentro da minha cabeça.

Houve um estrondo quando mais rochas foram colocadas de lado.

—    Isso é o estranho. Quando as pessoas ficam... é... possuídas, a... e... coisa que as possui geralmente não se preocupa muito com elas ou qualquer outra pessoa. Quer dizer, ela não teria apenas me amarrado. ela teria me dado uma pancada na cabeça com alguma coisa.

Ele estendeu o braço para segurar a mão dela no escuro.

—    Aquela coisa sobre a placa de pedra — ele disse.

—    O que é que tem?

—    Eu já vi aquilo antes. Está no livro que eu encontrei. Tem dúzias de imagens dele, e devem ter achado que era muito importante mantê-lo do outro lado do portão. É o que dizem os pictogramas, acho. Portão... homem. O homem atrás do portão. O prisioneiro. Sabe, tenho certeza de que o motivo pelo qual todos os sacerdotes, ou o que quer que fossem, tinham para ir lá entoar cânticos todos os dias era...

Uma placa de pedra perto da sua cabeça foi empurrada para o lado e deixou passar uma fraca luz do dia. Laddie veio logo em seguida e tentou lamber o rosto de Victor e latir ao mesmo tempo.

—    Sim, sim! Muito bem, Laddie — disse Victor, tentando afastá-lo. — Bom cachorro. Bom garoto, Laddie.

—    Bom garoto Laddie! Bom garoto Laddie!

O latido trouxe abaixo várias lascas de pedras do teto. —A —há!— disse Rocha. Várias outras cabeças de trolls apareceram atrás dele quando Victor e Ginger olharam pelo buraco.

—    Eles não criancinhas — resmungou o que reclamava da proibição de comer gente. — eles parecem pegajosos.

—   Eu já dizer antes — disse Rocha num tom ameaçador —, nada de comer pessoas. Isso causa sem fim de problemas.

—    Por que não só uma perna? Depois todo mundo vai...

Rocha pegou uma laje de meia tonelada com uma mão, estimou seu peso com cuidado e depois acertou o outro troll com tanta força que a quebrou.

—    Eu já dizer — disse para a figura caída —, é trolls que nem você que criando má fama pra gente. Como podemos tomar nosso lugar de direito entre as irmandades de espécies sábias com trolls defeituosos como você atrapalhando a gente tempo todo?

Ele enfiou o braço através do buraco e puxou Victor para fora de uma vez.

—    Obrigado, Rocha. e... Tem a Ginger lá dentro também.

Rocha deu um cutucão malicioso que deixou algumas costelas doloridas.

—    Ah, entendo. e ela usando um lindo penhonal de seda preta. Você encontra um ótimo lugar pra se deleitar um pouco "asfixiando o pato grande na água" e o Disco gira ao seu redor, né? — Os outros trolls abriram um sorriso.

—    Uh, sim, acho que... — começou Victor.

—    Isso não é verdade de jeito nenhum! — gritou Ginger, enquanto era puxada pelo buraco. — Nós não estávamos...

—    É, sim! — disse Victor, fazendo sinais furiosos com as mãos e sobrancelhas. — É absolutamente verdade! Você está absolutamente certo, Rocha!

—    É — disse um dos trolls atrás de Rocha. — eu vejo eles nos cliques. ele beijando ela e carregando pra longe o tempo todo.

—    Agora ouçam — começou Ginger.

—    E agora a gente sai daqui bem rápido — sugeriu Rocha. — esse teto inteiro parecendo muito defeituoso pra mim. Podia cair a qualquer momento.

Victor olhou para cima. Alguns dos blocos gotejavam de modo agourento.

—    Tem razão — disse. Ele agarrou o braço de Ginger, que ainda protestava, e a arrastou pela passagem. Os trolls apanharam o compatriota caído que não sabia se comportar em companhia de pessoas educadas e saíram atrás deles andando com dificuldade.

-       Aquilo foi repugnante, dar a eles a impressão de que... — Ginger sussurrou.

-       Cala a boca! - gritou Victor. - O que você queria que eu dissesse, hein? Quer dizer, que tipo de explicação você acha que seria adequada? O que você gostaria que as pessoas ficassem sabendo?

Ela hesitou.

-       Bom, está bem — admitiu. — Mas você poderia ter pensado em outra coisa. Poderia ter dito que estávamos fazendo uma exploração ou procurando... procurando fósseis... - a voz dela falhou.

-       Sim, no meio da noite, com você usando um penhonal de seda. O que é um penhonal, afinal de contas?

-       Ele quis dizer penhoar — explicou Ginger.

-       Venha, vamos voltar para a cidade. Depois pode ser que eu tenha tempo para dormir umas horinhas.

-       Como assim, depois?

-       Nós temos que comprar uma grande bebida para esses rapazes...

Houve um estrondo baixo vindo da colina. Uma nuvem de poeira saiu da porta e cobriu os trolls. O resto do teto tinha desaparecido.

-       Pronto - disse Victor. - Acabou. Você consegue fazer a sua parte sonâmbula entender isso? Não adianta mais querer entrar, não tem nenhuma passagem. Está encerrado. Acabou. Ainda bem.

Existe um bar como este em toda cidade. É mal iluminado, e os freqüentadores, embora falem, não dirigem a palavra uns aos outros e também não ouvem. Eles falam apenas da dor que sentem. É um bar para os desamparados, os sem sorte e para todas aquelas pessoas que já foram temporariamente jogadas para fora da pista de corrida da vida e ficaram no fosso.

Ele sempre tem um efeito revigorante.

Nesta madrugada, os angustiados se sentaram enfileirados ao longo do balcão, cada um dentro da sua nuvem de melancolia, cada um com a certeza de ser o indivíduo mais infeliz de todo o mundo.

—    Eu criei tudo - disse Silverfish, com tristeza. - Achei que seria algo educacional. Poderia ampliar os horizontes das pessoas. Eu não tinha a intenção de fazer disso um... um... um show. Com milhares de elefantes! - acrescentou, desgostoso.

—    É - concordou Detritus. — Ela num sabe o que quer. Eu faço o que ela querer, aí ela diz: "Isso num tá certo, você um troll sem nenhum sentimento refinado, você num entende o que uma garota quer". Ela diz: "Garota quer comer coisas pegajosas que vêm numa caixa com um laço em volta, eu faço caixa com laço em volta, ela abre caixa e grita e diz que cavalo esfolado num era o que ela tava falando". Ela num sabe o que quer.

—    É - disse uma voz vinda de baixo do banco de Silverfish. - Seria muito bem feito pra eles se eu fosse embora pra me juntar aos lobos.

—    Sabe, pega esse negócio de E O Sopro Carregou - continuou Silverfish. - Não é sequer uma coisa real. Não é como as coisas realmente aconteceram. São apenas mentiras. Qualquer um pode contar mentiras.

—    É - disse Detritus. - Tipo, ela diz: "Garota quer música embaixo da janela". Eu toco música embaixo da janela, todo mundo da rua acorda e grita fora de casa: "Seu troll mau, pra que tá jogando pedra a esta hora da noite?" E ela nem acorda.

—    É — disse Silverfish.

—    É — disse Detritus.

—    É — disse a voz embaixo do banquinho.

O homem que cuidava do bar era naturalmente alegre. Não era difícil ser alegre, na verdade, quando os seus clientes agiam como pára-raios para qualquer sofrimento que estivesse passando por perto. Ele não achava boa idéia dizer coisas como "Não liga, não, veja pelo lado positivo", porque nunca havia um lado positivo, nem "Anime-se, pode ser que nunca aconteça", porque geralmente já tinha acontecido. Tudo o que se esperava dele era não parar de mandar as bebidas.

Porém ele estava um pouco confuso naquela manhã. Parecia haver uma pessoa a mais no bar, sem contar quem quer que fosse que estivesse falando do chão. ele não parava de ter a sensação de que servia uma bebida a mais, e de que inclusive era pago por ela e até mesmo de que conversava com o freguês misterioso. Mas não conseguia vê-lo. Na verdade, não tinha certeza de quem ele via e com quem conversava.

Ele foi andando devagar até a outra ponta do balcão.

Um copo deslizou na direção dele.

—    O MeSMO De NOVO — disse uma voz na penumbra.

—    e... — começou o barman. — Sim. Claro. O que era mesmo?

—    QUALQUeR COISA.

O barman encheu o copo de rum. O copo foi puxado de volta.

O barman pensou em algo para dizer. Por algum motivo, sentia-se apavorado.

—    Não vejo muito o senhor por aqui — conseguiu dizer.

—    eu VeNHO POR CAUSA DA ATMOSFeRA. O MeSMO De NOVO.

—    O senhor trabalha em Holy Wood? — perguntou o barman, enchendo rápido o copo, que desapareceu de novo.

—    NÃO POR ALGUM TeMPO. O MeSMO De NOVO.

O barman hesitou. ele era, no fundo, uma alma bondosa.

—    O senhor não acha que já e o suficiente?

—    eu SeI eXATAMeNTe QUANDO É O SUFICIeNTe.

—    Todo mundo diz isso.

—    eu SeI QUANDO É O SUFICIeNTe PARA TODO MUNDO.

Havia algo muito estranho naquela voz. O barman não tinha muita certeza de que a ouvia com os ouvidos. —Ah, bem... e... O mesmo de novo?

—    NÃO. AMANHÃ SERÁ UM DIA CORRIDO. FICA COM O TROCO.

Um punhado de moedas deslizaram pelo balcão. Elas estavam geladas, e a maioria parecia extremamente corroída.

—    Oh, e... — começou o barman.

A porta se abriu e fechou, deixando entrar uma rajada de ar frio, apesar do calor da noite.

O barman, um pouco perturbado, começou a limpar o balcão, tomando cuidado para não encostar nas moedas.

—    Você vê uns tipos engraçados quando trabalha em bar — murmurou.

Uma voz perto de seu ouvido disse:

—    JÁ IA eSQUeCeNDO. UM PACOTe De NOZeS, POR FAVOR.

A neve brilhava nas bordas das encostas das montanhas Ramtops, a enorme cadeia que tem a extensão do mundo e que, onde faz a curva, no Mar Círculo, forma uma muralha natural entre Klatch e as grandes e lisas Planícies Sto. Lat

Ela era o lar de geleiras ameaçadoras, avalanches à espreita e campos de neve altos e silenciosos.

E do abominável homem das neves, o yeti. Os yetis são uma espécie de troll de grandes altitudes nem um pouco cientes de que comer gente está fora de moda. Sua visão é: se mexer, coma. Se não se mexer, espere mexer. E depois coma.

Eles ouviram os sons o dia todo. Os ecos bateram de pico em pico pelas cadeias de montanhas até se transformar num estrondo contínuo e abafado.

—    Meu primo — disse um deles, cutucando distraidamente um dente oco com a unha afiada — disse que era animais enormes e cinza. Elefantes.

—    Maior que a gente? — perguntou o outro yeti.

—    Quase tão grande quanto a gente — respondeu o primeiro yeti — Um monte deles, ele falou. Mais do que ele sabia contar.

O segundo yeti cheirou o vento e parecia pensar no assunto. —Ah, sim — disse, desanimado. — Seu primo não sabe contar até dois.

—    Ele disse que tinha um monte de grandões. Grandes elefantes cinza, todos subindo, todos amarrados com uma corda. Grandes e lentos. Todos carregando um monte de oograah.

—Ah.

O primeiro yeti apontou o vasto campo de neve inclinado.

—    Bom e fundo hoje. Nada vai conseguir se movimentar rápido aí, certo? A gente deita na neve, eles só vão ver a gente quando estiverem bem em cima da gente, a gente assusta eles e é a hora da Grande Comida. — ele balançou as patas enormes no ar. — Muito pesados, meu primo falou. eles não vão andar rápido, vai por mim.

O outro yeti deu de ombros.

—    Vamos fazer isso — concordou, ao som de vozes de elefantes distantes e apavoradas.

Eles se deitaram na neve, com sua pelagem branca transformando-os em dois montículos insuspeitos. era uma técnica que funcionara inúmeras vezes e havia sido passada de yeti para yeti durante milhares de anos, embora não fosse mais ser passada muito adiante.

Eles esperaram.

Houve um urro distante quando a manada se aproximou.

Enfim o primeiro troll disse, bem devagar, porque já estava pensando nisso havia muito tempo:

—    Qual e o resultado, certo, qual é o resultado de... cruzar... uma montanha em um elefante?

Ele nunca teve resposta.

Os yetis estavam certos.

Quando 500 trenós malfeitos com dois elefantes cada chegaram ao cume da cordilheira a 300 metros dali, a 90 km/h, com os ocupantes amarrados urrando em pânico, eles só viram os yetis quando estavam bem em cima deles.

Victor só teve duas horas de sono, mas acordou sentindo-se extraordinariamente renovado e otimista.

Estava tudo acabado. As coisas seriam muito melhores agora. Ginger tinha sido muito legal com ele na noite anterior — bem, algumas horas antes — e o que quer que estivesse na colina tinha sido muito bem enterrado.

“Esse tipo de coisa acontecia às vezes", ele pensou enquanto despejava um pouco de água na bacia rachada e se lavava rapidamente. "Algum velho rei ou mago perverso e enterrado, e seu espírito fica perambulando, tentando acertar as coisas ou algo assim. efeito bastante conhecido. Mas agora deve haver um milhão de toneladas de pedras bloqueando o túnel, e não consigo ver ninguém perambulando através daquilo tudo."

A tela desagradavelmente viva veio à tona por um breve momento em sua memória, mas até aquilo não parecia tão ruim agora. Estava escuro lá dentro, havia muitas sombras se mexendo, ele tinha ficado com muito medo e não era de se admirar que seus olhos lhe tivessem pregado uma peça. Tinha os esqueletos também, mas até eles tinham perdido o poder de aterrorizar. Victor ouvira falar de líderes tribais das planícies geladas que enterraram exércitos inteiros de cavaleiros para que sua alma continuasse a viver no mundo seguinte. Talvez tenha ocorrido algo assim aqui algum dia. Sim, tudo parecia muito menos aterrorizante à luz fria do dia.

E era só isso. Luz fria.

O quarto estava cheio do tipo de luz de quando se acorda numa manhã de inverno e se sabe, pela luz, que nevou. Era uma luz sem sombras.

Ele foi até a janela e viu um fraco brilho prateado.

Holy Wood havia desaparecido.

As visões da noite brotaram em sua mente de novo, como a escuridão que volta quando a luz se apaga.

"Calma, calma", pensou, combatendo o pânico. "É apenas neblina. Com certeza existe neblina assim tão perto do mar. e está brilhando desse jeito porque o sol saiu. Não há nada de oculto na neblina. São apenas gotículas de água flutuando no ar. e só isso."

Ele se vestiu bem devagar, abriu a porta que dava para o corredor e tropeçou em Gaspode, que permanecia deitado, todo esticado na frente da porta, como o protetor de correntes de ar mais sujo do mundo.

O cãozinho se ergueu sem firmeza pelas patas da frente, olhou fixamente para Victor com um olhar melancólico e disse:

— Só quero que você saiba, certo, que não tô deitado na frente da sua porta por causa de nenhuma dessas besteiras de "cão leal protege o dono", ok? É só porque, quando voltei aqui...

—    Cala a boca, Gaspode.

Victor abriu a porta da rua. A neblina foi entrando. Ela parecia ter um ar exploratório. Entrou como se estivesse só esperando a oportunidade.

—    Neblina é só neblina — disse em voz alta. — Vem. Nós vamos para Ankh-Morpork hoje, lembra?

—    Minha cabeça... — começou Gaspode — minha cabeça está parecendo o fundo de um balaio de gato.

—    Você pode dormir na carruagem. Eu posso dormir na carruagem, se for preciso.

Ele deu alguns passos no meio do brilho prateado e quase se perdeu de imediato. Os prédios apareciam de modo indistinto para ele no ar denso e úmido.

—    Gaspode? — chamou num tom hesitante. — Neblina e só neblina — repetiu. Parece que está cheio de gente. Dá a impressão de que, se ela fosse embora de repente, eu veria um monte de gente olhando para mim. De fora. E isso é ridículo porque eu estou do lado de fora, então não tem nada fora de fora. E ela está tremendo.

—    Imagino que você queira que eu vá na frente — disse uma voz presunçosa na altura do seu joelho.

—    Está muito silencioso, não? — perguntou Victor, tentando parecer indiferente. — Imagino que seja a neblina abafando todos os sons.

—    É claro. Talvez criaturas fantasmagóricas tenham saído do mar e assazinaram todas as almas mortais com exceção da nossa — disse Gaspode num tom trivial.

—    Cala a boca!

Alguma coisa começou a surgir no meio do brilho. Quando se aproximou, ficou menor e os tentáculos e antenas que a imaginação de Victor via se transformaram nos braços e pernas mais ou menos normais de Soll Dibbler.

—    Victor? — perguntou, incerto.

—    Soll?

O alívio de Soll foi visível.

—   Não consigo ver nada com toda esta coisa — reclamou. — Achamos que você tinha se perdido. Vamos, é quase meio-dia. estamos mais ou menos prontos para começar.

—    Estou pronto.

—    Ótimo. — Gotículas de neblina haviam se condensado no cabelo e nas roupas de Soll. — e... Onde é que estamos exatamente?

Victor se virou. Seu alojamento estava atrás dele.

—    A neblina muda tudo, não? — observou Soll, nada contente. — e... você acha que o seu cachorrinho consegue encontrar o caminho do estúdio? ele parece ser bem esperto.

—    Rosna, rosna — disse Gaspode, e se sentou para implorar com o que Victor reconhecia como um jeito sarcástico.

—    Falando Sério — começou Soll. — e como se ele entendesse, não?

Gaspode deu latidos agudos. Depois de um ou dois segundos, havia uma chuva de latidos excitados em resposta.

—    É claro que deve ser o Laddie — disse Soll. — Que cachorro inteligente! — Gaspode fez um ar de convencido. — Veja bem, esse é Laddie em poucas palavras — insistiu Soll enquanto eles saíam em direção ao latido. — Acho que ele poderia ensinar alguns truques pro seu cachorro, hein?

Victor não ousou olhar para baixo.

Depois de andarem em círculos, a arcada da Século do Morcego-de-Frutas passou por cima deles como um fantasma. Havia mais pessoas ali. O local parecia estar se enchendo de pessoas perdidas que perambulavam sem saber aonde ir.

Havia uma carruagem esperando em frente ao escritório de Dibbler, e o próprio Dibbler permanecia ao lado dela, batendo o p no chão.

—    Vamos, vamos. Mandei Gaffer na frente com o filme. Entrem, vocês dois.

—    Dá pra viajar nisso? — perguntou Victor.

—    O que é que pode dar errado? Só tem uma estrada para Ankh-Morpork. De qualquer jeito, a gente provavelmente vai estar bem longe desta coisa quando se afastar do litoral. Não sei por que todo mundo está tão nervoso. Neblina é neblina.

—    É o que estou dizendo — concordou Victor, subindo na carruagem.

—    Só foi uma bênção que terminamos e O Sopro Carregou ontem — disse Dibbler. — Tudo isso é provavelmente só uma coisa da estação. Nada que preocupe de verdade.

—    Você já disse isso — observou Soll. — Você disse isso pelo menos cinco vezes nesta manhã.

Ginger estava curvada num assento, com Laddie deitado embaixo dela. Victor foi indo para o lado até ficar junto dela.

—    Você conseguiu dormir? — sussurrou.

—    Só uma hora ou duas, acho. Não aconteceu nada. Nenhum sonho nem nada.

Victor relaxou.

—    Então acabou mesmo. Eu não tinha certeza.

—    E a neblina? — ela perguntou.

—    Perdão? — disse Victor, com sentimento de culpa.

—    O que está causando a neblina?.

—    Bem, pelo que sei, quando o ar frio passa sobre o solo quente, a água se precipita a partir de...

—    Você sabe do que estou falando! Não tem nada a ver com a neblina normal! ela... meio que se desloca de forma estranha —     ela completou de modo falho. — e quase dá para ouvir vozes —    acrescentou.

—    Não dá para quase ouvir vozes — discordou Victor, na esperança de que a sua própria mente racional acreditasse nele. — Ou você ouve, ou não. Olha, nós dois estamos apenas cansados. É só isso. Temos trabalhado muito e... e... não temos dormido bastante, então é compreensível pensarmos que quase ouvimos e vemos coisas.

—    Ah, então você está quase vendo coisas, e? — perguntou Ginger num tom triunfante. — e não vem usando esse tom de voz calmo e racional pra cima de mim — acrescentou. — Odeio quando as pessoas ficam dando uma de calmas e racionais pra cima de mim.

—    Espero que os pombinhos não estejam tendo nenhuma briguinha.

Victor e Ginger ficaram rígidos. Dibbler subiu com dificuldade, foi para o assento em frente e lançou um olhar malicioso para incentivá-los. Soll o acompanhou. Houve um barulho quando o condutor bateu a porta da carruagem.

—Vamos parar para uma refeição na metade do caminho — avisou Dibbler, quando deram um solavanco para a frente. ele hesitou e depois aspirou o ar com desconfiança. — Que cheiro é esse?

—    Sinto informar que meu cachorro está debaixo do seu assento — disse Victor.

—    Ele está doente?

—    Sinto informar que ele sempre tem esse cheiro.

—    Você não acha que seria uma boa idéia dar um banho nele?

Um murmúrio quase inaudível disse:

—    Cê acha que seria uma boa idéia arrancar os seus pés com uma mordida só?

Enquanto isso, acima de Holy Wood, a neblina ficava mais espessa...

Os cartazes de e 0 Sopro Carregou circularam por Ankh-Morpork durante alguns dias, e o interesse deixava os nervos exaltados.

Eles haviam chegado até a Universidade desta vez. O bibliotecário havia pendurado um na toca fétida forrada de livros que ele chamava de lar,26 e vários outros circulavam de forma oculta entre os próprios magos.

O artista havia produzido uma obra de arte. Nos braços de Victor, tendo como fundo uma cidade em chamas, Ginger fora retratada não apenas mostrando quase tudo o que ela tinha, mas muito do que ela, no sentido exato da palavra, não tinha.

O efeito sobre os magos foi tudo o que Dibbler poderia ter esperado. Na Sala Incomum, o cartaz foi passado de mão em mão trêmula, como se fosse explodir.

—    Tem uma garota que tem um tchan — disse o Presidente da Cadeira de estudos Indefinidos. Ele era um dos magos mais gordos, tão estofado que parecia fazer jus ao cargo. Sua aparência dava a impressão de que ele tinha crina de cavalo saindo para fora de remendos gastos.

—    O que é um "tchan", presidente? — perguntou outro mago.

—    Ah, você sabe. Um tchan. Sex appeal. O velho fiu-fiu. — eles o observavam com educação e expectativa, como pessoas esperando o final da piada. — Puxa vida, vocês querem que eu soletre?

 

  1. Na verdade, ele a chamava de "oook". Mas, provavelmente, traduzindo, significaria "lar".

 

—    Ele está falando de magnetismo sexual — explicou alegremente o Conferencista sobre Runas Recentes. — A sedução de bustos libertinos macios e coxas enormes pulsantes, e os frutos proibidos do desejo que...

Alguns magos tiraram a cadeira de perto dele, com cuidado.

—    Ah, sexo — começou o Decano de Pentagramas, interrompendo o Conferencista sobre Runas Recentes logo de cara. — Tem um excesso muito grande disso hoje em dia, na minha opinião.

—    Ah, não sei — discordou o conferencista. ele parecia saudoso.

O barulho acordou Windle Poons, que cochilava em sua cadeira de rodas perto da lareira. Havia sempre um fogo estrondoso na Sala Incomum, fosse verão ou inverno.

—    Que-que-foi? — ele perguntou.

O decano se inclinou na direção de um ouvido.

—    Eu estava dizendo — ele disse, alto — que nós não sabíamos o significado da palavra "sexo" quando éramos jovens.

—    É verdade. É bem verdade — concordou Poons. Ele ficou olhando para as chamas com uma expressão de reflexão. — Nós chegamos a, mm, descobrir, você se lembra?

Houve um momento de silêncio.

—    Digam o que quiserem, ela é uma jovem muito bem—apessoada — observou o conferencista em tom de desafio.

—    Várias jovens — disse o decano.

Windle Poons olhou com atenção, mas sem firmeza, para o cartaz.

—    Quem é o jovem rapaz?

—   Que jovem rapaz? — perguntaram alguns magos.

—    Ele está no centro do desenho — observou Poons. — está segurando ela nos braços.

Eles olharam novamente.

—    Ah, ele — disse o presidente, com desprezo.

—    Parece-me que eu, mm, já o vi antes — comentou Poons.

—    Meu querido Poons, espero que o senhor não esteja fugindo para ver as imagens animadas — disse o decano, abrindo um largo sorriso para os outros. — O senhor sabe que e degradante para um mago freqüentar locais de entretenimento comum. O arqui-reitor ficaria muito bravo conosco.

—    Que-que foi? — perguntou Poons, fazendo uma concha com a mão em torno do ouvido.

—    Ele realmente parece um pouco familiar, agora que você mencionou — concordou o decano, observando o cartaz.

O Conferencista sobre Runas Recentes pôs a cabeça para o lado.

—    É o jovem Victor, não?

—    Hã? — disse Poons.

—    Sabe, você pode estar certo — concordou o Presidente da Cadeira de estudos Indefinidos. — ele tinha o mesmo bigode fino.

—    Quem é esse? — perguntou Poons.

—    Mas ele era aluno aqui. Ele poderia ser um mago — observou o decano. — Por que ele ia querer partir para acariciar jovens mulheres?

—    É Victor, sim, mas não o nosso Victor. Diz aqui que ele e "Victor Maraschino" — disse o presidente.

—    Ah, é só nome de clique — explicou o conferencista, sem dar muita importância. — eles todos têm nomes engraçados assim. Dolores Dos Pecados, Blanche Lânguida, Rocha Penhasco e assim por diante... — ele percebeu que olhavam para ele com olhar acusador. — Pelo menos foi o que me disse — tentou consertar — o faxineiro. ele vai ver cliques quase toda noite.

—    Do que é que você está falando? — perguntou Poons, balançando a bengala.

—    O cozinheiro vai toda noite também — disse o presidente. — Assim como a maioria dos funcionários da cozinha. e só tentar pedir um sanduíche de presunto depois das nove pra ver.

—    Quase todo mundo vai — disse o conferencista. — Menos a gente.

Um dos outros magos olhou com atenção para a parte de baixo do cartaz.

—    Está escrito aqui: "Uma Saga de Paixão e Amplas escadarias na Turbulenta História de Ankh-Morpork!"

—    Ah. é histórico, então, é? — disse o conferencista.

—    E diz aqui: "Uma História de Amor épica que Impressionou Deuses e Homens!!!"

—    Oh? Religioso também.

—    E diz: "Com mil elefantes!!!"

—    Ah. Os animais selvagens. Sempre muito educativa, ávida dos animais selvagens — disse o presidente, lançando um olhar apreensivo para o decano. Os outros magos faziam o mesmo.

—    Parece-me — começou o conferencista, devagar — que ninguém poderia objetar que magos experientes vissem uma obra de interesse histórico, religioso e... e... selvático.

—    As regras da Universidade são muito específicas — disse o decano, mas não muito entusiasmado.

—    Mas, com certeza, voltadas apenas para os alunos — completou o conferencista. — Posso entender muito bem que alunos não tenham permissão para assistir a algo assim. Eles provavelmente ficariam assobiando e atirando coisas na tela. Mas não poderia ter sido sugerido de forma séria, não é, que magos experientes como nós não pudessem examinar esse fenômeno popular.

A bengala agitada de Poons acertou o decano em cheio na parte de trás das pernas.

—    Exijo saber do que todos vocês estão falando! — gritou.

—    Não entendemos por que magos experientes não poderiam ter permissão para assistir a imagens animadas! — berrou o presidente.

—    É uma maravilha mesmo! — disse Poons, irritado. — Todo mundo gosta de olhar para uma mulher bonita.

—    Ninguém falou nada de mulher bonita. estamos muito mais interessados em examinar fenômenos populares — observou o presidente.

—    Chame do que quiser, KÍH? — Windle Poons disse e deu uma risadinha.

—    Se as pessoas virem magos saindo pelo portão para ir a uma sala comum de imagens animadas perderão todo o respeito pela profissão — observou o decano. — Não se trata sequer de magia propriamente. São apenas truques.

—    Quer saber? — disse um dos magos inferiores, pensativo. — Sempre quis saber o que são esses malditos cliques. Alguma espécie de show de marionetes, é? essas pessoas atuam num palco? Ou jogo de sombras?

—    Está vendo? — começou o presidente. — Temos que ser sábios e nem sabemos do que se trata.

Todos olharam para o decano.

—    É, mas quem e que quer ver um monte de jovens mulheres dançando de roupas justas? — perguntou, sem esperanças.

Ponder Stibbons, o mago pós-graduado mais sortudo da história da Universidade, passeava contente perto da entrada secreta por cima do muro. Sua mente normalmente despovoada estava prazerosamente inundada de pensamentos de cerveja, talvez uma visita aos cliques e um curry klatchiano superquente para completar a noite e depois...

Foi o segundo pior momento da sua vida.

Eles estavam todos lá. Todos os funcionários superiores. Até o decano. Até o velho Poons em sua cadeira de rodas. Todos parados nas sombras, olhando para ele com ar muito severo. A paranóia começou a soltar fogos dentro da lata de lixo da sua mente. Eles estavam todos só esperando por ele. Ele ficou paralisado.

O decano falou.

—    Oh. Oh. Oh. e... Ah. Um. Um — começou, e depois pareceu conseguir alcançar a própria língua. — Oh. O que é isso? Em frente, neste minuto, aquele homem!

Ponder hesitou. Depois saiu correndo. Depois de algum tempo, o conferencista disse:

—    Aquele era o jovem Stibbons, não era? Ele foi embora?

—    Acho que sim.

—    Ele vai contar para alguém, com certeza.

—    Não vai, não — disse o decano.

—    Você acha que ele viu de onde tiramos os tijolos?

—    Não, eu estava na frente dos buracos — disse o presidente.

—    Vamos lá, então. Onde estávamos?

—    Olha, eu realmente acho que isto é insensato demais — disse o decano.

—    Fica quieto, meu velho, e segura este tijolo.

—    Muito bem, mas me diga uma coisa: qual e a sua sugestão para passar a cadeira de rodas?

Eles olharam para a cadeira de rodas de Poons.

Existem cadeiras de rodas que são leves e projetadas para permitir a seus donos agir de forma plena e independente na sociedade moderna. Comparadas à coisa usada por Poons, eram como gazelas diante de um hipopótamo. Poons estava muito consciente de sua função na sociedade moderna, ou seja, ser empurrado por toda parte e ceder diante de qualquer empecilho.

Sua cadeira era larga, comprida e guiada por meio de uma pequena roda dianteira e uma longa alavanca de ferro fundido. O ferro fundido, na verdade, tinha sido amplamente usado em sua construção. Partes de relevos barrocos enfeitavam sua estrutura, que parecia ter sido feita com canos de esgoto de ferro soldados. Na verdade, as rodas traseiras não tinham lâminas cortantes afixadas a elas, mas davam a impressão de que poderiam ser opcionais extras. Tinha várias alavancas horríveis cujo propósito apenas Poons conhecia. Havia também um capo de lona que podia ser levantado em questão de horas para proteger o ocupante de chuvas, tempestades e, provavelmente, chuvas de meteoros e implosões de edifícios. A fim de proporcionar algum alívio, a alavanca da frente era enfeitada com um conjunto de cometas, buzinas e apitos, com os quais Poons costumava anunciar seu avanço pelos corredores e pátios da Universidade. Porque o fato era que, embora a cadeira de rodas precisasse de todos os esforços de um homem bastante forte para movê-la, uma vez em movimento, era impossível detê-la. Podia até ter freios, mas Poons jamais se preocupou em procurá-los. Os funcionários e os estudantes sabiam que, caso ouvissem uma buzina ou pancada por perto, a única esperança de sobrevivência era se espremer contra a parede mais próxima até que o temido veículo passasse fazendo seus ruídos.

—    Nós nunca vamos conseguir carregar isso — disse o decano com firmeza. — Deve pesar pelo menos uma tonelada. em todo caso, teríamos que deixá-lo mesmo. É velho demais pra esse tipo de coisa.

—    Quando eu era rapaz, eu pulava esse muro, mm, toda noite —contou Poons, ressentido, ele deu uma risadinha. — Nós aprontávamos muito naquela época, vou dizer uma coisa. Se eu tivesse um centavo, mm, para cada vez que a Guarda me perseguiu até a minha casa — seus lábios antigos se mexeram num furor súbito para calcular algo —, eu teria cinco centavos e meio.

—    Talvez se nós... — começou o presidente, e depois disse:

—    Como assim, cinco centavos e meio?

—    Lembro que uma vez eles desistiram no meio do caminho — explicou Poons, contente. — Ah, aqueles tempos e que eram bons. eu lembro que eu e o velho Riktor "Números" e "Tudgy" Spold escalamos o Templo dos Pequenos Deuses, sabe, no meio de uma cerimônia, Tudgy estava com o seu porquinho dentro de um saco, e ele...

—    Viu o que você fez? — reclamou o conferencista. — Você deu corda nele agora.

—    Nós poderíamos tentar erguê-la por meio de magia — sugeriu o presidente. — O elevador Sem esforço de Gindle resolveria o problema.

—    ... e aí o sumo sacerdote se virou e... heh, a cara que ele fez! e depois o velho Números disse: "Vamos..."

—    Não se pode dizer que e um uso muito nobre da magia — o decano torceu o nariz.

—    Consideravelmente mais nobre do que nós mesmos erguermos a maldita coisa por cima do muro, não? — disse o conferencista, arregaçando as mangas. — Vamos, rapazes.

—   ... e quando fomos ver, Pimple estava chutando a porta do Grêmio dos Assassinos. Depois o velho Scummidge, que era o porteiro lá, hehe, ele era um verdadeiro terror, bom, ele veio lá de dentro, mm, e os guardas estavam chegando à esquina...

—    Todos prontos? Certo!

—... o que me faz lembrar da vez em que eu e Framer "Pepino" pegamos um pote de cola e fomos...

—    Levanta a sua ponta, decano!

Os magos resmungavam ao fazer esforço.

—    ... e, mm, lembro como se fosse ontem, a cara que ele fez quando...

—    Agora vão abaixando!

As rodas revestidas de ferro tiniram suavemente ao tocar os paralelepípedos do beco.

Poons balançava a cabeça com uma expressão cordial.

—    Bons tempos, bons tempos — ele murmurou e adormeceu.

Os magos escalaram o muro devagar e sem firmeza. Amplos traseiros brilharam ao luar. e ficaram parados do outro lado, levemente ofegantes.

—    Me diga uma coisa, decano — começou o conferencista, apoiando-se no muro para as pernas pararem de tremer —, nós chegamos a... aumentar... o muro nos últimos 50 anos?

—    Acho... que... não.

—    Estranho. Costumava subir nele como uma gazela. Não muitos anos atrás. Não muitos mesmo.

Os magos enxugaram a testa e se entreolharam, encabulados.

—    Costumava dar uma escapada para um drinque ou dois quase toda noite — disse o presidente.

—    Eu costumava estudar todas as noites — disse o decano com orgulho.

O presidente apertou os olhos.

—    Sim, você sempre estudava. Eu me lembro.

Os magos começavam a se dar conta de que estavam fora da Universidade, à noite e sem permissão, pela primeira vez depois de décadas. Uma certa excitação reprimida estalou em cada um deles. Qualquer observador treinado em leitura da linguagem corporal estaria pronto para apostar que, depois do clique, alguém sugeriria que eles poderiam ir a algum lugar para tomar alguma coisa, e depois alguém teria a idéia de jantar, e depois havia sempre espaço para mais alguns drinques, depois já seriam cinco da manha, e os guardas municipais iriam bater aos portões da Universidade, de forma respeitosa, para perguntar se o arqui-reitor gostaria de ir até as celas para identificar alguns pretensos magos que cantavam uma música obscena numa harmonia em seis vozes. e talvez ele também gostaria de levar algum dinheiro para pagar por todos os estragos. Porque dentro de toda pessoa de idade existe um jovem se perguntando o que aconteceu.

O presidente ergueu a mão e segurou a aba do seu chapéu de mago alto, largo e desengonçado.

—    Certo, rapazes. Tirando o chapéu.

Eles tiraram o chapéu, mas com relutância. Os magos se tornam muito apegados a seus chapéus pontudos. O chapéu lhes dá um senso de identidade. Porém, como o presidente havia observado antes, se as pessoas sabiam que você era um mago por causa do chapéu pontudo, se você o tirasse, elas pensariam que você era apenas um comerciante rico ou algo do tipo.

O decano estremeceu.

—    Parece que tirei todas as minhas roupas.

—    Podemos enfiá-los debaixo do cobertor do Poons — sugeriu o presidente. — Ninguém saberá que somos nós.

—    Sim — concordou o conferencista —, mas nós saberemos?

—    Vão pensar que somos apenas... bem... cidadãos pacatos.

—    É exatamente como me sinto — concordou o decano. — Um cidadão pacato.

—    Ou comerciantes — disse o presidente. ele alisou o cabelo branco. — Lembrem-se, se alguém disser alguma coisa, não somos magos. Apenas comerciantes honestos que saíram para uma noite agradável, certo?

—    Qual e a aparência de um comerciante honesto? — perguntou um mago.

—    Como e que eu vou saber? — rebateu o presidente. — Ninguém deve fazer nenhuma magia — continuou. — Não preciso dizer a vocês o que acontecerá se o arqui-reitor ficar sabendo que seu corpo docente foi visto em locais de entretenimento comum.

—    Estou mais preocupado com a possibilidade dos nossos descobrirem — o decano estremeceu.

—    Barbas falsas — sugeriu o conferencista num tom triunfante.

—    Podemos usar barbas falsas.

O presidente revirou os olhos.

—    Nós todos Temos barba. Que espécie de disfarce seriam as barbas falsas?

—    Ah! esse é o toque de esperteza — disse o conferencista.

—    Ninguém desconfiaria que uma pessoa usando uma barba falsa teria uma barba de verdade por baixo, certo?

O presidente abriu a boca para contestar, mas depois hesitou.

—    Bem...

—    Mas onde conseguiríamos barbas falsas a esta hora da noite? —perguntou um mago num tom incerto.

O conferencista abriu um sorriso e enfiou a mão no bolso.

—    Não precisamos. Este é o verdadeiro toque de esperteza. Eu trouxe um pouco de arame, certo, e tudo o que precisamos fazer e tirar dois pedaços, passar por dentro das costeletas, depois dar a volta pelas orelhas de um jeito bem malfeito assim — ele demonstrou — e pronto.

O presidente ficou olhando.

—    Fantástico. É verdade! Você parece exatamente alguém que colocou uma barba falsa muito malfeita.

—    Impressionante, não? — disse o conferencista, contente, passando o arame para os outros. — é cabeçologia, sabe.

Houve alguns minutos de muito ruído metálico e uma ou outra reclamação quando um mago se perfurava com o arame, mas eles finalmente ficaram prontos. Entreolharam-se com timidez.

—    Se tivéssemos uma fronha sem travesseiro e a colocássemos dentro do manto do presidente, deixando a parte de cima aparecer, ele ficaria igual a um homem magro tentando parecer tremendamente gordo com um travesseiro enorme — disse um deles com entusiasmo. Seu olhar encontrou o do presidente, e ele ficou quieto.

Dois magos seguraram as alças da terrível cadeira de rodas de Poons e a empurraram, fazendo um ruído estrondoso pelos paralelepípedos molhados.

—    Que foi isso? O que todo mundo está fazendo? — perguntou Poons, acordando de repente.

—    Vamos fazer o papel de cidadãos pacatos — respondeu o decano.

—    Essa brincadeira é boa — disse Poons.

— Está me ouvindo, meu amigo?

O tesoureiro abriu os olhos.

O ambulatório da Universidade não era muito grande e raramente era usado. Os magos tinham a tendência de estar com uma saúde de ferro ou mortos. Os únicos remédios que costumavam usar eram um antiácido e um quarto escuro até a hora do almoço.

—    Trouxe uma coisa para você ler — disse a voz timidamente.

O tesoureiro conseguiu enxergar a lombada de Aventuras com Besta e Vara.

—    Pancada feia a que você levou, tesoureiro. Ficou adormecido o dia todo.

O tesoureiro olhou com a visão embaçada para a nuvem rosa e alaranjada que foi se definindo aos poucos até formar o rosto rosa e alaranjado do arqui-reitor.

"Vejamos", pensou, "como foi exatamente que eu..." ele se sentou com as costas retas de repente, agarrou o manto do arqui-reitor e gritou na sua cara rosa e alaranjada:

—    Algo terrível está para acontecer!

 

Os magos caminhavam pelas ruas sombrias. Até o momento, o disfarce funcionava perfeitamente. As pessoas até davam cotoveladas neles. Ninguém jamais deu cotoveladas propositais num mago. A experiência era totalmente nova.

Havia uma multidão enorme diante da entrada do Odium e uma fila que se estendia rua abaixo. O decano ignorou tudo isso e levou o grupo direto até as portas, onde alguém disse: "Opa!"

Ele ergueu a cabeça e viu um troll de rosto vermelho com um traje que parecia militar e não lhe servia bem. Tinha dragonas do tamanho de tambores e não tinha calça.

—    Sim?

—    Tem uma fila, sabia? — disse o troll.

O decano consentiu com educação. Em Ankh-Morpork, uma fila era, quase por definição, uma coisa com um mago na frente. — estou vendo. Isso é muito bom mesmo. E, se você fizer a gentileza de chegar para o lado, nós gostaríamos de tomar nossos lugares.

O troll lhe deu um cutucão no estômago.

—    O que cê pensa que é? Um mago ou coisa do tipo? — Isso provocou risos das pessoas mais próximas na fila.

O decano chegou mais perto dele.

—    Para dizer a verdade, nós somos magos — sussurrou.

O troll deu um sorriso mostrando os dentes para ele.

—    Não adianta tentar me enrolar — disse. — eu tô vendo a sua barba falsa.

—    Escute aqui... — começou o decano, mas sua voz se transformou num guincho incoerente quando o troll o ergueu pela gola de seu manto e o impulsionou para a rua.

—    Você entra na fila como qualquer outra pessoa. Houve um coro de zombarias proveniente da fila.

O decano resmungou e ergueu a mão direita com os dedos estendidos...

O presidente segurou seu braço.

— Ah, sim — sussurrou. — Isso ajudaria muito, não? Venha.

—    Para onde?

—    Para o fim da fila!

—    Mas nós somos magos! Magos nunca ficam na fila para nada!

—    Somos comerciantes honestos, lembra? — corrigiu o presidente. ele olhou para o fã de cliques mais próximo, que olhava para eles com uma expressão estranha. — Somos comerciantes honestos — repetiu mais alto e cutucou o decano. — Vai — sussurrou.

—    Aonde?

—    Vai, diz alguma coisa comercial.

—    O que é isso? — perguntou o decano, confuso.

—    Diga alguma coisa!'Todo mundo está olhando pra gente!

—    Oh. — O rosto do decano se contraiu de pânico e, em seguida, a salvação foi elucidada. — Lindas maçãs. Peguem enquanto estão quentes. estão uma belezura... Assim está bom?

—    Acho que sim. Agora vamos para o fim...

Houve uma agitação do outro lado da rua. As pessoas vinham correndo. A fila saiu de forma e partiu para o ataque. De repente, os comerciantes honestos estavam cercados por uma multidão que se acotovelava desesperadamente.

—    Uau, isso é uma fila— disse o Comerciante Honesto de Runas Recentes, receoso, ao ser empurrado para o lado.

O decano agarrou pelo ombro um menino que lhe dava cotoveladas furiosamente.

—    O que está acontecendo, rapazinho? — perguntou.

—    Eles estão chegando! — gritou o menino.

—    Quem?

—    Os astros!

Os magos olharam para cima num movimento sincronizado.

—    Não estão, não — disse o decano, mas o menino tinha conseguido se soltar e desaparecera na multidão. — estranha superstição primitiva — continuou, e os magos, com exceção de Poons, que reclamava e balançava a bengala, esticaram o pescoço para ver.

O tesoureiro encontrou o arqui-reitor no corredor.

—    Não tem ninguém na Sala Incomum! — gritou o tesoureiro.

—    A Biblioteca está vazia! — berrou o arqui-reitor.

—    Já ouvi falar nesse tipo de coisa — o tesoureiro se lamentou. — Alguma-coisa-espontânea. Eles todos ficaram espontâneos!

—    Acalme-se, homem. Só porque...

—    Não consigo encontrar nenhum dos empregados! Você sabe o que acontece quando a realidade cede o seu lugar! Agora mesmo tentáculos gigantes devem estar...

Houve um ruído de whumm... whumm distante e o som de balas de chumbo batendo na parede.

—    Sempre na mesma direção — murmurou o tesoureiro.

—    E que direção e essa?

—    A direção pela qual eles chegarão! Acho que estou enlouquecendo!

—    Ora, ora — disse o arqui-reitor, dando tapinhas em seu ombro. — Você não quer andar por aí falando desse jeito. Isso é conversa de maluco.

Ginger ficou olhando, em pânico, pela janela da carruagem.

—    Quem são todas essas pessoas?

—    São fãs — respondeu Dibbler.

—    Mas eu não estou com calor!27

—    Meu tio quer dizer que são pessoas que gostam de ver vocês nos cliques — explicou Soll. — e... Gostam muito de vocês.

—    Tem mulheres aí também — disse Victor. ele deu um aceno cuidadoso. Na multidão, uma mulher desmaiou. — Você é famosa. Você disse que sempre quis ser famosa.

Ginger olhou para a multidão novamente.

—    Mas eu nunca achei que seria assim. Estão todos gritando os nossos nomes!

—    Nós nos esforçamos muito para avisar às pessoas sobre e O Sopro Carregou — observou Soll.

—    Sim — concordou Dibbler. — Dissemos que era o maior clique de toda a história de Holy Wood.

—    Mas só fazemos cliques há uns dois meses — observou Ginger.

—    E daí? Não deixa de ser uma história — disse Dibbler.

Victor viu a expressão no rosto de Ginger. Exatamente qual era a duração da verdadeira história de Holy Wood? Talvez houvesse algum calendário de pedra antigo, lá no fundo do mar, entre as lagostas. Talvez não existisse uma forma de medi-la. Como é que se contava a idade de uma idéia?

—    Muitas das mais importantes autoridades da cidade estarão presentes também — avisou Dibbler. — O Patrício, os nobres, os chefes dos grêmios e alguns dos sumo sacerdotes. Não os magos, claro, os velhos idiotas convencidos. Mas será uma noite para ficar na lembrança, sem sombra de dúvida.

—    Teremos que ser apresentados a todos eles? — perguntou Victor.

—    Não. eles serão apresentados a vocês. Será a maior emoção da vida deles.

Victor olhou para a multidão mais uma vez.

—    É imaginação minha ou está ficando nebuloso?

Poons acertou o presidente na batata da perna com a bengala.

—    O que está acontecendo? Por que está todo mundo aplaudindo?

—    O Patrício acabou de sair da carruagem — disse o presidente.

 

  1. Fan do original em inglês, significa tanto "fã" como "ventilador". (N. T.)

 

—    Não vejo nada de maravilhoso nisso. Eu já saí de carruagens centenas de vezes. Não é preciso nenhuma habilidade especial.

—    É um pouco estranho — admitiu o presidente. — e eles aplaudiram o chefe do Grêmio dos Assassinos e o sumo sacerdote de Io Cego também, e agora alguém estendeu um tapete vermelho.

—    O quê, na rua? em Ankh-Morpork?

—    Sim.

—    Não gostaria de ter a conta da lavanderia deles — disse Poons.

O Conferencista sobre Runas Recentes deu um cutucão nas costelas do presidente, ou pelo menos na área em que as costelas estavam cobertas por 50 anos de ótimos jantares.

—    Quieto! — sussurrou. — eles estão chegando!

—    Quem?

—    Pessoas importantes, pelo jeito.

O rosto do presidente se contraiu de pânico por trás de sua barba verdadeira falsa.

—    Você não acha que eles convidaram o arqui-reitor, acha?

Os magos se encolheram dentro de seus mantos, como tartarugas na vertical.

Na verdade, a carruagem era muito mais impressionante do que qualquer um dos artigos caindo aos pedaços das dependências da Universidade. A multidão correu para a frente, lançando-se contra a fileira de trolls e guardas municipais, e ficou olhando cheia de expectativa para a porta da carruagem. Até o ar tinha um zunido de ansiedade.

O senhor Bezam, com o peito tão inflado por se sentir importante que parecia flutuar acima do chão, foi até a porta da carruagem e a abriu.

A multidão prendeu a respiração coletiva, cora exceção de uma pequena parte dela que cutucava as pessoas ao redor com a bengala, perguntando: "O que está acontecendo? O que se passa? Por que ninguém quer me dizer o que está acontecendo?exijo que alguém me diga, mm, o que está acontecendo".

A porta ficou fechada. Ginger segurava a maçaneta com força, como se ela fosse uma corda salva-vidas.

—    Tem milhares deles aí fora! — ela disse. — Não posso sair daqui!

—    Mas todos assistem aos seus cliques — argumentou Soll. — São o seu público.

—Não!

Soll ergueu as mãos.

—    Você não pode convencê-la? — pediu a Victor.

—    Nem tenho certeza se sou capaz de convencer a mim mesmo.

—    Mas vocês passaram dias diante dessas pessoas — argumentou Dibbler.

—    Eu, não — contestou Ginger. — era só você, o operador de manivelas, os trolls e o resto do pessoal. era diferente. Mesmo assim, aquela não era eu — acrescentou. — era Dolores Dos Pecados.

Victor mordeu o lábio, pensativo.

—    Talvez então você tenha que mandar a Dolores dos Pecados lá pra fora.

—    Como vou fazer isso? — ela perguntou.

—    Bom... por que não fingir que isto é um clique...?

Os Dibblers, tio e sobrinho, se entreolharam. Então Soll pôs as mãos ao redor do rosto, como se fosse a abertura da caixa de imagens, e Dibbler, depois de um cutucão sugestivo, colocou a mão sobre a cabeça do sobrinho e girou uma manivela invisível na sua orelha.

—    Ação! — comandou.

A porta da carruagem se abriu.

A multidão ficou ofegante, como se fosse uma montanha inspirando o ar. Victor desceu, estendeu o braço e pegou a mão de Ginger...

A multidão entrou em êxtase, enlouquecida.

O conferencista mordeu os dedos de tanta emoção. O presidente fez um estranho ruído rouco no fundo da garganta.

—    Sabe quando você perguntou o que um menino poderia querer fazer que fosse melhor do que se tornar um mago? — ele disse.

—    Um verdadeiro mago só deveria se interessar por uma coisa — murmurou o decano. — Você sabe disso.

—    Ah, eu sei.

—    Eu estava me referindo à magia.

O presidente olhou para as figuras que se aproximavam.

—    Sabe de uma coisa, aquele é o jovem Victor. Posso jurar.

—    Isso e repugnante — observou o decano. — Imagine, escolher ficar ao lado de mulheres bonitas quando poderia ter se tornado um mago.

—    É. Que tolo — concordou o Conferencista sobre Runas Recentes, que tinha dificuldade para respirar.

Houve uma espécie de suspiro comum.

—    Mas você tem que admitir que ela é um pedaço de mau caminho — insistiu o presidente.

—    Eu sou um homem idoso e, se alguém não me deixar ver logo — começou uma voz estridente atrás dele —, alguém vai sentir o outro lado da minha, mm, bengala, está certo?

Dois dos magos chegaram para o lado e passaram com a cadeira de rodas. Assim que conseguiu sair do lugar, ela foi parar bem na beirada do tapete vermelho, deixando roxos todos os joelhos e tornozelos que estavam no caminho.

O queixo de Poons caiu.

Ginger segurou firme a mão de Victor.

—    Tem um grupo de homens velhos e gordos com barbas falsas acenando para você ali — ela disse através dos dentes apertados e sorrindo.

—    Sim, acho que são magos.

Victor sorriu também.

—    Um deles não pára de pular na cadeira de rodas, gritando coisas como: "Ueba!", "Oi—Oi!" e "Upa—upa!".

—    Esse é o mago mais velho do mundo — disse Victor. Ele acenou para uma senhora gorda na multidão, que desmaiou.

—    Nossa! Como ele era 50 anos atrás?

—    Bom, para começar, ele tinha oitenta anos.28 Não jogue um beijinho para ele!

A multidão urrava de admiração.

—    Ele parece ser meigo.

—    Continue apenas sorrindo e acenando.

 

  1. Os magos que conseguem evitar os galanteios cobiçosos de outros magos tendem a viver por mais tempo. Aparentemente um tempo muito maior.

 

—    Oh, deuses, olha quanta gente esperando pra ser apresentada pra gente!

—    Estou vendo.

—    Mas eles são importantes!

—    Bom, e nós também. Acho.

—    Por quê?

—    Porque nós somos nós. É como você disse aquele dia na praia. Nós somos nós, só que é como se tivessemos o máximo da importância que poderíamos ter. É exatamente o que você queria. Nós somos... - ele parou.

O troll à porta do Odium fez um cumprimento hesitante para ele. O baque de sua mão batendo na orelha pôde ser ouvido com clareza acima do estrondo da multidão...

Gaspode atravessava um beco bamboleando em alta velocidade, com Laddie trotando obediente em seus calcanhares. Ninguém tinha notado quando eles pularam — ou, no caso de Gaspode, caiu — da carruagem.

—    Passar a noite toda num buraco apertado não é o que eu espero de uma boa noitada — resmungou Gaspode. — Aqui é a cidade grande. Não é Holy Wood. Fica perto de mim, cachorrinho, e você vai ficar bem. Primeira parada, a porta dos fundos da Casa das Costelas de Harga. Eles me conhecem lá, está bem?

—    Bom garoto Laddie!

—    É isso aí — disse Gaspode.

—    Olha o que ele está vestindo! — disse Victor.

—    Um terno de veludo vermelho com galões dourados — observou Ginger com o canto da boca. — e daí? Uma calça teria sido uma boa idéia.

—    Oh, deuses — sussurrou Victor. eles entraram no salão iluminado do Odium.

Bezam tinha caprichado. Trolls e anões haviam virado a noite trabalhando para terminar a reforma.

Havia cortinas de pelúcia vermelha, pilastras e espelhos. Querubins rechonchudos e frutas variadas, pintados de dourado, pareciam cobrir todas as superfícies. Era como entrar numa caixa de bombons muito cara.

Ou num pesadelo. Victor meio que esperava ouvir o barulho do mar e ver cortinas caindo com uma mancha de lodo preto.

—    Oh, deuses — repetiu.

—    O que há com você? — perguntou Ginger, sorrindo fixamente na direção da fila de autoridades importantes da cidade que esperavam para ser apresentadas a eles.

—    Espere e verá — ele respondeu com a voz rouca. — É Holy Wood! Holy Wood foi trazida para Ankh-Morpork!

—    Sim, mas...

—    Você não se lembra de nada? Aquela noite na colina? Antes de você acordar?

—    Não. Eu já disse.

—    Espere e verá — repetiu Victor. Ele viu um cavalete decorado encostado numa parede.

Estava escrito: "Três sessões por dia!"

E ele pensou em dunas, mitos antigos e lagostas.

A produção de mapas nunca foi uma arte muito precisa no Disco. As pessoas tendiam a começar com boas intenções e depois ficavam tão empolgadas com as baleias esguichando água, monstros, ondas e outros elementos decorativos da cartografia que geralmente se esqueciam completamente de colocar os tediosos rios e montanhas.

O arqui-reitor colocou um cinzeiro transbordando sobre um canto que ameaçava se enrolar. ele passou o dedo pela superfície empoeirada.

—    Aqui diz: "Aqui há dragões". e é bem dentro da cidade. estranho, isso.

—    Isso e só o Santuário Raio de Sol para Dragões Doentes de Lady Ramkin — explicou o tesoureiro, sem dar muita atenção.

—    e aqui tem "Terra Incógnita" — disse o arqui-reitor. — Por que isso?

O tesoureiro esticou o pescoço para ver. —Ah, isso aí provavelmente e mais interessante do que colocar um monte de plantações de repolho.

—    e aqui tem "Aqui há dragões" mais uma vez.

—    Acho que isso e só uma mentira, na verdade.

O dedão calejado do arqui-reitor continuou na direção que eles haviam calculado. ele limpou algumas manchas deixadas por moscas.

—    Absolutamente nada aqui — disse, examinando mais de perto. — Só o mar. e... — ele apertou os olhos — Holy Wood. Significa alguma coisa?

—    Não foi para lá que foram todos os alquimistas? — perguntou o tesoureiro.

—    Ah, aqueles lá.

—    Acho — começou o tesoureiro, devagar — que eles não estariam fazendo magia por lá...

—    Alquimistas. Fazendo magia?.

—    Desculpe. Idéia ridícula, eu sei. O faxineiro me contou que eles fazem uma espécie de... ah... jogo de sombras ou algo assim. Ou fantoches. Ou algo do gênero. Imagens. Ou algo do tipo. eu não estava prestando atenção, na verdade. Também... alquimistas. Francamente! Sabe, assassinos... sim. Ladrões... sim. Até comerciantes... os comerciantes podem ser muito malandros às vezes. Mas alquimistas... estou para ver pessoas mais desapegadas, estabanadas, bem—intencionadas... — Sua voz falhou quando seus ouvidos alcançaram a boca. — eles não ousariam, ousariam? Ousariam? — O Tesoureiro deu uma risada insincera. — Não—o—o. eles não ousariam! eles sabem que nós cairíamos em cima deles com mil pedras nas mãos se tentassem alguma magia por aqui... — A voz dele falhou novamente. — Tenho certeza de que não tentariam. Quer dizer, mesmo tão longe. eles não ousariam. Não magia. Será que não? eu nunca confiei naqueles desgraçados de mãos sujas! eles não são como nós, sabe. Não têm nenhuma idéia do que e dignidade!

A multidão que se amontoava ao redor da bilheteria ficava mais volumosa e mais nervosa a cada minuto.

—    Bem, você já olhou em todos os bolsos? — perguntou o presidente.

—    Sim! — resmungou o decano.

—    Olhe de novo então.

Até onde os magos sabiam, pagar para entrar em qualquer coisa era algo que só acontecia com os outros. Um chapéu pontudo geralmente dava conta do recado.

enquanto o decano se esforçava, o presidente sorria com ar de louco para a moça que vendia ingressos.

—    Mas eu lhe garanto, cara senhorita — disse, desesperado —, que nós somos magos.

—    Estou vendo as suas barbas falsas — a moça disse e torceu o nariz. — Vemos todo tipo de gente aqui. Como vou saber se vocês não são três garotinhos usando o casaco do pai?

—    Madame!

—    Tenho dois dólares e 15 centavos — contou o decano, separando as moedas no meio de um punhado de fiapos e misteriosos objetos ocultos.

—    São dois na primeira fila, então — disse a mulher, separando duas entradas com má vontade. O presidente os retirou pela abertura.

—    então eu vou entrar com Windle — disse rápido, virando—se para os outros. — Infelizmente acho que vocês terão que ir atrás do seu comercio honesto. — ele mexeu as sobrancelhas para cima e para baixo de modo sugestivo.

—    Não entendo por que deveríamos... — começou o decano.

—    Por que, no fundo, não queremos entrar em dívidas — continuou o presidente, fazendo caretas, aflito. — e melhor mesmo vocês irem atrás.

—    Veja bem, aquele dinheiro era meu e... — começou o decano, mas o conferencista segurou seu braço.

—    Só me acompanhe — disse, piscando devagar e de modo intencional para o presidente. — Já estava na hora de irmos atrás... dos nossos negócios.

—    Não entendo por que... — resmungou o decano, enquanto era arrastado dali.

Nuvens cinzentas rodopiavam no espelho mágico do arqui-reitor. Muitos magos tinham espelhos, mas não se davam ao trabalho de usá-los. Eram objetos cheios de manias e nada confiáveis. Não pareciam muito bons sequer para fazer a barba.

Para surpresa geral, Ridcully era um adepto de seu uso.

—    Para espreitar — explicou de forma resumida. — Não suportaria ter que ficar me arrastando por aí entre plantas úmidas durante horas, caramba. Pegue uma bebida se estiver com sede, homem. E uma pra mim.

As nuvens bruxulearam.

—    Não consigo ver mais nada — disse. estranho, isso. Só neblina, refletindo um brilho. — O arqui-reitor tossiu. O tesoureiro estava começando a perceber, contrariando todas as expectativas, que o arqui-reitor era bastante inteligente. — Já viu alguma vez essas coisas de jogo de sombra, movimento de fantoche e imagens? — perguntou Ridcully.

—    Os empregados vão — disse o tesoureiro. Isso, Ridcully entendeu, significava "não".

—    Acho que deveríamos dar uma olhada.

—    Muito bem, arqui-reitor — concordou o tesoureiro, submisso.

Uma regra inviolável para os prédios que fazem apresentações de imagens animadas, aplicável em todo o multiverso, e que o horror da arquitetura na parte dos fundos seja inversamente proporcional ao esplendor da frente. Na frente: pilares, arcos, revestimento dourado e luzes. Nos fundos: tubos esquisitos, misteriosos deslocamentos de canos, paredes vazias e becos fétidos. e a janela dos lavatórios.

—    Não existe absolutamente nenhuma razão para fazermos isso — reclamou o decano, enquanto os magos andavam com dificuldade no escuro.

—    Cale a boca e continue empurrando — resmungou o conferencista do outro lado da janela.

—    Deveríamos ter transformado alguma coisa em dinheiro —disse o decano. —Apenas uma rápida ilusão. Que mal há nisso?

—    Chama-se emitir moeda sem aumento de lastro — observou o conferencista. — Você pode ser jogado no covil dos escorpiões por uma coisa dessas. Onde e que vou colocar os pés? Onde vou apoiar os meus?

—    Você está bem — disse um mago. — Certo, decano. Você vai subir.

—    Oh, céus — gemeu o decano, enquanto era arrastado através da janela estreita para dentro da escuridão desconhecida que tinha pela frente. — Isso não vai dar em nada de bom.

—    Só veja onde vai colocar os pés. está vendo o que você fez? Não disse para ver onde estava colocando os pés? Venha, fazer o quê.

Os magos entraram de fininho ou, no caso do decano, chapinhou de modo furtivo da área dos bastidores até o auditório escuro em alvoroço, onde Windle Poons mantinha alguns assentos livres por meio do simples recurso de balançar a bengala diante de qualquer um que se aproximava deles. eles se aproximaram em silêncio, tropeçando nas pernas uns dos outros, e se sentaram. Ficaram olhando para o retângulo cinza e sombrio no canto da sala.

Depois de algum tempo, o presidente disse:

—    Não sei o que as pessoas vêem nisso.

—    Alguém fez o "Coelho Deformado" ? — perguntou o conferencista.

—    Não começou ainda — sussurrou o decano.

—    Estou com fome — reclamou Poons. — Sou um homem idoso, mm, e estou com fome.

—    Sabe o que ele fez? — começou o presidente. — Sabe o que o velho idiota fez? Quando uma jovem com uma tocha nos levava até o nosso lugar, ele deu um beliscão nela, no... traseiro!

Poons deu uma risadinha silenciosa.

—    Upa—Upa! Sua mãe sabe que você está fora de casa? — gargalhou.

—    Tudo isso é demais para ele — reclamou o presidente. — Não deveríamos tê-lo trazido aqui.

—    Vocês se deram conta de que estamos perdendo o nosso jantar? — perguntou o decano.

Os magos ficaram em silêncio ao ouvir isso. Uma mulher robusta que passava perto da cadeira de rodas de Poons teve um sobressalto e olhou ao redor de repente, com ar de desconfiança, mas não viu nada a não ser um adorável velhinho — dormindo profundamente, é claro.

—    E as terças temos ganso — observou o decano.

Poons abriu um olho e apertou a buzina de sua cadeira de rodas.

—    Diabinhos! Sua avó não tem sabão em casa? — resmungou, triunfante.

—    Estão vendo o que estou dizendo? — insistiu o presidente. —ele não sabe em que século estamos.

Poons virou um olho grande e preto na direção dele.

—    Velho eu sou, mm, e louco posso ser, mas não vou ficar com fome. Ele remexeu nas profundezas indescritíveis da cadeira de rodas e tirou de lá um saco preto engordurado. O saco tinia. — Eu vi uma moça lá na frente vendendo comida especial de imagens animadas.

—    Quer dizer que você tinha dinheiro o tempo todo? — disse o decano. — e não contou pra gente?

—    Vocês não perguntaram.

Os magos lançaram olhares famintos para o saco.

—    Tem grãos estourados na manteiga, salsichas no pão, coisas de chocolate com coisas em cima e coisas — disse Poons. Ele fez uma expressão desdentada e astuta para eles. — Vocês podem comer um pouco também se quiserem — acrescentou com delicadeza.

O decano verificou as suas aquisições.

—    Bom, são seis tubos de grãos estourados tamanho Patrício com manteiga extra, oito salsichas no pão, um copo gigante de bebida efervescente e um saco de passas cobertas com chocolate —   ele entregou o dinheiro.

—    Certo — disse o presidente, recolhendo os recipientes.

—    E... Você acha que deveríamos comprar alguma coisa para os outros?

Na sala de lançamento de imagens, Bezam falava palavrões enquanto passava o tolo enorme de e O Sopro Carregou para dentro da caixa de lançamento de imagens.

A alguns metros dali, numa seção da galeria cercada por cordas, o patrício de Ankh-Morpork, lorde Vetinari, também estava irrequieto.

Eles eram, tinha que admitir, um casal bastante agradável. Só não sabia por que estava sentado ao lado deles e por que eram tão importantes.

Ele estava acostumado com pessoas importantes, ou pelo menos com pessoas que se achavam importantes. Os magos se tornavam importantes por meio de grandes feitos de magia. Os ladrões, por meio de roubos audaciosos, assim como, de um jeito um pouco diferente, os comerciantes. Os guerreiros se tornavam importantes por ganhar batalhas e continuar vivos. Os assassinos se tornavam importantes por meio de desumanizações habilidosas. Muitos caminhos levavam à notoriedade, mas todos podiam ser vistos, podiam ser compreendidos. Faziam algum sentido.

Por outro lado, essas duas pessoas haviam apenas se movido de forma interessante na frente desse mecanismo moderno das imagens animadas. O ator mais ordinário do teatro da cidade era um mestre multitalentoso da dramaturgia se comparado a elas. Mas não passaria pela cabeça de ninguém sair para as ruas e gritar o nome dele.

O Patrício nunca tinha ido ver um clique antes. Até onde havia averiguado, Victor Maraschino era famoso por uma espécie de olhar ardente que fazia senhoras de meia-idade — que deveriam ter vergonha na cara — desmaiar, e o forte da senhorita Dos Pecados era agir de modo sensual, dar tapas na cara e parecer fantástica ao se deitar entre almofadas de seda.

Ao passo que ele, patrício de Ankh-Morpork, governava a cidade, amava a cidade, odiava a cidade e passara uma vida inteira a serviço da cidade...

A medida que as pessoas comuns foram ocupando os assentos, seu ouvido afiado como uma navalha captou a conversa de duas delas:

—    Quem é aquele lá em cima?

— É o Victor Maraschino com a Dolores Dos Pecados! Você está por fora!

—    Estou falando daquele homem alto de preto.

—    Ah, ele não sei quem e. É só algum figurão, imagino. Sim, era fascinante. Você poderia ficar famoso apenas por ser... bem... famoso. Ele se deu conta de que aquilo poderia ser algo extremamente perigoso e que ele provavelmente teria que mandar matar alguém algum dia, ainda que com relutância.29

Antes disso, havia uma espécie de glória secundária que vinha do fato de estar na companhia de pessoas celebradas de verdade e, para seu espanto, ele estava gostando. Alem disso, estava sentado ao lado da senhorita Dos Pecados, e a inveja do resto do público era tão palpável que ele conseguia sentir o seu sabor, mais forte que o daquele saco cheio de coisas brancas fofinhas e engomadas que tinham dado para ele comer.

Do seu outro lado, o horroroso Dibbler explicava os mecanismos das imagens animadas, equivocadamente acreditando que o Patrício estivesse ouvindo uma palavra ao menos.

Houve um estrondo repentino de aplausos.

 

  1. Da parte dele, bem entendido. A relutância do outro lado provavelmente não precisa ser mencionada.

 

O Patrício se inclinou para o lado de Dibbler.

—    Por que todas as lâmpadas estão sendo apagadas? — perguntou.

—    Ah, senhor — começou Dibbler —, e para que se possa ver as imagens melhor.

—    Ah, e? Poderia se imaginar que assim seria mais difícil enxergar as imagens.

—    Não é assim com as imagens animadas, senhor.

—    Que fascinante.

O Patrício se inclinou para o outro lado, para Ginger e Victor. Para sua leve surpresa, estavam extremamente tensos. Ele havia notado isso assim que entrara no Odium. O rapaz olhava toda a decoração ridícula como se fosse algo terrível e, quando a garota entrou na espelunca, ele ouviu sua respiração ofegante.

Eles pareciam estar em estado de choque.

—    Imagino que tudo isso seja uma banalidade para vocês.

—    Não — respondeu Victor. — Na verdade, não. Nunca estivemos antes numa sala de exibição de cliques propriamente dita.

—    Exceto uma vez — corrigiu Ginger, de cara fechada.

—    Sim. exceto uma vez.

—    Mas, ah, você fazem imagens animadas — disse o Patrício num tom gentil.

—    É, mas nunca as vemos. Só vemos pedaços, quando o operador de manivela está colando tudo. Os únicos cliques que eu vi foram exibidos num lençol velho e mostrados ao ar livre.

—   Então isso tudo é novo para vocês?

—    Não exatamente — disse Victor com uma expressão triste.

—    Fascinante — comentou o Patrício, e voltou a não prestar atenção em Dibbler. Ele não havia chegado aonde estava hoje por se preocupar em como as coisas funcionavam. Como as pessoas trabalhavam era o que o intrigava.

Mais adiante, na mesma fileira, Soll se inclinou para perto do tio e deixou cair uma pequena espiral de filme em seu colo.

—    Isso lhe pertence — disse num tom gentil.

—    O que é isto? — perguntou Dibbler.

—    Bom, pensei em dar uma olhadinha no clique antes que ele fosse mostrado...

—    Pensou?

—    E o que encontrei, no meio da cena em que a cidade é incendiada, senão cinco minutos mostrando apenas um prato de costelas magras com Molho de Amendoim especial de Harga? eu sei por quê, e claro. Só quero saber por que assim.

Dibbler abriu um sorriso de culpa.

—    No meu modo de entender, se uma imagem pequena e rápida e capaz de fazer as pessoas quererem comprar as coisas, imagine o que cinco minutos de imagens poderiam fazer. — Soll ficou olhando para ele. — estou realmente magoado com isso — comentou Dibbler. — Você não confiou em mim. Seu próprio tio. Depois que fiz uma promessa solene de que não tentaria mais nada novamente, você não confiou em mim? Isso me machuca, Soll. estou realmente magoado. Aonde foi parar a integridade?

—    Acho que ela deve ter sido vendida pelo senhor, tio.

—    Estou realmente magoado.

—    Mas você não cumpriu a promessa, tio.

—    Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Isso são apenas negócios. estamos falando de família. Você tem que aprender a confiar em quem é da família, Soll. Especialmente em mim.

Soll deu de ombros.

—    Ok. Ok.

—    Certo?

—   Sim, tio. — Soll abriu um sorriso. — Prometo solenemente a você.

—    Esse e o meu garoto.

Na outra ponta da mesma fileira, Victor e Ginger olhavam fixamente para a tela vazia num horror silencioso.

—    Você sabe o que vai acontecer agora, não sabe? — perguntou Ginger.

—    Sim. Alguém vai começar a tocar uma música dentro de um buraco no chão.

—    Aquela caverna era mesmo uma sala de cliques?

—    Uma espécie, acho — disse Victor, com cautela.

—    Mas a tela aqui é só uma tela. Não é... bem, é só uma tela. Só um lençol de melhor qualidade. Não é...

Houve uma explosão sonora vindo da frente do salão. Com um tinido e um silvo de ar escapando desesperadamente, a filha de Bezam, Calíope, se ergueu lentamente do chão, investindo contra as teclas de um pequeno órgão com toda a energia de várias horas de treino e o esforço combinado de trolls robustos acionando os foles. Ela era uma jovem carnuda. Qualquer que fosse a música que ela tocava, estava sem dúvida sendo assassinada.

Nas cadeiras da frente, o decano passava um saco para o presidente.

—    Pegue uma passa coberta com chocolate.

—    Isso parece cocô de rato — observou o presidente.

O decano examinou no escuro.

—    Então é isso. O saco caiu no chão há um minuto e eu achei que tinha muita coisa dentro.

—    Shsss! — fez uma mulher na fileira de trás. A cabeça de Windle Poons se virou como um ímã.

—    Bilu—bilu! — disse, rindo. — Mais dois centavos e o jumento vai subir!

Mais luzes foram apagadas. A tela tremeluziu. Apareceram alguns números piscando, numa contagem regressiva.

Calíope olhou com atenção para a partitura na sua frente, arregaçou as mangas, tirou o cabelo da frente dos olhos e se lançou num ataque determinado ao que mal dava para ser reconhecido como o velho hino cívico de Ankh-Morpork.30 As luzes se apagaram.

O céu tremeluziu. A neblina não era nem um pouco normal. Ela lançava uma luz prateada, acinzentada, bruxuleando por dentro feito um cruzamento entre Aurora Coriolis e relâmpagos de verão.

Na direção de Holy Wood, o céu brilhava intensamente. Era visível até mesmo do beco atrás da Casa das Costelas de Sham Harga, onde dois cães apreciavam a Promoção Tudo—O—Que—Você—Conseguir—Arrastar—Para—Fora—Do—Lixo—De—Graça.

Laddie olhou para cima e rosnou.

 

  1. “Somos Capazes de Dominá-los por Atacado."

 

— Não culpo você — começou Gaspode. — eu disse que era um presságio. Não disse que tava rolando um presságio? — Faíscas estalaram no seu pêlo. — Vem. É melhor avisarmos as pessoas. Você é ótimo nisso.

Cliquecliqueclique...

Era o único barulho dentro do Odium. Calíope havia parado de tocar e estava com a cabeça erguida, olhando para a tela.

Havia bocas abertas, que só se fechavam para morder um punhado de grãos estourados.

Victor tinha uma vaga consciência de que havia resistido. Ele tentara não olhar. Até mesmo agora uma vozinha dentro de sua cabeça lhe dizia que as coisas estavam erradas, mas ele a ignorou. As coisas estavam claramente certas. ele suspirou junto com os outros quando a heroína tentou preservar a velha mina da família num Mundo Enlouquecido... ele estremeceu nas lutas da guerra. ele assistiu à cena do baile num torpor romântico. ele...

... sentiu algo gelado encostando em sua perna. era como se um cubo de gelo meio derretido encharcasse suas calças. ele tentou ignorar, mas aquilo tinha uma característica definitivamente impossível de ser ignorada.

Ele olhou para baixo.

—    Licença — disse Gaspode.

Victor ajustou a vista. Depois sentiu que seus olhos eram atraídos para a tela, onde uma versão enorme dele mesmo beijava uma versão enorme de Ginger.

Houve mais uma sensação de frio grudento. Ele veio à tona novamente.

—    Posso morder a sua perna se quiser.

—    Eu... e... eu... — começou Victor.

—    Posso morder com bastante força — acrescentou Gaspode. — É só mandar.

—    Não, e...

—    Alguma coisa está parecendo um presságio, exatamente como eu falei. Presságio. Presságio. Presságio. Laddie já tentou latir até ficar rouco, mas ninguém está ouvindo. Então pensei em tentar a velha técnica do focinho gelado. Nunca falha.

Victor olhou ao redor. O resto da platéia olhava fixamente para a tela como se estivesse preparado para permanecer no assento para... para...

... sempre.

Quando tirou os braços da cadeira, faíscas estalaram nos seus dedos, e o ar tinha uma sensação escorregadia que até os magos iniciantes logo aprendiam a associar com um vasto acúmulo de potencial de magia. e havia neblina no poço do órgão. era ridículo, mas lá estava ela, cobrindo o chão como uma fraca maré prateada.

Ele chacoalhou os ombros de Ginger. Balançou a mão diante dos olhos dela. Gritou no seu ouvido.

Depois tentou o mesmo com o Patrício e Dibbler. eles cederam à pressão, mas voltaram lentamente para a posição em que se encontravam.

—    O clique está fazendo alguma coisa com eles. Tem que ser o clique. Mas não entendo como. É um clique perfeitamente comum. Não usamos magia em Holy Wood. Pelo menos... não magia convencional...

Ele passou por joelhos inflexíveis com dificuldade até chegar ao corredor e correu entre as hastes de neblina. Bateu com força na porta da sala de lançamento de imagens. Como não obteve resposta, derrubou-a com um chute.

Bezam olhava fixamente para a tela através de um pequeno orifício na parede. O lançador de imagens cucava sozinho e feliz. Ninguém girava a manivela. Pelo menos, Victor se corrigiu, ninguém que ele pudesse ver.

Houve um estrondo distante, e o chão estremeceu.

Victor olhou para a tela. Ele reconhecia aquela parte. Era pouco antes da cena do Incêndio em Ankh-Morpork.

Sua mente deu voltas. O que diziam em relação aos deuses? Eles não existiriam se não existissem pessoas para acreditar neles? e aquilo se aplicava a tudo. A realidade era o que se passava dentro da cabeça das pessoas. E diante dele havia centenas de pessoas realmente acreditando no que viam...

Victor vasculhou a bancada de Bezam, procurando uma tesoura ou faca, e não encontrou nenhuma das duas. A máquina prosseguia com seu zumbido, desenrolando a realidade do futuro para o passado.

No fundo, conseguiu ouvir Gaspode dizer:

— Acho que salvei o dia, né?

O cérebro normalmente ecoa gritos de vários pensamentos inconseqüentes para buscar atenção. E preciso haver uma verdadeira emergência para fazer com que eles se calem. Era o que acontecia naquele momento. Um pensamento claro que tentava se fazer ouvir havia muito tempo ecoou no silêncio.

Suponhamos que haja um lugar onde a realidade seja um pouco mais tênue do que o normal. E suponhamos que se faça algo ali que enfraqueça ainda mais a realidade. Livros não fazem isso. Até mesmo o teatro comum não faz isso porque, no fundo, você sabe que são apenas pessoas usando roupas engraçadas sobre um palco. Mas Holy Wood ia direto dos olhos para o cérebro. No fundo, você achava que era verdade. Os cliques fazem isso.

Era isso o que estava embaixo da colina de Holy Wood. O povo da antiga cidade usara o buraco na realidade para o entretenimento. E depois as Coisas os descobriram.

Agora as pessoas faziam a mesma coisa. Era como aprender a fazer malabarismos com tochas acesas numa fábrica de fogos de artifício. E as Coisas estavam esperando...

Mas por que aquilo ainda acontecia? ele havia interrompido Ginger.

O filme continuava fazendo seu clique. Parecia haver neblina em volta da caixa de imagens, borrando seus contornos.

Ele agarrou a manivela, que não parava de girar. ela resistiu por um momento, mas depois quebrou. ele tirou Bezam de sua cadeira com cuidado e bateu na caixa de imagens com ela. A cadeira explodiu em estilhaços. ele abriu a gaiola por trás, tirou as salamandras e, ainda assim, o filme ainda dançava na tela distante.

O predio estremeceu novamente.

"Você só tem uma chance", ele pensou, "e depois você morre."

Ele tirou a camisa e a enrolou na mão. Depois apanhou a fita brilhante do filme e a segurou com firmeza.

Ela se rompeu. A caixa deu um tranco para trás. O filme continuou se desenrolando em espirais cintilantes que deram um breve bote nele e depois serpentearam até o chão.

Cliqueclique... clique.

Os rolos giraram mais um pouco e pararam.

Com cuidado, Victor mexeu no amontoado de filme com o pé. Esperava que ele o atacasse como uma cobra.

—    Salvamos o dia? — sugeriu Gaspode. — eu gostaria de saber. Victor olhou para a tela.

—    Não — respondeu.

Ainda havia imagens. Não eram muito claras, mas ainda conseguia distinguir suas formas vagas, alem das de Ginger persistindo em existir. E a própria tela se movia. Criava protuberâncias aqui e ali, como ondulações numa piscina de mercúrio sem brilho. era desagradável perceber que aquilo era familiar.

—    Elas nos encontraram.

—    Quem? — perguntou Gaspode.

—    Sabe aquelas criaturas fantasmagóricas de que estávamos falando?

Gaspode enrugou a testa.

—    Aquelas de antes do amanhecer?

—    De onde elas vêm, não existe tempo. — A platéia estava agitada. — Temos que tirar todo mundo daqui. Mas sem entrar em pânico...

Houve um coro de gritos. A platéia estava despertando.

A Ginger da tela saía por cima dela. Ela era três vezes maior que a original, e tremeluzia de forma perceptível. Também era levemente transparente, mas tinha peso, porque o chão se curvava e estilhaçava sob seus pés.

A platéia subia sobre si mesma para escapar. Victor conseguiu descer pelo corredor no exato momento em que a cadeira de rodas de Poons passou de costas junto com o fluxo de pessoas, com seu ocupante abanando os braços desesperadamente e gritando:

—    Ei! ei! estava começando a ficar bom!

O presidente segurou o braço de Victor com urgência:

—    Isso era para ser assim mesmo?

—    Não!

—    Não é uma espécie de efeito especial cinematográfico então? — perguntou o presidente, esperançoso.

—    Não, a menos que eles tenham evoluído muito nas últimas 24 horas. Acho que são as Dimensões do Calabouço.

O presidente olhava atentamente para ele.

—    Você é o jovem Victor, não e mesmo?

—    Sim. Com licença — pediu Victor. Ele deixou o mago estarrecido para trás e subiu nas cadeiras até onde Ginger permanecia sentada, com o olhar fixo na sua própria imagem. A Ginger monstro olhava à sua volta e piscava muito devagar, como um lagarto.

—    Essa sou eu?

—    Não! Quer dizer, é. Talvez. Na verdade, não. Mais ou menos. Venha.

—    Mas é igualzinha a mim! — observou Ginger, com a voz modulada pela histeria.

—    Isso é porque elas têm que usar Holy Wood! Isso... isso define como elas podem aparecer, acho — Victor explicou com pressa.

Ele a puxou com força para fora do assento, agitando a nevoa com os pés e espalhando grãos estourados. Ela foi cambaleando atrás dele, olhando para trás.

—    Tem mais um tentando sair da tela.

—    Venha!

—    É você!

—    Eu sou eu! Aquilo é... alguma outra coisa! Só que tem que usar a minha forma!

—    Que forma ela usa normalmente?

—    Você não ia querer saber!

—    Quero, sim! Por que acha que perguntei? — ela gritou, enquanto tentavam passar sobre os assentos quebrados.

—    É pior do que você pode imaginar!

—    Eu consigo imaginar umas coisas bem feias!

—    Foi por isso que eu disse pior!

—Oh.

A Ginger espectral gigante passou por eles, tremeluzindo como uma luz estroboscópica, e saiu arrebentando a parede. eles ouviram gritos do lado de fora.

—    Parece que ela está ficando maior — sussurrou Ginger.

—    Vá lá fora. Faça com que os magos a detenham.

—    O que você vai fazer?

Victor se esticou à sua altura máxima.

—    Existem algumas Coisas que um homem tem que fazer pessoalmente.

Ginger olhou para ele com uma expressão de incompreensão irritada.

—    O quê? O quê? Você quer ir ao banheiro ou algo do tipo?

—    Saia daqui!

Ele a empurrou na direção das portas, depois se virou e viu os dois cachorros olhando para ele com expectativa.

—    E vocês dois.

Laddie latiu.

—    Cachorro tem que ficar ao lado do dono, esse tipo de coisa — disse Gaspode, envergonhado.

Victor olhou ao redor, desesperado, pegou um fragmento de assento, abriu a porta, jogou a madeira o mais longe possível e gritou: "Pega!"

Ambos os cães saíram pulando atrás dela, impulsionados pelo instinto. Porém, ao passar por Victor, Gaspode teve apenas o autocontrole necessário para dizer: "Filho-da-mãe!"

Victor abriu a porta da sala de lançamento de imagens e saiu com as mãos cheias de e O Sopro Carregou.

O Victor gigante tinha dificuldades para sair da tela. A cabeça e um braço haviam se libertado e estavam em três dimensões. O braço abanou vagamente para Victor quando ele atirou espirais de octocelulose de forma metódica sobre ele. Ele voltou correndo para a cabine e retirou montes de cliques que Bezam, num desafio ao bom senso, havia guardado embaixo do banco.

Trabalhando com a calma metódica de quem está dominado por um terror capaz de causar cólicas intestinais, carregou as latas até a tela e empilhou-as ali. A Coisa conseguiu libertar da bidimensionalidade, à força, seu outro braço e tentou passar a mão nelas, mas o que quer que a dominasse tinha dificuldade para controlar esta nova forma. "Provavelmente não estava acostumada a ter dois braços", disse Victor a si mesmo.

Ele jogou a última lata em cima do monte.

— No nosso mundo, você tem que obedecer às nossas regras. e aposto que você queima tanto quanto qualquer outra coisa, não e?

A Coisa lutou para libertar uma perna.

Victor bateu nos bolsos. Depois correu até a cabine e vasculhou por todos os lados feito louco.

Fósforos. Não havia nenhum fósforo!

Ele empurrou as portas que davam para o salão de entrada e saiu correndo pela rua, onde a multidão se movimentava sem destino, ao mesmo tempo horrorizada e fascinada ao ver uma Ginger de 15 metros saindo dos escombros de um predio.

Victor ouviu um clique ao seu lado. Gaffer, o operador de manivelas, captava atentamente a cena em filme.

O presidente gritava com Dibbler.

—    É claro que não podemos usar magia contra isso! elas precisam de magia! A magia só as torna mais fortes!

—    Vocês têm que ser capazes de fazer alguma coisa! — gritou Dibbler.

—    Meu caro senhor, nós não começamos a nos intrometer em coisas que deveriam ter sido deixadas... — o presidente hesitou no meio do grito — sem intrometimento — terminou, pouco convincente.

—    Fósforos! — gritou Victor. — Fósforos! Rápido!

Todos olharam para ele.

Então o presidente concordou.

—    Fogo comum — disse. — Você está certo. Isso deve resolver. Bem pensado, garoto. — ele remexeu num bolso e retirou um feixe de fósforos que os magos, fumantes inveterados que são, sempre carregam.

—    Você não pode botar fogo no Odium — gritou Dibbler. — Tem pilhas de filme lá dentro!

Victor arrancou um cartaz da parede, enrolou-o formando uma tocha tosca e acendeu uma ponta.

—    É isso o que eu vou queimar.

—    Licença...

—    Burro! Burro! — berrou Dibbler. — essa coisa queima muito rápido!

—    Licença...

—    E daí? eu não tenho a intenção de ficar muito tempo lá dentro.

—    Estou dizendo que queima muito rápido!

—    Licença — disse Gaspode, paciente. Eles baixaram a cabeça para olhar para ele.

—    Eu e o Laddie podíamos fazer isso. Quatro pernas são melhores que duas e assim por diante, sabe? Quando se trata de salvar o dia.

Victor olhou para Dibbler e ergueu as sobrancelhas.

—    Acho que pode ser que eles consigam — consentiu Dibbler.

Victor concordou acenando com a cabeça. Laddie deu um salto gracioso, tirou a tocha da mão dele e correu de volta para dentro do predio com Gaspode rebolando atrás.

—   Estou ouvindo coisas ou aquele cachorrinho sabe falar? —        perguntou Dibbler.

—    Ele diz que não sabe.

Dibbler hesitou. A agitação o estava deixando um pouco atordoado.

—    Bem, acho que ele deve saber.

Os cães correram na direção da tela. A Coisa-Victor já estava quase saindo, estendendo metade do corpo entre as latas.

—    Posso acender a fogueira? — perguntou Gaspode. — é meu trabalho, na verdade.

Laddie latiu com obediência e largou o papel em chamas. Gaspode apanhou a tocha e avançou com cautela na direção da Coisa.

—    Salvando o dia — ele disse, de modo indistinto, e largou a tocha numa espiral de filme. Ela pegou fogo de imediato e queimou com um fogo branco e pegajoso, como magnésio brando.

—    Ok. Agora vamos dar o fora da...

A Coisa gritou. A semelhança que ainda restava com Victor deixara de existir e algo como uma explosão num aquário se retorceu entre as chamas. Um tentáculo deu uma chicotada para fora e agarrou Gaspode pela pata. Ele se virou e tentou mordê-lo.

Laddie voltou correndo até o corredor destruído e se lançou contra o braço agitado, que deu um coice. Laddie foi derrubado, e Gaspode caiu girando pelo chão.

O cachorrinho se sentou, deu alguns passos vacilantes e tombou.

—    Maldita pata veio e foi embora — resmungou. Laddie olhou para ele com tristeza. As chamas estalavam ao redor das latas de filme.

—    Anda. Sai daqui, seu vira-lata idiota. A coisa toda vai prós ares num minuto. Não! Não me pega! Me coloca no chão! Não vai dar tempo...

As paredes do Odium se expandiram com uma lentidão aparente, com todas as tábuas e pedras mantendo sua posição relativa a todas as outras, mas flutuando sozinhas.

Depois o Tempo alcançou os acontecimentos.

Victor se atirou no chão.

Boom.

Uma bola de fogo laranja ergueu o teto e se elevou para o céu nebuloso. escombros foram atirados contra as paredes de outras casas. Uma lata de filme incandescente passou rente à cabeça dos magos abaixados, fazendo um barulho wipwipwip ameaçador, e explodiu contra um muro distante.

Houve um choro alto e agudo que parou de modo abrupto.

A Coisa-Ginger sacudia no calor. A rajada de ar quente levantou sua saia imensa em grandes ondas ao redor da cintura, e ela ficou parada, tremeluzindo e hesitando, enquanto choviam entulhos ao seu redor.

Depois se virou de forma desajeitada e seguiu balançando.

Victor olhou para Ginger, que observava atentamente as nuvens de fumaça que se afinavam acima da pilha de entulhos do que um dia tinha sido o Odium.

—    Isso está errado — murmurava. — Não é assim que acontece. Nunca acontece desse jeito. Quando você pensa que e tarde demais, eles saem saltitando de dentro da fumaça. — ela voltou os olhos tristes para ele. — Não saem? — insistiu.

—    Isso é nos cliques — disse Victor. — Isto é a realidade.

—    Qual é a diferença?

O presidente segurou o ombro de Victor e o girou.

—    Ela está indo para a Biblioteca! Você tem que detê-la! Se ela chegar lá, a magia irá torná-la invencível! Nunca a venceremos! Será capaz de trazer outras!

—    Vocês são magos — disse Ginger. — Por que não a detêm?

Victor balançou a cabeça.

—    As Coisas gostam da nossa magia. Se for usada perto delas, isso só vai torná-las mais fortes. Mas não sei o que posso fazer...

Sua voz falhou. A multidão o observava com muita expectativa.

As pessoas não olhavam para ele como se fosse sua última esperança. Elas olhavam como se fosse sua certeza. Ele ouviu uma criança pequena dizer:

—    O que acontece agora, mamãe?

A mulher gorda que segurava sua mão disse, num tom autoritário:

—    É fácil. Ele sai correndo e interrompe a coisa no último segundo. É sempre assim. Já vi ele fazer isso antes.

—    Nunca fiz isso antes! — disse Victor.

—    Vi você fazer — insistiu a mulher, convencida. — em Sobras do Dheserto. Quando essa moça aqui — ela fez um breve gesto na direção de Ginger — tava naquele cavalo que jogou ela de cima do despenhadeiro e você saiu galopando e agarrou ela no último segundo. Muito impressionante, eu achei.

—    Isso não foi em Sobras do Dheserto — interrompeu um homem mais velho com ar pedante, enquanto enchia o cachimbo —, isso foi em Vale dos Trolls.

—    Foi em Sobras — disse uma mulher magra atrás dele. — eu tenho que saber, assisti 27 vezes.

—    É, é muito bom, não é? — comentou a primeira mulher.

—    Toda vez que vejo a cena em que ela deixa ele e ele vira pra ela com aquele olhar, eu caio no choro...

—    Me desculpe, mas isso não foi em Sobras do Dheserto — corrigiu o homem, falando devagar e refletindo. — Você está pensando na famosa cena da praça em Paixões Ardhentes.

A senhora gorda pegou a mão frouxa de Ginger e deu uns tapinhas de leve.

—    Você tem um bom homem. O jeito como ele sempre salva você toda vez. Se eu fosse carregada por trolls enlouquecidos, meu véio não ia abrir a boca, a não ser pra perguntar pra onde era pra mandar as minhas roupas.

—    Meu marido não ia sair da cadeira se eu tivesse sendo cumida por dragões — disse a mulher magra. Ela cutucou Ginger de leve.

—    Mas é melhor você usar mais roupa, mocinha. Da próxima vez que for levada para ser salva, você insiste pra te deixarem levar um casaco quentinho. Nunca te vejo na tela sem pensar comigo mesma: "ela tá arriscando pegar um resfriado, andando por aí desse jeito".

—    Cadê a espada dele? — perguntou a criança, chutando a mãe na canela.

—    Imagino que ele vá buscar pessoalmente — ela respondeu, dando um sorriso encorajador para Victor.

—    É... Sim — ele respondeu. — Venha, Ginger. — ele pegou a mão dela.

—    Abram espaço pro rapaz — gritou o fumador de cachimbos num tom autoritário.

Um espaço foi aberto em volta deles. Ginger e Victor viram centenas de expressões de expectativa os observando.

—    Eles acham que somos reais — lamentou—se Ginger. — Ninguém está fazendo nada porque pensam que você é um herói, pelo amor dos deuses! e não podemos fazer nada! essa Coisa é maior que nós dois!

Victor baixou a cabeça e olhou para os paralelepípedos úmidos. "é possível que eu me lembre de alguma magia", pensou, "mas magia comum não têm efeito contra as Dimensões do Calabouço. E tenho certeza de que heróis de verdade não ficam parados no meio de multidões animadas. Eles seguem seu trabalho. Heróis de verdade são como o pobre Gaspode. As pessoas só percebem que eles existem depois que está tudo acabado. A realidade é assim."

Ele levantou a cabeça lentamente.

"Será que isto é mesmo a realidade?"

O ar estalava. Havia outro tipo de magia. Ela se espalhava de modo desenfreado pelo mundo, como um filme em pedaços. Se pelo menos ele conseguisse apanhá-la...

A realidade não tinha que ser real. Talvez, nas condições certas, só tivesse que ser o que as pessoas acreditassem...

—    Afaste—se — sussurrou.

—    O que você vai fazer? — perguntou Ginger.

—    Tentar um pouco de magia de Holy Wood.

—    Holy Wood não tem nenhum tipo de magia!

_    Eu ... acho que tem. Um tipo diferente. Nós já sentimos. A magia está onde você a encontra.

Ele respirou fundo algumas vezes e deixou a mente se soltar devagar. Esse era o segredo. Era preciso fazer sem pensar que estava fazendo. era só deixar as instruções virem de fora. era um trabalho. Era só sentir o olho da caixa de imagens voltado para você, e o mundo ficava diferente, um mundo que não passava de um quadrado prateado tremeluzindo.

Esse era o segredo. A oscilação.

A magia comum apenas movia as coisas de seu lugar. Ela não podia criar algo de verdade que durasse por mais de um segundo porque seria preciso muito poder para isso.

Mas Holy Wood criava coisas com facilidade muitas e muitas vezes, dúzias de vezes por segundo. Elas não tinham que durar muito. Só tinham que durar pelo tempo suficiente.

Mas era preciso fazer a magia de Holy Wood usando as regras de Holy Wood...

Ele estendeu a mão firme como uma rocha na direção do céu escuro.

—Luz!

Houve uma camada de relâmpagos que iluminou a cidade inteira...

— Caixa de imagem!

Gaffer girou a manivela furiosamente.

—Ação!

Ninguém viu de onde veio o cavalo. Ele simplesmente estava ali, saltando acima das cabeças na multidão. Era branco, com muitos enfeites prateados no cabresto. Victor pulou para cima da sela quando ele passou a meio-galope, depois fez com que ele empinasse de maneira impressionante e batesse as patas no ar. Puxou uma espada que não estava ali no momento anterior.

A espada e o cavalo tremeluziam de forma quase imperceptível.

Victor sorriu. A luz refletiu num dente. Ting. Um reflexo, mas sem som. O som ainda não tinha sido inventado.

Acreditar. Esse era o caminho. Nunca parar de acreditar. enganar os olhos é enganar o cérebro.

Depois ele passou galopando entre as filas de espectadores, que o incentivavam com gritos e aplausos, e seguiu em direção à Universidade e ao grande cenário.

O operador de manivelas relaxou. Ginger deu um tapa em seu ombro.

—    Se você parar de girar essa manivela — começou, delicada —, eu quebro o seu maldito pescoço.

—    Mas ele já está quase fora de alcance...

Ginger o empurrou até a velha cadeira de rodas de Windle Poons e deu um sorriso para ele que fez pequenos traços de cera evaporar por suas orelhas.

—    Com licença — pediu, numa voz provocante que fez todos os magos torcer os dedos dos pés dentro dos sapatos pontudos —, poderíamos tomá-lo emprestado por um minuto?

—    Ueba! empurra com jeitinho!

... whumm... whumm...

Ponder Stibbons sabia do vaso, é claro. Todos os alunos tinham passado por ele para dar uma olhada.

Ele não prestou muita atenção quando passou escondido pelo corredor na tentativa de conseguir uma noite de liberdade.

... whummwhummWHUMMWHUMMWHUMM —whumm.

Ele só precisava pegar um atalho pelos claustros e...

PLIB.

Todos os oito elefantes de cerâmica atiraram balas de chumbo ao mesmo tempo. O resógrafo explodiu, transformando o teto em algo parecido com um saleiro.

Um ou dois minutos depois, Ponder se levantou com muito cuidado. Seus chapéu era apenas um conjunto de buracos unidos por linhas. Uma de suas orelhas tinha ficado sem um pedaço.

—    Eu só queria uma bebida — ele disse, confuso. — O que há de errado nisso?

O bibliotecário se agachou sobre a abóbada da Biblioteca, vendo as multidões correrem pelas ruas enquanto a figura monstruosa se aproximava aos trancos.

Ele estava levemente surpreso ao ver que atrás dela vinha uma espécie de cavalo fantasma cujos cascos não faziam nenhum som nos paralelepípedos.

E aquilo era seguido por uma cadeira de três rodas que virou a esquina sobre duas rodas apenas, soltando faíscas pelo caminho. Ela estava carregada de magos, todos se esgoelando. De vez em quando, um deles se soltava e tinha que correr até atingir velocidade suficiente para pular em cima dela novamente.

Três deles não tinham conseguido subir. Isto é, um deles tinha feito esforço suficiente para segurar firme na capa de couro que ficava na parte de trás e outros dois conseguiram se agarrar no manto do que estava na frente, de modo que, toda vez que a cadeira fazia uma curva, uma cauda de três magos gritava "aaaaahh" e voava sem controle para o outro lado da rua.

Havia também um grande número de civis, mas, para dizer a verdade, eles gritavam mais alto que os magos.

O bibliotecário havia visto muitas coisas estranhas durante seu tempo de serviço, mas aquela era sem dúvida a 57a mais estranha.31

Lá de cima, conseguia ouvir as vozes com clareza.

—    ... não pode parar de girar! e a magia de Holy Wood! ele está fazendo ela funcionar no mundo real! — era a voz de uma garota.

—    está bem, mas os diabinhos ficam muito mal—humorados se... — essa era a voz de um homem sob pressão extrema.

—    Danem—se os diabinhos!

—    Como ele consegue produzir um cavalo? — esse era o decano. O bibliotecário Reconheceu o choramingo. — Isso e magia de primeira!

 

  1. Ele tinha uma mente organizada.

 

—    Não é um cavalo de verdade, é um cavalo de imagens animadas. — A garota novamente. — Você! Você está quase parando!

—    Não estou! Não estou! Olha, estou girando a manivela, estou girando a manivela!

—    Ele não pode cavalgar um cavalo que não é de verdade!

—    Você e mágico e realmente acha isso?.

—    Mago, na verdade.

—    Bom, que seja. Esse não é o seu tipo de magia.

O bibliotecário concordou com a cabeça e depois parou de ouvir. Tinha outras coisas a fazer.

A Coisa estava quase da mesma altura da Torre de Arte e logo viraria para seguir em direção à Biblioteca. As Coisas sempre tinham como alvo a fonte de magia mais próxima. elas precisavam disso.

O bibliotecário encontrara uma lança de ferro longa numa das despensas deterioradas da Universidade. ele a segurou com cuidado, com um pé, enquanto soltava a corda que amarrara ao catavento. Ela se estendia até o alto da Torre. Tinha passado a noite toda armando aquilo.

Ele examinou a cidade abaixo e depois socou o peito, urrando:

—    AaaaAAAaaaAAA... hnhg, hngh.

"Talvez os socos não fossem totalmente necessários", pensou, enquanto esperava o burburinho parar e os feixes de luz desaparecerem.

Ele segurou a lança com firmeza, pegou a corda com a outra mão e pulou.

A maneira mais clara de descrever a trajetória do bibliotecário entre os prédios da Universidade Invisível é simplesmente transcrever os ruídos feitos durante o vôo.

Primeiro: AaaAAAaaaAAAaaa. Essa parte dispensa explicações e se refere ao começo do movimento, quando tudo parecia ir bem.

Depois: Aaarghhh. esse foi o barulho feito quando errou a Coisa oscilante por alguns metros e começou a perceber que, se a corda foi amarrada no topo de uma torre de pedra muito alta e sólida e ele estava voltando na direção dela, não ter acertado algo na ida havia sido um erro a ser lamentado pelo resto da vida.

A corda completou seu movimento. Houve um barulho igual ao de um saco de borracha cheio de manteiga batendo numa laje de pedra, que foi seguido — um ou dois segundos depois — por um "oook" bem baixinho.

A lança caiu ressoando em algum lugar na escuridão. O bibliotecário ficou com os membros esticados como uma estrela-do-mar presa na parede, cravando os dedos das mãos e dos pés em todas as fendas ao seu alcance.

Ele poderia ter conseguido descer, mas essa opção nunca chegou a se concretizar porque a Coisa estendeu a mão tremeluzente e o arrancou da parede, produzindo um som como o de um desentupidor de pia removendo uma obstrução difícil.

Ela o segurou perto do que era, naquele momento, seu rosto.

A multidão seguiu para a praça em frente à Universidade Invisível, com os Dibblers à frente.

—    Olhe para eles — suspirou Cava-a-própria-Cova. — Deve haver milhares de pessoas, e não tem ninguém vendendo nada.

A cadeira de rodas deslizou até parar, lançando mais uma rajada de faíscas.

Victor estava esperando por ela com o cavalo espectral embaixo dele. Não um cavalo, mas uma sucessão de cavalos. Não em movimento, mas mudando de um quadro a outro.

Mais um relâmpago brilhou no céu.

—    O que ele está fazendo? — perguntou o presidente.

—    Tentando evitar que a Coisa chegue à Biblioteca — respondeu o decano, olhando através da chuva que começava a bater nos paralelepípedos. — Para permanecerem vivas na realidade, as Coisas precisam de magia. elas não têm nenhum campo morfogênico natural, entende, e...

—    Faça alguma coisa! exploda ela com magia! — gritou Ginger. — Oh! Coitadinho daquele macaco!

—    Não podemos usar magia! é como derramar petróleo no fogo! — disse o decano, nervoso. — Alem disso... não sei como explodir uma mulher de 15 metros. Não e o tipo de coisa que já tenham me pedido para fazer.

—    Não e uma mulher! é... é uma criatura dos filmes, seu idiota! Você acha mesmo que eu sou tão grande assim? — gritou Ginger. — ela está usando Holy Wood! é um monstro de Holy Wood! Da terra dos filmes.

—    Dirige direito, por deuses! Dirige direito!

—    Mas eu não sei como!

—    É só jogar o seu peso para os lados!

O tesoureiro apertou o cabo da vassoura com nervosismo. “é muito fácil para você falar", pensou. "Você está acostumado."

Eles tinham acabado de sair do Grande Salão quando uma mulher gigante passou cambaleando pelo portão com um símio tagarela na mão. Agora o tesoureiro tentava controlar uma vassoura antiga do museu da Universidade com um louco exaltado atrás dele tentando carregar uma besta.

"Pelo ar", o arqui-reitor havia dito. Era absolutamente essencial que estivessem num transporte aéreo.

—    Você não consegue manter uma linha reta? — perguntou o arqui-reitor.

—    Ela não foi feita para duas pessoas, arqui-reitor!

—    Não consigo mirar com você balançando pelo céu desse jeito, homem!

O espírito contagioso de Holy Wood, correndo pela cidade como um cabo de aço de navio cuja ponta foi cortada de repente, atravessou mais uma vez a mente do arqui-reitor.

—    Não podemos abandonar a nossa gente — resmungou.

—    Nossos símios, arqui-reitor — corrigiu o tesoureiro automaticamente.

A Coisa seguia na direção de Victor. Estava irrequieta, lutando contra as forças da realidade que não paravam de puxá-la. ela tremeluzia quando tentava manter a forma com a qual entrara no mundo, de maneira que as imagens de Ginger se alternavam com vislumbres de algo que se retorcia e espiralava.

Ela precisava de magia.

Encarou Victor e a espada e, se é que era capaz de algo tão sofisticado quanto saber, ela sabia que estava vulnerável.

Virou-se e foi na direção de Ginger e dos magos, que se fizeram em chamas.

O decano queimou num tom particularmente azul.

—    Não se preocupe, jovem — disse o presidente, do centro da chama. — e uma ilusão, não é de verdade.

—    Você vem dizer isso pra mim? — perguntou Ginger. — Andem logo com isso!

Os magos se moveram para a frente.

Ginger ouviu passos atrás dela. eram os Dibblers.

—    Por que ela está com medo das chamas? — perguntou Soll, e a Coisa recuou diante dos magos, que avançavam. — e só ilusão. Ela deve sentir que não tem calor.

Ginger balançou a cabeça. Ela parecia surfar numa onda de histeria, talvez porque não e todo dia que se vê uma imagem gigante de si mesmo esmagando uma cidade.

—    Ela usou a magia de Holy Wood. então não pode desobedecer às regras de Holy Wood. Ela não tem tato nem audição. Apenas visão. O que ela vê e o que é real. E filme tem medo de fogo.

Agora a Ginger gigante estava pressionada contra a torre.

—    Bom, ela está encurralada — observou Dibbler. — eles a pegaram.

A Coisa se assustou com as chamas que avançavam. Ela se virou. estendeu o braço com a mão que estava livre e começou a subir na torre. Victor desceu do cavalo e parou de se concentrar. Ele desapareceu.

Apesar do pânico, encontrou espaço para se vangloriar um pouco. Se os magos tivessem ido aos cliques, saberiam exatamente como fazer aquilo. Era a freqüência de fusão crítica. Até mesmo a realidade tinha uma. Se você conseguisse fazer algo existir apenas por uma pequena fração de segundo, não significava que havia falhado. Significava que tinha que continuar fazendo.

Ele correu como um caranguejo junto à base da torre, olhando para cima, para a Coisa que subia. Tropeçou em algo metálico: a lança do Bibliotecário. Um pouco mais adiante, a ponta da corda se arrastava numa poça.

Ficou olhando para ela por um momento, depois usou a lança para cortar alguns metros da corda e fazer uma alça de ombro improvisada para a arma.

Ele segurou a corda, deu um puxão experimental e depois...

Havia uma falta de resistência desagradável diante do puxão. ele se jogou para trás, pouco antes de centenas de metros de corda molhada caírem bruscamente no pavimento.

Ele olhou em volta desesperado, procurando uma outra rota para o alto.

Os Dibblers assistiam de boca aberta enquanto a Coisa escalava a torre. ela não se movimentava muito rápido e, de vez em quando, tinha que prender o bibliotecário tagarela numa cavidade conveniente para encontrar a próxima base para a mão, mas estava subindo.

—    Ah, sim. Sim. Sim — suspirou Soll. — Que imagem! Cinematógrafo de primeira!

—    Uma mulher gigante carregando um símio aos berros numa construção enorme — suspirou Dibbler. — e nem temos que pagar salários!

—    É — concordou Soll.

—    É... — disse Dibbler. Havia um leve toque de incerteza em sua voz.

Soll parecia pensativo.

—    É — repetiu. — e...

—    Sei o que você quer dizer — disse Dibbler, devagar.

—    É... quer dizer, é ótimo mesmo, mas... bem... não consigo deixar de sentir...

—    É. Tem alguma coisa errada — concordou Dibbler de forma categórica.

—   Não errada — discordou Soll, desesperado. — Não exatamente errada. Não errada propriamente. Está apenas faltando... — ele parou, sem encontrar as palavras. Ele suspirou. E Dibbler suspirou. Acima deles, um trovão ressoou. e do céu surgiu uma vassoura com dois magos aos berros.

Victor abriu a porta da base da Torre de Arte.

Estava escuro lá dentro, e ele podia ouvir água pingando do telhado distante.

Acreditava-se que a torre fosse a construção mais antiga do mundo. Ela realmente dava essa impressão. Não era mais usada para nada, e os pisos internos tinham apodrecido havia muito tempo. Sendo assim, tudo o que restara do lado de dentro era a escadaria. Era construída em espiral, formada por lajes imensas presas na própria parede. Algumas estavam faltando. Seria uma escalada perigosa até mesmo à luz do dia.

No escuro... sem chance.

A porta se abriu com força atrás dele, e Ginger entrou com passos firmes, arrastando o operador de manivelas atrás dela.

—    E aí? Vai logo, você tem que salvar aquele pobre macaco.

—    Símio — corrigiu Victor, distraído.

—    Que seja.

—    Está escuro demais — murmurou Victor.

—    Nunca está escuro demais nos cliques — afirmou Ginger categoricamente. — Pense nisso.

Ela cutucou o operador de manivela, que disse, muito rápido: —ela tá certa. Nunca tá escuro nos cliques. Faz sentido. Você tem que ter luz suficiente para ver o escuro.

Victor ergueu a cabeça para as trevas e depois de volta para Ginger.

—    Ouça! — começou, apressado. — Se eu... se alguma coisa der errado, diga aos magos sobre a... você sabe. A sala de espetáculos.

As Coisas vão tentar abrir caminho por ali também.

—   Eu não volto mais lá! — Houve o estrondo de um trovão.

— Vai logo! — gritou Ginger, pálida. — Luz! Caixa de imagem! Ação! e coisas do tipo!

Victor rangeu os dentes e saiu correndo. Havia luz suficiente para dar forma à escuridão, e ele pulou de degrau em degrau com a magia de Holy Wood recitando sua ladainha dentro de sua cabeça.

—    Tem que haver luz suficiente — ele estava ofegante — para se ver a escuridão.

Ele avançava cambaleando.

—    E em Holy Wood eu nunca perco a força — acrescentou, na esperança de que suas pernas acreditariam nele.

Isso deu conta da volta seguinte.

—    E em Holy Wood eu tenho que aparecer no momento exato — gritou. Ele se apoiou na parede por um momento e tentou retomar o fôlego.

—    Sempre no momento exato — murmurou. E novamente começou a subir correndo.

As lajes passavam sob seus pés como um sonho, como quadros de filme clicando através da caixa de imagem.

E ele chegaria no momento exato. Milhares de pessoas sabiam que chegaria.

Se os heróis não chegassem no momento exato, qual era o sentido das coisas? e...

Não havia laje na frente do seu pé, que caía.

O outro pé já se arqueava para deixar o degrau.

Ele concentrou cada grama de energia num único esforço para estender um tendão, sentiu seu dedo do pé tocar a laje seguinte, se atirou para a frente e depois pulou de novo, porque era ou isso, ou quebrar uma perna.

—    Isto é loucura.

Ele avançou correndo, se esforçando para antecipar mais lajes inexistentes.

—    Sempre no momento exato — murmurou.

Então que tal parar para descansar? Ainda assim ele conseguiria chegar no momento exato. Era isso o que significava momento exato...

Não. Era preciso jogar limpo.

Havia mais uma laje faltando logo adiante.

Ele olhou para o espaço obscuro.

Haveria uma torre inteira pela frente.

Ele se concentrou rápido e pulou para o nada. O nada se transformou numa laje pela fração de segundo de que ele precisava para pular para a seguinte.

Ele abriu um sorriso na escuridão, e uma faísca de luz brilhou num dente.

Nada que fosse criado pela magia de Holy Wood era real por muito tempo.

Mas era possível torná-lo real por tempo suficiente.

A Coisa tremeluzia mais devagar agora, passando menos tempo como a versão gigantesca de Ginger e mais tempo parecendo os conteúdos do sifão da pia de um empalhador de animais. Ela encostou sua massa encharcada no alto da torre e parou ali. O ar zunia ao passar por seus tubos respiratórios. Debaixo de seus tentáculos, a pedra se desintegrava à medida que a magia enfraquecia, substituída pelo apetite insaciável do Tempo.

Ela se sentia desnorteada. Onde estavam as outras? ela estava sozinha e cercada num lugar estranho...

... E depois ficou nervosa. Estendeu um olho e encarou o símio, que se debatia no que já tinha sido uma mão. Um trovão estremeceu a torre. A chuva formava cascatas nas pedras.

A Coisa estendeu um pseudópode e envolveu o bibliotecário pela cintura...

... E notou a presença de outra figura, ridiculamente pequena, emergindo do poço da escada.

Victor retirou a lança da corda nas costas. O que faria? Quando se lidava com humanos, havia opções. era possível dizer: "ei, largue esse símio e saia com os tentáculos para o alto". Era possível...

Um tentáculo com uma garra na ponta da grossura do seu braço bateu com força nas pedras, rachando-as.

Ele deu um pulo para trás e golpeou com a lança, numa virada de mão que fez um corte amarelo e profundo na pele da Coisa. Ela uivou e se mexeu numa velocidade desagradável para lançar mais tentáculos sobre ele.

"Forma", pensou Victor. "ela não tem forma real neste mundo. Gasta muito tempo só para sustentar a própria existência. Quanto mais ela tiver que se concentrar em mim, menos poderá se concentrar em não se desfazer em pedaços."

Uma variedade de olhos desarmonizados se estendeu de várias partes da Coisa.

Quando eles miraram Victor, encheram-se de veias vermelhas raivosas.

"Certo", pensou. "Consegui sua atenção. e agora?"

Ele enfiou a lança numa garra e pulou com os joelhos levantados enquanto um pseudópode não-identificado tentou arrancar suas pernas.

Mais um tentáculo deu o bote.

Uma flecha o atravessou com o mesmo efeito de uma bala de aço Atravessando uma meia cheia de pudim. A Coisa gritou.

Uma vassoura passou em alta velocidade acima da torre, com o arqui-reitor recarregando a besta furiosamente.

Victor ouviu uma voz distante:

—    Se ela sangra, nós podemos matá-la!

Seguida por:

—    Como assim, "nós"?

Victor continuou atacando, golpeando qualquer coisa que parecesse vulnerável. A criatura mudou de forma, na tentativa de engrossar a pele ou formar uma carapaça onde a lança encostaria, mas não era rápida o bastante. "Eles estão certos. Ela pode ser morta", pensou Victor. "Pode levar o dia inteiro, mas ela não é invencível..."

E então lá estava Ginger diante dele, com a expressão cheia de dor e choque.

Ele hesitou.

Uma flecha bateu no que poderia ter sido o corpo da Coisa.

—    Iii—há! Dá mais uma volta com a gente, tesoureiro!

A imagem se dissolveu. A Coisa gritou, jogou o bibliotecário para o lado como se fosse um boneco e partiu para cima de Victor com todos os tentáculos estendidos ao máximo. Um deles o derrubou, outros três arrancaram a lança de sua mão e, em seguida, a Coisa se empinava como uma sanguessuga, erguendo a lança de ferro para derrubar seus atormentadores do céu.

Victor se ergueu, apoiando-se nos cotovelos, e se concentrou.

Real apenas pelo tempo suficiente.

O relâmpago destacou o contorno da Coisa com uma luz azul e branca. Depois do trovão, a criatura balançou como se estivesse embriagada, com fiozinhos de eletricidade reluzindo através dela e fazendo zumbidos. Alguns de seus membros fumegavam.

Ela tentava se manter inteira lutando contra as forças que urravam dentro de seu corpo. Inclinou-se, sem controle, apoiada nas pedras, fazendo barulhinhos estranhos de choro e depois, com um olho bom encarando Victor com olhar maligno, deu um passo para o nada.

Victor fez um esforço para se erguer, apoiando-se nas mãos e nos joelhos, e andou com dificuldade até a beira do telhado.

Até mesmo em sua queda, a Coisa não queria desistir. ela tentava desdobramentos frenéticos de penas, peles e membranas, numa tentativa de encontrar algo que sobrevivesse à queda...

O Tempo ficou lento. O ar ganhou a aparência de um nevoeiro violeta. Morte ergueu sua foice.

—    VOCÊ DeVeRIA eSTAR MORTA — disse.

... E, em seguida, houve um som como o de roupa molhada batendo numa parede e, como era de se esperar, a única coisa que poderia sobreviver à queda era um cadáver.

A multidão se aproximou na chuva torrencial.

Depois que todo controle tinha sido perdido, a Coisa se dissolveu até chegar a suas moléculas elementares, que foram arrastadas pelas sarjetas, desceram o rio e acabaram nas profundezas frias do mar.

—    Está se liquefazendo — observou o conferencista.

—    É mesmo? — perguntou o presidente. — Achei que fosse algum tipo de piso.

Ele a cutucou com o pé.

—    Cuidado — avisou o decano. — Não está morto o que eternamente jaz.

O presidente a examinou.

—    Parece bem morta para mim. espera aí... tem alguma coisa se mexendo...

Um dos tentáculos frouxos caiu para o lado.

—    O que caiu em cima de alguém? — perguntou o decano.

Caiu. eles puxaram o corpo contorcido de Ponder Stibbons e o cutucaram e esbofetearam de forma bem-intencionada até que ele abrisse os olhos.

—    O que aconteceu? — perguntou.

—    Um monstro de 15 metros caiu em cima de você — respondeu o decano, simplesmente. — Você está... é... bem?

—    Eu só queria uma bebida — murmurou Ponder. — eu voltaria logo em seguida, juro.

—    Do que está falando, rapaz?

Ponder o ignorou. ele se levantou, um pouco sem equilíbrio, cambaleou em direção ao Grande Salão e nunca, jamais, saiu novamente.

—    Sujeito engraçado — disse o presidente. Eles voltaram a olhar para a Coisa, que estava quase totalmente dissolvida.

—    Foi a bela que matou a fera — comentou o decano, que gostava de dizer coisas do tipo.

—    Não foi, não — discordou o presidente. — Foi-ter se espatifado no chão desse jeito.

O bibliotecário se sentou e esfregou a cabeça.

O livro foi empurrado para diante de seus olhos.

—    Leia! — disse Victor.

—    Oook.

—    Por favor!

O símio o abriu numa página de pictogramas. Ficou com uma expressão de surpresa por um momento. Depois seu dedo desceu até o canto direito da página e começou a seguir os sinais da direita para a esquerda.

Da direita para a esquerda.

"Era assim que era para ter lido", pensou Victor.

O que significava que ele esteve totalmente errado o tempo todo.

Gaffer, o operador de manivela, movimentou sua caixa de imagem para obter um efeito panorâmico dos magos lado a lado e depois desceu até o monstro, que se dissolvia rapidamente.

A manivela parou de girar. ele ergueu a cabeça e deu um sorriso radiante para todo mundo.

—    Vocês poderiam se juntar um pouco mais, senhores? — pediu. Os magos se aproximaram uns dos outros ainda mais, com obediência. — A luz não está muito boa.

Soll escreveu: "Magos olhando para o Cadáver, tomada 3", num pedaço de papelão.

—    Pena que você não pegou a queda — disse com um tom de histeria quase imperceptível na voz. — Será que não dá para a gente fazer um truque de imagem ou algo assim?

Ginger se sentou à sombra, ao lado da torre, abraçando os joelhos e tentando parar de tremer. Sua forma estava entre as que a Coisa tentara assumir pouco antes do fim.

Ela se esticou, segurando-se nas pedras ásperas para se firmar, e saiu andando de um jeito incerto. Não tinha certeza do que o futuro traria, mas teria café em algum momento se ela pudesse decidir alguma coisa por si.

Quando passou pela porta da torre, ouviu um barulho de passos, e Victor saiu cambaleando, com o bibliotecário se balançando atrás.

Ele abriu a boca para falar e ficou ofegante. O orangotango o empurrou para o lado e segurou Ginger pelo braço com firmeza, num aperto suave e afetuoso, mas com uma leve sugestão de que, se realmente precisasse, poderia facilmente transformar qualquer braço num tubo de geléia com pedaços dentro.

—   Oook!

—    Olha, acabou — disse Ginger. — O monstro está morto. E assim que as coisas acabam, ok? Agora vou arrumar alguma coisa para beber.

—    Oook!

—    Oook pra você também. Victor ergueu a cabeça.

—    Não acabou... — disse.

—    Acabou para mim. Acabei de me ver transformada numa... numa COISA com tentáculos. Uma coisa daquela é capaz de causar um certo efeito numa garota, sabe.

—    É importante! — Victor conseguiu dizer. — Nós erramos! Olha, elas vão continuar voltando! Você tem que voltar para Holy Wood! elas vão voltar por lá também!

—    Oook! — O bibliotecário concordou, batendo no livro com uma unha roxa.

—    Bom, elas podem fazer isso sem mim — disse Ginger.

—    Não, não podem! Quer, dizer, elas vão fazer de qualquer jeito! Mas você pode impedi-las! Ah, pare de me olhar desse jeito! — ele empurrou o bibliotecário. — Anda, conta pra ela.

—    Oook — disse o bibliotecário, paciente. — Oook.

—    Não consigo entender — reclamou Ginger. Victor franziu a testa.

—    Não consegue?

—    Pra mim é só um monte de barulho de macaco! Os olhos de Victor giraram para os lados.

—    e...

O bibliotecário ficou parado por um momento, como uma pequena estátua pré-histórica. Depois pegou a mão de Ginger, com muita delicadeza, e deu umas batidinhas.

—    Oook.

—    Desculpe.

—    Ouça! — começou Victor. — eu errei! Você não estava tentando ajudar a elas, você tentava detê-las! eu li tudo ao contrário! Não e um homem atrás do portão, e um homem na frente do portão! — ele respirou fundo. — é um guardião]

_ É, mas não podemos ir à Holy Wood! São quilômetros de distância!

Victor deu de ombros.

_ Vá chamar o operador de manivela.

A terra em torno de Ankh-Morpork é fértil e amplamente usada para plantações de repolho, que ajudam a dar à cidade seu odor característico.

A luz acinzentada que antecede o amanhecer se espalhou sobre a extensão verde-azulada e ao redor de alguns fazendeiros que haviam começado cedo a colheita de espinafre.

Eles pararam para olhar, não para o lugar de onde vinha um som, mas para um ponto de silêncio em movimento onde deveria haver som.

Eram um homem, uma mulher e algo como um homem tamanho P num casaco de pele tamanho GG, todos numa carruagem que tremeluzia ao se mover. ela rolava pela estrada para Holy Wood e logo se perdeu de vista.

Um ou dois minutos depois, foi seguida por uma cadeira de rodas. Seu eixo tinha um brilho incandescente. estava cheia de pessoas gritando umas com as outras. Um deles girava uma manivela numa caixa.

Ela estava tão sobrecarregada que os magos caíam de vez em quando e corriam atrás dela, berrando, até conseguirem subir novamente e continuar gritando.

Quem quer que estivesse tentando dirigir, não estava se saindo bem, e ela seguia em ziguezague, saindo completamente da estrada e, finalmente, chocou-se contra a parede de um celeiro.

Um dos fazendeiros cutucou o outro.

—    Já vi isso nos cliques. É sempre a mesma coisa. Eles bate num celeiro e sempre sai do outro lado com um monte de galinha cacarejando.     .

Seu companheiro se apoiou com ar pensativo na enxada.

—    Ia ser uma cena que ia valer a pena ver.

—    Ô se valia.

—    Porque tudo o que tem lá dentro é 20 tonelada de repolho.

Houve um estrondo, e a cadeira saiu a toda velocidade do celeiro em meio a uma chuva de galinhas e seguiu desvairada na direção da estrada.

Os fazendeiros se entreolharam.

—    É, tá danado — disse um deles.

Holy Wood era um brilho no horizonte. Os tremores de terra ficavam cada vez mais fortes.

A carruagem tremeluzente saiu de trás de algumas árvores e parou no alto de um declive que ia dar na cidade.

Holy Wood estava envolta em nevoa. Raios de luz saíam dela e se cruzavam no céu.

—    Chegamos tarde demais? — perguntou Ginger, esperançosa.

—    Quase tarde demais — respondeu Victor.

—    Oook — disse o bibliotecário. Sua unha corria de um lado para o outro enquanto lia os pictogramas antigos da direita para a esquerda... da direita para a esquerda.

—    Sabia que alguma coisa não estava certa — Victor havia dito. — Aquela estátua adormecida... o guarda. Os sacerdotes antigos cantavam músicas e faziam cerimônias para mantê-lo acordado. Faziam o possível para se lembrar de Holy Wood.

—    Mas eu não sei nada de guardião nenhum!

—    Sabe, sim. Assim, lá no fundo.

—    Oook — disse o bibliotecário, batendo na página. — Oook!

—    Ele disse que você provavelmente e descendente da suma sacerdotisa. ele acha que todo mundo em Holy Wood é descendente de... assim... quer dizer, na primeira vez que as Coisas escaparam, a cidade inteira foi destruída e os sobreviventes fugiram para todos os lugares, entende. Mas todo mundo tem um jeito de se lembrar até das coisas que aconteceram a seus ancestrais, tipo, e como se tivesse um enorme lago de memórias e nós estivéssemos ligados a ele. e, quando tudo começou a acontecer novamente, todos nós somos chamados a um lugar, e você tentou esclarecer as coisas, só que a ligação estava muito tênue e não conseguia chegar até você, a menos que estivesse dormindo...

Ele não teve como não perder a voz.

—    "Oook?" — disse Ginger, desconfiada. — Você tirou tudo isso de um "oook"?

—    Bem, não só de um — admitiu Victor.

—    Eu nunca ouvi tanta... tanta — Ginger começou e parou. Uma mão mais macia que o mais macio dos couros se lançou para as mãos dela. Ela olhou para um rosto que poderia ser comparado a uma bola de futebol murcha.

—    Oook — disse o bibliotecário.

Ginger o encarou por um momento.

Depois:

—    Mas eu nunca me senti nem um pouco como uma suma sacerdotisa...

—    O sonho que você me contou — começou Victor — soava muito sumo sacerdotísico para mim. Muito... muito...

—    Oook.

—    Sacerdotal. Isso — traduziu Victor.

—    É só um sonho — disse Ginger, nervosa. — eu tenho esse sonho de vez em quando desde que me entendo por gente.

—    Oook oook.

—    O que ele disse? — perguntou Ginger.

—    Ele disse que ele é provavelmente muito mais antigo do que você imagina.

Diante deles, Holy Wood cintilava como uma geada, como uma cidade feita de luz estelar solidificada.

—    Victor? — chamou Ginger.

—    Sim?

—Onde está todo mundo?

Victor olhou para a estrada. Onde deveria haver pessoas, refugiados fugindo desesperadamente... não havia nada. Apenas silêncio e luz.

—    Onde estão? — ela repetiu.

Ele olhou para a expressão dela.

—    Mas o túnel caiu! — disse bem alto, na esperança de que isso fizesse do argumento uma verdade. — Ficou tudo lacrado!

—    Mas não levaria muito tempo para trolls abrirem caminho — observou Ginger.

Victor pensou no... no Coicinema. e na primeira sessão, que se prolongou por milhares de anos. e em todas as pessoas que ele conhecia, sentadas ali por mais mil anos, enquanto, acima delas, as estrelas mudavam.

—    É claro que elas podem estar apenas... bem... em algum outro lugar — ele mentiu.

—    Mas não estão — discordou Ginger. — Nós dois sabemos disso.

Victor olhou para a cidade de luzes, sentindo-se impotente.

—    Por que nós? Por que está acontecendo com a gente?

—    Tudo tem que acontecer a alguém — observou Ginger. Victor deu de ombros.

—    E você só tem uma chance. Certo?

—    Só quando você precisa salvar o mundo existe um mundo para você salvar — constatou Ginger.

—    É. Sorte nossa.

Os dois fazendeiros espiaram pelas portas do celeiro. Pilhas de repolho aguardavam impassíveis na escuridão.

—    Te disse que era os repolho — disse um deles. — Sabia que não era galinha. Sei reconhecer um repolho quando vejo e acredito no que vejo.

Do alto vieram vozes, que se aproximavam:

—    Pelo amor dos deuses, homem, não sabe dirigir?

—    Não com você jogando o seu peso de um lado pro outro, arqui-reitor!

—    Onde e que nós fomos parar? Não dá pra ver nada nesta neblina!

—    Vou ver se consigo virar... não se incline desse jeito! Não se incline desse jeito! eu disse para não se inclinar...!

Os fazendeiros deram um mergulho lateral quando a vassoura passou num movimento espiral pelas portas abertas e desapareceu entre as fileiras de repolho. Houve um som distante de folhas se esmagando.

Por fim, uma voz abafada disse:

—    Você se inclinou.

—    Bobagem. em que bela confusão você foi me meter. O que é isto?

—    Repolho, arqui-reitor.

—    Um tipo de verdura?

—    Sim.

—    Não suporto verdura. Afina o sangue.

Houve uma pausa. Depois os fazendeiros ouviram a outra voz dizer:

—    Bom, sinto muito, seu balde de banha arrogante e sanguinário.

Houve mais uma pausa.

—    Posso demitir você, tesoureiro?

—    Não, arqui-reitor, eu tenho estabilidade.

—    Então me ajuda e vamos encontrar alguma bebida.

Os fazendeiros saíram de fininho.

—    Tá danado — disse o que acreditava em repolhos. — São magos. Melhor a gente não se intrometer nos assuntos de magos danados.

—    Ê — concordou o outro fazendeiro. — e... o que significa danado mesmo?

Era o tempo do silêncio.

Nada se movia em Holy Wood, exceto a luz. ela tremeluzia devagar. "A luz de Holy Wood", pensou Victor.

Havia uma sensação de expectativa terrível. Se um set de filmagem era um sonho esperando para se tornar real, a cidade era o grau seguinte da escala — um lugar real esperando alguma coisa nova, alguma coisa que a linguagem comum não seria capaz de definir.

—    ...     — ele disse, e parou.

—    ? — perguntou Ginger.

—    ?

—    i

Eles se entreolharam assustados por um momento. Depois Victor pegou a mão dela e a levou para dentro do predio mais próximo, o refeitório.

O cenário lá dentro era indescritível e continuou assim até Victor encontrar um quadro—negro usado para o que era risivelmente chamado de menu.

Ele pegou um giz.

—    eSTOU FALANDO, MAS NÃO CONSIGO Me OUVIR — escreveu e passou o giz para ela com ar solene.

—    EU TB. PQ?

Victor ficou jogando o giz para o alto, pensativo, e depois escreveu:

—ACHO QUe PQNÃO INVeNTAMOS FILMeS COM SOM. Se NÃO TIVeSSeMOS DIABINHOS QUe SOUBeSSeM PINTAR A COReS, TALVeZ SÓ TIVeSSe PReTO e BRANCO AQUI TAMBÉM.

Eles olharam para o cenário ao redor. Havia refeições deixadas pela metade ou que não tinham sido tocadas em quase todas as mesas. Isso não era muito raro no restaurante do Borgle, mas normalmente era acompanhado por pessoas reclamando.

Ginger colocou o dedo com delicadeza no prato mais próximo.

—    Ainda quente — ela movimentou os lábios para que ele lesse.

—    Vamos — disse Victor, em silêncio, apontando para a porta. Ela tentou dizer algo complicado, ficou brava com a expressão dele de quem não entendia nada dele e escreveu:

—    MeLHOR eSPeRAR OS MAGOS.

Victor ficou paralisado por um momento. Depois seus lábios formaram uma frase que Ginger não quis admitir ter entendido e fez um movimento rápido indicando o lado de fora.

A cadeira sobrecarregada já vinha rolando pela rua com fumaça saindo pelos eixos. Ele deu vários pulos na frente dela, balançando os braços.

Uma longa conversa silenciosa prosseguiu. Muito giz foi usado na parede mais próxima. Por fim, Ginger não conseguiu mais conter sua impaciência e se apressou.

_ VOCÊ TeM QUe FICAR LONGe DISSO. Se eLAS CONSeGUeM eSCAPAR, VOCÊ VAI VIRAR ReFeIÇÃO.

—    VOCÊ TAMBÉM. — Isso foi escrito com uma letra mais bonita. era do decano.

Victor escreveu:

—    SÓ QUe eU ACHO QUe SeI O QUe TÁ ACONTeCeNDO. De TODO MODO, PReCISAReMOS De VOCÊS Se DeR eRRADO.

Ele acenou com a cabeça para o decano e voltou correndo para onde estavam Ginger e o bibliotecário. ele se virou para o bibliotecário com um olhar preocupado. em termos técnicos, o bibliotecário era um mago — pelo menos quando era humano, então se presumia que ainda fosse. Por outro lado, também era um símio, e um faz-tudo muito bom para ter por perto em caso de emergência. ele decidiu arriscar.

—    Venha — mexeu os lábios.

Foi bastante fácil encontrar o caminho para a colina. Onde havia antes um caminho, agora havia uma trilha ampla, esparramada de forma comovente pelos objetos pessoais deixados por efeito de uma passagem apressada. Uma sandália. Uma caixa de imagem desprezada. Um boá de plumas largado.

A porta de entrada para a colina tinha sido arrancada das dobradiças. Um brilho tênue vinha do túnel. Victor deu de ombros e entrou.

Os objetos deixados pelo caminho não tinham sido recolhidos imediatamente, mas empurrados para os lados e achatados para permitir a entrada da multidão. O teto não havia caído. Não por causa dos objetos abandonados, mas graças a Detritus.

Ele sustentava o teto no alto.

Quase no alto. ele já estava apoiando um joelho no chão.

Victor e o bibliotecário empilharam pedregulhos em torno do troll até que ele pudesse tirar o peso dos ombros. ele suspirou, ou pelo menos pareceu ter suspirado, e tombou para a frente. Ginger o ajudou a se levantar.

—    O que aconteceu? — perguntou, movendo os lábios diante dele.

—    ?      ? — Detritus parecia confuso com a falta da voz e tentou olhar para a própria boca.

Victor suspirou. Ele teve uma visão dos moradores de Holy Wood debandando em pânico e cegamente pela passagem, com os trolls forçando a obstrução. Como Detritus era o mais forte, era natural que tivesse um papel importante. E, como a única função para a qual usava o cérebro normalmente era impedir que o topo da sua cabeça caísse, também era natural que fosse deixado para trás para segurar o peso na colina. Victor o imaginou chamando pelos outros, sem ser ouvido, enquanto os restantes passavam correndo.

Ele se perguntou se deveria escrever uma mensagem para animá-lo, mas, no caso de Detritus, isso seria quase com certeza uma perda de tempo. Seja como for, o troll não pretendia ficar por perto. Ele saiu trotando pelo túnel com expressão seria, concentrado em alguma tarefa particular. Os nós dos dedos iam arrastando atrás, formando sulcos na areia.

A passagem se abria para a caverna, que era, Victor percebeu agora, uma espécie de sala de espera que antecedia a sala de espetáculos propriamente dita. Talvez, há milhares de anos, fiéis tenham se reunido ali para comprar... o quê? Salsichas sagradas, talvez, e os santos grãos estourados.

Uma luz espectral se espalhava pela sala. ela permanecia cheia de umidade e mofo antigo onde quer que Victor olhasse. No entanto, onde não olhava, nos cantos do campo de visão, dava a impressão de que o lugar tinha a decoração de um palácio, com cortinas de Veludo vermelho e decorações barrocas douradas. ele virava a cabeça de forma repentina, tentando capturar a imagem espectral e cintilante.

Ele se deparou com a expressão preocupada do bibliotecário e escreveu com o giz na parede da caverna:

—    REALIDADES FUNDIDAS?

O bibliotecário consentiu com a cabeça.

Victor estremeceu e liderou seu pequeno grupo de guerrilheiros de Holy Wood — pelo menos, dois guerrilheiros e um orangotango — pelos degraus gastos que davam na sala de espetáculos.

Depois Victor se deu conta de que Detritus tinha salvado todo mundo. eles olharam para as imagens retorcidas na tela obscena e... Sonho. Realidade. Acredite.

Aguarde...

... e Detritus tentou passar através deles. Imagens projetadas para capturar e projetar deslumbramento sobre qualquer mente inteligente bateram no fundo de seu crânio trêmulo e saíram mais uma vez. ele não prestou atenção. Tinha coisas mais importantes a fazer.32

Quase morrer pisoteado por um troll preocupado é quase a cura ideal para alguém que esteja confuso sobre o que e real ou não. A realidade e algo que parte para cima de sua espinha sem pedir licença.

 

  1. A expressão em trolês era: "Tinha outros ursos pardos enlouquecidos para apagar".

 

Victor se pôs de pé novamente, puxou os outros em sua direção e apontou para o retângulo protuberante e tremeluzente do outro lado da sala.

— Não olhem! — disse, movendo os lábios.

Eles consentiram.

Ginger segurou seu braço com força enquanto seguiam devagar pelo corredor.

Holy Wood inteira estava ali. Eles viram rostos conhecidos espalhados entre os assentos, imóveis diante da luz estremecida. Todas as expressões permaneciam estáticas.

Victor sentiu as unhas de Ginger se afundarem na sua pele. Lá estavam Rocha, Morry, Fruntkin do refeitório e a senhora Cosmopilite, a mulher que cuidava das roupas. Lá estavam Silverfish e uma fileira de outros alquimistas. Lá estavam os carpinteiros, os operadores de manivela e todas as estrelas que nunca foram, todas as pessoas que tinham segurado cavalos ou limpado mesas ou ficado em filas esperando durante muito tempo por sua grande chance...

"Lagostas", pensou Victor. "Havia uma grande cidade, e muita gente morreu, e agora ela e o lar das lagostas."

O bibliotecário apontou.

Detritus havia encontrado Ruby na primeira fileira e tentava tirá-la de seu assento. ele a puxava em várias direções, mas seu olhar acabava sempre se voltando para as imagens sinuosas. Quando ficou na frente dela, Ruby pestanejou por um momento, fez cara de brava e o jogou para o lado.

Em seguida, sua expressão voltou aos poucos a ficar vazia, e ela se acomodou na cadeira.

Victor pôs a mão no ombro dele e fez gestos que esperava serem tranqüilizadores. O rosto de Detritus era um afresco do sofrimento.

A armadura ainda estava sobre a placa de pedra atrás da tela, em frente ao disco corroído.

Eles olharam para ela, sem saber o que fazer.

Victor passou o dedo pela poeira, incerto. Surgiu um traço de metal amarelo reluzente. ele olhou para Ginger.

—    e agora? — moveu os lábios.

Ela deu de ombros, com o seguinte significado: Como e que eu vou saber? eu estava dormindo antes.

A tela acima deles ficava cada vez mais inchada. Quanto tempo demoraria para as Coisas saírem de lá?

Victor tentou sacudir o... bom, vamos chamar de homem. Um homem muito alto. Numa armadura de ouro sem emendas. Seria mais fácil tentar acordar uma montanha.

Tentou soltar a espada, embora ela fosse mais comprida que ele e, mesmo se conseguisse levantá-la, seria tão fácil de manobrar quanto uma barcaça.

Ela estava bem presa.

O bibliotecário tentava ler o livro à luz da tela, virando as páginas fervorosamente.

Victor escreveu com o giz na lateral da placa de pedra:

—    VOCÊS NÃO CONSeGUeM PeNSAR eM NADA MeSMO?

Ginger pegou o giz:

—    NÃO! VOCÊ Me ACORDOU!! NÃO SeI COMO FAZeR ISSO!!! O QUe QUeR SeJA!!!'

O quarto ponto de exclamação só não foi completado porque o giz se partiu. Houve um "ping" distante quando uma parte dele acertou alguma coisa.

Victor tirou a outra ponta da mão dela.

— TALVeZ SeJA MeLHOR DAR UMA OLHADA NO LIVRO — sugeriu.

O bibliotecário concordou com a cabeça e tentou colocar o livro nas mãos dela. ela o recusou por um momento e ficou parada olhando para as sombras.

Ela pegou o livro.

Olhou do símio para o troll e do troll para o homem.

Depois pôs o braço para trás e atirou o livro longe.

Desta vez não foi um ping. Foi um "booong" definido, grave e muito ressonante. Alguma coisa era capaz de fazer barulho no lugar sem nenhum som.

Victor deslizou em volta da placa de pedra.

O grande disco era um gongo. ele deu um tapa. Pedaços soltos pela corrosão caíram, mas o metal vibrou com a batida leve e emitiu mais um pequeno ruído abafado com seu toque. Abaixo do gongo, agora que seus olhos buscavam de forma instintiva, havia uma baqueta de metal de quase dois metros com uma bola acolchoada na ponta.

Ele a segurou e a ergueu dos suportes onde estava. Ou tentou, pelo menos. estava presa no lugar pela ferrugem.

O bibliotecário se posicionou na outra ponta, procurou olhar Victor nos olhos e, desta vez, fizeram força juntos. Lascas de ferrugem se fincaram nas mãos de Victor.

Ela permanecia irremovível. O martelo do gongo e seus suportes tinham se transformado, graças ao tempo e ao ar salgado, num todo metálico.

Depois o tempo pareceu ficar lento e se tornou uma serie de eventos congelados à luz tremeluzente, como as imagens animadas passando pela caixa.

Clique.

Detritus passou o braço por cima da cabeça de Victor, agarrou o martelo pelo meio e o ergueu, arrancando os suportes enferrujados da rocha.

Clique.

Atiraram-se no chão quando ele segurou o martelo com as duas mãos, flexionou os músculos e bateu no gongo.

Clique.

Clique.

Clique.

Clique.

Capturado numa serie de quadros, Detritus parecia mudar de forma instantânea para... clique... posições diferentes, Porém conectadas, enquanto girava sobre o pé caloso, com a cabeça do martelo... clique... formando um arco brilhante no escuro.

Clique.

O impacto arremessou o gongo tão longe que as correntes arrebentaram e ele bateu contra a parede da sala de espetáculos.

O som voltou rapidamente e em vastas quantidades, como se estivesse represado em algum lugar e depois tivesse sido solto, espalhando-se alegremente para todos os lados e esmagando todos os tímpanos.

Booong.

Clique.

A figura gigante sobre a placa de pedra se sentou lentamente, com a poeira caindo em forma de cascata vagarosa. embaixo dele havia ouro, com o brilho preservado através dos anos.

Ele se movia devagar, mas de forma calculada, como se fosse impulsionado por um mecanismo automático. Uma mão segurou a espada gigante. A outra agarrou a ponta da placa de pedra para dar estabilidade à figura enquanto suas pernas longas e afiladas viraram para o chão.

Ele ficou de pé, com seus três metros de altura, apoiou as mãos no punho da espada e parou. Sua postura não ficou muito diferente de quando estava deitado na placa, mas agora havia um ar alerta, uma impressão de enormes quantidades de energia em ponto morto, sem uso. Ele não prestou nenhuma atenção nos quatro que o haviam despertado.

A tela interrompeu sua pulsação desenfreada. Alguma coisa havia sentido a presença do homem dourado e voltava sua atenção para ele, o significava que sua atenção era temporariamente removida de outro lugar.

Houve um burburinho na platéia. estavam acordando.

Victor segurou o bibliotecário e Detritus.

—    Vocês dois. Tirem todo mundo daqui. Tirem eles daqui rápido.

—    Oook!

O povo de Holy Wood não precisava de muito incentivo. Ver as formas na tela de maneira clara, sem a influência da hipnose, era o suficiente para fazer qualquer coisa mais inteligente que Detritus sentir uma vontade repentina de ir para bem longe dali. Victor os viu passando com dificuldade por cima dos assentos, lutando para escapar da sala de espetáculos.

Ginger começou a ir atrás deles. Victor a deteve.

—    Ainda não — disse, com calma. — Nós, não.

—    Como assim? — ela perguntou.

Ele balançou a cabeça.

—    Temos que ser os últimos a sair. e tudo parte de Holy Wood. Você pode usar a magia, mas ela também usa você. Alem do mais, você não quer ver como tudo termina?

—    Eu tinha esperanças de poder ver como tudo termina de longe.

—    está bem, então veja de outra forma... eles levarão alguns minutos para sair. Não adiantaria sair correndo, certo?

Victor andou pelo corredor subitamente deserto até a última fileira e se sentou num assento vago.

—    Espero que o velho Detritus seja esperto o suficiente para não ficar para trás segurando o teto novamente.

Ginger deu um suspiro e se sentou ao lado dele.

Victor pôs os pés no assento da frente e remexeu os bolsos.

—    Aceita — ofereceu — um pouco de grãos estourados?

O homem dourado ficou visível abaixo da tela. ele curvou a cabeça, fazendo uma reverência.

—    Sabe, ele se parece, sim, com o meu tio Osvaldo — observou Ginger.

A tela ficou escura de modo tão repentino que a invasão da escuridão quase fez um barulho.

"Isto já deve ter acontecido muitas vezes", pensou Victor. "em dezenas de universos. A idéia turbulenta chega e, de alguma forma, o homem dourado, o Osvaldo, que seja, ressuscita. Para controlá-la. Ou algo assim. Talvez, onde quer que Holy Wood vá, Osvaldo a siga."

Um ponto de luz roxa surgiu e se aproximou muito rápido. Victor sentiu como se caísse num túnel.

A figura dourada ergueu a cabeça.

A luz se contorceu e assumiu formas aleatórias. A tela não estava mais lá. Aquilo era algo que entrava no mundo. Não era uma imagem no outro canto da sala, mas algo que tentava loucamente existir.

O homem dourado puxou a espada para trás.

Victor sacudiu o ombro de Ginger.

—    Acho que agora é hora de sairmos.

A espada se conectou. A caverna se encheu de luz dourada.

Victor e Ginger já corriam pelos degraus da ante-sala quando sofreram o primeiro choque. eles pararam em frente à boca do túnel, que estava desocupada.

—    Nem morta! — disse Ginger. — Não vou ficar presa ali dentro de novo.

A escada alagada estava diante deles. e claro que tinha uma ligação com o mar que na verdade ficava a apenas alguns metros dali, mas a água era preta como tinta e, nas palavras de Gaspode, parecia ser um presságio.

—    Sabe nadar? — perguntou Victor. Um dos pilares apodrecidos da caverna desabou atrás deles. De sala de espetáculos veio um gemido terrível.

—    Não muito bem — respondeu Ginger.

—    Nem eu — ele disse. A agitação atrás deles piorava.

—    Mesmo assim — ele começou, pegando na mão dela. — Podemos encarar isso como uma ótima oportunidade para melhorarmos muito rápido.

Eles pularam.

Victor emergiu a 50 metros da praia, com os pulmões estourando. Ginger emergiu a alguns metros dali. eles foram até uma parte mais rasa e pararam para ver.

A terra tremeu.

A cidade de Holy Wood, construída com madeira barata e pregos curtos, desmoronava. Casas se dobravam sobre si mesmas feito cartas de baralho. Aqui e ali, pequenas explosões indicavam que suprimentos de octocelulose estavam envolvidos. Cidades de lona e montanhas de gesso se transformaram em ruínas.

No meio disso tudo, desviando da madeira que caía, mas sem deixar nada mais entrar em seu caminho, o povo de Holy Wood corria para se salvar. Operadores de manivela, atores, alquimistas, diabretes, trolls e anões corriam como formigas cujo formigueiro está em chamas — cabeça baixa, pernas latejando e olhar impetuoso fixo no horizonte.

Uma divisão inteira da colina desabou.

Por um momento, Victor pensou ter visto a enorme figura dourada de Osvaldo, tão insubstancial quanto partículas de poeira num feixe de luz, pairar acima de Holy Wood e dar uma volta com a espada num único movimento abrangente.

Depois desapareceu.

Victor ajudou Ginger a chegar à praia.

Alcançaram a rua principal, agora silenciosa, exceto por um ou outro rangido ou baque de uma tábua caindo dos prédios meio desmoronados.

Passaram com cuidado entre cenários caídos e caixas de imagem quebradas.

Houve um estrondo atrás deles quando a placa da Século do Morcego-de-Frutas deslizou das amarrações e bateu na areia.

Atravessaram os restos do refeitório de Borgle, cuja destruição havia elevado a qualidade media da comida do mundo inteiro em uma quantidade ínfima, Porém significativa.

Andaram com dificuldade entre cliques desenrolados se agitando ao vento.

Passaram por cima de sonhos desfeitos.

No limite do que tinha sido Holy Wood, Victor se virou e olhou para trás uma vez.

—    Bom, eles finalmente acertaram. Você nunca mais vai trabalhar nesta cidade.

Ele ouviu um soluço. Para sua surpresa, Ginger chorava. ele pôs o braço em volta dela.

—    Vem. Eu vou com você até a sua casa.

A magia de Holy Wood, agora destruída e desaparecendo aos poucos, abria rachaduras na paisagem, buscando caminhos para se enterrar.

Clique...

Era fim de tarde. A luz avermelhada do sol se pondo invadiu as janelas da Casa das Costelas de Harga, quase deserta àquela hora do dia.

Detritus e Ruby se sentaram, desajeitados, em cadeiras projetadas para humanos.

A única pessoa por perto era o próprio Sham Harga, espalhando a sujeira de modo mais uniforme sobre as mesas vazias com um pano e assobiando distraidamente.

—    e... — arriscou Detritus.

—    Sim? — respondeu Ruby, cheia de expectativas.

—    e... Nada — disse ele. ele se sentia deslocado ali, mas Ruby havia insistido. Detritus sentia que ela queria que ele dissesse alguma coisa, mas só conseguia pensar em acertar a cabeça dela com um tijolo.

Harga parou de assobiar.

Detritus sentiu a cabeça virar. Sua boca se abriu.

—    Toque de novo, Sham — disse Holy Wood.

Houve um acorde pomposo. A parede dos fundos da Casa das Costelas se moveu para o lado, para qualquer que seja a dimensão para onde essas coisas vão, e uma orquestra confusa, Porém inconfundível, preencheu o espaço normalmente ocupado pela cozinha de Harga e pelo beco fétido atrás dela.

O vestido de Ruby se tornou uma cachoeira de lantejoulas. As outras mesas saíram girando.

Detritus ajeitou um smoking inesperado e limpou a garganta.

—    Podem haver poblemas adiante... — começou, as palavras vindo de algum lugar direto para suas cordas vocais.

Ele pegou a mão de Ruby. Uma bengala com ponta de ouro bateu em sua orelha esquerda. Um chapéu de seda preta se materializou em alta velocidade e bateu com força em seu cotovelo. ele ignorou os dois.

—    Mas enquanto houver a luz do luar e a música...

Ele titubeou. As palavras bonitas estavam desaparecendo. A parede voltou ao lugar. As mesas reapareceram. As lantejoulas cintilaram e se apagaram.

—    Um... — disse Detritus de repente. — ela o observava com atenção. — e... Desculpe. Não sei o que me deu.

Harga se aproximou da mesa.

—    O que foi isso... — começou. Sem mudar a direção do olhar, Ruby levantou um braço de tronco de árvore, o fez girar e o empurrou contra a parede.

—    Me beija, seu tolo demente — ela disse. Detritus franziu a testa.

—    O quê?

Ruby suspirou. Bem, chega de usar o jeito humano.

Ela pegou uma cadeira e acertou a cabeça dele com precisão científica. Ele abriu um sorriso e caiu para a frente.

Ela o ergueu calmamente e o jogou por cima do ombro. Se Ruby aprendeu alguma coisa em Holy Wood, era que não adiantava ficar esperando o príncipe encantado atirar um tijolo em você. Você tinha que fazer o próprio tijolo.

Clique...

Numa mina de anões a quilômetros de distância da argila de Ankh-Morpork, um supervisor muito nervoso bateu no chão com a pá e se pronunciou da seguinte forma:

Quero deixar bem claro, certo? Mais um, e estou falando sério, mais um, certo? Somente mais um "eu vou" de algum de vocês, seus enfeites de jardim, e vai voar machado aqui, ok? Nós somos anões, caramba. Então hajam como tal. E isto inclui você, sapeca.

Clique...

Quer—levar—um—soco, me—chame—de—Tampinha foi pulando até o alto da duna e olhou à sua volta. Depois descéu de volta.

—    Tá limpo — informou. — Nenhum humano, nenhuma ruína.

—    Um lugar shó nosso — disse o gato, feliz. — Um lugar onde todosh os animais, independentemente da forma e da eshpecie, podem viver juntos em perfeita...

O pato grasniu.

—    O pato está dizendo — traduziu-- Me—chame—de—Tampinha—e—morra — que vale a pena tentar. Se vamos nos tornar sapientes, podemos ficar bons nisso. Venham. Depois ele sentiu um arrepio. Houve algo como um leve ruído de eletricidade estática. Por um momento, a pequena área nas dunas de areia oscilou como se fosse por efeito de um forte mormaço.

O pato grasniu de novo.

Não—Seu—Tampinha franziu o focinho. De repente, ficou difícil se concentrar.

—    O pato está dizendo... — hesitou — o pato está dizendo... dizendo... o pato... dizendo... dizendo... quá—quá..?.

O gato olhou para o rato.

—    Miau?

O rato deu de ombros.

—    Guincho — comentou.

O coelho franziu o focinho, incerto.

O pato olhou para o gato com os olhos entreabertos. O gato olhou fixamente para o coelho. O rato examinou o pato.

O pato voou para o alto. O coelho se transformou numa nuvem de areia que logo sumiu. O rato saiu esburacando as dunas. e, sentindo-se muito mais feliz do que nas últimas semanas, o gato correu atrás dele.

Clique...

Ginger e Victor estavam sentados à mesa, num canto do Tambor Remendado. Depois de algum tempo, Ginger disse:

—    Eles eram bons cachorros.

—    Eram — concordou Victor, num tom distante.

—    Morry e Rocha estão escavando os escombros há uma eternidade. Disseram que tem vários tipos de porões lá. Sinto muito.

— É.

—    Talvez devêssemos erguer uma estátua pra eles ou algo do tipo.

—    Não sei, não. Quer dizer, considerando o que os cães fazem com as estátuas... Talvez a morte de cachorros faça parte de Holy Wood. Não sei.

Ginger traçou o contorno de um nó de madeira no tampo da mesa.

—    Agora acabou tudo. Você sabe disso, não sabe? Não tem mais Holy Wood. Acabou tudo.

— É.

—    O Patrício e os magos não deixarão mais ninguém fazer cliques. O Patrício foi muito enfático em relação a isso.

—    Acho que ninguém mais quer fazer — disse Victor. — Quem é que se lembrará de Holy Wood agora?

—    Como assim?

—    Aqueles sacerdotes antigos construíram uma espécie de religião mal planejada em torno dela. eles esqueceram totalmente os verdadeiros objetivos. Mas isso não importava. Acho que não são necessários cânticos e fogueiras. Só e preciso lembrar de Holy Wood. Precisamos de alguém que se lembre muito bem de Holy Wood.

—    É — concordou Ginger, sorrindo. — Seriam necessários mil elefantes.

—    É — Victor riu. — Pobre Dibbler. ele também nunca conseguiu os elefantes.

Ginger ficou virando um pedaço de batata no prato. Pensava em algo, e não era em comida.

—    Mas foi.ótimo, não foi? — disse, de repente. — Tivemos uma experiência realmente impressionante, não?

—    Sim.

—    As pessoas gostaram de verdade, não?

—   Ah, sim — disse Victor, num tom melancólico.

—    Não trouxemos algo realmente importante pro mundo?

—    Tá brincando?

—    Não me referi a isso. Ser uma deusa das telas não e toda essa maravilha que dizem, sabe.

—    Certo. Ginger suspirou.

—    Não haverá mais a magia de Holy Wood.

—    Acho que ainda pode haver algum restinho.

—    Onde?

—    Vagando por aí. encontrando maneiras de se esgotar, imagino.

Ginger ficou olhando para seu copo.

—    O que você vai fazer agora? — ela perguntou.

—    Não sei. E você?

—    Voltar pra fazenda, talvez.

—    Por quê?

—    Holy Wood foi a minha chance, entende? Não tem muitos empregos para mulheres em Ankh-Morpork. Pelo menos — acrescentou — nenhum que me interesse. Já tive três pedidos de casamento. De homens bem importantes.

—    Teve? Por quê? ela franziu a testa.

—    Ei, não sou tão feia assim...

—    Não quis dizer isso — corrigiu Victor, rápido.

—    Ah, acho que, pra quem e um comerciante poderoso, é interessante ter uma mulher famosa. É como ter jóias. — ela baixou o rosto. — A senhora Cosmopolite disse que pode ficar com um dos que eu recusar. Eu disse que podia ficar com os três.

—    Eu sempre fui assim em relação a escolhas, também — disse Victor, animando-se.

—    Foi? Se essas são todas as escolhas que tenho, não vou escolher. O que você pode ser depois de ter sido você mesmo da forma mais completa possível?

—    Nada — respondeu Victor.

—    Ninguém sabe qual é a sensação.

—    A não ser nós dois.

—    É.

—    É.

Ginger sorriu. Foi a primeira vez que Victor viu seu rosto sem sinais de petulância, raiva, preocupação ou maquiagem de Holy Wood.

_ Ânimo — ela disse. — Amanhã e outro dia.

Clique...

O sargento Colon, da guarda municipal de Ankh-Morpork, foi despertado de seu cochilo sereno na guarita acima do portão principal por um estrondo distante.

Uma nuvem de poeira se estendeu de horizonte a horizonte. ele ficou observando, pensativo, por algum tempo. A nuvem cresceu e, por fim, expeliu um rapaz de pele morena montado num elefante.

O animal veio trotando pela estrada que levava aos portões e conseguiu parar diante do muro da prefeitura. A nuvem de poeira, Colon não pôde deixar de notar, permanecia no horizonte e não parava de crescer.

O garoto pôs as mãos em torno da boca e gritou:

—    Sabe me dizer como faço para chegar a Holy Wood?

—    Não tem mais Holy Wood nenhuma pelo que ouvi dizer — respondeu Colon.

O garoto pareceu refletir sobre a informação. Depois olhou para um pedaço de papel que tinha na mão.

—    Sabe onde posso encontrar o senhor Dibbler C.A.P.C? O sargento Colon repetiu as iniciais em voz baixa.

—    Você quer dizer o Cova? O Dibbler Cava-a-própria-Cova?

—    Ele está?

O sargento Colon olhou para a cidade atrás dele.

—    vou dar uma olhada. Quem eu devo dizer que quer falar com ele?

—    Temos uma entrega para ele. COD.

—    Cód? Arriscou Colon, olhando de relance para a nuvem baixa. — estão codificando alguma coisa?

—    Na verdade, não.

enormes testas cinzentas começavam a se tornar visíveis na poeira. Havia também um cheiro muito característico de mil elefantes que se alimentaram em plantações de repolho durante dias.

—    espere só um pouco. Vou mandar chamá-lo.

Colon pôs a cabeça de volta para dentro da guarita e cutucou o vulto adormecido do cabo Nobbs, atualmente a outra metade da força de combate de olhar sagaz que guardava a cidade de modo incessante.

—    Que foi?

—    Cê viu o velho Cova hoje de manhã, Nobby?

—    Vi, ele estava na rua do Sossego. Comprei uma Surpresa de Salsicha Gigante dele.

—    Ele voltou a vender salsichas?

—    Foi obrigado. Perdeu todo o dinheiro. O que foi?

—    Dá só uma olhadinha lá fora, por favor — disse Colon com uma voz calma.

Nobby foi olhar.

—    Parece que é... o senhor diria que são mil elefantes, sargento?

—    É. Uns mil, eu diria.

—    Achei que pareciam uns mil.

—    Um homem aí diz que o Cova encomendou — disse o sargento Colon.

—    Tá brincando? ele tá levando a Sério esse negócio de Salsicha Gigante, então? eles se entreolharam. O sorriso de Nobby era cruel.

—    Ah, vai. Deixa eu avisar ele. Por favor?

Clique...

Thomas Silverfish, alquimista e produtor de cliques fracassado, mexeu os conteúdos de um cadinho e suspirou pensativo.

Muito ouro havia sido deixado para trás em Holy Wood, para qualquer um que tivesse a ousadia de ir até lá cavar. Para aqueles que não tinham, e Silverfish não hesitaria em se colocar como o primeiro desse grupo, havia os velhos métodos experimentados e testados, ou, para colocar de outra forma, métodos experimentados e constantemente fracassados de produção de riqueza. então ele havia voltado para casa, retomando as coisas de onde havia parado.

—    Algum resultado? — perguntou Peavie, que resolvera fazer uma visita para ser solidário.

—    Bem, está prateado — disse Silverfish, na dúvida. — e é meio metálico. e é mais pesado que chumbe. É necessário cozinhar uma tonelada de minério também. O engraçado e que achei que estivesse quase conseguindo desta vez. Realmente achei que estivéssemos a caminho de um futuro novo, claro...

—    Como e que vai chamar esse? — perguntou Peavie.

—    Ah, não sei. Provavelmente não vale a pena dar nome.

—    Ankhmorporkúrio? Silverfíshio? Notleadina? — sugeriu Peavie.

—    Inutínio é mais provável. Vou desistir dele e voltar a algo mais sensato.

Peavie espiou dentro da fornalha.

—    Ele não faz bum, faz? — perguntou. Silverfish lhe deu um olhar paralisante.

—    Isso aqui? O que te fez pensar isso?

Clique...

Estava um breu total debaixo dos escombros.

Já estava um breu total havia muito tempo.

Gaspode podia sentir as toneladas de pedras acima daquele pequeno espaço. Não era preciso nenhum sentido canino especial para isso.

Ele se arrastou até onde uma pilastra derrubara a porta do porão.

Laddie ergueu a cabeça com dificuldade, lambeu o rosto de Gaspode e conseguiu dar latidos fraquíssimos.

—   Bom garoto Laddie... Bom garoto Gaspode...

—    Bom garoto Laddie — sussurrou Gaspode.

O rabo de Laddie bateu uma ou duas vezes nas pedras. Depois ele choramingou um pouco, com pausas cada vez mais longas entre os sons.

Depois houve um ruído fraco. Igual ao de osso batendo na pedra.

As orelhas de Gaspode tremeram rápido. ele ergueu a cabeça para a figura que se aproximava, visível até na escuridão absoluta porque ficaria para sempre mais escuro do que a mera escuridão sozinha conseguiria ficar.

Ele se ergueu, com os pêlos se eriçando sobre as costas, e rosnou.

—    Mais um passo e eu arranco a sua perna e enterro — disse.

Uma mão esquelética se aproximou e fez cócegas nele atrás das orelhas.

Houve um latido fraco na escuridão.

—    Bom garoto Laddie!

Gaspode, com lágrimas rolando pelo rosto, deu um sorriso arrependido para Morte.

—    Patético, não? — disse, com a voz rouca.

—    NÃO SABeRIA DIZeR. NUNCA GOSTeI MUITO De CACHORROS. respondeu Morte.

—    Ah, e? Já que e assim, nunca gostei da idéia de morrer. Nós vamos morrer, não vamos?

—    SIM.

—    Não estou surpreso, de verdade. e a história da minha vida, morrer. Só que eu achei — acrescentou, esperançoso — que houvesse um Morte especial para cachorros. Um cachorro grande e preto talvez...

—    NÃO.

—    Engraçado, isso — começou Gaspode. — Ouvi dizer que todos os tipos de animais tinham seu próprio espectro misterioso e assustador que aparecia pra eles no fim. Sem querer ofender — acrescentou, rápido. — Achei que tivesse um cachorrão que viria correndo e diria: "Ok, Gaspode, seu trabalho está completo, coisa na terra farta de bifes e miúdos". “e tal largue o seu fardo cansativo, ou algo assim, e venha comigo para

—    NÃO. SÓ TEM EU. A ÚLTIMA FRONTEIRA.

—    Como e que estou vendo você se ainda não morri?

—    VOCÊ ESTÁ ALUCINANDO. Gaspode ficou em posição de alerta.

—    Estou? Caramba.

—    Bom garoto Laddie!— o latido tinha sido mais alto dessa vez. Morte vasculhou as reentrâncias misteriosas de seu manto e retirou uma pequena ampulheta. Não sobrara quase nenhuma areia na parte de cima. Os últimos segundos da vida de Gaspode sussurravam do futuro para o passado.

E então não havia mais nenhum.

Morte se levantou.

—    VENHA, GASPODE.

Houve um leve ruído, que soava como o equivalente audível de uma faísca.

Pequenas partículas douradas encheram a ampulheta.

A areia fluiu para trás.

Morte sorriu.

Depois, onde ele estava antes, havia um triângulo brilhante de luz.

—    Bom garoto Laddie!

—    Aí estão eles! Falei que tinha ouvido latido! — disse a voz de Rocha.

—    Bom garoto! Aqui, garoto!

—    Caramba, tô tão feliz em ver vocês... — começou Gaspode. Os trolls amontoados ao redor da fenda não prestaram a mínima atenção nele. Rocha removeu uma pilastra para o lado e ergueu Laddie com delicadeza.

—    Nada que o tempo não cure — disse.

—    Podemos comer ele agora? — perguntou um troll acima dele.

—    Você tem defeito ou algo assim? este cachorro um herói!

—     licença...

—   Bom garoto Laddie!

Rocha passou o cachorro para outro troll e saiu do buraco.

—    ... licença... — disse Gaspode em voz baixa.

Ele ouviu uma celebração distante.

Depois de algum tempo, como não parecia haver muita alternativa, arrastou-se dolorosamente pela pilastra inclinada e conseguiu sair dos escombros.

Não havia ninguém por perto.

Ele tomou uma bebida de uma poça.

Ele se ergueu, testando a pata ferida.

Dá pro gasto.

E, por fim, xingou.

—    Au, au, au!

Parou. Aquilo não estava certo.

ele tentou novamente.

—Au!

ele olhou ao redor...

... e o mundo ficou sem cor, retornando a um estado de abençoados pretos e brancos.

Gaspode lembrou que Harga tiraria o lixo por volta daquele horário e que depois encontraria um canto aconchegante em algum lugar. e do que mais um cachorrinho precisava?

Em algum lugar nas montanhas distantes, lobos uivavam. Em algum lugar em casas acolhedoras, cães com coleiras e pratos com seu nome recebiam afagos na cabeça.

em algum lugar entre esses dois, e sentindo-se estranhamente animado com isso, Gaspode o Cão Prodígio seguiu mancando na direção do glorioso pôr do sol monocromático.

A cerca de 50 quilômetros no sentido contrário ao de Ankh-Morpork, a espuma batia na porção de terra coberta de dunas onde o vento balança as gramíneas e o Mar Círculo encontra o Oceano Periférico.

Gaivotas marinhas mergulhavam baixo acima das ondas. As pontas secas de papoulas ressoavam na brisa perpetua que deixava o céu limpo de nuvens e fazia a areia se mover em padrões curiosos.

A colina era visível a quilômetros. Coberta por arbustos, não era muito alta, mas ficava entre as dunas feito um barco virado ou uma baleia muito azarada. Ali a chuva não caía, a menos que não conseguisse desviar.

Mas o vento soprava, e amontoou as dunas sobre a madeira seca e desbotada da cidade de Holy Wood.

Ele uivou seus testes nos cenários desertos.

Revirou pedaços de papel entre as decompostas maravilhas do mundo de gesso.

Balançou as placas até caírem na areia e ficarem cobertas.

Cliquecliqueclique.

O vento suspirou em volta de um esqueleto de caixa de lançamento de imagem, que pendia bêbado de um tripé abandonado.

Ele pegou um fragmento de filme que se arrastava e desenrolou a última exibição de imagens, serpenteando pela areia as espirais reluzentes e deterioradas.

No olho de vidro do lançador de imagem, figuras minúsculas dançavam aos trancos, vivas por apenas um momento...

Cliqueclique.

A tira de filme se soltou e saiu rodopiando pelas dunas.

Clique... clique...

A manivela girou para trás e para frente por um momento e depois parou.

Clique.

Holy Wood está sonhando.

 

                                                                                Terry Pratchett  

 

 

                      

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