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A MAGIA DO ANOITECER
A MAGIA DO ANOITECER

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Karl ca’Vliomani

ULY NÃO ESTAVA NO MERCADO DO VELHO DISTRITO, embora tivesse estado. As pessoas lembravam-se do estrangeiro tatuado e com cicatrizes, mas disseram para Karl que o homem empacotou as mercadorias e limpou a barraca há apenas dois dias, no mesmo dia em que o kraljiki Audric tinha sido assassinado. Não, nenhum dos proprietários das barracas próximas sabia onde Uly tinha ido, mas (disseram) havia algumas pessoas, que andaram comprando sua poção especial de fertilidade, que poderiam saber.

Karl esperava confrontar esse Uly e arrancar a verdade sobre o que aconteceu com Ana imediatamente. Um novo fogo ardia em seu estômago, mas o alívio e o desfecho não foram imediatos.

Eles levaram dias.

Dias que prejudicaram a recente intimidade que Karl tinha com Varina. O fantasma de Ana pairava entre os dois, ressuscitado pela presença de Talis e sua história, e Varina recuou diante do espectro que Karl não conseguia atravessar. Ela ainda pegava na mão de Karl ou passava os dedos no rosto dele, mas agora havia tristeza no toque, como se Varina fizesse carinho em uma memória. Karl beijava Varina, mas, embora os lábios dela fossem macios e quentes e ele quisesse ceder, o beijo era muito efêmero e distante, como se Karl beijasse Varina através de um véu invisível.

Dias em que ele considerava se devia chamar os numetodos de volta para a cidade e em que decidiu que ainda era perigoso demais. Mika, torcia Karl, estava com a família em Sforzia; deixe que fique lá, deixe que o resto dos numetodos dispersados permaneçam escondidos. Deixe que a Casa dos Numetodos continue vazia e às escuras.

Dias em que as notícias pareciam ficar cada vez piores: os ferimentos terríveis da kraljica Sigourney, a invasão e o saque à Karnor, um exército oriental no solo de Nessântico e seus navios nas águas do A’Sele, a convocação da Garde Civile, os “esquadrões de recrutamento” que alistavam homens, muitas vezes (de acordo com os rumores) querendo ou não servir. Karl era velho o bastante para não atrair muito interesse, mas Talis, não. Ele ficava cada vez mais confinado em casa e tinha que tomar cuidado quando se arriscava a sair para evitar os esquadrões. Karl tinha as próprias dificuldades — seu rosto certamente era conhecido por muitos gardai da Garde Civile, da Garde Kralji e entre os ténis, e ele tinha que tomar cuidado e se disfarçar antes de sair, mudar o sotaque característico de Paeti e não deixar ninguém olhar com muita atenção para o seu rosto.

Esses foram dias em que Karl descobriu, a contragosto, que Talis era mais a pessoa que Serafina dizia que era do que a pessoa que Karl queria que ele fosse. O embaixador ainda não confiava completamente no homem, e dormiu muito pouco desde aquela primeira noite, pois Talis, Serafina e Nico dormiam, juntos, no mesmo quarto que ele e Varina. Karl ficou de olho em Talis, especialmente na manhã seguinte, quando ele limpou a tigela de latão na qual eles acenderam a areia negra e — como Karl lembrou-se que Mahri fazia — encheu com água limpa e polvilhou com outro pó, mais claro. Talis então abriu o Segundo Mundo com um feitiço, e uma névoa esmeralda encheu a tigela. Uma luz agitada pulsou no rosto do homem enquanto ele entoava e olhava fixamente para as profundezas da tigela.

Na luz verde, Karl viu as rugas finas no rosto do homem, que quase ficavam mais profundas enquanto ele observava. Talis já parecia mais velho do que Serafina disse que ele era; Karl achava que sabia o motivo agora: o método de magia dos ocidentais custava caro para o usuário.

— Mahri costumava dizer que via o futuro aí — falou Karl depois, quando Talis, exausto e andando como um velho, jogou a água na jardineira da janela da sala. — Ele não parecia ser muito bom nisso, se não viu a própria morte.

Talis secou a tigela cuidadosamente com a borda da bashta, sem olhar para Karl. — O que vemos na tigela premonitória não é o futuro, mas sombras de possibilidade. Vemos probabilidades e chances. Axat sugere o que pode acontecer se seguirmos um determinado caminho, mas nunca há uma garantia. — O homem guardou a tigela novamente na bolsa que sempre carregava e deu um sorriso ligeiro para Karl. — Todos nós podemos mudar nosso futuro, se formos fortes e persistentes o suficiente.

Karl torceu o nariz para a afirmação. Talis foi então até Nico, e os dois se engalfinharam, rindo, enquanto Serafina observava com um sorriso, e o amor entre os três ficou palpável. Ele ouviu Varina entrar na sala descalça, com olheiras de sono. Ela também observava, e Karl não foi capaz de decifrar o que viu no rosto de Varina. Ela deve ter sentido o olhar porque se virou para o embaixador, deu um sorriso triste e depois virou o rosto novamente. Varina cruzou os braços sobre o peito e abraçou a si mesma, e não Karl.

Todo dia, Karl ia ao mercado do Velho Distrito, geralmente com Varina, na esperança de encontrar aqueles elusivos clientes de Uly e fazer perguntas. Após vários dias infrutíferos, tornou-se rotina; os dois às vezes levavam Nico junto, após prometerem à Serafina que, caso encontrassem Uly, eles não o confrontariam.

Foram quase duas semanas, quando aconteceu.

— Ah, sim, a mulher que eu falei para você acabou de passar aqui — disse o fazendeiro ao colocar uma caixa de cogumelos no lugar. — Ela usava uma tashta amarela com um dragão bordado na frente. Provavelmente ainda está por aí; ela disse que estava atrás de peixe. — O homem apontou para a esquerda. — Você pode checar na barraca do Ari, logo ali. Ele acabou de trazer umas trutas do Vaghian.

Karl ouviu Varina respirar fundo, viu quando segurou Nico com mais força. Ele acenou com a cabeça, jogou uma folia para o homem e avançou pelas multidões que passeavam lentamente pelas vielas sujas do mercado; quase todos eram mulheres e homens mais velhos. Eles sentiram o cheiro da barraca do pescador antes de vê-la, e Karl vislumbrou uma tashta amarela ali. — Karl? — disse Varina.

— Eu apenas perguntarei a ela. Se a mulher souber onde Uly está, então levaremos Nico para casa primeiro. — Ele deu um tapinha na cabeça do menino. — Não podemos deixar sua matarh chateada conosco, afinal — falou Karl para Nico.

Ele deixou os dois lá e aproximou-se da barraca. A mulher virou-se quando Ari mostrou um peixe com escamas da cor do arco-íris, e Karl viu a cabeça do dragão, de cuja boca saía uma fumaça roxa. O embaixador avançou até estar ao lado dela e disse — Com licença, vajica, mas se puder responder a uma pergunta, eu compro o peixe para a senhora. — Antes que a mulher pudesse responder, Karl contou a história que os dois haviam ensaiado e apontou de vez em quando para Varina e Nico: que ele tinha acabado de casar, que a esposa tinha um filho do antigo marido e agora os dois queriam um filho próprio, mas por serem mais velhos agora, os dois não conseguiam conceber; que ele ouviu falar que havia um estrangeiro chamado Uly, que antigamente tinha uma barraca aqui no mercado onde vendia poções exatamente para aquele problema, e que um dos vendedores mencionou que ela podia saber onde esse tal de Uly estaria. A mulher olhou de Karl para Varina e Nico.

Ela realmente sabia. — Na verdade, acabei de falar com ele. No Cisne Vermelho, no Beco do Sino, pertinho daqui. Ele tinha acabado de pedir uma cerveja, então imagino que ainda esteja lá.

Karl agradeceu à mulher, pagou o pescador pela truta sem pechinchar, e voltou para Varina e Nico. Ele agachou-se em frente ao menino e disse — Varina levará você para casa agora, Nico. — Karl não ousou erguer os olhos para ela, pois podia imaginar os pensamentos refletidos pelo rosto de Varina. — Eu ficarei aqui um pouquinho mais.

Nico concordou com a cabeça, e Karl abraçou o menino. — Vão agora, vocês dois — falou ao se levantar.

— Karl, você prometeu... — disse Varina.

— Eu não farei nada — falou Karl, e perguntou-se se isso era verdade. Ele contou o que a mulher disse. — Eu sei onde ele está neste momento. Só vou segui-lo. Descobrirei onde ele vive. Aí podemos descobrir como abordá-lo.

Karl notou a desconfiança no jeito que Varina mordeu o lábio inferior, no olhar vazio, no lento balançar da cabeça. Ela agarrou Nico com força. — Você promete?

— Prometo.

Com a cabeça inclinada para o lado, Varina encarou Karl e disse, finalmente — Ande, Nico. Vamos.

Karl abaixou-se e abraçou Nico novamente e depois Varina, ao se levantar. Foi como abraçar uma das colunas do Templo do Archigos. Ele ficou observando os dois até desaparecerem na multidão do mercado.

O Beco do Sino era uma viela suja a alguns quarteirões da Avi a’Parete, com apenas alguns passos de largura e apinhada de lojas de propósitos indeterminados, acima delas havia apartamentos esquálidos às escuras. O Cisne Vermelho ficava na esquina onde a viela cruzava uma rua maior, que levava à Avi, e tinha um placa com tinta descascando. Karl entrou e parou para os olhos se ajustarem à penumbra do interior. A única luz lá dentro vinha das nesgas das persianas e das velas que pingavam em um único lustre e em cima de cada mesa. Assim que Karl conseguiu enxergar na luz mortiça, foi fácil encontrar Uly: um homem de pele acobreada, com cicatrizes e tatuagens no rosto e nos braços.

Karl foi ao bar e pediu uma caneca de cerveja ao garçom com cara de poucos amigos, de costas para Uly. O interior ficou subitamente claro quando outra pessoa — uma mulher — entrou no bar, e Karl protegeu os olhos contra a luz.

Ele tinha a intenção de fazer como dissera para Varina: encontrar Uly e seguir o homem até descobrir onde morava. Mas Karl observou o sujeito beber a cerveja, e imagens do corpo de Ana, esparramado e destruído, surgiram em sua mente, de maneira que ele mal conseguia pensar, e uma raiva cresceu lentamente no estômago, subiu ao peito até dar um abraço de veias saltadas nos pulmões e coração.

Karl tomou meia cerveja em um só gole. Ele pegou a caneca e foi até a mesa do ocidental.

— Você é Uly? — perguntou Karl. Ele sentou-se em frente ao sujeito, que o observava com atenção, como se estivesse pronto para lutar. Os músculos pulsaram nos braços fortes de Uly, e uma mão se moveu para debaixo da mesa.

— E se eu for? — perguntou o homem. A voz tinha o mesmo sotaque de Talis, o mesmo de Mahri, embora fosse mais grave e acentuado, e Karl teve que escutar com atenção para entender as palavras.

— Eu soube que você faz poções. Para fertilidade.

O homem empinou um pouco o queixo e pareceu relaxar. A mão direita voltou à mesa arranhada e com marcas de canecas de cerveja. — Ah, isso. Eu faço sim. Você precisa de algo assim?

Karl deu de ombros. — Não de algo assim, mas talvez... de outra coisa. Eu tenho um amigo; o nome dele é Talis. Ele me disse que você pode fornecer uma coisa não para criar vida, mas para acabar com ela. Rapidamente.

Karl observou o rosto do homem ao falar. À menção de Talis, uma sobrancelha ergueu-se levemente. Uly levantou um canto da boca, como se achasse graça. Ele esfregou o crânio com marcas e tatuagens negras. As mãos eram grandes, a pele áspera, e havia uma cicatriz comprida no dorso: as mãos de um comerciante. Ou de um soldado. — Uma coisa assim deveria ser ilegal, vajiki. Mesmo que pudesse ser feita.

— Estou disposto a pagar bem por isso. Muito bem.

Ele concordou devagar com a cabeça. Uly levantou a caneca e bebeu tudo em um só gole, depois secou a boca com as costas da mão e disse — Está um belo dia. Vamos dar uma volta e conversar.

O homem levantou-se e Karl ficou de pé junto com ele. O resto do corpo atarracado de Uly era tão musculoso quanto os braços. Quando os dois chegaram à porta da taverna, uma mulher que corria para lá esbarrou em Karl e quase o derrubou sobre Uly. — Perdão, vajiki! — disse ela. O rosto estava sujo de terra, havia ranho seco em volta do nariz, e o hálito era desagradável. A mulher pegou a mão de Karl e colocou algo em sua palma. — Para dar sorte. O senhor tem que guardar isso, vai trazer boa sorte, vajiki. Guarde direitinho. — Ela fechou os dedos de Karl em volta do objeto, soltou o embaixador e saiu correndo pela porta. Karl olhou para o que a mulher colocara em sua mão: um seixo pequeno e claro. Uly riu.

— A mulher deve ter teia de aranha na cabeça — falou ele. — Vamos, vajiki.

Karl colocou o seixo no bolso da bashta e seguiu Uly pelo Beco do Sino, depois cruzaram a rua maior e entraram em outro beco em curva. Eles seguiam para o norte, na direção do Parque do Templo. — E qual é o seu nome, vajiki, uma vez que sabe o meu? — perguntou Uly enquanto os dois andavam.

— Andus. É tudo o que você precisa saber.

— Ah, somos cautelosos, não, vajiki Andus? Isso é bom. Isso é bom. E quem você quer que morra?

— Isso é da minha conta, não da sua.

— Discordo complemente — falou Uly —, pois a Garde Kralji viria atrás de mim e de você também, e eu não tenho interesse em me hospedar na Bastida. Eu exijo que me diga um nome, ou não faremos negócio.

— É o archigos. Eu sei que você já tem alguma experiência com isso.

Karl observou o homem, com um feitiço pronto para ser lançado a uma palavra e um gesto. Uly hesitou apenas de leve, mal perdeu o passo, mas, tirando isso, não houve resposta alguma. Ele continuou caminhando, e Karl teve que se apressar para alcançá-lo. A expressão do sujeito não se alterou, nem a atitude. Karl esperou que ele dissesse alguma coisa, a mão ao lado do corpo. Os dois passaram por um beco transversal...

... e Uly avançou contra Karl, uma mão grande prendeu a de Karl quando ele tentou erguê-la, e a outra mão tapou a boca do embaixador e bateu com a cabeça dele contra o alicerce de pedra de um prédio. O impacto fez Karl perder o fôlego e provocou fisgadas na cabeça. O joelho de Uly golpeou o estômago do embaixador. Karl sentiu ânsia de vômito e percebeu que estava caindo. Algo — um joelho, um punho, ele não sabia dizer o que — bateu na sua cabeça. Ele não conseguia enxergar, mal era capaz de respirar. Sentiu os paralelepípedos frios debaixo do corpo e a água imunda empoçada ali.

— Você é um tolo, embaixador ca’Vliomani — sibilou Uly. — Achou que eu não lhe reconheceria?

Você morrerá. Agora. Foi uma conclusão sombria.

Ele ouviu botas nos paralelepípedos; Karl percebeu que era um único par de passos e esperou que o golpe final viesse. O embaixador ouviu um grunhido e um grito de dor, e algo pesado caiu no chão, ao lado dele. Ele sentiu uma mão levantar sua cabeça e amarrar um capuz sobre ela para que não pudesse enxergar. O pano cheirava a suor velho. — Fique quieto e não será ferido — disse uma voz, que não era a de Uly. Alguém com um pouco de sotaque não identificável, nem grave ou agudo, o que tornava difícil sequer determinar o gênero da pessoa. — Tire o capuz e você morre. — Algo pontiagudo foi pressionado contra o pescoço, e Karl gemeu com a expectativa do golpe cortante. — Acene com a cabeça se entendeu.

Karl concordou, e a lâmina da faca desapareceu. Ele ouviu mais um barulho, parecido com um tapa e um gemido que só podia ser de Uly. — Responda se você quiser viver — disse a voz, embora não se dirigisse a Karl. — Você matou a archigos Ana, não foi? Você preparou a areia negra.

— Não. — Uly começou a dizer, mas a voz foi interrompida por um gemido de dor. — Tudo bem, tudo bem. Sim, eu ajudei a matá-la. Com a areia negra. Mas a ideia não foi minha. Eu só dei a substância para o homem e contei como usá-la. Não sabia o que ele pretendia fazer com ela. Ai! Droga, isso é verdade! — Lá se foi a preferência de Uly por morrer em vez de falar, pensou Karl. Talvez Talis não conhecesse seus guerreiros tão bem, afinal.

— Quem?

— Eu não sei... Ai! Por Axat! Pare! Ele me disse que o nome era Gairdi ci’Tomisi, mas não sei se o nome é verdadeiro ou não. Ele pagou bem, e isso era tudo que eu sabia ou que me importava!

Houve mais sons baixos e um longo lamento que só podia ter vindo de Uly. O homem ofegava agora, choramingava de dor, o fôlego era rápido e desesperado. — Por favor. Por favor, pare.

— Então fale mais a respeito deste homem — disse a outra voz. — Rápido.

— Parecia um ca’ ou co’, pelo jeito de falar. Firenzciano, talvez, pelo sotaque. Disse que as “ordens” vieram de Brezno, em todo caso. É tudo que sei. Eu preparei a substância, dei para o homem, e ele foi embora. Fiquei tão surpreso quanto qualquer um quando a archigos foi morta.

Karl queria desesperadamente arrancar o capuz do rosto para ver o que acontecia, mas não ousou. Houve mais sons: uma briga animada, um baque suave e depois um farfalhar. Alguém puxou sua bashta e remexeu o bolso. Ele pensou ter ouvido passos leves, mas, com a cabeça latejando e apitando, os sons eram tênues demais para Karl ter certeza.

Depois, por vários instantes, não houve absolutamente nada, apenas os sons distantes da cidade. — Alô? — sussurrou Karl. Não houve resposta. Ele levou as mãos ao pano amarrado em volta da cabeça e arrancou do rosto. O que viu fez com que o embaixador recuasse, horrorizado.

Karl olhou fixamente para o corpo de Uly nos paralelepípedos, com a garganta cortada e sangue espalhado pelas roupas. O olho direito estava aberto para o céu, mas sobre o esquerdo havia a pedra que a mulher deu para ele na taverna.

 

Allesandra ca’Vörl

SEMINI TENTOU ENTRAR EM CONTATO COM ELA por vários dias. Allesandra deixou as mensagens do archigos em cima da mesa. Quando ele mandou seu o’téni falar diretamente com ela, o homem foi informado pelos assistentes muito bem instruídos da a’hïrzg que Allesandra estava em reuniões e não podia ser incomodada. Quando o próprio Semini saiu do templo para vê-la, ela fez questão de sair da cidade com Jan para ver a reunião das tropas.

Quando Semini — sob a desculpa de trabalhar com os ténis-guerreiros que também estavam sendo reunidos — veio aos campos ao sul de Brezno, não houve, finalmente, jeito de evitá-lo.

Semini era um mancha escura e verde que contrastava com a brancura banhada pelo sol da lona da tenda. Do lado de fora, o acampamento militar agitava-se de manhã: com o clamor do metal conforme os ferreiros trabalhavam nas armas, armaduras e uniformes; o chamado de soldados; as ordens aos berros dos offiziers; o burburinho geral de movimentação; o som de pés que marchavam em uníssono enquanto os esquadrões treinavam. Cheiros entraram com a brisa quando Semini deixou a aba da tenda bater ao entrar: o cozinheiro e as fogueiras, o odor de lama revirada por milhares de pés, e o leve fedor das valas que serviam como latrinas.

Allesandra conversava com Sergei ca’Rudka, sentada atrás da mesa de campanha que um dia foi de seu vatarh, com painéis frontais pintados com imagens da famosas batalhas do hïrzg Jan ca’Silanta na Magyaria Oriental. — ... disse ao hïrzg e ao starkkapitän que esperem resistência assim que cruzarmos a fronteira — dizia Sergei, que parou e virou-se quando o olhar de Allesandra passou por cima de seus ombros na direção de Semini. — Ah, archigos. Talvez eu deva ir embora.

— Volte depois da Segunda Chamada e nós continuaremos a nossa conversa, regente — falou Allesandra. Sergei fez uma mesura, esfregou a lateral reluzente do nariz, e saiu da tenda dando um aceno de cabeça e o sinal de Cénzi para o archigos.

Semini parecia pouco à vontade, como se esperasse que ela se levantasse e o abraçasse assim que a aba da tenda se fechasse quando ca’Rudka saiu. Após um momento, ele finalmente fez o sinal de Cénzi para Allesandra e trocou o pé de apoio ao ficar parado diante da mesa como um offizier convocado por ela. — Allesandra. — Semini começou a dizer, e ela fez uma cara feia.

— Qualquer pessoa pode estar ouvindo pela lona da tenda. Nós estamos em público, archigos Semini, e eu espero que o senhor se dirija a mim de maneira apropriada.

Allesandra viu que ele apertou os olhos, irritado com a repreensão. Ele franziu os lábios sob a cobertura do bigode. — A’hïrzg ca’Vörl — falou Semini com lentidão proposital —, peço desculpas. — Depois, ele abaixou o tom em um quase sussurro, baixo e grave. — Espero que nós ainda possamos falar abertamente. Francesca, ela...

Allesandra balançou a cabeça de leve; ao movimento, Semini parou. — Eu falei com sua esposa — disse ela, com ênfase especial. — Naquela noite. Tivemos uma conversa ótima. Francesca parece acreditar que você teve algo a ver com a morte da archigos Ana.

Ela realmente não esperava que Semini reagisse, coisa que ele não fez. O archigos olhou para a a’hïrzg com uma expressão neutra e falou — Eu sei que a senhora tem algum carinho pela falsa archigos. Dado o que aconteceu com a senhora, eu compreendo. Mas Ana ca’Seranta era minha inimiga. Eu não sofri com seu falecimento, nem um pouquinho, e se minha alegria com a morte dela lhe ofende, a’hïrzg, então tenho que aceitar isso. Eu rezei, muitas vezes, que Cénzi levasse a alma dela, porque a mulher acreditava em coisas erradas, e foi em grande parte responsável pelo rompimento da Fé e pela cisão dos Domínios.

— Ela também é a razão de eu ser quem sou. Sem ela... — Allesandra deu de ombros. — Eu poderia não estar aqui. Jan poderia nunca ter nascido.

— E, no mínimo, por causa disso, eu rezei por ela quando morreu. — Semini deu um passo em direção à mesa de campanha, e parou. — Allesandra, o que aconteceu entre nós? É óbvio que você está me evitando. Por quê?

— Quando pretendia me contar que foi você que mandou matar Ana? Ou não pretendia me contar?

— Allesandra...

— Se não foi você, então negue, Semini. Diga-me agora que não foi você.

Allesandra não tinha certeza se queria que ele respondesse. Nos dias que se seguiram, ela tinha — através da equipe palaciana, através do comandante da Garde Brezno — realizado sua própria investigação. O nome de Gairdi ci’Tomisi havia surgido, e ela mandou o comandante co’Göttering levar o mercador, que por acaso estava em Brezno, para a Bastida a fim de ser interrogado. Ci’Tomisi, sob a persuasão menos do que gentil da Bastida, entregou toda a história: que servia Firenzcia e o archigos ca’Cellibrecca como agente duplo; que conhecia um ocidental em Nessântico que vendia poções, que o homem contara a ele a respeito de um poderoso preparado ocidental, que o sujeito havia demonstrado como essa “areia negra” funcionava e que ci’Tomisi falou para seus contatos no Templo de Brezno sobre seu poder, e que recebeu uma mensagem de volta (do “archigos em pessoa”) que — se ele fosse capaz — uma demonstração contra a Fé de Nessântico seria “interessante e muito bem recompensada”; que ele usou os contatos no Templo do Archigos em Nessântico para entrar à noite; que colocou a areia negra no Alto Púlpito e uma vela de tempo queimando no interior, com a chama programada para tocar a areia negra no mesmo momento em que a archigos Ana desse a Admoestação.

Ci’Tomisi confessou para salvar a própria vida, choramingou e chorou. Ele conseguiu, mas Allesandra perguntou-se se, na cela suja e imunda nas profundezas da Bastida, ci’Tomisi desejaria que não tivesse conseguido.

A a’hïrzg também sabia que Semini já devia ter percebido que ci’Tomisi havia sido preso e que provavelmente tinha confessado. Portanto, Allesandra observava Semini e imaginava o que ele diria, se lhe diria a mentira e negaria qualquer conhecimento a respeito do caso, e como ela deveria reagir se o archigos fizesse isso.

Mas Semini não negou. — Eu sou o archigos. Preciso fazer o que parecer ser melhor para a fé concénziana, e, na minha opinião, a Fé permaneceria tão quebrada quanto o mundo de Cénzi até que aquela mulher morresse.

Ao ouvir isso, a mão de Allesandra foi ao pingente com o globo rachado que ela usava, aquele que fora dado por Ana. A a’hïrzg viu que Semini observou o gesto e falou — Cénzi teria levado Ana em Seu próprio tempo. E, caso não levasse, por que você deveria agir por Ele?

Semini teve a dignidade e a humildade de abaixar os olhos para a grama bem aparada que servia de piso na tenda. — Cénzi geralmente exige que as pessoas ajam por Ele — respondeu o archigos, finalmente. — Houve... uma oportunidade repentina, uma que se apresentou de maneira completamente inesperada, e não apontaria para Firenzcia, e sim tanto para os numetodos quanto para os ocidentais. Isso, por acaso, é mais errado do que alguém nos Domínios mandar a Pedra Branca matar Fynn? — Ele encarou Allesandra.

Ela sentiu uma pontada de culpa e franziu a boca. Semini pareceu interpretar o gesto como irritação.

— Eu tive que agir imediatamente ou simplesmente não agiria — continuou ele. — Eu rezei para Cénzi pedindo por orientação e senti que fui respondido. E, naquela ocasião, a’hïrzg, a senhora e eu não éramos... — Semini deixou a próxima palavra pairar no silêncio. O archigos continuou a falar, mas agora a voz era um sussurro praticamente inaudível. — Se nós fôssemos, Allesandra, eu teria pedido seu conselho e acatado. Em vez disso, eu pedi ao seu vatarh, que já estava muito doente, e ao seu irmão.

— Você está me dizendo que o vatarh sabia? E Fynn? Eles também aprovaram isso?

— Sim. Sinto muito, Allesandra. — O arrependimento na voz parecia genuíno. As mãos estavam erguidas, como se pedisse perdão, e havia uma umidade nos olhos de Semini que refletiu o sol que entrava pela lona. — Sinto muito — repetiu. — Se eu soubesse como o ato magoaria você, se soubesse o que faria conosco, eu teria impedido. Teria mesmo. Você tem que acreditar nisso.

— Não. — Allesandra balançou a cabeça. Semini. Fynn. E vatarh. Todos eles aprovaram a morte da mulher que me manteve viva e sã. — Eu não tenho que acreditar nisso, de maneira alguma. Você diria tal coisa fosse ou não verdade.

— Como posso provar para você?

— Você não tem como provar, mas isso é algo que você deveria ter me contado há muito tempo: pelo meu papel como a’hïrzg, ou como matarh do hïrzg, pelo menos. E não sei como ficamos diante dessa situação. Não sei mesmo.


O cavalo estava encharcado de suor ao galopar velozmente encosta acima, onde eles esperavam, e as patas musculosas tremeram quando o cavaleiro desmontou, com uma bolsa de mensageiro na mão. O homem imediatamente se ajoelhou diante de Jan, Allesandra, Sergei e Semini e disse — Notícias urgentes de Nessântico, meu hïrzg. — Havia sujeira da estrada na roupa de couro do mensageiro, que tinha terra no cabelo e no rosto. A voz estava abalada pelo cansaço, e o homem parecia, assim como a montaria, estar à beira de um colapso. Ele ofereceu a bolsa com uma mão trêmula. Jan pegou a bolsa enquanto Allesandra gesticulava para os assistentes, que estavam apropriadamente a poucos passos do quarteto. — Deixem esse homem comer e descansar e cuidem do cavalo.

Os assistentes correram para obedecer. Jan desdobrou o pergaminho grosso de dentro da bolsa, que deixou cair no chão. Allesandra observou os olhos do filho vasculharem as palavras ali. Jan arregalou os olhos e entregou o papel para ela em silêncio. A a’hïrzg entendeu seu choque rapidamente; as frases ali pareciam impossíveis.

... O kraljiki Audric foi assassinado da mesma forma que a archigos Ana... Sigourney ca’Ludovici foi nomeada kraljica, mas foi ferida no ataque... Karnor foi arrasada e pilhada por ocidentais... O exército ocidental aproxima-se de Villembouchure... a Garde Civile e os chevarittai foram reunidos para detê-los...

Ela passou a mensagem para Sergei, que a leu com Semini olhando atentamente sobre seus ombro, e ouviu o archigos dizer — A’hïrzg, isso é uma surpresa para mim. Juro por Cénzi que não sabia de nada a respeito dessa situação. Audric morto... — Ele espalmou as mãos em súplica. — Não fui eu que fiz isso, nem era minha intenção.

Allesandra não prestou atenção às declarações de Semini. Ela passou o braço por Jan, que olhava fixamente para o acampamento do exército, resplandecente com os estandartes e armaduras, cheio de tendas acinzentadas e agitado pela atividade de milhares de soldados. — O que isso significa, matarh? — perguntou Jan para ela, embora Allesandra tenha notado que ele olhava para Sergei também. — Diga-me o que está pensando.

— Significa que Cénzi realmente nos abençoou — respondeu a a’hïrzg. — Estamos avançando na hora certa, quando nosso inimigo está mais fraco. — Ela quase gargalhou. Audric morto, ca’Ludovici ferida, e a atenção dos Domínios voltada para os ocidentais em vez de estar de olho em Firenzcia. — Este é o seu momento, meu filho. Seu momento. Tudo que você tem a fazer é aproveitá-lo.

Era o momento dela também, talvez mais do que do filho, mas Allesandra não disse isso.

Jan continuava a olhar fixamente para o acampamento. Então ele se sacudiu e, naquele momento, Allesandra notou um vislumbre do vavatarh no filho: o maxilar trincado, a certeza no olhar. Era a maneira como o velho hïrzg Jan sempre parecia quando tinha se resolvido; ela lembrava-se bem.

— Tragam o starkkapitän ca’Damont à minha presença — falou Jan. — Eu tenho novas ordens para ele.

 

A Pedra Branca

ELA ESTAVA DO OUTRO LADO DA VIELA, em frente aos dois, quando Talis chegou ao prédio e bateu na porta, com Nico à mão. A Pedra Branca ouviu o grito de Serafina — Nico! Ó, Nico! — e viu a mulher pegar o menino nos braços... e também notou Talis ficar tenso, como se estivesse assustado, e erguer a bengala que sempre carregava como se fosse bater em alguém, enquanto gesticulava com a mão livre como se quisesse que Serafina e Nico fossem embora.

Ela cruzou a viela correndo, com a mão em uma das facas de arremesso escondida na tashta. Ouviu trechos de uma conversa alta ao se aproximar.

— ... apenas saia! Agora! ... o embaixador numetodo... tentou me matar...

— ... sabia onde Nico estava e não foi até ele?...

Houve mais diálogos, mas as vozes martelavam a cabeça da Pedra Branca, que não conseguiu distinguir as reais daquelas dentro da mente. A porta fechou-se quando Talis entrou, e ela aproveitou a oportunidade para entrar de mansinho no espaço apertado entre os prédios. Ali, a Pedra Branca encostou-se contra a parede ao lado de uma janela fechada. Ouviu a conversa abafada, tão bem que percebeu que não precisava interferir. Não ainda. Houve uma conversa sobre o assassinato da archigos Ana (— Aquela bruxa cruel mereceu morrer pelo que fez com minha família — berrou Fynn); sobre algo chamado areia negra que podia matar (e todas as vozes das vítimas berraram na cabeça dela ao ouvir aquilo — Morte! Morte! Sim, traga mais gente aqui para nós! — Era tão alto que ela teve que soltar um berro silencioso para que as vozes parassem); sobre um homem chamado Uly (— Esse nome... — disse Fynn. — Eu conheço esse nome...).


Quando ficou claro que Talis e Nico permaneceriam ali, a Pedra Branca saiu de mansinho novamente, voltou ao apartamento e recolheu as coisas que tinha lá. Naquela noite, após três ou quatro paradas, ela alugou um novo apartamento, numa rua ao sul de onde morava a matarh de Nico: lá, pela janela, era possível ver a porta da casa de Nico pelo espaço entre os prédios.

Por quatro dias, ela observou. À noite, entrava de mansinho no espaço entre as casas para ouvi-los. Seguia o grupo sempre que eles saíam, especialmente se Nico estivesse junto. Por dias, a Pedra Branca observou as idas ao Velho Distrito, as tentativas de achar Uly. Ela mesma já havia encontrado o homem, que vivia em um apartamento miserável no Beco do Sino, perto do mercado do Velho Distrito. Considerou o estrangeiro estranho e desprezível — não era um homem que se importava com a limpeza de onde morava ou com a sujeira das roupas. Ele era grosso e mal-educado com os fregueses para quem vendia poções, geralmente na taverna embaixo do apartamento: o Cisne Vermelho. Frequentemente estava bêbado, e era um mau bêbado. Também podia ser violento; com certeza era brutal com as prostitutas que contratava, a ponto de ser evitado pela maioria das mulheres que fazia ponto nas ruas em volta do mercado.

Por dias, ela observou.

A Pedra Branca ficou surpresa, um dia, ao ver Nico acompanhando Varina e Karl ao mercado — geralmente isso era uma coisa que Serafina não permitia. Mas ela também sabia que as idas ao mercado agora eram rotineiras, que a cada dia que passava o grupo tinha menos esperanças de encontrar Uly, que Varina e Serafina tornaram-se amigas íntimas, que Nico parecia considerar a mulher numetodo quase como uma tantzia querida. A Pedra Branca seguiu o trio de perto, contornou a multidão em volta das barracas, chegou próximo o suficiente, a ponto de quase ouvi-los, mas nunca tão perto a ponto de um deles notá-la. Viu o grupo falar com um fazendeiro em sua barraca, viu o homem apontar e os três irem embora correndo, com Varina parecendo subitamente preocupada. Karl foi até uma mulher com uma tashta amarela — uma mulher que a Pedra Branca reconheceu como uma das freguesas de Uly.

O estômago deu um nó forte de preocupação; ou talvez fosse a criança que crescia ali. As vozes murmuraram — A mulher vai contar para ele... Você tem que interferir... — Ela colocou a mão na pedra branca na bolsinha pendurada no pescoço e a apertou com força, como se pudesse calar as vozes com o toque.

Se Karl tivesse ido atrás de Uly com Nico, a Pedra Branca teria detido os três. Ela não deixaria que colocassem o menino em perigo. Não deixaria.

Mas Karl mandou Varina e Nico embora. Ela seguiu os dois por tempo suficiente para saber que a mulher e o menino realmente voltavam para casa, depois retornou rapidamente, correu pelas ruas na direção do Cisne Vermelho.

Ela viu Karl entrar na taverna e entrou atrás dele. Uly estava lá, sentado à mesa de sempre e — também como sempre — meio bêbado. Karl também tinha visto o homem, mas estava no bar, onde pediu uma cerveja. Enquanto ela observava, o embaixador afastou-se do bar e foi à mesa de Uly. A Pedra Branca não conseguiu ouvir a conversa, mas, não muito tempo depois, Uly terminou a cerveja e ficou de pé, e Karl seguiu o homem até a porta.

— Você sabe o que acontecerá — cacarejou Fynn na cabeça dela. — O que você fará a respeito?

A Pedra Branca agiu, meteu-se entre Karl e a porta, e esbarrou no embaixador de propósito. — Perdão, vajiki! — falou. Ela segurou a mão do embaixador e colocou a pedra na palma dele. — Para dar sorte. O senhor tem que guardar isso, vai trazer boa sorte, vajiki. Guarde direitinho.

Ela torceu para que Karl fizesse isso, porque não poderia ajudá-lo se ele não guardasse. Se o embaixador tivesse devolvido a pedra, deixado cair ou jogado fora, ela estaria de mãos atadas. — A Pedra Branca não consegue matar sem o ritual agora — disseram as vozes em um coro debochado. — Fraca. Estúpida.

Mas Karl guardou a pedra. Ela se escondeu ao sair da taverna, e, alguns instantes depois, Karl e Uly surgiram. O estrangeiro levou Karl para longe da taverna, e ela os seguiu com cuidado. De qualquer maneira, Uly parecia estar bêbado demais ou desinteressado demais para ver se alguém observava. A Pedra Branca viu Karl ser empurrado por Uly para dentro de um beco e correu atrás, em silêncio.

Quando ela chegou ao cruzamento, Karl já estava caído, e era óbvio que Uly pretendia espancá-lo até a morte. — Você é um tolo, embaixador ca’Vliomani. — A Pedra Branca ouviu o estrangeiro rosnar. — Achou que eu não lhe reconheceria?

Então ela agiu, novamente, como a Pedra Branca, séria e implacável. Uly ergueu os olhos ao ouvir a aproximação, mas o chute já estava no ar, acertou o joelho e fez o homem desmoronar, soltando um gemido, depois ela acertou dois socos na lateral da cabeça que o derrubaram no chão, inconsciente.

A Pedra Branca rapidamente rasgou a bashta de Uly, depois se dirigiu para Karl, que gemia, meio inconsciente. Ela enrolou o pano rasgado na cabeça do embaixador, sacou sua faca favorita da bainha e pressionou contra o pescoço dele. — Fique quieto e não será ferido. — ela engrossara o tom de voz. — Tire o capuz e você morre. Acene com a cabeça se entendeu.

Ele balançou a cabeça uma vez, e a Pedra Branca deixou Karl e foi até Uly. Deu um tapa na cara do homem, para despertá-lo, viu Uly arregalar os olhos ao notá-la, e mostrou a faca antes de enfiá-la com força na pele tatuada do pescoço. Colocou a bota sobre o joelho quebrado do sujeito. — Ele viu você. Não pode deixá-lo vivo agora — clamaram as vozes, e ela pediu que fizessem silêncio.

— Responda se você quiser viver — disse a Pedra Branca. Ela percebeu que o homem começou a erguer as mãos e fez que não para ele enquanto enfiava a ponta da faca no pescoço, perto de uma veia saltada e pulsante. — Você matou a archigos Ana, não foi? Você preparou a areia negra.

— Não. — O homem começou a dizer, mas a Pedra Branca enfiou a faca mais fundo diante da mentira. — Tudo bem, tudo bem. — Uly afastou-se dela o máximo possível. — Sim, eu ajudei a matá-la. Com a areia negra. Mas a ideia não foi minha. Eu só dei a substância para o homem e contei como usá-la. Não sabia o que ele pretendia fazer com ela. — Novamente, a Pedra Branca pressionou a faca com mais força. — Ai! Droga, isso é verdade!

— Quem? — perguntou ela, pois sabia que Karl ouviria; a Pedra Branca daria ao embaixador a informação que ele queria, desde que isso significasse que Nico ainda estaria a salvo.

— Você tem que matar esse aí. Você precisa matá-lo.

— Eu não sei... — disse Uly. Ela ignorou a voz, puxou ligeiramente a faca em sua direção e abriu um corte. O sangue quente pingou do pescoço. — Ai! Por Axat! Pare! Ele me disse que o nome era Gairdi ci’Tomisi, mas não sei se o nome é verdadeiro ou não. Ele pagou bem, e isso era tudo que eu sabia ou que me importava!

O homem tentou empurrá-la, e a Pedra Branca colocou mais peso sobre o joelho quebrado. Ele ofegou de dor. — Por favor. Por favor, pare.

— Então fale mais a respeito deste homem — falou ela. — Rápido.

— Parecia um ca’ ou co’, pelo jeito de falar. Firenzciano, talvez, pelo sotaque. Disse que as “ordens” vieram de Brezno, em todo caso. É tudo que sei. Eu preparei a substância, dei para o homem, e ele foi embora. Fiquei tão surpreso quanto qualquer um quando a archigos foi morta.

— Você não pode ficar aqui. Tem que ir embora ou alguém chegará e verá você.

As vozes estavam certas. Ela franziu os lábios. Com um movimento violento, ela cravou fundo a faca na garganta do homem e a cortou da direita para a esquerda. O sangue quente jorrou, e o homem morreu com uma golfada de fôlego líquido. Neste instante, a assassina puxou rapidamente a bolsinha de dentro da tashta agora ensanguentada e a abriu, depois colocou a preciosa pedra branca no olho direito aberto do homem. A seguir, foi até Karl, vasculhou seu bolso rapidamente e achou a pedra que dera para ele. Esta foi colocada sobre o olho esquerdo de Uly. Ela embainhou a faca, esperou um instante, depois pegou sua pedra no olho direito.

A Pedra Branca já podia ouvir a voz de Uly, que lamentava em uma língua que ela não compreendia.

Ela guardou a pedra na bolsinha novamente. Olhou uma vez para Karl, que fazia um esforço desesperado debaixo do pano para escutar.

A Pedra Branca correu. Correu — ateve-se às sombras e aos becos solitários por causa da tashta manchada de sangue — para encontrar Nico, para saber se ele ainda estava a salvo.


??? MATANÇA ???

Kenne ca’Fionta

Aubri co’Ulcai

Allesandra ca’Vörl

Niente

Varina ci’Pallo

Kenne ca’Fionta

Sergei ca’Rudka

Nico Morel

Karl ca’Vliomani

A Batalha Começa


Kenne ca’Fionta

KENNE ESTAVA NA SACADA do lado de fora de seu gabinete particular e olhava para a Praça do Templo. Lá embaixo, ténis em robes verdes misturavam-se à multidão de pessoas comuns que corriam para escapar da garoa, que caía de nuvens baixas e cinzentas. O tempo parecia tornar pesadas as asas dos pombos, que arrulhavam em grupos; as pessoas passavam correndo, os pássaros afastavam-se e balançavam as cabeças, mas não alçavam voo.

O dia ruim e desagradável combinava com o humor de Kenne.

Ele estaria morto se tomasse a decisão errada e não tinha certeza de como evitar esse destino.

Mesmo que evitasse a morte física, Kenne estaria morto dentro da fé concénziana. Ele já sentia os abutres começando a se reunir: nos rumores que vinham de todo mundo, do mais baixo e’téni às mensagens nas entrelinhas que recebia dos a’ténis em suas cidades. Quando teremos outro conclave?, perguntavam. Há assuntos urgentes que todos precisamos discutir. Como devemos reagir às notícias de Nessântico? O que o archigos acha sobre essas questões?

As entrelinhas se escondiam nas perguntas inocentes. Elas começaram quando ele foi promovido a archigos, após o assassinato da pobre Ana. O coro ficou mais alto e constante desde a morte do kraljiki Audric e as notícias da invasão ocidental. As mensagens chegavam todos os dias por mensageiros de Fossano, de Prajnoli, de Chivasso, Belcanto e An Uaimth, de Kasama, Quibela e Wolhusen. Nós não confiamos na sua liderança. Outra pessoa precisa ser o archigos. Era o que diziam sob as palavras educadas e indiretas escritas por eles. Você deveria ser retirado do Trono de Cénzi.

O pior de tudo é que Kenne descobriu que concordava com eles. Eu nunca quis isso, o archigos queria escrever em resposta. Eu jamais pedi para sentar no lugar de Ana. Eu preferia muito mais que outra pessoa assumisse essa tarefa por mim. Ele mesmo disse isso para Ana há muitos anos, após retornar a Nessântico para ser o a’téni da cidade sob o comando dela, após o exército firenzciano ter sido dispersado. — Você estava aqui antes de mim — disse Ana para Kenne, quase parecendo envergonhada de estar sentada atrás da mesa em que ambos se lembravam de ter visto o archigos Dhosti. — Por direito, você deveria estar aqui e não eu, meu amigo.

Ele riu ao ouvir aquilo e balançou a cabeça. — O archigos Dhosti disse para mim, há muito tempo, que eu era um excelente seguidor. Ele estava certo. Eu sigo muito bem, mas não lidero. Não possuo seja lá o que for que você tem, Ana. Dhosti enxergou essas qualidades em você... você sabe liderar. É forte, talentosa, e tem uma força de vontade que é assombrosa. É por isso que ele fez de você sua o’téni. Se ele tivesse vivido, teria lhe preparado para o cargo da mesma forma. Eu... — Outra negativa com a cabeça. — Eu fui destinado a ser o que sou. Nada mais. E estou bem contente que seja assim.

Ana discordou, educadamente, mas ambos sabiam que — por dentro — a archigos concordava com ele. Com Dhosti.

No entanto, Cénzi impôs essa tarefa a ele no fim da vida, e Kenne só podia imaginar que isso era alguma espécie de piada cósmica.

Os a’ténis da Fé eram um perigo para Kenne, e a nova kraljica era outro. Ela sentia dores — ela sentiria dores pelo resto da vida, era quase certo. Sigourney ca’Ludovici fora jogada em uma crise terrível com a perda dos Hellins, o assassinato de Audric e agora a invasão dos próprios Domínios pelos ocidentais. Havia Firenzcia do outro lado, que não era mais um aliado, e sim um inimigo, pelas costas. Ela tentaria consolidar seu cargo. Tentaria desesperadamente sobreviver como kraljica, e, para tanto, procuraria por pessoas fortes que poderiam apoiá-la e dispensaria aqueles que considerasse fracos demais para ajudar — porque a fraqueza nos aliados da kraljica seria um perigo tão grande quanto os ocidentais e os firenzcianos.

Kenne sabia que a opinião de Sigourney a seu respeito era talvez ainda mais baixa do que a dos a’ténis. Ela faria uma rápida manobra para substituí-lo. Por conhecer a história de Nessântico, Kenne não excluía a possibilidade de a solução da kraljica ser o seu assassinato e a sua substituição por alguém mais adequado para ela. Já aconteceu com outros archigi antes de Kenne, quando eles entraram em conflito com os líderes políticos dos Domínios: um archigos assim podia morrer sob circunstâncias misteriosas. Bastava olhar para o próprio archigos Dhosti, afinal.

Kenne olhou para a praça lá embaixo, onde certa vez o corpo quebrado de Dhosti esteve estatelado, com o sangue fluindo entre os paralelepípedos. Ele imaginou se um dia, em breve, seu corpo seria jogado pelo parapeito até cair, debatendo-se desesperadamente no chão lá embaixo.

— Archigos?

Kenne sentiu um arrepio ao ouvir o chamado. Ele virou-se devagar e esperou ver Petros. Mas não era ele. Era, em vez disso, um fantasma.

— Eu sei — falou o fantasma, e o sotaque da voz confirmou suas suspeitas. — Você não esperava me ver novamente. Francamente, nem eu. Desculpe assustá-lo, archigos. Petros foi gentil em me deixar entrar.

— Karl... — Kenne entrou novamente no gabinete e deu a volta na mesa para abraçar o numetodo. — Olhe para você... sem barba, com cabelo pintado e cortado como uma pessoa qualquer, sem status, e essas roupas horríveis. Eu não teria reconhecido você... mas imagino que essa seja a ideia, não é? Eu pensei, após ter ajudado Sergei a escapar, que você tivesse fugido da cidade. — Ele balançou a cabeça. — Esses são tempos sombrios — disse Kenne com cansaço, sendo tomado pela depressão novamente. — Tempos terríveis. Mas eu esqueço meus modos. Você parece cansado e faminto. Quer que Petros traga alguma coisa?

Karl já balançava a cabeça. — Não, archigos. Não há tempo, e eu não devo ficar aqui mais tempo do que o necessário. Eu... eu preciso de um favor.

— Se estiver dentro da minha capacidade — falou Kenne, que teve que esmagar o pensamento que veio em seguida: dentro da pouca capacidade que tenho, infelizmente...

— Está sim, eu espero. Por favor, archigos, sente-se. Isso pode levar tempo. Eu sei, pelo menos acho que sei, quem matou Ana.

Kenne ouviu a história de Karl com apreensão, desconfiança e horror cada vez maiores. No fim, ele estava recostado na cadeira atrás da mesa e balançava a cabeça.

— Um homem chamado Gairdi ci’Tomisi, você diz? — falou Kenne finalmente. O archigos ficou chocado à menção do nome e perguntou-se que mais ele não sabia. — Um firenzciano? Ele fez isso com ajuda de magia ocidental?

— Firenzciano, sim — declarou Karl. — Mas você tem que entender que não houve magia envolvida. Não; essa areia negra não é uma criação de seu Cénzi, nem tampouco dos deuses ocidentais. Ela não é mágica, não vem do Segundo Mundo; é apenas o produto da imaginação e da lógica de uma pessoa. — Karl bateu na cabeça com o dedo. — E isso torna a areia negra ainda mais perigosa. Veja...

Karl tirou uma pequena bolsinha do bolso da tashta suja e esfarrapada e derramou um pó escuro e granulado no mata-borrão da mesa de Kenne. O archigos cutucou a substância com um dedo curioso. — Uly tinha um estoque disso em seu apartamento; eu subornei o estalajadeiro para me deixar entrar. Uly tinha os ingredientes lá dentro, então sabíamos o que eram. Varina acha que é capaz de reproduzir essa mistura mesmo que Talis não nos ajude. Parada assim como está, a areia negra é bem inocente, mas coloque uma chama em contato com ela, e... — A voz de Karl foi sumindo, e ele afastou o olhar. Kenne sabia do que o homem estava se lembrando; ele também se lembrava, muitíssimo bem.

— O que eu posso fazer? — perguntou o archigos. Ele abaixou o olhar para a mesa suja.

— Veja se consegue descobrir mais sobre esse Gairdi ci’Tomisi que Uly mencionou.

Kenne olhou para o numetodo com uma cara triste. — Eu o conheço. Pelo menos acho que sim. Ele é um mercador com licenças de passagem tanto de Brezno quanto de Nessântico e vai e volta pela fronteira. Nós, tanto Ana e eu, usávamos Gairdi. Nós achávamos... achávamos que ele era nosso homem, nosso espião. Ele levava mensagens aos ténis dentro do Templo de Brezno, para quem pensávamos que podíamos confiar e trazia respostas sobre o archigos Semini. Agora... — Kenne ergueu os olhos para o numetodo. — Se ele realmente era um agente duplo, a serviço de Semini ca’Cellibrecca...

— ... Então foi ca’Cellibrecca quem mandou matar Ana. — Karl encerrou a frase por ele. Seu maxilar fez um ruído alto ao se fechar.

Kenne sentiu o que restou do almoço subir pela goela. Ele engoliu em seco para conter a bile. Sim, o archigos acreditava que ca’Cellibrecca era capaz de cometer assassinato —, o homem fora um téni-guerreiro pela maior parte da vida. Porém, ele não teria matado Ana sem um motivo. Kenne tinha medo de que sabia exatamente qual seria a razão: ca’Cellibrecca esperava que a pessoa colocada no lugar de Ana fosse fraca e que pudesse explorar essa fraqueza para reunir a fé concénziana novamente — com ca’Cellibrecca como archigos em Nessântico, assim como em Brezno.

Porque ele sabia que seria eu. Provavelmente já está falando com a kraljica e fazendo sondagens.

— Archigos? — Kenne respirou fundo antes de erguer os olhos para Karl. — Nenhum numetodo matou Audric — declarou o embaixador. — Nenhum numetodo matou Ana. Isto matou os dois. — Ele gesticulou para a areia negra na mesa de Kenne. — Isso me faz pensar que a mesma pessoa é responsável pelos dois assassinatos.

Parecia uma hipótese razoável para Kenne, mas ele já esteve errado sobre tanta coisa que não confiava mais no próprio discernimento. — O que... o que você quer que eu faça? — O archigos ergueu as mãos da mesa, a ponta de um dedo estava escura com o pó que ele tocou. — Como posso ajudar?

— Veja o que mais você consegue descobrir. Veja se Semini realmente fez isso; se foi ele, eu quero fazer o homem pagar. Mas Varin... — Karl parou. — Quero dizer, Ana não iria querer que eu fizesse qualquer coisa até eu saber, saber com certeza. Pode me ajudar com isso? — Ele apontou novamente para o monte de areia negra no mata-borrão de Kenne. — Você sabe o que é isso, não sabe? — perguntou o numetodo. O archigos limitou-se a balançar a cabeça.

— Isso são as cinzas da magia — falou Karl. — Isso é como a magia se parece quando morre.

Kenne abaixou o olhar novamente. Parecia que estava olhando para os próprios restos mortais.

 

Aubri co’Ulcai

O COMANDANTE AUBRI CO’ULCAI OLHOU para trás e balançou a cabeça ao se perguntar como a batalha tinha chegado a este ponto. Isso nunca deveria ter acontecido. Não era possível.

Ele imaginou como a nova kraljica receberia as notícias e esperava que soubesse a resposta. E a única desculpa que Aubri tinha era que os ocidentais recusavam-se a lutar honrosamente, como deveriam.

Tudo começou há dois curtos dias...


Vários chevarittai — como era comum — saíram em seus cavalos de guerra para fazer desafios individuais enquanto as forças ocidentais aproximavam-se de Villembouchure. Nenhum guerreiro ocidental veio responder ao desafio; as fileiras da vanguarda do exército marcharam em frente, intactas e inabaladas mesmo quando os chevarittai debocharam de sua honra e coragem. Eles foram ignorados ou, pior ainda, atacados com flechas covardes e fogo dos feiticeiros ocidentais. Três chevarittai morreram antes que Aubri mandasse que as trompas soassem a ordem de retorno. Eles deram meia-volta com os cavalos de guerra e retornaram a galope para trás das fileiras de infantaria e de ténis-guerreiros, que aguardavam.

Aubri reuniu-se com seus offiziers; eles esperavam que o ataque começasse assim que o exército ocidental chegasse ao cume do último morro antes de Villembouchure. Afinal, era pouco antes da Segunda Chamada, e ainda havia viradas da ampulheta de luz do dia. Os ocidentais chegaram à distância de dois tiros de flecha da vanguarda da força dos Domínios e pararam... e permaneceram parados. Os chevarittai e seus offiziers imploraram que Aubri os deixasse avançar e atacar. O comandante recusou-se, lamentavelmente — fazer isso significava abandonar as fortificações e casamatas que eles erigiram nos últimos dias. O exército dos Domínios estava disposto em uma posição defensiva perfeita, e Aubri era avesso a sair dali.

Este foi o primeiro dia. Ele foi dormir nessa noite convencido da futura vitória — o avanço ocidental seria detido por suas fileiras de veteranos. A força ocidental, conforme verificaram seus batedores e todos os relatórios do campo de batalha, era substancialmente menor que a sua: nenhum exército daquele tamanho, nem mesmo os firenzcianos em seu apogeu, teria sido capaz de derrotar as defesas que Aubri montou. Os navios da frota tehuantina entupiram o A’Sele, mas estavam longe demais do campo de batalha para afetar a situação; de qualquer forma, Aubri sabia que uma força naval de Nessântico estava a caminho para cuidar dos navios inimigos. Na pior das hipóteses, as muralhas de Villembouchure iriam detê-los se, por alguma razão imprevista, Aubri não conseguisse contê-los nos campos do lado de fora da cidade. As forças ocidentais eram pequenas demais para um cerco efetivo, e Villembouchure era bem abastecida e podia suportar o sítio de um exército bem maior por pelo menos um mês.

Sim, Aubri estava confiante. Apesar do fato de seu exército ter sido rapidamente reunido e a maior parte da infantaria não ter muito treinamento, os offiziers e os chevarittai com eles tinham experiência em batalha adquirida nas muitas escaramuças ocorridas nas últimas décadas com Firenzcia e as nações da Coalizão.

Eles venceriam aqui.

A batalha começou no segundo dia, mas não com a chegada da alvorada, contrariando toda a experiência de Aubri e dos offiziers que o treinaram. Não... o ataque veio bem antes de o sol subir no céu. E veio de maneira estranha. Os vigias postados nas casamatas mais avançadas mandaram mensageiros correndo para a tenda do comandante atrás das linhas, e o agito acordou Aubri de um sono leve e atormentado por sonhos.

— Uma tempestade aproxima-se de nós em pernas feitas de relâmpagos — clamaram os mensageiros. — Uma muralha de nuvem...

Trompas de alarme soaram pelo acampamento, e os soldados colocaram as armaduras e pegaram suas armas às pressas enquanto os offiziers berravam ordens. Ao longe, uma luz azul piscava e dançava, trovões retumbavam, e, no entanto, o céu acima deles estava limpo, marcado pelas várias constelações conhecidas. Aubri montou no cavalo que os assistentes trouxeram apressadamente para ele. O comandante galopou com rapidez até a vanguarda e foi acompanhado ao longo do caminho pelo a’téni Valis ca’Ostheim de Villembouchure, que estava no comando dos ténis-guerreiros. — O que em nome de Cénzi está acontecendo? — rugiu ca’Ostheim. A espessa cabeleira branca parecia cintilar à luz da tempestade adiante; a barriga caía sobre o cepilho da sela de seu cavalo. Os cílios ainda tinham remelas do sono. Um colar grosso de ouro com um globo partido pendurado quicava no peito enquanto os dois cavalgavam. — Eu pensei que o senhor tinha dito que o ataque ocorreria na alvorada, comandante.

— Eu disse, sim — respondeu Aubri calmamente. — Ao que parece, os ocidentais não estavam escutando.

Na primeira linha de casamatas, os dois homens pararam e observaram o espaço entre os dois exércitos. O acampamento ocidental, que cintilava na encosta distante como estrelas amarelas caindo na terra quando Aubri foi dormir, não estava mais visível. Ao contrário, eles foram confrontados por uma aparição da natureza: uma muralha de nuvem escura e agitada, com talvez doze homens de altura e que flutuava à distância de dois homens acima do chão. Como uma espécie de monstro sobrenatural sinistro, a criatura de nuvem avançou na direção deles sobre centenas de pés de relâmpagos que piscavam. Os clarões estocavam o chão embaixo e pareciam fazer a nuvem avançar alguns metros a cada golpe. Aubri viu o chão ser rasgado onde os raios caíam, e a nuvem deixava um rastro de pegadas de tempestade arrancadas do chão. Um barulho constante de trovoada e um rosnado alto e estridente acompanhavam a visão. Ao redor dos dois, o exército dos Domínios olhava fixamente para a aparição com rostos iluminados pelos clarões azuis esbranquiçados e inconstantes. Aubri sentiu o pânico se espalhar pelas fileiras, os homens deram alguns passos para trás involuntariamente, para longe das barreiras baixas e fortificações que eles erigiram. — Mantenham a posição! — berrou Aubri para eles. As trompas soaram a ordem pela frente de batalha. — Mantenham a posição! — Os homens sacudiram-se como se acordassem de um pesadelo. Eles seguraram firme em lanças inúteis e encararam o monstro que os confrontava. Ele praticamente já havia cruzado o campo aberto agora, e Aubri não conseguiu ver nada além de seu limite feroz.

— A’téni ca’Ostheim, isso é magia; é a sua área. — Aubri quase teve que gritar mais alto do que o barulho crescente da aparição tempestuosa para ca’Ostheim, o líder dos ténis-guerreiros, ouvir. — O senhor consegue deter essa coisa?

— Tentarei — respondeu ele ao desmontar. Ca’Ostheim começou um cântico e um estranho gestual em frente ao corpo. Aubri sentiu um arrepio nos pelos dos braços conforme o a’téni continuava a entoar e os raios começaram a tocar as bordas das defesas; ele não sabia qual das duas coisas causou esta reação. O cavalo de Aubri, embora acostumado ao clamor, ao barulho e às imagens de guerra, estava preocupado e batia os cascos no chão enquanto se afastava um pouco da aparição. Aubri teve que se abaixar e dar tapinhas no pescoço do animal para acalmá-lo. — A’téni! Rápido, por favor.

Ca’Ostheim ergueu as mãos; o cântico parou. Ele gesticulou para a tempestade. Um vento estridente soprou do téni-guerreiro, e onde tocou na aparição tempestuosa, as nuvens foram rasgadas. Os soldados comemoraram, mas a tempestade ainda avançava de ambos os lados, com força total, e agora os raios atacaram as próprias defesas, os garfos gigantes alcançaram os soldados dos Domínios. Os gritos surgiram de ambos os flancos, conforme os relâmpagos queimavam e quebravam as fileiras, em um avanço inexorável. E agora as metades partidas nas nuvens voltavam a se unir; línguas sedentas de relâmpagos começaram a brilhar na frente de Aubri. Ca’Ostheim havia caído de joelhos. Ele ergueu a cabeça acenou negativamente para Aubri. — Comandante, eu não consigo... Não sozinho. Eu preciso reunir os outros ténis-guerreiros...

— Ao cavalo, então — falou Aubri. Ele olhou para os porta-bandeiras e as trompas quando os gritos dos feridos e moribundos rivalizaram com a trovoada. — Retirada! — berrou o comandante. — Voltem para a próxima linha de frente!

As bandeiras sinalizaram a retirada; as trompas soaram a ordem. As fileiras dos soldados foram desmanchadas instantaneamente, aqueles que ainda podiam deram meia-volta para fugir da tempestade. Ao longe, em um lugar além da criatura, Aubri ouviu novas vozes: os gritos de guerra dos ocidentais.

O comandante puxou com força as rédeas da montaria e seguiu seus homens.


Esta foi a manhã do segundo dia. O resto do dia não correu melhor. Os ténis-guerreiros foram capazes de dissipar a tempestade mágica, mas a tarefa deixou-os exaustos, e eles tinham pouca energia sobrando para outros feitiços. Atrás da tempestade, surgiram as fileiras dos ocidentais — guerreiros com rostos pintados e com cicatrizes. O combate mano a mano foi intenso, mas os chevarittai e a infantaria eram páreos na espada. No entanto, quanto aos feiticeiros ocidentais, que empunhavam cajados por onde lançavam feitiços, Aubri não tinha como responder — os ténis-guerreiros estavam em grande parte exaustos pelos esforços anteriores, e, no fim da tarde, o comandante mandou o exército retornar a Villembouchure, para trás das muralhas e portões sólidos. Ele estava convencido de que poderia ter mantido as defesas externas, mas o preço em vidas teria sido enorme. Aubri fez o que qualquer outro comandante em seu lugar teria feito: mandou as trompas soarem a ordem de cessar combate.

Ao anoitecer, todos estavam dentro e com as portas corrediças abaixadas e fechadas.

Isso encerrou o segundo dia.

Em qualquer batalha normal, isso significaria o início de um cerco que poderia ter durado semanas ou meses antes de ser rompido, e Aubri sabia que os ocidentais não tinham semanas ou meses — não em uma terra estranha, onde estavam cercados por inimigos. Foi por esse motivo que Aubri achou fácil dar a ordem de cessar combate tão cedo, assim que ficou óbvio que a vitória nos campos diante da cidade só causaria um enorme custo. Ficar no interior das muralhas de Villembouchure deveria levar à vitória em algum momento. Inevitavelmente. E ele poderia esperar.

Mas o cerco duraria apenas um dia.

Aubri estava sobre a muralha da cidade e olhava para as fogueiras quase apagadas do principal acampamento dos ocidentais na alvorada. Foi quando as bolas de fumaça de repente fizeram um arco no céu, na direção deles: uma dezena ou mais, todas pareciam mirar o grande portão oeste da cidade. Os ténis-guerreiros posicionados ao longo das muralhas reagiram instantaneamente, como deveriam, e a resposta dos feitiços de dispersão foi rápida; afinal, eles foram treinados na arte de manter os feitiços na mente por um tempo (que nenhum deles admitiria ser uma característica dos numetodos, que tinha sido imposta aos ténis-guerreiros pela archigos Ana). Mas as bolas de fogo continuaram seu voo. O téni-guerreiro mais próximo de Aubri o encarou com olhos arregalados e chocados. — Comandante, isso não é feitiço...

Ele não prosseguiu. As muralhas grossas da cidade foram sacudidas de um jeito impensável quando as bolas de fogo bateram no portão e nas pedras em volta. Onde elas tocavam, explosões inimagináveis destruíram pedras, aço e madeira. Aubri, que se segurou na ameia para manter o equilíbrio, testemunhou os enormes pedaços de granito saírem voando como se fossem seixos atirados por uma criança. O fogo irrompeu abaixo do comandante, tão incandescente quanto a fornalha de um ferreiro; ele sentiu a onda de calor passar pela pele. Ouviu gritos e lamentos lá embaixo.

— O portão está quebrado! As muralhas foram rompidas!

Os ocidentais já corriam pela brecha, enquanto arqueiros respondiam com uma atrasada chuva de flechas em cima deles. Alguns dos guerreiros foram abatidos, mas muitos — em um número excessivo — continuavam avançando, e agora Aubri via mais arcos de bola de fogo saírem do norte e do sul, na direção daqueles portões.

Ele desceu correndo das ameias e entrou em um caos selvagem e sangrento.

Este foi o terceiro dia. O dia em que a cidade foi perdida. De um jeito inacreditável.


Agora Aubri olhava para Villembouchure do alto de um morro ao longo da Avi A’Sele. O comandante viu a fumaça suja que manchava o céu acima das muralhas quebradas, cercado pelo que restou do exército reunido à sua volta e com o a’téni ca’Ostheim ao seu lado. Dentro da cidade... Dentro da cidade, estavam os ocidentais.

— Isso é impossível — murmurou ele.

Mas era possível. E agora a defesa da própria Nessântico devia ser preparada. Aubri balançou a cabeça novamente diante da cena.

O comandante deu meia-volta com o cavalo e gesticulou, e ele e o exército começaram a mancar na direção da capital, em retirada.

 

Allesandra ca’Vörl

ELA LEMBRAVA-SE DE PASSE a’Fiume muitíssimo bem. Foi aqui, há 25 anos, quando seu vatarh sitiou a cidade, que ela aprendeu pela primeira vez a mais dura lição de guerra: que, às vezes, pessoas amadas não sobrevivem. Na ocasião, Allesandra tinha uma queda por um jovem offizier que tinha sido morto na batalha e pensou que jamais seria capaz de amar novamente, pois seu coração estava partido demais pela experiência, mas o tempo aliviou sua dor. Agora, ela não conseguia se lembrar do rosto do rapaz.

Os reparos da batalha de décadas atrás ainda eram visíveis nas muralhas e trouxeram de volta as memórias e o sofrimento.

Dessa vez, não havia cerco. O exército firenzciano passou pela cidade fronteiriça de Ville Colhelm sem resistência alguma: a força dos Domínios a postos ali simplesmente abandonou o lugar e fugiu do muito maior contingente de tropas firenzcianas. A pedido de Allesandra, Jan despachou cavaleiros — incluindo Sergei ca’Rudka — bem à frente da força principal, para negociar com o comté de Passe a’Fiume. Com a maior parte da guarnição da Garde Civile esvaziada devido à invasão ocidental, o comté favoreceu a prudência à coragem (e uma propina substancial em ouro em vez do juramento ao cargo): em troca da promessa de que a cidade não seria saqueada, ele permitiria que o exército cruzasse o rio Clario através dos portões da cidade até a Avi a’Firenzcia.

Allesandra cavalgava ao lado de Jan quando eles cruzaram a grande ponte de pedra sobre as águas do Clario, um rio mais rápido e perigoso do que o A’Sele — que era mais profundo e largo, e com quem o Clario se juntava antes de o rio A’Sele chegar a Nessântico. A ponte parecia tremer sob a batida das botas dos soldados e dos cascos dos cavalos. A vanguarda do exército já passara pelos portões e o resto descia estrada afora até onde era possível enxergar no terreno cheio de morros. Jan olhou em volta extasiado, quando eles passaram pelas arcadas altas com os escudos dos kralji e entraram na cidade. Multidões estavam enfileiradas nas laterais da avenida principal ao longo da cidade, a maioria em silêncio, e os chevarittai da Garde Hïrzg ficaram tensos em suas selas ao escanearem o público à procura de perigo.

— A senhora esteve aqui com o vavatarh? — perguntou Jan novamente ao se inclinar na direção de Allesandra, e ela fez que sim com a cabeça.

— Eu era apenas uma criança, e seu vavatarh estava no auge. Ele tomou Passe a’Fiume em apenas três dias de sítio após as negociações de paz falharem, mas o kraljiki Justi, que ainda tinha duas pernas na ocasião, já tinha escapado covardemente para Nessântico. Seu vavatarh ficou furioso. Sergei ca’Rudka era o comandante das forças de Nessântico; ele foi... brilhante, mesmo em enorme desvantagem numérica. Seu vavatarh admitiu o fato, mesmo que de má vontade.

Jan olhou para trás, onde ca’Rudka cavalgava ao lado do archigos. O nariz de metal do regente reluzia ao sol. Como a Garde Hïrzg, ca’Rudka parecia ansioso e nervoso, com a boca franzida e o olhar varrendo a massa de ambos os lados. — Eu gosto do sujeito, mas não sei se posso confiar totalmente nele, matarh — disse Jan ao voltar a atenção para ela.

Allesandra sorriu ao ouvir isso. — Você não deveria. A lealdade dele é a Nessântico, antes de mais nada. E Sergei ca’Rudka é um homem estranho, com gostos estranhos, caso se acredite nos rumores. Isso não mudou. Ele trabalhará conosco enquanto achar que nossos interesses convergem. Assim que não achar... — Ela deu de ombros. — Então ele ficará igualmente satisfeito em ser nosso inimigo. Seus instintos estão corretos, Jan.

— Ele parece admirar a senhora.

— Eu conheci Sergei quando era refém da archigos Ana. Ele foi gentil comigo na época. Mas agora o comandante está mais interessado no fato de que sou prima em segundo grau da kraljica Marguerite, e no fato de que este parentesco me dá tanto direito ao Trono do Sol quanto Sigourney ca’Ludovici. E, por enquanto, precisamos de Sergei e das alianças que ele venha nos trazer.

Jan concordou com a cabeça. Ele franziu os lábios como se levasse tudo isso em consideração enquanto entravam na praça central da cidade. Allesandra imaginou o que o filho pensava.

Aqui, o Templo a’Passe dominava a paisagem arquitetônica. Como muitas estruturas da cidade, ele foi muito danificado no cerco há duas décadas e meia. Depois, o conselho municipal decidiu reprojetar a praça principal e o complexo do templo. Grande parte da estrutura original foi demolida. As linhas finas e esqueléticas dos andaimes enjaulavam a torre principal ainda não concluída e o domo do templo reformado.

A multidão de moradores estava mais densa aqui, enquanto a fila lenta do exército marchava pela cidade. Agora, Allesandra sabia, a vanguarda já teria passado pelo portão oeste e além das muralhas. Agora, ela também sabia, mensageiros iriam a galope adiante do exército para levar a notícia à kraljica, ao archigos e à Nessântico de que os firenzcianos estavam em marcha — até onde a a’hïrzg sabia, aquela informação já podia ter chegado à Nessântico assim que o exército cruzou as fronteiras. A partir de agora, o avanço encontraria resistência em breve; a kraljica Sigourney não podia se dar ao luxo de continuar virada para o oeste por muito tempo.

Um exército — especialmente o exército firenzciano; afinado, eficiente e famoso — era uma grande carta na manga em qualquer mesa de negociação, e Sigourney e o Conselho dos Ca’ sabiam muito bem disso. Allesandra sorriu diante da ideia.

A multidão espremia-se perto deles, e os soldados da infantaria de ambos os lados de Allesandra e Jan empurravam as pessoas para trás com os cabos das lanças e dos piques. Ela viu os rostos sérios e infelizes atrás da cerca de armas, e das profundezas da multidão vieram berros com xingamentos e ameaças, mas quando os dois olharam naquela direção, não havia ninguém que eles pudessem identificar na massa. A população também se lembrava do cerco firenzciano; muitas pessoas perderam familiares no sítio, e a visão das bandeiras negras e prateadas era um insulto tremulando na cara delas.

Eles entraram na sombra do templo agora, a fila do exército usava o baluarte da torre principal para se proteger da multidão. As trompas no templo começaram a anunciar a Segunda Chamada assim que Jan e Allesandra chegaram em frente à torre. A a’hïrzg ergueu a cabeça na direção do barulho e apertou os olhos contra o brilho do sol. Alguma coisa — uma figura, uma silhueta — parecia andar lá em cima, em meio ao emaranhado de andaimes. Ela não conseguiu enxergar com clareza.

Allesandra foi golpeada por trás de repente, no mesmo instante em que seus ouvidos a alertaram do som de cascos nos paralelepípedos. Um peso enorme jogou a a’hïrzg no chão, mas os braços que a envolveram giraram Allesandra para que o corpo debaixo dela absorvesse a maior parte do impacto. Um baque alto foi ouvido quase que ao mesmo tempo ao impacto. Um cavalo berrou — um som horrível, desagradável — e as pessoas gritaram.

— O hïrzg!

— Andem! Andem!

— Lá em cima! Lá está ele!

Allesandra ouviu offiziers berrarem ordens e mais gritos. Parecia haver uma multidão amontoada em volta dela. A a’hïrzg lutou contra os braços à sua volta, contra as dobras do manto do agressor e da própria tashta e a capa de equitação. Havia mãos que a puxavam para ajudá-la a se levantar.

Houve outro grito, um berro humano dessa vez, e outro impacto em algum lugar próximo.

Allesandra pestanejou e tentou entender a situação.

Sergei ca’Rudka estava de pé ao lado dela, com a capa rasgada e uma careta no rosto enquanto massageava o braço. A superfície de prata do nariz estava arranhada e o próprio nariz tinha sido parcialmente arrancado do rosto, o que deu a Allesandra um vislumbre do buraco desagradável que ficava embaixo. Jan estava sendo ajudado a se levantar, a um passo atrás de Sergei. O cavalo de Allesandra estava caído de lado diante dela, com uma enorme estátua de um demônio moitidi em volta. O animal de olhos arregalados batia as patas, e os sons que fazia... Sergei foi rapidamente até ele, ajoelhou-se nos destroços do entalhe de pedra e acariciou o pescoço do animal enquanto fazia sons tranquilizadores. Allesandra viu o comandante sacar a faca da bainha. — Não! — Ela começou a dizer, mas Sergei já tinha feito o corte rápido e profundo. O animal deu um pinote, mais um e ficou imóvel.

Allesandra balançou a cabeça para tentar clarear a mente. Metade da multidão na praça parecia ter fugido aterrorizada; os soldados firenzcianos formaram um sólida defesa em volta deles. Sergei afastou-se do cavalo e andou a passos largos até um corpo esparramado em uma poça de sangue não muito longe da base da torre. Os soldados se moveram para interceptá-lo; ele se desvencilhou deles com raiva. Allesandra começou a se mexer e percebeu que o corpo estava dolorido e machucado, e que sangrava, com um corte na cabeça. A a’hïrzg sentiu Jan chegar por trás.

— Matarh? — Ele olhava fixamente para o cavalo que Sergei matou. Allesandra abraçou o filho desesperadamente, depois afastou Jan para examiná-lo; as roupas estavam rasgadas também e havia um arranhão na bochecha que sangrava, tirando isso, ele parecia ileso.

— O que aconteceu? — perguntou ela. — Você viu?

— O regente nos salvou — disse Jan. — Ele nos tirou dos cavalos bem a tempo. — O hïrzg ergueu os olhos para o andaime, depois abaixou o olhar para o corpo no chão. Sergei estava cercado por uma massa de soldados, ajoelhado ao lado do cadáver. — O homem... ele estava lá em cima. Teria matado a senhora. Talvez nós dois. Mas Sergei...

O archigos Semini veio correndo então, com o robe verde esvoaçante. — Allesan... — Ele começou a dizer, depois balançou a cabeça e fez o sinal de Cénzi às pressas. — A’hïrzg! Hïrzg! Graças a Cénzi os senhores estão a salvo! Eu pensei...

Mas Allesandra já não o ouvia. Ela avançou pela multidão até o lugar onde Sergei examinava o corpo. — Regente? — falou a a’hïrzg, e Sergei ergueu o olhar para Allesandra, com uma cara feia.

— A’hïrzg. Eu peço desculpas, mas não tive tempo de dar um aviso. A senhora está muito machucada?

Ela balançou negativamente a cabeça. Sergei assentiu e gemeu ao ficar de pé, como se o movimento o tivesse ferido. — Estou velho demais para isso — murmurou. Ele chutou o cadáver, e a bota fez um som macio e desagradável quando o torso quebrado tremeu em resposta. Allesandra viu um rosto bonito sob o sangue, um rosto jovem, talvez da idade de Jan; ela notou que as roupas eras elegantemente suspeitosas. O corpo estava decorado por hastes quebradas de várias flechas. — Não sei quem ele é — disse Sergei —, mas descobriremos. É um ca’ ou co’, pelo jeito que está vestido e pela aparência física. Eu o vi no alto do andaime bem antes de ele jogar a estátua. Foi quando entrei em ação; parece que seus arqueiros cuidaram do resto. — Ca’Rudka pareceu notar o nariz pendurado então, empurrou-o com cuidado de volta ao lugar e o segurou com dois dedos. — Perdão, a’hïrzg... a cola...

— Não importa — falou Allesandra, abanando a mão. — Regente, eu lhe devo a minha vida.

Ela pensou que Sergei responderia como a maioria, com a cabeça baixa e depreciação, uma declaração sobre dever, lealdade e obrigação. Ele não fez isso. Ao contrário, ca’Rudka sorriu, ainda segurando o nariz de prata no lugar.

— Realmente, a senhora me deve, a’hïrzg.

 

Niente

A CIDADE QUEIMAVA e as chamas eram refletidas na tigela premonitória. Elas sumiram quando Zolin deu um tapa no objeto, que derramou água sobre Niente. A tigela fez barulho ao cair, o bronze retiniu nos ladrilhos como um sino frenético até bater na parede do outro lado, onde reluzia um mosaico de azulejos de alguma batalha antiga. Desenhados no vidro, cavalos empinavam enquanto lanças marchavam em um campo com uma montanha de pico nevado que se agigantava ao fundo.

— Não! — rugiu o tecuhtli. — Não deixarei que me diga isso!

— É o que eu vi — respondeu Niente com uma calma que não sentia. O guerreiro morto, o nahualli esparramado ao lado dele, só que dessa vez ele viu um dos rostos. O rosto de Zolin... E ele estava com medo demais para pedir a Axat que lhe deixasse ver as feições do nahualli... — Tecuhtli, nós realizamos tanta coisa aqui. Mostramos a estes orientais a dor que eles infligiram a nós e a nossos primos. Tomamos terras e cidades deles assim como eles tomaram de nós. Demos a lição que o senhor queria dar. Continuar... — O nahual ergueu as mãos. A grande cidade em chamas e os tehuantinos em fuga, os navios com mastros quebrados adernados no rio... — As visões só me mostram morte.

— Não! — disparou Zolin. — Eu mandei uma mensagem para casa dizendo que ficaríamos aqui, que eles deveriam mandar mais guerreiros. Manteremos o que conquistamos. Atacaremos o coração dos orientais: essa grande cidade que está tão próxima. — Ele se virou, os braços pesados e musculosos passaram perto do rosto de Niente. Os dedos grossos do tecuhtli apontaram para os olhos do feiticeiro. — Você está cego, nahual? Não viu como foi fácil tomar essa cidade dos orientais? Não viu como eles correram como um bando de cães açoitados?

— Temos pouco material sobrando para fazer mais areia negra — falou Niente. — Eu perdi um terço dos meus nahualli no combate; o senhor perdeu a mesma quantidade em guerreiros. Chegamos muito longe, sem recursos para manter a terra atrás de nós. Estamos em um país estrangeiro cercado por inimigos, com apenas os suprimentos que conseguimos coletar e pilhar. Se voltarmos para os nossos navios agora e formos embora, deixaremos para trás uma lenda que provocará medo nos orientais por décadas. O nome do tecuhtli Zolin será um sussurro na noite que assustará gerações de crianças orientais.

— Bá! — disparou Zolin novamente. O cuspe quase acertou os pés de Niente e sujou o chão lustroso da mansão que ele tomou em Villembouchure. Ao abaixar o olhar, o nahual viu que todos os azulejos tinham a imagem da mesma montanha, como no mosaico da parede. O cuspe de Zolin formou um lago no flanco da montanha. — Você é mesmo uma criança assustada, nahual. Eu não tenho medo do que você vê na sua tigela. Não tenho medo desses futuros que você diz que Axat lhe envia. Eles não são o futuro, são apenas possibilidades. — O dedo cutucou o peito de Niente. — Vou lhe dizer uma coisa agora, nahual: você tem que fazer sua escolha. — Cada uma das três últimas palavras ditas foram acompanhadas por uma cutucada. Os olhos escuros do tecuhtli, envolvidos no movimento das asas da grande águia, encararam Niente como um daqueles grandes felinos que espreitavam as florestas de sua terra natal. — Chega de suas palavras. Chega de profecias, chega de avisos. Eu quero apenas a sua obediência e a sua magia. Se não puder me dar isso, então chega de você. Eu prosseguirei, quer você seja o nahual ou não. Decida agora, Niente. Aqui mesmo.

A mão de Niente tremeu ao lado do punho do cajado mágico que estava pendurado no cinto. O nahual seria capaz de pegá-lo e tocar Zolin com o objeto antes que o guerreiro conseguisse sacar a espada completamente. O feitiço disparado queimaria o tecuhtli e lançaria o corpo pela sala até ele desmoronar contra a parede em uma pilha fumegante debaixo do mosaico. Niente conseguia ver aquele resultado tão claramente quanto uma visão na tigela premonitória.

O ataque também acabaria com essa situação. Ele ansiava por isso.

Mas Niente não podia atacá-lo. Essa não era uma visão dada por Axat. Esse caminho levaria a um dos futuros cegos, um que ele não poderia adivinhar — um futuro que poderia ser bem pior para os tehuantinos do que o visto na tigela. O nahual percebeu que conhecer os futuros possíveis era tanto uma armadilha quanto um benefício; ele perguntou-se se isso era algo que Mahri também descobrira. Em um futuro cego, Citlali ou Mazatl poderiam continuar a seguir os passos de Zolin e se sair ainda pior. Todos eles poderiam morrer aqui, e ninguém em casa saberia seus destinos. Em um futuro cego, certamente Niente jamais veria sua família novamente.

Ele sentiu a madeira lisa e lustrosa do cajado mágico, mas as pontas dos dedos apenas roçaram o objeto. Eles não se fecharam em volta do punho.

— Eu obedecerei ao senhor, tecuhtli — falou Niente, com palavras baixas e lentas. — E o seguirei ao futuro que o senhor nos trouxer.

 

Varina ci’Pallo

KARL ESTAVA SENTADO no degrau da porta dos fundos da casa de Serafina no Velho Distrito e olhava fixamente através de um pequeno jardim plantado ali, na direção da parte detrás das casas da próxima rua. O olhar parecia penetrar a margem sul, bem ao longe. Acima dele, a lua estava presa em uma rede de finas nuvens prateadas através das quais as estrelas espiavam. Uma xícara de chá parecia esquecida à sua esquerda.

Karl esfregava uma pedra clara, pequena e achatada, entre o indicador e o polegar.

Varina apareceu e sentou-se à sua direita — não perto o suficiente para tocá-lo, nem longe demais a ponto de não sentir o calor do corpo no frio da noite. Nenhum deles disse coisa alguma. Karl esfregou a pedra. Ela ouviu a música abafada e distante que vinha da taverna mais à frente.

Quando o silêncio entre os dois prolongou-se por tempo demais para ela, Varina começou a ficar de pé. Sentiu raiva de si mesma por ter vindo aqui fora e raiva de Karl por tê-la ignorado. Porém, ele esticou o braço e tocou em seu joelho. — Fique — disse Karl. — Por favor?

Varina sentou-se novamente e perguntou — Por quê?

— Nós não... nos últimos dias... Bem, você sabe.

— Não, eu não sei — falou ela. — Diga-me.

— Por que você tenta dificultar as coisas para mim? — Ele girou a pedra nos dedos.

— Não, estou tentando facilitá-las para mim. Karl, estar com ou sem você são duas situações com as quais eu consigo lidar, de um jeito ou de outro. O que eu não consigo encarar é não saber qual delas é nossa situação. — Varina esperou. Karl não disse nada. — Então, qual é? — perguntou ela.

— Não é tão simples assim.

— Na verdade, é. — Varina abraçou o próprio corpo ao se sentar e inclinou-se um pouco longe dele. — Quando finalmente levei você para minha cama, eu achei que teria tudo que queria há anos. Mas descobri que eu ainda tinha apenas uma parte de você. Quero você por inteiro, Karl, ou não quero nada. Talvez eu esteja exigindo demais de você, ou talvez eu seja muito possessiva, ou talvez você ache que eu esteja forçando uma coisa que você não quer. — Lágrimas ameaçaram cair, e ela fungou o nariz para contê-las, com raiva. — Talvez seja culpa minha que essa situação não dê certo, e, se for o caso, então tudo bem. Mas eu simplesmente preciso saber.

— A questão não é você.

Varina queria acreditar naquilo. Ela mordeu o lábio inferior, conteve as lágrimas, teve dificuldade para respirar. — Então o que é? Você vai atrás desse tal Uly por conta própria, quase morre, encontra com Kenne sem me contar, está até mesmo fazendo planos com Talis. Mas não fala comigo.

— Eu não quero que você se preocupe.

Varina quis escarnecer ao ouvir isto. — Eu me preocupo mais quando não sei a situação. Não sei o que você planeja, não sei o que tenta fazer, não sei quais seriam os verdadeiros perigos. — Ela parou. Respirou fundo. — Eu não quero ser sua amante, estar à disposição sempre que você quiser esse tipo de consolo, e ser convenientemente esquecida fora isso. Se isso é tudo o que você quer de mim, então eu cometi um erro. Também não sou Ana, não quero você apenas como amigo. Novamente, se isso é tudo que você quer de mim, bem, também não pode me ter como amiga. Não mais. Então, se esse for o caso, me diga, e assim que essa situação acabar, de uma forma ou de outra, eu tomo o meu próprio rumo. Eu quis que você abrisse a porta entre nós por muito tempo, Karl. Agora você abriu, mas não pode ficar parado ali com um pé dentro e outro fora. Eu preciso fechá-la e trancá-la para sempre ou você precisa entrar de vez.

— Como eu faço isso? — A voz soou melancólica na escuridão. Ele apertou a pedra entre os dedos. Como você pode não saber? Ela queria ralhar com ele. Não é capaz de enxergar tão nitidamente quanto eu?

— Fale comigo — disse Varina. — Compartilhe o que está pensando. Deixe-me aceitar os perigos que você está disposto a aceitar. Deixe-me estar com você.

Ela pensou que Karl não fosse responder — o que teria sido uma resposta suficiente. Ele ficou sentado ali, ainda brincando com a pedra e olhando para longe. Varina começou a se levantar novamente, mas dessa vez Karl pegou sua mão. Ela sentiu a pedra ser pressionada contra a palma.

— Espere — falou ele. — Deixe-me contar o que estou pensando...

E Karl começou a falar.

 

Kenne ca’Fionta

AUBRI CO’ULCAI PARECIA um cão açoitado ao se ajoelhar, de cabeça baixa, perante a kraljica. A armadura estava arranhada e surrada, o rosto tinha marcas de sujeira e fumaça, o cabelo estava escuro e emaranhado, e ele fedia. No salão do Trono do Sol, o comandante parecia uma mosca patinando em uma xícara dourada de água limpa e fria.

Não que o salão em si não tivesse cicatrizes. Ninguém deixaria de notar as marcas dos reparos feitos às pressas onde o Trono do Sol foi danificado pela magia do assassino — não, não era magia, se Karl ca’Vliomani estivesse correto, lembrou-se Kenne, mas algo mais sinistro; uma coisa que qualquer boticário seria capaz de fazer com os ingredientes certos. De que o embaixador ca’Vliomani chamou aquilo? O fim da magia? O archigos perguntou-se se o homem estava certo.

As tapeçarias penduradas ainda fediam à fumaça, e Kenne imaginou se não havia um leve tom horripilante de rosa nos ladrilhos em volta do tablado do trono. E não havia como não notar a aparência da própria kraljica Sigourney: o tapa-olho e as cicatrizes no rosto, as bandagens ainda nos braços e na única perna, a maneira como ela se remexia com dor no assento, a taça cheia do extrato das sementes da flor venenosa cuore della volpe — um preparado que o ervanário da corte criou para aliviar a sua dor.

Ainda assim, o Trono do Sol reluzia sob e em volta dela como fizera com inúmeros kralji; Kenne cuidou disso pessoalmente. Se fosse uma farsa, ninguém que observasse saberia. Kenne suspirou na própria cadeira à direita do trono, cansado pelo esforço de conjurar o feitiço de luz. O Conselho dos Ca’ estava disposto à esquerda. O salão fora esvaziado de cortesãos e até mesmo de criados — nenhum deles queria mais rumores espalhados pela cidade além dos que já haviam.

— Comandante co’Ulcai — falou Sigourney em uma voz tão arrasada quanto o rosto —, a informação que você nos traz... — Ela parou e fechou o único olho. Quando abriu novamente, a voz saiu mais inteligível. — Você nos desapontou.

— Eu sinto muito, kraljica — disse o comandante. — A senhora já deve estar com minha carta de resignação.

— Eu estou com ela, mas não irei aceitá-la. — Quando co’Ulcai ergueu o rosto com uma leve esperança, Sigourney olhou o homem com desprezo. — E não há outra razão além do fato de que temos poucos offiziers com a sua experiência. Você nos desapontou com os ocidentais, e a mancha em seu currículo não será facilmente apagada. Eu tenho a intenção de mandar que Aleron ca’Gerodi comande as defesas de Nessântico caso esses bárbaros sejam tolos o bastante para continuar a avançar. Se meu irmão estivesse aqui... — Ao dizer isso, os lábios tremeram e um brilho úmido surgiu no olho. Ela tomou um gole de cuore della volpe. — Quanto a você, veremos como se sai contra um inimigo que deve conhecer melhor. Vou mandá-lo para leste, comandante co’Ulcai, para comandar nossas forças contra o exército de Firenzcia. Odil ca’Mazzak, do Conselho, irá acompanhá-lo, e vocês dois partem amanhã. — A kraljica gesticulou com o braço para dispensá-lo. — Imagino que tenha preparativos a fazer, comandante.

Co’Ulcai ficou de pé, fez uma mesura para a kraljica e foi embora do salão com passos altos no silêncio que o acompanhou. Quando ele saiu, a kraljica Sigourney suspirou.

— Eu não confio no sujeito — murmurou Odil ca’Mazzak. — Ele é outro offizier com laços com o regente traidor.

— Infelizmente, co’Ulcai é o melhor que temos — respondeu a kraljica Sigourney. — Odil, precisamos rever os pontos da negociação que você discutirá com os firenzcianos. Archigos, preciso que você se manifeste contra os numetodos, por duas razões: para aplacar Firenzcia e para sabermos que não temos traidores na cidade enquanto enfrentamos inimigos dos dois lados. Eu espero ouvir Admoestações agressivas de sua parte e de todos os seus ténis, a começar com as missas da Terceira Chamada.

Kenne sabia que ela não esperava ouvir objeção alguma de sua parte; Sigourney já havia afastado o rosto antes de terminar de falar. A kraljica imaginava que ele apenas concordaria com a cabeça e não diria nada. Antigamente, ela estaria certa.

Antigamente. Mas havia a visita de Karl, havia o espectro do falso archigos Semini ca’Cellibrecca surgindo no horizonte e tudo o que aquilo significaria. E havia a memória de Ana e a liberdade e tolerância pelas quais ela lutou por anos.

— Não — disse Kenne. — Eu não farei isso.

O silêncio que se seguiu foi longo. A kraljica Sigourney piscou o único olho. — Não — repetiu ela, e a palavra soou como o toque de um sino fúnebre. — Eu ouvi direito, archigos?

Kenne concordou com a cabeça. — A senhora está... — A garganta estava seca. Ele engoliu em seco e tentou juntar alguma saliva. — A senhora está errada a respeito dos numetodos, kraljica. Está errada em acreditar que foi a magia deles que matou o kraljiki Audric e feriu a senhora. Não foram eles.

Ela piscou o único olho mais uma vez. Os outros conselheiros observavam os dois, em silêncio. — Não foram? E como você sabe disso?

— Porque eu falei com o embaixador ca’Vliomani, na verdade. Ouvi suas explicações e fiz minha própria investigação sobre o que ele descobriu.

— Karl Vliomani — a nítida falta de um prefixo ao sobrenome pairou pesadamente no ar — é um fugitivo atualmente condenado à morte. Está me dizendo que ele foi até você, e você o deixou escapar?

Kenne sentiu um arrepio com o tom de voz. — Ele veio até mim, sim, e me mostrou isso. — Ele tirou um pequeno frasco de vidro debaixo do robe verde. No interior, a areia negra reluzia. — Observem. — O archigos levantou-se da cadeira, arrastou os pés pelo tablado e desceu para o piso do salão. Tomou vários passos de distância do trono, depois tirou a rolha do frasco e deixou a areia jorrar sobre os ladrilhos. Kenne voltou para o tablado; os joelhos estalaram como gravetos secos quando subiu os degraus. — Todo mundo concorda que Enéas co’Kinnear usou um feitiço para criar fogo; mas aquele era um feitiço de téni, não de numetodo. Co’Kinnear foi um acólito da fé concénziana e teve alguma educação sobre o uso do Ilmodo. É muito provável que ele tenha aprendido aquele feitiço; é um dos primeiros a serem ensinados aos novos estudantes. Olhem...

Kenne ergueu as mãos e deixou que dançassem no rápido gestual enquanto a voz entoou as curtas frases necessárias. Um momento depois, uma chama amarela tremeluziu no ar entre suas mãos. — Todos os senhores viram isso mil vezes; todas as noites, quando as lâmpadas são acesas ao longo da Avi a’Parete. Isso aqui não é diferente...

O archigos abriu as mãos, começou um novo cântico, e a chama afastou-se de sua mão, saiu flutuando do tablado até pairar sobre a areia negra. Ali, ele abaixou as mãos devagar, e a chama respondeu da mesma forma, desceu até quase tocar a pilha escura...

O estrondo da explosão foi mais alto até mesmo do que Kenne esperava, e o clarão feriu os olhos. Uma fumaça branca subiu e se espalhou pelo salão, seguida de um cheiro cáustico e intenso. Ele ouviu o baque metálico quando a taça do cuore della volpe caiu do braço do Trono do Sol para o chão. A kraljica Sigourney estava com a respiração acelerada no trono e a mão erguida diante do rosto como se tentasse se proteger; ela parecia tentar ficar em uma perna só enquanto pegava a bengala perto da mão direita. Vários conselheiros estavam de pé e berravam. As portas do salão foram escancaradas por gardai, que entraram com espadas na mão. — Kraljica?

Sigourney abaixou as mãos. Kenne ouviu a respiração da kraljica desacelerar. Ela dispensou os gardai com um gesto. — Este cheiro... — murmurou Sigourney. — Eu me lembro dele mais do que de tudo. — Ela virou-se lentamente para o archigos e perguntou — Isso não é magia? Como é possível que isso não seja o Ilmodo, archigos?

— Porque é apenas alquimia — respondeu Kenne —, uma combinação de ingredientes que reage violentamente quando entra em contato com fogo. Havia traços desta areia negra na madeira do Alto Púlpito após a archigos Ana ser morta; os mesmos traços estavam no Trono do Sol e no corpo do kraljiki Audric.

— Os numetodos alegam que a fé em Cénzi não é necessária para usar magia, que qualquer pessoa é capaz disso, que não é mais complicado do que ser um padeiro. Eles olham para pedras com formato de conchas e crânios e inventam teorias estranhas, eles realizam experiências... em alquimia, assim como em outras “ciências”, bem como em magia. Para mim, isso parece indiciar os numetodos. — Quem falou foi Odil ca’Mazzak. Ele olhou com raiva para o archigos, e a kraljica concordou com a cabeça diante das palavras.

— Eu afirmo que isso não veio dos numetodos — insistiu Kenne.

— Mesmo que tenha sido Vliomani quem, por acaso, lhe mostrou isso — retrucou Odil com desdém. — Parece uma lógica estranha.

— A areia negra é um preparado ocidental — disse Kenne. — Aqui está a lógica, conselheiro. Enéas co’Kinnear tinha acabado de retornar do serviço militar nos Hellins. O senhor também deve se lembrar que o comandante co’Ulcai acabou de nos contar como os ocidentais foram capazes de destruir as muralhas de Villembouchure com explosões similares àquelas que mataram a archigos Ana e o kraljiki Audric.

— E ele disse que as explosões foram criadas pela magia dos ténis-guerreiros ocidentais, esses tais “nahualli”. — Odil balançou a cabeça grisalha. A pele flácida da garganta sacudiu com o movimento. — Eu acho que o archigos está enga...

— Não! — Dessa vez Kenne quase gritou e bateu o pé no chão ao mesmo tempo. — Eu não estou enganado. Sei que todos os senhores me acham um velho tolo e decrépito que é uma mera sombra do que um archigos deveria ser. Os senhores podem estar certos quanto a isso, mas estão errados nessa questão. Pior do que errados; eu tenho provas que me fazem acreditar que o falso archigos Semini está envolvido no assassinato da archigos Ana. E, se esse for o caso... — Ele parou, sem fôlego. Todos encaravam o archigos como se ele fosse uma criança tendo um ataque. — Nós precisamos dos numetodos, kraljica, conselheiros — continuou Kenne, com a voz mais baixa. — Precisamos das habilidades, da magia e do conhecimento deles. Nessântico está prestes a ser sitiada pelo oeste e pelo leste, e não podemos nos dar ao luxo de perder aqueles que podem nos ajudar.

Houve um longo e doloroso silêncio. Odil lambeu os lábios e sentou-se. Os outros integrantes do Conselho abaixaram a cabeça e entreolharam-se. A kraljica Sigourney olhou fixamente para a mancha negra nos ladrilhos. — Nós consideraremos o que você disse, archigos — falou ela, finalmente, e Kenne sabia o que isto significava.

Ele gemeou e levantou-se da cadeira novamente. Pegou o cajado de archigos com a mão direita — o globo partido envolto pelos corpos nus e contorcidos dos moitidis — e fez o sinal de Cénzi para a kraljica com a esquerda. Novamente, Kenne afastou-se do tablado arrastando os pés. Ao passar pelo ponto onde a areia negra havia explodido, parou. Os ladrilhos ali estavam quebrados. Ele pegou um dos pedaços maiores, com uma borda afiada de cerâmica azul-clara e a superfície lisa manchada com o que parecia ser fuligem. O cheiro da areia negra era forte. Kenne levantou o pedaço do ladrilho e deixou cair, o som se parecia com o de um prato se quebrando. Ele viu os pedacinhos quicarem e se espalharem.

— Nessântico inteira pode ficar assim — disse o archigos. — Inteira.

Não houve resposta. Ele bateu com a ponta do cajado de archigos no ladrilho e continuou arrastando os pés.

 


Sergei ca’Rudka

A TENDA DE NEGOCIAÇÃO FOI ARMADA em um campo entre as duas forças: ao lado da Avi a’Firenzcia e aproximadamente a meio caminho entre Passe a’Fiume e Nessântico. Ao se aproximarem, Sergei já podia ver as silhuetas escuras de Odil ca’Mazzak e Aubri co’Ulcai através do pano branco, juntamente com o u’téni Petros co’Magnaoi, presente como o representante do archigos. A delegação firenzciana era composta por Sergei, a a’hïrzg Allesandra e o starkkapitän ca’Damont, acompanhados pelo obrigatório conjunto de chevarittai e assistentes. Uma vez que nem a kraljica nem o archigos Kenne estavam presentes, o hïrzg e o archigos Semini, diante da sugestão de Sergei, ficaram para trás. Nenhum dos dois ficou contente com o arranjo.

— Matarh, eu deveria estar lá — insistiu Jan. — Eu sou o hïrzg, e o que acontecer deve ser, tem que ser minha decisão. — Ele olhou feio para Sergei e Allesandra.

— E será, hïrzg — disse Sergei para o jovem. — Eu lhe prometo, mas para o senhor estar lá... — Ele balançou a cabeça. — O senhor é o hïrzg, como disse. Não há um igual ao senhor naquela tenda; também não há um igual ao archigos. Não é esperado do senhor, hïrzg Jan, que negocie em termos iguais com Odil ca’Mazzak, que é apenas um integrante do Conselho dos Ca’; o senhor estaria se rebaixando se fizesse isso. Eu lhe digo que isso é exatamente o que eles querem que faça. Seria uma admissão de que o hïrzg da Coalizão é alguém inferior à kraljica dos Domínios.

Sergei então olhou para Allesandra e para o archigos, que estava com a cara fechada. — Os senhores me pediram para dar meu conhecimento, para ajudá-los. É o que estou fazendo aqui. Aparências importam. Importam muito. Especialmente para aqueles no Palácio da Kraljica.

No fim, com o apoio de Allesandra, o regente venceu o argumento. Jan, pelo menos, foi, de certa forma, educado. Irritado, o archigos saiu em um rompante, e eles ouviram Semini reclamar pelo acampamento pelas próximas viradas da ampulheta.

Conforme o contingente firenzciano desmontava e criados recolhiam as armas e os cavalos e ofereciam comidas e bebidas, os representantes de Nessântico aproximaram-se. Sergei apertou afetuosamente o braço de co’Ulcai e sorriu para seu offizier de longa data. — Aubri, eu gostaria que pudéssemos ter nos encontrado sob circunstâncias melhores. Eu soube o que aconteceu com o pobre Aris... — Ele apertou o ombro do homem e fez o sinal de Cénzi para o u’téni Petros co’Magnaoi. — Petros, é bom vê-lo também. Como está o archigos Kenne?

— Está bem, senhor, e lhe manda bênçãos — respondeu o homem mais velho.

Sergei inclinou-se para perto do u’téni ao abraçá-lo. — Kenne recebeu minha mensagem? — sussurrou o regente no ouvido do velho. — Ele concorda? — Sergei sentiu o leve aceno de Petros. Também viu os olhares de avaliação de ambas as delegações sobre ele ao cumprimentar os dois homens: tanto de Allesandra quanto de Odil ca’Mazzak. Ambos tinham suspeitas; ambos tinham o direito de ter. Sergei acenou com a cabeça para ca’Mazzak e sentou-se à esquerda de Allesandra.

O conselheiro gesticulou, e pajens aproximaram-se para entregar rolos pesados de pergaminhos a Allesandra, Sergei e ao starkkapitän. — Esta é a oferta da kraljica Sigourney — falou ca’Mazzak enquanto o trio lia as palavras presentes ali. — Seu exército terá permissão para retornar a Firenzcia. O fora da lei Sergei Rudka será entregue a nós. Reparações serão pagas por Brezno para os Domínios pela destruição de colheitas e gado feita por seu exército e pela violação do Tratado de Passe a’Fiume. Se os senhores acharem os termos aceitáveis, só é necessário que a a’hïrzg assine como representante da Coalizão.

Não era mais do que Sergei esperava. Ele já testemunhara a arrogância e o excesso de confiança dos Domínios muitas vezes antes.

O starkkapitän ca’Damont bufou desdenhosamente pelo nariz e jogou o pergaminho na mesa. — E como a kraljica pretende executar essa oferta, conselheiro? Com os poucos batalhões que o senhor deu ao comandante co’Ulcai? Não tenho nada além de respeito pelo comandante, que é um belo offizier, mas não se afasta um urso raivoso com um graveto. — Ele pareceu se dar conta de que falou o que não devia. O rosto ficou um pouco vermelho. — Perdão, a’hïrzg. Eu sou um simples offizier, mas essas exigências... — Ele empurrou o pergaminho da mesa para o chão; um pajem correu para pegá-lo, mas não o devolveu ao starkkapitän.

— A Garde Civile e os chevarittai dos Domínios não são um graveto, starkkapitän — gabou-se ca’Mazzak. Ele inchou como um sapo, sentado ereto na cadeira, a papada no pescoço grosso tremeu. — O senhor subestima nossa capacidade de botar um exército em campo rapidamente quando nossas terras são ameaçadas. É uma lição que o último hïrzg Jan aprendeu; estou surpreso que alguém em Firenzcia sinta necessidade de aprendê-la uma segunda vez.

Allesandra parecia ainda estar lendo a proposta, embora Sergei tenha notado que ela escutava com atenção o diálogo. A a’hïrzg pousou o papel diante de si e dobrou as mãos sobre ele. — Muito bem. Deixemos a pose de lado, conselheiro ca’Mazzak. Todos sabemos que Nessântico enfrenta uma ameaça a oeste. Sabemos o que aconteceu com Karnor; ouvimos rumores que Villembouchure pode ter sofrido o mesmo destino. Talvez o comandante co’Ulcai possa nos esclarecer sobre isso, uma vez que eu espero que ele tenha estado lá quando as forças dos Domínios foram escorraçadas? Todo mundo nesta mesa sabe que o senhor não tem forças suficientes para nos desafiar aqui. Então o que é que a kraljica realmente oferece?

Sergei havia sugerido esse curso direto de ação para Allesandra, mas a provocação a Aubri co’Ulcai tinha sido contribuição da própria a’hïrzg. A expressão no rosto de Aubri foi o suficiente para confirmar que o palpite dela estava correto, e Sergei sentiu uma pontada de compaixão pelo amigo.

Ca’Mazzak parecia ter engolido uma fruta podre. Ele deu uma olhadela para Petros, que parecia examinar os campos além do limite da tenda, e depois para Aubri. — A kraljica está preparada para oferecer um meio-termo — falou o conselheiro finalmente. — Que o hïrzg e a a’hïrzg voltem para Brezno com a Garde Brezno; no entanto, o starkkapitän ca’Damont e o restante do exército ficam para trás, a fim de auxiliar na defesa de Nessântico contra os ocidentais, ajuda pela qual o tesouro de Nessântico está disposto a pagar. Quanto ao antigo regente... — ca’Mazzak olhou com ódio para Sergei. — A kraljica Sigourney mantém a exigência do retorno de Sergei Rudka para que enfrente as acusações contra ele, não importa o acordo a que cheguemos aqui.

Allesandra ficou de pé ao ouvir isso; um momento depois, Sergei, ca’Damont e o resto do contingente firenzciano acompanhou o gesto. — Então estamos encerrados aqui — disse a a’hïrzg. — O regente ca’Rudka é um conselheiro da coroa de Firenzcia, e nós o consideramos o legítimo governante atual de Nessântico até que um kralji de direito seja nomeado. Se o regente ca’Rudka desejar retornar à Nessântico por conta própria para lutar por seu direito, ele pode fazê-lo. Caso contrário, ele está sob a proteção do hïrzg, não importa o que a pessoa que os senhores nomearam kraljica deseje. — Ela fez uma mesura para ca’Mazzak e gesticulou. Sergei deu um largo sorriso para o homem. Eles deram meia-volta para ir embora.

— Esperem! — Foi Petros que os chamou. Allesandra parou.

— U’téni? — perguntou a a’hïrzg, mas ca’Mazzak já vociferava.

— Eu estou no comando dessa delegação — falou o conselheiro. — Você fala quando eu lhe der permissão, u’téni co’Magnaoi.

— Cénzi está no comando da minha consciência — disse Petros. — Não o senhor, nem a kraljica Sigourney. E eu falarei. A’hïrzg, Nessântico está em uma situação desesperadora. O comandante co’Ulcai poderia lhe dizer, se tivesse permissão para falar, com que facilidade os ocidentais tomaram os vilarejos e as cidades que eles devastaram. Nessântico precisa desesperadamente de todos os aliados que conseguir reunir agora. O archigos Kenne está preparado para negociar separadamente da kraljica, se for necessário, para alcançar esse objetivo.

— O quê? — esbravejou ca’Mazzak. Ele também estava de pé agora e socou a mesa. — Não, não, não. Estamos encerrados aqui. U’téni co’Magnaoi, você será levado de volta à cidade para responder por isso. Comandante, mande seus gardai...

Sergei deu um tapa na mesa bem na frente de ca’Mazzak, o homem fechou a boca com um estalo alto. — O senhor não é nada além do cachorrinho bravo da kraljica, conselheiro — disse o regente ao se inclinar na direção do homem. — Sente-se.

Ca’Mazzak o olhou com ódio e virou-se para Aubri. — Comandante, o senhor tem as suas ordens. O senhor prenderá o u’téni imediatamente.

Aubri não se mexeu, não respondeu. Sergei sentiu a tensão aumentar na tenda. Viu mãos deslizarem cautelosamente na direção das armas escondidas — ele mesmo tinha as próprias facas, uma na bota, outra debaixo da blusa da bashta, e o zumbido do próprio medo ecoava em seus ouvidos. O regente não conseguira contatar Aubri antecipadamente, e se o comandante tivesse decidido que sua lealdade ao Trono do Sol era maior do que a velha lealdade a Sergei, então... Bem, então Sergei não sabia o que poderia acontecer aqui.

— Comandante co’Ulcai, isso é traição — rosnou ca’Mazzak. — Vou exigir sua cabeça por isso, se não fizer como mandei.

Aubri não disse nada; o olhar contemplativo continuava em Sergei. Os chevarittai de ambos os lados ficaram tensos, prontos para agir. Sergei colocou-se entre Allesandra e a mesa e falou — Eu sugiro que o senhor se sente, conselheiro. Deixe o u’téni co’Magnaoi terminar de explicar sua proposta.

Por vários instantes, ca’Mazzak não se mexeu. Ele olhou em volta da tenda lentamente, Sergei sabia que o conselheiro estava avaliando quem ali o seguiria ou não. Evidentemente, o homem não ficou satisfeito com o resultado. Devagar, ca’Mazzak sentou-se novamente. Ele olhou fixamente para as próprias mãos.

— Ótimo — disse Sergei. Por um momento, o zumbido nos ouvidos diminuiu. — Petros, o que o archigos Kenne tem a oferecer para Firenzcia?

— Informação — respondeu Petros. — Nós temos provas de que o archigos Semini esteve envolvido no assassinato da archigos Ana. Podemos dar nomes que verificam essa informação. — Atrás dele, Sergei ouviu Allesandra tomar fôlego diante da acusação. O regente ficou intrigado com a reação; ela parecia mais preocupada do que surpresa. — Como o kraljiki Audric foi morto da mesma maneira — continuou Petros —, nós suspeitamos que o falso archigos esteve envolvido da mesma maneira. Se o hïrzg Jan estiver disposto a julgar o archigos Semini pela morte da archigos Ana em sua própria corte, nós daremos as provas que temos. Em troca, a Fé de Nessântico trabalhará com a Fé de Brezno para restaurar o nosso racha; o archigos Kenne irá convocar um Conclave com todos os a’ténis para eleger um único archigos para reger a fé concénziana, e também abdicará voluntariamente se não for eleito; porém, qualquer archigos eleito deverá assumir o Templo do Archigos em Nessântico, não em Brezno. Da mesma forma, a Fé está disposta a reconhecer o direito ao Trono do Sol de Allesandra ca’Vörl. O archigos Kenne irá apoiá-la diante do Conselho dos Ca’ contra a kraljica Sigourney.

— Não! — Ca’Mazzak ficou de pé em um pulo novamente, e uma baba voou de sua boca com a explosão da palavra. — O archigos Kenne será jogado na Bastida por isso, e os ténis que o apoiarem serão expulsos...

— Se isso acontecer — respondeu Petros calmamente —, então o archigos Kenne mandará que os ténis-guerreiros permaneçam nos templos em vez de responderem ao chamado da kraljica. Como a Garde Civile e os chevarittai se sairão contra os ocidentais sem os ténis-guerreiros, conselheiro? Como enfrentarão o exército do hïrzg?

Novamente, ca’Mazzak desmoronou na cadeira. Ele sentiu um arrepio, como se estivesse com febre e alisou a papada. A testa porejava, e debaixo dos braços, o tecido da bashta escureceu.

Allesandra tocou o ombro de Sergei, que se afastou. A a’hïrzg deu um sorriso amargo e fez o sinal de Cénzi para Petros. — Vocês oferecem tudo isso pelo julgamento do archigos Semini?

Petros concordou com a cabeça. — Nós confiamos que a corte do hïrzg será justa e imparcial. E há mais uma coisa: toda perseguição contra os numetodos deve parar. Imediatamente. Os numetodos são inocentes em toda esta questão. O embaixador Karl ca’Vliomani deve retomar o antigo cargo.

Sergei sentiu que as negociações dependeriam da resposta de Allesandra a essa última exigência. Ela tocava o globo partido de Cénzi pendurado no pescoço. Sua própria vida dependia disso também, assim como a de Petros e Aubri. Se ele avaliou errado...

— Eu falarei com meu filho — respondeu a a’hïrzg. — Repetirei tudo o que foi dito aqui. — Sergei achou, por um momento, que essa seria toda a resposta, que ele havia perdido. Mas Allesandra respirou fundo e disse — Vou sugerir que o hïrzg aceite a oferta do archigos. Conselheiro ca’Mazzak, comandante, u’téni, nós voltaremos à tenda de negociação em três viradas da ampulheta para dar nossa resposta.


— Se o archigos Kenne tem provas, eu irei avaliá-las — falou Allesandra para Sergei ao voltarem. — E se o archigos Semini for o responsável pela morte de Ana ca’Seranta, então... — Ela franziu os lábios com força. — Então estou inclinada a convencer meu filho a aceitar a oferta do archigos.

De alguma forma, a a’hïrzg pareceu ter feito exatamente isso, embora Sergei não tenha estado presente à discussão, e embora todo mundo no acampamento tenha ouvido as ocasionais vozes exaltadas na tenda do hïrzg. O regente notou, principalmente, que o starkkapitän ca’Damont colocou gardai postados em volta da tenda do archigos.

Ele se perguntou o que estaria acontecendo no outro acampamento. Tudo dependia das lealdades da Garde Civile e dos ténis — e Sergei não tinha certeza de como aquilo terminaria. O regente rezou para Cénzi, na esperança de que Ele escutasse.

Três viradas da ampulheta depois, Sergei, Allesandra e os demais cavalgaram na direção da tenda de negociação.

Há décadas, quando ele era o comandante da Garde Kralji, Sergei às vezes sentia um arrepio ao se aproximar da Bastida a’Drago: um tremor na espinha, quase parecido com medo, que lhe dizia quando havia algo errado no complexo atrás do crânio sorridente do dragão.

O regente sentiu aquele arrepio agora, conforme o pequeno destacamento se aproximava da tenda de negociação. Antes de mais nada, foi curioso que não houvesse nenhum criado andando de um lado para o outro, que as cadeiras do lado de Nessântico na mesa estivessem vazias. Mas o que deteve Sergei, o que deu um nó no estômago, foi perceber que havia alguma coisa sobre a mesa — duas coisas, dois objetos arredondados escondidos sob a sombra da lona que tremulava na brisa. Infelizmente, Sergei sabia o que estava ali.

— Espere um momento, a’hïrzg — falou ele. — Por favor, espere aqui.

Sergei fez o cavalo ir à frente sozinho e gesticulou para o starkkapitän ca’Damont segui-lo. Ele apertou os velhos olhos para forçá-los a distinguir o que havia sobre a mesa. Ao se aproximar, ouviu um leve zumbido que ficou mais alto aos poucos: o barulho de insetos.

O regente entendeu, naquele momento, e a bile subiu à garganta. Ele parou o cavalo, desceu da sela e entrou na sombra da tenda.

Sobre a mesa havia duas cabeças, com uma poça de sangue coagulado e grudento debaixo delas e um tapete de moscas que andavam sobre os olhos abertos e dentro das bocas escancaradas.

Sergei ficou de joelhos e fez o sinal de Cénzi na direção da cena horripilante. — Aubri. Petros. Sinto muito. Sinto muitíssimo.

Trêmulo, o regente ficou de pé novamente e retornou ao cavalo. Ele cavalgou em silêncio até os demais. O olhar de Allesandra questionou Sergei; ela também sabia. O regente viu na maneira com que a a’hïrzg levou a mão à boca antes dele sequer falar.

— O conselheiro ca’Mazzak deixou sua própria resposta para nós — disse Sergei. — Parece que ele não se importa com qual seria nossa resposta.

 

Nico Morel

NICO NÃO CONSEGUIA ficar sentado quieto. O menino jamais havia imaginado um lugar tão grande, glorioso e interessante quanto esse. Eles foram conduzidos a um gabinete em um dos prédios que rodeavam a Praça a’Archigos; a recepção em si era maior do que o apartamento de dois cômodos que eles tinham no Velho Distrito e havia pelo menos três portas que levavam a outros aposentos que Nico só conseguia imaginar. Ele vislumbrou um quarto quando um criado entrou com roupas de cama na mão, e o aposento parecia enorme, além dos limites. O gabinete para onde eles foram levados teria abrigado a casa de Nico, assim como aquelas dos vizinhos mais próximos. O teto parecia tão alto e tão branco quanto as nuvens de verão; o piso era um mosaico intrincado de várias madeiras coloridas, e as paredes eram cobertas por tapeçarias lindas, que mostravam a história da vida de Cénzi, a moldura no topo das paredes era entalhada e dourada. Atrás da enorme mesa de mogno, uma sacada dava vista para uma grande praça, com a silhueta do Templo do Archigos emoldurada pelas cortinas abertas. O resto da mobília na sala chamava tanto a atenção quanto a mesa — uma mesa comprida e lustrosa para reuniões, com cadeiras estofadas ao redor; um sofá colocado diante de uma lareira em que a família inteira de Nico poderia ficar em pé dentro, cercada por um belo consolo; um globo entalhado e partido que era mais alto que dois homens, um em cima do outro, com figuras esculpidas dos moitidis em volta dele e uma base cravejada de joias e folheada de ouro reluzente. Ao redor das paredes, havia mesas repletas de lindas maravilhas do exterior: estátuas de animais desconhecidos; uma pedra grande quebrada ao meio, com o miolo cheio de belos cristais violeta; conchas cor-de-rosa e espinhentas do Strettosei...

Nico piscava e olhava fixamente para tudo. — Tudo isso aqui é só para o senhor? — perguntou o menino para o archigos, maravilhado.

— Nico, silêncio — disse a matarh, mas o velho no robe verde apenas riu.

— É para o archigos, seja ele quem for — falou o homem. — Eu vivo aqui apenas temporariamente, até que Cénzi me chame de volta para Ele. Era aqui que a archigos Ana vivia também. — Ele deu um tapinha na cabeça de Nico, e os criados trouxeram bandejas de comida e bebidas e colocaram sobre a mesa. O archigos gesticulou para eles assim que terminaram e disse — Isso é tudo. Por favor, cuidem para que não sejamos incomodados. Mandem minha carruagem para a porta dos fundos uma virada da ampulheta antes da Terceira Chamada. — Eles fizeram uma mesura e foram embora. — Sirvam-se — disse o homem quando o último dos criados fechou as portas duplas ao sair do gabinete. — Karl? Parece que uma boa refeição cairia bem a todos vocês. — Nico olhava fixamente para a comida, e o archigos riu de novo. — Vamos, Nico. Você não precisa esperar.

O menino olhou de relance para a matarh e Talis, que deu de ombros. — Tudo bem — falou a matarh. — Vá em frente...

Nico foi em frente. Um bolinho de grãos com pingos de mel foi a primeira coisa que colocou na boca. Os adultos não pareciam estar com tanta fome quanto ele, o que era estranho. Nem Talis, Karl ou Varina foram à mesa, e sua matarh beliscava a esmo um peito de pato. Em vez disso, eles se amontoaram perto do sofá, em frente à lareira.

— Archigos — Nico ouviu Karl dizer —, Ana ficaria muitíssimo orgulhosa de você. Todos nós lhe devemos agradecimentos.

— Os agradecimentos são para você, Karl. Se você não tivesse vindo até mim, se não me dissesse o que sabia... Bem, não tenho certeza do que teria acontecido. De qualquer forma, eu talvez tenha colocado você em mais perigo, não em menos. A kraljica está furiosa, pelo que eu soube, e assim que o conselheiro ca’Mazzak retornar da negociação com os firenzcianos, eu desconfio que ela ficará ainda menos contente comigo. Nenhum de nós tem como saber o que acontecerá diante dessa situação; por isso precisamos conversar hoje à noite. Não há muito tempo; é possível que um mensageiro já esteja voltando para a cidade. — Nico ouviu o archigos perder a voz. Ele virou-se com um pedaço de pão e queijo na mão. — Este é o ocidental? — perguntou Kenne ao apontar com a cabeça na direção de Talis, que mantinha as duas mãos na bengala que sempre carregava. Nico viu o ar tremular em volta da madeira como se a bengala estivesse em chamas, mas era um fogo mais frio que a neve do inverno passado.

— Sim, archigos — respondeu Karl. — Este é Talis Posti. O vatarh de Nico.

— Ah — falou Kenne. — Vajiki Posti, eu também lhe devo agradecimentos; embora deva me desculpar por querer saber o motivo pelo qual você decidiu me ajudar.

— Porque eu vislumbrei os futuros, e nenhum deles leva a um bom lugar para o meu povo — respondeu Talis, e Nico viu seu interesse aumentar ao ouvir aquilo. Talis podia ver o futuro? Isso seria interessante. Ora, se ele pudesse fazer isso, Nico poderia se ver como adulto, talvez ver o que aconteceria com ele... O menino percebeu que suas mãos se moviam por conta própria em uma estranha dança, os dedos grudentos mexiam-se pelo ar, e palavras desconhecidas vieram a ele. Nico murmurou tão baixinho que nenhum dos demais ouviu. O frio da bengala de Talis parecia fluir na direção de suas mãos; ele sentia o arrepio nos braços.

— Você tem aquele dom dos deuses? — perguntou Kenne para Talis, que ergueu as sobrancelhas e olhou para Karl.

— Mahri alegava que podia fazer o mesmo — falou o embaixador. Isso também fez Nico prestar atenção; ele lembrou-se que Talis mencionara o nome anteriormente. — Não que tivesse lhe servido de alguma coisa no fim das contas.

— Não são visões do futuro que Axat nos permite vislumbrar, mas todas as possibilidades que existem. Os vislumbres de futuros em potencial não são fáceis de ler, embora fosse dito que Mahri era capaz de usar o talento melhor do que qualquer um antes ou depois dele. E sim, parece que o talento o desapontou, no fim das contas. — Um breve sorriso passou pelo rosto de Talis. — Talvez tenha sido a proximidade com o seu Cénzi.

Kenne riu; Nico gostou do som, fez com que gostasse do homem. O frio envolveu seus braços agora, embora as mãos tivessem parado de dançar.

— Você está disposto a nos ajudar... — o archigos Kenne abriu os braços para incluir Karl e Varina, e o resto da cidade do lado de fora da sacada — ... quando isso significa que você poderia ajudar a derrotar as forças do seu próprio povo?

— Sim — respondeu Talis —, porque Axat me disse que, ao fazer isso, eu ajudarei meu povo.

O frio congelava os braços de Nico e estava ficando pesado. Ele não sabia o que fazer com aquilo, mas tremia com o esforço de segurá-lo, e a dor quase fez com que gritasse. — Às vezes seu inimigo torna-se seu aliado — dizia Varina para o archigos. — Eu sei...

— Nico! — A voz da matarh foi quase um berro. — O que você está fazendo? — O menino tomou um susto quando Serafina agarrou seu ombro, e o frio saiu voando do corpo. Ao fugir, a energia reluziu e flamejou, como uma língua de fogo azul. A rajada foi disparada por ele, varou o espaço entre Talis e o archigos e se dirigiu para a escultura do globo partido, no canto do gabinete. Nico soluçou, assustado tanto pela sensação de alívio quanto de puro terror diante do que tinha acabado de lançar. Varina, que estava a alguns passos do archigos, gesticulou e falou uma única palavra ríspida; com o movimento, Nico viu a linha de fogo azul fazer uma curva e dar meia-volta. A rajada fez um arco ao se afastar da escultura, cuspiu fagulhas cor de safira sobre a mesa envernizada e saiu assobiando pelas portas abertas da sacada. Bem acima da praça, o fogo concentrou-se e explodiu: um globo azul-claro que brilhou como um relâmpago congelado. Com a explosão, veio o estrondo ensurdecedor de um trovão que ecoou nas paredes dos prédios que circundavam a praça. Nico sentiu as janelas tremerem e chacoalharem nas ombreiras e ouviu vidro se quebrando ao longe.

— Nico! — O menino foi abraçado pela matarh. — Nico... — repetiu ela, com mais gentileza dessa vez. Serafina abraçou o filho com mais força, que não tinha certeza se era para ser um abraço ou um estrangulamento. Todos olhavam fixamente para ele.

— Desculpem — falou Nico. — Eu não tinha a intenção de.

Ele começou a chorar.

 

Karl Vliomani

— DESCULPEM — falou Nico. O lábio inferior tremia, e as próximas palavras mal haviam saído antes que os ombros começassem a tremer por causa dos soluços. — Eu não tinha a intenção de...

Serafina olhava fixamente sobre os ombros do menino ao abraçá-lo, seus olhos estavam arregalados e aterrorizados. Lá fora, na praça, eles escutaram gritos ao longe quando os transeuntes começaram a procurar pela fonte da claridade trovejante. Karl ouviu Varina suspirar de alívio atrás de si. — Se ele estivesse um pouquinho para um lado, ou para o outro... — disse Karl.

— Ele não estava — respondeu Varina, que se ajoelhou na frente do menino e acenou com a cabeça para Serafina. — Está tudo bem, Nico. Ninguém se machucou. Está tudo bem. — Ela olhou para Karl, atrás dela. — Está tudo bem — repetiu. O menino fungou e esfregou a manga no nariz e nos olhos.

Karl suspirou e sorriu: para Varina, para Nico e para Serafina. — Sim, está tudo bem, graças a Varina. Talis, você sabia...?

— Eu suspeitava, mas... — Ele segurava o cajado mágico e o olhava confuso, como se fosse um copo subitamente vazio. — Agora eu sei. Archigos, o senhor está...?

Kenne abanou a mão, como se não fosse nada, mas Karl notou que o peito do homem ainda ofegava. — Eu estou bem — disse o archigos. — E impressionado. Seu filho é um dos poucos talentos naturais que conheci. O archigos Dhosti foi um, e Ana, também. Com treinamento, bem...

— Eu o treinarei. — A resposta do homem veio acompanhada por uma cara fechada. Ele pegou o cajado mágico com força. — Esse é o dom de Axat, não de Cénzi.

— É claro — falou Kenne para Talis, mas o olhar permaneceu em Nico. — Não se preocupe — disse o archigos para o menino. — Ninguém aqui está com raiva de você, entendeu? — Nico concordou com a cabeça, ainda fungando o nariz.

— Se eu soubesse disso, teria sido bem mais cauteloso quando me aproximei de você pela primeira vez — falou Karl para Talis. — Mas, como não aconteceu nenhum mal... Nós ainda temos planos e contingências em que pensar. Archigos, Petros está pronto para fazer a proposta que conversamos para Firenzcia?

Kenne concordou com a cabeça, com mais hesitação do que Karl gostaria, mas ao menos foi uma confirmação. Na verdade, ele teve medo de que o archigos não levasse o plano adiante, especialmente dado o perigo inegável em que Petros foi colocado. — Ele está pronto. — A voz de Kenne tremeu um pouco; medo combinado com idade, decidiu Karl. — Na verdade, Petros já deve ter feito a proposta a essa altura.

— Ótimo — disse Karl. Ele deu um tapinha no ombro de Kenne e falou — Ele ficará bem e voltará para você em breve. Agora, da parte de Talis, ele trará os materiais dos aposentos de Uly para o templo amanhã, e nós podemos começar a preparar a areia negra para a demonstração. Isso deve mostrar a esse tal tecuhtli dos ocidentais que atacar a cidade seria idiotice. Nós podemos prevenir centenas, se não milhares, de mortes.


A carruagem do archigos era um truque — quatro criados de Kenne entraram no veículo quando ele parou na entrada dos fundos do prédio, enquanto Karl e os demais desceram correndo uma escada dos fundos na direção de uma entrada de serviço pouco usada. Nenhum deles sabia se o subterfúgio era necessário; Karl torcia para que não fosse, porém, caso fosse, então nenhuma alternativa que eles prepararam se tornaria realidade.

O grupo começou a sair correndo da praça em direção à Avi. Kenne dera a eles dinheiro suficiente para alugarem uma das carruagens e levá-los de volta ao Velho Distrito. Conforme passaram pela rua, Karl e os demais viram três esquadrões distintos de Garde Kralji cruzarem a Praça do Archigos correndo. — Esperem um momento — falou o embaixador. Talis, Serafina e Nico já estavam na Avi à procura de uma carruagem para alugar; Varina, um pouco à frente dele, parou. Quando Karl hesitou, no limite da praça, ele e Varina viram dois dos esquadrões entrarem no prédio de onde eles acabaram de sair; o outro esquadrão entrou no Templo do Archigos.

As armas estavam desembainhadas, o aço reluzia sob a luz das lâmpadas.

— Karl? O que está acontecendo?

— Não sei, Varina. Acho que eu deveria voltar. Leve os demais. Eu vou...

— Não — disse Varina com firmeza. Ela voltou até onde o embaixador estava e segurou o braço dele. — Não, Karl. Não dessa vez. Mesmo disfarçado, seu rosto é muito reconhecível pela Garde Kralji, e há vários deles, de todo modo. Você não sabe por que os gardai estão lá; pode não ser nada. Provavelmente não é nada. E caso não seja... — Varina mordeu o lábio inferior. Os olhos imploraram. — Você precisa deixar o archigos cuidar de si mesmo. Venha comigo. Por favor.

— Mas se as coisas deram errado...

— Se as coisas deram errado, você não pode mudá-las agora. Nós não podemos mudá-las. Tudo que aconteceria é que você estaria perdido também. — O braço apertou o dele. — Por favor, Karl. Vamos embora. Se houver um problema, nós conseguiremos ajudar mais o archigos se estivermos vivos do que se formos jogados na Bastida com ele. Nós soltamos Sergei; podemos fazer o mesmo novamente se precisarmos. Karl... — Varina encostou a cabeça no ombro dele. — Se você voltar, então eu irei com você. Mas essa é a decisão errada. Tenho certeza.

Karl olhou fixamente para os prédios e desejou que pudesse ver a sacada de Kenne dali. Tudo estava em paz; as pessoas ainda andavam pela praça como se nada estivesse acontecendo. Mas ele sabia. Ele sabia.

E também sabia que Varina estava certa. Ele não podia mudar nada. Karl olhou para trás. Talis chamou uma carruagem com um gesto e olhava para os dois com curiosidade. Uma mulher, que estava vestida com roupas pobres demais para esta parte da cidade, o que era estranho, passou correndo por eles vindo da direção da praça. Ao passar, ela pareceu tropeçar e esbarrar de leve em Karl. — Desculpe, vajiki — murmurou a mulher. — A voz... parecia vagamente familiar, mas ela manteve o capuz da tashta erguido e a cabeça baixa. Ele vislumbrou o cabelo castanho e sujo. — Vai ser uma noite ruim. Uma noite ruim. O senhor realmente deveria correr para casa...

Ela foi embora depressa.

Karl olhou fixamente a mulher, que desapareceu do outro lado da carruagem à espera. Talis acenava para eles. Foi aí que Karl lembrou-se de onde ouvira aquela voz.

— Tudo bem — disse ele para Varina. — Vamos embora.

 

A Batalha Começa: Kenne ca’Fionta

— INFELIZMENTE seu pobre Petros está morto. É uma pena.

Kenne ouviu as palavras, e os velhos olhos embaçaram com as lágrimas, embora ele já soubesse que Petros estava morto. Ele sentira em seu coração quando a Garde Kralji veio e o levou para a Bastida. Só lhe restava torcer para que Karl e o resto tivessem escapado da varredura; eles foram embora com apenas algumas marcas da ampulheta de antecedência. O gosto da mordaça de metal e couro era horrível; os grilhões que prendiam as mãos eram tão pesados que ele mal conseguia levantá-los do colo.

O rosto deformado da kraljica Sigourney encarava o archigos de cima. Kenne sustentou o olhar caolho dela por apenas alguns instantes, enquanto respirava através do horrível aparato sobre a cabeça, depois abaixou o próprio olhar, arrasado e derrotado. Entre as pernas, as mãos algemadas mexiam inquietas na palha da cama tosca onde ele estava sentado na cela, no alto da torre principal da Bastida. A voz da kraljica era solidária, quase triste. — Você é um bom homem, Kenne. Sempre foi. Mas era fraco demais para ser archigos. Deveria ter recusado o título e dito ao Colégio A’téni para eleger outra pessoa.

Kenne só podia concordar com a cabeça. Havia muitas noites ultimamente que em ele desejava exatamente a mesma coisa.

— Você devia saber que isto aconteceria, Kenne. Você escolheu se associar aos inimigos dos Domínios. Devia saber. E agora...

Ela mancou até a única janela da cela e apoiou-se na muleta acolchoada e dourada, enquanto a perna direita ficava pendurada sobre o vazio abaixo do joelho. A janela dava vista para oeste, Kenne sabia; na parede oposta à janela, ele tinha visto a luz do sol ficar amarela, depois vermelha e então púrpura ao subir sobre pedras úmidas até sumir. — Venha cá. — falou Sigourney. — Venha cá e veja.

Ele levantou-se da cama com dificuldade; era um velho arrasado agora, na verdade. Arrastou os pés até a janela enquanto a kraljica esperava ao lado. Lá fora, debaixo de um belo céu azul, Kenne viu o A’Sele reluzir sob o sol enquanto cortava a cidade em direção ao mar. Perto de onde o rio virava para o sul, ele viu dezenas de velas reunidas. Do outro lado do A’Sele, onde antigamente havia fazendas e propriedades dos ca’ e co’, a terra estava agitada por uma invasão sombria que não estava lá ontem. — Está vendo? Está vendo o exército ocidental se aproximar? Aquelas são as pessoas pelas quais você traiu os Domínios, archigos. São as pessoas que o deixaram tão assustado que você tentou fazer um pacto com os cães firenzcianos contra mim. — A voz assumiu um tom mais agressivo agora, o único olho atacava Kenne. — Aquelas são as criaturas desprezíveis que mataram meu irmão. São os vilões que destruíram nossas cidades e nossos vilarejos. Quer você acredite ou não, tenho certeza de que também são as pessoas que mataram Audric e me transformaram nesse horror. Será que eu odeio os ocidentais? Ah, você não pode imaginar o quanto. Observe, e você verá os bons chevarittai dos Domínios escorraçá-los, e depois nós cuidaremos de seus amigos firenzcianos também. Em breve, o combate começará. E você vai nos ajudar, Kenne.

Ele virou a cabeça amordaçada na direção de Sigourney, com uma expressão de curiosidade. Ela riu. — Ah, você vai. Nós temos que ter os ténis-guerreiros, afinal, e temos que garantir que eles entendam que seu archigos agora se arrepende de sua horrível traição e que deseja que todos os ténis da fé concénziana ajudem Nessântico nesta ocasião terrível da maneira que puderem. É o que você deseja mesmo, não é, archigos?

Kenne só podia encará-la, mudo.

— Você acha que não? Bem, a proclamação já está escrita; só precisa de sua assinatura. E quer você queira ou não, eu terei essa assinatura. Você foi amigo de Sergei Rudka, afinal; deve saber que a Bastida sempre consegue as confissões que deseja.

Mesmo com aquele horrível aparato preso ao rosto, Kenne não conseguiu esconder a expressão de horror e percebeu o sorriso da kraljica diante de sua reação. — Ótimo — falou Sigourney. — Vou refletir sobre o seu sofrimento quando o capitão me entregar sua confissão.

A kraljica gesticulou para os gardai do lado de fora da cela e disse — Ele está pronto. Cuidem para que receba sua hospitalidade integralmente.

 

A Batalha Começa: Niente

A CIDADE ERGUIA FLANCOS DE PEDRA sobre morros baixos; as torres e os domos lotavam a grande ilha no centro do rio de modo que parecia uma pedra coberta por cracas. A metrópole saltara para fora do confinamento do cinturão das muralhas, magnífica, orgulhosa e destemida, os campos ao redor eram cheios de grãos e colheitas que alimentavam a aglomeração de habitantes. Essa cidade... Ela era a rival de Tlaxcala, de certa forma menor, porém mais populosa e comprimida, com uma arquitetura estranha. Nas cidades de sua terra natal, prevaleciam as pirâmides dos templos de Axat, Sakal e dos Quatro; aqui em Nessântico, o que era mais visível eram as torres dos grandes edifícios e os domos dourados dos templos.

Tão estrangeiro. Tão estranho. Niente não queria nada além de ver locais conhecidos novamente e temia que jamais os veria.

Ele olhou para Nessântico e sentiu um arrepio, mas não viu a mesma reação no tecuhtli Zolin. O tecuhtli, ao contrário, estava no morro que dava vista para o rio e a cidade. Zolin cruzou os braços e deu um sorriso com os lábios fechados. — Isso é nosso — disse ele. — Olhe para a cidade. Ela é nossa.

Niente se perguntou se o homem ao menos notou as grandes fileiras de tropas orientais dispostas ao longo da estrada, se contou os barcos que apinhavam o rio, se percebeu os preparativos para guerra na periferia oeste da cidade.

— O que você me diz, Niente? — perguntou Zolin. — Será que descansaremos amanhã à noite neste lugar?

— Se for a vontade de Axat — respondeu Niente, e Zolin gargalhou.

— É a minha vontade que importa, nahual. Você ainda não compreendeu isso? — Ele não deu tempo para Niente responder; não que houvesse alguma resposta que o nahual pudesse dar. — Vá. Cuide para que os nahualli estejam prontos e que o resto da areia negra tenha sido preparado para os ataques iniciais. E mande Citlali e Mazatl até mim. Começaremos hoje à noite. Vamos mantê-los acordados e exaustos; depois, quando Sakal colocar o sol no céu, atacaremos como uma tempestade. — Zolin olhou fixamente para a cidade por mais um instante, depois se virou para Niente. Quase com carinho, colocou a mão em seu ombro. — Você verá sua família novamente, nahual. Eu prometo. Mas, primeiro, temos que dar uma lição nesses orientais por sua insensatez. Olhe em sua tigela premonitória, Niente. Você verá que estou certo. Verá sim.

— Com certeza eu verei, tecuhtli.

Mas Niente já sabia o que veria. Ele tinha vislumbrado na manhã de hoje, enquanto eles se aproximavam desse lugar.

O nahual havia rogado a Axat e olhado na tigela, e ele não ousaria olhar novamente.

 

A Batalha Começa: Sergei ca’Rudka

PELA MAIOR PARTE DA MANHÃ, Sergei cavalgou sozinho no meio das tropas firenzcianas, perdido em reflexões que mantinham afastada — pelo menos um pouco — a dor crescente nas costas, provocada pela longa cavalgada. E o corpo não estava mais acostumado a longos dias na sela, nem a tardes passadas debaixo de uma tenda.

Você está ficando velho. Não estará aqui por muito tempo mais, e tem tanto o que fazer ainda.

— Regente, quero falar com você.

Diante do chamado, Sergei virou o olhar e viu o garanhão com as cores de Firenzcia que parou ao seu lado sem ser notado. Velho. Antigamente, você jamais teria deixado de perceber a aproximação. — É claro, hïrzg Jan — falou ele.

O menino trouxe o garanhão mais para perto da baia de montagem de Sergei. A montaria do regente mexeu as orelhas nervosamente e revirou os olhos diante do cavalo de guerra bem maior do que ela. Jan não disse nada, a princípio, e Sergei aguardou enquanto eles prosseguiam pela Avi levantando uma nuvem de poeira em volta dos dois. O exército aproximava-se de Carrefour, com Nessântico a um bom dia de marcha de distância. As forças de Nessântico desapareceram, sumiram; foram embora na tarde da negociação. — A matarh disse que você perdeu dois bons amigos — falou Jan finalmente.

— Perdi sim. Aubri co’Ulcai fez parte da minha equipe por muitos anos, tanto na Garde Kralji quando na Garde Civile, antes de eu ser nomeado regente. Ele era um bom homem e um excelente soldado. Eu não consigo nem pensar em falar com a esposa e os filhos dele para contar o que aconteceu, muito menos para dizer que a lealdade a mim foi a responsável pela morte de Aubri. — Sergei esfregou o nariz de metal, a cola repuxou a pele quando ele fechou a cara. — Quanto a Petros... bem, não havia pessoa mais gentil no mundo, e sei como a amizade dele era importante para o archigos. Não sei o que a notícia fará ao archigos Kenne. Matá-los foi cruel e desnecessário, e se Cénzi me der uma vida suficientemente longa, eu cuidarei para que o conselheiro ca’Mazzak se arrependa da dor que causou a mim e às pessoas de quem eu gosto.

O jovem concordou com a cabeça e falou — Eu entendo. Entendo mesmo. Algum dia, eu encontrarei quem contratou a Pedra Branca para matar meu onczio Fynn, e eu mesmo matarei essa pessoa e a Pedra Branca junto com ela. Meu onczio era um bom amigo para mim, bem como meu parente, e me ensinou muita coisa no pouco tempo em que estive com ele. Eu queria que ele tivesse vivido o suficiente para me ensinar mais a respeito... — Jan parou e balançou a cabeça.

— Não existe livro que ensine alguém a ser um líder, hïrzg — disse Sergei. — A pessoa aprende ao liderar e torcendo para não cometer muitos erros no processo. Quanto à vingança: bem, ao ficar mais velho, eu aprendi que o prazer que se tira da concretização da vingança jamais se compara à expectativa. Também aprendi que às vezes tem que se deixar a vingança completamente de lado em nome de um objetivo maior. A kraljica Marguerite sabia disso melhor do que ninguém; e por esse motivo ela era uma monarca tão boa. — Ele sorriu. — Mesmo que seu vavatarh discordasse veementemente.

— Você conheceu os dois.

Sergei não soube dizer se isso era uma afirmativa ou uma pergunta, mas concordou com a cabeça. — Conheci, sim, e tinha um grande respeito por ambos, incluindo o velho hïrzg Jan.

— Minha matarh o odiava, creio eu.

— Se ela odiava, tinha boas razões — respondeu Sergei. — Mas Jan era o vatarh dela, e acho que sua matarh também o amava.

— Isso é possível?

— Nós somos criaturas estranhas, hïrzg. Somos capazes de ter dois sentimentos conflitantes na cabeça ao mesmo tempo. Água e fogo, ambos juntos.

— A matarh diz que você costumava torturar pessoas.

Sergei esperou um longo tempo para responder. Jan não disse nada e continuou cavalgando ao lado dele. — Era meu dever, em uma determinada época, quando estive no comando da Bastida.

— Ela falou que os rumores diziam que você gostava de torturar. Isso faz parte do que você dizia, sobre a habilidade de ter dois sentimentos conflitantes na cabeça ao mesmo tempo?

Sergei franziu os lábios. Ele esfregou o nariz novamente. Olhou para frente, não para o jovem. — Sim — respondeu Sergei finalmente. A palavra solitária trouxe de volta todas as memórias da Bastida: a escuridão, a dor, o sangue. O prazer.

— A matarh é, ou era, de qualquer maneira, amante do archigos Semini. Você sabia disso, regente?

— Eu suspeitava, sim.

— Mesmo que ela ame o archigos, a matarh estava disposta a sacrificá-lo e entregá-lo ao julgamento, como o u’téni Petros pediu. Ela tomaria essa decisão; a própria matarh me disse quando voltou da negociação. “Que os pecados de Semini sejam pagos em vidas salvas”, foi o que ela falou. Não havia uma lágrima no olho ou um sinal de arrependimento em sua voz. O archigos... ele não sabe disso. Não sabe como chegou perto de ser um prisioneiro. Até onde eu sei, os dois ainda podem... — Jan parou. Deu de ombros.

— Água e fogo, hïrzg — falou Sergei.

Jan concordou com a cabeça. — Ela disse que você ama Nessântico acima de todos nós. No entanto, você cavalga conosco, salvou a matarh e a mim em Passe a’Fiume e colocaria a matarh no Trono do Sol.

— Eu colocaria sim, porque estou convencido de que isso seria o melhor para Nessântico. Eu quero ver os Domínios restaurados, com Firenzcia novamente como seu forte braço direito. — Sergei fez uma pausa. Os dois podiam ver os arredores de Carrefour diante deles na estrada, os topos dos prédios se erguiam mais alto do que as árvores. — É isso o que o senhor também quer, hïrzg?

Sergei observou o jovem, que desviou o olhar para a longa fileira do exército que se estendia pela estrada. — Eu amo minha matarh — respondeu Jan.

— Não foi o que eu perguntei, hïrzg.

Jan concordou com a cabeça e continuou olhando para a cobra blindada de seu exército. — Não, não foi, não é mesmo?

 

A Batalha Começa: Karl Vliomani

— VOCÊ AINDA PODE IR EMBORA pelas ruas a leste do Portão Norte — disse Karl para Serafina. — Terá que tomar cuidado e andar rápido, mas se estiver com Varina, você e Nico terão proteção.

Karl viu que Serafina e Varina balançavam a cabeça antes mesmo de ele terminar. — Eu não irei embora sem Talis — falou Serafina. Nico estava no colo da matarh enquanto se sentavam à mesa da sala principal do apartamento de Serafina. Eles terminaram um jantar à base de pão, queijo e água, embora o queijo estivesse velho, o pão, mofado, e a água, turva. Mas comeram tudo, pois não sabiam quando teriam mais comida.

Com o exército dos tehuantinos a oeste dos limites da cidade, o A’Sele sob controle dos navios ocidentais, e a ameaça do exército de Firenzcia a leste, Nessântico estava em pânico. Rumores fantásticos e absurdos sobre a pilhagem de Karnor e Villembouchure corriam pela cidade e ficavam mais sinistros e violentos cada vez que eram repetidos. Os ocidentais, caso se pudesse acreditar nas histórias, não eram nada além de demônios gerados pelos próprios moitidis, dedicados ao estupro, à tortura e à mutilação. As prateleiras das lojas estavam praticamente vazias; os moinhos não tinham farinha para as padarias, e não havia carroças vindo dos campos fora da cidade para os mercados. Até mesmo a Avi a’Parete estava às escuras na noite de hoje, pois os ténis-luminosos não fizeram as rondas de sempre; para piorar, uma neblina espessa e gelada surgiu a oeste e tomou conta da cidade, que tremia na escuridão, à espera do ataque inevitável que viria.

— Eu pensei ter perdido tanto Talis quanto Nico uma vez; não os perderei novamente — continuou Serafina.

— Ele não pode ir embora — insistiu Karl. — Talis é homem e jovem o suficiente para ser obrigado a servir à Garde Civile. Eles o pegariam antes que chegasse à metade da Avi. E com o archigos na Bastida... bem, com muita certeza a Garde Kralji tem nossas descrições e já procura por nós. Duas mulheres com um menino... acho que você estaria a salvo. Mas comigo e com Talis...

— Eu não vou embora sem ele — insistiu Serafina. A voz e a mão em volta da cintura de Nico tremeram, mas os lábios permaneceram firmemente franzidos.

— Metade da cidade já foi embora... aqueles que puderam. Os rumores sobre Karnor e Villembouchure... tudo aquilo pode acontecer aqui.

Ela deu de ombros.

Varina estava sorrindo sombriamente e tocou o joelho dele por debaixo da mesa. — Você perdeu a discussão, Karl. Com ambas. Estamos aqui. E ficaremos aqui, não importa o que isso signifique.

Karl olhou para Talis, que estava sentado em silêncio ao seu lado da mesa. No último dia, ele andou quieto de uma maneira estranha, desde que foi confirmada a notícia da prisão do archigos, e passou muito tempo com a tigela premonitória. Karl se perguntou o que o homem estaria pensando por trás daquele rosto solene. Talis deu de ombros, e falou para Serafina — Eu concordo com Karl. Eu preferiria que você e Nico estivessem a salvo.

Varina pegou a mão de Karl ao ficar de pé. — Venha comigo. Deixe Sera e Talis resolverem essa questão sozinhos. Nós resolveremos também.

Karl acompanhou Varina até o outro aposento. Ela fechou a porta assim que os dois entraram, de maneira que só podiam ouvir um murmúrio baixo de vozes que conversavam, e disse — Ela ama Talis. — Varina ainda estava apoiada na porta e olhava para Karl.

— Sim — protestou Karl — e é exatamente por isso que Talis quer que Serafina vá embora: porque ele não quer perder as pessoas que ama.

— E é exatamente por isso que ela não irá embora, porque não suportaria não saber o que aconteceu com Talis. — Varina cruzou os braços sob os seios. — É por isso que eu também não irei embora.

— Varina...

— Karl, cale a boca. — Varina afastou-se da parede e foi até ele. Os braços deram a volta em Karl, os lábios procuraram os dele. Havia um desespero no abraço, uma violência no beijo. Karl ouviu um soluço na garganta de Varina e levou a mão ao rosto dela para descobrir que a bochecha estava molhada. Ele tentou se afastar, perguntar o que estava errado, mas Varina não permitiu. Ela puxou de volta a cabeça de Karl, usou o peso do corpo para derrubá-lo sobre o colchão de palha no chão. Então, por um instante, Karl esqueceu de tudo.

Mais tarde, ele deu um beijo em Varina enquanto a segurava perto de si e apreciava o calor de seu corpo. — Eu amo você, Karl — sussurrou Varina no ouvido. — Desisti de fingir que não.

Karl não respondeu. Ele queria. Queria devolver as palavras para Varina. Elas preencheram a garganta, mas ficaram ali, presas. Karl achava que, se dissesse as palavras, trairia Ana e tudo o que ela significava para ele. — Encontre outra pessoa — dissera Ana, há muito tempo. — Volte para sua esposa, se quiser. Ou apaixone-se por outra pessoa, por mim tudo bem, também. Eu ficaria feliz por você porque não posso ser o que você quer que eu seja, Karl.

— Eu... — começou Karl, mas parou. Os dois ouviram ao mesmo tempo um assobio estridente e um rugido baixo como trovão, seguidos quase que imediatamente por outros, e as trompas dos templos começaram a soar um alarme. Karl rolou e afastou-se de Varina. — O que é isso? — perguntou ele, mas suspeitava que já sabia. Ambos vestiram-se depressa e correram para o outro cômodo.

— Começou — falou Talis para os dois assim que entraram. Ele estava parado ao lado da porta que dava para o sul. Na direção do A’Sele, todos puderam ver o brilho laranja amarelado sobre os tetos, iluminando a névoa que bloqueava a visão. — Fogo — continuou Talis. — Os nahualli estão disparando areia negra dentro da cidade, perto do A’Sele.

As trompas soavam estridentes, e havia berros e gritos abafados vindos da névoa.

Talis fechou a porta e disse — É tarde demais agora. Tarde demais.

 

A Batalha Começa: Sigourney ca’Ludovici

DO ÚLTIMO ANDAR do Palácio da Kraljica, apoiada em uma muleta que compensava a falta da perna, Sigourney podia ver os telhados à frente e as águas do A’Sele na margem norte, onde as fogueiras dos ocidentais ardiam nos arredores da cidade. Lá também, ela sabia, estava agrupado o exército da Garde Civile, agora com Aleron ca’Gerodi como comandante. Ele, pelo menos, estava confiante na capacidade dos chevarittai e da Garde Civile em lidar com a dupla ameaça à cidade, mesmo que ninguém mais estivesse. Ca’Gerodi ao menos já esteve em combate antes — e entre os chevarittai à disposição da kraljica, ele era o mais indicado para ser o comandante, desde que ca’Mazzak retirou Aubri co’Ulcai da disputa. Isso fora um erro, Sigourney tinha certeza; um erro que ela compreendia, sim, dada a rebelião de co’Ulcai, mas também um erro que poderia custar a Nessântico mais do que a cidade podia bancar.

O corpo de Sigourney doía muito esta noite. Ela tomou um bom gole de cuore della volpe e pousou a taça no peitoril da janela.

Sigourney também estivera confiante. Confiante de que eles dariam conta daquela ralé ocidental e a destruiria. Depois, que eles se voltariam para o leste e cuidariam de Allesandra e seu filhote, e que fariam com que os firenzcianos percebessem a insensatez desse rompimento do tratado. Sim, ela estivera confiante.

Mas isso parecia ter sido séculos atrás.

Agora, Sigourney vira a estranha névoa surgir do acampamento ocidental e envolver o Velho Distrito e a Garde Civile. Depois, após uma mera virada da ampulheta, grandes flores de fogo laranja nascerem na margem norte, e a kraljica viu as flores subitamente desenharem arcos no céu em várias direções; algumas caíram na névoa onde seu exército esperava, e outras...

A água do A’Sele tremeluziu com o reflexo do fogo conforme as flores — que guinchavam e bramiam — subiam, como se tivessem sido lançadas por raivosos moitidis. Ela viu a resposta dos ténis-guerreiros: raios azul-claros lançados na direção das flores ao alto. Vários alcançaram as flores no ápice de seus arcos: quando eles se tocaram, um breve sol ganhou vida e o som do trovão ecoou pela cidade. Mas havia muitas flores de fogo e a resposta dos ténis-guerreiros chegou atrasada demais. A maior parte das bolas de fogo caiu: sobre os navios de guerra dos Domínios no rio, no labirinto do Velho Distrito, e sobre a própria Ilha A’Kralji. E, onde caíam, explodiam em um jorro de fúria brilhante e ruidosa.

Sigourney observou uma bola de fogo em especial: o arco se ergueu mais alto que os demais, e ela viu a linha assustadora que vinha diretamente em sua direção. A kraljica olhou fixamente, paralisada tanto pelo fascínio quanto pelo medo, e sentiu (conforme a bola de fogo despencava, à medida que crescia a cada instante) o corpo se lembrar do choque e do horror do momento em que o kraljiki Audric foi morto. Ela perguntou-se se doeria muito.

Mas não... Sigourney viu que o rastro de fagulhas agora se desviava levemente para a sua direita. A bola de fogo chocou-se contra a asa norte do palácio e espirrou fogo sobre a fachada e os jardins lá embaixo. A kraljica sentiu a estrutura inteira tremer com o impacto, tão forte que ela teve que se segurar na ombreira da janela para evitar cair. Os dedos apertaram com força a barra da muleta. Houve gritos e berros por toda parte do terreno. A noite de Nessântico foi mais uma vez banida — não pelas famosas lâmpadas dos ténis-luminosos, mas por um inferno. Mesmo da janela, Sigourney achou que podia sentir o calor.

Os criados entraram correndo no cômodo. — Kraljica! A senhora tem que vir conosco! Depressa!

— Eu não sairei daqui.

— A senhora precisa sair! O fogo!

— Então não percam seu tempo aqui; vão ajudar a apagá-lo — falou Sigourney. — Convoquem os ténis-bombeiros nos templos. Vão. Vão!

Ela gesticulou com a mão livre para os criados — o corpo ferido e combalido protestou ante a violência do movimento —, e eles foram embora. As trompas soaram, agora nos templos, o alarme tomou conta da cidade inteira. Sigourney abaixou o olhar e viu os funcionários do palácio correrem na direção da ala em chamas. A fumaça deu a volta na lateral do palácio e fez arder o olho restante da kraljica. Ela piscou ao lacrimejar e bebeu o resto do preparado do ervanário.

— Olhem para mim! — Sigourney soltou um berro estridente para a noite e para as forças ocidentais escondidas na névoa. — Eu abri mão de muita coisa para estar aqui. Vocês não vão me tirar daqui. Não vão.

 

A Batalha Começa: A Pedra Branca

— POR QUE VOCÊ CONTINUA AQUI?

— Por que você os vigia? O menino não é seu.

— Ele não é sua responsabilidade.

— Você esperou tempo demais.

As vozes tagarelavam na cabeça dela, em tom sedutor, de alerta, satisfeito. A voz de Fynn era a mais alta, ronronava com satisfação. — Você morrerá aqui, e a criança dentro de você também.

— Silêncio — disse a Pedra Branca para todas as vozes, que fizeram silêncio a contragosto.

O ar estava espesso com a névoa anormal, e o cheiro de madeira queimada fluía pelos filetes da bruma. O brilho tinha ficado pior, e agora parecia cair uma neve de verão: cinzas caíam no chão e cobriam o cabelo oleoso e os ombros da tashta suja da Pedra Branca. Havia sons indefinidos na névoa, encobertos pelo lamento contínuo e sobrenatural das trompas.

A Pedra Branca olhou fixamente para a porta onde viu Talis pela última vez. Agora não havia ninguém lá, e ela não tinha visto Nico. Não há nada que você possa fazer por ele. Por enquanto, Nico está a salvo. Ela pressionou as mãos contra a barriga inchada. Talvez as vozes estivessem certas. Talvez ela devesse fugir da cidade. Salvar a própria filha.

Mas Nico era filho dela também. Cénzi trouxe o menino para ela. Ele a escolheu, e Nico era tão filho dela quanto a criança em gestação dentro de sua barriga.

— Tarde demais...

Ou talvez não. Com uma careta, ela se afastou da casa de Nico e andou rapidamente pelas ruas. Ela tinha que ver com os próprios olhos, tinha que saber o que acontecia. As ruas estavam bem mais cheias do que costumavam ficar a esta altura da noite, mas as pessoas corriam para seus destinos sem olhar umas para as outras, com o medo estampado em suas feições. Muitas mantinham as mãos próximas às armas carregadas abertamente: espadas com bainhas descascadas e lâminas manchadas de ferrugem; facas que pareciam que a última coisa que tinham feito era cortar um porco assado. Haveria violência nessas ruas antes de a noite acabar: uma palavra rude, um esbarrão acidental, um gesto mal interpretado — qualquer coisa poderia acendê-la, como uma fagulha em um material inflamável. A Pedra Branca sabia disso, porque a violência vivia dentro dela. Ela era capaz de sentir o cheiro de sangue pronto para ser derramado.

Mas não ainda. Não ainda. Ela manteve-se nas sombras, não falou nada com ninguém. Ela evitou matar, a menos que fosse por dinheiro ou pela própria proteção.

Ela chegou à Avi a’Parete e virou para o sul. Ao se aproximar do rio, o cheiro de fumaça ficou ainda mais forte, ela e a bruma estavam tão misturadas que era impossível distinguir uma da outra. Havia incêndios no aglomerado de prédios próximos a oeste da Avi, as chamas chegavam tão alto que a Pedra Branca conseguia ver do ponto onde estava. Uma carruagem conduzida por um téni veio correndo pela Pontica Kralji com meia dúzia de ténis-bombeiros dentro, com os rostos cobertos por fuligem e já exaustos pelo esforço de usar os feitiços para apagar os vários incêndios. Um esquadrão da Garde Kralji, com espadas desembainhadas e expressões carrancudas, acompanhava os ténis-bombeiros e cercava um grupo de homens de aparência melancólica em bashtas simplórias, a maioria jovem demais ou velha demais. — Você! — vociferou o offizier do esquadrão ao apontar para um velho de barba grisalha que andava à espreita, perto do prédio mais próximo à Pedra Branca. — E você! — Agora dirigido a um jovem que não devia ter mais de 12 anos, sendo puxado pela matarh. — Vocês dois! Venham conosco! Quero ver animação agora!

A matarh soltou um grito estridente de objeção, o homem fez menção de correr na direção contrária, mas evidentemente decidiu que não conseguiria fugir. A Garde Kralji cercou os dois e partiu noite adentro na direção dos incêndios, levando o menino e o velho com eles, enquanto a matarh protestava inutilmente, aos gritos.

A Pedra Branca continuou caminhando na direção sul até ver as colunas da Pontica Kralji que se agigantavam através da fumaça. Ela parou ali e olhou para o A’Sele. O que viu a deixou horrorizada e fez as vozes dentro de sua cabeça rirem.

No rio, vários navios de guerra estavam em chamas, já queimados quase até a linha d’água, os destroços entupiam o A’Sele de maneira que os navios ainda incólumes mal conseguiam manobrar. O Palácio da Kraljica era um inferno laranja amarelado, com um vulcão que cuspia fagulhas para longe. O grande novo domo do Velho Templo parecia rachado, o fogo lambia os suportes que tinham sido erigidos em volta dele. Havia pequenos incêndios aqui e ali. As pontes, exatamente as duas que levavam à margem sul, estavam lotadas de pessoas em fuga, que empurravam carrinhos cheios de pertences ou sobrecarregados com pacotes. A Pedra Branca ouviu um estrondo atrás de si; ela olhou na direção dos prédios que lotavam a Avi nesta margem e viu uma multidão botar abaixo a porta de uma padaria e também de uma joalheria. A rua atrás dela estava ficando lotada e barulhenta. Dentro de algum lugar, em uma das lojas, a Pedra Branca ouviu uma mulher gritar.

Sangue. Ela sentiu o cheiro do sangue. Tocou a bolsinha de couro sob o tecido da tashta e sentiu a pedra lisa lá dentro.

— O tumulto começou...

— Isso só vai piorar...

As vozes berraram assustadas em sua cabeça. — Você virou idiota, mulher? Ande!

Ela andou. Caminhou a passos largos, sem pressa, até o beco mais próximo, um espaço cheio de lixo entre os fundos dos prédios. A Pedra Branca voltaria à casa de Nico. Ficaria de vigia e, se as coisas ficassem perigosas, ela estaria ali para ajudá-lo, para tirá-lo de lá. Se a família de verdade do menino não pudesse protegê-lo, ela seria sua verdadeira matarh e faria isso. Ela tocou o estômago enquanto andava. — E farei o mesmo por você — sussurrou para a vida que se mexia dentro dela. — Eu farei isso. Prometo.

As vozes riram e gargalharam.

A Pedra Branca viu um movimento pelo rabo de olho na névoa e na fumaça e sentiu um arrepio de perigo. Ela deu meia-volta. — Ei! — Havia um homem ali, com cabelo negro e fios brancos, mas jovem o suficiente, o que fez a Pedra Branca se perguntar como ele conseguiu evitar os esquadrões de alistamento que rondavam o Velho Distrito. — Não há necessidade de se assustar, não é, vajica? — disse o sujeito. Ela viu a língua se mexer atrás dos poucos dentes. — Eu só queria ter certeza de que estava a salvo, só isso. — Ele deu um passo na direção dela. — Agora os tempos andam perigosos.

— Para você, sim — respondeu ela. — Eu posso tomar conta de mim mesma.

— Ah, pode, é? — O homem deslizou para o lado e impediu que ela entrasse no beco. Ela acompanhou o movimento, sempre olhando para o sujeito. — Não são muitas as pessoas que podem dizer isso hoje em dia. — Ele deu um passo na direção da Pedra Branca, que fez uma expressão de desdém.

— Não — disse ela, embora já soubesse que o homem não ouviria. — Você se arrependerá. Você não quer conhecer a Pedra Branca.

Ele riu. — A Pedra Branca, é? Está me dizendo que a Pedra Branca tem interesse em alguém como você?

Ela não respondeu. O homem deu mais um passo, ficou perto o suficiente para que ela sentisse seu cheiro, e estendeu a mão para agarrar seu braço. Nesse mesmo instante, a Pedra Branca agachou-se, tirou uma adaga da bainha na bota e golpeou para cima, debaixo das costelas do homem, que foi empurrado de costas para dentro do beco. Ele ofegou, boquiaberto como um peixe; ela sentiu o sangue quente jorrar sobre a mão. Os dedos do sujeito arranharam seu braço, mas caíram lentamente. A Pedra Branca ouviu o homem tomar um fôlego gorgolejante enquanto saía um filete de sangue da boca. Ela deixou o corpo cair enquanto metia a mão debaixo da gola da tashta para pegar a bolsinha. Com pressa, a tirou do pescoço e deixou a pedra lisa e clara como neve cair na palma da mão. Pressionou o seixo no olho direito do sujeito. Seus próprios olhos estavam fechados.

Ah, o lamento da morte... ela ouviu o homem gritar, sentiu a presença entrar no seixo enquanto os outros se remexiam no interior para abrir espaço para o espírito moribundo. O uivo silencioso do sujeito tomou conta de sua mente, tão alto que ela ficou surpresa que não ecoasse em volta dos dois. Quando a pedra o absorveu complemente, ela removeu o seixo do olho e guardou de volta na bolsinha, colocou o cordão de couro no pescoço novamente e deixou a bolsinha cair entre os seios, debaixo da tashta.

— A Pedra Branca protege o que é dela — ela disse para o cadáver de olhos abertos.

Depois, as vozes falaram alto e tomaram conta da cabeça da Pedra Branca, com uma nova que se juntou ao coro louco, enquanto ela voltava para a casa de Nico.

 


A Batalha Começa: Niente

O CÉU FICOU ILUMINADO a leste e a bruma mágica sumiu com a luz, embora a cidade continuasse envolvida pela fumaça. Niente estava com o tecuhtli Zolin, Citlali e Mazatl. Os guerreiros que usavam a armadura e os rostos tatuados agora estavam pintados para parecerem as terríveis e cruéis criaturas oníricas que estupraram Axat antes que a Escuridão colocasse seu corpo ferido no céu. Os três estavam próximos ao rio; a enorme ilha em volta da qual ele fluía parecia estar acesa, e a fumaça saía de várias dezenas de lugares na cidade.

— Muito bem, nahual — disse Zolin. — Eles estarão exaustos e assustados com os incêndios dessa noite. Os nahualli estão descansados? Os cajados mágicos estão cheios?

— Eles estão tão descansados quanto é possível, tecuhtli — falou Niente. — Nós preparamos nossos cajados ontem à noite, após lançarmos a areia negra.

— Ótimo — trovejou Zolin. — Então deixe de parecer tão melancólico. Esse é um grande dia, nahual Niente. Hoje nós mostramos a esses orientais que eles não são imunes à fúria dos tehuantinos.

Citlali e Mazatl gargalharam com Zolin. Niente tentou sorrir, mas não conseguiu. Ele ergueu o próprio cajado mágico, o tecuhtli assentiu e disse — Vá até os nahualli. Citlali, Mazatl, acordem seus guerreiros. Quando virmos os olhos de Sakal se abrirem no horizonte, será o momento.

Niente abaixou a cabeça para o tecuhtli e foi embora. Ele se dirigiu para o norte, para o campo pisoteado onde a maior parte do exército estava reunida perto da estrada. Os nahualli encontravam-se ali, o nahual deu suas ordens e espalhou os homens atrás da primeira fileira de guerreiros montados e da primeira leva de infantaria. Niente tomou o seu próprio lugar atrás do tecuhtli Zolin e de seus guerreiros selecionados. Do outro lado, ele viu, com a visão borrada pelo olho esquerdo ruim, os estandartes e escudos das tropas de Nessântico à espera. Havia muitos; Niente olhou para o próprio exército, significativamente menor agora, após todas as batalhas.

Ele não tinha dúvida de que os guerreiros tehuantinos eram mais bravos, de que os nahualli eram mais poderosos que os ténis-guerreiros de Nessântico. No entanto...

Havia um ardência no estômago que não passava. Niente segurou o cajado mágico com força e sentiu a energia do X’in Ka ligada ao objeto, mas o poder nas mãos não lhe deu conforto.

O céu a leste ficou ainda mais iluminado. Os primeiros raios da manhã lançaram sombras compridas que correram pela terra.

Zolin ergueu a espada e gritou — Agora! Agora! — Trompas soaram em resposta, e os guerreiros tehuantinos gritaram seus desafios. Niente levantou o cajado mágico e o bateu contra a mão aberta. O fogo chiou, faiscou e saiu voando na direção das fileiras inimigas; um momento depois, os cajados dos outros nahualli de toda a longa fileira fizeram o mesmo. Os ténis-guerreiros de Nessântico responderam: alguns feitiços sumiram como se tivessem sido engolidos pelo ar; outros quicaram, como se tivessem batido em uma parede, e voltaram para as fileiras dos tehuantinos em um arco. Onde os feitiços caíam, guerreiros caíam com eles e berravam ao serem consumidos pelas línguas grudentas do fogo. Muitos feitiços, porém, passaram incólumes, e os tehuantinos ouviram os gritos de resposta dos nessânticos. Os arqueiros, com o que restava da areia negra na ponta das flechas, lançaram uma chuva flamejante sobre o campo, que foi respondida por uma chuva de flechas nessânticas. Em volta de Niente, guerreiros grunhiram ao serem empalados, mas os escudos foram erguidos de imediato e apararam a maioria das flechas. Zolin gesticulou com a espada e os guerreiros começaram a se mover, devagar, a princípio, depois ganharam velocidade para correr pelo campo na direção dos inimigos e da cidade a frente à espera.

Foi difícil não se envolver com a onda de empolgação. Niente avançou atrás de Zolin e da parede de infantaria e ouviu a própria voz berrar um desafio com os demais. Então, com um tremor audível, a linha de frente dos tehuantinos colidiu com os nessânticos, que esperavam. Niente viu o reluzir das espadas, o avanço dos guerreiros a cavalo contra a massa caótica de soldados, ouviu os gritos dos mortos e moribundos de ambos os lados, sentiu o cheiro do sangue e viu os espirros que voavam no ar, mas havia guerreiros demais entre eles. Os guerreiros atrás de Niente o empurravam pelas costas, faziam com que avançasse, e a vanguarda avançou tão abruptamente que ele quase caiu. De repente, o nahual estava no meio da batalha, com indivíduos lutando por todos os lados, e viu um nessântico de cota de malha empunhando uma espada acima de sua cabeça ao avançar contra ele.

A tigela premonitória... O nahualli morto...

Niente berrou e golpeou o homem com o cajado mágico como se fosse um florete. Quando tocou o abdômen do soldado, um feitiço foi disparado: um clarão, uma explosão de anéis de aço rompidos, de pano marrom, de pele branca e de sangue escarlate. A espada despencou das mãos inertes, o homem ficou boquiaberto, mas não emitiu som, e caiu.

Mas não havia tempo para descansar. Outro soldado avançava contra Niente, e novamente o cajado, cheio de feitiços que o nahual preparou, derrubou o homem. Um soldado montado que os inimigos chamavam de chevarittai investiu contra ele, Niente atirou-se para o lado no momento em que os cascos blindados e com espinhos do cavalo de guerra arrancaram a terra onde ele estava e avançou em frente.

Para Niente, essa batalha — como qualquer outra — tornou-se uma série de encontros desconexos, um turbilhão de confusão e caos, um cenário desorganizado em que o nahual continuava a avançar. O barulho era tão tremendo que se transformou em um rugido inaudível em volta dele. Ele se desviou de espadas e enfiou o cajado em qualquer coisa que vestisse as cores azul e dourada. Uma espada acertou seu braço e abriu o antebraço, outra pegou a panturrilha. Niente berrou com a garganta rouca. A energia fluía rapidamente do cajado quente na mão direita, quase no fim agora.

E...

Niente percebeu que não estava em um campo, mas entre casas e prédios, que a batalha agora assolava as ruas da cidade, que os soldados vestidos de azul e dourado neste momento davam meia-volta ao soar das trompas e recuavam para as profundezas da grande cidade.

Ele ainda estava vivo, assim como Zolin.

 

A Batalha Começa: Sigourney ca’Ludovici

O COMANDANTE ALERON CA’GERODI ESTAVA diante de Sigourney e do resto do Conselho dos Ca’, a armadura suja de sangue, o elmo amassado por um golpe de espada e o rosto coberto de lama, fuligem e sangue. — Sinto muito, kraljica, conselheiros — disse ele. A voz estava tão exausta quanto a postura. — Nós não conseguimos contê-los...

Ca’Mazzak sibilou como uma chaleira que passou muito tempo no fogo. Sigourney fechou o único olho. Ela respirou fundo o ar cheio de fuligem e cinzas e tossiu. Abriu o olho novamente. Através da névoa da fumaça, a kraljica viu as ruínas do palácio, com partes queimando. Ela e o Conselho refugiaram-se no Velho Templo que, apesar do domo quebrado, encontrava-se em grande parte incólume. A nave principal estava lotada de tesouros do palácio: pinturas (incluindo o retrato chamuscado da kraljica Marguerite), louças azuis e douradas, roupas cerimoniais, os cajados e as coroas usados por uma centena de kralji; tudo estava aqui, embora muita coisa — coisas demais — tenha sido perdida no incêndio. Sigourney estava sentada no Trono do Sol na entrada da câmara sob o domo, mas se o trono estava aceso, não era aparente na claridade do sol que entrava pelo grande buraco aberto no domo. O sol debochava da kraljica ao brilhar intensamente em um céu sem nuvens.

Um dos criados entregou a Sigourney uma taça de cuore della volpe, para aliviar a tosse e a dor. Ela tomou um gole do líquido frio, marrom e turvo da taça dourada.

— Qual é a gravidade da situação? — perguntou a kraljica.

— Nós finalmente conseguimos deter o avanço deles — informou ca’Gerodi. — Os ocidentais não chegaram à Avi a’Parete, mas tomaram a maior parte das ruas a oeste da Avi na margem norte. Eles dominaram o vilarejo de Viaux. Houve uma batalha intensa perto do Mercado do Rio e por um tempo ele foi tomado pelos inimigos, mas nós os rechaçamos. Eu destaquei um batalhão para proteger a Pontica Kralji, mas isso deixou a área do Portão Norte mais aberta do que eu gostaria.

Os conselheiros murmuraram. — Isso é inaceitável — falou ca’Mazzak mais alto.

— Então talvez você devesse ter deixado o comandante co’Ulcai vivo — disse Sigourney. — Ou gostaria de pegar a espada você mesmo? — Ca’Mazzak resmungou e acalmou-se. Ca’Gerodi pareceu cambalear, e Sigourney gesticulou para que um criado trouxesse uma cadeira; o homem desmoronou de bom grado no assento estofado, sem se importar com a sujeira que espalhou no brocado. — O que está me dizendo, comandante? — perguntou a kraljica. — Que hoje à noite eles colocarão fogo no resto da cidade, que amanhã nos derrotarão completamente? Você disse que tinha mais do que homens suficientes. Você disse que...

— Eu sei o que eu disse — interrompeu ca’Gerodi e, quando Sigourney imediatamente calou a boca diante da grosseria, ele pareceu perceber o que fez e balançou a cabeça. — Perdão, kraljica; eu não durmo desde a noite de anteontem. Mas sim, isso é exatamente o que temo: que a noite de hoje trará mais daquele fogo terrível dos ocidentais, e que quando eles atacarem amanhã... — Ele ergueu a cabeça e olhou para Sigourney com seus olhos castanhos e abatidos. — Eu darei minha vida para proteger Nessântico, se for preciso.

— Aleron... — A kraljica começou a se levantar do Trono do Sol, esqueceu-se momentaneamente das feridas, e desmoronou. O movimento provocou uma nova tosse. Os conselheiros observaram Sigourney. Ela sabia agora o que tinha que fazer, e a compreensão era incômoda, tão dolorosa quanto o corpo ferido. — Vá. Descanse o quanto puder, e nós cuidaremos do que a noite de hoje e o dia de amanhã trouxerem. Vá. Durma enquanto pode.

Ca’Gerodi ficou de pé e fez uma mesura. Ele foi embora mancando. Quando saiu, Sigourney gesticulou para um criado. — Traga-me um escriba. E também um mensageiro, o melhor que tivermos, para levar uma mensagem para o hïrzg, a leste.

O criado arregalou os olhos momentaneamente, fez uma mesura e foi embora correndo.

— Kraljica — disse ca’Mazzak. — A senhora não pode...

— Nós não temos escolha — falou Sigourney para ele, para todos os conselheiros. — Nenhuma escolha. A situação já não é mais sobre nós.

Ela recostou-se no assento estofado do Trono do Sol, que cheirava à fumaça de madeira queimada. Cheirava à derrota.


??? RESOLUÇÕES ???

Allesandra ca’Vörl

Niente

Varina ci’Pallo

Sigourney ca’Ludovici

Karl Vliomani

Nico Morel

Niente

Sergei ca’Rudka

Jan ca’Vörl

Niente

A Pedra Branca

Allesandra ca’Vörl


Allesandra ca’Vörl

JAN LEU A MISSIVA com cuidado, os olhos claros vasculhando as palavras. Allesandra já sabia o que a mensagem dizia — os soldados do starkkapitän ca’Damont interceptaram o mensageiro que vinha na direção leste pela Avi a’Firenzcia, ele carregava uma bandeira branca tremulando içada sob o luar, e trazia o pergaminho selado para Allesandra, insistindo com os assistentes da a’hïrzg que ela fosse acordada. Allesandra quebrou o selo e vasculhou a carta, depois se vestiu rapidamente e foi até Jan.

Se o filho notou ou se se importou que o selo estivesse sem lacre e quebrado no papel grosso, ou que a kraljica tenha endereçado a missiva a Allesandra e não ao hïrzg, não disse nada. Jan empurrou a vela que usava como fonte de luz; o castiçal raspou a mesa que foi montada às pressas na tenda de campanha ao lado da tenda particular do hïrzg.

— Isso é genuíno? — perguntou Jan. Havia um cobertor dobrado sobre seus ombros, as pálpebras estavam cansadas e com olheiras. Ele bocejou e esfregou os olhos. — Temos certeza?

— O mensageiro disse que recebeu a mensagem da própria kraljica Sigourney — respondeu o starkkapitän ca’Damont.

Jan assentiu. Ele entregou o pergaminho para Semini, que leu a carta, franziu os lábios e o entregou para ca’Rudka. Jan parecia estar esperando, e Allesandra, sentada à mesinha na tenda de campanha ao lado dele, tamborilou os dedos na superfície arranhada. — Estamos perdendo tempo, meu filho — falou a a’hïrzg. — A mensagem é clara. A kraljica está disposta a abdicar do Trono do Sol se levarmos o exército até lá para deter os ocidentais. Acorde os homens agora e, se nossas forças marcharem rápido, nós conseguiremos chegar aos portões da cidade de manhã cedo.

Jan não pareceu ouvi-la. Ele olhava para Sergei, e perguntou — Regente? Sua opinião?

Ca’Rudka esfregou o nariz por muito tempo enquanto olhava o pergaminho, o que enlouqueceu Allesandra. Ela viu a luz da vela tremeluzir nas narinas esculpidas. — A kraljica não quis considerar a abdicação quando foi oferecida a ela durante a negociação, hïrzg Jan, ou, pelo menos, ca’Mazzak não quis — disse ele finalmente. — O conselheiro parecia totalmente confiante que a Garde Civile podia derrotar os ocidentais. Agora a kraljica foi subitamente acometida por altruísmo? Mas, como eu lhe disse, hïrzg, só quero o que for melhor para Nessântico. Eu não me importaria de ver a cidade destruída, mas isso precisa ser decisão sua.

— Aí está, Jan, viu só? — falou Allesandra, ficando de pé. — Starkkapitän, você irá...

Mas Jan havia colocado a mão no ombro dela e disse — Eu ainda não terminei, matarh. Archigos Semini, o que você acha desta oferta?

Allesandra começou a protestar, mas Jan apertou a mão no ombro da matarh. Todos observavam a a’hïrzg. Ela franziu os lábios e sentou-se novamente. Semini olhou especialmente para Allesandra, sem expressão nos olhos de cor magenta. Ele sabia, a a’hïrzg percebeu então. O archigos sabia que ela esteve disposta a oferecê-lo em troca do Trono do Sol. Sergei... será que Sergei contou para ele? Ou...

Jan?

— Eu notei que a oferta da kraljica não menciona nada sobre a fé concénziana — respondeu Semini, que ainda encarava Allesandra. — Isso é inaceitável para mim. Eu reluto em empenhar os ténis-guerreiros em uma aliança com Nessântico, a não ser que o archigos Kenne também esteja disposto a abdicar em meu favor. — Semini desviou o olhar de Allesandra e inclinou a cabeça para Jan. — A não ser, é claro, que o hïrzg exija isso de mim.

— Jan — insistiu Allesandra, ignorando Semini. — Isso é o que queríamos desde o início. Está ao nosso alcance; só temos que estender a mão e pegar.

— Oh, eu discordo, matarh — disparou Jan. — Isso é o que a senhora sempre quis. Parece que sua vida inteira é sempre uma questão do que a senhora quer: suas ambições, suas aspirações, seus desejos. Mesmo quando era menina, pelo que me contaram: a senhora quis primeiro Nessântico, então o vavatarh obrigou o exército a marchar mais rápido do que deveria e perdeu; sim, Fynn me contou essa história, que disse ter ouvido do vavatarh.

— Isso não é verdade — contestou Allesandra. Era o vatarh que queria Nessântico tanto assim. Não eu. Eu lhe disse para esperar e ser paciente. Disse sim... Mas Jan não escutou, e continuou falando.

— A senhora decidiu que não queria ajudar o vatarh após ele finalmente trazê-la de volta, então seu casamento foi uma farsa, quando poderia ter sido uma aliança forte. A senhora não quis que eu me envolvesse com Elissa, então a mandou embora. Não quis ser hïrzg, então fez campanha para que eu ficasse com o título. O que a senhora sempre quis foi ser kraljica, e quer que aceitemos essa oferta para que tenha o título agora, quer seja o melhor para Firenzcia ou não. Sempre foi a senhora, matarh. A senhora. Não o vatarh, não o vavatarh, não eu, não o archigos, ninguém. A senhora. Bem, a senhora me tornou o hïrzg, e, por Cénzi, eu serei o hïrzg e farei o que for melhor para Firenzcia e a Coalizão, não o que for melhor para a senhora. Eu amo a senhora, matarh — estranhamente, para Allesandra, ele olhou para Sergei ao dizer isso —, mas eu sou o hïrzg e declaro: nós iremos até Nessântico, mas iremos no momento conveniente. Nessântico grita por socorro para nós? Bem, deixe que grite. Deixe que lute a batalha que provocou. Starkkapitän, nós levantaremos acampamento pela manhã, como o planejado, e prosseguiremos em ritmo normal até vermos Nessântico, de lá esperaremos até sabermos mais ou até que a kraljica em pessoa saia e se ajoelhe a mim. Não mandarei uma única vida firenzciana para ser perdida defendendo Nessântico de sua própria insensatez.

— Jan... — Allesandra começou a falar, mas foi interrompida por um estalo do braço do filho.

— Não, matarh. Não discutiremos mais essa questão. A senhora queria que eu fosse o hïrzg? Bem, cá estou eu, e esta é a minha vontade. Não falaremos mais a respeito disso. Starkkapitän, você tem suas ordens.

Ca’Damont fez uma mesura e saiu da tenda após dar uma olhadela para Allesandra. Semini bocejou e espreguiçou-se como um urso despertando da hibernação. Ele fez o sinal de Cénzi para Jan e seguiu atrás do starkkapitän, sem olhar para Allesandra. Sergei viu os dois homens saírem e se levantou. — Caso precise do meu conselho, hïrzg, o senhor sabe onde me encontrar — falou. — A’hïrzg, uma boa noite para a senhora.

Allesandra acenou minimamente com a cabeça. Por vários momentos, ela e Jan ficaram sentados ali, em silêncio. — Você não quer que eu seja kraljica? — disse a a’hïrzg quando o silêncio pareceu durar tempo demais.

— Assim como Sergei quer o que for melhor para Nessântico, eu quero o que for melhor para Firenzcia — respondeu ele. Então, antes que ela pudesse responder: — Tudo o que eu sempre quis da senhora foi seu amor, matarh.

As palavras doeram como um tapa na cara dela, tão fortes que provocaram lágrimas em seus olhos. — Eu amo você, Jan. Mais do que você pode compreender.

Jan olhou com raiva para a matarh: o rosto de um estranho. Não, o rosto de seu homônimo, como Allesandra o imaginou durante todo o cativeiro em Nessântico, quando ele se recusava a pagar o resgate por ela. — Cale a boca, matarh. A senhora me ensinou bem. Mostrou para mim que as aspirações e a determinação são mais importantes que amor. Eu falei com o archigos Semini. Contei que a senhora esteve disposta a sacrificá-lo para ser kraljica. Ele me contou algo em troca: que planejou assassinar Fynn. Para a senhora, matarh. Tudo pela senhora. Semini me contou que a senhora sabia, naquela dia em que salvei Fynn, que o ataque aconteceria. A senhora usou Semini, seu amante, para fazer de mim um herói, para fazer de mim o hïrzg. O resto eu posso descobrir por mim mesmo. Eu me pergunto, matarh, quem contratou a Pedra Branca, mas tenho um excelente palpite. — Allesandra sentiu a face corar e virou o rosto. — Aquele seu gesto tão nobre — continuou Jan — de abdicar em meu favor: a senhora jamais quis ser hïrzgin. Sempre quis mais. Não queria o que era melhor para mim, mas o que fosse melhor para a senhora. Eu sempre fui seu segundo filho, o menos importante, matarh. A ambição sempre foi seu primogênito.

Allesandra ficou sem ar. Ela permaneceu sentada ali, com as bochechas úmidas de lágrimas, enquanto Jan se afastava da mesa e ficava de pé. — Jan... — disse a a’hïrzg ao erguer os braços para o filho, mas ele a negou com a cabeça. Jan olhou para a matarh, e, por um momento, ela pensou ter visto a expressão no rosto do filho abrandar.

Mas Jan deu meia-volta e saiu noite afora.

 

Niente

ELES USARAM O POUCO do que sobrou da areia negra para lançar na cidade novamente, naquela noite. Depois disso, Niente mandou os nahualli descansarem e preencherem novamente os cajados mágicos para a batalha do dia seguinte. Ele perdeu mais dez nahualli durante a batalha, a maioria no fim do dia, quando Zolin tentou, em vão, tomar a ponte mais próxima sobre o rio. A energia dos cajados mágicos tinha acabado e não houve tempo para descansar e renovar os feitiços. Os nahualli, como Niente mandou, tentaram recuar para trás da linha de frente assim que o poder foi exaurido, mas alguns foram abatidos pelas espadas nessanticanas, incapazes de se defender. O nahual não sabia quantos guerreiros tinham sido perdidos. Eles foram escorraçados por uma investida desesperada dos chevarittai, e Zolin — por insistência de Niente, que temia que fossem perder ainda mais nahualli — finalmente mandou o avanço parar.

Eles eram muito poucos... tanto os nahualli quanto os guerreiros. Mas Zolin não enxergava isso, ou estava tão envolvido com a própria visão que a situação tinha sido apagada dos próprios olhos. — Amanhã, toda a cidade será nossa — disse ele para Niente, Citlali e Mazatl. O nahual não sabia se era verdade ou não e estava exausto demais para se importar.

Após a última das bolas de fogo ser lançada na cidade, o nahual foi para a própria tenda. Lá, sozinho, ele pegou a tigela premonitória nas mãos: com medo de conjurar o feitiço, com medo de ter a mesma visão, com medo da exaustão e da dor que seriam cobrados pelo feitiço. Niente tentou se lembrar do rosto da esposa e dos filhos: ele conseguiu vê-los em sua mente, mas isso só fazia piorar a saudade. Imaginou como estavam, se mudaram, se sentiam sua falta como Niente sentia a deles.

Imaginou se algum dia saberia.

Ele colocou a tigela de lado.

O sono naquela noite foi intermitente e inquieto. Os pesadelos o invadiram; Niente viu a esposa morta, as crianças feridas, viu a si mesmo lutando e tentando correr, mas incapaz de fazer mais do que andar enquanto era cercado por demônios vestidos de azul e dourado. O nahual tentou imaginar o rosto da esposa diante dele, a boca semiaberta quando Niente inclinou-se para beijá-la... o rosto não tinha expressões nem feições, era uma máscara. Sem conseguir escapar dos sonhos, ele acabou andando de um lado para o outro do acampamento, escutou os sons dos guerreiros descansando, viu as estranhas formas dos prédios ao redor. Ao passar por um edifício, o nahual ouviu seu nome ser chamado. — Niente.

Ele reconheceu a voz. — Citlali.

O guerreiro supremo estava encostado na porta do prédio. Atrás dele, uma vela brilhava na escuridão. — Não consegue dormir? — perguntou Citlali.

Niente balançou a cabeça. — Eu não ouso. Sonhos demais. E você?

O rosto com redemoinhos negros deu um sorriso. — Sonhos de menos. Eu queria ver a nossa terra natal e minha família novamente, mesmo no sono.

— Isto não acontecerá se... — Niente engoliu o comentário, furioso consigo mesmo. Se estivesse menos confuso pela falta de sono, não teria dito nada.

— Se prevalecer a vontade do tecuhtli Zolin? — arriscou Citlali. — Eu pensei a mesma coisa, nahual. Não precisa ficar tão nervoso. — O sorriso aumentou, e ele olhou de um lado para o outro, como se tentasse ver se alguém os escutava. — E deixe-me responder à outra pergunta que você não irá fazer. Não. Eu não desafiarei o tecuhtli. Veja até onde ele nos trouxe, nahual, do outro lado do mar até o grande lar dos orientais. Isso é a verdadeira grandeza, nahual. Grandeza. Estou orgulhoso por ter sido capaz de ajudá-lo.

— Mesmo que isso signifique que você jamais verá sua terra natal e sua família novamente?

Citlali ergueu os ombros. — Eu sou um guerreiro. Se essa for a vontade de Sakal... — Ele abaixou os ombros novamente. — Eu não preciso de uma tigela premonitória, nahual. Não tenho interesse no futuro, apenas no presente. É uma bela noite, eu estou vivo e vendo um lugar que jamais pensei que veria e que poucos tehuantinos um dia viram. Como alguém não ficaria feliz com esta situação?

Niente limitou-se a concordar com a cabeça. O nahual desejou boa-noite e deixou o guerreiro com seu devaneio. Da parte dele, Niente voltou aos próprios alojamentos e realizou os rituais para colocar feitiços no cajado novamente. Então, completamente esgotado pelo esforço, ele foi para a cama e deixou os pesadelos o invadirem outra vez.


E, no dia seguinte, os pesadelos se tornaram realidade.

Na alvorada, o tecuhtli Zolin levou os tehuantinos para as profundezas da cidade, eles lutaram de rua em rua na direção da grande avenida principal. A batalha foi um reflexo do combate do dia anterior: novamente, a ofensiva inicial fez os cansados nessanticanos recuarem; quando o olho de Sakal estava bem alto no céu, eles chegaram à avenida, onde Zolin rapidamente reagrupou as tropas e começou a marcha para o sul.

Lá, os nessanticanos haviam se reunido: em volta do mercado, onde finalmente detiveram o avanço tehuantino no dia anterior, e em volta da ponte que levava à ilha. No A’Sele, Zolin mandou que os navios avançassem na direção do inimigo; os navios nessanticanos deslocaram-se para detê-los, e outra batalha tomou o lugar, cujo resultado Niente só podia imaginar, embora muitos navios de guerra de ambos os lados estivessem em chamas. Não havia mais retirada possível ali — restaram poucos navios para todos eles voltarem para casa.

— Nahual! — Do cavalo, Zolin apontou um dedo para Niente. — Pegue seus nahualli e venha comigo. Nós controlamos a rua principal, agora temos que dominar a ponte. Citlali! A mim!

Zolin rapidamente posicionou os guerreiros. Citlali e Zolin atacariam os píeres da ponte a partir da avenida, diretamente no coração das forças nessanticanas; Mazatl esperaria até que o ataque estivesse em andamento, depois investiria pelo flanco oeste através do Mercado do Rio. Vários guerreiros duplas mãos1 também começariam um ataque ao norte imediatamente e forçariam a passagem pela avenida circular de maneira que os nessanticanos não pudessem concentrar a atenção na cabeça de ponte — não sem possivelmente perder a ponte mais a leste para a grande ilha. Zolin mandou os guerreiros à frente como manobra de distração, depois esperou que a sombra do sol movesse um dedo antes de acenar e liderá-los ao lés-nordeste da avenida, onde posicionou seus homens. Eles podiam ver os nessanticanos: uma parede de escudos em riste do outro lado da avenida, a meros cem passos.

Não havia areia negra, nem tempo para fazer mais, mesmo que eles tivessem os materiais brutos. Desta vez, os arqueiros começaram o ataque com uma chuva sobre os escudos dos nessanticanos sem causar grandes danos. Os ténis-guerreiros lançaram as bolas de fogo estridentes na direção dos tehuantinos, e Niente — com os demais nahualli — ergueu seu cajado mágico rapidamente. Os feitiços de proteção estalaram para fora, um pulso quase visível no ar. A maior parte das bolas de fogo foi desviada; elas caíram nos prédios de ambos os lados, que pegaram fogo. Mas havia muitos ténis-guerreiros e nahualli insuficientes. Os feitiços de guerra caíram sobre os guerreiros reunidos; os homens gritaram, seus corpos foram queimados e contorcidos. Aqueles que puderam, fugiram, terrivelmente feridos com as queimaduras do fogo pegajoso. Os que não puderam, morreram. Uma bola de fogo caiu perto o suficiente de Niente para o nahual sentir o calor do feitiço, como se a fornalha de um ferreiro tivesse sido aberta em frente a ele. O calor passou por seu rosto como uma onda escaldante e secante. Zolin também sentiu o calor; ele deu uma olhadela para a cena atrás de si quando o cavalo empinou com medo. O tecuhtli berrou — Em frente! Agora! — Zolin controlou a montaria e a cutucou com o pé para que galopasse. Os guerreiros supremos montados seguiram o tecuhtli e a infantaria também investiu, à frente. Niente foi levado pela onda.

A onda arrebentou contra os escudos pintados de azul e dourado e empalou-se em suas lanças. No caos barulhento, Niente viu o cavalo de Zolin cair, com uma lança cravada no peito, mas o tecuhtli em si perdeu-se na massa de soldados, e o nahual não conseguiu ver o que aconteceu com ele.

Havia espadas e combate em volta de Niente, que só conseguiu pensar em si mesmo, em matar o máximo possível de nessanticanos. Ele apontou o cajado mágico, falando a palavra de ativação sem parar, e os raios estalaram da ponta, assobiando e ondulando ao mergulharem nas fileiras em frente ao nahual. Um buraco foi aberto na parede de escudos quando ele lançou um feitiço após outro — os clarões mandaram dezenas de homens ao chão. Os guerreiros gritavam, urravam e brandiam suas espadas ao avançar através da brecha. A parede começou a ceder, e então desmoronou complemente. Niente novamente foi levado pela onda e viu de perto as torres que marcavam a entrada da ponte.

À direita, havia uma cacofonia de gritos: os guerreiros de Mazatl que investiam contra o flanco. O som grave das trompas soou nas fileiras nessanticanas. Niente viu um estandarte tremulando ali e um aglomerado de chevarittai a cavalo. De repente, o estandarte seguiu para a direção sul da ponte, com os chevarittai junto. O nahual viu a expressão de compreensão nos rostos dos soldados inimigos diante dele. Viu a maneira como as espadas foram abaixadas momentaneamente, como as fileiras se enfraqueceram visivelmente. A chuva de flechas cessou, os ténis-guerreiros não lançaram mais bolas de fogo sobre a cabeça de Niente sobre a retaguarda dos tehuantinos. Eles avançaram gradualmente: os guerreiros, os nahualli, agora o nahual conseguia ver Zolin novamente, sangrando e ferido, mas em pé, sua espada ceifava os soldados que ousavam ficar diante dele. Citlali estava ao lado do tecuhtli, com o rosto implacável e impetuoso.

Eles estavam na ponte agora. Ela era dos tehuantinos. O rio movia-se preguiçosamente embaixo deles, e corpos caíam do peitoril e batiam nas águas.

Os tehuantinos rugiram. Eles cantavam enquanto matavam, e Niente cantou com eles.

 

Varina ci’Pallo

AS RUAS DO VELHO DISTRITO ESTAVAM tomadas por cidadãos em pânico, a maioria corria para leste, para longe das forças ocidentais que se aproximavam e das batalhas ao longo da Avi a’Parete. Todos ouviam os sons: os berros que reverberavam pelas vielas, os lamentos, os gritos, o barulho constante das trompas dos templos soando alarmes estridentes. A fumaça dos incêndios manchou o céu, trapos imundos que às vezes obscureciam o sol, e o cheiro de fogo e carnificina no ar era intenso.

Varina viu-se próxima a Karl pela maior parte do dia. Ela sorria para ele, nervosa e indecisa, e Karl devolvia o mesmo sorriso. — Prometa — falou Varina finalmente. Os dois estavam sozinhos em um dos cômodos; Talis, Serafina e Nico estavam no outro.

— Prometer o quê?

— Que o que quer que aconteça... que aconteça conosco. Guarde um último feitiço para nós, eu farei o mesmo.

— Não será assim tão ruim — disse Karl. — Talis... ele é um deles, afinal.

Ela sacudiu a cabeça, tão desamparada pelo fato quanto Karl.

Mais tarde, o cheiro de fumaça ficou mais forte. Pela janela do apartamento, eles viram a fumaça pegajosa e espessa subir das casas e de uma rua a oeste, com chamas que ocasionalmente irrompiam na escuridão. Cinzas caíam como neve cinzenta. Karl achou que quase podia sentir o calor. Os dois seguiram para o cômodo da frente com os demais.

— Tudo está queimando — falou Nico. Ele parecia mais empolgado do que preocupado, mas todos os adultos trocaram olhares preocupados. O estalo das chamas ao longe era audível no silêncio.

— Você está certo, Nico — disse Varina, enquanto olhava para Serafina. — Infelizmente, os ténis-bombeiros estão muito ocupados em outros lugares para fazer algo a respeito disso. — O olhar dela desviou de Serafina para Karl. Varina sabia o que ele estava pensando; era o que estava na mente de todos: Será que podemos ficar aqui? Precisamos ir embora?

Menos de uma virada da ampulheta depois, todos ouviram uma comoção alta ecoar a oeste, lá fora, na rua. Não muito longe dali, uma turba de várias dezenas de pessoas andava à espreita pela viela; não eram soldados, nem ocidentais, mas gente que morava no Velho Distrito. Eles berravam, corriam de casa em casa e quebravam portas e janelas; Varina ouviu os berros e gritos dos que estavam no interior enquanto a turba invadia cada casa. Eles saqueavam, carregavam qualquer coisa que parecesse de valor: ela viu algumas pessoas segurando itens roubados enquanto marchavam; o que mais, além de roubar, os saqueadores faziam dentro das casas, Varina só podia imaginar. Já havia fogo em três ou quatro casas mais ao longe na rua. A turba gritava alto: — Peguem o que quiserem! A cidade está perdida! Revolta! Revolta!

Karl e Talis passaram por Varina e seguiram para a rua enquanto a turba continuava o lento e caótico avanço na direção deles. Alguém à frente os notou e apontou, e vários aglomerados de saqueadores seguiram na direção deles. — Parem com isso! — gritou Karl, a turba debochou, as pessoas responderam com berros e brandiram armas velhas ou improvisadas. Ele deu uma olhadela para Talis e acenou com a cabeça. O embaixador ergueu as mãos, gesticulou, e uma luz surgiu entre elas. Ao seu lado, Talis levantou o cajado e bateu uma vez nas pedras de pavimentação: um raio saiu como uma flecha do punho para o céu esfumaçado.

A turba parou. Sem uma palavra, as pessoas se dispersaram em um estranho silêncio, correram para qualquer direção, desde que fosse para bem longe dos dois. Alguns instantes depois, a rua estava vazia. — Ora, isso acabou bem — falou Karl. Ele e Talis viraram-se, e Varina viu os dois ficarem boquiabertos.

Ela tinha lançado o próprio feitiço no momento em que Karl lançou o dele. Varina moldou o ar ao redor com o toque de um escultor, desenhou como se fosse uma tela e colocou nele uma imagem saída da mente. Varina viu o que Karl e Talis viram, algo que se agigantava atrás deles, mais alto que qualquer uma das casas.

— Um dragão! — berrou Nico da porta da casa, nos braços de Serafina, tomado pela alegria. Karl riu e aplaudiu, Varina sorriu. — Você pode fazê-lo cuspir fogo e voar? — perguntou o menino, e ela fez que não com a cabeça.

— Ele não pode fazer nada, só parece feroz — disse Varina. Por um instante, o perigo foi esquecido, mas depois a realidade desabou sobre eles quando ela cancelou o feitiço. O dragão sumiu em filetes de fumaça verde que foram levados pelo vento. Os saqueadores podiam ter ido embora, mas nada mudou. Eles voltariam em breve, e os incêndios próximos ardiam sem controle. A cidade continuava sob ataque.

— Karl, não podemos ficar aqui — falou Varina.

Ele olhou para Talis e viu o homem concordar com a cabeça, devagar. — Você está certa — disse Karl. — É o momento. Vamos pegar o que precisamos. — Ele deu um tapinha no ombro de Talis e foi para a porta.

Do outro lado da rua, Varina viu uma velha solitária — uma mendiga, pela aparência da roupa. Ela olhava fixamente para a casa. Assim que Varina a viu, a mulher pareceu acenar com a cabeça, depois correu pelo espaço escuro e apertado entre as casas e foi embora.

 

Sigourney ca’Ludovici

ELES A COLOCARAM no Velho Templo.

O comandante ca’Gerodi voltou fugindo da derrota na Pontica Kralji, entrou gritando no Velho Templo onde Sigourney estava sentada, no Trono do Sol, e disse que ela e o Conselho dos Ca’ deveriam pegar o que fosse possível e fugir imediatamente pela Pontica a’Brezi Veste até a margem sul e sair da cidade.

Sigourney recusou-se. — Que o Conselho vá embora se quiser. Eu vou ficar.

— Eu não posso protegê-la, kraljica — disse ca’Gerodi. — Eles estão vindo, a qualquer momento.

— Eu não abandonarei minha cidade e minha responsabilidade — respondeu ela friamente. — Eu ficarei.

No fim, a equipe de Sigourney pegou o que pôde do que restava dos tesouros do palácio e fugiu da Ilha A’Kralji. O mesmo aconteceu por toda Nessântico: no enorme Templo do Archigos, na margem sul; na Grande Biblioteca com seus preciosos e insubstituíveis livros e pergaminhos de velino; no Teatro A’Kralji e no Museu a’Artisans. O conselheiro ca’Mazzak e o resto do Conselho desapareceram também. Fugiram para o sul, a única direção ainda aberta para eles...

Sigourney permaneceu no Trono do Sol, no Velho Templo, sob a luz do sol que entrava pelo domo arruinado e queimado. Antes de permitir que o ervanário da corte fosse embora, a kraljica mandou que o homem preparasse uma taça especial do cuore della volpe, que agora estava no braço do Trono do Sol, ao lado dela. Sigourney usava uma longa tashta cerúlea com um sobretudo amarelo que escondia o fato de não haver uma perna debaixo do joelho direito. Ela mandou que os criados colocassem um tapa-olho cravejado sobre o buraco onde antes ficava o olho direito e aplicassem pó de ovo no rosto para esconder a pior parte das cicatrizes.

Sigourney aguardava no antigo trono de Nessântico. Aguardava o inevitável.

Lá fora, a kraljica ouviu a batalha em andamento: os gritos dos homens, o clamor das armas, o rugido dos feitiços dos ténis-guerreiros. A fumaça subia e enfraquecia a luz do sol. Um esquadrão de elite da Garde Kralji estava disposto diante dela, a cota de malha farfalhava quando os soldados se remexiam, nervosos, empunhando as espadas e voltados para as portas do templo. O comandante ca’Gerodi tinha ido embora há uma virada da ampulheta. — Eu não a verei novamente, kraljica — disse ele. — Sinto muito.

— Eu sei. Eu sei. Sinto muito também.

Ela aguardava.

Quando as portas foram escancaradas, os gardai em frente a Sigourney ficaram tensos e começaram a avançar. — Não — disse a kraljica. — Parem! Esperem! — Vários guerreiros ocidentais entraram no templo; com eles havia outro homem, este sem as tatuagens dos guerreiros e com um cajado de madeira lustrosa: um dos feiticeiros. Os ocidentais pararam e espiaram o longo corredor da nave onde Sigourney estava sentada sob um facho poeirento de luz do sol. — Algum de vocês fala nossa língua? — berrou ela.

— Eu falo — disse o feiticeiro. As palavras eram arrastadas e com um sotaque carregado, mas compreensíveis. — Um pouco.

— Ótimo. Eu sou a kraljica Sigourney ca’Ludovici, monarca desta terra. Quem é você?

O homem sussurrou por um instante para o guerreiro ao lado dele, que tinha a imagem de uma águia ou um falcão vermelho desenhada na careca. — Eu sou Niente — respondeu o feiticeiro. — Sou o nahual. E este — ele apontou para o guerreiro com quem havia falado — é o líder dos tehuantinos, o tecuhtli Zolin. Ele exige sua rendição, kraljica.

— Ele pode exigir o que bem quiser. — Sigourney ergueu a mão do braço do Trono do Sol. O anel com o sinete dos kralji reluziu quando a kraljica tocou a faixa dourada da coroa, posta sobre seu cabelo grisalho e grosso. O sol estava quente sobre ela, que ergueu os olhos para as ruínas queimadas dos suportes do domo. — Ele não terá minha rendição.

Novamente o feiticeiro falou com o guerreiro, que soltou uma gargalhada que ecoou pelo templo. O homem falou palavras em uma língua que parecia ao mesmo tempo estranha e, no entanto, familiar de um jeito esquisito. Onde ela ouviu palavras assim antes? — O tecuhtli Zolin diz que se a kraljica deseja desafiá-lo, ele está disposto a aceitar. O tecuhtli emprestará a própria espada se ela não tiver uma própria. Caso contrário, ele mandará seus guerreiros torná-la prisioneira. O tecuhtli deixa a decisão com a senhora.

Sigourney balançou a cabeça e falou — Eu sei como vocês tratam os prisioneiros. E você não percebeu todas as opções que eu tenho. — O feiticeiro pareceu confuso ao ver a kraljica pegar a taça no braço do Trono do Sol e tomar todo o preparado amargo em um só gole. — Espero que aproveitem a cidade enquanto a controlam. — Ela ergueu a taça para os ocidentais e deixou que caísse nos ladrilhos, onde se quebrou. A perna já formigava quando Sigourney recostou-se no trono. A paralisia subiu rapidamente pelas coxas, pela cintura, pela barriga. Pelo coração. A luz do sol na nave pareceu enfraquecer. — Este é o meu trono e, enquanto eu viver, não abrirei mão dele.

Sigourney riu então. A voz parecia estranha, ofegante e fraca. A kraljica tentou forçar as próximas palavras. — E eu escolho o momento conveniente. — Ela tentou tomar fôlego, mas os pulmões não se mexeram. Abriu a boca, mas não havia ar.

Sigourney sorriu para eles quando o sol escureceu e Nessântico sumiu de vista.

 

Karl Vliomani

— PARA ONDE VOCÊ SUGERE de irmos? — perguntou Talis.

— Leste — sugeriu Karl. — Para os firenzcianos. Sergei pode estar lá.

— Podemos ir para o oeste — contra-argumentou Talis. — Para o meu povo.

— Seu povo colocou fogo em Nessântico — falou Varina. — Eles matam. Estupram. Saqueiam.

— E o seu povo não faz isso? — disparou Talis. — Você não esteve nos Hellins, não é? Ou se esqueceu do que começou este confronto em primeiro lugar? — Ele olhou com raiva para Varina, que sustentou o olhar, sem pestanejar.

— Parem, vocês dois — disse Karl. — Não temos tempo a perder com isso. Talis, ir para o oeste significa tentar passar pela pior parte dos incêndios, e o sul não parece muito melhor do que isso. Temos que pensar a respeito do menino, especialmente; é perigoso demais.

— E ir na direção dos firenzcianos não é perigoso? — protestou Talis.

— Eu diria que é menos.

Serafina tocou no ombro de Talis e falou — Acho que ele está certo, amor. Por favor...

Talis fez uma cara de desdém, e deu de ombros. — Tudo bem. Mas a culpa vai ser sua, numetodo, se a coisa ficar feia.

Eles rapidamente reuniram o que poderiam carregar. O cheiro de fumaça era esmagador agora, e cinzas caíam constantemente sobre os telhados, cujas bordas brilhavam com chamas agitadas. O grupo não conseguia ver o sol de maneira alguma, embora devesse estar no alto no céu. A rua continuava deserta; aqueles que podiam fugir já haviam escapado; aqueles que ficaram estavam entrincheirados nos prédios. Eles desceram a viela rapidamente até o cruzamento e viraram para leste.

Quando chegaram às ruas maiores, eles encontraram as multidões novamente. Um enxame de gente saqueava lojas, quebrava portas, arrancava persianas e carregava o que fosse possível. Os saqueadores olhavam com ar de provocação para o grupo enquanto passavam com as conquistas, desafiavam qualquer um a tentar detê-los ou protestar. Um esquadrão de quatro utilinos apareceu e soprou os apitos, mas, tirando isso, não fizeram tentativa alguma de restaurar a ordem; eles apontaram os cassetetes e gritaram avisos, mas saíram correndo quando os saqueadores mais próximos se viraram para confrontá-los.

Karl e os demais foram atrás deles.

Algum tempo depois, o grupo passou por vários quarteirões, longe o bastante para as cinzas dos incêndios não mais caírem sobre os ombros e cabelos. Eles se aproximavam do centro do Velho Distrito; Karl vislumbrou a praça aberta não muito distante dali, onde a viela tortuosa de repente se abria nela: lá estava a estátua de Henri VI, com a espada erguida sob a luz do sol. As multidões desapareceram novamente. Parecia que eles corriam por uma cidade deserta. Quando se aproximaram do fim da rua, Karl parou o grupo: encolhidos contra o flanco do prédio mais próximo, eles viram um esquadrão da Garde Civile passar rapidamente para o sul pela praça aberta, perto do chafariz de Selida, liderado por um trio de chevarittai montados. Muitos dos soldados estavam visivelmente feridos, e mancavam enquanto cruzavam a praça meio que correndo.

— Eles estão recuando — sussurrou Varina. — Será que perdemos a cidade, então?

Karl não tinha como responder, embora desconfiasse da verdade, e falou — Vamos correr...

O grupo começou a cruzar a praça quando a Garde Civile desapareceu na entrada de uma rua ao sul. Eles chegavam ao fim da sombra de Henri VI, quase no meio do centro do Velho Distrito, quando viram do que os soldados fugiam.

Uma massa ruidosa de homens pintados entrou na praça aos borbotões vinda do norte. Ao longe, Karl viu que estavam bem armados: espadas, lanças, flechas. Os rostos tinham o redemoinho de linhas negras como o de Uly; os corpos eram protegidos por armaduras de bambu. Eles ainda não tinham visto o pequeno grupo de Karl, ou, se viram, julgaram irrelevante. Os ocidentais entraram no espaço aberto: havia pelo menos trinta ou mais deles. — Andem! — sibilou Karl. — Rápido! — Eles podiam facilmente chegar a uma das transversais que levavam ao centro do Velho Distrito e despistar os ocidentais antes que fossem alcançados. Karl pegou a mão de Varina e começou a correr.

Depois de alguns passos, Karl percebeu que os dois estavam sozinhos. Talis permaneceu parado sob a sombra da estátua. Ele segurava as mãos de Serafina e Nico. — Talis!

Talis balançou a cabeça. — Não — disse ele em voz alta.

— Talis, Sergei foi para Firenzcia. Nós podemos segui-lo. Você não tem nada para barganhar com essa gente. Não mais. Você está colocando Serafina e Nico em perigo.

Talis sorriu para Karl e Varina. — Ah, mas eu tenho sim um trunfo: a areia negra de Uly. Lembra-se? Ainda está aqui.

Karl sentiu a mão de Varina apertar seu braço. Ele lembrou-se: Uly, os barris de ingredientes no apartamento do homem, à espera de serem misturados... — Você não pode dar isso a eles...

— Este é o meu povo — falou Talis. — Eu agradeço por tudo o que vocês fizeram por Sera e Nico, mas este é o meu povo, o povo que eu conheço, e este é o momento de eu voltar para eles. Vá para o seu. — Ele gesticulou para os soldados e berrou algo em uma língua que Karl não compreendia. — Vá — disse Talis para Karl. — Vá enquanto ainda tem chance.

— Pelo menos deixe-nos levar Serafina e Nico conosco — gritou Varina, mas Talis fez que não com a cabeça.

— Eles são a minha família e ficarão comigo. Vá, Karl. Ou fique. Mas faça sua escolha. — Serafina olhou para os dois com incerteza e pânico no rosto. Nico encarou de olhos arregalados, mas parecia calmo.

Vários guerreiros pintados se aproximavam correndo agora. Talis ergueu o cajado mágico. Uma luz irrompeu do objeto, cintilou e baniu a sombra de Henri VI. — Karl? — A mão de Varina estava erguida; ele sentiu a energia do Segundo Mundo se acumular em volta dela.

— Eles são muitos — disse Karl.

— Não podemos deixá-los. Não podemos deixar Nico.

— Não temos escolha — respondeu ele.

Karl pegou a mão de Varina, e os dois correram.

 

Nico Morel

NICO NÃO CONSEGUIA ENTENDER o que Talis dizia quando os soldados pintados se aproximaram deles. Ele notou a insegurança na voz do vatarh e o jeito com que Talis falava alto e rápido, com a bengala mágica em frente ao corpo como um porrete. A matarh abraçou o menino com tanta força que ele mal conseguia respirar quando os estranhos os cercaram. Os homens eram inacreditavelmente grandes, assustadores e cheiravam a sangue e morte.

Nico sentiu o medo crescer dentro dele, juntamente com o frio estranho que sentiu no gabinete do archigos, assim como quando fugiu de Ville Paisli. O frio começou a aumentar por dentro, e ele murmurou baixinho as estranhas palavras que vieram à mente enquanto as mãos fizeram pequenos gestos sob o abraço forte da matarh.

— Talis, o que está acontecendo? Estou assustada... — Nico ouviu a matarh falar.

— Está tudo bem — disse o vatarh, mas a voz contradizia a resposta. — Eu só preciso falar com o guerreiro supremo. Deixe-me cuidar disso. Eles são meu povo; só não esperavam me encontrar aqui...

Talis voltou-se para um dos homens pintados, o que tinha um lagarto negro de língua vermelha rastejando no topo do crânio, que passava em volta do olho esquerdo e ia até a lateral da cabeça. Enquanto eles meio que gritavam uns com os outros, o vatarh brandiu a bengala na cara do sujeito. Nico sentiu o frio crescer sem parar dentro dele, era tão intenso que ele sabia que iria explodir se tentasse contê-lo por mais tempo. O menino gritou as estranhas palavras. Gesticulou.

Não houve fogo azul dessa vez. Em vez disso, o ar tremeu em volta dele e propagou-se como uma onda visível, a onda rápida acertou os homens pintados, e eles foram lançados para trás como se tivessem sido golpeados por um grande punho. — Venha, matarh! — berrou Nico. O menino agarrou a mão dela e puxou-a de maneira que Serafina tropeçou ao segui-lo, enquanto ele fugia na direção em que Karl e Varina foram. — Talis! Rápido!

Mas Talis não correu com os dois; ele também havia sido derrubado pela explosão incontrolável do menino. O guerreiro-lagarto já estava de pé, Nico olhou para trás ao começar a correr e viu o homem berrar para os demais no momento em que Talis gritou alguma coisa de volta e ergueu a bengala. Uma luz ofuscante brilhou da bengala, e um dos guerreiros rugiu. Nico puxou a matarh com mais força. — Corra!

Sera deu um passo com ele, mas soltou a mão do filho. O menino deu outro passo antes de perceber que a matarh não estava com ele. — Sera! — Nico ouviu Talis gritar e virou-se para trás.

A matarh estava esparramada sobre os paralelepípedos da praça, com uma lança nas costas e seu sangue manchando as pedras da pavimentação. Ela esticou o braço na direção de Nico, rastejou atrás do filho, com o rosto contraído de dor. — Matarh! — berrou o menino, que correu de volta para Serafina. Nico caiu ao lado dela assim que Talis a alcançou.

— Nico... — disse a matarh. — Eu sinto muito... — Ela virou a cabeça para Talis e começou a falar, mas ele fez carinho na cabeça de Serafina e a abraçou com cuidado.

— Não, não diga nada. Eu vou levar você a um curandeiro, a alguém que possa te ajudar... — Talis ergueu o olhar para os soldados pintados, que se reuniram em volta deles. O vatarh falou rispidamente na própria língua. O guerreiro-lagarto fez uma expressão de desdém, e gesticulou para os homens. Um deles arrancou a lança das costas da matarh de Nico, e ela gritou novamente. O menino atirou-se contra o guerreiro-lagarto e socou a armadura do homem. Ele agarrou Nico com um braço musculoso e rosnou alguma coisa para Talis. — Nico! — falou o vatarh. — Eles vão ajudá-la. Por favor, escute o que eu digo. Você tem que parar de lutar com eles.

Toda a energia abandonou Nico; ele desmoronou no braço do guerreiro-lagarto.

Dois guerreiros agacharam-se; eles rasgaram tiras da própria roupa e amarraram na cintura da matarh do menino. Um guerreiro pegou Serafina nos braços; ela gemeu e revirou os olhos, mas Nico viu que a matarh ainda respirava. Uma das mãos pendia; o menino contorceu-se no braço do guerreiro-lagarto e foi solto pelo homem. Ele correu e pegou a mão de Serafina.

Nico segurou a mão da matarh, em prantos, enquanto eles saíam rapidamente da praça.

 

Niente

ELES CONQUISTARAM A CIDADE.

Ou, mais corretamente, conquistaram parte dela. Nessântico era grande demais e a força dos tehuantinos pequena demais para controlar a cidade inteira, na prática. Em vez disso, eles arrebentaram a cidade, usaram areia negra para incendiar Nessântico, fizeram a Garde Civile recuar para o norte e o sul.

A cidade já não pertencia à kraljica e ao povo dela, mas também não era dos tehuantinos.

Niente tinha certeza de que jamais seria deles.

— Bem? — perguntou Zolin enquanto o nahual espiava a água da tigela premonitória.

— Paciência, tecuhtli — disse ele. — Paciência. — Mas Niente já sabia. A visão já tinha passado e a água era apenas água. Mas, ao fingir, o nahual podia decidir o que queria dizer. Ao fingir, podia se recuperar da pior parte do cansaço e da exaustão causados pelo feitiço.

Ele viu — novamente —, no meio da grande cidade arruinada, o tecuhtli e o nahualli mortos e sentiu outra vez o arrepio com a certeza de que viu Zolin e a si mesmo. Nada mudou. Axat ainda lhe mostrava o mesmo futuro, o mesmo caminho. Nada foi alterado após esta vitória. Niente achava que nada poderia alterá-lo. O futuro estava predeterminado, tão inevitável quanto o pôr do sol.

Eles estavam nas ruínas do templo, Zolin sentado no trono que a kraljica usara. O cabo de uma lança tinha sido cravado em uma fenda no piso de cerâmica, perto do trono. A cabeça da kraljica foi enfiada na lança, o único olho vidrado voltado para fora, o cabelo pendia grotescamente — o corpo estava caído contra a parede atrás do trono, onde fora jogado. Uma fogueira foi acesa no meio da nave e alimentada com a madeira dos bancos do tempo; uma fumaça cinza e fina subia para o céu que começava a ficar púrpura. Mesas foram erigidas em volta da fogueira, e um banquete estava em andamento, servido por assustados prisioneiros ocidentais. Não havia algum motivo em especial para o medo deles; Zolin e os outros guerreiros supremos não permitiriam que nenhum prisioneiro fosse maltratado. Sim, haveria os inevitáveis estupros, saques e mortes, mas os incidentes seriam poucos, e os responsáveis seriam severamente punidos se fossem flagrados. Alguns offiziers do alto escalão seriam sacrificados pela glória de Axat e Sakal, mas nenhum outro prisioneiro sofreria algum mal.

Os tehuantinos eram mais benevolentes e bons vencedores do que os orientais quando estes vieram aos Hellins.

Enquanto os guerreiros aproveitavam o banquete, Niente olhava na tigela premonitória perto da fogueira. A luz do fogo lambeu a pele do nahual, mas o calor não conseguiu tocar o frio que ele sentia por dentro. Niente finalmente pegou a tigela e jogou a água nas brasas em chamas, que assobiaram e soltaram vapor em resposta.

— Então — falou Zolin —, Axat me vê permanecendo aqui? Eu acho que este é um ótimo lugar. Podemos construir uma nova cidade aqui, uma que essa terra nunca viu antes, uma cidade que rivalizasse com Tlaxcala, e eu poderia ser o tecuhtli aqui, e os ocidentais nos serviriam como eles forçaram nossos primos a servi-los.

— Eu realmente vejo o senhor permanecendo aqui, tecuhtli — falou Niente, o que não era nada mais que a verdade.

Zolin deu um tapa nos braços cristalinos do trono. Ele rugiu de alegria, e os guerreiros reunidos no salão riram com ele. — Viu só! — berrou o tecuhtli para Niente. — Todas aquelas preocupações. Eu lhe disse, nahual, eu lhe disse.

— Disse sim, tecuhtli — falou Niente.

Zolin inclinou-se para a frente no trono. — Você viu outras batalhas? Você me viu tomando novas cidades?

O nahual balançou a cabeça e respondeu — Não. E isso não seria prudente, tecuhtli. Não temos mais areia negra. Se pudéssemos repor os guerreiros que caíram, se eu pudesse trazer mais nahualli para cá... — Ele espalmou as mãos. — Eu diria ao tecuhtli... — Niente começou a falar, mas houve uma agitação no fim do salão: o guerreiro supremo Citlali surgiu com um homem ao lado dele; um homem com um cajado mágico na mão. O nahual apertou os olhos para ver na escuridão da noite, iluminada pela fogueira; não era um nahualli que ele reconhecesse, e o homem estava vestido como um dos orientais, havia manchas de sangue na roupa. No entanto, aquele rosto...

— Talis? — perguntou Niente. — É você? — Pelo rosto, o homem parecia ter muitos mais anos do que deveria, a face foi arrasada pelo poder de Axat assim como a do nahual, mas ele lembrava-se da juventude nas feições do sujeito.

— Niente? — Talis correu à frente e agarrou o antebraço de Niente, seus olhos vasculharam o rosto, sem dúvida tão mudado quanto o próprio. — Por Axat, tem muito, muito tempo. Você é o nahual. Ótimo. Que ótimo para você... — Ele então viu o tecuhtli Zolin, deu meia-volta e abaixou a cabeça para ele. — Tecuhtli. Noto que Necalli caiu.

Niente ainda olhava para Talis. Havia uma dor nos olhos do homem que não era causada pelo X’in Ka. — Você está ferido? — perguntou o nahual, e Talis balançou a cabeça.

— Não, é que... — Ele parou, e Niente viu a preocupação e a tristeza desabarem sobre o homem. — Eu... eu tenho uma esposa aqui, e um filho. Ela foi... gravemente ferida. Preciso voltar para os dois...

— Nós levamos a mulher e o menino para a tenda dos curandeiros, tecuhtli, nahual — intrometeu-se Citlali. — Eles estão fazendo o possível.

— Ótimo — falou Zolin. — Você poderá ir até eles em um momento, Talis. Então você é o nahualli enviado para cá pelo antigo nahual? Eu sei que ele disse ao tecuhtli Necalli que você era quase tão poderoso quanto Mahri; que você teria dado um belo nahual. — Zolin deu uma olhadela para Niente. — Talvez esse acabe sendo seu destino. Eu li seus relatórios e, com o passar dos anos; eles me ajudaram a compreender e a derrotar os orientais. Sou grato por isso.

— Tecuhtli — disse Citlali quando Zolin fez uma pausa ao se recostar no trono. — Talis tem uma informação que o senhor precisa saber, sobre um exército mais a leste da cidade. Foi por isso que eu o trouxe aqui.

Talis concordou com a cabeça, Niente ouviu o homem, sentindo um medo crescente enquanto ele falava a respeito desse exército de Firenzcia e da reputação da força militar daquele país. O nahual ficou especialmente aflito com a expressão cada vez mais empolgada no rosto de Zolin. — Tecuhtli — falou ele —, isso é o que a tigela premonitória me disse. Nós fizemos tudo que viemos fazer aqui. Devíamos embarcar agora e voltar para casa antes que esse exército venha para cima de nós. Podemos juntar um novo exército e voltar com mais navios, mais guerreiros e nahualli da próxima vez, e se o senhor quiser se sentar nesse trono como tecuhtli do leste, nós o colocaremos aqui com recursos suficientes para que isso aconteça. Mas não agora. Somos muito poucos, guerreiros e nahualli, para outro grande combate, especialmente sem a areia negra.

Niente pensou que, finalmente, tivesse convencido o tecuhtli. Sentado no trono, Zolin fez uma careta e tamborilou os dedos no braço cristalino do trono. Balançou a cabeça como se estivesse pensando.

Mas Talis então acabou com qualquer esperança que restasse em Niente. — Existe areia negra — disse ele. — Ou melhor, existem ingredientes suficientes aqui na cidade para fazer boa parte dela. Eu sei onde estão.

Zolin inclinou-se para frente no trono e arregalou tanto os olhos que as asas da águia dançaram no rosto. — Onde? Leve-nos até eles agora.

— Tecuhtli, minha esposa... Eu preciso ir até ela.

Niente sabia como Zolin reagiria a isso; e não ficou surpreso. — Todos nós temos esposas e família — retrucou o tecuhtli. — Nosso dever é aqui e agora. Citlali, como está a mulher?

Citlali deu de ombros. — Ela está nas mãos de quem sabe o que fazer. Não há nada mais a ser feito.

— Pronto. Viu só, Talis? — falou Zolin. — Você tem sua resposta. Sinto muito pelo ferimento de sua esposa e entendo que queria estar com ela. Mas seu tecuhtli também precisa de você. O nahual Niente está certo: sem mais areia negra, nós perderemos o que ganhamos. A areia negra, nahualli, é o que precisamos. — Zolin inclinou-se para frente e apoiou os cotovelos nos joelhos. — A esposa de um traidor não receberia ajuda alguma.

Niente ouviu as próximas palavras como se fossem o toque do sino da morte.

— Como o senhor quiser, tecuhtli — disse Talis. — Eu o levarei lá.

— Ótimo — falou Zolin ao ficar de pé. — Citlali, coma e beba alguma coisa e prepare os guerreiros para mais uma batalha. Nahual Niente, faça o mesma com os nahualli. Nesse meio tempo, eu conversarei com você, Talis, enquanto vamos atrás dessa areia negra.

 

Sergei ca’Rudka

SERGEI CUSTOU A ACREDITAR no que Karl e Varina lhe contaram. Ele tinha visto a fumaça dos incêndios em Nessântico, cujo cheiro tinha sido trazido pelo vento, e sabia que a cidade sofria, mas isso: Nessântico conquistada, a maior parte em ruínas...

Isso, Sergei não tinha esperado.

Havia muita coisa que ele não tinha esperado. Sergei sentiu-se muito velho e frágil realmente.

— O archigos ca’Cellibrecca está aqui? — perguntou Karl. Sergei concordou com a cabeça. O rosto do numetodo ficou rígido e determinado, a voz amarga comeu sílabas. — Então me leve até ele, Sergei. Que esse seja o pagamento por libertar você da Bastida. Apenas me leve até ele e afaste-se. Você não precisa se envolver com o resto.

— Não é tão simples assim, Karl.

— Na verdade, é simples assim — retrucou o numetodo. — O homem matou Ana, e eu quero justiça pelo assassinato dela.

— Isso, eu não posso dar para você. Não aqui, nem agora. Mas posso lhe dizer que o hïrzg Jan não gosta muito do homem. Acho que o mesmo pode ser dito a respeito da a’hïrzg Allesandra, pelo menos por enquanto. Karl, deixe-me cuidar dessa situação. Por favor. — Sergei olhou para Varina, em busca de apoio.

— Ouça o que ele diz — falou ela. — Ou ouça Ana; o que ela lhe diria?

O trio estava na tenda de Sergei no acampamento firenzciano, onde os dois tinham sido trazidos pelos primeiros soldados que encontraram. O regente ficou surpreso e contente de ver os dois numetodos; após a separação, Sergei temeu que eles tivessem sido capturados e aprisionados, ou coisa pior. Se a história de Karl e Varina tinha feito o regente sofrer era porque a ideia de Nessântico arruinada era dolorosa demais para imaginar.

Ele também sabia que o hïrzg e a a’hïrzg, no mínimo, também já teriam sido informados da chegada de Karl e Varina; Sergei estava um pouco surpreso por ainda não ter ouvido alguma coisa de um dos dois. E quando o archigos Semini soubesse que o embaixador dos numetodos estava no acampamento... Ele precisava se preparar para isto. Allesandra e Jan eram outro problema; Sergei não sabia exatamente como os dois reagiriam. Ele faria o possível para proteger Karl e Varina, mas...

Sergei falou — Karl, eu lhe prometo isto: quando chegar o momento, ajudarei você com ca’Cellibrecca. O homem é uma praga e um insulto ao robe que a archigos Ana usou. Ambos concordamos com isso. Quando chegar o momento, eu terei prazer em lhe ajudar a tornar a morte dele tão dolorosa quanto você quer. — Sergei quase sorriu ao pensar em Semini instalado na Bastida. Sim, aquilo seria delicioso. Aquilo seria... prazeroso.

Varina arregalou um pouco os olhos com a declaração, mas Karl concordou com a cabeça, com os lábios franzidos. Houve um pigarreio discreto de uma garganta na aba da tenda, um momento depois. — Entre — falou Sergei, e a aba foi aberta para revelar um dos pajens do hïrzg.

— Regente, o hïrzg Jan pede que o senhor leve seus dois convidados... — os olhos do menino se voltaram para Karl e Varina — ... à tenda dele. O hïrzg montou um jantar para os dois e deseja escutar o que eles têm a dizer.

— Diga ao hïrzg que iremos imediatamente — falou Sergei para o pajem, que fez uma mesura e saiu. — Vocês não têm o que temer do hïrzg Jan — disse o regente para os dois. Ele torcia para que fosse verdade. — Eu até gosto do jovem. De certa forma, ele me faz lembrar de mim mesmo...


— O archigos Semini me dirá que os numetodos são hereges e mentirosos, fisicamente perigosos para mim, bem como para minha alma eterna — disse o hïrzg Jan.

— O archigos Semini é um mentiroso e um tolo, além de burro — respondeu Sergei. — Se me perdoa a franqueza, hïrzg.

Jan sorriu. — Sentem-se — falou ele para Karl e Varina ao apontar para a mesa com pão, queijo e uma panela com guisado de carne. Pratos foscos de estanho estavam dispostos diante deles. — Aproveitem os pequenos confortos que temos aqui em campanha, uma vez que não posso oferecer a hospitalidade completa de Firenzcia. — Quando os dois hesitaram, o sorriso de Jan cresceu. — Eu lhes garanto que tenho a mesma opinião do regente no que se refere ao archigos Semini.

Varina conseguiu dar um sorriso; Karl ainda parecia inseguro e perguntou — E qual é a opinião do hïrzg sobre os numetodos?

— Uma das coisas que o regente ca’Rudka me ensinou é que devo julgar as pessoas não pelo que são, mas por quem elas são. Eu ainda não tenho opinião sobre os numetodos; até agora, nunca havia conhecido um. — Jan gesticulou para as cadeiras novamente. — Por favor...

Sergei fez uma mesura. Um momento depois, Karl repetiu o gesto, e os três tomaram seus lugares em frente ao hïrzg. — A a’hïrzg se juntará a nós? — perguntou o regente.

O sorriso de Jan sumiu ao ouvir isto e disse — Não. — Aquela única palavra quase pareceu arrancada à força. Sergei aguardou mais explicações, mas nenhuma veio. O regente perguntou-se sobre o que teria acontecido entre matarh e filho; até agora, ele só tinha visto Allesandra de relance durante um dia e meio. Embora o exército se arrastasse próximo às muralhas de Nessântico em um passo lento enlouquecedor, Allesandra manteve-se em uma carruagem fechada, sem nem o filho, nem o archigos como companhia.

Mas Sergei não pediria uma explicação ao hïrzg. Em vez disso, Jan olhava para Karl e Varina. — Eu gostaria de saber sua história, contada por vocês mesmos — falou ele.

Pela próxima virada da ampulheta, foi isso que Karl e Varina fizeram, com Jan guiando os dois com perguntas ocasionais. Sergei ouviu a maior parte e achou graça quando Karl omitiu algumas partes da história. Jan inclinou-se para a frente quando o numetodo descreveu a areia negra, como foi usada pelos ocidentais no ataque à cidade, e ao saber que havia ingredientes na cidade para fazer mais.

— Você afirma que essa areia negra é a chave do sucesso dos ocidentais? Essa é a mesma magia que nós soubemos que eles usaram nos Hellins?

— Não é magia, hïrzg — falou Karl. — Essa é a parte interessante. É alquimia. Varina tem certa noção, pelo que Talis disse e pelas amostras que eu trouxe do apartamento de Uly, de como preparar a areia negra. Eu vi, todos nós vimos, as coisas terríveis que a areia pode fazer. — Uma sombra sinistra pareceu passar pelo rosto de Karl ao dizer isso, e Sergei sabia que ele se recordava do assassinato de Ana. Era um horror que jamais seria apagado da mente de qualquer um dos dois. — Os ocidentais colocaram fogo na cidade com a areia; eles mataram centenas, talvez milhares. Hïrzg, com essa areia negra, nenhum exército precisa de ténis-guerreiros ou de feitiços. Nenhuma armadura consegue resistir, espadas não podem superá-la, não importa o número.

— E você sabe onde está o estoque dessa areia negra?

Karl assentiu com a cabeça. — Eu sei. Varina também. Nós podemos levar o senhor até lá, hïrzg. Mas os ocidentais também estarão atrás da areia negra. Talis... eu suspeito que Talis já esteja levando os ocidentais até ela. Eles já podem estar com a areia.

— Hïrzg — interrompeu Sergei. — Eu entendo por que o senhor deixou seu exército ocioso aqui. Eu talvez tivesse tomado a mesma decisão no seu lugar; embora meu coração fique partido ao ver a cidade queimar e saber que os ocidentais pisoteiam as ruínas dos lugares que mais amei no mundo. — Ele esfregou o nariz falso, notou que Jan olhou fixamente para o gesto e abaixou a mão. — Mas, se o senhor realmente está disposto a ouvir meu conselho, eu lhe diria que o tempo de esperar acabou. Eu também testemunhei os efeitos dessa areia negra. Se os ocidentais tiverem tempo para criar mais, então seus próprios soldados pagarão o preço pela hesitação. Hïrzg, ouça o que meus amigos estão lhe dizendo. A Garde Civile de Nessântico foi derrotada. Aquela batalha acabou. Temos que atacar agora; não Nessântico, mas aqueles que a derrotaram, antes que venham à Firenzcia.

Sergei achou que o apelo não teria efeito. Jan olhava para o alto, o olhar vasculhava a lona iluminada pelo fogo como se houvesse uma resposta escrita na fumaça. O jovem suspirou uma vez. Então bateu palmas e um pajem entrou.

— Chame o starkkapitän aqui — disse o hïrzg para o menino. — Há preparativos imediatos que eu preciso que ele faça. Corra!

 

Jan ca’Vörl

ELE OUVIU as grandiosas e gloriosas histórias de guerra várias vezes ao longo dos anos: do vavatarh Jan; do vatarh; dos onczios e dos conhecidos mais velhos; e, mais recentemente, de Fynn. Até mesmo da matarh, que contou que o vavatarh a elogiou quando era pequena por seu conhecimento de estratégia militar.

Jan começou a se dar conta de que essas histórias eram inventadas, memórias falsas ou, muitas vezes, mentiras deslavadas.

Até hoje, ele nunca havia entrado a cavalo em uma batalha de verdade. Até hoje, seu conhecimento sobre habilidades marciais fora intelectual e seguro. Mostraram a Jan como cavalgar, manejar uma espada, usar uma lança ou arco e flecha sobre o cavalo, como se proteger de outro chevarittai ou de um soldado de infantaria. Ele participou de lutas com espada de treino, participou de manobras militares. Aprendeu sobre a arte da guerra: quais táticas usar contra um inimigo que estivesse em um terreno superior ou inferior, ou que possuísse mais soldados ou menos, ou mais ténis-guerreiros ou menos. Jan sabia que formação teoricamente era melhor contra outra.

Era o que qualquer jovem rapaz de seu status teria aprendido.

A guerra, na mente de Jan, era um exercício muito gracioso e preciso. Ele sabia — intelectualmente — que era impossível que fosse tão linear e eficiente. Jan entendia.

Mas... ele não sabia que a guerra podia ser tão desordenada assim. Tão caótica. Tão real.

Ninguém no exército firenzciano achava que Jan — assim como Fynn, assim como seu homônimo, o velho hïrzg Jan — seria o verdadeiro general nesse importante ataque. Eles sabiam que a estratégia era do starkkapitän ca’Damont, com a ajuda do regente ca’Rudka e a contribuição dos dois numetodos que vieram da cidade em chamas para o acampamento. Sabiam que seria o archigos Semini que comandaria os ténis-guerreiros.

Jan estaria lá, e a bandeira de comando tremularia entre a Garde Hïrzg e os chevarittai à sua volta, e ele avançaria logo atrás da vanguarda de suas forças como Fynn e o antigo hïrzg Jan fizeram antes dele. Mas Jan consultaria o starkkapitän antes de dar ordens. Ele sabia que era uma atitude inteligente; sabia que o resto dos offiziers e chevarittai também tinha noção disso. Francamente, Jan estava tranquilo em relação a consultar o starkkapitän; ele conhecia a própria inexperiência e não era tão arrogante a ponto de insistir em estragar o ataque.

A entrada em Nessântico começou bem o suficiente. Como uma espada curva, as forças firenzcianas avançaram pela cidade através de todos os portões do lado leste. Não houve resistência; pelo contrário, o surgimento dos soldados foi recebido por gritos de alegria pela população e pelos remanescentes da Garde Civile de Nessântico espalhados. Alguns chevarittai dos Domínios até saíram de mansinho dos esconderijos para engrossar as fileiras de Firenzcia. Após uma virada da ampulheta dentro das muralhas da cidade, Jan começou a torcer para que a situação continuasse assim: marchando sem resistência até a fronteira oeste da cidade e encontrando as forças ocidentais em plena retirada.

Sob o calor do dia, ele suava debaixo da armadura, e o que mais queria era arrancar o fardo pesado dos anéis de aço. Aquilo parecia ser o pior desconforto da vitória.

— Qual o caminho, embaixador? — perguntou Jan para Karl, que cavalgava com seu séquito ao lado de sua matarh, Varina e Sergei.

— Ao norte, por algumas transversais — respondeu o numetodo, que apontava —, depois vários quarteirões para o leste.

Jan concordou com a cabeça. O exército firenzciano ganhou volume pela Avi. O sol brilhava intensamente. Era um belo dia. Eles já tinham vencido, e o hïrzg sentiu-se confiante a ponto de dar uma ordem por si próprio. — Starkkapitän — disse Jan para ca’Damont —, eu levarei metade da Garde Hïrzg comigo, bem como o regente e os numetodos. Deixo você no comando do exército. Faça o que for necessário para defender esta parte da Avi e a cidade. Depois você e a a’hïrzg prosseguirão para o sul, para a Ilha A’Kralji, e cuide para que controlemos a ilha e as Ponticas orientais. Se houver algum problema, mande um mensageiro até mim imediatamente. Da minha parte, eu mandarei um mensageiro assim que nós localizarmos a areia negra e soubermos como está a situação por lá.

— Jan. Hïrzg. — Allesandra franziu a testa, enquanto ca’Damont parecia incomodado. — Eu não acho...

— Eu dei minhas ordens — disparou Jan e interrompeu sua matarh. — Starkkapitän? Tem algum problema com elas?

Ca’Damont meneou a cabeça negativamente. Ele vociferou ordens rápidas.

— Eu me encontro depois com a senhora, matarh — disse Jan. — Na Ilha.

Allesandra não pareceu convencida. O hïrzg pensou que ela fosse protestar mais, mas a matarh só olhou feio para ele. Jan viu Allesandra dar uma única olhadela para Sergei; o regente deu levemente de ombros sob a armadura. O nariz lançou fagulhas de sol sobre o rosto.

A matarh finalmente inclinou a cabeça e disse — Como quiser, meu hïrzg. — “Meu hïrzg”, não “meu filho”. Jan notou a irritação na expressão. Ela puxou as rédeas com força e começou a caminhar para o sul. Um quarteto da Garde Hïrzg e um téni-guerreiro cercaram a a’hïrzg com atraso.

O starkkapitän prestou continência e falou — Que Cénzi oriente o senhor, meu hïrzg. Eu cuidarei para que a a’hïrzg permaneça a salvo. — Ca’Damont começou a ir embora, mas puxou as rédeas, e disse — Fynn fez uma excelente escolha no senhor. Tome cuidado, hïrzg Jan.

O starkkapitän ca’Damont prestou continência novamente e foi embora, com a maior parte do séquito com ele. Jan olhou em volta para os demais e falou — Vamos encontrar essa areia negra. Embaixador ca’Vliomani, você vai à frente.

Karl levou o esquadrão de Jan ao norte pela Avi, e os soldados pelos quais eles passaram prestaram continência ao hïrzg e a seu estandarte, depois o grupo virou à esquerda em uma rua mais estreita e deixou o exército para trás. O tilintar das armaduras e o baque frio do aço nos cascos dos cavalos eram o barulho mais alto na rua. Não havia mais rostos nas janelas, mais ninguém visível adiante, no caminho curvo. Algumas portas dos prédios pelos quais o esquadrão passou estavam abertas; muitas à força. Havia lixo acumulado na avenida. Eles passaram por vários corpos: gente morta há alguns dias, pela aparência, cadáveres inchados com pernas e braços rígidos, em ângulos estranhos, cheios de vermes e moscas. Jan olhou fixamente para os mortos ao passarem; ele notou que Sergei fez o mesmo, com uma intensidade estranha.

Há pouco tempo, esses corpos tinham sido pessoas vivas, que talvez corressem para os amantes, acompanhassem os filhos, comprassem comida nos mercados ou bebessem nas tavernas, levassem suas vidas em frente. Ele duvidava que essas pessoas esperassem que a vida fosse acabar tão rapidamente e de modo tão definitivo. Duvidava que elas esperassem que fossem virar monumentos acidentais e temporários da guerra.

Jan fungou, incapaz de manter o fedor longe do nariz — ele perguntou-se se Sergei realmente podia sentir o cheiro. O hïrzg segurou firme na espada e enroscou as rédeas com mais força na mão esquerda.

Ao sul, eles ouviram um estrondo repentino como trovão e gritos baixos. Sergei, ao lado de Jan, olhou naquela direção com preocupação, e disse — Eu acho, hïrzg, que a batalha começou. Talvez devêssemos retornar.

Jan balançou a cabeça. — Embaixador, a que distância estamos do lugar? — perguntou.

— Mais dois cruzamentos — respondeu ca’Vliomani. — Não mais do que isso.

— Então nós prosseguiremos.

Sergei franziu os lábios, mas não teve outra reação.

Eles continuaram até chegar a outra viela, ainda menor, onde Karl parou e ficou em pé na sela. Ao olhar a rua estreita, Jan viu uma placa antiga e surrada pendurada em um prédio à direita: havia um cisne mal desenhado em tinta vermelha nas tábuas.

— Ali. — Ca’Vliomani chamou Jan e os demais. — Nós deveríamos...

Ele não foi adiante.

Da esquerda, da direita, várias dezenas de guerreiros pintados vieram para cima deles aos berros. Os próximos grãos da ampulheta viraram um caos de que Jan se lembraria pelo resto da vida.

... um clarão súbito de uma luz ofuscante surgiu à frente do grupo, depois mais um, e Jan percebeu que Karl e Varina lançavam feitiços. Ele ouviu gritos...

... o chevarittai à direita de Jan foi arrancado da sela com o pulo de um ocidental, e o cavalo do homem chocou-se com força na perna do hïrzg. A perna direita ficou presa entre os dois animais, e ele gritou pela pontada de dor, apesar da proteção das grevas. Jan puxou as rédeas do cavalo...

... mas houve mais movimento à direita e por trás no exato momento em que ele fez isso. Jan viu o aço e colocou sua espada diante do corpo da montaria quase tarde demais — mas o suficiente para que o golpe que teria acertado acima das presilhas de seu coxote fosse desviado, mas a lâmina do ocidental cortou fundo a pata traseira de seu cavalo de guerra. O animal relinchou de dor e terror. Jan viu o cavalo arregalar os olhos, sentiu a perna da montaria ceder, ele estava caindo...

... — Ao hïrzg! — Jan ouviu alguém gritar. Ele estava no chão com uma confusão de pernas, tanto equinas quanto humanas, em volta. O hïrzg ficou de pé rapidamente (a perna direita enviou uma pontada de dor espinha acima por causa do abuso). Um ocidental vinha para cima dele, e Jan conseguiu encontrar o cabo da espada, levantar o aço pesado e estocar debaixo do peitoral da estranha armadura do homem. Ele sentiu a lâmina entrar na carne. Ela ficou brevemente presa, Jan a torceu e empurrou, gemeu e sentiu a boca se esgarçar em um ricto de fúria, a espada entrou subitamente. O ocidental, empalado, ainda completou o ataque, mas as braceleiras em volta dos antebraços do hïrzg aguentaram o impacto, embora ele achasse que o braço direito pudesse ter quebrado com o golpe. Jan tentou arrancar a espada do homem, mas não conseguiu, e o peso morto do ocidental quase tirou a arma de sua mão, que ficou inerte e dormente...

... Outro ocidental berrou à sua esquerda, Jan puxou a espada desesperadamente outra vez, embora soubesse que seria tarde demais. Mas outra espada — firenzciana — cortou a garganta do homem e quase decepou sua cabeça. O hïrzg ficou coberto por sangue quente...

... E mãos levantaram Jan. — O senhor está bem, meu hïrzg? — perguntou alguém, e ele concordou com a cabeça. A mão direita formigava, mas parecia ter voltado à vida. Jan fechou os dedos, exercitou-os dentro da manopla, abaixou a mão e soltou a espada com um puxão. Ele virou-se...

... e viu um trio de ocidentais reunidos como escudos em volta de outro guerreiro pintado, este com um pássaro tatuado no crânio raspado e no rosto. Sergei estava ao seu lado, sua espada subia e descia, mas o soldado firenzciano ao lado do regente caiu com a mão decepada no pulso. Jan correu para a brecha, sem pensar em nada a não ser reagir...

... e, de alguma forma, ele passou pelos guardas e ficou em frente ao guerreiro com a marca do pássaro. A armadura do ocidental desviou o primeiro corte de Jan, e o pomo duro de bronze da espada do homem bateu no queixo do hïrzg sob o elmo. Ele cambaleou para trás, com gosto de sangue na boca...

... ao ver o guerreiro-pássaro amparar o ataque da espada de Sergei...

... ele investiu novamente contra o homem, rosnou e contorceu o rosto, e o ocidental não foi capaz de se defender de ambos ao mesmo tempo. Foi a espada de Jan que penetrou, que encontrou a brecha entre os tubos roliços da armadura do homem e entrou no corpo. O ocidental perdeu o fôlego como se estivesse surpreso. O hïrzg ouviu uma voz chamar um nome estranho, “tecuhtli”, quando o homem caiu de joelhos. A espada de Sergei acompanhou a arma de Jan e acertou o sujeito no pescoço e na cabeça. O guerreiro-pássaro desmoronou sobre os paralelepípedos ensanguentados, de cara no chão...

... e tudo acabou, a não ser pelo estrondo da pulsação nos ouvidos.

Jan percebeu que sua respiração estava acelerada, que o coração batia tão furiosamente que ameaçava irromper pelas costelas, que a perna e os braços doíam, que estava completamente coberto por sangue, e que, pelo menos em parte, o sangue era seu. Ele estava curvado e ofegante, com as pernas bem afastadas. Jan sentiu um embrulho no estômago e engoliu em seco para conter a bile ardente, para se forçar a não vomitar. Sentiu a mão de Sergei dar um tapinha em seu ombro sobre a armadura. Ele pestanejou e olhou em volta: havia pelo menos uma dúzia de corpos no chão, alguns com o uniforme preto e prateado de Firenzcia. Uns poucos ainda se debatiam; enquanto o hïrzg observava, os homens da Garde Civile despachavam os ocidentais que ainda estavam vivos. Havia córregos de sangue que fluíam dos corpos e entranhas espalhadas na rua como salsichas obscenas.

Karl e Varina estavam incólumes — os corpos mais próximos aos dois estavam carbonizados e escurecidos; havia um cheiro de carne cozida no ar. O nariz falso de Sergei tinha sumido completamente e a bochecha esquerda estava aberta por um corte; onde ficava o nariz, a pele era sarapintada e as cavidades da cabeça de Sergei estavam escancaradas, o que deixava o rosto com a aparência horripilante de um crânio. Jan foi novamente tomado pela náusea, e dessa vez o mundo pareceu girar um pouco à sua volta. Ele colocou a ponta da espada no chão e apoiou-se pesadamente sobre a arma.

— Tecuhtli! — O hïrzg ouviu o chamado novamente, agora um homem saia do prédio onde estava pendurada a placa do cisne vermelho, não mais do que a uma dezena de passos de onde Jan e os demais estavam. Ele segurava um frasco de vidro na mão direita, cheio de grânulos escuros; na mão esquerda havia uma bengala retorcida. O sujeito parou, como se estivesse assustado pela imagem de carnificina à frente.

— Talis... — Jan ouviu Karl murmurar o nome: uma surpresa, uma maldição, um feitiço. — Areia negra...

O homem fechou a cara, ergueu o frasco com a mão direita e jogou o braço para trás como se fosse lançar o objeto. Jan imaginou como seria morrer e se encontraria o vavatarh Jan e Fynn na morte.

Uma mulher saiu correndo do beco atrás da taverna, um borrão marrom e cinza, tão depressa que ninguém teve tempo de reagir. Assim que Talis levantou a mão, ela agarrou o cabelo do homem e puxou a cabeça para trás. A boca do homem ficou tão escancarada quanto a de um peixe no mercado, e o tom vermelho seguiu o prateado quando a mulher passou uma faca pela garganta de Talis. Uma segunda boca ficou ainda mais escancarada do que a primeira e vomitou sangue. O frasco de vidro caiu da mão do sujeito e quebrou no chão, sem explodir. Ela debruçou-se sobre o corpo — parecia colocar alguma coisa às pressas no olho de Talis —, Jan deu uma boa olhada no rosto da mulher, entre o cabelo emaranhado.

O coração saltou no peito. Ele ficou boquiaberto e murmurou — Elissa?

A jovem ergueu a cabeça e arregalou os olhos ao vê-lo, e embora ela não tenha dito nada, Jan ouviu a mulher respirar fundo. Ela arrancou algo do rosto de Talis; o hïrzg vislumbrou uma pedra branca entre os dedos. A jovem correu para o beco de onde veio. Um dos soldados começou a correr em perseguição.

— Não! — berrou Jan para o homem. — Deixe-a ir!

O soldado parou. Jan ouviu os sussurros ao redor: — A Pedra Branca...

A Pedra Branca...

Não, o hïrzg queria dizer para todos, não era verdade, porque aquela pessoa era Elissa, que Jan amava. Não era verdade porque a Pedra Branca assassinou Fynn, que ele também amava. Não era verdade.

E, de alguma forma impossível, era verdade.

Era verdade.

 

Niente

O NAVIO ESTAVA LOTADO de gente fugindo da cidade, e de pessoas dos outros navios agora emborcados e meio submersos no rio. O convés estava escorregadio com água, sangue e vômito. A água em volta estava cheia de corpos rígidos e inchados — tanto de orientais quanto de tehuantinos. Havia guerreiros e nahualli feridos espalhados por toda parte do convés, gemendo sob a luz do sol que sumia; os tripulantes que ainda eram capazes subiam nos mastros para soltar as velas e apertar os cabos. A âncora, que gemia e protestava, foi içada no lodo do fundo do rio, e o capitão do navio berrava ordens. Devagar, muito devagar na opinião de Niente, a cidade começou a ficar para trás conforme eles eram levados embora pela corrente do rio e pelo vento.

Niente observava da popa do navio de guerra, à direita de Citlali. O corpo do guerreiro supremo, decorado com os traços rubro-negros de cortes cicatrizados feitos por espadas, apoiava-se pesadamente no cabo quebrado de uma lança enquanto ele olhava com raiva para a cidade.

— Você estava certo, nahual — disse Citlali. — Você viu corretamente a visão de Axat.

Niente concordou com a cabeça. Ele ainda estava admirado por estar aqui, por estar vivo, por ter sido poupado, de alguma maneira impossível, por Axat. O nahual poderia ver a terra natal novamente, se as tempestades do Mar Interior permitissem. Teria a esposa nos braços outra vez; abraçaria os filhos e os veria brincar. Niente respirou fundo e estremeceu.

— Eu não fui poderoso o suficiente — falou ele. — Não fui o nahual que deveria ter sido. Se tivesse sido mais firme ao falar com Zolin, se tivesse visto as visões com mais clareza...

— Se tivesse feito isso, nada significativo teria mudado — respondeu Citlali. — Zolin não teria lhe dado ouvidos, nahual, não importa o que você dissesse. Zolin só ouvia os deuses clamarem por vingança. Ele não teria lhe dado ouvidos. Você teria sido afastado como nahual e teria morrido aqui também.

— Então foi tudo um desperdício.

Citlali deu uma risada seca e sem graça. — Um desperdício? Longe disso. Você não tem imaginação, nahual Niente, e não é um guerreiro. Um desperdício? Nenhuma morte em combate é um desperdício. Olhe para a grande cidade dos orientais. — O guerreiro supremo apontou para leste, onde o sol reluzia dourado sobre as torres quebradas e atravessava a fumaça dos incêndios que restavam. — Nós tomamos a cidade deles. Tomamos o coração dos orientais. — Ele estendeu a mão com a palma para cima, como se pegasse alguma coisa. Os dedos fecharam-se lentamente. — Você acha que algum dia eles se esquecerão disso, nahual? Não. Eles tremerão à noite e ficarão aterrorizados diante de um som repentino, pensarão que somos nós de volta. Eles se lembrarão disso de geração em geração. Jamais se sentirão seguros novamente; e eles terão razão.

Citlali cuspiu sobre a amurada para o rio. Havia sangue no cuspe. — Nós pegamos o coração dos orientais e ficaremos com ele. Eu faço essa promessa para Sakal aqui, e você é minha testemunha; que o olho Dele veja minhas palavras e registre. Nós ficaremos com o que tiramos dos orientais. Um tecuhtli estará de novo onde Zolin caiu.

Citlali deu um tapa nas costas de Niente com tanta força que ele cambaleou. — O que você acha disso, nahual?

Niente olhou fixamente para a cidade, que desaparecia no rastro do navio, e falou — Eu olharei na tigela premonitória hoje à noite, tecuhtli Citlali, e direi o que Axat diz.

 

A Pedra Branca

A NOVA VOZ na cabeça da Pedra Branca gritava, lamentava e se revoltava, falava metade na língua de Nessântico e metade em um idioma que ela não entendia de maneira alguma. As outras vozes riam e vibravam.

— Jan, o seu amante... Que visão agradável ele tem de você agora!

— Você acha que ele se casaria com a assassina suja que viu?

— Ele dormiu com uma assassina e agora ela carrega seu filho no ventre.

— Ele vislumbrou a verdade. Espero que você sempre se lembre do horror no rosto de Jan ao ser reconhecida.

Aquela última voz era de Fynn, satisfeito e presunçoso. — Calem-se! — gritou a Pedra Branca para as vozes, mas elas só riram ainda mais alto e abafaram o que ela ouvia com os próprios ouvidos.

Ela havia seguido Talis e o líder ocidental desde a Ilha até o Cisne Vermelho, após verificar que Nico parecia a salvo. Ela estava furiosa, com raiva de Talis — que rompera sua promessa com a Pedra Branca. Os numetodos... eles podiam ser hereges nojentos, mas trataram Nico com gentileza e respeito, especialmente a mulher.

Mas Talis...

Talis traiu Nico, e por causa disso a matarh do menino estava à beira da morte, e a Pedra Branca dissera para Talis qual seria o preço. Dissera e cobraria o pagamento. A Pedra Branca sempre cumpria sua palavra.

Ela seguiu Talis então, quando — do nada — sons de batalha irromperam ao leste e a Pedra Branca viu o líder ocidental agrupar seus homens para emboscar os chevarittai e os soldados firenzcianos. De repente, havia muita luta acontecendo, muito movimento para ela agir. A Pedra Branca ficou preocupada naquele momento, se perguntando se Nico estava realmente a salvo, quis desesperadamente correr até o menino, com medo de que Talis pudesse ter cometido um erro. Mas ela o viu sair de mansinho do quarto onde havia entrado e depois correr para a rua. A Pedra Branca seguiu Talis. Ela assistiu ao confronto e viu a chance. Passou a faca na garganta dele e sentiu Talis morrer ao deixar cair o frasco com o pó negro. E ao deitá-lo no chão e colocar a pedra no olho do homem, a Pedra Branca o viu de relance.

Jan.

O choque foi palpável. Ela sentiu com tanta intensidade como se o coração tivesse sido posto diretamente sobre uma camada escondida de brasas incandescentes. Jan: ele ficou parado ali, e ela testemunhou o lento reconhecimento de seu rosto. A expressão de Jan a assustou. Era permeada de choque e carinho, de saudade e horror. Vê-lo foi horrível e maravilhoso ao mesmo tempo. Ela quis correr até Jan, quis pegar sua mão e colocar na barriga inchada e sussurrar: aqui, querido. Esta é a vida que criamos juntos. Isso é o que o nosso amor fez. Ela também quis correr, esconder o rosto e fingir que essa revelação nunca aconteceu.

O segundo impulso foi mais forte.

Ela pegou a pedra branca do olho de Talis e fugiu, com vontade de que Jan a seguisse e com medo de que ele realmente fizesse isso.

A Pedra Branca não parou até chegar à Pontica Kralji. Ali não havia homens estranhos da cor de bronze; nenhum que estivesse vivo, de qualquer forma, embora o chão estivesse cheio de corpos ocidentais. Ela viu soldados usando os tons preto e prateado de Firenzcia por toda parte nas ruas — o que fez Fynn se manifestar com empolgação dentro de sua cabeça —, cruzou a Pontica cuidadosamente e escondeu-se depressa na Ilha. Isso foi fácil; havia tantas paredes desmoronadas, tantos prédios queimados. Ela foi até a cabana do jardineiro no terreno do palácio para onde Nico e sua matarh tinham sido levados, onde o curandeiro ocidental trabalhou no corpo ferido de Serafina.

O curandeiro e todos os soldados ocidentais tinham ido embora, mas os medos da Pedra Branca passaram quando viu que Nico ainda estava ali, segurando a mão da matarh, ajoelhado ao lado da mesa onde ela estava deitada — devia ter sido uma das mesas de jantar do palácio antigamente, ainda coberta por damascos rendados e elegantes, agora sujos e manchados de sangue. Ela notou o movimento da respiração lenta no peito de Serafina, mas os olhos continuavam fechados e ela parecia sem reação.

— Nico — falou a Pedra Branca. O menino levou um susto e apertou com mais força a mão da matarh.

— Ah — disse ele um momento depois. O rosto ficou um pouquinho alegre. Nico fungou e passou a mão pelo nariz. — Elle. É você.

A Pedra Branca confirmou com um aceno e foi até o menino. Ela segurou com as mãos de Nico e a de Serafina. Viu que ele olhava fixamente para o sangue que manchava a pele da matarh. — Precisamos ir embora, Nico.

— Eu não posso abandonar a matarh. Talis voltará em breve.

A Pedra Branca fez que não com a cabeça. Ela apertou com força a mão dele. A pele era quente, tão quente, e ela sentiu a criança dentro dela dar um pulo com o toque; o movimento da vida, o despertar. Ela levou um ligeiro susto com a sensação. — Não. Infelizmente, Talis está morto, Nico.

Ela percebeu as lágrimas surgirem nos olhos do menino e o lábio inferior tremer. Depois ele fungou de novo e piscou. — Isso é verdade?

Ela concordou com a cabeça. — É verdade, Nico. Sinto muitíssimo.

O menino chorava plenamente agora, as palavras saíram entre os soluços. — Mas minha matarh... Eu não posso... Eles acabaram de abandoná-la... Ela está dormindo e eu... não consigo acordá-la...

— Sua matarh gostaria que você fosse comigo. Olhe para ela, Nico. Sua matarh ama muito você, eu tenho certeza que sim, mas não sei se ela acordará um dia, e a cidade está cheia de soldados e morte. Ela gostaria que você fosse comigo porque posso mantê-lo a salvo. Eu manterei você a salvo.

— Mas eu fiz isso com ela — disse Nico. — A culpa é minha. Quero que ela saiba que eu sinto muito.

A Pedra Branca apertou a mão de Nico em volta da mão da matarh. — Ela sabe. Nico, temos que correr.

Ela tirou a mão do menino de Serafina, abriu os dedos com delicadeza. Ele soltou a matarh com hesitação, mas sem reclamar. — Agora dê um beijo — falou a Pedra Branca. — Ela sentirá e saberá.

Nico ficou de pé, inclinou-se sobre o corpo da matarh e deu um beijo na bochecha. Ela colocou a mão de Serafina, que pendia para o lado, sobre a mesa e deu um tapinha. Nico olhou para trás, então, com os olhos cheios de lágrimas, que não caíam.

— É o momento — disse a Pedra Branca.

Juntos, de mãos dadas, eles foram embora da cidade em chamas e ruínas.

 

Allesandra ca’Vörl

— AQUI ESTÁ A SENHORA, MATARH. Ele é todo seu. Espero que fique feliz.

As palavras de Jan saíram como um banho de água escaldante. Elas queimaram e cauterizaram Allesandra, foram ditas com frieza e desdém espantosos e cruéis. O hïrzg fez um gesto grandioso e debochado na direção do Trono do Sol. Ela olhou fixamente para a enorme peça de cristal entalhado, que estava estranhamente fora do lugar, no meio das ruínas do Velho Templo. O trono foi rachado e mal reformado; estava coberto por um pano com estranhos desenhos geométricos, as ruínas do domo rachado e da claraboia estavam espalhadas sobre o piso quebrado de cerâmica, e por toda parte no salão havia os restos de um banquete qualquer. Ratos espreitavam os cantos do cômodo, e o ar fedia à fumaça e à carne podre. Perto dos fundos havia um corpo, coberto às pressas por uma tapeçaria.

Allesandra sabia de quem era o cadáver encoberto: de Sigourney, cuja cabeça separada do corpo estava enfiada em uma lança perto do trono.

O regente e os dois numetodos estavam recortados pela luz do sol nas portas abertas do templo, longe demais para ouvir a conversa de Jan com ela. O starkkapitän ca’Damont dava ordens na praça do templo e despachava patrulhas para garantir que todas as tropas ocidentais estivessem fora da cidade e para impedir que os sobreviventes saqueassem.

Allesandra ouviu o arrastar de passos nas portas do templo; ao olhar para trás, viu o archigos Semini pisar com cuidado sobre os destroços no chão. Jan também viu o homem e disse — Ah, archigos Semini. Estou contente que esteja aqui, uma vez que isso também é seu. Eu lhe dou Nessântico. Você não ficará mais em Brezno.

— Meu hïrzg? — perguntou Semini ao olhar com preocupação de Allesandra para Jan. — Eu pensei que o archigos talvez pudesse ficar em Brezno agora, dada a destruição daqui. Eu poderia designar um a’téni para Nessântico...

— Ah, eu concordo — falou Jan, e o sorriso provocou um arrepio em Allesandra. Era o sorriso sério e indiferente que o vatarh de Allesandra usava quando estava furioso. Ela o tinha visto muitas vezes na infância e na idade adulta, quando ele finalmente a trouxera de volta para Firenzcia. Agora, a expressão de desdém e deboche voltaram. Fuligem e sangue sujavam o rosto de Jan, e o braço e a perna direitos estavam bem enfaixados. Ele mancava e não parecia capaz de erguer o braço da espada. Allesandra perguntou-se o que o filho tinha visto, o que sentia. Ela queria envolvê-lo nos braços e confortá-lo como fazia quando Jan era criança, mas o hïrzg estava a um cauteloso passo de distância, como se temesse exatamente isso. — Veja bem, haverá um archigos em Brezno. Quanto a ter um archigos em Nessântico, bem... — Jan deu de ombros friamente. — A escolha é sua. Você pode querer reivindicar o título e mantê-lo por um tempo, embora você sempre tenha dito que queria uma fé concénziana reunificada. Ou talvez o archigos em Brezno deixe você ser o a’téni aqui em Nessântico, apesar de eu aconselhar o archigos contra isso.

— Hïrzg? — balbuciou ca’Cellibrecca. O rosto ficou no tom de branco dos fios que salpicavam a barba e o cabelo escuros; o contraste foi forte. — Eu não entendo.

— Talvez a matarh explique para você, uma vez que agora esta cidade é dela — disse Jan.

Allesandra olhou fixamente para o trono. Ela sentia-se morta, entorpecida. Se alguém a cortasse, pensou, ela não sentiria nada, nem mesmo o calor do sangue na pele. — Meu filho me deu Nessântico, mas me informou que Firenzcia não se reunificará com os Domínios — falou Allesandra para Semini com uma voz tão morta quanto as emoções.

— Considere isso como meu presente de casamento, matarh — falou Jan. — Pelo casamento que eu nunca tive, com a mulher que a senhora mandou para longe de mim.

— Eu estava protegendo você, Jan — disse Allesandra, embora não houvesse energia na reclamação. — Elissa era uma fraude. Uma impostora.

— Eu sei. Ela foi contratada para matar Fynn.

— O quê? — Isso fez com que Allesandra erguesse a cabeça e provocou uma breve onda de fúria. Ela virou-se para encará-lo. — O que você está dizendo? A Pedra Branca matou Fynn.

— Matou, sim — falou Jan com o mesmo sorriso irritante. — Deixe-me dizer uma coisa que a senhora talvez não saiba, matarh, embora devesse saber: Elissa era a Pedra Branca. Ela me usou para se aproximar de Fynn.

— Isso não é possível — disse Allesandra. Não podia ser; não era possível. A voz que ela ouviu, a mulher intermediária; não, não era possível, e, no entanto... Allesandra lembrou-se da voz, mais aguda do que seria esperado de um homem. E ela nunca tinha visto a Pedra Branca. Apenas presumiu...

— Acredite no que quiser — dizia Jan. — Eu realmente não me importo. — Ele gesticulou novamente para o trono. — Tome seu novo lugar, matarh. Não se acanhe. A senhora esperou por tanto tempo, afinal, e o regente ca’Rudka renunciou a qualquer pretensão ao título. A senhora pode mandar Semini abençoá-la. Talvez os ca’ e co’ voltem à cidade agora, para que a senhora possa lhes dizer que há uma nova kraljica.

Jan começou a se afastar, na direção das portas abertas. Ela deu um passo e pegou o braço ferido. — Jan. Filho...

Ele soltou o braço, fez uma careta ao sentir a dor evidente, e aquilo foi uma agonia maior para Allesandra do que qualquer golpe de espada. — Sente-se, matarh. Assuma seu Trono do Sol. A senhora possui o que sempre quis. Aproveite o presente que eu lhe dei.

Dito isso, ele caminhou na direção de ca’Rudka e dos demais. Allesandra observou o filho sair, sentiu vontade de chamá-lo, de impedi-lo de ir embora, de parar o sofrimento.

Ela não fez nada. Observou Jan chegar à passagem iluminada, ouviu sua risada ao dar um tapinha nas costas de ca’Rudka com a mão que não estava machucada. Os quatro foram embora e a luz do sol desabou sobre deles.

Semini olhava para o céu, onde o domo de Brunelli esteve, e respirava alto pelo nariz. Allesandra andou lentamente até o Trono do Sol.

Ela sentou-se.

Nas profundezas do cristal espesso, não havia luz. Nenhuma reação. O trono permaneceu melancolicamente escuro.

1. Dupla mão é um termo de cavalaria para o oficial que tanto pode comandar um esquadrão quanto um batalhão. Também é o caso do soldado que luta com um mosquete e um sabre ao mesmo tempo, que não é aplicável aqui. (N. do T.)


Epílogo: Nessântico

ELA ESTAVA ARRASADA. Ela estava arruinada.

Ela foi devastada pelo fogo e pela magia; foi cortada pelo aço. Foi saqueada e pilhada. Os maiores tesouros danificados ou perdidos. Os prédios que foram sua coroa eram ruínas desmoronadas e pilhas de pedras escurecidas. O colar de joias da Avi a’Parete não reluzia mais à noite. Agora só havia as estrelas no céu, que brilhavam e debochavam da própria escuridão da cidade.

Metade da população estava morta ou havia fugido. Ela sentiu, pela primeira vez em muitos séculos, a marcha de soldados conquistadores em suas ruas: não sentiu uma vez, mas duas. Havia uma kraljica no Trono do Sol, mas ela olhava para um império que murchou e encolheu.

Não havia como negar a magreza da face refletida no espelho sujo do A’Sele: o rosto da cidade era o rosto de uma velha, um rosto encarquilhado, um rosto com cicatrizes, feridas abertas e dor. Não havia beleza ali, nenhuma glória, nenhum deslumbramento.

Tudo isso foi embora, como se nunca tivesse existido.

Quando vieram as chuvas, como era frequente naquele outono, foi como se o mundo inteiro chorasse por ela: a cidade, a mulher. As tempestades podiam lavar a fuligem e extinguir as chamas, mas não podiam curar. Elas podiam refrescar e aplacar, mas não podiam restaurar. Levaram embora os corpos, o lixo e a terra que entupia o rio, mas os trovões não conseguiam destruir as memórias.

As memórias permaneceriam.

Permaneceriam por muito, muito tempo...

Karl ca’Vliomani

ULY NÃO ESTAVA NO MERCADO DO VELHO DISTRITO, embora tivesse estado. As pessoas lembravam-se do estrangeiro tatuado e com cicatrizes, mas disseram para Karl que o homem empacotou as mercadorias e limpou a barraca há apenas dois dias, no mesmo dia em que o kraljiki Audric tinha sido assassinado. Não, nenhum dos proprietários das barracas próximas sabia onde Uly tinha ido, mas (disseram) havia algumas pessoas, que andaram comprando sua poção especial de fertilidade, que poderiam saber.

Karl esperava confrontar esse Uly e arrancar a verdade sobre o que aconteceu com Ana imediatamente. Um novo fogo ardia em seu estômago, mas o alívio e o desfecho não foram imediatos.

Eles levaram dias.

Dias que prejudicaram a recente intimidade que Karl tinha com Varina. O fantasma de Ana pairava entre os dois, ressuscitado pela presença de Talis e sua história, e Varina recuou diante do espectro que Karl não conseguia atravessar. Ela ainda pegava na mão de Karl ou passava os dedos no rosto dele, mas agora havia tristeza no toque, como se Varina fizesse carinho em uma memória. Karl beijava Varina, mas, embora os lábios dela fossem macios e quentes e ele quisesse ceder, o beijo era muito efêmero e distante, como se Karl beijasse Varina através de um véu invisível.

Dias em que ele considerava se devia chamar os numetodos de volta para a cidade e em que decidiu que ainda era perigoso demais. Mika, torcia Karl, estava com a família em Sforzia; deixe que fique lá, deixe que o resto dos numetodos dispersados permaneçam escondidos. Deixe que a Casa dos Numetodos continue vazia e às escuras.

Dias em que as notícias pareciam ficar cada vez piores: os ferimentos terríveis da kraljica Sigourney, a invasão e o saque à Karnor, um exército oriental no solo de Nessântico e seus navios nas águas do A’Sele, a convocação da Garde Civile, os “esquadrões de recrutamento” que alistavam homens, muitas vezes (de acordo com os rumores) querendo ou não servir. Karl era velho o bastante para não atrair muito interesse, mas Talis, não. Ele ficava cada vez mais confinado em casa e tinha que tomar cuidado quando se arriscava a sair para evitar os esquadrões. Karl tinha as próprias dificuldades — seu rosto certamente era conhecido por muitos gardai da Garde Civile, da Garde Kralji e entre os ténis, e ele tinha que tomar cuidado e se disfarçar antes de sair, mudar o sotaque característico de Paeti e não deixar ninguém olhar com muita atenção para o seu rosto.

Esses foram dias em que Karl descobriu, a contragosto, que Talis era mais a pessoa que Serafina dizia que era do que a pessoa que Karl queria que ele fosse. O embaixador ainda não confiava completamente no homem, e dormiu muito pouco desde aquela primeira noite, pois Talis, Serafina e Nico dormiam, juntos, no mesmo quarto que ele e Varina. Karl ficou de olho em Talis, especialmente na manhã seguinte, quando ele limpou a tigela de latão na qual eles acenderam a areia negra e — como Karl lembrou-se que Mahri fazia — encheu com água limpa e polvilhou com outro pó, mais claro. Talis então abriu o Segundo Mundo com um feitiço, e uma névoa esmeralda encheu a tigela. Uma luz agitada pulsou no rosto do homem enquanto ele entoava e olhava fixamente para as profundezas da tigela.

Na luz verde, Karl viu as rugas finas no rosto do homem, que quase ficavam mais profundas enquanto ele observava. Talis já parecia mais velho do que Serafina disse que ele era; Karl achava que sabia o motivo agora: o método de magia dos ocidentais custava caro para o usuário.

— Mahri costumava dizer que via o futuro aí — falou Karl depois, quando Talis, exausto e andando como um velho, jogou a água na jardineira da janela da sala. — Ele não parecia ser muito bom nisso, se não viu a própria morte.

Talis secou a tigela cuidadosamente com a borda da bashta, sem olhar para Karl. — O que vemos na tigela premonitória não é o futuro, mas sombras de possibilidade. Vemos probabilidades e chances. Axat sugere o que pode acontecer se seguirmos um determinado caminho, mas nunca há uma garantia. — O homem guardou a tigela novamente na bolsa que sempre carregava e deu um sorriso ligeiro para Karl. — Todos nós podemos mudar nosso futuro, se formos fortes e persistentes o suficiente.

Karl torceu o nariz para a afirmação. Talis foi então até Nico, e os dois se engalfinharam, rindo, enquanto Serafina observava com um sorriso, e o amor entre os três ficou palpável. Ele ouviu Varina entrar na sala descalça, com olheiras de sono. Ela também observava, e Karl não foi capaz de decifrar o que viu no rosto de Varina. Ela deve ter sentido o olhar porque se virou para o embaixador, deu um sorriso triste e depois virou o rosto novamente. Varina cruzou os braços sobre o peito e abraçou a si mesma, e não Karl.

Todo dia, Karl ia ao mercado do Velho Distrito, geralmente com Varina, na esperança de encontrar aqueles elusivos clientes de Uly e fazer perguntas. Após vários dias infrutíferos, tornou-se rotina; os dois às vezes levavam Nico junto, após prometerem à Serafina que, caso encontrassem Uly, eles não o confrontariam.

Foram quase duas semanas, quando aconteceu.

— Ah, sim, a mulher que eu falei para você acabou de passar aqui — disse o fazendeiro ao colocar uma caixa de cogumelos no lugar. — Ela usava uma tashta amarela com um dragão bordado na frente. Provavelmente ainda está por aí; ela disse que estava atrás de peixe. — O homem apontou para a esquerda. — Você pode checar na barraca do Ari, logo ali. Ele acabou de trazer umas trutas do Vaghian.

Karl ouviu Varina respirar fundo, viu quando segurou Nico com mais força. Ele acenou com a cabeça, jogou uma folia para o homem e avançou pelas multidões que passeavam lentamente pelas vielas sujas do mercado; quase todos eram mulheres e homens mais velhos. Eles sentiram o cheiro da barraca do pescador antes de vê-la, e Karl vislumbrou uma tashta amarela ali. — Karl? — disse Varina.

— Eu apenas perguntarei a ela. Se a mulher souber onde Uly está, então levaremos Nico para casa primeiro. — Ele deu um tapinha na cabeça do menino. — Não podemos deixar sua matarh chateada conosco, afinal — falou Karl para Nico.

Ele deixou os dois lá e aproximou-se da barraca. A mulher virou-se quando Ari mostrou um peixe com escamas da cor do arco-íris, e Karl viu a cabeça do dragão, de cuja boca saía uma fumaça roxa. O embaixador avançou até estar ao lado dela e disse — Com licença, vajica, mas se puder responder a uma pergunta, eu compro o peixe para a senhora. — Antes que a mulher pudesse responder, Karl contou a história que os dois haviam ensaiado e apontou de vez em quando para Varina e Nico: que ele tinha acabado de casar, que a esposa tinha um filho do antigo marido e agora os dois queriam um filho próprio, mas por serem mais velhos agora, os dois não conseguiam conceber; que ele ouviu falar que havia um estrangeiro chamado Uly, que antigamente tinha uma barraca aqui no mercado onde vendia poções exatamente para aquele problema, e que um dos vendedores mencionou que ela podia saber onde esse tal de Uly estaria. A mulher olhou de Karl para Varina e Nico.

Ela realmente sabia. — Na verdade, acabei de falar com ele. No Cisne Vermelho, no Beco do Sino, pertinho daqui. Ele tinha acabado de pedir uma cerveja, então imagino que ainda esteja lá.

Karl agradeceu à mulher, pagou o pescador pela truta sem pechinchar, e voltou para Varina e Nico. Ele agachou-se em frente ao menino e disse — Varina levará você para casa agora, Nico. — Karl não ousou erguer os olhos para ela, pois podia imaginar os pensamentos refletidos pelo rosto de Varina. — Eu ficarei aqui um pouquinho mais.

Nico concordou com a cabeça, e Karl abraçou o menino. — Vão agora, vocês dois — falou ao se levantar.

— Karl, você prometeu... — disse Varina.

— Eu não farei nada — falou Karl, e perguntou-se se isso era verdade. Ele contou o que a mulher disse. — Eu sei onde ele está neste momento. Só vou segui-lo. Descobrirei onde ele vive. Aí podemos descobrir como abordá-lo.

Karl notou a desconfiança no jeito que Varina mordeu o lábio inferior, no olhar vazio, no lento balançar da cabeça. Ela agarrou Nico com força. — Você promete?

— Prometo.

Com a cabeça inclinada para o lado, Varina encarou Karl e disse, finalmente — Ande, Nico. Vamos.

Karl abaixou-se e abraçou Nico novamente e depois Varina, ao se levantar. Foi como abraçar uma das colunas do Templo do Archigos. Ele ficou observando os dois até desaparecerem na multidão do mercado.

O Beco do Sino era uma viela suja a alguns quarteirões da Avi a’Parete, com apenas alguns passos de largura e apinhada de lojas de propósitos indeterminados, acima delas havia apartamentos esquálidos às escuras. O Cisne Vermelho ficava na esquina onde a viela cruzava uma rua maior, que levava à Avi, e tinha um placa com tinta descascando. Karl entrou e parou para os olhos se ajustarem à penumbra do interior. A única luz lá dentro vinha das nesgas das persianas e das velas que pingavam em um único lustre e em cima de cada mesa. Assim que Karl conseguiu enxergar na luz mortiça, foi fácil encontrar Uly: um homem de pele acobreada, com cicatrizes e tatuagens no rosto e nos braços.

Karl foi ao bar e pediu uma caneca de cerveja ao garçom com cara de poucos amigos, de costas para Uly. O interior ficou subitamente claro quando outra pessoa — uma mulher — entrou no bar, e Karl protegeu os olhos contra a luz.

Ele tinha a intenção de fazer como dissera para Varina: encontrar Uly e seguir o homem até descobrir onde morava. Mas Karl observou o sujeito beber a cerveja, e imagens do corpo de Ana, esparramado e destruído, surgiram em sua mente, de maneira que ele mal conseguia pensar, e uma raiva cresceu lentamente no estômago, subiu ao peito até dar um abraço de veias saltadas nos pulmões e coração.

Karl tomou meia cerveja em um só gole. Ele pegou a caneca e foi até a mesa do ocidental.

— Você é Uly? — perguntou Karl. Ele sentou-se em frente ao sujeito, que o observava com atenção, como se estivesse pronto para lutar. Os músculos pulsaram nos braços fortes de Uly, e uma mão se moveu para debaixo da mesa.

— E se eu for? — perguntou o homem. A voz tinha o mesmo sotaque de Talis, o mesmo de Mahri, embora fosse mais grave e acentuado, e Karl teve que escutar com atenção para entender as palavras.

— Eu soube que você faz poções. Para fertilidade.

O homem empinou um pouco o queixo e pareceu relaxar. A mão direita voltou à mesa arranhada e com marcas de canecas de cerveja. — Ah, isso. Eu faço sim. Você precisa de algo assim?

Karl deu de ombros. — Não de algo assim, mas talvez... de outra coisa. Eu tenho um amigo; o nome dele é Talis. Ele me disse que você pode fornecer uma coisa não para criar vida, mas para acabar com ela. Rapidamente.

Karl observou o rosto do homem ao falar. À menção de Talis, uma sobrancelha ergueu-se levemente. Uly levantou um canto da boca, como se achasse graça. Ele esfregou o crânio com marcas e tatuagens negras. As mãos eram grandes, a pele áspera, e havia uma cicatriz comprida no dorso: as mãos de um comerciante. Ou de um soldado. — Uma coisa assim deveria ser ilegal, vajiki. Mesmo que pudesse ser feita.

— Estou disposto a pagar bem por isso. Muito bem.

Ele concordou devagar com a cabeça. Uly levantou a caneca e bebeu tudo em um só gole, depois secou a boca com as costas da mão e disse — Está um belo dia. Vamos dar uma volta e conversar.

O homem levantou-se e Karl ficou de pé junto com ele. O resto do corpo atarracado de Uly era tão musculoso quanto os braços. Quando os dois chegaram à porta da taverna, uma mulher que corria para lá esbarrou em Karl e quase o derrubou sobre Uly. — Perdão, vajiki! — disse ela. O rosto estava sujo de terra, havia ranho seco em volta do nariz, e o hálito era desagradável. A mulher pegou a mão de Karl e colocou algo em sua palma. — Para dar sorte. O senhor tem que guardar isso, vai trazer boa sorte, vajiki. Guarde direitinho. — Ela fechou os dedos de Karl em volta do objeto, soltou o embaixador e saiu correndo pela porta. Karl olhou para o que a mulher colocara em sua mão: um seixo pequeno e claro. Uly riu.

— A mulher deve ter teia de aranha na cabeça — falou ele. — Vamos, vajiki.

Karl colocou o seixo no bolso da bashta e seguiu Uly pelo Beco do Sino, depois cruzaram a rua maior e entraram em outro beco em curva. Eles seguiam para o norte, na direção do Parque do Templo. — E qual é o seu nome, vajiki, uma vez que sabe o meu? — perguntou Uly enquanto os dois andavam.

— Andus. É tudo o que você precisa saber.

— Ah, somos cautelosos, não, vajiki Andus? Isso é bom. Isso é bom. E quem você quer que morra?

— Isso é da minha conta, não da sua.

— Discordo complemente — falou Uly —, pois a Garde Kralji viria atrás de mim e de você também, e eu não tenho interesse em me hospedar na Bastida. Eu exijo que me diga um nome, ou não faremos negócio.

— É o archigos. Eu sei que você já tem alguma experiência com isso.

Karl observou o homem, com um feitiço pronto para ser lançado a uma palavra e um gesto. Uly hesitou apenas de leve, mal perdeu o passo, mas, tirando isso, não houve resposta alguma. Ele continuou caminhando, e Karl teve que se apressar para alcançá-lo. A expressão do sujeito não se alterou, nem a atitude. Karl esperou que ele dissesse alguma coisa, a mão ao lado do corpo. Os dois passaram por um beco transversal...

... e Uly avançou contra Karl, uma mão grande prendeu a de Karl quando ele tentou erguê-la, e a outra mão tapou a boca do embaixador e bateu com a cabeça dele contra o alicerce de pedra de um prédio. O impacto fez Karl perder o fôlego e provocou fisgadas na cabeça. O joelho de Uly golpeou o estômago do embaixador. Karl sentiu ânsia de vômito e percebeu que estava caindo. Algo — um joelho, um punho, ele não sabia dizer o que — bateu na sua cabeça. Ele não conseguia enxergar, mal era capaz de respirar. Sentiu os paralelepípedos frios debaixo do corpo e a água imunda empoçada ali.

— Você é um tolo, embaixador ca’Vliomani — sibilou Uly. — Achou que eu não lhe reconheceria?

Você morrerá. Agora. Foi uma conclusão sombria.

Ele ouviu botas nos paralelepípedos; Karl percebeu que era um único par de passos e esperou que o golpe final viesse. O embaixador ouviu um grunhido e um grito de dor, e algo pesado caiu no chão, ao lado dele. Ele sentiu uma mão levantar sua cabeça e amarrar um capuz sobre ela para que não pudesse enxergar. O pano cheirava a suor velho. — Fique quieto e não será ferido — disse uma voz, que não era a de Uly. Alguém com um pouco de sotaque não identificável, nem grave ou agudo, o que tornava difícil sequer determinar o gênero da pessoa. — Tire o capuz e você morre. — Algo pontiagudo foi pressionado contra o pescoço, e Karl gemeu com a expectativa do golpe cortante. — Acene com a cabeça se entendeu.

Karl concordou, e a lâmina da faca desapareceu. Ele ouviu mais um barulho, parecido com um tapa e um gemido que só podia ser de Uly. — Responda se você quiser viver — disse a voz, embora não se dirigisse a Karl. — Você matou a archigos Ana, não foi? Você preparou a areia negra.

— Não. — Uly começou a dizer, mas a voz foi interrompida por um gemido de dor. — Tudo bem, tudo bem. Sim, eu ajudei a matá-la. Com a areia negra. Mas a ideia não foi minha. Eu só dei a substância para o homem e contei como usá-la. Não sabia o que ele pretendia fazer com ela. Ai! Droga, isso é verdade! — Lá se foi a preferência de Uly por morrer em vez de falar, pensou Karl. Talvez Talis não conhecesse seus guerreiros tão bem, afinal.

— Quem?

— Eu não sei... Ai! Por Axat! Pare! Ele me disse que o nome era Gairdi ci’Tomisi, mas não sei se o nome é verdadeiro ou não. Ele pagou bem, e isso era tudo que eu sabia ou que me importava!

Houve mais sons baixos e um longo lamento que só podia ter vindo de Uly. O homem ofegava agora, choramingava de dor, o fôlego era rápido e desesperado. — Por favor. Por favor, pare.

— Então fale mais a respeito deste homem — disse a outra voz. — Rápido.

— Parecia um ca’ ou co’, pelo jeito de falar. Firenzciano, talvez, pelo sotaque. Disse que as “ordens” vieram de Brezno, em todo caso. É tudo que sei. Eu preparei a substância, dei para o homem, e ele foi embora. Fiquei tão surpreso quanto qualquer um quando a archigos foi morta.

Karl queria desesperadamente arrancar o capuz do rosto para ver o que acontecia, mas não ousou. Houve mais sons: uma briga animada, um baque suave e depois um farfalhar. Alguém puxou sua bashta e remexeu o bolso. Ele pensou ter ouvido passos leves, mas, com a cabeça latejando e apitando, os sons eram tênues demais para Karl ter certeza.

Depois, por vários instantes, não houve absolutamente nada, apenas os sons distantes da cidade. — Alô? — sussurrou Karl. Não houve resposta. Ele levou as mãos ao pano amarrado em volta da cabeça e arrancou do rosto. O que viu fez com que o embaixador recuasse, horrorizado.

Karl olhou fixamente para o corpo de Uly nos paralelepípedos, com a garganta cortada e sangue espalhado pelas roupas. O olho direito estava aberto para o céu, mas sobre o esquerdo havia a pedra que a mulher deu para ele na taverna.

 

Allesandra ca’Vörl

SEMINI TENTOU ENTRAR EM CONTATO COM ELA por vários dias. Allesandra deixou as mensagens do archigos em cima da mesa. Quando ele mandou seu o’téni falar diretamente com ela, o homem foi informado pelos assistentes muito bem instruídos da a’hïrzg que Allesandra estava em reuniões e não podia ser incomodada. Quando o próprio Semini saiu do templo para vê-la, ela fez questão de sair da cidade com Jan para ver a reunião das tropas.

Quando Semini — sob a desculpa de trabalhar com os ténis-guerreiros que também estavam sendo reunidos — veio aos campos ao sul de Brezno, não houve, finalmente, jeito de evitá-lo.

Semini era um mancha escura e verde que contrastava com a brancura banhada pelo sol da lona da tenda. Do lado de fora, o acampamento militar agitava-se de manhã: com o clamor do metal conforme os ferreiros trabalhavam nas armas, armaduras e uniformes; o chamado de soldados; as ordens aos berros dos offiziers; o burburinho geral de movimentação; o som de pés que marchavam em uníssono enquanto os esquadrões treinavam. Cheiros entraram com a brisa quando Semini deixou a aba da tenda bater ao entrar: o cozinheiro e as fogueiras, o odor de lama revirada por milhares de pés, e o leve fedor das valas que serviam como latrinas.

Allesandra conversava com Sergei ca’Rudka, sentada atrás da mesa de campanha que um dia foi de seu vatarh, com painéis frontais pintados com imagens da famosas batalhas do hïrzg Jan ca’Silanta na Magyaria Oriental. — ... disse ao hïrzg e ao starkkapitän que esperem resistência assim que cruzarmos a fronteira — dizia Sergei, que parou e virou-se quando o olhar de Allesandra passou por cima de seus ombros na direção de Semini. — Ah, archigos. Talvez eu deva ir embora.

— Volte depois da Segunda Chamada e nós continuaremos a nossa conversa, regente — falou Allesandra. Sergei fez uma mesura, esfregou a lateral reluzente do nariz, e saiu da tenda dando um aceno de cabeça e o sinal de Cénzi para o archigos.

Semini parecia pouco à vontade, como se esperasse que ela se levantasse e o abraçasse assim que a aba da tenda se fechasse quando ca’Rudka saiu. Após um momento, ele finalmente fez o sinal de Cénzi para Allesandra e trocou o pé de apoio ao ficar parado diante da mesa como um offizier convocado por ela. — Allesandra. — Semini começou a dizer, e ela fez uma cara feia.

— Qualquer pessoa pode estar ouvindo pela lona da tenda. Nós estamos em público, archigos Semini, e eu espero que o senhor se dirija a mim de maneira apropriada.

Allesandra viu que ele apertou os olhos, irritado com a repreensão. Ele franziu os lábios sob a cobertura do bigode. — A’hïrzg ca’Vörl — falou Semini com lentidão proposital —, peço desculpas. — Depois, ele abaixou o tom em um quase sussurro, baixo e grave. — Espero que nós ainda possamos falar abertamente. Francesca, ela...

Allesandra balançou a cabeça de leve; ao movimento, Semini parou. — Eu falei com sua esposa — disse ela, com ênfase especial. — Naquela noite. Tivemos uma conversa ótima. Francesca parece acreditar que você teve algo a ver com a morte da archigos Ana.

Ela realmente não esperava que Semini reagisse, coisa que ele não fez. O archigos olhou para a a’hïrzg com uma expressão neutra e falou — Eu sei que a senhora tem algum carinho pela falsa archigos. Dado o que aconteceu com a senhora, eu compreendo. Mas Ana ca’Seranta era minha inimiga. Eu não sofri com seu falecimento, nem um pouquinho, e se minha alegria com a morte dela lhe ofende, a’hïrzg, então tenho que aceitar isso. Eu rezei, muitas vezes, que Cénzi levasse a alma dela, porque a mulher acreditava em coisas erradas, e foi em grande parte responsável pelo rompimento da Fé e pela cisão dos Domínios.

— Ela também é a razão de eu ser quem sou. Sem ela... — Allesandra deu de ombros. — Eu poderia não estar aqui. Jan poderia nunca ter nascido.

— E, no mínimo, por causa disso, eu rezei por ela quando morreu. — Semini deu um passo em direção à mesa de campanha, e parou. — Allesandra, o que aconteceu entre nós? É óbvio que você está me evitando. Por quê?

— Quando pretendia me contar que foi você que mandou matar Ana? Ou não pretendia me contar?

— Allesandra...

— Se não foi você, então negue, Semini. Diga-me agora que não foi você.

Allesandra não tinha certeza se queria que ele respondesse. Nos dias que se seguiram, ela tinha — através da equipe palaciana, através do comandante da Garde Brezno — realizado sua própria investigação. O nome de Gairdi ci’Tomisi havia surgido, e ela mandou o comandante co’Göttering levar o mercador, que por acaso estava em Brezno, para a Bastida a fim de ser interrogado. Ci’Tomisi, sob a persuasão menos do que gentil da Bastida, entregou toda a história: que servia Firenzcia e o archigos ca’Cellibrecca como agente duplo; que conhecia um ocidental em Nessântico que vendia poções, que o homem contara a ele a respeito de um poderoso preparado ocidental, que o sujeito havia demonstrado como essa “areia negra” funcionava e que ci’Tomisi falou para seus contatos no Templo de Brezno sobre seu poder, e que recebeu uma mensagem de volta (do “archigos em pessoa”) que — se ele fosse capaz — uma demonstração contra a Fé de Nessântico seria “interessante e muito bem recompensada”; que ele usou os contatos no Templo do Archigos em Nessântico para entrar à noite; que colocou a areia negra no Alto Púlpito e uma vela de tempo queimando no interior, com a chama programada para tocar a areia negra no mesmo momento em que a archigos Ana desse a Admoestação.

Ci’Tomisi confessou para salvar a própria vida, choramingou e chorou. Ele conseguiu, mas Allesandra perguntou-se se, na cela suja e imunda nas profundezas da Bastida, ci’Tomisi desejaria que não tivesse conseguido.

A a’hïrzg também sabia que Semini já devia ter percebido que ci’Tomisi havia sido preso e que provavelmente tinha confessado. Portanto, Allesandra observava Semini e imaginava o que ele diria, se lhe diria a mentira e negaria qualquer conhecimento a respeito do caso, e como ela deveria reagir se o archigos fizesse isso.

Mas Semini não negou. — Eu sou o archigos. Preciso fazer o que parecer ser melhor para a fé concénziana, e, na minha opinião, a Fé permaneceria tão quebrada quanto o mundo de Cénzi até que aquela mulher morresse.

Ao ouvir isso, a mão de Allesandra foi ao pingente com o globo rachado que ela usava, aquele que fora dado por Ana. A a’hïrzg viu que Semini observou o gesto e falou — Cénzi teria levado Ana em Seu próprio tempo. E, caso não levasse, por que você deveria agir por Ele?

Semini teve a dignidade e a humildade de abaixar os olhos para a grama bem aparada que servia de piso na tenda. — Cénzi geralmente exige que as pessoas ajam por Ele — respondeu o archigos, finalmente. — Houve... uma oportunidade repentina, uma que se apresentou de maneira completamente inesperada, e não apontaria para Firenzcia, e sim tanto para os numetodos quanto para os ocidentais. Isso, por acaso, é mais errado do que alguém nos Domínios mandar a Pedra Branca matar Fynn? — Ele encarou Allesandra.

Ela sentiu uma pontada de culpa e franziu a boca. Semini pareceu interpretar o gesto como irritação.

— Eu tive que agir imediatamente ou simplesmente não agiria — continuou ele. — Eu rezei para Cénzi pedindo por orientação e senti que fui respondido. E, naquela ocasião, a’hïrzg, a senhora e eu não éramos... — Semini deixou a próxima palavra pairar no silêncio. O archigos continuou a falar, mas agora a voz era um sussurro praticamente inaudível. — Se nós fôssemos, Allesandra, eu teria pedido seu conselho e acatado. Em vez disso, eu pedi ao seu vatarh, que já estava muito doente, e ao seu irmão.

— Você está me dizendo que o vatarh sabia? E Fynn? Eles também aprovaram isso?

— Sim. Sinto muito, Allesandra. — O arrependimento na voz parecia genuíno. As mãos estavam erguidas, como se pedisse perdão, e havia uma umidade nos olhos de Semini que refletiu o sol que entrava pela lona. — Sinto muito — repetiu. — Se eu soubesse como o ato magoaria você, se soubesse o que faria conosco, eu teria impedido. Teria mesmo. Você tem que acreditar nisso.

— Não. — Allesandra balançou a cabeça. Semini. Fynn. E vatarh. Todos eles aprovaram a morte da mulher que me manteve viva e sã. — Eu não tenho que acreditar nisso, de maneira alguma. Você diria tal coisa fosse ou não verdade.

— Como posso provar para você?

— Você não tem como provar, mas isso é algo que você deveria ter me contado há muito tempo: pelo meu papel como a’hïrzg, ou como matarh do hïrzg, pelo menos. E não sei como ficamos diante dessa situação. Não sei mesmo.


O cavalo estava encharcado de suor ao galopar velozmente encosta acima, onde eles esperavam, e as patas musculosas tremeram quando o cavaleiro desmontou, com uma bolsa de mensageiro na mão. O homem imediatamente se ajoelhou diante de Jan, Allesandra, Sergei e Semini e disse — Notícias urgentes de Nessântico, meu hïrzg. — Havia sujeira da estrada na roupa de couro do mensageiro, que tinha terra no cabelo e no rosto. A voz estava abalada pelo cansaço, e o homem parecia, assim como a montaria, estar à beira de um colapso. Ele ofereceu a bolsa com uma mão trêmula. Jan pegou a bolsa enquanto Allesandra gesticulava para os assistentes, que estavam apropriadamente a poucos passos do quarteto. — Deixem esse homem comer e descansar e cuidem do cavalo.

Os assistentes correram para obedecer. Jan desdobrou o pergaminho grosso de dentro da bolsa, que deixou cair no chão. Allesandra observou os olhos do filho vasculharem as palavras ali. Jan arregalou os olhos e entregou o papel para ela em silêncio. A a’hïrzg entendeu seu choque rapidamente; as frases ali pareciam impossíveis.

... O kraljiki Audric foi assassinado da mesma forma que a archigos Ana... Sigourney ca’Ludovici foi nomeada kraljica, mas foi ferida no ataque... Karnor foi arrasada e pilhada por ocidentais... O exército ocidental aproxima-se de Villembouchure... a Garde Civile e os chevarittai foram reunidos para detê-los...

Ela passou a mensagem para Sergei, que a leu com Semini olhando atentamente sobre seus ombro, e ouviu o archigos dizer — A’hïrzg, isso é uma surpresa para mim. Juro por Cénzi que não sabia de nada a respeito dessa situação. Audric morto... — Ele espalmou as mãos em súplica. — Não fui eu que fiz isso, nem era minha intenção.

Allesandra não prestou atenção às declarações de Semini. Ela passou o braço por Jan, que olhava fixamente para o acampamento do exército, resplandecente com os estandartes e armaduras, cheio de tendas acinzentadas e agitado pela atividade de milhares de soldados. — O que isso significa, matarh? — perguntou Jan para ela, embora Allesandra tenha notado que ele olhava para Sergei também. — Diga-me o que está pensando.

— Significa que Cénzi realmente nos abençoou — respondeu a a’hïrzg. — Estamos avançando na hora certa, quando nosso inimigo está mais fraco. — Ela quase gargalhou. Audric morto, ca’Ludovici ferida, e a atenção dos Domínios voltada para os ocidentais em vez de estar de olho em Firenzcia. — Este é o seu momento, meu filho. Seu momento. Tudo que você tem a fazer é aproveitá-lo.

Era o momento dela também, talvez mais do que do filho, mas Allesandra não disse isso.

Jan continuava a olhar fixamente para o acampamento. Então ele se sacudiu e, naquele momento, Allesandra notou um vislumbre do vavatarh no filho: o maxilar trincado, a certeza no olhar. Era a maneira como o velho hïrzg Jan sempre parecia quando tinha se resolvido; ela lembrava-se bem.

— Tragam o starkkapitän ca’Damont à minha presença — falou Jan. — Eu tenho novas ordens para ele.

 

A Pedra Branca

ELA ESTAVA DO OUTRO LADO DA VIELA, em frente aos dois, quando Talis chegou ao prédio e bateu na porta, com Nico à mão. A Pedra Branca ouviu o grito de Serafina — Nico! Ó, Nico! — e viu a mulher pegar o menino nos braços... e também notou Talis ficar tenso, como se estivesse assustado, e erguer a bengala que sempre carregava como se fosse bater em alguém, enquanto gesticulava com a mão livre como se quisesse que Serafina e Nico fossem embora.

Ela cruzou a viela correndo, com a mão em uma das facas de arremesso escondida na tashta. Ouviu trechos de uma conversa alta ao se aproximar.

— ... apenas saia! Agora! ... o embaixador numetodo... tentou me matar...

— ... sabia onde Nico estava e não foi até ele?...

Houve mais diálogos, mas as vozes martelavam a cabeça da Pedra Branca, que não conseguiu distinguir as reais daquelas dentro da mente. A porta fechou-se quando Talis entrou, e ela aproveitou a oportunidade para entrar de mansinho no espaço apertado entre os prédios. Ali, a Pedra Branca encostou-se contra a parede ao lado de uma janela fechada. Ouviu a conversa abafada, tão bem que percebeu que não precisava interferir. Não ainda. Houve uma conversa sobre o assassinato da archigos Ana (— Aquela bruxa cruel mereceu morrer pelo que fez com minha família — berrou Fynn); sobre algo chamado areia negra que podia matar (e todas as vozes das vítimas berraram na cabeça dela ao ouvir aquilo — Morte! Morte! Sim, traga mais gente aqui para nós! — Era tão alto que ela teve que soltar um berro silencioso para que as vozes parassem); sobre um homem chamado Uly (— Esse nome... — disse Fynn. — Eu conheço esse nome...).


Quando ficou claro que Talis e Nico permaneceriam ali, a Pedra Branca saiu de mansinho novamente, voltou ao apartamento e recolheu as coisas que tinha lá. Naquela noite, após três ou quatro paradas, ela alugou um novo apartamento, numa rua ao sul de onde morava a matarh de Nico: lá, pela janela, era possível ver a porta da casa de Nico pelo espaço entre os prédios.

Por quatro dias, ela observou. À noite, entrava de mansinho no espaço entre as casas para ouvi-los. Seguia o grupo sempre que eles saíam, especialmente se Nico estivesse junto. Por dias, a Pedra Branca observou as idas ao Velho Distrito, as tentativas de achar Uly. Ela mesma já havia encontrado o homem, que vivia em um apartamento miserável no Beco do Sino, perto do mercado do Velho Distrito. Considerou o estrangeiro estranho e desprezível — não era um homem que se importava com a limpeza de onde morava ou com a sujeira das roupas. Ele era grosso e mal-educado com os fregueses para quem vendia poções, geralmente na taverna embaixo do apartamento: o Cisne Vermelho. Frequentemente estava bêbado, e era um mau bêbado. Também podia ser violento; com certeza era brutal com as prostitutas que contratava, a ponto de ser evitado pela maioria das mulheres que fazia ponto nas ruas em volta do mercado.

Por dias, ela observou.

A Pedra Branca ficou surpresa, um dia, ao ver Nico acompanhando Varina e Karl ao mercado — geralmente isso era uma coisa que Serafina não permitia. Mas ela também sabia que as idas ao mercado agora eram rotineiras, que a cada dia que passava o grupo tinha menos esperanças de encontrar Uly, que Varina e Serafina tornaram-se amigas íntimas, que Nico parecia considerar a mulher numetodo quase como uma tantzia querida. A Pedra Branca seguiu o trio de perto, contornou a multidão em volta das barracas, chegou próximo o suficiente, a ponto de quase ouvi-los, mas nunca tão perto a ponto de um deles notá-la. Viu o grupo falar com um fazendeiro em sua barraca, viu o homem apontar e os três irem embora correndo, com Varina parecendo subitamente preocupada. Karl foi até uma mulher com uma tashta amarela — uma mulher que a Pedra Branca reconheceu como uma das freguesas de Uly.

O estômago deu um nó forte de preocupação; ou talvez fosse a criança que crescia ali. As vozes murmuraram — A mulher vai contar para ele... Você tem que interferir... — Ela colocou a mão na pedra branca na bolsinha pendurada no pescoço e a apertou com força, como se pudesse calar as vozes com o toque.

Se Karl tivesse ido atrás de Uly com Nico, a Pedra Branca teria detido os três. Ela não deixaria que colocassem o menino em perigo. Não deixaria.

Mas Karl mandou Varina e Nico embora. Ela seguiu os dois por tempo suficiente para saber que a mulher e o menino realmente voltavam para casa, depois retornou rapidamente, correu pelas ruas na direção do Cisne Vermelho.

Ela viu Karl entrar na taverna e entrou atrás dele. Uly estava lá, sentado à mesa de sempre e — também como sempre — meio bêbado. Karl também tinha visto o homem, mas estava no bar, onde pediu uma cerveja. Enquanto ela observava, o embaixador afastou-se do bar e foi à mesa de Uly. A Pedra Branca não conseguiu ouvir a conversa, mas, não muito tempo depois, Uly terminou a cerveja e ficou de pé, e Karl seguiu o homem até a porta.

— Você sabe o que acontecerá — cacarejou Fynn na cabeça dela. — O que você fará a respeito?

A Pedra Branca agiu, meteu-se entre Karl e a porta, e esbarrou no embaixador de propósito. — Perdão, vajiki! — falou. Ela segurou a mão do embaixador e colocou a pedra na palma dele. — Para dar sorte. O senhor tem que guardar isso, vai trazer boa sorte, vajiki. Guarde direitinho.

Ela torceu para que Karl fizesse isso, porque não poderia ajudá-lo se ele não guardasse. Se o embaixador tivesse devolvido a pedra, deixado cair ou jogado fora, ela estaria de mãos atadas. — A Pedra Branca não consegue matar sem o ritual agora — disseram as vozes em um coro debochado. — Fraca. Estúpida.

Mas Karl guardou a pedra. Ela se escondeu ao sair da taverna, e, alguns instantes depois, Karl e Uly surgiram. O estrangeiro levou Karl para longe da taverna, e ela os seguiu com cuidado. De qualquer maneira, Uly parecia estar bêbado demais ou desinteressado demais para ver se alguém observava. A Pedra Branca viu Karl ser empurrado por Uly para dentro de um beco e correu atrás, em silêncio.

Quando ela chegou ao cruzamento, Karl já estava caído, e era óbvio que Uly pretendia espancá-lo até a morte. — Você é um tolo, embaixador ca’Vliomani. — A Pedra Branca ouviu o estrangeiro rosnar. — Achou que eu não lhe reconheceria?

Então ela agiu, novamente, como a Pedra Branca, séria e implacável. Uly ergueu os olhos ao ouvir a aproximação, mas o chute já estava no ar, acertou o joelho e fez o homem desmoronar, soltando um gemido, depois ela acertou dois socos na lateral da cabeça que o derrubaram no chão, inconsciente.

A Pedra Branca rapidamente rasgou a bashta de Uly, depois se dirigiu para Karl, que gemia, meio inconsciente. Ela enrolou o pano rasgado na cabeça do embaixador, sacou sua faca favorita da bainha e pressionou contra o pescoço dele. — Fique quieto e não será ferido. — ela engrossara o tom de voz. — Tire o capuz e você morre. Acene com a cabeça se entendeu.

Ele balançou a cabeça uma vez, e a Pedra Branca deixou Karl e foi até Uly. Deu um tapa na cara do homem, para despertá-lo, viu Uly arregalar os olhos ao notá-la, e mostrou a faca antes de enfiá-la com força na pele tatuada do pescoço. Colocou a bota sobre o joelho quebrado do sujeito. — Ele viu você. Não pode deixá-lo vivo agora — clamaram as vozes, e ela pediu que fizessem silêncio.

— Responda se você quiser viver — disse a Pedra Branca. Ela percebeu que o homem começou a erguer as mãos e fez que não para ele enquanto enfiava a ponta da faca no pescoço, perto de uma veia saltada e pulsante. — Você matou a archigos Ana, não foi? Você preparou a areia negra.

— Não. — O homem começou a dizer, mas a Pedra Branca enfiou a faca mais fundo diante da mentira. — Tudo bem, tudo bem. — Uly afastou-se dela o máximo possível. — Sim, eu ajudei a matá-la. Com a areia negra. Mas a ideia não foi minha. Eu só dei a substância para o homem e contei como usá-la. Não sabia o que ele pretendia fazer com ela. — Novamente, a Pedra Branca pressionou a faca com mais força. — Ai! Droga, isso é verdade!

— Quem? — perguntou ela, pois sabia que Karl ouviria; a Pedra Branca daria ao embaixador a informação que ele queria, desde que isso significasse que Nico ainda estaria a salvo.

— Você tem que matar esse aí. Você precisa matá-lo.

— Eu não sei... — disse Uly. Ela ignorou a voz, puxou ligeiramente a faca em sua direção e abriu um corte. O sangue quente pingou do pescoço. — Ai! Por Axat! Pare! Ele me disse que o nome era Gairdi ci’Tomisi, mas não sei se o nome é verdadeiro ou não. Ele pagou bem, e isso era tudo que eu sabia ou que me importava!

O homem tentou empurrá-la, e a Pedra Branca colocou mais peso sobre o joelho quebrado. Ele ofegou de dor. — Por favor. Por favor, pare.

— Então fale mais a respeito deste homem — falou ela. — Rápido.

— Parecia um ca’ ou co’, pelo jeito de falar. Firenzciano, talvez, pelo sotaque. Disse que as “ordens” vieram de Brezno, em todo caso. É tudo que sei. Eu preparei a substância, dei para o homem, e ele foi embora. Fiquei tão surpreso quanto qualquer um quando a archigos foi morta.

— Você não pode ficar aqui. Tem que ir embora ou alguém chegará e verá você.

As vozes estavam certas. Ela franziu os lábios. Com um movimento violento, ela cravou fundo a faca na garganta do homem e a cortou da direita para a esquerda. O sangue quente jorrou, e o homem morreu com uma golfada de fôlego líquido. Neste instante, a assassina puxou rapidamente a bolsinha de dentro da tashta agora ensanguentada e a abriu, depois colocou a preciosa pedra branca no olho direito aberto do homem. A seguir, foi até Karl, vasculhou seu bolso rapidamente e achou a pedra que dera para ele. Esta foi colocada sobre o olho esquerdo de Uly. Ela embainhou a faca, esperou um instante, depois pegou sua pedra no olho direito.

A Pedra Branca já podia ouvir a voz de Uly, que lamentava em uma língua que ela não compreendia.

Ela guardou a pedra na bolsinha novamente. Olhou uma vez para Karl, que fazia um esforço desesperado debaixo do pano para escutar.

A Pedra Branca correu. Correu — ateve-se às sombras e aos becos solitários por causa da tashta manchada de sangue — para encontrar Nico, para saber se ele ainda estava a salvo.


??? MATANÇA ???

Kenne ca’Fionta

Aubri co’Ulcai

Allesandra ca’Vörl

Niente

Varina ci’Pallo

Kenne ca’Fionta

Sergei ca’Rudka

Nico Morel

Karl ca’Vliomani

A Batalha Começa


Kenne ca’Fionta

KENNE ESTAVA NA SACADA do lado de fora de seu gabinete particular e olhava para a Praça do Templo. Lá embaixo, ténis em robes verdes misturavam-se à multidão de pessoas comuns que corriam para escapar da garoa, que caía de nuvens baixas e cinzentas. O tempo parecia tornar pesadas as asas dos pombos, que arrulhavam em grupos; as pessoas passavam correndo, os pássaros afastavam-se e balançavam as cabeças, mas não alçavam voo.

O dia ruim e desagradável combinava com o humor de Kenne.

Ele estaria morto se tomasse a decisão errada e não tinha certeza de como evitar esse destino.

Mesmo que evitasse a morte física, Kenne estaria morto dentro da fé concénziana. Ele já sentia os abutres começando a se reunir: nos rumores que vinham de todo mundo, do mais baixo e’téni às mensagens nas entrelinhas que recebia dos a’ténis em suas cidades. Quando teremos outro conclave?, perguntavam. Há assuntos urgentes que todos precisamos discutir. Como devemos reagir às notícias de Nessântico? O que o archigos acha sobre essas questões?

As entrelinhas se escondiam nas perguntas inocentes. Elas começaram quando ele foi promovido a archigos, após o assassinato da pobre Ana. O coro ficou mais alto e constante desde a morte do kraljiki Audric e as notícias da invasão ocidental. As mensagens chegavam todos os dias por mensageiros de Fossano, de Prajnoli, de Chivasso, Belcanto e An Uaimth, de Kasama, Quibela e Wolhusen. Nós não confiamos na sua liderança. Outra pessoa precisa ser o archigos. Era o que diziam sob as palavras educadas e indiretas escritas por eles. Você deveria ser retirado do Trono de Cénzi.

O pior de tudo é que Kenne descobriu que concordava com eles. Eu nunca quis isso, o archigos queria escrever em resposta. Eu jamais pedi para sentar no lugar de Ana. Eu preferia muito mais que outra pessoa assumisse essa tarefa por mim. Ele mesmo disse isso para Ana há muitos anos, após retornar a Nessântico para ser o a’téni da cidade sob o comando dela, após o exército firenzciano ter sido dispersado. — Você estava aqui antes de mim — disse Ana para Kenne, quase parecendo envergonhada de estar sentada atrás da mesa em que ambos se lembravam de ter visto o archigos Dhosti. — Por direito, você deveria estar aqui e não eu, meu amigo.

Ele riu ao ouvir aquilo e balançou a cabeça. — O archigos Dhosti disse para mim, há muito tempo, que eu era um excelente seguidor. Ele estava certo. Eu sigo muito bem, mas não lidero. Não possuo seja lá o que for que você tem, Ana. Dhosti enxergou essas qualidades em você... você sabe liderar. É forte, talentosa, e tem uma força de vontade que é assombrosa. É por isso que ele fez de você sua o’téni. Se ele tivesse vivido, teria lhe preparado para o cargo da mesma forma. Eu... — Outra negativa com a cabeça. — Eu fui destinado a ser o que sou. Nada mais. E estou bem contente que seja assim.

Ana discordou, educadamente, mas ambos sabiam que — por dentro — a archigos concordava com ele. Com Dhosti.

No entanto, Cénzi impôs essa tarefa a ele no fim da vida, e Kenne só podia imaginar que isso era alguma espécie de piada cósmica.

Os a’ténis da Fé eram um perigo para Kenne, e a nova kraljica era outro. Ela sentia dores — ela sentiria dores pelo resto da vida, era quase certo. Sigourney ca’Ludovici fora jogada em uma crise terrível com a perda dos Hellins, o assassinato de Audric e agora a invasão dos próprios Domínios pelos ocidentais. Havia Firenzcia do outro lado, que não era mais um aliado, e sim um inimigo, pelas costas. Ela tentaria consolidar seu cargo. Tentaria desesperadamente sobreviver como kraljica, e, para tanto, procuraria por pessoas fortes que poderiam apoiá-la e dispensaria aqueles que considerasse fracos demais para ajudar — porque a fraqueza nos aliados da kraljica seria um perigo tão grande quanto os ocidentais e os firenzcianos.

Kenne sabia que a opinião de Sigourney a seu respeito era talvez ainda mais baixa do que a dos a’ténis. Ela faria uma rápida manobra para substituí-lo. Por conhecer a história de Nessântico, Kenne não excluía a possibilidade de a solução da kraljica ser o seu assassinato e a sua substituição por alguém mais adequado para ela. Já aconteceu com outros archigi antes de Kenne, quando eles entraram em conflito com os líderes políticos dos Domínios: um archigos assim podia morrer sob circunstâncias misteriosas. Bastava olhar para o próprio archigos Dhosti, afinal.

Kenne olhou para a praça lá embaixo, onde certa vez o corpo quebrado de Dhosti esteve estatelado, com o sangue fluindo entre os paralelepípedos. Ele imaginou se um dia, em breve, seu corpo seria jogado pelo parapeito até cair, debatendo-se desesperadamente no chão lá embaixo.

— Archigos?

Kenne sentiu um arrepio ao ouvir o chamado. Ele virou-se devagar e esperou ver Petros. Mas não era ele. Era, em vez disso, um fantasma.

— Eu sei — falou o fantasma, e o sotaque da voz confirmou suas suspeitas. — Você não esperava me ver novamente. Francamente, nem eu. Desculpe assustá-lo, archigos. Petros foi gentil em me deixar entrar.

— Karl... — Kenne entrou novamente no gabinete e deu a volta na mesa para abraçar o numetodo. — Olhe para você... sem barba, com cabelo pintado e cortado como uma pessoa qualquer, sem status, e essas roupas horríveis. Eu não teria reconhecido você... mas imagino que essa seja a ideia, não é? Eu pensei, após ter ajudado Sergei a escapar, que você tivesse fugido da cidade. — Ele balançou a cabeça. — Esses são tempos sombrios — disse Kenne com cansaço, sendo tomado pela depressão novamente. — Tempos terríveis. Mas eu esqueço meus modos. Você parece cansado e faminto. Quer que Petros traga alguma coisa?

Karl já balançava a cabeça. — Não, archigos. Não há tempo, e eu não devo ficar aqui mais tempo do que o necessário. Eu... eu preciso de um favor.

— Se estiver dentro da minha capacidade — falou Kenne, que teve que esmagar o pensamento que veio em seguida: dentro da pouca capacidade que tenho, infelizmente...

— Está sim, eu espero. Por favor, archigos, sente-se. Isso pode levar tempo. Eu sei, pelo menos acho que sei, quem matou Ana.

Kenne ouviu a história de Karl com apreensão, desconfiança e horror cada vez maiores. No fim, ele estava recostado na cadeira atrás da mesa e balançava a cabeça.

— Um homem chamado Gairdi ci’Tomisi, você diz? — falou Kenne finalmente. O archigos ficou chocado à menção do nome e perguntou-se que mais ele não sabia. — Um firenzciano? Ele fez isso com ajuda de magia ocidental?

— Firenzciano, sim — declarou Karl. — Mas você tem que entender que não houve magia envolvida. Não; essa areia negra não é uma criação de seu Cénzi, nem tampouco dos deuses ocidentais. Ela não é mágica, não vem do Segundo Mundo; é apenas o produto da imaginação e da lógica de uma pessoa. — Karl bateu na cabeça com o dedo. — E isso torna a areia negra ainda mais perigosa. Veja...

Karl tirou uma pequena bolsinha do bolso da tashta suja e esfarrapada e derramou um pó escuro e granulado no mata-borrão da mesa de Kenne. O archigos cutucou a substância com um dedo curioso. — Uly tinha um estoque disso em seu apartamento; eu subornei o estalajadeiro para me deixar entrar. Uly tinha os ingredientes lá dentro, então sabíamos o que eram. Varina acha que é capaz de reproduzir essa mistura mesmo que Talis não nos ajude. Parada assim como está, a areia negra é bem inocente, mas coloque uma chama em contato com ela, e... — A voz de Karl foi sumindo, e ele afastou o olhar. Kenne sabia do que o homem estava se lembrando; ele também se lembrava, muitíssimo bem.

— O que eu posso fazer? — perguntou o archigos. Ele abaixou o olhar para a mesa suja.

— Veja se consegue descobrir mais sobre esse Gairdi ci’Tomisi que Uly mencionou.

Kenne olhou para o numetodo com uma cara triste. — Eu o conheço. Pelo menos acho que sim. Ele é um mercador com licenças de passagem tanto de Brezno quanto de Nessântico e vai e volta pela fronteira. Nós, tanto Ana e eu, usávamos Gairdi. Nós achávamos... achávamos que ele era nosso homem, nosso espião. Ele levava mensagens aos ténis dentro do Templo de Brezno, para quem pensávamos que podíamos confiar e trazia respostas sobre o archigos Semini. Agora... — Kenne ergueu os olhos para o numetodo. — Se ele realmente era um agente duplo, a serviço de Semini ca’Cellibrecca...

— ... Então foi ca’Cellibrecca quem mandou matar Ana. — Karl encerrou a frase por ele. Seu maxilar fez um ruído alto ao se fechar.

Kenne sentiu o que restou do almoço subir pela goela. Ele engoliu em seco para conter a bile. Sim, o archigos acreditava que ca’Cellibrecca era capaz de cometer assassinato —, o homem fora um téni-guerreiro pela maior parte da vida. Porém, ele não teria matado Ana sem um motivo. Kenne tinha medo de que sabia exatamente qual seria a razão: ca’Cellibrecca esperava que a pessoa colocada no lugar de Ana fosse fraca e que pudesse explorar essa fraqueza para reunir a fé concénziana novamente — com ca’Cellibrecca como archigos em Nessântico, assim como em Brezno.

Porque ele sabia que seria eu. Provavelmente já está falando com a kraljica e fazendo sondagens.

— Archigos? — Kenne respirou fundo antes de erguer os olhos para Karl. — Nenhum numetodo matou Audric — declarou o embaixador. — Nenhum numetodo matou Ana. Isto matou os dois. — Ele gesticulou para a areia negra na mesa de Kenne. — Isso me faz pensar que a mesma pessoa é responsável pelos dois assassinatos.

Parecia uma hipótese razoável para Kenne, mas ele já esteve errado sobre tanta coisa que não confiava mais no próprio discernimento. — O que... o que você quer que eu faça? — O archigos ergueu as mãos da mesa, a ponta de um dedo estava escura com o pó que ele tocou. — Como posso ajudar?

— Veja o que mais você consegue descobrir. Veja se Semini realmente fez isso; se foi ele, eu quero fazer o homem pagar. Mas Varin... — Karl parou. — Quero dizer, Ana não iria querer que eu fizesse qualquer coisa até eu saber, saber com certeza. Pode me ajudar com isso? — Ele apontou novamente para o monte de areia negra no mata-borrão de Kenne. — Você sabe o que é isso, não sabe? — perguntou o numetodo. O archigos limitou-se a balançar a cabeça.

— Isso são as cinzas da magia — falou Karl. — Isso é como a magia se parece quando morre.

Kenne abaixou o olhar novamente. Parecia que estava olhando para os próprios restos mortais.

 

Aubri co’Ulcai

O COMANDANTE AUBRI CO’ULCAI OLHOU para trás e balançou a cabeça ao se perguntar como a batalha tinha chegado a este ponto. Isso nunca deveria ter acontecido. Não era possível.

Ele imaginou como a nova kraljica receberia as notícias e esperava que soubesse a resposta. E a única desculpa que Aubri tinha era que os ocidentais recusavam-se a lutar honrosamente, como deveriam.

Tudo começou há dois curtos dias...


Vários chevarittai — como era comum — saíram em seus cavalos de guerra para fazer desafios individuais enquanto as forças ocidentais aproximavam-se de Villembouchure. Nenhum guerreiro ocidental veio responder ao desafio; as fileiras da vanguarda do exército marcharam em frente, intactas e inabaladas mesmo quando os chevarittai debocharam de sua honra e coragem. Eles foram ignorados ou, pior ainda, atacados com flechas covardes e fogo dos feiticeiros ocidentais. Três chevarittai morreram antes que Aubri mandasse que as trompas soassem a ordem de retorno. Eles deram meia-volta com os cavalos de guerra e retornaram a galope para trás das fileiras de infantaria e de ténis-guerreiros, que aguardavam.

Aubri reuniu-se com seus offiziers; eles esperavam que o ataque começasse assim que o exército ocidental chegasse ao cume do último morro antes de Villembouchure. Afinal, era pouco antes da Segunda Chamada, e ainda havia viradas da ampulheta de luz do dia. Os ocidentais chegaram à distância de dois tiros de flecha da vanguarda da força dos Domínios e pararam... e permaneceram parados. Os chevarittai e seus offiziers imploraram que Aubri os deixasse avançar e atacar. O comandante recusou-se, lamentavelmente — fazer isso significava abandonar as fortificações e casamatas que eles erigiram nos últimos dias. O exército dos Domínios estava disposto em uma posição defensiva perfeita, e Aubri era avesso a sair dali.

Este foi o primeiro dia. Ele foi dormir nessa noite convencido da futura vitória — o avanço ocidental seria detido por suas fileiras de veteranos. A força ocidental, conforme verificaram seus batedores e todos os relatórios do campo de batalha, era substancialmente menor que a sua: nenhum exército daquele tamanho, nem mesmo os firenzcianos em seu apogeu, teria sido capaz de derrotar as defesas que Aubri montou. Os navios da frota tehuantina entupiram o A’Sele, mas estavam longe demais do campo de batalha para afetar a situação; de qualquer forma, Aubri sabia que uma força naval de Nessântico estava a caminho para cuidar dos navios inimigos. Na pior das hipóteses, as muralhas de Villembouchure iriam detê-los se, por alguma razão imprevista, Aubri não conseguisse contê-los nos campos do lado de fora da cidade. As forças ocidentais eram pequenas demais para um cerco efetivo, e Villembouchure era bem abastecida e podia suportar o sítio de um exército bem maior por pelo menos um mês.

Sim, Aubri estava confiante. Apesar do fato de seu exército ter sido rapidamente reunido e a maior parte da infantaria não ter muito treinamento, os offiziers e os chevarittai com eles tinham experiência em batalha adquirida nas muitas escaramuças ocorridas nas últimas décadas com Firenzcia e as nações da Coalizão.

Eles venceriam aqui.

A batalha começou no segundo dia, mas não com a chegada da alvorada, contrariando toda a experiência de Aubri e dos offiziers que o treinaram. Não... o ataque veio bem antes de o sol subir no céu. E veio de maneira estranha. Os vigias postados nas casamatas mais avançadas mandaram mensageiros correndo para a tenda do comandante atrás das linhas, e o agito acordou Aubri de um sono leve e atormentado por sonhos.

— Uma tempestade aproxima-se de nós em pernas feitas de relâmpagos — clamaram os mensageiros. — Uma muralha de nuvem...

Trompas de alarme soaram pelo acampamento, e os soldados colocaram as armaduras e pegaram suas armas às pressas enquanto os offiziers berravam ordens. Ao longe, uma luz azul piscava e dançava, trovões retumbavam, e, no entanto, o céu acima deles estava limpo, marcado pelas várias constelações conhecidas. Aubri montou no cavalo que os assistentes trouxeram apressadamente para ele. O comandante galopou com rapidez até a vanguarda e foi acompanhado ao longo do caminho pelo a’téni Valis ca’Ostheim de Villembouchure, que estava no comando dos ténis-guerreiros. — O que em nome de Cénzi está acontecendo? — rugiu ca’Ostheim. A espessa cabeleira branca parecia cintilar à luz da tempestade adiante; a barriga caía sobre o cepilho da sela de seu cavalo. Os cílios ainda tinham remelas do sono. Um colar grosso de ouro com um globo partido pendurado quicava no peito enquanto os dois cavalgavam. — Eu pensei que o senhor tinha dito que o ataque ocorreria na alvorada, comandante.

— Eu disse, sim — respondeu Aubri calmamente. — Ao que parece, os ocidentais não estavam escutando.

Na primeira linha de casamatas, os dois homens pararam e observaram o espaço entre os dois exércitos. O acampamento ocidental, que cintilava na encosta distante como estrelas amarelas caindo na terra quando Aubri foi dormir, não estava mais visível. Ao contrário, eles foram confrontados por uma aparição da natureza: uma muralha de nuvem escura e agitada, com talvez doze homens de altura e que flutuava à distância de dois homens acima do chão. Como uma espécie de monstro sobrenatural sinistro, a criatura de nuvem avançou na direção deles sobre centenas de pés de relâmpagos que piscavam. Os clarões estocavam o chão embaixo e pareciam fazer a nuvem avançar alguns metros a cada golpe. Aubri viu o chão ser rasgado onde os raios caíam, e a nuvem deixava um rastro de pegadas de tempestade arrancadas do chão. Um barulho constante de trovoada e um rosnado alto e estridente acompanhavam a visão. Ao redor dos dois, o exército dos Domínios olhava fixamente para a aparição com rostos iluminados pelos clarões azuis esbranquiçados e inconstantes. Aubri sentiu o pânico se espalhar pelas fileiras, os homens deram alguns passos para trás involuntariamente, para longe das barreiras baixas e fortificações que eles erigiram. — Mantenham a posição! — berrou Aubri para eles. As trompas soaram a ordem pela frente de batalha. — Mantenham a posição! — Os homens sacudiram-se como se acordassem de um pesadelo. Eles seguraram firme em lanças inúteis e encararam o monstro que os confrontava. Ele praticamente já havia cruzado o campo aberto agora, e Aubri não conseguiu ver nada além de seu limite feroz.

— A’téni ca’Ostheim, isso é magia; é a sua área. — Aubri quase teve que gritar mais alto do que o barulho crescente da aparição tempestuosa para ca’Ostheim, o líder dos ténis-guerreiros, ouvir. — O senhor consegue deter essa coisa?

— Tentarei — respondeu ele ao desmontar. Ca’Ostheim começou um cântico e um estranho gestual em frente ao corpo. Aubri sentiu um arrepio nos pelos dos braços conforme o a’téni continuava a entoar e os raios começaram a tocar as bordas das defesas; ele não sabia qual das duas coisas causou esta reação. O cavalo de Aubri, embora acostumado ao clamor, ao barulho e às imagens de guerra, estava preocupado e batia os cascos no chão enquanto se afastava um pouco da aparição. Aubri teve que se abaixar e dar tapinhas no pescoço do animal para acalmá-lo. — A’téni! Rápido, por favor.

Ca’Ostheim ergueu as mãos; o cântico parou. Ele gesticulou para a tempestade. Um vento estridente soprou do téni-guerreiro, e onde tocou na aparição tempestuosa, as nuvens foram rasgadas. Os soldados comemoraram, mas a tempestade ainda avançava de ambos os lados, com força total, e agora os raios atacaram as próprias defesas, os garfos gigantes alcançaram os soldados dos Domínios. Os gritos surgiram de ambos os flancos, conforme os relâmpagos queimavam e quebravam as fileiras, em um avanço inexorável. E agora as metades partidas nas nuvens voltavam a se unir; línguas sedentas de relâmpagos começaram a brilhar na frente de Aubri. Ca’Ostheim havia caído de joelhos. Ele ergueu a cabeça acenou negativamente para Aubri. — Comandante, eu não consigo... Não sozinho. Eu preciso reunir os outros ténis-guerreiros...

— Ao cavalo, então — falou Aubri. Ele olhou para os porta-bandeiras e as trompas quando os gritos dos feridos e moribundos rivalizaram com a trovoada. — Retirada! — berrou o comandante. — Voltem para a próxima linha de frente!

As bandeiras sinalizaram a retirada; as trompas soaram a ordem. As fileiras dos soldados foram desmanchadas instantaneamente, aqueles que ainda podiam deram meia-volta para fugir da tempestade. Ao longe, em um lugar além da criatura, Aubri ouviu novas vozes: os gritos de guerra dos ocidentais.

O comandante puxou com força as rédeas da montaria e seguiu seus homens.


Esta foi a manhã do segundo dia. O resto do dia não correu melhor. Os ténis-guerreiros foram capazes de dissipar a tempestade mágica, mas a tarefa deixou-os exaustos, e eles tinham pouca energia sobrando para outros feitiços. Atrás da tempestade, surgiram as fileiras dos ocidentais — guerreiros com rostos pintados e com cicatrizes. O combate mano a mano foi intenso, mas os chevarittai e a infantaria eram páreos na espada. No entanto, quanto aos feiticeiros ocidentais, que empunhavam cajados por onde lançavam feitiços, Aubri não tinha como responder — os ténis-guerreiros estavam em grande parte exaustos pelos esforços anteriores, e, no fim da tarde, o comandante mandou o exército retornar a Villembouchure, para trás das muralhas e portões sólidos. Ele estava convencido de que poderia ter mantido as defesas externas, mas o preço em vidas teria sido enorme. Aubri fez o que qualquer outro comandante em seu lugar teria feito: mandou as trompas soarem a ordem de cessar combate.

Ao anoitecer, todos estavam dentro e com as portas corrediças abaixadas e fechadas.

Isso encerrou o segundo dia.

Em qualquer batalha normal, isso significaria o início de um cerco que poderia ter durado semanas ou meses antes de ser rompido, e Aubri sabia que os ocidentais não tinham semanas ou meses — não em uma terra estranha, onde estavam cercados por inimigos. Foi por esse motivo que Aubri achou fácil dar a ordem de cessar combate tão cedo, assim que ficou óbvio que a vitória nos campos diante da cidade só causaria um enorme custo. Ficar no interior das muralhas de Villembouchure deveria levar à vitória em algum momento. Inevitavelmente. E ele poderia esperar.

Mas o cerco duraria apenas um dia.

Aubri estava sobre a muralha da cidade e olhava para as fogueiras quase apagadas do principal acampamento dos ocidentais na alvorada. Foi quando as bolas de fumaça de repente fizeram um arco no céu, na direção deles: uma dezena ou mais, todas pareciam mirar o grande portão oeste da cidade. Os ténis-guerreiros posicionados ao longo das muralhas reagiram instantaneamente, como deveriam, e a resposta dos feitiços de dispersão foi rápida; afinal, eles foram treinados na arte de manter os feitiços na mente por um tempo (que nenhum deles admitiria ser uma característica dos numetodos, que tinha sido imposta aos ténis-guerreiros pela archigos Ana). Mas as bolas de fogo continuaram seu voo. O téni-guerreiro mais próximo de Aubri o encarou com olhos arregalados e chocados. — Comandante, isso não é feitiço...

Ele não prosseguiu. As muralhas grossas da cidade foram sacudidas de um jeito impensável quando as bolas de fogo bateram no portão e nas pedras em volta. Onde elas tocavam, explosões inimagináveis destruíram pedras, aço e madeira. Aubri, que se segurou na ameia para manter o equilíbrio, testemunhou os enormes pedaços de granito saírem voando como se fossem seixos atirados por uma criança. O fogo irrompeu abaixo do comandante, tão incandescente quanto a fornalha de um ferreiro; ele sentiu a onda de calor passar pela pele. Ouviu gritos e lamentos lá embaixo.

— O portão está quebrado! As muralhas foram rompidas!

Os ocidentais já corriam pela brecha, enquanto arqueiros respondiam com uma atrasada chuva de flechas em cima deles. Alguns dos guerreiros foram abatidos, mas muitos — em um número excessivo — continuavam avançando, e agora Aubri via mais arcos de bola de fogo saírem do norte e do sul, na direção daqueles portões.

Ele desceu correndo das ameias e entrou em um caos selvagem e sangrento.

Este foi o terceiro dia. O dia em que a cidade foi perdida. De um jeito inacreditável.


Agora Aubri olhava para Villembouchure do alto de um morro ao longo da Avi A’Sele. O comandante viu a fumaça suja que manchava o céu acima das muralhas quebradas, cercado pelo que restou do exército reunido à sua volta e com o a’téni ca’Ostheim ao seu lado. Dentro da cidade... Dentro da cidade, estavam os ocidentais.

— Isso é impossível — murmurou ele.

Mas era possível. E agora a defesa da própria Nessântico devia ser preparada. Aubri balançou a cabeça novamente diante da cena.

O comandante deu meia-volta com o cavalo e gesticulou, e ele e o exército começaram a mancar na direção da capital, em retirada.

 

Allesandra ca’Vörl

ELA LEMBRAVA-SE DE PASSE a’Fiume muitíssimo bem. Foi aqui, há 25 anos, quando seu vatarh sitiou a cidade, que ela aprendeu pela primeira vez a mais dura lição de guerra: que, às vezes, pessoas amadas não sobrevivem. Na ocasião, Allesandra tinha uma queda por um jovem offizier que tinha sido morto na batalha e pensou que jamais seria capaz de amar novamente, pois seu coração estava partido demais pela experiência, mas o tempo aliviou sua dor. Agora, ela não conseguia se lembrar do rosto do rapaz.

Os reparos da batalha de décadas atrás ainda eram visíveis nas muralhas e trouxeram de volta as memórias e o sofrimento.

Dessa vez, não havia cerco. O exército firenzciano passou pela cidade fronteiriça de Ville Colhelm sem resistência alguma: a força dos Domínios a postos ali simplesmente abandonou o lugar e fugiu do muito maior contingente de tropas firenzcianas. A pedido de Allesandra, Jan despachou cavaleiros — incluindo Sergei ca’Rudka — bem à frente da força principal, para negociar com o comté de Passe a’Fiume. Com a maior parte da guarnição da Garde Civile esvaziada devido à invasão ocidental, o comté favoreceu a prudência à coragem (e uma propina substancial em ouro em vez do juramento ao cargo): em troca da promessa de que a cidade não seria saqueada, ele permitiria que o exército cruzasse o rio Clario através dos portões da cidade até a Avi a’Firenzcia.

Allesandra cavalgava ao lado de Jan quando eles cruzaram a grande ponte de pedra sobre as águas do Clario, um rio mais rápido e perigoso do que o A’Sele — que era mais profundo e largo, e com quem o Clario se juntava antes de o rio A’Sele chegar a Nessântico. A ponte parecia tremer sob a batida das botas dos soldados e dos cascos dos cavalos. A vanguarda do exército já passara pelos portões e o resto descia estrada afora até onde era possível enxergar no terreno cheio de morros. Jan olhou em volta extasiado, quando eles passaram pelas arcadas altas com os escudos dos kralji e entraram na cidade. Multidões estavam enfileiradas nas laterais da avenida principal ao longo da cidade, a maioria em silêncio, e os chevarittai da Garde Hïrzg ficaram tensos em suas selas ao escanearem o público à procura de perigo.

— A senhora esteve aqui com o vavatarh? — perguntou Jan novamente ao se inclinar na direção de Allesandra, e ela fez que sim com a cabeça.

— Eu era apenas uma criança, e seu vavatarh estava no auge. Ele tomou Passe a’Fiume em apenas três dias de sítio após as negociações de paz falharem, mas o kraljiki Justi, que ainda tinha duas pernas na ocasião, já tinha escapado covardemente para Nessântico. Seu vavatarh ficou furioso. Sergei ca’Rudka era o comandante das forças de Nessântico; ele foi... brilhante, mesmo em enorme desvantagem numérica. Seu vavatarh admitiu o fato, mesmo que de má vontade.

Jan olhou para trás, onde ca’Rudka cavalgava ao lado do archigos. O nariz de metal do regente reluzia ao sol. Como a Garde Hïrzg, ca’Rudka parecia ansioso e nervoso, com a boca franzida e o olhar varrendo a massa de ambos os lados. — Eu gosto do sujeito, mas não sei se posso confiar totalmente nele, matarh — disse Jan ao voltar a atenção para ela.

Allesandra sorriu ao ouvir isso. — Você não deveria. A lealdade dele é a Nessântico, antes de mais nada. E Sergei ca’Rudka é um homem estranho, com gostos estranhos, caso se acredite nos rumores. Isso não mudou. Ele trabalhará conosco enquanto achar que nossos interesses convergem. Assim que não achar... — Ela deu de ombros. — Então ele ficará igualmente satisfeito em ser nosso inimigo. Seus instintos estão corretos, Jan.

— Ele parece admirar a senhora.

— Eu conheci Sergei quando era refém da archigos Ana. Ele foi gentil comigo na época. Mas agora o comandante está mais interessado no fato de que sou prima em segundo grau da kraljica Marguerite, e no fato de que este parentesco me dá tanto direito ao Trono do Sol quanto Sigourney ca’Ludovici. E, por enquanto, precisamos de Sergei e das alianças que ele venha nos trazer.

Jan concordou com a cabeça. Ele franziu os lábios como se levasse tudo isso em consideração enquanto entravam na praça central da cidade. Allesandra imaginou o que o filho pensava.

Aqui, o Templo a’Passe dominava a paisagem arquitetônica. Como muitas estruturas da cidade, ele foi muito danificado no cerco há duas décadas e meia. Depois, o conselho municipal decidiu reprojetar a praça principal e o complexo do templo. Grande parte da estrutura original foi demolida. As linhas finas e esqueléticas dos andaimes enjaulavam a torre principal ainda não concluída e o domo do templo reformado.

A multidão de moradores estava mais densa aqui, enquanto a fila lenta do exército marchava pela cidade. Agora, Allesandra sabia, a vanguarda já teria passado pelo portão oeste e além das muralhas. Agora, ela também sabia, mensageiros iriam a galope adiante do exército para levar a notícia à kraljica, ao archigos e à Nessântico de que os firenzcianos estavam em marcha — até onde a a’hïrzg sabia, aquela informação já podia ter chegado à Nessântico assim que o exército cruzou as fronteiras. A partir de agora, o avanço encontraria resistência em breve; a kraljica Sigourney não podia se dar ao luxo de continuar virada para o oeste por muito tempo.

Um exército — especialmente o exército firenzciano; afinado, eficiente e famoso — era uma grande carta na manga em qualquer mesa de negociação, e Sigourney e o Conselho dos Ca’ sabiam muito bem disso. Allesandra sorriu diante da ideia.

A multidão espremia-se perto deles, e os soldados da infantaria de ambos os lados de Allesandra e Jan empurravam as pessoas para trás com os cabos das lanças e dos piques. Ela viu os rostos sérios e infelizes atrás da cerca de armas, e das profundezas da multidão vieram berros com xingamentos e ameaças, mas quando os dois olharam naquela direção, não havia ninguém que eles pudessem identificar na massa. A população também se lembrava do cerco firenzciano; muitas pessoas perderam familiares no sítio, e a visão das bandeiras negras e prateadas era um insulto tremulando na cara delas.

Eles entraram na sombra do templo agora, a fila do exército usava o baluarte da torre principal para se proteger da multidão. As trompas no templo começaram a anunciar a Segunda Chamada assim que Jan e Allesandra chegaram em frente à torre. A a’hïrzg ergueu a cabeça na direção do barulho e apertou os olhos contra o brilho do sol. Alguma coisa — uma figura, uma silhueta — parecia andar lá em cima, em meio ao emaranhado de andaimes. Ela não conseguiu enxergar com clareza.

Allesandra foi golpeada por trás de repente, no mesmo instante em que seus ouvidos a alertaram do som de cascos nos paralelepípedos. Um peso enorme jogou a a’hïrzg no chão, mas os braços que a envolveram giraram Allesandra para que o corpo debaixo dela absorvesse a maior parte do impacto. Um baque alto foi ouvido quase que ao mesmo tempo ao impacto. Um cavalo berrou — um som horrível, desagradável — e as pessoas gritaram.

— O hïrzg!

— Andem! Andem!

— Lá em cima! Lá está ele!

Allesandra ouviu offiziers berrarem ordens e mais gritos. Parecia haver uma multidão amontoada em volta dela. A a’hïrzg lutou contra os braços à sua volta, contra as dobras do manto do agressor e da própria tashta e a capa de equitação. Havia mãos que a puxavam para ajudá-la a se levantar.

Houve outro grito, um berro humano dessa vez, e outro impacto em algum lugar próximo.

Allesandra pestanejou e tentou entender a situação.

Sergei ca’Rudka estava de pé ao lado dela, com a capa rasgada e uma careta no rosto enquanto massageava o braço. A superfície de prata do nariz estava arranhada e o próprio nariz tinha sido parcialmente arrancado do rosto, o que deu a Allesandra um vislumbre do buraco desagradável que ficava embaixo. Jan estava sendo ajudado a se levantar, a um passo atrás de Sergei. O cavalo de Allesandra estava caído de lado diante dela, com uma enorme estátua de um demônio moitidi em volta. O animal de olhos arregalados batia as patas, e os sons que fazia... Sergei foi rapidamente até ele, ajoelhou-se nos destroços do entalhe de pedra e acariciou o pescoço do animal enquanto fazia sons tranquilizadores. Allesandra viu o comandante sacar a faca da bainha. — Não! — Ela começou a dizer, mas Sergei já tinha feito o corte rápido e profundo. O animal deu um pinote, mais um e ficou imóvel.

Allesandra balançou a cabeça para tentar clarear a mente. Metade da multidão na praça parecia ter fugido aterrorizada; os soldados firenzcianos formaram um sólida defesa em volta deles. Sergei afastou-se do cavalo e andou a passos largos até um corpo esparramado em uma poça de sangue não muito longe da base da torre. Os soldados se moveram para interceptá-lo; ele se desvencilhou deles com raiva. Allesandra começou a se mexer e percebeu que o corpo estava dolorido e machucado, e que sangrava, com um corte na cabeça. A a’hïrzg sentiu Jan chegar por trás.

— Matarh? — Ele olhava fixamente para o cavalo que Sergei matou. Allesandra abraçou o filho desesperadamente, depois afastou Jan para examiná-lo; as roupas estavam rasgadas também e havia um arranhão na bochecha que sangrava, tirando isso, ele parecia ileso.

— O que aconteceu? — perguntou ela. — Você viu?

— O regente nos salvou — disse Jan. — Ele nos tirou dos cavalos bem a tempo. — O hïrzg ergueu os olhos para o andaime, depois abaixou o olhar para o corpo no chão. Sergei estava cercado por uma massa de soldados, ajoelhado ao lado do cadáver. — O homem... ele estava lá em cima. Teria matado a senhora. Talvez nós dois. Mas Sergei...

O archigos Semini veio correndo então, com o robe verde esvoaçante. — Allesan... — Ele começou a dizer, depois balançou a cabeça e fez o sinal de Cénzi às pressas. — A’hïrzg! Hïrzg! Graças a Cénzi os senhores estão a salvo! Eu pensei...

Mas Allesandra já não o ouvia. Ela avançou pela multidão até o lugar onde Sergei examinava o corpo. — Regente? — falou a a’hïrzg, e Sergei ergueu o olhar para Allesandra, com uma cara feia.

— A’hïrzg. Eu peço desculpas, mas não tive tempo de dar um aviso. A senhora está muito machucada?

Ela balançou negativamente a cabeça. Sergei assentiu e gemeu ao ficar de pé, como se o movimento o tivesse ferido. — Estou velho demais para isso — murmurou. Ele chutou o cadáver, e a bota fez um som macio e desagradável quando o torso quebrado tremeu em resposta. Allesandra viu um rosto bonito sob o sangue, um rosto jovem, talvez da idade de Jan; ela notou que as roupas eras elegantemente suspeitosas. O corpo estava decorado por hastes quebradas de várias flechas. — Não sei quem ele é — disse Sergei —, mas descobriremos. É um ca’ ou co’, pelo jeito que está vestido e pela aparência física. Eu o vi no alto do andaime bem antes de ele jogar a estátua. Foi quando entrei em ação; parece que seus arqueiros cuidaram do resto. — Ca’Rudka pareceu notar o nariz pendurado então, empurrou-o com cuidado de volta ao lugar e o segurou com dois dedos. — Perdão, a’hïrzg... a cola...

— Não importa — falou Allesandra, abanando a mão. — Regente, eu lhe devo a minha vida.

Ela pensou que Sergei responderia como a maioria, com a cabeça baixa e depreciação, uma declaração sobre dever, lealdade e obrigação. Ele não fez isso. Ao contrário, ca’Rudka sorriu, ainda segurando o nariz de prata no lugar.

— Realmente, a senhora me deve, a’hïrzg.

 

Niente

A CIDADE QUEIMAVA e as chamas eram refletidas na tigela premonitória. Elas sumiram quando Zolin deu um tapa no objeto, que derramou água sobre Niente. A tigela fez barulho ao cair, o bronze retiniu nos ladrilhos como um sino frenético até bater na parede do outro lado, onde reluzia um mosaico de azulejos de alguma batalha antiga. Desenhados no vidro, cavalos empinavam enquanto lanças marchavam em um campo com uma montanha de pico nevado que se agigantava ao fundo.

— Não! — rugiu o tecuhtli. — Não deixarei que me diga isso!

— É o que eu vi — respondeu Niente com uma calma que não sentia. O guerreiro morto, o nahualli esparramado ao lado dele, só que dessa vez ele viu um dos rostos. O rosto de Zolin... E ele estava com medo demais para pedir a Axat que lhe deixasse ver as feições do nahualli... — Tecuhtli, nós realizamos tanta coisa aqui. Mostramos a estes orientais a dor que eles infligiram a nós e a nossos primos. Tomamos terras e cidades deles assim como eles tomaram de nós. Demos a lição que o senhor queria dar. Continuar... — O nahual ergueu as mãos. A grande cidade em chamas e os tehuantinos em fuga, os navios com mastros quebrados adernados no rio... — As visões só me mostram morte.

— Não! — disparou Zolin. — Eu mandei uma mensagem para casa dizendo que ficaríamos aqui, que eles deveriam mandar mais guerreiros. Manteremos o que conquistamos. Atacaremos o coração dos orientais: essa grande cidade que está tão próxima. — Ele se virou, os braços pesados e musculosos passaram perto do rosto de Niente. Os dedos grossos do tecuhtli apontaram para os olhos do feiticeiro. — Você está cego, nahual? Não viu como foi fácil tomar essa cidade dos orientais? Não viu como eles correram como um bando de cães açoitados?

— Temos pouco material sobrando para fazer mais areia negra — falou Niente. — Eu perdi um terço dos meus nahualli no combate; o senhor perdeu a mesma quantidade em guerreiros. Chegamos muito longe, sem recursos para manter a terra atrás de nós. Estamos em um país estrangeiro cercado por inimigos, com apenas os suprimentos que conseguimos coletar e pilhar. Se voltarmos para os nossos navios agora e formos embora, deixaremos para trás uma lenda que provocará medo nos orientais por décadas. O nome do tecuhtli Zolin será um sussurro na noite que assustará gerações de crianças orientais.

— Bá! — disparou Zolin novamente. O cuspe quase acertou os pés de Niente e sujou o chão lustroso da mansão que ele tomou em Villembouchure. Ao abaixar o olhar, o nahual viu que todos os azulejos tinham a imagem da mesma montanha, como no mosaico da parede. O cuspe de Zolin formou um lago no flanco da montanha. — Você é mesmo uma criança assustada, nahual. Eu não tenho medo do que você vê na sua tigela. Não tenho medo desses futuros que você diz que Axat lhe envia. Eles não são o futuro, são apenas possibilidades. — O dedo cutucou o peito de Niente. — Vou lhe dizer uma coisa agora, nahual: você tem que fazer sua escolha. — Cada uma das três últimas palavras ditas foram acompanhadas por uma cutucada. Os olhos escuros do tecuhtli, envolvidos no movimento das asas da grande águia, encararam Niente como um daqueles grandes felinos que espreitavam as florestas de sua terra natal. — Chega de suas palavras. Chega de profecias, chega de avisos. Eu quero apenas a sua obediência e a sua magia. Se não puder me dar isso, então chega de você. Eu prosseguirei, quer você seja o nahual ou não. Decida agora, Niente. Aqui mesmo.

A mão de Niente tremeu ao lado do punho do cajado mágico que estava pendurado no cinto. O nahual seria capaz de pegá-lo e tocar Zolin com o objeto antes que o guerreiro conseguisse sacar a espada completamente. O feitiço disparado queimaria o tecuhtli e lançaria o corpo pela sala até ele desmoronar contra a parede em uma pilha fumegante debaixo do mosaico. Niente conseguia ver aquele resultado tão claramente quanto uma visão na tigela premonitória.

O ataque também acabaria com essa situação. Ele ansiava por isso.

Mas Niente não podia atacá-lo. Essa não era uma visão dada por Axat. Esse caminho levaria a um dos futuros cegos, um que ele não poderia adivinhar — um futuro que poderia ser bem pior para os tehuantinos do que o visto na tigela. O nahual percebeu que conhecer os futuros possíveis era tanto uma armadilha quanto um benefício; ele perguntou-se se isso era algo que Mahri também descobrira. Em um futuro cego, Citlali ou Mazatl poderiam continuar a seguir os passos de Zolin e se sair ainda pior. Todos eles poderiam morrer aqui, e ninguém em casa saberia seus destinos. Em um futuro cego, certamente Niente jamais veria sua família novamente.

Ele sentiu a madeira lisa e lustrosa do cajado mágico, mas as pontas dos dedos apenas roçaram o objeto. Eles não se fecharam em volta do punho.

— Eu obedecerei ao senhor, tecuhtli — falou Niente, com palavras baixas e lentas. — E o seguirei ao futuro que o senhor nos trouxer.

 

Varina ci’Pallo

KARL ESTAVA SENTADO no degrau da porta dos fundos da casa de Serafina no Velho Distrito e olhava fixamente através de um pequeno jardim plantado ali, na direção da parte detrás das casas da próxima rua. O olhar parecia penetrar a margem sul, bem ao longe. Acima dele, a lua estava presa em uma rede de finas nuvens prateadas através das quais as estrelas espiavam. Uma xícara de chá parecia esquecida à sua esquerda.

Karl esfregava uma pedra clara, pequena e achatada, entre o indicador e o polegar.

Varina apareceu e sentou-se à sua direita — não perto o suficiente para tocá-lo, nem longe demais a ponto de não sentir o calor do corpo no frio da noite. Nenhum deles disse coisa alguma. Karl esfregou a pedra. Ela ouviu a música abafada e distante que vinha da taverna mais à frente.

Quando o silêncio entre os dois prolongou-se por tempo demais para ela, Varina começou a ficar de pé. Sentiu raiva de si mesma por ter vindo aqui fora e raiva de Karl por tê-la ignorado. Porém, ele esticou o braço e tocou em seu joelho. — Fique — disse Karl. — Por favor?

Varina sentou-se novamente e perguntou — Por quê?

— Nós não... nos últimos dias... Bem, você sabe.

— Não, eu não sei — falou ela. — Diga-me.

— Por que você tenta dificultar as coisas para mim? — Ele girou a pedra nos dedos.

— Não, estou tentando facilitá-las para mim. Karl, estar com ou sem você são duas situações com as quais eu consigo lidar, de um jeito ou de outro. O que eu não consigo encarar é não saber qual delas é nossa situação. — Varina esperou. Karl não disse nada. — Então, qual é? — perguntou ela.

— Não é tão simples assim.

— Na verdade, é. — Varina abraçou o próprio corpo ao se sentar e inclinou-se um pouco longe dele. — Quando finalmente levei você para minha cama, eu achei que teria tudo que queria há anos. Mas descobri que eu ainda tinha apenas uma parte de você. Quero você por inteiro, Karl, ou não quero nada. Talvez eu esteja exigindo demais de você, ou talvez eu seja muito possessiva, ou talvez você ache que eu esteja forçando uma coisa que você não quer. — Lágrimas ameaçaram cair, e ela fungou o nariz para contê-las, com raiva. — Talvez seja culpa minha que essa situação não dê certo, e, se for o caso, então tudo bem. Mas eu simplesmente preciso saber.

— A questão não é você.

Varina queria acreditar naquilo. Ela mordeu o lábio inferior, conteve as lágrimas, teve dificuldade para respirar. — Então o que é? Você vai atrás desse tal Uly por conta própria, quase morre, encontra com Kenne sem me contar, está até mesmo fazendo planos com Talis. Mas não fala comigo.

— Eu não quero que você se preocupe.

Varina quis escarnecer ao ouvir isto. — Eu me preocupo mais quando não sei a situação. Não sei o que você planeja, não sei o que tenta fazer, não sei quais seriam os verdadeiros perigos. — Ela parou. Respirou fundo. — Eu não quero ser sua amante, estar à disposição sempre que você quiser esse tipo de consolo, e ser convenientemente esquecida fora isso. Se isso é tudo o que você quer de mim, então eu cometi um erro. Também não sou Ana, não quero você apenas como amigo. Novamente, se isso é tudo que você quer de mim, bem, também não pode me ter como amiga. Não mais. Então, se esse for o caso, me diga, e assim que essa situação acabar, de uma forma ou de outra, eu tomo o meu próprio rumo. Eu quis que você abrisse a porta entre nós por muito tempo, Karl. Agora você abriu, mas não pode ficar parado ali com um pé dentro e outro fora. Eu preciso fechá-la e trancá-la para sempre ou você precisa entrar de vez.

— Como eu faço isso? — A voz soou melancólica na escuridão. Ele apertou a pedra entre os dedos. Como você pode não saber? Ela queria ralhar com ele. Não é capaz de enxergar tão nitidamente quanto eu?

— Fale comigo — disse Varina. — Compartilhe o que está pensando. Deixe-me aceitar os perigos que você está disposto a aceitar. Deixe-me estar com você.

Ela pensou que Karl não fosse responder — o que teria sido uma resposta suficiente. Ele ficou sentado ali, ainda brincando com a pedra e olhando para longe. Varina começou a se levantar novamente, mas dessa vez Karl pegou sua mão. Ela sentiu a pedra ser pressionada contra a palma.

— Espere — falou ele. — Deixe-me contar o que estou pensando...

E Karl começou a falar.

 

Kenne ca’Fionta

AUBRI CO’ULCAI PARECIA um cão açoitado ao se ajoelhar, de cabeça baixa, perante a kraljica. A armadura estava arranhada e surrada, o rosto tinha marcas de sujeira e fumaça, o cabelo estava escuro e emaranhado, e ele fedia. No salão do Trono do Sol, o comandante parecia uma mosca patinando em uma xícara dourada de água limpa e fria.

Não que o salão em si não tivesse cicatrizes. Ninguém deixaria de notar as marcas dos reparos feitos às pressas onde o Trono do Sol foi danificado pela magia do assassino — não, não era magia, se Karl ca’Vliomani estivesse correto, lembrou-se Kenne, mas algo mais sinistro; uma coisa que qualquer boticário seria capaz de fazer com os ingredientes certos. De que o embaixador ca’Vliomani chamou aquilo? O fim da magia? O archigos perguntou-se se o homem estava certo.

As tapeçarias penduradas ainda fediam à fumaça, e Kenne imaginou se não havia um leve tom horripilante de rosa nos ladrilhos em volta do tablado do trono. E não havia como não notar a aparência da própria kraljica Sigourney: o tapa-olho e as cicatrizes no rosto, as bandagens ainda nos braços e na única perna, a maneira como ela se remexia com dor no assento, a taça cheia do extrato das sementes da flor venenosa cuore della volpe — um preparado que o ervanário da corte criou para aliviar a sua dor.

Ainda assim, o Trono do Sol reluzia sob e em volta dela como fizera com inúmeros kralji; Kenne cuidou disso pessoalmente. Se fosse uma farsa, ninguém que observasse saberia. Kenne suspirou na própria cadeira à direita do trono, cansado pelo esforço de conjurar o feitiço de luz. O Conselho dos Ca’ estava disposto à esquerda. O salão fora esvaziado de cortesãos e até mesmo de criados — nenhum deles queria mais rumores espalhados pela cidade além dos que já haviam.

— Comandante co’Ulcai — falou Sigourney em uma voz tão arrasada quanto o rosto —, a informação que você nos traz... — Ela parou e fechou o único olho. Quando abriu novamente, a voz saiu mais inteligível. — Você nos desapontou.

— Eu sinto muito, kraljica — disse o comandante. — A senhora já deve estar com minha carta de resignação.

— Eu estou com ela, mas não irei aceitá-la. — Quando co’Ulcai ergueu o rosto com uma leve esperança, Sigourney olhou o homem com desprezo. — E não há outra razão além do fato de que temos poucos offiziers com a sua experiência. Você nos desapontou com os ocidentais, e a mancha em seu currículo não será facilmente apagada. Eu tenho a intenção de mandar que Aleron ca’Gerodi comande as defesas de Nessântico caso esses bárbaros sejam tolos o bastante para continuar a avançar. Se meu irmão estivesse aqui... — Ao dizer isso, os lábios tremeram e um brilho úmido surgiu no olho. Ela tomou um gole de cuore della volpe. — Quanto a você, veremos como se sai contra um inimigo que deve conhecer melhor. Vou mandá-lo para leste, comandante co’Ulcai, para comandar nossas forças contra o exército de Firenzcia. Odil ca’Mazzak, do Conselho, irá acompanhá-lo, e vocês dois partem amanhã. — A kraljica gesticulou com o braço para dispensá-lo. — Imagino que tenha preparativos a fazer, comandante.

Co’Ulcai ficou de pé, fez uma mesura para a kraljica e foi embora do salão com passos altos no silêncio que o acompanhou. Quando ele saiu, a kraljica Sigourney suspirou.

— Eu não confio no sujeito — murmurou Odil ca’Mazzak. — Ele é outro offizier com laços com o regente traidor.

— Infelizmente, co’Ulcai é o melhor que temos — respondeu a kraljica Sigourney. — Odil, precisamos rever os pontos da negociação que você discutirá com os firenzcianos. Archigos, preciso que você se manifeste contra os numetodos, por duas razões: para aplacar Firenzcia e para sabermos que não temos traidores na cidade enquanto enfrentamos inimigos dos dois lados. Eu espero ouvir Admoestações agressivas de sua parte e de todos os seus ténis, a começar com as missas da Terceira Chamada.

Kenne sabia que ela não esperava ouvir objeção alguma de sua parte; Sigourney já havia afastado o rosto antes de terminar de falar. A kraljica imaginava que ele apenas concordaria com a cabeça e não diria nada. Antigamente, ela estaria certa.

Antigamente. Mas havia a visita de Karl, havia o espectro do falso archigos Semini ca’Cellibrecca surgindo no horizonte e tudo o que aquilo significaria. E havia a memória de Ana e a liberdade e tolerância pelas quais ela lutou por anos.

— Não — disse Kenne. — Eu não farei isso.

O silêncio que se seguiu foi longo. A kraljica Sigourney piscou o único olho. — Não — repetiu ela, e a palavra soou como o toque de um sino fúnebre. — Eu ouvi direito, archigos?

Kenne concordou com a cabeça. — A senhora está... — A garganta estava seca. Ele engoliu em seco e tentou juntar alguma saliva. — A senhora está errada a respeito dos numetodos, kraljica. Está errada em acreditar que foi a magia deles que matou o kraljiki Audric e feriu a senhora. Não foram eles.

Ela piscou o único olho mais uma vez. Os outros conselheiros observavam os dois, em silêncio. — Não foram? E como você sabe disso?

— Porque eu falei com o embaixador ca’Vliomani, na verdade. Ouvi suas explicações e fiz minha própria investigação sobre o que ele descobriu.

— Karl Vliomani — a nítida falta de um prefixo ao sobrenome pairou pesadamente no ar — é um fugitivo atualmente condenado à morte. Está me dizendo que ele foi até você, e você o deixou escapar?

Kenne sentiu um arrepio com o tom de voz. — Ele veio até mim, sim, e me mostrou isso. — Ele tirou um pequeno frasco de vidro debaixo do robe verde. No interior, a areia negra reluzia. — Observem. — O archigos levantou-se da cadeira, arrastou os pés pelo tablado e desceu para o piso do salão. Tomou vários passos de distância do trono, depois tirou a rolha do frasco e deixou a areia jorrar sobre os ladrilhos. Kenne voltou para o tablado; os joelhos estalaram como gravetos secos quando subiu os degraus. — Todo mundo concorda que Enéas co’Kinnear usou um feitiço para criar fogo; mas aquele era um feitiço de téni, não de numetodo. Co’Kinnear foi um acólito da fé concénziana e teve alguma educação sobre o uso do Ilmodo. É muito provável que ele tenha aprendido aquele feitiço; é um dos primeiros a serem ensinados aos novos estudantes. Olhem...

Kenne ergueu as mãos e deixou que dançassem no rápido gestual enquanto a voz entoou as curtas frases necessárias. Um momento depois, uma chama amarela tremeluziu no ar entre suas mãos. — Todos os senhores viram isso mil vezes; todas as noites, quando as lâmpadas são acesas ao longo da Avi a’Parete. Isso aqui não é diferente...

O archigos abriu as mãos, começou um novo cântico, e a chama afastou-se de sua mão, saiu flutuando do tablado até pairar sobre a areia negra. Ali, ele abaixou as mãos devagar, e a chama respondeu da mesma forma, desceu até quase tocar a pilha escura...

O estrondo da explosão foi mais alto até mesmo do que Kenne esperava, e o clarão feriu os olhos. Uma fumaça branca subiu e se espalhou pelo salão, seguida de um cheiro cáustico e intenso. Ele ouviu o baque metálico quando a taça do cuore della volpe caiu do braço do Trono do Sol para o chão. A kraljica Sigourney estava com a respiração acelerada no trono e a mão erguida diante do rosto como se tentasse se proteger; ela parecia tentar ficar em uma perna só enquanto pegava a bengala perto da mão direita. Vários conselheiros estavam de pé e berravam. As portas do salão foram escancaradas por gardai, que entraram com espadas na mão. — Kraljica?

Sigourney abaixou as mãos. Kenne ouviu a respiração da kraljica desacelerar. Ela dispensou os gardai com um gesto. — Este cheiro... — murmurou Sigourney. — Eu me lembro dele mais do que de tudo. — Ela virou-se lentamente para o archigos e perguntou — Isso não é magia? Como é possível que isso não seja o Ilmodo, archigos?

— Porque é apenas alquimia — respondeu Kenne —, uma combinação de ingredientes que reage violentamente quando entra em contato com fogo. Havia traços desta areia negra na madeira do Alto Púlpito após a archigos Ana ser morta; os mesmos traços estavam no Trono do Sol e no corpo do kraljiki Audric.

— Os numetodos alegam que a fé em Cénzi não é necessária para usar magia, que qualquer pessoa é capaz disso, que não é mais complicado do que ser um padeiro. Eles olham para pedras com formato de conchas e crânios e inventam teorias estranhas, eles realizam experiências... em alquimia, assim como em outras “ciências”, bem como em magia. Para mim, isso parece indiciar os numetodos. — Quem falou foi Odil ca’Mazzak. Ele olhou com raiva para o archigos, e a kraljica concordou com a cabeça diante das palavras.

— Eu afirmo que isso não veio dos numetodos — insistiu Kenne.

— Mesmo que tenha sido Vliomani quem, por acaso, lhe mostrou isso — retrucou Odil com desdém. — Parece uma lógica estranha.

— A areia negra é um preparado ocidental — disse Kenne. — Aqui está a lógica, conselheiro. Enéas co’Kinnear tinha acabado de retornar do serviço militar nos Hellins. O senhor também deve se lembrar que o comandante co’Ulcai acabou de nos contar como os ocidentais foram capazes de destruir as muralhas de Villembouchure com explosões similares àquelas que mataram a archigos Ana e o kraljiki Audric.

— E ele disse que as explosões foram criadas pela magia dos ténis-guerreiros ocidentais, esses tais “nahualli”. — Odil balançou a cabeça grisalha. A pele flácida da garganta sacudiu com o movimento. — Eu acho que o archigos está enga...

— Não! — Dessa vez Kenne quase gritou e bateu o pé no chão ao mesmo tempo. — Eu não estou enganado. Sei que todos os senhores me acham um velho tolo e decrépito que é uma mera sombra do que um archigos deveria ser. Os senhores podem estar certos quanto a isso, mas estão errados nessa questão. Pior do que errados; eu tenho provas que me fazem acreditar que o falso archigos Semini está envolvido no assassinato da archigos Ana. E, se esse for o caso... — Ele parou, sem fôlego. Todos encaravam o archigos como se ele fosse uma criança tendo um ataque. — Nós precisamos dos numetodos, kraljica, conselheiros — continuou Kenne, com a voz mais baixa. — Precisamos das habilidades, da magia e do conhecimento deles. Nessântico está prestes a ser sitiada pelo oeste e pelo leste, e não podemos nos dar ao luxo de perder aqueles que podem nos ajudar.

Houve um longo e doloroso silêncio. Odil lambeu os lábios e sentou-se. Os outros integrantes do Conselho abaixaram a cabeça e entreolharam-se. A kraljica Sigourney olhou fixamente para a mancha negra nos ladrilhos. — Nós consideraremos o que você disse, archigos — falou ela, finalmente, e Kenne sabia o que isto significava.

Ele gemeou e levantou-se da cadeira novamente. Pegou o cajado de archigos com a mão direita — o globo partido envolto pelos corpos nus e contorcidos dos moitidis — e fez o sinal de Cénzi para a kraljica com a esquerda. Novamente, Kenne afastou-se do tablado arrastando os pés. Ao passar pelo ponto onde a areia negra havia explodido, parou. Os ladrilhos ali estavam quebrados. Ele pegou um dos pedaços maiores, com uma borda afiada de cerâmica azul-clara e a superfície lisa manchada com o que parecia ser fuligem. O cheiro da areia negra era forte. Kenne levantou o pedaço do ladrilho e deixou cair, o som se parecia com o de um prato se quebrando. Ele viu os pedacinhos quicarem e se espalharem.

— Nessântico inteira pode ficar assim — disse o archigos. — Inteira.

Não houve resposta. Ele bateu com a ponta do cajado de archigos no ladrilho e continuou arrastando os pés.

 


Sergei ca’Rudka

A TENDA DE NEGOCIAÇÃO FOI ARMADA em um campo entre as duas forças: ao lado da Avi a’Firenzcia e aproximadamente a meio caminho entre Passe a’Fiume e Nessântico. Ao se aproximarem, Sergei já podia ver as silhuetas escuras de Odil ca’Mazzak e Aubri co’Ulcai através do pano branco, juntamente com o u’téni Petros co’Magnaoi, presente como o representante do archigos. A delegação firenzciana era composta por Sergei, a a’hïrzg Allesandra e o starkkapitän ca’Damont, acompanhados pelo obrigatório conjunto de chevarittai e assistentes. Uma vez que nem a kraljica nem o archigos Kenne estavam presentes, o hïrzg e o archigos Semini, diante da sugestão de Sergei, ficaram para trás. Nenhum dos dois ficou contente com o arranjo.

— Matarh, eu deveria estar lá — insistiu Jan. — Eu sou o hïrzg, e o que acontecer deve ser, tem que ser minha decisão. — Ele olhou feio para Sergei e Allesandra.

— E será, hïrzg — disse Sergei para o jovem. — Eu lhe prometo, mas para o senhor estar lá... — Ele balançou a cabeça. — O senhor é o hïrzg, como disse. Não há um igual ao senhor naquela tenda; também não há um igual ao archigos. Não é esperado do senhor, hïrzg Jan, que negocie em termos iguais com Odil ca’Mazzak, que é apenas um integrante do Conselho dos Ca’; o senhor estaria se rebaixando se fizesse isso. Eu lhe digo que isso é exatamente o que eles querem que faça. Seria uma admissão de que o hïrzg da Coalizão é alguém inferior à kraljica dos Domínios.

Sergei então olhou para Allesandra e para o archigos, que estava com a cara fechada. — Os senhores me pediram para dar meu conhecimento, para ajudá-los. É o que estou fazendo aqui. Aparências importam. Importam muito. Especialmente para aqueles no Palácio da Kraljica.

No fim, com o apoio de Allesandra, o regente venceu o argumento. Jan, pelo menos, foi, de certa forma, educado. Irritado, o archigos saiu em um rompante, e eles ouviram Semini reclamar pelo acampamento pelas próximas viradas da ampulheta.

Conforme o contingente firenzciano desmontava e criados recolhiam as armas e os cavalos e ofereciam comidas e bebidas, os representantes de Nessântico aproximaram-se. Sergei apertou afetuosamente o braço de co’Ulcai e sorriu para seu offizier de longa data. — Aubri, eu gostaria que pudéssemos ter nos encontrado sob circunstâncias melhores. Eu soube o que aconteceu com o pobre Aris... — Ele apertou o ombro do homem e fez o sinal de Cénzi para o u’téni Petros co’Magnaoi. — Petros, é bom vê-lo também. Como está o archigos Kenne?

— Está bem, senhor, e lhe manda bênçãos — respondeu o homem mais velho.

Sergei inclinou-se para perto do u’téni ao abraçá-lo. — Kenne recebeu minha mensagem? — sussurrou o regente no ouvido do velho. — Ele concorda? — Sergei sentiu o leve aceno de Petros. Também viu os olhares de avaliação de ambas as delegações sobre ele ao cumprimentar os dois homens: tanto de Allesandra quanto de Odil ca’Mazzak. Ambos tinham suspeitas; ambos tinham o direito de ter. Sergei acenou com a cabeça para ca’Mazzak e sentou-se à esquerda de Allesandra.

O conselheiro gesticulou, e pajens aproximaram-se para entregar rolos pesados de pergaminhos a Allesandra, Sergei e ao starkkapitän. — Esta é a oferta da kraljica Sigourney — falou ca’Mazzak enquanto o trio lia as palavras presentes ali. — Seu exército terá permissão para retornar a Firenzcia. O fora da lei Sergei Rudka será entregue a nós. Reparações serão pagas por Brezno para os Domínios pela destruição de colheitas e gado feita por seu exército e pela violação do Tratado de Passe a’Fiume. Se os senhores acharem os termos aceitáveis, só é necessário que a a’hïrzg assine como representante da Coalizão.

Não era mais do que Sergei esperava. Ele já testemunhara a arrogância e o excesso de confiança dos Domínios muitas vezes antes.

O starkkapitän ca’Damont bufou desdenhosamente pelo nariz e jogou o pergaminho na mesa. — E como a kraljica pretende executar essa oferta, conselheiro? Com os poucos batalhões que o senhor deu ao comandante co’Ulcai? Não tenho nada além de respeito pelo comandante, que é um belo offizier, mas não se afasta um urso raivoso com um graveto. — Ele pareceu se dar conta de que falou o que não devia. O rosto ficou um pouco vermelho. — Perdão, a’hïrzg. Eu sou um simples offizier, mas essas exigências... — Ele empurrou o pergaminho da mesa para o chão; um pajem correu para pegá-lo, mas não o devolveu ao starkkapitän.

— A Garde Civile e os chevarittai dos Domínios não são um graveto, starkkapitän — gabou-se ca’Mazzak. Ele inchou como um sapo, sentado ereto na cadeira, a papada no pescoço grosso tremeu. — O senhor subestima nossa capacidade de botar um exército em campo rapidamente quando nossas terras são ameaçadas. É uma lição que o último hïrzg Jan aprendeu; estou surpreso que alguém em Firenzcia sinta necessidade de aprendê-la uma segunda vez.

Allesandra parecia ainda estar lendo a proposta, embora Sergei tenha notado que ela escutava com atenção o diálogo. A a’hïrzg pousou o papel diante de si e dobrou as mãos sobre ele. — Muito bem. Deixemos a pose de lado, conselheiro ca’Mazzak. Todos sabemos que Nessântico enfrenta uma ameaça a oeste. Sabemos o que aconteceu com Karnor; ouvimos rumores que Villembouchure pode ter sofrido o mesmo destino. Talvez o comandante co’Ulcai possa nos esclarecer sobre isso, uma vez que eu espero que ele tenha estado lá quando as forças dos Domínios foram escorraçadas? Todo mundo nesta mesa sabe que o senhor não tem forças suficientes para nos desafiar aqui. Então o que é que a kraljica realmente oferece?

Sergei havia sugerido esse curso direto de ação para Allesandra, mas a provocação a Aubri co’Ulcai tinha sido contribuição da própria a’hïrzg. A expressão no rosto de Aubri foi o suficiente para confirmar que o palpite dela estava correto, e Sergei sentiu uma pontada de compaixão pelo amigo.

Ca’Mazzak parecia ter engolido uma fruta podre. Ele deu uma olhadela para Petros, que parecia examinar os campos além do limite da tenda, e depois para Aubri. — A kraljica está preparada para oferecer um meio-termo — falou o conselheiro finalmente. — Que o hïrzg e a a’hïrzg voltem para Brezno com a Garde Brezno; no entanto, o starkkapitän ca’Damont e o restante do exército ficam para trás, a fim de auxiliar na defesa de Nessântico contra os ocidentais, ajuda pela qual o tesouro de Nessântico está disposto a pagar. Quanto ao antigo regente... — ca’Mazzak olhou com ódio para Sergei. — A kraljica Sigourney mantém a exigência do retorno de Sergei Rudka para que enfrente as acusações contra ele, não importa o acordo a que cheguemos aqui.

Allesandra ficou de pé ao ouvir isso; um momento depois, Sergei, ca’Damont e o resto do contingente firenzciano acompanhou o gesto. — Então estamos encerrados aqui — disse a a’hïrzg. — O regente ca’Rudka é um conselheiro da coroa de Firenzcia, e nós o consideramos o legítimo governante atual de Nessântico até que um kralji de direito seja nomeado. Se o regente ca’Rudka desejar retornar à Nessântico por conta própria para lutar por seu direito, ele pode fazê-lo. Caso contrário, ele está sob a proteção do hïrzg, não importa o que a pessoa que os senhores nomearam kraljica deseje. — Ela fez uma mesura para ca’Mazzak e gesticulou. Sergei deu um largo sorriso para o homem. Eles deram meia-volta para ir embora.

— Esperem! — Foi Petros que os chamou. Allesandra parou.

— U’téni? — perguntou a a’hïrzg, mas ca’Mazzak já vociferava.

— Eu estou no comando dessa delegação — falou o conselheiro. — Você fala quando eu lhe der permissão, u’téni co’Magnaoi.

— Cénzi está no comando da minha consciência — disse Petros. — Não o senhor, nem a kraljica Sigourney. E eu falarei. A’hïrzg, Nessântico está em uma situação desesperadora. O comandante co’Ulcai poderia lhe dizer, se tivesse permissão para falar, com que facilidade os ocidentais tomaram os vilarejos e as cidades que eles devastaram. Nessântico precisa desesperadamente de todos os aliados que conseguir reunir agora. O archigos Kenne está preparado para negociar separadamente da kraljica, se for necessário, para alcançar esse objetivo.

— O quê? — esbravejou ca’Mazzak. Ele também estava de pé agora e socou a mesa. — Não, não, não. Estamos encerrados aqui. U’téni co’Magnaoi, você será levado de volta à cidade para responder por isso. Comandante, mande seus gardai...

Sergei deu um tapa na mesa bem na frente de ca’Mazzak, o homem fechou a boca com um estalo alto. — O senhor não é nada além do cachorrinho bravo da kraljica, conselheiro — disse o regente ao se inclinar na direção do homem. — Sente-se.

Ca’Mazzak o olhou com ódio e virou-se para Aubri. — Comandante, o senhor tem as suas ordens. O senhor prenderá o u’téni imediatamente.

Aubri não se mexeu, não respondeu. Sergei sentiu a tensão aumentar na tenda. Viu mãos deslizarem cautelosamente na direção das armas escondidas — ele mesmo tinha as próprias facas, uma na bota, outra debaixo da blusa da bashta, e o zumbido do próprio medo ecoava em seus ouvidos. O regente não conseguira contatar Aubri antecipadamente, e se o comandante tivesse decidido que sua lealdade ao Trono do Sol era maior do que a velha lealdade a Sergei, então... Bem, então Sergei não sabia o que poderia acontecer aqui.

— Comandante co’Ulcai, isso é traição — rosnou ca’Mazzak. — Vou exigir sua cabeça por isso, se não fizer como mandei.

Aubri não disse nada; o olhar contemplativo continuava em Sergei. Os chevarittai de ambos os lados ficaram tensos, prontos para agir. Sergei colocou-se entre Allesandra e a mesa e falou — Eu sugiro que o senhor se sente, conselheiro. Deixe o u’téni co’Magnaoi terminar de explicar sua proposta.

Por vários instantes, ca’Mazzak não se mexeu. Ele olhou em volta da tenda lentamente, Sergei sabia que o conselheiro estava avaliando quem ali o seguiria ou não. Evidentemente, o homem não ficou satisfeito com o resultado. Devagar, ca’Mazzak sentou-se novamente. Ele olhou fixamente para as próprias mãos.

— Ótimo — disse Sergei. Por um momento, o zumbido nos ouvidos diminuiu. — Petros, o que o archigos Kenne tem a oferecer para Firenzcia?

— Informação — respondeu Petros. — Nós temos provas de que o archigos Semini esteve envolvido no assassinato da archigos Ana. Podemos dar nomes que verificam essa informação. — Atrás dele, Sergei ouviu Allesandra tomar fôlego diante da acusação. O regente ficou intrigado com a reação; ela parecia mais preocupada do que surpresa. — Como o kraljiki Audric foi morto da mesma maneira — continuou Petros —, nós suspeitamos que o falso archigos esteve envolvido da mesma maneira. Se o hïrzg Jan estiver disposto a julgar o archigos Semini pela morte da archigos Ana em sua própria corte, nós daremos as provas que temos. Em troca, a Fé de Nessântico trabalhará com a Fé de Brezno para restaurar o nosso racha; o archigos Kenne irá convocar um Conclave com todos os a’ténis para eleger um único archigos para reger a fé concénziana, e também abdicará voluntariamente se não for eleito; porém, qualquer archigos eleito deverá assumir o Templo do Archigos em Nessântico, não em Brezno. Da mesma forma, a Fé está disposta a reconhecer o direito ao Trono do Sol de Allesandra ca’Vörl. O archigos Kenne irá apoiá-la diante do Conselho dos Ca’ contra a kraljica Sigourney.

— Não! — Ca’Mazzak ficou de pé em um pulo novamente, e uma baba voou de sua boca com a explosão da palavra. — O archigos Kenne será jogado na Bastida por isso, e os ténis que o apoiarem serão expulsos...

— Se isso acontecer — respondeu Petros calmamente —, então o archigos Kenne mandará que os ténis-guerreiros permaneçam nos templos em vez de responderem ao chamado da kraljica. Como a Garde Civile e os chevarittai se sairão contra os ocidentais sem os ténis-guerreiros, conselheiro? Como enfrentarão o exército do hïrzg?

Novamente, ca’Mazzak desmoronou na cadeira. Ele sentiu um arrepio, como se estivesse com febre e alisou a papada. A testa porejava, e debaixo dos braços, o tecido da bashta escureceu.

Allesandra tocou o ombro de Sergei, que se afastou. A a’hïrzg deu um sorriso amargo e fez o sinal de Cénzi para Petros. — Vocês oferecem tudo isso pelo julgamento do archigos Semini?

Petros concordou com a cabeça. — Nós confiamos que a corte do hïrzg será justa e imparcial. E há mais uma coisa: toda perseguição contra os numetodos deve parar. Imediatamente. Os numetodos são inocentes em toda esta questão. O embaixador Karl ca’Vliomani deve retomar o antigo cargo.

Sergei sentiu que as negociações dependeriam da resposta de Allesandra a essa última exigência. Ela tocava o globo partido de Cénzi pendurado no pescoço. Sua própria vida dependia disso também, assim como a de Petros e Aubri. Se ele avaliou errado...

— Eu falarei com meu filho — respondeu a a’hïrzg. — Repetirei tudo o que foi dito aqui. — Sergei achou, por um momento, que essa seria toda a resposta, que ele havia perdido. Mas Allesandra respirou fundo e disse — Vou sugerir que o hïrzg aceite a oferta do archigos. Conselheiro ca’Mazzak, comandante, u’téni, nós voltaremos à tenda de negociação em três viradas da ampulheta para dar nossa resposta.


— Se o archigos Kenne tem provas, eu irei avaliá-las — falou Allesandra para Sergei ao voltarem. — E se o archigos Semini for o responsável pela morte de Ana ca’Seranta, então... — Ela franziu os lábios com força. — Então estou inclinada a convencer meu filho a aceitar a oferta do archigos.

De alguma forma, a a’hïrzg pareceu ter feito exatamente isso, embora Sergei não tenha estado presente à discussão, e embora todo mundo no acampamento tenha ouvido as ocasionais vozes exaltadas na tenda do hïrzg. O regente notou, principalmente, que o starkkapitän ca’Damont colocou gardai postados em volta da tenda do archigos.

Ele se perguntou o que estaria acontecendo no outro acampamento. Tudo dependia das lealdades da Garde Civile e dos ténis — e Sergei não tinha certeza de como aquilo terminaria. O regente rezou para Cénzi, na esperança de que Ele escutasse.

Três viradas da ampulheta depois, Sergei, Allesandra e os demais cavalgaram na direção da tenda de negociação.

Há décadas, quando ele era o comandante da Garde Kralji, Sergei às vezes sentia um arrepio ao se aproximar da Bastida a’Drago: um tremor na espinha, quase parecido com medo, que lhe dizia quando havia algo errado no complexo atrás do crânio sorridente do dragão.

O regente sentiu aquele arrepio agora, conforme o pequeno destacamento se aproximava da tenda de negociação. Antes de mais nada, foi curioso que não houvesse nenhum criado andando de um lado para o outro, que as cadeiras do lado de Nessântico na mesa estivessem vazias. Mas o que deteve Sergei, o que deu um nó no estômago, foi perceber que havia alguma coisa sobre a mesa — duas coisas, dois objetos arredondados escondidos sob a sombra da lona que tremulava na brisa. Infelizmente, Sergei sabia o que estava ali.

— Espere um momento, a’hïrzg — falou ele. — Por favor, espere aqui.

Sergei fez o cavalo ir à frente sozinho e gesticulou para o starkkapitän ca’Damont segui-lo. Ele apertou os velhos olhos para forçá-los a distinguir o que havia sobre a mesa. Ao se aproximar, ouviu um leve zumbido que ficou mais alto aos poucos: o barulho de insetos.

O regente entendeu, naquele momento, e a bile subiu à garganta. Ele parou o cavalo, desceu da sela e entrou na sombra da tenda.

Sobre a mesa havia duas cabeças, com uma poça de sangue coagulado e grudento debaixo delas e um tapete de moscas que andavam sobre os olhos abertos e dentro das bocas escancaradas.

Sergei ficou de joelhos e fez o sinal de Cénzi na direção da cena horripilante. — Aubri. Petros. Sinto muito. Sinto muitíssimo.

Trêmulo, o regente ficou de pé novamente e retornou ao cavalo. Ele cavalgou em silêncio até os demais. O olhar de Allesandra questionou Sergei; ela também sabia. O regente viu na maneira com que a a’hïrzg levou a mão à boca antes dele sequer falar.

— O conselheiro ca’Mazzak deixou sua própria resposta para nós — disse Sergei. — Parece que ele não se importa com qual seria nossa resposta.

 

Nico Morel

NICO NÃO CONSEGUIA ficar sentado quieto. O menino jamais havia imaginado um lugar tão grande, glorioso e interessante quanto esse. Eles foram conduzidos a um gabinete em um dos prédios que rodeavam a Praça a’Archigos; a recepção em si era maior do que o apartamento de dois cômodos que eles tinham no Velho Distrito e havia pelo menos três portas que levavam a outros aposentos que Nico só conseguia imaginar. Ele vislumbrou um quarto quando um criado entrou com roupas de cama na mão, e o aposento parecia enorme, além dos limites. O gabinete para onde eles foram levados teria abrigado a casa de Nico, assim como aquelas dos vizinhos mais próximos. O teto parecia tão alto e tão branco quanto as nuvens de verão; o piso era um mosaico intrincado de várias madeiras coloridas, e as paredes eram cobertas por tapeçarias lindas, que mostravam a história da vida de Cénzi, a moldura no topo das paredes era entalhada e dourada. Atrás da enorme mesa de mogno, uma sacada dava vista para uma grande praça, com a silhueta do Templo do Archigos emoldurada pelas cortinas abertas. O resto da mobília na sala chamava tanto a atenção quanto a mesa — uma mesa comprida e lustrosa para reuniões, com cadeiras estofadas ao redor; um sofá colocado diante de uma lareira em que a família inteira de Nico poderia ficar em pé dentro, cercada por um belo consolo; um globo entalhado e partido que era mais alto que dois homens, um em cima do outro, com figuras esculpidas dos moitidis em volta dele e uma base cravejada de joias e folheada de ouro reluzente. Ao redor das paredes, havia mesas repletas de lindas maravilhas do exterior: estátuas de animais desconhecidos; uma pedra grande quebrada ao meio, com o miolo cheio de belos cristais violeta; conchas cor-de-rosa e espinhentas do Strettosei...

Nico piscava e olhava fixamente para tudo. — Tudo isso aqui é só para o senhor? — perguntou o menino para o archigos, maravilhado.

— Nico, silêncio — disse a matarh, mas o velho no robe verde apenas riu.

— É para o archigos, seja ele quem for — falou o homem. — Eu vivo aqui apenas temporariamente, até que Cénzi me chame de volta para Ele. Era aqui que a archigos Ana vivia também. — Ele deu um tapinha na cabeça de Nico, e os criados trouxeram bandejas de comida e bebidas e colocaram sobre a mesa. O archigos gesticulou para eles assim que terminaram e disse — Isso é tudo. Por favor, cuidem para que não sejamos incomodados. Mandem minha carruagem para a porta dos fundos uma virada da ampulheta antes da Terceira Chamada. — Eles fizeram uma mesura e foram embora. — Sirvam-se — disse o homem quando o último dos criados fechou as portas duplas ao sair do gabinete. — Karl? Parece que uma boa refeição cairia bem a todos vocês. — Nico olhava fixamente para a comida, e o archigos riu de novo. — Vamos, Nico. Você não precisa esperar.

O menino olhou de relance para a matarh e Talis, que deu de ombros. — Tudo bem — falou a matarh. — Vá em frente...

Nico foi em frente. Um bolinho de grãos com pingos de mel foi a primeira coisa que colocou na boca. Os adultos não pareciam estar com tanta fome quanto ele, o que era estranho. Nem Talis, Karl ou Varina foram à mesa, e sua matarh beliscava a esmo um peito de pato. Em vez disso, eles se amontoaram perto do sofá, em frente à lareira.

— Archigos — Nico ouviu Karl dizer —, Ana ficaria muitíssimo orgulhosa de você. Todos nós lhe devemos agradecimentos.

— Os agradecimentos são para você, Karl. Se você não tivesse vindo até mim, se não me dissesse o que sabia... Bem, não tenho certeza do que teria acontecido. De qualquer forma, eu talvez tenha colocado você em mais perigo, não em menos. A kraljica está furiosa, pelo que eu soube, e assim que o conselheiro ca’Mazzak retornar da negociação com os firenzcianos, eu desconfio que ela ficará ainda menos contente comigo. Nenhum de nós tem como saber o que acontecerá diante dessa situação; por isso precisamos conversar hoje à noite. Não há muito tempo; é possível que um mensageiro já esteja voltando para a cidade. — Nico ouviu o archigos perder a voz. Ele virou-se com um pedaço de pão e queijo na mão. — Este é o ocidental? — perguntou Kenne ao apontar com a cabeça na direção de Talis, que mantinha as duas mãos na bengala que sempre carregava. Nico viu o ar tremular em volta da madeira como se a bengala estivesse em chamas, mas era um fogo mais frio que a neve do inverno passado.

— Sim, archigos — respondeu Karl. — Este é Talis Posti. O vatarh de Nico.

— Ah — falou Kenne. — Vajiki Posti, eu também lhe devo agradecimentos; embora deva me desculpar por querer saber o motivo pelo qual você decidiu me ajudar.

— Porque eu vislumbrei os futuros, e nenhum deles leva a um bom lugar para o meu povo — respondeu Talis, e Nico viu seu interesse aumentar ao ouvir aquilo. Talis podia ver o futuro? Isso seria interessante. Ora, se ele pudesse fazer isso, Nico poderia se ver como adulto, talvez ver o que aconteceria com ele... O menino percebeu que suas mãos se moviam por conta própria em uma estranha dança, os dedos grudentos mexiam-se pelo ar, e palavras desconhecidas vieram a ele. Nico murmurou tão baixinho que nenhum dos demais ouviu. O frio da bengala de Talis parecia fluir na direção de suas mãos; ele sentia o arrepio nos braços.

— Você tem aquele dom dos deuses? — perguntou Kenne para Talis, que ergueu as sobrancelhas e olhou para Karl.

— Mahri alegava que podia fazer o mesmo — falou o embaixador. Isso também fez Nico prestar atenção; ele lembrou-se que Talis mencionara o nome anteriormente. — Não que tivesse lhe servido de alguma coisa no fim das contas.

— Não são visões do futuro que Axat nos permite vislumbrar, mas todas as possibilidades que existem. Os vislumbres de futuros em potencial não são fáceis de ler, embora fosse dito que Mahri era capaz de usar o talento melhor do que qualquer um antes ou depois dele. E sim, parece que o talento o desapontou, no fim das contas. — Um breve sorriso passou pelo rosto de Talis. — Talvez tenha sido a proximidade com o seu Cénzi.

Kenne riu; Nico gostou do som, fez com que gostasse do homem. O frio envolveu seus braços agora, embora as mãos tivessem parado de dançar.

— Você está disposto a nos ajudar... — o archigos Kenne abriu os braços para incluir Karl e Varina, e o resto da cidade do lado de fora da sacada — ... quando isso significa que você poderia ajudar a derrotar as forças do seu próprio povo?

— Sim — respondeu Talis —, porque Axat me disse que, ao fazer isso, eu ajudarei meu povo.

O frio congelava os braços de Nico e estava ficando pesado. Ele não sabia o que fazer com aquilo, mas tremia com o esforço de segurá-lo, e a dor quase fez com que gritasse. — Às vezes seu inimigo torna-se seu aliado — dizia Varina para o archigos. — Eu sei...

— Nico! — A voz da matarh foi quase um berro. — O que você está fazendo? — O menino tomou um susto quando Serafina agarrou seu ombro, e o frio saiu voando do corpo. Ao fugir, a energia reluziu e flamejou, como uma língua de fogo azul. A rajada foi disparada por ele, varou o espaço entre Talis e o archigos e se dirigiu para a escultura do globo partido, no canto do gabinete. Nico soluçou, assustado tanto pela sensação de alívio quanto de puro terror diante do que tinha acabado de lançar. Varina, que estava a alguns passos do archigos, gesticulou e falou uma única palavra ríspida; com o movimento, Nico viu a linha de fogo azul fazer uma curva e dar meia-volta. A rajada fez um arco ao se afastar da escultura, cuspiu fagulhas cor de safira sobre a mesa envernizada e saiu assobiando pelas portas abertas da sacada. Bem acima da praça, o fogo concentrou-se e explodiu: um globo azul-claro que brilhou como um relâmpago congelado. Com a explosão, veio o estrondo ensurdecedor de um trovão que ecoou nas paredes dos prédios que circundavam a praça. Nico sentiu as janelas tremerem e chacoalharem nas ombreiras e ouviu vidro se quebrando ao longe.

— Nico! — O menino foi abraçado pela matarh. — Nico... — repetiu ela, com mais gentileza dessa vez. Serafina abraçou o filho com mais força, que não tinha certeza se era para ser um abraço ou um estrangulamento. Todos olhavam fixamente para ele.

— Desculpem — falou Nico. — Eu não tinha a intenção de.

Ele começou a chorar.

 

Karl Vliomani

— DESCULPEM — falou Nico. O lábio inferior tremia, e as próximas palavras mal haviam saído antes que os ombros começassem a tremer por causa dos soluços. — Eu não tinha a intenção de...

Serafina olhava fixamente sobre os ombros do menino ao abraçá-lo, seus olhos estavam arregalados e aterrorizados. Lá fora, na praça, eles escutaram gritos ao longe quando os transeuntes começaram a procurar pela fonte da claridade trovejante. Karl ouviu Varina suspirar de alívio atrás de si. — Se ele estivesse um pouquinho para um lado, ou para o outro... — disse Karl.

— Ele não estava — respondeu Varina, que se ajoelhou na frente do menino e acenou com a cabeça para Serafina. — Está tudo bem, Nico. Ninguém se machucou. Está tudo bem. — Ela olhou para Karl, atrás dela. — Está tudo bem — repetiu. O menino fungou e esfregou a manga no nariz e nos olhos.

Karl suspirou e sorriu: para Varina, para Nico e para Serafina. — Sim, está tudo bem, graças a Varina. Talis, você sabia...?

— Eu suspeitava, mas... — Ele segurava o cajado mágico e o olhava confuso, como se fosse um copo subitamente vazio. — Agora eu sei. Archigos, o senhor está...?

Kenne abanou a mão, como se não fosse nada, mas Karl notou que o peito do homem ainda ofegava. — Eu estou bem — disse o archigos. — E impressionado. Seu filho é um dos poucos talentos naturais que conheci. O archigos Dhosti foi um, e Ana, também. Com treinamento, bem...

— Eu o treinarei. — A resposta do homem veio acompanhada por uma cara fechada. Ele pegou o cajado mágico com força. — Esse é o dom de Axat, não de Cénzi.

— É claro — falou Kenne para Talis, mas o olhar permaneceu em Nico. — Não se preocupe — disse o archigos para o menino. — Ninguém aqui está com raiva de você, entendeu? — Nico concordou com a cabeça, ainda fungando o nariz.

— Se eu soubesse disso, teria sido bem mais cauteloso quando me aproximei de você pela primeira vez — falou Karl para Talis. — Mas, como não aconteceu nenhum mal... Nós ainda temos planos e contingências em que pensar. Archigos, Petros está pronto para fazer a proposta que conversamos para Firenzcia?

Kenne concordou com a cabeça, com mais hesitação do que Karl gostaria, mas ao menos foi uma confirmação. Na verdade, ele teve medo de que o archigos não levasse o plano adiante, especialmente dado o perigo inegável em que Petros foi colocado. — Ele está pronto. — A voz de Kenne tremeu um pouco; medo combinado com idade, decidiu Karl. — Na verdade, Petros já deve ter feito a proposta a essa altura.

— Ótimo — disse Karl. Ele deu um tapinha no ombro de Kenne e falou — Ele ficará bem e voltará para você em breve. Agora, da parte de Talis, ele trará os materiais dos aposentos de Uly para o templo amanhã, e nós podemos começar a preparar a areia negra para a demonstração. Isso deve mostrar a esse tal tecuhtli dos ocidentais que atacar a cidade seria idiotice. Nós podemos prevenir centenas, se não milhares, de mortes.


A carruagem do archigos era um truque — quatro criados de Kenne entraram no veículo quando ele parou na entrada dos fundos do prédio, enquanto Karl e os demais desceram correndo uma escada dos fundos na direção de uma entrada de serviço pouco usada. Nenhum deles sabia se o subterfúgio era necessário; Karl torcia para que não fosse, porém, caso fosse, então nenhuma alternativa que eles prepararam se tornaria realidade.

O grupo começou a sair correndo da praça em direção à Avi. Kenne dera a eles dinheiro suficiente para alugarem uma das carruagens e levá-los de volta ao Velho Distrito. Conforme passaram pela rua, Karl e os demais viram três esquadrões distintos de Garde Kralji cruzarem a Praça do Archigos correndo. — Esperem um momento — falou o embaixador. Talis, Serafina e Nico já estavam na Avi à procura de uma carruagem para alugar; Varina, um pouco à frente dele, parou. Quando Karl hesitou, no limite da praça, ele e Varina viram dois dos esquadrões entrarem no prédio de onde eles acabaram de sair; o outro esquadrão entrou no Templo do Archigos.

As armas estavam desembainhadas, o aço reluzia sob a luz das lâmpadas.

— Karl? O que está acontecendo?

— Não sei, Varina. Acho que eu deveria voltar. Leve os demais. Eu vou...

— Não — disse Varina com firmeza. Ela voltou até onde o embaixador estava e segurou o braço dele. — Não, Karl. Não dessa vez. Mesmo disfarçado, seu rosto é muito reconhecível pela Garde Kralji, e há vários deles, de todo modo. Você não sabe por que os gardai estão lá; pode não ser nada. Provavelmente não é nada. E caso não seja... — Varina mordeu o lábio inferior. Os olhos imploraram. — Você precisa deixar o archigos cuidar de si mesmo. Venha comigo. Por favor.

— Mas se as coisas deram errado...

— Se as coisas deram errado, você não pode mudá-las agora. Nós não podemos mudá-las. Tudo que aconteceria é que você estaria perdido também. — O braço apertou o dele. — Por favor, Karl. Vamos embora. Se houver um problema, nós conseguiremos ajudar mais o archigos se estivermos vivos do que se formos jogados na Bastida com ele. Nós soltamos Sergei; podemos fazer o mesmo novamente se precisarmos. Karl... — Varina encostou a cabeça no ombro dele. — Se você voltar, então eu irei com você. Mas essa é a decisão errada. Tenho certeza.

Karl olhou fixamente para os prédios e desejou que pudesse ver a sacada de Kenne dali. Tudo estava em paz; as pessoas ainda andavam pela praça como se nada estivesse acontecendo. Mas ele sabia. Ele sabia.

E também sabia que Varina estava certa. Ele não podia mudar nada. Karl olhou para trás. Talis chamou uma carruagem com um gesto e olhava para os dois com curiosidade. Uma mulher, que estava vestida com roupas pobres demais para esta parte da cidade, o que era estranho, passou correndo por eles vindo da direção da praça. Ao passar, ela pareceu tropeçar e esbarrar de leve em Karl. — Desculpe, vajiki — murmurou a mulher. — A voz... parecia vagamente familiar, mas ela manteve o capuz da tashta erguido e a cabeça baixa. Ele vislumbrou o cabelo castanho e sujo. — Vai ser uma noite ruim. Uma noite ruim. O senhor realmente deveria correr para casa...

Ela foi embora depressa.

Karl olhou fixamente a mulher, que desapareceu do outro lado da carruagem à espera. Talis acenava para eles. Foi aí que Karl lembrou-se de onde ouvira aquela voz.

— Tudo bem — disse ele para Varina. — Vamos embora.

 

A Batalha Começa: Kenne ca’Fionta

— INFELIZMENTE seu pobre Petros está morto. É uma pena.

Kenne ouviu as palavras, e os velhos olhos embaçaram com as lágrimas, embora ele já soubesse que Petros estava morto. Ele sentira em seu coração quando a Garde Kralji veio e o levou para a Bastida. Só lhe restava torcer para que Karl e o resto tivessem escapado da varredura; eles foram embora com apenas algumas marcas da ampulheta de antecedência. O gosto da mordaça de metal e couro era horrível; os grilhões que prendiam as mãos eram tão pesados que ele mal conseguia levantá-los do colo.

O rosto deformado da kraljica Sigourney encarava o archigos de cima. Kenne sustentou o olhar caolho dela por apenas alguns instantes, enquanto respirava através do horrível aparato sobre a cabeça, depois abaixou o próprio olhar, arrasado e derrotado. Entre as pernas, as mãos algemadas mexiam inquietas na palha da cama tosca onde ele estava sentado na cela, no alto da torre principal da Bastida. A voz da kraljica era solidária, quase triste. — Você é um bom homem, Kenne. Sempre foi. Mas era fraco demais para ser archigos. Deveria ter recusado o título e dito ao Colégio A’téni para eleger outra pessoa.

Kenne só podia concordar com a cabeça. Havia muitas noites ultimamente que em ele desejava exatamente a mesma coisa.

— Você devia saber que isto aconteceria, Kenne. Você escolheu se associar aos inimigos dos Domínios. Devia saber. E agora...

Ela mancou até a única janela da cela e apoiou-se na muleta acolchoada e dourada, enquanto a perna direita ficava pendurada sobre o vazio abaixo do joelho. A janela dava vista para oeste, Kenne sabia; na parede oposta à janela, ele tinha visto a luz do sol ficar amarela, depois vermelha e então púrpura ao subir sobre pedras úmidas até sumir. — Venha cá. — falou Sigourney. — Venha cá e veja.

Ele levantou-se da cama com dificuldade; era um velho arrasado agora, na verdade. Arrastou os pés até a janela enquanto a kraljica esperava ao lado. Lá fora, debaixo de um belo céu azul, Kenne viu o A’Sele reluzir sob o sol enquanto cortava a cidade em direção ao mar. Perto de onde o rio virava para o sul, ele viu dezenas de velas reunidas. Do outro lado do A’Sele, onde antigamente havia fazendas e propriedades dos ca’ e co’, a terra estava agitada por uma invasão sombria que não estava lá ontem. — Está vendo? Está vendo o exército ocidental se aproximar? Aquelas são as pessoas pelas quais você traiu os Domínios, archigos. São as pessoas que o deixaram tão assustado que você tentou fazer um pacto com os cães firenzcianos contra mim. — A voz assumiu um tom mais agressivo agora, o único olho atacava Kenne. — Aquelas são as criaturas desprezíveis que mataram meu irmão. São os vilões que destruíram nossas cidades e nossos vilarejos. Quer você acredite ou não, tenho certeza de que também são as pessoas que mataram Audric e me transformaram nesse horror. Será que eu odeio os ocidentais? Ah, você não pode imaginar o quanto. Observe, e você verá os bons chevarittai dos Domínios escorraçá-los, e depois nós cuidaremos de seus amigos firenzcianos também. Em breve, o combate começará. E você vai nos ajudar, Kenne.

Ele virou a cabeça amordaçada na direção de Sigourney, com uma expressão de curiosidade. Ela riu. — Ah, você vai. Nós temos que ter os ténis-guerreiros, afinal, e temos que garantir que eles entendam que seu archigos agora se arrepende de sua horrível traição e que deseja que todos os ténis da fé concénziana ajudem Nessântico nesta ocasião terrível da maneira que puderem. É o que você deseja mesmo, não é, archigos?

Kenne só podia encará-la, mudo.

— Você acha que não? Bem, a proclamação já está escrita; só precisa de sua assinatura. E quer você queira ou não, eu terei essa assinatura. Você foi amigo de Sergei Rudka, afinal; deve saber que a Bastida sempre consegue as confissões que deseja.

Mesmo com aquele horrível aparato preso ao rosto, Kenne não conseguiu esconder a expressão de horror e percebeu o sorriso da kraljica diante de sua reação. — Ótimo — falou Sigourney. — Vou refletir sobre o seu sofrimento quando o capitão me entregar sua confissão.

A kraljica gesticulou para os gardai do lado de fora da cela e disse — Ele está pronto. Cuidem para que receba sua hospitalidade integralmente.

 

A Batalha Começa: Niente

A CIDADE ERGUIA FLANCOS DE PEDRA sobre morros baixos; as torres e os domos lotavam a grande ilha no centro do rio de modo que parecia uma pedra coberta por cracas. A metrópole saltara para fora do confinamento do cinturão das muralhas, magnífica, orgulhosa e destemida, os campos ao redor eram cheios de grãos e colheitas que alimentavam a aglomeração de habitantes. Essa cidade... Ela era a rival de Tlaxcala, de certa forma menor, porém mais populosa e comprimida, com uma arquitetura estranha. Nas cidades de sua terra natal, prevaleciam as pirâmides dos templos de Axat, Sakal e dos Quatro; aqui em Nessântico, o que era mais visível eram as torres dos grandes edifícios e os domos dourados dos templos.

Tão estrangeiro. Tão estranho. Niente não queria nada além de ver locais conhecidos novamente e temia que jamais os veria.

Ele olhou para Nessântico e sentiu um arrepio, mas não viu a mesma reação no tecuhtli Zolin. O tecuhtli, ao contrário, estava no morro que dava vista para o rio e a cidade. Zolin cruzou os braços e deu um sorriso com os lábios fechados. — Isso é nosso — disse ele. — Olhe para a cidade. Ela é nossa.

Niente se perguntou se o homem ao menos notou as grandes fileiras de tropas orientais dispostas ao longo da estrada, se contou os barcos que apinhavam o rio, se percebeu os preparativos para guerra na periferia oeste da cidade.

— O que você me diz, Niente? — perguntou Zolin. — Será que descansaremos amanhã à noite neste lugar?

— Se for a vontade de Axat — respondeu Niente, e Zolin gargalhou.

— É a minha vontade que importa, nahual. Você ainda não compreendeu isso? — Ele não deu tempo para Niente responder; não que houvesse alguma resposta que o nahual pudesse dar. — Vá. Cuide para que os nahualli estejam prontos e que o resto da areia negra tenha sido preparado para os ataques iniciais. E mande Citlali e Mazatl até mim. Começaremos hoje à noite. Vamos mantê-los acordados e exaustos; depois, quando Sakal colocar o sol no céu, atacaremos como uma tempestade. — Zolin olhou fixamente para a cidade por mais um instante, depois se virou para Niente. Quase com carinho, colocou a mão em seu ombro. — Você verá sua família novamente, nahual. Eu prometo. Mas, primeiro, temos que dar uma lição nesses orientais por sua insensatez. Olhe em sua tigela premonitória, Niente. Você verá que estou certo. Verá sim.

— Com certeza eu verei, tecuhtli.

Mas Niente já sabia o que veria. Ele tinha vislumbrado na manhã de hoje, enquanto eles se aproximavam desse lugar.

O nahual havia rogado a Axat e olhado na tigela, e ele não ousaria olhar novamente.

 

A Batalha Começa: Sergei ca’Rudka

PELA MAIOR PARTE DA MANHÃ, Sergei cavalgou sozinho no meio das tropas firenzcianas, perdido em reflexões que mantinham afastada — pelo menos um pouco — a dor crescente nas costas, provocada pela longa cavalgada. E o corpo não estava mais acostumado a longos dias na sela, nem a tardes passadas debaixo de uma tenda.

Você está ficando velho. Não estará aqui por muito tempo mais, e tem tanto o que fazer ainda.

— Regente, quero falar com você.

Diante do chamado, Sergei virou o olhar e viu o garanhão com as cores de Firenzcia que parou ao seu lado sem ser notado. Velho. Antigamente, você jamais teria deixado de perceber a aproximação. — É claro, hïrzg Jan — falou ele.

O menino trouxe o garanhão mais para perto da baia de montagem de Sergei. A montaria do regente mexeu as orelhas nervosamente e revirou os olhos diante do cavalo de guerra bem maior do que ela. Jan não disse nada, a princípio, e Sergei aguardou enquanto eles prosseguiam pela Avi levantando uma nuvem de poeira em volta dos dois. O exército aproximava-se de Carrefour, com Nessântico a um bom dia de marcha de distância. As forças de Nessântico desapareceram, sumiram; foram embora na tarde da negociação. — A matarh disse que você perdeu dois bons amigos — falou Jan finalmente.

— Perdi sim. Aubri co’Ulcai fez parte da minha equipe por muitos anos, tanto na Garde Kralji quando na Garde Civile, antes de eu ser nomeado regente. Ele era um bom homem e um excelente soldado. Eu não consigo nem pensar em falar com a esposa e os filhos dele para contar o que aconteceu, muito menos para dizer que a lealdade a mim foi a responsável pela morte de Aubri. — Sergei esfregou o nariz de metal, a cola repuxou a pele quando ele fechou a cara. — Quanto a Petros... bem, não havia pessoa mais gentil no mundo, e sei como a amizade dele era importante para o archigos. Não sei o que a notícia fará ao archigos Kenne. Matá-los foi cruel e desnecessário, e se Cénzi me der uma vida suficientemente longa, eu cuidarei para que o conselheiro ca’Mazzak se arrependa da dor que causou a mim e às pessoas de quem eu gosto.

O jovem concordou com a cabeça e falou — Eu entendo. Entendo mesmo. Algum dia, eu encontrarei quem contratou a Pedra Branca para matar meu onczio Fynn, e eu mesmo matarei essa pessoa e a Pedra Branca junto com ela. Meu onczio era um bom amigo para mim, bem como meu parente, e me ensinou muita coisa no pouco tempo em que estive com ele. Eu queria que ele tivesse vivido o suficiente para me ensinar mais a respeito... — Jan parou e balançou a cabeça.

— Não existe livro que ensine alguém a ser um líder, hïrzg — disse Sergei. — A pessoa aprende ao liderar e torcendo para não cometer muitos erros no processo. Quanto à vingança: bem, ao ficar mais velho, eu aprendi que o prazer que se tira da concretização da vingança jamais se compara à expectativa. Também aprendi que às vezes tem que se deixar a vingança completamente de lado em nome de um objetivo maior. A kraljica Marguerite sabia disso melhor do que ninguém; e por esse motivo ela era uma monarca tão boa. — Ele sorriu. — Mesmo que seu vavatarh discordasse veementemente.

— Você conheceu os dois.

Sergei não soube dizer se isso era uma afirmativa ou uma pergunta, mas concordou com a cabeça. — Conheci, sim, e tinha um grande respeito por ambos, incluindo o velho hïrzg Jan.

— Minha matarh o odiava, creio eu.

— Se ela odiava, tinha boas razões — respondeu Sergei. — Mas Jan era o vatarh dela, e acho que sua matarh também o amava.

— Isso é possível?

— Nós somos criaturas estranhas, hïrzg. Somos capazes de ter dois sentimentos conflitantes na cabeça ao mesmo tempo. Água e fogo, ambos juntos.

— A matarh diz que você costumava torturar pessoas.

Sergei esperou um longo tempo para responder. Jan não disse nada e continuou cavalgando ao lado dele. — Era meu dever, em uma determinada época, quando estive no comando da Bastida.

— Ela falou que os rumores diziam que você gostava de torturar. Isso faz parte do que você dizia, sobre a habilidade de ter dois sentimentos conflitantes na cabeça ao mesmo tempo?

Sergei franziu os lábios. Ele esfregou o nariz novamente. Olhou para frente, não para o jovem. — Sim — respondeu Sergei finalmente. A palavra solitária trouxe de volta todas as memórias da Bastida: a escuridão, a dor, o sangue. O prazer.

— A matarh é, ou era, de qualquer maneira, amante do archigos Semini. Você sabia disso, regente?

— Eu suspeitava, sim.

— Mesmo que ela ame o archigos, a matarh estava disposta a sacrificá-lo e entregá-lo ao julgamento, como o u’téni Petros pediu. Ela tomaria essa decisão; a própria matarh me disse quando voltou da negociação. “Que os pecados de Semini sejam pagos em vidas salvas”, foi o que ela falou. Não havia uma lágrima no olho ou um sinal de arrependimento em sua voz. O archigos... ele não sabe disso. Não sabe como chegou perto de ser um prisioneiro. Até onde eu sei, os dois ainda podem... — Jan parou. Deu de ombros.

— Água e fogo, hïrzg — falou Sergei.

Jan concordou com a cabeça. — Ela disse que você ama Nessântico acima de todos nós. No entanto, você cavalga conosco, salvou a matarh e a mim em Passe a’Fiume e colocaria a matarh no Trono do Sol.

— Eu colocaria sim, porque estou convencido de que isso seria o melhor para Nessântico. Eu quero ver os Domínios restaurados, com Firenzcia novamente como seu forte braço direito. — Sergei fez uma pausa. Os dois podiam ver os arredores de Carrefour diante deles na estrada, os topos dos prédios se erguiam mais alto do que as árvores. — É isso o que o senhor também quer, hïrzg?

Sergei observou o jovem, que desviou o olhar para a longa fileira do exército que se estendia pela estrada. — Eu amo minha matarh — respondeu Jan.

— Não foi o que eu perguntei, hïrzg.

Jan concordou com a cabeça e continuou olhando para a cobra blindada de seu exército. — Não, não foi, não é mesmo?

 

A Batalha Começa: Karl Vliomani

— VOCÊ AINDA PODE IR EMBORA pelas ruas a leste do Portão Norte — disse Karl para Serafina. — Terá que tomar cuidado e andar rápido, mas se estiver com Varina, você e Nico terão proteção.

Karl viu que Serafina e Varina balançavam a cabeça antes mesmo de ele terminar. — Eu não irei embora sem Talis — falou Serafina. Nico estava no colo da matarh enquanto se sentavam à mesa da sala principal do apartamento de Serafina. Eles terminaram um jantar à base de pão, queijo e água, embora o queijo estivesse velho, o pão, mofado, e a água, turva. Mas comeram tudo, pois não sabiam quando teriam mais comida.

Com o exército dos tehuantinos a oeste dos limites da cidade, o A’Sele sob controle dos navios ocidentais, e a ameaça do exército de Firenzcia a leste, Nessântico estava em pânico. Rumores fantásticos e absurdos sobre a pilhagem de Karnor e Villembouchure corriam pela cidade e ficavam mais sinistros e violentos cada vez que eram repetidos. Os ocidentais, caso se pudesse acreditar nas histórias, não eram nada além de demônios gerados pelos próprios moitidis, dedicados ao estupro, à tortura e à mutilação. As prateleiras das lojas estavam praticamente vazias; os moinhos não tinham farinha para as padarias, e não havia carroças vindo dos campos fora da cidade para os mercados. Até mesmo a Avi a’Parete estava às escuras na noite de hoje, pois os ténis-luminosos não fizeram as rondas de sempre; para piorar, uma neblina espessa e gelada surgiu a oeste e tomou conta da cidade, que tremia na escuridão, à espera do ataque inevitável que viria.

— Eu pensei ter perdido tanto Talis quanto Nico uma vez; não os perderei novamente — continuou Serafina.

— Ele não pode ir embora — insistiu Karl. — Talis é homem e jovem o suficiente para ser obrigado a servir à Garde Civile. Eles o pegariam antes que chegasse à metade da Avi. E com o archigos na Bastida... bem, com muita certeza a Garde Kralji tem nossas descrições e já procura por nós. Duas mulheres com um menino... acho que você estaria a salvo. Mas comigo e com Talis...

— Eu não vou embora sem ele — insistiu Serafina. A voz e a mão em volta da cintura de Nico tremeram, mas os lábios permaneceram firmemente franzidos.

— Metade da cidade já foi embora... aqueles que puderam. Os rumores sobre Karnor e Villembouchure... tudo aquilo pode acontecer aqui.

Ela deu de ombros.

Varina estava sorrindo sombriamente e tocou o joelho dele por debaixo da mesa. — Você perdeu a discussão, Karl. Com ambas. Estamos aqui. E ficaremos aqui, não importa o que isso signifique.

Karl olhou para Talis, que estava sentado em silêncio ao seu lado da mesa. No último dia, ele andou quieto de uma maneira estranha, desde que foi confirmada a notícia da prisão do archigos, e passou muito tempo com a tigela premonitória. Karl se perguntou o que o homem estaria pensando por trás daquele rosto solene. Talis deu de ombros, e falou para Serafina — Eu concordo com Karl. Eu preferiria que você e Nico estivessem a salvo.

Varina pegou a mão de Karl ao ficar de pé. — Venha comigo. Deixe Sera e Talis resolverem essa questão sozinhos. Nós resolveremos também.

Karl acompanhou Varina até o outro aposento. Ela fechou a porta assim que os dois entraram, de maneira que só podiam ouvir um murmúrio baixo de vozes que conversavam, e disse — Ela ama Talis. — Varina ainda estava apoiada na porta e olhava para Karl.

— Sim — protestou Karl — e é exatamente por isso que Talis quer que Serafina vá embora: porque ele não quer perder as pessoas que ama.

— E é exatamente por isso que ela não irá embora, porque não suportaria não saber o que aconteceu com Talis. — Varina cruzou os braços sob os seios. — É por isso que eu também não irei embora.

— Varina...

— Karl, cale a boca. — Varina afastou-se da parede e foi até ele. Os braços deram a volta em Karl, os lábios procuraram os dele. Havia um desespero no abraço, uma violência no beijo. Karl ouviu um soluço na garganta de Varina e levou a mão ao rosto dela para descobrir que a bochecha estava molhada. Ele tentou se afastar, perguntar o que estava errado, mas Varina não permitiu. Ela puxou de volta a cabeça de Karl, usou o peso do corpo para derrubá-lo sobre o colchão de palha no chão. Então, por um instante, Karl esqueceu de tudo.

Mais tarde, ele deu um beijo em Varina enquanto a segurava perto de si e apreciava o calor de seu corpo. — Eu amo você, Karl — sussurrou Varina no ouvido. — Desisti de fingir que não.

Karl não respondeu. Ele queria. Queria devolver as palavras para Varina. Elas preencheram a garganta, mas ficaram ali, presas. Karl achava que, se dissesse as palavras, trairia Ana e tudo o que ela significava para ele. — Encontre outra pessoa — dissera Ana, há muito tempo. — Volte para sua esposa, se quiser. Ou apaixone-se por outra pessoa, por mim tudo bem, também. Eu ficaria feliz por você porque não posso ser o que você quer que eu seja, Karl.

— Eu... — começou Karl, mas parou. Os dois ouviram ao mesmo tempo um assobio estridente e um rugido baixo como trovão, seguidos quase que imediatamente por outros, e as trompas dos templos começaram a soar um alarme. Karl rolou e afastou-se de Varina. — O que é isso? — perguntou ele, mas suspeitava que já sabia. Ambos vestiram-se depressa e correram para o outro cômodo.

— Começou — falou Talis para os dois assim que entraram. Ele estava parado ao lado da porta que dava para o sul. Na direção do A’Sele, todos puderam ver o brilho laranja amarelado sobre os tetos, iluminando a névoa que bloqueava a visão. — Fogo — continuou Talis. — Os nahualli estão disparando areia negra dentro da cidade, perto do A’Sele.

As trompas soavam estridentes, e havia berros e gritos abafados vindos da névoa.

Talis fechou a porta e disse — É tarde demais agora. Tarde demais.

 

A Batalha Começa: Sigourney ca’Ludovici

DO ÚLTIMO ANDAR do Palácio da Kraljica, apoiada em uma muleta que compensava a falta da perna, Sigourney podia ver os telhados à frente e as águas do A’Sele na margem norte, onde as fogueiras dos ocidentais ardiam nos arredores da cidade. Lá também, ela sabia, estava agrupado o exército da Garde Civile, agora com Aleron ca’Gerodi como comandante. Ele, pelo menos, estava confiante na capacidade dos chevarittai e da Garde Civile em lidar com a dupla ameaça à cidade, mesmo que ninguém mais estivesse. Ca’Gerodi ao menos já esteve em combate antes — e entre os chevarittai à disposição da kraljica, ele era o mais indicado para ser o comandante, desde que ca’Mazzak retirou Aubri co’Ulcai da disputa. Isso fora um erro, Sigourney tinha certeza; um erro que ela compreendia, sim, dada a rebelião de co’Ulcai, mas também um erro que poderia custar a Nessântico mais do que a cidade podia bancar.

O corpo de Sigourney doía muito esta noite. Ela tomou um bom gole de cuore della volpe e pousou a taça no peitoril da janela.

Sigourney também estivera confiante. Confiante de que eles dariam conta daquela ralé ocidental e a destruiria. Depois, que eles se voltariam para o leste e cuidariam de Allesandra e seu filhote, e que fariam com que os firenzcianos percebessem a insensatez desse rompimento do tratado. Sim, ela estivera confiante.

Mas isso parecia ter sido séculos atrás.

Agora, Sigourney vira a estranha névoa surgir do acampamento ocidental e envolver o Velho Distrito e a Garde Civile. Depois, após uma mera virada da ampulheta, grandes flores de fogo laranja nascerem na margem norte, e a kraljica viu as flores subitamente desenharem arcos no céu em várias direções; algumas caíram na névoa onde seu exército esperava, e outras...

A água do A’Sele tremeluziu com o reflexo do fogo conforme as flores — que guinchavam e bramiam — subiam, como se tivessem sido lançadas por raivosos moitidis. Ela viu a resposta dos ténis-guerreiros: raios azul-claros lançados na direção das flores ao alto. Vários alcançaram as flores no ápice de seus arcos: quando eles se tocaram, um breve sol ganhou vida e o som do trovão ecoou pela cidade. Mas havia muitas flores de fogo e a resposta dos ténis-guerreiros chegou atrasada demais. A maior parte das bolas de fogo caiu: sobre os navios de guerra dos Domínios no rio, no labirinto do Velho Distrito, e sobre a própria Ilha A’Kralji. E, onde caíam, explodiam em um jorro de fúria brilhante e ruidosa.

Sigourney observou uma bola de fogo em especial: o arco se ergueu mais alto que os demais, e ela viu a linha assustadora que vinha diretamente em sua direção. A kraljica olhou fixamente, paralisada tanto pelo fascínio quanto pelo medo, e sentiu (conforme a bola de fogo despencava, à medida que crescia a cada instante) o corpo se lembrar do choque e do horror do momento em que o kraljiki Audric foi morto. Ela perguntou-se se doeria muito.

Mas não... Sigourney viu que o rastro de fagulhas agora se desviava levemente para a sua direita. A bola de fogo chocou-se contra a asa norte do palácio e espirrou fogo sobre a fachada e os jardins lá embaixo. A kraljica sentiu a estrutura inteira tremer com o impacto, tão forte que ela teve que se segurar na ombreira da janela para evitar cair. Os dedos apertaram com força a barra da muleta. Houve gritos e berros por toda parte do terreno. A noite de Nessântico foi mais uma vez banida — não pelas famosas lâmpadas dos ténis-luminosos, mas por um inferno. Mesmo da janela, Sigourney achou que podia sentir o calor.

Os criados entraram correndo no cômodo. — Kraljica! A senhora tem que vir conosco! Depressa!

— Eu não sairei daqui.

— A senhora precisa sair! O fogo!

— Então não percam seu tempo aqui; vão ajudar a apagá-lo — falou Sigourney. — Convoquem os ténis-bombeiros nos templos. Vão. Vão!

Ela gesticulou com a mão livre para os criados — o corpo ferido e combalido protestou ante a violência do movimento —, e eles foram embora. As trompas soaram, agora nos templos, o alarme tomou conta da cidade inteira. Sigourney abaixou o olhar e viu os funcionários do palácio correrem na direção da ala em chamas. A fumaça deu a volta na lateral do palácio e fez arder o olho restante da kraljica. Ela piscou ao lacrimejar e bebeu o resto do preparado do ervanário.

— Olhem para mim! — Sigourney soltou um berro estridente para a noite e para as forças ocidentais escondidas na névoa. — Eu abri mão de muita coisa para estar aqui. Vocês não vão me tirar daqui. Não vão.

 

A Batalha Começa: A Pedra Branca

— POR QUE VOCÊ CONTINUA AQUI?

— Por que você os vigia? O menino não é seu.

— Ele não é sua responsabilidade.

— Você esperou tempo demais.

As vozes tagarelavam na cabeça dela, em tom sedutor, de alerta, satisfeito. A voz de Fynn era a mais alta, ronronava com satisfação. — Você morrerá aqui, e a criança dentro de você também.

— Silêncio — disse a Pedra Branca para todas as vozes, que fizeram silêncio a contragosto.

O ar estava espesso com a névoa anormal, e o cheiro de madeira queimada fluía pelos filetes da bruma. O brilho tinha ficado pior, e agora parecia cair uma neve de verão: cinzas caíam no chão e cobriam o cabelo oleoso e os ombros da tashta suja da Pedra Branca. Havia sons indefinidos na névoa, encobertos pelo lamento contínuo e sobrenatural das trompas.

A Pedra Branca olhou fixamente para a porta onde viu Talis pela última vez. Agora não havia ninguém lá, e ela não tinha visto Nico. Não há nada que você possa fazer por ele. Por enquanto, Nico está a salvo. Ela pressionou as mãos contra a barriga inchada. Talvez as vozes estivessem certas. Talvez ela devesse fugir da cidade. Salvar a própria filha.

Mas Nico era filho dela também. Cénzi trouxe o menino para ela. Ele a escolheu, e Nico era tão filho dela quanto a criança em gestação dentro de sua barriga.

— Tarde demais...

Ou talvez não. Com uma careta, ela se afastou da casa de Nico e andou rapidamente pelas ruas. Ela tinha que ver com os próprios olhos, tinha que saber o que acontecia. As ruas estavam bem mais cheias do que costumavam ficar a esta altura da noite, mas as pessoas corriam para seus destinos sem olhar umas para as outras, com o medo estampado em suas feições. Muitas mantinham as mãos próximas às armas carregadas abertamente: espadas com bainhas descascadas e lâminas manchadas de ferrugem; facas que pareciam que a última coisa que tinham feito era cortar um porco assado. Haveria violência nessas ruas antes de a noite acabar: uma palavra rude, um esbarrão acidental, um gesto mal interpretado — qualquer coisa poderia acendê-la, como uma fagulha em um material inflamável. A Pedra Branca sabia disso, porque a violência vivia dentro dela. Ela era capaz de sentir o cheiro de sangue pronto para ser derramado.

Mas não ainda. Não ainda. Ela manteve-se nas sombras, não falou nada com ninguém. Ela evitou matar, a menos que fosse por dinheiro ou pela própria proteção.

Ela chegou à Avi a’Parete e virou para o sul. Ao se aproximar do rio, o cheiro de fumaça ficou ainda mais forte, ela e a bruma estavam tão misturadas que era impossível distinguir uma da outra. Havia incêndios no aglomerado de prédios próximos a oeste da Avi, as chamas chegavam tão alto que a Pedra Branca conseguia ver do ponto onde estava. Uma carruagem conduzida por um téni veio correndo pela Pontica Kralji com meia dúzia de ténis-bombeiros dentro, com os rostos cobertos por fuligem e já exaustos pelo esforço de usar os feitiços para apagar os vários incêndios. Um esquadrão da Garde Kralji, com espadas desembainhadas e expressões carrancudas, acompanhava os ténis-bombeiros e cercava um grupo de homens de aparência melancólica em bashtas simplórias, a maioria jovem demais ou velha demais. — Você! — vociferou o offizier do esquadrão ao apontar para um velho de barba grisalha que andava à espreita, perto do prédio mais próximo à Pedra Branca. — E você! — Agora dirigido a um jovem que não devia ter mais de 12 anos, sendo puxado pela matarh. — Vocês dois! Venham conosco! Quero ver animação agora!

A matarh soltou um grito estridente de objeção, o homem fez menção de correr na direção contrária, mas evidentemente decidiu que não conseguiria fugir. A Garde Kralji cercou os dois e partiu noite adentro na direção dos incêndios, levando o menino e o velho com eles, enquanto a matarh protestava inutilmente, aos gritos.

A Pedra Branca continuou caminhando na direção sul até ver as colunas da Pontica Kralji que se agigantavam através da fumaça. Ela parou ali e olhou para o A’Sele. O que viu a deixou horrorizada e fez as vozes dentro de sua cabeça rirem.

No rio, vários navios de guerra estavam em chamas, já queimados quase até a linha d’água, os destroços entupiam o A’Sele de maneira que os navios ainda incólumes mal conseguiam manobrar. O Palácio da Kraljica era um inferno laranja amarelado, com um vulcão que cuspia fagulhas para longe. O grande novo domo do Velho Templo parecia rachado, o fogo lambia os suportes que tinham sido erigidos em volta dele. Havia pequenos incêndios aqui e ali. As pontes, exatamente as duas que levavam à margem sul, estavam lotadas de pessoas em fuga, que empurravam carrinhos cheios de pertences ou sobrecarregados com pacotes. A Pedra Branca ouviu um estrondo atrás de si; ela olhou na direção dos prédios que lotavam a Avi nesta margem e viu uma multidão botar abaixo a porta de uma padaria e também de uma joalheria. A rua atrás dela estava ficando lotada e barulhenta. Dentro de algum lugar, em uma das lojas, a Pedra Branca ouviu uma mulher gritar.

Sangue. Ela sentiu o cheiro do sangue. Tocou a bolsinha de couro sob o tecido da tashta e sentiu a pedra lisa lá dentro.

— O tumulto começou...

— Isso só vai piorar...

As vozes berraram assustadas em sua cabeça. — Você virou idiota, mulher? Ande!

Ela andou. Caminhou a passos largos, sem pressa, até o beco mais próximo, um espaço cheio de lixo entre os fundos dos prédios. A Pedra Branca voltaria à casa de Nico. Ficaria de vigia e, se as coisas ficassem perigosas, ela estaria ali para ajudá-lo, para tirá-lo de lá. Se a família de verdade do menino não pudesse protegê-lo, ela seria sua verdadeira matarh e faria isso. Ela tocou o estômago enquanto andava. — E farei o mesmo por você — sussurrou para a vida que se mexia dentro dela. — Eu farei isso. Prometo.

As vozes riram e gargalharam.

A Pedra Branca viu um movimento pelo rabo de olho na névoa e na fumaça e sentiu um arrepio de perigo. Ela deu meia-volta. — Ei! — Havia um homem ali, com cabelo negro e fios brancos, mas jovem o suficiente, o que fez a Pedra Branca se perguntar como ele conseguiu evitar os esquadrões de alistamento que rondavam o Velho Distrito. — Não há necessidade de se assustar, não é, vajica? — disse o sujeito. Ela viu a língua se mexer atrás dos poucos dentes. — Eu só queria ter certeza de que estava a salvo, só isso. — Ele deu um passo na direção dela. — Agora os tempos andam perigosos.

— Para você, sim — respondeu ela. — Eu posso tomar conta de mim mesma.

— Ah, pode, é? — O homem deslizou para o lado e impediu que ela entrasse no beco. Ela acompanhou o movimento, sempre olhando para o sujeito. — Não são muitas as pessoas que podem dizer isso hoje em dia. — Ele deu um passo na direção da Pedra Branca, que fez uma expressão de desdém.

— Não — disse ela, embora já soubesse que o homem não ouviria. — Você se arrependerá. Você não quer conhecer a Pedra Branca.

Ele riu. — A Pedra Branca, é? Está me dizendo que a Pedra Branca tem interesse em alguém como você?

Ela não respondeu. O homem deu mais um passo, ficou perto o suficiente para que ela sentisse seu cheiro, e estendeu a mão para agarrar seu braço. Nesse mesmo instante, a Pedra Branca agachou-se, tirou uma adaga da bainha na bota e golpeou para cima, debaixo das costelas do homem, que foi empurrado de costas para dentro do beco. Ele ofegou, boquiaberto como um peixe; ela sentiu o sangue quente jorrar sobre a mão. Os dedos do sujeito arranharam seu braço, mas caíram lentamente. A Pedra Branca ouviu o homem tomar um fôlego gorgolejante enquanto saía um filete de sangue da boca. Ela deixou o corpo cair enquanto metia a mão debaixo da gola da tashta para pegar a bolsinha. Com pressa, a tirou do pescoço e deixou a pedra lisa e clara como neve cair na palma da mão. Pressionou o seixo no olho direito do sujeito. Seus próprios olhos estavam fechados.

Ah, o lamento da morte... ela ouviu o homem gritar, sentiu a presença entrar no seixo enquanto os outros se remexiam no interior para abrir espaço para o espírito moribundo. O uivo silencioso do sujeito tomou conta de sua mente, tão alto que ela ficou surpresa que não ecoasse em volta dos dois. Quando a pedra o absorveu complemente, ela removeu o seixo do olho e guardou de volta na bolsinha, colocou o cordão de couro no pescoço novamente e deixou a bolsinha cair entre os seios, debaixo da tashta.

— A Pedra Branca protege o que é dela — ela disse para o cadáver de olhos abertos.

Depois, as vozes falaram alto e tomaram conta da cabeça da Pedra Branca, com uma nova que se juntou ao coro louco, enquanto ela voltava para a casa de Nico.

 


A Batalha Começa: Niente

O CÉU FICOU ILUMINADO a leste e a bruma mágica sumiu com a luz, embora a cidade continuasse envolvida pela fumaça. Niente estava com o tecuhtli Zolin, Citlali e Mazatl. Os guerreiros que usavam a armadura e os rostos tatuados agora estavam pintados para parecerem as terríveis e cruéis criaturas oníricas que estupraram Axat antes que a Escuridão colocasse seu corpo ferido no céu. Os três estavam próximos ao rio; a enorme ilha em volta da qual ele fluía parecia estar acesa, e a fumaça saía de várias dezenas de lugares na cidade.

— Muito bem, nahual — disse Zolin. — Eles estarão exaustos e assustados com os incêndios dessa noite. Os nahualli estão descansados? Os cajados mágicos estão cheios?

— Eles estão tão descansados quanto é possível, tecuhtli — falou Niente. — Nós preparamos nossos cajados ontem à noite, após lançarmos a areia negra.

— Ótimo — trovejou Zolin. — Então deixe de parecer tão melancólico. Esse é um grande dia, nahual Niente. Hoje nós mostramos a esses orientais que eles não são imunes à fúria dos tehuantinos.

Citlali e Mazatl gargalharam com Zolin. Niente tentou sorrir, mas não conseguiu. Ele ergueu o próprio cajado mágico, o tecuhtli assentiu e disse — Vá até os nahualli. Citlali, Mazatl, acordem seus guerreiros. Quando virmos os olhos de Sakal se abrirem no horizonte, será o momento.

Niente abaixou a cabeça para o tecuhtli e foi embora. Ele se dirigiu para o norte, para o campo pisoteado onde a maior parte do exército estava reunida perto da estrada. Os nahualli encontravam-se ali, o nahual deu suas ordens e espalhou os homens atrás da primeira fileira de guerreiros montados e da primeira leva de infantaria. Niente tomou o seu próprio lugar atrás do tecuhtli Zolin e de seus guerreiros selecionados. Do outro lado, ele viu, com a visão borrada pelo olho esquerdo ruim, os estandartes e escudos das tropas de Nessântico à espera. Havia muitos; Niente olhou para o próprio exército, significativamente menor agora, após todas as batalhas.

Ele não tinha dúvida de que os guerreiros tehuantinos eram mais bravos, de que os nahualli eram mais poderosos que os ténis-guerreiros de Nessântico. No entanto...

Havia um ardência no estômago que não passava. Niente segurou o cajado mágico com força e sentiu a energia do X’in Ka ligada ao objeto, mas o poder nas mãos não lhe deu conforto.

O céu a leste ficou ainda mais iluminado. Os primeiros raios da manhã lançaram sombras compridas que correram pela terra.

Zolin ergueu a espada e gritou — Agora! Agora! — Trompas soaram em resposta, e os guerreiros tehuantinos gritaram seus desafios. Niente levantou o cajado mágico e o bateu contra a mão aberta. O fogo chiou, faiscou e saiu voando na direção das fileiras inimigas; um momento depois, os cajados dos outros nahualli de toda a longa fileira fizeram o mesmo. Os ténis-guerreiros de Nessântico responderam: alguns feitiços sumiram como se tivessem sido engolidos pelo ar; outros quicaram, como se tivessem batido em uma parede, e voltaram para as fileiras dos tehuantinos em um arco. Onde os feitiços caíam, guerreiros caíam com eles e berravam ao serem consumidos pelas línguas grudentas do fogo. Muitos feitiços, porém, passaram incólumes, e os tehuantinos ouviram os gritos de resposta dos nessânticos. Os arqueiros, com o que restava da areia negra na ponta das flechas, lançaram uma chuva flamejante sobre o campo, que foi respondida por uma chuva de flechas nessânticas. Em volta de Niente, guerreiros grunhiram ao serem empalados, mas os escudos foram erguidos de imediato e apararam a maioria das flechas. Zolin gesticulou com a espada e os guerreiros começaram a se mover, devagar, a princípio, depois ganharam velocidade para correr pelo campo na direção dos inimigos e da cidade a frente à espera.

Foi difícil não se envolver com a onda de empolgação. Niente avançou atrás de Zolin e da parede de infantaria e ouviu a própria voz berrar um desafio com os demais. Então, com um tremor audível, a linha de frente dos tehuantinos colidiu com os nessânticos, que esperavam. Niente viu o reluzir das espadas, o avanço dos guerreiros a cavalo contra a massa caótica de soldados, ouviu os gritos dos mortos e moribundos de ambos os lados, sentiu o cheiro do sangue e viu os espirros que voavam no ar, mas havia guerreiros demais entre eles. Os guerreiros atrás de Niente o empurravam pelas costas, faziam com que avançasse, e a vanguarda avançou tão abruptamente que ele quase caiu. De repente, o nahual estava no meio da batalha, com indivíduos lutando por todos os lados, e viu um nessântico de cota de malha empunhando uma espada acima de sua cabeça ao avançar contra ele.

A tigela premonitória... O nahualli morto...

Niente berrou e golpeou o homem com o cajado mágico como se fosse um florete. Quando tocou o abdômen do soldado, um feitiço foi disparado: um clarão, uma explosão de anéis de aço rompidos, de pano marrom, de pele branca e de sangue escarlate. A espada despencou das mãos inertes, o homem ficou boquiaberto, mas não emitiu som, e caiu.

Mas não havia tempo para descansar. Outro soldado avançava contra Niente, e novamente o cajado, cheio de feitiços que o nahual preparou, derrubou o homem. Um soldado montado que os inimigos chamavam de chevarittai investiu contra ele, Niente atirou-se para o lado no momento em que os cascos blindados e com espinhos do cavalo de guerra arrancaram a terra onde ele estava e avançou em frente.

Para Niente, essa batalha — como qualquer outra — tornou-se uma série de encontros desconexos, um turbilhão de confusão e caos, um cenário desorganizado em que o nahual continuava a avançar. O barulho era tão tremendo que se transformou em um rugido inaudível em volta dele. Ele se desviou de espadas e enfiou o cajado em qualquer coisa que vestisse as cores azul e dourada. Uma espada acertou seu braço e abriu o antebraço, outra pegou a panturrilha. Niente berrou com a garganta rouca. A energia fluía rapidamente do cajado quente na mão direita, quase no fim agora.

E...

Niente percebeu que não estava em um campo, mas entre casas e prédios, que a batalha agora assolava as ruas da cidade, que os soldados vestidos de azul e dourado neste momento davam meia-volta ao soar das trompas e recuavam para as profundezas da grande cidade.

Ele ainda estava vivo, assim como Zolin.

 

A Batalha Começa: Sigourney ca’Ludovici

O COMANDANTE ALERON CA’GERODI ESTAVA diante de Sigourney e do resto do Conselho dos Ca’, a armadura suja de sangue, o elmo amassado por um golpe de espada e o rosto coberto de lama, fuligem e sangue. — Sinto muito, kraljica, conselheiros — disse ele. A voz estava tão exausta quanto a postura. — Nós não conseguimos contê-los...

Ca’Mazzak sibilou como uma chaleira que passou muito tempo no fogo. Sigourney fechou o único olho. Ela respirou fundo o ar cheio de fuligem e cinzas e tossiu. Abriu o olho novamente. Através da névoa da fumaça, a kraljica viu as ruínas do palácio, com partes queimando. Ela e o Conselho refugiaram-se no Velho Templo que, apesar do domo quebrado, encontrava-se em grande parte incólume. A nave principal estava lotada de tesouros do palácio: pinturas (incluindo o retrato chamuscado da kraljica Marguerite), louças azuis e douradas, roupas cerimoniais, os cajados e as coroas usados por uma centena de kralji; tudo estava aqui, embora muita coisa — coisas demais — tenha sido perdida no incêndio. Sigourney estava sentada no Trono do Sol na entrada da câmara sob o domo, mas se o trono estava aceso, não era aparente na claridade do sol que entrava pelo grande buraco aberto no domo. O sol debochava da kraljica ao brilhar intensamente em um céu sem nuvens.

Um dos criados entregou a Sigourney uma taça de cuore della volpe, para aliviar a tosse e a dor. Ela tomou um gole do líquido frio, marrom e turvo da taça dourada.

— Qual é a gravidade da situação? — perguntou a kraljica.

— Nós finalmente conseguimos deter o avanço deles — informou ca’Gerodi. — Os ocidentais não chegaram à Avi a’Parete, mas tomaram a maior parte das ruas a oeste da Avi na margem norte. Eles dominaram o vilarejo de Viaux. Houve uma batalha intensa perto do Mercado do Rio e por um tempo ele foi tomado pelos inimigos, mas nós os rechaçamos. Eu destaquei um batalhão para proteger a Pontica Kralji, mas isso deixou a área do Portão Norte mais aberta do que eu gostaria.

Os conselheiros murmuraram. — Isso é inaceitável — falou ca’Mazzak mais alto.

— Então talvez você devesse ter deixado o comandante co’Ulcai vivo — disse Sigourney. — Ou gostaria de pegar a espada você mesmo? — Ca’Mazzak resmungou e acalmou-se. Ca’Gerodi pareceu cambalear, e Sigourney gesticulou para que um criado trouxesse uma cadeira; o homem desmoronou de bom grado no assento estofado, sem se importar com a sujeira que espalhou no brocado. — O que está me dizendo, comandante? — perguntou a kraljica. — Que hoje à noite eles colocarão fogo no resto da cidade, que amanhã nos derrotarão completamente? Você disse que tinha mais do que homens suficientes. Você disse que...

— Eu sei o que eu disse — interrompeu ca’Gerodi e, quando Sigourney imediatamente calou a boca diante da grosseria, ele pareceu perceber o que fez e balançou a cabeça. — Perdão, kraljica; eu não durmo desde a noite de anteontem. Mas sim, isso é exatamente o que temo: que a noite de hoje trará mais daquele fogo terrível dos ocidentais, e que quando eles atacarem amanhã... — Ele ergueu a cabeça e olhou para Sigourney com seus olhos castanhos e abatidos. — Eu darei minha vida para proteger Nessântico, se for preciso.

— Aleron... — A kraljica começou a se levantar do Trono do Sol, esqueceu-se momentaneamente das feridas, e desmoronou. O movimento provocou uma nova tosse. Os conselheiros observaram Sigourney. Ela sabia agora o que tinha que fazer, e a compreensão era incômoda, tão dolorosa quanto o corpo ferido. — Vá. Descanse o quanto puder, e nós cuidaremos do que a noite de hoje e o dia de amanhã trouxerem. Vá. Durma enquanto pode.

Ca’Gerodi ficou de pé e fez uma mesura. Ele foi embora mancando. Quando saiu, Sigourney gesticulou para um criado. — Traga-me um escriba. E também um mensageiro, o melhor que tivermos, para levar uma mensagem para o hïrzg, a leste.

O criado arregalou os olhos momentaneamente, fez uma mesura e foi embora correndo.

— Kraljica — disse ca’Mazzak. — A senhora não pode...

— Nós não temos escolha — falou Sigourney para ele, para todos os conselheiros. — Nenhuma escolha. A situação já não é mais sobre nós.

Ela recostou-se no assento estofado do Trono do Sol, que cheirava à fumaça de madeira queimada. Cheirava à derrota.


??? RESOLUÇÕES ???

Allesandra ca’Vörl

Niente

Varina ci’Pallo

Sigourney ca’Ludovici

Karl Vliomani

Nico Morel

Niente

Sergei ca’Rudka

Jan ca’Vörl

Niente

A Pedra Branca

Allesandra ca’Vörl


Allesandra ca’Vörl

JAN LEU A MISSIVA com cuidado, os olhos claros vasculhando as palavras. Allesandra já sabia o que a mensagem dizia — os soldados do starkkapitän ca’Damont interceptaram o mensageiro que vinha na direção leste pela Avi a’Firenzcia, ele carregava uma bandeira branca tremulando içada sob o luar, e trazia o pergaminho selado para Allesandra, insistindo com os assistentes da a’hïrzg que ela fosse acordada. Allesandra quebrou o selo e vasculhou a carta, depois se vestiu rapidamente e foi até Jan.

Se o filho notou ou se se importou que o selo estivesse sem lacre e quebrado no papel grosso, ou que a kraljica tenha endereçado a missiva a Allesandra e não ao hïrzg, não disse nada. Jan empurrou a vela que usava como fonte de luz; o castiçal raspou a mesa que foi montada às pressas na tenda de campanha ao lado da tenda particular do hïrzg.

— Isso é genuíno? — perguntou Jan. Havia um cobertor dobrado sobre seus ombros, as pálpebras estavam cansadas e com olheiras. Ele bocejou e esfregou os olhos. — Temos certeza?

— O mensageiro disse que recebeu a mensagem da própria kraljica Sigourney — respondeu o starkkapitän ca’Damont.

Jan assentiu. Ele entregou o pergaminho para Semini, que leu a carta, franziu os lábios e o entregou para ca’Rudka. Jan parecia estar esperando, e Allesandra, sentada à mesinha na tenda de campanha ao lado dele, tamborilou os dedos na superfície arranhada. — Estamos perdendo tempo, meu filho — falou a a’hïrzg. — A mensagem é clara. A kraljica está disposta a abdicar do Trono do Sol se levarmos o exército até lá para deter os ocidentais. Acorde os homens agora e, se nossas forças marcharem rápido, nós conseguiremos chegar aos portões da cidade de manhã cedo.

Jan não pareceu ouvi-la. Ele olhava para Sergei, e perguntou — Regente? Sua opinião?

Ca’Rudka esfregou o nariz por muito tempo enquanto olhava o pergaminho, o que enlouqueceu Allesandra. Ela viu a luz da vela tremeluzir nas narinas esculpidas. — A kraljica não quis considerar a abdicação quando foi oferecida a ela durante a negociação, hïrzg Jan, ou, pelo menos, ca’Mazzak não quis — disse ele finalmente. — O conselheiro parecia totalmente confiante que a Garde Civile podia derrotar os ocidentais. Agora a kraljica foi subitamente acometida por altruísmo? Mas, como eu lhe disse, hïrzg, só quero o que for melhor para Nessântico. Eu não me importaria de ver a cidade destruída, mas isso precisa ser decisão sua.

— Aí está, Jan, viu só? — falou Allesandra, ficando de pé. — Starkkapitän, você irá...

Mas Jan havia colocado a mão no ombro dela e disse — Eu ainda não terminei, matarh. Archigos Semini, o que você acha desta oferta?

Allesandra começou a protestar, mas Jan apertou a mão no ombro da matarh. Todos observavam a a’hïrzg. Ela franziu os lábios e sentou-se novamente. Semini olhou especialmente para Allesandra, sem expressão nos olhos de cor magenta. Ele sabia, a a’hïrzg percebeu então. O archigos sabia que ela esteve disposta a oferecê-lo em troca do Trono do Sol. Sergei... será que Sergei contou para ele? Ou...

Jan?

— Eu notei que a oferta da kraljica não menciona nada sobre a fé concénziana — respondeu Semini, que ainda encarava Allesandra. — Isso é inaceitável para mim. Eu reluto em empenhar os ténis-guerreiros em uma aliança com Nessântico, a não ser que o archigos Kenne também esteja disposto a abdicar em meu favor. — Semini desviou o olhar de Allesandra e inclinou a cabeça para Jan. — A não ser, é claro, que o hïrzg exija isso de mim.

— Jan — insistiu Allesandra, ignorando Semini. — Isso é o que queríamos desde o início. Está ao nosso alcance; só temos que estender a mão e pegar.

— Oh, eu discordo, matarh — disparou Jan. — Isso é o que a senhora sempre quis. Parece que sua vida inteira é sempre uma questão do que a senhora quer: suas ambições, suas aspirações, seus desejos. Mesmo quando era menina, pelo que me contaram: a senhora quis primeiro Nessântico, então o vavatarh obrigou o exército a marchar mais rápido do que deveria e perdeu; sim, Fynn me contou essa história, que disse ter ouvido do vavatarh.

— Isso não é verdade — contestou Allesandra. Era o vatarh que queria Nessântico tanto assim. Não eu. Eu lhe disse para esperar e ser paciente. Disse sim... Mas Jan não escutou, e continuou falando.

— A senhora decidiu que não queria ajudar o vatarh após ele finalmente trazê-la de volta, então seu casamento foi uma farsa, quando poderia ter sido uma aliança forte. A senhora não quis que eu me envolvesse com Elissa, então a mandou embora. Não quis ser hïrzg, então fez campanha para que eu ficasse com o título. O que a senhora sempre quis foi ser kraljica, e quer que aceitemos essa oferta para que tenha o título agora, quer seja o melhor para Firenzcia ou não. Sempre foi a senhora, matarh. A senhora. Não o vatarh, não o vavatarh, não eu, não o archigos, ninguém. A senhora. Bem, a senhora me tornou o hïrzg, e, por Cénzi, eu serei o hïrzg e farei o que for melhor para Firenzcia e a Coalizão, não o que for melhor para a senhora. Eu amo a senhora, matarh — estranhamente, para Allesandra, ele olhou para Sergei ao dizer isso —, mas eu sou o hïrzg e declaro: nós iremos até Nessântico, mas iremos no momento conveniente. Nessântico grita por socorro para nós? Bem, deixe que grite. Deixe que lute a batalha que provocou. Starkkapitän, nós levantaremos acampamento pela manhã, como o planejado, e prosseguiremos em ritmo normal até vermos Nessântico, de lá esperaremos até sabermos mais ou até que a kraljica em pessoa saia e se ajoelhe a mim. Não mandarei uma única vida firenzciana para ser perdida defendendo Nessântico de sua própria insensatez.

— Jan... — Allesandra começou a falar, mas foi interrompida por um estalo do braço do filho.

— Não, matarh. Não discutiremos mais essa questão. A senhora queria que eu fosse o hïrzg? Bem, cá estou eu, e esta é a minha vontade. Não falaremos mais a respeito disso. Starkkapitän, você tem suas ordens.

Ca’Damont fez uma mesura e saiu da tenda após dar uma olhadela para Allesandra. Semini bocejou e espreguiçou-se como um urso despertando da hibernação. Ele fez o sinal de Cénzi para Jan e seguiu atrás do starkkapitän, sem olhar para Allesandra. Sergei viu os dois homens saírem e se levantou. — Caso precise do meu conselho, hïrzg, o senhor sabe onde me encontrar — falou. — A’hïrzg, uma boa noite para a senhora.

Allesandra acenou minimamente com a cabeça. Por vários momentos, ela e Jan ficaram sentados ali, em silêncio. — Você não quer que eu seja kraljica? — disse a a’hïrzg quando o silêncio pareceu durar tempo demais.

— Assim como Sergei quer o que for melhor para Nessântico, eu quero o que for melhor para Firenzcia — respondeu ele. Então, antes que ela pudesse responder: — Tudo o que eu sempre quis da senhora foi seu amor, matarh.

As palavras doeram como um tapa na cara dela, tão fortes que provocaram lágrimas em seus olhos. — Eu amo você, Jan. Mais do que você pode compreender.

Jan olhou com raiva para a matarh: o rosto de um estranho. Não, o rosto de seu homônimo, como Allesandra o imaginou durante todo o cativeiro em Nessântico, quando ele se recusava a pagar o resgate por ela. — Cale a boca, matarh. A senhora me ensinou bem. Mostrou para mim que as aspirações e a determinação são mais importantes que amor. Eu falei com o archigos Semini. Contei que a senhora esteve disposta a sacrificá-lo para ser kraljica. Ele me contou algo em troca: que planejou assassinar Fynn. Para a senhora, matarh. Tudo pela senhora. Semini me contou que a senhora sabia, naquela dia em que salvei Fynn, que o ataque aconteceria. A senhora usou Semini, seu amante, para fazer de mim um herói, para fazer de mim o hïrzg. O resto eu posso descobrir por mim mesmo. Eu me pergunto, matarh, quem contratou a Pedra Branca, mas tenho um excelente palpite. — Allesandra sentiu a face corar e virou o rosto. — Aquele seu gesto tão nobre — continuou Jan — de abdicar em meu favor: a senhora jamais quis ser hïrzgin. Sempre quis mais. Não queria o que era melhor para mim, mas o que fosse melhor para a senhora. Eu sempre fui seu segundo filho, o menos importante, matarh. A ambição sempre foi seu primogênito.

Allesandra ficou sem ar. Ela permaneceu sentada ali, com as bochechas úmidas de lágrimas, enquanto Jan se afastava da mesa e ficava de pé. — Jan... — disse a a’hïrzg ao erguer os braços para o filho, mas ele a negou com a cabeça. Jan olhou para a matarh, e, por um momento, ela pensou ter visto a expressão no rosto do filho abrandar.

Mas Jan deu meia-volta e saiu noite afora.

 

Niente

ELES USARAM O POUCO do que sobrou da areia negra para lançar na cidade novamente, naquela noite. Depois disso, Niente mandou os nahualli descansarem e preencherem novamente os cajados mágicos para a batalha do dia seguinte. Ele perdeu mais dez nahualli durante a batalha, a maioria no fim do dia, quando Zolin tentou, em vão, tomar a ponte mais próxima sobre o rio. A energia dos cajados mágicos tinha acabado e não houve tempo para descansar e renovar os feitiços. Os nahualli, como Niente mandou, tentaram recuar para trás da linha de frente assim que o poder foi exaurido, mas alguns foram abatidos pelas espadas nessanticanas, incapazes de se defender. O nahual não sabia quantos guerreiros tinham sido perdidos. Eles foram escorraçados por uma investida desesperada dos chevarittai, e Zolin — por insistência de Niente, que temia que fossem perder ainda mais nahualli — finalmente mandou o avanço parar.

Eles eram muito poucos... tanto os nahualli quanto os guerreiros. Mas Zolin não enxergava isso, ou estava tão envolvido com a própria visão que a situação tinha sido apagada dos próprios olhos. — Amanhã, toda a cidade será nossa — disse ele para Niente, Citlali e Mazatl. O nahual não sabia se era verdade ou não e estava exausto demais para se importar.

Após a última das bolas de fogo ser lançada na cidade, o nahual foi para a própria tenda. Lá, sozinho, ele pegou a tigela premonitória nas mãos: com medo de conjurar o feitiço, com medo de ter a mesma visão, com medo da exaustão e da dor que seriam cobrados pelo feitiço. Niente tentou se lembrar do rosto da esposa e dos filhos: ele conseguiu vê-los em sua mente, mas isso só fazia piorar a saudade. Imaginou como estavam, se mudaram, se sentiam sua falta como Niente sentia a deles.

Imaginou se algum dia saberia.

Ele colocou a tigela de lado.

O sono naquela noite foi intermitente e inquieto. Os pesadelos o invadiram; Niente viu a esposa morta, as crianças feridas, viu a si mesmo lutando e tentando correr, mas incapaz de fazer mais do que andar enquanto era cercado por demônios vestidos de azul e dourado. O nahual tentou imaginar o rosto da esposa diante dele, a boca semiaberta quando Niente inclinou-se para beijá-la... o rosto não tinha expressões nem feições, era uma máscara. Sem conseguir escapar dos sonhos, ele acabou andando de um lado para o outro do acampamento, escutou os sons dos guerreiros descansando, viu as estranhas formas dos prédios ao redor. Ao passar por um edifício, o nahual ouviu seu nome ser chamado. — Niente.

Ele reconheceu a voz. — Citlali.

O guerreiro supremo estava encostado na porta do prédio. Atrás dele, uma vela brilhava na escuridão. — Não consegue dormir? — perguntou Citlali.

Niente balançou a cabeça. — Eu não ouso. Sonhos demais. E você?

O rosto com redemoinhos negros deu um sorriso. — Sonhos de menos. Eu queria ver a nossa terra natal e minha família novamente, mesmo no sono.

— Isto não acontecerá se... — Niente engoliu o comentário, furioso consigo mesmo. Se estivesse menos confuso pela falta de sono, não teria dito nada.

— Se prevalecer a vontade do tecuhtli Zolin? — arriscou Citlali. — Eu pensei a mesma coisa, nahual. Não precisa ficar tão nervoso. — O sorriso aumentou, e ele olhou de um lado para o outro, como se tentasse ver se alguém os escutava. — E deixe-me responder à outra pergunta que você não irá fazer. Não. Eu não desafiarei o tecuhtli. Veja até onde ele nos trouxe, nahual, do outro lado do mar até o grande lar dos orientais. Isso é a verdadeira grandeza, nahual. Grandeza. Estou orgulhoso por ter sido capaz de ajudá-lo.

— Mesmo que isso signifique que você jamais verá sua terra natal e sua família novamente?

Citlali ergueu os ombros. — Eu sou um guerreiro. Se essa for a vontade de Sakal... — Ele abaixou os ombros novamente. — Eu não preciso de uma tigela premonitória, nahual. Não tenho interesse no futuro, apenas no presente. É uma bela noite, eu estou vivo e vendo um lugar que jamais pensei que veria e que poucos tehuantinos um dia viram. Como alguém não ficaria feliz com esta situação?

Niente limitou-se a concordar com a cabeça. O nahual desejou boa-noite e deixou o guerreiro com seu devaneio. Da parte dele, Niente voltou aos próprios alojamentos e realizou os rituais para colocar feitiços no cajado novamente. Então, completamente esgotado pelo esforço, ele foi para a cama e deixou os pesadelos o invadirem outra vez.


E, no dia seguinte, os pesadelos se tornaram realidade.

Na alvorada, o tecuhtli Zolin levou os tehuantinos para as profundezas da cidade, eles lutaram de rua em rua na direção da grande avenida principal. A batalha foi um reflexo do combate do dia anterior: novamente, a ofensiva inicial fez os cansados nessanticanos recuarem; quando o olho de Sakal estava bem alto no céu, eles chegaram à avenida, onde Zolin rapidamente reagrupou as tropas e começou a marcha para o sul.

Lá, os nessanticanos haviam se reunido: em volta do mercado, onde finalmente detiveram o avanço tehuantino no dia anterior, e em volta da ponte que levava à ilha. No A’Sele, Zolin mandou que os navios avançassem na direção do inimigo; os navios nessanticanos deslocaram-se para detê-los, e outra batalha tomou o lugar, cujo resultado Niente só podia imaginar, embora muitos navios de guerra de ambos os lados estivessem em chamas. Não havia mais retirada possível ali — restaram poucos navios para todos eles voltarem para casa.

— Nahual! — Do cavalo, Zolin apontou um dedo para Niente. — Pegue seus nahualli e venha comigo. Nós controlamos a rua principal, agora temos que dominar a ponte. Citlali! A mim!

Zolin rapidamente posicionou os guerreiros. Citlali e Zolin atacariam os píeres da ponte a partir da avenida, diretamente no coração das forças nessanticanas; Mazatl esperaria até que o ataque estivesse em andamento, depois investiria pelo flanco oeste através do Mercado do Rio. Vários guerreiros duplas mãos1 também começariam um ataque ao norte imediatamente e forçariam a passagem pela avenida circular de maneira que os nessanticanos não pudessem concentrar a atenção na cabeça de ponte — não sem possivelmente perder a ponte mais a leste para a grande ilha. Zolin mandou os guerreiros à frente como manobra de distração, depois esperou que a sombra do sol movesse um dedo antes de acenar e liderá-los ao lés-nordeste da avenida, onde posicionou seus homens. Eles podiam ver os nessanticanos: uma parede de escudos em riste do outro lado da avenida, a meros cem passos.

Não havia areia negra, nem tempo para fazer mais, mesmo que eles tivessem os materiais brutos. Desta vez, os arqueiros começaram o ataque com uma chuva sobre os escudos dos nessanticanos sem causar grandes danos. Os ténis-guerreiros lançaram as bolas de fogo estridentes na direção dos tehuantinos, e Niente — com os demais nahualli — ergueu seu cajado mágico rapidamente. Os feitiços de proteção estalaram para fora, um pulso quase visível no ar. A maior parte das bolas de fogo foi desviada; elas caíram nos prédios de ambos os lados, que pegaram fogo. Mas havia muitos ténis-guerreiros e nahualli insuficientes. Os feitiços de guerra caíram sobre os guerreiros reunidos; os homens gritaram, seus corpos foram queimados e contorcidos. Aqueles que puderam, fugiram, terrivelmente feridos com as queimaduras do fogo pegajoso. Os que não puderam, morreram. Uma bola de fogo caiu perto o suficiente de Niente para o nahual sentir o calor do feitiço, como se a fornalha de um ferreiro tivesse sido aberta em frente a ele. O calor passou por seu rosto como uma onda escaldante e secante. Zolin também sentiu o calor; ele deu uma olhadela para a cena atrás de si quando o cavalo empinou com medo. O tecuhtli berrou — Em frente! Agora! — Zolin controlou a montaria e a cutucou com o pé para que galopasse. Os guerreiros supremos montados seguiram o tecuhtli e a infantaria também investiu, à frente. Niente foi levado pela onda.

A onda arrebentou contra os escudos pintados de azul e dourado e empalou-se em suas lanças. No caos barulhento, Niente viu o cavalo de Zolin cair, com uma lança cravada no peito, mas o tecuhtli em si perdeu-se na massa de soldados, e o nahual não conseguiu ver o que aconteceu com ele.

Havia espadas e combate em volta de Niente, que só conseguiu pensar em si mesmo, em matar o máximo possível de nessanticanos. Ele apontou o cajado mágico, falando a palavra de ativação sem parar, e os raios estalaram da ponta, assobiando e ondulando ao mergulharem nas fileiras em frente ao nahual. Um buraco foi aberto na parede de escudos quando ele lançou um feitiço após outro — os clarões mandaram dezenas de homens ao chão. Os guerreiros gritavam, urravam e brandiam suas espadas ao avançar através da brecha. A parede começou a ceder, e então desmoronou complemente. Niente novamente foi levado pela onda e viu de perto as torres que marcavam a entrada da ponte.

À direita, havia uma cacofonia de gritos: os guerreiros de Mazatl que investiam contra o flanco. O som grave das trompas soou nas fileiras nessanticanas. Niente viu um estandarte tremulando ali e um aglomerado de chevarittai a cavalo. De repente, o estandarte seguiu para a direção sul da ponte, com os chevarittai junto. O nahual viu a expressão de compreensão nos rostos dos soldados inimigos diante dele. Viu a maneira como as espadas foram abaixadas momentaneamente, como as fileiras se enfraqueceram visivelmente. A chuva de flechas cessou, os ténis-guerreiros não lançaram mais bolas de fogo sobre a cabeça de Niente sobre a retaguarda dos tehuantinos. Eles avançaram gradualmente: os guerreiros, os nahualli, agora o nahual conseguia ver Zolin novamente, sangrando e ferido, mas em pé, sua espada ceifava os soldados que ousavam ficar diante dele. Citlali estava ao lado do tecuhtli, com o rosto implacável e impetuoso.

Eles estavam na ponte agora. Ela era dos tehuantinos. O rio movia-se preguiçosamente embaixo deles, e corpos caíam do peitoril e batiam nas águas.

Os tehuantinos rugiram. Eles cantavam enquanto matavam, e Niente cantou com eles.

 

Varina ci’Pallo

AS RUAS DO VELHO DISTRITO ESTAVAM tomadas por cidadãos em pânico, a maioria corria para leste, para longe das forças ocidentais que se aproximavam e das batalhas ao longo da Avi a’Parete. Todos ouviam os sons: os berros que reverberavam pelas vielas, os lamentos, os gritos, o barulho constante das trompas dos templos soando alarmes estridentes. A fumaça dos incêndios manchou o céu, trapos imundos que às vezes obscureciam o sol, e o cheiro de fogo e carnificina no ar era intenso.

Varina viu-se próxima a Karl pela maior parte do dia. Ela sorria para ele, nervosa e indecisa, e Karl devolvia o mesmo sorriso. — Prometa — falou Varina finalmente. Os dois estavam sozinhos em um dos cômodos; Talis, Serafina e Nico estavam no outro.

— Prometer o quê?

— Que o que quer que aconteça... que aconteça conosco. Guarde um último feitiço para nós, eu farei o mesmo.

— Não será assim tão ruim — disse Karl. — Talis... ele é um deles, afinal.

Ela sacudiu a cabeça, tão desamparada pelo fato quanto Karl.

Mais tarde, o cheiro de fumaça ficou mais forte. Pela janela do apartamento, eles viram a fumaça pegajosa e espessa subir das casas e de uma rua a oeste, com chamas que ocasionalmente irrompiam na escuridão. Cinzas caíam como neve cinzenta. Karl achou que quase podia sentir o calor. Os dois seguiram para o cômodo da frente com os demais.

— Tudo está queimando — falou Nico. Ele parecia mais empolgado do que preocupado, mas todos os adultos trocaram olhares preocupados. O estalo das chamas ao longe era audível no silêncio.

— Você está certo, Nico — disse Varina, enquanto olhava para Serafina. — Infelizmente, os ténis-bombeiros estão muito ocupados em outros lugares para fazer algo a respeito disso. — O olhar dela desviou de Serafina para Karl. Varina sabia o que ele estava pensando; era o que estava na mente de todos: Será que podemos ficar aqui? Precisamos ir embora?

Menos de uma virada da ampulheta depois, todos ouviram uma comoção alta ecoar a oeste, lá fora, na rua. Não muito longe dali, uma turba de várias dezenas de pessoas andava à espreita pela viela; não eram soldados, nem ocidentais, mas gente que morava no Velho Distrito. Eles berravam, corriam de casa em casa e quebravam portas e janelas; Varina ouviu os berros e gritos dos que estavam no interior enquanto a turba invadia cada casa. Eles saqueavam, carregavam qualquer coisa que parecesse de valor: ela viu algumas pessoas segurando itens roubados enquanto marchavam; o que mais, além de roubar, os saqueadores faziam dentro das casas, Varina só podia imaginar. Já havia fogo em três ou quatro casas mais ao longe na rua. A turba gritava alto: — Peguem o que quiserem! A cidade está perdida! Revolta! Revolta!

Karl e Talis passaram por Varina e seguiram para a rua enquanto a turba continuava o lento e caótico avanço na direção deles. Alguém à frente os notou e apontou, e vários aglomerados de saqueadores seguiram na direção deles. — Parem com isso! — gritou Karl, a turba debochou, as pessoas responderam com berros e brandiram armas velhas ou improvisadas. Ele deu uma olhadela para Talis e acenou com a cabeça. O embaixador ergueu as mãos, gesticulou, e uma luz surgiu entre elas. Ao seu lado, Talis levantou o cajado e bateu uma vez nas pedras de pavimentação: um raio saiu como uma flecha do punho para o céu esfumaçado.

A turba parou. Sem uma palavra, as pessoas se dispersaram em um estranho silêncio, correram para qualquer direção, desde que fosse para bem longe dos dois. Alguns instantes depois, a rua estava vazia. — Ora, isso acabou bem — falou Karl. Ele e Talis viraram-se, e Varina viu os dois ficarem boquiabertos.

Ela tinha lançado o próprio feitiço no momento em que Karl lançou o dele. Varina moldou o ar ao redor com o toque de um escultor, desenhou como se fosse uma tela e colocou nele uma imagem saída da mente. Varina viu o que Karl e Talis viram, algo que se agigantava atrás deles, mais alto que qualquer uma das casas.

— Um dragão! — berrou Nico da porta da casa, nos braços de Serafina, tomado pela alegria. Karl riu e aplaudiu, Varina sorriu. — Você pode fazê-lo cuspir fogo e voar? — perguntou o menino, e ela fez que não com a cabeça.

— Ele não pode fazer nada, só parece feroz — disse Varina. Por um instante, o perigo foi esquecido, mas depois a realidade desabou sobre eles quando ela cancelou o feitiço. O dragão sumiu em filetes de fumaça verde que foram levados pelo vento. Os saqueadores podiam ter ido embora, mas nada mudou. Eles voltariam em breve, e os incêndios próximos ardiam sem controle. A cidade continuava sob ataque.

— Karl, não podemos ficar aqui — falou Varina.

Ele olhou para Talis e viu o homem concordar com a cabeça, devagar. — Você está certa — disse Karl. — É o momento. Vamos pegar o que precisamos. — Ele deu um tapinha no ombro de Talis e foi para a porta.

Do outro lado da rua, Varina viu uma velha solitária — uma mendiga, pela aparência da roupa. Ela olhava fixamente para a casa. Assim que Varina a viu, a mulher pareceu acenar com a cabeça, depois correu pelo espaço escuro e apertado entre as casas e foi embora.

 

Sigourney ca’Ludovici

ELES A COLOCARAM no Velho Templo.

O comandante ca’Gerodi voltou fugindo da derrota na Pontica Kralji, entrou gritando no Velho Templo onde Sigourney estava sentada, no Trono do Sol, e disse que ela e o Conselho dos Ca’ deveriam pegar o que fosse possível e fugir imediatamente pela Pontica a’Brezi Veste até a margem sul e sair da cidade.

Sigourney recusou-se. — Que o Conselho vá embora se quiser. Eu vou ficar.

— Eu não posso protegê-la, kraljica — disse ca’Gerodi. — Eles estão vindo, a qualquer momento.

— Eu não abandonarei minha cidade e minha responsabilidade — respondeu ela friamente. — Eu ficarei.

No fim, a equipe de Sigourney pegou o que pôde do que restava dos tesouros do palácio e fugiu da Ilha A’Kralji. O mesmo aconteceu por toda Nessântico: no enorme Templo do Archigos, na margem sul; na Grande Biblioteca com seus preciosos e insubstituíveis livros e pergaminhos de velino; no Teatro A’Kralji e no Museu a’Artisans. O conselheiro ca’Mazzak e o resto do Conselho desapareceram também. Fugiram para o sul, a única direção ainda aberta para eles...

Sigourney permaneceu no Trono do Sol, no Velho Templo, sob a luz do sol que entrava pelo domo arruinado e queimado. Antes de permitir que o ervanário da corte fosse embora, a kraljica mandou que o homem preparasse uma taça especial do cuore della volpe, que agora estava no braço do Trono do Sol, ao lado dela. Sigourney usava uma longa tashta cerúlea com um sobretudo amarelo que escondia o fato de não haver uma perna debaixo do joelho direito. Ela mandou que os criados colocassem um tapa-olho cravejado sobre o buraco onde antes ficava o olho direito e aplicassem pó de ovo no rosto para esconder a pior parte das cicatrizes.

Sigourney aguardava no antigo trono de Nessântico. Aguardava o inevitável.

Lá fora, a kraljica ouviu a batalha em andamento: os gritos dos homens, o clamor das armas, o rugido dos feitiços dos ténis-guerreiros. A fumaça subia e enfraquecia a luz do sol. Um esquadrão de elite da Garde Kralji estava disposto diante dela, a cota de malha farfalhava quando os soldados se remexiam, nervosos, empunhando as espadas e voltados para as portas do templo. O comandante ca’Gerodi tinha ido embora há uma virada da ampulheta. — Eu não a verei novamente, kraljica — disse ele. — Sinto muito.

— Eu sei. Eu sei. Sinto muito também.

Ela aguardava.

Quando as portas foram escancaradas, os gardai em frente a Sigourney ficaram tensos e começaram a avançar. — Não — disse a kraljica. — Parem! Esperem! — Vários guerreiros ocidentais entraram no templo; com eles havia outro homem, este sem as tatuagens dos guerreiros e com um cajado de madeira lustrosa: um dos feiticeiros. Os ocidentais pararam e espiaram o longo corredor da nave onde Sigourney estava sentada sob um facho poeirento de luz do sol. — Algum de vocês fala nossa língua? — berrou ela.

— Eu falo — disse o feiticeiro. As palavras eram arrastadas e com um sotaque carregado, mas compreensíveis. — Um pouco.

— Ótimo. Eu sou a kraljica Sigourney ca’Ludovici, monarca desta terra. Quem é você?

O homem sussurrou por um instante para o guerreiro ao lado dele, que tinha a imagem de uma águia ou um falcão vermelho desenhada na careca. — Eu sou Niente — respondeu o feiticeiro. — Sou o nahual. E este — ele apontou para o guerreiro com quem havia falado — é o líder dos tehuantinos, o tecuhtli Zolin. Ele exige sua rendição, kraljica.

— Ele pode exigir o que bem quiser. — Sigourney ergueu a mão do braço do Trono do Sol. O anel com o sinete dos kralji reluziu quando a kraljica tocou a faixa dourada da coroa, posta sobre seu cabelo grisalho e grosso. O sol estava quente sobre ela, que ergueu os olhos para as ruínas queimadas dos suportes do domo. — Ele não terá minha rendição.

Novamente o feiticeiro falou com o guerreiro, que soltou uma gargalhada que ecoou pelo templo. O homem falou palavras em uma língua que parecia ao mesmo tempo estranha e, no entanto, familiar de um jeito esquisito. Onde ela ouviu palavras assim antes? — O tecuhtli Zolin diz que se a kraljica deseja desafiá-lo, ele está disposto a aceitar. O tecuhtli emprestará a própria espada se ela não tiver uma própria. Caso contrário, ele mandará seus guerreiros torná-la prisioneira. O tecuhtli deixa a decisão com a senhora.

Sigourney balançou a cabeça e falou — Eu sei como vocês tratam os prisioneiros. E você não percebeu todas as opções que eu tenho. — O feiticeiro pareceu confuso ao ver a kraljica pegar a taça no braço do Trono do Sol e tomar todo o preparado amargo em um só gole. — Espero que aproveitem a cidade enquanto a controlam. — Ela ergueu a taça para os ocidentais e deixou que caísse nos ladrilhos, onde se quebrou. A perna já formigava quando Sigourney recostou-se no trono. A paralisia subiu rapidamente pelas coxas, pela cintura, pela barriga. Pelo coração. A luz do sol na nave pareceu enfraquecer. — Este é o meu trono e, enquanto eu viver, não abrirei mão dele.

Sigourney riu então. A voz parecia estranha, ofegante e fraca. A kraljica tentou forçar as próximas palavras. — E eu escolho o momento conveniente. — Ela tentou tomar fôlego, mas os pulmões não se mexeram. Abriu a boca, mas não havia ar.

Sigourney sorriu para eles quando o sol escureceu e Nessântico sumiu de vista.

 

Karl Vliomani

— PARA ONDE VOCÊ SUGERE de irmos? — perguntou Talis.

— Leste — sugeriu Karl. — Para os firenzcianos. Sergei pode estar lá.

— Podemos ir para o oeste — contra-argumentou Talis. — Para o meu povo.

— Seu povo colocou fogo em Nessântico — falou Varina. — Eles matam. Estupram. Saqueiam.

— E o seu povo não faz isso? — disparou Talis. — Você não esteve nos Hellins, não é? Ou se esqueceu do que começou este confronto em primeiro lugar? — Ele olhou com raiva para Varina, que sustentou o olhar, sem pestanejar.

— Parem, vocês dois — disse Karl. — Não temos tempo a perder com isso. Talis, ir para o oeste significa tentar passar pela pior parte dos incêndios, e o sul não parece muito melhor do que isso. Temos que pensar a respeito do menino, especialmente; é perigoso demais.

— E ir na direção dos firenzcianos não é perigoso? — protestou Talis.

— Eu diria que é menos.

Serafina tocou no ombro de Talis e falou — Acho que ele está certo, amor. Por favor...

Talis fez uma cara de desdém, e deu de ombros. — Tudo bem. Mas a culpa vai ser sua, numetodo, se a coisa ficar feia.

Eles rapidamente reuniram o que poderiam carregar. O cheiro de fumaça era esmagador agora, e cinzas caíam constantemente sobre os telhados, cujas bordas brilhavam com chamas agitadas. O grupo não conseguia ver o sol de maneira alguma, embora devesse estar no alto no céu. A rua continuava deserta; aqueles que podiam fugir já haviam escapado; aqueles que ficaram estavam entrincheirados nos prédios. Eles desceram a viela rapidamente até o cruzamento e viraram para leste.

Quando chegaram às ruas maiores, eles encontraram as multidões novamente. Um enxame de gente saqueava lojas, quebrava portas, arrancava persianas e carregava o que fosse possível. Os saqueadores olhavam com ar de provocação para o grupo enquanto passavam com as conquistas, desafiavam qualquer um a tentar detê-los ou protestar. Um esquadrão de quatro utilinos apareceu e soprou os apitos, mas, tirando isso, não fizeram tentativa alguma de restaurar a ordem; eles apontaram os cassetetes e gritaram avisos, mas saíram correndo quando os saqueadores mais próximos se viraram para confrontá-los.

Karl e os demais foram atrás deles.

Algum tempo depois, o grupo passou por vários quarteirões, longe o bastante para as cinzas dos incêndios não mais caírem sobre os ombros e cabelos. Eles se aproximavam do centro do Velho Distrito; Karl vislumbrou a praça aberta não muito distante dali, onde a viela tortuosa de repente se abria nela: lá estava a estátua de Henri VI, com a espada erguida sob a luz do sol. As multidões desapareceram novamente. Parecia que eles corriam por uma cidade deserta. Quando se aproximaram do fim da rua, Karl parou o grupo: encolhidos contra o flanco do prédio mais próximo, eles viram um esquadrão da Garde Civile passar rapidamente para o sul pela praça aberta, perto do chafariz de Selida, liderado por um trio de chevarittai montados. Muitos dos soldados estavam visivelmente feridos, e mancavam enquanto cruzavam a praça meio que correndo.

— Eles estão recuando — sussurrou Varina. — Será que perdemos a cidade, então?

Karl não tinha como responder, embora desconfiasse da verdade, e falou — Vamos correr...

O grupo começou a cruzar a praça quando a Garde Civile desapareceu na entrada de uma rua ao sul. Eles chegavam ao fim da sombra de Henri VI, quase no meio do centro do Velho Distrito, quando viram do que os soldados fugiam.

Uma massa ruidosa de homens pintados entrou na praça aos borbotões vinda do norte. Ao longe, Karl viu que estavam bem armados: espadas, lanças, flechas. Os rostos tinham o redemoinho de linhas negras como o de Uly; os corpos eram protegidos por armaduras de bambu. Eles ainda não tinham visto o pequeno grupo de Karl, ou, se viram, julgaram irrelevante. Os ocidentais entraram no espaço aberto: havia pelo menos trinta ou mais deles. — Andem! — sibilou Karl. — Rápido! — Eles podiam facilmente chegar a uma das transversais que levavam ao centro do Velho Distrito e despistar os ocidentais antes que fossem alcançados. Karl pegou a mão de Varina e começou a correr.

Depois de alguns passos, Karl percebeu que os dois estavam sozinhos. Talis permaneceu parado sob a sombra da estátua. Ele segurava as mãos de Serafina e Nico. — Talis!

Talis balançou a cabeça. — Não — disse ele em voz alta.

— Talis, Sergei foi para Firenzcia. Nós podemos segui-lo. Você não tem nada para barganhar com essa gente. Não mais. Você está colocando Serafina e Nico em perigo.

Talis sorriu para Karl e Varina. — Ah, mas eu tenho sim um trunfo: a areia negra de Uly. Lembra-se? Ainda está aqui.

Karl sentiu a mão de Varina apertar seu braço. Ele lembrou-se: Uly, os barris de ingredientes no apartamento do homem, à espera de serem misturados... — Você não pode dar isso a eles...

— Este é o meu povo — falou Talis. — Eu agradeço por tudo o que vocês fizeram por Sera e Nico, mas este é o meu povo, o povo que eu conheço, e este é o momento de eu voltar para eles. Vá para o seu. — Ele gesticulou para os soldados e berrou algo em uma língua que Karl não compreendia. — Vá — disse Talis para Karl. — Vá enquanto ainda tem chance.

— Pelo menos deixe-nos levar Serafina e Nico conosco — gritou Varina, mas Talis fez que não com a cabeça.

— Eles são a minha família e ficarão comigo. Vá, Karl. Ou fique. Mas faça sua escolha. — Serafina olhou para os dois com incerteza e pânico no rosto. Nico encarou de olhos arregalados, mas parecia calmo.

Vários guerreiros pintados se aproximavam correndo agora. Talis ergueu o cajado mágico. Uma luz irrompeu do objeto, cintilou e baniu a sombra de Henri VI. — Karl? — A mão de Varina estava erguida; ele sentiu a energia do Segundo Mundo se acumular em volta dela.

— Eles são muitos — disse Karl.

— Não podemos deixá-los. Não podemos deixar Nico.

— Não temos escolha — respondeu ele.

Karl pegou a mão de Varina, e os dois correram.

 

Nico Morel

NICO NÃO CONSEGUIA ENTENDER o que Talis dizia quando os soldados pintados se aproximaram deles. Ele notou a insegurança na voz do vatarh e o jeito com que Talis falava alto e rápido, com a bengala mágica em frente ao corpo como um porrete. A matarh abraçou o menino com tanta força que ele mal conseguia respirar quando os estranhos os cercaram. Os homens eram inacreditavelmente grandes, assustadores e cheiravam a sangue e morte.

Nico sentiu o medo crescer dentro dele, juntamente com o frio estranho que sentiu no gabinete do archigos, assim como quando fugiu de Ville Paisli. O frio começou a aumentar por dentro, e ele murmurou baixinho as estranhas palavras que vieram à mente enquanto as mãos fizeram pequenos gestos sob o abraço forte da matarh.

— Talis, o que está acontecendo? Estou assustada... — Nico ouviu a matarh falar.

— Está tudo bem — disse o vatarh, mas a voz contradizia a resposta. — Eu só preciso falar com o guerreiro supremo. Deixe-me cuidar disso. Eles são meu povo; só não esperavam me encontrar aqui...

Talis voltou-se para um dos homens pintados, o que tinha um lagarto negro de língua vermelha rastejando no topo do crânio, que passava em volta do olho esquerdo e ia até a lateral da cabeça. Enquanto eles meio que gritavam uns com os outros, o vatarh brandiu a bengala na cara do sujeito. Nico sentiu o frio crescer sem parar dentro dele, era tão intenso que ele sabia que iria explodir se tentasse contê-lo por mais tempo. O menino gritou as estranhas palavras. Gesticulou.

Não houve fogo azul dessa vez. Em vez disso, o ar tremeu em volta dele e propagou-se como uma onda visível, a onda rápida acertou os homens pintados, e eles foram lançados para trás como se tivessem sido golpeados por um grande punho. — Venha, matarh! — berrou Nico. O menino agarrou a mão dela e puxou-a de maneira que Serafina tropeçou ao segui-lo, enquanto ele fugia na direção em que Karl e Varina foram. — Talis! Rápido!

Mas Talis não correu com os dois; ele também havia sido derrubado pela explosão incontrolável do menino. O guerreiro-lagarto já estava de pé, Nico olhou para trás ao começar a correr e viu o homem berrar para os demais no momento em que Talis gritou alguma coisa de volta e ergueu a bengala. Uma luz ofuscante brilhou da bengala, e um dos guerreiros rugiu. Nico puxou a matarh com mais força. — Corra!

Sera deu um passo com ele, mas soltou a mão do filho. O menino deu outro passo antes de perceber que a matarh não estava com ele. — Sera! — Nico ouviu Talis gritar e virou-se para trás.

A matarh estava esparramada sobre os paralelepípedos da praça, com uma lança nas costas e seu sangue manchando as pedras da pavimentação. Ela esticou o braço na direção de Nico, rastejou atrás do filho, com o rosto contraído de dor. — Matarh! — berrou o menino, que correu de volta para Serafina. Nico caiu ao lado dela assim que Talis a alcançou.

— Nico... — disse a matarh. — Eu sinto muito... — Ela virou a cabeça para Talis e começou a falar, mas ele fez carinho na cabeça de Serafina e a abraçou com cuidado.

— Não, não diga nada. Eu vou levar você a um curandeiro, a alguém que possa te ajudar... — Talis ergueu o olhar para os soldados pintados, que se reuniram em volta deles. O vatarh falou rispidamente na própria língua. O guerreiro-lagarto fez uma expressão de desdém, e gesticulou para os homens. Um deles arrancou a lança das costas da matarh de Nico, e ela gritou novamente. O menino atirou-se contra o guerreiro-lagarto e socou a armadura do homem. Ele agarrou Nico com um braço musculoso e rosnou alguma coisa para Talis. — Nico! — falou o vatarh. — Eles vão ajudá-la. Por favor, escute o que eu digo. Você tem que parar de lutar com eles.

Toda a energia abandonou Nico; ele desmoronou no braço do guerreiro-lagarto.

Dois guerreiros agacharam-se; eles rasgaram tiras da própria roupa e amarraram na cintura da matarh do menino. Um guerreiro pegou Serafina nos braços; ela gemeu e revirou os olhos, mas Nico viu que a matarh ainda respirava. Uma das mãos pendia; o menino contorceu-se no braço do guerreiro-lagarto e foi solto pelo homem. Ele correu e pegou a mão de Serafina.

Nico segurou a mão da matarh, em prantos, enquanto eles saíam rapidamente da praça.

 

Niente

ELES CONQUISTARAM A CIDADE.

Ou, mais corretamente, conquistaram parte dela. Nessântico era grande demais e a força dos tehuantinos pequena demais para controlar a cidade inteira, na prática. Em vez disso, eles arrebentaram a cidade, usaram areia negra para incendiar Nessântico, fizeram a Garde Civile recuar para o norte e o sul.

A cidade já não pertencia à kraljica e ao povo dela, mas também não era dos tehuantinos.

Niente tinha certeza de que jamais seria deles.

— Bem? — perguntou Zolin enquanto o nahual espiava a água da tigela premonitória.

— Paciência, tecuhtli — disse ele. — Paciência. — Mas Niente já sabia. A visão já tinha passado e a água era apenas água. Mas, ao fingir, o nahual podia decidir o que queria dizer. Ao fingir, podia se recuperar da pior parte do cansaço e da exaustão causados pelo feitiço.

Ele viu — novamente —, no meio da grande cidade arruinada, o tecuhtli e o nahualli mortos e sentiu outra vez o arrepio com a certeza de que viu Zolin e a si mesmo. Nada mudou. Axat ainda lhe mostrava o mesmo futuro, o mesmo caminho. Nada foi alterado após esta vitória. Niente achava que nada poderia alterá-lo. O futuro estava predeterminado, tão inevitável quanto o pôr do sol.

Eles estavam nas ruínas do templo, Zolin sentado no trono que a kraljica usara. O cabo de uma lança tinha sido cravado em uma fenda no piso de cerâmica, perto do trono. A cabeça da kraljica foi enfiada na lança, o único olho vidrado voltado para fora, o cabelo pendia grotescamente — o corpo estava caído contra a parede atrás do trono, onde fora jogado. Uma fogueira foi acesa no meio da nave e alimentada com a madeira dos bancos do tempo; uma fumaça cinza e fina subia para o céu que começava a ficar púrpura. Mesas foram erigidas em volta da fogueira, e um banquete estava em andamento, servido por assustados prisioneiros ocidentais. Não havia algum motivo em especial para o medo deles; Zolin e os outros guerreiros supremos não permitiriam que nenhum prisioneiro fosse maltratado. Sim, haveria os inevitáveis estupros, saques e mortes, mas os incidentes seriam poucos, e os responsáveis seriam severamente punidos se fossem flagrados. Alguns offiziers do alto escalão seriam sacrificados pela glória de Axat e Sakal, mas nenhum outro prisioneiro sofreria algum mal.

Os tehuantinos eram mais benevolentes e bons vencedores do que os orientais quando estes vieram aos Hellins.

Enquanto os guerreiros aproveitavam o banquete, Niente olhava na tigela premonitória perto da fogueira. A luz do fogo lambeu a pele do nahual, mas o calor não conseguiu tocar o frio que ele sentia por dentro. Niente finalmente pegou a tigela e jogou a água nas brasas em chamas, que assobiaram e soltaram vapor em resposta.

— Então — falou Zolin —, Axat me vê permanecendo aqui? Eu acho que este é um ótimo lugar. Podemos construir uma nova cidade aqui, uma que essa terra nunca viu antes, uma cidade que rivalizasse com Tlaxcala, e eu poderia ser o tecuhtli aqui, e os ocidentais nos serviriam como eles forçaram nossos primos a servi-los.

— Eu realmente vejo o senhor permanecendo aqui, tecuhtli — falou Niente, o que não era nada mais que a verdade.

Zolin deu um tapa nos braços cristalinos do trono. Ele rugiu de alegria, e os guerreiros reunidos no salão riram com ele. — Viu só! — berrou o tecuhtli para Niente. — Todas aquelas preocupações. Eu lhe disse, nahual, eu lhe disse.

— Disse sim, tecuhtli — falou Niente.

Zolin inclinou-se para a frente no trono. — Você viu outras batalhas? Você me viu tomando novas cidades?

O nahual balançou a cabeça e respondeu — Não. E isso não seria prudente, tecuhtli. Não temos mais areia negra. Se pudéssemos repor os guerreiros que caíram, se eu pudesse trazer mais nahualli para cá... — Ele espalmou as mãos. — Eu diria ao tecuhtli... — Niente começou a falar, mas houve uma agitação no fim do salão: o guerreiro supremo Citlali surgiu com um homem ao lado dele; um homem com um cajado mágico na mão. O nahual apertou os olhos para ver na escuridão da noite, iluminada pela fogueira; não era um nahualli que ele reconhecesse, e o homem estava vestido como um dos orientais, havia manchas de sangue na roupa. No entanto, aquele rosto...

— Talis? — perguntou Niente. — É você? — Pelo rosto, o homem parecia ter muitos mais anos do que deveria, a face foi arrasada pelo poder de Axat assim como a do nahual, mas ele lembrava-se da juventude nas feições do sujeito.

— Niente? — Talis correu à frente e agarrou o antebraço de Niente, seus olhos vasculharam o rosto, sem dúvida tão mudado quanto o próprio. — Por Axat, tem muito, muito tempo. Você é o nahual. Ótimo. Que ótimo para você... — Ele então viu o tecuhtli Zolin, deu meia-volta e abaixou a cabeça para ele. — Tecuhtli. Noto que Necalli caiu.

Niente ainda olhava para Talis. Havia uma dor nos olhos do homem que não era causada pelo X’in Ka. — Você está ferido? — perguntou o nahual, e Talis balançou a cabeça.

— Não, é que... — Ele parou, e Niente viu a preocupação e a tristeza desabarem sobre o homem. — Eu... eu tenho uma esposa aqui, e um filho. Ela foi... gravemente ferida. Preciso voltar para os dois...

— Nós levamos a mulher e o menino para a tenda dos curandeiros, tecuhtli, nahual — intrometeu-se Citlali. — Eles estão fazendo o possível.

— Ótimo — falou Zolin. — Você poderá ir até eles em um momento, Talis. Então você é o nahualli enviado para cá pelo antigo nahual? Eu sei que ele disse ao tecuhtli Necalli que você era quase tão poderoso quanto Mahri; que você teria dado um belo nahual. — Zolin deu uma olhadela para Niente. — Talvez esse acabe sendo seu destino. Eu li seus relatórios e, com o passar dos anos; eles me ajudaram a compreender e a derrotar os orientais. Sou grato por isso.

— Tecuhtli — disse Citlali quando Zolin fez uma pausa ao se recostar no trono. — Talis tem uma informação que o senhor precisa saber, sobre um exército mais a leste da cidade. Foi por isso que eu o trouxe aqui.

Talis concordou com a cabeça, Niente ouviu o homem, sentindo um medo crescente enquanto ele falava a respeito desse exército de Firenzcia e da reputação da força militar daquele país. O nahual ficou especialmente aflito com a expressão cada vez mais empolgada no rosto de Zolin. — Tecuhtli — falou ele —, isso é o que a tigela premonitória me disse. Nós fizemos tudo que viemos fazer aqui. Devíamos embarcar agora e voltar para casa antes que esse exército venha para cima de nós. Podemos juntar um novo exército e voltar com mais navios, mais guerreiros e nahualli da próxima vez, e se o senhor quiser se sentar nesse trono como tecuhtli do leste, nós o colocaremos aqui com recursos suficientes para que isso aconteça. Mas não agora. Somos muito poucos, guerreiros e nahualli, para outro grande combate, especialmente sem a areia negra.

Niente pensou que, finalmente, tivesse convencido o tecuhtli. Sentado no trono, Zolin fez uma careta e tamborilou os dedos no braço cristalino do trono. Balançou a cabeça como se estivesse pensando.

Mas Talis então acabou com qualquer esperança que restasse em Niente. — Existe areia negra — disse ele. — Ou melhor, existem ingredientes suficientes aqui na cidade para fazer boa parte dela. Eu sei onde estão.

Zolin inclinou-se para frente no trono e arregalou tanto os olhos que as asas da águia dançaram no rosto. — Onde? Leve-nos até eles agora.

— Tecuhtli, minha esposa... Eu preciso ir até ela.

Niente sabia como Zolin reagiria a isso; e não ficou surpreso. — Todos nós temos esposas e família — retrucou o tecuhtli. — Nosso dever é aqui e agora. Citlali, como está a mulher?

Citlali deu de ombros. — Ela está nas mãos de quem sabe o que fazer. Não há nada mais a ser feito.

— Pronto. Viu só, Talis? — falou Zolin. — Você tem sua resposta. Sinto muito pelo ferimento de sua esposa e entendo que queria estar com ela. Mas seu tecuhtli também precisa de você. O nahual Niente está certo: sem mais areia negra, nós perderemos o que ganhamos. A areia negra, nahualli, é o que precisamos. — Zolin inclinou-se para frente e apoiou os cotovelos nos joelhos. — A esposa de um traidor não receberia ajuda alguma.

Niente ouviu as próximas palavras como se fossem o toque do sino da morte.

— Como o senhor quiser, tecuhtli — disse Talis. — Eu o levarei lá.

— Ótimo — falou Zolin ao ficar de pé. — Citlali, coma e beba alguma coisa e prepare os guerreiros para mais uma batalha. Nahual Niente, faça o mesma com os nahualli. Nesse meio tempo, eu conversarei com você, Talis, enquanto vamos atrás dessa areia negra.

 

Sergei ca’Rudka

SERGEI CUSTOU A ACREDITAR no que Karl e Varina lhe contaram. Ele tinha visto a fumaça dos incêndios em Nessântico, cujo cheiro tinha sido trazido pelo vento, e sabia que a cidade sofria, mas isso: Nessântico conquistada, a maior parte em ruínas...

Isso, Sergei não tinha esperado.

Havia muita coisa que ele não tinha esperado. Sergei sentiu-se muito velho e frágil realmente.

— O archigos ca’Cellibrecca está aqui? — perguntou Karl. Sergei concordou com a cabeça. O rosto do numetodo ficou rígido e determinado, a voz amarga comeu sílabas. — Então me leve até ele, Sergei. Que esse seja o pagamento por libertar você da Bastida. Apenas me leve até ele e afaste-se. Você não precisa se envolver com o resto.

— Não é tão simples assim, Karl.

— Na verdade, é simples assim — retrucou o numetodo. — O homem matou Ana, e eu quero justiça pelo assassinato dela.

— Isso, eu não posso dar para você. Não aqui, nem agora. Mas posso lhe dizer que o hïrzg Jan não gosta muito do homem. Acho que o mesmo pode ser dito a respeito da a’hïrzg Allesandra, pelo menos por enquanto. Karl, deixe-me cuidar dessa situação. Por favor. — Sergei olhou para Varina, em busca de apoio.

— Ouça o que ele diz — falou ela. — Ou ouça Ana; o que ela lhe diria?

O trio estava na tenda de Sergei no acampamento firenzciano, onde os dois tinham sido trazidos pelos primeiros soldados que encontraram. O regente ficou surpreso e contente de ver os dois numetodos; após a separação, Sergei temeu que eles tivessem sido capturados e aprisionados, ou coisa pior. Se a história de Karl e Varina tinha feito o regente sofrer era porque a ideia de Nessântico arruinada era dolorosa demais para imaginar.

Ele também sabia que o hïrzg e a a’hïrzg, no mínimo, também já teriam sido informados da chegada de Karl e Varina; Sergei estava um pouco surpreso por ainda não ter ouvido alguma coisa de um dos dois. E quando o archigos Semini soubesse que o embaixador dos numetodos estava no acampamento... Ele precisava se preparar para isto. Allesandra e Jan eram outro problema; Sergei não sabia exatamente como os dois reagiriam. Ele faria o possível para proteger Karl e Varina, mas...

Sergei falou — Karl, eu lhe prometo isto: quando chegar o momento, ajudarei você com ca’Cellibrecca. O homem é uma praga e um insulto ao robe que a archigos Ana usou. Ambos concordamos com isso. Quando chegar o momento, eu terei prazer em lhe ajudar a tornar a morte dele tão dolorosa quanto você quer. — Sergei quase sorriu ao pensar em Semini instalado na Bastida. Sim, aquilo seria delicioso. Aquilo seria... prazeroso.

Varina arregalou um pouco os olhos com a declaração, mas Karl concordou com a cabeça, com os lábios franzidos. Houve um pigarreio discreto de uma garganta na aba da tenda, um momento depois. — Entre — falou Sergei, e a aba foi aberta para revelar um dos pajens do hïrzg.

— Regente, o hïrzg Jan pede que o senhor leve seus dois convidados... — os olhos do menino se voltaram para Karl e Varina — ... à tenda dele. O hïrzg montou um jantar para os dois e deseja escutar o que eles têm a dizer.

— Diga ao hïrzg que iremos imediatamente — falou Sergei para o pajem, que fez uma mesura e saiu. — Vocês não têm o que temer do hïrzg Jan — disse o regente para os dois. Ele torcia para que fosse verdade. — Eu até gosto do jovem. De certa forma, ele me faz lembrar de mim mesmo...


— O archigos Semini me dirá que os numetodos são hereges e mentirosos, fisicamente perigosos para mim, bem como para minha alma eterna — disse o hïrzg Jan.

— O archigos Semini é um mentiroso e um tolo, além de burro — respondeu Sergei. — Se me perdoa a franqueza, hïrzg.

Jan sorriu. — Sentem-se — falou ele para Karl e Varina ao apontar para a mesa com pão, queijo e uma panela com guisado de carne. Pratos foscos de estanho estavam dispostos diante deles. — Aproveitem os pequenos confortos que temos aqui em campanha, uma vez que não posso oferecer a hospitalidade completa de Firenzcia. — Quando os dois hesitaram, o sorriso de Jan cresceu. — Eu lhes garanto que tenho a mesma opinião do regente no que se refere ao archigos Semini.

Varina conseguiu dar um sorriso; Karl ainda parecia inseguro e perguntou — E qual é a opinião do hïrzg sobre os numetodos?

— Uma das coisas que o regente ca’Rudka me ensinou é que devo julgar as pessoas não pelo que são, mas por quem elas são. Eu ainda não tenho opinião sobre os numetodos; até agora, nunca havia conhecido um. — Jan gesticulou para as cadeiras novamente. — Por favor...

Sergei fez uma mesura. Um momento depois, Karl repetiu o gesto, e os três tomaram seus lugares em frente ao hïrzg. — A a’hïrzg se juntará a nós? — perguntou o regente.

O sorriso de Jan sumiu ao ouvir isto e disse — Não. — Aquela única palavra quase pareceu arrancada à força. Sergei aguardou mais explicações, mas nenhuma veio. O regente perguntou-se sobre o que teria acontecido entre matarh e filho; até agora, ele só tinha visto Allesandra de relance durante um dia e meio. Embora o exército se arrastasse próximo às muralhas de Nessântico em um passo lento enlouquecedor, Allesandra manteve-se em uma carruagem fechada, sem nem o filho, nem o archigos como companhia.

Mas Sergei não pediria uma explicação ao hïrzg. Em vez disso, Jan olhava para Karl e Varina. — Eu gostaria de saber sua história, contada por vocês mesmos — falou ele.

Pela próxima virada da ampulheta, foi isso que Karl e Varina fizeram, com Jan guiando os dois com perguntas ocasionais. Sergei ouviu a maior parte e achou graça quando Karl omitiu algumas partes da história. Jan inclinou-se para a frente quando o numetodo descreveu a areia negra, como foi usada pelos ocidentais no ataque à cidade, e ao saber que havia ingredientes na cidade para fazer mais.

— Você afirma que essa areia negra é a chave do sucesso dos ocidentais? Essa é a mesma magia que nós soubemos que eles usaram nos Hellins?

— Não é magia, hïrzg — falou Karl. — Essa é a parte interessante. É alquimia. Varina tem certa noção, pelo que Talis disse e pelas amostras que eu trouxe do apartamento de Uly, de como preparar a areia negra. Eu vi, todos nós vimos, as coisas terríveis que a areia pode fazer. — Uma sombra sinistra pareceu passar pelo rosto de Karl ao dizer isso, e Sergei sabia que ele se recordava do assassinato de Ana. Era um horror que jamais seria apagado da mente de qualquer um dos dois. — Os ocidentais colocaram fogo na cidade com a areia; eles mataram centenas, talvez milhares. Hïrzg, com essa areia negra, nenhum exército precisa de ténis-guerreiros ou de feitiços. Nenhuma armadura consegue resistir, espadas não podem superá-la, não importa o número.

— E você sabe onde está o estoque dessa areia negra?

Karl assentiu com a cabeça. — Eu sei. Varina também. Nós podemos levar o senhor até lá, hïrzg. Mas os ocidentais também estarão atrás da areia negra. Talis... eu suspeito que Talis já esteja levando os ocidentais até ela. Eles já podem estar com a areia.

— Hïrzg — interrompeu Sergei. — Eu entendo por que o senhor deixou seu exército ocioso aqui. Eu talvez tivesse tomado a mesma decisão no seu lugar; embora meu coração fique partido ao ver a cidade queimar e saber que os ocidentais pisoteiam as ruínas dos lugares que mais amei no mundo. — Ele esfregou o nariz falso, notou que Jan olhou fixamente para o gesto e abaixou a mão. — Mas, se o senhor realmente está disposto a ouvir meu conselho, eu lhe diria que o tempo de esperar acabou. Eu também testemunhei os efeitos dessa areia negra. Se os ocidentais tiverem tempo para criar mais, então seus próprios soldados pagarão o preço pela hesitação. Hïrzg, ouça o que meus amigos estão lhe dizendo. A Garde Civile de Nessântico foi derrotada. Aquela batalha acabou. Temos que atacar agora; não Nessântico, mas aqueles que a derrotaram, antes que venham à Firenzcia.

Sergei achou que o apelo não teria efeito. Jan olhava para o alto, o olhar vasculhava a lona iluminada pelo fogo como se houvesse uma resposta escrita na fumaça. O jovem suspirou uma vez. Então bateu palmas e um pajem entrou.

— Chame o starkkapitän aqui — disse o hïrzg para o menino. — Há preparativos imediatos que eu preciso que ele faça. Corra!

 

Jan ca’Vörl

ELE OUVIU as grandiosas e gloriosas histórias de guerra várias vezes ao longo dos anos: do vavatarh Jan; do vatarh; dos onczios e dos conhecidos mais velhos; e, mais recentemente, de Fynn. Até mesmo da matarh, que contou que o vavatarh a elogiou quando era pequena por seu conhecimento de estratégia militar.

Jan começou a se dar conta de que essas histórias eram inventadas, memórias falsas ou, muitas vezes, mentiras deslavadas.

Até hoje, ele nunca havia entrado a cavalo em uma batalha de verdade. Até hoje, seu conhecimento sobre habilidades marciais fora intelectual e seguro. Mostraram a Jan como cavalgar, manejar uma espada, usar uma lança ou arco e flecha sobre o cavalo, como se proteger de outro chevarittai ou de um soldado de infantaria. Ele participou de lutas com espada de treino, participou de manobras militares. Aprendeu sobre a arte da guerra: quais táticas usar contra um inimigo que estivesse em um terreno superior ou inferior, ou que possuísse mais soldados ou menos, ou mais ténis-guerreiros ou menos. Jan sabia que formação teoricamente era melhor contra outra.

Era o que qualquer jovem rapaz de seu status teria aprendido.

A guerra, na mente de Jan, era um exercício muito gracioso e preciso. Ele sabia — intelectualmente — que era impossível que fosse tão linear e eficiente. Jan entendia.

Mas... ele não sabia que a guerra podia ser tão desordenada assim. Tão caótica. Tão real.

Ninguém no exército firenzciano achava que Jan — assim como Fynn, assim como seu homônimo, o velho hïrzg Jan — seria o verdadeiro general nesse importante ataque. Eles sabiam que a estratégia era do starkkapitän ca’Damont, com a ajuda do regente ca’Rudka e a contribuição dos dois numetodos que vieram da cidade em chamas para o acampamento. Sabiam que seria o archigos Semini que comandaria os ténis-guerreiros.

Jan estaria lá, e a bandeira de comando tremularia entre a Garde Hïrzg e os chevarittai à sua volta, e ele avançaria logo atrás da vanguarda de suas forças como Fynn e o antigo hïrzg Jan fizeram antes dele. Mas Jan consultaria o starkkapitän antes de dar ordens. Ele sabia que era uma atitude inteligente; sabia que o resto dos offiziers e chevarittai também tinha noção disso. Francamente, Jan estava tranquilo em relação a consultar o starkkapitän; ele conhecia a própria inexperiência e não era tão arrogante a ponto de insistir em estragar o ataque.

A entrada em Nessântico começou bem o suficiente. Como uma espada curva, as forças firenzcianas avançaram pela cidade através de todos os portões do lado leste. Não houve resistência; pelo contrário, o surgimento dos soldados foi recebido por gritos de alegria pela população e pelos remanescentes da Garde Civile de Nessântico espalhados. Alguns chevarittai dos Domínios até saíram de mansinho dos esconderijos para engrossar as fileiras de Firenzcia. Após uma virada da ampulheta dentro das muralhas da cidade, Jan começou a torcer para que a situação continuasse assim: marchando sem resistência até a fronteira oeste da cidade e encontrando as forças ocidentais em plena retirada.

Sob o calor do dia, ele suava debaixo da armadura, e o que mais queria era arrancar o fardo pesado dos anéis de aço. Aquilo parecia ser o pior desconforto da vitória.

— Qual o caminho, embaixador? — perguntou Jan para Karl, que cavalgava com seu séquito ao lado de sua matarh, Varina e Sergei.

— Ao norte, por algumas transversais — respondeu o numetodo, que apontava —, depois vários quarteirões para o leste.

Jan concordou com a cabeça. O exército firenzciano ganhou volume pela Avi. O sol brilhava intensamente. Era um belo dia. Eles já tinham vencido, e o hïrzg sentiu-se confiante a ponto de dar uma ordem por si próprio. — Starkkapitän — disse Jan para ca’Damont —, eu levarei metade da Garde Hïrzg comigo, bem como o regente e os numetodos. Deixo você no comando do exército. Faça o que for necessário para defender esta parte da Avi e a cidade. Depois você e a a’hïrzg prosseguirão para o sul, para a Ilha A’Kralji, e cuide para que controlemos a ilha e as Ponticas orientais. Se houver algum problema, mande um mensageiro até mim imediatamente. Da minha parte, eu mandarei um mensageiro assim que nós localizarmos a areia negra e soubermos como está a situação por lá.

— Jan. Hïrzg. — Allesandra franziu a testa, enquanto ca’Damont parecia incomodado. — Eu não acho...

— Eu dei minhas ordens — disparou Jan e interrompeu sua matarh. — Starkkapitän? Tem algum problema com elas?

Ca’Damont meneou a cabeça negativamente. Ele vociferou ordens rápidas.

— Eu me encontro depois com a senhora, matarh — disse Jan. — Na Ilha.

Allesandra não pareceu convencida. O hïrzg pensou que ela fosse protestar mais, mas a matarh só olhou feio para ele. Jan viu Allesandra dar uma única olhadela para Sergei; o regente deu levemente de ombros sob a armadura. O nariz lançou fagulhas de sol sobre o rosto.

A matarh finalmente inclinou a cabeça e disse — Como quiser, meu hïrzg. — “Meu hïrzg”, não “meu filho”. Jan notou a irritação na expressão. Ela puxou as rédeas com força e começou a caminhar para o sul. Um quarteto da Garde Hïrzg e um téni-guerreiro cercaram a a’hïrzg com atraso.

O starkkapitän prestou continência e falou — Que Cénzi oriente o senhor, meu hïrzg. Eu cuidarei para que a a’hïrzg permaneça a salvo. — Ca’Damont começou a ir embora, mas puxou as rédeas, e disse — Fynn fez uma excelente escolha no senhor. Tome cuidado, hïrzg Jan.

O starkkapitän ca’Damont prestou continência novamente e foi embora, com a maior parte do séquito com ele. Jan olhou em volta para os demais e falou — Vamos encontrar essa areia negra. Embaixador ca’Vliomani, você vai à frente.

Karl levou o esquadrão de Jan ao norte pela Avi, e os soldados pelos quais eles passaram prestaram continência ao hïrzg e a seu estandarte, depois o grupo virou à esquerda em uma rua mais estreita e deixou o exército para trás. O tilintar das armaduras e o baque frio do aço nos cascos dos cavalos eram o barulho mais alto na rua. Não havia mais rostos nas janelas, mais ninguém visível adiante, no caminho curvo. Algumas portas dos prédios pelos quais o esquadrão passou estavam abertas; muitas à força. Havia lixo acumulado na avenida. Eles passaram por vários corpos: gente morta há alguns dias, pela aparência, cadáveres inchados com pernas e braços rígidos, em ângulos estranhos, cheios de vermes e moscas. Jan olhou fixamente para os mortos ao passarem; ele notou que Sergei fez o mesmo, com uma intensidade estranha.

Há pouco tempo, esses corpos tinham sido pessoas vivas, que talvez corressem para os amantes, acompanhassem os filhos, comprassem comida nos mercados ou bebessem nas tavernas, levassem suas vidas em frente. Ele duvidava que essas pessoas esperassem que a vida fosse acabar tão rapidamente e de modo tão definitivo. Duvidava que elas esperassem que fossem virar monumentos acidentais e temporários da guerra.

Jan fungou, incapaz de manter o fedor longe do nariz — ele perguntou-se se Sergei realmente podia sentir o cheiro. O hïrzg segurou firme na espada e enroscou as rédeas com mais força na mão esquerda.

Ao sul, eles ouviram um estrondo repentino como trovão e gritos baixos. Sergei, ao lado de Jan, olhou naquela direção com preocupação, e disse — Eu acho, hïrzg, que a batalha começou. Talvez devêssemos retornar.

Jan balançou a cabeça. — Embaixador, a que distância estamos do lugar? — perguntou.

— Mais dois cruzamentos — respondeu ca’Vliomani. — Não mais do que isso.

— Então nós prosseguiremos.

Sergei franziu os lábios, mas não teve outra reação.

Eles continuaram até chegar a outra viela, ainda menor, onde Karl parou e ficou em pé na sela. Ao olhar a rua estreita, Jan viu uma placa antiga e surrada pendurada em um prédio à direita: havia um cisne mal desenhado em tinta vermelha nas tábuas.

— Ali. — Ca’Vliomani chamou Jan e os demais. — Nós deveríamos...

Ele não foi adiante.

Da esquerda, da direita, várias dezenas de guerreiros pintados vieram para cima deles aos berros. Os próximos grãos da ampulheta viraram um caos de que Jan se lembraria pelo resto da vida.

... um clarão súbito de uma luz ofuscante surgiu à frente do grupo, depois mais um, e Jan percebeu que Karl e Varina lançavam feitiços. Ele ouviu gritos...

... o chevarittai à direita de Jan foi arrancado da sela com o pulo de um ocidental, e o cavalo do homem chocou-se com força na perna do hïrzg. A perna direita ficou presa entre os dois animais, e ele gritou pela pontada de dor, apesar da proteção das grevas. Jan puxou as rédeas do cavalo...

... mas houve mais movimento à direita e por trás no exato momento em que ele fez isso. Jan viu o aço e colocou sua espada diante do corpo da montaria quase tarde demais — mas o suficiente para que o golpe que teria acertado acima das presilhas de seu coxote fosse desviado, mas a lâmina do ocidental cortou fundo a pata traseira de seu cavalo de guerra. O animal relinchou de dor e terror. Jan viu o cavalo arregalar os olhos, sentiu a perna da montaria ceder, ele estava caindo...

... — Ao hïrzg! — Jan ouviu alguém gritar. Ele estava no chão com uma confusão de pernas, tanto equinas quanto humanas, em volta. O hïrzg ficou de pé rapidamente (a perna direita enviou uma pontada de dor espinha acima por causa do abuso). Um ocidental vinha para cima dele, e Jan conseguiu encontrar o cabo da espada, levantar o aço pesado e estocar debaixo do peitoral da estranha armadura do homem. Ele sentiu a lâmina entrar na carne. Ela ficou brevemente presa, Jan a torceu e empurrou, gemeu e sentiu a boca se esgarçar em um ricto de fúria, a espada entrou subitamente. O ocidental, empalado, ainda completou o ataque, mas as braceleiras em volta dos antebraços do hïrzg aguentaram o impacto, embora ele achasse que o braço direito pudesse ter quebrado com o golpe. Jan tentou arrancar a espada do homem, mas não conseguiu, e o peso morto do ocidental quase tirou a arma de sua mão, que ficou inerte e dormente...

... Outro ocidental berrou à sua esquerda, Jan puxou a espada desesperadamente outra vez, embora soubesse que seria tarde demais. Mas outra espada — firenzciana — cortou a garganta do homem e quase decepou sua cabeça. O hïrzg ficou coberto por sangue quente...

... E mãos levantaram Jan. — O senhor está bem, meu hïrzg? — perguntou alguém, e ele concordou com a cabeça. A mão direita formigava, mas parecia ter voltado à vida. Jan fechou os dedos, exercitou-os dentro da manopla, abaixou a mão e soltou a espada com um puxão. Ele virou-se...

... e viu um trio de ocidentais reunidos como escudos em volta de outro guerreiro pintado, este com um pássaro tatuado no crânio raspado e no rosto. Sergei estava ao seu lado, sua espada subia e descia, mas o soldado firenzciano ao lado do regente caiu com a mão decepada no pulso. Jan correu para a brecha, sem pensar em nada a não ser reagir...

... e, de alguma forma, ele passou pelos guardas e ficou em frente ao guerreiro com a marca do pássaro. A armadura do ocidental desviou o primeiro corte de Jan, e o pomo duro de bronze da espada do homem bateu no queixo do hïrzg sob o elmo. Ele cambaleou para trás, com gosto de sangue na boca...

... ao ver o guerreiro-pássaro amparar o ataque da espada de Sergei...

... ele investiu novamente contra o homem, rosnou e contorceu o rosto, e o ocidental não foi capaz de se defender de ambos ao mesmo tempo. Foi a espada de Jan que penetrou, que encontrou a brecha entre os tubos roliços da armadura do homem e entrou no corpo. O ocidental perdeu o fôlego como se estivesse surpreso. O hïrzg ouviu uma voz chamar um nome estranho, “tecuhtli”, quando o homem caiu de joelhos. A espada de Sergei acompanhou a arma de Jan e acertou o sujeito no pescoço e na cabeça. O guerreiro-pássaro desmoronou sobre os paralelepípedos ensanguentados, de cara no chão...

... e tudo acabou, a não ser pelo estrondo da pulsação nos ouvidos.

Jan percebeu que sua respiração estava acelerada, que o coração batia tão furiosamente que ameaçava irromper pelas costelas, que a perna e os braços doíam, que estava completamente coberto por sangue, e que, pelo menos em parte, o sangue era seu. Ele estava curvado e ofegante, com as pernas bem afastadas. Jan sentiu um embrulho no estômago e engoliu em seco para conter a bile ardente, para se forçar a não vomitar. Sentiu a mão de Sergei dar um tapinha em seu ombro sobre a armadura. Ele pestanejou e olhou em volta: havia pelo menos uma dúzia de corpos no chão, alguns com o uniforme preto e prateado de Firenzcia. Uns poucos ainda se debatiam; enquanto o hïrzg observava, os homens da Garde Civile despachavam os ocidentais que ainda estavam vivos. Havia córregos de sangue que fluíam dos corpos e entranhas espalhadas na rua como salsichas obscenas.

Karl e Varina estavam incólumes — os corpos mais próximos aos dois estavam carbonizados e escurecidos; havia um cheiro de carne cozida no ar. O nariz falso de Sergei tinha sumido completamente e a bochecha esquerda estava aberta por um corte; onde ficava o nariz, a pele era sarapintada e as cavidades da cabeça de Sergei estavam escancaradas, o que deixava o rosto com a aparência horripilante de um crânio. Jan foi novamente tomado pela náusea, e dessa vez o mundo pareceu girar um pouco à sua volta. Ele colocou a ponta da espada no chão e apoiou-se pesadamente sobre a arma.

— Tecuhtli! — O hïrzg ouviu o chamado novamente, agora um homem saia do prédio onde estava pendurada a placa do cisne vermelho, não mais do que a uma dezena de passos de onde Jan e os demais estavam. Ele segurava um frasco de vidro na mão direita, cheio de grânulos escuros; na mão esquerda havia uma bengala retorcida. O sujeito parou, como se estivesse assustado pela imagem de carnificina à frente.

— Talis... — Jan ouviu Karl murmurar o nome: uma surpresa, uma maldição, um feitiço. — Areia negra...

O homem fechou a cara, ergueu o frasco com a mão direita e jogou o braço para trás como se fosse lançar o objeto. Jan imaginou como seria morrer e se encontraria o vavatarh Jan e Fynn na morte.

Uma mulher saiu correndo do beco atrás da taverna, um borrão marrom e cinza, tão depressa que ninguém teve tempo de reagir. Assim que Talis levantou a mão, ela agarrou o cabelo do homem e puxou a cabeça para trás. A boca do homem ficou tão escancarada quanto a de um peixe no mercado, e o tom vermelho seguiu o prateado quando a mulher passou uma faca pela garganta de Talis. Uma segunda boca ficou ainda mais escancarada do que a primeira e vomitou sangue. O frasco de vidro caiu da mão do sujeito e quebrou no chão, sem explodir. Ela debruçou-se sobre o corpo — parecia colocar alguma coisa às pressas no olho de Talis —, Jan deu uma boa olhada no rosto da mulher, entre o cabelo emaranhado.

O coração saltou no peito. Ele ficou boquiaberto e murmurou — Elissa?

A jovem ergueu a cabeça e arregalou os olhos ao vê-lo, e embora ela não tenha dito nada, Jan ouviu a mulher respirar fundo. Ela arrancou algo do rosto de Talis; o hïrzg vislumbrou uma pedra branca entre os dedos. A jovem correu para o beco de onde veio. Um dos soldados começou a correr em perseguição.

— Não! — berrou Jan para o homem. — Deixe-a ir!

O soldado parou. Jan ouviu os sussurros ao redor: — A Pedra Branca...

A Pedra Branca...

Não, o hïrzg queria dizer para todos, não era verdade, porque aquela pessoa era Elissa, que Jan amava. Não era verdade porque a Pedra Branca assassinou Fynn, que ele também amava. Não era verdade.

E, de alguma forma impossível, era verdade.

Era verdade.

 

Niente

O NAVIO ESTAVA LOTADO de gente fugindo da cidade, e de pessoas dos outros navios agora emborcados e meio submersos no rio. O convés estava escorregadio com água, sangue e vômito. A água em volta estava cheia de corpos rígidos e inchados — tanto de orientais quanto de tehuantinos. Havia guerreiros e nahualli feridos espalhados por toda parte do convés, gemendo sob a luz do sol que sumia; os tripulantes que ainda eram capazes subiam nos mastros para soltar as velas e apertar os cabos. A âncora, que gemia e protestava, foi içada no lodo do fundo do rio, e o capitão do navio berrava ordens. Devagar, muito devagar na opinião de Niente, a cidade começou a ficar para trás conforme eles eram levados embora pela corrente do rio e pelo vento.

Niente observava da popa do navio de guerra, à direita de Citlali. O corpo do guerreiro supremo, decorado com os traços rubro-negros de cortes cicatrizados feitos por espadas, apoiava-se pesadamente no cabo quebrado de uma lança enquanto ele olhava com raiva para a cidade.

— Você estava certo, nahual — disse Citlali. — Você viu corretamente a visão de Axat.

Niente concordou com a cabeça. Ele ainda estava admirado por estar aqui, por estar vivo, por ter sido poupado, de alguma maneira impossível, por Axat. O nahual poderia ver a terra natal novamente, se as tempestades do Mar Interior permitissem. Teria a esposa nos braços outra vez; abraçaria os filhos e os veria brincar. Niente respirou fundo e estremeceu.

— Eu não fui poderoso o suficiente — falou ele. — Não fui o nahual que deveria ter sido. Se tivesse sido mais firme ao falar com Zolin, se tivesse visto as visões com mais clareza...

— Se tivesse feito isso, nada significativo teria mudado — respondeu Citlali. — Zolin não teria lhe dado ouvidos, nahual, não importa o que você dissesse. Zolin só ouvia os deuses clamarem por vingança. Ele não teria lhe dado ouvidos. Você teria sido afastado como nahual e teria morrido aqui também.

— Então foi tudo um desperdício.

Citlali deu uma risada seca e sem graça. — Um desperdício? Longe disso. Você não tem imaginação, nahual Niente, e não é um guerreiro. Um desperdício? Nenhuma morte em combate é um desperdício. Olhe para a grande cidade dos orientais. — O guerreiro supremo apontou para leste, onde o sol reluzia dourado sobre as torres quebradas e atravessava a fumaça dos incêndios que restavam. — Nós tomamos a cidade deles. Tomamos o coração dos orientais. — Ele estendeu a mão com a palma para cima, como se pegasse alguma coisa. Os dedos fecharam-se lentamente. — Você acha que algum dia eles se esquecerão disso, nahual? Não. Eles tremerão à noite e ficarão aterrorizados diante de um som repentino, pensarão que somos nós de volta. Eles se lembrarão disso de geração em geração. Jamais se sentirão seguros novamente; e eles terão razão.

Citlali cuspiu sobre a amurada para o rio. Havia sangue no cuspe. — Nós pegamos o coração dos orientais e ficaremos com ele. Eu faço essa promessa para Sakal aqui, e você é minha testemunha; que o olho Dele veja minhas palavras e registre. Nós ficaremos com o que tiramos dos orientais. Um tecuhtli estará de novo onde Zolin caiu.

Citlali deu um tapa nas costas de Niente com tanta força que ele cambaleou. — O que você acha disso, nahual?

Niente olhou fixamente para a cidade, que desaparecia no rastro do navio, e falou — Eu olharei na tigela premonitória hoje à noite, tecuhtli Citlali, e direi o que Axat diz.

 

A Pedra Branca

A NOVA VOZ na cabeça da Pedra Branca gritava, lamentava e se revoltava, falava metade na língua de Nessântico e metade em um idioma que ela não entendia de maneira alguma. As outras vozes riam e vibravam.

— Jan, o seu amante... Que visão agradável ele tem de você agora!

— Você acha que ele se casaria com a assassina suja que viu?

— Ele dormiu com uma assassina e agora ela carrega seu filho no ventre.

— Ele vislumbrou a verdade. Espero que você sempre se lembre do horror no rosto de Jan ao ser reconhecida.

Aquela última voz era de Fynn, satisfeito e presunçoso. — Calem-se! — gritou a Pedra Branca para as vozes, mas elas só riram ainda mais alto e abafaram o que ela ouvia com os próprios ouvidos.

Ela havia seguido Talis e o líder ocidental desde a Ilha até o Cisne Vermelho, após verificar que Nico parecia a salvo. Ela estava furiosa, com raiva de Talis — que rompera sua promessa com a Pedra Branca. Os numetodos... eles podiam ser hereges nojentos, mas trataram Nico com gentileza e respeito, especialmente a mulher.

Mas Talis...

Talis traiu Nico, e por causa disso a matarh do menino estava à beira da morte, e a Pedra Branca dissera para Talis qual seria o preço. Dissera e cobraria o pagamento. A Pedra Branca sempre cumpria sua palavra.

Ela seguiu Talis então, quando — do nada — sons de batalha irromperam ao leste e a Pedra Branca viu o líder ocidental agrupar seus homens para emboscar os chevarittai e os soldados firenzcianos. De repente, havia muita luta acontecendo, muito movimento para ela agir. A Pedra Branca ficou preocupada naquele momento, se perguntando se Nico estava realmente a salvo, quis desesperadamente correr até o menino, com medo de que Talis pudesse ter cometido um erro. Mas ela o viu sair de mansinho do quarto onde havia entrado e depois correr para a rua. A Pedra Branca seguiu Talis. Ela assistiu ao confronto e viu a chance. Passou a faca na garganta dele e sentiu Talis morrer ao deixar cair o frasco com o pó negro. E ao deitá-lo no chão e colocar a pedra no olho do homem, a Pedra Branca o viu de relance.

Jan.

O choque foi palpável. Ela sentiu com tanta intensidade como se o coração tivesse sido posto diretamente sobre uma camada escondida de brasas incandescentes. Jan: ele ficou parado ali, e ela testemunhou o lento reconhecimento de seu rosto. A expressão de Jan a assustou. Era permeada de choque e carinho, de saudade e horror. Vê-lo foi horrível e maravilhoso ao mesmo tempo. Ela quis correr até Jan, quis pegar sua mão e colocar na barriga inchada e sussurrar: aqui, querido. Esta é a vida que criamos juntos. Isso é o que o nosso amor fez. Ela também quis correr, esconder o rosto e fingir que essa revelação nunca aconteceu.

O segundo impulso foi mais forte.

Ela pegou a pedra branca do olho de Talis e fugiu, com vontade de que Jan a seguisse e com medo de que ele realmente fizesse isso.

A Pedra Branca não parou até chegar à Pontica Kralji. Ali não havia homens estranhos da cor de bronze; nenhum que estivesse vivo, de qualquer forma, embora o chão estivesse cheio de corpos ocidentais. Ela viu soldados usando os tons preto e prateado de Firenzcia por toda parte nas ruas — o que fez Fynn se manifestar com empolgação dentro de sua cabeça —, cruzou a Pontica cuidadosamente e escondeu-se depressa na Ilha. Isso foi fácil; havia tantas paredes desmoronadas, tantos prédios queimados. Ela foi até a cabana do jardineiro no terreno do palácio para onde Nico e sua matarh tinham sido levados, onde o curandeiro ocidental trabalhou no corpo ferido de Serafina.

O curandeiro e todos os soldados ocidentais tinham ido embora, mas os medos da Pedra Branca passaram quando viu que Nico ainda estava ali, segurando a mão da matarh, ajoelhado ao lado da mesa onde ela estava deitada — devia ter sido uma das mesas de jantar do palácio antigamente, ainda coberta por damascos rendados e elegantes, agora sujos e manchados de sangue. Ela notou o movimento da respiração lenta no peito de Serafina, mas os olhos continuavam fechados e ela parecia sem reação.

— Nico — falou a Pedra Branca. O menino levou um susto e apertou com mais força a mão da matarh.

— Ah — disse ele um momento depois. O rosto ficou um pouquinho alegre. Nico fungou e passou a mão pelo nariz. — Elle. É você.

A Pedra Branca confirmou com um aceno e foi até o menino. Ela segurou com as mãos de Nico e a de Serafina. Viu que ele olhava fixamente para o sangue que manchava a pele da matarh. — Precisamos ir embora, Nico.

— Eu não posso abandonar a matarh. Talis voltará em breve.

A Pedra Branca fez que não com a cabeça. Ela apertou com força a mão dele. A pele era quente, tão quente, e ela sentiu a criança dentro dela dar um pulo com o toque; o movimento da vida, o despertar. Ela levou um ligeiro susto com a sensação. — Não. Infelizmente, Talis está morto, Nico.

Ela percebeu as lágrimas surgirem nos olhos do menino e o lábio inferior tremer. Depois ele fungou de novo e piscou. — Isso é verdade?

Ela concordou com a cabeça. — É verdade, Nico. Sinto muitíssimo.

O menino chorava plenamente agora, as palavras saíram entre os soluços. — Mas minha matarh... Eu não posso... Eles acabaram de abandoná-la... Ela está dormindo e eu... não consigo acordá-la...

— Sua matarh gostaria que você fosse comigo. Olhe para ela, Nico. Sua matarh ama muito você, eu tenho certeza que sim, mas não sei se ela acordará um dia, e a cidade está cheia de soldados e morte. Ela gostaria que você fosse comigo porque posso mantê-lo a salvo. Eu manterei você a salvo.

— Mas eu fiz isso com ela — disse Nico. — A culpa é minha. Quero que ela saiba que eu sinto muito.

A Pedra Branca apertou a mão de Nico em volta da mão da matarh. — Ela sabe. Nico, temos que correr.

Ela tirou a mão do menino de Serafina, abriu os dedos com delicadeza. Ele soltou a matarh com hesitação, mas sem reclamar. — Agora dê um beijo — falou a Pedra Branca. — Ela sentirá e saberá.

Nico ficou de pé, inclinou-se sobre o corpo da matarh e deu um beijo na bochecha. Ela colocou a mão de Serafina, que pendia para o lado, sobre a mesa e deu um tapinha. Nico olhou para trás, então, com os olhos cheios de lágrimas, que não caíam.

— É o momento — disse a Pedra Branca.

Juntos, de mãos dadas, eles foram embora da cidade em chamas e ruínas.

 

Allesandra ca’Vörl

— AQUI ESTÁ A SENHORA, MATARH. Ele é todo seu. Espero que fique feliz.

As palavras de Jan saíram como um banho de água escaldante. Elas queimaram e cauterizaram Allesandra, foram ditas com frieza e desdém espantosos e cruéis. O hïrzg fez um gesto grandioso e debochado na direção do Trono do Sol. Ela olhou fixamente para a enorme peça de cristal entalhado, que estava estranhamente fora do lugar, no meio das ruínas do Velho Templo. O trono foi rachado e mal reformado; estava coberto por um pano com estranhos desenhos geométricos, as ruínas do domo rachado e da claraboia estavam espalhadas sobre o piso quebrado de cerâmica, e por toda parte no salão havia os restos de um banquete qualquer. Ratos espreitavam os cantos do cômodo, e o ar fedia à fumaça e à carne podre. Perto dos fundos havia um corpo, coberto às pressas por uma tapeçaria.

Allesandra sabia de quem era o cadáver encoberto: de Sigourney, cuja cabeça separada do corpo estava enfiada em uma lança perto do trono.

O regente e os dois numetodos estavam recortados pela luz do sol nas portas abertas do templo, longe demais para ouvir a conversa de Jan com ela. O starkkapitän ca’Damont dava ordens na praça do templo e despachava patrulhas para garantir que todas as tropas ocidentais estivessem fora da cidade e para impedir que os sobreviventes saqueassem.

Allesandra ouviu o arrastar de passos nas portas do templo; ao olhar para trás, viu o archigos Semini pisar com cuidado sobre os destroços no chão. Jan também viu o homem e disse — Ah, archigos Semini. Estou contente que esteja aqui, uma vez que isso também é seu. Eu lhe dou Nessântico. Você não ficará mais em Brezno.

— Meu hïrzg? — perguntou Semini ao olhar com preocupação de Allesandra para Jan. — Eu pensei que o archigos talvez pudesse ficar em Brezno agora, dada a destruição daqui. Eu poderia designar um a’téni para Nessântico...

— Ah, eu concordo — falou Jan, e o sorriso provocou um arrepio em Allesandra. Era o sorriso sério e indiferente que o vatarh de Allesandra usava quando estava furioso. Ela o tinha visto muitas vezes na infância e na idade adulta, quando ele finalmente a trouxera de volta para Firenzcia. Agora, a expressão de desdém e deboche voltaram. Fuligem e sangue sujavam o rosto de Jan, e o braço e a perna direitos estavam bem enfaixados. Ele mancava e não parecia capaz de erguer o braço da espada. Allesandra perguntou-se o que o filho tinha visto, o que sentia. Ela queria envolvê-lo nos braços e confortá-lo como fazia quando Jan era criança, mas o hïrzg estava a um cauteloso passo de distância, como se temesse exatamente isso. — Veja bem, haverá um archigos em Brezno. Quanto a ter um archigos em Nessântico, bem... — Jan deu de ombros friamente. — A escolha é sua. Você pode querer reivindicar o título e mantê-lo por um tempo, embora você sempre tenha dito que queria uma fé concénziana reunificada. Ou talvez o archigos em Brezno deixe você ser o a’téni aqui em Nessântico, apesar de eu aconselhar o archigos contra isso.

— Hïrzg? — balbuciou ca’Cellibrecca. O rosto ficou no tom de branco dos fios que salpicavam a barba e o cabelo escuros; o contraste foi forte. — Eu não entendo.

— Talvez a matarh explique para você, uma vez que agora esta cidade é dela — disse Jan.

Allesandra olhou fixamente para o trono. Ela sentia-se morta, entorpecida. Se alguém a cortasse, pensou, ela não sentiria nada, nem mesmo o calor do sangue na pele. — Meu filho me deu Nessântico, mas me informou que Firenzcia não se reunificará com os Domínios — falou Allesandra para Semini com uma voz tão morta quanto as emoções.

— Considere isso como meu presente de casamento, matarh — falou Jan. — Pelo casamento que eu nunca tive, com a mulher que a senhora mandou para longe de mim.

— Eu estava protegendo você, Jan — disse Allesandra, embora não houvesse energia na reclamação. — Elissa era uma fraude. Uma impostora.

— Eu sei. Ela foi contratada para matar Fynn.

— O quê? — Isso fez com que Allesandra erguesse a cabeça e provocou uma breve onda de fúria. Ela virou-se para encará-lo. — O que você está dizendo? A Pedra Branca matou Fynn.

— Matou, sim — falou Jan com o mesmo sorriso irritante. — Deixe-me dizer uma coisa que a senhora talvez não saiba, matarh, embora devesse saber: Elissa era a Pedra Branca. Ela me usou para se aproximar de Fynn.

— Isso não é possível — disse Allesandra. Não podia ser; não era possível. A voz que ela ouviu, a mulher intermediária; não, não era possível, e, no entanto... Allesandra lembrou-se da voz, mais aguda do que seria esperado de um homem. E ela nunca tinha visto a Pedra Branca. Apenas presumiu...

— Acredite no que quiser — dizia Jan. — Eu realmente não me importo. — Ele gesticulou novamente para o trono. — Tome seu novo lugar, matarh. Não se acanhe. A senhora esperou por tanto tempo, afinal, e o regente ca’Rudka renunciou a qualquer pretensão ao título. A senhora pode mandar Semini abençoá-la. Talvez os ca’ e co’ voltem à cidade agora, para que a senhora possa lhes dizer que há uma nova kraljica.

Jan começou a se afastar, na direção das portas abertas. Ela deu um passo e pegou o braço ferido. — Jan. Filho...

Ele soltou o braço, fez uma careta ao sentir a dor evidente, e aquilo foi uma agonia maior para Allesandra do que qualquer golpe de espada. — Sente-se, matarh. Assuma seu Trono do Sol. A senhora possui o que sempre quis. Aproveite o presente que eu lhe dei.

Dito isso, ele caminhou na direção de ca’Rudka e dos demais. Allesandra observou o filho sair, sentiu vontade de chamá-lo, de impedi-lo de ir embora, de parar o sofrimento.

Ela não fez nada. Observou Jan chegar à passagem iluminada, ouviu sua risada ao dar um tapinha nas costas de ca’Rudka com a mão que não estava machucada. Os quatro foram embora e a luz do sol desabou sobre deles.

Semini olhava para o céu, onde o domo de Brunelli esteve, e respirava alto pelo nariz. Allesandra andou lentamente até o Trono do Sol.

Ela sentou-se.

Nas profundezas do cristal espesso, não havia luz. Nenhuma reação. O trono permaneceu melancolicamente escuro.

1. Dupla mão é um termo de cavalaria para o oficial que tanto pode comandar um esquadrão quanto um batalhão. Também é o caso do soldado que luta com um mosquete e um sabre ao mesmo tempo, que não é aplicável aqui. (N. do T.)


Epílogo: Nessântico

ELA ESTAVA ARRASADA. Ela estava arruinada.

Ela foi devastada pelo fogo e pela magia; foi cortada pelo aço. Foi saqueada e pilhada. Os maiores tesouros danificados ou perdidos. Os prédios que foram sua coroa eram ruínas desmoronadas e pilhas de pedras escurecidas. O colar de joias da Avi a’Parete não reluzia mais à noite. Agora só havia as estrelas no céu, que brilhavam e debochavam da própria escuridão da cidade.

Metade da população estava morta ou havia fugido. Ela sentiu, pela primeira vez em muitos séculos, a marcha de soldados conquistadores em suas ruas: não sentiu uma vez, mas duas. Havia uma kraljica no Trono do Sol, mas ela olhava para um império que murchou e encolheu.

Não havia como negar a magreza da face refletida no espelho sujo do A’Sele: o rosto da cidade era o rosto de uma velha, um rosto encarquilhado, um rosto com cicatrizes, feridas abertas e dor. Não havia beleza ali, nenhuma glória, nenhum deslumbramento.

Tudo isso foi embora, como se nunca tivesse existido.

Quando vieram as chuvas, como era frequente naquele outono, foi como se o mundo inteiro chorasse por ela: a cidade, a mulher. As tempestades podiam lavar a fuligem e extinguir as chamas, mas não podiam curar. Elas podiam refrescar e aplacar, mas não podiam restaurar. Levaram embora os corpos, o lixo e a terra que entupia o rio, mas os trovões não conseguiam destruir as memórias.

As memórias permaneceriam.

Permaneceriam por muito, muito tempo...

Karl ca’Vliomani

ULY NÃO ESTAVA NO MERCADO DO VELHO DISTRITO, embora tivesse estado. As pessoas lembravam-se do estrangeiro tatuado e com cicatrizes, mas disseram para Karl que o homem empacotou as mercadorias e limpou a barraca há apenas dois dias, no mesmo dia em que o kraljiki Audric tinha sido assassinado. Não, nenhum dos proprietários das barracas próximas sabia onde Uly tinha ido, mas (disseram) havia algumas pessoas, que andaram comprando sua poção especial de fertilidade, que poderiam saber.

Karl esperava confrontar esse Uly e arrancar a verdade sobre o que aconteceu com Ana imediatamente. Um novo fogo ardia em seu estômago, mas o alívio e o desfecho não foram imediatos.

Eles levaram dias.

Dias que prejudicaram a recente intimidade que Karl tinha com Varina. O fantasma de Ana pairava entre os dois, ressuscitado pela presença de Talis e sua história, e Varina recuou diante do espectro que Karl não conseguia atravessar. Ela ainda pegava na mão de Karl ou passava os dedos no rosto dele, mas agora havia tristeza no toque, como se Varina fizesse carinho em uma memória. Karl beijava Varina, mas, embora os lábios dela fossem macios e quentes e ele quisesse ceder, o beijo era muito efêmero e distante, como se Karl beijasse Varina através de um véu invisível.

Dias em que ele considerava se devia chamar os numetodos de volta para a cidade e em que decidiu que ainda era perigoso demais. Mika, torcia Karl, estava com a família em Sforzia; deixe que fique lá, deixe que o resto dos numetodos dispersados permaneçam escondidos. Deixe que a Casa dos Numetodos continue vazia e às escuras.

Dias em que as notícias pareciam ficar cada vez piores: os ferimentos terríveis da kraljica Sigourney, a invasão e o saque à Karnor, um exército oriental no solo de Nessântico e seus navios nas águas do A’Sele, a convocação da Garde Civile, os “esquadrões de recrutamento” que alistavam homens, muitas vezes (de acordo com os rumores) querendo ou não servir. Karl era velho o bastante para não atrair muito interesse, mas Talis, não. Ele ficava cada vez mais confinado em casa e tinha que tomar cuidado quando se arriscava a sair para evitar os esquadrões. Karl tinha as próprias dificuldades — seu rosto certamente era conhecido por muitos gardai da Garde Civile, da Garde Kralji e entre os ténis, e ele tinha que tomar cuidado e se disfarçar antes de sair, mudar o sotaque característico de Paeti e não deixar ninguém olhar com muita atenção para o seu rosto.

Esses foram dias em que Karl descobriu, a contragosto, que Talis era mais a pessoa que Serafina dizia que era do que a pessoa que Karl queria que ele fosse. O embaixador ainda não confiava completamente no homem, e dormiu muito pouco desde aquela primeira noite, pois Talis, Serafina e Nico dormiam, juntos, no mesmo quarto que ele e Varina. Karl ficou de olho em Talis, especialmente na manhã seguinte, quando ele limpou a tigela de latão na qual eles acenderam a areia negra e — como Karl lembrou-se que Mahri fazia — encheu com água limpa e polvilhou com outro pó, mais claro. Talis então abriu o Segundo Mundo com um feitiço, e uma névoa esmeralda encheu a tigela. Uma luz agitada pulsou no rosto do homem enquanto ele entoava e olhava fixamente para as profundezas da tigela.

Na luz verde, Karl viu as rugas finas no rosto do homem, que quase ficavam mais profundas enquanto ele observava. Talis já parecia mais velho do que Serafina disse que ele era; Karl achava que sabia o motivo agora: o método de magia dos ocidentais custava caro para o usuário.

— Mahri costumava dizer que via o futuro aí — falou Karl depois, quando Talis, exausto e andando como um velho, jogou a água na jardineira da janela da sala. — Ele não parecia ser muito bom nisso, se não viu a própria morte.

Talis secou a tigela cuidadosamente com a borda da bashta, sem olhar para Karl. — O que vemos na tigela premonitória não é o futuro, mas sombras de possibilidade. Vemos probabilidades e chances. Axat sugere o que pode acontecer se seguirmos um determinado caminho, mas nunca há uma garantia. — O homem guardou a tigela novamente na bolsa que sempre carregava e deu um sorriso ligeiro para Karl. — Todos nós podemos mudar nosso futuro, se formos fortes e persistentes o suficiente.

Karl torceu o nariz para a afirmação. Talis foi então até Nico, e os dois se engalfinharam, rindo, enquanto Serafina observava com um sorriso, e o amor entre os três ficou palpável. Ele ouviu Varina entrar na sala descalça, com olheiras de sono. Ela também observava, e Karl não foi capaz de decifrar o que viu no rosto de Varina. Ela deve ter sentido o olhar porque se virou para o embaixador, deu um sorriso triste e depois virou o rosto novamente. Varina cruzou os braços sobre o peito e abraçou a si mesma, e não Karl.

Todo dia, Karl ia ao mercado do Velho Distrito, geralmente com Varina, na esperança de encontrar aqueles elusivos clientes de Uly e fazer perguntas. Após vários dias infrutíferos, tornou-se rotina; os dois às vezes levavam Nico junto, após prometerem à Serafina que, caso encontrassem Uly, eles não o confrontariam.

Foram quase duas semanas, quando aconteceu.

— Ah, sim, a mulher que eu falei para você acabou de passar aqui — disse o fazendeiro ao colocar uma caixa de cogumelos no lugar. — Ela usava uma tashta amarela com um dragão bordado na frente. Provavelmente ainda está por aí; ela disse que estava atrás de peixe. — O homem apontou para a esquerda. — Você pode checar na barraca do Ari, logo ali. Ele acabou de trazer umas trutas do Vaghian.

Karl ouviu Varina respirar fundo, viu quando segurou Nico com mais força. Ele acenou com a cabeça, jogou uma folia para o homem e avançou pelas multidões que passeavam lentamente pelas vielas sujas do mercado; quase todos eram mulheres e homens mais velhos. Eles sentiram o cheiro da barraca do pescador antes de vê-la, e Karl vislumbrou uma tashta amarela ali. — Karl? — disse Varina.

— Eu apenas perguntarei a ela. Se a mulher souber onde Uly está, então levaremos Nico para casa primeiro. — Ele deu um tapinha na cabeça do menino. — Não podemos deixar sua matarh chateada conosco, afinal — falou Karl para Nico.

Ele deixou os dois lá e aproximou-se da barraca. A mulher virou-se quando Ari mostrou um peixe com escamas da cor do arco-íris, e Karl viu a cabeça do dragão, de cuja boca saía uma fumaça roxa. O embaixador avançou até estar ao lado dela e disse — Com licença, vajica, mas se puder responder a uma pergunta, eu compro o peixe para a senhora. — Antes que a mulher pudesse responder, Karl contou a história que os dois haviam ensaiado e apontou de vez em quando para Varina e Nico: que ele tinha acabado de casar, que a esposa tinha um filho do antigo marido e agora os dois queriam um filho próprio, mas por serem mais velhos agora, os dois não conseguiam conceber; que ele ouviu falar que havia um estrangeiro chamado Uly, que antigamente tinha uma barraca aqui no mercado onde vendia poções exatamente para aquele problema, e que um dos vendedores mencionou que ela podia saber onde esse tal de Uly estaria. A mulher olhou de Karl para Varina e Nico.

Ela realmente sabia. — Na verdade, acabei de falar com ele. No Cisne Vermelho, no Beco do Sino, pertinho daqui. Ele tinha acabado de pedir uma cerveja, então imagino que ainda esteja lá.

Karl agradeceu à mulher, pagou o pescador pela truta sem pechinchar, e voltou para Varina e Nico. Ele agachou-se em frente ao menino e disse — Varina levará você para casa agora, Nico. — Karl não ousou erguer os olhos para ela, pois podia imaginar os pensamentos refletidos pelo rosto de Varina. — Eu ficarei aqui um pouquinho mais.

Nico concordou com a cabeça, e Karl abraçou o menino. — Vão agora, vocês dois — falou ao se levantar.

— Karl, você prometeu... — disse Varina.

— Eu não farei nada — falou Karl, e perguntou-se se isso era verdade. Ele contou o que a mulher disse. — Eu sei onde ele está neste momento. Só vou segui-lo. Descobrirei onde ele vive. Aí podemos descobrir como abordá-lo.

Karl notou a desconfiança no jeito que Varina mordeu o lábio inferior, no olhar vazio, no lento balançar da cabeça. Ela agarrou Nico com força. — Você promete?

— Prometo.

Com a cabeça inclinada para o lado, Varina encarou Karl e disse, finalmente — Ande, Nico. Vamos.

Karl abaixou-se e abraçou Nico novamente e depois Varina, ao se levantar. Foi como abraçar uma das colunas do Templo do Archigos. Ele ficou observando os dois até desaparecerem na multidão do mercado.

O Beco do Sino era uma viela suja a alguns quarteirões da Avi a’Parete, com apenas alguns passos de largura e apinhada de lojas de propósitos indeterminados, acima delas havia apartamentos esquálidos às escuras. O Cisne Vermelho ficava na esquina onde a viela cruzava uma rua maior, que levava à Avi, e tinha um placa com tinta descascando. Karl entrou e parou para os olhos se ajustarem à penumbra do interior. A única luz lá dentro vinha das nesgas das persianas e das velas que pingavam em um único lustre e em cima de cada mesa. Assim que Karl conseguiu enxergar na luz mortiça, foi fácil encontrar Uly: um homem de pele acobreada, com cicatrizes e tatuagens no rosto e nos braços.

Karl foi ao bar e pediu uma caneca de cerveja ao garçom com cara de poucos amigos, de costas para Uly. O interior ficou subitamente claro quando outra pessoa — uma mulher — entrou no bar, e Karl protegeu os olhos contra a luz.

Ele tinha a intenção de fazer como dissera para Varina: encontrar Uly e seguir o homem até descobrir onde morava. Mas Karl observou o sujeito beber a cerveja, e imagens do corpo de Ana, esparramado e destruído, surgiram em sua mente, de maneira que ele mal conseguia pensar, e uma raiva cresceu lentamente no estômago, subiu ao peito até dar um abraço de veias saltadas nos pulmões e coração.

Karl tomou meia cerveja em um só gole. Ele pegou a caneca e foi até a mesa do ocidental.

— Você é Uly? — perguntou Karl. Ele sentou-se em frente ao sujeito, que o observava com atenção, como se estivesse pronto para lutar. Os músculos pulsaram nos braços fortes de Uly, e uma mão se moveu para debaixo da mesa.

— E se eu for? — perguntou o homem. A voz tinha o mesmo sotaque de Talis, o mesmo de Mahri, embora fosse mais grave e acentuado, e Karl teve que escutar com atenção para entender as palavras.

— Eu soube que você faz poções. Para fertilidade.

O homem empinou um pouco o queixo e pareceu relaxar. A mão direita voltou à mesa arranhada e com marcas de canecas de cerveja. — Ah, isso. Eu faço sim. Você precisa de algo assim?

Karl deu de ombros. — Não de algo assim, mas talvez... de outra coisa. Eu tenho um amigo; o nome dele é Talis. Ele me disse que você pode fornecer uma coisa não para criar vida, mas para acabar com ela. Rapidamente.

Karl observou o rosto do homem ao falar. À menção de Talis, uma sobrancelha ergueu-se levemente. Uly levantou um canto da boca, como se achasse graça. Ele esfregou o crânio com marcas e tatuagens negras. As mãos eram grandes, a pele áspera, e havia uma cicatriz comprida no dorso: as mãos de um comerciante. Ou de um soldado. — Uma coisa assim deveria ser ilegal, vajiki. Mesmo que pudesse ser feita.

— Estou disposto a pagar bem por isso. Muito bem.

Ele concordou devagar com a cabeça. Uly levantou a caneca e bebeu tudo em um só gole, depois secou a boca com as costas da mão e disse — Está um belo dia. Vamos dar uma volta e conversar.

O homem levantou-se e Karl ficou de pé junto com ele. O resto do corpo atarracado de Uly era tão musculoso quanto os braços. Quando os dois chegaram à porta da taverna, uma mulher que corria para lá esbarrou em Karl e quase o derrubou sobre Uly. — Perdão, vajiki! — disse ela. O rosto estava sujo de terra, havia ranho seco em volta do nariz, e o hálito era desagradável. A mulher pegou a mão de Karl e colocou algo em sua palma. — Para dar sorte. O senhor tem que guardar isso, vai trazer boa sorte, vajiki. Guarde direitinho. — Ela fechou os dedos de Karl em volta do objeto, soltou o embaixador e saiu correndo pela porta. Karl olhou para o que a mulher colocara em sua mão: um seixo pequeno e claro. Uly riu.

— A mulher deve ter teia de aranha na cabeça — falou ele. — Vamos, vajiki.

Karl colocou o seixo no bolso da bashta e seguiu Uly pelo Beco do Sino, depois cruzaram a rua maior e entraram em outro beco em curva. Eles seguiam para o norte, na direção do Parque do Templo. — E qual é o seu nome, vajiki, uma vez que sabe o meu? — perguntou Uly enquanto os dois andavam.

— Andus. É tudo o que você precisa saber.

— Ah, somos cautelosos, não, vajiki Andus? Isso é bom. Isso é bom. E quem você quer que morra?

— Isso é da minha conta, não da sua.

— Discordo complemente — falou Uly —, pois a Garde Kralji viria atrás de mim e de você também, e eu não tenho interesse em me hospedar na Bastida. Eu exijo que me diga um nome, ou não faremos negócio.

— É o archigos. Eu sei que você já tem alguma experiência com isso.

Karl observou o homem, com um feitiço pronto para ser lançado a uma palavra e um gesto. Uly hesitou apenas de leve, mal perdeu o passo, mas, tirando isso, não houve resposta alguma. Ele continuou caminhando, e Karl teve que se apressar para alcançá-lo. A expressão do sujeito não se alterou, nem a atitude. Karl esperou que ele dissesse alguma coisa, a mão ao lado do corpo. Os dois passaram por um beco transversal...

... e Uly avançou contra Karl, uma mão grande prendeu a de Karl quando ele tentou erguê-la, e a outra mão tapou a boca do embaixador e bateu com a cabeça dele contra o alicerce de pedra de um prédio. O impacto fez Karl perder o fôlego e provocou fisgadas na cabeça. O joelho de Uly golpeou o estômago do embaixador. Karl sentiu ânsia de vômito e percebeu que estava caindo. Algo — um joelho, um punho, ele não sabia dizer o que — bateu na sua cabeça. Ele não conseguia enxergar, mal era capaz de respirar. Sentiu os paralelepípedos frios debaixo do corpo e a água imunda empoçada ali.

— Você é um tolo, embaixador ca’Vliomani — sibilou Uly. — Achou que eu não lhe reconheceria?

Você morrerá. Agora. Foi uma conclusão sombria.

Ele ouviu botas nos paralelepípedos; Karl percebeu que era um único par de passos e esperou que o golpe final viesse. O embaixador ouviu um grunhido e um grito de dor, e algo pesado caiu no chão, ao lado dele. Ele sentiu uma mão levantar sua cabeça e amarrar um capuz sobre ela para que não pudesse enxergar. O pano cheirava a suor velho. — Fique quieto e não será ferido — disse uma voz, que não era a de Uly. Alguém com um pouco de sotaque não identificável, nem grave ou agudo, o que tornava difícil sequer determinar o gênero da pessoa. — Tire o capuz e você morre. — Algo pontiagudo foi pressionado contra o pescoço, e Karl gemeu com a expectativa do golpe cortante. — Acene com a cabeça se entendeu.

Karl concordou, e a lâmina da faca desapareceu. Ele ouviu mais um barulho, parecido com um tapa e um gemido que só podia ser de Uly. — Responda se você quiser viver — disse a voz, embora não se dirigisse a Karl. — Você matou a archigos Ana, não foi? Você preparou a areia negra.

— Não. — Uly começou a dizer, mas a voz foi interrompida por um gemido de dor. — Tudo bem, tudo bem. Sim, eu ajudei a matá-la. Com a areia negra. Mas a ideia não foi minha. Eu só dei a substância para o homem e contei como usá-la. Não sabia o que ele pretendia fazer com ela. Ai! Droga, isso é verdade! — Lá se foi a preferência de Uly por morrer em vez de falar, pensou Karl. Talvez Talis não conhecesse seus guerreiros tão bem, afinal.

— Quem?

— Eu não sei... Ai! Por Axat! Pare! Ele me disse que o nome era Gairdi ci’Tomisi, mas não sei se o nome é verdadeiro ou não. Ele pagou bem, e isso era tudo que eu sabia ou que me importava!

Houve mais sons baixos e um longo lamento que só podia ter vindo de Uly. O homem ofegava agora, choramingava de dor, o fôlego era rápido e desesperado. — Por favor. Por favor, pare.

— Então fale mais a respeito deste homem — disse a outra voz. — Rápido.

— Parecia um ca’ ou co’, pelo jeito de falar. Firenzciano, talvez, pelo sotaque. Disse que as “ordens” vieram de Brezno, em todo caso. É tudo que sei. Eu preparei a substância, dei para o homem, e ele foi embora. Fiquei tão surpreso quanto qualquer um quando a archigos foi morta.

Karl queria desesperadamente arrancar o capuz do rosto para ver o que acontecia, mas não ousou. Houve mais sons: uma briga animada, um baque suave e depois um farfalhar. Alguém puxou sua bashta e remexeu o bolso. Ele pensou ter ouvido passos leves, mas, com a cabeça latejando e apitando, os sons eram tênues demais para Karl ter certeza.

Depois, por vários instantes, não houve absolutamente nada, apenas os sons distantes da cidade. — Alô? — sussurrou Karl. Não houve resposta. Ele levou as mãos ao pano amarrado em volta da cabeça e arrancou do rosto. O que viu fez com que o embaixador recuasse, horrorizado.

Karl olhou fixamente para o corpo de Uly nos paralelepípedos, com a garganta cortada e sangue espalhado pelas roupas. O olho direito estava aberto para o céu, mas sobre o esquerdo havia a pedra que a mulher deu para ele na taverna.

 

Allesandra ca’Vörl

SEMINI TENTOU ENTRAR EM CONTATO COM ELA por vários dias. Allesandra deixou as mensagens do archigos em cima da mesa. Quando ele mandou seu o’téni falar diretamente com ela, o homem foi informado pelos assistentes muito bem instruídos da a’hïrzg que Allesandra estava em reuniões e não podia ser incomodada. Quando o próprio Semini saiu do templo para vê-la, ela fez questão de sair da cidade com Jan para ver a reunião das tropas.

Quando Semini — sob a desculpa de trabalhar com os ténis-guerreiros que também estavam sendo reunidos — veio aos campos ao sul de Brezno, não houve, finalmente, jeito de evitá-lo.

Semini era um mancha escura e verde que contrastava com a brancura banhada pelo sol da lona da tenda. Do lado de fora, o acampamento militar agitava-se de manhã: com o clamor do metal conforme os ferreiros trabalhavam nas armas, armaduras e uniformes; o chamado de soldados; as ordens aos berros dos offiziers; o burburinho geral de movimentação; o som de pés que marchavam em uníssono enquanto os esquadrões treinavam. Cheiros entraram com a brisa quando Semini deixou a aba da tenda bater ao entrar: o cozinheiro e as fogueiras, o odor de lama revirada por milhares de pés, e o leve fedor das valas que serviam como latrinas.

Allesandra conversava com Sergei ca’Rudka, sentada atrás da mesa de campanha que um dia foi de seu vatarh, com painéis frontais pintados com imagens da famosas batalhas do hïrzg Jan ca’Silanta na Magyaria Oriental. — ... disse ao hïrzg e ao starkkapitän que esperem resistência assim que cruzarmos a fronteira — dizia Sergei, que parou e virou-se quando o olhar de Allesandra passou por cima de seus ombros na direção de Semini. — Ah, archigos. Talvez eu deva ir embora.

— Volte depois da Segunda Chamada e nós continuaremos a nossa conversa, regente — falou Allesandra. Sergei fez uma mesura, esfregou a lateral reluzente do nariz, e saiu da tenda dando um aceno de cabeça e o sinal de Cénzi para o archigos.

Semini parecia pouco à vontade, como se esperasse que ela se levantasse e o abraçasse assim que a aba da tenda se fechasse quando ca’Rudka saiu. Após um momento, ele finalmente fez o sinal de Cénzi para Allesandra e trocou o pé de apoio ao ficar parado diante da mesa como um offizier convocado por ela. — Allesandra. — Semini começou a dizer, e ela fez uma cara feia.

— Qualquer pessoa pode estar ouvindo pela lona da tenda. Nós estamos em público, archigos Semini, e eu espero que o senhor se dirija a mim de maneira apropriada.

Allesandra viu que ele apertou os olhos, irritado com a repreensão. Ele franziu os lábios sob a cobertura do bigode. — A’hïrzg ca’Vörl — falou Semini com lentidão proposital —, peço desculpas. — Depois, ele abaixou o tom em um quase sussurro, baixo e grave. — Espero que nós ainda possamos falar abertamente. Francesca, ela...

Allesandra balançou a cabeça de leve; ao movimento, Semini parou. — Eu falei com sua esposa — disse ela, com ênfase especial. — Naquela noite. Tivemos uma conversa ótima. Francesca parece acreditar que você teve algo a ver com a morte da archigos Ana.

Ela realmente não esperava que Semini reagisse, coisa que ele não fez. O archigos olhou para a a’hïrzg com uma expressão neutra e falou — Eu sei que a senhora tem algum carinho pela falsa archigos. Dado o que aconteceu com a senhora, eu compreendo. Mas Ana ca’Seranta era minha inimiga. Eu não sofri com seu falecimento, nem um pouquinho, e se minha alegria com a morte dela lhe ofende, a’hïrzg, então tenho que aceitar isso. Eu rezei, muitas vezes, que Cénzi levasse a alma dela, porque a mulher acreditava em coisas erradas, e foi em grande parte responsável pelo rompimento da Fé e pela cisão dos Domínios.

— Ela também é a razão de eu ser quem sou. Sem ela... — Allesandra deu de ombros. — Eu poderia não estar aqui. Jan poderia nunca ter nascido.

— E, no mínimo, por causa disso, eu rezei por ela quando morreu. — Semini deu um passo em direção à mesa de campanha, e parou. — Allesandra, o que aconteceu entre nós? É óbvio que você está me evitando. Por quê?

— Quando pretendia me contar que foi você que mandou matar Ana? Ou não pretendia me contar?

— Allesandra...

— Se não foi você, então negue, Semini. Diga-me agora que não foi você.

Allesandra não tinha certeza se queria que ele respondesse. Nos dias que se seguiram, ela tinha — através da equipe palaciana, através do comandante da Garde Brezno — realizado sua própria investigação. O nome de Gairdi ci’Tomisi havia surgido, e ela mandou o comandante co’Göttering levar o mercador, que por acaso estava em Brezno, para a Bastida a fim de ser interrogado. Ci’Tomisi, sob a persuasão menos do que gentil da Bastida, entregou toda a história: que servia Firenzcia e o archigos ca’Cellibrecca como agente duplo; que conhecia um ocidental em Nessântico que vendia poções, que o homem contara a ele a respeito de um poderoso preparado ocidental, que o sujeito havia demonstrado como essa “areia negra” funcionava e que ci’Tomisi falou para seus contatos no Templo de Brezno sobre seu poder, e que recebeu uma mensagem de volta (do “archigos em pessoa”) que — se ele fosse capaz — uma demonstração contra a Fé de Nessântico seria “interessante e muito bem recompensada”; que ele usou os contatos no Templo do Archigos em Nessântico para entrar à noite; que colocou a areia negra no Alto Púlpito e uma vela de tempo queimando no interior, com a chama programada para tocar a areia negra no mesmo momento em que a archigos Ana desse a Admoestação.

Ci’Tomisi confessou para salvar a própria vida, choramingou e chorou. Ele conseguiu, mas Allesandra perguntou-se se, na cela suja e imunda nas profundezas da Bastida, ci’Tomisi desejaria que não tivesse conseguido.

A a’hïrzg também sabia que Semini já devia ter percebido que ci’Tomisi havia sido preso e que provavelmente tinha confessado. Portanto, Allesandra observava Semini e imaginava o que ele diria, se lhe diria a mentira e negaria qualquer conhecimento a respeito do caso, e como ela deveria reagir se o archigos fizesse isso.

Mas Semini não negou. — Eu sou o archigos. Preciso fazer o que parecer ser melhor para a fé concénziana, e, na minha opinião, a Fé permaneceria tão quebrada quanto o mundo de Cénzi até que aquela mulher morresse.

Ao ouvir isso, a mão de Allesandra foi ao pingente com o globo rachado que ela usava, aquele que fora dado por Ana. A a’hïrzg viu que Semini observou o gesto e falou — Cénzi teria levado Ana em Seu próprio tempo. E, caso não levasse, por que você deveria agir por Ele?

Semini teve a dignidade e a humildade de abaixar os olhos para a grama bem aparada que servia de piso na tenda. — Cénzi geralmente exige que as pessoas ajam por Ele — respondeu o archigos, finalmente. — Houve... uma oportunidade repentina, uma que se apresentou de maneira completamente inesperada, e não apontaria para Firenzcia, e sim tanto para os numetodos quanto para os ocidentais. Isso, por acaso, é mais errado do que alguém nos Domínios mandar a Pedra Branca matar Fynn? — Ele encarou Allesandra.

Ela sentiu uma pontada de culpa e franziu a boca. Semini pareceu interpretar o gesto como irritação.

— Eu tive que agir imediatamente ou simplesmente não agiria — continuou ele. — Eu rezei para Cénzi pedindo por orientação e senti que fui respondido. E, naquela ocasião, a’hïrzg, a senhora e eu não éramos... — Semini deixou a próxima palavra pairar no silêncio. O archigos continuou a falar, mas agora a voz era um sussurro praticamente inaudível. — Se nós fôssemos, Allesandra, eu teria pedido seu conselho e acatado. Em vez disso, eu pedi ao seu vatarh, que já estava muito doente, e ao seu irmão.

— Você está me dizendo que o vatarh sabia? E Fynn? Eles também aprovaram isso?

— Sim. Sinto muito, Allesandra. — O arrependimento na voz parecia genuíno. As mãos estavam erguidas, como se pedisse perdão, e havia uma umidade nos olhos de Semini que refletiu o sol que entrava pela lona. — Sinto muito — repetiu. — Se eu soubesse como o ato magoaria você, se soubesse o que faria conosco, eu teria impedido. Teria mesmo. Você tem que acreditar nisso.

— Não. — Allesandra balançou a cabeça. Semini. Fynn. E vatarh. Todos eles aprovaram a morte da mulher que me manteve viva e sã. — Eu não tenho que acreditar nisso, de maneira alguma. Você diria tal coisa fosse ou não verdade.

— Como posso provar para você?

— Você não tem como provar, mas isso é algo que você deveria ter me contado há muito tempo: pelo meu papel como a’hïrzg, ou como matarh do hïrzg, pelo menos. E não sei como ficamos diante dessa situação. Não sei mesmo.


O cavalo estava encharcado de suor ao galopar velozmente encosta acima, onde eles esperavam, e as patas musculosas tremeram quando o cavaleiro desmontou, com uma bolsa de mensageiro na mão. O homem imediatamente se ajoelhou diante de Jan, Allesandra, Sergei e Semini e disse — Notícias urgentes de Nessântico, meu hïrzg. — Havia sujeira da estrada na roupa de couro do mensageiro, que tinha terra no cabelo e no rosto. A voz estava abalada pelo cansaço, e o homem parecia, assim como a montaria, estar à beira de um colapso. Ele ofereceu a bolsa com uma mão trêmula. Jan pegou a bolsa enquanto Allesandra gesticulava para os assistentes, que estavam apropriadamente a poucos passos do quarteto. — Deixem esse homem comer e descansar e cuidem do cavalo.

Os assistentes correram para obedecer. Jan desdobrou o pergaminho grosso de dentro da bolsa, que deixou cair no chão. Allesandra observou os olhos do filho vasculharem as palavras ali. Jan arregalou os olhos e entregou o papel para ela em silêncio. A a’hïrzg entendeu seu choque rapidamente; as frases ali pareciam impossíveis.

... O kraljiki Audric foi assassinado da mesma forma que a archigos Ana... Sigourney ca’Ludovici foi nomeada kraljica, mas foi ferida no ataque... Karnor foi arrasada e pilhada por ocidentais... O exército ocidental aproxima-se de Villembouchure... a Garde Civile e os chevarittai foram reunidos para detê-los...

Ela passou a mensagem para Sergei, que a leu com Semini olhando atentamente sobre seus ombro, e ouviu o archigos dizer — A’hïrzg, isso é uma surpresa para mim. Juro por Cénzi que não sabia de nada a respeito dessa situação. Audric morto... — Ele espalmou as mãos em súplica. — Não fui eu que fiz isso, nem era minha intenção.

Allesandra não prestou atenção às declarações de Semini. Ela passou o braço por Jan, que olhava fixamente para o acampamento do exército, resplandecente com os estandartes e armaduras, cheio de tendas acinzentadas e agitado pela atividade de milhares de soldados. — O que isso significa, matarh? — perguntou Jan para ela, embora Allesandra tenha notado que ele olhava para Sergei também. — Diga-me o que está pensando.

— Significa que Cénzi realmente nos abençoou — respondeu a a’hïrzg. — Estamos avançando na hora certa, quando nosso inimigo está mais fraco. — Ela quase gargalhou. Audric morto, ca’Ludovici ferida, e a atenção dos Domínios voltada para os ocidentais em vez de estar de olho em Firenzcia. — Este é o seu momento, meu filho. Seu momento. Tudo que você tem a fazer é aproveitá-lo.

Era o momento dela também, talvez mais do que do filho, mas Allesandra não disse isso.

Jan continuava a olhar fixamente para o acampamento. Então ele se sacudiu e, naquele momento, Allesandra notou um vislumbre do vavatarh no filho: o maxilar trincado, a certeza no olhar. Era a maneira como o velho hïrzg Jan sempre parecia quando tinha se resolvido; ela lembrava-se bem.

— Tragam o starkkapitän ca’Damont à minha presença — falou Jan. — Eu tenho novas ordens para ele.

 

A Pedra Branca

ELA ESTAVA DO OUTRO LADO DA VIELA, em frente aos dois, quando Talis chegou ao prédio e bateu na porta, com Nico à mão. A Pedra Branca ouviu o grito de Serafina — Nico! Ó, Nico! — e viu a mulher pegar o menino nos braços... e também notou Talis ficar tenso, como se estivesse assustado, e erguer a bengala que sempre carregava como se fosse bater em alguém, enquanto gesticulava com a mão livre como se quisesse que Serafina e Nico fossem embora.

Ela cruzou a viela correndo, com a mão em uma das facas de arremesso escondida na tashta. Ouviu trechos de uma conversa alta ao se aproximar.

— ... apenas saia! Agora! ... o embaixador numetodo... tentou me matar...

— ... sabia onde Nico estava e não foi até ele?...

Houve mais diálogos, mas as vozes martelavam a cabeça da Pedra Branca, que não conseguiu distinguir as reais daquelas dentro da mente. A porta fechou-se quando Talis entrou, e ela aproveitou a oportunidade para entrar de mansinho no espaço apertado entre os prédios. Ali, a Pedra Branca encostou-se contra a parede ao lado de uma janela fechada. Ouviu a conversa abafada, tão bem que percebeu que não precisava interferir. Não ainda. Houve uma conversa sobre o assassinato da archigos Ana (— Aquela bruxa cruel mereceu morrer pelo que fez com minha família — berrou Fynn); sobre algo chamado areia negra que podia matar (e todas as vozes das vítimas berraram na cabeça dela ao ouvir aquilo — Morte! Morte! Sim, traga mais gente aqui para nós! — Era tão alto que ela teve que soltar um berro silencioso para que as vozes parassem); sobre um homem chamado Uly (— Esse nome... — disse Fynn. — Eu conheço esse nome...).


Quando ficou claro que Talis e Nico permaneceriam ali, a Pedra Branca saiu de mansinho novamente, voltou ao apartamento e recolheu as coisas que tinha lá. Naquela noite, após três ou quatro paradas, ela alugou um novo apartamento, numa rua ao sul de onde morava a matarh de Nico: lá, pela janela, era possível ver a porta da casa de Nico pelo espaço entre os prédios.

Por quatro dias, ela observou. À noite, entrava de mansinho no espaço entre as casas para ouvi-los. Seguia o grupo sempre que eles saíam, especialmente se Nico estivesse junto. Por dias, a Pedra Branca observou as idas ao Velho Distrito, as tentativas de achar Uly. Ela mesma já havia encontrado o homem, que vivia em um apartamento miserável no Beco do Sino, perto do mercado do Velho Distrito. Considerou o estrangeiro estranho e desprezível — não era um homem que se importava com a limpeza de onde morava ou com a sujeira das roupas. Ele era grosso e mal-educado com os fregueses para quem vendia poções, geralmente na taverna embaixo do apartamento: o Cisne Vermelho. Frequentemente estava bêbado, e era um mau bêbado. Também podia ser violento; com certeza era brutal com as prostitutas que contratava, a ponto de ser evitado pela maioria das mulheres que fazia ponto nas ruas em volta do mercado.

Por dias, ela observou.

A Pedra Branca ficou surpresa, um dia, ao ver Nico acompanhando Varina e Karl ao mercado — geralmente isso era uma coisa que Serafina não permitia. Mas ela também sabia que as idas ao mercado agora eram rotineiras, que a cada dia que passava o grupo tinha menos esperanças de encontrar Uly, que Varina e Serafina tornaram-se amigas íntimas, que Nico parecia considerar a mulher numetodo quase como uma tantzia querida. A Pedra Branca seguiu o trio de perto, contornou a multidão em volta das barracas, chegou próximo o suficiente, a ponto de quase ouvi-los, mas nunca tão perto a ponto de um deles notá-la. Viu o grupo falar com um fazendeiro em sua barraca, viu o homem apontar e os três irem embora correndo, com Varina parecendo subitamente preocupada. Karl foi até uma mulher com uma tashta amarela — uma mulher que a Pedra Branca reconheceu como uma das freguesas de Uly.

O estômago deu um nó forte de preocupação; ou talvez fosse a criança que crescia ali. As vozes murmuraram — A mulher vai contar para ele... Você tem que interferir... — Ela colocou a mão na pedra branca na bolsinha pendurada no pescoço e a apertou com força, como se pudesse calar as vozes com o toque.

Se Karl tivesse ido atrás de Uly com Nico, a Pedra Branca teria detido os três. Ela não deixaria que colocassem o menino em perigo. Não deixaria.

Mas Karl mandou Varina e Nico embora. Ela seguiu os dois por tempo suficiente para saber que a mulher e o menino realmente voltavam para casa, depois retornou rapidamente, correu pelas ruas na direção do Cisne Vermelho.

Ela viu Karl entrar na taverna e entrou atrás dele. Uly estava lá, sentado à mesa de sempre e — também como sempre — meio bêbado. Karl também tinha visto o homem, mas estava no bar, onde pediu uma cerveja. Enquanto ela observava, o embaixador afastou-se do bar e foi à mesa de Uly. A Pedra Branca não conseguiu ouvir a conversa, mas, não muito tempo depois, Uly terminou a cerveja e ficou de pé, e Karl seguiu o homem até a porta.

— Você sabe o que acontecerá — cacarejou Fynn na cabeça dela. — O que você fará a respeito?

A Pedra Branca agiu, meteu-se entre Karl e a porta, e esbarrou no embaixador de propósito. — Perdão, vajiki! — falou. Ela segurou a mão do embaixador e colocou a pedra na palma dele. — Para dar sorte. O senhor tem que guardar isso, vai trazer boa sorte, vajiki. Guarde direitinho.

Ela torceu para que Karl fizesse isso, porque não poderia ajudá-lo se ele não guardasse. Se o embaixador tivesse devolvido a pedra, deixado cair ou jogado fora, ela estaria de mãos atadas. — A Pedra Branca não consegue matar sem o ritual agora — disseram as vozes em um coro debochado. — Fraca. Estúpida.

Mas Karl guardou a pedra. Ela se escondeu ao sair da taverna, e, alguns instantes depois, Karl e Uly surgiram. O estrangeiro levou Karl para longe da taverna, e ela os seguiu com cuidado. De qualquer maneira, Uly parecia estar bêbado demais ou desinteressado demais para ver se alguém observava. A Pedra Branca viu Karl ser empurrado por Uly para dentro de um beco e correu atrás, em silêncio.

Quando ela chegou ao cruzamento, Karl já estava caído, e era óbvio que Uly pretendia espancá-lo até a morte. — Você é um tolo, embaixador ca’Vliomani. — A Pedra Branca ouviu o estrangeiro rosnar. — Achou que eu não lhe reconheceria?

Então ela agiu, novamente, como a Pedra Branca, séria e implacável. Uly ergueu os olhos ao ouvir a aproximação, mas o chute já estava no ar, acertou o joelho e fez o homem desmoronar, soltando um gemido, depois ela acertou dois socos na lateral da cabeça que o derrubaram no chão, inconsciente.

A Pedra Branca rapidamente rasgou a bashta de Uly, depois se dirigiu para Karl, que gemia, meio inconsciente. Ela enrolou o pano rasgado na cabeça do embaixador, sacou sua faca favorita da bainha e pressionou contra o pescoço dele. — Fique quieto e não será ferido. — ela engrossara o tom de voz. — Tire o capuz e você morre. Acene com a cabeça se entendeu.

Ele balançou a cabeça uma vez, e a Pedra Branca deixou Karl e foi até Uly. Deu um tapa na cara do homem, para despertá-lo, viu Uly arregalar os olhos ao notá-la, e mostrou a faca antes de enfiá-la com força na pele tatuada do pescoço. Colocou a bota sobre o joelho quebrado do sujeito. — Ele viu você. Não pode deixá-lo vivo agora — clamaram as vozes, e ela pediu que fizessem silêncio.

— Responda se você quiser viver — disse a Pedra Branca. Ela percebeu que o homem começou a erguer as mãos e fez que não para ele enquanto enfiava a ponta da faca no pescoço, perto de uma veia saltada e pulsante. — Você matou a archigos Ana, não foi? Você preparou a areia negra.

— Não. — O homem começou a dizer, mas a Pedra Branca enfiou a faca mais fundo diante da mentira. — Tudo bem, tudo bem. — Uly afastou-se dela o máximo possível. — Sim, eu ajudei a matá-la. Com a areia negra. Mas a ideia não foi minha. Eu só dei a substância para o homem e contei como usá-la. Não sabia o que ele pretendia fazer com ela. — Novamente, a Pedra Branca pressionou a faca com mais força. — Ai! Droga, isso é verdade!

— Quem? — perguntou ela, pois sabia que Karl ouviria; a Pedra Branca daria ao embaixador a informação que ele queria, desde que isso significasse que Nico ainda estaria a salvo.

— Você tem que matar esse aí. Você precisa matá-lo.

— Eu não sei... — disse Uly. Ela ignorou a voz, puxou ligeiramente a faca em sua direção e abriu um corte. O sangue quente pingou do pescoço. — Ai! Por Axat! Pare! Ele me disse que o nome era Gairdi ci’Tomisi, mas não sei se o nome é verdadeiro ou não. Ele pagou bem, e isso era tudo que eu sabia ou que me importava!

O homem tentou empurrá-la, e a Pedra Branca colocou mais peso sobre o joelho quebrado. Ele ofegou de dor. — Por favor. Por favor, pare.

— Então fale mais a respeito deste homem — falou ela. — Rápido.

— Parecia um ca’ ou co’, pelo jeito de falar. Firenzciano, talvez, pelo sotaque. Disse que as “ordens” vieram de Brezno, em todo caso. É tudo que sei. Eu preparei a substância, dei para o homem, e ele foi embora. Fiquei tão surpreso quanto qualquer um quando a archigos foi morta.

— Você não pode ficar aqui. Tem que ir embora ou alguém chegará e verá você.

As vozes estavam certas. Ela franziu os lábios. Com um movimento violento, ela cravou fundo a faca na garganta do homem e a cortou da direita para a esquerda. O sangue quente jorrou, e o homem morreu com uma golfada de fôlego líquido. Neste instante, a assassina puxou rapidamente a bolsinha de dentro da tashta agora ensanguentada e a abriu, depois colocou a preciosa pedra branca no olho direito aberto do homem. A seguir, foi até Karl, vasculhou seu bolso rapidamente e achou a pedra que dera para ele. Esta foi colocada sobre o olho esquerdo de Uly. Ela embainhou a faca, esperou um instante, depois pegou sua pedra no olho direito.

A Pedra Branca já podia ouvir a voz de Uly, que lamentava em uma língua que ela não compreendia.

Ela guardou a pedra na bolsinha novamente. Olhou uma vez para Karl, que fazia um esforço desesperado debaixo do pano para escutar.

A Pedra Branca correu. Correu — ateve-se às sombras e aos becos solitários por causa da tashta manchada de sangue — para encontrar Nico, para saber se ele ainda estava a salvo.


??? MATANÇA ???

Kenne ca’Fionta

Aubri co’Ulcai

Allesandra ca’Vörl

Niente

Varina ci’Pallo

Kenne ca’Fionta

Sergei ca’Rudka

Nico Morel

Karl ca’Vliomani

A Batalha Começa


Kenne ca’Fionta

KENNE ESTAVA NA SACADA do lado de fora de seu gabinete particular e olhava para a Praça do Templo. Lá embaixo, ténis em robes verdes misturavam-se à multidão de pessoas comuns que corriam para escapar da garoa, que caía de nuvens baixas e cinzentas. O tempo parecia tornar pesadas as asas dos pombos, que arrulhavam em grupos; as pessoas passavam correndo, os pássaros afastavam-se e balançavam as cabeças, mas não alçavam voo.

O dia ruim e desagradável combinava com o humor de Kenne.

Ele estaria morto se tomasse a decisão errada e não tinha certeza de como evitar esse destino.

Mesmo que evitasse a morte física, Kenne estaria morto dentro da fé concénziana. Ele já sentia os abutres começando a se reunir: nos rumores que vinham de todo mundo, do mais baixo e’téni às mensagens nas entrelinhas que recebia dos a’ténis em suas cidades. Quando teremos outro conclave?, perguntavam. Há assuntos urgentes que todos precisamos discutir. Como devemos reagir às notícias de Nessântico? O que o archigos acha sobre essas questões?

As entrelinhas se escondiam nas perguntas inocentes. Elas começaram quando ele foi promovido a archigos, após o assassinato da pobre Ana. O coro ficou mais alto e constante desde a morte do kraljiki Audric e as notícias da invasão ocidental. As mensagens chegavam todos os dias por mensageiros de Fossano, de Prajnoli, de Chivasso, Belcanto e An Uaimth, de Kasama, Quibela e Wolhusen. Nós não confiamos na sua liderança. Outra pessoa precisa ser o archigos. Era o que diziam sob as palavras educadas e indiretas escritas por eles. Você deveria ser retirado do Trono de Cénzi.

O pior de tudo é que Kenne descobriu que concordava com eles. Eu nunca quis isso, o archigos queria escrever em resposta. Eu jamais pedi para sentar no lugar de Ana. Eu preferia muito mais que outra pessoa assumisse essa tarefa por mim. Ele mesmo disse isso para Ana há muitos anos, após retornar a Nessântico para ser o a’téni da cidade sob o comando dela, após o exército firenzciano ter sido dispersado. — Você estava aqui antes de mim — disse Ana para Kenne, quase parecendo envergonhada de estar sentada atrás da mesa em que ambos se lembravam de ter visto o archigos Dhosti. — Por direito, você deveria estar aqui e não eu, meu amigo.

Ele riu ao ouvir aquilo e balançou a cabeça. — O archigos Dhosti disse para mim, há muito tempo, que eu era um excelente seguidor. Ele estava certo. Eu sigo muito bem, mas não lidero. Não possuo seja lá o que for que você tem, Ana. Dhosti enxergou essas qualidades em você... você sabe liderar. É forte, talentosa, e tem uma força de vontade que é assombrosa. É por isso que ele fez de você sua o’téni. Se ele tivesse vivido, teria lhe preparado para o cargo da mesma forma. Eu... — Outra negativa com a cabeça. — Eu fui destinado a ser o que sou. Nada mais. E estou bem contente que seja assim.

Ana discordou, educadamente, mas ambos sabiam que — por dentro — a archigos concordava com ele. Com Dhosti.

No entanto, Cénzi impôs essa tarefa a ele no fim da vida, e Kenne só podia imaginar que isso era alguma espécie de piada cósmica.

Os a’ténis da Fé eram um perigo para Kenne, e a nova kraljica era outro. Ela sentia dores — ela sentiria dores pelo resto da vida, era quase certo. Sigourney ca’Ludovici fora jogada em uma crise terrível com a perda dos Hellins, o assassinato de Audric e agora a invasão dos próprios Domínios pelos ocidentais. Havia Firenzcia do outro lado, que não era mais um aliado, e sim um inimigo, pelas costas. Ela tentaria consolidar seu cargo. Tentaria desesperadamente sobreviver como kraljica, e, para tanto, procuraria por pessoas fortes que poderiam apoiá-la e dispensaria aqueles que considerasse fracos demais para ajudar — porque a fraqueza nos aliados da kraljica seria um perigo tão grande quanto os ocidentais e os firenzcianos.

Kenne sabia que a opinião de Sigourney a seu respeito era talvez ainda mais baixa do que a dos a’ténis. Ela faria uma rápida manobra para substituí-lo. Por conhecer a história de Nessântico, Kenne não excluía a possibilidade de a solução da kraljica ser o seu assassinato e a sua substituição por alguém mais adequado para ela. Já aconteceu com outros archigi antes de Kenne, quando eles entraram em conflito com os líderes políticos dos Domínios: um archigos assim podia morrer sob circunstâncias misteriosas. Bastava olhar para o próprio archigos Dhosti, afinal.

Kenne olhou para a praça lá embaixo, onde certa vez o corpo quebrado de Dhosti esteve estatelado, com o sangue fluindo entre os paralelepípedos. Ele imaginou se um dia, em breve, seu corpo seria jogado pelo parapeito até cair, debatendo-se desesperadamente no chão lá embaixo.

— Archigos?

Kenne sentiu um arrepio ao ouvir o chamado. Ele virou-se devagar e esperou ver Petros. Mas não era ele. Era, em vez disso, um fantasma.

— Eu sei — falou o fantasma, e o sotaque da voz confirmou suas suspeitas. — Você não esperava me ver novamente. Francamente, nem eu. Desculpe assustá-lo, archigos. Petros foi gentil em me deixar entrar.

— Karl... — Kenne entrou novamente no gabinete e deu a volta na mesa para abraçar o numetodo. — Olhe para você... sem barba, com cabelo pintado e cortado como uma pessoa qualquer, sem status, e essas roupas horríveis. Eu não teria reconhecido você... mas imagino que essa seja a ideia, não é? Eu pensei, após ter ajudado Sergei a escapar, que você tivesse fugido da cidade. — Ele balançou a cabeça. — Esses são tempos sombrios — disse Kenne com cansaço, sendo tomado pela depressão novamente. — Tempos terríveis. Mas eu esqueço meus modos. Você parece cansado e faminto. Quer que Petros traga alguma coisa?

Karl já balançava a cabeça. — Não, archigos. Não há tempo, e eu não devo ficar aqui mais tempo do que o necessário. Eu... eu preciso de um favor.

— Se estiver dentro da minha capacidade — falou Kenne, que teve que esmagar o pensamento que veio em seguida: dentro da pouca capacidade que tenho, infelizmente...

— Está sim, eu espero. Por favor, archigos, sente-se. Isso pode levar tempo. Eu sei, pelo menos acho que sei, quem matou Ana.

Kenne ouviu a história de Karl com apreensão, desconfiança e horror cada vez maiores. No fim, ele estava recostado na cadeira atrás da mesa e balançava a cabeça.

— Um homem chamado Gairdi ci’Tomisi, você diz? — falou Kenne finalmente. O archigos ficou chocado à menção do nome e perguntou-se que mais ele não sabia. — Um firenzciano? Ele fez isso com ajuda de magia ocidental?

— Firenzciano, sim — declarou Karl. — Mas você tem que entender que não houve magia envolvida. Não; essa areia negra não é uma criação de seu Cénzi, nem tampouco dos deuses ocidentais. Ela não é mágica, não vem do Segundo Mundo; é apenas o produto da imaginação e da lógica de uma pessoa. — Karl bateu na cabeça com o dedo. — E isso torna a areia negra ainda mais perigosa. Veja...

Karl tirou uma pequena bolsinha do bolso da tashta suja e esfarrapada e derramou um pó escuro e granulado no mata-borrão da mesa de Kenne. O archigos cutucou a substância com um dedo curioso. — Uly tinha um estoque disso em seu apartamento; eu subornei o estalajadeiro para me deixar entrar. Uly tinha os ingredientes lá dentro, então sabíamos o que eram. Varina acha que é capaz de reproduzir essa mistura mesmo que Talis não nos ajude. Parada assim como está, a areia negra é bem inocente, mas coloque uma chama em contato com ela, e... — A voz de Karl foi sumindo, e ele afastou o olhar. Kenne sabia do que o homem estava se lembrando; ele também se lembrava, muitíssimo bem.

— O que eu posso fazer? — perguntou o archigos. Ele abaixou o olhar para a mesa suja.

— Veja se consegue descobrir mais sobre esse Gairdi ci’Tomisi que Uly mencionou.

Kenne olhou para o numetodo com uma cara triste. — Eu o conheço. Pelo menos acho que sim. Ele é um mercador com licenças de passagem tanto de Brezno quanto de Nessântico e vai e volta pela fronteira. Nós, tanto Ana e eu, usávamos Gairdi. Nós achávamos... achávamos que ele era nosso homem, nosso espião. Ele levava mensagens aos ténis dentro do Templo de Brezno, para quem pensávamos que podíamos confiar e trazia respostas sobre o archigos Semini. Agora... — Kenne ergueu os olhos para o numetodo. — Se ele realmente era um agente duplo, a serviço de Semini ca’Cellibrecca...

— ... Então foi ca’Cellibrecca quem mandou matar Ana. — Karl encerrou a frase por ele. Seu maxilar fez um ruído alto ao se fechar.

Kenne sentiu o que restou do almoço subir pela goela. Ele engoliu em seco para conter a bile. Sim, o archigos acreditava que ca’Cellibrecca era capaz de cometer assassinato —, o homem fora um téni-guerreiro pela maior parte da vida. Porém, ele não teria matado Ana sem um motivo. Kenne tinha medo de que sabia exatamente qual seria a razão: ca’Cellibrecca esperava que a pessoa colocada no lugar de Ana fosse fraca e que pudesse explorar essa fraqueza para reunir a fé concénziana novamente — com ca’Cellibrecca como archigos em Nessântico, assim como em Brezno.

Porque ele sabia que seria eu. Provavelmente já está falando com a kraljica e fazendo sondagens.

— Archigos? — Kenne respirou fundo antes de erguer os olhos para Karl. — Nenhum numetodo matou Audric — declarou o embaixador. — Nenhum numetodo matou Ana. Isto matou os dois. — Ele gesticulou para a areia negra na mesa de Kenne. — Isso me faz pensar que a mesma pessoa é responsável pelos dois assassinatos.

Parecia uma hipótese razoável para Kenne, mas ele já esteve errado sobre tanta coisa que não confiava mais no próprio discernimento. — O que... o que você quer que eu faça? — O archigos ergueu as mãos da mesa, a ponta de um dedo estava escura com o pó que ele tocou. — Como posso ajudar?

— Veja o que mais você consegue descobrir. Veja se Semini realmente fez isso; se foi ele, eu quero fazer o homem pagar. Mas Varin... — Karl parou. — Quero dizer, Ana não iria querer que eu fizesse qualquer coisa até eu saber, saber com certeza. Pode me ajudar com isso? — Ele apontou novamente para o monte de areia negra no mata-borrão de Kenne. — Você sabe o que é isso, não sabe? — perguntou o numetodo. O archigos limitou-se a balançar a cabeça.

— Isso são as cinzas da magia — falou Karl. — Isso é como a magia se parece quando morre.

Kenne abaixou o olhar novamente. Parecia que estava olhando para os próprios restos mortais.

 

Aubri co’Ulcai

O COMANDANTE AUBRI CO’ULCAI OLHOU para trás e balançou a cabeça ao se perguntar como a batalha tinha chegado a este ponto. Isso nunca deveria ter acontecido. Não era possível.

Ele imaginou como a nova kraljica receberia as notícias e esperava que soubesse a resposta. E a única desculpa que Aubri tinha era que os ocidentais recusavam-se a lutar honrosamente, como deveriam.

Tudo começou há dois curtos dias...


Vários chevarittai — como era comum — saíram em seus cavalos de guerra para fazer desafios individuais enquanto as forças ocidentais aproximavam-se de Villembouchure. Nenhum guerreiro ocidental veio responder ao desafio; as fileiras da vanguarda do exército marcharam em frente, intactas e inabaladas mesmo quando os chevarittai debocharam de sua honra e coragem. Eles foram ignorados ou, pior ainda, atacados com flechas covardes e fogo dos feiticeiros ocidentais. Três chevarittai morreram antes que Aubri mandasse que as trompas soassem a ordem de retorno. Eles deram meia-volta com os cavalos de guerra e retornaram a galope para trás das fileiras de infantaria e de ténis-guerreiros, que aguardavam.

Aubri reuniu-se com seus offiziers; eles esperavam que o ataque começasse assim que o exército ocidental chegasse ao cume do último morro antes de Villembouchure. Afinal, era pouco antes da Segunda Chamada, e ainda havia viradas da ampulheta de luz do dia. Os ocidentais chegaram à distância de dois tiros de flecha da vanguarda da força dos Domínios e pararam... e permaneceram parados. Os chevarittai e seus offiziers imploraram que Aubri os deixasse avançar e atacar. O comandante recusou-se, lamentavelmente — fazer isso significava abandonar as fortificações e casamatas que eles erigiram nos últimos dias. O exército dos Domínios estava disposto em uma posição defensiva perfeita, e Aubri era avesso a sair dali.

Este foi o primeiro dia. Ele foi dormir nessa noite convencido da futura vitória — o avanço ocidental seria detido por suas fileiras de veteranos. A força ocidental, conforme verificaram seus batedores e todos os relatórios do campo de batalha, era substancialmente menor que a sua: nenhum exército daquele tamanho, nem mesmo os firenzcianos em seu apogeu, teria sido capaz de derrotar as defesas que Aubri montou. Os navios da frota tehuantina entupiram o A’Sele, mas estavam longe demais do campo de batalha para afetar a situação; de qualquer forma, Aubri sabia que uma força naval de Nessântico estava a caminho para cuidar dos navios inimigos. Na pior das hipóteses, as muralhas de Villembouchure iriam detê-los se, por alguma razão imprevista, Aubri não conseguisse contê-los nos campos do lado de fora da cidade. As forças ocidentais eram pequenas demais para um cerco efetivo, e Villembouchure era bem abastecida e podia suportar o sítio de um exército bem maior por pelo menos um mês.

Sim, Aubri estava confiante. Apesar do fato de seu exército ter sido rapidamente reunido e a maior parte da infantaria não ter muito treinamento, os offiziers e os chevarittai com eles tinham experiência em batalha adquirida nas muitas escaramuças ocorridas nas últimas décadas com Firenzcia e as nações da Coalizão.

Eles venceriam aqui.

A batalha começou no segundo dia, mas não com a chegada da alvorada, contrariando toda a experiência de Aubri e dos offiziers que o treinaram. Não... o ataque veio bem antes de o sol subir no céu. E veio de maneira estranha. Os vigias postados nas casamatas mais avançadas mandaram mensageiros correndo para a tenda do comandante atrás das linhas, e o agito acordou Aubri de um sono leve e atormentado por sonhos.

— Uma tempestade aproxima-se de nós em pernas feitas de relâmpagos — clamaram os mensageiros. — Uma muralha de nuvem...

Trompas de alarme soaram pelo acampamento, e os soldados colocaram as armaduras e pegaram suas armas às pressas enquanto os offiziers berravam ordens. Ao longe, uma luz azul piscava e dançava, trovões retumbavam, e, no entanto, o céu acima deles estava limpo, marcado pelas várias constelações conhecidas. Aubri montou no cavalo que os assistentes trouxeram apressadamente para ele. O comandante galopou com rapidez até a vanguarda e foi acompanhado ao longo do caminho pelo a’téni Valis ca’Ostheim de Villembouchure, que estava no comando dos ténis-guerreiros. — O que em nome de Cénzi está acontecendo? — rugiu ca’Ostheim. A espessa cabeleira branca parecia cintilar à luz da tempestade adiante; a barriga caía sobre o cepilho da sela de seu cavalo. Os cílios ainda tinham remelas do sono. Um colar grosso de ouro com um globo partido pendurado quicava no peito enquanto os dois cavalgavam. — Eu pensei que o senhor tinha dito que o ataque ocorreria na alvorada, comandante.

— Eu disse, sim — respondeu Aubri calmamente. — Ao que parece, os ocidentais não estavam escutando.

Na primeira linha de casamatas, os dois homens pararam e observaram o espaço entre os dois exércitos. O acampamento ocidental, que cintilava na encosta distante como estrelas amarelas caindo na terra quando Aubri foi dormir, não estava mais visível. Ao contrário, eles foram confrontados por uma aparição da natureza: uma muralha de nuvem escura e agitada, com talvez doze homens de altura e que flutuava à distância de dois homens acima do chão. Como uma espécie de monstro sobrenatural sinistro, a criatura de nuvem avançou na direção deles sobre centenas de pés de relâmpagos que piscavam. Os clarões estocavam o chão embaixo e pareciam fazer a nuvem avançar alguns metros a cada golpe. Aubri viu o chão ser rasgado onde os raios caíam, e a nuvem deixava um rastro de pegadas de tempestade arrancadas do chão. Um barulho constante de trovoada e um rosnado alto e estridente acompanhavam a visão. Ao redor dos dois, o exército dos Domínios olhava fixamente para a aparição com rostos iluminados pelos clarões azuis esbranquiçados e inconstantes. Aubri sentiu o pânico se espalhar pelas fileiras, os homens deram alguns passos para trás involuntariamente, para longe das barreiras baixas e fortificações que eles erigiram. — Mantenham a posição! — berrou Aubri para eles. As trompas soaram a ordem pela frente de batalha. — Mantenham a posição! — Os homens sacudiram-se como se acordassem de um pesadelo. Eles seguraram firme em lanças inúteis e encararam o monstro que os confrontava. Ele praticamente já havia cruzado o campo aberto agora, e Aubri não conseguiu ver nada além de seu limite feroz.

— A’téni ca’Ostheim, isso é magia; é a sua área. — Aubri quase teve que gritar mais alto do que o barulho crescente da aparição tempestuosa para ca’Ostheim, o líder dos ténis-guerreiros, ouvir. — O senhor consegue deter essa coisa?

— Tentarei — respondeu ele ao desmontar. Ca’Ostheim começou um cântico e um estranho gestual em frente ao corpo. Aubri sentiu um arrepio nos pelos dos braços conforme o a’téni continuava a entoar e os raios começaram a tocar as bordas das defesas; ele não sabia qual das duas coisas causou esta reação. O cavalo de Aubri, embora acostumado ao clamor, ao barulho e às imagens de guerra, estava preocupado e batia os cascos no chão enquanto se afastava um pouco da aparição. Aubri teve que se abaixar e dar tapinhas no pescoço do animal para acalmá-lo. — A’téni! Rápido, por favor.

Ca’Ostheim ergueu as mãos; o cântico parou. Ele gesticulou para a tempestade. Um vento estridente soprou do téni-guerreiro, e onde tocou na aparição tempestuosa, as nuvens foram rasgadas. Os soldados comemoraram, mas a tempestade ainda avançava de ambos os lados, com força total, e agora os raios atacaram as próprias defesas, os garfos gigantes alcançaram os soldados dos Domínios. Os gritos surgiram de ambos os flancos, conforme os relâmpagos queimavam e quebravam as fileiras, em um avanço inexorável. E agora as metades partidas nas nuvens voltavam a se unir; línguas sedentas de relâmpagos começaram a brilhar na frente de Aubri. Ca’Ostheim havia caído de joelhos. Ele ergueu a cabeça acenou negativamente para Aubri. — Comandante, eu não consigo... Não sozinho. Eu preciso reunir os outros ténis-guerreiros...

— Ao cavalo, então — falou Aubri. Ele olhou para os porta-bandeiras e as trompas quando os gritos dos feridos e moribundos rivalizaram com a trovoada. — Retirada! — berrou o comandante. — Voltem para a próxima linha de frente!

As bandeiras sinalizaram a retirada; as trompas soaram a ordem. As fileiras dos soldados foram desmanchadas instantaneamente, aqueles que ainda podiam deram meia-volta para fugir da tempestade. Ao longe, em um lugar além da criatura, Aubri ouviu novas vozes: os gritos de guerra dos ocidentais.

O comandante puxou com força as rédeas da montaria e seguiu seus homens.


Esta foi a manhã do segundo dia. O resto do dia não correu melhor. Os ténis-guerreiros foram capazes de dissipar a tempestade mágica, mas a tarefa deixou-os exaustos, e eles tinham pouca energia sobrando para outros feitiços. Atrás da tempestade, surgiram as fileiras dos ocidentais — guerreiros com rostos pintados e com cicatrizes. O combate mano a mano foi intenso, mas os chevarittai e a infantaria eram páreos na espada. No entanto, quanto aos feiticeiros ocidentais, que empunhavam cajados por onde lançavam feitiços, Aubri não tinha como responder — os ténis-guerreiros estavam em grande parte exaustos pelos esforços anteriores, e, no fim da tarde, o comandante mandou o exército retornar a Villembouchure, para trás das muralhas e portões sólidos. Ele estava convencido de que poderia ter mantido as defesas externas, mas o preço em vidas teria sido enorme. Aubri fez o que qualquer outro comandante em seu lugar teria feito: mandou as trompas soarem a ordem de cessar combate.

Ao anoitecer, todos estavam dentro e com as portas corrediças abaixadas e fechadas.

Isso encerrou o segundo dia.

Em qualquer batalha normal, isso significaria o início de um cerco que poderia ter durado semanas ou meses antes de ser rompido, e Aubri sabia que os ocidentais não tinham semanas ou meses — não em uma terra estranha, onde estavam cercados por inimigos. Foi por esse motivo que Aubri achou fácil dar a ordem de cessar combate tão cedo, assim que ficou óbvio que a vitória nos campos diante da cidade só causaria um enorme custo. Ficar no interior das muralhas de Villembouchure deveria levar à vitória em algum momento. Inevitavelmente. E ele poderia esperar.

Mas o cerco duraria apenas um dia.

Aubri estava sobre a muralha da cidade e olhava para as fogueiras quase apagadas do principal acampamento dos ocidentais na alvorada. Foi quando as bolas de fumaça de repente fizeram um arco no céu, na direção deles: uma dezena ou mais, todas pareciam mirar o grande portão oeste da cidade. Os ténis-guerreiros posicionados ao longo das muralhas reagiram instantaneamente, como deveriam, e a resposta dos feitiços de dispersão foi rápida; afinal, eles foram treinados na arte de manter os feitiços na mente por um tempo (que nenhum deles admitiria ser uma característica dos numetodos, que tinha sido imposta aos ténis-guerreiros pela archigos Ana). Mas as bolas de fogo continuaram seu voo. O téni-guerreiro mais próximo de Aubri o encarou com olhos arregalados e chocados. — Comandante, isso não é feitiço...

Ele não prosseguiu. As muralhas grossas da cidade foram sacudidas de um jeito impensável quando as bolas de fogo bateram no portão e nas pedras em volta. Onde elas tocavam, explosões inimagináveis destruíram pedras, aço e madeira. Aubri, que se segurou na ameia para manter o equilíbrio, testemunhou os enormes pedaços de granito saírem voando como se fossem seixos atirados por uma criança. O fogo irrompeu abaixo do comandante, tão incandescente quanto a fornalha de um ferreiro; ele sentiu a onda de calor passar pela pele. Ouviu gritos e lamentos lá embaixo.

— O portão está quebrado! As muralhas foram rompidas!

Os ocidentais já corriam pela brecha, enquanto arqueiros respondiam com uma atrasada chuva de flechas em cima deles. Alguns dos guerreiros foram abatidos, mas muitos — em um número excessivo — continuavam avançando, e agora Aubri via mais arcos de bola de fogo saírem do norte e do sul, na direção daqueles portões.

Ele desceu correndo das ameias e entrou em um caos selvagem e sangrento.

Este foi o terceiro dia. O dia em que a cidade foi perdida. De um jeito inacreditável.


Agora Aubri olhava para Villembouchure do alto de um morro ao longo da Avi A’Sele. O comandante viu a fumaça suja que manchava o céu acima das muralhas quebradas, cercado pelo que restou do exército reunido à sua volta e com o a’téni ca’Ostheim ao seu lado. Dentro da cidade... Dentro da cidade, estavam os ocidentais.

— Isso é impossível — murmurou ele.

Mas era possível. E agora a defesa da própria Nessântico devia ser preparada. Aubri balançou a cabeça novamente diante da cena.

O comandante deu meia-volta com o cavalo e gesticulou, e ele e o exército começaram a mancar na direção da capital, em retirada.

 

Allesandra ca’Vörl

ELA LEMBRAVA-SE DE PASSE a’Fiume muitíssimo bem. Foi aqui, há 25 anos, quando seu vatarh sitiou a cidade, que ela aprendeu pela primeira vez a mais dura lição de guerra: que, às vezes, pessoas amadas não sobrevivem. Na ocasião, Allesandra tinha uma queda por um jovem offizier que tinha sido morto na batalha e pensou que jamais seria capaz de amar novamente, pois seu coração estava partido demais pela experiência, mas o tempo aliviou sua dor. Agora, ela não conseguia se lembrar do rosto do rapaz.

Os reparos da batalha de décadas atrás ainda eram visíveis nas muralhas e trouxeram de volta as memórias e o sofrimento.

Dessa vez, não havia cerco. O exército firenzciano passou pela cidade fronteiriça de Ville Colhelm sem resistência alguma: a força dos Domínios a postos ali simplesmente abandonou o lugar e fugiu do muito maior contingente de tropas firenzcianas. A pedido de Allesandra, Jan despachou cavaleiros — incluindo Sergei ca’Rudka — bem à frente da força principal, para negociar com o comté de Passe a’Fiume. Com a maior parte da guarnição da Garde Civile esvaziada devido à invasão ocidental, o comté favoreceu a prudência à coragem (e uma propina substancial em ouro em vez do juramento ao cargo): em troca da promessa de que a cidade não seria saqueada, ele permitiria que o exército cruzasse o rio Clario através dos portões da cidade até a Avi a’Firenzcia.

Allesandra cavalgava ao lado de Jan quando eles cruzaram a grande ponte de pedra sobre as águas do Clario, um rio mais rápido e perigoso do que o A’Sele — que era mais profundo e largo, e com quem o Clario se juntava antes de o rio A’Sele chegar a Nessântico. A ponte parecia tremer sob a batida das botas dos soldados e dos cascos dos cavalos. A vanguarda do exército já passara pelos portões e o resto descia estrada afora até onde era possível enxergar no terreno cheio de morros. Jan olhou em volta extasiado, quando eles passaram pelas arcadas altas com os escudos dos kralji e entraram na cidade. Multidões estavam enfileiradas nas laterais da avenida principal ao longo da cidade, a maioria em silêncio, e os chevarittai da Garde Hïrzg ficaram tensos em suas selas ao escanearem o público à procura de perigo.

— A senhora esteve aqui com o vavatarh? — perguntou Jan novamente ao se inclinar na direção de Allesandra, e ela fez que sim com a cabeça.

— Eu era apenas uma criança, e seu vavatarh estava no auge. Ele tomou Passe a’Fiume em apenas três dias de sítio após as negociações de paz falharem, mas o kraljiki Justi, que ainda tinha duas pernas na ocasião, já tinha escapado covardemente para Nessântico. Seu vavatarh ficou furioso. Sergei ca’Rudka era o comandante das forças de Nessântico; ele foi... brilhante, mesmo em enorme desvantagem numérica. Seu vavatarh admitiu o fato, mesmo que de má vontade.

Jan olhou para trás, onde ca’Rudka cavalgava ao lado do archigos. O nariz de metal do regente reluzia ao sol. Como a Garde Hïrzg, ca’Rudka parecia ansioso e nervoso, com a boca franzida e o olhar varrendo a massa de ambos os lados. — Eu gosto do sujeito, mas não sei se posso confiar totalmente nele, matarh — disse Jan ao voltar a atenção para ela.

Allesandra sorriu ao ouvir isso. — Você não deveria. A lealdade dele é a Nessântico, antes de mais nada. E Sergei ca’Rudka é um homem estranho, com gostos estranhos, caso se acredite nos rumores. Isso não mudou. Ele trabalhará conosco enquanto achar que nossos interesses convergem. Assim que não achar... — Ela deu de ombros. — Então ele ficará igualmente satisfeito em ser nosso inimigo. Seus instintos estão corretos, Jan.

— Ele parece admirar a senhora.

— Eu conheci Sergei quando era refém da archigos Ana. Ele foi gentil comigo na época. Mas agora o comandante está mais interessado no fato de que sou prima em segundo grau da kraljica Marguerite, e no fato de que este parentesco me dá tanto direito ao Trono do Sol quanto Sigourney ca’Ludovici. E, por enquanto, precisamos de Sergei e das alianças que ele venha nos trazer.

Jan concordou com a cabeça. Ele franziu os lábios como se levasse tudo isso em consideração enquanto entravam na praça central da cidade. Allesandra imaginou o que o filho pensava.

Aqui, o Templo a’Passe dominava a paisagem arquitetônica. Como muitas estruturas da cidade, ele foi muito danificado no cerco há duas décadas e meia. Depois, o conselho municipal decidiu reprojetar a praça principal e o complexo do templo. Grande parte da estrutura original foi demolida. As linhas finas e esqueléticas dos andaimes enjaulavam a torre principal ainda não concluída e o domo do templo reformado.

A multidão de moradores estava mais densa aqui, enquanto a fila lenta do exército marchava pela cidade. Agora, Allesandra sabia, a vanguarda já teria passado pelo portão oeste e além das muralhas. Agora, ela também sabia, mensageiros iriam a galope adiante do exército para levar a notícia à kraljica, ao archigos e à Nessântico de que os firenzcianos estavam em marcha — até onde a a’hïrzg sabia, aquela informação já podia ter chegado à Nessântico assim que o exército cruzou as fronteiras. A partir de agora, o avanço encontraria resistência em breve; a kraljica Sigourney não podia se dar ao luxo de continuar virada para o oeste por muito tempo.

Um exército — especialmente o exército firenzciano; afinado, eficiente e famoso — era uma grande carta na manga em qualquer mesa de negociação, e Sigourney e o Conselho dos Ca’ sabiam muito bem disso. Allesandra sorriu diante da ideia.

A multidão espremia-se perto deles, e os soldados da infantaria de ambos os lados de Allesandra e Jan empurravam as pessoas para trás com os cabos das lanças e dos piques. Ela viu os rostos sérios e infelizes atrás da cerca de armas, e das profundezas da multidão vieram berros com xingamentos e ameaças, mas quando os dois olharam naquela direção, não havia ninguém que eles pudessem identificar na massa. A população também se lembrava do cerco firenzciano; muitas pessoas perderam familiares no sítio, e a visão das bandeiras negras e prateadas era um insulto tremulando na cara delas.

Eles entraram na sombra do templo agora, a fila do exército usava o baluarte da torre principal para se proteger da multidão. As trompas no templo começaram a anunciar a Segunda Chamada assim que Jan e Allesandra chegaram em frente à torre. A a’hïrzg ergueu a cabeça na direção do barulho e apertou os olhos contra o brilho do sol. Alguma coisa — uma figura, uma silhueta — parecia andar lá em cima, em meio ao emaranhado de andaimes. Ela não conseguiu enxergar com clareza.

Allesandra foi golpeada por trás de repente, no mesmo instante em que seus ouvidos a alertaram do som de cascos nos paralelepípedos. Um peso enorme jogou a a’hïrzg no chão, mas os braços que a envolveram giraram Allesandra para que o corpo debaixo dela absorvesse a maior parte do impacto. Um baque alto foi ouvido quase que ao mesmo tempo ao impacto. Um cavalo berrou — um som horrível, desagradável — e as pessoas gritaram.

— O hïrzg!

— Andem! Andem!

— Lá em cima! Lá está ele!

Allesandra ouviu offiziers berrarem ordens e mais gritos. Parecia haver uma multidão amontoada em volta dela. A a’hïrzg lutou contra os braços à sua volta, contra as dobras do manto do agressor e da própria tashta e a capa de equitação. Havia mãos que a puxavam para ajudá-la a se levantar.

Houve outro grito, um berro humano dessa vez, e outro impacto em algum lugar próximo.

Allesandra pestanejou e tentou entender a situação.

Sergei ca’Rudka estava de pé ao lado dela, com a capa rasgada e uma careta no rosto enquanto massageava o braço. A superfície de prata do nariz estava arranhada e o próprio nariz tinha sido parcialmente arrancado do rosto, o que deu a Allesandra um vislumbre do buraco desagradável que ficava embaixo. Jan estava sendo ajudado a se levantar, a um passo atrás de Sergei. O cavalo de Allesandra estava caído de lado diante dela, com uma enorme estátua de um demônio moitidi em volta. O animal de olhos arregalados batia as patas, e os sons que fazia... Sergei foi rapidamente até ele, ajoelhou-se nos destroços do entalhe de pedra e acariciou o pescoço do animal enquanto fazia sons tranquilizadores. Allesandra viu o comandante sacar a faca da bainha. — Não! — Ela começou a dizer, mas Sergei já tinha feito o corte rápido e profundo. O animal deu um pinote, mais um e ficou imóvel.

Allesandra balançou a cabeça para tentar clarear a mente. Metade da multidão na praça parecia ter fugido aterrorizada; os soldados firenzcianos formaram um sólida defesa em volta deles. Sergei afastou-se do cavalo e andou a passos largos até um corpo esparramado em uma poça de sangue não muito longe da base da torre. Os soldados se moveram para interceptá-lo; ele se desvencilhou deles com raiva. Allesandra começou a se mexer e percebeu que o corpo estava dolorido e machucado, e que sangrava, com um corte na cabeça. A a’hïrzg sentiu Jan chegar por trás.

— Matarh? — Ele olhava fixamente para o cavalo que Sergei matou. Allesandra abraçou o filho desesperadamente, depois afastou Jan para examiná-lo; as roupas estavam rasgadas também e havia um arranhão na bochecha que sangrava, tirando isso, ele parecia ileso.

— O que aconteceu? — perguntou ela. — Você viu?

— O regente nos salvou — disse Jan. — Ele nos tirou dos cavalos bem a tempo. — O hïrzg ergueu os olhos para o andaime, depois abaixou o olhar para o corpo no chão. Sergei estava cercado por uma massa de soldados, ajoelhado ao lado do cadáver. — O homem... ele estava lá em cima. Teria matado a senhora. Talvez nós dois. Mas Sergei...

O archigos Semini veio correndo então, com o robe verde esvoaçante. — Allesan... — Ele começou a dizer, depois balançou a cabeça e fez o sinal de Cénzi às pressas. — A’hïrzg! Hïrzg! Graças a Cénzi os senhores estão a salvo! Eu pensei...

Mas Allesandra já não o ouvia. Ela avançou pela multidão até o lugar onde Sergei examinava o corpo. — Regente? — falou a a’hïrzg, e Sergei ergueu o olhar para Allesandra, com uma cara feia.

— A’hïrzg. Eu peço desculpas, mas não tive tempo de dar um aviso. A senhora está muito machucada?

Ela balançou negativamente a cabeça. Sergei assentiu e gemeu ao ficar de pé, como se o movimento o tivesse ferido. — Estou velho demais para isso — murmurou. Ele chutou o cadáver, e a bota fez um som macio e desagradável quando o torso quebrado tremeu em resposta. Allesandra viu um rosto bonito sob o sangue, um rosto jovem, talvez da idade de Jan; ela notou que as roupas eras elegantemente suspeitosas. O corpo estava decorado por hastes quebradas de várias flechas. — Não sei quem ele é — disse Sergei —, mas descobriremos. É um ca’ ou co’, pelo jeito que está vestido e pela aparência física. Eu o vi no alto do andaime bem antes de ele jogar a estátua. Foi quando entrei em ação; parece que seus arqueiros cuidaram do resto. — Ca’Rudka pareceu notar o nariz pendurado então, empurrou-o com cuidado de volta ao lugar e o segurou com dois dedos. — Perdão, a’hïrzg... a cola...

— Não importa — falou Allesandra, abanando a mão. — Regente, eu lhe devo a minha vida.

Ela pensou que Sergei responderia como a maioria, com a cabeça baixa e depreciação, uma declaração sobre dever, lealdade e obrigação. Ele não fez isso. Ao contrário, ca’Rudka sorriu, ainda segurando o nariz de prata no lugar.

— Realmente, a senhora me deve, a’hïrzg.

 

Niente

A CIDADE QUEIMAVA e as chamas eram refletidas na tigela premonitória. Elas sumiram quando Zolin deu um tapa no objeto, que derramou água sobre Niente. A tigela fez barulho ao cair, o bronze retiniu nos ladrilhos como um sino frenético até bater na parede do outro lado, onde reluzia um mosaico de azulejos de alguma batalha antiga. Desenhados no vidro, cavalos empinavam enquanto lanças marchavam em um campo com uma montanha de pico nevado que se agigantava ao fundo.

— Não! — rugiu o tecuhtli. — Não deixarei que me diga isso!

— É o que eu vi — respondeu Niente com uma calma que não sentia. O guerreiro morto, o nahualli esparramado ao lado dele, só que dessa vez ele viu um dos rostos. O rosto de Zolin... E ele estava com medo demais para pedir a Axat que lhe deixasse ver as feições do nahualli... — Tecuhtli, nós realizamos tanta coisa aqui. Mostramos a estes orientais a dor que eles infligiram a nós e a nossos primos. Tomamos terras e cidades deles assim como eles tomaram de nós. Demos a lição que o senhor queria dar. Continuar... — O nahual ergueu as mãos. A grande cidade em chamas e os tehuantinos em fuga, os navios com mastros quebrados adernados no rio... — As visões só me mostram morte.

— Não! — disparou Zolin. — Eu mandei uma mensagem para casa dizendo que ficaríamos aqui, que eles deveriam mandar mais guerreiros. Manteremos o que conquistamos. Atacaremos o coração dos orientais: essa grande cidade que está tão próxima. — Ele se virou, os braços pesados e musculosos passaram perto do rosto de Niente. Os dedos grossos do tecuhtli apontaram para os olhos do feiticeiro. — Você está cego, nahual? Não viu como foi fácil tomar essa cidade dos orientais? Não viu como eles correram como um bando de cães açoitados?

— Temos pouco material sobrando para fazer mais areia negra — falou Niente. — Eu perdi um terço dos meus nahualli no combate; o senhor perdeu a mesma quantidade em guerreiros. Chegamos muito longe, sem recursos para manter a terra atrás de nós. Estamos em um país estrangeiro cercado por inimigos, com apenas os suprimentos que conseguimos coletar e pilhar. Se voltarmos para os nossos navios agora e formos embora, deixaremos para trás uma lenda que provocará medo nos orientais por décadas. O nome do tecuhtli Zolin será um sussurro na noite que assustará gerações de crianças orientais.

— Bá! — disparou Zolin novamente. O cuspe quase acertou os pés de Niente e sujou o chão lustroso da mansão que ele tomou em Villembouchure. Ao abaixar o olhar, o nahual viu que todos os azulejos tinham a imagem da mesma montanha, como no mosaico da parede. O cuspe de Zolin formou um lago no flanco da montanha. — Você é mesmo uma criança assustada, nahual. Eu não tenho medo do que você vê na sua tigela. Não tenho medo desses futuros que você diz que Axat lhe envia. Eles não são o futuro, são apenas possibilidades. — O dedo cutucou o peito de Niente. — Vou lhe dizer uma coisa agora, nahual: você tem que fazer sua escolha. — Cada uma das três últimas palavras ditas foram acompanhadas por uma cutucada. Os olhos escuros do tecuhtli, envolvidos no movimento das asas da grande águia, encararam Niente como um daqueles grandes felinos que espreitavam as florestas de sua terra natal. — Chega de suas palavras. Chega de profecias, chega de avisos. Eu quero apenas a sua obediência e a sua magia. Se não puder me dar isso, então chega de você. Eu prosseguirei, quer você seja o nahual ou não. Decida agora, Niente. Aqui mesmo.

A mão de Niente tremeu ao lado do punho do cajado mágico que estava pendurado no cinto. O nahual seria capaz de pegá-lo e tocar Zolin com o objeto antes que o guerreiro conseguisse sacar a espada completamente. O feitiço disparado queimaria o tecuhtli e lançaria o corpo pela sala até ele desmoronar contra a parede em uma pilha fumegante debaixo do mosaico. Niente conseguia ver aquele resultado tão claramente quanto uma visão na tigela premonitória.

O ataque também acabaria com essa situação. Ele ansiava por isso.

Mas Niente não podia atacá-lo. Essa não era uma visão dada por Axat. Esse caminho levaria a um dos futuros cegos, um que ele não poderia adivinhar — um futuro que poderia ser bem pior para os tehuantinos do que o visto na tigela. O nahual percebeu que conhecer os futuros possíveis era tanto uma armadilha quanto um benefício; ele perguntou-se se isso era algo que Mahri também descobrira. Em um futuro cego, Citlali ou Mazatl poderiam continuar a seguir os passos de Zolin e se sair ainda pior. Todos eles poderiam morrer aqui, e ninguém em casa saberia seus destinos. Em um futuro cego, certamente Niente jamais veria sua família novamente.

Ele sentiu a madeira lisa e lustrosa do cajado mágico, mas as pontas dos dedos apenas roçaram o objeto. Eles não se fecharam em volta do punho.

— Eu obedecerei ao senhor, tecuhtli — falou Niente, com palavras baixas e lentas. — E o seguirei ao futuro que o senhor nos trouxer.

 

Varina ci’Pallo

KARL ESTAVA SENTADO no degrau da porta dos fundos da casa de Serafina no Velho Distrito e olhava fixamente através de um pequeno jardim plantado ali, na direção da parte detrás das casas da próxima rua. O olhar parecia penetrar a margem sul, bem ao longe. Acima dele, a lua estava presa em uma rede de finas nuvens prateadas através das quais as estrelas espiavam. Uma xícara de chá parecia esquecida à sua esquerda.

Karl esfregava uma pedra clara, pequena e achatada, entre o indicador e o polegar.

Varina apareceu e sentou-se à sua direita — não perto o suficiente para tocá-lo, nem longe demais a ponto de não sentir o calor do corpo no frio da noite. Nenhum deles disse coisa alguma. Karl esfregou a pedra. Ela ouviu a música abafada e distante que vinha da taverna mais à frente.

Quando o silêncio entre os dois prolongou-se por tempo demais para ela, Varina começou a ficar de pé. Sentiu raiva de si mesma por ter vindo aqui fora e raiva de Karl por tê-la ignorado. Porém, ele esticou o braço e tocou em seu joelho. — Fique — disse Karl. — Por favor?

Varina sentou-se novamente e perguntou — Por quê?

— Nós não... nos últimos dias... Bem, você sabe.

— Não, eu não sei — falou ela. — Diga-me.

— Por que você tenta dificultar as coisas para mim? — Ele girou a pedra nos dedos.

— Não, estou tentando facilitá-las para mim. Karl, estar com ou sem você são duas situações com as quais eu consigo lidar, de um jeito ou de outro. O que eu não consigo encarar é não saber qual delas é nossa situação. — Varina esperou. Karl não disse nada. — Então, qual é? — perguntou ela.

— Não é tão simples assim.

— Na verdade, é. — Varina abraçou o próprio corpo ao se sentar e inclinou-se um pouco longe dele. — Quando finalmente levei você para minha cama, eu achei que teria tudo que queria há anos. Mas descobri que eu ainda tinha apenas uma parte de você. Quero você por inteiro, Karl, ou não quero nada. Talvez eu esteja exigindo demais de você, ou talvez eu seja muito possessiva, ou talvez você ache que eu esteja forçando uma coisa que você não quer. — Lágrimas ameaçaram cair, e ela fungou o nariz para contê-las, com raiva. — Talvez seja culpa minha que essa situação não dê certo, e, se for o caso, então tudo bem. Mas eu simplesmente preciso saber.

— A questão não é você.

Varina queria acreditar naquilo. Ela mordeu o lábio inferior, conteve as lágrimas, teve dificuldade para respirar. — Então o que é? Você vai atrás desse tal Uly por conta própria, quase morre, encontra com Kenne sem me contar, está até mesmo fazendo planos com Talis. Mas não fala comigo.

— Eu não quero que você se preocupe.

Varina quis escarnecer ao ouvir isto. — Eu me preocupo mais quando não sei a situação. Não sei o que você planeja, não sei o que tenta fazer, não sei quais seriam os verdadeiros perigos. — Ela parou. Respirou fundo. — Eu não quero ser sua amante, estar à disposição sempre que você quiser esse tipo de consolo, e ser convenientemente esquecida fora isso. Se isso é tudo o que você quer de mim, então eu cometi um erro. Também não sou Ana, não quero você apenas como amigo. Novamente, se isso é tudo que você quer de mim, bem, também não pode me ter como amiga. Não mais. Então, se esse for o caso, me diga, e assim que essa situação acabar, de uma forma ou de outra, eu tomo o meu próprio rumo. Eu quis que você abrisse a porta entre nós por muito tempo, Karl. Agora você abriu, mas não pode ficar parado ali com um pé dentro e outro fora. Eu preciso fechá-la e trancá-la para sempre ou você precisa entrar de vez.

— Como eu faço isso? — A voz soou melancólica na escuridão. Ele apertou a pedra entre os dedos. Como você pode não saber? Ela queria ralhar com ele. Não é capaz de enxergar tão nitidamente quanto eu?

— Fale comigo — disse Varina. — Compartilhe o que está pensando. Deixe-me aceitar os perigos que você está disposto a aceitar. Deixe-me estar com você.

Ela pensou que Karl não fosse responder — o que teria sido uma resposta suficiente. Ele ficou sentado ali, ainda brincando com a pedra e olhando para longe. Varina começou a se levantar novamente, mas dessa vez Karl pegou sua mão. Ela sentiu a pedra ser pressionada contra a palma.

— Espere — falou ele. — Deixe-me contar o que estou pensando...

E Karl começou a falar.

 

Kenne ca’Fionta

AUBRI CO’ULCAI PARECIA um cão açoitado ao se ajoelhar, de cabeça baixa, perante a kraljica. A armadura estava arranhada e surrada, o rosto tinha marcas de sujeira e fumaça, o cabelo estava escuro e emaranhado, e ele fedia. No salão do Trono do Sol, o comandante parecia uma mosca patinando em uma xícara dourada de água limpa e fria.

Não que o salão em si não tivesse cicatrizes. Ninguém deixaria de notar as marcas dos reparos feitos às pressas onde o Trono do Sol foi danificado pela magia do assassino — não, não era magia, se Karl ca’Vliomani estivesse correto, lembrou-se Kenne, mas algo mais sinistro; uma coisa que qualquer boticário seria capaz de fazer com os ingredientes certos. De que o embaixador ca’Vliomani chamou aquilo? O fim da magia? O archigos perguntou-se se o homem estava certo.

As tapeçarias penduradas ainda fediam à fumaça, e Kenne imaginou se não havia um leve tom horripilante de rosa nos ladrilhos em volta do tablado do trono. E não havia como não notar a aparência da própria kraljica Sigourney: o tapa-olho e as cicatrizes no rosto, as bandagens ainda nos braços e na única perna, a maneira como ela se remexia com dor no assento, a taça cheia do extrato das sementes da flor venenosa cuore della volpe — um preparado que o ervanário da corte criou para aliviar a sua dor.

Ainda assim, o Trono do Sol reluzia sob e em volta dela como fizera com inúmeros kralji; Kenne cuidou disso pessoalmente. Se fosse uma farsa, ninguém que observasse saberia. Kenne suspirou na própria cadeira à direita do trono, cansado pelo esforço de conjurar o feitiço de luz. O Conselho dos Ca’ estava disposto à esquerda. O salão fora esvaziado de cortesãos e até mesmo de criados — nenhum deles queria mais rumores espalhados pela cidade além dos que já haviam.

— Comandante co’Ulcai — falou Sigourney em uma voz tão arrasada quanto o rosto —, a informação que você nos traz... — Ela parou e fechou o único olho. Quando abriu novamente, a voz saiu mais inteligível. — Você nos desapontou.

— Eu sinto muito, kraljica — disse o comandante. — A senhora já deve estar com minha carta de resignação.

— Eu estou com ela, mas não irei aceitá-la. — Quando co’Ulcai ergueu o rosto com uma leve esperança, Sigourney olhou o homem com desprezo. — E não há outra razão além do fato de que temos poucos offiziers com a sua experiência. Você nos desapontou com os ocidentais, e a mancha em seu currículo não será facilmente apagada. Eu tenho a intenção de mandar que Aleron ca’Gerodi comande as defesas de Nessântico caso esses bárbaros sejam tolos o bastante para continuar a avançar. Se meu irmão estivesse aqui... — Ao dizer isso, os lábios tremeram e um brilho úmido surgiu no olho. Ela tomou um gole de cuore della volpe. — Quanto a você, veremos como se sai contra um inimigo que deve conhecer melhor. Vou mandá-lo para leste, comandante co’Ulcai, para comandar nossas forças contra o exército de Firenzcia. Odil ca’Mazzak, do Conselho, irá acompanhá-lo, e vocês dois partem amanhã. — A kraljica gesticulou com o braço para dispensá-lo. — Imagino que tenha preparativos a fazer, comandante.

Co’Ulcai ficou de pé, fez uma mesura para a kraljica e foi embora do salão com passos altos no silêncio que o acompanhou. Quando ele saiu, a kraljica Sigourney suspirou.

— Eu não confio no sujeito — murmurou Odil ca’Mazzak. — Ele é outro offizier com laços com o regente traidor.

— Infelizmente, co’Ulcai é o melhor que temos — respondeu a kraljica Sigourney. — Odil, precisamos rever os pontos da negociação que você discutirá com os firenzcianos. Archigos, preciso que você se manifeste contra os numetodos, por duas razões: para aplacar Firenzcia e para sabermos que não temos traidores na cidade enquanto enfrentamos inimigos dos dois lados. Eu espero ouvir Admoestações agressivas de sua parte e de todos os seus ténis, a começar com as missas da Terceira Chamada.

Kenne sabia que ela não esperava ouvir objeção alguma de sua parte; Sigourney já havia afastado o rosto antes de terminar de falar. A kraljica imaginava que ele apenas concordaria com a cabeça e não diria nada. Antigamente, ela estaria certa.

Antigamente. Mas havia a visita de Karl, havia o espectro do falso archigos Semini ca’Cellibrecca surgindo no horizonte e tudo o que aquilo significaria. E havia a memória de Ana e a liberdade e tolerância pelas quais ela lutou por anos.

— Não — disse Kenne. — Eu não farei isso.

O silêncio que se seguiu foi longo. A kraljica Sigourney piscou o único olho. — Não — repetiu ela, e a palavra soou como o toque de um sino fúnebre. — Eu ouvi direito, archigos?

Kenne concordou com a cabeça. — A senhora está... — A garganta estava seca. Ele engoliu em seco e tentou juntar alguma saliva. — A senhora está errada a respeito dos numetodos, kraljica. Está errada em acreditar que foi a magia deles que matou o kraljiki Audric e feriu a senhora. Não foram eles.

Ela piscou o único olho mais uma vez. Os outros conselheiros observavam os dois, em silêncio. — Não foram? E como você sabe disso?

— Porque eu falei com o embaixador ca’Vliomani, na verdade. Ouvi suas explicações e fiz minha própria investigação sobre o que ele descobriu.

— Karl Vliomani — a nítida falta de um prefixo ao sobrenome pairou pesadamente no ar — é um fugitivo atualmente condenado à morte. Está me dizendo que ele foi até você, e você o deixou escapar?

Kenne sentiu um arrepio com o tom de voz. — Ele veio até mim, sim, e me mostrou isso. — Ele tirou um pequeno frasco de vidro debaixo do robe verde. No interior, a areia negra reluzia. — Observem. — O archigos levantou-se da cadeira, arrastou os pés pelo tablado e desceu para o piso do salão. Tomou vários passos de distância do trono, depois tirou a rolha do frasco e deixou a areia jorrar sobre os ladrilhos. Kenne voltou para o tablado; os joelhos estalaram como gravetos secos quando subiu os degraus. — Todo mundo concorda que Enéas co’Kinnear usou um feitiço para criar fogo; mas aquele era um feitiço de téni, não de numetodo. Co’Kinnear foi um acólito da fé concénziana e teve alguma educação sobre o uso do Ilmodo. É muito provável que ele tenha aprendido aquele feitiço; é um dos primeiros a serem ensinados aos novos estudantes. Olhem...

Kenne ergueu as mãos e deixou que dançassem no rápido gestual enquanto a voz entoou as curtas frases necessárias. Um momento depois, uma chama amarela tremeluziu no ar entre suas mãos. — Todos os senhores viram isso mil vezes; todas as noites, quando as lâmpadas são acesas ao longo da Avi a’Parete. Isso aqui não é diferente...

O archigos abriu as mãos, começou um novo cântico, e a chama afastou-se de sua mão, saiu flutuando do tablado até pairar sobre a areia negra. Ali, ele abaixou as mãos devagar, e a chama respondeu da mesma forma, desceu até quase tocar a pilha escura...

O estrondo da explosão foi mais alto até mesmo do que Kenne esperava, e o clarão feriu os olhos. Uma fumaça branca subiu e se espalhou pelo salão, seguida de um cheiro cáustico e intenso. Ele ouviu o baque metálico quando a taça do cuore della volpe caiu do braço do Trono do Sol para o chão. A kraljica Sigourney estava com a respiração acelerada no trono e a mão erguida diante do rosto como se tentasse se proteger; ela parecia tentar ficar em uma perna só enquanto pegava a bengala perto da mão direita. Vários conselheiros estavam de pé e berravam. As portas do salão foram escancaradas por gardai, que entraram com espadas na mão. — Kraljica?

Sigourney abaixou as mãos. Kenne ouviu a respiração da kraljica desacelerar. Ela dispensou os gardai com um gesto. — Este cheiro... — murmurou Sigourney. — Eu me lembro dele mais do que de tudo. — Ela virou-se lentamente para o archigos e perguntou — Isso não é magia? Como é possível que isso não seja o Ilmodo, archigos?

— Porque é apenas alquimia — respondeu Kenne —, uma combinação de ingredientes que reage violentamente quando entra em contato com fogo. Havia traços desta areia negra na madeira do Alto Púlpito após a archigos Ana ser morta; os mesmos traços estavam no Trono do Sol e no corpo do kraljiki Audric.

— Os numetodos alegam que a fé em Cénzi não é necessária para usar magia, que qualquer pessoa é capaz disso, que não é mais complicado do que ser um padeiro. Eles olham para pedras com formato de conchas e crânios e inventam teorias estranhas, eles realizam experiências... em alquimia, assim como em outras “ciências”, bem como em magia. Para mim, isso parece indiciar os numetodos. — Quem falou foi Odil ca’Mazzak. Ele olhou com raiva para o archigos, e a kraljica concordou com a cabeça diante das palavras.

— Eu afirmo que isso não veio dos numetodos — insistiu Kenne.

— Mesmo que tenha sido Vliomani quem, por acaso, lhe mostrou isso — retrucou Odil com desdém. — Parece uma lógica estranha.

— A areia negra é um preparado ocidental — disse Kenne. — Aqui está a lógica, conselheiro. Enéas co’Kinnear tinha acabado de retornar do serviço militar nos Hellins. O senhor também deve se lembrar que o comandante co’Ulcai acabou de nos contar como os ocidentais foram capazes de destruir as muralhas de Villembouchure com explosões similares àquelas que mataram a archigos Ana e o kraljiki Audric.

— E ele disse que as explosões foram criadas pela magia dos ténis-guerreiros ocidentais, esses tais “nahualli”. — Odil balançou a cabeça grisalha. A pele flácida da garganta sacudiu com o movimento. — Eu acho que o archigos está enga...

— Não! — Dessa vez Kenne quase gritou e bateu o pé no chão ao mesmo tempo. — Eu não estou enganado. Sei que todos os senhores me acham um velho tolo e decrépito que é uma mera sombra do que um archigos deveria ser. Os senhores podem estar certos quanto a isso, mas estão errados nessa questão. Pior do que errados; eu tenho provas que me fazem acreditar que o falso archigos Semini está envolvido no assassinato da archigos Ana. E, se esse for o caso... — Ele parou, sem fôlego. Todos encaravam o archigos como se ele fosse uma criança tendo um ataque. — Nós precisamos dos numetodos, kraljica, conselheiros — continuou Kenne, com a voz mais baixa. — Precisamos das habilidades, da magia e do conhecimento deles. Nessântico está prestes a ser sitiada pelo oeste e pelo leste, e não podemos nos dar ao luxo de perder aqueles que podem nos ajudar.

Houve um longo e doloroso silêncio. Odil lambeu os lábios e sentou-se. Os outros integrantes do Conselho abaixaram a cabeça e entreolharam-se. A kraljica Sigourney olhou fixamente para a mancha negra nos ladrilhos. — Nós consideraremos o que você disse, archigos — falou ela, finalmente, e Kenne sabia o que isto significava.

Ele gemeou e levantou-se da cadeira novamente. Pegou o cajado de archigos com a mão direita — o globo partido envolto pelos corpos nus e contorcidos dos moitidis — e fez o sinal de Cénzi para a kraljica com a esquerda. Novamente, Kenne afastou-se do tablado arrastando os pés. Ao passar pelo ponto onde a areia negra havia explodido, parou. Os ladrilhos ali estavam quebrados. Ele pegou um dos pedaços maiores, com uma borda afiada de cerâmica azul-clara e a superfície lisa manchada com o que parecia ser fuligem. O cheiro da areia negra era forte. Kenne levantou o pedaço do ladrilho e deixou cair, o som se parecia com o de um prato se quebrando. Ele viu os pedacinhos quicarem e se espalharem.

— Nessântico inteira pode ficar assim — disse o archigos. — Inteira.

Não houve resposta. Ele bateu com a ponta do cajado de archigos no ladrilho e continuou arrastando os pés.

 


Sergei ca’Rudka

A TENDA DE NEGOCIAÇÃO FOI ARMADA em um campo entre as duas forças: ao lado da Avi a’Firenzcia e aproximadamente a meio caminho entre Passe a’Fiume e Nessântico. Ao se aproximarem, Sergei já podia ver as silhuetas escuras de Odil ca’Mazzak e Aubri co’Ulcai através do pano branco, juntamente com o u’téni Petros co’Magnaoi, presente como o representante do archigos. A delegação firenzciana era composta por Sergei, a a’hïrzg Allesandra e o starkkapitän ca’Damont, acompanhados pelo obrigatório conjunto de chevarittai e assistentes. Uma vez que nem a kraljica nem o archigos Kenne estavam presentes, o hïrzg e o archigos Semini, diante da sugestão de Sergei, ficaram para trás. Nenhum dos dois ficou contente com o arranjo.

— Matarh, eu deveria estar lá — insistiu Jan. — Eu sou o hïrzg, e o que acontecer deve ser, tem que ser minha decisão. — Ele olhou feio para Sergei e Allesandra.

— E será, hïrzg — disse Sergei para o jovem. — Eu lhe prometo, mas para o senhor estar lá... — Ele balançou a cabeça. — O senhor é o hïrzg, como disse. Não há um igual ao senhor naquela tenda; também não há um igual ao archigos. Não é esperado do senhor, hïrzg Jan, que negocie em termos iguais com Odil ca’Mazzak, que é apenas um integrante do Conselho dos Ca’; o senhor estaria se rebaixando se fizesse isso. Eu lhe digo que isso é exatamente o que eles querem que faça. Seria uma admissão de que o hïrzg da Coalizão é alguém inferior à kraljica dos Domínios.

Sergei então olhou para Allesandra e para o archigos, que estava com a cara fechada. — Os senhores me pediram para dar meu conhecimento, para ajudá-los. É o que estou fazendo aqui. Aparências importam. Importam muito. Especialmente para aqueles no Palácio da Kraljica.

No fim, com o apoio de Allesandra, o regente venceu o argumento. Jan, pelo menos, foi, de certa forma, educado. Irritado, o archigos saiu em um rompante, e eles ouviram Semini reclamar pelo acampamento pelas próximas viradas da ampulheta.

Conforme o contingente firenzciano desmontava e criados recolhiam as armas e os cavalos e ofereciam comidas e bebidas, os representantes de Nessântico aproximaram-se. Sergei apertou afetuosamente o braço de co’Ulcai e sorriu para seu offizier de longa data. — Aubri, eu gostaria que pudéssemos ter nos encontrado sob circunstâncias melhores. Eu soube o que aconteceu com o pobre Aris... — Ele apertou o ombro do homem e fez o sinal de Cénzi para o u’téni Petros co’Magnaoi. — Petros, é bom vê-lo também. Como está o archigos Kenne?

— Está bem, senhor, e lhe manda bênçãos — respondeu o homem mais velho.

Sergei inclinou-se para perto do u’téni ao abraçá-lo. — Kenne recebeu minha mensagem? — sussurrou o regente no ouvido do velho. — Ele concorda? — Sergei sentiu o leve aceno de Petros. Também viu os olhares de avaliação de ambas as delegações sobre ele ao cumprimentar os dois homens: tanto de Allesandra quanto de Odil ca’Mazzak. Ambos tinham suspeitas; ambos tinham o direito de ter. Sergei acenou com a cabeça para ca’Mazzak e sentou-se à esquerda de Allesandra.

O conselheiro gesticulou, e pajens aproximaram-se para entregar rolos pesados de pergaminhos a Allesandra, Sergei e ao starkkapitän. — Esta é a oferta da kraljica Sigourney — falou ca’Mazzak enquanto o trio lia as palavras presentes ali. — Seu exército terá permissão para retornar a Firenzcia. O fora da lei Sergei Rudka será entregue a nós. Reparações serão pagas por Brezno para os Domínios pela destruição de colheitas e gado feita por seu exército e pela violação do Tratado de Passe a’Fiume. Se os senhores acharem os termos aceitáveis, só é necessário que a a’hïrzg assine como representante da Coalizão.

Não era mais do que Sergei esperava. Ele já testemunhara a arrogância e o excesso de confiança dos Domínios muitas vezes antes.

O starkkapitän ca’Damont bufou desdenhosamente pelo nariz e jogou o pergaminho na mesa. — E como a kraljica pretende executar essa oferta, conselheiro? Com os poucos batalhões que o senhor deu ao comandante co’Ulcai? Não tenho nada além de respeito pelo comandante, que é um belo offizier, mas não se afasta um urso raivoso com um graveto. — Ele pareceu se dar conta de que falou o que não devia. O rosto ficou um pouco vermelho. — Perdão, a’hïrzg. Eu sou um simples offizier, mas essas exigências... — Ele empurrou o pergaminho da mesa para o chão; um pajem correu para pegá-lo, mas não o devolveu ao starkkapitän.

— A Garde Civile e os chevarittai dos Domínios não são um graveto, starkkapitän — gabou-se ca’Mazzak. Ele inchou como um sapo, sentado ereto na cadeira, a papada no pescoço grosso tremeu. — O senhor subestima nossa capacidade de botar um exército em campo rapidamente quando nossas terras são ameaçadas. É uma lição que o último hïrzg Jan aprendeu; estou surpreso que alguém em Firenzcia sinta necessidade de aprendê-la uma segunda vez.

Allesandra parecia ainda estar lendo a proposta, embora Sergei tenha notado que ela escutava com atenção o diálogo. A a’hïrzg pousou o papel diante de si e dobrou as mãos sobre ele. — Muito bem. Deixemos a pose de lado, conselheiro ca’Mazzak. Todos sabemos que Nessântico enfrenta uma ameaça a oeste. Sabemos o que aconteceu com Karnor; ouvimos rumores que Villembouchure pode ter sofrido o mesmo destino. Talvez o comandante co’Ulcai possa nos esclarecer sobre isso, uma vez que eu espero que ele tenha estado lá quando as forças dos Domínios foram escorraçadas? Todo mundo nesta mesa sabe que o senhor não tem forças suficientes para nos desafiar aqui. Então o que é que a kraljica realmente oferece?

Sergei havia sugerido esse curso direto de ação para Allesandra, mas a provocação a Aubri co’Ulcai tinha sido contribuição da própria a’hïrzg. A expressão no rosto de Aubri foi o suficiente para confirmar que o palpite dela estava correto, e Sergei sentiu uma pontada de compaixão pelo amigo.

Ca’Mazzak parecia ter engolido uma fruta podre. Ele deu uma olhadela para Petros, que parecia examinar os campos além do limite da tenda, e depois para Aubri. — A kraljica está preparada para oferecer um meio-termo — falou o conselheiro finalmente. — Que o hïrzg e a a’hïrzg voltem para Brezno com a Garde Brezno; no entanto, o starkkapitän ca’Damont e o restante do exército ficam para trás, a fim de auxiliar na defesa de Nessântico contra os ocidentais, ajuda pela qual o tesouro de Nessântico está disposto a pagar. Quanto ao antigo regente... — ca’Mazzak olhou com ódio para Sergei. — A kraljica Sigourney mantém a exigência do retorno de Sergei Rudka para que enfrente as acusações contra ele, não importa o acordo a que cheguemos aqui.

Allesandra ficou de pé ao ouvir isso; um momento depois, Sergei, ca’Damont e o resto do contingente firenzciano acompanhou o gesto. — Então estamos encerrados aqui — disse a a’hïrzg. — O regente ca’Rudka é um conselheiro da coroa de Firenzcia, e nós o consideramos o legítimo governante atual de Nessântico até que um kralji de direito seja nomeado. Se o regente ca’Rudka desejar retornar à Nessântico por conta própria para lutar por seu direito, ele pode fazê-lo. Caso contrário, ele está sob a proteção do hïrzg, não importa o que a pessoa que os senhores nomearam kraljica deseje. — Ela fez uma mesura para ca’Mazzak e gesticulou. Sergei deu um largo sorriso para o homem. Eles deram meia-volta para ir embora.

— Esperem! — Foi Petros que os chamou. Allesandra parou.

— U’téni? — perguntou a a’hïrzg, mas ca’Mazzak já vociferava.

— Eu estou no comando dessa delegação — falou o conselheiro. — Você fala quando eu lhe der permissão, u’téni co’Magnaoi.

— Cénzi está no comando da minha consciência — disse Petros. — Não o senhor, nem a kraljica Sigourney. E eu falarei. A’hïrzg, Nessântico está em uma situação desesperadora. O comandante co’Ulcai poderia lhe dizer, se tivesse permissão para falar, com que facilidade os ocidentais tomaram os vilarejos e as cidades que eles devastaram. Nessântico precisa desesperadamente de todos os aliados que conseguir reunir agora. O archigos Kenne está preparado para negociar separadamente da kraljica, se for necessário, para alcançar esse objetivo.

— O quê? — esbravejou ca’Mazzak. Ele também estava de pé agora e socou a mesa. — Não, não, não. Estamos encerrados aqui. U’téni co’Magnaoi, você será levado de volta à cidade para responder por isso. Comandante, mande seus gardai...

Sergei deu um tapa na mesa bem na frente de ca’Mazzak, o homem fechou a boca com um estalo alto. — O senhor não é nada além do cachorrinho bravo da kraljica, conselheiro — disse o regente ao se inclinar na direção do homem. — Sente-se.

Ca’Mazzak o olhou com ódio e virou-se para Aubri. — Comandante, o senhor tem as suas ordens. O senhor prenderá o u’téni imediatamente.

Aubri não se mexeu, não respondeu. Sergei sentiu a tensão aumentar na tenda. Viu mãos deslizarem cautelosamente na direção das armas escondidas — ele mesmo tinha as próprias facas, uma na bota, outra debaixo da blusa da bashta, e o zumbido do próprio medo ecoava em seus ouvidos. O regente não conseguira contatar Aubri antecipadamente, e se o comandante tivesse decidido que sua lealdade ao Trono do Sol era maior do que a velha lealdade a Sergei, então... Bem, então Sergei não sabia o que poderia acontecer aqui.

— Comandante co’Ulcai, isso é traição — rosnou ca’Mazzak. — Vou exigir sua cabeça por isso, se não fizer como mandei.

Aubri não disse nada; o olhar contemplativo continuava em Sergei. Os chevarittai de ambos os lados ficaram tensos, prontos para agir. Sergei colocou-se entre Allesandra e a mesa e falou — Eu sugiro que o senhor se sente, conselheiro. Deixe o u’téni co’Magnaoi terminar de explicar sua proposta.

Por vários instantes, ca’Mazzak não se mexeu. Ele olhou em volta da tenda lentamente, Sergei sabia que o conselheiro estava avaliando quem ali o seguiria ou não. Evidentemente, o homem não ficou satisfeito com o resultado. Devagar, ca’Mazzak sentou-se novamente. Ele olhou fixamente para as próprias mãos.

— Ótimo — disse Sergei. Por um momento, o zumbido nos ouvidos diminuiu. — Petros, o que o archigos Kenne tem a oferecer para Firenzcia?

— Informação — respondeu Petros. — Nós temos provas de que o archigos Semini esteve envolvido no assassinato da archigos Ana. Podemos dar nomes que verificam essa informação. — Atrás dele, Sergei ouviu Allesandra tomar fôlego diante da acusação. O regente ficou intrigado com a reação; ela parecia mais preocupada do que surpresa. — Como o kraljiki Audric foi morto da mesma maneira — continuou Petros —, nós suspeitamos que o falso archigos esteve envolvido da mesma maneira. Se o hïrzg Jan estiver disposto a julgar o archigos Semini pela morte da archigos Ana em sua própria corte, nós daremos as provas que temos. Em troca, a Fé de Nessântico trabalhará com a Fé de Brezno para restaurar o nosso racha; o archigos Kenne irá convocar um Conclave com todos os a’ténis para eleger um único archigos para reger a fé concénziana, e também abdicará voluntariamente se não for eleito; porém, qualquer archigos eleito deverá assumir o Templo do Archigos em Nessântico, não em Brezno. Da mesma forma, a Fé está disposta a reconhecer o direito ao Trono do Sol de Allesandra ca’Vörl. O archigos Kenne irá apoiá-la diante do Conselho dos Ca’ contra a kraljica Sigourney.

— Não! — Ca’Mazzak ficou de pé em um pulo novamente, e uma baba voou de sua boca com a explosão da palavra. — O archigos Kenne será jogado na Bastida por isso, e os ténis que o apoiarem serão expulsos...

— Se isso acontecer — respondeu Petros calmamente —, então o archigos Kenne mandará que os ténis-guerreiros permaneçam nos templos em vez de responderem ao chamado da kraljica. Como a Garde Civile e os chevarittai se sairão contra os ocidentais sem os ténis-guerreiros, conselheiro? Como enfrentarão o exército do hïrzg?

Novamente, ca’Mazzak desmoronou na cadeira. Ele sentiu um arrepio, como se estivesse com febre e alisou a papada. A testa porejava, e debaixo dos braços, o tecido da bashta escureceu.

Allesandra tocou o ombro de Sergei, que se afastou. A a’hïrzg deu um sorriso amargo e fez o sinal de Cénzi para Petros. — Vocês oferecem tudo isso pelo julgamento do archigos Semini?

Petros concordou com a cabeça. — Nós confiamos que a corte do hïrzg será justa e imparcial. E há mais uma coisa: toda perseguição contra os numetodos deve parar. Imediatamente. Os numetodos são inocentes em toda esta questão. O embaixador Karl ca’Vliomani deve retomar o antigo cargo.

Sergei sentiu que as negociações dependeriam da resposta de Allesandra a essa última exigência. Ela tocava o globo partido de Cénzi pendurado no pescoço. Sua própria vida dependia disso também, assim como a de Petros e Aubri. Se ele avaliou errado...

— Eu falarei com meu filho — respondeu a a’hïrzg. — Repetirei tudo o que foi dito aqui. — Sergei achou, por um momento, que essa seria toda a resposta, que ele havia perdido. Mas Allesandra respirou fundo e disse — Vou sugerir que o hïrzg aceite a oferta do archigos. Conselheiro ca’Mazzak, comandante, u’téni, nós voltaremos à tenda de negociação em três viradas da ampulheta para dar nossa resposta.


— Se o archigos Kenne tem provas, eu irei avaliá-las — falou Allesandra para Sergei ao voltarem. — E se o archigos Semini for o responsável pela morte de Ana ca’Seranta, então... — Ela franziu os lábios com força. — Então estou inclinada a convencer meu filho a aceitar a oferta do archigos.

De alguma forma, a a’hïrzg pareceu ter feito exatamente isso, embora Sergei não tenha estado presente à discussão, e embora todo mundo no acampamento tenha ouvido as ocasionais vozes exaltadas na tenda do hïrzg. O regente notou, principalmente, que o starkkapitän ca’Damont colocou gardai postados em volta da tenda do archigos.

Ele se perguntou o que estaria acontecendo no outro acampamento. Tudo dependia das lealdades da Garde Civile e dos ténis — e Sergei não tinha certeza de como aquilo terminaria. O regente rezou para Cénzi, na esperança de que Ele escutasse.

Três viradas da ampulheta depois, Sergei, Allesandra e os demais cavalgaram na direção da tenda de negociação.

Há décadas, quando ele era o comandante da Garde Kralji, Sergei às vezes sentia um arrepio ao se aproximar da Bastida a’Drago: um tremor na espinha, quase parecido com medo, que lhe dizia quando havia algo errado no complexo atrás do crânio sorridente do dragão.

O regente sentiu aquele arrepio agora, conforme o pequeno destacamento se aproximava da tenda de negociação. Antes de mais nada, foi curioso que não houvesse nenhum criado andando de um lado para o outro, que as cadeiras do lado de Nessântico na mesa estivessem vazias. Mas o que deteve Sergei, o que deu um nó no estômago, foi perceber que havia alguma coisa sobre a mesa — duas coisas, dois objetos arredondados escondidos sob a sombra da lona que tremulava na brisa. Infelizmente, Sergei sabia o que estava ali.

— Espere um momento, a’hïrzg — falou ele. — Por favor, espere aqui.

Sergei fez o cavalo ir à frente sozinho e gesticulou para o starkkapitän ca’Damont segui-lo. Ele apertou os velhos olhos para forçá-los a distinguir o que havia sobre a mesa. Ao se aproximar, ouviu um leve zumbido que ficou mais alto aos poucos: o barulho de insetos.

O regente entendeu, naquele momento, e a bile subiu à garganta. Ele parou o cavalo, desceu da sela e entrou na sombra da tenda.

Sobre a mesa havia duas cabeças, com uma poça de sangue coagulado e grudento debaixo delas e um tapete de moscas que andavam sobre os olhos abertos e dentro das bocas escancaradas.

Sergei ficou de joelhos e fez o sinal de Cénzi na direção da cena horripilante. — Aubri. Petros. Sinto muito. Sinto muitíssimo.

Trêmulo, o regente ficou de pé novamente e retornou ao cavalo. Ele cavalgou em silêncio até os demais. O olhar de Allesandra questionou Sergei; ela também sabia. O regente viu na maneira com que a a’hïrzg levou a mão à boca antes dele sequer falar.

— O conselheiro ca’Mazzak deixou sua própria resposta para nós — disse Sergei. — Parece que ele não se importa com qual seria nossa resposta.

 

Nico Morel

NICO NÃO CONSEGUIA ficar sentado quieto. O menino jamais havia imaginado um lugar tão grande, glorioso e interessante quanto esse. Eles foram conduzidos a um gabinete em um dos prédios que rodeavam a Praça a’Archigos; a recepção em si era maior do que o apartamento de dois cômodos que eles tinham no Velho Distrito e havia pelo menos três portas que levavam a outros aposentos que Nico só conseguia imaginar. Ele vislumbrou um quarto quando um criado entrou com roupas de cama na mão, e o aposento parecia enorme, além dos limites. O gabinete para onde eles foram levados teria abrigado a casa de Nico, assim como aquelas dos vizinhos mais próximos. O teto parecia tão alto e tão branco quanto as nuvens de verão; o piso era um mosaico intrincado de várias madeiras coloridas, e as paredes eram cobertas por tapeçarias lindas, que mostravam a história da vida de Cénzi, a moldura no topo das paredes era entalhada e dourada. Atrás da enorme mesa de mogno, uma sacada dava vista para uma grande praça, com a silhueta do Templo do Archigos emoldurada pelas cortinas abertas. O resto da mobília na sala chamava tanto a atenção quanto a mesa — uma mesa comprida e lustrosa para reuniões, com cadeiras estofadas ao redor; um sofá colocado diante de uma lareira em que a família inteira de Nico poderia ficar em pé dentro, cercada por um belo consolo; um globo entalhado e partido que era mais alto que dois homens, um em cima do outro, com figuras esculpidas dos moitidis em volta dele e uma base cravejada de joias e folheada de ouro reluzente. Ao redor das paredes, havia mesas repletas de lindas maravilhas do exterior: estátuas de animais desconhecidos; uma pedra grande quebrada ao meio, com o miolo cheio de belos cristais violeta; conchas cor-de-rosa e espinhentas do Strettosei...

Nico piscava e olhava fixamente para tudo. — Tudo isso aqui é só para o senhor? — perguntou o menino para o archigos, maravilhado.

— Nico, silêncio — disse a matarh, mas o velho no robe verde apenas riu.

— É para o archigos, seja ele quem for — falou o homem. — Eu vivo aqui apenas temporariamente, até que Cénzi me chame de volta para Ele. Era aqui que a archigos Ana vivia também. — Ele deu um tapinha na cabeça de Nico, e os criados trouxeram bandejas de comida e bebidas e colocaram sobre a mesa. O archigos gesticulou para eles assim que terminaram e disse — Isso é tudo. Por favor, cuidem para que não sejamos incomodados. Mandem minha carruagem para a porta dos fundos uma virada da ampulheta antes da Terceira Chamada. — Eles fizeram uma mesura e foram embora. — Sirvam-se — disse o homem quando o último dos criados fechou as portas duplas ao sair do gabinete. — Karl? Parece que uma boa refeição cairia bem a todos vocês. — Nico olhava fixamente para a comida, e o archigos riu de novo. — Vamos, Nico. Você não precisa esperar.

O menino olhou de relance para a matarh e Talis, que deu de ombros. — Tudo bem — falou a matarh. — Vá em frente...

Nico foi em frente. Um bolinho de grãos com pingos de mel foi a primeira coisa que colocou na boca. Os adultos não pareciam estar com tanta fome quanto ele, o que era estranho. Nem Talis, Karl ou Varina foram à mesa, e sua matarh beliscava a esmo um peito de pato. Em vez disso, eles se amontoaram perto do sofá, em frente à lareira.

— Archigos — Nico ouviu Karl dizer —, Ana ficaria muitíssimo orgulhosa de você. Todos nós lhe devemos agradecimentos.

— Os agradecimentos são para você, Karl. Se você não tivesse vindo até mim, se não me dissesse o que sabia... Bem, não tenho certeza do que teria acontecido. De qualquer forma, eu talvez tenha colocado você em mais perigo, não em menos. A kraljica está furiosa, pelo que eu soube, e assim que o conselheiro ca’Mazzak retornar da negociação com os firenzcianos, eu desconfio que ela ficará ainda menos contente comigo. Nenhum de nós tem como saber o que acontecerá diante dessa situação; por isso precisamos conversar hoje à noite. Não há muito tempo; é possível que um mensageiro já esteja voltando para a cidade. — Nico ouviu o archigos perder a voz. Ele virou-se com um pedaço de pão e queijo na mão. — Este é o ocidental? — perguntou Kenne ao apontar com a cabeça na direção de Talis, que mantinha as duas mãos na bengala que sempre carregava. Nico viu o ar tremular em volta da madeira como se a bengala estivesse em chamas, mas era um fogo mais frio que a neve do inverno passado.

— Sim, archigos — respondeu Karl. — Este é Talis Posti. O vatarh de Nico.

— Ah — falou Kenne. — Vajiki Posti, eu também lhe devo agradecimentos; embora deva me desculpar por querer saber o motivo pelo qual você decidiu me ajudar.

— Porque eu vislumbrei os futuros, e nenhum deles leva a um bom lugar para o meu povo — respondeu Talis, e Nico viu seu interesse aumentar ao ouvir aquilo. Talis podia ver o futuro? Isso seria interessante. Ora, se ele pudesse fazer isso, Nico poderia se ver como adulto, talvez ver o que aconteceria com ele... O menino percebeu que suas mãos se moviam por conta própria em uma estranha dança, os dedos grudentos mexiam-se pelo ar, e palavras desconhecidas vieram a ele. Nico murmurou tão baixinho que nenhum dos demais ouviu. O frio da bengala de Talis parecia fluir na direção de suas mãos; ele sentia o arrepio nos braços.

— Você tem aquele dom dos deuses? — perguntou Kenne para Talis, que ergueu as sobrancelhas e olhou para Karl.

— Mahri alegava que podia fazer o mesmo — falou o embaixador. Isso também fez Nico prestar atenção; ele lembrou-se que Talis mencionara o nome anteriormente. — Não que tivesse lhe servido de alguma coisa no fim das contas.

— Não são visões do futuro que Axat nos permite vislumbrar, mas todas as possibilidades que existem. Os vislumbres de futuros em potencial não são fáceis de ler, embora fosse dito que Mahri era capaz de usar o talento melhor do que qualquer um antes ou depois dele. E sim, parece que o talento o desapontou, no fim das contas. — Um breve sorriso passou pelo rosto de Talis. — Talvez tenha sido a proximidade com o seu Cénzi.

Kenne riu; Nico gostou do som, fez com que gostasse do homem. O frio envolveu seus braços agora, embora as mãos tivessem parado de dançar.

— Você está disposto a nos ajudar... — o archigos Kenne abriu os braços para incluir Karl e Varina, e o resto da cidade do lado de fora da sacada — ... quando isso significa que você poderia ajudar a derrotar as forças do seu próprio povo?

— Sim — respondeu Talis —, porque Axat me disse que, ao fazer isso, eu ajudarei meu povo.

O frio congelava os braços de Nico e estava ficando pesado. Ele não sabia o que fazer com aquilo, mas tremia com o esforço de segurá-lo, e a dor quase fez com que gritasse. — Às vezes seu inimigo torna-se seu aliado — dizia Varina para o archigos. — Eu sei...

— Nico! — A voz da matarh foi quase um berro. — O que você está fazendo? — O menino tomou um susto quando Serafina agarrou seu ombro, e o frio saiu voando do corpo. Ao fugir, a energia reluziu e flamejou, como uma língua de fogo azul. A rajada foi disparada por ele, varou o espaço entre Talis e o archigos e se dirigiu para a escultura do globo partido, no canto do gabinete. Nico soluçou, assustado tanto pela sensação de alívio quanto de puro terror diante do que tinha acabado de lançar. Varina, que estava a alguns passos do archigos, gesticulou e falou uma única palavra ríspida; com o movimento, Nico viu a linha de fogo azul fazer uma curva e dar meia-volta. A rajada fez um arco ao se afastar da escultura, cuspiu fagulhas cor de safira sobre a mesa envernizada e saiu assobiando pelas portas abertas da sacada. Bem acima da praça, o fogo concentrou-se e explodiu: um globo azul-claro que brilhou como um relâmpago congelado. Com a explosão, veio o estrondo ensurdecedor de um trovão que ecoou nas paredes dos prédios que circundavam a praça. Nico sentiu as janelas tremerem e chacoalharem nas ombreiras e ouviu vidro se quebrando ao longe.

— Nico! — O menino foi abraçado pela matarh. — Nico... — repetiu ela, com mais gentileza dessa vez. Serafina abraçou o filho com mais força, que não tinha certeza se era para ser um abraço ou um estrangulamento. Todos olhavam fixamente para ele.

— Desculpem — falou Nico. — Eu não tinha a intenção de.

Ele começou a chorar.

 

Karl Vliomani

— DESCULPEM — falou Nico. O lábio inferior tremia, e as próximas palavras mal haviam saído antes que os ombros começassem a tremer por causa dos soluços. — Eu não tinha a intenção de...

Serafina olhava fixamente sobre os ombros do menino ao abraçá-lo, seus olhos estavam arregalados e aterrorizados. Lá fora, na praça, eles escutaram gritos ao longe quando os transeuntes começaram a procurar pela fonte da claridade trovejante. Karl ouviu Varina suspirar de alívio atrás de si. — Se ele estivesse um pouquinho para um lado, ou para o outro... — disse Karl.

— Ele não estava — respondeu Varina, que se ajoelhou na frente do menino e acenou com a cabeça para Serafina. — Está tudo bem, Nico. Ninguém se machucou. Está tudo bem. — Ela olhou para Karl, atrás dela. — Está tudo bem — repetiu. O menino fungou e esfregou a manga no nariz e nos olhos.

Karl suspirou e sorriu: para Varina, para Nico e para Serafina. — Sim, está tudo bem, graças a Varina. Talis, você sabia...?

— Eu suspeitava, mas... — Ele segurava o cajado mágico e o olhava confuso, como se fosse um copo subitamente vazio. — Agora eu sei. Archigos, o senhor está...?

Kenne abanou a mão, como se não fosse nada, mas Karl notou que o peito do homem ainda ofegava. — Eu estou bem — disse o archigos. — E impressionado. Seu filho é um dos poucos talentos naturais que conheci. O archigos Dhosti foi um, e Ana, também. Com treinamento, bem...

— Eu o treinarei. — A resposta do homem veio acompanhada por uma cara fechada. Ele pegou o cajado mágico com força. — Esse é o dom de Axat, não de Cénzi.

— É claro — falou Kenne para Talis, mas o olhar permaneceu em Nico. — Não se preocupe — disse o archigos para o menino. — Ninguém aqui está com raiva de você, entendeu? — Nico concordou com a cabeça, ainda fungando o nariz.

— Se eu soubesse disso, teria sido bem mais cauteloso quando me aproximei de você pela primeira vez — falou Karl para Talis. — Mas, como não aconteceu nenhum mal... Nós ainda temos planos e contingências em que pensar. Archigos, Petros está pronto para fazer a proposta que conversamos para Firenzcia?

Kenne concordou com a cabeça, com mais hesitação do que Karl gostaria, mas ao menos foi uma confirmação. Na verdade, ele teve medo de que o archigos não levasse o plano adiante, especialmente dado o perigo inegável em que Petros foi colocado. — Ele está pronto. — A voz de Kenne tremeu um pouco; medo combinado com idade, decidiu Karl. — Na verdade, Petros já deve ter feito a proposta a essa altura.

— Ótimo — disse Karl. Ele deu um tapinha no ombro de Kenne e falou — Ele ficará bem e voltará para você em breve. Agora, da parte de Talis, ele trará os materiais dos aposentos de Uly para o templo amanhã, e nós podemos começar a preparar a areia negra para a demonstração. Isso deve mostrar a esse tal tecuhtli dos ocidentais que atacar a cidade seria idiotice. Nós podemos prevenir centenas, se não milhares, de mortes.


A carruagem do archigos era um truque — quatro criados de Kenne entraram no veículo quando ele parou na entrada dos fundos do prédio, enquanto Karl e os demais desceram correndo uma escada dos fundos na direção de uma entrada de serviço pouco usada. Nenhum deles sabia se o subterfúgio era necessário; Karl torcia para que não fosse, porém, caso fosse, então nenhuma alternativa que eles prepararam se tornaria realidade.

O grupo começou a sair correndo da praça em direção à Avi. Kenne dera a eles dinheiro suficiente para alugarem uma das carruagens e levá-los de volta ao Velho Distrito. Conforme passaram pela rua, Karl e os demais viram três esquadrões distintos de Garde Kralji cruzarem a Praça do Archigos correndo. — Esperem um momento — falou o embaixador. Talis, Serafina e Nico já estavam na Avi à procura de uma carruagem para alugar; Varina, um pouco à frente dele, parou. Quando Karl hesitou, no limite da praça, ele e Varina viram dois dos esquadrões entrarem no prédio de onde eles acabaram de sair; o outro esquadrão entrou no Templo do Archigos.

As armas estavam desembainhadas, o aço reluzia sob a luz das lâmpadas.

— Karl? O que está acontecendo?

— Não sei, Varina. Acho que eu deveria voltar. Leve os demais. Eu vou...

— Não — disse Varina com firmeza. Ela voltou até onde o embaixador estava e segurou o braço dele. — Não, Karl. Não dessa vez. Mesmo disfarçado, seu rosto é muito reconhecível pela Garde Kralji, e há vários deles, de todo modo. Você não sabe por que os gardai estão lá; pode não ser nada. Provavelmente não é nada. E caso não seja... — Varina mordeu o lábio inferior. Os olhos imploraram. — Você precisa deixar o archigos cuidar de si mesmo. Venha comigo. Por favor.

— Mas se as coisas deram errado...

— Se as coisas deram errado, você não pode mudá-las agora. Nós não podemos mudá-las. Tudo que aconteceria é que você estaria perdido também. — O braço apertou o dele. — Por favor, Karl. Vamos embora. Se houver um problema, nós conseguiremos ajudar mais o archigos se estivermos vivos do que se formos jogados na Bastida com ele. Nós soltamos Sergei; podemos fazer o mesmo novamente se precisarmos. Karl... — Varina encostou a cabeça no ombro dele. — Se você voltar, então eu irei com você. Mas essa é a decisão errada. Tenho certeza.

Karl olhou fixamente para os prédios e desejou que pudesse ver a sacada de Kenne dali. Tudo estava em paz; as pessoas ainda andavam pela praça como se nada estivesse acontecendo. Mas ele sabia. Ele sabia.

E também sabia que Varina estava certa. Ele não podia mudar nada. Karl olhou para trás. Talis chamou uma carruagem com um gesto e olhava para os dois com curiosidade. Uma mulher, que estava vestida com roupas pobres demais para esta parte da cidade, o que era estranho, passou correndo por eles vindo da direção da praça. Ao passar, ela pareceu tropeçar e esbarrar de leve em Karl. — Desculpe, vajiki — murmurou a mulher. — A voz... parecia vagamente familiar, mas ela manteve o capuz da tashta erguido e a cabeça baixa. Ele vislumbrou o cabelo castanho e sujo. — Vai ser uma noite ruim. Uma noite ruim. O senhor realmente deveria correr para casa...

Ela foi embora depressa.

Karl olhou fixamente a mulher, que desapareceu do outro lado da carruagem à espera. Talis acenava para eles. Foi aí que Karl lembrou-se de onde ouvira aquela voz.

— Tudo bem — disse ele para Varina. — Vamos embora.

 

A Batalha Começa: Kenne ca’Fionta

— INFELIZMENTE seu pobre Petros está morto. É uma pena.

Kenne ouviu as palavras, e os velhos olhos embaçaram com as lágrimas, embora ele já soubesse que Petros estava morto. Ele sentira em seu coração quando a Garde Kralji veio e o levou para a Bastida. Só lhe restava torcer para que Karl e o resto tivessem escapado da varredura; eles foram embora com apenas algumas marcas da ampulheta de antecedência. O gosto da mordaça de metal e couro era horrível; os grilhões que prendiam as mãos eram tão pesados que ele mal conseguia levantá-los do colo.

O rosto deformado da kraljica Sigourney encarava o archigos de cima. Kenne sustentou o olhar caolho dela por apenas alguns instantes, enquanto respirava através do horrível aparato sobre a cabeça, depois abaixou o próprio olhar, arrasado e derrotado. Entre as pernas, as mãos algemadas mexiam inquietas na palha da cama tosca onde ele estava sentado na cela, no alto da torre principal da Bastida. A voz da kraljica era solidária, quase triste. — Você é um bom homem, Kenne. Sempre foi. Mas era fraco demais para ser archigos. Deveria ter recusado o título e dito ao Colégio A’téni para eleger outra pessoa.

Kenne só podia concordar com a cabeça. Havia muitas noites ultimamente que em ele desejava exatamente a mesma coisa.

— Você devia saber que isto aconteceria, Kenne. Você escolheu se associar aos inimigos dos Domínios. Devia saber. E agora...

Ela mancou até a única janela da cela e apoiou-se na muleta acolchoada e dourada, enquanto a perna direita ficava pendurada sobre o vazio abaixo do joelho. A janela dava vista para oeste, Kenne sabia; na parede oposta à janela, ele tinha visto a luz do sol ficar amarela, depois vermelha e então púrpura ao subir sobre pedras úmidas até sumir. — Venha cá. — falou Sigourney. — Venha cá e veja.

Ele levantou-se da cama com dificuldade; era um velho arrasado agora, na verdade. Arrastou os pés até a janela enquanto a kraljica esperava ao lado. Lá fora, debaixo de um belo céu azul, Kenne viu o A’Sele reluzir sob o sol enquanto cortava a cidade em direção ao mar. Perto de onde o rio virava para o sul, ele viu dezenas de velas reunidas. Do outro lado do A’Sele, onde antigamente havia fazendas e propriedades dos ca’ e co’, a terra estava agitada por uma invasão sombria que não estava lá ontem. — Está vendo? Está vendo o exército ocidental se aproximar? Aquelas são as pessoas pelas quais você traiu os Domínios, archigos. São as pessoas que o deixaram tão assustado que você tentou fazer um pacto com os cães firenzcianos contra mim. — A voz assumiu um tom mais agressivo agora, o único olho atacava Kenne. — Aquelas são as criaturas desprezíveis que mataram meu irmão. São os vilões que destruíram nossas cidades e nossos vilarejos. Quer você acredite ou não, tenho certeza de que também são as pessoas que mataram Audric e me transformaram nesse horror. Será que eu odeio os ocidentais? Ah, você não pode imaginar o quanto. Observe, e você verá os bons chevarittai dos Domínios escorraçá-los, e depois nós cuidaremos de seus amigos firenzcianos também. Em breve, o combate começará. E você vai nos ajudar, Kenne.

Ele virou a cabeça amordaçada na direção de Sigourney, com uma expressão de curiosidade. Ela riu. — Ah, você vai. Nós temos que ter os ténis-guerreiros, afinal, e temos que garantir que eles entendam que seu archigos agora se arrepende de sua horrível traição e que deseja que todos os ténis da fé concénziana ajudem Nessântico nesta ocasião terrível da maneira que puderem. É o que você deseja mesmo, não é, archigos?

Kenne só podia encará-la, mudo.

— Você acha que não? Bem, a proclamação já está escrita; só precisa de sua assinatura. E quer você queira ou não, eu terei essa assinatura. Você foi amigo de Sergei Rudka, afinal; deve saber que a Bastida sempre consegue as confissões que deseja.

Mesmo com aquele horrível aparato preso ao rosto, Kenne não conseguiu esconder a expressão de horror e percebeu o sorriso da kraljica diante de sua reação. — Ótimo — falou Sigourney. — Vou refletir sobre o seu sofrimento quando o capitão me entregar sua confissão.

A kraljica gesticulou para os gardai do lado de fora da cela e disse — Ele está pronto. Cuidem para que receba sua hospitalidade integralmente.

 

A Batalha Começa: Niente

A CIDADE ERGUIA FLANCOS DE PEDRA sobre morros baixos; as torres e os domos lotavam a grande ilha no centro do rio de modo que parecia uma pedra coberta por cracas. A metrópole saltara para fora do confinamento do cinturão das muralhas, magnífica, orgulhosa e destemida, os campos ao redor eram cheios de grãos e colheitas que alimentavam a aglomeração de habitantes. Essa cidade... Ela era a rival de Tlaxcala, de certa forma menor, porém mais populosa e comprimida, com uma arquitetura estranha. Nas cidades de sua terra natal, prevaleciam as pirâmides dos templos de Axat, Sakal e dos Quatro; aqui em Nessântico, o que era mais visível eram as torres dos grandes edifícios e os domos dourados dos templos.

Tão estrangeiro. Tão estranho. Niente não queria nada além de ver locais conhecidos novamente e temia que jamais os veria.

Ele olhou para Nessântico e sentiu um arrepio, mas não viu a mesma reação no tecuhtli Zolin. O tecuhtli, ao contrário, estava no morro que dava vista para o rio e a cidade. Zolin cruzou os braços e deu um sorriso com os lábios fechados. — Isso é nosso — disse ele. — Olhe para a cidade. Ela é nossa.

Niente se perguntou se o homem ao menos notou as grandes fileiras de tropas orientais dispostas ao longo da estrada, se contou os barcos que apinhavam o rio, se percebeu os preparativos para guerra na periferia oeste da cidade.

— O que você me diz, Niente? — perguntou Zolin. — Será que descansaremos amanhã à noite neste lugar?

— Se for a vontade de Axat — respondeu Niente, e Zolin gargalhou.

— É a minha vontade que importa, nahual. Você ainda não compreendeu isso? — Ele não deu tempo para Niente responder; não que houvesse alguma resposta que o nahual pudesse dar. — Vá. Cuide para que os nahualli estejam prontos e que o resto da areia negra tenha sido preparado para os ataques iniciais. E mande Citlali e Mazatl até mim. Começaremos hoje à noite. Vamos mantê-los acordados e exaustos; depois, quando Sakal colocar o sol no céu, atacaremos como uma tempestade. — Zolin olhou fixamente para a cidade por mais um instante, depois se virou para Niente. Quase com carinho, colocou a mão em seu ombro. — Você verá sua família novamente, nahual. Eu prometo. Mas, primeiro, temos que dar uma lição nesses orientais por sua insensatez. Olhe em sua tigela premonitória, Niente. Você verá que estou certo. Verá sim.

— Com certeza eu verei, tecuhtli.

Mas Niente já sabia o que veria. Ele tinha vislumbrado na manhã de hoje, enquanto eles se aproximavam desse lugar.

O nahual havia rogado a Axat e olhado na tigela, e ele não ousaria olhar novamente.

 

A Batalha Começa: Sergei ca’Rudka

PELA MAIOR PARTE DA MANHÃ, Sergei cavalgou sozinho no meio das tropas firenzcianas, perdido em reflexões que mantinham afastada — pelo menos um pouco — a dor crescente nas costas, provocada pela longa cavalgada. E o corpo não estava mais acostumado a longos dias na sela, nem a tardes passadas debaixo de uma tenda.

Você está ficando velho. Não estará aqui por muito tempo mais, e tem tanto o que fazer ainda.

— Regente, quero falar com você.

Diante do chamado, Sergei virou o olhar e viu o garanhão com as cores de Firenzcia que parou ao seu lado sem ser notado. Velho. Antigamente, você jamais teria deixado de perceber a aproximação. — É claro, hïrzg Jan — falou ele.

O menino trouxe o garanhão mais para perto da baia de montagem de Sergei. A montaria do regente mexeu as orelhas nervosamente e revirou os olhos diante do cavalo de guerra bem maior do que ela. Jan não disse nada, a princípio, e Sergei aguardou enquanto eles prosseguiam pela Avi levantando uma nuvem de poeira em volta dos dois. O exército aproximava-se de Carrefour, com Nessântico a um bom dia de marcha de distância. As forças de Nessântico desapareceram, sumiram; foram embora na tarde da negociação. — A matarh disse que você perdeu dois bons amigos — falou Jan finalmente.

— Perdi sim. Aubri co’Ulcai fez parte da minha equipe por muitos anos, tanto na Garde Kralji quando na Garde Civile, antes de eu ser nomeado regente. Ele era um bom homem e um excelente soldado. Eu não consigo nem pensar em falar com a esposa e os filhos dele para contar o que aconteceu, muito menos para dizer que a lealdade a mim foi a responsável pela morte de Aubri. — Sergei esfregou o nariz de metal, a cola repuxou a pele quando ele fechou a cara. — Quanto a Petros... bem, não havia pessoa mais gentil no mundo, e sei como a amizade dele era importante para o archigos. Não sei o que a notícia fará ao archigos Kenne. Matá-los foi cruel e desnecessário, e se Cénzi me der uma vida suficientemente longa, eu cuidarei para que o conselheiro ca’Mazzak se arrependa da dor que causou a mim e às pessoas de quem eu gosto.

O jovem concordou com a cabeça e falou — Eu entendo. Entendo mesmo. Algum dia, eu encontrarei quem contratou a Pedra Branca para matar meu onczio Fynn, e eu mesmo matarei essa pessoa e a Pedra Branca junto com ela. Meu onczio era um bom amigo para mim, bem como meu parente, e me ensinou muita coisa no pouco tempo em que estive com ele. Eu queria que ele tivesse vivido o suficiente para me ensinar mais a respeito... — Jan parou e balançou a cabeça.

— Não existe livro que ensine alguém a ser um líder, hïrzg — disse Sergei. — A pessoa aprende ao liderar e torcendo para não cometer muitos erros no processo. Quanto à vingança: bem, ao ficar mais velho, eu aprendi que o prazer que se tira da concretização da vingança jamais se compara à expectativa. Também aprendi que às vezes tem que se deixar a vingança completamente de lado em nome de um objetivo maior. A kraljica Marguerite sabia disso melhor do que ninguém; e por esse motivo ela era uma monarca tão boa. — Ele sorriu. — Mesmo que seu vavatarh discordasse veementemente.

— Você conheceu os dois.

Sergei não soube dizer se isso era uma afirmativa ou uma pergunta, mas concordou com a cabeça. — Conheci, sim, e tinha um grande respeito por ambos, incluindo o velho hïrzg Jan.

— Minha matarh o odiava, creio eu.

— Se ela odiava, tinha boas razões — respondeu Sergei. — Mas Jan era o vatarh dela, e acho que sua matarh também o amava.

— Isso é possível?

— Nós somos criaturas estranhas, hïrzg. Somos capazes de ter dois sentimentos conflitantes na cabeça ao mesmo tempo. Água e fogo, ambos juntos.

— A matarh diz que você costumava torturar pessoas.

Sergei esperou um longo tempo para responder. Jan não disse nada e continuou cavalgando ao lado dele. — Era meu dever, em uma determinada época, quando estive no comando da Bastida.

— Ela falou que os rumores diziam que você gostava de torturar. Isso faz parte do que você dizia, sobre a habilidade de ter dois sentimentos conflitantes na cabeça ao mesmo tempo?

Sergei franziu os lábios. Ele esfregou o nariz novamente. Olhou para frente, não para o jovem. — Sim — respondeu Sergei finalmente. A palavra solitária trouxe de volta todas as memórias da Bastida: a escuridão, a dor, o sangue. O prazer.

— A matarh é, ou era, de qualquer maneira, amante do archigos Semini. Você sabia disso, regente?

— Eu suspeitava, sim.

— Mesmo que ela ame o archigos, a matarh estava disposta a sacrificá-lo e entregá-lo ao julgamento, como o u’téni Petros pediu. Ela tomaria essa decisão; a própria matarh me disse quando voltou da negociação. “Que os pecados de Semini sejam pagos em vidas salvas”, foi o que ela falou. Não havia uma lágrima no olho ou um sinal de arrependimento em sua voz. O archigos... ele não sabe disso. Não sabe como chegou perto de ser um prisioneiro. Até onde eu sei, os dois ainda podem... — Jan parou. Deu de ombros.

— Água e fogo, hïrzg — falou Sergei.

Jan concordou com a cabeça. — Ela disse que você ama Nessântico acima de todos nós. No entanto, você cavalga conosco, salvou a matarh e a mim em Passe a’Fiume e colocaria a matarh no Trono do Sol.

— Eu colocaria sim, porque estou convencido de que isso seria o melhor para Nessântico. Eu quero ver os Domínios restaurados, com Firenzcia novamente como seu forte braço direito. — Sergei fez uma pausa. Os dois podiam ver os arredores de Carrefour diante deles na estrada, os topos dos prédios se erguiam mais alto do que as árvores. — É isso o que o senhor também quer, hïrzg?

Sergei observou o jovem, que desviou o olhar para a longa fileira do exército que se estendia pela estrada. — Eu amo minha matarh — respondeu Jan.

— Não foi o que eu perguntei, hïrzg.

Jan concordou com a cabeça e continuou olhando para a cobra blindada de seu exército. — Não, não foi, não é mesmo?

 

A Batalha Começa: Karl Vliomani

— VOCÊ AINDA PODE IR EMBORA pelas ruas a leste do Portão Norte — disse Karl para Serafina. — Terá que tomar cuidado e andar rápido, mas se estiver com Varina, você e Nico terão proteção.

Karl viu que Serafina e Varina balançavam a cabeça antes mesmo de ele terminar. — Eu não irei embora sem Talis — falou Serafina. Nico estava no colo da matarh enquanto se sentavam à mesa da sala principal do apartamento de Serafina. Eles terminaram um jantar à base de pão, queijo e água, embora o queijo estivesse velho, o pão, mofado, e a água, turva. Mas comeram tudo, pois não sabiam quando teriam mais comida.

Com o exército dos tehuantinos a oeste dos limites da cidade, o A’Sele sob controle dos navios ocidentais, e a ameaça do exército de Firenzcia a leste, Nessântico estava em pânico. Rumores fantásticos e absurdos sobre a pilhagem de Karnor e Villembouchure corriam pela cidade e ficavam mais sinistros e violentos cada vez que eram repetidos. Os ocidentais, caso se pudesse acreditar nas histórias, não eram nada além de demônios gerados pelos próprios moitidis, dedicados ao estupro, à tortura e à mutilação. As prateleiras das lojas estavam praticamente vazias; os moinhos não tinham farinha para as padarias, e não havia carroças vindo dos campos fora da cidade para os mercados. Até mesmo a Avi a’Parete estava às escuras na noite de hoje, pois os ténis-luminosos não fizeram as rondas de sempre; para piorar, uma neblina espessa e gelada surgiu a oeste e tomou conta da cidade, que tremia na escuridão, à espera do ataque inevitável que viria.

— Eu pensei ter perdido tanto Talis quanto Nico uma vez; não os perderei novamente — continuou Serafina.

— Ele não pode ir embora — insistiu Karl. — Talis é homem e jovem o suficiente para ser obrigado a servir à Garde Civile. Eles o pegariam antes que chegasse à metade da Avi. E com o archigos na Bastida... bem, com muita certeza a Garde Kralji tem nossas descrições e já procura por nós. Duas mulheres com um menino... acho que você estaria a salvo. Mas comigo e com Talis...

— Eu não vou embora sem ele — insistiu Serafina. A voz e a mão em volta da cintura de Nico tremeram, mas os lábios permaneceram firmemente franzidos.

— Metade da cidade já foi embora... aqueles que puderam. Os rumores sobre Karnor e Villembouchure... tudo aquilo pode acontecer aqui.

Ela deu de ombros.

Varina estava sorrindo sombriamente e tocou o joelho dele por debaixo da mesa. — Você perdeu a discussão, Karl. Com ambas. Estamos aqui. E ficaremos aqui, não importa o que isso signifique.

Karl olhou para Talis, que estava sentado em silêncio ao seu lado da mesa. No último dia, ele andou quieto de uma maneira estranha, desde que foi confirmada a notícia da prisão do archigos, e passou muito tempo com a tigela premonitória. Karl se perguntou o que o homem estaria pensando por trás daquele rosto solene. Talis deu de ombros, e falou para Serafina — Eu concordo com Karl. Eu preferiria que você e Nico estivessem a salvo.

Varina pegou a mão de Karl ao ficar de pé. — Venha comigo. Deixe Sera e Talis resolverem essa questão sozinhos. Nós resolveremos também.

Karl acompanhou Varina até o outro aposento. Ela fechou a porta assim que os dois entraram, de maneira que só podiam ouvir um murmúrio baixo de vozes que conversavam, e disse — Ela ama Talis. — Varina ainda estava apoiada na porta e olhava para Karl.

— Sim — protestou Karl — e é exatamente por isso que Talis quer que Serafina vá embora: porque ele não quer perder as pessoas que ama.

— E é exatamente por isso que ela não irá embora, porque não suportaria não saber o que aconteceu com Talis. — Varina cruzou os braços sob os seios. — É por isso que eu também não irei embora.

— Varina...

— Karl, cale a boca. — Varina afastou-se da parede e foi até ele. Os braços deram a volta em Karl, os lábios procuraram os dele. Havia um desespero no abraço, uma violência no beijo. Karl ouviu um soluço na garganta de Varina e levou a mão ao rosto dela para descobrir que a bochecha estava molhada. Ele tentou se afastar, perguntar o que estava errado, mas Varina não permitiu. Ela puxou de volta a cabeça de Karl, usou o peso do corpo para derrubá-lo sobre o colchão de palha no chão. Então, por um instante, Karl esqueceu de tudo.

Mais tarde, ele deu um beijo em Varina enquanto a segurava perto de si e apreciava o calor de seu corpo. — Eu amo você, Karl — sussurrou Varina no ouvido. — Desisti de fingir que não.

Karl não respondeu. Ele queria. Queria devolver as palavras para Varina. Elas preencheram a garganta, mas ficaram ali, presas. Karl achava que, se dissesse as palavras, trairia Ana e tudo o que ela significava para ele. — Encontre outra pessoa — dissera Ana, há muito tempo. — Volte para sua esposa, se quiser. Ou apaixone-se por outra pessoa, por mim tudo bem, também. Eu ficaria feliz por você porque não posso ser o que você quer que eu seja, Karl.

— Eu... — começou Karl, mas parou. Os dois ouviram ao mesmo tempo um assobio estridente e um rugido baixo como trovão, seguidos quase que imediatamente por outros, e as trompas dos templos começaram a soar um alarme. Karl rolou e afastou-se de Varina. — O que é isso? — perguntou ele, mas suspeitava que já sabia. Ambos vestiram-se depressa e correram para o outro cômodo.

— Começou — falou Talis para os dois assim que entraram. Ele estava parado ao lado da porta que dava para o sul. Na direção do A’Sele, todos puderam ver o brilho laranja amarelado sobre os tetos, iluminando a névoa que bloqueava a visão. — Fogo — continuou Talis. — Os nahualli estão disparando areia negra dentro da cidade, perto do A’Sele.

As trompas soavam estridentes, e havia berros e gritos abafados vindos da névoa.

Talis fechou a porta e disse — É tarde demais agora. Tarde demais.

 

A Batalha Começa: Sigourney ca’Ludovici

DO ÚLTIMO ANDAR do Palácio da Kraljica, apoiada em uma muleta que compensava a falta da perna, Sigourney podia ver os telhados à frente e as águas do A’Sele na margem norte, onde as fogueiras dos ocidentais ardiam nos arredores da cidade. Lá também, ela sabia, estava agrupado o exército da Garde Civile, agora com Aleron ca’Gerodi como comandante. Ele, pelo menos, estava confiante na capacidade dos chevarittai e da Garde Civile em lidar com a dupla ameaça à cidade, mesmo que ninguém mais estivesse. Ca’Gerodi ao menos já esteve em combate antes — e entre os chevarittai à disposição da kraljica, ele era o mais indicado para ser o comandante, desde que ca’Mazzak retirou Aubri co’Ulcai da disputa. Isso fora um erro, Sigourney tinha certeza; um erro que ela compreendia, sim, dada a rebelião de co’Ulcai, mas também um erro que poderia custar a Nessântico mais do que a cidade podia bancar.

O corpo de Sigourney doía muito esta noite. Ela tomou um bom gole de cuore della volpe e pousou a taça no peitoril da janela.

Sigourney também estivera confiante. Confiante de que eles dariam conta daquela ralé ocidental e a destruiria. Depois, que eles se voltariam para o leste e cuidariam de Allesandra e seu filhote, e que fariam com que os firenzcianos percebessem a insensatez desse rompimento do tratado. Sim, ela estivera confiante.

Mas isso parecia ter sido séculos atrás.

Agora, Sigourney vira a estranha névoa surgir do acampamento ocidental e envolver o Velho Distrito e a Garde Civile. Depois, após uma mera virada da ampulheta, grandes flores de fogo laranja nascerem na margem norte, e a kraljica viu as flores subitamente desenharem arcos no céu em várias direções; algumas caíram na névoa onde seu exército esperava, e outras...

A água do A’Sele tremeluziu com o reflexo do fogo conforme as flores — que guinchavam e bramiam — subiam, como se tivessem sido lançadas por raivosos moitidis. Ela viu a resposta dos ténis-guerreiros: raios azul-claros lançados na direção das flores ao alto. Vários alcançaram as flores no ápice de seus arcos: quando eles se tocaram, um breve sol ganhou vida e o som do trovão ecoou pela cidade. Mas havia muitas flores de fogo e a resposta dos ténis-guerreiros chegou atrasada demais. A maior parte das bolas de fogo caiu: sobre os navios de guerra dos Domínios no rio, no labirinto do Velho Distrito, e sobre a própria Ilha A’Kralji. E, onde caíam, explodiam em um jorro de fúria brilhante e ruidosa.

Sigourney observou uma bola de fogo em especial: o arco se ergueu mais alto que os demais, e ela viu a linha assustadora que vinha diretamente em sua direção. A kraljica olhou fixamente, paralisada tanto pelo fascínio quanto pelo medo, e sentiu (conforme a bola de fogo despencava, à medida que crescia a cada instante) o corpo se lembrar do choque e do horror do momento em que o kraljiki Audric foi morto. Ela perguntou-se se doeria muito.

Mas não... Sigourney viu que o rastro de fagulhas agora se desviava levemente para a sua direita. A bola de fogo chocou-se contra a asa norte do palácio e espirrou fogo sobre a fachada e os jardins lá embaixo. A kraljica sentiu a estrutura inteira tremer com o impacto, tão forte que ela teve que se segurar na ombreira da janela para evitar cair. Os dedos apertaram com força a barra da muleta. Houve gritos e berros por toda parte do terreno. A noite de Nessântico foi mais uma vez banida — não pelas famosas lâmpadas dos ténis-luminosos, mas por um inferno. Mesmo da janela, Sigourney achou que podia sentir o calor.

Os criados entraram correndo no cômodo. — Kraljica! A senhora tem que vir conosco! Depressa!

— Eu não sairei daqui.

— A senhora precisa sair! O fogo!

— Então não percam seu tempo aqui; vão ajudar a apagá-lo — falou Sigourney. — Convoquem os ténis-bombeiros nos templos. Vão. Vão!

Ela gesticulou com a mão livre para os criados — o corpo ferido e combalido protestou ante a violência do movimento —, e eles foram embora. As trompas soaram, agora nos templos, o alarme tomou conta da cidade inteira. Sigourney abaixou o olhar e viu os funcionários do palácio correrem na direção da ala em chamas. A fumaça deu a volta na lateral do palácio e fez arder o olho restante da kraljica. Ela piscou ao lacrimejar e bebeu o resto do preparado do ervanário.

— Olhem para mim! — Sigourney soltou um berro estridente para a noite e para as forças ocidentais escondidas na névoa. — Eu abri mão de muita coisa para estar aqui. Vocês não vão me tirar daqui. Não vão.

 

A Batalha Começa: A Pedra Branca

— POR QUE VOCÊ CONTINUA AQUI?

— Por que você os vigia? O menino não é seu.

— Ele não é sua responsabilidade.

— Você esperou tempo demais.

As vozes tagarelavam na cabeça dela, em tom sedutor, de alerta, satisfeito. A voz de Fynn era a mais alta, ronronava com satisfação. — Você morrerá aqui, e a criança dentro de você também.

— Silêncio — disse a Pedra Branca para todas as vozes, que fizeram silêncio a contragosto.

O ar estava espesso com a névoa anormal, e o cheiro de madeira queimada fluía pelos filetes da bruma. O brilho tinha ficado pior, e agora parecia cair uma neve de verão: cinzas caíam no chão e cobriam o cabelo oleoso e os ombros da tashta suja da Pedra Branca. Havia sons indefinidos na névoa, encobertos pelo lamento contínuo e sobrenatural das trompas.

A Pedra Branca olhou fixamente para a porta onde viu Talis pela última vez. Agora não havia ninguém lá, e ela não tinha visto Nico. Não há nada que você possa fazer por ele. Por enquanto, Nico está a salvo. Ela pressionou as mãos contra a barriga inchada. Talvez as vozes estivessem certas. Talvez ela devesse fugir da cidade. Salvar a própria filha.

Mas Nico era filho dela também. Cénzi trouxe o menino para ela. Ele a escolheu, e Nico era tão filho dela quanto a criança em gestação dentro de sua barriga.

— Tarde demais...

Ou talvez não. Com uma careta, ela se afastou da casa de Nico e andou rapidamente pelas ruas. Ela tinha que ver com os próprios olhos, tinha que saber o que acontecia. As ruas estavam bem mais cheias do que costumavam ficar a esta altura da noite, mas as pessoas corriam para seus destinos sem olhar umas para as outras, com o medo estampado em suas feições. Muitas mantinham as mãos próximas às armas carregadas abertamente: espadas com bainhas descascadas e lâminas manchadas de ferrugem; facas que pareciam que a última coisa que tinham feito era cortar um porco assado. Haveria violência nessas ruas antes de a noite acabar: uma palavra rude, um esbarrão acidental, um gesto mal interpretado — qualquer coisa poderia acendê-la, como uma fagulha em um material inflamável. A Pedra Branca sabia disso, porque a violência vivia dentro dela. Ela era capaz de sentir o cheiro de sangue pronto para ser derramado.

Mas não ainda. Não ainda. Ela manteve-se nas sombras, não falou nada com ninguém. Ela evitou matar, a menos que fosse por dinheiro ou pela própria proteção.

Ela chegou à Avi a’Parete e virou para o sul. Ao se aproximar do rio, o cheiro de fumaça ficou ainda mais forte, ela e a bruma estavam tão misturadas que era impossível distinguir uma da outra. Havia incêndios no aglomerado de prédios próximos a oeste da Avi, as chamas chegavam tão alto que a Pedra Branca conseguia ver do ponto onde estava. Uma carruagem conduzida por um téni veio correndo pela Pontica Kralji com meia dúzia de ténis-bombeiros dentro, com os rostos cobertos por fuligem e já exaustos pelo esforço de usar os feitiços para apagar os vários incêndios. Um esquadrão da Garde Kralji, com espadas desembainhadas e expressões carrancudas, acompanhava os ténis-bombeiros e cercava um grupo de homens de aparência melancólica em bashtas simplórias, a maioria jovem demais ou velha demais. — Você! — vociferou o offizier do esquadrão ao apontar para um velho de barba grisalha que andava à espreita, perto do prédio mais próximo à Pedra Branca. — E você! — Agora dirigido a um jovem que não devia ter mais de 12 anos, sendo puxado pela matarh. — Vocês dois! Venham conosco! Quero ver animação agora!

A matarh soltou um grito estridente de objeção, o homem fez menção de correr na direção contrária, mas evidentemente decidiu que não conseguiria fugir. A Garde Kralji cercou os dois e partiu noite adentro na direção dos incêndios, levando o menino e o velho com eles, enquanto a matarh protestava inutilmente, aos gritos.

A Pedra Branca continuou caminhando na direção sul até ver as colunas da Pontica Kralji que se agigantavam através da fumaça. Ela parou ali e olhou para o A’Sele. O que viu a deixou horrorizada e fez as vozes dentro de sua cabeça rirem.

No rio, vários navios de guerra estavam em chamas, já queimados quase até a linha d’água, os destroços entupiam o A’Sele de maneira que os navios ainda incólumes mal conseguiam manobrar. O Palácio da Kraljica era um inferno laranja amarelado, com um vulcão que cuspia fagulhas para longe. O grande novo domo do Velho Templo parecia rachado, o fogo lambia os suportes que tinham sido erigidos em volta dele. Havia pequenos incêndios aqui e ali. As pontes, exatamente as duas que levavam à margem sul, estavam lotadas de pessoas em fuga, que empurravam carrinhos cheios de pertences ou sobrecarregados com pacotes. A Pedra Branca ouviu um estrondo atrás de si; ela olhou na direção dos prédios que lotavam a Avi nesta margem e viu uma multidão botar abaixo a porta de uma padaria e também de uma joalheria. A rua atrás dela estava ficando lotada e barulhenta. Dentro de algum lugar, em uma das lojas, a Pedra Branca ouviu uma mulher gritar.

Sangue. Ela sentiu o cheiro do sangue. Tocou a bolsinha de couro sob o tecido da tashta e sentiu a pedra lisa lá dentro.

— O tumulto começou...

— Isso só vai piorar...

As vozes berraram assustadas em sua cabeça. — Você virou idiota, mulher? Ande!

Ela andou. Caminhou a passos largos, sem pressa, até o beco mais próximo, um espaço cheio de lixo entre os fundos dos prédios. A Pedra Branca voltaria à casa de Nico. Ficaria de vigia e, se as coisas ficassem perigosas, ela estaria ali para ajudá-lo, para tirá-lo de lá. Se a família de verdade do menino não pudesse protegê-lo, ela seria sua verdadeira matarh e faria isso. Ela tocou o estômago enquanto andava. — E farei o mesmo por você — sussurrou para a vida que se mexia dentro dela. — Eu farei isso. Prometo.

As vozes riram e gargalharam.

A Pedra Branca viu um movimento pelo rabo de olho na névoa e na fumaça e sentiu um arrepio de perigo. Ela deu meia-volta. — Ei! — Havia um homem ali, com cabelo negro e fios brancos, mas jovem o suficiente, o que fez a Pedra Branca se perguntar como ele conseguiu evitar os esquadrões de alistamento que rondavam o Velho Distrito. — Não há necessidade de se assustar, não é, vajica? — disse o sujeito. Ela viu a língua se mexer atrás dos poucos dentes. — Eu só queria ter certeza de que estava a salvo, só isso. — Ele deu um passo na direção dela. — Agora os tempos andam perigosos.

— Para você, sim — respondeu ela. — Eu posso tomar conta de mim mesma.

— Ah, pode, é? — O homem deslizou para o lado e impediu que ela entrasse no beco. Ela acompanhou o movimento, sempre olhando para o sujeito. — Não são muitas as pessoas que podem dizer isso hoje em dia. — Ele deu um passo na direção da Pedra Branca, que fez uma expressão de desdém.

— Não — disse ela, embora já soubesse que o homem não ouviria. — Você se arrependerá. Você não quer conhecer a Pedra Branca.

Ele riu. — A Pedra Branca, é? Está me dizendo que a Pedra Branca tem interesse em alguém como você?

Ela não respondeu. O homem deu mais um passo, ficou perto o suficiente para que ela sentisse seu cheiro, e estendeu a mão para agarrar seu braço. Nesse mesmo instante, a Pedra Branca agachou-se, tirou uma adaga da bainha na bota e golpeou para cima, debaixo das costelas do homem, que foi empurrado de costas para dentro do beco. Ele ofegou, boquiaberto como um peixe; ela sentiu o sangue quente jorrar sobre a mão. Os dedos do sujeito arranharam seu braço, mas caíram lentamente. A Pedra Branca ouviu o homem tomar um fôlego gorgolejante enquanto saía um filete de sangue da boca. Ela deixou o corpo cair enquanto metia a mão debaixo da gola da tashta para pegar a bolsinha. Com pressa, a tirou do pescoço e deixou a pedra lisa e clara como neve cair na palma da mão. Pressionou o seixo no olho direito do sujeito. Seus próprios olhos estavam fechados.

Ah, o lamento da morte... ela ouviu o homem gritar, sentiu a presença entrar no seixo enquanto os outros se remexiam no interior para abrir espaço para o espírito moribundo. O uivo silencioso do sujeito tomou conta de sua mente, tão alto que ela ficou surpresa que não ecoasse em volta dos dois. Quando a pedra o absorveu complemente, ela removeu o seixo do olho e guardou de volta na bolsinha, colocou o cordão de couro no pescoço novamente e deixou a bolsinha cair entre os seios, debaixo da tashta.

— A Pedra Branca protege o que é dela — ela disse para o cadáver de olhos abertos.

Depois, as vozes falaram alto e tomaram conta da cabeça da Pedra Branca, com uma nova que se juntou ao coro louco, enquanto ela voltava para a casa de Nico.

 


A Batalha Começa: Niente

O CÉU FICOU ILUMINADO a leste e a bruma mágica sumiu com a luz, embora a cidade continuasse envolvida pela fumaça. Niente estava com o tecuhtli Zolin, Citlali e Mazatl. Os guerreiros que usavam a armadura e os rostos tatuados agora estavam pintados para parecerem as terríveis e cruéis criaturas oníricas que estupraram Axat antes que a Escuridão colocasse seu corpo ferido no céu. Os três estavam próximos ao rio; a enorme ilha em volta da qual ele fluía parecia estar acesa, e a fumaça saía de várias dezenas de lugares na cidade.

— Muito bem, nahual — disse Zolin. — Eles estarão exaustos e assustados com os incêndios dessa noite. Os nahualli estão descansados? Os cajados mágicos estão cheios?

— Eles estão tão descansados quanto é possível, tecuhtli — falou Niente. — Nós preparamos nossos cajados ontem à noite, após lançarmos a areia negra.

— Ótimo — trovejou Zolin. — Então deixe de parecer tão melancólico. Esse é um grande dia, nahual Niente. Hoje nós mostramos a esses orientais que eles não são imunes à fúria dos tehuantinos.

Citlali e Mazatl gargalharam com Zolin. Niente tentou sorrir, mas não conseguiu. Ele ergueu o próprio cajado mágico, o tecuhtli assentiu e disse — Vá até os nahualli. Citlali, Mazatl, acordem seus guerreiros. Quando virmos os olhos de Sakal se abrirem no horizonte, será o momento.

Niente abaixou a cabeça para o tecuhtli e foi embora. Ele se dirigiu para o norte, para o campo pisoteado onde a maior parte do exército estava reunida perto da estrada. Os nahualli encontravam-se ali, o nahual deu suas ordens e espalhou os homens atrás da primeira fileira de guerreiros montados e da primeira leva de infantaria. Niente tomou o seu próprio lugar atrás do tecuhtli Zolin e de seus guerreiros selecionados. Do outro lado, ele viu, com a visão borrada pelo olho esquerdo ruim, os estandartes e escudos das tropas de Nessântico à espera. Havia muitos; Niente olhou para o próprio exército, significativamente menor agora, após todas as batalhas.

Ele não tinha dúvida de que os guerreiros tehuantinos eram mais bravos, de que os nahualli eram mais poderosos que os ténis-guerreiros de Nessântico. No entanto...

Havia um ardência no estômago que não passava. Niente segurou o cajado mágico com força e sentiu a energia do X’in Ka ligada ao objeto, mas o poder nas mãos não lhe deu conforto.

O céu a leste ficou ainda mais iluminado. Os primeiros raios da manhã lançaram sombras compridas que correram pela terra.

Zolin ergueu a espada e gritou — Agora! Agora! — Trompas soaram em resposta, e os guerreiros tehuantinos gritaram seus desafios. Niente levantou o cajado mágico e o bateu contra a mão aberta. O fogo chiou, faiscou e saiu voando na direção das fileiras inimigas; um momento depois, os cajados dos outros nahualli de toda a longa fileira fizeram o mesmo. Os ténis-guerreiros de Nessântico responderam: alguns feitiços sumiram como se tivessem sido engolidos pelo ar; outros quicaram, como se tivessem batido em uma parede, e voltaram para as fileiras dos tehuantinos em um arco. Onde os feitiços caíam, guerreiros caíam com eles e berravam ao serem consumidos pelas línguas grudentas do fogo. Muitos feitiços, porém, passaram incólumes, e os tehuantinos ouviram os gritos de resposta dos nessânticos. Os arqueiros, com o que restava da areia negra na ponta das flechas, lançaram uma chuva flamejante sobre o campo, que foi respondida por uma chuva de flechas nessânticas. Em volta de Niente, guerreiros grunhiram ao serem empalados, mas os escudos foram erguidos de imediato e apararam a maioria das flechas. Zolin gesticulou com a espada e os guerreiros começaram a se mover, devagar, a princípio, depois ganharam velocidade para correr pelo campo na direção dos inimigos e da cidade a frente à espera.

Foi difícil não se envolver com a onda de empolgação. Niente avançou atrás de Zolin e da parede de infantaria e ouviu a própria voz berrar um desafio com os demais. Então, com um tremor audível, a linha de frente dos tehuantinos colidiu com os nessânticos, que esperavam. Niente viu o reluzir das espadas, o avanço dos guerreiros a cavalo contra a massa caótica de soldados, ouviu os gritos dos mortos e moribundos de ambos os lados, sentiu o cheiro do sangue e viu os espirros que voavam no ar, mas havia guerreiros demais entre eles. Os guerreiros atrás de Niente o empurravam pelas costas, faziam com que avançasse, e a vanguarda avançou tão abruptamente que ele quase caiu. De repente, o nahual estava no meio da batalha, com indivíduos lutando por todos os lados, e viu um nessântico de cota de malha empunhando uma espada acima de sua cabeça ao avançar contra ele.

A tigela premonitória... O nahualli morto...

Niente berrou e golpeou o homem com o cajado mágico como se fosse um florete. Quando tocou o abdômen do soldado, um feitiço foi disparado: um clarão, uma explosão de anéis de aço rompidos, de pano marrom, de pele branca e de sangue escarlate. A espada despencou das mãos inertes, o homem ficou boquiaberto, mas não emitiu som, e caiu.

Mas não havia tempo para descansar. Outro soldado avançava contra Niente, e novamente o cajado, cheio de feitiços que o nahual preparou, derrubou o homem. Um soldado montado que os inimigos chamavam de chevarittai investiu contra ele, Niente atirou-se para o lado no momento em que os cascos blindados e com espinhos do cavalo de guerra arrancaram a terra onde ele estava e avançou em frente.

Para Niente, essa batalha — como qualquer outra — tornou-se uma série de encontros desconexos, um turbilhão de confusão e caos, um cenário desorganizado em que o nahual continuava a avançar. O barulho era tão tremendo que se transformou em um rugido inaudível em volta dele. Ele se desviou de espadas e enfiou o cajado em qualquer coisa que vestisse as cores azul e dourada. Uma espada acertou seu braço e abriu o antebraço, outra pegou a panturrilha. Niente berrou com a garganta rouca. A energia fluía rapidamente do cajado quente na mão direita, quase no fim agora.

E...

Niente percebeu que não estava em um campo, mas entre casas e prédios, que a batalha agora assolava as ruas da cidade, que os soldados vestidos de azul e dourado neste momento davam meia-volta ao soar das trompas e recuavam para as profundezas da grande cidade.

Ele ainda estava vivo, assim como Zolin.

 

A Batalha Começa: Sigourney ca’Ludovici

O COMANDANTE ALERON CA’GERODI ESTAVA diante de Sigourney e do resto do Conselho dos Ca’, a armadura suja de sangue, o elmo amassado por um golpe de espada e o rosto coberto de lama, fuligem e sangue. — Sinto muito, kraljica, conselheiros — disse ele. A voz estava tão exausta quanto a postura. — Nós não conseguimos contê-los...

Ca’Mazzak sibilou como uma chaleira que passou muito tempo no fogo. Sigourney fechou o único olho. Ela respirou fundo o ar cheio de fuligem e cinzas e tossiu. Abriu o olho novamente. Através da névoa da fumaça, a kraljica viu as ruínas do palácio, com partes queimando. Ela e o Conselho refugiaram-se no Velho Templo que, apesar do domo quebrado, encontrava-se em grande parte incólume. A nave principal estava lotada de tesouros do palácio: pinturas (incluindo o retrato chamuscado da kraljica Marguerite), louças azuis e douradas, roupas cerimoniais, os cajados e as coroas usados por uma centena de kralji; tudo estava aqui, embora muita coisa — coisas demais — tenha sido perdida no incêndio. Sigourney estava sentada no Trono do Sol na entrada da câmara sob o domo, mas se o trono estava aceso, não era aparente na claridade do sol que entrava pelo grande buraco aberto no domo. O sol debochava da kraljica ao brilhar intensamente em um céu sem nuvens.

Um dos criados entregou a Sigourney uma taça de cuore della volpe, para aliviar a tosse e a dor. Ela tomou um gole do líquido frio, marrom e turvo da taça dourada.

— Qual é a gravidade da situação? — perguntou a kraljica.

— Nós finalmente conseguimos deter o avanço deles — informou ca’Gerodi. — Os ocidentais não chegaram à Avi a’Parete, mas tomaram a maior parte das ruas a oeste da Avi na margem norte. Eles dominaram o vilarejo de Viaux. Houve uma batalha intensa perto do Mercado do Rio e por um tempo ele foi tomado pelos inimigos, mas nós os rechaçamos. Eu destaquei um batalhão para proteger a Pontica Kralji, mas isso deixou a área do Portão Norte mais aberta do que eu gostaria.

Os conselheiros murmuraram. — Isso é inaceitável — falou ca’Mazzak mais alto.

— Então talvez você devesse ter deixado o comandante co’Ulcai vivo — disse Sigourney. — Ou gostaria de pegar a espada você mesmo? — Ca’Mazzak resmungou e acalmou-se. Ca’Gerodi pareceu cambalear, e Sigourney gesticulou para que um criado trouxesse uma cadeira; o homem desmoronou de bom grado no assento estofado, sem se importar com a sujeira que espalhou no brocado. — O que está me dizendo, comandante? — perguntou a kraljica. — Que hoje à noite eles colocarão fogo no resto da cidade, que amanhã nos derrotarão completamente? Você disse que tinha mais do que homens suficientes. Você disse que...

— Eu sei o que eu disse — interrompeu ca’Gerodi e, quando Sigourney imediatamente calou a boca diante da grosseria, ele pareceu perceber o que fez e balançou a cabeça. — Perdão, kraljica; eu não durmo desde a noite de anteontem. Mas sim, isso é exatamente o que temo: que a noite de hoje trará mais daquele fogo terrível dos ocidentais, e que quando eles atacarem amanhã... — Ele ergueu a cabeça e olhou para Sigourney com seus olhos castanhos e abatidos. — Eu darei minha vida para proteger Nessântico, se for preciso.

— Aleron... — A kraljica começou a se levantar do Trono do Sol, esqueceu-se momentaneamente das feridas, e desmoronou. O movimento provocou uma nova tosse. Os conselheiros observaram Sigourney. Ela sabia agora o que tinha que fazer, e a compreensão era incômoda, tão dolorosa quanto o corpo ferido. — Vá. Descanse o quanto puder, e nós cuidaremos do que a noite de hoje e o dia de amanhã trouxerem. Vá. Durma enquanto pode.

Ca’Gerodi ficou de pé e fez uma mesura. Ele foi embora mancando. Quando saiu, Sigourney gesticulou para um criado. — Traga-me um escriba. E também um mensageiro, o melhor que tivermos, para levar uma mensagem para o hïrzg, a leste.

O criado arregalou os olhos momentaneamente, fez uma mesura e foi embora correndo.

— Kraljica — disse ca’Mazzak. — A senhora não pode...

— Nós não temos escolha — falou Sigourney para ele, para todos os conselheiros. — Nenhuma escolha. A situação já não é mais sobre nós.

Ela recostou-se no assento estofado do Trono do Sol, que cheirava à fumaça de madeira queimada. Cheirava à derrota.


??? RESOLUÇÕES ???

Allesandra ca’Vörl

Niente

Varina ci’Pallo

Sigourney ca’Ludovici

Karl Vliomani

Nico Morel

Niente

Sergei ca’Rudka

Jan ca’Vörl

Niente

A Pedra Branca

Allesandra ca’Vörl


Allesandra ca’Vörl

JAN LEU A MISSIVA com cuidado, os olhos claros vasculhando as palavras. Allesandra já sabia o que a mensagem dizia — os soldados do starkkapitän ca’Damont interceptaram o mensageiro que vinha na direção leste pela Avi a’Firenzcia, ele carregava uma bandeira branca tremulando içada sob o luar, e trazia o pergaminho selado para Allesandra, insistindo com os assistentes da a’hïrzg que ela fosse acordada. Allesandra quebrou o selo e vasculhou a carta, depois se vestiu rapidamente e foi até Jan.

Se o filho notou ou se se importou que o selo estivesse sem lacre e quebrado no papel grosso, ou que a kraljica tenha endereçado a missiva a Allesandra e não ao hïrzg, não disse nada. Jan empurrou a vela que usava como fonte de luz; o castiçal raspou a mesa que foi montada às pressas na tenda de campanha ao lado da tenda particular do hïrzg.

— Isso é genuíno? — perguntou Jan. Havia um cobertor dobrado sobre seus ombros, as pálpebras estavam cansadas e com olheiras. Ele bocejou e esfregou os olhos. — Temos certeza?

— O mensageiro disse que recebeu a mensagem da própria kraljica Sigourney — respondeu o starkkapitän ca’Damont.

Jan assentiu. Ele entregou o pergaminho para Semini, que leu a carta, franziu os lábios e o entregou para ca’Rudka. Jan parecia estar esperando, e Allesandra, sentada à mesinha na tenda de campanha ao lado dele, tamborilou os dedos na superfície arranhada. — Estamos perdendo tempo, meu filho — falou a a’hïrzg. — A mensagem é clara. A kraljica está disposta a abdicar do Trono do Sol se levarmos o exército até lá para deter os ocidentais. Acorde os homens agora e, se nossas forças marcharem rápido, nós conseguiremos chegar aos portões da cidade de manhã cedo.

Jan não pareceu ouvi-la. Ele olhava para Sergei, e perguntou — Regente? Sua opinião?

Ca’Rudka esfregou o nariz por muito tempo enquanto olhava o pergaminho, o que enlouqueceu Allesandra. Ela viu a luz da vela tremeluzir nas narinas esculpidas. — A kraljica não quis considerar a abdicação quando foi oferecida a ela durante a negociação, hïrzg Jan, ou, pelo menos, ca’Mazzak não quis — disse ele finalmente. — O conselheiro parecia totalmente confiante que a Garde Civile podia derrotar os ocidentais. Agora a kraljica foi subitamente acometida por altruísmo? Mas, como eu lhe disse, hïrzg, só quero o que for melhor para Nessântico. Eu não me importaria de ver a cidade destruída, mas isso precisa ser decisão sua.

— Aí está, Jan, viu só? — falou Allesandra, ficando de pé. — Starkkapitän, você irá...

Mas Jan havia colocado a mão no ombro dela e disse — Eu ainda não terminei, matarh. Archigos Semini, o que você acha desta oferta?

Allesandra começou a protestar, mas Jan apertou a mão no ombro da matarh. Todos observavam a a’hïrzg. Ela franziu os lábios e sentou-se novamente. Semini olhou especialmente para Allesandra, sem expressão nos olhos de cor magenta. Ele sabia, a a’hïrzg percebeu então. O archigos sabia que ela esteve disposta a oferecê-lo em troca do Trono do Sol. Sergei... será que Sergei contou para ele? Ou...

Jan?

— Eu notei que a oferta da kraljica não menciona nada sobre a fé concénziana — respondeu Semini, que ainda encarava Allesandra. — Isso é inaceitável para mim. Eu reluto em empenhar os ténis-guerreiros em uma aliança com Nessântico, a não ser que o archigos Kenne também esteja disposto a abdicar em meu favor. — Semini desviou o olhar de Allesandra e inclinou a cabeça para Jan. — A não ser, é claro, que o hïrzg exija isso de mim.

— Jan — insistiu Allesandra, ignorando Semini. — Isso é o que queríamos desde o início. Está ao nosso alcance; só temos que estender a mão e pegar.

— Oh, eu discordo, matarh — disparou Jan. — Isso é o que a senhora sempre quis. Parece que sua vida inteira é sempre uma questão do que a senhora quer: suas ambições, suas aspirações, seus desejos. Mesmo quando era menina, pelo que me contaram: a senhora quis primeiro Nessântico, então o vavatarh obrigou o exército a marchar mais rápido do que deveria e perdeu; sim, Fynn me contou essa história, que disse ter ouvido do vavatarh.

— Isso não é verdade — contestou Allesandra. Era o vatarh que queria Nessântico tanto assim. Não eu. Eu lhe disse para esperar e ser paciente. Disse sim... Mas Jan não escutou, e continuou falando.

— A senhora decidiu que não queria ajudar o vatarh após ele finalmente trazê-la de volta, então seu casamento foi uma farsa, quando poderia ter sido uma aliança forte. A senhora não quis que eu me envolvesse com Elissa, então a mandou embora. Não quis ser hïrzg, então fez campanha para que eu ficasse com o título. O que a senhora sempre quis foi ser kraljica, e quer que aceitemos essa oferta para que tenha o título agora, quer seja o melhor para Firenzcia ou não. Sempre foi a senhora, matarh. A senhora. Não o vatarh, não o vavatarh, não eu, não o archigos, ninguém. A senhora. Bem, a senhora me tornou o hïrzg, e, por Cénzi, eu serei o hïrzg e farei o que for melhor para Firenzcia e a Coalizão, não o que for melhor para a senhora. Eu amo a senhora, matarh — estranhamente, para Allesandra, ele olhou para Sergei ao dizer isso —, mas eu sou o hïrzg e declaro: nós iremos até Nessântico, mas iremos no momento conveniente. Nessântico grita por socorro para nós? Bem, deixe que grite. Deixe que lute a batalha que provocou. Starkkapitän, nós levantaremos acampamento pela manhã, como o planejado, e prosseguiremos em ritmo normal até vermos Nessântico, de lá esperaremos até sabermos mais ou até que a kraljica em pessoa saia e se ajoelhe a mim. Não mandarei uma única vida firenzciana para ser perdida defendendo Nessântico de sua própria insensatez.

— Jan... — Allesandra começou a falar, mas foi interrompida por um estalo do braço do filho.

— Não, matarh. Não discutiremos mais essa questão. A senhora queria que eu fosse o hïrzg? Bem, cá estou eu, e esta é a minha vontade. Não falaremos mais a respeito disso. Starkkapitän, você tem suas ordens.

Ca’Damont fez uma mesura e saiu da tenda após dar uma olhadela para Allesandra. Semini bocejou e espreguiçou-se como um urso despertando da hibernação. Ele fez o sinal de Cénzi para Jan e seguiu atrás do starkkapitän, sem olhar para Allesandra. Sergei viu os dois homens saírem e se levantou. — Caso precise do meu conselho, hïrzg, o senhor sabe onde me encontrar — falou. — A’hïrzg, uma boa noite para a senhora.

Allesandra acenou minimamente com a cabeça. Por vários momentos, ela e Jan ficaram sentados ali, em silêncio. — Você não quer que eu seja kraljica? — disse a a’hïrzg quando o silêncio pareceu durar tempo demais.

— Assim como Sergei quer o que for melhor para Nessântico, eu quero o que for melhor para Firenzcia — respondeu ele. Então, antes que ela pudesse responder: — Tudo o que eu sempre quis da senhora foi seu amor, matarh.

As palavras doeram como um tapa na cara dela, tão fortes que provocaram lágrimas em seus olhos. — Eu amo você, Jan. Mais do que você pode compreender.

Jan olhou com raiva para a matarh: o rosto de um estranho. Não, o rosto de seu homônimo, como Allesandra o imaginou durante todo o cativeiro em Nessântico, quando ele se recusava a pagar o resgate por ela. — Cale a boca, matarh. A senhora me ensinou bem. Mostrou para mim que as aspirações e a determinação são mais importantes que amor. Eu falei com o archigos Semini. Contei que a senhora esteve disposta a sacrificá-lo para ser kraljica. Ele me contou algo em troca: que planejou assassinar Fynn. Para a senhora, matarh. Tudo pela senhora. Semini me contou que a senhora sabia, naquela dia em que salvei Fynn, que o ataque aconteceria. A senhora usou Semini, seu amante, para fazer de mim um herói, para fazer de mim o hïrzg. O resto eu posso descobrir por mim mesmo. Eu me pergunto, matarh, quem contratou a Pedra Branca, mas tenho um excelente palpite. — Allesandra sentiu a face corar e virou o rosto. — Aquele seu gesto tão nobre — continuou Jan — de abdicar em meu favor: a senhora jamais quis ser hïrzgin. Sempre quis mais. Não queria o que era melhor para mim, mas o que fosse melhor para a senhora. Eu sempre fui seu segundo filho, o menos importante, matarh. A ambição sempre foi seu primogênito.

Allesandra ficou sem ar. Ela permaneceu sentada ali, com as bochechas úmidas de lágrimas, enquanto Jan se afastava da mesa e ficava de pé. — Jan... — disse a a’hïrzg ao erguer os braços para o filho, mas ele a negou com a cabeça. Jan olhou para a matarh, e, por um momento, ela pensou ter visto a expressão no rosto do filho abrandar.

Mas Jan deu meia-volta e saiu noite afora.

 

Niente

ELES USARAM O POUCO do que sobrou da areia negra para lançar na cidade novamente, naquela noite. Depois disso, Niente mandou os nahualli descansarem e preencherem novamente os cajados mágicos para a batalha do dia seguinte. Ele perdeu mais dez nahualli durante a batalha, a maioria no fim do dia, quando Zolin tentou, em vão, tomar a ponte mais próxima sobre o rio. A energia dos cajados mágicos tinha acabado e não houve tempo para descansar e renovar os feitiços. Os nahualli, como Niente mandou, tentaram recuar para trás da linha de frente assim que o poder foi exaurido, mas alguns foram abatidos pelas espadas nessanticanas, incapazes de se defender. O nahual não sabia quantos guerreiros tinham sido perdidos. Eles foram escorraçados por uma investida desesperada dos chevarittai, e Zolin — por insistência de Niente, que temia que fossem perder ainda mais nahualli — finalmente mandou o avanço parar.

Eles eram muito poucos... tanto os nahualli quanto os guerreiros. Mas Zolin não enxergava isso, ou estava tão envolvido com a própria visão que a situação tinha sido apagada dos próprios olhos. — Amanhã, toda a cidade será nossa — disse ele para Niente, Citlali e Mazatl. O nahual não sabia se era verdade ou não e estava exausto demais para se importar.

Após a última das bolas de fogo ser lançada na cidade, o nahual foi para a própria tenda. Lá, sozinho, ele pegou a tigela premonitória nas mãos: com medo de conjurar o feitiço, com medo de ter a mesma visão, com medo da exaustão e da dor que seriam cobrados pelo feitiço. Niente tentou se lembrar do rosto da esposa e dos filhos: ele conseguiu vê-los em sua mente, mas isso só fazia piorar a saudade. Imaginou como estavam, se mudaram, se sentiam sua falta como Niente sentia a deles.

Imaginou se algum dia saberia.

Ele colocou a tigela de lado.

O sono naquela noite foi intermitente e inquieto. Os pesadelos o invadiram; Niente viu a esposa morta, as crianças feridas, viu a si mesmo lutando e tentando correr, mas incapaz de fazer mais do que andar enquanto era cercado por demônios vestidos de azul e dourado. O nahual tentou imaginar o rosto da esposa diante dele, a boca semiaberta quando Niente inclinou-se para beijá-la... o rosto não tinha expressões nem feições, era uma máscara. Sem conseguir escapar dos sonhos, ele acabou andando de um lado para o outro do acampamento, escutou os sons dos guerreiros descansando, viu as estranhas formas dos prédios ao redor. Ao passar por um edifício, o nahual ouviu seu nome ser chamado. — Niente.

Ele reconheceu a voz. — Citlali.

O guerreiro supremo estava encostado na porta do prédio. Atrás dele, uma vela brilhava na escuridão. — Não consegue dormir? — perguntou Citlali.

Niente balançou a cabeça. — Eu não ouso. Sonhos demais. E você?

O rosto com redemoinhos negros deu um sorriso. — Sonhos de menos. Eu queria ver a nossa terra natal e minha família novamente, mesmo no sono.

— Isto não acontecerá se... — Niente engoliu o comentário, furioso consigo mesmo. Se estivesse menos confuso pela falta de sono, não teria dito nada.

— Se prevalecer a vontade do tecuhtli Zolin? — arriscou Citlali. — Eu pensei a mesma coisa, nahual. Não precisa ficar tão nervoso. — O sorriso aumentou, e ele olhou de um lado para o outro, como se tentasse ver se alguém os escutava. — E deixe-me responder à outra pergunta que você não irá fazer. Não. Eu não desafiarei o tecuhtli. Veja até onde ele nos trouxe, nahual, do outro lado do mar até o grande lar dos orientais. Isso é a verdadeira grandeza, nahual. Grandeza. Estou orgulhoso por ter sido capaz de ajudá-lo.

— Mesmo que isso signifique que você jamais verá sua terra natal e sua família novamente?

Citlali ergueu os ombros. — Eu sou um guerreiro. Se essa for a vontade de Sakal... — Ele abaixou os ombros novamente. — Eu não preciso de uma tigela premonitória, nahual. Não tenho interesse no futuro, apenas no presente. É uma bela noite, eu estou vivo e vendo um lugar que jamais pensei que veria e que poucos tehuantinos um dia viram. Como alguém não ficaria feliz com esta situação?

Niente limitou-se a concordar com a cabeça. O nahual desejou boa-noite e deixou o guerreiro com seu devaneio. Da parte dele, Niente voltou aos próprios alojamentos e realizou os rituais para colocar feitiços no cajado novamente. Então, completamente esgotado pelo esforço, ele foi para a cama e deixou os pesadelos o invadirem outra vez.


E, no dia seguinte, os pesadelos se tornaram realidade.

Na alvorada, o tecuhtli Zolin levou os tehuantinos para as profundezas da cidade, eles lutaram de rua em rua na direção da grande avenida principal. A batalha foi um reflexo do combate do dia anterior: novamente, a ofensiva inicial fez os cansados nessanticanos recuarem; quando o olho de Sakal estava bem alto no céu, eles chegaram à avenida, onde Zolin rapidamente reagrupou as tropas e começou a marcha para o sul.

Lá, os nessanticanos haviam se reunido: em volta do mercado, onde finalmente detiveram o avanço tehuantino no dia anterior, e em volta da ponte que levava à ilha. No A’Sele, Zolin mandou que os navios avançassem na direção do inimigo; os navios nessanticanos deslocaram-se para detê-los, e outra batalha tomou o lugar, cujo resultado Niente só podia imaginar, embora muitos navios de guerra de ambos os lados estivessem em chamas. Não havia mais retirada possível ali — restaram poucos navios para todos eles voltarem para casa.

— Nahual! — Do cavalo, Zolin apontou um dedo para Niente. — Pegue seus nahualli e venha comigo. Nós controlamos a rua principal, agora temos que dominar a ponte. Citlali! A mim!

Zolin rapidamente posicionou os guerreiros. Citlali e Zolin atacariam os píeres da ponte a partir da avenida, diretamente no coração das forças nessanticanas; Mazatl esperaria até que o ataque estivesse em andamento, depois investiria pelo flanco oeste através do Mercado do Rio. Vários guerreiros duplas mãos1 também começariam um ataque ao norte imediatamente e forçariam a passagem pela avenida circular de maneira que os nessanticanos não pudessem concentrar a atenção na cabeça de ponte — não sem possivelmente perder a ponte mais a leste para a grande ilha. Zolin mandou os guerreiros à frente como manobra de distração, depois esperou que a sombra do sol movesse um dedo antes de acenar e liderá-los ao lés-nordeste da avenida, onde posicionou seus homens. Eles podiam ver os nessanticanos: uma parede de escudos em riste do outro lado da avenida, a meros cem passos.

Não havia areia negra, nem tempo para fazer mais, mesmo que eles tivessem os materiais brutos. Desta vez, os arqueiros começaram o ataque com uma chuva sobre os escudos dos nessanticanos sem causar grandes danos. Os ténis-guerreiros lançaram as bolas de fogo estridentes na direção dos tehuantinos, e Niente — com os demais nahualli — ergueu seu cajado mágico rapidamente. Os feitiços de proteção estalaram para fora, um pulso quase visível no ar. A maior parte das bolas de fogo foi desviada; elas caíram nos prédios de ambos os lados, que pegaram fogo. Mas havia muitos ténis-guerreiros e nahualli insuficientes. Os feitiços de guerra caíram sobre os guerreiros reunidos; os homens gritaram, seus corpos foram queimados e contorcidos. Aqueles que puderam, fugiram, terrivelmente feridos com as queimaduras do fogo pegajoso. Os que não puderam, morreram. Uma bola de fogo caiu perto o suficiente de Niente para o nahual sentir o calor do feitiço, como se a fornalha de um ferreiro tivesse sido aberta em frente a ele. O calor passou por seu rosto como uma onda escaldante e secante. Zolin também sentiu o calor; ele deu uma olhadela para a cena atrás de si quando o cavalo empinou com medo. O tecuhtli berrou — Em frente! Agora! — Zolin controlou a montaria e a cutucou com o pé para que galopasse. Os guerreiros supremos montados seguiram o tecuhtli e a infantaria também investiu, à frente. Niente foi levado pela onda.

A onda arrebentou contra os escudos pintados de azul e dourado e empalou-se em suas lanças. No caos barulhento, Niente viu o cavalo de Zolin cair, com uma lança cravada no peito, mas o tecuhtli em si perdeu-se na massa de soldados, e o nahual não conseguiu ver o que aconteceu com ele.

Havia espadas e combate em volta de Niente, que só conseguiu pensar em si mesmo, em matar o máximo possível de nessanticanos. Ele apontou o cajado mágico, falando a palavra de ativação sem parar, e os raios estalaram da ponta, assobiando e ondulando ao mergulharem nas fileiras em frente ao nahual. Um buraco foi aberto na parede de escudos quando ele lançou um feitiço após outro — os clarões mandaram dezenas de homens ao chão. Os guerreiros gritavam, urravam e brandiam suas espadas ao avançar através da brecha. A parede começou a ceder, e então desmoronou complemente. Niente novamente foi levado pela onda e viu de perto as torres que marcavam a entrada da ponte.

À direita, havia uma cacofonia de gritos: os guerreiros de Mazatl que investiam contra o flanco. O som grave das trompas soou nas fileiras nessanticanas. Niente viu um estandarte tremulando ali e um aglomerado de chevarittai a cavalo. De repente, o estandarte seguiu para a direção sul da ponte, com os chevarittai junto. O nahual viu a expressão de compreensão nos rostos dos soldados inimigos diante dele. Viu a maneira como as espadas foram abaixadas momentaneamente, como as fileiras se enfraqueceram visivelmente. A chuva de flechas cessou, os ténis-guerreiros não lançaram mais bolas de fogo sobre a cabeça de Niente sobre a retaguarda dos tehuantinos. Eles avançaram gradualmente: os guerreiros, os nahualli, agora o nahual conseguia ver Zolin novamente, sangrando e ferido, mas em pé, sua espada ceifava os soldados que ousavam ficar diante dele. Citlali estava ao lado do tecuhtli, com o rosto implacável e impetuoso.

Eles estavam na ponte agora. Ela era dos tehuantinos. O rio movia-se preguiçosamente embaixo deles, e corpos caíam do peitoril e batiam nas águas.

Os tehuantinos rugiram. Eles cantavam enquanto matavam, e Niente cantou com eles.

 

Varina ci’Pallo

AS RUAS DO VELHO DISTRITO ESTAVAM tomadas por cidadãos em pânico, a maioria corria para leste, para longe das forças ocidentais que se aproximavam e das batalhas ao longo da Avi a’Parete. Todos ouviam os sons: os berros que reverberavam pelas vielas, os lamentos, os gritos, o barulho constante das trompas dos templos soando alarmes estridentes. A fumaça dos incêndios manchou o céu, trapos imundos que às vezes obscureciam o sol, e o cheiro de fogo e carnificina no ar era intenso.

Varina viu-se próxima a Karl pela maior parte do dia. Ela sorria para ele, nervosa e indecisa, e Karl devolvia o mesmo sorriso. — Prometa — falou Varina finalmente. Os dois estavam sozinhos em um dos cômodos; Talis, Serafina e Nico estavam no outro.

— Prometer o quê?

— Que o que quer que aconteça... que aconteça conosco. Guarde um último feitiço para nós, eu farei o mesmo.

— Não será assim tão ruim — disse Karl. — Talis... ele é um deles, afinal.

Ela sacudiu a cabeça, tão desamparada pelo fato quanto Karl.

Mais tarde, o cheiro de fumaça ficou mais forte. Pela janela do apartamento, eles viram a fumaça pegajosa e espessa subir das casas e de uma rua a oeste, com chamas que ocasionalmente irrompiam na escuridão. Cinzas caíam como neve cinzenta. Karl achou que quase podia sentir o calor. Os dois seguiram para o cômodo da frente com os demais.

— Tudo está queimando — falou Nico. Ele parecia mais empolgado do que preocupado, mas todos os adultos trocaram olhares preocupados. O estalo das chamas ao longe era audível no silêncio.

— Você está certo, Nico — disse Varina, enquanto olhava para Serafina. — Infelizmente, os ténis-bombeiros estão muito ocupados em outros lugares para fazer algo a respeito disso. — O olhar dela desviou de Serafina para Karl. Varina sabia o que ele estava pensando; era o que estava na mente de todos: Será que podemos ficar aqui? Precisamos ir embora?

Menos de uma virada da ampulheta depois, todos ouviram uma comoção alta ecoar a oeste, lá fora, na rua. Não muito longe dali, uma turba de várias dezenas de pessoas andava à espreita pela viela; não eram soldados, nem ocidentais, mas gente que morava no Velho Distrito. Eles berravam, corriam de casa em casa e quebravam portas e janelas; Varina ouviu os berros e gritos dos que estavam no interior enquanto a turba invadia cada casa. Eles saqueavam, carregavam qualquer coisa que parecesse de valor: ela viu algumas pessoas segurando itens roubados enquanto marchavam; o que mais, além de roubar, os saqueadores faziam dentro das casas, Varina só podia imaginar. Já havia fogo em três ou quatro casas mais ao longe na rua. A turba gritava alto: — Peguem o que quiserem! A cidade está perdida! Revolta! Revolta!

Karl e Talis passaram por Varina e seguiram para a rua enquanto a turba continuava o lento e caótico avanço na direção deles. Alguém à frente os notou e apontou, e vários aglomerados de saqueadores seguiram na direção deles. — Parem com isso! — gritou Karl, a turba debochou, as pessoas responderam com berros e brandiram armas velhas ou improvisadas. Ele deu uma olhadela para Talis e acenou com a cabeça. O embaixador ergueu as mãos, gesticulou, e uma luz surgiu entre elas. Ao seu lado, Talis levantou o cajado e bateu uma vez nas pedras de pavimentação: um raio saiu como uma flecha do punho para o céu esfumaçado.

A turba parou. Sem uma palavra, as pessoas se dispersaram em um estranho silêncio, correram para qualquer direção, desde que fosse para bem longe dos dois. Alguns instantes depois, a rua estava vazia. — Ora, isso acabou bem — falou Karl. Ele e Talis viraram-se, e Varina viu os dois ficarem boquiabertos.

Ela tinha lançado o próprio feitiço no momento em que Karl lançou o dele. Varina moldou o ar ao redor com o toque de um escultor, desenhou como se fosse uma tela e colocou nele uma imagem saída da mente. Varina viu o que Karl e Talis viram, algo que se agigantava atrás deles, mais alto que qualquer uma das casas.

— Um dragão! — berrou Nico da porta da casa, nos braços de Serafina, tomado pela alegria. Karl riu e aplaudiu, Varina sorriu. — Você pode fazê-lo cuspir fogo e voar? — perguntou o menino, e ela fez que não com a cabeça.

— Ele não pode fazer nada, só parece feroz — disse Varina. Por um instante, o perigo foi esquecido, mas depois a realidade desabou sobre eles quando ela cancelou o feitiço. O dragão sumiu em filetes de fumaça verde que foram levados pelo vento. Os saqueadores podiam ter ido embora, mas nada mudou. Eles voltariam em breve, e os incêndios próximos ardiam sem controle. A cidade continuava sob ataque.

— Karl, não podemos ficar aqui — falou Varina.

Ele olhou para Talis e viu o homem concordar com a cabeça, devagar. — Você está certa — disse Karl. — É o momento. Vamos pegar o que precisamos. — Ele deu um tapinha no ombro de Talis e foi para a porta.

Do outro lado da rua, Varina viu uma velha solitária — uma mendiga, pela aparência da roupa. Ela olhava fixamente para a casa. Assim que Varina a viu, a mulher pareceu acenar com a cabeça, depois correu pelo espaço escuro e apertado entre as casas e foi embora.

 

Sigourney ca’Ludovici

ELES A COLOCARAM no Velho Templo.

O comandante ca’Gerodi voltou fugindo da derrota na Pontica Kralji, entrou gritando no Velho Templo onde Sigourney estava sentada, no Trono do Sol, e disse que ela e o Conselho dos Ca’ deveriam pegar o que fosse possível e fugir imediatamente pela Pontica a’Brezi Veste até a margem sul e sair da cidade.

Sigourney recusou-se. — Que o Conselho vá embora se quiser. Eu vou ficar.

— Eu não posso protegê-la, kraljica — disse ca’Gerodi. — Eles estão vindo, a qualquer momento.

— Eu não abandonarei minha cidade e minha responsabilidade — respondeu ela friamente. — Eu ficarei.

No fim, a equipe de Sigourney pegou o que pôde do que restava dos tesouros do palácio e fugiu da Ilha A’Kralji. O mesmo aconteceu por toda Nessântico: no enorme Templo do Archigos, na margem sul; na Grande Biblioteca com seus preciosos e insubstituíveis livros e pergaminhos de velino; no Teatro A’Kralji e no Museu a’Artisans. O conselheiro ca’Mazzak e o resto do Conselho desapareceram também. Fugiram para o sul, a única direção ainda aberta para eles...

Sigourney permaneceu no Trono do Sol, no Velho Templo, sob a luz do sol que entrava pelo domo arruinado e queimado. Antes de permitir que o ervanário da corte fosse embora, a kraljica mandou que o homem preparasse uma taça especial do cuore della volpe, que agora estava no braço do Trono do Sol, ao lado dela. Sigourney usava uma longa tashta cerúlea com um sobretudo amarelo que escondia o fato de não haver uma perna debaixo do joelho direito. Ela mandou que os criados colocassem um tapa-olho cravejado sobre o buraco onde antes ficava o olho direito e aplicassem pó de ovo no rosto para esconder a pior parte das cicatrizes.

Sigourney aguardava no antigo trono de Nessântico. Aguardava o inevitável.

Lá fora, a kraljica ouviu a batalha em andamento: os gritos dos homens, o clamor das armas, o rugido dos feitiços dos ténis-guerreiros. A fumaça subia e enfraquecia a luz do sol. Um esquadrão de elite da Garde Kralji estava disposto diante dela, a cota de malha farfalhava quando os soldados se remexiam, nervosos, empunhando as espadas e voltados para as portas do templo. O comandante ca’Gerodi tinha ido embora há uma virada da ampulheta. — Eu não a verei novamente, kraljica — disse ele. — Sinto muito.

— Eu sei. Eu sei. Sinto muito também.

Ela aguardava.

Quando as portas foram escancaradas, os gardai em frente a Sigourney ficaram tensos e começaram a avançar. — Não — disse a kraljica. — Parem! Esperem! — Vários guerreiros ocidentais entraram no templo; com eles havia outro homem, este sem as tatuagens dos guerreiros e com um cajado de madeira lustrosa: um dos feiticeiros. Os ocidentais pararam e espiaram o longo corredor da nave onde Sigourney estava sentada sob um facho poeirento de luz do sol. — Algum de vocês fala nossa língua? — berrou ela.

— Eu falo — disse o feiticeiro. As palavras eram arrastadas e com um sotaque carregado, mas compreensíveis. — Um pouco.

— Ótimo. Eu sou a kraljica Sigourney ca’Ludovici, monarca desta terra. Quem é você?

O homem sussurrou por um instante para o guerreiro ao lado dele, que tinha a imagem de uma águia ou um falcão vermelho desenhada na careca. — Eu sou Niente — respondeu o feiticeiro. — Sou o nahual. E este — ele apontou para o guerreiro com quem havia falado — é o líder dos tehuantinos, o tecuhtli Zolin. Ele exige sua rendição, kraljica.

— Ele pode exigir o que bem quiser. — Sigourney ergueu a mão do braço do Trono do Sol. O anel com o sinete dos kralji reluziu quando a kraljica tocou a faixa dourada da coroa, posta sobre seu cabelo grisalho e grosso. O sol estava quente sobre ela, que ergueu os olhos para as ruínas queimadas dos suportes do domo. — Ele não terá minha rendição.

Novamente o feiticeiro falou com o guerreiro, que soltou uma gargalhada que ecoou pelo templo. O homem falou palavras em uma língua que parecia ao mesmo tempo estranha e, no entanto, familiar de um jeito esquisito. Onde ela ouviu palavras assim antes? — O tecuhtli Zolin diz que se a kraljica deseja desafiá-lo, ele está disposto a aceitar. O tecuhtli emprestará a própria espada se ela não tiver uma própria. Caso contrário, ele mandará seus guerreiros torná-la prisioneira. O tecuhtli deixa a decisão com a senhora.

Sigourney balançou a cabeça e falou — Eu sei como vocês tratam os prisioneiros. E você não percebeu todas as opções que eu tenho. — O feiticeiro pareceu confuso ao ver a kraljica pegar a taça no braço do Trono do Sol e tomar todo o preparado amargo em um só gole. — Espero que aproveitem a cidade enquanto a controlam. — Ela ergueu a taça para os ocidentais e deixou que caísse nos ladrilhos, onde se quebrou. A perna já formigava quando Sigourney recostou-se no trono. A paralisia subiu rapidamente pelas coxas, pela cintura, pela barriga. Pelo coração. A luz do sol na nave pareceu enfraquecer. — Este é o meu trono e, enquanto eu viver, não abrirei mão dele.

Sigourney riu então. A voz parecia estranha, ofegante e fraca. A kraljica tentou forçar as próximas palavras. — E eu escolho o momento conveniente. — Ela tentou tomar fôlego, mas os pulmões não se mexeram. Abriu a boca, mas não havia ar.

Sigourney sorriu para eles quando o sol escureceu e Nessântico sumiu de vista.

 

Karl Vliomani

— PARA ONDE VOCÊ SUGERE de irmos? — perguntou Talis.

— Leste — sugeriu Karl. — Para os firenzcianos. Sergei pode estar lá.

— Podemos ir para o oeste — contra-argumentou Talis. — Para o meu povo.

— Seu povo colocou fogo em Nessântico — falou Varina. — Eles matam. Estupram. Saqueiam.

— E o seu povo não faz isso? — disparou Talis. — Você não esteve nos Hellins, não é? Ou se esqueceu do que começou este confronto em primeiro lugar? — Ele olhou com raiva para Varina, que sustentou o olhar, sem pestanejar.

— Parem, vocês dois — disse Karl. — Não temos tempo a perder com isso. Talis, ir para o oeste significa tentar passar pela pior parte dos incêndios, e o sul não parece muito melhor do que isso. Temos que pensar a respeito do menino, especialmente; é perigoso demais.

— E ir na direção dos firenzcianos não é perigoso? — protestou Talis.

— Eu diria que é menos.

Serafina tocou no ombro de Talis e falou — Acho que ele está certo, amor. Por favor...

Talis fez uma cara de desdém, e deu de ombros. — Tudo bem. Mas a culpa vai ser sua, numetodo, se a coisa ficar feia.

Eles rapidamente reuniram o que poderiam carregar. O cheiro de fumaça era esmagador agora, e cinzas caíam constantemente sobre os telhados, cujas bordas brilhavam com chamas agitadas. O grupo não conseguia ver o sol de maneira alguma, embora devesse estar no alto no céu. A rua continuava deserta; aqueles que podiam fugir já haviam escapado; aqueles que ficaram estavam entrincheirados nos prédios. Eles desceram a viela rapidamente até o cruzamento e viraram para leste.

Quando chegaram às ruas maiores, eles encontraram as multidões novamente. Um enxame de gente saqueava lojas, quebrava portas, arrancava persianas e carregava o que fosse possível. Os saqueadores olhavam com ar de provocação para o grupo enquanto passavam com as conquistas, desafiavam qualquer um a tentar detê-los ou protestar. Um esquadrão de quatro utilinos apareceu e soprou os apitos, mas, tirando isso, não fizeram tentativa alguma de restaurar a ordem; eles apontaram os cassetetes e gritaram avisos, mas saíram correndo quando os saqueadores mais próximos se viraram para confrontá-los.

Karl e os demais foram atrás deles.

Algum tempo depois, o grupo passou por vários quarteirões, longe o bastante para as cinzas dos incêndios não mais caírem sobre os ombros e cabelos. Eles se aproximavam do centro do Velho Distrito; Karl vislumbrou a praça aberta não muito distante dali, onde a viela tortuosa de repente se abria nela: lá estava a estátua de Henri VI, com a espada erguida sob a luz do sol. As multidões desapareceram novamente. Parecia que eles corriam por uma cidade deserta. Quando se aproximaram do fim da rua, Karl parou o grupo: encolhidos contra o flanco do prédio mais próximo, eles viram um esquadrão da Garde Civile passar rapidamente para o sul pela praça aberta, perto do chafariz de Selida, liderado por um trio de chevarittai montados. Muitos dos soldados estavam visivelmente feridos, e mancavam enquanto cruzavam a praça meio que correndo.

— Eles estão recuando — sussurrou Varina. — Será que perdemos a cidade, então?

Karl não tinha como responder, embora desconfiasse da verdade, e falou — Vamos correr...

O grupo começou a cruzar a praça quando a Garde Civile desapareceu na entrada de uma rua ao sul. Eles chegavam ao fim da sombra de Henri VI, quase no meio do centro do Velho Distrito, quando viram do que os soldados fugiam.

Uma massa ruidosa de homens pintados entrou na praça aos borbotões vinda do norte. Ao longe, Karl viu que estavam bem armados: espadas, lanças, flechas. Os rostos tinham o redemoinho de linhas negras como o de Uly; os corpos eram protegidos por armaduras de bambu. Eles ainda não tinham visto o pequeno grupo de Karl, ou, se viram, julgaram irrelevante. Os ocidentais entraram no espaço aberto: havia pelo menos trinta ou mais deles. — Andem! — sibilou Karl. — Rápido! — Eles podiam facilmente chegar a uma das transversais que levavam ao centro do Velho Distrito e despistar os ocidentais antes que fossem alcançados. Karl pegou a mão de Varina e começou a correr.

Depois de alguns passos, Karl percebeu que os dois estavam sozinhos. Talis permaneceu parado sob a sombra da estátua. Ele segurava as mãos de Serafina e Nico. — Talis!

Talis balançou a cabeça. — Não — disse ele em voz alta.

— Talis, Sergei foi para Firenzcia. Nós podemos segui-lo. Você não tem nada para barganhar com essa gente. Não mais. Você está colocando Serafina e Nico em perigo.

Talis sorriu para Karl e Varina. — Ah, mas eu tenho sim um trunfo: a areia negra de Uly. Lembra-se? Ainda está aqui.

Karl sentiu a mão de Varina apertar seu braço. Ele lembrou-se: Uly, os barris de ingredientes no apartamento do homem, à espera de serem misturados... — Você não pode dar isso a eles...

— Este é o meu povo — falou Talis. — Eu agradeço por tudo o que vocês fizeram por Sera e Nico, mas este é o meu povo, o povo que eu conheço, e este é o momento de eu voltar para eles. Vá para o seu. — Ele gesticulou para os soldados e berrou algo em uma língua que Karl não compreendia. — Vá — disse Talis para Karl. — Vá enquanto ainda tem chance.

— Pelo menos deixe-nos levar Serafina e Nico conosco — gritou Varina, mas Talis fez que não com a cabeça.

— Eles são a minha família e ficarão comigo. Vá, Karl. Ou fique. Mas faça sua escolha. — Serafina olhou para os dois com incerteza e pânico no rosto. Nico encarou de olhos arregalados, mas parecia calmo.

Vários guerreiros pintados se aproximavam correndo agora. Talis ergueu o cajado mágico. Uma luz irrompeu do objeto, cintilou e baniu a sombra de Henri VI. — Karl? — A mão de Varina estava erguida; ele sentiu a energia do Segundo Mundo se acumular em volta dela.

— Eles são muitos — disse Karl.

— Não podemos deixá-los. Não podemos deixar Nico.

— Não temos escolha — respondeu ele.

Karl pegou a mão de Varina, e os dois correram.

 

Nico Morel

NICO NÃO CONSEGUIA ENTENDER o que Talis dizia quando os soldados pintados se aproximaram deles. Ele notou a insegurança na voz do vatarh e o jeito com que Talis falava alto e rápido, com a bengala mágica em frente ao corpo como um porrete. A matarh abraçou o menino com tanta força que ele mal conseguia respirar quando os estranhos os cercaram. Os homens eram inacreditavelmente grandes, assustadores e cheiravam a sangue e morte.

Nico sentiu o medo crescer dentro dele, juntamente com o frio estranho que sentiu no gabinete do archigos, assim como quando fugiu de Ville Paisli. O frio começou a aumentar por dentro, e ele murmurou baixinho as estranhas palavras que vieram à mente enquanto as mãos fizeram pequenos gestos sob o abraço forte da matarh.

— Talis, o que está acontecendo? Estou assustada... — Nico ouviu a matarh falar.

— Está tudo bem — disse o vatarh, mas a voz contradizia a resposta. — Eu só preciso falar com o guerreiro supremo. Deixe-me cuidar disso. Eles são meu povo; só não esperavam me encontrar aqui...

Talis voltou-se para um dos homens pintados, o que tinha um lagarto negro de língua vermelha rastejando no topo do crânio, que passava em volta do olho esquerdo e ia até a lateral da cabeça. Enquanto eles meio que gritavam uns com os outros, o vatarh brandiu a bengala na cara do sujeito. Nico sentiu o frio crescer sem parar dentro dele, era tão intenso que ele sabia que iria explodir se tentasse contê-lo por mais tempo. O menino gritou as estranhas palavras. Gesticulou.

Não houve fogo azul dessa vez. Em vez disso, o ar tremeu em volta dele e propagou-se como uma onda visível, a onda rápida acertou os homens pintados, e eles foram lançados para trás como se tivessem sido golpeados por um grande punho. — Venha, matarh! — berrou Nico. O menino agarrou a mão dela e puxou-a de maneira que Serafina tropeçou ao segui-lo, enquanto ele fugia na direção em que Karl e Varina foram. — Talis! Rápido!

Mas Talis não correu com os dois; ele também havia sido derrubado pela explosão incontrolável do menino. O guerreiro-lagarto já estava de pé, Nico olhou para trás ao começar a correr e viu o homem berrar para os demais no momento em que Talis gritou alguma coisa de volta e ergueu a bengala. Uma luz ofuscante brilhou da bengala, e um dos guerreiros rugiu. Nico puxou a matarh com mais força. — Corra!

Sera deu um passo com ele, mas soltou a mão do filho. O menino deu outro passo antes de perceber que a matarh não estava com ele. — Sera! — Nico ouviu Talis gritar e virou-se para trás.

A matarh estava esparramada sobre os paralelepípedos da praça, com uma lança nas costas e seu sangue manchando as pedras da pavimentação. Ela esticou o braço na direção de Nico, rastejou atrás do filho, com o rosto contraído de dor. — Matarh! — berrou o menino, que correu de volta para Serafina. Nico caiu ao lado dela assim que Talis a alcançou.

— Nico... — disse a matarh. — Eu sinto muito... — Ela virou a cabeça para Talis e começou a falar, mas ele fez carinho na cabeça de Serafina e a abraçou com cuidado.

— Não, não diga nada. Eu vou levar você a um curandeiro, a alguém que possa te ajudar... — Talis ergueu o olhar para os soldados pintados, que se reuniram em volta deles. O vatarh falou rispidamente na própria língua. O guerreiro-lagarto fez uma expressão de desdém, e gesticulou para os homens. Um deles arrancou a lança das costas da matarh de Nico, e ela gritou novamente. O menino atirou-se contra o guerreiro-lagarto e socou a armadura do homem. Ele agarrou Nico com um braço musculoso e rosnou alguma coisa para Talis. — Nico! — falou o vatarh. — Eles vão ajudá-la. Por favor, escute o que eu digo. Você tem que parar de lutar com eles.

Toda a energia abandonou Nico; ele desmoronou no braço do guerreiro-lagarto.

Dois guerreiros agacharam-se; eles rasgaram tiras da própria roupa e amarraram na cintura da matarh do menino. Um guerreiro pegou Serafina nos braços; ela gemeu e revirou os olhos, mas Nico viu que a matarh ainda respirava. Uma das mãos pendia; o menino contorceu-se no braço do guerreiro-lagarto e foi solto pelo homem. Ele correu e pegou a mão de Serafina.

Nico segurou a mão da matarh, em prantos, enquanto eles saíam rapidamente da praça.

 

Niente

ELES CONQUISTARAM A CIDADE.

Ou, mais corretamente, conquistaram parte dela. Nessântico era grande demais e a força dos tehuantinos pequena demais para controlar a cidade inteira, na prática. Em vez disso, eles arrebentaram a cidade, usaram areia negra para incendiar Nessântico, fizeram a Garde Civile recuar para o norte e o sul.

A cidade já não pertencia à kraljica e ao povo dela, mas também não era dos tehuantinos.

Niente tinha certeza de que jamais seria deles.

— Bem? — perguntou Zolin enquanto o nahual espiava a água da tigela premonitória.

— Paciência, tecuhtli — disse ele. — Paciência. — Mas Niente já sabia. A visão já tinha passado e a água era apenas água. Mas, ao fingir, o nahual podia decidir o que queria dizer. Ao fingir, podia se recuperar da pior parte do cansaço e da exaustão causados pelo feitiço.

Ele viu — novamente —, no meio da grande cidade arruinada, o tecuhtli e o nahualli mortos e sentiu outra vez o arrepio com a certeza de que viu Zolin e a si mesmo. Nada mudou. Axat ainda lhe mostrava o mesmo futuro, o mesmo caminho. Nada foi alterado após esta vitória. Niente achava que nada poderia alterá-lo. O futuro estava predeterminado, tão inevitável quanto o pôr do sol.

Eles estavam nas ruínas do templo, Zolin sentado no trono que a kraljica usara. O cabo de uma lança tinha sido cravado em uma fenda no piso de cerâmica, perto do trono. A cabeça da kraljica foi enfiada na lança, o único olho vidrado voltado para fora, o cabelo pendia grotescamente — o corpo estava caído contra a parede atrás do trono, onde fora jogado. Uma fogueira foi acesa no meio da nave e alimentada com a madeira dos bancos do tempo; uma fumaça cinza e fina subia para o céu que começava a ficar púrpura. Mesas foram erigidas em volta da fogueira, e um banquete estava em andamento, servido por assustados prisioneiros ocidentais. Não havia algum motivo em especial para o medo deles; Zolin e os outros guerreiros supremos não permitiriam que nenhum prisioneiro fosse maltratado. Sim, haveria os inevitáveis estupros, saques e mortes, mas os incidentes seriam poucos, e os responsáveis seriam severamente punidos se fossem flagrados. Alguns offiziers do alto escalão seriam sacrificados pela glória de Axat e Sakal, mas nenhum outro prisioneiro sofreria algum mal.

Os tehuantinos eram mais benevolentes e bons vencedores do que os orientais quando estes vieram aos Hellins.

Enquanto os guerreiros aproveitavam o banquete, Niente olhava na tigela premonitória perto da fogueira. A luz do fogo lambeu a pele do nahual, mas o calor não conseguiu tocar o frio que ele sentia por dentro. Niente finalmente pegou a tigela e jogou a água nas brasas em chamas, que assobiaram e soltaram vapor em resposta.

— Então — falou Zolin —, Axat me vê permanecendo aqui? Eu acho que este é um ótimo lugar. Podemos construir uma nova cidade aqui, uma que essa terra nunca viu antes, uma cidade que rivalizasse com Tlaxcala, e eu poderia ser o tecuhtli aqui, e os ocidentais nos serviriam como eles forçaram nossos primos a servi-los.

— Eu realmente vejo o senhor permanecendo aqui, tecuhtli — falou Niente, o que não era nada mais que a verdade.

Zolin deu um tapa nos braços cristalinos do trono. Ele rugiu de alegria, e os guerreiros reunidos no salão riram com ele. — Viu só! — berrou o tecuhtli para Niente. — Todas aquelas preocupações. Eu lhe disse, nahual, eu lhe disse.

— Disse sim, tecuhtli — falou Niente.

Zolin inclinou-se para a frente no trono. — Você viu outras batalhas? Você me viu tomando novas cidades?

O nahual balançou a cabeça e respondeu — Não. E isso não seria prudente, tecuhtli. Não temos mais areia negra. Se pudéssemos repor os guerreiros que caíram, se eu pudesse trazer mais nahualli para cá... — Ele espalmou as mãos. — Eu diria ao tecuhtli... — Niente começou a falar, mas houve uma agitação no fim do salão: o guerreiro supremo Citlali surgiu com um homem ao lado dele; um homem com um cajado mágico na mão. O nahual apertou os olhos para ver na escuridão da noite, iluminada pela fogueira; não era um nahualli que ele reconhecesse, e o homem estava vestido como um dos orientais, havia manchas de sangue na roupa. No entanto, aquele rosto...

— Talis? — perguntou Niente. — É você? — Pelo rosto, o homem parecia ter muitos mais anos do que deveria, a face foi arrasada pelo poder de Axat assim como a do nahual, mas ele lembrava-se da juventude nas feições do sujeito.

— Niente? — Talis correu à frente e agarrou o antebraço de Niente, seus olhos vasculharam o rosto, sem dúvida tão mudado quanto o próprio. — Por Axat, tem muito, muito tempo. Você é o nahual. Ótimo. Que ótimo para você... — Ele então viu o tecuhtli Zolin, deu meia-volta e abaixou a cabeça para ele. — Tecuhtli. Noto que Necalli caiu.

Niente ainda olhava para Talis. Havia uma dor nos olhos do homem que não era causada pelo X’in Ka. — Você está ferido? — perguntou o nahual, e Talis balançou a cabeça.

— Não, é que... — Ele parou, e Niente viu a preocupação e a tristeza desabarem sobre o homem. — Eu... eu tenho uma esposa aqui, e um filho. Ela foi... gravemente ferida. Preciso voltar para os dois...

— Nós levamos a mulher e o menino para a tenda dos curandeiros, tecuhtli, nahual — intrometeu-se Citlali. — Eles estão fazendo o possível.

— Ótimo — falou Zolin. — Você poderá ir até eles em um momento, Talis. Então você é o nahualli enviado para cá pelo antigo nahual? Eu sei que ele disse ao tecuhtli Necalli que você era quase tão poderoso quanto Mahri; que você teria dado um belo nahual. — Zolin deu uma olhadela para Niente. — Talvez esse acabe sendo seu destino. Eu li seus relatórios e, com o passar dos anos; eles me ajudaram a compreender e a derrotar os orientais. Sou grato por isso.

— Tecuhtli — disse Citlali quando Zolin fez uma pausa ao se recostar no trono. — Talis tem uma informação que o senhor precisa saber, sobre um exército mais a leste da cidade. Foi por isso que eu o trouxe aqui.

Talis concordou com a cabeça, Niente ouviu o homem, sentindo um medo crescente enquanto ele falava a respeito desse exército de Firenzcia e da reputação da força militar daquele país. O nahual ficou especialmente aflito com a expressão cada vez mais empolgada no rosto de Zolin. — Tecuhtli — falou ele —, isso é o que a tigela premonitória me disse. Nós fizemos tudo que viemos fazer aqui. Devíamos embarcar agora e voltar para casa antes que esse exército venha para cima de nós. Podemos juntar um novo exército e voltar com mais navios, mais guerreiros e nahualli da próxima vez, e se o senhor quiser se sentar nesse trono como tecuhtli do leste, nós o colocaremos aqui com recursos suficientes para que isso aconteça. Mas não agora. Somos muito poucos, guerreiros e nahualli, para outro grande combate, especialmente sem a areia negra.

Niente pensou que, finalmente, tivesse convencido o tecuhtli. Sentado no trono, Zolin fez uma careta e tamborilou os dedos no braço cristalino do trono. Balançou a cabeça como se estivesse pensando.

Mas Talis então acabou com qualquer esperança que restasse em Niente. — Existe areia negra — disse ele. — Ou melhor, existem ingredientes suficientes aqui na cidade para fazer boa parte dela. Eu sei onde estão.

Zolin inclinou-se para frente no trono e arregalou tanto os olhos que as asas da águia dançaram no rosto. — Onde? Leve-nos até eles agora.

— Tecuhtli, minha esposa... Eu preciso ir até ela.

Niente sabia como Zolin reagiria a isso; e não ficou surpreso. — Todos nós temos esposas e família — retrucou o tecuhtli. — Nosso dever é aqui e agora. Citlali, como está a mulher?

Citlali deu de ombros. — Ela está nas mãos de quem sabe o que fazer. Não há nada mais a ser feito.

— Pronto. Viu só, Talis? — falou Zolin. — Você tem sua resposta. Sinto muito pelo ferimento de sua esposa e entendo que queria estar com ela. Mas seu tecuhtli também precisa de você. O nahual Niente está certo: sem mais areia negra, nós perderemos o que ganhamos. A areia negra, nahualli, é o que precisamos. — Zolin inclinou-se para frente e apoiou os cotovelos nos joelhos. — A esposa de um traidor não receberia ajuda alguma.

Niente ouviu as próximas palavras como se fossem o toque do sino da morte.

— Como o senhor quiser, tecuhtli — disse Talis. — Eu o levarei lá.

— Ótimo — falou Zolin ao ficar de pé. — Citlali, coma e beba alguma coisa e prepare os guerreiros para mais uma batalha. Nahual Niente, faça o mesma com os nahualli. Nesse meio tempo, eu conversarei com você, Talis, enquanto vamos atrás dessa areia negra.

 

Sergei ca’Rudka

SERGEI CUSTOU A ACREDITAR no que Karl e Varina lhe contaram. Ele tinha visto a fumaça dos incêndios em Nessântico, cujo cheiro tinha sido trazido pelo vento, e sabia que a cidade sofria, mas isso: Nessântico conquistada, a maior parte em ruínas...

Isso, Sergei não tinha esperado.

Havia muita coisa que ele não tinha esperado. Sergei sentiu-se muito velho e frágil realmente.

— O archigos ca’Cellibrecca está aqui? — perguntou Karl. Sergei concordou com a cabeça. O rosto do numetodo ficou rígido e determinado, a voz amarga comeu sílabas. — Então me leve até ele, Sergei. Que esse seja o pagamento por libertar você da Bastida. Apenas me leve até ele e afaste-se. Você não precisa se envolver com o resto.

— Não é tão simples assim, Karl.

— Na verdade, é simples assim — retrucou o numetodo. — O homem matou Ana, e eu quero justiça pelo assassinato dela.

— Isso, eu não posso dar para você. Não aqui, nem agora. Mas posso lhe dizer que o hïrzg Jan não gosta muito do homem. Acho que o mesmo pode ser dito a respeito da a’hïrzg Allesandra, pelo menos por enquanto. Karl, deixe-me cuidar dessa situação. Por favor. — Sergei olhou para Varina, em busca de apoio.

— Ouça o que ele diz — falou ela. — Ou ouça Ana; o que ela lhe diria?

O trio estava na tenda de Sergei no acampamento firenzciano, onde os dois tinham sido trazidos pelos primeiros soldados que encontraram. O regente ficou surpreso e contente de ver os dois numetodos; após a separação, Sergei temeu que eles tivessem sido capturados e aprisionados, ou coisa pior. Se a história de Karl e Varina tinha feito o regente sofrer era porque a ideia de Nessântico arruinada era dolorosa demais para imaginar.

Ele também sabia que o hïrzg e a a’hïrzg, no mínimo, também já teriam sido informados da chegada de Karl e Varina; Sergei estava um pouco surpreso por ainda não ter ouvido alguma coisa de um dos dois. E quando o archigos Semini soubesse que o embaixador dos numetodos estava no acampamento... Ele precisava se preparar para isto. Allesandra e Jan eram outro problema; Sergei não sabia exatamente como os dois reagiriam. Ele faria o possível para proteger Karl e Varina, mas...

Sergei falou — Karl, eu lhe prometo isto: quando chegar o momento, ajudarei você com ca’Cellibrecca. O homem é uma praga e um insulto ao robe que a archigos Ana usou. Ambos concordamos com isso. Quando chegar o momento, eu terei prazer em lhe ajudar a tornar a morte dele tão dolorosa quanto você quer. — Sergei quase sorriu ao pensar em Semini instalado na Bastida. Sim, aquilo seria delicioso. Aquilo seria... prazeroso.

Varina arregalou um pouco os olhos com a declaração, mas Karl concordou com a cabeça, com os lábios franzidos. Houve um pigarreio discreto de uma garganta na aba da tenda, um momento depois. — Entre — falou Sergei, e a aba foi aberta para revelar um dos pajens do hïrzg.

— Regente, o hïrzg Jan pede que o senhor leve seus dois convidados... — os olhos do menino se voltaram para Karl e Varina — ... à tenda dele. O hïrzg montou um jantar para os dois e deseja escutar o que eles têm a dizer.

— Diga ao hïrzg que iremos imediatamente — falou Sergei para o pajem, que fez uma mesura e saiu. — Vocês não têm o que temer do hïrzg Jan — disse o regente para os dois. Ele torcia para que fosse verdade. — Eu até gosto do jovem. De certa forma, ele me faz lembrar de mim mesmo...


— O archigos Semini me dirá que os numetodos são hereges e mentirosos, fisicamente perigosos para mim, bem como para minha alma eterna — disse o hïrzg Jan.

— O archigos Semini é um mentiroso e um tolo, além de burro — respondeu Sergei. — Se me perdoa a franqueza, hïrzg.

Jan sorriu. — Sentem-se — falou ele para Karl e Varina ao apontar para a mesa com pão, queijo e uma panela com guisado de carne. Pratos foscos de estanho estavam dispostos diante deles. — Aproveitem os pequenos confortos que temos aqui em campanha, uma vez que não posso oferecer a hospitalidade completa de Firenzcia. — Quando os dois hesitaram, o sorriso de Jan cresceu. — Eu lhes garanto que tenho a mesma opinião do regente no que se refere ao archigos Semini.

Varina conseguiu dar um sorriso; Karl ainda parecia inseguro e perguntou — E qual é a opinião do hïrzg sobre os numetodos?

— Uma das coisas que o regente ca’Rudka me ensinou é que devo julgar as pessoas não pelo que são, mas por quem elas são. Eu ainda não tenho opinião sobre os numetodos; até agora, nunca havia conhecido um. — Jan gesticulou para as cadeiras novamente. — Por favor...

Sergei fez uma mesura. Um momento depois, Karl repetiu o gesto, e os três tomaram seus lugares em frente ao hïrzg. — A a’hïrzg se juntará a nós? — perguntou o regente.

O sorriso de Jan sumiu ao ouvir isto e disse — Não. — Aquela única palavra quase pareceu arrancada à força. Sergei aguardou mais explicações, mas nenhuma veio. O regente perguntou-se sobre o que teria acontecido entre matarh e filho; até agora, ele só tinha visto Allesandra de relance durante um dia e meio. Embora o exército se arrastasse próximo às muralhas de Nessântico em um passo lento enlouquecedor, Allesandra manteve-se em uma carruagem fechada, sem nem o filho, nem o archigos como companhia.

Mas Sergei não pediria uma explicação ao hïrzg. Em vez disso, Jan olhava para Karl e Varina. — Eu gostaria de saber sua história, contada por vocês mesmos — falou ele.

Pela próxima virada da ampulheta, foi isso que Karl e Varina fizeram, com Jan guiando os dois com perguntas ocasionais. Sergei ouviu a maior parte e achou graça quando Karl omitiu algumas partes da história. Jan inclinou-se para a frente quando o numetodo descreveu a areia negra, como foi usada pelos ocidentais no ataque à cidade, e ao saber que havia ingredientes na cidade para fazer mais.

— Você afirma que essa areia negra é a chave do sucesso dos ocidentais? Essa é a mesma magia que nós soubemos que eles usaram nos Hellins?

— Não é magia, hïrzg — falou Karl. — Essa é a parte interessante. É alquimia. Varina tem certa noção, pelo que Talis disse e pelas amostras que eu trouxe do apartamento de Uly, de como preparar a areia negra. Eu vi, todos nós vimos, as coisas terríveis que a areia pode fazer. — Uma sombra sinistra pareceu passar pelo rosto de Karl ao dizer isso, e Sergei sabia que ele se recordava do assassinato de Ana. Era um horror que jamais seria apagado da mente de qualquer um dos dois. — Os ocidentais colocaram fogo na cidade com a areia; eles mataram centenas, talvez milhares. Hïrzg, com essa areia negra, nenhum exército precisa de ténis-guerreiros ou de feitiços. Nenhuma armadura consegue resistir, espadas não podem superá-la, não importa o número.

— E você sabe onde está o estoque dessa areia negra?

Karl assentiu com a cabeça. — Eu sei. Varina também. Nós podemos levar o senhor até lá, hïrzg. Mas os ocidentais também estarão atrás da areia negra. Talis... eu suspeito que Talis já esteja levando os ocidentais até ela. Eles já podem estar com a areia.

— Hïrzg — interrompeu Sergei. — Eu entendo por que o senhor deixou seu exército ocioso aqui. Eu talvez tivesse tomado a mesma decisão no seu lugar; embora meu coração fique partido ao ver a cidade queimar e saber que os ocidentais pisoteiam as ruínas dos lugares que mais amei no mundo. — Ele esfregou o nariz falso, notou que Jan olhou fixamente para o gesto e abaixou a mão. — Mas, se o senhor realmente está disposto a ouvir meu conselho, eu lhe diria que o tempo de esperar acabou. Eu também testemunhei os efeitos dessa areia negra. Se os ocidentais tiverem tempo para criar mais, então seus próprios soldados pagarão o preço pela hesitação. Hïrzg, ouça o que meus amigos estão lhe dizendo. A Garde Civile de Nessântico foi derrotada. Aquela batalha acabou. Temos que atacar agora; não Nessântico, mas aqueles que a derrotaram, antes que venham à Firenzcia.

Sergei achou que o apelo não teria efeito. Jan olhava para o alto, o olhar vasculhava a lona iluminada pelo fogo como se houvesse uma resposta escrita na fumaça. O jovem suspirou uma vez. Então bateu palmas e um pajem entrou.

— Chame o starkkapitän aqui — disse o hïrzg para o menino. — Há preparativos imediatos que eu preciso que ele faça. Corra!

 

Jan ca’Vörl

ELE OUVIU as grandiosas e gloriosas histórias de guerra várias vezes ao longo dos anos: do vavatarh Jan; do vatarh; dos onczios e dos conhecidos mais velhos; e, mais recentemente, de Fynn. Até mesmo da matarh, que contou que o vavatarh a elogiou quando era pequena por seu conhecimento de estratégia militar.

Jan começou a se dar conta de que essas histórias eram inventadas, memórias falsas ou, muitas vezes, mentiras deslavadas.

Até hoje, ele nunca havia entrado a cavalo em uma batalha de verdade. Até hoje, seu conhecimento sobre habilidades marciais fora intelectual e seguro. Mostraram a Jan como cavalgar, manejar uma espada, usar uma lança ou arco e flecha sobre o cavalo, como se proteger de outro chevarittai ou de um soldado de infantaria. Ele participou de lutas com espada de treino, participou de manobras militares. Aprendeu sobre a arte da guerra: quais táticas usar contra um inimigo que estivesse em um terreno superior ou inferior, ou que possuísse mais soldados ou menos, ou mais ténis-guerreiros ou menos. Jan sabia que formação teoricamente era melhor contra outra.

Era o que qualquer jovem rapaz de seu status teria aprendido.

A guerra, na mente de Jan, era um exercício muito gracioso e preciso. Ele sabia — intelectualmente — que era impossível que fosse tão linear e eficiente. Jan entendia.

Mas... ele não sabia que a guerra podia ser tão desordenada assim. Tão caótica. Tão real.

Ninguém no exército firenzciano achava que Jan — assim como Fynn, assim como seu homônimo, o velho hïrzg Jan — seria o verdadeiro general nesse importante ataque. Eles sabiam que a estratégia era do starkkapitän ca’Damont, com a ajuda do regente ca’Rudka e a contribuição dos dois numetodos que vieram da cidade em chamas para o acampamento. Sabiam que seria o archigos Semini que comandaria os ténis-guerreiros.

Jan estaria lá, e a bandeira de comando tremularia entre a Garde Hïrzg e os chevarittai à sua volta, e ele avançaria logo atrás da vanguarda de suas forças como Fynn e o antigo hïrzg Jan fizeram antes dele. Mas Jan consultaria o starkkapitän antes de dar ordens. Ele sabia que era uma atitude inteligente; sabia que o resto dos offiziers e chevarittai também tinha noção disso. Francamente, Jan estava tranquilo em relação a consultar o starkkapitän; ele conhecia a própria inexperiência e não era tão arrogante a ponto de insistir em estragar o ataque.

A entrada em Nessântico começou bem o suficiente. Como uma espada curva, as forças firenzcianas avançaram pela cidade através de todos os portões do lado leste. Não houve resistência; pelo contrário, o surgimento dos soldados foi recebido por gritos de alegria pela população e pelos remanescentes da Garde Civile de Nessântico espalhados. Alguns chevarittai dos Domínios até saíram de mansinho dos esconderijos para engrossar as fileiras de Firenzcia. Após uma virada da ampulheta dentro das muralhas da cidade, Jan começou a torcer para que a situação continuasse assim: marchando sem resistência até a fronteira oeste da cidade e encontrando as forças ocidentais em plena retirada.

Sob o calor do dia, ele suava debaixo da armadura, e o que mais queria era arrancar o fardo pesado dos anéis de aço. Aquilo parecia ser o pior desconforto da vitória.

— Qual o caminho, embaixador? — perguntou Jan para Karl, que cavalgava com seu séquito ao lado de sua matarh, Varina e Sergei.

— Ao norte, por algumas transversais — respondeu o numetodo, que apontava —, depois vários quarteirões para o leste.

Jan concordou com a cabeça. O exército firenzciano ganhou volume pela Avi. O sol brilhava intensamente. Era um belo dia. Eles já tinham vencido, e o hïrzg sentiu-se confiante a ponto de dar uma ordem por si próprio. — Starkkapitän — disse Jan para ca’Damont —, eu levarei metade da Garde Hïrzg comigo, bem como o regente e os numetodos. Deixo você no comando do exército. Faça o que for necessário para defender esta parte da Avi e a cidade. Depois você e a a’hïrzg prosseguirão para o sul, para a Ilha A’Kralji, e cuide para que controlemos a ilha e as Ponticas orientais. Se houver algum problema, mande um mensageiro até mim imediatamente. Da minha parte, eu mandarei um mensageiro assim que nós localizarmos a areia negra e soubermos como está a situação por lá.

— Jan. Hïrzg. — Allesandra franziu a testa, enquanto ca’Damont parecia incomodado. — Eu não acho...

— Eu dei minhas ordens — disparou Jan e interrompeu sua matarh. — Starkkapitän? Tem algum problema com elas?

Ca’Damont meneou a cabeça negativamente. Ele vociferou ordens rápidas.

— Eu me encontro depois com a senhora, matarh — disse Jan. — Na Ilha.

Allesandra não pareceu convencida. O hïrzg pensou que ela fosse protestar mais, mas a matarh só olhou feio para ele. Jan viu Allesandra dar uma única olhadela para Sergei; o regente deu levemente de ombros sob a armadura. O nariz lançou fagulhas de sol sobre o rosto.

A matarh finalmente inclinou a cabeça e disse — Como quiser, meu hïrzg. — “Meu hïrzg”, não “meu filho”. Jan notou a irritação na expressão. Ela puxou as rédeas com força e começou a caminhar para o sul. Um quarteto da Garde Hïrzg e um téni-guerreiro cercaram a a’hïrzg com atraso.

O starkkapitän prestou continência e falou — Que Cénzi oriente o senhor, meu hïrzg. Eu cuidarei para que a a’hïrzg permaneça a salvo. — Ca’Damont começou a ir embora, mas puxou as rédeas, e disse — Fynn fez uma excelente escolha no senhor. Tome cuidado, hïrzg Jan.

O starkkapitän ca’Damont prestou continência novamente e foi embora, com a maior parte do séquito com ele. Jan olhou em volta para os demais e falou — Vamos encontrar essa areia negra. Embaixador ca’Vliomani, você vai à frente.

Karl levou o esquadrão de Jan ao norte pela Avi, e os soldados pelos quais eles passaram prestaram continência ao hïrzg e a seu estandarte, depois o grupo virou à esquerda em uma rua mais estreita e deixou o exército para trás. O tilintar das armaduras e o baque frio do aço nos cascos dos cavalos eram o barulho mais alto na rua. Não havia mais rostos nas janelas, mais ninguém visível adiante, no caminho curvo. Algumas portas dos prédios pelos quais o esquadrão passou estavam abertas; muitas à força. Havia lixo acumulado na avenida. Eles passaram por vários corpos: gente morta há alguns dias, pela aparência, cadáveres inchados com pernas e braços rígidos, em ângulos estranhos, cheios de vermes e moscas. Jan olhou fixamente para os mortos ao passarem; ele notou que Sergei fez o mesmo, com uma intensidade estranha.

Há pouco tempo, esses corpos tinham sido pessoas vivas, que talvez corressem para os amantes, acompanhassem os filhos, comprassem comida nos mercados ou bebessem nas tavernas, levassem suas vidas em frente. Ele duvidava que essas pessoas esperassem que a vida fosse acabar tão rapidamente e de modo tão definitivo. Duvidava que elas esperassem que fossem virar monumentos acidentais e temporários da guerra.

Jan fungou, incapaz de manter o fedor longe do nariz — ele perguntou-se se Sergei realmente podia sentir o cheiro. O hïrzg segurou firme na espada e enroscou as rédeas com mais força na mão esquerda.

Ao sul, eles ouviram um estrondo repentino como trovão e gritos baixos. Sergei, ao lado de Jan, olhou naquela direção com preocupação, e disse — Eu acho, hïrzg, que a batalha começou. Talvez devêssemos retornar.

Jan balançou a cabeça. — Embaixador, a que distância estamos do lugar? — perguntou.

— Mais dois cruzamentos — respondeu ca’Vliomani. — Não mais do que isso.

— Então nós prosseguiremos.

Sergei franziu os lábios, mas não teve outra reação.

Eles continuaram até chegar a outra viela, ainda menor, onde Karl parou e ficou em pé na sela. Ao olhar a rua estreita, Jan viu uma placa antiga e surrada pendurada em um prédio à direita: havia um cisne mal desenhado em tinta vermelha nas tábuas.

— Ali. — Ca’Vliomani chamou Jan e os demais. — Nós deveríamos...

Ele não foi adiante.

Da esquerda, da direita, várias dezenas de guerreiros pintados vieram para cima deles aos berros. Os próximos grãos da ampulheta viraram um caos de que Jan se lembraria pelo resto da vida.

... um clarão súbito de uma luz ofuscante surgiu à frente do grupo, depois mais um, e Jan percebeu que Karl e Varina lançavam feitiços. Ele ouviu gritos...

... o chevarittai à direita de Jan foi arrancado da sela com o pulo de um ocidental, e o cavalo do homem chocou-se com força na perna do hïrzg. A perna direita ficou presa entre os dois animais, e ele gritou pela pontada de dor, apesar da proteção das grevas. Jan puxou as rédeas do cavalo...

... mas houve mais movimento à direita e por trás no exato momento em que ele fez isso. Jan viu o aço e colocou sua espada diante do corpo da montaria quase tarde demais — mas o suficiente para que o golpe que teria acertado acima das presilhas de seu coxote fosse desviado, mas a lâmina do ocidental cortou fundo a pata traseira de seu cavalo de guerra. O animal relinchou de dor e terror. Jan viu o cavalo arregalar os olhos, sentiu a perna da montaria ceder, ele estava caindo...

... — Ao hïrzg! — Jan ouviu alguém gritar. Ele estava no chão com uma confusão de pernas, tanto equinas quanto humanas, em volta. O hïrzg ficou de pé rapidamente (a perna direita enviou uma pontada de dor espinha acima por causa do abuso). Um ocidental vinha para cima dele, e Jan conseguiu encontrar o cabo da espada, levantar o aço pesado e estocar debaixo do peitoral da estranha armadura do homem. Ele sentiu a lâmina entrar na carne. Ela ficou brevemente presa, Jan a torceu e empurrou, gemeu e sentiu a boca se esgarçar em um ricto de fúria, a espada entrou subitamente. O ocidental, empalado, ainda completou o ataque, mas as braceleiras em volta dos antebraços do hïrzg aguentaram o impacto, embora ele achasse que o braço direito pudesse ter quebrado com o golpe. Jan tentou arrancar a espada do homem, mas não conseguiu, e o peso morto do ocidental quase tirou a arma de sua mão, que ficou inerte e dormente...

... Outro ocidental berrou à sua esquerda, Jan puxou a espada desesperadamente outra vez, embora soubesse que seria tarde demais. Mas outra espada — firenzciana — cortou a garganta do homem e quase decepou sua cabeça. O hïrzg ficou coberto por sangue quente...

... E mãos levantaram Jan. — O senhor está bem, meu hïrzg? — perguntou alguém, e ele concordou com a cabeça. A mão direita formigava, mas parecia ter voltado à vida. Jan fechou os dedos, exercitou-os dentro da manopla, abaixou a mão e soltou a espada com um puxão. Ele virou-se...

... e viu um trio de ocidentais reunidos como escudos em volta de outro guerreiro pintado, este com um pássaro tatuado no crânio raspado e no rosto. Sergei estava ao seu lado, sua espada subia e descia, mas o soldado firenzciano ao lado do regente caiu com a mão decepada no pulso. Jan correu para a brecha, sem pensar em nada a não ser reagir...

... e, de alguma forma, ele passou pelos guardas e ficou em frente ao guerreiro com a marca do pássaro. A armadura do ocidental desviou o primeiro corte de Jan, e o pomo duro de bronze da espada do homem bateu no queixo do hïrzg sob o elmo. Ele cambaleou para trás, com gosto de sangue na boca...

... ao ver o guerreiro-pássaro amparar o ataque da espada de Sergei...

... ele investiu novamente contra o homem, rosnou e contorceu o rosto, e o ocidental não foi capaz de se defender de ambos ao mesmo tempo. Foi a espada de Jan que penetrou, que encontrou a brecha entre os tubos roliços da armadura do homem e entrou no corpo. O ocidental perdeu o fôlego como se estivesse surpreso. O hïrzg ouviu uma voz chamar um nome estranho, “tecuhtli”, quando o homem caiu de joelhos. A espada de Sergei acompanhou a arma de Jan e acertou o sujeito no pescoço e na cabeça. O guerreiro-pássaro desmoronou sobre os paralelepípedos ensanguentados, de cara no chão...

... e tudo acabou, a não ser pelo estrondo da pulsação nos ouvidos.

Jan percebeu que sua respiração estava acelerada, que o coração batia tão furiosamente que ameaçava irromper pelas costelas, que a perna e os braços doíam, que estava completamente coberto por sangue, e que, pelo menos em parte, o sangue era seu. Ele estava curvado e ofegante, com as pernas bem afastadas. Jan sentiu um embrulho no estômago e engoliu em seco para conter a bile ardente, para se forçar a não vomitar. Sentiu a mão de Sergei dar um tapinha em seu ombro sobre a armadura. Ele pestanejou e olhou em volta: havia pelo menos uma dúzia de corpos no chão, alguns com o uniforme preto e prateado de Firenzcia. Uns poucos ainda se debatiam; enquanto o hïrzg observava, os homens da Garde Civile despachavam os ocidentais que ainda estavam vivos. Havia córregos de sangue que fluíam dos corpos e entranhas espalhadas na rua como salsichas obscenas.

Karl e Varina estavam incólumes — os corpos mais próximos aos dois estavam carbonizados e escurecidos; havia um cheiro de carne cozida no ar. O nariz falso de Sergei tinha sumido completamente e a bochecha esquerda estava aberta por um corte; onde ficava o nariz, a pele era sarapintada e as cavidades da cabeça de Sergei estavam escancaradas, o que deixava o rosto com a aparência horripilante de um crânio. Jan foi novamente tomado pela náusea, e dessa vez o mundo pareceu girar um pouco à sua volta. Ele colocou a ponta da espada no chão e apoiou-se pesadamente sobre a arma.

— Tecuhtli! — O hïrzg ouviu o chamado novamente, agora um homem saia do prédio onde estava pendurada a placa do cisne vermelho, não mais do que a uma dezena de passos de onde Jan e os demais estavam. Ele segurava um frasco de vidro na mão direita, cheio de grânulos escuros; na mão esquerda havia uma bengala retorcida. O sujeito parou, como se estivesse assustado pela imagem de carnificina à frente.

— Talis... — Jan ouviu Karl murmurar o nome: uma surpresa, uma maldição, um feitiço. — Areia negra...

O homem fechou a cara, ergueu o frasco com a mão direita e jogou o braço para trás como se fosse lançar o objeto. Jan imaginou como seria morrer e se encontraria o vavatarh Jan e Fynn na morte.

Uma mulher saiu correndo do beco atrás da taverna, um borrão marrom e cinza, tão depressa que ninguém teve tempo de reagir. Assim que Talis levantou a mão, ela agarrou o cabelo do homem e puxou a cabeça para trás. A boca do homem ficou tão escancarada quanto a de um peixe no mercado, e o tom vermelho seguiu o prateado quando a mulher passou uma faca pela garganta de Talis. Uma segunda boca ficou ainda mais escancarada do que a primeira e vomitou sangue. O frasco de vidro caiu da mão do sujeito e quebrou no chão, sem explodir. Ela debruçou-se sobre o corpo — parecia colocar alguma coisa às pressas no olho de Talis —, Jan deu uma boa olhada no rosto da mulher, entre o cabelo emaranhado.

O coração saltou no peito. Ele ficou boquiaberto e murmurou — Elissa?

A jovem ergueu a cabeça e arregalou os olhos ao vê-lo, e embora ela não tenha dito nada, Jan ouviu a mulher respirar fundo. Ela arrancou algo do rosto de Talis; o hïrzg vislumbrou uma pedra branca entre os dedos. A jovem correu para o beco de onde veio. Um dos soldados começou a correr em perseguição.

— Não! — berrou Jan para o homem. — Deixe-a ir!

O soldado parou. Jan ouviu os sussurros ao redor: — A Pedra Branca...

A Pedra Branca...

Não, o hïrzg queria dizer para todos, não era verdade, porque aquela pessoa era Elissa, que Jan amava. Não era verdade porque a Pedra Branca assassinou Fynn, que ele também amava. Não era verdade.

E, de alguma forma impossível, era verdade.

Era verdade.

 

Niente

O NAVIO ESTAVA LOTADO de gente fugindo da cidade, e de pessoas dos outros navios agora emborcados e meio submersos no rio. O convés estava escorregadio com água, sangue e vômito. A água em volta estava cheia de corpos rígidos e inchados — tanto de orientais quanto de tehuantinos. Havia guerreiros e nahualli feridos espalhados por toda parte do convés, gemendo sob a luz do sol que sumia; os tripulantes que ainda eram capazes subiam nos mastros para soltar as velas e apertar os cabos. A âncora, que gemia e protestava, foi içada no lodo do fundo do rio, e o capitão do navio berrava ordens. Devagar, muito devagar na opinião de Niente, a cidade começou a ficar para trás conforme eles eram levados embora pela corrente do rio e pelo vento.

Niente observava da popa do navio de guerra, à direita de Citlali. O corpo do guerreiro supremo, decorado com os traços rubro-negros de cortes cicatrizados feitos por espadas, apoiava-se pesadamente no cabo quebrado de uma lança enquanto ele olhava com raiva para a cidade.

— Você estava certo, nahual — disse Citlali. — Você viu corretamente a visão de Axat.

Niente concordou com a cabeça. Ele ainda estava admirado por estar aqui, por estar vivo, por ter sido poupado, de alguma maneira impossível, por Axat. O nahual poderia ver a terra natal novamente, se as tempestades do Mar Interior permitissem. Teria a esposa nos braços outra vez; abraçaria os filhos e os veria brincar. Niente respirou fundo e estremeceu.

— Eu não fui poderoso o suficiente — falou ele. — Não fui o nahual que deveria ter sido. Se tivesse sido mais firme ao falar com Zolin, se tivesse visto as visões com mais clareza...

— Se tivesse feito isso, nada significativo teria mudado — respondeu Citlali. — Zolin não teria lhe dado ouvidos, nahual, não importa o que você dissesse. Zolin só ouvia os deuses clamarem por vingança. Ele não teria lhe dado ouvidos. Você teria sido afastado como nahual e teria morrido aqui também.

— Então foi tudo um desperdício.

Citlali deu uma risada seca e sem graça. — Um desperdício? Longe disso. Você não tem imaginação, nahual Niente, e não é um guerreiro. Um desperdício? Nenhuma morte em combate é um desperdício. Olhe para a grande cidade dos orientais. — O guerreiro supremo apontou para leste, onde o sol reluzia dourado sobre as torres quebradas e atravessava a fumaça dos incêndios que restavam. — Nós tomamos a cidade deles. Tomamos o coração dos orientais. — Ele estendeu a mão com a palma para cima, como se pegasse alguma coisa. Os dedos fecharam-se lentamente. — Você acha que algum dia eles se esquecerão disso, nahual? Não. Eles tremerão à noite e ficarão aterrorizados diante de um som repentino, pensarão que somos nós de volta. Eles se lembrarão disso de geração em geração. Jamais se sentirão seguros novamente; e eles terão razão.

Citlali cuspiu sobre a amurada para o rio. Havia sangue no cuspe. — Nós pegamos o coração dos orientais e ficaremos com ele. Eu faço essa promessa para Sakal aqui, e você é minha testemunha; que o olho Dele veja minhas palavras e registre. Nós ficaremos com o que tiramos dos orientais. Um tecuhtli estará de novo onde Zolin caiu.

Citlali deu um tapa nas costas de Niente com tanta força que ele cambaleou. — O que você acha disso, nahual?

Niente olhou fixamente para a cidade, que desaparecia no rastro do navio, e falou — Eu olharei na tigela premonitória hoje à noite, tecuhtli Citlali, e direi o que Axat diz.

 

A Pedra Branca

A NOVA VOZ na cabeça da Pedra Branca gritava, lamentava e se revoltava, falava metade na língua de Nessântico e metade em um idioma que ela não entendia de maneira alguma. As outras vozes riam e vibravam.

— Jan, o seu amante... Que visão agradável ele tem de você agora!

— Você acha que ele se casaria com a assassina suja que viu?

— Ele dormiu com uma assassina e agora ela carrega seu filho no ventre.

— Ele vislumbrou a verdade. Espero que você sempre se lembre do horror no rosto de Jan ao ser reconhecida.

Aquela última voz era de Fynn, satisfeito e presunçoso. — Calem-se! — gritou a Pedra Branca para as vozes, mas elas só riram ainda mais alto e abafaram o que ela ouvia com os próprios ouvidos.

Ela havia seguido Talis e o líder ocidental desde a Ilha até o Cisne Vermelho, após verificar que Nico parecia a salvo. Ela estava furiosa, com raiva de Talis — que rompera sua promessa com a Pedra Branca. Os numetodos... eles podiam ser hereges nojentos, mas trataram Nico com gentileza e respeito, especialmente a mulher.

Mas Talis...

Talis traiu Nico, e por causa disso a matarh do menino estava à beira da morte, e a Pedra Branca dissera para Talis qual seria o preço. Dissera e cobraria o pagamento. A Pedra Branca sempre cumpria sua palavra.

Ela seguiu Talis então, quando — do nada — sons de batalha irromperam ao leste e a Pedra Branca viu o líder ocidental agrupar seus homens para emboscar os chevarittai e os soldados firenzcianos. De repente, havia muita luta acontecendo, muito movimento para ela agir. A Pedra Branca ficou preocupada naquele momento, se perguntando se Nico estava realmente a salvo, quis desesperadamente correr até o menino, com medo de que Talis pudesse ter cometido um erro. Mas ela o viu sair de mansinho do quarto onde havia entrado e depois correr para a rua. A Pedra Branca seguiu Talis. Ela assistiu ao confronto e viu a chance. Passou a faca na garganta dele e sentiu Talis morrer ao deixar cair o frasco com o pó negro. E ao deitá-lo no chão e colocar a pedra no olho do homem, a Pedra Branca o viu de relance.

Jan.

O choque foi palpável. Ela sentiu com tanta intensidade como se o coração tivesse sido posto diretamente sobre uma camada escondida de brasas incandescentes. Jan: ele ficou parado ali, e ela testemunhou o lento reconhecimento de seu rosto. A expressão de Jan a assustou. Era permeada de choque e carinho, de saudade e horror. Vê-lo foi horrível e maravilhoso ao mesmo tempo. Ela quis correr até Jan, quis pegar sua mão e colocar na barriga inchada e sussurrar: aqui, querido. Esta é a vida que criamos juntos. Isso é o que o nosso amor fez. Ela também quis correr, esconder o rosto e fingir que essa revelação nunca aconteceu.

O segundo impulso foi mais forte.

Ela pegou a pedra branca do olho de Talis e fugiu, com vontade de que Jan a seguisse e com medo de que ele realmente fizesse isso.

A Pedra Branca não parou até chegar à Pontica Kralji. Ali não havia homens estranhos da cor de bronze; nenhum que estivesse vivo, de qualquer forma, embora o chão estivesse cheio de corpos ocidentais. Ela viu soldados usando os tons preto e prateado de Firenzcia por toda parte nas ruas — o que fez Fynn se manifestar com empolgação dentro de sua cabeça —, cruzou a Pontica cuidadosamente e escondeu-se depressa na Ilha. Isso foi fácil; havia tantas paredes desmoronadas, tantos prédios queimados. Ela foi até a cabana do jardineiro no terreno do palácio para onde Nico e sua matarh tinham sido levados, onde o curandeiro ocidental trabalhou no corpo ferido de Serafina.

O curandeiro e todos os soldados ocidentais tinham ido embora, mas os medos da Pedra Branca passaram quando viu que Nico ainda estava ali, segurando a mão da matarh, ajoelhado ao lado da mesa onde ela estava deitada — devia ter sido uma das mesas de jantar do palácio antigamente, ainda coberta por damascos rendados e elegantes, agora sujos e manchados de sangue. Ela notou o movimento da respiração lenta no peito de Serafina, mas os olhos continuavam fechados e ela parecia sem reação.

— Nico — falou a Pedra Branca. O menino levou um susto e apertou com mais força a mão da matarh.

— Ah — disse ele um momento depois. O rosto ficou um pouquinho alegre. Nico fungou e passou a mão pelo nariz. — Elle. É você.

A Pedra Branca confirmou com um aceno e foi até o menino. Ela segurou com as mãos de Nico e a de Serafina. Viu que ele olhava fixamente para o sangue que manchava a pele da matarh. — Precisamos ir embora, Nico.

— Eu não posso abandonar a matarh. Talis voltará em breve.

A Pedra Branca fez que não com a cabeça. Ela apertou com força a mão dele. A pele era quente, tão quente, e ela sentiu a criança dentro dela dar um pulo com o toque; o movimento da vida, o despertar. Ela levou um ligeiro susto com a sensação. — Não. Infelizmente, Talis está morto, Nico.

Ela percebeu as lágrimas surgirem nos olhos do menino e o lábio inferior tremer. Depois ele fungou de novo e piscou. — Isso é verdade?

Ela concordou com a cabeça. — É verdade, Nico. Sinto muitíssimo.

O menino chorava plenamente agora, as palavras saíram entre os soluços. — Mas minha matarh... Eu não posso... Eles acabaram de abandoná-la... Ela está dormindo e eu... não consigo acordá-la...

— Sua matarh gostaria que você fosse comigo. Olhe para ela, Nico. Sua matarh ama muito você, eu tenho certeza que sim, mas não sei se ela acordará um dia, e a cidade está cheia de soldados e morte. Ela gostaria que você fosse comigo porque posso mantê-lo a salvo. Eu manterei você a salvo.

— Mas eu fiz isso com ela — disse Nico. — A culpa é minha. Quero que ela saiba que eu sinto muito.

A Pedra Branca apertou a mão de Nico em volta da mão da matarh. — Ela sabe. Nico, temos que correr.

Ela tirou a mão do menino de Serafina, abriu os dedos com delicadeza. Ele soltou a matarh com hesitação, mas sem reclamar. — Agora dê um beijo — falou a Pedra Branca. — Ela sentirá e saberá.

Nico ficou de pé, inclinou-se sobre o corpo da matarh e deu um beijo na bochecha. Ela colocou a mão de Serafina, que pendia para o lado, sobre a mesa e deu um tapinha. Nico olhou para trás, então, com os olhos cheios de lágrimas, que não caíam.

— É o momento — disse a Pedra Branca.

Juntos, de mãos dadas, eles foram embora da cidade em chamas e ruínas.

 

Allesandra ca’Vörl

— AQUI ESTÁ A SENHORA, MATARH. Ele é todo seu. Espero que fique feliz.

As palavras de Jan saíram como um banho de água escaldante. Elas queimaram e cauterizaram Allesandra, foram ditas com frieza e desdém espantosos e cruéis. O hïrzg fez um gesto grandioso e debochado na direção do Trono do Sol. Ela olhou fixamente para a enorme peça de cristal entalhado, que estava estranhamente fora do lugar, no meio das ruínas do Velho Templo. O trono foi rachado e mal reformado; estava coberto por um pano com estranhos desenhos geométricos, as ruínas do domo rachado e da claraboia estavam espalhadas sobre o piso quebrado de cerâmica, e por toda parte no salão havia os restos de um banquete qualquer. Ratos espreitavam os cantos do cômodo, e o ar fedia à fumaça e à carne podre. Perto dos fundos havia um corpo, coberto às pressas por uma tapeçaria.

Allesandra sabia de quem era o cadáver encoberto: de Sigourney, cuja cabeça separada do corpo estava enfiada em uma lança perto do trono.

O regente e os dois numetodos estavam recortados pela luz do sol nas portas abertas do templo, longe demais para ouvir a conversa de Jan com ela. O starkkapitän ca’Damont dava ordens na praça do templo e despachava patrulhas para garantir que todas as tropas ocidentais estivessem fora da cidade e para impedir que os sobreviventes saqueassem.

Allesandra ouviu o arrastar de passos nas portas do templo; ao olhar para trás, viu o archigos Semini pisar com cuidado sobre os destroços no chão. Jan também viu o homem e disse — Ah, archigos Semini. Estou contente que esteja aqui, uma vez que isso também é seu. Eu lhe dou Nessântico. Você não ficará mais em Brezno.

— Meu hïrzg? — perguntou Semini ao olhar com preocupação de Allesandra para Jan. — Eu pensei que o archigos talvez pudesse ficar em Brezno agora, dada a destruição daqui. Eu poderia designar um a’téni para Nessântico...

— Ah, eu concordo — falou Jan, e o sorriso provocou um arrepio em Allesandra. Era o sorriso sério e indiferente que o vatarh de Allesandra usava quando estava furioso. Ela o tinha visto muitas vezes na infância e na idade adulta, quando ele finalmente a trouxera de volta para Firenzcia. Agora, a expressão de desdém e deboche voltaram. Fuligem e sangue sujavam o rosto de Jan, e o braço e a perna direitos estavam bem enfaixados. Ele mancava e não parecia capaz de erguer o braço da espada. Allesandra perguntou-se o que o filho tinha visto, o que sentia. Ela queria envolvê-lo nos braços e confortá-lo como fazia quando Jan era criança, mas o hïrzg estava a um cauteloso passo de distância, como se temesse exatamente isso. — Veja bem, haverá um archigos em Brezno. Quanto a ter um archigos em Nessântico, bem... — Jan deu de ombros friamente. — A escolha é sua. Você pode querer reivindicar o título e mantê-lo por um tempo, embora você sempre tenha dito que queria uma fé concénziana reunificada. Ou talvez o archigos em Brezno deixe você ser o a’téni aqui em Nessântico, apesar de eu aconselhar o archigos contra isso.

— Hïrzg? — balbuciou ca’Cellibrecca. O rosto ficou no tom de branco dos fios que salpicavam a barba e o cabelo escuros; o contraste foi forte. — Eu não entendo.

— Talvez a matarh explique para você, uma vez que agora esta cidade é dela — disse Jan.

Allesandra olhou fixamente para o trono. Ela sentia-se morta, entorpecida. Se alguém a cortasse, pensou, ela não sentiria nada, nem mesmo o calor do sangue na pele. — Meu filho me deu Nessântico, mas me informou que Firenzcia não se reunificará com os Domínios — falou Allesandra para Semini com uma voz tão morta quanto as emoções.

— Considere isso como meu presente de casamento, matarh — falou Jan. — Pelo casamento que eu nunca tive, com a mulher que a senhora mandou para longe de mim.

— Eu estava protegendo você, Jan — disse Allesandra, embora não houvesse energia na reclamação. — Elissa era uma fraude. Uma impostora.

— Eu sei. Ela foi contratada para matar Fynn.

— O quê? — Isso fez com que Allesandra erguesse a cabeça e provocou uma breve onda de fúria. Ela virou-se para encará-lo. — O que você está dizendo? A Pedra Branca matou Fynn.

— Matou, sim — falou Jan com o mesmo sorriso irritante. — Deixe-me dizer uma coisa que a senhora talvez não saiba, matarh, embora devesse saber: Elissa era a Pedra Branca. Ela me usou para se aproximar de Fynn.

— Isso não é possível — disse Allesandra. Não podia ser; não era possível. A voz que ela ouviu, a mulher intermediária; não, não era possível, e, no entanto... Allesandra lembrou-se da voz, mais aguda do que seria esperado de um homem. E ela nunca tinha visto a Pedra Branca. Apenas presumiu...

— Acredite no que quiser — dizia Jan. — Eu realmente não me importo. — Ele gesticulou novamente para o trono. — Tome seu novo lugar, matarh. Não se acanhe. A senhora esperou por tanto tempo, afinal, e o regente ca’Rudka renunciou a qualquer pretensão ao título. A senhora pode mandar Semini abençoá-la. Talvez os ca’ e co’ voltem à cidade agora, para que a senhora possa lhes dizer que há uma nova kraljica.

Jan começou a se afastar, na direção das portas abertas. Ela deu um passo e pegou o braço ferido. — Jan. Filho...

Ele soltou o braço, fez uma careta ao sentir a dor evidente, e aquilo foi uma agonia maior para Allesandra do que qualquer golpe de espada. — Sente-se, matarh. Assuma seu Trono do Sol. A senhora possui o que sempre quis. Aproveite o presente que eu lhe dei.

Dito isso, ele caminhou na direção de ca’Rudka e dos demais. Allesandra observou o filho sair, sentiu vontade de chamá-lo, de impedi-lo de ir embora, de parar o sofrimento.

Ela não fez nada. Observou Jan chegar à passagem iluminada, ouviu sua risada ao dar um tapinha nas costas de ca’Rudka com a mão que não estava machucada. Os quatro foram embora e a luz do sol desabou sobre deles.

Semini olhava para o céu, onde o domo de Brunelli esteve, e respirava alto pelo nariz. Allesandra andou lentamente até o Trono do Sol.

Ela sentou-se.

Nas profundezas do cristal espesso, não havia luz. Nenhuma reação. O trono permaneceu melancolicamente escuro.

1. Dupla mão é um termo de cavalaria para o oficial que tanto pode comandar um esquadrão quanto um batalhão. Também é o caso do soldado que luta com um mosquete e um sabre ao mesmo tempo, que não é aplicável aqui. (N. do T.)


Epílogo: Nessântico

ELA ESTAVA ARRASADA. Ela estava arruinada.

Ela foi devastada pelo fogo e pela magia; foi cortada pelo aço. Foi saqueada e pilhada. Os maiores tesouros danificados ou perdidos. Os prédios que foram sua coroa eram ruínas desmoronadas e pilhas de pedras escurecidas. O colar de joias da Avi a’Parete não reluzia mais à noite. Agora só havia as estrelas no céu, que brilhavam e debochavam da própria escuridão da cidade.

Metade da população estava morta ou havia fugido. Ela sentiu, pela primeira vez em muitos séculos, a marcha de soldados conquistadores em suas ruas: não sentiu uma vez, mas duas. Havia uma kraljica no Trono do Sol, mas ela olhava para um império que murchou e encolheu.

Não havia como negar a magreza da face refletida no espelho sujo do A’Sele: o rosto da cidade era o rosto de uma velha, um rosto encarquilhado, um rosto com cicatrizes, feridas abertas e dor. Não havia beleza ali, nenhuma glória, nenhum deslumbramento.

Tudo isso foi embora, como se nunca tivesse existido.

Quando vieram as chuvas, como era frequente naquele outono, foi como se o mundo inteiro chorasse por ela: a cidade, a mulher. As tempestades podiam lavar a fuligem e extinguir as chamas, mas não podiam curar. Elas podiam refrescar e aplacar, mas não podiam restaurar. Levaram embora os corpos, o lixo e a terra que entupia o rio, mas os trovões não conseguiam destruir as memórias.

As memórias permaneceriam.

Permaneceriam por muito, muito tempo...

Karl ca’Vliomani

ULY NÃO ESTAVA NO MERCADO DO VELHO DISTRITO, embora tivesse estado. As pessoas lembravam-se do estrangeiro tatuado e com cicatrizes, mas disseram para Karl que o homem empacotou as mercadorias e limpou a barraca há apenas dois dias, no mesmo dia em que o kraljiki Audric tinha sido assassinado. Não, nenhum dos proprietários das barracas próximas sabia onde Uly tinha ido, mas (disseram) havia algumas pessoas, que andaram comprando sua poção especial de fertilidade, que poderiam saber.

Karl esperava confrontar esse Uly e arrancar a verdade sobre o que aconteceu com Ana imediatamente. Um novo fogo ardia em seu estômago, mas o alívio e o desfecho não foram imediatos.

Eles levaram dias.

Dias que prejudicaram a recente intimidade que Karl tinha com Varina. O fantasma de Ana pairava entre os dois, ressuscitado pela presença de Talis e sua história, e Varina recuou diante do espectro que Karl não conseguia atravessar. Ela ainda pegava na mão de Karl ou passava os dedos no rosto dele, mas agora havia tristeza no toque, como se Varina fizesse carinho em uma memória. Karl beijava Varina, mas, embora os lábios dela fossem macios e quentes e ele quisesse ceder, o beijo era muito efêmero e distante, como se Karl beijasse Varina através de um véu invisível.

Dias em que ele considerava se devia chamar os numetodos de volta para a cidade e em que decidiu que ainda era perigoso demais. Mika, torcia Karl, estava com a família em Sforzia; deixe que fique lá, deixe que o resto dos numetodos dispersados permaneçam escondidos. Deixe que a Casa dos Numetodos continue vazia e às escuras.

Dias em que as notícias pareciam ficar cada vez piores: os ferimentos terríveis da kraljica Sigourney, a invasão e o saque à Karnor, um exército oriental no solo de Nessântico e seus navios nas águas do A’Sele, a convocação da Garde Civile, os “esquadrões de recrutamento” que alistavam homens, muitas vezes (de acordo com os rumores) querendo ou não servir. Karl era velho o bastante para não atrair muito interesse, mas Talis, não. Ele ficava cada vez mais confinado em casa e tinha que tomar cuidado quando se arriscava a sair para evitar os esquadrões. Karl tinha as próprias dificuldades — seu rosto certamente era conhecido por muitos gardai da Garde Civile, da Garde Kralji e entre os ténis, e ele tinha que tomar cuidado e se disfarçar antes de sair, mudar o sotaque característico de Paeti e não deixar ninguém olhar com muita atenção para o seu rosto.

Esses foram dias em que Karl descobriu, a contragosto, que Talis era mais a pessoa que Serafina dizia que era do que a pessoa que Karl queria que ele fosse. O embaixador ainda não confiava completamente no homem, e dormiu muito pouco desde aquela primeira noite, pois Talis, Serafina e Nico dormiam, juntos, no mesmo quarto que ele e Varina. Karl ficou de olho em Talis, especialmente na manhã seguinte, quando ele limpou a tigela de latão na qual eles acenderam a areia negra e — como Karl lembrou-se que Mahri fazia — encheu com água limpa e polvilhou com outro pó, mais claro. Talis então abriu o Segundo Mundo com um feitiço, e uma névoa esmeralda encheu a tigela. Uma luz agitada pulsou no rosto do homem enquanto ele entoava e olhava fixamente para as profundezas da tigela.

Na luz verde, Karl viu as rugas finas no rosto do homem, que quase ficavam mais profundas enquanto ele observava. Talis já parecia mais velho do que Serafina disse que ele era; Karl achava que sabia o motivo agora: o método de magia dos ocidentais custava caro para o usuário.

— Mahri costumava dizer que via o futuro aí — falou Karl depois, quando Talis, exausto e andando como um velho, jogou a água na jardineira da janela da sala. — Ele não parecia ser muito bom nisso, se não viu a própria morte.

Talis secou a tigela cuidadosamente com a borda da bashta, sem olhar para Karl. — O que vemos na tigela premonitória não é o futuro, mas sombras de possibilidade. Vemos probabilidades e chances. Axat sugere o que pode acontecer se seguirmos um determinado caminho, mas nunca há uma garantia. — O homem guardou a tigela novamente na bolsa que sempre carregava e deu um sorriso ligeiro para Karl. — Todos nós podemos mudar nosso futuro, se formos fortes e persistentes o suficiente.

Karl torceu o nariz para a afirmação. Talis foi então até Nico, e os dois se engalfinharam, rindo, enquanto Serafina observava com um sorriso, e o amor entre os três ficou palpável. Ele ouviu Varina entrar na sala descalça, com olheiras de sono. Ela também observava, e Karl não foi capaz de decifrar o que viu no rosto de Varina. Ela deve ter sentido o olhar porque se virou para o embaixador, deu um sorriso triste e depois virou o rosto novamente. Varina cruzou os braços sobre o peito e abraçou a si mesma, e não Karl.

Todo dia, Karl ia ao mercado do Velho Distrito, geralmente com Varina, na esperança de encontrar aqueles elusivos clientes de Uly e fazer perguntas. Após vários dias infrutíferos, tornou-se rotina; os dois às vezes levavam Nico junto, após prometerem à Serafina que, caso encontrassem Uly, eles não o confrontariam.

Foram quase duas semanas, quando aconteceu.

— Ah, sim, a mulher que eu falei para você acabou de passar aqui — disse o fazendeiro ao colocar uma caixa de cogumelos no lugar. — Ela usava uma tashta amarela com um dragão bordado na frente. Provavelmente ainda está por aí; ela disse que estava atrás de peixe. — O homem apontou para a esquerda. — Você pode checar na barraca do Ari, logo ali. Ele acabou de trazer umas trutas do Vaghian.

Karl ouviu Varina respirar fundo, viu quando segurou Nico com mais força. Ele acenou com a cabeça, jogou uma folia para o homem e avançou pelas multidões que passeavam lentamente pelas vielas sujas do mercado; quase todos eram mulheres e homens mais velhos. Eles sentiram o cheiro da barraca do pescador antes de vê-la, e Karl vislumbrou uma tashta amarela ali. — Karl? — disse Varina.

— Eu apenas perguntarei a ela. Se a mulher souber onde Uly está, então levaremos Nico para casa primeiro. — Ele deu um tapinha na cabeça do menino. — Não podemos deixar sua matarh chateada conosco, afinal — falou Karl para Nico.

Ele deixou os dois lá e aproximou-se da barraca. A mulher virou-se quando Ari mostrou um peixe com escamas da cor do arco-íris, e Karl viu a cabeça do dragão, de cuja boca saía uma fumaça roxa. O embaixador avançou até estar ao lado dela e disse — Com licença, vajica, mas se puder responder a uma pergunta, eu compro o peixe para a senhora. — Antes que a mulher pudesse responder, Karl contou a história que os dois haviam ensaiado e apontou de vez em quando para Varina e Nico: que ele tinha acabado de casar, que a esposa tinha um filho do antigo marido e agora os dois queriam um filho próprio, mas por serem mais velhos agora, os dois não conseguiam conceber; que ele ouviu falar que havia um estrangeiro chamado Uly, que antigamente tinha uma barraca aqui no mercado onde vendia poções exatamente para aquele problema, e que um dos vendedores mencionou que ela podia saber onde esse tal de Uly estaria. A mulher olhou de Karl para Varina e Nico.

Ela realmente sabia. — Na verdade, acabei de falar com ele. No Cisne Vermelho, no Beco do Sino, pertinho daqui. Ele tinha acabado de pedir uma cerveja, então imagino que ainda esteja lá.

Karl agradeceu à mulher, pagou o pescador pela truta sem pechinchar, e voltou para Varina e Nico. Ele agachou-se em frente ao menino e disse — Varina levará você para casa agora, Nico. — Karl não ousou erguer os olhos para ela, pois podia imaginar os pensamentos refletidos pelo rosto de Varina. — Eu ficarei aqui um pouquinho mais.

Nico concordou com a cabeça, e Karl abraçou o menino. — Vão agora, vocês dois — falou ao se levantar.

— Karl, você prometeu... — disse Varina.

— Eu não farei nada — falou Karl, e perguntou-se se isso era verdade. Ele contou o que a mulher disse. — Eu sei onde ele está neste momento. Só vou segui-lo. Descobrirei onde ele vive. Aí podemos descobrir como abordá-lo.

Karl notou a desconfiança no jeito que Varina mordeu o lábio inferior, no olhar vazio, no lento balançar da cabeça. Ela agarrou Nico com força. — Você promete?

— Prometo.

Com a cabeça inclinada para o lado, Varina encarou Karl e disse, finalmente — Ande, Nico. Vamos.

Karl abaixou-se e abraçou Nico novamente e depois Varina, ao se levantar. Foi como abraçar uma das colunas do Templo do Archigos. Ele ficou observando os dois até desaparecerem na multidão do mercado.

O Beco do Sino era uma viela suja a alguns quarteirões da Avi a’Parete, com apenas alguns passos de largura e apinhada de lojas de propósitos indeterminados, acima delas havia apartamentos esquálidos às escuras. O Cisne Vermelho ficava na esquina onde a viela cruzava uma rua maior, que levava à Avi, e tinha um placa com tinta descascando. Karl entrou e parou para os olhos se ajustarem à penumbra do interior. A única luz lá dentro vinha das nesgas das persianas e das velas que pingavam em um único lustre e em cima de cada mesa. Assim que Karl conseguiu enxergar na luz mortiça, foi fácil encontrar Uly: um homem de pele acobreada, com cicatrizes e tatuagens no rosto e nos braços.

Karl foi ao bar e pediu uma caneca de cerveja ao garçom com cara de poucos amigos, de costas para Uly. O interior ficou subitamente claro quando outra pessoa — uma mulher — entrou no bar, e Karl protegeu os olhos contra a luz.

Ele tinha a intenção de fazer como dissera para Varina: encontrar Uly e seguir o homem até descobrir onde morava. Mas Karl observou o sujeito beber a cerveja, e imagens do corpo de Ana, esparramado e destruído, surgiram em sua mente, de maneira que ele mal conseguia pensar, e uma raiva cresceu lentamente no estômago, subiu ao peito até dar um abraço de veias saltadas nos pulmões e coração.

Karl tomou meia cerveja em um só gole. Ele pegou a caneca e foi até a mesa do ocidental.

— Você é Uly? — perguntou Karl. Ele sentou-se em frente ao sujeito, que o observava com atenção, como se estivesse pronto para lutar. Os músculos pulsaram nos braços fortes de Uly, e uma mão se moveu para debaixo da mesa.

— E se eu for? — perguntou o homem. A voz tinha o mesmo sotaque de Talis, o mesmo de Mahri, embora fosse mais grave e acentuado, e Karl teve que escutar com atenção para entender as palavras.

— Eu soube que você faz poções. Para fertilidade.

O homem empinou um pouco o queixo e pareceu relaxar. A mão direita voltou à mesa arranhada e com marcas de canecas de cerveja. — Ah, isso. Eu faço sim. Você precisa de algo assim?

Karl deu de ombros. — Não de algo assim, mas talvez... de outra coisa. Eu tenho um amigo; o nome dele é Talis. Ele me disse que você pode fornecer uma coisa não para criar vida, mas para acabar com ela. Rapidamente.

Karl observou o rosto do homem ao falar. À menção de Talis, uma sobrancelha ergueu-se levemente. Uly levantou um canto da boca, como se achasse graça. Ele esfregou o crânio com marcas e tatuagens negras. As mãos eram grandes, a pele áspera, e havia uma cicatriz comprida no dorso: as mãos de um comerciante. Ou de um soldado. — Uma coisa assim deveria ser ilegal, vajiki. Mesmo que pudesse ser feita.

— Estou disposto a pagar bem por isso. Muito bem.

Ele concordou devagar com a cabeça. Uly levantou a caneca e bebeu tudo em um só gole, depois secou a boca com as costas da mão e disse — Está um belo dia. Vamos dar uma volta e conversar.

O homem levantou-se e Karl ficou de pé junto com ele. O resto do corpo atarracado de Uly era tão musculoso quanto os braços. Quando os dois chegaram à porta da taverna, uma mulher que corria para lá esbarrou em Karl e quase o derrubou sobre Uly. — Perdão, vajiki! — disse ela. O rosto estava sujo de terra, havia ranho seco em volta do nariz, e o hálito era desagradável. A mulher pegou a mão de Karl e colocou algo em sua palma. — Para dar sorte. O senhor tem que guardar isso, vai trazer boa sorte, vajiki. Guarde direitinho. — Ela fechou os dedos de Karl em volta do objeto, soltou o embaixador e saiu correndo pela porta. Karl olhou para o que a mulher colocara em sua mão: um seixo pequeno e claro. Uly riu.

— A mulher deve ter teia de aranha na cabeça — falou ele. — Vamos, vajiki.

Karl colocou o seixo no bolso da bashta e seguiu Uly pelo Beco do Sino, depois cruzaram a rua maior e entraram em outro beco em curva. Eles seguiam para o norte, na direção do Parque do Templo. — E qual é o seu nome, vajiki, uma vez que sabe o meu? — perguntou Uly enquanto os dois andavam.

— Andus. É tudo o que você precisa saber.

— Ah, somos cautelosos, não, vajiki Andus? Isso é bom. Isso é bom. E quem você quer que morra?

— Isso é da minha conta, não da sua.

— Discordo complemente — falou Uly —, pois a Garde Kralji viria atrás de mim e de você também, e eu não tenho interesse em me hospedar na Bastida. Eu exijo que me diga um nome, ou não faremos negócio.

— É o archigos. Eu sei que você já tem alguma experiência com isso.

Karl observou o homem, com um feitiço pronto para ser lançado a uma palavra e um gesto. Uly hesitou apenas de leve, mal perdeu o passo, mas, tirando isso, não houve resposta alguma. Ele continuou caminhando, e Karl teve que se apressar para alcançá-lo. A expressão do sujeito não se alterou, nem a atitude. Karl esperou que ele dissesse alguma coisa, a mão ao lado do corpo. Os dois passaram por um beco transversal...

... e Uly avançou contra Karl, uma mão grande prendeu a de Karl quando ele tentou erguê-la, e a outra mão tapou a boca do embaixador e bateu com a cabeça dele contra o alicerce de pedra de um prédio. O impacto fez Karl perder o fôlego e provocou fisgadas na cabeça. O joelho de Uly golpeou o estômago do embaixador. Karl sentiu ânsia de vômito e percebeu que estava caindo. Algo — um joelho, um punho, ele não sabia dizer o que — bateu na sua cabeça. Ele não conseguia enxergar, mal era capaz de respirar. Sentiu os paralelepípedos frios debaixo do corpo e a água imunda empoçada ali.

— Você é um tolo, embaixador ca’Vliomani — sibilou Uly. — Achou que eu não lhe reconheceria?

Você morrerá. Agora. Foi uma conclusão sombria.

Ele ouviu botas nos paralelepípedos; Karl percebeu que era um único par de passos e esperou que o golpe final viesse. O embaixador ouviu um grunhido e um grito de dor, e algo pesado caiu no chão, ao lado dele. Ele sentiu uma mão levantar sua cabeça e amarrar um capuz sobre ela para que não pudesse enxergar. O pano cheirava a suor velho. — Fique quieto e não será ferido — disse uma voz, que não era a de Uly. Alguém com um pouco de sotaque não identificável, nem grave ou agudo, o que tornava difícil sequer determinar o gênero da pessoa. — Tire o capuz e você morre. — Algo pontiagudo foi pressionado contra o pescoço, e Karl gemeu com a expectativa do golpe cortante. — Acene com a cabeça se entendeu.

Karl concordou, e a lâmina da faca desapareceu. Ele ouviu mais um barulho, parecido com um tapa e um gemido que só podia ser de Uly. — Responda se você quiser viver — disse a voz, embora não se dirigisse a Karl. — Você matou a archigos Ana, não foi? Você preparou a areia negra.

— Não. — Uly começou a dizer, mas a voz foi interrompida por um gemido de dor. — Tudo bem, tudo bem. Sim, eu ajudei a matá-la. Com a areia negra. Mas a ideia não foi minha. Eu só dei a substância para o homem e contei como usá-la. Não sabia o que ele pretendia fazer com ela. Ai! Droga, isso é verdade! — Lá se foi a preferência de Uly por morrer em vez de falar, pensou Karl. Talvez Talis não conhecesse seus guerreiros tão bem, afinal.

— Quem?

— Eu não sei... Ai! Por Axat! Pare! Ele me disse que o nome era Gairdi ci’Tomisi, mas não sei se o nome é verdadeiro ou não. Ele pagou bem, e isso era tudo que eu sabia ou que me importava!

Houve mais sons baixos e um longo lamento que só podia ter vindo de Uly. O homem ofegava agora, choramingava de dor, o fôlego era rápido e desesperado. — Por favor. Por favor, pare.

— Então fale mais a respeito deste homem — disse a outra voz. — Rápido.

— Parecia um ca’ ou co’, pelo jeito de falar. Firenzciano, talvez, pelo sotaque. Disse que as “ordens” vieram de Brezno, em todo caso. É tudo que sei. Eu preparei a substância, dei para o homem, e ele foi embora. Fiquei tão surpreso quanto qualquer um quando a archigos foi morta.

Karl queria desesperadamente arrancar o capuz do rosto para ver o que acontecia, mas não ousou. Houve mais sons: uma briga animada, um baque suave e depois um farfalhar. Alguém puxou sua bashta e remexeu o bolso. Ele pensou ter ouvido passos leves, mas, com a cabeça latejando e apitando, os sons eram tênues demais para Karl ter certeza.

Depois, por vários instantes, não houve absolutamente nada, apenas os sons distantes da cidade. — Alô? — sussurrou Karl. Não houve resposta. Ele levou as mãos ao pano amarrado em volta da cabeça e arrancou do rosto. O que viu fez com que o embaixador recuasse, horrorizado.

Karl olhou fixamente para o corpo de Uly nos paralelepípedos, com a garganta cortada e sangue espalhado pelas roupas. O olho direito estava aberto para o céu, mas sobre o esquerdo havia a pedra que a mulher deu para ele na taverna.

 

Allesandra ca’Vörl

SEMINI TENTOU ENTRAR EM CONTATO COM ELA por vários dias. Allesandra deixou as mensagens do archigos em cima da mesa. Quando ele mandou seu o’téni falar diretamente com ela, o homem foi informado pelos assistentes muito bem instruídos da a’hïrzg que Allesandra estava em reuniões e não podia ser incomodada. Quando o próprio Semini saiu do templo para vê-la, ela fez questão de sair da cidade com Jan para ver a reunião das tropas.

Quando Semini — sob a desculpa de trabalhar com os ténis-guerreiros que também estavam sendo reunidos — veio aos campos ao sul de Brezno, não houve, finalmente, jeito de evitá-lo.

Semini era um mancha escura e verde que contrastava com a brancura banhada pelo sol da lona da tenda. Do lado de fora, o acampamento militar agitava-se de manhã: com o clamor do metal conforme os ferreiros trabalhavam nas armas, armaduras e uniformes; o chamado de soldados; as ordens aos berros dos offiziers; o burburinho geral de movimentação; o som de pés que marchavam em uníssono enquanto os esquadrões treinavam. Cheiros entraram com a brisa quando Semini deixou a aba da tenda bater ao entrar: o cozinheiro e as fogueiras, o odor de lama revirada por milhares de pés, e o leve fedor das valas que serviam como latrinas.

Allesandra conversava com Sergei ca’Rudka, sentada atrás da mesa de campanha que um dia foi de seu vatarh, com painéis frontais pintados com imagens da famosas batalhas do hïrzg Jan ca’Silanta na Magyaria Oriental. — ... disse ao hïrzg e ao starkkapitän que esperem resistência assim que cruzarmos a fronteira — dizia Sergei, que parou e virou-se quando o olhar de Allesandra passou por cima de seus ombros na direção de Semini. — Ah, archigos. Talvez eu deva ir embora.

— Volte depois da Segunda Chamada e nós continuaremos a nossa conversa, regente — falou Allesandra. Sergei fez uma mesura, esfregou a lateral reluzente do nariz, e saiu da tenda dando um aceno de cabeça e o sinal de Cénzi para o archigos.

Semini parecia pouco à vontade, como se esperasse que ela se levantasse e o abraçasse assim que a aba da tenda se fechasse quando ca’Rudka saiu. Após um momento, ele finalmente fez o sinal de Cénzi para Allesandra e trocou o pé de apoio ao ficar parado diante da mesa como um offizier convocado por ela. — Allesandra. — Semini começou a dizer, e ela fez uma cara feia.

— Qualquer pessoa pode estar ouvindo pela lona da tenda. Nós estamos em público, archigos Semini, e eu espero que o senhor se dirija a mim de maneira apropriada.

Allesandra viu que ele apertou os olhos, irritado com a repreensão. Ele franziu os lábios sob a cobertura do bigode. — A’hïrzg ca’Vörl — falou Semini com lentidão proposital —, peço desculpas. — Depois, ele abaixou o tom em um quase sussurro, baixo e grave. — Espero que nós ainda possamos falar abertamente. Francesca, ela...

Allesandra balançou a cabeça de leve; ao movimento, Semini parou. — Eu falei com sua esposa — disse ela, com ênfase especial. — Naquela noite. Tivemos uma conversa ótima. Francesca parece acreditar que você teve algo a ver com a morte da archigos Ana.

Ela realmente não esperava que Semini reagisse, coisa que ele não fez. O archigos olhou para a a’hïrzg com uma expressão neutra e falou — Eu sei que a senhora tem algum carinho pela falsa archigos. Dado o que aconteceu com a senhora, eu compreendo. Mas Ana ca’Seranta era minha inimiga. Eu não sofri com seu falecimento, nem um pouquinho, e se minha alegria com a morte dela lhe ofende, a’hïrzg, então tenho que aceitar isso. Eu rezei, muitas vezes, que Cénzi levasse a alma dela, porque a mulher acreditava em coisas erradas, e foi em grande parte responsável pelo rompimento da Fé e pela cisão dos Domínios.

— Ela também é a razão de eu ser quem sou. Sem ela... — Allesandra deu de ombros. — Eu poderia não estar aqui. Jan poderia nunca ter nascido.

— E, no mínimo, por causa disso, eu rezei por ela quando morreu. — Semini deu um passo em direção à mesa de campanha, e parou. — Allesandra, o que aconteceu entre nós? É óbvio que você está me evitando. Por quê?

— Quando pretendia me contar que foi você que mandou matar Ana? Ou não pretendia me contar?

— Allesandra...

— Se não foi você, então negue, Semini. Diga-me agora que não foi você.

Allesandra não tinha certeza se queria que ele respondesse. Nos dias que se seguiram, ela tinha — através da equipe palaciana, através do comandante da Garde Brezno — realizado sua própria investigação. O nome de Gairdi ci’Tomisi havia surgido, e ela mandou o comandante co’Göttering levar o mercador, que por acaso estava em Brezno, para a Bastida a fim de ser interrogado. Ci’Tomisi, sob a persuasão menos do que gentil da Bastida, entregou toda a história: que servia Firenzcia e o archigos ca’Cellibrecca como agente duplo; que conhecia um ocidental em Nessântico que vendia poções, que o homem contara a ele a respeito de um poderoso preparado ocidental, que o sujeito havia demonstrado como essa “areia negra” funcionava e que ci’Tomisi falou para seus contatos no Templo de Brezno sobre seu poder, e que recebeu uma mensagem de volta (do “archigos em pessoa”) que — se ele fosse capaz — uma demonstração contra a Fé de Nessântico seria “interessante e muito bem recompensada”; que ele usou os contatos no Templo do Archigos em Nessântico para entrar à noite; que colocou a areia negra no Alto Púlpito e uma vela de tempo queimando no interior, com a chama programada para tocar a areia negra no mesmo momento em que a archigos Ana desse a Admoestação.

Ci’Tomisi confessou para salvar a própria vida, choramingou e chorou. Ele conseguiu, mas Allesandra perguntou-se se, na cela suja e imunda nas profundezas da Bastida, ci’Tomisi desejaria que não tivesse conseguido.

A a’hïrzg também sabia que Semini já devia ter percebido que ci’Tomisi havia sido preso e que provavelmente tinha confessado. Portanto, Allesandra observava Semini e imaginava o que ele diria, se lhe diria a mentira e negaria qualquer conhecimento a respeito do caso, e como ela deveria reagir se o archigos fizesse isso.

Mas Semini não negou. — Eu sou o archigos. Preciso fazer o que parecer ser melhor para a fé concénziana, e, na minha opinião, a Fé permaneceria tão quebrada quanto o mundo de Cénzi até que aquela mulher morresse.

Ao ouvir isso, a mão de Allesandra foi ao pingente com o globo rachado que ela usava, aquele que fora dado por Ana. A a’hïrzg viu que Semini observou o gesto e falou — Cénzi teria levado Ana em Seu próprio tempo. E, caso não levasse, por que você deveria agir por Ele?

Semini teve a dignidade e a humildade de abaixar os olhos para a grama bem aparada que servia de piso na tenda. — Cénzi geralmente exige que as pessoas ajam por Ele — respondeu o archigos, finalmente. — Houve... uma oportunidade repentina, uma que se apresentou de maneira completamente inesperada, e não apontaria para Firenzcia, e sim tanto para os numetodos quanto para os ocidentais. Isso, por acaso, é mais errado do que alguém nos Domínios mandar a Pedra Branca matar Fynn? — Ele encarou Allesandra.

Ela sentiu uma pontada de culpa e franziu a boca. Semini pareceu interpretar o gesto como irritação.

— Eu tive que agir imediatamente ou simplesmente não agiria — continuou ele. — Eu rezei para Cénzi pedindo por orientação e senti que fui respondido. E, naquela ocasião, a’hïrzg, a senhora e eu não éramos... — Semini deixou a próxima palavra pairar no silêncio. O archigos continuou a falar, mas agora a voz era um sussurro praticamente inaudível. — Se nós fôssemos, Allesandra, eu teria pedido seu conselho e acatado. Em vez disso, eu pedi ao seu vatarh, que já estava muito doente, e ao seu irmão.

— Você está me dizendo que o vatarh sabia? E Fynn? Eles também aprovaram isso?

— Sim. Sinto muito, Allesandra. — O arrependimento na voz parecia genuíno. As mãos estavam erguidas, como se pedisse perdão, e havia uma umidade nos olhos de Semini que refletiu o sol que entrava pela lona. — Sinto muito — repetiu. — Se eu soubesse como o ato magoaria você, se soubesse o que faria conosco, eu teria impedido. Teria mesmo. Você tem que acreditar nisso.

— Não. — Allesandra balançou a cabeça. Semini. Fynn. E vatarh. Todos eles aprovaram a morte da mulher que me manteve viva e sã. — Eu não tenho que acreditar nisso, de maneira alguma. Você diria tal coisa fosse ou não verdade.

— Como posso provar para você?

— Você não tem como provar, mas isso é algo que você deveria ter me contado há muito tempo: pelo meu papel como a’hïrzg, ou como matarh do hïrzg, pelo menos. E não sei como ficamos diante dessa situação. Não sei mesmo.


O cavalo estava encharcado de suor ao galopar velozmente encosta acima, onde eles esperavam, e as patas musculosas tremeram quando o cavaleiro desmontou, com uma bolsa de mensageiro na mão. O homem imediatamente se ajoelhou diante de Jan, Allesandra, Sergei e Semini e disse — Notícias urgentes de Nessântico, meu hïrzg. — Havia sujeira da estrada na roupa de couro do mensageiro, que tinha terra no cabelo e no rosto. A voz estava abalada pelo cansaço, e o homem parecia, assim como a montaria, estar à beira de um colapso. Ele ofereceu a bolsa com uma mão trêmula. Jan pegou a bolsa enquanto Allesandra gesticulava para os assistentes, que estavam apropriadamente a poucos passos do quarteto. — Deixem esse homem comer e descansar e cuidem do cavalo.

Os assistentes correram para obedecer. Jan desdobrou o pergaminho grosso de dentro da bolsa, que deixou cair no chão. Allesandra observou os olhos do filho vasculharem as palavras ali. Jan arregalou os olhos e entregou o papel para ela em silêncio. A a’hïrzg entendeu seu choque rapidamente; as frases ali pareciam impossíveis.

... O kraljiki Audric foi assassinado da mesma forma que a archigos Ana... Sigourney ca’Ludovici foi nomeada kraljica, mas foi ferida no ataque... Karnor foi arrasada e pilhada por ocidentais... O exército ocidental aproxima-se de Villembouchure... a Garde Civile e os chevarittai foram reunidos para detê-los...

Ela passou a mensagem para Sergei, que a leu com Semini olhando atentamente sobre seus ombro, e ouviu o archigos dizer — A’hïrzg, isso é uma surpresa para mim. Juro por Cénzi que não sabia de nada a respeito dessa situação. Audric morto... — Ele espalmou as mãos em súplica. — Não fui eu que fiz isso, nem era minha intenção.

Allesandra não prestou atenção às declarações de Semini. Ela passou o braço por Jan, que olhava fixamente para o acampamento do exército, resplandecente com os estandartes e armaduras, cheio de tendas acinzentadas e agitado pela atividade de milhares de soldados. — O que isso significa, matarh? — perguntou Jan para ela, embora Allesandra tenha notado que ele olhava para Sergei também. — Diga-me o que está pensando.

— Significa que Cénzi realmente nos abençoou — respondeu a a’hïrzg. — Estamos avançando na hora certa, quando nosso inimigo está mais fraco. — Ela quase gargalhou. Audric morto, ca’Ludovici ferida, e a atenção dos Domínios voltada para os ocidentais em vez de estar de olho em Firenzcia. — Este é o seu momento, meu filho. Seu momento. Tudo que você tem a fazer é aproveitá-lo.

Era o momento dela também, talvez mais do que do filho, mas Allesandra não disse isso.

Jan continuava a olhar fixamente para o acampamento. Então ele se sacudiu e, naquele momento, Allesandra notou um vislumbre do vavatarh no filho: o maxilar trincado, a certeza no olhar. Era a maneira como o velho hïrzg Jan sempre parecia quando tinha se resolvido; ela lembrava-se bem.

— Tragam o starkkapitän ca’Damont à minha presença — falou Jan. — Eu tenho novas ordens para ele.

 

A Pedra Branca

ELA ESTAVA DO OUTRO LADO DA VIELA, em frente aos dois, quando Talis chegou ao prédio e bateu na porta, com Nico à mão. A Pedra Branca ouviu o grito de Serafina — Nico! Ó, Nico! — e viu a mulher pegar o menino nos braços... e também notou Talis ficar tenso, como se estivesse assustado, e erguer a bengala que sempre carregava como se fosse bater em alguém, enquanto gesticulava com a mão livre como se quisesse que Serafina e Nico fossem embora.

Ela cruzou a viela correndo, com a mão em uma das facas de arremesso escondida na tashta. Ouviu trechos de uma conversa alta ao se aproximar.

— ... apenas saia! Agora! ... o embaixador numetodo... tentou me matar...

— ... sabia onde Nico estava e não foi até ele?...

Houve mais diálogos, mas as vozes martelavam a cabeça da Pedra Branca, que não conseguiu distinguir as reais daquelas dentro da mente. A porta fechou-se quando Talis entrou, e ela aproveitou a oportunidade para entrar de mansinho no espaço apertado entre os prédios. Ali, a Pedra Branca encostou-se contra a parede ao lado de uma janela fechada. Ouviu a conversa abafada, tão bem que percebeu que não precisava interferir. Não ainda. Houve uma conversa sobre o assassinato da archigos Ana (— Aquela bruxa cruel mereceu morrer pelo que fez com minha família — berrou Fynn); sobre algo chamado areia negra que podia matar (e todas as vozes das vítimas berraram na cabeça dela ao ouvir aquilo — Morte! Morte! Sim, traga mais gente aqui para nós! — Era tão alto que ela teve que soltar um berro silencioso para que as vozes parassem); sobre um homem chamado Uly (— Esse nome... — disse Fynn. — Eu conheço esse nome...).


Quando ficou claro que Talis e Nico permaneceriam ali, a Pedra Branca saiu de mansinho novamente, voltou ao apartamento e recolheu as coisas que tinha lá. Naquela noite, após três ou quatro paradas, ela alugou um novo apartamento, numa rua ao sul de onde morava a matarh de Nico: lá, pela janela, era possível ver a porta da casa de Nico pelo espaço entre os prédios.

Por quatro dias, ela observou. À noite, entrava de mansinho no espaço entre as casas para ouvi-los. Seguia o grupo sempre que eles saíam, especialmente se Nico estivesse junto. Por dias, a Pedra Branca observou as idas ao Velho Distrito, as tentativas de achar Uly. Ela mesma já havia encontrado o homem, que vivia em um apartamento miserável no Beco do Sino, perto do mercado do Velho Distrito. Considerou o estrangeiro estranho e desprezível — não era um homem que se importava com a limpeza de onde morava ou com a sujeira das roupas. Ele era grosso e mal-educado com os fregueses para quem vendia poções, geralmente na taverna embaixo do apartamento: o Cisne Vermelho. Frequentemente estava bêbado, e era um mau bêbado. Também podia ser violento; com certeza era brutal com as prostitutas que contratava, a ponto de ser evitado pela maioria das mulheres que fazia ponto nas ruas em volta do mercado.

Por dias, ela observou.

A Pedra Branca ficou surpresa, um dia, ao ver Nico acompanhando Varina e Karl ao mercado — geralmente isso era uma coisa que Serafina não permitia. Mas ela também sabia que as idas ao mercado agora eram rotineiras, que a cada dia que passava o grupo tinha menos esperanças de encontrar Uly, que Varina e Serafina tornaram-se amigas íntimas, que Nico parecia considerar a mulher numetodo quase como uma tantzia querida. A Pedra Branca seguiu o trio de perto, contornou a multidão em volta das barracas, chegou próximo o suficiente, a ponto de quase ouvi-los, mas nunca tão perto a ponto de um deles notá-la. Viu o grupo falar com um fazendeiro em sua barraca, viu o homem apontar e os três irem embora correndo, com Varina parecendo subitamente preocupada. Karl foi até uma mulher com uma tashta amarela — uma mulher que a Pedra Branca reconheceu como uma das freguesas de Uly.

O estômago deu um nó forte de preocupação; ou talvez fosse a criança que crescia ali. As vozes murmuraram — A mulher vai contar para ele... Você tem que interferir... — Ela colocou a mão na pedra branca na bolsinha pendurada no pescoço e a apertou com força, como se pudesse calar as vozes com o toque.

Se Karl tivesse ido atrás de Uly com Nico, a Pedra Branca teria detido os três. Ela não deixaria que colocassem o menino em perigo. Não deixaria.

Mas Karl mandou Varina e Nico embora. Ela seguiu os dois por tempo suficiente para saber que a mulher e o menino realmente voltavam para casa, depois retornou rapidamente, correu pelas ruas na direção do Cisne Vermelho.

Ela viu Karl entrar na taverna e entrou atrás dele. Uly estava lá, sentado à mesa de sempre e — também como sempre — meio bêbado. Karl também tinha visto o homem, mas estava no bar, onde pediu uma cerveja. Enquanto ela observava, o embaixador afastou-se do bar e foi à mesa de Uly. A Pedra Branca não conseguiu ouvir a conversa, mas, não muito tempo depois, Uly terminou a cerveja e ficou de pé, e Karl seguiu o homem até a porta.

— Você sabe o que acontecerá — cacarejou Fynn na cabeça dela. — O que você fará a respeito?

A Pedra Branca agiu, meteu-se entre Karl e a porta, e esbarrou no embaixador de propósito. — Perdão, vajiki! — falou. Ela segurou a mão do embaixador e colocou a pedra na palma dele. — Para dar sorte. O senhor tem que guardar isso, vai trazer boa sorte, vajiki. Guarde direitinho.

Ela torceu para que Karl fizesse isso, porque não poderia ajudá-lo se ele não guardasse. Se o embaixador tivesse devolvido a pedra, deixado cair ou jogado fora, ela estaria de mãos atadas. — A Pedra Branca não consegue matar sem o ritual agora — disseram as vozes em um coro debochado. — Fraca. Estúpida.

Mas Karl guardou a pedra. Ela se escondeu ao sair da taverna, e, alguns instantes depois, Karl e Uly surgiram. O estrangeiro levou Karl para longe da taverna, e ela os seguiu com cuidado. De qualquer maneira, Uly parecia estar bêbado demais ou desinteressado demais para ver se alguém observava. A Pedra Branca viu Karl ser empurrado por Uly para dentro de um beco e correu atrás, em silêncio.

Quando ela chegou ao cruzamento, Karl já estava caído, e era óbvio que Uly pretendia espancá-lo até a morte. — Você é um tolo, embaixador ca’Vliomani. — A Pedra Branca ouviu o estrangeiro rosnar. — Achou que eu não lhe reconheceria?

Então ela agiu, novamente, como a Pedra Branca, séria e implacável. Uly ergueu os olhos ao ouvir a aproximação, mas o chute já estava no ar, acertou o joelho e fez o homem desmoronar, soltando um gemido, depois ela acertou dois socos na lateral da cabeça que o derrubaram no chão, inconsciente.

A Pedra Branca rapidamente rasgou a bashta de Uly, depois se dirigiu para Karl, que gemia, meio inconsciente. Ela enrolou o pano rasgado na cabeça do embaixador, sacou sua faca favorita da bainha e pressionou contra o pescoço dele. — Fique quieto e não será ferido. — ela engrossara o tom de voz. — Tire o capuz e você morre. Acene com a cabeça se entendeu.

Ele balançou a cabeça uma vez, e a Pedra Branca deixou Karl e foi até Uly. Deu um tapa na cara do homem, para despertá-lo, viu Uly arregalar os olhos ao notá-la, e mostrou a faca antes de enfiá-la com força na pele tatuada do pescoço. Colocou a bota sobre o joelho quebrado do sujeito. — Ele viu você. Não pode deixá-lo vivo agora — clamaram as vozes, e ela pediu que fizessem silêncio.

— Responda se você quiser viver — disse a Pedra Branca. Ela percebeu que o homem começou a erguer as mãos e fez que não para ele enquanto enfiava a ponta da faca no pescoço, perto de uma veia saltada e pulsante. — Você matou a archigos Ana, não foi? Você preparou a areia negra.

— Não. — O homem começou a dizer, mas a Pedra Branca enfiou a faca mais fundo diante da mentira. — Tudo bem, tudo bem. — Uly afastou-se dela o máximo possível. — Sim, eu ajudei a matá-la. Com a areia negra. Mas a ideia não foi minha. Eu só dei a substância para o homem e contei como usá-la. Não sabia o que ele pretendia fazer com ela. — Novamente, a Pedra Branca pressionou a faca com mais força. — Ai! Droga, isso é verdade!

— Quem? — perguntou ela, pois sabia que Karl ouviria; a Pedra Branca daria ao embaixador a informação que ele queria, desde que isso significasse que Nico ainda estaria a salvo.

— Você tem que matar esse aí. Você precisa matá-lo.

— Eu não sei... — disse Uly. Ela ignorou a voz, puxou ligeiramente a faca em sua direção e abriu um corte. O sangue quente pingou do pescoço. — Ai! Por Axat! Pare! Ele me disse que o nome era Gairdi ci’Tomisi, mas não sei se o nome é verdadeiro ou não. Ele pagou bem, e isso era tudo que eu sabia ou que me importava!

O homem tentou empurrá-la, e a Pedra Branca colocou mais peso sobre o joelho quebrado. Ele ofegou de dor. — Por favor. Por favor, pare.

— Então fale mais a respeito deste homem — falou ela. — Rápido.

— Parecia um ca’ ou co’, pelo jeito de falar. Firenzciano, talvez, pelo sotaque. Disse que as “ordens” vieram de Brezno, em todo caso. É tudo que sei. Eu preparei a substância, dei para o homem, e ele foi embora. Fiquei tão surpreso quanto qualquer um quando a archigos foi morta.

— Você não pode ficar aqui. Tem que ir embora ou alguém chegará e verá você.

As vozes estavam certas. Ela franziu os lábios. Com um movimento violento, ela cravou fundo a faca na garganta do homem e a cortou da direita para a esquerda. O sangue quente jorrou, e o homem morreu com uma golfada de fôlego líquido. Neste instante, a assassina puxou rapidamente a bolsinha de dentro da tashta agora ensanguentada e a abriu, depois colocou a preciosa pedra branca no olho direito aberto do homem. A seguir, foi até Karl, vasculhou seu bolso rapidamente e achou a pedra que dera para ele. Esta foi colocada sobre o olho esquerdo de Uly. Ela embainhou a faca, esperou um instante, depois pegou sua pedra no olho direito.

A Pedra Branca já podia ouvir a voz de Uly, que lamentava em uma língua que ela não compreendia.

Ela guardou a pedra na bolsinha novamente. Olhou uma vez para Karl, que fazia um esforço desesperado debaixo do pano para escutar.

A Pedra Branca correu. Correu — ateve-se às sombras e aos becos solitários por causa da tashta manchada de sangue — para encontrar Nico, para saber se ele ainda estava a salvo.


??? MATANÇA ???

Kenne ca’Fionta

Aubri co’Ulcai

Allesandra ca’Vörl

Niente

Varina ci’Pallo

Kenne ca’Fionta

Sergei ca’Rudka

Nico Morel

Karl ca’Vliomani

A Batalha Começa


Kenne ca’Fionta

KENNE ESTAVA NA SACADA do lado de fora de seu gabinete particular e olhava para a Praça do Templo. Lá embaixo, ténis em robes verdes misturavam-se à multidão de pessoas comuns que corriam para escapar da garoa, que caía de nuvens baixas e cinzentas. O tempo parecia tornar pesadas as asas dos pombos, que arrulhavam em grupos; as pessoas passavam correndo, os pássaros afastavam-se e balançavam as cabeças, mas não alçavam voo.

O dia ruim e desagradável combinava com o humor de Kenne.

Ele estaria morto se tomasse a decisão errada e não tinha certeza de como evitar esse destino.

Mesmo que evitasse a morte física, Kenne estaria morto dentro da fé concénziana. Ele já sentia os abutres começando a se reunir: nos rumores que vinham de todo mundo, do mais baixo e’téni às mensagens nas entrelinhas que recebia dos a’ténis em suas cidades. Quando teremos outro conclave?, perguntavam. Há assuntos urgentes que todos precisamos discutir. Como devemos reagir às notícias de Nessântico? O que o archigos acha sobre essas questões?

As entrelinhas se escondiam nas perguntas inocentes. Elas começaram quando ele foi promovido a archigos, após o assassinato da pobre Ana. O coro ficou mais alto e constante desde a morte do kraljiki Audric e as notícias da invasão ocidental. As mensagens chegavam todos os dias por mensageiros de Fossano, de Prajnoli, de Chivasso, Belcanto e An Uaimth, de Kasama, Quibela e Wolhusen. Nós não confiamos na sua liderança. Outra pessoa precisa ser o archigos. Era o que diziam sob as palavras educadas e indiretas escritas por eles. Você deveria ser retirado do Trono de Cénzi.

O pior de tudo é que Kenne descobriu que concordava com eles. Eu nunca quis isso, o archigos queria escrever em resposta. Eu jamais pedi para sentar no lugar de Ana. Eu preferia muito mais que outra pessoa assumisse essa tarefa por mim. Ele mesmo disse isso para Ana há muitos anos, após retornar a Nessântico para ser o a’téni da cidade sob o comando dela, após o exército firenzciano ter sido dispersado. — Você estava aqui antes de mim — disse Ana para Kenne, quase parecendo envergonhada de estar sentada atrás da mesa em que ambos se lembravam de ter visto o archigos Dhosti. — Por direito, você deveria estar aqui e não eu, meu amigo.

Ele riu ao ouvir aquilo e balançou a cabeça. — O archigos Dhosti disse para mim, há muito tempo, que eu era um excelente seguidor. Ele estava certo. Eu sigo muito bem, mas não lidero. Não possuo seja lá o que for que você tem, Ana. Dhosti enxergou essas qualidades em você... você sabe liderar. É forte, talentosa, e tem uma força de vontade que é assombrosa. É por isso que ele fez de você sua o’téni. Se ele tivesse vivido, teria lhe preparado para o cargo da mesma forma. Eu... — Outra negativa com a cabeça. — Eu fui destinado a ser o que sou. Nada mais. E estou bem contente que seja assim.

Ana discordou, educadamente, mas ambos sabiam que — por dentro — a archigos concordava com ele. Com Dhosti.

No entanto, Cénzi impôs essa tarefa a ele no fim da vida, e Kenne só podia imaginar que isso era alguma espécie de piada cósmica.

Os a’ténis da Fé eram um perigo para Kenne, e a nova kraljica era outro. Ela sentia dores — ela sentiria dores pelo resto da vida, era quase certo. Sigourney ca’Ludovici fora jogada em uma crise terrível com a perda dos Hellins, o assassinato de Audric e agora a invasão dos próprios Domínios pelos ocidentais. Havia Firenzcia do outro lado, que não era mais um aliado, e sim um inimigo, pelas costas. Ela tentaria consolidar seu cargo. Tentaria desesperadamente sobreviver como kraljica, e, para tanto, procuraria por pessoas fortes que poderiam apoiá-la e dispensaria aqueles que considerasse fracos demais para ajudar — porque a fraqueza nos aliados da kraljica seria um perigo tão grande quanto os ocidentais e os firenzcianos.

Kenne sabia que a opinião de Sigourney a seu respeito era talvez ainda mais baixa do que a dos a’ténis. Ela faria uma rápida manobra para substituí-lo. Por conhecer a história de Nessântico, Kenne não excluía a possibilidade de a solução da kraljica ser o seu assassinato e a sua substituição por alguém mais adequado para ela. Já aconteceu com outros archigi antes de Kenne, quando eles entraram em conflito com os líderes políticos dos Domínios: um archigos assim podia morrer sob circunstâncias misteriosas. Bastava olhar para o próprio archigos Dhosti, afinal.

Kenne olhou para a praça lá embaixo, onde certa vez o corpo quebrado de Dhosti esteve estatelado, com o sangue fluindo entre os paralelepípedos. Ele imaginou se um dia, em breve, seu corpo seria jogado pelo parapeito até cair, debatendo-se desesperadamente no chão lá embaixo.

— Archigos?

Kenne sentiu um arrepio ao ouvir o chamado. Ele virou-se devagar e esperou ver Petros. Mas não era ele. Era, em vez disso, um fantasma.

— Eu sei — falou o fantasma, e o sotaque da voz confirmou suas suspeitas. — Você não esperava me ver novamente. Francamente, nem eu. Desculpe assustá-lo, archigos. Petros foi gentil em me deixar entrar.

— Karl... — Kenne entrou novamente no gabinete e deu a volta na mesa para abraçar o numetodo. — Olhe para você... sem barba, com cabelo pintado e cortado como uma pessoa qualquer, sem status, e essas roupas horríveis. Eu não teria reconhecido você... mas imagino que essa seja a ideia, não é? Eu pensei, após ter ajudado Sergei a escapar, que você tivesse fugido da cidade. — Ele balançou a cabeça. — Esses são tempos sombrios — disse Kenne com cansaço, sendo tomado pela depressão novamente. — Tempos terríveis. Mas eu esqueço meus modos. Você parece cansado e faminto. Quer que Petros traga alguma coisa?

Karl já balançava a cabeça. — Não, archigos. Não há tempo, e eu não devo ficar aqui mais tempo do que o necessário. Eu... eu preciso de um favor.

— Se estiver dentro da minha capacidade — falou Kenne, que teve que esmagar o pensamento que veio em seguida: dentro da pouca capacidade que tenho, infelizmente...

— Está sim, eu espero. Por favor, archigos, sente-se. Isso pode levar tempo. Eu sei, pelo menos acho que sei, quem matou Ana.

Kenne ouviu a história de Karl com apreensão, desconfiança e horror cada vez maiores. No fim, ele estava recostado na cadeira atrás da mesa e balançava a cabeça.

— Um homem chamado Gairdi ci’Tomisi, você diz? — falou Kenne finalmente. O archigos ficou chocado à menção do nome e perguntou-se que mais ele não sabia. — Um firenzciano? Ele fez isso com ajuda de magia ocidental?

— Firenzciano, sim — declarou Karl. — Mas você tem que entender que não houve magia envolvida. Não; essa areia negra não é uma criação de seu Cénzi, nem tampouco dos deuses ocidentais. Ela não é mágica, não vem do Segundo Mundo; é apenas o produto da imaginação e da lógica de uma pessoa. — Karl bateu na cabeça com o dedo. — E isso torna a areia negra ainda mais perigosa. Veja...

Karl tirou uma pequena bolsinha do bolso da tashta suja e esfarrapada e derramou um pó escuro e granulado no mata-borrão da mesa de Kenne. O archigos cutucou a substância com um dedo curioso. — Uly tinha um estoque disso em seu apartamento; eu subornei o estalajadeiro para me deixar entrar. Uly tinha os ingredientes lá dentro, então sabíamos o que eram. Varina acha que é capaz de reproduzir essa mistura mesmo que Talis não nos ajude. Parada assim como está, a areia negra é bem inocente, mas coloque uma chama em contato com ela, e... — A voz de Karl foi sumindo, e ele afastou o olhar. Kenne sabia do que o homem estava se lembrando; ele também se lembrava, muitíssimo bem.

— O que eu posso fazer? — perguntou o archigos. Ele abaixou o olhar para a mesa suja.

— Veja se consegue descobrir mais sobre esse Gairdi ci’Tomisi que Uly mencionou.

Kenne olhou para o numetodo com uma cara triste. — Eu o conheço. Pelo menos acho que sim. Ele é um mercador com licenças de passagem tanto de Brezno quanto de Nessântico e vai e volta pela fronteira. Nós, tanto Ana e eu, usávamos Gairdi. Nós achávamos... achávamos que ele era nosso homem, nosso espião. Ele levava mensagens aos ténis dentro do Templo de Brezno, para quem pensávamos que podíamos confiar e trazia respostas sobre o archigos Semini. Agora... — Kenne ergueu os olhos para o numetodo. — Se ele realmente era um agente duplo, a serviço de Semini ca’Cellibrecca...

— ... Então foi ca’Cellibrecca quem mandou matar Ana. — Karl encerrou a frase por ele. Seu maxilar fez um ruído alto ao se fechar.

Kenne sentiu o que restou do almoço subir pela goela. Ele engoliu em seco para conter a bile. Sim, o archigos acreditava que ca’Cellibrecca era capaz de cometer assassinato —, o homem fora um téni-guerreiro pela maior parte da vida. Porém, ele não teria matado Ana sem um motivo. Kenne tinha medo de que sabia exatamente qual seria a razão: ca’Cellibrecca esperava que a pessoa colocada no lugar de Ana fosse fraca e que pudesse explorar essa fraqueza para reunir a fé concénziana novamente — com ca’Cellibrecca como archigos em Nessântico, assim como em Brezno.

Porque ele sabia que seria eu. Provavelmente já está falando com a kraljica e fazendo sondagens.

— Archigos? — Kenne respirou fundo antes de erguer os olhos para Karl. — Nenhum numetodo matou Audric — declarou o embaixador. — Nenhum numetodo matou Ana. Isto matou os dois. — Ele gesticulou para a areia negra na mesa de Kenne. — Isso me faz pensar que a mesma pessoa é responsável pelos dois assassinatos.

Parecia uma hipótese razoável para Kenne, mas ele já esteve errado sobre tanta coisa que não confiava mais no próprio discernimento. — O que... o que você quer que eu faça? — O archigos ergueu as mãos da mesa, a ponta de um dedo estava escura com o pó que ele tocou. — Como posso ajudar?

— Veja o que mais você consegue descobrir. Veja se Semini realmente fez isso; se foi ele, eu quero fazer o homem pagar. Mas Varin... — Karl parou. — Quero dizer, Ana não iria querer que eu fizesse qualquer coisa até eu saber, saber com certeza. Pode me ajudar com isso? — Ele apontou novamente para o monte de areia negra no mata-borrão de Kenne. — Você sabe o que é isso, não sabe? — perguntou o numetodo. O archigos limitou-se a balançar a cabeça.

— Isso são as cinzas da magia — falou Karl. — Isso é como a magia se parece quando morre.

Kenne abaixou o olhar novamente. Parecia que estava olhando para os próprios restos mortais.

 

Aubri co’Ulcai

O COMANDANTE AUBRI CO’ULCAI OLHOU para trás e balançou a cabeça ao se perguntar como a batalha tinha chegado a este ponto. Isso nunca deveria ter acontecido. Não era possível.

Ele imaginou como a nova kraljica receberia as notícias e esperava que soubesse a resposta. E a única desculpa que Aubri tinha era que os ocidentais recusavam-se a lutar honrosamente, como deveriam.

Tudo começou há dois curtos dias...


Vários chevarittai — como era comum — saíram em seus cavalos de guerra para fazer desafios individuais enquanto as forças ocidentais aproximavam-se de Villembouchure. Nenhum guerreiro ocidental veio responder ao desafio; as fileiras da vanguarda do exército marcharam em frente, intactas e inabaladas mesmo quando os chevarittai debocharam de sua honra e coragem. Eles foram ignorados ou, pior ainda, atacados com flechas covardes e fogo dos feiticeiros ocidentais. Três chevarittai morreram antes que Aubri mandasse que as trompas soassem a ordem de retorno. Eles deram meia-volta com os cavalos de guerra e retornaram a galope para trás das fileiras de infantaria e de ténis-guerreiros, que aguardavam.

Aubri reuniu-se com seus offiziers; eles esperavam que o ataque começasse assim que o exército ocidental chegasse ao cume do último morro antes de Villembouchure. Afinal, era pouco antes da Segunda Chamada, e ainda havia viradas da ampulheta de luz do dia. Os ocidentais chegaram à distância de dois tiros de flecha da vanguarda da força dos Domínios e pararam... e permaneceram parados. Os chevarittai e seus offiziers imploraram que Aubri os deixasse avançar e atacar. O comandante recusou-se, lamentavelmente — fazer isso significava abandonar as fortificações e casamatas que eles erigiram nos últimos dias. O exército dos Domínios estava disposto em uma posição defensiva perfeita, e Aubri era avesso a sair dali.

Este foi o primeiro dia. Ele foi dormir nessa noite convencido da futura vitória — o avanço ocidental seria detido por suas fileiras de veteranos. A força ocidental, conforme verificaram seus batedores e todos os relatórios do campo de batalha, era substancialmente menor que a sua: nenhum exército daquele tamanho, nem mesmo os firenzcianos em seu apogeu, teria sido capaz de derrotar as defesas que Aubri montou. Os navios da frota tehuantina entupiram o A’Sele, mas estavam longe demais do campo de batalha para afetar a situação; de qualquer forma, Aubri sabia que uma força naval de Nessântico estava a caminho para cuidar dos navios inimigos. Na pior das hipóteses, as muralhas de Villembouchure iriam detê-los se, por alguma razão imprevista, Aubri não conseguisse contê-los nos campos do lado de fora da cidade. As forças ocidentais eram pequenas demais para um cerco efetivo, e Villembouchure era bem abastecida e podia suportar o sítio de um exército bem maior por pelo menos um mês.

Sim, Aubri estava confiante. Apesar do fato de seu exército ter sido rapidamente reunido e a maior parte da infantaria não ter muito treinamento, os offiziers e os chevarittai com eles tinham experiência em batalha adquirida nas muitas escaramuças ocorridas nas últimas décadas com Firenzcia e as nações da Coalizão.

Eles venceriam aqui.

A batalha começou no segundo dia, mas não com a chegada da alvorada, contrariando toda a experiência de Aubri e dos offiziers que o treinaram. Não... o ataque veio bem antes de o sol subir no céu. E veio de maneira estranha. Os vigias postados nas casamatas mais avançadas mandaram mensageiros correndo para a tenda do comandante atrás das linhas, e o agito acordou Aubri de um sono leve e atormentado por sonhos.

— Uma tempestade aproxima-se de nós em pernas feitas de relâmpagos — clamaram os mensageiros. — Uma muralha de nuvem...

Trompas de alarme soaram pelo acampamento, e os soldados colocaram as armaduras e pegaram suas armas às pressas enquanto os offiziers berravam ordens. Ao longe, uma luz azul piscava e dançava, trovões retumbavam, e, no entanto, o céu acima deles estava limpo, marcado pelas várias constelações conhecidas. Aubri montou no cavalo que os assistentes trouxeram apressadamente para ele. O comandante galopou com rapidez até a vanguarda e foi acompanhado ao longo do caminho pelo a’téni Valis ca’Ostheim de Villembouchure, que estava no comando dos ténis-guerreiros. — O que em nome de Cénzi está acontecendo? — rugiu ca’Ostheim. A espessa cabeleira branca parecia cintilar à luz da tempestade adiante; a barriga caía sobre o cepilho da sela de seu cavalo. Os cílios ainda tinham remelas do sono. Um colar grosso de ouro com um globo partido pendurado quicava no peito enquanto os dois cavalgavam. — Eu pensei que o senhor tinha dito que o ataque ocorreria na alvorada, comandante.

— Eu disse, sim — respondeu Aubri calmamente. — Ao que parece, os ocidentais não estavam escutando.

Na primeira linha de casamatas, os dois homens pararam e observaram o espaço entre os dois exércitos. O acampamento ocidental, que cintilava na encosta distante como estrelas amarelas caindo na terra quando Aubri foi dormir, não estava mais visível. Ao contrário, eles foram confrontados por uma aparição da natureza: uma muralha de nuvem escura e agitada, com talvez doze homens de altura e que flutuava à distância de dois homens acima do chão. Como uma espécie de monstro sobrenatural sinistro, a criatura de nuvem avançou na direção deles sobre centenas de pés de relâmpagos que piscavam. Os clarões estocavam o chão embaixo e pareciam fazer a nuvem avançar alguns metros a cada golpe. Aubri viu o chão ser rasgado onde os raios caíam, e a nuvem deixava um rastro de pegadas de tempestade arrancadas do chão. Um barulho constante de trovoada e um rosnado alto e estridente acompanhavam a visão. Ao redor dos dois, o exército dos Domínios olhava fixamente para a aparição com rostos iluminados pelos clarões azuis esbranquiçados e inconstantes. Aubri sentiu o pânico se espalhar pelas fileiras, os homens deram alguns passos para trás involuntariamente, para longe das barreiras baixas e fortificações que eles erigiram. — Mantenham a posição! — berrou Aubri para eles. As trompas soaram a ordem pela frente de batalha. — Mantenham a posição! — Os homens sacudiram-se como se acordassem de um pesadelo. Eles seguraram firme em lanças inúteis e encararam o monstro que os confrontava. Ele praticamente já havia cruzado o campo aberto agora, e Aubri não conseguiu ver nada além de seu limite feroz.

— A’téni ca’Ostheim, isso é magia; é a sua área. — Aubri quase teve que gritar mais alto do que o barulho crescente da aparição tempestuosa para ca’Ostheim, o líder dos ténis-guerreiros, ouvir. — O senhor consegue deter essa coisa?

— Tentarei — respondeu ele ao desmontar. Ca’Ostheim começou um cântico e um estranho gestual em frente ao corpo. Aubri sentiu um arrepio nos pelos dos braços conforme o a’téni continuava a entoar e os raios começaram a tocar as bordas das defesas; ele não sabia qual das duas coisas causou esta reação. O cavalo de Aubri, embora acostumado ao clamor, ao barulho e às imagens de guerra, estava preocupado e batia os cascos no chão enquanto se afastava um pouco da aparição. Aubri teve que se abaixar e dar tapinhas no pescoço do animal para acalmá-lo. — A’téni! Rápido, por favor.

Ca’Ostheim ergueu as mãos; o cântico parou. Ele gesticulou para a tempestade. Um vento estridente soprou do téni-guerreiro, e onde tocou na aparição tempestuosa, as nuvens foram rasgadas. Os soldados comemoraram, mas a tempestade ainda avançava de ambos os lados, com força total, e agora os raios atacaram as próprias defesas, os garfos gigantes alcançaram os soldados dos Domínios. Os gritos surgiram de ambos os flancos, conforme os relâmpagos queimavam e quebravam as fileiras, em um avanço inexorável. E agora as metades partidas nas nuvens voltavam a se unir; línguas sedentas de relâmpagos começaram a brilhar na frente de Aubri. Ca’Ostheim havia caído de joelhos. Ele ergueu a cabeça acenou negativamente para Aubri. — Comandante, eu não consigo... Não sozinho. Eu preciso reunir os outros ténis-guerreiros...

— Ao cavalo, então — falou Aubri. Ele olhou para os porta-bandeiras e as trompas quando os gritos dos feridos e moribundos rivalizaram com a trovoada. — Retirada! — berrou o comandante. — Voltem para a próxima linha de frente!

As bandeiras sinalizaram a retirada; as trompas soaram a ordem. As fileiras dos soldados foram desmanchadas instantaneamente, aqueles que ainda podiam deram meia-volta para fugir da tempestade. Ao longe, em um lugar além da criatura, Aubri ouviu novas vozes: os gritos de guerra dos ocidentais.

O comandante puxou com força as rédeas da montaria e seguiu seus homens.


Esta foi a manhã do segundo dia. O resto do dia não correu melhor. Os ténis-guerreiros foram capazes de dissipar a tempestade mágica, mas a tarefa deixou-os exaustos, e eles tinham pouca energia sobrando para outros feitiços. Atrás da tempestade, surgiram as fileiras dos ocidentais — guerreiros com rostos pintados e com cicatrizes. O combate mano a mano foi intenso, mas os chevarittai e a infantaria eram páreos na espada. No entanto, quanto aos feiticeiros ocidentais, que empunhavam cajados por onde lançavam feitiços, Aubri não tinha como responder — os ténis-guerreiros estavam em grande parte exaustos pelos esforços anteriores, e, no fim da tarde, o comandante mandou o exército retornar a Villembouchure, para trás das muralhas e portões sólidos. Ele estava convencido de que poderia ter mantido as defesas externas, mas o preço em vidas teria sido enorme. Aubri fez o que qualquer outro comandante em seu lugar teria feito: mandou as trompas soarem a ordem de cessar combate.

Ao anoitecer, todos estavam dentro e com as portas corrediças abaixadas e fechadas.

Isso encerrou o segundo dia.

Em qualquer batalha normal, isso significaria o início de um cerco que poderia ter durado semanas ou meses antes de ser rompido, e Aubri sabia que os ocidentais não tinham semanas ou meses — não em uma terra estranha, onde estavam cercados por inimigos. Foi por esse motivo que Aubri achou fácil dar a ordem de cessar combate tão cedo, assim que ficou óbvio que a vitória nos campos diante da cidade só causaria um enorme custo. Ficar no interior das muralhas de Villembouchure deveria levar à vitória em algum momento. Inevitavelmente. E ele poderia esperar.

Mas o cerco duraria apenas um dia.

Aubri estava sobre a muralha da cidade e olhava para as fogueiras quase apagadas do principal acampamento dos ocidentais na alvorada. Foi quando as bolas de fumaça de repente fizeram um arco no céu, na direção deles: uma dezena ou mais, todas pareciam mirar o grande portão oeste da cidade. Os ténis-guerreiros posicionados ao longo das muralhas reagiram instantaneamente, como deveriam, e a resposta dos feitiços de dispersão foi rápida; afinal, eles foram treinados na arte de manter os feitiços na mente por um tempo (que nenhum deles admitiria ser uma característica dos numetodos, que tinha sido imposta aos ténis-guerreiros pela archigos Ana). Mas as bolas de fogo continuaram seu voo. O téni-guerreiro mais próximo de Aubri o encarou com olhos arregalados e chocados. — Comandante, isso não é feitiço...

Ele não prosseguiu. As muralhas grossas da cidade foram sacudidas de um jeito impensável quando as bolas de fogo bateram no portão e nas pedras em volta. Onde elas tocavam, explosões inimagináveis destruíram pedras, aço e madeira. Aubri, que se segurou na ameia para manter o equilíbrio, testemunhou os enormes pedaços de granito saírem voando como se fossem seixos atirados por uma criança. O fogo irrompeu abaixo do comandante, tão incandescente quanto a fornalha de um ferreiro; ele sentiu a onda de calor passar pela pele. Ouviu gritos e lamentos lá embaixo.

— O portão está quebrado! As muralhas foram rompidas!

Os ocidentais já corriam pela brecha, enquanto arqueiros respondiam com uma atrasada chuva de flechas em cima deles. Alguns dos guerreiros foram abatidos, mas muitos — em um número excessivo — continuavam avançando, e agora Aubri via mais arcos de bola de fogo saírem do norte e do sul, na direção daqueles portões.

Ele desceu correndo das ameias e entrou em um caos selvagem e sangrento.

Este foi o terceiro dia. O dia em que a cidade foi perdida. De um jeito inacreditável.


Agora Aubri olhava para Villembouchure do alto de um morro ao longo da Avi A’Sele. O comandante viu a fumaça suja que manchava o céu acima das muralhas quebradas, cercado pelo que restou do exército reunido à sua volta e com o a’téni ca’Ostheim ao seu lado. Dentro da cidade... Dentro da cidade, estavam os ocidentais.

— Isso é impossível — murmurou ele.

Mas era possível. E agora a defesa da própria Nessântico devia ser preparada. Aubri balançou a cabeça novamente diante da cena.

O comandante deu meia-volta com o cavalo e gesticulou, e ele e o exército começaram a mancar na direção da capital, em retirada.

 

Allesandra ca’Vörl

ELA LEMBRAVA-SE DE PASSE a’Fiume muitíssimo bem. Foi aqui, há 25 anos, quando seu vatarh sitiou a cidade, que ela aprendeu pela primeira vez a mais dura lição de guerra: que, às vezes, pessoas amadas não sobrevivem. Na ocasião, Allesandra tinha uma queda por um jovem offizier que tinha sido morto na batalha e pensou que jamais seria capaz de amar novamente, pois seu coração estava partido demais pela experiência, mas o tempo aliviou sua dor. Agora, ela não conseguia se lembrar do rosto do rapaz.

Os reparos da batalha de décadas atrás ainda eram visíveis nas muralhas e trouxeram de volta as memórias e o sofrimento.

Dessa vez, não havia cerco. O exército firenzciano passou pela cidade fronteiriça de Ville Colhelm sem resistência alguma: a força dos Domínios a postos ali simplesmente abandonou o lugar e fugiu do muito maior contingente de tropas firenzcianas. A pedido de Allesandra, Jan despachou cavaleiros — incluindo Sergei ca’Rudka — bem à frente da força principal, para negociar com o comté de Passe a’Fiume. Com a maior parte da guarnição da Garde Civile esvaziada devido à invasão ocidental, o comté favoreceu a prudência à coragem (e uma propina substancial em ouro em vez do juramento ao cargo): em troca da promessa de que a cidade não seria saqueada, ele permitiria que o exército cruzasse o rio Clario através dos portões da cidade até a Avi a’Firenzcia.

Allesandra cavalgava ao lado de Jan quando eles cruzaram a grande ponte de pedra sobre as águas do Clario, um rio mais rápido e perigoso do que o A’Sele — que era mais profundo e largo, e com quem o Clario se juntava antes de o rio A’Sele chegar a Nessântico. A ponte parecia tremer sob a batida das botas dos soldados e dos cascos dos cavalos. A vanguarda do exército já passara pelos portões e o resto descia estrada afora até onde era possível enxergar no terreno cheio de morros. Jan olhou em volta extasiado, quando eles passaram pelas arcadas altas com os escudos dos kralji e entraram na cidade. Multidões estavam enfileiradas nas laterais da avenida principal ao longo da cidade, a maioria em silêncio, e os chevarittai da Garde Hïrzg ficaram tensos em suas selas ao escanearem o público à procura de perigo.

— A senhora esteve aqui com o vavatarh? — perguntou Jan novamente ao se inclinar na direção de Allesandra, e ela fez que sim com a cabeça.

— Eu era apenas uma criança, e seu vavatarh estava no auge. Ele tomou Passe a’Fiume em apenas três dias de sítio após as negociações de paz falharem, mas o kraljiki Justi, que ainda tinha duas pernas na ocasião, já tinha escapado covardemente para Nessântico. Seu vavatarh ficou furioso. Sergei ca’Rudka era o comandante das forças de Nessântico; ele foi... brilhante, mesmo em enorme desvantagem numérica. Seu vavatarh admitiu o fato, mesmo que de má vontade.

Jan olhou para trás, onde ca’Rudka cavalgava ao lado do archigos. O nariz de metal do regente reluzia ao sol. Como a Garde Hïrzg, ca’Rudka parecia ansioso e nervoso, com a boca franzida e o olhar varrendo a massa de ambos os lados. — Eu gosto do sujeito, mas não sei se posso confiar totalmente nele, matarh — disse Jan ao voltar a atenção para ela.

Allesandra sorriu ao ouvir isso. — Você não deveria. A lealdade dele é a Nessântico, antes de mais nada. E Sergei ca’Rudka é um homem estranho, com gostos estranhos, caso se acredite nos rumores. Isso não mudou. Ele trabalhará conosco enquanto achar que nossos interesses convergem. Assim que não achar... — Ela deu de ombros. — Então ele ficará igualmente satisfeito em ser nosso inimigo. Seus instintos estão corretos, Jan.

— Ele parece admirar a senhora.

— Eu conheci Sergei quando era refém da archigos Ana. Ele foi gentil comigo na época. Mas agora o comandante está mais interessado no fato de que sou prima em segundo grau da kraljica Marguerite, e no fato de que este parentesco me dá tanto direito ao Trono do Sol quanto Sigourney ca’Ludovici. E, por enquanto, precisamos de Sergei e das alianças que ele venha nos trazer.

Jan concordou com a cabeça. Ele franziu os lábios como se levasse tudo isso em consideração enquanto entravam na praça central da cidade. Allesandra imaginou o que o filho pensava.

Aqui, o Templo a’Passe dominava a paisagem arquitetônica. Como muitas estruturas da cidade, ele foi muito danificado no cerco há duas décadas e meia. Depois, o conselho municipal decidiu reprojetar a praça principal e o complexo do templo. Grande parte da estrutura original foi demolida. As linhas finas e esqueléticas dos andaimes enjaulavam a torre principal ainda não concluída e o domo do templo reformado.

A multidão de moradores estava mais densa aqui, enquanto a fila lenta do exército marchava pela cidade. Agora, Allesandra sabia, a vanguarda já teria passado pelo portão oeste e além das muralhas. Agora, ela também sabia, mensageiros iriam a galope adiante do exército para levar a notícia à kraljica, ao archigos e à Nessântico de que os firenzcianos estavam em marcha — até onde a a’hïrzg sabia, aquela informação já podia ter chegado à Nessântico assim que o exército cruzou as fronteiras. A partir de agora, o avanço encontraria resistência em breve; a kraljica Sigourney não podia se dar ao luxo de continuar virada para o oeste por muito tempo.

Um exército — especialmente o exército firenzciano; afinado, eficiente e famoso — era uma grande carta na manga em qualquer mesa de negociação, e Sigourney e o Conselho dos Ca’ sabiam muito bem disso. Allesandra sorriu diante da ideia.

A multidão espremia-se perto deles, e os soldados da infantaria de ambos os lados de Allesandra e Jan empurravam as pessoas para trás com os cabos das lanças e dos piques. Ela viu os rostos sérios e infelizes atrás da cerca de armas, e das profundezas da multidão vieram berros com xingamentos e ameaças, mas quando os dois olharam naquela direção, não havia ninguém que eles pudessem identificar na massa. A população também se lembrava do cerco firenzciano; muitas pessoas perderam familiares no sítio, e a visão das bandeiras negras e prateadas era um insulto tremulando na cara delas.

Eles entraram na sombra do templo agora, a fila do exército usava o baluarte da torre principal para se proteger da multidão. As trompas no templo começaram a anunciar a Segunda Chamada assim que Jan e Allesandra chegaram em frente à torre. A a’hïrzg ergueu a cabeça na direção do barulho e apertou os olhos contra o brilho do sol. Alguma coisa — uma figura, uma silhueta — parecia andar lá em cima, em meio ao emaranhado de andaimes. Ela não conseguiu enxergar com clareza.

Allesandra foi golpeada por trás de repente, no mesmo instante em que seus ouvidos a alertaram do som de cascos nos paralelepípedos. Um peso enorme jogou a a’hïrzg no chão, mas os braços que a envolveram giraram Allesandra para que o corpo debaixo dela absorvesse a maior parte do impacto. Um baque alto foi ouvido quase que ao mesmo tempo ao impacto. Um cavalo berrou — um som horrível, desagradável — e as pessoas gritaram.

— O hïrzg!

— Andem! Andem!

— Lá em cima! Lá está ele!

Allesandra ouviu offiziers berrarem ordens e mais gritos. Parecia haver uma multidão amontoada em volta dela. A a’hïrzg lutou contra os braços à sua volta, contra as dobras do manto do agressor e da própria tashta e a capa de equitação. Havia mãos que a puxavam para ajudá-la a se levantar.

Houve outro grito, um berro humano dessa vez, e outro impacto em algum lugar próximo.

Allesandra pestanejou e tentou entender a situação.

Sergei ca’Rudka estava de pé ao lado dela, com a capa rasgada e uma careta no rosto enquanto massageava o braço. A superfície de prata do nariz estava arranhada e o próprio nariz tinha sido parcialmente arrancado do rosto, o que deu a Allesandra um vislumbre do buraco desagradável que ficava embaixo. Jan estava sendo ajudado a se levantar, a um passo atrás de Sergei. O cavalo de Allesandra estava caído de lado diante dela, com uma enorme estátua de um demônio moitidi em volta. O animal de olhos arregalados batia as patas, e os sons que fazia... Sergei foi rapidamente até ele, ajoelhou-se nos destroços do entalhe de pedra e acariciou o pescoço do animal enquanto fazia sons tranquilizadores. Allesandra viu o comandante sacar a faca da bainha. — Não! — Ela começou a dizer, mas Sergei já tinha feito o corte rápido e profundo. O animal deu um pinote, mais um e ficou imóvel.

Allesandra balançou a cabeça para tentar clarear a mente. Metade da multidão na praça parecia ter fugido aterrorizada; os soldados firenzcianos formaram um sólida defesa em volta deles. Sergei afastou-se do cavalo e andou a passos largos até um corpo esparramado em uma poça de sangue não muito longe da base da torre. Os soldados se moveram para interceptá-lo; ele se desvencilhou deles com raiva. Allesandra começou a se mexer e percebeu que o corpo estava dolorido e machucado, e que sangrava, com um corte na cabeça. A a’hïrzg sentiu Jan chegar por trás.

— Matarh? — Ele olhava fixamente para o cavalo que Sergei matou. Allesandra abraçou o filho desesperadamente, depois afastou Jan para examiná-lo; as roupas estavam rasgadas também e havia um arranhão na bochecha que sangrava, tirando isso, ele parecia ileso.

— O que aconteceu? — perguntou ela. — Você viu?

— O regente nos salvou — disse Jan. — Ele nos tirou dos cavalos bem a tempo. — O hïrzg ergueu os olhos para o andaime, depois abaixou o olhar para o corpo no chão. Sergei estava cercado por uma massa de soldados, ajoelhado ao lado do cadáver. — O homem... ele estava lá em cima. Teria matado a senhora. Talvez nós dois. Mas Sergei...

O archigos Semini veio correndo então, com o robe verde esvoaçante. — Allesan... — Ele começou a dizer, depois balançou a cabeça e fez o sinal de Cénzi às pressas. — A’hïrzg! Hïrzg! Graças a Cénzi os senhores estão a salvo! Eu pensei...

Mas Allesandra já não o ouvia. Ela avançou pela multidão até o lugar onde Sergei examinava o corpo. — Regente? — falou a a’hïrzg, e Sergei ergueu o olhar para Allesandra, com uma cara feia.

— A’hïrzg. Eu peço desculpas, mas não tive tempo de dar um aviso. A senhora está muito machucada?

Ela balançou negativamente a cabeça. Sergei assentiu e gemeu ao ficar de pé, como se o movimento o tivesse ferido. — Estou velho demais para isso — murmurou. Ele chutou o cadáver, e a bota fez um som macio e desagradável quando o torso quebrado tremeu em resposta. Allesandra viu um rosto bonito sob o sangue, um rosto jovem, talvez da idade de Jan; ela notou que as roupas eras elegantemente suspeitosas. O corpo estava decorado por hastes quebradas de várias flechas. — Não sei quem ele é — disse Sergei —, mas descobriremos. É um ca’ ou co’, pelo jeito que está vestido e pela aparência física. Eu o vi no alto do andaime bem antes de ele jogar a estátua. Foi quando entrei em ação; parece que seus arqueiros cuidaram do resto. — Ca’Rudka pareceu notar o nariz pendurado então, empurrou-o com cuidado de volta ao lugar e o segurou com dois dedos. — Perdão, a’hïrzg... a cola...

— Não importa — falou Allesandra, abanando a mão. — Regente, eu lhe devo a minha vida.

Ela pensou que Sergei responderia como a maioria, com a cabeça baixa e depreciação, uma declaração sobre dever, lealdade e obrigação. Ele não fez isso. Ao contrário, ca’Rudka sorriu, ainda segurando o nariz de prata no lugar.

— Realmente, a senhora me deve, a’hïrzg.

 

Niente

A CIDADE QUEIMAVA e as chamas eram refletidas na tigela premonitória. Elas sumiram quando Zolin deu um tapa no objeto, que derramou água sobre Niente. A tigela fez barulho ao cair, o bronze retiniu nos ladrilhos como um sino frenético até bater na parede do outro lado, onde reluzia um mosaico de azulejos de alguma batalha antiga. Desenhados no vidro, cavalos empinavam enquanto lanças marchavam em um campo com uma montanha de pico nevado que se agigantava ao fundo.

— Não! — rugiu o tecuhtli. — Não deixarei que me diga isso!

— É o que eu vi — respondeu Niente com uma calma que não sentia. O guerreiro morto, o nahualli esparramado ao lado dele, só que dessa vez ele viu um dos rostos. O rosto de Zolin... E ele estava com medo demais para pedir a Axat que lhe deixasse ver as feições do nahualli... — Tecuhtli, nós realizamos tanta coisa aqui. Mostramos a estes orientais a dor que eles infligiram a nós e a nossos primos. Tomamos terras e cidades deles assim como eles tomaram de nós. Demos a lição que o senhor queria dar. Continuar... — O nahual ergueu as mãos. A grande cidade em chamas e os tehuantinos em fuga, os navios com mastros quebrados adernados no rio... — As visões só me mostram morte.

— Não! — disparou Zolin. — Eu mandei uma mensagem para casa dizendo que ficaríamos aqui, que eles deveriam mandar mais guerreiros. Manteremos o que conquistamos. Atacaremos o coração dos orientais: essa grande cidade que está tão próxima. — Ele se virou, os braços pesados e musculosos passaram perto do rosto de Niente. Os dedos grossos do tecuhtli apontaram para os olhos do feiticeiro. — Você está cego, nahual? Não viu como foi fácil tomar essa cidade dos orientais? Não viu como eles correram como um bando de cães açoitados?

— Temos pouco material sobrando para fazer mais areia negra — falou Niente. — Eu perdi um terço dos meus nahualli no combate; o senhor perdeu a mesma quantidade em guerreiros. Chegamos muito longe, sem recursos para manter a terra atrás de nós. Estamos em um país estrangeiro cercado por inimigos, com apenas os suprimentos que conseguimos coletar e pilhar. Se voltarmos para os nossos navios agora e formos embora, deixaremos para trás uma lenda que provocará medo nos orientais por décadas. O nome do tecuhtli Zolin será um sussurro na noite que assustará gerações de crianças orientais.

— Bá! — disparou Zolin novamente. O cuspe quase acertou os pés de Niente e sujou o chão lustroso da mansão que ele tomou em Villembouchure. Ao abaixar o olhar, o nahual viu que todos os azulejos tinham a imagem da mesma montanha, como no mosaico da parede. O cuspe de Zolin formou um lago no flanco da montanha. — Você é mesmo uma criança assustada, nahual. Eu não tenho medo do que você vê na sua tigela. Não tenho medo desses futuros que você diz que Axat lhe envia. Eles não são o futuro, são apenas possibilidades. — O dedo cutucou o peito de Niente. — Vou lhe dizer uma coisa agora, nahual: você tem que fazer sua escolha. — Cada uma das três últimas palavras ditas foram acompanhadas por uma cutucada. Os olhos escuros do tecuhtli, envolvidos no movimento das asas da grande águia, encararam Niente como um daqueles grandes felinos que espreitavam as florestas de sua terra natal. — Chega de suas palavras. Chega de profecias, chega de avisos. Eu quero apenas a sua obediência e a sua magia. Se não puder me dar isso, então chega de você. Eu prosseguirei, quer você seja o nahual ou não. Decida agora, Niente. Aqui mesmo.

A mão de Niente tremeu ao lado do punho do cajado mágico que estava pendurado no cinto. O nahual seria capaz de pegá-lo e tocar Zolin com o objeto antes que o guerreiro conseguisse sacar a espada completamente. O feitiço disparado queimaria o tecuhtli e lançaria o corpo pela sala até ele desmoronar contra a parede em uma pilha fumegante debaixo do mosaico. Niente conseguia ver aquele resultado tão claramente quanto uma visão na tigela premonitória.

O ataque também acabaria com essa situação. Ele ansiava por isso.

Mas Niente não podia atacá-lo. Essa não era uma visão dada por Axat. Esse caminho levaria a um dos futuros cegos, um que ele não poderia adivinhar — um futuro que poderia ser bem pior para os tehuantinos do que o visto na tigela. O nahual percebeu que conhecer os futuros possíveis era tanto uma armadilha quanto um benefício; ele perguntou-se se isso era algo que Mahri também descobrira. Em um futuro cego, Citlali ou Mazatl poderiam continuar a seguir os passos de Zolin e se sair ainda pior. Todos eles poderiam morrer aqui, e ninguém em casa saberia seus destinos. Em um futuro cego, certamente Niente jamais veria sua família novamente.

Ele sentiu a madeira lisa e lustrosa do cajado mágico, mas as pontas dos dedos apenas roçaram o objeto. Eles não se fecharam em volta do punho.

— Eu obedecerei ao senhor, tecuhtli — falou Niente, com palavras baixas e lentas. — E o seguirei ao futuro que o senhor nos trouxer.

 

Varina ci’Pallo

KARL ESTAVA SENTADO no degrau da porta dos fundos da casa de Serafina no Velho Distrito e olhava fixamente através de um pequeno jardim plantado ali, na direção da parte detrás das casas da próxima rua. O olhar parecia penetrar a margem sul, bem ao longe. Acima dele, a lua estava presa em uma rede de finas nuvens prateadas através das quais as estrelas espiavam. Uma xícara de chá parecia esquecida à sua esquerda.

Karl esfregava uma pedra clara, pequena e achatada, entre o indicador e o polegar.

Varina apareceu e sentou-se à sua direita — não perto o suficiente para tocá-lo, nem longe demais a ponto de não sentir o calor do corpo no frio da noite. Nenhum deles disse coisa alguma. Karl esfregou a pedra. Ela ouviu a música abafada e distante que vinha da taverna mais à frente.

Quando o silêncio entre os dois prolongou-se por tempo demais para ela, Varina começou a ficar de pé. Sentiu raiva de si mesma por ter vindo aqui fora e raiva de Karl por tê-la ignorado. Porém, ele esticou o braço e tocou em seu joelho. — Fique — disse Karl. — Por favor?

Varina sentou-se novamente e perguntou — Por quê?

— Nós não... nos últimos dias... Bem, você sabe.

— Não, eu não sei — falou ela. — Diga-me.

— Por que você tenta dificultar as coisas para mim? — Ele girou a pedra nos dedos.

— Não, estou tentando facilitá-las para mim. Karl, estar com ou sem você são duas situações com as quais eu consigo lidar, de um jeito ou de outro. O que eu não consigo encarar é não saber qual delas é nossa situação. — Varina esperou. Karl não disse nada. — Então, qual é? — perguntou ela.

— Não é tão simples assim.

— Na verdade, é. — Varina abraçou o próprio corpo ao se sentar e inclinou-se um pouco longe dele. — Quando finalmente levei você para minha cama, eu achei que teria tudo que queria há anos. Mas descobri que eu ainda tinha apenas uma parte de você. Quero você por inteiro, Karl, ou não quero nada. Talvez eu esteja exigindo demais de você, ou talvez eu seja muito possessiva, ou talvez você ache que eu esteja forçando uma coisa que você não quer. — Lágrimas ameaçaram cair, e ela fungou o nariz para contê-las, com raiva. — Talvez seja culpa minha que essa situação não dê certo, e, se for o caso, então tudo bem. Mas eu simplesmente preciso saber.

— A questão não é você.

Varina queria acreditar naquilo. Ela mordeu o lábio inferior, conteve as lágrimas, teve dificuldade para respirar. — Então o que é? Você vai atrás desse tal Uly por conta própria, quase morre, encontra com Kenne sem me contar, está até mesmo fazendo planos com Talis. Mas não fala comigo.

— Eu não quero que você se preocupe.

Varina quis escarnecer ao ouvir isto. — Eu me preocupo mais quando não sei a situação. Não sei o que você planeja, não sei o que tenta fazer, não sei quais seriam os verdadeiros perigos. — Ela parou. Respirou fundo. — Eu não quero ser sua amante, estar à disposição sempre que você quiser esse tipo de consolo, e ser convenientemente esquecida fora isso. Se isso é tudo o que você quer de mim, então eu cometi um erro. Também não sou Ana, não quero você apenas como amigo. Novamente, se isso é tudo que você quer de mim, bem, também não pode me ter como amiga. Não mais. Então, se esse for o caso, me diga, e assim que essa situação acabar, de uma forma ou de outra, eu tomo o meu próprio rumo. Eu quis que você abrisse a porta entre nós por muito tempo, Karl. Agora você abriu, mas não pode ficar parado ali com um pé dentro e outro fora. Eu preciso fechá-la e trancá-la para sempre ou você precisa entrar de vez.

— Como eu faço isso? — A voz soou melancólica na escuridão. Ele apertou a pedra entre os dedos. Como você pode não saber? Ela queria ralhar com ele. Não é capaz de enxergar tão nitidamente quanto eu?

— Fale comigo — disse Varina. — Compartilhe o que está pensando. Deixe-me aceitar os perigos que você está disposto a aceitar. Deixe-me estar com você.

Ela pensou que Karl não fosse responder — o que teria sido uma resposta suficiente. Ele ficou sentado ali, ainda brincando com a pedra e olhando para longe. Varina começou a se levantar novamente, mas dessa vez Karl pegou sua mão. Ela sentiu a pedra ser pressionada contra a palma.

— Espere — falou ele. — Deixe-me contar o que estou pensando...

E Karl começou a falar.

 

Kenne ca’Fionta

AUBRI CO’ULCAI PARECIA um cão açoitado ao se ajoelhar, de cabeça baixa, perante a kraljica. A armadura estava arranhada e surrada, o rosto tinha marcas de sujeira e fumaça, o cabelo estava escuro e emaranhado, e ele fedia. No salão do Trono do Sol, o comandante parecia uma mosca patinando em uma xícara dourada de água limpa e fria.

Não que o salão em si não tivesse cicatrizes. Ninguém deixaria de notar as marcas dos reparos feitos às pressas onde o Trono do Sol foi danificado pela magia do assassino — não, não era magia, se Karl ca’Vliomani estivesse correto, lembrou-se Kenne, mas algo mais sinistro; uma coisa que qualquer boticário seria capaz de fazer com os ingredientes certos. De que o embaixador ca’Vliomani chamou aquilo? O fim da magia? O archigos perguntou-se se o homem estava certo.

As tapeçarias penduradas ainda fediam à fumaça, e Kenne imaginou se não havia um leve tom horripilante de rosa nos ladrilhos em volta do tablado do trono. E não havia como não notar a aparência da própria kraljica Sigourney: o tapa-olho e as cicatrizes no rosto, as bandagens ainda nos braços e na única perna, a maneira como ela se remexia com dor no assento, a taça cheia do extrato das sementes da flor venenosa cuore della volpe — um preparado que o ervanário da corte criou para aliviar a sua dor.

Ainda assim, o Trono do Sol reluzia sob e em volta dela como fizera com inúmeros kralji; Kenne cuidou disso pessoalmente. Se fosse uma farsa, ninguém que observasse saberia. Kenne suspirou na própria cadeira à direita do trono, cansado pelo esforço de conjurar o feitiço de luz. O Conselho dos Ca’ estava disposto à esquerda. O salão fora esvaziado de cortesãos e até mesmo de criados — nenhum deles queria mais rumores espalhados pela cidade além dos que já haviam.

— Comandante co’Ulcai — falou Sigourney em uma voz tão arrasada quanto o rosto —, a informação que você nos traz... — Ela parou e fechou o único olho. Quando abriu novamente, a voz saiu mais inteligível. — Você nos desapontou.

— Eu sinto muito, kraljica — disse o comandante. — A senhora já deve estar com minha carta de resignação.

— Eu estou com ela, mas não irei aceitá-la. — Quando co’Ulcai ergueu o rosto com uma leve esperança, Sigourney olhou o homem com desprezo. — E não há outra razão além do fato de que temos poucos offiziers com a sua experiência. Você nos desapontou com os ocidentais, e a mancha em seu currículo não será facilmente apagada. Eu tenho a intenção de mandar que Aleron ca’Gerodi comande as defesas de Nessântico caso esses bárbaros sejam tolos o bastante para continuar a avançar. Se meu irmão estivesse aqui... — Ao dizer isso, os lábios tremeram e um brilho úmido surgiu no olho. Ela tomou um gole de cuore della volpe. — Quanto a você, veremos como se sai contra um inimigo que deve conhecer melhor. Vou mandá-lo para leste, comandante co’Ulcai, para comandar nossas forças contra o exército de Firenzcia. Odil ca’Mazzak, do Conselho, irá acompanhá-lo, e vocês dois partem amanhã. — A kraljica gesticulou com o braço para dispensá-lo. — Imagino que tenha preparativos a fazer, comandante.

Co’Ulcai ficou de pé, fez uma mesura para a kraljica e foi embora do salão com passos altos no silêncio que o acompanhou. Quando ele saiu, a kraljica Sigourney suspirou.

— Eu não confio no sujeito — murmurou Odil ca’Mazzak. — Ele é outro offizier com laços com o regente traidor.

— Infelizmente, co’Ulcai é o melhor que temos — respondeu a kraljica Sigourney. — Odil, precisamos rever os pontos da negociação que você discutirá com os firenzcianos. Archigos, preciso que você se manifeste contra os numetodos, por duas razões: para aplacar Firenzcia e para sabermos que não temos traidores na cidade enquanto enfrentamos inimigos dos dois lados. Eu espero ouvir Admoestações agressivas de sua parte e de todos os seus ténis, a começar com as missas da Terceira Chamada.

Kenne sabia que ela não esperava ouvir objeção alguma de sua parte; Sigourney já havia afastado o rosto antes de terminar de falar. A kraljica imaginava que ele apenas concordaria com a cabeça e não diria nada. Antigamente, ela estaria certa.

Antigamente. Mas havia a visita de Karl, havia o espectro do falso archigos Semini ca’Cellibrecca surgindo no horizonte e tudo o que aquilo significaria. E havia a memória de Ana e a liberdade e tolerância pelas quais ela lutou por anos.

— Não — disse Kenne. — Eu não farei isso.

O silêncio que se seguiu foi longo. A kraljica Sigourney piscou o único olho. — Não — repetiu ela, e a palavra soou como o toque de um sino fúnebre. — Eu ouvi direito, archigos?

Kenne concordou com a cabeça. — A senhora está... — A garganta estava seca. Ele engoliu em seco e tentou juntar alguma saliva. — A senhora está errada a respeito dos numetodos, kraljica. Está errada em acreditar que foi a magia deles que matou o kraljiki Audric e feriu a senhora. Não foram eles.

Ela piscou o único olho mais uma vez. Os outros conselheiros observavam os dois, em silêncio. — Não foram? E como você sabe disso?

— Porque eu falei com o embaixador ca’Vliomani, na verdade. Ouvi suas explicações e fiz minha própria investigação sobre o que ele descobriu.

— Karl Vliomani — a nítida falta de um prefixo ao sobrenome pairou pesadamente no ar — é um fugitivo atualmente condenado à morte. Está me dizendo que ele foi até você, e você o deixou escapar?

Kenne sentiu um arrepio com o tom de voz. — Ele veio até mim, sim, e me mostrou isso. — Ele tirou um pequeno frasco de vidro debaixo do robe verde. No interior, a areia negra reluzia. — Observem. — O archigos levantou-se da cadeira, arrastou os pés pelo tablado e desceu para o piso do salão. Tomou vários passos de distância do trono, depois tirou a rolha do frasco e deixou a areia jorrar sobre os ladrilhos. Kenne voltou para o tablado; os joelhos estalaram como gravetos secos quando subiu os degraus. — Todo mundo concorda que Enéas co’Kinnear usou um feitiço para criar fogo; mas aquele era um feitiço de téni, não de numetodo. Co’Kinnear foi um acólito da fé concénziana e teve alguma educação sobre o uso do Ilmodo. É muito provável que ele tenha aprendido aquele feitiço; é um dos primeiros a serem ensinados aos novos estudantes. Olhem...

Kenne ergueu as mãos e deixou que dançassem no rápido gestual enquanto a voz entoou as curtas frases necessárias. Um momento depois, uma chama amarela tremeluziu no ar entre suas mãos. — Todos os senhores viram isso mil vezes; todas as noites, quando as lâmpadas são acesas ao longo da Avi a’Parete. Isso aqui não é diferente...

O archigos abriu as mãos, começou um novo cântico, e a chama afastou-se de sua mão, saiu flutuando do tablado até pairar sobre a areia negra. Ali, ele abaixou as mãos devagar, e a chama respondeu da mesma forma, desceu até quase tocar a pilha escura...

O estrondo da explosão foi mais alto até mesmo do que Kenne esperava, e o clarão feriu os olhos. Uma fumaça branca subiu e se espalhou pelo salão, seguida de um cheiro cáustico e intenso. Ele ouviu o baque metálico quando a taça do cuore della volpe caiu do braço do Trono do Sol para o chão. A kraljica Sigourney estava com a respiração acelerada no trono e a mão erguida diante do rosto como se tentasse se proteger; ela parecia tentar ficar em uma perna só enquanto pegava a bengala perto da mão direita. Vários conselheiros estavam de pé e berravam. As portas do salão foram escancaradas por gardai, que entraram com espadas na mão. — Kraljica?

Sigourney abaixou as mãos. Kenne ouviu a respiração da kraljica desacelerar. Ela dispensou os gardai com um gesto. — Este cheiro... — murmurou Sigourney. — Eu me lembro dele mais do que de tudo. — Ela virou-se lentamente para o archigos e perguntou — Isso não é magia? Como é possível que isso não seja o Ilmodo, archigos?

— Porque é apenas alquimia — respondeu Kenne —, uma combinação de ingredientes que reage violentamente quando entra em contato com fogo. Havia traços desta areia negra na madeira do Alto Púlpito após a archigos Ana ser morta; os mesmos traços estavam no Trono do Sol e no corpo do kraljiki Audric.

— Os numetodos alegam que a fé em Cénzi não é necessária para usar magia, que qualquer pessoa é capaz disso, que não é mais complicado do que ser um padeiro. Eles olham para pedras com formato de conchas e crânios e inventam teorias estranhas, eles realizam experiências... em alquimia, assim como em outras “ciências”, bem como em magia. Para mim, isso parece indiciar os numetodos. — Quem falou foi Odil ca’Mazzak. Ele olhou com raiva para o archigos, e a kraljica concordou com a cabeça diante das palavras.

— Eu afirmo que isso não veio dos numetodos — insistiu Kenne.

— Mesmo que tenha sido Vliomani quem, por acaso, lhe mostrou isso — retrucou Odil com desdém. — Parece uma lógica estranha.

— A areia negra é um preparado ocidental — disse Kenne. — Aqui está a lógica, conselheiro. Enéas co’Kinnear tinha acabado de retornar do serviço militar nos Hellins. O senhor também deve se lembrar que o comandante co’Ulcai acabou de nos contar como os ocidentais foram capazes de destruir as muralhas de Villembouchure com explosões similares àquelas que mataram a archigos Ana e o kraljiki Audric.

— E ele disse que as explosões foram criadas pela magia dos ténis-guerreiros ocidentais, esses tais “nahualli”. — Odil balançou a cabeça grisalha. A pele flácida da garganta sacudiu com o movimento. — Eu acho que o archigos está enga...

— Não! — Dessa vez Kenne quase gritou e bateu o pé no chão ao mesmo tempo. — Eu não estou enganado. Sei que todos os senhores me acham um velho tolo e decrépito que é uma mera sombra do que um archigos deveria ser. Os senhores podem estar certos quanto a isso, mas estão errados nessa questão. Pior do que errados; eu tenho provas que me fazem acreditar que o falso archigos Semini está envolvido no assassinato da archigos Ana. E, se esse for o caso... — Ele parou, sem fôlego. Todos encaravam o archigos como se ele fosse uma criança tendo um ataque. — Nós precisamos dos numetodos, kraljica, conselheiros — continuou Kenne, com a voz mais baixa. — Precisamos das habilidades, da magia e do conhecimento deles. Nessântico está prestes a ser sitiada pelo oeste e pelo leste, e não podemos nos dar ao luxo de perder aqueles que podem nos ajudar.

Houve um longo e doloroso silêncio. Odil lambeu os lábios e sentou-se. Os outros integrantes do Conselho abaixaram a cabeça e entreolharam-se. A kraljica Sigourney olhou fixamente para a mancha negra nos ladrilhos. — Nós consideraremos o que você disse, archigos — falou ela, finalmente, e Kenne sabia o que isto significava.

Ele gemeou e levantou-se da cadeira novamente. Pegou o cajado de archigos com a mão direita — o globo partido envolto pelos corpos nus e contorcidos dos moitidis — e fez o sinal de Cénzi para a kraljica com a esquerda. Novamente, Kenne afastou-se do tablado arrastando os pés. Ao passar pelo ponto onde a areia negra havia explodido, parou. Os ladrilhos ali estavam quebrados. Ele pegou um dos pedaços maiores, com uma borda afiada de cerâmica azul-clara e a superfície lisa manchada com o que parecia ser fuligem. O cheiro da areia negra era forte. Kenne levantou o pedaço do ladrilho e deixou cair, o som se parecia com o de um prato se quebrando. Ele viu os pedacinhos quicarem e se espalharem.

— Nessântico inteira pode ficar assim — disse o archigos. — Inteira.

Não houve resposta. Ele bateu com a ponta do cajado de archigos no ladrilho e continuou arrastando os pés.

 


Sergei ca’Rudka

A TENDA DE NEGOCIAÇÃO FOI ARMADA em um campo entre as duas forças: ao lado da Avi a’Firenzcia e aproximadamente a meio caminho entre Passe a’Fiume e Nessântico. Ao se aproximarem, Sergei já podia ver as silhuetas escuras de Odil ca’Mazzak e Aubri co’Ulcai através do pano branco, juntamente com o u’téni Petros co’Magnaoi, presente como o representante do archigos. A delegação firenzciana era composta por Sergei, a a’hïrzg Allesandra e o starkkapitän ca’Damont, acompanhados pelo obrigatório conjunto de chevarittai e assistentes. Uma vez que nem a kraljica nem o archigos Kenne estavam presentes, o hïrzg e o archigos Semini, diante da sugestão de Sergei, ficaram para trás. Nenhum dos dois ficou contente com o arranjo.

— Matarh, eu deveria estar lá — insistiu Jan. — Eu sou o hïrzg, e o que acontecer deve ser, tem que ser minha decisão. — Ele olhou feio para Sergei e Allesandra.

— E será, hïrzg — disse Sergei para o jovem. — Eu lhe prometo, mas para o senhor estar lá... — Ele balançou a cabeça. — O senhor é o hïrzg, como disse. Não há um igual ao senhor naquela tenda; também não há um igual ao archigos. Não é esperado do senhor, hïrzg Jan, que negocie em termos iguais com Odil ca’Mazzak, que é apenas um integrante do Conselho dos Ca’; o senhor estaria se rebaixando se fizesse isso. Eu lhe digo que isso é exatamente o que eles querem que faça. Seria uma admissão de que o hïrzg da Coalizão é alguém inferior à kraljica dos Domínios.

Sergei então olhou para Allesandra e para o archigos, que estava com a cara fechada. — Os senhores me pediram para dar meu conhecimento, para ajudá-los. É o que estou fazendo aqui. Aparências importam. Importam muito. Especialmente para aqueles no Palácio da Kraljica.

No fim, com o apoio de Allesandra, o regente venceu o argumento. Jan, pelo menos, foi, de certa forma, educado. Irritado, o archigos saiu em um rompante, e eles ouviram Semini reclamar pelo acampamento pelas próximas viradas da ampulheta.

Conforme o contingente firenzciano desmontava e criados recolhiam as armas e os cavalos e ofereciam comidas e bebidas, os representantes de Nessântico aproximaram-se. Sergei apertou afetuosamente o braço de co’Ulcai e sorriu para seu offizier de longa data. — Aubri, eu gostaria que pudéssemos ter nos encontrado sob circunstâncias melhores. Eu soube o que aconteceu com o pobre Aris... — Ele apertou o ombro do homem e fez o sinal de Cénzi para o u’téni Petros co’Magnaoi. — Petros, é bom vê-lo também. Como está o archigos Kenne?

— Está bem, senhor, e lhe manda bênçãos — respondeu o homem mais velho.

Sergei inclinou-se para perto do u’téni ao abraçá-lo. — Kenne recebeu minha mensagem? — sussurrou o regente no ouvido do velho. — Ele concorda? — Sergei sentiu o leve aceno de Petros. Também viu os olhares de avaliação de ambas as delegações sobre ele ao cumprimentar os dois homens: tanto de Allesandra quanto de Odil ca’Mazzak. Ambos tinham suspeitas; ambos tinham o direito de ter. Sergei acenou com a cabeça para ca’Mazzak e sentou-se à esquerda de Allesandra.

O conselheiro gesticulou, e pajens aproximaram-se para entregar rolos pesados de pergaminhos a Allesandra, Sergei e ao starkkapitän. — Esta é a oferta da kraljica Sigourney — falou ca’Mazzak enquanto o trio lia as palavras presentes ali. — Seu exército terá permissão para retornar a Firenzcia. O fora da lei Sergei Rudka será entregue a nós. Reparações serão pagas por Brezno para os Domínios pela destruição de colheitas e gado feita por seu exército e pela violação do Tratado de Passe a’Fiume. Se os senhores acharem os termos aceitáveis, só é necessário que a a’hïrzg assine como representante da Coalizão.

Não era mais do que Sergei esperava. Ele já testemunhara a arrogância e o excesso de confiança dos Domínios muitas vezes antes.

O starkkapitän ca’Damont bufou desdenhosamente pelo nariz e jogou o pergaminho na mesa. — E como a kraljica pretende executar essa oferta, conselheiro? Com os poucos batalhões que o senhor deu ao comandante co’Ulcai? Não tenho nada além de respeito pelo comandante, que é um belo offizier, mas não se afasta um urso raivoso com um graveto. — Ele pareceu se dar conta de que falou o que não devia. O rosto ficou um pouco vermelho. — Perdão, a’hïrzg. Eu sou um simples offizier, mas essas exigências... — Ele empurrou o pergaminho da mesa para o chão; um pajem correu para pegá-lo, mas não o devolveu ao starkkapitän.

— A Garde Civile e os chevarittai dos Domínios não são um graveto, starkkapitän — gabou-se ca’Mazzak. Ele inchou como um sapo, sentado ereto na cadeira, a papada no pescoço grosso tremeu. — O senhor subestima nossa capacidade de botar um exército em campo rapidamente quando nossas terras são ameaçadas. É uma lição que o último hïrzg Jan aprendeu; estou surpreso que alguém em Firenzcia sinta necessidade de aprendê-la uma segunda vez.

Allesandra parecia ainda estar lendo a proposta, embora Sergei tenha notado que ela escutava com atenção o diálogo. A a’hïrzg pousou o papel diante de si e dobrou as mãos sobre ele. — Muito bem. Deixemos a pose de lado, conselheiro ca’Mazzak. Todos sabemos que Nessântico enfrenta uma ameaça a oeste. Sabemos o que aconteceu com Karnor; ouvimos rumores que Villembouchure pode ter sofrido o mesmo destino. Talvez o comandante co’Ulcai possa nos esclarecer sobre isso, uma vez que eu espero que ele tenha estado lá quando as forças dos Domínios foram escorraçadas? Todo mundo nesta mesa sabe que o senhor não tem forças suficientes para nos desafiar aqui. Então o que é que a kraljica realmente oferece?

Sergei havia sugerido esse curso direto de ação para Allesandra, mas a provocação a Aubri co’Ulcai tinha sido contribuição da própria a’hïrzg. A expressão no rosto de Aubri foi o suficiente para confirmar que o palpite dela estava correto, e Sergei sentiu uma pontada de compaixão pelo amigo.

Ca’Mazzak parecia ter engolido uma fruta podre. Ele deu uma olhadela para Petros, que parecia examinar os campos além do limite da tenda, e depois para Aubri. — A kraljica está preparada para oferecer um meio-termo — falou o conselheiro finalmente. — Que o hïrzg e a a’hïrzg voltem para Brezno com a Garde Brezno; no entanto, o starkkapitän ca’Damont e o restante do exército ficam para trás, a fim de auxiliar na defesa de Nessântico contra os ocidentais, ajuda pela qual o tesouro de Nessântico está disposto a pagar. Quanto ao antigo regente... — ca’Mazzak olhou com ódio para Sergei. — A kraljica Sigourney mantém a exigência do retorno de Sergei Rudka para que enfrente as acusações contra ele, não importa o acordo a que cheguemos aqui.

Allesandra ficou de pé ao ouvir isso; um momento depois, Sergei, ca’Damont e o resto do contingente firenzciano acompanhou o gesto. — Então estamos encerrados aqui — disse a a’hïrzg. — O regente ca’Rudka é um conselheiro da coroa de Firenzcia, e nós o consideramos o legítimo governante atual de Nessântico até que um kralji de direito seja nomeado. Se o regente ca’Rudka desejar retornar à Nessântico por conta própria para lutar por seu direito, ele pode fazê-lo. Caso contrário, ele está sob a proteção do hïrzg, não importa o que a pessoa que os senhores nomearam kraljica deseje. — Ela fez uma mesura para ca’Mazzak e gesticulou. Sergei deu um largo sorriso para o homem. Eles deram meia-volta para ir embora.

— Esperem! — Foi Petros que os chamou. Allesandra parou.

— U’téni? — perguntou a a’hïrzg, mas ca’Mazzak já vociferava.

— Eu estou no comando dessa delegação — falou o conselheiro. — Você fala quando eu lhe der permissão, u’téni co’Magnaoi.

— Cénzi está no comando da minha consciência — disse Petros. — Não o senhor, nem a kraljica Sigourney. E eu falarei. A’hïrzg, Nessântico está em uma situação desesperadora. O comandante co’Ulcai poderia lhe dizer, se tivesse permissão para falar, com que facilidade os ocidentais tomaram os vilarejos e as cidades que eles devastaram. Nessântico precisa desesperadamente de todos os aliados que conseguir reunir agora. O archigos Kenne está preparado para negociar separadamente da kraljica, se for necessário, para alcançar esse objetivo.

— O quê? — esbravejou ca’Mazzak. Ele também estava de pé agora e socou a mesa. — Não, não, não. Estamos encerrados aqui. U’téni co’Magnaoi, você será levado de volta à cidade para responder por isso. Comandante, mande seus gardai...

Sergei deu um tapa na mesa bem na frente de ca’Mazzak, o homem fechou a boca com um estalo alto. — O senhor não é nada além do cachorrinho bravo da kraljica, conselheiro — disse o regente ao se inclinar na direção do homem. — Sente-se.

Ca’Mazzak o olhou com ódio e virou-se para Aubri. — Comandante, o senhor tem as suas ordens. O senhor prenderá o u’téni imediatamente.

Aubri não se mexeu, não respondeu. Sergei sentiu a tensão aumentar na tenda. Viu mãos deslizarem cautelosamente na direção das armas escondidas — ele mesmo tinha as próprias facas, uma na bota, outra debaixo da blusa da bashta, e o zumbido do próprio medo ecoava em seus ouvidos. O regente não conseguira contatar Aubri antecipadamente, e se o comandante tivesse decidido que sua lealdade ao Trono do Sol era maior do que a velha lealdade a Sergei, então... Bem, então Sergei não sabia o que poderia acontecer aqui.

— Comandante co’Ulcai, isso é traição — rosnou ca’Mazzak. — Vou exigir sua cabeça por isso, se não fizer como mandei.

Aubri não disse nada; o olhar contemplativo continuava em Sergei. Os chevarittai de ambos os lados ficaram tensos, prontos para agir. Sergei colocou-se entre Allesandra e a mesa e falou — Eu sugiro que o senhor se sente, conselheiro. Deixe o u’téni co’Magnaoi terminar de explicar sua proposta.

Por vários instantes, ca’Mazzak não se mexeu. Ele olhou em volta da tenda lentamente, Sergei sabia que o conselheiro estava avaliando quem ali o seguiria ou não. Evidentemente, o homem não ficou satisfeito com o resultado. Devagar, ca’Mazzak sentou-se novamente. Ele olhou fixamente para as próprias mãos.

— Ótimo — disse Sergei. Por um momento, o zumbido nos ouvidos diminuiu. — Petros, o que o archigos Kenne tem a oferecer para Firenzcia?

— Informação — respondeu Petros. — Nós temos provas de que o archigos Semini esteve envolvido no assassinato da archigos Ana. Podemos dar nomes que verificam essa informação. — Atrás dele, Sergei ouviu Allesandra tomar fôlego diante da acusação. O regente ficou intrigado com a reação; ela parecia mais preocupada do que surpresa. — Como o kraljiki Audric foi morto da mesma maneira — continuou Petros —, nós suspeitamos que o falso archigos esteve envolvido da mesma maneira. Se o hïrzg Jan estiver disposto a julgar o archigos Semini pela morte da archigos Ana em sua própria corte, nós daremos as provas que temos. Em troca, a Fé de Nessântico trabalhará com a Fé de Brezno para restaurar o nosso racha; o archigos Kenne irá convocar um Conclave com todos os a’ténis para eleger um único archigos para reger a fé concénziana, e também abdicará voluntariamente se não for eleito; porém, qualquer archigos eleito deverá assumir o Templo do Archigos em Nessântico, não em Brezno. Da mesma forma, a Fé está disposta a reconhecer o direito ao Trono do Sol de Allesandra ca’Vörl. O archigos Kenne irá apoiá-la diante do Conselho dos Ca’ contra a kraljica Sigourney.

— Não! — Ca’Mazzak ficou de pé em um pulo novamente, e uma baba voou de sua boca com a explosão da palavra. — O archigos Kenne será jogado na Bastida por isso, e os ténis que o apoiarem serão expulsos...

— Se isso acontecer — respondeu Petros calmamente —, então o archigos Kenne mandará que os ténis-guerreiros permaneçam nos templos em vez de responderem ao chamado da kraljica. Como a Garde Civile e os chevarittai se sairão contra os ocidentais sem os ténis-guerreiros, conselheiro? Como enfrentarão o exército do hïrzg?

Novamente, ca’Mazzak desmoronou na cadeira. Ele sentiu um arrepio, como se estivesse com febre e alisou a papada. A testa porejava, e debaixo dos braços, o tecido da bashta escureceu.

Allesandra tocou o ombro de Sergei, que se afastou. A a’hïrzg deu um sorriso amargo e fez o sinal de Cénzi para Petros. — Vocês oferecem tudo isso pelo julgamento do archigos Semini?

Petros concordou com a cabeça. — Nós confiamos que a corte do hïrzg será justa e imparcial. E há mais uma coisa: toda perseguição contra os numetodos deve parar. Imediatamente. Os numetodos são inocentes em toda esta questão. O embaixador Karl ca’Vliomani deve retomar o antigo cargo.

Sergei sentiu que as negociações dependeriam da resposta de Allesandra a essa última exigência. Ela tocava o globo partido de Cénzi pendurado no pescoço. Sua própria vida dependia disso também, assim como a de Petros e Aubri. Se ele avaliou errado...

— Eu falarei com meu filho — respondeu a a’hïrzg. — Repetirei tudo o que foi dito aqui. — Sergei achou, por um momento, que essa seria toda a resposta, que ele havia perdido. Mas Allesandra respirou fundo e disse — Vou sugerir que o hïrzg aceite a oferta do archigos. Conselheiro ca’Mazzak, comandante, u’téni, nós voltaremos à tenda de negociação em três viradas da ampulheta para dar nossa resposta.


— Se o archigos Kenne tem provas, eu irei avaliá-las — falou Allesandra para Sergei ao voltarem. — E se o archigos Semini for o responsável pela morte de Ana ca’Seranta, então... — Ela franziu os lábios com força. — Então estou inclinada a convencer meu filho a aceitar a oferta do archigos.

De alguma forma, a a’hïrzg pareceu ter feito exatamente isso, embora Sergei não tenha estado presente à discussão, e embora todo mundo no acampamento tenha ouvido as ocasionais vozes exaltadas na tenda do hïrzg. O regente notou, principalmente, que o starkkapitän ca’Damont colocou gardai postados em volta da tenda do archigos.

Ele se perguntou o que estaria acontecendo no outro acampamento. Tudo dependia das lealdades da Garde Civile e dos ténis — e Sergei não tinha certeza de como aquilo terminaria. O regente rezou para Cénzi, na esperança de que Ele escutasse.

Três viradas da ampulheta depois, Sergei, Allesandra e os demais cavalgaram na direção da tenda de negociação.

Há décadas, quando ele era o comandante da Garde Kralji, Sergei às vezes sentia um arrepio ao se aproximar da Bastida a’Drago: um tremor na espinha, quase parecido com medo, que lhe dizia quando havia algo errado no complexo atrás do crânio sorridente do dragão.

O regente sentiu aquele arrepio agora, conforme o pequeno destacamento se aproximava da tenda de negociação. Antes de mais nada, foi curioso que não houvesse nenhum criado andando de um lado para o outro, que as cadeiras do lado de Nessântico na mesa estivessem vazias. Mas o que deteve Sergei, o que deu um nó no estômago, foi perceber que havia alguma coisa sobre a mesa — duas coisas, dois objetos arredondados escondidos sob a sombra da lona que tremulava na brisa. Infelizmente, Sergei sabia o que estava ali.

— Espere um momento, a’hïrzg — falou ele. — Por favor, espere aqui.

Sergei fez o cavalo ir à frente sozinho e gesticulou para o starkkapitän ca’Damont segui-lo. Ele apertou os velhos olhos para forçá-los a distinguir o que havia sobre a mesa. Ao se aproximar, ouviu um leve zumbido que ficou mais alto aos poucos: o barulho de insetos.

O regente entendeu, naquele momento, e a bile subiu à garganta. Ele parou o cavalo, desceu da sela e entrou na sombra da tenda.

Sobre a mesa havia duas cabeças, com uma poça de sangue coagulado e grudento debaixo delas e um tapete de moscas que andavam sobre os olhos abertos e dentro das bocas escancaradas.

Sergei ficou de joelhos e fez o sinal de Cénzi na direção da cena horripilante. — Aubri. Petros. Sinto muito. Sinto muitíssimo.

Trêmulo, o regente ficou de pé novamente e retornou ao cavalo. Ele cavalgou em silêncio até os demais. O olhar de Allesandra questionou Sergei; ela também sabia. O regente viu na maneira com que a a’hïrzg levou a mão à boca antes dele sequer falar.

— O conselheiro ca’Mazzak deixou sua própria resposta para nós — disse Sergei. — Parece que ele não se importa com qual seria nossa resposta.

 

Nico Morel

NICO NÃO CONSEGUIA ficar sentado quieto. O menino jamais havia imaginado um lugar tão grande, glorioso e interessante quanto esse. Eles foram conduzidos a um gabinete em um dos prédios que rodeavam a Praça a’Archigos; a recepção em si era maior do que o apartamento de dois cômodos que eles tinham no Velho Distrito e havia pelo menos três portas que levavam a outros aposentos que Nico só conseguia imaginar. Ele vislumbrou um quarto quando um criado entrou com roupas de cama na mão, e o aposento parecia enorme, além dos limites. O gabinete para onde eles foram levados teria abrigado a casa de Nico, assim como aquelas dos vizinhos mais próximos. O teto parecia tão alto e tão branco quanto as nuvens de verão; o piso era um mosaico intrincado de várias madeiras coloridas, e as paredes eram cobertas por tapeçarias lindas, que mostravam a história da vida de Cénzi, a moldura no topo das paredes era entalhada e dourada. Atrás da enorme mesa de mogno, uma sacada dava vista para uma grande praça, com a silhueta do Templo do Archigos emoldurada pelas cortinas abertas. O resto da mobília na sala chamava tanto a atenção quanto a mesa — uma mesa comprida e lustrosa para reuniões, com cadeiras estofadas ao redor; um sofá colocado diante de uma lareira em que a família inteira de Nico poderia ficar em pé dentro, cercada por um belo consolo; um globo entalhado e partido que era mais alto que dois homens, um em cima do outro, com figuras esculpidas dos moitidis em volta dele e uma base cravejada de joias e folheada de ouro reluzente. Ao redor das paredes, havia mesas repletas de lindas maravilhas do exterior: estátuas de animais desconhecidos; uma pedra grande quebrada ao meio, com o miolo cheio de belos cristais violeta; conchas cor-de-rosa e espinhentas do Strettosei...

Nico piscava e olhava fixamente para tudo. — Tudo isso aqui é só para o senhor? — perguntou o menino para o archigos, maravilhado.

— Nico, silêncio — disse a matarh, mas o velho no robe verde apenas riu.

— É para o archigos, seja ele quem for — falou o homem. — Eu vivo aqui apenas temporariamente, até que Cénzi me chame de volta para Ele. Era aqui que a archigos Ana vivia também. — Ele deu um tapinha na cabeça de Nico, e os criados trouxeram bandejas de comida e bebidas e colocaram sobre a mesa. O archigos gesticulou para eles assim que terminaram e disse — Isso é tudo. Por favor, cuidem para que não sejamos incomodados. Mandem minha carruagem para a porta dos fundos uma virada da ampulheta antes da Terceira Chamada. — Eles fizeram uma mesura e foram embora. — Sirvam-se — disse o homem quando o último dos criados fechou as portas duplas ao sair do gabinete. — Karl? Parece que uma boa refeição cairia bem a todos vocês. — Nico olhava fixamente para a comida, e o archigos riu de novo. — Vamos, Nico. Você não precisa esperar.

O menino olhou de relance para a matarh e Talis, que deu de ombros. — Tudo bem — falou a matarh. — Vá em frente...

Nico foi em frente. Um bolinho de grãos com pingos de mel foi a primeira coisa que colocou na boca. Os adultos não pareciam estar com tanta fome quanto ele, o que era estranho. Nem Talis, Karl ou Varina foram à mesa, e sua matarh beliscava a esmo um peito de pato. Em vez disso, eles se amontoaram perto do sofá, em frente à lareira.

— Archigos — Nico ouviu Karl dizer —, Ana ficaria muitíssimo orgulhosa de você. Todos nós lhe devemos agradecimentos.

— Os agradecimentos são para você, Karl. Se você não tivesse vindo até mim, se não me dissesse o que sabia... Bem, não tenho certeza do que teria acontecido. De qualquer forma, eu talvez tenha colocado você em mais perigo, não em menos. A kraljica está furiosa, pelo que eu soube, e assim que o conselheiro ca’Mazzak retornar da negociação com os firenzcianos, eu desconfio que ela ficará ainda menos contente comigo. Nenhum de nós tem como saber o que acontecerá diante dessa situação; por isso precisamos conversar hoje à noite. Não há muito tempo; é possível que um mensageiro já esteja voltando para a cidade. — Nico ouviu o archigos perder a voz. Ele virou-se com um pedaço de pão e queijo na mão. — Este é o ocidental? — perguntou Kenne ao apontar com a cabeça na direção de Talis, que mantinha as duas mãos na bengala que sempre carregava. Nico viu o ar tremular em volta da madeira como se a bengala estivesse em chamas, mas era um fogo mais frio que a neve do inverno passado.

— Sim, archigos — respondeu Karl. — Este é Talis Posti. O vatarh de Nico.

— Ah — falou Kenne. — Vajiki Posti, eu também lhe devo agradecimentos; embora deva me desculpar por querer saber o motivo pelo qual você decidiu me ajudar.

— Porque eu vislumbrei os futuros, e nenhum deles leva a um bom lugar para o meu povo — respondeu Talis, e Nico viu seu interesse aumentar ao ouvir aquilo. Talis podia ver o futuro? Isso seria interessante. Ora, se ele pudesse fazer isso, Nico poderia se ver como adulto, talvez ver o que aconteceria com ele... O menino percebeu que suas mãos se moviam por conta própria em uma estranha dança, os dedos grudentos mexiam-se pelo ar, e palavras desconhecidas vieram a ele. Nico murmurou tão baixinho que nenhum dos demais ouviu. O frio da bengala de Talis parecia fluir na direção de suas mãos; ele sentia o arrepio nos braços.

— Você tem aquele dom dos deuses? — perguntou Kenne para Talis, que ergueu as sobrancelhas e olhou para Karl.

— Mahri alegava que podia fazer o mesmo — falou o embaixador. Isso também fez Nico prestar atenção; ele lembrou-se que Talis mencionara o nome anteriormente. — Não que tivesse lhe servido de alguma coisa no fim das contas.

— Não são visões do futuro que Axat nos permite vislumbrar, mas todas as possibilidades que existem. Os vislumbres de futuros em potencial não são fáceis de ler, embora fosse dito que Mahri era capaz de usar o talento melhor do que qualquer um antes ou depois dele. E sim, parece que o talento o desapontou, no fim das contas. — Um breve sorriso passou pelo rosto de Talis. — Talvez tenha sido a proximidade com o seu Cénzi.

Kenne riu; Nico gostou do som, fez com que gostasse do homem. O frio envolveu seus braços agora, embora as mãos tivessem parado de dançar.

— Você está disposto a nos ajudar... — o archigos Kenne abriu os braços para incluir Karl e Varina, e o resto da cidade do lado de fora da sacada — ... quando isso significa que você poderia ajudar a derrotar as forças do seu próprio povo?

— Sim — respondeu Talis —, porque Axat me disse que, ao fazer isso, eu ajudarei meu povo.

O frio congelava os braços de Nico e estava ficando pesado. Ele não sabia o que fazer com aquilo, mas tremia com o esforço de segurá-lo, e a dor quase fez com que gritasse. — Às vezes seu inimigo torna-se seu aliado — dizia Varina para o archigos. — Eu sei...

— Nico! — A voz da matarh foi quase um berro. — O que você está fazendo? — O menino tomou um susto quando Serafina agarrou seu ombro, e o frio saiu voando do corpo. Ao fugir, a energia reluziu e flamejou, como uma língua de fogo azul. A rajada foi disparada por ele, varou o espaço entre Talis e o archigos e se dirigiu para a escultura do globo partido, no canto do gabinete. Nico soluçou, assustado tanto pela sensação de alívio quanto de puro terror diante do que tinha acabado de lançar. Varina, que estava a alguns passos do archigos, gesticulou e falou uma única palavra ríspida; com o movimento, Nico viu a linha de fogo azul fazer uma curva e dar meia-volta. A rajada fez um arco ao se afastar da escultura, cuspiu fagulhas cor de safira sobre a mesa envernizada e saiu assobiando pelas portas abertas da sacada. Bem acima da praça, o fogo concentrou-se e explodiu: um globo azul-claro que brilhou como um relâmpago congelado. Com a explosão, veio o estrondo ensurdecedor de um trovão que ecoou nas paredes dos prédios que circundavam a praça. Nico sentiu as janelas tremerem e chacoalharem nas ombreiras e ouviu vidro se quebrando ao longe.

— Nico! — O menino foi abraçado pela matarh. — Nico... — repetiu ela, com mais gentileza dessa vez. Serafina abraçou o filho com mais força, que não tinha certeza se era para ser um abraço ou um estrangulamento. Todos olhavam fixamente para ele.

— Desculpem — falou Nico. — Eu não tinha a intenção de.

Ele começou a chorar.

 

Karl Vliomani

— DESCULPEM — falou Nico. O lábio inferior tremia, e as próximas palavras mal haviam saído antes que os ombros começassem a tremer por causa dos soluços. — Eu não tinha a intenção de...

Serafina olhava fixamente sobre os ombros do menino ao abraçá-lo, seus olhos estavam arregalados e aterrorizados. Lá fora, na praça, eles escutaram gritos ao longe quando os transeuntes começaram a procurar pela fonte da claridade trovejante. Karl ouviu Varina suspirar de alívio atrás de si. — Se ele estivesse um pouquinho para um lado, ou para o outro... — disse Karl.

— Ele não estava — respondeu Varina, que se ajoelhou na frente do menino e acenou com a cabeça para Serafina. — Está tudo bem, Nico. Ninguém se machucou. Está tudo bem. — Ela olhou para Karl, atrás dela. — Está tudo bem — repetiu. O menino fungou e esfregou a manga no nariz e nos olhos.

Karl suspirou e sorriu: para Varina, para Nico e para Serafina. — Sim, está tudo bem, graças a Varina. Talis, você sabia...?

— Eu suspeitava, mas... — Ele segurava o cajado mágico e o olhava confuso, como se fosse um copo subitamente vazio. — Agora eu sei. Archigos, o senhor está...?

Kenne abanou a mão, como se não fosse nada, mas Karl notou que o peito do homem ainda ofegava. — Eu estou bem — disse o archigos. — E impressionado. Seu filho é um dos poucos talentos naturais que conheci. O archigos Dhosti foi um, e Ana, também. Com treinamento, bem...

— Eu o treinarei. — A resposta do homem veio acompanhada por uma cara fechada. Ele pegou o cajado mágico com força. — Esse é o dom de Axat, não de Cénzi.

— É claro — falou Kenne para Talis, mas o olhar permaneceu em Nico. — Não se preocupe — disse o archigos para o menino. — Ninguém aqui está com raiva de você, entendeu? — Nico concordou com a cabeça, ainda fungando o nariz.

— Se eu soubesse disso, teria sido bem mais cauteloso quando me aproximei de você pela primeira vez — falou Karl para Talis. — Mas, como não aconteceu nenhum mal... Nós ainda temos planos e contingências em que pensar. Archigos, Petros está pronto para fazer a proposta que conversamos para Firenzcia?

Kenne concordou com a cabeça, com mais hesitação do que Karl gostaria, mas ao menos foi uma confirmação. Na verdade, ele teve medo de que o archigos não levasse o plano adiante, especialmente dado o perigo inegável em que Petros foi colocado. — Ele está pronto. — A voz de Kenne tremeu um pouco; medo combinado com idade, decidiu Karl. — Na verdade, Petros já deve ter feito a proposta a essa altura.

— Ótimo — disse Karl. Ele deu um tapinha no ombro de Kenne e falou — Ele ficará bem e voltará para você em breve. Agora, da parte de Talis, ele trará os materiais dos aposentos de Uly para o templo amanhã, e nós podemos começar a preparar a areia negra para a demonstração. Isso deve mostrar a esse tal tecuhtli dos ocidentais que atacar a cidade seria idiotice. Nós podemos prevenir centenas, se não milhares, de mortes.


A carruagem do archigos era um truque — quatro criados de Kenne entraram no veículo quando ele parou na entrada dos fundos do prédio, enquanto Karl e os demais desceram correndo uma escada dos fundos na direção de uma entrada de serviço pouco usada. Nenhum deles sabia se o subterfúgio era necessário; Karl torcia para que não fosse, porém, caso fosse, então nenhuma alternativa que eles prepararam se tornaria realidade.

O grupo começou a sair correndo da praça em direção à Avi. Kenne dera a eles dinheiro suficiente para alugarem uma das carruagens e levá-los de volta ao Velho Distrito. Conforme passaram pela rua, Karl e os demais viram três esquadrões distintos de Garde Kralji cruzarem a Praça do Archigos correndo. — Esperem um momento — falou o embaixador. Talis, Serafina e Nico já estavam na Avi à procura de uma carruagem para alugar; Varina, um pouco à frente dele, parou. Quando Karl hesitou, no limite da praça, ele e Varina viram dois dos esquadrões entrarem no prédio de onde eles acabaram de sair; o outro esquadrão entrou no Templo do Archigos.

As armas estavam desembainhadas, o aço reluzia sob a luz das lâmpadas.

— Karl? O que está acontecendo?

— Não sei, Varina. Acho que eu deveria voltar. Leve os demais. Eu vou...

— Não — disse Varina com firmeza. Ela voltou até onde o embaixador estava e segurou o braço dele. — Não, Karl. Não dessa vez. Mesmo disfarçado, seu rosto é muito reconhecível pela Garde Kralji, e há vários deles, de todo modo. Você não sabe por que os gardai estão lá; pode não ser nada. Provavelmente não é nada. E caso não seja... — Varina mordeu o lábio inferior. Os olhos imploraram. — Você precisa deixar o archigos cuidar de si mesmo. Venha comigo. Por favor.

— Mas se as coisas deram errado...

— Se as coisas deram errado, você não pode mudá-las agora. Nós não podemos mudá-las. Tudo que aconteceria é que você estaria perdido também. — O braço apertou o dele. — Por favor, Karl. Vamos embora. Se houver um problema, nós conseguiremos ajudar mais o archigos se estivermos vivos do que se formos jogados na Bastida com ele. Nós soltamos Sergei; podemos fazer o mesmo novamente se precisarmos. Karl... — Varina encostou a cabeça no ombro dele. — Se você voltar, então eu irei com você. Mas essa é a decisão errada. Tenho certeza.

Karl olhou fixamente para os prédios e desejou que pudesse ver a sacada de Kenne dali. Tudo estava em paz; as pessoas ainda andavam pela praça como se nada estivesse acontecendo. Mas ele sabia. Ele sabia.

E também sabia que Varina estava certa. Ele não podia mudar nada. Karl olhou para trás. Talis chamou uma carruagem com um gesto e olhava para os dois com curiosidade. Uma mulher, que estava vestida com roupas pobres demais para esta parte da cidade, o que era estranho, passou correndo por eles vindo da direção da praça. Ao passar, ela pareceu tropeçar e esbarrar de leve em Karl. — Desculpe, vajiki — murmurou a mulher. — A voz... parecia vagamente familiar, mas ela manteve o capuz da tashta erguido e a cabeça baixa. Ele vislumbrou o cabelo castanho e sujo. — Vai ser uma noite ruim. Uma noite ruim. O senhor realmente deveria correr para casa...

Ela foi embora depressa.

Karl olhou fixamente a mulher, que desapareceu do outro lado da carruagem à espera. Talis acenava para eles. Foi aí que Karl lembrou-se de onde ouvira aquela voz.

— Tudo bem — disse ele para Varina. — Vamos embora.

 

A Batalha Começa: Kenne ca’Fionta

— INFELIZMENTE seu pobre Petros está morto. É uma pena.

Kenne ouviu as palavras, e os velhos olhos embaçaram com as lágrimas, embora ele já soubesse que Petros estava morto. Ele sentira em seu coração quando a Garde Kralji veio e o levou para a Bastida. Só lhe restava torcer para que Karl e o resto tivessem escapado da varredura; eles foram embora com apenas algumas marcas da ampulheta de antecedência. O gosto da mordaça de metal e couro era horrível; os grilhões que prendiam as mãos eram tão pesados que ele mal conseguia levantá-los do colo.

O rosto deformado da kraljica Sigourney encarava o archigos de cima. Kenne sustentou o olhar caolho dela por apenas alguns instantes, enquanto respirava através do horrível aparato sobre a cabeça, depois abaixou o próprio olhar, arrasado e derrotado. Entre as pernas, as mãos algemadas mexiam inquietas na palha da cama tosca onde ele estava sentado na cela, no alto da torre principal da Bastida. A voz da kraljica era solidária, quase triste. — Você é um bom homem, Kenne. Sempre foi. Mas era fraco demais para ser archigos. Deveria ter recusado o título e dito ao Colégio A’téni para eleger outra pessoa.

Kenne só podia concordar com a cabeça. Havia muitas noites ultimamente que em ele desejava exatamente a mesma coisa.

— Você devia saber que isto aconteceria, Kenne. Você escolheu se associar aos inimigos dos Domínios. Devia saber. E agora...

Ela mancou até a única janela da cela e apoiou-se na muleta acolchoada e dourada, enquanto a perna direita ficava pendurada sobre o vazio abaixo do joelho. A janela dava vista para oeste, Kenne sabia; na parede oposta à janela, ele tinha visto a luz do sol ficar amarela, depois vermelha e então púrpura ao subir sobre pedras úmidas até sumir. — Venha cá. — falou Sigourney. — Venha cá e veja.

Ele levantou-se da cama com dificuldade; era um velho arrasado agora, na verdade. Arrastou os pés até a janela enquanto a kraljica esperava ao lado. Lá fora, debaixo de um belo céu azul, Kenne viu o A’Sele reluzir sob o sol enquanto cortava a cidade em direção ao mar. Perto de onde o rio virava para o sul, ele viu dezenas de velas reunidas. Do outro lado do A’Sele, onde antigamente havia fazendas e propriedades dos ca’ e co’, a terra estava agitada por uma invasão sombria que não estava lá ontem. — Está vendo? Está vendo o exército ocidental se aproximar? Aquelas são as pessoas pelas quais você traiu os Domínios, archigos. São as pessoas que o deixaram tão assustado que você tentou fazer um pacto com os cães firenzcianos contra mim. — A voz assumiu um tom mais agressivo agora, o único olho atacava Kenne. — Aquelas são as criaturas desprezíveis que mataram meu irmão. São os vilões que destruíram nossas cidades e nossos vilarejos. Quer você acredite ou não, tenho certeza de que também são as pessoas que mataram Audric e me transformaram nesse horror. Será que eu odeio os ocidentais? Ah, você não pode imaginar o quanto. Observe, e você verá os bons chevarittai dos Domínios escorraçá-los, e depois nós cuidaremos de seus amigos firenzcianos também. Em breve, o combate começará. E você vai nos ajudar, Kenne.

Ele virou a cabeça amordaçada na direção de Sigourney, com uma expressão de curiosidade. Ela riu. — Ah, você vai. Nós temos que ter os ténis-guerreiros, afinal, e temos que garantir que eles entendam que seu archigos agora se arrepende de sua horrível traição e que deseja que todos os ténis da fé concénziana ajudem Nessântico nesta ocasião terrível da maneira que puderem. É o que você deseja mesmo, não é, archigos?

Kenne só podia encará-la, mudo.

— Você acha que não? Bem, a proclamação já está escrita; só precisa de sua assinatura. E quer você queira ou não, eu terei essa assinatura. Você foi amigo de Sergei Rudka, afinal; deve saber que a Bastida sempre consegue as confissões que deseja.

Mesmo com aquele horrível aparato preso ao rosto, Kenne não conseguiu esconder a expressão de horror e percebeu o sorriso da kraljica diante de sua reação. — Ótimo — falou Sigourney. — Vou refletir sobre o seu sofrimento quando o capitão me entregar sua confissão.

A kraljica gesticulou para os gardai do lado de fora da cela e disse — Ele está pronto. Cuidem para que receba sua hospitalidade integralmente.

 

A Batalha Começa: Niente

A CIDADE ERGUIA FLANCOS DE PEDRA sobre morros baixos; as torres e os domos lotavam a grande ilha no centro do rio de modo que parecia uma pedra coberta por cracas. A metrópole saltara para fora do confinamento do cinturão das muralhas, magnífica, orgulhosa e destemida, os campos ao redor eram cheios de grãos e colheitas que alimentavam a aglomeração de habitantes. Essa cidade... Ela era a rival de Tlaxcala, de certa forma menor, porém mais populosa e comprimida, com uma arquitetura estranha. Nas cidades de sua terra natal, prevaleciam as pirâmides dos templos de Axat, Sakal e dos Quatro; aqui em Nessântico, o que era mais visível eram as torres dos grandes edifícios e os domos dourados dos templos.

Tão estrangeiro. Tão estranho. Niente não queria nada além de ver locais conhecidos novamente e temia que jamais os veria.

Ele olhou para Nessântico e sentiu um arrepio, mas não viu a mesma reação no tecuhtli Zolin. O tecuhtli, ao contrário, estava no morro que dava vista para o rio e a cidade. Zolin cruzou os braços e deu um sorriso com os lábios fechados. — Isso é nosso — disse ele. — Olhe para a cidade. Ela é nossa.

Niente se perguntou se o homem ao menos notou as grandes fileiras de tropas orientais dispostas ao longo da estrada, se contou os barcos que apinhavam o rio, se percebeu os preparativos para guerra na periferia oeste da cidade.

— O que você me diz, Niente? — perguntou Zolin. — Será que descansaremos amanhã à noite neste lugar?

— Se for a vontade de Axat — respondeu Niente, e Zolin gargalhou.

— É a minha vontade que importa, nahual. Você ainda não compreendeu isso? — Ele não deu tempo para Niente responder; não que houvesse alguma resposta que o nahual pudesse dar. — Vá. Cuide para que os nahualli estejam prontos e que o resto da areia negra tenha sido preparado para os ataques iniciais. E mande Citlali e Mazatl até mim. Começaremos hoje à noite. Vamos mantê-los acordados e exaustos; depois, quando Sakal colocar o sol no céu, atacaremos como uma tempestade. — Zolin olhou fixamente para a cidade por mais um instante, depois se virou para Niente. Quase com carinho, colocou a mão em seu ombro. — Você verá sua família novamente, nahual. Eu prometo. Mas, primeiro, temos que dar uma lição nesses orientais por sua insensatez. Olhe em sua tigela premonitória, Niente. Você verá que estou certo. Verá sim.

— Com certeza eu verei, tecuhtli.

Mas Niente já sabia o que veria. Ele tinha vislumbrado na manhã de hoje, enquanto eles se aproximavam desse lugar.

O nahual havia rogado a Axat e olhado na tigela, e ele não ousaria olhar novamente.

 

A Batalha Começa: Sergei ca’Rudka

PELA MAIOR PARTE DA MANHÃ, Sergei cavalgou sozinho no meio das tropas firenzcianas, perdido em reflexões que mantinham afastada — pelo menos um pouco — a dor crescente nas costas, provocada pela longa cavalgada. E o corpo não estava mais acostumado a longos dias na sela, nem a tardes passadas debaixo de uma tenda.

Você está ficando velho. Não estará aqui por muito tempo mais, e tem tanto o que fazer ainda.

— Regente, quero falar com você.

Diante do chamado, Sergei virou o olhar e viu o garanhão com as cores de Firenzcia que parou ao seu lado sem ser notado. Velho. Antigamente, você jamais teria deixado de perceber a aproximação. — É claro, hïrzg Jan — falou ele.

O menino trouxe o garanhão mais para perto da baia de montagem de Sergei. A montaria do regente mexeu as orelhas nervosamente e revirou os olhos diante do cavalo de guerra bem maior do que ela. Jan não disse nada, a princípio, e Sergei aguardou enquanto eles prosseguiam pela Avi levantando uma nuvem de poeira em volta dos dois. O exército aproximava-se de Carrefour, com Nessântico a um bom dia de marcha de distância. As forças de Nessântico desapareceram, sumiram; foram embora na tarde da negociação. — A matarh disse que você perdeu dois bons amigos — falou Jan finalmente.

— Perdi sim. Aubri co’Ulcai fez parte da minha equipe por muitos anos, tanto na Garde Kralji quando na Garde Civile, antes de eu ser nomeado regente. Ele era um bom homem e um excelente soldado. Eu não consigo nem pensar em falar com a esposa e os filhos dele para contar o que aconteceu, muito menos para dizer que a lealdade a mim foi a responsável pela morte de Aubri. — Sergei esfregou o nariz de metal, a cola repuxou a pele quando ele fechou a cara. — Quanto a Petros... bem, não havia pessoa mais gentil no mundo, e sei como a amizade dele era importante para o archigos. Não sei o que a notícia fará ao archigos Kenne. Matá-los foi cruel e desnecessário, e se Cénzi me der uma vida suficientemente longa, eu cuidarei para que o conselheiro ca’Mazzak se arrependa da dor que causou a mim e às pessoas de quem eu gosto.

O jovem concordou com a cabeça e falou — Eu entendo. Entendo mesmo. Algum dia, eu encontrarei quem contratou a Pedra Branca para matar meu onczio Fynn, e eu mesmo matarei essa pessoa e a Pedra Branca junto com ela. Meu onczio era um bom amigo para mim, bem como meu parente, e me ensinou muita coisa no pouco tempo em que estive com ele. Eu queria que ele tivesse vivido o suficiente para me ensinar mais a respeito... — Jan parou e balançou a cabeça.

— Não existe livro que ensine alguém a ser um líder, hïrzg — disse Sergei. — A pessoa aprende ao liderar e torcendo para não cometer muitos erros no processo. Quanto à vingança: bem, ao ficar mais velho, eu aprendi que o prazer que se tira da concretização da vingança jamais se compara à expectativa. Também aprendi que às vezes tem que se deixar a vingança completamente de lado em nome de um objetivo maior. A kraljica Marguerite sabia disso melhor do que ninguém; e por esse motivo ela era uma monarca tão boa. — Ele sorriu. — Mesmo que seu vavatarh discordasse veementemente.

— Você conheceu os dois.

Sergei não soube dizer se isso era uma afirmativa ou uma pergunta, mas concordou com a cabeça. — Conheci, sim, e tinha um grande respeito por ambos, incluindo o velho hïrzg Jan.

— Minha matarh o odiava, creio eu.

— Se ela odiava, tinha boas razões — respondeu Sergei. — Mas Jan era o vatarh dela, e acho que sua matarh também o amava.

— Isso é possível?

— Nós somos criaturas estranhas, hïrzg. Somos capazes de ter dois sentimentos conflitantes na cabeça ao mesmo tempo. Água e fogo, ambos juntos.

— A matarh diz que você costumava torturar pessoas.

Sergei esperou um longo tempo para responder. Jan não disse nada e continuou cavalgando ao lado dele. — Era meu dever, em uma determinada época, quando estive no comando da Bastida.

— Ela falou que os rumores diziam que você gostava de torturar. Isso faz parte do que você dizia, sobre a habilidade de ter dois sentimentos conflitantes na cabeça ao mesmo tempo?

Sergei franziu os lábios. Ele esfregou o nariz novamente. Olhou para frente, não para o jovem. — Sim — respondeu Sergei finalmente. A palavra solitária trouxe de volta todas as memórias da Bastida: a escuridão, a dor, o sangue. O prazer.

— A matarh é, ou era, de qualquer maneira, amante do archigos Semini. Você sabia disso, regente?

— Eu suspeitava, sim.

— Mesmo que ela ame o archigos, a matarh estava disposta a sacrificá-lo e entregá-lo ao julgamento, como o u’téni Petros pediu. Ela tomaria essa decisão; a própria matarh me disse quando voltou da negociação. “Que os pecados de Semini sejam pagos em vidas salvas”, foi o que ela falou. Não havia uma lágrima no olho ou um sinal de arrependimento em sua voz. O archigos... ele não sabe disso. Não sabe como chegou perto de ser um prisioneiro. Até onde eu sei, os dois ainda podem... — Jan parou. Deu de ombros.

— Água e fogo, hïrzg — falou Sergei.

Jan concordou com a cabeça. — Ela disse que você ama Nessântico acima de todos nós. No entanto, você cavalga conosco, salvou a matarh e a mim em Passe a’Fiume e colocaria a matarh no Trono do Sol.

— Eu colocaria sim, porque estou convencido de que isso seria o melhor para Nessântico. Eu quero ver os Domínios restaurados, com Firenzcia novamente como seu forte braço direito. — Sergei fez uma pausa. Os dois podiam ver os arredores de Carrefour diante deles na estrada, os topos dos prédios se erguiam mais alto do que as árvores. — É isso o que o senhor também quer, hïrzg?

Sergei observou o jovem, que desviou o olhar para a longa fileira do exército que se estendia pela estrada. — Eu amo minha matarh — respondeu Jan.

— Não foi o que eu perguntei, hïrzg.

Jan concordou com a cabeça e continuou olhando para a cobra blindada de seu exército. — Não, não foi, não é mesmo?

 

A Batalha Começa: Karl Vliomani

— VOCÊ AINDA PODE IR EMBORA pelas ruas a leste do Portão Norte — disse Karl para Serafina. — Terá que tomar cuidado e andar rápido, mas se estiver com Varina, você e Nico terão proteção.

Karl viu que Serafina e Varina balançavam a cabeça antes mesmo de ele terminar. — Eu não irei embora sem Talis — falou Serafina. Nico estava no colo da matarh enquanto se sentavam à mesa da sala principal do apartamento de Serafina. Eles terminaram um jantar à base de pão, queijo e água, embora o queijo estivesse velho, o pão, mofado, e a água, turva. Mas comeram tudo, pois não sabiam quando teriam mais comida.

Com o exército dos tehuantinos a oeste dos limites da cidade, o A’Sele sob controle dos navios ocidentais, e a ameaça do exército de Firenzcia a leste, Nessântico estava em pânico. Rumores fantásticos e absurdos sobre a pilhagem de Karnor e Villembouchure corriam pela cidade e ficavam mais sinistros e violentos cada vez que eram repetidos. Os ocidentais, caso se pudesse acreditar nas histórias, não eram nada além de demônios gerados pelos próprios moitidis, dedicados ao estupro, à tortura e à mutilação. As prateleiras das lojas estavam praticamente vazias; os moinhos não tinham farinha para as padarias, e não havia carroças vindo dos campos fora da cidade para os mercados. Até mesmo a Avi a’Parete estava às escuras na noite de hoje, pois os ténis-luminosos não fizeram as rondas de sempre; para piorar, uma neblina espessa e gelada surgiu a oeste e tomou conta da cidade, que tremia na escuridão, à espera do ataque inevitável que viria.

— Eu pensei ter perdido tanto Talis quanto Nico uma vez; não os perderei novamente — continuou Serafina.

— Ele não pode ir embora — insistiu Karl. — Talis é homem e jovem o suficiente para ser obrigado a servir à Garde Civile. Eles o pegariam antes que chegasse à metade da Avi. E com o archigos na Bastida... bem, com muita certeza a Garde Kralji tem nossas descrições e já procura por nós. Duas mulheres com um menino... acho que você estaria a salvo. Mas comigo e com Talis...

— Eu não vou embora sem ele — insistiu Serafina. A voz e a mão em volta da cintura de Nico tremeram, mas os lábios permaneceram firmemente franzidos.

— Metade da cidade já foi embora... aqueles que puderam. Os rumores sobre Karnor e Villembouchure... tudo aquilo pode acontecer aqui.

Ela deu de ombros.

Varina estava sorrindo sombriamente e tocou o joelho dele por debaixo da mesa. — Você perdeu a discussão, Karl. Com ambas. Estamos aqui. E ficaremos aqui, não importa o que isso signifique.

Karl olhou para Talis, que estava sentado em silêncio ao seu lado da mesa. No último dia, ele andou quieto de uma maneira estranha, desde que foi confirmada a notícia da prisão do archigos, e passou muito tempo com a tigela premonitória. Karl se perguntou o que o homem estaria pensando por trás daquele rosto solene. Talis deu de ombros, e falou para Serafina — Eu concordo com Karl. Eu preferiria que você e Nico estivessem a salvo.

Varina pegou a mão de Karl ao ficar de pé. — Venha comigo. Deixe Sera e Talis resolverem essa questão sozinhos. Nós resolveremos também.

Karl acompanhou Varina até o outro aposento. Ela fechou a porta assim que os dois entraram, de maneira que só podiam ouvir um murmúrio baixo de vozes que conversavam, e disse — Ela ama Talis. — Varina ainda estava apoiada na porta e olhava para Karl.

— Sim — protestou Karl — e é exatamente por isso que Talis quer que Serafina vá embora: porque ele não quer perder as pessoas que ama.

— E é exatamente por isso que ela não irá embora, porque não suportaria não saber o que aconteceu com Talis. — Varina cruzou os braços sob os seios. — É por isso que eu também não irei embora.

— Varina...

— Karl, cale a boca. — Varina afastou-se da parede e foi até ele. Os braços deram a volta em Karl, os lábios procuraram os dele. Havia um desespero no abraço, uma violência no beijo. Karl ouviu um soluço na garganta de Varina e levou a mão ao rosto dela para descobrir que a bochecha estava molhada. Ele tentou se afastar, perguntar o que estava errado, mas Varina não permitiu. Ela puxou de volta a cabeça de Karl, usou o peso do corpo para derrubá-lo sobre o colchão de palha no chão. Então, por um instante, Karl esqueceu de tudo.

Mais tarde, ele deu um beijo em Varina enquanto a segurava perto de si e apreciava o calor de seu corpo. — Eu amo você, Karl — sussurrou Varina no ouvido. — Desisti de fingir que não.

Karl não respondeu. Ele queria. Queria devolver as palavras para Varina. Elas preencheram a garganta, mas ficaram ali, presas. Karl achava que, se dissesse as palavras, trairia Ana e tudo o que ela significava para ele. — Encontre outra pessoa — dissera Ana, há muito tempo. — Volte para sua esposa, se quiser. Ou apaixone-se por outra pessoa, por mim tudo bem, também. Eu ficaria feliz por você porque não posso ser o que você quer que eu seja, Karl.

— Eu... — começou Karl, mas parou. Os dois ouviram ao mesmo tempo um assobio estridente e um rugido baixo como trovão, seguidos quase que imediatamente por outros, e as trompas dos templos começaram a soar um alarme. Karl rolou e afastou-se de Varina. — O que é isso? — perguntou ele, mas suspeitava que já sabia. Ambos vestiram-se depressa e correram para o outro cômodo.

— Começou — falou Talis para os dois assim que entraram. Ele estava parado ao lado da porta que dava para o sul. Na direção do A’Sele, todos puderam ver o brilho laranja amarelado sobre os tetos, iluminando a névoa que bloqueava a visão. — Fogo — continuou Talis. — Os nahualli estão disparando areia negra dentro da cidade, perto do A’Sele.

As trompas soavam estridentes, e havia berros e gritos abafados vindos da névoa.

Talis fechou a porta e disse — É tarde demais agora. Tarde demais.

 

A Batalha Começa: Sigourney ca’Ludovici

DO ÚLTIMO ANDAR do Palácio da Kraljica, apoiada em uma muleta que compensava a falta da perna, Sigourney podia ver os telhados à frente e as águas do A’Sele na margem norte, onde as fogueiras dos ocidentais ardiam nos arredores da cidade. Lá também, ela sabia, estava agrupado o exército da Garde Civile, agora com Aleron ca’Gerodi como comandante. Ele, pelo menos, estava confiante na capacidade dos chevarittai e da Garde Civile em lidar com a dupla ameaça à cidade, mesmo que ninguém mais estivesse. Ca’Gerodi ao menos já esteve em combate antes — e entre os chevarittai à disposição da kraljica, ele era o mais indicado para ser o comandante, desde que ca’Mazzak retirou Aubri co’Ulcai da disputa. Isso fora um erro, Sigourney tinha certeza; um erro que ela compreendia, sim, dada a rebelião de co’Ulcai, mas também um erro que poderia custar a Nessântico mais do que a cidade podia bancar.

O corpo de Sigourney doía muito esta noite. Ela tomou um bom gole de cuore della volpe e pousou a taça no peitoril da janela.

Sigourney também estivera confiante. Confiante de que eles dariam conta daquela ralé ocidental e a destruiria. Depois, que eles se voltariam para o leste e cuidariam de Allesandra e seu filhote, e que fariam com que os firenzcianos percebessem a insensatez desse rompimento do tratado. Sim, ela estivera confiante.

Mas isso parecia ter sido séculos atrás.

Agora, Sigourney vira a estranha névoa surgir do acampamento ocidental e envolver o Velho Distrito e a Garde Civile. Depois, após uma mera virada da ampulheta, grandes flores de fogo laranja nascerem na margem norte, e a kraljica viu as flores subitamente desenharem arcos no céu em várias direções; algumas caíram na névoa onde seu exército esperava, e outras...

A água do A’Sele tremeluziu com o reflexo do fogo conforme as flores — que guinchavam e bramiam — subiam, como se tivessem sido lançadas por raivosos moitidis. Ela viu a resposta dos ténis-guerreiros: raios azul-claros lançados na direção das flores ao alto. Vários alcançaram as flores no ápice de seus arcos: quando eles se tocaram, um breve sol ganhou vida e o som do trovão ecoou pela cidade. Mas havia muitas flores de fogo e a resposta dos ténis-guerreiros chegou atrasada demais. A maior parte das bolas de fogo caiu: sobre os navios de guerra dos Domínios no rio, no labirinto do Velho Distrito, e sobre a própria Ilha A’Kralji. E, onde caíam, explodiam em um jorro de fúria brilhante e ruidosa.

Sigourney observou uma bola de fogo em especial: o arco se ergueu mais alto que os demais, e ela viu a linha assustadora que vinha diretamente em sua direção. A kraljica olhou fixamente, paralisada tanto pelo fascínio quanto pelo medo, e sentiu (conforme a bola de fogo despencava, à medida que crescia a cada instante) o corpo se lembrar do choque e do horror do momento em que o kraljiki Audric foi morto. Ela perguntou-se se doeria muito.

Mas não... Sigourney viu que o rastro de fagulhas agora se desviava levemente para a sua direita. A bola de fogo chocou-se contra a asa norte do palácio e espirrou fogo sobre a fachada e os jardins lá embaixo. A kraljica sentiu a estrutura inteira tremer com o impacto, tão forte que ela teve que se segurar na ombreira da janela para evitar cair. Os dedos apertaram com força a barra da muleta. Houve gritos e berros por toda parte do terreno. A noite de Nessântico foi mais uma vez banida — não pelas famosas lâmpadas dos ténis-luminosos, mas por um inferno. Mesmo da janela, Sigourney achou que podia sentir o calor.

Os criados entraram correndo no cômodo. — Kraljica! A senhora tem que vir conosco! Depressa!

— Eu não sairei daqui.

— A senhora precisa sair! O fogo!

— Então não percam seu tempo aqui; vão ajudar a apagá-lo — falou Sigourney. — Convoquem os ténis-bombeiros nos templos. Vão. Vão!

Ela gesticulou com a mão livre para os criados — o corpo ferido e combalido protestou ante a violência do movimento —, e eles foram embora. As trompas soaram, agora nos templos, o alarme tomou conta da cidade inteira. Sigourney abaixou o olhar e viu os funcionários do palácio correrem na direção da ala em chamas. A fumaça deu a volta na lateral do palácio e fez arder o olho restante da kraljica. Ela piscou ao lacrimejar e bebeu o resto do preparado do ervanário.

— Olhem para mim! — Sigourney soltou um berro estridente para a noite e para as forças ocidentais escondidas na névoa. — Eu abri mão de muita coisa para estar aqui. Vocês não vão me tirar daqui. Não vão.

 

A Batalha Começa: A Pedra Branca

— POR QUE VOCÊ CONTINUA AQUI?

— Por que você os vigia? O menino não é seu.

— Ele não é sua responsabilidade.

— Você esperou tempo demais.

As vozes tagarelavam na cabeça dela, em tom sedutor, de alerta, satisfeito. A voz de Fynn era a mais alta, ronronava com satisfação. — Você morrerá aqui, e a criança dentro de você também.

— Silêncio — disse a Pedra Branca para todas as vozes, que fizeram silêncio a contragosto.

O ar estava espesso com a névoa anormal, e o cheiro de madeira queimada fluía pelos filetes da bruma. O brilho tinha ficado pior, e agora parecia cair uma neve de verão: cinzas caíam no chão e cobriam o cabelo oleoso e os ombros da tashta suja da Pedra Branca. Havia sons indefinidos na névoa, encobertos pelo lamento contínuo e sobrenatural das trompas.

A Pedra Branca olhou fixamente para a porta onde viu Talis pela última vez. Agora não havia ninguém lá, e ela não tinha visto Nico. Não há nada que você possa fazer por ele. Por enquanto, Nico está a salvo. Ela pressionou as mãos contra a barriga inchada. Talvez as vozes estivessem certas. Talvez ela devesse fugir da cidade. Salvar a própria filha.

Mas Nico era filho dela também. Cénzi trouxe o menino para ela. Ele a escolheu, e Nico era tão filho dela quanto a criança em gestação dentro de sua barriga.

— Tarde demais...

Ou talvez não. Com uma careta, ela se afastou da casa de Nico e andou rapidamente pelas ruas. Ela tinha que ver com os próprios olhos, tinha que saber o que acontecia. As ruas estavam bem mais cheias do que costumavam ficar a esta altura da noite, mas as pessoas corriam para seus destinos sem olhar umas para as outras, com o medo estampado em suas feições. Muitas mantinham as mãos próximas às armas carregadas abertamente: espadas com bainhas descascadas e lâminas manchadas de ferrugem; facas que pareciam que a última coisa que tinham feito era cortar um porco assado. Haveria violência nessas ruas antes de a noite acabar: uma palavra rude, um esbarrão acidental, um gesto mal interpretado — qualquer coisa poderia acendê-la, como uma fagulha em um material inflamável. A Pedra Branca sabia disso, porque a violência vivia dentro dela. Ela era capaz de sentir o cheiro de sangue pronto para ser derramado.

Mas não ainda. Não ainda. Ela manteve-se nas sombras, não falou nada com ninguém. Ela evitou matar, a menos que fosse por dinheiro ou pela própria proteção.

Ela chegou à Avi a’Parete e virou para o sul. Ao se aproximar do rio, o cheiro de fumaça ficou ainda mais forte, ela e a bruma estavam tão misturadas que era impossível distinguir uma da outra. Havia incêndios no aglomerado de prédios próximos a oeste da Avi, as chamas chegavam tão alto que a Pedra Branca conseguia ver do ponto onde estava. Uma carruagem conduzida por um téni veio correndo pela Pontica Kralji com meia dúzia de ténis-bombeiros dentro, com os rostos cobertos por fuligem e já exaustos pelo esforço de usar os feitiços para apagar os vários incêndios. Um esquadrão da Garde Kralji, com espadas desembainhadas e expressões carrancudas, acompanhava os ténis-bombeiros e cercava um grupo de homens de aparência melancólica em bashtas simplórias, a maioria jovem demais ou velha demais. — Você! — vociferou o offizier do esquadrão ao apontar para um velho de barba grisalha que andava à espreita, perto do prédio mais próximo à Pedra Branca. — E você! — Agora dirigido a um jovem que não devia ter mais de 12 anos, sendo puxado pela matarh. — Vocês dois! Venham conosco! Quero ver animação agora!

A matarh soltou um grito estridente de objeção, o homem fez menção de correr na direção contrária, mas evidentemente decidiu que não conseguiria fugir. A Garde Kralji cercou os dois e partiu noite adentro na direção dos incêndios, levando o menino e o velho com eles, enquanto a matarh protestava inutilmente, aos gritos.

A Pedra Branca continuou caminhando na direção sul até ver as colunas da Pontica Kralji que se agigantavam através da fumaça. Ela parou ali e olhou para o A’Sele. O que viu a deixou horrorizada e fez as vozes dentro de sua cabeça rirem.

No rio, vários navios de guerra estavam em chamas, já queimados quase até a linha d’água, os destroços entupiam o A’Sele de maneira que os navios ainda incólumes mal conseguiam manobrar. O Palácio da Kraljica era um inferno laranja amarelado, com um vulcão que cuspia fagulhas para longe. O grande novo domo do Velho Templo parecia rachado, o fogo lambia os suportes que tinham sido erigidos em volta dele. Havia pequenos incêndios aqui e ali. As pontes, exatamente as duas que levavam à margem sul, estavam lotadas de pessoas em fuga, que empurravam carrinhos cheios de pertences ou sobrecarregados com pacotes. A Pedra Branca ouviu um estrondo atrás de si; ela olhou na direção dos prédios que lotavam a Avi nesta margem e viu uma multidão botar abaixo a porta de uma padaria e também de uma joalheria. A rua atrás dela estava ficando lotada e barulhenta. Dentro de algum lugar, em uma das lojas, a Pedra Branca ouviu uma mulher gritar.

Sangue. Ela sentiu o cheiro do sangue. Tocou a bolsinha de couro sob o tecido da tashta e sentiu a pedra lisa lá dentro.

— O tumulto começou...

— Isso só vai piorar...

As vozes berraram assustadas em sua cabeça. — Você virou idiota, mulher? Ande!

Ela andou. Caminhou a passos largos, sem pressa, até o beco mais próximo, um espaço cheio de lixo entre os fundos dos prédios. A Pedra Branca voltaria à casa de Nico. Ficaria de vigia e, se as coisas ficassem perigosas, ela estaria ali para ajudá-lo, para tirá-lo de lá. Se a família de verdade do menino não pudesse protegê-lo, ela seria sua verdadeira matarh e faria isso. Ela tocou o estômago enquanto andava. — E farei o mesmo por você — sussurrou para a vida que se mexia dentro dela. — Eu farei isso. Prometo.

As vozes riram e gargalharam.

A Pedra Branca viu um movimento pelo rabo de olho na névoa e na fumaça e sentiu um arrepio de perigo. Ela deu meia-volta. — Ei! — Havia um homem ali, com cabelo negro e fios brancos, mas jovem o suficiente, o que fez a Pedra Branca se perguntar como ele conseguiu evitar os esquadrões de alistamento que rondavam o Velho Distrito. — Não há necessidade de se assustar, não é, vajica? — disse o sujeito. Ela viu a língua se mexer atrás dos poucos dentes. — Eu só queria ter certeza de que estava a salvo, só isso. — Ele deu um passo na direção dela. — Agora os tempos andam perigosos.

— Para você, sim — respondeu ela. — Eu posso tomar conta de mim mesma.

— Ah, pode, é? — O homem deslizou para o lado e impediu que ela entrasse no beco. Ela acompanhou o movimento, sempre olhando para o sujeito. — Não são muitas as pessoas que podem dizer isso hoje em dia. — Ele deu um passo na direção da Pedra Branca, que fez uma expressão de desdém.

— Não — disse ela, embora já soubesse que o homem não ouviria. — Você se arrependerá. Você não quer conhecer a Pedra Branca.

Ele riu. — A Pedra Branca, é? Está me dizendo que a Pedra Branca tem interesse em alguém como você?

Ela não respondeu. O homem deu mais um passo, ficou perto o suficiente para que ela sentisse seu cheiro, e estendeu a mão para agarrar seu braço. Nesse mesmo instante, a Pedra Branca agachou-se, tirou uma adaga da bainha na bota e golpeou para cima, debaixo das costelas do homem, que foi empurrado de costas para dentro do beco. Ele ofegou, boquiaberto como um peixe; ela sentiu o sangue quente jorrar sobre a mão. Os dedos do sujeito arranharam seu braço, mas caíram lentamente. A Pedra Branca ouviu o homem tomar um fôlego gorgolejante enquanto saía um filete de sangue da boca. Ela deixou o corpo cair enquanto metia a mão debaixo da gola da tashta para pegar a bolsinha. Com pressa, a tirou do pescoço e deixou a pedra lisa e clara como neve cair na palma da mão. Pressionou o seixo no olho direito do sujeito. Seus próprios olhos estavam fechados.

Ah, o lamento da morte... ela ouviu o homem gritar, sentiu a presença entrar no seixo enquanto os outros se remexiam no interior para abrir espaço para o espírito moribundo. O uivo silencioso do sujeito tomou conta de sua mente, tão alto que ela ficou surpresa que não ecoasse em volta dos dois. Quando a pedra o absorveu complemente, ela removeu o seixo do olho e guardou de volta na bolsinha, colocou o cordão de couro no pescoço novamente e deixou a bolsinha cair entre os seios, debaixo da tashta.

— A Pedra Branca protege o que é dela — ela disse para o cadáver de olhos abertos.

Depois, as vozes falaram alto e tomaram conta da cabeça da Pedra Branca, com uma nova que se juntou ao coro louco, enquanto ela voltava para a casa de Nico.

 


A Batalha Começa: Niente

O CÉU FICOU ILUMINADO a leste e a bruma mágica sumiu com a luz, embora a cidade continuasse envolvida pela fumaça. Niente estava com o tecuhtli Zolin, Citlali e Mazatl. Os guerreiros que usavam a armadura e os rostos tatuados agora estavam pintados para parecerem as terríveis e cruéis criaturas oníricas que estupraram Axat antes que a Escuridão colocasse seu corpo ferido no céu. Os três estavam próximos ao rio; a enorme ilha em volta da qual ele fluía parecia estar acesa, e a fumaça saía de várias dezenas de lugares na cidade.

— Muito bem, nahual — disse Zolin. — Eles estarão exaustos e assustados com os incêndios dessa noite. Os nahualli estão descansados? Os cajados mágicos estão cheios?

— Eles estão tão descansados quanto é possível, tecuhtli — falou Niente. — Nós preparamos nossos cajados ontem à noite, após lançarmos a areia negra.

— Ótimo — trovejou Zolin. — Então deixe de parecer tão melancólico. Esse é um grande dia, nahual Niente. Hoje nós mostramos a esses orientais que eles não são imunes à fúria dos tehuantinos.

Citlali e Mazatl gargalharam com Zolin. Niente tentou sorrir, mas não conseguiu. Ele ergueu o próprio cajado mágico, o tecuhtli assentiu e disse — Vá até os nahualli. Citlali, Mazatl, acordem seus guerreiros. Quando virmos os olhos de Sakal se abrirem no horizonte, será o momento.

Niente abaixou a cabeça para o tecuhtli e foi embora. Ele se dirigiu para o norte, para o campo pisoteado onde a maior parte do exército estava reunida perto da estrada. Os nahualli encontravam-se ali, o nahual deu suas ordens e espalhou os homens atrás da primeira fileira de guerreiros montados e da primeira leva de infantaria. Niente tomou o seu próprio lugar atrás do tecuhtli Zolin e de seus guerreiros selecionados. Do outro lado, ele viu, com a visão borrada pelo olho esquerdo ruim, os estandartes e escudos das tropas de Nessântico à espera. Havia muitos; Niente olhou para o próprio exército, significativamente menor agora, após todas as batalhas.

Ele não tinha dúvida de que os guerreiros tehuantinos eram mais bravos, de que os nahualli eram mais poderosos que os ténis-guerreiros de Nessântico. No entanto...

Havia um ardência no estômago que não passava. Niente segurou o cajado mágico com força e sentiu a energia do X’in Ka ligada ao objeto, mas o poder nas mãos não lhe deu conforto.

O céu a leste ficou ainda mais iluminado. Os primeiros raios da manhã lançaram sombras compridas que correram pela terra.

Zolin ergueu a espada e gritou — Agora! Agora! — Trompas soaram em resposta, e os guerreiros tehuantinos gritaram seus desafios. Niente levantou o cajado mágico e o bateu contra a mão aberta. O fogo chiou, faiscou e saiu voando na direção das fileiras inimigas; um momento depois, os cajados dos outros nahualli de toda a longa fileira fizeram o mesmo. Os ténis-guerreiros de Nessântico responderam: alguns feitiços sumiram como se tivessem sido engolidos pelo ar; outros quicaram, como se tivessem batido em uma parede, e voltaram para as fileiras dos tehuantinos em um arco. Onde os feitiços caíam, guerreiros caíam com eles e berravam ao serem consumidos pelas línguas grudentas do fogo. Muitos feitiços, porém, passaram incólumes, e os tehuantinos ouviram os gritos de resposta dos nessânticos. Os arqueiros, com o que restava da areia negra na ponta das flechas, lançaram uma chuva flamejante sobre o campo, que foi respondida por uma chuva de flechas nessânticas. Em volta de Niente, guerreiros grunhiram ao serem empalados, mas os escudos foram erguidos de imediato e apararam a maioria das flechas. Zolin gesticulou com a espada e os guerreiros começaram a se mover, devagar, a princípio, depois ganharam velocidade para correr pelo campo na direção dos inimigos e da cidade a frente à espera.

Foi difícil não se envolver com a onda de empolgação. Niente avançou atrás de Zolin e da parede de infantaria e ouviu a própria voz berrar um desafio com os demais. Então, com um tremor audível, a linha de frente dos tehuantinos colidiu com os nessânticos, que esperavam. Niente viu o reluzir das espadas, o avanço dos guerreiros a cavalo contra a massa caótica de soldados, ouviu os gritos dos mortos e moribundos de ambos os lados, sentiu o cheiro do sangue e viu os espirros que voavam no ar, mas havia guerreiros demais entre eles. Os guerreiros atrás de Niente o empurravam pelas costas, faziam com que avançasse, e a vanguarda avançou tão abruptamente que ele quase caiu. De repente, o nahual estava no meio da batalha, com indivíduos lutando por todos os lados, e viu um nessântico de cota de malha empunhando uma espada acima de sua cabeça ao avançar contra ele.

A tigela premonitória... O nahualli morto...

Niente berrou e golpeou o homem com o cajado mágico como se fosse um florete. Quando tocou o abdômen do soldado, um feitiço foi disparado: um clarão, uma explosão de anéis de aço rompidos, de pano marrom, de pele branca e de sangue escarlate. A espada despencou das mãos inertes, o homem ficou boquiaberto, mas não emitiu som, e caiu.

Mas não havia tempo para descansar. Outro soldado avançava contra Niente, e novamente o cajado, cheio de feitiços que o nahual preparou, derrubou o homem. Um soldado montado que os inimigos chamavam de chevarittai investiu contra ele, Niente atirou-se para o lado no momento em que os cascos blindados e com espinhos do cavalo de guerra arrancaram a terra onde ele estava e avançou em frente.

Para Niente, essa batalha — como qualquer outra — tornou-se uma série de encontros desconexos, um turbilhão de confusão e caos, um cenário desorganizado em que o nahual continuava a avançar. O barulho era tão tremendo que se transformou em um rugido inaudível em volta dele. Ele se desviou de espadas e enfiou o cajado em qualquer coisa que vestisse as cores azul e dourada. Uma espada acertou seu braço e abriu o antebraço, outra pegou a panturrilha. Niente berrou com a garganta rouca. A energia fluía rapidamente do cajado quente na mão direita, quase no fim agora.

E...

Niente percebeu que não estava em um campo, mas entre casas e prédios, que a batalha agora assolava as ruas da cidade, que os soldados vestidos de azul e dourado neste momento davam meia-volta ao soar das trompas e recuavam para as profundezas da grande cidade.

Ele ainda estava vivo, assim como Zolin.

 

A Batalha Começa: Sigourney ca’Ludovici

O COMANDANTE ALERON CA’GERODI ESTAVA diante de Sigourney e do resto do Conselho dos Ca’, a armadura suja de sangue, o elmo amassado por um golpe de espada e o rosto coberto de lama, fuligem e sangue. — Sinto muito, kraljica, conselheiros — disse ele. A voz estava tão exausta quanto a postura. — Nós não conseguimos contê-los...

Ca’Mazzak sibilou como uma chaleira que passou muito tempo no fogo. Sigourney fechou o único olho. Ela respirou fundo o ar cheio de fuligem e cinzas e tossiu. Abriu o olho novamente. Através da névoa da fumaça, a kraljica viu as ruínas do palácio, com partes queimando. Ela e o Conselho refugiaram-se no Velho Templo que, apesar do domo quebrado, encontrava-se em grande parte incólume. A nave principal estava lotada de tesouros do palácio: pinturas (incluindo o retrato chamuscado da kraljica Marguerite), louças azuis e douradas, roupas cerimoniais, os cajados e as coroas usados por uma centena de kralji; tudo estava aqui, embora muita coisa — coisas demais — tenha sido perdida no incêndio. Sigourney estava sentada no Trono do Sol na entrada da câmara sob o domo, mas se o trono estava aceso, não era aparente na claridade do sol que entrava pelo grande buraco aberto no domo. O sol debochava da kraljica ao brilhar intensamente em um céu sem nuvens.

Um dos criados entregou a Sigourney uma taça de cuore della volpe, para aliviar a tosse e a dor. Ela tomou um gole do líquido frio, marrom e turvo da taça dourada.

— Qual é a gravidade da situação? — perguntou a kraljica.

— Nós finalmente conseguimos deter o avanço deles — informou ca’Gerodi. — Os ocidentais não chegaram à Avi a’Parete, mas tomaram a maior parte das ruas a oeste da Avi na margem norte. Eles dominaram o vilarejo de Viaux. Houve uma batalha intensa perto do Mercado do Rio e por um tempo ele foi tomado pelos inimigos, mas nós os rechaçamos. Eu destaquei um batalhão para proteger a Pontica Kralji, mas isso deixou a área do Portão Norte mais aberta do que eu gostaria.

Os conselheiros murmuraram. — Isso é inaceitável — falou ca’Mazzak mais alto.

— Então talvez você devesse ter deixado o comandante co’Ulcai vivo — disse Sigourney. — Ou gostaria de pegar a espada você mesmo? — Ca’Mazzak resmungou e acalmou-se. Ca’Gerodi pareceu cambalear, e Sigourney gesticulou para que um criado trouxesse uma cadeira; o homem desmoronou de bom grado no assento estofado, sem se importar com a sujeira que espalhou no brocado. — O que está me dizendo, comandante? — perguntou a kraljica. — Que hoje à noite eles colocarão fogo no resto da cidade, que amanhã nos derrotarão completamente? Você disse que tinha mais do que homens suficientes. Você disse que...

— Eu sei o que eu disse — interrompeu ca’Gerodi e, quando Sigourney imediatamente calou a boca diante da grosseria, ele pareceu perceber o que fez e balançou a cabeça. — Perdão, kraljica; eu não durmo desde a noite de anteontem. Mas sim, isso é exatamente o que temo: que a noite de hoje trará mais daquele fogo terrível dos ocidentais, e que quando eles atacarem amanhã... — Ele ergueu a cabeça e olhou para Sigourney com seus olhos castanhos e abatidos. — Eu darei minha vida para proteger Nessântico, se for preciso.

— Aleron... — A kraljica começou a se levantar do Trono do Sol, esqueceu-se momentaneamente das feridas, e desmoronou. O movimento provocou uma nova tosse. Os conselheiros observaram Sigourney. Ela sabia agora o que tinha que fazer, e a compreensão era incômoda, tão dolorosa quanto o corpo ferido. — Vá. Descanse o quanto puder, e nós cuidaremos do que a noite de hoje e o dia de amanhã trouxerem. Vá. Durma enquanto pode.

Ca’Gerodi ficou de pé e fez uma mesura. Ele foi embora mancando. Quando saiu, Sigourney gesticulou para um criado. — Traga-me um escriba. E também um mensageiro, o melhor que tivermos, para levar uma mensagem para o hïrzg, a leste.

O criado arregalou os olhos momentaneamente, fez uma mesura e foi embora correndo.

— Kraljica — disse ca’Mazzak. — A senhora não pode...

— Nós não temos escolha — falou Sigourney para ele, para todos os conselheiros. — Nenhuma escolha. A situação já não é mais sobre nós.

Ela recostou-se no assento estofado do Trono do Sol, que cheirava à fumaça de madeira queimada. Cheirava à derrota.


??? RESOLUÇÕES ???

Allesandra ca’Vörl

Niente

Varina ci’Pallo

Sigourney ca’Ludovici

Karl Vliomani

Nico Morel

Niente

Sergei ca’Rudka

Jan ca’Vörl

Niente

A Pedra Branca

Allesandra ca’Vörl


Allesandra ca’Vörl

JAN LEU A MISSIVA com cuidado, os olhos claros vasculhando as palavras. Allesandra já sabia o que a mensagem dizia — os soldados do starkkapitän ca’Damont interceptaram o mensageiro que vinha na direção leste pela Avi a’Firenzcia, ele carregava uma bandeira branca tremulando içada sob o luar, e trazia o pergaminho selado para Allesandra, insistindo com os assistentes da a’hïrzg que ela fosse acordada. Allesandra quebrou o selo e vasculhou a carta, depois se vestiu rapidamente e foi até Jan.

Se o filho notou ou se se importou que o selo estivesse sem lacre e quebrado no papel grosso, ou que a kraljica tenha endereçado a missiva a Allesandra e não ao hïrzg, não disse nada. Jan empurrou a vela que usava como fonte de luz; o castiçal raspou a mesa que foi montada às pressas na tenda de campanha ao lado da tenda particular do hïrzg.

— Isso é genuíno? — perguntou Jan. Havia um cobertor dobrado sobre seus ombros, as pálpebras estavam cansadas e com olheiras. Ele bocejou e esfregou os olhos. — Temos certeza?

— O mensageiro disse que recebeu a mensagem da própria kraljica Sigourney — respondeu o starkkapitän ca’Damont.

Jan assentiu. Ele entregou o pergaminho para Semini, que leu a carta, franziu os lábios e o entregou para ca’Rudka. Jan parecia estar esperando, e Allesandra, sentada à mesinha na tenda de campanha ao lado dele, tamborilou os dedos na superfície arranhada. — Estamos perdendo tempo, meu filho — falou a a’hïrzg. — A mensagem é clara. A kraljica está disposta a abdicar do Trono do Sol se levarmos o exército até lá para deter os ocidentais. Acorde os homens agora e, se nossas forças marcharem rápido, nós conseguiremos chegar aos portões da cidade de manhã cedo.

Jan não pareceu ouvi-la. Ele olhava para Sergei, e perguntou — Regente? Sua opinião?

Ca’Rudka esfregou o nariz por muito tempo enquanto olhava o pergaminho, o que enlouqueceu Allesandra. Ela viu a luz da vela tremeluzir nas narinas esculpidas. — A kraljica não quis considerar a abdicação quando foi oferecida a ela durante a negociação, hïrzg Jan, ou, pelo menos, ca’Mazzak não quis — disse ele finalmente. — O conselheiro parecia totalmente confiante que a Garde Civile podia derrotar os ocidentais. Agora a kraljica foi subitamente acometida por altruísmo? Mas, como eu lhe disse, hïrzg, só quero o que for melhor para Nessântico. Eu não me importaria de ver a cidade destruída, mas isso precisa ser decisão sua.

— Aí está, Jan, viu só? — falou Allesandra, ficando de pé. — Starkkapitän, você irá...

Mas Jan havia colocado a mão no ombro dela e disse — Eu ainda não terminei, matarh. Archigos Semini, o que você acha desta oferta?

Allesandra começou a protestar, mas Jan apertou a mão no ombro da matarh. Todos observavam a a’hïrzg. Ela franziu os lábios e sentou-se novamente. Semini olhou especialmente para Allesandra, sem expressão nos olhos de cor magenta. Ele sabia, a a’hïrzg percebeu então. O archigos sabia que ela esteve disposta a oferecê-lo em troca do Trono do Sol. Sergei... será que Sergei contou para ele? Ou...

Jan?

— Eu notei que a oferta da kraljica não menciona nada sobre a fé concénziana — respondeu Semini, que ainda encarava Allesandra. — Isso é inaceitável para mim. Eu reluto em empenhar os ténis-guerreiros em uma aliança com Nessântico, a não ser que o archigos Kenne também esteja disposto a abdicar em meu favor. — Semini desviou o olhar de Allesandra e inclinou a cabeça para Jan. — A não ser, é claro, que o hïrzg exija isso de mim.

— Jan — insistiu Allesandra, ignorando Semini. — Isso é o que queríamos desde o início. Está ao nosso alcance; só temos que estender a mão e pegar.

— Oh, eu discordo, matarh — disparou Jan. — Isso é o que a senhora sempre quis. Parece que sua vida inteira é sempre uma questão do que a senhora quer: suas ambições, suas aspirações, seus desejos. Mesmo quando era menina, pelo que me contaram: a senhora quis primeiro Nessântico, então o vavatarh obrigou o exército a marchar mais rápido do que deveria e perdeu; sim, Fynn me contou essa história, que disse ter ouvido do vavatarh.

— Isso não é verdade — contestou Allesandra. Era o vatarh que queria Nessântico tanto assim. Não eu. Eu lhe disse para esperar e ser paciente. Disse sim... Mas Jan não escutou, e continuou falando.

— A senhora decidiu que não queria ajudar o vatarh após ele finalmente trazê-la de volta, então seu casamento foi uma farsa, quando poderia ter sido uma aliança forte. A senhora não quis que eu me envolvesse com Elissa, então a mandou embora. Não quis ser hïrzg, então fez campanha para que eu ficasse com o título. O que a senhora sempre quis foi ser kraljica, e quer que aceitemos essa oferta para que tenha o título agora, quer seja o melhor para Firenzcia ou não. Sempre foi a senhora, matarh. A senhora. Não o vatarh, não o vavatarh, não eu, não o archigos, ninguém. A senhora. Bem, a senhora me tornou o hïrzg, e, por Cénzi, eu serei o hïrzg e farei o que for melhor para Firenzcia e a Coalizão, não o que for melhor para a senhora. Eu amo a senhora, matarh — estranhamente, para Allesandra, ele olhou para Sergei ao dizer isso —, mas eu sou o hïrzg e declaro: nós iremos até Nessântico, mas iremos no momento conveniente. Nessântico grita por socorro para nós? Bem, deixe que grite. Deixe que lute a batalha que provocou. Starkkapitän, nós levantaremos acampamento pela manhã, como o planejado, e prosseguiremos em ritmo normal até vermos Nessântico, de lá esperaremos até sabermos mais ou até que a kraljica em pessoa saia e se ajoelhe a mim. Não mandarei uma única vida firenzciana para ser perdida defendendo Nessântico de sua própria insensatez.

— Jan... — Allesandra começou a falar, mas foi interrompida por um estalo do braço do filho.

— Não, matarh. Não discutiremos mais essa questão. A senhora queria que eu fosse o hïrzg? Bem, cá estou eu, e esta é a minha vontade. Não falaremos mais a respeito disso. Starkkapitän, você tem suas ordens.

Ca’Damont fez uma mesura e saiu da tenda após dar uma olhadela para Allesandra. Semini bocejou e espreguiçou-se como um urso despertando da hibernação. Ele fez o sinal de Cénzi para Jan e seguiu atrás do starkkapitän, sem olhar para Allesandra. Sergei viu os dois homens saírem e se levantou. — Caso precise do meu conselho, hïrzg, o senhor sabe onde me encontrar — falou. — A’hïrzg, uma boa noite para a senhora.

Allesandra acenou minimamente com a cabeça. Por vários momentos, ela e Jan ficaram sentados ali, em silêncio. — Você não quer que eu seja kraljica? — disse a a’hïrzg quando o silêncio pareceu durar tempo demais.

— Assim como Sergei quer o que for melhor para Nessântico, eu quero o que for melhor para Firenzcia — respondeu ele. Então, antes que ela pudesse responder: — Tudo o que eu sempre quis da senhora foi seu amor, matarh.

As palavras doeram como um tapa na cara dela, tão fortes que provocaram lágrimas em seus olhos. — Eu amo você, Jan. Mais do que você pode compreender.

Jan olhou com raiva para a matarh: o rosto de um estranho. Não, o rosto de seu homônimo, como Allesandra o imaginou durante todo o cativeiro em Nessântico, quando ele se recusava a pagar o resgate por ela. — Cale a boca, matarh. A senhora me ensinou bem. Mostrou para mim que as aspirações e a determinação são mais importantes que amor. Eu falei com o archigos Semini. Contei que a senhora esteve disposta a sacrificá-lo para ser kraljica. Ele me contou algo em troca: que planejou assassinar Fynn. Para a senhora, matarh. Tudo pela senhora. Semini me contou que a senhora sabia, naquela dia em que salvei Fynn, que o ataque aconteceria. A senhora usou Semini, seu amante, para fazer de mim um herói, para fazer de mim o hïrzg. O resto eu posso descobrir por mim mesmo. Eu me pergunto, matarh, quem contratou a Pedra Branca, mas tenho um excelente palpite. — Allesandra sentiu a face corar e virou o rosto. — Aquele seu gesto tão nobre — continuou Jan — de abdicar em meu favor: a senhora jamais quis ser hïrzgin. Sempre quis mais. Não queria o que era melhor para mim, mas o que fosse melhor para a senhora. Eu sempre fui seu segundo filho, o menos importante, matarh. A ambição sempre foi seu primogênito.

Allesandra ficou sem ar. Ela permaneceu sentada ali, com as bochechas úmidas de lágrimas, enquanto Jan se afastava da mesa e ficava de pé. — Jan... — disse a a’hïrzg ao erguer os braços para o filho, mas ele a negou com a cabeça. Jan olhou para a matarh, e, por um momento, ela pensou ter visto a expressão no rosto do filho abrandar.

Mas Jan deu meia-volta e saiu noite afora.

 

Niente

ELES USARAM O POUCO do que sobrou da areia negra para lançar na cidade novamente, naquela noite. Depois disso, Niente mandou os nahualli descansarem e preencherem novamente os cajados mágicos para a batalha do dia seguinte. Ele perdeu mais dez nahualli durante a batalha, a maioria no fim do dia, quando Zolin tentou, em vão, tomar a ponte mais próxima sobre o rio. A energia dos cajados mágicos tinha acabado e não houve tempo para descansar e renovar os feitiços. Os nahualli, como Niente mandou, tentaram recuar para trás da linha de frente assim que o poder foi exaurido, mas alguns foram abatidos pelas espadas nessanticanas, incapazes de se defender. O nahual não sabia quantos guerreiros tinham sido perdidos. Eles foram escorraçados por uma investida desesperada dos chevarittai, e Zolin — por insistência de Niente, que temia que fossem perder ainda mais nahualli — finalmente mandou o avanço parar.

Eles eram muito poucos... tanto os nahualli quanto os guerreiros. Mas Zolin não enxergava isso, ou estava tão envolvido com a própria visão que a situação tinha sido apagada dos próprios olhos. — Amanhã, toda a cidade será nossa — disse ele para Niente, Citlali e Mazatl. O nahual não sabia se era verdade ou não e estava exausto demais para se importar.

Após a última das bolas de fogo ser lançada na cidade, o nahual foi para a própria tenda. Lá, sozinho, ele pegou a tigela premonitória nas mãos: com medo de conjurar o feitiço, com medo de ter a mesma visão, com medo da exaustão e da dor que seriam cobrados pelo feitiço. Niente tentou se lembrar do rosto da esposa e dos filhos: ele conseguiu vê-los em sua mente, mas isso só fazia piorar a saudade. Imaginou como estavam, se mudaram, se sentiam sua falta como Niente sentia a deles.

Imaginou se algum dia saberia.

Ele colocou a tigela de lado.

O sono naquela noite foi intermitente e inquieto. Os pesadelos o invadiram; Niente viu a esposa morta, as crianças feridas, viu a si mesmo lutando e tentando correr, mas incapaz de fazer mais do que andar enquanto era cercado por demônios vestidos de azul e dourado. O nahual tentou imaginar o rosto da esposa diante dele, a boca semiaberta quando Niente inclinou-se para beijá-la... o rosto não tinha expressões nem feições, era uma máscara. Sem conseguir escapar dos sonhos, ele acabou andando de um lado para o outro do acampamento, escutou os sons dos guerreiros descansando, viu as estranhas formas dos prédios ao redor. Ao passar por um edifício, o nahual ouviu seu nome ser chamado. — Niente.

Ele reconheceu a voz. — Citlali.

O guerreiro supremo estava encostado na porta do prédio. Atrás dele, uma vela brilhava na escuridão. — Não consegue dormir? — perguntou Citlali.

Niente balançou a cabeça. — Eu não ouso. Sonhos demais. E você?

O rosto com redemoinhos negros deu um sorriso. — Sonhos de menos. Eu queria ver a nossa terra natal e minha família novamente, mesmo no sono.

— Isto não acontecerá se... — Niente engoliu o comentário, furioso consigo mesmo. Se estivesse menos confuso pela falta de sono, não teria dito nada.

— Se prevalecer a vontade do tecuhtli Zolin? — arriscou Citlali. — Eu pensei a mesma coisa, nahual. Não precisa ficar tão nervoso. — O sorriso aumentou, e ele olhou de um lado para o outro, como se tentasse ver se alguém os escutava. — E deixe-me responder à outra pergunta que você não irá fazer. Não. Eu não desafiarei o tecuhtli. Veja até onde ele nos trouxe, nahual, do outro lado do mar até o grande lar dos orientais. Isso é a verdadeira grandeza, nahual. Grandeza. Estou orgulhoso por ter sido capaz de ajudá-lo.

— Mesmo que isso signifique que você jamais verá sua terra natal e sua família novamente?

Citlali ergueu os ombros. — Eu sou um guerreiro. Se essa for a vontade de Sakal... — Ele abaixou os ombros novamente. — Eu não preciso de uma tigela premonitória, nahual. Não tenho interesse no futuro, apenas no presente. É uma bela noite, eu estou vivo e vendo um lugar que jamais pensei que veria e que poucos tehuantinos um dia viram. Como alguém não ficaria feliz com esta situação?

Niente limitou-se a concordar com a cabeça. O nahual desejou boa-noite e deixou o guerreiro com seu devaneio. Da parte dele, Niente voltou aos próprios alojamentos e realizou os rituais para colocar feitiços no cajado novamente. Então, completamente esgotado pelo esforço, ele foi para a cama e deixou os pesadelos o invadirem outra vez.


E, no dia seguinte, os pesadelos se tornaram realidade.

Na alvorada, o tecuhtli Zolin levou os tehuantinos para as profundezas da cidade, eles lutaram de rua em rua na direção da grande avenida principal. A batalha foi um reflexo do combate do dia anterior: novamente, a ofensiva inicial fez os cansados nessanticanos recuarem; quando o olho de Sakal estava bem alto no céu, eles chegaram à avenida, onde Zolin rapidamente reagrupou as tropas e começou a marcha para o sul.

Lá, os nessanticanos haviam se reunido: em volta do mercado, onde finalmente detiveram o avanço tehuantino no dia anterior, e em volta da ponte que levava à ilha. No A’Sele, Zolin mandou que os navios avançassem na direção do inimigo; os navios nessanticanos deslocaram-se para detê-los, e outra batalha tomou o lugar, cujo resultado Niente só podia imaginar, embora muitos navios de guerra de ambos os lados estivessem em chamas. Não havia mais retirada possível ali — restaram poucos navios para todos eles voltarem para casa.

— Nahual! — Do cavalo, Zolin apontou um dedo para Niente. — Pegue seus nahualli e venha comigo. Nós controlamos a rua principal, agora temos que dominar a ponte. Citlali! A mim!

Zolin rapidamente posicionou os guerreiros. Citlali e Zolin atacariam os píeres da ponte a partir da avenida, diretamente no coração das forças nessanticanas; Mazatl esperaria até que o ataque estivesse em andamento, depois investiria pelo flanco oeste através do Mercado do Rio. Vários guerreiros duplas mãos1 também começariam um ataque ao norte imediatamente e forçariam a passagem pela avenida circular de maneira que os nessanticanos não pudessem concentrar a atenção na cabeça de ponte — não sem possivelmente perder a ponte mais a leste para a grande ilha. Zolin mandou os guerreiros à frente como manobra de distração, depois esperou que a sombra do sol movesse um dedo antes de acenar e liderá-los ao lés-nordeste da avenida, onde posicionou seus homens. Eles podiam ver os nessanticanos: uma parede de escudos em riste do outro lado da avenida, a meros cem passos.

Não havia areia negra, nem tempo para fazer mais, mesmo que eles tivessem os materiais brutos. Desta vez, os arqueiros começaram o ataque com uma chuva sobre os escudos dos nessanticanos sem causar grandes danos. Os ténis-guerreiros lançaram as bolas de fogo estridentes na direção dos tehuantinos, e Niente — com os demais nahualli — ergueu seu cajado mágico rapidamente. Os feitiços de proteção estalaram para fora, um pulso quase visível no ar. A maior parte das bolas de fogo foi desviada; elas caíram nos prédios de ambos os lados, que pegaram fogo. Mas havia muitos ténis-guerreiros e nahualli insuficientes. Os feitiços de guerra caíram sobre os guerreiros reunidos; os homens gritaram, seus corpos foram queimados e contorcidos. Aqueles que puderam, fugiram, terrivelmente feridos com as queimaduras do fogo pegajoso. Os que não puderam, morreram. Uma bola de fogo caiu perto o suficiente de Niente para o nahual sentir o calor do feitiço, como se a fornalha de um ferreiro tivesse sido aberta em frente a ele. O calor passou por seu rosto como uma onda escaldante e secante. Zolin também sentiu o calor; ele deu uma olhadela para a cena atrás de si quando o cavalo empinou com medo. O tecuhtli berrou — Em frente! Agora! — Zolin controlou a montaria e a cutucou com o pé para que galopasse. Os guerreiros supremos montados seguiram o tecuhtli e a infantaria também investiu, à frente. Niente foi levado pela onda.

A onda arrebentou contra os escudos pintados de azul e dourado e empalou-se em suas lanças. No caos barulhento, Niente viu o cavalo de Zolin cair, com uma lança cravada no peito, mas o tecuhtli em si perdeu-se na massa de soldados, e o nahual não conseguiu ver o que aconteceu com ele.

Havia espadas e combate em volta de Niente, que só conseguiu pensar em si mesmo, em matar o máximo possível de nessanticanos. Ele apontou o cajado mágico, falando a palavra de ativação sem parar, e os raios estalaram da ponta, assobiando e ondulando ao mergulharem nas fileiras em frente ao nahual. Um buraco foi aberto na parede de escudos quando ele lançou um feitiço após outro — os clarões mandaram dezenas de homens ao chão. Os guerreiros gritavam, urravam e brandiam suas espadas ao avançar através da brecha. A parede começou a ceder, e então desmoronou complemente. Niente novamente foi levado pela onda e viu de perto as torres que marcavam a entrada da ponte.

À direita, havia uma cacofonia de gritos: os guerreiros de Mazatl que investiam contra o flanco. O som grave das trompas soou nas fileiras nessanticanas. Niente viu um estandarte tremulando ali e um aglomerado de chevarittai a cavalo. De repente, o estandarte seguiu para a direção sul da ponte, com os chevarittai junto. O nahual viu a expressão de compreensão nos rostos dos soldados inimigos diante dele. Viu a maneira como as espadas foram abaixadas momentaneamente, como as fileiras se enfraqueceram visivelmente. A chuva de flechas cessou, os ténis-guerreiros não lançaram mais bolas de fogo sobre a cabeça de Niente sobre a retaguarda dos tehuantinos. Eles avançaram gradualmente: os guerreiros, os nahualli, agora o nahual conseguia ver Zolin novamente, sangrando e ferido, mas em pé, sua espada ceifava os soldados que ousavam ficar diante dele. Citlali estava ao lado do tecuhtli, com o rosto implacável e impetuoso.

Eles estavam na ponte agora. Ela era dos tehuantinos. O rio movia-se preguiçosamente embaixo deles, e corpos caíam do peitoril e batiam nas águas.

Os tehuantinos rugiram. Eles cantavam enquanto matavam, e Niente cantou com eles.

 

Varina ci’Pallo

AS RUAS DO VELHO DISTRITO ESTAVAM tomadas por cidadãos em pânico, a maioria corria para leste, para longe das forças ocidentais que se aproximavam e das batalhas ao longo da Avi a’Parete. Todos ouviam os sons: os berros que reverberavam pelas vielas, os lamentos, os gritos, o barulho constante das trompas dos templos soando alarmes estridentes. A fumaça dos incêndios manchou o céu, trapos imundos que às vezes obscureciam o sol, e o cheiro de fogo e carnificina no ar era intenso.

Varina viu-se próxima a Karl pela maior parte do dia. Ela sorria para ele, nervosa e indecisa, e Karl devolvia o mesmo sorriso. — Prometa — falou Varina finalmente. Os dois estavam sozinhos em um dos cômodos; Talis, Serafina e Nico estavam no outro.

— Prometer o quê?

— Que o que quer que aconteça... que aconteça conosco. Guarde um último feitiço para nós, eu farei o mesmo.

— Não será assim tão ruim — disse Karl. — Talis... ele é um deles, afinal.

Ela sacudiu a cabeça, tão desamparada pelo fato quanto Karl.

Mais tarde, o cheiro de fumaça ficou mais forte. Pela janela do apartamento, eles viram a fumaça pegajosa e espessa subir das casas e de uma rua a oeste, com chamas que ocasionalmente irrompiam na escuridão. Cinzas caíam como neve cinzenta. Karl achou que quase podia sentir o calor. Os dois seguiram para o cômodo da frente com os demais.

— Tudo está queimando — falou Nico. Ele parecia mais empolgado do que preocupado, mas todos os adultos trocaram olhares preocupados. O estalo das chamas ao longe era audível no silêncio.

— Você está certo, Nico — disse Varina, enquanto olhava para Serafina. — Infelizmente, os ténis-bombeiros estão muito ocupados em outros lugares para fazer algo a respeito disso. — O olhar dela desviou de Serafina para Karl. Varina sabia o que ele estava pensando; era o que estava na mente de todos: Será que podemos ficar aqui? Precisamos ir embora?

Menos de uma virada da ampulheta depois, todos ouviram uma comoção alta ecoar a oeste, lá fora, na rua. Não muito longe dali, uma turba de várias dezenas de pessoas andava à espreita pela viela; não eram soldados, nem ocidentais, mas gente que morava no Velho Distrito. Eles berravam, corriam de casa em casa e quebravam portas e janelas; Varina ouviu os berros e gritos dos que estavam no interior enquanto a turba invadia cada casa. Eles saqueavam, carregavam qualquer coisa que parecesse de valor: ela viu algumas pessoas segurando itens roubados enquanto marchavam; o que mais, além de roubar, os saqueadores faziam dentro das casas, Varina só podia imaginar. Já havia fogo em três ou quatro casas mais ao longe na rua. A turba gritava alto: — Peguem o que quiserem! A cidade está perdida! Revolta! Revolta!

Karl e Talis passaram por Varina e seguiram para a rua enquanto a turba continuava o lento e caótico avanço na direção deles. Alguém à frente os notou e apontou, e vários aglomerados de saqueadores seguiram na direção deles. — Parem com isso! — gritou Karl, a turba debochou, as pessoas responderam com berros e brandiram armas velhas ou improvisadas. Ele deu uma olhadela para Talis e acenou com a cabeça. O embaixador ergueu as mãos, gesticulou, e uma luz surgiu entre elas. Ao seu lado, Talis levantou o cajado e bateu uma vez nas pedras de pavimentação: um raio saiu como uma flecha do punho para o céu esfumaçado.

A turba parou. Sem uma palavra, as pessoas se dispersaram em um estranho silêncio, correram para qualquer direção, desde que fosse para bem longe dos dois. Alguns instantes depois, a rua estava vazia. — Ora, isso acabou bem — falou Karl. Ele e Talis viraram-se, e Varina viu os dois ficarem boquiabertos.

Ela tinha lançado o próprio feitiço no momento em que Karl lançou o dele. Varina moldou o ar ao redor com o toque de um escultor, desenhou como se fosse uma tela e colocou nele uma imagem saída da mente. Varina viu o que Karl e Talis viram, algo que se agigantava atrás deles, mais alto que qualquer uma das casas.

— Um dragão! — berrou Nico da porta da casa, nos braços de Serafina, tomado pela alegria. Karl riu e aplaudiu, Varina sorriu. — Você pode fazê-lo cuspir fogo e voar? — perguntou o menino, e ela fez que não com a cabeça.

— Ele não pode fazer nada, só parece feroz — disse Varina. Por um instante, o perigo foi esquecido, mas depois a realidade desabou sobre eles quando ela cancelou o feitiço. O dragão sumiu em filetes de fumaça verde que foram levados pelo vento. Os saqueadores podiam ter ido embora, mas nada mudou. Eles voltariam em breve, e os incêndios próximos ardiam sem controle. A cidade continuava sob ataque.

— Karl, não podemos ficar aqui — falou Varina.

Ele olhou para Talis e viu o homem concordar com a cabeça, devagar. — Você está certa — disse Karl. — É o momento. Vamos pegar o que precisamos. — Ele deu um tapinha no ombro de Talis e foi para a porta.

Do outro lado da rua, Varina viu uma velha solitária — uma mendiga, pela aparência da roupa. Ela olhava fixamente para a casa. Assim que Varina a viu, a mulher pareceu acenar com a cabeça, depois correu pelo espaço escuro e apertado entre as casas e foi embora.

 

Sigourney ca’Ludovici

ELES A COLOCARAM no Velho Templo.

O comandante ca’Gerodi voltou fugindo da derrota na Pontica Kralji, entrou gritando no Velho Templo onde Sigourney estava sentada, no Trono do Sol, e disse que ela e o Conselho dos Ca’ deveriam pegar o que fosse possível e fugir imediatamente pela Pontica a’Brezi Veste até a margem sul e sair da cidade.

Sigourney recusou-se. — Que o Conselho vá embora se quiser. Eu vou ficar.

— Eu não posso protegê-la, kraljica — disse ca’Gerodi. — Eles estão vindo, a qualquer momento.

— Eu não abandonarei minha cidade e minha responsabilidade — respondeu ela friamente. — Eu ficarei.

No fim, a equipe de Sigourney pegou o que pôde do que restava dos tesouros do palácio e fugiu da Ilha A’Kralji. O mesmo aconteceu por toda Nessântico: no enorme Templo do Archigos, na margem sul; na Grande Biblioteca com seus preciosos e insubstituíveis livros e pergaminhos de velino; no Teatro A’Kralji e no Museu a’Artisans. O conselheiro ca’Mazzak e o resto do Conselho desapareceram também. Fugiram para o sul, a única direção ainda aberta para eles...

Sigourney permaneceu no Trono do Sol, no Velho Templo, sob a luz do sol que entrava pelo domo arruinado e queimado. Antes de permitir que o ervanário da corte fosse embora, a kraljica mandou que o homem preparasse uma taça especial do cuore della volpe, que agora estava no braço do Trono do Sol, ao lado dela. Sigourney usava uma longa tashta cerúlea com um sobretudo amarelo que escondia o fato de não haver uma perna debaixo do joelho direito. Ela mandou que os criados colocassem um tapa-olho cravejado sobre o buraco onde antes ficava o olho direito e aplicassem pó de ovo no rosto para esconder a pior parte das cicatrizes.

Sigourney aguardava no antigo trono de Nessântico. Aguardava o inevitável.

Lá fora, a kraljica ouviu a batalha em andamento: os gritos dos homens, o clamor das armas, o rugido dos feitiços dos ténis-guerreiros. A fumaça subia e enfraquecia a luz do sol. Um esquadrão de elite da Garde Kralji estava disposto diante dela, a cota de malha farfalhava quando os soldados se remexiam, nervosos, empunhando as espadas e voltados para as portas do templo. O comandante ca’Gerodi tinha ido embora há uma virada da ampulheta. — Eu não a verei novamente, kraljica — disse ele. — Sinto muito.

— Eu sei. Eu sei. Sinto muito também.

Ela aguardava.

Quando as portas foram escancaradas, os gardai em frente a Sigourney ficaram tensos e começaram a avançar. — Não — disse a kraljica. — Parem! Esperem! — Vários guerreiros ocidentais entraram no templo; com eles havia outro homem, este sem as tatuagens dos guerreiros e com um cajado de madeira lustrosa: um dos feiticeiros. Os ocidentais pararam e espiaram o longo corredor da nave onde Sigourney estava sentada sob um facho poeirento de luz do sol. — Algum de vocês fala nossa língua? — berrou ela.

— Eu falo — disse o feiticeiro. As palavras eram arrastadas e com um sotaque carregado, mas compreensíveis. — Um pouco.

— Ótimo. Eu sou a kraljica Sigourney ca’Ludovici, monarca desta terra. Quem é você?

O homem sussurrou por um instante para o guerreiro ao lado dele, que tinha a imagem de uma águia ou um falcão vermelho desenhada na careca. — Eu sou Niente — respondeu o feiticeiro. — Sou o nahual. E este — ele apontou para o guerreiro com quem havia falado — é o líder dos tehuantinos, o tecuhtli Zolin. Ele exige sua rendição, kraljica.

— Ele pode exigir o que bem quiser. — Sigourney ergueu a mão do braço do Trono do Sol. O anel com o sinete dos kralji reluziu quando a kraljica tocou a faixa dourada da coroa, posta sobre seu cabelo grisalho e grosso. O sol estava quente sobre ela, que ergueu os olhos para as ruínas queimadas dos suportes do domo. — Ele não terá minha rendição.

Novamente o feiticeiro falou com o guerreiro, que soltou uma gargalhada que ecoou pelo templo. O homem falou palavras em uma língua que parecia ao mesmo tempo estranha e, no entanto, familiar de um jeito esquisito. Onde ela ouviu palavras assim antes? — O tecuhtli Zolin diz que se a kraljica deseja desafiá-lo, ele está disposto a aceitar. O tecuhtli emprestará a própria espada se ela não tiver uma própria. Caso contrário, ele mandará seus guerreiros torná-la prisioneira. O tecuhtli deixa a decisão com a senhora.

Sigourney balançou a cabeça e falou — Eu sei como vocês tratam os prisioneiros. E você não percebeu todas as opções que eu tenho. — O feiticeiro pareceu confuso ao ver a kraljica pegar a taça no braço do Trono do Sol e tomar todo o preparado amargo em um só gole. — Espero que aproveitem a cidade enquanto a controlam. — Ela ergueu a taça para os ocidentais e deixou que caísse nos ladrilhos, onde se quebrou. A perna já formigava quando Sigourney recostou-se no trono. A paralisia subiu rapidamente pelas coxas, pela cintura, pela barriga. Pelo coração. A luz do sol na nave pareceu enfraquecer. — Este é o meu trono e, enquanto eu viver, não abrirei mão dele.

Sigourney riu então. A voz parecia estranha, ofegante e fraca. A kraljica tentou forçar as próximas palavras. — E eu escolho o momento conveniente. — Ela tentou tomar fôlego, mas os pulmões não se mexeram. Abriu a boca, mas não havia ar.

Sigourney sorriu para eles quando o sol escureceu e Nessântico sumiu de vista.

 

Karl Vliomani

— PARA ONDE VOCÊ SUGERE de irmos? — perguntou Talis.

— Leste — sugeriu Karl. — Para os firenzcianos. Sergei pode estar lá.

— Podemos ir para o oeste — contra-argumentou Talis. — Para o meu povo.

— Seu povo colocou fogo em Nessântico — falou Varina. — Eles matam. Estupram. Saqueiam.

— E o seu povo não faz isso? — disparou Talis. — Você não esteve nos Hellins, não é? Ou se esqueceu do que começou este confronto em primeiro lugar? — Ele olhou com raiva para Varina, que sustentou o olhar, sem pestanejar.

— Parem, vocês dois — disse Karl. — Não temos tempo a perder com isso. Talis, ir para o oeste significa tentar passar pela pior parte dos incêndios, e o sul não parece muito melhor do que isso. Temos que pensar a respeito do menino, especialmente; é perigoso demais.

— E ir na direção dos firenzcianos não é perigoso? — protestou Talis.

— Eu diria que é menos.

Serafina tocou no ombro de Talis e falou — Acho que ele está certo, amor. Por favor...

Talis fez uma cara de desdém, e deu de ombros. — Tudo bem. Mas a culpa vai ser sua, numetodo, se a coisa ficar feia.

Eles rapidamente reuniram o que poderiam carregar. O cheiro de fumaça era esmagador agora, e cinzas caíam constantemente sobre os telhados, cujas bordas brilhavam com chamas agitadas. O grupo não conseguia ver o sol de maneira alguma, embora devesse estar no alto no céu. A rua continuava deserta; aqueles que podiam fugir já haviam escapado; aqueles que ficaram estavam entrincheirados nos prédios. Eles desceram a viela rapidamente até o cruzamento e viraram para leste.

Quando chegaram às ruas maiores, eles encontraram as multidões novamente. Um enxame de gente saqueava lojas, quebrava portas, arrancava persianas e carregava o que fosse possível. Os saqueadores olhavam com ar de provocação para o grupo enquanto passavam com as conquistas, desafiavam qualquer um a tentar detê-los ou protestar. Um esquadrão de quatro utilinos apareceu e soprou os apitos, mas, tirando isso, não fizeram tentativa alguma de restaurar a ordem; eles apontaram os cassetetes e gritaram avisos, mas saíram correndo quando os saqueadores mais próximos se viraram para confrontá-los.

Karl e os demais foram atrás deles.

Algum tempo depois, o grupo passou por vários quarteirões, longe o bastante para as cinzas dos incêndios não mais caírem sobre os ombros e cabelos. Eles se aproximavam do centro do Velho Distrito; Karl vislumbrou a praça aberta não muito distante dali, onde a viela tortuosa de repente se abria nela: lá estava a estátua de Henri VI, com a espada erguida sob a luz do sol. As multidões desapareceram novamente. Parecia que eles corriam por uma cidade deserta. Quando se aproximaram do fim da rua, Karl parou o grupo: encolhidos contra o flanco do prédio mais próximo, eles viram um esquadrão da Garde Civile passar rapidamente para o sul pela praça aberta, perto do chafariz de Selida, liderado por um trio de chevarittai montados. Muitos dos soldados estavam visivelmente feridos, e mancavam enquanto cruzavam a praça meio que correndo.

— Eles estão recuando — sussurrou Varina. — Será que perdemos a cidade, então?

Karl não tinha como responder, embora desconfiasse da verdade, e falou — Vamos correr...

O grupo começou a cruzar a praça quando a Garde Civile desapareceu na entrada de uma rua ao sul. Eles chegavam ao fim da sombra de Henri VI, quase no meio do centro do Velho Distrito, quando viram do que os soldados fugiam.

Uma massa ruidosa de homens pintados entrou na praça aos borbotões vinda do norte. Ao longe, Karl viu que estavam bem armados: espadas, lanças, flechas. Os rostos tinham o redemoinho de linhas negras como o de Uly; os corpos eram protegidos por armaduras de bambu. Eles ainda não tinham visto o pequeno grupo de Karl, ou, se viram, julgaram irrelevante. Os ocidentais entraram no espaço aberto: havia pelo menos trinta ou mais deles. — Andem! — sibilou Karl. — Rápido! — Eles podiam facilmente chegar a uma das transversais que levavam ao centro do Velho Distrito e despistar os ocidentais antes que fossem alcançados. Karl pegou a mão de Varina e começou a correr.

Depois de alguns passos, Karl percebeu que os dois estavam sozinhos. Talis permaneceu parado sob a sombra da estátua. Ele segurava as mãos de Serafina e Nico. — Talis!

Talis balançou a cabeça. — Não — disse ele em voz alta.

— Talis, Sergei foi para Firenzcia. Nós podemos segui-lo. Você não tem nada para barganhar com essa gente. Não mais. Você está colocando Serafina e Nico em perigo.

Talis sorriu para Karl e Varina. — Ah, mas eu tenho sim um trunfo: a areia negra de Uly. Lembra-se? Ainda está aqui.

Karl sentiu a mão de Varina apertar seu braço. Ele lembrou-se: Uly, os barris de ingredientes no apartamento do homem, à espera de serem misturados... — Você não pode dar isso a eles...

— Este é o meu povo — falou Talis. — Eu agradeço por tudo o que vocês fizeram por Sera e Nico, mas este é o meu povo, o povo que eu conheço, e este é o momento de eu voltar para eles. Vá para o seu. — Ele gesticulou para os soldados e berrou algo em uma língua que Karl não compreendia. — Vá — disse Talis para Karl. — Vá enquanto ainda tem chance.

— Pelo menos deixe-nos levar Serafina e Nico conosco — gritou Varina, mas Talis fez que não com a cabeça.

— Eles são a minha família e ficarão comigo. Vá, Karl. Ou fique. Mas faça sua escolha. — Serafina olhou para os dois com incerteza e pânico no rosto. Nico encarou de olhos arregalados, mas parecia calmo.

Vários guerreiros pintados se aproximavam correndo agora. Talis ergueu o cajado mágico. Uma luz irrompeu do objeto, cintilou e baniu a sombra de Henri VI. — Karl? — A mão de Varina estava erguida; ele sentiu a energia do Segundo Mundo se acumular em volta dela.

— Eles são muitos — disse Karl.

— Não podemos deixá-los. Não podemos deixar Nico.

— Não temos escolha — respondeu ele.

Karl pegou a mão de Varina, e os dois correram.

 

Nico Morel

NICO NÃO CONSEGUIA ENTENDER o que Talis dizia quando os soldados pintados se aproximaram deles. Ele notou a insegurança na voz do vatarh e o jeito com que Talis falava alto e rápido, com a bengala mágica em frente ao corpo como um porrete. A matarh abraçou o menino com tanta força que ele mal conseguia respirar quando os estranhos os cercaram. Os homens eram inacreditavelmente grandes, assustadores e cheiravam a sangue e morte.

Nico sentiu o medo crescer dentro dele, juntamente com o frio estranho que sentiu no gabinete do archigos, assim como quando fugiu de Ville Paisli. O frio começou a aumentar por dentro, e ele murmurou baixinho as estranhas palavras que vieram à mente enquanto as mãos fizeram pequenos gestos sob o abraço forte da matarh.

— Talis, o que está acontecendo? Estou assustada... — Nico ouviu a matarh falar.

— Está tudo bem — disse o vatarh, mas a voz contradizia a resposta. — Eu só preciso falar com o guerreiro supremo. Deixe-me cuidar disso. Eles são meu povo; só não esperavam me encontrar aqui...

Talis voltou-se para um dos homens pintados, o que tinha um lagarto negro de língua vermelha rastejando no topo do crânio, que passava em volta do olho esquerdo e ia até a lateral da cabeça. Enquanto eles meio que gritavam uns com os outros, o vatarh brandiu a bengala na cara do sujeito. Nico sentiu o frio crescer sem parar dentro dele, era tão intenso que ele sabia que iria explodir se tentasse contê-lo por mais tempo. O menino gritou as estranhas palavras. Gesticulou.

Não houve fogo azul dessa vez. Em vez disso, o ar tremeu em volta dele e propagou-se como uma onda visível, a onda rápida acertou os homens pintados, e eles foram lançados para trás como se tivessem sido golpeados por um grande punho. — Venha, matarh! — berrou Nico. O menino agarrou a mão dela e puxou-a de maneira que Serafina tropeçou ao segui-lo, enquanto ele fugia na direção em que Karl e Varina foram. — Talis! Rápido!

Mas Talis não correu com os dois; ele também havia sido derrubado pela explosão incontrolável do menino. O guerreiro-lagarto já estava de pé, Nico olhou para trás ao começar a correr e viu o homem berrar para os demais no momento em que Talis gritou alguma coisa de volta e ergueu a bengala. Uma luz ofuscante brilhou da bengala, e um dos guerreiros rugiu. Nico puxou a matarh com mais força. — Corra!

Sera deu um passo com ele, mas soltou a mão do filho. O menino deu outro passo antes de perceber que a matarh não estava com ele. — Sera! — Nico ouviu Talis gritar e virou-se para trás.

A matarh estava esparramada sobre os paralelepípedos da praça, com uma lança nas costas e seu sangue manchando as pedras da pavimentação. Ela esticou o braço na direção de Nico, rastejou atrás do filho, com o rosto contraído de dor. — Matarh! — berrou o menino, que correu de volta para Serafina. Nico caiu ao lado dela assim que Talis a alcançou.

— Nico... — disse a matarh. — Eu sinto muito... — Ela virou a cabeça para Talis e começou a falar, mas ele fez carinho na cabeça de Serafina e a abraçou com cuidado.

— Não, não diga nada. Eu vou levar você a um curandeiro, a alguém que possa te ajudar... — Talis ergueu o olhar para os soldados pintados, que se reuniram em volta deles. O vatarh falou rispidamente na própria língua. O guerreiro-lagarto fez uma expressão de desdém, e gesticulou para os homens. Um deles arrancou a lança das costas da matarh de Nico, e ela gritou novamente. O menino atirou-se contra o guerreiro-lagarto e socou a armadura do homem. Ele agarrou Nico com um braço musculoso e rosnou alguma coisa para Talis. — Nico! — falou o vatarh. — Eles vão ajudá-la. Por favor, escute o que eu digo. Você tem que parar de lutar com eles.

Toda a energia abandonou Nico; ele desmoronou no braço do guerreiro-lagarto.

Dois guerreiros agacharam-se; eles rasgaram tiras da própria roupa e amarraram na cintura da matarh do menino. Um guerreiro pegou Serafina nos braços; ela gemeu e revirou os olhos, mas Nico viu que a matarh ainda respirava. Uma das mãos pendia; o menino contorceu-se no braço do guerreiro-lagarto e foi solto pelo homem. Ele correu e pegou a mão de Serafina.

Nico segurou a mão da matarh, em prantos, enquanto eles saíam rapidamente da praça.

 

Niente

ELES CONQUISTARAM A CIDADE.

Ou, mais corretamente, conquistaram parte dela. Nessântico era grande demais e a força dos tehuantinos pequena demais para controlar a cidade inteira, na prática. Em vez disso, eles arrebentaram a cidade, usaram areia negra para incendiar Nessântico, fizeram a Garde Civile recuar para o norte e o sul.

A cidade já não pertencia à kraljica e ao povo dela, mas também não era dos tehuantinos.

Niente tinha certeza de que jamais seria deles.

— Bem? — perguntou Zolin enquanto o nahual espiava a água da tigela premonitória.

— Paciência, tecuhtli — disse ele. — Paciência. — Mas Niente já sabia. A visão já tinha passado e a água era apenas água. Mas, ao fingir, o nahual podia decidir o que queria dizer. Ao fingir, podia se recuperar da pior parte do cansaço e da exaustão causados pelo feitiço.

Ele viu — novamente —, no meio da grande cidade arruinada, o tecuhtli e o nahualli mortos e sentiu outra vez o arrepio com a certeza de que viu Zolin e a si mesmo. Nada mudou. Axat ainda lhe mostrava o mesmo futuro, o mesmo caminho. Nada foi alterado após esta vitória. Niente achava que nada poderia alterá-lo. O futuro estava predeterminado, tão inevitável quanto o pôr do sol.

Eles estavam nas ruínas do templo, Zolin sentado no trono que a kraljica usara. O cabo de uma lança tinha sido cravado em uma fenda no piso de cerâmica, perto do trono. A cabeça da kraljica foi enfiada na lança, o único olho vidrado voltado para fora, o cabelo pendia grotescamente — o corpo estava caído contra a parede atrás do trono, onde fora jogado. Uma fogueira foi acesa no meio da nave e alimentada com a madeira dos bancos do tempo; uma fumaça cinza e fina subia para o céu que começava a ficar púrpura. Mesas foram erigidas em volta da fogueira, e um banquete estava em andamento, servido por assustados prisioneiros ocidentais. Não havia algum motivo em especial para o medo deles; Zolin e os outros guerreiros supremos não permitiriam que nenhum prisioneiro fosse maltratado. Sim, haveria os inevitáveis estupros, saques e mortes, mas os incidentes seriam poucos, e os responsáveis seriam severamente punidos se fossem flagrados. Alguns offiziers do alto escalão seriam sacrificados pela glória de Axat e Sakal, mas nenhum outro prisioneiro sofreria algum mal.

Os tehuantinos eram mais benevolentes e bons vencedores do que os orientais quando estes vieram aos Hellins.

Enquanto os guerreiros aproveitavam o banquete, Niente olhava na tigela premonitória perto da fogueira. A luz do fogo lambeu a pele do nahual, mas o calor não conseguiu tocar o frio que ele sentia por dentro. Niente finalmente pegou a tigela e jogou a água nas brasas em chamas, que assobiaram e soltaram vapor em resposta.

— Então — falou Zolin —, Axat me vê permanecendo aqui? Eu acho que este é um ótimo lugar. Podemos construir uma nova cidade aqui, uma que essa terra nunca viu antes, uma cidade que rivalizasse com Tlaxcala, e eu poderia ser o tecuhtli aqui, e os ocidentais nos serviriam como eles forçaram nossos primos a servi-los.

— Eu realmente vejo o senhor permanecendo aqui, tecuhtli — falou Niente, o que não era nada mais que a verdade.

Zolin deu um tapa nos braços cristalinos do trono. Ele rugiu de alegria, e os guerreiros reunidos no salão riram com ele. — Viu só! — berrou o tecuhtli para Niente. — Todas aquelas preocupações. Eu lhe disse, nahual, eu lhe disse.

— Disse sim, tecuhtli — falou Niente.

Zolin inclinou-se para a frente no trono. — Você viu outras batalhas? Você me viu tomando novas cidades?

O nahual balançou a cabeça e respondeu — Não. E isso não seria prudente, tecuhtli. Não temos mais areia negra. Se pudéssemos repor os guerreiros que caíram, se eu pudesse trazer mais nahualli para cá... — Ele espalmou as mãos. — Eu diria ao tecuhtli... — Niente começou a falar, mas houve uma agitação no fim do salão: o guerreiro supremo Citlali surgiu com um homem ao lado dele; um homem com um cajado mágico na mão. O nahual apertou os olhos para ver na escuridão da noite, iluminada pela fogueira; não era um nahualli que ele reconhecesse, e o homem estava vestido como um dos orientais, havia manchas de sangue na roupa. No entanto, aquele rosto...

— Talis? — perguntou Niente. — É você? — Pelo rosto, o homem parecia ter muitos mais anos do que deveria, a face foi arrasada pelo poder de Axat assim como a do nahual, mas ele lembrava-se da juventude nas feições do sujeito.

— Niente? — Talis correu à frente e agarrou o antebraço de Niente, seus olhos vasculharam o rosto, sem dúvida tão mudado quanto o próprio. — Por Axat, tem muito, muito tempo. Você é o nahual. Ótimo. Que ótimo para você... — Ele então viu o tecuhtli Zolin, deu meia-volta e abaixou a cabeça para ele. — Tecuhtli. Noto que Necalli caiu.

Niente ainda olhava para Talis. Havia uma dor nos olhos do homem que não era causada pelo X’in Ka. — Você está ferido? — perguntou o nahual, e Talis balançou a cabeça.

— Não, é que... — Ele parou, e Niente viu a preocupação e a tristeza desabarem sobre o homem. — Eu... eu tenho uma esposa aqui, e um filho. Ela foi... gravemente ferida. Preciso voltar para os dois...

— Nós levamos a mulher e o menino para a tenda dos curandeiros, tecuhtli, nahual — intrometeu-se Citlali. — Eles estão fazendo o possível.

— Ótimo — falou Zolin. — Você poderá ir até eles em um momento, Talis. Então você é o nahualli enviado para cá pelo antigo nahual? Eu sei que ele disse ao tecuhtli Necalli que você era quase tão poderoso quanto Mahri; que você teria dado um belo nahual. — Zolin deu uma olhadela para Niente. — Talvez esse acabe sendo seu destino. Eu li seus relatórios e, com o passar dos anos; eles me ajudaram a compreender e a derrotar os orientais. Sou grato por isso.

— Tecuhtli — disse Citlali quando Zolin fez uma pausa ao se recostar no trono. — Talis tem uma informação que o senhor precisa saber, sobre um exército mais a leste da cidade. Foi por isso que eu o trouxe aqui.

Talis concordou com a cabeça, Niente ouviu o homem, sentindo um medo crescente enquanto ele falava a respeito desse exército de Firenzcia e da reputação da força militar daquele país. O nahual ficou especialmente aflito com a expressão cada vez mais empolgada no rosto de Zolin. — Tecuhtli — falou ele —, isso é o que a tigela premonitória me disse. Nós fizemos tudo que viemos fazer aqui. Devíamos embarcar agora e voltar para casa antes que esse exército venha para cima de nós. Podemos juntar um novo exército e voltar com mais navios, mais guerreiros e nahualli da próxima vez, e se o senhor quiser se sentar nesse trono como tecuhtli do leste, nós o colocaremos aqui com recursos suficientes para que isso aconteça. Mas não agora. Somos muito poucos, guerreiros e nahualli, para outro grande combate, especialmente sem a areia negra.

Niente pensou que, finalmente, tivesse convencido o tecuhtli. Sentado no trono, Zolin fez uma careta e tamborilou os dedos no braço cristalino do trono. Balançou a cabeça como se estivesse pensando.

Mas Talis então acabou com qualquer esperança que restasse em Niente. — Existe areia negra — disse ele. — Ou melhor, existem ingredientes suficientes aqui na cidade para fazer boa parte dela. Eu sei onde estão.

Zolin inclinou-se para frente no trono e arregalou tanto os olhos que as asas da águia dançaram no rosto. — Onde? Leve-nos até eles agora.

— Tecuhtli, minha esposa... Eu preciso ir até ela.

Niente sabia como Zolin reagiria a isso; e não ficou surpreso. — Todos nós temos esposas e família — retrucou o tecuhtli. — Nosso dever é aqui e agora. Citlali, como está a mulher?

Citlali deu de ombros. — Ela está nas mãos de quem sabe o que fazer. Não há nada mais a ser feito.

— Pronto. Viu só, Talis? — falou Zolin. — Você tem sua resposta. Sinto muito pelo ferimento de sua esposa e entendo que queria estar com ela. Mas seu tecuhtli também precisa de você. O nahual Niente está certo: sem mais areia negra, nós perderemos o que ganhamos. A areia negra, nahualli, é o que precisamos. — Zolin inclinou-se para frente e apoiou os cotovelos nos joelhos. — A esposa de um traidor não receberia ajuda alguma.

Niente ouviu as próximas palavras como se fossem o toque do sino da morte.

— Como o senhor quiser, tecuhtli — disse Talis. — Eu o levarei lá.

— Ótimo — falou Zolin ao ficar de pé. — Citlali, coma e beba alguma coisa e prepare os guerreiros para mais uma batalha. Nahual Niente, faça o mesma com os nahualli. Nesse meio tempo, eu conversarei com você, Talis, enquanto vamos atrás dessa areia negra.

 

Sergei ca’Rudka

SERGEI CUSTOU A ACREDITAR no que Karl e Varina lhe contaram. Ele tinha visto a fumaça dos incêndios em Nessântico, cujo cheiro tinha sido trazido pelo vento, e sabia que a cidade sofria, mas isso: Nessântico conquistada, a maior parte em ruínas...

Isso, Sergei não tinha esperado.

Havia muita coisa que ele não tinha esperado. Sergei sentiu-se muito velho e frágil realmente.

— O archigos ca’Cellibrecca está aqui? — perguntou Karl. Sergei concordou com a cabeça. O rosto do numetodo ficou rígido e determinado, a voz amarga comeu sílabas. — Então me leve até ele, Sergei. Que esse seja o pagamento por libertar você da Bastida. Apenas me leve até ele e afaste-se. Você não precisa se envolver com o resto.

— Não é tão simples assim, Karl.

— Na verdade, é simples assim — retrucou o numetodo. — O homem matou Ana, e eu quero justiça pelo assassinato dela.

— Isso, eu não posso dar para você. Não aqui, nem agora. Mas posso lhe dizer que o hïrzg Jan não gosta muito do homem. Acho que o mesmo pode ser dito a respeito da a’hïrzg Allesandra, pelo menos por enquanto. Karl, deixe-me cuidar dessa situação. Por favor. — Sergei olhou para Varina, em busca de apoio.

— Ouça o que ele diz — falou ela. — Ou ouça Ana; o que ela lhe diria?

O trio estava na tenda de Sergei no acampamento firenzciano, onde os dois tinham sido trazidos pelos primeiros soldados que encontraram. O regente ficou surpreso e contente de ver os dois numetodos; após a separação, Sergei temeu que eles tivessem sido capturados e aprisionados, ou coisa pior. Se a história de Karl e Varina tinha feito o regente sofrer era porque a ideia de Nessântico arruinada era dolorosa demais para imaginar.

Ele também sabia que o hïrzg e a a’hïrzg, no mínimo, também já teriam sido informados da chegada de Karl e Varina; Sergei estava um pouco surpreso por ainda não ter ouvido alguma coisa de um dos dois. E quando o archigos Semini soubesse que o embaixador dos numetodos estava no acampamento... Ele precisava se preparar para isto. Allesandra e Jan eram outro problema; Sergei não sabia exatamente como os dois reagiriam. Ele faria o possível para proteger Karl e Varina, mas...

Sergei falou — Karl, eu lhe prometo isto: quando chegar o momento, ajudarei você com ca’Cellibrecca. O homem é uma praga e um insulto ao robe que a archigos Ana usou. Ambos concordamos com isso. Quando chegar o momento, eu terei prazer em lhe ajudar a tornar a morte dele tão dolorosa quanto você quer. — Sergei quase sorriu ao pensar em Semini instalado na Bastida. Sim, aquilo seria delicioso. Aquilo seria... prazeroso.

Varina arregalou um pouco os olhos com a declaração, mas Karl concordou com a cabeça, com os lábios franzidos. Houve um pigarreio discreto de uma garganta na aba da tenda, um momento depois. — Entre — falou Sergei, e a aba foi aberta para revelar um dos pajens do hïrzg.

— Regente, o hïrzg Jan pede que o senhor leve seus dois convidados... — os olhos do menino se voltaram para Karl e Varina — ... à tenda dele. O hïrzg montou um jantar para os dois e deseja escutar o que eles têm a dizer.

— Diga ao hïrzg que iremos imediatamente — falou Sergei para o pajem, que fez uma mesura e saiu. — Vocês não têm o que temer do hïrzg Jan — disse o regente para os dois. Ele torcia para que fosse verdade. — Eu até gosto do jovem. De certa forma, ele me faz lembrar de mim mesmo...


— O archigos Semini me dirá que os numetodos são hereges e mentirosos, fisicamente perigosos para mim, bem como para minha alma eterna — disse o hïrzg Jan.

— O archigos Semini é um mentiroso e um tolo, além de burro — respondeu Sergei. — Se me perdoa a franqueza, hïrzg.

Jan sorriu. — Sentem-se — falou ele para Karl e Varina ao apontar para a mesa com pão, queijo e uma panela com guisado de carne. Pratos foscos de estanho estavam dispostos diante deles. — Aproveitem os pequenos confortos que temos aqui em campanha, uma vez que não posso oferecer a hospitalidade completa de Firenzcia. — Quando os dois hesitaram, o sorriso de Jan cresceu. — Eu lhes garanto que tenho a mesma opinião do regente no que se refere ao archigos Semini.

Varina conseguiu dar um sorriso; Karl ainda parecia inseguro e perguntou — E qual é a opinião do hïrzg sobre os numetodos?

— Uma das coisas que o regente ca’Rudka me ensinou é que devo julgar as pessoas não pelo que são, mas por quem elas são. Eu ainda não tenho opinião sobre os numetodos; até agora, nunca havia conhecido um. — Jan gesticulou para as cadeiras novamente. — Por favor...

Sergei fez uma mesura. Um momento depois, Karl repetiu o gesto, e os três tomaram seus lugares em frente ao hïrzg. — A a’hïrzg se juntará a nós? — perguntou o regente.

O sorriso de Jan sumiu ao ouvir isto e disse — Não. — Aquela única palavra quase pareceu arrancada à força. Sergei aguardou mais explicações, mas nenhuma veio. O regente perguntou-se sobre o que teria acontecido entre matarh e filho; até agora, ele só tinha visto Allesandra de relance durante um dia e meio. Embora o exército se arrastasse próximo às muralhas de Nessântico em um passo lento enlouquecedor, Allesandra manteve-se em uma carruagem fechada, sem nem o filho, nem o archigos como companhia.

Mas Sergei não pediria uma explicação ao hïrzg. Em vez disso, Jan olhava para Karl e Varina. — Eu gostaria de saber sua história, contada por vocês mesmos — falou ele.

Pela próxima virada da ampulheta, foi isso que Karl e Varina fizeram, com Jan guiando os dois com perguntas ocasionais. Sergei ouviu a maior parte e achou graça quando Karl omitiu algumas partes da história. Jan inclinou-se para a frente quando o numetodo descreveu a areia negra, como foi usada pelos ocidentais no ataque à cidade, e ao saber que havia ingredientes na cidade para fazer mais.

— Você afirma que essa areia negra é a chave do sucesso dos ocidentais? Essa é a mesma magia que nós soubemos que eles usaram nos Hellins?

— Não é magia, hïrzg — falou Karl. — Essa é a parte interessante. É alquimia. Varina tem certa noção, pelo que Talis disse e pelas amostras que eu trouxe do apartamento de Uly, de como preparar a areia negra. Eu vi, todos nós vimos, as coisas terríveis que a areia pode fazer. — Uma sombra sinistra pareceu passar pelo rosto de Karl ao dizer isso, e Sergei sabia que ele se recordava do assassinato de Ana. Era um horror que jamais seria apagado da mente de qualquer um dos dois. — Os ocidentais colocaram fogo na cidade com a areia; eles mataram centenas, talvez milhares. Hïrzg, com essa areia negra, nenhum exército precisa de ténis-guerreiros ou de feitiços. Nenhuma armadura consegue resistir, espadas não podem superá-la, não importa o número.

— E você sabe onde está o estoque dessa areia negra?

Karl assentiu com a cabeça. — Eu sei. Varina também. Nós podemos levar o senhor até lá, hïrzg. Mas os ocidentais também estarão atrás da areia negra. Talis... eu suspeito que Talis já esteja levando os ocidentais até ela. Eles já podem estar com a areia.

— Hïrzg — interrompeu Sergei. — Eu entendo por que o senhor deixou seu exército ocioso aqui. Eu talvez tivesse tomado a mesma decisão no seu lugar; embora meu coração fique partido ao ver a cidade queimar e saber que os ocidentais pisoteiam as ruínas dos lugares que mais amei no mundo. — Ele esfregou o nariz falso, notou que Jan olhou fixamente para o gesto e abaixou a mão. — Mas, se o senhor realmente está disposto a ouvir meu conselho, eu lhe diria que o tempo de esperar acabou. Eu também testemunhei os efeitos dessa areia negra. Se os ocidentais tiverem tempo para criar mais, então seus próprios soldados pagarão o preço pela hesitação. Hïrzg, ouça o que meus amigos estão lhe dizendo. A Garde Civile de Nessântico foi derrotada. Aquela batalha acabou. Temos que atacar agora; não Nessântico, mas aqueles que a derrotaram, antes que venham à Firenzcia.

Sergei achou que o apelo não teria efeito. Jan olhava para o alto, o olhar vasculhava a lona iluminada pelo fogo como se houvesse uma resposta escrita na fumaça. O jovem suspirou uma vez. Então bateu palmas e um pajem entrou.

— Chame o starkkapitän aqui — disse o hïrzg para o menino. — Há preparativos imediatos que eu preciso que ele faça. Corra!

 

Jan ca’Vörl

ELE OUVIU as grandiosas e gloriosas histórias de guerra várias vezes ao longo dos anos: do vavatarh Jan; do vatarh; dos onczios e dos conhecidos mais velhos; e, mais recentemente, de Fynn. Até mesmo da matarh, que contou que o vavatarh a elogiou quando era pequena por seu conhecimento de estratégia militar.

Jan começou a se dar conta de que essas histórias eram inventadas, memórias falsas ou, muitas vezes, mentiras deslavadas.

Até hoje, ele nunca havia entrado a cavalo em uma batalha de verdade. Até hoje, seu conhecimento sobre habilidades marciais fora intelectual e seguro. Mostraram a Jan como cavalgar, manejar uma espada, usar uma lança ou arco e flecha sobre o cavalo, como se proteger de outro chevarittai ou de um soldado de infantaria. Ele participou de lutas com espada de treino, participou de manobras militares. Aprendeu sobre a arte da guerra: quais táticas usar contra um inimigo que estivesse em um terreno superior ou inferior, ou que possuísse mais soldados ou menos, ou mais ténis-guerreiros ou menos. Jan sabia que formação teoricamente era melhor contra outra.

Era o que qualquer jovem rapaz de seu status teria aprendido.

A guerra, na mente de Jan, era um exercício muito gracioso e preciso. Ele sabia — intelectualmente — que era impossível que fosse tão linear e eficiente. Jan entendia.

Mas... ele não sabia que a guerra podia ser tão desordenada assim. Tão caótica. Tão real.

Ninguém no exército firenzciano achava que Jan — assim como Fynn, assim como seu homônimo, o velho hïrzg Jan — seria o verdadeiro general nesse importante ataque. Eles sabiam que a estratégia era do starkkapitän ca’Damont, com a ajuda do regente ca’Rudka e a contribuição dos dois numetodos que vieram da cidade em chamas para o acampamento. Sabiam que seria o archigos Semini que comandaria os ténis-guerreiros.

Jan estaria lá, e a bandeira de comando tremularia entre a Garde Hïrzg e os chevarittai à sua volta, e ele avançaria logo atrás da vanguarda de suas forças como Fynn e o antigo hïrzg Jan fizeram antes dele. Mas Jan consultaria o starkkapitän antes de dar ordens. Ele sabia que era uma atitude inteligente; sabia que o resto dos offiziers e chevarittai também tinha noção disso. Francamente, Jan estava tranquilo em relação a consultar o starkkapitän; ele conhecia a própria inexperiência e não era tão arrogante a ponto de insistir em estragar o ataque.

A entrada em Nessântico começou bem o suficiente. Como uma espada curva, as forças firenzcianas avançaram pela cidade através de todos os portões do lado leste. Não houve resistência; pelo contrário, o surgimento dos soldados foi recebido por gritos de alegria pela população e pelos remanescentes da Garde Civile de Nessântico espalhados. Alguns chevarittai dos Domínios até saíram de mansinho dos esconderijos para engrossar as fileiras de Firenzcia. Após uma virada da ampulheta dentro das muralhas da cidade, Jan começou a torcer para que a situação continuasse assim: marchando sem resistência até a fronteira oeste da cidade e encontrando as forças ocidentais em plena retirada.

Sob o calor do dia, ele suava debaixo da armadura, e o que mais queria era arrancar o fardo pesado dos anéis de aço. Aquilo parecia ser o pior desconforto da vitória.

— Qual o caminho, embaixador? — perguntou Jan para Karl, que cavalgava com seu séquito ao lado de sua matarh, Varina e Sergei.

— Ao norte, por algumas transversais — respondeu o numetodo, que apontava —, depois vários quarteirões para o leste.

Jan concordou com a cabeça. O exército firenzciano ganhou volume pela Avi. O sol brilhava intensamente. Era um belo dia. Eles já tinham vencido, e o hïrzg sentiu-se confiante a ponto de dar uma ordem por si próprio. — Starkkapitän — disse Jan para ca’Damont —, eu levarei metade da Garde Hïrzg comigo, bem como o regente e os numetodos. Deixo você no comando do exército. Faça o que for necessário para defender esta parte da Avi e a cidade. Depois você e a a’hïrzg prosseguirão para o sul, para a Ilha A’Kralji, e cuide para que controlemos a ilha e as Ponticas orientais. Se houver algum problema, mande um mensageiro até mim imediatamente. Da minha parte, eu mandarei um mensageiro assim que nós localizarmos a areia negra e soubermos como está a situação por lá.

— Jan. Hïrzg. — Allesandra franziu a testa, enquanto ca’Damont parecia incomodado. — Eu não acho...

— Eu dei minhas ordens — disparou Jan e interrompeu sua matarh. — Starkkapitän? Tem algum problema com elas?

Ca’Damont meneou a cabeça negativamente. Ele vociferou ordens rápidas.

— Eu me encontro depois com a senhora, matarh — disse Jan. — Na Ilha.

Allesandra não pareceu convencida. O hïrzg pensou que ela fosse protestar mais, mas a matarh só olhou feio para ele. Jan viu Allesandra dar uma única olhadela para Sergei; o regente deu levemente de ombros sob a armadura. O nariz lançou fagulhas de sol sobre o rosto.

A matarh finalmente inclinou a cabeça e disse — Como quiser, meu hïrzg. — “Meu hïrzg”, não “meu filho”. Jan notou a irritação na expressão. Ela puxou as rédeas com força e começou a caminhar para o sul. Um quarteto da Garde Hïrzg e um téni-guerreiro cercaram a a’hïrzg com atraso.

O starkkapitän prestou continência e falou — Que Cénzi oriente o senhor, meu hïrzg. Eu cuidarei para que a a’hïrzg permaneça a salvo. — Ca’Damont começou a ir embora, mas puxou as rédeas, e disse — Fynn fez uma excelente escolha no senhor. Tome cuidado, hïrzg Jan.

O starkkapitän ca’Damont prestou continência novamente e foi embora, com a maior parte do séquito com ele. Jan olhou em volta para os demais e falou — Vamos encontrar essa areia negra. Embaixador ca’Vliomani, você vai à frente.

Karl levou o esquadrão de Jan ao norte pela Avi, e os soldados pelos quais eles passaram prestaram continência ao hïrzg e a seu estandarte, depois o grupo virou à esquerda em uma rua mais estreita e deixou o exército para trás. O tilintar das armaduras e o baque frio do aço nos cascos dos cavalos eram o barulho mais alto na rua. Não havia mais rostos nas janelas, mais ninguém visível adiante, no caminho curvo. Algumas portas dos prédios pelos quais o esquadrão passou estavam abertas; muitas à força. Havia lixo acumulado na avenida. Eles passaram por vários corpos: gente morta há alguns dias, pela aparência, cadáveres inchados com pernas e braços rígidos, em ângulos estranhos, cheios de vermes e moscas. Jan olhou fixamente para os mortos ao passarem; ele notou que Sergei fez o mesmo, com uma intensidade estranha.

Há pouco tempo, esses corpos tinham sido pessoas vivas, que talvez corressem para os amantes, acompanhassem os filhos, comprassem comida nos mercados ou bebessem nas tavernas, levassem suas vidas em frente. Ele duvidava que essas pessoas esperassem que a vida fosse acabar tão rapidamente e de modo tão definitivo. Duvidava que elas esperassem que fossem virar monumentos acidentais e temporários da guerra.

Jan fungou, incapaz de manter o fedor longe do nariz — ele perguntou-se se Sergei realmente podia sentir o cheiro. O hïrzg segurou firme na espada e enroscou as rédeas com mais força na mão esquerda.

Ao sul, eles ouviram um estrondo repentino como trovão e gritos baixos. Sergei, ao lado de Jan, olhou naquela direção com preocupação, e disse — Eu acho, hïrzg, que a batalha começou. Talvez devêssemos retornar.

Jan balançou a cabeça. — Embaixador, a que distância estamos do lugar? — perguntou.

— Mais dois cruzamentos — respondeu ca’Vliomani. — Não mais do que isso.

— Então nós prosseguiremos.

Sergei franziu os lábios, mas não teve outra reação.

Eles continuaram até chegar a outra viela, ainda menor, onde Karl parou e ficou em pé na sela. Ao olhar a rua estreita, Jan viu uma placa antiga e surrada pendurada em um prédio à direita: havia um cisne mal desenhado em tinta vermelha nas tábuas.

— Ali. — Ca’Vliomani chamou Jan e os demais. — Nós deveríamos...

Ele não foi adiante.

Da esquerda, da direita, várias dezenas de guerreiros pintados vieram para cima deles aos berros. Os próximos grãos da ampulheta viraram um caos de que Jan se lembraria pelo resto da vida.

... um clarão súbito de uma luz ofuscante surgiu à frente do grupo, depois mais um, e Jan percebeu que Karl e Varina lançavam feitiços. Ele ouviu gritos...

... o chevarittai à direita de Jan foi arrancado da sela com o pulo de um ocidental, e o cavalo do homem chocou-se com força na perna do hïrzg. A perna direita ficou presa entre os dois animais, e ele gritou pela pontada de dor, apesar da proteção das grevas. Jan puxou as rédeas do cavalo...

... mas houve mais movimento à direita e por trás no exato momento em que ele fez isso. Jan viu o aço e colocou sua espada diante do corpo da montaria quase tarde demais — mas o suficiente para que o golpe que teria acertado acima das presilhas de seu coxote fosse desviado, mas a lâmina do ocidental cortou fundo a pata traseira de seu cavalo de guerra. O animal relinchou de dor e terror. Jan viu o cavalo arregalar os olhos, sentiu a perna da montaria ceder, ele estava caindo...

... — Ao hïrzg! — Jan ouviu alguém gritar. Ele estava no chão com uma confusão de pernas, tanto equinas quanto humanas, em volta. O hïrzg ficou de pé rapidamente (a perna direita enviou uma pontada de dor espinha acima por causa do abuso). Um ocidental vinha para cima dele, e Jan conseguiu encontrar o cabo da espada, levantar o aço pesado e estocar debaixo do peitoral da estranha armadura do homem. Ele sentiu a lâmina entrar na carne. Ela ficou brevemente presa, Jan a torceu e empurrou, gemeu e sentiu a boca se esgarçar em um ricto de fúria, a espada entrou subitamente. O ocidental, empalado, ainda completou o ataque, mas as braceleiras em volta dos antebraços do hïrzg aguentaram o impacto, embora ele achasse que o braço direito pudesse ter quebrado com o golpe. Jan tentou arrancar a espada do homem, mas não conseguiu, e o peso morto do ocidental quase tirou a arma de sua mão, que ficou inerte e dormente...

... Outro ocidental berrou à sua esquerda, Jan puxou a espada desesperadamente outra vez, embora soubesse que seria tarde demais. Mas outra espada — firenzciana — cortou a garganta do homem e quase decepou sua cabeça. O hïrzg ficou coberto por sangue quente...

... E mãos levantaram Jan. — O senhor está bem, meu hïrzg? — perguntou alguém, e ele concordou com a cabeça. A mão direita formigava, mas parecia ter voltado à vida. Jan fechou os dedos, exercitou-os dentro da manopla, abaixou a mão e soltou a espada com um puxão. Ele virou-se...

... e viu um trio de ocidentais reunidos como escudos em volta de outro guerreiro pintado, este com um pássaro tatuado no crânio raspado e no rosto. Sergei estava ao seu lado, sua espada subia e descia, mas o soldado firenzciano ao lado do regente caiu com a mão decepada no pulso. Jan correu para a brecha, sem pensar em nada a não ser reagir...

... e, de alguma forma, ele passou pelos guardas e ficou em frente ao guerreiro com a marca do pássaro. A armadura do ocidental desviou o primeiro corte de Jan, e o pomo duro de bronze da espada do homem bateu no queixo do hïrzg sob o elmo. Ele cambaleou para trás, com gosto de sangue na boca...

... ao ver o guerreiro-pássaro amparar o ataque da espada de Sergei...

... ele investiu novamente contra o homem, rosnou e contorceu o rosto, e o ocidental não foi capaz de se defender de ambos ao mesmo tempo. Foi a espada de Jan que penetrou, que encontrou a brecha entre os tubos roliços da armadura do homem e entrou no corpo. O ocidental perdeu o fôlego como se estivesse surpreso. O hïrzg ouviu uma voz chamar um nome estranho, “tecuhtli”, quando o homem caiu de joelhos. A espada de Sergei acompanhou a arma de Jan e acertou o sujeito no pescoço e na cabeça. O guerreiro-pássaro desmoronou sobre os paralelepípedos ensanguentados, de cara no chão...

... e tudo acabou, a não ser pelo estrondo da pulsação nos ouvidos.

Jan percebeu que sua respiração estava acelerada, que o coração batia tão furiosamente que ameaçava irromper pelas costelas, que a perna e os braços doíam, que estava completamente coberto por sangue, e que, pelo menos em parte, o sangue era seu. Ele estava curvado e ofegante, com as pernas bem afastadas. Jan sentiu um embrulho no estômago e engoliu em seco para conter a bile ardente, para se forçar a não vomitar. Sentiu a mão de Sergei dar um tapinha em seu ombro sobre a armadura. Ele pestanejou e olhou em volta: havia pelo menos uma dúzia de corpos no chão, alguns com o uniforme preto e prateado de Firenzcia. Uns poucos ainda se debatiam; enquanto o hïrzg observava, os homens da Garde Civile despachavam os ocidentais que ainda estavam vivos. Havia córregos de sangue que fluíam dos corpos e entranhas espalhadas na rua como salsichas obscenas.

Karl e Varina estavam incólumes — os corpos mais próximos aos dois estavam carbonizados e escurecidos; havia um cheiro de carne cozida no ar. O nariz falso de Sergei tinha sumido completamente e a bochecha esquerda estava aberta por um corte; onde ficava o nariz, a pele era sarapintada e as cavidades da cabeça de Sergei estavam escancaradas, o que deixava o rosto com a aparência horripilante de um crânio. Jan foi novamente tomado pela náusea, e dessa vez o mundo pareceu girar um pouco à sua volta. Ele colocou a ponta da espada no chão e apoiou-se pesadamente sobre a arma.

— Tecuhtli! — O hïrzg ouviu o chamado novamente, agora um homem saia do prédio onde estava pendurada a placa do cisne vermelho, não mais do que a uma dezena de passos de onde Jan e os demais estavam. Ele segurava um frasco de vidro na mão direita, cheio de grânulos escuros; na mão esquerda havia uma bengala retorcida. O sujeito parou, como se estivesse assustado pela imagem de carnificina à frente.

— Talis... — Jan ouviu Karl murmurar o nome: uma surpresa, uma maldição, um feitiço. — Areia negra...

O homem fechou a cara, ergueu o frasco com a mão direita e jogou o braço para trás como se fosse lançar o objeto. Jan imaginou como seria morrer e se encontraria o vavatarh Jan e Fynn na morte.

Uma mulher saiu correndo do beco atrás da taverna, um borrão marrom e cinza, tão depressa que ninguém teve tempo de reagir. Assim que Talis levantou a mão, ela agarrou o cabelo do homem e puxou a cabeça para trás. A boca do homem ficou tão escancarada quanto a de um peixe no mercado, e o tom vermelho seguiu o prateado quando a mulher passou uma faca pela garganta de Talis. Uma segunda boca ficou ainda mais escancarada do que a primeira e vomitou sangue. O frasco de vidro caiu da mão do sujeito e quebrou no chão, sem explodir. Ela debruçou-se sobre o corpo — parecia colocar alguma coisa às pressas no olho de Talis —, Jan deu uma boa olhada no rosto da mulher, entre o cabelo emaranhado.

O coração saltou no peito. Ele ficou boquiaberto e murmurou — Elissa?

A jovem ergueu a cabeça e arregalou os olhos ao vê-lo, e embora ela não tenha dito nada, Jan ouviu a mulher respirar fundo. Ela arrancou algo do rosto de Talis; o hïrzg vislumbrou uma pedra branca entre os dedos. A jovem correu para o beco de onde veio. Um dos soldados começou a correr em perseguição.

— Não! — berrou Jan para o homem. — Deixe-a ir!

O soldado parou. Jan ouviu os sussurros ao redor: — A Pedra Branca...

A Pedra Branca...

Não, o hïrzg queria dizer para todos, não era verdade, porque aquela pessoa era Elissa, que Jan amava. Não era verdade porque a Pedra Branca assassinou Fynn, que ele também amava. Não era verdade.

E, de alguma forma impossível, era verdade.

Era verdade.

 

Niente

O NAVIO ESTAVA LOTADO de gente fugindo da cidade, e de pessoas dos outros navios agora emborcados e meio submersos no rio. O convés estava escorregadio com água, sangue e vômito. A água em volta estava cheia de corpos rígidos e inchados — tanto de orientais quanto de tehuantinos. Havia guerreiros e nahualli feridos espalhados por toda parte do convés, gemendo sob a luz do sol que sumia; os tripulantes que ainda eram capazes subiam nos mastros para soltar as velas e apertar os cabos. A âncora, que gemia e protestava, foi içada no lodo do fundo do rio, e o capitão do navio berrava ordens. Devagar, muito devagar na opinião de Niente, a cidade começou a ficar para trás conforme eles eram levados embora pela corrente do rio e pelo vento.

Niente observava da popa do navio de guerra, à direita de Citlali. O corpo do guerreiro supremo, decorado com os traços rubro-negros de cortes cicatrizados feitos por espadas, apoiava-se pesadamente no cabo quebrado de uma lança enquanto ele olhava com raiva para a cidade.

— Você estava certo, nahual — disse Citlali. — Você viu corretamente a visão de Axat.

Niente concordou com a cabeça. Ele ainda estava admirado por estar aqui, por estar vivo, por ter sido poupado, de alguma maneira impossível, por Axat. O nahual poderia ver a terra natal novamente, se as tempestades do Mar Interior permitissem. Teria a esposa nos braços outra vez; abraçaria os filhos e os veria brincar. Niente respirou fundo e estremeceu.

— Eu não fui poderoso o suficiente — falou ele. — Não fui o nahual que deveria ter sido. Se tivesse sido mais firme ao falar com Zolin, se tivesse visto as visões com mais clareza...

— Se tivesse feito isso, nada significativo teria mudado — respondeu Citlali. — Zolin não teria lhe dado ouvidos, nahual, não importa o que você dissesse. Zolin só ouvia os deuses clamarem por vingança. Ele não teria lhe dado ouvidos. Você teria sido afastado como nahual e teria morrido aqui também.

— Então foi tudo um desperdício.

Citlali deu uma risada seca e sem graça. — Um desperdício? Longe disso. Você não tem imaginação, nahual Niente, e não é um guerreiro. Um desperdício? Nenhuma morte em combate é um desperdício. Olhe para a grande cidade dos orientais. — O guerreiro supremo apontou para leste, onde o sol reluzia dourado sobre as torres quebradas e atravessava a fumaça dos incêndios que restavam. — Nós tomamos a cidade deles. Tomamos o coração dos orientais. — Ele estendeu a mão com a palma para cima, como se pegasse alguma coisa. Os dedos fecharam-se lentamente. — Você acha que algum dia eles se esquecerão disso, nahual? Não. Eles tremerão à noite e ficarão aterrorizados diante de um som repentino, pensarão que somos nós de volta. Eles se lembrarão disso de geração em geração. Jamais se sentirão seguros novamente; e eles terão razão.

Citlali cuspiu sobre a amurada para o rio. Havia sangue no cuspe. — Nós pegamos o coração dos orientais e ficaremos com ele. Eu faço essa promessa para Sakal aqui, e você é minha testemunha; que o olho Dele veja minhas palavras e registre. Nós ficaremos com o que tiramos dos orientais. Um tecuhtli estará de novo onde Zolin caiu.

Citlali deu um tapa nas costas de Niente com tanta força que ele cambaleou. — O que você acha disso, nahual?

Niente olhou fixamente para a cidade, que desaparecia no rastro do navio, e falou — Eu olharei na tigela premonitória hoje à noite, tecuhtli Citlali, e direi o que Axat diz.

 

A Pedra Branca

A NOVA VOZ na cabeça da Pedra Branca gritava, lamentava e se revoltava, falava metade na língua de Nessântico e metade em um idioma que ela não entendia de maneira alguma. As outras vozes riam e vibravam.

— Jan, o seu amante... Que visão agradável ele tem de você agora!

— Você acha que ele se casaria com a assassina suja que viu?

— Ele dormiu com uma assassina e agora ela carrega seu filho no ventre.

— Ele vislumbrou a verdade. Espero que você sempre se lembre do horror no rosto de Jan ao ser reconhecida.

Aquela última voz era de Fynn, satisfeito e presunçoso. — Calem-se! — gritou a Pedra Branca para as vozes, mas elas só riram ainda mais alto e abafaram o que ela ouvia com os próprios ouvidos.

Ela havia seguido Talis e o líder ocidental desde a Ilha até o Cisne Vermelho, após verificar que Nico parecia a salvo. Ela estava furiosa, com raiva de Talis — que rompera sua promessa com a Pedra Branca. Os numetodos... eles podiam ser hereges nojentos, mas trataram Nico com gentileza e respeito, especialmente a mulher.

Mas Talis...

Talis traiu Nico, e por causa disso a matarh do menino estava à beira da morte, e a Pedra Branca dissera para Talis qual seria o preço. Dissera e cobraria o pagamento. A Pedra Branca sempre cumpria sua palavra.

Ela seguiu Talis então, quando — do nada — sons de batalha irromperam ao leste e a Pedra Branca viu o líder ocidental agrupar seus homens para emboscar os chevarittai e os soldados firenzcianos. De repente, havia muita luta acontecendo, muito movimento para ela agir. A Pedra Branca ficou preocupada naquele momento, se perguntando se Nico estava realmente a salvo, quis desesperadamente correr até o menino, com medo de que Talis pudesse ter cometido um erro. Mas ela o viu sair de mansinho do quarto onde havia entrado e depois correr para a rua. A Pedra Branca seguiu Talis. Ela assistiu ao confronto e viu a chance. Passou a faca na garganta dele e sentiu Talis morrer ao deixar cair o frasco com o pó negro. E ao deitá-lo no chão e colocar a pedra no olho do homem, a Pedra Branca o viu de relance.

Jan.

O choque foi palpável. Ela sentiu com tanta intensidade como se o coração tivesse sido posto diretamente sobre uma camada escondida de brasas incandescentes. Jan: ele ficou parado ali, e ela testemunhou o lento reconhecimento de seu rosto. A expressão de Jan a assustou. Era permeada de choque e carinho, de saudade e horror. Vê-lo foi horrível e maravilhoso ao mesmo tempo. Ela quis correr até Jan, quis pegar sua mão e colocar na barriga inchada e sussurrar: aqui, querido. Esta é a vida que criamos juntos. Isso é o que o nosso amor fez. Ela também quis correr, esconder o rosto e fingir que essa revelação nunca aconteceu.

O segundo impulso foi mais forte.

Ela pegou a pedra branca do olho de Talis e fugiu, com vontade de que Jan a seguisse e com medo de que ele realmente fizesse isso.

A Pedra Branca não parou até chegar à Pontica Kralji. Ali não havia homens estranhos da cor de bronze; nenhum que estivesse vivo, de qualquer forma, embora o chão estivesse cheio de corpos ocidentais. Ela viu soldados usando os tons preto e prateado de Firenzcia por toda parte nas ruas — o que fez Fynn se manifestar com empolgação dentro de sua cabeça —, cruzou a Pontica cuidadosamente e escondeu-se depressa na Ilha. Isso foi fácil; havia tantas paredes desmoronadas, tantos prédios queimados. Ela foi até a cabana do jardineiro no terreno do palácio para onde Nico e sua matarh tinham sido levados, onde o curandeiro ocidental trabalhou no corpo ferido de Serafina.

O curandeiro e todos os soldados ocidentais tinham ido embora, mas os medos da Pedra Branca passaram quando viu que Nico ainda estava ali, segurando a mão da matarh, ajoelhado ao lado da mesa onde ela estava deitada — devia ter sido uma das mesas de jantar do palácio antigamente, ainda coberta por damascos rendados e elegantes, agora sujos e manchados de sangue. Ela notou o movimento da respiração lenta no peito de Serafina, mas os olhos continuavam fechados e ela parecia sem reação.

— Nico — falou a Pedra Branca. O menino levou um susto e apertou com mais força a mão da matarh.

— Ah — disse ele um momento depois. O rosto ficou um pouquinho alegre. Nico fungou e passou a mão pelo nariz. — Elle. É você.

A Pedra Branca confirmou com um aceno e foi até o menino. Ela segurou com as mãos de Nico e a de Serafina. Viu que ele olhava fixamente para o sangue que manchava a pele da matarh. — Precisamos ir embora, Nico.

— Eu não posso abandonar a matarh. Talis voltará em breve.

A Pedra Branca fez que não com a cabeça. Ela apertou com força a mão dele. A pele era quente, tão quente, e ela sentiu a criança dentro dela dar um pulo com o toque; o movimento da vida, o despertar. Ela levou um ligeiro susto com a sensação. — Não. Infelizmente, Talis está morto, Nico.

Ela percebeu as lágrimas surgirem nos olhos do menino e o lábio inferior tremer. Depois ele fungou de novo e piscou. — Isso é verdade?

Ela concordou com a cabeça. — É verdade, Nico. Sinto muitíssimo.

O menino chorava plenamente agora, as palavras saíram entre os soluços. — Mas minha matarh... Eu não posso... Eles acabaram de abandoná-la... Ela está dormindo e eu... não consigo acordá-la...

— Sua matarh gostaria que você fosse comigo. Olhe para ela, Nico. Sua matarh ama muito você, eu tenho certeza que sim, mas não sei se ela acordará um dia, e a cidade está cheia de soldados e morte. Ela gostaria que você fosse comigo porque posso mantê-lo a salvo. Eu manterei você a salvo.

— Mas eu fiz isso com ela — disse Nico. — A culpa é minha. Quero que ela saiba que eu sinto muito.

A Pedra Branca apertou a mão de Nico em volta da mão da matarh. — Ela sabe. Nico, temos que correr.

Ela tirou a mão do menino de Serafina, abriu os dedos com delicadeza. Ele soltou a matarh com hesitação, mas sem reclamar. — Agora dê um beijo — falou a Pedra Branca. — Ela sentirá e saberá.

Nico ficou de pé, inclinou-se sobre o corpo da matarh e deu um beijo na bochecha. Ela colocou a mão de Serafina, que pendia para o lado, sobre a mesa e deu um tapinha. Nico olhou para trás, então, com os olhos cheios de lágrimas, que não caíam.

— É o momento — disse a Pedra Branca.

Juntos, de mãos dadas, eles foram embora da cidade em chamas e ruínas.

 

Allesandra ca’Vörl

— AQUI ESTÁ A SENHORA, MATARH. Ele é todo seu. Espero que fique feliz.

As palavras de Jan saíram como um banho de água escaldante. Elas queimaram e cauterizaram Allesandra, foram ditas com frieza e desdém espantosos e cruéis. O hïrzg fez um gesto grandioso e debochado na direção do Trono do Sol. Ela olhou fixamente para a enorme peça de cristal entalhado, que estava estranhamente fora do lugar, no meio das ruínas do Velho Templo. O trono foi rachado e mal reformado; estava coberto por um pano com estranhos desenhos geométricos, as ruínas do domo rachado e da claraboia estavam espalhadas sobre o piso quebrado de cerâmica, e por toda parte no salão havia os restos de um banquete qualquer. Ratos espreitavam os cantos do cômodo, e o ar fedia à fumaça e à carne podre. Perto dos fundos havia um corpo, coberto às pressas por uma tapeçaria.

Allesandra sabia de quem era o cadáver encoberto: de Sigourney, cuja cabeça separada do corpo estava enfiada em uma lança perto do trono.

O regente e os dois numetodos estavam recortados pela luz do sol nas portas abertas do templo, longe demais para ouvir a conversa de Jan com ela. O starkkapitän ca’Damont dava ordens na praça do templo e despachava patrulhas para garantir que todas as tropas ocidentais estivessem fora da cidade e para impedir que os sobreviventes saqueassem.

Allesandra ouviu o arrastar de passos nas portas do templo; ao olhar para trás, viu o archigos Semini pisar com cuidado sobre os destroços no chão. Jan também viu o homem e disse — Ah, archigos Semini. Estou contente que esteja aqui, uma vez que isso também é seu. Eu lhe dou Nessântico. Você não ficará mais em Brezno.

— Meu hïrzg? — perguntou Semini ao olhar com preocupação de Allesandra para Jan. — Eu pensei que o archigos talvez pudesse ficar em Brezno agora, dada a destruição daqui. Eu poderia designar um a’téni para Nessântico...

— Ah, eu concordo — falou Jan, e o sorriso provocou um arrepio em Allesandra. Era o sorriso sério e indiferente que o vatarh de Allesandra usava quando estava furioso. Ela o tinha visto muitas vezes na infância e na idade adulta, quando ele finalmente a trouxera de volta para Firenzcia. Agora, a expressão de desdém e deboche voltaram. Fuligem e sangue sujavam o rosto de Jan, e o braço e a perna direitos estavam bem enfaixados. Ele mancava e não parecia capaz de erguer o braço da espada. Allesandra perguntou-se o que o filho tinha visto, o que sentia. Ela queria envolvê-lo nos braços e confortá-lo como fazia quando Jan era criança, mas o hïrzg estava a um cauteloso passo de distância, como se temesse exatamente isso. — Veja bem, haverá um archigos em Brezno. Quanto a ter um archigos em Nessântico, bem... — Jan deu de ombros friamente. — A escolha é sua. Você pode querer reivindicar o título e mantê-lo por um tempo, embora você sempre tenha dito que queria uma fé concénziana reunificada. Ou talvez o archigos em Brezno deixe você ser o a’téni aqui em Nessântico, apesar de eu aconselhar o archigos contra isso.

— Hïrzg? — balbuciou ca’Cellibrecca. O rosto ficou no tom de branco dos fios que salpicavam a barba e o cabelo escuros; o contraste foi forte. — Eu não entendo.

— Talvez a matarh explique para você, uma vez que agora esta cidade é dela — disse Jan.

Allesandra olhou fixamente para o trono. Ela sentia-se morta, entorpecida. Se alguém a cortasse, pensou, ela não sentiria nada, nem mesmo o calor do sangue na pele. — Meu filho me deu Nessântico, mas me informou que Firenzcia não se reunificará com os Domínios — falou Allesandra para Semini com uma voz tão morta quanto as emoções.

— Considere isso como meu presente de casamento, matarh — falou Jan. — Pelo casamento que eu nunca tive, com a mulher que a senhora mandou para longe de mim.

— Eu estava protegendo você, Jan — disse Allesandra, embora não houvesse energia na reclamação. — Elissa era uma fraude. Uma impostora.

— Eu sei. Ela foi contratada para matar Fynn.

— O quê? — Isso fez com que Allesandra erguesse a cabeça e provocou uma breve onda de fúria. Ela virou-se para encará-lo. — O que você está dizendo? A Pedra Branca matou Fynn.

— Matou, sim — falou Jan com o mesmo sorriso irritante. — Deixe-me dizer uma coisa que a senhora talvez não saiba, matarh, embora devesse saber: Elissa era a Pedra Branca. Ela me usou para se aproximar de Fynn.

— Isso não é possível — disse Allesandra. Não podia ser; não era possível. A voz que ela ouviu, a mulher intermediária; não, não era possível, e, no entanto... Allesandra lembrou-se da voz, mais aguda do que seria esperado de um homem. E ela nunca tinha visto a Pedra Branca. Apenas presumiu...

— Acredite no que quiser — dizia Jan. — Eu realmente não me importo. — Ele gesticulou novamente para o trono. — Tome seu novo lugar, matarh. Não se acanhe. A senhora esperou por tanto tempo, afinal, e o regente ca’Rudka renunciou a qualquer pretensão ao título. A senhora pode mandar Semini abençoá-la. Talvez os ca’ e co’ voltem à cidade agora, para que a senhora possa lhes dizer que há uma nova kraljica.

Jan começou a se afastar, na direção das portas abertas. Ela deu um passo e pegou o braço ferido. — Jan. Filho...

Ele soltou o braço, fez uma careta ao sentir a dor evidente, e aquilo foi uma agonia maior para Allesandra do que qualquer golpe de espada. — Sente-se, matarh. Assuma seu Trono do Sol. A senhora possui o que sempre quis. Aproveite o presente que eu lhe dei.

Dito isso, ele caminhou na direção de ca’Rudka e dos demais. Allesandra observou o filho sair, sentiu vontade de chamá-lo, de impedi-lo de ir embora, de parar o sofrimento.

Ela não fez nada. Observou Jan chegar à passagem iluminada, ouviu sua risada ao dar um tapinha nas costas de ca’Rudka com a mão que não estava machucada. Os quatro foram embora e a luz do sol desabou sobre deles.

Semini olhava para o céu, onde o domo de Brunelli esteve, e respirava alto pelo nariz. Allesandra andou lentamente até o Trono do Sol.

Ela sentou-se.

Nas profundezas do cristal espesso, não havia luz. Nenhuma reação. O trono permaneceu melancolicamente escuro.

1. Dupla mão é um termo de cavalaria para o oficial que tanto pode comandar um esquadrão quanto um batalhão. Também é o caso do soldado que luta com um mosquete e um sabre ao mesmo tempo, que não é aplicável aqui. (N. do T.)


Epílogo: Nessântico

ELA ESTAVA ARRASADA. Ela estava arruinada.

Ela foi devastada pelo fogo e pela magia; foi cortada pelo aço. Foi saqueada e pilhada. Os maiores tesouros danificados ou perdidos. Os prédios que foram sua coroa eram ruínas desmoronadas e pilhas de pedras escurecidas. O colar de joias da Avi a’Parete não reluzia mais à noite. Agora só havia as estrelas no céu, que brilhavam e debochavam da própria escuridão da cidade.

Metade da população estava morta ou havia fugido. Ela sentiu, pela primeira vez em muitos séculos, a marcha de soldados conquistadores em suas ruas: não sentiu uma vez, mas duas. Havia uma kraljica no Trono do Sol, mas ela olhava para um império que murchou e encolheu.

Não havia como negar a magreza da face refletida no espelho sujo do A’Sele: o rosto da cidade era o rosto de uma velha, um rosto encarquilhado, um rosto com cicatrizes, feridas abertas e dor. Não havia beleza ali, nenhuma glória, nenhum deslumbramento.

Tudo isso foi embora, como se nunca tivesse existido.

Quando vieram as chuvas, como era frequente naquele outono, foi como se o mundo inteiro chorasse por ela: a cidade, a mulher. As tempestades podiam lavar a fuligem e extinguir as chamas, mas não podiam curar. Elas podiam refrescar e aplacar, mas não podiam restaurar. Levaram embora os corpos, o lixo e a terra que entupia o rio, mas os trovões não conseguiam destruir as memórias.

As memórias permaneceriam.

Permaneceriam por muito, muito tempo...

Karl ca’Vliomani

ULY NÃO ESTAVA NO MERCADO DO VELHO DISTRITO, embora tivesse estado. As pessoas lembravam-se do estrangeiro tatuado e com cicatrizes, mas disseram para Karl que o homem empacotou as mercadorias e limpou a barraca há apenas dois dias, no mesmo dia em que o kraljiki Audric tinha sido assassinado. Não, nenhum dos proprietários das barracas próximas sabia onde Uly tinha ido, mas (disseram) havia algumas pessoas, que andaram comprando sua poção especial de fertilidade, que poderiam saber.

Karl esperava confrontar esse Uly e arrancar a verdade sobre o que aconteceu com Ana imediatamente. Um novo fogo ardia em seu estômago, mas o alívio e o desfecho não foram imediatos.

Eles levaram dias.

Dias que prejudicaram a recente intimidade que Karl tinha com Varina. O fantasma de Ana pairava entre os dois, ressuscitado pela presença de Talis e sua história, e Varina recuou diante do espectro que Karl não conseguia atravessar. Ela ainda pegava na mão de Karl ou passava os dedos no rosto dele, mas agora havia tristeza no toque, como se Varina fizesse carinho em uma memória. Karl beijava Varina, mas, embora os lábios dela fossem macios e quentes e ele quisesse ceder, o beijo era muito efêmero e distante, como se Karl beijasse Varina através de um véu invisível.

Dias em que ele considerava se devia chamar os numetodos de volta para a cidade e em que decidiu que ainda era perigoso demais. Mika, torcia Karl, estava com a família em Sforzia; deixe que fique lá, deixe que o resto dos numetodos dispersados permaneçam escondidos. Deixe que a Casa dos Numetodos continue vazia e às escuras.

Dias em que as notícias pareciam ficar cada vez piores: os ferimentos terríveis da kraljica Sigourney, a invasão e o saque à Karnor, um exército oriental no solo de Nessântico e seus navios nas águas do A’Sele, a convocação da Garde Civile, os “esquadrões de recrutamento” que alistavam homens, muitas vezes (de acordo com os rumores) querendo ou não servir. Karl era velho o bastante para não atrair muito interesse, mas Talis, não. Ele ficava cada vez mais confinado em casa e tinha que tomar cuidado quando se arriscava a sair para evitar os esquadrões. Karl tinha as próprias dificuldades — seu rosto certamente era conhecido por muitos gardai da Garde Civile, da Garde Kralji e entre os ténis, e ele tinha que tomar cuidado e se disfarçar antes de sair, mudar o sotaque característico de Paeti e não deixar ninguém olhar com muita atenção para o seu rosto.

Esses foram dias em que Karl descobriu, a contragosto, que Talis era mais a pessoa que Serafina dizia que era do que a pessoa que Karl queria que ele fosse. O embaixador ainda não confiava completamente no homem, e dormiu muito pouco desde aquela primeira noite, pois Talis, Serafina e Nico dormiam, juntos, no mesmo quarto que ele e Varina. Karl ficou de olho em Talis, especialmente na manhã seguinte, quando ele limpou a tigela de latão na qual eles acenderam a areia negra e — como Karl lembrou-se que Mahri fazia — encheu com água limpa e polvilhou com outro pó, mais claro. Talis então abriu o Segundo Mundo com um feitiço, e uma névoa esmeralda encheu a tigela. Uma luz agitada pulsou no rosto do homem enquanto ele entoava e olhava fixamente para as profundezas da tigela.

Na luz verde, Karl viu as rugas finas no rosto do homem, que quase ficavam mais profundas enquanto ele observava. Talis já parecia mais velho do que Serafina disse que ele era; Karl achava que sabia o motivo agora: o método de magia dos ocidentais custava caro para o usuário.

— Mahri costumava dizer que via o futuro aí — falou Karl depois, quando Talis, exausto e andando como um velho, jogou a água na jardineira da janela da sala. — Ele não parecia ser muito bom nisso, se não viu a própria morte.

Talis secou a tigela cuidadosamente com a borda da bashta, sem olhar para Karl. — O que vemos na tigela premonitória não é o futuro, mas sombras de possibilidade. Vemos probabilidades e chances. Axat sugere o que pode acontecer se seguirmos um determinado caminho, mas nunca há uma garantia. — O homem guardou a tigela novamente na bolsa que sempre carregava e deu um sorriso ligeiro para Karl. — Todos nós podemos mudar nosso futuro, se formos fortes e persistentes o suficiente.

Karl torceu o nariz para a afirmação. Talis foi então até Nico, e os dois se engalfinharam, rindo, enquanto Serafina observava com um sorriso, e o amor entre os três ficou palpável. Ele ouviu Varina entrar na sala descalça, com olheiras de sono. Ela também observava, e Karl não foi capaz de decifrar o que viu no rosto de Varina. Ela deve ter sentido o olhar porque se virou para o embaixador, deu um sorriso triste e depois virou o rosto novamente. Varina cruzou os braços sobre o peito e abraçou a si mesma, e não Karl.

Todo dia, Karl ia ao mercado do Velho Distrito, geralmente com Varina, na esperança de encontrar aqueles elusivos clientes de Uly e fazer perguntas. Após vários dias infrutíferos, tornou-se rotina; os dois às vezes levavam Nico junto, após prometerem à Serafina que, caso encontrassem Uly, eles não o confrontariam.

Foram quase duas semanas, quando aconteceu.

— Ah, sim, a mulher que eu falei para você acabou de passar aqui — disse o fazendeiro ao colocar uma caixa de cogumelos no lugar. — Ela usava uma tashta amarela com um dragão bordado na frente. Provavelmente ainda está por aí; ela disse que estava atrás de peixe. — O homem apontou para a esquerda. — Você pode checar na barraca do Ari, logo ali. Ele acabou de trazer umas trutas do Vaghian.

Karl ouviu Varina respirar fundo, viu quando segurou Nico com mais força. Ele acenou com a cabeça, jogou uma folia para o homem e avançou pelas multidões que passeavam lentamente pelas vielas sujas do mercado; quase todos eram mulheres e homens mais velhos. Eles sentiram o cheiro da barraca do pescador antes de vê-la, e Karl vislumbrou uma tashta amarela ali. — Karl? — disse Varina.

— Eu apenas perguntarei a ela. Se a mulher souber onde Uly está, então levaremos Nico para casa primeiro. — Ele deu um tapinha na cabeça do menino. — Não podemos deixar sua matarh chateada conosco, afinal — falou Karl para Nico.

Ele deixou os dois lá e aproximou-se da barraca. A mulher virou-se quando Ari mostrou um peixe com escamas da cor do arco-íris, e Karl viu a cabeça do dragão, de cuja boca saía uma fumaça roxa. O embaixador avançou até estar ao lado dela e disse — Com licença, vajica, mas se puder responder a uma pergunta, eu compro o peixe para a senhora. — Antes que a mulher pudesse responder, Karl contou a história que os dois haviam ensaiado e apontou de vez em quando para Varina e Nico: que ele tinha acabado de casar, que a esposa tinha um filho do antigo marido e agora os dois queriam um filho próprio, mas por serem mais velhos agora, os dois não conseguiam conceber; que ele ouviu falar que havia um estrangeiro chamado Uly, que antigamente tinha uma barraca aqui no mercado onde vendia poções exatamente para aquele problema, e que um dos vendedores mencionou que ela podia saber onde esse tal de Uly estaria. A mulher olhou de Karl para Varina e Nico.

Ela realmente sabia. — Na verdade, acabei de falar com ele. No Cisne Vermelho, no Beco do Sino, pertinho daqui. Ele tinha acabado de pedir uma cerveja, então imagino que ainda esteja lá.

Karl agradeceu à mulher, pagou o pescador pela truta sem pechinchar, e voltou para Varina e Nico. Ele agachou-se em frente ao menino e disse — Varina levará você para casa agora, Nico. — Karl não ousou erguer os olhos para ela, pois podia imaginar os pensamentos refletidos pelo rosto de Varina. — Eu ficarei aqui um pouquinho mais.

Nico concordou com a cabeça, e Karl abraçou o menino. — Vão agora, vocês dois — falou ao se levantar.

— Karl, você prometeu... — disse Varina.

— Eu não farei nada — falou Karl, e perguntou-se se isso era verdade. Ele contou o que a mulher disse. — Eu sei onde ele está neste momento. Só vou segui-lo. Descobrirei onde ele vive. Aí podemos descobrir como abordá-lo.

Karl notou a desconfiança no jeito que Varina mordeu o lábio inferior, no olhar vazio, no lento balançar da cabeça. Ela agarrou Nico com força. — Você promete?

— Prometo.

Com a cabeça inclinada para o lado, Varina encarou Karl e disse, finalmente — Ande, Nico. Vamos.

Karl abaixou-se e abraçou Nico novamente e depois Varina, ao se levantar. Foi como abraçar uma das colunas do Templo do Archigos. Ele ficou observando os dois até desaparecerem na multidão do mercado.

O Beco do Sino era uma viela suja a alguns quarteirões da Avi a’Parete, com apenas alguns passos de largura e apinhada de lojas de propósitos indeterminados, acima delas havia apartamentos esquálidos às escuras. O Cisne Vermelho ficava na esquina onde a viela cruzava uma rua maior, que levava à Avi, e tinha um placa com tinta descascando. Karl entrou e parou para os olhos se ajustarem à penumbra do interior. A única luz lá dentro vinha das nesgas das persianas e das velas que pingavam em um único lustre e em cima de cada mesa. Assim que Karl conseguiu enxergar na luz mortiça, foi fácil encontrar Uly: um homem de pele acobreada, com cicatrizes e tatuagens no rosto e nos braços.

Karl foi ao bar e pediu uma caneca de cerveja ao garçom com cara de poucos amigos, de costas para Uly. O interior ficou subitamente claro quando outra pessoa — uma mulher — entrou no bar, e Karl protegeu os olhos contra a luz.

Ele tinha a intenção de fazer como dissera para Varina: encontrar Uly e seguir o homem até descobrir onde morava. Mas Karl observou o sujeito beber a cerveja, e imagens do corpo de Ana, esparramado e destruído, surgiram em sua mente, de maneira que ele mal conseguia pensar, e uma raiva cresceu lentamente no estômago, subiu ao peito até dar um abraço de veias saltadas nos pulmões e coração.

Karl tomou meia cerveja em um só gole. Ele pegou a caneca e foi até a mesa do ocidental.

— Você é Uly? — perguntou Karl. Ele sentou-se em frente ao sujeito, que o observava com atenção, como se estivesse pronto para lutar. Os músculos pulsaram nos braços fortes de Uly, e uma mão se moveu para debaixo da mesa.

— E se eu for? — perguntou o homem. A voz tinha o mesmo sotaque de Talis, o mesmo de Mahri, embora fosse mais grave e acentuado, e Karl teve que escutar com atenção para entender as palavras.

— Eu soube que você faz poções. Para fertilidade.

O homem empinou um pouco o queixo e pareceu relaxar. A mão direita voltou à mesa arranhada e com marcas de canecas de cerveja. — Ah, isso. Eu faço sim. Você precisa de algo assim?

Karl deu de ombros. — Não de algo assim, mas talvez... de outra coisa. Eu tenho um amigo; o nome dele é Talis. Ele me disse que você pode fornecer uma coisa não para criar vida, mas para acabar com ela. Rapidamente.

Karl observou o rosto do homem ao falar. À menção de Talis, uma sobrancelha ergueu-se levemente. Uly levantou um canto da boca, como se achasse graça. Ele esfregou o crânio com marcas e tatuagens negras. As mãos eram grandes, a pele áspera, e havia uma cicatriz comprida no dorso: as mãos de um comerciante. Ou de um soldado. — Uma coisa assim deveria ser ilegal, vajiki. Mesmo que pudesse ser feita.

— Estou disposto a pagar bem por isso. Muito bem.

Ele concordou devagar com a cabeça. Uly levantou a caneca e bebeu tudo em um só gole, depois secou a boca com as costas da mão e disse — Está um belo dia. Vamos dar uma volta e conversar.

O homem levantou-se e Karl ficou de pé junto com ele. O resto do corpo atarracado de Uly era tão musculoso quanto os braços. Quando os dois chegaram à porta da taverna, uma mulher que corria para lá esbarrou em Karl e quase o derrubou sobre Uly. — Perdão, vajiki! — disse ela. O rosto estava sujo de terra, havia ranho seco em volta do nariz, e o hálito era desagradável. A mulher pegou a mão de Karl e colocou algo em sua palma. — Para dar sorte. O senhor tem que guardar isso, vai trazer boa sorte, vajiki. Guarde direitinho. — Ela fechou os dedos de Karl em volta do objeto, soltou o embaixador e saiu correndo pela porta. Karl olhou para o que a mulher colocara em sua mão: um seixo pequeno e claro. Uly riu.

— A mulher deve ter teia de aranha na cabeça — falou ele. — Vamos, vajiki.

Karl colocou o seixo no bolso da bashta e seguiu Uly pelo Beco do Sino, depois cruzaram a rua maior e entraram em outro beco em curva. Eles seguiam para o norte, na direção do Parque do Templo. — E qual é o seu nome, vajiki, uma vez que sabe o meu? — perguntou Uly enquanto os dois andavam.

— Andus. É tudo o que você precisa saber.

— Ah, somos cautelosos, não, vajiki Andus? Isso é bom. Isso é bom. E quem você quer que morra?

— Isso é da minha conta, não da sua.

— Discordo complemente — falou Uly —, pois a Garde Kralji viria atrás de mim e de você também, e eu não tenho interesse em me hospedar na Bastida. Eu exijo que me diga um nome, ou não faremos negócio.

— É o archigos. Eu sei que você já tem alguma experiência com isso.

Karl observou o homem, com um feitiço pronto para ser lançado a uma palavra e um gesto. Uly hesitou apenas de leve, mal perdeu o passo, mas, tirando isso, não houve resposta alguma. Ele continuou caminhando, e Karl teve que se apressar para alcançá-lo. A expressão do sujeito não se alterou, nem a atitude. Karl esperou que ele dissesse alguma coisa, a mão ao lado do corpo. Os dois passaram por um beco transversal...

... e Uly avançou contra Karl, uma mão grande prendeu a de Karl quando ele tentou erguê-la, e a outra mão tapou a boca do embaixador e bateu com a cabeça dele contra o alicerce de pedra de um prédio. O impacto fez Karl perder o fôlego e provocou fisgadas na cabeça. O joelho de Uly golpeou o estômago do embaixador. Karl sentiu ânsia de vômito e percebeu que estava caindo. Algo — um joelho, um punho, ele não sabia dizer o que — bateu na sua cabeça. Ele não conseguia enxergar, mal era capaz de respirar. Sentiu os paralelepípedos frios debaixo do corpo e a água imunda empoçada ali.

— Você é um tolo, embaixador ca’Vliomani — sibilou Uly. — Achou que eu não lhe reconheceria?

Você morrerá. Agora. Foi uma conclusão sombria.

Ele ouviu botas nos paralelepípedos; Karl percebeu que era um único par de passos e esperou que o golpe final viesse. O embaixador ouviu um grunhido e um grito de dor, e algo pesado caiu no chão, ao lado dele. Ele sentiu uma mão levantar sua cabeça e amarrar um capuz sobre ela para que não pudesse enxergar. O pano cheirava a suor velho. — Fique quieto e não será ferido — disse uma voz, que não era a de Uly. Alguém com um pouco de sotaque não identificável, nem grave ou agudo, o que tornava difícil sequer determinar o gênero da pessoa. — Tire o capuz e você morre. — Algo pontiagudo foi pressionado contra o pescoço, e Karl gemeu com a expectativa do golpe cortante. — Acene com a cabeça se entendeu.

Karl concordou, e a lâmina da faca desapareceu. Ele ouviu mais um barulho, parecido com um tapa e um gemido que só podia ser de Uly. — Responda se você quiser viver — disse a voz, embora não se dirigisse a Karl. — Você matou a archigos Ana, não foi? Você preparou a areia negra.

— Não. — Uly começou a dizer, mas a voz foi interrompida por um gemido de dor. — Tudo bem, tudo bem. Sim, eu ajudei a matá-la. Com a areia negra. Mas a ideia não foi minha. Eu só dei a substância para o homem e contei como usá-la. Não sabia o que ele pretendia fazer com ela. Ai! Droga, isso é verdade! — Lá se foi a preferência de Uly por morrer em vez de falar, pensou Karl. Talvez Talis não conhecesse seus guerreiros tão bem, afinal.

— Quem?

— Eu não sei... Ai! Por Axat! Pare! Ele me disse que o nome era Gairdi ci’Tomisi, mas não sei se o nome é verdadeiro ou não. Ele pagou bem, e isso era tudo que eu sabia ou que me importava!

Houve mais sons baixos e um longo lamento que só podia ter vindo de Uly. O homem ofegava agora, choramingava de dor, o fôlego era rápido e desesperado. — Por favor. Por favor, pare.

— Então fale mais a respeito deste homem — disse a outra voz. — Rápido.

— Parecia um ca’ ou co’, pelo jeito de falar. Firenzciano, talvez, pelo sotaque. Disse que as “ordens” vieram de Brezno, em todo caso. É tudo que sei. Eu preparei a substância, dei para o homem, e ele foi embora. Fiquei tão surpreso quanto qualquer um quando a archigos foi morta.

Karl queria desesperadamente arrancar o capuz do rosto para ver o que acontecia, mas não ousou. Houve mais sons: uma briga animada, um baque suave e depois um farfalhar. Alguém puxou sua bashta e remexeu o bolso. Ele pensou ter ouvido passos leves, mas, com a cabeça latejando e apitando, os sons eram tênues demais para Karl ter certeza.

Depois, por vários instantes, não houve absolutamente nada, apenas os sons distantes da cidade. — Alô? — sussurrou Karl. Não houve resposta. Ele levou as mãos ao pano amarrado em volta da cabeça e arrancou do rosto. O que viu fez com que o embaixador recuasse, horrorizado.

Karl olhou fixamente para o corpo de Uly nos paralelepípedos, com a garganta cortada e sangue espalhado pelas roupas. O olho direito estava aberto para o céu, mas sobre o esquerdo havia a pedra que a mulher deu para ele na taverna.

 

Allesandra ca’Vörl

SEMINI TENTOU ENTRAR EM CONTATO COM ELA por vários dias. Allesandra deixou as mensagens do archigos em cima da mesa. Quando ele mandou seu o’téni falar diretamente com ela, o homem foi informado pelos assistentes muito bem instruídos da a’hïrzg que Allesandra estava em reuniões e não podia ser incomodada. Quando o próprio Semini saiu do templo para vê-la, ela fez questão de sair da cidade com Jan para ver a reunião das tropas.

Quando Semini — sob a desculpa de trabalhar com os ténis-guerreiros que também estavam sendo reunidos — veio aos campos ao sul de Brezno, não houve, finalmente, jeito de evitá-lo.

Semini era um mancha escura e verde que contrastava com a brancura banhada pelo sol da lona da tenda. Do lado de fora, o acampamento militar agitava-se de manhã: com o clamor do metal conforme os ferreiros trabalhavam nas armas, armaduras e uniformes; o chamado de soldados; as ordens aos berros dos offiziers; o burburinho geral de movimentação; o som de pés que marchavam em uníssono enquanto os esquadrões treinavam. Cheiros entraram com a brisa quando Semini deixou a aba da tenda bater ao entrar: o cozinheiro e as fogueiras, o odor de lama revirada por milhares de pés, e o leve fedor das valas que serviam como latrinas.

Allesandra conversava com Sergei ca’Rudka, sentada atrás da mesa de campanha que um dia foi de seu vatarh, com painéis frontais pintados com imagens da famosas batalhas do hïrzg Jan ca’Silanta na Magyaria Oriental. — ... disse ao hïrzg e ao starkkapitän que esperem resistência assim que cruzarmos a fronteira — dizia Sergei, que parou e virou-se quando o olhar de Allesandra passou por cima de seus ombros na direção de Semini. — Ah, archigos. Talvez eu deva ir embora.

— Volte depois da Segunda Chamada e nós continuaremos a nossa conversa, regente — falou Allesandra. Sergei fez uma mesura, esfregou a lateral reluzente do nariz, e saiu da tenda dando um aceno de cabeça e o sinal de Cénzi para o archigos.

Semini parecia pouco à vontade, como se esperasse que ela se levantasse e o abraçasse assim que a aba da tenda se fechasse quando ca’Rudka saiu. Após um momento, ele finalmente fez o sinal de Cénzi para Allesandra e trocou o pé de apoio ao ficar parado diante da mesa como um offizier convocado por ela. — Allesandra. — Semini começou a dizer, e ela fez uma cara feia.

— Qualquer pessoa pode estar ouvindo pela lona da tenda. Nós estamos em público, archigos Semini, e eu espero que o senhor se dirija a mim de maneira apropriada.

Allesandra viu que ele apertou os olhos, irritado com a repreensão. Ele franziu os lábios sob a cobertura do bigode. — A’hïrzg ca’Vörl — falou Semini com lentidão proposital —, peço desculpas. — Depois, ele abaixou o tom em um quase sussurro, baixo e grave. — Espero que nós ainda possamos falar abertamente. Francesca, ela...

Allesandra balançou a cabeça de leve; ao movimento, Semini parou. — Eu falei com sua esposa — disse ela, com ênfase especial. — Naquela noite. Tivemos uma conversa ótima. Francesca parece acreditar que você teve algo a ver com a morte da archigos Ana.

Ela realmente não esperava que Semini reagisse, coisa que ele não fez. O archigos olhou para a a’hïrzg com uma expressão neutra e falou — Eu sei que a senhora tem algum carinho pela falsa archigos. Dado o que aconteceu com a senhora, eu compreendo. Mas Ana ca’Seranta era minha inimiga. Eu não sofri com seu falecimento, nem um pouquinho, e se minha alegria com a morte dela lhe ofende, a’hïrzg, então tenho que aceitar isso. Eu rezei, muitas vezes, que Cénzi levasse a alma dela, porque a mulher acreditava em coisas erradas, e foi em grande parte responsável pelo rompimento da Fé e pela cisão dos Domínios.

— Ela também é a razão de eu ser quem sou. Sem ela... — Allesandra deu de ombros. — Eu poderia não estar aqui. Jan poderia nunca ter nascido.

— E, no mínimo, por causa disso, eu rezei por ela quando morreu. — Semini deu um passo em direção à mesa de campanha, e parou. — Allesandra, o que aconteceu entre nós? É óbvio que você está me evitando. Por quê?

— Quando pretendia me contar que foi você que mandou matar Ana? Ou não pretendia me contar?

— Allesandra...

— Se não foi você, então negue, Semini. Diga-me agora que não foi você.

Allesandra não tinha certeza se queria que ele respondesse. Nos dias que se seguiram, ela tinha — através da equipe palaciana, através do comandante da Garde Brezno — realizado sua própria investigação. O nome de Gairdi ci’Tomisi havia surgido, e ela mandou o comandante co’Göttering levar o mercador, que por acaso estava em Brezno, para a Bastida a fim de ser interrogado. Ci’Tomisi, sob a persuasão menos do que gentil da Bastida, entregou toda a história: que servia Firenzcia e o archigos ca’Cellibrecca como agente duplo; que conhecia um ocidental em Nessântico que vendia poções, que o homem contara a ele a respeito de um poderoso preparado ocidental, que o sujeito havia demonstrado como essa “areia negra” funcionava e que ci’Tomisi falou para seus contatos no Templo de Brezno sobre seu poder, e que recebeu uma mensagem de volta (do “archigos em pessoa”) que — se ele fosse capaz — uma demonstração contra a Fé de Nessântico seria “interessante e muito bem recompensada”; que ele usou os contatos no Templo do Archigos em Nessântico para entrar à noite; que colocou a areia negra no Alto Púlpito e uma vela de tempo queimando no interior, com a chama programada para tocar a areia negra no mesmo momento em que a archigos Ana desse a Admoestação.

Ci’Tomisi confessou para salvar a própria vida, choramingou e chorou. Ele conseguiu, mas Allesandra perguntou-se se, na cela suja e imunda nas profundezas da Bastida, ci’Tomisi desejaria que não tivesse conseguido.

A a’hïrzg também sabia que Semini já devia ter percebido que ci’Tomisi havia sido preso e que provavelmente tinha confessado. Portanto, Allesandra observava Semini e imaginava o que ele diria, se lhe diria a mentira e negaria qualquer conhecimento a respeito do caso, e como ela deveria reagir se o archigos fizesse isso.

Mas Semini não negou. — Eu sou o archigos. Preciso fazer o que parecer ser melhor para a fé concénziana, e, na minha opinião, a Fé permaneceria tão quebrada quanto o mundo de Cénzi até que aquela mulher morresse.

Ao ouvir isso, a mão de Allesandra foi ao pingente com o globo rachado que ela usava, aquele que fora dado por Ana. A a’hïrzg viu que Semini observou o gesto e falou — Cénzi teria levado Ana em Seu próprio tempo. E, caso não levasse, por que você deveria agir por Ele?

Semini teve a dignidade e a humildade de abaixar os olhos para a grama bem aparada que servia de piso na tenda. — Cénzi geralmente exige que as pessoas ajam por Ele — respondeu o archigos, finalmente. — Houve... uma oportunidade repentina, uma que se apresentou de maneira completamente inesperada, e não apontaria para Firenzcia, e sim tanto para os numetodos quanto para os ocidentais. Isso, por acaso, é mais errado do que alguém nos Domínios mandar a Pedra Branca matar Fynn? — Ele encarou Allesandra.

Ela sentiu uma pontada de culpa e franziu a boca. Semini pareceu interpretar o gesto como irritação.

— Eu tive que agir imediatamente ou simplesmente não agiria — continuou ele. — Eu rezei para Cénzi pedindo por orientação e senti que fui respondido. E, naquela ocasião, a’hïrzg, a senhora e eu não éramos... — Semini deixou a próxima palavra pairar no silêncio. O archigos continuou a falar, mas agora a voz era um sussurro praticamente inaudível. — Se nós fôssemos, Allesandra, eu teria pedido seu conselho e acatado. Em vez disso, eu pedi ao seu vatarh, que já estava muito doente, e ao seu irmão.

— Você está me dizendo que o vatarh sabia? E Fynn? Eles também aprovaram isso?

— Sim. Sinto muito, Allesandra. — O arrependimento na voz parecia genuíno. As mãos estavam erguidas, como se pedisse perdão, e havia uma umidade nos olhos de Semini que refletiu o sol que entrava pela lona. — Sinto muito — repetiu. — Se eu soubesse como o ato magoaria você, se soubesse o que faria conosco, eu teria impedido. Teria mesmo. Você tem que acreditar nisso.

— Não. — Allesandra balançou a cabeça. Semini. Fynn. E vatarh. Todos eles aprovaram a morte da mulher que me manteve viva e sã. — Eu não tenho que acreditar nisso, de maneira alguma. Você diria tal coisa fosse ou não verdade.

— Como posso provar para você?

— Você não tem como provar, mas isso é algo que você deveria ter me contado há muito tempo: pelo meu papel como a’hïrzg, ou como matarh do hïrzg, pelo menos. E não sei como ficamos diante dessa situação. Não sei mesmo.


O cavalo estava encharcado de suor ao galopar velozmente encosta acima, onde eles esperavam, e as patas musculosas tremeram quando o cavaleiro desmontou, com uma bolsa de mensageiro na mão. O homem imediatamente se ajoelhou diante de Jan, Allesandra, Sergei e Semini e disse — Notícias urgentes de Nessântico, meu hïrzg. — Havia sujeira da estrada na roupa de couro do mensageiro, que tinha terra no cabelo e no rosto. A voz estava abalada pelo cansaço, e o homem parecia, assim como a montaria, estar à beira de um colapso. Ele ofereceu a bolsa com uma mão trêmula. Jan pegou a bolsa enquanto Allesandra gesticulava para os assistentes, que estavam apropriadamente a poucos passos do quarteto. — Deixem esse homem comer e descansar e cuidem do cavalo.

Os assistentes correram para obedecer. Jan desdobrou o pergaminho grosso de dentro da bolsa, que deixou cair no chão. Allesandra observou os olhos do filho vasculharem as palavras ali. Jan arregalou os olhos e entregou o papel para ela em silêncio. A a’hïrzg entendeu seu choque rapidamente; as frases ali pareciam impossíveis.

... O kraljiki Audric foi assassinado da mesma forma que a archigos Ana... Sigourney ca’Ludovici foi nomeada kraljica, mas foi ferida no ataque... Karnor foi arrasada e pilhada por ocidentais... O exército ocidental aproxima-se de Villembouchure... a Garde Civile e os chevarittai foram reunidos para detê-los...

Ela passou a mensagem para Sergei, que a leu com Semini olhando atentamente sobre seus ombro, e ouviu o archigos dizer — A’hïrzg, isso é uma surpresa para mim. Juro por Cénzi que não sabia de nada a respeito dessa situação. Audric morto... — Ele espalmou as mãos em súplica. — Não fui eu que fiz isso, nem era minha intenção.

Allesandra não prestou atenção às declarações de Semini. Ela passou o braço por Jan, que olhava fixamente para o acampamento do exército, resplandecente com os estandartes e armaduras, cheio de tendas acinzentadas e agitado pela atividade de milhares de soldados. — O que isso significa, matarh? — perguntou Jan para ela, embora Allesandra tenha notado que ele olhava para Sergei também. — Diga-me o que está pensando.

— Significa que Cénzi realmente nos abençoou — respondeu a a’hïrzg. — Estamos avançando na hora certa, quando nosso inimigo está mais fraco. — Ela quase gargalhou. Audric morto, ca’Ludovici ferida, e a atenção dos Domínios voltada para os ocidentais em vez de estar de olho em Firenzcia. — Este é o seu momento, meu filho. Seu momento. Tudo que você tem a fazer é aproveitá-lo.

Era o momento dela também, talvez mais do que do filho, mas Allesandra não disse isso.

Jan continuava a olhar fixamente para o acampamento. Então ele se sacudiu e, naquele momento, Allesandra notou um vislumbre do vavatarh no filho: o maxilar trincado, a certeza no olhar. Era a maneira como o velho hïrzg Jan sempre parecia quando tinha se resolvido; ela lembrava-se bem.

— Tragam o starkkapitän ca’Damont à minha presença — falou Jan. — Eu tenho novas ordens para ele.

 

A Pedra Branca

ELA ESTAVA DO OUTRO LADO DA VIELA, em frente aos dois, quando Talis chegou ao prédio e bateu na porta, com Nico à mão. A Pedra Branca ouviu o grito de Serafina — Nico! Ó, Nico! — e viu a mulher pegar o menino nos braços... e também notou Talis ficar tenso, como se estivesse assustado, e erguer a bengala que sempre carregava como se fosse bater em alguém, enquanto gesticulava com a mão livre como se quisesse que Serafina e Nico fossem embora.

Ela cruzou a viela correndo, com a mão em uma das facas de arremesso escondida na tashta. Ouviu trechos de uma conversa alta ao se aproximar.

— ... apenas saia! Agora! ... o embaixador numetodo... tentou me matar...

— ... sabia onde Nico estava e não foi até ele?...

Houve mais diálogos, mas as vozes martelavam a cabeça da Pedra Branca, que não conseguiu distinguir as reais daquelas dentro da mente. A porta fechou-se quando Talis entrou, e ela aproveitou a oportunidade para entrar de mansinho no espaço apertado entre os prédios. Ali, a Pedra Branca encostou-se contra a parede ao lado de uma janela fechada. Ouviu a conversa abafada, tão bem que percebeu que não precisava interferir. Não ainda. Houve uma conversa sobre o assassinato da archigos Ana (— Aquela bruxa cruel mereceu morrer pelo que fez com minha família — berrou Fynn); sobre algo chamado areia negra que podia matar (e todas as vozes das vítimas berraram na cabeça dela ao ouvir aquilo — Morte! Morte! Sim, traga mais gente aqui para nós! — Era tão alto que ela teve que soltar um berro silencioso para que as vozes parassem); sobre um homem chamado Uly (— Esse nome... — disse Fynn. — Eu conheço esse nome...).


Quando ficou claro que Talis e Nico permaneceriam ali, a Pedra Branca saiu de mansinho novamente, voltou ao apartamento e recolheu as coisas que tinha lá. Naquela noite, após três ou quatro paradas, ela alugou um novo apartamento, numa rua ao sul de onde morava a matarh de Nico: lá, pela janela, era possível ver a porta da casa de Nico pelo espaço entre os prédios.

Por quatro dias, ela observou. À noite, entrava de mansinho no espaço entre as casas para ouvi-los. Seguia o grupo sempre que eles saíam, especialmente se Nico estivesse junto. Por dias, a Pedra Branca observou as idas ao Velho Distrito, as tentativas de achar Uly. Ela mesma já havia encontrado o homem, que vivia em um apartamento miserável no Beco do Sino, perto do mercado do Velho Distrito. Considerou o estrangeiro estranho e desprezível — não era um homem que se importava com a limpeza de onde morava ou com a sujeira das roupas. Ele era grosso e mal-educado com os fregueses para quem vendia poções, geralmente na taverna embaixo do apartamento: o Cisne Vermelho. Frequentemente estava bêbado, e era um mau bêbado. Também podia ser violento; com certeza era brutal com as prostitutas que contratava, a ponto de ser evitado pela maioria das mulheres que fazia ponto nas ruas em volta do mercado.

Por dias, ela observou.

A Pedra Branca ficou surpresa, um dia, ao ver Nico acompanhando Varina e Karl ao mercado — geralmente isso era uma coisa que Serafina não permitia. Mas ela também sabia que as idas ao mercado agora eram rotineiras, que a cada dia que passava o grupo tinha menos esperanças de encontrar Uly, que Varina e Serafina tornaram-se amigas íntimas, que Nico parecia considerar a mulher numetodo quase como uma tantzia querida. A Pedra Branca seguiu o trio de perto, contornou a multidão em volta das barracas, chegou próximo o suficiente, a ponto de quase ouvi-los, mas nunca tão perto a ponto de um deles notá-la. Viu o grupo falar com um fazendeiro em sua barraca, viu o homem apontar e os três irem embora correndo, com Varina parecendo subitamente preocupada. Karl foi até uma mulher com uma tashta amarela — uma mulher que a Pedra Branca reconheceu como uma das freguesas de Uly.

O estômago deu um nó forte de preocupação; ou talvez fosse a criança que crescia ali. As vozes murmuraram — A mulher vai contar para ele... Você tem que interferir... — Ela colocou a mão na pedra branca na bolsinha pendurada no pescoço e a apertou com força, como se pudesse calar as vozes com o toque.

Se Karl tivesse ido atrás de Uly com Nico, a Pedra Branca teria detido os três. Ela não deixaria que colocassem o menino em perigo. Não deixaria.

Mas Karl mandou Varina e Nico embora. Ela seguiu os dois por tempo suficiente para saber que a mulher e o menino realmente voltavam para casa, depois retornou rapidamente, correu pelas ruas na direção do Cisne Vermelho.

Ela viu Karl entrar na taverna e entrou atrás dele. Uly estava lá, sentado à mesa de sempre e — também como sempre — meio bêbado. Karl também tinha visto o homem, mas estava no bar, onde pediu uma cerveja. Enquanto ela observava, o embaixador afastou-se do bar e foi à mesa de Uly. A Pedra Branca não conseguiu ouvir a conversa, mas, não muito tempo depois, Uly terminou a cerveja e ficou de pé, e Karl seguiu o homem até a porta.

— Você sabe o que acontecerá — cacarejou Fynn na cabeça dela. — O que você fará a respeito?

A Pedra Branca agiu, meteu-se entre Karl e a porta, e esbarrou no embaixador de propósito. — Perdão, vajiki! — falou. Ela segurou a mão do embaixador e colocou a pedra na palma dele. — Para dar sorte. O senhor tem que guardar isso, vai trazer boa sorte, vajiki. Guarde direitinho.

Ela torceu para que Karl fizesse isso, porque não poderia ajudá-lo se ele não guardasse. Se o embaixador tivesse devolvido a pedra, deixado cair ou jogado fora, ela estaria de mãos atadas. — A Pedra Branca não consegue matar sem o ritual agora — disseram as vozes em um coro debochado. — Fraca. Estúpida.

Mas Karl guardou a pedra. Ela se escondeu ao sair da taverna, e, alguns instantes depois, Karl e Uly surgiram. O estrangeiro levou Karl para longe da taverna, e ela os seguiu com cuidado. De qualquer maneira, Uly parecia estar bêbado demais ou desinteressado demais para ver se alguém observava. A Pedra Branca viu Karl ser empurrado por Uly para dentro de um beco e correu atrás, em silêncio.

Quando ela chegou ao cruzamento, Karl já estava caído, e era óbvio que Uly pretendia espancá-lo até a morte. — Você é um tolo, embaixador ca’Vliomani. — A Pedra Branca ouviu o estrangeiro rosnar. — Achou que eu não lhe reconheceria?

Então ela agiu, novamente, como a Pedra Branca, séria e implacável. Uly ergueu os olhos ao ouvir a aproximação, mas o chute já estava no ar, acertou o joelho e fez o homem desmoronar, soltando um gemido, depois ela acertou dois socos na lateral da cabeça que o derrubaram no chão, inconsciente.

A Pedra Branca rapidamente rasgou a bashta de Uly, depois se dirigiu para Karl, que gemia, meio inconsciente. Ela enrolou o pano rasgado na cabeça do embaixador, sacou sua faca favorita da bainha e pressionou contra o pescoço dele. — Fique quieto e não será ferido. — ela engrossara o tom de voz. — Tire o capuz e você morre. Acene com a cabeça se entendeu.

Ele balançou a cabeça uma vez, e a Pedra Branca deixou Karl e foi até Uly. Deu um tapa na cara do homem, para despertá-lo, viu Uly arregalar os olhos ao notá-la, e mostrou a faca antes de enfiá-la com força na pele tatuada do pescoço. Colocou a bota sobre o joelho quebrado do sujeito. — Ele viu você. Não pode deixá-lo vivo agora — clamaram as vozes, e ela pediu que fizessem silêncio.

— Responda se você quiser viver — disse a Pedra Branca. Ela percebeu que o homem começou a erguer as mãos e fez que não para ele enquanto enfiava a ponta da faca no pescoço, perto de uma veia saltada e pulsante. — Você matou a archigos Ana, não foi? Você preparou a areia negra.

— Não. — O homem começou a dizer, mas a Pedra Branca enfiou a faca mais fundo diante da mentira. — Tudo bem, tudo bem. — Uly afastou-se dela o máximo possível. — Sim, eu ajudei a matá-la. Com a areia negra. Mas a ideia não foi minha. Eu só dei a substância para o homem e contei como usá-la. Não sabia o que ele pretendia fazer com ela. — Novamente, a Pedra Branca pressionou a faca com mais força. — Ai! Droga, isso é verdade!

— Quem? — perguntou ela, pois sabia que Karl ouviria; a Pedra Branca daria ao embaixador a informação que ele queria, desde que isso significasse que Nico ainda estaria a salvo.

— Você tem que matar esse aí. Você precisa matá-lo.

— Eu não sei... — disse Uly. Ela ignorou a voz, puxou ligeiramente a faca em sua direção e abriu um corte. O sangue quente pingou do pescoço. — Ai! Por Axat! Pare! Ele me disse que o nome era Gairdi ci’Tomisi, mas não sei se o nome é verdadeiro ou não. Ele pagou bem, e isso era tudo que eu sabia ou que me importava!

O homem tentou empurrá-la, e a Pedra Branca colocou mais peso sobre o joelho quebrado. Ele ofegou de dor. — Por favor. Por favor, pare.

— Então fale mais a respeito deste homem — falou ela. — Rápido.

— Parecia um ca’ ou co’, pelo jeito de falar. Firenzciano, talvez, pelo sotaque. Disse que as “ordens” vieram de Brezno, em todo caso. É tudo que sei. Eu preparei a substância, dei para o homem, e ele foi embora. Fiquei tão surpreso quanto qualquer um quando a archigos foi morta.

— Você não pode ficar aqui. Tem que ir embora ou alguém chegará e verá você.

As vozes estavam certas. Ela franziu os lábios. Com um movimento violento, ela cravou fundo a faca na garganta do homem e a cortou da direita para a esquerda. O sangue quente jorrou, e o homem morreu com uma golfada de fôlego líquido. Neste instante, a assassina puxou rapidamente a bolsinha de dentro da tashta agora ensanguentada e a abriu, depois colocou a preciosa pedra branca no olho direito aberto do homem. A seguir, foi até Karl, vasculhou seu bolso rapidamente e achou a pedra que dera para ele. Esta foi colocada sobre o olho esquerdo de Uly. Ela embainhou a faca, esperou um instante, depois pegou sua pedra no olho direito.

A Pedra Branca já podia ouvir a voz de Uly, que lamentava em uma língua que ela não compreendia.

Ela guardou a pedra na bolsinha novamente. Olhou uma vez para Karl, que fazia um esforço desesperado debaixo do pano para escutar.

A Pedra Branca correu. Correu — ateve-se às sombras e aos becos solitários por causa da tashta manchada de sangue — para encontrar Nico, para saber se ele ainda estava a salvo.


??? MATANÇA ???

Kenne ca’Fionta

Aubri co’Ulcai

Allesandra ca’Vörl

Niente

Varina ci’Pallo

Kenne ca’Fionta

Sergei ca’Rudka

Nico Morel

Karl ca’Vliomani

A Batalha Começa


Kenne ca’Fionta

KENNE ESTAVA NA SACADA do lado de fora de seu gabinete particular e olhava para a Praça do Templo. Lá embaixo, ténis em robes verdes misturavam-se à multidão de pessoas comuns que corriam para escapar da garoa, que caía de nuvens baixas e cinzentas. O tempo parecia tornar pesadas as asas dos pombos, que arrulhavam em grupos; as pessoas passavam correndo, os pássaros afastavam-se e balançavam as cabeças, mas não alçavam voo.

O dia ruim e desagradável combinava com o humor de Kenne.

Ele estaria morto se tomasse a decisão errada e não tinha certeza de como evitar esse destino.

Mesmo que evitasse a morte física, Kenne estaria morto dentro da fé concénziana. Ele já sentia os abutres começando a se reunir: nos rumores que vinham de todo mundo, do mais baixo e’téni às mensagens nas entrelinhas que recebia dos a’ténis em suas cidades. Quando teremos outro conclave?, perguntavam. Há assuntos urgentes que todos precisamos discutir. Como devemos reagir às notícias de Nessântico? O que o archigos acha sobre essas questões?

As entrelinhas se escondiam nas perguntas inocentes. Elas começaram quando ele foi promovido a archigos, após o assassinato da pobre Ana. O coro ficou mais alto e constante desde a morte do kraljiki Audric e as notícias da invasão ocidental. As mensagens chegavam todos os dias por mensageiros de Fossano, de Prajnoli, de Chivasso, Belcanto e An Uaimth, de Kasama, Quibela e Wolhusen. Nós não confiamos na sua liderança. Outra pessoa precisa ser o archigos. Era o que diziam sob as palavras educadas e indiretas escritas por eles. Você deveria ser retirado do Trono de Cénzi.

O pior de tudo é que Kenne descobriu que concordava com eles. Eu nunca quis isso, o archigos queria escrever em resposta. Eu jamais pedi para sentar no lugar de Ana. Eu preferia muito mais que outra pessoa assumisse essa tarefa por mim. Ele mesmo disse isso para Ana há muitos anos, após retornar a Nessântico para ser o a’téni da cidade sob o comando dela, após o exército firenzciano ter sido dispersado. — Você estava aqui antes de mim — disse Ana para Kenne, quase parecendo envergonhada de estar sentada atrás da mesa em que ambos se lembravam de ter visto o archigos Dhosti. — Por direito, você deveria estar aqui e não eu, meu amigo.

Ele riu ao ouvir aquilo e balançou a cabeça. — O archigos Dhosti disse para mim, há muito tempo, que eu era um excelente seguidor. Ele estava certo. Eu sigo muito bem, mas não lidero. Não possuo seja lá o que for que você tem, Ana. Dhosti enxergou essas qualidades em você... você sabe liderar. É forte, talentosa, e tem uma força de vontade que é assombrosa. É por isso que ele fez de você sua o’téni. Se ele tivesse vivido, teria lhe preparado para o cargo da mesma forma. Eu... — Outra negativa com a cabeça. — Eu fui destinado a ser o que sou. Nada mais. E estou bem contente que seja assim.

Ana discordou, educadamente, mas ambos sabiam que — por dentro — a archigos concordava com ele. Com Dhosti.

No entanto, Cénzi impôs essa tarefa a ele no fim da vida, e Kenne só podia imaginar que isso era alguma espécie de piada cósmica.

Os a’ténis da Fé eram um perigo para Kenne, e a nova kraljica era outro. Ela sentia dores — ela sentiria dores pelo resto da vida, era quase certo. Sigourney ca’Ludovici fora jogada em uma crise terrível com a perda dos Hellins, o assassinato de Audric e agora a invasão dos próprios Domínios pelos ocidentais. Havia Firenzcia do outro lado, que não era mais um aliado, e sim um inimigo, pelas costas. Ela tentaria consolidar seu cargo. Tentaria desesperadamente sobreviver como kraljica, e, para tanto, procuraria por pessoas fortes que poderiam apoiá-la e dispensaria aqueles que considerasse fracos demais para ajudar — porque a fraqueza nos aliados da kraljica seria um perigo tão grande quanto os ocidentais e os firenzcianos.

Kenne sabia que a opinião de Sigourney a seu respeito era talvez ainda mais baixa do que a dos a’ténis. Ela faria uma rápida manobra para substituí-lo. Por conhecer a história de Nessântico, Kenne não excluía a possibilidade de a solução da kraljica ser o seu assassinato e a sua substituição por alguém mais adequado para ela. Já aconteceu com outros archigi antes de Kenne, quando eles entraram em conflito com os líderes políticos dos Domínios: um archigos assim podia morrer sob circunstâncias misteriosas. Bastava olhar para o próprio archigos Dhosti, afinal.

Kenne olhou para a praça lá embaixo, onde certa vez o corpo quebrado de Dhosti esteve estatelado, com o sangue fluindo entre os paralelepípedos. Ele imaginou se um dia, em breve, seu corpo seria jogado pelo parapeito até cair, debatendo-se desesperadamente no chão lá embaixo.

— Archigos?

Kenne sentiu um arrepio ao ouvir o chamado. Ele virou-se devagar e esperou ver Petros. Mas não era ele. Era, em vez disso, um fantasma.

— Eu sei — falou o fantasma, e o sotaque da voz confirmou suas suspeitas. — Você não esperava me ver novamente. Francamente, nem eu. Desculpe assustá-lo, archigos. Petros foi gentil em me deixar entrar.

— Karl... — Kenne entrou novamente no gabinete e deu a volta na mesa para abraçar o numetodo. — Olhe para você... sem barba, com cabelo pintado e cortado como uma pessoa qualquer, sem status, e essas roupas horríveis. Eu não teria reconhecido você... mas imagino que essa seja a ideia, não é? Eu pensei, após ter ajudado Sergei a escapar, que você tivesse fugido da cidade. — Ele balançou a cabeça. — Esses são tempos sombrios — disse Kenne com cansaço, sendo tomado pela depressão novamente. — Tempos terríveis. Mas eu esqueço meus modos. Você parece cansado e faminto. Quer que Petros traga alguma coisa?

Karl já balançava a cabeça. — Não, archigos. Não há tempo, e eu não devo ficar aqui mais tempo do que o necessário. Eu... eu preciso de um favor.

— Se estiver dentro da minha capacidade — falou Kenne, que teve que esmagar o pensamento que veio em seguida: dentro da pouca capacidade que tenho, infelizmente...

— Está sim, eu espero. Por favor, archigos, sente-se. Isso pode levar tempo. Eu sei, pelo menos acho que sei, quem matou Ana.

Kenne ouviu a história de Karl com apreensão, desconfiança e horror cada vez maiores. No fim, ele estava recostado na cadeira atrás da mesa e balançava a cabeça.

— Um homem chamado Gairdi ci’Tomisi, você diz? — falou Kenne finalmente. O archigos ficou chocado à menção do nome e perguntou-se que mais ele não sabia. — Um firenzciano? Ele fez isso com ajuda de magia ocidental?

— Firenzciano, sim — declarou Karl. — Mas você tem que entender que não houve magia envolvida. Não; essa areia negra não é uma criação de seu Cénzi, nem tampouco dos deuses ocidentais. Ela não é mágica, não vem do Segundo Mundo; é apenas o produto da imaginação e da lógica de uma pessoa. — Karl bateu na cabeça com o dedo. — E isso torna a areia negra ainda mais perigosa. Veja...

Karl tirou uma pequena bolsinha do bolso da tashta suja e esfarrapada e derramou um pó escuro e granulado no mata-borrão da mesa de Kenne. O archigos cutucou a substância com um dedo curioso. — Uly tinha um estoque disso em seu apartamento; eu subornei o estalajadeiro para me deixar entrar. Uly tinha os ingredientes lá dentro, então sabíamos o que eram. Varina acha que é capaz de reproduzir essa mistura mesmo que Talis não nos ajude. Parada assim como está, a areia negra é bem inocente, mas coloque uma chama em contato com ela, e... — A voz de Karl foi sumindo, e ele afastou o olhar. Kenne sabia do que o homem estava se lembrando; ele também se lembrava, muitíssimo bem.

— O que eu posso fazer? — perguntou o archigos. Ele abaixou o olhar para a mesa suja.

— Veja se consegue descobrir mais sobre esse Gairdi ci’Tomisi que Uly mencionou.

Kenne olhou para o numetodo com uma cara triste. — Eu o conheço. Pelo menos acho que sim. Ele é um mercador com licenças de passagem tanto de Brezno quanto de Nessântico e vai e volta pela fronteira. Nós, tanto Ana e eu, usávamos Gairdi. Nós achávamos... achávamos que ele era nosso homem, nosso espião. Ele levava mensagens aos ténis dentro do Templo de Brezno, para quem pensávamos que podíamos confiar e trazia respostas sobre o archigos Semini. Agora... — Kenne ergueu os olhos para o numetodo. — Se ele realmente era um agente duplo, a serviço de Semini ca’Cellibrecca...

— ... Então foi ca’Cellibrecca quem mandou matar Ana. — Karl encerrou a frase por ele. Seu maxilar fez um ruído alto ao se fechar.

Kenne sentiu o que restou do almoço subir pela goela. Ele engoliu em seco para conter a bile. Sim, o archigos acreditava que ca’Cellibrecca era capaz de cometer assassinato —, o homem fora um téni-guerreiro pela maior parte da vida. Porém, ele não teria matado Ana sem um motivo. Kenne tinha medo de que sabia exatamente qual seria a razão: ca’Cellibrecca esperava que a pessoa colocada no lugar de Ana fosse fraca e que pudesse explorar essa fraqueza para reunir a fé concénziana novamente — com ca’Cellibrecca como archigos em Nessântico, assim como em Brezno.

Porque ele sabia que seria eu. Provavelmente já está falando com a kraljica e fazendo sondagens.

— Archigos? — Kenne respirou fundo antes de erguer os olhos para Karl. — Nenhum numetodo matou Audric — declarou o embaixador. — Nenhum numetodo matou Ana. Isto matou os dois. — Ele gesticulou para a areia negra na mesa de Kenne. — Isso me faz pensar que a mesma pessoa é responsável pelos dois assassinatos.

Parecia uma hipótese razoável para Kenne, mas ele já esteve errado sobre tanta coisa que não confiava mais no próprio discernimento. — O que... o que você quer que eu faça? — O archigos ergueu as mãos da mesa, a ponta de um dedo estava escura com o pó que ele tocou. — Como posso ajudar?

— Veja o que mais você consegue descobrir. Veja se Semini realmente fez isso; se foi ele, eu quero fazer o homem pagar. Mas Varin... — Karl parou. — Quero dizer, Ana não iria querer que eu fizesse qualquer coisa até eu saber, saber com certeza. Pode me ajudar com isso? — Ele apontou novamente para o monte de areia negra no mata-borrão de Kenne. — Você sabe o que é isso, não sabe? — perguntou o numetodo. O archigos limitou-se a balançar a cabeça.

— Isso são as cinzas da magia — falou Karl. — Isso é como a magia se parece quando morre.

Kenne abaixou o olhar novamente. Parecia que estava olhando para os próprios restos mortais.

 

Aubri co’Ulcai

O COMANDANTE AUBRI CO’ULCAI OLHOU para trás e balançou a cabeça ao se perguntar como a batalha tinha chegado a este ponto. Isso nunca deveria ter acontecido. Não era possível.

Ele imaginou como a nova kraljica receberia as notícias e esperava que soubesse a resposta. E a única desculpa que Aubri tinha era que os ocidentais recusavam-se a lutar honrosamente, como deveriam.

Tudo começou há dois curtos dias...


Vários chevarittai — como era comum — saíram em seus cavalos de guerra para fazer desafios individuais enquanto as forças ocidentais aproximavam-se de Villembouchure. Nenhum guerreiro ocidental veio responder ao desafio; as fileiras da vanguarda do exército marcharam em frente, intactas e inabaladas mesmo quando os chevarittai debocharam de sua honra e coragem. Eles foram ignorados ou, pior ainda, atacados com flechas covardes e fogo dos feiticeiros ocidentais. Três chevarittai morreram antes que Aubri mandasse que as trompas soassem a ordem de retorno. Eles deram meia-volta com os cavalos de guerra e retornaram a galope para trás das fileiras de infantaria e de ténis-guerreiros, que aguardavam.

Aubri reuniu-se com seus offiziers; eles esperavam que o ataque começasse assim que o exército ocidental chegasse ao cume do último morro antes de Villembouchure. Afinal, era pouco antes da Segunda Chamada, e ainda havia viradas da ampulheta de luz do dia. Os ocidentais chegaram à distância de dois tiros de flecha da vanguarda da força dos Domínios e pararam... e permaneceram parados. Os chevarittai e seus offiziers imploraram que Aubri os deixasse avançar e atacar. O comandante recusou-se, lamentavelmente — fazer isso significava abandonar as fortificações e casamatas que eles erigiram nos últimos dias. O exército dos Domínios estava disposto em uma posição defensiva perfeita, e Aubri era avesso a sair dali.

Este foi o primeiro dia. Ele foi dormir nessa noite convencido da futura vitória — o avanço ocidental seria detido por suas fileiras de veteranos. A força ocidental, conforme verificaram seus batedores e todos os relatórios do campo de batalha, era substancialmente menor que a sua: nenhum exército daquele tamanho, nem mesmo os firenzcianos em seu apogeu, teria sido capaz de derrotar as defesas que Aubri montou. Os navios da frota tehuantina entupiram o A’Sele, mas estavam longe demais do campo de batalha para afetar a situação; de qualquer forma, Aubri sabia que uma força naval de Nessântico estava a caminho para cuidar dos navios inimigos. Na pior das hipóteses, as muralhas de Villembouchure iriam detê-los se, por alguma razão imprevista, Aubri não conseguisse contê-los nos campos do lado de fora da cidade. As forças ocidentais eram pequenas demais para um cerco efetivo, e Villembouchure era bem abastecida e podia suportar o sítio de um exército bem maior por pelo menos um mês.

Sim, Aubri estava confiante. Apesar do fato de seu exército ter sido rapidamente reunido e a maior parte da infantaria não ter muito treinamento, os offiziers e os chevarittai com eles tinham experiência em batalha adquirida nas muitas escaramuças ocorridas nas últimas décadas com Firenzcia e as nações da Coalizão.

Eles venceriam aqui.

A batalha começou no segundo dia, mas não com a chegada da alvorada, contrariando toda a experiência de Aubri e dos offiziers que o treinaram. Não... o ataque veio bem antes de o sol subir no céu. E veio de maneira estranha. Os vigias postados nas casamatas mais avançadas mandaram mensageiros correndo para a tenda do comandante atrás das linhas, e o agito acordou Aubri de um sono leve e atormentado por sonhos.

— Uma tempestade aproxima-se de nós em pernas feitas de relâmpagos — clamaram os mensageiros. — Uma muralha de nuvem...

Trompas de alarme soaram pelo acampamento, e os soldados colocaram as armaduras e pegaram suas armas às pressas enquanto os offiziers berravam ordens. Ao longe, uma luz azul piscava e dançava, trovões retumbavam, e, no entanto, o céu acima deles estava limpo, marcado pelas várias constelações conhecidas. Aubri montou no cavalo que os assistentes trouxeram apressadamente para ele. O comandante galopou com rapidez até a vanguarda e foi acompanhado ao longo do caminho pelo a’téni Valis ca’Ostheim de Villembouchure, que estava no comando dos ténis-guerreiros. — O que em nome de Cénzi está acontecendo? — rugiu ca’Ostheim. A espessa cabeleira branca parecia cintilar à luz da tempestade adiante; a barriga caía sobre o cepilho da sela de seu cavalo. Os cílios ainda tinham remelas do sono. Um colar grosso de ouro com um globo partido pendurado quicava no peito enquanto os dois cavalgavam. — Eu pensei que o senhor tinha dito que o ataque ocorreria na alvorada, comandante.

— Eu disse, sim — respondeu Aubri calmamente. — Ao que parece, os ocidentais não estavam escutando.

Na primeira linha de casamatas, os dois homens pararam e observaram o espaço entre os dois exércitos. O acampamento ocidental, que cintilava na encosta distante como estrelas amarelas caindo na terra quando Aubri foi dormir, não estava mais visível. Ao contrário, eles foram confrontados por uma aparição da natureza: uma muralha de nuvem escura e agitada, com talvez doze homens de altura e que flutuava à distância de dois homens acima do chão. Como uma espécie de monstro sobrenatural sinistro, a criatura de nuvem avançou na direção deles sobre centenas de pés de relâmpagos que piscavam. Os clarões estocavam o chão embaixo e pareciam fazer a nuvem avançar alguns metros a cada golpe. Aubri viu o chão ser rasgado onde os raios caíam, e a nuvem deixava um rastro de pegadas de tempestade arrancadas do chão. Um barulho constante de trovoada e um rosnado alto e estridente acompanhavam a visão. Ao redor dos dois, o exército dos Domínios olhava fixamente para a aparição com rostos iluminados pelos clarões azuis esbranquiçados e inconstantes. Aubri sentiu o pânico se espalhar pelas fileiras, os homens deram alguns passos para trás involuntariamente, para longe das barreiras baixas e fortificações que eles erigiram. — Mantenham a posição! — berrou Aubri para eles. As trompas soaram a ordem pela frente de batalha. — Mantenham a posição! — Os homens sacudiram-se como se acordassem de um pesadelo. Eles seguraram firme em lanças inúteis e encararam o monstro que os confrontava. Ele praticamente já havia cruzado o campo aberto agora, e Aubri não conseguiu ver nada além de seu limite feroz.

— A’téni ca’Ostheim, isso é magia; é a sua área. — Aubri quase teve que gritar mais alto do que o barulho crescente da aparição tempestuosa para ca’Ostheim, o líder dos ténis-guerreiros, ouvir. — O senhor consegue deter essa coisa?

— Tentarei — respondeu ele ao desmontar. Ca’Ostheim começou um cântico e um estranho gestual em frente ao corpo. Aubri sentiu um arrepio nos pelos dos braços conforme o a’téni continuava a entoar e os raios começaram a tocar as bordas das defesas; ele não sabia qual das duas coisas causou esta reação. O cavalo de Aubri, embora acostumado ao clamor, ao barulho e às imagens de guerra, estava preocupado e batia os cascos no chão enquanto se afastava um pouco da aparição. Aubri teve que se abaixar e dar tapinhas no pescoço do animal para acalmá-lo. — A’téni! Rápido, por favor.

Ca’Ostheim ergueu as mãos; o cântico parou. Ele gesticulou para a tempestade. Um vento estridente soprou do téni-guerreiro, e onde tocou na aparição tempestuosa, as nuvens foram rasgadas. Os soldados comemoraram, mas a tempestade ainda avançava de ambos os lados, com força total, e agora os raios atacaram as próprias defesas, os garfos gigantes alcançaram os soldados dos Domínios. Os gritos surgiram de ambos os flancos, conforme os relâmpagos queimavam e quebravam as fileiras, em um avanço inexorável. E agora as metades partidas nas nuvens voltavam a se unir; línguas sedentas de relâmpagos começaram a brilhar na frente de Aubri. Ca’Ostheim havia caído de joelhos. Ele ergueu a cabeça acenou negativamente para Aubri. — Comandante, eu não consigo... Não sozinho. Eu preciso reunir os outros ténis-guerreiros...

— Ao cavalo, então — falou Aubri. Ele olhou para os porta-bandeiras e as trompas quando os gritos dos feridos e moribundos rivalizaram com a trovoada. — Retirada! — berrou o comandante. — Voltem para a próxima linha de frente!

As bandeiras sinalizaram a retirada; as trompas soaram a ordem. As fileiras dos soldados foram desmanchadas instantaneamente, aqueles que ainda podiam deram meia-volta para fugir da tempestade. Ao longe, em um lugar além da criatura, Aubri ouviu novas vozes: os gritos de guerra dos ocidentais.

O comandante puxou com força as rédeas da montaria e seguiu seus homens.


Esta foi a manhã do segundo dia. O resto do dia não correu melhor. Os ténis-guerreiros foram capazes de dissipar a tempestade mágica, mas a tarefa deixou-os exaustos, e eles tinham pouca energia sobrando para outros feitiços. Atrás da tempestade, surgiram as fileiras dos ocidentais — guerreiros com rostos pintados e com cicatrizes. O combate mano a mano foi intenso, mas os chevarittai e a infantaria eram páreos na espada. No entanto, quanto aos feiticeiros ocidentais, que empunhavam cajados por onde lançavam feitiços, Aubri não tinha como responder — os ténis-guerreiros estavam em grande parte exaustos pelos esforços anteriores, e, no fim da tarde, o comandante mandou o exército retornar a Villembouchure, para trás das muralhas e portões sólidos. Ele estava convencido de que poderia ter mantido as defesas externas, mas o preço em vidas teria sido enorme. Aubri fez o que qualquer outro comandante em seu lugar teria feito: mandou as trompas soarem a ordem de cessar combate.

Ao anoitecer, todos estavam dentro e com as portas corrediças abaixadas e fechadas.

Isso encerrou o segundo dia.

Em qualquer batalha normal, isso significaria o início de um cerco que poderia ter durado semanas ou meses antes de ser rompido, e Aubri sabia que os ocidentais não tinham semanas ou meses — não em uma terra estranha, onde estavam cercados por inimigos. Foi por esse motivo que Aubri achou fácil dar a ordem de cessar combate tão cedo, assim que ficou óbvio que a vitória nos campos diante da cidade só causaria um enorme custo. Ficar no interior das muralhas de Villembouchure deveria levar à vitória em algum momento. Inevitavelmente. E ele poderia esperar.

Mas o cerco duraria apenas um dia.

Aubri estava sobre a muralha da cidade e olhava para as fogueiras quase apagadas do principal acampamento dos ocidentais na alvorada. Foi quando as bolas de fumaça de repente fizeram um arco no céu, na direção deles: uma dezena ou mais, todas pareciam mirar o grande portão oeste da cidade. Os ténis-guerreiros posicionados ao longo das muralhas reagiram instantaneamente, como deveriam, e a resposta dos feitiços de dispersão foi rápida; afinal, eles foram treinados na arte de manter os feitiços na mente por um tempo (que nenhum deles admitiria ser uma característica dos numetodos, que tinha sido imposta aos ténis-guerreiros pela archigos Ana). Mas as bolas de fogo continuaram seu voo. O téni-guerreiro mais próximo de Aubri o encarou com olhos arregalados e chocados. — Comandante, isso não é feitiço...

Ele não prosseguiu. As muralhas grossas da cidade foram sacudidas de um jeito impensável quando as bolas de fogo bateram no portão e nas pedras em volta. Onde elas tocavam, explosões inimagináveis destruíram pedras, aço e madeira. Aubri, que se segurou na ameia para manter o equilíbrio, testemunhou os enormes pedaços de granito saírem voando como se fossem seixos atirados por uma criança. O fogo irrompeu abaixo do comandante, tão incandescente quanto a fornalha de um ferreiro; ele sentiu a onda de calor passar pela pele. Ouviu gritos e lamentos lá embaixo.

— O portão está quebrado! As muralhas foram rompidas!

Os ocidentais já corriam pela brecha, enquanto arqueiros respondiam com uma atrasada chuva de flechas em cima deles. Alguns dos guerreiros foram abatidos, mas muitos — em um número excessivo — continuavam avançando, e agora Aubri via mais arcos de bola de fogo saírem do norte e do sul, na direção daqueles portões.

Ele desceu correndo das ameias e entrou em um caos selvagem e sangrento.

Este foi o terceiro dia. O dia em que a cidade foi perdida. De um jeito inacreditável.


Agora Aubri olhava para Villembouchure do alto de um morro ao longo da Avi A’Sele. O comandante viu a fumaça suja que manchava o céu acima das muralhas quebradas, cercado pelo que restou do exército reunido à sua volta e com o a’téni ca’Ostheim ao seu lado. Dentro da cidade... Dentro da cidade, estavam os ocidentais.

— Isso é impossível — murmurou ele.

Mas era possível. E agora a defesa da própria Nessântico devia ser preparada. Aubri balançou a cabeça novamente diante da cena.

O comandante deu meia-volta com o cavalo e gesticulou, e ele e o exército começaram a mancar na direção da capital, em retirada.

 

Allesandra ca’Vörl

ELA LEMBRAVA-SE DE PASSE a’Fiume muitíssimo bem. Foi aqui, há 25 anos, quando seu vatarh sitiou a cidade, que ela aprendeu pela primeira vez a mais dura lição de guerra: que, às vezes, pessoas amadas não sobrevivem. Na ocasião, Allesandra tinha uma queda por um jovem offizier que tinha sido morto na batalha e pensou que jamais seria capaz de amar novamente, pois seu coração estava partido demais pela experiência, mas o tempo aliviou sua dor. Agora, ela não conseguia se lembrar do rosto do rapaz.

Os reparos da batalha de décadas atrás ainda eram visíveis nas muralhas e trouxeram de volta as memórias e o sofrimento.

Dessa vez, não havia cerco. O exército firenzciano passou pela cidade fronteiriça de Ville Colhelm sem resistência alguma: a força dos Domínios a postos ali simplesmente abandonou o lugar e fugiu do muito maior contingente de tropas firenzcianas. A pedido de Allesandra, Jan despachou cavaleiros — incluindo Sergei ca’Rudka — bem à frente da força principal, para negociar com o comté de Passe a’Fiume. Com a maior parte da guarnição da Garde Civile esvaziada devido à invasão ocidental, o comté favoreceu a prudência à coragem (e uma propina substancial em ouro em vez do juramento ao cargo): em troca da promessa de que a cidade não seria saqueada, ele permitiria que o exército cruzasse o rio Clario através dos portões da cidade até a Avi a’Firenzcia.

Allesandra cavalgava ao lado de Jan quando eles cruzaram a grande ponte de pedra sobre as águas do Clario, um rio mais rápido e perigoso do que o A’Sele — que era mais profundo e largo, e com quem o Clario se juntava antes de o rio A’Sele chegar a Nessântico. A ponte parecia tremer sob a batida das botas dos soldados e dos cascos dos cavalos. A vanguarda do exército já passara pelos portões e o resto descia estrada afora até onde era possível enxergar no terreno cheio de morros. Jan olhou em volta extasiado, quando eles passaram pelas arcadas altas com os escudos dos kralji e entraram na cidade. Multidões estavam enfileiradas nas laterais da avenida principal ao longo da cidade, a maioria em silêncio, e os chevarittai da Garde Hïrzg ficaram tensos em suas selas ao escanearem o público à procura de perigo.

— A senhora esteve aqui com o vavatarh? — perguntou Jan novamente ao se inclinar na direção de Allesandra, e ela fez que sim com a cabeça.

— Eu era apenas uma criança, e seu vavatarh estava no auge. Ele tomou Passe a’Fiume em apenas três dias de sítio após as negociações de paz falharem, mas o kraljiki Justi, que ainda tinha duas pernas na ocasião, já tinha escapado covardemente para Nessântico. Seu vavatarh ficou furioso. Sergei ca’Rudka era o comandante das forças de Nessântico; ele foi... brilhante, mesmo em enorme desvantagem numérica. Seu vavatarh admitiu o fato, mesmo que de má vontade.

Jan olhou para trás, onde ca’Rudka cavalgava ao lado do archigos. O nariz de metal do regente reluzia ao sol. Como a Garde Hïrzg, ca’Rudka parecia ansioso e nervoso, com a boca franzida e o olhar varrendo a massa de ambos os lados. — Eu gosto do sujeito, mas não sei se posso confiar totalmente nele, matarh — disse Jan ao voltar a atenção para ela.

Allesandra sorriu ao ouvir isso. — Você não deveria. A lealdade dele é a Nessântico, antes de mais nada. E Sergei ca’Rudka é um homem estranho, com gostos estranhos, caso se acredite nos rumores. Isso não mudou. Ele trabalhará conosco enquanto achar que nossos interesses convergem. Assim que não achar... — Ela deu de ombros. — Então ele ficará igualmente satisfeito em ser nosso inimigo. Seus instintos estão corretos, Jan.

— Ele parece admirar a senhora.

— Eu conheci Sergei quando era refém da archigos Ana. Ele foi gentil comigo na época. Mas agora o comandante está mais interessado no fato de que sou prima em segundo grau da kraljica Marguerite, e no fato de que este parentesco me dá tanto direito ao Trono do Sol quanto Sigourney ca’Ludovici. E, por enquanto, precisamos de Sergei e das alianças que ele venha nos trazer.

Jan concordou com a cabeça. Ele franziu os lábios como se levasse tudo isso em consideração enquanto entravam na praça central da cidade. Allesandra imaginou o que o filho pensava.

Aqui, o Templo a’Passe dominava a paisagem arquitetônica. Como muitas estruturas da cidade, ele foi muito danificado no cerco há duas décadas e meia. Depois, o conselho municipal decidiu reprojetar a praça principal e o complexo do templo. Grande parte da estrutura original foi demolida. As linhas finas e esqueléticas dos andaimes enjaulavam a torre principal ainda não concluída e o domo do templo reformado.

A multidão de moradores estava mais densa aqui, enquanto a fila lenta do exército marchava pela cidade. Agora, Allesandra sabia, a vanguarda já teria passado pelo portão oeste e além das muralhas. Agora, ela também sabia, mensageiros iriam a galope adiante do exército para levar a notícia à kraljica, ao archigos e à Nessântico de que os firenzcianos estavam em marcha — até onde a a’hïrzg sabia, aquela informação já podia ter chegado à Nessântico assim que o exército cruzou as fronteiras. A partir de agora, o avanço encontraria resistência em breve; a kraljica Sigourney não podia se dar ao luxo de continuar virada para o oeste por muito tempo.

Um exército — especialmente o exército firenzciano; afinado, eficiente e famoso — era uma grande carta na manga em qualquer mesa de negociação, e Sigourney e o Conselho dos Ca’ sabiam muito bem disso. Allesandra sorriu diante da ideia.

A multidão espremia-se perto deles, e os soldados da infantaria de ambos os lados de Allesandra e Jan empurravam as pessoas para trás com os cabos das lanças e dos piques. Ela viu os rostos sérios e infelizes atrás da cerca de armas, e das profundezas da multidão vieram berros com xingamentos e ameaças, mas quando os dois olharam naquela direção, não havia ninguém que eles pudessem identificar na massa. A população também se lembrava do cerco firenzciano; muitas pessoas perderam familiares no sítio, e a visão das bandeiras negras e prateadas era um insulto tremulando na cara delas.

Eles entraram na sombra do templo agora, a fila do exército usava o baluarte da torre principal para se proteger da multidão. As trompas no templo começaram a anunciar a Segunda Chamada assim que Jan e Allesandra chegaram em frente à torre. A a’hïrzg ergueu a cabeça na direção do barulho e apertou os olhos contra o brilho do sol. Alguma coisa — uma figura, uma silhueta — parecia andar lá em cima, em meio ao emaranhado de andaimes. Ela não conseguiu enxergar com clareza.

Allesandra foi golpeada por trás de repente, no mesmo instante em que seus ouvidos a alertaram do som de cascos nos paralelepípedos. Um peso enorme jogou a a’hïrzg no chão, mas os braços que a envolveram giraram Allesandra para que o corpo debaixo dela absorvesse a maior parte do impacto. Um baque alto foi ouvido quase que ao mesmo tempo ao impacto. Um cavalo berrou — um som horrível, desagradável — e as pessoas gritaram.

— O hïrzg!

— Andem! Andem!

— Lá em cima! Lá está ele!

Allesandra ouviu offiziers berrarem ordens e mais gritos. Parecia haver uma multidão amontoada em volta dela. A a’hïrzg lutou contra os braços à sua volta, contra as dobras do manto do agressor e da própria tashta e a capa de equitação. Havia mãos que a puxavam para ajudá-la a se levantar.

Houve outro grito, um berro humano dessa vez, e outro impacto em algum lugar próximo.

Allesandra pestanejou e tentou entender a situação.

Sergei ca’Rudka estava de pé ao lado dela, com a capa rasgada e uma careta no rosto enquanto massageava o braço. A superfície de prata do nariz estava arranhada e o próprio nariz tinha sido parcialmente arrancado do rosto, o que deu a Allesandra um vislumbre do buraco desagradável que ficava embaixo. Jan estava sendo ajudado a se levantar, a um passo atrás de Sergei. O cavalo de Allesandra estava caído de lado diante dela, com uma enorme estátua de um demônio moitidi em volta. O animal de olhos arregalados batia as patas, e os sons que fazia... Sergei foi rapidamente até ele, ajoelhou-se nos destroços do entalhe de pedra e acariciou o pescoço do animal enquanto fazia sons tranquilizadores. Allesandra viu o comandante sacar a faca da bainha. — Não! — Ela começou a dizer, mas Sergei já tinha feito o corte rápido e profundo. O animal deu um pinote, mais um e ficou imóvel.

Allesandra balançou a cabeça para tentar clarear a mente. Metade da multidão na praça parecia ter fugido aterrorizada; os soldados firenzcianos formaram um sólida defesa em volta deles. Sergei afastou-se do cavalo e andou a passos largos até um corpo esparramado em uma poça de sangue não muito longe da base da torre. Os soldados se moveram para interceptá-lo; ele se desvencilhou deles com raiva. Allesandra começou a se mexer e percebeu que o corpo estava dolorido e machucado, e que sangrava, com um corte na cabeça. A a’hïrzg sentiu Jan chegar por trás.

— Matarh? — Ele olhava fixamente para o cavalo que Sergei matou. Allesandra abraçou o filho desesperadamente, depois afastou Jan para examiná-lo; as roupas estavam rasgadas também e havia um arranhão na bochecha que sangrava, tirando isso, ele parecia ileso.

— O que aconteceu? — perguntou ela. — Você viu?

— O regente nos salvou — disse Jan. — Ele nos tirou dos cavalos bem a tempo. — O hïrzg ergueu os olhos para o andaime, depois abaixou o olhar para o corpo no chão. Sergei estava cercado por uma massa de soldados, ajoelhado ao lado do cadáver. — O homem... ele estava lá em cima. Teria matado a senhora. Talvez nós dois. Mas Sergei...

O archigos Semini veio correndo então, com o robe verde esvoaçante. — Allesan... — Ele começou a dizer, depois balançou a cabeça e fez o sinal de Cénzi às pressas. — A’hïrzg! Hïrzg! Graças a Cénzi os senhores estão a salvo! Eu pensei...

Mas Allesandra já não o ouvia. Ela avançou pela multidão até o lugar onde Sergei examinava o corpo. — Regente? — falou a a’hïrzg, e Sergei ergueu o olhar para Allesandra, com uma cara feia.

— A’hïrzg. Eu peço desculpas, mas não tive tempo de dar um aviso. A senhora está muito machucada?

Ela balançou negativamente a cabeça. Sergei assentiu e gemeu ao ficar de pé, como se o movimento o tivesse ferido. — Estou velho demais para isso — murmurou. Ele chutou o cadáver, e a bota fez um som macio e desagradável quando o torso quebrado tremeu em resposta. Allesandra viu um rosto bonito sob o sangue, um rosto jovem, talvez da idade de Jan; ela notou que as roupas eras elegantemente suspeitosas. O corpo estava decorado por hastes quebradas de várias flechas. — Não sei quem ele é — disse Sergei —, mas descobriremos. É um ca’ ou co’, pelo jeito que está vestido e pela aparência física. Eu o vi no alto do andaime bem antes de ele jogar a estátua. Foi quando entrei em ação; parece que seus arqueiros cuidaram do resto. — Ca’Rudka pareceu notar o nariz pendurado então, empurrou-o com cuidado de volta ao lugar e o segurou com dois dedos. — Perdão, a’hïrzg... a cola...

— Não importa — falou Allesandra, abanando a mão. — Regente, eu lhe devo a minha vida.

Ela pensou que Sergei responderia como a maioria, com a cabeça baixa e depreciação, uma declaração sobre dever, lealdade e obrigação. Ele não fez isso. Ao contrário, ca’Rudka sorriu, ainda segurando o nariz de prata no lugar.

— Realmente, a senhora me deve, a’hïrzg.

 

Niente

A CIDADE QUEIMAVA e as chamas eram refletidas na tigela premonitória. Elas sumiram quando Zolin deu um tapa no objeto, que derramou água sobre Niente. A tigela fez barulho ao cair, o bronze retiniu nos ladrilhos como um sino frenético até bater na parede do outro lado, onde reluzia um mosaico de azulejos de alguma batalha antiga. Desenhados no vidro, cavalos empinavam enquanto lanças marchavam em um campo com uma montanha de pico nevado que se agigantava ao fundo.

— Não! — rugiu o tecuhtli. — Não deixarei que me diga isso!

— É o que eu vi — respondeu Niente com uma calma que não sentia. O guerreiro morto, o nahualli esparramado ao lado dele, só que dessa vez ele viu um dos rostos. O rosto de Zolin... E ele estava com medo demais para pedir a Axat que lhe deixasse ver as feições do nahualli... — Tecuhtli, nós realizamos tanta coisa aqui. Mostramos a estes orientais a dor que eles infligiram a nós e a nossos primos. Tomamos terras e cidades deles assim como eles tomaram de nós. Demos a lição que o senhor queria dar. Continuar... — O nahual ergueu as mãos. A grande cidade em chamas e os tehuantinos em fuga, os navios com mastros quebrados adernados no rio... — As visões só me mostram morte.

— Não! — disparou Zolin. — Eu mandei uma mensagem para casa dizendo que ficaríamos aqui, que eles deveriam mandar mais guerreiros. Manteremos o que conquistamos. Atacaremos o coração dos orientais: essa grande cidade que está tão próxima. — Ele se virou, os braços pesados e musculosos passaram perto do rosto de Niente. Os dedos grossos do tecuhtli apontaram para os olhos do feiticeiro. — Você está cego, nahual? Não viu como foi fácil tomar essa cidade dos orientais? Não viu como eles correram como um bando de cães açoitados?

— Temos pouco material sobrando para fazer mais areia negra — falou Niente. — Eu perdi um terço dos meus nahualli no combate; o senhor perdeu a mesma quantidade em guerreiros. Chegamos muito longe, sem recursos para manter a terra atrás de nós. Estamos em um país estrangeiro cercado por inimigos, com apenas os suprimentos que conseguimos coletar e pilhar. Se voltarmos para os nossos navios agora e formos embora, deixaremos para trás uma lenda que provocará medo nos orientais por décadas. O nome do tecuhtli Zolin será um sussurro na noite que assustará gerações de crianças orientais.

— Bá! — disparou Zolin novamente. O cuspe quase acertou os pés de Niente e sujou o chão lustroso da mansão que ele tomou em Villembouchure. Ao abaixar o olhar, o nahual viu que todos os azulejos tinham a imagem da mesma montanha, como no mosaico da parede. O cuspe de Zolin formou um lago no flanco da montanha. — Você é mesmo uma criança assustada, nahual. Eu não tenho medo do que você vê na sua tigela. Não tenho medo desses futuros que você diz que Axat lhe envia. Eles não são o futuro, são apenas possibilidades. — O dedo cutucou o peito de Niente. — Vou lhe dizer uma coisa agora, nahual: você tem que fazer sua escolha. — Cada uma das três últimas palavras ditas foram acompanhadas por uma cutucada. Os olhos escuros do tecuhtli, envolvidos no movimento das asas da grande águia, encararam Niente como um daqueles grandes felinos que espreitavam as florestas de sua terra natal. — Chega de suas palavras. Chega de profecias, chega de avisos. Eu quero apenas a sua obediência e a sua magia. Se não puder me dar isso, então chega de você. Eu prosseguirei, quer você seja o nahual ou não. Decida agora, Niente. Aqui mesmo.

A mão de Niente tremeu ao lado do punho do cajado mágico que estava pendurado no cinto. O nahual seria capaz de pegá-lo e tocar Zolin com o objeto antes que o guerreiro conseguisse sacar a espada completamente. O feitiço disparado queimaria o tecuhtli e lançaria o corpo pela sala até ele desmoronar contra a parede em uma pilha fumegante debaixo do mosaico. Niente conseguia ver aquele resultado tão claramente quanto uma visão na tigela premonitória.

O ataque também acabaria com essa situação. Ele ansiava por isso.

Mas Niente não podia atacá-lo. Essa não era uma visão dada por Axat. Esse caminho levaria a um dos futuros cegos, um que ele não poderia adivinhar — um futuro que poderia ser bem pior para os tehuantinos do que o visto na tigela. O nahual percebeu que conhecer os futuros possíveis era tanto uma armadilha quanto um benefício; ele perguntou-se se isso era algo que Mahri também descobrira. Em um futuro cego, Citlali ou Mazatl poderiam continuar a seguir os passos de Zolin e se sair ainda pior. Todos eles poderiam morrer aqui, e ninguém em casa saberia seus destinos. Em um futuro cego, certamente Niente jamais veria sua família novamente.

Ele sentiu a madeira lisa e lustrosa do cajado mágico, mas as pontas dos dedos apenas roçaram o objeto. Eles não se fecharam em volta do punho.

— Eu obedecerei ao senhor, tecuhtli — falou Niente, com palavras baixas e lentas. — E o seguirei ao futuro que o senhor nos trouxer.

 

Varina ci’Pallo

KARL ESTAVA SENTADO no degrau da porta dos fundos da casa de Serafina no Velho Distrito e olhava fixamente através de um pequeno jardim plantado ali, na direção da parte detrás das casas da próxima rua. O olhar parecia penetrar a margem sul, bem ao longe. Acima dele, a lua estava presa em uma rede de finas nuvens prateadas através das quais as estrelas espiavam. Uma xícara de chá parecia esquecida à sua esquerda.

Karl esfregava uma pedra clara, pequena e achatada, entre o indicador e o polegar.

Varina apareceu e sentou-se à sua direita — não perto o suficiente para tocá-lo, nem longe demais a ponto de não sentir o calor do corpo no frio da noite. Nenhum deles disse coisa alguma. Karl esfregou a pedra. Ela ouviu a música abafada e distante que vinha da taverna mais à frente.

Quando o silêncio entre os dois prolongou-se por tempo demais para ela, Varina começou a ficar de pé. Sentiu raiva de si mesma por ter vindo aqui fora e raiva de Karl por tê-la ignorado. Porém, ele esticou o braço e tocou em seu joelho. — Fique — disse Karl. — Por favor?

Varina sentou-se novamente e perguntou — Por quê?

— Nós não... nos últimos dias... Bem, você sabe.

— Não, eu não sei — falou ela. — Diga-me.

— Por que você tenta dificultar as coisas para mim? — Ele girou a pedra nos dedos.

— Não, estou tentando facilitá-las para mim. Karl, estar com ou sem você são duas situações com as quais eu consigo lidar, de um jeito ou de outro. O que eu não consigo encarar é não saber qual delas é nossa situação. — Varina esperou. Karl não disse nada. — Então, qual é? — perguntou ela.

— Não é tão simples assim.

— Na verdade, é. — Varina abraçou o próprio corpo ao se sentar e inclinou-se um pouco longe dele. — Quando finalmente levei você para minha cama, eu achei que teria tudo que queria há anos. Mas descobri que eu ainda tinha apenas uma parte de você. Quero você por inteiro, Karl, ou não quero nada. Talvez eu esteja exigindo demais de você, ou talvez eu seja muito possessiva, ou talvez você ache que eu esteja forçando uma coisa que você não quer. — Lágrimas ameaçaram cair, e ela fungou o nariz para contê-las, com raiva. — Talvez seja culpa minha que essa situação não dê certo, e, se for o caso, então tudo bem. Mas eu simplesmente preciso saber.

— A questão não é você.

Varina queria acreditar naquilo. Ela mordeu o lábio inferior, conteve as lágrimas, teve dificuldade para respirar. — Então o que é? Você vai atrás desse tal Uly por conta própria, quase morre, encontra com Kenne sem me contar, está até mesmo fazendo planos com Talis. Mas não fala comigo.

— Eu não quero que você se preocupe.

Varina quis escarnecer ao ouvir isto. — Eu me preocupo mais quando não sei a situação. Não sei o que você planeja, não sei o que tenta fazer, não sei quais seriam os verdadeiros perigos. — Ela parou. Respirou fundo. — Eu não quero ser sua amante, estar à disposição sempre que você quiser esse tipo de consolo, e ser convenientemente esquecida fora isso. Se isso é tudo o que você quer de mim, então eu cometi um erro. Também não sou Ana, não quero você apenas como amigo. Novamente, se isso é tudo que você quer de mim, bem, também não pode me ter como amiga. Não mais. Então, se esse for o caso, me diga, e assim que essa situação acabar, de uma forma ou de outra, eu tomo o meu próprio rumo. Eu quis que você abrisse a porta entre nós por muito tempo, Karl. Agora você abriu, mas não pode ficar parado ali com um pé dentro e outro fora. Eu preciso fechá-la e trancá-la para sempre ou você precisa entrar de vez.

— Como eu faço isso? — A voz soou melancólica na escuridão. Ele apertou a pedra entre os dedos. Como você pode não saber? Ela queria ralhar com ele. Não é capaz de enxergar tão nitidamente quanto eu?

— Fale comigo — disse Varina. — Compartilhe o que está pensando. Deixe-me aceitar os perigos que você está disposto a aceitar. Deixe-me estar com você.

Ela pensou que Karl não fosse responder — o que teria sido uma resposta suficiente. Ele ficou sentado ali, ainda brincando com a pedra e olhando para longe. Varina começou a se levantar novamente, mas dessa vez Karl pegou sua mão. Ela sentiu a pedra ser pressionada contra a palma.

— Espere — falou ele. — Deixe-me contar o que estou pensando...

E Karl começou a falar.

 

Kenne ca’Fionta

AUBRI CO’ULCAI PARECIA um cão açoitado ao se ajoelhar, de cabeça baixa, perante a kraljica. A armadura estava arranhada e surrada, o rosto tinha marcas de sujeira e fumaça, o cabelo estava escuro e emaranhado, e ele fedia. No salão do Trono do Sol, o comandante parecia uma mosca patinando em uma xícara dourada de água limpa e fria.

Não que o salão em si não tivesse cicatrizes. Ninguém deixaria de notar as marcas dos reparos feitos às pressas onde o Trono do Sol foi danificado pela magia do assassino — não, não era magia, se Karl ca’Vliomani estivesse correto, lembrou-se Kenne, mas algo mais sinistro; uma coisa que qualquer boticário seria capaz de fazer com os ingredientes certos. De que o embaixador ca’Vliomani chamou aquilo? O fim da magia? O archigos perguntou-se se o homem estava certo.

As tapeçarias penduradas ainda fediam à fumaça, e Kenne imaginou se não havia um leve tom horripilante de rosa nos ladrilhos em volta do tablado do trono. E não havia como não notar a aparência da própria kraljica Sigourney: o tapa-olho e as cicatrizes no rosto, as bandagens ainda nos braços e na única perna, a maneira como ela se remexia com dor no assento, a taça cheia do extrato das sementes da flor venenosa cuore della volpe — um preparado que o ervanário da corte criou para aliviar a sua dor.

Ainda assim, o Trono do Sol reluzia sob e em volta dela como fizera com inúmeros kralji; Kenne cuidou disso pessoalmente. Se fosse uma farsa, ninguém que observasse saberia. Kenne suspirou na própria cadeira à direita do trono, cansado pelo esforço de conjurar o feitiço de luz. O Conselho dos Ca’ estava disposto à esquerda. O salão fora esvaziado de cortesãos e até mesmo de criados — nenhum deles queria mais rumores espalhados pela cidade além dos que já haviam.

— Comandante co’Ulcai — falou Sigourney em uma voz tão arrasada quanto o rosto —, a informação que você nos traz... — Ela parou e fechou o único olho. Quando abriu novamente, a voz saiu mais inteligível. — Você nos desapontou.

— Eu sinto muito, kraljica — disse o comandante. — A senhora já deve estar com minha carta de resignação.

— Eu estou com ela, mas não irei aceitá-la. — Quando co’Ulcai ergueu o rosto com uma leve esperança, Sigourney olhou o homem com desprezo. — E não há outra razão além do fato de que temos poucos offiziers com a sua experiência. Você nos desapontou com os ocidentais, e a mancha em seu currículo não será facilmente apagada. Eu tenho a intenção de mandar que Aleron ca’Gerodi comande as defesas de Nessântico caso esses bárbaros sejam tolos o bastante para continuar a avançar. Se meu irmão estivesse aqui... — Ao dizer isso, os lábios tremeram e um brilho úmido surgiu no olho. Ela tomou um gole de cuore della volpe. — Quanto a você, veremos como se sai contra um inimigo que deve conhecer melhor. Vou mandá-lo para leste, comandante co’Ulcai, para comandar nossas forças contra o exército de Firenzcia. Odil ca’Mazzak, do Conselho, irá acompanhá-lo, e vocês dois partem amanhã. — A kraljica gesticulou com o braço para dispensá-lo. — Imagino que tenha preparativos a fazer, comandante.

Co’Ulcai ficou de pé, fez uma mesura para a kraljica e foi embora do salão com passos altos no silêncio que o acompanhou. Quando ele saiu, a kraljica Sigourney suspirou.

— Eu não confio no sujeito — murmurou Odil ca’Mazzak. — Ele é outro offizier com laços com o regente traidor.

— Infelizmente, co’Ulcai é o melhor que temos — respondeu a kraljica Sigourney. — Odil, precisamos rever os pontos da negociação que você discutirá com os firenzcianos. Archigos, preciso que você se manifeste contra os numetodos, por duas razões: para aplacar Firenzcia e para sabermos que não temos traidores na cidade enquanto enfrentamos inimigos dos dois lados. Eu espero ouvir Admoestações agressivas de sua parte e de todos os seus ténis, a começar com as missas da Terceira Chamada.

Kenne sabia que ela não esperava ouvir objeção alguma de sua parte; Sigourney já havia afastado o rosto antes de terminar de falar. A kraljica imaginava que ele apenas concordaria com a cabeça e não diria nada. Antigamente, ela estaria certa.

Antigamente. Mas havia a visita de Karl, havia o espectro do falso archigos Semini ca’Cellibrecca surgindo no horizonte e tudo o que aquilo significaria. E havia a memória de Ana e a liberdade e tolerância pelas quais ela lutou por anos.

— Não — disse Kenne. — Eu não farei isso.

O silêncio que se seguiu foi longo. A kraljica Sigourney piscou o único olho. — Não — repetiu ela, e a palavra soou como o toque de um sino fúnebre. — Eu ouvi direito, archigos?

Kenne concordou com a cabeça. — A senhora está... — A garganta estava seca. Ele engoliu em seco e tentou juntar alguma saliva. — A senhora está errada a respeito dos numetodos, kraljica. Está errada em acreditar que foi a magia deles que matou o kraljiki Audric e feriu a senhora. Não foram eles.

Ela piscou o único olho mais uma vez. Os outros conselheiros observavam os dois, em silêncio. — Não foram? E como você sabe disso?

— Porque eu falei com o embaixador ca’Vliomani, na verdade. Ouvi suas explicações e fiz minha própria investigação sobre o que ele descobriu.

— Karl Vliomani — a nítida falta de um prefixo ao sobrenome pairou pesadamente no ar — é um fugitivo atualmente condenado à morte. Está me dizendo que ele foi até você, e você o deixou escapar?

Kenne sentiu um arrepio com o tom de voz. — Ele veio até mim, sim, e me mostrou isso. — Ele tirou um pequeno frasco de vidro debaixo do robe verde. No interior, a areia negra reluzia. — Observem. — O archigos levantou-se da cadeira, arrastou os pés pelo tablado e desceu para o piso do salão. Tomou vários passos de distância do trono, depois tirou a rolha do frasco e deixou a areia jorrar sobre os ladrilhos. Kenne voltou para o tablado; os joelhos estalaram como gravetos secos quando subiu os degraus. — Todo mundo concorda que Enéas co’Kinnear usou um feitiço para criar fogo; mas aquele era um feitiço de téni, não de numetodo. Co’Kinnear foi um acólito da fé concénziana e teve alguma educação sobre o uso do Ilmodo. É muito provável que ele tenha aprendido aquele feitiço; é um dos primeiros a serem ensinados aos novos estudantes. Olhem...

Kenne ergueu as mãos e deixou que dançassem no rápido gestual enquanto a voz entoou as curtas frases necessárias. Um momento depois, uma chama amarela tremeluziu no ar entre suas mãos. — Todos os senhores viram isso mil vezes; todas as noites, quando as lâmpadas são acesas ao longo da Avi a’Parete. Isso aqui não é diferente...

O archigos abriu as mãos, começou um novo cântico, e a chama afastou-se de sua mão, saiu flutuando do tablado até pairar sobre a areia negra. Ali, ele abaixou as mãos devagar, e a chama respondeu da mesma forma, desceu até quase tocar a pilha escura...

O estrondo da explosão foi mais alto até mesmo do que Kenne esperava, e o clarão feriu os olhos. Uma fumaça branca subiu e se espalhou pelo salão, seguida de um cheiro cáustico e intenso. Ele ouviu o baque metálico quando a taça do cuore della volpe caiu do braço do Trono do Sol para o chão. A kraljica Sigourney estava com a respiração acelerada no trono e a mão erguida diante do rosto como se tentasse se proteger; ela parecia tentar ficar em uma perna só enquanto pegava a bengala perto da mão direita. Vários conselheiros estavam de pé e berravam. As portas do salão foram escancaradas por gardai, que entraram com espadas na mão. — Kraljica?

Sigourney abaixou as mãos. Kenne ouviu a respiração da kraljica desacelerar. Ela dispensou os gardai com um gesto. — Este cheiro... — murmurou Sigourney. — Eu me lembro dele mais do que de tudo. — Ela virou-se lentamente para o archigos e perguntou — Isso não é magia? Como é possível que isso não seja o Ilmodo, archigos?

— Porque é apenas alquimia — respondeu Kenne —, uma combinação de ingredientes que reage violentamente quando entra em contato com fogo. Havia traços desta areia negra na madeira do Alto Púlpito após a archigos Ana ser morta; os mesmos traços estavam no Trono do Sol e no corpo do kraljiki Audric.

— Os numetodos alegam que a fé em Cénzi não é necessária para usar magia, que qualquer pessoa é capaz disso, que não é mais complicado do que ser um padeiro. Eles olham para pedras com formato de conchas e crânios e inventam teorias estranhas, eles realizam experiências... em alquimia, assim como em outras “ciências”, bem como em magia. Para mim, isso parece indiciar os numetodos. — Quem falou foi Odil ca’Mazzak. Ele olhou com raiva para o archigos, e a kraljica concordou com a cabeça diante das palavras.

— Eu afirmo que isso não veio dos numetodos — insistiu Kenne.

— Mesmo que tenha sido Vliomani quem, por acaso, lhe mostrou isso — retrucou Odil com desdém. — Parece uma lógica estranha.

— A areia negra é um preparado ocidental — disse Kenne. — Aqui está a lógica, conselheiro. Enéas co’Kinnear tinha acabado de retornar do serviço militar nos Hellins. O senhor também deve se lembrar que o comandante co’Ulcai acabou de nos contar como os ocidentais foram capazes de destruir as muralhas de Villembouchure com explosões similares àquelas que mataram a archigos Ana e o kraljiki Audric.

— E ele disse que as explosões foram criadas pela magia dos ténis-guerreiros ocidentais, esses tais “nahualli”. — Odil balançou a cabeça grisalha. A pele flácida da garganta sacudiu com o movimento. — Eu acho que o archigos está enga...

— Não! — Dessa vez Kenne quase gritou e bateu o pé no chão ao mesmo tempo. — Eu não estou enganado. Sei que todos os senhores me acham um velho tolo e decrépito que é uma mera sombra do que um archigos deveria ser. Os senhores podem estar certos quanto a isso, mas estão errados nessa questão. Pior do que errados; eu tenho provas que me fazem acreditar que o falso archigos Semini está envolvido no assassinato da archigos Ana. E, se esse for o caso... — Ele parou, sem fôlego. Todos encaravam o archigos como se ele fosse uma criança tendo um ataque. — Nós precisamos dos numetodos, kraljica, conselheiros — continuou Kenne, com a voz mais baixa. — Precisamos das habilidades, da magia e do conhecimento deles. Nessântico está prestes a ser sitiada pelo oeste e pelo leste, e não podemos nos dar ao luxo de perder aqueles que podem nos ajudar.

Houve um longo e doloroso silêncio. Odil lambeu os lábios e sentou-se. Os outros integrantes do Conselho abaixaram a cabeça e entreolharam-se. A kraljica Sigourney olhou fixamente para a mancha negra nos ladrilhos. — Nós consideraremos o que você disse, archigos — falou ela, finalmente, e Kenne sabia o que isto significava.

Ele gemeou e levantou-se da cadeira novamente. Pegou o cajado de archigos com a mão direita — o globo partido envolto pelos corpos nus e contorcidos dos moitidis — e fez o sinal de Cénzi para a kraljica com a esquerda. Novamente, Kenne afastou-se do tablado arrastando os pés. Ao passar pelo ponto onde a areia negra havia explodido, parou. Os ladrilhos ali estavam quebrados. Ele pegou um dos pedaços maiores, com uma borda afiada de cerâmica azul-clara e a superfície lisa manchada com o que parecia ser fuligem. O cheiro da areia negra era forte. Kenne levantou o pedaço do ladrilho e deixou cair, o som se parecia com o de um prato se quebrando. Ele viu os pedacinhos quicarem e se espalharem.

— Nessântico inteira pode ficar assim — disse o archigos. — Inteira.

Não houve resposta. Ele bateu com a ponta do cajado de archigos no ladrilho e continuou arrastando os pés.

 


Sergei ca’Rudka

A TENDA DE NEGOCIAÇÃO FOI ARMADA em um campo entre as duas forças: ao lado da Avi a’Firenzcia e aproximadamente a meio caminho entre Passe a’Fiume e Nessântico. Ao se aproximarem, Sergei já podia ver as silhuetas escuras de Odil ca’Mazzak e Aubri co’Ulcai através do pano branco, juntamente com o u’téni Petros co’Magnaoi, presente como o representante do archigos. A delegação firenzciana era composta por Sergei, a a’hïrzg Allesandra e o starkkapitän ca’Damont, acompanhados pelo obrigatório conjunto de chevarittai e assistentes. Uma vez que nem a kraljica nem o archigos Kenne estavam presentes, o hïrzg e o archigos Semini, diante da sugestão de Sergei, ficaram para trás. Nenhum dos dois ficou contente com o arranjo.

— Matarh, eu deveria estar lá — insistiu Jan. — Eu sou o hïrzg, e o que acontecer deve ser, tem que ser minha decisão. — Ele olhou feio para Sergei e Allesandra.

— E será, hïrzg — disse Sergei para o jovem. — Eu lhe prometo, mas para o senhor estar lá... — Ele balançou a cabeça. — O senhor é o hïrzg, como disse. Não há um igual ao senhor naquela tenda; também não há um igual ao archigos. Não é esperado do senhor, hïrzg Jan, que negocie em termos iguais com Odil ca’Mazzak, que é apenas um integrante do Conselho dos Ca’; o senhor estaria se rebaixando se fizesse isso. Eu lhe digo que isso é exatamente o que eles querem que faça. Seria uma admissão de que o hïrzg da Coalizão é alguém inferior à kraljica dos Domínios.

Sergei então olhou para Allesandra e para o archigos, que estava com a cara fechada. — Os senhores me pediram para dar meu conhecimento, para ajudá-los. É o que estou fazendo aqui. Aparências importam. Importam muito. Especialmente para aqueles no Palácio da Kraljica.

No fim, com o apoio de Allesandra, o regente venceu o argumento. Jan, pelo menos, foi, de certa forma, educado. Irritado, o archigos saiu em um rompante, e eles ouviram Semini reclamar pelo acampamento pelas próximas viradas da ampulheta.

Conforme o contingente firenzciano desmontava e criados recolhiam as armas e os cavalos e ofereciam comidas e bebidas, os representantes de Nessântico aproximaram-se. Sergei apertou afetuosamente o braço de co’Ulcai e sorriu para seu offizier de longa data. — Aubri, eu gostaria que pudéssemos ter nos encontrado sob circunstâncias melhores. Eu soube o que aconteceu com o pobre Aris... — Ele apertou o ombro do homem e fez o sinal de Cénzi para o u’téni Petros co’Magnaoi. — Petros, é bom vê-lo também. Como está o archigos Kenne?

— Está bem, senhor, e lhe manda bênçãos — respondeu o homem mais velho.

Sergei inclinou-se para perto do u’téni ao abraçá-lo. — Kenne recebeu minha mensagem? — sussurrou o regente no ouvido do velho. — Ele concorda? — Sergei sentiu o leve aceno de Petros. Também viu os olhares de avaliação de ambas as delegações sobre ele ao cumprimentar os dois homens: tanto de Allesandra quanto de Odil ca’Mazzak. Ambos tinham suspeitas; ambos tinham o direito de ter. Sergei acenou com a cabeça para ca’Mazzak e sentou-se à esquerda de Allesandra.

O conselheiro gesticulou, e pajens aproximaram-se para entregar rolos pesados de pergaminhos a Allesandra, Sergei e ao starkkapitän. — Esta é a oferta da kraljica Sigourney — falou ca’Mazzak enquanto o trio lia as palavras presentes ali. — Seu exército terá permissão para retornar a Firenzcia. O fora da lei Sergei Rudka será entregue a nós. Reparações serão pagas por Brezno para os Domínios pela destruição de colheitas e gado feita por seu exército e pela violação do Tratado de Passe a’Fiume. Se os senhores acharem os termos aceitáveis, só é necessário que a a’hïrzg assine como representante da Coalizão.

Não era mais do que Sergei esperava. Ele já testemunhara a arrogância e o excesso de confiança dos Domínios muitas vezes antes.

O starkkapitän ca’Damont bufou desdenhosamente pelo nariz e jogou o pergaminho na mesa. — E como a kraljica pretende executar essa oferta, conselheiro? Com os poucos batalhões que o senhor deu ao comandante co’Ulcai? Não tenho nada além de respeito pelo comandante, que é um belo offizier, mas não se afasta um urso raivoso com um graveto. — Ele pareceu se dar conta de que falou o que não devia. O rosto ficou um pouco vermelho. — Perdão, a’hïrzg. Eu sou um simples offizier, mas essas exigências... — Ele empurrou o pergaminho da mesa para o chão; um pajem correu para pegá-lo, mas não o devolveu ao starkkapitän.

— A Garde Civile e os chevarittai dos Domínios não são um graveto, starkkapitän — gabou-se ca’Mazzak. Ele inchou como um sapo, sentado ereto na cadeira, a papada no pescoço grosso tremeu. — O senhor subestima nossa capacidade de botar um exército em campo rapidamente quando nossas terras são ameaçadas. É uma lição que o último hïrzg Jan aprendeu; estou surpreso que alguém em Firenzcia sinta necessidade de aprendê-la uma segunda vez.

Allesandra parecia ainda estar lendo a proposta, embora Sergei tenha notado que ela escutava com atenção o diálogo. A a’hïrzg pousou o papel diante de si e dobrou as mãos sobre ele. — Muito bem. Deixemos a pose de lado, conselheiro ca’Mazzak. Todos sabemos que Nessântico enfrenta uma ameaça a oeste. Sabemos o que aconteceu com Karnor; ouvimos rumores que Villembouchure pode ter sofrido o mesmo destino. Talvez o comandante co’Ulcai possa nos esclarecer sobre isso, uma vez que eu espero que ele tenha estado lá quando as forças dos Domínios foram escorraçadas? Todo mundo nesta mesa sabe que o senhor não tem forças suficientes para nos desafiar aqui. Então o que é que a kraljica realmente oferece?

Sergei havia sugerido esse curso direto de ação para Allesandra, mas a provocação a Aubri co’Ulcai tinha sido contribuição da própria a’hïrzg. A expressão no rosto de Aubri foi o suficiente para confirmar que o palpite dela estava correto, e Sergei sentiu uma pontada de compaixão pelo amigo.

Ca’Mazzak parecia ter engolido uma fruta podre. Ele deu uma olhadela para Petros, que parecia examinar os campos além do limite da tenda, e depois para Aubri. — A kraljica está preparada para oferecer um meio-termo — falou o conselheiro finalmente. — Que o hïrzg e a a’hïrzg voltem para Brezno com a Garde Brezno; no entanto, o starkkapitän ca’Damont e o restante do exército ficam para trás, a fim de auxiliar na defesa de Nessântico contra os ocidentais, ajuda pela qual o tesouro de Nessântico está disposto a pagar. Quanto ao antigo regente... — ca’Mazzak olhou com ódio para Sergei. — A kraljica Sigourney mantém a exigência do retorno de Sergei Rudka para que enfrente as acusações contra ele, não importa o acordo a que cheguemos aqui.

Allesandra ficou de pé ao ouvir isso; um momento depois, Sergei, ca’Damont e o resto do contingente firenzciano acompanhou o gesto. — Então estamos encerrados aqui — disse a a’hïrzg. — O regente ca’Rudka é um conselheiro da coroa de Firenzcia, e nós o consideramos o legítimo governante atual de Nessântico até que um kralji de direito seja nomeado. Se o regente ca’Rudka desejar retornar à Nessântico por conta própria para lutar por seu direito, ele pode fazê-lo. Caso contrário, ele está sob a proteção do hïrzg, não importa o que a pessoa que os senhores nomearam kraljica deseje. — Ela fez uma mesura para ca’Mazzak e gesticulou. Sergei deu um largo sorriso para o homem. Eles deram meia-volta para ir embora.

— Esperem! — Foi Petros que os chamou. Allesandra parou.

— U’téni? — perguntou a a’hïrzg, mas ca’Mazzak já vociferava.

— Eu estou no comando dessa delegação — falou o conselheiro. — Você fala quando eu lhe der permissão, u’téni co’Magnaoi.

— Cénzi está no comando da minha consciência — disse Petros. — Não o senhor, nem a kraljica Sigourney. E eu falarei. A’hïrzg, Nessântico está em uma situação desesperadora. O comandante co’Ulcai poderia lhe dizer, se tivesse permissão para falar, com que facilidade os ocidentais tomaram os vilarejos e as cidades que eles devastaram. Nessântico precisa desesperadamente de todos os aliados que conseguir reunir agora. O archigos Kenne está preparado para negociar separadamente da kraljica, se for necessário, para alcançar esse objetivo.

— O quê? — esbravejou ca’Mazzak. Ele também estava de pé agora e socou a mesa. — Não, não, não. Estamos encerrados aqui. U’téni co’Magnaoi, você será levado de volta à cidade para responder por isso. Comandante, mande seus gardai...

Sergei deu um tapa na mesa bem na frente de ca’Mazzak, o homem fechou a boca com um estalo alto. — O senhor não é nada além do cachorrinho bravo da kraljica, conselheiro — disse o regente ao se inclinar na direção do homem. — Sente-se.

Ca’Mazzak o olhou com ódio e virou-se para Aubri. — Comandante, o senhor tem as suas ordens. O senhor prenderá o u’téni imediatamente.

Aubri não se mexeu, não respondeu. Sergei sentiu a tensão aumentar na tenda. Viu mãos deslizarem cautelosamente na direção das armas escondidas — ele mesmo tinha as próprias facas, uma na bota, outra debaixo da blusa da bashta, e o zumbido do próprio medo ecoava em seus ouvidos. O regente não conseguira contatar Aubri antecipadamente, e se o comandante tivesse decidido que sua lealdade ao Trono do Sol era maior do que a velha lealdade a Sergei, então... Bem, então Sergei não sabia o que poderia acontecer aqui.

— Comandante co’Ulcai, isso é traição — rosnou ca’Mazzak. — Vou exigir sua cabeça por isso, se não fizer como mandei.

Aubri não disse nada; o olhar contemplativo continuava em Sergei. Os chevarittai de ambos os lados ficaram tensos, prontos para agir. Sergei colocou-se entre Allesandra e a mesa e falou — Eu sugiro que o senhor se sente, conselheiro. Deixe o u’téni co’Magnaoi terminar de explicar sua proposta.

Por vários instantes, ca’Mazzak não se mexeu. Ele olhou em volta da tenda lentamente, Sergei sabia que o conselheiro estava avaliando quem ali o seguiria ou não. Evidentemente, o homem não ficou satisfeito com o resultado. Devagar, ca’Mazzak sentou-se novamente. Ele olhou fixamente para as próprias mãos.

— Ótimo — disse Sergei. Por um momento, o zumbido nos ouvidos diminuiu. — Petros, o que o archigos Kenne tem a oferecer para Firenzcia?

— Informação — respondeu Petros. — Nós temos provas de que o archigos Semini esteve envolvido no assassinato da archigos Ana. Podemos dar nomes que verificam essa informação. — Atrás dele, Sergei ouviu Allesandra tomar fôlego diante da acusação. O regente ficou intrigado com a reação; ela parecia mais preocupada do que surpresa. — Como o kraljiki Audric foi morto da mesma maneira — continuou Petros —, nós suspeitamos que o falso archigos esteve envolvido da mesma maneira. Se o hïrzg Jan estiver disposto a julgar o archigos Semini pela morte da archigos Ana em sua própria corte, nós daremos as provas que temos. Em troca, a Fé de Nessântico trabalhará com a Fé de Brezno para restaurar o nosso racha; o archigos Kenne irá convocar um Conclave com todos os a’ténis para eleger um único archigos para reger a fé concénziana, e também abdicará voluntariamente se não for eleito; porém, qualquer archigos eleito deverá assumir o Templo do Archigos em Nessântico, não em Brezno. Da mesma forma, a Fé está disposta a reconhecer o direito ao Trono do Sol de Allesandra ca’Vörl. O archigos Kenne irá apoiá-la diante do Conselho dos Ca’ contra a kraljica Sigourney.

— Não! — Ca’Mazzak ficou de pé em um pulo novamente, e uma baba voou de sua boca com a explosão da palavra. — O archigos Kenne será jogado na Bastida por isso, e os ténis que o apoiarem serão expulsos...

— Se isso acontecer — respondeu Petros calmamente —, então o archigos Kenne mandará que os ténis-guerreiros permaneçam nos templos em vez de responderem ao chamado da kraljica. Como a Garde Civile e os chevarittai se sairão contra os ocidentais sem os ténis-guerreiros, conselheiro? Como enfrentarão o exército do hïrzg?

Novamente, ca’Mazzak desmoronou na cadeira. Ele sentiu um arrepio, como se estivesse com febre e alisou a papada. A testa porejava, e debaixo dos braços, o tecido da bashta escureceu.

Allesandra tocou o ombro de Sergei, que se afastou. A a’hïrzg deu um sorriso amargo e fez o sinal de Cénzi para Petros. — Vocês oferecem tudo isso pelo julgamento do archigos Semini?

Petros concordou com a cabeça. — Nós confiamos que a corte do hïrzg será justa e imparcial. E há mais uma coisa: toda perseguição contra os numetodos deve parar. Imediatamente. Os numetodos são inocentes em toda esta questão. O embaixador Karl ca’Vliomani deve retomar o antigo cargo.

Sergei sentiu que as negociações dependeriam da resposta de Allesandra a essa última exigência. Ela tocava o globo partido de Cénzi pendurado no pescoço. Sua própria vida dependia disso também, assim como a de Petros e Aubri. Se ele avaliou errado...

— Eu falarei com meu filho — respondeu a a’hïrzg. — Repetirei tudo o que foi dito aqui. — Sergei achou, por um momento, que essa seria toda a resposta, que ele havia perdido. Mas Allesandra respirou fundo e disse — Vou sugerir que o hïrzg aceite a oferta do archigos. Conselheiro ca’Mazzak, comandante, u’téni, nós voltaremos à tenda de negociação em três viradas da ampulheta para dar nossa resposta.


— Se o archigos Kenne tem provas, eu irei avaliá-las — falou Allesandra para Sergei ao voltarem. — E se o archigos Semini for o responsável pela morte de Ana ca’Seranta, então... — Ela franziu os lábios com força. — Então estou inclinada a convencer meu filho a aceitar a oferta do archigos.

De alguma forma, a a’hïrzg pareceu ter feito exatamente isso, embora Sergei não tenha estado presente à discussão, e embora todo mundo no acampamento tenha ouvido as ocasionais vozes exaltadas na tenda do hïrzg. O regente notou, principalmente, que o starkkapitän ca’Damont colocou gardai postados em volta da tenda do archigos.

Ele se perguntou o que estaria acontecendo no outro acampamento. Tudo dependia das lealdades da Garde Civile e dos ténis — e Sergei não tinha certeza de como aquilo terminaria. O regente rezou para Cénzi, na esperança de que Ele escutasse.

Três viradas da ampulheta depois, Sergei, Allesandra e os demais cavalgaram na direção da tenda de negociação.

Há décadas, quando ele era o comandante da Garde Kralji, Sergei às vezes sentia um arrepio ao se aproximar da Bastida a’Drago: um tremor na espinha, quase parecido com medo, que lhe dizia quando havia algo errado no complexo atrás do crânio sorridente do dragão.

O regente sentiu aquele arrepio agora, conforme o pequeno destacamento se aproximava da tenda de negociação. Antes de mais nada, foi curioso que não houvesse nenhum criado andando de um lado para o outro, que as cadeiras do lado de Nessântico na mesa estivessem vazias. Mas o que deteve Sergei, o que deu um nó no estômago, foi perceber que havia alguma coisa sobre a mesa — duas coisas, dois objetos arredondados escondidos sob a sombra da lona que tremulava na brisa. Infelizmente, Sergei sabia o que estava ali.

— Espere um momento, a’hïrzg — falou ele. — Por favor, espere aqui.

Sergei fez o cavalo ir à frente sozinho e gesticulou para o starkkapitän ca’Damont segui-lo. Ele apertou os velhos olhos para forçá-los a distinguir o que havia sobre a mesa. Ao se aproximar, ouviu um leve zumbido que ficou mais alto aos poucos: o barulho de insetos.

O regente entendeu, naquele momento, e a bile subiu à garganta. Ele parou o cavalo, desceu da sela e entrou na sombra da tenda.

Sobre a mesa havia duas cabeças, com uma poça de sangue coagulado e grudento debaixo delas e um tapete de moscas que andavam sobre os olhos abertos e dentro das bocas escancaradas.

Sergei ficou de joelhos e fez o sinal de Cénzi na direção da cena horripilante. — Aubri. Petros. Sinto muito. Sinto muitíssimo.

Trêmulo, o regente ficou de pé novamente e retornou ao cavalo. Ele cavalgou em silêncio até os demais. O olhar de Allesandra questionou Sergei; ela também sabia. O regente viu na maneira com que a a’hïrzg levou a mão à boca antes dele sequer falar.

— O conselheiro ca’Mazzak deixou sua própria resposta para nós — disse Sergei. — Parece que ele não se importa com qual seria nossa resposta.

 

Nico Morel

NICO NÃO CONSEGUIA ficar sentado quieto. O menino jamais havia imaginado um lugar tão grande, glorioso e interessante quanto esse. Eles foram conduzidos a um gabinete em um dos prédios que rodeavam a Praça a’Archigos; a recepção em si era maior do que o apartamento de dois cômodos que eles tinham no Velho Distrito e havia pelo menos três portas que levavam a outros aposentos que Nico só conseguia imaginar. Ele vislumbrou um quarto quando um criado entrou com roupas de cama na mão, e o aposento parecia enorme, além dos limites. O gabinete para onde eles foram levados teria abrigado a casa de Nico, assim como aquelas dos vizinhos mais próximos. O teto parecia tão alto e tão branco quanto as nuvens de verão; o piso era um mosaico intrincado de várias madeiras coloridas, e as paredes eram cobertas por tapeçarias lindas, que mostravam a história da vida de Cénzi, a moldura no topo das paredes era entalhada e dourada. Atrás da enorme mesa de mogno, uma sacada dava vista para uma grande praça, com a silhueta do Templo do Archigos emoldurada pelas cortinas abertas. O resto da mobília na sala chamava tanto a atenção quanto a mesa — uma mesa comprida e lustrosa para reuniões, com cadeiras estofadas ao redor; um sofá colocado diante de uma lareira em que a família inteira de Nico poderia ficar em pé dentro, cercada por um belo consolo; um globo entalhado e partido que era mais alto que dois homens, um em cima do outro, com figuras esculpidas dos moitidis em volta dele e uma base cravejada de joias e folheada de ouro reluzente. Ao redor das paredes, havia mesas repletas de lindas maravilhas do exterior: estátuas de animais desconhecidos; uma pedra grande quebrada ao meio, com o miolo cheio de belos cristais violeta; conchas cor-de-rosa e espinhentas do Strettosei...

Nico piscava e olhava fixamente para tudo. — Tudo isso aqui é só para o senhor? — perguntou o menino para o archigos, maravilhado.

— Nico, silêncio — disse a matarh, mas o velho no robe verde apenas riu.

— É para o archigos, seja ele quem for — falou o homem. — Eu vivo aqui apenas temporariamente, até que Cénzi me chame de volta para Ele. Era aqui que a archigos Ana vivia também. — Ele deu um tapinha na cabeça de Nico, e os criados trouxeram bandejas de comida e bebidas e colocaram sobre a mesa. O archigos gesticulou para eles assim que terminaram e disse — Isso é tudo. Por favor, cuidem para que não sejamos incomodados. Mandem minha carruagem para a porta dos fundos uma virada da ampulheta antes da Terceira Chamada. — Eles fizeram uma mesura e foram embora. — Sirvam-se — disse o homem quando o último dos criados fechou as portas duplas ao sair do gabinete. — Karl? Parece que uma boa refeição cairia bem a todos vocês. — Nico olhava fixamente para a comida, e o archigos riu de novo. — Vamos, Nico. Você não precisa esperar.

O menino olhou de relance para a matarh e Talis, que deu de ombros. — Tudo bem — falou a matarh. — Vá em frente...

Nico foi em frente. Um bolinho de grãos com pingos de mel foi a primeira coisa que colocou na boca. Os adultos não pareciam estar com tanta fome quanto ele, o que era estranho. Nem Talis, Karl ou Varina foram à mesa, e sua matarh beliscava a esmo um peito de pato. Em vez disso, eles se amontoaram perto do sofá, em frente à lareira.

— Archigos — Nico ouviu Karl dizer —, Ana ficaria muitíssimo orgulhosa de você. Todos nós lhe devemos agradecimentos.

— Os agradecimentos são para você, Karl. Se você não tivesse vindo até mim, se não me dissesse o que sabia... Bem, não tenho certeza do que teria acontecido. De qualquer forma, eu talvez tenha colocado você em mais perigo, não em menos. A kraljica está furiosa, pelo que eu soube, e assim que o conselheiro ca’Mazzak retornar da negociação com os firenzcianos, eu desconfio que ela ficará ainda menos contente comigo. Nenhum de nós tem como saber o que acontecerá diante dessa situação; por isso precisamos conversar hoje à noite. Não há muito tempo; é possível que um mensageiro já esteja voltando para a cidade. — Nico ouviu o archigos perder a voz. Ele virou-se com um pedaço de pão e queijo na mão. — Este é o ocidental? — perguntou Kenne ao apontar com a cabeça na direção de Talis, que mantinha as duas mãos na bengala que sempre carregava. Nico viu o ar tremular em volta da madeira como se a bengala estivesse em chamas, mas era um fogo mais frio que a neve do inverno passado.

— Sim, archigos — respondeu Karl. — Este é Talis Posti. O vatarh de Nico.

— Ah — falou Kenne. — Vajiki Posti, eu também lhe devo agradecimentos; embora deva me desculpar por querer saber o motivo pelo qual você decidiu me ajudar.

— Porque eu vislumbrei os futuros, e nenhum deles leva a um bom lugar para o meu povo — respondeu Talis, e Nico viu seu interesse aumentar ao ouvir aquilo. Talis podia ver o futuro? Isso seria interessante. Ora, se ele pudesse fazer isso, Nico poderia se ver como adulto, talvez ver o que aconteceria com ele... O menino percebeu que suas mãos se moviam por conta própria em uma estranha dança, os dedos grudentos mexiam-se pelo ar, e palavras desconhecidas vieram a ele. Nico murmurou tão baixinho que nenhum dos demais ouviu. O frio da bengala de Talis parecia fluir na direção de suas mãos; ele sentia o arrepio nos braços.

— Você tem aquele dom dos deuses? — perguntou Kenne para Talis, que ergueu as sobrancelhas e olhou para Karl.

— Mahri alegava que podia fazer o mesmo — falou o embaixador. Isso também fez Nico prestar atenção; ele lembrou-se que Talis mencionara o nome anteriormente. — Não que tivesse lhe servido de alguma coisa no fim das contas.

— Não são visões do futuro que Axat nos permite vislumbrar, mas todas as possibilidades que existem. Os vislumbres de futuros em potencial não são fáceis de ler, embora fosse dito que Mahri era capaz de usar o talento melhor do que qualquer um antes ou depois dele. E sim, parece que o talento o desapontou, no fim das contas. — Um breve sorriso passou pelo rosto de Talis. — Talvez tenha sido a proximidade com o seu Cénzi.

Kenne riu; Nico gostou do som, fez com que gostasse do homem. O frio envolveu seus braços agora, embora as mãos tivessem parado de dançar.

— Você está disposto a nos ajudar... — o archigos Kenne abriu os braços para incluir Karl e Varina, e o resto da cidade do lado de fora da sacada — ... quando isso significa que você poderia ajudar a derrotar as forças do seu próprio povo?

— Sim — respondeu Talis —, porque Axat me disse que, ao fazer isso, eu ajudarei meu povo.

O frio congelava os braços de Nico e estava ficando pesado. Ele não sabia o que fazer com aquilo, mas tremia com o esforço de segurá-lo, e a dor quase fez com que gritasse. — Às vezes seu inimigo torna-se seu aliado — dizia Varina para o archigos. — Eu sei...

— Nico! — A voz da matarh foi quase um berro. — O que você está fazendo? — O menino tomou um susto quando Serafina agarrou seu ombro, e o frio saiu voando do corpo. Ao fugir, a energia reluziu e flamejou, como uma língua de fogo azul. A rajada foi disparada por ele, varou o espaço entre Talis e o archigos e se dirigiu para a escultura do globo partido, no canto do gabinete. Nico soluçou, assustado tanto pela sensação de alívio quanto de puro terror diante do que tinha acabado de lançar. Varina, que estava a alguns passos do archigos, gesticulou e falou uma única palavra ríspida; com o movimento, Nico viu a linha de fogo azul fazer uma curva e dar meia-volta. A rajada fez um arco ao se afastar da escultura, cuspiu fagulhas cor de safira sobre a mesa envernizada e saiu assobiando pelas portas abertas da sacada. Bem acima da praça, o fogo concentrou-se e explodiu: um globo azul-claro que brilhou como um relâmpago congelado. Com a explosão, veio o estrondo ensurdecedor de um trovão que ecoou nas paredes dos prédios que circundavam a praça. Nico sentiu as janelas tremerem e chacoalharem nas ombreiras e ouviu vidro se quebrando ao longe.

— Nico! — O menino foi abraçado pela matarh. — Nico... — repetiu ela, com mais gentileza dessa vez. Serafina abraçou o filho com mais força, que não tinha certeza se era para ser um abraço ou um estrangulamento. Todos olhavam fixamente para ele.

— Desculpem — falou Nico. — Eu não tinha a intenção de.

Ele começou a chorar.

 

Karl Vliomani

— DESCULPEM — falou Nico. O lábio inferior tremia, e as próximas palavras mal haviam saído antes que os ombros começassem a tremer por causa dos soluços. — Eu não tinha a intenção de...

Serafina olhava fixamente sobre os ombros do menino ao abraçá-lo, seus olhos estavam arregalados e aterrorizados. Lá fora, na praça, eles escutaram gritos ao longe quando os transeuntes começaram a procurar pela fonte da claridade trovejante. Karl ouviu Varina suspirar de alívio atrás de si. — Se ele estivesse um pouquinho para um lado, ou para o outro... — disse Karl.

— Ele não estava — respondeu Varina, que se ajoelhou na frente do menino e acenou com a cabeça para Serafina. — Está tudo bem, Nico. Ninguém se machucou. Está tudo bem. — Ela olhou para Karl, atrás dela. — Está tudo bem — repetiu. O menino fungou e esfregou a manga no nariz e nos olhos.

Karl suspirou e sorriu: para Varina, para Nico e para Serafina. — Sim, está tudo bem, graças a Varina. Talis, você sabia...?

— Eu suspeitava, mas... — Ele segurava o cajado mágico e o olhava confuso, como se fosse um copo subitamente vazio. — Agora eu sei. Archigos, o senhor está...?

Kenne abanou a mão, como se não fosse nada, mas Karl notou que o peito do homem ainda ofegava. — Eu estou bem — disse o archigos. — E impressionado. Seu filho é um dos poucos talentos naturais que conheci. O archigos Dhosti foi um, e Ana, também. Com treinamento, bem...

— Eu o treinarei. — A resposta do homem veio acompanhada por uma cara fechada. Ele pegou o cajado mágico com força. — Esse é o dom de Axat, não de Cénzi.

— É claro — falou Kenne para Talis, mas o olhar permaneceu em Nico. — Não se preocupe — disse o archigos para o menino. — Ninguém aqui está com raiva de você, entendeu? — Nico concordou com a cabeça, ainda fungando o nariz.

— Se eu soubesse disso, teria sido bem mais cauteloso quando me aproximei de você pela primeira vez — falou Karl para Talis. — Mas, como não aconteceu nenhum mal... Nós ainda temos planos e contingências em que pensar. Archigos, Petros está pronto para fazer a proposta que conversamos para Firenzcia?

Kenne concordou com a cabeça, com mais hesitação do que Karl gostaria, mas ao menos foi uma confirmação. Na verdade, ele teve medo de que o archigos não levasse o plano adiante, especialmente dado o perigo inegável em que Petros foi colocado. — Ele está pronto. — A voz de Kenne tremeu um pouco; medo combinado com idade, decidiu Karl. — Na verdade, Petros já deve ter feito a proposta a essa altura.

— Ótimo — disse Karl. Ele deu um tapinha no ombro de Kenne e falou — Ele ficará bem e voltará para você em breve. Agora, da parte de Talis, ele trará os materiais dos aposentos de Uly para o templo amanhã, e nós podemos começar a preparar a areia negra para a demonstração. Isso deve mostrar a esse tal tecuhtli dos ocidentais que atacar a cidade seria idiotice. Nós podemos prevenir centenas, se não milhares, de mortes.


A carruagem do archigos era um truque — quatro criados de Kenne entraram no veículo quando ele parou na entrada dos fundos do prédio, enquanto Karl e os demais desceram correndo uma escada dos fundos na direção de uma entrada de serviço pouco usada. Nenhum deles sabia se o subterfúgio era necessário; Karl torcia para que não fosse, porém, caso fosse, então nenhuma alternativa que eles prepararam se tornaria realidade.

O grupo começou a sair correndo da praça em direção à Avi. Kenne dera a eles dinheiro suficiente para alugarem uma das carruagens e levá-los de volta ao Velho Distrito. Conforme passaram pela rua, Karl e os demais viram três esquadrões distintos de Garde Kralji cruzarem a Praça do Archigos correndo. — Esperem um momento — falou o embaixador. Talis, Serafina e Nico já estavam na Avi à procura de uma carruagem para alugar; Varina, um pouco à frente dele, parou. Quando Karl hesitou, no limite da praça, ele e Varina viram dois dos esquadrões entrarem no prédio de onde eles acabaram de sair; o outro esquadrão entrou no Templo do Archigos.

As armas estavam desembainhadas, o aço reluzia sob a luz das lâmpadas.

— Karl? O que está acontecendo?

— Não sei, Varina. Acho que eu deveria voltar. Leve os demais. Eu vou...

— Não — disse Varina com firmeza. Ela voltou até onde o embaixador estava e segurou o braço dele. — Não, Karl. Não dessa vez. Mesmo disfarçado, seu rosto é muito reconhecível pela Garde Kralji, e há vários deles, de todo modo. Você não sabe por que os gardai estão lá; pode não ser nada. Provavelmente não é nada. E caso não seja... — Varina mordeu o lábio inferior. Os olhos imploraram. — Você precisa deixar o archigos cuidar de si mesmo. Venha comigo. Por favor.

— Mas se as coisas deram errado...

— Se as coisas deram errado, você não pode mudá-las agora. Nós não podemos mudá-las. Tudo que aconteceria é que você estaria perdido também. — O braço apertou o dele. — Por favor, Karl. Vamos embora. Se houver um problema, nós conseguiremos ajudar mais o archigos se estivermos vivos do que se formos jogados na Bastida com ele. Nós soltamos Sergei; podemos fazer o mesmo novamente se precisarmos. Karl... — Varina encostou a cabeça no ombro dele. — Se você voltar, então eu irei com você. Mas essa é a decisão errada. Tenho certeza.

Karl olhou fixamente para os prédios e desejou que pudesse ver a sacada de Kenne dali. Tudo estava em paz; as pessoas ainda andavam pela praça como se nada estivesse acontecendo. Mas ele sabia. Ele sabia.

E também sabia que Varina estava certa. Ele não podia mudar nada. Karl olhou para trás. Talis chamou uma carruagem com um gesto e olhava para os dois com curiosidade. Uma mulher, que estava vestida com roupas pobres demais para esta parte da cidade, o que era estranho, passou correndo por eles vindo da direção da praça. Ao passar, ela pareceu tropeçar e esbarrar de leve em Karl. — Desculpe, vajiki — murmurou a mulher. — A voz... parecia vagamente familiar, mas ela manteve o capuz da tashta erguido e a cabeça baixa. Ele vislumbrou o cabelo castanho e sujo. — Vai ser uma noite ruim. Uma noite ruim. O senhor realmente deveria correr para casa...

Ela foi embora depressa.

Karl olhou fixamente a mulher, que desapareceu do outro lado da carruagem à espera. Talis acenava para eles. Foi aí que Karl lembrou-se de onde ouvira aquela voz.

— Tudo bem — disse ele para Varina. — Vamos embora.

 

A Batalha Começa: Kenne ca’Fionta

— INFELIZMENTE seu pobre Petros está morto. É uma pena.

Kenne ouviu as palavras, e os velhos olhos embaçaram com as lágrimas, embora ele já soubesse que Petros estava morto. Ele sentira em seu coração quando a Garde Kralji veio e o levou para a Bastida. Só lhe restava torcer para que Karl e o resto tivessem escapado da varredura; eles foram embora com apenas algumas marcas da ampulheta de antecedência. O gosto da mordaça de metal e couro era horrível; os grilhões que prendiam as mãos eram tão pesados que ele mal conseguia levantá-los do colo.

O rosto deformado da kraljica Sigourney encarava o archigos de cima. Kenne sustentou o olhar caolho dela por apenas alguns instantes, enquanto respirava através do horrível aparato sobre a cabeça, depois abaixou o próprio olhar, arrasado e derrotado. Entre as pernas, as mãos algemadas mexiam inquietas na palha da cama tosca onde ele estava sentado na cela, no alto da torre principal da Bastida. A voz da kraljica era solidária, quase triste. — Você é um bom homem, Kenne. Sempre foi. Mas era fraco demais para ser archigos. Deveria ter recusado o título e dito ao Colégio A’téni para eleger outra pessoa.

Kenne só podia concordar com a cabeça. Havia muitas noites ultimamente que em ele desejava exatamente a mesma coisa.

— Você devia saber que isto aconteceria, Kenne. Você escolheu se associar aos inimigos dos Domínios. Devia saber. E agora...

Ela mancou até a única janela da cela e apoiou-se na muleta acolchoada e dourada, enquanto a perna direita ficava pendurada sobre o vazio abaixo do joelho. A janela dava vista para oeste, Kenne sabia; na parede oposta à janela, ele tinha visto a luz do sol ficar amarela, depois vermelha e então púrpura ao subir sobre pedras úmidas até sumir. — Venha cá. — falou Sigourney. — Venha cá e veja.

Ele levantou-se da cama com dificuldade; era um velho arrasado agora, na verdade. Arrastou os pés até a janela enquanto a kraljica esperava ao lado. Lá fora, debaixo de um belo céu azul, Kenne viu o A’Sele reluzir sob o sol enquanto cortava a cidade em direção ao mar. Perto de onde o rio virava para o sul, ele viu dezenas de velas reunidas. Do outro lado do A’Sele, onde antigamente havia fazendas e propriedades dos ca’ e co’, a terra estava agitada por uma invasão sombria que não estava lá ontem. — Está vendo? Está vendo o exército ocidental se aproximar? Aquelas são as pessoas pelas quais você traiu os Domínios, archigos. São as pessoas que o deixaram tão assustado que você tentou fazer um pacto com os cães firenzcianos contra mim. — A voz assumiu um tom mais agressivo agora, o único olho atacava Kenne. — Aquelas são as criaturas desprezíveis que mataram meu irmão. São os vilões que destruíram nossas cidades e nossos vilarejos. Quer você acredite ou não, tenho certeza de que também são as pessoas que mataram Audric e me transformaram nesse horror. Será que eu odeio os ocidentais? Ah, você não pode imaginar o quanto. Observe, e você verá os bons chevarittai dos Domínios escorraçá-los, e depois nós cuidaremos de seus amigos firenzcianos também. Em breve, o combate começará. E você vai nos ajudar, Kenne.

Ele virou a cabeça amordaçada na direção de Sigourney, com uma expressão de curiosidade. Ela riu. — Ah, você vai. Nós temos que ter os ténis-guerreiros, afinal, e temos que garantir que eles entendam que seu archigos agora se arrepende de sua horrível traição e que deseja que todos os ténis da fé concénziana ajudem Nessântico nesta ocasião terrível da maneira que puderem. É o que você deseja mesmo, não é, archigos?

Kenne só podia encará-la, mudo.

— Você acha que não? Bem, a proclamação já está escrita; só precisa de sua assinatura. E quer você queira ou não, eu terei essa assinatura. Você foi amigo de Sergei Rudka, afinal; deve saber que a Bastida sempre consegue as confissões que deseja.

Mesmo com aquele horrível aparato preso ao rosto, Kenne não conseguiu esconder a expressão de horror e percebeu o sorriso da kraljica diante de sua reação. — Ótimo — falou Sigourney. — Vou refletir sobre o seu sofrimento quando o capitão me entregar sua confissão.

A kraljica gesticulou para os gardai do lado de fora da cela e disse — Ele está pronto. Cuidem para que receba sua hospitalidade integralmente.

 

A Batalha Começa: Niente

A CIDADE ERGUIA FLANCOS DE PEDRA sobre morros baixos; as torres e os domos lotavam a grande ilha no centro do rio de modo que parecia uma pedra coberta por cracas. A metrópole saltara para fora do confinamento do cinturão das muralhas, magnífica, orgulhosa e destemida, os campos ao redor eram cheios de grãos e colheitas que alimentavam a aglomeração de habitantes. Essa cidade... Ela era a rival de Tlaxcala, de certa forma menor, porém mais populosa e comprimida, com uma arquitetura estranha. Nas cidades de sua terra natal, prevaleciam as pirâmides dos templos de Axat, Sakal e dos Quatro; aqui em Nessântico, o que era mais visível eram as torres dos grandes edifícios e os domos dourados dos templos.

Tão estrangeiro. Tão estranho. Niente não queria nada além de ver locais conhecidos novamente e temia que jamais os veria.

Ele olhou para Nessântico e sentiu um arrepio, mas não viu a mesma reação no tecuhtli Zolin. O tecuhtli, ao contrário, estava no morro que dava vista para o rio e a cidade. Zolin cruzou os braços e deu um sorriso com os lábios fechados. — Isso é nosso — disse ele. — Olhe para a cidade. Ela é nossa.

Niente se perguntou se o homem ao menos notou as grandes fileiras de tropas orientais dispostas ao longo da estrada, se contou os barcos que apinhavam o rio, se percebeu os preparativos para guerra na periferia oeste da cidade.

— O que você me diz, Niente? — perguntou Zolin. — Será que descansaremos amanhã à noite neste lugar?

— Se for a vontade de Axat — respondeu Niente, e Zolin gargalhou.

— É a minha vontade que importa, nahual. Você ainda não compreendeu isso? — Ele não deu tempo para Niente responder; não que houvesse alguma resposta que o nahual pudesse dar. — Vá. Cuide para que os nahualli estejam prontos e que o resto da areia negra tenha sido preparado para os ataques iniciais. E mande Citlali e Mazatl até mim. Começaremos hoje à noite. Vamos mantê-los acordados e exaustos; depois, quando Sakal colocar o sol no céu, atacaremos como uma tempestade. — Zolin olhou fixamente para a cidade por mais um instante, depois se virou para Niente. Quase com carinho, colocou a mão em seu ombro. — Você verá sua família novamente, nahual. Eu prometo. Mas, primeiro, temos que dar uma lição nesses orientais por sua insensatez. Olhe em sua tigela premonitória, Niente. Você verá que estou certo. Verá sim.

— Com certeza eu verei, tecuhtli.

Mas Niente já sabia o que veria. Ele tinha vislumbrado na manhã de hoje, enquanto eles se aproximavam desse lugar.

O nahual havia rogado a Axat e olhado na tigela, e ele não ousaria olhar novamente.

 

A Batalha Começa: Sergei ca’Rudka

PELA MAIOR PARTE DA MANHÃ, Sergei cavalgou sozinho no meio das tropas firenzcianas, perdido em reflexões que mantinham afastada — pelo menos um pouco — a dor crescente nas costas, provocada pela longa cavalgada. E o corpo não estava mais acostumado a longos dias na sela, nem a tardes passadas debaixo de uma tenda.

Você está ficando velho. Não estará aqui por muito tempo mais, e tem tanto o que fazer ainda.

— Regente, quero falar com você.

Diante do chamado, Sergei virou o olhar e viu o garanhão com as cores de Firenzcia que parou ao seu lado sem ser notado. Velho. Antigamente, você jamais teria deixado de perceber a aproximação. — É claro, hïrzg Jan — falou ele.

O menino trouxe o garanhão mais para perto da baia de montagem de Sergei. A montaria do regente mexeu as orelhas nervosamente e revirou os olhos diante do cavalo de guerra bem maior do que ela. Jan não disse nada, a princípio, e Sergei aguardou enquanto eles prosseguiam pela Avi levantando uma nuvem de poeira em volta dos dois. O exército aproximava-se de Carrefour, com Nessântico a um bom dia de marcha de distância. As forças de Nessântico desapareceram, sumiram; foram embora na tarde da negociação. — A matarh disse que você perdeu dois bons amigos — falou Jan finalmente.

— Perdi sim. Aubri co’Ulcai fez parte da minha equipe por muitos anos, tanto na Garde Kralji quando na Garde Civile, antes de eu ser nomeado regente. Ele era um bom homem e um excelente soldado. Eu não consigo nem pensar em falar com a esposa e os filhos dele para contar o que aconteceu, muito menos para dizer que a lealdade a mim foi a responsável pela morte de Aubri. — Sergei esfregou o nariz de metal, a cola repuxou a pele quando ele fechou a cara. — Quanto a Petros... bem, não havia pessoa mais gentil no mundo, e sei como a amizade dele era importante para o archigos. Não sei o que a notícia fará ao archigos Kenne. Matá-los foi cruel e desnecessário, e se Cénzi me der uma vida suficientemente longa, eu cuidarei para que o conselheiro ca’Mazzak se arrependa da dor que causou a mim e às pessoas de quem eu gosto.

O jovem concordou com a cabeça e falou — Eu entendo. Entendo mesmo. Algum dia, eu encontrarei quem contratou a Pedra Branca para matar meu onczio Fynn, e eu mesmo matarei essa pessoa e a Pedra Branca junto com ela. Meu onczio era um bom amigo para mim, bem como meu parente, e me ensinou muita coisa no pouco tempo em que estive com ele. Eu queria que ele tivesse vivido o suficiente para me ensinar mais a respeito... — Jan parou e balançou a cabeça.

— Não existe livro que ensine alguém a ser um líder, hïrzg — disse Sergei. — A pessoa aprende ao liderar e torcendo para não cometer muitos erros no processo. Quanto à vingança: bem, ao ficar mais velho, eu aprendi que o prazer que se tira da concretização da vingança jamais se compara à expectativa. Também aprendi que às vezes tem que se deixar a vingança completamente de lado em nome de um objetivo maior. A kraljica Marguerite sabia disso melhor do que ninguém; e por esse motivo ela era uma monarca tão boa. — Ele sorriu. — Mesmo que seu vavatarh discordasse veementemente.

— Você conheceu os dois.

Sergei não soube dizer se isso era uma afirmativa ou uma pergunta, mas concordou com a cabeça. — Conheci, sim, e tinha um grande respeito por ambos, incluindo o velho hïrzg Jan.

— Minha matarh o odiava, creio eu.

— Se ela odiava, tinha boas razões — respondeu Sergei. — Mas Jan era o vatarh dela, e acho que sua matarh também o amava.

— Isso é possível?

— Nós somos criaturas estranhas, hïrzg. Somos capazes de ter dois sentimentos conflitantes na cabeça ao mesmo tempo. Água e fogo, ambos juntos.

— A matarh diz que você costumava torturar pessoas.

Sergei esperou um longo tempo para responder. Jan não disse nada e continuou cavalgando ao lado dele. — Era meu dever, em uma determinada época, quando estive no comando da Bastida.

— Ela falou que os rumores diziam que você gostava de torturar. Isso faz parte do que você dizia, sobre a habilidade de ter dois sentimentos conflitantes na cabeça ao mesmo tempo?

Sergei franziu os lábios. Ele esfregou o nariz novamente. Olhou para frente, não para o jovem. — Sim — respondeu Sergei finalmente. A palavra solitária trouxe de volta todas as memórias da Bastida: a escuridão, a dor, o sangue. O prazer.

— A matarh é, ou era, de qualquer maneira, amante do archigos Semini. Você sabia disso, regente?

— Eu suspeitava, sim.

— Mesmo que ela ame o archigos, a matarh estava disposta a sacrificá-lo e entregá-lo ao julgamento, como o u’téni Petros pediu. Ela tomaria essa decisão; a própria matarh me disse quando voltou da negociação. “Que os pecados de Semini sejam pagos em vidas salvas”, foi o que ela falou. Não havia uma lágrima no olho ou um sinal de arrependimento em sua voz. O archigos... ele não sabe disso. Não sabe como chegou perto de ser um prisioneiro. Até onde eu sei, os dois ainda podem... — Jan parou. Deu de ombros.

— Água e fogo, hïrzg — falou Sergei.

Jan concordou com a cabeça. — Ela disse que você ama Nessântico acima de todos nós. No entanto, você cavalga conosco, salvou a matarh e a mim em Passe a’Fiume e colocaria a matarh no Trono do Sol.

— Eu colocaria sim, porque estou convencido de que isso seria o melhor para Nessântico. Eu quero ver os Domínios restaurados, com Firenzcia novamente como seu forte braço direito. — Sergei fez uma pausa. Os dois podiam ver os arredores de Carrefour diante deles na estrada, os topos dos prédios se erguiam mais alto do que as árvores. — É isso o que o senhor também quer, hïrzg?

Sergei observou o jovem, que desviou o olhar para a longa fileira do exército que se estendia pela estrada. — Eu amo minha matarh — respondeu Jan.

— Não foi o que eu perguntei, hïrzg.

Jan concordou com a cabeça e continuou olhando para a cobra blindada de seu exército. — Não, não foi, não é mesmo?

 

A Batalha Começa: Karl Vliomani

— VOCÊ AINDA PODE IR EMBORA pelas ruas a leste do Portão Norte — disse Karl para Serafina. — Terá que tomar cuidado e andar rápido, mas se estiver com Varina, você e Nico terão proteção.

Karl viu que Serafina e Varina balançavam a cabeça antes mesmo de ele terminar. — Eu não irei embora sem Talis — falou Serafina. Nico estava no colo da matarh enquanto se sentavam à mesa da sala principal do apartamento de Serafina. Eles terminaram um jantar à base de pão, queijo e água, embora o queijo estivesse velho, o pão, mofado, e a água, turva. Mas comeram tudo, pois não sabiam quando teriam mais comida.

Com o exército dos tehuantinos a oeste dos limites da cidade, o A’Sele sob controle dos navios ocidentais, e a ameaça do exército de Firenzcia a leste, Nessântico estava em pânico. Rumores fantásticos e absurdos sobre a pilhagem de Karnor e Villembouchure corriam pela cidade e ficavam mais sinistros e violentos cada vez que eram repetidos. Os ocidentais, caso se pudesse acreditar nas histórias, não eram nada além de demônios gerados pelos próprios moitidis, dedicados ao estupro, à tortura e à mutilação. As prateleiras das lojas estavam praticamente vazias; os moinhos não tinham farinha para as padarias, e não havia carroças vindo dos campos fora da cidade para os mercados. Até mesmo a Avi a’Parete estava às escuras na noite de hoje, pois os ténis-luminosos não fizeram as rondas de sempre; para piorar, uma neblina espessa e gelada surgiu a oeste e tomou conta da cidade, que tremia na escuridão, à espera do ataque inevitável que viria.

— Eu pensei ter perdido tanto Talis quanto Nico uma vez; não os perderei novamente — continuou Serafina.

— Ele não pode ir embora — insistiu Karl. — Talis é homem e jovem o suficiente para ser obrigado a servir à Garde Civile. Eles o pegariam antes que chegasse à metade da Avi. E com o archigos na Bastida... bem, com muita certeza a Garde Kralji tem nossas descrições e já procura por nós. Duas mulheres com um menino... acho que você estaria a salvo. Mas comigo e com Talis...

— Eu não vou embora sem ele — insistiu Serafina. A voz e a mão em volta da cintura de Nico tremeram, mas os lábios permaneceram firmemente franzidos.

— Metade da cidade já foi embora... aqueles que puderam. Os rumores sobre Karnor e Villembouchure... tudo aquilo pode acontecer aqui.

Ela deu de ombros.

Varina estava sorrindo sombriamente e tocou o joelho dele por debaixo da mesa. — Você perdeu a discussão, Karl. Com ambas. Estamos aqui. E ficaremos aqui, não importa o que isso signifique.

Karl olhou para Talis, que estava sentado em silêncio ao seu lado da mesa. No último dia, ele andou quieto de uma maneira estranha, desde que foi confirmada a notícia da prisão do archigos, e passou muito tempo com a tigela premonitória. Karl se perguntou o que o homem estaria pensando por trás daquele rosto solene. Talis deu de ombros, e falou para Serafina — Eu concordo com Karl. Eu preferiria que você e Nico estivessem a salvo.

Varina pegou a mão de Karl ao ficar de pé. — Venha comigo. Deixe Sera e Talis resolverem essa questão sozinhos. Nós resolveremos também.

Karl acompanhou Varina até o outro aposento. Ela fechou a porta assim que os dois entraram, de maneira que só podiam ouvir um murmúrio baixo de vozes que conversavam, e disse — Ela ama Talis. — Varina ainda estava apoiada na porta e olhava para Karl.

— Sim — protestou Karl — e é exatamente por isso que Talis quer que Serafina vá embora: porque ele não quer perder as pessoas que ama.

— E é exatamente por isso que ela não irá embora, porque não suportaria não saber o que aconteceu com Talis. — Varina cruzou os braços sob os seios. — É por isso que eu também não irei embora.

— Varina...

— Karl, cale a boca. — Varina afastou-se da parede e foi até ele. Os braços deram a volta em Karl, os lábios procuraram os dele. Havia um desespero no abraço, uma violência no beijo. Karl ouviu um soluço na garganta de Varina e levou a mão ao rosto dela para descobrir que a bochecha estava molhada. Ele tentou se afastar, perguntar o que estava errado, mas Varina não permitiu. Ela puxou de volta a cabeça de Karl, usou o peso do corpo para derrubá-lo sobre o colchão de palha no chão. Então, por um instante, Karl esqueceu de tudo.

Mais tarde, ele deu um beijo em Varina enquanto a segurava perto de si e apreciava o calor de seu corpo. — Eu amo você, Karl — sussurrou Varina no ouvido. — Desisti de fingir que não.

Karl não respondeu. Ele queria. Queria devolver as palavras para Varina. Elas preencheram a garganta, mas ficaram ali, presas. Karl achava que, se dissesse as palavras, trairia Ana e tudo o que ela significava para ele. — Encontre outra pessoa — dissera Ana, há muito tempo. — Volte para sua esposa, se quiser. Ou apaixone-se por outra pessoa, por mim tudo bem, também. Eu ficaria feliz por você porque não posso ser o que você quer que eu seja, Karl.

— Eu... — começou Karl, mas parou. Os dois ouviram ao mesmo tempo um assobio estridente e um rugido baixo como trovão, seguidos quase que imediatamente por outros, e as trompas dos templos começaram a soar um alarme. Karl rolou e afastou-se de Varina. — O que é isso? — perguntou ele, mas suspeitava que já sabia. Ambos vestiram-se depressa e correram para o outro cômodo.

— Começou — falou Talis para os dois assim que entraram. Ele estava parado ao lado da porta que dava para o sul. Na direção do A’Sele, todos puderam ver o brilho laranja amarelado sobre os tetos, iluminando a névoa que bloqueava a visão. — Fogo — continuou Talis. — Os nahualli estão disparando areia negra dentro da cidade, perto do A’Sele.

As trompas soavam estridentes, e havia berros e gritos abafados vindos da névoa.

Talis fechou a porta e disse — É tarde demais agora. Tarde demais.

 

A Batalha Começa: Sigourney ca’Ludovici

DO ÚLTIMO ANDAR do Palácio da Kraljica, apoiada em uma muleta que compensava a falta da perna, Sigourney podia ver os telhados à frente e as águas do A’Sele na margem norte, onde as fogueiras dos ocidentais ardiam nos arredores da cidade. Lá também, ela sabia, estava agrupado o exército da Garde Civile, agora com Aleron ca’Gerodi como comandante. Ele, pelo menos, estava confiante na capacidade dos chevarittai e da Garde Civile em lidar com a dupla ameaça à cidade, mesmo que ninguém mais estivesse. Ca’Gerodi ao menos já esteve em combate antes — e entre os chevarittai à disposição da kraljica, ele era o mais indicado para ser o comandante, desde que ca’Mazzak retirou Aubri co’Ulcai da disputa. Isso fora um erro, Sigourney tinha certeza; um erro que ela compreendia, sim, dada a rebelião de co’Ulcai, mas também um erro que poderia custar a Nessântico mais do que a cidade podia bancar.

O corpo de Sigourney doía muito esta noite. Ela tomou um bom gole de cuore della volpe e pousou a taça no peitoril da janela.

Sigourney também estivera confiante. Confiante de que eles dariam conta daquela ralé ocidental e a destruiria. Depois, que eles se voltariam para o leste e cuidariam de Allesandra e seu filhote, e que fariam com que os firenzcianos percebessem a insensatez desse rompimento do tratado. Sim, ela estivera confiante.

Mas isso parecia ter sido séculos atrás.

Agora, Sigourney vira a estranha névoa surgir do acampamento ocidental e envolver o Velho Distrito e a Garde Civile. Depois, após uma mera virada da ampulheta, grandes flores de fogo laranja nascerem na margem norte, e a kraljica viu as flores subitamente desenharem arcos no céu em várias direções; algumas caíram na névoa onde seu exército esperava, e outras...

A água do A’Sele tremeluziu com o reflexo do fogo conforme as flores — que guinchavam e bramiam — subiam, como se tivessem sido lançadas por raivosos moitidis. Ela viu a resposta dos ténis-guerreiros: raios azul-claros lançados na direção das flores ao alto. Vários alcançaram as flores no ápice de seus arcos: quando eles se tocaram, um breve sol ganhou vida e o som do trovão ecoou pela cidade. Mas havia muitas flores de fogo e a resposta dos ténis-guerreiros chegou atrasada demais. A maior parte das bolas de fogo caiu: sobre os navios de guerra dos Domínios no rio, no labirinto do Velho Distrito, e sobre a própria Ilha A’Kralji. E, onde caíam, explodiam em um jorro de fúria brilhante e ruidosa.

Sigourney observou uma bola de fogo em especial: o arco se ergueu mais alto que os demais, e ela viu a linha assustadora que vinha diretamente em sua direção. A kraljica olhou fixamente, paralisada tanto pelo fascínio quanto pelo medo, e sentiu (conforme a bola de fogo despencava, à medida que crescia a cada instante) o corpo se lembrar do choque e do horror do momento em que o kraljiki Audric foi morto. Ela perguntou-se se doeria muito.

Mas não... Sigourney viu que o rastro de fagulhas agora se desviava levemente para a sua direita. A bola de fogo chocou-se contra a asa norte do palácio e espirrou fogo sobre a fachada e os jardins lá embaixo. A kraljica sentiu a estrutura inteira tremer com o impacto, tão forte que ela teve que se segurar na ombreira da janela para evitar cair. Os dedos apertaram com força a barra da muleta. Houve gritos e berros por toda parte do terreno. A noite de Nessântico foi mais uma vez banida — não pelas famosas lâmpadas dos ténis-luminosos, mas por um inferno. Mesmo da janela, Sigourney achou que podia sentir o calor.

Os criados entraram correndo no cômodo. — Kraljica! A senhora tem que vir conosco! Depressa!

— Eu não sairei daqui.

— A senhora precisa sair! O fogo!

— Então não percam seu tempo aqui; vão ajudar a apagá-lo — falou Sigourney. — Convoquem os ténis-bombeiros nos templos. Vão. Vão!

Ela gesticulou com a mão livre para os criados — o corpo ferido e combalido protestou ante a violência do movimento —, e eles foram embora. As trompas soaram, agora nos templos, o alarme tomou conta da cidade inteira. Sigourney abaixou o olhar e viu os funcionários do palácio correrem na direção da ala em chamas. A fumaça deu a volta na lateral do palácio e fez arder o olho restante da kraljica. Ela piscou ao lacrimejar e bebeu o resto do preparado do ervanário.

— Olhem para mim! — Sigourney soltou um berro estridente para a noite e para as forças ocidentais escondidas na névoa. — Eu abri mão de muita coisa para estar aqui. Vocês não vão me tirar daqui. Não vão.

 

A Batalha Começa: A Pedra Branca

— POR QUE VOCÊ CONTINUA AQUI?

— Por que você os vigia? O menino não é seu.

— Ele não é sua responsabilidade.

— Você esperou tempo demais.

As vozes tagarelavam na cabeça dela, em tom sedutor, de alerta, satisfeito. A voz de Fynn era a mais alta, ronronava com satisfação. — Você morrerá aqui, e a criança dentro de você também.

— Silêncio — disse a Pedra Branca para todas as vozes, que fizeram silêncio a contragosto.

O ar estava espesso com a névoa anormal, e o cheiro de madeira queimada fluía pelos filetes da bruma. O brilho tinha ficado pior, e agora parecia cair uma neve de verão: cinzas caíam no chão e cobriam o cabelo oleoso e os ombros da tashta suja da Pedra Branca. Havia sons indefinidos na névoa, encobertos pelo lamento contínuo e sobrenatural das trompas.

A Pedra Branca olhou fixamente para a porta onde viu Talis pela última vez. Agora não havia ninguém lá, e ela não tinha visto Nico. Não há nada que você possa fazer por ele. Por enquanto, Nico está a salvo. Ela pressionou as mãos contra a barriga inchada. Talvez as vozes estivessem certas. Talvez ela devesse fugir da cidade. Salvar a própria filha.

Mas Nico era filho dela também. Cénzi trouxe o menino para ela. Ele a escolheu, e Nico era tão filho dela quanto a criança em gestação dentro de sua barriga.

— Tarde demais...

Ou talvez não. Com uma careta, ela se afastou da casa de Nico e andou rapidamente pelas ruas. Ela tinha que ver com os próprios olhos, tinha que saber o que acontecia. As ruas estavam bem mais cheias do que costumavam ficar a esta altura da noite, mas as pessoas corriam para seus destinos sem olhar umas para as outras, com o medo estampado em suas feições. Muitas mantinham as mãos próximas às armas carregadas abertamente: espadas com bainhas descascadas e lâminas manchadas de ferrugem; facas que pareciam que a última coisa que tinham feito era cortar um porco assado. Haveria violência nessas ruas antes de a noite acabar: uma palavra rude, um esbarrão acidental, um gesto mal interpretado — qualquer coisa poderia acendê-la, como uma fagulha em um material inflamável. A Pedra Branca sabia disso, porque a violência vivia dentro dela. Ela era capaz de sentir o cheiro de sangue pronto para ser derramado.

Mas não ainda. Não ainda. Ela manteve-se nas sombras, não falou nada com ninguém. Ela evitou matar, a menos que fosse por dinheiro ou pela própria proteção.

Ela chegou à Avi a’Parete e virou para o sul. Ao se aproximar do rio, o cheiro de fumaça ficou ainda mais forte, ela e a bruma estavam tão misturadas que era impossível distinguir uma da outra. Havia incêndios no aglomerado de prédios próximos a oeste da Avi, as chamas chegavam tão alto que a Pedra Branca conseguia ver do ponto onde estava. Uma carruagem conduzida por um téni veio correndo pela Pontica Kralji com meia dúzia de ténis-bombeiros dentro, com os rostos cobertos por fuligem e já exaustos pelo esforço de usar os feitiços para apagar os vários incêndios. Um esquadrão da Garde Kralji, com espadas desembainhadas e expressões carrancudas, acompanhava os ténis-bombeiros e cercava um grupo de homens de aparência melancólica em bashtas simplórias, a maioria jovem demais ou velha demais. — Você! — vociferou o offizier do esquadrão ao apontar para um velho de barba grisalha que andava à espreita, perto do prédio mais próximo à Pedra Branca. — E você! — Agora dirigido a um jovem que não devia ter mais de 12 anos, sendo puxado pela matarh. — Vocês dois! Venham conosco! Quero ver animação agora!

A matarh soltou um grito estridente de objeção, o homem fez menção de correr na direção contrária, mas evidentemente decidiu que não conseguiria fugir. A Garde Kralji cercou os dois e partiu noite adentro na direção dos incêndios, levando o menino e o velho com eles, enquanto a matarh protestava inutilmente, aos gritos.

A Pedra Branca continuou caminhando na direção sul até ver as colunas da Pontica Kralji que se agigantavam através da fumaça. Ela parou ali e olhou para o A’Sele. O que viu a deixou horrorizada e fez as vozes dentro de sua cabeça rirem.

No rio, vários navios de guerra estavam em chamas, já queimados quase até a linha d’água, os destroços entupiam o A’Sele de maneira que os navios ainda incólumes mal conseguiam manobrar. O Palácio da Kraljica era um inferno laranja amarelado, com um vulcão que cuspia fagulhas para longe. O grande novo domo do Velho Templo parecia rachado, o fogo lambia os suportes que tinham sido erigidos em volta dele. Havia pequenos incêndios aqui e ali. As pontes, exatamente as duas que levavam à margem sul, estavam lotadas de pessoas em fuga, que empurravam carrinhos cheios de pertences ou sobrecarregados com pacotes. A Pedra Branca ouviu um estrondo atrás de si; ela olhou na direção dos prédios que lotavam a Avi nesta margem e viu uma multidão botar abaixo a porta de uma padaria e também de uma joalheria. A rua atrás dela estava ficando lotada e barulhenta. Dentro de algum lugar, em uma das lojas, a Pedra Branca ouviu uma mulher gritar.

Sangue. Ela sentiu o cheiro do sangue. Tocou a bolsinha de couro sob o tecido da tashta e sentiu a pedra lisa lá dentro.

— O tumulto começou...

— Isso só vai piorar...

As vozes berraram assustadas em sua cabeça. — Você virou idiota, mulher? Ande!

Ela andou. Caminhou a passos largos, sem pressa, até o beco mais próximo, um espaço cheio de lixo entre os fundos dos prédios. A Pedra Branca voltaria à casa de Nico. Ficaria de vigia e, se as coisas ficassem perigosas, ela estaria ali para ajudá-lo, para tirá-lo de lá. Se a família de verdade do menino não pudesse protegê-lo, ela seria sua verdadeira matarh e faria isso. Ela tocou o estômago enquanto andava. — E farei o mesmo por você — sussurrou para a vida que se mexia dentro dela. — Eu farei isso. Prometo.

As vozes riram e gargalharam.

A Pedra Branca viu um movimento pelo rabo de olho na névoa e na fumaça e sentiu um arrepio de perigo. Ela deu meia-volta. — Ei! — Havia um homem ali, com cabelo negro e fios brancos, mas jovem o suficiente, o que fez a Pedra Branca se perguntar como ele conseguiu evitar os esquadrões de alistamento que rondavam o Velho Distrito. — Não há necessidade de se assustar, não é, vajica? — disse o sujeito. Ela viu a língua se mexer atrás dos poucos dentes. — Eu só queria ter certeza de que estava a salvo, só isso. — Ele deu um passo na direção dela. — Agora os tempos andam perigosos.

— Para você, sim — respondeu ela. — Eu posso tomar conta de mim mesma.

— Ah, pode, é? — O homem deslizou para o lado e impediu que ela entrasse no beco. Ela acompanhou o movimento, sempre olhando para o sujeito. — Não são muitas as pessoas que podem dizer isso hoje em dia. — Ele deu um passo na direção da Pedra Branca, que fez uma expressão de desdém.

— Não — disse ela, embora já soubesse que o homem não ouviria. — Você se arrependerá. Você não quer conhecer a Pedra Branca.

Ele riu. — A Pedra Branca, é? Está me dizendo que a Pedra Branca tem interesse em alguém como você?

Ela não respondeu. O homem deu mais um passo, ficou perto o suficiente para que ela sentisse seu cheiro, e estendeu a mão para agarrar seu braço. Nesse mesmo instante, a Pedra Branca agachou-se, tirou uma adaga da bainha na bota e golpeou para cima, debaixo das costelas do homem, que foi empurrado de costas para dentro do beco. Ele ofegou, boquiaberto como um peixe; ela sentiu o sangue quente jorrar sobre a mão. Os dedos do sujeito arranharam seu braço, mas caíram lentamente. A Pedra Branca ouviu o homem tomar um fôlego gorgolejante enquanto saía um filete de sangue da boca. Ela deixou o corpo cair enquanto metia a mão debaixo da gola da tashta para pegar a bolsinha. Com pressa, a tirou do pescoço e deixou a pedra lisa e clara como neve cair na palma da mão. Pressionou o seixo no olho direito do sujeito. Seus próprios olhos estavam fechados.

Ah, o lamento da morte... ela ouviu o homem gritar, sentiu a presença entrar no seixo enquanto os outros se remexiam no interior para abrir espaço para o espírito moribundo. O uivo silencioso do sujeito tomou conta de sua mente, tão alto que ela ficou surpresa que não ecoasse em volta dos dois. Quando a pedra o absorveu complemente, ela removeu o seixo do olho e guardou de volta na bolsinha, colocou o cordão de couro no pescoço novamente e deixou a bolsinha cair entre os seios, debaixo da tashta.

— A Pedra Branca protege o que é dela — ela disse para o cadáver de olhos abertos.

Depois, as vozes falaram alto e tomaram conta da cabeça da Pedra Branca, com uma nova que se juntou ao coro louco, enquanto ela voltava para a casa de Nico.

 


A Batalha Começa: Niente

O CÉU FICOU ILUMINADO a leste e a bruma mágica sumiu com a luz, embora a cidade continuasse envolvida pela fumaça. Niente estava com o tecuhtli Zolin, Citlali e Mazatl. Os guerreiros que usavam a armadura e os rostos tatuados agora estavam pintados para parecerem as terríveis e cruéis criaturas oníricas que estupraram Axat antes que a Escuridão colocasse seu corpo ferido no céu. Os três estavam próximos ao rio; a enorme ilha em volta da qual ele fluía parecia estar acesa, e a fumaça saía de várias dezenas de lugares na cidade.

— Muito bem, nahual — disse Zolin. — Eles estarão exaustos e assustados com os incêndios dessa noite. Os nahualli estão descansados? Os cajados mágicos estão cheios?

— Eles estão tão descansados quanto é possível, tecuhtli — falou Niente. — Nós preparamos nossos cajados ontem à noite, após lançarmos a areia negra.

— Ótimo — trovejou Zolin. — Então deixe de parecer tão melancólico. Esse é um grande dia, nahual Niente. Hoje nós mostramos a esses orientais que eles não são imunes à fúria dos tehuantinos.

Citlali e Mazatl gargalharam com Zolin. Niente tentou sorrir, mas não conseguiu. Ele ergueu o próprio cajado mágico, o tecuhtli assentiu e disse — Vá até os nahualli. Citlali, Mazatl, acordem seus guerreiros. Quando virmos os olhos de Sakal se abrirem no horizonte, será o momento.

Niente abaixou a cabeça para o tecuhtli e foi embora. Ele se dirigiu para o norte, para o campo pisoteado onde a maior parte do exército estava reunida perto da estrada. Os nahualli encontravam-se ali, o nahual deu suas ordens e espalhou os homens atrás da primeira fileira de guerreiros montados e da primeira leva de infantaria. Niente tomou o seu próprio lugar atrás do tecuhtli Zolin e de seus guerreiros selecionados. Do outro lado, ele viu, com a visão borrada pelo olho esquerdo ruim, os estandartes e escudos das tropas de Nessântico à espera. Havia muitos; Niente olhou para o próprio exército, significativamente menor agora, após todas as batalhas.

Ele não tinha dúvida de que os guerreiros tehuantinos eram mais bravos, de que os nahualli eram mais poderosos que os ténis-guerreiros de Nessântico. No entanto...

Havia um ardência no estômago que não passava. Niente segurou o cajado mágico com força e sentiu a energia do X’in Ka ligada ao objeto, mas o poder nas mãos não lhe deu conforto.

O céu a leste ficou ainda mais iluminado. Os primeiros raios da manhã lançaram sombras compridas que correram pela terra.

Zolin ergueu a espada e gritou — Agora! Agora! — Trompas soaram em resposta, e os guerreiros tehuantinos gritaram seus desafios. Niente levantou o cajado mágico e o bateu contra a mão aberta. O fogo chiou, faiscou e saiu voando na direção das fileiras inimigas; um momento depois, os cajados dos outros nahualli de toda a longa fileira fizeram o mesmo. Os ténis-guerreiros de Nessântico responderam: alguns feitiços sumiram como se tivessem sido engolidos pelo ar; outros quicaram, como se tivessem batido em uma parede, e voltaram para as fileiras dos tehuantinos em um arco. Onde os feitiços caíam, guerreiros caíam com eles e berravam ao serem consumidos pelas línguas grudentas do fogo. Muitos feitiços, porém, passaram incólumes, e os tehuantinos ouviram os gritos de resposta dos nessânticos. Os arqueiros, com o que restava da areia negra na ponta das flechas, lançaram uma chuva flamejante sobre o campo, que foi respondida por uma chuva de flechas nessânticas. Em volta de Niente, guerreiros grunhiram ao serem empalados, mas os escudos foram erguidos de imediato e apararam a maioria das flechas. Zolin gesticulou com a espada e os guerreiros começaram a se mover, devagar, a princípio, depois ganharam velocidade para correr pelo campo na direção dos inimigos e da cidade a frente à espera.

Foi difícil não se envolver com a onda de empolgação. Niente avançou atrás de Zolin e da parede de infantaria e ouviu a própria voz berrar um desafio com os demais. Então, com um tremor audível, a linha de frente dos tehuantinos colidiu com os nessânticos, que esperavam. Niente viu o reluzir das espadas, o avanço dos guerreiros a cavalo contra a massa caótica de soldados, ouviu os gritos dos mortos e moribundos de ambos os lados, sentiu o cheiro do sangue e viu os espirros que voavam no ar, mas havia guerreiros demais entre eles. Os guerreiros atrás de Niente o empurravam pelas costas, faziam com que avançasse, e a vanguarda avançou tão abruptamente que ele quase caiu. De repente, o nahual estava no meio da batalha, com indivíduos lutando por todos os lados, e viu um nessântico de cota de malha empunhando uma espada acima de sua cabeça ao avançar contra ele.

A tigela premonitória... O nahualli morto...

Niente berrou e golpeou o homem com o cajado mágico como se fosse um florete. Quando tocou o abdômen do soldado, um feitiço foi disparado: um clarão, uma explosão de anéis de aço rompidos, de pano marrom, de pele branca e de sangue escarlate. A espada despencou das mãos inertes, o homem ficou boquiaberto, mas não emitiu som, e caiu.

Mas não havia tempo para descansar. Outro soldado avançava contra Niente, e novamente o cajado, cheio de feitiços que o nahual preparou, derrubou o homem. Um soldado montado que os inimigos chamavam de chevarittai investiu contra ele, Niente atirou-se para o lado no momento em que os cascos blindados e com espinhos do cavalo de guerra arrancaram a terra onde ele estava e avançou em frente.

Para Niente, essa batalha — como qualquer outra — tornou-se uma série de encontros desconexos, um turbilhão de confusão e caos, um cenário desorganizado em que o nahual continuava a avançar. O barulho era tão tremendo que se transformou em um rugido inaudível em volta dele. Ele se desviou de espadas e enfiou o cajado em qualquer coisa que vestisse as cores azul e dourada. Uma espada acertou seu braço e abriu o antebraço, outra pegou a panturrilha. Niente berrou com a garganta rouca. A energia fluía rapidamente do cajado quente na mão direita, quase no fim agora.

E...

Niente percebeu que não estava em um campo, mas entre casas e prédios, que a batalha agora assolava as ruas da cidade, que os soldados vestidos de azul e dourado neste momento davam meia-volta ao soar das trompas e recuavam para as profundezas da grande cidade.

Ele ainda estava vivo, assim como Zolin.

 

A Batalha Começa: Sigourney ca’Ludovici

O COMANDANTE ALERON CA’GERODI ESTAVA diante de Sigourney e do resto do Conselho dos Ca’, a armadura suja de sangue, o elmo amassado por um golpe de espada e o rosto coberto de lama, fuligem e sangue. — Sinto muito, kraljica, conselheiros — disse ele. A voz estava tão exausta quanto a postura. — Nós não conseguimos contê-los...

Ca’Mazzak sibilou como uma chaleira que passou muito tempo no fogo. Sigourney fechou o único olho. Ela respirou fundo o ar cheio de fuligem e cinzas e tossiu. Abriu o olho novamente. Através da névoa da fumaça, a kraljica viu as ruínas do palácio, com partes queimando. Ela e o Conselho refugiaram-se no Velho Templo que, apesar do domo quebrado, encontrava-se em grande parte incólume. A nave principal estava lotada de tesouros do palácio: pinturas (incluindo o retrato chamuscado da kraljica Marguerite), louças azuis e douradas, roupas cerimoniais, os cajados e as coroas usados por uma centena de kralji; tudo estava aqui, embora muita coisa — coisas demais — tenha sido perdida no incêndio. Sigourney estava sentada no Trono do Sol na entrada da câmara sob o domo, mas se o trono estava aceso, não era aparente na claridade do sol que entrava pelo grande buraco aberto no domo. O sol debochava da kraljica ao brilhar intensamente em um céu sem nuvens.

Um dos criados entregou a Sigourney uma taça de cuore della volpe, para aliviar a tosse e a dor. Ela tomou um gole do líquido frio, marrom e turvo da taça dourada.

— Qual é a gravidade da situação? — perguntou a kraljica.

— Nós finalmente conseguimos deter o avanço deles — informou ca’Gerodi. — Os ocidentais não chegaram à Avi a’Parete, mas tomaram a maior parte das ruas a oeste da Avi na margem norte. Eles dominaram o vilarejo de Viaux. Houve uma batalha intensa perto do Mercado do Rio e por um tempo ele foi tomado pelos inimigos, mas nós os rechaçamos. Eu destaquei um batalhão para proteger a Pontica Kralji, mas isso deixou a área do Portão Norte mais aberta do que eu gostaria.

Os conselheiros murmuraram. — Isso é inaceitável — falou ca’Mazzak mais alto.

— Então talvez você devesse ter deixado o comandante co’Ulcai vivo — disse Sigourney. — Ou gostaria de pegar a espada você mesmo? — Ca’Mazzak resmungou e acalmou-se. Ca’Gerodi pareceu cambalear, e Sigourney gesticulou para que um criado trouxesse uma cadeira; o homem desmoronou de bom grado no assento estofado, sem se importar com a sujeira que espalhou no brocado. — O que está me dizendo, comandante? — perguntou a kraljica. — Que hoje à noite eles colocarão fogo no resto da cidade, que amanhã nos derrotarão completamente? Você disse que tinha mais do que homens suficientes. Você disse que...

— Eu sei o que eu disse — interrompeu ca’Gerodi e, quando Sigourney imediatamente calou a boca diante da grosseria, ele pareceu perceber o que fez e balançou a cabeça. — Perdão, kraljica; eu não durmo desde a noite de anteontem. Mas sim, isso é exatamente o que temo: que a noite de hoje trará mais daquele fogo terrível dos ocidentais, e que quando eles atacarem amanhã... — Ele ergueu a cabeça e olhou para Sigourney com seus olhos castanhos e abatidos. — Eu darei minha vida para proteger Nessântico, se for preciso.

— Aleron... — A kraljica começou a se levantar do Trono do Sol, esqueceu-se momentaneamente das feridas, e desmoronou. O movimento provocou uma nova tosse. Os conselheiros observaram Sigourney. Ela sabia agora o que tinha que fazer, e a compreensão era incômoda, tão dolorosa quanto o corpo ferido. — Vá. Descanse o quanto puder, e nós cuidaremos do que a noite de hoje e o dia de amanhã trouxerem. Vá. Durma enquanto pode.

Ca’Gerodi ficou de pé e fez uma mesura. Ele foi embora mancando. Quando saiu, Sigourney gesticulou para um criado. — Traga-me um escriba. E também um mensageiro, o melhor que tivermos, para levar uma mensagem para o hïrzg, a leste.

O criado arregalou os olhos momentaneamente, fez uma mesura e foi embora correndo.

— Kraljica — disse ca’Mazzak. — A senhora não pode...

— Nós não temos escolha — falou Sigourney para ele, para todos os conselheiros. — Nenhuma escolha. A situação já não é mais sobre nós.

Ela recostou-se no assento estofado do Trono do Sol, que cheirava à fumaça de madeira queimada. Cheirava à derrota.


??? RESOLUÇÕES ???

Allesandra ca’Vörl

Niente

Varina ci’Pallo

Sigourney ca’Ludovici

Karl Vliomani

Nico Morel

Niente

Sergei ca’Rudka

Jan ca’Vörl

Niente

A Pedra Branca

Allesandra ca’Vörl


Allesandra ca’Vörl

JAN LEU A MISSIVA com cuidado, os olhos claros vasculhando as palavras. Allesandra já sabia o que a mensagem dizia — os soldados do starkkapitän ca’Damont interceptaram o mensageiro que vinha na direção leste pela Avi a’Firenzcia, ele carregava uma bandeira branca tremulando içada sob o luar, e trazia o pergaminho selado para Allesandra, insistindo com os assistentes da a’hïrzg que ela fosse acordada. Allesandra quebrou o selo e vasculhou a carta, depois se vestiu rapidamente e foi até Jan.

Se o filho notou ou se se importou que o selo estivesse sem lacre e quebrado no papel grosso, ou que a kraljica tenha endereçado a missiva a Allesandra e não ao hïrzg, não disse nada. Jan empurrou a vela que usava como fonte de luz; o castiçal raspou a mesa que foi montada às pressas na tenda de campanha ao lado da tenda particular do hïrzg.

— Isso é genuíno? — perguntou Jan. Havia um cobertor dobrado sobre seus ombros, as pálpebras estavam cansadas e com olheiras. Ele bocejou e esfregou os olhos. — Temos certeza?

— O mensageiro disse que recebeu a mensagem da própria kraljica Sigourney — respondeu o starkkapitän ca’Damont.

Jan assentiu. Ele entregou o pergaminho para Semini, que leu a carta, franziu os lábios e o entregou para ca’Rudka. Jan parecia estar esperando, e Allesandra, sentada à mesinha na tenda de campanha ao lado dele, tamborilou os dedos na superfície arranhada. — Estamos perdendo tempo, meu filho — falou a a’hïrzg. — A mensagem é clara. A kraljica está disposta a abdicar do Trono do Sol se levarmos o exército até lá para deter os ocidentais. Acorde os homens agora e, se nossas forças marcharem rápido, nós conseguiremos chegar aos portões da cidade de manhã cedo.

Jan não pareceu ouvi-la. Ele olhava para Sergei, e perguntou — Regente? Sua opinião?

Ca’Rudka esfregou o nariz por muito tempo enquanto olhava o pergaminho, o que enlouqueceu Allesandra. Ela viu a luz da vela tremeluzir nas narinas esculpidas. — A kraljica não quis considerar a abdicação quando foi oferecida a ela durante a negociação, hïrzg Jan, ou, pelo menos, ca’Mazzak não quis — disse ele finalmente. — O conselheiro parecia totalmente confiante que a Garde Civile podia derrotar os ocidentais. Agora a kraljica foi subitamente acometida por altruísmo? Mas, como eu lhe disse, hïrzg, só quero o que for melhor para Nessântico. Eu não me importaria de ver a cidade destruída, mas isso precisa ser decisão sua.

— Aí está, Jan, viu só? — falou Allesandra, ficando de pé. — Starkkapitän, você irá...

Mas Jan havia colocado a mão no ombro dela e disse — Eu ainda não terminei, matarh. Archigos Semini, o que você acha desta oferta?

Allesandra começou a protestar, mas Jan apertou a mão no ombro da matarh. Todos observavam a a’hïrzg. Ela franziu os lábios e sentou-se novamente. Semini olhou especialmente para Allesandra, sem expressão nos olhos de cor magenta. Ele sabia, a a’hïrzg percebeu então. O archigos sabia que ela esteve disposta a oferecê-lo em troca do Trono do Sol. Sergei... será que Sergei contou para ele? Ou...

Jan?

— Eu notei que a oferta da kraljica não menciona nada sobre a fé concénziana — respondeu Semini, que ainda encarava Allesandra. — Isso é inaceitável para mim. Eu reluto em empenhar os ténis-guerreiros em uma aliança com Nessântico, a não ser que o archigos Kenne também esteja disposto a abdicar em meu favor. — Semini desviou o olhar de Allesandra e inclinou a cabeça para Jan. — A não ser, é claro, que o hïrzg exija isso de mim.

— Jan — insistiu Allesandra, ignorando Semini. — Isso é o que queríamos desde o início. Está ao nosso alcance; só temos que estender a mão e pegar.

— Oh, eu discordo, matarh — disparou Jan. — Isso é o que a senhora sempre quis. Parece que sua vida inteira é sempre uma questão do que a senhora quer: suas ambições, suas aspirações, seus desejos. Mesmo quando era menina, pelo que me contaram: a senhora quis primeiro Nessântico, então o vavatarh obrigou o exército a marchar mais rápido do que deveria e perdeu; sim, Fynn me contou essa história, que disse ter ouvido do vavatarh.

— Isso não é verdade — contestou Allesandra. Era o vatarh que queria Nessântico tanto assim. Não eu. Eu lhe disse para esperar e ser paciente. Disse sim... Mas Jan não escutou, e continuou falando.

— A senhora decidiu que não queria ajudar o vatarh após ele finalmente trazê-la de volta, então seu casamento foi uma farsa, quando poderia ter sido uma aliança forte. A senhora não quis que eu me envolvesse com Elissa, então a mandou embora. Não quis ser hïrzg, então fez campanha para que eu ficasse com o título. O que a senhora sempre quis foi ser kraljica, e quer que aceitemos essa oferta para que tenha o título agora, quer seja o melhor para Firenzcia ou não. Sempre foi a senhora, matarh. A senhora. Não o vatarh, não o vavatarh, não eu, não o archigos, ninguém. A senhora. Bem, a senhora me tornou o hïrzg, e, por Cénzi, eu serei o hïrzg e farei o que for melhor para Firenzcia e a Coalizão, não o que for melhor para a senhora. Eu amo a senhora, matarh — estranhamente, para Allesandra, ele olhou para Sergei ao dizer isso —, mas eu sou o hïrzg e declaro: nós iremos até Nessântico, mas iremos no momento conveniente. Nessântico grita por socorro para nós? Bem, deixe que grite. Deixe que lute a batalha que provocou. Starkkapitän, nós levantaremos acampamento pela manhã, como o planejado, e prosseguiremos em ritmo normal até vermos Nessântico, de lá esperaremos até sabermos mais ou até que a kraljica em pessoa saia e se ajoelhe a mim. Não mandarei uma única vida firenzciana para ser perdida defendendo Nessântico de sua própria insensatez.

— Jan... — Allesandra começou a falar, mas foi interrompida por um estalo do braço do filho.

— Não, matarh. Não discutiremos mais essa questão. A senhora queria que eu fosse o hïrzg? Bem, cá estou eu, e esta é a minha vontade. Não falaremos mais a respeito disso. Starkkapitän, você tem suas ordens.

Ca’Damont fez uma mesura e saiu da tenda após dar uma olhadela para Allesandra. Semini bocejou e espreguiçou-se como um urso despertando da hibernação. Ele fez o sinal de Cénzi para Jan e seguiu atrás do starkkapitän, sem olhar para Allesandra. Sergei viu os dois homens saírem e se levantou. — Caso precise do meu conselho, hïrzg, o senhor sabe onde me encontrar — falou. — A’hïrzg, uma boa noite para a senhora.

Allesandra acenou minimamente com a cabeça. Por vários momentos, ela e Jan ficaram sentados ali, em silêncio. — Você não quer que eu seja kraljica? — disse a a’hïrzg quando o silêncio pareceu durar tempo demais.

— Assim como Sergei quer o que for melhor para Nessântico, eu quero o que for melhor para Firenzcia — respondeu ele. Então, antes que ela pudesse responder: — Tudo o que eu sempre quis da senhora foi seu amor, matarh.

As palavras doeram como um tapa na cara dela, tão fortes que provocaram lágrimas em seus olhos. — Eu amo você, Jan. Mais do que você pode compreender.

Jan olhou com raiva para a matarh: o rosto de um estranho. Não, o rosto de seu homônimo, como Allesandra o imaginou durante todo o cativeiro em Nessântico, quando ele se recusava a pagar o resgate por ela. — Cale a boca, matarh. A senhora me ensinou bem. Mostrou para mim que as aspirações e a determinação são mais importantes que amor. Eu falei com o archigos Semini. Contei que a senhora esteve disposta a sacrificá-lo para ser kraljica. Ele me contou algo em troca: que planejou assassinar Fynn. Para a senhora, matarh. Tudo pela senhora. Semini me contou que a senhora sabia, naquela dia em que salvei Fynn, que o ataque aconteceria. A senhora usou Semini, seu amante, para fazer de mim um herói, para fazer de mim o hïrzg. O resto eu posso descobrir por mim mesmo. Eu me pergunto, matarh, quem contratou a Pedra Branca, mas tenho um excelente palpite. — Allesandra sentiu a face corar e virou o rosto. — Aquele seu gesto tão nobre — continuou Jan — de abdicar em meu favor: a senhora jamais quis ser hïrzgin. Sempre quis mais. Não queria o que era melhor para mim, mas o que fosse melhor para a senhora. Eu sempre fui seu segundo filho, o menos importante, matarh. A ambição sempre foi seu primogênito.

Allesandra ficou sem ar. Ela permaneceu sentada ali, com as bochechas úmidas de lágrimas, enquanto Jan se afastava da mesa e ficava de pé. — Jan... — disse a a’hïrzg ao erguer os braços para o filho, mas ele a negou com a cabeça. Jan olhou para a matarh, e, por um momento, ela pensou ter visto a expressão no rosto do filho abrandar.

Mas Jan deu meia-volta e saiu noite afora.

 

Niente

ELES USARAM O POUCO do que sobrou da areia negra para lançar na cidade novamente, naquela noite. Depois disso, Niente mandou os nahualli descansarem e preencherem novamente os cajados mágicos para a batalha do dia seguinte. Ele perdeu mais dez nahualli durante a batalha, a maioria no fim do dia, quando Zolin tentou, em vão, tomar a ponte mais próxima sobre o rio. A energia dos cajados mágicos tinha acabado e não houve tempo para descansar e renovar os feitiços. Os nahualli, como Niente mandou, tentaram recuar para trás da linha de frente assim que o poder foi exaurido, mas alguns foram abatidos pelas espadas nessanticanas, incapazes de se defender. O nahual não sabia quantos guerreiros tinham sido perdidos. Eles foram escorraçados por uma investida desesperada dos chevarittai, e Zolin — por insistência de Niente, que temia que fossem perder ainda mais nahualli — finalmente mandou o avanço parar.

Eles eram muito poucos... tanto os nahualli quanto os guerreiros. Mas Zolin não enxergava isso, ou estava tão envolvido com a própria visão que a situação tinha sido apagada dos próprios olhos. — Amanhã, toda a cidade será nossa — disse ele para Niente, Citlali e Mazatl. O nahual não sabia se era verdade ou não e estava exausto demais para se importar.

Após a última das bolas de fogo ser lançada na cidade, o nahual foi para a própria tenda. Lá, sozinho, ele pegou a tigela premonitória nas mãos: com medo de conjurar o feitiço, com medo de ter a mesma visão, com medo da exaustão e da dor que seriam cobrados pelo feitiço. Niente tentou se lembrar do rosto da esposa e dos filhos: ele conseguiu vê-los em sua mente, mas isso só fazia piorar a saudade. Imaginou como estavam, se mudaram, se sentiam sua falta como Niente sentia a deles.

Imaginou se algum dia saberia.

Ele colocou a tigela de lado.

O sono naquela noite foi intermitente e inquieto. Os pesadelos o invadiram; Niente viu a esposa morta, as crianças feridas, viu a si mesmo lutando e tentando correr, mas incapaz de fazer mais do que andar enquanto era cercado por demônios vestidos de azul e dourado. O nahual tentou imaginar o rosto da esposa diante dele, a boca semiaberta quando Niente inclinou-se para beijá-la... o rosto não tinha expressões nem feições, era uma máscara. Sem conseguir escapar dos sonhos, ele acabou andando de um lado para o outro do acampamento, escutou os sons dos guerreiros descansando, viu as estranhas formas dos prédios ao redor. Ao passar por um edifício, o nahual ouviu seu nome ser chamado. — Niente.

Ele reconheceu a voz. — Citlali.

O guerreiro supremo estava encostado na porta do prédio. Atrás dele, uma vela brilhava na escuridão. — Não consegue dormir? — perguntou Citlali.

Niente balançou a cabeça. — Eu não ouso. Sonhos demais. E você?

O rosto com redemoinhos negros deu um sorriso. — Sonhos de menos. Eu queria ver a nossa terra natal e minha família novamente, mesmo no sono.

— Isto não acontecerá se... — Niente engoliu o comentário, furioso consigo mesmo. Se estivesse menos confuso pela falta de sono, não teria dito nada.

— Se prevalecer a vontade do tecuhtli Zolin? — arriscou Citlali. — Eu pensei a mesma coisa, nahual. Não precisa ficar tão nervoso. — O sorriso aumentou, e ele olhou de um lado para o outro, como se tentasse ver se alguém os escutava. — E deixe-me responder à outra pergunta que você não irá fazer. Não. Eu não desafiarei o tecuhtli. Veja até onde ele nos trouxe, nahual, do outro lado do mar até o grande lar dos orientais. Isso é a verdadeira grandeza, nahual. Grandeza. Estou orgulhoso por ter sido capaz de ajudá-lo.

— Mesmo que isso signifique que você jamais verá sua terra natal e sua família novamente?

Citlali ergueu os ombros. — Eu sou um guerreiro. Se essa for a vontade de Sakal... — Ele abaixou os ombros novamente. — Eu não preciso de uma tigela premonitória, nahual. Não tenho interesse no futuro, apenas no presente. É uma bela noite, eu estou vivo e vendo um lugar que jamais pensei que veria e que poucos tehuantinos um dia viram. Como alguém não ficaria feliz com esta situação?

Niente limitou-se a concordar com a cabeça. O nahual desejou boa-noite e deixou o guerreiro com seu devaneio. Da parte dele, Niente voltou aos próprios alojamentos e realizou os rituais para colocar feitiços no cajado novamente. Então, completamente esgotado pelo esforço, ele foi para a cama e deixou os pesadelos o invadirem outra vez.


E, no dia seguinte, os pesadelos se tornaram realidade.

Na alvorada, o tecuhtli Zolin levou os tehuantinos para as profundezas da cidade, eles lutaram de rua em rua na direção da grande avenida principal. A batalha foi um reflexo do combate do dia anterior: novamente, a ofensiva inicial fez os cansados nessanticanos recuarem; quando o olho de Sakal estava bem alto no céu, eles chegaram à avenida, onde Zolin rapidamente reagrupou as tropas e começou a marcha para o sul.

Lá, os nessanticanos haviam se reunido: em volta do mercado, onde finalmente detiveram o avanço tehuantino no dia anterior, e em volta da ponte que levava à ilha. No A’Sele, Zolin mandou que os navios avançassem na direção do inimigo; os navios nessanticanos deslocaram-se para detê-los, e outra batalha tomou o lugar, cujo resultado Niente só podia imaginar, embora muitos navios de guerra de ambos os lados estivessem em chamas. Não havia mais retirada possível ali — restaram poucos navios para todos eles voltarem para casa.

— Nahual! — Do cavalo, Zolin apontou um dedo para Niente. — Pegue seus nahualli e venha comigo. Nós controlamos a rua principal, agora temos que dominar a ponte. Citlali! A mim!

Zolin rapidamente posicionou os guerreiros. Citlali e Zolin atacariam os píeres da ponte a partir da avenida, diretamente no coração das forças nessanticanas; Mazatl esperaria até que o ataque estivesse em andamento, depois investiria pelo flanco oeste através do Mercado do Rio. Vários guerreiros duplas mãos1 também começariam um ataque ao norte imediatamente e forçariam a passagem pela avenida circular de maneira que os nessanticanos não pudessem concentrar a atenção na cabeça de ponte — não sem possivelmente perder a ponte mais a leste para a grande ilha. Zolin mandou os guerreiros à frente como manobra de distração, depois esperou que a sombra do sol movesse um dedo antes de acenar e liderá-los ao lés-nordeste da avenida, onde posicionou seus homens. Eles podiam ver os nessanticanos: uma parede de escudos em riste do outro lado da avenida, a meros cem passos.

Não havia areia negra, nem tempo para fazer mais, mesmo que eles tivessem os materiais brutos. Desta vez, os arqueiros começaram o ataque com uma chuva sobre os escudos dos nessanticanos sem causar grandes danos. Os ténis-guerreiros lançaram as bolas de fogo estridentes na direção dos tehuantinos, e Niente — com os demais nahualli — ergueu seu cajado mágico rapidamente. Os feitiços de proteção estalaram para fora, um pulso quase visível no ar. A maior parte das bolas de fogo foi desviada; elas caíram nos prédios de ambos os lados, que pegaram fogo. Mas havia muitos ténis-guerreiros e nahualli insuficientes. Os feitiços de guerra caíram sobre os guerreiros reunidos; os homens gritaram, seus corpos foram queimados e contorcidos. Aqueles que puderam, fugiram, terrivelmente feridos com as queimaduras do fogo pegajoso. Os que não puderam, morreram. Uma bola de fogo caiu perto o suficiente de Niente para o nahual sentir o calor do feitiço, como se a fornalha de um ferreiro tivesse sido aberta em frente a ele. O calor passou por seu rosto como uma onda escaldante e secante. Zolin também sentiu o calor; ele deu uma olhadela para a cena atrás de si quando o cavalo empinou com medo. O tecuhtli berrou — Em frente! Agora! — Zolin controlou a montaria e a cutucou com o pé para que galopasse. Os guerreiros supremos montados seguiram o tecuhtli e a infantaria também investiu, à frente. Niente foi levado pela onda.

A onda arrebentou contra os escudos pintados de azul e dourado e empalou-se em suas lanças. No caos barulhento, Niente viu o cavalo de Zolin cair, com uma lança cravada no peito, mas o tecuhtli em si perdeu-se na massa de soldados, e o nahual não conseguiu ver o que aconteceu com ele.

Havia espadas e combate em volta de Niente, que só conseguiu pensar em si mesmo, em matar o máximo possível de nessanticanos. Ele apontou o cajado mágico, falando a palavra de ativação sem parar, e os raios estalaram da ponta, assobiando e ondulando ao mergulharem nas fileiras em frente ao nahual. Um buraco foi aberto na parede de escudos quando ele lançou um feitiço após outro — os clarões mandaram dezenas de homens ao chão. Os guerreiros gritavam, urravam e brandiam suas espadas ao avançar através da brecha. A parede começou a ceder, e então desmoronou complemente. Niente novamente foi levado pela onda e viu de perto as torres que marcavam a entrada da ponte.

À direita, havia uma cacofonia de gritos: os guerreiros de Mazatl que investiam contra o flanco. O som grave das trompas soou nas fileiras nessanticanas. Niente viu um estandarte tremulando ali e um aglomerado de chevarittai a cavalo. De repente, o estandarte seguiu para a direção sul da ponte, com os chevarittai junto. O nahual viu a expressão de compreensão nos rostos dos soldados inimigos diante dele. Viu a maneira como as espadas foram abaixadas momentaneamente, como as fileiras se enfraqueceram visivelmente. A chuva de flechas cessou, os ténis-guerreiros não lançaram mais bolas de fogo sobre a cabeça de Niente sobre a retaguarda dos tehuantinos. Eles avançaram gradualmente: os guerreiros, os nahualli, agora o nahual conseguia ver Zolin novamente, sangrando e ferido, mas em pé, sua espada ceifava os soldados que ousavam ficar diante dele. Citlali estava ao lado do tecuhtli, com o rosto implacável e impetuoso.

Eles estavam na ponte agora. Ela era dos tehuantinos. O rio movia-se preguiçosamente embaixo deles, e corpos caíam do peitoril e batiam nas águas.

Os tehuantinos rugiram. Eles cantavam enquanto matavam, e Niente cantou com eles.

 

Varina ci’Pallo

AS RUAS DO VELHO DISTRITO ESTAVAM tomadas por cidadãos em pânico, a maioria corria para leste, para longe das forças ocidentais que se aproximavam e das batalhas ao longo da Avi a’Parete. Todos ouviam os sons: os berros que reverberavam pelas vielas, os lamentos, os gritos, o barulho constante das trompas dos templos soando alarmes estridentes. A fumaça dos incêndios manchou o céu, trapos imundos que às vezes obscureciam o sol, e o cheiro de fogo e carnificina no ar era intenso.

Varina viu-se próxima a Karl pela maior parte do dia. Ela sorria para ele, nervosa e indecisa, e Karl devolvia o mesmo sorriso. — Prometa — falou Varina finalmente. Os dois estavam sozinhos em um dos cômodos; Talis, Serafina e Nico estavam no outro.

— Prometer o quê?

— Que o que quer que aconteça... que aconteça conosco. Guarde um último feitiço para nós, eu farei o mesmo.

— Não será assim tão ruim — disse Karl. — Talis... ele é um deles, afinal.

Ela sacudiu a cabeça, tão desamparada pelo fato quanto Karl.

Mais tarde, o cheiro de fumaça ficou mais forte. Pela janela do apartamento, eles viram a fumaça pegajosa e espessa subir das casas e de uma rua a oeste, com chamas que ocasionalmente irrompiam na escuridão. Cinzas caíam como neve cinzenta. Karl achou que quase podia sentir o calor. Os dois seguiram para o cômodo da frente com os demais.

— Tudo está queimando — falou Nico. Ele parecia mais empolgado do que preocupado, mas todos os adultos trocaram olhares preocupados. O estalo das chamas ao longe era audível no silêncio.

— Você está certo, Nico — disse Varina, enquanto olhava para Serafina. — Infelizmente, os ténis-bombeiros estão muito ocupados em outros lugares para fazer algo a respeito disso. — O olhar dela desviou de Serafina para Karl. Varina sabia o que ele estava pensando; era o que estava na mente de todos: Será que podemos ficar aqui? Precisamos ir embora?

Menos de uma virada da ampulheta depois, todos ouviram uma comoção alta ecoar a oeste, lá fora, na rua. Não muito longe dali, uma turba de várias dezenas de pessoas andava à espreita pela viela; não eram soldados, nem ocidentais, mas gente que morava no Velho Distrito. Eles berravam, corriam de casa em casa e quebravam portas e janelas; Varina ouviu os berros e gritos dos que estavam no interior enquanto a turba invadia cada casa. Eles saqueavam, carregavam qualquer coisa que parecesse de valor: ela viu algumas pessoas segurando itens roubados enquanto marchavam; o que mais, além de roubar, os saqueadores faziam dentro das casas, Varina só podia imaginar. Já havia fogo em três ou quatro casas mais ao longe na rua. A turba gritava alto: — Peguem o que quiserem! A cidade está perdida! Revolta! Revolta!

Karl e Talis passaram por Varina e seguiram para a rua enquanto a turba continuava o lento e caótico avanço na direção deles. Alguém à frente os notou e apontou, e vários aglomerados de saqueadores seguiram na direção deles. — Parem com isso! — gritou Karl, a turba debochou, as pessoas responderam com berros e brandiram armas velhas ou improvisadas. Ele deu uma olhadela para Talis e acenou com a cabeça. O embaixador ergueu as mãos, gesticulou, e uma luz surgiu entre elas. Ao seu lado, Talis levantou o cajado e bateu uma vez nas pedras de pavimentação: um raio saiu como uma flecha do punho para o céu esfumaçado.

A turba parou. Sem uma palavra, as pessoas se dispersaram em um estranho silêncio, correram para qualquer direção, desde que fosse para bem longe dos dois. Alguns instantes depois, a rua estava vazia. — Ora, isso acabou bem — falou Karl. Ele e Talis viraram-se, e Varina viu os dois ficarem boquiabertos.

Ela tinha lançado o próprio feitiço no momento em que Karl lançou o dele. Varina moldou o ar ao redor com o toque de um escultor, desenhou como se fosse uma tela e colocou nele uma imagem saída da mente. Varina viu o que Karl e Talis viram, algo que se agigantava atrás deles, mais alto que qualquer uma das casas.

— Um dragão! — berrou Nico da porta da casa, nos braços de Serafina, tomado pela alegria. Karl riu e aplaudiu, Varina sorriu. — Você pode fazê-lo cuspir fogo e voar? — perguntou o menino, e ela fez que não com a cabeça.

— Ele não pode fazer nada, só parece feroz — disse Varina. Por um instante, o perigo foi esquecido, mas depois a realidade desabou sobre eles quando ela cancelou o feitiço. O dragão sumiu em filetes de fumaça verde que foram levados pelo vento. Os saqueadores podiam ter ido embora, mas nada mudou. Eles voltariam em breve, e os incêndios próximos ardiam sem controle. A cidade continuava sob ataque.

— Karl, não podemos ficar aqui — falou Varina.

Ele olhou para Talis e viu o homem concordar com a cabeça, devagar. — Você está certa — disse Karl. — É o momento. Vamos pegar o que precisamos. — Ele deu um tapinha no ombro de Talis e foi para a porta.

Do outro lado da rua, Varina viu uma velha solitária — uma mendiga, pela aparência da roupa. Ela olhava fixamente para a casa. Assim que Varina a viu, a mulher pareceu acenar com a cabeça, depois correu pelo espaço escuro e apertado entre as casas e foi embora.

 

Sigourney ca’Ludovici

ELES A COLOCARAM no Velho Templo.

O comandante ca’Gerodi voltou fugindo da derrota na Pontica Kralji, entrou gritando no Velho Templo onde Sigourney estava sentada, no Trono do Sol, e disse que ela e o Conselho dos Ca’ deveriam pegar o que fosse possível e fugir imediatamente pela Pontica a’Brezi Veste até a margem sul e sair da cidade.

Sigourney recusou-se. — Que o Conselho vá embora se quiser. Eu vou ficar.

— Eu não posso protegê-la, kraljica — disse ca’Gerodi. — Eles estão vindo, a qualquer momento.

— Eu não abandonarei minha cidade e minha responsabilidade — respondeu ela friamente. — Eu ficarei.

No fim, a equipe de Sigourney pegou o que pôde do que restava dos tesouros do palácio e fugiu da Ilha A’Kralji. O mesmo aconteceu por toda Nessântico: no enorme Templo do Archigos, na margem sul; na Grande Biblioteca com seus preciosos e insubstituíveis livros e pergaminhos de velino; no Teatro A’Kralji e no Museu a’Artisans. O conselheiro ca’Mazzak e o resto do Conselho desapareceram também. Fugiram para o sul, a única direção ainda aberta para eles...

Sigourney permaneceu no Trono do Sol, no Velho Templo, sob a luz do sol que entrava pelo domo arruinado e queimado. Antes de permitir que o ervanário da corte fosse embora, a kraljica mandou que o homem preparasse uma taça especial do cuore della volpe, que agora estava no braço do Trono do Sol, ao lado dela. Sigourney usava uma longa tashta cerúlea com um sobretudo amarelo que escondia o fato de não haver uma perna debaixo do joelho direito. Ela mandou que os criados colocassem um tapa-olho cravejado sobre o buraco onde antes ficava o olho direito e aplicassem pó de ovo no rosto para esconder a pior parte das cicatrizes.

Sigourney aguardava no antigo trono de Nessântico. Aguardava o inevitável.

Lá fora, a kraljica ouviu a batalha em andamento: os gritos dos homens, o clamor das armas, o rugido dos feitiços dos ténis-guerreiros. A fumaça subia e enfraquecia a luz do sol. Um esquadrão de elite da Garde Kralji estava disposto diante dela, a cota de malha farfalhava quando os soldados se remexiam, nervosos, empunhando as espadas e voltados para as portas do templo. O comandante ca’Gerodi tinha ido embora há uma virada da ampulheta. — Eu não a verei novamente, kraljica — disse ele. — Sinto muito.

— Eu sei. Eu sei. Sinto muito também.

Ela aguardava.

Quando as portas foram escancaradas, os gardai em frente a Sigourney ficaram tensos e começaram a avançar. — Não — disse a kraljica. — Parem! Esperem! — Vários guerreiros ocidentais entraram no templo; com eles havia outro homem, este sem as tatuagens dos guerreiros e com um cajado de madeira lustrosa: um dos feiticeiros. Os ocidentais pararam e espiaram o longo corredor da nave onde Sigourney estava sentada sob um facho poeirento de luz do sol. — Algum de vocês fala nossa língua? — berrou ela.

— Eu falo — disse o feiticeiro. As palavras eram arrastadas e com um sotaque carregado, mas compreensíveis. — Um pouco.

— Ótimo. Eu sou a kraljica Sigourney ca’Ludovici, monarca desta terra. Quem é você?

O homem sussurrou por um instante para o guerreiro ao lado dele, que tinha a imagem de uma águia ou um falcão vermelho desenhada na careca. — Eu sou Niente — respondeu o feiticeiro. — Sou o nahual. E este — ele apontou para o guerreiro com quem havia falado — é o líder dos tehuantinos, o tecuhtli Zolin. Ele exige sua rendição, kraljica.

— Ele pode exigir o que bem quiser. — Sigourney ergueu a mão do braço do Trono do Sol. O anel com o sinete dos kralji reluziu quando a kraljica tocou a faixa dourada da coroa, posta sobre seu cabelo grisalho e grosso. O sol estava quente sobre ela, que ergueu os olhos para as ruínas queimadas dos suportes do domo. — Ele não terá minha rendição.

Novamente o feiticeiro falou com o guerreiro, que soltou uma gargalhada que ecoou pelo templo. O homem falou palavras em uma língua que parecia ao mesmo tempo estranha e, no entanto, familiar de um jeito esquisito. Onde ela ouviu palavras assim antes? — O tecuhtli Zolin diz que se a kraljica deseja desafiá-lo, ele está disposto a aceitar. O tecuhtli emprestará a própria espada se ela não tiver uma própria. Caso contrário, ele mandará seus guerreiros torná-la prisioneira. O tecuhtli deixa a decisão com a senhora.

Sigourney balançou a cabeça e falou — Eu sei como vocês tratam os prisioneiros. E você não percebeu todas as opções que eu tenho. — O feiticeiro pareceu confuso ao ver a kraljica pegar a taça no braço do Trono do Sol e tomar todo o preparado amargo em um só gole. — Espero que aproveitem a cidade enquanto a controlam. — Ela ergueu a taça para os ocidentais e deixou que caísse nos ladrilhos, onde se quebrou. A perna já formigava quando Sigourney recostou-se no trono. A paralisia subiu rapidamente pelas coxas, pela cintura, pela barriga. Pelo coração. A luz do sol na nave pareceu enfraquecer. — Este é o meu trono e, enquanto eu viver, não abrirei mão dele.

Sigourney riu então. A voz parecia estranha, ofegante e fraca. A kraljica tentou forçar as próximas palavras. — E eu escolho o momento conveniente. — Ela tentou tomar fôlego, mas os pulmões não se mexeram. Abriu a boca, mas não havia ar.

Sigourney sorriu para eles quando o sol escureceu e Nessântico sumiu de vista.

 

Karl Vliomani

— PARA ONDE VOCÊ SUGERE de irmos? — perguntou Talis.

— Leste — sugeriu Karl. — Para os firenzcianos. Sergei pode estar lá.

— Podemos ir para o oeste — contra-argumentou Talis. — Para o meu povo.

— Seu povo colocou fogo em Nessântico — falou Varina. — Eles matam. Estupram. Saqueiam.

— E o seu povo não faz isso? — disparou Talis. — Você não esteve nos Hellins, não é? Ou se esqueceu do que começou este confronto em primeiro lugar? — Ele olhou com raiva para Varina, que sustentou o olhar, sem pestanejar.

— Parem, vocês dois — disse Karl. — Não temos tempo a perder com isso. Talis, ir para o oeste significa tentar passar pela pior parte dos incêndios, e o sul não parece muito melhor do que isso. Temos que pensar a respeito do menino, especialmente; é perigoso demais.

— E ir na direção dos firenzcianos não é perigoso? — protestou Talis.

— Eu diria que é menos.

Serafina tocou no ombro de Talis e falou — Acho que ele está certo, amor. Por favor...

Talis fez uma cara de desdém, e deu de ombros. — Tudo bem. Mas a culpa vai ser sua, numetodo, se a coisa ficar feia.

Eles rapidamente reuniram o que poderiam carregar. O cheiro de fumaça era esmagador agora, e cinzas caíam constantemente sobre os telhados, cujas bordas brilhavam com chamas agitadas. O grupo não conseguia ver o sol de maneira alguma, embora devesse estar no alto no céu. A rua continuava deserta; aqueles que podiam fugir já haviam escapado; aqueles que ficaram estavam entrincheirados nos prédios. Eles desceram a viela rapidamente até o cruzamento e viraram para leste.

Quando chegaram às ruas maiores, eles encontraram as multidões novamente. Um enxame de gente saqueava lojas, quebrava portas, arrancava persianas e carregava o que fosse possível. Os saqueadores olhavam com ar de provocação para o grupo enquanto passavam com as conquistas, desafiavam qualquer um a tentar detê-los ou protestar. Um esquadrão de quatro utilinos apareceu e soprou os apitos, mas, tirando isso, não fizeram tentativa alguma de restaurar a ordem; eles apontaram os cassetetes e gritaram avisos, mas saíram correndo quando os saqueadores mais próximos se viraram para confrontá-los.

Karl e os demais foram atrás deles.

Algum tempo depois, o grupo passou por vários quarteirões, longe o bastante para as cinzas dos incêndios não mais caírem sobre os ombros e cabelos. Eles se aproximavam do centro do Velho Distrito; Karl vislumbrou a praça aberta não muito distante dali, onde a viela tortuosa de repente se abria nela: lá estava a estátua de Henri VI, com a espada erguida sob a luz do sol. As multidões desapareceram novamente. Parecia que eles corriam por uma cidade deserta. Quando se aproximaram do fim da rua, Karl parou o grupo: encolhidos contra o flanco do prédio mais próximo, eles viram um esquadrão da Garde Civile passar rapidamente para o sul pela praça aberta, perto do chafariz de Selida, liderado por um trio de chevarittai montados. Muitos dos soldados estavam visivelmente feridos, e mancavam enquanto cruzavam a praça meio que correndo.

— Eles estão recuando — sussurrou Varina. — Será que perdemos a cidade, então?

Karl não tinha como responder, embora desconfiasse da verdade, e falou — Vamos correr...

O grupo começou a cruzar a praça quando a Garde Civile desapareceu na entrada de uma rua ao sul. Eles chegavam ao fim da sombra de Henri VI, quase no meio do centro do Velho Distrito, quando viram do que os soldados fugiam.

Uma massa ruidosa de homens pintados entrou na praça aos borbotões vinda do norte. Ao longe, Karl viu que estavam bem armados: espadas, lanças, flechas. Os rostos tinham o redemoinho de linhas negras como o de Uly; os corpos eram protegidos por armaduras de bambu. Eles ainda não tinham visto o pequeno grupo de Karl, ou, se viram, julgaram irrelevante. Os ocidentais entraram no espaço aberto: havia pelo menos trinta ou mais deles. — Andem! — sibilou Karl. — Rápido! — Eles podiam facilmente chegar a uma das transversais que levavam ao centro do Velho Distrito e despistar os ocidentais antes que fossem alcançados. Karl pegou a mão de Varina e começou a correr.

Depois de alguns passos, Karl percebeu que os dois estavam sozinhos. Talis permaneceu parado sob a sombra da estátua. Ele segurava as mãos de Serafina e Nico. — Talis!

Talis balançou a cabeça. — Não — disse ele em voz alta.

— Talis, Sergei foi para Firenzcia. Nós podemos segui-lo. Você não tem nada para barganhar com essa gente. Não mais. Você está colocando Serafina e Nico em perigo.

Talis sorriu para Karl e Varina. — Ah, mas eu tenho sim um trunfo: a areia negra de Uly. Lembra-se? Ainda está aqui.

Karl sentiu a mão de Varina apertar seu braço. Ele lembrou-se: Uly, os barris de ingredientes no apartamento do homem, à espera de serem misturados... — Você não pode dar isso a eles...

— Este é o meu povo — falou Talis. — Eu agradeço por tudo o que vocês fizeram por Sera e Nico, mas este é o meu povo, o povo que eu conheço, e este é o momento de eu voltar para eles. Vá para o seu. — Ele gesticulou para os soldados e berrou algo em uma língua que Karl não compreendia. — Vá — disse Talis para Karl. — Vá enquanto ainda tem chance.

— Pelo menos deixe-nos levar Serafina e Nico conosco — gritou Varina, mas Talis fez que não com a cabeça.

— Eles são a minha família e ficarão comigo. Vá, Karl. Ou fique. Mas faça sua escolha. — Serafina olhou para os dois com incerteza e pânico no rosto. Nico encarou de olhos arregalados, mas parecia calmo.

Vários guerreiros pintados se aproximavam correndo agora. Talis ergueu o cajado mágico. Uma luz irrompeu do objeto, cintilou e baniu a sombra de Henri VI. — Karl? — A mão de Varina estava erguida; ele sentiu a energia do Segundo Mundo se acumular em volta dela.

— Eles são muitos — disse Karl.

— Não podemos deixá-los. Não podemos deixar Nico.

— Não temos escolha — respondeu ele.

Karl pegou a mão de Varina, e os dois correram.

 

Nico Morel

NICO NÃO CONSEGUIA ENTENDER o que Talis dizia quando os soldados pintados se aproximaram deles. Ele notou a insegurança na voz do vatarh e o jeito com que Talis falava alto e rápido, com a bengala mágica em frente ao corpo como um porrete. A matarh abraçou o menino com tanta força que ele mal conseguia respirar quando os estranhos os cercaram. Os homens eram inacreditavelmente grandes, assustadores e cheiravam a sangue e morte.

Nico sentiu o medo crescer dentro dele, juntamente com o frio estranho que sentiu no gabinete do archigos, assim como quando fugiu de Ville Paisli. O frio começou a aumentar por dentro, e ele murmurou baixinho as estranhas palavras que vieram à mente enquanto as mãos fizeram pequenos gestos sob o abraço forte da matarh.

— Talis, o que está acontecendo? Estou assustada... — Nico ouviu a matarh falar.

— Está tudo bem — disse o vatarh, mas a voz contradizia a resposta. — Eu só preciso falar com o guerreiro supremo. Deixe-me cuidar disso. Eles são meu povo; só não esperavam me encontrar aqui...

Talis voltou-se para um dos homens pintados, o que tinha um lagarto negro de língua vermelha rastejando no topo do crânio, que passava em volta do olho esquerdo e ia até a lateral da cabeça. Enquanto eles meio que gritavam uns com os outros, o vatarh brandiu a bengala na cara do sujeito. Nico sentiu o frio crescer sem parar dentro dele, era tão intenso que ele sabia que iria explodir se tentasse contê-lo por mais tempo. O menino gritou as estranhas palavras. Gesticulou.

Não houve fogo azul dessa vez. Em vez disso, o ar tremeu em volta dele e propagou-se como uma onda visível, a onda rápida acertou os homens pintados, e eles foram lançados para trás como se tivessem sido golpeados por um grande punho. — Venha, matarh! — berrou Nico. O menino agarrou a mão dela e puxou-a de maneira que Serafina tropeçou ao segui-lo, enquanto ele fugia na direção em que Karl e Varina foram. — Talis! Rápido!

Mas Talis não correu com os dois; ele também havia sido derrubado pela explosão incontrolável do menino. O guerreiro-lagarto já estava de pé, Nico olhou para trás ao começar a correr e viu o homem berrar para os demais no momento em que Talis gritou alguma coisa de volta e ergueu a bengala. Uma luz ofuscante brilhou da bengala, e um dos guerreiros rugiu. Nico puxou a matarh com mais força. — Corra!

Sera deu um passo com ele, mas soltou a mão do filho. O menino deu outro passo antes de perceber que a matarh não estava com ele. — Sera! — Nico ouviu Talis gritar e virou-se para trás.

A matarh estava esparramada sobre os paralelepípedos da praça, com uma lança nas costas e seu sangue manchando as pedras da pavimentação. Ela esticou o braço na direção de Nico, rastejou atrás do filho, com o rosto contraído de dor. — Matarh! — berrou o menino, que correu de volta para Serafina. Nico caiu ao lado dela assim que Talis a alcançou.

— Nico... — disse a matarh. — Eu sinto muito... — Ela virou a cabeça para Talis e começou a falar, mas ele fez carinho na cabeça de Serafina e a abraçou com cuidado.

— Não, não diga nada. Eu vou levar você a um curandeiro, a alguém que possa te ajudar... — Talis ergueu o olhar para os soldados pintados, que se reuniram em volta deles. O vatarh falou rispidamente na própria língua. O guerreiro-lagarto fez uma expressão de desdém, e gesticulou para os homens. Um deles arrancou a lança das costas da matarh de Nico, e ela gritou novamente. O menino atirou-se contra o guerreiro-lagarto e socou a armadura do homem. Ele agarrou Nico com um braço musculoso e rosnou alguma coisa para Talis. — Nico! — falou o vatarh. — Eles vão ajudá-la. Por favor, escute o que eu digo. Você tem que parar de lutar com eles.

Toda a energia abandonou Nico; ele desmoronou no braço do guerreiro-lagarto.

Dois guerreiros agacharam-se; eles rasgaram tiras da própria roupa e amarraram na cintura da matarh do menino. Um guerreiro pegou Serafina nos braços; ela gemeu e revirou os olhos, mas Nico viu que a matarh ainda respirava. Uma das mãos pendia; o menino contorceu-se no braço do guerreiro-lagarto e foi solto pelo homem. Ele correu e pegou a mão de Serafina.

Nico segurou a mão da matarh, em prantos, enquanto eles saíam rapidamente da praça.

 

Niente

ELES CONQUISTARAM A CIDADE.

Ou, mais corretamente, conquistaram parte dela. Nessântico era grande demais e a força dos tehuantinos pequena demais para controlar a cidade inteira, na prática. Em vez disso, eles arrebentaram a cidade, usaram areia negra para incendiar Nessântico, fizeram a Garde Civile recuar para o norte e o sul.

A cidade já não pertencia à kraljica e ao povo dela, mas também não era dos tehuantinos.

Niente tinha certeza de que jamais seria deles.

— Bem? — perguntou Zolin enquanto o nahual espiava a água da tigela premonitória.

— Paciência, tecuhtli — disse ele. — Paciência. — Mas Niente já sabia. A visão já tinha passado e a água era apenas água. Mas, ao fingir, o nahual podia decidir o que queria dizer. Ao fingir, podia se recuperar da pior parte do cansaço e da exaustão causados pelo feitiço.

Ele viu — novamente —, no meio da grande cidade arruinada, o tecuhtli e o nahualli mortos e sentiu outra vez o arrepio com a certeza de que viu Zolin e a si mesmo. Nada mudou. Axat ainda lhe mostrava o mesmo futuro, o mesmo caminho. Nada foi alterado após esta vitória. Niente achava que nada poderia alterá-lo. O futuro estava predeterminado, tão inevitável quanto o pôr do sol.

Eles estavam nas ruínas do templo, Zolin sentado no trono que a kraljica usara. O cabo de uma lança tinha sido cravado em uma fenda no piso de cerâmica, perto do trono. A cabeça da kraljica foi enfiada na lança, o único olho vidrado voltado para fora, o cabelo pendia grotescamente — o corpo estava caído contra a parede atrás do trono, onde fora jogado. Uma fogueira foi acesa no meio da nave e alimentada com a madeira dos bancos do tempo; uma fumaça cinza e fina subia para o céu que começava a ficar púrpura. Mesas foram erigidas em volta da fogueira, e um banquete estava em andamento, servido por assustados prisioneiros ocidentais. Não havia algum motivo em especial para o medo deles; Zolin e os outros guerreiros supremos não permitiriam que nenhum prisioneiro fosse maltratado. Sim, haveria os inevitáveis estupros, saques e mortes, mas os incidentes seriam poucos, e os responsáveis seriam severamente punidos se fossem flagrados. Alguns offiziers do alto escalão seriam sacrificados pela glória de Axat e Sakal, mas nenhum outro prisioneiro sofreria algum mal.

Os tehuantinos eram mais benevolentes e bons vencedores do que os orientais quando estes vieram aos Hellins.

Enquanto os guerreiros aproveitavam o banquete, Niente olhava na tigela premonitória perto da fogueira. A luz do fogo lambeu a pele do nahual, mas o calor não conseguiu tocar o frio que ele sentia por dentro. Niente finalmente pegou a tigela e jogou a água nas brasas em chamas, que assobiaram e soltaram vapor em resposta.

— Então — falou Zolin —, Axat me vê permanecendo aqui? Eu acho que este é um ótimo lugar. Podemos construir uma nova cidade aqui, uma que essa terra nunca viu antes, uma cidade que rivalizasse com Tlaxcala, e eu poderia ser o tecuhtli aqui, e os ocidentais nos serviriam como eles forçaram nossos primos a servi-los.

— Eu realmente vejo o senhor permanecendo aqui, tecuhtli — falou Niente, o que não era nada mais que a verdade.

Zolin deu um tapa nos braços cristalinos do trono. Ele rugiu de alegria, e os guerreiros reunidos no salão riram com ele. — Viu só! — berrou o tecuhtli para Niente. — Todas aquelas preocupações. Eu lhe disse, nahual, eu lhe disse.

— Disse sim, tecuhtli — falou Niente.

Zolin inclinou-se para a frente no trono. — Você viu outras batalhas? Você me viu tomando novas cidades?

O nahual balançou a cabeça e respondeu — Não. E isso não seria prudente, tecuhtli. Não temos mais areia negra. Se pudéssemos repor os guerreiros que caíram, se eu pudesse trazer mais nahualli para cá... — Ele espalmou as mãos. — Eu diria ao tecuhtli... — Niente começou a falar, mas houve uma agitação no fim do salão: o guerreiro supremo Citlali surgiu com um homem ao lado dele; um homem com um cajado mágico na mão. O nahual apertou os olhos para ver na escuridão da noite, iluminada pela fogueira; não era um nahualli que ele reconhecesse, e o homem estava vestido como um dos orientais, havia manchas de sangue na roupa. No entanto, aquele rosto...

— Talis? — perguntou Niente. — É você? — Pelo rosto, o homem parecia ter muitos mais anos do que deveria, a face foi arrasada pelo poder de Axat assim como a do nahual, mas ele lembrava-se da juventude nas feições do sujeito.

— Niente? — Talis correu à frente e agarrou o antebraço de Niente, seus olhos vasculharam o rosto, sem dúvida tão mudado quanto o próprio. — Por Axat, tem muito, muito tempo. Você é o nahual. Ótimo. Que ótimo para você... — Ele então viu o tecuhtli Zolin, deu meia-volta e abaixou a cabeça para ele. — Tecuhtli. Noto que Necalli caiu.

Niente ainda olhava para Talis. Havia uma dor nos olhos do homem que não era causada pelo X’in Ka. — Você está ferido? — perguntou o nahual, e Talis balançou a cabeça.

— Não, é que... — Ele parou, e Niente viu a preocupação e a tristeza desabarem sobre o homem. — Eu... eu tenho uma esposa aqui, e um filho. Ela foi... gravemente ferida. Preciso voltar para os dois...

— Nós levamos a mulher e o menino para a tenda dos curandeiros, tecuhtli, nahual — intrometeu-se Citlali. — Eles estão fazendo o possível.

— Ótimo — falou Zolin. — Você poderá ir até eles em um momento, Talis. Então você é o nahualli enviado para cá pelo antigo nahual? Eu sei que ele disse ao tecuhtli Necalli que você era quase tão poderoso quanto Mahri; que você teria dado um belo nahual. — Zolin deu uma olhadela para Niente. — Talvez esse acabe sendo seu destino. Eu li seus relatórios e, com o passar dos anos; eles me ajudaram a compreender e a derrotar os orientais. Sou grato por isso.

— Tecuhtli — disse Citlali quando Zolin fez uma pausa ao se recostar no trono. — Talis tem uma informação que o senhor precisa saber, sobre um exército mais a leste da cidade. Foi por isso que eu o trouxe aqui.

Talis concordou com a cabeça, Niente ouviu o homem, sentindo um medo crescente enquanto ele falava a respeito desse exército de Firenzcia e da reputação da força militar daquele país. O nahual ficou especialmente aflito com a expressão cada vez mais empolgada no rosto de Zolin. — Tecuhtli — falou ele —, isso é o que a tigela premonitória me disse. Nós fizemos tudo que viemos fazer aqui. Devíamos embarcar agora e voltar para casa antes que esse exército venha para cima de nós. Podemos juntar um novo exército e voltar com mais navios, mais guerreiros e nahualli da próxima vez, e se o senhor quiser se sentar nesse trono como tecuhtli do leste, nós o colocaremos aqui com recursos suficientes para que isso aconteça. Mas não agora. Somos muito poucos, guerreiros e nahualli, para outro grande combate, especialmente sem a areia negra.

Niente pensou que, finalmente, tivesse convencido o tecuhtli. Sentado no trono, Zolin fez uma careta e tamborilou os dedos no braço cristalino do trono. Balançou a cabeça como se estivesse pensando.

Mas Talis então acabou com qualquer esperança que restasse em Niente. — Existe areia negra — disse ele. — Ou melhor, existem ingredientes suficientes aqui na cidade para fazer boa parte dela. Eu sei onde estão.

Zolin inclinou-se para frente no trono e arregalou tanto os olhos que as asas da águia dançaram no rosto. — Onde? Leve-nos até eles agora.

— Tecuhtli, minha esposa... Eu preciso ir até ela.

Niente sabia como Zolin reagiria a isso; e não ficou surpreso. — Todos nós temos esposas e família — retrucou o tecuhtli. — Nosso dever é aqui e agora. Citlali, como está a mulher?

Citlali deu de ombros. — Ela está nas mãos de quem sabe o que fazer. Não há nada mais a ser feito.

— Pronto. Viu só, Talis? — falou Zolin. — Você tem sua resposta. Sinto muito pelo ferimento de sua esposa e entendo que queria estar com ela. Mas seu tecuhtli também precisa de você. O nahual Niente está certo: sem mais areia negra, nós perderemos o que ganhamos. A areia negra, nahualli, é o que precisamos. — Zolin inclinou-se para frente e apoiou os cotovelos nos joelhos. — A esposa de um traidor não receberia ajuda alguma.

Niente ouviu as próximas palavras como se fossem o toque do sino da morte.

— Como o senhor quiser, tecuhtli — disse Talis. — Eu o levarei lá.

— Ótimo — falou Zolin ao ficar de pé. — Citlali, coma e beba alguma coisa e prepare os guerreiros para mais uma batalha. Nahual Niente, faça o mesma com os nahualli. Nesse meio tempo, eu conversarei com você, Talis, enquanto vamos atrás dessa areia negra.

 

Sergei ca’Rudka

SERGEI CUSTOU A ACREDITAR no que Karl e Varina lhe contaram. Ele tinha visto a fumaça dos incêndios em Nessântico, cujo cheiro tinha sido trazido pelo vento, e sabia que a cidade sofria, mas isso: Nessântico conquistada, a maior parte em ruínas...

Isso, Sergei não tinha esperado.

Havia muita coisa que ele não tinha esperado. Sergei sentiu-se muito velho e frágil realmente.

— O archigos ca’Cellibrecca está aqui? — perguntou Karl. Sergei concordou com a cabeça. O rosto do numetodo ficou rígido e determinado, a voz amarga comeu sílabas. — Então me leve até ele, Sergei. Que esse seja o pagamento por libertar você da Bastida. Apenas me leve até ele e afaste-se. Você não precisa se envolver com o resto.

— Não é tão simples assim, Karl.

— Na verdade, é simples assim — retrucou o numetodo. — O homem matou Ana, e eu quero justiça pelo assassinato dela.

— Isso, eu não posso dar para você. Não aqui, nem agora. Mas posso lhe dizer que o hïrzg Jan não gosta muito do homem. Acho que o mesmo pode ser dito a respeito da a’hïrzg Allesandra, pelo menos por enquanto. Karl, deixe-me cuidar dessa situação. Por favor. — Sergei olhou para Varina, em busca de apoio.

— Ouça o que ele diz — falou ela. — Ou ouça Ana; o que ela lhe diria?

O trio estava na tenda de Sergei no acampamento firenzciano, onde os dois tinham sido trazidos pelos primeiros soldados que encontraram. O regente ficou surpreso e contente de ver os dois numetodos; após a separação, Sergei temeu que eles tivessem sido capturados e aprisionados, ou coisa pior. Se a história de Karl e Varina tinha feito o regente sofrer era porque a ideia de Nessântico arruinada era dolorosa demais para imaginar.

Ele também sabia que o hïrzg e a a’hïrzg, no mínimo, também já teriam sido informados da chegada de Karl e Varina; Sergei estava um pouco surpreso por ainda não ter ouvido alguma coisa de um dos dois. E quando o archigos Semini soubesse que o embaixador dos numetodos estava no acampamento... Ele precisava se preparar para isto. Allesandra e Jan eram outro problema; Sergei não sabia exatamente como os dois reagiriam. Ele faria o possível para proteger Karl e Varina, mas...

Sergei falou — Karl, eu lhe prometo isto: quando chegar o momento, ajudarei você com ca’Cellibrecca. O homem é uma praga e um insulto ao robe que a archigos Ana usou. Ambos concordamos com isso. Quando chegar o momento, eu terei prazer em lhe ajudar a tornar a morte dele tão dolorosa quanto você quer. — Sergei quase sorriu ao pensar em Semini instalado na Bastida. Sim, aquilo seria delicioso. Aquilo seria... prazeroso.

Varina arregalou um pouco os olhos com a declaração, mas Karl concordou com a cabeça, com os lábios franzidos. Houve um pigarreio discreto de uma garganta na aba da tenda, um momento depois. — Entre — falou Sergei, e a aba foi aberta para revelar um dos pajens do hïrzg.

— Regente, o hïrzg Jan pede que o senhor leve seus dois convidados... — os olhos do menino se voltaram para Karl e Varina — ... à tenda dele. O hïrzg montou um jantar para os dois e deseja escutar o que eles têm a dizer.

— Diga ao hïrzg que iremos imediatamente — falou Sergei para o pajem, que fez uma mesura e saiu. — Vocês não têm o que temer do hïrzg Jan — disse o regente para os dois. Ele torcia para que fosse verdade. — Eu até gosto do jovem. De certa forma, ele me faz lembrar de mim mesmo...


— O archigos Semini me dirá que os numetodos são hereges e mentirosos, fisicamente perigosos para mim, bem como para minha alma eterna — disse o hïrzg Jan.

— O archigos Semini é um mentiroso e um tolo, além de burro — respondeu Sergei. — Se me perdoa a franqueza, hïrzg.

Jan sorriu. — Sentem-se — falou ele para Karl e Varina ao apontar para a mesa com pão, queijo e uma panela com guisado de carne. Pratos foscos de estanho estavam dispostos diante deles. — Aproveitem os pequenos confortos que temos aqui em campanha, uma vez que não posso oferecer a hospitalidade completa de Firenzcia. — Quando os dois hesitaram, o sorriso de Jan cresceu. — Eu lhes garanto que tenho a mesma opinião do regente no que se refere ao archigos Semini.

Varina conseguiu dar um sorriso; Karl ainda parecia inseguro e perguntou — E qual é a opinião do hïrzg sobre os numetodos?

— Uma das coisas que o regente ca’Rudka me ensinou é que devo julgar as pessoas não pelo que são, mas por quem elas são. Eu ainda não tenho opinião sobre os numetodos; até agora, nunca havia conhecido um. — Jan gesticulou para as cadeiras novamente. — Por favor...

Sergei fez uma mesura. Um momento depois, Karl repetiu o gesto, e os três tomaram seus lugares em frente ao hïrzg. — A a’hïrzg se juntará a nós? — perguntou o regente.

O sorriso de Jan sumiu ao ouvir isto e disse — Não. — Aquela única palavra quase pareceu arrancada à força. Sergei aguardou mais explicações, mas nenhuma veio. O regente perguntou-se sobre o que teria acontecido entre matarh e filho; até agora, ele só tinha visto Allesandra de relance durante um dia e meio. Embora o exército se arrastasse próximo às muralhas de Nessântico em um passo lento enlouquecedor, Allesandra manteve-se em uma carruagem fechada, sem nem o filho, nem o archigos como companhia.

Mas Sergei não pediria uma explicação ao hïrzg. Em vez disso, Jan olhava para Karl e Varina. — Eu gostaria de saber sua história, contada por vocês mesmos — falou ele.

Pela próxima virada da ampulheta, foi isso que Karl e Varina fizeram, com Jan guiando os dois com perguntas ocasionais. Sergei ouviu a maior parte e achou graça quando Karl omitiu algumas partes da história. Jan inclinou-se para a frente quando o numetodo descreveu a areia negra, como foi usada pelos ocidentais no ataque à cidade, e ao saber que havia ingredientes na cidade para fazer mais.

— Você afirma que essa areia negra é a chave do sucesso dos ocidentais? Essa é a mesma magia que nós soubemos que eles usaram nos Hellins?

— Não é magia, hïrzg — falou Karl. — Essa é a parte interessante. É alquimia. Varina tem certa noção, pelo que Talis disse e pelas amostras que eu trouxe do apartamento de Uly, de como preparar a areia negra. Eu vi, todos nós vimos, as coisas terríveis que a areia pode fazer. — Uma sombra sinistra pareceu passar pelo rosto de Karl ao dizer isso, e Sergei sabia que ele se recordava do assassinato de Ana. Era um horror que jamais seria apagado da mente de qualquer um dos dois. — Os ocidentais colocaram fogo na cidade com a areia; eles mataram centenas, talvez milhares. Hïrzg, com essa areia negra, nenhum exército precisa de ténis-guerreiros ou de feitiços. Nenhuma armadura consegue resistir, espadas não podem superá-la, não importa o número.

— E você sabe onde está o estoque dessa areia negra?

Karl assentiu com a cabeça. — Eu sei. Varina também. Nós podemos levar o senhor até lá, hïrzg. Mas os ocidentais também estarão atrás da areia negra. Talis... eu suspeito que Talis já esteja levando os ocidentais até ela. Eles já podem estar com a areia.

— Hïrzg — interrompeu Sergei. — Eu entendo por que o senhor deixou seu exército ocioso aqui. Eu talvez tivesse tomado a mesma decisão no seu lugar; embora meu coração fique partido ao ver a cidade queimar e saber que os ocidentais pisoteiam as ruínas dos lugares que mais amei no mundo. — Ele esfregou o nariz falso, notou que Jan olhou fixamente para o gesto e abaixou a mão. — Mas, se o senhor realmente está disposto a ouvir meu conselho, eu lhe diria que o tempo de esperar acabou. Eu também testemunhei os efeitos dessa areia negra. Se os ocidentais tiverem tempo para criar mais, então seus próprios soldados pagarão o preço pela hesitação. Hïrzg, ouça o que meus amigos estão lhe dizendo. A Garde Civile de Nessântico foi derrotada. Aquela batalha acabou. Temos que atacar agora; não Nessântico, mas aqueles que a derrotaram, antes que venham à Firenzcia.

Sergei achou que o apelo não teria efeito. Jan olhava para o alto, o olhar vasculhava a lona iluminada pelo fogo como se houvesse uma resposta escrita na fumaça. O jovem suspirou uma vez. Então bateu palmas e um pajem entrou.

— Chame o starkkapitän aqui — disse o hïrzg para o menino. — Há preparativos imediatos que eu preciso que ele faça. Corra!

 

Jan ca’Vörl

ELE OUVIU as grandiosas e gloriosas histórias de guerra várias vezes ao longo dos anos: do vavatarh Jan; do vatarh; dos onczios e dos conhecidos mais velhos; e, mais recentemente, de Fynn. Até mesmo da matarh, que contou que o vavatarh a elogiou quando era pequena por seu conhecimento de estratégia militar.

Jan começou a se dar conta de que essas histórias eram inventadas, memórias falsas ou, muitas vezes, mentiras deslavadas.

Até hoje, ele nunca havia entrado a cavalo em uma batalha de verdade. Até hoje, seu conhecimento sobre habilidades marciais fora intelectual e seguro. Mostraram a Jan como cavalgar, manejar uma espada, usar uma lança ou arco e flecha sobre o cavalo, como se proteger de outro chevarittai ou de um soldado de infantaria. Ele participou de lutas com espada de treino, participou de manobras militares. Aprendeu sobre a arte da guerra: quais táticas usar contra um inimigo que estivesse em um terreno superior ou inferior, ou que possuísse mais soldados ou menos, ou mais ténis-guerreiros ou menos. Jan sabia que formação teoricamente era melhor contra outra.

Era o que qualquer jovem rapaz de seu status teria aprendido.

A guerra, na mente de Jan, era um exercício muito gracioso e preciso. Ele sabia — intelectualmente — que era impossível que fosse tão linear e eficiente. Jan entendia.

Mas... ele não sabia que a guerra podia ser tão desordenada assim. Tão caótica. Tão real.

Ninguém no exército firenzciano achava que Jan — assim como Fynn, assim como seu homônimo, o velho hïrzg Jan — seria o verdadeiro general nesse importante ataque. Eles sabiam que a estratégia era do starkkapitän ca’Damont, com a ajuda do regente ca’Rudka e a contribuição dos dois numetodos que vieram da cidade em chamas para o acampamento. Sabiam que seria o archigos Semini que comandaria os ténis-guerreiros.

Jan estaria lá, e a bandeira de comando tremularia entre a Garde Hïrzg e os chevarittai à sua volta, e ele avançaria logo atrás da vanguarda de suas forças como Fynn e o antigo hïrzg Jan fizeram antes dele. Mas Jan consultaria o starkkapitän antes de dar ordens. Ele sabia que era uma atitude inteligente; sabia que o resto dos offiziers e chevarittai também tinha noção disso. Francamente, Jan estava tranquilo em relação a consultar o starkkapitän; ele conhecia a própria inexperiência e não era tão arrogante a ponto de insistir em estragar o ataque.

A entrada em Nessântico começou bem o suficiente. Como uma espada curva, as forças firenzcianas avançaram pela cidade através de todos os portões do lado leste. Não houve resistência; pelo contrário, o surgimento dos soldados foi recebido por gritos de alegria pela população e pelos remanescentes da Garde Civile de Nessântico espalhados. Alguns chevarittai dos Domínios até saíram de mansinho dos esconderijos para engrossar as fileiras de Firenzcia. Após uma virada da ampulheta dentro das muralhas da cidade, Jan começou a torcer para que a situação continuasse assim: marchando sem resistência até a fronteira oeste da cidade e encontrando as forças ocidentais em plena retirada.

Sob o calor do dia, ele suava debaixo da armadura, e o que mais queria era arrancar o fardo pesado dos anéis de aço. Aquilo parecia ser o pior desconforto da vitória.

— Qual o caminho, embaixador? — perguntou Jan para Karl, que cavalgava com seu séquito ao lado de sua matarh, Varina e Sergei.

— Ao norte, por algumas transversais — respondeu o numetodo, que apontava —, depois vários quarteirões para o leste.

Jan concordou com a cabeça. O exército firenzciano ganhou volume pela Avi. O sol brilhava intensamente. Era um belo dia. Eles já tinham vencido, e o hïrzg sentiu-se confiante a ponto de dar uma ordem por si próprio. — Starkkapitän — disse Jan para ca’Damont —, eu levarei metade da Garde Hïrzg comigo, bem como o regente e os numetodos. Deixo você no comando do exército. Faça o que for necessário para defender esta parte da Avi e a cidade. Depois você e a a’hïrzg prosseguirão para o sul, para a Ilha A’Kralji, e cuide para que controlemos a ilha e as Ponticas orientais. Se houver algum problema, mande um mensageiro até mim imediatamente. Da minha parte, eu mandarei um mensageiro assim que nós localizarmos a areia negra e soubermos como está a situação por lá.

— Jan. Hïrzg. — Allesandra franziu a testa, enquanto ca’Damont parecia incomodado. — Eu não acho...

— Eu dei minhas ordens — disparou Jan e interrompeu sua matarh. — Starkkapitän? Tem algum problema com elas?

Ca’Damont meneou a cabeça negativamente. Ele vociferou ordens rápidas.

— Eu me encontro depois com a senhora, matarh — disse Jan. — Na Ilha.

Allesandra não pareceu convencida. O hïrzg pensou que ela fosse protestar mais, mas a matarh só olhou feio para ele. Jan viu Allesandra dar uma única olhadela para Sergei; o regente deu levemente de ombros sob a armadura. O nariz lançou fagulhas de sol sobre o rosto.

A matarh finalmente inclinou a cabeça e disse — Como quiser, meu hïrzg. — “Meu hïrzg”, não “meu filho”. Jan notou a irritação na expressão. Ela puxou as rédeas com força e começou a caminhar para o sul. Um quarteto da Garde Hïrzg e um téni-guerreiro cercaram a a’hïrzg com atraso.

O starkkapitän prestou continência e falou — Que Cénzi oriente o senhor, meu hïrzg. Eu cuidarei para que a a’hïrzg permaneça a salvo. — Ca’Damont começou a ir embora, mas puxou as rédeas, e disse — Fynn fez uma excelente escolha no senhor. Tome cuidado, hïrzg Jan.

O starkkapitän ca’Damont prestou continência novamente e foi embora, com a maior parte do séquito com ele. Jan olhou em volta para os demais e falou — Vamos encontrar essa areia negra. Embaixador ca’Vliomani, você vai à frente.

Karl levou o esquadrão de Jan ao norte pela Avi, e os soldados pelos quais eles passaram prestaram continência ao hïrzg e a seu estandarte, depois o grupo virou à esquerda em uma rua mais estreita e deixou o exército para trás. O tilintar das armaduras e o baque frio do aço nos cascos dos cavalos eram o barulho mais alto na rua. Não havia mais rostos nas janelas, mais ninguém visível adiante, no caminho curvo. Algumas portas dos prédios pelos quais o esquadrão passou estavam abertas; muitas à força. Havia lixo acumulado na avenida. Eles passaram por vários corpos: gente morta há alguns dias, pela aparência, cadáveres inchados com pernas e braços rígidos, em ângulos estranhos, cheios de vermes e moscas. Jan olhou fixamente para os mortos ao passarem; ele notou que Sergei fez o mesmo, com uma intensidade estranha.

Há pouco tempo, esses corpos tinham sido pessoas vivas, que talvez corressem para os amantes, acompanhassem os filhos, comprassem comida nos mercados ou bebessem nas tavernas, levassem suas vidas em frente. Ele duvidava que essas pessoas esperassem que a vida fosse acabar tão rapidamente e de modo tão definitivo. Duvidava que elas esperassem que fossem virar monumentos acidentais e temporários da guerra.

Jan fungou, incapaz de manter o fedor longe do nariz — ele perguntou-se se Sergei realmente podia sentir o cheiro. O hïrzg segurou firme na espada e enroscou as rédeas com mais força na mão esquerda.

Ao sul, eles ouviram um estrondo repentino como trovão e gritos baixos. Sergei, ao lado de Jan, olhou naquela direção com preocupação, e disse — Eu acho, hïrzg, que a batalha começou. Talvez devêssemos retornar.

Jan balançou a cabeça. — Embaixador, a que distância estamos do lugar? — perguntou.

— Mais dois cruzamentos — respondeu ca’Vliomani. — Não mais do que isso.

— Então nós prosseguiremos.

Sergei franziu os lábios, mas não teve outra reação.

Eles continuaram até chegar a outra viela, ainda menor, onde Karl parou e ficou em pé na sela. Ao olhar a rua estreita, Jan viu uma placa antiga e surrada pendurada em um prédio à direita: havia um cisne mal desenhado em tinta vermelha nas tábuas.

— Ali. — Ca’Vliomani chamou Jan e os demais. — Nós deveríamos...

Ele não foi adiante.

Da esquerda, da direita, várias dezenas de guerreiros pintados vieram para cima deles aos berros. Os próximos grãos da ampulheta viraram um caos de que Jan se lembraria pelo resto da vida.

... um clarão súbito de uma luz ofuscante surgiu à frente do grupo, depois mais um, e Jan percebeu que Karl e Varina lançavam feitiços. Ele ouviu gritos...

... o chevarittai à direita de Jan foi arrancado da sela com o pulo de um ocidental, e o cavalo do homem chocou-se com força na perna do hïrzg. A perna direita ficou presa entre os dois animais, e ele gritou pela pontada de dor, apesar da proteção das grevas. Jan puxou as rédeas do cavalo...

... mas houve mais movimento à direita e por trás no exato momento em que ele fez isso. Jan viu o aço e colocou sua espada diante do corpo da montaria quase tarde demais — mas o suficiente para que o golpe que teria acertado acima das presilhas de seu coxote fosse desviado, mas a lâmina do ocidental cortou fundo a pata traseira de seu cavalo de guerra. O animal relinchou de dor e terror. Jan viu o cavalo arregalar os olhos, sentiu a perna da montaria ceder, ele estava caindo...

... — Ao hïrzg! — Jan ouviu alguém gritar. Ele estava no chão com uma confusão de pernas, tanto equinas quanto humanas, em volta. O hïrzg ficou de pé rapidamente (a perna direita enviou uma pontada de dor espinha acima por causa do abuso). Um ocidental vinha para cima dele, e Jan conseguiu encontrar o cabo da espada, levantar o aço pesado e estocar debaixo do peitoral da estranha armadura do homem. Ele sentiu a lâmina entrar na carne. Ela ficou brevemente presa, Jan a torceu e empurrou, gemeu e sentiu a boca se esgarçar em um ricto de fúria, a espada entrou subitamente. O ocidental, empalado, ainda completou o ataque, mas as braceleiras em volta dos antebraços do hïrzg aguentaram o impacto, embora ele achasse que o braço direito pudesse ter quebrado com o golpe. Jan tentou arrancar a espada do homem, mas não conseguiu, e o peso morto do ocidental quase tirou a arma de sua mão, que ficou inerte e dormente...

... Outro ocidental berrou à sua esquerda, Jan puxou a espada desesperadamente outra vez, embora soubesse que seria tarde demais. Mas outra espada — firenzciana — cortou a garganta do homem e quase decepou sua cabeça. O hïrzg ficou coberto por sangue quente...

... E mãos levantaram Jan. — O senhor está bem, meu hïrzg? — perguntou alguém, e ele concordou com a cabeça. A mão direita formigava, mas parecia ter voltado à vida. Jan fechou os dedos, exercitou-os dentro da manopla, abaixou a mão e soltou a espada com um puxão. Ele virou-se...

... e viu um trio de ocidentais reunidos como escudos em volta de outro guerreiro pintado, este com um pássaro tatuado no crânio raspado e no rosto. Sergei estava ao seu lado, sua espada subia e descia, mas o soldado firenzciano ao lado do regente caiu com a mão decepada no pulso. Jan correu para a brecha, sem pensar em nada a não ser reagir...

... e, de alguma forma, ele passou pelos guardas e ficou em frente ao guerreiro com a marca do pássaro. A armadura do ocidental desviou o primeiro corte de Jan, e o pomo duro de bronze da espada do homem bateu no queixo do hïrzg sob o elmo. Ele cambaleou para trás, com gosto de sangue na boca...

... ao ver o guerreiro-pássaro amparar o ataque da espada de Sergei...

... ele investiu novamente contra o homem, rosnou e contorceu o rosto, e o ocidental não foi capaz de se defender de ambos ao mesmo tempo. Foi a espada de Jan que penetrou, que encontrou a brecha entre os tubos roliços da armadura do homem e entrou no corpo. O ocidental perdeu o fôlego como se estivesse surpreso. O hïrzg ouviu uma voz chamar um nome estranho, “tecuhtli”, quando o homem caiu de joelhos. A espada de Sergei acompanhou a arma de Jan e acertou o sujeito no pescoço e na cabeça. O guerreiro-pássaro desmoronou sobre os paralelepípedos ensanguentados, de cara no chão...

... e tudo acabou, a não ser pelo estrondo da pulsação nos ouvidos.

Jan percebeu que sua respiração estava acelerada, que o coração batia tão furiosamente que ameaçava irromper pelas costelas, que a perna e os braços doíam, que estava completamente coberto por sangue, e que, pelo menos em parte, o sangue era seu. Ele estava curvado e ofegante, com as pernas bem afastadas. Jan sentiu um embrulho no estômago e engoliu em seco para conter a bile ardente, para se forçar a não vomitar. Sentiu a mão de Sergei dar um tapinha em seu ombro sobre a armadura. Ele pestanejou e olhou em volta: havia pelo menos uma dúzia de corpos no chão, alguns com o uniforme preto e prateado de Firenzcia. Uns poucos ainda se debatiam; enquanto o hïrzg observava, os homens da Garde Civile despachavam os ocidentais que ainda estavam vivos. Havia córregos de sangue que fluíam dos corpos e entranhas espalhadas na rua como salsichas obscenas.

Karl e Varina estavam incólumes — os corpos mais próximos aos dois estavam carbonizados e escurecidos; havia um cheiro de carne cozida no ar. O nariz falso de Sergei tinha sumido completamente e a bochecha esquerda estava aberta por um corte; onde ficava o nariz, a pele era sarapintada e as cavidades da cabeça de Sergei estavam escancaradas, o que deixava o rosto com a aparência horripilante de um crânio. Jan foi novamente tomado pela náusea, e dessa vez o mundo pareceu girar um pouco à sua volta. Ele colocou a ponta da espada no chão e apoiou-se pesadamente sobre a arma.

— Tecuhtli! — O hïrzg ouviu o chamado novamente, agora um homem saia do prédio onde estava pendurada a placa do cisne vermelho, não mais do que a uma dezena de passos de onde Jan e os demais estavam. Ele segurava um frasco de vidro na mão direita, cheio de grânulos escuros; na mão esquerda havia uma bengala retorcida. O sujeito parou, como se estivesse assustado pela imagem de carnificina à frente.

— Talis... — Jan ouviu Karl murmurar o nome: uma surpresa, uma maldição, um feitiço. — Areia negra...

O homem fechou a cara, ergueu o frasco com a mão direita e jogou o braço para trás como se fosse lançar o objeto. Jan imaginou como seria morrer e se encontraria o vavatarh Jan e Fynn na morte.

Uma mulher saiu correndo do beco atrás da taverna, um borrão marrom e cinza, tão depressa que ninguém teve tempo de reagir. Assim que Talis levantou a mão, ela agarrou o cabelo do homem e puxou a cabeça para trás. A boca do homem ficou tão escancarada quanto a de um peixe no mercado, e o tom vermelho seguiu o prateado quando a mulher passou uma faca pela garganta de Talis. Uma segunda boca ficou ainda mais escancarada do que a primeira e vomitou sangue. O frasco de vidro caiu da mão do sujeito e quebrou no chão, sem explodir. Ela debruçou-se sobre o corpo — parecia colocar alguma coisa às pressas no olho de Talis —, Jan deu uma boa olhada no rosto da mulher, entre o cabelo emaranhado.

O coração saltou no peito. Ele ficou boquiaberto e murmurou — Elissa?

A jovem ergueu a cabeça e arregalou os olhos ao vê-lo, e embora ela não tenha dito nada, Jan ouviu a mulher respirar fundo. Ela arrancou algo do rosto de Talis; o hïrzg vislumbrou uma pedra branca entre os dedos. A jovem correu para o beco de onde veio. Um dos soldados começou a correr em perseguição.

— Não! — berrou Jan para o homem. — Deixe-a ir!

O soldado parou. Jan ouviu os sussurros ao redor: — A Pedra Branca...

A Pedra Branca...

Não, o hïrzg queria dizer para todos, não era verdade, porque aquela pessoa era Elissa, que Jan amava. Não era verdade porque a Pedra Branca assassinou Fynn, que ele também amava. Não era verdade.

E, de alguma forma impossível, era verdade.

Era verdade.

 

Niente

O NAVIO ESTAVA LOTADO de gente fugindo da cidade, e de pessoas dos outros navios agora emborcados e meio submersos no rio. O convés estava escorregadio com água, sangue e vômito. A água em volta estava cheia de corpos rígidos e inchados — tanto de orientais quanto de tehuantinos. Havia guerreiros e nahualli feridos espalhados por toda parte do convés, gemendo sob a luz do sol que sumia; os tripulantes que ainda eram capazes subiam nos mastros para soltar as velas e apertar os cabos. A âncora, que gemia e protestava, foi içada no lodo do fundo do rio, e o capitão do navio berrava ordens. Devagar, muito devagar na opinião de Niente, a cidade começou a ficar para trás conforme eles eram levados embora pela corrente do rio e pelo vento.

Niente observava da popa do navio de guerra, à direita de Citlali. O corpo do guerreiro supremo, decorado com os traços rubro-negros de cortes cicatrizados feitos por espadas, apoiava-se pesadamente no cabo quebrado de uma lança enquanto ele olhava com raiva para a cidade.

— Você estava certo, nahual — disse Citlali. — Você viu corretamente a visão de Axat.

Niente concordou com a cabeça. Ele ainda estava admirado por estar aqui, por estar vivo, por ter sido poupado, de alguma maneira impossível, por Axat. O nahual poderia ver a terra natal novamente, se as tempestades do Mar Interior permitissem. Teria a esposa nos braços outra vez; abraçaria os filhos e os veria brincar. Niente respirou fundo e estremeceu.

— Eu não fui poderoso o suficiente — falou ele. — Não fui o nahual que deveria ter sido. Se tivesse sido mais firme ao falar com Zolin, se tivesse visto as visões com mais clareza...

— Se tivesse feito isso, nada significativo teria mudado — respondeu Citlali. — Zolin não teria lhe dado ouvidos, nahual, não importa o que você dissesse. Zolin só ouvia os deuses clamarem por vingança. Ele não teria lhe dado ouvidos. Você teria sido afastado como nahual e teria morrido aqui também.

— Então foi tudo um desperdício.

Citlali deu uma risada seca e sem graça. — Um desperdício? Longe disso. Você não tem imaginação, nahual Niente, e não é um guerreiro. Um desperdício? Nenhuma morte em combate é um desperdício. Olhe para a grande cidade dos orientais. — O guerreiro supremo apontou para leste, onde o sol reluzia dourado sobre as torres quebradas e atravessava a fumaça dos incêndios que restavam. — Nós tomamos a cidade deles. Tomamos o coração dos orientais. — Ele estendeu a mão com a palma para cima, como se pegasse alguma coisa. Os dedos fecharam-se lentamente. — Você acha que algum dia eles se esquecerão disso, nahual? Não. Eles tremerão à noite e ficarão aterrorizados diante de um som repentino, pensarão que somos nós de volta. Eles se lembrarão disso de geração em geração. Jamais se sentirão seguros novamente; e eles terão razão.

Citlali cuspiu sobre a amurada para o rio. Havia sangue no cuspe. — Nós pegamos o coração dos orientais e ficaremos com ele. Eu faço essa promessa para Sakal aqui, e você é minha testemunha; que o olho Dele veja minhas palavras e registre. Nós ficaremos com o que tiramos dos orientais. Um tecuhtli estará de novo onde Zolin caiu.

Citlali deu um tapa nas costas de Niente com tanta força que ele cambaleou. — O que você acha disso, nahual?

Niente olhou fixamente para a cidade, que desaparecia no rastro do navio, e falou — Eu olharei na tigela premonitória hoje à noite, tecuhtli Citlali, e direi o que Axat diz.

 

A Pedra Branca

A NOVA VOZ na cabeça da Pedra Branca gritava, lamentava e se revoltava, falava metade na língua de Nessântico e metade em um idioma que ela não entendia de maneira alguma. As outras vozes riam e vibravam.

— Jan, o seu amante... Que visão agradável ele tem de você agora!

— Você acha que ele se casaria com a assassina suja que viu?

— Ele dormiu com uma assassina e agora ela carrega seu filho no ventre.

— Ele vislumbrou a verdade. Espero que você sempre se lembre do horror no rosto de Jan ao ser reconhecida.

Aquela última voz era de Fynn, satisfeito e presunçoso. — Calem-se! — gritou a Pedra Branca para as vozes, mas elas só riram ainda mais alto e abafaram o que ela ouvia com os próprios ouvidos.

Ela havia seguido Talis e o líder ocidental desde a Ilha até o Cisne Vermelho, após verificar que Nico parecia a salvo. Ela estava furiosa, com raiva de Talis — que rompera sua promessa com a Pedra Branca. Os numetodos... eles podiam ser hereges nojentos, mas trataram Nico com gentileza e respeito, especialmente a mulher.

Mas Talis...

Talis traiu Nico, e por causa disso a matarh do menino estava à beira da morte, e a Pedra Branca dissera para Talis qual seria o preço. Dissera e cobraria o pagamento. A Pedra Branca sempre cumpria sua palavra.

Ela seguiu Talis então, quando — do nada — sons de batalha irromperam ao leste e a Pedra Branca viu o líder ocidental agrupar seus homens para emboscar os chevarittai e os soldados firenzcianos. De repente, havia muita luta acontecendo, muito movimento para ela agir. A Pedra Branca ficou preocupada naquele momento, se perguntando se Nico estava realmente a salvo, quis desesperadamente correr até o menino, com medo de que Talis pudesse ter cometido um erro. Mas ela o viu sair de mansinho do quarto onde havia entrado e depois correr para a rua. A Pedra Branca seguiu Talis. Ela assistiu ao confronto e viu a chance. Passou a faca na garganta dele e sentiu Talis morrer ao deixar cair o frasco com o pó negro. E ao deitá-lo no chão e colocar a pedra no olho do homem, a Pedra Branca o viu de relance.

Jan.

O choque foi palpável. Ela sentiu com tanta intensidade como se o coração tivesse sido posto diretamente sobre uma camada escondida de brasas incandescentes. Jan: ele ficou parado ali, e ela testemunhou o lento reconhecimento de seu rosto. A expressão de Jan a assustou. Era permeada de choque e carinho, de saudade e horror. Vê-lo foi horrível e maravilhoso ao mesmo tempo. Ela quis correr até Jan, quis pegar sua mão e colocar na barriga inchada e sussurrar: aqui, querido. Esta é a vida que criamos juntos. Isso é o que o nosso amor fez. Ela também quis correr, esconder o rosto e fingir que essa revelação nunca aconteceu.

O segundo impulso foi mais forte.

Ela pegou a pedra branca do olho de Talis e fugiu, com vontade de que Jan a seguisse e com medo de que ele realmente fizesse isso.

A Pedra Branca não parou até chegar à Pontica Kralji. Ali não havia homens estranhos da cor de bronze; nenhum que estivesse vivo, de qualquer forma, embora o chão estivesse cheio de corpos ocidentais. Ela viu soldados usando os tons preto e prateado de Firenzcia por toda parte nas ruas — o que fez Fynn se manifestar com empolgação dentro de sua cabeça —, cruzou a Pontica cuidadosamente e escondeu-se depressa na Ilha. Isso foi fácil; havia tantas paredes desmoronadas, tantos prédios queimados. Ela foi até a cabana do jardineiro no terreno do palácio para onde Nico e sua matarh tinham sido levados, onde o curandeiro ocidental trabalhou no corpo ferido de Serafina.

O curandeiro e todos os soldados ocidentais tinham ido embora, mas os medos da Pedra Branca passaram quando viu que Nico ainda estava ali, segurando a mão da matarh, ajoelhado ao lado da mesa onde ela estava deitada — devia ter sido uma das mesas de jantar do palácio antigamente, ainda coberta por damascos rendados e elegantes, agora sujos e manchados de sangue. Ela notou o movimento da respiração lenta no peito de Serafina, mas os olhos continuavam fechados e ela parecia sem reação.

— Nico — falou a Pedra Branca. O menino levou um susto e apertou com mais força a mão da matarh.

— Ah — disse ele um momento depois. O rosto ficou um pouquinho alegre. Nico fungou e passou a mão pelo nariz. — Elle. É você.

A Pedra Branca confirmou com um aceno e foi até o menino. Ela segurou com as mãos de Nico e a de Serafina. Viu que ele olhava fixamente para o sangue que manchava a pele da matarh. — Precisamos ir embora, Nico.

— Eu não posso abandonar a matarh. Talis voltará em breve.

A Pedra Branca fez que não com a cabeça. Ela apertou com força a mão dele. A pele era quente, tão quente, e ela sentiu a criança dentro dela dar um pulo com o toque; o movimento da vida, o despertar. Ela levou um ligeiro susto com a sensação. — Não. Infelizmente, Talis está morto, Nico.

Ela percebeu as lágrimas surgirem nos olhos do menino e o lábio inferior tremer. Depois ele fungou de novo e piscou. — Isso é verdade?

Ela concordou com a cabeça. — É verdade, Nico. Sinto muitíssimo.

O menino chorava plenamente agora, as palavras saíram entre os soluços. — Mas minha matarh... Eu não posso... Eles acabaram de abandoná-la... Ela está dormindo e eu... não consigo acordá-la...

— Sua matarh gostaria que você fosse comigo. Olhe para ela, Nico. Sua matarh ama muito você, eu tenho certeza que sim, mas não sei se ela acordará um dia, e a cidade está cheia de soldados e morte. Ela gostaria que você fosse comigo porque posso mantê-lo a salvo. Eu manterei você a salvo.

— Mas eu fiz isso com ela — disse Nico. — A culpa é minha. Quero que ela saiba que eu sinto muito.

A Pedra Branca apertou a mão de Nico em volta da mão da matarh. — Ela sabe. Nico, temos que correr.

Ela tirou a mão do menino de Serafina, abriu os dedos com delicadeza. Ele soltou a matarh com hesitação, mas sem reclamar. — Agora dê um beijo — falou a Pedra Branca. — Ela sentirá e saberá.

Nico ficou de pé, inclinou-se sobre o corpo da matarh e deu um beijo na bochecha. Ela colocou a mão de Serafina, que pendia para o lado, sobre a mesa e deu um tapinha. Nico olhou para trás, então, com os olhos cheios de lágrimas, que não caíam.

— É o momento — disse a Pedra Branca.

Juntos, de mãos dadas, eles foram embora da cidade em chamas e ruínas.

 

Allesandra ca’Vörl

— AQUI ESTÁ A SENHORA, MATARH. Ele é todo seu. Espero que fique feliz.

As palavras de Jan saíram como um banho de água escaldante. Elas queimaram e cauterizaram Allesandra, foram ditas com frieza e desdém espantosos e cruéis. O hïrzg fez um gesto grandioso e debochado na direção do Trono do Sol. Ela olhou fixamente para a enorme peça de cristal entalhado, que estava estranhamente fora do lugar, no meio das ruínas do Velho Templo. O trono foi rachado e mal reformado; estava coberto por um pano com estranhos desenhos geométricos, as ruínas do domo rachado e da claraboia estavam espalhadas sobre o piso quebrado de cerâmica, e por toda parte no salão havia os restos de um banquete qualquer. Ratos espreitavam os cantos do cômodo, e o ar fedia à fumaça e à carne podre. Perto dos fundos havia um corpo, coberto às pressas por uma tapeçaria.

Allesandra sabia de quem era o cadáver encoberto: de Sigourney, cuja cabeça separada do corpo estava enfiada em uma lança perto do trono.

O regente e os dois numetodos estavam recortados pela luz do sol nas portas abertas do templo, longe demais para ouvir a conversa de Jan com ela. O starkkapitän ca’Damont dava ordens na praça do templo e despachava patrulhas para garantir que todas as tropas ocidentais estivessem fora da cidade e para impedir que os sobreviventes saqueassem.

Allesandra ouviu o arrastar de passos nas portas do templo; ao olhar para trás, viu o archigos Semini pisar com cuidado sobre os destroços no chão. Jan também viu o homem e disse — Ah, archigos Semini. Estou contente que esteja aqui, uma vez que isso também é seu. Eu lhe dou Nessântico. Você não ficará mais em Brezno.

— Meu hïrzg? — perguntou Semini ao olhar com preocupação de Allesandra para Jan. — Eu pensei que o archigos talvez pudesse ficar em Brezno agora, dada a destruição daqui. Eu poderia designar um a’téni para Nessântico...

— Ah, eu concordo — falou Jan, e o sorriso provocou um arrepio em Allesandra. Era o sorriso sério e indiferente que o vatarh de Allesandra usava quando estava furioso. Ela o tinha visto muitas vezes na infância e na idade adulta, quando ele finalmente a trouxera de volta para Firenzcia. Agora, a expressão de desdém e deboche voltaram. Fuligem e sangue sujavam o rosto de Jan, e o braço e a perna direitos estavam bem enfaixados. Ele mancava e não parecia capaz de erguer o braço da espada. Allesandra perguntou-se o que o filho tinha visto, o que sentia. Ela queria envolvê-lo nos braços e confortá-lo como fazia quando Jan era criança, mas o hïrzg estava a um cauteloso passo de distância, como se temesse exatamente isso. — Veja bem, haverá um archigos em Brezno. Quanto a ter um archigos em Nessântico, bem... — Jan deu de ombros friamente. — A escolha é sua. Você pode querer reivindicar o título e mantê-lo por um tempo, embora você sempre tenha dito que queria uma fé concénziana reunificada. Ou talvez o archigos em Brezno deixe você ser o a’téni aqui em Nessântico, apesar de eu aconselhar o archigos contra isso.

— Hïrzg? — balbuciou ca’Cellibrecca. O rosto ficou no tom de branco dos fios que salpicavam a barba e o cabelo escuros; o contraste foi forte. — Eu não entendo.

— Talvez a matarh explique para você, uma vez que agora esta cidade é dela — disse Jan.

Allesandra olhou fixamente para o trono. Ela sentia-se morta, entorpecida. Se alguém a cortasse, pensou, ela não sentiria nada, nem mesmo o calor do sangue na pele. — Meu filho me deu Nessântico, mas me informou que Firenzcia não se reunificará com os Domínios — falou Allesandra para Semini com uma voz tão morta quanto as emoções.

— Considere isso como meu presente de casamento, matarh — falou Jan. — Pelo casamento que eu nunca tive, com a mulher que a senhora mandou para longe de mim.

— Eu estava protegendo você, Jan — disse Allesandra, embora não houvesse energia na reclamação. — Elissa era uma fraude. Uma impostora.

— Eu sei. Ela foi contratada para matar Fynn.

— O quê? — Isso fez com que Allesandra erguesse a cabeça e provocou uma breve onda de fúria. Ela virou-se para encará-lo. — O que você está dizendo? A Pedra Branca matou Fynn.

— Matou, sim — falou Jan com o mesmo sorriso irritante. — Deixe-me dizer uma coisa que a senhora talvez não saiba, matarh, embora devesse saber: Elissa era a Pedra Branca. Ela me usou para se aproximar de Fynn.

— Isso não é possível — disse Allesandra. Não podia ser; não era possível. A voz que ela ouviu, a mulher intermediária; não, não era possível, e, no entanto... Allesandra lembrou-se da voz, mais aguda do que seria esperado de um homem. E ela nunca tinha visto a Pedra Branca. Apenas presumiu...

— Acredite no que quiser — dizia Jan. — Eu realmente não me importo. — Ele gesticulou novamente para o trono. — Tome seu novo lugar, matarh. Não se acanhe. A senhora esperou por tanto tempo, afinal, e o regente ca’Rudka renunciou a qualquer pretensão ao título. A senhora pode mandar Semini abençoá-la. Talvez os ca’ e co’ voltem à cidade agora, para que a senhora possa lhes dizer que há uma nova kraljica.

Jan começou a se afastar, na direção das portas abertas. Ela deu um passo e pegou o braço ferido. — Jan. Filho...

Ele soltou o braço, fez uma careta ao sentir a dor evidente, e aquilo foi uma agonia maior para Allesandra do que qualquer golpe de espada. — Sente-se, matarh. Assuma seu Trono do Sol. A senhora possui o que sempre quis. Aproveite o presente que eu lhe dei.

Dito isso, ele caminhou na direção de ca’Rudka e dos demais. Allesandra observou o filho sair, sentiu vontade de chamá-lo, de impedi-lo de ir embora, de parar o sofrimento.

Ela não fez nada. Observou Jan chegar à passagem iluminada, ouviu sua risada ao dar um tapinha nas costas de ca’Rudka com a mão que não estava machucada. Os quatro foram embora e a luz do sol desabou sobre deles.

Semini olhava para o céu, onde o domo de Brunelli esteve, e respirava alto pelo nariz. Allesandra andou lentamente até o Trono do Sol.

Ela sentou-se.

Nas profundezas do cristal espesso, não havia luz. Nenhuma reação. O trono permaneceu melancolicamente escuro.

1. Dupla mão é um termo de cavalaria para o oficial que tanto pode comandar um esquadrão quanto um batalhão. Também é o caso do soldado que luta com um mosquete e um sabre ao mesmo tempo, que não é aplicável aqui. (N. do T.)


Epílogo: Nessântico

ELA ESTAVA ARRASADA. Ela estava arruinada.

Ela foi devastada pelo fogo e pela magia; foi cortada pelo aço. Foi saqueada e pilhada. Os maiores tesouros danificados ou perdidos. Os prédios que foram sua coroa eram ruínas desmoronadas e pilhas de pedras escurecidas. O colar de joias da Avi a’Parete não reluzia mais à noite. Agora só havia as estrelas no céu, que brilhavam e debochavam da própria escuridão da cidade.

Metade da população estava morta ou havia fugido. Ela sentiu, pela primeira vez em muitos séculos, a marcha de soldados conquistadores em suas ruas: não sentiu uma vez, mas duas. Havia uma kraljica no Trono do Sol, mas ela olhava para um império que murchou e encolheu.

Não havia como negar a magreza da face refletida no espelho sujo do A’Sele: o rosto da cidade era o rosto de uma velha, um rosto encarquilhado, um rosto com cicatrizes, feridas abertas e dor. Não havia beleza ali, nenhuma glória, nenhum deslumbramento.

Tudo isso foi embora, como se nunca tivesse existido.

Quando vieram as chuvas, como era frequente naquele outono, foi como se o mundo inteiro chorasse por ela: a cidade, a mulher. As tempestades podiam lavar a fuligem e extinguir as chamas, mas não podiam curar. Elas podiam refrescar e aplacar, mas não podiam restaurar. Levaram embora os corpos, o lixo e a terra que entupia o rio, mas os trovões não conseguiam destruir as memórias.

As memórias permaneceriam.

Permaneceriam por muito, muito tempo...

Karl ca’Vliomani

ULY NÃO ESTAVA NO MERCADO DO VELHO DISTRITO, embora tivesse estado. As pessoas lembravam-se do estrangeiro tatuado e com cicatrizes, mas disseram para Karl que o homem empacotou as mercadorias e limpou a barraca há apenas dois dias, no mesmo dia em que o kraljiki Audric tinha sido assassinado. Não, nenhum dos proprietários das barracas próximas sabia onde Uly tinha ido, mas (disseram) havia algumas pessoas, que andaram comprando sua poção especial de fertilidade, que poderiam saber.

Karl esperava confrontar esse Uly e arrancar a verdade sobre o que aconteceu com Ana imediatamente. Um novo fogo ardia em seu estômago, mas o alívio e o desfecho não foram imediatos.

Eles levaram dias.

Dias que prejudicaram a recente intimidade que Karl tinha com Varina. O fantasma de Ana pairava entre os dois, ressuscitado pela presença de Talis e sua história, e Varina recuou diante do espectro que Karl não conseguia atravessar. Ela ainda pegava na mão de Karl ou passava os dedos no rosto dele, mas agora havia tristeza no toque, como se Varina fizesse carinho em uma memória. Karl beijava Varina, mas, embora os lábios dela fossem macios e quentes e ele quisesse ceder, o beijo era muito efêmero e distante, como se Karl beijasse Varina através de um véu invisível.

Dias em que ele considerava se devia chamar os numetodos de volta para a cidade e em que decidiu que ainda era perigoso demais. Mika, torcia Karl, estava com a família em Sforzia; deixe que fique lá, deixe que o resto dos numetodos dispersados permaneçam escondidos. Deixe que a Casa dos Numetodos continue vazia e às escuras.

Dias em que as notícias pareciam ficar cada vez piores: os ferimentos terríveis da kraljica Sigourney, a invasão e o saque à Karnor, um exército oriental no solo de Nessântico e seus navios nas águas do A’Sele, a convocação da Garde Civile, os “esquadrões de recrutamento” que alistavam homens, muitas vezes (de acordo com os rumores) querendo ou não servir. Karl era velho o bastante para não atrair muito interesse, mas Talis, não. Ele ficava cada vez mais confinado em casa e tinha que tomar cuidado quando se arriscava a sair para evitar os esquadrões. Karl tinha as próprias dificuldades — seu rosto certamente era conhecido por muitos gardai da Garde Civile, da Garde Kralji e entre os ténis, e ele tinha que tomar cuidado e se disfarçar antes de sair, mudar o sotaque característico de Paeti e não deixar ninguém olhar com muita atenção para o seu rosto.

Esses foram dias em que Karl descobriu, a contragosto, que Talis era mais a pessoa que Serafina dizia que era do que a pessoa que Karl queria que ele fosse. O embaixador ainda não confiava completamente no homem, e dormiu muito pouco desde aquela primeira noite, pois Talis, Serafina e Nico dormiam, juntos, no mesmo quarto que ele e Varina. Karl ficou de olho em Talis, especialmente na manhã seguinte, quando ele limpou a tigela de latão na qual eles acenderam a areia negra e — como Karl lembrou-se que Mahri fazia — encheu com água limpa e polvilhou com outro pó, mais claro. Talis então abriu o Segundo Mundo com um feitiço, e uma névoa esmeralda encheu a tigela. Uma luz agitada pulsou no rosto do homem enquanto ele entoava e olhava fixamente para as profundezas da tigela.

Na luz verde, Karl viu as rugas finas no rosto do homem, que quase ficavam mais profundas enquanto ele observava. Talis já parecia mais velho do que Serafina disse que ele era; Karl achava que sabia o motivo agora: o método de magia dos ocidentais custava caro para o usuário.

— Mahri costumava dizer que via o futuro aí — falou Karl depois, quando Talis, exausto e andando como um velho, jogou a água na jardineira da janela da sala. — Ele não parecia ser muito bom nisso, se não viu a própria morte.

Talis secou a tigela cuidadosamente com a borda da bashta, sem olhar para Karl. — O que vemos na tigela premonitória não é o futuro, mas sombras de possibilidade. Vemos probabilidades e chances. Axat sugere o que pode acontecer se seguirmos um determinado caminho, mas nunca há uma garantia. — O homem guardou a tigela novamente na bolsa que sempre carregava e deu um sorriso ligeiro para Karl. — Todos nós podemos mudar nosso futuro, se formos fortes e persistentes o suficiente.

Karl torceu o nariz para a afirmação. Talis foi então até Nico, e os dois se engalfinharam, rindo, enquanto Serafina observava com um sorriso, e o amor entre os três ficou palpável. Ele ouviu Varina entrar na sala descalça, com olheiras de sono. Ela também observava, e Karl não foi capaz de decifrar o que viu no rosto de Varina. Ela deve ter sentido o olhar porque se virou para o embaixador, deu um sorriso triste e depois virou o rosto novamente. Varina cruzou os braços sobre o peito e abraçou a si mesma, e não Karl.

Todo dia, Karl ia ao mercado do Velho Distrito, geralmente com Varina, na esperança de encontrar aqueles elusivos clientes de Uly e fazer perguntas. Após vários dias infrutíferos, tornou-se rotina; os dois às vezes levavam Nico junto, após prometerem à Serafina que, caso encontrassem Uly, eles não o confrontariam.

Foram quase duas semanas, quando aconteceu.

— Ah, sim, a mulher que eu falei para você acabou de passar aqui — disse o fazendeiro ao colocar uma caixa de cogumelos no lugar. — Ela usava uma tashta amarela com um dragão bordado na frente. Provavelmente ainda está por aí; ela disse que estava atrás de peixe. — O homem apontou para a esquerda. — Você pode checar na barraca do Ari, logo ali. Ele acabou de trazer umas trutas do Vaghian.

Karl ouviu Varina respirar fundo, viu quando segurou Nico com mais força. Ele acenou com a cabeça, jogou uma folia para o homem e avançou pelas multidões que passeavam lentamente pelas vielas sujas do mercado; quase todos eram mulheres e homens mais velhos. Eles sentiram o cheiro da barraca do pescador antes de vê-la, e Karl vislumbrou uma tashta amarela ali. — Karl? — disse Varina.

— Eu apenas perguntarei a ela. Se a mulher souber onde Uly está, então levaremos Nico para casa primeiro. — Ele deu um tapinha na cabeça do menino. — Não podemos deixar sua matarh chateada conosco, afinal — falou Karl para Nico.

Ele deixou os dois lá e aproximou-se da barraca. A mulher virou-se quando Ari mostrou um peixe com escamas da cor do arco-íris, e Karl viu a cabeça do dragão, de cuja boca saía uma fumaça roxa. O embaixador avançou até estar ao lado dela e disse — Com licença, vajica, mas se puder responder a uma pergunta, eu compro o peixe para a senhora. — Antes que a mulher pudesse responder, Karl contou a história que os dois haviam ensaiado e apontou de vez em quando para Varina e Nico: que ele tinha acabado de casar, que a esposa tinha um filho do antigo marido e agora os dois queriam um filho próprio, mas por serem mais velhos agora, os dois não conseguiam conceber; que ele ouviu falar que havia um estrangeiro chamado Uly, que antigamente tinha uma barraca aqui no mercado onde vendia poções exatamente para aquele problema, e que um dos vendedores mencionou que ela podia saber onde esse tal de Uly estaria. A mulher olhou de Karl para Varina e Nico.

Ela realmente sabia. — Na verdade, acabei de falar com ele. No Cisne Vermelho, no Beco do Sino, pertinho daqui. Ele tinha acabado de pedir uma cerveja, então imagino que ainda esteja lá.

Karl agradeceu à mulher, pagou o pescador pela truta sem pechinchar, e voltou para Varina e Nico. Ele agachou-se em frente ao menino e disse — Varina levará você para casa agora, Nico. — Karl não ousou erguer os olhos para ela, pois podia imaginar os pensamentos refletidos pelo rosto de Varina. — Eu ficarei aqui um pouquinho mais.

Nico concordou com a cabeça, e Karl abraçou o menino. — Vão agora, vocês dois — falou ao se levantar.

— Karl, você prometeu... — disse Varina.

— Eu não farei nada — falou Karl, e perguntou-se se isso era verdade. Ele contou o que a mulher disse. — Eu sei onde ele está neste momento. Só vou segui-lo. Descobrirei onde ele vive. Aí podemos descobrir como abordá-lo.

Karl notou a desconfiança no jeito que Varina mordeu o lábio inferior, no olhar vazio, no lento balançar da cabeça. Ela agarrou Nico com força. — Você promete?

— Prometo.

Com a cabeça inclinada para o lado, Varina encarou Karl e disse, finalmente — Ande, Nico. Vamos.

Karl abaixou-se e abraçou Nico novamente e depois Varina, ao se levantar. Foi como abraçar uma das colunas do Templo do Archigos. Ele ficou observando os dois até desaparecerem na multidão do mercado.

O Beco do Sino era uma viela suja a alguns quarteirões da Avi a’Parete, com apenas alguns passos de largura e apinhada de lojas de propósitos indeterminados, acima delas havia apartamentos esquálidos às escuras. O Cisne Vermelho ficava na esquina onde a viela cruzava uma rua maior, que levava à Avi, e tinha um placa com tinta descascando. Karl entrou e parou para os olhos se ajustarem à penumbra do interior. A única luz lá dentro vinha das nesgas das persianas e das velas que pingavam em um único lustre e em cima de cada mesa. Assim que Karl conseguiu enxergar na luz mortiça, foi fácil encontrar Uly: um homem de pele acobreada, com cicatrizes e tatuagens no rosto e nos braços.

Karl foi ao bar e pediu uma caneca de cerveja ao garçom com cara de poucos amigos, de costas para Uly. O interior ficou subitamente claro quando outra pessoa — uma mulher — entrou no bar, e Karl protegeu os olhos contra a luz.

Ele tinha a intenção de fazer como dissera para Varina: encontrar Uly e seguir o homem até descobrir onde morava. Mas Karl observou o sujeito beber a cerveja, e imagens do corpo de Ana, esparramado e destruído, surgiram em sua mente, de maneira que ele mal conseguia pensar, e uma raiva cresceu lentamente no estômago, subiu ao peito até dar um abraço de veias saltadas nos pulmões e coração.

Karl tomou meia cerveja em um só gole. Ele pegou a caneca e foi até a mesa do ocidental.

— Você é Uly? — perguntou Karl. Ele sentou-se em frente ao sujeito, que o observava com atenção, como se estivesse pronto para lutar. Os músculos pulsaram nos braços fortes de Uly, e uma mão se moveu para debaixo da mesa.

— E se eu for? — perguntou o homem. A voz tinha o mesmo sotaque de Talis, o mesmo de Mahri, embora fosse mais grave e acentuado, e Karl teve que escutar com atenção para entender as palavras.

— Eu soube que você faz poções. Para fertilidade.

O homem empinou um pouco o queixo e pareceu relaxar. A mão direita voltou à mesa arranhada e com marcas de canecas de cerveja. — Ah, isso. Eu faço sim. Você precisa de algo assim?

Karl deu de ombros. — Não de algo assim, mas talvez... de outra coisa. Eu tenho um amigo; o nome dele é Talis. Ele me disse que você pode fornecer uma coisa não para criar vida, mas para acabar com ela. Rapidamente.

Karl observou o rosto do homem ao falar. À menção de Talis, uma sobrancelha ergueu-se levemente. Uly levantou um canto da boca, como se achasse graça. Ele esfregou o crânio com marcas e tatuagens negras. As mãos eram grandes, a pele áspera, e havia uma cicatriz comprida no dorso: as mãos de um comerciante. Ou de um soldado. — Uma coisa assim deveria ser ilegal, vajiki. Mesmo que pudesse ser feita.

— Estou disposto a pagar bem por isso. Muito bem.

Ele concordou devagar com a cabeça. Uly levantou a caneca e bebeu tudo em um só gole, depois secou a boca com as costas da mão e disse — Está um belo dia. Vamos dar uma volta e conversar.

O homem levantou-se e Karl ficou de pé junto com ele. O resto do corpo atarracado de Uly era tão musculoso quanto os braços. Quando os dois chegaram à porta da taverna, uma mulher que corria para lá esbarrou em Karl e quase o derrubou sobre Uly. — Perdão, vajiki! — disse ela. O rosto estava sujo de terra, havia ranho seco em volta do nariz, e o hálito era desagradável. A mulher pegou a mão de Karl e colocou algo em sua palma. — Para dar sorte. O senhor tem que guardar isso, vai trazer boa sorte, vajiki. Guarde direitinho. — Ela fechou os dedos de Karl em volta do objeto, soltou o embaixador e saiu correndo pela porta. Karl olhou para o que a mulher colocara em sua mão: um seixo pequeno e claro. Uly riu.

— A mulher deve ter teia de aranha na cabeça — falou ele. — Vamos, vajiki.

Karl colocou o seixo no bolso da bashta e seguiu Uly pelo Beco do Sino, depois cruzaram a rua maior e entraram em outro beco em curva. Eles seguiam para o norte, na direção do Parque do Templo. — E qual é o seu nome, vajiki, uma vez que sabe o meu? — perguntou Uly enquanto os dois andavam.

— Andus. É tudo o que você precisa saber.

— Ah, somos cautelosos, não, vajiki Andus? Isso é bom. Isso é bom. E quem você quer que morra?

— Isso é da minha conta, não da sua.

— Discordo complemente — falou Uly —, pois a Garde Kralji viria atrás de mim e de você também, e eu não tenho interesse em me hospedar na Bastida. Eu exijo que me diga um nome, ou não faremos negócio.

— É o archigos. Eu sei que você já tem alguma experiência com isso.

Karl observou o homem, com um feitiço pronto para ser lançado a uma palavra e um gesto. Uly hesitou apenas de leve, mal perdeu o passo, mas, tirando isso, não houve resposta alguma. Ele continuou caminhando, e Karl teve que se apressar para alcançá-lo. A expressão do sujeito não se alterou, nem a atitude. Karl esperou que ele dissesse alguma coisa, a mão ao lado do corpo. Os dois passaram por um beco transversal...

... e Uly avançou contra Karl, uma mão grande prendeu a de Karl quando ele tentou erguê-la, e a outra mão tapou a boca do embaixador e bateu com a cabeça dele contra o alicerce de pedra de um prédio. O impacto fez Karl perder o fôlego e provocou fisgadas na cabeça. O joelho de Uly golpeou o estômago do embaixador. Karl sentiu ânsia de vômito e percebeu que estava caindo. Algo — um joelho, um punho, ele não sabia dizer o que — bateu na sua cabeça. Ele não conseguia enxergar, mal era capaz de respirar. Sentiu os paralelepípedos frios debaixo do corpo e a água imunda empoçada ali.

— Você é um tolo, embaixador ca’Vliomani — sibilou Uly. — Achou que eu não lhe reconheceria?

Você morrerá. Agora. Foi uma conclusão sombria.

Ele ouviu botas nos paralelepípedos; Karl percebeu que era um único par de passos e esperou que o golpe final viesse. O embaixador ouviu um grunhido e um grito de dor, e algo pesado caiu no chão, ao lado dele. Ele sentiu uma mão levantar sua cabeça e amarrar um capuz sobre ela para que não pudesse enxergar. O pano cheirava a suor velho. — Fique quieto e não será ferido — disse uma voz, que não era a de Uly. Alguém com um pouco de sotaque não identificável, nem grave ou agudo, o que tornava difícil sequer determinar o gênero da pessoa. — Tire o capuz e você morre. — Algo pontiagudo foi pressionado contra o pescoço, e Karl gemeu com a expectativa do golpe cortante. — Acene com a cabeça se entendeu.

Karl concordou, e a lâmina da faca desapareceu. Ele ouviu mais um barulho, parecido com um tapa e um gemido que só podia ser de Uly. — Responda se você quiser viver — disse a voz, embora não se dirigisse a Karl. — Você matou a archigos Ana, não foi? Você preparou a areia negra.

— Não. — Uly começou a dizer, mas a voz foi interrompida por um gemido de dor. — Tudo bem, tudo bem. Sim, eu ajudei a matá-la. Com a areia negra. Mas a ideia não foi minha. Eu só dei a substância para o homem e contei como usá-la. Não sabia o que ele pretendia fazer com ela. Ai! Droga, isso é verdade! — Lá se foi a preferência de Uly por morrer em vez de falar, pensou Karl. Talvez Talis não conhecesse seus guerreiros tão bem, afinal.

— Quem?

— Eu não sei... Ai! Por Axat! Pare! Ele me disse que o nome era Gairdi ci’Tomisi, mas não sei se o nome é verdadeiro ou não. Ele pagou bem, e isso era tudo que eu sabia ou que me importava!

Houve mais sons baixos e um longo lamento que só podia ter vindo de Uly. O homem ofegava agora, choramingava de dor, o fôlego era rápido e desesperado. — Por favor. Por favor, pare.

— Então fale mais a respeito deste homem — disse a outra voz. — Rápido.

— Parecia um ca’ ou co’, pelo jeito de falar. Firenzciano, talvez, pelo sotaque. Disse que as “ordens” vieram de Brezno, em todo caso. É tudo que sei. Eu preparei a substância, dei para o homem, e ele foi embora. Fiquei tão surpreso quanto qualquer um quando a archigos foi morta.

Karl queria desesperadamente arrancar o capuz do rosto para ver o que acontecia, mas não ousou. Houve mais sons: uma briga animada, um baque suave e depois um farfalhar. Alguém puxou sua bashta e remexeu o bolso. Ele pensou ter ouvido passos leves, mas, com a cabeça latejando e apitando, os sons eram tênues demais para Karl ter certeza.

Depois, por vários instantes, não houve absolutamente nada, apenas os sons distantes da cidade. — Alô? — sussurrou Karl. Não houve resposta. Ele levou as mãos ao pano amarrado em volta da cabeça e arrancou do rosto. O que viu fez com que o embaixador recuasse, horrorizado.

Karl olhou fixamente para o corpo de Uly nos paralelepípedos, com a garganta cortada e sangue espalhado pelas roupas. O olho direito estava aberto para o céu, mas sobre o esquerdo havia a pedra que a mulher deu para ele na taverna.

 

Allesandra ca’Vörl

SEMINI TENTOU ENTRAR EM CONTATO COM ELA por vários dias. Allesandra deixou as mensagens do archigos em cima da mesa. Quando ele mandou seu o’téni falar diretamente com ela, o homem foi informado pelos assistentes muito bem instruídos da a’hïrzg que Allesandra estava em reuniões e não podia ser incomodada. Quando o próprio Semini saiu do templo para vê-la, ela fez questão de sair da cidade com Jan para ver a reunião das tropas.

Quando Semini — sob a desculpa de trabalhar com os ténis-guerreiros que também estavam sendo reunidos — veio aos campos ao sul de Brezno, não houve, finalmente, jeito de evitá-lo.

Semini era um mancha escura e verde que contrastava com a brancura banhada pelo sol da lona da tenda. Do lado de fora, o acampamento militar agitava-se de manhã: com o clamor do metal conforme os ferreiros trabalhavam nas armas, armaduras e uniformes; o chamado de soldados; as ordens aos berros dos offiziers; o burburinho geral de movimentação; o som de pés que marchavam em uníssono enquanto os esquadrões treinavam. Cheiros entraram com a brisa quando Semini deixou a aba da tenda bater ao entrar: o cozinheiro e as fogueiras, o odor de lama revirada por milhares de pés, e o leve fedor das valas que serviam como latrinas.

Allesandra conversava com Sergei ca’Rudka, sentada atrás da mesa de campanha que um dia foi de seu vatarh, com painéis frontais pintados com imagens da famosas batalhas do hïrzg Jan ca’Silanta na Magyaria Oriental. — ... disse ao hïrzg e ao starkkapitän que esperem resistência assim que cruzarmos a fronteira — dizia Sergei, que parou e virou-se quando o olhar de Allesandra passou por cima de seus ombros na direção de Semini. — Ah, archigos. Talvez eu deva ir embora.

— Volte depois da Segunda Chamada e nós continuaremos a nossa conversa, regente — falou Allesandra. Sergei fez uma mesura, esfregou a lateral reluzente do nariz, e saiu da tenda dando um aceno de cabeça e o sinal de Cénzi para o archigos.

Semini parecia pouco à vontade, como se esperasse que ela se levantasse e o abraçasse assim que a aba da tenda se fechasse quando ca’Rudka saiu. Após um momento, ele finalmente fez o sinal de Cénzi para Allesandra e trocou o pé de apoio ao ficar parado diante da mesa como um offizier convocado por ela. — Allesandra. — Semini começou a dizer, e ela fez uma cara feia.

— Qualquer pessoa pode estar ouvindo pela lona da tenda. Nós estamos em público, archigos Semini, e eu espero que o senhor se dirija a mim de maneira apropriada.

Allesandra viu que ele apertou os olhos, irritado com a repreensão. Ele franziu os lábios sob a cobertura do bigode. — A’hïrzg ca’Vörl — falou Semini com lentidão proposital —, peço desculpas. — Depois, ele abaixou o tom em um quase sussurro, baixo e grave. — Espero que nós ainda possamos falar abertamente. Francesca, ela...

Allesandra balançou a cabeça de leve; ao movimento, Semini parou. — Eu falei com sua esposa — disse ela, com ênfase especial. — Naquela noite. Tivemos uma conversa ótima. Francesca parece acreditar que você teve algo a ver com a morte da archigos Ana.

Ela realmente não esperava que Semini reagisse, coisa que ele não fez. O archigos olhou para a a’hïrzg com uma expressão neutra e falou — Eu sei que a senhora tem algum carinho pela falsa archigos. Dado o que aconteceu com a senhora, eu compreendo. Mas Ana ca’Seranta era minha inimiga. Eu não sofri com seu falecimento, nem um pouquinho, e se minha alegria com a morte dela lhe ofende, a’hïrzg, então tenho que aceitar isso. Eu rezei, muitas vezes, que Cénzi levasse a alma dela, porque a mulher acreditava em coisas erradas, e foi em grande parte responsável pelo rompimento da Fé e pela cisão dos Domínios.

— Ela também é a razão de eu ser quem sou. Sem ela... — Allesandra deu de ombros. — Eu poderia não estar aqui. Jan poderia nunca ter nascido.

— E, no mínimo, por causa disso, eu rezei por ela quando morreu. — Semini deu um passo em direção à mesa de campanha, e parou. — Allesandra, o que aconteceu entre nós? É óbvio que você está me evitando. Por quê?

— Quando pretendia me contar que foi você que mandou matar Ana? Ou não pretendia me contar?

— Allesandra...

— Se não foi você, então negue, Semini. Diga-me agora que não foi você.

Allesandra não tinha certeza se queria que ele respondesse. Nos dias que se seguiram, ela tinha — através da equipe palaciana, através do comandante da Garde Brezno — realizado sua própria investigação. O nome de Gairdi ci’Tomisi havia surgido, e ela mandou o comandante co’Göttering levar o mercador, que por acaso estava em Brezno, para a Bastida a fim de ser interrogado. Ci’Tomisi, sob a persuasão menos do que gentil da Bastida, entregou toda a história: que servia Firenzcia e o archigos ca’Cellibrecca como agente duplo; que conhecia um ocidental em Nessântico que vendia poções, que o homem contara a ele a respeito de um poderoso preparado ocidental, que o sujeito havia demonstrado como essa “areia negra” funcionava e que ci’Tomisi falou para seus contatos no Templo de Brezno sobre seu poder, e que recebeu uma mensagem de volta (do “archigos em pessoa”) que — se ele fosse capaz — uma demonstração contra a Fé de Nessântico seria “interessante e muito bem recompensada”; que ele usou os contatos no Templo do Archigos em Nessântico para entrar à noite; que colocou a areia negra no Alto Púlpito e uma vela de tempo queimando no interior, com a chama programada para tocar a areia negra no mesmo momento em que a archigos Ana desse a Admoestação.

Ci’Tomisi confessou para salvar a própria vida, choramingou e chorou. Ele conseguiu, mas Allesandra perguntou-se se, na cela suja e imunda nas profundezas da Bastida, ci’Tomisi desejaria que não tivesse conseguido.

A a’hïrzg também sabia que Semini já devia ter percebido que ci’Tomisi havia sido preso e que provavelmente tinha confessado. Portanto, Allesandra observava Semini e imaginava o que ele diria, se lhe diria a mentira e negaria qualquer conhecimento a respeito do caso, e como ela deveria reagir se o archigos fizesse isso.

Mas Semini não negou. — Eu sou o archigos. Preciso fazer o que parecer ser melhor para a fé concénziana, e, na minha opinião, a Fé permaneceria tão quebrada quanto o mundo de Cénzi até que aquela mulher morresse.

Ao ouvir isso, a mão de Allesandra foi ao pingente com o globo rachado que ela usava, aquele que fora dado por Ana. A a’hïrzg viu que Semini observou o gesto e falou — Cénzi teria levado Ana em Seu próprio tempo. E, caso não levasse, por que você deveria agir por Ele?

Semini teve a dignidade e a humildade de abaixar os olhos para a grama bem aparada que servia de piso na tenda. — Cénzi geralmente exige que as pessoas ajam por Ele — respondeu o archigos, finalmente. — Houve... uma oportunidade repentina, uma que se apresentou de maneira completamente inesperada, e não apontaria para Firenzcia, e sim tanto para os numetodos quanto para os ocidentais. Isso, por acaso, é mais errado do que alguém nos Domínios mandar a Pedra Branca matar Fynn? — Ele encarou Allesandra.

Ela sentiu uma pontada de culpa e franziu a boca. Semini pareceu interpretar o gesto como irritação.

— Eu tive que agir imediatamente ou simplesmente não agiria — continuou ele. — Eu rezei para Cénzi pedindo por orientação e senti que fui respondido. E, naquela ocasião, a’hïrzg, a senhora e eu não éramos... — Semini deixou a próxima palavra pairar no silêncio. O archigos continuou a falar, mas agora a voz era um sussurro praticamente inaudível. — Se nós fôssemos, Allesandra, eu teria pedido seu conselho e acatado. Em vez disso, eu pedi ao seu vatarh, que já estava muito doente, e ao seu irmão.

— Você está me dizendo que o vatarh sabia? E Fynn? Eles também aprovaram isso?

— Sim. Sinto muito, Allesandra. — O arrependimento na voz parecia genuíno. As mãos estavam erguidas, como se pedisse perdão, e havia uma umidade nos olhos de Semini que refletiu o sol que entrava pela lona. — Sinto muito — repetiu. — Se eu soubesse como o ato magoaria você, se soubesse o que faria conosco, eu teria impedido. Teria mesmo. Você tem que acreditar nisso.

— Não. — Allesandra balançou a cabeça. Semini. Fynn. E vatarh. Todos eles aprovaram a morte da mulher que me manteve viva e sã. — Eu não tenho que acreditar nisso, de maneira alguma. Você diria tal coisa fosse ou não verdade.

— Como posso provar para você?

— Você não tem como provar, mas isso é algo que você deveria ter me contado há muito tempo: pelo meu papel como a’hïrzg, ou como matarh do hïrzg, pelo menos. E não sei como ficamos diante dessa situação. Não sei mesmo.


O cavalo estava encharcado de suor ao galopar velozmente encosta acima, onde eles esperavam, e as patas musculosas tremeram quando o cavaleiro desmontou, com uma bolsa de mensageiro na mão. O homem imediatamente se ajoelhou diante de Jan, Allesandra, Sergei e Semini e disse — Notícias urgentes de Nessântico, meu hïrzg. — Havia sujeira da estrada na roupa de couro do mensageiro, que tinha terra no cabelo e no rosto. A voz estava abalada pelo cansaço, e o homem parecia, assim como a montaria, estar à beira de um colapso. Ele ofereceu a bolsa com uma mão trêmula. Jan pegou a bolsa enquanto Allesandra gesticulava para os assistentes, que estavam apropriadamente a poucos passos do quarteto. — Deixem esse homem comer e descansar e cuidem do cavalo.

Os assistentes correram para obedecer. Jan desdobrou o pergaminho grosso de dentro da bolsa, que deixou cair no chão. Allesandra observou os olhos do filho vasculharem as palavras ali. Jan arregalou os olhos e entregou o papel para ela em silêncio. A a’hïrzg entendeu seu choque rapidamente; as frases ali pareciam impossíveis.

... O kraljiki Audric foi assassinado da mesma forma que a archigos Ana... Sigourney ca’Ludovici foi nomeada kraljica, mas foi ferida no ataque... Karnor foi arrasada e pilhada por ocidentais... O exército ocidental aproxima-se de Villembouchure... a Garde Civile e os chevarittai foram reunidos para detê-los...

Ela passou a mensagem para Sergei, que a leu com Semini olhando atentamente sobre seus ombro, e ouviu o archigos dizer — A’hïrzg, isso é uma surpresa para mim. Juro por Cénzi que não sabia de nada a respeito dessa situação. Audric morto... — Ele espalmou as mãos em súplica. — Não fui eu que fiz isso, nem era minha intenção.

Allesandra não prestou atenção às declarações de Semini. Ela passou o braço por Jan, que olhava fixamente para o acampamento do exército, resplandecente com os estandartes e armaduras, cheio de tendas acinzentadas e agitado pela atividade de milhares de soldados. — O que isso significa, matarh? — perguntou Jan para ela, embora Allesandra tenha notado que ele olhava para Sergei também. — Diga-me o que está pensando.

— Significa que Cénzi realmente nos abençoou — respondeu a a’hïrzg. — Estamos avançando na hora certa, quando nosso inimigo está mais fraco. — Ela quase gargalhou. Audric morto, ca’Ludovici ferida, e a atenção dos Domínios voltada para os ocidentais em vez de estar de olho em Firenzcia. — Este é o seu momento, meu filho. Seu momento. Tudo que você tem a fazer é aproveitá-lo.

Era o momento dela também, talvez mais do que do filho, mas Allesandra não disse isso.

Jan continuava a olhar fixamente para o acampamento. Então ele se sacudiu e, naquele momento, Allesandra notou um vislumbre do vavatarh no filho: o maxilar trincado, a certeza no olhar. Era a maneira como o velho hïrzg Jan sempre parecia quando tinha se resolvido; ela lembrava-se bem.

— Tragam o starkkapitän ca’Damont à minha presença — falou Jan. — Eu tenho novas ordens para ele.

 

A Pedra Branca

ELA ESTAVA DO OUTRO LADO DA VIELA, em frente aos dois, quando Talis chegou ao prédio e bateu na porta, com Nico à mão. A Pedra Branca ouviu o grito de Serafina — Nico! Ó, Nico! — e viu a mulher pegar o menino nos braços... e também notou Talis ficar tenso, como se estivesse assustado, e erguer a bengala que sempre carregava como se fosse bater em alguém, enquanto gesticulava com a mão livre como se quisesse que Serafina e Nico fossem embora.

Ela cruzou a viela correndo, com a mão em uma das facas de arremesso escondida na tashta. Ouviu trechos de uma conversa alta ao se aproximar.

— ... apenas saia! Agora! ... o embaixador numetodo... tentou me matar...

— ... sabia onde Nico estava e não foi até ele?...

Houve mais diálogos, mas as vozes martelavam a cabeça da Pedra Branca, que não conseguiu distinguir as reais daquelas dentro da mente. A porta fechou-se quando Talis entrou, e ela aproveitou a oportunidade para entrar de mansinho no espaço apertado entre os prédios. Ali, a Pedra Branca encostou-se contra a parede ao lado de uma janela fechada. Ouviu a conversa abafada, tão bem que percebeu que não precisava interferir. Não ainda. Houve uma conversa sobre o assassinato da archigos Ana (— Aquela bruxa cruel mereceu morrer pelo que fez com minha família — berrou Fynn); sobre algo chamado areia negra que podia matar (e todas as vozes das vítimas berraram na cabeça dela ao ouvir aquilo — Morte! Morte! Sim, traga mais gente aqui para nós! — Era tão alto que ela teve que soltar um berro silencioso para que as vozes parassem); sobre um homem chamado Uly (— Esse nome... — disse Fynn. — Eu conheço esse nome...).


Quando ficou claro que Talis e Nico permaneceriam ali, a Pedra Branca saiu de mansinho novamente, voltou ao apartamento e recolheu as coisas que tinha lá. Naquela noite, após três ou quatro paradas, ela alugou um novo apartamento, numa rua ao sul de onde morava a matarh de Nico: lá, pela janela, era possível ver a porta da casa de Nico pelo espaço entre os prédios.

Por quatro dias, ela observou. À noite, entrava de mansinho no espaço entre as casas para ouvi-los. Seguia o grupo sempre que eles saíam, especialmente se Nico estivesse junto. Por dias, a Pedra Branca observou as idas ao Velho Distrito, as tentativas de achar Uly. Ela mesma já havia encontrado o homem, que vivia em um apartamento miserável no Beco do Sino, perto do mercado do Velho Distrito. Considerou o estrangeiro estranho e desprezível — não era um homem que se importava com a limpeza de onde morava ou com a sujeira das roupas. Ele era grosso e mal-educado com os fregueses para quem vendia poções, geralmente na taverna embaixo do apartamento: o Cisne Vermelho. Frequentemente estava bêbado, e era um mau bêbado. Também podia ser violento; com certeza era brutal com as prostitutas que contratava, a ponto de ser evitado pela maioria das mulheres que fazia ponto nas ruas em volta do mercado.

Por dias, ela observou.

A Pedra Branca ficou surpresa, um dia, ao ver Nico acompanhando Varina e Karl ao mercado — geralmente isso era uma coisa que Serafina não permitia. Mas ela também sabia que as idas ao mercado agora eram rotineiras, que a cada dia que passava o grupo tinha menos esperanças de encontrar Uly, que Varina e Serafina tornaram-se amigas íntimas, que Nico parecia considerar a mulher numetodo quase como uma tantzia querida. A Pedra Branca seguiu o trio de perto, contornou a multidão em volta das barracas, chegou próximo o suficiente, a ponto de quase ouvi-los, mas nunca tão perto a ponto de um deles notá-la. Viu o grupo falar com um fazendeiro em sua barraca, viu o homem apontar e os três irem embora correndo, com Varina parecendo subitamente preocupada. Karl foi até uma mulher com uma tashta amarela — uma mulher que a Pedra Branca reconheceu como uma das freguesas de Uly.

O estômago deu um nó forte de preocupação; ou talvez fosse a criança que crescia ali. As vozes murmuraram — A mulher vai contar para ele... Você tem que interferir... — Ela colocou a mão na pedra branca na bolsinha pendurada no pescoço e a apertou com força, como se pudesse calar as vozes com o toque.

Se Karl tivesse ido atrás de Uly com Nico, a Pedra Branca teria detido os três. Ela não deixaria que colocassem o menino em perigo. Não deixaria.

Mas Karl mandou Varina e Nico embora. Ela seguiu os dois por tempo suficiente para saber que a mulher e o menino realmente voltavam para casa, depois retornou rapidamente, correu pelas ruas na direção do Cisne Vermelho.

Ela viu Karl entrar na taverna e entrou atrás dele. Uly estava lá, sentado à mesa de sempre e — também como sempre — meio bêbado. Karl também tinha visto o homem, mas estava no bar, onde pediu uma cerveja. Enquanto ela observava, o embaixador afastou-se do bar e foi à mesa de Uly. A Pedra Branca não conseguiu ouvir a conversa, mas, não muito tempo depois, Uly terminou a cerveja e ficou de pé, e Karl seguiu o homem até a porta.

— Você sabe o que acontecerá — cacarejou Fynn na cabeça dela. — O que você fará a respeito?

A Pedra Branca agiu, meteu-se entre Karl e a porta, e esbarrou no embaixador de propósito. — Perdão, vajiki! — falou. Ela segurou a mão do embaixador e colocou a pedra na palma dele. — Para dar sorte. O senhor tem que guardar isso, vai trazer boa sorte, vajiki. Guarde direitinho.

Ela torceu para que Karl fizesse isso, porque não poderia ajudá-lo se ele não guardasse. Se o embaixador tivesse devolvido a pedra, deixado cair ou jogado fora, ela estaria de mãos atadas. — A Pedra Branca não consegue matar sem o ritual agora — disseram as vozes em um coro debochado. — Fraca. Estúpida.

Mas Karl guardou a pedra. Ela se escondeu ao sair da taverna, e, alguns instantes depois, Karl e Uly surgiram. O estrangeiro levou Karl para longe da taverna, e ela os seguiu com cuidado. De qualquer maneira, Uly parecia estar bêbado demais ou desinteressado demais para ver se alguém observava. A Pedra Branca viu Karl ser empurrado por Uly para dentro de um beco e correu atrás, em silêncio.

Quando ela chegou ao cruzamento, Karl já estava caído, e era óbvio que Uly pretendia espancá-lo até a morte. — Você é um tolo, embaixador ca’Vliomani. — A Pedra Branca ouviu o estrangeiro rosnar. — Achou que eu não lhe reconheceria?

Então ela agiu, novamente, como a Pedra Branca, séria e implacável. Uly ergueu os olhos ao ouvir a aproximação, mas o chute já estava no ar, acertou o joelho e fez o homem desmoronar, soltando um gemido, depois ela acertou dois socos na lateral da cabeça que o derrubaram no chão, inconsciente.

A Pedra Branca rapidamente rasgou a bashta de Uly, depois se dirigiu para Karl, que gemia, meio inconsciente. Ela enrolou o pano rasgado na cabeça do embaixador, sacou sua faca favorita da bainha e pressionou contra o pescoço dele. — Fique quieto e não será ferido. — ela engrossara o tom de voz. — Tire o capuz e você morre. Acene com a cabeça se entendeu.

Ele balançou a cabeça uma vez, e a Pedra Branca deixou Karl e foi até Uly. Deu um tapa na cara do homem, para despertá-lo, viu Uly arregalar os olhos ao notá-la, e mostrou a faca antes de enfiá-la com força na pele tatuada do pescoço. Colocou a bota sobre o joelho quebrado do sujeito. — Ele viu você. Não pode deixá-lo vivo agora — clamaram as vozes, e ela pediu que fizessem silêncio.

— Responda se você quiser viver — disse a Pedra Branca. Ela percebeu que o homem começou a erguer as mãos e fez que não para ele enquanto enfiava a ponta da faca no pescoço, perto de uma veia saltada e pulsante. — Você matou a archigos Ana, não foi? Você preparou a areia negra.

— Não. — O homem começou a dizer, mas a Pedra Branca enfiou a faca mais fundo diante da mentira. — Tudo bem, tudo bem. — Uly afastou-se dela o máximo possível. — Sim, eu ajudei a matá-la. Com a areia negra. Mas a ideia não foi minha. Eu só dei a substância para o homem e contei como usá-la. Não sabia o que ele pretendia fazer com ela. — Novamente, a Pedra Branca pressionou a faca com mais força. — Ai! Droga, isso é verdade!

— Quem? — perguntou ela, pois sabia que Karl ouviria; a Pedra Branca daria ao embaixador a informação que ele queria, desde que isso significasse que Nico ainda estaria a salvo.

— Você tem que matar esse aí. Você precisa matá-lo.

— Eu não sei... — disse Uly. Ela ignorou a voz, puxou ligeiramente a faca em sua direção e abriu um corte. O sangue quente pingou do pescoço. — Ai! Por Axat! Pare! Ele me disse que o nome era Gairdi ci’Tomisi, mas não sei se o nome é verdadeiro ou não. Ele pagou bem, e isso era tudo que eu sabia ou que me importava!

O homem tentou empurrá-la, e a Pedra Branca colocou mais peso sobre o joelho quebrado. Ele ofegou de dor. — Por favor. Por favor, pare.

— Então fale mais a respeito deste homem — falou ela. — Rápido.

— Parecia um ca’ ou co’, pelo jeito de falar. Firenzciano, talvez, pelo sotaque. Disse que as “ordens” vieram de Brezno, em todo caso. É tudo que sei. Eu preparei a substância, dei para o homem, e ele foi embora. Fiquei tão surpreso quanto qualquer um quando a archigos foi morta.

— Você não pode ficar aqui. Tem que ir embora ou alguém chegará e verá você.

As vozes estavam certas. Ela franziu os lábios. Com um movimento violento, ela cravou fundo a faca na garganta do homem e a cortou da direita para a esquerda. O sangue quente jorrou, e o homem morreu com uma golfada de fôlego líquido. Neste instante, a assassina puxou rapidamente a bolsinha de dentro da tashta agora ensanguentada e a abriu, depois colocou a preciosa pedra branca no olho direito aberto do homem. A seguir, foi até Karl, vasculhou seu bolso rapidamente e achou a pedra que dera para ele. Esta foi colocada sobre o olho esquerdo de Uly. Ela embainhou a faca, esperou um instante, depois pegou sua pedra no olho direito.

A Pedra Branca já podia ouvir a voz de Uly, que lamentava em uma língua que ela não compreendia.

Ela guardou a pedra na bolsinha novamente. Olhou uma vez para Karl, que fazia um esforço desesperado debaixo do pano para escutar.

A Pedra Branca correu. Correu — ateve-se às sombras e aos becos solitários por causa da tashta manchada de sangue — para encontrar Nico, para saber se ele ainda estava a salvo.


??? MATANÇA ???

Kenne ca’Fionta

Aubri co’Ulcai

Allesandra ca’Vörl

Niente

Varina ci’Pallo

Kenne ca’Fionta

Sergei ca’Rudka

Nico Morel

Karl ca’Vliomani

A Batalha Começa


Kenne ca’Fionta

KENNE ESTAVA NA SACADA do lado de fora de seu gabinete particular e olhava para a Praça do Templo. Lá embaixo, ténis em robes verdes misturavam-se à multidão de pessoas comuns que corriam para escapar da garoa, que caía de nuvens baixas e cinzentas. O tempo parecia tornar pesadas as asas dos pombos, que arrulhavam em grupos; as pessoas passavam correndo, os pássaros afastavam-se e balançavam as cabeças, mas não alçavam voo.

O dia ruim e desagradável combinava com o humor de Kenne.

Ele estaria morto se tomasse a decisão errada e não tinha certeza de como evitar esse destino.

Mesmo que evitasse a morte física, Kenne estaria morto dentro da fé concénziana. Ele já sentia os abutres começando a se reunir: nos rumores que vinham de todo mundo, do mais baixo e’téni às mensagens nas entrelinhas que recebia dos a’ténis em suas cidades. Quando teremos outro conclave?, perguntavam. Há assuntos urgentes que todos precisamos discutir. Como devemos reagir às notícias de Nessântico? O que o archigos acha sobre essas questões?

As entrelinhas se escondiam nas perguntas inocentes. Elas começaram quando ele foi promovido a archigos, após o assassinato da pobre Ana. O coro ficou mais alto e constante desde a morte do kraljiki Audric e as notícias da invasão ocidental. As mensagens chegavam todos os dias por mensageiros de Fossano, de Prajnoli, de Chivasso, Belcanto e An Uaimth, de Kasama, Quibela e Wolhusen. Nós não confiamos na sua liderança. Outra pessoa precisa ser o archigos. Era o que diziam sob as palavras educadas e indiretas escritas por eles. Você deveria ser retirado do Trono de Cénzi.

O pior de tudo é que Kenne descobriu que concordava com eles. Eu nunca quis isso, o archigos queria escrever em resposta. Eu jamais pedi para sentar no lugar de Ana. Eu preferia muito mais que outra pessoa assumisse essa tarefa por mim. Ele mesmo disse isso para Ana há muitos anos, após retornar a Nessântico para ser o a’téni da cidade sob o comando dela, após o exército firenzciano ter sido dispersado. — Você estava aqui antes de mim — disse Ana para Kenne, quase parecendo envergonhada de estar sentada atrás da mesa em que ambos se lembravam de ter visto o archigos Dhosti. — Por direito, você deveria estar aqui e não eu, meu amigo.

Ele riu ao ouvir aquilo e balançou a cabeça. — O archigos Dhosti disse para mim, há muito tempo, que eu era um excelente seguidor. Ele estava certo. Eu sigo muito bem, mas não lidero. Não possuo seja lá o que for que você tem, Ana. Dhosti enxergou essas qualidades em você... você sabe liderar. É forte, talentosa, e tem uma força de vontade que é assombrosa. É por isso que ele fez de você sua o’téni. Se ele tivesse vivido, teria lhe preparado para o cargo da mesma forma. Eu... — Outra negativa com a cabeça. — Eu fui destinado a ser o que sou. Nada mais. E estou bem contente que seja assim.

Ana discordou, educadamente, mas ambos sabiam que — por dentro — a archigos concordava com ele. Com Dhosti.

No entanto, Cénzi impôs essa tarefa a ele no fim da vida, e Kenne só podia imaginar que isso era alguma espécie de piada cósmica.

Os a’ténis da Fé eram um perigo para Kenne, e a nova kraljica era outro. Ela sentia dores — ela sentiria dores pelo resto da vida, era quase certo. Sigourney ca’Ludovici fora jogada em uma crise terrível com a perda dos Hellins, o assassinato de Audric e agora a invasão dos próprios Domínios pelos ocidentais. Havia Firenzcia do outro lado, que não era mais um aliado, e sim um inimigo, pelas costas. Ela tentaria consolidar seu cargo. Tentaria desesperadamente sobreviver como kraljica, e, para tanto, procuraria por pessoas fortes que poderiam apoiá-la e dispensaria aqueles que considerasse fracos demais para ajudar — porque a fraqueza nos aliados da kraljica seria um perigo tão grande quanto os ocidentais e os firenzcianos.

Kenne sabia que a opinião de Sigourney a seu respeito era talvez ainda mais baixa do que a dos a’ténis. Ela faria uma rápida manobra para substituí-lo. Por conhecer a história de Nessântico, Kenne não excluía a possibilidade de a solução da kraljica ser o seu assassinato e a sua substituição por alguém mais adequado para ela. Já aconteceu com outros archigi antes de Kenne, quando eles entraram em conflito com os líderes políticos dos Domínios: um archigos assim podia morrer sob circunstâncias misteriosas. Bastava olhar para o próprio archigos Dhosti, afinal.

Kenne olhou para a praça lá embaixo, onde certa vez o corpo quebrado de Dhosti esteve estatelado, com o sangue fluindo entre os paralelepípedos. Ele imaginou se um dia, em breve, seu corpo seria jogado pelo parapeito até cair, debatendo-se desesperadamente no chão lá embaixo.

— Archigos?

Kenne sentiu um arrepio ao ouvir o chamado. Ele virou-se devagar e esperou ver Petros. Mas não era ele. Era, em vez disso, um fantasma.

— Eu sei — falou o fantasma, e o sotaque da voz confirmou suas suspeitas. — Você não esperava me ver novamente. Francamente, nem eu. Desculpe assustá-lo, archigos. Petros foi gentil em me deixar entrar.

— Karl... — Kenne entrou novamente no gabinete e deu a volta na mesa para abraçar o numetodo. — Olhe para você... sem barba, com cabelo pintado e cortado como uma pessoa qualquer, sem status, e essas roupas horríveis. Eu não teria reconhecido você... mas imagino que essa seja a ideia, não é? Eu pensei, após ter ajudado Sergei a escapar, que você tivesse fugido da cidade. — Ele balançou a cabeça. — Esses são tempos sombrios — disse Kenne com cansaço, sendo tomado pela depressão novamente. — Tempos terríveis. Mas eu esqueço meus modos. Você parece cansado e faminto. Quer que Petros traga alguma coisa?

Karl já balançava a cabeça. — Não, archigos. Não há tempo, e eu não devo ficar aqui mais tempo do que o necessário. Eu... eu preciso de um favor.

— Se estiver dentro da minha capacidade — falou Kenne, que teve que esmagar o pensamento que veio em seguida: dentro da pouca capacidade que tenho, infelizmente...

— Está sim, eu espero. Por favor, archigos, sente-se. Isso pode levar tempo. Eu sei, pelo menos acho que sei, quem matou Ana.

Kenne ouviu a história de Karl com apreensão, desconfiança e horror cada vez maiores. No fim, ele estava recostado na cadeira atrás da mesa e balançava a cabeça.

— Um homem chamado Gairdi ci’Tomisi, você diz? — falou Kenne finalmente. O archigos ficou chocado à menção do nome e perguntou-se que mais ele não sabia. — Um firenzciano? Ele fez isso com ajuda de magia ocidental?

— Firenzciano, sim — declarou Karl. — Mas você tem que entender que não houve magia envolvida. Não; essa areia negra não é uma criação de seu Cénzi, nem tampouco dos deuses ocidentais. Ela não é mágica, não vem do Segundo Mundo; é apenas o produto da imaginação e da lógica de uma pessoa. — Karl bateu na cabeça com o dedo. — E isso torna a areia negra ainda mais perigosa. Veja...

Karl tirou uma pequena bolsinha do bolso da tashta suja e esfarrapada e derramou um pó escuro e granulado no mata-borrão da mesa de Kenne. O archigos cutucou a substância com um dedo curioso. — Uly tinha um estoque disso em seu apartamento; eu subornei o estalajadeiro para me deixar entrar. Uly tinha os ingredientes lá dentro, então sabíamos o que eram. Varina acha que é capaz de reproduzir essa mistura mesmo que Talis não nos ajude. Parada assim como está, a areia negra é bem inocente, mas coloque uma chama em contato com ela, e... — A voz de Karl foi sumindo, e ele afastou o olhar. Kenne sabia do que o homem estava se lembrando; ele também se lembrava, muitíssimo bem.

— O que eu posso fazer? — perguntou o archigos. Ele abaixou o olhar para a mesa suja.

— Veja se consegue descobrir mais sobre esse Gairdi ci’Tomisi que Uly mencionou.

Kenne olhou para o numetodo com uma cara triste. — Eu o conheço. Pelo menos acho que sim. Ele é um mercador com licenças de passagem tanto de Brezno quanto de Nessântico e vai e volta pela fronteira. Nós, tanto Ana e eu, usávamos Gairdi. Nós achávamos... achávamos que ele era nosso homem, nosso espião. Ele levava mensagens aos ténis dentro do Templo de Brezno, para quem pensávamos que podíamos confiar e trazia respostas sobre o archigos Semini. Agora... — Kenne ergueu os olhos para o numetodo. — Se ele realmente era um agente duplo, a serviço de Semini ca’Cellibrecca...

— ... Então foi ca’Cellibrecca quem mandou matar Ana. — Karl encerrou a frase por ele. Seu maxilar fez um ruído alto ao se fechar.

Kenne sentiu o que restou do almoço subir pela goela. Ele engoliu em seco para conter a bile. Sim, o archigos acreditava que ca’Cellibrecca era capaz de cometer assassinato —, o homem fora um téni-guerreiro pela maior parte da vida. Porém, ele não teria matado Ana sem um motivo. Kenne tinha medo de que sabia exatamente qual seria a razão: ca’Cellibrecca esperava que a pessoa colocada no lugar de Ana fosse fraca e que pudesse explorar essa fraqueza para reunir a fé concénziana novamente — com ca’Cellibrecca como archigos em Nessântico, assim como em Brezno.

Porque ele sabia que seria eu. Provavelmente já está falando com a kraljica e fazendo sondagens.

— Archigos? — Kenne respirou fundo antes de erguer os olhos para Karl. — Nenhum numetodo matou Audric — declarou o embaixador. — Nenhum numetodo matou Ana. Isto matou os dois. — Ele gesticulou para a areia negra na mesa de Kenne. — Isso me faz pensar que a mesma pessoa é responsável pelos dois assassinatos.

Parecia uma hipótese razoável para Kenne, mas ele já esteve errado sobre tanta coisa que não confiava mais no próprio discernimento. — O que... o que você quer que eu faça? — O archigos ergueu as mãos da mesa, a ponta de um dedo estava escura com o pó que ele tocou. — Como posso ajudar?

— Veja o que mais você consegue descobrir. Veja se Semini realmente fez isso; se foi ele, eu quero fazer o homem pagar. Mas Varin... — Karl parou. — Quero dizer, Ana não iria querer que eu fizesse qualquer coisa até eu saber, saber com certeza. Pode me ajudar com isso? — Ele apontou novamente para o monte de areia negra no mata-borrão de Kenne. — Você sabe o que é isso, não sabe? — perguntou o numetodo. O archigos limitou-se a balançar a cabeça.

— Isso são as cinzas da magia — falou Karl. — Isso é como a magia se parece quando morre.

Kenne abaixou o olhar novamente. Parecia que estava olhando para os próprios restos mortais.

 

Aubri co’Ulcai

O COMANDANTE AUBRI CO’ULCAI OLHOU para trás e balançou a cabeça ao se perguntar como a batalha tinha chegado a este ponto. Isso nunca deveria ter acontecido. Não era possível.

Ele imaginou como a nova kraljica receberia as notícias e esperava que soubesse a resposta. E a única desculpa que Aubri tinha era que os ocidentais recusavam-se a lutar honrosamente, como deveriam.

Tudo começou há dois curtos dias...


Vários chevarittai — como era comum — saíram em seus cavalos de guerra para fazer desafios individuais enquanto as forças ocidentais aproximavam-se de Villembouchure. Nenhum guerreiro ocidental veio responder ao desafio; as fileiras da vanguarda do exército marcharam em frente, intactas e inabaladas mesmo quando os chevarittai debocharam de sua honra e coragem. Eles foram ignorados ou, pior ainda, atacados com flechas covardes e fogo dos feiticeiros ocidentais. Três chevarittai morreram antes que Aubri mandasse que as trompas soassem a ordem de retorno. Eles deram meia-volta com os cavalos de guerra e retornaram a galope para trás das fileiras de infantaria e de ténis-guerreiros, que aguardavam.

Aubri reuniu-se com seus offiziers; eles esperavam que o ataque começasse assim que o exército ocidental chegasse ao cume do último morro antes de Villembouchure. Afinal, era pouco antes da Segunda Chamada, e ainda havia viradas da ampulheta de luz do dia. Os ocidentais chegaram à distância de dois tiros de flecha da vanguarda da força dos Domínios e pararam... e permaneceram parados. Os chevarittai e seus offiziers imploraram que Aubri os deixasse avançar e atacar. O comandante recusou-se, lamentavelmente — fazer isso significava abandonar as fortificações e casamatas que eles erigiram nos últimos dias. O exército dos Domínios estava disposto em uma posição defensiva perfeita, e Aubri era avesso a sair dali.

Este foi o primeiro dia. Ele foi dormir nessa noite convencido da futura vitória — o avanço ocidental seria detido por suas fileiras de veteranos. A força ocidental, conforme verificaram seus batedores e todos os relatórios do campo de batalha, era substancialmente menor que a sua: nenhum exército daquele tamanho, nem mesmo os firenzcianos em seu apogeu, teria sido capaz de derrotar as defesas que Aubri montou. Os navios da frota tehuantina entupiram o A’Sele, mas estavam longe demais do campo de batalha para afetar a situação; de qualquer forma, Aubri sabia que uma força naval de Nessântico estava a caminho para cuidar dos navios inimigos. Na pior das hipóteses, as muralhas de Villembouchure iriam detê-los se, por alguma razão imprevista, Aubri não conseguisse contê-los nos campos do lado de fora da cidade. As forças ocidentais eram pequenas demais para um cerco efetivo, e Villembouchure era bem abastecida e podia suportar o sítio de um exército bem maior por pelo menos um mês.

Sim, Aubri estava confiante. Apesar do fato de seu exército ter sido rapidamente reunido e a maior parte da infantaria não ter muito treinamento, os offiziers e os chevarittai com eles tinham experiência em batalha adquirida nas muitas escaramuças ocorridas nas últimas décadas com Firenzcia e as nações da Coalizão.

Eles venceriam aqui.

A batalha começou no segundo dia, mas não com a chegada da alvorada, contrariando toda a experiência de Aubri e dos offiziers que o treinaram. Não... o ataque veio bem antes de o sol subir no céu. E veio de maneira estranha. Os vigias postados nas casamatas mais avançadas mandaram mensageiros correndo para a tenda do comandante atrás das linhas, e o agito acordou Aubri de um sono leve e atormentado por sonhos.

— Uma tempestade aproxima-se de nós em pernas feitas de relâmpagos — clamaram os mensageiros. — Uma muralha de nuvem...

Trompas de alarme soaram pelo acampamento, e os soldados colocaram as armaduras e pegaram suas armas às pressas enquanto os offiziers berravam ordens. Ao longe, uma luz azul piscava e dançava, trovões retumbavam, e, no entanto, o céu acima deles estava limpo, marcado pelas várias constelações conhecidas. Aubri montou no cavalo que os assistentes trouxeram apressadamente para ele. O comandante galopou com rapidez até a vanguarda e foi acompanhado ao longo do caminho pelo a’téni Valis ca’Ostheim de Villembouchure, que estava no comando dos ténis-guerreiros. — O que em nome de Cénzi está acontecendo? — rugiu ca’Ostheim. A espessa cabeleira branca parecia cintilar à luz da tempestade adiante; a barriga caía sobre o cepilho da sela de seu cavalo. Os cílios ainda tinham remelas do sono. Um colar grosso de ouro com um globo partido pendurado quicava no peito enquanto os dois cavalgavam. — Eu pensei que o senhor tinha dito que o ataque ocorreria na alvorada, comandante.

— Eu disse, sim — respondeu Aubri calmamente. — Ao que parece, os ocidentais não estavam escutando.

Na primeira linha de casamatas, os dois homens pararam e observaram o espaço entre os dois exércitos. O acampamento ocidental, que cintilava na encosta distante como estrelas amarelas caindo na terra quando Aubri foi dormir, não estava mais visível. Ao contrário, eles foram confrontados por uma aparição da natureza: uma muralha de nuvem escura e agitada, com talvez doze homens de altura e que flutuava à distância de dois homens acima do chão. Como uma espécie de monstro sobrenatural sinistro, a criatura de nuvem avançou na direção deles sobre centenas de pés de relâmpagos que piscavam. Os clarões estocavam o chão embaixo e pareciam fazer a nuvem avançar alguns metros a cada golpe. Aubri viu o chão ser rasgado onde os raios caíam, e a nuvem deixava um rastro de pegadas de tempestade arrancadas do chão. Um barulho constante de trovoada e um rosnado alto e estridente acompanhavam a visão. Ao redor dos dois, o exército dos Domínios olhava fixamente para a aparição com rostos iluminados pelos clarões azuis esbranquiçados e inconstantes. Aubri sentiu o pânico se espalhar pelas fileiras, os homens deram alguns passos para trás involuntariamente, para longe das barreiras baixas e fortificações que eles erigiram. — Mantenham a posição! — berrou Aubri para eles. As trompas soaram a ordem pela frente de batalha. — Mantenham a posição! — Os homens sacudiram-se como se acordassem de um pesadelo. Eles seguraram firme em lanças inúteis e encararam o monstro que os confrontava. Ele praticamente já havia cruzado o campo aberto agora, e Aubri não conseguiu ver nada além de seu limite feroz.

— A’téni ca’Ostheim, isso é magia; é a sua área. — Aubri quase teve que gritar mais alto do que o barulho crescente da aparição tempestuosa para ca’Ostheim, o líder dos ténis-guerreiros, ouvir. — O senhor consegue deter essa coisa?

— Tentarei — respondeu ele ao desmontar. Ca’Ostheim começou um cântico e um estranho gestual em frente ao corpo. Aubri sentiu um arrepio nos pelos dos braços conforme o a’téni continuava a entoar e os raios começaram a tocar as bordas das defesas; ele não sabia qual das duas coisas causou esta reação. O cavalo de Aubri, embora acostumado ao clamor, ao barulho e às imagens de guerra, estava preocupado e batia os cascos no chão enquanto se afastava um pouco da aparição. Aubri teve que se abaixar e dar tapinhas no pescoço do animal para acalmá-lo. — A’téni! Rápido, por favor.

Ca’Ostheim ergueu as mãos; o cântico parou. Ele gesticulou para a tempestade. Um vento estridente soprou do téni-guerreiro, e onde tocou na aparição tempestuosa, as nuvens foram rasgadas. Os soldados comemoraram, mas a tempestade ainda avançava de ambos os lados, com força total, e agora os raios atacaram as próprias defesas, os garfos gigantes alcançaram os soldados dos Domínios. Os gritos surgiram de ambos os flancos, conforme os relâmpagos queimavam e quebravam as fileiras, em um avanço inexorável. E agora as metades partidas nas nuvens voltavam a se unir; línguas sedentas de relâmpagos começaram a brilhar na frente de Aubri. Ca’Ostheim havia caído de joelhos. Ele ergueu a cabeça acenou negativamente para Aubri. — Comandante, eu não consigo... Não sozinho. Eu preciso reunir os outros ténis-guerreiros...

— Ao cavalo, então — falou Aubri. Ele olhou para os porta-bandeiras e as trompas quando os gritos dos feridos e moribundos rivalizaram com a trovoada. — Retirada! — berrou o comandante. — Voltem para a próxima linha de frente!

As bandeiras sinalizaram a retirada; as trompas soaram a ordem. As fileiras dos soldados foram desmanchadas instantaneamente, aqueles que ainda podiam deram meia-volta para fugir da tempestade. Ao longe, em um lugar além da criatura, Aubri ouviu novas vozes: os gritos de guerra dos ocidentais.

O comandante puxou com força as rédeas da montaria e seguiu seus homens.


Esta foi a manhã do segundo dia. O resto do dia não correu melhor. Os ténis-guerreiros foram capazes de dissipar a tempestade mágica, mas a tarefa deixou-os exaustos, e eles tinham pouca energia sobrando para outros feitiços. Atrás da tempestade, surgiram as fileiras dos ocidentais — guerreiros com rostos pintados e com cicatrizes. O combate mano a mano foi intenso, mas os chevarittai e a infantaria eram páreos na espada. No entanto, quanto aos feiticeiros ocidentais, que empunhavam cajados por onde lançavam feitiços, Aubri não tinha como responder — os ténis-guerreiros estavam em grande parte exaustos pelos esforços anteriores, e, no fim da tarde, o comandante mandou o exército retornar a Villembouchure, para trás das muralhas e portões sólidos. Ele estava convencido de que poderia ter mantido as defesas externas, mas o preço em vidas teria sido enorme. Aubri fez o que qualquer outro comandante em seu lugar teria feito: mandou as trompas soarem a ordem de cessar combate.

Ao anoitecer, todos estavam dentro e com as portas corrediças abaixadas e fechadas.

Isso encerrou o segundo dia.

Em qualquer batalha normal, isso significaria o início de um cerco que poderia ter durado semanas ou meses antes de ser rompido, e Aubri sabia que os ocidentais não tinham semanas ou meses — não em uma terra estranha, onde estavam cercados por inimigos. Foi por esse motivo que Aubri achou fácil dar a ordem de cessar combate tão cedo, assim que ficou óbvio que a vitória nos campos diante da cidade só causaria um enorme custo. Ficar no interior das muralhas de Villembouchure deveria levar à vitória em algum momento. Inevitavelmente. E ele poderia esperar.

Mas o cerco duraria apenas um dia.

Aubri estava sobre a muralha da cidade e olhava para as fogueiras quase apagadas do principal acampamento dos ocidentais na alvorada. Foi quando as bolas de fumaça de repente fizeram um arco no céu, na direção deles: uma dezena ou mais, todas pareciam mirar o grande portão oeste da cidade. Os ténis-guerreiros posicionados ao longo das muralhas reagiram instantaneamente, como deveriam, e a resposta dos feitiços de dispersão foi rápida; afinal, eles foram treinados na arte de manter os feitiços na mente por um tempo (que nenhum deles admitiria ser uma característica dos numetodos, que tinha sido imposta aos ténis-guerreiros pela archigos Ana). Mas as bolas de fogo continuaram seu voo. O téni-guerreiro mais próximo de Aubri o encarou com olhos arregalados e chocados. — Comandante, isso não é feitiço...

Ele não prosseguiu. As muralhas grossas da cidade foram sacudidas de um jeito impensável quando as bolas de fogo bateram no portão e nas pedras em volta. Onde elas tocavam, explosões inimagináveis destruíram pedras, aço e madeira. Aubri, que se segurou na ameia para manter o equilíbrio, testemunhou os enormes pedaços de granito saírem voando como se fossem seixos atirados por uma criança. O fogo irrompeu abaixo do comandante, tão incandescente quanto a fornalha de um ferreiro; ele sentiu a onda de calor passar pela pele. Ouviu gritos e lamentos lá embaixo.

— O portão está quebrado! As muralhas foram rompidas!

Os ocidentais já corriam pela brecha, enquanto arqueiros respondiam com uma atrasada chuva de flechas em cima deles. Alguns dos guerreiros foram abatidos, mas muitos — em um número excessivo — continuavam avançando, e agora Aubri via mais arcos de bola de fogo saírem do norte e do sul, na direção daqueles portões.

Ele desceu correndo das ameias e entrou em um caos selvagem e sangrento.

Este foi o terceiro dia. O dia em que a cidade foi perdida. De um jeito inacreditável.


Agora Aubri olhava para Villembouchure do alto de um morro ao longo da Avi A’Sele. O comandante viu a fumaça suja que manchava o céu acima das muralhas quebradas, cercado pelo que restou do exército reunido à sua volta e com o a’téni ca’Ostheim ao seu lado. Dentro da cidade... Dentro da cidade, estavam os ocidentais.

— Isso é impossível — murmurou ele.

Mas era possível. E agora a defesa da própria Nessântico devia ser preparada. Aubri balançou a cabeça novamente diante da cena.

O comandante deu meia-volta com o cavalo e gesticulou, e ele e o exército começaram a mancar na direção da capital, em retirada.

 

Allesandra ca’Vörl

ELA LEMBRAVA-SE DE PASSE a’Fiume muitíssimo bem. Foi aqui, há 25 anos, quando seu vatarh sitiou a cidade, que ela aprendeu pela primeira vez a mais dura lição de guerra: que, às vezes, pessoas amadas não sobrevivem. Na ocasião, Allesandra tinha uma queda por um jovem offizier que tinha sido morto na batalha e pensou que jamais seria capaz de amar novamente, pois seu coração estava partido demais pela experiência, mas o tempo aliviou sua dor. Agora, ela não conseguia se lembrar do rosto do rapaz.

Os reparos da batalha de décadas atrás ainda eram visíveis nas muralhas e trouxeram de volta as memórias e o sofrimento.

Dessa vez, não havia cerco. O exército firenzciano passou pela cidade fronteiriça de Ville Colhelm sem resistência alguma: a força dos Domínios a postos ali simplesmente abandonou o lugar e fugiu do muito maior contingente de tropas firenzcianas. A pedido de Allesandra, Jan despachou cavaleiros — incluindo Sergei ca’Rudka — bem à frente da força principal, para negociar com o comté de Passe a’Fiume. Com a maior parte da guarnição da Garde Civile esvaziada devido à invasão ocidental, o comté favoreceu a prudência à coragem (e uma propina substancial em ouro em vez do juramento ao cargo): em troca da promessa de que a cidade não seria saqueada, ele permitiria que o exército cruzasse o rio Clario através dos portões da cidade até a Avi a’Firenzcia.

Allesandra cavalgava ao lado de Jan quando eles cruzaram a grande ponte de pedra sobre as águas do Clario, um rio mais rápido e perigoso do que o A’Sele — que era mais profundo e largo, e com quem o Clario se juntava antes de o rio A’Sele chegar a Nessântico. A ponte parecia tremer sob a batida das botas dos soldados e dos cascos dos cavalos. A vanguarda do exército já passara pelos portões e o resto descia estrada afora até onde era possível enxergar no terreno cheio de morros. Jan olhou em volta extasiado, quando eles passaram pelas arcadas altas com os escudos dos kralji e entraram na cidade. Multidões estavam enfileiradas nas laterais da avenida principal ao longo da cidade, a maioria em silêncio, e os chevarittai da Garde Hïrzg ficaram tensos em suas selas ao escanearem o público à procura de perigo.

— A senhora esteve aqui com o vavatarh? — perguntou Jan novamente ao se inclinar na direção de Allesandra, e ela fez que sim com a cabeça.

— Eu era apenas uma criança, e seu vavatarh estava no auge. Ele tomou Passe a’Fiume em apenas três dias de sítio após as negociações de paz falharem, mas o kraljiki Justi, que ainda tinha duas pernas na ocasião, já tinha escapado covardemente para Nessântico. Seu vavatarh ficou furioso. Sergei ca’Rudka era o comandante das forças de Nessântico; ele foi... brilhante, mesmo em enorme desvantagem numérica. Seu vavatarh admitiu o fato, mesmo que de má vontade.

Jan olhou para trás, onde ca’Rudka cavalgava ao lado do archigos. O nariz de metal do regente reluzia ao sol. Como a Garde Hïrzg, ca’Rudka parecia ansioso e nervoso, com a boca franzida e o olhar varrendo a massa de ambos os lados. — Eu gosto do sujeito, mas não sei se posso confiar totalmente nele, matarh — disse Jan ao voltar a atenção para ela.

Allesandra sorriu ao ouvir isso. — Você não deveria. A lealdade dele é a Nessântico, antes de mais nada. E Sergei ca’Rudka é um homem estranho, com gostos estranhos, caso se acredite nos rumores. Isso não mudou. Ele trabalhará conosco enquanto achar que nossos interesses convergem. Assim que não achar... — Ela deu de ombros. — Então ele ficará igualmente satisfeito em ser nosso inimigo. Seus instintos estão corretos, Jan.

— Ele parece admirar a senhora.

— Eu conheci Sergei quando era refém da archigos Ana. Ele foi gentil comigo na época. Mas agora o comandante está mais interessado no fato de que sou prima em segundo grau da kraljica Marguerite, e no fato de que este parentesco me dá tanto direito ao Trono do Sol quanto Sigourney ca’Ludovici. E, por enquanto, precisamos de Sergei e das alianças que ele venha nos trazer.

Jan concordou com a cabeça. Ele franziu os lábios como se levasse tudo isso em consideração enquanto entravam na praça central da cidade. Allesandra imaginou o que o filho pensava.

Aqui, o Templo a’Passe dominava a paisagem arquitetônica. Como muitas estruturas da cidade, ele foi muito danificado no cerco há duas décadas e meia. Depois, o conselho municipal decidiu reprojetar a praça principal e o complexo do templo. Grande parte da estrutura original foi demolida. As linhas finas e esqueléticas dos andaimes enjaulavam a torre principal ainda não concluída e o domo do templo reformado.

A multidão de moradores estava mais densa aqui, enquanto a fila lenta do exército marchava pela cidade. Agora, Allesandra sabia, a vanguarda já teria passado pelo portão oeste e além das muralhas. Agora, ela também sabia, mensageiros iriam a galope adiante do exército para levar a notícia à kraljica, ao archigos e à Nessântico de que os firenzcianos estavam em marcha — até onde a a’hïrzg sabia, aquela informação já podia ter chegado à Nessântico assim que o exército cruzou as fronteiras. A partir de agora, o avanço encontraria resistência em breve; a kraljica Sigourney não podia se dar ao luxo de continuar virada para o oeste por muito tempo.

Um exército — especialmente o exército firenzciano; afinado, eficiente e famoso — era uma grande carta na manga em qualquer mesa de negociação, e Sigourney e o Conselho dos Ca’ sabiam muito bem disso. Allesandra sorriu diante da ideia.

A multidão espremia-se perto deles, e os soldados da infantaria de ambos os lados de Allesandra e Jan empurravam as pessoas para trás com os cabos das lanças e dos piques. Ela viu os rostos sérios e infelizes atrás da cerca de armas, e das profundezas da multidão vieram berros com xingamentos e ameaças, mas quando os dois olharam naquela direção, não havia ninguém que eles pudessem identificar na massa. A população também se lembrava do cerco firenzciano; muitas pessoas perderam familiares no sítio, e a visão das bandeiras negras e prateadas era um insulto tremulando na cara delas.

Eles entraram na sombra do templo agora, a fila do exército usava o baluarte da torre principal para se proteger da multidão. As trompas no templo começaram a anunciar a Segunda Chamada assim que Jan e Allesandra chegaram em frente à torre. A a’hïrzg ergueu a cabeça na direção do barulho e apertou os olhos contra o brilho do sol. Alguma coisa — uma figura, uma silhueta — parecia andar lá em cima, em meio ao emaranhado de andaimes. Ela não conseguiu enxergar com clareza.

Allesandra foi golpeada por trás de repente, no mesmo instante em que seus ouvidos a alertaram do som de cascos nos paralelepípedos. Um peso enorme jogou a a’hïrzg no chão, mas os braços que a envolveram giraram Allesandra para que o corpo debaixo dela absorvesse a maior parte do impacto. Um baque alto foi ouvido quase que ao mesmo tempo ao impacto. Um cavalo berrou — um som horrível, desagradável — e as pessoas gritaram.

— O hïrzg!

— Andem! Andem!

— Lá em cima! Lá está ele!

Allesandra ouviu offiziers berrarem ordens e mais gritos. Parecia haver uma multidão amontoada em volta dela. A a’hïrzg lutou contra os braços à sua volta, contra as dobras do manto do agressor e da própria tashta e a capa de equitação. Havia mãos que a puxavam para ajudá-la a se levantar.

Houve outro grito, um berro humano dessa vez, e outro impacto em algum lugar próximo.

Allesandra pestanejou e tentou entender a situação.

Sergei ca’Rudka estava de pé ao lado dela, com a capa rasgada e uma careta no rosto enquanto massageava o braço. A superfície de prata do nariz estava arranhada e o próprio nariz tinha sido parcialmente arrancado do rosto, o que deu a Allesandra um vislumbre do buraco desagradável que ficava embaixo. Jan estava sendo ajudado a se levantar, a um passo atrás de Sergei. O cavalo de Allesandra estava caído de lado diante dela, com uma enorme estátua de um demônio moitidi em volta. O animal de olhos arregalados batia as patas, e os sons que fazia... Sergei foi rapidamente até ele, ajoelhou-se nos destroços do entalhe de pedra e acariciou o pescoço do animal enquanto fazia sons tranquilizadores. Allesandra viu o comandante sacar a faca da bainha. — Não! — Ela começou a dizer, mas Sergei já tinha feito o corte rápido e profundo. O animal deu um pinote, mais um e ficou imóvel.

Allesandra balançou a cabeça para tentar clarear a mente. Metade da multidão na praça parecia ter fugido aterrorizada; os soldados firenzcianos formaram um sólida defesa em volta deles. Sergei afastou-se do cavalo e andou a passos largos até um corpo esparramado em uma poça de sangue não muito longe da base da torre. Os soldados se moveram para interceptá-lo; ele se desvencilhou deles com raiva. Allesandra começou a se mexer e percebeu que o corpo estava dolorido e machucado, e que sangrava, com um corte na cabeça. A a’hïrzg sentiu Jan chegar por trás.

— Matarh? — Ele olhava fixamente para o cavalo que Sergei matou. Allesandra abraçou o filho desesperadamente, depois afastou Jan para examiná-lo; as roupas estavam rasgadas também e havia um arranhão na bochecha que sangrava, tirando isso, ele parecia ileso.

— O que aconteceu? — perguntou ela. — Você viu?

— O regente nos salvou — disse Jan. — Ele nos tirou dos cavalos bem a tempo. — O hïrzg ergueu os olhos para o andaime, depois abaixou o olhar para o corpo no chão. Sergei estava cercado por uma massa de soldados, ajoelhado ao lado do cadáver. — O homem... ele estava lá em cima. Teria matado a senhora. Talvez nós dois. Mas Sergei...

O archigos Semini veio correndo então, com o robe verde esvoaçante. — Allesan... — Ele começou a dizer, depois balançou a cabeça e fez o sinal de Cénzi às pressas. — A’hïrzg! Hïrzg! Graças a Cénzi os senhores estão a salvo! Eu pensei...

Mas Allesandra já não o ouvia. Ela avançou pela multidão até o lugar onde Sergei examinava o corpo. — Regente? — falou a a’hïrzg, e Sergei ergueu o olhar para Allesandra, com uma cara feia.

— A’hïrzg. Eu peço desculpas, mas não tive tempo de dar um aviso. A senhora está muito machucada?

Ela balançou negativamente a cabeça. Sergei assentiu e gemeu ao ficar de pé, como se o movimento o tivesse ferido. — Estou velho demais para isso — murmurou. Ele chutou o cadáver, e a bota fez um som macio e desagradável quando o torso quebrado tremeu em resposta. Allesandra viu um rosto bonito sob o sangue, um rosto jovem, talvez da idade de Jan; ela notou que as roupas eras elegantemente suspeitosas. O corpo estava decorado por hastes quebradas de várias flechas. — Não sei quem ele é — disse Sergei —, mas descobriremos. É um ca’ ou co’, pelo jeito que está vestido e pela aparência física. Eu o vi no alto do andaime bem antes de ele jogar a estátua. Foi quando entrei em ação; parece que seus arqueiros cuidaram do resto. — Ca’Rudka pareceu notar o nariz pendurado então, empurrou-o com cuidado de volta ao lugar e o segurou com dois dedos. — Perdão, a’hïrzg... a cola...

— Não importa — falou Allesandra, abanando a mão. — Regente, eu lhe devo a minha vida.

Ela pensou que Sergei responderia como a maioria, com a cabeça baixa e depreciação, uma declaração sobre dever, lealdade e obrigação. Ele não fez isso. Ao contrário, ca’Rudka sorriu, ainda segurando o nariz de prata no lugar.

— Realmente, a senhora me deve, a’hïrzg.

 

Niente

A CIDADE QUEIMAVA e as chamas eram refletidas na tigela premonitória. Elas sumiram quando Zolin deu um tapa no objeto, que derramou água sobre Niente. A tigela fez barulho ao cair, o bronze retiniu nos ladrilhos como um sino frenético até bater na parede do outro lado, onde reluzia um mosaico de azulejos de alguma batalha antiga. Desenhados no vidro, cavalos empinavam enquanto lanças marchavam em um campo com uma montanha de pico nevado que se agigantava ao fundo.

— Não! — rugiu o tecuhtli. — Não deixarei que me diga isso!

— É o que eu vi — respondeu Niente com uma calma que não sentia. O guerreiro morto, o nahualli esparramado ao lado dele, só que dessa vez ele viu um dos rostos. O rosto de Zolin... E ele estava com medo demais para pedir a Axat que lhe deixasse ver as feições do nahualli... — Tecuhtli, nós realizamos tanta coisa aqui. Mostramos a estes orientais a dor que eles infligiram a nós e a nossos primos. Tomamos terras e cidades deles assim como eles tomaram de nós. Demos a lição que o senhor queria dar. Continuar... — O nahual ergueu as mãos. A grande cidade em chamas e os tehuantinos em fuga, os navios com mastros quebrados adernados no rio... — As visões só me mostram morte.

— Não! — disparou Zolin. — Eu mandei uma mensagem para casa dizendo que ficaríamos aqui, que eles deveriam mandar mais guerreiros. Manteremos o que conquistamos. Atacaremos o coração dos orientais: essa grande cidade que está tão próxima. — Ele se virou, os braços pesados e musculosos passaram perto do rosto de Niente. Os dedos grossos do tecuhtli apontaram para os olhos do feiticeiro. — Você está cego, nahual? Não viu como foi fácil tomar essa cidade dos orientais? Não viu como eles correram como um bando de cães açoitados?

— Temos pouco material sobrando para fazer mais areia negra — falou Niente. — Eu perdi um terço dos meus nahualli no combate; o senhor perdeu a mesma quantidade em guerreiros. Chegamos muito longe, sem recursos para manter a terra atrás de nós. Estamos em um país estrangeiro cercado por inimigos, com apenas os suprimentos que conseguimos coletar e pilhar. Se voltarmos para os nossos navios agora e formos embora, deixaremos para trás uma lenda que provocará medo nos orientais por décadas. O nome do tecuhtli Zolin será um sussurro na noite que assustará gerações de crianças orientais.

— Bá! — disparou Zolin novamente. O cuspe quase acertou os pés de Niente e sujou o chão lustroso da mansão que ele tomou em Villembouchure. Ao abaixar o olhar, o nahual viu que todos os azulejos tinham a imagem da mesma montanha, como no mosaico da parede. O cuspe de Zolin formou um lago no flanco da montanha. — Você é mesmo uma criança assustada, nahual. Eu não tenho medo do que você vê na sua tigela. Não tenho medo desses futuros que você diz que Axat lhe envia. Eles não são o futuro, são apenas possibilidades. — O dedo cutucou o peito de Niente. — Vou lhe dizer uma coisa agora, nahual: você tem que fazer sua escolha. — Cada uma das três últimas palavras ditas foram acompanhadas por uma cutucada. Os olhos escuros do tecuhtli, envolvidos no movimento das asas da grande águia, encararam Niente como um daqueles grandes felinos que espreitavam as florestas de sua terra natal. — Chega de suas palavras. Chega de profecias, chega de avisos. Eu quero apenas a sua obediência e a sua magia. Se não puder me dar isso, então chega de você. Eu prosseguirei, quer você seja o nahual ou não. Decida agora, Niente. Aqui mesmo.

A mão de Niente tremeu ao lado do punho do cajado mágico que estava pendurado no cinto. O nahual seria capaz de pegá-lo e tocar Zolin com o objeto antes que o guerreiro conseguisse sacar a espada completamente. O feitiço disparado queimaria o tecuhtli e lançaria o corpo pela sala até ele desmoronar contra a parede em uma pilha fumegante debaixo do mosaico. Niente conseguia ver aquele resultado tão claramente quanto uma visão na tigela premonitória.

O ataque também acabaria com essa situação. Ele ansiava por isso.

Mas Niente não podia atacá-lo. Essa não era uma visão dada por Axat. Esse caminho levaria a um dos futuros cegos, um que ele não poderia adivinhar — um futuro que poderia ser bem pior para os tehuantinos do que o visto na tigela. O nahual percebeu que conhecer os futuros possíveis era tanto uma armadilha quanto um benefício; ele perguntou-se se isso era algo que Mahri também descobrira. Em um futuro cego, Citlali ou Mazatl poderiam continuar a seguir os passos de Zolin e se sair ainda pior. Todos eles poderiam morrer aqui, e ninguém em casa saberia seus destinos. Em um futuro cego, certamente Niente jamais veria sua família novamente.

Ele sentiu a madeira lisa e lustrosa do cajado mágico, mas as pontas dos dedos apenas roçaram o objeto. Eles não se fecharam em volta do punho.

— Eu obedecerei ao senhor, tecuhtli — falou Niente, com palavras baixas e lentas. — E o seguirei ao futuro que o senhor nos trouxer.

 

Varina ci’Pallo

KARL ESTAVA SENTADO no degrau da porta dos fundos da casa de Serafina no Velho Distrito e olhava fixamente através de um pequeno jardim plantado ali, na direção da parte detrás das casas da próxima rua. O olhar parecia penetrar a margem sul, bem ao longe. Acima dele, a lua estava presa em uma rede de finas nuvens prateadas através das quais as estrelas espiavam. Uma xícara de chá parecia esquecida à sua esquerda.

Karl esfregava uma pedra clara, pequena e achatada, entre o indicador e o polegar.

Varina apareceu e sentou-se à sua direita — não perto o suficiente para tocá-lo, nem longe demais a ponto de não sentir o calor do corpo no frio da noite. Nenhum deles disse coisa alguma. Karl esfregou a pedra. Ela ouviu a música abafada e distante que vinha da taverna mais à frente.

Quando o silêncio entre os dois prolongou-se por tempo demais para ela, Varina começou a ficar de pé. Sentiu raiva de si mesma por ter vindo aqui fora e raiva de Karl por tê-la ignorado. Porém, ele esticou o braço e tocou em seu joelho. — Fique — disse Karl. — Por favor?

Varina sentou-se novamente e perguntou — Por quê?

— Nós não... nos últimos dias... Bem, você sabe.

— Não, eu não sei — falou ela. — Diga-me.

— Por que você tenta dificultar as coisas para mim? — Ele girou a pedra nos dedos.

— Não, estou tentando facilitá-las para mim. Karl, estar com ou sem você são duas situações com as quais eu consigo lidar, de um jeito ou de outro. O que eu não consigo encarar é não saber qual delas é nossa situação. — Varina esperou. Karl não disse nada. — Então, qual é? — perguntou ela.

— Não é tão simples assim.

— Na verdade, é. — Varina abraçou o próprio corpo ao se sentar e inclinou-se um pouco longe dele. — Quando finalmente levei você para minha cama, eu achei que teria tudo que queria há anos. Mas descobri que eu ainda tinha apenas uma parte de você. Quero você por inteiro, Karl, ou não quero nada. Talvez eu esteja exigindo demais de você, ou talvez eu seja muito possessiva, ou talvez você ache que eu esteja forçando uma coisa que você não quer. — Lágrimas ameaçaram cair, e ela fungou o nariz para contê-las, com raiva. — Talvez seja culpa minha que essa situação não dê certo, e, se for o caso, então tudo bem. Mas eu simplesmente preciso saber.

— A questão não é você.

Varina queria acreditar naquilo. Ela mordeu o lábio inferior, conteve as lágrimas, teve dificuldade para respirar. — Então o que é? Você vai atrás desse tal Uly por conta própria, quase morre, encontra com Kenne sem me contar, está até mesmo fazendo planos com Talis. Mas não fala comigo.

— Eu não quero que você se preocupe.

Varina quis escarnecer ao ouvir isto. — Eu me preocupo mais quando não sei a situação. Não sei o que você planeja, não sei o que tenta fazer, não sei quais seriam os verdadeiros perigos. — Ela parou. Respirou fundo. — Eu não quero ser sua amante, estar à disposição sempre que você quiser esse tipo de consolo, e ser convenientemente esquecida fora isso. Se isso é tudo o que você quer de mim, então eu cometi um erro. Também não sou Ana, não quero você apenas como amigo. Novamente, se isso é tudo que você quer de mim, bem, também não pode me ter como amiga. Não mais. Então, se esse for o caso, me diga, e assim que essa situação acabar, de uma forma ou de outra, eu tomo o meu próprio rumo. Eu quis que você abrisse a porta entre nós por muito tempo, Karl. Agora você abriu, mas não pode ficar parado ali com um pé dentro e outro fora. Eu preciso fechá-la e trancá-la para sempre ou você precisa entrar de vez.

— Como eu faço isso? — A voz soou melancólica na escuridão. Ele apertou a pedra entre os dedos. Como você pode não saber? Ela queria ralhar com ele. Não é capaz de enxergar tão nitidamente quanto eu?

— Fale comigo — disse Varina. — Compartilhe o que está pensando. Deixe-me aceitar os perigos que você está disposto a aceitar. Deixe-me estar com você.

Ela pensou que Karl não fosse responder — o que teria sido uma resposta suficiente. Ele ficou sentado ali, ainda brincando com a pedra e olhando para longe. Varina começou a se levantar novamente, mas dessa vez Karl pegou sua mão. Ela sentiu a pedra ser pressionada contra a palma.

— Espere — falou ele. — Deixe-me contar o que estou pensando...

E Karl começou a falar.

 

Kenne ca’Fionta

AUBRI CO’ULCAI PARECIA um cão açoitado ao se ajoelhar, de cabeça baixa, perante a kraljica. A armadura estava arranhada e surrada, o rosto tinha marcas de sujeira e fumaça, o cabelo estava escuro e emaranhado, e ele fedia. No salão do Trono do Sol, o comandante parecia uma mosca patinando em uma xícara dourada de água limpa e fria.

Não que o salão em si não tivesse cicatrizes. Ninguém deixaria de notar as marcas dos reparos feitos às pressas onde o Trono do Sol foi danificado pela magia do assassino — não, não era magia, se Karl ca’Vliomani estivesse correto, lembrou-se Kenne, mas algo mais sinistro; uma coisa que qualquer boticário seria capaz de fazer com os ingredientes certos. De que o embaixador ca’Vliomani chamou aquilo? O fim da magia? O archigos perguntou-se se o homem estava certo.

As tapeçarias penduradas ainda fediam à fumaça, e Kenne imaginou se não havia um leve tom horripilante de rosa nos ladrilhos em volta do tablado do trono. E não havia como não notar a aparência da própria kraljica Sigourney: o tapa-olho e as cicatrizes no rosto, as bandagens ainda nos braços e na única perna, a maneira como ela se remexia com dor no assento, a taça cheia do extrato das sementes da flor venenosa cuore della volpe — um preparado que o ervanário da corte criou para aliviar a sua dor.

Ainda assim, o Trono do Sol reluzia sob e em volta dela como fizera com inúmeros kralji; Kenne cuidou disso pessoalmente. Se fosse uma farsa, ninguém que observasse saberia. Kenne suspirou na própria cadeira à direita do trono, cansado pelo esforço de conjurar o feitiço de luz. O Conselho dos Ca’ estava disposto à esquerda. O salão fora esvaziado de cortesãos e até mesmo de criados — nenhum deles queria mais rumores espalhados pela cidade além dos que já haviam.

— Comandante co’Ulcai — falou Sigourney em uma voz tão arrasada quanto o rosto —, a informação que você nos traz... — Ela parou e fechou o único olho. Quando abriu novamente, a voz saiu mais inteligível. — Você nos desapontou.

— Eu sinto muito, kraljica — disse o comandante. — A senhora já deve estar com minha carta de resignação.

— Eu estou com ela, mas não irei aceitá-la. — Quando co’Ulcai ergueu o rosto com uma leve esperança, Sigourney olhou o homem com desprezo. — E não há outra razão além do fato de que temos poucos offiziers com a sua experiência. Você nos desapontou com os ocidentais, e a mancha em seu currículo não será facilmente apagada. Eu tenho a intenção de mandar que Aleron ca’Gerodi comande as defesas de Nessântico caso esses bárbaros sejam tolos o bastante para continuar a avançar. Se meu irmão estivesse aqui... — Ao dizer isso, os lábios tremeram e um brilho úmido surgiu no olho. Ela tomou um gole de cuore della volpe. — Quanto a você, veremos como se sai contra um inimigo que deve conhecer melhor. Vou mandá-lo para leste, comandante co’Ulcai, para comandar nossas forças contra o exército de Firenzcia. Odil ca’Mazzak, do Conselho, irá acompanhá-lo, e vocês dois partem amanhã. — A kraljica gesticulou com o braço para dispensá-lo. — Imagino que tenha preparativos a fazer, comandante.

Co’Ulcai ficou de pé, fez uma mesura para a kraljica e foi embora do salão com passos altos no silêncio que o acompanhou. Quando ele saiu, a kraljica Sigourney suspirou.

— Eu não confio no sujeito — murmurou Odil ca’Mazzak. — Ele é outro offizier com laços com o regente traidor.

— Infelizmente, co’Ulcai é o melhor que temos — respondeu a kraljica Sigourney. — Odil, precisamos rever os pontos da negociação que você discutirá com os firenzcianos. Archigos, preciso que você se manifeste contra os numetodos, por duas razões: para aplacar Firenzcia e para sabermos que não temos traidores na cidade enquanto enfrentamos inimigos dos dois lados. Eu espero ouvir Admoestações agressivas de sua parte e de todos os seus ténis, a começar com as missas da Terceira Chamada.

Kenne sabia que ela não esperava ouvir objeção alguma de sua parte; Sigourney já havia afastado o rosto antes de terminar de falar. A kraljica imaginava que ele apenas concordaria com a cabeça e não diria nada. Antigamente, ela estaria certa.

Antigamente. Mas havia a visita de Karl, havia o espectro do falso archigos Semini ca’Cellibrecca surgindo no horizonte e tudo o que aquilo significaria. E havia a memória de Ana e a liberdade e tolerância pelas quais ela lutou por anos.

— Não — disse Kenne. — Eu não farei isso.

O silêncio que se seguiu foi longo. A kraljica Sigourney piscou o único olho. — Não — repetiu ela, e a palavra soou como o toque de um sino fúnebre. — Eu ouvi direito, archigos?

Kenne concordou com a cabeça. — A senhora está... — A garganta estava seca. Ele engoliu em seco e tentou juntar alguma saliva. — A senhora está errada a respeito dos numetodos, kraljica. Está errada em acreditar que foi a magia deles que matou o kraljiki Audric e feriu a senhora. Não foram eles.

Ela piscou o único olho mais uma vez. Os outros conselheiros observavam os dois, em silêncio. — Não foram? E como você sabe disso?

— Porque eu falei com o embaixador ca’Vliomani, na verdade. Ouvi suas explicações e fiz minha própria investigação sobre o que ele descobriu.

— Karl Vliomani — a nítida falta de um prefixo ao sobrenome pairou pesadamente no ar — é um fugitivo atualmente condenado à morte. Está me dizendo que ele foi até você, e você o deixou escapar?

Kenne sentiu um arrepio com o tom de voz. — Ele veio até mim, sim, e me mostrou isso. — Ele tirou um pequeno frasco de vidro debaixo do robe verde. No interior, a areia negra reluzia. — Observem. — O archigos levantou-se da cadeira, arrastou os pés pelo tablado e desceu para o piso do salão. Tomou vários passos de distância do trono, depois tirou a rolha do frasco e deixou a areia jorrar sobre os ladrilhos. Kenne voltou para o tablado; os joelhos estalaram como gravetos secos quando subiu os degraus. — Todo mundo concorda que Enéas co’Kinnear usou um feitiço para criar fogo; mas aquele era um feitiço de téni, não de numetodo. Co’Kinnear foi um acólito da fé concénziana e teve alguma educação sobre o uso do Ilmodo. É muito provável que ele tenha aprendido aquele feitiço; é um dos primeiros a serem ensinados aos novos estudantes. Olhem...

Kenne ergueu as mãos e deixou que dançassem no rápido gestual enquanto a voz entoou as curtas frases necessárias. Um momento depois, uma chama amarela tremeluziu no ar entre suas mãos. — Todos os senhores viram isso mil vezes; todas as noites, quando as lâmpadas são acesas ao longo da Avi a’Parete. Isso aqui não é diferente...

O archigos abriu as mãos, começou um novo cântico, e a chama afastou-se de sua mão, saiu flutuando do tablado até pairar sobre a areia negra. Ali, ele abaixou as mãos devagar, e a chama respondeu da mesma forma, desceu até quase tocar a pilha escura...

O estrondo da explosão foi mais alto até mesmo do que Kenne esperava, e o clarão feriu os olhos. Uma fumaça branca subiu e se espalhou pelo salão, seguida de um cheiro cáustico e intenso. Ele ouviu o baque metálico quando a taça do cuore della volpe caiu do braço do Trono do Sol para o chão. A kraljica Sigourney estava com a respiração acelerada no trono e a mão erguida diante do rosto como se tentasse se proteger; ela parecia tentar ficar em uma perna só enquanto pegava a bengala perto da mão direita. Vários conselheiros estavam de pé e berravam. As portas do salão foram escancaradas por gardai, que entraram com espadas na mão. — Kraljica?

Sigourney abaixou as mãos. Kenne ouviu a respiração da kraljica desacelerar. Ela dispensou os gardai com um gesto. — Este cheiro... — murmurou Sigourney. — Eu me lembro dele mais do que de tudo. — Ela virou-se lentamente para o archigos e perguntou — Isso não é magia? Como é possível que isso não seja o Ilmodo, archigos?

— Porque é apenas alquimia — respondeu Kenne —, uma combinação de ingredientes que reage violentamente quando entra em contato com fogo. Havia traços desta areia negra na madeira do Alto Púlpito após a archigos Ana ser morta; os mesmos traços estavam no Trono do Sol e no corpo do kraljiki Audric.

— Os numetodos alegam que a fé em Cénzi não é necessária para usar magia, que qualquer pessoa é capaz disso, que não é mais complicado do que ser um padeiro. Eles olham para pedras com formato de conchas e crânios e inventam teorias estranhas, eles realizam experiências... em alquimia, assim como em outras “ciências”, bem como em magia. Para mim, isso parece indiciar os numetodos. — Quem falou foi Odil ca’Mazzak. Ele olhou com raiva para o archigos, e a kraljica concordou com a cabeça diante das palavras.

— Eu afirmo que isso não veio dos numetodos — insistiu Kenne.

— Mesmo que tenha sido Vliomani quem, por acaso, lhe mostrou isso — retrucou Odil com desdém. — Parece uma lógica estranha.

— A areia negra é um preparado ocidental — disse Kenne. — Aqui está a lógica, conselheiro. Enéas co’Kinnear tinha acabado de retornar do serviço militar nos Hellins. O senhor também deve se lembrar que o comandante co’Ulcai acabou de nos contar como os ocidentais foram capazes de destruir as muralhas de Villembouchure com explosões similares àquelas que mataram a archigos Ana e o kraljiki Audric.

— E ele disse que as explosões foram criadas pela magia dos ténis-guerreiros ocidentais, esses tais “nahualli”. — Odil balançou a cabeça grisalha. A pele flácida da garganta sacudiu com o movimento. — Eu acho que o archigos está enga...

— Não! — Dessa vez Kenne quase gritou e bateu o pé no chão ao mesmo tempo. — Eu não estou enganado. Sei que todos os senhores me acham um velho tolo e decrépito que é uma mera sombra do que um archigos deveria ser. Os senhores podem estar certos quanto a isso, mas estão errados nessa questão. Pior do que errados; eu tenho provas que me fazem acreditar que o falso archigos Semini está envolvido no assassinato da archigos Ana. E, se esse for o caso... — Ele parou, sem fôlego. Todos encaravam o archigos como se ele fosse uma criança tendo um ataque. — Nós precisamos dos numetodos, kraljica, conselheiros — continuou Kenne, com a voz mais baixa. — Precisamos das habilidades, da magia e do conhecimento deles. Nessântico está prestes a ser sitiada pelo oeste e pelo leste, e não podemos nos dar ao luxo de perder aqueles que podem nos ajudar.

Houve um longo e doloroso silêncio. Odil lambeu os lábios e sentou-se. Os outros integrantes do Conselho abaixaram a cabeça e entreolharam-se. A kraljica Sigourney olhou fixamente para a mancha negra nos ladrilhos. — Nós consideraremos o que você disse, archigos — falou ela, finalmente, e Kenne sabia o que isto significava.

Ele gemeou e levantou-se da cadeira novamente. Pegou o cajado de archigos com a mão direita — o globo partido envolto pelos corpos nus e contorcidos dos moitidis — e fez o sinal de Cénzi para a kraljica com a esquerda. Novamente, Kenne afastou-se do tablado arrastando os pés. Ao passar pelo ponto onde a areia negra havia explodido, parou. Os ladrilhos ali estavam quebrados. Ele pegou um dos pedaços maiores, com uma borda afiada de cerâmica azul-clara e a superfície lisa manchada com o que parecia ser fuligem. O cheiro da areia negra era forte. Kenne levantou o pedaço do ladrilho e deixou cair, o som se parecia com o de um prato se quebrando. Ele viu os pedacinhos quicarem e se espalharem.

— Nessântico inteira pode ficar assim — disse o archigos. — Inteira.

Não houve resposta. Ele bateu com a ponta do cajado de archigos no ladrilho e continuou arrastando os pés.

 


Sergei ca’Rudka

A TENDA DE NEGOCIAÇÃO FOI ARMADA em um campo entre as duas forças: ao lado da Avi a’Firenzcia e aproximadamente a meio caminho entre Passe a’Fiume e Nessântico. Ao se aproximarem, Sergei já podia ver as silhuetas escuras de Odil ca’Mazzak e Aubri co’Ulcai através do pano branco, juntamente com o u’téni Petros co’Magnaoi, presente como o representante do archigos. A delegação firenzciana era composta por Sergei, a a’hïrzg Allesandra e o starkkapitän ca’Damont, acompanhados pelo obrigatório conjunto de chevarittai e assistentes. Uma vez que nem a kraljica nem o archigos Kenne estavam presentes, o hïrzg e o archigos Semini, diante da sugestão de Sergei, ficaram para trás. Nenhum dos dois ficou contente com o arranjo.

— Matarh, eu deveria estar lá — insistiu Jan. — Eu sou o hïrzg, e o que acontecer deve ser, tem que ser minha decisão. — Ele olhou feio para Sergei e Allesandra.

— E será, hïrzg — disse Sergei para o jovem. — Eu lhe prometo, mas para o senhor estar lá... — Ele balançou a cabeça. — O senhor é o hïrzg, como disse. Não há um igual ao senhor naquela tenda; também não há um igual ao archigos. Não é esperado do senhor, hïrzg Jan, que negocie em termos iguais com Odil ca’Mazzak, que é apenas um integrante do Conselho dos Ca’; o senhor estaria se rebaixando se fizesse isso. Eu lhe digo que isso é exatamente o que eles querem que faça. Seria uma admissão de que o hïrzg da Coalizão é alguém inferior à kraljica dos Domínios.

Sergei então olhou para Allesandra e para o archigos, que estava com a cara fechada. — Os senhores me pediram para dar meu conhecimento, para ajudá-los. É o que estou fazendo aqui. Aparências importam. Importam muito. Especialmente para aqueles no Palácio da Kraljica.

No fim, com o apoio de Allesandra, o regente venceu o argumento. Jan, pelo menos, foi, de certa forma, educado. Irritado, o archigos saiu em um rompante, e eles ouviram Semini reclamar pelo acampamento pelas próximas viradas da ampulheta.

Conforme o contingente firenzciano desmontava e criados recolhiam as armas e os cavalos e ofereciam comidas e bebidas, os representantes de Nessântico aproximaram-se. Sergei apertou afetuosamente o braço de co’Ulcai e sorriu para seu offizier de longa data. — Aubri, eu gostaria que pudéssemos ter nos encontrado sob circunstâncias melhores. Eu soube o que aconteceu com o pobre Aris... — Ele apertou o ombro do homem e fez o sinal de Cénzi para o u’téni Petros co’Magnaoi. — Petros, é bom vê-lo também. Como está o archigos Kenne?

— Está bem, senhor, e lhe manda bênçãos — respondeu o homem mais velho.

Sergei inclinou-se para perto do u’téni ao abraçá-lo. — Kenne recebeu minha mensagem? — sussurrou o regente no ouvido do velho. — Ele concorda? — Sergei sentiu o leve aceno de Petros. Também viu os olhares de avaliação de ambas as delegações sobre ele ao cumprimentar os dois homens: tanto de Allesandra quanto de Odil ca’Mazzak. Ambos tinham suspeitas; ambos tinham o direito de ter. Sergei acenou com a cabeça para ca’Mazzak e sentou-se à esquerda de Allesandra.

O conselheiro gesticulou, e pajens aproximaram-se para entregar rolos pesados de pergaminhos a Allesandra, Sergei e ao starkkapitän. — Esta é a oferta da kraljica Sigourney — falou ca’Mazzak enquanto o trio lia as palavras presentes ali. — Seu exército terá permissão para retornar a Firenzcia. O fora da lei Sergei Rudka será entregue a nós. Reparações serão pagas por Brezno para os Domínios pela destruição de colheitas e gado feita por seu exército e pela violação do Tratado de Passe a’Fiume. Se os senhores acharem os termos aceitáveis, só é necessário que a a’hïrzg assine como representante da Coalizão.

Não era mais do que Sergei esperava. Ele já testemunhara a arrogância e o excesso de confiança dos Domínios muitas vezes antes.

O starkkapitän ca’Damont bufou desdenhosamente pelo nariz e jogou o pergaminho na mesa. — E como a kraljica pretende executar essa oferta, conselheiro? Com os poucos batalhões que o senhor deu ao comandante co’Ulcai? Não tenho nada além de respeito pelo comandante, que é um belo offizier, mas não se afasta um urso raivoso com um graveto. — Ele pareceu se dar conta de que falou o que não devia. O rosto ficou um pouco vermelho. — Perdão, a’hïrzg. Eu sou um simples offizier, mas essas exigências... — Ele empurrou o pergaminho da mesa para o chão; um pajem correu para pegá-lo, mas não o devolveu ao starkkapitän.

— A Garde Civile e os chevarittai dos Domínios não são um graveto, starkkapitän — gabou-se ca’Mazzak. Ele inchou como um sapo, sentado ereto na cadeira, a papada no pescoço grosso tremeu. — O senhor subestima nossa capacidade de botar um exército em campo rapidamente quando nossas terras são ameaçadas. É uma lição que o último hïrzg Jan aprendeu; estou surpreso que alguém em Firenzcia sinta necessidade de aprendê-la uma segunda vez.

Allesandra parecia ainda estar lendo a proposta, embora Sergei tenha notado que ela escutava com atenção o diálogo. A a’hïrzg pousou o papel diante de si e dobrou as mãos sobre ele. — Muito bem. Deixemos a pose de lado, conselheiro ca’Mazzak. Todos sabemos que Nessântico enfrenta uma ameaça a oeste. Sabemos o que aconteceu com Karnor; ouvimos rumores que Villembouchure pode ter sofrido o mesmo destino. Talvez o comandante co’Ulcai possa nos esclarecer sobre isso, uma vez que eu espero que ele tenha estado lá quando as forças dos Domínios foram escorraçadas? Todo mundo nesta mesa sabe que o senhor não tem forças suficientes para nos desafiar aqui. Então o que é que a kraljica realmente oferece?

Sergei havia sugerido esse curso direto de ação para Allesandra, mas a provocação a Aubri co’Ulcai tinha sido contribuição da própria a’hïrzg. A expressão no rosto de Aubri foi o suficiente para confirmar que o palpite dela estava correto, e Sergei sentiu uma pontada de compaixão pelo amigo.

Ca’Mazzak parecia ter engolido uma fruta podre. Ele deu uma olhadela para Petros, que parecia examinar os campos além do limite da tenda, e depois para Aubri. — A kraljica está preparada para oferecer um meio-termo — falou o conselheiro finalmente. — Que o hïrzg e a a’hïrzg voltem para Brezno com a Garde Brezno; no entanto, o starkkapitän ca’Damont e o restante do exército ficam para trás, a fim de auxiliar na defesa de Nessântico contra os ocidentais, ajuda pela qual o tesouro de Nessântico está disposto a pagar. Quanto ao antigo regente... — ca’Mazzak olhou com ódio para Sergei. — A kraljica Sigourney mantém a exigência do retorno de Sergei Rudka para que enfrente as acusações contra ele, não importa o acordo a que cheguemos aqui.

Allesandra ficou de pé ao ouvir isso; um momento depois, Sergei, ca’Damont e o resto do contingente firenzciano acompanhou o gesto. — Então estamos encerrados aqui — disse a a’hïrzg. — O regente ca’Rudka é um conselheiro da coroa de Firenzcia, e nós o consideramos o legítimo governante atual de Nessântico até que um kralji de direito seja nomeado. Se o regente ca’Rudka desejar retornar à Nessântico por conta própria para lutar por seu direito, ele pode fazê-lo. Caso contrário, ele está sob a proteção do hïrzg, não importa o que a pessoa que os senhores nomearam kraljica deseje. — Ela fez uma mesura para ca’Mazzak e gesticulou. Sergei deu um largo sorriso para o homem. Eles deram meia-volta para ir embora.

— Esperem! — Foi Petros que os chamou. Allesandra parou.

— U’téni? — perguntou a a’hïrzg, mas ca’Mazzak já vociferava.

— Eu estou no comando dessa delegação — falou o conselheiro. — Você fala quando eu lhe der permissão, u’téni co’Magnaoi.

— Cénzi está no comando da minha consciência — disse Petros. — Não o senhor, nem a kraljica Sigourney. E eu falarei. A’hïrzg, Nessântico está em uma situação desesperadora. O comandante co’Ulcai poderia lhe dizer, se tivesse permissão para falar, com que facilidade os ocidentais tomaram os vilarejos e as cidades que eles devastaram. Nessântico precisa desesperadamente de todos os aliados que conseguir reunir agora. O archigos Kenne está preparado para negociar separadamente da kraljica, se for necessário, para alcançar esse objetivo.

— O quê? — esbravejou ca’Mazzak. Ele também estava de pé agora e socou a mesa. — Não, não, não. Estamos encerrados aqui. U’téni co’Magnaoi, você será levado de volta à cidade para responder por isso. Comandante, mande seus gardai...

Sergei deu um tapa na mesa bem na frente de ca’Mazzak, o homem fechou a boca com um estalo alto. — O senhor não é nada além do cachorrinho bravo da kraljica, conselheiro — disse o regente ao se inclinar na direção do homem. — Sente-se.

Ca’Mazzak o olhou com ódio e virou-se para Aubri. — Comandante, o senhor tem as suas ordens. O senhor prenderá o u’téni imediatamente.

Aubri não se mexeu, não respondeu. Sergei sentiu a tensão aumentar na tenda. Viu mãos deslizarem cautelosamente na direção das armas escondidas — ele mesmo tinha as próprias facas, uma na bota, outra debaixo da blusa da bashta, e o zumbido do próprio medo ecoava em seus ouvidos. O regente não conseguira contatar Aubri antecipadamente, e se o comandante tivesse decidido que sua lealdade ao Trono do Sol era maior do que a velha lealdade a Sergei, então... Bem, então Sergei não sabia o que poderia acontecer aqui.

— Comandante co’Ulcai, isso é traição — rosnou ca’Mazzak. — Vou exigir sua cabeça por isso, se não fizer como mandei.

Aubri não disse nada; o olhar contemplativo continuava em Sergei. Os chevarittai de ambos os lados ficaram tensos, prontos para agir. Sergei colocou-se entre Allesandra e a mesa e falou — Eu sugiro que o senhor se sente, conselheiro. Deixe o u’téni co’Magnaoi terminar de explicar sua proposta.

Por vários instantes, ca’Mazzak não se mexeu. Ele olhou em volta da tenda lentamente, Sergei sabia que o conselheiro estava avaliando quem ali o seguiria ou não. Evidentemente, o homem não ficou satisfeito com o resultado. Devagar, ca’Mazzak sentou-se novamente. Ele olhou fixamente para as próprias mãos.

— Ótimo — disse Sergei. Por um momento, o zumbido nos ouvidos diminuiu. — Petros, o que o archigos Kenne tem a oferecer para Firenzcia?

— Informação — respondeu Petros. — Nós temos provas de que o archigos Semini esteve envolvido no assassinato da archigos Ana. Podemos dar nomes que verificam essa informação. — Atrás dele, Sergei ouviu Allesandra tomar fôlego diante da acusação. O regente ficou intrigado com a reação; ela parecia mais preocupada do que surpresa. — Como o kraljiki Audric foi morto da mesma maneira — continuou Petros —, nós suspeitamos que o falso archigos esteve envolvido da mesma maneira. Se o hïrzg Jan estiver disposto a julgar o archigos Semini pela morte da archigos Ana em sua própria corte, nós daremos as provas que temos. Em troca, a Fé de Nessântico trabalhará com a Fé de Brezno para restaurar o nosso racha; o archigos Kenne irá convocar um Conclave com todos os a’ténis para eleger um único archigos para reger a fé concénziana, e também abdicará voluntariamente se não for eleito; porém, qualquer archigos eleito deverá assumir o Templo do Archigos em Nessântico, não em Brezno. Da mesma forma, a Fé está disposta a reconhecer o direito ao Trono do Sol de Allesandra ca’Vörl. O archigos Kenne irá apoiá-la diante do Conselho dos Ca’ contra a kraljica Sigourney.

— Não! — Ca’Mazzak ficou de pé em um pulo novamente, e uma baba voou de sua boca com a explosão da palavra. — O archigos Kenne será jogado na Bastida por isso, e os ténis que o apoiarem serão expulsos...

— Se isso acontecer — respondeu Petros calmamente —, então o archigos Kenne mandará que os ténis-guerreiros permaneçam nos templos em vez de responderem ao chamado da kraljica. Como a Garde Civile e os chevarittai se sairão contra os ocidentais sem os ténis-guerreiros, conselheiro? Como enfrentarão o exército do hïrzg?

Novamente, ca’Mazzak desmoronou na cadeira. Ele sentiu um arrepio, como se estivesse com febre e alisou a papada. A testa porejava, e debaixo dos braços, o tecido da bashta escureceu.

Allesandra tocou o ombro de Sergei, que se afastou. A a’hïrzg deu um sorriso amargo e fez o sinal de Cénzi para Petros. — Vocês oferecem tudo isso pelo julgamento do archigos Semini?

Petros concordou com a cabeça. — Nós confiamos que a corte do hïrzg será justa e imparcial. E há mais uma coisa: toda perseguição contra os numetodos deve parar. Imediatamente. Os numetodos são inocentes em toda esta questão. O embaixador Karl ca’Vliomani deve retomar o antigo cargo.

Sergei sentiu que as negociações dependeriam da resposta de Allesandra a essa última exigência. Ela tocava o globo partido de Cénzi pendurado no pescoço. Sua própria vida dependia disso também, assim como a de Petros e Aubri. Se ele avaliou errado...

— Eu falarei com meu filho — respondeu a a’hïrzg. — Repetirei tudo o que foi dito aqui. — Sergei achou, por um momento, que essa seria toda a resposta, que ele havia perdido. Mas Allesandra respirou fundo e disse — Vou sugerir que o hïrzg aceite a oferta do archigos. Conselheiro ca’Mazzak, comandante, u’téni, nós voltaremos à tenda de negociação em três viradas da ampulheta para dar nossa resposta.


— Se o archigos Kenne tem provas, eu irei avaliá-las — falou Allesandra para Sergei ao voltarem. — E se o archigos Semini for o responsável pela morte de Ana ca’Seranta, então... — Ela franziu os lábios com força. — Então estou inclinada a convencer meu filho a aceitar a oferta do archigos.

De alguma forma, a a’hïrzg pareceu ter feito exatamente isso, embora Sergei não tenha estado presente à discussão, e embora todo mundo no acampamento tenha ouvido as ocasionais vozes exaltadas na tenda do hïrzg. O regente notou, principalmente, que o starkkapitän ca’Damont colocou gardai postados em volta da tenda do archigos.

Ele se perguntou o que estaria acontecendo no outro acampamento. Tudo dependia das lealdades da Garde Civile e dos ténis — e Sergei não tinha certeza de como aquilo terminaria. O regente rezou para Cénzi, na esperança de que Ele escutasse.

Três viradas da ampulheta depois, Sergei, Allesandra e os demais cavalgaram na direção da tenda de negociação.

Há décadas, quando ele era o comandante da Garde Kralji, Sergei às vezes sentia um arrepio ao se aproximar da Bastida a’Drago: um tremor na espinha, quase parecido com medo, que lhe dizia quando havia algo errado no complexo atrás do crânio sorridente do dragão.

O regente sentiu aquele arrepio agora, conforme o pequeno destacamento se aproximava da tenda de negociação. Antes de mais nada, foi curioso que não houvesse nenhum criado andando de um lado para o outro, que as cadeiras do lado de Nessântico na mesa estivessem vazias. Mas o que deteve Sergei, o que deu um nó no estômago, foi perceber que havia alguma coisa sobre a mesa — duas coisas, dois objetos arredondados escondidos sob a sombra da lona que tremulava na brisa. Infelizmente, Sergei sabia o que estava ali.

— Espere um momento, a’hïrzg — falou ele. — Por favor, espere aqui.

Sergei fez o cavalo ir à frente sozinho e gesticulou para o starkkapitän ca’Damont segui-lo. Ele apertou os velhos olhos para forçá-los a distinguir o que havia sobre a mesa. Ao se aproximar, ouviu um leve zumbido que ficou mais alto aos poucos: o barulho de insetos.

O regente entendeu, naquele momento, e a bile subiu à garganta. Ele parou o cavalo, desceu da sela e entrou na sombra da tenda.

Sobre a mesa havia duas cabeças, com uma poça de sangue coagulado e grudento debaixo delas e um tapete de moscas que andavam sobre os olhos abertos e dentro das bocas escancaradas.

Sergei ficou de joelhos e fez o sinal de Cénzi na direção da cena horripilante. — Aubri. Petros. Sinto muito. Sinto muitíssimo.

Trêmulo, o regente ficou de pé novamente e retornou ao cavalo. Ele cavalgou em silêncio até os demais. O olhar de Allesandra questionou Sergei; ela também sabia. O regente viu na maneira com que a a’hïrzg levou a mão à boca antes dele sequer falar.

— O conselheiro ca’Mazzak deixou sua própria resposta para nós — disse Sergei. — Parece que ele não se importa com qual seria nossa resposta.

 

Nico Morel

NICO NÃO CONSEGUIA ficar sentado quieto. O menino jamais havia imaginado um lugar tão grande, glorioso e interessante quanto esse. Eles foram conduzidos a um gabinete em um dos prédios que rodeavam a Praça a’Archigos; a recepção em si era maior do que o apartamento de dois cômodos que eles tinham no Velho Distrito e havia pelo menos três portas que levavam a outros aposentos que Nico só conseguia imaginar. Ele vislumbrou um quarto quando um criado entrou com roupas de cama na mão, e o aposento parecia enorme, além dos limites. O gabinete para onde eles foram levados teria abrigado a casa de Nico, assim como aquelas dos vizinhos mais próximos. O teto parecia tão alto e tão branco quanto as nuvens de verão; o piso era um mosaico intrincado de várias madeiras coloridas, e as paredes eram cobertas por tapeçarias lindas, que mostravam a história da vida de Cénzi, a moldura no topo das paredes era entalhada e dourada. Atrás da enorme mesa de mogno, uma sacada dava vista para uma grande praça, com a silhueta do Templo do Archigos emoldurada pelas cortinas abertas. O resto da mobília na sala chamava tanto a atenção quanto a mesa — uma mesa comprida e lustrosa para reuniões, com cadeiras estofadas ao redor; um sofá colocado diante de uma lareira em que a família inteira de Nico poderia ficar em pé dentro, cercada por um belo consolo; um globo entalhado e partido que era mais alto que dois homens, um em cima do outro, com figuras esculpidas dos moitidis em volta dele e uma base cravejada de joias e folheada de ouro reluzente. Ao redor das paredes, havia mesas repletas de lindas maravilhas do exterior: estátuas de animais desconhecidos; uma pedra grande quebrada ao meio, com o miolo cheio de belos cristais violeta; conchas cor-de-rosa e espinhentas do Strettosei...

Nico piscava e olhava fixamente para tudo. — Tudo isso aqui é só para o senhor? — perguntou o menino para o archigos, maravilhado.

— Nico, silêncio — disse a matarh, mas o velho no robe verde apenas riu.

— É para o archigos, seja ele quem for — falou o homem. — Eu vivo aqui apenas temporariamente, até que Cénzi me chame de volta para Ele. Era aqui que a archigos Ana vivia também. — Ele deu um tapinha na cabeça de Nico, e os criados trouxeram bandejas de comida e bebidas e colocaram sobre a mesa. O archigos gesticulou para eles assim que terminaram e disse — Isso é tudo. Por favor, cuidem para que não sejamos incomodados. Mandem minha carruagem para a porta dos fundos uma virada da ampulheta antes da Terceira Chamada. — Eles fizeram uma mesura e foram embora. — Sirvam-se — disse o homem quando o último dos criados fechou as portas duplas ao sair do gabinete. — Karl? Parece que uma boa refeição cairia bem a todos vocês. — Nico olhava fixamente para a comida, e o archigos riu de novo. — Vamos, Nico. Você não precisa esperar.

O menino olhou de relance para a matarh e Talis, que deu de ombros. — Tudo bem — falou a matarh. — Vá em frente...

Nico foi em frente. Um bolinho de grãos com pingos de mel foi a primeira coisa que colocou na boca. Os adultos não pareciam estar com tanta fome quanto ele, o que era estranho. Nem Talis, Karl ou Varina foram à mesa, e sua matarh beliscava a esmo um peito de pato. Em vez disso, eles se amontoaram perto do sofá, em frente à lareira.

— Archigos — Nico ouviu Karl dizer —, Ana ficaria muitíssimo orgulhosa de você. Todos nós lhe devemos agradecimentos.

— Os agradecimentos são para você, Karl. Se você não tivesse vindo até mim, se não me dissesse o que sabia... Bem, não tenho certeza do que teria acontecido. De qualquer forma, eu talvez tenha colocado você em mais perigo, não em menos. A kraljica está furiosa, pelo que eu soube, e assim que o conselheiro ca’Mazzak retornar da negociação com os firenzcianos, eu desconfio que ela ficará ainda menos contente comigo. Nenhum de nós tem como saber o que acontecerá diante dessa situação; por isso precisamos conversar hoje à noite. Não há muito tempo; é possível que um mensageiro já esteja voltando para a cidade. — Nico ouviu o archigos perder a voz. Ele virou-se com um pedaço de pão e queijo na mão. — Este é o ocidental? — perguntou Kenne ao apontar com a cabeça na direção de Talis, que mantinha as duas mãos na bengala que sempre carregava. Nico viu o ar tremular em volta da madeira como se a bengala estivesse em chamas, mas era um fogo mais frio que a neve do inverno passado.

— Sim, archigos — respondeu Karl. — Este é Talis Posti. O vatarh de Nico.

— Ah — falou Kenne. — Vajiki Posti, eu também lhe devo agradecimentos; embora deva me desculpar por querer saber o motivo pelo qual você decidiu me ajudar.

— Porque eu vislumbrei os futuros, e nenhum deles leva a um bom lugar para o meu povo — respondeu Talis, e Nico viu seu interesse aumentar ao ouvir aquilo. Talis podia ver o futuro? Isso seria interessante. Ora, se ele pudesse fazer isso, Nico poderia se ver como adulto, talvez ver o que aconteceria com ele... O menino percebeu que suas mãos se moviam por conta própria em uma estranha dança, os dedos grudentos mexiam-se pelo ar, e palavras desconhecidas vieram a ele. Nico murmurou tão baixinho que nenhum dos demais ouviu. O frio da bengala de Talis parecia fluir na direção de suas mãos; ele sentia o arrepio nos braços.

— Você tem aquele dom dos deuses? — perguntou Kenne para Talis, que ergueu as sobrancelhas e olhou para Karl.

— Mahri alegava que podia fazer o mesmo — falou o embaixador. Isso também fez Nico prestar atenção; ele lembrou-se que Talis mencionara o nome anteriormente. — Não que tivesse lhe servido de alguma coisa no fim das contas.

— Não são visões do futuro que Axat nos permite vislumbrar, mas todas as possibilidades que existem. Os vislumbres de futuros em potencial não são fáceis de ler, embora fosse dito que Mahri era capaz de usar o talento melhor do que qualquer um antes ou depois dele. E sim, parece que o talento o desapontou, no fim das contas. — Um breve sorriso passou pelo rosto de Talis. — Talvez tenha sido a proximidade com o seu Cénzi.

Kenne riu; Nico gostou do som, fez com que gostasse do homem. O frio envolveu seus braços agora, embora as mãos tivessem parado de dançar.

— Você está disposto a nos ajudar... — o archigos Kenne abriu os braços para incluir Karl e Varina, e o resto da cidade do lado de fora da sacada — ... quando isso significa que você poderia ajudar a derrotar as forças do seu próprio povo?

— Sim — respondeu Talis —, porque Axat me disse que, ao fazer isso, eu ajudarei meu povo.

O frio congelava os braços de Nico e estava ficando pesado. Ele não sabia o que fazer com aquilo, mas tremia com o esforço de segurá-lo, e a dor quase fez com que gritasse. — Às vezes seu inimigo torna-se seu aliado — dizia Varina para o archigos. — Eu sei...

— Nico! — A voz da matarh foi quase um berro. — O que você está fazendo? — O menino tomou um susto quando Serafina agarrou seu ombro, e o frio saiu voando do corpo. Ao fugir, a energia reluziu e flamejou, como uma língua de fogo azul. A rajada foi disparada por ele, varou o espaço entre Talis e o archigos e se dirigiu para a escultura do globo partido, no canto do gabinete. Nico soluçou, assustado tanto pela sensação de alívio quanto de puro terror diante do que tinha acabado de lançar. Varina, que estava a alguns passos do archigos, gesticulou e falou uma única palavra ríspida; com o movimento, Nico viu a linha de fogo azul fazer uma curva e dar meia-volta. A rajada fez um arco ao se afastar da escultura, cuspiu fagulhas cor de safira sobre a mesa envernizada e saiu assobiando pelas portas abertas da sacada. Bem acima da praça, o fogo concentrou-se e explodiu: um globo azul-claro que brilhou como um relâmpago congelado. Com a explosão, veio o estrondo ensurdecedor de um trovão que ecoou nas paredes dos prédios que circundavam a praça. Nico sentiu as janelas tremerem e chacoalharem nas ombreiras e ouviu vidro se quebrando ao longe.

— Nico! — O menino foi abraçado pela matarh. — Nico... — repetiu ela, com mais gentileza dessa vez. Serafina abraçou o filho com mais força, que não tinha certeza se era para ser um abraço ou um estrangulamento. Todos olhavam fixamente para ele.

— Desculpem — falou Nico. — Eu não tinha a intenção de.

Ele começou a chorar.

 

Karl Vliomani

— DESCULPEM — falou Nico. O lábio inferior tremia, e as próximas palavras mal haviam saído antes que os ombros começassem a tremer por causa dos soluços. — Eu não tinha a intenção de...

Serafina olhava fixamente sobre os ombros do menino ao abraçá-lo, seus olhos estavam arregalados e aterrorizados. Lá fora, na praça, eles escutaram gritos ao longe quando os transeuntes começaram a procurar pela fonte da claridade trovejante. Karl ouviu Varina suspirar de alívio atrás de si. — Se ele estivesse um pouquinho para um lado, ou para o outro... — disse Karl.

— Ele não estava — respondeu Varina, que se ajoelhou na frente do menino e acenou com a cabeça para Serafina. — Está tudo bem, Nico. Ninguém se machucou. Está tudo bem. — Ela olhou para Karl, atrás dela. — Está tudo bem — repetiu. O menino fungou e esfregou a manga no nariz e nos olhos.

Karl suspirou e sorriu: para Varina, para Nico e para Serafina. — Sim, está tudo bem, graças a Varina. Talis, você sabia...?

— Eu suspeitava, mas... — Ele segurava o cajado mágico e o olhava confuso, como se fosse um copo subitamente vazio. — Agora eu sei. Archigos, o senhor está...?

Kenne abanou a mão, como se não fosse nada, mas Karl notou que o peito do homem ainda ofegava. — Eu estou bem — disse o archigos. — E impressionado. Seu filho é um dos poucos talentos naturais que conheci. O archigos Dhosti foi um, e Ana, também. Com treinamento, bem...

— Eu o treinarei. — A resposta do homem veio acompanhada por uma cara fechada. Ele pegou o cajado mágico com força. — Esse é o dom de Axat, não de Cénzi.

— É claro — falou Kenne para Talis, mas o olhar permaneceu em Nico. — Não se preocupe — disse o archigos para o menino. — Ninguém aqui está com raiva de você, entendeu? — Nico concordou com a cabeça, ainda fungando o nariz.

— Se eu soubesse disso, teria sido bem mais cauteloso quando me aproximei de você pela primeira vez — falou Karl para Talis. — Mas, como não aconteceu nenhum mal... Nós ainda temos planos e contingências em que pensar. Archigos, Petros está pronto para fazer a proposta que conversamos para Firenzcia?

Kenne concordou com a cabeça, com mais hesitação do que Karl gostaria, mas ao menos foi uma confirmação. Na verdade, ele teve medo de que o archigos não levasse o plano adiante, especialmente dado o perigo inegável em que Petros foi colocado. — Ele está pronto. — A voz de Kenne tremeu um pouco; medo combinado com idade, decidiu Karl. — Na verdade, Petros já deve ter feito a proposta a essa altura.

— Ótimo — disse Karl. Ele deu um tapinha no ombro de Kenne e falou — Ele ficará bem e voltará para você em breve. Agora, da parte de Talis, ele trará os materiais dos aposentos de Uly para o templo amanhã, e nós podemos começar a preparar a areia negra para a demonstração. Isso deve mostrar a esse tal tecuhtli dos ocidentais que atacar a cidade seria idiotice. Nós podemos prevenir centenas, se não milhares, de mortes.


A carruagem do archigos era um truque — quatro criados de Kenne entraram no veículo quando ele parou na entrada dos fundos do prédio, enquanto Karl e os demais desceram correndo uma escada dos fundos na direção de uma entrada de serviço pouco usada. Nenhum deles sabia se o subterfúgio era necessário; Karl torcia para que não fosse, porém, caso fosse, então nenhuma alternativa que eles prepararam se tornaria realidade.

O grupo começou a sair correndo da praça em direção à Avi. Kenne dera a eles dinheiro suficiente para alugarem uma das carruagens e levá-los de volta ao Velho Distrito. Conforme passaram pela rua, Karl e os demais viram três esquadrões distintos de Garde Kralji cruzarem a Praça do Archigos correndo. — Esperem um momento — falou o embaixador. Talis, Serafina e Nico já estavam na Avi à procura de uma carruagem para alugar; Varina, um pouco à frente dele, parou. Quando Karl hesitou, no limite da praça, ele e Varina viram dois dos esquadrões entrarem no prédio de onde eles acabaram de sair; o outro esquadrão entrou no Templo do Archigos.

As armas estavam desembainhadas, o aço reluzia sob a luz das lâmpadas.

— Karl? O que está acontecendo?

— Não sei, Varina. Acho que eu deveria voltar. Leve os demais. Eu vou...

— Não — disse Varina com firmeza. Ela voltou até onde o embaixador estava e segurou o braço dele. — Não, Karl. Não dessa vez. Mesmo disfarçado, seu rosto é muito reconhecível pela Garde Kralji, e há vários deles, de todo modo. Você não sabe por que os gardai estão lá; pode não ser nada. Provavelmente não é nada. E caso não seja... — Varina mordeu o lábio inferior. Os olhos imploraram. — Você precisa deixar o archigos cuidar de si mesmo. Venha comigo. Por favor.

— Mas se as coisas deram errado...

— Se as coisas deram errado, você não pode mudá-las agora. Nós não podemos mudá-las. Tudo que aconteceria é que você estaria perdido também. — O braço apertou o dele. — Por favor, Karl. Vamos embora. Se houver um problema, nós conseguiremos ajudar mais o archigos se estivermos vivos do que se formos jogados na Bastida com ele. Nós soltamos Sergei; podemos fazer o mesmo novamente se precisarmos. Karl... — Varina encostou a cabeça no ombro dele. — Se você voltar, então eu irei com você. Mas essa é a decisão errada. Tenho certeza.

Karl olhou fixamente para os prédios e desejou que pudesse ver a sacada de Kenne dali. Tudo estava em paz; as pessoas ainda andavam pela praça como se nada estivesse acontecendo. Mas ele sabia. Ele sabia.

E também sabia que Varina estava certa. Ele não podia mudar nada. Karl olhou para trás. Talis chamou uma carruagem com um gesto e olhava para os dois com curiosidade. Uma mulher, que estava vestida com roupas pobres demais para esta parte da cidade, o que era estranho, passou correndo por eles vindo da direção da praça. Ao passar, ela pareceu tropeçar e esbarrar de leve em Karl. — Desculpe, vajiki — murmurou a mulher. — A voz... parecia vagamente familiar, mas ela manteve o capuz da tashta erguido e a cabeça baixa. Ele vislumbrou o cabelo castanho e sujo. — Vai ser uma noite ruim. Uma noite ruim. O senhor realmente deveria correr para casa...

Ela foi embora depressa.

Karl olhou fixamente a mulher, que desapareceu do outro lado da carruagem à espera. Talis acenava para eles. Foi aí que Karl lembrou-se de onde ouvira aquela voz.

— Tudo bem — disse ele para Varina. — Vamos embora.

 

A Batalha Começa: Kenne ca’Fionta

— INFELIZMENTE seu pobre Petros está morto. É uma pena.

Kenne ouviu as palavras, e os velhos olhos embaçaram com as lágrimas, embora ele já soubesse que Petros estava morto. Ele sentira em seu coração quando a Garde Kralji veio e o levou para a Bastida. Só lhe restava torcer para que Karl e o resto tivessem escapado da varredura; eles foram embora com apenas algumas marcas da ampulheta de antecedência. O gosto da mordaça de metal e couro era horrível; os grilhões que prendiam as mãos eram tão pesados que ele mal conseguia levantá-los do colo.

O rosto deformado da kraljica Sigourney encarava o archigos de cima. Kenne sustentou o olhar caolho dela por apenas alguns instantes, enquanto respirava através do horrível aparato sobre a cabeça, depois abaixou o próprio olhar, arrasado e derrotado. Entre as pernas, as mãos algemadas mexiam inquietas na palha da cama tosca onde ele estava sentado na cela, no alto da torre principal da Bastida. A voz da kraljica era solidária, quase triste. — Você é um bom homem, Kenne. Sempre foi. Mas era fraco demais para ser archigos. Deveria ter recusado o título e dito ao Colégio A’téni para eleger outra pessoa.

Kenne só podia concordar com a cabeça. Havia muitas noites ultimamente que em ele desejava exatamente a mesma coisa.

— Você devia saber que isto aconteceria, Kenne. Você escolheu se associar aos inimigos dos Domínios. Devia saber. E agora...

Ela mancou até a única janela da cela e apoiou-se na muleta acolchoada e dourada, enquanto a perna direita ficava pendurada sobre o vazio abaixo do joelho. A janela dava vista para oeste, Kenne sabia; na parede oposta à janela, ele tinha visto a luz do sol ficar amarela, depois vermelha e então púrpura ao subir sobre pedras úmidas até sumir. — Venha cá. — falou Sigourney. — Venha cá e veja.

Ele levantou-se da cama com dificuldade; era um velho arrasado agora, na verdade. Arrastou os pés até a janela enquanto a kraljica esperava ao lado. Lá fora, debaixo de um belo céu azul, Kenne viu o A’Sele reluzir sob o sol enquanto cortava a cidade em direção ao mar. Perto de onde o rio virava para o sul, ele viu dezenas de velas reunidas. Do outro lado do A’Sele, onde antigamente havia fazendas e propriedades dos ca’ e co’, a terra estava agitada por uma invasão sombria que não estava lá ontem. — Está vendo? Está vendo o exército ocidental se aproximar? Aquelas são as pessoas pelas quais você traiu os Domínios, archigos. São as pessoas que o deixaram tão assustado que você tentou fazer um pacto com os cães firenzcianos contra mim. — A voz assumiu um tom mais agressivo agora, o único olho atacava Kenne. — Aquelas são as criaturas desprezíveis que mataram meu irmão. São os vilões que destruíram nossas cidades e nossos vilarejos. Quer você acredite ou não, tenho certeza de que também são as pessoas que mataram Audric e me transformaram nesse horror. Será que eu odeio os ocidentais? Ah, você não pode imaginar o quanto. Observe, e você verá os bons chevarittai dos Domínios escorraçá-los, e depois nós cuidaremos de seus amigos firenzcianos também. Em breve, o combate começará. E você vai nos ajudar, Kenne.

Ele virou a cabeça amordaçada na direção de Sigourney, com uma expressão de curiosidade. Ela riu. — Ah, você vai. Nós temos que ter os ténis-guerreiros, afinal, e temos que garantir que eles entendam que seu archigos agora se arrepende de sua horrível traição e que deseja que todos os ténis da fé concénziana ajudem Nessântico nesta ocasião terrível da maneira que puderem. É o que você deseja mesmo, não é, archigos?

Kenne só podia encará-la, mudo.

— Você acha que não? Bem, a proclamação já está escrita; só precisa de sua assinatura. E quer você queira ou não, eu terei essa assinatura. Você foi amigo de Sergei Rudka, afinal; deve saber que a Bastida sempre consegue as confissões que deseja.

Mesmo com aquele horrível aparato preso ao rosto, Kenne não conseguiu esconder a expressão de horror e percebeu o sorriso da kraljica diante de sua reação. — Ótimo — falou Sigourney. — Vou refletir sobre o seu sofrimento quando o capitão me entregar sua confissão.

A kraljica gesticulou para os gardai do lado de fora da cela e disse — Ele está pronto. Cuidem para que receba sua hospitalidade integralmente.

 

A Batalha Começa: Niente

A CIDADE ERGUIA FLANCOS DE PEDRA sobre morros baixos; as torres e os domos lotavam a grande ilha no centro do rio de modo que parecia uma pedra coberta por cracas. A metrópole saltara para fora do confinamento do cinturão das muralhas, magnífica, orgulhosa e destemida, os campos ao redor eram cheios de grãos e colheitas que alimentavam a aglomeração de habitantes. Essa cidade... Ela era a rival de Tlaxcala, de certa forma menor, porém mais populosa e comprimida, com uma arquitetura estranha. Nas cidades de sua terra natal, prevaleciam as pirâmides dos templos de Axat, Sakal e dos Quatro; aqui em Nessântico, o que era mais visível eram as torres dos grandes edifícios e os domos dourados dos templos.

Tão estrangeiro. Tão estranho. Niente não queria nada além de ver locais conhecidos novamente e temia que jamais os veria.

Ele olhou para Nessântico e sentiu um arrepio, mas não viu a mesma reação no tecuhtli Zolin. O tecuhtli, ao contrário, estava no morro que dava vista para o rio e a cidade. Zolin cruzou os braços e deu um sorriso com os lábios fechados. — Isso é nosso — disse ele. — Olhe para a cidade. Ela é nossa.

Niente se perguntou se o homem ao menos notou as grandes fileiras de tropas orientais dispostas ao longo da estrada, se contou os barcos que apinhavam o rio, se percebeu os preparativos para guerra na periferia oeste da cidade.

— O que você me diz, Niente? — perguntou Zolin. — Será que descansaremos amanhã à noite neste lugar?

— Se for a vontade de Axat — respondeu Niente, e Zolin gargalhou.

— É a minha vontade que importa, nahual. Você ainda não compreendeu isso? — Ele não deu tempo para Niente responder; não que houvesse alguma resposta que o nahual pudesse dar. — Vá. Cuide para que os nahualli estejam prontos e que o resto da areia negra tenha sido preparado para os ataques iniciais. E mande Citlali e Mazatl até mim. Começaremos hoje à noite. Vamos mantê-los acordados e exaustos; depois, quando Sakal colocar o sol no céu, atacaremos como uma tempestade. — Zolin olhou fixamente para a cidade por mais um instante, depois se virou para Niente. Quase com carinho, colocou a mão em seu ombro. — Você verá sua família novamente, nahual. Eu prometo. Mas, primeiro, temos que dar uma lição nesses orientais por sua insensatez. Olhe em sua tigela premonitória, Niente. Você verá que estou certo. Verá sim.

— Com certeza eu verei, tecuhtli.

Mas Niente já sabia o que veria. Ele tinha vislumbrado na manhã de hoje, enquanto eles se aproximavam desse lugar.

O nahual havia rogado a Axat e olhado na tigela, e ele não ousaria olhar novamente.

 

A Batalha Começa: Sergei ca’Rudka

PELA MAIOR PARTE DA MANHÃ, Sergei cavalgou sozinho no meio das tropas firenzcianas, perdido em reflexões que mantinham afastada — pelo menos um pouco — a dor crescente nas costas, provocada pela longa cavalgada. E o corpo não estava mais acostumado a longos dias na sela, nem a tardes passadas debaixo de uma tenda.

Você está ficando velho. Não estará aqui por muito tempo mais, e tem tanto o que fazer ainda.

— Regente, quero falar com você.

Diante do chamado, Sergei virou o olhar e viu o garanhão com as cores de Firenzcia que parou ao seu lado sem ser notado. Velho. Antigamente, você jamais teria deixado de perceber a aproximação. — É claro, hïrzg Jan — falou ele.

O menino trouxe o garanhão mais para perto da baia de montagem de Sergei. A montaria do regente mexeu as orelhas nervosamente e revirou os olhos diante do cavalo de guerra bem maior do que ela. Jan não disse nada, a princípio, e Sergei aguardou enquanto eles prosseguiam pela Avi levantando uma nuvem de poeira em volta dos dois. O exército aproximava-se de Carrefour, com Nessântico a um bom dia de marcha de distância. As forças de Nessântico desapareceram, sumiram; foram embora na tarde da negociação. — A matarh disse que você perdeu dois bons amigos — falou Jan finalmente.

— Perdi sim. Aubri co’Ulcai fez parte da minha equipe por muitos anos, tanto na Garde Kralji quando na Garde Civile, antes de eu ser nomeado regente. Ele era um bom homem e um excelente soldado. Eu não consigo nem pensar em falar com a esposa e os filhos dele para contar o que aconteceu, muito menos para dizer que a lealdade a mim foi a responsável pela morte de Aubri. — Sergei esfregou o nariz de metal, a cola repuxou a pele quando ele fechou a cara. — Quanto a Petros... bem, não havia pessoa mais gentil no mundo, e sei como a amizade dele era importante para o archigos. Não sei o que a notícia fará ao archigos Kenne. Matá-los foi cruel e desnecessário, e se Cénzi me der uma vida suficientemente longa, eu cuidarei para que o conselheiro ca’Mazzak se arrependa da dor que causou a mim e às pessoas de quem eu gosto.

O jovem concordou com a cabeça e falou — Eu entendo. Entendo mesmo. Algum dia, eu encontrarei quem contratou a Pedra Branca para matar meu onczio Fynn, e eu mesmo matarei essa pessoa e a Pedra Branca junto com ela. Meu onczio era um bom amigo para mim, bem como meu parente, e me ensinou muita coisa no pouco tempo em que estive com ele. Eu queria que ele tivesse vivido o suficiente para me ensinar mais a respeito... — Jan parou e balançou a cabeça.

— Não existe livro que ensine alguém a ser um líder, hïrzg — disse Sergei. — A pessoa aprende ao liderar e torcendo para não cometer muitos erros no processo. Quanto à vingança: bem, ao ficar mais velho, eu aprendi que o prazer que se tira da concretização da vingança jamais se compara à expectativa. Também aprendi que às vezes tem que se deixar a vingança completamente de lado em nome de um objetivo maior. A kraljica Marguerite sabia disso melhor do que ninguém; e por esse motivo ela era uma monarca tão boa. — Ele sorriu. — Mesmo que seu vavatarh discordasse veementemente.

— Você conheceu os dois.

Sergei não soube dizer se isso era uma afirmativa ou uma pergunta, mas concordou com a cabeça. — Conheci, sim, e tinha um grande respeito por ambos, incluindo o velho hïrzg Jan.

— Minha matarh o odiava, creio eu.

— Se ela odiava, tinha boas razões — respondeu Sergei. — Mas Jan era o vatarh dela, e acho que sua matarh também o amava.

— Isso é possível?

— Nós somos criaturas estranhas, hïrzg. Somos capazes de ter dois sentimentos conflitantes na cabeça ao mesmo tempo. Água e fogo, ambos juntos.

— A matarh diz que você costumava torturar pessoas.

Sergei esperou um longo tempo para responder. Jan não disse nada e continuou cavalgando ao lado dele. — Era meu dever, em uma determinada época, quando estive no comando da Bastida.

— Ela falou que os rumores diziam que você gostava de torturar. Isso faz parte do que você dizia, sobre a habilidade de ter dois sentimentos conflitantes na cabeça ao mesmo tempo?

Sergei franziu os lábios. Ele esfregou o nariz novamente. Olhou para frente, não para o jovem. — Sim — respondeu Sergei finalmente. A palavra solitária trouxe de volta todas as memórias da Bastida: a escuridão, a dor, o sangue. O prazer.

— A matarh é, ou era, de qualquer maneira, amante do archigos Semini. Você sabia disso, regente?

— Eu suspeitava, sim.

— Mesmo que ela ame o archigos, a matarh estava disposta a sacrificá-lo e entregá-lo ao julgamento, como o u’téni Petros pediu. Ela tomaria essa decisão; a própria matarh me disse quando voltou da negociação. “Que os pecados de Semini sejam pagos em vidas salvas”, foi o que ela falou. Não havia uma lágrima no olho ou um sinal de arrependimento em sua voz. O archigos... ele não sabe disso. Não sabe como chegou perto de ser um prisioneiro. Até onde eu sei, os dois ainda podem... — Jan parou. Deu de ombros.

— Água e fogo, hïrzg — falou Sergei.

Jan concordou com a cabeça. — Ela disse que você ama Nessântico acima de todos nós. No entanto, você cavalga conosco, salvou a matarh e a mim em Passe a’Fiume e colocaria a matarh no Trono do Sol.

— Eu colocaria sim, porque estou convencido de que isso seria o melhor para Nessântico. Eu quero ver os Domínios restaurados, com Firenzcia novamente como seu forte braço direito. — Sergei fez uma pausa. Os dois podiam ver os arredores de Carrefour diante deles na estrada, os topos dos prédios se erguiam mais alto do que as árvores. — É isso o que o senhor também quer, hïrzg?

Sergei observou o jovem, que desviou o olhar para a longa fileira do exército que se estendia pela estrada. — Eu amo minha matarh — respondeu Jan.

— Não foi o que eu perguntei, hïrzg.

Jan concordou com a cabeça e continuou olhando para a cobra blindada de seu exército. — Não, não foi, não é mesmo?

 

A Batalha Começa: Karl Vliomani

— VOCÊ AINDA PODE IR EMBORA pelas ruas a leste do Portão Norte — disse Karl para Serafina. — Terá que tomar cuidado e andar rápido, mas se estiver com Varina, você e Nico terão proteção.

Karl viu que Serafina e Varina balançavam a cabeça antes mesmo de ele terminar. — Eu não irei embora sem Talis — falou Serafina. Nico estava no colo da matarh enquanto se sentavam à mesa da sala principal do apartamento de Serafina. Eles terminaram um jantar à base de pão, queijo e água, embora o queijo estivesse velho, o pão, mofado, e a água, turva. Mas comeram tudo, pois não sabiam quando teriam mais comida.

Com o exército dos tehuantinos a oeste dos limites da cidade, o A’Sele sob controle dos navios ocidentais, e a ameaça do exército de Firenzcia a leste, Nessântico estava em pânico. Rumores fantásticos e absurdos sobre a pilhagem de Karnor e Villembouchure corriam pela cidade e ficavam mais sinistros e violentos cada vez que eram repetidos. Os ocidentais, caso se pudesse acreditar nas histórias, não eram nada além de demônios gerados pelos próprios moitidis, dedicados ao estupro, à tortura e à mutilação. As prateleiras das lojas estavam praticamente vazias; os moinhos não tinham farinha para as padarias, e não havia carroças vindo dos campos fora da cidade para os mercados. Até mesmo a Avi a’Parete estava às escuras na noite de hoje, pois os ténis-luminosos não fizeram as rondas de sempre; para piorar, uma neblina espessa e gelada surgiu a oeste e tomou conta da cidade, que tremia na escuridão, à espera do ataque inevitável que viria.

— Eu pensei ter perdido tanto Talis quanto Nico uma vez; não os perderei novamente — continuou Serafina.

— Ele não pode ir embora — insistiu Karl. — Talis é homem e jovem o suficiente para ser obrigado a servir à Garde Civile. Eles o pegariam antes que chegasse à metade da Avi. E com o archigos na Bastida... bem, com muita certeza a Garde Kralji tem nossas descrições e já procura por nós. Duas mulheres com um menino... acho que você estaria a salvo. Mas comigo e com Talis...

— Eu não vou embora sem ele — insistiu Serafina. A voz e a mão em volta da cintura de Nico tremeram, mas os lábios permaneceram firmemente franzidos.

— Metade da cidade já foi embora... aqueles que puderam. Os rumores sobre Karnor e Villembouchure... tudo aquilo pode acontecer aqui.

Ela deu de ombros.

Varina estava sorrindo sombriamente e tocou o joelho dele por debaixo da mesa. — Você perdeu a discussão, Karl. Com ambas. Estamos aqui. E ficaremos aqui, não importa o que isso signifique.

Karl olhou para Talis, que estava sentado em silêncio ao seu lado da mesa. No último dia, ele andou quieto de uma maneira estranha, desde que foi confirmada a notícia da prisão do archigos, e passou muito tempo com a tigela premonitória. Karl se perguntou o que o homem estaria pensando por trás daquele rosto solene. Talis deu de ombros, e falou para Serafina — Eu concordo com Karl. Eu preferiria que você e Nico estivessem a salvo.

Varina pegou a mão de Karl ao ficar de pé. — Venha comigo. Deixe Sera e Talis resolverem essa questão sozinhos. Nós resolveremos também.

Karl acompanhou Varina até o outro aposento. Ela fechou a porta assim que os dois entraram, de maneira que só podiam ouvir um murmúrio baixo de vozes que conversavam, e disse — Ela ama Talis. — Varina ainda estava apoiada na porta e olhava para Karl.

— Sim — protestou Karl — e é exatamente por isso que Talis quer que Serafina vá embora: porque ele não quer perder as pessoas que ama.

— E é exatamente por isso que ela não irá embora, porque não suportaria não saber o que aconteceu com Talis. — Varina cruzou os braços sob os seios. — É por isso que eu também não irei embora.

— Varina...

— Karl, cale a boca. — Varina afastou-se da parede e foi até ele. Os braços deram a volta em Karl, os lábios procuraram os dele. Havia um desespero no abraço, uma violência no beijo. Karl ouviu um soluço na garganta de Varina e levou a mão ao rosto dela para descobrir que a bochecha estava molhada. Ele tentou se afastar, perguntar o que estava errado, mas Varina não permitiu. Ela puxou de volta a cabeça de Karl, usou o peso do corpo para derrubá-lo sobre o colchão de palha no chão. Então, por um instante, Karl esqueceu de tudo.

Mais tarde, ele deu um beijo em Varina enquanto a segurava perto de si e apreciava o calor de seu corpo. — Eu amo você, Karl — sussurrou Varina no ouvido. — Desisti de fingir que não.

Karl não respondeu. Ele queria. Queria devolver as palavras para Varina. Elas preencheram a garganta, mas ficaram ali, presas. Karl achava que, se dissesse as palavras, trairia Ana e tudo o que ela significava para ele. — Encontre outra pessoa — dissera Ana, há muito tempo. — Volte para sua esposa, se quiser. Ou apaixone-se por outra pessoa, por mim tudo bem, também. Eu ficaria feliz por você porque não posso ser o que você quer que eu seja, Karl.

— Eu... — começou Karl, mas parou. Os dois ouviram ao mesmo tempo um assobio estridente e um rugido baixo como trovão, seguidos quase que imediatamente por outros, e as trompas dos templos começaram a soar um alarme. Karl rolou e afastou-se de Varina. — O que é isso? — perguntou ele, mas suspeitava que já sabia. Ambos vestiram-se depressa e correram para o outro cômodo.

— Começou — falou Talis para os dois assim que entraram. Ele estava parado ao lado da porta que dava para o sul. Na direção do A’Sele, todos puderam ver o brilho laranja amarelado sobre os tetos, iluminando a névoa que bloqueava a visão. — Fogo — continuou Talis. — Os nahualli estão disparando areia negra dentro da cidade, perto do A’Sele.

As trompas soavam estridentes, e havia berros e gritos abafados vindos da névoa.

Talis fechou a porta e disse — É tarde demais agora. Tarde demais.

 

A Batalha Começa: Sigourney ca’Ludovici

DO ÚLTIMO ANDAR do Palácio da Kraljica, apoiada em uma muleta que compensava a falta da perna, Sigourney podia ver os telhados à frente e as águas do A’Sele na margem norte, onde as fogueiras dos ocidentais ardiam nos arredores da cidade. Lá também, ela sabia, estava agrupado o exército da Garde Civile, agora com Aleron ca’Gerodi como comandante. Ele, pelo menos, estava confiante na capacidade dos chevarittai e da Garde Civile em lidar com a dupla ameaça à cidade, mesmo que ninguém mais estivesse. Ca’Gerodi ao menos já esteve em combate antes — e entre os chevarittai à disposição da kraljica, ele era o mais indicado para ser o comandante, desde que ca’Mazzak retirou Aubri co’Ulcai da disputa. Isso fora um erro, Sigourney tinha certeza; um erro que ela compreendia, sim, dada a rebelião de co’Ulcai, mas também um erro que poderia custar a Nessântico mais do que a cidade podia bancar.

O corpo de Sigourney doía muito esta noite. Ela tomou um bom gole de cuore della volpe e pousou a taça no peitoril da janela.

Sigourney também estivera confiante. Confiante de que eles dariam conta daquela ralé ocidental e a destruiria. Depois, que eles se voltariam para o leste e cuidariam de Allesandra e seu filhote, e que fariam com que os firenzcianos percebessem a insensatez desse rompimento do tratado. Sim, ela estivera confiante.

Mas isso parecia ter sido séculos atrás.

Agora, Sigourney vira a estranha névoa surgir do acampamento ocidental e envolver o Velho Distrito e a Garde Civile. Depois, após uma mera virada da ampulheta, grandes flores de fogo laranja nascerem na margem norte, e a kraljica viu as flores subitamente desenharem arcos no céu em várias direções; algumas caíram na névoa onde seu exército esperava, e outras...

A água do A’Sele tremeluziu com o reflexo do fogo conforme as flores — que guinchavam e bramiam — subiam, como se tivessem sido lançadas por raivosos moitidis. Ela viu a resposta dos ténis-guerreiros: raios azul-claros lançados na direção das flores ao alto. Vários alcançaram as flores no ápice de seus arcos: quando eles se tocaram, um breve sol ganhou vida e o som do trovão ecoou pela cidade. Mas havia muitas flores de fogo e a resposta dos ténis-guerreiros chegou atrasada demais. A maior parte das bolas de fogo caiu: sobre os navios de guerra dos Domínios no rio, no labirinto do Velho Distrito, e sobre a própria Ilha A’Kralji. E, onde caíam, explodiam em um jorro de fúria brilhante e ruidosa.

Sigourney observou uma bola de fogo em especial: o arco se ergueu mais alto que os demais, e ela viu a linha assustadora que vinha diretamente em sua direção. A kraljica olhou fixamente, paralisada tanto pelo fascínio quanto pelo medo, e sentiu (conforme a bola de fogo despencava, à medida que crescia a cada instante) o corpo se lembrar do choque e do horror do momento em que o kraljiki Audric foi morto. Ela perguntou-se se doeria muito.

Mas não... Sigourney viu que o rastro de fagulhas agora se desviava levemente para a sua direita. A bola de fogo chocou-se contra a asa norte do palácio e espirrou fogo sobre a fachada e os jardins lá embaixo. A kraljica sentiu a estrutura inteira tremer com o impacto, tão forte que ela teve que se segurar na ombreira da janela para evitar cair. Os dedos apertaram com força a barra da muleta. Houve gritos e berros por toda parte do terreno. A noite de Nessântico foi mais uma vez banida — não pelas famosas lâmpadas dos ténis-luminosos, mas por um inferno. Mesmo da janela, Sigourney achou que podia sentir o calor.

Os criados entraram correndo no cômodo. — Kraljica! A senhora tem que vir conosco! Depressa!

— Eu não sairei daqui.

— A senhora precisa sair! O fogo!

— Então não percam seu tempo aqui; vão ajudar a apagá-lo — falou Sigourney. — Convoquem os ténis-bombeiros nos templos. Vão. Vão!

Ela gesticulou com a mão livre para os criados — o corpo ferido e combalido protestou ante a violência do movimento —, e eles foram embora. As trompas soaram, agora nos templos, o alarme tomou conta da cidade inteira. Sigourney abaixou o olhar e viu os funcionários do palácio correrem na direção da ala em chamas. A fumaça deu a volta na lateral do palácio e fez arder o olho restante da kraljica. Ela piscou ao lacrimejar e bebeu o resto do preparado do ervanário.

— Olhem para mim! — Sigourney soltou um berro estridente para a noite e para as forças ocidentais escondidas na névoa. — Eu abri mão de muita coisa para estar aqui. Vocês não vão me tirar daqui. Não vão.

 

A Batalha Começa: A Pedra Branca

— POR QUE VOCÊ CONTINUA AQUI?

— Por que você os vigia? O menino não é seu.

— Ele não é sua responsabilidade.

— Você esperou tempo demais.

As vozes tagarelavam na cabeça dela, em tom sedutor, de alerta, satisfeito. A voz de Fynn era a mais alta, ronronava com satisfação. — Você morrerá aqui, e a criança dentro de você também.

— Silêncio — disse a Pedra Branca para todas as vozes, que fizeram silêncio a contragosto.

O ar estava espesso com a névoa anormal, e o cheiro de madeira queimada fluía pelos filetes da bruma. O brilho tinha ficado pior, e agora parecia cair uma neve de verão: cinzas caíam no chão e cobriam o cabelo oleoso e os ombros da tashta suja da Pedra Branca. Havia sons indefinidos na névoa, encobertos pelo lamento contínuo e sobrenatural das trompas.

A Pedra Branca olhou fixamente para a porta onde viu Talis pela última vez. Agora não havia ninguém lá, e ela não tinha visto Nico. Não há nada que você possa fazer por ele. Por enquanto, Nico está a salvo. Ela pressionou as mãos contra a barriga inchada. Talvez as vozes estivessem certas. Talvez ela devesse fugir da cidade. Salvar a própria filha.

Mas Nico era filho dela também. Cénzi trouxe o menino para ela. Ele a escolheu, e Nico era tão filho dela quanto a criança em gestação dentro de sua barriga.

— Tarde demais...

Ou talvez não. Com uma careta, ela se afastou da casa de Nico e andou rapidamente pelas ruas. Ela tinha que ver com os próprios olhos, tinha que saber o que acontecia. As ruas estavam bem mais cheias do que costumavam ficar a esta altura da noite, mas as pessoas corriam para seus destinos sem olhar umas para as outras, com o medo estampado em suas feições. Muitas mantinham as mãos próximas às armas carregadas abertamente: espadas com bainhas descascadas e lâminas manchadas de ferrugem; facas que pareciam que a última coisa que tinham feito era cortar um porco assado. Haveria violência nessas ruas antes de a noite acabar: uma palavra rude, um esbarrão acidental, um gesto mal interpretado — qualquer coisa poderia acendê-la, como uma fagulha em um material inflamável. A Pedra Branca sabia disso, porque a violência vivia dentro dela. Ela era capaz de sentir o cheiro de sangue pronto para ser derramado.

Mas não ainda. Não ainda. Ela manteve-se nas sombras, não falou nada com ninguém. Ela evitou matar, a menos que fosse por dinheiro ou pela própria proteção.

Ela chegou à Avi a’Parete e virou para o sul. Ao se aproximar do rio, o cheiro de fumaça ficou ainda mais forte, ela e a bruma estavam tão misturadas que era impossível distinguir uma da outra. Havia incêndios no aglomerado de prédios próximos a oeste da Avi, as chamas chegavam tão alto que a Pedra Branca conseguia ver do ponto onde estava. Uma carruagem conduzida por um téni veio correndo pela Pontica Kralji com meia dúzia de ténis-bombeiros dentro, com os rostos cobertos por fuligem e já exaustos pelo esforço de usar os feitiços para apagar os vários incêndios. Um esquadrão da Garde Kralji, com espadas desembainhadas e expressões carrancudas, acompanhava os ténis-bombeiros e cercava um grupo de homens de aparência melancólica em bashtas simplórias, a maioria jovem demais ou velha demais. — Você! — vociferou o offizier do esquadrão ao apontar para um velho de barba grisalha que andava à espreita, perto do prédio mais próximo à Pedra Branca. — E você! — Agora dirigido a um jovem que não devia ter mais de 12 anos, sendo puxado pela matarh. — Vocês dois! Venham conosco! Quero ver animação agora!

A matarh soltou um grito estridente de objeção, o homem fez menção de correr na direção contrária, mas evidentemente decidiu que não conseguiria fugir. A Garde Kralji cercou os dois e partiu noite adentro na direção dos incêndios, levando o menino e o velho com eles, enquanto a matarh protestava inutilmente, aos gritos.

A Pedra Branca continuou caminhando na direção sul até ver as colunas da Pontica Kralji que se agigantavam através da fumaça. Ela parou ali e olhou para o A’Sele. O que viu a deixou horrorizada e fez as vozes dentro de sua cabeça rirem.

No rio, vários navios de guerra estavam em chamas, já queimados quase até a linha d’água, os destroços entupiam o A’Sele de maneira que os navios ainda incólumes mal conseguiam manobrar. O Palácio da Kraljica era um inferno laranja amarelado, com um vulcão que cuspia fagulhas para longe. O grande novo domo do Velho Templo parecia rachado, o fogo lambia os suportes que tinham sido erigidos em volta dele. Havia pequenos incêndios aqui e ali. As pontes, exatamente as duas que levavam à margem sul, estavam lotadas de pessoas em fuga, que empurravam carrinhos cheios de pertences ou sobrecarregados com pacotes. A Pedra Branca ouviu um estrondo atrás de si; ela olhou na direção dos prédios que lotavam a Avi nesta margem e viu uma multidão botar abaixo a porta de uma padaria e também de uma joalheria. A rua atrás dela estava ficando lotada e barulhenta. Dentro de algum lugar, em uma das lojas, a Pedra Branca ouviu uma mulher gritar.

Sangue. Ela sentiu o cheiro do sangue. Tocou a bolsinha de couro sob o tecido da tashta e sentiu a pedra lisa lá dentro.

— O tumulto começou...

— Isso só vai piorar...

As vozes berraram assustadas em sua cabeça. — Você virou idiota, mulher? Ande!

Ela andou. Caminhou a passos largos, sem pressa, até o beco mais próximo, um espaço cheio de lixo entre os fundos dos prédios. A Pedra Branca voltaria à casa de Nico. Ficaria de vigia e, se as coisas ficassem perigosas, ela estaria ali para ajudá-lo, para tirá-lo de lá. Se a família de verdade do menino não pudesse protegê-lo, ela seria sua verdadeira matarh e faria isso. Ela tocou o estômago enquanto andava. — E farei o mesmo por você — sussurrou para a vida que se mexia dentro dela. — Eu farei isso. Prometo.

As vozes riram e gargalharam.

A Pedra Branca viu um movimento pelo rabo de olho na névoa e na fumaça e sentiu um arrepio de perigo. Ela deu meia-volta. — Ei! — Havia um homem ali, com cabelo negro e fios brancos, mas jovem o suficiente, o que fez a Pedra Branca se perguntar como ele conseguiu evitar os esquadrões de alistamento que rondavam o Velho Distrito. — Não há necessidade de se assustar, não é, vajica? — disse o sujeito. Ela viu a língua se mexer atrás dos poucos dentes. — Eu só queria ter certeza de que estava a salvo, só isso. — Ele deu um passo na direção dela. — Agora os tempos andam perigosos.

— Para você, sim — respondeu ela. — Eu posso tomar conta de mim mesma.

— Ah, pode, é? — O homem deslizou para o lado e impediu que ela entrasse no beco. Ela acompanhou o movimento, sempre olhando para o sujeito. — Não são muitas as pessoas que podem dizer isso hoje em dia. — Ele deu um passo na direção da Pedra Branca, que fez uma expressão de desdém.

— Não — disse ela, embora já soubesse que o homem não ouviria. — Você se arrependerá. Você não quer conhecer a Pedra Branca.

Ele riu. — A Pedra Branca, é? Está me dizendo que a Pedra Branca tem interesse em alguém como você?

Ela não respondeu. O homem deu mais um passo, ficou perto o suficiente para que ela sentisse seu cheiro, e estendeu a mão para agarrar seu braço. Nesse mesmo instante, a Pedra Branca agachou-se, tirou uma adaga da bainha na bota e golpeou para cima, debaixo das costelas do homem, que foi empurrado de costas para dentro do beco. Ele ofegou, boquiaberto como um peixe; ela sentiu o sangue quente jorrar sobre a mão. Os dedos do sujeito arranharam seu braço, mas caíram lentamente. A Pedra Branca ouviu o homem tomar um fôlego gorgolejante enquanto saía um filete de sangue da boca. Ela deixou o corpo cair enquanto metia a mão debaixo da gola da tashta para pegar a bolsinha. Com pressa, a tirou do pescoço e deixou a pedra lisa e clara como neve cair na palma da mão. Pressionou o seixo no olho direito do sujeito. Seus próprios olhos estavam fechados.

Ah, o lamento da morte... ela ouviu o homem gritar, sentiu a presença entrar no seixo enquanto os outros se remexiam no interior para abrir espaço para o espírito moribundo. O uivo silencioso do sujeito tomou conta de sua mente, tão alto que ela ficou surpresa que não ecoasse em volta dos dois. Quando a pedra o absorveu complemente, ela removeu o seixo do olho e guardou de volta na bolsinha, colocou o cordão de couro no pescoço novamente e deixou a bolsinha cair entre os seios, debaixo da tashta.

— A Pedra Branca protege o que é dela — ela disse para o cadáver de olhos abertos.

Depois, as vozes falaram alto e tomaram conta da cabeça da Pedra Branca, com uma nova que se juntou ao coro louco, enquanto ela voltava para a casa de Nico.

 


A Batalha Começa: Niente

O CÉU FICOU ILUMINADO a leste e a bruma mágica sumiu com a luz, embora a cidade continuasse envolvida pela fumaça. Niente estava com o tecuhtli Zolin, Citlali e Mazatl. Os guerreiros que usavam a armadura e os rostos tatuados agora estavam pintados para parecerem as terríveis e cruéis criaturas oníricas que estupraram Axat antes que a Escuridão colocasse seu corpo ferido no céu. Os três estavam próximos ao rio; a enorme ilha em volta da qual ele fluía parecia estar acesa, e a fumaça saía de várias dezenas de lugares na cidade.

— Muito bem, nahual — disse Zolin. — Eles estarão exaustos e assustados com os incêndios dessa noite. Os nahualli estão descansados? Os cajados mágicos estão cheios?

— Eles estão tão descansados quanto é possível, tecuhtli — falou Niente. — Nós preparamos nossos cajados ontem à noite, após lançarmos a areia negra.

— Ótimo — trovejou Zolin. — Então deixe de parecer tão melancólico. Esse é um grande dia, nahual Niente. Hoje nós mostramos a esses orientais que eles não são imunes à fúria dos tehuantinos.

Citlali e Mazatl gargalharam com Zolin. Niente tentou sorrir, mas não conseguiu. Ele ergueu o próprio cajado mágico, o tecuhtli assentiu e disse — Vá até os nahualli. Citlali, Mazatl, acordem seus guerreiros. Quando virmos os olhos de Sakal se abrirem no horizonte, será o momento.

Niente abaixou a cabeça para o tecuhtli e foi embora. Ele se dirigiu para o norte, para o campo pisoteado onde a maior parte do exército estava reunida perto da estrada. Os nahualli encontravam-se ali, o nahual deu suas ordens e espalhou os homens atrás da primeira fileira de guerreiros montados e da primeira leva de infantaria. Niente tomou o seu próprio lugar atrás do tecuhtli Zolin e de seus guerreiros selecionados. Do outro lado, ele viu, com a visão borrada pelo olho esquerdo ruim, os estandartes e escudos das tropas de Nessântico à espera. Havia muitos; Niente olhou para o próprio exército, significativamente menor agora, após todas as batalhas.

Ele não tinha dúvida de que os guerreiros tehuantinos eram mais bravos, de que os nahualli eram mais poderosos que os ténis-guerreiros de Nessântico. No entanto...

Havia um ardência no estômago que não passava. Niente segurou o cajado mágico com força e sentiu a energia do X’in Ka ligada ao objeto, mas o poder nas mãos não lhe deu conforto.

O céu a leste ficou ainda mais iluminado. Os primeiros raios da manhã lançaram sombras compridas que correram pela terra.

Zolin ergueu a espada e gritou — Agora! Agora! — Trompas soaram em resposta, e os guerreiros tehuantinos gritaram seus desafios. Niente levantou o cajado mágico e o bateu contra a mão aberta. O fogo chiou, faiscou e saiu voando na direção das fileiras inimigas; um momento depois, os cajados dos outros nahualli de toda a longa fileira fizeram o mesmo. Os ténis-guerreiros de Nessântico responderam: alguns feitiços sumiram como se tivessem sido engolidos pelo ar; outros quicaram, como se tivessem batido em uma parede, e voltaram para as fileiras dos tehuantinos em um arco. Onde os feitiços caíam, guerreiros caíam com eles e berravam ao serem consumidos pelas línguas grudentas do fogo. Muitos feitiços, porém, passaram incólumes, e os tehuantinos ouviram os gritos de resposta dos nessânticos. Os arqueiros, com o que restava da areia negra na ponta das flechas, lançaram uma chuva flamejante sobre o campo, que foi respondida por uma chuva de flechas nessânticas. Em volta de Niente, guerreiros grunhiram ao serem empalados, mas os escudos foram erguidos de imediato e apararam a maioria das flechas. Zolin gesticulou com a espada e os guerreiros começaram a se mover, devagar, a princípio, depois ganharam velocidade para correr pelo campo na direção dos inimigos e da cidade a frente à espera.

Foi difícil não se envolver com a onda de empolgação. Niente avançou atrás de Zolin e da parede de infantaria e ouviu a própria voz berrar um desafio com os demais. Então, com um tremor audível, a linha de frente dos tehuantinos colidiu com os nessânticos, que esperavam. Niente viu o reluzir das espadas, o avanço dos guerreiros a cavalo contra a massa caótica de soldados, ouviu os gritos dos mortos e moribundos de ambos os lados, sentiu o cheiro do sangue e viu os espirros que voavam no ar, mas havia guerreiros demais entre eles. Os guerreiros atrás de Niente o empurravam pelas costas, faziam com que avançasse, e a vanguarda avançou tão abruptamente que ele quase caiu. De repente, o nahual estava no meio da batalha, com indivíduos lutando por todos os lados, e viu um nessântico de cota de malha empunhando uma espada acima de sua cabeça ao avançar contra ele.

A tigela premonitória... O nahualli morto...

Niente berrou e golpeou o homem com o cajado mágico como se fosse um florete. Quando tocou o abdômen do soldado, um feitiço foi disparado: um clarão, uma explosão de anéis de aço rompidos, de pano marrom, de pele branca e de sangue escarlate. A espada despencou das mãos inertes, o homem ficou boquiaberto, mas não emitiu som, e caiu.

Mas não havia tempo para descansar. Outro soldado avançava contra Niente, e novamente o cajado, cheio de feitiços que o nahual preparou, derrubou o homem. Um soldado montado que os inimigos chamavam de chevarittai investiu contra ele, Niente atirou-se para o lado no momento em que os cascos blindados e com espinhos do cavalo de guerra arrancaram a terra onde ele estava e avançou em frente.

Para Niente, essa batalha — como qualquer outra — tornou-se uma série de encontros desconexos, um turbilhão de confusão e caos, um cenário desorganizado em que o nahual continuava a avançar. O barulho era tão tremendo que se transformou em um rugido inaudível em volta dele. Ele se desviou de espadas e enfiou o cajado em qualquer coisa que vestisse as cores azul e dourada. Uma espada acertou seu braço e abriu o antebraço, outra pegou a panturrilha. Niente berrou com a garganta rouca. A energia fluía rapidamente do cajado quente na mão direita, quase no fim agora.

E...

Niente percebeu que não estava em um campo, mas entre casas e prédios, que a batalha agora assolava as ruas da cidade, que os soldados vestidos de azul e dourado neste momento davam meia-volta ao soar das trompas e recuavam para as profundezas da grande cidade.

Ele ainda estava vivo, assim como Zolin.

 

A Batalha Começa: Sigourney ca’Ludovici

O COMANDANTE ALERON CA’GERODI ESTAVA diante de Sigourney e do resto do Conselho dos Ca’, a armadura suja de sangue, o elmo amassado por um golpe de espada e o rosto coberto de lama, fuligem e sangue. — Sinto muito, kraljica, conselheiros — disse ele. A voz estava tão exausta quanto a postura. — Nós não conseguimos contê-los...

Ca’Mazzak sibilou como uma chaleira que passou muito tempo no fogo. Sigourney fechou o único olho. Ela respirou fundo o ar cheio de fuligem e cinzas e tossiu. Abriu o olho novamente. Através da névoa da fumaça, a kraljica viu as ruínas do palácio, com partes queimando. Ela e o Conselho refugiaram-se no Velho Templo que, apesar do domo quebrado, encontrava-se em grande parte incólume. A nave principal estava lotada de tesouros do palácio: pinturas (incluindo o retrato chamuscado da kraljica Marguerite), louças azuis e douradas, roupas cerimoniais, os cajados e as coroas usados por uma centena de kralji; tudo estava aqui, embora muita coisa — coisas demais — tenha sido perdida no incêndio. Sigourney estava sentada no Trono do Sol na entrada da câmara sob o domo, mas se o trono estava aceso, não era aparente na claridade do sol que entrava pelo grande buraco aberto no domo. O sol debochava da kraljica ao brilhar intensamente em um céu sem nuvens.

Um dos criados entregou a Sigourney uma taça de cuore della volpe, para aliviar a tosse e a dor. Ela tomou um gole do líquido frio, marrom e turvo da taça dourada.

— Qual é a gravidade da situação? — perguntou a kraljica.

— Nós finalmente conseguimos deter o avanço deles — informou ca’Gerodi. — Os ocidentais não chegaram à Avi a’Parete, mas tomaram a maior parte das ruas a oeste da Avi na margem norte. Eles dominaram o vilarejo de Viaux. Houve uma batalha intensa perto do Mercado do Rio e por um tempo ele foi tomado pelos inimigos, mas nós os rechaçamos. Eu destaquei um batalhão para proteger a Pontica Kralji, mas isso deixou a área do Portão Norte mais aberta do que eu gostaria.

Os conselheiros murmuraram. — Isso é inaceitável — falou ca’Mazzak mais alto.

— Então talvez você devesse ter deixado o comandante co’Ulcai vivo — disse Sigourney. — Ou gostaria de pegar a espada você mesmo? — Ca’Mazzak resmungou e acalmou-se. Ca’Gerodi pareceu cambalear, e Sigourney gesticulou para que um criado trouxesse uma cadeira; o homem desmoronou de bom grado no assento estofado, sem se importar com a sujeira que espalhou no brocado. — O que está me dizendo, comandante? — perguntou a kraljica. — Que hoje à noite eles colocarão fogo no resto da cidade, que amanhã nos derrotarão completamente? Você disse que tinha mais do que homens suficientes. Você disse que...

— Eu sei o que eu disse — interrompeu ca’Gerodi e, quando Sigourney imediatamente calou a boca diante da grosseria, ele pareceu perceber o que fez e balançou a cabeça. — Perdão, kraljica; eu não durmo desde a noite de anteontem. Mas sim, isso é exatamente o que temo: que a noite de hoje trará mais daquele fogo terrível dos ocidentais, e que quando eles atacarem amanhã... — Ele ergueu a cabeça e olhou para Sigourney com seus olhos castanhos e abatidos. — Eu darei minha vida para proteger Nessântico, se for preciso.

— Aleron... — A kraljica começou a se levantar do Trono do Sol, esqueceu-se momentaneamente das feridas, e desmoronou. O movimento provocou uma nova tosse. Os conselheiros observaram Sigourney. Ela sabia agora o que tinha que fazer, e a compreensão era incômoda, tão dolorosa quanto o corpo ferido. — Vá. Descanse o quanto puder, e nós cuidaremos do que a noite de hoje e o dia de amanhã trouxerem. Vá. Durma enquanto pode.

Ca’Gerodi ficou de pé e fez uma mesura. Ele foi embora mancando. Quando saiu, Sigourney gesticulou para um criado. — Traga-me um escriba. E também um mensageiro, o melhor que tivermos, para levar uma mensagem para o hïrzg, a leste.

O criado arregalou os olhos momentaneamente, fez uma mesura e foi embora correndo.

— Kraljica — disse ca’Mazzak. — A senhora não pode...

— Nós não temos escolha — falou Sigourney para ele, para todos os conselheiros. — Nenhuma escolha. A situação já não é mais sobre nós.

Ela recostou-se no assento estofado do Trono do Sol, que cheirava à fumaça de madeira queimada. Cheirava à derrota.


??? RESOLUÇÕES ???

Allesandra ca’Vörl

Niente

Varina ci’Pallo

Sigourney ca’Ludovici

Karl Vliomani

Nico Morel

Niente

Sergei ca’Rudka

Jan ca’Vörl

Niente

A Pedra Branca

Allesandra ca’Vörl


Allesandra ca’Vörl

JAN LEU A MISSIVA com cuidado, os olhos claros vasculhando as palavras. Allesandra já sabia o que a mensagem dizia — os soldados do starkkapitän ca’Damont interceptaram o mensageiro que vinha na direção leste pela Avi a’Firenzcia, ele carregava uma bandeira branca tremulando içada sob o luar, e trazia o pergaminho selado para Allesandra, insistindo com os assistentes da a’hïrzg que ela fosse acordada. Allesandra quebrou o selo e vasculhou a carta, depois se vestiu rapidamente e foi até Jan.

Se o filho notou ou se se importou que o selo estivesse sem lacre e quebrado no papel grosso, ou que a kraljica tenha endereçado a missiva a Allesandra e não ao hïrzg, não disse nada. Jan empurrou a vela que usava como fonte de luz; o castiçal raspou a mesa que foi montada às pressas na tenda de campanha ao lado da tenda particular do hïrzg.

— Isso é genuíno? — perguntou Jan. Havia um cobertor dobrado sobre seus ombros, as pálpebras estavam cansadas e com olheiras. Ele bocejou e esfregou os olhos. — Temos certeza?

— O mensageiro disse que recebeu a mensagem da própria kraljica Sigourney — respondeu o starkkapitän ca’Damont.

Jan assentiu. Ele entregou o pergaminho para Semini, que leu a carta, franziu os lábios e o entregou para ca’Rudka. Jan parecia estar esperando, e Allesandra, sentada à mesinha na tenda de campanha ao lado dele, tamborilou os dedos na superfície arranhada. — Estamos perdendo tempo, meu filho — falou a a’hïrzg. — A mensagem é clara. A kraljica está disposta a abdicar do Trono do Sol se levarmos o exército até lá para deter os ocidentais. Acorde os homens agora e, se nossas forças marcharem rápido, nós conseguiremos chegar aos portões da cidade de manhã cedo.

Jan não pareceu ouvi-la. Ele olhava para Sergei, e perguntou — Regente? Sua opinião?

Ca’Rudka esfregou o nariz por muito tempo enquanto olhava o pergaminho, o que enlouqueceu Allesandra. Ela viu a luz da vela tremeluzir nas narinas esculpidas. — A kraljica não quis considerar a abdicação quando foi oferecida a ela durante a negociação, hïrzg Jan, ou, pelo menos, ca’Mazzak não quis — disse ele finalmente. — O conselheiro parecia totalmente confiante que a Garde Civile podia derrotar os ocidentais. Agora a kraljica foi subitamente acometida por altruísmo? Mas, como eu lhe disse, hïrzg, só quero o que for melhor para Nessântico. Eu não me importaria de ver a cidade destruída, mas isso precisa ser decisão sua.

— Aí está, Jan, viu só? — falou Allesandra, ficando de pé. — Starkkapitän, você irá...

Mas Jan havia colocado a mão no ombro dela e disse — Eu ainda não terminei, matarh. Archigos Semini, o que você acha desta oferta?

Allesandra começou a protestar, mas Jan apertou a mão no ombro da matarh. Todos observavam a a’hïrzg. Ela franziu os lábios e sentou-se novamente. Semini olhou especialmente para Allesandra, sem expressão nos olhos de cor magenta. Ele sabia, a a’hïrzg percebeu então. O archigos sabia que ela esteve disposta a oferecê-lo em troca do Trono do Sol. Sergei... será que Sergei contou para ele? Ou...

Jan?

— Eu notei que a oferta da kraljica não menciona nada sobre a fé concénziana — respondeu Semini, que ainda encarava Allesandra. — Isso é inaceitável para mim. Eu reluto em empenhar os ténis-guerreiros em uma aliança com Nessântico, a não ser que o archigos Kenne também esteja disposto a abdicar em meu favor. — Semini desviou o olhar de Allesandra e inclinou a cabeça para Jan. — A não ser, é claro, que o hïrzg exija isso de mim.

— Jan — insistiu Allesandra, ignorando Semini. — Isso é o que queríamos desde o início. Está ao nosso alcance; só temos que estender a mão e pegar.

— Oh, eu discordo, matarh — disparou Jan. — Isso é o que a senhora sempre quis. Parece que sua vida inteira é sempre uma questão do que a senhora quer: suas ambições, suas aspirações, seus desejos. Mesmo quando era menina, pelo que me contaram: a senhora quis primeiro Nessântico, então o vavatarh obrigou o exército a marchar mais rápido do que deveria e perdeu; sim, Fynn me contou essa história, que disse ter ouvido do vavatarh.

— Isso não é verdade — contestou Allesandra. Era o vatarh que queria Nessântico tanto assim. Não eu. Eu lhe disse para esperar e ser paciente. Disse sim... Mas Jan não escutou, e continuou falando.

— A senhora decidiu que não queria ajudar o vatarh após ele finalmente trazê-la de volta, então seu casamento foi uma farsa, quando poderia ter sido uma aliança forte. A senhora não quis que eu me envolvesse com Elissa, então a mandou embora. Não quis ser hïrzg, então fez campanha para que eu ficasse com o título. O que a senhora sempre quis foi ser kraljica, e quer que aceitemos essa oferta para que tenha o título agora, quer seja o melhor para Firenzcia ou não. Sempre foi a senhora, matarh. A senhora. Não o vatarh, não o vavatarh, não eu, não o archigos, ninguém. A senhora. Bem, a senhora me tornou o hïrzg, e, por Cénzi, eu serei o hïrzg e farei o que for melhor para Firenzcia e a Coalizão, não o que for melhor para a senhora. Eu amo a senhora, matarh — estranhamente, para Allesandra, ele olhou para Sergei ao dizer isso —, mas eu sou o hïrzg e declaro: nós iremos até Nessântico, mas iremos no momento conveniente. Nessântico grita por socorro para nós? Bem, deixe que grite. Deixe que lute a batalha que provocou. Starkkapitän, nós levantaremos acampamento pela manhã, como o planejado, e prosseguiremos em ritmo normal até vermos Nessântico, de lá esperaremos até sabermos mais ou até que a kraljica em pessoa saia e se ajoelhe a mim. Não mandarei uma única vida firenzciana para ser perdida defendendo Nessântico de sua própria insensatez.

— Jan... — Allesandra começou a falar, mas foi interrompida por um estalo do braço do filho.

— Não, matarh. Não discutiremos mais essa questão. A senhora queria que eu fosse o hïrzg? Bem, cá estou eu, e esta é a minha vontade. Não falaremos mais a respeito disso. Starkkapitän, você tem suas ordens.

Ca’Damont fez uma mesura e saiu da tenda após dar uma olhadela para Allesandra. Semini bocejou e espreguiçou-se como um urso despertando da hibernação. Ele fez o sinal de Cénzi para Jan e seguiu atrás do starkkapitän, sem olhar para Allesandra. Sergei viu os dois homens saírem e se levantou. — Caso precise do meu conselho, hïrzg, o senhor sabe onde me encontrar — falou. — A’hïrzg, uma boa noite para a senhora.

Allesandra acenou minimamente com a cabeça. Por vários momentos, ela e Jan ficaram sentados ali, em silêncio. — Você não quer que eu seja kraljica? — disse a a’hïrzg quando o silêncio pareceu durar tempo demais.

— Assim como Sergei quer o que for melhor para Nessântico, eu quero o que for melhor para Firenzcia — respondeu ele. Então, antes que ela pudesse responder: — Tudo o que eu sempre quis da senhora foi seu amor, matarh.

As palavras doeram como um tapa na cara dela, tão fortes que provocaram lágrimas em seus olhos. — Eu amo você, Jan. Mais do que você pode compreender.

Jan olhou com raiva para a matarh: o rosto de um estranho. Não, o rosto de seu homônimo, como Allesandra o imaginou durante todo o cativeiro em Nessântico, quando ele se recusava a pagar o resgate por ela. — Cale a boca, matarh. A senhora me ensinou bem. Mostrou para mim que as aspirações e a determinação são mais importantes que amor. Eu falei com o archigos Semini. Contei que a senhora esteve disposta a sacrificá-lo para ser kraljica. Ele me contou algo em troca: que planejou assassinar Fynn. Para a senhora, matarh. Tudo pela senhora. Semini me contou que a senhora sabia, naquela dia em que salvei Fynn, que o ataque aconteceria. A senhora usou Semini, seu amante, para fazer de mim um herói, para fazer de mim o hïrzg. O resto eu posso descobrir por mim mesmo. Eu me pergunto, matarh, quem contratou a Pedra Branca, mas tenho um excelente palpite. — Allesandra sentiu a face corar e virou o rosto. — Aquele seu gesto tão nobre — continuou Jan — de abdicar em meu favor: a senhora jamais quis ser hïrzgin. Sempre quis mais. Não queria o que era melhor para mim, mas o que fosse melhor para a senhora. Eu sempre fui seu segundo filho, o menos importante, matarh. A ambição sempre foi seu primogênito.

Allesandra ficou sem ar. Ela permaneceu sentada ali, com as bochechas úmidas de lágrimas, enquanto Jan se afastava da mesa e ficava de pé. — Jan... — disse a a’hïrzg ao erguer os braços para o filho, mas ele a negou com a cabeça. Jan olhou para a matarh, e, por um momento, ela pensou ter visto a expressão no rosto do filho abrandar.

Mas Jan deu meia-volta e saiu noite afora.

 

Niente

ELES USARAM O POUCO do que sobrou da areia negra para lançar na cidade novamente, naquela noite. Depois disso, Niente mandou os nahualli descansarem e preencherem novamente os cajados mágicos para a batalha do dia seguinte. Ele perdeu mais dez nahualli durante a batalha, a maioria no fim do dia, quando Zolin tentou, em vão, tomar a ponte mais próxima sobre o rio. A energia dos cajados mágicos tinha acabado e não houve tempo para descansar e renovar os feitiços. Os nahualli, como Niente mandou, tentaram recuar para trás da linha de frente assim que o poder foi exaurido, mas alguns foram abatidos pelas espadas nessanticanas, incapazes de se defender. O nahual não sabia quantos guerreiros tinham sido perdidos. Eles foram escorraçados por uma investida desesperada dos chevarittai, e Zolin — por insistência de Niente, que temia que fossem perder ainda mais nahualli — finalmente mandou o avanço parar.

Eles eram muito poucos... tanto os nahualli quanto os guerreiros. Mas Zolin não enxergava isso, ou estava tão envolvido com a própria visão que a situação tinha sido apagada dos próprios olhos. — Amanhã, toda a cidade será nossa — disse ele para Niente, Citlali e Mazatl. O nahual não sabia se era verdade ou não e estava exausto demais para se importar.

Após a última das bolas de fogo ser lançada na cidade, o nahual foi para a própria tenda. Lá, sozinho, ele pegou a tigela premonitória nas mãos: com medo de conjurar o feitiço, com medo de ter a mesma visão, com medo da exaustão e da dor que seriam cobrados pelo feitiço. Niente tentou se lembrar do rosto da esposa e dos filhos: ele conseguiu vê-los em sua mente, mas isso só fazia piorar a saudade. Imaginou como estavam, se mudaram, se sentiam sua falta como Niente sentia a deles.

Imaginou se algum dia saberia.

Ele colocou a tigela de lado.

O sono naquela noite foi intermitente e inquieto. Os pesadelos o invadiram; Niente viu a esposa morta, as crianças feridas, viu a si mesmo lutando e tentando correr, mas incapaz de fazer mais do que andar enquanto era cercado por demônios vestidos de azul e dourado. O nahual tentou imaginar o rosto da esposa diante dele, a boca semiaberta quando Niente inclinou-se para beijá-la... o rosto não tinha expressões nem feições, era uma máscara. Sem conseguir escapar dos sonhos, ele acabou andando de um lado para o outro do acampamento, escutou os sons dos guerreiros descansando, viu as estranhas formas dos prédios ao redor. Ao passar por um edifício, o nahual ouviu seu nome ser chamado. — Niente.

Ele reconheceu a voz. — Citlali.

O guerreiro supremo estava encostado na porta do prédio. Atrás dele, uma vela brilhava na escuridão. — Não consegue dormir? — perguntou Citlali.

Niente balançou a cabeça. — Eu não ouso. Sonhos demais. E você?

O rosto com redemoinhos negros deu um sorriso. — Sonhos de menos. Eu queria ver a nossa terra natal e minha família novamente, mesmo no sono.

— Isto não acontecerá se... — Niente engoliu o comentário, furioso consigo mesmo. Se estivesse menos confuso pela falta de sono, não teria dito nada.

— Se prevalecer a vontade do tecuhtli Zolin? — arriscou Citlali. — Eu pensei a mesma coisa, nahual. Não precisa ficar tão nervoso. — O sorriso aumentou, e ele olhou de um lado para o outro, como se tentasse ver se alguém os escutava. — E deixe-me responder à outra pergunta que você não irá fazer. Não. Eu não desafiarei o tecuhtli. Veja até onde ele nos trouxe, nahual, do outro lado do mar até o grande lar dos orientais. Isso é a verdadeira grandeza, nahual. Grandeza. Estou orgulhoso por ter sido capaz de ajudá-lo.

— Mesmo que isso signifique que você jamais verá sua terra natal e sua família novamente?

Citlali ergueu os ombros. — Eu sou um guerreiro. Se essa for a vontade de Sakal... — Ele abaixou os ombros novamente. — Eu não preciso de uma tigela premonitória, nahual. Não tenho interesse no futuro, apenas no presente. É uma bela noite, eu estou vivo e vendo um lugar que jamais pensei que veria e que poucos tehuantinos um dia viram. Como alguém não ficaria feliz com esta situação?

Niente limitou-se a concordar com a cabeça. O nahual desejou boa-noite e deixou o guerreiro com seu devaneio. Da parte dele, Niente voltou aos próprios alojamentos e realizou os rituais para colocar feitiços no cajado novamente. Então, completamente esgotado pelo esforço, ele foi para a cama e deixou os pesadelos o invadirem outra vez.


E, no dia seguinte, os pesadelos se tornaram realidade.

Na alvorada, o tecuhtli Zolin levou os tehuantinos para as profundezas da cidade, eles lutaram de rua em rua na direção da grande avenida principal. A batalha foi um reflexo do combate do dia anterior: novamente, a ofensiva inicial fez os cansados nessanticanos recuarem; quando o olho de Sakal estava bem alto no céu, eles chegaram à avenida, onde Zolin rapidamente reagrupou as tropas e começou a marcha para o sul.

Lá, os nessanticanos haviam se reunido: em volta do mercado, onde finalmente detiveram o avanço tehuantino no dia anterior, e em volta da ponte que levava à ilha. No A’Sele, Zolin mandou que os navios avançassem na direção do inimigo; os navios nessanticanos deslocaram-se para detê-los, e outra batalha tomou o lugar, cujo resultado Niente só podia imaginar, embora muitos navios de guerra de ambos os lados estivessem em chamas. Não havia mais retirada possível ali — restaram poucos navios para todos eles voltarem para casa.

— Nahual! — Do cavalo, Zolin apontou um dedo para Niente. — Pegue seus nahualli e venha comigo. Nós controlamos a rua principal, agora temos que dominar a ponte. Citlali! A mim!

Zolin rapidamente posicionou os guerreiros. Citlali e Zolin atacariam os píeres da ponte a partir da avenida, diretamente no coração das forças nessanticanas; Mazatl esperaria até que o ataque estivesse em andamento, depois investiria pelo flanco oeste através do Mercado do Rio. Vários guerreiros duplas mãos1 também começariam um ataque ao norte imediatamente e forçariam a passagem pela avenida circular de maneira que os nessanticanos não pudessem concentrar a atenção na cabeça de ponte — não sem possivelmente perder a ponte mais a leste para a grande ilha. Zolin mandou os guerreiros à frente como manobra de distração, depois esperou que a sombra do sol movesse um dedo antes de acenar e liderá-los ao lés-nordeste da avenida, onde posicionou seus homens. Eles podiam ver os nessanticanos: uma parede de escudos em riste do outro lado da avenida, a meros cem passos.

Não havia areia negra, nem tempo para fazer mais, mesmo que eles tivessem os materiais brutos. Desta vez, os arqueiros começaram o ataque com uma chuva sobre os escudos dos nessanticanos sem causar grandes danos. Os ténis-guerreiros lançaram as bolas de fogo estridentes na direção dos tehuantinos, e Niente — com os demais nahualli — ergueu seu cajado mágico rapidamente. Os feitiços de proteção estalaram para fora, um pulso quase visível no ar. A maior parte das bolas de fogo foi desviada; elas caíram nos prédios de ambos os lados, que pegaram fogo. Mas havia muitos ténis-guerreiros e nahualli insuficientes. Os feitiços de guerra caíram sobre os guerreiros reunidos; os homens gritaram, seus corpos foram queimados e contorcidos. Aqueles que puderam, fugiram, terrivelmente feridos com as queimaduras do fogo pegajoso. Os que não puderam, morreram. Uma bola de fogo caiu perto o suficiente de Niente para o nahual sentir o calor do feitiço, como se a fornalha de um ferreiro tivesse sido aberta em frente a ele. O calor passou por seu rosto como uma onda escaldante e secante. Zolin também sentiu o calor; ele deu uma olhadela para a cena atrás de si quando o cavalo empinou com medo. O tecuhtli berrou — Em frente! Agora! — Zolin controlou a montaria e a cutucou com o pé para que galopasse. Os guerreiros supremos montados seguiram o tecuhtli e a infantaria também investiu, à frente. Niente foi levado pela onda.

A onda arrebentou contra os escudos pintados de azul e dourado e empalou-se em suas lanças. No caos barulhento, Niente viu o cavalo de Zolin cair, com uma lança cravada no peito, mas o tecuhtli em si perdeu-se na massa de soldados, e o nahual não conseguiu ver o que aconteceu com ele.

Havia espadas e combate em volta de Niente, que só conseguiu pensar em si mesmo, em matar o máximo possível de nessanticanos. Ele apontou o cajado mágico, falando a palavra de ativação sem parar, e os raios estalaram da ponta, assobiando e ondulando ao mergulharem nas fileiras em frente ao nahual. Um buraco foi aberto na parede de escudos quando ele lançou um feitiço após outro — os clarões mandaram dezenas de homens ao chão. Os guerreiros gritavam, urravam e brandiam suas espadas ao avançar através da brecha. A parede começou a ceder, e então desmoronou complemente. Niente novamente foi levado pela onda e viu de perto as torres que marcavam a entrada da ponte.

À direita, havia uma cacofonia de gritos: os guerreiros de Mazatl que investiam contra o flanco. O som grave das trompas soou nas fileiras nessanticanas. Niente viu um estandarte tremulando ali e um aglomerado de chevarittai a cavalo. De repente, o estandarte seguiu para a direção sul da ponte, com os chevarittai junto. O nahual viu a expressão de compreensão nos rostos dos soldados inimigos diante dele. Viu a maneira como as espadas foram abaixadas momentaneamente, como as fileiras se enfraqueceram visivelmente. A chuva de flechas cessou, os ténis-guerreiros não lançaram mais bolas de fogo sobre a cabeça de Niente sobre a retaguarda dos tehuantinos. Eles avançaram gradualmente: os guerreiros, os nahualli, agora o nahual conseguia ver Zolin novamente, sangrando e ferido, mas em pé, sua espada ceifava os soldados que ousavam ficar diante dele. Citlali estava ao lado do tecuhtli, com o rosto implacável e impetuoso.

Eles estavam na ponte agora. Ela era dos tehuantinos. O rio movia-se preguiçosamente embaixo deles, e corpos caíam do peitoril e batiam nas águas.

Os tehuantinos rugiram. Eles cantavam enquanto matavam, e Niente cantou com eles.

 

Varina ci’Pallo

AS RUAS DO VELHO DISTRITO ESTAVAM tomadas por cidadãos em pânico, a maioria corria para leste, para longe das forças ocidentais que se aproximavam e das batalhas ao longo da Avi a’Parete. Todos ouviam os sons: os berros que reverberavam pelas vielas, os lamentos, os gritos, o barulho constante das trompas dos templos soando alarmes estridentes. A fumaça dos incêndios manchou o céu, trapos imundos que às vezes obscureciam o sol, e o cheiro de fogo e carnificina no ar era intenso.

Varina viu-se próxima a Karl pela maior parte do dia. Ela sorria para ele, nervosa e indecisa, e Karl devolvia o mesmo sorriso. — Prometa — falou Varina finalmente. Os dois estavam sozinhos em um dos cômodos; Talis, Serafina e Nico estavam no outro.

— Prometer o quê?

— Que o que quer que aconteça... que aconteça conosco. Guarde um último feitiço para nós, eu farei o mesmo.

— Não será assim tão ruim — disse Karl. — Talis... ele é um deles, afinal.

Ela sacudiu a cabeça, tão desamparada pelo fato quanto Karl.

Mais tarde, o cheiro de fumaça ficou mais forte. Pela janela do apartamento, eles viram a fumaça pegajosa e espessa subir das casas e de uma rua a oeste, com chamas que ocasionalmente irrompiam na escuridão. Cinzas caíam como neve cinzenta. Karl achou que quase podia sentir o calor. Os dois seguiram para o cômodo da frente com os demais.

— Tudo está queimando — falou Nico. Ele parecia mais empolgado do que preocupado, mas todos os adultos trocaram olhares preocupados. O estalo das chamas ao longe era audível no silêncio.

— Você está certo, Nico — disse Varina, enquanto olhava para Serafina. — Infelizmente, os ténis-bombeiros estão muito ocupados em outros lugares para fazer algo a respeito disso. — O olhar dela desviou de Serafina para Karl. Varina sabia o que ele estava pensando; era o que estava na mente de todos: Será que podemos ficar aqui? Precisamos ir embora?

Menos de uma virada da ampulheta depois, todos ouviram uma comoção alta ecoar a oeste, lá fora, na rua. Não muito longe dali, uma turba de várias dezenas de pessoas andava à espreita pela viela; não eram soldados, nem ocidentais, mas gente que morava no Velho Distrito. Eles berravam, corriam de casa em casa e quebravam portas e janelas; Varina ouviu os berros e gritos dos que estavam no interior enquanto a turba invadia cada casa. Eles saqueavam, carregavam qualquer coisa que parecesse de valor: ela viu algumas pessoas segurando itens roubados enquanto marchavam; o que mais, além de roubar, os saqueadores faziam dentro das casas, Varina só podia imaginar. Já havia fogo em três ou quatro casas mais ao longe na rua. A turba gritava alto: — Peguem o que quiserem! A cidade está perdida! Revolta! Revolta!

Karl e Talis passaram por Varina e seguiram para a rua enquanto a turba continuava o lento e caótico avanço na direção deles. Alguém à frente os notou e apontou, e vários aglomerados de saqueadores seguiram na direção deles. — Parem com isso! — gritou Karl, a turba debochou, as pessoas responderam com berros e brandiram armas velhas ou improvisadas. Ele deu uma olhadela para Talis e acenou com a cabeça. O embaixador ergueu as mãos, gesticulou, e uma luz surgiu entre elas. Ao seu lado, Talis levantou o cajado e bateu uma vez nas pedras de pavimentação: um raio saiu como uma flecha do punho para o céu esfumaçado.

A turba parou. Sem uma palavra, as pessoas se dispersaram em um estranho silêncio, correram para qualquer direção, desde que fosse para bem longe dos dois. Alguns instantes depois, a rua estava vazia. — Ora, isso acabou bem — falou Karl. Ele e Talis viraram-se, e Varina viu os dois ficarem boquiabertos.

Ela tinha lançado o próprio feitiço no momento em que Karl lançou o dele. Varina moldou o ar ao redor com o toque de um escultor, desenhou como se fosse uma tela e colocou nele uma imagem saída da mente. Varina viu o que Karl e Talis viram, algo que se agigantava atrás deles, mais alto que qualquer uma das casas.

— Um dragão! — berrou Nico da porta da casa, nos braços de Serafina, tomado pela alegria. Karl riu e aplaudiu, Varina sorriu. — Você pode fazê-lo cuspir fogo e voar? — perguntou o menino, e ela fez que não com a cabeça.

— Ele não pode fazer nada, só parece feroz — disse Varina. Por um instante, o perigo foi esquecido, mas depois a realidade desabou sobre eles quando ela cancelou o feitiço. O dragão sumiu em filetes de fumaça verde que foram levados pelo vento. Os saqueadores podiam ter ido embora, mas nada mudou. Eles voltariam em breve, e os incêndios próximos ardiam sem controle. A cidade continuava sob ataque.

— Karl, não podemos ficar aqui — falou Varina.

Ele olhou para Talis e viu o homem concordar com a cabeça, devagar. — Você está certa — disse Karl. — É o momento. Vamos pegar o que precisamos. — Ele deu um tapinha no ombro de Talis e foi para a porta.

Do outro lado da rua, Varina viu uma velha solitária — uma mendiga, pela aparência da roupa. Ela olhava fixamente para a casa. Assim que Varina a viu, a mulher pareceu acenar com a cabeça, depois correu pelo espaço escuro e apertado entre as casas e foi embora.

 

Sigourney ca’Ludovici

ELES A COLOCARAM no Velho Templo.

O comandante ca’Gerodi voltou fugindo da derrota na Pontica Kralji, entrou gritando no Velho Templo onde Sigourney estava sentada, no Trono do Sol, e disse que ela e o Conselho dos Ca’ deveriam pegar o que fosse possível e fugir imediatamente pela Pontica a’Brezi Veste até a margem sul e sair da cidade.

Sigourney recusou-se. — Que o Conselho vá embora se quiser. Eu vou ficar.

— Eu não posso protegê-la, kraljica — disse ca’Gerodi. — Eles estão vindo, a qualquer momento.

— Eu não abandonarei minha cidade e minha responsabilidade — respondeu ela friamente. — Eu ficarei.

No fim, a equipe de Sigourney pegou o que pôde do que restava dos tesouros do palácio e fugiu da Ilha A’Kralji. O mesmo aconteceu por toda Nessântico: no enorme Templo do Archigos, na margem sul; na Grande Biblioteca com seus preciosos e insubstituíveis livros e pergaminhos de velino; no Teatro A’Kralji e no Museu a’Artisans. O conselheiro ca’Mazzak e o resto do Conselho desapareceram também. Fugiram para o sul, a única direção ainda aberta para eles...

Sigourney permaneceu no Trono do Sol, no Velho Templo, sob a luz do sol que entrava pelo domo arruinado e queimado. Antes de permitir que o ervanário da corte fosse embora, a kraljica mandou que o homem preparasse uma taça especial do cuore della volpe, que agora estava no braço do Trono do Sol, ao lado dela. Sigourney usava uma longa tashta cerúlea com um sobretudo amarelo que escondia o fato de não haver uma perna debaixo do joelho direito. Ela mandou que os criados colocassem um tapa-olho cravejado sobre o buraco onde antes ficava o olho direito e aplicassem pó de ovo no rosto para esconder a pior parte das cicatrizes.

Sigourney aguardava no antigo trono de Nessântico. Aguardava o inevitável.

Lá fora, a kraljica ouviu a batalha em andamento: os gritos dos homens, o clamor das armas, o rugido dos feitiços dos ténis-guerreiros. A fumaça subia e enfraquecia a luz do sol. Um esquadrão de elite da Garde Kralji estava disposto diante dela, a cota de malha farfalhava quando os soldados se remexiam, nervosos, empunhando as espadas e voltados para as portas do templo. O comandante ca’Gerodi tinha ido embora há uma virada da ampulheta. — Eu não a verei novamente, kraljica — disse ele. — Sinto muito.

— Eu sei. Eu sei. Sinto muito também.

Ela aguardava.

Quando as portas foram escancaradas, os gardai em frente a Sigourney ficaram tensos e começaram a avançar. — Não — disse a kraljica. — Parem! Esperem! — Vários guerreiros ocidentais entraram no templo; com eles havia outro homem, este sem as tatuagens dos guerreiros e com um cajado de madeira lustrosa: um dos feiticeiros. Os ocidentais pararam e espiaram o longo corredor da nave onde Sigourney estava sentada sob um facho poeirento de luz do sol. — Algum de vocês fala nossa língua? — berrou ela.

— Eu falo — disse o feiticeiro. As palavras eram arrastadas e com um sotaque carregado, mas compreensíveis. — Um pouco.

— Ótimo. Eu sou a kraljica Sigourney ca’Ludovici, monarca desta terra. Quem é você?

O homem sussurrou por um instante para o guerreiro ao lado dele, que tinha a imagem de uma águia ou um falcão vermelho desenhada na careca. — Eu sou Niente — respondeu o feiticeiro. — Sou o nahual. E este — ele apontou para o guerreiro com quem havia falado — é o líder dos tehuantinos, o tecuhtli Zolin. Ele exige sua rendição, kraljica.

— Ele pode exigir o que bem quiser. — Sigourney ergueu a mão do braço do Trono do Sol. O anel com o sinete dos kralji reluziu quando a kraljica tocou a faixa dourada da coroa, posta sobre seu cabelo grisalho e grosso. O sol estava quente sobre ela, que ergueu os olhos para as ruínas queimadas dos suportes do domo. — Ele não terá minha rendição.

Novamente o feiticeiro falou com o guerreiro, que soltou uma gargalhada que ecoou pelo templo. O homem falou palavras em uma língua que parecia ao mesmo tempo estranha e, no entanto, familiar de um jeito esquisito. Onde ela ouviu palavras assim antes? — O tecuhtli Zolin diz que se a kraljica deseja desafiá-lo, ele está disposto a aceitar. O tecuhtli emprestará a própria espada se ela não tiver uma própria. Caso contrário, ele mandará seus guerreiros torná-la prisioneira. O tecuhtli deixa a decisão com a senhora.

Sigourney balançou a cabeça e falou — Eu sei como vocês tratam os prisioneiros. E você não percebeu todas as opções que eu tenho. — O feiticeiro pareceu confuso ao ver a kraljica pegar a taça no braço do Trono do Sol e tomar todo o preparado amargo em um só gole. — Espero que aproveitem a cidade enquanto a controlam. — Ela ergueu a taça para os ocidentais e deixou que caísse nos ladrilhos, onde se quebrou. A perna já formigava quando Sigourney recostou-se no trono. A paralisia subiu rapidamente pelas coxas, pela cintura, pela barriga. Pelo coração. A luz do sol na nave pareceu enfraquecer. — Este é o meu trono e, enquanto eu viver, não abrirei mão dele.

Sigourney riu então. A voz parecia estranha, ofegante e fraca. A kraljica tentou forçar as próximas palavras. — E eu escolho o momento conveniente. — Ela tentou tomar fôlego, mas os pulmões não se mexeram. Abriu a boca, mas não havia ar.

Sigourney sorriu para eles quando o sol escureceu e Nessântico sumiu de vista.

 

Karl Vliomani

— PARA ONDE VOCÊ SUGERE de irmos? — perguntou Talis.

— Leste — sugeriu Karl. — Para os firenzcianos. Sergei pode estar lá.

— Podemos ir para o oeste — contra-argumentou Talis. — Para o meu povo.

— Seu povo colocou fogo em Nessântico — falou Varina. — Eles matam. Estupram. Saqueiam.

— E o seu povo não faz isso? — disparou Talis. — Você não esteve nos Hellins, não é? Ou se esqueceu do que começou este confronto em primeiro lugar? — Ele olhou com raiva para Varina, que sustentou o olhar, sem pestanejar.

— Parem, vocês dois — disse Karl. — Não temos tempo a perder com isso. Talis, ir para o oeste significa tentar passar pela pior parte dos incêndios, e o sul não parece muito melhor do que isso. Temos que pensar a respeito do menino, especialmente; é perigoso demais.

— E ir na direção dos firenzcianos não é perigoso? — protestou Talis.

— Eu diria que é menos.

Serafina tocou no ombro de Talis e falou — Acho que ele está certo, amor. Por favor...

Talis fez uma cara de desdém, e deu de ombros. — Tudo bem. Mas a culpa vai ser sua, numetodo, se a coisa ficar feia.

Eles rapidamente reuniram o que poderiam carregar. O cheiro de fumaça era esmagador agora, e cinzas caíam constantemente sobre os telhados, cujas bordas brilhavam com chamas agitadas. O grupo não conseguia ver o sol de maneira alguma, embora devesse estar no alto no céu. A rua continuava deserta; aqueles que podiam fugir já haviam escapado; aqueles que ficaram estavam entrincheirados nos prédios. Eles desceram a viela rapidamente até o cruzamento e viraram para leste.

Quando chegaram às ruas maiores, eles encontraram as multidões novamente. Um enxame de gente saqueava lojas, quebrava portas, arrancava persianas e carregava o que fosse possível. Os saqueadores olhavam com ar de provocação para o grupo enquanto passavam com as conquistas, desafiavam qualquer um a tentar detê-los ou protestar. Um esquadrão de quatro utilinos apareceu e soprou os apitos, mas, tirando isso, não fizeram tentativa alguma de restaurar a ordem; eles apontaram os cassetetes e gritaram avisos, mas saíram correndo quando os saqueadores mais próximos se viraram para confrontá-los.

Karl e os demais foram atrás deles.

Algum tempo depois, o grupo passou por vários quarteirões, longe o bastante para as cinzas dos incêndios não mais caírem sobre os ombros e cabelos. Eles se aproximavam do centro do Velho Distrito; Karl vislumbrou a praça aberta não muito distante dali, onde a viela tortuosa de repente se abria nela: lá estava a estátua de Henri VI, com a espada erguida sob a luz do sol. As multidões desapareceram novamente. Parecia que eles corriam por uma cidade deserta. Quando se aproximaram do fim da rua, Karl parou o grupo: encolhidos contra o flanco do prédio mais próximo, eles viram um esquadrão da Garde Civile passar rapidamente para o sul pela praça aberta, perto do chafariz de Selida, liderado por um trio de chevarittai montados. Muitos dos soldados estavam visivelmente feridos, e mancavam enquanto cruzavam a praça meio que correndo.

— Eles estão recuando — sussurrou Varina. — Será que perdemos a cidade, então?

Karl não tinha como responder, embora desconfiasse da verdade, e falou — Vamos correr...

O grupo começou a cruzar a praça quando a Garde Civile desapareceu na entrada de uma rua ao sul. Eles chegavam ao fim da sombra de Henri VI, quase no meio do centro do Velho Distrito, quando viram do que os soldados fugiam.

Uma massa ruidosa de homens pintados entrou na praça aos borbotões vinda do norte. Ao longe, Karl viu que estavam bem armados: espadas, lanças, flechas. Os rostos tinham o redemoinho de linhas negras como o de Uly; os corpos eram protegidos por armaduras de bambu. Eles ainda não tinham visto o pequeno grupo de Karl, ou, se viram, julgaram irrelevante. Os ocidentais entraram no espaço aberto: havia pelo menos trinta ou mais deles. — Andem! — sibilou Karl. — Rápido! — Eles podiam facilmente chegar a uma das transversais que levavam ao centro do Velho Distrito e despistar os ocidentais antes que fossem alcançados. Karl pegou a mão de Varina e começou a correr.

Depois de alguns passos, Karl percebeu que os dois estavam sozinhos. Talis permaneceu parado sob a sombra da estátua. Ele segurava as mãos de Serafina e Nico. — Talis!

Talis balançou a cabeça. — Não — disse ele em voz alta.

— Talis, Sergei foi para Firenzcia. Nós podemos segui-lo. Você não tem nada para barganhar com essa gente. Não mais. Você está colocando Serafina e Nico em perigo.

Talis sorriu para Karl e Varina. — Ah, mas eu tenho sim um trunfo: a areia negra de Uly. Lembra-se? Ainda está aqui.

Karl sentiu a mão de Varina apertar seu braço. Ele lembrou-se: Uly, os barris de ingredientes no apartamento do homem, à espera de serem misturados... — Você não pode dar isso a eles...

— Este é o meu povo — falou Talis. — Eu agradeço por tudo o que vocês fizeram por Sera e Nico, mas este é o meu povo, o povo que eu conheço, e este é o momento de eu voltar para eles. Vá para o seu. — Ele gesticulou para os soldados e berrou algo em uma língua que Karl não compreendia. — Vá — disse Talis para Karl. — Vá enquanto ainda tem chance.

— Pelo menos deixe-nos levar Serafina e Nico conosco — gritou Varina, mas Talis fez que não com a cabeça.

— Eles são a minha família e ficarão comigo. Vá, Karl. Ou fique. Mas faça sua escolha. — Serafina olhou para os dois com incerteza e pânico no rosto. Nico encarou de olhos arregalados, mas parecia calmo.

Vários guerreiros pintados se aproximavam correndo agora. Talis ergueu o cajado mágico. Uma luz irrompeu do objeto, cintilou e baniu a sombra de Henri VI. — Karl? — A mão de Varina estava erguida; ele sentiu a energia do Segundo Mundo se acumular em volta dela.

— Eles são muitos — disse Karl.

— Não podemos deixá-los. Não podemos deixar Nico.

— Não temos escolha — respondeu ele.

Karl pegou a mão de Varina, e os dois correram.

 

Nico Morel

NICO NÃO CONSEGUIA ENTENDER o que Talis dizia quando os soldados pintados se aproximaram deles. Ele notou a insegurança na voz do vatarh e o jeito com que Talis falava alto e rápido, com a bengala mágica em frente ao corpo como um porrete. A matarh abraçou o menino com tanta força que ele mal conseguia respirar quando os estranhos os cercaram. Os homens eram inacreditavelmente grandes, assustadores e cheiravam a sangue e morte.

Nico sentiu o medo crescer dentro dele, juntamente com o frio estranho que sentiu no gabinete do archigos, assim como quando fugiu de Ville Paisli. O frio começou a aumentar por dentro, e ele murmurou baixinho as estranhas palavras que vieram à mente enquanto as mãos fizeram pequenos gestos sob o abraço forte da matarh.

— Talis, o que está acontecendo? Estou assustada... — Nico ouviu a matarh falar.

— Está tudo bem — disse o vatarh, mas a voz contradizia a resposta. — Eu só preciso falar com o guerreiro supremo. Deixe-me cuidar disso. Eles são meu povo; só não esperavam me encontrar aqui...

Talis voltou-se para um dos homens pintados, o que tinha um lagarto negro de língua vermelha rastejando no topo do crânio, que passava em volta do olho esquerdo e ia até a lateral da cabeça. Enquanto eles meio que gritavam uns com os outros, o vatarh brandiu a bengala na cara do sujeito. Nico sentiu o frio crescer sem parar dentro dele, era tão intenso que ele sabia que iria explodir se tentasse contê-lo por mais tempo. O menino gritou as estranhas palavras. Gesticulou.

Não houve fogo azul dessa vez. Em vez disso, o ar tremeu em volta dele e propagou-se como uma onda visível, a onda rápida acertou os homens pintados, e eles foram lançados para trás como se tivessem sido golpeados por um grande punho. — Venha, matarh! — berrou Nico. O menino agarrou a mão dela e puxou-a de maneira que Serafina tropeçou ao segui-lo, enquanto ele fugia na direção em que Karl e Varina foram. — Talis! Rápido!

Mas Talis não correu com os dois; ele também havia sido derrubado pela explosão incontrolável do menino. O guerreiro-lagarto já estava de pé, Nico olhou para trás ao começar a correr e viu o homem berrar para os demais no momento em que Talis gritou alguma coisa de volta e ergueu a bengala. Uma luz ofuscante brilhou da bengala, e um dos guerreiros rugiu. Nico puxou a matarh com mais força. — Corra!

Sera deu um passo com ele, mas soltou a mão do filho. O menino deu outro passo antes de perceber que a matarh não estava com ele. — Sera! — Nico ouviu Talis gritar e virou-se para trás.

A matarh estava esparramada sobre os paralelepípedos da praça, com uma lança nas costas e seu sangue manchando as pedras da pavimentação. Ela esticou o braço na direção de Nico, rastejou atrás do filho, com o rosto contraído de dor. — Matarh! — berrou o menino, que correu de volta para Serafina. Nico caiu ao lado dela assim que Talis a alcançou.

— Nico... — disse a matarh. — Eu sinto muito... — Ela virou a cabeça para Talis e começou a falar, mas ele fez carinho na cabeça de Serafina e a abraçou com cuidado.

— Não, não diga nada. Eu vou levar você a um curandeiro, a alguém que possa te ajudar... — Talis ergueu o olhar para os soldados pintados, que se reuniram em volta deles. O vatarh falou rispidamente na própria língua. O guerreiro-lagarto fez uma expressão de desdém, e gesticulou para os homens. Um deles arrancou a lança das costas da matarh de Nico, e ela gritou novamente. O menino atirou-se contra o guerreiro-lagarto e socou a armadura do homem. Ele agarrou Nico com um braço musculoso e rosnou alguma coisa para Talis. — Nico! — falou o vatarh. — Eles vão ajudá-la. Por favor, escute o que eu digo. Você tem que parar de lutar com eles.

Toda a energia abandonou Nico; ele desmoronou no braço do guerreiro-lagarto.

Dois guerreiros agacharam-se; eles rasgaram tiras da própria roupa e amarraram na cintura da matarh do menino. Um guerreiro pegou Serafina nos braços; ela gemeu e revirou os olhos, mas Nico viu que a matarh ainda respirava. Uma das mãos pendia; o menino contorceu-se no braço do guerreiro-lagarto e foi solto pelo homem. Ele correu e pegou a mão de Serafina.

Nico segurou a mão da matarh, em prantos, enquanto eles saíam rapidamente da praça.

 

Niente

ELES CONQUISTARAM A CIDADE.

Ou, mais corretamente, conquistaram parte dela. Nessântico era grande demais e a força dos tehuantinos pequena demais para controlar a cidade inteira, na prática. Em vez disso, eles arrebentaram a cidade, usaram areia negra para incendiar Nessântico, fizeram a Garde Civile recuar para o norte e o sul.

A cidade já não pertencia à kraljica e ao povo dela, mas também não era dos tehuantinos.

Niente tinha certeza de que jamais seria deles.

— Bem? — perguntou Zolin enquanto o nahual espiava a água da tigela premonitória.

— Paciência, tecuhtli — disse ele. — Paciência. — Mas Niente já sabia. A visão já tinha passado e a água era apenas água. Mas, ao fingir, o nahual podia decidir o que queria dizer. Ao fingir, podia se recuperar da pior parte do cansaço e da exaustão causados pelo feitiço.

Ele viu — novamente —, no meio da grande cidade arruinada, o tecuhtli e o nahualli mortos e sentiu outra vez o arrepio com a certeza de que viu Zolin e a si mesmo. Nada mudou. Axat ainda lhe mostrava o mesmo futuro, o mesmo caminho. Nada foi alterado após esta vitória. Niente achava que nada poderia alterá-lo. O futuro estava predeterminado, tão inevitável quanto o pôr do sol.

Eles estavam nas ruínas do templo, Zolin sentado no trono que a kraljica usara. O cabo de uma lança tinha sido cravado em uma fenda no piso de cerâmica, perto do trono. A cabeça da kraljica foi enfiada na lança, o único olho vidrado voltado para fora, o cabelo pendia grotescamente — o corpo estava caído contra a parede atrás do trono, onde fora jogado. Uma fogueira foi acesa no meio da nave e alimentada com a madeira dos bancos do tempo; uma fumaça cinza e fina subia para o céu que começava a ficar púrpura. Mesas foram erigidas em volta da fogueira, e um banquete estava em andamento, servido por assustados prisioneiros ocidentais. Não havia algum motivo em especial para o medo deles; Zolin e os outros guerreiros supremos não permitiriam que nenhum prisioneiro fosse maltratado. Sim, haveria os inevitáveis estupros, saques e mortes, mas os incidentes seriam poucos, e os responsáveis seriam severamente punidos se fossem flagrados. Alguns offiziers do alto escalão seriam sacrificados pela glória de Axat e Sakal, mas nenhum outro prisioneiro sofreria algum mal.

Os tehuantinos eram mais benevolentes e bons vencedores do que os orientais quando estes vieram aos Hellins.

Enquanto os guerreiros aproveitavam o banquete, Niente olhava na tigela premonitória perto da fogueira. A luz do fogo lambeu a pele do nahual, mas o calor não conseguiu tocar o frio que ele sentia por dentro. Niente finalmente pegou a tigela e jogou a água nas brasas em chamas, que assobiaram e soltaram vapor em resposta.

— Então — falou Zolin —, Axat me vê permanecendo aqui? Eu acho que este é um ótimo lugar. Podemos construir uma nova cidade aqui, uma que essa terra nunca viu antes, uma cidade que rivalizasse com Tlaxcala, e eu poderia ser o tecuhtli aqui, e os ocidentais nos serviriam como eles forçaram nossos primos a servi-los.

— Eu realmente vejo o senhor permanecendo aqui, tecuhtli — falou Niente, o que não era nada mais que a verdade.

Zolin deu um tapa nos braços cristalinos do trono. Ele rugiu de alegria, e os guerreiros reunidos no salão riram com ele. — Viu só! — berrou o tecuhtli para Niente. — Todas aquelas preocupações. Eu lhe disse, nahual, eu lhe disse.

— Disse sim, tecuhtli — falou Niente.

Zolin inclinou-se para a frente no trono. — Você viu outras batalhas? Você me viu tomando novas cidades?

O nahual balançou a cabeça e respondeu — Não. E isso não seria prudente, tecuhtli. Não temos mais areia negra. Se pudéssemos repor os guerreiros que caíram, se eu pudesse trazer mais nahualli para cá... — Ele espalmou as mãos. — Eu diria ao tecuhtli... — Niente começou a falar, mas houve uma agitação no fim do salão: o guerreiro supremo Citlali surgiu com um homem ao lado dele; um homem com um cajado mágico na mão. O nahual apertou os olhos para ver na escuridão da noite, iluminada pela fogueira; não era um nahualli que ele reconhecesse, e o homem estava vestido como um dos orientais, havia manchas de sangue na roupa. No entanto, aquele rosto...

— Talis? — perguntou Niente. — É você? — Pelo rosto, o homem parecia ter muitos mais anos do que deveria, a face foi arrasada pelo poder de Axat assim como a do nahual, mas ele lembrava-se da juventude nas feições do sujeito.

— Niente? — Talis correu à frente e agarrou o antebraço de Niente, seus olhos vasculharam o rosto, sem dúvida tão mudado quanto o próprio. — Por Axat, tem muito, muito tempo. Você é o nahual. Ótimo. Que ótimo para você... — Ele então viu o tecuhtli Zolin, deu meia-volta e abaixou a cabeça para ele. — Tecuhtli. Noto que Necalli caiu.

Niente ainda olhava para Talis. Havia uma dor nos olhos do homem que não era causada pelo X’in Ka. — Você está ferido? — perguntou o nahual, e Talis balançou a cabeça.

— Não, é que... — Ele parou, e Niente viu a preocupação e a tristeza desabarem sobre o homem. — Eu... eu tenho uma esposa aqui, e um filho. Ela foi... gravemente ferida. Preciso voltar para os dois...

— Nós levamos a mulher e o menino para a tenda dos curandeiros, tecuhtli, nahual — intrometeu-se Citlali. — Eles estão fazendo o possível.

— Ótimo — falou Zolin. — Você poderá ir até eles em um momento, Talis. Então você é o nahualli enviado para cá pelo antigo nahual? Eu sei que ele disse ao tecuhtli Necalli que você era quase tão poderoso quanto Mahri; que você teria dado um belo nahual. — Zolin deu uma olhadela para Niente. — Talvez esse acabe sendo seu destino. Eu li seus relatórios e, com o passar dos anos; eles me ajudaram a compreender e a derrotar os orientais. Sou grato por isso.

— Tecuhtli — disse Citlali quando Zolin fez uma pausa ao se recostar no trono. — Talis tem uma informação que o senhor precisa saber, sobre um exército mais a leste da cidade. Foi por isso que eu o trouxe aqui.

Talis concordou com a cabeça, Niente ouviu o homem, sentindo um medo crescente enquanto ele falava a respeito desse exército de Firenzcia e da reputação da força militar daquele país. O nahual ficou especialmente aflito com a expressão cada vez mais empolgada no rosto de Zolin. — Tecuhtli — falou ele —, isso é o que a tigela premonitória me disse. Nós fizemos tudo que viemos fazer aqui. Devíamos embarcar agora e voltar para casa antes que esse exército venha para cima de nós. Podemos juntar um novo exército e voltar com mais navios, mais guerreiros e nahualli da próxima vez, e se o senhor quiser se sentar nesse trono como tecuhtli do leste, nós o colocaremos aqui com recursos suficientes para que isso aconteça. Mas não agora. Somos muito poucos, guerreiros e nahualli, para outro grande combate, especialmente sem a areia negra.

Niente pensou que, finalmente, tivesse convencido o tecuhtli. Sentado no trono, Zolin fez uma careta e tamborilou os dedos no braço cristalino do trono. Balançou a cabeça como se estivesse pensando.

Mas Talis então acabou com qualquer esperança que restasse em Niente. — Existe areia negra — disse ele. — Ou melhor, existem ingredientes suficientes aqui na cidade para fazer boa parte dela. Eu sei onde estão.

Zolin inclinou-se para frente no trono e arregalou tanto os olhos que as asas da águia dançaram no rosto. — Onde? Leve-nos até eles agora.

— Tecuhtli, minha esposa... Eu preciso ir até ela.

Niente sabia como Zolin reagiria a isso; e não ficou surpreso. — Todos nós temos esposas e família — retrucou o tecuhtli. — Nosso dever é aqui e agora. Citlali, como está a mulher?

Citlali deu de ombros. — Ela está nas mãos de quem sabe o que fazer. Não há nada mais a ser feito.

— Pronto. Viu só, Talis? — falou Zolin. — Você tem sua resposta. Sinto muito pelo ferimento de sua esposa e entendo que queria estar com ela. Mas seu tecuhtli também precisa de você. O nahual Niente está certo: sem mais areia negra, nós perderemos o que ganhamos. A areia negra, nahualli, é o que precisamos. — Zolin inclinou-se para frente e apoiou os cotovelos nos joelhos. — A esposa de um traidor não receberia ajuda alguma.

Niente ouviu as próximas palavras como se fossem o toque do sino da morte.

— Como o senhor quiser, tecuhtli — disse Talis. — Eu o levarei lá.

— Ótimo — falou Zolin ao ficar de pé. — Citlali, coma e beba alguma coisa e prepare os guerreiros para mais uma batalha. Nahual Niente, faça o mesma com os nahualli. Nesse meio tempo, eu conversarei com você, Talis, enquanto vamos atrás dessa areia negra.

 

Sergei ca’Rudka

SERGEI CUSTOU A ACREDITAR no que Karl e Varina lhe contaram. Ele tinha visto a fumaça dos incêndios em Nessântico, cujo cheiro tinha sido trazido pelo vento, e sabia que a cidade sofria, mas isso: Nessântico conquistada, a maior parte em ruínas...

Isso, Sergei não tinha esperado.

Havia muita coisa que ele não tinha esperado. Sergei sentiu-se muito velho e frágil realmente.

— O archigos ca’Cellibrecca está aqui? — perguntou Karl. Sergei concordou com a cabeça. O rosto do numetodo ficou rígido e determinado, a voz amarga comeu sílabas. — Então me leve até ele, Sergei. Que esse seja o pagamento por libertar você da Bastida. Apenas me leve até ele e afaste-se. Você não precisa se envolver com o resto.

— Não é tão simples assim, Karl.

— Na verdade, é simples assim — retrucou o numetodo. — O homem matou Ana, e eu quero justiça pelo assassinato dela.

— Isso, eu não posso dar para você. Não aqui, nem agora. Mas posso lhe dizer que o hïrzg Jan não gosta muito do homem. Acho que o mesmo pode ser dito a respeito da a’hïrzg Allesandra, pelo menos por enquanto. Karl, deixe-me cuidar dessa situação. Por favor. — Sergei olhou para Varina, em busca de apoio.

— Ouça o que ele diz — falou ela. — Ou ouça Ana; o que ela lhe diria?

O trio estava na tenda de Sergei no acampamento firenzciano, onde os dois tinham sido trazidos pelos primeiros soldados que encontraram. O regente ficou surpreso e contente de ver os dois numetodos; após a separação, Sergei temeu que eles tivessem sido capturados e aprisionados, ou coisa pior. Se a história de Karl e Varina tinha feito o regente sofrer era porque a ideia de Nessântico arruinada era dolorosa demais para imaginar.

Ele também sabia que o hïrzg e a a’hïrzg, no mínimo, também já teriam sido informados da chegada de Karl e Varina; Sergei estava um pouco surpreso por ainda não ter ouvido alguma coisa de um dos dois. E quando o archigos Semini soubesse que o embaixador dos numetodos estava no acampamento... Ele precisava se preparar para isto. Allesandra e Jan eram outro problema; Sergei não sabia exatamente como os dois reagiriam. Ele faria o possível para proteger Karl e Varina, mas...

Sergei falou — Karl, eu lhe prometo isto: quando chegar o momento, ajudarei você com ca’Cellibrecca. O homem é uma praga e um insulto ao robe que a archigos Ana usou. Ambos concordamos com isso. Quando chegar o momento, eu terei prazer em lhe ajudar a tornar a morte dele tão dolorosa quanto você quer. — Sergei quase sorriu ao pensar em Semini instalado na Bastida. Sim, aquilo seria delicioso. Aquilo seria... prazeroso.

Varina arregalou um pouco os olhos com a declaração, mas Karl concordou com a cabeça, com os lábios franzidos. Houve um pigarreio discreto de uma garganta na aba da tenda, um momento depois. — Entre — falou Sergei, e a aba foi aberta para revelar um dos pajens do hïrzg.

— Regente, o hïrzg Jan pede que o senhor leve seus dois convidados... — os olhos do menino se voltaram para Karl e Varina — ... à tenda dele. O hïrzg montou um jantar para os dois e deseja escutar o que eles têm a dizer.

— Diga ao hïrzg que iremos imediatamente — falou Sergei para o pajem, que fez uma mesura e saiu. — Vocês não têm o que temer do hïrzg Jan — disse o regente para os dois. Ele torcia para que fosse verdade. — Eu até gosto do jovem. De certa forma, ele me faz lembrar de mim mesmo...


— O archigos Semini me dirá que os numetodos são hereges e mentirosos, fisicamente perigosos para mim, bem como para minha alma eterna — disse o hïrzg Jan.

— O archigos Semini é um mentiroso e um tolo, além de burro — respondeu Sergei. — Se me perdoa a franqueza, hïrzg.

Jan sorriu. — Sentem-se — falou ele para Karl e Varina ao apontar para a mesa com pão, queijo e uma panela com guisado de carne. Pratos foscos de estanho estavam dispostos diante deles. — Aproveitem os pequenos confortos que temos aqui em campanha, uma vez que não posso oferecer a hospitalidade completa de Firenzcia. — Quando os dois hesitaram, o sorriso de Jan cresceu. — Eu lhes garanto que tenho a mesma opinião do regente no que se refere ao archigos Semini.

Varina conseguiu dar um sorriso; Karl ainda parecia inseguro e perguntou — E qual é a opinião do hïrzg sobre os numetodos?

— Uma das coisas que o regente ca’Rudka me ensinou é que devo julgar as pessoas não pelo que são, mas por quem elas são. Eu ainda não tenho opinião sobre os numetodos; até agora, nunca havia conhecido um. — Jan gesticulou para as cadeiras novamente. — Por favor...

Sergei fez uma mesura. Um momento depois, Karl repetiu o gesto, e os três tomaram seus lugares em frente ao hïrzg. — A a’hïrzg se juntará a nós? — perguntou o regente.

O sorriso de Jan sumiu ao ouvir isto e disse — Não. — Aquela única palavra quase pareceu arrancada à força. Sergei aguardou mais explicações, mas nenhuma veio. O regente perguntou-se sobre o que teria acontecido entre matarh e filho; até agora, ele só tinha visto Allesandra de relance durante um dia e meio. Embora o exército se arrastasse próximo às muralhas de Nessântico em um passo lento enlouquecedor, Allesandra manteve-se em uma carruagem fechada, sem nem o filho, nem o archigos como companhia.

Mas Sergei não pediria uma explicação ao hïrzg. Em vez disso, Jan olhava para Karl e Varina. — Eu gostaria de saber sua história, contada por vocês mesmos — falou ele.

Pela próxima virada da ampulheta, foi isso que Karl e Varina fizeram, com Jan guiando os dois com perguntas ocasionais. Sergei ouviu a maior parte e achou graça quando Karl omitiu algumas partes da história. Jan inclinou-se para a frente quando o numetodo descreveu a areia negra, como foi usada pelos ocidentais no ataque à cidade, e ao saber que havia ingredientes na cidade para fazer mais.

— Você afirma que essa areia negra é a chave do sucesso dos ocidentais? Essa é a mesma magia que nós soubemos que eles usaram nos Hellins?

— Não é magia, hïrzg — falou Karl. — Essa é a parte interessante. É alquimia. Varina tem certa noção, pelo que Talis disse e pelas amostras que eu trouxe do apartamento de Uly, de como preparar a areia negra. Eu vi, todos nós vimos, as coisas terríveis que a areia pode fazer. — Uma sombra sinistra pareceu passar pelo rosto de Karl ao dizer isso, e Sergei sabia que ele se recordava do assassinato de Ana. Era um horror que jamais seria apagado da mente de qualquer um dos dois. — Os ocidentais colocaram fogo na cidade com a areia; eles mataram centenas, talvez milhares. Hïrzg, com essa areia negra, nenhum exército precisa de ténis-guerreiros ou de feitiços. Nenhuma armadura consegue resistir, espadas não podem superá-la, não importa o número.

— E você sabe onde está o estoque dessa areia negra?

Karl assentiu com a cabeça. — Eu sei. Varina também. Nós podemos levar o senhor até lá, hïrzg. Mas os ocidentais também estarão atrás da areia negra. Talis... eu suspeito que Talis já esteja levando os ocidentais até ela. Eles já podem estar com a areia.

— Hïrzg — interrompeu Sergei. — Eu entendo por que o senhor deixou seu exército ocioso aqui. Eu talvez tivesse tomado a mesma decisão no seu lugar; embora meu coração fique partido ao ver a cidade queimar e saber que os ocidentais pisoteiam as ruínas dos lugares que mais amei no mundo. — Ele esfregou o nariz falso, notou que Jan olhou fixamente para o gesto e abaixou a mão. — Mas, se o senhor realmente está disposto a ouvir meu conselho, eu lhe diria que o tempo de esperar acabou. Eu também testemunhei os efeitos dessa areia negra. Se os ocidentais tiverem tempo para criar mais, então seus próprios soldados pagarão o preço pela hesitação. Hïrzg, ouça o que meus amigos estão lhe dizendo. A Garde Civile de Nessântico foi derrotada. Aquela batalha acabou. Temos que atacar agora; não Nessântico, mas aqueles que a derrotaram, antes que venham à Firenzcia.

Sergei achou que o apelo não teria efeito. Jan olhava para o alto, o olhar vasculhava a lona iluminada pelo fogo como se houvesse uma resposta escrita na fumaça. O jovem suspirou uma vez. Então bateu palmas e um pajem entrou.

— Chame o starkkapitän aqui — disse o hïrzg para o menino. — Há preparativos imediatos que eu preciso que ele faça. Corra!

 

Jan ca’Vörl

ELE OUVIU as grandiosas e gloriosas histórias de guerra várias vezes ao longo dos anos: do vavatarh Jan; do vatarh; dos onczios e dos conhecidos mais velhos; e, mais recentemente, de Fynn. Até mesmo da matarh, que contou que o vavatarh a elogiou quando era pequena por seu conhecimento de estratégia militar.

Jan começou a se dar conta de que essas histórias eram inventadas, memórias falsas ou, muitas vezes, mentiras deslavadas.

Até hoje, ele nunca havia entrado a cavalo em uma batalha de verdade. Até hoje, seu conhecimento sobre habilidades marciais fora intelectual e seguro. Mostraram a Jan como cavalgar, manejar uma espada, usar uma lança ou arco e flecha sobre o cavalo, como se proteger de outro chevarittai ou de um soldado de infantaria. Ele participou de lutas com espada de treino, participou de manobras militares. Aprendeu sobre a arte da guerra: quais táticas usar contra um inimigo que estivesse em um terreno superior ou inferior, ou que possuísse mais soldados ou menos, ou mais ténis-guerreiros ou menos. Jan sabia que formação teoricamente era melhor contra outra.

Era o que qualquer jovem rapaz de seu status teria aprendido.

A guerra, na mente de Jan, era um exercício muito gracioso e preciso. Ele sabia — intelectualmente — que era impossível que fosse tão linear e eficiente. Jan entendia.

Mas... ele não sabia que a guerra podia ser tão desordenada assim. Tão caótica. Tão real.

Ninguém no exército firenzciano achava que Jan — assim como Fynn, assim como seu homônimo, o velho hïrzg Jan — seria o verdadeiro general nesse importante ataque. Eles sabiam que a estratégia era do starkkapitän ca’Damont, com a ajuda do regente ca’Rudka e a contribuição dos dois numetodos que vieram da cidade em chamas para o acampamento. Sabiam que seria o archigos Semini que comandaria os ténis-guerreiros.

Jan estaria lá, e a bandeira de comando tremularia entre a Garde Hïrzg e os chevarittai à sua volta, e ele avançaria logo atrás da vanguarda de suas forças como Fynn e o antigo hïrzg Jan fizeram antes dele. Mas Jan consultaria o starkkapitän antes de dar ordens. Ele sabia que era uma atitude inteligente; sabia que o resto dos offiziers e chevarittai também tinha noção disso. Francamente, Jan estava tranquilo em relação a consultar o starkkapitän; ele conhecia a própria inexperiência e não era tão arrogante a ponto de insistir em estragar o ataque.

A entrada em Nessântico começou bem o suficiente. Como uma espada curva, as forças firenzcianas avançaram pela cidade através de todos os portões do lado leste. Não houve resistência; pelo contrário, o surgimento dos soldados foi recebido por gritos de alegria pela população e pelos remanescentes da Garde Civile de Nessântico espalhados. Alguns chevarittai dos Domínios até saíram de mansinho dos esconderijos para engrossar as fileiras de Firenzcia. Após uma virada da ampulheta dentro das muralhas da cidade, Jan começou a torcer para que a situação continuasse assim: marchando sem resistência até a fronteira oeste da cidade e encontrando as forças ocidentais em plena retirada.

Sob o calor do dia, ele suava debaixo da armadura, e o que mais queria era arrancar o fardo pesado dos anéis de aço. Aquilo parecia ser o pior desconforto da vitória.

— Qual o caminho, embaixador? — perguntou Jan para Karl, que cavalgava com seu séquito ao lado de sua matarh, Varina e Sergei.

— Ao norte, por algumas transversais — respondeu o numetodo, que apontava —, depois vários quarteirões para o leste.

Jan concordou com a cabeça. O exército firenzciano ganhou volume pela Avi. O sol brilhava intensamente. Era um belo dia. Eles já tinham vencido, e o hïrzg sentiu-se confiante a ponto de dar uma ordem por si próprio. — Starkkapitän — disse Jan para ca’Damont —, eu levarei metade da Garde Hïrzg comigo, bem como o regente e os numetodos. Deixo você no comando do exército. Faça o que for necessário para defender esta parte da Avi e a cidade. Depois você e a a’hïrzg prosseguirão para o sul, para a Ilha A’Kralji, e cuide para que controlemos a ilha e as Ponticas orientais. Se houver algum problema, mande um mensageiro até mim imediatamente. Da minha parte, eu mandarei um mensageiro assim que nós localizarmos a areia negra e soubermos como está a situação por lá.

— Jan. Hïrzg. — Allesandra franziu a testa, enquanto ca’Damont parecia incomodado. — Eu não acho...

— Eu dei minhas ordens — disparou Jan e interrompeu sua matarh. — Starkkapitän? Tem algum problema com elas?

Ca’Damont meneou a cabeça negativamente. Ele vociferou ordens rápidas.

— Eu me encontro depois com a senhora, matarh — disse Jan. — Na Ilha.

Allesandra não pareceu convencida. O hïrzg pensou que ela fosse protestar mais, mas a matarh só olhou feio para ele. Jan viu Allesandra dar uma única olhadela para Sergei; o regente deu levemente de ombros sob a armadura. O nariz lançou fagulhas de sol sobre o rosto.

A matarh finalmente inclinou a cabeça e disse — Como quiser, meu hïrzg. — “Meu hïrzg”, não “meu filho”. Jan notou a irritação na expressão. Ela puxou as rédeas com força e começou a caminhar para o sul. Um quarteto da Garde Hïrzg e um téni-guerreiro cercaram a a’hïrzg com atraso.

O starkkapitän prestou continência e falou — Que Cénzi oriente o senhor, meu hïrzg. Eu cuidarei para que a a’hïrzg permaneça a salvo. — Ca’Damont começou a ir embora, mas puxou as rédeas, e disse — Fynn fez uma excelente escolha no senhor. Tome cuidado, hïrzg Jan.

O starkkapitän ca’Damont prestou continência novamente e foi embora, com a maior parte do séquito com ele. Jan olhou em volta para os demais e falou — Vamos encontrar essa areia negra. Embaixador ca’Vliomani, você vai à frente.

Karl levou o esquadrão de Jan ao norte pela Avi, e os soldados pelos quais eles passaram prestaram continência ao hïrzg e a seu estandarte, depois o grupo virou à esquerda em uma rua mais estreita e deixou o exército para trás. O tilintar das armaduras e o baque frio do aço nos cascos dos cavalos eram o barulho mais alto na rua. Não havia mais rostos nas janelas, mais ninguém visível adiante, no caminho curvo. Algumas portas dos prédios pelos quais o esquadrão passou estavam abertas; muitas à força. Havia lixo acumulado na avenida. Eles passaram por vários corpos: gente morta há alguns dias, pela aparência, cadáveres inchados com pernas e braços rígidos, em ângulos estranhos, cheios de vermes e moscas. Jan olhou fixamente para os mortos ao passarem; ele notou que Sergei fez o mesmo, com uma intensidade estranha.

Há pouco tempo, esses corpos tinham sido pessoas vivas, que talvez corressem para os amantes, acompanhassem os filhos, comprassem comida nos mercados ou bebessem nas tavernas, levassem suas vidas em frente. Ele duvidava que essas pessoas esperassem que a vida fosse acabar tão rapidamente e de modo tão definitivo. Duvidava que elas esperassem que fossem virar monumentos acidentais e temporários da guerra.

Jan fungou, incapaz de manter o fedor longe do nariz — ele perguntou-se se Sergei realmente podia sentir o cheiro. O hïrzg segurou firme na espada e enroscou as rédeas com mais força na mão esquerda.

Ao sul, eles ouviram um estrondo repentino como trovão e gritos baixos. Sergei, ao lado de Jan, olhou naquela direção com preocupação, e disse — Eu acho, hïrzg, que a batalha começou. Talvez devêssemos retornar.

Jan balançou a cabeça. — Embaixador, a que distância estamos do lugar? — perguntou.

— Mais dois cruzamentos — respondeu ca’Vliomani. — Não mais do que isso.

— Então nós prosseguiremos.

Sergei franziu os lábios, mas não teve outra reação.

Eles continuaram até chegar a outra viela, ainda menor, onde Karl parou e ficou em pé na sela. Ao olhar a rua estreita, Jan viu uma placa antiga e surrada pendurada em um prédio à direita: havia um cisne mal desenhado em tinta vermelha nas tábuas.

— Ali. — Ca’Vliomani chamou Jan e os demais. — Nós deveríamos...

Ele não foi adiante.

Da esquerda, da direita, várias dezenas de guerreiros pintados vieram para cima deles aos berros. Os próximos grãos da ampulheta viraram um caos de que Jan se lembraria pelo resto da vida.

... um clarão súbito de uma luz ofuscante surgiu à frente do grupo, depois mais um, e Jan percebeu que Karl e Varina lançavam feitiços. Ele ouviu gritos...

... o chevarittai à direita de Jan foi arrancado da sela com o pulo de um ocidental, e o cavalo do homem chocou-se com força na perna do hïrzg. A perna direita ficou presa entre os dois animais, e ele gritou pela pontada de dor, apesar da proteção das grevas. Jan puxou as rédeas do cavalo...

... mas houve mais movimento à direita e por trás no exato momento em que ele fez isso. Jan viu o aço e colocou sua espada diante do corpo da montaria quase tarde demais — mas o suficiente para que o golpe que teria acertado acima das presilhas de seu coxote fosse desviado, mas a lâmina do ocidental cortou fundo a pata traseira de seu cavalo de guerra. O animal relinchou de dor e terror. Jan viu o cavalo arregalar os olhos, sentiu a perna da montaria ceder, ele estava caindo...

... — Ao hïrzg! — Jan ouviu alguém gritar. Ele estava no chão com uma confusão de pernas, tanto equinas quanto humanas, em volta. O hïrzg ficou de pé rapidamente (a perna direita enviou uma pontada de dor espinha acima por causa do abuso). Um ocidental vinha para cima dele, e Jan conseguiu encontrar o cabo da espada, levantar o aço pesado e estocar debaixo do peitoral da estranha armadura do homem. Ele sentiu a lâmina entrar na carne. Ela ficou brevemente presa, Jan a torceu e empurrou, gemeu e sentiu a boca se esgarçar em um ricto de fúria, a espada entrou subitamente. O ocidental, empalado, ainda completou o ataque, mas as braceleiras em volta dos antebraços do hïrzg aguentaram o impacto, embora ele achasse que o braço direito pudesse ter quebrado com o golpe. Jan tentou arrancar a espada do homem, mas não conseguiu, e o peso morto do ocidental quase tirou a arma de sua mão, que ficou inerte e dormente...

... Outro ocidental berrou à sua esquerda, Jan puxou a espada desesperadamente outra vez, embora soubesse que seria tarde demais. Mas outra espada — firenzciana — cortou a garganta do homem e quase decepou sua cabeça. O hïrzg ficou coberto por sangue quente...

... E mãos levantaram Jan. — O senhor está bem, meu hïrzg? — perguntou alguém, e ele concordou com a cabeça. A mão direita formigava, mas parecia ter voltado à vida. Jan fechou os dedos, exercitou-os dentro da manopla, abaixou a mão e soltou a espada com um puxão. Ele virou-se...

... e viu um trio de ocidentais reunidos como escudos em volta de outro guerreiro pintado, este com um pássaro tatuado no crânio raspado e no rosto. Sergei estava ao seu lado, sua espada subia e descia, mas o soldado firenzciano ao lado do regente caiu com a mão decepada no pulso. Jan correu para a brecha, sem pensar em nada a não ser reagir...

... e, de alguma forma, ele passou pelos guardas e ficou em frente ao guerreiro com a marca do pássaro. A armadura do ocidental desviou o primeiro corte de Jan, e o pomo duro de bronze da espada do homem bateu no queixo do hïrzg sob o elmo. Ele cambaleou para trás, com gosto de sangue na boca...

... ao ver o guerreiro-pássaro amparar o ataque da espada de Sergei...

... ele investiu novamente contra o homem, rosnou e contorceu o rosto, e o ocidental não foi capaz de se defender de ambos ao mesmo tempo. Foi a espada de Jan que penetrou, que encontrou a brecha entre os tubos roliços da armadura do homem e entrou no corpo. O ocidental perdeu o fôlego como se estivesse surpreso. O hïrzg ouviu uma voz chamar um nome estranho, “tecuhtli”, quando o homem caiu de joelhos. A espada de Sergei acompanhou a arma de Jan e acertou o sujeito no pescoço e na cabeça. O guerreiro-pássaro desmoronou sobre os paralelepípedos ensanguentados, de cara no chão...

... e tudo acabou, a não ser pelo estrondo da pulsação nos ouvidos.

Jan percebeu que sua respiração estava acelerada, que o coração batia tão furiosamente que ameaçava irromper pelas costelas, que a perna e os braços doíam, que estava completamente coberto por sangue, e que, pelo menos em parte, o sangue era seu. Ele estava curvado e ofegante, com as pernas bem afastadas. Jan sentiu um embrulho no estômago e engoliu em seco para conter a bile ardente, para se forçar a não vomitar. Sentiu a mão de Sergei dar um tapinha em seu ombro sobre a armadura. Ele pestanejou e olhou em volta: havia pelo menos uma dúzia de corpos no chão, alguns com o uniforme preto e prateado de Firenzcia. Uns poucos ainda se debatiam; enquanto o hïrzg observava, os homens da Garde Civile despachavam os ocidentais que ainda estavam vivos. Havia córregos de sangue que fluíam dos corpos e entranhas espalhadas na rua como salsichas obscenas.

Karl e Varina estavam incólumes — os corpos mais próximos aos dois estavam carbonizados e escurecidos; havia um cheiro de carne cozida no ar. O nariz falso de Sergei tinha sumido completamente e a bochecha esquerda estava aberta por um corte; onde ficava o nariz, a pele era sarapintada e as cavidades da cabeça de Sergei estavam escancaradas, o que deixava o rosto com a aparência horripilante de um crânio. Jan foi novamente tomado pela náusea, e dessa vez o mundo pareceu girar um pouco à sua volta. Ele colocou a ponta da espada no chão e apoiou-se pesadamente sobre a arma.

— Tecuhtli! — O hïrzg ouviu o chamado novamente, agora um homem saia do prédio onde estava pendurada a placa do cisne vermelho, não mais do que a uma dezena de passos de onde Jan e os demais estavam. Ele segurava um frasco de vidro na mão direita, cheio de grânulos escuros; na mão esquerda havia uma bengala retorcida. O sujeito parou, como se estivesse assustado pela imagem de carnificina à frente.

— Talis... — Jan ouviu Karl murmurar o nome: uma surpresa, uma maldição, um feitiço. — Areia negra...

O homem fechou a cara, ergueu o frasco com a mão direita e jogou o braço para trás como se fosse lançar o objeto. Jan imaginou como seria morrer e se encontraria o vavatarh Jan e Fynn na morte.

Uma mulher saiu correndo do beco atrás da taverna, um borrão marrom e cinza, tão depressa que ninguém teve tempo de reagir. Assim que Talis levantou a mão, ela agarrou o cabelo do homem e puxou a cabeça para trás. A boca do homem ficou tão escancarada quanto a de um peixe no mercado, e o tom vermelho seguiu o prateado quando a mulher passou uma faca pela garganta de Talis. Uma segunda boca ficou ainda mais escancarada do que a primeira e vomitou sangue. O frasco de vidro caiu da mão do sujeito e quebrou no chão, sem explodir. Ela debruçou-se sobre o corpo — parecia colocar alguma coisa às pressas no olho de Talis —, Jan deu uma boa olhada no rosto da mulher, entre o cabelo emaranhado.

O coração saltou no peito. Ele ficou boquiaberto e murmurou — Elissa?

A jovem ergueu a cabeça e arregalou os olhos ao vê-lo, e embora ela não tenha dito nada, Jan ouviu a mulher respirar fundo. Ela arrancou algo do rosto de Talis; o hïrzg vislumbrou uma pedra branca entre os dedos. A jovem correu para o beco de onde veio. Um dos soldados começou a correr em perseguição.

— Não! — berrou Jan para o homem. — Deixe-a ir!

O soldado parou. Jan ouviu os sussurros ao redor: — A Pedra Branca...

A Pedra Branca...

Não, o hïrzg queria dizer para todos, não era verdade, porque aquela pessoa era Elissa, que Jan amava. Não era verdade porque a Pedra Branca assassinou Fynn, que ele também amava. Não era verdade.

E, de alguma forma impossível, era verdade.

Era verdade.

 

Niente

O NAVIO ESTAVA LOTADO de gente fugindo da cidade, e de pessoas dos outros navios agora emborcados e meio submersos no rio. O convés estava escorregadio com água, sangue e vômito. A água em volta estava cheia de corpos rígidos e inchados — tanto de orientais quanto de tehuantinos. Havia guerreiros e nahualli feridos espalhados por toda parte do convés, gemendo sob a luz do sol que sumia; os tripulantes que ainda eram capazes subiam nos mastros para soltar as velas e apertar os cabos. A âncora, que gemia e protestava, foi içada no lodo do fundo do rio, e o capitão do navio berrava ordens. Devagar, muito devagar na opinião de Niente, a cidade começou a ficar para trás conforme eles eram levados embora pela corrente do rio e pelo vento.

Niente observava da popa do navio de guerra, à direita de Citlali. O corpo do guerreiro supremo, decorado com os traços rubro-negros de cortes cicatrizados feitos por espadas, apoiava-se pesadamente no cabo quebrado de uma lança enquanto ele olhava com raiva para a cidade.

— Você estava certo, nahual — disse Citlali. — Você viu corretamente a visão de Axat.

Niente concordou com a cabeça. Ele ainda estava admirado por estar aqui, por estar vivo, por ter sido poupado, de alguma maneira impossível, por Axat. O nahual poderia ver a terra natal novamente, se as tempestades do Mar Interior permitissem. Teria a esposa nos braços outra vez; abraçaria os filhos e os veria brincar. Niente respirou fundo e estremeceu.

— Eu não fui poderoso o suficiente — falou ele. — Não fui o nahual que deveria ter sido. Se tivesse sido mais firme ao falar com Zolin, se tivesse visto as visões com mais clareza...

— Se tivesse feito isso, nada significativo teria mudado — respondeu Citlali. — Zolin não teria lhe dado ouvidos, nahual, não importa o que você dissesse. Zolin só ouvia os deuses clamarem por vingança. Ele não teria lhe dado ouvidos. Você teria sido afastado como nahual e teria morrido aqui também.

— Então foi tudo um desperdício.

Citlali deu uma risada seca e sem graça. — Um desperdício? Longe disso. Você não tem imaginação, nahual Niente, e não é um guerreiro. Um desperdício? Nenhuma morte em combate é um desperdício. Olhe para a grande cidade dos orientais. — O guerreiro supremo apontou para leste, onde o sol reluzia dourado sobre as torres quebradas e atravessava a fumaça dos incêndios que restavam. — Nós tomamos a cidade deles. Tomamos o coração dos orientais. — Ele estendeu a mão com a palma para cima, como se pegasse alguma coisa. Os dedos fecharam-se lentamente. — Você acha que algum dia eles se esquecerão disso, nahual? Não. Eles tremerão à noite e ficarão aterrorizados diante de um som repentino, pensarão que somos nós de volta. Eles se lembrarão disso de geração em geração. Jamais se sentirão seguros novamente; e eles terão razão.

Citlali cuspiu sobre a amurada para o rio. Havia sangue no cuspe. — Nós pegamos o coração dos orientais e ficaremos com ele. Eu faço essa promessa para Sakal aqui, e você é minha testemunha; que o olho Dele veja minhas palavras e registre. Nós ficaremos com o que tiramos dos orientais. Um tecuhtli estará de novo onde Zolin caiu.

Citlali deu um tapa nas costas de Niente com tanta força que ele cambaleou. — O que você acha disso, nahual?

Niente olhou fixamente para a cidade, que desaparecia no rastro do navio, e falou — Eu olharei na tigela premonitória hoje à noite, tecuhtli Citlali, e direi o que Axat diz.

 

A Pedra Branca

A NOVA VOZ na cabeça da Pedra Branca gritava, lamentava e se revoltava, falava metade na língua de Nessântico e metade em um idioma que ela não entendia de maneira alguma. As outras vozes riam e vibravam.

— Jan, o seu amante... Que visão agradável ele tem de você agora!

— Você acha que ele se casaria com a assassina suja que viu?

— Ele dormiu com uma assassina e agora ela carrega seu filho no ventre.

— Ele vislumbrou a verdade. Espero que você sempre se lembre do horror no rosto de Jan ao ser reconhecida.

Aquela última voz era de Fynn, satisfeito e presunçoso. — Calem-se! — gritou a Pedra Branca para as vozes, mas elas só riram ainda mais alto e abafaram o que ela ouvia com os próprios ouvidos.

Ela havia seguido Talis e o líder ocidental desde a Ilha até o Cisne Vermelho, após verificar que Nico parecia a salvo. Ela estava furiosa, com raiva de Talis — que rompera sua promessa com a Pedra Branca. Os numetodos... eles podiam ser hereges nojentos, mas trataram Nico com gentileza e respeito, especialmente a mulher.

Mas Talis...

Talis traiu Nico, e por causa disso a matarh do menino estava à beira da morte, e a Pedra Branca dissera para Talis qual seria o preço. Dissera e cobraria o pagamento. A Pedra Branca sempre cumpria sua palavra.

Ela seguiu Talis então, quando — do nada — sons de batalha irromperam ao leste e a Pedra Branca viu o líder ocidental agrupar seus homens para emboscar os chevarittai e os soldados firenzcianos. De repente, havia muita luta acontecendo, muito movimento para ela agir. A Pedra Branca ficou preocupada naquele momento, se perguntando se Nico estava realmente a salvo, quis desesperadamente correr até o menino, com medo de que Talis pudesse ter cometido um erro. Mas ela o viu sair de mansinho do quarto onde havia entrado e depois correr para a rua. A Pedra Branca seguiu Talis. Ela assistiu ao confronto e viu a chance. Passou a faca na garganta dele e sentiu Talis morrer ao deixar cair o frasco com o pó negro. E ao deitá-lo no chão e colocar a pedra no olho do homem, a Pedra Branca o viu de relance.

Jan.

O choque foi palpável. Ela sentiu com tanta intensidade como se o coração tivesse sido posto diretamente sobre uma camada escondida de brasas incandescentes. Jan: ele ficou parado ali, e ela testemunhou o lento reconhecimento de seu rosto. A expressão de Jan a assustou. Era permeada de choque e carinho, de saudade e horror. Vê-lo foi horrível e maravilhoso ao mesmo tempo. Ela quis correr até Jan, quis pegar sua mão e colocar na barriga inchada e sussurrar: aqui, querido. Esta é a vida que criamos juntos. Isso é o que o nosso amor fez. Ela também quis correr, esconder o rosto e fingir que essa revelação nunca aconteceu.

O segundo impulso foi mais forte.

Ela pegou a pedra branca do olho de Talis e fugiu, com vontade de que Jan a seguisse e com medo de que ele realmente fizesse isso.

A Pedra Branca não parou até chegar à Pontica Kralji. Ali não havia homens estranhos da cor de bronze; nenhum que estivesse vivo, de qualquer forma, embora o chão estivesse cheio de corpos ocidentais. Ela viu soldados usando os tons preto e prateado de Firenzcia por toda parte nas ruas — o que fez Fynn se manifestar com empolgação dentro de sua cabeça —, cruzou a Pontica cuidadosamente e escondeu-se depressa na Ilha. Isso foi fácil; havia tantas paredes desmoronadas, tantos prédios queimados. Ela foi até a cabana do jardineiro no terreno do palácio para onde Nico e sua matarh tinham sido levados, onde o curandeiro ocidental trabalhou no corpo ferido de Serafina.

O curandeiro e todos os soldados ocidentais tinham ido embora, mas os medos da Pedra Branca passaram quando viu que Nico ainda estava ali, segurando a mão da matarh, ajoelhado ao lado da mesa onde ela estava deitada — devia ter sido uma das mesas de jantar do palácio antigamente, ainda coberta por damascos rendados e elegantes, agora sujos e manchados de sangue. Ela notou o movimento da respiração lenta no peito de Serafina, mas os olhos continuavam fechados e ela parecia sem reação.

— Nico — falou a Pedra Branca. O menino levou um susto e apertou com mais força a mão da matarh.

— Ah — disse ele um momento depois. O rosto ficou um pouquinho alegre. Nico fungou e passou a mão pelo nariz. — Elle. É você.

A Pedra Branca confirmou com um aceno e foi até o menino. Ela segurou com as mãos de Nico e a de Serafina. Viu que ele olhava fixamente para o sangue que manchava a pele da matarh. — Precisamos ir embora, Nico.

— Eu não posso abandonar a matarh. Talis voltará em breve.

A Pedra Branca fez que não com a cabeça. Ela apertou com força a mão dele. A pele era quente, tão quente, e ela sentiu a criança dentro dela dar um pulo com o toque; o movimento da vida, o despertar. Ela levou um ligeiro susto com a sensação. — Não. Infelizmente, Talis está morto, Nico.

Ela percebeu as lágrimas surgirem nos olhos do menino e o lábio inferior tremer. Depois ele fungou de novo e piscou. — Isso é verdade?

Ela concordou com a cabeça. — É verdade, Nico. Sinto muitíssimo.

O menino chorava plenamente agora, as palavras saíram entre os soluços. — Mas minha matarh... Eu não posso... Eles acabaram de abandoná-la... Ela está dormindo e eu... não consigo acordá-la...

— Sua matarh gostaria que você fosse comigo. Olhe para ela, Nico. Sua matarh ama muito você, eu tenho certeza que sim, mas não sei se ela acordará um dia, e a cidade está cheia de soldados e morte. Ela gostaria que você fosse comigo porque posso mantê-lo a salvo. Eu manterei você a salvo.

— Mas eu fiz isso com ela — disse Nico. — A culpa é minha. Quero que ela saiba que eu sinto muito.

A Pedra Branca apertou a mão de Nico em volta da mão da matarh. — Ela sabe. Nico, temos que correr.

Ela tirou a mão do menino de Serafina, abriu os dedos com delicadeza. Ele soltou a matarh com hesitação, mas sem reclamar. — Agora dê um beijo — falou a Pedra Branca. — Ela sentirá e saberá.

Nico ficou de pé, inclinou-se sobre o corpo da matarh e deu um beijo na bochecha. Ela colocou a mão de Serafina, que pendia para o lado, sobre a mesa e deu um tapinha. Nico olhou para trás, então, com os olhos cheios de lágrimas, que não caíam.

— É o momento — disse a Pedra Branca.

Juntos, de mãos dadas, eles foram embora da cidade em chamas e ruínas.

 

Allesandra ca’Vörl

— AQUI ESTÁ A SENHORA, MATARH. Ele é todo seu. Espero que fique feliz.

As palavras de Jan saíram como um banho de água escaldante. Elas queimaram e cauterizaram Allesandra, foram ditas com frieza e desdém espantosos e cruéis. O hïrzg fez um gesto grandioso e debochado na direção do Trono do Sol. Ela olhou fixamente para a enorme peça de cristal entalhado, que estava estranhamente fora do lugar, no meio das ruínas do Velho Templo. O trono foi rachado e mal reformado; estava coberto por um pano com estranhos desenhos geométricos, as ruínas do domo rachado e da claraboia estavam espalhadas sobre o piso quebrado de cerâmica, e por toda parte no salão havia os restos de um banquete qualquer. Ratos espreitavam os cantos do cômodo, e o ar fedia à fumaça e à carne podre. Perto dos fundos havia um corpo, coberto às pressas por uma tapeçaria.

Allesandra sabia de quem era o cadáver encoberto: de Sigourney, cuja cabeça separada do corpo estava enfiada em uma lança perto do trono.

O regente e os dois numetodos estavam recortados pela luz do sol nas portas abertas do templo, longe demais para ouvir a conversa de Jan com ela. O starkkapitän ca’Damont dava ordens na praça do templo e despachava patrulhas para garantir que todas as tropas ocidentais estivessem fora da cidade e para impedir que os sobreviventes saqueassem.

Allesandra ouviu o arrastar de passos nas portas do templo; ao olhar para trás, viu o archigos Semini pisar com cuidado sobre os destroços no chão. Jan também viu o homem e disse — Ah, archigos Semini. Estou contente que esteja aqui, uma vez que isso também é seu. Eu lhe dou Nessântico. Você não ficará mais em Brezno.

— Meu hïrzg? — perguntou Semini ao olhar com preocupação de Allesandra para Jan. — Eu pensei que o archigos talvez pudesse ficar em Brezno agora, dada a destruição daqui. Eu poderia designar um a’téni para Nessântico...

— Ah, eu concordo — falou Jan, e o sorriso provocou um arrepio em Allesandra. Era o sorriso sério e indiferente que o vatarh de Allesandra usava quando estava furioso. Ela o tinha visto muitas vezes na infância e na idade adulta, quando ele finalmente a trouxera de volta para Firenzcia. Agora, a expressão de desdém e deboche voltaram. Fuligem e sangue sujavam o rosto de Jan, e o braço e a perna direitos estavam bem enfaixados. Ele mancava e não parecia capaz de erguer o braço da espada. Allesandra perguntou-se o que o filho tinha visto, o que sentia. Ela queria envolvê-lo nos braços e confortá-lo como fazia quando Jan era criança, mas o hïrzg estava a um cauteloso passo de distância, como se temesse exatamente isso. — Veja bem, haverá um archigos em Brezno. Quanto a ter um archigos em Nessântico, bem... — Jan deu de ombros friamente. — A escolha é sua. Você pode querer reivindicar o título e mantê-lo por um tempo, embora você sempre tenha dito que queria uma fé concénziana reunificada. Ou talvez o archigos em Brezno deixe você ser o a’téni aqui em Nessântico, apesar de eu aconselhar o archigos contra isso.

— Hïrzg? — balbuciou ca’Cellibrecca. O rosto ficou no tom de branco dos fios que salpicavam a barba e o cabelo escuros; o contraste foi forte. — Eu não entendo.

— Talvez a matarh explique para você, uma vez que agora esta cidade é dela — disse Jan.

Allesandra olhou fixamente para o trono. Ela sentia-se morta, entorpecida. Se alguém a cortasse, pensou, ela não sentiria nada, nem mesmo o calor do sangue na pele. — Meu filho me deu Nessântico, mas me informou que Firenzcia não se reunificará com os Domínios — falou Allesandra para Semini com uma voz tão morta quanto as emoções.

— Considere isso como meu presente de casamento, matarh — falou Jan. — Pelo casamento que eu nunca tive, com a mulher que a senhora mandou para longe de mim.

— Eu estava protegendo você, Jan — disse Allesandra, embora não houvesse energia na reclamação. — Elissa era uma fraude. Uma impostora.

— Eu sei. Ela foi contratada para matar Fynn.

— O quê? — Isso fez com que Allesandra erguesse a cabeça e provocou uma breve onda de fúria. Ela virou-se para encará-lo. — O que você está dizendo? A Pedra Branca matou Fynn.

— Matou, sim — falou Jan com o mesmo sorriso irritante. — Deixe-me dizer uma coisa que a senhora talvez não saiba, matarh, embora devesse saber: Elissa era a Pedra Branca. Ela me usou para se aproximar de Fynn.

— Isso não é possível — disse Allesandra. Não podia ser; não era possível. A voz que ela ouviu, a mulher intermediária; não, não era possível, e, no entanto... Allesandra lembrou-se da voz, mais aguda do que seria esperado de um homem. E ela nunca tinha visto a Pedra Branca. Apenas presumiu...

— Acredite no que quiser — dizia Jan. — Eu realmente não me importo. — Ele gesticulou novamente para o trono. — Tome seu novo lugar, matarh. Não se acanhe. A senhora esperou por tanto tempo, afinal, e o regente ca’Rudka renunciou a qualquer pretensão ao título. A senhora pode mandar Semini abençoá-la. Talvez os ca’ e co’ voltem à cidade agora, para que a senhora possa lhes dizer que há uma nova kraljica.

Jan começou a se afastar, na direção das portas abertas. Ela deu um passo e pegou o braço ferido. — Jan. Filho...

Ele soltou o braço, fez uma careta ao sentir a dor evidente, e aquilo foi uma agonia maior para Allesandra do que qualquer golpe de espada. — Sente-se, matarh. Assuma seu Trono do Sol. A senhora possui o que sempre quis. Aproveite o presente que eu lhe dei.

Dito isso, ele caminhou na direção de ca’Rudka e dos demais. Allesandra observou o filho sair, sentiu vontade de chamá-lo, de impedi-lo de ir embora, de parar o sofrimento.

Ela não fez nada. Observou Jan chegar à passagem iluminada, ouviu sua risada ao dar um tapinha nas costas de ca’Rudka com a mão que não estava machucada. Os quatro foram embora e a luz do sol desabou sobre deles.

Semini olhava para o céu, onde o domo de Brunelli esteve, e respirava alto pelo nariz. Allesandra andou lentamente até o Trono do Sol.

Ela sentou-se.

Nas profundezas do cristal espesso, não havia luz. Nenhuma reação. O trono permaneceu melancolicamente escuro.

1. Dupla mão é um termo de cavalaria para o oficial que tanto pode comandar um esquadrão quanto um batalhão. Também é o caso do soldado que luta com um mosquete e um sabre ao mesmo tempo, que não é aplicável aqui. (N. do T.)


Epílogo: Nessântico

ELA ESTAVA ARRASADA. Ela estava arruinada.

Ela foi devastada pelo fogo e pela magia; foi cortada pelo aço. Foi saqueada e pilhada. Os maiores tesouros danificados ou perdidos. Os prédios que foram sua coroa eram ruínas desmoronadas e pilhas de pedras escurecidas. O colar de joias da Avi a’Parete não reluzia mais à noite. Agora só havia as estrelas no céu, que brilhavam e debochavam da própria escuridão da cidade.

Metade da população estava morta ou havia fugido. Ela sentiu, pela primeira vez em muitos séculos, a marcha de soldados conquistadores em suas ruas: não sentiu uma vez, mas duas. Havia uma kraljica no Trono do Sol, mas ela olhava para um império que murchou e encolheu.

Não havia como negar a magreza da face refletida no espelho sujo do A’Sele: o rosto da cidade era o rosto de uma velha, um rosto encarquilhado, um rosto com cicatrizes, feridas abertas e dor. Não havia beleza ali, nenhuma glória, nenhum deslumbramento.

Tudo isso foi embora, como se nunca tivesse existido.

Quando vieram as chuvas, como era frequente naquele outono, foi como se o mundo inteiro chorasse por ela: a cidade, a mulher. As tempestades podiam lavar a fuligem e extinguir as chamas, mas não podiam curar. Elas podiam refrescar e aplacar, mas não podiam restaurar. Levaram embora os corpos, o lixo e a terra que entupia o rio, mas os trovões não conseguiam destruir as memórias.

As memórias permaneceriam.

Permaneceriam por muito, muito tempo...

Karl ca’Vliomani

ULY NÃO ESTAVA NO MERCADO DO VELHO DISTRITO, embora tivesse estado. As pessoas lembravam-se do estrangeiro tatuado e com cicatrizes, mas disseram para Karl que o homem empacotou as mercadorias e limpou a barraca há apenas dois dias, no mesmo dia em que o kraljiki Audric tinha sido assassinado. Não, nenhum dos proprietários das barracas próximas sabia onde Uly tinha ido, mas (disseram) havia algumas pessoas, que andaram comprando sua poção especial de fertilidade, que poderiam saber.

Karl esperava confrontar esse Uly e arrancar a verdade sobre o que aconteceu com Ana imediatamente. Um novo fogo ardia em seu estômago, mas o alívio e o desfecho não foram imediatos.

Eles levaram dias.

Dias que prejudicaram a recente intimidade que Karl tinha com Varina. O fantasma de Ana pairava entre os dois, ressuscitado pela presença de Talis e sua história, e Varina recuou diante do espectro que Karl não conseguia atravessar. Ela ainda pegava na mão de Karl ou passava os dedos no rosto dele, mas agora havia tristeza no toque, como se Varina fizesse carinho em uma memória. Karl beijava Varina, mas, embora os lábios dela fossem macios e quentes e ele quisesse ceder, o beijo era muito efêmero e distante, como se Karl beijasse Varina através de um véu invisível.

Dias em que ele considerava se devia chamar os numetodos de volta para a cidade e em que decidiu que ainda era perigoso demais. Mika, torcia Karl, estava com a família em Sforzia; deixe que fique lá, deixe que o resto dos numetodos dispersados permaneçam escondidos. Deixe que a Casa dos Numetodos continue vazia e às escuras.

Dias em que as notícias pareciam ficar cada vez piores: os ferimentos terríveis da kraljica Sigourney, a invasão e o saque à Karnor, um exército oriental no solo de Nessântico e seus navios nas águas do A’Sele, a convocação da Garde Civile, os “esquadrões de recrutamento” que alistavam homens, muitas vezes (de acordo com os rumores) querendo ou não servir. Karl era velho o bastante para não atrair muito interesse, mas Talis, não. Ele ficava cada vez mais confinado em casa e tinha que tomar cuidado quando se arriscava a sair para evitar os esquadrões. Karl tinha as próprias dificuldades — seu rosto certamente era conhecido por muitos gardai da Garde Civile, da Garde Kralji e entre os ténis, e ele tinha que tomar cuidado e se disfarçar antes de sair, mudar o sotaque característico de Paeti e não deixar ninguém olhar com muita atenção para o seu rosto.

Esses foram dias em que Karl descobriu, a contragosto, que Talis era mais a pessoa que Serafina dizia que era do que a pessoa que Karl queria que ele fosse. O embaixador ainda não confiava completamente no homem, e dormiu muito pouco desde aquela primeira noite, pois Talis, Serafina e Nico dormiam, juntos, no mesmo quarto que ele e Varina. Karl ficou de olho em Talis, especialmente na manhã seguinte, quando ele limpou a tigela de latão na qual eles acenderam a areia negra e — como Karl lembrou-se que Mahri fazia — encheu com água limpa e polvilhou com outro pó, mais claro. Talis então abriu o Segundo Mundo com um feitiço, e uma névoa esmeralda encheu a tigela. Uma luz agitada pulsou no rosto do homem enquanto ele entoava e olhava fixamente para as profundezas da tigela.

Na luz verde, Karl viu as rugas finas no rosto do homem, que quase ficavam mais profundas enquanto ele observava. Talis já parecia mais velho do que Serafina disse que ele era; Karl achava que sabia o motivo agora: o método de magia dos ocidentais custava caro para o usuário.

— Mahri costumava dizer que via o futuro aí — falou Karl depois, quando Talis, exausto e andando como um velho, jogou a água na jardineira da janela da sala. — Ele não parecia ser muito bom nisso, se não viu a própria morte.

Talis secou a tigela cuidadosamente com a borda da bashta, sem olhar para Karl. — O que vemos na tigela premonitória não é o futuro, mas sombras de possibilidade. Vemos probabilidades e chances. Axat sugere o que pode acontecer se seguirmos um determinado caminho, mas nunca há uma garantia. — O homem guardou a tigela novamente na bolsa que sempre carregava e deu um sorriso ligeiro para Karl. — Todos nós podemos mudar nosso futuro, se formos fortes e persistentes o suficiente.

Karl torceu o nariz para a afirmação. Talis foi então até Nico, e os dois se engalfinharam, rindo, enquanto Serafina observava com um sorriso, e o amor entre os três ficou palpável. Ele ouviu Varina entrar na sala descalça, com olheiras de sono. Ela também observava, e Karl não foi capaz de decifrar o que viu no rosto de Varina. Ela deve ter sentido o olhar porque se virou para o embaixador, deu um sorriso triste e depois virou o rosto novamente. Varina cruzou os braços sobre o peito e abraçou a si mesma, e não Karl.

Todo dia, Karl ia ao mercado do Velho Distrito, geralmente com Varina, na esperança de encontrar aqueles elusivos clientes de Uly e fazer perguntas. Após vários dias infrutíferos, tornou-se rotina; os dois às vezes levavam Nico junto, após prometerem à Serafina que, caso encontrassem Uly, eles não o confrontariam.

Foram quase duas semanas, quando aconteceu.

— Ah, sim, a mulher que eu falei para você acabou de passar aqui — disse o fazendeiro ao colocar uma caixa de cogumelos no lugar. — Ela usava uma tashta amarela com um dragão bordado na frente. Provavelmente ainda está por aí; ela disse que estava atrás de peixe. — O homem apontou para a esquerda. — Você pode checar na barraca do Ari, logo ali. Ele acabou de trazer umas trutas do Vaghian.

Karl ouviu Varina respirar fundo, viu quando segurou Nico com mais força. Ele acenou com a cabeça, jogou uma folia para o homem e avançou pelas multidões que passeavam lentamente pelas vielas sujas do mercado; quase todos eram mulheres e homens mais velhos. Eles sentiram o cheiro da barraca do pescador antes de vê-la, e Karl vislumbrou uma tashta amarela ali. — Karl? — disse Varina.

— Eu apenas perguntarei a ela. Se a mulher souber onde Uly está, então levaremos Nico para casa primeiro. — Ele deu um tapinha na cabeça do menino. — Não podemos deixar sua matarh chateada conosco, afinal — falou Karl para Nico.

Ele deixou os dois lá e aproximou-se da barraca. A mulher virou-se quando Ari mostrou um peixe com escamas da cor do arco-íris, e Karl viu a cabeça do dragão, de cuja boca saía uma fumaça roxa. O embaixador avançou até estar ao lado dela e disse — Com licença, vajica, mas se puder responder a uma pergunta, eu compro o peixe para a senhora. — Antes que a mulher pudesse responder, Karl contou a história que os dois haviam ensaiado e apontou de vez em quando para Varina e Nico: que ele tinha acabado de casar, que a esposa tinha um filho do antigo marido e agora os dois queriam um filho próprio, mas por serem mais velhos agora, os dois não conseguiam conceber; que ele ouviu falar que havia um estrangeiro chamado Uly, que antigamente tinha uma barraca aqui no mercado onde vendia poções exatamente para aquele problema, e que um dos vendedores mencionou que ela podia saber onde esse tal de Uly estaria. A mulher olhou de Karl para Varina e Nico.

Ela realmente sabia. — Na verdade, acabei de falar com ele. No Cisne Vermelho, no Beco do Sino, pertinho daqui. Ele tinha acabado de pedir uma cerveja, então imagino que ainda esteja lá.

Karl agradeceu à mulher, pagou o pescador pela truta sem pechinchar, e voltou para Varina e Nico. Ele agachou-se em frente ao menino e disse — Varina levará você para casa agora, Nico. — Karl não ousou erguer os olhos para ela, pois podia imaginar os pensamentos refletidos pelo rosto de Varina. — Eu ficarei aqui um pouquinho mais.

Nico concordou com a cabeça, e Karl abraçou o menino. — Vão agora, vocês dois — falou ao se levantar.

— Karl, você prometeu... — disse Varina.

— Eu não farei nada — falou Karl, e perguntou-se se isso era verdade. Ele contou o que a mulher disse. — Eu sei onde ele está neste momento. Só vou segui-lo. Descobrirei onde ele vive. Aí podemos descobrir como abordá-lo.

Karl notou a desconfiança no jeito que Varina mordeu o lábio inferior, no olhar vazio, no lento balançar da cabeça. Ela agarrou Nico com força. — Você promete?

— Prometo.

Com a cabeça inclinada para o lado, Varina encarou Karl e disse, finalmente — Ande, Nico. Vamos.

Karl abaixou-se e abraçou Nico novamente e depois Varina, ao se levantar. Foi como abraçar uma das colunas do Templo do Archigos. Ele ficou observando os dois até desaparecerem na multidão do mercado.

O Beco do Sino era uma viela suja a alguns quarteirões da Avi a’Parete, com apenas alguns passos de largura e apinhada de lojas de propósitos indeterminados, acima delas havia apartamentos esquálidos às escuras. O Cisne Vermelho ficava na esquina onde a viela cruzava uma rua maior, que levava à Avi, e tinha um placa com tinta descascando. Karl entrou e parou para os olhos se ajustarem à penumbra do interior. A única luz lá dentro vinha das nesgas das persianas e das velas que pingavam em um único lustre e em cima de cada mesa. Assim que Karl conseguiu enxergar na luz mortiça, foi fácil encontrar Uly: um homem de pele acobreada, com cicatrizes e tatuagens no rosto e nos braços.

Karl foi ao bar e pediu uma caneca de cerveja ao garçom com cara de poucos amigos, de costas para Uly. O interior ficou subitamente claro quando outra pessoa — uma mulher — entrou no bar, e Karl protegeu os olhos contra a luz.

Ele tinha a intenção de fazer como dissera para Varina: encontrar Uly e seguir o homem até descobrir onde morava. Mas Karl observou o sujeito beber a cerveja, e imagens do corpo de Ana, esparramado e destruído, surgiram em sua mente, de maneira que ele mal conseguia pensar, e uma raiva cresceu lentamente no estômago, subiu ao peito até dar um abraço de veias saltadas nos pulmões e coração.

Karl tomou meia cerveja em um só gole. Ele pegou a caneca e foi até a mesa do ocidental.

— Você é Uly? — perguntou Karl. Ele sentou-se em frente ao sujeito, que o observava com atenção, como se estivesse pronto para lutar. Os músculos pulsaram nos braços fortes de Uly, e uma mão se moveu para debaixo da mesa.

— E se eu for? — perguntou o homem. A voz tinha o mesmo sotaque de Talis, o mesmo de Mahri, embora fosse mais grave e acentuado, e Karl teve que escutar com atenção para entender as palavras.

— Eu soube que você faz poções. Para fertilidade.

O homem empinou um pouco o queixo e pareceu relaxar. A mão direita voltou à mesa arranhada e com marcas de canecas de cerveja. — Ah, isso. Eu faço sim. Você precisa de algo assim?

Karl deu de ombros. — Não de algo assim, mas talvez... de outra coisa. Eu tenho um amigo; o nome dele é Talis. Ele me disse que você pode fornecer uma coisa não para criar vida, mas para acabar com ela. Rapidamente.

Karl observou o rosto do homem ao falar. À menção de Talis, uma sobrancelha ergueu-se levemente. Uly levantou um canto da boca, como se achasse graça. Ele esfregou o crânio com marcas e tatuagens negras. As mãos eram grandes, a pele áspera, e havia uma cicatriz comprida no dorso: as mãos de um comerciante. Ou de um soldado. — Uma coisa assim deveria ser ilegal, vajiki. Mesmo que pudesse ser feita.

— Estou disposto a pagar bem por isso. Muito bem.

Ele concordou devagar com a cabeça. Uly levantou a caneca e bebeu tudo em um só gole, depois secou a boca com as costas da mão e disse — Está um belo dia. Vamos dar uma volta e conversar.

O homem levantou-se e Karl ficou de pé junto com ele. O resto do corpo atarracado de Uly era tão musculoso quanto os braços. Quando os dois chegaram à porta da taverna, uma mulher que corria para lá esbarrou em Karl e quase o derrubou sobre Uly. — Perdão, vajiki! — disse ela. O rosto estava sujo de terra, havia ranho seco em volta do nariz, e o hálito era desagradável. A mulher pegou a mão de Karl e colocou algo em sua palma. — Para dar sorte. O senhor tem que guardar isso, vai trazer boa sorte, vajiki. Guarde direitinho. — Ela fechou os dedos de Karl em volta do objeto, soltou o embaixador e saiu correndo pela porta. Karl olhou para o que a mulher colocara em sua mão: um seixo pequeno e claro. Uly riu.

— A mulher deve ter teia de aranha na cabeça — falou ele. — Vamos, vajiki.

Karl colocou o seixo no bolso da bashta e seguiu Uly pelo Beco do Sino, depois cruzaram a rua maior e entraram em outro beco em curva. Eles seguiam para o norte, na direção do Parque do Templo. — E qual é o seu nome, vajiki, uma vez que sabe o meu? — perguntou Uly enquanto os dois andavam.

— Andus. É tudo o que você precisa saber.

— Ah, somos cautelosos, não, vajiki Andus? Isso é bom. Isso é bom. E quem você quer que morra?

— Isso é da minha conta, não da sua.

— Discordo complemente — falou Uly —, pois a Garde Kralji viria atrás de mim e de você também, e eu não tenho interesse em me hospedar na Bastida. Eu exijo que me diga um nome, ou não faremos negócio.

— É o archigos. Eu sei que você já tem alguma experiência com isso.

Karl observou o homem, com um feitiço pronto para ser lançado a uma palavra e um gesto. Uly hesitou apenas de leve, mal perdeu o passo, mas, tirando isso, não houve resposta alguma. Ele continuou caminhando, e Karl teve que se apressar para alcançá-lo. A expressão do sujeito não se alterou, nem a atitude. Karl esperou que ele dissesse alguma coisa, a mão ao lado do corpo. Os dois passaram por um beco transversal...

... e Uly avançou contra Karl, uma mão grande prendeu a de Karl quando ele tentou erguê-la, e a outra mão tapou a boca do embaixador e bateu com a cabeça dele contra o alicerce de pedra de um prédio. O impacto fez Karl perder o fôlego e provocou fisgadas na cabeça. O joelho de Uly golpeou o estômago do embaixador. Karl sentiu ânsia de vômito e percebeu que estava caindo. Algo — um joelho, um punho, ele não sabia dizer o que — bateu na sua cabeça. Ele não conseguia enxergar, mal era capaz de respirar. Sentiu os paralelepípedos frios debaixo do corpo e a água imunda empoçada ali.

— Você é um tolo, embaixador ca’Vliomani — sibilou Uly. — Achou que eu não lhe reconheceria?

Você morrerá. Agora. Foi uma conclusão sombria.

Ele ouviu botas nos paralelepípedos; Karl percebeu que era um único par de passos e esperou que o golpe final viesse. O embaixador ouviu um grunhido e um grito de dor, e algo pesado caiu no chão, ao lado dele. Ele sentiu uma mão levantar sua cabeça e amarrar um capuz sobre ela para que não pudesse enxergar. O pano cheirava a suor velho. — Fique quieto e não será ferido — disse uma voz, que não era a de Uly. Alguém com um pouco de sotaque não identificável, nem grave ou agudo, o que tornava difícil sequer determinar o gênero da pessoa. — Tire o capuz e você morre. — Algo pontiagudo foi pressionado contra o pescoço, e Karl gemeu com a expectativa do golpe cortante. — Acene com a cabeça se entendeu.

Karl concordou, e a lâmina da faca desapareceu. Ele ouviu mais um barulho, parecido com um tapa e um gemido que só podia ser de Uly. — Responda se você quiser viver — disse a voz, embora não se dirigisse a Karl. — Você matou a archigos Ana, não foi? Você preparou a areia negra.

— Não. — Uly começou a dizer, mas a voz foi interrompida por um gemido de dor. — Tudo bem, tudo bem. Sim, eu ajudei a matá-la. Com a areia negra. Mas a ideia não foi minha. Eu só dei a substância para o homem e contei como usá-la. Não sabia o que ele pretendia fazer com ela. Ai! Droga, isso é verdade! — Lá se foi a preferência de Uly por morrer em vez de falar, pensou Karl. Talvez Talis não conhecesse seus guerreiros tão bem, afinal.

— Quem?

— Eu não sei... Ai! Por Axat! Pare! Ele me disse que o nome era Gairdi ci’Tomisi, mas não sei se o nome é verdadeiro ou não. Ele pagou bem, e isso era tudo que eu sabia ou que me importava!

Houve mais sons baixos e um longo lamento que só podia ter vindo de Uly. O homem ofegava agora, choramingava de dor, o fôlego era rápido e desesperado. — Por favor. Por favor, pare.

— Então fale mais a respeito deste homem — disse a outra voz. — Rápido.

— Parecia um ca’ ou co’, pelo jeito de falar. Firenzciano, talvez, pelo sotaque. Disse que as “ordens” vieram de Brezno, em todo caso. É tudo que sei. Eu preparei a substância, dei para o homem, e ele foi embora. Fiquei tão surpreso quanto qualquer um quando a archigos foi morta.

Karl queria desesperadamente arrancar o capuz do rosto para ver o que acontecia, mas não ousou. Houve mais sons: uma briga animada, um baque suave e depois um farfalhar. Alguém puxou sua bashta e remexeu o bolso. Ele pensou ter ouvido passos leves, mas, com a cabeça latejando e apitando, os sons eram tênues demais para Karl ter certeza.

Depois, por vários instantes, não houve absolutamente nada, apenas os sons distantes da cidade. — Alô? — sussurrou Karl. Não houve resposta. Ele levou as mãos ao pano amarrado em volta da cabeça e arrancou do rosto. O que viu fez com que o embaixador recuasse, horrorizado.

Karl olhou fixamente para o corpo de Uly nos paralelepípedos, com a garganta cortada e sangue espalhado pelas roupas. O olho direito estava aberto para o céu, mas sobre o esquerdo havia a pedra que a mulher deu para ele na taverna.

 

Allesandra ca’Vörl

SEMINI TENTOU ENTRAR EM CONTATO COM ELA por vários dias. Allesandra deixou as mensagens do archigos em cima da mesa. Quando ele mandou seu o’téni falar diretamente com ela, o homem foi informado pelos assistentes muito bem instruídos da a’hïrzg que Allesandra estava em reuniões e não podia ser incomodada. Quando o próprio Semini saiu do templo para vê-la, ela fez questão de sair da cidade com Jan para ver a reunião das tropas.

Quando Semini — sob a desculpa de trabalhar com os ténis-guerreiros que também estavam sendo reunidos — veio aos campos ao sul de Brezno, não houve, finalmente, jeito de evitá-lo.

Semini era um mancha escura e verde que contrastava com a brancura banhada pelo sol da lona da tenda. Do lado de fora, o acampamento militar agitava-se de manhã: com o clamor do metal conforme os ferreiros trabalhavam nas armas, armaduras e uniformes; o chamado de soldados; as ordens aos berros dos offiziers; o burburinho geral de movimentação; o som de pés que marchavam em uníssono enquanto os esquadrões treinavam. Cheiros entraram com a brisa quando Semini deixou a aba da tenda bater ao entrar: o cozinheiro e as fogueiras, o odor de lama revirada por milhares de pés, e o leve fedor das valas que serviam como latrinas.

Allesandra conversava com Sergei ca’Rudka, sentada atrás da mesa de campanha que um dia foi de seu vatarh, com painéis frontais pintados com imagens da famosas batalhas do hïrzg Jan ca’Silanta na Magyaria Oriental. — ... disse ao hïrzg e ao starkkapitän que esperem resistência assim que cruzarmos a fronteira — dizia Sergei, que parou e virou-se quando o olhar de Allesandra passou por cima de seus ombros na direção de Semini. — Ah, archigos. Talvez eu deva ir embora.

— Volte depois da Segunda Chamada e nós continuaremos a nossa conversa, regente — falou Allesandra. Sergei fez uma mesura, esfregou a lateral reluzente do nariz, e saiu da tenda dando um aceno de cabeça e o sinal de Cénzi para o archigos.

Semini parecia pouco à vontade, como se esperasse que ela se levantasse e o abraçasse assim que a aba da tenda se fechasse quando ca’Rudka saiu. Após um momento, ele finalmente fez o sinal de Cénzi para Allesandra e trocou o pé de apoio ao ficar parado diante da mesa como um offizier convocado por ela. — Allesandra. — Semini começou a dizer, e ela fez uma cara feia.

— Qualquer pessoa pode estar ouvindo pela lona da tenda. Nós estamos em público, archigos Semini, e eu espero que o senhor se dirija a mim de maneira apropriada.

Allesandra viu que ele apertou os olhos, irritado com a repreensão. Ele franziu os lábios sob a cobertura do bigode. — A’hïrzg ca’Vörl — falou Semini com lentidão proposital —, peço desculpas. — Depois, ele abaixou o tom em um quase sussurro, baixo e grave. — Espero que nós ainda possamos falar abertamente. Francesca, ela...

Allesandra balançou a cabeça de leve; ao movimento, Semini parou. — Eu falei com sua esposa — disse ela, com ênfase especial. — Naquela noite. Tivemos uma conversa ótima. Francesca parece acreditar que você teve algo a ver com a morte da archigos Ana.

Ela realmente não esperava que Semini reagisse, coisa que ele não fez. O archigos olhou para a a’hïrzg com uma expressão neutra e falou — Eu sei que a senhora tem algum carinho pela falsa archigos. Dado o que aconteceu com a senhora, eu compreendo. Mas Ana ca’Seranta era minha inimiga. Eu não sofri com seu falecimento, nem um pouquinho, e se minha alegria com a morte dela lhe ofende, a’hïrzg, então tenho que aceitar isso. Eu rezei, muitas vezes, que Cénzi levasse a alma dela, porque a mulher acreditava em coisas erradas, e foi em grande parte responsável pelo rompimento da Fé e pela cisão dos Domínios.

— Ela também é a razão de eu ser quem sou. Sem ela... — Allesandra deu de ombros. — Eu poderia não estar aqui. Jan poderia nunca ter nascido.

— E, no mínimo, por causa disso, eu rezei por ela quando morreu. — Semini deu um passo em direção à mesa de campanha, e parou. — Allesandra, o que aconteceu entre nós? É óbvio que você está me evitando. Por quê?

— Quando pretendia me contar que foi você que mandou matar Ana? Ou não pretendia me contar?

— Allesandra...

— Se não foi você, então negue, Semini. Diga-me agora que não foi você.

Allesandra não tinha certeza se queria que ele respondesse. Nos dias que se seguiram, ela tinha — através da equipe palaciana, através do comandante da Garde Brezno — realizado sua própria investigação. O nome de Gairdi ci’Tomisi havia surgido, e ela mandou o comandante co’Göttering levar o mercador, que por acaso estava em Brezno, para a Bastida a fim de ser interrogado. Ci’Tomisi, sob a persuasão menos do que gentil da Bastida, entregou toda a história: que servia Firenzcia e o archigos ca’Cellibrecca como agente duplo; que conhecia um ocidental em Nessântico que vendia poções, que o homem contara a ele a respeito de um poderoso preparado ocidental, que o sujeito havia demonstrado como essa “areia negra” funcionava e que ci’Tomisi falou para seus contatos no Templo de Brezno sobre seu poder, e que recebeu uma mensagem de volta (do “archigos em pessoa”) que — se ele fosse capaz — uma demonstração contra a Fé de Nessântico seria “interessante e muito bem recompensada”; que ele usou os contatos no Templo do Archigos em Nessântico para entrar à noite; que colocou a areia negra no Alto Púlpito e uma vela de tempo queimando no interior, com a chama programada para tocar a areia negra no mesmo momento em que a archigos Ana desse a Admoestação.

Ci’Tomisi confessou para salvar a própria vida, choramingou e chorou. Ele conseguiu, mas Allesandra perguntou-se se, na cela suja e imunda nas profundezas da Bastida, ci’Tomisi desejaria que não tivesse conseguido.

A a’hïrzg também sabia que Semini já devia ter percebido que ci’Tomisi havia sido preso e que provavelmente tinha confessado. Portanto, Allesandra observava Semini e imaginava o que ele diria, se lhe diria a mentira e negaria qualquer conhecimento a respeito do caso, e como ela deveria reagir se o archigos fizesse isso.

Mas Semini não negou. — Eu sou o archigos. Preciso fazer o que parecer ser melhor para a fé concénziana, e, na minha opinião, a Fé permaneceria tão quebrada quanto o mundo de Cénzi até que aquela mulher morresse.

Ao ouvir isso, a mão de Allesandra foi ao pingente com o globo rachado que ela usava, aquele que fora dado por Ana. A a’hïrzg viu que Semini observou o gesto e falou — Cénzi teria levado Ana em Seu próprio tempo. E, caso não levasse, por que você deveria agir por Ele?

Semini teve a dignidade e a humildade de abaixar os olhos para a grama bem aparada que servia de piso na tenda. — Cénzi geralmente exige que as pessoas ajam por Ele — respondeu o archigos, finalmente. — Houve... uma oportunidade repentina, uma que se apresentou de maneira completamente inesperada, e não apontaria para Firenzcia, e sim tanto para os numetodos quanto para os ocidentais. Isso, por acaso, é mais errado do que alguém nos Domínios mandar a Pedra Branca matar Fynn? — Ele encarou Allesandra.

Ela sentiu uma pontada de culpa e franziu a boca. Semini pareceu interpretar o gesto como irritação.

— Eu tive que agir imediatamente ou simplesmente não agiria — continuou ele. — Eu rezei para Cénzi pedindo por orientação e senti que fui respondido. E, naquela ocasião, a’hïrzg, a senhora e eu não éramos... — Semini deixou a próxima palavra pairar no silêncio. O archigos continuou a falar, mas agora a voz era um sussurro praticamente inaudível. — Se nós fôssemos, Allesandra, eu teria pedido seu conselho e acatado. Em vez disso, eu pedi ao seu vatarh, que já estava muito doente, e ao seu irmão.

— Você está me dizendo que o vatarh sabia? E Fynn? Eles também aprovaram isso?

— Sim. Sinto muito, Allesandra. — O arrependimento na voz parecia genuíno. As mãos estavam erguidas, como se pedisse perdão, e havia uma umidade nos olhos de Semini que refletiu o sol que entrava pela lona. — Sinto muito — repetiu. — Se eu soubesse como o ato magoaria você, se soubesse o que faria conosco, eu teria impedido. Teria mesmo. Você tem que acreditar nisso.

— Não. — Allesandra balançou a cabeça. Semini. Fynn. E vatarh. Todos eles aprovaram a morte da mulher que me manteve viva e sã. — Eu não tenho que acreditar nisso, de maneira alguma. Você diria tal coisa fosse ou não verdade.

— Como posso provar para você?

— Você não tem como provar, mas isso é algo que você deveria ter me contado há muito tempo: pelo meu papel como a’hïrzg, ou como matarh do hïrzg, pelo menos. E não sei como ficamos diante dessa situação. Não sei mesmo.


O cavalo estava encharcado de suor ao galopar velozmente encosta acima, onde eles esperavam, e as patas musculosas tremeram quando o cavaleiro desmontou, com uma bolsa de mensageiro na mão. O homem imediatamente se ajoelhou diante de Jan, Allesandra, Sergei e Semini e disse — Notícias urgentes de Nessântico, meu hïrzg. — Havia sujeira da estrada na roupa de couro do mensageiro, que tinha terra no cabelo e no rosto. A voz estava abalada pelo cansaço, e o homem parecia, assim como a montaria, estar à beira de um colapso. Ele ofereceu a bolsa com uma mão trêmula. Jan pegou a bolsa enquanto Allesandra gesticulava para os assistentes, que estavam apropriadamente a poucos passos do quarteto. — Deixem esse homem comer e descansar e cuidem do cavalo.

Os assistentes correram para obedecer. Jan desdobrou o pergaminho grosso de dentro da bolsa, que deixou cair no chão. Allesandra observou os olhos do filho vasculharem as palavras ali. Jan arregalou os olhos e entregou o papel para ela em silêncio. A a’hïrzg entendeu seu choque rapidamente; as frases ali pareciam impossíveis.

... O kraljiki Audric foi assassinado da mesma forma que a archigos Ana... Sigourney ca’Ludovici foi nomeada kraljica, mas foi ferida no ataque... Karnor foi arrasada e pilhada por ocidentais... O exército ocidental aproxima-se de Villembouchure... a Garde Civile e os chevarittai foram reunidos para detê-los...

Ela passou a mensagem para Sergei, que a leu com Semini olhando atentamente sobre seus ombro, e ouviu o archigos dizer — A’hïrzg, isso é uma surpresa para mim. Juro por Cénzi que não sabia de nada a respeito dessa situação. Audric morto... — Ele espalmou as mãos em súplica. — Não fui eu que fiz isso, nem era minha intenção.

Allesandra não prestou atenção às declarações de Semini. Ela passou o braço por Jan, que olhava fixamente para o acampamento do exército, resplandecente com os estandartes e armaduras, cheio de tendas acinzentadas e agitado pela atividade de milhares de soldados. — O que isso significa, matarh? — perguntou Jan para ela, embora Allesandra tenha notado que ele olhava para Sergei também. — Diga-me o que está pensando.

— Significa que Cénzi realmente nos abençoou — respondeu a a’hïrzg. — Estamos avançando na hora certa, quando nosso inimigo está mais fraco. — Ela quase gargalhou. Audric morto, ca’Ludovici ferida, e a atenção dos Domínios voltada para os ocidentais em vez de estar de olho em Firenzcia. — Este é o seu momento, meu filho. Seu momento. Tudo que você tem a fazer é aproveitá-lo.

Era o momento dela também, talvez mais do que do filho, mas Allesandra não disse isso.

Jan continuava a olhar fixamente para o acampamento. Então ele se sacudiu e, naquele momento, Allesandra notou um vislumbre do vavatarh no filho: o maxilar trincado, a certeza no olhar. Era a maneira como o velho hïrzg Jan sempre parecia quando tinha se resolvido; ela lembrava-se bem.

— Tragam o starkkapitän ca’Damont à minha presença — falou Jan. — Eu tenho novas ordens para ele.

 

A Pedra Branca

ELA ESTAVA DO OUTRO LADO DA VIELA, em frente aos dois, quando Talis chegou ao prédio e bateu na porta, com Nico à mão. A Pedra Branca ouviu o grito de Serafina — Nico! Ó, Nico! — e viu a mulher pegar o menino nos braços... e também notou Talis ficar tenso, como se estivesse assustado, e erguer a bengala que sempre carregava como se fosse bater em alguém, enquanto gesticulava com a mão livre como se quisesse que Serafina e Nico fossem embora.

Ela cruzou a viela correndo, com a mão em uma das facas de arremesso escondida na tashta. Ouviu trechos de uma conversa alta ao se aproximar.

— ... apenas saia! Agora! ... o embaixador numetodo... tentou me matar...

— ... sabia onde Nico estava e não foi até ele?...

Houve mais diálogos, mas as vozes martelavam a cabeça da Pedra Branca, que não conseguiu distinguir as reais daquelas dentro da mente. A porta fechou-se quando Talis entrou, e ela aproveitou a oportunidade para entrar de mansinho no espaço apertado entre os prédios. Ali, a Pedra Branca encostou-se contra a parede ao lado de uma janela fechada. Ouviu a conversa abafada, tão bem que percebeu que não precisava interferir. Não ainda. Houve uma conversa sobre o assassinato da archigos Ana (— Aquela bruxa cruel mereceu morrer pelo que fez com minha família — berrou Fynn); sobre algo chamado areia negra que podia matar (e todas as vozes das vítimas berraram na cabeça dela ao ouvir aquilo — Morte! Morte! Sim, traga mais gente aqui para nós! — Era tão alto que ela teve que soltar um berro silencioso para que as vozes parassem); sobre um homem chamado Uly (— Esse nome... — disse Fynn. — Eu conheço esse nome...).


Quando ficou claro que Talis e Nico permaneceriam ali, a Pedra Branca saiu de mansinho novamente, voltou ao apartamento e recolheu as coisas que tinha lá. Naquela noite, após três ou quatro paradas, ela alugou um novo apartamento, numa rua ao sul de onde morava a matarh de Nico: lá, pela janela, era possível ver a porta da casa de Nico pelo espaço entre os prédios.

Por quatro dias, ela observou. À noite, entrava de mansinho no espaço entre as casas para ouvi-los. Seguia o grupo sempre que eles saíam, especialmente se Nico estivesse junto. Por dias, a Pedra Branca observou as idas ao Velho Distrito, as tentativas de achar Uly. Ela mesma já havia encontrado o homem, que vivia em um apartamento miserável no Beco do Sino, perto do mercado do Velho Distrito. Considerou o estrangeiro estranho e desprezível — não era um homem que se importava com a limpeza de onde morava ou com a sujeira das roupas. Ele era grosso e mal-educado com os fregueses para quem vendia poções, geralmente na taverna embaixo do apartamento: o Cisne Vermelho. Frequentemente estava bêbado, e era um mau bêbado. Também podia ser violento; com certeza era brutal com as prostitutas que contratava, a ponto de ser evitado pela maioria das mulheres que fazia ponto nas ruas em volta do mercado.

Por dias, ela observou.

A Pedra Branca ficou surpresa, um dia, ao ver Nico acompanhando Varina e Karl ao mercado — geralmente isso era uma coisa que Serafina não permitia. Mas ela também sabia que as idas ao mercado agora eram rotineiras, que a cada dia que passava o grupo tinha menos esperanças de encontrar Uly, que Varina e Serafina tornaram-se amigas íntimas, que Nico parecia considerar a mulher numetodo quase como uma tantzia querida. A Pedra Branca seguiu o trio de perto, contornou a multidão em volta das barracas, chegou próximo o suficiente, a ponto de quase ouvi-los, mas nunca tão perto a ponto de um deles notá-la. Viu o grupo falar com um fazendeiro em sua barraca, viu o homem apontar e os três irem embora correndo, com Varina parecendo subitamente preocupada. Karl foi até uma mulher com uma tashta amarela — uma mulher que a Pedra Branca reconheceu como uma das freguesas de Uly.

O estômago deu um nó forte de preocupação; ou talvez fosse a criança que crescia ali. As vozes murmuraram — A mulher vai contar para ele... Você tem que interferir... — Ela colocou a mão na pedra branca na bolsinha pendurada no pescoço e a apertou com força, como se pudesse calar as vozes com o toque.

Se Karl tivesse ido atrás de Uly com Nico, a Pedra Branca teria detido os três. Ela não deixaria que colocassem o menino em perigo. Não deixaria.

Mas Karl mandou Varina e Nico embora. Ela seguiu os dois por tempo suficiente para saber que a mulher e o menino realmente voltavam para casa, depois retornou rapidamente, correu pelas ruas na direção do Cisne Vermelho.

Ela viu Karl entrar na taverna e entrou atrás dele. Uly estava lá, sentado à mesa de sempre e — também como sempre — meio bêbado. Karl também tinha visto o homem, mas estava no bar, onde pediu uma cerveja. Enquanto ela observava, o embaixador afastou-se do bar e foi à mesa de Uly. A Pedra Branca não conseguiu ouvir a conversa, mas, não muito tempo depois, Uly terminou a cerveja e ficou de pé, e Karl seguiu o homem até a porta.

— Você sabe o que acontecerá — cacarejou Fynn na cabeça dela. — O que você fará a respeito?

A Pedra Branca agiu, meteu-se entre Karl e a porta, e esbarrou no embaixador de propósito. — Perdão, vajiki! — falou. Ela segurou a mão do embaixador e colocou a pedra na palma dele. — Para dar sorte. O senhor tem que guardar isso, vai trazer boa sorte, vajiki. Guarde direitinho.

Ela torceu para que Karl fizesse isso, porque não poderia ajudá-lo se ele não guardasse. Se o embaixador tivesse devolvido a pedra, deixado cair ou jogado fora, ela estaria de mãos atadas. — A Pedra Branca não consegue matar sem o ritual agora — disseram as vozes em um coro debochado. — Fraca. Estúpida.

Mas Karl guardou a pedra. Ela se escondeu ao sair da taverna, e, alguns instantes depois, Karl e Uly surgiram. O estrangeiro levou Karl para longe da taverna, e ela os seguiu com cuidado. De qualquer maneira, Uly parecia estar bêbado demais ou desinteressado demais para ver se alguém observava. A Pedra Branca viu Karl ser empurrado por Uly para dentro de um beco e correu atrás, em silêncio.

Quando ela chegou ao cruzamento, Karl já estava caído, e era óbvio que Uly pretendia espancá-lo até a morte. — Você é um tolo, embaixador ca’Vliomani. — A Pedra Branca ouviu o estrangeiro rosnar. — Achou que eu não lhe reconheceria?

Então ela agiu, novamente, como a Pedra Branca, séria e implacável. Uly ergueu os olhos ao ouvir a aproximação, mas o chute já estava no ar, acertou o joelho e fez o homem desmoronar, soltando um gemido, depois ela acertou dois socos na lateral da cabeça que o derrubaram no chão, inconsciente.

A Pedra Branca rapidamente rasgou a bashta de Uly, depois se dirigiu para Karl, que gemia, meio inconsciente. Ela enrolou o pano rasgado na cabeça do embaixador, sacou sua faca favorita da bainha e pressionou contra o pescoço dele. — Fique quieto e não será ferido. — ela engrossara o tom de voz. — Tire o capuz e você morre. Acene com a cabeça se entendeu.

Ele balançou a cabeça uma vez, e a Pedra Branca deixou Karl e foi até Uly. Deu um tapa na cara do homem, para despertá-lo, viu Uly arregalar os olhos ao notá-la, e mostrou a faca antes de enfiá-la com força na pele tatuada do pescoço. Colocou a bota sobre o joelho quebrado do sujeito. — Ele viu você. Não pode deixá-lo vivo agora — clamaram as vozes, e ela pediu que fizessem silêncio.

— Responda se você quiser viver — disse a Pedra Branca. Ela percebeu que o homem começou a erguer as mãos e fez que não para ele enquanto enfiava a ponta da faca no pescoço, perto de uma veia saltada e pulsante. — Você matou a archigos Ana, não foi? Você preparou a areia negra.

— Não. — O homem começou a dizer, mas a Pedra Branca enfiou a faca mais fundo diante da mentira. — Tudo bem, tudo bem. — Uly afastou-se dela o máximo possível. — Sim, eu ajudei a matá-la. Com a areia negra. Mas a ideia não foi minha. Eu só dei a substância para o homem e contei como usá-la. Não sabia o que ele pretendia fazer com ela. — Novamente, a Pedra Branca pressionou a faca com mais força. — Ai! Droga, isso é verdade!

— Quem? — perguntou ela, pois sabia que Karl ouviria; a Pedra Branca daria ao embaixador a informação que ele queria, desde que isso significasse que Nico ainda estaria a salvo.

— Você tem que matar esse aí. Você precisa matá-lo.

— Eu não sei... — disse Uly. Ela ignorou a voz, puxou ligeiramente a faca em sua direção e abriu um corte. O sangue quente pingou do pescoço. — Ai! Por Axat! Pare! Ele me disse que o nome era Gairdi ci’Tomisi, mas não sei se o nome é verdadeiro ou não. Ele pagou bem, e isso era tudo que eu sabia ou que me importava!

O homem tentou empurrá-la, e a Pedra Branca colocou mais peso sobre o joelho quebrado. Ele ofegou de dor. — Por favor. Por favor, pare.

— Então fale mais a respeito deste homem — falou ela. — Rápido.

— Parecia um ca’ ou co’, pelo jeito de falar. Firenzciano, talvez, pelo sotaque. Disse que as “ordens” vieram de Brezno, em todo caso. É tudo que sei. Eu preparei a substância, dei para o homem, e ele foi embora. Fiquei tão surpreso quanto qualquer um quando a archigos foi morta.

— Você não pode ficar aqui. Tem que ir embora ou alguém chegará e verá você.

As vozes estavam certas. Ela franziu os lábios. Com um movimento violento, ela cravou fundo a faca na garganta do homem e a cortou da direita para a esquerda. O sangue quente jorrou, e o homem morreu com uma golfada de fôlego líquido. Neste instante, a assassina puxou rapidamente a bolsinha de dentro da tashta agora ensanguentada e a abriu, depois colocou a preciosa pedra branca no olho direito aberto do homem. A seguir, foi até Karl, vasculhou seu bolso rapidamente e achou a pedra que dera para ele. Esta foi colocada sobre o olho esquerdo de Uly. Ela embainhou a faca, esperou um instante, depois pegou sua pedra no olho direito.

A Pedra Branca já podia ouvir a voz de Uly, que lamentava em uma língua que ela não compreendia.

Ela guardou a pedra na bolsinha novamente. Olhou uma vez para Karl, que fazia um esforço desesperado debaixo do pano para escutar.

A Pedra Branca correu. Correu — ateve-se às sombras e aos becos solitários por causa da tashta manchada de sangue — para encontrar Nico, para saber se ele ainda estava a salvo.


??? MATANÇA ???

Kenne ca’Fionta

Aubri co’Ulcai

Allesandra ca’Vörl

Niente

Varina ci’Pallo

Kenne ca’Fionta

Sergei ca’Rudka

Nico Morel

Karl ca’Vliomani

A Batalha Começa


Kenne ca’Fionta

KENNE ESTAVA NA SACADA do lado de fora de seu gabinete particular e olhava para a Praça do Templo. Lá embaixo, ténis em robes verdes misturavam-se à multidão de pessoas comuns que corriam para escapar da garoa, que caía de nuvens baixas e cinzentas. O tempo parecia tornar pesadas as asas dos pombos, que arrulhavam em grupos; as pessoas passavam correndo, os pássaros afastavam-se e balançavam as cabeças, mas não alçavam voo.

O dia ruim e desagradável combinava com o humor de Kenne.

Ele estaria morto se tomasse a decisão errada e não tinha certeza de como evitar esse destino.

Mesmo que evitasse a morte física, Kenne estaria morto dentro da fé concénziana. Ele já sentia os abutres começando a se reunir: nos rumores que vinham de todo mundo, do mais baixo e’téni às mensagens nas entrelinhas que recebia dos a’ténis em suas cidades. Quando teremos outro conclave?, perguntavam. Há assuntos urgentes que todos precisamos discutir. Como devemos reagir às notícias de Nessântico? O que o archigos acha sobre essas questões?

As entrelinhas se escondiam nas perguntas inocentes. Elas começaram quando ele foi promovido a archigos, após o assassinato da pobre Ana. O coro ficou mais alto e constante desde a morte do kraljiki Audric e as notícias da invasão ocidental. As mensagens chegavam todos os dias por mensageiros de Fossano, de Prajnoli, de Chivasso, Belcanto e An Uaimth, de Kasama, Quibela e Wolhusen. Nós não confiamos na sua liderança. Outra pessoa precisa ser o archigos. Era o que diziam sob as palavras educadas e indiretas escritas por eles. Você deveria ser retirado do Trono de Cénzi.

O pior de tudo é que Kenne descobriu que concordava com eles. Eu nunca quis isso, o archigos queria escrever em resposta. Eu jamais pedi para sentar no lugar de Ana. Eu preferia muito mais que outra pessoa assumisse essa tarefa por mim. Ele mesmo disse isso para Ana há muitos anos, após retornar a Nessântico para ser o a’téni da cidade sob o comando dela, após o exército firenzciano ter sido dispersado. — Você estava aqui antes de mim — disse Ana para Kenne, quase parecendo envergonhada de estar sentada atrás da mesa em que ambos se lembravam de ter visto o archigos Dhosti. — Por direito, você deveria estar aqui e não eu, meu amigo.

Ele riu ao ouvir aquilo e balançou a cabeça. — O archigos Dhosti disse para mim, há muito tempo, que eu era um excelente seguidor. Ele estava certo. Eu sigo muito bem, mas não lidero. Não possuo seja lá o que for que você tem, Ana. Dhosti enxergou essas qualidades em você... você sabe liderar. É forte, talentosa, e tem uma força de vontade que é assombrosa. É por isso que ele fez de você sua o’téni. Se ele tivesse vivido, teria lhe preparado para o cargo da mesma forma. Eu... — Outra negativa com a cabeça. — Eu fui destinado a ser o que sou. Nada mais. E estou bem contente que seja assim.

Ana discordou, educadamente, mas ambos sabiam que — por dentro — a archigos concordava com ele. Com Dhosti.

No entanto, Cénzi impôs essa tarefa a ele no fim da vida, e Kenne só podia imaginar que isso era alguma espécie de piada cósmica.

Os a’ténis da Fé eram um perigo para Kenne, e a nova kraljica era outro. Ela sentia dores — ela sentiria dores pelo resto da vida, era quase certo. Sigourney ca’Ludovici fora jogada em uma crise terrível com a perda dos Hellins, o assassinato de Audric e agora a invasão dos próprios Domínios pelos ocidentais. Havia Firenzcia do outro lado, que não era mais um aliado, e sim um inimigo, pelas costas. Ela tentaria consolidar seu cargo. Tentaria desesperadamente sobreviver como kraljica, e, para tanto, procuraria por pessoas fortes que poderiam apoiá-la e dispensaria aqueles que considerasse fracos demais para ajudar — porque a fraqueza nos aliados da kraljica seria um perigo tão grande quanto os ocidentais e os firenzcianos.

Kenne sabia que a opinião de Sigourney a seu respeito era talvez ainda mais baixa do que a dos a’ténis. Ela faria uma rápida manobra para substituí-lo. Por conhecer a história de Nessântico, Kenne não excluía a possibilidade de a solução da kraljica ser o seu assassinato e a sua substituição por alguém mais adequado para ela. Já aconteceu com outros archigi antes de Kenne, quando eles entraram em conflito com os líderes políticos dos Domínios: um archigos assim podia morrer sob circunstâncias misteriosas. Bastava olhar para o próprio archigos Dhosti, afinal.

Kenne olhou para a praça lá embaixo, onde certa vez o corpo quebrado de Dhosti esteve estatelado, com o sangue fluindo entre os paralelepípedos. Ele imaginou se um dia, em breve, seu corpo seria jogado pelo parapeito até cair, debatendo-se desesperadamente no chão lá embaixo.

— Archigos?

Kenne sentiu um arrepio ao ouvir o chamado. Ele virou-se devagar e esperou ver Petros. Mas não era ele. Era, em vez disso, um fantasma.

— Eu sei — falou o fantasma, e o sotaque da voz confirmou suas suspeitas. — Você não esperava me ver novamente. Francamente, nem eu. Desculpe assustá-lo, archigos. Petros foi gentil em me deixar entrar.

— Karl... — Kenne entrou novamente no gabinete e deu a volta na mesa para abraçar o numetodo. — Olhe para você... sem barba, com cabelo pintado e cortado como uma pessoa qualquer, sem status, e essas roupas horríveis. Eu não teria reconhecido você... mas imagino que essa seja a ideia, não é? Eu pensei, após ter ajudado Sergei a escapar, que você tivesse fugido da cidade. — Ele balançou a cabeça. — Esses são tempos sombrios — disse Kenne com cansaço, sendo tomado pela depressão novamente. — Tempos terríveis. Mas eu esqueço meus modos. Você parece cansado e faminto. Quer que Petros traga alguma coisa?

Karl já balançava a cabeça. — Não, archigos. Não há tempo, e eu não devo ficar aqui mais tempo do que o necessário. Eu... eu preciso de um favor.

— Se estiver dentro da minha capacidade — falou Kenne, que teve que esmagar o pensamento que veio em seguida: dentro da pouca capacidade que tenho, infelizmente...

— Está sim, eu espero. Por favor, archigos, sente-se. Isso pode levar tempo. Eu sei, pelo menos acho que sei, quem matou Ana.

Kenne ouviu a história de Karl com apreensão, desconfiança e horror cada vez maiores. No fim, ele estava recostado na cadeira atrás da mesa e balançava a cabeça.

— Um homem chamado Gairdi ci’Tomisi, você diz? — falou Kenne finalmente. O archigos ficou chocado à menção do nome e perguntou-se que mais ele não sabia. — Um firenzciano? Ele fez isso com ajuda de magia ocidental?

— Firenzciano, sim — declarou Karl. — Mas você tem que entender que não houve magia envolvida. Não; essa areia negra não é uma criação de seu Cénzi, nem tampouco dos deuses ocidentais. Ela não é mágica, não vem do Segundo Mundo; é apenas o produto da imaginação e da lógica de uma pessoa. — Karl bateu na cabeça com o dedo. — E isso torna a areia negra ainda mais perigosa. Veja...

Karl tirou uma pequena bolsinha do bolso da tashta suja e esfarrapada e derramou um pó escuro e granulado no mata-borrão da mesa de Kenne. O archigos cutucou a substância com um dedo curioso. — Uly tinha um estoque disso em seu apartamento; eu subornei o estalajadeiro para me deixar entrar. Uly tinha os ingredientes lá dentro, então sabíamos o que eram. Varina acha que é capaz de reproduzir essa mistura mesmo que Talis não nos ajude. Parada assim como está, a areia negra é bem inocente, mas coloque uma chama em contato com ela, e... — A voz de Karl foi sumindo, e ele afastou o olhar. Kenne sabia do que o homem estava se lembrando; ele também se lembrava, muitíssimo bem.

— O que eu posso fazer? — perguntou o archigos. Ele abaixou o olhar para a mesa suja.

— Veja se consegue descobrir mais sobre esse Gairdi ci’Tomisi que Uly mencionou.

Kenne olhou para o numetodo com uma cara triste. — Eu o conheço. Pelo menos acho que sim. Ele é um mercador com licenças de passagem tanto de Brezno quanto de Nessântico e vai e volta pela fronteira. Nós, tanto Ana e eu, usávamos Gairdi. Nós achávamos... achávamos que ele era nosso homem, nosso espião. Ele levava mensagens aos ténis dentro do Templo de Brezno, para quem pensávamos que podíamos confiar e trazia respostas sobre o archigos Semini. Agora... — Kenne ergueu os olhos para o numetodo. — Se ele realmente era um agente duplo, a serviço de Semini ca’Cellibrecca...

— ... Então foi ca’Cellibrecca quem mandou matar Ana. — Karl encerrou a frase por ele. Seu maxilar fez um ruído alto ao se fechar.

Kenne sentiu o que restou do almoço subir pela goela. Ele engoliu em seco para conter a bile. Sim, o archigos acreditava que ca’Cellibrecca era capaz de cometer assassinato —, o homem fora um téni-guerreiro pela maior parte da vida. Porém, ele não teria matado Ana sem um motivo. Kenne tinha medo de que sabia exatamente qual seria a razão: ca’Cellibrecca esperava que a pessoa colocada no lugar de Ana fosse fraca e que pudesse explorar essa fraqueza para reunir a fé concénziana novamente — com ca’Cellibrecca como archigos em Nessântico, assim como em Brezno.

Porque ele sabia que seria eu. Provavelmente já está falando com a kraljica e fazendo sondagens.

— Archigos? — Kenne respirou fundo antes de erguer os olhos para Karl. — Nenhum numetodo matou Audric — declarou o embaixador. — Nenhum numetodo matou Ana. Isto matou os dois. — Ele gesticulou para a areia negra na mesa de Kenne. — Isso me faz pensar que a mesma pessoa é responsável pelos dois assassinatos.

Parecia uma hipótese razoável para Kenne, mas ele já esteve errado sobre tanta coisa que não confiava mais no próprio discernimento. — O que... o que você quer que eu faça? — O archigos ergueu as mãos da mesa, a ponta de um dedo estava escura com o pó que ele tocou. — Como posso ajudar?

— Veja o que mais você consegue descobrir. Veja se Semini realmente fez isso; se foi ele, eu quero fazer o homem pagar. Mas Varin... — Karl parou. — Quero dizer, Ana não iria querer que eu fizesse qualquer coisa até eu saber, saber com certeza. Pode me ajudar com isso? — Ele apontou novamente para o monte de areia negra no mata-borrão de Kenne. — Você sabe o que é isso, não sabe? — perguntou o numetodo. O archigos limitou-se a balançar a cabeça.

— Isso são as cinzas da magia — falou Karl. — Isso é como a magia se parece quando morre.

Kenne abaixou o olhar novamente. Parecia que estava olhando para os próprios restos mortais.

 

Aubri co’Ulcai

O COMANDANTE AUBRI CO’ULCAI OLHOU para trás e balançou a cabeça ao se perguntar como a batalha tinha chegado a este ponto. Isso nunca deveria ter acontecido. Não era possível.

Ele imaginou como a nova kraljica receberia as notícias e esperava que soubesse a resposta. E a única desculpa que Aubri tinha era que os ocidentais recusavam-se a lutar honrosamente, como deveriam.

Tudo começou há dois curtos dias...


Vários chevarittai — como era comum — saíram em seus cavalos de guerra para fazer desafios individuais enquanto as forças ocidentais aproximavam-se de Villembouchure. Nenhum guerreiro ocidental veio responder ao desafio; as fileiras da vanguarda do exército marcharam em frente, intactas e inabaladas mesmo quando os chevarittai debocharam de sua honra e coragem. Eles foram ignorados ou, pior ainda, atacados com flechas covardes e fogo dos feiticeiros ocidentais. Três chevarittai morreram antes que Aubri mandasse que as trompas soassem a ordem de retorno. Eles deram meia-volta com os cavalos de guerra e retornaram a galope para trás das fileiras de infantaria e de ténis-guerreiros, que aguardavam.

Aubri reuniu-se com seus offiziers; eles esperavam que o ataque começasse assim que o exército ocidental chegasse ao cume do último morro antes de Villembouchure. Afinal, era pouco antes da Segunda Chamada, e ainda havia viradas da ampulheta de luz do dia. Os ocidentais chegaram à distância de dois tiros de flecha da vanguarda da força dos Domínios e pararam... e permaneceram parados. Os chevarittai e seus offiziers imploraram que Aubri os deixasse avançar e atacar. O comandante recusou-se, lamentavelmente — fazer isso significava abandonar as fortificações e casamatas que eles erigiram nos últimos dias. O exército dos Domínios estava disposto em uma posição defensiva perfeita, e Aubri era avesso a sair dali.

Este foi o primeiro dia. Ele foi dormir nessa noite convencido da futura vitória — o avanço ocidental seria detido por suas fileiras de veteranos. A força ocidental, conforme verificaram seus batedores e todos os relatórios do campo de batalha, era substancialmente menor que a sua: nenhum exército daquele tamanho, nem mesmo os firenzcianos em seu apogeu, teria sido capaz de derrotar as defesas que Aubri montou. Os navios da frota tehuantina entupiram o A’Sele, mas estavam longe demais do campo de batalha para afetar a situação; de qualquer forma, Aubri sabia que uma força naval de Nessântico estava a caminho para cuidar dos navios inimigos. Na pior das hipóteses, as muralhas de Villembouchure iriam detê-los se, por alguma razão imprevista, Aubri não conseguisse contê-los nos campos do lado de fora da cidade. As forças ocidentais eram pequenas demais para um cerco efetivo, e Villembouchure era bem abastecida e podia suportar o sítio de um exército bem maior por pelo menos um mês.

Sim, Aubri estava confiante. Apesar do fato de seu exército ter sido rapidamente reunido e a maior parte da infantaria não ter muito treinamento, os offiziers e os chevarittai com eles tinham experiência em batalha adquirida nas muitas escaramuças ocorridas nas últimas décadas com Firenzcia e as nações da Coalizão.

Eles venceriam aqui.

A batalha começou no segundo dia, mas não com a chegada da alvorada, contrariando toda a experiência de Aubri e dos offiziers que o treinaram. Não... o ataque veio bem antes de o sol subir no céu. E veio de maneira estranha. Os vigias postados nas casamatas mais avançadas mandaram mensageiros correndo para a tenda do comandante atrás das linhas, e o agito acordou Aubri de um sono leve e atormentado por sonhos.

— Uma tempestade aproxima-se de nós em pernas feitas de relâmpagos — clamaram os mensageiros. — Uma muralha de nuvem...

Trompas de alarme soaram pelo acampamento, e os soldados colocaram as armaduras e pegaram suas armas às pressas enquanto os offiziers berravam ordens. Ao longe, uma luz azul piscava e dançava, trovões retumbavam, e, no entanto, o céu acima deles estava limpo, marcado pelas várias constelações conhecidas. Aubri montou no cavalo que os assistentes trouxeram apressadamente para ele. O comandante galopou com rapidez até a vanguarda e foi acompanhado ao longo do caminho pelo a’téni Valis ca’Ostheim de Villembouchure, que estava no comando dos ténis-guerreiros. — O que em nome de Cénzi está acontecendo? — rugiu ca’Ostheim. A espessa cabeleira branca parecia cintilar à luz da tempestade adiante; a barriga caía sobre o cepilho da sela de seu cavalo. Os cílios ainda tinham remelas do sono. Um colar grosso de ouro com um globo partido pendurado quicava no peito enquanto os dois cavalgavam. — Eu pensei que o senhor tinha dito que o ataque ocorreria na alvorada, comandante.

— Eu disse, sim — respondeu Aubri calmamente. — Ao que parece, os ocidentais não estavam escutando.

Na primeira linha de casamatas, os dois homens pararam e observaram o espaço entre os dois exércitos. O acampamento ocidental, que cintilava na encosta distante como estrelas amarelas caindo na terra quando Aubri foi dormir, não estava mais visível. Ao contrário, eles foram confrontados por uma aparição da natureza: uma muralha de nuvem escura e agitada, com talvez doze homens de altura e que flutuava à distância de dois homens acima do chão. Como uma espécie de monstro sobrenatural sinistro, a criatura de nuvem avançou na direção deles sobre centenas de pés de relâmpagos que piscavam. Os clarões estocavam o chão embaixo e pareciam fazer a nuvem avançar alguns metros a cada golpe. Aubri viu o chão ser rasgado onde os raios caíam, e a nuvem deixava um rastro de pegadas de tempestade arrancadas do chão. Um barulho constante de trovoada e um rosnado alto e estridente acompanhavam a visão. Ao redor dos dois, o exército dos Domínios olhava fixamente para a aparição com rostos iluminados pelos clarões azuis esbranquiçados e inconstantes. Aubri sentiu o pânico se espalhar pelas fileiras, os homens deram alguns passos para trás involuntariamente, para longe das barreiras baixas e fortificações que eles erigiram. — Mantenham a posição! — berrou Aubri para eles. As trompas soaram a ordem pela frente de batalha. — Mantenham a posição! — Os homens sacudiram-se como se acordassem de um pesadelo. Eles seguraram firme em lanças inúteis e encararam o monstro que os confrontava. Ele praticamente já havia cruzado o campo aberto agora, e Aubri não conseguiu ver nada além de seu limite feroz.

— A’téni ca’Ostheim, isso é magia; é a sua área. — Aubri quase teve que gritar mais alto do que o barulho crescente da aparição tempestuosa para ca’Ostheim, o líder dos ténis-guerreiros, ouvir. — O senhor consegue deter essa coisa?

— Tentarei — respondeu ele ao desmontar. Ca’Ostheim começou um cântico e um estranho gestual em frente ao corpo. Aubri sentiu um arrepio nos pelos dos braços conforme o a’téni continuava a entoar e os raios começaram a tocar as bordas das defesas; ele não sabia qual das duas coisas causou esta reação. O cavalo de Aubri, embora acostumado ao clamor, ao barulho e às imagens de guerra, estava preocupado e batia os cascos no chão enquanto se afastava um pouco da aparição. Aubri teve que se abaixar e dar tapinhas no pescoço do animal para acalmá-lo. — A’téni! Rápido, por favor.

Ca’Ostheim ergueu as mãos; o cântico parou. Ele gesticulou para a tempestade. Um vento estridente soprou do téni-guerreiro, e onde tocou na aparição tempestuosa, as nuvens foram rasgadas. Os soldados comemoraram, mas a tempestade ainda avançava de ambos os lados, com força total, e agora os raios atacaram as próprias defesas, os garfos gigantes alcançaram os soldados dos Domínios. Os gritos surgiram de ambos os flancos, conforme os relâmpagos queimavam e quebravam as fileiras, em um avanço inexorável. E agora as metades partidas nas nuvens voltavam a se unir; línguas sedentas de relâmpagos começaram a brilhar na frente de Aubri. Ca’Ostheim havia caído de joelhos. Ele ergueu a cabeça acenou negativamente para Aubri. — Comandante, eu não consigo... Não sozinho. Eu preciso reunir os outros ténis-guerreiros...

— Ao cavalo, então — falou Aubri. Ele olhou para os porta-bandeiras e as trompas quando os gritos dos feridos e moribundos rivalizaram com a trovoada. — Retirada! — berrou o comandante. — Voltem para a próxima linha de frente!

As bandeiras sinalizaram a retirada; as trompas soaram a ordem. As fileiras dos soldados foram desmanchadas instantaneamente, aqueles que ainda podiam deram meia-volta para fugir da tempestade. Ao longe, em um lugar além da criatura, Aubri ouviu novas vozes: os gritos de guerra dos ocidentais.

O comandante puxou com força as rédeas da montaria e seguiu seus homens.


Esta foi a manhã do segundo dia. O resto do dia não correu melhor. Os ténis-guerreiros foram capazes de dissipar a tempestade mágica, mas a tarefa deixou-os exaustos, e eles tinham pouca energia sobrando para outros feitiços. Atrás da tempestade, surgiram as fileiras dos ocidentais — guerreiros com rostos pintados e com cicatrizes. O combate mano a mano foi intenso, mas os chevarittai e a infantaria eram páreos na espada. No entanto, quanto aos feiticeiros ocidentais, que empunhavam cajados por onde lançavam feitiços, Aubri não tinha como responder — os ténis-guerreiros estavam em grande parte exaustos pelos esforços anteriores, e, no fim da tarde, o comandante mandou o exército retornar a Villembouchure, para trás das muralhas e portões sólidos. Ele estava convencido de que poderia ter mantido as defesas externas, mas o preço em vidas teria sido enorme. Aubri fez o que qualquer outro comandante em seu lugar teria feito: mandou as trompas soarem a ordem de cessar combate.

Ao anoitecer, todos estavam dentro e com as portas corrediças abaixadas e fechadas.

Isso encerrou o segundo dia.

Em qualquer batalha normal, isso significaria o início de um cerco que poderia ter durado semanas ou meses antes de ser rompido, e Aubri sabia que os ocidentais não tinham semanas ou meses — não em uma terra estranha, onde estavam cercados por inimigos. Foi por esse motivo que Aubri achou fácil dar a ordem de cessar combate tão cedo, assim que ficou óbvio que a vitória nos campos diante da cidade só causaria um enorme custo. Ficar no interior das muralhas de Villembouchure deveria levar à vitória em algum momento. Inevitavelmente. E ele poderia esperar.

Mas o cerco duraria apenas um dia.

Aubri estava sobre a muralha da cidade e olhava para as fogueiras quase apagadas do principal acampamento dos ocidentais na alvorada. Foi quando as bolas de fumaça de repente fizeram um arco no céu, na direção deles: uma dezena ou mais, todas pareciam mirar o grande portão oeste da cidade. Os ténis-guerreiros posicionados ao longo das muralhas reagiram instantaneamente, como deveriam, e a resposta dos feitiços de dispersão foi rápida; afinal, eles foram treinados na arte de manter os feitiços na mente por um tempo (que nenhum deles admitiria ser uma característica dos numetodos, que tinha sido imposta aos ténis-guerreiros pela archigos Ana). Mas as bolas de fogo continuaram seu voo. O téni-guerreiro mais próximo de Aubri o encarou com olhos arregalados e chocados. — Comandante, isso não é feitiço...

Ele não prosseguiu. As muralhas grossas da cidade foram sacudidas de um jeito impensável quando as bolas de fogo bateram no portão e nas pedras em volta. Onde elas tocavam, explosões inimagináveis destruíram pedras, aço e madeira. Aubri, que se segurou na ameia para manter o equilíbrio, testemunhou os enormes pedaços de granito saírem voando como se fossem seixos atirados por uma criança. O fogo irrompeu abaixo do comandante, tão incandescente quanto a fornalha de um ferreiro; ele sentiu a onda de calor passar pela pele. Ouviu gritos e lamentos lá embaixo.

— O portão está quebrado! As muralhas foram rompidas!

Os ocidentais já corriam pela brecha, enquanto arqueiros respondiam com uma atrasada chuva de flechas em cima deles. Alguns dos guerreiros foram abatidos, mas muitos — em um número excessivo — continuavam avançando, e agora Aubri via mais arcos de bola de fogo saírem do norte e do sul, na direção daqueles portões.

Ele desceu correndo das ameias e entrou em um caos selvagem e sangrento.

Este foi o terceiro dia. O dia em que a cidade foi perdida. De um jeito inacreditável.


Agora Aubri olhava para Villembouchure do alto de um morro ao longo da Avi A’Sele. O comandante viu a fumaça suja que manchava o céu acima das muralhas quebradas, cercado pelo que restou do exército reunido à sua volta e com o a’téni ca’Ostheim ao seu lado. Dentro da cidade... Dentro da cidade, estavam os ocidentais.

— Isso é impossível — murmurou ele.

Mas era possível. E agora a defesa da própria Nessântico devia ser preparada. Aubri balançou a cabeça novamente diante da cena.

O comandante deu meia-volta com o cavalo e gesticulou, e ele e o exército começaram a mancar na direção da capital, em retirada.

 

Allesandra ca’Vörl

ELA LEMBRAVA-SE DE PASSE a’Fiume muitíssimo bem. Foi aqui, há 25 anos, quando seu vatarh sitiou a cidade, que ela aprendeu pela primeira vez a mais dura lição de guerra: que, às vezes, pessoas amadas não sobrevivem. Na ocasião, Allesandra tinha uma queda por um jovem offizier que tinha sido morto na batalha e pensou que jamais seria capaz de amar novamente, pois seu coração estava partido demais pela experiência, mas o tempo aliviou sua dor. Agora, ela não conseguia se lembrar do rosto do rapaz.

Os reparos da batalha de décadas atrás ainda eram visíveis nas muralhas e trouxeram de volta as memórias e o sofrimento.

Dessa vez, não havia cerco. O exército firenzciano passou pela cidade fronteiriça de Ville Colhelm sem resistência alguma: a força dos Domínios a postos ali simplesmente abandonou o lugar e fugiu do muito maior contingente de tropas firenzcianas. A pedido de Allesandra, Jan despachou cavaleiros — incluindo Sergei ca’Rudka — bem à frente da força principal, para negociar com o comté de Passe a’Fiume. Com a maior parte da guarnição da Garde Civile esvaziada devido à invasão ocidental, o comté favoreceu a prudência à coragem (e uma propina substancial em ouro em vez do juramento ao cargo): em troca da promessa de que a cidade não seria saqueada, ele permitiria que o exército cruzasse o rio Clario através dos portões da cidade até a Avi a’Firenzcia.

Allesandra cavalgava ao lado de Jan quando eles cruzaram a grande ponte de pedra sobre as águas do Clario, um rio mais rápido e perigoso do que o A’Sele — que era mais profundo e largo, e com quem o Clario se juntava antes de o rio A’Sele chegar a Nessântico. A ponte parecia tremer sob a batida das botas dos soldados e dos cascos dos cavalos. A vanguarda do exército já passara pelos portões e o resto descia estrada afora até onde era possível enxergar no terreno cheio de morros. Jan olhou em volta extasiado, quando eles passaram pelas arcadas altas com os escudos dos kralji e entraram na cidade. Multidões estavam enfileiradas nas laterais da avenida principal ao longo da cidade, a maioria em silêncio, e os chevarittai da Garde Hïrzg ficaram tensos em suas selas ao escanearem o público à procura de perigo.

— A senhora esteve aqui com o vavatarh? — perguntou Jan novamente ao se inclinar na direção de Allesandra, e ela fez que sim com a cabeça.

— Eu era apenas uma criança, e seu vavatarh estava no auge. Ele tomou Passe a’Fiume em apenas três dias de sítio após as negociações de paz falharem, mas o kraljiki Justi, que ainda tinha duas pernas na ocasião, já tinha escapado covardemente para Nessântico. Seu vavatarh ficou furioso. Sergei ca’Rudka era o comandante das forças de Nessântico; ele foi... brilhante, mesmo em enorme desvantagem numérica. Seu vavatarh admitiu o fato, mesmo que de má vontade.

Jan olhou para trás, onde ca’Rudka cavalgava ao lado do archigos. O nariz de metal do regente reluzia ao sol. Como a Garde Hïrzg, ca’Rudka parecia ansioso e nervoso, com a boca franzida e o olhar varrendo a massa de ambos os lados. — Eu gosto do sujeito, mas não sei se posso confiar totalmente nele, matarh — disse Jan ao voltar a atenção para ela.

Allesandra sorriu ao ouvir isso. — Você não deveria. A lealdade dele é a Nessântico, antes de mais nada. E Sergei ca’Rudka é um homem estranho, com gostos estranhos, caso se acredite nos rumores. Isso não mudou. Ele trabalhará conosco enquanto achar que nossos interesses convergem. Assim que não achar... — Ela deu de ombros. — Então ele ficará igualmente satisfeito em ser nosso inimigo. Seus instintos estão corretos, Jan.

— Ele parece admirar a senhora.

— Eu conheci Sergei quando era refém da archigos Ana. Ele foi gentil comigo na época. Mas agora o comandante está mais interessado no fato de que sou prima em segundo grau da kraljica Marguerite, e no fato de que este parentesco me dá tanto direito ao Trono do Sol quanto Sigourney ca’Ludovici. E, por enquanto, precisamos de Sergei e das alianças que ele venha nos trazer.

Jan concordou com a cabeça. Ele franziu os lábios como se levasse tudo isso em consideração enquanto entravam na praça central da cidade. Allesandra imaginou o que o filho pensava.

Aqui, o Templo a’Passe dominava a paisagem arquitetônica. Como muitas estruturas da cidade, ele foi muito danificado no cerco há duas décadas e meia. Depois, o conselho municipal decidiu reprojetar a praça principal e o complexo do templo. Grande parte da estrutura original foi demolida. As linhas finas e esqueléticas dos andaimes enjaulavam a torre principal ainda não concluída e o domo do templo reformado.

A multidão de moradores estava mais densa aqui, enquanto a fila lenta do exército marchava pela cidade. Agora, Allesandra sabia, a vanguarda já teria passado pelo portão oeste e além das muralhas. Agora, ela também sabia, mensageiros iriam a galope adiante do exército para levar a notícia à kraljica, ao archigos e à Nessântico de que os firenzcianos estavam em marcha — até onde a a’hïrzg sabia, aquela informação já podia ter chegado à Nessântico assim que o exército cruzou as fronteiras. A partir de agora, o avanço encontraria resistência em breve; a kraljica Sigourney não podia se dar ao luxo de continuar virada para o oeste por muito tempo.

Um exército — especialmente o exército firenzciano; afinado, eficiente e famoso — era uma grande carta na manga em qualquer mesa de negociação, e Sigourney e o Conselho dos Ca’ sabiam muito bem disso. Allesandra sorriu diante da ideia.

A multidão espremia-se perto deles, e os soldados da infantaria de ambos os lados de Allesandra e Jan empurravam as pessoas para trás com os cabos das lanças e dos piques. Ela viu os rostos sérios e infelizes atrás da cerca de armas, e das profundezas da multidão vieram berros com xingamentos e ameaças, mas quando os dois olharam naquela direção, não havia ninguém que eles pudessem identificar na massa. A população também se lembrava do cerco firenzciano; muitas pessoas perderam familiares no sítio, e a visão das bandeiras negras e prateadas era um insulto tremulando na cara delas.

Eles entraram na sombra do templo agora, a fila do exército usava o baluarte da torre principal para se proteger da multidão. As trompas no templo começaram a anunciar a Segunda Chamada assim que Jan e Allesandra chegaram em frente à torre. A a’hïrzg ergueu a cabeça na direção do barulho e apertou os olhos contra o brilho do sol. Alguma coisa — uma figura, uma silhueta — parecia andar lá em cima, em meio ao emaranhado de andaimes. Ela não conseguiu enxergar com clareza.

Allesandra foi golpeada por trás de repente, no mesmo instante em que seus ouvidos a alertaram do som de cascos nos paralelepípedos. Um peso enorme jogou a a’hïrzg no chão, mas os braços que a envolveram giraram Allesandra para que o corpo debaixo dela absorvesse a maior parte do impacto. Um baque alto foi ouvido quase que ao mesmo tempo ao impacto. Um cavalo berrou — um som horrível, desagradável — e as pessoas gritaram.

— O hïrzg!

— Andem! Andem!

— Lá em cima! Lá está ele!

Allesandra ouviu offiziers berrarem ordens e mais gritos. Parecia haver uma multidão amontoada em volta dela. A a’hïrzg lutou contra os braços à sua volta, contra as dobras do manto do agressor e da própria tashta e a capa de equitação. Havia mãos que a puxavam para ajudá-la a se levantar.

Houve outro grito, um berro humano dessa vez, e outro impacto em algum lugar próximo.

Allesandra pestanejou e tentou entender a situação.

Sergei ca’Rudka estava de pé ao lado dela, com a capa rasgada e uma careta no rosto enquanto massageava o braço. A superfície de prata do nariz estava arranhada e o próprio nariz tinha sido parcialmente arrancado do rosto, o que deu a Allesandra um vislumbre do buraco desagradável que ficava embaixo. Jan estava sendo ajudado a se levantar, a um passo atrás de Sergei. O cavalo de Allesandra estava caído de lado diante dela, com uma enorme estátua de um demônio moitidi em volta. O animal de olhos arregalados batia as patas, e os sons que fazia... Sergei foi rapidamente até ele, ajoelhou-se nos destroços do entalhe de pedra e acariciou o pescoço do animal enquanto fazia sons tranquilizadores. Allesandra viu o comandante sacar a faca da bainha. — Não! — Ela começou a dizer, mas Sergei já tinha feito o corte rápido e profundo. O animal deu um pinote, mais um e ficou imóvel.

Allesandra balançou a cabeça para tentar clarear a mente. Metade da multidão na praça parecia ter fugido aterrorizada; os soldados firenzcianos formaram um sólida defesa em volta deles. Sergei afastou-se do cavalo e andou a passos largos até um corpo esparramado em uma poça de sangue não muito longe da base da torre. Os soldados se moveram para interceptá-lo; ele se desvencilhou deles com raiva. Allesandra começou a se mexer e percebeu que o corpo estava dolorido e machucado, e que sangrava, com um corte na cabeça. A a’hïrzg sentiu Jan chegar por trás.

— Matarh? — Ele olhava fixamente para o cavalo que Sergei matou. Allesandra abraçou o filho desesperadamente, depois afastou Jan para examiná-lo; as roupas estavam rasgadas também e havia um arranhão na bochecha que sangrava, tirando isso, ele parecia ileso.

— O que aconteceu? — perguntou ela. — Você viu?

— O regente nos salvou — disse Jan. — Ele nos tirou dos cavalos bem a tempo. — O hïrzg ergueu os olhos para o andaime, depois abaixou o olhar para o corpo no chão. Sergei estava cercado por uma massa de soldados, ajoelhado ao lado do cadáver. — O homem... ele estava lá em cima. Teria matado a senhora. Talvez nós dois. Mas Sergei...

O archigos Semini veio correndo então, com o robe verde esvoaçante. — Allesan... — Ele começou a dizer, depois balançou a cabeça e fez o sinal de Cénzi às pressas. — A’hïrzg! Hïrzg! Graças a Cénzi os senhores estão a salvo! Eu pensei...

Mas Allesandra já não o ouvia. Ela avançou pela multidão até o lugar onde Sergei examinava o corpo. — Regente? — falou a a’hïrzg, e Sergei ergueu o olhar para Allesandra, com uma cara feia.

— A’hïrzg. Eu peço desculpas, mas não tive tempo de dar um aviso. A senhora está muito machucada?

Ela balançou negativamente a cabeça. Sergei assentiu e gemeu ao ficar de pé, como se o movimento o tivesse ferido. — Estou velho demais para isso — murmurou. Ele chutou o cadáver, e a bota fez um som macio e desagradável quando o torso quebrado tremeu em resposta. Allesandra viu um rosto bonito sob o sangue, um rosto jovem, talvez da idade de Jan; ela notou que as roupas eras elegantemente suspeitosas. O corpo estava decorado por hastes quebradas de várias flechas. — Não sei quem ele é — disse Sergei —, mas descobriremos. É um ca’ ou co’, pelo jeito que está vestido e pela aparência física. Eu o vi no alto do andaime bem antes de ele jogar a estátua. Foi quando entrei em ação; parece que seus arqueiros cuidaram do resto. — Ca’Rudka pareceu notar o nariz pendurado então, empurrou-o com cuidado de volta ao lugar e o segurou com dois dedos. — Perdão, a’hïrzg... a cola...

— Não importa — falou Allesandra, abanando a mão. — Regente, eu lhe devo a minha vida.

Ela pensou que Sergei responderia como a maioria, com a cabeça baixa e depreciação, uma declaração sobre dever, lealdade e obrigação. Ele não fez isso. Ao contrário, ca’Rudka sorriu, ainda segurando o nariz de prata no lugar.

— Realmente, a senhora me deve, a’hïrzg.

 

Niente

A CIDADE QUEIMAVA e as chamas eram refletidas na tigela premonitória. Elas sumiram quando Zolin deu um tapa no objeto, que derramou água sobre Niente. A tigela fez barulho ao cair, o bronze retiniu nos ladrilhos como um sino frenético até bater na parede do outro lado, onde reluzia um mosaico de azulejos de alguma batalha antiga. Desenhados no vidro, cavalos empinavam enquanto lanças marchavam em um campo com uma montanha de pico nevado que se agigantava ao fundo.

— Não! — rugiu o tecuhtli. — Não deixarei que me diga isso!

— É o que eu vi — respondeu Niente com uma calma que não sentia. O guerreiro morto, o nahualli esparramado ao lado dele, só que dessa vez ele viu um dos rostos. O rosto de Zolin... E ele estava com medo demais para pedir a Axat que lhe deixasse ver as feições do nahualli... — Tecuhtli, nós realizamos tanta coisa aqui. Mostramos a estes orientais a dor que eles infligiram a nós e a nossos primos. Tomamos terras e cidades deles assim como eles tomaram de nós. Demos a lição que o senhor queria dar. Continuar... — O nahual ergueu as mãos. A grande cidade em chamas e os tehuantinos em fuga, os navios com mastros quebrados adernados no rio... — As visões só me mostram morte.

— Não! — disparou Zolin. — Eu mandei uma mensagem para casa dizendo que ficaríamos aqui, que eles deveriam mandar mais guerreiros. Manteremos o que conquistamos. Atacaremos o coração dos orientais: essa grande cidade que está tão próxima. — Ele se virou, os braços pesados e musculosos passaram perto do rosto de Niente. Os dedos grossos do tecuhtli apontaram para os olhos do feiticeiro. — Você está cego, nahual? Não viu como foi fácil tomar essa cidade dos orientais? Não viu como eles correram como um bando de cães açoitados?

— Temos pouco material sobrando para fazer mais areia negra — falou Niente. — Eu perdi um terço dos meus nahualli no combate; o senhor perdeu a mesma quantidade em guerreiros. Chegamos muito longe, sem recursos para manter a terra atrás de nós. Estamos em um país estrangeiro cercado por inimigos, com apenas os suprimentos que conseguimos coletar e pilhar. Se voltarmos para os nossos navios agora e formos embora, deixaremos para trás uma lenda que provocará medo nos orientais por décadas. O nome do tecuhtli Zolin será um sussurro na noite que assustará gerações de crianças orientais.

— Bá! — disparou Zolin novamente. O cuspe quase acertou os pés de Niente e sujou o chão lustroso da mansão que ele tomou em Villembouchure. Ao abaixar o olhar, o nahual viu que todos os azulejos tinham a imagem da mesma montanha, como no mosaico da parede. O cuspe de Zolin formou um lago no flanco da montanha. — Você é mesmo uma criança assustada, nahual. Eu não tenho medo do que você vê na sua tigela. Não tenho medo desses futuros que você diz que Axat lhe envia. Eles não são o futuro, são apenas possibilidades. — O dedo cutucou o peito de Niente. — Vou lhe dizer uma coisa agora, nahual: você tem que fazer sua escolha. — Cada uma das três últimas palavras ditas foram acompanhadas por uma cutucada. Os olhos escuros do tecuhtli, envolvidos no movimento das asas da grande águia, encararam Niente como um daqueles grandes felinos que espreitavam as florestas de sua terra natal. — Chega de suas palavras. Chega de profecias, chega de avisos. Eu quero apenas a sua obediência e a sua magia. Se não puder me dar isso, então chega de você. Eu prosseguirei, quer você seja o nahual ou não. Decida agora, Niente. Aqui mesmo.

A mão de Niente tremeu ao lado do punho do cajado mágico que estava pendurado no cinto. O nahual seria capaz de pegá-lo e tocar Zolin com o objeto antes que o guerreiro conseguisse sacar a espada completamente. O feitiço disparado queimaria o tecuhtli e lançaria o corpo pela sala até ele desmoronar contra a parede em uma pilha fumegante debaixo do mosaico. Niente conseguia ver aquele resultado tão claramente quanto uma visão na tigela premonitória.

O ataque também acabaria com essa situação. Ele ansiava por isso.

Mas Niente não podia atacá-lo. Essa não era uma visão dada por Axat. Esse caminho levaria a um dos futuros cegos, um que ele não poderia adivinhar — um futuro que poderia ser bem pior para os tehuantinos do que o visto na tigela. O nahual percebeu que conhecer os futuros possíveis era tanto uma armadilha quanto um benefício; ele perguntou-se se isso era algo que Mahri também descobrira. Em um futuro cego, Citlali ou Mazatl poderiam continuar a seguir os passos de Zolin e se sair ainda pior. Todos eles poderiam morrer aqui, e ninguém em casa saberia seus destinos. Em um futuro cego, certamente Niente jamais veria sua família novamente.

Ele sentiu a madeira lisa e lustrosa do cajado mágico, mas as pontas dos dedos apenas roçaram o objeto. Eles não se fecharam em volta do punho.

— Eu obedecerei ao senhor, tecuhtli — falou Niente, com palavras baixas e lentas. — E o seguirei ao futuro que o senhor nos trouxer.

 

Varina ci’Pallo

KARL ESTAVA SENTADO no degrau da porta dos fundos da casa de Serafina no Velho Distrito e olhava fixamente através de um pequeno jardim plantado ali, na direção da parte detrás das casas da próxima rua. O olhar parecia penetrar a margem sul, bem ao longe. Acima dele, a lua estava presa em uma rede de finas nuvens prateadas através das quais as estrelas espiavam. Uma xícara de chá parecia esquecida à sua esquerda.

Karl esfregava uma pedra clara, pequena e achatada, entre o indicador e o polegar.

Varina apareceu e sentou-se à sua direita — não perto o suficiente para tocá-lo, nem longe demais a ponto de não sentir o calor do corpo no frio da noite. Nenhum deles disse coisa alguma. Karl esfregou a pedra. Ela ouviu a música abafada e distante que vinha da taverna mais à frente.

Quando o silêncio entre os dois prolongou-se por tempo demais para ela, Varina começou a ficar de pé. Sentiu raiva de si mesma por ter vindo aqui fora e raiva de Karl por tê-la ignorado. Porém, ele esticou o braço e tocou em seu joelho. — Fique — disse Karl. — Por favor?

Varina sentou-se novamente e perguntou — Por quê?

— Nós não... nos últimos dias... Bem, você sabe.

— Não, eu não sei — falou ela. — Diga-me.

— Por que você tenta dificultar as coisas para mim? — Ele girou a pedra nos dedos.

— Não, estou tentando facilitá-las para mim. Karl, estar com ou sem você são duas situações com as quais eu consigo lidar, de um jeito ou de outro. O que eu não consigo encarar é não saber qual delas é nossa situação. — Varina esperou. Karl não disse nada. — Então, qual é? — perguntou ela.

— Não é tão simples assim.

— Na verdade, é. — Varina abraçou o próprio corpo ao se sentar e inclinou-se um pouco longe dele. — Quando finalmente levei você para minha cama, eu achei que teria tudo que queria há anos. Mas descobri que eu ainda tinha apenas uma parte de você. Quero você por inteiro, Karl, ou não quero nada. Talvez eu esteja exigindo demais de você, ou talvez eu seja muito possessiva, ou talvez você ache que eu esteja forçando uma coisa que você não quer. — Lágrimas ameaçaram cair, e ela fungou o nariz para contê-las, com raiva. — Talvez seja culpa minha que essa situação não dê certo, e, se for o caso, então tudo bem. Mas eu simplesmente preciso saber.

— A questão não é você.

Varina queria acreditar naquilo. Ela mordeu o lábio inferior, conteve as lágrimas, teve dificuldade para respirar. — Então o que é? Você vai atrás desse tal Uly por conta própria, quase morre, encontra com Kenne sem me contar, está até mesmo fazendo planos com Talis. Mas não fala comigo.

— Eu não quero que você se preocupe.

Varina quis escarnecer ao ouvir isto. — Eu me preocupo mais quando não sei a situação. Não sei o que você planeja, não sei o que tenta fazer, não sei quais seriam os verdadeiros perigos. — Ela parou. Respirou fundo. — Eu não quero ser sua amante, estar à disposição sempre que você quiser esse tipo de consolo, e ser convenientemente esquecida fora isso. Se isso é tudo o que você quer de mim, então eu cometi um erro. Também não sou Ana, não quero você apenas como amigo. Novamente, se isso é tudo que você quer de mim, bem, também não pode me ter como amiga. Não mais. Então, se esse for o caso, me diga, e assim que essa situação acabar, de uma forma ou de outra, eu tomo o meu próprio rumo. Eu quis que você abrisse a porta entre nós por muito tempo, Karl. Agora você abriu, mas não pode ficar parado ali com um pé dentro e outro fora. Eu preciso fechá-la e trancá-la para sempre ou você precisa entrar de vez.

— Como eu faço isso? — A voz soou melancólica na escuridão. Ele apertou a pedra entre os dedos. Como você pode não saber? Ela queria ralhar com ele. Não é capaz de enxergar tão nitidamente quanto eu?

— Fale comigo — disse Varina. — Compartilhe o que está pensando. Deixe-me aceitar os perigos que você está disposto a aceitar. Deixe-me estar com você.

Ela pensou que Karl não fosse responder — o que teria sido uma resposta suficiente. Ele ficou sentado ali, ainda brincando com a pedra e olhando para longe. Varina começou a se levantar novamente, mas dessa vez Karl pegou sua mão. Ela sentiu a pedra ser pressionada contra a palma.

— Espere — falou ele. — Deixe-me contar o que estou pensando...

E Karl começou a falar.

 

Kenne ca’Fionta

AUBRI CO’ULCAI PARECIA um cão açoitado ao se ajoelhar, de cabeça baixa, perante a kraljica. A armadura estava arranhada e surrada, o rosto tinha marcas de sujeira e fumaça, o cabelo estava escuro e emaranhado, e ele fedia. No salão do Trono do Sol, o comandante parecia uma mosca patinando em uma xícara dourada de água limpa e fria.

Não que o salão em si não tivesse cicatrizes. Ninguém deixaria de notar as marcas dos reparos feitos às pressas onde o Trono do Sol foi danificado pela magia do assassino — não, não era magia, se Karl ca’Vliomani estivesse correto, lembrou-se Kenne, mas algo mais sinistro; uma coisa que qualquer boticário seria capaz de fazer com os ingredientes certos. De que o embaixador ca’Vliomani chamou aquilo? O fim da magia? O archigos perguntou-se se o homem estava certo.

As tapeçarias penduradas ainda fediam à fumaça, e Kenne imaginou se não havia um leve tom horripilante de rosa nos ladrilhos em volta do tablado do trono. E não havia como não notar a aparência da própria kraljica Sigourney: o tapa-olho e as cicatrizes no rosto, as bandagens ainda nos braços e na única perna, a maneira como ela se remexia com dor no assento, a taça cheia do extrato das sementes da flor venenosa cuore della volpe — um preparado que o ervanário da corte criou para aliviar a sua dor.

Ainda assim, o Trono do Sol reluzia sob e em volta dela como fizera com inúmeros kralji; Kenne cuidou disso pessoalmente. Se fosse uma farsa, ninguém que observasse saberia. Kenne suspirou na própria cadeira à direita do trono, cansado pelo esforço de conjurar o feitiço de luz. O Conselho dos Ca’ estava disposto à esquerda. O salão fora esvaziado de cortesãos e até mesmo de criados — nenhum deles queria mais rumores espalhados pela cidade além dos que já haviam.

— Comandante co’Ulcai — falou Sigourney em uma voz tão arrasada quanto o rosto —, a informação que você nos traz... — Ela parou e fechou o único olho. Quando abriu novamente, a voz saiu mais inteligível. — Você nos desapontou.

— Eu sinto muito, kraljica — disse o comandante. — A senhora já deve estar com minha carta de resignação.

— Eu estou com ela, mas não irei aceitá-la. — Quando co’Ulcai ergueu o rosto com uma leve esperança, Sigourney olhou o homem com desprezo. — E não há outra razão além do fato de que temos poucos offiziers com a sua experiência. Você nos desapontou com os ocidentais, e a mancha em seu currículo não será facilmente apagada. Eu tenho a intenção de mandar que Aleron ca’Gerodi comande as defesas de Nessântico caso esses bárbaros sejam tolos o bastante para continuar a avançar. Se meu irmão estivesse aqui... — Ao dizer isso, os lábios tremeram e um brilho úmido surgiu no olho. Ela tomou um gole de cuore della volpe. — Quanto a você, veremos como se sai contra um inimigo que deve conhecer melhor. Vou mandá-lo para leste, comandante co’Ulcai, para comandar nossas forças contra o exército de Firenzcia. Odil ca’Mazzak, do Conselho, irá acompanhá-lo, e vocês dois partem amanhã. — A kraljica gesticulou com o braço para dispensá-lo. — Imagino que tenha preparativos a fazer, comandante.

Co’Ulcai ficou de pé, fez uma mesura para a kraljica e foi embora do salão com passos altos no silêncio que o acompanhou. Quando ele saiu, a kraljica Sigourney suspirou.

— Eu não confio no sujeito — murmurou Odil ca’Mazzak. — Ele é outro offizier com laços com o regente traidor.

— Infelizmente, co’Ulcai é o melhor que temos — respondeu a kraljica Sigourney. — Odil, precisamos rever os pontos da negociação que você discutirá com os firenzcianos. Archigos, preciso que você se manifeste contra os numetodos, por duas razões: para aplacar Firenzcia e para sabermos que não temos traidores na cidade enquanto enfrentamos inimigos dos dois lados. Eu espero ouvir Admoestações agressivas de sua parte e de todos os seus ténis, a começar com as missas da Terceira Chamada.

Kenne sabia que ela não esperava ouvir objeção alguma de sua parte; Sigourney já havia afastado o rosto antes de terminar de falar. A kraljica imaginava que ele apenas concordaria com a cabeça e não diria nada. Antigamente, ela estaria certa.

Antigamente. Mas havia a visita de Karl, havia o espectro do falso archigos Semini ca’Cellibrecca surgindo no horizonte e tudo o que aquilo significaria. E havia a memória de Ana e a liberdade e tolerância pelas quais ela lutou por anos.

— Não — disse Kenne. — Eu não farei isso.

O silêncio que se seguiu foi longo. A kraljica Sigourney piscou o único olho. — Não — repetiu ela, e a palavra soou como o toque de um sino fúnebre. — Eu ouvi direito, archigos?

Kenne concordou com a cabeça. — A senhora está... — A garganta estava seca. Ele engoliu em seco e tentou juntar alguma saliva. — A senhora está errada a respeito dos numetodos, kraljica. Está errada em acreditar que foi a magia deles que matou o kraljiki Audric e feriu a senhora. Não foram eles.

Ela piscou o único olho mais uma vez. Os outros conselheiros observavam os dois, em silêncio. — Não foram? E como você sabe disso?

— Porque eu falei com o embaixador ca’Vliomani, na verdade. Ouvi suas explicações e fiz minha própria investigação sobre o que ele descobriu.

— Karl Vliomani — a nítida falta de um prefixo ao sobrenome pairou pesadamente no ar — é um fugitivo atualmente condenado à morte. Está me dizendo que ele foi até você, e você o deixou escapar?

Kenne sentiu um arrepio com o tom de voz. — Ele veio até mim, sim, e me mostrou isso. — Ele tirou um pequeno frasco de vidro debaixo do robe verde. No interior, a areia negra reluzia. — Observem. — O archigos levantou-se da cadeira, arrastou os pés pelo tablado e desceu para o piso do salão. Tomou vários passos de distância do trono, depois tirou a rolha do frasco e deixou a areia jorrar sobre os ladrilhos. Kenne voltou para o tablado; os joelhos estalaram como gravetos secos quando subiu os degraus. — Todo mundo concorda que Enéas co’Kinnear usou um feitiço para criar fogo; mas aquele era um feitiço de téni, não de numetodo. Co’Kinnear foi um acólito da fé concénziana e teve alguma educação sobre o uso do Ilmodo. É muito provável que ele tenha aprendido aquele feitiço; é um dos primeiros a serem ensinados aos novos estudantes. Olhem...

Kenne ergueu as mãos e deixou que dançassem no rápido gestual enquanto a voz entoou as curtas frases necessárias. Um momento depois, uma chama amarela tremeluziu no ar entre suas mãos. — Todos os senhores viram isso mil vezes; todas as noites, quando as lâmpadas são acesas ao longo da Avi a’Parete. Isso aqui não é diferente...

O archigos abriu as mãos, começou um novo cântico, e a chama afastou-se de sua mão, saiu flutuando do tablado até pairar sobre a areia negra. Ali, ele abaixou as mãos devagar, e a chama respondeu da mesma forma, desceu até quase tocar a pilha escura...

O estrondo da explosão foi mais alto até mesmo do que Kenne esperava, e o clarão feriu os olhos. Uma fumaça branca subiu e se espalhou pelo salão, seguida de um cheiro cáustico e intenso. Ele ouviu o baque metálico quando a taça do cuore della volpe caiu do braço do Trono do Sol para o chão. A kraljica Sigourney estava com a respiração acelerada no trono e a mão erguida diante do rosto como se tentasse se proteger; ela parecia tentar ficar em uma perna só enquanto pegava a bengala perto da mão direita. Vários conselheiros estavam de pé e berravam. As portas do salão foram escancaradas por gardai, que entraram com espadas na mão. — Kraljica?

Sigourney abaixou as mãos. Kenne ouviu a respiração da kraljica desacelerar. Ela dispensou os gardai com um gesto. — Este cheiro... — murmurou Sigourney. — Eu me lembro dele mais do que de tudo. — Ela virou-se lentamente para o archigos e perguntou — Isso não é magia? Como é possível que isso não seja o Ilmodo, archigos?

— Porque é apenas alquimia — respondeu Kenne —, uma combinação de ingredientes que reage violentamente quando entra em contato com fogo. Havia traços desta areia negra na madeira do Alto Púlpito após a archigos Ana ser morta; os mesmos traços estavam no Trono do Sol e no corpo do kraljiki Audric.

— Os numetodos alegam que a fé em Cénzi não é necessária para usar magia, que qualquer pessoa é capaz disso, que não é mais complicado do que ser um padeiro. Eles olham para pedras com formato de conchas e crânios e inventam teorias estranhas, eles realizam experiências... em alquimia, assim como em outras “ciências”, bem como em magia. Para mim, isso parece indiciar os numetodos. — Quem falou foi Odil ca’Mazzak. Ele olhou com raiva para o archigos, e a kraljica concordou com a cabeça diante das palavras.

— Eu afirmo que isso não veio dos numetodos — insistiu Kenne.

— Mesmo que tenha sido Vliomani quem, por acaso, lhe mostrou isso — retrucou Odil com desdém. — Parece uma lógica estranha.

— A areia negra é um preparado ocidental — disse Kenne. — Aqui está a lógica, conselheiro. Enéas co’Kinnear tinha acabado de retornar do serviço militar nos Hellins. O senhor também deve se lembrar que o comandante co’Ulcai acabou de nos contar como os ocidentais foram capazes de destruir as muralhas de Villembouchure com explosões similares àquelas que mataram a archigos Ana e o kraljiki Audric.

— E ele disse que as explosões foram criadas pela magia dos ténis-guerreiros ocidentais, esses tais “nahualli”. — Odil balançou a cabeça grisalha. A pele flácida da garganta sacudiu com o movimento. — Eu acho que o archigos está enga...

— Não! — Dessa vez Kenne quase gritou e bateu o pé no chão ao mesmo tempo. — Eu não estou enganado. Sei que todos os senhores me acham um velho tolo e decrépito que é uma mera sombra do que um archigos deveria ser. Os senhores podem estar certos quanto a isso, mas estão errados nessa questão. Pior do que errados; eu tenho provas que me fazem acreditar que o falso archigos Semini está envolvido no assassinato da archigos Ana. E, se esse for o caso... — Ele parou, sem fôlego. Todos encaravam o archigos como se ele fosse uma criança tendo um ataque. — Nós precisamos dos numetodos, kraljica, conselheiros — continuou Kenne, com a voz mais baixa. — Precisamos das habilidades, da magia e do conhecimento deles. Nessântico está prestes a ser sitiada pelo oeste e pelo leste, e não podemos nos dar ao luxo de perder aqueles que podem nos ajudar.

Houve um longo e doloroso silêncio. Odil lambeu os lábios e sentou-se. Os outros integrantes do Conselho abaixaram a cabeça e entreolharam-se. A kraljica Sigourney olhou fixamente para a mancha negra nos ladrilhos. — Nós consideraremos o que você disse, archigos — falou ela, finalmente, e Kenne sabia o que isto significava.

Ele gemeou e levantou-se da cadeira novamente. Pegou o cajado de archigos com a mão direita — o globo partido envolto pelos corpos nus e contorcidos dos moitidis — e fez o sinal de Cénzi para a kraljica com a esquerda. Novamente, Kenne afastou-se do tablado arrastando os pés. Ao passar pelo ponto onde a areia negra havia explodido, parou. Os ladrilhos ali estavam quebrados. Ele pegou um dos pedaços maiores, com uma borda afiada de cerâmica azul-clara e a superfície lisa manchada com o que parecia ser fuligem. O cheiro da areia negra era forte. Kenne levantou o pedaço do ladrilho e deixou cair, o som se parecia com o de um prato se quebrando. Ele viu os pedacinhos quicarem e se espalharem.

— Nessântico inteira pode ficar assim — disse o archigos. — Inteira.

Não houve resposta. Ele bateu com a ponta do cajado de archigos no ladrilho e continuou arrastando os pés.

 


Sergei ca’Rudka

A TENDA DE NEGOCIAÇÃO FOI ARMADA em um campo entre as duas forças: ao lado da Avi a’Firenzcia e aproximadamente a meio caminho entre Passe a’Fiume e Nessântico. Ao se aproximarem, Sergei já podia ver as silhuetas escuras de Odil ca’Mazzak e Aubri co’Ulcai através do pano branco, juntamente com o u’téni Petros co’Magnaoi, presente como o representante do archigos. A delegação firenzciana era composta por Sergei, a a’hïrzg Allesandra e o starkkapitän ca’Damont, acompanhados pelo obrigatório conjunto de chevarittai e assistentes. Uma vez que nem a kraljica nem o archigos Kenne estavam presentes, o hïrzg e o archigos Semini, diante da sugestão de Sergei, ficaram para trás. Nenhum dos dois ficou contente com o arranjo.

— Matarh, eu deveria estar lá — insistiu Jan. — Eu sou o hïrzg, e o que acontecer deve ser, tem que ser minha decisão. — Ele olhou feio para Sergei e Allesandra.

— E será, hïrzg — disse Sergei para o jovem. — Eu lhe prometo, mas para o senhor estar lá... — Ele balançou a cabeça. — O senhor é o hïrzg, como disse. Não há um igual ao senhor naquela tenda; também não há um igual ao archigos. Não é esperado do senhor, hïrzg Jan, que negocie em termos iguais com Odil ca’Mazzak, que é apenas um integrante do Conselho dos Ca’; o senhor estaria se rebaixando se fizesse isso. Eu lhe digo que isso é exatamente o que eles querem que faça. Seria uma admissão de que o hïrzg da Coalizão é alguém inferior à kraljica dos Domínios.

Sergei então olhou para Allesandra e para o archigos, que estava com a cara fechada. — Os senhores me pediram para dar meu conhecimento, para ajudá-los. É o que estou fazendo aqui. Aparências importam. Importam muito. Especialmente para aqueles no Palácio da Kraljica.

No fim, com o apoio de Allesandra, o regente venceu o argumento. Jan, pelo menos, foi, de certa forma, educado. Irritado, o archigos saiu em um rompante, e eles ouviram Semini reclamar pelo acampamento pelas próximas viradas da ampulheta.

Conforme o contingente firenzciano desmontava e criados recolhiam as armas e os cavalos e ofereciam comidas e bebidas, os representantes de Nessântico aproximaram-se. Sergei apertou afetuosamente o braço de co’Ulcai e sorriu para seu offizier de longa data. — Aubri, eu gostaria que pudéssemos ter nos encontrado sob circunstâncias melhores. Eu soube o que aconteceu com o pobre Aris... — Ele apertou o ombro do homem e fez o sinal de Cénzi para o u’téni Petros co’Magnaoi. — Petros, é bom vê-lo também. Como está o archigos Kenne?

— Está bem, senhor, e lhe manda bênçãos — respondeu o homem mais velho.

Sergei inclinou-se para perto do u’téni ao abraçá-lo. — Kenne recebeu minha mensagem? — sussurrou o regente no ouvido do velho. — Ele concorda? — Sergei sentiu o leve aceno de Petros. Também viu os olhares de avaliação de ambas as delegações sobre ele ao cumprimentar os dois homens: tanto de Allesandra quanto de Odil ca’Mazzak. Ambos tinham suspeitas; ambos tinham o direito de ter. Sergei acenou com a cabeça para ca’Mazzak e sentou-se à esquerda de Allesandra.

O conselheiro gesticulou, e pajens aproximaram-se para entregar rolos pesados de pergaminhos a Allesandra, Sergei e ao starkkapitän. — Esta é a oferta da kraljica Sigourney — falou ca’Mazzak enquanto o trio lia as palavras presentes ali. — Seu exército terá permissão para retornar a Firenzcia. O fora da lei Sergei Rudka será entregue a nós. Reparações serão pagas por Brezno para os Domínios pela destruição de colheitas e gado feita por seu exército e pela violação do Tratado de Passe a’Fiume. Se os senhores acharem os termos aceitáveis, só é necessário que a a’hïrzg assine como representante da Coalizão.

Não era mais do que Sergei esperava. Ele já testemunhara a arrogância e o excesso de confiança dos Domínios muitas vezes antes.

O starkkapitän ca’Damont bufou desdenhosamente pelo nariz e jogou o pergaminho na mesa. — E como a kraljica pretende executar essa oferta, conselheiro? Com os poucos batalhões que o senhor deu ao comandante co’Ulcai? Não tenho nada além de respeito pelo comandante, que é um belo offizier, mas não se afasta um urso raivoso com um graveto. — Ele pareceu se dar conta de que falou o que não devia. O rosto ficou um pouco vermelho. — Perdão, a’hïrzg. Eu sou um simples offizier, mas essas exigências... — Ele empurrou o pergaminho da mesa para o chão; um pajem correu para pegá-lo, mas não o devolveu ao starkkapitän.

— A Garde Civile e os chevarittai dos Domínios não são um graveto, starkkapitän — gabou-se ca’Mazzak. Ele inchou como um sapo, sentado ereto na cadeira, a papada no pescoço grosso tremeu. — O senhor subestima nossa capacidade de botar um exército em campo rapidamente quando nossas terras são ameaçadas. É uma lição que o último hïrzg Jan aprendeu; estou surpreso que alguém em Firenzcia sinta necessidade de aprendê-la uma segunda vez.

Allesandra parecia ainda estar lendo a proposta, embora Sergei tenha notado que ela escutava com atenção o diálogo. A a’hïrzg pousou o papel diante de si e dobrou as mãos sobre ele. — Muito bem. Deixemos a pose de lado, conselheiro ca’Mazzak. Todos sabemos que Nessântico enfrenta uma ameaça a oeste. Sabemos o que aconteceu com Karnor; ouvimos rumores que Villembouchure pode ter sofrido o mesmo destino. Talvez o comandante co’Ulcai possa nos esclarecer sobre isso, uma vez que eu espero que ele tenha estado lá quando as forças dos Domínios foram escorraçadas? Todo mundo nesta mesa sabe que o senhor não tem forças suficientes para nos desafiar aqui. Então o que é que a kraljica realmente oferece?

Sergei havia sugerido esse curso direto de ação para Allesandra, mas a provocação a Aubri co’Ulcai tinha sido contribuição da própria a’hïrzg. A expressão no rosto de Aubri foi o suficiente para confirmar que o palpite dela estava correto, e Sergei sentiu uma pontada de compaixão pelo amigo.

Ca’Mazzak parecia ter engolido uma fruta podre. Ele deu uma olhadela para Petros, que parecia examinar os campos além do limite da tenda, e depois para Aubri. — A kraljica está preparada para oferecer um meio-termo — falou o conselheiro finalmente. — Que o hïrzg e a a’hïrzg voltem para Brezno com a Garde Brezno; no entanto, o starkkapitän ca’Damont e o restante do exército ficam para trás, a fim de auxiliar na defesa de Nessântico contra os ocidentais, ajuda pela qual o tesouro de Nessântico está disposto a pagar. Quanto ao antigo regente... — ca’Mazzak olhou com ódio para Sergei. — A kraljica Sigourney mantém a exigência do retorno de Sergei Rudka para que enfrente as acusações contra ele, não importa o acordo a que cheguemos aqui.

Allesandra ficou de pé ao ouvir isso; um momento depois, Sergei, ca’Damont e o resto do contingente firenzciano acompanhou o gesto. — Então estamos encerrados aqui — disse a a’hïrzg. — O regente ca’Rudka é um conselheiro da coroa de Firenzcia, e nós o consideramos o legítimo governante atual de Nessântico até que um kralji de direito seja nomeado. Se o regente ca’Rudka desejar retornar à Nessântico por conta própria para lutar por seu direito, ele pode fazê-lo. Caso contrário, ele está sob a proteção do hïrzg, não importa o que a pessoa que os senhores nomearam kraljica deseje. — Ela fez uma mesura para ca’Mazzak e gesticulou. Sergei deu um largo sorriso para o homem. Eles deram meia-volta para ir embora.

— Esperem! — Foi Petros que os chamou. Allesandra parou.

— U’téni? — perguntou a a’hïrzg, mas ca’Mazzak já vociferava.

— Eu estou no comando dessa delegação — falou o conselheiro. — Você fala quando eu lhe der permissão, u’téni co’Magnaoi.

— Cénzi está no comando da minha consciência — disse Petros. — Não o senhor, nem a kraljica Sigourney. E eu falarei. A’hïrzg, Nessântico está em uma situação desesperadora. O comandante co’Ulcai poderia lhe dizer, se tivesse permissão para falar, com que facilidade os ocidentais tomaram os vilarejos e as cidades que eles devastaram. Nessântico precisa desesperadamente de todos os aliados que conseguir reunir agora. O archigos Kenne está preparado para negociar separadamente da kraljica, se for necessário, para alcançar esse objetivo.

— O quê? — esbravejou ca’Mazzak. Ele também estava de pé agora e socou a mesa. — Não, não, não. Estamos encerrados aqui. U’téni co’Magnaoi, você será levado de volta à cidade para responder por isso. Comandante, mande seus gardai...

Sergei deu um tapa na mesa bem na frente de ca’Mazzak, o homem fechou a boca com um estalo alto. — O senhor não é nada além do cachorrinho bravo da kraljica, conselheiro — disse o regente ao se inclinar na direção do homem. — Sente-se.

Ca’Mazzak o olhou com ódio e virou-se para Aubri. — Comandante, o senhor tem as suas ordens. O senhor prenderá o u’téni imediatamente.

Aubri não se mexeu, não respondeu. Sergei sentiu a tensão aumentar na tenda. Viu mãos deslizarem cautelosamente na direção das armas escondidas — ele mesmo tinha as próprias facas, uma na bota, outra debaixo da blusa da bashta, e o zumbido do próprio medo ecoava em seus ouvidos. O regente não conseguira contatar Aubri antecipadamente, e se o comandante tivesse decidido que sua lealdade ao Trono do Sol era maior do que a velha lealdade a Sergei, então... Bem, então Sergei não sabia o que poderia acontecer aqui.

— Comandante co’Ulcai, isso é traição — rosnou ca’Mazzak. — Vou exigir sua cabeça por isso, se não fizer como mandei.

Aubri não disse nada; o olhar contemplativo continuava em Sergei. Os chevarittai de ambos os lados ficaram tensos, prontos para agir. Sergei colocou-se entre Allesandra e a mesa e falou — Eu sugiro que o senhor se sente, conselheiro. Deixe o u’téni co’Magnaoi terminar de explicar sua proposta.

Por vários instantes, ca’Mazzak não se mexeu. Ele olhou em volta da tenda lentamente, Sergei sabia que o conselheiro estava avaliando quem ali o seguiria ou não. Evidentemente, o homem não ficou satisfeito com o resultado. Devagar, ca’Mazzak sentou-se novamente. Ele olhou fixamente para as próprias mãos.

— Ótimo — disse Sergei. Por um momento, o zumbido nos ouvidos diminuiu. — Petros, o que o archigos Kenne tem a oferecer para Firenzcia?

— Informação — respondeu Petros. — Nós temos provas de que o archigos Semini esteve envolvido no assassinato da archigos Ana. Podemos dar nomes que verificam essa informação. — Atrás dele, Sergei ouviu Allesandra tomar fôlego diante da acusação. O regente ficou intrigado com a reação; ela parecia mais preocupada do que surpresa. — Como o kraljiki Audric foi morto da mesma maneira — continuou Petros —, nós suspeitamos que o falso archigos esteve envolvido da mesma maneira. Se o hïrzg Jan estiver disposto a julgar o archigos Semini pela morte da archigos Ana em sua própria corte, nós daremos as provas que temos. Em troca, a Fé de Nessântico trabalhará com a Fé de Brezno para restaurar o nosso racha; o archigos Kenne irá convocar um Conclave com todos os a’ténis para eleger um único archigos para reger a fé concénziana, e também abdicará voluntariamente se não for eleito; porém, qualquer archigos eleito deverá assumir o Templo do Archigos em Nessântico, não em Brezno. Da mesma forma, a Fé está disposta a reconhecer o direito ao Trono do Sol de Allesandra ca’Vörl. O archigos Kenne irá apoiá-la diante do Conselho dos Ca’ contra a kraljica Sigourney.

— Não! — Ca’Mazzak ficou de pé em um pulo novamente, e uma baba voou de sua boca com a explosão da palavra. — O archigos Kenne será jogado na Bastida por isso, e os ténis que o apoiarem serão expulsos...

— Se isso acontecer — respondeu Petros calmamente —, então o archigos Kenne mandará que os ténis-guerreiros permaneçam nos templos em vez de responderem ao chamado da kraljica. Como a Garde Civile e os chevarittai se sairão contra os ocidentais sem os ténis-guerreiros, conselheiro? Como enfrentarão o exército do hïrzg?

Novamente, ca’Mazzak desmoronou na cadeira. Ele sentiu um arrepio, como se estivesse com febre e alisou a papada. A testa porejava, e debaixo dos braços, o tecido da bashta escureceu.

Allesandra tocou o ombro de Sergei, que se afastou. A a’hïrzg deu um sorriso amargo e fez o sinal de Cénzi para Petros. — Vocês oferecem tudo isso pelo julgamento do archigos Semini?

Petros concordou com a cabeça. — Nós confiamos que a corte do hïrzg será justa e imparcial. E há mais uma coisa: toda perseguição contra os numetodos deve parar. Imediatamente. Os numetodos são inocentes em toda esta questão. O embaixador Karl ca’Vliomani deve retomar o antigo cargo.

Sergei sentiu que as negociações dependeriam da resposta de Allesandra a essa última exigência. Ela tocava o globo partido de Cénzi pendurado no pescoço. Sua própria vida dependia disso também, assim como a de Petros e Aubri. Se ele avaliou errado...

— Eu falarei com meu filho — respondeu a a’hïrzg. — Repetirei tudo o que foi dito aqui. — Sergei achou, por um momento, que essa seria toda a resposta, que ele havia perdido. Mas Allesandra respirou fundo e disse — Vou sugerir que o hïrzg aceite a oferta do archigos. Conselheiro ca’Mazzak, comandante, u’téni, nós voltaremos à tenda de negociação em três viradas da ampulheta para dar nossa resposta.


— Se o archigos Kenne tem provas, eu irei avaliá-las — falou Allesandra para Sergei ao voltarem. — E se o archigos Semini for o responsável pela morte de Ana ca’Seranta, então... — Ela franziu os lábios com força. — Então estou inclinada a convencer meu filho a aceitar a oferta do archigos.

De alguma forma, a a’hïrzg pareceu ter feito exatamente isso, embora Sergei não tenha estado presente à discussão, e embora todo mundo no acampamento tenha ouvido as ocasionais vozes exaltadas na tenda do hïrzg. O regente notou, principalmente, que o starkkapitän ca’Damont colocou gardai postados em volta da tenda do archigos.

Ele se perguntou o que estaria acontecendo no outro acampamento. Tudo dependia das lealdades da Garde Civile e dos ténis — e Sergei não tinha certeza de como aquilo terminaria. O regente rezou para Cénzi, na esperança de que Ele escutasse.

Três viradas da ampulheta depois, Sergei, Allesandra e os demais cavalgaram na direção da tenda de negociação.

Há décadas, quando ele era o comandante da Garde Kralji, Sergei às vezes sentia um arrepio ao se aproximar da Bastida a’Drago: um tremor na espinha, quase parecido com medo, que lhe dizia quando havia algo errado no complexo atrás do crânio sorridente do dragão.

O regente sentiu aquele arrepio agora, conforme o pequeno destacamento se aproximava da tenda de negociação. Antes de mais nada, foi curioso que não houvesse nenhum criado andando de um lado para o outro, que as cadeiras do lado de Nessântico na mesa estivessem vazias. Mas o que deteve Sergei, o que deu um nó no estômago, foi perceber que havia alguma coisa sobre a mesa — duas coisas, dois objetos arredondados escondidos sob a sombra da lona que tremulava na brisa. Infelizmente, Sergei sabia o que estava ali.

— Espere um momento, a’hïrzg — falou ele. — Por favor, espere aqui.

Sergei fez o cavalo ir à frente sozinho e gesticulou para o starkkapitän ca’Damont segui-lo. Ele apertou os velhos olhos para forçá-los a distinguir o que havia sobre a mesa. Ao se aproximar, ouviu um leve zumbido que ficou mais alto aos poucos: o barulho de insetos.

O regente entendeu, naquele momento, e a bile subiu à garganta. Ele parou o cavalo, desceu da sela e entrou na sombra da tenda.

Sobre a mesa havia duas cabeças, com uma poça de sangue coagulado e grudento debaixo delas e um tapete de moscas que andavam sobre os olhos abertos e dentro das bocas escancaradas.

Sergei ficou de joelhos e fez o sinal de Cénzi na direção da cena horripilante. — Aubri. Petros. Sinto muito. Sinto muitíssimo.

Trêmulo, o regente ficou de pé novamente e retornou ao cavalo. Ele cavalgou em silêncio até os demais. O olhar de Allesandra questionou Sergei; ela também sabia. O regente viu na maneira com que a a’hïrzg levou a mão à boca antes dele sequer falar.

— O conselheiro ca’Mazzak deixou sua própria resposta para nós — disse Sergei. — Parece que ele não se importa com qual seria nossa resposta.

 

Nico Morel

NICO NÃO CONSEGUIA ficar sentado quieto. O menino jamais havia imaginado um lugar tão grande, glorioso e interessante quanto esse. Eles foram conduzidos a um gabinete em um dos prédios que rodeavam a Praça a’Archigos; a recepção em si era maior do que o apartamento de dois cômodos que eles tinham no Velho Distrito e havia pelo menos três portas que levavam a outros aposentos que Nico só conseguia imaginar. Ele vislumbrou um quarto quando um criado entrou com roupas de cama na mão, e o aposento parecia enorme, além dos limites. O gabinete para onde eles foram levados teria abrigado a casa de Nico, assim como aquelas dos vizinhos mais próximos. O teto parecia tão alto e tão branco quanto as nuvens de verão; o piso era um mosaico intrincado de várias madeiras coloridas, e as paredes eram cobertas por tapeçarias lindas, que mostravam a história da vida de Cénzi, a moldura no topo das paredes era entalhada e dourada. Atrás da enorme mesa de mogno, uma sacada dava vista para uma grande praça, com a silhueta do Templo do Archigos emoldurada pelas cortinas abertas. O resto da mobília na sala chamava tanto a atenção quanto a mesa — uma mesa comprida e lustrosa para reuniões, com cadeiras estofadas ao redor; um sofá colocado diante de uma lareira em que a família inteira de Nico poderia ficar em pé dentro, cercada por um belo consolo; um globo entalhado e partido que era mais alto que dois homens, um em cima do outro, com figuras esculpidas dos moitidis em volta dele e uma base cravejada de joias e folheada de ouro reluzente. Ao redor das paredes, havia mesas repletas de lindas maravilhas do exterior: estátuas de animais desconhecidos; uma pedra grande quebrada ao meio, com o miolo cheio de belos cristais violeta; conchas cor-de-rosa e espinhentas do Strettosei...

Nico piscava e olhava fixamente para tudo. — Tudo isso aqui é só para o senhor? — perguntou o menino para o archigos, maravilhado.

— Nico, silêncio — disse a matarh, mas o velho no robe verde apenas riu.

— É para o archigos, seja ele quem for — falou o homem. — Eu vivo aqui apenas temporariamente, até que Cénzi me chame de volta para Ele. Era aqui que a archigos Ana vivia também. — Ele deu um tapinha na cabeça de Nico, e os criados trouxeram bandejas de comida e bebidas e colocaram sobre a mesa. O archigos gesticulou para eles assim que terminaram e disse — Isso é tudo. Por favor, cuidem para que não sejamos incomodados. Mandem minha carruagem para a porta dos fundos uma virada da ampulheta antes da Terceira Chamada. — Eles fizeram uma mesura e foram embora. — Sirvam-se — disse o homem quando o último dos criados fechou as portas duplas ao sair do gabinete. — Karl? Parece que uma boa refeição cairia bem a todos vocês. — Nico olhava fixamente para a comida, e o archigos riu de novo. — Vamos, Nico. Você não precisa esperar.

O menino olhou de relance para a matarh e Talis, que deu de ombros. — Tudo bem — falou a matarh. — Vá em frente...

Nico foi em frente. Um bolinho de grãos com pingos de mel foi a primeira coisa que colocou na boca. Os adultos não pareciam estar com tanta fome quanto ele, o que era estranho. Nem Talis, Karl ou Varina foram à mesa, e sua matarh beliscava a esmo um peito de pato. Em vez disso, eles se amontoaram perto do sofá, em frente à lareira.

— Archigos — Nico ouviu Karl dizer —, Ana ficaria muitíssimo orgulhosa de você. Todos nós lhe devemos agradecimentos.

— Os agradecimentos são para você, Karl. Se você não tivesse vindo até mim, se não me dissesse o que sabia... Bem, não tenho certeza do que teria acontecido. De qualquer forma, eu talvez tenha colocado você em mais perigo, não em menos. A kraljica está furiosa, pelo que eu soube, e assim que o conselheiro ca’Mazzak retornar da negociação com os firenzcianos, eu desconfio que ela ficará ainda menos contente comigo. Nenhum de nós tem como saber o que acontecerá diante dessa situação; por isso precisamos conversar hoje à noite. Não há muito tempo; é possível que um mensageiro já esteja voltando para a cidade. — Nico ouviu o archigos perder a voz. Ele virou-se com um pedaço de pão e queijo na mão. — Este é o ocidental? — perguntou Kenne ao apontar com a cabeça na direção de Talis, que mantinha as duas mãos na bengala que sempre carregava. Nico viu o ar tremular em volta da madeira como se a bengala estivesse em chamas, mas era um fogo mais frio que a neve do inverno passado.

— Sim, archigos — respondeu Karl. — Este é Talis Posti. O vatarh de Nico.

— Ah — falou Kenne. — Vajiki Posti, eu também lhe devo agradecimentos; embora deva me desculpar por querer saber o motivo pelo qual você decidiu me ajudar.

— Porque eu vislumbrei os futuros, e nenhum deles leva a um bom lugar para o meu povo — respondeu Talis, e Nico viu seu interesse aumentar ao ouvir aquilo. Talis podia ver o futuro? Isso seria interessante. Ora, se ele pudesse fazer isso, Nico poderia se ver como adulto, talvez ver o que aconteceria com ele... O menino percebeu que suas mãos se moviam por conta própria em uma estranha dança, os dedos grudentos mexiam-se pelo ar, e palavras desconhecidas vieram a ele. Nico murmurou tão baixinho que nenhum dos demais ouviu. O frio da bengala de Talis parecia fluir na direção de suas mãos; ele sentia o arrepio nos braços.

— Você tem aquele dom dos deuses? — perguntou Kenne para Talis, que ergueu as sobrancelhas e olhou para Karl.

— Mahri alegava que podia fazer o mesmo — falou o embaixador. Isso também fez Nico prestar atenção; ele lembrou-se que Talis mencionara o nome anteriormente. — Não que tivesse lhe servido de alguma coisa no fim das contas.

— Não são visões do futuro que Axat nos permite vislumbrar, mas todas as possibilidades que existem. Os vislumbres de futuros em potencial não são fáceis de ler, embora fosse dito que Mahri era capaz de usar o talento melhor do que qualquer um antes ou depois dele. E sim, parece que o talento o desapontou, no fim das contas. — Um breve sorriso passou pelo rosto de Talis. — Talvez tenha sido a proximidade com o seu Cénzi.

Kenne riu; Nico gostou do som, fez com que gostasse do homem. O frio envolveu seus braços agora, embora as mãos tivessem parado de dançar.

— Você está disposto a nos ajudar... — o archigos Kenne abriu os braços para incluir Karl e Varina, e o resto da cidade do lado de fora da sacada — ... quando isso significa que você poderia ajudar a derrotar as forças do seu próprio povo?

— Sim — respondeu Talis —, porque Axat me disse que, ao fazer isso, eu ajudarei meu povo.

O frio congelava os braços de Nico e estava ficando pesado. Ele não sabia o que fazer com aquilo, mas tremia com o esforço de segurá-lo, e a dor quase fez com que gritasse. — Às vezes seu inimigo torna-se seu aliado — dizia Varina para o archigos. — Eu sei...

— Nico! — A voz da matarh foi quase um berro. — O que você está fazendo? — O menino tomou um susto quando Serafina agarrou seu ombro, e o frio saiu voando do corpo. Ao fugir, a energia reluziu e flamejou, como uma língua de fogo azul. A rajada foi disparada por ele, varou o espaço entre Talis e o archigos e se dirigiu para a escultura do globo partido, no canto do gabinete. Nico soluçou, assustado tanto pela sensação de alívio quanto de puro terror diante do que tinha acabado de lançar. Varina, que estava a alguns passos do archigos, gesticulou e falou uma única palavra ríspida; com o movimento, Nico viu a linha de fogo azul fazer uma curva e dar meia-volta. A rajada fez um arco ao se afastar da escultura, cuspiu fagulhas cor de safira sobre a mesa envernizada e saiu assobiando pelas portas abertas da sacada. Bem acima da praça, o fogo concentrou-se e explodiu: um globo azul-claro que brilhou como um relâmpago congelado. Com a explosão, veio o estrondo ensurdecedor de um trovão que ecoou nas paredes dos prédios que circundavam a praça. Nico sentiu as janelas tremerem e chacoalharem nas ombreiras e ouviu vidro se quebrando ao longe.

— Nico! — O menino foi abraçado pela matarh. — Nico... — repetiu ela, com mais gentileza dessa vez. Serafina abraçou o filho com mais força, que não tinha certeza se era para ser um abraço ou um estrangulamento. Todos olhavam fixamente para ele.

— Desculpem — falou Nico. — Eu não tinha a intenção de.

Ele começou a chorar.

 

Karl Vliomani

— DESCULPEM — falou Nico. O lábio inferior tremia, e as próximas palavras mal haviam saído antes que os ombros começassem a tremer por causa dos soluços. — Eu não tinha a intenção de...

Serafina olhava fixamente sobre os ombros do menino ao abraçá-lo, seus olhos estavam arregalados e aterrorizados. Lá fora, na praça, eles escutaram gritos ao longe quando os transeuntes começaram a procurar pela fonte da claridade trovejante. Karl ouviu Varina suspirar de alívio atrás de si. — Se ele estivesse um pouquinho para um lado, ou para o outro... — disse Karl.

— Ele não estava — respondeu Varina, que se ajoelhou na frente do menino e acenou com a cabeça para Serafina. — Está tudo bem, Nico. Ninguém se machucou. Está tudo bem. — Ela olhou para Karl, atrás dela. — Está tudo bem — repetiu. O menino fungou e esfregou a manga no nariz e nos olhos.

Karl suspirou e sorriu: para Varina, para Nico e para Serafina. — Sim, está tudo bem, graças a Varina. Talis, você sabia...?

— Eu suspeitava, mas... — Ele segurava o cajado mágico e o olhava confuso, como se fosse um copo subitamente vazio. — Agora eu sei. Archigos, o senhor está...?

Kenne abanou a mão, como se não fosse nada, mas Karl notou que o peito do homem ainda ofegava. — Eu estou bem — disse o archigos. — E impressionado. Seu filho é um dos poucos talentos naturais que conheci. O archigos Dhosti foi um, e Ana, também. Com treinamento, bem...

— Eu o treinarei. — A resposta do homem veio acompanhada por uma cara fechada. Ele pegou o cajado mágico com força. — Esse é o dom de Axat, não de Cénzi.

— É claro — falou Kenne para Talis, mas o olhar permaneceu em Nico. — Não se preocupe — disse o archigos para o menino. — Ninguém aqui está com raiva de você, entendeu? — Nico concordou com a cabeça, ainda fungando o nariz.

— Se eu soubesse disso, teria sido bem mais cauteloso quando me aproximei de você pela primeira vez — falou Karl para Talis. — Mas, como não aconteceu nenhum mal... Nós ainda temos planos e contingências em que pensar. Archigos, Petros está pronto para fazer a proposta que conversamos para Firenzcia?

Kenne concordou com a cabeça, com mais hesitação do que Karl gostaria, mas ao menos foi uma confirmação. Na verdade, ele teve medo de que o archigos não levasse o plano adiante, especialmente dado o perigo inegável em que Petros foi colocado. — Ele está pronto. — A voz de Kenne tremeu um pouco; medo combinado com idade, decidiu Karl. — Na verdade, Petros já deve ter feito a proposta a essa altura.

— Ótimo — disse Karl. Ele deu um tapinha no ombro de Kenne e falou — Ele ficará bem e voltará para você em breve. Agora, da parte de Talis, ele trará os materiais dos aposentos de Uly para o templo amanhã, e nós podemos começar a preparar a areia negra para a demonstração. Isso deve mostrar a esse tal tecuhtli dos ocidentais que atacar a cidade seria idiotice. Nós podemos prevenir centenas, se não milhares, de mortes.


A carruagem do archigos era um truque — quatro criados de Kenne entraram no veículo quando ele parou na entrada dos fundos do prédio, enquanto Karl e os demais desceram correndo uma escada dos fundos na direção de uma entrada de serviço pouco usada. Nenhum deles sabia se o subterfúgio era necessário; Karl torcia para que não fosse, porém, caso fosse, então nenhuma alternativa que eles prepararam se tornaria realidade.

O grupo começou a sair correndo da praça em direção à Avi. Kenne dera a eles dinheiro suficiente para alugarem uma das carruagens e levá-los de volta ao Velho Distrito. Conforme passaram pela rua, Karl e os demais viram três esquadrões distintos de Garde Kralji cruzarem a Praça do Archigos correndo. — Esperem um momento — falou o embaixador. Talis, Serafina e Nico já estavam na Avi à procura de uma carruagem para alugar; Varina, um pouco à frente dele, parou. Quando Karl hesitou, no limite da praça, ele e Varina viram dois dos esquadrões entrarem no prédio de onde eles acabaram de sair; o outro esquadrão entrou no Templo do Archigos.

As armas estavam desembainhadas, o aço reluzia sob a luz das lâmpadas.

— Karl? O que está acontecendo?

— Não sei, Varina. Acho que eu deveria voltar. Leve os demais. Eu vou...

— Não — disse Varina com firmeza. Ela voltou até onde o embaixador estava e segurou o braço dele. — Não, Karl. Não dessa vez. Mesmo disfarçado, seu rosto é muito reconhecível pela Garde Kralji, e há vários deles, de todo modo. Você não sabe por que os gardai estão lá; pode não ser nada. Provavelmente não é nada. E caso não seja... — Varina mordeu o lábio inferior. Os olhos imploraram. — Você precisa deixar o archigos cuidar de si mesmo. Venha comigo. Por favor.

— Mas se as coisas deram errado...

— Se as coisas deram errado, você não pode mudá-las agora. Nós não podemos mudá-las. Tudo que aconteceria é que você estaria perdido também. — O braço apertou o dele. — Por favor, Karl. Vamos embora. Se houver um problema, nós conseguiremos ajudar mais o archigos se estivermos vivos do que se formos jogados na Bastida com ele. Nós soltamos Sergei; podemos fazer o mesmo novamente se precisarmos. Karl... — Varina encostou a cabeça no ombro dele. — Se você voltar, então eu irei com você. Mas essa é a decisão errada. Tenho certeza.

Karl olhou fixamente para os prédios e desejou que pudesse ver a sacada de Kenne dali. Tudo estava em paz; as pessoas ainda andavam pela praça como se nada estivesse acontecendo. Mas ele sabia. Ele sabia.

E também sabia que Varina estava certa. Ele não podia mudar nada. Karl olhou para trás. Talis chamou uma carruagem com um gesto e olhava para os dois com curiosidade. Uma mulher, que estava vestida com roupas pobres demais para esta parte da cidade, o que era estranho, passou correndo por eles vindo da direção da praça. Ao passar, ela pareceu tropeçar e esbarrar de leve em Karl. — Desculpe, vajiki — murmurou a mulher. — A voz... parecia vagamente familiar, mas ela manteve o capuz da tashta erguido e a cabeça baixa. Ele vislumbrou o cabelo castanho e sujo. — Vai ser uma noite ruim. Uma noite ruim. O senhor realmente deveria correr para casa...

Ela foi embora depressa.

Karl olhou fixamente a mulher, que desapareceu do outro lado da carruagem à espera. Talis acenava para eles. Foi aí que Karl lembrou-se de onde ouvira aquela voz.

— Tudo bem — disse ele para Varina. — Vamos embora.

 

A Batalha Começa: Kenne ca’Fionta

— INFELIZMENTE seu pobre Petros está morto. É uma pena.

Kenne ouviu as palavras, e os velhos olhos embaçaram com as lágrimas, embora ele já soubesse que Petros estava morto. Ele sentira em seu coração quando a Garde Kralji veio e o levou para a Bastida. Só lhe restava torcer para que Karl e o resto tivessem escapado da varredura; eles foram embora com apenas algumas marcas da ampulheta de antecedência. O gosto da mordaça de metal e couro era horrível; os grilhões que prendiam as mãos eram tão pesados que ele mal conseguia levantá-los do colo.

O rosto deformado da kraljica Sigourney encarava o archigos de cima. Kenne sustentou o olhar caolho dela por apenas alguns instantes, enquanto respirava através do horrível aparato sobre a cabeça, depois abaixou o próprio olhar, arrasado e derrotado. Entre as pernas, as mãos algemadas mexiam inquietas na palha da cama tosca onde ele estava sentado na cela, no alto da torre principal da Bastida. A voz da kraljica era solidária, quase triste. — Você é um bom homem, Kenne. Sempre foi. Mas era fraco demais para ser archigos. Deveria ter recusado o título e dito ao Colégio A’téni para eleger outra pessoa.

Kenne só podia concordar com a cabeça. Havia muitas noites ultimamente que em ele desejava exatamente a mesma coisa.

— Você devia saber que isto aconteceria, Kenne. Você escolheu se associar aos inimigos dos Domínios. Devia saber. E agora...

Ela mancou até a única janela da cela e apoiou-se na muleta acolchoada e dourada, enquanto a perna direita ficava pendurada sobre o vazio abaixo do joelho. A janela dava vista para oeste, Kenne sabia; na parede oposta à janela, ele tinha visto a luz do sol ficar amarela, depois vermelha e então púrpura ao subir sobre pedras úmidas até sumir. — Venha cá. — falou Sigourney. — Venha cá e veja.

Ele levantou-se da cama com dificuldade; era um velho arrasado agora, na verdade. Arrastou os pés até a janela enquanto a kraljica esperava ao lado. Lá fora, debaixo de um belo céu azul, Kenne viu o A’Sele reluzir sob o sol enquanto cortava a cidade em direção ao mar. Perto de onde o rio virava para o sul, ele viu dezenas de velas reunidas. Do outro lado do A’Sele, onde antigamente havia fazendas e propriedades dos ca’ e co’, a terra estava agitada por uma invasão sombria que não estava lá ontem. — Está vendo? Está vendo o exército ocidental se aproximar? Aquelas são as pessoas pelas quais você traiu os Domínios, archigos. São as pessoas que o deixaram tão assustado que você tentou fazer um pacto com os cães firenzcianos contra mim. — A voz assumiu um tom mais agressivo agora, o único olho atacava Kenne. — Aquelas são as criaturas desprezíveis que mataram meu irmão. São os vilões que destruíram nossas cidades e nossos vilarejos. Quer você acredite ou não, tenho certeza de que também são as pessoas que mataram Audric e me transformaram nesse horror. Será que eu odeio os ocidentais? Ah, você não pode imaginar o quanto. Observe, e você verá os bons chevarittai dos Domínios escorraçá-los, e depois nós cuidaremos de seus amigos firenzcianos também. Em breve, o combate começará. E você vai nos ajudar, Kenne.

Ele virou a cabeça amordaçada na direção de Sigourney, com uma expressão de curiosidade. Ela riu. — Ah, você vai. Nós temos que ter os ténis-guerreiros, afinal, e temos que garantir que eles entendam que seu archigos agora se arrepende de sua horrível traição e que deseja que todos os ténis da fé concénziana ajudem Nessântico nesta ocasião terrível da maneira que puderem. É o que você deseja mesmo, não é, archigos?

Kenne só podia encará-la, mudo.

— Você acha que não? Bem, a proclamação já está escrita; só precisa de sua assinatura. E quer você queira ou não, eu terei essa assinatura. Você foi amigo de Sergei Rudka, afinal; deve saber que a Bastida sempre consegue as confissões que deseja.

Mesmo com aquele horrível aparato preso ao rosto, Kenne não conseguiu esconder a expressão de horror e percebeu o sorriso da kraljica diante de sua reação. — Ótimo — falou Sigourney. — Vou refletir sobre o seu sofrimento quando o capitão me entregar sua confissão.

A kraljica gesticulou para os gardai do lado de fora da cela e disse — Ele está pronto. Cuidem para que receba sua hospitalidade integralmente.

 

A Batalha Começa: Niente

A CIDADE ERGUIA FLANCOS DE PEDRA sobre morros baixos; as torres e os domos lotavam a grande ilha no centro do rio de modo que parecia uma pedra coberta por cracas. A metrópole saltara para fora do confinamento do cinturão das muralhas, magnífica, orgulhosa e destemida, os campos ao redor eram cheios de grãos e colheitas que alimentavam a aglomeração de habitantes. Essa cidade... Ela era a rival de Tlaxcala, de certa forma menor, porém mais populosa e comprimida, com uma arquitetura estranha. Nas cidades de sua terra natal, prevaleciam as pirâmides dos templos de Axat, Sakal e dos Quatro; aqui em Nessântico, o que era mais visível eram as torres dos grandes edifícios e os domos dourados dos templos.

Tão estrangeiro. Tão estranho. Niente não queria nada além de ver locais conhecidos novamente e temia que jamais os veria.

Ele olhou para Nessântico e sentiu um arrepio, mas não viu a mesma reação no tecuhtli Zolin. O tecuhtli, ao contrário, estava no morro que dava vista para o rio e a cidade. Zolin cruzou os braços e deu um sorriso com os lábios fechados. — Isso é nosso — disse ele. — Olhe para a cidade. Ela é nossa.

Niente se perguntou se o homem ao menos notou as grandes fileiras de tropas orientais dispostas ao longo da estrada, se contou os barcos que apinhavam o rio, se percebeu os preparativos para guerra na periferia oeste da cidade.

— O que você me diz, Niente? — perguntou Zolin. — Será que descansaremos amanhã à noite neste lugar?

— Se for a vontade de Axat — respondeu Niente, e Zolin gargalhou.

— É a minha vontade que importa, nahual. Você ainda não compreendeu isso? — Ele não deu tempo para Niente responder; não que houvesse alguma resposta que o nahual pudesse dar. — Vá. Cuide para que os nahualli estejam prontos e que o resto da areia negra tenha sido preparado para os ataques iniciais. E mande Citlali e Mazatl até mim. Começaremos hoje à noite. Vamos mantê-los acordados e exaustos; depois, quando Sakal colocar o sol no céu, atacaremos como uma tempestade. — Zolin olhou fixamente para a cidade por mais um instante, depois se virou para Niente. Quase com carinho, colocou a mão em seu ombro. — Você verá sua família novamente, nahual. Eu prometo. Mas, primeiro, temos que dar uma lição nesses orientais por sua insensatez. Olhe em sua tigela premonitória, Niente. Você verá que estou certo. Verá sim.

— Com certeza eu verei, tecuhtli.

Mas Niente já sabia o que veria. Ele tinha vislumbrado na manhã de hoje, enquanto eles se aproximavam desse lugar.

O nahual havia rogado a Axat e olhado na tigela, e ele não ousaria olhar novamente.

 

A Batalha Começa: Sergei ca’Rudka

PELA MAIOR PARTE DA MANHÃ, Sergei cavalgou sozinho no meio das tropas firenzcianas, perdido em reflexões que mantinham afastada — pelo menos um pouco — a dor crescente nas costas, provocada pela longa cavalgada. E o corpo não estava mais acostumado a longos dias na sela, nem a tardes passadas debaixo de uma tenda.

Você está ficando velho. Não estará aqui por muito tempo mais, e tem tanto o que fazer ainda.

— Regente, quero falar com você.

Diante do chamado, Sergei virou o olhar e viu o garanhão com as cores de Firenzcia que parou ao seu lado sem ser notado. Velho. Antigamente, você jamais teria deixado de perceber a aproximação. — É claro, hïrzg Jan — falou ele.

O menino trouxe o garanhão mais para perto da baia de montagem de Sergei. A montaria do regente mexeu as orelhas nervosamente e revirou os olhos diante do cavalo de guerra bem maior do que ela. Jan não disse nada, a princípio, e Sergei aguardou enquanto eles prosseguiam pela Avi levantando uma nuvem de poeira em volta dos dois. O exército aproximava-se de Carrefour, com Nessântico a um bom dia de marcha de distância. As forças de Nessântico desapareceram, sumiram; foram embora na tarde da negociação. — A matarh disse que você perdeu dois bons amigos — falou Jan finalmente.

— Perdi sim. Aubri co’Ulcai fez parte da minha equipe por muitos anos, tanto na Garde Kralji quando na Garde Civile, antes de eu ser nomeado regente. Ele era um bom homem e um excelente soldado. Eu não consigo nem pensar em falar com a esposa e os filhos dele para contar o que aconteceu, muito menos para dizer que a lealdade a mim foi a responsável pela morte de Aubri. — Sergei esfregou o nariz de metal, a cola repuxou a pele quando ele fechou a cara. — Quanto a Petros... bem, não havia pessoa mais gentil no mundo, e sei como a amizade dele era importante para o archigos. Não sei o que a notícia fará ao archigos Kenne. Matá-los foi cruel e desnecessário, e se Cénzi me der uma vida suficientemente longa, eu cuidarei para que o conselheiro ca’Mazzak se arrependa da dor que causou a mim e às pessoas de quem eu gosto.

O jovem concordou com a cabeça e falou — Eu entendo. Entendo mesmo. Algum dia, eu encontrarei quem contratou a Pedra Branca para matar meu onczio Fynn, e eu mesmo matarei essa pessoa e a Pedra Branca junto com ela. Meu onczio era um bom amigo para mim, bem como meu parente, e me ensinou muita coisa no pouco tempo em que estive com ele. Eu queria que ele tivesse vivido o suficiente para me ensinar mais a respeito... — Jan parou e balançou a cabeça.

— Não existe livro que ensine alguém a ser um líder, hïrzg — disse Sergei. — A pessoa aprende ao liderar e torcendo para não cometer muitos erros no processo. Quanto à vingança: bem, ao ficar mais velho, eu aprendi que o prazer que se tira da concretização da vingança jamais se compara à expectativa. Também aprendi que às vezes tem que se deixar a vingança completamente de lado em nome de um objetivo maior. A kraljica Marguerite sabia disso melhor do que ninguém; e por esse motivo ela era uma monarca tão boa. — Ele sorriu. — Mesmo que seu vavatarh discordasse veementemente.

— Você conheceu os dois.

Sergei não soube dizer se isso era uma afirmativa ou uma pergunta, mas concordou com a cabeça. — Conheci, sim, e tinha um grande respeito por ambos, incluindo o velho hïrzg Jan.

— Minha matarh o odiava, creio eu.

— Se ela odiava, tinha boas razões — respondeu Sergei. — Mas Jan era o vatarh dela, e acho que sua matarh também o amava.

— Isso é possível?

— Nós somos criaturas estranhas, hïrzg. Somos capazes de ter dois sentimentos conflitantes na cabeça ao mesmo tempo. Água e fogo, ambos juntos.

— A matarh diz que você costumava torturar pessoas.

Sergei esperou um longo tempo para responder. Jan não disse nada e continuou cavalgando ao lado dele. — Era meu dever, em uma determinada época, quando estive no comando da Bastida.

— Ela falou que os rumores diziam que você gostava de torturar. Isso faz parte do que você dizia, sobre a habilidade de ter dois sentimentos conflitantes na cabeça ao mesmo tempo?

Sergei franziu os lábios. Ele esfregou o nariz novamente. Olhou para frente, não para o jovem. — Sim — respondeu Sergei finalmente. A palavra solitária trouxe de volta todas as memórias da Bastida: a escuridão, a dor, o sangue. O prazer.

— A matarh é, ou era, de qualquer maneira, amante do archigos Semini. Você sabia disso, regente?

— Eu suspeitava, sim.

— Mesmo que ela ame o archigos, a matarh estava disposta a sacrificá-lo e entregá-lo ao julgamento, como o u’téni Petros pediu. Ela tomaria essa decisão; a própria matarh me disse quando voltou da negociação. “Que os pecados de Semini sejam pagos em vidas salvas”, foi o que ela falou. Não havia uma lágrima no olho ou um sinal de arrependimento em sua voz. O archigos... ele não sabe disso. Não sabe como chegou perto de ser um prisioneiro. Até onde eu sei, os dois ainda podem... — Jan parou. Deu de ombros.

— Água e fogo, hïrzg — falou Sergei.

Jan concordou com a cabeça. — Ela disse que você ama Nessântico acima de todos nós. No entanto, você cavalga conosco, salvou a matarh e a mim em Passe a’Fiume e colocaria a matarh no Trono do Sol.

— Eu colocaria sim, porque estou convencido de que isso seria o melhor para Nessântico. Eu quero ver os Domínios restaurados, com Firenzcia novamente como seu forte braço direito. — Sergei fez uma pausa. Os dois podiam ver os arredores de Carrefour diante deles na estrada, os topos dos prédios se erguiam mais alto do que as árvores. — É isso o que o senhor também quer, hïrzg?

Sergei observou o jovem, que desviou o olhar para a longa fileira do exército que se estendia pela estrada. — Eu amo minha matarh — respondeu Jan.

— Não foi o que eu perguntei, hïrzg.

Jan concordou com a cabeça e continuou olhando para a cobra blindada de seu exército. — Não, não foi, não é mesmo?

 

A Batalha Começa: Karl Vliomani

— VOCÊ AINDA PODE IR EMBORA pelas ruas a leste do Portão Norte — disse Karl para Serafina. — Terá que tomar cuidado e andar rápido, mas se estiver com Varina, você e Nico terão proteção.

Karl viu que Serafina e Varina balançavam a cabeça antes mesmo de ele terminar. — Eu não irei embora sem Talis — falou Serafina. Nico estava no colo da matarh enquanto se sentavam à mesa da sala principal do apartamento de Serafina. Eles terminaram um jantar à base de pão, queijo e água, embora o queijo estivesse velho, o pão, mofado, e a água, turva. Mas comeram tudo, pois não sabiam quando teriam mais comida.

Com o exército dos tehuantinos a oeste dos limites da cidade, o A’Sele sob controle dos navios ocidentais, e a ameaça do exército de Firenzcia a leste, Nessântico estava em pânico. Rumores fantásticos e absurdos sobre a pilhagem de Karnor e Villembouchure corriam pela cidade e ficavam mais sinistros e violentos cada vez que eram repetidos. Os ocidentais, caso se pudesse acreditar nas histórias, não eram nada além de demônios gerados pelos próprios moitidis, dedicados ao estupro, à tortura e à mutilação. As prateleiras das lojas estavam praticamente vazias; os moinhos não tinham farinha para as padarias, e não havia carroças vindo dos campos fora da cidade para os mercados. Até mesmo a Avi a’Parete estava às escuras na noite de hoje, pois os ténis-luminosos não fizeram as rondas de sempre; para piorar, uma neblina espessa e gelada surgiu a oeste e tomou conta da cidade, que tremia na escuridão, à espera do ataque inevitável que viria.

— Eu pensei ter perdido tanto Talis quanto Nico uma vez; não os perderei novamente — continuou Serafina.

— Ele não pode ir embora — insistiu Karl. — Talis é homem e jovem o suficiente para ser obrigado a servir à Garde Civile. Eles o pegariam antes que chegasse à metade da Avi. E com o archigos na Bastida... bem, com muita certeza a Garde Kralji tem nossas descrições e já procura por nós. Duas mulheres com um menino... acho que você estaria a salvo. Mas comigo e com Talis...

— Eu não vou embora sem ele — insistiu Serafina. A voz e a mão em volta da cintura de Nico tremeram, mas os lábios permaneceram firmemente franzidos.

— Metade da cidade já foi embora... aqueles que puderam. Os rumores sobre Karnor e Villembouchure... tudo aquilo pode acontecer aqui.

Ela deu de ombros.

Varina estava sorrindo sombriamente e tocou o joelho dele por debaixo da mesa. — Você perdeu a discussão, Karl. Com ambas. Estamos aqui. E ficaremos aqui, não importa o que isso signifique.

Karl olhou para Talis, que estava sentado em silêncio ao seu lado da mesa. No último dia, ele andou quieto de uma maneira estranha, desde que foi confirmada a notícia da prisão do archigos, e passou muito tempo com a tigela premonitória. Karl se perguntou o que o homem estaria pensando por trás daquele rosto solene. Talis deu de ombros, e falou para Serafina — Eu concordo com Karl. Eu preferiria que você e Nico estivessem a salvo.

Varina pegou a mão de Karl ao ficar de pé. — Venha comigo. Deixe Sera e Talis resolverem essa questão sozinhos. Nós resolveremos também.

Karl acompanhou Varina até o outro aposento. Ela fechou a porta assim que os dois entraram, de maneira que só podiam ouvir um murmúrio baixo de vozes que conversavam, e disse — Ela ama Talis. — Varina ainda estava apoiada na porta e olhava para Karl.

— Sim — protestou Karl — e é exatamente por isso que Talis quer que Serafina vá embora: porque ele não quer perder as pessoas que ama.

— E é exatamente por isso que ela não irá embora, porque não suportaria não saber o que aconteceu com Talis. — Varina cruzou os braços sob os seios. — É por isso que eu também não irei embora.

— Varina...

— Karl, cale a boca. — Varina afastou-se da parede e foi até ele. Os braços deram a volta em Karl, os lábios procuraram os dele. Havia um desespero no abraço, uma violência no beijo. Karl ouviu um soluço na garganta de Varina e levou a mão ao rosto dela para descobrir que a bochecha estava molhada. Ele tentou se afastar, perguntar o que estava errado, mas Varina não permitiu. Ela puxou de volta a cabeça de Karl, usou o peso do corpo para derrubá-lo sobre o colchão de palha no chão. Então, por um instante, Karl esqueceu de tudo.

Mais tarde, ele deu um beijo em Varina enquanto a segurava perto de si e apreciava o calor de seu corpo. — Eu amo você, Karl — sussurrou Varina no ouvido. — Desisti de fingir que não.

Karl não respondeu. Ele queria. Queria devolver as palavras para Varina. Elas preencheram a garganta, mas ficaram ali, presas. Karl achava que, se dissesse as palavras, trairia Ana e tudo o que ela significava para ele. — Encontre outra pessoa — dissera Ana, há muito tempo. — Volte para sua esposa, se quiser. Ou apaixone-se por outra pessoa, por mim tudo bem, também. Eu ficaria feliz por você porque não posso ser o que você quer que eu seja, Karl.

— Eu... — começou Karl, mas parou. Os dois ouviram ao mesmo tempo um assobio estridente e um rugido baixo como trovão, seguidos quase que imediatamente por outros, e as trompas dos templos começaram a soar um alarme. Karl rolou e afastou-se de Varina. — O que é isso? — perguntou ele, mas suspeitava que já sabia. Ambos vestiram-se depressa e correram para o outro cômodo.

— Começou — falou Talis para os dois assim que entraram. Ele estava parado ao lado da porta que dava para o sul. Na direção do A’Sele, todos puderam ver o brilho laranja amarelado sobre os tetos, iluminando a névoa que bloqueava a visão. — Fogo — continuou Talis. — Os nahualli estão disparando areia negra dentro da cidade, perto do A’Sele.

As trompas soavam estridentes, e havia berros e gritos abafados vindos da névoa.

Talis fechou a porta e disse — É tarde demais agora. Tarde demais.

 

A Batalha Começa: Sigourney ca’Ludovici

DO ÚLTIMO ANDAR do Palácio da Kraljica, apoiada em uma muleta que compensava a falta da perna, Sigourney podia ver os telhados à frente e as águas do A’Sele na margem norte, onde as fogueiras dos ocidentais ardiam nos arredores da cidade. Lá também, ela sabia, estava agrupado o exército da Garde Civile, agora com Aleron ca’Gerodi como comandante. Ele, pelo menos, estava confiante na capacidade dos chevarittai e da Garde Civile em lidar com a dupla ameaça à cidade, mesmo que ninguém mais estivesse. Ca’Gerodi ao menos já esteve em combate antes — e entre os chevarittai à disposição da kraljica, ele era o mais indicado para ser o comandante, desde que ca’Mazzak retirou Aubri co’Ulcai da disputa. Isso fora um erro, Sigourney tinha certeza; um erro que ela compreendia, sim, dada a rebelião de co’Ulcai, mas também um erro que poderia custar a Nessântico mais do que a cidade podia bancar.

O corpo de Sigourney doía muito esta noite. Ela tomou um bom gole de cuore della volpe e pousou a taça no peitoril da janela.

Sigourney também estivera confiante. Confiante de que eles dariam conta daquela ralé ocidental e a destruiria. Depois, que eles se voltariam para o leste e cuidariam de Allesandra e seu filhote, e que fariam com que os firenzcianos percebessem a insensatez desse rompimento do tratado. Sim, ela estivera confiante.

Mas isso parecia ter sido séculos atrás.

Agora, Sigourney vira a estranha névoa surgir do acampamento ocidental e envolver o Velho Distrito e a Garde Civile. Depois, após uma mera virada da ampulheta, grandes flores de fogo laranja nascerem na margem norte, e a kraljica viu as flores subitamente desenharem arcos no céu em várias direções; algumas caíram na névoa onde seu exército esperava, e outras...

A água do A’Sele tremeluziu com o reflexo do fogo conforme as flores — que guinchavam e bramiam — subiam, como se tivessem sido lançadas por raivosos moitidis. Ela viu a resposta dos ténis-guerreiros: raios azul-claros lançados na direção das flores ao alto. Vários alcançaram as flores no ápice de seus arcos: quando eles se tocaram, um breve sol ganhou vida e o som do trovão ecoou pela cidade. Mas havia muitas flores de fogo e a resposta dos ténis-guerreiros chegou atrasada demais. A maior parte das bolas de fogo caiu: sobre os navios de guerra dos Domínios no rio, no labirinto do Velho Distrito, e sobre a própria Ilha A’Kralji. E, onde caíam, explodiam em um jorro de fúria brilhante e ruidosa.

Sigourney observou uma bola de fogo em especial: o arco se ergueu mais alto que os demais, e ela viu a linha assustadora que vinha diretamente em sua direção. A kraljica olhou fixamente, paralisada tanto pelo fascínio quanto pelo medo, e sentiu (conforme a bola de fogo despencava, à medida que crescia a cada instante) o corpo se lembrar do choque e do horror do momento em que o kraljiki Audric foi morto. Ela perguntou-se se doeria muito.

Mas não... Sigourney viu que o rastro de fagulhas agora se desviava levemente para a sua direita. A bola de fogo chocou-se contra a asa norte do palácio e espirrou fogo sobre a fachada e os jardins lá embaixo. A kraljica sentiu a estrutura inteira tremer com o impacto, tão forte que ela teve que se segurar na ombreira da janela para evitar cair. Os dedos apertaram com força a barra da muleta. Houve gritos e berros por toda parte do terreno. A noite de Nessântico foi mais uma vez banida — não pelas famosas lâmpadas dos ténis-luminosos, mas por um inferno. Mesmo da janela, Sigourney achou que podia sentir o calor.

Os criados entraram correndo no cômodo. — Kraljica! A senhora tem que vir conosco! Depressa!

— Eu não sairei daqui.

— A senhora precisa sair! O fogo!

— Então não percam seu tempo aqui; vão ajudar a apagá-lo — falou Sigourney. — Convoquem os ténis-bombeiros nos templos. Vão. Vão!

Ela gesticulou com a mão livre para os criados — o corpo ferido e combalido protestou ante a violência do movimento —, e eles foram embora. As trompas soaram, agora nos templos, o alarme tomou conta da cidade inteira. Sigourney abaixou o olhar e viu os funcionários do palácio correrem na direção da ala em chamas. A fumaça deu a volta na lateral do palácio e fez arder o olho restante da kraljica. Ela piscou ao lacrimejar e bebeu o resto do preparado do ervanário.

— Olhem para mim! — Sigourney soltou um berro estridente para a noite e para as forças ocidentais escondidas na névoa. — Eu abri mão de muita coisa para estar aqui. Vocês não vão me tirar daqui. Não vão.

 

A Batalha Começa: A Pedra Branca

— POR QUE VOCÊ CONTINUA AQUI?

— Por que você os vigia? O menino não é seu.

— Ele não é sua responsabilidade.

— Você esperou tempo demais.

As vozes tagarelavam na cabeça dela, em tom sedutor, de alerta, satisfeito. A voz de Fynn era a mais alta, ronronava com satisfação. — Você morrerá aqui, e a criança dentro de você também.

— Silêncio — disse a Pedra Branca para todas as vozes, que fizeram silêncio a contragosto.

O ar estava espesso com a névoa anormal, e o cheiro de madeira queimada fluía pelos filetes da bruma. O brilho tinha ficado pior, e agora parecia cair uma neve de verão: cinzas caíam no chão e cobriam o cabelo oleoso e os ombros da tashta suja da Pedra Branca. Havia sons indefinidos na névoa, encobertos pelo lamento contínuo e sobrenatural das trompas.

A Pedra Branca olhou fixamente para a porta onde viu Talis pela última vez. Agora não havia ninguém lá, e ela não tinha visto Nico. Não há nada que você possa fazer por ele. Por enquanto, Nico está a salvo. Ela pressionou as mãos contra a barriga inchada. Talvez as vozes estivessem certas. Talvez ela devesse fugir da cidade. Salvar a própria filha.

Mas Nico era filho dela também. Cénzi trouxe o menino para ela. Ele a escolheu, e Nico era tão filho dela quanto a criança em gestação dentro de sua barriga.

— Tarde demais...

Ou talvez não. Com uma careta, ela se afastou da casa de Nico e andou rapidamente pelas ruas. Ela tinha que ver com os próprios olhos, tinha que saber o que acontecia. As ruas estavam bem mais cheias do que costumavam ficar a esta altura da noite, mas as pessoas corriam para seus destinos sem olhar umas para as outras, com o medo estampado em suas feições. Muitas mantinham as mãos próximas às armas carregadas abertamente: espadas com bainhas descascadas e lâminas manchadas de ferrugem; facas que pareciam que a última coisa que tinham feito era cortar um porco assado. Haveria violência nessas ruas antes de a noite acabar: uma palavra rude, um esbarrão acidental, um gesto mal interpretado — qualquer coisa poderia acendê-la, como uma fagulha em um material inflamável. A Pedra Branca sabia disso, porque a violência vivia dentro dela. Ela era capaz de sentir o cheiro de sangue pronto para ser derramado.

Mas não ainda. Não ainda. Ela manteve-se nas sombras, não falou nada com ninguém. Ela evitou matar, a menos que fosse por dinheiro ou pela própria proteção.

Ela chegou à Avi a’Parete e virou para o sul. Ao se aproximar do rio, o cheiro de fumaça ficou ainda mais forte, ela e a bruma estavam tão misturadas que era impossível distinguir uma da outra. Havia incêndios no aglomerado de prédios próximos a oeste da Avi, as chamas chegavam tão alto que a Pedra Branca conseguia ver do ponto onde estava. Uma carruagem conduzida por um téni veio correndo pela Pontica Kralji com meia dúzia de ténis-bombeiros dentro, com os rostos cobertos por fuligem e já exaustos pelo esforço de usar os feitiços para apagar os vários incêndios. Um esquadrão da Garde Kralji, com espadas desembainhadas e expressões carrancudas, acompanhava os ténis-bombeiros e cercava um grupo de homens de aparência melancólica em bashtas simplórias, a maioria jovem demais ou velha demais. — Você! — vociferou o offizier do esquadrão ao apontar para um velho de barba grisalha que andava à espreita, perto do prédio mais próximo à Pedra Branca. — E você! — Agora dirigido a um jovem que não devia ter mais de 12 anos, sendo puxado pela matarh. — Vocês dois! Venham conosco! Quero ver animação agora!

A matarh soltou um grito estridente de objeção, o homem fez menção de correr na direção contrária, mas evidentemente decidiu que não conseguiria fugir. A Garde Kralji cercou os dois e partiu noite adentro na direção dos incêndios, levando o menino e o velho com eles, enquanto a matarh protestava inutilmente, aos gritos.

A Pedra Branca continuou caminhando na direção sul até ver as colunas da Pontica Kralji que se agigantavam através da fumaça. Ela parou ali e olhou para o A’Sele. O que viu a deixou horrorizada e fez as vozes dentro de sua cabeça rirem.

No rio, vários navios de guerra estavam em chamas, já queimados quase até a linha d’água, os destroços entupiam o A’Sele de maneira que os navios ainda incólumes mal conseguiam manobrar. O Palácio da Kraljica era um inferno laranja amarelado, com um vulcão que cuspia fagulhas para longe. O grande novo domo do Velho Templo parecia rachado, o fogo lambia os suportes que tinham sido erigidos em volta dele. Havia pequenos incêndios aqui e ali. As pontes, exatamente as duas que levavam à margem sul, estavam lotadas de pessoas em fuga, que empurravam carrinhos cheios de pertences ou sobrecarregados com pacotes. A Pedra Branca ouviu um estrondo atrás de si; ela olhou na direção dos prédios que lotavam a Avi nesta margem e viu uma multidão botar abaixo a porta de uma padaria e também de uma joalheria. A rua atrás dela estava ficando lotada e barulhenta. Dentro de algum lugar, em uma das lojas, a Pedra Branca ouviu uma mulher gritar.

Sangue. Ela sentiu o cheiro do sangue. Tocou a bolsinha de couro sob o tecido da tashta e sentiu a pedra lisa lá dentro.

— O tumulto começou...

— Isso só vai piorar...

As vozes berraram assustadas em sua cabeça. — Você virou idiota, mulher? Ande!

Ela andou. Caminhou a passos largos, sem pressa, até o beco mais próximo, um espaço cheio de lixo entre os fundos dos prédios. A Pedra Branca voltaria à casa de Nico. Ficaria de vigia e, se as coisas ficassem perigosas, ela estaria ali para ajudá-lo, para tirá-lo de lá. Se a família de verdade do menino não pudesse protegê-lo, ela seria sua verdadeira matarh e faria isso. Ela tocou o estômago enquanto andava. — E farei o mesmo por você — sussurrou para a vida que se mexia dentro dela. — Eu farei isso. Prometo.

As vozes riram e gargalharam.

A Pedra Branca viu um movimento pelo rabo de olho na névoa e na fumaça e sentiu um arrepio de perigo. Ela deu meia-volta. — Ei! — Havia um homem ali, com cabelo negro e fios brancos, mas jovem o suficiente, o que fez a Pedra Branca se perguntar como ele conseguiu evitar os esquadrões de alistamento que rondavam o Velho Distrito. — Não há necessidade de se assustar, não é, vajica? — disse o sujeito. Ela viu a língua se mexer atrás dos poucos dentes. — Eu só queria ter certeza de que estava a salvo, só isso. — Ele deu um passo na direção dela. — Agora os tempos andam perigosos.

— Para você, sim — respondeu ela. — Eu posso tomar conta de mim mesma.

— Ah, pode, é? — O homem deslizou para o lado e impediu que ela entrasse no beco. Ela acompanhou o movimento, sempre olhando para o sujeito. — Não são muitas as pessoas que podem dizer isso hoje em dia. — Ele deu um passo na direção da Pedra Branca, que fez uma expressão de desdém.

— Não — disse ela, embora já soubesse que o homem não ouviria. — Você se arrependerá. Você não quer conhecer a Pedra Branca.

Ele riu. — A Pedra Branca, é? Está me dizendo que a Pedra Branca tem interesse em alguém como você?

Ela não respondeu. O homem deu mais um passo, ficou perto o suficiente para que ela sentisse seu cheiro, e estendeu a mão para agarrar seu braço. Nesse mesmo instante, a Pedra Branca agachou-se, tirou uma adaga da bainha na bota e golpeou para cima, debaixo das costelas do homem, que foi empurrado de costas para dentro do beco. Ele ofegou, boquiaberto como um peixe; ela sentiu o sangue quente jorrar sobre a mão. Os dedos do sujeito arranharam seu braço, mas caíram lentamente. A Pedra Branca ouviu o homem tomar um fôlego gorgolejante enquanto saía um filete de sangue da boca. Ela deixou o corpo cair enquanto metia a mão debaixo da gola da tashta para pegar a bolsinha. Com pressa, a tirou do pescoço e deixou a pedra lisa e clara como neve cair na palma da mão. Pressionou o seixo no olho direito do sujeito. Seus próprios olhos estavam fechados.

Ah, o lamento da morte... ela ouviu o homem gritar, sentiu a presença entrar no seixo enquanto os outros se remexiam no interior para abrir espaço para o espírito moribundo. O uivo silencioso do sujeito tomou conta de sua mente, tão alto que ela ficou surpresa que não ecoasse em volta dos dois. Quando a pedra o absorveu complemente, ela removeu o seixo do olho e guardou de volta na bolsinha, colocou o cordão de couro no pescoço novamente e deixou a bolsinha cair entre os seios, debaixo da tashta.

— A Pedra Branca protege o que é dela — ela disse para o cadáver de olhos abertos.

Depois, as vozes falaram alto e tomaram conta da cabeça da Pedra Branca, com uma nova que se juntou ao coro louco, enquanto ela voltava para a casa de Nico.

 


A Batalha Começa: Niente

O CÉU FICOU ILUMINADO a leste e a bruma mágica sumiu com a luz, embora a cidade continuasse envolvida pela fumaça. Niente estava com o tecuhtli Zolin, Citlali e Mazatl. Os guerreiros que usavam a armadura e os rostos tatuados agora estavam pintados para parecerem as terríveis e cruéis criaturas oníricas que estupraram Axat antes que a Escuridão colocasse seu corpo ferido no céu. Os três estavam próximos ao rio; a enorme ilha em volta da qual ele fluía parecia estar acesa, e a fumaça saía de várias dezenas de lugares na cidade.

— Muito bem, nahual — disse Zolin. — Eles estarão exaustos e assustados com os incêndios dessa noite. Os nahualli estão descansados? Os cajados mágicos estão cheios?

— Eles estão tão descansados quanto é possível, tecuhtli — falou Niente. — Nós preparamos nossos cajados ontem à noite, após lançarmos a areia negra.

— Ótimo — trovejou Zolin. — Então deixe de parecer tão melancólico. Esse é um grande dia, nahual Niente. Hoje nós mostramos a esses orientais que eles não são imunes à fúria dos tehuantinos.

Citlali e Mazatl gargalharam com Zolin. Niente tentou sorrir, mas não conseguiu. Ele ergueu o próprio cajado mágico, o tecuhtli assentiu e disse — Vá até os nahualli. Citlali, Mazatl, acordem seus guerreiros. Quando virmos os olhos de Sakal se abrirem no horizonte, será o momento.

Niente abaixou a cabeça para o tecuhtli e foi embora. Ele se dirigiu para o norte, para o campo pisoteado onde a maior parte do exército estava reunida perto da estrada. Os nahualli encontravam-se ali, o nahual deu suas ordens e espalhou os homens atrás da primeira fileira de guerreiros montados e da primeira leva de infantaria. Niente tomou o seu próprio lugar atrás do tecuhtli Zolin e de seus guerreiros selecionados. Do outro lado, ele viu, com a visão borrada pelo olho esquerdo ruim, os estandartes e escudos das tropas de Nessântico à espera. Havia muitos; Niente olhou para o próprio exército, significativamente menor agora, após todas as batalhas.

Ele não tinha dúvida de que os guerreiros tehuantinos eram mais bravos, de que os nahualli eram mais poderosos que os ténis-guerreiros de Nessântico. No entanto...

Havia um ardência no estômago que não passava. Niente segurou o cajado mágico com força e sentiu a energia do X’in Ka ligada ao objeto, mas o poder nas mãos não lhe deu conforto.

O céu a leste ficou ainda mais iluminado. Os primeiros raios da manhã lançaram sombras compridas que correram pela terra.

Zolin ergueu a espada e gritou — Agora! Agora! — Trompas soaram em resposta, e os guerreiros tehuantinos gritaram seus desafios. Niente levantou o cajado mágico e o bateu contra a mão aberta. O fogo chiou, faiscou e saiu voando na direção das fileiras inimigas; um momento depois, os cajados dos outros nahualli de toda a longa fileira fizeram o mesmo. Os ténis-guerreiros de Nessântico responderam: alguns feitiços sumiram como se tivessem sido engolidos pelo ar; outros quicaram, como se tivessem batido em uma parede, e voltaram para as fileiras dos tehuantinos em um arco. Onde os feitiços caíam, guerreiros caíam com eles e berravam ao serem consumidos pelas línguas grudentas do fogo. Muitos feitiços, porém, passaram incólumes, e os tehuantinos ouviram os gritos de resposta dos nessânticos. Os arqueiros, com o que restava da areia negra na ponta das flechas, lançaram uma chuva flamejante sobre o campo, que foi respondida por uma chuva de flechas nessânticas. Em volta de Niente, guerreiros grunhiram ao serem empalados, mas os escudos foram erguidos de imediato e apararam a maioria das flechas. Zolin gesticulou com a espada e os guerreiros começaram a se mover, devagar, a princípio, depois ganharam velocidade para correr pelo campo na direção dos inimigos e da cidade a frente à espera.

Foi difícil não se envolver com a onda de empolgação. Niente avançou atrás de Zolin e da parede de infantaria e ouviu a própria voz berrar um desafio com os demais. Então, com um tremor audível, a linha de frente dos tehuantinos colidiu com os nessânticos, que esperavam. Niente viu o reluzir das espadas, o avanço dos guerreiros a cavalo contra a massa caótica de soldados, ouviu os gritos dos mortos e moribundos de ambos os lados, sentiu o cheiro do sangue e viu os espirros que voavam no ar, mas havia guerreiros demais entre eles. Os guerreiros atrás de Niente o empurravam pelas costas, faziam com que avançasse, e a vanguarda avançou tão abruptamente que ele quase caiu. De repente, o nahual estava no meio da batalha, com indivíduos lutando por todos os lados, e viu um nessântico de cota de malha empunhando uma espada acima de sua cabeça ao avançar contra ele.

A tigela premonitória... O nahualli morto...

Niente berrou e golpeou o homem com o cajado mágico como se fosse um florete. Quando tocou o abdômen do soldado, um feitiço foi disparado: um clarão, uma explosão de anéis de aço rompidos, de pano marrom, de pele branca e de sangue escarlate. A espada despencou das mãos inertes, o homem ficou boquiaberto, mas não emitiu som, e caiu.

Mas não havia tempo para descansar. Outro soldado avançava contra Niente, e novamente o cajado, cheio de feitiços que o nahual preparou, derrubou o homem. Um soldado montado que os inimigos chamavam de chevarittai investiu contra ele, Niente atirou-se para o lado no momento em que os cascos blindados e com espinhos do cavalo de guerra arrancaram a terra onde ele estava e avançou em frente.

Para Niente, essa batalha — como qualquer outra — tornou-se uma série de encontros desconexos, um turbilhão de confusão e caos, um cenário desorganizado em que o nahual continuava a avançar. O barulho era tão tremendo que se transformou em um rugido inaudível em volta dele. Ele se desviou de espadas e enfiou o cajado em qualquer coisa que vestisse as cores azul e dourada. Uma espada acertou seu braço e abriu o antebraço, outra pegou a panturrilha. Niente berrou com a garganta rouca. A energia fluía rapidamente do cajado quente na mão direita, quase no fim agora.

E...

Niente percebeu que não estava em um campo, mas entre casas e prédios, que a batalha agora assolava as ruas da cidade, que os soldados vestidos de azul e dourado neste momento davam meia-volta ao soar das trompas e recuavam para as profundezas da grande cidade.

Ele ainda estava vivo, assim como Zolin.

 

A Batalha Começa: Sigourney ca’Ludovici

O COMANDANTE ALERON CA’GERODI ESTAVA diante de Sigourney e do resto do Conselho dos Ca’, a armadura suja de sangue, o elmo amassado por um golpe de espada e o rosto coberto de lama, fuligem e sangue. — Sinto muito, kraljica, conselheiros — disse ele. A voz estava tão exausta quanto a postura. — Nós não conseguimos contê-los...

Ca’Mazzak sibilou como uma chaleira que passou muito tempo no fogo. Sigourney fechou o único olho. Ela respirou fundo o ar cheio de fuligem e cinzas e tossiu. Abriu o olho novamente. Através da névoa da fumaça, a kraljica viu as ruínas do palácio, com partes queimando. Ela e o Conselho refugiaram-se no Velho Templo que, apesar do domo quebrado, encontrava-se em grande parte incólume. A nave principal estava lotada de tesouros do palácio: pinturas (incluindo o retrato chamuscado da kraljica Marguerite), louças azuis e douradas, roupas cerimoniais, os cajados e as coroas usados por uma centena de kralji; tudo estava aqui, embora muita coisa — coisas demais — tenha sido perdida no incêndio. Sigourney estava sentada no Trono do Sol na entrada da câmara sob o domo, mas se o trono estava aceso, não era aparente na claridade do sol que entrava pelo grande buraco aberto no domo. O sol debochava da kraljica ao brilhar intensamente em um céu sem nuvens.

Um dos criados entregou a Sigourney uma taça de cuore della volpe, para aliviar a tosse e a dor. Ela tomou um gole do líquido frio, marrom e turvo da taça dourada.

— Qual é a gravidade da situação? — perguntou a kraljica.

— Nós finalmente conseguimos deter o avanço deles — informou ca’Gerodi. — Os ocidentais não chegaram à Avi a’Parete, mas tomaram a maior parte das ruas a oeste da Avi na margem norte. Eles dominaram o vilarejo de Viaux. Houve uma batalha intensa perto do Mercado do Rio e por um tempo ele foi tomado pelos inimigos, mas nós os rechaçamos. Eu destaquei um batalhão para proteger a Pontica Kralji, mas isso deixou a área do Portão Norte mais aberta do que eu gostaria.

Os conselheiros murmuraram. — Isso é inaceitável — falou ca’Mazzak mais alto.

— Então talvez você devesse ter deixado o comandante co’Ulcai vivo — disse Sigourney. — Ou gostaria de pegar a espada você mesmo? — Ca’Mazzak resmungou e acalmou-se. Ca’Gerodi pareceu cambalear, e Sigourney gesticulou para que um criado trouxesse uma cadeira; o homem desmoronou de bom grado no assento estofado, sem se importar com a sujeira que espalhou no brocado. — O que está me dizendo, comandante? — perguntou a kraljica. — Que hoje à noite eles colocarão fogo no resto da cidade, que amanhã nos derrotarão completamente? Você disse que tinha mais do que homens suficientes. Você disse que...

— Eu sei o que eu disse — interrompeu ca’Gerodi e, quando Sigourney imediatamente calou a boca diante da grosseria, ele pareceu perceber o que fez e balançou a cabeça. — Perdão, kraljica; eu não durmo desde a noite de anteontem. Mas sim, isso é exatamente o que temo: que a noite de hoje trará mais daquele fogo terrível dos ocidentais, e que quando eles atacarem amanhã... — Ele ergueu a cabeça e olhou para Sigourney com seus olhos castanhos e abatidos. — Eu darei minha vida para proteger Nessântico, se for preciso.

— Aleron... — A kraljica começou a se levantar do Trono do Sol, esqueceu-se momentaneamente das feridas, e desmoronou. O movimento provocou uma nova tosse. Os conselheiros observaram Sigourney. Ela sabia agora o que tinha que fazer, e a compreensão era incômoda, tão dolorosa quanto o corpo ferido. — Vá. Descanse o quanto puder, e nós cuidaremos do que a noite de hoje e o dia de amanhã trouxerem. Vá. Durma enquanto pode.

Ca’Gerodi ficou de pé e fez uma mesura. Ele foi embora mancando. Quando saiu, Sigourney gesticulou para um criado. — Traga-me um escriba. E também um mensageiro, o melhor que tivermos, para levar uma mensagem para o hïrzg, a leste.

O criado arregalou os olhos momentaneamente, fez uma mesura e foi embora correndo.

— Kraljica — disse ca’Mazzak. — A senhora não pode...

— Nós não temos escolha — falou Sigourney para ele, para todos os conselheiros. — Nenhuma escolha. A situação já não é mais sobre nós.

Ela recostou-se no assento estofado do Trono do Sol, que cheirava à fumaça de madeira queimada. Cheirava à derrota.


??? RESOLUÇÕES ???

Allesandra ca’Vörl

Niente

Varina ci’Pallo

Sigourney ca’Ludovici

Karl Vliomani

Nico Morel

Niente

Sergei ca’Rudka

Jan ca’Vörl

Niente

A Pedra Branca

Allesandra ca’Vörl


Allesandra ca’Vörl

JAN LEU A MISSIVA com cuidado, os olhos claros vasculhando as palavras. Allesandra já sabia o que a mensagem dizia — os soldados do starkkapitän ca’Damont interceptaram o mensageiro que vinha na direção leste pela Avi a’Firenzcia, ele carregava uma bandeira branca tremulando içada sob o luar, e trazia o pergaminho selado para Allesandra, insistindo com os assistentes da a’hïrzg que ela fosse acordada. Allesandra quebrou o selo e vasculhou a carta, depois se vestiu rapidamente e foi até Jan.

Se o filho notou ou se se importou que o selo estivesse sem lacre e quebrado no papel grosso, ou que a kraljica tenha endereçado a missiva a Allesandra e não ao hïrzg, não disse nada. Jan empurrou a vela que usava como fonte de luz; o castiçal raspou a mesa que foi montada às pressas na tenda de campanha ao lado da tenda particular do hïrzg.

— Isso é genuíno? — perguntou Jan. Havia um cobertor dobrado sobre seus ombros, as pálpebras estavam cansadas e com olheiras. Ele bocejou e esfregou os olhos. — Temos certeza?

— O mensageiro disse que recebeu a mensagem da própria kraljica Sigourney — respondeu o starkkapitän ca’Damont.

Jan assentiu. Ele entregou o pergaminho para Semini, que leu a carta, franziu os lábios e o entregou para ca’Rudka. Jan parecia estar esperando, e Allesandra, sentada à mesinha na tenda de campanha ao lado dele, tamborilou os dedos na superfície arranhada. — Estamos perdendo tempo, meu filho — falou a a’hïrzg. — A mensagem é clara. A kraljica está disposta a abdicar do Trono do Sol se levarmos o exército até lá para deter os ocidentais. Acorde os homens agora e, se nossas forças marcharem rápido, nós conseguiremos chegar aos portões da cidade de manhã cedo.

Jan não pareceu ouvi-la. Ele olhava para Sergei, e perguntou — Regente? Sua opinião?

Ca’Rudka esfregou o nariz por muito tempo enquanto olhava o pergaminho, o que enlouqueceu Allesandra. Ela viu a luz da vela tremeluzir nas narinas esculpidas. — A kraljica não quis considerar a abdicação quando foi oferecida a ela durante a negociação, hïrzg Jan, ou, pelo menos, ca’Mazzak não quis — disse ele finalmente. — O conselheiro parecia totalmente confiante que a Garde Civile podia derrotar os ocidentais. Agora a kraljica foi subitamente acometida por altruísmo? Mas, como eu lhe disse, hïrzg, só quero o que for melhor para Nessântico. Eu não me importaria de ver a cidade destruída, mas isso precisa ser decisão sua.

— Aí está, Jan, viu só? — falou Allesandra, ficando de pé. — Starkkapitän, você irá...

Mas Jan havia colocado a mão no ombro dela e disse — Eu ainda não terminei, matarh. Archigos Semini, o que você acha desta oferta?

Allesandra começou a protestar, mas Jan apertou a mão no ombro da matarh. Todos observavam a a’hïrzg. Ela franziu os lábios e sentou-se novamente. Semini olhou especialmente para Allesandra, sem expressão nos olhos de cor magenta. Ele sabia, a a’hïrzg percebeu então. O archigos sabia que ela esteve disposta a oferecê-lo em troca do Trono do Sol. Sergei... será que Sergei contou para ele? Ou...

Jan?

— Eu notei que a oferta da kraljica não menciona nada sobre a fé concénziana — respondeu Semini, que ainda encarava Allesandra. — Isso é inaceitável para mim. Eu reluto em empenhar os ténis-guerreiros em uma aliança com Nessântico, a não ser que o archigos Kenne também esteja disposto a abdicar em meu favor. — Semini desviou o olhar de Allesandra e inclinou a cabeça para Jan. — A não ser, é claro, que o hïrzg exija isso de mim.

— Jan — insistiu Allesandra, ignorando Semini. — Isso é o que queríamos desde o início. Está ao nosso alcance; só temos que estender a mão e pegar.

— Oh, eu discordo, matarh — disparou Jan. — Isso é o que a senhora sempre quis. Parece que sua vida inteira é sempre uma questão do que a senhora quer: suas ambições, suas aspirações, seus desejos. Mesmo quando era menina, pelo que me contaram: a senhora quis primeiro Nessântico, então o vavatarh obrigou o exército a marchar mais rápido do que deveria e perdeu; sim, Fynn me contou essa história, que disse ter ouvido do vavatarh.

— Isso não é verdade — contestou Allesandra. Era o vatarh que queria Nessântico tanto assim. Não eu. Eu lhe disse para esperar e ser paciente. Disse sim... Mas Jan não escutou, e continuou falando.

— A senhora decidiu que não queria ajudar o vatarh após ele finalmente trazê-la de volta, então seu casamento foi uma farsa, quando poderia ter sido uma aliança forte. A senhora não quis que eu me envolvesse com Elissa, então a mandou embora. Não quis ser hïrzg, então fez campanha para que eu ficasse com o título. O que a senhora sempre quis foi ser kraljica, e quer que aceitemos essa oferta para que tenha o título agora, quer seja o melhor para Firenzcia ou não. Sempre foi a senhora, matarh. A senhora. Não o vatarh, não o vavatarh, não eu, não o archigos, ninguém. A senhora. Bem, a senhora me tornou o hïrzg, e, por Cénzi, eu serei o hïrzg e farei o que for melhor para Firenzcia e a Coalizão, não o que for melhor para a senhora. Eu amo a senhora, matarh — estranhamente, para Allesandra, ele olhou para Sergei ao dizer isso —, mas eu sou o hïrzg e declaro: nós iremos até Nessântico, mas iremos no momento conveniente. Nessântico grita por socorro para nós? Bem, deixe que grite. Deixe que lute a batalha que provocou. Starkkapitän, nós levantaremos acampamento pela manhã, como o planejado, e prosseguiremos em ritmo normal até vermos Nessântico, de lá esperaremos até sabermos mais ou até que a kraljica em pessoa saia e se ajoelhe a mim. Não mandarei uma única vida firenzciana para ser perdida defendendo Nessântico de sua própria insensatez.

— Jan... — Allesandra começou a falar, mas foi interrompida por um estalo do braço do filho.

— Não, matarh. Não discutiremos mais essa questão. A senhora queria que eu fosse o hïrzg? Bem, cá estou eu, e esta é a minha vontade. Não falaremos mais a respeito disso. Starkkapitän, você tem suas ordens.

Ca’Damont fez uma mesura e saiu da tenda após dar uma olhadela para Allesandra. Semini bocejou e espreguiçou-se como um urso despertando da hibernação. Ele fez o sinal de Cénzi para Jan e seguiu atrás do starkkapitän, sem olhar para Allesandra. Sergei viu os dois homens saírem e se levantou. — Caso precise do meu conselho, hïrzg, o senhor sabe onde me encontrar — falou. — A’hïrzg, uma boa noite para a senhora.

Allesandra acenou minimamente com a cabeça. Por vários momentos, ela e Jan ficaram sentados ali, em silêncio. — Você não quer que eu seja kraljica? — disse a a’hïrzg quando o silêncio pareceu durar tempo demais.

— Assim como Sergei quer o que for melhor para Nessântico, eu quero o que for melhor para Firenzcia — respondeu ele. Então, antes que ela pudesse responder: — Tudo o que eu sempre quis da senhora foi seu amor, matarh.

As palavras doeram como um tapa na cara dela, tão fortes que provocaram lágrimas em seus olhos. — Eu amo você, Jan. Mais do que você pode compreender.

Jan olhou com raiva para a matarh: o rosto de um estranho. Não, o rosto de seu homônimo, como Allesandra o imaginou durante todo o cativeiro em Nessântico, quando ele se recusava a pagar o resgate por ela. — Cale a boca, matarh. A senhora me ensinou bem. Mostrou para mim que as aspirações e a determinação são mais importantes que amor. Eu falei com o archigos Semini. Contei que a senhora esteve disposta a sacrificá-lo para ser kraljica. Ele me contou algo em troca: que planejou assassinar Fynn. Para a senhora, matarh. Tudo pela senhora. Semini me contou que a senhora sabia, naquela dia em que salvei Fynn, que o ataque aconteceria. A senhora usou Semini, seu amante, para fazer de mim um herói, para fazer de mim o hïrzg. O resto eu posso descobrir por mim mesmo. Eu me pergunto, matarh, quem contratou a Pedra Branca, mas tenho um excelente palpite. — Allesandra sentiu a face corar e virou o rosto. — Aquele seu gesto tão nobre — continuou Jan — de abdicar em meu favor: a senhora jamais quis ser hïrzgin. Sempre quis mais. Não queria o que era melhor para mim, mas o que fosse melhor para a senhora. Eu sempre fui seu segundo filho, o menos importante, matarh. A ambição sempre foi seu primogênito.

Allesandra ficou sem ar. Ela permaneceu sentada ali, com as bochechas úmidas de lágrimas, enquanto Jan se afastava da mesa e ficava de pé. — Jan... — disse a a’hïrzg ao erguer os braços para o filho, mas ele a negou com a cabeça. Jan olhou para a matarh, e, por um momento, ela pensou ter visto a expressão no rosto do filho abrandar.

Mas Jan deu meia-volta e saiu noite afora.

 

Niente

ELES USARAM O POUCO do que sobrou da areia negra para lançar na cidade novamente, naquela noite. Depois disso, Niente mandou os nahualli descansarem e preencherem novamente os cajados mágicos para a batalha do dia seguinte. Ele perdeu mais dez nahualli durante a batalha, a maioria no fim do dia, quando Zolin tentou, em vão, tomar a ponte mais próxima sobre o rio. A energia dos cajados mágicos tinha acabado e não houve tempo para descansar e renovar os feitiços. Os nahualli, como Niente mandou, tentaram recuar para trás da linha de frente assim que o poder foi exaurido, mas alguns foram abatidos pelas espadas nessanticanas, incapazes de se defender. O nahual não sabia quantos guerreiros tinham sido perdidos. Eles foram escorraçados por uma investida desesperada dos chevarittai, e Zolin — por insistência de Niente, que temia que fossem perder ainda mais nahualli — finalmente mandou o avanço parar.

Eles eram muito poucos... tanto os nahualli quanto os guerreiros. Mas Zolin não enxergava isso, ou estava tão envolvido com a própria visão que a situação tinha sido apagada dos próprios olhos. — Amanhã, toda a cidade será nossa — disse ele para Niente, Citlali e Mazatl. O nahual não sabia se era verdade ou não e estava exausto demais para se importar.

Após a última das bolas de fogo ser lançada na cidade, o nahual foi para a própria tenda. Lá, sozinho, ele pegou a tigela premonitória nas mãos: com medo de conjurar o feitiço, com medo de ter a mesma visão, com medo da exaustão e da dor que seriam cobrados pelo feitiço. Niente tentou se lembrar do rosto da esposa e dos filhos: ele conseguiu vê-los em sua mente, mas isso só fazia piorar a saudade. Imaginou como estavam, se mudaram, se sentiam sua falta como Niente sentia a deles.

Imaginou se algum dia saberia.

Ele colocou a tigela de lado.

O sono naquela noite foi intermitente e inquieto. Os pesadelos o invadiram; Niente viu a esposa morta, as crianças feridas, viu a si mesmo lutando e tentando correr, mas incapaz de fazer mais do que andar enquanto era cercado por demônios vestidos de azul e dourado. O nahual tentou imaginar o rosto da esposa diante dele, a boca semiaberta quando Niente inclinou-se para beijá-la... o rosto não tinha expressões nem feições, era uma máscara. Sem conseguir escapar dos sonhos, ele acabou andando de um lado para o outro do acampamento, escutou os sons dos guerreiros descansando, viu as estranhas formas dos prédios ao redor. Ao passar por um edifício, o nahual ouviu seu nome ser chamado. — Niente.

Ele reconheceu a voz. — Citlali.

O guerreiro supremo estava encostado na porta do prédio. Atrás dele, uma vela brilhava na escuridão. — Não consegue dormir? — perguntou Citlali.

Niente balançou a cabeça. — Eu não ouso. Sonhos demais. E você?

O rosto com redemoinhos negros deu um sorriso. — Sonhos de menos. Eu queria ver a nossa terra natal e minha família novamente, mesmo no sono.

— Isto não acontecerá se... — Niente engoliu o comentário, furioso consigo mesmo. Se estivesse menos confuso pela falta de sono, não teria dito nada.

— Se prevalecer a vontade do tecuhtli Zolin? — arriscou Citlali. — Eu pensei a mesma coisa, nahual. Não precisa ficar tão nervoso. — O sorriso aumentou, e ele olhou de um lado para o outro, como se tentasse ver se alguém os escutava. — E deixe-me responder à outra pergunta que você não irá fazer. Não. Eu não desafiarei o tecuhtli. Veja até onde ele nos trouxe, nahual, do outro lado do mar até o grande lar dos orientais. Isso é a verdadeira grandeza, nahual. Grandeza. Estou orgulhoso por ter sido capaz de ajudá-lo.

— Mesmo que isso signifique que você jamais verá sua terra natal e sua família novamente?

Citlali ergueu os ombros. — Eu sou um guerreiro. Se essa for a vontade de Sakal... — Ele abaixou os ombros novamente. — Eu não preciso de uma tigela premonitória, nahual. Não tenho interesse no futuro, apenas no presente. É uma bela noite, eu estou vivo e vendo um lugar que jamais pensei que veria e que poucos tehuantinos um dia viram. Como alguém não ficaria feliz com esta situação?

Niente limitou-se a concordar com a cabeça. O nahual desejou boa-noite e deixou o guerreiro com seu devaneio. Da parte dele, Niente voltou aos próprios alojamentos e realizou os rituais para colocar feitiços no cajado novamente. Então, completamente esgotado pelo esforço, ele foi para a cama e deixou os pesadelos o invadirem outra vez.


E, no dia seguinte, os pesadelos se tornaram realidade.

Na alvorada, o tecuhtli Zolin levou os tehuantinos para as profundezas da cidade, eles lutaram de rua em rua na direção da grande avenida principal. A batalha foi um reflexo do combate do dia anterior: novamente, a ofensiva inicial fez os cansados nessanticanos recuarem; quando o olho de Sakal estava bem alto no céu, eles chegaram à avenida, onde Zolin rapidamente reagrupou as tropas e começou a marcha para o sul.

Lá, os nessanticanos haviam se reunido: em volta do mercado, onde finalmente detiveram o avanço tehuantino no dia anterior, e em volta da ponte que levava à ilha. No A’Sele, Zolin mandou que os navios avançassem na direção do inimigo; os navios nessanticanos deslocaram-se para detê-los, e outra batalha tomou o lugar, cujo resultado Niente só podia imaginar, embora muitos navios de guerra de ambos os lados estivessem em chamas. Não havia mais retirada possível ali — restaram poucos navios para todos eles voltarem para casa.

— Nahual! — Do cavalo, Zolin apontou um dedo para Niente. — Pegue seus nahualli e venha comigo. Nós controlamos a rua principal, agora temos que dominar a ponte. Citlali! A mim!

Zolin rapidamente posicionou os guerreiros. Citlali e Zolin atacariam os píeres da ponte a partir da avenida, diretamente no coração das forças nessanticanas; Mazatl esperaria até que o ataque estivesse em andamento, depois investiria pelo flanco oeste através do Mercado do Rio. Vários guerreiros duplas mãos1 também começariam um ataque ao norte imediatamente e forçariam a passagem pela avenida circular de maneira que os nessanticanos não pudessem concentrar a atenção na cabeça de ponte — não sem possivelmente perder a ponte mais a leste para a grande ilha. Zolin mandou os guerreiros à frente como manobra de distração, depois esperou que a sombra do sol movesse um dedo antes de acenar e liderá-los ao lés-nordeste da avenida, onde posicionou seus homens. Eles podiam ver os nessanticanos: uma parede de escudos em riste do outro lado da avenida, a meros cem passos.

Não havia areia negra, nem tempo para fazer mais, mesmo que eles tivessem os materiais brutos. Desta vez, os arqueiros começaram o ataque com uma chuva sobre os escudos dos nessanticanos sem causar grandes danos. Os ténis-guerreiros lançaram as bolas de fogo estridentes na direção dos tehuantinos, e Niente — com os demais nahualli — ergueu seu cajado mágico rapidamente. Os feitiços de proteção estalaram para fora, um pulso quase visível no ar. A maior parte das bolas de fogo foi desviada; elas caíram nos prédios de ambos os lados, que pegaram fogo. Mas havia muitos ténis-guerreiros e nahualli insuficientes. Os feitiços de guerra caíram sobre os guerreiros reunidos; os homens gritaram, seus corpos foram queimados e contorcidos. Aqueles que puderam, fugiram, terrivelmente feridos com as queimaduras do fogo pegajoso. Os que não puderam, morreram. Uma bola de fogo caiu perto o suficiente de Niente para o nahual sentir o calor do feitiço, como se a fornalha de um ferreiro tivesse sido aberta em frente a ele. O calor passou por seu rosto como uma onda escaldante e secante. Zolin também sentiu o calor; ele deu uma olhadela para a cena atrás de si quando o cavalo empinou com medo. O tecuhtli berrou — Em frente! Agora! — Zolin controlou a montaria e a cutucou com o pé para que galopasse. Os guerreiros supremos montados seguiram o tecuhtli e a infantaria também investiu, à frente. Niente foi levado pela onda.

A onda arrebentou contra os escudos pintados de azul e dourado e empalou-se em suas lanças. No caos barulhento, Niente viu o cavalo de Zolin cair, com uma lança cravada no peito, mas o tecuhtli em si perdeu-se na massa de soldados, e o nahual não conseguiu ver o que aconteceu com ele.

Havia espadas e combate em volta de Niente, que só conseguiu pensar em si mesmo, em matar o máximo possível de nessanticanos. Ele apontou o cajado mágico, falando a palavra de ativação sem parar, e os raios estalaram da ponta, assobiando e ondulando ao mergulharem nas fileiras em frente ao nahual. Um buraco foi aberto na parede de escudos quando ele lançou um feitiço após outro — os clarões mandaram dezenas de homens ao chão. Os guerreiros gritavam, urravam e brandiam suas espadas ao avançar através da brecha. A parede começou a ceder, e então desmoronou complemente. Niente novamente foi levado pela onda e viu de perto as torres que marcavam a entrada da ponte.

À direita, havia uma cacofonia de gritos: os guerreiros de Mazatl que investiam contra o flanco. O som grave das trompas soou nas fileiras nessanticanas. Niente viu um estandarte tremulando ali e um aglomerado de chevarittai a cavalo. De repente, o estandarte seguiu para a direção sul da ponte, com os chevarittai junto. O nahual viu a expressão de compreensão nos rostos dos soldados inimigos diante dele. Viu a maneira como as espadas foram abaixadas momentaneamente, como as fileiras se enfraqueceram visivelmente. A chuva de flechas cessou, os ténis-guerreiros não lançaram mais bolas de fogo sobre a cabeça de Niente sobre a retaguarda dos tehuantinos. Eles avançaram gradualmente: os guerreiros, os nahualli, agora o nahual conseguia ver Zolin novamente, sangrando e ferido, mas em pé, sua espada ceifava os soldados que ousavam ficar diante dele. Citlali estava ao lado do tecuhtli, com o rosto implacável e impetuoso.

Eles estavam na ponte agora. Ela era dos tehuantinos. O rio movia-se preguiçosamente embaixo deles, e corpos caíam do peitoril e batiam nas águas.

Os tehuantinos rugiram. Eles cantavam enquanto matavam, e Niente cantou com eles.

 

Varina ci’Pallo

AS RUAS DO VELHO DISTRITO ESTAVAM tomadas por cidadãos em pânico, a maioria corria para leste, para longe das forças ocidentais que se aproximavam e das batalhas ao longo da Avi a’Parete. Todos ouviam os sons: os berros que reverberavam pelas vielas, os lamentos, os gritos, o barulho constante das trompas dos templos soando alarmes estridentes. A fumaça dos incêndios manchou o céu, trapos imundos que às vezes obscureciam o sol, e o cheiro de fogo e carnificina no ar era intenso.

Varina viu-se próxima a Karl pela maior parte do dia. Ela sorria para ele, nervosa e indecisa, e Karl devolvia o mesmo sorriso. — Prometa — falou Varina finalmente. Os dois estavam sozinhos em um dos cômodos; Talis, Serafina e Nico estavam no outro.

— Prometer o quê?

— Que o que quer que aconteça... que aconteça conosco. Guarde um último feitiço para nós, eu farei o mesmo.

— Não será assim tão ruim — disse Karl. — Talis... ele é um deles, afinal.

Ela sacudiu a cabeça, tão desamparada pelo fato quanto Karl.

Mais tarde, o cheiro de fumaça ficou mais forte. Pela janela do apartamento, eles viram a fumaça pegajosa e espessa subir das casas e de uma rua a oeste, com chamas que ocasionalmente irrompiam na escuridão. Cinzas caíam como neve cinzenta. Karl achou que quase podia sentir o calor. Os dois seguiram para o cômodo da frente com os demais.

— Tudo está queimando — falou Nico. Ele parecia mais empolgado do que preocupado, mas todos os adultos trocaram olhares preocupados. O estalo das chamas ao longe era audível no silêncio.

— Você está certo, Nico — disse Varina, enquanto olhava para Serafina. — Infelizmente, os ténis-bombeiros estão muito ocupados em outros lugares para fazer algo a respeito disso. — O olhar dela desviou de Serafina para Karl. Varina sabia o que ele estava pensando; era o que estava na mente de todos: Será que podemos ficar aqui? Precisamos ir embora?

Menos de uma virada da ampulheta depois, todos ouviram uma comoção alta ecoar a oeste, lá fora, na rua. Não muito longe dali, uma turba de várias dezenas de pessoas andava à espreita pela viela; não eram soldados, nem ocidentais, mas gente que morava no Velho Distrito. Eles berravam, corriam de casa em casa e quebravam portas e janelas; Varina ouviu os berros e gritos dos que estavam no interior enquanto a turba invadia cada casa. Eles saqueavam, carregavam qualquer coisa que parecesse de valor: ela viu algumas pessoas segurando itens roubados enquanto marchavam; o que mais, além de roubar, os saqueadores faziam dentro das casas, Varina só podia imaginar. Já havia fogo em três ou quatro casas mais ao longe na rua. A turba gritava alto: — Peguem o que quiserem! A cidade está perdida! Revolta! Revolta!

Karl e Talis passaram por Varina e seguiram para a rua enquanto a turba continuava o lento e caótico avanço na direção deles. Alguém à frente os notou e apontou, e vários aglomerados de saqueadores seguiram na direção deles. — Parem com isso! — gritou Karl, a turba debochou, as pessoas responderam com berros e brandiram armas velhas ou improvisadas. Ele deu uma olhadela para Talis e acenou com a cabeça. O embaixador ergueu as mãos, gesticulou, e uma luz surgiu entre elas. Ao seu lado, Talis levantou o cajado e bateu uma vez nas pedras de pavimentação: um raio saiu como uma flecha do punho para o céu esfumaçado.

A turba parou. Sem uma palavra, as pessoas se dispersaram em um estranho silêncio, correram para qualquer direção, desde que fosse para bem longe dos dois. Alguns instantes depois, a rua estava vazia. — Ora, isso acabou bem — falou Karl. Ele e Talis viraram-se, e Varina viu os dois ficarem boquiabertos.

Ela tinha lançado o próprio feitiço no momento em que Karl lançou o dele. Varina moldou o ar ao redor com o toque de um escultor, desenhou como se fosse uma tela e colocou nele uma imagem saída da mente. Varina viu o que Karl e Talis viram, algo que se agigantava atrás deles, mais alto que qualquer uma das casas.

— Um dragão! — berrou Nico da porta da casa, nos braços de Serafina, tomado pela alegria. Karl riu e aplaudiu, Varina sorriu. — Você pode fazê-lo cuspir fogo e voar? — perguntou o menino, e ela fez que não com a cabeça.

— Ele não pode fazer nada, só parece feroz — disse Varina. Por um instante, o perigo foi esquecido, mas depois a realidade desabou sobre eles quando ela cancelou o feitiço. O dragão sumiu em filetes de fumaça verde que foram levados pelo vento. Os saqueadores podiam ter ido embora, mas nada mudou. Eles voltariam em breve, e os incêndios próximos ardiam sem controle. A cidade continuava sob ataque.

— Karl, não podemos ficar aqui — falou Varina.

Ele olhou para Talis e viu o homem concordar com a cabeça, devagar. — Você está certa — disse Karl. — É o momento. Vamos pegar o que precisamos. — Ele deu um tapinha no ombro de Talis e foi para a porta.

Do outro lado da rua, Varina viu uma velha solitária — uma mendiga, pela aparência da roupa. Ela olhava fixamente para a casa. Assim que Varina a viu, a mulher pareceu acenar com a cabeça, depois correu pelo espaço escuro e apertado entre as casas e foi embora.

 

Sigourney ca’Ludovici

ELES A COLOCARAM no Velho Templo.

O comandante ca’Gerodi voltou fugindo da derrota na Pontica Kralji, entrou gritando no Velho Templo onde Sigourney estava sentada, no Trono do Sol, e disse que ela e o Conselho dos Ca’ deveriam pegar o que fosse possível e fugir imediatamente pela Pontica a’Brezi Veste até a margem sul e sair da cidade.

Sigourney recusou-se. — Que o Conselho vá embora se quiser. Eu vou ficar.

— Eu não posso protegê-la, kraljica — disse ca’Gerodi. — Eles estão vindo, a qualquer momento.

— Eu não abandonarei minha cidade e minha responsabilidade — respondeu ela friamente. — Eu ficarei.

No fim, a equipe de Sigourney pegou o que pôde do que restava dos tesouros do palácio e fugiu da Ilha A’Kralji. O mesmo aconteceu por toda Nessântico: no enorme Templo do Archigos, na margem sul; na Grande Biblioteca com seus preciosos e insubstituíveis livros e pergaminhos de velino; no Teatro A’Kralji e no Museu a’Artisans. O conselheiro ca’Mazzak e o resto do Conselho desapareceram também. Fugiram para o sul, a única direção ainda aberta para eles...

Sigourney permaneceu no Trono do Sol, no Velho Templo, sob a luz do sol que entrava pelo domo arruinado e queimado. Antes de permitir que o ervanário da corte fosse embora, a kraljica mandou que o homem preparasse uma taça especial do cuore della volpe, que agora estava no braço do Trono do Sol, ao lado dela. Sigourney usava uma longa tashta cerúlea com um sobretudo amarelo que escondia o fato de não haver uma perna debaixo do joelho direito. Ela mandou que os criados colocassem um tapa-olho cravejado sobre o buraco onde antes ficava o olho direito e aplicassem pó de ovo no rosto para esconder a pior parte das cicatrizes.

Sigourney aguardava no antigo trono de Nessântico. Aguardava o inevitável.

Lá fora, a kraljica ouviu a batalha em andamento: os gritos dos homens, o clamor das armas, o rugido dos feitiços dos ténis-guerreiros. A fumaça subia e enfraquecia a luz do sol. Um esquadrão de elite da Garde Kralji estava disposto diante dela, a cota de malha farfalhava quando os soldados se remexiam, nervosos, empunhando as espadas e voltados para as portas do templo. O comandante ca’Gerodi tinha ido embora há uma virada da ampulheta. — Eu não a verei novamente, kraljica — disse ele. — Sinto muito.

— Eu sei. Eu sei. Sinto muito também.

Ela aguardava.

Quando as portas foram escancaradas, os gardai em frente a Sigourney ficaram tensos e começaram a avançar. — Não — disse a kraljica. — Parem! Esperem! — Vários guerreiros ocidentais entraram no templo; com eles havia outro homem, este sem as tatuagens dos guerreiros e com um cajado de madeira lustrosa: um dos feiticeiros. Os ocidentais pararam e espiaram o longo corredor da nave onde Sigourney estava sentada sob um facho poeirento de luz do sol. — Algum de vocês fala nossa língua? — berrou ela.

— Eu falo — disse o feiticeiro. As palavras eram arrastadas e com um sotaque carregado, mas compreensíveis. — Um pouco.

— Ótimo. Eu sou a kraljica Sigourney ca’Ludovici, monarca desta terra. Quem é você?

O homem sussurrou por um instante para o guerreiro ao lado dele, que tinha a imagem de uma águia ou um falcão vermelho desenhada na careca. — Eu sou Niente — respondeu o feiticeiro. — Sou o nahual. E este — ele apontou para o guerreiro com quem havia falado — é o líder dos tehuantinos, o tecuhtli Zolin. Ele exige sua rendição, kraljica.

— Ele pode exigir o que bem quiser. — Sigourney ergueu a mão do braço do Trono do Sol. O anel com o sinete dos kralji reluziu quando a kraljica tocou a faixa dourada da coroa, posta sobre seu cabelo grisalho e grosso. O sol estava quente sobre ela, que ergueu os olhos para as ruínas queimadas dos suportes do domo. — Ele não terá minha rendição.

Novamente o feiticeiro falou com o guerreiro, que soltou uma gargalhada que ecoou pelo templo. O homem falou palavras em uma língua que parecia ao mesmo tempo estranha e, no entanto, familiar de um jeito esquisito. Onde ela ouviu palavras assim antes? — O tecuhtli Zolin diz que se a kraljica deseja desafiá-lo, ele está disposto a aceitar. O tecuhtli emprestará a própria espada se ela não tiver uma própria. Caso contrário, ele mandará seus guerreiros torná-la prisioneira. O tecuhtli deixa a decisão com a senhora.

Sigourney balançou a cabeça e falou — Eu sei como vocês tratam os prisioneiros. E você não percebeu todas as opções que eu tenho. — O feiticeiro pareceu confuso ao ver a kraljica pegar a taça no braço do Trono do Sol e tomar todo o preparado amargo em um só gole. — Espero que aproveitem a cidade enquanto a controlam. — Ela ergueu a taça para os ocidentais e deixou que caísse nos ladrilhos, onde se quebrou. A perna já formigava quando Sigourney recostou-se no trono. A paralisia subiu rapidamente pelas coxas, pela cintura, pela barriga. Pelo coração. A luz do sol na nave pareceu enfraquecer. — Este é o meu trono e, enquanto eu viver, não abrirei mão dele.

Sigourney riu então. A voz parecia estranha, ofegante e fraca. A kraljica tentou forçar as próximas palavras. — E eu escolho o momento conveniente. — Ela tentou tomar fôlego, mas os pulmões não se mexeram. Abriu a boca, mas não havia ar.

Sigourney sorriu para eles quando o sol escureceu e Nessântico sumiu de vista.

 

Karl Vliomani

— PARA ONDE VOCÊ SUGERE de irmos? — perguntou Talis.

— Leste — sugeriu Karl. — Para os firenzcianos. Sergei pode estar lá.

— Podemos ir para o oeste — contra-argumentou Talis. — Para o meu povo.

— Seu povo colocou fogo em Nessântico — falou Varina. — Eles matam. Estupram. Saqueiam.

— E o seu povo não faz isso? — disparou Talis. — Você não esteve nos Hellins, não é? Ou se esqueceu do que começou este confronto em primeiro lugar? — Ele olhou com raiva para Varina, que sustentou o olhar, sem pestanejar.

— Parem, vocês dois — disse Karl. — Não temos tempo a perder com isso. Talis, ir para o oeste significa tentar passar pela pior parte dos incêndios, e o sul não parece muito melhor do que isso. Temos que pensar a respeito do menino, especialmente; é perigoso demais.

— E ir na direção dos firenzcianos não é perigoso? — protestou Talis.

— Eu diria que é menos.

Serafina tocou no ombro de Talis e falou — Acho que ele está certo, amor. Por favor...

Talis fez uma cara de desdém, e deu de ombros. — Tudo bem. Mas a culpa vai ser sua, numetodo, se a coisa ficar feia.

Eles rapidamente reuniram o que poderiam carregar. O cheiro de fumaça era esmagador agora, e cinzas caíam constantemente sobre os telhados, cujas bordas brilhavam com chamas agitadas. O grupo não conseguia ver o sol de maneira alguma, embora devesse estar no alto no céu. A rua continuava deserta; aqueles que podiam fugir já haviam escapado; aqueles que ficaram estavam entrincheirados nos prédios. Eles desceram a viela rapidamente até o cruzamento e viraram para leste.

Quando chegaram às ruas maiores, eles encontraram as multidões novamente. Um enxame de gente saqueava lojas, quebrava portas, arrancava persianas e carregava o que fosse possível. Os saqueadores olhavam com ar de provocação para o grupo enquanto passavam com as conquistas, desafiavam qualquer um a tentar detê-los ou protestar. Um esquadrão de quatro utilinos apareceu e soprou os apitos, mas, tirando isso, não fizeram tentativa alguma de restaurar a ordem; eles apontaram os cassetetes e gritaram avisos, mas saíram correndo quando os saqueadores mais próximos se viraram para confrontá-los.

Karl e os demais foram atrás deles.

Algum tempo depois, o grupo passou por vários quarteirões, longe o bastante para as cinzas dos incêndios não mais caírem sobre os ombros e cabelos. Eles se aproximavam do centro do Velho Distrito; Karl vislumbrou a praça aberta não muito distante dali, onde a viela tortuosa de repente se abria nela: lá estava a estátua de Henri VI, com a espada erguida sob a luz do sol. As multidões desapareceram novamente. Parecia que eles corriam por uma cidade deserta. Quando se aproximaram do fim da rua, Karl parou o grupo: encolhidos contra o flanco do prédio mais próximo, eles viram um esquadrão da Garde Civile passar rapidamente para o sul pela praça aberta, perto do chafariz de Selida, liderado por um trio de chevarittai montados. Muitos dos soldados estavam visivelmente feridos, e mancavam enquanto cruzavam a praça meio que correndo.

— Eles estão recuando — sussurrou Varina. — Será que perdemos a cidade, então?

Karl não tinha como responder, embora desconfiasse da verdade, e falou — Vamos correr...

O grupo começou a cruzar a praça quando a Garde Civile desapareceu na entrada de uma rua ao sul. Eles chegavam ao fim da sombra de Henri VI, quase no meio do centro do Velho Distrito, quando viram do que os soldados fugiam.

Uma massa ruidosa de homens pintados entrou na praça aos borbotões vinda do norte. Ao longe, Karl viu que estavam bem armados: espadas, lanças, flechas. Os rostos tinham o redemoinho de linhas negras como o de Uly; os corpos eram protegidos por armaduras de bambu. Eles ainda não tinham visto o pequeno grupo de Karl, ou, se viram, julgaram irrelevante. Os ocidentais entraram no espaço aberto: havia pelo menos trinta ou mais deles. — Andem! — sibilou Karl. — Rápido! — Eles podiam facilmente chegar a uma das transversais que levavam ao centro do Velho Distrito e despistar os ocidentais antes que fossem alcançados. Karl pegou a mão de Varina e começou a correr.

Depois de alguns passos, Karl percebeu que os dois estavam sozinhos. Talis permaneceu parado sob a sombra da estátua. Ele segurava as mãos de Serafina e Nico. — Talis!

Talis balançou a cabeça. — Não — disse ele em voz alta.

— Talis, Sergei foi para Firenzcia. Nós podemos segui-lo. Você não tem nada para barganhar com essa gente. Não mais. Você está colocando Serafina e Nico em perigo.

Talis sorriu para Karl e Varina. — Ah, mas eu tenho sim um trunfo: a areia negra de Uly. Lembra-se? Ainda está aqui.

Karl sentiu a mão de Varina apertar seu braço. Ele lembrou-se: Uly, os barris de ingredientes no apartamento do homem, à espera de serem misturados... — Você não pode dar isso a eles...

— Este é o meu povo — falou Talis. — Eu agradeço por tudo o que vocês fizeram por Sera e Nico, mas este é o meu povo, o povo que eu conheço, e este é o momento de eu voltar para eles. Vá para o seu. — Ele gesticulou para os soldados e berrou algo em uma língua que Karl não compreendia. — Vá — disse Talis para Karl. — Vá enquanto ainda tem chance.

— Pelo menos deixe-nos levar Serafina e Nico conosco — gritou Varina, mas Talis fez que não com a cabeça.

— Eles são a minha família e ficarão comigo. Vá, Karl. Ou fique. Mas faça sua escolha. — Serafina olhou para os dois com incerteza e pânico no rosto. Nico encarou de olhos arregalados, mas parecia calmo.

Vários guerreiros pintados se aproximavam correndo agora. Talis ergueu o cajado mágico. Uma luz irrompeu do objeto, cintilou e baniu a sombra de Henri VI. — Karl? — A mão de Varina estava erguida; ele sentiu a energia do Segundo Mundo se acumular em volta dela.

— Eles são muitos — disse Karl.

— Não podemos deixá-los. Não podemos deixar Nico.

— Não temos escolha — respondeu ele.

Karl pegou a mão de Varina, e os dois correram.

 

Nico Morel

NICO NÃO CONSEGUIA ENTENDER o que Talis dizia quando os soldados pintados se aproximaram deles. Ele notou a insegurança na voz do vatarh e o jeito com que Talis falava alto e rápido, com a bengala mágica em frente ao corpo como um porrete. A matarh abraçou o menino com tanta força que ele mal conseguia respirar quando os estranhos os cercaram. Os homens eram inacreditavelmente grandes, assustadores e cheiravam a sangue e morte.

Nico sentiu o medo crescer dentro dele, juntamente com o frio estranho que sentiu no gabinete do archigos, assim como quando fugiu de Ville Paisli. O frio começou a aumentar por dentro, e ele murmurou baixinho as estranhas palavras que vieram à mente enquanto as mãos fizeram pequenos gestos sob o abraço forte da matarh.

— Talis, o que está acontecendo? Estou assustada... — Nico ouviu a matarh falar.

— Está tudo bem — disse o vatarh, mas a voz contradizia a resposta. — Eu só preciso falar com o guerreiro supremo. Deixe-me cuidar disso. Eles são meu povo; só não esperavam me encontrar aqui...

Talis voltou-se para um dos homens pintados, o que tinha um lagarto negro de língua vermelha rastejando no topo do crânio, que passava em volta do olho esquerdo e ia até a lateral da cabeça. Enquanto eles meio que gritavam uns com os outros, o vatarh brandiu a bengala na cara do sujeito. Nico sentiu o frio crescer sem parar dentro dele, era tão intenso que ele sabia que iria explodir se tentasse contê-lo por mais tempo. O menino gritou as estranhas palavras. Gesticulou.

Não houve fogo azul dessa vez. Em vez disso, o ar tremeu em volta dele e propagou-se como uma onda visível, a onda rápida acertou os homens pintados, e eles foram lançados para trás como se tivessem sido golpeados por um grande punho. — Venha, matarh! — berrou Nico. O menino agarrou a mão dela e puxou-a de maneira que Serafina tropeçou ao segui-lo, enquanto ele fugia na direção em que Karl e Varina foram. — Talis! Rápido!

Mas Talis não correu com os dois; ele também havia sido derrubado pela explosão incontrolável do menino. O guerreiro-lagarto já estava de pé, Nico olhou para trás ao começar a correr e viu o homem berrar para os demais no momento em que Talis gritou alguma coisa de volta e ergueu a bengala. Uma luz ofuscante brilhou da bengala, e um dos guerreiros rugiu. Nico puxou a matarh com mais força. — Corra!

Sera deu um passo com ele, mas soltou a mão do filho. O menino deu outro passo antes de perceber que a matarh não estava com ele. — Sera! — Nico ouviu Talis gritar e virou-se para trás.

A matarh estava esparramada sobre os paralelepípedos da praça, com uma lança nas costas e seu sangue manchando as pedras da pavimentação. Ela esticou o braço na direção de Nico, rastejou atrás do filho, com o rosto contraído de dor. — Matarh! — berrou o menino, que correu de volta para Serafina. Nico caiu ao lado dela assim que Talis a alcançou.

— Nico... — disse a matarh. — Eu sinto muito... — Ela virou a cabeça para Talis e começou a falar, mas ele fez carinho na cabeça de Serafina e a abraçou com cuidado.

— Não, não diga nada. Eu vou levar você a um curandeiro, a alguém que possa te ajudar... — Talis ergueu o olhar para os soldados pintados, que se reuniram em volta deles. O vatarh falou rispidamente na própria língua. O guerreiro-lagarto fez uma expressão de desdém, e gesticulou para os homens. Um deles arrancou a lança das costas da matarh de Nico, e ela gritou novamente. O menino atirou-se contra o guerreiro-lagarto e socou a armadura do homem. Ele agarrou Nico com um braço musculoso e rosnou alguma coisa para Talis. — Nico! — falou o vatarh. — Eles vão ajudá-la. Por favor, escute o que eu digo. Você tem que parar de lutar com eles.

Toda a energia abandonou Nico; ele desmoronou no braço do guerreiro-lagarto.

Dois guerreiros agacharam-se; eles rasgaram tiras da própria roupa e amarraram na cintura da matarh do menino. Um guerreiro pegou Serafina nos braços; ela gemeu e revirou os olhos, mas Nico viu que a matarh ainda respirava. Uma das mãos pendia; o menino contorceu-se no braço do guerreiro-lagarto e foi solto pelo homem. Ele correu e pegou a mão de Serafina.

Nico segurou a mão da matarh, em prantos, enquanto eles saíam rapidamente da praça.

 

Niente

ELES CONQUISTARAM A CIDADE.

Ou, mais corretamente, conquistaram parte dela. Nessântico era grande demais e a força dos tehuantinos pequena demais para controlar a cidade inteira, na prática. Em vez disso, eles arrebentaram a cidade, usaram areia negra para incendiar Nessântico, fizeram a Garde Civile recuar para o norte e o sul.

A cidade já não pertencia à kraljica e ao povo dela, mas também não era dos tehuantinos.

Niente tinha certeza de que jamais seria deles.

— Bem? — perguntou Zolin enquanto o nahual espiava a água da tigela premonitória.

— Paciência, tecuhtli — disse ele. — Paciência. — Mas Niente já sabia. A visão já tinha passado e a água era apenas água. Mas, ao fingir, o nahual podia decidir o que queria dizer. Ao fingir, podia se recuperar da pior parte do cansaço e da exaustão causados pelo feitiço.

Ele viu — novamente —, no meio da grande cidade arruinada, o tecuhtli e o nahualli mortos e sentiu outra vez o arrepio com a certeza de que viu Zolin e a si mesmo. Nada mudou. Axat ainda lhe mostrava o mesmo futuro, o mesmo caminho. Nada foi alterado após esta vitória. Niente achava que nada poderia alterá-lo. O futuro estava predeterminado, tão inevitável quanto o pôr do sol.

Eles estavam nas ruínas do templo, Zolin sentado no trono que a kraljica usara. O cabo de uma lança tinha sido cravado em uma fenda no piso de cerâmica, perto do trono. A cabeça da kraljica foi enfiada na lança, o único olho vidrado voltado para fora, o cabelo pendia grotescamente — o corpo estava caído contra a parede atrás do trono, onde fora jogado. Uma fogueira foi acesa no meio da nave e alimentada com a madeira dos bancos do tempo; uma fumaça cinza e fina subia para o céu que começava a ficar púrpura. Mesas foram erigidas em volta da fogueira, e um banquete estava em andamento, servido por assustados prisioneiros ocidentais. Não havia algum motivo em especial para o medo deles; Zolin e os outros guerreiros supremos não permitiriam que nenhum prisioneiro fosse maltratado. Sim, haveria os inevitáveis estupros, saques e mortes, mas os incidentes seriam poucos, e os responsáveis seriam severamente punidos se fossem flagrados. Alguns offiziers do alto escalão seriam sacrificados pela glória de Axat e Sakal, mas nenhum outro prisioneiro sofreria algum mal.

Os tehuantinos eram mais benevolentes e bons vencedores do que os orientais quando estes vieram aos Hellins.

Enquanto os guerreiros aproveitavam o banquete, Niente olhava na tigela premonitória perto da fogueira. A luz do fogo lambeu a pele do nahual, mas o calor não conseguiu tocar o frio que ele sentia por dentro. Niente finalmente pegou a tigela e jogou a água nas brasas em chamas, que assobiaram e soltaram vapor em resposta.

— Então — falou Zolin —, Axat me vê permanecendo aqui? Eu acho que este é um ótimo lugar. Podemos construir uma nova cidade aqui, uma que essa terra nunca viu antes, uma cidade que rivalizasse com Tlaxcala, e eu poderia ser o tecuhtli aqui, e os ocidentais nos serviriam como eles forçaram nossos primos a servi-los.

— Eu realmente vejo o senhor permanecendo aqui, tecuhtli — falou Niente, o que não era nada mais que a verdade.

Zolin deu um tapa nos braços cristalinos do trono. Ele rugiu de alegria, e os guerreiros reunidos no salão riram com ele. — Viu só! — berrou o tecuhtli para Niente. — Todas aquelas preocupações. Eu lhe disse, nahual, eu lhe disse.

— Disse sim, tecuhtli — falou Niente.

Zolin inclinou-se para a frente no trono. — Você viu outras batalhas? Você me viu tomando novas cidades?

O nahual balançou a cabeça e respondeu — Não. E isso não seria prudente, tecuhtli. Não temos mais areia negra. Se pudéssemos repor os guerreiros que caíram, se eu pudesse trazer mais nahualli para cá... — Ele espalmou as mãos. — Eu diria ao tecuhtli... — Niente começou a falar, mas houve uma agitação no fim do salão: o guerreiro supremo Citlali surgiu com um homem ao lado dele; um homem com um cajado mágico na mão. O nahual apertou os olhos para ver na escuridão da noite, iluminada pela fogueira; não era um nahualli que ele reconhecesse, e o homem estava vestido como um dos orientais, havia manchas de sangue na roupa. No entanto, aquele rosto...

— Talis? — perguntou Niente. — É você? — Pelo rosto, o homem parecia ter muitos mais anos do que deveria, a face foi arrasada pelo poder de Axat assim como a do nahual, mas ele lembrava-se da juventude nas feições do sujeito.

— Niente? — Talis correu à frente e agarrou o antebraço de Niente, seus olhos vasculharam o rosto, sem dúvida tão mudado quanto o próprio. — Por Axat, tem muito, muito tempo. Você é o nahual. Ótimo. Que ótimo para você... — Ele então viu o tecuhtli Zolin, deu meia-volta e abaixou a cabeça para ele. — Tecuhtli. Noto que Necalli caiu.

Niente ainda olhava para Talis. Havia uma dor nos olhos do homem que não era causada pelo X’in Ka. — Você está ferido? — perguntou o nahual, e Talis balançou a cabeça.

— Não, é que... — Ele parou, e Niente viu a preocupação e a tristeza desabarem sobre o homem. — Eu... eu tenho uma esposa aqui, e um filho. Ela foi... gravemente ferida. Preciso voltar para os dois...

— Nós levamos a mulher e o menino para a tenda dos curandeiros, tecuhtli, nahual — intrometeu-se Citlali. — Eles estão fazendo o possível.

— Ótimo — falou Zolin. — Você poderá ir até eles em um momento, Talis. Então você é o nahualli enviado para cá pelo antigo nahual? Eu sei que ele disse ao tecuhtli Necalli que você era quase tão poderoso quanto Mahri; que você teria dado um belo nahual. — Zolin deu uma olhadela para Niente. — Talvez esse acabe sendo seu destino. Eu li seus relatórios e, com o passar dos anos; eles me ajudaram a compreender e a derrotar os orientais. Sou grato por isso.

— Tecuhtli — disse Citlali quando Zolin fez uma pausa ao se recostar no trono. — Talis tem uma informação que o senhor precisa saber, sobre um exército mais a leste da cidade. Foi por isso que eu o trouxe aqui.

Talis concordou com a cabeça, Niente ouviu o homem, sentindo um medo crescente enquanto ele falava a respeito desse exército de Firenzcia e da reputação da força militar daquele país. O nahual ficou especialmente aflito com a expressão cada vez mais empolgada no rosto de Zolin. — Tecuhtli — falou ele —, isso é o que a tigela premonitória me disse. Nós fizemos tudo que viemos fazer aqui. Devíamos embarcar agora e voltar para casa antes que esse exército venha para cima de nós. Podemos juntar um novo exército e voltar com mais navios, mais guerreiros e nahualli da próxima vez, e se o senhor quiser se sentar nesse trono como tecuhtli do leste, nós o colocaremos aqui com recursos suficientes para que isso aconteça. Mas não agora. Somos muito poucos, guerreiros e nahualli, para outro grande combate, especialmente sem a areia negra.

Niente pensou que, finalmente, tivesse convencido o tecuhtli. Sentado no trono, Zolin fez uma careta e tamborilou os dedos no braço cristalino do trono. Balançou a cabeça como se estivesse pensando.

Mas Talis então acabou com qualquer esperança que restasse em Niente. — Existe areia negra — disse ele. — Ou melhor, existem ingredientes suficientes aqui na cidade para fazer boa parte dela. Eu sei onde estão.

Zolin inclinou-se para frente no trono e arregalou tanto os olhos que as asas da águia dançaram no rosto. — Onde? Leve-nos até eles agora.

— Tecuhtli, minha esposa... Eu preciso ir até ela.

Niente sabia como Zolin reagiria a isso; e não ficou surpreso. — Todos nós temos esposas e família — retrucou o tecuhtli. — Nosso dever é aqui e agora. Citlali, como está a mulher?

Citlali deu de ombros. — Ela está nas mãos de quem sabe o que fazer. Não há nada mais a ser feito.

— Pronto. Viu só, Talis? — falou Zolin. — Você tem sua resposta. Sinto muito pelo ferimento de sua esposa e entendo que queria estar com ela. Mas seu tecuhtli também precisa de você. O nahual Niente está certo: sem mais areia negra, nós perderemos o que ganhamos. A areia negra, nahualli, é o que precisamos. — Zolin inclinou-se para frente e apoiou os cotovelos nos joelhos. — A esposa de um traidor não receberia ajuda alguma.

Niente ouviu as próximas palavras como se fossem o toque do sino da morte.

— Como o senhor quiser, tecuhtli — disse Talis. — Eu o levarei lá.

— Ótimo — falou Zolin ao ficar de pé. — Citlali, coma e beba alguma coisa e prepare os guerreiros para mais uma batalha. Nahual Niente, faça o mesma com os nahualli. Nesse meio tempo, eu conversarei com você, Talis, enquanto vamos atrás dessa areia negra.

 

Sergei ca’Rudka

SERGEI CUSTOU A ACREDITAR no que Karl e Varina lhe contaram. Ele tinha visto a fumaça dos incêndios em Nessântico, cujo cheiro tinha sido trazido pelo vento, e sabia que a cidade sofria, mas isso: Nessântico conquistada, a maior parte em ruínas...

Isso, Sergei não tinha esperado.

Havia muita coisa que ele não tinha esperado. Sergei sentiu-se muito velho e frágil realmente.

— O archigos ca’Cellibrecca está aqui? — perguntou Karl. Sergei concordou com a cabeça. O rosto do numetodo ficou rígido e determinado, a voz amarga comeu sílabas. — Então me leve até ele, Sergei. Que esse seja o pagamento por libertar você da Bastida. Apenas me leve até ele e afaste-se. Você não precisa se envolver com o resto.

— Não é tão simples assim, Karl.

— Na verdade, é simples assim — retrucou o numetodo. — O homem matou Ana, e eu quero justiça pelo assassinato dela.

— Isso, eu não posso dar para você. Não aqui, nem agora. Mas posso lhe dizer que o hïrzg Jan não gosta muito do homem. Acho que o mesmo pode ser dito a respeito da a’hïrzg Allesandra, pelo menos por enquanto. Karl, deixe-me cuidar dessa situação. Por favor. — Sergei olhou para Varina, em busca de apoio.

— Ouça o que ele diz — falou ela. — Ou ouça Ana; o que ela lhe diria?

O trio estava na tenda de Sergei no acampamento firenzciano, onde os dois tinham sido trazidos pelos primeiros soldados que encontraram. O regente ficou surpreso e contente de ver os dois numetodos; após a separação, Sergei temeu que eles tivessem sido capturados e aprisionados, ou coisa pior. Se a história de Karl e Varina tinha feito o regente sofrer era porque a ideia de Nessântico arruinada era dolorosa demais para imaginar.

Ele também sabia que o hïrzg e a a’hïrzg, no mínimo, também já teriam sido informados da chegada de Karl e Varina; Sergei estava um pouco surpreso por ainda não ter ouvido alguma coisa de um dos dois. E quando o archigos Semini soubesse que o embaixador dos numetodos estava no acampamento... Ele precisava se preparar para isto. Allesandra e Jan eram outro problema; Sergei não sabia exatamente como os dois reagiriam. Ele faria o possível para proteger Karl e Varina, mas...

Sergei falou — Karl, eu lhe prometo isto: quando chegar o momento, ajudarei você com ca’Cellibrecca. O homem é uma praga e um insulto ao robe que a archigos Ana usou. Ambos concordamos com isso. Quando chegar o momento, eu terei prazer em lhe ajudar a tornar a morte dele tão dolorosa quanto você quer. — Sergei quase sorriu ao pensar em Semini instalado na Bastida. Sim, aquilo seria delicioso. Aquilo seria... prazeroso.

Varina arregalou um pouco os olhos com a declaração, mas Karl concordou com a cabeça, com os lábios franzidos. Houve um pigarreio discreto de uma garganta na aba da tenda, um momento depois. — Entre — falou Sergei, e a aba foi aberta para revelar um dos pajens do hïrzg.

— Regente, o hïrzg Jan pede que o senhor leve seus dois convidados... — os olhos do menino se voltaram para Karl e Varina — ... à tenda dele. O hïrzg montou um jantar para os dois e deseja escutar o que eles têm a dizer.

— Diga ao hïrzg que iremos imediatamente — falou Sergei para o pajem, que fez uma mesura e saiu. — Vocês não têm o que temer do hïrzg Jan — disse o regente para os dois. Ele torcia para que fosse verdade. — Eu até gosto do jovem. De certa forma, ele me faz lembrar de mim mesmo...


— O archigos Semini me dirá que os numetodos são hereges e mentirosos, fisicamente perigosos para mim, bem como para minha alma eterna — disse o hïrzg Jan.

— O archigos Semini é um mentiroso e um tolo, além de burro — respondeu Sergei. — Se me perdoa a franqueza, hïrzg.

Jan sorriu. — Sentem-se — falou ele para Karl e Varina ao apontar para a mesa com pão, queijo e uma panela com guisado de carne. Pratos foscos de estanho estavam dispostos diante deles. — Aproveitem os pequenos confortos que temos aqui em campanha, uma vez que não posso oferecer a hospitalidade completa de Firenzcia. — Quando os dois hesitaram, o sorriso de Jan cresceu. — Eu lhes garanto que tenho a mesma opinião do regente no que se refere ao archigos Semini.

Varina conseguiu dar um sorriso; Karl ainda parecia inseguro e perguntou — E qual é a opinião do hïrzg sobre os numetodos?

— Uma das coisas que o regente ca’Rudka me ensinou é que devo julgar as pessoas não pelo que são, mas por quem elas são. Eu ainda não tenho opinião sobre os numetodos; até agora, nunca havia conhecido um. — Jan gesticulou para as cadeiras novamente. — Por favor...

Sergei fez uma mesura. Um momento depois, Karl repetiu o gesto, e os três tomaram seus lugares em frente ao hïrzg. — A a’hïrzg se juntará a nós? — perguntou o regente.

O sorriso de Jan sumiu ao ouvir isto e disse — Não. — Aquela única palavra quase pareceu arrancada à força. Sergei aguardou mais explicações, mas nenhuma veio. O regente perguntou-se sobre o que teria acontecido entre matarh e filho; até agora, ele só tinha visto Allesandra de relance durante um dia e meio. Embora o exército se arrastasse próximo às muralhas de Nessântico em um passo lento enlouquecedor, Allesandra manteve-se em uma carruagem fechada, sem nem o filho, nem o archigos como companhia.

Mas Sergei não pediria uma explicação ao hïrzg. Em vez disso, Jan olhava para Karl e Varina. — Eu gostaria de saber sua história, contada por vocês mesmos — falou ele.

Pela próxima virada da ampulheta, foi isso que Karl e Varina fizeram, com Jan guiando os dois com perguntas ocasionais. Sergei ouviu a maior parte e achou graça quando Karl omitiu algumas partes da história. Jan inclinou-se para a frente quando o numetodo descreveu a areia negra, como foi usada pelos ocidentais no ataque à cidade, e ao saber que havia ingredientes na cidade para fazer mais.

— Você afirma que essa areia negra é a chave do sucesso dos ocidentais? Essa é a mesma magia que nós soubemos que eles usaram nos Hellins?

— Não é magia, hïrzg — falou Karl. — Essa é a parte interessante. É alquimia. Varina tem certa noção, pelo que Talis disse e pelas amostras que eu trouxe do apartamento de Uly, de como preparar a areia negra. Eu vi, todos nós vimos, as coisas terríveis que a areia pode fazer. — Uma sombra sinistra pareceu passar pelo rosto de Karl ao dizer isso, e Sergei sabia que ele se recordava do assassinato de Ana. Era um horror que jamais seria apagado da mente de qualquer um dos dois. — Os ocidentais colocaram fogo na cidade com a areia; eles mataram centenas, talvez milhares. Hïrzg, com essa areia negra, nenhum exército precisa de ténis-guerreiros ou de feitiços. Nenhuma armadura consegue resistir, espadas não podem superá-la, não importa o número.

— E você sabe onde está o estoque dessa areia negra?

Karl assentiu com a cabeça. — Eu sei. Varina também. Nós podemos levar o senhor até lá, hïrzg. Mas os ocidentais também estarão atrás da areia negra. Talis... eu suspeito que Talis já esteja levando os ocidentais até ela. Eles já podem estar com a areia.

— Hïrzg — interrompeu Sergei. — Eu entendo por que o senhor deixou seu exército ocioso aqui. Eu talvez tivesse tomado a mesma decisão no seu lugar; embora meu coração fique partido ao ver a cidade queimar e saber que os ocidentais pisoteiam as ruínas dos lugares que mais amei no mundo. — Ele esfregou o nariz falso, notou que Jan olhou fixamente para o gesto e abaixou a mão. — Mas, se o senhor realmente está disposto a ouvir meu conselho, eu lhe diria que o tempo de esperar acabou. Eu também testemunhei os efeitos dessa areia negra. Se os ocidentais tiverem tempo para criar mais, então seus próprios soldados pagarão o preço pela hesitação. Hïrzg, ouça o que meus amigos estão lhe dizendo. A Garde Civile de Nessântico foi derrotada. Aquela batalha acabou. Temos que atacar agora; não Nessântico, mas aqueles que a derrotaram, antes que venham à Firenzcia.

Sergei achou que o apelo não teria efeito. Jan olhava para o alto, o olhar vasculhava a lona iluminada pelo fogo como se houvesse uma resposta escrita na fumaça. O jovem suspirou uma vez. Então bateu palmas e um pajem entrou.

— Chame o starkkapitän aqui — disse o hïrzg para o menino. — Há preparativos imediatos que eu preciso que ele faça. Corra!

 

Jan ca’Vörl

ELE OUVIU as grandiosas e gloriosas histórias de guerra várias vezes ao longo dos anos: do vavatarh Jan; do vatarh; dos onczios e dos conhecidos mais velhos; e, mais recentemente, de Fynn. Até mesmo da matarh, que contou que o vavatarh a elogiou quando era pequena por seu conhecimento de estratégia militar.

Jan começou a se dar conta de que essas histórias eram inventadas, memórias falsas ou, muitas vezes, mentiras deslavadas.

Até hoje, ele nunca havia entrado a cavalo em uma batalha de verdade. Até hoje, seu conhecimento sobre habilidades marciais fora intelectual e seguro. Mostraram a Jan como cavalgar, manejar uma espada, usar uma lança ou arco e flecha sobre o cavalo, como se proteger de outro chevarittai ou de um soldado de infantaria. Ele participou de lutas com espada de treino, participou de manobras militares. Aprendeu sobre a arte da guerra: quais táticas usar contra um inimigo que estivesse em um terreno superior ou inferior, ou que possuísse mais soldados ou menos, ou mais ténis-guerreiros ou menos. Jan sabia que formação teoricamente era melhor contra outra.

Era o que qualquer jovem rapaz de seu status teria aprendido.

A guerra, na mente de Jan, era um exercício muito gracioso e preciso. Ele sabia — intelectualmente — que era impossível que fosse tão linear e eficiente. Jan entendia.

Mas... ele não sabia que a guerra podia ser tão desordenada assim. Tão caótica. Tão real.

Ninguém no exército firenzciano achava que Jan — assim como Fynn, assim como seu homônimo, o velho hïrzg Jan — seria o verdadeiro general nesse importante ataque. Eles sabiam que a estratégia era do starkkapitän ca’Damont, com a ajuda do regente ca’Rudka e a contribuição dos dois numetodos que vieram da cidade em chamas para o acampamento. Sabiam que seria o archigos Semini que comandaria os ténis-guerreiros.

Jan estaria lá, e a bandeira de comando tremularia entre a Garde Hïrzg e os chevarittai à sua volta, e ele avançaria logo atrás da vanguarda de suas forças como Fynn e o antigo hïrzg Jan fizeram antes dele. Mas Jan consultaria o starkkapitän antes de dar ordens. Ele sabia que era uma atitude inteligente; sabia que o resto dos offiziers e chevarittai também tinha noção disso. Francamente, Jan estava tranquilo em relação a consultar o starkkapitän; ele conhecia a própria inexperiência e não era tão arrogante a ponto de insistir em estragar o ataque.

A entrada em Nessântico começou bem o suficiente. Como uma espada curva, as forças firenzcianas avançaram pela cidade através de todos os portões do lado leste. Não houve resistência; pelo contrário, o surgimento dos soldados foi recebido por gritos de alegria pela população e pelos remanescentes da Garde Civile de Nessântico espalhados. Alguns chevarittai dos Domínios até saíram de mansinho dos esconderijos para engrossar as fileiras de Firenzcia. Após uma virada da ampulheta dentro das muralhas da cidade, Jan começou a torcer para que a situação continuasse assim: marchando sem resistência até a fronteira oeste da cidade e encontrando as forças ocidentais em plena retirada.

Sob o calor do dia, ele suava debaixo da armadura, e o que mais queria era arrancar o fardo pesado dos anéis de aço. Aquilo parecia ser o pior desconforto da vitória.

— Qual o caminho, embaixador? — perguntou Jan para Karl, que cavalgava com seu séquito ao lado de sua matarh, Varina e Sergei.

— Ao norte, por algumas transversais — respondeu o numetodo, que apontava —, depois vários quarteirões para o leste.

Jan concordou com a cabeça. O exército firenzciano ganhou volume pela Avi. O sol brilhava intensamente. Era um belo dia. Eles já tinham vencido, e o hïrzg sentiu-se confiante a ponto de dar uma ordem por si próprio. — Starkkapitän — disse Jan para ca’Damont —, eu levarei metade da Garde Hïrzg comigo, bem como o regente e os numetodos. Deixo você no comando do exército. Faça o que for necessário para defender esta parte da Avi e a cidade. Depois você e a a’hïrzg prosseguirão para o sul, para a Ilha A’Kralji, e cuide para que controlemos a ilha e as Ponticas orientais. Se houver algum problema, mande um mensageiro até mim imediatamente. Da minha parte, eu mandarei um mensageiro assim que nós localizarmos a areia negra e soubermos como está a situação por lá.

— Jan. Hïrzg. — Allesandra franziu a testa, enquanto ca’Damont parecia incomodado. — Eu não acho...

— Eu dei minhas ordens — disparou Jan e interrompeu sua matarh. — Starkkapitän? Tem algum problema com elas?

Ca’Damont meneou a cabeça negativamente. Ele vociferou ordens rápidas.

— Eu me encontro depois com a senhora, matarh — disse Jan. — Na Ilha.

Allesandra não pareceu convencida. O hïrzg pensou que ela fosse protestar mais, mas a matarh só olhou feio para ele. Jan viu Allesandra dar uma única olhadela para Sergei; o regente deu levemente de ombros sob a armadura. O nariz lançou fagulhas de sol sobre o rosto.

A matarh finalmente inclinou a cabeça e disse — Como quiser, meu hïrzg. — “Meu hïrzg”, não “meu filho”. Jan notou a irritação na expressão. Ela puxou as rédeas com força e começou a caminhar para o sul. Um quarteto da Garde Hïrzg e um téni-guerreiro cercaram a a’hïrzg com atraso.

O starkkapitän prestou continência e falou — Que Cénzi oriente o senhor, meu hïrzg. Eu cuidarei para que a a’hïrzg permaneça a salvo. — Ca’Damont começou a ir embora, mas puxou as rédeas, e disse — Fynn fez uma excelente escolha no senhor. Tome cuidado, hïrzg Jan.

O starkkapitän ca’Damont prestou continência novamente e foi embora, com a maior parte do séquito com ele. Jan olhou em volta para os demais e falou — Vamos encontrar essa areia negra. Embaixador ca’Vliomani, você vai à frente.

Karl levou o esquadrão de Jan ao norte pela Avi, e os soldados pelos quais eles passaram prestaram continência ao hïrzg e a seu estandarte, depois o grupo virou à esquerda em uma rua mais estreita e deixou o exército para trás. O tilintar das armaduras e o baque frio do aço nos cascos dos cavalos eram o barulho mais alto na rua. Não havia mais rostos nas janelas, mais ninguém visível adiante, no caminho curvo. Algumas portas dos prédios pelos quais o esquadrão passou estavam abertas; muitas à força. Havia lixo acumulado na avenida. Eles passaram por vários corpos: gente morta há alguns dias, pela aparência, cadáveres inchados com pernas e braços rígidos, em ângulos estranhos, cheios de vermes e moscas. Jan olhou fixamente para os mortos ao passarem; ele notou que Sergei fez o mesmo, com uma intensidade estranha.

Há pouco tempo, esses corpos tinham sido pessoas vivas, que talvez corressem para os amantes, acompanhassem os filhos, comprassem comida nos mercados ou bebessem nas tavernas, levassem suas vidas em frente. Ele duvidava que essas pessoas esperassem que a vida fosse acabar tão rapidamente e de modo tão definitivo. Duvidava que elas esperassem que fossem virar monumentos acidentais e temporários da guerra.

Jan fungou, incapaz de manter o fedor longe do nariz — ele perguntou-se se Sergei realmente podia sentir o cheiro. O hïrzg segurou firme na espada e enroscou as rédeas com mais força na mão esquerda.

Ao sul, eles ouviram um estrondo repentino como trovão e gritos baixos. Sergei, ao lado de Jan, olhou naquela direção com preocupação, e disse — Eu acho, hïrzg, que a batalha começou. Talvez devêssemos retornar.

Jan balançou a cabeça. — Embaixador, a que distância estamos do lugar? — perguntou.

— Mais dois cruzamentos — respondeu ca’Vliomani. — Não mais do que isso.

— Então nós prosseguiremos.

Sergei franziu os lábios, mas não teve outra reação.

Eles continuaram até chegar a outra viela, ainda menor, onde Karl parou e ficou em pé na sela. Ao olhar a rua estreita, Jan viu uma placa antiga e surrada pendurada em um prédio à direita: havia um cisne mal desenhado em tinta vermelha nas tábuas.

— Ali. — Ca’Vliomani chamou Jan e os demais. — Nós deveríamos...

Ele não foi adiante.

Da esquerda, da direita, várias dezenas de guerreiros pintados vieram para cima deles aos berros. Os próximos grãos da ampulheta viraram um caos de que Jan se lembraria pelo resto da vida.

... um clarão súbito de uma luz ofuscante surgiu à frente do grupo, depois mais um, e Jan percebeu que Karl e Varina lançavam feitiços. Ele ouviu gritos...

... o chevarittai à direita de Jan foi arrancado da sela com o pulo de um ocidental, e o cavalo do homem chocou-se com força na perna do hïrzg. A perna direita ficou presa entre os dois animais, e ele gritou pela pontada de dor, apesar da proteção das grevas. Jan puxou as rédeas do cavalo...

... mas houve mais movimento à direita e por trás no exato momento em que ele fez isso. Jan viu o aço e colocou sua espada diante do corpo da montaria quase tarde demais — mas o suficiente para que o golpe que teria acertado acima das presilhas de seu coxote fosse desviado, mas a lâmina do ocidental cortou fundo a pata traseira de seu cavalo de guerra. O animal relinchou de dor e terror. Jan viu o cavalo arregalar os olhos, sentiu a perna da montaria ceder, ele estava caindo...

... — Ao hïrzg! — Jan ouviu alguém gritar. Ele estava no chão com uma confusão de pernas, tanto equinas quanto humanas, em volta. O hïrzg ficou de pé rapidamente (a perna direita enviou uma pontada de dor espinha acima por causa do abuso). Um ocidental vinha para cima dele, e Jan conseguiu encontrar o cabo da espada, levantar o aço pesado e estocar debaixo do peitoral da estranha armadura do homem. Ele sentiu a lâmina entrar na carne. Ela ficou brevemente presa, Jan a torceu e empurrou, gemeu e sentiu a boca se esgarçar em um ricto de fúria, a espada entrou subitamente. O ocidental, empalado, ainda completou o ataque, mas as braceleiras em volta dos antebraços do hïrzg aguentaram o impacto, embora ele achasse que o braço direito pudesse ter quebrado com o golpe. Jan tentou arrancar a espada do homem, mas não conseguiu, e o peso morto do ocidental quase tirou a arma de sua mão, que ficou inerte e dormente...

... Outro ocidental berrou à sua esquerda, Jan puxou a espada desesperadamente outra vez, embora soubesse que seria tarde demais. Mas outra espada — firenzciana — cortou a garganta do homem e quase decepou sua cabeça. O hïrzg ficou coberto por sangue quente...

... E mãos levantaram Jan. — O senhor está bem, meu hïrzg? — perguntou alguém, e ele concordou com a cabeça. A mão direita formigava, mas parecia ter voltado à vida. Jan fechou os dedos, exercitou-os dentro da manopla, abaixou a mão e soltou a espada com um puxão. Ele virou-se...

... e viu um trio de ocidentais reunidos como escudos em volta de outro guerreiro pintado, este com um pássaro tatuado no crânio raspado e no rosto. Sergei estava ao seu lado, sua espada subia e descia, mas o soldado firenzciano ao lado do regente caiu com a mão decepada no pulso. Jan correu para a brecha, sem pensar em nada a não ser reagir...

... e, de alguma forma, ele passou pelos guardas e ficou em frente ao guerreiro com a marca do pássaro. A armadura do ocidental desviou o primeiro corte de Jan, e o pomo duro de bronze da espada do homem bateu no queixo do hïrzg sob o elmo. Ele cambaleou para trás, com gosto de sangue na boca...

... ao ver o guerreiro-pássaro amparar o ataque da espada de Sergei...

... ele investiu novamente contra o homem, rosnou e contorceu o rosto, e o ocidental não foi capaz de se defender de ambos ao mesmo tempo. Foi a espada de Jan que penetrou, que encontrou a brecha entre os tubos roliços da armadura do homem e entrou no corpo. O ocidental perdeu o fôlego como se estivesse surpreso. O hïrzg ouviu uma voz chamar um nome estranho, “tecuhtli”, quando o homem caiu de joelhos. A espada de Sergei acompanhou a arma de Jan e acertou o sujeito no pescoço e na cabeça. O guerreiro-pássaro desmoronou sobre os paralelepípedos ensanguentados, de cara no chão...

... e tudo acabou, a não ser pelo estrondo da pulsação nos ouvidos.

Jan percebeu que sua respiração estava acelerada, que o coração batia tão furiosamente que ameaçava irromper pelas costelas, que a perna e os braços doíam, que estava completamente coberto por sangue, e que, pelo menos em parte, o sangue era seu. Ele estava curvado e ofegante, com as pernas bem afastadas. Jan sentiu um embrulho no estômago e engoliu em seco para conter a bile ardente, para se forçar a não vomitar. Sentiu a mão de Sergei dar um tapinha em seu ombro sobre a armadura. Ele pestanejou e olhou em volta: havia pelo menos uma dúzia de corpos no chão, alguns com o uniforme preto e prateado de Firenzcia. Uns poucos ainda se debatiam; enquanto o hïrzg observava, os homens da Garde Civile despachavam os ocidentais que ainda estavam vivos. Havia córregos de sangue que fluíam dos corpos e entranhas espalhadas na rua como salsichas obscenas.

Karl e Varina estavam incólumes — os corpos mais próximos aos dois estavam carbonizados e escurecidos; havia um cheiro de carne cozida no ar. O nariz falso de Sergei tinha sumido completamente e a bochecha esquerda estava aberta por um corte; onde ficava o nariz, a pele era sarapintada e as cavidades da cabeça de Sergei estavam escancaradas, o que deixava o rosto com a aparência horripilante de um crânio. Jan foi novamente tomado pela náusea, e dessa vez o mundo pareceu girar um pouco à sua volta. Ele colocou a ponta da espada no chão e apoiou-se pesadamente sobre a arma.

— Tecuhtli! — O hïrzg ouviu o chamado novamente, agora um homem saia do prédio onde estava pendurada a placa do cisne vermelho, não mais do que a uma dezena de passos de onde Jan e os demais estavam. Ele segurava um frasco de vidro na mão direita, cheio de grânulos escuros; na mão esquerda havia uma bengala retorcida. O sujeito parou, como se estivesse assustado pela imagem de carnificina à frente.

— Talis... — Jan ouviu Karl murmurar o nome: uma surpresa, uma maldição, um feitiço. — Areia negra...

O homem fechou a cara, ergueu o frasco com a mão direita e jogou o braço para trás como se fosse lançar o objeto. Jan imaginou como seria morrer e se encontraria o vavatarh Jan e Fynn na morte.

Uma mulher saiu correndo do beco atrás da taverna, um borrão marrom e cinza, tão depressa que ninguém teve tempo de reagir. Assim que Talis levantou a mão, ela agarrou o cabelo do homem e puxou a cabeça para trás. A boca do homem ficou tão escancarada quanto a de um peixe no mercado, e o tom vermelho seguiu o prateado quando a mulher passou uma faca pela garganta de Talis. Uma segunda boca ficou ainda mais escancarada do que a primeira e vomitou sangue. O frasco de vidro caiu da mão do sujeito e quebrou no chão, sem explodir. Ela debruçou-se sobre o corpo — parecia colocar alguma coisa às pressas no olho de Talis —, Jan deu uma boa olhada no rosto da mulher, entre o cabelo emaranhado.

O coração saltou no peito. Ele ficou boquiaberto e murmurou — Elissa?

A jovem ergueu a cabeça e arregalou os olhos ao vê-lo, e embora ela não tenha dito nada, Jan ouviu a mulher respirar fundo. Ela arrancou algo do rosto de Talis; o hïrzg vislumbrou uma pedra branca entre os dedos. A jovem correu para o beco de onde veio. Um dos soldados começou a correr em perseguição.

— Não! — berrou Jan para o homem. — Deixe-a ir!

O soldado parou. Jan ouviu os sussurros ao redor: — A Pedra Branca...

A Pedra Branca...

Não, o hïrzg queria dizer para todos, não era verdade, porque aquela pessoa era Elissa, que Jan amava. Não era verdade porque a Pedra Branca assassinou Fynn, que ele também amava. Não era verdade.

E, de alguma forma impossível, era verdade.

Era verdade.

 

Niente

O NAVIO ESTAVA LOTADO de gente fugindo da cidade, e de pessoas dos outros navios agora emborcados e meio submersos no rio. O convés estava escorregadio com água, sangue e vômito. A água em volta estava cheia de corpos rígidos e inchados — tanto de orientais quanto de tehuantinos. Havia guerreiros e nahualli feridos espalhados por toda parte do convés, gemendo sob a luz do sol que sumia; os tripulantes que ainda eram capazes subiam nos mastros para soltar as velas e apertar os cabos. A âncora, que gemia e protestava, foi içada no lodo do fundo do rio, e o capitão do navio berrava ordens. Devagar, muito devagar na opinião de Niente, a cidade começou a ficar para trás conforme eles eram levados embora pela corrente do rio e pelo vento.

Niente observava da popa do navio de guerra, à direita de Citlali. O corpo do guerreiro supremo, decorado com os traços rubro-negros de cortes cicatrizados feitos por espadas, apoiava-se pesadamente no cabo quebrado de uma lança enquanto ele olhava com raiva para a cidade.

— Você estava certo, nahual — disse Citlali. — Você viu corretamente a visão de Axat.

Niente concordou com a cabeça. Ele ainda estava admirado por estar aqui, por estar vivo, por ter sido poupado, de alguma maneira impossível, por Axat. O nahual poderia ver a terra natal novamente, se as tempestades do Mar Interior permitissem. Teria a esposa nos braços outra vez; abraçaria os filhos e os veria brincar. Niente respirou fundo e estremeceu.

— Eu não fui poderoso o suficiente — falou ele. — Não fui o nahual que deveria ter sido. Se tivesse sido mais firme ao falar com Zolin, se tivesse visto as visões com mais clareza...

— Se tivesse feito isso, nada significativo teria mudado — respondeu Citlali. — Zolin não teria lhe dado ouvidos, nahual, não importa o que você dissesse. Zolin só ouvia os deuses clamarem por vingança. Ele não teria lhe dado ouvidos. Você teria sido afastado como nahual e teria morrido aqui também.

— Então foi tudo um desperdício.

Citlali deu uma risada seca e sem graça. — Um desperdício? Longe disso. Você não tem imaginação, nahual Niente, e não é um guerreiro. Um desperdício? Nenhuma morte em combate é um desperdício. Olhe para a grande cidade dos orientais. — O guerreiro supremo apontou para leste, onde o sol reluzia dourado sobre as torres quebradas e atravessava a fumaça dos incêndios que restavam. — Nós tomamos a cidade deles. Tomamos o coração dos orientais. — Ele estendeu a mão com a palma para cima, como se pegasse alguma coisa. Os dedos fecharam-se lentamente. — Você acha que algum dia eles se esquecerão disso, nahual? Não. Eles tremerão à noite e ficarão aterrorizados diante de um som repentino, pensarão que somos nós de volta. Eles se lembrarão disso de geração em geração. Jamais se sentirão seguros novamente; e eles terão razão.

Citlali cuspiu sobre a amurada para o rio. Havia sangue no cuspe. — Nós pegamos o coração dos orientais e ficaremos com ele. Eu faço essa promessa para Sakal aqui, e você é minha testemunha; que o olho Dele veja minhas palavras e registre. Nós ficaremos com o que tiramos dos orientais. Um tecuhtli estará de novo onde Zolin caiu.

Citlali deu um tapa nas costas de Niente com tanta força que ele cambaleou. — O que você acha disso, nahual?

Niente olhou fixamente para a cidade, que desaparecia no rastro do navio, e falou — Eu olharei na tigela premonitória hoje à noite, tecuhtli Citlali, e direi o que Axat diz.

 

A Pedra Branca

A NOVA VOZ na cabeça da Pedra Branca gritava, lamentava e se revoltava, falava metade na língua de Nessântico e metade em um idioma que ela não entendia de maneira alguma. As outras vozes riam e vibravam.

— Jan, o seu amante... Que visão agradável ele tem de você agora!

— Você acha que ele se casaria com a assassina suja que viu?

— Ele dormiu com uma assassina e agora ela carrega seu filho no ventre.

— Ele vislumbrou a verdade. Espero que você sempre se lembre do horror no rosto de Jan ao ser reconhecida.

Aquela última voz era de Fynn, satisfeito e presunçoso. — Calem-se! — gritou a Pedra Branca para as vozes, mas elas só riram ainda mais alto e abafaram o que ela ouvia com os próprios ouvidos.

Ela havia seguido Talis e o líder ocidental desde a Ilha até o Cisne Vermelho, após verificar que Nico parecia a salvo. Ela estava furiosa, com raiva de Talis — que rompera sua promessa com a Pedra Branca. Os numetodos... eles podiam ser hereges nojentos, mas trataram Nico com gentileza e respeito, especialmente a mulher.

Mas Talis...

Talis traiu Nico, e por causa disso a matarh do menino estava à beira da morte, e a Pedra Branca dissera para Talis qual seria o preço. Dissera e cobraria o pagamento. A Pedra Branca sempre cumpria sua palavra.

Ela seguiu Talis então, quando — do nada — sons de batalha irromperam ao leste e a Pedra Branca viu o líder ocidental agrupar seus homens para emboscar os chevarittai e os soldados firenzcianos. De repente, havia muita luta acontecendo, muito movimento para ela agir. A Pedra Branca ficou preocupada naquele momento, se perguntando se Nico estava realmente a salvo, quis desesperadamente correr até o menino, com medo de que Talis pudesse ter cometido um erro. Mas ela o viu sair de mansinho do quarto onde havia entrado e depois correr para a rua. A Pedra Branca seguiu Talis. Ela assistiu ao confronto e viu a chance. Passou a faca na garganta dele e sentiu Talis morrer ao deixar cair o frasco com o pó negro. E ao deitá-lo no chão e colocar a pedra no olho do homem, a Pedra Branca o viu de relance.

Jan.

O choque foi palpável. Ela sentiu com tanta intensidade como se o coração tivesse sido posto diretamente sobre uma camada escondida de brasas incandescentes. Jan: ele ficou parado ali, e ela testemunhou o lento reconhecimento de seu rosto. A expressão de Jan a assustou. Era permeada de choque e carinho, de saudade e horror. Vê-lo foi horrível e maravilhoso ao mesmo tempo. Ela quis correr até Jan, quis pegar sua mão e colocar na barriga inchada e sussurrar: aqui, querido. Esta é a vida que criamos juntos. Isso é o que o nosso amor fez. Ela também quis correr, esconder o rosto e fingir que essa revelação nunca aconteceu.

O segundo impulso foi mais forte.

Ela pegou a pedra branca do olho de Talis e fugiu, com vontade de que Jan a seguisse e com medo de que ele realmente fizesse isso.

A Pedra Branca não parou até chegar à Pontica Kralji. Ali não havia homens estranhos da cor de bronze; nenhum que estivesse vivo, de qualquer forma, embora o chão estivesse cheio de corpos ocidentais. Ela viu soldados usando os tons preto e prateado de Firenzcia por toda parte nas ruas — o que fez Fynn se manifestar com empolgação dentro de sua cabeça —, cruzou a Pontica cuidadosamente e escondeu-se depressa na Ilha. Isso foi fácil; havia tantas paredes desmoronadas, tantos prédios queimados. Ela foi até a cabana do jardineiro no terreno do palácio para onde Nico e sua matarh tinham sido levados, onde o curandeiro ocidental trabalhou no corpo ferido de Serafina.

O curandeiro e todos os soldados ocidentais tinham ido embora, mas os medos da Pedra Branca passaram quando viu que Nico ainda estava ali, segurando a mão da matarh, ajoelhado ao lado da mesa onde ela estava deitada — devia ter sido uma das mesas de jantar do palácio antigamente, ainda coberta por damascos rendados e elegantes, agora sujos e manchados de sangue. Ela notou o movimento da respiração lenta no peito de Serafina, mas os olhos continuavam fechados e ela parecia sem reação.

— Nico — falou a Pedra Branca. O menino levou um susto e apertou com mais força a mão da matarh.

— Ah — disse ele um momento depois. O rosto ficou um pouquinho alegre. Nico fungou e passou a mão pelo nariz. — Elle. É você.

A Pedra Branca confirmou com um aceno e foi até o menino. Ela segurou com as mãos de Nico e a de Serafina. Viu que ele olhava fixamente para o sangue que manchava a pele da matarh. — Precisamos ir embora, Nico.

— Eu não posso abandonar a matarh. Talis voltará em breve.

A Pedra Branca fez que não com a cabeça. Ela apertou com força a mão dele. A pele era quente, tão quente, e ela sentiu a criança dentro dela dar um pulo com o toque; o movimento da vida, o despertar. Ela levou um ligeiro susto com a sensação. — Não. Infelizmente, Talis está morto, Nico.

Ela percebeu as lágrimas surgirem nos olhos do menino e o lábio inferior tremer. Depois ele fungou de novo e piscou. — Isso é verdade?

Ela concordou com a cabeça. — É verdade, Nico. Sinto muitíssimo.

O menino chorava plenamente agora, as palavras saíram entre os soluços. — Mas minha matarh... Eu não posso... Eles acabaram de abandoná-la... Ela está dormindo e eu... não consigo acordá-la...

— Sua matarh gostaria que você fosse comigo. Olhe para ela, Nico. Sua matarh ama muito você, eu tenho certeza que sim, mas não sei se ela acordará um dia, e a cidade está cheia de soldados e morte. Ela gostaria que você fosse comigo porque posso mantê-lo a salvo. Eu manterei você a salvo.

— Mas eu fiz isso com ela — disse Nico. — A culpa é minha. Quero que ela saiba que eu sinto muito.

A Pedra Branca apertou a mão de Nico em volta da mão da matarh. — Ela sabe. Nico, temos que correr.

Ela tirou a mão do menino de Serafina, abriu os dedos com delicadeza. Ele soltou a matarh com hesitação, mas sem reclamar. — Agora dê um beijo — falou a Pedra Branca. — Ela sentirá e saberá.

Nico ficou de pé, inclinou-se sobre o corpo da matarh e deu um beijo na bochecha. Ela colocou a mão de Serafina, que pendia para o lado, sobre a mesa e deu um tapinha. Nico olhou para trás, então, com os olhos cheios de lágrimas, que não caíam.

— É o momento — disse a Pedra Branca.

Juntos, de mãos dadas, eles foram embora da cidade em chamas e ruínas.

 

Allesandra ca’Vörl

— AQUI ESTÁ A SENHORA, MATARH. Ele é todo seu. Espero que fique feliz.

As palavras de Jan saíram como um banho de água escaldante. Elas queimaram e cauterizaram Allesandra, foram ditas com frieza e desdém espantosos e cruéis. O hïrzg fez um gesto grandioso e debochado na direção do Trono do Sol. Ela olhou fixamente para a enorme peça de cristal entalhado, que estava estranhamente fora do lugar, no meio das ruínas do Velho Templo. O trono foi rachado e mal reformado; estava coberto por um pano com estranhos desenhos geométricos, as ruínas do domo rachado e da claraboia estavam espalhadas sobre o piso quebrado de cerâmica, e por toda parte no salão havia os restos de um banquete qualquer. Ratos espreitavam os cantos do cômodo, e o ar fedia à fumaça e à carne podre. Perto dos fundos havia um corpo, coberto às pressas por uma tapeçaria.

Allesandra sabia de quem era o cadáver encoberto: de Sigourney, cuja cabeça separada do corpo estava enfiada em uma lança perto do trono.

O regente e os dois numetodos estavam recortados pela luz do sol nas portas abertas do templo, longe demais para ouvir a conversa de Jan com ela. O starkkapitän ca’Damont dava ordens na praça do templo e despachava patrulhas para garantir que todas as tropas ocidentais estivessem fora da cidade e para impedir que os sobreviventes saqueassem.

Allesandra ouviu o arrastar de passos nas portas do templo; ao olhar para trás, viu o archigos Semini pisar com cuidado sobre os destroços no chão. Jan também viu o homem e disse — Ah, archigos Semini. Estou contente que esteja aqui, uma vez que isso também é seu. Eu lhe dou Nessântico. Você não ficará mais em Brezno.

— Meu hïrzg? — perguntou Semini ao olhar com preocupação de Allesandra para Jan. — Eu pensei que o archigos talvez pudesse ficar em Brezno agora, dada a destruição daqui. Eu poderia designar um a’téni para Nessântico...

— Ah, eu concordo — falou Jan, e o sorriso provocou um arrepio em Allesandra. Era o sorriso sério e indiferente que o vatarh de Allesandra usava quando estava furioso. Ela o tinha visto muitas vezes na infância e na idade adulta, quando ele finalmente a trouxera de volta para Firenzcia. Agora, a expressão de desdém e deboche voltaram. Fuligem e sangue sujavam o rosto de Jan, e o braço e a perna direitos estavam bem enfaixados. Ele mancava e não parecia capaz de erguer o braço da espada. Allesandra perguntou-se o que o filho tinha visto, o que sentia. Ela queria envolvê-lo nos braços e confortá-lo como fazia quando Jan era criança, mas o hïrzg estava a um cauteloso passo de distância, como se temesse exatamente isso. — Veja bem, haverá um archigos em Brezno. Quanto a ter um archigos em Nessântico, bem... — Jan deu de ombros friamente. — A escolha é sua. Você pode querer reivindicar o título e mantê-lo por um tempo, embora você sempre tenha dito que queria uma fé concénziana reunificada. Ou talvez o archigos em Brezno deixe você ser o a’téni aqui em Nessântico, apesar de eu aconselhar o archigos contra isso.

— Hïrzg? — balbuciou ca’Cellibrecca. O rosto ficou no tom de branco dos fios que salpicavam a barba e o cabelo escuros; o contraste foi forte. — Eu não entendo.

— Talvez a matarh explique para você, uma vez que agora esta cidade é dela — disse Jan.

Allesandra olhou fixamente para o trono. Ela sentia-se morta, entorpecida. Se alguém a cortasse, pensou, ela não sentiria nada, nem mesmo o calor do sangue na pele. — Meu filho me deu Nessântico, mas me informou que Firenzcia não se reunificará com os Domínios — falou Allesandra para Semini com uma voz tão morta quanto as emoções.

— Considere isso como meu presente de casamento, matarh — falou Jan. — Pelo casamento que eu nunca tive, com a mulher que a senhora mandou para longe de mim.

— Eu estava protegendo você, Jan — disse Allesandra, embora não houvesse energia na reclamação. — Elissa era uma fraude. Uma impostora.

— Eu sei. Ela foi contratada para matar Fynn.

— O quê? — Isso fez com que Allesandra erguesse a cabeça e provocou uma breve onda de fúria. Ela virou-se para encará-lo. — O que você está dizendo? A Pedra Branca matou Fynn.

— Matou, sim — falou Jan com o mesmo sorriso irritante. — Deixe-me dizer uma coisa que a senhora talvez não saiba, matarh, embora devesse saber: Elissa era a Pedra Branca. Ela me usou para se aproximar de Fynn.

— Isso não é possível — disse Allesandra. Não podia ser; não era possível. A voz que ela ouviu, a mulher intermediária; não, não era possível, e, no entanto... Allesandra lembrou-se da voz, mais aguda do que seria esperado de um homem. E ela nunca tinha visto a Pedra Branca. Apenas presumiu...

— Acredite no que quiser — dizia Jan. — Eu realmente não me importo. — Ele gesticulou novamente para o trono. — Tome seu novo lugar, matarh. Não se acanhe. A senhora esperou por tanto tempo, afinal, e o regente ca’Rudka renunciou a qualquer pretensão ao título. A senhora pode mandar Semini abençoá-la. Talvez os ca’ e co’ voltem à cidade agora, para que a senhora possa lhes dizer que há uma nova kraljica.

Jan começou a se afastar, na direção das portas abertas. Ela deu um passo e pegou o braço ferido. — Jan. Filho...

Ele soltou o braço, fez uma careta ao sentir a dor evidente, e aquilo foi uma agonia maior para Allesandra do que qualquer golpe de espada. — Sente-se, matarh. Assuma seu Trono do Sol. A senhora possui o que sempre quis. Aproveite o presente que eu lhe dei.

Dito isso, ele caminhou na direção de ca’Rudka e dos demais. Allesandra observou o filho sair, sentiu vontade de chamá-lo, de impedi-lo de ir embora, de parar o sofrimento.

Ela não fez nada. Observou Jan chegar à passagem iluminada, ouviu sua risada ao dar um tapinha nas costas de ca’Rudka com a mão que não estava machucada. Os quatro foram embora e a luz do sol desabou sobre deles.

Semini olhava para o céu, onde o domo de Brunelli esteve, e respirava alto pelo nariz. Allesandra andou lentamente até o Trono do Sol.

Ela sentou-se.

Nas profundezas do cristal espesso, não havia luz. Nenhuma reação. O trono permaneceu melancolicamente escuro.

1. Dupla mão é um termo de cavalaria para o oficial que tanto pode comandar um esquadrão quanto um batalhão. Também é o caso do soldado que luta com um mosquete e um sabre ao mesmo tempo, que não é aplicável aqui. (N. do T.)


Epílogo: Nessântico

ELA ESTAVA ARRASADA. Ela estava arruinada.

Ela foi devastada pelo fogo e pela magia; foi cortada pelo aço. Foi saqueada e pilhada. Os maiores tesouros danificados ou perdidos. Os prédios que foram sua coroa eram ruínas desmoronadas e pilhas de pedras escurecidas. O colar de joias da Avi a’Parete não reluzia mais à noite. Agora só havia as estrelas no céu, que brilhavam e debochavam da própria escuridão da cidade.

Metade da população estava morta ou havia fugido. Ela sentiu, pela primeira vez em muitos séculos, a marcha de soldados conquistadores em suas ruas: não sentiu uma vez, mas duas. Havia uma kraljica no Trono do Sol, mas ela olhava para um império que murchou e encolheu.

Não havia como negar a magreza da face refletida no espelho sujo do A’Sele: o rosto da cidade era o rosto de uma velha, um rosto encarquilhado, um rosto com cicatrizes, feridas abertas e dor. Não havia beleza ali, nenhuma glória, nenhum deslumbramento.

Tudo isso foi embora, como se nunca tivesse existido.

Quando vieram as chuvas, como era frequente naquele outono, foi como se o mundo inteiro chorasse por ela: a cidade, a mulher. As tempestades podiam lavar a fuligem e extinguir as chamas, mas não podiam curar. Elas podiam refrescar e aplacar, mas não podiam restaurar. Levaram embora os corpos, o lixo e a terra que entupia o rio, mas os trovões não conseguiam destruir as memórias.

As memórias permaneceriam.

Permaneceriam por muito, muito tempo...

Karl ca’Vliomani

ULY NÃO ESTAVA NO MERCADO DO VELHO DISTRITO, embora tivesse estado. As pessoas lembravam-se do estrangeiro tatuado e com cicatrizes, mas disseram para Karl que o homem empacotou as mercadorias e limpou a barraca há apenas dois dias, no mesmo dia em que o kraljiki Audric tinha sido assassinado. Não, nenhum dos proprietários das barracas próximas sabia onde Uly tinha ido, mas (disseram) havia algumas pessoas, que andaram comprando sua poção especial de fertilidade, que poderiam saber.

Karl esperava confrontar esse Uly e arrancar a verdade sobre o que aconteceu com Ana imediatamente. Um novo fogo ardia em seu estômago, mas o alívio e o desfecho não foram imediatos.

Eles levaram dias.

Dias que prejudicaram a recente intimidade que Karl tinha com Varina. O fantasma de Ana pairava entre os dois, ressuscitado pela presença de Talis e sua história, e Varina recuou diante do espectro que Karl não conseguia atravessar. Ela ainda pegava na mão de Karl ou passava os dedos no rosto dele, mas agora havia tristeza no toque, como se Varina fizesse carinho em uma memória. Karl beijava Varina, mas, embora os lábios dela fossem macios e quentes e ele quisesse ceder, o beijo era muito efêmero e distante, como se Karl beijasse Varina através de um véu invisível.

Dias em que ele considerava se devia chamar os numetodos de volta para a cidade e em que decidiu que ainda era perigoso demais. Mika, torcia Karl, estava com a família em Sforzia; deixe que fique lá, deixe que o resto dos numetodos dispersados permaneçam escondidos. Deixe que a Casa dos Numetodos continue vazia e às escuras.

Dias em que as notícias pareciam ficar cada vez piores: os ferimentos terríveis da kraljica Sigourney, a invasão e o saque à Karnor, um exército oriental no solo de Nessântico e seus navios nas águas do A’Sele, a convocação da Garde Civile, os “esquadrões de recrutamento” que alistavam homens, muitas vezes (de acordo com os rumores) querendo ou não servir. Karl era velho o bastante para não atrair muito interesse, mas Talis, não. Ele ficava cada vez mais confinado em casa e tinha que tomar cuidado quando se arriscava a sair para evitar os esquadrões. Karl tinha as próprias dificuldades — seu rosto certamente era conhecido por muitos gardai da Garde Civile, da Garde Kralji e entre os ténis, e ele tinha que tomar cuidado e se disfarçar antes de sair, mudar o sotaque característico de Paeti e não deixar ninguém olhar com muita atenção para o seu rosto.

Esses foram dias em que Karl descobriu, a contragosto, que Talis era mais a pessoa que Serafina dizia que era do que a pessoa que Karl queria que ele fosse. O embaixador ainda não confiava completamente no homem, e dormiu muito pouco desde aquela primeira noite, pois Talis, Serafina e Nico dormiam, juntos, no mesmo quarto que ele e Varina. Karl ficou de olho em Talis, especialmente na manhã seguinte, quando ele limpou a tigela de latão na qual eles acenderam a areia negra e — como Karl lembrou-se que Mahri fazia — encheu com água limpa e polvilhou com outro pó, mais claro. Talis então abriu o Segundo Mundo com um feitiço, e uma névoa esmeralda encheu a tigela. Uma luz agitada pulsou no rosto do homem enquanto ele entoava e olhava fixamente para as profundezas da tigela.

Na luz verde, Karl viu as rugas finas no rosto do homem, que quase ficavam mais profundas enquanto ele observava. Talis já parecia mais velho do que Serafina disse que ele era; Karl achava que sabia o motivo agora: o método de magia dos ocidentais custava caro para o usuário.

— Mahri costumava dizer que via o futuro aí — falou Karl depois, quando Talis, exausto e andando como um velho, jogou a água na jardineira da janela da sala. — Ele não parecia ser muito bom nisso, se não viu a própria morte.

Talis secou a tigela cuidadosamente com a borda da bashta, sem olhar para Karl. — O que vemos na tigela premonitória não é o futuro, mas sombras de possibilidade. Vemos probabilidades e chances. Axat sugere o que pode acontecer se seguirmos um determinado caminho, mas nunca há uma garantia. — O homem guardou a tigela novamente na bolsa que sempre carregava e deu um sorriso ligeiro para Karl. — Todos nós podemos mudar nosso futuro, se formos fortes e persistentes o suficiente.

Karl torceu o nariz para a afirmação. Talis foi então até Nico, e os dois se engalfinharam, rindo, enquanto Serafina observava com um sorriso, e o amor entre os três ficou palpável. Ele ouviu Varina entrar na sala descalça, com olheiras de sono. Ela também observava, e Karl não foi capaz de decifrar o que viu no rosto de Varina. Ela deve ter sentido o olhar porque se virou para o embaixador, deu um sorriso triste e depois virou o rosto novamente. Varina cruzou os braços sobre o peito e abraçou a si mesma, e não Karl.

Todo dia, Karl ia ao mercado do Velho Distrito, geralmente com Varina, na esperança de encontrar aqueles elusivos clientes de Uly e fazer perguntas. Após vários dias infrutíferos, tornou-se rotina; os dois às vezes levavam Nico junto, após prometerem à Serafina que, caso encontrassem Uly, eles não o confrontariam.

Foram quase duas semanas, quando aconteceu.

— Ah, sim, a mulher que eu falei para você acabou de passar aqui — disse o fazendeiro ao colocar uma caixa de cogumelos no lugar. — Ela usava uma tashta amarela com um dragão bordado na frente. Provavelmente ainda está por aí; ela disse que estava atrás de peixe. — O homem apontou para a esquerda. — Você pode checar na barraca do Ari, logo ali. Ele acabou de trazer umas trutas do Vaghian.

Karl ouviu Varina respirar fundo, viu quando segurou Nico com mais força. Ele acenou com a cabeça, jogou uma folia para o homem e avançou pelas multidões que passeavam lentamente pelas vielas sujas do mercado; quase todos eram mulheres e homens mais velhos. Eles sentiram o cheiro da barraca do pescador antes de vê-la, e Karl vislumbrou uma tashta amarela ali. — Karl? — disse Varina.

— Eu apenas perguntarei a ela. Se a mulher souber onde Uly está, então levaremos Nico para casa primeiro. — Ele deu um tapinha na cabeça do menino. — Não podemos deixar sua matarh chateada conosco, afinal — falou Karl para Nico.

Ele deixou os dois lá e aproximou-se da barraca. A mulher virou-se quando Ari mostrou um peixe com escamas da cor do arco-íris, e Karl viu a cabeça do dragão, de cuja boca saía uma fumaça roxa. O embaixador avançou até estar ao lado dela e disse — Com licença, vajica, mas se puder responder a uma pergunta, eu compro o peixe para a senhora. — Antes que a mulher pudesse responder, Karl contou a história que os dois haviam ensaiado e apontou de vez em quando para Varina e Nico: que ele tinha acabado de casar, que a esposa tinha um filho do antigo marido e agora os dois queriam um filho próprio, mas por serem mais velhos agora, os dois não conseguiam conceber; que ele ouviu falar que havia um estrangeiro chamado Uly, que antigamente tinha uma barraca aqui no mercado onde vendia poções exatamente para aquele problema, e que um dos vendedores mencionou que ela podia saber onde esse tal de Uly estaria. A mulher olhou de Karl para Varina e Nico.

Ela realmente sabia. — Na verdade, acabei de falar com ele. No Cisne Vermelho, no Beco do Sino, pertinho daqui. Ele tinha acabado de pedir uma cerveja, então imagino que ainda esteja lá.

Karl agradeceu à mulher, pagou o pescador pela truta sem pechinchar, e voltou para Varina e Nico. Ele agachou-se em frente ao menino e disse — Varina levará você para casa agora, Nico. — Karl não ousou erguer os olhos para ela, pois podia imaginar os pensamentos refletidos pelo rosto de Varina. — Eu ficarei aqui um pouquinho mais.

Nico concordou com a cabeça, e Karl abraçou o menino. — Vão agora, vocês dois — falou ao se levantar.

— Karl, você prometeu... — disse Varina.

— Eu não farei nada — falou Karl, e perguntou-se se isso era verdade. Ele contou o que a mulher disse. — Eu sei onde ele está neste momento. Só vou segui-lo. Descobrirei onde ele vive. Aí podemos descobrir como abordá-lo.

Karl notou a desconfiança no jeito que Varina mordeu o lábio inferior, no olhar vazio, no lento balançar da cabeça. Ela agarrou Nico com força. — Você promete?

— Prometo.

Com a cabeça inclinada para o lado, Varina encarou Karl e disse, finalmente — Ande, Nico. Vamos.

Karl abaixou-se e abraçou Nico novamente e depois Varina, ao se levantar. Foi como abraçar uma das colunas do Templo do Archigos. Ele ficou observando os dois até desaparecerem na multidão do mercado.

O Beco do Sino era uma viela suja a alguns quarteirões da Avi a’Parete, com apenas alguns passos de largura e apinhada de lojas de propósitos indeterminados, acima delas havia apartamentos esquálidos às escuras. O Cisne Vermelho ficava na esquina onde a viela cruzava uma rua maior, que levava à Avi, e tinha um placa com tinta descascando. Karl entrou e parou para os olhos se ajustarem à penumbra do interior. A única luz lá dentro vinha das nesgas das persianas e das velas que pingavam em um único lustre e em cima de cada mesa. Assim que Karl conseguiu enxergar na luz mortiça, foi fácil encontrar Uly: um homem de pele acobreada, com cicatrizes e tatuagens no rosto e nos braços.

Karl foi ao bar e pediu uma caneca de cerveja ao garçom com cara de poucos amigos, de costas para Uly. O interior ficou subitamente claro quando outra pessoa — uma mulher — entrou no bar, e Karl protegeu os olhos contra a luz.

Ele tinha a intenção de fazer como dissera para Varina: encontrar Uly e seguir o homem até descobrir onde morava. Mas Karl observou o sujeito beber a cerveja, e imagens do corpo de Ana, esparramado e destruído, surgiram em sua mente, de maneira que ele mal conseguia pensar, e uma raiva cresceu lentamente no estômago, subiu ao peito até dar um abraço de veias saltadas nos pulmões e coração.

Karl tomou meia cerveja em um só gole. Ele pegou a caneca e foi até a mesa do ocidental.

— Você é Uly? — perguntou Karl. Ele sentou-se em frente ao sujeito, que o observava com atenção, como se estivesse pronto para lutar. Os músculos pulsaram nos braços fortes de Uly, e uma mão se moveu para debaixo da mesa.

— E se eu for? — perguntou o homem. A voz tinha o mesmo sotaque de Talis, o mesmo de Mahri, embora fosse mais grave e acentuado, e Karl teve que escutar com atenção para entender as palavras.

— Eu soube que você faz poções. Para fertilidade.

O homem empinou um pouco o queixo e pareceu relaxar. A mão direita voltou à mesa arranhada e com marcas de canecas de cerveja. — Ah, isso. Eu faço sim. Você precisa de algo assim?

Karl deu de ombros. — Não de algo assim, mas talvez... de outra coisa. Eu tenho um amigo; o nome dele é Talis. Ele me disse que você pode fornecer uma coisa não para criar vida, mas para acabar com ela. Rapidamente.

Karl observou o rosto do homem ao falar. À menção de Talis, uma sobrancelha ergueu-se levemente. Uly levantou um canto da boca, como se achasse graça. Ele esfregou o crânio com marcas e tatuagens negras. As mãos eram grandes, a pele áspera, e havia uma cicatriz comprida no dorso: as mãos de um comerciante. Ou de um soldado. — Uma coisa assim deveria ser ilegal, vajiki. Mesmo que pudesse ser feita.

— Estou disposto a pagar bem por isso. Muito bem.

Ele concordou devagar com a cabeça. Uly levantou a caneca e bebeu tudo em um só gole, depois secou a boca com as costas da mão e disse — Está um belo dia. Vamos dar uma volta e conversar.

O homem levantou-se e Karl ficou de pé junto com ele. O resto do corpo atarracado de Uly era tão musculoso quanto os braços. Quando os dois chegaram à porta da taverna, uma mulher que corria para lá esbarrou em Karl e quase o derrubou sobre Uly. — Perdão, vajiki! — disse ela. O rosto estava sujo de terra, havia ranho seco em volta do nariz, e o hálito era desagradável. A mulher pegou a mão de Karl e colocou algo em sua palma. — Para dar sorte. O senhor tem que guardar isso, vai trazer boa sorte, vajiki. Guarde direitinho. — Ela fechou os dedos de Karl em volta do objeto, soltou o embaixador e saiu correndo pela porta. Karl olhou para o que a mulher colocara em sua mão: um seixo pequeno e claro. Uly riu.

— A mulher deve ter teia de aranha na cabeça — falou ele. — Vamos, vajiki.

Karl colocou o seixo no bolso da bashta e seguiu Uly pelo Beco do Sino, depois cruzaram a rua maior e entraram em outro beco em curva. Eles seguiam para o norte, na direção do Parque do Templo. — E qual é o seu nome, vajiki, uma vez que sabe o meu? — perguntou Uly enquanto os dois andavam.

— Andus. É tudo o que você precisa saber.

— Ah, somos cautelosos, não, vajiki Andus? Isso é bom. Isso é bom. E quem você quer que morra?

— Isso é da minha conta, não da sua.

— Discordo complemente — falou Uly —, pois a Garde Kralji viria atrás de mim e de você também, e eu não tenho interesse em me hospedar na Bastida. Eu exijo que me diga um nome, ou não faremos negócio.

— É o archigos. Eu sei que você já tem alguma experiência com isso.

Karl observou o homem, com um feitiço pronto para ser lançado a uma palavra e um gesto. Uly hesitou apenas de leve, mal perdeu o passo, mas, tirando isso, não houve resposta alguma. Ele continuou caminhando, e Karl teve que se apressar para alcançá-lo. A expressão do sujeito não se alterou, nem a atitude. Karl esperou que ele dissesse alguma coisa, a mão ao lado do corpo. Os dois passaram por um beco transversal...

... e Uly avançou contra Karl, uma mão grande prendeu a de Karl quando ele tentou erguê-la, e a outra mão tapou a boca do embaixador e bateu com a cabeça dele contra o alicerce de pedra de um prédio. O impacto fez Karl perder o fôlego e provocou fisgadas na cabeça. O joelho de Uly golpeou o estômago do embaixador. Karl sentiu ânsia de vômito e percebeu que estava caindo. Algo — um joelho, um punho, ele não sabia dizer o que — bateu na sua cabeça. Ele não conseguia enxergar, mal era capaz de respirar. Sentiu os paralelepípedos frios debaixo do corpo e a água imunda empoçada ali.

— Você é um tolo, embaixador ca’Vliomani — sibilou Uly. — Achou que eu não lhe reconheceria?

Você morrerá. Agora. Foi uma conclusão sombria.

Ele ouviu botas nos paralelepípedos; Karl percebeu que era um único par de passos e esperou que o golpe final viesse. O embaixador ouviu um grunhido e um grito de dor, e algo pesado caiu no chão, ao lado dele. Ele sentiu uma mão levantar sua cabeça e amarrar um capuz sobre ela para que não pudesse enxergar. O pano cheirava a suor velho. — Fique quieto e não será ferido — disse uma voz, que não era a de Uly. Alguém com um pouco de sotaque não identificável, nem grave ou agudo, o que tornava difícil sequer determinar o gênero da pessoa. — Tire o capuz e você morre. — Algo pontiagudo foi pressionado contra o pescoço, e Karl gemeu com a expectativa do golpe cortante. — Acene com a cabeça se entendeu.

Karl concordou, e a lâmina da faca desapareceu. Ele ouviu mais um barulho, parecido com um tapa e um gemido que só podia ser de Uly. — Responda se você quiser viver — disse a voz, embora não se dirigisse a Karl. — Você matou a archigos Ana, não foi? Você preparou a areia negra.

— Não. — Uly começou a dizer, mas a voz foi interrompida por um gemido de dor. — Tudo bem, tudo bem. Sim, eu ajudei a matá-la. Com a areia negra. Mas a ideia não foi minha. Eu só dei a substância para o homem e contei como usá-la. Não sabia o que ele pretendia fazer com ela. Ai! Droga, isso é verdade! — Lá se foi a preferência de Uly por morrer em vez de falar, pensou Karl. Talvez Talis não conhecesse seus guerreiros tão bem, afinal.

— Quem?

— Eu não sei... Ai! Por Axat! Pare! Ele me disse que o nome era Gairdi ci’Tomisi, mas não sei se o nome é verdadeiro ou não. Ele pagou bem, e isso era tudo que eu sabia ou que me importava!

Houve mais sons baixos e um longo lamento que só podia ter vindo de Uly. O homem ofegava agora, choramingava de dor, o fôlego era rápido e desesperado. — Por favor. Por favor, pare.

— Então fale mais a respeito deste homem — disse a outra voz. — Rápido.

— Parecia um ca’ ou co’, pelo jeito de falar. Firenzciano, talvez, pelo sotaque. Disse que as “ordens” vieram de Brezno, em todo caso. É tudo que sei. Eu preparei a substância, dei para o homem, e ele foi embora. Fiquei tão surpreso quanto qualquer um quando a archigos foi morta.

Karl queria desesperadamente arrancar o capuz do rosto para ver o que acontecia, mas não ousou. Houve mais sons: uma briga animada, um baque suave e depois um farfalhar. Alguém puxou sua bashta e remexeu o bolso. Ele pensou ter ouvido passos leves, mas, com a cabeça latejando e apitando, os sons eram tênues demais para Karl ter certeza.

Depois, por vários instantes, não houve absolutamente nada, apenas os sons distantes da cidade. — Alô? — sussurrou Karl. Não houve resposta. Ele levou as mãos ao pano amarrado em volta da cabeça e arrancou do rosto. O que viu fez com que o embaixador recuasse, horrorizado.

Karl olhou fixamente para o corpo de Uly nos paralelepípedos, com a garganta cortada e sangue espalhado pelas roupas. O olho direito estava aberto para o céu, mas sobre o esquerdo havia a pedra que a mulher deu para ele na taverna.

 

Allesandra ca’Vörl

SEMINI TENTOU ENTRAR EM CONTATO COM ELA por vários dias. Allesandra deixou as mensagens do archigos em cima da mesa. Quando ele mandou seu o’téni falar diretamente com ela, o homem foi informado pelos assistentes muito bem instruídos da a’hïrzg que Allesandra estava em reuniões e não podia ser incomodada. Quando o próprio Semini saiu do templo para vê-la, ela fez questão de sair da cidade com Jan para ver a reunião das tropas.

Quando Semini — sob a desculpa de trabalhar com os ténis-guerreiros que também estavam sendo reunidos — veio aos campos ao sul de Brezno, não houve, finalmente, jeito de evitá-lo.

Semini era um mancha escura e verde que contrastava com a brancura banhada pelo sol da lona da tenda. Do lado de fora, o acampamento militar agitava-se de manhã: com o clamor do metal conforme os ferreiros trabalhavam nas armas, armaduras e uniformes; o chamado de soldados; as ordens aos berros dos offiziers; o burburinho geral de movimentação; o som de pés que marchavam em uníssono enquanto os esquadrões treinavam. Cheiros entraram com a brisa quando Semini deixou a aba da tenda bater ao entrar: o cozinheiro e as fogueiras, o odor de lama revirada por milhares de pés, e o leve fedor das valas que serviam como latrinas.

Allesandra conversava com Sergei ca’Rudka, sentada atrás da mesa de campanha que um dia foi de seu vatarh, com painéis frontais pintados com imagens da famosas batalhas do hïrzg Jan ca’Silanta na Magyaria Oriental. — ... disse ao hïrzg e ao starkkapitän que esperem resistência assim que cruzarmos a fronteira — dizia Sergei, que parou e virou-se quando o olhar de Allesandra passou por cima de seus ombros na direção de Semini. — Ah, archigos. Talvez eu deva ir embora.

— Volte depois da Segunda Chamada e nós continuaremos a nossa conversa, regente — falou Allesandra. Sergei fez uma mesura, esfregou a lateral reluzente do nariz, e saiu da tenda dando um aceno de cabeça e o sinal de Cénzi para o archigos.

Semini parecia pouco à vontade, como se esperasse que ela se levantasse e o abraçasse assim que a aba da tenda se fechasse quando ca’Rudka saiu. Após um momento, ele finalmente fez o sinal de Cénzi para Allesandra e trocou o pé de apoio ao ficar parado diante da mesa como um offizier convocado por ela. — Allesandra. — Semini começou a dizer, e ela fez uma cara feia.

— Qualquer pessoa pode estar ouvindo pela lona da tenda. Nós estamos em público, archigos Semini, e eu espero que o senhor se dirija a mim de maneira apropriada.

Allesandra viu que ele apertou os olhos, irritado com a repreensão. Ele franziu os lábios sob a cobertura do bigode. — A’hïrzg ca’Vörl — falou Semini com lentidão proposital —, peço desculpas. — Depois, ele abaixou o tom em um quase sussurro, baixo e grave. — Espero que nós ainda possamos falar abertamente. Francesca, ela...

Allesandra balançou a cabeça de leve; ao movimento, Semini parou. — Eu falei com sua esposa — disse ela, com ênfase especial. — Naquela noite. Tivemos uma conversa ótima. Francesca parece acreditar que você teve algo a ver com a morte da archigos Ana.

Ela realmente não esperava que Semini reagisse, coisa que ele não fez. O archigos olhou para a a’hïrzg com uma expressão neutra e falou — Eu sei que a senhora tem algum carinho pela falsa archigos. Dado o que aconteceu com a senhora, eu compreendo. Mas Ana ca’Seranta era minha inimiga. Eu não sofri com seu falecimento, nem um pouquinho, e se minha alegria com a morte dela lhe ofende, a’hïrzg, então tenho que aceitar isso. Eu rezei, muitas vezes, que Cénzi levasse a alma dela, porque a mulher acreditava em coisas erradas, e foi em grande parte responsável pelo rompimento da Fé e pela cisão dos Domínios.

— Ela também é a razão de eu ser quem sou. Sem ela... — Allesandra deu de ombros. — Eu poderia não estar aqui. Jan poderia nunca ter nascido.

— E, no mínimo, por causa disso, eu rezei por ela quando morreu. — Semini deu um passo em direção à mesa de campanha, e parou. — Allesandra, o que aconteceu entre nós? É óbvio que você está me evitando. Por quê?

— Quando pretendia me contar que foi você que mandou matar Ana? Ou não pretendia me contar?

— Allesandra...

— Se não foi você, então negue, Semini. Diga-me agora que não foi você.

Allesandra não tinha certeza se queria que ele respondesse. Nos dias que se seguiram, ela tinha — através da equipe palaciana, através do comandante da Garde Brezno — realizado sua própria investigação. O nome de Gairdi ci’Tomisi havia surgido, e ela mandou o comandante co’Göttering levar o mercador, que por acaso estava em Brezno, para a Bastida a fim de ser interrogado. Ci’Tomisi, sob a persuasão menos do que gentil da Bastida, entregou toda a história: que servia Firenzcia e o archigos ca’Cellibrecca como agente duplo; que conhecia um ocidental em Nessântico que vendia poções, que o homem contara a ele a respeito de um poderoso preparado ocidental, que o sujeito havia demonstrado como essa “areia negra” funcionava e que ci’Tomisi falou para seus contatos no Templo de Brezno sobre seu poder, e que recebeu uma mensagem de volta (do “archigos em pessoa”) que — se ele fosse capaz — uma demonstração contra a Fé de Nessântico seria “interessante e muito bem recompensada”; que ele usou os contatos no Templo do Archigos em Nessântico para entrar à noite; que colocou a areia negra no Alto Púlpito e uma vela de tempo queimando no interior, com a chama programada para tocar a areia negra no mesmo momento em que a archigos Ana desse a Admoestação.

Ci’Tomisi confessou para salvar a própria vida, choramingou e chorou. Ele conseguiu, mas Allesandra perguntou-se se, na cela suja e imunda nas profundezas da Bastida, ci’Tomisi desejaria que não tivesse conseguido.

A a’hïrzg também sabia que Semini já devia ter percebido que ci’Tomisi havia sido preso e que provavelmente tinha confessado. Portanto, Allesandra observava Semini e imaginava o que ele diria, se lhe diria a mentira e negaria qualquer conhecimento a respeito do caso, e como ela deveria reagir se o archigos fizesse isso.

Mas Semini não negou. — Eu sou o archigos. Preciso fazer o que parecer ser melhor para a fé concénziana, e, na minha opinião, a Fé permaneceria tão quebrada quanto o mundo de Cénzi até que aquela mulher morresse.

Ao ouvir isso, a mão de Allesandra foi ao pingente com o globo rachado que ela usava, aquele que fora dado por Ana. A a’hïrzg viu que Semini observou o gesto e falou — Cénzi teria levado Ana em Seu próprio tempo. E, caso não levasse, por que você deveria agir por Ele?

Semini teve a dignidade e a humildade de abaixar os olhos para a grama bem aparada que servia de piso na tenda. — Cénzi geralmente exige que as pessoas ajam por Ele — respondeu o archigos, finalmente. — Houve... uma oportunidade repentina, uma que se apresentou de maneira completamente inesperada, e não apontaria para Firenzcia, e sim tanto para os numetodos quanto para os ocidentais. Isso, por acaso, é mais errado do que alguém nos Domínios mandar a Pedra Branca matar Fynn? — Ele encarou Allesandra.

Ela sentiu uma pontada de culpa e franziu a boca. Semini pareceu interpretar o gesto como irritação.

— Eu tive que agir imediatamente ou simplesmente não agiria — continuou ele. — Eu rezei para Cénzi pedindo por orientação e senti que fui respondido. E, naquela ocasião, a’hïrzg, a senhora e eu não éramos... — Semini deixou a próxima palavra pairar no silêncio. O archigos continuou a falar, mas agora a voz era um sussurro praticamente inaudível. — Se nós fôssemos, Allesandra, eu teria pedido seu conselho e acatado. Em vez disso, eu pedi ao seu vatarh, que já estava muito doente, e ao seu irmão.

— Você está me dizendo que o vatarh sabia? E Fynn? Eles também aprovaram isso?

— Sim. Sinto muito, Allesandra. — O arrependimento na voz parecia genuíno. As mãos estavam erguidas, como se pedisse perdão, e havia uma umidade nos olhos de Semini que refletiu o sol que entrava pela lona. — Sinto muito — repetiu. — Se eu soubesse como o ato magoaria você, se soubesse o que faria conosco, eu teria impedido. Teria mesmo. Você tem que acreditar nisso.

— Não. — Allesandra balançou a cabeça. Semini. Fynn. E vatarh. Todos eles aprovaram a morte da mulher que me manteve viva e sã. — Eu não tenho que acreditar nisso, de maneira alguma. Você diria tal coisa fosse ou não verdade.

— Como posso provar para você?

— Você não tem como provar, mas isso é algo que você deveria ter me contado há muito tempo: pelo meu papel como a’hïrzg, ou como matarh do hïrzg, pelo menos. E não sei como ficamos diante dessa situação. Não sei mesmo.


O cavalo estava encharcado de suor ao galopar velozmente encosta acima, onde eles esperavam, e as patas musculosas tremeram quando o cavaleiro desmontou, com uma bolsa de mensageiro na mão. O homem imediatamente se ajoelhou diante de Jan, Allesandra, Sergei e Semini e disse — Notícias urgentes de Nessântico, meu hïrzg. — Havia sujeira da estrada na roupa de couro do mensageiro, que tinha terra no cabelo e no rosto. A voz estava abalada pelo cansaço, e o homem parecia, assim como a montaria, estar à beira de um colapso. Ele ofereceu a bolsa com uma mão trêmula. Jan pegou a bolsa enquanto Allesandra gesticulava para os assistentes, que estavam apropriadamente a poucos passos do quarteto. — Deixem esse homem comer e descansar e cuidem do cavalo.

Os assistentes correram para obedecer. Jan desdobrou o pergaminho grosso de dentro da bolsa, que deixou cair no chão. Allesandra observou os olhos do filho vasculharem as palavras ali. Jan arregalou os olhos e entregou o papel para ela em silêncio. A a’hïrzg entendeu seu choque rapidamente; as frases ali pareciam impossíveis.

... O kraljiki Audric foi assassinado da mesma forma que a archigos Ana... Sigourney ca’Ludovici foi nomeada kraljica, mas foi ferida no ataque... Karnor foi arrasada e pilhada por ocidentais... O exército ocidental aproxima-se de Villembouchure... a Garde Civile e os chevarittai foram reunidos para detê-los...

Ela passou a mensagem para Sergei, que a leu com Semini olhando atentamente sobre seus ombro, e ouviu o archigos dizer — A’hïrzg, isso é uma surpresa para mim. Juro por Cénzi que não sabia de nada a respeito dessa situação. Audric morto... — Ele espalmou as mãos em súplica. — Não fui eu que fiz isso, nem era minha intenção.

Allesandra não prestou atenção às declarações de Semini. Ela passou o braço por Jan, que olhava fixamente para o acampamento do exército, resplandecente com os estandartes e armaduras, cheio de tendas acinzentadas e agitado pela atividade de milhares de soldados. — O que isso significa, matarh? — perguntou Jan para ela, embora Allesandra tenha notado que ele olhava para Sergei também. — Diga-me o que está pensando.

— Significa que Cénzi realmente nos abençoou — respondeu a a’hïrzg. — Estamos avançando na hora certa, quando nosso inimigo está mais fraco. — Ela quase gargalhou. Audric morto, ca’Ludovici ferida, e a atenção dos Domínios voltada para os ocidentais em vez de estar de olho em Firenzcia. — Este é o seu momento, meu filho. Seu momento. Tudo que você tem a fazer é aproveitá-lo.

Era o momento dela também, talvez mais do que do filho, mas Allesandra não disse isso.

Jan continuava a olhar fixamente para o acampamento. Então ele se sacudiu e, naquele momento, Allesandra notou um vislumbre do vavatarh no filho: o maxilar trincado, a certeza no olhar. Era a maneira como o velho hïrzg Jan sempre parecia quando tinha se resolvido; ela lembrava-se bem.

— Tragam o starkkapitän ca’Damont à minha presença — falou Jan. — Eu tenho novas ordens para ele.

 

A Pedra Branca

ELA ESTAVA DO OUTRO LADO DA VIELA, em frente aos dois, quando Talis chegou ao prédio e bateu na porta, com Nico à mão. A Pedra Branca ouviu o grito de Serafina — Nico! Ó, Nico! — e viu a mulher pegar o menino nos braços... e também notou Talis ficar tenso, como se estivesse assustado, e erguer a bengala que sempre carregava como se fosse bater em alguém, enquanto gesticulava com a mão livre como se quisesse que Serafina e Nico fossem embora.

Ela cruzou a viela correndo, com a mão em uma das facas de arremesso escondida na tashta. Ouviu trechos de uma conversa alta ao se aproximar.

— ... apenas saia! Agora! ... o embaixador numetodo... tentou me matar...

— ... sabia onde Nico estava e não foi até ele?...

Houve mais diálogos, mas as vozes martelavam a cabeça da Pedra Branca, que não conseguiu distinguir as reais daquelas dentro da mente. A porta fechou-se quando Talis entrou, e ela aproveitou a oportunidade para entrar de mansinho no espaço apertado entre os prédios. Ali, a Pedra Branca encostou-se contra a parede ao lado de uma janela fechada. Ouviu a conversa abafada, tão bem que percebeu que não precisava interferir. Não ainda. Houve uma conversa sobre o assassinato da archigos Ana (— Aquela bruxa cruel mereceu morrer pelo que fez com minha família — berrou Fynn); sobre algo chamado areia negra que podia matar (e todas as vozes das vítimas berraram na cabeça dela ao ouvir aquilo — Morte! Morte! Sim, traga mais gente aqui para nós! — Era tão alto que ela teve que soltar um berro silencioso para que as vozes parassem); sobre um homem chamado Uly (— Esse nome... — disse Fynn. — Eu conheço esse nome...).


Quando ficou claro que Talis e Nico permaneceriam ali, a Pedra Branca saiu de mansinho novamente, voltou ao apartamento e recolheu as coisas que tinha lá. Naquela noite, após três ou quatro paradas, ela alugou um novo apartamento, numa rua ao sul de onde morava a matarh de Nico: lá, pela janela, era possível ver a porta da casa de Nico pelo espaço entre os prédios.

Por quatro dias, ela observou. À noite, entrava de mansinho no espaço entre as casas para ouvi-los. Seguia o grupo sempre que eles saíam, especialmente se Nico estivesse junto. Por dias, a Pedra Branca observou as idas ao Velho Distrito, as tentativas de achar Uly. Ela mesma já havia encontrado o homem, que vivia em um apartamento miserável no Beco do Sino, perto do mercado do Velho Distrito. Considerou o estrangeiro estranho e desprezível — não era um homem que se importava com a limpeza de onde morava ou com a sujeira das roupas. Ele era grosso e mal-educado com os fregueses para quem vendia poções, geralmente na taverna embaixo do apartamento: o Cisne Vermelho. Frequentemente estava bêbado, e era um mau bêbado. Também podia ser violento; com certeza era brutal com as prostitutas que contratava, a ponto de ser evitado pela maioria das mulheres que fazia ponto nas ruas em volta do mercado.

Por dias, ela observou.

A Pedra Branca ficou surpresa, um dia, ao ver Nico acompanhando Varina e Karl ao mercado — geralmente isso era uma coisa que Serafina não permitia. Mas ela também sabia que as idas ao mercado agora eram rotineiras, que a cada dia que passava o grupo tinha menos esperanças de encontrar Uly, que Varina e Serafina tornaram-se amigas íntimas, que Nico parecia considerar a mulher numetodo quase como uma tantzia querida. A Pedra Branca seguiu o trio de perto, contornou a multidão em volta das barracas, chegou próximo o suficiente, a ponto de quase ouvi-los, mas nunca tão perto a ponto de um deles notá-la. Viu o grupo falar com um fazendeiro em sua barraca, viu o homem apontar e os três irem embora correndo, com Varina parecendo subitamente preocupada. Karl foi até uma mulher com uma tashta amarela — uma mulher que a Pedra Branca reconheceu como uma das freguesas de Uly.

O estômago deu um nó forte de preocupação; ou talvez fosse a criança que crescia ali. As vozes murmuraram — A mulher vai contar para ele... Você tem que interferir... — Ela colocou a mão na pedra branca na bolsinha pendurada no pescoço e a apertou com força, como se pudesse calar as vozes com o toque.

Se Karl tivesse ido atrás de Uly com Nico, a Pedra Branca teria detido os três. Ela não deixaria que colocassem o menino em perigo. Não deixaria.

Mas Karl mandou Varina e Nico embora. Ela seguiu os dois por tempo suficiente para saber que a mulher e o menino realmente voltavam para casa, depois retornou rapidamente, correu pelas ruas na direção do Cisne Vermelho.

Ela viu Karl entrar na taverna e entrou atrás dele. Uly estava lá, sentado à mesa de sempre e — também como sempre — meio bêbado. Karl também tinha visto o homem, mas estava no bar, onde pediu uma cerveja. Enquanto ela observava, o embaixador afastou-se do bar e foi à mesa de Uly. A Pedra Branca não conseguiu ouvir a conversa, mas, não muito tempo depois, Uly terminou a cerveja e ficou de pé, e Karl seguiu o homem até a porta.

— Você sabe o que acontecerá — cacarejou Fynn na cabeça dela. — O que você fará a respeito?

A Pedra Branca agiu, meteu-se entre Karl e a porta, e esbarrou no embaixador de propósito. — Perdão, vajiki! — falou. Ela segurou a mão do embaixador e colocou a pedra na palma dele. — Para dar sorte. O senhor tem que guardar isso, vai trazer boa sorte, vajiki. Guarde direitinho.

Ela torceu para que Karl fizesse isso, porque não poderia ajudá-lo se ele não guardasse. Se o embaixador tivesse devolvido a pedra, deixado cair ou jogado fora, ela estaria de mãos atadas. — A Pedra Branca não consegue matar sem o ritual agora — disseram as vozes em um coro debochado. — Fraca. Estúpida.

Mas Karl guardou a pedra. Ela se escondeu ao sair da taverna, e, alguns instantes depois, Karl e Uly surgiram. O estrangeiro levou Karl para longe da taverna, e ela os seguiu com cuidado. De qualquer maneira, Uly parecia estar bêbado demais ou desinteressado demais para ver se alguém observava. A Pedra Branca viu Karl ser empurrado por Uly para dentro de um beco e correu atrás, em silêncio.

Quando ela chegou ao cruzamento, Karl já estava caído, e era óbvio que Uly pretendia espancá-lo até a morte. — Você é um tolo, embaixador ca’Vliomani. — A Pedra Branca ouviu o estrangeiro rosnar. — Achou que eu não lhe reconheceria?

Então ela agiu, novamente, como a Pedra Branca, séria e implacável. Uly ergueu os olhos ao ouvir a aproximação, mas o chute já estava no ar, acertou o joelho e fez o homem desmoronar, soltando um gemido, depois ela acertou dois socos na lateral da cabeça que o derrubaram no chão, inconsciente.

A Pedra Branca rapidamente rasgou a bashta de Uly, depois se dirigiu para Karl, que gemia, meio inconsciente. Ela enrolou o pano rasgado na cabeça do embaixador, sacou sua faca favorita da bainha e pressionou contra o pescoço dele. — Fique quieto e não será ferido. — ela engrossara o tom de voz. — Tire o capuz e você morre. Acene com a cabeça se entendeu.

Ele balançou a cabeça uma vez, e a Pedra Branca deixou Karl e foi até Uly. Deu um tapa na cara do homem, para despertá-lo, viu Uly arregalar os olhos ao notá-la, e mostrou a faca antes de enfiá-la com força na pele tatuada do pescoço. Colocou a bota sobre o joelho quebrado do sujeito. — Ele viu você. Não pode deixá-lo vivo agora — clamaram as vozes, e ela pediu que fizessem silêncio.

— Responda se você quiser viver — disse a Pedra Branca. Ela percebeu que o homem começou a erguer as mãos e fez que não para ele enquanto enfiava a ponta da faca no pescoço, perto de uma veia saltada e pulsante. — Você matou a archigos Ana, não foi? Você preparou a areia negra.

— Não. — O homem começou a dizer, mas a Pedra Branca enfiou a faca mais fundo diante da mentira. — Tudo bem, tudo bem. — Uly afastou-se dela o máximo possível. — Sim, eu ajudei a matá-la. Com a areia negra. Mas a ideia não foi minha. Eu só dei a substância para o homem e contei como usá-la. Não sabia o que ele pretendia fazer com ela. — Novamente, a Pedra Branca pressionou a faca com mais força. — Ai! Droga, isso é verdade!

— Quem? — perguntou ela, pois sabia que Karl ouviria; a Pedra Branca daria ao embaixador a informação que ele queria, desde que isso significasse que Nico ainda estaria a salvo.

— Você tem que matar esse aí. Você precisa matá-lo.

— Eu não sei... — disse Uly. Ela ignorou a voz, puxou ligeiramente a faca em sua direção e abriu um corte. O sangue quente pingou do pescoço. — Ai! Por Axat! Pare! Ele me disse que o nome era Gairdi ci’Tomisi, mas não sei se o nome é verdadeiro ou não. Ele pagou bem, e isso era tudo que eu sabia ou que me importava!

O homem tentou empurrá-la, e a Pedra Branca colocou mais peso sobre o joelho quebrado. Ele ofegou de dor. — Por favor. Por favor, pare.

— Então fale mais a respeito deste homem — falou ela. — Rápido.

— Parecia um ca’ ou co’, pelo jeito de falar. Firenzciano, talvez, pelo sotaque. Disse que as “ordens” vieram de Brezno, em todo caso. É tudo que sei. Eu preparei a substância, dei para o homem, e ele foi embora. Fiquei tão surpreso quanto qualquer um quando a archigos foi morta.

— Você não pode ficar aqui. Tem que ir embora ou alguém chegará e verá você.

As vozes estavam certas. Ela franziu os lábios. Com um movimento violento, ela cravou fundo a faca na garganta do homem e a cortou da direita para a esquerda. O sangue quente jorrou, e o homem morreu com uma golfada de fôlego líquido. Neste instante, a assassina puxou rapidamente a bolsinha de dentro da tashta agora ensanguentada e a abriu, depois colocou a preciosa pedra branca no olho direito aberto do homem. A seguir, foi até Karl, vasculhou seu bolso rapidamente e achou a pedra que dera para ele. Esta foi colocada sobre o olho esquerdo de Uly. Ela embainhou a faca, esperou um instante, depois pegou sua pedra no olho direito.

A Pedra Branca já podia ouvir a voz de Uly, que lamentava em uma língua que ela não compreendia.

Ela guardou a pedra na bolsinha novamente. Olhou uma vez para Karl, que fazia um esforço desesperado debaixo do pano para escutar.

A Pedra Branca correu. Correu — ateve-se às sombras e aos becos solitários por causa da tashta manchada de sangue — para encontrar Nico, para saber se ele ainda estava a salvo.


??? MATANÇA ???

Kenne ca’Fionta

Aubri co’Ulcai

Allesandra ca’Vörl

Niente

Varina ci’Pallo

Kenne ca’Fionta

Sergei ca’Rudka

Nico Morel

Karl ca’Vliomani

A Batalha Começa


Kenne ca’Fionta

KENNE ESTAVA NA SACADA do lado de fora de seu gabinete particular e olhava para a Praça do Templo. Lá embaixo, ténis em robes verdes misturavam-se à multidão de pessoas comuns que corriam para escapar da garoa, que caía de nuvens baixas e cinzentas. O tempo parecia tornar pesadas as asas dos pombos, que arrulhavam em grupos; as pessoas passavam correndo, os pássaros afastavam-se e balançavam as cabeças, mas não alçavam voo.

O dia ruim e desagradável combinava com o humor de Kenne.

Ele estaria morto se tomasse a decisão errada e não tinha certeza de como evitar esse destino.

Mesmo que evitasse a morte física, Kenne estaria morto dentro da fé concénziana. Ele já sentia os abutres começando a se reunir: nos rumores que vinham de todo mundo, do mais baixo e’téni às mensagens nas entrelinhas que recebia dos a’ténis em suas cidades. Quando teremos outro conclave?, perguntavam. Há assuntos urgentes que todos precisamos discutir. Como devemos reagir às notícias de Nessântico? O que o archigos acha sobre essas questões?

As entrelinhas se escondiam nas perguntas inocentes. Elas começaram quando ele foi promovido a archigos, após o assassinato da pobre Ana. O coro ficou mais alto e constante desde a morte do kraljiki Audric e as notícias da invasão ocidental. As mensagens chegavam todos os dias por mensageiros de Fossano, de Prajnoli, de Chivasso, Belcanto e An Uaimth, de Kasama, Quibela e Wolhusen. Nós não confiamos na sua liderança. Outra pessoa precisa ser o archigos. Era o que diziam sob as palavras educadas e indiretas escritas por eles. Você deveria ser retirado do Trono de Cénzi.

O pior de tudo é que Kenne descobriu que concordava com eles. Eu nunca quis isso, o archigos queria escrever em resposta. Eu jamais pedi para sentar no lugar de Ana. Eu preferia muito mais que outra pessoa assumisse essa tarefa por mim. Ele mesmo disse isso para Ana há muitos anos, após retornar a Nessântico para ser o a’téni da cidade sob o comando dela, após o exército firenzciano ter sido dispersado. — Você estava aqui antes de mim — disse Ana para Kenne, quase parecendo envergonhada de estar sentada atrás da mesa em que ambos se lembravam de ter visto o archigos Dhosti. — Por direito, você deveria estar aqui e não eu, meu amigo.

Ele riu ao ouvir aquilo e balançou a cabeça. — O archigos Dhosti disse para mim, há muito tempo, que eu era um excelente seguidor. Ele estava certo. Eu sigo muito bem, mas não lidero. Não possuo seja lá o que for que você tem, Ana. Dhosti enxergou essas qualidades em você... você sabe liderar. É forte, talentosa, e tem uma força de vontade que é assombrosa. É por isso que ele fez de você sua o’téni. Se ele tivesse vivido, teria lhe preparado para o cargo da mesma forma. Eu... — Outra negativa com a cabeça. — Eu fui destinado a ser o que sou. Nada mais. E estou bem contente que seja assim.

Ana discordou, educadamente, mas ambos sabiam que — por dentro — a archigos concordava com ele. Com Dhosti.

No entanto, Cénzi impôs essa tarefa a ele no fim da vida, e Kenne só podia imaginar que isso era alguma espécie de piada cósmica.

Os a’ténis da Fé eram um perigo para Kenne, e a nova kraljica era outro. Ela sentia dores — ela sentiria dores pelo resto da vida, era quase certo. Sigourney ca’Ludovici fora jogada em uma crise terrível com a perda dos Hellins, o assassinato de Audric e agora a invasão dos próprios Domínios pelos ocidentais. Havia Firenzcia do outro lado, que não era mais um aliado, e sim um inimigo, pelas costas. Ela tentaria consolidar seu cargo. Tentaria desesperadamente sobreviver como kraljica, e, para tanto, procuraria por pessoas fortes que poderiam apoiá-la e dispensaria aqueles que considerasse fracos demais para ajudar — porque a fraqueza nos aliados da kraljica seria um perigo tão grande quanto os ocidentais e os firenzcianos.

Kenne sabia que a opinião de Sigourney a seu respeito era talvez ainda mais baixa do que a dos a’ténis. Ela faria uma rápida manobra para substituí-lo. Por conhecer a história de Nessântico, Kenne não excluía a possibilidade de a solução da kraljica ser o seu assassinato e a sua substituição por alguém mais adequado para ela. Já aconteceu com outros archigi antes de Kenne, quando eles entraram em conflito com os líderes políticos dos Domínios: um archigos assim podia morrer sob circunstâncias misteriosas. Bastava olhar para o próprio archigos Dhosti, afinal.

Kenne olhou para a praça lá embaixo, onde certa vez o corpo quebrado de Dhosti esteve estatelado, com o sangue fluindo entre os paralelepípedos. Ele imaginou se um dia, em breve, seu corpo seria jogado pelo parapeito até cair, debatendo-se desesperadamente no chão lá embaixo.

— Archigos?

Kenne sentiu um arrepio ao ouvir o chamado. Ele virou-se devagar e esperou ver Petros. Mas não era ele. Era, em vez disso, um fantasma.

— Eu sei — falou o fantasma, e o sotaque da voz confirmou suas suspeitas. — Você não esperava me ver novamente. Francamente, nem eu. Desculpe assustá-lo, archigos. Petros foi gentil em me deixar entrar.

— Karl... — Kenne entrou novamente no gabinete e deu a volta na mesa para abraçar o numetodo. — Olhe para você... sem barba, com cabelo pintado e cortado como uma pessoa qualquer, sem status, e essas roupas horríveis. Eu não teria reconhecido você... mas imagino que essa seja a ideia, não é? Eu pensei, após ter ajudado Sergei a escapar, que você tivesse fugido da cidade. — Ele balançou a cabeça. — Esses são tempos sombrios — disse Kenne com cansaço, sendo tomado pela depressão novamente. — Tempos terríveis. Mas eu esqueço meus modos. Você parece cansado e faminto. Quer que Petros traga alguma coisa?

Karl já balançava a cabeça. — Não, archigos. Não há tempo, e eu não devo ficar aqui mais tempo do que o necessário. Eu... eu preciso de um favor.

— Se estiver dentro da minha capacidade — falou Kenne, que teve que esmagar o pensamento que veio em seguida: dentro da pouca capacidade que tenho, infelizmente...

— Está sim, eu espero. Por favor, archigos, sente-se. Isso pode levar tempo. Eu sei, pelo menos acho que sei, quem matou Ana.

Kenne ouviu a história de Karl com apreensão, desconfiança e horror cada vez maiores. No fim, ele estava recostado na cadeira atrás da mesa e balançava a cabeça.

— Um homem chamado Gairdi ci’Tomisi, você diz? — falou Kenne finalmente. O archigos ficou chocado à menção do nome e perguntou-se que mais ele não sabia. — Um firenzciano? Ele fez isso com ajuda de magia ocidental?

— Firenzciano, sim — declarou Karl. — Mas você tem que entender que não houve magia envolvida. Não; essa areia negra não é uma criação de seu Cénzi, nem tampouco dos deuses ocidentais. Ela não é mágica, não vem do Segundo Mundo; é apenas o produto da imaginação e da lógica de uma pessoa. — Karl bateu na cabeça com o dedo. — E isso torna a areia negra ainda mais perigosa. Veja...

Karl tirou uma pequena bolsinha do bolso da tashta suja e esfarrapada e derramou um pó escuro e granulado no mata-borrão da mesa de Kenne. O archigos cutucou a substância com um dedo curioso. — Uly tinha um estoque disso em seu apartamento; eu subornei o estalajadeiro para me deixar entrar. Uly tinha os ingredientes lá dentro, então sabíamos o que eram. Varina acha que é capaz de reproduzir essa mistura mesmo que Talis não nos ajude. Parada assim como está, a areia negra é bem inocente, mas coloque uma chama em contato com ela, e... — A voz de Karl foi sumindo, e ele afastou o olhar. Kenne sabia do que o homem estava se lembrando; ele também se lembrava, muitíssimo bem.

— O que eu posso fazer? — perguntou o archigos. Ele abaixou o olhar para a mesa suja.

— Veja se consegue descobrir mais sobre esse Gairdi ci’Tomisi que Uly mencionou.

Kenne olhou para o numetodo com uma cara triste. — Eu o conheço. Pelo menos acho que sim. Ele é um mercador com licenças de passagem tanto de Brezno quanto de Nessântico e vai e volta pela fronteira. Nós, tanto Ana e eu, usávamos Gairdi. Nós achávamos... achávamos que ele era nosso homem, nosso espião. Ele levava mensagens aos ténis dentro do Templo de Brezno, para quem pensávamos que podíamos confiar e trazia respostas sobre o archigos Semini. Agora... — Kenne ergueu os olhos para o numetodo. — Se ele realmente era um agente duplo, a serviço de Semini ca’Cellibrecca...

— ... Então foi ca’Cellibrecca quem mandou matar Ana. — Karl encerrou a frase por ele. Seu maxilar fez um ruído alto ao se fechar.

Kenne sentiu o que restou do almoço subir pela goela. Ele engoliu em seco para conter a bile. Sim, o archigos acreditava que ca’Cellibrecca era capaz de cometer assassinato —, o homem fora um téni-guerreiro pela maior parte da vida. Porém, ele não teria matado Ana sem um motivo. Kenne tinha medo de que sabia exatamente qual seria a razão: ca’Cellibrecca esperava que a pessoa colocada no lugar de Ana fosse fraca e que pudesse explorar essa fraqueza para reunir a fé concénziana novamente — com ca’Cellibrecca como archigos em Nessântico, assim como em Brezno.

Porque ele sabia que seria eu. Provavelmente já está falando com a kraljica e fazendo sondagens.

— Archigos? — Kenne respirou fundo antes de erguer os olhos para Karl. — Nenhum numetodo matou Audric — declarou o embaixador. — Nenhum numetodo matou Ana. Isto matou os dois. — Ele gesticulou para a areia negra na mesa de Kenne. — Isso me faz pensar que a mesma pessoa é responsável pelos dois assassinatos.

Parecia uma hipótese razoável para Kenne, mas ele já esteve errado sobre tanta coisa que não confiava mais no próprio discernimento. — O que... o que você quer que eu faça? — O archigos ergueu as mãos da mesa, a ponta de um dedo estava escura com o pó que ele tocou. — Como posso ajudar?

— Veja o que mais você consegue descobrir. Veja se Semini realmente fez isso; se foi ele, eu quero fazer o homem pagar. Mas Varin... — Karl parou. — Quero dizer, Ana não iria querer que eu fizesse qualquer coisa até eu saber, saber com certeza. Pode me ajudar com isso? — Ele apontou novamente para o monte de areia negra no mata-borrão de Kenne. — Você sabe o que é isso, não sabe? — perguntou o numetodo. O archigos limitou-se a balançar a cabeça.

— Isso são as cinzas da magia — falou Karl. — Isso é como a magia se parece quando morre.

Kenne abaixou o olhar novamente. Parecia que estava olhando para os próprios restos mortais.

 

Aubri co’Ulcai

O COMANDANTE AUBRI CO’ULCAI OLHOU para trás e balançou a cabeça ao se perguntar como a batalha tinha chegado a este ponto. Isso nunca deveria ter acontecido. Não era possível.

Ele imaginou como a nova kraljica receberia as notícias e esperava que soubesse a resposta. E a única desculpa que Aubri tinha era que os ocidentais recusavam-se a lutar honrosamente, como deveriam.

Tudo começou há dois curtos dias...


Vários chevarittai — como era comum — saíram em seus cavalos de guerra para fazer desafios individuais enquanto as forças ocidentais aproximavam-se de Villembouchure. Nenhum guerreiro ocidental veio responder ao desafio; as fileiras da vanguarda do exército marcharam em frente, intactas e inabaladas mesmo quando os chevarittai debocharam de sua honra e coragem. Eles foram ignorados ou, pior ainda, atacados com flechas covardes e fogo dos feiticeiros ocidentais. Três chevarittai morreram antes que Aubri mandasse que as trompas soassem a ordem de retorno. Eles deram meia-volta com os cavalos de guerra e retornaram a galope para trás das fileiras de infantaria e de ténis-guerreiros, que aguardavam.

Aubri reuniu-se com seus offiziers; eles esperavam que o ataque começasse assim que o exército ocidental chegasse ao cume do último morro antes de Villembouchure. Afinal, era pouco antes da Segunda Chamada, e ainda havia viradas da ampulheta de luz do dia. Os ocidentais chegaram à distância de dois tiros de flecha da vanguarda da força dos Domínios e pararam... e permaneceram parados. Os chevarittai e seus offiziers imploraram que Aubri os deixasse avançar e atacar. O comandante recusou-se, lamentavelmente — fazer isso significava abandonar as fortificações e casamatas que eles erigiram nos últimos dias. O exército dos Domínios estava disposto em uma posição defensiva perfeita, e Aubri era avesso a sair dali.

Este foi o primeiro dia. Ele foi dormir nessa noite convencido da futura vitória — o avanço ocidental seria detido por suas fileiras de veteranos. A força ocidental, conforme verificaram seus batedores e todos os relatórios do campo de batalha, era substancialmente menor que a sua: nenhum exército daquele tamanho, nem mesmo os firenzcianos em seu apogeu, teria sido capaz de derrotar as defesas que Aubri montou. Os navios da frota tehuantina entupiram o A’Sele, mas estavam longe demais do campo de batalha para afetar a situação; de qualquer forma, Aubri sabia que uma força naval de Nessântico estava a caminho para cuidar dos navios inimigos. Na pior das hipóteses, as muralhas de Villembouchure iriam detê-los se, por alguma razão imprevista, Aubri não conseguisse contê-los nos campos do lado de fora da cidade. As forças ocidentais eram pequenas demais para um cerco efetivo, e Villembouchure era bem abastecida e podia suportar o sítio de um exército bem maior por pelo menos um mês.

Sim, Aubri estava confiante. Apesar do fato de seu exército ter sido rapidamente reunido e a maior parte da infantaria não ter muito treinamento, os offiziers e os chevarittai com eles tinham experiência em batalha adquirida nas muitas escaramuças ocorridas nas últimas décadas com Firenzcia e as nações da Coalizão.

Eles venceriam aqui.

A batalha começou no segundo dia, mas não com a chegada da alvorada, contrariando toda a experiência de Aubri e dos offiziers que o treinaram. Não... o ataque veio bem antes de o sol subir no céu. E veio de maneira estranha. Os vigias postados nas casamatas mais avançadas mandaram mensageiros correndo para a tenda do comandante atrás das linhas, e o agito acordou Aubri de um sono leve e atormentado por sonhos.

— Uma tempestade aproxima-se de nós em pernas feitas de relâmpagos — clamaram os mensageiros. — Uma muralha de nuvem...

Trompas de alarme soaram pelo acampamento, e os soldados colocaram as armaduras e pegaram suas armas às pressas enquanto os offiziers berravam ordens. Ao longe, uma luz azul piscava e dançava, trovões retumbavam, e, no entanto, o céu acima deles estava limpo, marcado pelas várias constelações conhecidas. Aubri montou no cavalo que os assistentes trouxeram apressadamente para ele. O comandante galopou com rapidez até a vanguarda e foi acompanhado ao longo do caminho pelo a’téni Valis ca’Ostheim de Villembouchure, que estava no comando dos ténis-guerreiros. — O que em nome de Cénzi está acontecendo? — rugiu ca’Ostheim. A espessa cabeleira branca parecia cintilar à luz da tempestade adiante; a barriga caía sobre o cepilho da sela de seu cavalo. Os cílios ainda tinham remelas do sono. Um colar grosso de ouro com um globo partido pendurado quicava no peito enquanto os dois cavalgavam. — Eu pensei que o senhor tinha dito que o ataque ocorreria na alvorada, comandante.

— Eu disse, sim — respondeu Aubri calmamente. — Ao que parece, os ocidentais não estavam escutando.

Na primeira linha de casamatas, os dois homens pararam e observaram o espaço entre os dois exércitos. O acampamento ocidental, que cintilava na encosta distante como estrelas amarelas caindo na terra quando Aubri foi dormir, não estava mais visível. Ao contrário, eles foram confrontados por uma aparição da natureza: uma muralha de nuvem escura e agitada, com talvez doze homens de altura e que flutuava à distância de dois homens acima do chão. Como uma espécie de monstro sobrenatural sinistro, a criatura de nuvem avançou na direção deles sobre centenas de pés de relâmpagos que piscavam. Os clarões estocavam o chão embaixo e pareciam fazer a nuvem avançar alguns metros a cada golpe. Aubri viu o chão ser rasgado onde os raios caíam, e a nuvem deixava um rastro de pegadas de tempestade arrancadas do chão. Um barulho constante de trovoada e um rosnado alto e estridente acompanhavam a visão. Ao redor dos dois, o exército dos Domínios olhava fixamente para a aparição com rostos iluminados pelos clarões azuis esbranquiçados e inconstantes. Aubri sentiu o pânico se espalhar pelas fileiras, os homens deram alguns passos para trás involuntariamente, para longe das barreiras baixas e fortificações que eles erigiram. — Mantenham a posição! — berrou Aubri para eles. As trompas soaram a ordem pela frente de batalha. — Mantenham a posição! — Os homens sacudiram-se como se acordassem de um pesadelo. Eles seguraram firme em lanças inúteis e encararam o monstro que os confrontava. Ele praticamente já havia cruzado o campo aberto agora, e Aubri não conseguiu ver nada além de seu limite feroz.

— A’téni ca’Ostheim, isso é magia; é a sua área. — Aubri quase teve que gritar mais alto do que o barulho crescente da aparição tempestuosa para ca’Ostheim, o líder dos ténis-guerreiros, ouvir. — O senhor consegue deter essa coisa?

— Tentarei — respondeu ele ao desmontar. Ca’Ostheim começou um cântico e um estranho gestual em frente ao corpo. Aubri sentiu um arrepio nos pelos dos braços conforme o a’téni continuava a entoar e os raios começaram a tocar as bordas das defesas; ele não sabia qual das duas coisas causou esta reação. O cavalo de Aubri, embora acostumado ao clamor, ao barulho e às imagens de guerra, estava preocupado e batia os cascos no chão enquanto se afastava um pouco da aparição. Aubri teve que se abaixar e dar tapinhas no pescoço do animal para acalmá-lo. — A’téni! Rápido, por favor.

Ca’Ostheim ergueu as mãos; o cântico parou. Ele gesticulou para a tempestade. Um vento estridente soprou do téni-guerreiro, e onde tocou na aparição tempestuosa, as nuvens foram rasgadas. Os soldados comemoraram, mas a tempestade ainda avançava de ambos os lados, com força total, e agora os raios atacaram as próprias defesas, os garfos gigantes alcançaram os soldados dos Domínios. Os gritos surgiram de ambos os flancos, conforme os relâmpagos queimavam e quebravam as fileiras, em um avanço inexorável. E agora as metades partidas nas nuvens voltavam a se unir; línguas sedentas de relâmpagos começaram a brilhar na frente de Aubri. Ca’Ostheim havia caído de joelhos. Ele ergueu a cabeça acenou negativamente para Aubri. — Comandante, eu não consigo... Não sozinho. Eu preciso reunir os outros ténis-guerreiros...

— Ao cavalo, então — falou Aubri. Ele olhou para os porta-bandeiras e as trompas quando os gritos dos feridos e moribundos rivalizaram com a trovoada. — Retirada! — berrou o comandante. — Voltem para a próxima linha de frente!

As bandeiras sinalizaram a retirada; as trompas soaram a ordem. As fileiras dos soldados foram desmanchadas instantaneamente, aqueles que ainda podiam deram meia-volta para fugir da tempestade. Ao longe, em um lugar além da criatura, Aubri ouviu novas vozes: os gritos de guerra dos ocidentais.

O comandante puxou com força as rédeas da montaria e seguiu seus homens.


Esta foi a manhã do segundo dia. O resto do dia não correu melhor. Os ténis-guerreiros foram capazes de dissipar a tempestade mágica, mas a tarefa deixou-os exaustos, e eles tinham pouca energia sobrando para outros feitiços. Atrás da tempestade, surgiram as fileiras dos ocidentais — guerreiros com rostos pintados e com cicatrizes. O combate mano a mano foi intenso, mas os chevarittai e a infantaria eram páreos na espada. No entanto, quanto aos feiticeiros ocidentais, que empunhavam cajados por onde lançavam feitiços, Aubri não tinha como responder — os ténis-guerreiros estavam em grande parte exaustos pelos esforços anteriores, e, no fim da tarde, o comandante mandou o exército retornar a Villembouchure, para trás das muralhas e portões sólidos. Ele estava convencido de que poderia ter mantido as defesas externas, mas o preço em vidas teria sido enorme. Aubri fez o que qualquer outro comandante em seu lugar teria feito: mandou as trompas soarem a ordem de cessar combate.

Ao anoitecer, todos estavam dentro e com as portas corrediças abaixadas e fechadas.

Isso encerrou o segundo dia.

Em qualquer batalha normal, isso significaria o início de um cerco que poderia ter durado semanas ou meses antes de ser rompido, e Aubri sabia que os ocidentais não tinham semanas ou meses — não em uma terra estranha, onde estavam cercados por inimigos. Foi por esse motivo que Aubri achou fácil dar a ordem de cessar combate tão cedo, assim que ficou óbvio que a vitória nos campos diante da cidade só causaria um enorme custo. Ficar no interior das muralhas de Villembouchure deveria levar à vitória em algum momento. Inevitavelmente. E ele poderia esperar.

Mas o cerco duraria apenas um dia.

Aubri estava sobre a muralha da cidade e olhava para as fogueiras quase apagadas do principal acampamento dos ocidentais na alvorada. Foi quando as bolas de fumaça de repente fizeram um arco no céu, na direção deles: uma dezena ou mais, todas pareciam mirar o grande portão oeste da cidade. Os ténis-guerreiros posicionados ao longo das muralhas reagiram instantaneamente, como deveriam, e a resposta dos feitiços de dispersão foi rápida; afinal, eles foram treinados na arte de manter os feitiços na mente por um tempo (que nenhum deles admitiria ser uma característica dos numetodos, que tinha sido imposta aos ténis-guerreiros pela archigos Ana). Mas as bolas de fogo continuaram seu voo. O téni-guerreiro mais próximo de Aubri o encarou com olhos arregalados e chocados. — Comandante, isso não é feitiço...

Ele não prosseguiu. As muralhas grossas da cidade foram sacudidas de um jeito impensável quando as bolas de fogo bateram no portão e nas pedras em volta. Onde elas tocavam, explosões inimagináveis destruíram pedras, aço e madeira. Aubri, que se segurou na ameia para manter o equilíbrio, testemunhou os enormes pedaços de granito saírem voando como se fossem seixos atirados por uma criança. O fogo irrompeu abaixo do comandante, tão incandescente quanto a fornalha de um ferreiro; ele sentiu a onda de calor passar pela pele. Ouviu gritos e lamentos lá embaixo.

— O portão está quebrado! As muralhas foram rompidas!

Os ocidentais já corriam pela brecha, enquanto arqueiros respondiam com uma atrasada chuva de flechas em cima deles. Alguns dos guerreiros foram abatidos, mas muitos — em um número excessivo — continuavam avançando, e agora Aubri via mais arcos de bola de fogo saírem do norte e do sul, na direção daqueles portões.

Ele desceu correndo das ameias e entrou em um caos selvagem e sangrento.

Este foi o terceiro dia. O dia em que a cidade foi perdida. De um jeito inacreditável.


Agora Aubri olhava para Villembouchure do alto de um morro ao longo da Avi A’Sele. O comandante viu a fumaça suja que manchava o céu acima das muralhas quebradas, cercado pelo que restou do exército reunido à sua volta e com o a’téni ca’Ostheim ao seu lado. Dentro da cidade... Dentro da cidade, estavam os ocidentais.

— Isso é impossível — murmurou ele.

Mas era possível. E agora a defesa da própria Nessântico devia ser preparada. Aubri balançou a cabeça novamente diante da cena.

O comandante deu meia-volta com o cavalo e gesticulou, e ele e o exército começaram a mancar na direção da capital, em retirada.

 

Allesandra ca’Vörl

ELA LEMBRAVA-SE DE PASSE a’Fiume muitíssimo bem. Foi aqui, há 25 anos, quando seu vatarh sitiou a cidade, que ela aprendeu pela primeira vez a mais dura lição de guerra: que, às vezes, pessoas amadas não sobrevivem. Na ocasião, Allesandra tinha uma queda por um jovem offizier que tinha sido morto na batalha e pensou que jamais seria capaz de amar novamente, pois seu coração estava partido demais pela experiência, mas o tempo aliviou sua dor. Agora, ela não conseguia se lembrar do rosto do rapaz.

Os reparos da batalha de décadas atrás ainda eram visíveis nas muralhas e trouxeram de volta as memórias e o sofrimento.

Dessa vez, não havia cerco. O exército firenzciano passou pela cidade fronteiriça de Ville Colhelm sem resistência alguma: a força dos Domínios a postos ali simplesmente abandonou o lugar e fugiu do muito maior contingente de tropas firenzcianas. A pedido de Allesandra, Jan despachou cavaleiros — incluindo Sergei ca’Rudka — bem à frente da força principal, para negociar com o comté de Passe a’Fiume. Com a maior parte da guarnição da Garde Civile esvaziada devido à invasão ocidental, o comté favoreceu a prudência à coragem (e uma propina substancial em ouro em vez do juramento ao cargo): em troca da promessa de que a cidade não seria saqueada, ele permitiria que o exército cruzasse o rio Clario através dos portões da cidade até a Avi a’Firenzcia.

Allesandra cavalgava ao lado de Jan quando eles cruzaram a grande ponte de pedra sobre as águas do Clario, um rio mais rápido e perigoso do que o A’Sele — que era mais profundo e largo, e com quem o Clario se juntava antes de o rio A’Sele chegar a Nessântico. A ponte parecia tremer sob a batida das botas dos soldados e dos cascos dos cavalos. A vanguarda do exército já passara pelos portões e o resto descia estrada afora até onde era possível enxergar no terreno cheio de morros. Jan olhou em volta extasiado, quando eles passaram pelas arcadas altas com os escudos dos kralji e entraram na cidade. Multidões estavam enfileiradas nas laterais da avenida principal ao longo da cidade, a maioria em silêncio, e os chevarittai da Garde Hïrzg ficaram tensos em suas selas ao escanearem o público à procura de perigo.

— A senhora esteve aqui com o vavatarh? — perguntou Jan novamente ao se inclinar na direção de Allesandra, e ela fez que sim com a cabeça.

— Eu era apenas uma criança, e seu vavatarh estava no auge. Ele tomou Passe a’Fiume em apenas três dias de sítio após as negociações de paz falharem, mas o kraljiki Justi, que ainda tinha duas pernas na ocasião, já tinha escapado covardemente para Nessântico. Seu vavatarh ficou furioso. Sergei ca’Rudka era o comandante das forças de Nessântico; ele foi... brilhante, mesmo em enorme desvantagem numérica. Seu vavatarh admitiu o fato, mesmo que de má vontade.

Jan olhou para trás, onde ca’Rudka cavalgava ao lado do archigos. O nariz de metal do regente reluzia ao sol. Como a Garde Hïrzg, ca’Rudka parecia ansioso e nervoso, com a boca franzida e o olhar varrendo a massa de ambos os lados. — Eu gosto do sujeito, mas não sei se posso confiar totalmente nele, matarh — disse Jan ao voltar a atenção para ela.

Allesandra sorriu ao ouvir isso. — Você não deveria. A lealdade dele é a Nessântico, antes de mais nada. E Sergei ca’Rudka é um homem estranho, com gostos estranhos, caso se acredite nos rumores. Isso não mudou. Ele trabalhará conosco enquanto achar que nossos interesses convergem. Assim que não achar... — Ela deu de ombros. — Então ele ficará igualmente satisfeito em ser nosso inimigo. Seus instintos estão corretos, Jan.

— Ele parece admirar a senhora.

— Eu conheci Sergei quando era refém da archigos Ana. Ele foi gentil comigo na época. Mas agora o comandante está mais interessado no fato de que sou prima em segundo grau da kraljica Marguerite, e no fato de que este parentesco me dá tanto direito ao Trono do Sol quanto Sigourney ca’Ludovici. E, por enquanto, precisamos de Sergei e das alianças que ele venha nos trazer.

Jan concordou com a cabeça. Ele franziu os lábios como se levasse tudo isso em consideração enquanto entravam na praça central da cidade. Allesandra imaginou o que o filho pensava.

Aqui, o Templo a’Passe dominava a paisagem arquitetônica. Como muitas estruturas da cidade, ele foi muito danificado no cerco há duas décadas e meia. Depois, o conselho municipal decidiu reprojetar a praça principal e o complexo do templo. Grande parte da estrutura original foi demolida. As linhas finas e esqueléticas dos andaimes enjaulavam a torre principal ainda não concluída e o domo do templo reformado.

A multidão de moradores estava mais densa aqui, enquanto a fila lenta do exército marchava pela cidade. Agora, Allesandra sabia, a vanguarda já teria passado pelo portão oeste e além das muralhas. Agora, ela também sabia, mensageiros iriam a galope adiante do exército para levar a notícia à kraljica, ao archigos e à Nessântico de que os firenzcianos estavam em marcha — até onde a a’hïrzg sabia, aquela informação já podia ter chegado à Nessântico assim que o exército cruzou as fronteiras. A partir de agora, o avanço encontraria resistência em breve; a kraljica Sigourney não podia se dar ao luxo de continuar virada para o oeste por muito tempo.

Um exército — especialmente o exército firenzciano; afinado, eficiente e famoso — era uma grande carta na manga em qualquer mesa de negociação, e Sigourney e o Conselho dos Ca’ sabiam muito bem disso. Allesandra sorriu diante da ideia.

A multidão espremia-se perto deles, e os soldados da infantaria de ambos os lados de Allesandra e Jan empurravam as pessoas para trás com os cabos das lanças e dos piques. Ela viu os rostos sérios e infelizes atrás da cerca de armas, e das profundezas da multidão vieram berros com xingamentos e ameaças, mas quando os dois olharam naquela direção, não havia ninguém que eles pudessem identificar na massa. A população também se lembrava do cerco firenzciano; muitas pessoas perderam familiares no sítio, e a visão das bandeiras negras e prateadas era um insulto tremulando na cara delas.

Eles entraram na sombra do templo agora, a fila do exército usava o baluarte da torre principal para se proteger da multidão. As trompas no templo começaram a anunciar a Segunda Chamada assim que Jan e Allesandra chegaram em frente à torre. A a’hïrzg ergueu a cabeça na direção do barulho e apertou os olhos contra o brilho do sol. Alguma coisa — uma figura, uma silhueta — parecia andar lá em cima, em meio ao emaranhado de andaimes. Ela não conseguiu enxergar com clareza.

Allesandra foi golpeada por trás de repente, no mesmo instante em que seus ouvidos a alertaram do som de cascos nos paralelepípedos. Um peso enorme jogou a a’hïrzg no chão, mas os braços que a envolveram giraram Allesandra para que o corpo debaixo dela absorvesse a maior parte do impacto. Um baque alto foi ouvido quase que ao mesmo tempo ao impacto. Um cavalo berrou — um som horrível, desagradável — e as pessoas gritaram.

— O hïrzg!

— Andem! Andem!

— Lá em cima! Lá está ele!

Allesandra ouviu offiziers berrarem ordens e mais gritos. Parecia haver uma multidão amontoada em volta dela. A a’hïrzg lutou contra os braços à sua volta, contra as dobras do manto do agressor e da própria tashta e a capa de equitação. Havia mãos que a puxavam para ajudá-la a se levantar.

Houve outro grito, um berro humano dessa vez, e outro impacto em algum lugar próximo.

Allesandra pestanejou e tentou entender a situação.

Sergei ca’Rudka estava de pé ao lado dela, com a capa rasgada e uma careta no rosto enquanto massageava o braço. A superfície de prata do nariz estava arranhada e o próprio nariz tinha sido parcialmente arrancado do rosto, o que deu a Allesandra um vislumbre do buraco desagradável que ficava embaixo. Jan estava sendo ajudado a se levantar, a um passo atrás de Sergei. O cavalo de Allesandra estava caído de lado diante dela, com uma enorme estátua de um demônio moitidi em volta. O animal de olhos arregalados batia as patas, e os sons que fazia... Sergei foi rapidamente até ele, ajoelhou-se nos destroços do entalhe de pedra e acariciou o pescoço do animal enquanto fazia sons tranquilizadores. Allesandra viu o comandante sacar a faca da bainha. — Não! — Ela começou a dizer, mas Sergei já tinha feito o corte rápido e profundo. O animal deu um pinote, mais um e ficou imóvel.

Allesandra balançou a cabeça para tentar clarear a mente. Metade da multidão na praça parecia ter fugido aterrorizada; os soldados firenzcianos formaram um sólida defesa em volta deles. Sergei afastou-se do cavalo e andou a passos largos até um corpo esparramado em uma poça de sangue não muito longe da base da torre. Os soldados se moveram para interceptá-lo; ele se desvencilhou deles com raiva. Allesandra começou a se mexer e percebeu que o corpo estava dolorido e machucado, e que sangrava, com um corte na cabeça. A a’hïrzg sentiu Jan chegar por trás.

— Matarh? — Ele olhava fixamente para o cavalo que Sergei matou. Allesandra abraçou o filho desesperadamente, depois afastou Jan para examiná-lo; as roupas estavam rasgadas também e havia um arranhão na bochecha que sangrava, tirando isso, ele parecia ileso.

— O que aconteceu? — perguntou ela. — Você viu?

— O regente nos salvou — disse Jan. — Ele nos tirou dos cavalos bem a tempo. — O hïrzg ergueu os olhos para o andaime, depois abaixou o olhar para o corpo no chão. Sergei estava cercado por uma massa de soldados, ajoelhado ao lado do cadáver. — O homem... ele estava lá em cima. Teria matado a senhora. Talvez nós dois. Mas Sergei...

O archigos Semini veio correndo então, com o robe verde esvoaçante. — Allesan... — Ele começou a dizer, depois balançou a cabeça e fez o sinal de Cénzi às pressas. — A’hïrzg! Hïrzg! Graças a Cénzi os senhores estão a salvo! Eu pensei...

Mas Allesandra já não o ouvia. Ela avançou pela multidão até o lugar onde Sergei examinava o corpo. — Regente? — falou a a’hïrzg, e Sergei ergueu o olhar para Allesandra, com uma cara feia.

— A’hïrzg. Eu peço desculpas, mas não tive tempo de dar um aviso. A senhora está muito machucada?

Ela balançou negativamente a cabeça. Sergei assentiu e gemeu ao ficar de pé, como se o movimento o tivesse ferido. — Estou velho demais para isso — murmurou. Ele chutou o cadáver, e a bota fez um som macio e desagradável quando o torso quebrado tremeu em resposta. Allesandra viu um rosto bonito sob o sangue, um rosto jovem, talvez da idade de Jan; ela notou que as roupas eras elegantemente suspeitosas. O corpo estava decorado por hastes quebradas de várias flechas. — Não sei quem ele é — disse Sergei —, mas descobriremos. É um ca’ ou co’, pelo jeito que está vestido e pela aparência física. Eu o vi no alto do andaime bem antes de ele jogar a estátua. Foi quando entrei em ação; parece que seus arqueiros cuidaram do resto. — Ca’Rudka pareceu notar o nariz pendurado então, empurrou-o com cuidado de volta ao lugar e o segurou com dois dedos. — Perdão, a’hïrzg... a cola...

— Não importa — falou Allesandra, abanando a mão. — Regente, eu lhe devo a minha vida.

Ela pensou que Sergei responderia como a maioria, com a cabeça baixa e depreciação, uma declaração sobre dever, lealdade e obrigação. Ele não fez isso. Ao contrário, ca’Rudka sorriu, ainda segurando o nariz de prata no lugar.

— Realmente, a senhora me deve, a’hïrzg.

 

Niente

A CIDADE QUEIMAVA e as chamas eram refletidas na tigela premonitória. Elas sumiram quando Zolin deu um tapa no objeto, que derramou água sobre Niente. A tigela fez barulho ao cair, o bronze retiniu nos ladrilhos como um sino frenético até bater na parede do outro lado, onde reluzia um mosaico de azulejos de alguma batalha antiga. Desenhados no vidro, cavalos empinavam enquanto lanças marchavam em um campo com uma montanha de pico nevado que se agigantava ao fundo.

— Não! — rugiu o tecuhtli. — Não deixarei que me diga isso!

— É o que eu vi — respondeu Niente com uma calma que não sentia. O guerreiro morto, o nahualli esparramado ao lado dele, só que dessa vez ele viu um dos rostos. O rosto de Zolin... E ele estava com medo demais para pedir a Axat que lhe deixasse ver as feições do nahualli... — Tecuhtli, nós realizamos tanta coisa aqui. Mostramos a estes orientais a dor que eles infligiram a nós e a nossos primos. Tomamos terras e cidades deles assim como eles tomaram de nós. Demos a lição que o senhor queria dar. Continuar... — O nahual ergueu as mãos. A grande cidade em chamas e os tehuantinos em fuga, os navios com mastros quebrados adernados no rio... — As visões só me mostram morte.

— Não! — disparou Zolin. — Eu mandei uma mensagem para casa dizendo que ficaríamos aqui, que eles deveriam mandar mais guerreiros. Manteremos o que conquistamos. Atacaremos o coração dos orientais: essa grande cidade que está tão próxima. — Ele se virou, os braços pesados e musculosos passaram perto do rosto de Niente. Os dedos grossos do tecuhtli apontaram para os olhos do feiticeiro. — Você está cego, nahual? Não viu como foi fácil tomar essa cidade dos orientais? Não viu como eles correram como um bando de cães açoitados?

— Temos pouco material sobrando para fazer mais areia negra — falou Niente. — Eu perdi um terço dos meus nahualli no combate; o senhor perdeu a mesma quantidade em guerreiros. Chegamos muito longe, sem recursos para manter a terra atrás de nós. Estamos em um país estrangeiro cercado por inimigos, com apenas os suprimentos que conseguimos coletar e pilhar. Se voltarmos para os nossos navios agora e formos embora, deixaremos para trás uma lenda que provocará medo nos orientais por décadas. O nome do tecuhtli Zolin será um sussurro na noite que assustará gerações de crianças orientais.

— Bá! — disparou Zolin novamente. O cuspe quase acertou os pés de Niente e sujou o chão lustroso da mansão que ele tomou em Villembouchure. Ao abaixar o olhar, o nahual viu que todos os azulejos tinham a imagem da mesma montanha, como no mosaico da parede. O cuspe de Zolin formou um lago no flanco da montanha. — Você é mesmo uma criança assustada, nahual. Eu não tenho medo do que você vê na sua tigela. Não tenho medo desses futuros que você diz que Axat lhe envia. Eles não são o futuro, são apenas possibilidades. — O dedo cutucou o peito de Niente. — Vou lhe dizer uma coisa agora, nahual: você tem que fazer sua escolha. — Cada uma das três últimas palavras ditas foram acompanhadas por uma cutucada. Os olhos escuros do tecuhtli, envolvidos no movimento das asas da grande águia, encararam Niente como um daqueles grandes felinos que espreitavam as florestas de sua terra natal. — Chega de suas palavras. Chega de profecias, chega de avisos. Eu quero apenas a sua obediência e a sua magia. Se não puder me dar isso, então chega de você. Eu prosseguirei, quer você seja o nahual ou não. Decida agora, Niente. Aqui mesmo.

A mão de Niente tremeu ao lado do punho do cajado mágico que estava pendurado no cinto. O nahual seria capaz de pegá-lo e tocar Zolin com o objeto antes que o guerreiro conseguisse sacar a espada completamente. O feitiço disparado queimaria o tecuhtli e lançaria o corpo pela sala até ele desmoronar contra a parede em uma pilha fumegante debaixo do mosaico. Niente conseguia ver aquele resultado tão claramente quanto uma visão na tigela premonitória.

O ataque também acabaria com essa situação. Ele ansiava por isso.

Mas Niente não podia atacá-lo. Essa não era uma visão dada por Axat. Esse caminho levaria a um dos futuros cegos, um que ele não poderia adivinhar — um futuro que poderia ser bem pior para os tehuantinos do que o visto na tigela. O nahual percebeu que conhecer os futuros possíveis era tanto uma armadilha quanto um benefício; ele perguntou-se se isso era algo que Mahri também descobrira. Em um futuro cego, Citlali ou Mazatl poderiam continuar a seguir os passos de Zolin e se sair ainda pior. Todos eles poderiam morrer aqui, e ninguém em casa saberia seus destinos. Em um futuro cego, certamente Niente jamais veria sua família novamente.

Ele sentiu a madeira lisa e lustrosa do cajado mágico, mas as pontas dos dedos apenas roçaram o objeto. Eles não se fecharam em volta do punho.

— Eu obedecerei ao senhor, tecuhtli — falou Niente, com palavras baixas e lentas. — E o seguirei ao futuro que o senhor nos trouxer.

 

Varina ci’Pallo

KARL ESTAVA SENTADO no degrau da porta dos fundos da casa de Serafina no Velho Distrito e olhava fixamente através de um pequeno jardim plantado ali, na direção da parte detrás das casas da próxima rua. O olhar parecia penetrar a margem sul, bem ao longe. Acima dele, a lua estava presa em uma rede de finas nuvens prateadas através das quais as estrelas espiavam. Uma xícara de chá parecia esquecida à sua esquerda.

Karl esfregava uma pedra clara, pequena e achatada, entre o indicador e o polegar.

Varina apareceu e sentou-se à sua direita — não perto o suficiente para tocá-lo, nem longe demais a ponto de não sentir o calor do corpo no frio da noite. Nenhum deles disse coisa alguma. Karl esfregou a pedra. Ela ouviu a música abafada e distante que vinha da taverna mais à frente.

Quando o silêncio entre os dois prolongou-se por tempo demais para ela, Varina começou a ficar de pé. Sentiu raiva de si mesma por ter vindo aqui fora e raiva de Karl por tê-la ignorado. Porém, ele esticou o braço e tocou em seu joelho. — Fique — disse Karl. — Por favor?

Varina sentou-se novamente e perguntou — Por quê?

— Nós não... nos últimos dias... Bem, você sabe.

— Não, eu não sei — falou ela. — Diga-me.

— Por que você tenta dificultar as coisas para mim? — Ele girou a pedra nos dedos.

— Não, estou tentando facilitá-las para mim. Karl, estar com ou sem você são duas situações com as quais eu consigo lidar, de um jeito ou de outro. O que eu não consigo encarar é não saber qual delas é nossa situação. — Varina esperou. Karl não disse nada. — Então, qual é? — perguntou ela.

— Não é tão simples assim.

— Na verdade, é. — Varina abraçou o próprio corpo ao se sentar e inclinou-se um pouco longe dele. — Quando finalmente levei você para minha cama, eu achei que teria tudo que queria há anos. Mas descobri que eu ainda tinha apenas uma parte de você. Quero você por inteiro, Karl, ou não quero nada. Talvez eu esteja exigindo demais de você, ou talvez eu seja muito possessiva, ou talvez você ache que eu esteja forçando uma coisa que você não quer. — Lágrimas ameaçaram cair, e ela fungou o nariz para contê-las, com raiva. — Talvez seja culpa minha que essa situação não dê certo, e, se for o caso, então tudo bem. Mas eu simplesmente preciso saber.

— A questão não é você.

Varina queria acreditar naquilo. Ela mordeu o lábio inferior, conteve as lágrimas, teve dificuldade para respirar. — Então o que é? Você vai atrás desse tal Uly por conta própria, quase morre, encontra com Kenne sem me contar, está até mesmo fazendo planos com Talis. Mas não fala comigo.

— Eu não quero que você se preocupe.

Varina quis escarnecer ao ouvir isto. — Eu me preocupo mais quando não sei a situação. Não sei o que você planeja, não sei o que tenta fazer, não sei quais seriam os verdadeiros perigos. — Ela parou. Respirou fundo. — Eu não quero ser sua amante, estar à disposição sempre que você quiser esse tipo de consolo, e ser convenientemente esquecida fora isso. Se isso é tudo o que você quer de mim, então eu cometi um erro. Também não sou Ana, não quero você apenas como amigo. Novamente, se isso é tudo que você quer de mim, bem, também não pode me ter como amiga. Não mais. Então, se esse for o caso, me diga, e assim que essa situação acabar, de uma forma ou de outra, eu tomo o meu próprio rumo. Eu quis que você abrisse a porta entre nós por muito tempo, Karl. Agora você abriu, mas não pode ficar parado ali com um pé dentro e outro fora. Eu preciso fechá-la e trancá-la para sempre ou você precisa entrar de vez.

— Como eu faço isso? — A voz soou melancólica na escuridão. Ele apertou a pedra entre os dedos. Como você pode não saber? Ela queria ralhar com ele. Não é capaz de enxergar tão nitidamente quanto eu?

— Fale comigo — disse Varina. — Compartilhe o que está pensando. Deixe-me aceitar os perigos que você está disposto a aceitar. Deixe-me estar com você.

Ela pensou que Karl não fosse responder — o que teria sido uma resposta suficiente. Ele ficou sentado ali, ainda brincando com a pedra e olhando para longe. Varina começou a se levantar novamente, mas dessa vez Karl pegou sua mão. Ela sentiu a pedra ser pressionada contra a palma.

— Espere — falou ele. — Deixe-me contar o que estou pensando...

E Karl começou a falar.

 

Kenne ca’Fionta

AUBRI CO’ULCAI PARECIA um cão açoitado ao se ajoelhar, de cabeça baixa, perante a kraljica. A armadura estava arranhada e surrada, o rosto tinha marcas de sujeira e fumaça, o cabelo estava escuro e emaranhado, e ele fedia. No salão do Trono do Sol, o comandante parecia uma mosca patinando em uma xícara dourada de água limpa e fria.

Não que o salão em si não tivesse cicatrizes. Ninguém deixaria de notar as marcas dos reparos feitos às pressas onde o Trono do Sol foi danificado pela magia do assassino — não, não era magia, se Karl ca’Vliomani estivesse correto, lembrou-se Kenne, mas algo mais sinistro; uma coisa que qualquer boticário seria capaz de fazer com os ingredientes certos. De que o embaixador ca’Vliomani chamou aquilo? O fim da magia? O archigos perguntou-se se o homem estava certo.

As tapeçarias penduradas ainda fediam à fumaça, e Kenne imaginou se não havia um leve tom horripilante de rosa nos ladrilhos em volta do tablado do trono. E não havia como não notar a aparência da própria kraljica Sigourney: o tapa-olho e as cicatrizes no rosto, as bandagens ainda nos braços e na única perna, a maneira como ela se remexia com dor no assento, a taça cheia do extrato das sementes da flor venenosa cuore della volpe — um preparado que o ervanário da corte criou para aliviar a sua dor.

Ainda assim, o Trono do Sol reluzia sob e em volta dela como fizera com inúmeros kralji; Kenne cuidou disso pessoalmente. Se fosse uma farsa, ninguém que observasse saberia. Kenne suspirou na própria cadeira à direita do trono, cansado pelo esforço de conjurar o feitiço de luz. O Conselho dos Ca’ estava disposto à esquerda. O salão fora esvaziado de cortesãos e até mesmo de criados — nenhum deles queria mais rumores espalhados pela cidade além dos que já haviam.

— Comandante co’Ulcai — falou Sigourney em uma voz tão arrasada quanto o rosto —, a informação que você nos traz... — Ela parou e fechou o único olho. Quando abriu novamente, a voz saiu mais inteligível. — Você nos desapontou.

— Eu sinto muito, kraljica — disse o comandante. — A senhora já deve estar com minha carta de resignação.

— Eu estou com ela, mas não irei aceitá-la. — Quando co’Ulcai ergueu o rosto com uma leve esperança, Sigourney olhou o homem com desprezo. — E não há outra razão além do fato de que temos poucos offiziers com a sua experiência. Você nos desapontou com os ocidentais, e a mancha em seu currículo não será facilmente apagada. Eu tenho a intenção de mandar que Aleron ca’Gerodi comande as defesas de Nessântico caso esses bárbaros sejam tolos o bastante para continuar a avançar. Se meu irmão estivesse aqui... — Ao dizer isso, os lábios tremeram e um brilho úmido surgiu no olho. Ela tomou um gole de cuore della volpe. — Quanto a você, veremos como se sai contra um inimigo que deve conhecer melhor. Vou mandá-lo para leste, comandante co’Ulcai, para comandar nossas forças contra o exército de Firenzcia. Odil ca’Mazzak, do Conselho, irá acompanhá-lo, e vocês dois partem amanhã. — A kraljica gesticulou com o braço para dispensá-lo. — Imagino que tenha preparativos a fazer, comandante.

Co’Ulcai ficou de pé, fez uma mesura para a kraljica e foi embora do salão com passos altos no silêncio que o acompanhou. Quando ele saiu, a kraljica Sigourney suspirou.

— Eu não confio no sujeito — murmurou Odil ca’Mazzak. — Ele é outro offizier com laços com o regente traidor.

— Infelizmente, co’Ulcai é o melhor que temos — respondeu a kraljica Sigourney. — Odil, precisamos rever os pontos da negociação que você discutirá com os firenzcianos. Archigos, preciso que você se manifeste contra os numetodos, por duas razões: para aplacar Firenzcia e para sabermos que não temos traidores na cidade enquanto enfrentamos inimigos dos dois lados. Eu espero ouvir Admoestações agressivas de sua parte e de todos os seus ténis, a começar com as missas da Terceira Chamada.

Kenne sabia que ela não esperava ouvir objeção alguma de sua parte; Sigourney já havia afastado o rosto antes de terminar de falar. A kraljica imaginava que ele apenas concordaria com a cabeça e não diria nada. Antigamente, ela estaria certa.

Antigamente. Mas havia a visita de Karl, havia o espectro do falso archigos Semini ca’Cellibrecca surgindo no horizonte e tudo o que aquilo significaria. E havia a memória de Ana e a liberdade e tolerância pelas quais ela lutou por anos.

— Não — disse Kenne. — Eu não farei isso.

O silêncio que se seguiu foi longo. A kraljica Sigourney piscou o único olho. — Não — repetiu ela, e a palavra soou como o toque de um sino fúnebre. — Eu ouvi direito, archigos?

Kenne concordou com a cabeça. — A senhora está... — A garganta estava seca. Ele engoliu em seco e tentou juntar alguma saliva. — A senhora está errada a respeito dos numetodos, kraljica. Está errada em acreditar que foi a magia deles que matou o kraljiki Audric e feriu a senhora. Não foram eles.

Ela piscou o único olho mais uma vez. Os outros conselheiros observavam os dois, em silêncio. — Não foram? E como você sabe disso?

— Porque eu falei com o embaixador ca’Vliomani, na verdade. Ouvi suas explicações e fiz minha própria investigação sobre o que ele descobriu.

— Karl Vliomani — a nítida falta de um prefixo ao sobrenome pairou pesadamente no ar — é um fugitivo atualmente condenado à morte. Está me dizendo que ele foi até você, e você o deixou escapar?

Kenne sentiu um arrepio com o tom de voz. — Ele veio até mim, sim, e me mostrou isso. — Ele tirou um pequeno frasco de vidro debaixo do robe verde. No interior, a areia negra reluzia. — Observem. — O archigos levantou-se da cadeira, arrastou os pés pelo tablado e desceu para o piso do salão. Tomou vários passos de distância do trono, depois tirou a rolha do frasco e deixou a areia jorrar sobre os ladrilhos. Kenne voltou para o tablado; os joelhos estalaram como gravetos secos quando subiu os degraus. — Todo mundo concorda que Enéas co’Kinnear usou um feitiço para criar fogo; mas aquele era um feitiço de téni, não de numetodo. Co’Kinnear foi um acólito da fé concénziana e teve alguma educação sobre o uso do Ilmodo. É muito provável que ele tenha aprendido aquele feitiço; é um dos primeiros a serem ensinados aos novos estudantes. Olhem...

Kenne ergueu as mãos e deixou que dançassem no rápido gestual enquanto a voz entoou as curtas frases necessárias. Um momento depois, uma chama amarela tremeluziu no ar entre suas mãos. — Todos os senhores viram isso mil vezes; todas as noites, quando as lâmpadas são acesas ao longo da Avi a’Parete. Isso aqui não é diferente...

O archigos abriu as mãos, começou um novo cântico, e a chama afastou-se de sua mão, saiu flutuando do tablado até pairar sobre a areia negra. Ali, ele abaixou as mãos devagar, e a chama respondeu da mesma forma, desceu até quase tocar a pilha escura...

O estrondo da explosão foi mais alto até mesmo do que Kenne esperava, e o clarão feriu os olhos. Uma fumaça branca subiu e se espalhou pelo salão, seguida de um cheiro cáustico e intenso. Ele ouviu o baque metálico quando a taça do cuore della volpe caiu do braço do Trono do Sol para o chão. A kraljica Sigourney estava com a respiração acelerada no trono e a mão erguida diante do rosto como se tentasse se proteger; ela parecia tentar ficar em uma perna só enquanto pegava a bengala perto da mão direita. Vários conselheiros estavam de pé e berravam. As portas do salão foram escancaradas por gardai, que entraram com espadas na mão. — Kraljica?

Sigourney abaixou as mãos. Kenne ouviu a respiração da kraljica desacelerar. Ela dispensou os gardai com um gesto. — Este cheiro... — murmurou Sigourney. — Eu me lembro dele mais do que de tudo. — Ela virou-se lentamente para o archigos e perguntou — Isso não é magia? Como é possível que isso não seja o Ilmodo, archigos?

— Porque é apenas alquimia — respondeu Kenne —, uma combinação de ingredientes que reage violentamente quando entra em contato com fogo. Havia traços desta areia negra na madeira do Alto Púlpito após a archigos Ana ser morta; os mesmos traços estavam no Trono do Sol e no corpo do kraljiki Audric.

— Os numetodos alegam que a fé em Cénzi não é necessária para usar magia, que qualquer pessoa é capaz disso, que não é mais complicado do que ser um padeiro. Eles olham para pedras com formato de conchas e crânios e inventam teorias estranhas, eles realizam experiências... em alquimia, assim como em outras “ciências”, bem como em magia. Para mim, isso parece indiciar os numetodos. — Quem falou foi Odil ca’Mazzak. Ele olhou com raiva para o archigos, e a kraljica concordou com a cabeça diante das palavras.

— Eu afirmo que isso não veio dos numetodos — insistiu Kenne.

— Mesmo que tenha sido Vliomani quem, por acaso, lhe mostrou isso — retrucou Odil com desdém. — Parece uma lógica estranha.

— A areia negra é um preparado ocidental — disse Kenne. — Aqui está a lógica, conselheiro. Enéas co’Kinnear tinha acabado de retornar do serviço militar nos Hellins. O senhor também deve se lembrar que o comandante co’Ulcai acabou de nos contar como os ocidentais foram capazes de destruir as muralhas de Villembouchure com explosões similares àquelas que mataram a archigos Ana e o kraljiki Audric.

— E ele disse que as explosões foram criadas pela magia dos ténis-guerreiros ocidentais, esses tais “nahualli”. — Odil balançou a cabeça grisalha. A pele flácida da garganta sacudiu com o movimento. — Eu acho que o archigos está enga...

— Não! — Dessa vez Kenne quase gritou e bateu o pé no chão ao mesmo tempo. — Eu não estou enganado. Sei que todos os senhores me acham um velho tolo e decrépito que é uma mera sombra do que um archigos deveria ser. Os senhores podem estar certos quanto a isso, mas estão errados nessa questão. Pior do que errados; eu tenho provas que me fazem acreditar que o falso archigos Semini está envolvido no assassinato da archigos Ana. E, se esse for o caso... — Ele parou, sem fôlego. Todos encaravam o archigos como se ele fosse uma criança tendo um ataque. — Nós precisamos dos numetodos, kraljica, conselheiros — continuou Kenne, com a voz mais baixa. — Precisamos das habilidades, da magia e do conhecimento deles. Nessântico está prestes a ser sitiada pelo oeste e pelo leste, e não podemos nos dar ao luxo de perder aqueles que podem nos ajudar.

Houve um longo e doloroso silêncio. Odil lambeu os lábios e sentou-se. Os outros integrantes do Conselho abaixaram a cabeça e entreolharam-se. A kraljica Sigourney olhou fixamente para a mancha negra nos ladrilhos. — Nós consideraremos o que você disse, archigos — falou ela, finalmente, e Kenne sabia o que isto significava.

Ele gemeou e levantou-se da cadeira novamente. Pegou o cajado de archigos com a mão direita — o globo partido envolto pelos corpos nus e contorcidos dos moitidis — e fez o sinal de Cénzi para a kraljica com a esquerda. Novamente, Kenne afastou-se do tablado arrastando os pés. Ao passar pelo ponto onde a areia negra havia explodido, parou. Os ladrilhos ali estavam quebrados. Ele pegou um dos pedaços maiores, com uma borda afiada de cerâmica azul-clara e a superfície lisa manchada com o que parecia ser fuligem. O cheiro da areia negra era forte. Kenne levantou o pedaço do ladrilho e deixou cair, o som se parecia com o de um prato se quebrando. Ele viu os pedacinhos quicarem e se espalharem.

— Nessântico inteira pode ficar assim — disse o archigos. — Inteira.

Não houve resposta. Ele bateu com a ponta do cajado de archigos no ladrilho e continuou arrastando os pés.

 


Sergei ca’Rudka

A TENDA DE NEGOCIAÇÃO FOI ARMADA em um campo entre as duas forças: ao lado da Avi a’Firenzcia e aproximadamente a meio caminho entre Passe a’Fiume e Nessântico. Ao se aproximarem, Sergei já podia ver as silhuetas escuras de Odil ca’Mazzak e Aubri co’Ulcai através do pano branco, juntamente com o u’téni Petros co’Magnaoi, presente como o representante do archigos. A delegação firenzciana era composta por Sergei, a a’hïrzg Allesandra e o starkkapitän ca’Damont, acompanhados pelo obrigatório conjunto de chevarittai e assistentes. Uma vez que nem a kraljica nem o archigos Kenne estavam presentes, o hïrzg e o archigos Semini, diante da sugestão de Sergei, ficaram para trás. Nenhum dos dois ficou contente com o arranjo.

— Matarh, eu deveria estar lá — insistiu Jan. — Eu sou o hïrzg, e o que acontecer deve ser, tem que ser minha decisão. — Ele olhou feio para Sergei e Allesandra.

— E será, hïrzg — disse Sergei para o jovem. — Eu lhe prometo, mas para o senhor estar lá... — Ele balançou a cabeça. — O senhor é o hïrzg, como disse. Não há um igual ao senhor naquela tenda; também não há um igual ao archigos. Não é esperado do senhor, hïrzg Jan, que negocie em termos iguais com Odil ca’Mazzak, que é apenas um integrante do Conselho dos Ca’; o senhor estaria se rebaixando se fizesse isso. Eu lhe digo que isso é exatamente o que eles querem que faça. Seria uma admissão de que o hïrzg da Coalizão é alguém inferior à kraljica dos Domínios.

Sergei então olhou para Allesandra e para o archigos, que estava com a cara fechada. — Os senhores me pediram para dar meu conhecimento, para ajudá-los. É o que estou fazendo aqui. Aparências importam. Importam muito. Especialmente para aqueles no Palácio da Kraljica.

No fim, com o apoio de Allesandra, o regente venceu o argumento. Jan, pelo menos, foi, de certa forma, educado. Irritado, o archigos saiu em um rompante, e eles ouviram Semini reclamar pelo acampamento pelas próximas viradas da ampulheta.

Conforme o contingente firenzciano desmontava e criados recolhiam as armas e os cavalos e ofereciam comidas e bebidas, os representantes de Nessântico aproximaram-se. Sergei apertou afetuosamente o braço de co’Ulcai e sorriu para seu offizier de longa data. — Aubri, eu gostaria que pudéssemos ter nos encontrado sob circunstâncias melhores. Eu soube o que aconteceu com o pobre Aris... — Ele apertou o ombro do homem e fez o sinal de Cénzi para o u’téni Petros co’Magnaoi. — Petros, é bom vê-lo também. Como está o archigos Kenne?

— Está bem, senhor, e lhe manda bênçãos — respondeu o homem mais velho.

Sergei inclinou-se para perto do u’téni ao abraçá-lo. — Kenne recebeu minha mensagem? — sussurrou o regente no ouvido do velho. — Ele concorda? — Sergei sentiu o leve aceno de Petros. Também viu os olhares de avaliação de ambas as delegações sobre ele ao cumprimentar os dois homens: tanto de Allesandra quanto de Odil ca’Mazzak. Ambos tinham suspeitas; ambos tinham o direito de ter. Sergei acenou com a cabeça para ca’Mazzak e sentou-se à esquerda de Allesandra.

O conselheiro gesticulou, e pajens aproximaram-se para entregar rolos pesados de pergaminhos a Allesandra, Sergei e ao starkkapitän. — Esta é a oferta da kraljica Sigourney — falou ca’Mazzak enquanto o trio lia as palavras presentes ali. — Seu exército terá permissão para retornar a Firenzcia. O fora da lei Sergei Rudka será entregue a nós. Reparações serão pagas por Brezno para os Domínios pela destruição de colheitas e gado feita por seu exército e pela violação do Tratado de Passe a’Fiume. Se os senhores acharem os termos aceitáveis, só é necessário que a a’hïrzg assine como representante da Coalizão.

Não era mais do que Sergei esperava. Ele já testemunhara a arrogância e o excesso de confiança dos Domínios muitas vezes antes.

O starkkapitän ca’Damont bufou desdenhosamente pelo nariz e jogou o pergaminho na mesa. — E como a kraljica pretende executar essa oferta, conselheiro? Com os poucos batalhões que o senhor deu ao comandante co’Ulcai? Não tenho nada além de respeito pelo comandante, que é um belo offizier, mas não se afasta um urso raivoso com um graveto. — Ele pareceu se dar conta de que falou o que não devia. O rosto ficou um pouco vermelho. — Perdão, a’hïrzg. Eu sou um simples offizier, mas essas exigências... — Ele empurrou o pergaminho da mesa para o chão; um pajem correu para pegá-lo, mas não o devolveu ao starkkapitän.

— A Garde Civile e os chevarittai dos Domínios não são um graveto, starkkapitän — gabou-se ca’Mazzak. Ele inchou como um sapo, sentado ereto na cadeira, a papada no pescoço grosso tremeu. — O senhor subestima nossa capacidade de botar um exército em campo rapidamente quando nossas terras são ameaçadas. É uma lição que o último hïrzg Jan aprendeu; estou surpreso que alguém em Firenzcia sinta necessidade de aprendê-la uma segunda vez.

Allesandra parecia ainda estar lendo a proposta, embora Sergei tenha notado que ela escutava com atenção o diálogo. A a’hïrzg pousou o papel diante de si e dobrou as mãos sobre ele. — Muito bem. Deixemos a pose de lado, conselheiro ca’Mazzak. Todos sabemos que Nessântico enfrenta uma ameaça a oeste. Sabemos o que aconteceu com Karnor; ouvimos rumores que Villembouchure pode ter sofrido o mesmo destino. Talvez o comandante co’Ulcai possa nos esclarecer sobre isso, uma vez que eu espero que ele tenha estado lá quando as forças dos Domínios foram escorraçadas? Todo mundo nesta mesa sabe que o senhor não tem forças suficientes para nos desafiar aqui. Então o que é que a kraljica realmente oferece?

Sergei havia sugerido esse curso direto de ação para Allesandra, mas a provocação a Aubri co’Ulcai tinha sido contribuição da própria a’hïrzg. A expressão no rosto de Aubri foi o suficiente para confirmar que o palpite dela estava correto, e Sergei sentiu uma pontada de compaixão pelo amigo.

Ca’Mazzak parecia ter engolido uma fruta podre. Ele deu uma olhadela para Petros, que parecia examinar os campos além do limite da tenda, e depois para Aubri. — A kraljica está preparada para oferecer um meio-termo — falou o conselheiro finalmente. — Que o hïrzg e a a’hïrzg voltem para Brezno com a Garde Brezno; no entanto, o starkkapitän ca’Damont e o restante do exército ficam para trás, a fim de auxiliar na defesa de Nessântico contra os ocidentais, ajuda pela qual o tesouro de Nessântico está disposto a pagar. Quanto ao antigo regente... — ca’Mazzak olhou com ódio para Sergei. — A kraljica Sigourney mantém a exigência do retorno de Sergei Rudka para que enfrente as acusações contra ele, não importa o acordo a que cheguemos aqui.

Allesandra ficou de pé ao ouvir isso; um momento depois, Sergei, ca’Damont e o resto do contingente firenzciano acompanhou o gesto. — Então estamos encerrados aqui — disse a a’hïrzg. — O regente ca’Rudka é um conselheiro da coroa de Firenzcia, e nós o consideramos o legítimo governante atual de Nessântico até que um kralji de direito seja nomeado. Se o regente ca’Rudka desejar retornar à Nessântico por conta própria para lutar por seu direito, ele pode fazê-lo. Caso contrário, ele está sob a proteção do hïrzg, não importa o que a pessoa que os senhores nomearam kraljica deseje. — Ela fez uma mesura para ca’Mazzak e gesticulou. Sergei deu um largo sorriso para o homem. Eles deram meia-volta para ir embora.

— Esperem! — Foi Petros que os chamou. Allesandra parou.

— U’téni? — perguntou a a’hïrzg, mas ca’Mazzak já vociferava.

— Eu estou no comando dessa delegação — falou o conselheiro. — Você fala quando eu lhe der permissão, u’téni co’Magnaoi.

— Cénzi está no comando da minha consciência — disse Petros. — Não o senhor, nem a kraljica Sigourney. E eu falarei. A’hïrzg, Nessântico está em uma situação desesperadora. O comandante co’Ulcai poderia lhe dizer, se tivesse permissão para falar, com que facilidade os ocidentais tomaram os vilarejos e as cidades que eles devastaram. Nessântico precisa desesperadamente de todos os aliados que conseguir reunir agora. O archigos Kenne está preparado para negociar separadamente da kraljica, se for necessário, para alcançar esse objetivo.

— O quê? — esbravejou ca’Mazzak. Ele também estava de pé agora e socou a mesa. — Não, não, não. Estamos encerrados aqui. U’téni co’Magnaoi, você será levado de volta à cidade para responder por isso. Comandante, mande seus gardai...

Sergei deu um tapa na mesa bem na frente de ca’Mazzak, o homem fechou a boca com um estalo alto. — O senhor não é nada além do cachorrinho bravo da kraljica, conselheiro — disse o regente ao se inclinar na direção do homem. — Sente-se.

Ca’Mazzak o olhou com ódio e virou-se para Aubri. — Comandante, o senhor tem as suas ordens. O senhor prenderá o u’téni imediatamente.

Aubri não se mexeu, não respondeu. Sergei sentiu a tensão aumentar na tenda. Viu mãos deslizarem cautelosamente na direção das armas escondidas — ele mesmo tinha as próprias facas, uma na bota, outra debaixo da blusa da bashta, e o zumbido do próprio medo ecoava em seus ouvidos. O regente não conseguira contatar Aubri antecipadamente, e se o comandante tivesse decidido que sua lealdade ao Trono do Sol era maior do que a velha lealdade a Sergei, então... Bem, então Sergei não sabia o que poderia acontecer aqui.

— Comandante co’Ulcai, isso é traição — rosnou ca’Mazzak. — Vou exigir sua cabeça por isso, se não fizer como mandei.

Aubri não disse nada; o olhar contemplativo continuava em Sergei. Os chevarittai de ambos os lados ficaram tensos, prontos para agir. Sergei colocou-se entre Allesandra e a mesa e falou — Eu sugiro que o senhor se sente, conselheiro. Deixe o u’téni co’Magnaoi terminar de explicar sua proposta.

Por vários instantes, ca’Mazzak não se mexeu. Ele olhou em volta da tenda lentamente, Sergei sabia que o conselheiro estava avaliando quem ali o seguiria ou não. Evidentemente, o homem não ficou satisfeito com o resultado. Devagar, ca’Mazzak sentou-se novamente. Ele olhou fixamente para as próprias mãos.

— Ótimo — disse Sergei. Por um momento, o zumbido nos ouvidos diminuiu. — Petros, o que o archigos Kenne tem a oferecer para Firenzcia?

— Informação — respondeu Petros. — Nós temos provas de que o archigos Semini esteve envolvido no assassinato da archigos Ana. Podemos dar nomes que verificam essa informação. — Atrás dele, Sergei ouviu Allesandra tomar fôlego diante da acusação. O regente ficou intrigado com a reação; ela parecia mais preocupada do que surpresa. — Como o kraljiki Audric foi morto da mesma maneira — continuou Petros —, nós suspeitamos que o falso archigos esteve envolvido da mesma maneira. Se o hïrzg Jan estiver disposto a julgar o archigos Semini pela morte da archigos Ana em sua própria corte, nós daremos as provas que temos. Em troca, a Fé de Nessântico trabalhará com a Fé de Brezno para restaurar o nosso racha; o archigos Kenne irá convocar um Conclave com todos os a’ténis para eleger um único archigos para reger a fé concénziana, e também abdicará voluntariamente se não for eleito; porém, qualquer archigos eleito deverá assumir o Templo do Archigos em Nessântico, não em Brezno. Da mesma forma, a Fé está disposta a reconhecer o direito ao Trono do Sol de Allesandra ca’Vörl. O archigos Kenne irá apoiá-la diante do Conselho dos Ca’ contra a kraljica Sigourney.

— Não! — Ca’Mazzak ficou de pé em um pulo novamente, e uma baba voou de sua boca com a explosão da palavra. — O archigos Kenne será jogado na Bastida por isso, e os ténis que o apoiarem serão expulsos...

— Se isso acontecer — respondeu Petros calmamente —, então o archigos Kenne mandará que os ténis-guerreiros permaneçam nos templos em vez de responderem ao chamado da kraljica. Como a Garde Civile e os chevarittai se sairão contra os ocidentais sem os ténis-guerreiros, conselheiro? Como enfrentarão o exército do hïrzg?

Novamente, ca’Mazzak desmoronou na cadeira. Ele sentiu um arrepio, como se estivesse com febre e alisou a papada. A testa porejava, e debaixo dos braços, o tecido da bashta escureceu.

Allesandra tocou o ombro de Sergei, que se afastou. A a’hïrzg deu um sorriso amargo e fez o sinal de Cénzi para Petros. — Vocês oferecem tudo isso pelo julgamento do archigos Semini?

Petros concordou com a cabeça. — Nós confiamos que a corte do hïrzg será justa e imparcial. E há mais uma coisa: toda perseguição contra os numetodos deve parar. Imediatamente. Os numetodos são inocentes em toda esta questão. O embaixador Karl ca’Vliomani deve retomar o antigo cargo.

Sergei sentiu que as negociações dependeriam da resposta de Allesandra a essa última exigência. Ela tocava o globo partido de Cénzi pendurado no pescoço. Sua própria vida dependia disso também, assim como a de Petros e Aubri. Se ele avaliou errado...

— Eu falarei com meu filho — respondeu a a’hïrzg. — Repetirei tudo o que foi dito aqui. — Sergei achou, por um momento, que essa seria toda a resposta, que ele havia perdido. Mas Allesandra respirou fundo e disse — Vou sugerir que o hïrzg aceite a oferta do archigos. Conselheiro ca’Mazzak, comandante, u’téni, nós voltaremos à tenda de negociação em três viradas da ampulheta para dar nossa resposta.


— Se o archigos Kenne tem provas, eu irei avaliá-las — falou Allesandra para Sergei ao voltarem. — E se o archigos Semini for o responsável pela morte de Ana ca’Seranta, então... — Ela franziu os lábios com força. — Então estou inclinada a convencer meu filho a aceitar a oferta do archigos.

De alguma forma, a a’hïrzg pareceu ter feito exatamente isso, embora Sergei não tenha estado presente à discussão, e embora todo mundo no acampamento tenha ouvido as ocasionais vozes exaltadas na tenda do hïrzg. O regente notou, principalmente, que o starkkapitän ca’Damont colocou gardai postados em volta da tenda do archigos.

Ele se perguntou o que estaria acontecendo no outro acampamento. Tudo dependia das lealdades da Garde Civile e dos ténis — e Sergei não tinha certeza de como aquilo terminaria. O regente rezou para Cénzi, na esperança de que Ele escutasse.

Três viradas da ampulheta depois, Sergei, Allesandra e os demais cavalgaram na direção da tenda de negociação.

Há décadas, quando ele era o comandante da Garde Kralji, Sergei às vezes sentia um arrepio ao se aproximar da Bastida a’Drago: um tremor na espinha, quase parecido com medo, que lhe dizia quando havia algo errado no complexo atrás do crânio sorridente do dragão.

O regente sentiu aquele arrepio agora, conforme o pequeno destacamento se aproximava da tenda de negociação. Antes de mais nada, foi curioso que não houvesse nenhum criado andando de um lado para o outro, que as cadeiras do lado de Nessântico na mesa estivessem vazias. Mas o que deteve Sergei, o que deu um nó no estômago, foi perceber que havia alguma coisa sobre a mesa — duas coisas, dois objetos arredondados escondidos sob a sombra da lona que tremulava na brisa. Infelizmente, Sergei sabia o que estava ali.

— Espere um momento, a’hïrzg — falou ele. — Por favor, espere aqui.

Sergei fez o cavalo ir à frente sozinho e gesticulou para o starkkapitän ca’Damont segui-lo. Ele apertou os velhos olhos para forçá-los a distinguir o que havia sobre a mesa. Ao se aproximar, ouviu um leve zumbido que ficou mais alto aos poucos: o barulho de insetos.

O regente entendeu, naquele momento, e a bile subiu à garganta. Ele parou o cavalo, desceu da sela e entrou na sombra da tenda.

Sobre a mesa havia duas cabeças, com uma poça de sangue coagulado e grudento debaixo delas e um tapete de moscas que andavam sobre os olhos abertos e dentro das bocas escancaradas.

Sergei ficou de joelhos e fez o sinal de Cénzi na direção da cena horripilante. — Aubri. Petros. Sinto muito. Sinto muitíssimo.

Trêmulo, o regente ficou de pé novamente e retornou ao cavalo. Ele cavalgou em silêncio até os demais. O olhar de Allesandra questionou Sergei; ela também sabia. O regente viu na maneira com que a a’hïrzg levou a mão à boca antes dele sequer falar.

— O conselheiro ca’Mazzak deixou sua própria resposta para nós — disse Sergei. — Parece que ele não se importa com qual seria nossa resposta.

 

Nico Morel

NICO NÃO CONSEGUIA ficar sentado quieto. O menino jamais havia imaginado um lugar tão grande, glorioso e interessante quanto esse. Eles foram conduzidos a um gabinete em um dos prédios que rodeavam a Praça a’Archigos; a recepção em si era maior do que o apartamento de dois cômodos que eles tinham no Velho Distrito e havia pelo menos três portas que levavam a outros aposentos que Nico só conseguia imaginar. Ele vislumbrou um quarto quando um criado entrou com roupas de cama na mão, e o aposento parecia enorme, além dos limites. O gabinete para onde eles foram levados teria abrigado a casa de Nico, assim como aquelas dos vizinhos mais próximos. O teto parecia tão alto e tão branco quanto as nuvens de verão; o piso era um mosaico intrincado de várias madeiras coloridas, e as paredes eram cobertas por tapeçarias lindas, que mostravam a história da vida de Cénzi, a moldura no topo das paredes era entalhada e dourada. Atrás da enorme mesa de mogno, uma sacada dava vista para uma grande praça, com a silhueta do Templo do Archigos emoldurada pelas cortinas abertas. O resto da mobília na sala chamava tanto a atenção quanto a mesa — uma mesa comprida e lustrosa para reuniões, com cadeiras estofadas ao redor; um sofá colocado diante de uma lareira em que a família inteira de Nico poderia ficar em pé dentro, cercada por um belo consolo; um globo entalhado e partido que era mais alto que dois homens, um em cima do outro, com figuras esculpidas dos moitidis em volta dele e uma base cravejada de joias e folheada de ouro reluzente. Ao redor das paredes, havia mesas repletas de lindas maravilhas do exterior: estátuas de animais desconhecidos; uma pedra grande quebrada ao meio, com o miolo cheio de belos cristais violeta; conchas cor-de-rosa e espinhentas do Strettosei...

Nico piscava e olhava fixamente para tudo. — Tudo isso aqui é só para o senhor? — perguntou o menino para o archigos, maravilhado.

— Nico, silêncio — disse a matarh, mas o velho no robe verde apenas riu.

— É para o archigos, seja ele quem for — falou o homem. — Eu vivo aqui apenas temporariamente, até que Cénzi me chame de volta para Ele. Era aqui que a archigos Ana vivia também. — Ele deu um tapinha na cabeça de Nico, e os criados trouxeram bandejas de comida e bebidas e colocaram sobre a mesa. O archigos gesticulou para eles assim que terminaram e disse — Isso é tudo. Por favor, cuidem para que não sejamos incomodados. Mandem minha carruagem para a porta dos fundos uma virada da ampulheta antes da Terceira Chamada. — Eles fizeram uma mesura e foram embora. — Sirvam-se — disse o homem quando o último dos criados fechou as portas duplas ao sair do gabinete. — Karl? Parece que uma boa refeição cairia bem a todos vocês. — Nico olhava fixamente para a comida, e o archigos riu de novo. — Vamos, Nico. Você não precisa esperar.

O menino olhou de relance para a matarh e Talis, que deu de ombros. — Tudo bem — falou a matarh. — Vá em frente...

Nico foi em frente. Um bolinho de grãos com pingos de mel foi a primeira coisa que colocou na boca. Os adultos não pareciam estar com tanta fome quanto ele, o que era estranho. Nem Talis, Karl ou Varina foram à mesa, e sua matarh beliscava a esmo um peito de pato. Em vez disso, eles se amontoaram perto do sofá, em frente à lareira.

— Archigos — Nico ouviu Karl dizer —, Ana ficaria muitíssimo orgulhosa de você. Todos nós lhe devemos agradecimentos.

— Os agradecimentos são para você, Karl. Se você não tivesse vindo até mim, se não me dissesse o que sabia... Bem, não tenho certeza do que teria acontecido. De qualquer forma, eu talvez tenha colocado você em mais perigo, não em menos. A kraljica está furiosa, pelo que eu soube, e assim que o conselheiro ca’Mazzak retornar da negociação com os firenzcianos, eu desconfio que ela ficará ainda menos contente comigo. Nenhum de nós tem como saber o que acontecerá diante dessa situação; por isso precisamos conversar hoje à noite. Não há muito tempo; é possível que um mensageiro já esteja voltando para a cidade. — Nico ouviu o archigos perder a voz. Ele virou-se com um pedaço de pão e queijo na mão. — Este é o ocidental? — perguntou Kenne ao apontar com a cabeça na direção de Talis, que mantinha as duas mãos na bengala que sempre carregava. Nico viu o ar tremular em volta da madeira como se a bengala estivesse em chamas, mas era um fogo mais frio que a neve do inverno passado.

— Sim, archigos — respondeu Karl. — Este é Talis Posti. O vatarh de Nico.

— Ah — falou Kenne. — Vajiki Posti, eu também lhe devo agradecimentos; embora deva me desculpar por querer saber o motivo pelo qual você decidiu me ajudar.

— Porque eu vislumbrei os futuros, e nenhum deles leva a um bom lugar para o meu povo — respondeu Talis, e Nico viu seu interesse aumentar ao ouvir aquilo. Talis podia ver o futuro? Isso seria interessante. Ora, se ele pudesse fazer isso, Nico poderia se ver como adulto, talvez ver o que aconteceria com ele... O menino percebeu que suas mãos se moviam por conta própria em uma estranha dança, os dedos grudentos mexiam-se pelo ar, e palavras desconhecidas vieram a ele. Nico murmurou tão baixinho que nenhum dos demais ouviu. O frio da bengala de Talis parecia fluir na direção de suas mãos; ele sentia o arrepio nos braços.

— Você tem aquele dom dos deuses? — perguntou Kenne para Talis, que ergueu as sobrancelhas e olhou para Karl.

— Mahri alegava que podia fazer o mesmo — falou o embaixador. Isso também fez Nico prestar atenção; ele lembrou-se que Talis mencionara o nome anteriormente. — Não que tivesse lhe servido de alguma coisa no fim das contas.

— Não são visões do futuro que Axat nos permite vislumbrar, mas todas as possibilidades que existem. Os vislumbres de futuros em potencial não são fáceis de ler, embora fosse dito que Mahri era capaz de usar o talento melhor do que qualquer um antes ou depois dele. E sim, parece que o talento o desapontou, no fim das contas. — Um breve sorriso passou pelo rosto de Talis. — Talvez tenha sido a proximidade com o seu Cénzi.

Kenne riu; Nico gostou do som, fez com que gostasse do homem. O frio envolveu seus braços agora, embora as mãos tivessem parado de dançar.

— Você está disposto a nos ajudar... — o archigos Kenne abriu os braços para incluir Karl e Varina, e o resto da cidade do lado de fora da sacada — ... quando isso significa que você poderia ajudar a derrotar as forças do seu próprio povo?

— Sim — respondeu Talis —, porque Axat me disse que, ao fazer isso, eu ajudarei meu povo.

O frio congelava os braços de Nico e estava ficando pesado. Ele não sabia o que fazer com aquilo, mas tremia com o esforço de segurá-lo, e a dor quase fez com que gritasse. — Às vezes seu inimigo torna-se seu aliado — dizia Varina para o archigos. — Eu sei...

— Nico! — A voz da matarh foi quase um berro. — O que você está fazendo? — O menino tomou um susto quando Serafina agarrou seu ombro, e o frio saiu voando do corpo. Ao fugir, a energia reluziu e flamejou, como uma língua de fogo azul. A rajada foi disparada por ele, varou o espaço entre Talis e o archigos e se dirigiu para a escultura do globo partido, no canto do gabinete. Nico soluçou, assustado tanto pela sensação de alívio quanto de puro terror diante do que tinha acabado de lançar. Varina, que estava a alguns passos do archigos, gesticulou e falou uma única palavra ríspida; com o movimento, Nico viu a linha de fogo azul fazer uma curva e dar meia-volta. A rajada fez um arco ao se afastar da escultura, cuspiu fagulhas cor de safira sobre a mesa envernizada e saiu assobiando pelas portas abertas da sacada. Bem acima da praça, o fogo concentrou-se e explodiu: um globo azul-claro que brilhou como um relâmpago congelado. Com a explosão, veio o estrondo ensurdecedor de um trovão que ecoou nas paredes dos prédios que circundavam a praça. Nico sentiu as janelas tremerem e chacoalharem nas ombreiras e ouviu vidro se quebrando ao longe.

— Nico! — O menino foi abraçado pela matarh. — Nico... — repetiu ela, com mais gentileza dessa vez. Serafina abraçou o filho com mais força, que não tinha certeza se era para ser um abraço ou um estrangulamento. Todos olhavam fixamente para ele.

— Desculpem — falou Nico. — Eu não tinha a intenção de.

Ele começou a chorar.

 

Karl Vliomani

— DESCULPEM — falou Nico. O lábio inferior tremia, e as próximas palavras mal haviam saído antes que os ombros começassem a tremer por causa dos soluços. — Eu não tinha a intenção de...

Serafina olhava fixamente sobre os ombros do menino ao abraçá-lo, seus olhos estavam arregalados e aterrorizados. Lá fora, na praça, eles escutaram gritos ao longe quando os transeuntes começaram a procurar pela fonte da claridade trovejante. Karl ouviu Varina suspirar de alívio atrás de si. — Se ele estivesse um pouquinho para um lado, ou para o outro... — disse Karl.

— Ele não estava — respondeu Varina, que se ajoelhou na frente do menino e acenou com a cabeça para Serafina. — Está tudo bem, Nico. Ninguém se machucou. Está tudo bem. — Ela olhou para Karl, atrás dela. — Está tudo bem — repetiu. O menino fungou e esfregou a manga no nariz e nos olhos.

Karl suspirou e sorriu: para Varina, para Nico e para Serafina. — Sim, está tudo bem, graças a Varina. Talis, você sabia...?

— Eu suspeitava, mas... — Ele segurava o cajado mágico e o olhava confuso, como se fosse um copo subitamente vazio. — Agora eu sei. Archigos, o senhor está...?

Kenne abanou a mão, como se não fosse nada, mas Karl notou que o peito do homem ainda ofegava. — Eu estou bem — disse o archigos. — E impressionado. Seu filho é um dos poucos talentos naturais que conheci. O archigos Dhosti foi um, e Ana, também. Com treinamento, bem...

— Eu o treinarei. — A resposta do homem veio acompanhada por uma cara fechada. Ele pegou o cajado mágico com força. — Esse é o dom de Axat, não de Cénzi.

— É claro — falou Kenne para Talis, mas o olhar permaneceu em Nico. — Não se preocupe — disse o archigos para o menino. — Ninguém aqui está com raiva de você, entendeu? — Nico concordou com a cabeça, ainda fungando o nariz.

— Se eu soubesse disso, teria sido bem mais cauteloso quando me aproximei de você pela primeira vez — falou Karl para Talis. — Mas, como não aconteceu nenhum mal... Nós ainda temos planos e contingências em que pensar. Archigos, Petros está pronto para fazer a proposta que conversamos para Firenzcia?

Kenne concordou com a cabeça, com mais hesitação do que Karl gostaria, mas ao menos foi uma confirmação. Na verdade, ele teve medo de que o archigos não levasse o plano adiante, especialmente dado o perigo inegável em que Petros foi colocado. — Ele está pronto. — A voz de Kenne tremeu um pouco; medo combinado com idade, decidiu Karl. — Na verdade, Petros já deve ter feito a proposta a essa altura.

— Ótimo — disse Karl. Ele deu um tapinha no ombro de Kenne e falou — Ele ficará bem e voltará para você em breve. Agora, da parte de Talis, ele trará os materiais dos aposentos de Uly para o templo amanhã, e nós podemos começar a preparar a areia negra para a demonstração. Isso deve mostrar a esse tal tecuhtli dos ocidentais que atacar a cidade seria idiotice. Nós podemos prevenir centenas, se não milhares, de mortes.


A carruagem do archigos era um truque — quatro criados de Kenne entraram no veículo quando ele parou na entrada dos fundos do prédio, enquanto Karl e os demais desceram correndo uma escada dos fundos na direção de uma entrada de serviço pouco usada. Nenhum deles sabia se o subterfúgio era necessário; Karl torcia para que não fosse, porém, caso fosse, então nenhuma alternativa que eles prepararam se tornaria realidade.

O grupo começou a sair correndo da praça em direção à Avi. Kenne dera a eles dinheiro suficiente para alugarem uma das carruagens e levá-los de volta ao Velho Distrito. Conforme passaram pela rua, Karl e os demais viram três esquadrões distintos de Garde Kralji cruzarem a Praça do Archigos correndo. — Esperem um momento — falou o embaixador. Talis, Serafina e Nico já estavam na Avi à procura de uma carruagem para alugar; Varina, um pouco à frente dele, parou. Quando Karl hesitou, no limite da praça, ele e Varina viram dois dos esquadrões entrarem no prédio de onde eles acabaram de sair; o outro esquadrão entrou no Templo do Archigos.

As armas estavam desembainhadas, o aço reluzia sob a luz das lâmpadas.

— Karl? O que está acontecendo?

— Não sei, Varina. Acho que eu deveria voltar. Leve os demais. Eu vou...

— Não — disse Varina com firmeza. Ela voltou até onde o embaixador estava e segurou o braço dele. — Não, Karl. Não dessa vez. Mesmo disfarçado, seu rosto é muito reconhecível pela Garde Kralji, e há vários deles, de todo modo. Você não sabe por que os gardai estão lá; pode não ser nada. Provavelmente não é nada. E caso não seja... — Varina mordeu o lábio inferior. Os olhos imploraram. — Você precisa deixar o archigos cuidar de si mesmo. Venha comigo. Por favor.

— Mas se as coisas deram errado...

— Se as coisas deram errado, você não pode mudá-las agora. Nós não podemos mudá-las. Tudo que aconteceria é que você estaria perdido também. — O braço apertou o dele. — Por favor, Karl. Vamos embora. Se houver um problema, nós conseguiremos ajudar mais o archigos se estivermos vivos do que se formos jogados na Bastida com ele. Nós soltamos Sergei; podemos fazer o mesmo novamente se precisarmos. Karl... — Varina encostou a cabeça no ombro dele. — Se você voltar, então eu irei com você. Mas essa é a decisão errada. Tenho certeza.

Karl olhou fixamente para os prédios e desejou que pudesse ver a sacada de Kenne dali. Tudo estava em paz; as pessoas ainda andavam pela praça como se nada estivesse acontecendo. Mas ele sabia. Ele sabia.

E também sabia que Varina estava certa. Ele não podia mudar nada. Karl olhou para trás. Talis chamou uma carruagem com um gesto e olhava para os dois com curiosidade. Uma mulher, que estava vestida com roupas pobres demais para esta parte da cidade, o que era estranho, passou correndo por eles vindo da direção da praça. Ao passar, ela pareceu tropeçar e esbarrar de leve em Karl. — Desculpe, vajiki — murmurou a mulher. — A voz... parecia vagamente familiar, mas ela manteve o capuz da tashta erguido e a cabeça baixa. Ele vislumbrou o cabelo castanho e sujo. — Vai ser uma noite ruim. Uma noite ruim. O senhor realmente deveria correr para casa...

Ela foi embora depressa.

Karl olhou fixamente a mulher, que desapareceu do outro lado da carruagem à espera. Talis acenava para eles. Foi aí que Karl lembrou-se de onde ouvira aquela voz.

— Tudo bem — disse ele para Varina. — Vamos embora.

 

A Batalha Começa: Kenne ca’Fionta

— INFELIZMENTE seu pobre Petros está morto. É uma pena.

Kenne ouviu as palavras, e os velhos olhos embaçaram com as lágrimas, embora ele já soubesse que Petros estava morto. Ele sentira em seu coração quando a Garde Kralji veio e o levou para a Bastida. Só lhe restava torcer para que Karl e o resto tivessem escapado da varredura; eles foram embora com apenas algumas marcas da ampulheta de antecedência. O gosto da mordaça de metal e couro era horrível; os grilhões que prendiam as mãos eram tão pesados que ele mal conseguia levantá-los do colo.

O rosto deformado da kraljica Sigourney encarava o archigos de cima. Kenne sustentou o olhar caolho dela por apenas alguns instantes, enquanto respirava através do horrível aparato sobre a cabeça, depois abaixou o próprio olhar, arrasado e derrotado. Entre as pernas, as mãos algemadas mexiam inquietas na palha da cama tosca onde ele estava sentado na cela, no alto da torre principal da Bastida. A voz da kraljica era solidária, quase triste. — Você é um bom homem, Kenne. Sempre foi. Mas era fraco demais para ser archigos. Deveria ter recusado o título e dito ao Colégio A’téni para eleger outra pessoa.

Kenne só podia concordar com a cabeça. Havia muitas noites ultimamente que em ele desejava exatamente a mesma coisa.

— Você devia saber que isto aconteceria, Kenne. Você escolheu se associar aos inimigos dos Domínios. Devia saber. E agora...

Ela mancou até a única janela da cela e apoiou-se na muleta acolchoada e dourada, enquanto a perna direita ficava pendurada sobre o vazio abaixo do joelho. A janela dava vista para oeste, Kenne sabia; na parede oposta à janela, ele tinha visto a luz do sol ficar amarela, depois vermelha e então púrpura ao subir sobre pedras úmidas até sumir. — Venha cá. — falou Sigourney. — Venha cá e veja.

Ele levantou-se da cama com dificuldade; era um velho arrasado agora, na verdade. Arrastou os pés até a janela enquanto a kraljica esperava ao lado. Lá fora, debaixo de um belo céu azul, Kenne viu o A’Sele reluzir sob o sol enquanto cortava a cidade em direção ao mar. Perto de onde o rio virava para o sul, ele viu dezenas de velas reunidas. Do outro lado do A’Sele, onde antigamente havia fazendas e propriedades dos ca’ e co’, a terra estava agitada por uma invasão sombria que não estava lá ontem. — Está vendo? Está vendo o exército ocidental se aproximar? Aquelas são as pessoas pelas quais você traiu os Domínios, archigos. São as pessoas que o deixaram tão assustado que você tentou fazer um pacto com os cães firenzcianos contra mim. — A voz assumiu um tom mais agressivo agora, o único olho atacava Kenne. — Aquelas são as criaturas desprezíveis que mataram meu irmão. São os vilões que destruíram nossas cidades e nossos vilarejos. Quer você acredite ou não, tenho certeza de que também são as pessoas que mataram Audric e me transformaram nesse horror. Será que eu odeio os ocidentais? Ah, você não pode imaginar o quanto. Observe, e você verá os bons chevarittai dos Domínios escorraçá-los, e depois nós cuidaremos de seus amigos firenzcianos também. Em breve, o combate começará. E você vai nos ajudar, Kenne.

Ele virou a cabeça amordaçada na direção de Sigourney, com uma expressão de curiosidade. Ela riu. — Ah, você vai. Nós temos que ter os ténis-guerreiros, afinal, e temos que garantir que eles entendam que seu archigos agora se arrepende de sua horrível traição e que deseja que todos os ténis da fé concénziana ajudem Nessântico nesta ocasião terrível da maneira que puderem. É o que você deseja mesmo, não é, archigos?

Kenne só podia encará-la, mudo.

— Você acha que não? Bem, a proclamação já está escrita; só precisa de sua assinatura. E quer você queira ou não, eu terei essa assinatura. Você foi amigo de Sergei Rudka, afinal; deve saber que a Bastida sempre consegue as confissões que deseja.

Mesmo com aquele horrível aparato preso ao rosto, Kenne não conseguiu esconder a expressão de horror e percebeu o sorriso da kraljica diante de sua reação. — Ótimo — falou Sigourney. — Vou refletir sobre o seu sofrimento quando o capitão me entregar sua confissão.

A kraljica gesticulou para os gardai do lado de fora da cela e disse — Ele está pronto. Cuidem para que receba sua hospitalidade integralmente.

 

A Batalha Começa: Niente

A CIDADE ERGUIA FLANCOS DE PEDRA sobre morros baixos; as torres e os domos lotavam a grande ilha no centro do rio de modo que parecia uma pedra coberta por cracas. A metrópole saltara para fora do confinamento do cinturão das muralhas, magnífica, orgulhosa e destemida, os campos ao redor eram cheios de grãos e colheitas que alimentavam a aglomeração de habitantes. Essa cidade... Ela era a rival de Tlaxcala, de certa forma menor, porém mais populosa e comprimida, com uma arquitetura estranha. Nas cidades de sua terra natal, prevaleciam as pirâmides dos templos de Axat, Sakal e dos Quatro; aqui em Nessântico, o que era mais visível eram as torres dos grandes edifícios e os domos dourados dos templos.

Tão estrangeiro. Tão estranho. Niente não queria nada além de ver locais conhecidos novamente e temia que jamais os veria.

Ele olhou para Nessântico e sentiu um arrepio, mas não viu a mesma reação no tecuhtli Zolin. O tecuhtli, ao contrário, estava no morro que dava vista para o rio e a cidade. Zolin cruzou os braços e deu um sorriso com os lábios fechados. — Isso é nosso — disse ele. — Olhe para a cidade. Ela é nossa.

Niente se perguntou se o homem ao menos notou as grandes fileiras de tropas orientais dispostas ao longo da estrada, se contou os barcos que apinhavam o rio, se percebeu os preparativos para guerra na periferia oeste da cidade.

— O que você me diz, Niente? — perguntou Zolin. — Será que descansaremos amanhã à noite neste lugar?

— Se for a vontade de Axat — respondeu Niente, e Zolin gargalhou.

— É a minha vontade que importa, nahual. Você ainda não compreendeu isso? — Ele não deu tempo para Niente responder; não que houvesse alguma resposta que o nahual pudesse dar. — Vá. Cuide para que os nahualli estejam prontos e que o resto da areia negra tenha sido preparado para os ataques iniciais. E mande Citlali e Mazatl até mim. Começaremos hoje à noite. Vamos mantê-los acordados e exaustos; depois, quando Sakal colocar o sol no céu, atacaremos como uma tempestade. — Zolin olhou fixamente para a cidade por mais um instante, depois se virou para Niente. Quase com carinho, colocou a mão em seu ombro. — Você verá sua família novamente, nahual. Eu prometo. Mas, primeiro, temos que dar uma lição nesses orientais por sua insensatez. Olhe em sua tigela premonitória, Niente. Você verá que estou certo. Verá sim.

— Com certeza eu verei, tecuhtli.

Mas Niente já sabia o que veria. Ele tinha vislumbrado na manhã de hoje, enquanto eles se aproximavam desse lugar.

O nahual havia rogado a Axat e olhado na tigela, e ele não ousaria olhar novamente.

 

A Batalha Começa: Sergei ca’Rudka

PELA MAIOR PARTE DA MANHÃ, Sergei cavalgou sozinho no meio das tropas firenzcianas, perdido em reflexões que mantinham afastada — pelo menos um pouco — a dor crescente nas costas, provocada pela longa cavalgada. E o corpo não estava mais acostumado a longos dias na sela, nem a tardes passadas debaixo de uma tenda.

Você está ficando velho. Não estará aqui por muito tempo mais, e tem tanto o que fazer ainda.

— Regente, quero falar com você.

Diante do chamado, Sergei virou o olhar e viu o garanhão com as cores de Firenzcia que parou ao seu lado sem ser notado. Velho. Antigamente, você jamais teria deixado de perceber a aproximação. — É claro, hïrzg Jan — falou ele.

O menino trouxe o garanhão mais para perto da baia de montagem de Sergei. A montaria do regente mexeu as orelhas nervosamente e revirou os olhos diante do cavalo de guerra bem maior do que ela. Jan não disse nada, a princípio, e Sergei aguardou enquanto eles prosseguiam pela Avi levantando uma nuvem de poeira em volta dos dois. O exército aproximava-se de Carrefour, com Nessântico a um bom dia de marcha de distância. As forças de Nessântico desapareceram, sumiram; foram embora na tarde da negociação. — A matarh disse que você perdeu dois bons amigos — falou Jan finalmente.

— Perdi sim. Aubri co’Ulcai fez parte da minha equipe por muitos anos, tanto na Garde Kralji quando na Garde Civile, antes de eu ser nomeado regente. Ele era um bom homem e um excelente soldado. Eu não consigo nem pensar em falar com a esposa e os filhos dele para contar o que aconteceu, muito menos para dizer que a lealdade a mim foi a responsável pela morte de Aubri. — Sergei esfregou o nariz de metal, a cola repuxou a pele quando ele fechou a cara. — Quanto a Petros... bem, não havia pessoa mais gentil no mundo, e sei como a amizade dele era importante para o archigos. Não sei o que a notícia fará ao archigos Kenne. Matá-los foi cruel e desnecessário, e se Cénzi me der uma vida suficientemente longa, eu cuidarei para que o conselheiro ca’Mazzak se arrependa da dor que causou a mim e às pessoas de quem eu gosto.

O jovem concordou com a cabeça e falou — Eu entendo. Entendo mesmo. Algum dia, eu encontrarei quem contratou a Pedra Branca para matar meu onczio Fynn, e eu mesmo matarei essa pessoa e a Pedra Branca junto com ela. Meu onczio era um bom amigo para mim, bem como meu parente, e me ensinou muita coisa no pouco tempo em que estive com ele. Eu queria que ele tivesse vivido o suficiente para me ensinar mais a respeito... — Jan parou e balançou a cabeça.

— Não existe livro que ensine alguém a ser um líder, hïrzg — disse Sergei. — A pessoa aprende ao liderar e torcendo para não cometer muitos erros no processo. Quanto à vingança: bem, ao ficar mais velho, eu aprendi que o prazer que se tira da concretização da vingança jamais se compara à expectativa. Também aprendi que às vezes tem que se deixar a vingança completamente de lado em nome de um objetivo maior. A kraljica Marguerite sabia disso melhor do que ninguém; e por esse motivo ela era uma monarca tão boa. — Ele sorriu. — Mesmo que seu vavatarh discordasse veementemente.

— Você conheceu os dois.

Sergei não soube dizer se isso era uma afirmativa ou uma pergunta, mas concordou com a cabeça. — Conheci, sim, e tinha um grande respeito por ambos, incluindo o velho hïrzg Jan.

— Minha matarh o odiava, creio eu.

— Se ela odiava, tinha boas razões — respondeu Sergei. — Mas Jan era o vatarh dela, e acho que sua matarh também o amava.

— Isso é possível?

— Nós somos criaturas estranhas, hïrzg. Somos capazes de ter dois sentimentos conflitantes na cabeça ao mesmo tempo. Água e fogo, ambos juntos.

— A matarh diz que você costumava torturar pessoas.

Sergei esperou um longo tempo para responder. Jan não disse nada e continuou cavalgando ao lado dele. — Era meu dever, em uma determinada época, quando estive no comando da Bastida.

— Ela falou que os rumores diziam que você gostava de torturar. Isso faz parte do que você dizia, sobre a habilidade de ter dois sentimentos conflitantes na cabeça ao mesmo tempo?

Sergei franziu os lábios. Ele esfregou o nariz novamente. Olhou para frente, não para o jovem. — Sim — respondeu Sergei finalmente. A palavra solitária trouxe de volta todas as memórias da Bastida: a escuridão, a dor, o sangue. O prazer.

— A matarh é, ou era, de qualquer maneira, amante do archigos Semini. Você sabia disso, regente?

— Eu suspeitava, sim.

— Mesmo que ela ame o archigos, a matarh estava disposta a sacrificá-lo e entregá-lo ao julgamento, como o u’téni Petros pediu. Ela tomaria essa decisão; a própria matarh me disse quando voltou da negociação. “Que os pecados de Semini sejam pagos em vidas salvas”, foi o que ela falou. Não havia uma lágrima no olho ou um sinal de arrependimento em sua voz. O archigos... ele não sabe disso. Não sabe como chegou perto de ser um prisioneiro. Até onde eu sei, os dois ainda podem... — Jan parou. Deu de ombros.

— Água e fogo, hïrzg — falou Sergei.

Jan concordou com a cabeça. — Ela disse que você ama Nessântico acima de todos nós. No entanto, você cavalga conosco, salvou a matarh e a mim em Passe a’Fiume e colocaria a matarh no Trono do Sol.

— Eu colocaria sim, porque estou convencido de que isso seria o melhor para Nessântico. Eu quero ver os Domínios restaurados, com Firenzcia novamente como seu forte braço direito. — Sergei fez uma pausa. Os dois podiam ver os arredores de Carrefour diante deles na estrada, os topos dos prédios se erguiam mais alto do que as árvores. — É isso o que o senhor também quer, hïrzg?

Sergei observou o jovem, que desviou o olhar para a longa fileira do exército que se estendia pela estrada. — Eu amo minha matarh — respondeu Jan.

— Não foi o que eu perguntei, hïrzg.

Jan concordou com a cabeça e continuou olhando para a cobra blindada de seu exército. — Não, não foi, não é mesmo?

 

A Batalha Começa: Karl Vliomani

— VOCÊ AINDA PODE IR EMBORA pelas ruas a leste do Portão Norte — disse Karl para Serafina. — Terá que tomar cuidado e andar rápido, mas se estiver com Varina, você e Nico terão proteção.

Karl viu que Serafina e Varina balançavam a cabeça antes mesmo de ele terminar. — Eu não irei embora sem Talis — falou Serafina. Nico estava no colo da matarh enquanto se sentavam à mesa da sala principal do apartamento de Serafina. Eles terminaram um jantar à base de pão, queijo e água, embora o queijo estivesse velho, o pão, mofado, e a água, turva. Mas comeram tudo, pois não sabiam quando teriam mais comida.

Com o exército dos tehuantinos a oeste dos limites da cidade, o A’Sele sob controle dos navios ocidentais, e a ameaça do exército de Firenzcia a leste, Nessântico estava em pânico. Rumores fantásticos e absurdos sobre a pilhagem de Karnor e Villembouchure corriam pela cidade e ficavam mais sinistros e violentos cada vez que eram repetidos. Os ocidentais, caso se pudesse acreditar nas histórias, não eram nada além de demônios gerados pelos próprios moitidis, dedicados ao estupro, à tortura e à mutilação. As prateleiras das lojas estavam praticamente vazias; os moinhos não tinham farinha para as padarias, e não havia carroças vindo dos campos fora da cidade para os mercados. Até mesmo a Avi a’Parete estava às escuras na noite de hoje, pois os ténis-luminosos não fizeram as rondas de sempre; para piorar, uma neblina espessa e gelada surgiu a oeste e tomou conta da cidade, que tremia na escuridão, à espera do ataque inevitável que viria.

— Eu pensei ter perdido tanto Talis quanto Nico uma vez; não os perderei novamente — continuou Serafina.

— Ele não pode ir embora — insistiu Karl. — Talis é homem e jovem o suficiente para ser obrigado a servir à Garde Civile. Eles o pegariam antes que chegasse à metade da Avi. E com o archigos na Bastida... bem, com muita certeza a Garde Kralji tem nossas descrições e já procura por nós. Duas mulheres com um menino... acho que você estaria a salvo. Mas comigo e com Talis...

— Eu não vou embora sem ele — insistiu Serafina. A voz e a mão em volta da cintura de Nico tremeram, mas os lábios permaneceram firmemente franzidos.

— Metade da cidade já foi embora... aqueles que puderam. Os rumores sobre Karnor e Villembouchure... tudo aquilo pode acontecer aqui.

Ela deu de ombros.

Varina estava sorrindo sombriamente e tocou o joelho dele por debaixo da mesa. — Você perdeu a discussão, Karl. Com ambas. Estamos aqui. E ficaremos aqui, não importa o que isso signifique.

Karl olhou para Talis, que estava sentado em silêncio ao seu lado da mesa. No último dia, ele andou quieto de uma maneira estranha, desde que foi confirmada a notícia da prisão do archigos, e passou muito tempo com a tigela premonitória. Karl se perguntou o que o homem estaria pensando por trás daquele rosto solene. Talis deu de ombros, e falou para Serafina — Eu concordo com Karl. Eu preferiria que você e Nico estivessem a salvo.

Varina pegou a mão de Karl ao ficar de pé. — Venha comigo. Deixe Sera e Talis resolverem essa questão sozinhos. Nós resolveremos também.

Karl acompanhou Varina até o outro aposento. Ela fechou a porta assim que os dois entraram, de maneira que só podiam ouvir um murmúrio baixo de vozes que conversavam, e disse — Ela ama Talis. — Varina ainda estava apoiada na porta e olhava para Karl.

— Sim — protestou Karl — e é exatamente por isso que Talis quer que Serafina vá embora: porque ele não quer perder as pessoas que ama.

— E é exatamente por isso que ela não irá embora, porque não suportaria não saber o que aconteceu com Talis. — Varina cruzou os braços sob os seios. — É por isso que eu também não irei embora.

— Varina...

— Karl, cale a boca. — Varina afastou-se da parede e foi até ele. Os braços deram a volta em Karl, os lábios procuraram os dele. Havia um desespero no abraço, uma violência no beijo. Karl ouviu um soluço na garganta de Varina e levou a mão ao rosto dela para descobrir que a bochecha estava molhada. Ele tentou se afastar, perguntar o que estava errado, mas Varina não permitiu. Ela puxou de volta a cabeça de Karl, usou o peso do corpo para derrubá-lo sobre o colchão de palha no chão. Então, por um instante, Karl esqueceu de tudo.

Mais tarde, ele deu um beijo em Varina enquanto a segurava perto de si e apreciava o calor de seu corpo. — Eu amo você, Karl — sussurrou Varina no ouvido. — Desisti de fingir que não.

Karl não respondeu. Ele queria. Queria devolver as palavras para Varina. Elas preencheram a garganta, mas ficaram ali, presas. Karl achava que, se dissesse as palavras, trairia Ana e tudo o que ela significava para ele. — Encontre outra pessoa — dissera Ana, há muito tempo. — Volte para sua esposa, se quiser. Ou apaixone-se por outra pessoa, por mim tudo bem, também. Eu ficaria feliz por você porque não posso ser o que você quer que eu seja, Karl.

— Eu... — começou Karl, mas parou. Os dois ouviram ao mesmo tempo um assobio estridente e um rugido baixo como trovão, seguidos quase que imediatamente por outros, e as trompas dos templos começaram a soar um alarme. Karl rolou e afastou-se de Varina. — O que é isso? — perguntou ele, mas suspeitava que já sabia. Ambos vestiram-se depressa e correram para o outro cômodo.

— Começou — falou Talis para os dois assim que entraram. Ele estava parado ao lado da porta que dava para o sul. Na direção do A’Sele, todos puderam ver o brilho laranja amarelado sobre os tetos, iluminando a névoa que bloqueava a visão. — Fogo — continuou Talis. — Os nahualli estão disparando areia negra dentro da cidade, perto do A’Sele.

As trompas soavam estridentes, e havia berros e gritos abafados vindos da névoa.

Talis fechou a porta e disse — É tarde demais agora. Tarde demais.

 

A Batalha Começa: Sigourney ca’Ludovici

DO ÚLTIMO ANDAR do Palácio da Kraljica, apoiada em uma muleta que compensava a falta da perna, Sigourney podia ver os telhados à frente e as águas do A’Sele na margem norte, onde as fogueiras dos ocidentais ardiam nos arredores da cidade. Lá também, ela sabia, estava agrupado o exército da Garde Civile, agora com Aleron ca’Gerodi como comandante. Ele, pelo menos, estava confiante na capacidade dos chevarittai e da Garde Civile em lidar com a dupla ameaça à cidade, mesmo que ninguém mais estivesse. Ca’Gerodi ao menos já esteve em combate antes — e entre os chevarittai à disposição da kraljica, ele era o mais indicado para ser o comandante, desde que ca’Mazzak retirou Aubri co’Ulcai da disputa. Isso fora um erro, Sigourney tinha certeza; um erro que ela compreendia, sim, dada a rebelião de co’Ulcai, mas também um erro que poderia custar a Nessântico mais do que a cidade podia bancar.

O corpo de Sigourney doía muito esta noite. Ela tomou um bom gole de cuore della volpe e pousou a taça no peitoril da janela.

Sigourney também estivera confiante. Confiante de que eles dariam conta daquela ralé ocidental e a destruiria. Depois, que eles se voltariam para o leste e cuidariam de Allesandra e seu filhote, e que fariam com que os firenzcianos percebessem a insensatez desse rompimento do tratado. Sim, ela estivera confiante.

Mas isso parecia ter sido séculos atrás.

Agora, Sigourney vira a estranha névoa surgir do acampamento ocidental e envolver o Velho Distrito e a Garde Civile. Depois, após uma mera virada da ampulheta, grandes flores de fogo laranja nascerem na margem norte, e a kraljica viu as flores subitamente desenharem arcos no céu em várias direções; algumas caíram na névoa onde seu exército esperava, e outras...

A água do A’Sele tremeluziu com o reflexo do fogo conforme as flores — que guinchavam e bramiam — subiam, como se tivessem sido lançadas por raivosos moitidis. Ela viu a resposta dos ténis-guerreiros: raios azul-claros lançados na direção das flores ao alto. Vários alcançaram as flores no ápice de seus arcos: quando eles se tocaram, um breve sol ganhou vida e o som do trovão ecoou pela cidade. Mas havia muitas flores de fogo e a resposta dos ténis-guerreiros chegou atrasada demais. A maior parte das bolas de fogo caiu: sobre os navios de guerra dos Domínios no rio, no labirinto do Velho Distrito, e sobre a própria Ilha A’Kralji. E, onde caíam, explodiam em um jorro de fúria brilhante e ruidosa.

Sigourney observou uma bola de fogo em especial: o arco se ergueu mais alto que os demais, e ela viu a linha assustadora que vinha diretamente em sua direção. A kraljica olhou fixamente, paralisada tanto pelo fascínio quanto pelo medo, e sentiu (conforme a bola de fogo despencava, à medida que crescia a cada instante) o corpo se lembrar do choque e do horror do momento em que o kraljiki Audric foi morto. Ela perguntou-se se doeria muito.

Mas não... Sigourney viu que o rastro de fagulhas agora se desviava levemente para a sua direita. A bola de fogo chocou-se contra a asa norte do palácio e espirrou fogo sobre a fachada e os jardins lá embaixo. A kraljica sentiu a estrutura inteira tremer com o impacto, tão forte que ela teve que se segurar na ombreira da janela para evitar cair. Os dedos apertaram com força a barra da muleta. Houve gritos e berros por toda parte do terreno. A noite de Nessântico foi mais uma vez banida — não pelas famosas lâmpadas dos ténis-luminosos, mas por um inferno. Mesmo da janela, Sigourney achou que podia sentir o calor.

Os criados entraram correndo no cômodo. — Kraljica! A senhora tem que vir conosco! Depressa!

— Eu não sairei daqui.

— A senhora precisa sair! O fogo!

— Então não percam seu tempo aqui; vão ajudar a apagá-lo — falou Sigourney. — Convoquem os ténis-bombeiros nos templos. Vão. Vão!

Ela gesticulou com a mão livre para os criados — o corpo ferido e combalido protestou ante a violência do movimento —, e eles foram embora. As trompas soaram, agora nos templos, o alarme tomou conta da cidade inteira. Sigourney abaixou o olhar e viu os funcionários do palácio correrem na direção da ala em chamas. A fumaça deu a volta na lateral do palácio e fez arder o olho restante da kraljica. Ela piscou ao lacrimejar e bebeu o resto do preparado do ervanário.

— Olhem para mim! — Sigourney soltou um berro estridente para a noite e para as forças ocidentais escondidas na névoa. — Eu abri mão de muita coisa para estar aqui. Vocês não vão me tirar daqui. Não vão.

 

A Batalha Começa: A Pedra Branca

— POR QUE VOCÊ CONTINUA AQUI?

— Por que você os vigia? O menino não é seu.

— Ele não é sua responsabilidade.

— Você esperou tempo demais.

As vozes tagarelavam na cabeça dela, em tom sedutor, de alerta, satisfeito. A voz de Fynn era a mais alta, ronronava com satisfação. — Você morrerá aqui, e a criança dentro de você também.

— Silêncio — disse a Pedra Branca para todas as vozes, que fizeram silêncio a contragosto.

O ar estava espesso com a névoa anormal, e o cheiro de madeira queimada fluía pelos filetes da bruma. O brilho tinha ficado pior, e agora parecia cair uma neve de verão: cinzas caíam no chão e cobriam o cabelo oleoso e os ombros da tashta suja da Pedra Branca. Havia sons indefinidos na névoa, encobertos pelo lamento contínuo e sobrenatural das trompas.

A Pedra Branca olhou fixamente para a porta onde viu Talis pela última vez. Agora não havia ninguém lá, e ela não tinha visto Nico. Não há nada que você possa fazer por ele. Por enquanto, Nico está a salvo. Ela pressionou as mãos contra a barriga inchada. Talvez as vozes estivessem certas. Talvez ela devesse fugir da cidade. Salvar a própria filha.

Mas Nico era filho dela também. Cénzi trouxe o menino para ela. Ele a escolheu, e Nico era tão filho dela quanto a criança em gestação dentro de sua barriga.

— Tarde demais...

Ou talvez não. Com uma careta, ela se afastou da casa de Nico e andou rapidamente pelas ruas. Ela tinha que ver com os próprios olhos, tinha que saber o que acontecia. As ruas estavam bem mais cheias do que costumavam ficar a esta altura da noite, mas as pessoas corriam para seus destinos sem olhar umas para as outras, com o medo estampado em suas feições. Muitas mantinham as mãos próximas às armas carregadas abertamente: espadas com bainhas descascadas e lâminas manchadas de ferrugem; facas que pareciam que a última coisa que tinham feito era cortar um porco assado. Haveria violência nessas ruas antes de a noite acabar: uma palavra rude, um esbarrão acidental, um gesto mal interpretado — qualquer coisa poderia acendê-la, como uma fagulha em um material inflamável. A Pedra Branca sabia disso, porque a violência vivia dentro dela. Ela era capaz de sentir o cheiro de sangue pronto para ser derramado.

Mas não ainda. Não ainda. Ela manteve-se nas sombras, não falou nada com ninguém. Ela evitou matar, a menos que fosse por dinheiro ou pela própria proteção.

Ela chegou à Avi a’Parete e virou para o sul. Ao se aproximar do rio, o cheiro de fumaça ficou ainda mais forte, ela e a bruma estavam tão misturadas que era impossível distinguir uma da outra. Havia incêndios no aglomerado de prédios próximos a oeste da Avi, as chamas chegavam tão alto que a Pedra Branca conseguia ver do ponto onde estava. Uma carruagem conduzida por um téni veio correndo pela Pontica Kralji com meia dúzia de ténis-bombeiros dentro, com os rostos cobertos por fuligem e já exaustos pelo esforço de usar os feitiços para apagar os vários incêndios. Um esquadrão da Garde Kralji, com espadas desembainhadas e expressões carrancudas, acompanhava os ténis-bombeiros e cercava um grupo de homens de aparência melancólica em bashtas simplórias, a maioria jovem demais ou velha demais. — Você! — vociferou o offizier do esquadrão ao apontar para um velho de barba grisalha que andava à espreita, perto do prédio mais próximo à Pedra Branca. — E você! — Agora dirigido a um jovem que não devia ter mais de 12 anos, sendo puxado pela matarh. — Vocês dois! Venham conosco! Quero ver animação agora!

A matarh soltou um grito estridente de objeção, o homem fez menção de correr na direção contrária, mas evidentemente decidiu que não conseguiria fugir. A Garde Kralji cercou os dois e partiu noite adentro na direção dos incêndios, levando o menino e o velho com eles, enquanto a matarh protestava inutilmente, aos gritos.

A Pedra Branca continuou caminhando na direção sul até ver as colunas da Pontica Kralji que se agigantavam através da fumaça. Ela parou ali e olhou para o A’Sele. O que viu a deixou horrorizada e fez as vozes dentro de sua cabeça rirem.

No rio, vários navios de guerra estavam em chamas, já queimados quase até a linha d’água, os destroços entupiam o A’Sele de maneira que os navios ainda incólumes mal conseguiam manobrar. O Palácio da Kraljica era um inferno laranja amarelado, com um vulcão que cuspia fagulhas para longe. O grande novo domo do Velho Templo parecia rachado, o fogo lambia os suportes que tinham sido erigidos em volta dele. Havia pequenos incêndios aqui e ali. As pontes, exatamente as duas que levavam à margem sul, estavam lotadas de pessoas em fuga, que empurravam carrinhos cheios de pertences ou sobrecarregados com pacotes. A Pedra Branca ouviu um estrondo atrás de si; ela olhou na direção dos prédios que lotavam a Avi nesta margem e viu uma multidão botar abaixo a porta de uma padaria e também de uma joalheria. A rua atrás dela estava ficando lotada e barulhenta. Dentro de algum lugar, em uma das lojas, a Pedra Branca ouviu uma mulher gritar.

Sangue. Ela sentiu o cheiro do sangue. Tocou a bolsinha de couro sob o tecido da tashta e sentiu a pedra lisa lá dentro.

— O tumulto começou...

— Isso só vai piorar...

As vozes berraram assustadas em sua cabeça. — Você virou idiota, mulher? Ande!

Ela andou. Caminhou a passos largos, sem pressa, até o beco mais próximo, um espaço cheio de lixo entre os fundos dos prédios. A Pedra Branca voltaria à casa de Nico. Ficaria de vigia e, se as coisas ficassem perigosas, ela estaria ali para ajudá-lo, para tirá-lo de lá. Se a família de verdade do menino não pudesse protegê-lo, ela seria sua verdadeira matarh e faria isso. Ela tocou o estômago enquanto andava. — E farei o mesmo por você — sussurrou para a vida que se mexia dentro dela. — Eu farei isso. Prometo.

As vozes riram e gargalharam.

A Pedra Branca viu um movimento pelo rabo de olho na névoa e na fumaça e sentiu um arrepio de perigo. Ela deu meia-volta. — Ei! — Havia um homem ali, com cabelo negro e fios brancos, mas jovem o suficiente, o que fez a Pedra Branca se perguntar como ele conseguiu evitar os esquadrões de alistamento que rondavam o Velho Distrito. — Não há necessidade de se assustar, não é, vajica? — disse o sujeito. Ela viu a língua se mexer atrás dos poucos dentes. — Eu só queria ter certeza de que estava a salvo, só isso. — Ele deu um passo na direção dela. — Agora os tempos andam perigosos.

— Para você, sim — respondeu ela. — Eu posso tomar conta de mim mesma.

— Ah, pode, é? — O homem deslizou para o lado e impediu que ela entrasse no beco. Ela acompanhou o movimento, sempre olhando para o sujeito. — Não são muitas as pessoas que podem dizer isso hoje em dia. — Ele deu um passo na direção da Pedra Branca, que fez uma expressão de desdém.

— Não — disse ela, embora já soubesse que o homem não ouviria. — Você se arrependerá. Você não quer conhecer a Pedra Branca.

Ele riu. — A Pedra Branca, é? Está me dizendo que a Pedra Branca tem interesse em alguém como você?

Ela não respondeu. O homem deu mais um passo, ficou perto o suficiente para que ela sentisse seu cheiro, e estendeu a mão para agarrar seu braço. Nesse mesmo instante, a Pedra Branca agachou-se, tirou uma adaga da bainha na bota e golpeou para cima, debaixo das costelas do homem, que foi empurrado de costas para dentro do beco. Ele ofegou, boquiaberto como um peixe; ela sentiu o sangue quente jorrar sobre a mão. Os dedos do sujeito arranharam seu braço, mas caíram lentamente. A Pedra Branca ouviu o homem tomar um fôlego gorgolejante enquanto saía um filete de sangue da boca. Ela deixou o corpo cair enquanto metia a mão debaixo da gola da tashta para pegar a bolsinha. Com pressa, a tirou do pescoço e deixou a pedra lisa e clara como neve cair na palma da mão. Pressionou o seixo no olho direito do sujeito. Seus próprios olhos estavam fechados.

Ah, o lamento da morte... ela ouviu o homem gritar, sentiu a presença entrar no seixo enquanto os outros se remexiam no interior para abrir espaço para o espírito moribundo. O uivo silencioso do sujeito tomou conta de sua mente, tão alto que ela ficou surpresa que não ecoasse em volta dos dois. Quando a pedra o absorveu complemente, ela removeu o seixo do olho e guardou de volta na bolsinha, colocou o cordão de couro no pescoço novamente e deixou a bolsinha cair entre os seios, debaixo da tashta.

— A Pedra Branca protege o que é dela — ela disse para o cadáver de olhos abertos.

Depois, as vozes falaram alto e tomaram conta da cabeça da Pedra Branca, com uma nova que se juntou ao coro louco, enquanto ela voltava para a casa de Nico.

 


A Batalha Começa: Niente

O CÉU FICOU ILUMINADO a leste e a bruma mágica sumiu com a luz, embora a cidade continuasse envolvida pela fumaça. Niente estava com o tecuhtli Zolin, Citlali e Mazatl. Os guerreiros que usavam a armadura e os rostos tatuados agora estavam pintados para parecerem as terríveis e cruéis criaturas oníricas que estupraram Axat antes que a Escuridão colocasse seu corpo ferido no céu. Os três estavam próximos ao rio; a enorme ilha em volta da qual ele fluía parecia estar acesa, e a fumaça saía de várias dezenas de lugares na cidade.

— Muito bem, nahual — disse Zolin. — Eles estarão exaustos e assustados com os incêndios dessa noite. Os nahualli estão descansados? Os cajados mágicos estão cheios?

— Eles estão tão descansados quanto é possível, tecuhtli — falou Niente. — Nós preparamos nossos cajados ontem à noite, após lançarmos a areia negra.

— Ótimo — trovejou Zolin. — Então deixe de parecer tão melancólico. Esse é um grande dia, nahual Niente. Hoje nós mostramos a esses orientais que eles não são imunes à fúria dos tehuantinos.

Citlali e Mazatl gargalharam com Zolin. Niente tentou sorrir, mas não conseguiu. Ele ergueu o próprio cajado mágico, o tecuhtli assentiu e disse — Vá até os nahualli. Citlali, Mazatl, acordem seus guerreiros. Quando virmos os olhos de Sakal se abrirem no horizonte, será o momento.

Niente abaixou a cabeça para o tecuhtli e foi embora. Ele se dirigiu para o norte, para o campo pisoteado onde a maior parte do exército estava reunida perto da estrada. Os nahualli encontravam-se ali, o nahual deu suas ordens e espalhou os homens atrás da primeira fileira de guerreiros montados e da primeira leva de infantaria. Niente tomou o seu próprio lugar atrás do tecuhtli Zolin e de seus guerreiros selecionados. Do outro lado, ele viu, com a visão borrada pelo olho esquerdo ruim, os estandartes e escudos das tropas de Nessântico à espera. Havia muitos; Niente olhou para o próprio exército, significativamente menor agora, após todas as batalhas.

Ele não tinha dúvida de que os guerreiros tehuantinos eram mais bravos, de que os nahualli eram mais poderosos que os ténis-guerreiros de Nessântico. No entanto...

Havia um ardência no estômago que não passava. Niente segurou o cajado mágico com força e sentiu a energia do X’in Ka ligada ao objeto, mas o poder nas mãos não lhe deu conforto.

O céu a leste ficou ainda mais iluminado. Os primeiros raios da manhã lançaram sombras compridas que correram pela terra.

Zolin ergueu a espada e gritou — Agora! Agora! — Trompas soaram em resposta, e os guerreiros tehuantinos gritaram seus desafios. Niente levantou o cajado mágico e o bateu contra a mão aberta. O fogo chiou, faiscou e saiu voando na direção das fileiras inimigas; um momento depois, os cajados dos outros nahualli de toda a longa fileira fizeram o mesmo. Os ténis-guerreiros de Nessântico responderam: alguns feitiços sumiram como se tivessem sido engolidos pelo ar; outros quicaram, como se tivessem batido em uma parede, e voltaram para as fileiras dos tehuantinos em um arco. Onde os feitiços caíam, guerreiros caíam com eles e berravam ao serem consumidos pelas línguas grudentas do fogo. Muitos feitiços, porém, passaram incólumes, e os tehuantinos ouviram os gritos de resposta dos nessânticos. Os arqueiros, com o que restava da areia negra na ponta das flechas, lançaram uma chuva flamejante sobre o campo, que foi respondida por uma chuva de flechas nessânticas. Em volta de Niente, guerreiros grunhiram ao serem empalados, mas os escudos foram erguidos de imediato e apararam a maioria das flechas. Zolin gesticulou com a espada e os guerreiros começaram a se mover, devagar, a princípio, depois ganharam velocidade para correr pelo campo na direção dos inimigos e da cidade a frente à espera.

Foi difícil não se envolver com a onda de empolgação. Niente avançou atrás de Zolin e da parede de infantaria e ouviu a própria voz berrar um desafio com os demais. Então, com um tremor audível, a linha de frente dos tehuantinos colidiu com os nessânticos, que esperavam. Niente viu o reluzir das espadas, o avanço dos guerreiros a cavalo contra a massa caótica de soldados, ouviu os gritos dos mortos e moribundos de ambos os lados, sentiu o cheiro do sangue e viu os espirros que voavam no ar, mas havia guerreiros demais entre eles. Os guerreiros atrás de Niente o empurravam pelas costas, faziam com que avançasse, e a vanguarda avançou tão abruptamente que ele quase caiu. De repente, o nahual estava no meio da batalha, com indivíduos lutando por todos os lados, e viu um nessântico de cota de malha empunhando uma espada acima de sua cabeça ao avançar contra ele.

A tigela premonitória... O nahualli morto...

Niente berrou e golpeou o homem com o cajado mágico como se fosse um florete. Quando tocou o abdômen do soldado, um feitiço foi disparado: um clarão, uma explosão de anéis de aço rompidos, de pano marrom, de pele branca e de sangue escarlate. A espada despencou das mãos inertes, o homem ficou boquiaberto, mas não emitiu som, e caiu.

Mas não havia tempo para descansar. Outro soldado avançava contra Niente, e novamente o cajado, cheio de feitiços que o nahual preparou, derrubou o homem. Um soldado montado que os inimigos chamavam de chevarittai investiu contra ele, Niente atirou-se para o lado no momento em que os cascos blindados e com espinhos do cavalo de guerra arrancaram a terra onde ele estava e avançou em frente.

Para Niente, essa batalha — como qualquer outra — tornou-se uma série de encontros desconexos, um turbilhão de confusão e caos, um cenário desorganizado em que o nahual continuava a avançar. O barulho era tão tremendo que se transformou em um rugido inaudível em volta dele. Ele se desviou de espadas e enfiou o cajado em qualquer coisa que vestisse as cores azul e dourada. Uma espada acertou seu braço e abriu o antebraço, outra pegou a panturrilha. Niente berrou com a garganta rouca. A energia fluía rapidamente do cajado quente na mão direita, quase no fim agora.

E...

Niente percebeu que não estava em um campo, mas entre casas e prédios, que a batalha agora assolava as ruas da cidade, que os soldados vestidos de azul e dourado neste momento davam meia-volta ao soar das trompas e recuavam para as profundezas da grande cidade.

Ele ainda estava vivo, assim como Zolin.

 

A Batalha Começa: Sigourney ca’Ludovici

O COMANDANTE ALERON CA’GERODI ESTAVA diante de Sigourney e do resto do Conselho dos Ca’, a armadura suja de sangue, o elmo amassado por um golpe de espada e o rosto coberto de lama, fuligem e sangue. — Sinto muito, kraljica, conselheiros — disse ele. A voz estava tão exausta quanto a postura. — Nós não conseguimos contê-los...

Ca’Mazzak sibilou como uma chaleira que passou muito tempo no fogo. Sigourney fechou o único olho. Ela respirou fundo o ar cheio de fuligem e cinzas e tossiu. Abriu o olho novamente. Através da névoa da fumaça, a kraljica viu as ruínas do palácio, com partes queimando. Ela e o Conselho refugiaram-se no Velho Templo que, apesar do domo quebrado, encontrava-se em grande parte incólume. A nave principal estava lotada de tesouros do palácio: pinturas (incluindo o retrato chamuscado da kraljica Marguerite), louças azuis e douradas, roupas cerimoniais, os cajados e as coroas usados por uma centena de kralji; tudo estava aqui, embora muita coisa — coisas demais — tenha sido perdida no incêndio. Sigourney estava sentada no Trono do Sol na entrada da câmara sob o domo, mas se o trono estava aceso, não era aparente na claridade do sol que entrava pelo grande buraco aberto no domo. O sol debochava da kraljica ao brilhar intensamente em um céu sem nuvens.

Um dos criados entregou a Sigourney uma taça de cuore della volpe, para aliviar a tosse e a dor. Ela tomou um gole do líquido frio, marrom e turvo da taça dourada.

— Qual é a gravidade da situação? — perguntou a kraljica.

— Nós finalmente conseguimos deter o avanço deles — informou ca’Gerodi. — Os ocidentais não chegaram à Avi a’Parete, mas tomaram a maior parte das ruas a oeste da Avi na margem norte. Eles dominaram o vilarejo de Viaux. Houve uma batalha intensa perto do Mercado do Rio e por um tempo ele foi tomado pelos inimigos, mas nós os rechaçamos. Eu destaquei um batalhão para proteger a Pontica Kralji, mas isso deixou a área do Portão Norte mais aberta do que eu gostaria.

Os conselheiros murmuraram. — Isso é inaceitável — falou ca’Mazzak mais alto.

— Então talvez você devesse ter deixado o comandante co’Ulcai vivo — disse Sigourney. — Ou gostaria de pegar a espada você mesmo? — Ca’Mazzak resmungou e acalmou-se. Ca’Gerodi pareceu cambalear, e Sigourney gesticulou para que um criado trouxesse uma cadeira; o homem desmoronou de bom grado no assento estofado, sem se importar com a sujeira que espalhou no brocado. — O que está me dizendo, comandante? — perguntou a kraljica. — Que hoje à noite eles colocarão fogo no resto da cidade, que amanhã nos derrotarão completamente? Você disse que tinha mais do que homens suficientes. Você disse que...

— Eu sei o que eu disse — interrompeu ca’Gerodi e, quando Sigourney imediatamente calou a boca diante da grosseria, ele pareceu perceber o que fez e balançou a cabeça. — Perdão, kraljica; eu não durmo desde a noite de anteontem. Mas sim, isso é exatamente o que temo: que a noite de hoje trará mais daquele fogo terrível dos ocidentais, e que quando eles atacarem amanhã... — Ele ergueu a cabeça e olhou para Sigourney com seus olhos castanhos e abatidos. — Eu darei minha vida para proteger Nessântico, se for preciso.

— Aleron... — A kraljica começou a se levantar do Trono do Sol, esqueceu-se momentaneamente das feridas, e desmoronou. O movimento provocou uma nova tosse. Os conselheiros observaram Sigourney. Ela sabia agora o que tinha que fazer, e a compreensão era incômoda, tão dolorosa quanto o corpo ferido. — Vá. Descanse o quanto puder, e nós cuidaremos do que a noite de hoje e o dia de amanhã trouxerem. Vá. Durma enquanto pode.

Ca’Gerodi ficou de pé e fez uma mesura. Ele foi embora mancando. Quando saiu, Sigourney gesticulou para um criado. — Traga-me um escriba. E também um mensageiro, o melhor que tivermos, para levar uma mensagem para o hïrzg, a leste.

O criado arregalou os olhos momentaneamente, fez uma mesura e foi embora correndo.

— Kraljica — disse ca’Mazzak. — A senhora não pode...

— Nós não temos escolha — falou Sigourney para ele, para todos os conselheiros. — Nenhuma escolha. A situação já não é mais sobre nós.

Ela recostou-se no assento estofado do Trono do Sol, que cheirava à fumaça de madeira queimada. Cheirava à derrota.


??? RESOLUÇÕES ???

Allesandra ca’Vörl

Niente

Varina ci’Pallo

Sigourney ca’Ludovici

Karl Vliomani

Nico Morel

Niente

Sergei ca’Rudka

Jan ca’Vörl

Niente

A Pedra Branca

Allesandra ca’Vörl


Allesandra ca’Vörl

JAN LEU A MISSIVA com cuidado, os olhos claros vasculhando as palavras. Allesandra já sabia o que a mensagem dizia — os soldados do starkkapitän ca’Damont interceptaram o mensageiro que vinha na direção leste pela Avi a’Firenzcia, ele carregava uma bandeira branca tremulando içada sob o luar, e trazia o pergaminho selado para Allesandra, insistindo com os assistentes da a’hïrzg que ela fosse acordada. Allesandra quebrou o selo e vasculhou a carta, depois se vestiu rapidamente e foi até Jan.

Se o filho notou ou se se importou que o selo estivesse sem lacre e quebrado no papel grosso, ou que a kraljica tenha endereçado a missiva a Allesandra e não ao hïrzg, não disse nada. Jan empurrou a vela que usava como fonte de luz; o castiçal raspou a mesa que foi montada às pressas na tenda de campanha ao lado da tenda particular do hïrzg.

— Isso é genuíno? — perguntou Jan. Havia um cobertor dobrado sobre seus ombros, as pálpebras estavam cansadas e com olheiras. Ele bocejou e esfregou os olhos. — Temos certeza?

— O mensageiro disse que recebeu a mensagem da própria kraljica Sigourney — respondeu o starkkapitän ca’Damont.

Jan assentiu. Ele entregou o pergaminho para Semini, que leu a carta, franziu os lábios e o entregou para ca’Rudka. Jan parecia estar esperando, e Allesandra, sentada à mesinha na tenda de campanha ao lado dele, tamborilou os dedos na superfície arranhada. — Estamos perdendo tempo, meu filho — falou a a’hïrzg. — A mensagem é clara. A kraljica está disposta a abdicar do Trono do Sol se levarmos o exército até lá para deter os ocidentais. Acorde os homens agora e, se nossas forças marcharem rápido, nós conseguiremos chegar aos portões da cidade de manhã cedo.

Jan não pareceu ouvi-la. Ele olhava para Sergei, e perguntou — Regente? Sua opinião?

Ca’Rudka esfregou o nariz por muito tempo enquanto olhava o pergaminho, o que enlouqueceu Allesandra. Ela viu a luz da vela tremeluzir nas narinas esculpidas. — A kraljica não quis considerar a abdicação quando foi oferecida a ela durante a negociação, hïrzg Jan, ou, pelo menos, ca’Mazzak não quis — disse ele finalmente. — O conselheiro parecia totalmente confiante que a Garde Civile podia derrotar os ocidentais. Agora a kraljica foi subitamente acometida por altruísmo? Mas, como eu lhe disse, hïrzg, só quero o que for melhor para Nessântico. Eu não me importaria de ver a cidade destruída, mas isso precisa ser decisão sua.

— Aí está, Jan, viu só? — falou Allesandra, ficando de pé. — Starkkapitän, você irá...

Mas Jan havia colocado a mão no ombro dela e disse — Eu ainda não terminei, matarh. Archigos Semini, o que você acha desta oferta?

Allesandra começou a protestar, mas Jan apertou a mão no ombro da matarh. Todos observavam a a’hïrzg. Ela franziu os lábios e sentou-se novamente. Semini olhou especialmente para Allesandra, sem expressão nos olhos de cor magenta. Ele sabia, a a’hïrzg percebeu então. O archigos sabia que ela esteve disposta a oferecê-lo em troca do Trono do Sol. Sergei... será que Sergei contou para ele? Ou...

Jan?

— Eu notei que a oferta da kraljica não menciona nada sobre a fé concénziana — respondeu Semini, que ainda encarava Allesandra. — Isso é inaceitável para mim. Eu reluto em empenhar os ténis-guerreiros em uma aliança com Nessântico, a não ser que o archigos Kenne também esteja disposto a abdicar em meu favor. — Semini desviou o olhar de Allesandra e inclinou a cabeça para Jan. — A não ser, é claro, que o hïrzg exija isso de mim.

— Jan — insistiu Allesandra, ignorando Semini. — Isso é o que queríamos desde o início. Está ao nosso alcance; só temos que estender a mão e pegar.

— Oh, eu discordo, matarh — disparou Jan. — Isso é o que a senhora sempre quis. Parece que sua vida inteira é sempre uma questão do que a senhora quer: suas ambições, suas aspirações, seus desejos. Mesmo quando era menina, pelo que me contaram: a senhora quis primeiro Nessântico, então o vavatarh obrigou o exército a marchar mais rápido do que deveria e perdeu; sim, Fynn me contou essa história, que disse ter ouvido do vavatarh.

— Isso não é verdade — contestou Allesandra. Era o vatarh que queria Nessântico tanto assim. Não eu. Eu lhe disse para esperar e ser paciente. Disse sim... Mas Jan não escutou, e continuou falando.

— A senhora decidiu que não queria ajudar o vatarh após ele finalmente trazê-la de volta, então seu casamento foi uma farsa, quando poderia ter sido uma aliança forte. A senhora não quis que eu me envolvesse com Elissa, então a mandou embora. Não quis ser hïrzg, então fez campanha para que eu ficasse com o título. O que a senhora sempre quis foi ser kraljica, e quer que aceitemos essa oferta para que tenha o título agora, quer seja o melhor para Firenzcia ou não. Sempre foi a senhora, matarh. A senhora. Não o vatarh, não o vavatarh, não eu, não o archigos, ninguém. A senhora. Bem, a senhora me tornou o hïrzg, e, por Cénzi, eu serei o hïrzg e farei o que for melhor para Firenzcia e a Coalizão, não o que for melhor para a senhora. Eu amo a senhora, matarh — estranhamente, para Allesandra, ele olhou para Sergei ao dizer isso —, mas eu sou o hïrzg e declaro: nós iremos até Nessântico, mas iremos no momento conveniente. Nessântico grita por socorro para nós? Bem, deixe que grite. Deixe que lute a batalha que provocou. Starkkapitän, nós levantaremos acampamento pela manhã, como o planejado, e prosseguiremos em ritmo normal até vermos Nessântico, de lá esperaremos até sabermos mais ou até que a kraljica em pessoa saia e se ajoelhe a mim. Não mandarei uma única vida firenzciana para ser perdida defendendo Nessântico de sua própria insensatez.

— Jan... — Allesandra começou a falar, mas foi interrompida por um estalo do braço do filho.

— Não, matarh. Não discutiremos mais essa questão. A senhora queria que eu fosse o hïrzg? Bem, cá estou eu, e esta é a minha vontade. Não falaremos mais a respeito disso. Starkkapitän, você tem suas ordens.

Ca’Damont fez uma mesura e saiu da tenda após dar uma olhadela para Allesandra. Semini bocejou e espreguiçou-se como um urso despertando da hibernação. Ele fez o sinal de Cénzi para Jan e seguiu atrás do starkkapitän, sem olhar para Allesandra. Sergei viu os dois homens saírem e se levantou. — Caso precise do meu conselho, hïrzg, o senhor sabe onde me encontrar — falou. — A’hïrzg, uma boa noite para a senhora.

Allesandra acenou minimamente com a cabeça. Por vários momentos, ela e Jan ficaram sentados ali, em silêncio. — Você não quer que eu seja kraljica? — disse a a’hïrzg quando o silêncio pareceu durar tempo demais.

— Assim como Sergei quer o que for melhor para Nessântico, eu quero o que for melhor para Firenzcia — respondeu ele. Então, antes que ela pudesse responder: — Tudo o que eu sempre quis da senhora foi seu amor, matarh.

As palavras doeram como um tapa na cara dela, tão fortes que provocaram lágrimas em seus olhos. — Eu amo você, Jan. Mais do que você pode compreender.

Jan olhou com raiva para a matarh: o rosto de um estranho. Não, o rosto de seu homônimo, como Allesandra o imaginou durante todo o cativeiro em Nessântico, quando ele se recusava a pagar o resgate por ela. — Cale a boca, matarh. A senhora me ensinou bem. Mostrou para mim que as aspirações e a determinação são mais importantes que amor. Eu falei com o archigos Semini. Contei que a senhora esteve disposta a sacrificá-lo para ser kraljica. Ele me contou algo em troca: que planejou assassinar Fynn. Para a senhora, matarh. Tudo pela senhora. Semini me contou que a senhora sabia, naquela dia em que salvei Fynn, que o ataque aconteceria. A senhora usou Semini, seu amante, para fazer de mim um herói, para fazer de mim o hïrzg. O resto eu posso descobrir por mim mesmo. Eu me pergunto, matarh, quem contratou a Pedra Branca, mas tenho um excelente palpite. — Allesandra sentiu a face corar e virou o rosto. — Aquele seu gesto tão nobre — continuou Jan — de abdicar em meu favor: a senhora jamais quis ser hïrzgin. Sempre quis mais. Não queria o que era melhor para mim, mas o que fosse melhor para a senhora. Eu sempre fui seu segundo filho, o menos importante, matarh. A ambição sempre foi seu primogênito.

Allesandra ficou sem ar. Ela permaneceu sentada ali, com as bochechas úmidas de lágrimas, enquanto Jan se afastava da mesa e ficava de pé. — Jan... — disse a a’hïrzg ao erguer os braços para o filho, mas ele a negou com a cabeça. Jan olhou para a matarh, e, por um momento, ela pensou ter visto a expressão no rosto do filho abrandar.

Mas Jan deu meia-volta e saiu noite afora.

 

Niente

ELES USARAM O POUCO do que sobrou da areia negra para lançar na cidade novamente, naquela noite. Depois disso, Niente mandou os nahualli descansarem e preencherem novamente os cajados mágicos para a batalha do dia seguinte. Ele perdeu mais dez nahualli durante a batalha, a maioria no fim do dia, quando Zolin tentou, em vão, tomar a ponte mais próxima sobre o rio. A energia dos cajados mágicos tinha acabado e não houve tempo para descansar e renovar os feitiços. Os nahualli, como Niente mandou, tentaram recuar para trás da linha de frente assim que o poder foi exaurido, mas alguns foram abatidos pelas espadas nessanticanas, incapazes de se defender. O nahual não sabia quantos guerreiros tinham sido perdidos. Eles foram escorraçados por uma investida desesperada dos chevarittai, e Zolin — por insistência de Niente, que temia que fossem perder ainda mais nahualli — finalmente mandou o avanço parar.

Eles eram muito poucos... tanto os nahualli quanto os guerreiros. Mas Zolin não enxergava isso, ou estava tão envolvido com a própria visão que a situação tinha sido apagada dos próprios olhos. — Amanhã, toda a cidade será nossa — disse ele para Niente, Citlali e Mazatl. O nahual não sabia se era verdade ou não e estava exausto demais para se importar.

Após a última das bolas de fogo ser lançada na cidade, o nahual foi para a própria tenda. Lá, sozinho, ele pegou a tigela premonitória nas mãos: com medo de conjurar o feitiço, com medo de ter a mesma visão, com medo da exaustão e da dor que seriam cobrados pelo feitiço. Niente tentou se lembrar do rosto da esposa e dos filhos: ele conseguiu vê-los em sua mente, mas isso só fazia piorar a saudade. Imaginou como estavam, se mudaram, se sentiam sua falta como Niente sentia a deles.

Imaginou se algum dia saberia.

Ele colocou a tigela de lado.

O sono naquela noite foi intermitente e inquieto. Os pesadelos o invadiram; Niente viu a esposa morta, as crianças feridas, viu a si mesmo lutando e tentando correr, mas incapaz de fazer mais do que andar enquanto era cercado por demônios vestidos de azul e dourado. O nahual tentou imaginar o rosto da esposa diante dele, a boca semiaberta quando Niente inclinou-se para beijá-la... o rosto não tinha expressões nem feições, era uma máscara. Sem conseguir escapar dos sonhos, ele acabou andando de um lado para o outro do acampamento, escutou os sons dos guerreiros descansando, viu as estranhas formas dos prédios ao redor. Ao passar por um edifício, o nahual ouviu seu nome ser chamado. — Niente.

Ele reconheceu a voz. — Citlali.

O guerreiro supremo estava encostado na porta do prédio. Atrás dele, uma vela brilhava na escuridão. — Não consegue dormir? — perguntou Citlali.

Niente balançou a cabeça. — Eu não ouso. Sonhos demais. E você?

O rosto com redemoinhos negros deu um sorriso. — Sonhos de menos. Eu queria ver a nossa terra natal e minha família novamente, mesmo no sono.

— Isto não acontecerá se... — Niente engoliu o comentário, furioso consigo mesmo. Se estivesse menos confuso pela falta de sono, não teria dito nada.

— Se prevalecer a vontade do tecuhtli Zolin? — arriscou Citlali. — Eu pensei a mesma coisa, nahual. Não precisa ficar tão nervoso. — O sorriso aumentou, e ele olhou de um lado para o outro, como se tentasse ver se alguém os escutava. — E deixe-me responder à outra pergunta que você não irá fazer. Não. Eu não desafiarei o tecuhtli. Veja até onde ele nos trouxe, nahual, do outro lado do mar até o grande lar dos orientais. Isso é a verdadeira grandeza, nahual. Grandeza. Estou orgulhoso por ter sido capaz de ajudá-lo.

— Mesmo que isso signifique que você jamais verá sua terra natal e sua família novamente?

Citlali ergueu os ombros. — Eu sou um guerreiro. Se essa for a vontade de Sakal... — Ele abaixou os ombros novamente. — Eu não preciso de uma tigela premonitória, nahual. Não tenho interesse no futuro, apenas no presente. É uma bela noite, eu estou vivo e vendo um lugar que jamais pensei que veria e que poucos tehuantinos um dia viram. Como alguém não ficaria feliz com esta situação?

Niente limitou-se a concordar com a cabeça. O nahual desejou boa-noite e deixou o guerreiro com seu devaneio. Da parte dele, Niente voltou aos próprios alojamentos e realizou os rituais para colocar feitiços no cajado novamente. Então, completamente esgotado pelo esforço, ele foi para a cama e deixou os pesadelos o invadirem outra vez.


E, no dia seguinte, os pesadelos se tornaram realidade.

Na alvorada, o tecuhtli Zolin levou os tehuantinos para as profundezas da cidade, eles lutaram de rua em rua na direção da grande avenida principal. A batalha foi um reflexo do combate do dia anterior: novamente, a ofensiva inicial fez os cansados nessanticanos recuarem; quando o olho de Sakal estava bem alto no céu, eles chegaram à avenida, onde Zolin rapidamente reagrupou as tropas e começou a marcha para o sul.

Lá, os nessanticanos haviam se reunido: em volta do mercado, onde finalmente detiveram o avanço tehuantino no dia anterior, e em volta da ponte que levava à ilha. No A’Sele, Zolin mandou que os navios avançassem na direção do inimigo; os navios nessanticanos deslocaram-se para detê-los, e outra batalha tomou o lugar, cujo resultado Niente só podia imaginar, embora muitos navios de guerra de ambos os lados estivessem em chamas. Não havia mais retirada possível ali — restaram poucos navios para todos eles voltarem para casa.

— Nahual! — Do cavalo, Zolin apontou um dedo para Niente. — Pegue seus nahualli e venha comigo. Nós controlamos a rua principal, agora temos que dominar a ponte. Citlali! A mim!

Zolin rapidamente posicionou os guerreiros. Citlali e Zolin atacariam os píeres da ponte a partir da avenida, diretamente no coração das forças nessanticanas; Mazatl esperaria até que o ataque estivesse em andamento, depois investiria pelo flanco oeste através do Mercado do Rio. Vários guerreiros duplas mãos1 também começariam um ataque ao norte imediatamente e forçariam a passagem pela avenida circular de maneira que os nessanticanos não pudessem concentrar a atenção na cabeça de ponte — não sem possivelmente perder a ponte mais a leste para a grande ilha. Zolin mandou os guerreiros à frente como manobra de distração, depois esperou que a sombra do sol movesse um dedo antes de acenar e liderá-los ao lés-nordeste da avenida, onde posicionou seus homens. Eles podiam ver os nessanticanos: uma parede de escudos em riste do outro lado da avenida, a meros cem passos.

Não havia areia negra, nem tempo para fazer mais, mesmo que eles tivessem os materiais brutos. Desta vez, os arqueiros começaram o ataque com uma chuva sobre os escudos dos nessanticanos sem causar grandes danos. Os ténis-guerreiros lançaram as bolas de fogo estridentes na direção dos tehuantinos, e Niente — com os demais nahualli — ergueu seu cajado mágico rapidamente. Os feitiços de proteção estalaram para fora, um pulso quase visível no ar. A maior parte das bolas de fogo foi desviada; elas caíram nos prédios de ambos os lados, que pegaram fogo. Mas havia muitos ténis-guerreiros e nahualli insuficientes. Os feitiços de guerra caíram sobre os guerreiros reunidos; os homens gritaram, seus corpos foram queimados e contorcidos. Aqueles que puderam, fugiram, terrivelmente feridos com as queimaduras do fogo pegajoso. Os que não puderam, morreram. Uma bola de fogo caiu perto o suficiente de Niente para o nahual sentir o calor do feitiço, como se a fornalha de um ferreiro tivesse sido aberta em frente a ele. O calor passou por seu rosto como uma onda escaldante e secante. Zolin também sentiu o calor; ele deu uma olhadela para a cena atrás de si quando o cavalo empinou com medo. O tecuhtli berrou — Em frente! Agora! — Zolin controlou a montaria e a cutucou com o pé para que galopasse. Os guerreiros supremos montados seguiram o tecuhtli e a infantaria também investiu, à frente. Niente foi levado pela onda.

A onda arrebentou contra os escudos pintados de azul e dourado e empalou-se em suas lanças. No caos barulhento, Niente viu o cavalo de Zolin cair, com uma lança cravada no peito, mas o tecuhtli em si perdeu-se na massa de soldados, e o nahual não conseguiu ver o que aconteceu com ele.

Havia espadas e combate em volta de Niente, que só conseguiu pensar em si mesmo, em matar o máximo possível de nessanticanos. Ele apontou o cajado mágico, falando a palavra de ativação sem parar, e os raios estalaram da ponta, assobiando e ondulando ao mergulharem nas fileiras em frente ao nahual. Um buraco foi aberto na parede de escudos quando ele lançou um feitiço após outro — os clarões mandaram dezenas de homens ao chão. Os guerreiros gritavam, urravam e brandiam suas espadas ao avançar através da brecha. A parede começou a ceder, e então desmoronou complemente. Niente novamente foi levado pela onda e viu de perto as torres que marcavam a entrada da ponte.

À direita, havia uma cacofonia de gritos: os guerreiros de Mazatl que investiam contra o flanco. O som grave das trompas soou nas fileiras nessanticanas. Niente viu um estandarte tremulando ali e um aglomerado de chevarittai a cavalo. De repente, o estandarte seguiu para a direção sul da ponte, com os chevarittai junto. O nahual viu a expressão de compreensão nos rostos dos soldados inimigos diante dele. Viu a maneira como as espadas foram abaixadas momentaneamente, como as fileiras se enfraqueceram visivelmente. A chuva de flechas cessou, os ténis-guerreiros não lançaram mais bolas de fogo sobre a cabeça de Niente sobre a retaguarda dos tehuantinos. Eles avançaram gradualmente: os guerreiros, os nahualli, agora o nahual conseguia ver Zolin novamente, sangrando e ferido, mas em pé, sua espada ceifava os soldados que ousavam ficar diante dele. Citlali estava ao lado do tecuhtli, com o rosto implacável e impetuoso.

Eles estavam na ponte agora. Ela era dos tehuantinos. O rio movia-se preguiçosamente embaixo deles, e corpos caíam do peitoril e batiam nas águas.

Os tehuantinos rugiram. Eles cantavam enquanto matavam, e Niente cantou com eles.

 

Varina ci’Pallo

AS RUAS DO VELHO DISTRITO ESTAVAM tomadas por cidadãos em pânico, a maioria corria para leste, para longe das forças ocidentais que se aproximavam e das batalhas ao longo da Avi a’Parete. Todos ouviam os sons: os berros que reverberavam pelas vielas, os lamentos, os gritos, o barulho constante das trompas dos templos soando alarmes estridentes. A fumaça dos incêndios manchou o céu, trapos imundos que às vezes obscureciam o sol, e o cheiro de fogo e carnificina no ar era intenso.

Varina viu-se próxima a Karl pela maior parte do dia. Ela sorria para ele, nervosa e indecisa, e Karl devolvia o mesmo sorriso. — Prometa — falou Varina finalmente. Os dois estavam sozinhos em um dos cômodos; Talis, Serafina e Nico estavam no outro.

— Prometer o quê?

— Que o que quer que aconteça... que aconteça conosco. Guarde um último feitiço para nós, eu farei o mesmo.

— Não será assim tão ruim — disse Karl. — Talis... ele é um deles, afinal.

Ela sacudiu a cabeça, tão desamparada pelo fato quanto Karl.

Mais tarde, o cheiro de fumaça ficou mais forte. Pela janela do apartamento, eles viram a fumaça pegajosa e espessa subir das casas e de uma rua a oeste, com chamas que ocasionalmente irrompiam na escuridão. Cinzas caíam como neve cinzenta. Karl achou que quase podia sentir o calor. Os dois seguiram para o cômodo da frente com os demais.

— Tudo está queimando — falou Nico. Ele parecia mais empolgado do que preocupado, mas todos os adultos trocaram olhares preocupados. O estalo das chamas ao longe era audível no silêncio.

— Você está certo, Nico — disse Varina, enquanto olhava para Serafina. — Infelizmente, os ténis-bombeiros estão muito ocupados em outros lugares para fazer algo a respeito disso. — O olhar dela desviou de Serafina para Karl. Varina sabia o que ele estava pensando; era o que estava na mente de todos: Será que podemos ficar aqui? Precisamos ir embora?

Menos de uma virada da ampulheta depois, todos ouviram uma comoção alta ecoar a oeste, lá fora, na rua. Não muito longe dali, uma turba de várias dezenas de pessoas andava à espreita pela viela; não eram soldados, nem ocidentais, mas gente que morava no Velho Distrito. Eles berravam, corriam de casa em casa e quebravam portas e janelas; Varina ouviu os berros e gritos dos que estavam no interior enquanto a turba invadia cada casa. Eles saqueavam, carregavam qualquer coisa que parecesse de valor: ela viu algumas pessoas segurando itens roubados enquanto marchavam; o que mais, além de roubar, os saqueadores faziam dentro das casas, Varina só podia imaginar. Já havia fogo em três ou quatro casas mais ao longe na rua. A turba gritava alto: — Peguem o que quiserem! A cidade está perdida! Revolta! Revolta!

Karl e Talis passaram por Varina e seguiram para a rua enquanto a turba continuava o lento e caótico avanço na direção deles. Alguém à frente os notou e apontou, e vários aglomerados de saqueadores seguiram na direção deles. — Parem com isso! — gritou Karl, a turba debochou, as pessoas responderam com berros e brandiram armas velhas ou improvisadas. Ele deu uma olhadela para Talis e acenou com a cabeça. O embaixador ergueu as mãos, gesticulou, e uma luz surgiu entre elas. Ao seu lado, Talis levantou o cajado e bateu uma vez nas pedras de pavimentação: um raio saiu como uma flecha do punho para o céu esfumaçado.

A turba parou. Sem uma palavra, as pessoas se dispersaram em um estranho silêncio, correram para qualquer direção, desde que fosse para bem longe dos dois. Alguns instantes depois, a rua estava vazia. — Ora, isso acabou bem — falou Karl. Ele e Talis viraram-se, e Varina viu os dois ficarem boquiabertos.

Ela tinha lançado o próprio feitiço no momento em que Karl lançou o dele. Varina moldou o ar ao redor com o toque de um escultor, desenhou como se fosse uma tela e colocou nele uma imagem saída da mente. Varina viu o que Karl e Talis viram, algo que se agigantava atrás deles, mais alto que qualquer uma das casas.

— Um dragão! — berrou Nico da porta da casa, nos braços de Serafina, tomado pela alegria. Karl riu e aplaudiu, Varina sorriu. — Você pode fazê-lo cuspir fogo e voar? — perguntou o menino, e ela fez que não com a cabeça.

— Ele não pode fazer nada, só parece feroz — disse Varina. Por um instante, o perigo foi esquecido, mas depois a realidade desabou sobre eles quando ela cancelou o feitiço. O dragão sumiu em filetes de fumaça verde que foram levados pelo vento. Os saqueadores podiam ter ido embora, mas nada mudou. Eles voltariam em breve, e os incêndios próximos ardiam sem controle. A cidade continuava sob ataque.

— Karl, não podemos ficar aqui — falou Varina.

Ele olhou para Talis e viu o homem concordar com a cabeça, devagar. — Você está certa — disse Karl. — É o momento. Vamos pegar o que precisamos. — Ele deu um tapinha no ombro de Talis e foi para a porta.

Do outro lado da rua, Varina viu uma velha solitária — uma mendiga, pela aparência da roupa. Ela olhava fixamente para a casa. Assim que Varina a viu, a mulher pareceu acenar com a cabeça, depois correu pelo espaço escuro e apertado entre as casas e foi embora.

 

Sigourney ca’Ludovici

ELES A COLOCARAM no Velho Templo.

O comandante ca’Gerodi voltou fugindo da derrota na Pontica Kralji, entrou gritando no Velho Templo onde Sigourney estava sentada, no Trono do Sol, e disse que ela e o Conselho dos Ca’ deveriam pegar o que fosse possível e fugir imediatamente pela Pontica a’Brezi Veste até a margem sul e sair da cidade.

Sigourney recusou-se. — Que o Conselho vá embora se quiser. Eu vou ficar.

— Eu não posso protegê-la, kraljica — disse ca’Gerodi. — Eles estão vindo, a qualquer momento.

— Eu não abandonarei minha cidade e minha responsabilidade — respondeu ela friamente. — Eu ficarei.

No fim, a equipe de Sigourney pegou o que pôde do que restava dos tesouros do palácio e fugiu da Ilha A’Kralji. O mesmo aconteceu por toda Nessântico: no enorme Templo do Archigos, na margem sul; na Grande Biblioteca com seus preciosos e insubstituíveis livros e pergaminhos de velino; no Teatro A’Kralji e no Museu a’Artisans. O conselheiro ca’Mazzak e o resto do Conselho desapareceram também. Fugiram para o sul, a única direção ainda aberta para eles...

Sigourney permaneceu no Trono do Sol, no Velho Templo, sob a luz do sol que entrava pelo domo arruinado e queimado. Antes de permitir que o ervanário da corte fosse embora, a kraljica mandou que o homem preparasse uma taça especial do cuore della volpe, que agora estava no braço do Trono do Sol, ao lado dela. Sigourney usava uma longa tashta cerúlea com um sobretudo amarelo que escondia o fato de não haver uma perna debaixo do joelho direito. Ela mandou que os criados colocassem um tapa-olho cravejado sobre o buraco onde antes ficava o olho direito e aplicassem pó de ovo no rosto para esconder a pior parte das cicatrizes.

Sigourney aguardava no antigo trono de Nessântico. Aguardava o inevitável.

Lá fora, a kraljica ouviu a batalha em andamento: os gritos dos homens, o clamor das armas, o rugido dos feitiços dos ténis-guerreiros. A fumaça subia e enfraquecia a luz do sol. Um esquadrão de elite da Garde Kralji estava disposto diante dela, a cota de malha farfalhava quando os soldados se remexiam, nervosos, empunhando as espadas e voltados para as portas do templo. O comandante ca’Gerodi tinha ido embora há uma virada da ampulheta. — Eu não a verei novamente, kraljica — disse ele. — Sinto muito.

— Eu sei. Eu sei. Sinto muito também.

Ela aguardava.

Quando as portas foram escancaradas, os gardai em frente a Sigourney ficaram tensos e começaram a avançar. — Não — disse a kraljica. — Parem! Esperem! — Vários guerreiros ocidentais entraram no templo; com eles havia outro homem, este sem as tatuagens dos guerreiros e com um cajado de madeira lustrosa: um dos feiticeiros. Os ocidentais pararam e espiaram o longo corredor da nave onde Sigourney estava sentada sob um facho poeirento de luz do sol. — Algum de vocês fala nossa língua? — berrou ela.

— Eu falo — disse o feiticeiro. As palavras eram arrastadas e com um sotaque carregado, mas compreensíveis. — Um pouco.

— Ótimo. Eu sou a kraljica Sigourney ca’Ludovici, monarca desta terra. Quem é você?

O homem sussurrou por um instante para o guerreiro ao lado dele, que tinha a imagem de uma águia ou um falcão vermelho desenhada na careca. — Eu sou Niente — respondeu o feiticeiro. — Sou o nahual. E este — ele apontou para o guerreiro com quem havia falado — é o líder dos tehuantinos, o tecuhtli Zolin. Ele exige sua rendição, kraljica.

— Ele pode exigir o que bem quiser. — Sigourney ergueu a mão do braço do Trono do Sol. O anel com o sinete dos kralji reluziu quando a kraljica tocou a faixa dourada da coroa, posta sobre seu cabelo grisalho e grosso. O sol estava quente sobre ela, que ergueu os olhos para as ruínas queimadas dos suportes do domo. — Ele não terá minha rendição.

Novamente o feiticeiro falou com o guerreiro, que soltou uma gargalhada que ecoou pelo templo. O homem falou palavras em uma língua que parecia ao mesmo tempo estranha e, no entanto, familiar de um jeito esquisito. Onde ela ouviu palavras assim antes? — O tecuhtli Zolin diz que se a kraljica deseja desafiá-lo, ele está disposto a aceitar. O tecuhtli emprestará a própria espada se ela não tiver uma própria. Caso contrário, ele mandará seus guerreiros torná-la prisioneira. O tecuhtli deixa a decisão com a senhora.

Sigourney balançou a cabeça e falou — Eu sei como vocês tratam os prisioneiros. E você não percebeu todas as opções que eu tenho. — O feiticeiro pareceu confuso ao ver a kraljica pegar a taça no braço do Trono do Sol e tomar todo o preparado amargo em um só gole. — Espero que aproveitem a cidade enquanto a controlam. — Ela ergueu a taça para os ocidentais e deixou que caísse nos ladrilhos, onde se quebrou. A perna já formigava quando Sigourney recostou-se no trono. A paralisia subiu rapidamente pelas coxas, pela cintura, pela barriga. Pelo coração. A luz do sol na nave pareceu enfraquecer. — Este é o meu trono e, enquanto eu viver, não abrirei mão dele.

Sigourney riu então. A voz parecia estranha, ofegante e fraca. A kraljica tentou forçar as próximas palavras. — E eu escolho o momento conveniente. — Ela tentou tomar fôlego, mas os pulmões não se mexeram. Abriu a boca, mas não havia ar.

Sigourney sorriu para eles quando o sol escureceu e Nessântico sumiu de vista.

 

Karl Vliomani

— PARA ONDE VOCÊ SUGERE de irmos? — perguntou Talis.

— Leste — sugeriu Karl. — Para os firenzcianos. Sergei pode estar lá.

— Podemos ir para o oeste — contra-argumentou Talis. — Para o meu povo.

— Seu povo colocou fogo em Nessântico — falou Varina. — Eles matam. Estupram. Saqueiam.

— E o seu povo não faz isso? — disparou Talis. — Você não esteve nos Hellins, não é? Ou se esqueceu do que começou este confronto em primeiro lugar? — Ele olhou com raiva para Varina, que sustentou o olhar, sem pestanejar.

— Parem, vocês dois — disse Karl. — Não temos tempo a perder com isso. Talis, ir para o oeste significa tentar passar pela pior parte dos incêndios, e o sul não parece muito melhor do que isso. Temos que pensar a respeito do menino, especialmente; é perigoso demais.

— E ir na direção dos firenzcianos não é perigoso? — protestou Talis.

— Eu diria que é menos.

Serafina tocou no ombro de Talis e falou — Acho que ele está certo, amor. Por favor...

Talis fez uma cara de desdém, e deu de ombros. — Tudo bem. Mas a culpa vai ser sua, numetodo, se a coisa ficar feia.

Eles rapidamente reuniram o que poderiam carregar. O cheiro de fumaça era esmagador agora, e cinzas caíam constantemente sobre os telhados, cujas bordas brilhavam com chamas agitadas. O grupo não conseguia ver o sol de maneira alguma, embora devesse estar no alto no céu. A rua continuava deserta; aqueles que podiam fugir já haviam escapado; aqueles que ficaram estavam entrincheirados nos prédios. Eles desceram a viela rapidamente até o cruzamento e viraram para leste.

Quando chegaram às ruas maiores, eles encontraram as multidões novamente. Um enxame de gente saqueava lojas, quebrava portas, arrancava persianas e carregava o que fosse possível. Os saqueadores olhavam com ar de provocação para o grupo enquanto passavam com as conquistas, desafiavam qualquer um a tentar detê-los ou protestar. Um esquadrão de quatro utilinos apareceu e soprou os apitos, mas, tirando isso, não fizeram tentativa alguma de restaurar a ordem; eles apontaram os cassetetes e gritaram avisos, mas saíram correndo quando os saqueadores mais próximos se viraram para confrontá-los.

Karl e os demais foram atrás deles.

Algum tempo depois, o grupo passou por vários quarteirões, longe o bastante para as cinzas dos incêndios não mais caírem sobre os ombros e cabelos. Eles se aproximavam do centro do Velho Distrito; Karl vislumbrou a praça aberta não muito distante dali, onde a viela tortuosa de repente se abria nela: lá estava a estátua de Henri VI, com a espada erguida sob a luz do sol. As multidões desapareceram novamente. Parecia que eles corriam por uma cidade deserta. Quando se aproximaram do fim da rua, Karl parou o grupo: encolhidos contra o flanco do prédio mais próximo, eles viram um esquadrão da Garde Civile passar rapidamente para o sul pela praça aberta, perto do chafariz de Selida, liderado por um trio de chevarittai montados. Muitos dos soldados estavam visivelmente feridos, e mancavam enquanto cruzavam a praça meio que correndo.

— Eles estão recuando — sussurrou Varina. — Será que perdemos a cidade, então?

Karl não tinha como responder, embora desconfiasse da verdade, e falou — Vamos correr...

O grupo começou a cruzar a praça quando a Garde Civile desapareceu na entrada de uma rua ao sul. Eles chegavam ao fim da sombra de Henri VI, quase no meio do centro do Velho Distrito, quando viram do que os soldados fugiam.

Uma massa ruidosa de homens pintados entrou na praça aos borbotões vinda do norte. Ao longe, Karl viu que estavam bem armados: espadas, lanças, flechas. Os rostos tinham o redemoinho de linhas negras como o de Uly; os corpos eram protegidos por armaduras de bambu. Eles ainda não tinham visto o pequeno grupo de Karl, ou, se viram, julgaram irrelevante. Os ocidentais entraram no espaço aberto: havia pelo menos trinta ou mais deles. — Andem! — sibilou Karl. — Rápido! — Eles podiam facilmente chegar a uma das transversais que levavam ao centro do Velho Distrito e despistar os ocidentais antes que fossem alcançados. Karl pegou a mão de Varina e começou a correr.

Depois de alguns passos, Karl percebeu que os dois estavam sozinhos. Talis permaneceu parado sob a sombra da estátua. Ele segurava as mãos de Serafina e Nico. — Talis!

Talis balançou a cabeça. — Não — disse ele em voz alta.

— Talis, Sergei foi para Firenzcia. Nós podemos segui-lo. Você não tem nada para barganhar com essa gente. Não mais. Você está colocando Serafina e Nico em perigo.

Talis sorriu para Karl e Varina. — Ah, mas eu tenho sim um trunfo: a areia negra de Uly. Lembra-se? Ainda está aqui.

Karl sentiu a mão de Varina apertar seu braço. Ele lembrou-se: Uly, os barris de ingredientes no apartamento do homem, à espera de serem misturados... — Você não pode dar isso a eles...

— Este é o meu povo — falou Talis. — Eu agradeço por tudo o que vocês fizeram por Sera e Nico, mas este é o meu povo, o povo que eu conheço, e este é o momento de eu voltar para eles. Vá para o seu. — Ele gesticulou para os soldados e berrou algo em uma língua que Karl não compreendia. — Vá — disse Talis para Karl. — Vá enquanto ainda tem chance.

— Pelo menos deixe-nos levar Serafina e Nico conosco — gritou Varina, mas Talis fez que não com a cabeça.

— Eles são a minha família e ficarão comigo. Vá, Karl. Ou fique. Mas faça sua escolha. — Serafina olhou para os dois com incerteza e pânico no rosto. Nico encarou de olhos arregalados, mas parecia calmo.

Vários guerreiros pintados se aproximavam correndo agora. Talis ergueu o cajado mágico. Uma luz irrompeu do objeto, cintilou e baniu a sombra de Henri VI. — Karl? — A mão de Varina estava erguida; ele sentiu a energia do Segundo Mundo se acumular em volta dela.

— Eles são muitos — disse Karl.

— Não podemos deixá-los. Não podemos deixar Nico.

— Não temos escolha — respondeu ele.

Karl pegou a mão de Varina, e os dois correram.

 

Nico Morel

NICO NÃO CONSEGUIA ENTENDER o que Talis dizia quando os soldados pintados se aproximaram deles. Ele notou a insegurança na voz do vatarh e o jeito com que Talis falava alto e rápido, com a bengala mágica em frente ao corpo como um porrete. A matarh abraçou o menino com tanta força que ele mal conseguia respirar quando os estranhos os cercaram. Os homens eram inacreditavelmente grandes, assustadores e cheiravam a sangue e morte.

Nico sentiu o medo crescer dentro dele, juntamente com o frio estranho que sentiu no gabinete do archigos, assim como quando fugiu de Ville Paisli. O frio começou a aumentar por dentro, e ele murmurou baixinho as estranhas palavras que vieram à mente enquanto as mãos fizeram pequenos gestos sob o abraço forte da matarh.

— Talis, o que está acontecendo? Estou assustada... — Nico ouviu a matarh falar.

— Está tudo bem — disse o vatarh, mas a voz contradizia a resposta. — Eu só preciso falar com o guerreiro supremo. Deixe-me cuidar disso. Eles são meu povo; só não esperavam me encontrar aqui...

Talis voltou-se para um dos homens pintados, o que tinha um lagarto negro de língua vermelha rastejando no topo do crânio, que passava em volta do olho esquerdo e ia até a lateral da cabeça. Enquanto eles meio que gritavam uns com os outros, o vatarh brandiu a bengala na cara do sujeito. Nico sentiu o frio crescer sem parar dentro dele, era tão intenso que ele sabia que iria explodir se tentasse contê-lo por mais tempo. O menino gritou as estranhas palavras. Gesticulou.

Não houve fogo azul dessa vez. Em vez disso, o ar tremeu em volta dele e propagou-se como uma onda visível, a onda rápida acertou os homens pintados, e eles foram lançados para trás como se tivessem sido golpeados por um grande punho. — Venha, matarh! — berrou Nico. O menino agarrou a mão dela e puxou-a de maneira que Serafina tropeçou ao segui-lo, enquanto ele fugia na direção em que Karl e Varina foram. — Talis! Rápido!

Mas Talis não correu com os dois; ele também havia sido derrubado pela explosão incontrolável do menino. O guerreiro-lagarto já estava de pé, Nico olhou para trás ao começar a correr e viu o homem berrar para os demais no momento em que Talis gritou alguma coisa de volta e ergueu a bengala. Uma luz ofuscante brilhou da bengala, e um dos guerreiros rugiu. Nico puxou a matarh com mais força. — Corra!

Sera deu um passo com ele, mas soltou a mão do filho. O menino deu outro passo antes de perceber que a matarh não estava com ele. — Sera! — Nico ouviu Talis gritar e virou-se para trás.

A matarh estava esparramada sobre os paralelepípedos da praça, com uma lança nas costas e seu sangue manchando as pedras da pavimentação. Ela esticou o braço na direção de Nico, rastejou atrás do filho, com o rosto contraído de dor. — Matarh! — berrou o menino, que correu de volta para Serafina. Nico caiu ao lado dela assim que Talis a alcançou.

— Nico... — disse a matarh. — Eu sinto muito... — Ela virou a cabeça para Talis e começou a falar, mas ele fez carinho na cabeça de Serafina e a abraçou com cuidado.

— Não, não diga nada. Eu vou levar você a um curandeiro, a alguém que possa te ajudar... — Talis ergueu o olhar para os soldados pintados, que se reuniram em volta deles. O vatarh falou rispidamente na própria língua. O guerreiro-lagarto fez uma expressão de desdém, e gesticulou para os homens. Um deles arrancou a lança das costas da matarh de Nico, e ela gritou novamente. O menino atirou-se contra o guerreiro-lagarto e socou a armadura do homem. Ele agarrou Nico com um braço musculoso e rosnou alguma coisa para Talis. — Nico! — falou o vatarh. — Eles vão ajudá-la. Por favor, escute o que eu digo. Você tem que parar de lutar com eles.

Toda a energia abandonou Nico; ele desmoronou no braço do guerreiro-lagarto.

Dois guerreiros agacharam-se; eles rasgaram tiras da própria roupa e amarraram na cintura da matarh do menino. Um guerreiro pegou Serafina nos braços; ela gemeu e revirou os olhos, mas Nico viu que a matarh ainda respirava. Uma das mãos pendia; o menino contorceu-se no braço do guerreiro-lagarto e foi solto pelo homem. Ele correu e pegou a mão de Serafina.

Nico segurou a mão da matarh, em prantos, enquanto eles saíam rapidamente da praça.

 

Niente

ELES CONQUISTARAM A CIDADE.

Ou, mais corretamente, conquistaram parte dela. Nessântico era grande demais e a força dos tehuantinos pequena demais para controlar a cidade inteira, na prática. Em vez disso, eles arrebentaram a cidade, usaram areia negra para incendiar Nessântico, fizeram a Garde Civile recuar para o norte e o sul.

A cidade já não pertencia à kraljica e ao povo dela, mas também não era dos tehuantinos.

Niente tinha certeza de que jamais seria deles.

— Bem? — perguntou Zolin enquanto o nahual espiava a água da tigela premonitória.

— Paciência, tecuhtli — disse ele. — Paciência. — Mas Niente já sabia. A visão já tinha passado e a água era apenas água. Mas, ao fingir, o nahual podia decidir o que queria dizer. Ao fingir, podia se recuperar da pior parte do cansaço e da exaustão causados pelo feitiço.

Ele viu — novamente —, no meio da grande cidade arruinada, o tecuhtli e o nahualli mortos e sentiu outra vez o arrepio com a certeza de que viu Zolin e a si mesmo. Nada mudou. Axat ainda lhe mostrava o mesmo futuro, o mesmo caminho. Nada foi alterado após esta vitória. Niente achava que nada poderia alterá-lo. O futuro estava predeterminado, tão inevitável quanto o pôr do sol.

Eles estavam nas ruínas do templo, Zolin sentado no trono que a kraljica usara. O cabo de uma lança tinha sido cravado em uma fenda no piso de cerâmica, perto do trono. A cabeça da kraljica foi enfiada na lança, o único olho vidrado voltado para fora, o cabelo pendia grotescamente — o corpo estava caído contra a parede atrás do trono, onde fora jogado. Uma fogueira foi acesa no meio da nave e alimentada com a madeira dos bancos do tempo; uma fumaça cinza e fina subia para o céu que começava a ficar púrpura. Mesas foram erigidas em volta da fogueira, e um banquete estava em andamento, servido por assustados prisioneiros ocidentais. Não havia algum motivo em especial para o medo deles; Zolin e os outros guerreiros supremos não permitiriam que nenhum prisioneiro fosse maltratado. Sim, haveria os inevitáveis estupros, saques e mortes, mas os incidentes seriam poucos, e os responsáveis seriam severamente punidos se fossem flagrados. Alguns offiziers do alto escalão seriam sacrificados pela glória de Axat e Sakal, mas nenhum outro prisioneiro sofreria algum mal.

Os tehuantinos eram mais benevolentes e bons vencedores do que os orientais quando estes vieram aos Hellins.

Enquanto os guerreiros aproveitavam o banquete, Niente olhava na tigela premonitória perto da fogueira. A luz do fogo lambeu a pele do nahual, mas o calor não conseguiu tocar o frio que ele sentia por dentro. Niente finalmente pegou a tigela e jogou a água nas brasas em chamas, que assobiaram e soltaram vapor em resposta.

— Então — falou Zolin —, Axat me vê permanecendo aqui? Eu acho que este é um ótimo lugar. Podemos construir uma nova cidade aqui, uma que essa terra nunca viu antes, uma cidade que rivalizasse com Tlaxcala, e eu poderia ser o tecuhtli aqui, e os ocidentais nos serviriam como eles forçaram nossos primos a servi-los.

— Eu realmente vejo o senhor permanecendo aqui, tecuhtli — falou Niente, o que não era nada mais que a verdade.

Zolin deu um tapa nos braços cristalinos do trono. Ele rugiu de alegria, e os guerreiros reunidos no salão riram com ele. — Viu só! — berrou o tecuhtli para Niente. — Todas aquelas preocupações. Eu lhe disse, nahual, eu lhe disse.

— Disse sim, tecuhtli — falou Niente.

Zolin inclinou-se para a frente no trono. — Você viu outras batalhas? Você me viu tomando novas cidades?

O nahual balançou a cabeça e respondeu — Não. E isso não seria prudente, tecuhtli. Não temos mais areia negra. Se pudéssemos repor os guerreiros que caíram, se eu pudesse trazer mais nahualli para cá... — Ele espalmou as mãos. — Eu diria ao tecuhtli... — Niente começou a falar, mas houve uma agitação no fim do salão: o guerreiro supremo Citlali surgiu com um homem ao lado dele; um homem com um cajado mágico na mão. O nahual apertou os olhos para ver na escuridão da noite, iluminada pela fogueira; não era um nahualli que ele reconhecesse, e o homem estava vestido como um dos orientais, havia manchas de sangue na roupa. No entanto, aquele rosto...

— Talis? — perguntou Niente. — É você? — Pelo rosto, o homem parecia ter muitos mais anos do que deveria, a face foi arrasada pelo poder de Axat assim como a do nahual, mas ele lembrava-se da juventude nas feições do sujeito.

— Niente? — Talis correu à frente e agarrou o antebraço de Niente, seus olhos vasculharam o rosto, sem dúvida tão mudado quanto o próprio. — Por Axat, tem muito, muito tempo. Você é o nahual. Ótimo. Que ótimo para você... — Ele então viu o tecuhtli Zolin, deu meia-volta e abaixou a cabeça para ele. — Tecuhtli. Noto que Necalli caiu.

Niente ainda olhava para Talis. Havia uma dor nos olhos do homem que não era causada pelo X’in Ka. — Você está ferido? — perguntou o nahual, e Talis balançou a cabeça.

— Não, é que... — Ele parou, e Niente viu a preocupação e a tristeza desabarem sobre o homem. — Eu... eu tenho uma esposa aqui, e um filho. Ela foi... gravemente ferida. Preciso voltar para os dois...

— Nós levamos a mulher e o menino para a tenda dos curandeiros, tecuhtli, nahual — intrometeu-se Citlali. — Eles estão fazendo o possível.

— Ótimo — falou Zolin. — Você poderá ir até eles em um momento, Talis. Então você é o nahualli enviado para cá pelo antigo nahual? Eu sei que ele disse ao tecuhtli Necalli que você era quase tão poderoso quanto Mahri; que você teria dado um belo nahual. — Zolin deu uma olhadela para Niente. — Talvez esse acabe sendo seu destino. Eu li seus relatórios e, com o passar dos anos; eles me ajudaram a compreender e a derrotar os orientais. Sou grato por isso.

— Tecuhtli — disse Citlali quando Zolin fez uma pausa ao se recostar no trono. — Talis tem uma informação que o senhor precisa saber, sobre um exército mais a leste da cidade. Foi por isso que eu o trouxe aqui.

Talis concordou com a cabeça, Niente ouviu o homem, sentindo um medo crescente enquanto ele falava a respeito desse exército de Firenzcia e da reputação da força militar daquele país. O nahual ficou especialmente aflito com a expressão cada vez mais empolgada no rosto de Zolin. — Tecuhtli — falou ele —, isso é o que a tigela premonitória me disse. Nós fizemos tudo que viemos fazer aqui. Devíamos embarcar agora e voltar para casa antes que esse exército venha para cima de nós. Podemos juntar um novo exército e voltar com mais navios, mais guerreiros e nahualli da próxima vez, e se o senhor quiser se sentar nesse trono como tecuhtli do leste, nós o colocaremos aqui com recursos suficientes para que isso aconteça. Mas não agora. Somos muito poucos, guerreiros e nahualli, para outro grande combate, especialmente sem a areia negra.

Niente pensou que, finalmente, tivesse convencido o tecuhtli. Sentado no trono, Zolin fez uma careta e tamborilou os dedos no braço cristalino do trono. Balançou a cabeça como se estivesse pensando.

Mas Talis então acabou com qualquer esperança que restasse em Niente. — Existe areia negra — disse ele. — Ou melhor, existem ingredientes suficientes aqui na cidade para fazer boa parte dela. Eu sei onde estão.

Zolin inclinou-se para frente no trono e arregalou tanto os olhos que as asas da águia dançaram no rosto. — Onde? Leve-nos até eles agora.

— Tecuhtli, minha esposa... Eu preciso ir até ela.

Niente sabia como Zolin reagiria a isso; e não ficou surpreso. — Todos nós temos esposas e família — retrucou o tecuhtli. — Nosso dever é aqui e agora. Citlali, como está a mulher?

Citlali deu de ombros. — Ela está nas mãos de quem sabe o que fazer. Não há nada mais a ser feito.

— Pronto. Viu só, Talis? — falou Zolin. — Você tem sua resposta. Sinto muito pelo ferimento de sua esposa e entendo que queria estar com ela. Mas seu tecuhtli também precisa de você. O nahual Niente está certo: sem mais areia negra, nós perderemos o que ganhamos. A areia negra, nahualli, é o que precisamos. — Zolin inclinou-se para frente e apoiou os cotovelos nos joelhos. — A esposa de um traidor não receberia ajuda alguma.

Niente ouviu as próximas palavras como se fossem o toque do sino da morte.

— Como o senhor quiser, tecuhtli — disse Talis. — Eu o levarei lá.

— Ótimo — falou Zolin ao ficar de pé. — Citlali, coma e beba alguma coisa e prepare os guerreiros para mais uma batalha. Nahual Niente, faça o mesma com os nahualli. Nesse meio tempo, eu conversarei com você, Talis, enquanto vamos atrás dessa areia negra.

 

Sergei ca’Rudka

SERGEI CUSTOU A ACREDITAR no que Karl e Varina lhe contaram. Ele tinha visto a fumaça dos incêndios em Nessântico, cujo cheiro tinha sido trazido pelo vento, e sabia que a cidade sofria, mas isso: Nessântico conquistada, a maior parte em ruínas...

Isso, Sergei não tinha esperado.

Havia muita coisa que ele não tinha esperado. Sergei sentiu-se muito velho e frágil realmente.

— O archigos ca’Cellibrecca está aqui? — perguntou Karl. Sergei concordou com a cabeça. O rosto do numetodo ficou rígido e determinado, a voz amarga comeu sílabas. — Então me leve até ele, Sergei. Que esse seja o pagamento por libertar você da Bastida. Apenas me leve até ele e afaste-se. Você não precisa se envolver com o resto.

— Não é tão simples assim, Karl.

— Na verdade, é simples assim — retrucou o numetodo. — O homem matou Ana, e eu quero justiça pelo assassinato dela.

— Isso, eu não posso dar para você. Não aqui, nem agora. Mas posso lhe dizer que o hïrzg Jan não gosta muito do homem. Acho que o mesmo pode ser dito a respeito da a’hïrzg Allesandra, pelo menos por enquanto. Karl, deixe-me cuidar dessa situação. Por favor. — Sergei olhou para Varina, em busca de apoio.

— Ouça o que ele diz — falou ela. — Ou ouça Ana; o que ela lhe diria?

O trio estava na tenda de Sergei no acampamento firenzciano, onde os dois tinham sido trazidos pelos primeiros soldados que encontraram. O regente ficou surpreso e contente de ver os dois numetodos; após a separação, Sergei temeu que eles tivessem sido capturados e aprisionados, ou coisa pior. Se a história de Karl e Varina tinha feito o regente sofrer era porque a ideia de Nessântico arruinada era dolorosa demais para imaginar.

Ele também sabia que o hïrzg e a a’hïrzg, no mínimo, também já teriam sido informados da chegada de Karl e Varina; Sergei estava um pouco surpreso por ainda não ter ouvido alguma coisa de um dos dois. E quando o archigos Semini soubesse que o embaixador dos numetodos estava no acampamento... Ele precisava se preparar para isto. Allesandra e Jan eram outro problema; Sergei não sabia exatamente como os dois reagiriam. Ele faria o possível para proteger Karl e Varina, mas...

Sergei falou — Karl, eu lhe prometo isto: quando chegar o momento, ajudarei você com ca’Cellibrecca. O homem é uma praga e um insulto ao robe que a archigos Ana usou. Ambos concordamos com isso. Quando chegar o momento, eu terei prazer em lhe ajudar a tornar a morte dele tão dolorosa quanto você quer. — Sergei quase sorriu ao pensar em Semini instalado na Bastida. Sim, aquilo seria delicioso. Aquilo seria... prazeroso.

Varina arregalou um pouco os olhos com a declaração, mas Karl concordou com a cabeça, com os lábios franzidos. Houve um pigarreio discreto de uma garganta na aba da tenda, um momento depois. — Entre — falou Sergei, e a aba foi aberta para revelar um dos pajens do hïrzg.

— Regente, o hïrzg Jan pede que o senhor leve seus dois convidados... — os olhos do menino se voltaram para Karl e Varina — ... à tenda dele. O hïrzg montou um jantar para os dois e deseja escutar o que eles têm a dizer.

— Diga ao hïrzg que iremos imediatamente — falou Sergei para o pajem, que fez uma mesura e saiu. — Vocês não têm o que temer do hïrzg Jan — disse o regente para os dois. Ele torcia para que fosse verdade. — Eu até gosto do jovem. De certa forma, ele me faz lembrar de mim mesmo...


— O archigos Semini me dirá que os numetodos são hereges e mentirosos, fisicamente perigosos para mim, bem como para minha alma eterna — disse o hïrzg Jan.

— O archigos Semini é um mentiroso e um tolo, além de burro — respondeu Sergei. — Se me perdoa a franqueza, hïrzg.

Jan sorriu. — Sentem-se — falou ele para Karl e Varina ao apontar para a mesa com pão, queijo e uma panela com guisado de carne. Pratos foscos de estanho estavam dispostos diante deles. — Aproveitem os pequenos confortos que temos aqui em campanha, uma vez que não posso oferecer a hospitalidade completa de Firenzcia. — Quando os dois hesitaram, o sorriso de Jan cresceu. — Eu lhes garanto que tenho a mesma opinião do regente no que se refere ao archigos Semini.

Varina conseguiu dar um sorriso; Karl ainda parecia inseguro e perguntou — E qual é a opinião do hïrzg sobre os numetodos?

— Uma das coisas que o regente ca’Rudka me ensinou é que devo julgar as pessoas não pelo que são, mas por quem elas são. Eu ainda não tenho opinião sobre os numetodos; até agora, nunca havia conhecido um. — Jan gesticulou para as cadeiras novamente. — Por favor...

Sergei fez uma mesura. Um momento depois, Karl repetiu o gesto, e os três tomaram seus lugares em frente ao hïrzg. — A a’hïrzg se juntará a nós? — perguntou o regente.

O sorriso de Jan sumiu ao ouvir isto e disse — Não. — Aquela única palavra quase pareceu arrancada à força. Sergei aguardou mais explicações, mas nenhuma veio. O regente perguntou-se sobre o que teria acontecido entre matarh e filho; até agora, ele só tinha visto Allesandra de relance durante um dia e meio. Embora o exército se arrastasse próximo às muralhas de Nessântico em um passo lento enlouquecedor, Allesandra manteve-se em uma carruagem fechada, sem nem o filho, nem o archigos como companhia.

Mas Sergei não pediria uma explicação ao hïrzg. Em vez disso, Jan olhava para Karl e Varina. — Eu gostaria de saber sua história, contada por vocês mesmos — falou ele.

Pela próxima virada da ampulheta, foi isso que Karl e Varina fizeram, com Jan guiando os dois com perguntas ocasionais. Sergei ouviu a maior parte e achou graça quando Karl omitiu algumas partes da história. Jan inclinou-se para a frente quando o numetodo descreveu a areia negra, como foi usada pelos ocidentais no ataque à cidade, e ao saber que havia ingredientes na cidade para fazer mais.

— Você afirma que essa areia negra é a chave do sucesso dos ocidentais? Essa é a mesma magia que nós soubemos que eles usaram nos Hellins?

— Não é magia, hïrzg — falou Karl. — Essa é a parte interessante. É alquimia. Varina tem certa noção, pelo que Talis disse e pelas amostras que eu trouxe do apartamento de Uly, de como preparar a areia negra. Eu vi, todos nós vimos, as coisas terríveis que a areia pode fazer. — Uma sombra sinistra pareceu passar pelo rosto de Karl ao dizer isso, e Sergei sabia que ele se recordava do assassinato de Ana. Era um horror que jamais seria apagado da mente de qualquer um dos dois. — Os ocidentais colocaram fogo na cidade com a areia; eles mataram centenas, talvez milhares. Hïrzg, com essa areia negra, nenhum exército precisa de ténis-guerreiros ou de feitiços. Nenhuma armadura consegue resistir, espadas não podem superá-la, não importa o número.

— E você sabe onde está o estoque dessa areia negra?

Karl assentiu com a cabeça. — Eu sei. Varina também. Nós podemos levar o senhor até lá, hïrzg. Mas os ocidentais também estarão atrás da areia negra. Talis... eu suspeito que Talis já esteja levando os ocidentais até ela. Eles já podem estar com a areia.

— Hïrzg — interrompeu Sergei. — Eu entendo por que o senhor deixou seu exército ocioso aqui. Eu talvez tivesse tomado a mesma decisão no seu lugar; embora meu coração fique partido ao ver a cidade queimar e saber que os ocidentais pisoteiam as ruínas dos lugares que mais amei no mundo. — Ele esfregou o nariz falso, notou que Jan olhou fixamente para o gesto e abaixou a mão. — Mas, se o senhor realmente está disposto a ouvir meu conselho, eu lhe diria que o tempo de esperar acabou. Eu também testemunhei os efeitos dessa areia negra. Se os ocidentais tiverem tempo para criar mais, então seus próprios soldados pagarão o preço pela hesitação. Hïrzg, ouça o que meus amigos estão lhe dizendo. A Garde Civile de Nessântico foi derrotada. Aquela batalha acabou. Temos que atacar agora; não Nessântico, mas aqueles que a derrotaram, antes que venham à Firenzcia.

Sergei achou que o apelo não teria efeito. Jan olhava para o alto, o olhar vasculhava a lona iluminada pelo fogo como se houvesse uma resposta escrita na fumaça. O jovem suspirou uma vez. Então bateu palmas e um pajem entrou.

— Chame o starkkapitän aqui — disse o hïrzg para o menino. — Há preparativos imediatos que eu preciso que ele faça. Corra!

 

Jan ca’Vörl

ELE OUVIU as grandiosas e gloriosas histórias de guerra várias vezes ao longo dos anos: do vavatarh Jan; do vatarh; dos onczios e dos conhecidos mais velhos; e, mais recentemente, de Fynn. Até mesmo da matarh, que contou que o vavatarh a elogiou quando era pequena por seu conhecimento de estratégia militar.

Jan começou a se dar conta de que essas histórias eram inventadas, memórias falsas ou, muitas vezes, mentiras deslavadas.

Até hoje, ele nunca havia entrado a cavalo em uma batalha de verdade. Até hoje, seu conhecimento sobre habilidades marciais fora intelectual e seguro. Mostraram a Jan como cavalgar, manejar uma espada, usar uma lança ou arco e flecha sobre o cavalo, como se proteger de outro chevarittai ou de um soldado de infantaria. Ele participou de lutas com espada de treino, participou de manobras militares. Aprendeu sobre a arte da guerra: quais táticas usar contra um inimigo que estivesse em um terreno superior ou inferior, ou que possuísse mais soldados ou menos, ou mais ténis-guerreiros ou menos. Jan sabia que formação teoricamente era melhor contra outra.

Era o que qualquer jovem rapaz de seu status teria aprendido.

A guerra, na mente de Jan, era um exercício muito gracioso e preciso. Ele sabia — intelectualmente — que era impossível que fosse tão linear e eficiente. Jan entendia.

Mas... ele não sabia que a guerra podia ser tão desordenada assim. Tão caótica. Tão real.

Ninguém no exército firenzciano achava que Jan — assim como Fynn, assim como seu homônimo, o velho hïrzg Jan — seria o verdadeiro general nesse importante ataque. Eles sabiam que a estratégia era do starkkapitän ca’Damont, com a ajuda do regente ca’Rudka e a contribuição dos dois numetodos que vieram da cidade em chamas para o acampamento. Sabiam que seria o archigos Semini que comandaria os ténis-guerreiros.

Jan estaria lá, e a bandeira de comando tremularia entre a Garde Hïrzg e os chevarittai à sua volta, e ele avançaria logo atrás da vanguarda de suas forças como Fynn e o antigo hïrzg Jan fizeram antes dele. Mas Jan consultaria o starkkapitän antes de dar ordens. Ele sabia que era uma atitude inteligente; sabia que o resto dos offiziers e chevarittai também tinha noção disso. Francamente, Jan estava tranquilo em relação a consultar o starkkapitän; ele conhecia a própria inexperiência e não era tão arrogante a ponto de insistir em estragar o ataque.

A entrada em Nessântico começou bem o suficiente. Como uma espada curva, as forças firenzcianas avançaram pela cidade através de todos os portões do lado leste. Não houve resistência; pelo contrário, o surgimento dos soldados foi recebido por gritos de alegria pela população e pelos remanescentes da Garde Civile de Nessântico espalhados. Alguns chevarittai dos Domínios até saíram de mansinho dos esconderijos para engrossar as fileiras de Firenzcia. Após uma virada da ampulheta dentro das muralhas da cidade, Jan começou a torcer para que a situação continuasse assim: marchando sem resistência até a fronteira oeste da cidade e encontrando as forças ocidentais em plena retirada.

Sob o calor do dia, ele suava debaixo da armadura, e o que mais queria era arrancar o fardo pesado dos anéis de aço. Aquilo parecia ser o pior desconforto da vitória.

— Qual o caminho, embaixador? — perguntou Jan para Karl, que cavalgava com seu séquito ao lado de sua matarh, Varina e Sergei.

— Ao norte, por algumas transversais — respondeu o numetodo, que apontava —, depois vários quarteirões para o leste.

Jan concordou com a cabeça. O exército firenzciano ganhou volume pela Avi. O sol brilhava intensamente. Era um belo dia. Eles já tinham vencido, e o hïrzg sentiu-se confiante a ponto de dar uma ordem por si próprio. — Starkkapitän — disse Jan para ca’Damont —, eu levarei metade da Garde Hïrzg comigo, bem como o regente e os numetodos. Deixo você no comando do exército. Faça o que for necessário para defender esta parte da Avi e a cidade. Depois você e a a’hïrzg prosseguirão para o sul, para a Ilha A’Kralji, e cuide para que controlemos a ilha e as Ponticas orientais. Se houver algum problema, mande um mensageiro até mim imediatamente. Da minha parte, eu mandarei um mensageiro assim que nós localizarmos a areia negra e soubermos como está a situação por lá.

— Jan. Hïrzg. — Allesandra franziu a testa, enquanto ca’Damont parecia incomodado. — Eu não acho...

— Eu dei minhas ordens — disparou Jan e interrompeu sua matarh. — Starkkapitän? Tem algum problema com elas?

Ca’Damont meneou a cabeça negativamente. Ele vociferou ordens rápidas.

— Eu me encontro depois com a senhora, matarh — disse Jan. — Na Ilha.

Allesandra não pareceu convencida. O hïrzg pensou que ela fosse protestar mais, mas a matarh só olhou feio para ele. Jan viu Allesandra dar uma única olhadela para Sergei; o regente deu levemente de ombros sob a armadura. O nariz lançou fagulhas de sol sobre o rosto.

A matarh finalmente inclinou a cabeça e disse — Como quiser, meu hïrzg. — “Meu hïrzg”, não “meu filho”. Jan notou a irritação na expressão. Ela puxou as rédeas com força e começou a caminhar para o sul. Um quarteto da Garde Hïrzg e um téni-guerreiro cercaram a a’hïrzg com atraso.

O starkkapitän prestou continência e falou — Que Cénzi oriente o senhor, meu hïrzg. Eu cuidarei para que a a’hïrzg permaneça a salvo. — Ca’Damont começou a ir embora, mas puxou as rédeas, e disse — Fynn fez uma excelente escolha no senhor. Tome cuidado, hïrzg Jan.

O starkkapitän ca’Damont prestou continência novamente e foi embora, com a maior parte do séquito com ele. Jan olhou em volta para os demais e falou — Vamos encontrar essa areia negra. Embaixador ca’Vliomani, você vai à frente.

Karl levou o esquadrão de Jan ao norte pela Avi, e os soldados pelos quais eles passaram prestaram continência ao hïrzg e a seu estandarte, depois o grupo virou à esquerda em uma rua mais estreita e deixou o exército para trás. O tilintar das armaduras e o baque frio do aço nos cascos dos cavalos eram o barulho mais alto na rua. Não havia mais rostos nas janelas, mais ninguém visível adiante, no caminho curvo. Algumas portas dos prédios pelos quais o esquadrão passou estavam abertas; muitas à força. Havia lixo acumulado na avenida. Eles passaram por vários corpos: gente morta há alguns dias, pela aparência, cadáveres inchados com pernas e braços rígidos, em ângulos estranhos, cheios de vermes e moscas. Jan olhou fixamente para os mortos ao passarem; ele notou que Sergei fez o mesmo, com uma intensidade estranha.

Há pouco tempo, esses corpos tinham sido pessoas vivas, que talvez corressem para os amantes, acompanhassem os filhos, comprassem comida nos mercados ou bebessem nas tavernas, levassem suas vidas em frente. Ele duvidava que essas pessoas esperassem que a vida fosse acabar tão rapidamente e de modo tão definitivo. Duvidava que elas esperassem que fossem virar monumentos acidentais e temporários da guerra.

Jan fungou, incapaz de manter o fedor longe do nariz — ele perguntou-se se Sergei realmente podia sentir o cheiro. O hïrzg segurou firme na espada e enroscou as rédeas com mais força na mão esquerda.

Ao sul, eles ouviram um estrondo repentino como trovão e gritos baixos. Sergei, ao lado de Jan, olhou naquela direção com preocupação, e disse — Eu acho, hïrzg, que a batalha começou. Talvez devêssemos retornar.

Jan balançou a cabeça. — Embaixador, a que distância estamos do lugar? — perguntou.

— Mais dois cruzamentos — respondeu ca’Vliomani. — Não mais do que isso.

— Então nós prosseguiremos.

Sergei franziu os lábios, mas não teve outra reação.

Eles continuaram até chegar a outra viela, ainda menor, onde Karl parou e ficou em pé na sela. Ao olhar a rua estreita, Jan viu uma placa antiga e surrada pendurada em um prédio à direita: havia um cisne mal desenhado em tinta vermelha nas tábuas.

— Ali. — Ca’Vliomani chamou Jan e os demais. — Nós deveríamos...

Ele não foi adiante.

Da esquerda, da direita, várias dezenas de guerreiros pintados vieram para cima deles aos berros. Os próximos grãos da ampulheta viraram um caos de que Jan se lembraria pelo resto da vida.

... um clarão súbito de uma luz ofuscante surgiu à frente do grupo, depois mais um, e Jan percebeu que Karl e Varina lançavam feitiços. Ele ouviu gritos...

... o chevarittai à direita de Jan foi arrancado da sela com o pulo de um ocidental, e o cavalo do homem chocou-se com força na perna do hïrzg. A perna direita ficou presa entre os dois animais, e ele gritou pela pontada de dor, apesar da proteção das grevas. Jan puxou as rédeas do cavalo...

... mas houve mais movimento à direita e por trás no exato momento em que ele fez isso. Jan viu o aço e colocou sua espada diante do corpo da montaria quase tarde demais — mas o suficiente para que o golpe que teria acertado acima das presilhas de seu coxote fosse desviado, mas a lâmina do ocidental cortou fundo a pata traseira de seu cavalo de guerra. O animal relinchou de dor e terror. Jan viu o cavalo arregalar os olhos, sentiu a perna da montaria ceder, ele estava caindo...

... — Ao hïrzg! — Jan ouviu alguém gritar. Ele estava no chão com uma confusão de pernas, tanto equinas quanto humanas, em volta. O hïrzg ficou de pé rapidamente (a perna direita enviou uma pontada de dor espinha acima por causa do abuso). Um ocidental vinha para cima dele, e Jan conseguiu encontrar o cabo da espada, levantar o aço pesado e estocar debaixo do peitoral da estranha armadura do homem. Ele sentiu a lâmina entrar na carne. Ela ficou brevemente presa, Jan a torceu e empurrou, gemeu e sentiu a boca se esgarçar em um ricto de fúria, a espada entrou subitamente. O ocidental, empalado, ainda completou o ataque, mas as braceleiras em volta dos antebraços do hïrzg aguentaram o impacto, embora ele achasse que o braço direito pudesse ter quebrado com o golpe. Jan tentou arrancar a espada do homem, mas não conseguiu, e o peso morto do ocidental quase tirou a arma de sua mão, que ficou inerte e dormente...

... Outro ocidental berrou à sua esquerda, Jan puxou a espada desesperadamente outra vez, embora soubesse que seria tarde demais. Mas outra espada — firenzciana — cortou a garganta do homem e quase decepou sua cabeça. O hïrzg ficou coberto por sangue quente...

... E mãos levantaram Jan. — O senhor está bem, meu hïrzg? — perguntou alguém, e ele concordou com a cabeça. A mão direita formigava, mas parecia ter voltado à vida. Jan fechou os dedos, exercitou-os dentro da manopla, abaixou a mão e soltou a espada com um puxão. Ele virou-se...

... e viu um trio de ocidentais reunidos como escudos em volta de outro guerreiro pintado, este com um pássaro tatuado no crânio raspado e no rosto. Sergei estava ao seu lado, sua espada subia e descia, mas o soldado firenzciano ao lado do regente caiu com a mão decepada no pulso. Jan correu para a brecha, sem pensar em nada a não ser reagir...

... e, de alguma forma, ele passou pelos guardas e ficou em frente ao guerreiro com a marca do pássaro. A armadura do ocidental desviou o primeiro corte de Jan, e o pomo duro de bronze da espada do homem bateu no queixo do hïrzg sob o elmo. Ele cambaleou para trás, com gosto de sangue na boca...

... ao ver o guerreiro-pássaro amparar o ataque da espada de Sergei...

... ele investiu novamente contra o homem, rosnou e contorceu o rosto, e o ocidental não foi capaz de se defender de ambos ao mesmo tempo. Foi a espada de Jan que penetrou, que encontrou a brecha entre os tubos roliços da armadura do homem e entrou no corpo. O ocidental perdeu o fôlego como se estivesse surpreso. O hïrzg ouviu uma voz chamar um nome estranho, “tecuhtli”, quando o homem caiu de joelhos. A espada de Sergei acompanhou a arma de Jan e acertou o sujeito no pescoço e na cabeça. O guerreiro-pássaro desmoronou sobre os paralelepípedos ensanguentados, de cara no chão...

... e tudo acabou, a não ser pelo estrondo da pulsação nos ouvidos.

Jan percebeu que sua respiração estava acelerada, que o coração batia tão furiosamente que ameaçava irromper pelas costelas, que a perna e os braços doíam, que estava completamente coberto por sangue, e que, pelo menos em parte, o sangue era seu. Ele estava curvado e ofegante, com as pernas bem afastadas. Jan sentiu um embrulho no estômago e engoliu em seco para conter a bile ardente, para se forçar a não vomitar. Sentiu a mão de Sergei dar um tapinha em seu ombro sobre a armadura. Ele pestanejou e olhou em volta: havia pelo menos uma dúzia de corpos no chão, alguns com o uniforme preto e prateado de Firenzcia. Uns poucos ainda se debatiam; enquanto o hïrzg observava, os homens da Garde Civile despachavam os ocidentais que ainda estavam vivos. Havia córregos de sangue que fluíam dos corpos e entranhas espalhadas na rua como salsichas obscenas.

Karl e Varina estavam incólumes — os corpos mais próximos aos dois estavam carbonizados e escurecidos; havia um cheiro de carne cozida no ar. O nariz falso de Sergei tinha sumido completamente e a bochecha esquerda estava aberta por um corte; onde ficava o nariz, a pele era sarapintada e as cavidades da cabeça de Sergei estavam escancaradas, o que deixava o rosto com a aparência horripilante de um crânio. Jan foi novamente tomado pela náusea, e dessa vez o mundo pareceu girar um pouco à sua volta. Ele colocou a ponta da espada no chão e apoiou-se pesadamente sobre a arma.

— Tecuhtli! — O hïrzg ouviu o chamado novamente, agora um homem saia do prédio onde estava pendurada a placa do cisne vermelho, não mais do que a uma dezena de passos de onde Jan e os demais estavam. Ele segurava um frasco de vidro na mão direita, cheio de grânulos escuros; na mão esquerda havia uma bengala retorcida. O sujeito parou, como se estivesse assustado pela imagem de carnificina à frente.

— Talis... — Jan ouviu Karl murmurar o nome: uma surpresa, uma maldição, um feitiço. — Areia negra...

O homem fechou a cara, ergueu o frasco com a mão direita e jogou o braço para trás como se fosse lançar o objeto. Jan imaginou como seria morrer e se encontraria o vavatarh Jan e Fynn na morte.

Uma mulher saiu correndo do beco atrás da taverna, um borrão marrom e cinza, tão depressa que ninguém teve tempo de reagir. Assim que Talis levantou a mão, ela agarrou o cabelo do homem e puxou a cabeça para trás. A boca do homem ficou tão escancarada quanto a de um peixe no mercado, e o tom vermelho seguiu o prateado quando a mulher passou uma faca pela garganta de Talis. Uma segunda boca ficou ainda mais escancarada do que a primeira e vomitou sangue. O frasco de vidro caiu da mão do sujeito e quebrou no chão, sem explodir. Ela debruçou-se sobre o corpo — parecia colocar alguma coisa às pressas no olho de Talis —, Jan deu uma boa olhada no rosto da mulher, entre o cabelo emaranhado.

O coração saltou no peito. Ele ficou boquiaberto e murmurou — Elissa?

A jovem ergueu a cabeça e arregalou os olhos ao vê-lo, e embora ela não tenha dito nada, Jan ouviu a mulher respirar fundo. Ela arrancou algo do rosto de Talis; o hïrzg vislumbrou uma pedra branca entre os dedos. A jovem correu para o beco de onde veio. Um dos soldados começou a correr em perseguição.

— Não! — berrou Jan para o homem. — Deixe-a ir!

O soldado parou. Jan ouviu os sussurros ao redor: — A Pedra Branca...

A Pedra Branca...

Não, o hïrzg queria dizer para todos, não era verdade, porque aquela pessoa era Elissa, que Jan amava. Não era verdade porque a Pedra Branca assassinou Fynn, que ele também amava. Não era verdade.

E, de alguma forma impossível, era verdade.

Era verdade.

 

Niente

O NAVIO ESTAVA LOTADO de gente fugindo da cidade, e de pessoas dos outros navios agora emborcados e meio submersos no rio. O convés estava escorregadio com água, sangue e vômito. A água em volta estava cheia de corpos rígidos e inchados — tanto de orientais quanto de tehuantinos. Havia guerreiros e nahualli feridos espalhados por toda parte do convés, gemendo sob a luz do sol que sumia; os tripulantes que ainda eram capazes subiam nos mastros para soltar as velas e apertar os cabos. A âncora, que gemia e protestava, foi içada no lodo do fundo do rio, e o capitão do navio berrava ordens. Devagar, muito devagar na opinião de Niente, a cidade começou a ficar para trás conforme eles eram levados embora pela corrente do rio e pelo vento.

Niente observava da popa do navio de guerra, à direita de Citlali. O corpo do guerreiro supremo, decorado com os traços rubro-negros de cortes cicatrizados feitos por espadas, apoiava-se pesadamente no cabo quebrado de uma lança enquanto ele olhava com raiva para a cidade.

— Você estava certo, nahual — disse Citlali. — Você viu corretamente a visão de Axat.

Niente concordou com a cabeça. Ele ainda estava admirado por estar aqui, por estar vivo, por ter sido poupado, de alguma maneira impossível, por Axat. O nahual poderia ver a terra natal novamente, se as tempestades do Mar Interior permitissem. Teria a esposa nos braços outra vez; abraçaria os filhos e os veria brincar. Niente respirou fundo e estremeceu.

— Eu não fui poderoso o suficiente — falou ele. — Não fui o nahual que deveria ter sido. Se tivesse sido mais firme ao falar com Zolin, se tivesse visto as visões com mais clareza...

— Se tivesse feito isso, nada significativo teria mudado — respondeu Citlali. — Zolin não teria lhe dado ouvidos, nahual, não importa o que você dissesse. Zolin só ouvia os deuses clamarem por vingança. Ele não teria lhe dado ouvidos. Você teria sido afastado como nahual e teria morrido aqui também.

— Então foi tudo um desperdício.

Citlali deu uma risada seca e sem graça. — Um desperdício? Longe disso. Você não tem imaginação, nahual Niente, e não é um guerreiro. Um desperdício? Nenhuma morte em combate é um desperdício. Olhe para a grande cidade dos orientais. — O guerreiro supremo apontou para leste, onde o sol reluzia dourado sobre as torres quebradas e atravessava a fumaça dos incêndios que restavam. — Nós tomamos a cidade deles. Tomamos o coração dos orientais. — Ele estendeu a mão com a palma para cima, como se pegasse alguma coisa. Os dedos fecharam-se lentamente. — Você acha que algum dia eles se esquecerão disso, nahual? Não. Eles tremerão à noite e ficarão aterrorizados diante de um som repentino, pensarão que somos nós de volta. Eles se lembrarão disso de geração em geração. Jamais se sentirão seguros novamente; e eles terão razão.

Citlali cuspiu sobre a amurada para o rio. Havia sangue no cuspe. — Nós pegamos o coração dos orientais e ficaremos com ele. Eu faço essa promessa para Sakal aqui, e você é minha testemunha; que o olho Dele veja minhas palavras e registre. Nós ficaremos com o que tiramos dos orientais. Um tecuhtli estará de novo onde Zolin caiu.

Citlali deu um tapa nas costas de Niente com tanta força que ele cambaleou. — O que você acha disso, nahual?

Niente olhou fixamente para a cidade, que desaparecia no rastro do navio, e falou — Eu olharei na tigela premonitória hoje à noite, tecuhtli Citlali, e direi o que Axat diz.

 

A Pedra Branca

A NOVA VOZ na cabeça da Pedra Branca gritava, lamentava e se revoltava, falava metade na língua de Nessântico e metade em um idioma que ela não entendia de maneira alguma. As outras vozes riam e vibravam.

— Jan, o seu amante... Que visão agradável ele tem de você agora!

— Você acha que ele se casaria com a assassina suja que viu?

— Ele dormiu com uma assassina e agora ela carrega seu filho no ventre.

— Ele vislumbrou a verdade. Espero que você sempre se lembre do horror no rosto de Jan ao ser reconhecida.

Aquela última voz era de Fynn, satisfeito e presunçoso. — Calem-se! — gritou a Pedra Branca para as vozes, mas elas só riram ainda mais alto e abafaram o que ela ouvia com os próprios ouvidos.

Ela havia seguido Talis e o líder ocidental desde a Ilha até o Cisne Vermelho, após verificar que Nico parecia a salvo. Ela estava furiosa, com raiva de Talis — que rompera sua promessa com a Pedra Branca. Os numetodos... eles podiam ser hereges nojentos, mas trataram Nico com gentileza e respeito, especialmente a mulher.

Mas Talis...

Talis traiu Nico, e por causa disso a matarh do menino estava à beira da morte, e a Pedra Branca dissera para Talis qual seria o preço. Dissera e cobraria o pagamento. A Pedra Branca sempre cumpria sua palavra.

Ela seguiu Talis então, quando — do nada — sons de batalha irromperam ao leste e a Pedra Branca viu o líder ocidental agrupar seus homens para emboscar os chevarittai e os soldados firenzcianos. De repente, havia muita luta acontecendo, muito movimento para ela agir. A Pedra Branca ficou preocupada naquele momento, se perguntando se Nico estava realmente a salvo, quis desesperadamente correr até o menino, com medo de que Talis pudesse ter cometido um erro. Mas ela o viu sair de mansinho do quarto onde havia entrado e depois correr para a rua. A Pedra Branca seguiu Talis. Ela assistiu ao confronto e viu a chance. Passou a faca na garganta dele e sentiu Talis morrer ao deixar cair o frasco com o pó negro. E ao deitá-lo no chão e colocar a pedra no olho do homem, a Pedra Branca o viu de relance.

Jan.

O choque foi palpável. Ela sentiu com tanta intensidade como se o coração tivesse sido posto diretamente sobre uma camada escondida de brasas incandescentes. Jan: ele ficou parado ali, e ela testemunhou o lento reconhecimento de seu rosto. A expressão de Jan a assustou. Era permeada de choque e carinho, de saudade e horror. Vê-lo foi horrível e maravilhoso ao mesmo tempo. Ela quis correr até Jan, quis pegar sua mão e colocar na barriga inchada e sussurrar: aqui, querido. Esta é a vida que criamos juntos. Isso é o que o nosso amor fez. Ela também quis correr, esconder o rosto e fingir que essa revelação nunca aconteceu.

O segundo impulso foi mais forte.

Ela pegou a pedra branca do olho de Talis e fugiu, com vontade de que Jan a seguisse e com medo de que ele realmente fizesse isso.

A Pedra Branca não parou até chegar à Pontica Kralji. Ali não havia homens estranhos da cor de bronze; nenhum que estivesse vivo, de qualquer forma, embora o chão estivesse cheio de corpos ocidentais. Ela viu soldados usando os tons preto e prateado de Firenzcia por toda parte nas ruas — o que fez Fynn se manifestar com empolgação dentro de sua cabeça —, cruzou a Pontica cuidadosamente e escondeu-se depressa na Ilha. Isso foi fácil; havia tantas paredes desmoronadas, tantos prédios queimados. Ela foi até a cabana do jardineiro no terreno do palácio para onde Nico e sua matarh tinham sido levados, onde o curandeiro ocidental trabalhou no corpo ferido de Serafina.

O curandeiro e todos os soldados ocidentais tinham ido embora, mas os medos da Pedra Branca passaram quando viu que Nico ainda estava ali, segurando a mão da matarh, ajoelhado ao lado da mesa onde ela estava deitada — devia ter sido uma das mesas de jantar do palácio antigamente, ainda coberta por damascos rendados e elegantes, agora sujos e manchados de sangue. Ela notou o movimento da respiração lenta no peito de Serafina, mas os olhos continuavam fechados e ela parecia sem reação.

— Nico — falou a Pedra Branca. O menino levou um susto e apertou com mais força a mão da matarh.

— Ah — disse ele um momento depois. O rosto ficou um pouquinho alegre. Nico fungou e passou a mão pelo nariz. — Elle. É você.

A Pedra Branca confirmou com um aceno e foi até o menino. Ela segurou com as mãos de Nico e a de Serafina. Viu que ele olhava fixamente para o sangue que manchava a pele da matarh. — Precisamos ir embora, Nico.

— Eu não posso abandonar a matarh. Talis voltará em breve.

A Pedra Branca fez que não com a cabeça. Ela apertou com força a mão dele. A pele era quente, tão quente, e ela sentiu a criança dentro dela dar um pulo com o toque; o movimento da vida, o despertar. Ela levou um ligeiro susto com a sensação. — Não. Infelizmente, Talis está morto, Nico.

Ela percebeu as lágrimas surgirem nos olhos do menino e o lábio inferior tremer. Depois ele fungou de novo e piscou. — Isso é verdade?

Ela concordou com a cabeça. — É verdade, Nico. Sinto muitíssimo.

O menino chorava plenamente agora, as palavras saíram entre os soluços. — Mas minha matarh... Eu não posso... Eles acabaram de abandoná-la... Ela está dormindo e eu... não consigo acordá-la...

— Sua matarh gostaria que você fosse comigo. Olhe para ela, Nico. Sua matarh ama muito você, eu tenho certeza que sim, mas não sei se ela acordará um dia, e a cidade está cheia de soldados e morte. Ela gostaria que você fosse comigo porque posso mantê-lo a salvo. Eu manterei você a salvo.

— Mas eu fiz isso com ela — disse Nico. — A culpa é minha. Quero que ela saiba que eu sinto muito.

A Pedra Branca apertou a mão de Nico em volta da mão da matarh. — Ela sabe. Nico, temos que correr.

Ela tirou a mão do menino de Serafina, abriu os dedos com delicadeza. Ele soltou a matarh com hesitação, mas sem reclamar. — Agora dê um beijo — falou a Pedra Branca. — Ela sentirá e saberá.

Nico ficou de pé, inclinou-se sobre o corpo da matarh e deu um beijo na bochecha. Ela colocou a mão de Serafina, que pendia para o lado, sobre a mesa e deu um tapinha. Nico olhou para trás, então, com os olhos cheios de lágrimas, que não caíam.

— É o momento — disse a Pedra Branca.

Juntos, de mãos dadas, eles foram embora da cidade em chamas e ruínas.

 

Allesandra ca’Vörl

— AQUI ESTÁ A SENHORA, MATARH. Ele é todo seu. Espero que fique feliz.

As palavras de Jan saíram como um banho de água escaldante. Elas queimaram e cauterizaram Allesandra, foram ditas com frieza e desdém espantosos e cruéis. O hïrzg fez um gesto grandioso e debochado na direção do Trono do Sol. Ela olhou fixamente para a enorme peça de cristal entalhado, que estava estranhamente fora do lugar, no meio das ruínas do Velho Templo. O trono foi rachado e mal reformado; estava coberto por um pano com estranhos desenhos geométricos, as ruínas do domo rachado e da claraboia estavam espalhadas sobre o piso quebrado de cerâmica, e por toda parte no salão havia os restos de um banquete qualquer. Ratos espreitavam os cantos do cômodo, e o ar fedia à fumaça e à carne podre. Perto dos fundos havia um corpo, coberto às pressas por uma tapeçaria.

Allesandra sabia de quem era o cadáver encoberto: de Sigourney, cuja cabeça separada do corpo estava enfiada em uma lança perto do trono.

O regente e os dois numetodos estavam recortados pela luz do sol nas portas abertas do templo, longe demais para ouvir a conversa de Jan com ela. O starkkapitän ca’Damont dava ordens na praça do templo e despachava patrulhas para garantir que todas as tropas ocidentais estivessem fora da cidade e para impedir que os sobreviventes saqueassem.

Allesandra ouviu o arrastar de passos nas portas do templo; ao olhar para trás, viu o archigos Semini pisar com cuidado sobre os destroços no chão. Jan também viu o homem e disse — Ah, archigos Semini. Estou contente que esteja aqui, uma vez que isso também é seu. Eu lhe dou Nessântico. Você não ficará mais em Brezno.

— Meu hïrzg? — perguntou Semini ao olhar com preocupação de Allesandra para Jan. — Eu pensei que o archigos talvez pudesse ficar em Brezno agora, dada a destruição daqui. Eu poderia designar um a’téni para Nessântico...

— Ah, eu concordo — falou Jan, e o sorriso provocou um arrepio em Allesandra. Era o sorriso sério e indiferente que o vatarh de Allesandra usava quando estava furioso. Ela o tinha visto muitas vezes na infância e na idade adulta, quando ele finalmente a trouxera de volta para Firenzcia. Agora, a expressão de desdém e deboche voltaram. Fuligem e sangue sujavam o rosto de Jan, e o braço e a perna direitos estavam bem enfaixados. Ele mancava e não parecia capaz de erguer o braço da espada. Allesandra perguntou-se o que o filho tinha visto, o que sentia. Ela queria envolvê-lo nos braços e confortá-lo como fazia quando Jan era criança, mas o hïrzg estava a um cauteloso passo de distância, como se temesse exatamente isso. — Veja bem, haverá um archigos em Brezno. Quanto a ter um archigos em Nessântico, bem... — Jan deu de ombros friamente. — A escolha é sua. Você pode querer reivindicar o título e mantê-lo por um tempo, embora você sempre tenha dito que queria uma fé concénziana reunificada. Ou talvez o archigos em Brezno deixe você ser o a’téni aqui em Nessântico, apesar de eu aconselhar o archigos contra isso.

— Hïrzg? — balbuciou ca’Cellibrecca. O rosto ficou no tom de branco dos fios que salpicavam a barba e o cabelo escuros; o contraste foi forte. — Eu não entendo.

— Talvez a matarh explique para você, uma vez que agora esta cidade é dela — disse Jan.

Allesandra olhou fixamente para o trono. Ela sentia-se morta, entorpecida. Se alguém a cortasse, pensou, ela não sentiria nada, nem mesmo o calor do sangue na pele. — Meu filho me deu Nessântico, mas me informou que Firenzcia não se reunificará com os Domínios — falou Allesandra para Semini com uma voz tão morta quanto as emoções.

— Considere isso como meu presente de casamento, matarh — falou Jan. — Pelo casamento que eu nunca tive, com a mulher que a senhora mandou para longe de mim.

— Eu estava protegendo você, Jan — disse Allesandra, embora não houvesse energia na reclamação. — Elissa era uma fraude. Uma impostora.

— Eu sei. Ela foi contratada para matar Fynn.

— O quê? — Isso fez com que Allesandra erguesse a cabeça e provocou uma breve onda de fúria. Ela virou-se para encará-lo. — O que você está dizendo? A Pedra Branca matou Fynn.

— Matou, sim — falou Jan com o mesmo sorriso irritante. — Deixe-me dizer uma coisa que a senhora talvez não saiba, matarh, embora devesse saber: Elissa era a Pedra Branca. Ela me usou para se aproximar de Fynn.

— Isso não é possível — disse Allesandra. Não podia ser; não era possível. A voz que ela ouviu, a mulher intermediária; não, não era possível, e, no entanto... Allesandra lembrou-se da voz, mais aguda do que seria esperado de um homem. E ela nunca tinha visto a Pedra Branca. Apenas presumiu...

— Acredite no que quiser — dizia Jan. — Eu realmente não me importo. — Ele gesticulou novamente para o trono. — Tome seu novo lugar, matarh. Não se acanhe. A senhora esperou por tanto tempo, afinal, e o regente ca’Rudka renunciou a qualquer pretensão ao título. A senhora pode mandar Semini abençoá-la. Talvez os ca’ e co’ voltem à cidade agora, para que a senhora possa lhes dizer que há uma nova kraljica.

Jan começou a se afastar, na direção das portas abertas. Ela deu um passo e pegou o braço ferido. — Jan. Filho...

Ele soltou o braço, fez uma careta ao sentir a dor evidente, e aquilo foi uma agonia maior para Allesandra do que qualquer golpe de espada. — Sente-se, matarh. Assuma seu Trono do Sol. A senhora possui o que sempre quis. Aproveite o presente que eu lhe dei.

Dito isso, ele caminhou na direção de ca’Rudka e dos demais. Allesandra observou o filho sair, sentiu vontade de chamá-lo, de impedi-lo de ir embora, de parar o sofrimento.

Ela não fez nada. Observou Jan chegar à passagem iluminada, ouviu sua risada ao dar um tapinha nas costas de ca’Rudka com a mão que não estava machucada. Os quatro foram embora e a luz do sol desabou sobre deles.

Semini olhava para o céu, onde o domo de Brunelli esteve, e respirava alto pelo nariz. Allesandra andou lentamente até o Trono do Sol.

Ela sentou-se.

Nas profundezas do cristal espesso, não havia luz. Nenhuma reação. O trono permaneceu melancolicamente escuro.

1. Dupla mão é um termo de cavalaria para o oficial que tanto pode comandar um esquadrão quanto um batalhão. Também é o caso do soldado que luta com um mosquete e um sabre ao mesmo tempo, que não é aplicável aqui. (N. do T.)


Epílogo: Nessântico

ELA ESTAVA ARRASADA. Ela estava arruinada.

Ela foi devastada pelo fogo e pela magia; foi cortada pelo aço. Foi saqueada e pilhada. Os maiores tesouros danificados ou perdidos. Os prédios que foram sua coroa eram ruínas desmoronadas e pilhas de pedras escurecidas. O colar de joias da Avi a’Parete não reluzia mais à noite. Agora só havia as estrelas no céu, que brilhavam e debochavam da própria escuridão da cidade.

Metade da população estava morta ou havia fugido. Ela sentiu, pela primeira vez em muitos séculos, a marcha de soldados conquistadores em suas ruas: não sentiu uma vez, mas duas. Havia uma kraljica no Trono do Sol, mas ela olhava para um império que murchou e encolheu.

Não havia como negar a magreza da face refletida no espelho sujo do A’Sele: o rosto da cidade era o rosto de uma velha, um rosto encarquilhado, um rosto com cicatrizes, feridas abertas e dor. Não havia beleza ali, nenhuma glória, nenhum deslumbramento.

Tudo isso foi embora, como se nunca tivesse existido.

Quando vieram as chuvas, como era frequente naquele outono, foi como se o mundo inteiro chorasse por ela: a cidade, a mulher. As tempestades podiam lavar a fuligem e extinguir as chamas, mas não podiam curar. Elas podiam refrescar e aplacar, mas não podiam restaurar. Levaram embora os corpos, o lixo e a terra que entupia o rio, mas os trovões não conseguiam destruir as memórias.

As memórias permaneceriam.

Permaneceriam por muito, muito tempo...

                                                                                                                             

       

 

 

 

                                                  

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