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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MÁGOA DE ODIN, O GODO / Poul Anderson
A MÁGOA DE ODIN, O GODO / Poul Anderson

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Ao crepúsculo, o vento soprava quando a porta se abriu. Os fogos que ardiam ao longo do salão cintilaram nos seus sulcos; as chamas ondularam e fluíram dos candeeiros de pedra, a fumaça acre rolava dos orifícios no teto por onde deveria ter saído. Esta repentina luminosidade refletia-se nas pontas das lanças, dos machados, nas bainhas das espadas, nos ornamentos dos escudos, nas armas guardadas perto da entrada. Os homens que enchiam aquela grande sala, ficaram imóveis e atentos, tal como as mulheres que distribuíam os chifres de cerveja. Eram os deuses esculpidos nos pilares que pareciam mover-se por entre as sombras inquietas. O pai Tiwaz, o maneta, Donar do Machado e os Cavaleiros Gêmeos - eles e as bestas e os heróis e os ramos entretecidos gravados no lambril. Uuuu... gemia o vento, um ruído gélido como ele próprio.
Hathawulf e Solbern entraram. A mãe, Ulrica, estava no meio deles e a expressão do seu rosto era não menos terrível que a expressão dos seus filhos. Os três pararam por um breve momento, mas longo demais para aqueles que aguardavam as suas palavras. Então, Solbern fechou a porta enquanto Hathawulf dava uns passos em frente e levantava o seu braço direito. O silêncio abateu-se sobre o salão, a não ser pelo estalar dos fogos e os bafos agitados. No entanto, foi Alawin quem falou primeiro. Levantando-se do seu banco, a figura frágil, tremendo, gritou:
- Então, iremos vingar-nos! - a voz faltou-lhe; tinha apenas quinze Invernos.
O guerreiro a seu lado puxou-lhe pela manga e rosnou:
- Sente-se! Cabe ao senhor dizer-nos o que fazer... - Alawin engoliu em seco, olhou fixamente e obedeceu.

 


 


Uma espécie de sorriso revelou os dentes de Hathawulf por entre a barba loura. Ele já estava neste mundo há mais nove anos que aquele seu meio-irmão, e há mais quatro que o seu irmão Solbern, mas parecia mais velho, e não só por causa da altura, dos ombros largos e da postura de gato selvagem; a chefia coubera-lhe nos últimos cinco destes anos, depois da morte de seu pai, Tharasmund, acelerando o crescimento da sua alma. Havia quem murmurasse que Ulrica mantinha uma rédea apertada sobre ele, mas quem duvidasse da sua virilidade teria de enfrentá-lo numa luta e o mais certo era perder.
- Sim - disse ele, em voz comedida, mas apesar disso ouvida de um lado ao outro do edifício. - Tragam o vinho, mulheres, bebam bem, meus homens, façam amor com as suas mulheres, aprontem o material de guerra. Aos amigos, que vieram até aqui para oferecer a sua ajuda, os meus mais sinceros agradecimentos, porque amanhã, pela alvorada, cavalgaremos para matar o assassino da minha irmã.
- Ermanaric! -proferiu Solbern. Era mais baixo e mais moreno que Hathawulf , mais dado a tratar das suas terras e a construir coisas com as mãos que à guerra e à caça; mas cuspiu o nome como se fosse uma infâmia na sua boca.
Um suspiro, mais que um respirar ofegante percorreu a multidão, embora algumas das mulheres se encolhessem, ou se aproximassem dos seus maridos, irmãos, pais ou jovens que poderiam um dia desposar. Alguns guerreiros rugiram rouca e quase alegremente. Uma certa austeridade caiu sobre outros. Entre estes últimos contava-se Liuderis, que acalmara Alawin.
Ergueu-se do banco, para ser visto por todos. Homem possante, grisalho e coberto de cicatrizes, que fora anteriormente o homem de confiança de Tharasmund, disse pesadamente:
- Você se ergueria contra o rei, a quem prestou juramento de vassalagem?
- Esse juramento perdeu todo o seu valor quando ele mandou espezinhar Swanhild debaixo dos cascos dos cavalos -respondeu Hathawulf .
- No entanto, ele declara que Randwar planejava matá-lo...
- Isso é o que ele diz! - gritou Ulrica. Avançou, até a escassa luz existente brilhar mais completamente sobre ela. Era uma mulher grande, as suas tranças meio grisalhas e ainda meio ruivas enquadrando uma face cujas linhas se tinham imobilizado na inflexibilidade da própria Weard. Valiosas peles orlavam o manto de Ulrica; por baixo, o vestido era de seda das terras orientais, âmbar das terras do norte brilhava em redor do seu pescoço: porque ela era filha de um rei e casara na casa de Tharasmund, descendente dos deuses.
Ela parara com os punhos cerrados e atirou à cara de Liuderis e dos restantes:
- Razão tinha Randwar, o Vermelho, em tentar derrubar Ermanaric. Os Godos há muito tempo sofrem nas mãos desse cão. Sim, eu chamo cão a Ermanaric, indigno de viver. Não me falem em como ele nos fez poderosos e em como o seu domínio se estende do mar Báltico até ao mar Negro. - o domínio é dele, não nosso, e não sobreviverá à sua morte. Lembrem-se antes das taxas quase ruinosas que temos de pagar, das esposas e donzelas desonradas, das propriedades arbitrariamente anexadas e das pessoas que são expulsas das suas terras, de homens derrubados e queimados nos seus lares cercados, unicamente por terem se atrevido a falar contra os atos dele. Lembrem-se de como ele assassinou os seus sobrinhos e respectivas famílias, quando não conseguiu apoderar-se do tesouro deles. Lembrem-se de como mandou enforcar Randwar, sem nada mais que a palavra de Sibicho Mannfrithsson, Sibicho, aquela víbora, sempre assobiando aos ouvidos do rei. E perguntem uma coisa a si mesmos. Mesmo que Randwar se tivesse tornado inimigo de Ermanaric, atraiçoado antes de ter podido atacar, como vingança do insulto praticado sobre os seus parentes, mesmo que isso fosse verdade, porque havia Swanhild de morrer também? Ela era apenas a sua mulher! - Ulrica respirou fundo.
- Ela era também a filha de Tharasmund e de mim própria, a irmã do seu chefe Hathawulf e de Solbern, o seu irmão. Eles, que nasceram de Wodan, hão de mandar Ermanaric para o outro mundo para ser escravo dela.
- Senhora, esteve meio dia sozinha falando com os seus filhos - disse Liuderis. - Até que ponto isto é a sua vontade e não a deles?
Hathawulf levou a mão à espada.
- Está se excedendo... - vociferou ele.
- A minha intenção era boa... - começou o guerreiro a dizer.
- A terra chora como sangue de Swanhild, a Bela - disse Ulrica. - Será que a terra frutificará mais alguma vez para nós, se não a lavarmos com o sangue do seu assassino?
Solbern continuou mais calmo:
-Vocês, os Teurig, sabem bem como os problemas tem se acumulado ao longo dos anos entre o rei e a nossa tribo. Por que razão vieram se juntar a nós quando souberam do sucedido? Será que não pensam todos que este ato foi realizado com o fim de testar a nossa têmpera? Se ficarmos sentados à lareira sem fazer nada, se Heorot aceitar qualquer que seja a justificação que ele se digne oferecer, ele saberá que está à vontade para nos esmagar completamente.
Liuderis acenou com a cabeça, cruzou os braços em frente do peito e respondeu firmemente:
- Bem, não irão para a batalha sem mim e sem os meus filhos, enquanto esta velha cabeça permanecer acima do chão. Queria só saber se Hathawulf não estaria sendo um pouco precipitado. Não há dúvida que Ermanaric é poderoso. Não seria melhor se esperássemos pela nossa oportunidade, fizéssemos preparativos e reuníssemos homens das tribos vizinhas, antes de atacarmos?
Hathawulf sorriu de novo, um pouco mais calorosamente que antes.
- Pensamos nisso - disse ele num tom equilibrado. - Se der-mos a nós próprios tempo, estamos também dando tempo ao rei. Nem acredito que consigamos reunir muito mais lanças contra ele. Não, enquanto os Hunos rondarem os pântanos, os povos vassalos estiverem amuados por causa do tributo a pagar e os Romanos puderem considerar uma guerra de godo contra godo como uma oportunidade de penetrar nas nossas terras e arrasar tudo. Além disso, Ermanaric não ficará ocioso durante muito tempo até se decidir a humilhar os Teuring. Não. Devemos atacar imediatamente, antes que ele fique à nossa espera, apanhá-lo desprevenido, dominar os seus guardas, não são muito mais numerosos que nós aqui reunidos, matar Ermanaric de um só golpe rápido e limpo e depois convocar uma reunião do povo para escolher um novo rei que seja justo.
Liuderis voltou a acenar com a cabeça.
- Disse o que pensava, o mesmo acontecendo consigo. Agora, acabemos com a conversa. Amanhã avançaremos. - E sentou-se.
- É um risco... - disse Ulrica. - Estes são os únicos filhos vivos que me restam e talvez caminhem para a morte. Será segundo a vontade de Weard, que determina o destino dos deuses e dos homens por igual. Mas prefiro ver os meus filhos morrer valentemente que ajoelharem-se aos pés do assassino de sua irmã. Não poderia daí advir nenhum bem.
O jovem Alawin voltou a pôr-se de pé num salto. A sua faca faiscou.
- Nós não morreremos! - gritou ele. - Ermanaric morrerá e Hathawulf será rei dos Ostrogodos!
Um rugir lento, como a maré subindo, elevou-se dos homens. Solbern, o Sóbrio, atravessou o salão. A multidão abriu caminho para ele. Caniços dispersos esvoaçaram e o chão de terra batida ressoava debaixo das suas botas.
- Será que ouvi dizer "nós"? - perguntou ele no meio do rumor. - Não, você é um rapaz. Fica em casa.
As faces cavadas coraram.
- Sou suficientemente homem para lutar pela minha casa! -guinchou Alawin. Ulrica ficou hirta onde estava.
A crueldade destilava das suas palavras:
- A "tua" casa, bastardo?
O barulho crescente desvaneceu-se. Os homens trocaram olhares apreensivos. Não preconizava nada de bom, uma tal libertação de velhos ódios, numa hora destas. Erelieva, mãe de Alawin, não fora apenas a concubina de Tharasmund, ela tornara-se a única mulher que ele realmente amara, e Ulrica regozijara-se quase abertamente quando cada criança que Erelieva dava à luz, com exceção do primeiro, morria com tenra idade. Mais tarde, quando o chefe desceu a estrada do inferno, amigos dela arranjaram-lhe rapidamente um casamento com um pequeno proprietário que vivia longe dali. Alawin ficou, o que pareceu o mais indicado para o filho de um senhor, mas Ulrica estava sempre provocando-o.
Os olhos fecharam-lhe contra a fumaça e a luz dos fogos intercalados com as sombras.
- Sim, a minha casa - respondeu Alawin -, e Swanhild também é m-m-minha irmã! - a sua gaguez fê-lo morder os lábios, envergonhado.
- Calma, calma! - Hathawulf voltou a levantar o braço. -Tem esse direito, rapaz, e faz bem em exigi-lo. Sim, vem conosco, à alvorada.
O seu olhar desafiava Ulrica. Ela torceu a boca, mas não disse nada. Todos adivinharam que ela alimentava esperanças de que o adolescente fosse morto.
Hathawulf dirigiu-se para o assento colocado no meio do salão. As suas palavras ecoaram:
- Chega de brigas! Esta noite estaremos alegres. Mas, primeiro, Anslaug - disse à sua mulher -, venha sentar-se perto de mim e juntos beberemos pelo copo de Wodan.
Pés bateram no chão, punhos esmurraram a madeira e facas levantaram-se como tochas. As próprias mulheres começaram a gritar com os homens:
- Salve, salve, salve!
A porta abriu-se subitamente.
O crepúsculo descera rapidamente, visto que se aproximava o Outono, por isso, o recém-chegado estava mergulhado em trevas. O vento agitou as extremidades do seu manto azul, atirando com algumas folhas mortas para dentro, assobiou e esfriou a sala. As pessoas viravam-se para ver quem entrara, sustendo a respiração, e os que estavam sentados apressavam-se a levantar. Era o Viajante.
Era mais alto que todos eles, segurando a sua lança mais como um bordão que como uma arma, como se não tivesse necessidade de usar o ferro. Um chapéu de aba larga sombreava-lhe a face, mas não escondia o cabelo e a barba de um cinzento de lobo, nem o brilho do seu olhar. Poucos dentre eles o tinham visto antes, a maior parte não calhara estar por perto quando ele fizera as suas visitas esporádicas; mas ninguém ignorava que ele era o avô dos chefes teuring. Ulrica foi a primeira a reunir coragem.
- Saudações, Viajante, e bem-vindo seja! - disse ela. - É uma honra para o nosso teto. Venha, sente-se na cadeira principal, eu vou buscar-lhe um chifre de vinho.
- Não, um copo, um copo romano, o melhor que tivermos - disse Solbern.
Hathawulf dirigiu-se para a porta, endireitou os ombros e enfrentou o antepassado.
- Sabe o que estamos preparando - disse ele. - Que palavras tem para nos dirigir?
- Isto... - respondeu o Viajante. A sua voz era profunda e não soava como a dos Godos do sul, ou como mais ninguém que eles alguma vez tivessem conhecido. Os homens supunham que a sua língua materna era a língua dos deuses. Hoje parecia pesada, como se carregada de sofrimento. - Vocês estão dominados pelo desejo de vingança, Hathawulf e Solbern, e isso não pode ser alterado, é essa a vontade de Weard. Mas Alawin não irá com vocês!
O jovem encolheu-se, empalidecendo. Um quase soluço partiu da sua garganta.
O olhar do Viajante percorreu o salão e fixou-se nele.
- E necessário que assim seja - continuou ele, articulando as palavras lentamente. - Não é um insulto que lhe faço quando digo que ainda não é adulto e que morreria corajosa mas inutilmente. Todos os que são agora homens, já foram em tempos rapazes. Não, digo em vez disso que a sua tarefa será outra, mais difícil e mais estranha que a vingança, em defesa da segurança dos descendentes que nasceram da mãe do pai do teu pai, Jorith (teria a sua voz tremido um pouco?), e de mim próprio. Tenha paciência, Alawin. A sua vez em breve chegará!
- Será... feito... segundo a sua vontade, senhor - declarou Hathawulf com a garganta seca. - Mas que quer isso dizer... para aqueles de entre nós que vão lutar?
O Viajante olhou-os por uns instantes e depois ficou muito calmo antes de responder:
- Vocês não querem saber. Seja a resposta boa ou má, vocês não querem saber.
Alawin enterrou-se no seu banco, agarrou a cabeça com as mãos, tremendo.
- Boa viagem - disse o Viajante. O seu manto rodopiou, a lança rodou e a porta fechou-se. Partira.

Não troquei de roupa até o veículo me ter transportado através do espaço-tempo. Só então, numa base da Patrulha, que passava por um armazém, despi as minhas vestes da bacia do Dnieper, dos fins do século XX, e vesti roupa de meados do século XX, dos Estados Unidos.
Os aspectos básicos, camisas e calças para os homens, vestidos para as mulheres, eram os mesmos. As diferenças de pormenor eram inúmeras. Apesar do tecido grosseiro, o traje gótico era mais confortável que um traje completo com gravata. Arrumei- o compartimento de bagagem do meu saltitão, juntamente com o material especial que usara para escutar, do exterior, o desenrolar da discussão no salão da tribo teuring. Já que a minha lança não cabia, atei-a ao lado da máquina. Não iria nela a nenhum outro lugar a não ser ao meio onde essas armas pertenciam.
O oficial de serviço de hoje tinha vinte e poucos anos - jovem pelos padrões atuais, na maior parte das épocas há muito tempo que seria um homem com família estabelecida e estava um pouco intimidado pela minha presença. É verdade que o meu estatuto como membro da Patrulha do Tempo era praticamente tanto um detalhe técnico como era o dele. Eu não fazia nenhum trabalho de policiamento das estradas espaço-temporais, salvando viajantes em perigo, nem nada de tão espetacular. Era apenas uma espécie de cientista "erudito" era, provavelmente, mais correto. No entanto, determinava as minhas próprias viagens e ele não estava qualificado para fazê-lo. Olhou-me quando me viu emergir do hangar para o escritório, alegadamente de uma companhia de construção, que era a nossa cobertura, nesta cidade, durante estes anos.
- Bem-vindo ao lar, Sr. Farness - saudou-o. - Hum, teve uma viagem bastante agitada, não teve?
- Por que diz isso? - repliquei automaticamente.
- A sua expressão, senhor. A forma como anda.
- Não corri qualquer perigo - vociferei. Sem ter a mínima vontade de falar daquilo, a não ser com Laurie, e talvez nem mesmo com ela durante uns tempos. Passei rapidamente por ele e saí para a rua.
Também aqui era Outono, um daqueles dias estimulantes e brilhantes que Nova lorque freqüentemente tem, antes de se ter tornado impossível viver lá; curiosamente, este ano era o anterior ao do meu nascimento. A pedra e o vidro elevavam-se até se perder de vista, em direção a um azul onde se viam umas manchas de nuvens vagando na brisa suave que me beijava com lábios frescos. Os carros não eram tantos que fizessem mais que acrescentar-lhe certo travo, mais fraco que o aroma dos carros dos vendedores de castanhas assadas que começavam a acordar do verão. Fui até à Quinta Avenida e andei a pé até ao centro da cidade, passando por lojas esplendorosas e cruzando-me com algumas das mulheres mais belas de todo o mundo, assim como com pessoas provenientes da rica diversidade do nosso planeta.
A minha esperança era que, indo a pé para casa, dispersasse parte da tensão e infelicidade que sentia dentro de mim. A cidade podia fazer mais que estimular, podia curar, não podia? Era aqui que Laurie e eu tínhamos escolhido viver, nós que podíamos nos instalar praticamente em qualquer local de qualquer passado ou futuro.
Não, claro que isso não era bem assim. Como a maioria dos casais, desejávamos um ninho num ambiente razoavelmente familiar, onde não tivéssemos de aprender tudo do zero e estar sempre de guarda. Os anos 30 eram uma época maravilhosa, para quem fosse americano e branco, de boa saúde e com dinheiro. As amenidades que faltavam, tais como ar condicionado, podiam ser discretamente instaladas, desde que não fossem usadas quando se tinha visitas que nunca deveriam saber que os viajantes no tempo existiam. Era verdade que o grupo de Roosevelt estava ao leme, mas a conversão de República para Estado Corporativo ainda não estava muito adiantada e não afetava as nossas vidas privadas, nem a minha nem a de Laurie; a desintegração efetiva desta sociedade só se transformaria num processo rápido e óbvio depois da eleição de 1964 (em minha opinião).
Para Oeste, onde a minha mãe estava nesta altura grávida de mim, tínhamos de ser aborrecidamente circunspectos. Mas a maioria dos nova-iorquinos era tolerante, ou pelo menos nada curiosa. Uma barba até à cintura e um cabelo comprido até aos ombros, que eu prendia em trança quando estava na base, não atraía muitos olhares, nem sequer nada mais que alguns gritos de "Urso!" das crianças. Para o nosso senhorio, os nossos vizinhos e outros contemporâneos, nós éramos um professor de Filologia Germânica e sua mulher, com as suas naturais idiossincrasias. E, na realidade, até nem era mentira. Portanto, o passeio devia ter-me feito bem, recuperando a perspectiva que todos os agentes da Patrulha devem ter, e sem a qual ficariam doidos varridos com as coisas que se viam obrigados a presenciar. Devemos compreender que o que Pascal dissera era verdade em relação a todos os seres humanos em todos os espaços-tempos. Nós próprios incluídos: "O último ato é trágico, independentemente de quão agradável possa ter sido a comédia dos outros atos. Um pouco de terra sobre as nossas cabeças e fica tudo resolvido para sempre.”
“É melhor que nos compenetremos disso, para que possamos viver assim calma, senão serenamente.” Vejamos, estes meus Godos estavam safando-se muito bem, se os compararmos com, digamos, milhões de judeus europeus e ciganos, menos de dez anos no futuro, ou milhões de russos neste exato momento. Não servia de nada. Não eram os meus godos. Os seus fantasmas apertavam-se à minha volta, até as ruas, os edifícios, os corpos se transformarem num sonho irreal e tenuemente recordado.
Sem ver nada à minha frente, apressei o passo, em direção ao santuário que Laurie me pudesse fornecer.
Vivíamos num andar enorme, com vista para o Central Park, onde gostávamos de passear em noites suaves. O porteiro não precisava acumular essas funções com as de guarda armado. Magoei-o com a secura com que retribui a sua saudação e só percebi isso já no elevador, mas nessa altura era muito tarde para voltar. Saltar para trás no tempo e alterar o incidente seria violar a primeira diretriz da Patrulha. Não que algo de tão trivial ameaçasse o continuum, que é bastante flexível, dentro de certos limites, e os efeitos das alterações diluem-se, em regra, com rapidez. Na realidade, existe uma pergunta metafísica interessante sobre até que ponto é que os viajantes no tempo descobrem o passado versus até que ponto é que o criam. O gato de Schrodinger espreita tanto na história, como da sua caixa. No entanto, a Patrulha existe para assegurar que o tráfego temporal não destrua o desenrolar dos acontecimentos que levarão à existência dos super-homens danelianos fundadores da Patrulha quando, no seu passado remoto, os homens vulgares descobriram como viajar no tempo.
Os meus pensamentos tinham-se refugiado neste tema familiar, enquanto permanecia no elevador. Tornava os fantasmas mais distantes, menos clamorosos. Apesar disso, quando entrei em casa, eles seguiram-me.
Um cheiro de terebentina vagava por entre os livros que cobriam as paredes da sala. Laurie estava conseguindo firmar-se como pintora, aqui nos anos 30, quando não era a preocupada mulher de um professor de faculdade, como acontecera mais tarde, no fim do nosso século. Quando lhe ofereceram um lugar na Patrulha, ela recusou; faltava-lhe a força física que um agente de campo, masculino e, especialmente, feminino, por vezes necessita, enquanto trabalho administrativo ou de referência não lhe interessava. E claro que partilhara férias em locais extremamente exóticos.
Ela ouviu-me entrar e veio correndo do estúdio para me receber. Esta visão levantou-me um pouco a moral. Apesar do avental sujo e o cabelo coberto por um lenço, era ainda esbelta, flexível e atraente. As linhas por debaixo dos olhos verdes eram muito finas para serem notadas, até que ela se aproximou para me abraçar. Os nossos conhecimentos locais tendiam a invejar-me a mulher que, além de ser deliciosa, era bastante mais nova que eu. De fato, a diferença de idades era de uns meros seis anos. Eu estava no meio da minha quarta década, e prematuramente grisalho, quando a Patrulha me recrutou, enquanto ela mantivera a sua aparência jovem. O tratamento anti-envelhecimento que a nossa organização fornecia, para o processo de envelhecimento mas não anula os seus efeitos.
Fora isso, ela passou a maior parte da sua vida no tempo normal, sessenta segundos em cada minuto. Como agente de campo, passavam- às vezes dias, semanas ou meses entre o dizer-lhe adeus de manhã e o regresso para o jantar - um interlúdio no qual ela podia prosseguir a sua carreira sem que eu a perturbasse. A minha idade cumulativa aproximava-se já dos cem anos. Às vezes pareciam mil. E isso notava-se.
- Olá, Carl, querido! - Os seus lábios pulsavam contra os meus. Puxei-a para mim. E se uma mancha de tinta me passasse para o traje, que importância tinha? Então ela deu uns passos atrás, pegou-me em ambas as mãos e dirigiu o seu olhar através e para dentro de mim. O seu tom de voz enfraqueceu:
- Esta viagem te magoou.
- Eu já sabia que sofreria - respondi no meio de um grande cansaço.
- Mas não sabia até que ponto... Ficou lá muito tempo?
- Não. Daqui a pouco te conto os detalhes. Apesar de tudo tive sorte. Apanhei um ponto-chave, fiz o que tinha a fazer e sai outra vez. Poucas horas de observação às escondidas, uns poucos minutos de ação e fini.
- Suponho que se pode chamar a isso sorte. Tem de regressar em breve?
- A essa era sim, dentro em breve. Mas quero passar aqui uns tempos... descansando, recuperar do que vi que estava prestes a acontecer... Agüenta-me aqui por perto, sorumbático, à tua volta, durante uma semana ou duas?
- Querido... - Ela voltou para junto de mim.
- De qualquer maneira, vou ter de trabalhar nas minhas notas - disse-lhe ao ouvido-, mas ao fim do dia podemos sai para jantar, para ir ao teatro, para nos divertirmos juntos.
- Oh, espero que consiga te divertir. Não finja por minha causa...
- Mais tarde, as coisas serão mais fáceis - assegurei-lhe. - Me limitaria a cumprir a minha missão original, registrando as histórias e canções que eles farão acerca disto. E só que... primeiro tenho de atravessar a realidade.
- Tem mesmo?
- Sim. E não por motivos acadêmicos, não, acho que não. Mas porque eles são o meu povo. São mesmo.
Ela abraçou-me com mais força. Ela sabia.
O que ela não sabia, pensei eu num ressurgir de dor, o que eu pedia a Deus que não soubesse, era a razão por que eu me interessava tanto por aqueles meus descendentes de outrora. Laurie não era ciumenta. Nunca invejaria os momentos que Jorithe e eu tivéramos juntos. Rindo, dissera que não a privara de nada, enquanto me proporcionara uma posição na comunidade que estava estudando, que poderia bem ser única nos anais da minha profissão. Depois, fizera tudo o que pudera para me consolar.
O que eu não consegui contar-lhe foi que Jorith não fora simplesmente uma grande amiga que, por acaso, era mulher. Não lhe podia dizer que amara uma mulher, que jazia em cinzas há mil e seiscentos anos, tanto quanto amava a ela, e ainda amava, e talvez nunca deixasse de amar.

A casa de Winnithar, o Wisentslayer, erguia-se numa escarpa sobre o rio Vístula. Era uma aldeia com meia dúzia de casas amontoadas à volta de uma casa principal, com celeiros, telheiros, cozinha, ferreiro, destilaria e outros locais de trabalho: porque a sua família há longo tempo que habitava aqui e contava se entre as mais importantes entre os teuring. Para ocidente, estendiam-se prados e campos de cultura.
Para leste, do outro lado do rio, mantinha-se a floresta, embora a povoação estivesse a alastrar para esse lado, conforme a tribo aumentava em números.
Poderiam ter derrubado os bosques por completo, se não fosse por, cada vez mais, as pessoas estarem se mudando para longe. Eram tempos instáveis. Não só havia bandos de pilhagem à solta; populações inteiras estavam se deslocando pelas fronteiras, lutando quando se encontravam.
Ouviam-se rumores longínquos de que os Romanos também estavam freqüentemente com lutas internas, enquanto o poderio que os seus antepassados tinham construído se desmoronava. Por enquanto, poucos homens do norte se tinham atrevido a algo de mais temerário que algumas incursões ao longo das fronteiras territoriais. Mas as terras do sul, para além das fronteiras, eram quentes, ricas e mal defendidas pelos seus habitantes, o que as tornava convidativas para que muitos godos aí construíssem um novo lar para si próprios.
Winnithar permaneceu onde estava. No entanto, isso obrigava-o a passar tanto tempo lutando - especialmente contra os Vândalos, embora também algumas vezes contra tribos godas, greutung ou taifal - como lavrando. A medida que os seus filhos chegavam à idade adulta, começavam a ansiar por partir para outras terras. Assim estavam as coisas quando Carl chegou.
Ele chegou no Inverno, quando praticamente ninguém viajava. Por causa disso, os estranhos eram duplamente bem-vindos, quebrando a monotonia das suas vidas. Ao princípio, espiando-o a uns mil metros de distância, tomaram-no por um simples viajante, visto que andava sozinho e a pé. De qualquer forma, sabiam que o chefe quereria vê-lo.
Ele aproximou-se, caminhando facilmente pelos sulcos gelados da estrada, usando a lança como bordão. O seu manto azul era a única mancha de cor na paisagem de campos cobertos de neve, árvores despidas, céu escuro. Os cães ladraram e rosnaram; ele não mostrou medo e mais tarde os homens compreenderam que ele poderia tê-los morto se o atacassem. Nesse dia, porém, chamaram os cães e receberam o recém-chegado com um súbito respeito -porque se tornara claro que as suas vestes eram do mais fino material e nada sujas pela caminhada, ao mesmo tempo que ele próprio tinha um aspecto imponente. Mais alto que os mais altos, destacava-se, magro mas robusto, com uma barba cinzenta, tão flexível como um jovem. Que coisas já teriam os seus olhos pálidos observado?
Um guerreiro destacou-se para recebê-lo.
- Eu me chamo Carl - respondeu, quando interrogado. Nada mais. - Muito me agradaria ficar como seu hóspede algum tempo. - As palavras em godo saiam-lhe com facilidade, mas o seu som, e algumas vezes a sua ordem e terminação, não eram as de nenhum dialeto conhecido dos teuring.
Winnithar ficara em sua casa. Não estaria à altura da sua dignidade ser visto olhando, espantado, como um criado. Quando Carl entrou, Winnithar falou da sua cadeira mais alta:
- Seja bem-vindo se vem em paz e com boas intenções. Que o pai Tiwaz o proteja e a mãe Frija o abençoe! - Como era costume antigo na sua casa.
- Os meus agradecimentos - respondeu Carl. - Foi muito bom da sua parte dizer isso a uma pessoa, de quem bem podem pensar ser um pedinte. Não o sou e espero que este presente seja considerado digno -
meteu a mão na bolsa que trazia pendurada no cinto e retirou uma pulseira que entregou a Winnithar. Ouviram--se suspiros dos que se tinham acotovelado para observar, porque a pulseira era pesada, de ouro puro, delicadamente trabalhada e incrustada de pedras preciosas. O anfitrião por pouco não perdeu a compostura.
- É um presente digno de um rei. Compartilhe comigo o meu assento, Carl. - Era o lugar de honra. - Fique conosco o tempo que desejar -bateu palmas. - Ehla! - gritou ele. - Tragam hidromel para o nosso convidado e para mim também, para poder - beber à sua saúde! -E, para os moços, criadas e crianças que por ali andavam gritou: -Voltem para o trabalho, vocês. Podemos todos ouvir o que ele nos quiser dizer
depois da refeição da noite. Agora, sem dúvida, que se sente cansado. Resmungando, eles acederam.
- Por que diz isso? - perguntou-lhe Carl.
- A casa mais próxima em que poderia ter passado a noite fica a uma boa distância daqui - replicou Winnithar.
- Não estive em nenhuma - disse Carl.
- Quê?
- Mais tarde ou mais cedo acabaria por descobri-lo. Não queria que pensasse que lhe estivera mentindo.
Winnithar inclinou-se para o observar, puxando pelos seus bigodes, e disse lentamente:
- Você não é destas partes; sim, deve ter viajado de muito longe. No entanto, as suas vestes estão limpas, embora não lhe veja nenhuma muda de roupa, nem comida nem nada do que é costume um viajante trazer. Quem é você, de onde vem e... como?
O tom de voz de CarI era calmo, mas os que o ouviram sentiram o metal que lhe estava subjacente.
- Há coisas das quais não posso falar. Dou-lhe a minha palavra, que o relâmpago de Donar me castigue, se não estiver falando a verdade, que não sou um bandido, nem um inimigo da sua gente, nem do gênero que o envergonharia de albergar debaixo do seu teto.
- Se a honra lhe exige que guarde certos segredos, nenhum de nós se intrometerá - disse Winnithar. - Mas deve compreender que não podemos deixar de nos admirar... - evidente era o alívio com que se interrompeu para exclamar: - Ah, aqui vem o hidromel. E a minha esposa Salvalindis que lhe traz o seu chifre, como merece um hóspede da sua importância.
Carl cumprimentou-a cortesmente, embora o olhar se desvias-se contentemente para a donzela a seu lado, que levava a Winnithar a sua bebida. Ela era de uma elegância doce e movia-se como um veado; o cabelo solto caía dourado, emoldurando uma face de ossos delicados, lábios sorridentes e tímidos, olhos grandes e da tonalidade de um céu de Verão.
- Apresento-lhe a nossa filha mais velha - disse ela a Carl -, a nossa filha Jorith.

Depois do treino básico na Academia da Patrulha, voltei para Laurie, no mesmo dia em que a deixara. Precisava de um tempo para descansar e readaptar-me; produzia um certo choque transferirmo-nos do período oligoceno para uma cidade universitária da Pensilvânia. Precisávamos também pôr os nossos assuntos mundanos em ordem. Pelo meu lado, acabaria o ano acadêmico antes de aceitar "um lugar mais bem pago no estrangeiro". Laurie tratou da venda da nossa casa e do destino a dar às coisas que não queríamos conservar - para onde e para quando quiséssemos montar residência.
Entristeceu-nos muito despedirmo-nos dos amigos de anos. Prometemos fazer visitas ocasionais, mas sabíamos de antemão que seriam poucas e muito espaçadas, até terminarem completamente. As mentiras que se tornavam necessárias constituíam um grande esforço. Como deixamos as coisas, ficaram com a impressão que o meu novo lugar, algo vago, deveria ser uma cobertura para um cargo na CIA.
Bem, no inicio tinham me avisado que a vida de um agente da Patrulha do Tempo acaba por se transformar numa série de despedidas. Ainda me faltava sentir na pele o verdadeiro significado desta verdade. Ainda estávamos no processo de desenraizamento, quando recebi um telefonema.
- Prof. Farness? Fala Manse Everard, operador independente. Gostaria de convidá-lo para uma conversa, talvez para este fim-de-semana, se pudesse.
O meu coração deu um pulo. Independente é praticamente o mais alto que se pode chegar na organização; através dos milhões ou mais de anos que vigiam. Este pessoal é extremamente raro. Normalmente, um membro, mesmo que seja um oficial da policia, trabalha dentro de um único meio, de forma a ele ou ela poderem conhecê-lo profundamente, e em conjunto com uma equipe extremamente coesa. Os Independentes podiam ir onde quisessem e fazer praticamente tudo o que achassem necessário, sendo responsáveis apenas perante a sua consciência, os seus pares e o Danelianos.
- Ah, claro, certamente, senhor - respondi eu, sem pensar. - Sábado estaria bem. Quer vir a nossa casa? Prometo-lhe um excelente jantar...
- Obrigado, mas prefiro que seja em minha casa. Pelo menos na primeira vez. Tenho lá os meus arquivos e o terminal de computador e tudo o mais. Só nós dois, por favor. Não se preocupe com o horário dos aviões. Arranje-me um local, como por exemplo a sua garagem, onde ninguém nos veja. Foi-lhe fornecido um localizador, não foi? Bem, leia as coordenadas e telefone-me. Eu vou buscá-lo no meu saltitão.
Mais tarde, descobri que este procedimento era característico dele. Grande, de aspecto duro, possuindo mais poder que César ou Gengis alguma vez sonharam, era tão cordial como um velho amigo. Comigo na sela atrás dele, transferimo-nos no espaço, mais que no tempo, para a atual base da Patrulha, na cidade de Nova lorque. De lá, fomos a pé até o apartamento que ele mantinha. Ele não gostava de sujeira, desordem e perigo mais que eu. No entanto, sentia que precisava de um pied-d'terre no século XX, e habituara-se a estas acomodações antes da decadência ter avançado exageradamente.
- Eu nasci no seu estado em 1942 - explicou ele. - Entrei para a patrulha com 30 anos. Por isso, decidi que seria eu a entrevistá-lo. Temos mais ou menos os mesmos antecedentes; deveríamos compreender-nos bem um ao outro.
Eu tomei um bom gole do uísque com soda que ele preparara para mim, e disse cautelosamente:
- Não sei se será bem assim, senhor. Ouvi falar do senhor enquanto estive na academia. Parece que teve uma vida bastante aventureira, mesmo antes de se juntar ao grupo. E depois... eu, pelo meu lado, tenho sido um tipo calmo, rato de biblioteca.
- Não é tanto assim - Everard olhou de relance para uma folha de notas que tinha na mão. A sua mão esquerda segurava um cachimbo de torga em bastante mau estado. De vez enquanto, dava uma fumadela ou bebia um gole. - Vamos refrescar a minha memória, se não se importa? Não esteve na frente durante o serviço militar, mas isso é porque cumpriu os seus dois anos durante aquilo que nós ironicamente chamamos tempo de paz. No entanto, atingiu níveis elevados na carreira de tiro. Sempre foi um homem de ar livre, fez montanhismo, esqui, vela, natação. No liceu, jogou futebol e obteve bons resultados apesar da sua magra estatura. Na faculdade, os seus passatempos incluíam esgrima, arco e flecha. Viajou bastante, e nem sempre para os habituais lugares seguros. Sim, não há dúvida que o consideraria suficientemente aventureiro para os nossos fins. Provavelmente, até aventureiro demais. É sobre isso que estou tentando sondá-lo.
Sentindo-me embaraçado, voltei a olhar em volta da sala.
Em um piso mais elevado, encontrava-se um oásis de quietude e limpeza. Prateleiras de livros cobriam as paredes, com exceção de três excelentes quadros e um par de lanças da Idade do Bronze. Fora isso, as recordações óbvias era constituídas por um tapete de pele de urso polar que ele sabia pertencer à Groenlândia do século X.
- Está casado há vinte e três anos com a mesma senhora -salientou Everard. -Nos tempos que correm, isso indica um caracter estável.
Não havia aqui nenhum sinal de feminilidade. É claro que ele poderia ter uma ou várias mulheres em outro lugar.
- Sem filhos - continuou Everard. - Hum, não tenho nada a ver com isso, mas sabe, não é verdade que, se quiser, os nossos médicos podem resolver qualquer problema de infertilidade anterior à menopausa? Também podem compensar um inicio tardio de gravidez.
- Obrigado - respondi. -Trompas de Falópio... Sim, Laurie e eu já discutimos esse assunto. Talvez algum dia recorramos a isso. Mas não achamos aconselhável iniciar uma paternidade e a minha nova carreira simultaneamente - dei um sorriso. - Se é que simultaneidade tem algum significado para um patrulheiro...
- Uma atitude responsável. Agrada-me! - Everard acenou com a cabeça.
- Mas porquê a inspeção, senhor? - atrevi-me a perguntar. - Não fui convidado a alistar-me meramente com base na recomendação de Herbert Ganz. A sua gente me fez uma bateria completa de testes do futuro longínquo, antes de me explicarem do que se tratava.
Chamaram-lhe uma série de experiências científicas. Eu cooperei porque Ganz me pediu para o fazer e como um favor a um amigo dele. Não era da área dele; ele estava em Literatura e Línguas Germânicas como eu. Encontram-nos num encontro profissional, tornam-nos amigos de farra e escrevem-nos bastante. Ele admirava os meus trabalhos publicados sobre Deor e Widsith, e eu admirava o dele sobre a Bíblia gótica.
Naturalmente que, na altura, não sabia que ele era o autor. Foi publicado em Berlim, em 1853. Mais tarde, foi recrutado pela Patrulha e, por fim, subiu no tempo com um pseudônimo, em busca de talentos jovens para os seus trabalhos. Everard encostou-se. Por cima do cachimbo, o seu olhar perscrutava-me.
- Bem - disse ele -, as máquinas disseram-nos que você e a sua mulher eram de confiança e ficariam ambos deliciados com a verdade. O que elas não podiam medir é até que ponto é que você seria competente para o lugar que lhe era destinado. Desculpe-me, não é de forma alguma um insulto. Ninguém é bom em todas as coisas e estas missões serão duras, solitárias e delicadas. - Fez uma pausa. - Sim, delicadas. Os Godos podem ser bárbaros, mas não quer dizer que sejam estúpidos, ou que não possam ser magoados com a mesma facilidade que você ou eu...
- Compreendo - respondi eu. - Mas repare, basta ler os relatórios que entregarei no meu futuro pessoal. Se os meus primeiros resultados mostrarem que me portei mal, bem, é só dizer-me para ficar em casa e tornar-me num investigador de bibliotecas. A organização também precisa deles, não é verdade?
Everard suspirou.
- Já investiguei e fui informado que se portou... portará... terá se portado satisfatoriamente. Mas não chega. Não pode compreender, porque ainda não passou por isso, até que ponto é que a Patrulha está sobrecarregada, até que ponto é que nós estamos esparsamente espalhados através da história. Não podemos examinar todos os ínfimos pormenores do que um agente de campo faz. E isso é especialmente verdade quando ele ou ela não é um polícia como eu, mas um cientista como você, explorando meios pobremente documentados, ou sem documentação alguma... - emborcou mais um gole da sua bebida. - É por isso que a Patrulha tem um setor científico. Para obter uma idéia mais concreta dos verdadeiros acontecimentos, para que possa saber exatamente o que deve evitar que os descuidados viajantes do tempo alterem.
- Faria uma diferença tão significativa, numa situação tão obscura como essa?
- Talvez. A seu tempo, os Godos terão um papel importante, não é verdade? Quem sabe que acontecimentos no inicio da sua história, vitória ou derrota, salvamento ou morte, nascimento ou não de certo indivíduo, poderão ter efeitos, se considerarmos a propagação dos resultados através das gerações?
- Mas eu nem sequer irei trabalhar com acontecimentos reais, exceto indiretamente... - argumentei. - O meu objetivo é ajudar a recuperar várias histórias e poemas perdidos e desvendar a forma como eles evoluíram e como influenciaram obras posteriores.
Everard sorriu pesarosamente.
- Sim, eu sei. O grande trabalho de Ganz. A Patrulha aceitou-o, porque é uma abertura, a única que encontramos até agora, para conseguir registrar a história dessa época.
Acabou a bebida e levantou-se.
- Que me diz de outro copo? - propôs ele. - E depois vamos almoçar. Entretanto, gostaria que me dissesse exatamente qual é o seu projeto.
- Bem, deve ter falado com Herbert... com o Prof. Ganz... - respondi, atônito. - Hum, obrigado, gostaria de um reforço.
- Com certeza - disse Everard, enchendo o copo. - Recuperar a literatura germânica da Idade Média. Se é que literatura é o termo correto para material que era originalmente transmitido oralmente, em sociedades analfabetas. Apenas alguns excertos sobreviveram em forma escrita e os investigadores não concordam quanto ao grau de deturpação destas cópias. Ganz está trabalhando no... hum... no épico dos Nibelungos.
- O que não entendo muito bem é onde você se encaixa. Isso é uma história do Reno. Você quer andar à toa, sozinho, pela Europa Oriental, no século IV.
Os seus modos contribuíam mais que o uísque, para me pôr à vontade.
- Espero conseguir apanhar a parte referente a Ermanaric -expliquei-lhe.- Não é um texto integral, mas desenvolveu uma ligação e, para além disso, tem um interesse intrínseco.
- Ermanaric? Quem foi ele? - Everard passou-me o copo e instalou-se para ouvir.
-Talvez seja melhor voltar um pouco atrás -disse eu. - Até que ponto é que conhece o ciclo do Nibelung-Volsung?
- Bem, vi as óperas sobre o Anel, de Wagner. E, uma vez, quando tive uma missão na Escandinávia, por volta dos finais do período viking, ouvi um conto sobre Sigurd, que matou o dragão, acordou as Valquírias e depois estragou tudo.
- Isso é só um fragmento da história, senhor.
- Trate-me por Manse, Carl.
- Oh, obrigado. Sinto-me honrado. Para não me tornar fastidioso, - continuei, no meu melhor estilo acadêmico: - A "Saga dos Volsung" é de origem islandesa e foi escrita mais tarde que as Canções dos Nibelungos germânicas, mas contém uma versão mais antiga, mais primitiva e mais extensa da história. A Antiga e Jovem Edda também têm algo dela. Foram nessas fontes que Wagner foi buscar a maioria dos seus temas.
- Provavelmente, se lembrará que Sigurd e Volsung são traiçoeiramente levados a desposar Gudrun, a Gjuking, em vez de Brunilde, a Valquíria, o que levou a um grande ciúme entre estas mulheres e, por fim, à sua morte. Em germânico, estas personagens são chamadas Siegfried, Kriemhild da Burgonha e Brunhild de Isenstem e os deuses pagãos não aparecem; mas isso não vem para aqui chamado. Segundo ambas as histórias, Gudrun ou Kriemhild, casou mais tarde com um rei chamado Atli, ou Etzel, que não é outro senão Átila, o Huno.
- A partir daí, as versões começam a divergir bastante. Na Canção dos Nibelungos, Kriemhild atrai os seus irmãos para a corte de Etzel, atraiçoa-os e os destrói, como vingança pelo assassínio de Siegfried. Teodorico, o Grande, o ostrogodo que conquistou a Itália, aparece nesse episódio com o nome de Dietrich de Berna, embora historicamente, tenha florescido uma geração mais tarde que Átila. Um seu seguidor, Hildebrand, fica tão horrorizado com a traição e crueldade de Kriemhild que a mata. Não nos esqueçamos que, por seu lado, Hildebrand tem uma lenda só para si, numa balada, cuja versão integral Herb Ganz tenta descobrir, bem como em trabalhos posteriores. Está vendo o monte de anacronismos que isto suscita.
- Com que então, Átila,o Huno? - murmurou Everard. - Não era um homem nada simpático. Mas operava em meados do século V, quando aqueles malfeitores já andavam à solta pela Europa. Você vai para o século IV.
- Exatamente. Deixe-me contar-lhe a lenda islandesa. Atli atraiu o irmão de Gudrun para junto de si, porque queria o Ouro do Reno. Ela tentou avisá-los, mas apesar de tudo eles foram, ao ser-lhes prometido um salvo-conduto. Ao recusarem-se a entregar o tesouro e a dizer a Atli onde ele estava escondido, Atli mandou mata-los. Gudrun vingou-se. Assassinou os filhos que lhe dera e serviu-os como comida numa refeição normal. Mais tarde, apunhalou-o enquanto dormia, lançou fogo à sua casa e abandonou a Terra dos Hunos. Levou com ela Svanhild, a filha que tivera de Sigurd.
Everard franziu a testa, concentrando-se. Não era nada fácil não confundir todas estas personagens.
- Gudrun foi para a terra dos Godos - disse eu. - Ali casou novamente e teve dois filhos, Hamther e Sorli. O rei dos Godos chama-se Jormunrek, na saga e nos poemas de Edda, mas não há qualquer dúvida de que ele era Ermanaric, que é uma figura real, ainda que obscura, que viveu por volta de meados ou fins do século IV. Os relatos variam quanto a ter casado com Svanhild e ela ter sido falsamente acusada de infidelidade, ou a ter casado com outro homem qualquer a quem o rei apanhou conspirando contra ele e que por isso mandou enforcar. Em qualquer dos casos, ele mandou que ela fosse espezinhada até à morte pelos cascos dos cavalos. Por esta altura, já os filhos de Gudrun, Hamther e Sorli, eram homens feitos. Ela atiçou-os para que matassem Jormunrek, como vingança pela morte de Svanhild. Pelo caminho eles encontraram o seu meio-irmão, Erp, que se ofereceu para acompanhá-los. Eles recusaram. Os manuscritos são vagos quanto às razões desta recusa. Suspeito que ele era filho do pai deles e de uma concubina, e havia guerras entre eles e o meio-irmão.
- Eles continuaram até o quartel-general de Jormunrek e atacaram. Eram só dois, mas invulneráveis ao aço, por isso mataram à direita e à esquerda, conseguiram chegar junto do rei e feriram-no gravemente. No entanto, antes de acabarem o trabalho, Hamther descuidou-se dizendo que as pedras os podiam atingir. Ou, segundo a saga, Odin apareceu subitamente, vestido como um velho zarolho, e forneceu traiçoeiramente esta informação. Jormunrek mandou os seus últimos guerreiros apedrejarem os irmãos e foi assim que eles morreram. Assim acaba a fábula.
-Triste, não é? - disse Everard. Refletiu durante um minuto. - Mas me parece que todo esse último episódio, "Gudrun na Terra dos Godos", deve ter sido composto muito mais tarde. Os anacronismos são perfeitamente incontroláveis.
- Claro - concordei. - É o que acontece muito freqüentemente nas tradições populares. Uma história importante atrairá para si outras secundárias. Mesmo de formas superficiais. Por exemplo, não foi W. C. Fields que disse que um homem que odeia crianças e cães não pode ser mau de todo. Foi outra pessoa qualquer,já não me lembro do nome, que assim apresentou Fields num banquete.
Everard riu.
- Não me diga que a Patrulha deveria monitorizar a história de Hollywood! - Mas voltando a ficar sério, disse: - Mas se essa lenda verdadeiramente sangrenta não pertence ao cânone dos Nibelungos, por que razão quer investigá-la? Por que razão Ganz quer que você a investigue?
- Bem, chegou à Escandinávia, onde inspirou alguns bons poemas, se é que não eram simplesmente redações de algo anterior, e ligou-se à saga dos Volsungs. As ligações, toda a sua evolução, nos interessa. Além disso, Ermanaric é também mencionado em outros lugares: em certas baladas em inglês antigo, por exemplo. Por isso deve ter entrado em muitos dos trabalhos lendários e bárdicos que ficaram entretanto
esquecidos. Ele foi poderoso na sua época, embora aparentemente não fosse um homem muito simpático. O ciclo perdido de Ermanaric poderá bem ser tão importante e tão brilhante como tudo o que nos chegou do Ocidente e do Norte. Poderá ter influenciado a literatura germânica numa data de formas insuspeitadas.
- Tenciona ir diretamente a essa corte? Não lhe aconselharia tal coisa, Carl. Muitos agentes de campo são mortos por se tornarem descuidados.
- Oh, não. Algo de terrível deve ter acontecido, onde se originaram histórias que se espalharam rapidamente e até terras distantes, chegando mesmo a entrar nas crônicas históricas. Acho que posso me enquadrar no tempo em que aquilo aconteceu, uns dez anos antes. Mas tenho intenções de me familiarizar primeiro com o meio, antes de me aventurar nesse episódio.
- Acho bom. Qual é o seu plano?
- Vou apanhar com uma memorização eletrônica da língua goda. Já a consigo ler, mas quero falá-la fluentemente, embora o meu sotaque seja com certeza estranho. Também quero toda a informação que houver sobre os costumes, crenças, etc. O que será muito pouco. Os Ostrogodos, se não os Visigodos, ainda mal existiam na periferia da consciência romana. Seguramente que mudaram bastante antes de se deslocarem para o ocidente.
- Por isso começarei bastante antes das datas que constituem o meu objetivo; um pouco arbitrariamente, estou pensando em 300 d. C. Tomarei contato com as populações. Depois, reaparecerei a certos intervalos para me informar do que aconteceu durante a minha ausência. Em resumo, estarei a par dos acontecimentos à medida que eles marcharem em direção ao acontecimento. Quando finalmente se der, não serei apanhado de surpresa. Depois, aparecerei aqui e ali, esporadicamente, e escutarei os poetas e contadores de histórias e registrarei as suas palavras num gravador escondido.
Everard carregou o sobrolho.
- Hum, este tipo de atuação... Bem, mais tarde discutiremos as complicações possíveis. Também se deslocará bastante do ponto de vista geográfico, não é verdade?
- Sim. Segundo as raras tradições que foram passadas à escrita no Império Romano, os Godos são originários do que é agora a Suécia. Não acredito que uma raça tão numerosa possa ter origem numa área tão reduzida, mesmo contando com o aumento natural da população, mas poderá ter fornecido chefes e organizações, da mesma forma que os Escandinavos, em relação ao nascente estado da Rússia, no século IX. Eu diria que o grosso dos Godos começaram como habitantes ao longo do litoral sul do Báltico. Eram os povos germânicos mais a leste. Não que alguma vez tivessem constituído uma só nação. No momento em que atingiram a Europa ocidental, já estavam divididos em Ostrogodos, que conquistaram a Itália, e Visigodos, que tomaram a Ibéria. Já agora, a verdade é que deram um Governo bastante bom a estas regiões, o melhor que elas até então tinham tido. Finalmente, os invasores acabaram por ser, por sua vez, vencidos e diluíram-se na população em geral.
- E antes disso?
- Os historiadores fazem menção vaga de tribos. Por volta de 300 d.C., os Godos já estavam firmemente estabelecidos ao longo do Vístula, no centro do que é atualmente a Polônia. Antes do fim desse século, os Ostrogodos estavam na Ucrânia e os Visigodos a norte do Danúbio, a fronteira romana. Uma grande migração de povos, aparentemente no decurso de gerações, porque parece que eles acabaram por abandonar completamente o norte; para ai se moveram tribos eslávicas. Ermanaric era um ostrogodo, por isso tenciono seguir esse ramo.
- Ambicioso - disse Everard duvidoso. - E você ainda por cima é um novato...
- Ganharei experiência à medida que avançar, não é, Manse? Você próprio admitiu que a Patrulha tem falta de efetivos. Além disso, apanharei muita da história que vocês tanto necessitam.
Ele sorriu.
- Isso é verdade. - Levantando-se: - Vamos lá, acabe a bebida e vamos comer. Vamos precisar mudar de roupa, mas verá que vale a pena. Conheço um bar local, aí por volta de 1890, que tem uns magníficos almoços à borla.

O Inverno desceu e depois, lentamente, em vagas de vento, neve e chuva glacial, afastou-se. Para os que viviam no lugarejo perto do rio, e em breve para os seus vizinhos, a monotonia dessa estação foi aliviada nesse ano. Carl passou uma temporada com eles.
No principio, o mistério que o rodeava provocava medo em muitos deles; mas depressa viram que ele não trazia má vontade nem má sorte. O respeito por ele não se desvaneceu. Pelo contrário, cresceu. Desde o principio que Winnithar dissera que, para tal convidado, dormir num banco, como um guerreiro vulgar, era indigno, cedendo-lhe uma cama. Ofereceu-lhe ainda à escolha qualquer das mulheres para aquecê-lo, mas o estranho recusou, de uma forma cortês. Aceitou comida e bebida e tomava banho e ia à latrina. No entanto, murmurava-se que talvez estas coisas não lhe fossem necessárias, a não ser para fingir que era mortal.
Carl era comedido e amigável, de uma forma algo imponente. Ria, dizia uma piada, contava uma história divertida. Andava a pé ou a cavalo, com companhia, para caçar ou fazer visitas aos proprietários vizinhos ou juntando-se às oferendas aos Anses e aos festejos que se seguiam.
Tomava parte em torneios de tiro ou de luta, até se tornar claro que ninguém conseguia ser melhor que ele. Quando jogava os jogos de crianças ou de tabuleiro, nem sempre ganhava, embora ficassem com a idéia de que se tal não acontecia, era porque não queria que ficassem com medo da feitiçaria. Falava com todos, desde Winnithar até ao mais humilde servo ou à criança menor, e escutava com atenção; na verdade, fazia-os falar e era bondoso para serviçais e animais. Mas o seu eu interior permanecia escondido. Isso não queria dizer que ficasse sentado de mau humor. Não, falava e cantava de uma forma brilhante, que ninguém nunca antes vira. Sempre interessado em ouvir canções, contos, histórias, ditados, tudo o que por ali corria e retribuía largamente o que ouvia. Porque parecia conhecer o mundo inteiro, como se tivesse viajado por todo ele, durante mais de uma vida.
Falava de Roma, a poderosa e conturbada, do seu chefe Diocleciano, das suas guerras e das suas leis severas. Respondia a perguntas sobre o novo deus, o da Cruz, de quem os Godos tinham ouvido falar através dos mercadores e dos escravos vendidos mesmo até no norte. Falava dos grandes inimigos dos Romanos, os Persas, e das maravilhas que eles tinham realizado. As suas palavras rolavam sem parar, serão após serão... até às terras do sul, onde fazia sempre calor e onde as pessoas tinham a pele negra e rondavam feras parecidas com os linces, mas do tamanho de ursos. Falava-lhes de outros animais, desenhando figuras em carvão sobre placas de madeira e eles gritavam alto em sinal de admiração; comparado com um elefante, um boi selvagem ou até mesmo um cavalo de batalha não eram nada!
Próximo do distante Oriente, dizia ele, existia um reino mais vasto, antigo e maravilhoso que Roma ou a Pérsia. Os seus habitantes tinham a pele da cor do âmbar e olhos que pareciam oblíquos. Cercados constantemente por tribos a norte, eles tinham construído uma muralha tão comprida como uma cordilheira de montanhas e desde então atacavam a partir desse reduto. Era por isso que os Hunos tinham vindo para o Ocidente. Eles, que tinham vencido os Alanos e vexado os Godos, eram apenas uma canalha aos olhos oblíquos de Khitai. E esta vastidão não era ainda tudo o que havia. Quando se viajava para Ocidente, até se ter atravessado a província romana chamada Gália, se chegaria ao Mundo do Mar, do qual se ouviam fábulas, e se tomássemos um barco, e os que atravessavam os rios não eram suficientemente grandes, e se navegássemos sempre em frente, encontraríamos as terras dos sábios e ricos Maias.
Carl também contava histórias de homens, mulheres e dos seus feitos - Sansão, o Forte; Deirdre, a Bela e Infeliz; Crockett, o Caçador. Jorith, filha de Winnithar, esquecia-se de que já tinha idade para casar. Sentava-se no chão entre as crianças, aos pés de Carl, e escutava atentamente enquanto os seus olhos refletiam a luz do fogo e se transformavam em sóis.
Ele não estava lá permanentemente. Muitas vezes dizia que precisava ficar sozinho e desaparecia de vista. Uma vez, um garoto impetuoso e perito em seguir a caça, foi atrás dele sem ser visto, a não ser que Carl não se dignasse a prestar-lhe atenção. O rapaz regressou pálido e tremendo, titubeando que o "barba cinzenta" fora para o bosque de Tiwaz. Ninguém se atrevia a entrar nesse pinheiral sombrio a não ser na Véspera do Solstício de Inverno, quando eram feitas três oferendas de sangue - de cavalo, de cão e de escravo - para que o Protetor do Lobo mandasse embora a escuridão e o frio. O pai do rapaz chicoteou-o e depois disso ninguém mais falou abertamente no assunto. Se os deuses permitiam que isso acontecesse, o melhor era não questionar as suas razões.
Carl regressava uns dias depois, com roupa lavada e trazendo presentes. Eram coisas pequenas, mas preciosas, fossem elas uma faca cujo metal tivesse um fio extremamente afiado, um lenço de tecido brilhante de terras distantes, um espelho melhor que metal polido ou que um lago calmo - os tesouros não paravam, até que todos, qualquer que fosse a sua hierarquia, fossem homem ou mulher, tivessem pelo menos um. A cerca disto ele dizia simplesmente:
- Conheço os artífices.
A Primavera fugiu para norte, a neve derreteu, os botões explodiam em folhas e flores, o rio encheu-se, barulhento. Pássaros voando em migração enchiam os céus com asas e chilreados. Cordeiros, vitelos, poldros andavam vacilantes pelos cercados. As pessoas saíam, piscando os olhos face a esta súbita claridade; arejavam as suas casas, roupas e almas. A Rainha da Primavera levou a imagem de Frija de quinta em quinta para abençoar o lavrar e semear dos campos, enquanto jovens e donzelas com grinaldas de flores dançavam em volta do seu carro puxado a bois. Os desejos acendiam-se.
Carl ainda se afastava, mas regressava no mesmo dia. Cada vez mais se via Jorith e ele juntos. Passeavam mesmo até aos bosques, descendo caminhos em flor, em direção a prados, longe da vista de todos. Ela andava como perdida em sonhos. Salvalindis, sua mãe, ralhava-lhe por se portar de uma forma tão leviana - não se importava ela com o seu bom nome? - até Winnithar mandar calar a mulher. O chefe era um calculista esperto. Quanto aos irmãos de Jorith, estavam encantados.
Por fim, Salvalindis falou em particular com a sua filha. Foram para um anexo onde as mulheres da casa se encontravam para tecer e coser, quando não havia outros trabalhos para elas. Agora havia, por isso, as duas estavam sozinhas na penumbra. Salvalindis pôs Jorith entre si própria e o tear grande e com pesos de pedra, como se a quisesse prender numa armadilha, e perguntou-lhe diretamente:
- Terá sido menos indolente com esse homem Carl do que te tornaste em casa? Ele já te possuiu?
A jovem corou, torcendo os dedos e baixando os olhos.
- Não - murmurou ela. - Ele pode fazê-lo, quando quiser. Como eu gostaria que ele o fizesse. Mas só temos andado de mãos dadas, dado uns beijos e... e...
- E o quê?
- Falado. Cantado canções. Rido. Ficado sérios. Oh, mãe, comigo ele não é nada reservado. Comigo, ele é mais bondoso e terno que... que eu pensava ser possível um homem ser. Ele fala comigo como com alguém que sabe pensar e não simplesmente como com uma esposa.
Os lábios de Salvalindis comprimiram-se.
- Eu nunca deixei de pensar depois de casada. O teu pai pode ver em Carl um aliado poderoso. Mas eu só vejo nele um homem sem terra e sem povo, feiticeiro ou parecido com isso, mas sem raízes, sem quaisquer raízes. Que vantagem terá a nossa casa em se aliar com ele? Bens, sim, conhecimentos; mas para que serve isso quando os inimigos estão à porta, ameaçadores? Que poderia ele deixar de herança aos seus filhos? Que coisas o ligariam a ti, depois de passada a juventude? Menina, está sendo muito insensata.
Jorith apertou os punhos, bateu o pé e gritou através de lágrimas que eram mais de raiva que de pesar:
- Cala essa língua, velha coruja! - Imediatamente se encolheu, tão espantada como Salvalindis.
- Atreve-se a falar assim a sua mãe? - disse esta. - Sim, ele é mesmo um feiticeiro, que lançou um encantamento sobre ti. Jogue esse broche que ele te deu no rio, ouviu? - deu meia volta e abandonou a sala. As saias fizeram uma restolhada de ira. Jorith chorou, mas não obedeceu. E depressa tudo mudou.
Num dia em que a chuva caía como lanças, enquanto o carro de Donar ribombava e o brilho do seu machado cegava os céus, entrou um homem a galope pela aldeia adentro. Quase caía da sela e o seu cavalo estava prestes a desfalecer de fadiga. Apesar disso, acenou com uma seta e gritou para quem atravessou a lama para recebê-lo:
- Guerra! Os Vândalos aproximam-se!
Trazido para o salão, ele disse em frente de Winnithar:
- O aviso vem de meu pai, Aefli de Staghorn Dale. Ele o soube através de Dagalaif Nevittasson, que escapou da carnificina em Elkford para transmitir o aviso. Mas nós em Aefli tínhamos reparado no vermelho na linha do horizonte, onde seguramente havia lugares ardendo.
- Então são dois bandos deles, não é? - murmurou Winnithar. - Pelo menos. Provavelmente mais. Este ano apareceram mais cedo e em força.
- Como é que eles podem abandonar as suas terras na época de semear? - perguntou um dos seus filhos.
Winnithar emitiu um suspiro.
- Reproduziram-se mais que o necessário para o trabalho existente. Além disso, ouvi falar num rei Hildaric, que conseguiu submeter todas as tribos à sua autoridade. Assim eles conseguem reunir maiores hostes que antes, que se movem mais depressa e sob um melhor plano do que é possível a nós. Sim, pode ser que Hildaric tencione pilhar nossas terras, para bem do seu reino transbordante.
- Mas que havemos nós de fazer? - queria saber um velho e valente guerreiro.
- Reúnam os homens da vizinhança e informem tantos quantos puderem, no tempo disponível, como fez Aefli, se é que ele já não foi atacado. Encontram-nos na Rocha dos Cavaleiros Gêmeos como das outras vezes, que dizem? Pode ser que juntos não tenhamos de enfrentar uma tropa de vândalos grande demais para nós.
Carl agitou-se no seu assento.
- Mas que acontecerá aos seus lares? - perguntou ele. - Atacantes poderão ultrapassá-los pelos flancos, sem vocês saberem e atacar as suas casas... - o resto ficou implícito: pilhagem, fogo, mulheres jovens raptadas, todos os outros mortos.
- Teremos de correr esse risco. De outra forma, seremos eliminados. - Winnithar ficou silencioso. As chamas do fogo saltavam e relampejavam. Lá fora, o vento soprava e a chuva chicoteava as paredes. O seu olhar procurou o de Carl.
- Não temos elmo nem malha que lhe sirva. Talvez consiga arranjá-los no lugar onde vai buscar todo o resto.
O estranho ficou parado. As linhas aprofundaram-se no rosto. Os ombros de Winnithar afundaram-se.
- Bem, esta luta não tem nada a ver com você, não é? - ele suspirou. - Não é um teuring.
- Carl, oh, Carl! - Jorith destacou-se do grupo de mulheres. Por uns momentos eles aproximaram-se. Ela e o homem grisalho olharam um para o outro. Depois ele sacudiu o olhar, virou-se para Winnithar e disse:
- Não tema. Eu ficarei ao lado dos meus amigos. Mas terá de ser à minha maneira e vocês terão de seguir os meus conselhos, quer os compreendam ou não. Estão dispostos a isso?
Ninguém aplaudiu. Um som como o do vento atravessou o salão de um lado ao outro. Winnithar arranjou coragem.
- Sim - disse ele. - Agora os nossos cavaleiros que distribuam flechas de guerra por todos. Mas os restantes celebrarão.
O que aconteceu nas semanas seguintes, nunca ninguém compreendeu bem. Os homens cavalgavam, montavam o acampamento, lutavam e regressavam ou não a casa. Os que regressaram, que foram a maior parte, contavam freqüentemente histórias fantásticas. Falavam de um lanceiro de manto azul que atravessava o céu numa montaria que não era um cavalo. Falavam de monstros assustadores que atacavam as fileiras dos Vândalos e luzes feéricas na escuridão e o medo cego que se abatia sobre o inimigo, ao ponto de largar as armas e fugir aos gritos. Falavam do fato de, não sabiam bem como, encontrar sempre um bando de vândalos antes de eles terem chegado a uma aldeia goda e de como os punham em fuga, fazendo que a auséncia de saque levasse os clãs a desistirem uns a seguir aos outros e a dispersarem.
Falavam de vitória. Os seus chefes pouco mais sabiam dizer. Fora o Viajante que lhes dissera onde ir, o que esperar, a melhor forma de se prepararem para a batalha. Foi ele quem correu mais veloz que a tempestade ao trazer avisos e ordens, foi ele quem arranjou auxílio a Greutung, Taifal e Amaling, foi ele quem intimidou os arrogantes até eles trabalharem lado a lado, como ele lhes ordenava.
Estas histórias foram progressivamente esquecidas no decurso das duas gerações seguintes. Eram muito estranhas. Ou antes, ficavam submersas entre as histórias antigas do mesmo tipo. Anses, Wanas, cantos, feiticeiros, fantasmas, não é verdade que estes seres já se tinham muitas vezes juntado às desavenças entre os homens? O que interessava era que durante uns dez anos, os godos ao longo do Vístula superior conheceram paz. Avancemos com a colheita, diziam eles: ou o que quer que eles pretendessem fazer com as suas vidas. Mas Carl voltou para Jorith como o salvador.
Ele não podia na realidade desposá-la. Ele não tinha parentes que pudesse apresentar. No entanto, os homens que o podiam, tinham sempre tomado concubinas; os Godos não consideravam isso uma vergonha, se o homem tratasse convenientemente da mulher e dos filhos. Além disso, Carl não era um simples mancebo, guerreiro ou rei. A própria Salvalindis lhe levou Jorith, onde ele a aguardava num sala coberta de flores, depois de festejos em que se trocaram esplêndidos presentes.
Winnithar mandou cortar madeira, transportou-a através do rio e construiu-se uma boa casa para ambos. Carl queria algumas coisas esquisitas no edifício, tais como um quarto de cama separado. Havia também um outro quarto, que se mantinha sempre fechado à chave, a não ser quando ele entrava sozinho. Nunca ficava muito tempo lá e também nunca mais foi para o bosque de Tiwaz. Os homens cochichavam que ele dava muita importância a Jorith. As vezes acontecia de eles trocarem olhares, ou afastarem-se dos outros, como um par de jovens enamorados. No entanto... ela tratava bem da sua casa e, de qualquer forma, quem é que se atrevia a fazer troça dele? Ele próprio encarregou um criado da maior parte das tarefas de um marido. Levava para casa as provisões necessárias ou o equivalente para as trocar. E tornou-se um grande mercador. Estes anos de paz não foram anos de indiferença. Não, trouxeram mais vendedores ambulantes que antes, vendendo âmbares, peles, mel, sebo do Norte, vinho, vidros, trabalhos em metal, panos, cerâmica fina do Sul e do Ocidente. Sempre desejoso de falar com todos os desconhecidos, Carl alojava os caminhantes com toda a suntuosidade, e ia tanto às feiras como às reuniões da assembléia.
Nessas reuniões ele, que não pertencia às tribos, era apenas observador; mas depois da conversa do dia, as coisas animavam-se na sua tenda.
No entanto, os homens interrogavam-se a si próprios e as mulheres também. Foram chegando notícias de que um homem, grisalho mas vigoroso, que ninguém antes vira, aparecia freqüentemente entre outras tribos godas...
Talvez fosse por causa destas ausências dele que Jorith não ficou de imediato grávida; ou talvez fosse por ela ser ainda muito jovem, apenas com dezesseis primaveras, quando foi para o seu leito.
Passara-se um ano até os sinais se tornarem inconfundíveis. Embora a doença se acentuasse, a alegria transbordava dela. Mais uma vez o procedimento dele era estranho, pois parecia preocupar-se menos com a criança que ela lhe daria que com o próprio bem-estar dela. Chegava mesmo a vigiar o que ela comia, oferecendo-lhe frutos estrangeiros, independentemente da estação, embora a proibisse de comer o sal que ela desejava. Ela obedecia alegremente, dizendo que era uma demonstração do seu amor.
Entretanto, a vida continuava nas imediações, e a morte também. Nos enterros e nas respectivas festas, ninguém se atrevia a falar abertamente com CarI; ele estava muito perto do desconhecido. Por outro lado, os chefes que o tinham escolhido, ficaram surpreendidos quando recusou a honra de ser o homem das redondezas a desflorar a próxima Rainha da Primavera.
Recordando tudo o que ele já fizera e continuava a fazer por todos, depressa se recuperaram desta desilusão. Calor, colheita, desolação, renascimento, novamente Verão; e Jorith estava prestes a dar à luz.
Longo foi o seu trabalho de parto. Sofreu corajosamente as suas dores, mas as mulheres que a ajudavam começaram a ficar muito pessimistas. Os duendes não gostariam de ver um homem ao lado dela nessa altura. Já fora suficientemente mau quando CarI exigira condições de higiene nunca antes vistas. Elas só esperavam que ele soubesse o que estava fazendo. Ele esperava na sala principal da sua casa. Quando entravam visitas, oferecia-lhes hidromel e bebidas como era seu dever, mas falava pouco.
Quando eles saíram ao cair da noite, não dormiu, ficando sentado sozinho no escuro até ao nascer do Sol. De vez em quanto, a parteira ou uma ajudante vinham cá fora para lhe dizer como o parto estava correndo. Ela sofria à luz da lamparina e via como o olhar dele procurava contentemente a porta que mantinha fechada à chave. No fim do segundo dia, a parteira foi ter com ele, no meio dos seus amigos. O silêncio caiu sobre eles. Então o que ela trazia nos braços produziu um gemido, e Winnithar lançou um grito. CarI levantou-se, com as narinas brancas.
A mulher ajoelhou-se em frente dele, destapou o cobertor e colocou, no chão de terra, aos pés do seu pai, uma criança do sexo masculino, ainda ensanguentada mas gesticulando e chorando vigorosamente. Se Carl não pegasse a criança no colo, ela a levaria para os bosques e a abandonaria aos lobos. Ele nem sequer se demorou a ver se a criança tinha algum defeito. Abraçou-se àquela minúscula forma e gemeu:
- Jorith. Como está Jorith?
- Fraca - disse a parteira. - Pode vê-la agora, se quiser.
Carl devolveu-lhe o seu filho e apressou-se a entrar no quarto de cama. As mulheres que lá se encontravam afastaram-se. Inclinou-se sobre Jorith. Ela estava pálida, coberta de transpiração, esvaziada. Mas quando viu o seu homem, ergueu-se debilmente e sorriu o fantasma de um sorriso.
- Dagobert - sussurrou ela. Era esse o nome, antigo na família, que ela desejara para a criança, se fosse um rapaz.
- Dagobert, sim - disse Carl em voz baixa. Embora fosse invulgar em frente dos outros, inclinou-se para beijá-la.
Ela baixou as pálpebras e afundou-se na palha.
- Obrigado - mal se ouvia a sua voz. - O filho de um deus...
- Não...
Subitamente, Jorith estremeceu. Por momentos agarrou-se à cabeça. Os olhos voltaram a abrir-se. As pupilas estavam fixas e dilatadas. Ficou flácida. Respirava com grande dificuldade. Carl endireitou-se, deu meia volta e saiu rapidamente do quarto. Em frente da porta fechada, tirou a chave e entrou. Bateu com ela atrás de si. Salvalindis moveu-se para o lado da sua filha.
- Ela está morrendo - disse em tom átono. - Poderá a feitiçaria salvá-la? Deverá salvá-la?
A porta proibida voltou a abrir-se. Carl saiu, acompanhado por outra pessoa. Esqueceu-se de fechá-la. Os homens vislumbraram um aparelho de metal. Alguns lembraram-se do que tinha voado sobre os campos de batalha. Encolheram-se uns junto aos outros, apertaram amuletos nas mãos e fizeram sinais no ar.
O companheiro de Carl era uma mulher, embora vestisse calças e túnica com as cores do arco-iris. As suas feições eram de um tipo nunca antes visto: largas e de maçãs-do-rosto salientes como as dos hunos, mas de nariz pequeno, com a pele de um dourado-acobreado e com cabelo preto-azulado. Segurava uma caixa pela alça. Os dois correram para o quarto.
- Todos para fora. Todos! - rugiu Carl e enxotou as mulheres godas como folhas perseguidas pela tempestade.
Ele seguiu-as e lembrou-se então de fechar a porta do quarto onde estava a sua montaria. Ao voltar-se, viu todos olhando para ele e afastando-se assustados.
- Não tenham medo! - disse com dificuldade. - Não há aqui nada de mal. Eu só fui buscar uma mulher sábia para ajudar Jorith.
Por momentos ficaram todos imóveis ganhando coragem. A estranha aproximou-se e chamou CarI. Havia algo nela que o fez gemer. Cambaleou até junto dela e ela levou-o pelo braço até ao quarto de dormir.
O silêncio transbordava daquele quarto.
Pouco tempo depois, ouviram-se vozes, a dele cheia de fúria e angústia, a dela calma e inexorável. Ninguém conhecia aquela língua. Eles voltaram. A face de Carl parecia ter envelhecido.
- Ela deixou-nos - disse. - Fechei-lhe os olhos. Preparem o seu funeral e festejos, Winnithar, eu voltarei nesse momento.
Ele e a mulher sábia entraram no quarto secreto. Dos braços da parteira, Dagobert chorava.

Eu subira no tempo para a Nova lorque de 1930 porque conhecia a base e o seu pessoal. O jovem de serviço tentou fazer um estardalhaço por causa dos regulamentos, mas dele podia eu tratar. Transmitiu uma chamada de emergência para um médico altamente especializado. Por acaso foi Kweifei Mendoza que respondeu, embora nunca nos tivéssemos visto. Ela fez apenas as perguntas essenciais, juntou-se a mim no saltitão e fomos logo até à terra dos Godos. Mais tarde, no entanto, ela quis que ambos fôssemos até ao seu hospital, na lua do século XXIV. Eu não estava em condiçôes de protestar.
Obrigou-me a tomar um banho escaldante e mandou-me para a cama. Um capacete eletrônico proporcionou-me muitas horas de sono. Porfim, acabaram por me dar roupas lavadas, algo para comer (não reparei o que era) e indicações para chegar ao gabinete dela. Sentada por trás de uma enorme mesa, indicou-me uma cadeira. Nenhum de nós falou durante um ou dois minutos. Fugindo dela, o meu olhar espalhava-se em volta. A gravidade artificial, que mantinha o meu peso como era habitual, não tornava aquele local hospitaleiro. Não por não ser bonito à sua maneira. O ar perfumado cheirava a rosas e a trigo acabado de moer.
A alcatifa era dum violeta-escuro pontilhada com estrelas brilhantes. Cores sutis rodopiavam nas paredes. Uma grande janela, se é que era janela, mostrava a grandeza das montanhas e uma cratera ao longe, o céu negro mas dominado por uma Terra em fase quase cheia. Eu perdi-me na visão daquele azul glorioso, coberto de turbilhões brancos.
- Bem, agente Farness - disse Mendonza lentamente em temporal, a linguagem da Patrulha -, como se sente?
- Confuso, mas acordado - murmurei. - Não. Como um assassino.
- É certo que devia ter deixado aquela criança em paz.
Eu forcei a minha atenção a focar-se nela e respondi:
- Ela não era uma criança. Não naquela sociedade, ou na maior parte das sociedades em toda a história. A relação ajudou muito a conseguir a confiança da comunidade, portanto, a executar a minha missão. Não que o tivesse feito a sangue-frio, acredite-me. Nós estávamos apaixonados.
- Que diz a sua mulher de tudo isto? Ou não lhe falou no assunto?
A minha defesa esgotara-me demais para que me ressentisse com o que poderia ser considerado uma curiosidade excessiva.
- Sim, eu falei-lhe... perguntei-lhe se se importava. Ela pensou nisso e decidiu que não. Lembre-se que passamos a nossa juventude nos anos de 1960 e 1970... Não, não deve ter ouvido falar, mas foi um período de revolução nos costumes sexuais.
Mendoza sorriu tristemente.
- As modas vão e vêm...
- Nós éramos monogâmicos, a minha mulher e eu, mas mais por escolha que por princípio. E repare, eu a visitava com frequência. E a amo. De verdade.
- E é claro que ela achou melhor deixá-lo gozar o seu romance de homem de meia-idade... - contrapôs Mendoza.
Isso doeu.
- Mas não era! Já lhe disse que amava Jorith, a moça goda, eu também a amava... - A dor apertava-me a garganta. - Não havia absolutamente nada que pudesse fazer por ela?
Mendoza abanou a cabeça. As suas mãos descansavam calmamente sobre a mesa. O seu tom suavizou-se.
- Já lhe disse. Lhe explicarei em detalhe, se desejar. Os instrumentos... não interessa o modo como funcionam... mostraram um aneurisma na artéria cerebral anterior. Não fora suficientemente grave para manifestar sintomas, mas o esforço de um parto difícil, longo e primíparo provocou uma ruptura. Não seria bom reanimá-la, depois de uma lesão cerebral tão extensa.
- Não podia ter reparado essa lesão?
- Bem, podíamos ter trazido o corpo para mais tarde, no tempo, reanimado os pulmões e o coração e utilizado a técnica de cIone dos neurônios para produzir uma pessoa que se parecesse com ela, mas que teria de aprender quase tudo do princípio. O meu grupo não faz esse tipo de operações, agente Farness. Não é que nos falte compaixão, é apenas por já termos chamadas demais para ajudar o pessoal da Patrulha e as suas... famílias oficiais. Se começássemos a abrir exceções, ficaríamos inundados. Compreende que nem mesmo assim recuperaria a sua querida. Ela não seria a mesma.
Eu reuni a força de vontade que me restava.
- Suponha que descíamos no tempo, anteriormente à gravidez dela... - disse eu. - Podíamos trazê-la até aqui, tratar dessa artéria, limpar as memórias dessa viagem e devolvê-la ao seu meio... para viver uma vida saudável?
- São os seus anseios falando. A Patrulha não altera os acontecimentos passados. Conserva-os.
Mudei-me ainda mais na minha cadeira. Contornos variáveis tentavam, em vão, confortar-me. Mendoza abrandou.
- Mas não se sinta culpado demais - disse ela. - Você não podia saber disso. Se a moça tivesse casado com outro qualquer, como seguramente teria acontecido, o fim seria o mesmo. Fiquei com a impressão que a fez mais feliz que a maior parte das mulheres da época dela. - O tom dela ganhou força: - Quanto a você, no entanto, inflingiu a si próprio uma ferida que levará longo tempo para sarar. Nunca sarará, a não ser que resista à tentação suprema... continuar a voltar atrás no tempo, até ao tempo em que ela vivia, vê-la, estar com ela. Isso é proibido, sob ameaça de severas penalidades e não só por causa dos riscos que poderá trazer para essa corrente do tempo. Destruiria, destruiria até a sua própria mente. E nós precisamos de você. A sua mulher precisa de você.
- Sim - consegui dizer.
- Bastante difícil será observar os seus descendentes e dela sofrerem o que terão de sofrer. Pergunto a mim própria se não seria melhor transferir-se completamente desse projeto...
- Não. Por favor...
- Por que não? - lançou-me ela.
- Porque... não posso abandoná-los sem mais nada... como se Jorith tivesse vivido e morrido para nada.
- Essa decisão caberá aos seus superiores. No mínimo receberá uma severa reprimenda, tão próximo do buraco negro quanto é possível. Nunca mais poderá interferir ao nível que fez agora - Mendoza fez uma pausa, observou-me, afagou o queixo e murmurou. - A não ser que sejam necessárias certas medidas para estabelecer o equilíbrio... Mas isso não é do meu interesse.
O seu olhar virou-se para a infelicidade espelhada no meu rosto. Subitamente inclinou-se sobre a mesa, fez menção de me estender a mão e disse:
- Ouça bem, CarI Farness. Vão me pedir a opinião quanto ao seu caso. Foi por isso que o trouxe para cá e quero mantê-lo aqui uma semana ou duas... para ficar com uma idéia mais clara. Mas para já, e, meu amigo, acredite, que você não é um caso único em milhões de anos de operações da Patrulha!, fiquei com a impressão de que você é um tipo decente, que talvez tenha errado, mas essencialmente devido à falta de experiência.
- Acontece, aconteceu e acontecerá, vezes e vezes sem conta. O isolamento, apesar das licenças em casa e das ligações com colegas prosaicos como eu. Fascínio, apesar de uma preparação prévia; choque cultural; choque humano. Você presenciou o que para si era infelicidade, pobreza, sordidez, ignorância, tragédia dispensável. Pior que isso, insensibilidade, brutalidade, injustiça, mortícinio arbitrário. Não era possível ver tudo isso e não se sentir magoado. Tinha de provar que os seus godos não eram piores que você próprio, mas apenas diferentes; e tinha de procurar para além dessa diferença a identidade subjacente; e depois tinha de tentar ajudá-los, e se, ao longo do caminho, encontrasse uma porta aberta para algo de querido e maravilhoso...
- Sim, inevitavelmente, os viajantes no tempo, incluindo patrulheiros, formam ligações. Eles têm de agir, e muitas vezes essas ações são de carater íntimo. Geralmente, não representam qualquer ameaça. Que interesse poderia ter a ascendência precisa, obscura e remota até mesmo de uma figura-chave da história? O continuum cede, mas se recupera mais tarde. Se se forçam os limites, bem, então a questão torna-se impossível de responder, sem significado, quer tais ações Infimas tenham modificado o passado ou tenham "sempre" feito parte dele. Não se sinta culpado demais, Farness - concluiu ela, calmamente. - Gostaria também de iniciar a sua recuperação deste choque e da sua dor. Você é um agente de campo da Patrulha do Tempo; não será este o último luto por que passará.

Carl foi fiel à sua palavra. Silenciosamente, apoiado à sua lança, observou os parentes de Jorith colocando na terra e a amontoarem pedras sobre ela. Depois, ele e o pai dela honraram-na com uma festa para a qual foram convidados todos os vizinhos e que durou três dias. Ali ele só falava quando lhe dirigiam a palavra, embora nessa altura respondesse educadamente no seu modo senhorial. Embora não tentasse refrear a alegria de ninguém, a festa foi mais sossegada que a maioria.
Quando os convidados já tinham partido e CarI estava solitariamente à lareira, acompanhado somente por Winnithar, disse ao chefe:
- Amanhã também vou embora. Não me verão novamente com frequência.
- Já fez então aquilo para que veio?
- Não, ainda não.
Winnithar não perguntou o que era. CarI suspirou e acrescentou:
-Tanto quanto Weard o permitir, tenciono proteger a sua casa. Mas pode não ser muito o que poderei fazer.
Ao crepúsculo, despediu-se e partiu. Os nevoeiros gelados pairavam pesadamente, depressa o escondendo da vista dos homens. Nos anos que se seguiram, as lendas foram-se acumulando. Alguns pensavam vislumbrar a sua estatura alta ao anoitecer, entrando no túmulo, como se de uma porta se tratasse. Outros diziam que não; ele levara-a consigo pela mão. As memórias que conservavam dele perderam progressivamente toda a humanidade.
Os avós de Dagobert receberam-no, encontraram-lhe uma ama e criaram-no como seu próprio filho. Apesar do seu nascimento misterioso, Não foi ostracizado nem deixado ao abandono. Em vez disso, as pessoas consideravam a sua amizade digna, porque ele estava desinado a grandes feitos e, por isso, devia aprender a honra e os modos adequados, assim como a perícia do guerreiro, do caçador e do marido. Não era a primeira vez que se falava em filhos dos deuses. Eles tornavam-se heróis, ou mulheres sábias e belas, mas eram apesar de tudo mortais. Três anos mais tarde, CarI visitou-os brevemente. Ao ver o seu filho, murmurou.
- Como ele se parece com a mãe!
- Sim, na aparência - concordou Winnithar -, mas não lhe faltará virilidade, já é bastante evidente, CarI.
Mais ninguém se atrevia agora a tratar o Viajante pelo seu nome - nem pelo nome que supunham ser o correto. A mesa, enquanto bebiam, faziam como ele queria, contando-lhe as histórias e os versos que tinham ouvido ultimamente. Ele perguntava de onde tinham vindo e eles indicavam-lhe um bardo ou dois que ele dizia ir visitar. E visitava, mais tarde, e os autores consideravam-se com sorte por terem atraído a sua atenção. Ele, pelo seu lado, contava coisas de encantar como antes. No entanto, agora demorava-se pouco, e ficava anos sem voltar.
Entretanto Dagobert crescia, um rapaz expedito, alegre, bem-parecido e bem-amado. Contava doze anos quando acompanhou os seus meio irmãos, os dois filhos mais velhos de Winnithar, numa viagem para sul, com uma tripulação de mercadores. Passaram lá o Inverno e voltaram na Primavera transbordando de maravilhas. Sim, as terras longínquas eram terras disponíveis, ricas, extensas, atravessadas pelo rio Dnieper, que fazia o Vístula parecer um riacho. Os vales a norte eram densamente arborizados, mas para sul o campo estendia-se aberto, com pastagens para as manadas e rebanhos, como uma noiva à espera do arado do agricultor. Quem as possuísse, ficaria também no caminho de uma corrente de mercadorias que atravessava os portos do mar Negro.
Por enquanto, poucos godos tinham se mudado para lá. Eram as tribos ocidentais que tinham na realidade percorrido o grande caminho, penetrando nas terras a norte do Danúbio. Estavam junto da fronteira romana, o que significava uma enchente de comércio. Do ponto de vista negativo, se houvesse uma guerra, os Romanos continuavam formidáveis - especialmente se conseguissem pôr termo à sua instabilidade interna.
O Dnieper corria a uma distância confortável do Império. E certo que os Heruís tinham descido do norte e tinham se instalado ao longo da costa Azov: homens selvagens, que indubitavelmente provocariam distúrbios. No entanto, exatamente por serem tão bicho do mato, desprezando o uso de malha ou a luta em fileiras, eram menos temíveis que os Vândalos. Também era verdade que a norte e a oriente deles se escondiam os Hunos, cavaleiros, criadores de gado, parecidos com duendes na sua fealdade, sujeira e sede de sangue. Dizia-se que eram os guerreiros mais temíveis do mundo. Mas nesse caso maior era a glória de os vencer quando atacados e uma aliança goda poderia vencê-los, porque eles estavam divididos em clãs e tribos, com mais probabilidades de lutarem entre si que pilharem casas e cidades.
Dagobert ardia em desejos de partir e os seus irmãos estavam ansiosos. Winnithar aconselhava calma. Era conveniente informarem-se melhor, antes de tomarem uma decisão que seria irrevogável. Além disso, quando chegasse o momento, não deviam ir algumas famílias separadas, presa fácil dos salteadores, mas em força. Parecia que em breve isso se tornaria possível. Porque estes eram os tempos em que Geberic, da tribo dos greutung, estava unindo as tribos dos godos orientais. Algumas ele atacou e submeteu à sua vontade, outras foram convencidas a juntarem-se a ele, quer através de ameaças quer de promessas. Entre estes últimos contavam-se os teuring, que no décimo quinto ano de Dagobert proclamaram Geberic seu rei. Isso queria dizer que lhe pagavam um tributo, não muito pesado, enviavam-lhe homens para lutar por ele quando tal lhes era solicitado, a não ser que fosse a época da sementeira ou da colheita; e acatavam as leis que a Grande Assembléia decretava para todo o reino. Em troca, não tinham de recear os godos que se tivessem juntado, mas obtinham antes o auxilio destes contra inimigos comuns, o comércio floresceu e eles próprios tinham homens na Grande Assembleia anual, para falar e votar por eles.
Dagobert portou-se bem nas guerras do rei. Nos intervalos, viajava para sul, como capitão da guarda dos bandos de vendedores ambulantes. Por isso viajou bastante e aprendeu muito. Não se sabe bem como, as raras visitas de seu pai coincidiam sempre com os períodos em que ele estava em casa. O Viajante dava-lhe muitos presentes e conselhos sábios, mas a comunicação entre eles era um pouco forçada, porque que coisas teria um jovem a dizer a uma pessoa daquelas?
Dagobert dirigia os sacrifícios feitos no santuário que Winnithar construíra no local onde existira a casa em que ele nascera. Winnithar queimara essa casa, para que ele tivesse a casa que ficava por detrás desta. Estranhamente, nesta cerimónia, o Viajante proibira o derramamento de sangue. Apenas os primeiros frutos da terra poderiam servir de oferenda. Espalhou-se a história que as maçãs atiradas ao fogo em frente da pedra se transformavam nas Maçãs da Vida.
Quando Dagobert já era adulto, Winnithar procurou uma boa esposa para ele. Foi Waluburg, uma donzela forte e graciosa, filha de Optaris de Staghorn Dale, que era o segundo homem mais poderoso entre os teuring. O Viajante abençoou o casamento com a sua presença. Estava também presente quando Waluburg deu à luz o seu primeiro filho, um rapaz chamado Tharasmund. Nesse mesmo ano nasceu o primeiro filho do rei Geberic que chegou à idade adulta, Ermanaric.
Waluburg prosperou dando ao seu marido filhos saudáveis. No entanto, Dagobert continuava inquieto, as pessoas murmuravam que era o sangue de seu pai manifestando-se nele, e que ele ouvia o vento no fim do mundo chamando-o sem cessar. Quando voltou da sua viagem seguinte ao sul, trouxe notícias de que um chefe romano chamado Constantino tinha finalmente vencido os seus rivais e se tinha tornado senhor de todo o Império.
Talvez isto tivesse incitado Geberic, apesar da grande atividade que o rei já desenvolvera até à data. Ele passou mais alguns anos unificando os Godos do oriente, depois, chamou-os a juntarem-se para acabar com a peste dos Vândalos.
Nesta altura, Dagobert decidira que iria se mudar para o sul. O Viajante dissera-lhe que isso seria bastante sensato, era esse o destino dos Godos e o melhor era ele ser dos primeiros e dispor de terras por onde escolher. Começou a falar disto aos pequenos e grandes proprietários, pois sabia bem que o seu avô tinha razão ao dizer que deviam ir em força. No entanto, quando a chamada para a guerra chegou, ele não podia, em sua honra, deixar de responder à chamada. Partiu à frente de mais de uma centena de homens.
Foi uma luta violenta, terminando numa batalha que engordou os lobos e os corvos. Ali pereceu o rei vândalo Visimar. Também ali morreram os filhos mais velhos de Winnithar, que esperavam poder partir com Dagobert. Ele sobreviveu, nem sequer gravemente ferido, e ganhou grande fama pela sua bravura. AIguns diziam que o Viajante o protegera no campo de batalha, ferindo com a sua lança os inimigos, mas isso sempre foi negado por Dagobert.
- O meu pai estava lá, sim, para estar comigo na noite antes do último encontro... nada mais. Falamos de muitas coisas e algumas delas bem estranhas. Eu pedi que não me humilhasse lutando em meu lugar, e ele disse que não era essa a vontade de Weard.
O resultado foi os Vândalos serem expulsos, vencidos e obrigados a abandonar as suas terras. Depois de vaguearam de um lado para o outro, para lá do rio Danúbio, durante alguns anos, ainda perigosos mas miseráveis, pediram autorização ao imperador Constantino para se instalarem no seu reino. Nada averso a ter guerreiros frescos defendendo os seus pântanos, deixou-os ir para a Pannonia.
Entretanto, Dagobert deu por si como chefe dos Teuring, através do seu casamento, da sua herança e do nome que conquistara. Demorou algum tempo preparando sua gente e levou-os enfim para sul. Poucos ficaram para trás, tão brilhante era a esperança. Entre os que ficaram contava-se Winnithar e Salvalindis. Quando os carros tinham se afastado, chiando, o Viajante foi ter com estes dois, uma última vez, e foi bondoso para eles, em consideração pelo que se tinha passado e por ela que dormia nas margens do rio Vístula.

Manse Everard foi o oficial que me deu uma ensaboadela devido à minha temeridade e só dificilmente concordou em me deixar continuar nesta missão. Principalmente, resmungou ele, devido aos pedidos de Herbert Ganz, pois não tinha ninguém que me substituísse. Everard tinha as suas razões para se manter afastado. Essas razões acabaram por se tornar evidentes, bem como o fato de ele ter estudado os meus relatórios.
Entre o século IV e o século XX, tinham-se passado dois anos do meu tempo de vida pessoal, desde que perdera Jorith. A minha dor já se atenuara para um único desejo: que ela pudesse ter gozado um pouco mais da vida que tanto amara e tornara tão digna de ser vivida! Exceto às vezes quando se erguia em toda a sua força e me atingia novamente. Com a sua maneira de ser calma, Laurie ajudara-me a aceitar os fatos. Nunca antes compreendera bem até que ponto é que ela era uma pessoa maravilhosa.
Eu estava em casa, de licença, em Nova lorque, em 1932, quando Everard me contactou, pedindo uma outra conferência.
- Apenas algumas perguntas, um par de horas de trabalho - disse ele -, e depois podemos ir passear pela cidade. A sua mulher também, claro. Já alguma vez viram a Lola Montez no seu auge? Tenho bilhetes, para Paris, 1843.
Já era Inverno, naquela época. A neve caía em turbilhões, visível através das janelas do seu apartamento, transformandoo numa caverna de quietude branca.
Ele me deu um copo de grogue e perguntou-me quais eram os meus gostos em matéria de música. Acordamos numa execução de koto, por um tocador medieval japonês, cujo nome as crônicas esqueceram, mas que foi o melhor que alguma vez existiu. As viagens no tempo têm as suas recompensas, assim como as suas exigências.
Everard levou o seu tempo enchendo e acendendo o cachimbo.
- Nunca entregou um relatório sobre a sua relação com Jorith - disse ele num tom quase casual. - Só se descobriu no decurso do inquérito, depois de ter mandado chamar Mendoza. Porquê?
- Era... pessoal - respondi eu. - Não considerei que dissesse respeito a ninguém. Oh, eles nos avisaram em relação a este tipo de coisas na Academia, mas os regulamentos não o proibem concretamente.
Olhando para a sua cabeça escura e inclinada, senti de uma forma estranha que ele já devia ter lido tudo o que eu escreveria no futuro. Ele conhecia os meus futuros pessoais muito melhor que eu próprio - como eu apenas os conheceria depois de passar por eles. Raras vezes é necessário reforçar a regra que proibe um agente de conhecer o seu destino, é das coisas menos desejáveis e que pode acontecer com a maior facilidade.
- Bem, não pretendo repetir a reprimenda que já recebeu - disse Everard. - Na realidade, aqui entre nós, penso que o coordenador Abdullah foi desnecessariamente formal. Os operadores devem usar o seu poder de decisão, ou nunca conseguiriam levar a bom termo as suas missões, e muitos outros estiveram mais perto de se queimar que você. - Ele demorou um minuto acendendo o cachimbo antes de continuar, através do fumo azul: - No entanto, gostaria de lhe fazer algumas perguntas sobre um ou outro detalhe. Mais para observar a sua reação que para investigar bases filosóficas profundas, embora admita que também me sinto curioso. Compreende, com base nisso, talvez lhe possa dar alguns conselhos úteis sobre a forma de proceder. Não sou um cientista, mas tenho andado por muitas épocas históricas, pré-históricas e até mesmo pós-históricas, muitas mesmo.
- Com certeza que andou - concordei com enorme respeito.
- Bem, chega de introduções, vamos ao mais óbvio. No princípio, interferiu numa guerra entre os Godos e os Vândalos. Como justifica isso?
- Respondi a essa pergunta no inquérito, Sr.... Manse. É claro que não matei ninguém, aliás a minha vida nunca esteve em perigo. Ajudei a organizar, coligi informações, inspirei medo no inimigo, andando ali às voltas sobrevoando com antigravidade, projetando ilusões, projetando os raios subsônicos. Na realidade, fazendo-os entrar em pânico, salvei vidas em ambos os lados. Mas o meu principal motivo foi ter gasto muito esforço, esforço da Patrulha, para estabelecer uma base na sociedade que me propunha estudar e os Vândalos ameaçavam destruir essa base.
- Não receou provocar uma mudança nos acontecimentos posteriores?
- Não. Oh, talvez devesse ter pensado mais cuidosamente no assunto e obtido a opinião de peritos, antes de agir. Mas parecia quase um exemplo típico de manual de estudo. Era apenas um ataque em grande escala que os Vândalos tinham montado. Não era referido em lugar algum da história registrada. O resultado, qualquer que ele fosse, era insignificante...exceto para os indivíduos, alguns dos quais eram também importantes para a minha missão, assim como para mim. E quanto à vida desses indivíduos, e à linha de descendentes que eu próprio iniciei, atrás no tempo, bem, são flutuações estatísticas infimas no reservatório genético. Depressa se equilibram.
Everard carregou o sobrolho.
- Está me dando os argumentos habituais, CarI, exatamente o que fez com a comissão de inquérito. Foi ilibado por eles. Mas hoje não se preocupe com isso. O que eu estou tentando instilar-lhe, não no seu cérebro, mas na sua medula, é que a realidade nunca segue bem os livros de estudo, e às vezes não os segue nada mesmo.
- Acredito que começo agora a compreender isso - a minha humildade era genuína. - Nas vidas que seguimos, abaixo no tempo. Não temos o direito de dominar as pessoas, não é verdade?
Everard sorriu, e senti-me em liberdade para saborear um longo gole do meu copo.
- Ótimo. Deixemos as generalidades e entremos nos detalhes do que você está na realidade tentando fazer. Por exemplo, deu aos seus godos coisas que eles nunca teriam sem a sua intervenção. Os presentes físicos não são o problema; eles apodrecerão ou se enferrujarão e depressa desaparecerão. Mas relatos do mundo e histórias sobre culturas estrangeiras.
- Eu tinha de me tornar interessante, não acha? Por que outra razão é que eles haviam de recitar coisas velhas e familiares para eu ouvir?
- Mmm..., claro, claro. Mas repare, o que lhes contou não poderia entrar no seu foclore, alterando o próprio objeto do seu estudo?
Permiti-me um sorriso.
- Não. Neste caso fiz correr previamente um estudo psico-social e utilizei-o como guia. Acontece que as sociedades deste tipo têm memórias coletivas altamente seletivas. Lembre-se de que são analfabetos e vivem num mundo mental em que as maravilhas são comuns. O que eu contei, digamos, acerca dos Romanos apenas acrescentou detalhes à informação que eles já obtinham dos viajantes; e esses detalhes depressa se misturariam com o nível geral dos seus conceitos sobre Roma. Quanto ao material mais exótico, bem, o que era alguém como Cuchulainn senão mais um herói predestinado, como todos os outros sobre os quais eles ouviam histórias? O que era para eles o Império Han senão mais um país fabuloso para lá do horizonte? Os meus ouvintes imediatos ficavam impressionados, mas depois passavam estas histórias a outros, que integravam tudo nas sagas já existentes.
Everard acenou com a cabeça, deu mais umas passas no seu cachimbo e disse abruptamente:
- E quanto a si próprio? Você não é um amontoado de palavras, é uma pessoa concreta e enigmática, que aparece constantemente entre eles. Você se propõe a fazê-lo durante várias gerações. Está montando negócio como deus?
Essa era a pergunta mais difícil, para a qual demorara bastante tempo para me preparar. Deixei que outro gole da minha bebida escorresse pela garganta e me aquecesse o estômago, antes de responder lentamente:
- Sim, receio que sim. Não que fosse essa a minha intenção, nem o meu desejo, mas parece que aconteceu realmente.
Everard mal se mexeu. Preguiçosamente, como um leão, arrastou as palavras:
- E mantém que isso não faz qualquer diferença histórica?
- Mantenho. Por favor, ouça-me. Nunca declarei ser um deus, nem exigi prerrogativas divinas, nem nada no gênero. Nem tenciono fazê-lo. Aconteceu simplesmente. O fato é que apareci sozinho, vestido como uma viajante, mas não como um vadio. Levava uma lança porque é essa a arma que um homem a pé deve ter. Sendo do século XX, sou mais alto que a média dos homens do século IV, mesmo entre os tipos nórdicos. Os meus cabelos e barba são grisalhos. Contei histórias, falei de terras distantes, e, sim, voei no céu e espalhei o pânico entre os inimigos. Não pude evitar. Mas não criei, repito, não criei nenhum deus novo. Correspondia simplesmente a uma imagem que eles já veneravam há muito tempo e, com o correr do tempo, uma ou duas gerações mais tarde, partiram do princípio que eu devia ser ele.
- Qual é o nome dele?
- Wodan, entre os Godos. Relacionado com o Wotan germânico ocidental, o Woden inglês, o Wons frísio, etc. A versão escandinava mais recente é a mais conhecida: Odin.
Fiquei surpreso ao verificar que Everard ficara admirado. É claro que os relatórios que enviava ao ramo guardião da Patrulha eram muito menos detalhados que as notas que estava compilando para Ganz.
- Hum? Odin? Mas ele só tinha um olho e era o patrão dos deuses, o que, segundo eu depreendo, você não era... ou era?
- Não - quão agradável era voltar ao ritmo acadêmico. - Está pensando no Eddic, no Odin dos Vikingues. Mas esse pertence a uma era diferente, séculos mais tarde e umas centenas de quilômetros mais a noroeste. Para os meus Godos, o patrão dos deuses, como você lhe chama, é Tiwaz. Provém diretamente do panteão indoeuropeu, juntamente com os outros Anses, opondo-se às divindades nativas octonianas como os Wanes. Os Romanos identificavam Tiwaz com Marte, porque ele era o deus da guerra, mas era muito mais que isso. Os Romanos pensavam que Donar, a quem os Escandinavos chamavam Thor, devia ser o mesmo que Júpiter, porque controlava o tempo, mas para os Godos, ele era um filho de Tiwaz. O mesmo acontecia com Wodan, que os Romanos identificavam com Mercúrio.
- Então a mitologia evoluiu com o passar dos tempos, não é? - sugeriu Everard.
- Isso mesmo - disse eu. - Tiwaz diluiu-se para Tyr de Asgard. Poucas recordações sobreviveram dele, exceto o fato de ter sido ele quem perdeu uma mão ao prender o Lobo que destruirá o mundo. No entanto, "tyr" como substantivo comum é um sinônimo de "deus" em escandinavo antigo. Entretanto, Wodan, ou Odin, ganhou importância, até se transformar no pai dos outros. Eu penso, embora seja algo que ainda teremos de investigar um dia, eu penso que foi porque os Escandinavos se tornaram um povo extremamente aguerrido. Uma psicopompa, que adquirira ainda traços xamanísticos através da influência finlandesa, era adequada a um culto limitado a guerreiros aristocratas, ele trouxe-os para o Valhalla. Para dizer a verdade, Odin era bastante popular na Dinamarca e talvez até mesmo na Suécia. Na Noruega, e na sua colônia islandesa, Thor impunha-se aos outrod.
- Fascinante - Everard suspirou. - Uma vastidão tão grande de conhecimentos que nenhum de nós viverá o suficiente para apreender na sua totalidade... Bem, mas fale-me da sua figura de Wodan, no século IV, na Europa de Leste.
- Ele ainda tem dois olhos - expliquei -, mas já tem o chapéu, o manto e a lança, que é na realidade um bordão. Veja bem, ele é o Viajante. Foi por isso que os Romanos pensaram que ele devia ser Mercúrio, sob um nome diferente, tal como pensaram que fosse o deus grego Hermes. Tem tudo as suas raízes nas remotas tradições indo-européias. Encontramos indícios destes nos mitos indianos, persas, celtas e eslávicos, mas estes últimos ainda mais pouco registrados. Eventualmente, o meu trabalho fará...
- De qualquer forma, Wodan-Mercúrio-Hermes é o Viajante, porque é o deus do vento. O que resulta no fato de ele se tornar o patrono dos viajantes e mercadores. Devido às suas longas viagens, deve ter aprendido muito, por isso, e da mesma maneira, é associado à sabedoria, poesia... e magia. Esses atributos juntam-se à idéia da cavalgada da morte no vento da noite; juntam-se para o transformar na Psicopompa, o condutor dos mortos para o mundo do Além.
Everard expirou um anel de fumaça. O seu olhar seguiu-o, como se vislumbrasse um símbolo nas suas espirais.
- Associou-se a uma figura bastante poderosa, segundo me parece - disse ele em voz baixa.
- Sim - concordei. - Repito que não era essa a minha intenção. Por acaso até traz infinitas complicações para a minha missão. E é claro que serei extremamente cuidadoso. Mas... é um mito que já existia. Há inumeráveis histórias sobre as visitas de Wodan entre os mortais. A maioria são fábulas, ao passo que algumas outras refletem acontecimentos que realmente aconteceram... mesmo assim, qual é a diferença?
Everard puxou uma fumaça do cachimbo.
- Não sei. Apesar do estudo que fiz sobre este episódio até ao momento, não sei. Talvez nenhuma, nada. E, no entanto... já aprendi a desconfiar dos arquétipos. Têm mais poder que qualquer ciência da história conseguiu até agora medir. E por isso que o tenho chateado com isto, sobre assuntos que deveriam ser óbvios para mim. Mas não são, lá muito no fundo - sacudiu mais que encolheu os ombros. - Bem - resmungou -, esqueçamos a metafísica. Vamos resolver um ou dois assuntos práticos e depois vamos buscar a sua mulher e o meu par e vamos nos divertir.

Durante todo esse dia, a batalha prosseguira violenta. Vezes sem conta os hunos tinham se atirado contra as fileiras godas, como vagas de uma tempestade a irromperem sobre os penhascos. As suas setas escureciam os céus até às lanças se baixarem, as bandeiras desfraldadas ao vendo, a terra tremendo sob o ribombar dos cascos e os cavaleiros atacando.
Lutadores a pé, os godos aguentavam as suas formações. Piques inclinados para a frente, espadas, machados e espadas de lâminas largas brilhavam prontas para a luta, arcos tangiam e voavam pedras de arremesso, cornetas ornejavam. Quando o choque se produzia, gritos roucos e profundos respondiam aos gritos de guerra uivantes dos hunos.
Depois era cortar, apunhalar, arquejar, suar, matar, morrer. Quando os homens caíam, pés e cascos esmagavam costelas e espezinhavam a carne numa massa vermelha. O ferro abatia-se sobre os elmos, ribombando nas cotas de malha, martelando nos escudos de madeira e nos couros endurecidos que serviam de proteção ao peito. Os cavalos relinchavam e gemiam, gargantas perfuradas ou jarretes de tendões cortados. Homens feridos rosnavam e tentavam atacar ou lutar. Raras vezes alguém tinha certeza de quem atingira e de quem o ferira. A loucura inundava-o, dominava-o, rodopiando negra através do seu mundo.
A certa altura, os hunos conseguiram forçar uma linha inimiga. Uivaram a sua alegria, ao esporearem as suas montarias para chaciná-los pela retaguarda. Mas, vinda não se sabe de onde, uma nova tropa goda os atacava, e agora eram eles que estavam encurralados. Poucos escaparam.
Por outro lado, os capitães hunos, que viam uma carga falhar, mandavam tocar à retirada. Aqueles cavaleiros estavam bem treinados, afastavam-se do alcance das flechas e, por um pouco, as hostes respiravam fundo, matavam a sede, cuidavam dos seus feridos, lançando olhares furiosos para o fosso que os separava.
O Sol pôs-se a ocidente, vermelho-sangue num céu esverdeado. A sua luz cintilava sobre o rio e nas asas das aves que se alimentam da carne em decomposição e que sobrevoavam o terreno. As sombras alongavam-se pelas encostas de vegetação prateada, espraiavam-se pelos vales, transformavam grupos de árvores em manchas negras e informes. Uma brisa corria fria através da terra encharcada em sangue coagulado, despenteando o cabelo dos cadáveres que jaziam amontoados, assobiando como que a chamá--los.
Os tambores rufavam. Os Hunos formaram esquadrões. Uma última trombeta soou e eles iniciaram a sua derradeira investida violenta. Embora estivessem extenuados, os godos repeliram-na, dizimando homens às centenas. Dagobert armara bem e depressa a sua armadilha. Quando recebeu as primeiras notícias de um exército invasor - chacinando, violando, saqueando e queimando -, fez apelo à sua gente para que se reunissem sob um estandarte. Não só os teuring, mas também outros colonos o fizeram. Ele atraiu os hunos a esta ravina que descia até ao Dnieper, onde a cavalaria ficava confinada, e só então o corpo principal das suas forças se precipitara pelas encostas de ambos os lados, barrando a retirada.
O seu pequeno escudo redondo ficara feito em tiras. O elmo estava amassado, a cota de malha em farrapos, a espada romba, o corpo era uma chaga de ponta a ponta. Mas apesar disso mantinha-se na vanguarda do centro godo e a sua bandeira ondulava sobre ele. Quando o ataque começou, moveu-se como um gato selvagem.
Um cavalo escoucou enorme. Ele vislumbrou o homem que o montava: baixo mas entroncado, coberto por peles malcheirosas debaixo da escassa armadura que possuía, cabeça rapada com exceção de uma trança, uma barba espessa dividida ao meio e entrelaçada, uma cara com um grande nariz de aspecto hediondo, devido às suas muitas cicatrizes. O huno manejava o machado com uma só mão. Dagobert afastou-se para o lado, enquanto os cascos desciam com estrépito. Ele atacou e aparou a outra arma a caminho. O aço tiniu. Faíscas cruzaram-se no crepúsculo.
Dagobert girou a sua lâmina em redor, caindo sobre a coxa do cavaleiro. Esse golpe teria sido fatal se a arma ainda estivesse afiada. Assim, o sangue espirrou. O huno gemeu e voltou a atacar. Acertou em cheio no elmo do godo. Dagobert cambaleou. Conseguiu firmar-se de novo, mas o seu inimigo desaparecera, sugado pelo furacão da luta. De um outro cavalo, surgido de repente, avançou uma lança. Dagobert, meio confuso, apanhou com ela entre o pescoço e o ombro. O huno viu-o ceder e continuou a fazer pressão no buraco aberto na linha goda. Do solo, Dagobert lançou a sua espada. Atingiu o braço do huno e o fez largar a lança. O companheiro mais próximo de Dagobert acorreu com uma espada de lâmina larga. O huno caiu. O seu corpo foi arrastado, preso a um estribo.
Subitamente, a luta cessara. Vencidos, dominados pelo terror, os inimigos sobreviventes fugiram. Não como uma hoste, mas cada um por si, em debandada.
- Atrás deles - disse ofegante Dagobert do local onde caíra. - Não deixem nenhum escapar-se. Vinguem os nossos mortos, tornem a nossa terra segura... - fraco, deu uma palmada no tornozelo do seu porta-estandarte. O homem levou a bandeira em frente e os godos seguiram-no, matando e matando. Poucos foram, na verdade, os hunos que regressaram para casa.
Dagobert apalpava o pescoço. A ponta entrara pela direita. O sangue escorreu. O troar da guerra afastou-se. Mais perto, ouviam-se os gritos dos aleijados, homens e cavalos, e dos corvos que já voavam baixo. Também estas vozes se dilufram para ele. Os seus olhos procuraram o último raio de sol.
O ar tremeluzia num turbilhão. O Viajante chegara.
Desmontando do seu cavalo feérico, ajoelhou-se no esterco, apalpando com os dedos as feridas do seu filho.
- Pai - sussurrou Dagobert, um gorgulhar através do sangue que lhe enchia a boca.
A angústia invadiu a face que ele sempre recordara austera e indiferente.
- Eu não posso salvá-lo... não me é permitido salvá-lo... eles não deixariam... - murmurou o Viajante.
- Será... que... vencemos?
- Sim. Ficaremos livres dos Hunos por muitos anos. O seu feito...
O godo sorriu.
- Ótimo. Agora leve-me, pai.
CarI apertou Dagobert nos seus braços até a morte chegar e depois ainda durante muito tempo.

- Oh, Laurie!
- Calma, querido. Tinha de ser...
- O meu filho, o meu filho!
- Vem para junto de mim. Não tenha medo de chorar.
- Mas ele era tão jovem, Laurie!
- Um homem adulto, apesar de tudo. Não abandonará os filhos dele. Os seus netos, não é?
- Não, nunca. Mas que posso eu fazer? Diga-me o que posso fazer por eles. Estão condenados, os descendentes de Jorith morrerão. Não posso mudar isso, como poderei ajudá-los?
- Depois pensamos nisso, querido. Agora, descanse, por favor, acalme-se, durma.

Tharamund estava no seu décimo terceiro Inverno quando o seu pai Dagobert pereceu no campo de batalha. Apesar disso, depois de enterrarem o seu líder num túmulo no alto do monte, os teuring aclamaram o rapaz como seu chefe. Era apenas um rapaz, mas promissor, e eles não permitiriam que qualquer outra casa os governasse.
Além disso, depois da batalha nas margens do Dnieper, não esperavam enfrentar perigos nos próximos tempos. Tinham esmagado uma aliança de várias tribos de hunos. Os restantes tão depressa não se atreveriam a atacar os Godos, o mesmo acontecendo com os Heruis. As lutas a travar no futuro ainda estariam provavelmente longe e não seriam em defesa, mas sim em nome do rei Geberic.
Tharasmund teria tempo de crescer e aprender. Além disso, não teria ele os favores e o conselho de Wodan?
A sua mãe, Waluburg, voltou a casar com um homem chamado Ansgar. Ele era-lhe inferior em nobreza, mas rico, capaz e não ambicionava o poder.
Ele e ela governaram bem as suas possessões e deram um boa chefia à sua gente até Tharasmund chegar à maioridade. Se eles ficaram ainda durante algum tempo nesse ano, antes de se afastarem para viver sossegadamente, foi a pedido dele. A inquietação da sua linha manifestava-se também nele e queria liberdade para viajar.
O que foi muito bom, porque nesses tempos, muitas mudanças se deram no mundo. Um chefe deve conhece-las antes de tentar lidar com elas. Roma estava novamente em paz consigo própria, embora, antes de morrer, Constantino tivesse dividido o governo do Império entre o Oriente e o Ocidente. Para centro de governo do Oriente, ele escolhera Bizâncio, dando-lhe o seu próprio nome. Cresceu rapidamente em tamanho e riqueza.
Depois de recontros em que sofreram grandes derrotas, os Visigodos fizeram um tratado com Roma e o comércio floresceu através do rio Danúbio. Constantino proclamara Cristo o único Deus do Estado. Porta-vozes dessa fé viajaram muito e para longe. Os Godos ocidentais aderiam cada vez mais. Os que se mantinham fiéis a Tiwaz e Frija preocupavam-se muito com isso. Não só os deuses antigos poderiam zangar-se e trazer desgraça a um povo mal agradecido, mas também a aceitação do novo deus abria caminho para Constantinopla aumentar o seu poder, sem nunca desembainhar uma espada. Os Cristãos diziam que isso era menos importante que a salvação, além disso, de um ponto de vista mundano, era melhor pertencer ao Império que estar de fora. Com o passar dos anos, o ressentimento cresceu entre as facções.
Longe de tudo isso, os Ostrogodos só lentamente tomaram consciência destes problemas. Os cristãos entre eles eram, na maior parte, escravos trazidos das terras do ocidente. Havia uma igreja em Olbia, mas era para uso dos comerciantes romanos: de madeira, pequena e miserável quando comparada com os templos antigos de mármore, embora o seu interior ecoasse agora algo vazio. No entanto, com o incremento do comércio, os habitantes das terras interiores também começaram a conviver com cristãos, alguns deles padres. Aqui e ali, mulheres livres recebiam o batismo e alguns homens também.
Os teurings não permitiriam tal coisa. Os seus deuses eram bons para eles, assim como para todos os Godos do Oriente. Vastos acres de terras produziam riquezas, bem como as trocas a norte e a sul, e o seu quinhão do tributo pago pelos povos que o rei tinha dominado.
Waluburge Ansgar construíram uma nova casa que seria digna do filho de Dagobert. Erguia-se na margem direita do Dnieper, numa elevação com vista sobre o rio cintilante, o ondular do vento sobre a vegetação e as terras de cultura, os maciços de árvores onde as aves faziam os seus ninhos em bandos que escondiam os céus. Dragões esculpidos erguiam-se sobre os seus frontões, armações douradas de alces e de bisontes sobre as portas; os pilares interiores apresentavam as imagens de deuses- exceto Wodan, para o qual fora reservado um santuário ricamente decorado ali perto. Anexos espalhavam-se em seu redor, bem como casas mais modestas, até a povoação quase poder ser considerada uma aldeia. A vida expandia-se por todo o lado, homens, mulheres, crianças, cavalos, cães, carros, armas, ruídos de conversas, riso, canções, passadas nas pedras do pavimento, martelos, serras, rodas, fogo, juramentos e, de vez enquando, alguém chorando. Uma telheiro junto à água protegia um barco, quando este não andava em viagem, e o desembarcadouro recebia frequentemente embarcações que atravessavam o rio transportando as suas maravilhosas mercadorias.
Heorot, foi o nome que deram à mansão, porque o Viajante, sorrindo tristemente, dissera que era o nome de uma habitação famosa no norte. Ele aparecia com intervalos de alguns anos, apenas por alguns dias de cada vez, para escutar o que havia para escutar.
Tharasmund cresceu mais moreno que seu pai, de cabelos castanhos, mais pesado de ossatura, de feições e de alma. O que não era mau, pensavam os teurings. Deixaram-no queimar os seus desejos de aventura cedo, obtendo conhecimentos ao fazê- lo, depois disso, assentaria e os chefiaria sobriamente. Eles sentiam que iriam necessitar de uma mão segura a dirigi-los. Tinham-lhes chegado histórias de um rei que andava reunindo os Hunos como Geberic já fizera com os Ostrogodos. As notícias que chegavam da pátria mais a norte eram que o filho de Geberic e provável herdeiro, Ermanaric, era um homem cruel e prepotente. Além disso, havia grandes probabilidades de, em breve, a casa real se mudar para o sul, para longe dos pântanos e da humidade, descendo para estas terras soalheiras, onde o grosso da nação estava agora instalado. Os teurings queriam um chefe que defendesse os seus direitos.
A última viagem empreendida por Tharasmund foi quando ele tinha dezessete Invernos e demorou três anos. Levou-o através do mar Negro até à própria Constantinopla. A partir daí, o barco iniciou a viagem de regresso e foram essas as únicas notícias que os seus familiares receberam dele. Mas apesar disso, não se preocuparam - porque o Viajante oferecera-se para acompanhar o seu neto durante toda a viagem. Depois disso, Tharasmund e os seus homens tiveram histórias para alegrar os serões até ao fim das suas vidas. A seguir à sua estada em Nova Roma, maravilhas sobre maravilhas, acontecimentos uns a seguir aos outros, foram por terra, atravessando a província de Moesia, até ao Danúbio. Na sua outra margem, instalaram-se durante um ano entre os Visigodos. O Viajante insistira nisso, dizendo que Tharasmund devia criar amizades entre eles.
E a verdade é que o jovem conheceu Ulrica, uma filha do rei Athanaric. Esse homem poderoso ainda venerava os velhos deuses e o Viajante também já aparecera algumas vezes no seu reino. Por isso, alegrara-se por formar uma aliança com uma casa de chefes do leste. Quando aos jovens, davam-se bem. Já nessa época Ulrica era altiva e dura, mas não havia dúvidas que dirigiria bem a sua casa, daria à luz crianças saudáveis e apoiaria o marido nos seus empreendimentos. Chegara-se a um acordo: Tharamund seguiria para casa, presentes e garantias seriam trocadas entre ambos os lados e daí a cerca de um ano a noiva encontrá-lo.
O Viajante ficou apenas uma noite em Heorot, antes de se despedir. Dele, Tharasmund e os outros relacionaram pouco mais que o fato de os orientar sabiamente, embora desaparecesse frequentemente por longos períodos. Ele era muito estranho para ser assunto de falatório. No entanto, uma vez, anos mais tarde, quando Erelieva estava deitada a seu lado, Tharasmund dissera-lhe:
- Eu abri-lhe o meu coração. Era o que ele queria e escutou-me atentamente, e, não sei bem como, era como se o amor e o sofrimento vivessem lado a lado por trás daqueles olhos.

Ao contrário da maior parte dos agentes da Patrulha com uma certa patente, Herbert Ganz não abandonara o seu ambiente de origem. Já de meia-idade quando fora recrutado, e solteirão empedernido, gostava de ser o Herr Prof. da Universidade de Friedrich Wilhelm, em Berlim. Regra geral, voltava das suas viagens no tempo cinco minutos depois da sua partida para retomar uma existência acadêmica ordenada e levemente pomposa. Para dizer a verdade, os seus saltos eram quase sempre para escritórios soberbamente equipados, séculos acima no tempo, e praticamente nunca para os ambientes germânicos medievais, que constituíam o seu campo de investigação.
- São inapropriados para um velho e pacifico sábio - dissera ele quando lhe perguntara o motivo. - E vice-versa. Faria uma figura muito triste, seria desprezado, levantaria suspeitas, talvez até fosse morto. Não, a minha utilidade reside no estudo, organização, análise e raciocínio. Deixem-me gozar a minha vida nestas décadas que me agradam. Depressa acabarão. Sim, claro, antes da civilização iniciar a sua autodestruição a sério, necessariamente que já terei envelhecido a minha aparência, até por fim simular a minha própria morte... E depois, que fazer? Quem sabe? Terei de procurar. Talvez devesse simplesmente começar de novo em outro lugar: exempli gratia, Bon depois de Napoleão ou Heidelberg.
Ele sentia-se na obrigação de oferecer hospitalidade aos operadores de campo, quando eles faziam os seus relatórios pessoalmente. Pela quinta vez, na minha vida até ao momento, ele e eu seguimos uma refeição a meio do dia verdadeiramente gargantuana de um passeio ao longo de Unter den Linden. Regressamos a sua casa num crepúsculo estival. As árvores respiravam fragâncias, carros puxados a cavalos faziam ouvir o barulho dos seus cascos no empedrado, cavalheiros cumprimentavam as senhoras suas conhecidas, com quem se cruzavam, com um levantar do chapéu alto, um rouxinol cantava num roseiral. Ocasionalmente, via-se passar um oficial prussiano fardado, mas os seus ombros não carregavam obviamente o peso do futuro.
A casa era espaçosa, embora os livros e o brique-a-braque tendessem a esconder esse fato. Ganz levou-me para a biblioteca e chamou a criada, que entrou com um sussurrar do vestido negro, de touca branca e avental.
- Pode trazer-nos café e bolos - ordenou ele. - E, sim, ponha no tabuleiro uma garrafa de conhaque com copos. Depois, não devemos de forma alguma ser perturbados.
Quando ela já saíra para executar as suas ordens, ele sentou-se pesada e confortavelmente no sofá.
- Emma é uma boa moça - comentou enquanto polia o seu pince-nez. Os médicos da Patrulha poderiam facilmente corrigir-lhe o globo ocular, mas ele teria dificuldade em explicar a razão por que já não precisava de lentes e declarava que não lhe fazia diferença alguma. - De uma família rural pobre, ach, como eles se reproduzem rapidamente, mas a natureza da vida é o fato de transbordar, não é verdade? Interesso-me por ela. Um interesse meramente avuncular, asseguro-lhe. Ela deixará a minha casa daqui a três anos, para casar com um jovem muito simpático. Providenciarei um pequeno dote sob a forma de um presente de casamento e serei padrinho do seu primeiro filho. - Com a face rubicunda e bem disposta atravessada pela tristeza acrescentou:
- Morre de tuberculose aos quarenta e um anos de idade. - Passou a mão pela careca. - Não me é permitido fazer nada por ela a não ser dar-lhe alguns medicamentos que a aliviem. Nós, os da Patrulha, não nos atrevemos a chorar a morte de ninguém: seguramente nunca antes do fato consumado. Deveria guardar a piedade e sentido de culpa para os meus pobres amigos e colegas involuntários, os irmãos Grimm. A vida de Emma será melhor que a da maior parte da humanidade.
Não respondi. Garantida a nossa privacidade, fiquei mais absorvido do que seria necessário na montagem do aparelho que trouxera na minha bagagem. (Aqui, fazia-me passar por um cientista britânico de visita. Treinara o meu sotaque. Um americano teria sido perseguido com perguntas demais sobre peles-vermelhas e escravatura.)
Enquanto visitava os Visigodos em companhia de Tharasmund, conhecêramos Ulfilas. Eu registrara esse acontecimento, como fazia com todos os de particular interesse. Seguramente que Ganz desejaria dar uma olhadela no principal missionário de Constantinopla, o apóstolo dos Godos, cujas traduções da Bíblia eram virtualmente a única fonte de informação sobre as suas línguas, que sobrevivera até à descoberta das viagens no tempo.
O holograma apareceu subitamente. De repente, a sala-candelabro, prateleiras, mobiliário moderno, que eu conhecia com o nome de linha império, bustos, desenhos emoldurados e quadros a óleo, louça de barro, papel de parede com motivos chineses, cortinados castanhos - transformou-se nas trevas misteriosas que rodeavam uma fogueira ao ar livre. No entanto, eu não estava lá em corpo: porque era para mim que eu olhava e ele era o Viajante. (Os gravadores são minúsculos, operando a nível molecular, auto-regulados quanto à obtenção de estímulos sensoriais completos. O meu, um dos vários que levava sempre comigo, estava escondido na lança que deixara encostada em uma árvore. Desejando encontrar Ulfilas informalmente, fiz que o percurso do meu grupo interceptasse o dele, numa altura em que ambos viajávamos pelo que os Romanos chamavam a Dácia, antes de se terem retirado de lá, e que no meu tempo se chamava Romênia. Depois de promessas mútuas de intenções pacificas, os meus ostrogodos e os seus bizantinos montaram as tendas e partilharam uma refeição.)
As árvores emparedavam aquele prado, no meio da floresta, rodeado pela penumbra. a fumaça das fogueiras subia até esconder as estrelas. Um mocho piou, vezes sem conta. A noite ainda estava agradável, mas a neblina já começara a refrescar as ervas. Os homens sentavam-se de pernas cruzadas perto do fogo, com exceção de Ulfilas e eu. Ele ficara a pé até tarde nas suas devoções e eu não podia me deixar dominar em frente dos outros.
Eles olhavam fixamente, escutavam, fazendo furtivamente o sinal do Machado ou da Cruz.
Apesar do seu nome - Wulfila, originalmente - era baixo, entroncado, de nariz carnudo, saía aos seus avós da Capadócia, levados na incursão dos Godos de 264. De acordo com o tratado de 332, ele tinha ido para Constantinopla, um misto de refém e de enviado. Acabou por voltar para os Visigodos como missionário. O credo que pregava não era o do Concílio de Nice, mas sim a doutrina austera de Arius, que fora lá rejeitada como heresia. No entanto, movia-se na vanguarda da Cristandade, o amanhã.
- Não, não devíamos apenas trocar histórias das nossas viagens - dizia ele. - Como podem elas ser separadas das nossas fés? - O seu tom de voz era suave e razoável, mas penetrante era o olhar que me dirigia. - Você não é um homem vulgar, Carl. Isso vejo eu claramente em si, e nos olhos dos seus seguidores. Que ninguém se ofenda se eu me perguntar se será totalmente humano.
- Não sou nenhum demônio maléfico - respondi. Seria realmente eu quem se inclinava sobre ele, esguio, cinzento, embuçado num manto, condenado e resignado à presciência, aquela figura ali no meio da escuridão e do vento? Nesta noite, mil e quinhentos anos depois daquela noite, sentia-me como se fosse realmente uma outra pessoa, realmente Wodan, o eternamente sem lar.
O fervor de Ulfilas flamejava na sua direção:
- Então não receará o debate?
- Para quê, padre? Sabe bem que os Godos não são seguidores do Livro. Eles não se importariam de fazer oferendas a Cristo nas suas terras, fazem-no até frequentemente. Mas vocês nunca fazem oferendas a Tiwaz nas suas terras.
- Não, porque Deus proibiu que nos curvássemos diante de outro que não ele. Só Deus, o Pai, pode ser venerado. Ao Filho, que lhe seja dada a devida reverência, sim, mas a natureza de Cristo...- e Ulfilas estava lançado num sermão. Não era uma arenga. Ele não era parvo. Falava calmamente, com sensatez, até com boa disposição. Não hesitava em empregar imagética pagã, nem tentou fazer mais que lançar uma base de idéias antes de se lançar na conversão por outras paragens. Vi homens do meu grupo acenarem com a cabeça pensativamente. O arianismo adaptava-se melhor às suas tradições e temperamento que um catolicismo que eles desconheciam por completo. Seria a forma do cristianismo que todos os Godos acabariam por tomar; e daí nasceriam séculos de convulsões.
Eu não me portara muito bem. Mas como poderia honestamente defender um ateísmo no qual eu próprio não acreditava e que eu sabia estar em vias de desaparecer? Para falar verdade, como podia eu honestamente tomar o partido de Cristo?
Os meus olhos, de 1858, procuraram Tharasmund. Nas suas feições jovens transparecia muito dos adorados traços de Jorith.
- E como vai a pesquisa literária? - perguntou Ganz quando o filme acabou.
- Bastante bem. - Refugiei-me no relato dos fatos. - Novos poemas; versos que parecem definitivamente anteriores a versos de Widsith e Walthere. Para ser específico, desde a batalha de Dnieper... - Isso magoava-me muito, mas puxei o livro de apontamentos e registros e atirei-me para a frente.

No mesmo ano em que Tharasmund regressou a Heorot e assumiu a chefia dos teurings, Geberic morreu na casa de seus pais, no auge da Alta Tatra. Seu filho, Ermanaric, sucedeu-lhe como rei dos Ostrogodos.
No fim do ano seguinte, Ulrica, filha do visigodo Athanaric, juntou-se ao seu prometido Tharasmund, à cabeça de um grande e rico séquito. O casamento deles foi uma festa recordada durante muito tempo, uma semana em que a comida, bebida, prendas, jogos, divertimentos e fanfarronices ilimitadas foram partilhadas por centenas de convidados. Porque fora convidado pelo seu neto, o Viajante consagrou o par e, à luz das
tochas, conduziu a noiva ao ninho onde o noivo a aguardava. Houve quem murmurasse, não da tribo dos teurings, que Tharasmund parecia muito ufano, como se desejasse ser mais que o homem leal ao seu rei.
Pouco depois do seu casamento, viu-se obrigado a afastar-se. Os Heruís avançavam e os pântanos estavam em chamas. Derrotá-los e fazê-los recuar, arrasando parte do seu território, foi trabalho para todo um Inverno. Imediatamente a seguir Ermanaric mandou palavra que queria que todos os chefes de tribo se reunissem com ele na terra natal. O que valeu a pena. Foram elaborados planos de conquista e decididas coisas que precisavam ser feitas. Ermanaric mudou a sua corte para sul, onde residia agora a maioria do seu povo. Para além de muitos dos seus greutungs, os chefes tribais e os seus guerreiros seguiram-no. Foi uma viagem esplêndida, na qual os bardos esbanjaram profusamente palavras que o Viajante depressa ouviu cantadas.
Por isso, Ulrica demorou em ficar grávida. No entanto, depois de Tharasmund se voltar a encontrar com ela, depressa lhe encheu o ventre e muitíssimo bem. Ela disse às suas mulheres que era evidente que seria uma criança macho, que viveria para se tornar tão celebrada como os seus antepassados.
Deu à luz numa noite de Inverno - alguns dizem que com facilidade, outros dizem que ignorando as dores. Heorot congratulou-se. O pai mandou espalhar pela vizinhança que daria uma festa para dar o nome à criança.
O que constituía uma pausa bem-vinda na tristeza da estação, acrescentada às festas de Yuletide. As pessoas dirigiam-se para lá. Entre eles havia homens que pensavam que seria uma oportunidade de trocar algumas palavras com Tharasmund, em particular. Tinham queixas contra o rei Ermanaric.
O salão estava repleto de ramos de sempre-viva, tapeçarias, metais polidos, vidros romanos. Embora o dia ainda reinasse sobre os campos cobertos de neve, as luzes já iluminavam o longo salão. Vestidos com as suas melhores roupas, os agricultores mais importantes entre os teurings e suas mulheres sentavam-se nos lugares de honra, rodeando o berço da criança. Do seu lado, Ulrica levantou nas mãos água do poço de Frija. Ninguém alguma vez assistira a tal coisa no passado, exceto para o primeiro nascido de uma casa real.
- Encontramo-nos reunidos... - Tharasmund interrompeu-se. Todos os olhos se dirigiram para a porta e todos sustiveram a respiração como uma vaga. - Oh, eu tinha esperança! Seja bem-vindo!
Com a espada lentamente tocando no chão, o Viajante aproximou-se. Inclinou-se, cinzento, sobre a criança.
- Meu senhor, nos dará a honra de lhe dar o nome? - perguntou Tharasmund.
- E qual será ele?
- Dos parentes de sua mãe, para nos ligar mais estreitamente aos Godos do Ocidente, Hathawulf.
O Viajante ficou imóvel por uns momentos, que se arrastaram. Por fim, levantou a cabeça. A aba do chapéu ensombrecia-lhe aface.
- Hathawulf... - disse ele em voz baixa, como para si próprio. - Oh, sim. Agora compreendo. - Um pouco mais alto continuou: - Essa é a vontade de Weard. Bem, assim seja. Dar-lhe-ei o nome.

Saí da base de Nova lorque para o frio e a tristeza de Dezembro, e fui até à parte alta da cidade a pé. As luzes e as montras atiravam-me com o Natal à cara, mas os compradores não eram muitos. Nas esquinas, ao vento, músicos do Exército de Salvação baliam ou os Pais Natal tocavam sinos nas suas caixas e esmolas, enquanto vendedores tristes ofereciam isto e aquilo. "Entre os Godos não havia uma Depressão", pensei. Mas os Godos tinham menos a perder. Do ponto de vista material, pelo menos. Espiritualmente - quem poderia dizer? Seguramente não eu, não obstante a quantidade de história que já pudera observar ou ainda viria a observar.
Laurie ouviu-me chegar ao patamar e escancarou a porta do nosso apartamento. Já tínhamos anteriormente marcado a data para o meu último regresso, depois de ela regressar de Chicago, onde tinha uma exposição.
Abraçou-me com toda a força.
Ao entrarmos em casa, a sua alegria esmoreceu. Paramos no meio da sala de estar. Ela tomou as minhas mãos nas suas, olhou-me mudamente por uns instantes e perguntou, em voz baixa:
- Que é que te magoou... nesta viagem?
- Nada que não devesse ter previsto - respondi, ouvindo a minha voz tão sombria como a minha alma. - Hum, como correu a exposição?
- Bem - respondeu ela eficientemente. - Na realidade, dois quadros já foram vendidos por uma bela soma. - A preocupação que sentia manifestou-se: - Com esse ponto resolvido, sentemo-nos. Vou buscar uma bebida. Meu Deus, parece que levou uma surra!
- Estou bem. Não é preciso me paparicar.
- Talvez sinta necessidade de fazer. Nunca pensou nisso?
Laurie empurrou-me para o meu cadeirão habitual. Deixei-me cair nele e olhei para a janela. Luzes longínquas projetavam um clarão sobre o peitoril, aos pés da noite. O rádio estava sintonizado para um programa de canções de Natal.
Oh, pequena cidade de Belém...
- Tire os sapatos - aconselhou Laurie da cozinha.
Foi o que fiz, e pareceu-me que só nessa altura é que chegara a casa, como um godo a desapertar o cinto da sua espada. Ela trouxe um par de uísques escoceses com limão e roçou os lábios contra a minha fronte antes de se instalar na cadeira em frente.
- Bem-vindo - disse ela. - É sempre bem-vindo. - Brindamos com os copos levantados e bebemos.
Ela esperou calmamente que eu estivesse preparado. Eu contei num turbilhão:
- Nasceu Hamther.
- Quem?
- Hamther. Ele e o seu irmão Sorli morreram tentando vingar a irmã de ambos.
- Eu sei - murmurou ela. - Oh, Carl, meu querido.
- Primeiro filho de Tharasmund e Ulrica. O verdadeiro nome é Hathawulf, mas é fácil ver como evoluiu para Hamther, à medida que a história se espalhava para o norte ao longo dos séculos. E querem chamar Solbern ao próximo filho. Os tempos coincidem também. Serão homens jovens... terão sido... quando... - não consegui continuar a falar.
Ela inclinou-se para mim apenas o tempo suficiente para o toque da sua mão alcançar o meu consciente. Depois, com voz severa, ela disse:
- Não tem de continuar a passar por isto. Não é verdade, CarI?
- Quê? - O espanto fez-me deixar de sofrer por uns momentos. - Claro que tenho. É o meu trabalho, o meu dever.
- O seu trabalho é seguir o que as pessoas puseram em versos e as histórias que correm. Não o que eles fizeram na realidade. Salte para uns tempos depois, querido. Deixa... que Hathawulf já esteja morto quando voltar.
- Não!
Compreendi que gritara, respirei fundo e bebi um gole reconfortante, obriguei-me a olhá-la nos olhos e a dizer controladamente:
- Já pensei nisso. Acredite eu já pensei. E não posso. Não posso abandoná-los!
- Também não pode ajudá-los, tão pouco. Tudo está predestinado.
- Nós não sabemos o que acontecerá... terá acontecido. Ou como eu poderei... Não, Laurie, por favor, não diga mais nada sobre isso.
Ela suspirou.
- Bem, compreendo. Tem estado com eles há várias gerações, enquanto cresciam, viviam, sofriam e morriam, mas para você não foi assim tanto tempo... Para você... - E isso ela não disse, Jorith é uma memória muito recente. - Sim, faça o que tem de fazer, CarI, enquanto o tiver de fazer.
Eu nem tinha palavras, porque sentia a dor dela. Ela sorriu fracamente.
- No entanto, agora está de licença! - disse. - Põe de lado o seu trabalho. Fui hoje às compras e trouxe uma pequena árvore de Natal. Que diz de decorá-la esta noite, depois de preparar um jantar de verdadeiro epicurista?
Paz na terra, aos homens de boa-vontade, Dos Céus sempre gracioso Rei...

Athanaric, rei dos Godos do Ocidente, odiava Cristo. Além de se agarrar aos deuses de seus pais, temia a Igreja como agente insidioso do Império. Se os deixassem corroer o tempo suficiente, dizia ele, as pessoas acabariam por se ver a dobrar o joelho perante os senhores romanos. Por isso incitava os homens contra ele, repelia os parentes de cristãos assassinados quando procuravam asilo e por último forçou a aprovação de leis na Grande Assembléia que os punham à mercê do extermínio em grande escala, assim que alguns acontecimentos fizessem aquecer os ânimos. Ou assim o pensava. Pela sua parte, os godos batizados, que nessa época já não eram poucos, reuniram-se e falaram em deixar que o Senhor Deus das Hostes decidisse o desfecho dos acontecimentos.
O bispo Ulfilas considerou-os insensatos. Mártires tornavam-se santos, concordava ele, mas era o corpo dos fiéis que conservava a Palavra viva sobre a Terra. Ele pediu e obteve autorização do imperador Constantino para o seu rebanho se mudar para a Moesia. Conduzindo-os na travessia do Danúbio, fez que se instalassem nas montanhas de Haemus. Aí ficaram e tornaram-se um grupo pacifico de pastores e agricultores. Quando estas notícias chegaram a Heorot, Ulrica riu bem alto.
- Então o meu pai conseguiu livrar-se deles!
Mas alegrou-se cedo demais. Porque nos trinta anos seguintes ou mais, Ulfilas continuou a trabalhar na sua vinha. Nem todos os visigodos cristãos o tinham seguido para sul. Alguns ficaram, entre eles chefes suficientemente fortes para se protegerem a si próprios e à sua gente. Estes recebiam missionários, cujo trabalho produzia frutos. As perseguições de Athanaric levaram os Cristãos a procurar um chefe para si próprios. Encontraram um em Frithigern, também da casa real. Embora nunca se tivesse chegado a guerra aberta entre as facções, havia choques constantes. Mais jovem, e em breve mais rico que o seu rival por ser preferido pelos comerciantes do Império, Frithigern levou muitos godos do ocidente a juntarem-se à Igreja nos anos que se seguiram, meramente por parecer ser o melhor e mais promissor caminho a seguir.
Isso pouco afetou os Ostrogodos. O número de cristãos entre eles crescia, mas lentamente e sem causar problemas indevidos. O rei Ermanaric não se ralava absolutamente nada com deuses de qualquer espécie, nem com o outro mundo. Estava muito ocupado apanhando tudo o que podia deste.
As suas guerras cobriam a Europa oriental de um lado ao outro. Em campanhas que duraram várias estações, venceu os Heruís. Os que não se submeteram, deslocaram-se para se juntar às tribos ocidentais com o mesmo nome. Aestii e Vendi eram presas mais fáceis para Ermanaric. Insaciável, levou os seus exércitos para norte, para além das terras que seu pai tornara tributárias. No fim, uma ampla zona desde o rio Elba até a foz do Dnieper reconheceu-o como seu senhor.
Nestas lides, Tharasmund ganhou nome e saques de guerra. No entanto, não gostava da crueldade do rei. Acontecia frequentemente nas assembléias levantar-se em defesa não só dos direitos da sua própria tribo, mas também dos de outras, em nome dos direitos antigos. Então, Ermanaric via-se obrigado a recuar, embora de mau humor. Os teurings eram ainda muito poderosos, ou ele ainda não era suficientemente poderoso para antagonizá-los. E ainda mais certo que muitos godos receariam levantar armas contra uma casa, à qual o estranho antepassado ainda fazia visitas de tempos em tempos. O Viajante estava presente quando deram o nome à terceira criança de Tharasmund e Ulrica, Solbern. O segundo morrera no berço, mas Solbern, assim como o seu irmão, cresceu forte e bonito. O quarto filho foi uma menina, a quem chamaram Swanhild. Também para ela o Viajante apareceu, embora por pouco tempo, e a partir daí não foi visto durante anos. Swanhild tornou-se muito bela e tinha uma natureza doce e alegre. Ulrica deu à luz mais três filhos. Foram nascimentos muito espaçados e nenhuma das crianças viveu muito tempo. Tharasmund passava a maior parte do tempo longe de casa, lutando, comerciando, aconselhando-se com homens importantes, dirigindo os seus teurings nos negócios comuns. Ao regressar, dormia geralmente com Erelieva, a mulher que tomara para si pouco tempo depois do nascimento de Swanhild.
Ela não era nem escrava nem de baixa linhagem, sendo filha de um agricultor bem sucedido. Na realidade, pelo lado materno, descendia também de Winnithar e Salvalindis. Tharamund conheceu-a nas suas visitas entre os homens das tribos, em que era seu hábito, quando andava por fora, ouvir os problemas que os preocupavam. Ele prolongou a sua estada naquela casa e eles andavam bastante tempo juntos. Mais tarde enviou mensageiros para lhe perguntarem se aceitaria partir com ele. Eles levaram ricos presentes para os pais, bem como promessas de honrarias para ela e ligação entre as duas famflias. Era uma oferta dificil de recusar e a moça desejava-o ardentemente, por isso, em breve partiu com os homens de Tharasmund.
Ele cumpriu a sua palavra e tratou-a com todo o carinho. Quando ela deu à luz um filho, Alawin, deu uma festa tão esplendorosa como fizera com Hathawulf e Solbern. Ela teve poucos filhos a seguir e todos eles foram levados pela doença em tenra idade, mas não ficou gostando menos dela por isso.
Ulrica tornou-se amarga. Não era por Tharasmund manter outra mulher. A maioria dos homens com meios para isso faziam-no, e ele ja mais que cumprira a sua parte. O que irritava Ulrica era a importância que ele dava a Erelieva, segunda, logo a seguir a si própria, no lar e em primeiro lugar no seu coração. Era orgulhosa demais para provocar uma luta que tinha certeza de perder, mas os seus sentimentos eram óbvios. Em relação a Tharasmund tornou-se fria, mesmo quando ele procurava a sua cama. O que resultava em que ele raramente o fizesse, e unicamente com esperanças de novos descendentes.
Durante as suas longas ausências, Ulrica deu-se ao trabalho de troçar de Erelieva e de dizer coisas cortantes acerca dela. A mulher mais jovem corava, mas suportava tudo calmamente. Já conquistara muitos amigos. Foi Ulrica, a prepotente, que começou a ficar isolada. Portanto, dava muita atenção aos seus filhos, eles cresceram estreitamente ligados a ela.
No geral, eram rapazes espertos, rápidos a aprender tudo o que um homem necessitava, recebidos com agrado em todo o lado. Eram pouco parecidos, Hathawulf era mais fogoso, Solbern mais refletido, mas ligados por laços de ternura. Quanto à irmã, Swanhild, todos os teurings - Erelieva e Alawin incluldos - a amavam.
Durante esse período, passavam-se anos entre as visitas do Viajante e mesmo então eram muito curtas. O que fez que as pessoas ainda o temessem mais. Quando a sua forma inconfundível aparecia caminhando sobre os montes, os homens transmitiam um aviso através das cornetas, e de Heorot partiam cavaleiros para saudá-lo e a escoltá-lo. Ele estava ainda mais calmo que antes.
Era como se uma mágoa secreta pesasse sobre ele, embora ninguém se atrevesse a fazer perguntas. Essa mágoa era mais evidente sempre que Swanhild passava com o seu encanto em botão, ou aparecia orgulhosa e trêmula quando a sua mãe lhe permitia levar vinho aos convidados, ou quando se sentava entre as crianças a seus pés, enquanto ele contava histórias e ditos cheios de sabedoria. Uma vez murmurou ao pai dela:
- Ela é tão parecida com a sua bisavó...
O guerreiro audaz estremeceu. "Há quanto tempo é que essa mulher jazia morta?"
Numa visita anterior, o Viajante ficara surpreso. Desde a sua última passagem, Erelieva viera para Heorot e tivera um filho. Timidamente, ela mostrou o bebê ao antepassado. Ele permaneceu silencioso durante um tempo até perguntar:
- Como se chama?
- Alawin, senhor - respondeu ela.
- Alawin! - O Viajante levou a mão à testa. - Alawin?- E murmurou: - Mas você é Erelieva. Erelieva... Erp... sim, talvez seja assim que será recordada, minha querida! - Ninguém compreendeu o que ele queria dizer.
Os anos passaram. Durante esses anos o poder do rei Ermanaric aumentou. Bem como a sua ganância e crueldade.
Quando ele e Tharasmund estavam no seu quadragésimo Inverno, o Viajante voltou a aparecer. Foram ter com ele com expressões tristes e parcos de palavras. Heorot estava sendo inundada por homens armados. Tharasmund saudou o convidado com uma alegria desanimada.
- Antepassado e senhor, veio em nosso auxflio? Como quando expulsou os Vândalos da antiga terra dos Godos?
O Viajante ficou imóvel, como se fosse uma escultura em pedra.
- O melhor é contarem-me desde o principio qual é o problema - acabou ele por dizer.
- Para que tornemos as coisas mais claras nas nossas cabeças? Mas está tudo claro. Bem... seja feita a sua vontade. -Tharasmund ponderou. - Permita-me que chame mais dois.
Estes dois eram um par estranho. Liuderis, forte e grisalho, era o homem de maior confiança do chefe. Servia como mordomo das terras de Tharasmund e como capitão dos guerreiros, quando Tharasmund estava ausente. O segundo era um jovem ruivo de quinze anos, sem barba mas robusto, com uma raiva imprópria dos seus anos transbordando de olhos verdes. Tharasmund apresentou-se como Randwar, filho de Guthric, não um teuring, mas um greutung.
Os quatro retiraram-se para uma sala onde podiam falar sem serem escutados. Um curto dia de Inverno estava no seu fim. Havia lamparinas para dar luz e uma braseira para aquecer, embora os homens se sentassem envoltos em peles e os seus bafos fumassem brancos através da penumbra. Era um quarto ricamente mobilado, com cadeiras romanas e uma mesa com embutidos de madre-pérola. Havia tapeçarias penduradas nas paredes e as portas das das janelas estavam esculpidas. Criados tinham trazido um jarro de vinho e copos de vidro por onde beber. Sons da vida em redor repercutiam-se através de um assoalho de madeira de carvalho. O filho e neto do Viajante tinham prosperado muito ao longo dos tempos.
No entanto, Tharasmund tinha uma expressão zangada, remexia-se no seu assento, corria os dedos por entre caracóis castanhos mal cuidados e por entre uma barba espessa, antes de se voltar para o seu visitante e dizer em voz áspera:
- Vamos a cavalo encontrar com o rei, uns quinhentos fortes e valorosos. A sua última afronta é mais que qualquer um pode suportar. Exigiremos justiça para os chacinados, ou então o galo vermelho cantará no seu telhado.
Ele queria com isso significar fogo: revolta, guerra de godo contra godo, derrota e morte. Ninguém podia dizer se o rosto do Viajante se alterara. As sombras tremeram, no espaço entre eles, quando as lamparinas tremeluziram e a escuridão alastrou.
- Contem-me o que ele fez - disse ele.
Tharasmund acenou rigidamente para Randwar.
- Conte-lhe você, rapaz, o que nos contou.
O jovem engoliu em seco. A fúria ergueu-se através da timidez que sentia na presença dele. Bateu com o punho no joelho, uma e outra vez, enquanto relatava em voz áspera:
- Saiba, meu senhor, embora pense que já sabe, que o rei Ermanaric tinha dois sobrinhos, Embrica e Fritla. Eram filhos de um seu irmão, Aiulf, que caiu na guerra contra os Anglos no norte. Embrica e Fritla sempre foram grandes guerreiros. Aqui no sul, há dois anos, lideraram uma tropa para leste contra os aliados alânicos dos Hunos: Regressaram a casa com um rico saque, pois pilharam um local onde os Hunos juntavam os tributos de muitas regiões. Ermanaric ouvir falar disso e declarou que lhe pertencia a ele, como rei. Os sobrinhos responderam que não, pois tinham realizado aquela incursão por sua própria iniciativa. O rei pediu-lhes que fossem ter com ele para discutirem o assunto. Foi o que fizeram, mas primeiro esconderam o tesouro. Embora tivesse garantido a segurança deles, Ermanaric prendeu-os. Quando se recusaram a revelar-lhe o lugar onde estava escondido o tesouro, primeiro mandou torturá-los e depois matar. A seguir mandou homens inspecionar as suas terras em busca do tesouro. Eles falharam na sua missão, mas provocaram estragos imensos por todas as redondezas, queimaram as casas dos filhos de Aiulf, mataram as suas famílias, tudo isto para dar uma lição de obediência, segundo ele disse. Meu senhor - gritou Randwar -, acha que isto foi justo? É frequentemente a forma de proceder dos reis - o tom de voz do Viajante parecia uma lâmina de aço.
- Qual é a sua parte neste assunto?
- O meu... meu pai era também filho de Aiulf, morreu jovem. O meu tio Embrica e a sua mulher criaram-me. Eu estava fora numa longa caçada. Quando voltei, a casa era um monte de cinzas. As pessoas contaram-me como os homens de Ermanaric abusaram da minha mãe adotiva antes de lhe cortarem a garganta. Ela... descendia desta casa, por isso me dirigi para cá.
Mundou-se na cadeira, esforçou-se por não chorar, atirou o copo de vinho.
- Sim - disse Tharasmund pesadamente -, ela, Mathaswentha era minha prima. Sabe que as grandes famílias muitas vezes casam fora das suas linhas tribais. Randwar é um parente mais distante; no entanto, partilhamos algum do sangue que foi derramado. Além disso, ele sabe onde está o tesouro, afundado no leito do Dnieper. Ainda bem que Weard fez que ele estivesse fora e portanto o poupou à captura. Esse ouro daria ao rei poder demais.
Liuderis abanou a cabeça.
- Não compreendo - murmurou ele. - Mesmo depois de tudo o que ouvi, ainda não compreendo. Por que razão se comporta Ermanaric desta maneira? Estará possuído por um diabo? Ou está simplesmente maluco?
- Penso que não se trata de nada disso - disse Tharasmund. - Penso que, em certa medida, o seu conselheiro Sibicho, que nem sequer é um godo, mas um vândalo ao seu serviço, lhe segreda o mal aos ouvidos. Mas Ermanaric estava predisposto a ouvir, oh, se estava. - Dirigindo-se ao Viajante: - Há anos que têm aumentado as taxas que temos de pagar, e têm levado mulheres livres para o seu leito, quer elas queiram ou não, oprimindo as pessoas de todas as formas. Eu penso que ele pretende quebrar a vontade dos chefes que se atrevem a enfrentá-lo. Se aceitarmos este último ato, estaremos mais aptos ainda a tolerar o próximo.
O Viajante acenou.
- Sim, não há dúvida de que tem razão. Eu diria ainda que Ermanaric inveja o poder do imperador romano, e ambiciona o mesmo para si próprio pelo domínio dos Ostrogodos. Além disso, tem ouvido noticias de Frithigen crescendo para se opor a Athanaric entre os Visigodos e pretende anular qualquer rival que se atreva a disputar-lhe o reino.
- Partimos para exigir justiça - declarou Tharasmund. - Ele deverá dar uma compensação dupla e jurar na Grande Assembleia, sobre a Pedra de Tiwaz, que cumprirá daí em diante os antigos costumes e leis. Senão, levantarei todo o reino contra ele.
- Ele tem muita gente do seu lado - avisou o Viajante. - Alguns por promessas que lhes foram feitas, outros por avareza ou medo, outros ainda porque acham que devem ter um rei forte para defender as fronteiras, numa época em que os Hunos estão novamente se reunindo como uma cobra, enrolando-se para atacar.
- Sim, mas o rei não precisa de ser Ermanaric! - clamou Randwar, calorosamente.
A esperança iluminou as feições de Tharasmund.
- Senhor - disse ele ao Viajante -, esmagou os Vândalos, apoiará novamente os seus?
A perturbação pesava sobre a resposta.
- Eu ... não posso travar as suas batalhas. Weard não deseja isso.
Tharasmund ficou silencioso durante um tempo. Por fim, perguntou:
- Poderá ao menos vir conosco? Seguramente que rei o escutará com toda a atenção.
O Viajante ficou novamente silencioso, até que falou em voz arrastada:
- Sim, verei o que posso fazer. Mas não faço promessas. Estão ouvindo bem? Não faço promessas.
E assim ele viajou com os outros, à cabeça do grupo. Ermanaric mantinha várias residências por todo o reino. Ele e os seus guardas, conselheiros e criados viajavam entre elas. Tinham chegado notícias que, logo a seguir às mortes, ele se mudara provocatoriamente para uma distância de três dias de viagem de Heorot.
Foram três dias de escassa alegria. A neve cobria a terra como uma crosta. Abria rachas sob os cascos. O céu estava pesado e de um cinzento monótono, o ar parado e agreste. As casas dobravam-se ao peso dos telhados de colmo. As árvores estavam despidas, exceto onde os abetos formavam uma mancha. Ninguém falava muito e ninguém cantava absolutamente nada, nem mesmo à volta da fogueira antes de se arrastarem para os sacos de dormir.
Mas, por fim, chegaram ao seu objetivo. Tharasmund tocou a sua corneta e eles chegaram num galope rápido. As pedras do caminho falavam, os cavalos relincharam quando os teurings puxaram das rédeas para parar no pátio real. Guardas em número semelhante formavam alas em frente da casa, com o punho das lanças brilhando, embora as flâmulas estivessem baixas.
- Queremos falar com o seu amo! - bramiu Tharasmund.
Fora um insulto deliberado, uma palavra usada como se aqueles homens não fossem livres, mas mantidos em servidão como os cães ou os romanos. O capitão corou antes de responder asperamente:
- Alguns de vocês terão autorização para entrar, mas antes disso os outros deverão recuar.
- Sim, recuem - murmurou Tharasmund para Liuderis.
O velho guerreiro berrou:
- Recuaremos, visto perturbarmos as suas tropas, mas não para longe e não ficaremos passivos durante muito tempo até termos certeza que os nossos chefes estão a salvo de traições.
- Viemos para falar - disse o Viajante apressadamente. Ele, Tharasmund e Randwar desmontaram. Porteiros afastaram-se para deixá-los passar. Mais guardas enchiam o interior. Contra o uso comum, estavam armados. A meio da parede, a leste, rodeado pelos seus cortesãos, Ermanaric aguardava sentado.
Era um homem alto que se mantinha rigidamente ereto. Caracóis negros e uma barba em bico rodeavam uma face enrugada e severa. Estava esplendorosamente vestido, com pesadas faixas de ouro sobre a testa e pulsos, a luz das lamparinas brilhava sobre o metal. As suas vestes eram de tecidos estrangeiros tingidos, orlados a marta e arminho. Na mão segurava um copo de vinho, não de vidro mas de cristal lapidado e os seus dedos brilhavam com rubis. Manteve-se silencioso até os três recém-chegados, cansados da viagem e cobertos de lama, chegarem ao seu trono. Fixou-os furiosamente ainda durante uns momentos antes de dizer:
- Bem, Tharasmund, anda em companhia de pessoas bastante estranhas.
- Sabe quem eles são - respondeu o chefe teuring -, e qual deve ser a nossa missão.
Um homem esquelético, de uma palidez de cinzas, à direita do rei, Sibicho, o Vândalo, murmurou-lhe ao ouvido. Ermanaric acenou.
- Sentem-se, então - disse ele. - Vamos beber e comer.
- Não - disse Tharasmund. - Não tomaremos nem sal nem água sagrada à sua mesa, antes de ter feito a paz conosco.
- Está exagerando a sua ousadia, sabe.
O Viajante levantou a sua lança. Fez-se um silêncio, que tornou o crepitar do fogo mais alto.
- Se for sensato, rei, escutará este homem - disse ele. - A sua terra sangra. Lava essa ferida e poe-lhe ervas curativas para que ela não inche e adoeça.
Ermanaric enfrentou-lhe o olhar e respondeu:
- Eu não tolero zombarias, velho. Escutarei se ele tiver cuidado com a língua. Diga-me em poucas palavras o que quer, Tharasmund.
Aquilo foi o mesmo que uma bofetada na cara. O teuring teve de engolir três vezes até rugir as suas exigências.
- Logo vi que queria algo parecido - disse Ermanaric. - Fique sabendo que Embrica e Fritla morreram devido aos seus próprios atos. Escamotearam ao seu rei aquilo que legalmente lhe pertencia. Ladrões e homens desleais são foras-da-lei. No entanto, sou clemente. Estou disposto a pagar uma compensação pelas suas famflias e terras... depois do tesouro me ser entregue.
- Quê? -gritou Randwar. - Atreve-se a falar assim, seu assassino?
Os guardas agitaram-se. Tharasmund pousou uma mão de aviso sobre o braço do rapaz. Para Ermanaric disse:
- Exigimos uma compensação dupla como reconhecimento do mal que fez. Não podemos aceitar menos e conservar a nossa honra. Mas quanto à posse do tesouro, deixe que a Grande Assembléia decida e qualquer que seja a decisão, apertemos as mãos em sinal de paz.
- Eu não regateio - respondeu Ermanaric, num tom gélido. - Aceitem a minha oferta e vão embora... ou recusem-na e saiam antes que os faça arrependerem-se da sua insolência.
O Viajante deu alguns passos em frente. Levantou novamente a lança para impor silêncio. O chapéu ensombrecia-lhe a face, tornando-o duplamente estranho, o manto azul caía dos seus ombros como asas.
- Escute-me - disse ele. - Os deuses são justos. Àqueles que se riem da lei e oprimem os desprotegidos, os deuses trarão desgraça. Ermanaric, escute atentamente antes que seja muito tarde. Pense bem, antes do teu reino ficar completamente destruído.
Um murmúrio e um restolhar atravessou o salão. Os homens remexiam-se, faziam sinais, agarravam-se ao cabo da espada em busca de consolação. Os olhos rolavam brancos por entre a fumaça e a penumbra. Era o Viajante que falava.
Sibicho puxou pela manga do rei e murmurou qualquer coisa. Ermanaric acenou. Inclinou-se para a frente, o dedo apontado como uma faca, e disse alto e bom som, de forma a ecoar pela sala:
- Já foi antes meu convidado em outras casas, velho. Mal te fica ameaçar-me. E também é insensato... não importa quais os filhos, velhas ou velhos decrépitos te sigam, é insensato se pensa que tenho medo de você. Sim, eles me dizem que você é o próprio Wodan. Que me interessa isso? Eu não confio em nenhum deus insignificante, confio apenas na força que é minha.
Levantou-se. A sua espada rodou brilhante.
- Quer lutar comigo, velho caquético? - gritou ele. - Podemos encontrar-nos imediatamente num campo de luta. Me enfrentaria, de homem para homem, e eu quebrarei essa tua espada em duas e te expulsarei de lá aos uivos!
O Viajante não se moveu, a sua arma vacilou um pouco.
- Não é essa a vontade de Weard - quase murmurou. - Mas o aviso com toda a gravidade, pelo bem de todos os godos, sela a paz com estes homens a quem ofendeu.
- Farei a paz se eles o fizerem também - disse Ermanaric, sorrindo maliciosamente. - Ouviu a minha oferta, Tharasmund. Aceita?
O teuring preparou-se, enquanto Randwar grunhia como um lobo prisioneiro, o Viajante permanecia imóvel como se fosse um ídolo e Sibicho inclinava-se do banco.
- Não - disse ele em voz baixa e áspera. - Não posso aceitar.
- Então vão-se embora, vocês todos, antes que eu mande chicoteá-los até aos seus canis.
Ao ouvir isto, Randwar desembainhou a espada. Tharasmund e Liuderis puxaram pelas deles, via-se o ferro brilhar por todos os lados. O Viajante disse em voz alta:
-Vamos embora, mas só em consideração pelos godos. Reflita bem, rei, enquanto ainda é rei.
Incitou os seus companheiros a sair. Ermanaric começou a rir. O seu riso perseguiu-os ao longo de todo o salão.

Laurie foi passear comigo para o Central Park. Março erguia-se tempestuoso à nossa volta. Ainda se mantinham algumas manchas de neve, mas em geral a erva começava a crescer. Os arbustos e as árvores estavam em flor. Para além destes arbustos, as torres da cidade brilhavam como novas, lavadas pelo tempo, erguendo-se altas num azul onde algumas nuvens disputavam uma regata. O frio era apenas o suficiente para estimular a circulação. Perdido no meu Inverno privado, mal reparei nisso. Ela agarrou-me na mão.
- Não devia ter feito isso, Carl.
Eu senti como ela compartilhava aquela dor, tanto quanto era possível.
- Que outra coisa podia fazer? - repliquei no meio da escuridão. -Tharasmund me pediu para acompanhá-lo, já disse. Como poderia eu recusar e conseguir dormir sossegado alguma vez depois disso?
- Acha? - ela abandonou rapidamente aquela questão. - Está bem, talvez tivesse agido bem, dentro dos limites permitidos, se tivesse oferecido o consolo possível através da sua presença. Mas você falou. Tentou evitar o conflito.
- Abençoados sejam os pacifistas, foi o que me ensinaram na catequese.
- Esse conflito é inevitável, não é? Nesses mesmos poemas e fábulas que foi lá atrás estudar.
Encolhi os ombros.
- Fábulas. Poemas. Até que ponto é que são factuais? Ah, sim, a história sabe o que aconteceu a Ermanaric no final. Mas será que Swanhild, Hathawulfe Solbern morreram como conta a saga? Se algo no estilo tivesse acontecido, se não é simplesmente a imaginação romântica de séculos posteriores, que um cronista tomou como verdadeira, teria necessariamente de ter acontecido a eles? - Tossi para limpar a garganta. - O meu trabalho na Patrulha é ajudar a descobrir os fatos que realmente existiram, os quais devem ser preservados.
- Querido, meu querido - suspirou ela -, mas está sofrendo tanto. O seu raciocínio fica distorcido. Pense... Eu pensei... mas nem imagina como tenho pensado... e é claro que nunca estive lá, mas talvez isso me permita ter uma perspectiva que... você decidiu não ter. Tudo o que relatou, através de todo este processo, todos os acontecimentos parecem apontar para um único objetivo. Se você, como deus, tivesse conseguido forçar o rei a uma reconciliação, teria sem dúvida feito. Mas não, não é essa a forma do continuum.
- No entanto, ele tem flexibilidade! Que diferença pode fazer as vidas de uns poucos bárbaros?
- Carl, está delirando, sabe muito bem. Eu também... fico muito tempo acordada, com medo daquilo em que você poderá se meter. Está novamente muito próximo do que é proibido. Talvez até já tenha ultrapassado o limite.
- As linhas temporais se ajustaram. Sempre o fizeram.
- Se isso fosse verdade, não precisaríamos da Patrulha. Tem de compreender o risco que tem estado correndo.
Eu compreendia. Obriguei-me a enfrentá-lo. Pontos de conexão existem, onde é importante a forma como os dados caem. Muitas vezes nem sequer são os mais óbvios. Um exemplo surgiu-me, como um cadáver afogado subindo à superfície. Um instrutor da Academia dera como apropriado para cadetes da minha época.
Enormes conseqüências advinham da segunda guerra mundial. Uma das mais importantes foi os Soviéticos ficarem com o controle de metade da Europa (as armas nucleares eram indiretas, elas apareceriam mais ou menos nessa época, independentemente da guerra, visto os princípios serem conhecidos). Em última análise, essa situação político-militar levou a acontecimentos que afetaram o destino da humanidade durante centenas de anos posteriores - portanto, para sempre, porque esses séculos tinham as suas próprias conexões.
E, no entanto, Winston Churchill tinha razão quando chamou à guerra de 1939-1945 a "Guerra Desnecessária". A fragilidade das democracias foi importante no seu desenvolvimento, é verdade. Apesar disso, não teria havido uma ameaça que as fizesse tremer, se não fosse o Nazismo ter tomado o poder na Alemanha. O aparecimento desse movimento, originalmente pequeno e desprezado, mais tarde estigmatizado (embora demasiado brandamente) pelas autoridades de Weimar - esse movimento não poderia chegar ao poder no país de Bach e Goethe, senão através do gênio ímpar de Adolf Hitler. E o pai de Hitler nascera como Alois Schicklgruber, filho ilegítimo, o resultado do encontro casual entre um burguês austríaco e uma criada do seu...
Mas se evitássemos essa ligação, o que poderia ser feito com toda a facilidade sem magoar ninguém, então abortávamos toda a história que se seguiu. Digamos que, em 1935, o mundo já seria diferente. Talvez se tornasse melhor que o original (em alguns aspectos e durante algum tempo) ou talvez se tornasse pior. Poderia, por exemplo, imaginar que os homens nunca teriam saído para o espaço. Seguramente não o teriam feito tão cedo, poderia talvez ter acontecido muito tarde para salvar uma terra devastada. Não consigo imaginar uma utopia pacifica como resultado de tudo isso. Não interessava. Se os acontecimentos se modificassem significativamente no tempo dos Romanos por minha causa, eu ainda continuaria a existir nesse tempo, mas quando regressasse a este ano, a minha civilização nunca teria existido. Laurie nunca teria existido.
- Não... concordo que tenha corrido riscos - argumentei. - Os meus superiores leram os meus relatórios, que são relatórios honestos. Eles me avisarão se estiver ultrapassando os limites.
"Honestos?", interrogava-me eu. Bem, sim, relatavam o que observava e fazia, sem quaisquer mentiras ou encobrimentos, embora em estilo sintético. Mas a Patrulha não pretendia derramamentos emocionais, não é verdade? E não se esperava que eu contasse todos os pormenores mais ínfimos e triviais, não era? De qualquer forma, era impossível faze-lo. Respirei fundo.
- Olha - disse -, conheço meu lugar. Sou simplesmente um estudioso literário e lingüístico. Mas sempre que puder ajudar, com segurança, tenho de ajudar. Não acha?
- Você é o que é, Carl.
Continuamos a passear. Até que ela exclamou:
- Eh, homem, está de licença, férias, lembra-se? Devíamos relaxar e gozar a vida. Tenho andado fazendo planos. Ouça só.
Vi lágrimas nos olhos dela, e fiz o meu melhor para corresponder à alegria com que ela as cobria.

Tharasmund levou os seus homens de volta para Heorot. Eles separaram-se e procuraram cada um a sua casa. O Viajante despediu-se.
- Não se precipitem em agir - foi o conselho dele. - Sejam pacientes e esperem pela sua vez. Quem sabe o que pode acontecer?
- Eu penso que o senhor sabe... - disse Tharasmund.
- Não sou nenhum deus.
- Já me disse isso mais de uma vez, mas nada mais. Então que é?
- Não posso revelá-lo. Mas se esta casa me deve alguma coisa pelo que tenho feito ao longo dos anos, reclamo agora essa divida e peço que aja lenta e cuidadosamente.
Tharasmund assentiu.
- Era o que faria de qualquer modo. Com tempo e trabalho reuniremos homens suficientes numa irmandade a que Ermanaric não possa resistir.
A verdade é que a maioria deles preferia sentar-se nas suas casas e esperar que os problemas não fossem ter com eles, embora pudessem atingir outros.
- Entretanto, o rei provavelmente não se arriscará a uma ruptura completa, pelo menos enquanto não se sentir preparado. Terei de me manter à frente dele, mas sei muito bem que um verdadeiro homem pode andar até mais longe do que ele pode correr.
O Viajante pegou-lhe na mão, como se fosse falar, mas pestanejou com força, deu meia volta e afastou-se. A última visão que Tharasmund teve dele foi o chapéu, o manto e a lança, descendo pela estrada invernal.
Randwar instalou-se em Heorot, uma memória viva das injustiças. No entanto era muito novo e transbordante de vida para se lamentar durante muito tempo. Depressa ele, Hathawulf e Solbern se tornaram grandes amigos, andando juntos na caça, esportes, jogos e todo o tipo de folguedos. Também se dava muito com a irmã, Swanhild. O equinócio trouxe o derreter da neve, botões, flores e folhas. Durante a estação fria, Tharasmund visitara muitos teurings das vizinhanças até bastante longe, para falar em privado com homens importantes. Na Primavera ficou em casa e atarefou-se com o trabalho das terras e todas as noites ele e Erelieva se desfrutavam mutuamente.
O dia chegou em que ele gritou alegremente:
- Já aramos e plantamos, limpamos e reconstruímos, já ajudamos a dar à luz as crias dos animais e já os enviamos para os pastos. Vamos celebrar a liberdade por algum tempo! Amanhã caçamos.
Nessa madrugada beijou Erelieva na fronte em frente de todos os homens que iam com ele, antes de saltar para a sela e partir à frente deles. Os cães ladravam, os cavalos relinchavam, os cascos batiam no solo, as cornetas inativas. No limite da visão, onde a estrada dava uma curva em redor de um bosque, virou-se para trás e acenou para ela. Ela voltou a vê-lo ao fim do dia, mas então era já um cadáver ensangüentado.
Os homens que o transportaram para dentro de casa, numa maca feita de um manto enrolado em duas lanças, contaram em voz lúgubre o que acontecera. Ao entrar na floresta que começava a alguns quilômetros dali, encontraram o rastro de um javali selvagem e lançaram-se na sua trilha. Longa foi a perseguição até encontrarem o animal.
Era poderoso, com bigodes prateados, presas do tamanho de lâminas de punhal curvas. Tharasmund gritou de contentamento. Mas a valentia deste porco era tão grande como o seu corpo. Não ficou parado enquanto alguns cavaleiros desmontaram e outros o incitavam a atacar. Atacou imediatamente. O cavalo de Tharasmund relinchou, caindo ao ser atingido nas patas, ficando com a barriga esventrada. O chefe caiu pesadamente.
O javali viu e depressa caiu sobre ele. As presas dilaceraram-no, por entre grunhidos monstruosos. O sangue jorrou.
Embora os homens tivessem rapidamente morto a besta, murmuravam que podia bem ser um demônio, estar enfeitiçado ou ter sido enviado por Ermanaric ou pelo seu astuto conselheiro Sibicho. Fosse como fosse, as feridas de Tharasmund eram muito profundas para conseguirem estancar o sangue. Ele mal teve tempo para levantar os braços e pegar nas mãos dos seus filhos.
As mulheres choravam-no no salão, bem como as casas menores - exceto Ulrica, que se mantinha pétrea, e Erelieva, que se afastou para chorar sozinha. Enquanto a primeira lavava e deitava o corpo, como era seu direito de esposa, amigos da segunda apressaram-na a levá-la para longe dali. Pouco depois conseguiram casá-la com um proprietário, um viúvo cujos filhos necessitavam de uma madrasta, e que vivia bastante longe de Heorot.
Embora com apenas dez anos de idade, o seu filho Alawin agiu de forma varonil e não partiu. Hathawulf, Solbern e Swanhild protegiam-no dos piores efeitos do rancor da mãe, recebendo por isso, em troca, o seu amor sem reservas.
Entretanto, as novas da morte do pai deles já se espalhara. As pessoas acorriam à casa, onde Ulrica honrava o seu marido e honrava a si própria. O corpo foi transportado de uma casa de gelo onde ficara conservado, ricamente vestido. Liuderis chefiou os guerreiros que o colocaram numa sepultura de troncos de árvore, juntamente com a sua espada, lança, escudo, elmo, cota de malha, tesouros de ouro, prata, âmbar, vidro e moedas romanas. Hathawulf, filho da casa, matou o cavalo e os cães que seguiriam Tharasmund pela estrada do Inferno. O fogo rugia no santuário de Wodan enquanto os homens empilhavam terra sobre a sepultura até a campa se erguer imponente. Depois disso, andaram a cavalo em seu redor, batendo com uma lâmina no escudo e uivando o uivo do mocho.
Seguiu-se uma festa fúnebre que se prolongou por três dias. No último dia, o Viajante apareceu.
Hathawulf cedeu-lhe o lugar principal. Ulrica trouxe-lhe vinho. No silêncio que caíra na penumbra cintilante, ele bebeu ao fantasma, à mãe Frija e à prosperidade da casa. Pouco falou. Até que chamou Ulrica de lado e lhe falou ao ouvido. Abandonaram ambos o salão e foram para a sala de trabalho das mulheres.
A poeira entrava azul-acinzentada pelas janelas abertas, escurecendo a sala. O frio transportava cheiros de folhas e terra, o trinar de um rouxinol, mas esses sons pareciam a Ulrica longínquos, algo irreais.
Ela olhou fixamente durante algum tempo para o pano semi acabado no tear.
- Que mais irá Weard tecer? - perguntou ela em voz baixa.
- Uma mortalha - disse o Viajante -, a não ser que envie o vai-vêm em outra direção.
Ela virou a face para ele e replicou, quase como se estivesse fazendo troça:
- Eu? Mas sou apenas uma mulher. É o meu filho Hathawulf quem governa os teurings.
- O seu filho. Ele é jovem e viu muito menos do mundo que seu pai quando tinha a idade dele. Você, Ulrica, filha de Athanaric, mulher de Tharasmund, tem não só o conhecimento como a força, bem como a paciência que as mulheres têm de aprender. Pode dar bons conselhos a Hathawulf, se assim o quiser. E... ele está habituado a seguir os seus conselhos.
- E se eu voltar a casar? O seu orgulho levantará um muro entre nós.
- Não me parece que o faça...
Ulrica contemplou o crepúsculo.
- Não é esse o meu desejo, não. Já me chegou. - Ela voltou-se para a cara escondida pelas sombras. - Pede-me que fique aqui e mantenha a influência que puder sobre ele e o seu irmão. Bem, e que devo lhes dizer, Viajante?
- Fale sensatamente. Dificil será para você engolir seu próprio orgulho e não prosseguir com a vingança sobre Ermanaric. Isso ainda será mais difícil para Hathawulf. No entanto, com certeza que compreende, Ulrica, que sem Tharasmund para liderar, o feudo só pode ter um desfecho. Faça que os teus filhos compreendam que, a não ser que evitem os conflitos com o rei, esta família estará condenada.
Ulrica ficou silenciosa durante muito tempo. Por fim disse:
- Tem razão, e eu vou tentar. - Mais uma vez os olhos dela procuraram os dele por entre a escuridão que se adensava. - Mas será por necessidade, não por minha vontade. Se alguma vez tivermos oportunidade de prejudicar Ermanaric, eu serei a primeira a incitá-los a que a aproveitem. E nunca nos inclinaremos perante esse palerma, nem sofreremos humildemente novos insultos. - As suas palavras atacavam como um falcão em mergulho. - Compreende isso. O seu sangue corre nos meus filhos.
- Eu disse o que era meu dever - suspirou o Viajante. - Agora você fará o que puder.
Voltaram para a festa. Na manhã seguinte ele partiu. Ulrica seguiu-lhe o conselho fielmente, embora com alguma amargura. A sua tarefa não era pequena, fazer que Hathawulf e Solbern concordassem. Eles gritaram, clamando pela sua honra e o seu bom nome. Ela disse-lhes que audácia não era o mesmo que insensatez.
Jovens, inexperientes, sem treino de liderança, não tinham a mínima chance de conseguir convencer godos suficientes a revoltar-se. Liuderis, a quem ela chamou, concordou, mas de mau-grado. Ulrica disse aos seus filhos que não tinham o direito de fazer que a destruição desabasse sobre a casa de seu pai.
Em vez disso aconselhou-os a negociarem. Eles que apresentassem o caso perante a Grande Assembléia e acatassem a decisão desta, se o rei fizesse o mesmo. Os que tinham sido prejudicados, não eram parentes muito chegados, os herdeiros poderiam usar melhor a compensação que lhes fora oferecida que a vingança executada por outros, muitos chefes e proprietários ficariam satisfeitos por os filhos de Tharasmund se terem refreado de dividir o reino, e nos anos vindouros os aceitariam e seguiriam os seus conselhos com respeito.
- Mas lembre-se do que o pai receava - disse Hathawulf. - Se cedermos perante ele, Ermanaric fará ainda maior pressão sobre nós.
Os lábios de Ulrica apertaram-se.
- Eu não disse que permitissem tal coisa -respondeu ela. - Se ele tentar, então pelo Lobo que Tiwaz tornou prisioneiro, ele saberá o que é uma luta! Mas a minha esperança é que seja muito perspicaz. Ele não avançará agora.
- Até ter o poder para nos derrubar...
- Oh, isso ainda vai demorar tempo e, entretanto, é claro que iremos aumentando a nossa própria força. Lembrem-se de que são jovens. Pelo menos, viverão mais tempo que ele. Mas é provável que não precisem esperar tanto tempo. Ao envelhecer, ele...
Assim, dia a dia, semana a semana, Ulrica argumentou com os seus filhos, até eles acederem aos seus desejos. Randwar ficou furioso por eles serem uns covardes traiçoeiros. Quase chegaram a lutar uns com os outros. Swanhild colocou-se entre os seus irmãos e ele.
- Vocês são amigos! - gritou ela. Eles não puderam deixar de se acalmar, resmungando.
Mas Swanhild consolou ainda mais Randwar. Eles passearam juntos por um carreiro onde cresciam as framboesas, as árvores sussurravam e refletiam a luz do Sol, os pássaros cantavam. O cabelo dela era uma torrente dourada, os olhos grandes e de um azul-celeste numa face de feições delicadas, ela movia-se como um veado.
- Será que tem de estar sempre se lamentando? - perguntou ela. - Este dia é adorável demais para isso.
- Mas os que me adotaram - gaguejou ele -, continuam a não estar vingados.
- Seguramente que eles saberão que tratará disso assim que puder e eles são pacientes. Têm até ao fim do mundo, não é? Ganhará fama para você de forma a tornar também o nome deles recordado, espere e verá... Olhe, olhe bem. Aquelas borboletas! Um pôr do Sol vibrante sob os nossos olhos!
Embora Randwar nunca mais confiasse a Hathawulf e a Solbern tudo o que lhe ia no coração, voltou a ter uma boa relação com eles. Afinal, eles eram irmãos de Swanhild.
Homens que sabiam falar com diplomacia foram enviados de Heorot para falar com o rei. Ermanaric surpreendeu-os cedendo mais que até à data. Era como se sentisse que, uma vez desaparecido o seu oponente Tharasmund, se podia dar ao luxo de um pouco de indulgência. Ele não pagaria compensação dupla, porque isso seria admitir que agira mal. No entanto, prometera que, se os que sabiam onde o tesouro estava escondido o levassem à próxima Grande Assembléia, aceitaria que a Assembléia decidisse quem seria o seu proprietário. Assim se chegou a um acordo. Mas enquanto estas negociações prosseguiam, Hathawulf, guiado por Ulrica, tinha outros homens fazendo visitas por todo o lado, ele próprio falou a muitos proprietários. Isto continuou até à reunião seguinte, depois do equinócio do Outono.
Nessa altura, o rei apresentou a sua pretensão ao tesouro. Há muito tempo que era costume, disse ele, que o que quer que um vassalo ganhasse de valor lutando em serviço do seu senhor, deveria reverter para esse senhor, que distribuiria esse saque como presentes aos que o merecessem ou àqueles de cujo auxílio ele precisasse. Senão a guerra se tornaria uma luta em que cada tropa lutaria por si própria; a força da hoste ficaria diminuída, visto que a cobiça seria mais forte que a luta pela glória, as disputas sobre os saques dilacerariam as fileiras. Embrica e Fritla sabiam bem disso, mas decidiram não cumprir a lei. Depois disso, porta-vozes, que Ulrica tinha escolhido, tomaram a palavra, para grande surpresa do rei. Ele não esperara que fossem em tão grande número. De formas diferentes, apresentaram o mesmo raciocínio.
Sim, os Hunos e os seus vassalos alânicos eram inimigos dos Godos. Mas Ermanaric não lutara com eles nesse ano. O assalto fora um ato que Embrica e FritIa executaram por si próprios, como acontecia com os riscos comerciais. Eles tinham ganho o tesouro e pertencia-lhes. Longa e acalorada foi a discussão, tanto no conselho como nas tendas montadas nos campos. Tratava-se de mais que de uma questão de lei, tratava-se de que vontade é que prevaleceria. As palavras de Ulrica, na boca dos seus filhos e dos seus mensageiros, tinham convencido homens suficientes, apesar de Tharasmund ter desaparecido, sim, exatamente porque Tharasmund desaparecera, melhor para eles seria se o rei fosse disciplinado.
Nem todos concordavam ou se atreviam a admitir que concordavam. Por fim, os Godos acabaram por votar numa divisão do tesouro em três partes iguais, uma para Ermanaric e uma para cada um dos filhos de Embrica e Fritla. Visto que os homens do rei os tinham chacinado a todos, dois terços foram parar nas mãos do filho adotivo, Randwar. De um dia para o outro, ficou rico.
Ermaneric saiu da Assembléia lívido e resmungando. Só muito tempo depois é que alguém se atreveu a dirigir-lhe a palavra. Sibicho foi o primeiro. Fechou-se com ele e conversaram durante horas. O que disseram, ninguém ouviu, mas depois disso Ermanaric ficou com uma disposição melhor.
Quando se soube disso em Heorot, Randwar murmurou que, se aquela doninha estava satisfeita, era um mau presságio para os pássaros. No entanto, o resto do ano passou-se tranquilamente. Aconteceu uma coisa estranha no Verão seguinte, que também fora pleno de paz. O Viajante apareceu na estrada que vinha do ocidente, como sempre acontecia. Liuderis seguiu à frente de homens encarregados de recebê-lo e escoltá-lo.
- Como passa Tharasmund e a sua família? - saudou o recém-chegado.
- Quê? - replicou Liuderis, abismado. - Tharasmund morreu, senhor. Já se esqueceu? O senhor esteve conosco à beira da sua sepultura...
O Cinzento ficou encostado à sua lança como que atingido por um raio. Subitamente, os outros sentiram que o dia parecia menos quente e soalheiro que antes.
- Claro - acabou ele por dizer, em voz tão baixa que quase não se ouvia. - Não me fiz entender. - Sacudiu os ombros, olhou para os cavaleiros e continuou, em voz mais alta e mais rapidamente: - Tenho tido muito em que pensar. Perdoem-me, mas afinal não vos posso fazer uma visita desta vez. Dêem-lhes as minhas saudações. Virei vê-los mais tarde... - deu meia volta e regressou pelo caminho por onde viera. Os homens ficaram olhando espantados, fazendo sinais contra os espíritos maléficos. Um pouco mais tarde, um pastor ao regressar a casa contou que o Viajante o encontrara num prado e lhe fizera muitas perguntas sobre a morte de Tharasmund. Ninguém compreendia o que é que tudo isto prenunciava, embora uma criada cristã da casa dissesse que era uma prova de que os velhos deuses eram falíveis e estavam desaparecendo.
Apesar disso, os filhos de Tharasmund receberam o Viajante com toda a deferência quando ele voltou a visitá-los no Outono. Não se atreveram a perguntar-lhe qual o problema que se levantara antes. Pela sua parte, ele estava mais expansivo que habitualmente e em vez de um ou dois dias, ficou um par de semanas. As pessoas notaram como ele prestava atenção especial aos jovens Swanhild e Alawin.
É claro que era com Hathawulfe Solbern que tinha as conversas sérias. Aconselhou-os vivamente a viajarem os dois, ou pelo menos um deles, para o ocidente, no ano seguinte, como fizera o pai deles na sua juventude.
- Lhes será altamente proveitoso conhecer os países romanos e cultivar a amizade com os seus parentes entre os Visigodos - disse ele. - Eu próprio poderei acompanhá-los para guiá-los, aconselhar e servir de intérprete.
- Receamos não poder - respondeu Hathawulf, pesadamente. - Por enquanto não. Os Hunos estão aproximando-se cada vez mais fortes e ousados. Começaram outra vez a atacar as nossas fronteiras. Embora não seja do nosso agrado, vemo-nos obrigados a concordar com o Rei Ermanaric quanto à declaração de guerra para o próximo Verão e Solbern e eu não nos queremos atrasar a responder à chamada.
- Não - disse o irmão -, e não só por motivos de honra. Por enquanto o rei tem-se abstido de nos hostilizar, mas não é segredo nenhum que não nos tem em grande estima. Se ficarmos com a fama de covardes ou de preguiçosos, e depois se erguer uma ameaça, quem se atreverá ou se incomodará em ficar do nosso lado?
O Viajante pareceu ficar mais entristecido com isto que seria de esperar. Finalmente, disse:
- Bem, Alawin terá doze anos, será muito novo para partir com vocês, mas com idade suficiente para vir comigo. Dêem autorização.
Eles concordaram e Alawin ficou louco de alegria. Ao vê-lo aos pulos pelo chão, o Viajante sacudiu a cabeça e murmurou:
- Como ele ainda se parece tanto com Jorith. Mas é claro que a sua ascendência tanto materna como paterna está muito próxima dela. - Disse incisivamente para Hathawulf: - Você, Solbern e ele, até que ponto é que se dão bem?
- Bem, muito bem mesmo - respondeu o chefe, admirado. - É um bom rapaz.
- Nunca há discussões entre vocês e ele?
- Oh, nada mais que as provocadas pela sua impetuosidade ocasional. - Hathawulf acariciou a barba sedosa de jovem. - Sim, a nossa mãe tem má vontade contra ele. Foi sempre uma pessoa cheia de rancores. Mas apesar do que muitos idiotas proclamam, não domina os seus filhos. Se o seu conselho nos parece sensato, o seguimos. Senão, não o fazemos.
- Agarre-se à amizade que têm uns pelos outros. - O Viajante parecia implorar, mais que aconselhar ou ordenar. - Acreditem que é uma coisa rara neste mundo.
Cumprindo a sua palavra, regressou na Primavera. Hathawulf fornecera a Alawin roupas apropriadas, cavalos, seguidores, ouro, bem como peles para comerciar. O Viajante mostrou os presentes preciosos que levava, que deveriam ajudar a ganhar as boas graças das pessoas por onde passassem no estrangeiro. Despedindo-se, abraçou ambos os irmãos e a respectiva irmã.
Eles ficaram durante muito tempo vendo a caravana afastar-se. Alawin parecia tão pequeno e o seu cabelo ao vento tão brilhante, contra o cinzento e azul que ia a seu lado. Eles não falaram sobre o pensamento que lhes ocorreu: como aquela visita lhes fazia lembrar que Wodan era o deus que levava as almas dos mortos.
No entanto, um ano mais tarde, regressaram todos sãos e salvos. As pernas e braços de Alawin tinham crescido, a voz engrossara e estava delirante por contar o que vira, ouvira e fizera.
Hathawulf e Solbern tinham notícias menos animadoras. A guerra contra os Hunos não correra bem no último Verão. Tendo sempre sido considerados temíveis guerreiros a cavalo, devido à sua perícia e estribos, os homens das planícies tinham agora aprendido a lutar sob a forte disciplina de uma chefia arguta. Não conseguiram vencer os Godos em qualquer das batalhas renhidas que travaram, mas infligiram-lhes pesadas baixas e não se podia sequer dizer que tivessem sofrido qualquer derrota. Atormentados por ataques insidiosos, esfomeados, sem quaisquer ganhos de saques, a hoste de Ermanaric acabou por ter de se arrastar de volta para casa, através dos pastos intermináveis. Ele não faria nova tentativa este ano - pura e simplesmente porque não podia.
Foi por isso um alívio escutar Alawin, serão após serão, quando as pessoas estavam reunidas para beber. Os fabulosos remos de Roma povoavam os seus sonhos. No entanto, algumas das coisas que ele contava provocavam um franzir de sobrancelhas de Hathawulf e Solbern, estranheza em Randwar e Swanhild e um esgar furioso em Ulrica. Por que teria o Viajante viajado daquela forma?
Não levara o seu grupo primeiro pelo mar até Constantinopla, como fizera com Tharasmund. Em vez disso levara-os por terra até aos Visigodos, onde ficaram durante meses. Prestaram as suas homenagens ao ateu Athanaric, mas estiveram mais tempo na corte do cristão Frithigern. É verdade que este último era não só mais novo, como contava com um número maior de apoiantes que o primeiro, apesar de Athanaric ainda perseguir os cristãos nas zonas por ele governadas.
Quando finalmente o Viajante se despediu para entrar no Império, atravessando o Danúbio e entrando na Moesia, mais uma vez se demorou entre os Godos cristãos, a colônia de Ulfilas, e encorajou Alawin a fazer também aqui amizades. Mais tarde o grupo visitou Constantinopla, mas não por muito tempo. O Viajante passou uma grande parte desse tempo explicando os costumes romanos ao jovem. Voltaram para norte no fim do Outono e passaram o Inverno na corte de Frithigern. O visigodo queria que ele se batizasse e Alawin talvez o tivesse feito, depois das igrejas e outras grandiosidades que vira ao longo do Chifre Dourado. No fim recusou, desculpando-se polidamente, explicando que não deveria causar diferenças entre ele e os seus irmãos. Frithigern aceitou isso de boa vontade, dizendo apenas:
- Que chegue depressa o dia em que as coisas sejam de uma forma diferente para você.
Com a chegada da Primavera, a lama já secara nas estradas e o Viajante conduziu o jovem e os seus homens para casa. Mas não ficou lá. Nesse Verão, Hathawulf casou com Anslaug, filha do chefe Tailfal. Ermanaric tentara evitar esta aliança. Pouco tempo depois, Randwar procurou Hathawulfe perguntou-lhe se poderiam ter uma conversa em particular. Selaram cavalos e foram dar um passeio pelas pastagens. Estava um dia ventoso, com o vento lançando-se sobre quilômetros de vegetação fulva. As nuvens navegavam, de um branco esplendoroso, através das profundidades que os cobriam; as suas sombras corriam em disputa à volta do mundo. O gado sadio pastava em manadas dispersas pelas planícies. Aves de caça metiam-lhes debaixo dos pés e lá no alto planava um falcão. O vento frio estava permeado pelo cheiro da terra aquecida pelo sol e da pujança da vegetação.
- Calculo o que quer - disse Hathawulf sagazmente. Randwar passou com a mão pela sua crina ruiva.
- Sim. Swanhild como minha mulher.
- Hum. Ela parece contente com a sua proximidade...
- Nós ficaremos juntos! - gritou Randwar. Dominou-se. - Seria vantajoso para você. Sou rico e tenho vastos acres de terra inculta à minha espera, nas terras dos greutungs.
Hathawulf franziu a testa.
- É muito longe. Aqui podemos manter-nos unidos.
- A maior parte dos proprietários me darão as boas-vindas. Não perderá um camarada, ganhará um aliado.
Mas Hathawulf continuava a recuar, até Randwar explodir com:
- Irá acontecer, independentemente. É o que os nossos corações pedem. E melhor seguir a vontade de Weard.
- Sempre foi impetuoso... - disse o chefe, não sem bondade, apesar de algo preocupado. - A sua crença em que os sentimentos entre um homem e uma mulher são o suficiente para fazer um casamento estável, não é uma boa prova da sua sensatez. Sozinho, que atos insensatos não poderá ainda cometer?
Randwar engoliu em seco. Antes de ter tempo de ficar zangado, Hathawulf pousou uma mão no ombro dele e continuou, sorrindo um pouco tristemente:
- Não era minha intenção insultá-lo. Só quero que pense duas vezes. Não tem esse hábito, eu sei, mas peço que tente. Pelo bem de Swanhild.
Randwar provou que conseguia se manter calado. Quando voltaram, Swanhild apressou-se a chegar ao pátio. Tocou no joelho do seu irmão. A sua ansiedade explodiu:
- Oh, Hathawulf, está tudo bem, não está? Disse que sim, eu sei que disse. Nunca antes me deste um a alegria tão grande.
O resultado foi a realização de uma enorme festa de casamento, que ecoou e rodopiou por Heorot nesse Outono. Para Swanhild só uma nuvem a ensombrava: o Viajante não ter aparecido. Ela partira do princípio que ele os abençoaria. Não era ele o protetor da família? Entretanto, Randwar já enviara homens para as suas propriedades no Oriente. Ergueram uma nova casa no mesmo local onde estivera a de Embrica e rechearam-na bem. O jovem par viajou até lá com um grande séquito. Swanhild atravessou a porta de entrada com os ramos de sempre-viva que traziam as bênçãos de Frija. Randwar deu uma festa em honra da vizinhança e assim se instalaram.
No entanto, tinha de se ausentar durante dias seguidos, apesar de amar muito a sua noiva. Viajava pelas terras greutungs, para conhecer os seus habitantes. Quando encontrava um homem que parecia pensar como ele, Randwar falava-lhe a sós e tratavam de outros assuntos além do gado, do comércio ou até dos Hunos.
Num dia sombrio antes do solstício, quando alguns flocos de neve calam ainda levemente sobre a terra gelada, ouviram-se os cães ladrando fora de casa. Randwar pegou uma lança e avançou para ver de que se tratava. Seguiram-no dois camponeses igualmente armados. Mas quando ele espiou a forma alta que entrava no seu pátio, Randwar largou a sua arma e gritou:
- Salve! Bem-vindo!
Compreendendo que não havia nenhum perigo, Swanhild apressou-se a sair também. Os seus olhos e cabelo, por debaixo da touca de mulher casada e o vestido branco que cingia a sua silhueta esbelta, eram as únicas coisas alegres que se viam em redor. A alegria esfusiante explodia dela:
- Oh, Viajante, querido Viajante, sim, bem-vindo seja!
Ele aproximou-se até ela poder ver a cara que se escondia por debaixo do chapéu. Ela levou a mãos aos lábios abertos de surpresa.
- Mas que dor tão grande - murmurou ela. - É verdade, não é? Que desgraça é que aconteceu?
- Desculpem-me - respondeu ele em palavras que caíram como pedras. - Algumas coisas devem manter-se secretas. Eu mantive-me afastado do seu casamento porque não queria entristecê-los. Vejamos... Bem, Randwar, viajei por uma estrada acidentada. Deixe-me descansar e depois falaremos disso. Bebamos qualquer coisa quente e recordemos o passado.
Um pouco do seu interesse antigo alegrou o serão, quando um homem cantou uma balada sobre a última campanha na Terra dos Hunos. Em paga, ele contou novas histórias, embora de uma forma menos viva que anteriormente, parecendo que se flagelava a si próprio para fazê-lo. Swanhild suspirou, feliz.
- Estou desejosa que as minhas crianças se sentem para - ouvi-lo disse ela, embora ainda não estivesse à espera de nenhuma. Ficou um pouco perturbada ao vê-lo vacilar.
No dia seguinte, ele afastou-se com Randwar. Passaram horas sozinhos conversando. Mais tarde o greutung disse à mulher:
- Avisou-me repetidamente do ódio que Ermanaric tem por nós. Aqui, estamos na terra da própria tribo do rei, disse ele, e não devemos nos esquecer de que o nosso poder é pequeno, constituindo a nossa fortuna uma tentação permanente. Ele queria que pegássemos tudo e nos fôssemos embora para longe, para longe da terra dos Godos ocidentais, e bem depressa. É claro que eu não podia fazer isso. Quem quer que seja o Viajante, o direito e a honra são mais poderosos. Então ele me disse que sabia que eu andava sondando os homens sobre uma possível aliança contra o rei, para fazer frente à sua prepotência e se houvesse necessidade disso, para lutar. O Viajante disse que eu não tinha qualquer chance de manter isso em segredo e que era uma perfeita loucura.
- E que respondeu a isso? - perguntou ela meio assustada.
- Bem, eu disse que os godos livres têm o direito de se abrir uns com os outros. E disse que os meus pais adotivos nunca tinham sido vingados. Quando os deuses não fazem justiça, então os homens deverão fazê-la.
- Devia seguir os conselhos dele. Ele sabe mais que nós alguma vez saberemos.
- Bem, não vou fazer nada de temerário. Esperarei pela minha oportunidade. Pode nem sequer ser preciso. Muitas vezes, os homens morrem inesperadamente; se acontece a homens bons como Tharasmund, por que não haveria de acontecer a tipos como Ermanaric? Não, minha querida, nunca fugiremos das nossas terras, que pertencem aos nossos filhos por nascer. Por isso, devemos nos preparar para defendê-las, não é verdade? - Randwar tomou Swanhild nos braços. - Venha - riu ele-, que tal começarmos por fazer algo quanto a essas crianças?
O Viajante não conseguiu fazê-lo mudar de idéia e uns dias mais tarde despediu-se.
- Quando voltaremos a vê-lo? - perguntou Swanhild já à porta.
- Acho... - a voz faltou-lhe. - Oh, menina, que tanto se parece com Jorith! - Abraçou-a, beijou-a e largou-a, apressando-se a partir.
Chocadas, as pessoas ouviram-no chorar.
No entanto, de volta por entre os teurings, ele parecia de aço. Muito tempo passou ele lá nos meses que se seguiram, tanto em Heorot como entre os agricultores em redor, capatazes, vulgares trabalhadores do campo ou marinheiros.
Mesmo vindo dele, o que recomendava vivamente era-lhes difícil de aceitar. Queria que estreitassem as ligações com o ocidente. Não era apenas por terem muito a ganhar com o incremento do comércio. Se a desgraça os atingisse aqui, trazida, digamos, pelos Hunos, teriam um lugar para onde ir. No Verão seguinte, que enviassem homens e mercadorias para Frithigern, que os protegeriam e que mantivessem os barcos, carros, material e mantimentos preparados e que muitos deles aprendessem como eram as terras que os separavam do oeste e como as atravessar sãos e salvos.
Os Ostrogodos admiravam-se e murmuravam. Estavam bastante céticos quanto a um crescimento tão grande do comércio a distâncias tão vastas, estando portanto renitentes em apostar nisso muito trabalho ou riqueza. Quanto a abandonarem as suas casas, isso era inimaginável. Estaria o Viajante falando a verdade? Mas afinal quem era ele? Muitas vezes consideravam-no um deus e parecia andar por ali há muito tempo, mas ele próprio nunca o admitira. Podia ser um palerma, um feiticeiro de magia negra, ou, diziam os cristãos, um diabo enviado para desencaminhar os homens. Ou podia meramente estar ficando senil com a idade.
O Viajante continuou a insistir. Alguns dos seus ouvintes consideravam que as suas palavras mereciam uma reflexão mais atenta e alguns, os novos, ficavam entusiasmados. Entre estes últimos destacava-se Alawin, em Heorot, embora Hathawulf começasse a ficar convencido e Solbern se mantivesse reticente.
De um lado para o outro, o Viajante desenvolveu uma grande atividade, falando, planejando, ordenando. Por alturas do equinócio do Outono conseguira um esqueleto do que desejava. Ouro, mercadorias, homens para cuidar de tudo estavam na capital de Frithigern, no ocidente; Alawin iria até lá no ano seguinte para desenvolver o comércio, independentemente dos seus poucos anos, em Heorot e em numerosas outras casas, os habitantes podiam partir rapidamente, se a necessidade surgisse.
- Esgotou-se trabalhando por nossa causa - disse-lhe Hathawulf no fim da sua última estada em sua casa. - Se pertence aos Anses, então, eles não são incansáveis.
- Não - suspirou o Viajante. - Eles também perecerão no naufrágio do mundo.
- Mas isso ainda está muito longe no futuro, seguramente.
- Mundo após mundo tem desaparecido em ruínas até ao presente, meu filho, e o mesmo acontecerá nos anos e milhares de anos vindouros. Eu fiz por vocês aquilo que me era possível.
A mulher de Hathawulf entrou para se despedir. Ao peito amamentava o seu primeiro filho. O Viajante contemplou durante bastante tempo o bebê.
- Ali reside o amanhã... - murmurou ele. Ninguém percebeu o que ele queria dizer. Depressa se afastava, ele e a sua lança, descendo pela estrada onde as folhas recentemente caídas rodopiavam levadas pelo vento frio.
E pouco tempo depois, chegaram a Heorot as terríveis notícias. Ermanaric, o rei, anunciara que tencionava fazer uma incursão na terra dos Hunos. Não seria uma guerra declarada, como a que ocorrera antes. Portanto, ele não recrutaria guerreiros, mas avançaria apenas com os seus guardas de cavalaria, algumas centenas de guerreiros bem conhecidos e fiéis a ele. Os Hunos estavam novamente atacando as fronteiras. Ele os puniria. Um golpe rápido e profundo mataria pelo menos uma parte substancial do seu gado. Com sorte, poderia surpreender um ou mais dos seus acampamentos. Os godos acenavam com a cabeça quando recebiam estas notícias. Que ajudassem a engordar os corvos no leste e talvez os vagabundos da estepe regressassem ao local onde os seus antepassados os deram à luz.
Mas quando as suas tropas estavam reunidas, Ermanaric não foi até tão longe. Subitamente, estava na casa de Randwar, enquanto as casas dos amigos de Randwar ardiam de um lado ao outro do horizonte. Escassa foi a luta, tão grande era a força armada que o rei trouxera contra um jovem incauto. Empurrado, com as mãos amarradas atrás das costas, Randwar cambaleou pelo pátio. O sangue escorria e secava-lhe na cabeça. Matara três dos homens que o atacaram, mas as ordens que tinham eram de capturá-lo vivo e bateram-lhe com paus e cabos de lança até ele cair.
Foi um fim de dia triste, em que o vento uivava. Farrapos de fumaça misturavam-se com a chuva de escombros. O crepúsculo consumia-se. Alguns defensores mortos jaziam sobre o pavimento de pedra. Swanhild estava atordoada, agarrada por dois guerreiros, junto de Ermanaric que montava o seu cavalo. Era como se ela não compreendesse o que tinha acontecido, como se nada fosse real, a não ser a criança que transportava no seu ventre dilatado.
Os homens do rei levaram Randwar para frente deste. Ele inclinou-se para observar o prisioneiro.
- Bem - saudou ele -, o que tem para dizer em sua defesa?
Randwar falou em voz rouca, embora mantivesse a sua cabeça ensangüentada ereta:
- Que não ataquei sediciosamente quem não me fez mal.
- Bem, vejamos - os dedos de Ermanaric pentearam uma barba já começando a embranquecer. - Bem... Será que é bom conspirar contra o seu senhor? Será que é bom andar por aí furtivamente conspirando?
- Eu... não fiz nada disso... Eu queria apenas salvaguardar a honra e a liberdade... dos Godos... - A garganta seca de Randwar não conseguiu articular mais nada.
- Traidor! - vociferou Ermanaric e lançou-se numa grande tirada. Randwar manteve-se curvado, provavelmente sem ouvir a maior parte do que ele dizia. Quando Ermanaric percebeu isso parou.
- Já chega - disse. - Enforquem-no e abandonem-no aos corvos, como um ladrão vulgar.
Swanhild gritou, debatendo-se. Randwar lançou-lhe um olhar desfocado antes de se virar para o rei e responder.
- Se me enforcar, vou me encontrar com o meu antepassado Wodan. Ele... me vingará...
Ermanaric atirou-lhe com um pontapé que o atingiu na boca.
- Pendurem-no!
Um barrote para levantar o feno sobressaia de um celeiro. Os homens já tinham pendurado nele uma corda. Rodearam o pescoço de Randwar com o laço, penduraram-no e esticaram a corda. Ele debateu-se muito tempo até balançar inerte ao vento.
- Sim, o Viajante vai pegá-lo, Ermanaric! - gritou Swanhild. - Eu lanço-lhe a praga da viúva, assassino, e chamo Wodan para te punir! Viajante, leve-o para a caverna mais gelada do Inferno!
Os greutungs estremeceram, fizeram sinais e agarraram-se aos talismãs. O próprio Ermanaric não parecia à vontade. Sibicho, inclinado na sela do cavalo ao seu lado, uivou:
- Ela chama pelo seu antepassado feiticeiro? Não permitam que ela viva! Que a terra se purifique do sangue que ela transporta!
- Sim - disse Ermanaric num lampejo de vontade. E gritou essa ordem. O medo mais que qualquer outra coisa fez que os homens se apressassem.
Os que seguravam Swanhild espancaram-na até ela tropeçar, e deram-lhe pontapés até a deixarem no centro do pátio. Ficou inerte sobre as pedras. Os cavaleiros aproximaram-se, forçando os seus cavalos que relinchavam e escoiceavam a pisá-la. Quando se afastaram, nada restava senão uma massa vermelha e lascas brancas.
A noite caiu. Ermanaric levou as suas tropas para casa de Randwar para uma festa de celebração da vitória. De manhã encontraram o tesouro e levaram-no com eles. A corda rangia no local onde Randwar oscilava sobre o que tinha sido Swanhild.
Tais foram as notícias que os homens levaram a Heorot. Eles tinham enterrado os corpos apressadamente. A maioria não se atreveu a fazer mais que isso, mas uns poucos greutungs sentiam-se com ânsias de vingança, como todos os teurings.
Raiva e dor apossaram-se dos irmãos de Swanhild. Ulrica era mais fria, mais fechada em si própria. No entanto, quando eles se perguntaram o que podiam fazer, embora homens da tribo não parassem de chegar de todos os lados... ela falou à parte com os seus filhos e falaram até a escuridão inquieta cair.
Entraram os três no salão. Disseram que já tinham tomado uma decisão. O melhor era responder imediatamente. É verdade que o rei estaria preparado para isso e manteria a sua guarda em alerta durante uns tempos. No entanto, pelos relatos de testemunhas que os tinham visto passar, o seu grupo não seria maior que o que enchia esta noite este edifício. Um ataque de surpresa levado a cabo por homens corajosos poderia vencê-los. Esperar, equivalia a dar a Ermanaric tempo do qual ele precisava e que indubitavelmente contava ter - tempo para esmagar todo e qualquer godo oriental que quisesse se manter livre.
Os homens rugiram a sua disponibilidade.
O jovem Alawin juntou-se a eles. Mas, subitamente, a porta abriu-se e apareceu o Viajante. Severamente, pediu que o último filho de Tharasmund permanecesse em casa, antes de se perder novamente na noite e no vento. Destemidamente, Hathawulf, Solbern e os seus homens partiram a cavalo ao nascer do dia.

Eu fugira para casa, para Laurie. Mas no dia seguinte, quando abri a porta, depois de um longo passeio, ela não estava á minha espera. Em seu lugar, Manse Everard levantou-se da minha poltrona a fumaça do seu cachimbo tornara o ar enevoado e com um cheiro acre.
- Hum? - exclamei eu apenas.
Ele aproximou-se. Senti-lhe os passos. Tão alto como eu e de estrutura mais pesada, ergueu-se imponente. As suas feições estavam totalmente inexpressivas. A janela atrás dele enquadrava-o contra o céu.
- Laurie está bem - disse maquinalmente. - Pedi-lhe que se ausentasse. Já vai ser bastante duro para você, sem que ela o veja e fique chocada e magoada. Pegou-me no cotovelo.
- Sente-se, CarI. Está perfeitamente destroçado, é óbvio. O melhor seria tirar umas férias, não acha?
Deixei-me enterrar no sofá e olhei fixamente para o tapete.
- Tenho de ter... - balbuciei. - Oh, tenho de verificar algumas pontas soltas, mas primeiro... meu Deus, foi horroroso!
- Não.
- Quê? - levantei o olhar. Ele encontrava-se de pé, com os pés afastados, punhos na cintura, imponente.
- Digo-lhe que não posso.
- Pode e fará - vociferou ele. - Vai voltar comigo para a base. Imediatamente. Dormiu esta noite. Bem, não dormirá mais enquanto não acabarmos com isto. E nada de tranqüilizantes. Vai ter de sentir totalmente o que vai acontecer. Vai precisar estar alerta constantemente. Além disso, não há nada como a dor para manter uma lição bem viva na memória. O mais importante, talvez, se não permitir que essa dor passe através de si, como é próprio da natureza, nunca se verá realmente livre dela. Será um homem perseguido. A Patrulha merece o melhor. E Laurie também. E até mesmo você.
- Mas de que raio é que está falando? - perguntei, enquanto o horror se erguia como uma maré à minha volta.
- Tem de terminar o que começou. Quanto mais depressa, melhor, principalmente para você. Que férias é que iria ter se soubesse que ainda tinha esta tarefa à sua frente? Destruída? Não, faça-o imediatamente, veja-o pelas costas nesta linha do seu mundo, então já poderá descansar e começar a recompor-se.
Balancei a cabeça, não como uma negação, mas de espanto.
- Errei? Como? Eu entreguei os relatórios regularmente. Se estava novamente pisando a linha por que é que ninguém não me chamou a atenção e me explicou o que devia fazer?
- É o que estou fazendo, Carl. - Um fantasma de bondade perpassou no tom de voz de Everard. Sentou-se à minha frente e atarefou-se com o cachimbo.
- Alterações casuais são muitas vezes coisas extremamente sutis - disse ele. Apesar do tom suave, estas palavras chocaram-me ao ponto de ficar intensamente atento. Ele acenou. - Sim. Estamos em presença de um. O viajante no tempo tornou-se a causa exatamente do acontecimento que se propôs estudar ou tratar de qualquer outra forma.
- Mas... não, Manse, como? - protestei eu. - Não esqueci os princípios. Nunca os esqueci, nem no terreno nem em outro lugar qualquer. Claro que me tornei parte do passado, mas uma parte que se encaixava no que já existia. Examinamos tudo isso no inquérito... e corrigi os erros que andava cometendo.
O isqueiro de Everard fez um clique ao acender-se que ecoou pela sala.
- Eu disse que podem ser muito sutis - repetiu ele. - Examinei o seu caso com mais profundidade, essencialmente devido a um pressentimento, a uma sensação de que havia ali algo de errado. Envolveu muito mais que ler os seus relatórios... que, agora, são bastante satisfatórios. São apenas insuficientes. A culpa não é sua. Mesmo com uma longa experiência, era muito provável que lhe tivessem passado despercebidas as implicações, em virtude de estar tão pessoalmente envolvido nos acontecimentos. Eu me vi obrigado a encharcar-me em conhecimentos sobre esse meio e vagueei de um lado para o outro, repetidamente, até compreender claramente a situação.
Puxou uma fumaça do seu cachimbo.
- Não se preocupe com os detalhes técnicos - continuou ele. - Basicamente, o seu Viajante tornou-se mais poderoso que você pensou. Acontece que os poemas, histórias, tradições que fluíram durante séculos, transmutando-se, cruzando-se, influenciando as pessoas... uma série delas tinham-no a ele como fontes. Não o Wodan mítico, mas a pessoa física e presente, você próprio. Eu compreendera onde ele queria chegar e reuni a minha defesa.
- Era um risco calculado desde o início - disse eu. - Bastante freqüente. Quando ocorrem trocas mútuas como essa, não é nenhum desastre. O que a minha equipe está investigando são apenas as palavras, orais e escritas. As inspirações originais não são relevantes. Nem fará qualquer diferença para a história subseqüente... se, por exemplo, um homem estava ou não lá em certo momento, e que fosse tomado como um dos deuses pela população... desde que o homem não abusasse da sua posição. - Hesitei. - Não é verdade?
Ele destruiu a minha vaga esperança.
- Não, necessariamente. Seguramente que não neste caso. Uma alteração casual e incipiente é sempre perigosa, sabe. Pode provocar ressonância e as alterações na história decorrentes dela podem multiplicar-se catastroficamente. A única forma de não colocar em perigo as coisas é fechá-la. Quando o Dragão Ouroboros morde a sua própria cauda, não pode devorar mais nada.
- Mas... Manse, eu deixei Hathawulf e Solbern dirigirem-se para a morte... Está bem, admito que tentei evitá-lo, não imaginando que tivesse alguma importância para a humanidade no seu todo. E falhei. Mesmo num pormenor tão ínfimo, o continuum é muito rígido.
- Como sabe que falhou? A sua presença através de gerações, o verdadeiro Wodan, fez mais que introduzir os seus genes na família. Encorajou os seus membros, inspirou-os a tornaram-se grandes. Agora no fim, a vitória na batalha contra Ermanaric parece garantida. Com a convicção de que Wodan está do lado deles, os rebeldes poderão muito bem ganhar.
- Quê? Quer dizer... Oh, Manse!
- Isso não deve acontecer! - disse ele.
A agonia submergiu-me ainda mais.
- Por que não? Quem é que se importará, umas décadas mais tarde, para não falar num milênio e meio mais tarde?
- Mas, exatamente você e os seus colegas - declarou a voz implacável e cheia de piedade. - A sua missão era investigar as raízes de uma história específica sobre Hamther e Sorli, recorda-se? Para não falar nos poemas de Eddica e dos escritores de sagas antes de você, e sabe Deus mais quantos contadores de histórias antes deles, que foram afetados de várias formas menores, mas que podem juntar-se e no final constituir um grande número. No entanto, e principalmente porque Ermanaric é uma figura histórica, proeminente na sua época, a data e maneira como morreu estão registradas. O que se passou imediatamente a seguir abalou o mundo.
- Não, não se trata aqui de uma pequena onda na corrente do tempo. E um furacão em evolução. Temos de evitá-lo e a única forma de fazê-lo é fechar aquela alteração causal, fechar o anel.
Os meus lábios formaram a pergunta inútil, desnecessária.
- Como? - que a garganta e a língua se recusavam a emitir.
Everard pronunciou o veredicto:
- Lamento mais do que possa imaginar, Carl. Mas a Volsungasaga relata que Hamther e Sorli estavam prestes a vencer, quando, por razões desconhecidas, Odin apareceu e os traiu. E ele era você. Não podia ser mais ninguém...

A noite descera há pouco. A Lua, tendo iniciado a fase de minguante, ainda não se levantara. As estrelas emitiam uma claridade sobre os montes e vales onde as sombras se escondiam. A geada começara já a brilhar sobre as pedras. O ar estava frio, sereno, exceto pelo ressoar de muitos cascos de cavalos em corrida. Elmos e punhos de lanças brilhavam, elevavam-se e afundavam-se como vagas numa tempestade.
Na maior das suas casas, o rei Ermanaric estava sentado bebendo com os seus filhos e a maioria dos seus guerreiros. Os fogos chamejavam, guinchavam, estalavam nas suas valas. A luz das lamparinas brilhava através da fumaça. Hastes de veados, peles, tapeçarias, esculturas pareciam mover-se ao longo das paredes e pilares, com o movimento das trevas. O ouro brilhava em braços e em redor de pescoços, os copos entrechocavam-se, as vozes produziam um barulho contínuo e cavo. Escravos serviam à mesa, atarefados. Por cima, a escuridão colava-se às vigas e enchia o vértice do telhado. Ermanaric gostaria de estar alegre. Mas Sibicho não o largava:
- Senhor, não devemos ficar inativos. Concordo que um ataque direto sobre o chefe teurng, seria perigoso, mas podemos começar imediatamente a minar a sua posição entre eles.
- Amanhã, amanhã - disse o rei impacientemente. - Será que você nunca se cansa de intrigas e truques? A noite hoje está reservada para aquela saborosa escrava jovem que comprei.
As cornetas clamaram lá fora. Um homem entrou cambaleando no vestíbulo do edifício. Tinha a cara manchada de sangue.
- Inimigos... ataque... - Uma algazarra submergiu o seu grito.
- A esta hora? - gemeu Sibicho. E de surpresa? Devem ter morto os cavalos viajando até aqui... Sim, e destruído pelo caminho todos os que os poderiam ter ultrapassado!
Os homens saltaram dos bancos e dirigiram-se às suas cotas de malha e armas. Com os que se preparavam na ante-sala, verificou-se um repentino acotovelamento de corpos. Ouviam-se juramentos, levantavam-se punhos.
Os guardas que se tinham mantido equipados apressaram-se a formar uma proteção em frente do rei e dos seus familiares. Ele mantinha sempre um grupo completamente armado. No pátio, os guerreiros reais perderam as suas vidas, dando tempo aos seus camaradas no interior para se prepararem. Os recém-chegados caíram-lhes em cima em número esmagador. Os machados trovejavam, as espadas tiniam, os punhais e lanças enterravam-se fundo. Nessa confusão, nem sempre os soldados mortos caiam no chão imediatamente; os feridos que caiam nunca mais se levantavam.
A cabeça do ataque, um homem grande e jovem gritava:
- Wodan do nosso lado! Ah! - A sua lâmina voava assassina. Apressadamente, os defensores já preparados tomavam lugares na porta da frente. O homem grande e jovem foi o primeiro a atacá-los. A direita e à esquerda, os seus seguidores começaram a penetrar, esmagando, desferindo golpes, dando pontapés, empurrando, rompendo a linha de defesa e pisando tudo no seu caminho.
A medida que o seu ímpeto penetrava até à sala principal, as tropas desarmadas recuavam mais. Os atacantes pararam, ofegantes, quando o seu líder chamou:
- Esperem pelo resto de nós! - O barulho da refrega desvaneceu-se no interior, embora ainda subsistisse lá fora. Ermanaric saltou para o seu trono e olhou por cima dos elmos dos seus guardas. Mesmo na penumbra de luz incerta, ele viu quem estava à porta.
- Hathawulf, filho de Tharasmund, que novos crimes que espera perpetrar? - atirou ele ao longo da sala.
O teuring levantou bem alto a sua espada pingando.
- Viemos para limpar a terra da sua presença - ouviu-lhe dizer.
- Tenha cuidado. Os deuses odeiam os traidores.
- Sim - respondeu Solbern por trás do ombro do irmão - esta noite Wodan vem te buscar, perjuro, e te levará para a casa que merece.
Os invasores continuavam a entrar, Liuderis obrigou-o a formar fileiras irregulares.
- Em frente! - urrou Hathawulf.
Ermanaric dera as suas próprias ordens. Os seus homens poderiam não ter elmo, cota de malha, escudo e arma de lâmina comprida. Mas todos eles tinham pelo menos uma faca. E os teurings também não usavam muito ferro.
A maioria eram agricultores, que não tinham meios que lhe permitissem adquirir mais que um chapéu de metal e uma proteção de couro endurecido, indo apenas para a guerra quando o rei fazia recrutamento. Aqueles que Ermanaric juntara eram guerreiros de profissão, todos eles possuíam uma propriedade ou um barco ou qualquer outra coisa, mas eram essencialmente e em primeiro lugar, guerreiros. Estavam bem treinados em lutar lado a lado com os seus companheiros.
As tropas do rei pegaram os cavaletes e as pranchas que estavam sobre eles. Utilizaram-nos para se proteger. Os que tinham machados, tendo recuado antes da invasão, cortavam à machadada cacetes para os seus colegas a partir de lambris e pilares. Além das facas, uma haste de veado retirado da parede, a ponta fina de um copo de chifre, um copo romano partido, um tição das fogueiras, tudo isso constituía uma arma mortal. Numa luta que se tornara corpo-a-corpo num espaço restrito, carne contra carne, amigo no caminho de outro amigo, empurrando, tropeçando, escorregando no sangue e no suor, a espada ou o machado pouca ajuda proporcionavam. As lanças e espadas de lâmina larga eram inúteis, exceto para os guardas armados que rodeavam o lugar do rei e de onde podiam desferir golpes para baixo.
Então a luta tornou-se caótica, cega, como a fúria do lobo à solta. No entanto, Hathawulf, Solbern e os seus melhores homens abriam um caminho em frente, empurrando, espezinhando, derrubando, esfaqueando, por entre gritos e urros, estrondos e choques, sempre em frente, verdadeiros teurings -até que, por fim, chegaram ao seu objetivo.
Ali empunharam escudo contra escudo, aço contra aço, eles e as tropas de guarda do rei. Ermanaric não estava na linha da frente, mas manteve-se valorosamente em pé sobre o seu assento, à vista de todos, empunhando uma lança. Trocava frequentemente um olhar com Hathawulf e Solbern e então cada um ria com um ódio imenso.
Foi o velho Liuderis quem conseguiu furar a linha. O sangue da vida jorrava-lhe da anca e do braço, mas o seu machado desferia golpes para a direita e para a esquerda, atingindo a bancada e rachando ao meio o crânio de Sibicho. Ao morrer, sibilou:
- Sempre é uma víbora a menos.
Hathawulf e Solbern passaram por cima do corpo dele. Um filho de Ermanaric atirou-se para frente do seu pai. Solbern abateu o rapaz. Hathawulf feriu mais longe. O punho da lança de Ermanaric defendeu-o. Hathawulf atacou novamente. O rei foi atirado contra a parede. O seu braço direito estava pendurado, meio separado do corpo. Solbern desferiu um golpe baixo, à perna esquerda e paralisou-o. Ele caiu impotente, ainda rugindo. Os irmãos avançaram para o golpe final. Os seus seguidores faziam esforços para conservar os últimos guardas reais longe deles. Mas alguém surgiu.
Uma parada da luta alastrou por todo o salão como uma onda, quando uma pedra cai no lago. Os homens estavam assombrados e ofegantes.
Através da penumbra conturbada, ainda mais densa devido à grande quantidade de gente que enchia o salão, mal conseguiam ver o que planava por cima da cadeira real.
Num cavalo esquelético, cujas pernas eram de metal, estava sentado um homem de barba grisalha. O chapéu e um manto escondiam-lhe completamente o rosto. Na sua mão direita empunhava uma lança. A sua cabeça, por cima de todas as outras armas e delineada contra o escuro do teto, emitiu uma chama, uma corneta, um prenúncio de desgraça.
Hathawulf e Solbern deixaram cair as suas armas.
- Antepassado - murmurou o mais velho no meio daquele inesperado silêncio. - Veio em nosso auxílio?
A resposta rolou com uma profundidade inumana, impiedosa e por todos ouvida:
- Irmãos, a morte pesa sobre vocês. Enfrentem-na corajosamente e os seus nomes serão lembrados.
- Ermanaric, ainda não chegou a sua vez. Envie os seus homens pela retaguarda e apanhe os teurings por trás.
- Vão, todos vocês, para onde Weard quer que vão.
E já não estava lá.
Hathawulf e Solbern ficaram petrificados. Ferido, ensangüentado, Ermanaric ainda conseguiu gritar:
- Obedeçam! Mantenham-se firmes contra o inimigo. E os outros vão por aquela porta, dêem a volta... e obedeçam às ordens de Wodan!
Os seus guarda-costas foram os primeiros a compreender. Gritaram a sua alegria e caíram sobre os inimigos. Por seu lado, os outros recuaram, desmoralizados, para o turbilhão renascido. Solbern ficou para trás, estirado por baixo da cadeira real, num mar de sangue.
Os homens do rei saíam pelas pequenas portas traseiras, davam a volta ao edifício e voltavam a entrar pela frente. A maior parte dos teurings tinham entrado. Os greutungs aniquilaram os que ainda se encontravam no pátio. Quando não tinham melhores armas, arrancavam as pedras do solo e atiravam-nas. Uma lua-nascente dava-lhes luz suficiente. Urrando, os guerreiros limparam a seguir a sala de entrada. Armaram-se e atiraram-se aos invasores por ambos os lados.
Violenta foi a batalha. Sabendo que morreriam, acontecesse o que acontecesse, os teurings lutaram até cair. Hathawulf, sozinho, ergueu uma muralha de mortos à sua frente. Quando caiu, poucos restavam para se alegrar com o fato.
O próprio rei não teria sobrevivido, se a sua gente não tivesse se apressado a estancar-lhe as feridas. Mesmo assim, levaram-no, quase inconsciente, para fora do salão, onde apenas habitavam os mortos.


- Laurie, Laurie!

A manhã trouxe chuva. Batida por um vento uivante, gélida e dura como granizo, escondia tudo exceto a povoação que se aninhava por debaixo dela, como se o resto do mundo tivesse perecido num naufrágio. O troar da chuva no telhado ressoava por toda a Heorot vazia.
A escuridão parecia ainda aumentada pelo vazio. Os fogos ardiam, as lamparinas brilhavam no meio das trevas. A atmosfera estava cortante. Três figuras encontravam-se perto do centro. O que diziam não as deixava sentarem-se. O bafo saia branco-fantasma dos seus lábios.
- Mortos? - murmurou Alawin atordoado. - Todos? Não escapou nenhum?
O Viajante assentiu.
- Sim - repetiu ele -, embora a desgraça seja tão grande para os greutungs como para os teurings. Ermanaric está vivo, mas aleijado e coxo e perdeu dois filhos.
Ulrica lançou-lhe um olhar arguto.
- Se isso aconteceu na noite passada - disse ela -, não cavalgou nenhum cavalo terreno para nos trazer a notícia...
- Sabe quem sou... - respondeu ele.
- Será que sei? - ergueu para ele dedos repuxados como garras. A sua voz transformou-se num guincho. - Se é na realidade Wodan, ele é um deus miserável, que não quis ou não pôde ajudar os meus filhos quando precisavam dele.
- Espere, espere - implorou Alawin, enquanto lançava um olhar temeroso para o Viajante.
Este último disse suavemente:
- Eu estou de luto com vocês. Mas a vontade de Weard não pode ser alterada. A medida que a história do que aconteceu se espalhar para o ocidente, é provável que ouçam que eu estive lá e que foi Ermanaric quem eu salvei. Saibam que contra o tempo, até os próprios deuses nada podem. Eu fiz o que me estava destinado fazer. Lembrem-se de que, ao perecerem da forma que lhes estava destinada, Hathawulf e Solbern redimiram a honra desta casa e ganharam uma fama que será recordada enquanto a sua raça existir.
- Mas Ermanaric continua vivo sobre a terra - contrapôs Ulrica. - Alawin, o dever da vingança passou para você.
- Não - disse o Viajante. - A tarefa dele é mais importante que isso. É a de salvar o sangue da família, a vida do clã. E por isso que vim.
Virou-se para o jovem, que olhava para tudo com uns olhos esbugalhados.
- Alawin - continuou ele-, eu tenho o dom da presciência e acredite-me é um fardo pesado. No entanto, às vezes, posso utilizá-lo para evitar desgraças. Ouça bem, pois será esta a última vez que me ouvirá.
- Viajante, não! - gritou Alawin.
Ulrica respirou por entre dentes cerrados. O Cinzento levantou a mão que não empunhava a lança.
- O Inverno depressa chegará - disse ele -, mas a ele se seguirá a Primavera e ao Verão. A árvore da tua linha está despida de folhas, mas as suas raízes mantêm forças latentes e voltará a florescer... se um machado não a derrubar. Apresse-se. Embora esteja ferido, Ermanaric irá tentar, de uma vez por todas, acabar com a sua raça insolente. Você não conseguirá reunir uma força tão grande como a dele. Se permanecer aqui, morrerá. Pense bem. Está preparado para viajar para o ocidente, e uma boa recepção te aguarda junto dos Visigodos. Será ainda mais calorosa devido à derrota que Athanaric sofreu este ano infligida pelos Hunos, no rio Dnestr, estão precisando de almas frescas e esperançosas. Dentro de alguns dias, pode iniciar a viagem. Os homens de Ermanaric, quando aqui vierem, encontrarão apenas as cinzas desta casa, à qual ateará fogo para que não lhe caia nas mãos e será uma pira ardente em honra dos seus irmãos.
- Não será uma fuga. Não, partirão para forjar um amanhã mais poderoso. Alawin, é agora o único depositário do sangue dos teus pais. Guarde-o bem.
A fúria desfigurou a face de Ulrica.
- Sim, sempre teve palavras convincentes - disse ela em voz trêmula. - Não siga os seus conselhos traiçoeiros, Alawin. Mantenha-se no seu lugar. Vingue os meus filhos... os filhos de Tharasmund.
O jovem engoliu em seco.
- Quer realmente... que eu parta... enquanto o assassino de Swanhild, Randwar, Hathawulf e Solbern... ainda vive? - gaguejou ele.
- Não deve ficar aqui - disse o Viajante em voz grave. -Se ficar, sacrificará a última vida que existia no seu pai... a daria ao rei, juntamente com a do filho e mulher de Hathawulf e a da sua própria mãe. A retirada não é desonra nenhuma quando se está em grande inferioridade numérica.
- Sim... eu podia contratar uma hoste visigoda...
- Não terá necessidade disso. Escute. Daqui a três anos, ouvirá notícias sobre Ermanaric que te alegrarão. A justiça dos deuses cairá sobre ele. Dou-lhe a minha palavra de honra!
- Que valor tem ela? - escarneceu Ulrica.
Alawin encheu os pulmões de ar, endireitou os ombros, ficou imóvel por uns momentos e depois disse calmamente:
- Madrasta, fique calada. Eu sou o homem da casa. Seguiremos o conselho do Viajante.
O rapaz que ele ainda era, irrompeu por um momento:
- Oh, mas senhor, antepassado... é verdade que nunca mais o veremos? Não nos abandone!
- Sou obrigado a isso - respondeu o Cinzento. - É necessário para vocês que isso aconteça. - Subitamente acrescentou: - Sim, o melhor é ir me embora imediatamente. Boa sorte. Boa sorte para sempre!
Atravessou a escuridão, saiu pela porta, para a chuva e o vento.

Aqui e ali, em várias épocas, a Patrulha do Tempo mantém locais onde os seus membros podem repousar. Entre eles está o Havaí, antes dos Polinésios terem chegado. Embora essa estância exista durante milhares de anos, Laurie e eu consideramo-nos afortunados por conseguirmos alugar uma casa por um mês. Na realidade, suspeitamos que Manse Everard mexera os seus pauzinhos em nosso favor. Ele não falou nisso quando nos fez uma visita no final das nossas férias. Foi simplesmente afável, acompanhou-nos num piquenique e surfou conosco, atacando seguidamente o jantar, que Laurie preparara, com o apetite que merecia. Só mais tarde é que nos falou do que nos esperava nas nossas linhas de vida, e do que acontecera no passado.
Sentamo-nos num terraço junto à casa. O lusco-fusco descia frio e azul sobre o jardim e para lá dele, através da floresta florida. A leste, a terra descia íngreme até onde o mar brilhava prateado; para oeste, a estrela da noite tremeluzia por cima do Mauna Kea. Um riacho cantarolava. Era a paz que curava.
- Então, sente-se pronto para regressar? - perguntou Everard.
- Sim - respondi. - E vai ser muito mais fácil. O trabalho de base já foi feito, a informação básica coligida e assimilada. Tenho apenas de gravar as canções e as histórias à medida que são compostas e que evoluem.
- Apenas! - exclamou Laurie. A sua troça era terna e tornou-se um consolo quando pousou a sua mão na minha. - Bem, pelo menos está livre da sua dor.
Everard perguntou em voz baixa:
- Tem certeza disso, CarI?
Mantive-me calmo ao responder.
- Sim. Ah, é claro que haverá sempre recordações dolorosas, mas não é esse o eterno destino do homem? Há muitas mais que são boas e consigo recordá-las novamente.
- E claro que compreende que não deve voltar a deixar-se obcecar desta forma. É um risco que muitos de nós corremos e muitas vezes não impunemente... - Teria o seu tom vacilado, muito levemente? Apressou-se. - Quando tal acontece, a vítima tem de ultrapassá-lo e restabelecer-se.
- Eu sei - respondi, e sorri um pouco. - Não sabe que eu sei?
Everard puxou uma fumaça do seu cachimbo.
- Não exatamente. Já que o resto da sua carreira parece livre de distúrbios, além dos naturais para um agente de campo, não poderia justificar o gasto de tempo de vida e de recursos da Patrulha numa investigação mais aprofundada. Não estou aqui em caráter oficial. Vim como um amigo, que gostaria simplesmente de saber como está. Não me diga nada que não queira.
- E um querido e velho urso, isso é que é! - disse-lhe Laurie.
Não me sentia inteiramente à vontade, mas um gole do meu rum Collins ajudou.
- Mas, sim, claro, é com o maior prazer que lhe darei as informações - comecei eu. - Tomei o cuidado de me assegurar de que Alawin ficaria bem.
Everard agitou-se.
- Como... - perguntou.
- Nada de preocupante, Manse. Procedi cautelosamente, na maior parte do tempo indiretamente. Diferentes identidades em diferentes ocasiões. Das poucas vezes que me viu de raspão, não me reconheceu. - Os meus dedos passaram sobre o queixo bem escanhoado, estilo romano, bem como o meu cabelo cortado curto. - Quando necessário, um patrulheiro tem tecnologia avançada ao seu dispor para qualquer disfarce. Oh, sim, deixei o Viajante em Paz.
- Ótimo! - Everard voltou a recostar-se na cadeira. - Que aconteceu a esse garoto?
- Refere-se a Alawin? Bem, ele levou um grupo de tamanho razoável, incluindo a sua mãe Erelieva e a sua nova família, para o ocidente, para se juntar a Frithigern. (Ele os levaria daí a três séculos. Mas estávamos falando no nosso inglês nativo. A língua temporal tem os modos apropriados.) Foi acolhido com todas as honrarias, principalmente depois de ter se batizado. Por si só, esta era uma razão para o Viajante desaparecer. Como poderia um cristão manter-se próximo de um deus pagão?
- Hum... Pergunto a mim próprio que é que ele terá pensado dessas experiências, mais tarde.
- Tenho a impressão de que manteve a boca fechada. Naturalmente que se os seus descendentes... ele casou bem, se os seus descendentes mantiveram alguma tradição sobre o assunto, teriam suposto que era uma espécie de fantasma que andava à solta no antigo país.
- No antigo país? Ah, sim. Nesse caso, Alawin nunca regressou à Ucrânia, é isso?
- Não, de fato não. Gostaria que lhe contasse em traços largos a história?
- Por favor. Estudei-a um pouco, em relação com o seu caso, mas quase nada em relação às conseqüências. Além disso, foi há bastante tempo, na minha linha de vida.
“E muito deve te deve ter acontecido desde então”, pensei eu.
Em voz alta:
- Bem, em 374 o povo de Frithigern atravessou o Danúbio, com autorização, e instalou-se na Trácia. Athanaric seguiu-o pouco tempo depois, embora fosse para a Transilvânia. A pressão dos Hunos tornara-se excessiva.
- Os oficiais romanos abusaram e exploraram os Godos, por outras palavras, agiram como um Governo, durante vários anos. Finalmente, os Godos decidiram que já estavam fartos e revoltaram-se. Os Hunos tinham-lhes dado a idéia e a técnica de desenvolvimento da cavalaria, que eles tornaram pesada, na batalha de Adrianople em 378 venceram os Romanos. A propósito, Alawin distinguiu-se nessa batalha, que o lançou no caminho da fama que depois atingiu. Um novo imperador, Teodósio, assinou a paz com os Godos em 381 e a maior parte dos seus guerreiros entraram ao serviço dos romanos como foederati, aliados, diríamos nós.
- Depois multiplicaram-se os conflitos, batalhas, migrações... o Volkerwanderung estava lançado. Vou resumi-lo ao meu Alawin, dizendo que, depois de uma vida turbulenta, mas basicamente feliz, ele morreu, numa idade avançada, no reino que por essa altura os Visigodos já tinham criado para si próprios na Gália do sul. Os descendentes dele tiveram um papel importante na fundação da nação espanhola. Portanto, está vendo como posso deixar essa família prosseguir o seu caminho e continuar o meu trabalho.
A mão de Laurie apertou a minha com força. O crepúsculo já se tornara noite. As estrelas brilhavam. A brasa do cachimbo de Everard emitiu o seu clarão vermelho. Ele parecia uma forma negra, como a montanha que se erguia no horizonte a ocidente.
- Sim - cismou -, estou recordando-me, em parte. Mas tem estado a falar dos Visigodos. Os Ostrogodos, os conterrâneos originais de Alawin, não conquistaram a Itália?
- Eventualmente - respondi eu. - Mas primeiro sofreram horrores. - Fiz uma pausa. O que eu ia dizer a seguir tocava em feridas que ainda não estavam completamente saradas. - O Viajante falou a verdade. Swanhild foi vingada...

Ermanaric estava sentado sozinho sob as estrelas. O vento lamentava-se. Ouviam os lobos uivando ao longe.
Depois dos mensageiros trazerem as notícias, não conseguia agüentar o horror e a conversa que lhe seguia. Obedecendo às suas ordens, dois guerreiros tinham-no ajudado a subir as escadas até ao terraço da sua casa. Sentaram-no num banco junto do parapeito e cobriram-lhe os ombros descaídos com um manto de peles.
- Vão embora! - rugiu ele e eles foram-se, perseguidos pelo medo. Ele contemplara o crepúsculo a desvanecer-se a oeste, enquanto nuvens de tempestade se aglomeravam azul-negras a leste. Essas nuvens cobriam agora um quarto dos céus. Os relâmpagos brincavam através das suas cavernas. Antes do nascer do dia, a tempestade desabaria aqui. Mas por enquanto apenas se sentia o vento prenunciador de um frio de Inverno em pleno Verão. No resto do céu, as estrelas ainda brilhavam em hordas.
Eram minúsculas, estranhas e desapiedadas. O olhar de Ermanaric tentou fugir da visão do carro de Wodan, onde ele rodava à volta do Olho de Tiwaz, que vigia sempre a partir do norte. Mas voltava sempre atraído para o sinal do Viajante.
- Não segui os seus conselhos, deuses - murmurou ele uma vez. - Confiei na minha própria força. Vocês são mais traiçoeiros e cruéis do que eu pensava.
Aqui estava ele, sentado, ele, o poderoso, manco de pé e mão, sem poder fazer nada a não ser ouvir contar que o inimigo atravessara o rio e esmagara debaixo de si o exército que tentava opor-lhe.
Ele deveria estar pensando no que iria tentar a seguir, dando ordens, organizando a sua gente. Mas a cabeça do rei parecia oca. Oca, mas não vazia. Os homens mortos enchiam esse salão constituído por ossos, os homens que caíram com Hathawulf e Solbern, a flor dos Godos orientais. Se eles ainda estivessem vivos nestes últimos dias, juntos teriam rechaçado os Hunos, com Ermanaric à sua frente. Mas Ermanaric também morrera, no mesmo morticínio. Nada restava a não ser um aleijado, cujas dores cavavam buracos no seu cérebro.
Não podia fazer mais nada pelo seu reino, senão abandoná-lo, com esperanças de que o seu filho mais velho, ainda vivo, pudesse ser mais digno, pudesse ser vitorioso. Ermanaric arreganhou os dentes para as estrelas. Bem demais sabia ele como essa esperança era vã. Perante os Ostrogodos erguia-se a derrota, rapina, matança, submissão. Se alguma vez voltassem a ser livres, seria muito tempo depois de ele já se ter tornado em pó.
Ele, como tal, seria abençoado, ou apenas a sua carne? Que destino o aguardaria nas trevas?
Puxou o punhal. A luz das estrelas e dos relâmpagos refulgiu no aço. Por momentos, tremeu-lhe a mão. O vento soprava.
- Acabe com tudo! - gritou. Afastou a barba para o lado, elevou a ponta do punhal ao canto direito da sua garganta. Os olhos ergueram-se novamente, como se tivessem vontade própria, para o carro do Viajante. Viu algo branco brilhando lá longe... um farrapo de nuvem ou Swanhild cavalgando atrás do Viajante? Ermanaric reuniu toda a coragem que lhe restava. Fez força com a lâmina para dentro e enterrou-a na garganta.
Sangue espirrou da garganta dilacerada. Curvou-se e caiu no chão do terraço. A última coisa que ouviu foi o ribombar dos trovões. Parecia o som dos cascos dos cavalos em direção ao ocidente, trazendo as trevas dos Hunos.

E Varagan encolheu os ombros, como um gato.
- Tem pelo menos de reconhecer que o meu império se revestiria de uma certa magnificência tenebrosa.
O saltitão materializou-se subitamente e pairou a seis metros de altura.
O seu cavaleiro sorriu maliciosamente e apontou a arma de fogo que transportava. Da sela do seu cavalo, Merau Varagan acenou ao seu eu viajante no tempo.
Everard nunca chegou a perceber bem o que aconteceu a seguir. Sem saber bem como, conseguiu escapar da confusão e chegar ao chão. Então, um feixe atingiu-o.

 

 

                                                                  Poul Anderson

 

 

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